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INVERNO DO MUNDO - P.2 / Ken Follett
INVERNO DO MUNDO - P.2 / Ken Follett

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

INVERNO DO MUNDO

Segunda Parte

 

            Thomas Macke estava vigiando a embaixada soviética em Berlim quando Volodya Peshkov saiu.

           Fazia seis anos que a polícia secreta prussiana havia sido transformada na nova e mais eficiente Gestapo, mas o agente Macke continuava responsável pela seção que monitorava traidores e subversivos na cidade de Berlim. Os mais perigosos entre eles sem dúvida deviam estar recebendo ordens daquele prédio, no número 63-65 da Unter den Linden. Por isso Macke e seus homens vigiavam todos os que entravam e saíam de lá.

           A embaixada era uma fortaleza em estilo art déco feita de uma pedra branca que refletia dolorosamente o brilho do sol de agosto. Uma abóbada sustentada por colunas encimava o bloco central da embaixada, e as alas tinham fileiras de janelas altas e estreitas de ambos os lados, como guardas em posição de sentido.

           Macke foi se sentar num café na calçada em frente. O bulevar mais elegante de Berlim estava lotado de carros e bicicletas; mulheres de vestidos de verão e chapéus, fazendo compras; homens que passavam apressados, trajando ternos ou uniformes elegantes. Era difícil acreditar que ainda houvesse comunistas na Alemanha. Como alguém podia ser contra os nazistas? A Alemanha estava transfigurada. Hitler havia acabado com o desemprego – algo que nenhum outro líder da Europa conseguira fazer. Greves e protestos eram uma lembrança distante dos dias ruins. A polícia gozava de plenos poderes para eliminar o crime. O país prosperava: muitas famílias agora tinham rádio e logo teriam carros populares para dirigir nas novas Autobahns.

           E não era só isso. A Alemanha era forte outra vez. As Forças Armadas estavam bem-aparelhadas e poderosas. Nos últimos dois anos, a Áustria e a Tchecoslováquia tinham sido incorporadas à Grande Alemanha, agora a maior potência europeia. A Itália de Mussolini havia se aliado aos alemães pelo Pacto de Aço. No início do ano, Madri finalmente tombara diante dos rebeldes de Franco, e a Espanha agora tinha um governo fascista. Como algum alemão poderia querer desfazer tudo isso e submeter o país ao jugo dos bolcheviques?

           Na opinião de Macke, essas pessoas não passavam de escória, vermes, uma imundície que precisava ser desmascarada de forma implacável e aniquilada por completo. Enquanto pensava nisso, seu rosto se contorceu com uma careta de raiva e ele bateu com o pé na calçada como quem se prepara para esmagar um comunista.

           Foi então que viu Peshkov.

           O russo era um rapaz jovem, de terno de sarja azul, que trazia um sobretudo leve pendurado no braço, como se esperasse uma mudança no tempo. Apesar dos trajes civis, os cabelos cortados rente e os passos rápidos eram indícios de treinamento militar, e a forma como ele correu os olhos pela rua, tentando parecer casual mas sem deixar escapar nada, sugeria que pertencia à Inteligência do Exército Vermelho ou à NKVD, a polícia secreta russa.

           O pulso de Macke se acelerou. Ele e seus homens conheciam de vista todos os funcionários da embaixada, é claro. As fotografias de seus passaportes estavam arquivadas e a equipe os vigiava o tempo inteiro. Mas ele não sabia muita coisa sobre Peshkov. Segundo sua ficha, ele tinha 25 anos, lembrou Macke, portanto devia ser um funcionário pouco graduado, sem importância. Ou talvez tivesse talento para parecer insignificante.

           Peshkov atravessou a Unter den Linden e encaminhou-se para onde Macke estava sentado, perto da esquina com a Friedrichstrasse. Quando o russo se aproximou, Macke reparou que ele era bem alto e tinha um porte atlético. Sua expressão era alerta e seu olhar, penetrante.

           Macke desviou os olhos, subitamente nervoso. Pegou a xícara e tomou um gole da borra fria de café, ocultando parte do rosto. Não queria encarar aqueles olhos azuis.

           Peshkov entrou na Friedrichstrasse. Macke meneou a cabeça para Reinhold Wagner, em pé na esquina oposta, e este começou a seguir Peshkov. Macke então se levantou da mesa e foi atrás de Wagner.

           É claro que nem todos os integrantes da Inteligência do Exército Vermelho eram espiões clandestinos. Eles obtinham a maioria de suas informações por meios legítimos, principalmente com a leitura dos jornais alemães. Não acreditavam necessariamente em tudo o que liam, mas tomavam nota de pistas, como um anúncio de uma fábrica de armas que precisava contratar dez torneiros mecânicos com experiência. Além do mais, os russos tinham liberdade para viajar pela Alemanha e observar o país – ao contrário dos diplomatas na União Soviética, que não podiam sair de Moscou sem escolta. O rapaz que Macke e Wagner estavam seguindo nesse dia podia ser um coletor de informações desse tipo: um dócil leitor de jornais. As únicas habilidades necessárias para esse trabalho eram um alemão fluente e a capacidade de resumir um texto.

           Ainda seguindo Peshkov, os dois passaram em frente ao restaurante do irmão de Macke. O estabelecimento ainda se chamava Bistrô Robert, mas agora tinha outra clientela. Os homossexuais ricos, os industriais judeus com suas amantes e as atrizes que recebiam salários astronômicos e pediam champanhe rosé eram coisas do passado. Hoje em dia, esse tipo de gente levava uma vida discreta, isso se já não estivessem em campos de concentração. Alguns tinham deixado a Alemanha – e, na opinião de Macke, já foram tarde, mesmo que isso significasse que o restaurante não era mais tão rentável.

           Ele se perguntou o que teria acontecido com Robert von Ulrich, o antigo dono. Lembrou-se vagamente de que ele fora para a Inglaterra. Talvez tivesse aberto outro restaurante para pervertidos lá.

           Peshkov entrou num bar.

           Uns dois minutos depois, Wagner entrou atrás dele e Macke ficou vigiando o lado de fora. Era um bar concorrido. Enquanto esperava Peshkov reaparecer, viu um soldado entrar acompanhado por uma garota, e duas mulheres bem-vestidas e um velho de sobretudo encardido saírem e se afastarem. Então Wagner saiu do bar sozinho, olhou diretamente para Macke e abriu os braços, num gesto de incompreensão.

           Macke atravessou a rua e foi até Wagner, que estava aflito.

           – Ele não está lá dentro!

           – Você olhou em todos os cantos?

           – Sim, inclusive nos banheiros e na cozinha.

           – Perguntou se alguém tinha saído pelos fundos?

           – Disseram que não.

           O medo de Wagner era justificado. Aquela era a nova Alemanha e os erros não eram mais repreendidos com um simples tapinha na mão. Ele poderia receber uma punição severa.

           Mas não dessa vez.

           – Não tem problema – disse Macke.

           Wagner não conseguiu disfarçar o alívio.

           – Não?

           – Nós descobrimos algo importante – explicou Macke. – O fato de ele ter nos despistado com tanta habilidade prova que é um espião... e dos bons.

 

           Volodya entrou na estação da Friedrichstrasse e tomou um trem do metrô berlinense, o U-bahn. Tirou a boina, os óculos e a capa de chuva encardida que o haviam ajudado a parecer um velho. Sentou-se, pegou um lenço e limpou o pó que tinha despejado sobre os sapatos para lhes dar um aspecto surrado.

           Não tivera certeza em relação à capa. O dia estava tão ensolarado que temera que a Gestapo fosse reparar na roupa e prever o que ele pretendia. Mas eles não tinham sido tão sagazes assim e ninguém o seguira após ele se trocar rapidamente no banheiro masculino e sair do bar.

           Volodya estava prestes a fazer algo muito perigoso. Se fosse surpreendido fazendo contato com um dissidente alemão, o melhor que ele poderia esperar seria uma deportação para Moscou com a carreira arruinada. Se tivesse menos sorte, tanto ele quanto o dissidente desapareceriam para sempre nos porões da sede da Gestapo na Prinz-Albrecht-Strasse. Os soviéticos reclamariam que um de seus diplomatas tinha sumido, então a polícia alemã fingiria abrir um inquérito de busca, depois informaria com pesar que não conseguira encontrá-lo.

           Volodya nunca estivera na sede da Gestapo, mas sabia como seria o lugar. A NKVD tinha uma instalação semelhante na Missão Comercial Soviética, no número 11 da Lietsenburgerstrasse: portas de aço, uma sala de interrogatório com paredes revestidas de ladrilhos para que o sangue pudesse ser lavado com facilidade, uma banheira para esquartejar os corpos, e um forno elétrico para queimar as partes.

           Volodya fora enviado a Berlim para expandir a rede de espiões soviéticos da cidade. O fascismo triunfava na Europa, e a Alemanha agora era mais do que nunca uma ameaça à URSS. Stalin demitira seu primeiro-ministro, Litvinov, e o substituíra por Viatcheslav Molotov. Mas o que Molotov poderia fazer? Parecia impossível deter os fascistas. O Kremlin era assombrado pela lembrança humilhante da Grande Guerra, na qual os alemães tinham derrotado o Exército russo, composto por seis milhões de homens. Stalin tomara providências para fazer um pacto com a França e a Grã-Bretanha a fim de conter a Alemanha, mas as três potências não tinham conseguido chegar a um acordo, e nos últimos dias as negociações haviam sido abortadas.

           A expectativa era que, mais cedo ou mais tarde, estourasse uma guerra entre a Alemanha e a União Soviética, e a tarefa de Volodya era conseguir informações militares que ajudassem os soviéticos a vencê-la.

           Ele desceu do metrô no subúrbio operário pobre de Wedding, ao norte do centro de Berlim. Parou do lado de fora da estação fingindo examinar um quadro de horários afixado à parede, e ficou observando os outros passageiros que saíam. Só se mexeu depois de ter certeza de que ninguém o seguira até ali.

           Encaminhou-se então para o restaurante barato escolhido como local para o encontro. Como era seu costume, não entrou. Ficou num ponto de ônibus do outro lado da rua observando a porta. Estava seguro de que não havia ninguém no seu encalço, mas agora precisava se certificar de que Werner não fora seguido.

           Não tinha certeza se iria reconhecer Werner Franck. Da última vez que Volodya o vira, o garoto tinha apenas 14 anos, e agora estava com 20. Werner pensava a mesma coisa, por isso os dois tinham combinado que carregariam exemplares da edição do dia do Berliner Morgenpost abertos na página de esportes. Enquanto aguardava, Volodya leu os prognósticos para a nova temporada de futebol, erguendo os olhos de vez em quando à procura de Werner. Acompanhava o principal time de Berlim, o Hertha, desde que havia morado na cidade, quando menino. Já entoara muitas vezes o gito de guerra do clube: “Ha! Ho! He! Hertha B-S-C!” Estava interessado nas chances do time, mas o nervosismo prejudicou sua concentração, e ele leu o mesmo texto várias vezes sem assimilar nada.

           Os dois anos na Espanha não tinham feito sua carreira deslanchar como ele esperava – muito pelo contrário. Volodya havia desmascarado vários espiões nazistas como Heinz Bauer entre os “voluntários” alemães. No entanto, a NKVD usara isso como desculpa para prender voluntários de verdade que simplesmente haviam manifestado alguma leve discordância com a linha de ação comunista. Centenas de rapazes idealistas tinham sido torturados e mortos nas prisões da polícia secreta. Em alguns momentos, parecia que os comunistas estavam mais interessados em combater seus aliados anarquistas do que os inimigos fascistas.

           E tudo isso por nada. A política de Stalin era um fracasso retumbante. O resultado era uma ditadura de direita, o pior desfecho possível para a União Soviética. A culpa, no entanto, foi posta nos russos que tinham ido à Espanha, embora estes houvessem executado à risca as instruções do Kremlin. Alguns tinham desaparecido logo depois de voltarem a Moscou.

           Após a queda de Madri, Volodya voltara para casa com medo. Havia deparado com várias mudanças. Em 1937 e 1938, Stalin expurgara o Exército Vermelho. Milhares de comandantes tinham desaparecido, entre os quais muitos moradores da Casa do Governo, onde seus pais moravam. Por outro lado, homens outrora negligenciados, como Grigori Peshkov, tinham sido promovidos aos cargos dos expurgados, e a carreira do pai de Volodya ganhara novo fôlego. Ele agora era responsável pela defesa aérea de Moscou e vivia ocupadíssimo. Seu status recém-adquirido era provavelmente o motivo pelo qual Volodya não estava entre os bodes expiatórios usados para explicar o fracasso da política stalinista na Espanha.

           O desagradável Ilya Dvorkin também dera um jeito de evitar uma punição. De volta a Moscou, tinha se casado com Anya, irmã de Volodya, para desgosto deste. Não havia como explicar as decisões das mulheres em relação a esses assuntos. Ela já estava grávida e Volodya não conseguia reprimir um pesadelo no qual via a irmã amamentando um bebê com cara de rato.

           Depois de uma breve licença, Volodya fora mandado para Berlim, onde precisava recomeçar do zero e provar seu valor.

           Ergueu os olhos do jornal e viu Werner andando pela rua.

           O alemão não mudara muito. Estava um pouco mais alto e mais largo, porém tinha os mesmos cabelos ruivos caindo por cima da testa de um jeito que as moças achavam irresistível, e a mesma expressão brincalhona e tolerante nos olhos azuis. Estava usando um elegante terno de verão azul-claro, e abotoaduras de ouro cintilavam em seus punhos.

           Ninguém o estava seguindo.

           Volodya atravessou a rua e o interceptou antes que ele chegasse ao café. Werner abriu um sorriso largo, de dentes muito brancos.

           – Eu não o teria reconhecido com esse corte de cabelo militar – falou. – Prazer em vê-lo depois de tantos anos.

           Volodya observou que o rapaz não havia perdido nenhum pingo de sua afabilidade e de seu charme.

           – Vamos entrar.

           – Você não quer mesmo entrar nessa espelunca, quer? – indagou Werner. – Vai estar cheia de bombeiros hidráulicos comendo salsichão com mostarda.

           – Eu quero sair da rua. Aqui podemos ser vistos por qualquer passante.

           – Tem um beco três portas adiante.

           – Ótimo.

           Os dois percorreram uma curta distância e entraram num corredor estreito que separava um depósito de carvão de uma mercearia.

           – O que você anda fazendo? – quis saber Werner.

           – O mesmo que você: lutando contra os fascistas. – Volodya pensou se deveria lhe revelar mais. – Estive na Espanha. – Aquilo não era nenhum segredo.

           – Onde não teve mais sucesso do que nós aqui na Alemanha.

           – Mas ainda não acabou.

           – Deixe eu lhe perguntar uma coisa – pediu Werner, recostando-se no muro do beco. – Se você achasse que o bolchevismo é mau, viraria um espião contra a União Soviética?

           O instinto de Volodya foi responder Não, de jeito nenhum! No entanto, antes que as palavras saíssem de sua boca, percebeu como isso seria insensível – pois a perspectiva que lhe causava repulsa era justamente o que Werner estava fazendo: traindo o próprio país pelo bem de uma causa mais nobre.

           – Não sei – respondeu. – Acho que deve ser muito difícil para você trabalhar contra a Alemanha, mesmo que deteste os nazistas.

           – Tem razão – concordou Werner. – E o que vai acontecer se a guerra estourar? Vou ajudar vocês a matar nossos soldados e bombardear nossas cidades?

           Volodya estava preocupado. Werner parecia estar fraquejando.

           – É o único jeito de derrotar os nazistas – falou. – Você sabe disso.

           – Sei, sim. Já tomei minha decisão há muito tempo. E os nazistas não fizeram nada para que eu mudasse de ideia. Mas que é difícil, é.

           – Eu entendo – disse Volodya, em tom simpático.

           – Você me pediu que sugerisse outras pessoas que pudessem fazer para vocês a mesma coisa que eu faço.

           Volodya assentiu.

           – Pessoas como Willi Frunze. Lembra-se dele? O menino mais inteligente da escola. Ele era um socialista sério... estava presidindo aquela reunião que os camisas-pardas interromperam.

           Werner fez que sim com a cabeça e falou:

           – Ele foi para a Inglaterra.

           Volodya ficou desanimado.

           – Por quê?

           – Virou um físico brilhante e está estudando em Londres.

           – Que merda.

           – Mas eu pensei em outra pessoa.

           – Ótimo!

           – Você chegou a conhecer Heinrich von Kessel?

           – Acho que não. Ele era da nossa escola?

           – Não, ele estudava numa escola católica. E, na época, não tinha as mesmas opiniões políticas que nós. O pai dele era um figurão do Partido do Centro...

           – Que pôs Hitler no poder em 1933!

           – Isso mesmo. Na época, Heinrich trabalhava para o pai, que agora é do Partido Nazista. Mas o filho está atormentado de culpa.

           – Como você sabe?

           – Ele ficou bêbado e contou para minha irmã Frieda. Ela tem 17 anos. Acho que ele gosta dela.

           Aquilo era bem promissor. Volodya ficou mais animado.

           – Ele é comunista?

           – Não.

           – Então por que acha que ele vai trabalhar para nós?

           – Eu perguntei, sem rodeios: “Se você tivesse uma chance de lutar contra os nazistas sendo espião da União Soviética, aceitaria?” Ele disse que sim.

           – Ele trabalha com o quê?

           – Está no Exército, mas é asmático, então tem um cargo burocrático... sorte nossa, porque agora ele trabalha para o Comando Supremo no departamento de planejamento e desenvolvimento econômico.

           Volodya ficou impressionado. Um homem assim saberia exatamente quantos caminhões, tanques, metralhadoras e submarinos as Forças Armadas alemãs estavam adquirindo a cada mês – e para onde os equipamentos seriam enviados. Começou a se empolgar.

           – Quando posso encontrá-lo?

           – Agora. Combinei tomar um drinque com ele no Hotel Adlon depois do trabalho.

           Volodya soltou um gemido. O Adlon ficava na Unter den Linden e era o hotel mais chique de Berlim. Por estar no bairro do governo e dos diplomatas, o bar do hotel era muito popular entre jornalistas ávidos por ouvir alguma fofoca. Volodya não teria escolhido aquele lugar para um encontro. No entanto, não podia se dar ao luxo de perder aquela chance.

           – Tudo bem – falou. – Mas não quero que ninguém me veja conversando com nenhum de vocês dois lá. Vou seguir você até lá dentro, identificarei Heinrich, depois, quando ele sair, irei atrás dele e o abordarei.

           – Certo. Eu o levo até lá. Meu carro está na esquina.

           Enquanto caminhavam até a outra ponta do beco, Werner disse os endereços e telefones do trabalho e da casa de Heinrich, e Volodya os decorou.

           – Chegamos – disse Werner. – Pode entrar.

           O carro era um Mercedes 540K Autobahn Kurier, um modelo lindo, com para-choques de curvas sensuais, um capô mais comprido do que um Ford T inteiro, e traseira inclinada em estilo fastback. Era tão caro que apenas uns poucos exemplares tinham sido vendidos.

           Volodya encarou o carro, perplexo.

           – Você não deveria ter um carro menos chamativo? – perguntou, incrédulo.

           – É um duplo blefe – disse Werner. – Eles acham que nenhum espião de verdade seria tão extravagante.

           Volodya estava prestes a perguntar como ele tinha dinheiro para um carro daqueles, mas então se lembrou de que o pai de Werner era um rico dono de fábrica.

           – Não vou entrar nisso aí – falou. – Vou de trem.

           – Como quiser.

           – Vejo você no Adlon, mas não fale comigo.

           – Claro.

           Meia hora mais tarde, Volodya viu o carro de Werner estacionado tranquilamente em frente ao hotel. A atitude cafajeste de Werner lhe parecia uma tolice, mas então se perguntou se não seria um componente necessário da coragem do alemão. Talvez Werner precisasse fingir ser descontraído para que pudesse correr os terríveis riscos de espionar os nazistas. Se ele admitisse o perigo que estava correndo, talvez não conseguisse continuar.

           O bar do Adlon estava cheio de mulheres com roupas da moda e de homens igualmente bem-vestidos, muitos usando uniformes feitos sob medida. Volodya viu Werner assim que entrou, sentado a uma mesa com um homem que devia ser Heinrich von Kessel. Ao passar perto deles, ouviu Heinrich dizer, enfático:

           – Mas Clayton é um trompetista muito melhor do que Hot Lips Page.

           Volodya espremeu-se para conseguir um lugar no balcão, pediu uma cerveja e ficou analisando discretamente o espião em potencial.

           Heinrich tinha a pele pálida e grossos cabelos escuros, compridos para os padrões do Exército. Embora estivessem conversando sobre jazz, assunto relativamente sem importância, parecia muito arrebatado, acompanhando seus argumentos com gestos e passando os dedos pelos cabelos. Tinha um livro no bolso da túnica do uniforme, e Volodya poderia apostar que era uma coletânea de poesia.

           Volodya tomou duas cervejas bem devagar e fingiu ler o Morgenpost do início ao fim. Tentou não se empolgar demais em relação a Heinrich. Embora fosse promissor, não havia garantias de que iria cooperar.

           Recrutar informantes era a parte mais difícil do trabalho de Volodya. Não era simples tomar precauções, porque o candidato a espião ainda não estava garantido. Muitas vezes, a proposta tinha que ser feita em lugares inadequados, geralmente públicos. Era impossível saber como o candidato iria reagir: podia ficar bravo e recusar em altos brados, ou então se apavorar e literalmente sair correndo. Não havia muito que um recrutador pudesse fazer para controlar a situação. Em determinado momento, simplesmente era preciso fazer a pergunta simples e direta: “Você quer ser espião?”

           Pensou em como abordar Heinrich. A religião provavelmente era a chave de sua personalidade. Lembrou-se de seu chefe Lemitov dizendo: “Católicos não praticantes dão bons agentes. Eles rejeitam a autoridade total da Igreja para aceitar a autoridade total do Partido.” Talvez Heinrich precisasse buscar perdão pelo que tinha feito. Mas estaria disposto a arriscar a vida?

           Por fim, Werner pagou a conta e os dois saíram do bar. Volodya foi atrás. Em frente ao hotel, os alemães se separaram: Werner saiu com o carro cantando pneus e Heinrich tomou o caminho do parque, a pé. Volodya pôs-se a seguir Heinrich.

           Apesar de a noite estar caindo, o céu estava claro e ele conseguia enxergar bem. Muitas pessoas passeavam desfrutando o clima ameno da noite, a maioria casais. Volodya olhou para trás várias vezes, para se certificar de que ninguém seguira nem Heinrich nem ele ao saírem do Adlon. Quando teve certeza, respirou fundo, reuniu forças e alcançou o alemão.

           Caminhando ao seu lado, falou:

           – Existe uma reparação possível para o pecado.

           Heinrich olhou para ele com ar desconfiado, como olharia para um louco.

           – Você é padre?

           – Você poderia contra-atacar o regime que ajudou a criar.

           Heinrich continuou andando, mas assumiu um ar preocupado.

           – Quem é você? O que sabe sobre mim?

           Volodya continuou ignorando as perguntas de Heinrich.

           – Um dia, os nazistas serão derrotados. Com a sua ajuda, esse dia pode chegar mais cedo.

           – Se for um agente da Gestapo tentando me incriminar, nem precisa se dar o trabalho. Sou um alemão leal.

           – Está ouvindo o meu sotaque?

           – Estou... parece russo.

           – Quantos agentes da Gestapo falam alemão com sotaque russo? Ou têm imaginação suficiente para simular uma coisa dessas?

           Heinrich deu uma risada nervosa.

           – Não sei nada sobre agentes da Gestapo – falou. – Não deveria ter tocado no assunto... foi tolice da minha parte.

           – O seu escritório gera relatórios sobre as quantidades de armamentos e outros suprimentos encomendados pelas Forças Armadas. Cópias desses relatórios poderiam ter um valor inestimável para os inimigos dos nazistas.

           – Para o Exército Vermelho, você quer dizer.

           – E quem mais poderá destruir este regime?

           – Nós tomamos muito cuidado com as cópias desses relatórios.

           Volodya reprimiu uma onda de triunfo. Heinrich estava pensando nas dificuldades práticas. Isso significava que, em princípio, estava disposto a concordar.

           – Faça uma cópia extra com papel-carbono – sugeriu Volodya. – Ou à mão. Ou então pegue a cópia de arquivo de alguém. Há vários jeitos.

           – É claro que há vários jeitos. E todos eles poderiam me condenar à morte.

           – Se não fizermos nada em relação aos crimes que estão sendo cometidos por este regime... será que a vida vale a pena?

           Heinrich parou e encarou o russo. Volodya não foi capaz de adivinhar o que o outro estava pensando, mas o instinto lhe disse para ficar calado. Após uma longa pausa, Heinrich deu um suspiro e falou:

           – Vou pensar.

           Consegui, pensou Volodya, exultante.

           – Como posso entrar em contato com você? – perguntou Heinrich.

           – Não pode – respondeu Volodya. – Eu é que vou entrar em contato com você. – Ele tocou a aba do chapéu e então voltou usando o mesmo caminho por onde viera.

           Estava exultante. Se Heinrich não tivesse a intenção de aceitar sua proposta, teria recusado com firmeza. O fato de prometer pensar no assunto valia quase tanto quanto um sim. O sono era bom conselheiro. Ele pesaria os riscos, mas acabaria aceitando. Volodya tinha quase certeza.

           Disse a si mesmo que não se mostrasse excessivamente confiante. Uma centena de coisas poderia dar errado.

           No entanto, foi cheio de esperança que saiu do parque e passou sob as luzes fortes em frente às lojas e restaurantes da Unter den Linden. Não havia jantado, mas não tinha dinheiro para pagar uma refeição naquela rua.

           Pegou um bonde na direção leste até o bairro de aluguéis baratos chamado Friedrichshain e foi a um pequeno apartamento num prédio. A porta foi aberta por uma moça baixinha, de 18 anos e cabelos claros. Ela estava descalça e usava um suéter cor-de-rosa e uma calça escura. Embora fosse magra, tinha seios deliciosamente fartos.

           – Desculpe aparecer sem avisar – falou Volodya. – Está ocupada?

           Ela sorriu.

           – De jeito nenhum – respondeu. – Pode entrar.

           Ela fechou a porta atrás dele e lhe deu um abraço.

           – Fico sempre feliz em ver você – disse ela, beijando-o com ardor.

           Lili Markgraf era uma moça com muito amor para dar. Desde que voltara a Berlim, Volodya vinha saindo com ela mais ou menos uma vez por semana. Não estava apaixonado e sabia que ela saía com outros homens, com Werner inclusive. Quando estavam juntos, porém, ela demonstrava grande paixão.

           Após alguns instantes, Lili perguntou:

           – Já soube da notícia? Foi por isso que você veio?

           – Que notícia? – Lili trabalhava como secretária numa agência de notícias e sempre sabia das novidades em primeira mão.

           – A União Soviética fez um pacto com a Alemanha! – disse ela.

           Aquilo não fazia sentido.

           – Um pacto com a Grã-Bretanha e a França contra a Alemanha, você quer dizer?

           – Não! Essa é a surpresa... Stalin e Hitler ficaram amigos.

           – Mas... – Volodya não terminou a frase. Estava pasmo. Stalin tinha feito um acordo com Hitler? Parecia loucura. Seria essa a solução inventada por Molotov, ministro das Relações Exteriores soviético? Não conseguimos deter a maré do fascismo mundial... então vamos parar de tentar?

           Foi para isso que meu pai fez uma revolução?

 

           Woody Dewar reencontrou Joanne Rouzrokh depois de quatro anos.

           Ninguém que conhecesse o pai dela acreditava de fato que ele houvesse tentado estuprar uma atriz iniciante no Hotel Ritz-Carlton. A moça havia retirado a queixa. No entanto, essa era uma notícia sem graça e os jornais não deram muito destaque a ela. Consequentemente, para os moradores de Buffalo, Dave continuava sendo um estuprador. Assim, os pais de Joanne tinham se mudado para Palm Beach, e Woody perdera contato.

           O reencontro aconteceu na Casa Branca.

           Woody estava com o pai, o senador Gus Dewar, a caminho de uma audiência com o presidente. Como seu pai e Franklin D. Roosevelt eram amigos de longa data, Woody já o havia encontrado em diversas ocasiões. Mas sempre em eventos sociais, nos quais Roosevelt apertara sua mão e perguntara como iam os estudos. Aquela seria a primeira vez que o rapaz participaria de uma reunião política de verdade com o presidente.

           Pai e filho entraram pelo portão principal da West Wing – a ala oeste da Casa Branca –, passaram pelo saguão principal e chegaram a uma ampla sala de espera. E lá estava ela.

           Woody a encarou, encantado. Joanne não tinha mudado quase nada. O rosto estreito e altivo e o nariz adunco ainda a faziam parecer a suma sacerdotisa de alguma antiga religião. Como de hábito, ela estava usando roupas simples que produziam um efeito marcante: um terninho azul-escuro de tecido leve e um chapéu de palha de aba larga da mesma cor. Woody ficou contente por ter posto uma camisa branca limpa e sua gravata listrada nova.

           Ela pareceu alegre em vê-lo.

           – Você está ótimo! – falou. – Trabalha aqui na capital agora?

           – Estou apenas ajudando meu pai durante o verão – respondeu ele. – Ainda não me formei em Harvard.

           Ela se virou para Gus e o cumprimentou em tom respeitoso.

           – Boa tarde, senador.

           – Olá, Joanne.

           Woody estava empolgado por ter encontrado com ela. Quis manter a conversa.

           – E você, o que está fazendo aqui? – indagou.

           – Eu trabalho no Departamento de Estado.

           Woody assentiu. Aquilo explicava a deferência a seu pai. Ela havia ingressado num mundo em que as pessoas tratavam o senador Dewar com respeito.

           – O que você faz? – perguntou ele.

           – Sou assessora de um assessor. Meu chefe está com o presidente agora, mas meu posto é humilde demais para que eu entre com ele.

           – Você sempre se interessou por política. Lembro-me de uma discussão sobre linchamento.

           – Tenho saudades de Buffalo. Como nós nos divertíamos!

           Woody se lembrou de quando os dois se beijaram no baile do Clube de Tênis e sentiu o rosto corar.

           – Minhas lembranças a seu pai – disse Gus, dando a entender que precisavam ir.

           Woody cogitou pedir o telefone dela, mas Joanne foi mais rápida:

           – Eu adoraria vê-lo outra vez, Woody.

           Ele ficou encantado.

           – Claro!

           – Está livre hoje à noite? Convidei alguns amigos para uns drinques.

           – Ótima ideia!

           Ela lhe deu o endereço, um prédio residencial não muito longe dali, e em seguida Gus o conduziu apressado por uma porta no outro lado do saguão.

           – Não se manifeste a menos que o presidente fale diretamente com você – instruiu Gus.

           O rapaz tentou se concentrar no encontro iminente. Um terremoto político havia atingido a Europa: contrariando todas as expectativas, a União Soviética assinara um pacto de não agressão com a Alemanha nazista. O pai de Woody era um dos principais integrantes do Comitê de Relações Exteriores do Senado e o presidente queria sua opinião.

           Gus Dewar, por sua vez, tinha outro assunto a tratar. Queria convencer Roosevelt a ressuscitar a Liga das Nações.

           Seria difícil vender essa ideia ao presidente. Os Estados Unidos nunca haviam feito parte da Liga, que não era muito apreciada pelos americanos. A organização fracassara lamentavelmente ao tentar contornar as crises dos anos 1930: as agressões japonesas no Extremo Oriente, o imperialismo italiano na África, as ocupações nazistas na Europa, o desmoronamento da democracia na Espanha. Apesar disso, Gus estava decidido a tentar. Woody sabia que aquele sempre fora o sonho de seu pai: um conselho mundial para solucionar conflitos e evitar guerras.

           Woody apoiava o pai completamente. Chegara a fazer um discurso sobre isso num debate em Harvard. Quando duas nações entravam em conflito, a pior atitude possível era matar pessoas do país adversário. Isso lhe parecia bastante óbvio.

           – É claro que entendo por que isso acontece – dissera ele no debate. – Assim como entendo por que bêbados arrumam confusão. Mas nem por isso essa atitude deixa de ser irracional.

           Agora, porém, Woody estava achando difícil pensar na ameaça de guerra na Europa. Todos os antigos sentimentos que nutria por Joanne vieram à tona numa enxurrada. Pensou se ela tornaria a beijá-lo – quem sabe nessa mesma noite. Sempre gostara dele e ainda parecia gostar – caso contrário, por que o convidaria para a festa? Em 1935, ela não quisera sair com ele porque Woody tinha 15 anos e ela, 18. Era compreensível, embora na época ele não pensasse assim. Agora, porém, ambos estavam quatro anos mais velhos e a diferença de idade já não pareceria tão grande – pareceria? Ele torceu para que não. Já tinha saído com outras moças em Buffalo e em Harvard, mas nenhuma delas lhe despertara a mesma paixão arrebatadora que sentira por Joanne.

           – Estamos entendidos? – perguntou-lhe o pai.

           Woody se sentiu bobo. Seu pai estava prestes a fazer ao presidente uma proposta que poderia resultar na paz mundial, e tudo em que ele conseguia pensar era beijar Joanne.

           – Claro – respondeu. – Não vou dizer nada a menos que ele fale comigo primeiro.

           Uma mulher alta e magra de 40 e poucos anos entrou na sala, com a atitude relaxada e confiante de quem era dona do lugar. Woody reconheceu Marguerite LeHand, carinhosamente chamada de Missy, secretária de Roosevelt. Missy tinha um rosto comprido e masculino, nariz grande e alguns fios brancos em meio aos cabelos escuros. Ela recebeu Gus com um sorriso caloroso.

           – Que prazer revê-lo, senador.

           – Como vai, Missy? Lembra-se do meu filho Woodrow?

           – Lembro, sim. O presidente está esperando por vocês.

           A devoção de Missy a Roosevelt era notória. Segundo as fofocas de Washington, o presidente gostava mais dela do que convinha a um homem casado. Graças a comentários velados, porém reveladores, que entreouvira numa conversa dos pais, Woody sabia que a paralisia de Roosevelt não comprometia seus órgãos sexuais. No entanto, sua esposa, Eleanor, se recusava a dormir com ele desde que dera à luz o sexto filho do casal, mais de vinte anos antes. Talvez o presidente tivesse direito a uma secretária afetuosa.

           Missy os fez passar por outra porta e por um corredor estreito, e eles chegaram ao Salão Oval.

           O presidente estava sentado em frente a uma mesa, de costas para uma bay window alta. As persianas fechadas filtravam o sol de agosto que entrava pelas vidraças orientadas para o sul. Roosevelt ocupava uma cadeira de escritório normal, observou Woody, e não sua cadeira de rodas. Vestia terno branco e fumava um cigarro preso a uma piteira.

           Não chegava a ser um homem atraente. Tinha entradas nos cabelos, queixo pontudo e usava um pincenê que fazia seus olhos parecerem excessivamente próximos. Apesar disso, exercia uma atração instantânea com seu sorriso cativante, a mão estendida para um cumprimento e o tom de voz simpático.

           – Que bom ver você, Gus, pode entrar.

           – Sr. Presidente, lembra-se de Woodrow, meu filho mais velho?

           – É claro que me lembro. Como está indo em Harvard, Woody?

           – Bem, presidente, obrigado. Faço parte do grupo de debates. – Ele sabia que os políticos muitas vezes tinham o dom de parecer conhecer todo mundo intimamente. Das duas, uma: ou tinham uma memória notável, ou suas secretárias eram muito eficientes.

           – Eu também estudei em Harvard. Sentem-se, sentem-se. – Roosevelt retirou a guimba do cigarro da piteira e a apagou em um cinzeiro já lotado. – Gus, o que está acontecendo na Europa?

           É claro que o presidente sabia o que estava acontecendo, pensou Woody. Dispunha de todo um Departamento de Estado para mantê-lo informado. Mas ele queria ouvir a análise de Gus.

           – Na minha opinião, a Alemanha e a Rússia continuam sendo inimigas mortais – disse o pai de Woody.

           – É o que todos achamos. Mas então por que assinar o pacto?

           – A curto prazo, é conveniente para ambos os lados. Stalin precisa de tempo. Ele quer reforçar o Exército Vermelho para conseguir derrotar os alemães, se a situação chegar a esse ponto.

           – E o outro?

           – Hitler claramente está a ponto de fazer alguma coisa na Polônia. A imprensa alemã está cheia de matérias ridículas sobre como os poloneses andam maltratando a população de origem alemã do país. Hitler não fomenta o ódio sem um objetivo. Seja lá o que for que esteja tramando, ele não quer que os soviéticos atrapalhem. Daí o pacto.

           – É mais ou menos o que Hull acha. – Cordell Hull era o secretário de Estado. – Mas ele não sabe o que vai acontecer agora. Stalin vai deixar Hitler fazer o que quiser?

           – Meu palpite é que eles vão dividir a Polônia entre si nas próximas semanas.

           – E depois?

           – Há algumas horas os britânicos assinaram um novo tratado com os poloneses prometendo ajudá-los caso eles sejam atacados.

           – Mas o que eles podem fazer?

           – Nada, presidente. A Marinha, a Força Aérea e o Exército britânicos não têm nenhum poder para impedir a Alemanha de invadir a Polônia.

           – O que você acha que nós devemos fazer, Gus? – indagou o presidente.

           Woody sabia que aquela era a chance de seu pai. Por alguns minutos, tinha toda a atenção do presidente. Uma rara oportunidade para fazer algo acontecer. Discretamente, Woody cruzou os dedos.

           Gus se inclinou para a frente.

           – Nós não queremos que nossos filhos tenham que ir à guerra como nós fomos. – Roosevelt tinha quatro filhos homens na casa dos 20 e dos 30 anos. Foi então que Woody percebeu por que estava ali: tinha sido levado àquela reunião para fazer o presidente pensar nos próprios filhos. – Não podemos mandar garotos americanos para serem massacrados na Europa outra vez – disse Gus, com a voz calma. – O mundo precisa de uma força policial.

           – O que você tem em mente? – perguntou Roosevelt, num tom de quem não estava se comprometendo.

           – A Liga das Nações não é um fracasso tão grande quanto as pessoas pensam. Na década de 1920, ela solucionou uma disputa de fronteira entre a Finlândia e a Suécia e outra entre a Turquia e o Iraque. – Gus foi contando os exemplos nos dedos. – Impediu a Grécia e a Iugoslávia de invadirem a Albânia, e convenceu a Grécia a sair da Bulgária. Também enviou uma força de paz para acabar com as hostilidades entre Colômbia e Peru.

           – Tudo isso é verdade. Mas nos anos 1930...

           – A Liga não teve força suficiente para resistir à agressão fascista. Não é de espantar. Como o Congresso se recusou a ratificar a carta de intenções, ela já nasceu enfraquecida, de modo que os Estados Unidos nem se tornaram membros. Nós precisamos de uma nova versão da Liga, uma versão americana, que tenha poder para agir. – Gus fez uma pausa. – Sr. Presidente, é cedo demais para desistirmos de um mundo pacífico.

           Woody prendeu a respiração. Roosevelt assentiu, mas Woody sabia que ele sempre fazia isso. Era raro o presidente discordar abertamente de alguém. Ele detestava confrontos. Era preciso tomar cuidado para não interpretar seu silêncio como consentimento, ouvira Gus dizer. Não se atreveu a olhar para o pai, mas pôde sentir a tensão no ar.

           Por fim, o presidente falou:

           – Acho que você tem razão.

           Woody precisou se controlar para não gritar de alegria. O presidente tinha concordado! Olhou para o pai. Em geral impassível, Gus mal conseguia conter a própria surpresa. Fora uma vitória tão rápida!

           O senador então prosseguiu depressa para consolidá-la:

           – Nesse caso, posso sugerir que Cordell Hull e eu redijamos uma proposta para o senhor avaliar?

           – Hull está muito ocupado. Fale com Welles.

           Sumner Welles era o subsecretário de Estado. Era ambicioso e extravagante, e Woody sabia que essa não teria sido a primeira escolha de seu pai. Mas Welles era um velho amigo da família Roosevelt – tinha sido pajem no casamento do presidente.

           De toda forma, Gus não iria criar dificuldades naquele ponto.

           – Naturalmente – concordou.

           – Algo mais?

           Era uma dispensa clara. Gus se levantou e Woody o imitou.

           – E sua mãe, presidente, a Sra. Roosevelt? – indagou Gus. – Ouvi dizer que ela estava na França.

           – O navio dela zarpou ontem, graças a Deus.

           – Fico contente em saber.

           – Obrigado por ter vindo – disse Roosevelt. – Prezo muito a sua amizade, Gus.

           – Nada poderia me dar mais satisfação, presidente – respondeu o senador. Ele apertou a mão de FDR e Woody fez o mesmo.

           Então os dois saíram.

           Woody tinha uma leve esperança de que Joanne ainda estivesse por lá, mas ela já tinha ido embora.

           Quando estavam saindo da Casa Branca, Gus falou:

           – Vamos tomar um drinque para comemorar.

           Woody olhou para o relógio. Eram cinco da tarde.

           – Claro – respondeu.

           Foram ao Old Ebbitt’s, na Rua F, perto da 15. O lugar tinha janelas de vitral, veludo verde, luminárias de bronze e troféus de caça. O bar estava apinhado de deputados, senadores e seus acompanhantes de praxe: assessores, lobistas, jornalistas. Gus pediu um martíni com raspa de limão para si e uma cerveja para Woody. O rapaz sorriu: talvez tivesse preferido um martíni. Na verdade, não – para ele, aquele drinque tinha gosto de gim gelado –, mas gostaria de ter sido consultado. Apesar disso, ergueu o copo de cerveja e disse:

           – Parabéns. Você conseguiu o que queria.

           – É do que o mundo precisa.

           – Sua argumentação foi brilhante.

           – Roosevelt quase não precisou ser convencido. Apesar de liberal, ele é um homem pragmático. Sabe que não é possível fazer tudo, que é preciso escolher as batalhas que se pode ganhar. Sua prioridade é o New Deal: conseguir que os desempregados voltem ao trabalho. Ele não vai fazer nada que interfira com essa missão principal. Se o meu plano se tornar polêmico a ponto de incomodar seus partidários, ele vai desistir.

           – Quer dizer que ainda não ganhamos nada.

           Gus sorriu.

           – Demos o primeiro passo muito importante. Mas não, ainda não ganhamos nada.

           – Que pena que ele obrigou o senhor a engolir Welles.

           – Não é de todo ruim. Sumner apoia o projeto. Ele é mais próximo do presidente do que eu. Mas é um homem imprevisível. Pode pegar o projeto e dar a ele um rumo totalmente diferente.

           Woody passeou os olhos pelo bar e topou com um rosto conhecido.

           – Olhe só quem está aqui. Eu deveria ter adivinhado.

           Seu pai olhou na mesma direção que ele.

           – Em pé, no bar – disse Woody. – Com uns caras mais velhos de chapéu e uma loura. Greg Peshkov. – Como sempre, apesar das roupas caras, Greg estava um trapo: gravata de seda torta, camisa saindo para fora da calça creme, suja de cinza de cigarro. Mesmo assim, a loura o encarava com um ar de adoração.

           – É mesmo – comentou Gus. – Você o vê com frequência em Harvard?

           – Ele estuda física, mas não anda muito com os cientistas... imagino que esse círculo deva ser maçante demais para ele. Nós sempre nos vemos no Crimson. – O Harvard Crimson era o jornal dos alunos. Woody contribuía com fotos e Greg escrevia matérias. – Ele está estagiando no Departamento de Estado durante o verão. É por isso que está aqui.

           – Na assessoria de imprensa, suponho – disse Gus. – Os dois homens que estão com ele são jornalistas. O de terno marrom trabalha para o Tribune, de Chicago, e o que está fumando cachimbo é do Plain Dealer, de Cleveland.

           Woody notou que Greg conversava com os jornalistas como se fossem velhos amigos, segurando o braço de um deles enquanto se inclinava para a frente e dizia alguma coisa em voz baixa, e dando tapinhas nas costas do outro. Os dois pareciam gostar dele, pensou Woody ao vê-los rir alto de algo que Greg dissera. Invejava esse talento. Era bem útil para um político, embora talvez não fosse fundamental: seu pai não possuía esse tipo de simpatia espontânea, mas era um dos estadistas mais importantes dos Estados Unidos.

           – Fico imaginando o que a meia-irmã dele está achando da ameaça de guerra – comentou Woody. – Ela está em Londres. Casou-se com algum lorde inglês.

           – Para ser mais exato, ela se casou com o primogênito do conde Fitzherbert, que eu conhecia bem.

           – Todas as moças de Buffalo morrem de inveja dela. O rei foi ao casamento.

           – Eu também conhecia Maud, irmã de Fitzherbert... uma mulher maravilhosa. Casou-se com um alemão, Walter von Ulrich. Eu teria me casado com ela se Walter não tivesse chegado primeiro.

           Woody arqueou as sobrancelhas. Não era do feitio de seu pai falar assim.

           – Mas isso foi antes de eu me apaixonar pela sua mãe, claro.

           – Claro. – Woody reprimiu um sorriso.

           – Walter e Maud sumiram do mapa depois que Hitler baniu os social-democratas. Espero que estejam bem. Se estourar uma guerra...

           Woody viu que falar sobre a guerra havia despertado as lembranças do pai.

           – Pelo menos os Estados Unidos não estão envolvidos.

           – Foi isso que pensamos da última vez. – Gus então mudou de assunto: – Tem notícias de seu irmão?

           Woody deu um suspiro.

           – Ele não vai mudar de ideia, pai. Não vai para Harvard nem para nenhuma outra universidade.

           Aquilo havia gerado uma crise familiar. Chuck anunciara que, assim que completasse 18 anos, entraria para a Marinha. Como não tinha diploma universitário, seria um simples recruta, sem qualquer perspectiva de um dia se tornar oficial. Isso era motivo de horror para seus pais bem-sucedidos.

           – Que droga, ele é inteligente o bastante para a universidade – disse Gus.

           – Ele ganha de mim no xadrez.

           – De mim também. Qual é o problema, então?

           – Ele detesta estudar. E adora barcos. Velejar é sua única paixão. – Woody olhou para o relógio.

           – Você tem uma festa – comentou seu pai.

           – Não há pressa...

           – Claro que há. Ela é uma moça muito atraente. Dê o fora daqui.

           Woody sorriu. Seu pai podia ser surpreendentemente perspicaz.

           – Obrigado, pai – disse e levantou-se.

           Greg Peshkov estava saindo na mesma hora e os dois passaram juntos pela porta.

           – Oi, Woody, como vão as coisas? – perguntou Greg, simpático, virando-se na mesma direção que ele.

           Houvera uma época em que a vontade de Woody era dar um soco em Greg por causa de seu envolvimento no golpe planejado contra Dave Rouzrokh. No entanto, com o passar do tempo, seus ânimos se acalmaram, e na verdade o responsável fora Lev Peshkov, não seu filho, que na época só tinha 15 anos. Ainda assim, Woody mostrou-se apenas educado.

           – Estou gostando de Washington – respondeu, andando por um dos amplos bulevares em estilo parisiense da cidade. – E você?

           – Também gosto daqui. Eles logo se acostumaram com meu sobrenome. – Ao ver a expressão de incompreensão de Woody, Greg explicou: – O Departamento de Estado só tem gente chamada Smith, Faber, Jensen, McAllister. Ninguém se chama Kozinsky, Cohen ou Papadopoulos.

           Woody percebeu que era verdade. O governo era administrado por uma elite étnica bastante exclusiva. Por que não percebera isso antes? Talvez porque na escola, na igreja e em Harvard também fosse assim.

           – Mas eles não têm a mente fechada – continuou Greg. – Estão dispostos a abrir uma exceção para alguém que fala russo fluentemente e vem de uma família rica.

           Greg estava tentando parecer casual, mas no fundo sua voz tinha um tom de ressentimento, e Woody viu que o outro rapaz tinha um sério recalque.

           – Eles acham que meu pai é um gângster – disse Greg. – Mas não se importam muito com isso. A maioria dos ricos tem algum gângster entre seus antepassados.

           – Pelo modo como fala, parece que você detesta Washington.

           – Pelo contrário! Não gostaria de estar em nenhum outro lugar. É aqui que está o poder.

           Woody teve a sensação de que as suas próprias motivações eram mais nobres.

           – Eu estou aqui porque há coisas que desejo realizar, mudanças que quero fazer.

           Greg sorriu.

           – A mesma coisa, na minha opinião... poder.

           – Humm. – Woody nunca tinha pensado na questão dessa forma.

           – Você acha que vai haver guerra na Europa? – perguntou Greg.

           – Você deveria saber, já que trabalha no Departamento de Estado.

           – Sim, mas sou da assessoria de imprensa. Só sei as historinhas que contamos aos jornalistas. Não tenho a menor ideia da verdade.

           – Ora, eu também não. Acabei de ver o presidente e acho que nem ele tem.

           – Daisy, minha irmã, está lá.

           O tom de Greg havia mudado. Estava claro que seu medo era genuíno e Woody sentiu empatia por ele.

           – Eu sei.

           – Se houver bombardeios, nem mesmo as mulheres e as crianças estarão seguras. Você acha que os alemães vão atacar Londres?

           Só havia uma resposta honesta para essa pergunta:

           – Imagino que sim.

           – Queria que ela voltasse para casa.

           – Pode ser que não haja guerra. O premier britânico, Chamberlain, fez um acordo de última hora com Hitler no ano passado em relação à Tchecoslováquia...

           – Uma capitulação de última hora, você quer dizer.

           – É. Talvez ele faça a mesma coisa em relação à Polônia... embora o tempo esteja se esgotando.

           Greg assentiu com o semblante fechado, e mudou de assunto.

           – Para onde você está indo?

           – Para o apartamento de Joanne Rouzrokh. Ela está dando uma festa.

           – Ouvi dizer. Conheço uma das moças que moram com ela. Mas não fui convidado, como você pode imaginar. O prédio dela é... meu Deus! – Ele parou no meio da frase.

           Woody também parou. Greg tinha os olhos fixos à frente. Ao seguir seu olhar, Woody viu que ele fitava uma negra atraente que caminhava pela Rua E na sua direção. Tinha mais ou menos a mesma idade que eles e era bonita, com uma boca larga de lábios castanho-rosados que fez Woody pensar em beijos. Usava um vestido preto simples que talvez fizesse parte de um uniforme de garçonete, mas um belo chapéu e sapatos da moda lhe davam um visual elegante.

           Ela viu os dois, seus olhos encontraram os de Greg e se desviaram para outro lado.

           – Jacky? – disse Greg. – Jacky Jakes?

           A moça o ignorou e continuou andando, mas, na opinião de Woody, parecia abalada.

           – Jacky, sou eu, Greg Peshkov.

           Jacky, se é que esse era mesmo o nome dela, não respondeu, mas parecia prestes a cair em prantos.

           – Jacky... seu nome verdadeiro é Mabel. Você me conhece! – Greg postou-se no meio da calçada com os braços bem abertos, num gesto de súplica.

           A moça se desviou dele deliberadamente, sem dizer nada nem encará-lo, e seguiu andando.

           Greg se virou.

           – Espere aí! – chamou. – Você fugiu de mim há quatro anos... me deve uma explicação!

           Aquilo não era típico de Greg, pensou Woody. Ele sempre fora muito desenvolto com as garotas, tanto na escola quanto em Harvard. Agora parecia genuinamente abalado: perplexo, magoado, quase desesperado.

           Quatro anos antes, refletiu Woody. Será que aquela era a mesma garota do escândalo? Tudo acontecera ali mesmo, em Washington. A moça sem dúvida devia morar na cidade.

           Greg correu atrás dela. Um táxi havia parado na esquina, e o passageiro, um homem de smoking, estava em pé junto ao meio-fio pagando o motorista. Jacky se enfiou no táxi e bateu a porta.

           Greg foi até a janela e gritou diante do vidro fechado:

           – Fale comigo, por favor!

           – Pode ficar com o troco – falou o homem do smoking e em seguida se afastou.

           O táxi foi embora, e Greg ficou para trás, olhando.

           Voltou lentamente para onde Woody o aguardava intrigado.

           – Não entendo – disse Greg.

           – Ela parecia assustada – disse Woody.

           – Assustada por quê? Eu nunca lhe fiz mal. Era louco por ela.

           – Bem, ela estava com medo de alguma coisa.

           Greg pareceu sair de seu transe.

           – Desculpe – falou. – De todo modo, não é problema seu. Mil desculpas.

           – Não tem problema.

           Greg apontou para um edifício alguns passos adiante.

           – Joanne mora naquele prédio ali – falou. – Divirta-se. – Então foi embora.

           Meio confuso, Woody caminhou até a portaria. No entanto, logo esqueceu a vida afetiva de Greg e começou a pensar na sua. Será que Joanne gostava mesmo dele? Talvez ela não o beijasse nesse dia, mas quem sabe ele poderia convidá-la para sair?

           Aquele era um edifício modesto, sem porteiro nem carregador. Uma lista na entrada informava que Rouzrokh dividia o apartamento com Stewart e Fisher, provavelmente duas outras moças. Woody pegou o elevador. Deu-se conta de que estava de mãos abanando: deveria ter levado um doce ou flores. Pensou em voltar para comprar alguma coisa, mas depois decidiu que isso seria exagerar nas boas maneiras. Tocou a campainha.

           Uma moça de 20 e poucos anos abriu a porta.

           – Oi, meu nome é... – começou Woody.

           – Pode entrar – disse ela, sem querer saber seu nome. – As bebidas estão na cozinha e a comida na mesa da sala, se é que sobrou alguma coisa. – Ela virou as costas, claramente pensando que aquilo bastava como boas-vindas.

           O pequeno apartamento estava cheio de pessoas bebendo, fumando e gritando umas com as outras para se fazer ouvir acima do som do fonógrafo. Joanne dissera “alguns amigos”, e Woody imaginara oito ou dez jovens sentados em volta de uma mesa de centro conversando sobre a crise na Europa. Ficou decepcionado: aquela festa lotada não lhe daria muita chance de provar a Joanne quanto ele havia amadurecido.

           Correu os olhos pelo apartamento, procurando por ela. Era mais alto do que a maioria das outras pessoas e podia ver por cima das cabeças. Joanne não estava por perto. Foi abrindo caminho por entre os convidados para tentar encontrá-la. Uma moça de seios volumosos e belos olhos castanhos o encarou quando ele se espremeu para passar por ela e disse:

           – Olá, grandão. Eu sou Diana Taverner. E você?

           – Estou procurando Joanne – respondeu ele.

           Ela deu de ombros.

           – Boa sorte, então. – E virou-lhe as costas.

           Woody conseguiu chegar à cozinha. O barulho diminuiu um pouco. Joanne não estava à vista, mas ele resolveu aproveitar que estava ali e pegar uma bebida. Um homem de ombros largos e cerca de 30 anos sacudia uma coqueteleira. Bem-vestido com um terno mostarda, uma camisa azul-clara e uma gravata azul-escura, ele obviamente não era barman, mas estava se comportando como um anfitrião.

           – O uísque está ali – informou a outro convidado. – Sirva-se. Estou preparando martínis para quem quiser.

           – Tem bourbon? – perguntou Woody.

           – Aqui. – O homem lhe entregou uma garrafa. – Meu nome é Bexforth Ross.

           – Woody Dewar. – Woody encontrou um copo e se serviu.

           – O gelo está naquele balde – disse Bexforth. – De onde você é, Woody?

           – Sou estagiário do Senado. E você?

           – Trabalho no Departamento de Estado. Cuido dos assuntos relacionados à Itália. – Ele começou a servir martínis.

           Estava claro que aquele sujeito era uma estrela em ascensão, pensou Woody. Sua segurança era tanta que chegava a ser irritante.

           – Eu estava procurando Joanne.

           – Ela deve estar por aí. De onde vocês se conhecem?

           Nessa questão, Woody sentiu que podia demonstrar uma clara superioridade.

           – Ah, somos velhos amigos – respondeu, em tom casual. – Na verdade, eu a conheço desde sempre. Crescemos juntos em Buffalo. E você?

           Bexforth tomou um grande gole de martíni e deu um suspiro satisfeito. Então examinou Woody com um olhar atento.

           – Não conheço Joanne há tanto tempo quanto você – disse ele. – Mas acho que a conheço melhor.

           – Como assim?

           – Pretendo me casar com ela.

           Woody sentiu como se tivesse levado um tapa na cara.

           – Casar com ela?

           – Sim. Não é incrível?

           Woody não conseguiu esconder a consternação.

           – E ela sabe?

           Bexforth soltou uma risada e deu um tapinha condescendente no ombro de Woody.

           – É claro que sabe, e concorda plenamente. Sou o cara mais sortudo do mundo.

           Estava óbvio que Bexforth percebera a atração de Woody por Joanne. Ele se sentiu um bobo.

           – Meus parabéns – falou, desanimado.

           – Obrigado. Agora preciso circular. Foi um prazer conversar com você, Woody.

           – O prazer foi todo meu.

           Bexforth se afastou.

           Woody pousou o copo sem provar a bebida.

           – Que se foda – falou em voz baixa. E foi embora.

 

           Primeiro de setembro foi um dia bem quente em Berlim. Carla von Ulrich acordou suada e desconfortável. Tinha se livrado dos lençóis durante a noite. Olhou pela janela do quarto e viu que nuvens cinzentas baixas pairavam sobre a cidade, retendo o calor como a tampa de uma panela.

           Aquele era um dia importante para ela. Na verdade, iria determinar o resto de sua vida.

           Ficou de pé em frente ao espelho. Tinha o mesmo colorido da mãe, os cabelos escuros e olhos verdes dos Fitzherbert. Porém era mais bonita que Maud, cujo rosto anguloso era mais impressionante do que propriamente belo. A diferença entre mãe e filha era grande. Maud atraía praticamente todos os homens com quem cruzava. Carla, por sua vez, não sabia flertar. Via como se comportavam as outras moças de 17 anos: riam de modo afetado, puxavam o suéter para deixá-lo mais justo nos seios, jogavam os cabelos de um lado para outro e piscavam. Aquilo a deixava constrangida. Sua mãe era mais sutil, claro, de modo que os homens mal sabiam que estavam sendo enfeitiçados, mas o jogo era basicamente o mesmo.

           Nesse dia, porém, Carla não queria parecer sensual. Muito pelo contrário: precisava parecer prática, sensata e capaz. Escolheu um vestido simples de algodão cinza-escuro que batia no meio das canelas, calçou suas sandálias de escola pouco glamourosas e prendeu os cabelos em duas tranças, bem ao estilo das moças alemãs. O espelho refletiu a imagem de uma estudante ideal: conservadora, sem graça e assexuada.

           Acordara e se vestira antes do restante da família. Ada, a criada, já estava na cozinha e Carla a ajudou a pôr a mesa do café da manhã.

           Seu irmão apareceu em seguida. Com 19 anos, exibindo um bigodinho preto bem-aparado, Erik era pró-nazista, o que enfurecia sua família. Estudava na Charité, a faculdade de medicina da Universidade de Berlim, junto com seu melhor amigo e também nazista Hermann Braun. Os Von Ulrich naturalmente não podiam arcar com o custo da faculdade, mas Erik tinha ganhado uma bolsa de estudos.

           Carla se candidatara a essa mesma bolsa, na mesma instituição. Era o dia de sua entrevista. Caso se saísse bem, poderia estudar e virar médica. Do contrário...

           Não tinha a menor ideia do que iria fazer.

           A ascensão dos nazistas ao poder tinha arruinado a vida dos Von Ulrich. Seu pai não era mais deputado no Reichstag, pois havia perdido o cargo quando o Partido Social-Democrata – assim como todos os outros, exceto o Partido Nazista – se tornara ilegal. Não havia nenhum trabalho em que pudesse usar sua experiência de político e diplomata. Ele ganhava mal e mal a vida traduzindo artigos de jornais alemães para a embaixada britânica, onde ainda tinha alguns amigos. A mãe de Carla, por sua vez, tinha sido uma famosa jornalista de esquerda, mas os jornais não podiam mais publicar suas matérias.

           Carla achava tudo aquilo uma lástima. Era muito dedicada à família, que incluía Ada. Ficava triste ao testemunhar o declínio do pai, que durante sua infância tinha sido um homem trabalhador e politicamente importante, e agora estava derrotado. Pior ainda era sua mãe tentando se manter corajosa: famosa defensora do sufrágio feminino na Inglaterra antes da guerra, ela agora conseguia ganhar alguns marcos dando aulas de piano.

           Os dois, porém, diziam que suportariam qualquer coisa desde que os filhos tivessem vidas felizes e plenas quando crescessem.

           Carla sempre partira do princípio de que dedicaria a vida a tornar o mundo um lugar melhor, como os pais tinham feito. Não sabia se teria seguido a carreira política do pai ou virado jornalista feito a mãe, mas ambas as profissões agora estavam fora de cogitação.

           O que mais ela poderia fazer sob um governo que recompensava acima de tudo a violência e a brutalidade? Fora Erik que lhe dera a sugestão: médicos tornavam o mundo um lugar melhor independentemente do governo. Assim, a ambição de Carla passara a ser entrar para a faculdade de medicina. Ela havia estudado mais do que qualquer outra menina de sua turma, e passara com louvor em todas as matérias, sobretudo nas de ciências. Era mais qualificada do que o irmão para ganhar uma bolsa.

           – Não há nenhuma garota no meu período – disse Erik, de mau humor.

           Carla pensou que a ideia de ela seguir seus passos não agradava ao irmão. Apesar de suas opiniões políticas abjetas, os pais tinham orgulho das conquistas de Erik. Talvez ele estivesse com medo de ser superado.

           – Todas as minhas notas são melhores que as suas – disse Carla. – Biologia, química, matemática...

           – Tudo bem, tudo bem.

           – E, em tese, a bolsa também pode ser dada a mulheres... eu verifiquei.

           Sua mãe chegou à cozinha no final da conversa, vestida com um roupão de seda moiré cinza cuja faixa dava duas voltas em sua cintura fina.

           – Eles provavelmente seguem as regras que quiserem – comentou. – Afinal de contas, estamos na Alemanha. – Sua mãe dizia amar seu país de adoção, e talvez amasse mesmo, mas, desde a ascensão dos nazistas, ela havia adquirido o hábito de fazer comentários irônicos e pessimistas.

           Carla mergulhou um pedaço de pão no café com leite.

           – Mãe, como você vai se sentir se a Inglaterra atacar a Alemanha?

           – Profundamente infeliz, como da última vez – respondeu ela. – Estive casada com seu pai durante toda a Grande Guerra e, por mais de quatro anos, passei cada dia morrendo de medo de que ele fosse morto.

           – Mas você vai tomar o partido de quem? – perguntou Erik, em tom desafiador.

           – Eu sou alemã – respondeu ela. – Na alegria e na tristeza, foi para isso que me casei. É claro que nunca previmos nada tão ruim e opressivo quanto este regime nazista. Ninguém previu. – Erik soltou um grunhido de protesto que sua mãe ignorou. – Mas promessa é dívida, e, de todo modo, eu amo o seu pai.

           – Ainda não estamos em guerra – disse Carla.

           – Ainda não – concordou a mãe. – Se os poloneses tiverem algum juízo, vão recuar e dar a Hitler o que ele está pedindo.

           – E deveriam dar, mesmo – disse Erik. – A Alemanha agora está fortalecida. Podemos pegar o que quisermos, mesmo contra a vontade deles.

           Sua mãe revirou os olhos.

           – Deus nos livre.

           Uma buzina de carro soou do lado de fora. Carla sorriu. No minuto seguinte, sua amiga Frieda Franck entrou na cozinha. Ela iria acompanhar Carla à entrevista só para lhe dar apoio moral. Também estava vestida de maneira sóbria, como uma colegial, embora, ao contrário de Carla, tivesse um armário cheio de roupas elegantes.

           O irmão de Frieda entrou atrás dela. Carla achava Werner Franck maravilhoso. Ao contrário de tantos rapazes bonitos, ele era gentil, atencioso e engraçado. Já fora de esquerda um dia, mas tudo isso parecia ter ficado para trás e ele agora não se envolvia mais com a política. Tivera uma sucessão de namoradas lindas e cheias de estilo. Se Carla soubesse flertar, teria começado por ele.

           – Eu bem que lhes ofereceria um café – falou sua mãe. – Mas só temos Ersatz, um substituto da pior qualidade, e sei que em casa vocês bebem café de verdade.

           – Quer que eu roube um pouco da nossa cozinha para a senhora, Frau Von Ulrich? – perguntou Werner. – A senhora merece.

           Ao ver a mãe corar de leve, Carla percebeu, com um pouco de reprovação, que mesmo aos 48 anos ela não era imune ao charme de Werner.

           Ele olhou de relance para um relógio de ouro.

           – Já está na minha hora – falou. – Ultimamente as coisas andam frenéticas no Ministério da Aeronáutica.

           – Obrigada pela carona – disse Frieda.

           – Espere aí – falou Carla para a amiga. – Se você veio com Werner, onde está sua bicicleta?

           – Lá fora. Nós a prendemos na traseira do carro.

           As duas moças faziam parte do Clube de Ciclismo Mercúrio, e iam de bicicleta a toda parte.

           – Boa sorte na entrevista, Carla – desejou Werner. – Tchau, pessoal.

           Carla engoliu o último pedaço de pão. Quando já estava de saída, seu pai desceu. Não tinha feito a barba nem posto uma gravata. Era um homem gordo quando Carla era menina, mas agora estava magro. Deu um beijo carinhoso na filha.

           – Esquecemos de ouvir o noticiário! – exclamou a mãe, e foi ligar o rádio que ficava em cima da prateleira.

           Enquanto o aparelho esquentava, Carla e Frieda saíram, sem ouvir as notícias.

           O Hospital Universitário ficava em Mitte, a parte central de Berlim, onde os Von Ulrich moravam, por isso o trajeto de bicicleta foi curto. Carla começou a ficar nervosa. A fumaça dos canos de descarga dos carros a deixou enjoada, e ela desejou não ter tomado café da manhã. As duas chegaram ao hospital, um prédio novo construído nos anos 1920, e foram até a sala do professor Bayer, a quem cabia recomendar um aluno para a bolsa. Uma secretária arrogante lhes disse que elas estavam adiantadas e mandou que esperassem.

           Carla desejou estar usando um chapéu e luvas. Isso a teria feito parecer mais velha e mais respeitável, como alguém em quem os doentes pudessem confiar. Talvez a secretária tivesse sido mais educada se ela estivesse de chapéu.

           A espera foi longa, mas Carla lamentou quando chegou ao fim e a secretária disse que o professor estava pronto para recebê-la.

           – Boa sorte! – sussurrou Frieda.

           Carla entrou.

           Bayer era um homem magro, de 40 e poucos anos, com um bigodinho grisalho. Usava um paletó de linho bege por cima do colete de um terno cinza. Estava sentado a uma escrivaninha e, pendurada na parede atrás dele, havia uma foto sua apertando a mão de Hitler.

           Ele não cumprimentou Carla. Em vez disso, bradou:

           – O que é um número imaginário?

           Aquele comportamento abrupto a espantou, mas pelo menos a pergunta era fácil.

           – É a raiz quadrada de um número real negativo, como a raiz quadrada de menos um, por exemplo – respondeu ela, com a voz trêmula. – Não se pode atribuir um valor numérico real a um número imaginário, mas ele pode ser usado em cálculos.

           O professor pareceu um pouco espantado. Talvez tivesse pensado que fosse derrubá-la.

           – Correto – disse ele, após um instante de hesitação.

           Carla olhou em volta. Não havia cadeira para ela. Será que seria entrevistada de pé?

           O professor lhe fez algumas perguntas sobre química e biologia, e ela respondeu a todas com facilidade. Seu nervosismo diminuiu. De repente ele perguntou:

           – A senhorita desmaia quando vê sangue?

           – Não, professor.

           – Ah! – exclamou ele, triunfante. – E como sabe disso?

           – Fiz o parto de um bebê quando tinha 11 anos – respondeu ela. – Houve bastante sangue.

           – A senhorita deveria ter mandado chamar um médico!

           – Eu mandei – respondeu ela, indignada. – Mas bebês não esperam por médicos.

           – Humm. – Bayer se levantou. – Espere aqui. – Ele saiu da sala.

           Carla não se mexeu. Estava sendo submetida a um teste árduo, mas até ali acreditava que vinha se saindo bastante bem. Felizmente, estava acostumada a debater com homens e mulheres de todas as idades: discussões acaloradas eram recorrentes na casa dos Von Ulrich e, até onde podia se lembrar, ela se mostrara à altura dos pais e do irmão.

           Bayer passou vários minutos ausente. O que estaria fazendo? Teria ido chamar um colega para conhecer aquela candidata de inteligência ímpar? Isso parecia uma esperança exagerada.

           Carla ficou tentada a pegar um dos livros da estante do professor e começar a ler, mas teve medo de ofendê-lo, então ficou parada e não fez nada.

           Ele voltou dez minutos depois trazendo um maço de cigarros. Será que a tinha feito esperar aquele tempo todo no meio da sala enquanto ia à tabacaria? Ou seria mais um teste? Ela começou a ficar irritada.

           Bayer acendeu o cigarro sem pressa, como se precisasse organizar os pensamentos. Soprou a fumaça e perguntou:

           – Como é que a senhorita, sendo mulher, trataria um homem que estivesse com uma infecção no pênis?

           Ela ficou encabulada e sentiu o rosto corar. Nunca havia conversado sobre pênis com nenhum homem, mas sabia que, se quisesse se tornar médica, teria que ser forte em relação a esse tipo de coisa.

           – Do mesmo modo que o senhor, sendo homem, trataria uma infecção vaginal – respondeu. O professor pareceu horrorizado, e ela teve medo de ter sido insolente. Emendou depressa: – Eu examinaria a área com cuidado para tentar identificar a natureza da infecção, e provavelmente a trataria com sulfonamida, embora tenha que admitir que não estudamos isso nas aulas de biologia na escola.

           – A senhorita já viu um homem nu? – indagou ele, cético.

           – Já.

           Ele fingiu indignação:

           – Mas a senhorita é solteira!

           – Quando meu avô estava à beira da morte, ficou acamado e incontinente. Eu ajudava minha mãe a mantê-lo asseado... ela não conseguia dar conta sozinha, porque ele era pesado demais. – Ela ensaiou um sorriso. – As mulheres fazem isso o tempo todo, professor, com os muito jovens e os muito velhos, com os doentes e os incapacitados. Estamos acostumadas. Só os homens consideram essas tarefas constrangedoras.

           Embora ela estivesse respondendo bem, o professor parecia cada vez mais contrariado. O que estaria saindo errado? Quase parecia que ele teria ficado mais feliz se ela se deixasse intimidar por seu comportamento e desse respostas idiotas.

           Com ar pensativo, ele apagou o cigarro no cinzeiro sobre a mesa.

           – Infelizmente, acho que a senhorita não é uma candidata adequada para esta bolsa – falou.

           Carla ficou pasma. Como poderia ter se saído mal? Ela havia respondido a todas as perguntas!

           – Por que não? – indagou ela. – Minhas qualificações são impecáveis.

           – A senhorita é pouco feminina. Fala abertamente sobre vagina e pênis.

           – Foi o senhor quem começou com essa conversa! Tudo o que fiz foi responder às suas perguntas.

           – Está claro que a senhorita foi criada num ambiente vulgar no qual pôde observar a nudez de seus parentes homens.

           – O senhor por acaso acha que as fraldas dos idosos deveriam ser trocadas por homens? Queria vê-lo fazer isso!

           – E, pior de tudo, a senhorita é desrespeitosa e insolente.

           – O senhor me fez perguntas difíceis. Se eu tivesse lhe dado respostas tímidas, teria dito que eu não era durona o bastante para ser médica... não teria?

           O professor ficou sem palavras por alguns instantes, e ela entendeu que era exatamente isso que ele teria feito.

           – O senhor desperdiçou meu tempo – disse ela, dirigindo-se para a porta.

           – Vá se casar – disse o professor. – Gere filhos para o Führer. É esse o seu papel na vida. Cumpra o seu dever!

           Ela saiu e bateu a porta.

           Frieda ergueu os olhos, assustada.

           – O que houve?

           Carla se encaminhou para a saída sem responder. Cruzou olhares com a secretária, cujo ar satisfeito dava a entender que ela sabia exatamente o que tinha acontecido na entrevista.

           – Pode tirar esse sorrisinho da cara, sua vaca velha e ressecada – falou Carla, e teve a satisfação de testemunhar o choque e o horror da mulher.

           Do lado de fora do prédio, disse a Frieda:

           – Ele não tinha nenhuma intenção de me recomendar para a bolsa porque sou mulher. Minhas qualificações não tinham a menor importância. Tive todo esse trabalho por nada. – Então desatou a chorar.

           Frieda a abraçou.

           Um minuto depois, Carla começou a se sentir melhor.

           – Não vou criar filhos para o maldito Führer – resmungou.

           – O quê?

           – Vamos para casa. Quando chegarmos lá eu conto. – As duas subiram nas bicicletas.

           As ruas tinham uma atmosfera estranha, mas Carla estava preocupada demais com os próprios problemas para se perguntar o que estava acontecendo. Pessoas se aglomeravam em volta dos alto-falantes que às vezes transmitiam os discursos de Hitler na Ópera Kroll, o prédio que estava sendo usado em lugar do Reichstag incendiado. Ele provavelmente estava prestes a discursar.

           Quando as duas chegaram de volta à casa dos Von Ulrich, os pais de Carla ainda estavam na cozinha. Walter estava sentado junto ao rádio, com o cenho franzido de concentração.

           – Eles me recusaram – disse Carla. – Independentemente do que dizem as regras, não querem dar a bolsa para uma mulher.

           – Ah, Carla, eu sinto muito – falou a mãe.

           – O que estão dizendo no rádio?

           – Vocês não sabem? – indagou Maud. – Nós invadimos a Polônia hoje de manhã. Estamos em guerra.

 

           A temporada londrina já havia terminado, mas, por conta da crise, a maioria das pessoas continuava na cidade. O Parlamento, que em geral entrava em recesso nessa época do ano, fora excepcionalmente convocado de volta. No entanto, não havia mais festas, nem recepções reais ou bailes. Era como estar num balneário à beira-mar em pleno inverno, pensou Daisy. Era um sábado, e ela estava se aprontando para ir jantar na casa do sogro, o conde Fitzherbert. Poderia haver algo mais maçante?

           Daisy estava sentada diante da penteadeira, usando um vestido de noite de seda verde-água com decote em V e saia plissada. Tinha flores de seda nos cabelos e uma fortuna em diamantes em volta do pescoço.

           Boy, seu marido, estava se arrumando em seu próprio quarto de vestir. Daisy sentia-se feliz por ele estar com ela. Boy passava muitas noites fora. Embora morassem juntos ali em Mayfair, às vezes se passavam vários dias sem que os dois se cruzassem. Nessa noite, porém, ele estava em casa.

           Ela segurava uma carta da mãe, enviada de Buffalo. Olga adivinhara que a filha era infeliz no casamento. As cartas que Daisy escrevera para casa deviam conter pistas. E sua mãe tinha boa intuição. “Eu só quero que você seja feliz”, escrevera ela. “Então preste atenção no que estou lhe dizendo: não desista assim tão cedo. Você um dia vai ser a condessa Fitzherbert, e o seu filho, se for homem, vai ser o conde. Talvez se arrependa de jogar tudo isso fora só porque seu marido não foi atencioso o suficiente.”

           Talvez Olga tivesse razão. As pessoas já chamavam Daisy de milady havia quase três anos, mas mesmo assim o tratamento continuava a lhe dar um choque de prazer, como o trago num cigarro.

           No entanto, o casamento parecia não fazer grande diferença na vida de Boy. Saía à noite com os amigos, viajava pelo país para assistir a corridas de cavalos e raramente compartilhava seus planos com a esposa. Daisy achava constrangedor ir a uma festa e ter a surpresa de encontrar o marido lá. Se quisesse saber aonde ele iria, porém, precisava perguntar ao seu valete, e isso era humilhante demais.

           Será que Boy iria amadurecer aos poucos e começar a se comportar como um marido de verdade, ou seria sempre daquele jeito?

           Ele enfiou a cabeça pela abertura da porta do quarto dela.

           – Vamos, Daisy, estamos atrasados.

           Ela guardou a carta da mãe dentro de uma gaveta, trancou-a e saiu do quarto. Boy a esperava no hall, de smoking. Fitz finalmente sucumbira à moda e agora aceitava trajes curtos mais informais para os jantares de família em casa.

           Poderiam ter ido a pé até a residência de Fitz, mas chovia tanto que Boy mandou buscar o carro. Era um sedã Bentley Airline creme com pneus de risca branca. Seu marido herdara do pai a paixão por carros bonitos.

           Boy foi dirigindo. Daisy torceu para que ele a deixasse assumir o volante na volta. Ela gostava de dirigir e, de toda forma, ele não era um motorista muito confiável depois do jantar, sobretudo se as ruas estivessem molhadas.

           Londres estava se preparando para a guerra. Balões de barragem flutuavam a sessenta metros do solo para impedir a aproximação de bombardeiros. Para o caso de não serem suficientes, sacos de areia tinham sido empilhados diante dos edifícios importantes. Um em cada dois meios-fios fora pintado de branco para orientar os motoristas durante o blecaute iniciado na véspera. Faixas brancas também tinham sido pintadas nas árvores maiores, nas estátuas e em outros obstáculos capazes de causar acidentes.

           A princesa Bea recebeu o filho e a nora. Apesar de seus 50 e poucos anos e de estar bastante gorda, ela ainda se vestia como uma menina. Nessa noite, estava com um vestido cor-de-rosa bordado de contas e paetês. Ela jamais se referia à história que o pai de Daisy contara na festa de casamento, mas havia parado de sugerir que a nora era socialmente inferior e agora sempre se dirigia a ela com cortesia, quando não com afeto. Daisy, por sua vez, se mostrava simpática, mas com cautela, e tratava a sogra como uma tia que estivesse começando a ficar esclerosada.

           Andy, irmão caçula de Boy, também estava presente. Ele e May agora tinham dois filhos e, aos olhos desconfiados de Daisy, May parecia estar esperando um terceiro.

           É claro que Boy queria um filho para herdar o título e a fortuna dos Fitzherbert, mas até agora Daisy não conseguira engravidar. Aquilo era motivo de tensão, e a fecundidade tão evidente de Andy e May apenas piorava a situação. As chances de Daisy aumentariam se Boy passasse mais noites em casa.

           Ela ficou feliz ao ver que sua amiga Eva Murray também fora convidada para o jantar, embora não estivesse com o marido. Jimmy Murray, agora capitão, estava com a sua unidade e não pudera se ausentar, pois a maioria dos soldados já se encontrava aquartelada, e seus oficiais os estavam acompanhando. Eva agora era da família, visto que Jimmy era irmão de May, esposa de Andy. Dessa forma, Boy havia sido obrigado a superar seu preconceito contra os judeus e a ser educado com Eva.

           A amiga tinha tanta adoração por Jimmy quanto três anos antes, quando os dois haviam se casado. Eles também tiveram dois filhos em três anos. Entretanto, nessa noite Eva parecia preocupada, e Daisy podia adivinhar por quê.

           – Como vão seus pais? – perguntou ela.

           – Não podem sair da Alemanha – respondeu Eva, triste. – O governo se recusa a lhes conceder vistos de saída.

           – Fitz não pode ajudar?

           – Ele tentou.

           – O que eles fizeram para merecer isso?

           – Não são só eles. Milhares de judeus alemães estão na mesma situação. São poucos os que conseguem os vistos.

           – Sinto muito.

           Daisy estava mais do que sentida. Chegava a se contorcer de tanta vergonha ao se lembrar de como ela e Boy haviam apoiado os fascistas nos primeiros tempos. Suas reservas em relação ao regime tinham aumentado rapidamente à medida que a brutalidade do fascismo na Grã-Bretanha e no exterior se tornara cada vez mais óbvia. No final das contas, ela ficara aliviada quando Fitz havia reclamado que eles o estavam constrangendo e suplicara que deixassem o partido de Mosley. Agora Daisy se achava uma boba por ter se filiado.

           Boy, por sua vez, não se mostrava tão arrependido. Continuava achando que os europeus brancos de classe alta formavam uma raça superior, escolhida por Deus para governar a Terra. No entanto, não acreditava mais que isso fosse uma filosofia política prática. Muitas vezes se enfurecia com a democracia britânica, mas não defendia que esta fosse abolida.

           A família se sentou cedo à mesa.

           – Neville vai fazer um pronunciamento na Câmara dos Comuns às sete e meia – disse Fitz. Neville Chamberlain era o primeiro-ministro britânico. – Quero assistir. Vou me sentar na Galeria dos Pares. Talvez tenha que deixá-los antes da sobremesa.

           – O que você acha que vai acontecer, pai? – perguntou Andy.

           – Não sei mesmo – respondeu Fitz, levemente irritado. – É claro que todos nós gostaríamos de evitar uma guerra, mas é importante não dar a impressão de que estamos indecisos.

           Daisy ficou surpresa: Fitz acreditava na lealdade e raramente criticava os colegas do governo, mesmo de forma tão oblíqua quanto aquela.

           – Se houver uma guerra, vou me mudar para Tŷ Gwyn – disse a princesa Bea.

           Fitz fez que não com a cabeça.

           – Se houver uma guerra, o governo vai pedir aos proprietários que coloquem suas grandes residências rurais à disposição das Forças Armadas enquanto durar o conflito. Como integrante do governo, tenho que dar o exemplo. Terei que emprestar Tŷ Gwyn ao regimento dos Fuzileiros Galeses para que a propriedade seja usada como um centro de treinamento ou talvez um hospital.

           – Mas é a minha casa de campo! – protestou Bea, indignada.

           – Podemos separar uma pequena parte da casa para uso particular.

           – Não quero uma pequena parte da casa... Sou uma princesa!

           – Talvez seja aconchegante. Podemos usar a despensa do mordomo como cozinha, e a sala íntima como sala de jantar, mais três ou quatro quartos menores.

           – Aconchegante! – Bea tinha um ar de repulsa, como se algo nojento houvesse sido posto na sua frente, porém não disse mais nada.

           – Com certeza Boy e eu vamos ter que nos juntar aos Fuzileiros Galeses – disse Andy.

           May emitiu um ruído que parecia um soluço.

           – Eu vou para a Força Aérea – disse Boy.

           A declaração deixou Fitz chocado.

           – Você não pode fazer isso! O visconde de Aberowen sempre fez parte dos Fuzileiros Galeses.

           – Eles não têm aviões. A próxima guerra vai ser travada no ar. A Real Força Aérea britânica precisará desesperadamente de pilotos. E venho pilotando há anos.

           Fitz estava prestes a seguir argumentando, mas o mordomo entrou e anunciou:

           – O carro está pronto, milorde.

           Fitz olhou para o relógio acima da lareira.

           – Droga, tenho que ir. Obrigado, Grout. – Ele olhou para Boy. – Não tome uma decisão antes de conversarmos mais. Isso não está certo.

           – Está bem, pai.

           Fitz olhou para Bea.

           – Querida, me perdoe por sair no meio do jantar.

           – Não tem problema – disse ela.

           Fitz se levantou da mesa e foi até a porta. Daisy reparou em seu andar manco, triste recordação da última guerra.

           O restante do jantar foi sombrio. Todos se perguntavam se o primeiro-ministro iria declarar guerra.

           Quando as mulheres se levantaram para sair da sala, May sugeriu a Andy que lhe desse o braço. Ele pediu licença aos dois homens ainda sentados à mesa dizendo:

           – Minha esposa encontra-se num estado delicado. – Aquele era o eufemismo habitual para gravidez.

           – Quisera eu que a minha esposa ficasse delicada com tanta facilidade assim – comentou Boy.

           Foi um golpe baixo e Daisy sentiu o rosto corar. Reprimiu uma resposta, mas então se perguntou por que deveria ficar calada.

           – Bem, querido, você sabe o que se diz no futebol – retrucou em voz alta. – Quem não chuta não faz gol.

           Foi a vez de Boy enrubescer.

           – Que ousadia! – protestou ele, furioso.

           Andy riu.

           – Você pediu, irmão.

           – Parem com isso, vocês dois – disse Bea. – Espero que meus filhos aguardem até as senhoras não poderem mais ouvi-los antes de se permitirem conversas tão repulsivas. – Ela saiu da sala com um andar majestoso.

           Daisy saiu atrás da sogra, mas ainda estava zangada e queria ficar sozinha, por isso se despediu das outras mulheres no patamar da escada. Como Boy podia ter dito uma coisa daquelas? Será que ele acreditava mesmo que era culpa dela não ter engravidado? Podia muito bem ser culpa dele! Talvez ele soubesse disso e estivesse tentando culpá-la por medo de as pessoas acharem que ele era infértil. Provavelmente era essa a verdade, mas isso não desculpava uma ofensa pública.

           Ela foi até o antigo quarto do marido. Depois de se casarem, os dois haviam morado ali por três meses, enquanto a casa deles estava sendo redecorada. Tinham usado o antigo quarto de Boy e o cômodo ao lado, embora nessa época dormissem juntos todas as noites.

           Ela entrou e acendeu a luz. Para sua surpresa, viu que Boy parecia não ter se mudado dali completamente. Havia uma navalha na pia e um exemplar da revista de aviação Flight sobre a mesinha de cabeceira. Ela abriu uma gaveta e encontrou uma lata do remédio para o fígado Leonard’s Liver-Aid, que ele tomava todos os dias antes do café da manhã. Será que seu marido dormia ali quando estava bêbado demais para encarar a esposa?

           A gaveta de baixo estava trancada, mas ela sabia que Boy guardava a chave dentro de um vaso no consolo da lareira. Não tinha pudor nenhum em bisbilhotar: na sua opinião, um marido não devia ter nenhum segredo para a esposa. Abriu a gaveta.

           A primeira coisa que encontrou foi um livro de fotografias de mulheres nuas. Nas pinturas e fotos artísticas, as mulheres em geral tentavam ocultar parcialmente as partes íntimas, mas aquelas garotas estavam fazendo justamente o contrário: pernas escancaradas, nádegas arreganhadas e até mesmo os lábios da vagina abertos para expor a parte interna. Se alguém a surpreendesse, Daisy fingiria estar chocada, mas a verdade é que aquelas imagens a deixaram fascinada. Ela folheou o livro inteiro com grande interesse, comparando aquelas mulheres consigo mesma: tamanho e formato dos seios, quantidade de pelos pubianos, órgãos sexuais. Que variedade incrível existia no corpo das mulheres!

           Algumas das garotas estavam se estimulando, ou fingindo fazê-lo, e outras haviam sido fotografadas em dupla, tocando uma a outra. Daisy não estranhava que os homens gostassem daquele tipo de coisa.

           Sentia-se uma intrusa. Estar ali a fez lembrar aquela vez que havia entrado no quarto de Boy em Tŷ Gwyn, antes de eles se casarem. Na época, ela estava louca para descobrir mais coisas a respeito dele, para conhecer mais intimamente o homem que amava, para encontrar um jeito de torná-lo seu. Mas e agora, o que estava fazendo? Espionando um marido que não parecia mais amá-la e tentando entender onde ela havia fracassado.

           Debaixo do livro havia um saco de papel marrom e, dentro dele, vários pequenos envelopes quadrados também de papel, estampados com letras vermelhas na frente.

            

           “Prentif” Marca Registrada

            SERVISPAK

            AVISO

            Não deixar o envelope

           ou seu conteúdo em locais públicos,

           pois podem ser ofensivos

            BORRACHA DE LÁTEX

            fabricada na Grã-Bretanha

            Resistente a qualquer clima

             

           Nada daquilo fazia sentido. Em lugar algum estava escrito o que o envelope continha. Assim, ela abriu um.

           Lá dentro encontrou um pedaço de borracha enrolado. Desenrolou-o. Tinha o formato de um tubo, fechado em uma das pontas. Daisy levou alguns segundos para entender o que era.

           Nunca tinha visto aquilo, mas ouvira outras pessoas comentarem a respeito. Os americanos chamavam aquele pedacinho de borracha de Trojan, e os britânicos, de rubber johnny. O nome correto era preservativo e servia para evitar gravidez.

           Por que seu marido tinha um pacote daquelas coisas? Havia apenas uma resposta possível: para usar com outra mulher.

           Daisy sentiu vontade de chorar. Tinha dado a Boy tudo o que ele queria. Nunca lhe dissera que estava cansada demais para fazer amor – mesmo quando estava –, tampouco recusara qualquer sugestão dele na cama. Se ele houvesse pedido, teria até posado como as mulheres do livro de fotografias.

           O que ela tinha feito de errado?

           Decidiu perguntar a Boy.

           A tristeza se transformou em raiva. Ela se levantou. Levaria os envelopes de papel até a sala de jantar e confrontaria o marido. Por que deveria protegê-lo?

           Mas nesse momento ele entrou no quarto.

           – Vi a luz lá do corredor – disse ele. – O que está fazendo aqui? – Então viu as gavetas abertas da mesinha de cabeceira. – Como se atreve a me espionar?

           – Eu já desconfiava que você fosse infiel – disse ela, erguendo o preservativo. – E estava certa.

           – Que ousadia mexer nas minhas coisas!

           – Que ousadia me trair!

           Ele ergueu a mão.

           – Eu deveria é dar uns tabefes em você, como um marido da era vitoriana.

           Ela pegou um castiçal pesado no consolo da lareira.

           – Se tentar, vou acertar você, como uma esposa do século XX!

           – Que situação ridícula. – Com um ar derrotado, ele se deixou cair sobre uma cadeira junto à porta.

           A evidente infelicidade do marido fez a raiva de Daisy sumir, e tudo o que ela sentiu foi tristeza. Sentou-se na cama. No entanto, não havia perdido a curiosidade.

           – Quem é ela?

           Ele balançou a cabeça.

           – Não importa.

           – Eu quero saber!

           Ele se remexeu, pouco à vontade.

           – Faz diferença?

           – Claro que faz. – Ela sabia que acabaria por fazê-lo contar.

           Boy não conseguia encará-la.

           – Ninguém que você conheça, nem que vá conhecer.

           – Uma prostituta?

           A sugestão o deixou ofendido.

           – Não!

           – Você dá dinheiro a ela? – insistiu Daisy.

           – Não. Sim. – Ele obviamente estava envergonhado o bastante para querer negar. – Bom, uma mesada. Não é a mesma coisa.

           – Por que dar dinheiro se ela não é prostituta?

           – Para elas não precisarem ver mais nenhum outro.

           – Elas? Então você tem várias amantes?

           – Não! Várias não, só duas. Elas moram em Aldgate. São mãe e filha.

           – O quê? Você não pode estar falando sério.

           – Bem, um dia Joanie estava... Elle avait les fleurs, como dizem os franceses.

           – As moças americanas dizem “estar incomodada”.

           – Então Pearl sugeriu...

           – Ser a substituta? Mas essa é a coisa mais sórdida do mundo! Quer dizer que você vai para a cama com as duas?

           – Vou.

           Ela pensou no livro de fotografias e uma possibilidade chocante lhe ocorreu. Teve que perguntar:

           – Ao mesmo tempo?

           – Às vezes.

           – Que nojo!

           – Você não precisa se preocupar com doenças. – Ele apontou para o preservativo em sua mão. – Esses negócios evitam infecções.

           – Fico tocada com a sua atenção.

           – A maioria dos homens faz isso, sabe? Pelo menos os da nossa classe social.

           – Não faz, nada! – disse ela, mas pensou no próprio pai, que tinha uma esposa, uma amante de longa data e, mesmo assim, sentia necessidade de sair com Gladys Angelus.

           – Meu pai não é um marido fiel. Tem filhos bastardos por toda parte.

           – Não acredito em você. Acho que ele ama a sua mãe.

           – Pelo menos um bastardo ele tem com certeza.

           – Onde?

           – Não sei.

           – Então não pode ter certeza.

           – Eu o ouvi dizer alguma coisa para Bing Westhampton uma vez. Você sabe como é o Bing.

           – Sei, sim – disse Daisy. Aquele parecia um bom momento para dizer a verdade, por isso acrescentou: – Ele apalpa meu traseiro sempre que tem oportunidade.

           – Velho safado. Enfim, um dia estávamos todos meio bêbados e Bing falou: “A maioria de nós tem um ou dois filhos bastardos escondidos por aí, não é?”, e papai retrucou: “Eu tenho certeza de que só tenho um.” Então pareceu se dar conta do que tinha dito, tossiu e fez cara de bobo, depois mudou de assunto.

           – Pouco me importa quantos filhos bastardos seu pai tem. Sou uma mulher americana moderna e não vou viver com um marido infiel.

           – O que vai fazer?

           – Deixar você. – Ela adotou uma expressão desafiadora, mas a dor que sentiu foi como se ele a tivesse apunhalado.

           – E voltar para Buffalo com o rabo entre as pernas?

           – Talvez. Ou então eu poderia fazer alguma outra coisa. Dinheiro não me falta. – Na época do casamento, os advogados do pai dela tinham garantido que Boy não pudesse pôr a mão na fortuna dos Vyalov-Peshkov. – Poderia ir para a Califórnia. Atuar num dos filmes do meu pai. Virar uma estrela de cinema. Aposto que conseguiria. – Aquilo era tudo fachada. Ela queria mesmo era chorar.

           – Pois fique à vontade – disse ele. – Por mim, você pode ir para o inferno.

           Ela se perguntou se aquilo era mesmo verdade. Ao observar a expressão dele, concluiu que não.

           Eles ouviram um carro. Daisy afastou a cortina de blecaute alguns centímetros e viu o Rolls-Royce preto e creme de Fitz em frente à casa, com os faróis parcialmente tampados por protetores que desviavam a luz para o chão.

           – Seu pai chegou – disse ela. – Será que estamos em guerra?

           – É melhor descermos.

           – Vá na frente. Vou em seguida.

           Boy saiu e Daisy se olhou no espelho. Ficou surpresa ao constatar que não estava nada diferente da mulher que havia entrado naquele quarto meia hora antes. Sua vida tinha virado de cabeça para baixo, mas não havia nada em seu rosto que denunciasse isso. Sentia uma pena horrível de si mesma e tinha vontade de chorar, mas reprimiu esse impulso. Reunindo todas as forças de que dispunha, desceu.

           Fitz estava na sala de jantar, com o smoking molhado por gotas de chuva nos ombros. Como o patrão havia pulado a sobremesa, Grout lhe trouxe queijo e frutas. Reunida em volta da mesa, a família viu o mordomo servir a Fitz uma taça de vinho tinto. Depois de alguns goles, ele disse:

           – Foi um horror.

           – O que aconteceu, afinal? – perguntou Andy.

           Fitz comeu a ponta de um queijo cheddar antes de responder.

           – Neville discursou por quatro minutos. Foi o pior desempenho de um primeiro-ministro que já vi. Ficou balbuciando e se esquivando do assunto, e disse que a Alemanha talvez saia da Polônia, algo em que ninguém acredita. Não falou uma palavra sequer sobre a guerra, nem mesmo sobre um ultimato.

           – Mas por quê? – indagou Andy.

           – Em conversas particulares, Neville diz que está esperando os franceses pararem de hesitar e declararem guerra ao mesmo tempo que nós. Mas várias pessoas desconfiam que isso seja apenas uma desculpa covarde.

           Fitz tomou um gole de vinho.

           – Arthur Greenwood pediu a palavra em seguida. – Greenwood era o vice-líder do Partido Trabalhista no Parlamento. – Quando ele se levantou, Leo Amery, que como vocês sabem é um deputado conservador, gritou: “Fale em nome da Inglaterra, Arthur!” Pensar que um maldito socialista pudesse falar pela Inglaterra quando um primeiro-ministro conservador não conseguiu! Neville parecia um cachorro que acabara de levar um chute.

           Grout tornou a encher a taça de Fitz.

           – Greenwood foi bastante moderado, mas chegou a dizer: “Fico me perguntando por quanto tempo estamos preparados para vacilar”, e ao ouvir isso os deputados de ambos os lados do plenário aplaudiram estrondosamente. Acho que Neville queria que um buraco se abrisse no chão para que ele pudesse sumir. – Fitz pegou um pêssego e começou a fatiá-lo com garfo e faca.

           – E em que pé ficaram as coisas? – quis saber Andy.

           – Nada está resolvido! Neville voltou para sua residência na Downing Street. Mas a maior parte do Gabinete está reunida na sala de Simon na Câmara dos Comuns. – Sir John Simon era o ministro da Fazenda. – Estão dizendo que só sairão de lá quando Neville enviar um ultimato aos alemães. Enquanto isso, o Comitê Executivo Nacional do Partido Trabalhista também está reunido, e os outros deputados insatisfeitos que não têm função ministerial vão se reunir no apartamento de Winston.

           Daisy nunca gostara de política, mas, desde que entrara para a família de Fitz e passara a ver tudo de perto, começara a se interessar pelo assunto e estava achando aquela situação toda fascinante e assustadora.

           – Então o primeiro-ministro tem que agir! – exclamou.

           – Ah, não há dúvida – concordou Fitz. – Antes da próxima sessão do Parlamento, que deve acontecer ao meio-dia de amanhã, Neville tem que declarar guerra ou então renunciar.

           O telefone tocou no corredor e Grout foi atender. Um minuto depois, tornou a entrar na sala e disse:

           – Era do Ministério das Relações Exteriores, milorde. O cavalheiro não quis esperar que o senhor atendesse, mas insistiu em deixar recado. – O velho mordomo parecia desconcertado, como se tivessem lhe falado com alguma rispidez. – O primeiro-ministro convocou uma reunião imediata do Gabinete.

           – Ação! – exclamou Fitz. – Ótimo.

           Grout prosseguiu:

           – O ministro das Relações Exteriores gostaria que o senhor comparecesse, se possível. – Fitz não fazia parte do Gabinete, mas às vezes ministros-adjuntos eram convidados a assistir a reuniões que tivessem a ver com sua pasta, e ficavam sentados na lateral da sala, e não ao redor da mesa central, para poderem esclarecer algum detalhe.

           Bea olhou para o relógio.

           – São quase onze horas. Acho que você tem que ir.

           – Sim, tenho mesmo. A expressão “se possível” é mera formalidade. – Ele enxugou a boca com um guardanapo branco feito neve e tornou a se retirar, mancando.

           – Grout, faça mais um pouco de café e leve até a sala de estar – pediu a princesa Bea. – Talvez fiquemos acordados até tarde.

           – Sim, alteza.

           Todos voltaram para a sala de estar conversando animadamente. Eva era a favor da guerra: queria ver o regime nazista aniquilado. É claro que ficaria preocupada com Jimmy, mas havia se casado com um soldado e sempre soubera que ele teria de arriscar a vida em combate. Bea também era a favor da guerra, agora que os alemães haviam se aliado aos bolcheviques, que ela tanto odiava. May temia pela vida de Andy, e não conseguia parar de chorar. Boy não entendia por que duas grandes nações como a Inglaterra e a Alemanha entrariam em guerra por causa de uma terra semibárbara como a Polônia.

           Assim que pôde, Daisy chamou Eva para acompanhá-la até outro cômodo, a fim de conversarem a sós.

           – Boy tem uma amante – disse ela sem rodeios. Mostrou os preservativos para a amiga. – Encontrei isto aqui.

           – Ah, Daisy, eu sinto muito – comentou Eva.

           Daisy pensou em lhe contar os detalhes sórdidos, pois as duas em geral diziam tudo uma à outra, mas dessa vez estava se sentindo humilhada demais, por isso disse apenas:

           – Eu o pressionei e ele confessou.

           – Está arrependido?

           – Não muito. Segundo ele, todos os homens de sua classe social fazem isso, inclusive o pai dele.

           – Jimmy não – disse Eva, enfática.

           – Não, tenho certeza de que você tem razão.

           – E o que você vai fazer?

           – Vou deixá-lo. Podemos nos divorciar, e então outra mulher pode ser a viscondessa.

           – Mas você não pode fazer isso se houver uma guerra!

           – Por que não?

           – Vai ser cruel demais se ele estiver no front.

           – Ele deveria ter pensado nisso antes de dormir com duas prostitutas de Aldgate.

           – Mas seria uma covardia. Você não pode abandonar um homem que está arriscando a vida para protegê-la.

           Embora relutante, Daisy entendeu o que Eva estava dizendo. A guerra iria transformar Boy de um adúltero desprezível que merecia ser rejeitado em um herói que estava defendendo a mulher, a mãe e a pátria do terror de uma invasão e de uma conquista. O problema não era apenas o fato de que todo mundo em Londres e em Buffalo veria Daisy como uma covarde por tê-lo deixado. Ela mesma se sentiria assim. Se uma guerra estourasse, teria de ser corajosa, embora não soubesse muito bem o que isso significava.

           – Tem razão – falou, de má vontade. – Se houver guerra, não poderei deixá-lo.

           Houve uma trovoada lá fora. Daisy olhou para o relógio: meia-noite. O barulho da chuva se modificou quando esta se transformou em temporal.

           Daisy e Eva voltaram para a sala. Bea havia pegado no sono num sofá. Andy envolvia May com os braços. Ela ainda fungava. Boy fumava um charuto e bebia um conhaque. Daisy decidiu que com certeza iria dirigir na volta.

           Fitz chegou em casa à meia-noite e meia, com o smoking encharcado.

           – Acabou a hesitação – informou. – Neville vai enviar um ultimato aos alemães pela manhã. Se eles não começarem a retirar as tropas da Polônia ao meio-dia, ou seja, às onze horas daqui, entraremos em guerra.

           Todos se levantaram e se prepararam para ir embora. No hall, Daisy falou:

           – Eu dirijo.

           Boy não discutiu. Os dois entraram no Bentley creme e Daisy deu a partida. Grout fechou a porta da casa de Fitz. Daisy ligou os limpadores de para-brisa, mas não saiu com o carro.

           – Boy – disse ela –, vamos tentar outra vez.

           – Como assim?

           – Não quero deixar você de verdade.

           – E eu com certeza não quero que você me deixe.

           – Largue essas duas mulheres de Aldgate. Durma comigo todas as noites. Vamos tentar ter um filho. É o que você quer, não é?

           – É.

           – Então vai fazer o que estou pedindo?

           Houve uma pausa demorada. Então ele disse:

           – Vou.

           – Obrigada.

           Ela olhou para o marido, torcendo para ganhar um beijo, mas Boy permaneceu sentado ereto, com o olhar fixo à frente através do para-brisa, enquanto os limpadores varriam ritmadamente a chuva incessante.

 

           No domingo, a chuva cessou e o sol apareceu. Lloyd Williams teve a impressão de que Londres tinha sido lavada.

           Durante a manhã, a família Williams se reuniu na cozinha da casa de Ethel em Aldgate. Nada havia sido combinado: todos apareceram espontaneamente. Queriam estar juntos se a guerra fosse declarada, deduziu Lloyd.

           Ao mesmo tempo que ansiava por agir contra os fascistas, a perspectiva da guerra deixava Lloyd apreensivo. Na Espanha, tinha visto carnificina e sofrimento suficientes para uma vida inteira. Desejava nunca mais ter que participar de outra batalha. Havia até abandonado o boxe. Mas, apesar de tudo, no fundo do coração, não queria que Chamberlain recuasse. Vira com os próprios olhos o que o fascismo significava na Alemanha, e os boatos que chegavam da Espanha eram igualmente assustadores: o regime franquista estava assassinando centenas, milhares de antigos defensores do governo eleito, e os padres dominavam outra vez as escolas.

           No verão, depois de se formar, ele havia entrado imediatamente para regimento dos Fuzileiros Galeses e, por ser ex-aluno do Curso de Formação de Oficiais, recebera a patente de tenente. O Exército estava se preparando com energia para o combate: só com muita dificuldade ele conseguira uma licença de 24 horas para visitar a mãe naquele fim de semana. Se o primeiro-ministro declarasse guerra nesse dia, Lloyd estaria entre os primeiros a serem mobilizados.

           Billy Williams chegou à casa na Nutley Street depois do café da manhã de domingo. Lloyd e Bernie estavam sentados junto ao rádio, com jornais espalhados sobre a mesa da cozinha, enquanto Ethel preparava um pernil para o almoço. Tio Billy quase chorou ao ver Lloyd de uniforme.

           – Isso me lembra do nosso Dave – comentou. – Se tivesse voltado da Espanha, ele estaria sendo convocado agora.

           Lloyd nunca contara ao tio as verdadeiras circunstâncias da morte do primo. Fingira desconhecer os detalhes e dissera apenas que Dave havia morrido em combate em Belchite e que devia estar enterrado lá. Billy tinha lutado na Grande Guerra e conhecia a negligência com que eram tratados os cadáveres no campo de batalha, o que aumentava ainda mais a sua dor. Sua maior esperança era algum dia, quando a Espanha finalmente fosse libertada, poder visitar Belchite e prestar homenagem ao filho que morrera lutando por aquela causa tão nobre.

           Lenny Griffiths também jamais havia retornado da Espanha. Ninguém fazia ideia de onde ele pudesse estar enterrado. Talvez até ainda estivesse vivo e detido em um dos campos de prisioneiros de Franco.

           O rádio transmitiu o pronunciamento do primeiro-ministro Chamberlain na Câmara dos Comuns na noite anterior, mas só.

           – Quem ouve isso não faz ideia da confusão que aconteceu depois desse discurso – comentou Billy.

           – A BBC nunca noticia confusões – disse Lloyd. – Eles gostam de transmitir segurança.

           Tanto Billy quanto Lloyd eram membros do Comitê Executivo Nacional do Partido Trabalhista – Lloyd como representante da ala jovem do partido. Ao voltar da Espanha, conseguira ser aceito novamente em Cambridge. Enquanto terminava os estudos, percorrera o país dando palestras aos grupos do Partido Trabalhista e contando às pessoas como o governo espanhol fora traído pelo governo britânico pró-fascista. Os discursos de nada adiantaram – os rebeldes antidemocráticos de Franco tinham vencido, de qualquer jeito –, mas Lloyd se tornara uma figura conhecida e até uma espécie de herói, sobretudo entre os esquerdistas mais jovens, e isso o fizera ser eleito para o Comitê.

           Tanto Lloyd quanto seu tio Billy, portanto, haviam participado da reunião do Comitê na noite anterior. Ambos sabiam que Chamberlain cedera às pressões do Gabinete e enviara um ultimato a Hitler. Agora esperavam, impacientes e aflitos, para ver o que iria acontecer.

           Até onde sabiam, Hitler não tinha mandado nenhuma resposta.

           Lloyd se lembrou da amiga de Ethel, Maud, e de sua família em Berlim. Os filhos dela deviam ter agora 17 e 19 anos, calculou. Imaginou que eles também deviam estar reunidos em volta de um rádio se perguntando se entrariam ou não em guerra contra a Inglaterra.

           Às dez da manhã, Millie, meia-irmã de Lloyd, apareceu. Estava com 19 anos e se casara com Abe, o irmão de sua amiga Naomi Avery. Abe era um atacadista de couro. Millie ganhava um bom dinheiro com as comissões de vendedora numa butique de luxo. Tinha ambições de abrir a própria loja, e Lloyd não duvidava de que conseguisse fazê-lo um dia. Embora aquela não fosse a carreira que Bernie teria escolhido para a filha, Lloyd podia ver como o padrasto sentia orgulho da inteligência, da ambição e da elegância de Millie.

           Nesse dia, porém, sua atitude segura e cheia de pose desmoronou.

           – Foi horrível quando você estava na Espanha – disse ela a Lloyd, chorosa. – E Dave e Lenny não voltaram. Agora são você e meu Abie que vão sumir em algum lugar, deixando todas nós aqui à espera de notícias dia sim, outro também, imaginando se já terão morrido.

           – E o seu primo Keir também – acrescentou Ethel. – Ele está com 18 anos.

           – Em que regimento meu pai serviu? – perguntou Lloyd à mãe.

           – Isso tem alguma importância? – Talvez por consideração a Bernie, ela nunca se mostrava disposta a falar sobre o verdadeiro pai de Lloyd.

           Mas ele queria saber.

           – Para mim, tem – falou.

           Ethel jogou uma batata sem casca dentro da panela d’água com uma força desnecessária.

           – Ele serviu nos Fuzileiros Galeses.

           – Igual a mim! Por que não me contou isso antes?

           – São águas passadas.

           Lloyd sabia que talvez o nervosismo da mãe tivesse outro motivo. Ela provavelmente já estava grávida quando se casou. Isso não incomodava Lloyd, mas, para a geração de sua mãe, era uma vergonha. Mesmo assim, ele insistiu:

           – Meu pai era galês?

           – Era.

           – De Aberowen?

           – Não.

           – De onde, então?

           Ela suspirou.

           – Os pais dele viviam se mudando... algo a ver com o emprego do pai. Mas eu acho que originalmente eram de Swansea. Está satisfeito agora?

           – Estou.

           A tia de Lloyd, Mildred, chegou da igreja. Era uma senhora de meia-idade, elegante e bonita, mas dentuça. Estava usando um chapéu extravagante – era chapeleira, e tinha uma pequena fábrica. Tinha duas filhas do primeiro casamento, Enid e Lillian, ambas já com cerca de 30 anos, casadas e com os próprios filhos. Seu filho mais velho era Dave, morto na Espanha. O caçula, Keir, entrou atrás da mãe na cozinha. Mildred insistia em levar os filhos à igreja, mesmo que seu marido Billy se recusasse a ter qualquer envolvimento com a religião.

           – Eu tive isso de sobra quando era criança – ele costumava dizer. – Se eu não for salvo, ninguém vai ser.

           Lloyd correu os olhos pela cozinha. Aquela era a sua família: mãe, padrasto, meia-irmã, tio, tia e primo. Não queria deixá-los e partir para morrer sabia-se lá onde.

           Olhou para o relógio, um modelo de aço inox com mostrador quadrado que Bernie lhe dera de presente de formatura. Eram onze da manhã. No rádio, a voz forte do locutor de notícias Alvar Liddell informou que o primeiro-ministro faria um pronunciamento dentro de instantes. Seguiu-se um trecho solene de música clássica.

           – Silêncio, todo mundo – disse Ethel. – Depois preparo um chá para vocês.

           Alvar Liddell anunciou o primeiro-ministro Neville Chamberlain.

           O apaziguador do fascismo, pensou Lloyd, o homem que entregou a Tchecoslováquia a Hitler; que se recusou teimosamente a ajudar o governo eleito da Espanha, mesmo depois de não ser mais possível negar que os alemães e italianos estavam armando os rebeldes. Será que ele estava prestes a ceder mais uma vez?

           Lloyd reparou que os pais estavam de mãos dadas, os dedos pequeninos de Ethel pressionando a palma de Bernie.

           Tornou a verificar o relógio. Onze e quinze.

           Então ouviram o primeiro ministro dizer:

           – Dirijo-me a vocês da sala do Gabinete do Reino Unido no número 10 da Downing Street.

           Chamberlain tinha a voz um pouco esganiçada, excessivamente formal. Parecia um professor de escola pedante. Um guerreiro, pensou Lloyd, é disso que precisamos.

           – Hoje de manhã, o embaixador britânico em Berlim entregou ao governo alemão um último aviso informando que, se o governo britânico não fosse comunicado antes das onze horas da manhã que eles estavam dispostos a retirar imediatamente suas tropas da Polônia, um estado de guerra passaria a existir entre nós.

           Lloyd se impacientou com aquela verborragia de Chamberlain. Um estado de guerra passaria a existir entre nós: que jeito mais estranho de dizer as coisas. Ande logo com isso, pensou. Vá direto ao ponto. É um assunto de vida ou morte.

           A voz de Chamberlain se fez mais grave e mais oficial. Talvez ele não estivesse mais olhando para o microfone, e sim imaginando milhões de conterrâneos seus em casa, sentados junto aos aparelhos de rádio, aguardando suas temidas palavras.

           – Devo lhes informar agora que nenhuma mensagem com esse teor foi recebida...

           Lloyd ouviu a mãe dizer:

           – Ai, Deus nos proteja.

           Olhou para ela. O rosto de Ethel estava cinza.

           Foi bem devagar que Chamberlain pronunciou as terríveis palavras seguintes:

           – ...e, consequentemente, este país está em guerra com a Alemanha.

           Ethel começou a chorar.

             

1940 (I)

            Aberowen estava mudada. Carros, caminhões e ônibus trafegavam pelas ruas. Na década de 1920, quando Lloyd era criança e ia à cidade visitar os avós, um carro estacionado era uma raridade capaz de juntar uma multidão.

           Mas a cidade ainda era dominada pelas torres gêmeas da entrada da mina, com suas rodas girando, majestosas. Não havia mais nada: nenhuma fábrica, nenhum prédio comercial, nenhuma indústria que não fosse a extração de carvão. Quase todos os homens da cidade trabalhavam na mina. Havia pouquíssimas exceções: um punhado de lojistas, sacerdotes de diversas religiões, um escrevente municipal, um médico. Sempre que a demanda por carvão diminuía e havia demissões, como acontecera nos anos 1930, os homens não tinham o que fazer. Era por isso que a luta mais ferrenha do Partido Trabalhista era pelos desempregados, para que aqueles homens nunca mais tivessem que enfrentar a agonia e a humilhação de não poder alimentar suas famílias.

           O tenente Lloyd Williams havia chegado no trem de Cardiff num domingo de abril de 1940. Com uma pequena mala na mão, subira a colina até Tŷ Gwyn. Passara oito meses treinando novos recrutas – mesmo trabalho que fazia na Espanha – e a equipe de boxe dos Fuzileiros Galeses. Mas então o Exército finalmente se deu conta de que ele falava alemão fluentemente e o transferiu para o serviço de inteligência, no qual começara um treinamento.

           Treinar era tudo o que o Exército tinha feito até então. Nenhum soldado britânico participara de qualquer confronto significativo com o inimigo. A Alemanha e a URSS haviam derrotado a Polônia e a dividido entre si, e a garantia de independência que os Aliados tinham dado a esse país se revelara inútil.

           O povo britânico chamava aquele conflito de Guerra de Mentira, e estava impaciente para ver as coisas acontecerem de verdade. Apesar de não nutrir qualquer ilusão romântica em relação à guerra – já ouvira as vozes de homens à beira da morte, dignos de pena, implorando por água nos campos de batalha da Espanha –, Lloyd estava ansioso para iniciar a luta final contra o fascismo.

           O Exército esperava mandar mais tropas para a França, prevendo uma invasão alemã. Isso ainda não havia acontecido e elas se mantinham a postos, mas, nesse meio-tempo, o que mais faziam era treinar.

           A iniciação de Lloyd nos mistérios da inteligência militar iria acontecer na mesma mansão que, por tanto tempo, fizera parte do destino de sua família. Os ricos e nobres proprietários de muitos palacetes daquele tipo os haviam emprestado às Forças Armadas, talvez por medo de que, se não o fizessem, as propriedades fossem confiscadas de forma definitiva.

           O Exército com certeza havia mudado Tŷ Gwyn. Uma dúzia de veículos verde-oliva estava estacionada no gramado, e seus pneus tinham marcado a luxuriante grama do conde. O gracioso pátio de entrada, com seus degraus curvos de granito, virara um ponto de descarte de material, e imensas latas de feijão cozido e banha para preparar comida formavam pilhas altas no mesmo lugar em que, antigamente, mulheres cobertas de joias e homens de casaca desciam de suas carruagens. Lloyd sorriu: gostava daquele efeito nivelador da guerra.

           Entrou na casa. Foi recebido por um oficial baixinho e gorducho usando um uniforme amarrotado e cheio de manchas.

           – Veio para o curso de inteligência, tenente?

           – Sim, senhor. Meu nome é Lloyd Williams.

           – Major Lowther.

           Lloyd já ouvira falar nele. Era o marquês de Lowther, conhecido pelos amigos como Lowthie.

           Lloyd olhou em volta. Os quadros das paredes tinham sido cobertos com imensos lençóis, para protegê-los da poeira. As lareiras de mármore esculpido haviam sido isoladas com tábuas grosseiras, deixando espaço para apenas uma grelha. Os antigos móveis escuros, dos quais sua mãe às vezes falava com carinho, tinham todos desaparecido, substituídos por mesas de aço e cadeiras baratas.

           – Meu Deus, como isto aqui está diferente – comentou ele.

           Lowther sorriu.

           – Você já esteve aqui antes? Conhece a família?

           – Estudei em Cambridge com Boy Fitzherbert. Também conheci a viscondessa, embora na época eles não fossem casados. Mas imagino que tenham deixado a casa enquanto durar a guerra.

           – Não totalmente. Alguns cômodos foram reservados para uso da família. Mas eles não nos incomodam em nada. Quer dizer que o senhor esteve aqui como convidado?

           – Por Deus, não. Eu não os conheço tão bem assim. Visitei a mansão quando era menino, num dia em que a família não estava. Minha mãe trabalhava aqui antigamente.

           – É mesmo? Ela cuidava da biblioteca do conde, ou algo assim?

           – Não, era criada. – Assim que as palavras saíram da boca de Lloyd, ele soube que tinha cometido um erro.

           A expressão de Lowther se modificou, demonstrando repulsa.

           – Entendo – comentou ele. – Muito interessante.

           Lloyd soube que havia sido imediatamente classificado como um proletário parvenu. Agora seria tratado como cidadão de segunda classe durante toda a sua estadia na mansão. Deveria ter ficado calado em relação ao passado da mãe: sabia quão esnobe era o Exército.

           – Sargento, leve o tenente até seu quarto – disse Lowthie. – No sótão.

           Lloyd tinha recebido um quarto na antiga ala dos criados. Na verdade, não se importava. Foi o suficiente para minha mãe, pensou.

           Quando estavam subindo a escada dos fundos, o sargento disse a Lloyd que ele não tinha nenhum compromisso até o jantar no refeitório. Ele perguntou se alguém da família Fitzherbert estava na casa naquele momento, mas o sargento não soube dizer.

           Levou dois minutos para desfazer a mala. Penteou os cabelos, vestiu uma camisa de uniforme limpa e foi visitar os avós.

           A casa na Wellington Row lhe pareceu menor e mais sem graça do que nunca, apesar de agora ter água quente na copa e uma privada com descarga no banheiro externo. A decoração era a mesma de que Lloyd ainda se lembrava: o tapete surrado no chão, as cortinas de estampa desbotada, as duas cadeiras de carvalho no único aposento do térreo, que servia de sala e cozinha.

           Seus avós, porém, haviam mudado. Estavam ambos com cerca de 70 anos agora e pareciam frágeis. Granda sofria com dores nas pernas e se aposentara com relutância do emprego no sindicato dos mineiros. Grandmam tinha problemas de coração: o Dr. Mortimer lhe recomendara ficar com os pés para cima por 15 minutos após cada refeição.

           Ambos ficaram contentes ao vê-lo de uniforme.

           – Tenente, é? – comentou Grandmam. Embora tivesse lutado a vida inteira contra as diferenças de classe, ela não conseguiu esconder o orgulho do neto oficial.

           As notícias corriam depressa em Aberowen, e o fato de o neto de Dai do Sindicato estar fazendo uma visita provavelmente rodou metade da cidade antes mesmo de Lloyd terminar sua primeira xícara do forte chá da avó. Portanto, ele não ficou muito surpreso quando Tommy Griffiths apareceu.

           – Imagino que meu Lenny seria tenente como você, se voltasse da Espanha – disse Tommy.

           – Acho que sim – respondeu Lloyd. Ele nunca conhecera um oficial que tivesse sido mineiro antes de entrar para o Exército, mas, quando a guerra começasse para valer, tudo seria possível. – Uma coisa eu posso lhe garantir: ele foi o melhor sargento na Espanha.

           – Vocês passaram por muita coisa juntos.

           – Nós vivemos um inferno – disse Lloyd. – E perdemos. Mas os fascistas não vão ganhar desta vez.

           – Um brinde a isso – disse Tommy, esvaziando sua xícara de chá.

           Lloyd foi com os avós ao serviço da noite na capela Bethesda. A religião não era uma parte importante de sua vida, e ele certamente não concordava com o dogmatismo de Granda. Pensava que o Universo era um mistério e que era melhor as pessoas aceitarem esse fato. Mas seus avós ficaram felizes quando o neto se sentou ao lado deles na capela.

           As preces espontâneas foram eloquentes, entremeando expressões bíblicas e coloquiais de forma natural. O sermão foi um pouco maçante. Os cânticos, porém, deixaram Lloyd entusiasmado. Os fiéis sempre cantavam um hino de quatro partes e, quando estavam inspirados, eram capazes de fazer a capela vir abaixo.

           Ao cantar, Lloyd sentiu que ali, dentro daquela capela caiada, pulsava o coração da Grã-Bretanha. As pessoas à sua volta estavam malvestidas, tinham pouca instrução e levavam uma vida de trabalho árduo e interminável: os homens extraindo o carvão da terra, as mulheres criando a próxima geração de mineiros. No entanto, tinham as costas fortes e a mente arguta, e sozinhas haviam criado uma cultura que fazia a vida valer a pena. Tiravam esperança de um cristianismo não conformista e do esquerdismo político, encontravam alegria na prática do rúgbi e nos corais masculinos, e uniam-se graças à generosidade nos tempos bons e à solidariedade nos ruins. Era por aquilo que ele iria lutar, por aquelas pessoas, por aquela cidade. E, se tivesse que dar a vida por elas, valeria a pena.

           Granda fez a prece final, em pé e de olhos fechados, apoiado numa bengala:

           – Vede entre nós, ó Senhor, vosso jovem servo Lloyd Williams, aqui sentado com seu uniforme. Nós vos pedimos, em vossa infinita sabedoria e graça, que poupeis a vida dele no conflito que está por vir. Por caridade, Senhor, fazei com que ele volte para nós são e salvo. Se for essa a vossa vontade, ó Senhor.

           A congregação respondeu com um “amém” sincero, e Lloyd enxugou uma lágrima.

           Acompanhou os mais velhos até em casa enquanto o sol se escondia atrás da montanha e a penumbra do fim do dia cobria as fileiras de casas cinzentas. Recusou o convite para uma ceia na casa dos avós e voltou depressa para Tŷ Gwyn, a tempo de jantar no refeitório.

           Comeram carne assada com batatas cozidas e repolho. A comida não estava melhor nem pior do que a maioria dos ranchos do Exército, e Lloyd comeu com vontade, consciente de que aquela refeição tinha sido paga por pessoas como seus avós, que nessa mesma hora estavam jantando pão com banha. Havia uma garrafa de uísque sobre a mesa e, para ser simpático, bebeu um pouco. Ficou estudando os colegas de curso e tentando lembrar o nome de cada um deles.

           A caminho do quarto, passou pela Sala das Esculturas, agora sem nenhuma obra de arte e mobiliada com um quadro-negro e 12 mesas baratas. Lá dentro, viu o major Lowther conversando com uma mulher. Quando olhou com mais atenção, viu que a mulher era Daisy Fitzherbert.

           Ficou tão surpreso que parou. Lowther olhou em volta com uma expressão irritada. Ao ver Lloyd, falou:

           – Lady Aberowen, acho que a senhora já conhece o tenente Williams.

           Se ela negar, pensou Lloyd, vou lembrar-lhe daquela ocasião em que me deu um beijo sôfrego e demorado numa rua escura de Mayfair.

           – Que prazer vê-lo novamente, Sr. Williams – disse ela, estendendo a mão para ele.

           Sua pele era macia e estava morna. Seu coração começou a bater mais depressa.

           – Williams me contou que a mãe dele trabalhou aqui como criada – disse Lowther.

           – Eu sei – falou Daisy. – Ele me contou isso no baile do Trinity. Estava me repreendendo por ser esnobe. Lamento dizer que ele estava coberto de razão.

           – É generosidade sua, Lady Aberowen – disse Lloyd, encabulado. – Não sei por que fui dizer uma coisa dessas à senhora. – Ela parecia menos dura do que ele se lembrava: talvez tivesse amadurecido.

           – A mãe do Sr. Williams hoje é deputada – disse Daisy a Lowther, que ficou espantado.

           – E como vai sua amiga judia, Eva? – perguntou Lloyd a Daisy. – Sei que ela se casou com Jimmy Murray.

           – Eles têm dois filhos.

           – Ela conseguiu tirar os pais da Alemanha?

           – Quanta gentileza sua se lembrar disso... Mas não, infelizmente os Rothmann não conseguiram vistos.

           – Que lástima. Deve estar sendo horrível para ela.

           – Está, sim.

           Aquela conversa sobre criadas e judeus obviamente estava deixando Lowther impaciente.

           – Mas, voltando ao que eu estava dizendo, Lady Aberowen...

           – Desejo-lhes uma boa-noite – disse Lloyd. Saiu da Sala das Esculturas e subiu correndo até seu quarto.

           Quando estava se preparando para dormir, pegou-se cantando o último hino entoado na capela:

            

           Não há tormenta que abale minha calma interior

           Enquanto a esta rocha eu me agarrar

           Já que o amor é senhor da terra e do céu

           Como posso me impedir de cantar?

 

           Três dias depois, Daisy estava terminando de escrever para seu meio-irmão, Greg. Quando a guerra havia estourado, ele lhe enviara uma carta carinhosa e preocupada e desde então os dois se correspondiam mais ou menos todo mês. Ele contara a Daisy que tinha visto sua antiga paixão, Jacky Jakes, em Washington, na Rua E, e lhe perguntara o que faria uma garota sair correndo daquele jeito. Daisy não fazia ideia. Disse isso a Greg, desejou-lhe boa sorte e então assinou a carta.

           Olhou para o relógio. Faltava uma hora para o jantar dos oficiais do curso, de modo que as aulas já deviam ter acabado e ela teria uma boa chance de encontrar Lloyd no quarto.

           Subiu até a antiga ala dos criados, no sótão. Os jovens oficiais liam ou escreviam, sentados ou deitados em suas camas. Ela encontrou Lloyd num quarto exíguo com um antigo espelho de pé, sentado junto à janela, estudando um livro ilustrado.

           – Está lendo algo interessante? – perguntou ela.

           – Oi, que surpresa – disse ele, levantando-se com um pulo.

           O rosto de Lloyd estava vermelho de vergonha. Provavelmente ainda tinha uma quedinha por ela. Havia sido muito cruel da parte de Daisy tê-lo beijado mesmo sem a menor intenção de dar continuidade ao relacionamento. Mas aquilo já fazia quatro anos, e os dois eram crianças na época. Ele já deveria ter superado.

           Ela olhou para o livro que ele tinha nas mãos. Estava em alemão e mostrava desenhos coloridos de distintivos.

           – Temos que conhecer as insígnias alemãs – explicou ele. – Muitas das informações de inteligência são obtidas interrogando prisioneiros de guerra logo depois da captura. Alguns não dizem nada, é claro, então o interrogador precisa saber, só de olhar para o uniforme do prisioneiro, qual é a sua patente, a que corporação ele pertence, se é da infantaria, da cavalaria, da artilharia, ou se faz parte de alguma unidade especial, como, por exemplo, a de veterinários, e assim por diante.

           – É isso que você está aprendendo aqui? – perguntou ela, cética. – O significado dos distintivos alemães?

           Lloyd riu.

           – Entre outras coisas. Essa é uma das que posso lhe contar sem revelar segredos militares.

           – Ah, entendo.

           – E você? O que está fazendo aqui no País de Gales? Fico surpreso que não esteja contribuindo para o esforço de guerra.

           – Lá vem você outra vez – disse ela. – Com suas reprimendas morais. Alguém lhe falou que esse era um bom jeito de conquistar as mulheres?

           – Peço que me perdoe – disse ele, rígido. – Não quis ofendê-la.

           – De toda forma, não tem havido esforço de guerra nenhum. Só balões flutuando no céu para ameaçar aviões alemães que nunca chegam.

           – Pelo menos em Londres você teria uma vida social.

           – Sabe, antigamente isso era a coisa mais importante do mundo, mas agora não é mais – comentou ela. – Devo estar ficando velha.

           Havia outro motivo para ela ter saído de Londres, mas não iria contar a ele.

           – Eu imaginava você num uniforme de enfermeira – disse Lloyd.

           – Pouco provável. Detesto gente doente. Mas, antes de me brindar com mais uma dessas suas expressões de reprovação, dê uma olhada nisto aqui. – Ela lhe entregou o porta-retratos que tinha na mão.

           Ele estudou a fotografia com o cenho franzido.

           – Onde você arrumou isto?

           – Estava olhando uma caixa de fotos antigas no quartinho do porão.

           Era uma fotografia de grupo tirada no gramado leste de Tŷ Gwyn numa manhã de verão. No centro estava o jovem conde Fitzherbert com um grande cão branco a seus pés. A moça ao seu lado devia ser sua irmã Maud, que Daisy nunca chegara a conhecer. Enfileirados de cada lado deles estavam quarenta ou cinquenta homens e mulheres da criadagem usando uniformes variados.

           – Dê uma olhada na data – falou Daisy.

           – Mil novecentos e doze – leu Lloyd em voz alta.

           Ela o observou, estudando sua reação à foto que segurava.

           – Sua mãe está na foto?

           – Meu Deus! Talvez esteja mesmo. – Lloyd olhou mais de perto. – Sim, acho que está – falou, depois de um minuto.

           – Quem é ela?

           Lloyd apontou.

           – Acho que é esta aqui.

           Daisy viu uma moça magrinha e bonita, de uns 19 anos, com cabelos escuros e cacheados sob uma touca branca de criada e um sorriso que tinha mais que um traço leve de travessura.

           – Puxa, ela é uma graça! – exclamou.

           – Era, pelo menos – disse Lloyd. – Hoje em dia as pessoas a definem mais como intimidadora.

           – Você conhece Lady Maud? Acha que é esta aqui, ao lado de Fitz?

           – Acho que a conheço desde que me entendo por gente, embora não a veja com frequência. Ela e minha mãe lutaram juntas pelo direito de voto feminino. Eu não a vejo desde que fui embora de Berlim, em 1933, mas com certeza é ela aí na foto.

           – Não é muito bonita.

           – Mas tem porte e se veste extremamente bem.

           – Enfim, achei que você talvez fosse gostar de ficar com a foto.

           – Para mim?

           – Claro. Ninguém mais a quer... por isso estava numa caixa no porão.

           – Obrigado!

           – De nada. – Daisy foi até a porta. – Pode voltar aos seus estudos.

           Enquanto descia a escada, torceu para não ter flertado com ele. Provavelmente não deveria nem ter ido procurá-lo. Havia sucumbido a um impulso de generosidade. Torceu para que ele não interpretasse aquilo de forma equivocada.

           Sentiu uma pontada de dor na barriga e parou no patamar intermediário da escada. Passara o dia inteiro com uma leve dor nas costas – que atribuíra ao colchão vagabundo no qual estava dormindo –, mas aquilo era diferente. Pensou no que havia comido naquele dia, mas não conseguiu identificar nada que pudesse ter lhe caído mal: não comera frango malpassado, nem frutas pouco maduras. Não comera ostras... infelizmente! A dor foi embora logo, tão depressa quanto havia surgido, e ela disse a si mesma para esquecer aquilo.

           Voltou para seus aposentos, no porão. Estava morando no que antes era o apartamento da governanta: um quarto minúsculo, uma saleta, uma pequena cozinha e um banheiro razoável, com uma banheira. Um lacaio já idoso chamado Morrison fazia as vezes de zelador da casa, e uma jovem de Aberowen era a criada de Daisy. Embora fosse bem grandona, a moça se chamava Pequena Maisie Owen.

           – Minha mãe também se chama Maisie, então sempre fui a Pequena Maisie, embora hoje em dia seja mais alta do que ela – explicara a moça.

           O telefone tocou assim que Daisy entrou. Ela atendeu e ouviu a voz do marido.

           – Como você está? – perguntou ele.

           – Bem. A que horas você chega?

           Ele tinha ido de avião cumprir uma missão em St. Athan, uma grande base aérea da RAF perto de Cardiff, e prometera ir visitá-la e passar a noite com ela.

           – Sinto muito, não vou conseguir passar aí.

           – Ah, que pena!

           – Haverá um jantar de gala aqui na base e tenho que estar presente.

           Ele não parecia particularmente desanimado por não vê-la e ela se sentiu rejeitada.

           – Que bom para você – comentou.

           – Vai ser chato, mas não dá para me livrar.

           – Não tão chato quanto morar aqui sozinha.

           – Deve ser mesmo horrível. Mas, na sua condição, é melhor você ficar aí.

           Milhares de pessoas tinham deixado Londres após a guerra ter sido declarada, mas a maioria voltara depois que os esperados bombardeios e ataques com gás não acontecerem. No entanto, Bea, May e até mesmo Eva tinham concordado que, por conta da gravidez, era melhor Daisy ficar morando em Tŷ Gwyn. Muitas mulheres davam à luz com segurança em Londres todos os dias, argumentara Daisy, mas naturalmente o caso do herdeiro do título de conde era diferente.

           Na verdade, ela não estava ligando tanto para aquilo quanto pensara que ligaria. Talvez a gravidez a houvesse deixado mais passiva do que de costume. Desde a declaração de guerra, porém, a vida social de Londres não tinha mais a mesma energia, como se as pessoas não se sentissem no direito de se entreter. Pareciam padres num bar: sabiam que em princípio aquilo deveria ser divertido, mas não conseguiam se soltar.

           – Gostaria de ter minha moto aqui – comentou ela. – Assim poderia ao menos explorar o País de Gales. – A gasolina estava racionada, mas não muito.

           – Daisy, por favor! – disse ele, em tom de censura. – Você não pode andar de moto... o médico proibiu terminantemente.

           – Enfim, descobri a literatura – continuou ela. – A biblioteca daqui é incrível. Algumas das edições raras e valiosas foram guardadas, mas quase todos os livros continuam na estante. Estou recebendo a educação que me esforcei tanto para evitar na escola.

           – Maravilha – disse ele. – Bem, vá se deitar com um bom livro de mistério e assassinato, e aproveite a noite.

           – Senti uma pontada na barriga mais cedo.

           – Deve ser indigestão.

           – Espero que você tenha razão.

           – Mande lembranças para Lowthie, aquele pateta.

           – Não exagere no Porto no jantar.

           Na mesma hora em que desligou, Daisy sentiu outra pontada na barriga. Dessa vez, durou mais tempo. Maisie entrou, viu o rosto dela e perguntou:

           – A senhora está bem, milady?

           – Foi só uma fisgada.

           – Vim perguntar se quer jantar agora.

           – Não estou com fome. Acho que não vou jantar hoje.

           – Preparei uma torta de carne deliciosa – disse Maisie, em tom de reprimenda.

           – Pode cobrir e deixar na despensa. Amanhã eu como.

           – Quer que eu prepare uma boa xícara de chá?

           – Quero, por favor – aceitou Daisy, só para se livrar da criada. Mesmo depois de quatro anos no país, ainda não tinha aprendido a gostar do chá forte com leite e açúcar dos britânicos.

           A dor passou, então ela se sentou e abriu O moinho à beira do rio. Obrigou-se a tomar o chá de Maisie e se sentiu um pouco melhor. Ao terminar a bebida, depois de Maisie lavar a xícara e o pires, dispensou a criada. A moça precisava andar quase dois quilômetros no escuro a fim de voltar para casa, mas tinha uma lanterna e disse que não se importava.

           Uma hora mais tarde, a dor voltou, e dessa vez não passou. Daisy foi ao banheiro na vaga esperança de conseguir aliviar a pressão na barriga. Ficou surpresa e preocupada ao ver manchas escuras de sangue em sua roupa íntima.

           Trocou de calcinha e, agora seriamente preocupada, foi até o telefone. Encontrou o número da base aérea da RAF em St. Athan e ligou para lá.

           – Preciso falar com o capitão visconde Aberowen – disse ela.

           – Não podemos passar ligações pessoais para os oficiais – respondeu um galês pedante.

           – É uma emergência. Tenho que falar com meu marido.

           – Não há telefone nos quartos. Isto aqui não é o Hotel Dorchester.

           Talvez fosse só imaginação de Daisy, mas a voz dele soava bastante satisfeita por não poder ajudá-la.

           – Meu marido deve estar no jantar de gala. Por favor, mande um ordenança chamá-lo ao telefone.

           – Não tenho nenhum ordenança e, de toda forma, não está havendo um jantar de gala.

           – Como assim, não está havendo um jantar? – Por um instante, Daisy ficou sem entender.

           – Só o jantar normal no refeitório – disse o homem. – E já terminou faz uma hora.

           Daisy bateu o fone com força. Não havia jantar de gala? Boy lhe dissera explicitamente que precisava comparecer a um jantar de gala na base. Ele devia ter mentido. Daisy teve vontade de chorar. Ele decidira não ir vê-la para beber com os colegas ou talvez visitar alguma mulher. O motivo não fazia diferença. Ela não era prioridade para ele.

           Respirou fundo. Precisava de ajuda. Não sabia o telefone do médico de Aberowen, se é que havia um. O que iria fazer?

           Da última vez que Boy fora embora, ele lhe dissera:

           – Aqui tem pelo menos cem oficiais do Exército para cuidar de você.

           Mas ela não podia dizer ao marquês de Lowther que estava sangrando pela vagina.

           A dor aumentava, e ela sentiu algo morno e pegajoso entre as pernas. Foi ao banheiro outra vez e se limpou. Viu que o sangue estava cheio de coágulos. Não tinha toalhas higiênicas – grávidas não precisavam disso, pensara antes de viajar. Rasgou um pedaço de uma toalha de mão e a enfiou dentro da calcinha.

           Foi então que pensou em Lloyd Williams.

           Ele era um homem gentil. Fora criado por uma mulher forte, uma feminista. Tinha adoração por Daisy. Iria ajudá-la.

           Ela subiu até o hall de entrada. Onde será que ele estava? Os alunos do curso a essa altura já deviam ter acabado de jantar. Talvez ele estivesse lá em cima. A barriga de Daisy doía tanto que ela achou que não fosse conseguir chegar até o sótão.

           Talvez ele estivesse na biblioteca. Os alunos usavam aquele cômodo para estudar sossegados. Ela entrou lá. Um sargento estava debruçado sobre um atlas.

           – O senhor teria a bondade de chamar o tenente Lloyd Williams para mim? – pediu.

           – É claro, milady – respondeu o sargento, fechando o atlas. – Qual é o recado?

           – Pergunte se ele poderia descer ao porão um instante.

           – A senhora está bem? Parece um pouco pálida.

           – Vou ficar bem. Mas chame Williams o mais rápido que puder.

           – Agora mesmo.

           Daisy voltou para seus aposentos. O esforço de parecer normal a deixara exausta, e ela se deitou na cama. Não demorou muito para sentir o sangue encharcar seu vestido, mas a dor estava forte demais para que ela se importasse. Olhou para o relógio. Por que Lloyd ainda não havia aparecido? Talvez o sargento não tivesse conseguido encontrá-lo. Aquela casa era tão grande... Talvez ela fosse simplesmente morrer ali.

           Alguém bateu à porta e então, para seu imenso alívio, ela ouviu a voz dele:

           – Sou eu, Lloyd Williams.

           – Pode entrar – disse ela, alto.

           Ele iria vê-la naquele estado lamentável. Quem sabe isso não o fizesse perder o desejo por ela de vez?

           Ela o ouviu entrar no cômodo ao lado.

           – Demorei para encontrar seus aposentos – disse ele. – Onde você está?

           – Aqui.

           Ele entrou no quarto.

           – Meu Deus do céu! – exclamou. – O que aconteceu?

           – Chame ajuda – pediu ela. – Tem algum médico na cidade?

           – Claro. O Dr. Mortimer. Ele atende aqui há séculos. Mas talvez não haja tempo. Deixe eu... – Ele hesitou. – Você pode estar tendo uma hemorragia, mas só vou ter certeza se olhar.

           Ela fechou os olhos.

           – Vá em frente. – Estava apavorada demais para sentir vergonha.

           Ela o sentiu levantar seu vestido.

           – Ah, não – comentou Lloyd. – Coitada. – Então rasgou sua calcinha. – Desculpe – falou. – Tem água em algum...?

           – No banheiro – disse ela, apontando.

           Ele entrou no banheiro e abriu uma torneira. Instantes depois, ela sentiu que ele a limpava com um pano morno e úmido.

           – É só um filete – disse ele. – Já vi homens sangrarem até a morte, e você não corre esse perigo. – Ela abriu os olhos a tempo de vê-lo baixar sua saia. – Onde fica o telefone?

           – Na saleta.

           Lloyd foi até lá e ela o ouviu dizer:

           – Passe-me o Dr. Mortimer o mais rápido que puder. – Houve uma pausa. – Aqui é Lloyd Williams, estou em Tŷ Gwyn. Posso falar com o doutor? Ah, boa noite, Sra. Mortimer... quando acha que ele vá voltar? É uma mulher com dores abdominais e sangramento vaginal. Sim, eu sei que a maioria das mulheres tem isso todo mês, mas esta situação está claramente fora do normal... Vinte e três anos... sim, casada... sem filhos... espere, vou perguntar. – Ele ergueu a voz. – Você pode estar grávida?

           – Estou – respondeu Daisy. – De três meses.

           Lloyd repetiu a resposta e então houve um longo silêncio. Depois de algum tempo, ele desligou e voltou ao quarto. Sentou-se na beira da cama.

           – O médico virá assim que puder. Está operando um mineiro que foi esmagado por um vagão desgovernado. Mas a mulher dele tem quase certeza de que você sofreu um aborto espontâneo. – Ele segurou sua mão. – Sinto muito, Daisy.

           – Obrigada – sussurrou ela.

           A dor parecia mais fraca, mas ela sentiu uma tristeza indizível. O herdeiro do título não existia mais. Boy ficaria tão chateado...

           – A Sra. Mortimer disse que é muito comum e que a maioria das mulheres sofre um ou dois abortos espontâneos entre gestações – disse Lloyd. – Não há perigo, contanto que a hemorragia não esteja muito forte.

           – E se piorar?

           – Se piorar, terei que levá-la ao hospital de Merthyr. Mas percorrer mais de 15 quilômetros num caminhão do Exército seria muito ruim para você, por isso devemos evitar isso, a menos que a sua vida esteja em risco.

           Ela não estava mais com medo.

           – Que bom que você está aqui.

           – Posso dar uma sugestão?

           – Claro.

           – Você acha que consegue dar alguns passos?

           – Não sei.

           – Deixe-me encher a banheira para você tomar um banho. Se conseguir, vai se sentir muito melhor quando estiver limpa.

           – Está bem.

           – Quem sabe você não consegue improvisar um curativo?

           – Está bem.

           Ele voltou para o banheiro, e ela ouviu água correndo. Sentou-se mais ereta na cama. Ficou tonta e descansou por alguns segundos até sua cabeça desanuviar. Colocou os pés no chão. Estava sentada sobre uma poça de sangue coagulado e sentiu nojo de si mesma.

           As torneiras se fecharam. Lloyd tornou a entrar no quarto e a segurou pelo braço.

           – Se ficar tonta, é só me dizer – falou. – Não vou deixá-la cair.

           Ele era surpreendentemente forte e a amparou até o banheiro. Em algum momento, sua calcinha rasgada caiu no chão. Ela ficou em pé ao lado da banheira e deixou que ele abrisse os botões nas costas de seu vestido.

           – Consegue tirar o resto sozinha? – perguntou ele.

           Ela assentiu e Lloyd saiu do banheiro.

           Apoiada no cesto de roupa suja, ela se despiu devagar, deixando as roupas sujas de sangue amontoadas no chão. Com movimentos cuidadosos, entrou na banheira. A água estava na temperatura ideal. Sentiu um alívio ao se deitar de costas e relaxar. Foi tomada de gratidão por Lloyd. Sua bondade era tanta que lhe dava vontade de chorar.

           Depois de alguns minutos, uma fresta da porta se abriu e a mão dele apareceu segurando algumas roupas.

           – Camisola, essas coisas – explicou ele. Pousou as roupas em cima do cesto de roupa suja e tornou a fechar a porta.

           Quando a água começou a esfriar, ela se levantou. Ficou tonta outra vez, mas só por alguns segundos. Secou-se com uma toalha, depois vestiu a camisola e a calcinha que ele trouxera. Pôs uma toalha de mão dentro da calcinha para absorver o sangue que ainda escorria.

           Quando voltou para o quarto, encontrou a cama feita, com lençóis e cobertores limpos. Subiu na cama e recostou-se na cabeceira, puxando as cobertas até o pescoço.

           Ele veio da saleta.

           – Deve estar se sentindo melhor agora – falou. – Você parece constrangida.

           – Constrangida não é bem a palavra – disse ela. – Totalmente humilhada de vergonha, talvez, mas mesmo isso parece um eufemismo. – A verdade não era tão simples assim. Ela fez uma careta ao pensar em como ele a tinha visto, mas, por outro lado, ele não parecera sentir repulsa.

           Lloyd foi até o banheiro e pegou as roupas sujas. Não parecia ter frescuras com relação ao sangue menstrual.

           – Onde você pôs os lençóis? – perguntou ela.

           – Encontrei um tanque na estufa. Deixei os lençóis de molho em água fria. Vou fazer o mesmo com as suas roupas, tudo bem?

           Ela assentiu.

           Ele tornou a desaparecer. Onde teria aprendido a ser tão competente e autossuficiente? Na Guerra Civil Espanhola, supôs ela.

           Ouviu-o se movimentar na cozinha. Ele reapareceu com duas xícaras de chá.

           – Você deve odiar isto, mas o chá vai fazê-la se sentir melhor. – Ela aceitou a bebida. Ele lhe mostrou dois comprimidos brancos na palma da mão. – Quer uma aspirina? Talvez alivie as cólicas.

           Ela pegou os comprimidos e os engoliu com um gole de chá quente. Lloyd sempre lhe parecera muito maduro para a sua idade. Ela se lembrou da segurança com a qual ele fora procurar Boy, que estava bêbado, na casa de espetáculos.

           – Você sempre foi assim – comentou. – Um adulto de verdade, mesmo quando todos os outros estávamos apenas fingindo.

           Ela terminou o chá e começou a ficar sonolenta. Ele pegou as xícaras.

           – Acho que vou fechar os olhos um instante – disse ela. – Pode ficar aqui, se eu pegar no sono?

           – Posso ficar o tempo que você quiser – respondeu ele.

           Então disse mais alguma coisa; sua voz, porém, pareceu sumir ao longe, e ela adormeceu.

 

           Depois disso, Lloyd começou a ir todas as noites ao pequeno apartamento da governanta.

           Passava o dia inteiro esperando por esse momento.

           Sempre descia alguns minutos depois das oito, quando o jantar no refeitório já havia terminado e a criada de Daisy tinha ido para casa. Eles se sentavam frente a frente em duas poltronas antigas. Lloyd levava um livro para estudar – havia sempre um “dever de casa”, com testes pela manhã –, e Daisy ficava lendo um romance. O que mais faziam, porém, era conversar. Contavam o que havia acontecido durante o dia, falavam sobre o que estavam lendo e revelavam um ao outro a história de suas vidas.

           Lloyd falou sobre sua experiência na batalha da Cable Street:

           – Eu estava lá, de pé no meio de uma multidão pacífica, quando fomos atacados por policiais montados gritando alguma coisa sobre judeus imundos. Eles nos espancaram com os cassetetes e nos empurraram contra as vitrines das lojas.

           Daisy, que ficara reunida com os fascistas em Tower Gardens, não vira os combates.

           – Não foi isso que noticiaram – falou. Havia acreditado nos jornais, segundo os quais tudo não passara de uma rebelião de rua organizada por baderneiros.

           Lloyd não estranhou aquilo.

           – Minha mãe assistiu a um noticiário no cinema Essoldo de Aldgate na semana seguinte – recordou. – O apresentador falou com sua voz pomposa: “Observadores imparciais foram só elogios para a polícia.” Mam disse que a plateia inteira explodiu em gargalhadas.

           Aquele ceticismo de Lloyd em relação às notícias divulgadas pela imprensa deixou Daisy chocada. Ele lhe contou que a maioria dos jornais britânicos deixara de publicar matérias sobre as atrocidades perpetradas pelo exército de Franco na Espanha, e havia exagerado os relatos de mau comportamento por parte das forças do governo. Ela admitiu que tinha engolido a explicação do conde Fitzherbert – segundo ele, os rebeldes eram cristãos de altos princípios que desejavam libertar a Espanha da ameaça comunista. Ela desconhecia as execuções em massa, os estupros e saques cometidos pelos franquistas.

           Parecia nunca ter lhe ocorrido que os jornais pertencentes a capitalistas pudessem minimizar as notícias que repercutissem mal no governo conservador, nas Forças Armadas ou no empresariado, e aumentar qualquer incidente de mau comportamento envolvendo sindicalistas ou partidos de esquerda.

           Lloyd e Daisy conversavam sobre a guerra. Os combates finalmente haviam começado. Soldados britânicos e franceses tinham desembarcado na Noruega e disputavam o domínio do país com os alemães. Os jornais não conseguiam esconder por completo o fato de que os Aliados estavam levando a pior.

           A atitude de Daisy para com Lloyd não era mais a mesma. Ela não flertava mais. Ficava sempre feliz ao vê-lo, reclamava quando ele chegava atrasado, e às vezes o provocava, mas nunca se comportava de forma sedutora. Contou-lhe como todos tinham ficado desapontados com o fato de ela ter perdido o bebê: Boy, Fitz, Bea, sua mãe lá em Buffalo e até mesmo Lev, seu pai. Não conseguia se livrar da sensação irracional de ter feito algo vergonhoso e perguntou se ele achava aquilo uma tolice. Ele respondeu que não. Nada do que ela fazia lhe parecia tolice.

           Embora suas conversas fossem pessoais, eles mantinham distância física. Ele não explorava a extraordinária intimidade da noite do aborto. A cena, é claro, ficaria para sempre em seu coração. Limpar o sangue das coxas e da barriga de Daisy não fora algo sensual – nem um pouco –, mas fora um gesto extremamente carinhoso. Porém aquilo havia sido uma emergência médica e não lhe dava permissão para tomar outras liberdades. Ele tinha tanto medo de passar uma impressão errada em relação a isso que tomava o cuidado de nunca tocá-la.

           Às dez da noite, Daisy lhes preparava um chocolate quente, que Lloyd adorava e ela dizia apreciar, embora ele se perguntasse se estaria apenas sendo gentil. Então ele se despedia e subia para seu quartinho no sótão.

           Os dois pareciam velhos amigos. Embora não fosse isso que ele queria, não conseguiria nada melhor, pois Daisy era uma mulher casada.

           Lloyd tinha tendência a esquecer o status social de Daisy. Certa noite, ficou espantado quando ela anunciou que iria fazer uma visita a Peel, antigo mordomo do conde, que agora estava aposentado e morava num pequeno chalé bem perto da propriedade.

           – Ele tem 80 anos! – disse ela a Lloyd. – Tenho certeza de que Fitz o esqueceu por completo. Preciso ver como ele está.

           Lloyd arqueou as sobrancelhas, surpreso, e ela acrescentou:

           – Preciso me certificar de que ele está bem. Como membro do clã dos Fitzherbert, é o meu dever. Cuidar dos antigos criados é uma obrigação das famílias ricas... você não sabia?

           – Tinha me esquecido.

           – Pode ir comigo?

           – Claro.

           O dia seguinte era um domingo, e os dois foram visitar Peel pela manhã, quando Lloyd não tinha aulas. Ambos ficaram chocados com o estado do chalé. A tinta do exterior estava descascando, o papel de parede se soltando, e as cortinas, encardidas com a poeira de carvão. A única decoração da casa era uma fileira de fotografias recortadas de revistas e presas à parede: o rei e a rainha, Fitz e Bea, outros membros da nobreza. Fazia anos que a casa não via uma boa faxina, e um cheiro de urina, cinza e putrefação pairava no ar. No entanto, Lloyd pensou que aquilo não fosse incomum entre senhores de idade que viviam com uma pequena pensão.

           Peel tinha as sobrancelhas brancas. Olhou para Lloyd e disse:

           – Bom dia, milorde... pensei que o senhor tivesse morrido!

           Lloyd sorriu.

           – Sou só uma visita.

           – É mesmo, senhor? Minha cabeça está terrível. O velho conde morreu faz quanto tempo? Uns 35, 40 anos? Bem, mas nesse caso, meu jovem, quem é o senhor?

           – Meu nome é Lloyd Williams. O senhor conheceu minha mãe anos atrás: Ethel.

           – O senhor é o filho de Eth? Bem, nesse caso, é claro...

           – Nesse caso o quê, Sr. Peel? – perguntou Daisy.

           – Ah, nada. Minha cabeça está terrível!

           Eles perguntaram se Peel precisava de alguma coisa, mas o antigo mordomo insistiu que tinha tudo o que um homem poderia querer.

           – Não como muito e raramente bebo cerveja. Tenho dinheiro suficiente para comprar jornal e fumo para o meu cachimbo. O que acha, jovem Lloyd? Hitler vai nos invadir? Espero não viver para ver isso.

           Embora tarefas domésticas não fossem o seu forte, Daisy fez uma pequena faxina na cozinha.

           – Não consigo acreditar – disse ela a Lloyd em voz baixa. – Viver aqui deste jeito e dizer que tem tudo... ele se considera um homem de sorte!

           – Muitos senhores da idade dele estão bem pior – disse Lloyd.

           Os dois passaram uma hora conversando com Peel. Antes de saírem, o velho pensou em algo que pudesse querer. Olhou para a fileira de fotografias na parede.

           – No funeral do velho conde tiraram uma fotografia – falou. – Nessa época eu ainda não era mordomo, apenas um lacaio. Todos nós posamos em pé junto ao carro da funerária. Havia uma grande câmera coberta por um pano, diferente dessas câmeras modernas. Foi em 1906.

           – Aposto que sei onde está essa fotografia – disse Daisy. – Vamos procurar.

           Os dois voltaram para a mansão e desceram até o porão. O quartinho de guardados, que ficava ao lado da adega, era bastante espaçoso. Estava cheio de caixas, baús e artefatos inúteis: um barco dentro de uma garrafa, uma maquete de Tŷ Gwyn feita com palitos de fósforo, uma cômoda em miniatura, uma espada dentro de uma bainha toda enfeitada.

           Começaram a vasculhar as velhas fotografias e os quadros. A poeira fez Daisy espirrar, mas ela insistiu em continuar.

           Acabaram encontrando a foto que Peel queria. Junto com ela, dentro da caixa, havia outra imagem do velho duque, ainda mais antiga. Lloyd a encarou com ar de espanto. A fotografia em sépia tinha uns 13 centímetros de altura por 7,5 de largura, e mostrava um rapaz usando um uniforme de oficial do Exército vitoriano.

           Ele era igualzinho a Lloyd.

           – Olhe só isto aqui – falou, entregando a foto a Daisy.

           – Poderia ser você, se tivesse costeletas – comentou ela.

           – Talvez o velho conde tenha tido um caso com alguma das minhas antepassadas – comentou Lloyd em tom casual. – Se ela era casada, deve ter fingido que o filho era do marido. Uma coisa eu lhe digo: eu não ficaria muito feliz em saber que sou um descendente bastardo da aristocracia... logo um socialista ferrenho como eu!

           – Lloyd, você é idiota, por acaso? – perguntou Daisy.

           Ele não soube dizer se ela estava falando sério. Além do mais, seu nariz estava sujo de poeira de um jeito tão encantador que ele teve vontade de beijá-lo.

           – Bem – respondeu –, eu já me comportei feito um idiota mais de uma vez, mas...

           – Escute o que eu vou dizer. Sua mãe era criada desta casa. De repente, em 1914, ela foi para Londres e se casou com um homem chamado Teddy sobre o qual ninguém sabe nada, só que seu sobrenome era Williams, o mesmo que o dela, de modo que ela não precisou mudar de nome. Esse misterioso Sr. Williams morreu antes que qualquer um o conhecesse, e seu seguro de vida pagou pela casa em que sua mãe mora até hoje.

           – Isso mesmo – disse Lloyd. – Aonde você está querendo chegar?

           – Então, depois que o Sr. Williams morreu, ela deu à luz um filho que por acaso é a cópia perfeita do falecido conde Fitzherbert.

           Lloyd começou a ter um vislumbre do que ela poderia estar sugerindo.

           – Continue.

           – Você nunca pensou que talvez haja alguma explicação completamente diferente para essa história toda?

           – Até este momento, não...

           – O que uma família aristocrática faz quando uma de suas filhas engravida? Acontece o tempo todo, você sabe.

           – Imagino que aconteça mesmo, mas não sei o que eles fazem. Ninguém nunca fica sabendo.

           – Exatamente. A moça desaparece por alguns meses com a criada. Vai para a Escócia, para a Bretanha ou para Genebra. Quando as duas voltam, a empregada tem um bebezinho nascido, segundo ela, durante as férias. A família a trata com uma gentileza supreendente, mesmo ela tendo admitido ser culpada de fornicação, e a manda embora para morar a uma distância segura, com uma pequena pensão.

           Aquilo parecia um conto de fadas, sem nenhuma relação com a vida real. Mesmo assim, Lloyd ficou intrigado e incomodado.

           – E você acha que fui o bebê de uma farsa assim?

           – Eu acho que lady Maud Fitzherbert teve um caso e engravidou de um jardineiro, de um mineiro ou talvez de um cafajeste charmoso de Londres. Ela viajou para algum lugar e deu à luz em segredo. Sua mãe concordou em fingir que o bebê era dela e, em troca, ganhou uma casa.

           Ocorreu a Lloyd um pensamento que corroborava essa teoria.

           – Ela sempre se mostrou evasiva quando eu perguntava sobre meu verdadeiro pai. – Isso agora lhe parecia suspeito.

           – Está vendo? Esse tal de Teddy Williams nunca existiu. Para manter a respeitabilidade, sua mãe disse que era viúva. Chamou o marido fictício de Williams para evitar o problema de ter que trocar de nome.

           Lloyd balançou a cabeça, sem acreditar.

           – Parece uma fantasia exagerada.

           – Ela continuou amiga de Maud, que ajudou a criar você. Em 1933, sua mãe o levou a Berlim porque sua mãe verdadeira queria vê-lo de novo.

           Lloyd teve a sensação de estar sonhando, ou de que acabara de acordar.

           – Você acha que sou filho de Maud? – indagou, incrédulo.

           Daisy bateu com o dedo no porta-retratos que ainda estava segurando.

           – E é a cara do seu avô!

           Lloyd estava atônito. Aquilo não podia ser verdade, mas fazia sentido.

           – Estou acostumado com o fato de Bernie não ser meu pai – disse ele. – Mas Ethel não ser minha mãe?

           Daisy deve ter visto uma expressão de impotência no rosto dele, pois se inclinou para a frente e o tocou, algo que raramente fazia.

           – Desculpe. Fui muito rude? – perguntou. – Só queria que você visse o que está diante dos seus olhos. Se Peel desconfia da verdade, não acha que outras pessoas também podem desconfiar? Esse é o tipo de coisa que é melhor escutar de alguém que... de uma amiga.

           Um gongo soou ao longe. Com uma voz mecânica, Lloyd disse:

           – É melhor eu ir ao refeitório almoçar. – Ele tirou a foto da moldura e a guardou em um dos bolsos do casaco do uniforme.

           – Você ficou chateado – disse Daisy, preocupada.

           – Não, chateado não. Só fiquei... espantado.

           – Os homens sempre negam quando estão chateados. Por favor, vá me ver mais tarde.

           – Tudo bem.

           – Não vá dormir sem falar comigo de novo.

           – Pode deixar.

           Ele saiu do quarto de guardados e subiu a escada até o salão de jantar, agora transformado em refeitório. Comeu sua lata de picadinho em conserva com gestos mecânicos e os pensamentos em turbilhão. Não participou das conversas à mesa sobre os combates que assolavam a Noruega.

           – Sonhando acordado, Williams? – perguntou o major Lowther.

           – Desculpe, major – respondeu Lloyd automaticamente. Então improvisou uma desculpa: – Estava tentando lembrar qual é a patente mais alta dos alemães, Generalleutnant ou Generalmajor.

           – Generalleutnant é mais alta – respondeu Lowther. Então completou, em voz mais baixa: – Só não esqueça a diferença entre meine Frau e deine Frau.

           Lloyd sentiu o rosto corar. Então sua amizade com Daisy não era tão discreta quanto ele imaginava. Até Lowther já tinha percebido. Ficou indignado – ele e Daisy não tinham feito nada de impróprio –, mas não protestou. Embora fosse inocente, sentia-se culpado mesmo assim. Não podia pôr a mão no coração e jurar que suas intenções fossem puras. Sabia o que Granda diria: “Aquele que olhou para uma mulher com luxúria já cometeu adultério com ela em seu coração.” Era esse o ensinamento de Jesus, e havia muita verdade nele.

           Pensar nos avós o levou a se perguntar se eles saberiam alguma coisa sobre seus verdadeiros pais. A incerteza sobre sua família biológica lhe dava a sensação de estar perdido, como quando alguém sonha que está despencando de uma grande altura. Se haviam lhe contado mentiras sobre isso, ele poderia ter sido enganado em relação a qualquer coisa.

           Resolveu que iria perguntar a Granda e Grandmam. Faria isso nesse dia mesmo, já que era domingo. Assim que conseguiu se retirar do refeitório sem parecer grosseiro, desceu a colina até a Wellington Row.

           Pensou que, se perguntasse diretamente aos avós se era filho de Maud, eles poderiam negar tudo por reflexo. Talvez uma abordagem mais gradual obtivesse mais informações.

           Encontrou os dois sentados na cozinha. Para eles, domingo era o dia do Senhor, um dia dedicado à religião, e eles não leriam o jornal nem ouviriam rádio. No entanto, ficaram felizes em ver o neto, e Grandmam, como sempre, preparou chá.

           – Eu queria saber mais sobre meu pai verdadeiro – começou ele. – Mam disse que Teddy Williams serviu nos Fuzileiros Galeses, vocês sabiam?

           – Ah, por que desenterrar o passado? – retrucou Grandmam. – Bernie é seu pai.

           Lloyd não a contradisse.

           – Bernie Leckwith sempre foi tudo o que um pai poderia ser para mim.

           Granda concordou com um gesto de cabeça.

           – Mesmo sendo judeu, ele é um homem bom, não resta dúvida.

           Ele achava que estava sendo de uma tolerância magnânima.

           Lloyd deixou passar o comentário.

           – Mesmo assim estou curioso. Vocês conheceram Teddy Williams?

           Seu avô fez cara de zangado.

           – Não – respondeu. – E lamentamos muito por isso.

           – Ele veio a Tŷ Gwyn como lacaio de um convidado – disse Grandmam. – Nós nem soubemos que a sua mãe estava interessada nele, só quando ela foi a Londres para se casar.

           – E por que vocês não foram ao casamento?

           Os dois ficaram calados. Então Granda disse:

           – Conte a verdade para ele, Cara. Mentir nunca traz coisas boas.

           – Sua mãe cedeu à tentação – disse Grandmam. – Depois que o lacaio foi embora de Tŷ Gwyn, ela descobriu que estava esperando um filho. – Lloyd já desconfiava e achava que talvez isso pudesse explicar as evasivas da mãe. – Seu avô ficou muito bravo – acrescentou Grandmam.

           – Eu passei dos limites – prosseguiu Granda. – Esqueci o que Jesus disse: “Não julgueis, para que não sejais julgado.” O pecado da sua mãe foi a luxúria, o meu foi o orgulho. – Lloyd se espantou ao ver lágrimas brotarem nos olhos azul-claros do avô. – Deus a perdoou, mas eu não; só depois de muito tempo. A essa altura, meu genro já não estava mais entre nós: tinha morrido na França.

           Lloyd ficou ainda mais atônito. Aquela era outra história, rica em detalhes, um pouco diferente da que ele ouvira da mãe e completamente diferente da teoria de Daisy. Será que Granda estava chorando por um genro que nunca existira?

           – E a família de Teddy Williams? – insistiu ele. – Mam disse que eles eram de Swansea. Ele devia ter pai, mãe, irmãos...

           – Sua mãe nunca falava sobre a família dele – disse Grandmam. – Acho que ela sentia vergonha. Seja qual for o motivo, não queria conhecê-los. E não cabia a nós contrariá-la em relação a isso.

           – Mas talvez eu tenha mais dois avós em Swansea. E tios, tias, primos e primas que nunca conheci.

           – É – concordou Granda. – Mas nós não sabemos.

           – Minha mãe sabe.

           – Imagino que sim.

           – Então vou perguntar a ela – disse Lloyd.

 

           Daisy estava apaixonada.

           Agora sabia que nunca havia amado ninguém antes de Lloyd. Embora tivesse ficado entusiasmada com Boy, nunca o amara de verdade. Quanto ao pobre Charlie Farquharson, no máximo sentira apreço por ele. Antigamente acreditava que poderia amar quem quisesse e que sua principal responsabilidade era fazer uma escolha inteligente. Agora entendia que não era nada disso. A inteligência não tinha nada a ver com o assunto, e não havia escolha. O amor era um terremoto.

           Tirando as duas horas que passava com Lloyd à noite, sua vida era vazia. O restante do dia era só espera; a noite era pura lembrança.

           Lloyd era o travesseiro no qual repousava a cabeça. Era a toalha com a qual secava os seios ao sair da banheira. Era o nó dos dedos que levava à boca, pensativa.

           Como tinha sido capaz de ignorá-lo por quatro anos? O amor de sua vida aparecera na sua frente no baile do Trinity e tudo o que ela havia reparado era que ele estava usando roupas emprestadas! Por que não o tomara nos braços, o beijara e insistira para que se casassem na mesma hora?

           Imaginava que Lloyd soubesse desde o início. Devia ter se apaixonado por ela à primeira vista. Havia lhe implorado que dispensasse Boy:

           – Termine com ele – dissera, na noite em que foram à casa de espetáculos. – Seja minha namorada.

           E ela apenas rira. Mas ele vislumbrara a verdade que ela não tinha conseguido ver.

           No entanto, alguma intuição bem no fundo de seu ser lhe dissera para beijá-lo naquela calçada de Mayfair, na penumbra entre dois postes de rua. Na época, havia considerado aquilo um capricho prazeroso. A verdade é que tinha sido a coisa mais inteligente que ela fizera na vida, pois provavelmente havia consolidado a devoção que ele tinha por ela.

           Agora, em Tŷ Gwyn, Daisy se recusava a pensar no que iria acontecer dali para a frente. Estava vivendo um dia após outro, caminhando nas nuvens, sorrindo a troco de nada. Recebeu uma carta aflita de sua mãe em Buffalo, preocupada com a saúde e o estado mental da filha depois do aborto, e enviou uma resposta tranquilizadora. Olga incluíra na carta algumas notícias esparsas: Dave Rouzrokh morrera em Palm Beach; Muffie Dixon se casara com Philip Renshaw; Rosa, esposa do senador Dewar, escrevera um livro de sucesso chamado Nos bastidores da Casa Branca, com fotografias de Woody. Um mês antes, tudo aquilo a teria deixado com saudades de casa; agora lhe despertava apenas um leve interesse.

           Daisy só ficava triste ao pensar no bebê que perdera. A dor passara depressa e o sangramento havia cessado em uma semana, mas a perda a deixara abalada. Ela não chorava mais por causa disso, mas de vez em quando se pegava olhando para o nada, pensando se teria sido menina ou menino, e como seria seu rostinho. De repente percebia, com um sobressalto, que havia passado uma hora sem se mexer.

           A primavera tinha chegado, e ela caminhava pela encosta das montanhas, exposta ao vento, usando botas impermeáveis e uma capa de chuva. Às vezes, quando tinha certeza de que ninguém a não ser as ovelhas podia escutá-la, gritava a plenos pulmões:

           – Estou apaixonada por ele!

           Estava preocupada com a reação de Lloyd às suas suspeitas sobre os pais dele. Talvez tivesse sido um erro abordar esse assunto, pois apenas o deixara triste. Sua justificativa, porém, era válida: mais cedo ou mais tarde, a verdade provavelmente viria à tona, e era melhor escutar esse tipo de coisa de alguém que o amasse. O espanto atordoado de Lloyd lhe tocava o coração e a fazia amá-lo ainda mais.

           Ele lhe contou que tinha pedido uma licença. Na segunda semana de maio, dia do feriado britânico de Pentecostes, iria a um balneário no litoral sul chamado Bournemouth assistir à convenção anual do Partido Trabalhista.

           Sua mãe também estaria lá, assim ele teria uma chance de perguntar a ela sobre sua origem. Daisy achou que ele parecia ao mesmo tempo ansioso e assustado.

           Lowther certamente teria lhe negado a licença, mas em março, quando fora enviado para fazer aquele curso, Lloyd já tinha falado com o coronel Ellis-Jones, e das duas uma: ou o coronel ia com a cara de Lloyd, ou então simpatizava com o partido. O fato era que lhe concedera uma licença e Lowther não podia cancelar isso. Naturalmente, se os alemães invadissem a França, ninguém poderia sair de licença.

           A possibilidade de Lloyd partir de Aberowen sem saber que ela o amava provocou em Daisy uma estranha apreensão. Ela não sabia explicar por quê, mas precisava lhe contar antes que ele fosse embora.

           A viagem de Lloyd estava marcada para quarta-feira, e ele voltaria seis dias depois. Por coincidência, Boy dissera que chegaria na quarta-feira à noite para lhe fazer uma visita. Por motivos que não entendeu muito bem, Daisy ficou aliviada que os dois não fossem estar na mansão ao mesmo tempo.

           Decidiu fazer sua confissão a Lloyd na terça-feira, véspera de sua viagem. Não tinha a menor ideia do que diria ao marido no dia seguinte.

           Ao pensar na conversa que teria com Lloyd, deu-se conta de que ele com certeza tentaria beijá-la e, quando isso acontecesse, seriam ambos dominados por seus sentimentos, e então iriam para a cama. Depois disso, passariam a noite inteira abraçados.

           Nesse ponto, a necessidade de discrição se intrometeu em sua fantasia. Para o bem dos dois, Lloyd não podia ser visto saindo de seus aposentos pela manhã. Lowthie já estava desconfiado. Daisy percebia isso nas atitudes dele para com ela, ao mesmo tempo reprovadoras e cafajestes, quase como se o major achasse que, em vez de Lloyd, era por ele que ela deveria se apaixonar.

           Seria muito melhor se os dois pudessem se encontrar em algum outro lugar para aquela conversa decisiva. Ela pensou nos quartos sem uso da ala oeste e ficou sem ar. Lloyd poderia ir embora quando o dia raiasse e, caso alguém o visse, não saberia que estivera com ela. E Daisy poderia sair do quarto depois, totalmente vestida, e fingir que estava à procura de algum objeto perdido da família, um quadro talvez. Na verdade, pensou, tornando ainda mais complexa a mentira que contaria se houvesse necessidade, poderia pegar algum objeto no quarto de guardados e colocá-lo no quarto de dormir com antecedência, pronto para ser usado como prova de sua história.

           Às nove da manhã de terça-feira, quando todos os alunos estavam em aula, ela percorreu o andar de cima carregando um conjunto de frascos de perfume com tampas de prata escurecida e um espelhinho de mão no mesmo feitio. Já se sentia culpada. O tapete do corredor fora retirado, e seus passos ecoavam alto nas tábuas do piso, como se anunciassem a chegada de uma prostituta. Felizmente, não havia ninguém nos quartos.

           Foi até a Suíte Gardênia, que ela acreditava estar sendo usada como depósito de roupa de cama, embora não tivesse certeza. Não havia ninguém no corredor quando entrou. Fechou a porta depressa atrás de si. Estava ofegante. Ainda não fiz nada de errado, disse a si mesma.

           Sua lembrança provou-se correta: por todo o quarto, encostadas nas paredes revestidas com uma estampa de gardênias, estavam dispostas pilhas perfeitas de lençóis, cobertores e travesseiros, envoltas em protetores de algodão grosseiro e amarradas com barbante, como grandes embrulhos.

           O quarto cheirava a mofo, e ela abriu uma janela. Os móveis originais ainda estavam ali: uma cama, um guarda-roupa, uma cômoda, uma escrivaninha e uma penteadeira curva com três espelhos. Ela pôs o conjunto de frascos de perfume sobre a penteadeira e então fez a cama com um dos lençóis ali guardados. Sentiu o tecido frio sob os dedos.

           Agora fiz algo errado, pensou. Preparei a cama para me deitar com meu amante.

           Olhou para os travesseiros branquinhos, para os cobertores cor-de-rosa debruados de cetim, e imaginou-os ali juntos, Lloyd e ela, enlaçados num abraço interminável e beijando-se com uma sofreguidão enlouquecida. Pensar nisso deixou-a tão excitada que ela se sentiu fraca.

           Ouviu passos do lado de fora, ecoando no piso como os seus. Quem poderia ser? Talvez Morrison, o velho lacaio, indo verificar uma calha que pingava ou uma vidraça rachada. Aguardou, com o coração acelerado de culpa, enquanto ouvia os passos se aproximarem, depois se afastarem outra vez.

           O susto acalmou sua excitação e refrescou o calor que sentia por dentro. Ela deu uma última olhada no quarto e saiu.

           Não havia ninguém no corredor.

           Foi seguindo em frente, e o barulho dos sapatos no chão denunciava sua presença. Agora, porém, parecia totalmente inocente, disse a si mesma. Podia ir aonde quisesse. Tinha mais direito de estar ali do que qualquer outra pessoa. Estava em casa. Seu marido era o herdeiro daquilo tudo.

           O marido que ela cuidadosamente planejava trair.

           Sabia que deveria estar paralisada de culpa, mas na verdade sentia-se ansiosa por fazer aquilo, e consumida pelo desejo.

           Agora precisava avisar Lloyd. Ele fora aos seus aposentos na noite anterior, como sempre, mas ela não pudera marcar aquele encontro com ele na véspera. Ele pediria explicações e, nesse caso, ela estava certa de que contaria tudo e o levaria para a sua cama, estragando todo o plano. Assim, precisava falar com ele rapidamente naquele dia mesmo.

           Os dois em geral não se encontravam durante o dia, a não ser quando ela esbarrava com ele por acaso, no corredor ou na biblioteca. Como poderia ter certeza de encontrá-lo? Subiu a escada dos fundos até o sótão. Os alunos do curso não estavam em seus quartos, mas a qualquer momento um deles poderia aparecer para buscar algo que tivesse esquecido. Ela precisava ser rápida.

           Entrou no quarto de Lloyd. O cheiro dele pairava no ar. Ela não conseguia definir exatamente que perfume era aquele. Não viu nenhum vidro de colônia no quarto, mas ao lado da navalha havia um pote de loção. Abriu-o e sentiu o cheiro: sim, era isso, cítricos e especiarias. Será que ele era vaidoso?, pensou. Talvez um pouquinho. Em geral andava bem-vestido, mesmo de uniforme.

           Iria deixar um bilhete para ele. Em cima da penteadeira viu um bloco de papel de carta vagabundo. Abriu-o e arrancou uma das folhas. Correu os olhos pelo quarto em busca de algo com que pudesse escrever. Sabia que ele tinha uma caneta-tinteiro preta com seu nome gravado no corpo, mas devia ter levado para tomar notas durante a aula. Encontrou um lápis na gaveta de cima.

           O que poderia escrever? Precisava tomar cuidado para o caso de outra pessoa ler o bilhete. No fim das contas, acabou escrevendo apenas: “Biblioteca”. Deixou o bloquinho aberto em cima da penteadeira, onde ele não poderia deixar de ver, e então saiu do quarto.

           Ninguém a viu.

           Lloyd provavelmente passaria por ali em algum momento, pensou, talvez para encher a caneta com a tinta do frasco em cima da penteadeira. Então veria o bilhete e iria encontrá-la.

           Ela foi esperar na biblioteca.

           A manhã foi longa. Andava lendo autores vitorianos – que pareciam entender seu atual estado de espírito –, mas nesse dia a Sra. Gaskell não conseguiu prender sua atenção, e ela passou a maior parte do tempo olhando pela janela. Sendo maio, os jardins de Tŷ Gwyn deveriam estar cobertos por uma profusão colorida de flores primaveris, mas a maioria dos jardineiros tinha se alistado nas Forças Armadas, e o restante não estava cultivando flores, mas legumes e verduras.

           Vários alunos do curso entraram na biblioteca pouco antes das onze e se acomodaram nas poltronas de couro verde com seus cadernos, mas Lloyd não estava entre eles.

           Daisy sabia que a última aula da manhã terminava ao meio-dia e meia. Nessa hora, os homens se levantaram e saíram da biblioteca, mas Lloyd não apareceu.

           Com certeza ele passaria no quarto agora, pensou ela, nem que fosse apenas para largar os livros e lavar as mãos no banheiro próximo.

           Os minutos foram passando e o gongo soou, anunciando o almoço.

           Foi então que Lloyd entrou na biblioteca, e o coração de Daisy disparou.

           Ele estava com um ar preocupado.

           – Acabei de ver o seu recado – falou. – Está tudo bem?

           Sua primeira preocupação era com ela. Qualquer problema que ela tivesse não era um estorvo para ele, mas uma oportunidade de ajudá-la que ele se apressava em aproveitar. Nenhum homem jamais tinha se importado tanto assim com ela, nem mesmo seu pai.

           – Está tudo bem, sim – respondeu. – Você sabe como é uma gardênia? – Passara a manhã inteira ensaiando o que iria dizer.

           – Acho que sim. Parece uma rosa. Por quê?

           – Na ala oeste há um quarto chamado Suíte Gardênia. Tem uma gardênia branca pintada na porta, e está cheio de roupa de cama. Acha que conseguiria encontrá-lo?

           – Claro.

           – Em vez de ir ao meu quarto, encontre-me lá hoje à noite. Na mesma hora de sempre.

           Ele a encarou, tentando entender o que estava acontecendo.

           – Tudo bem – falou. – Mas por quê?

           – Eu quero lhe dizer uma coisa.

           – Que empolgante – disse ele, mas sua expressão estava intrigada.

           Ela pôde adivinhar o que estava passando pela cabeça de Lloyd. Ele estava louco de animação com a ideia de que ela talvez quisesse um encontro romântico, mas ao mesmo tempo dizia a si mesmo que aquilo era um sonho impossível.

           – Vá almoçar – disse ela.

           Ele hesitou.

           – Nos vemos à noite – disse ela.

           – Mal posso esperar – retrucou ele, e saiu da biblioteca.

           Ela voltou para o quarto. Maisie, que não era grande coisa como cozinheira, havia lhe preparado um sanduíche com duas fatias de pão e uma de presunto em conserva. Daisy estava com frio na barriga: não teria conseguido comer nem que aquilo fosse sorvete de pêssego.

           Deitou-se para descansar. Seus pensamentos em relação à noite que estava por vir eram tão explícitos que ela ficou encabulada. Aprendera muito sobre sexo com Boy – que obviamente tinha uma vasta experiência com outras mulheres – e por isso sabia bastante do que os homens gostavam. Queria fazer tudo com Lloyd: beijar cada parte de seu corpo, fazer o que Boy chamava de soixante-neuf, engolir seu sêmen. Esses pensamentos eram tão excitantes que ela precisou de todo o seu autocontrole para não se tocar.

           Às cinco da tarde, tomou uma xícara de café, depois lavou os cabelos e se banhou demoradamente. Raspou as axilas e aparou os pelos pubianos muito fartos. Secou-se e passou uma loção leve por todo o corpo. Então se perfumou e começou a se vestir.

           Pôs uma roupa de baixo nova. Experimentou todos os seus vestidos. Gostou do efeito de um deles, com finas alças azuis e brancas, mas a frente tinha botõezinhos que levariam uma eternidade para serem abertos, e ela sabia que iria querer se despir depressa. Estou pensando como uma puta, disse a si mesma, e não soube se deveria achar graça ou ficar envergonhada. No final das contas, acabou escolhendo um vestido de caxemira verde-hortelã de corte simples, na altura dos joelhos, que deixava à mostra suas pernas bem-torneadas.

           Olhou-se no espelho estreito preso do lado de dentro da porta do armário. Estava bonita.

           Sentou-se na beirada da cama para calçar as meias. Então Boy entrou.

           Daisy sentiu a cabeça girar. Se não estivesse sentada, teria caído no chão. Ficou encarando o marido sem acreditar.

           – Surpresa! – disse ele, todo animado. – Cheguei um dia antes.

           – É – respondeu ela quando finalmente conseguiu recuperar a voz. – Que surpresa.

           Ele se curvou para beijá-la. Daisy nunca gostara muito da língua do marido em sua boca, pois sempre tinha gosto de álcool e cigarro. Boy não se importava com o seu desagrado e, na verdade, parecia gostar de forçá-la. Nesse dia, porém, por culpa, ela retribuiu o beijo e pôs a língua na boca dele também.

           – Puxa! – exclamou Boy quando ficou sem ar. – Que animação.

           Você não faz ideia, pensou Daisy; ao menos espero que não.

           – O exercício foi adiantado em um dia – explicou ele. – Não tive tempo de avisá-la.

           – Quer dizer que vai passar a noite aqui? – perguntou ela.

           – Vou.

           E Lloyd iria viajar na manhã seguinte.

           – Você não parece muito contente – comentou Boy. Olhou para o vestido dela. – Tinha algum outro compromisso?

           – Que compromisso eu poderia ter? – rebateu Daisy. Precisava recuperar o controle da situação. – Uma noite no pub Two Crowns, talvez? – indagou, com sarcasmo.

           – Por falar nisso, vamos tomar um drinque. – Ele saiu do quarto em busca de uma bebida.

           Daisy enterrou o rosto nas mãos. Como era possível aquilo ter acontecido? Era o fim do seu plano. Teria que arrumar algum jeito de avisar Lloyd. E não poderia lhe declarar seu amor num sussurro apressado, com Boy por perto.

           Disse a si mesma que o plano só seria adiado por alguns dias. Lloyd estaria de volta na terça-feira seguinte. A espera seria uma verdadeira agonia, mas ela sobreviveria, e seu amor também. Ainda assim, quase chorou de tanta decepção.

           Terminou de calçar as meias e os sapatos e foi até a saleta contígua.

           Boy tinha encontrado uma garrafa de uísque e dois copos. Para ser agradável, ela aceitou uma dose.

           – Vi que a criada está preparando uma torta de peixe para o jantar – comentou ele. – Estou faminto. Ela cozinha bem?

           – Na verdade, não. A comida dela é passável, se você estiver com fome.

           – Ah, sempre temos o uísque – disse ele, servindo-se de mais uma dose.

           – O que você tem feito? – Daisy estava louca para que ele falasse, de modo que ela não precisasse conduzir a conversa. – Voou até a Noruega? – Era lá que os alemães estavam vencendo a primeira batalha terrestre da guerra.

           – Graças a Deus, não. Que tragédia. Esta noite haverá um debate importante na Câmara dos Comuns. – Ele começou a falar sobre os erros cometidos pelos comandantes britânicos e franceses.

           Quando o jantar ficou pronto, Boy desceu até a adega para buscar um vinho. Daisy achou que aquela era uma chance de alertar Lloyd. Mas onde ele estaria? Ela consultou o relógio de pulso. Eram sete e meia. Ele devia estar jantando no refeitório. Não poderia entrar lá e sussurrar alguma coisa em seu ouvido enquanto ele estivesse sentado à mesa com os outros oficiais: seria o mesmo que revelar a todo mundo que os dois eram amantes. Será que havia um jeito de tirá-lo de lá? Esforçou-se para pensar em algo, mas, antes que conseguisse, Boy voltou com ar triunfante, trazendo na mão uma garrafa de Dom Pérignon 1921.

           – O primeiro champanhe de safra que eles fabricaram – comentou. – Um marco.

           Os dois se sentaram à mesa para comer a torta de peixe de Maisie. Daisy tomou uma taça de champanhe, mas não conseguiu comer. Ficou remexendo a comida, tentando fazer parecer que estava jantando normalmente. Boy repetiu o prato.

           De sobremesa, Maisie serviu pêssegos em conserva com leite condensado.

           – A guerra tem sido ruim para a culinária britânica – comentou Boy.

           – Não que ela fosse grande coisa antes – respondeu Daisy, ainda se esforçando para parecer normal.

           A essa hora, Lloyd já devia estar na Suíte Gardênia. O que ele faria caso ela não conseguisse lhe mandar um recado? Será que passaria a noite toda lá, esperando, torcendo para que ela chegasse? Ou desistiria à meia-noite e voltaria para a sua cama? Ou desceria ao subsolo para procurá-la? Isso poderia ser constrangedor.

           Boy sacou um grande charuto e fumou com ar satisfeito, de vez em quando mergulhando a ponta que não estava acesa num copo de conhaque. Daisy tentou pensar em uma desculpa para deixá-lo ali e subir, mas nada lhe ocorreu. Que pretexto poderia dar para visitar os aposentos dos alunos a essa hora da noite?

           Ainda não tinha feito nada quando ele apagou o charuto e disse:

           – Bem, hora de dormir. Quer ser a primeira a usar o banheiro?

           Sem saber o que mais poderia fazer, ela se levantou e foi para o quarto. Bem devagar, tirou as roupas que vestira com tanto cuidado para Lloyd. Lavou o rosto e vestiu sua camisola menos atraente. Então se deitou na cama.

           Apesar de estar razoavelmente embriagado ao se acomodar ao seu lado, Boy quis fazer sexo. Essa ideia a deixou consternada.

           – Sinto muito – disse ela. – O Dr. Mortimer avisou que eu não podia ter relações conjugais por três meses. – Não era verdade. Mortimer dissera que, cessada a hemorragia, não haveria problema nenhum. Ela se sentiu terrivelmente desonesta. Tinha planejado fazer sexo com Lloyd nessa mesma noite.

           – Como assim? – perguntou Boy, indignado. – Por quê?

           Ela respondeu de improviso:

           – Se fizermos cedo demais, parece que pode afetar minhas chances de engravidar de novo.

           Isso o convenceu. Boy estava desesperado por um herdeiro.

           – Ah, paciência – disse ele, e se virou para o outro lado.

           No minuto seguinte, já estava dormindo.

           Daisy ficou acordada, com a mente em turbilhão. Será que poderia sair de fininho agora? Teria que se vestir – com certeza não podia perambular pela casa de camisola. Boy tinha o sono pesado, mas levantava muitas vezes para ir ao banheiro. E se fizesse isso enquanto ela estava fora e a visse voltar de roupa? Que história plausível ela poderia inventar? Todo mundo sabia que só havia um motivo para uma mulher sair de fininho à noite por uma casa de campo.

           Lloyd teria que sofrer. E ela sofreu junto, pensando nele naquele quarto bolorento, sozinho e decepcionado. Será que ele iria se deitar de uniforme e pegar no sono? Ficaria com frio, a menos que puxasse um dos cobertores para se proteger. Será que imaginaria que houvera alguma emergência, ou simplesmente pensaria que ela lhe dera um bolo sem se importar com ele? Talvez se sentisse abandonado e ficasse chateado com ela.

           Lágrimas escorriam pelo seu rosto. Boy roncava; ele jamais saberia.

           Ela adormeceu já de madrugada e sonhou que precisava pegar um trem, mas que coisas bobas não paravam de acontecer para atrasá-la: o táxi a levava para o lugar errado, ela precisava percorrer uma distância inesperada e longa carregando a mala, não conseguia achar a passagem e, quando chegava à plataforma, uma carruagem antiquada estava à sua espera e ela levaria muitos dias para chegar a Londres.

           Quando despertou do sonho, Boy estava no banheiro fazendo a barba.

           Ela ficou desanimada. Levantou-se e se vestiu. Maisie preparou o desjejum, e Boy comeu ovos com bacon e torradas com manteiga. Quando terminaram a refeição, já eram nove horas. Lloyd disse que iria embora às nove. Talvez estivesse no hall de entrada naquele exato momento, com a mala na mão.

           Boy se levantou da mesa e entrou no banheiro com o jornal. Daisy conhecia seus hábitos matinais: ele iria passar de cinco a dez minutos lá dentro. De repente, sua apatia desapareceu. Ela saiu da saleta e subiu correndo a escada até o hall.

           Lloyd não estava lá. Já devia ter ido embora. Ela sentiu um peso no coração.

           No entanto, ele devia estar indo a pé para a estação: só os ricos e os doentes pegavam táxis para percorrer menos de dois quilômetros. Talvez conseguisse alcançá-lo. Saiu pela porta da frente.

           Viu-o uns quatrocentos metros mais à frente, descendo o acesso à mansão a passos rápidos, de mala na mão. O coração de Daisy deu um pulo. Deixando a cautela de lado, correu atrás dele.

           Uma picape leve do Exército, do tipo conhecido como Tilly, descia o acesso à casa na sua frente. Para seu desespero, diminuiu a velocidade ao lado de Lloyd.

           – Não! – exclamou Daisy, mas ele estava longe demais para escutá-la.

           Jogando a mala na caçamba da picape, ele subiu na cabine ao lado do motorista.

           Ela continuou a correr, mas foi inútil. A picape voltou a andar e começou a ganhar velocidade.

           Daisy parou. Ficou olhando a Tilly passar pelos portões de Tŷ Gwyn e sumir de vista. Tentou não chorar.

           Depois de alguns instantes, deu meia-volta e tornou a entrar na casa.

 

           A caminho de Bournemouth, Lloyd pernoitou em Londres, e na noite dessa quarta-feira, 8 de maio, foi à galeria de visitantes da Câmara dos Comuns para assistir ao debate que decidiria o futuro do primeiro-ministro Neville Chamberlain.

           Era como estar sentado na frisa mais alta do teatro: os assentos estavam apinhados, eram duros, e a vista para o drama que se desenrolava lá embaixo era vertiginosa. A galeria estava cheia nessa noite. Lloyd e o padrasto Bernie só tinham conseguido ingressos com muita dificuldade, graças à influência de sua mãe, Ethel, que se encontrava sentada ao lado de seu tio Billy junto com os deputados trabalhistas, no plenário abarrotado.

           Lloyd ainda não tivera nenhuma chance de perguntar sobre seus verdadeiros pais, pois todos estavam preocupados demais com a crise política. Tanto Lloyd quanto Bernie queriam a renúncia de Chamberlain. O apaziguador do fascismo tinha pouca credibilidade para comandar uma guerra, e a derrocada na Noruega apenas ressaltara este fato.

           O debate havia começado na noite anterior. Segundo os relatos de Ethel, Chamberlain fora atacado com fúria não apenas pelos deputados trabalhistas, mas também por membros de seu próprio partido. O conservador Leo Amery citara uma frase de Cromwell:

           – “O senhor já passou muito tempo sentado aqui para a qualidade do trabalho que tem feito. Vá embora e permita que nos livremos do senhor. Em nome de Deus, vá embora!”

           Era um discurso cruel para se ouvir de um colega, e os gritos de “É isso aí, é isso aí!” vindos de ambos os lados do plenário o tornaram ainda pior.

           A mãe de Lloyd se reunira com as outras deputadas na sala que ocupavam no Palácio de Westminster. Elas haviam concordado em forçar uma votação. Como os homens não podiam detê-las, juntaram-se a elas. Uma vez anunciada a decisão, na quarta-feira, o debate se transformou numa votação pela permanência ou não de Chamberlain no cargo. O primeiro-ministro aceitou o desafio e apelou aos amigos que ficassem do seu lado – o que Lloyd interpretou como um sinal de franqueza.

           Nessa noite, os ataques prosseguiam. Lloyd estava achando aquilo ótimo. Detestava Chamberlain por causa de sua política na Espanha. Durante dois anos, de 1937 a 1939, o primeiro-ministro defendera a “não intervenção” da Grã-Bretanha e da França, enquanto Alemanha e Itália despejavam armas e soldados no exército rebelde, e americanos ultraconservadores vendiam gasolina e caminhões para Franco. Se algum político britânico era responsável pelos assassinatos em massa que Franco estava cometendo, esse homem era Neville Chamberlain.

           – Mas Chamberlain na verdade não é o culpado pelo fiasco na Noruega – disse Bernie para Lloyd num momento em que a barulheira diminuiu. – O chefe do almirantado é Winston Churchill e, segundo sua mãe, foi ele quem fez pressão a favor dessa invasão. Depois de tudo o que Chamberlain já fez, depois da Espanha, da Áustria, da Tchecoslováquia... vai ser uma ironia se for expulso do poder por causa de algo que na realidade não é culpa dele.

           – Em última instância, tudo é culpa do primeiro-ministro – disse Lloyd. – É isso que significa liderar.

           Bernie deu um sorriso torto, e Lloyd entendeu que ele estava pensando que os jovens viam tudo de maneira muito simplista; mas Bernie não disse isso em voz alta.

           O debate foi ruidoso, mas a casa silenciou quando o ex-primeiro-ministro David Lloyd George se levantou para falar. Lloyd fora batizado em homenagem a ele. Agora com 77 anos, o político de cabelos brancos falava com a autoridade do homem que havia vencido a Grande Guerra. Ele foi implacável.

           – Não se trata de saber quem são os amigos do primeiro-ministro – disse ele, afirmando o óbvio com um sarcasmo ferino. – A questão é muito mais complexa.

           Mais uma vez, Lloyd ficou animado ao ouvir o coro de aprovação que emanou tanto do lado conservador do plenário quanto da oposição.

           – Ele pediu sacrifícios – disse Lloyd George, e seu sotaque galês nasalado pareceu aguçar ainda mais o desprezo que sentia. – Nada contribuiria mais para uma vitória nesta guerra do que ele sacrificar o próprio cargo.

           A oposição aprovou aos berros, e Lloyd viu sua mãe aplaudindo.

           Churchill encerrou o debate. Como orador, era do mesmo nível de Lloyd George, e Lloyd temeu que sua oratória conseguisse salvar Chamberlain. Mas o Parlamento inteiro ficou contra ele, interrompendo e vaiando seu discurso, às vezes tão alto que ele não conseguia se fazer ouvir.

           Churchill sentou-se às onze da noite, e a votação começou.

           O sistema de votação não era nada prático. Em vez de levantar a mão ou usar pedacinhos de papel, os deputados tinham que sair do plenário e ser contados ao tornarem a entrar por um de dois saguões: um para “sim”, outro para “não”. O processo todo levava de quinze a vinte minutos. Só podia ter sido inventado por homens que não tinham mais o que fazer, dizia Ethel. Estava certa de que seria modernizado em breve.

           Lloyd aguardou com os nervos à flor da pele. A queda de Chamberlain lhe daria profunda satisfação, mas de modo algum era uma certeza.

           Para se distrair, pensou em Daisy – sempre uma ocupação agradável. Como tinham sido estranhas as últimas 24 horas que ele passara em Tŷ Gwyn: primeiro aquele recado com uma única palavra, “Biblioteca”; em seguida a conversa apressada e o convidativo pedido para que ele fosse à Suíte Gardênia; depois uma noite inteira de espera, frio, tédio e incompreensão, aguardando uma mulher que não aparecera. Tinha ficado lá até as seis da manhã, arrasado, mas sem querer perder a esperança, até a hora em que foi obrigado a tomar banho, fazer a barba, trocar de roupa e preparar a mala para a viagem.

           Era óbvio que algo tinha saído errado, ou então ela mudara de ideia. Mas qual seria sua intenção? Ela contara que queria lhe dizer uma coisa. Teria planejado fazer uma revelação bombástica, que merecesse todo aquele suspense? Ou seria algo tão trivial que se esquecera completamente do encontro? Ele teria que esperar até a terça-feira seguinte para perguntar a ela.

           Não tinha contado à família que Daisy estava em Tŷ Gwyn. Isso o teria obrigado a lhes explicar qual era seu relacionamento com ela agora, coisa que não podia fazer, pois ele mesmo não entendia muito bem. Estava apaixonado por uma mulher casada? Não sabia dizer. O que ela sentia por ele? Não sabia dizer. O mais provável, pensou, era que Daisy e ele fossem bons amigos que tinham deixado escapar a chance do amor. E por algum motivo ele não queria admitir isso para ninguém, pois lhe parecia um fato insuportavelmente definitivo.

           – Se Chamberlain sair, quem vai assumir? – perguntou Lloyd a Bernie.

           – Estão apostando em Halifax. – Lorde Halifax era o atual ministro das Relações Exteriores.

           – Não! – protestou Lloyd, indignado. – Não podemos ter um conde como primeiro-ministro num momento como este. Além disso, ele é tão apaziguador quanto Chamberlain!

           – Concordo – disse Bernie. – Mas quem mais poderia ser?

           – Que tal Churchill?

           – Sabe o que Stanley Baldwin disse sobre Churchill? – O conservador Baldwin tinha sido primeiro-ministro antes de Chamberlain. – “Quando Winston nasceu, várias fadas voaram até seu berço levando presentes: criatividade, eloquência, energia, competência. Até aparecer uma fada que disse: ‘Ninguém merece tantos presentes!’ Então ela pegou o bebê e o sacudiu e torceu com tanta força que o privou de qualquer juízo ou sensatez.”

           Lloyd sorriu.

           – Muito engraçado, mas é verdade?

           – Tem um fundo de verdade. Na última guerra, ele foi responsável pela campanha de Dardanelos, que foi uma derrota terrível para nós. Agora fez pressão para entrarmos nessa aventura na Noruega: outro fracasso. É bom de oratória, mas os indícios sugerem que tem tendência a ser um pouco sonhador.

           – Ele tinha razão nos anos 1930 quanto à necessidade de a Grã-Bretanha se rearmar – disse Lloyd. – Todos os outros foram contra, inclusive o Partido Trabalhista.

           – Churchill vai defender o rearmamento até no Paraíso, quando o leão se deitar ao lado do cordeiro.

           – Acho que precisamos de alguém com uma veia agressiva. Queremos um primeiro-ministro que rosne, não que choramingue.

           – Bom, talvez o seu desejo se realize. Os contadores de votos estão voltando.

           O resultado da votação foi anunciado: 280 sim, 200 não. Chamberlain vencera. A confusão se instalou no plenário. Os partidários do primeiro-ministro aplaudiam, mas outros gritavam exigindo que ele renunciasse.

           Lloyd sentiu uma amarga decepção.

           – Como eles podem querer mantê-lo depois de tudo o que aconteceu?

           – Não tire conclusões precipitadas – disse Bernie, enquanto o primeiro-ministro se retirava e o barulho começava a diminuir. Ele estava fazendo contas com um lápis na margem do Evening News. – O governo em geral tem mais ou menos 240 votos de vantagem. Essa margem caiu para oitenta. – Ele seguiu anotando números, fazendo somas e subtrações. – Estimando por alto a quantidade de parlamentares ausentes, calculo que uns quarenta partidários do governo tenham votado contra Chamberlain, e outros sessenta tenham se abstido. É um golpe terrível para um primeiro-ministro: cem de seus colegas não confiam nele.

           – Mas isso basta para forçá-lo a renunciar? – indagou Lloyd, impaciente.

           Bernie abriu os braços num gesto de quem se rende.

           – Não sei – respondeu.

 

           No dia seguinte, Lloyd, Ethel, Bernie e Billy pegaram o trem para Bournemouth.

           O vagão estava cheio de representantes do partido, vindos de todos os pontos da Grã-Bretanha. Todos passaram a viagem conversando sobre o debate da noite anterior no Parlamento e sobre o futuro do primeiro-ministro, falando com sotaques que iam da dicção ríspida e sincopada de Glasgow aos floreios e cadências do cockney londrino. Mais uma vez, Lloyd não teve chance de abordar com a mãe o assunto que o consumia.

           Como a maior parte dos representantes do partido, eles não tinham dinheiro para pagar os elegantes hotéis no alto das colinas, por isso se hospedaram numa pensão nos arredores da cidade. Nessa noite, os quatro foram a um pub e se sentaram ao redor de uma mesa de canto tranquila. Lloyd viu sua oportunidade.

           Bernie trouxe uma primeira rodada de bebidas. Ethel se perguntou em voz alta o que estaria acontecendo com sua amiga Maud, em Berlim: como a guerra interrompera o serviço postal entre Alemanha e Grã-Bretanha, fazia tempo que não tinha notícias dela.

           Lloyd tomou um golinho de sua cerveja e em seguida falou, com voz firme:

           – Eu gostaria de saber mais sobre meu verdadeiro pai.

           – Bernie é o seu pai – disse Ethel, incisiva.

           Mais evasivas! Lloyd reprimiu a raiva que brotou imediatamente dentro dele.

           – Não precisa me dizer isso – falou. – E eu não preciso dizer a Bernie que o amo como um pai, porque ele já sabe.

           Bernie lhe deu tapinhas no ombro, um gesto de afeto canhestro porém sincero.

           – Mas estou curioso em relação a Teddy Williams – insistiu Lloyd.

           – Nós precisamos falar sobre o futuro, não sobre o passado – disse Billy. – Estamos em guerra!

           – Justamente – retrucou Lloyd. – Por isso mesmo quero respostas para as minhas perguntas agora. Não estou disposto a esperar, porque em breve vou partir para a frente de batalha e não quero morrer sem saber. – Não via como eles poderiam contestar esse argumento.

           – Você já sabe tudo o que há para saber – disse Ethel, mas sem encará-lo.

           – Não sei, não – retrucou ele, esforçando-se para ser paciente. – Onde estão meus outros avós? Eu tenho tios, tias ou primos?

           – Teddy Williams era órfão – disse Ethel.

           – E foi criado em que orfanato?

           – Por que você está sendo tão cabeça-dura? – perguntou ela, irritada.

           Lloyd elevou o tom de voz, tão exasperado quanto a mãe:

           – Porque sou igual a você!

           Bernie não conseguiu reprimir um sorriso.

           – Bem, isso é verdade.

           Mas Lloyd não achou graça.

           – Em que orfanato?

           – Ele talvez tenha me dito, mas não me lembro. Acho que em Cardiff.

           – Lloyd, meu garoto – intrometeu-se Billy –, você está mexendo numa ferida. Beba sua cerveja e esqueça este assunto.

           – Não por isso, tio Billy: eu também tenho uma droga de uma ferida – disse Lloyd, zangado. – E estou farto de mentiras.

           – Ora, vamos – disse Bernie. – Não há por que falar em mentiras.

           – Sinto muito, pai, mas há, sim. – Lloyd ergueu uma das mãos para impedir que o interrompessem. – Da última vez que perguntei, Mam me disse que a família de Teddy Williams era de Swansea, mas que eles se mudavam muito por causa do emprego do pai. Agora está dizendo que ele foi criado num orfanato em Cardiff. Uma dessas histórias é falsa... ou talvez as duas.

           Por fim, Ethel olhou-o nos olhos.

           – Eu e Bernie o alimentamos, o vestimos e o mandamos para a escola e para a universidade – falou ela, indignada. – Você não tem do que reclamar.

           – E serei para sempre grato por isso, e sempre amarei vocês – respondeu Lloyd.

           – Mas por que este assunto foi surgir logo agora, afinal? – indagou Billy.

           – Por causa de algo que uma pessoa me disse lá em Aberowen.

           Sua mãe não reagiu, mas um lampejo de medo cruzou seu olhar. Alguém no País de Gales sabe a verdade, pensou Lloyd.

           Ele prosseguiu sem piedade:

           – Me disseram que Maud Fitzherbert pode ter engravidado em 1914, e que talvez você tenha aceitado dizer que o bebê era seu, e por isso foi recompensada com a casa da Nutley Street.

           Ethel deu um muxoxo de desprezo.

           Lloyd levantou a mão.

           – Isso explicaria duas coisas – falou. – Primeiro, a amizade improvável entre você e Lady Maud. – Ele pôs a mão no bolso do paletó. – Segundo, esta foto minha de costeletas. – Ele lhes mostrou a fotografia.

           Ethel encarou a imagem sem dizer nada.

           – Poderia ser eu, não é? – indagou Lloyd.

           – Sim, Lloyd, poderia – disse Billy, ríspido. – Mas está óbvio que não é, então deixe de rodeios e diga logo quem é esse homem.

           – É o pai do conde Fitzherbert. E agora deixem de rodeios vocês! Tio Billy, Mam, eu sou filho de Maud, não sou?

           – A amizade entre mim e Maud foi antes de tudo uma aliança política – disse Ethel. – Nós nos afastamos ao discordar sobre a estratégia das sufragistas, depois reatamos. Gosto muito dela, e ela me deu oportunidades importantes na vida, mas não temos nenhum vínculo secreto. Ela não sabe quem é seu pai.

           – Certo, Mam – disse Lloyd. – Eu poderia acreditar nisso. Mas esta foto aqui...

           – A explicação para essa semelhança... – Ela não conseguiu terminar a frase.

           Mas Lloyd não iria deixá-la escapar.

           – Vamos – insistiu, implacável. – Diga-me a verdade.

           Billy tornou a intervir:

           – Você está batendo na porta errada, garoto.

           – Ah, é? Bom, então que tal me mostrar a porta certa?

           – Não cabe a mim fazer isso.

           Aquilo era praticamente uma confissão.

           – Quer dizer então que vocês mentiram mesmo antes.

           Bernie estava estarrecido.

           – Está dizendo que a história de Teddy Williams não é verdade? – perguntou ele ao cunhado. Estava claro que havia acreditado nessa história durante anos, assim como Lloyd.

           Billy não respondeu.

           Todos olharam para Ethel.

           – Ah, que se dane! – exclamou ela. – Como diria meu pai: “Sabei que o vosso pecado vos há de achar.” Bom, você pediu a verdade, então vai ouvi-la, mas não vai gostar.

           – Veremos – disse Lloyd, destemido.

           – Você não é filho de Maud – disse sua mãe. – É filho de Fitz.

 

           No dia seguinte, sexta-feira, 10 de maio, a Alemanha invadiu a Holanda, a Bélgica e Luxemburgo.

           Lloyd ouviu a notícia no rádio quando se sentava para tomar café com os pais e tio Billy na pensão. Não ficou surpreso: todos no Exército consideravam essa invasão iminente.

           Estava muito mais atordoado com as revelações da véspera. Passara muitas horas em claro, zangado por ter sido enganado durante tantos anos, arrasado por ser filho de um apaziguador aristocrata de direita que, além de tudo, era sogro da adorável Daisy.

           – Como você pôde se apaixonar por ele? – perguntara à mãe, no pub.

           A resposta dela tinha sido ácida:

           – Deixe de ser hipócrita. Você era louco por aquela americana rica, e ela era tão de direita que se casou com um fascista.

           Lloyd quisera argumentar que não era a mesma coisa, mas logo se deu conta de que era, sim. Qualquer que fosse sua relação com Daisy agora, não havia dúvida de que ele um dia se apaixonara por ela. O amor não era uma coisa lógica. Se ele podia sucumbir a uma paixão irracional, sua mãe também podia. De fato, ambos tinham a mesma idade, 21 anos, quando os dois episódios aconteceram.

           Disse à mãe que ela deveria ter lhe contado a verdade desde o início, mas ela também tinha um argumento para isso.

           – Como você teria reagido, quando era menino, se eu tivesse lhe contado que você era filho de um homem rico, um conde? Quanto tempo teria demorado para se gabar com os colegas da escola? Pense em como eles teriam zombado dessa sua fantasia infantil. Pense em como o teriam odiado por ser superior a eles.

           – Sim, mas depois...

           – Eu não sei – respondera ela, cansada. – Nunca parecia ser o momento certo.

           Bernie, que no início ficara pálido de choque, não havia demorado a se recuperar e voltar a ser o mesmo homem fleumático de sempre. Dissera que entendia por que Ethel não lhe contara a verdade.

           – Um segredo compartilhado já não é mais segredo.

           Lloyd se perguntou qual seria a relação da mãe com o conde agora.

           – Imagino que deva vê-lo o tempo todo em Westminster.

           – Só de vez em quando. Os pares do reino têm uma seção separada no palácio, com os próprios restaurantes e bares, e em geral só os vemos com hora marcada.

           Nessa noite, Lloyd estivera chocado e atarantado demais para saber como se sentia. Era filho de Fitz, o aristocrata, o conservador, pai de Boy, sogro de Daisy. O que deveria sentir em relação a isso: tristeza, raiva, impulsos suicidas? A revelação era tão devastadora que ele parecia anestesiado. Era como um ferimento tão grave que a dor nem se manifestava no início.

           As notícias da manhã lhe deram outro assunto em que pensar.

           Nas primeiras horas do dia, a Alemanha fizera uma investida-relâmpago em direção ao oeste. Embora isso já fosse previsto, Lloyd sabia que nem mesmo os maiores esforços de inteligência dos Aliados tinham sido capazes de descobrir a data da invasão, e que os exércitos daqueles pequenos países haviam sido pegos de surpresa. Apesar disso, estavam se defendendo com bravura.

           – Provavelmente é verdade – comentou seu tio Billy –, mas a BBC diria isso de qualquer maneira.

           Naquele exato momento acontecia uma reunião do Gabinete convocada pelo premier Chamberlain. Mas o Exército francês, reforçado por dez divisões britânicas já estacionadas na França, definira muito antes um plano para reagir a uma invasão desse tipo, e o plano fora executado automaticamente. Tropas aliadas haviam atravessado pelo oeste a fronteira francesa com a Holanda e a Bélgica, e estavam correndo de encontro aos alemães.

           Com o coração pesado por causa daquela notícia importante, a família Williams pegou o ônibus até o centro da cidade e chegou ao Pavilhão Bournemouth, local da convenção do partido.

           Lá ficaram sabendo as notícias de Westminster. Chamberlain não queria largar o poder. Billy foi informado de que o primeiro-ministro pedira a Clement Attlee, líder do Partido Trabalhista, que integrasse o Gabinete, transformando o governo em uma coalizão dos três principais partidos.

           Os outros três ficaram consternados com essa possibilidade. Chamberlain, o apaziguador, continuaria sendo primeiro-ministro, e o Partido Trabalhista seria obrigado a apoiá-lo em um governo de coalizão. Era algo insuportável de se pensar.

           – O que Attlee respondeu? – quis saber Lloyd.

           – Que precisaria consultar o Comitê Executivo Nacional – respondeu Billy.

           – Ou seja, nós. – Tanto Lloyd quanto Billy eram membros do Comitê, que tinha reunião marcada para as quatro horas daquela tarde.

           – Certo – disse Ethel. – Vamos começar a investigar quanto apoio o plano de Chamberlain pode ter no nosso Comitê.

           – Nenhum, eu diria – comentou Lloyd.

           – Não esteja tão certo – retrucou sua mãe. – Algumas pessoas vão querer manter Churchill fora a qualquer custo.

           Lloyd passou as poucas horas seguintes ocupado com atividades políticas, conversando com membros do Comitê, seus amigos e assessores em cafés, bares, no Pavilhão e no passeio à beira-mar. Não almoçou, mas bebeu tanto chá que teve a impressão de que poderia sair boiando.

           Ficou decepcionado ao descobrir que nem todo mundo compartilhava suas opiniões sobre Chamberlain e Churchill. Alguns pacifistas remanescentes da última guerra queriam a paz a qualquer custo, e aprovavam a política de apaziguamento do primeiro-ministro. Os deputados galeses, por sua vez, ainda viam Churchill como o ministro do Interior que despachara soldados para acabar com uma greve em Tonypandy. Isso já fazia trinta anos, mas Lloyd estava aprendendo que a política tinha memória de elefante.

           Às três e meia da tarde, Lloyd e Billy percorreram o passeio à beira-mar sob uma brisa fresca e entraram no Hotel Highcliff, onde iria acontecer a reunião. Achavam que a maioria do Comitê fosse se opor à proposta de Chamberlain, mas não podiam ter certeza absoluta, e Lloyd ainda estava preocupado com o resultado.

           Entraram na sala e foram se sentar diante da mesa comprida junto com os outros integrantes do Comitê. Às quatro horas em ponto, os líderes do partido chegaram.

           Clem Attlee era um homem magro e careca, calado e discreto, que se vestia com apuro e ostentava um bigode. Parecia um advogado – profissão de seu pai –, e as pessoas tinham tendência a subestimá-lo. Com seu jeito seco, sem demonstrar emoção, ele resumiu os acontecimentos das últimas 24 horas, incluindo a proposta de Chamberlain de uma coalizão com o Partido Trabalhista.

           – Tenho duas perguntas a fazer aos senhores – disse ele. – A primeira é: os senhores aceitariam uma coalizão governamental com Neville Chamberlain como primeiro-ministro?

           Os homens reunidos em volta da mesa bradaram um “Não!” retumbante, mais veemente do que Lloyd esperava. Ele ficou empolgado. Chamberlain, amigo dos fascistas, traidor da Espanha, estava acabado. Havia alguma justiça no mundo.

           Lloyd também reparou na forma sutil como o discreto Attlee assumira as rédeas da reunião. Ele não havia aberto o assunto para discussão geral. Sua pergunta não fora: o que devemos fazer? Não dera aos integrantes do Comitê nenhuma chance de expressar incerteza, nem de hesitar. A seu modo, sem alarde, pusera todos eles contra a parede e os obrigara a decidir. E Lloyd tinha certeza de que a resposta era exatamente a que ele queria ouvir.

           – Então a segunda pergunta é: os senhores aceitariam uma coalizão com outro primeiro-ministro no poder? – prosseguiu Attlee.

           Embora não tão enfática, a resposta foi “Sim”. Quando Lloyd correu os olhos ao redor da mesa, ficou claro que quase todos estavam a favor. Se alguém estava contra, não se deu o trabalho de pedir uma votação.

           – Nesse caso – disse Attlee –, direi a Chamberlain que o nosso partido aceita fazer parte da coalizão, mas só se ele renunciar e um novo primeiro-ministro for nomeado.

           Um murmúrio de aprovação percorreu a mesa.

           Lloyd reparou que, espertamente, Attlee evitara perguntar quem eles achavam que deveria ser o novo primeiro-ministro.

           – Então agora vou telefonar para o número 10 da Downing Street – disse o líder trabalhista.

           E saiu da sala.

 

           Nessa noite, Winston Churchilll foi convocado ao Palácio de Buckingham, como mandava a tradição, e o rei o convidou a ocupar o cargo de primeiro-ministro.

           Ainda que Churchill fosse conservador, Lloyd tinha grandes esperanças em relação a ele. Durante o fim de semana, o novo primeiro-ministro já havia tomado algumas providências. Formara um Conselho de Guerra com cinco integrantes que incluíam Clem Attlee e Arthur Greenwood, respectivamente presidente e vice-presidente do Partido Trabalhista. O líder sindicalista Ernie Bevin foi nomeado ministro do Trabalho. Estava claro que Churchill pretendia montar um governo realmente pluripartidário.

           Ele fez a mala a tempo de pegar o trem de volta a Aberowen. Ao chegar lá, imaginava que logo seria mobilizado, provavelmente enviado para a França. Mas precisava de apenas uma ou duas horas. Estava louco para saber a explicação do comportamento de Daisy na terça-feira anterior. A ideia de vê-la em breve aumentava sua impaciência para compreender o que acontecera.

           Enquanto isso, o Exército alemão avançava pela Holanda e pela Bélgica, derrotando a oposição enérgica com uma rapidez que deixou Lloyd chocado. No domingo à noite, Billy falou ao telefone com um contato seu no Ministério da Guerra. Em seguida ele e Lloyd pegaram emprestado um atlas escolar com a dona da pensão e puseram-se a estudar o mapa do noroeste da Europa.

           Com o indicador, Billy traçou uma linha que ia de leste a oeste, de Düsseldorf até Lille, passando por Bruxelas.

           – Os alemães estão atacando a parte mais vulnerável das defesas francesas: a metade norte da fronteira com a Bélgica. – Seu dedo desceu pelo mapa. – No sul da Bélgica situava-se a floresta das Ardenas, uma grande faixa de florestas montanhosas praticamente intransponíveis para os exércitos motorizados modernos. Pelo menos é o que diz meu amigo do Ministério da Guerra. – Seu dedo prosseguiu. – Ainda mais ao sul, a fronteira franco-alemã é defendida por uma série de sólidas fortificações chamada Linha Maginot, que se estende até a Suíça. – Seu dedo voltou ao alto da página. – Mas entre a Bélgica e o norte da França não há fortificações.

           Lloyd ficou intrigado.

           – Ninguém havia pensado nisso até agora?

           – É claro que pensamos. E temos uma estratégia. – Billy baixou a voz. – Chama-se Plano D. Não deve ser mais segredo, pois já está sendo implementado. A maior parte do Exército francês e também toda a Força Expedicionária Britânica que já está na França irão atravessar a fronteira com a Bélgica. Eles vão formar uma sólida linha defensiva no rio Dyle. Isso vai deter o avanço dos alemães.

           Lloyd não ficou muito mais seguro com essa informação.

           – Quer dizer que vamos comprometer metade das nossas forças com esse tal Plano D?

           – Temos que garantir que dê certo.

           – É melhor que dê certo mesmo.

           Eles foram interrompidos pela dona da pensão, que entregou um telegrama a Lloyd.

           Devia ser do Exército. Ele dera aquele endereço ao coronel Ellis-Jones antes de sair de licença. Ficou surpreso por não ter tido notícias até esse momento. Rasgou o envelope. O telegrama dizia:

            

           NÃO VOLTAR ABEROWEN PONTO APRESENTAR-SE IMEDIATAMENTE DOCAS SOUTHAMPTON PONTO À BIENTÔT ASS ELLISJONES

             

           Ele não voltaria a Tŷ Gwyn. Southampton era um dos maiores portos da Grã-Bretanha, ponto de embarque para o continente, e ficava a poucos quilômetros de Bournemouth seguindo pelo litoral, a mais ou menos uma hora de trem ou de ônibus.

           Com um aperto no peito, Lloyd se deu conta de que não veria Daisy no dia seguinte. Talvez jamais viesse a saber o que ela queria lhe dizer.

           O À BIENTÔT do coronel Ellis-Jones confirmava sua dedução.

           Lloyd iria para a França.

             

1940 (II)

            Erik von Ulrich passou os três primeiros dias da batalha da França preso num engarrafamento.

           Ele e seu amigo Hermann Braun faziam parte de uma unidade médica agregada à 2a Divisão Panzer, ou de Blindados. Não viram nenhum combate ao atravessar o sul da Bélgica, somente quilômetros e quilômetros de colinas e árvores. Deduziram que estivessem na floresta das Ardenas. Percorriam estradas estreitas, muitas delas sem pavimentação, e um tanque enguiçado podia causar um congestionamento de oitenta quilômetros muito rapidamente. Passavam mais tempo parados e presos em filas do que avançando.

           O rosto sardento de Hermann estava congelado numa careta de aflição.

           – Que burrice! – sussurrou ele para Erik, tão baixo que ninguém mais pôde ouvir.

           – Você deveria tomar cuidado antes de dizer essas coisas... afinal, era da Juventude Hitlerista – respondeu Erik, também em voz baixa. – Tenha fé no Führer. – Mas não estava bravo o suficiente para delatar o amigo.

           Quando avançavam, o desconforto era extremo. Estavam sentados no chão duro de madeira de um caminhão militar que sacolejava por cima das raízes das árvores, tentando se esquivar dos buracos. Erik ansiava por uma batalha só para poder sair daquele maldito veículo.

           – O que estamos fazendo aqui? – perguntou Hermann, com a voz mais alta.

           Seu superior, o Dr. Rainer Weiss, viajava acomodado num assento de verdade ao lado do motorista.

           – Cumprindo as ordens do Führer, que naturalmente estão sempre certas.

           Ao dizer isso, o médico tinha o semblante impassível, mas Erik teve certeza de que ele estava sendo sarcástico. O major Weiss era magro, tinha cabelos pretos e usava óculos. Muitas vezes se referia com cinismo ao governo e às Forças Armadas, mas sempre de um jeito enigmático, de modo que não havia provas contra ele. De toda forma, o Exército àquela altura não podia se dar ao luxo de perder um bom médico.

           Havia dois outros ordenanças médicos no caminhão, ambos mais velhos do que Erik e seu amigo. Um deles, Christof, tinha uma resposta melhor para a pergunta de Hermann:

           – Talvez os franceses não esperem que ataquemos aqui, já que o terreno é tão acidentado.

           – Teremos a vantagem da surpresa e as defesas serão mais leves – completou seu amigo Manfred.

           – Agradeço aos dois pela aula de estratégia. Foi muito instrutivo – disse Weiss com sarcasmo, mas sem dizer que eles estavam errados.

           Apesar de tudo o que acontecera, ainda havia quem não tivesse fé no Führer, e isso deixava Erik pasmo. Sua própria família continuava fechando os olhos às vitórias dos nazistas. Seu pai, outrora um homem de status e poder, era agora uma figura patética. Em vez de comemorar a conquista da bárbara Polônia, tudo o que ele fazia era lamentar o mau tratamento concedido aos poloneses – do qual devia ter tomado conhecimento por ouvir ilegalmente alguma estação de rádio estrangeira. Aquele tipo de comportamento poderia causar problemas para todos eles – inclusive para Erik, culpado de não relatar o fato ao supervisor nazista do quarteirão em que moravam.

           Com a mãe as coisas não eram melhores. De vez em quando ela desaparecia com pequenos embrulhos de peixe defumado ou ovos. Não dava nenhuma explicação, mas Erik tinha certeza de que os levava para Frau Rothmann, cujo marido judeu não tinha mais autorização para exercer a medicina.

           Apesar disso, Erik sempre mandava para casa uma generosa parcela do soldo que recebia, pois sabia que, sem isso, os pais passariam frio e fome. Embora detestasse suas opiniões políticas, ele os amava. Os dois sem dúvida deviam sentir a mesma coisa em relação a ele e a seu posicionamento.

           Carla, irmã de Erik, também queria ser médica e ficara uma fera quando lhe deixaram claro que, na Alemanha atual, aquela era uma profissão para homens. Agora fazia um curso de enfermagem, trabalho muito mais adequado a uma jovem alemã. Ela também ajudava os pais com seu parco salário.

           Inicialmente Erik e Hermann queriam integrar unidades de infantaria. A imagem que tinham de uma batalha era correr em direção ao inimigo disparando um fuzil, e matar ou morrer em nome da pátria. Entretanto, nenhum dos dois iria matar ninguém. Ambos tinham cursado um ano de faculdade de medicina, e uma formação dessas não podia ser desperdiçada, por isso foram destacados para a unidade médica.

           O quarto dia na Bélgica, segunda-feira, 13 de maio, foi igual aos três primeiros até a parte da tarde. Por cima dos rugidos e roncos de centenas de tanques e motores de caminhões, eles começaram a ouvir um barulho diferente, mais alto. Aviões voavam baixo sobre suas cabeças e lançavam bombas não muito longe dali. Erik sentiu o nariz coçar com o cheiro dos explosivos.

           Fizeram sua pausa de meio-dia num ponto elevado com vista para o sinuoso vale de um rio. Segundo o major Weiss, aquele era o rio Meuse, e eles estavam a oeste da cidade de Sedan. Tinham entrado na França. Os aviões da Luftwaffe passavam rugindo, um após outro, seguindo na direção de um rio a alguns quilômetros dali, lançando bombas e atirando nas cidadezinhas espalhadas pelas margens, onde provavelmente havia defesas francesas. No céu, via-se a fumaça de inúmeros incêndios em chalés e fazendas destruídos. A barragem de artilharia aérea não cessava, e Erik quase teve pena das pessoas presas naquele inferno.

           Era a primeira batalha que ele testemunhava. Em pouco tempo, estaria no meio dela, e talvez algum jovem soldado francês fosse vê-los de um posto de observação elevado e sentir pena dos alemães feridos e mortos. Pensar nisso fez o coração de Erik bater de emoção como um enorme tambor dentro do peito.

           Ao olhar para leste, a distância impedia que se vissem os detalhes da paisagem, mas ainda assim pôde distinguir os pontinhos que eram os aviões e ver colunas de fumaça subindo pelo ar, e entendeu que a batalha estava sendo travada ao longo de vários quilômetros daquele rio.

           Diante de seus olhos, o bombardeio cessou e os aviões começaram a dar meia-volta e a seguir para o norte; moviam-se lateralmente, fazendo as asas oscilarem para cima e para baixo, para desejar “boa sorte” ao passar por cima deles a caminho de casa.

           Mais perto de onde Erik estava, no trecho plano que conduzia ao rio, os tanques alemães entraram em ação.

           Estavam a uns três quilômetros do inimigo, mas a artilharia francesa já os atacava da cidade. Erik ficou surpreso que tantos atiradores houvessem sobrevivido ao bombardeio aéreo. Os disparos faiscavam nas ruínas, o estrondo dos canhões ecoava pelos campos e, nos pontos em que os projéteis explodiam, a terra francesa se desprendia, jorrando para o alto como chafarizes. Erik viu um tanque voar pelos ares, atingido por um tiro certeiro, e fumaça, metal e partes de corpos humanos foram cuspidos da boca desse vulcão. Essa visão lhe deu náuseas.

           No entanto, a artilharia francesa não conseguiu deter o avanço alemão. Os tanques seguiram rastejando implacáveis em direção ao trecho de rio a leste da cidade, que, segundo Weiss lhes informou, se chamava Donchery. Atrás deles vinham os soldados de infantaria, a bordo de caminhões e a pé.

           – O ataque aéreo não foi suficiente – disse Hermann. – Onde está nossa artilharia? Precisamos que eles ataquem a cidade com armas pesadas para dar a nossos tanques e à nossa infantaria uma chance de atravessar o rio e estabelecer uma cabeça de ponte.

           Erik sentiu vontade de dar um soco na boca do amigo, para que ele parasse de choramingar. Estavam prestes a entrar em combate – precisavam pensar positivo!

           Mas Weiss falou:

           – Tem razão, Braun... só que a munição da nossa artilharia está presa na floresta das Ardenas. Só temos 48 projéteis.

           Um major passou correndo com o rosto muito vermelho, gritando:

           – Para trás! Para trás!

           O major Weiss apontou e disse:

           – Vamos montar nosso posto de atendimento médico de campanha mais para leste, perto daquela fazenda. – Erik distinguiu um telhado cinzento e baixo, a uns 750 metros do rio. – Muito bem, adiante!

           Eles subiram no caminhão e desceram a colina com o motor rugindo. Quando chegaram ao terreno plano, dobraram à esquerda numa estradinha secundária. Erik se perguntou o que iriam fazer com a família que devia morar naquela casa prestes a ser transformada em hospital militar. Expulsá-la, imaginou, e matá-la a tiros caso criasse problemas. Mas para onde iriam aquelas pessoas? Estavam no meio de um campo de batalha.

           Não precisava ter se preocupado: todos já tinham deixado a casa.

           A construção ficava a pouco menos de um quilômetro do centro do confronto, observou Erik. Achou que não fazia sentido montar um posto de atendimento médico ao alcance das armas inimigas.

           – Maqueiros, podem ir! – gritou Weiss. – Quando voltarem, já teremos preparado tudo.

           Erik e Hermann pegaram uma maca dobrável e um kit de primeiros socorros no caminhão de material médico e partiram em direção à batalha. Christof e Manfred seguiam bem à sua frente, e dezenas de colegas vinham atrás. É isso, pensou Erik, exultante: esta é a nossa chance de nos tornarmos heróis. Quem se mostrará corajoso sob o fogo inimigo? Quem perderá o controle e rastejará até um buraco para se esconder?

           Atravessaram os campos até o rio. O caminho era longo e pareceria ainda maior na volta, quando estivessem carregando um soldado ferido.

           Passaram por tanques incendiados, mas não havia sobreviventes. Erik desviou os olhos dos restos humanos carbonizados misturados ao metal retorcido. Bombas explodiam à sua volta, mas não eram muitos: o rio tinha defesas leves e diversas peças de artilharia francesas haviam sucumbido ao ataque aéreo. Ainda assim, pela primeira vez na vida Erik estava sendo alvo de disparos, e teve o impulso absurdo e infantil de tapar os olhos com as mãos. No entanto, continuou correndo.

           Foi então que um projétil caiu bem na sua frente.

           Um forte estrondo ecoou e a terra se sacudiu como se um gigante tivesse batido o pé. Christof e Manfred foram atingidos em cheio. Erik viu seus corpos saírem voando como se não tivessem peso. A explosão o derrubou. Caído de barriga para cima, foi atingido por uma chuva de detritos, mas não se feriu. Com esforço, conseguiu se levantar. Bem na sua frente estavam os corpos estraçalhados de Christof e Manfred. Christof parecia um boneco desconjuntado, como se os membros tivessem sido deslocados das articulações. A cabeça de Manfred fora separada do corpo e jazia ao lado dos pés calçados com botas.

           Erik ficou paralisado de horror. Na faculdade de medicina, não tivera que lidar com corpos mutilados e ensanguentados. Estava acostumado com os cadáveres da aula de anatomia – havia um para cada dois alunos, e ele e Hermann dividiam o corpo de uma velha encarquilhada – e tinha visto pessoas vivas serem abertas na mesa de cirurgia. Mas nada disso o havia preparado para aquela cena.

           Sua única vontade foi sair correndo.

           Deu meia-volta. Em sua mente só havia espaço para o medo. A passos largos e decididos, começou a voltar pelo mesmo caminho pelo qual tinha vindo, em direção à floresta, para longe do campo de batalha.

           Foi Hermann quem o salvou. Postando-se na sua frente, disse:

           – Aonde você vai? Deixe de ser bobo!

           Erik não parou de andar e tentou contornar o colega. Hermann então lhe deu um soco bem forte na barriga, que o fez dobrar o corpo e cair de joelhos.

           – Não fuja! – disse Hermann, com um tom de urgência na voz. – Será fuzilado por deserção! Controle-se!

           Enquanto tentava recuperar o fôlego, Erik recobrou o bom senso. Percebeu que não podia fugir, não devia desertar, tinha que ficar ali. Aos poucos, sua força de vontade foi superando seu terror. Depois de algum tempo, ele se levantou.

           Hermann o espiava com um ar de cautela.

           – Desculpe – disse Erik. – Entrei em pânico. Já passou.

           – Então pegue a maca e vamos em frente.

           Erik pegou a maca dobrável, equilibrou-a sobre o ombro, deu meia-volta e recomeçou a correr.

           Mais perto do rio, Erik e Hermann encontraram soldados da infantaria. Alguns tiravam botes infláveis da traseira dos caminhões e os levavam até a beira do rio, enquanto os tanques tentavam lhes dar cobertura, disparando contra as defesas francesas. Erik, porém, que recobrava rapidamente suas faculdades mentais, logo viu que aquilo era uma batalha perdida: os franceses estavam atrás de paredes e dentro de construções, enquanto a infantaria alemã se achava exposta na margem do rio. Assim que conseguiam pôr um dos botes na água, ele era metralhado.

           Mais acima, o rio fazia uma curva para a direita, de modo que a infantaria não podia sair do alcance dos tiros franceses sem recuar um longo trecho.

           O chão já estava coalhado de mortos e feridos.

           – Vamos levar este aqui – disse Hermann, decidido, e Erik se abaixou para obedecer.

           Abriram a maca no chão ao lado de um soldado que gemia. Erik fez com que ele bebesse água de um cantil, como aprendera no treinamento. O homem parecia ter vários ferimentos superficiais no rosto e um braço inerte. Erik supôs que tivesse levado tiros de metralhadora, que, por sorte, não haviam atingido seus órgãos vitais. Ele e Hermann não viram nenhuma hemorragia forte. Puseram o homem em cima da maca, levantaram-na e correram de volta para o posto de atendimento.

           Assim que começaram a avançar, o ferido gritou de dor. No entanto, quando pararam, ele cerrou os dentes e gritou:

           – Continuem, continuem!

           Carregar um homem numa maca não era tão fácil quanto parecia. Ainda na metade do caminho, Erik achou que seus braços fossem cair. No entanto, pôde ver que a dor do paciente era muito maior do que a sua, por isso continuou correndo.

           Percebeu com gratidão que nenhuma outra bomba caía à sua volta. Os franceses estavam concentrando todo seu fogo na margem do rio, para tentar impedir que os alemães atravessassem.

           Por fim, Erik e Hermann chegaram à fazenda com seu paciente. Weiss já havia organizado o lugar – tirara a mobília supérflua dos cômodos, marcara lugares no chão para os pacientes, arrumara a mesa da cozinha para cirurgias. Mostrou a Erik e Hermann onde pôr o ferido e, em seguida, mandou que fossem buscar outro.

           A corrida de volta até o rio foi mais fácil. Não havia paciente em cima da maca, e eles percorriam um declive suave. Quando se aproximaram da margem, Erik se perguntou, temeroso, se tornaria a entrar em pânico.

           Viu com apreensão que a batalha estava indo mal. Vários botes murchos flutuavam no meio do rio, havia muito mais corpos nas margens – e até o momento nenhum alemão conseguira atravessar.

           – Que catástrofe – comentou Hermann. – Deveríamos ter esperado a nossa artilharia! – Sua voz saiu esganiçada.

           – Então perderíamos o elemento-surpresa, e os franceses teriam tempo de trazer reforços – disse Erik. – Toda aquela viagem demorada pelas Ardenas não teria adiantado nada.

           – Bom, isto aqui não está dando certo – insistiu Hermann.

           Bem no fundo de seu coração, Erik começava a questionar se os planos do Führer eram mesmo infalíveis. Pensar assim minava sua determinação e ameaçava desestabilizá-lo por completo. Felizmente, não havia mais tempo para refletir. Eles pararam ao lado de um homem com a perna quase toda decepada. Tinha mais ou menos a sua idade, 20 anos, pele sardenta e cabelos ruivos. Sua perna direita terminava no meio da coxa, num coto irregular. Por incrível que parecesse, o rapaz estava consciente e os encarou como se eles fossem dois anjos.

           Erik encontrou o ponto certo na virilha do soldado e estancou a hemorragia enquanto Hermann preparava e aplicava um torniquete. Então puseram o rapaz na maca e voltaram correndo para o posto.

           Hermann era um alemão leal, mas às vezes se deixava dominar por emoções negativas. Quando Erik tinha sentimentos assim, tomava o cuidado de não expressá-los em voz alta. Desse modo não prejudicava o moral de ninguém – e mantinha-se longe de problemas.

           Mas não podia evitar os pensamentos. Parecia que a aproximação pelas Ardenas não rendera aos alemães a vitória fácil que esperavam. As defesas do rio Meuse eram frágeis, mas os franceses estavam resistindo ferozmente. Seria possível que aquela primeira experiência de batalha destruisse a fé que ele tinha no Führer? Essa ideia lhe causou uma sensação de pânico.

           Perguntou-se se as forças alemãs a leste estariam tendo mais sucesso. Quando a 2a Divisão – da qual Erik fazia parte – havia se aproximado da fronteira, estava acompanhada pela 1a e pela 10a, que agora deviam estar atacando mais acima no rio.

           Os músculos de seu braço doíam sem parar.

           Chegaram ao posto de atendimento pela segunda vez. O lugar agora estava bem agitado: o chão coalhado de homens gemendo e chorando, ataduras ensanguentadas por toda parte. Weiss e seus assistentes se moviam depressa de um corpo mutilado para outro. Erik nunca imaginara que pudesse haver tanto sofrimento num espaço tão reduzido. De alguma forma, quando o Führer falava em guerra, ele nunca pensava naquele tipo de coisa.

           Então percebeu que os olhos de seu paciente estavam fechados.

           O major Weiss tomou a pulsação do soldado e falou, ríspido:

           – Ponham-no lá no celeiro... e, porra, não percam tempo me trazendo cadáveres!

           Erik teve vontade de chorar de tanta frustração e também por causa da dor que castigava seus braços e que começava a afetar suas pernas.

           Eles levaram o corpo do soldado para o celeiro e viram que lá já havia uns dez rapazes mortos.

           Aquilo era pior do que qualquer coisa que ele pudesse ter imaginado. Quando pensava em batalhas, costumava imaginar coragem diante do perigo, estoicismo no sofrimento, heroísmo na adversidade. O que via agora era agonia, gritos, terror, corpos mutilados e uma total falta de fé na sensatez daquela missão.

           Ele e Hermann voltaram para o rio.

           O sol já estava baixo no céu e houvera uma mudança no campo de batalha. Os franceses que defendiam Donchery estavam sendo alvo de bombas disparadas do outro lado do rio. Erik imaginou que, mais acima, a 1a Divisão de Blindados houvesse tido melhor sorte e conseguido assegurar uma cabeça de ponte na margem sul e que agora estava vindo ajudar os companheiros pelos flancos. Obviamente, eles não tinham perdido a munição na floresta.

           Mais animados, Erik e Hermann resgataram outro ferido. Dessa vez, quando voltaram ao posto de atendimento, receberam duas tigelas de metal cheias de uma sopa saborosa. O descanso de dez minutos enquanto comia fez Erik ter vontade de se deitar e dormir a noite inteira. Foi preciso um esforço sobre-humano para se levantar, empunhar seu lado da maca e correr novamente até o campo de batalha.

           Ao chegar lá, viram uma cena diferente. Tanques atravessavam o rio em cima de jangadas. Os alemães da outra margem estavam sob fogo cerrado, mas disparavam de volta com a ajuda dos reforços da 1a Divisão de Blindados.

           Erik viu que, no final das contas, tinham uma chance de alcançar o objetivo. Ficou mais animado e começou a sentir vergonha por ter duvidado do Führer.

           Ele e Hermann continuaram recolhendo os feridos por muitas horas, até se esquecerem do que era não sentir dor nos braços nem nas pernas. Alguns dos pacientes estavam inconscientes; uns lhes agradeciam, outros os amaldiçoavam; muitos apenas gritavam; uns viviam, outros morriam.

           Às oito da noite, já havia uma cabeça de ponte alemã do outro lado do rio e, às dez, a posição estava consolidada.

           O combate cessou ao cair da noite. Erik e Hermann continuaram vasculhando o campo de batalha em busca de feridos. Trouxeram o último à meia-noite. Então se deitaram debaixo de uma árvore e adormeceram, exaustos.

           No dia seguinte, Erik, Hermann e a 2a Divisão de Blindados mudaram o curso para oeste e passaram pelo que restava das defesas francesas.

           Dois dias depois, estavam oitenta quilômetros mais à frente, no rio Oise, avançando depressa por um território sem defesas.

           Em 20 de maio, uma semana após emergirem de surpresa da floresta das Ardenas, haviam chegado ao litoral do canal da Mancha.

           O major Weiss explicou a conquista a Erik e Hermann:

           – Nosso ataque à Bélgica foi uma distração, entendem? O objetivo era atrair os franceses e os britânicos para uma armadilha. E eles foram pegos. A maior parte do Exército francês e praticamente toda a Força Expedicionária Britânica estão na Bélgica, cercadas pelo Exército alemão. Estão isoladas dos suprimentos, longe de reforços, indefesas... e derrotadas.

           – Esse era o plano do Führer desde o início! – exclamou Erik, triunfante.

           – Sim – respondeu Weiss, e como sempre Erik não soube dizer se ele estava sendo sincero. – Ninguém pensa como o Führer!

 

           Lloyd Williams encontrava-se num estádio de futebol em algum lugar entre Calais e Paris. Junto com ele estavam mil prisioneiros de guerra britânicos ou mais. Não havia como se proteger do sol forte do mês de junho, mas, como não tinham cobertores, sentiam-se gratos pelas noites quentes. Não havia banheiros nem água para se lavar.

           Lloyd estava cavando um buraco com as mãos. Tinha reunido alguns dos mineiros galeses para construir latrinas numa das extremidades do campo, e trabalhava com eles para demonstrar boa vontade. Outros homens sem mais nada para fazer se juntaram ao esforço, e logo havia quase cem deles trabalhando. Quando um guarda passou por eles para ver o que estava acontecendo, Lloyd explicou.

           – Você fala bem alemão – disse o guarda, simpático. – Qual é o seu nome?

           – Lloyd.

           – O meu é Dieter.

           Lloyd decidiu explorar aquela pequena demonstração de simpatia.

           – Poderíamos cavar mais depressa se tivéssemos ferramentas.

           – Qual é a pressa?

           – Melhorar a higiene seria tão bom para vocês quanto para nós.

           Dieter deu de ombros e se afastou.

           Lloyd se sentia pouco heroico. Não havia participado de nenhum combate. Os Fuzileiros Galeses tinham ido à França como força da reserva, para substituir outras unidades numa batalha que, esperava-se, fosse durar bastante. Mas os alemães tinham levado apenas dez dias para derrotar a maior parte do Exército Aliado. Muitos dos britânicos derrotados tinham sido evacuados de Calais e Dunquerque, mas milhares não conseguiram embarcar, Lloyd entre eles.

           Era provável que os alemães estivessem avançando rumo ao sul. Até onde ele sabia, os franceses continuavam a lutar. Suas melhores tropas, porém, tinham sido aniquiladas na Bélgica, e os guardas alemães que vigiavam os presos exibiam uma expressão de triunfo, como se soubessem que a vitória estava garantida.

           Lloyd agora era prisioneiro de guerra, mas por quanto tempo? A essa altura, o governo britânico já devia estar sofrendo uma forte pressão para assinar a paz. Churchill jamais faria isso, porém, ao contrário de todos os outros políticos, não era filiado a nenhum partido e podia ser deposto. Homens como lorde Halifax não achariam muito difícil assinar um tratado de paz com os nazistas. O mesmo valia para o conde Fitzherbert, ministro-adjunto das Relações Exteriores, pensou Lloyd com amargura, pois agora tinha a vergonha de saber que ele era seu pai.

           Se a paz fosse assinada em breve, talvez seu tempo como prisioneiro de guerra fosse curto. Ele poderia passá-lo todo ali, naquele estádio francês. Chegaria em casa magro e queimado de sol, mas, ainda assim, inteiro.

           Se os britânicos continuassem lutando, porém, seria outra história. A última guerra tinha durado mais de quatro anos. Lloyd não suportava a ideia de desperdiçar esse tempo de sua vida num campo de prisioneiros de guerra. Resolveu que, para evitar isso, tentaria fugir.

           Dieter voltou trazendo meia dúzia de pás.

           Lloyd as distribuiu aos homens mais fortes, e o trabalho prosseguiu mais depressa.

           Em determinado momento, os presos teriam que ser transferidos para um campo permanente. Essa seria a hora de tentar fugir. Com base em suas experiências na Espanha, Lloyd calculou que o Exército não fosse priorizar a vigilância dos prisioneiros. Se um deles tentasse escapar, poderia conseguir ou então levar um tiro e morrer. De qualquer forma, seria uma boca a menos para alimentar.

           Eles passaram o resto do dia terminando as latrinas. Além da melhora na higiene, o projeto havia elevado o moral dos soldados. Lloyd ficou acordado a noite toda, olhando as estrelas, tentando pensar em outras atividades comunitárias que pudesse organizar. Decidiu que faria uma grande competição de atletismo, uma espécie de Olimpíada do campo de prisioneiros.

           No entanto, não teve oportunidade para pôr seu plano em prática, pois na manhã seguinte eles foram obrigados a marchar para fora do estádio.

           No início, não teve certeza da direção em que estavam seguindo, mas não demorou muito para chegarem a uma estrada de duas pistas que fazia parte da Rota de Napoleão e começarem a seguir para o leste em ritmo constante. Provavelmente a intenção era fazê-los ir a pé até a Alemanha, pensou Lloyd.

           Ele sabia que, uma vez lá, seria muito mais difícil fugir. Tinha que aproveitar a oportunidade. E quanto antes, melhor. Apesar do medo – aqueles guardas tinham armas –, estava decidido.

           Com exceção de um ou outro carro de oficiais, não havia muito tráfego de veículos, mas a estrada estava lotada de pessoas a pé seguindo na direção oposta. Empurrando seus pertences em pequenas carroças e carrinhos de mão, algumas tocavam animais de fazenda à sua frente: eram obviamente refugiados cujas casas tinham sido destruídas durante a batalha. Aquilo era um sinal animador, disse Lloyd a si mesmo. Um prisioneiro foragido poderia se esconder entre aquelas pessoas.

           Os prisioneiros não estavam sendo vigiados muito bem. Apenas dez alemães acompanhavam aquela fila de mil homens. Os guardas dispunham de um carro e uma motocicleta; o restante andava a pé ou em bicicletas civis que deviam ter confiscado aos moradores das redondezas.

           Apesar disso, no início a fuga lhe pareceu impossível. Não havia nenhuma cerca viva ao estilo inglês para proporcionar cobertura, e as valas eram rasas demais para servir de esconderijo. Um homem correndo seria alvo fácil para um atirador competente.

           Então eles entraram num vilarejo. Ali era mais difícil para os guardas ficar de olho em todo mundo. Em pé dos lados da fila, moradores encaravam os prisioneiros. Um pequeno rebanho de ovelhas se misturou a eles. Chalés e lojas margeavam a rua. Esperançoso, Lloyd ficou atento a qualquer oportunidade. Precisava de um lugar onde pudesse se esconder depressa: uma porta aberta, um corredor entre duas casas, um arbusto. E tinha que encontrá-lo num momento em que nenhum dos guardas estivesse por perto.

           Poucos minutos depois, estava deixando o vilarejo para trás sem ver nenhuma oportunidade.

           Ficou irritado e disse a si mesmo que tivesse paciência. Haveria outras chances. O caminho até a Alemanha era longo. Por outro lado, a cada dia que passasse, os alemães aumentariam seu domínio sobre o território conquistado, melhorariam sua organização, imporiam toques de recolher, montariam postos de controle e interromperiam a movimentação de refugiados. Fugir seria mais fácil no início e se tornaria cada vez mais difícil com o passar do tempo.

           Fazia calor, e ele tirou o paletó e a gravata do uniforme. Daria um jeito de se livrar deles assim que possível. De perto, provavelmente ainda parecia um soldado britânico, com a calça e a camisa cáqui, mas esperava não chamar tanta atenção de longe.

           Passaram por mais dois vilarejos e então chegaram a uma pequena cidade. Ali deveriam surgir algumas possibilidades de fuga, pensou Lloyd, nervoso. Percebeu que parte dele torcia para que não encontrasse uma boa oportunidade, para que não precisasse correr o risco de ser alvo daqueles fuzis. Será que já estava se acostumando ao cativeiro? Era muito fácil simplesmente seguir marchando, com os pés doloridos, mas em segurança. Ele tinha que sair daquele estado.

           Infelizmente, a rua que atravessava a cidade era larga. A fila se mantinha no meio da pista, deixando um largo corredor de ambos os lados, que teria de ser atravessado antes que um fugitivo pudesse se esconder. Algumas das lojas estavam fechadas, e umas poucas construções tinham tábuas pregadas nas portas e janelas, mas Lloyd viu becos promissores, cafés com as portas abertas e uma igreja – no entanto, não conseguiria chegar a nenhum deles sem ser visto.

           Estudou o rosto dos moradores da cidade que encaravam a procissão de prisioneiros. Será que eram solidários à sua situação? Será que se lembravam que aqueles homens haviam lutado pela França? Ou estariam compreensivelmente apavorados com os alemães e se recusariam a correr qualquer risco? Talvez um pouco de cada. Alguns arriscariam a vida para ajudar, outros o entregariam aos alemães sem pestanejar. E ele não conseguiria ver a diferença antes que fosse tarde demais.

           Chegaram ao centro da cidade. Já perdi metade das minhas oportunidades, disse Lloyd a si mesmo. Preciso agir.

           Mais adiante, viu um cruzamento. Uma fila de veículos aguardava para dobrar à esquerda, pois os prisioneiros os impediam de passar. Entre os carros, Lloyd viu um caminhão civil. Sujo e surrado, parecia pertencer a um construtor ou operário de manutenção de estradas. A carroceria era aberta, mas Lloyd não conseguiu ver lá dentro, pois as laterais eram altas.

           Achou que talvez fosse capaz de se içar por uma das laterais e pular para dentro do veículo.

           Uma vez lá dentro, não poderia ser visto por ninguém que estivesse em pé ou andando pela rua, nem pelos guardas de bicicleta. Mas estaria totalmente exposto para as pessoas que observavam das janelas superiores dos prédios que margeavam as ruas. Será que elas iriam entregá-lo?

           Ele se aproximou do caminhão.

           Olhou por cima do ombro. O guarda mais próximo estava uns 200 metros mais atrás.

           Olhou para a frente. Um guarda de bicicleta estava vinte metros adiante.

           – Por favor, pode segurar isto aqui para mim? – pediu ao homem que estava a seu lado, entregando-lhe o paletó do uniforme.

           Chegou à boleia do caminhão. Um homem de ar entediado estava ao volante, de macacão e boina, com um cigarro pendurado na boca. Lloyd passou por ele e alcançou a lateral do veículo. Não havia tempo de verificar outra vez a posição dos guardas.

           Sem parar de andar, Lloyd segurou a lateral do caminhão com as duas mãos, suspendeu o corpo, jogou uma perna por cima da caçamba, depois a outra, e caiu lá dentro com um baque que ecoou muito alto apesar do barulho de mil pares de pés. Imediatamente se colou ao chão do veículo. Ficou deitado, sem se mexer, à escuta de algum grito em alemão, do rugido de uma moto se aproximando, do estampido de um tiro de fuzil.

           Ouviu o ronco irregular do motor do caminhão, o bater e arrastar dos pés dos prisioneiros, os ruídos de fundo do tráfego e dos moradores de uma cidade pequena. Será que havia conseguido?

           Olhou em volta, mantendo a cabeça baixa. Na carroceria havia baldes, tábuas de madeira, uma escada e um carrinho de mão. Estava torcendo para que houvesse alguns sacos que pudesse usar para se cobrir, mas não.

           Ouviu uma moto. Teve a impressão de que ela havia parado ali perto. Então, a poucos centímetros de sua cabeça, alguém falou em francês com um forte sotaque alemão:

           – Para onde está indo?

           Com o coração disparado, Lloyd concluiu que um guarda se dirigia ao motorista do caminhão. Será que ele iria examinar a caçamba?

           O motorista respondeu em francês, com uma profusão de palavras indignadas que Lloyd não conseguiu decifrar. O soldado alemão provavelmente também não entendeu e repetiu a pergunta.

           Ao erguer os olhos, Lloyd viu duas mulheres observando a rua de uma janela alta. Ambas o encaravam, boquiabertas. Uma delas apontava, com o braço estendido pela janela aberta.

           Lloyd tentou captar o olhar dela. Ainda deitado, sem se mexer, moveu uma das mãos de um lado para o outro, num gesto que significava “não”.

           Ela entendeu o recado. Recolheu o braço de repente e cobriu a boca com a mão, como se tivesse percebido, horrorizada, que seu dedo apontado poderia significar uma sentença de morte.

           Lloyd quis que as duas mulheres saíssem da janela, mas era esperar demais, e ambas continuaram a encará-lo.

           Então o guarda de motocicleta pareceu desistir das perguntas, pois, instantes depois, a moto se afastou rugindo.

           O som dos passos foi se distanciando. A fila de prisioneiros havia passado. Será que Lloyd estava livre?

           A marcha foi engatada com um estrondo e o caminhão começou a andar. Lloyd sentiu quando o veículo fez uma curva e ganhou velocidade. Permaneceu deitado, assustado demais para se mexer.

           Ficou olhando para o alto das construções pelas quais passavam, alerta para o caso de alguém o ver, embora não soubesse o que faria se isso acontecesse. A cada segundo distanciava-se mais dos guardas alemães, pensou, para encorajar a si mesmo.

           Para sua decepção, o caminhão logo parou. O motor foi desligado, a porta do motorista se abriu e logo tornou a se fechar com força. Então mais nada. Lloyd passou algum tempo deitado sem se mexer, mas o motorista não voltou.

           Olhou para o céu. O sol estava alto: devia passar do meio-dia. O motorista decerto estava almoçando.

           O problema era que, das janelas altas de ambos os lados da rua, Lloyd ainda podia ser visto. Se ficasse ali, mais cedo ou mais tarde iriam reparar nele. E, nesse caso, não havia como prever o que poderia acontecer.

           Viu uma cortina se mover num sótão e isso o fez tomar uma decisão.

           Ficou de pé e espiou por cima da lateral do caminhão. Um homem de terno andando pela calçada olhou para ele com ar de curiosidade, mas não parou.

           Lloyd deslizou até o chão pela lateral do caminhão. Viu que estava em frente a um bar e restaurante. O motorista devia ter entrado ali. Para seu horror, viu dois homens com o uniforme militar alemão sentados a uma mesa na janela, com copos de cerveja na mão. Por milagre, eles não olharam para Lloyd.

           Ele se afastou a passos rápidos.

           Enquanto prosseguia, ia olhando ao redor, atento. Todos por quem passava o encaravam: sabiam exatamente o que ele era. Uma mulher gritou e saiu correndo. Lloyd percebeu que precisava trocar a camisa e a calça cáqui por uma roupa mais francesa, e depressa.

           Um rapaz o segurou pelo braço.

           – Venha comigo – disse ele, em inglês, com um sotaque carregado. – Vou ajudá-lo a se esconder.

           O rapaz entrou por uma rua lateral. Lloyd não tinha por que confiar nele, mas precisava tomar uma decisão rápida, então o seguiu.

           – Por aqui – disse o rapaz, conduzindo Lloyd até uma pequena casa.

           Lá dentro, na cozinha com poucos móveis, estava uma mulher com um bebê. O rapaz se chamava Maurice, apresentou a mulher como sua esposa, Marcelle, e disse que a neném era Simone.

           Lloyd permitiu-se um instante de alívio cheio de gratidão. Tinha conseguido fugir dos alemães! Ainda corria perigo, mas estava fora da rua, numa casa amiga.

           O francês rígido e correto que Lloyd havia aprendido na escola e em Cambridge tornara-se mais coloquial durante sua fuga da Espanha e principalmente durante as duas semanas que ele passara colhendo uvas em Bordeaux.

           – Vocês são muito gentis – falou. – Obrigado.

           Claramente aliviado por não ter que falar inglês, Maurice respondeu em sua língua:

           – Imagino que queira comer alguma coisa.

           – Eu gostaria muito.

           Marcelle cortou rapidamente várias fatias de um pão de fôrma e as pôs em cima da mesa junto com um queijo redondo e uma garrafa de vinho sem rótulo. Lloyd sentou-se e começou a comer feito um esfomeado.

           – Vou lhe arranjar umas roupas velhas – disse Maurice. – Mas você também precisa tentar andar de outra forma. Estava dando passos largos e olhando em volta, tão alerta e interessado que poderia muito bem estar com uma placa pendurada no pescoço dizendo “Visitante da Inglaterra”. É melhor arrastar os pés e olhar sempre para o chão.

           Com a boca cheia, Lloyd respondeu:

           – Vou me lembrar disso.

           Na cozinha, havia uma pequena prateleira de livros que incluíam traduções em francês de Marx e Lenin. Ao reparar que Lloyd olhava para os livros, Maurice explicou:

           – Eu era comunista... antes do pacto entre Hitler e Stalin. Agora está tudo acabado. – Ele fez o gesto de cortar o ar com a mão. – Mesmo assim, precisamos derrotar o fascismo.

           – Eu lutei na Espanha – disse Lloyd. – Antes disso, acreditava numa frente unida de todos os partidos de esquerda. Mas agora não acredito mais.

           Simone começou a chorar. Marcelle põs um seio enorme para fora do vestido solto e começou a amamentar a neném. As francesas eram mais descontraídas em relação a isso do que as pudicas inglesas, recordou Lloyd.

           Quando Lloyd terminou de comer, Maurice o levou até o andar de cima. De um armário que continha poucas roupas, tirou um macacão azul-escuro, uma camisa azul-clara, uma cueca e um par de meias, todos usados porém limpos. A gentileza daquele homem visivelmente pobre deixou Lloyd emocionado, e ele não soube como agradecer.

           – Pode deixar suas roupas do Exército no chão – disse Maurice. – Depois eu as queimarei.

           Lloyd teria apreciado um banho, mas não havia banheiro na casa. Imaginou que ficasse no quintal dos fundos.

           Vestiu as roupas limpas e examinou seu reflexo num espelho pendurado na parede. O azul francês lhe caía melhor do que o cáqui militar, mas ele ainda parecia britânico.

           Tornou a descer para a cozinha.

           Marcelle estava pondo a neném para arrotar.

           – Chapéu – disse ela.

           Maurice lhe entregou uma boina azul-escura tipicamente francesa, e Lloyd a pôs na cabeça.

           O francês então lançou um olhar nervoso para suas botas militares de couro preto: apesar de empoeiradas, sua boa qualidade era indisfarçável.

           – Essas botas vão entregá-lo – falou.

           Lloyd não queria se desfazer delas. Tinha um longo caminho a percorrer a pé.

           – Será que conseguimos fazê-las parecer mais velhas? – indagou.

           Maurice pareceu descrente.

           – Como?

           – Tem uma faca afiada?

           O francês sacou do bolso um canivete.

           Lloyd tirou as botas. Abriu furos nos bicos, depois fez cortes nos tornozelos. Retirou os cadarços e tornou a colocá-los, tortos e frouxos. Agora pareciam sapatos de um vagabundo, mas ainda serviam bem e tinham solas grossas que durariam muitos quilômetros.

           – Para onde está indo? – perguntou Maurice.

           – Tenho duas alternativas – respondeu Lloyd. – Posso ir para o norte, até a costa, e tentar convencer um pescador a me deixar atravessar com ele o canal da Mancha. Ou posso ir para sudoeste e cruzar a fronteira com a Espanha. – A Espanha era um país neutro e ainda tinha consulados britânicos na maioria das cidades. – Conheço o caminho para lá... já o fiz duas vezes.

           – O canal da Mancha é bem mais perto que a Espanha – disse Maurice. – Mas acho que os alemães vão fechar todos os portos e ancoradouros.

           – Onde está o front agora?

           – Os alemães invadiram Paris.

           Lloyd ficou em choque por um instante. Paris já havia caído!

           – O governo francês se transferiu para Bordeaux – contou Maurice, dando de ombros. – Mas estamos derrotados. Nada pode salvar a França agora.

           – A Europa inteira vai ser fascista – disse Lloyd.

           – Menos a Grã-Bretanha. Então você tem que ir para casa.

           Lloyd refletiu um pouco. Norte ou sudoeste? Não conseguia decidir qual das duas opções seria melhor.

           – Eu tenho um amigo, ex-comunista, que vende ração para criadores de gado – disse Maurice. – Sei que ele tem uma entrega hoje à tarde num lugar a sudoeste daqui. Se resolver ir para a Espanha, ele pode levá-lo por uns trinta quilômetros.

           Isso ajudou Lloyd a se decidir.

           – Vou com ele.

 

           Daisy enfrentara uma longa jornada que a fizera andar em círculo e, no fim, a levara ao mesmo lugar.

           Quando Lloyd fora mandado para a França, ela ficara com o coração partido. Tinha perdido a chance de lhe dizer que o amava – nem sequer o havia beijado!

           E talvez nunca mais houvesse outra oportunidade. Ele tinha sido dado como desaparecido em combate depois de Dunquerque. Isso significava que seu corpo não tinha sido encontrado e identificado, mas ele tampouco estava registrado como prisioneiro de guerra. O mais provável era que estivesse morto, destroçado por uma bomba em pedaços impossíveis de identificar, ou talvez enterrado sob os escombros de alguma casa destruída, sem que ninguém soubesse. Daisy chorou por muitos dias.

           Passou outro mês perambulando por Tŷ Gwyn, esperando ter mais notícias, porém não soube de mais nada. Então começou a se sentir culpada. Havia muitas mulheres na mesma situação que ela, ou pior. Algumas precisavam enfrentar a possibilidade de criar dois ou três filhos sem um homem para sustentar a família. Ela não tinha o direito de sentir pena de si mesma só porque o homem com quem pretendia ter um caso extraconjugal havia desaparecido.

           Precisava assumir novamente o controle de sua vida e fazer algo positivo. Estava claro que o destino não quisera que ela e Lloyd ficassem juntos. Ela já tinha um marido, e ele arriscava a vida todos os dias. Seu dever era cuidar de Boy, disse a si mesma.

           Voltou para Londres. Levando em conta o número reduzido de criados, reabriu a casa de Mayfair da melhor maneira que pôde e a transformou num lar agradável para Boy visitar quando estivesse de licença.

           Precisava esquecer Lloyd e ser uma boa esposa. Quem sabe até engravidasse de novo.

           Muitas mulheres se juntaram ao esforço de guerra, alistando-se no Corpo Auxiliar Feminino da Real Força Aérea ou indo trabalhar na agricultura com o Exército Territorial Feminino. Outras colaboravam no Serviço Voluntário Feminino para a Precaução contra Ataques Aéreos. Mas não havia trabalho suficiente para a maioria dessas mulheres, e o The Times publicou cartas ao editor reclamando que a precaução contra ataques aéreos era um desperdício de dinheiro.

           A guerra no continente parecia ter chegado ao fim. A Alemanha vencera. A Europa agora era fascista da Polônia à Sicília, e da Hungria a Portugal. Não havia mais combates em lugar algum. Segundo os boatos, o governo britânico estava negociando a paz.

           Mas Churchill não assinou paz nenhuma com Hitler e, no verão desse ano, teve início a batalha da Grã-Bretanha.

           No início, os civis não foram muito afetados. Os sinos das igrejas pararam de tocar, e suas badaladas foram reservadas para anunciar a esperada invasão alemã. Daisy seguiu as instruções do governo e pôs baldes de areia e água em todos os patamares das escadas de casa, para combater possíveis incêndios, mas não precisou usá-los. Esperando conseguir interromper as linhas de abastecimento britânicas, a Luftwaffe bombardeou os portos. Depois começou a atacar bases aéreas para tentar destruir a Real Força Aérea. Boy pilotava um Spitfire e enfrentava aviões inimigos em batalhas assistidas por agricultores boquiabertos de regiões como Kent e Sussex. Numa das raras cartas que mandou para casa, informou com orgulho ter abatido três aeronaves alemãs. Passou muitas semanas sem tirar licença, e Daisy ficava sozinha na casa repleta de flores para o marido.

           Por fim, na manhã de sábado, 7 de setembro, Boy apareceu em uma licença de fim de semana. O tempo estava esplendoroso, quente e ensolarado; era o que as pessoas costumavam chamar de “veranico”, um último suspiro de calor antes do outono.

           Por coincidência, foi também o dia em que a Luftwaffe mudou de tática.

           Daisy recebeu o marido com um beijo e certificou-se de que havia camisas limpas e cuecas lavadas nas gavetas de seu quarto de vestir.

           Pelo que as outras mulheres diziam, achava que combatentes de licença desejavam sexo, álcool e comida decente, nessa ordem.

           Boy e ela não dormiam juntos desde o aborto. Aquela seria a primeira vez. Sentiu-se culpada por não estar muito animada com essa perspectiva. Mas com certeza não iria se recusar a cumprir seu dever.

           Quase esperava que ele a jogasse na cama assim que chegasse, mas Boy não estava tão desesperado assim. Tirou o uniforme, tomou banho, lavou os cabelos e tornou a se vestir, dessa vez com um terno de civil. Daisy instruiu a cozinheira a não poupar cupons de racionamento para preparar um bom almoço, e Boy trouxe da adega uma de suas mais antigas garrafas de vinho tinto.

           Ela ficou surpresa e magoada quando, depois de comer, ele disse:

           – Vou sair por algumas horas. Volto para o jantar.

           Ela queria ser uma boa esposa, mas não passiva.

           – Mas esta é a sua primeira licença em meses! – protestou. – Aonde você vai?

           – Vou ver um cavalo.

           Ela não via problema naquilo.

           – Ah, tudo bem... vou com você.

           – Não, não venha. Se eu aparecer com uma mulher a tiracolo, eles vão achar que sou um banana e aumentarão o preço.

           Ela não conseguiu esconder a decepção.

           – Sempre sonhei que faríamos isto juntos... Comprar e criar cavalos de corrida.

           – Na verdade, esse não é um universo feminino.

           – Ah, até parece! – exclamou ela, indignada. – Sei tanto sobre cavalos quanto você.

           Ele fez cara de irritado.

           – Talvez saiba, mas mesmo assim não quero você por perto quando estiver negociando com esses salafrários... assunto encerrado.

           Ela cedeu.

           – Como preferir – falou, e saiu da sala de jantar.

           Seu instinto lhe dizia que ele estava mentindo. Combatentes em licença não pensavam em comprar cavalos. Pretendia descobrir o que ele estava tramando. Até mesmo os heróis tinham de ser fiéis às esposas.

           No quarto, vestiu uma calça comprida e calçou um par de botas. Quando Boy desceu a grande escadaria que conduzia à porta da frente, ela desceu correndo a dos fundos, passou pela cozinha, atravessou o quintal e entrou nos estábulos desativados. Ali, vestiu uma jaqueta de couro, pôs óculos de motociclista e um capacete. Abriu a porta da garagem que dava para o beco atrás da casa e saiu empurrando sua moto, uma Triumph Tiger 100, assim batizada porque sua velocidade máxima era de 100 milhas – 160 quilômetros – por hora. Pisou no pedal para dar a partida no motor e saiu do beco sem nenhuma dificuldade.

           Tinha começado a andar de moto após o início do racionamento de gasolina, em setembro de 1939. Era como andar de bicicleta, só que mais fácil. Adorava a liberdade e a independência que aquele meio de transporte lhe proporcionava.

           Chegou à rua bem a tempo de ver o Bentley Airline creme de Boy desaparecer na esquina seguinte.

           Ela o seguiu.

           Ele passou pela Trafalgar Square e pelo bairro dos teatros. Daisy se manteve a uma distância discreta, pois não queria despertar suspeitas. Ainda havia bastante tráfego na região central de Londres, percorrida por centenas de carros em missão oficial. Além disso, o racionamento de gasolina para veículos particulares não era tão severo, principalmente para quem quisesse apenas passear pela cidade.

           Boy continuou na direção leste, passando pelo bairro financeiro. O tráfego ali estava leve naquele sábado à tarde, e Daisy ficou mais preocupada que ele notasse sua presença. No entanto, não era fácil reconhecê-la com os óculos e o capacete. Além do mais, Boy prestava pouca atenção ao que acontecia à sua volta: com a janela aberta, dirigia fumando um charuto.

           Ele chegou a Aldgate, e Daisy teve o terrível pressentimento de que sabia por que ele estava ali.

           Boy entrou com o carro numa das ruas menos pobres do East End e estacionou em frente a uma agradável residência do século XVIII. Nenhum estábulo à vista: aquele não era um local de compra e venda de cavalos de corrida. Ele havia mentido.

           Daisy parou a moto no final da rua e ficou observando. Boy desceu do carro e bateu a porta. Não olhou em volta nem verificou os números das casas. Claro que já estivera ali antes e sabia exatamente aonde ir. Andando de modo descontraído, o charuto na boca, ele foi até a porta da frente e a abriu com uma chave.

           Daisy teve vontade de chorar.

           Boy desapareceu dentro da casa.

           Em algum lugar a leste dali, ouviu-se uma explosão.

           Daisy olhou naquela direção e viu aviões no céu. Será que os alemães tinham escolhido justo esse dia para começar a bombardear Londres?

           Ela não se importava. Não iria deixar Boy saborear sua infidelidade em paz. Aproximou-se da casa e estacionou a moto atrás do carro dele. Tirou o capacete e os óculos, marchou decidida até a porta e bateu.

           Ouviu uma nova explosão, dessa vez mais perto; então as sirenes de ataque aéreo iniciaram sua triste cantilena.

           A porta se entreabriu e Daisy a empurrou com força. Uma jovem usando um vestido preto de criada gritou e cambaleou para trás. Daisy entrou batendo a porta atrás de si. Viu-se no hall de uma típica casa de classe média londrina, só que decorada em um estilo exótico, com tapetes orientais, cortinas pesadas e um quadro retratando mulheres nuas numa casa de banhos.

           Abriu a porta mais próxima e entrou na antessala. O ambiente estava fracamente iluminado, pois as cortinas de veludo não deixavam entrar a luz do sol. Havia três pessoas ali. De pé, encarando-a com uma expressão chocada, estava uma mulher de mais ou menos 40 anos vestida com um roupão de seda frouxo, cuidadosamente maquiada com um batom vermelho – a mãe, supôs Daisy. Atrás dela, sentada num sofá, uma adolescente de seus 16 anos só de roupa de baixo e meias fumava um cigarro. Boy estava sentado ao lado da menina, com a mão sobre sua coxa, acima do ponto em que a meia acabava. Ao ver Daisy, ele retirou a mão, culpado. Era um gesto absurdo, como se aquilo pudesse dar à cena um ar inocente.

           Daisy se esforçou para conter as lágrimas.

           – Você me prometeu que não iria mais vê-las! – falou.

           Queria se mostrar fria e zangada, como um anjo vingador, mas sua voz soava apenas magoada e triste.

           Boy enrubesceu e seu rosto adquiriu uma expressão de pânico.

           – Que diabo você está fazendo aqui?

           – Porra, é a esposa dele – exclamou a mulher mais velha.

           O nome dela era Pearl, lembrou Daisy, e a filha se chamava Joanie. Que coisa horrível ela saber o nome de mulheres assim.

           A criada apareceu na porta da sala e disse:

           – Eu não deixei essa piranha entrar, ela simplesmente me empurrou e foi passando!

           – Eu me esforcei tanto para deixar a nossa casa bonita e aconchegante... mas você prefere isto aqui! – gritou Daisy para Boy.

           Ele começou a dizer alguma coisa, mas não conseguiu encontrar as palavras. Passou um ou dois segundos balbuciando coisas incoerentes. Então uma forte explosão ali perto fez o chão estremecer e chacoalhou as janelas.

           – Vocês estão surdos? – gritou a criada. – É um ataque aéreo! – Ninguém lhe deu atenção. – Vou para o porão – disse ela, e desapareceu.

           Eles todos precisavam buscar abrigo. Mas Daisy tinha algo a dizer a Boy antes de sair.

           – Não volte para a minha cama nunca mais. Eu me recuso a ser contaminada.

           A adolescente no sofá, Joanie, falou:

           – É só um pouco de diversão, querida. Por que não se junta a nós? Talvez você até goste.

           Pearl, a mais velha, olhou Daisy de cima a baixo.

           – Ela até que tem um corpo bonito.

           Daisy percebeu que aquelas duas iriam humilhá-la ainda mais se ela permitisse. Ignorando-as, dirigiu-se a Boy:

           – Você fez sua escolha. E eu tomei minha decisão. – Apesar de estar se sentindo aviltada e rejeitada, saiu da sala de cabeça erguida.

           – Droga, que confusão – disse Boy.

           Confusão?, pensou Daisy. Só isso?

           Ela saiu pela porta da frente.

           Foi então que olhou para cima.

           O céu estava repleto de aviões.

           A visão a deixou trêmula de pavor. Os aviões voavam alto, a uns três mil metros de altitude, e pareciam obscurecer o sol. Eram centenas, entre grandes bombardeiros e caças esguios, uma frota que parecia ter uns trinta quilômetros de extensão. A leste, na direção das docas e do arsenal de Woolwich, colunas de fumaça subiam do chão onde as bombas caíam. As explosões se sucediam, formando um rugido contínuo feito as ondas de um mar revolto.

           Daisy lembrou que Hitler fizera um discurso no Parlamento alemão, na quarta-feira anterior, protestando contra a crueldade dos bombardeios da Real Força Aérea a Berlim e ameaçando devastar cidades britânicas em retaliação. Aparentemente, ele tinha falado sério. Eles pretendiam arrasar Londres.

           Aquele já era o pior dia da vida de Daisy. Então ela percebeu que talvez fosse o último.

           Mas não se sentia capaz de voltar àquela casa e dividir com eles o mesmo abrigo no porão. Tinha que sair dali. Precisava estar em casa, onde poderia chorar em paz.

           Pôs o capacete e os óculos às pressas. Resistiu a um impulso irracional mas poderoso de jogar-se atrás do muro mais próximo. Pulou na moto e foi embora.

           Não chegou muito longe.

           A duas ruas dali, bem na sua frente, uma bomba caiu sobre uma casa, e ela freou de repente. Viu o rombo no telhado, sentiu o baque da explosão e, segundos depois, vislumbrou as chamas lá dentro, como se o querosene de um aquecedor tivesse vazado e se inflamado. Após alguns instantes, uma menina de uns 12 anos saiu correndo da casa, com os cabelos em chamas, e veio direto para cima de Daisy.

           Ela saltou da moto, tirou a jaqueta de couro e a usou para cobrir a cabeça da menina, enrolando-a bem apertado em volta dos cabelos para cortar o oxigênio das chamas.

           Os gritos cessaram. Daisy retirou a jaqueta. A menina soluçava. Não sentia mais dor, só que estava careca.

           Daisy olhou para os dois lados da rua. Um homem de capacete de aço e braçadeira da ARP – Air Raid Precautions, Precaução contra Ataques Aéreos – chegou correndo, carregando uma caixa de metal com uma cruz de primeiros socorros pintada na lateral.

           A menina olhou para Daisy, abriu a boca e gritou:

           – Minha mãe está lá dentro!

           – Calma, meu bem, vamos dar uma olhada em você – disse o homem da ARP.

           Daisy deixou a menina com ele e correu até a porta da frente. Aquilo lhe pareceu uma velha casa dividida em apartamentos baratos. Os de cima estavam em chamas, mas ela conseguiu entrar no hall. Teve um palpite, correu até os fundos e chegou a uma cozinha. Ali, encontrou uma mulher inconsciente no chão e uma criança pequena dentro de um berço. Pegou a menina e correu para a rua outra vez.

           A garota de cabelos queimados gritou:

           – É minha irmã!

           Daisy pôs a criança nos braços da menina e tornou a entrar às pressas.

           A mulher desacordada era pesada demais para que Daisy a carregasse. Ela se posicionou atrás da mulher, a pôs sentada, segurou-a pelas axilas e a arrastou pelo chão da cozinha e pelo corredor até a rua.

           Uma ambulância havia chegado: um sedã adaptado, cuja parte posterior da lataria fora substituída por uma tenda de lona aberta na traseira. O homem da ARP ajudava a menina queimada a entrar no carro. O motorista veio correndo até Daisy e a ajudou a pôr a mãe na ambulância.

           – Tem mais alguém lá dentro? – perguntou o motorista a Daisy.

           – Não sei!

           Ele correu para o hall de entrada. Nesse momento, o prédio inteiro desabou. Os andares superiores que estavam pegando fogo desmoronaram. O motorista da ambulância desapareceu dentro daquele inferno de chamas.

           Daisy se ouviu gritar.

           Cobriu a boca com a mão e ficou encarando o fogo, à procura do motorista, embora não pudesse tê-lo ajudado, e tentar fosse suicídio.

           – Ah, meu Deus, Alf está morto – disse o voluntário da ARP.

           Outra explosão soou quando uma bomba caiu cerca de cem metros adiante na rua.

           – Não tenho mais motorista e não posso sair daqui – disse o homem.

           Ele olhou para os dois lados da rua. Havia pequenas aglomerações de pessoas reunidas diante de algumas das casas, mas a maioria dos moradores devia estar nos abrigos.

           – Eu posso dirigir – disse Daisy. – Para onde?

           – Você sabe dirigir?

           A maioria das britânicas não sabia dirigir: naquele país, isso ainda era coisa de homem.

           – Não faça perguntas idiotas – retrucou Daisy. – Para onde devo levar a ambulância?

           – Para o St. Bart’s. Sabe onde fica?

           – Claro. – O Hospital St. Bartholomew’s era um dos maiores da cidade e Daisy já morava em Londres havia quatro anos. – West Smithfield – acrescentou, para provar a ele que sabia.

           – O pronto-socorro fica nos fundos.

           – Pode deixar que eu encontro.

           Ela entrou no carro. O motor ainda estava ligado.

           – Qual é o seu nome? – gritou o voluntário.

           – Daisy Fitzherbert. E o seu?

           – Nobby Clarke. Cuidado com a minha ambulância.

           O carro tinha um câmbio manual padrão. Daisy engatou a primeira e partiu.

           Os aviões continuavam a rugir no céu e as bombas caíam sem piedade. Daisy estava desesperada para levar as duas feridas até o hospital. Embora o St. Bart’s ficasse a menos de dois quilômetros dali, o trajeto foi muito difícil. Ela passou pela Leadenhall Street, Poultry e Cheapside, mas várias vezes encontrou as ruas fechadas e teve que dar ré e seguir por outro caminho. Parecia haver pelo menos uma casa destruída em cada rua. Por toda parte viam-se fumaça e destroços, pessoas feridas e chorando.

           Com grande alívio, ela chegou ao hospital e seguiu outra ambulância até a entrada do pronto-socorro. A atividade ali era frenética: uma dezena de veículos entregava pacientes mutilados e queimados a carregadores apressados usando aventais sujos de sangue. Talvez eu tenha salvado a mãe dessas meninas, pensou Daisy. Não sou totalmente inútil, mesmo que meu marido não me queira.

           A menina sem cabelos continuava com a irmãzinha no colo. Daisy ajudou as duas a descer da ambulância.

           Uma enfermeira auxiliou Daisy a erguer a mãe desacordada e levá-la para dentro, mas dava para ver que a mulher tinha parado de respirar.

           – Aquelas duas são filhas dela! – disse à enfermeira. Detectou um leve tom de histeria na própria voz. – O que vai acontecer agora?

           – Deixe que eu cuido disso – respondeu a enfermeira depressa. – Você tem que voltar lá.

           – Tenho? – indagou Daisy.

           – É melhor se recompor – disse a enfermeira. – Haverá muitos outros mortos e feridos até o fim da noite.

           – Está bem – disse Daisy.

           Então sentou-se outra vez ao volante da ambulância e foi embora do hospital.

 

           Numa tarde quente do mês de outubro, Lloyd Williams chegou à ensolarada cidade francesa de Perpignan, a pouco mais de trinta quilômetros da fronteira espanhola.

           Passara todo o mês de setembro na região de Bordeaux, colhendo uvas para a fabricação do vinho, como fizera no terrível ano de 1937. Agora tinha dinheiro para tomar ônibus e bondes, e podia comer em restaurantes baratos, em vez de sobreviver à custa de legumes e verduras ainda verdes desenterrados de hortas alheias ou de ovos crus roubados de galinheiros. Estava voltando pelo mesmo caminho que usara para sair da Espanha três anos antes. Descera de Bordeaux rumo ao sul, passando por Toulouse e Béziers, às vezes a bordo de trens de carga, mas na maior parte do tempo de carona com caminhoneiros.

           Estava num café de beira de estrada na principal via que seguia para sudoeste, de Perpignan até a fronteira com a Espanha. Ainda vestido com o macacão azul e a boina de Maurice, levava uma pequena bolsa de lona contendo uma colher de pedreiro enferrujada e um nível sujo de cimento, provas de que era um pedreiro espanhol voltando para casa. Que Deus não permitisse que alguém lhe oferecesse trabalho: ele não tinha a menor ideia de como se erguia uma parede.

           Estava preocupado pensando em como iria encontrar o caminho pelas montanhas. Três meses antes, na Picardia, acreditara levianamente que conseguiria achar a rota dos Pireneus pela qual seus guias o haviam conduzido em 1936, a caminho da Espanha. Um ano depois, havia percorrido partes da mesma rota no sentido contrário. No entanto, à medida que os picos roxos e desfiladeiros verdejantes iam surgindo no horizonte distante, isso lhe parecia mais complicado. Imaginava que cada passo da viagem fosse estar gravado em sua memória, mas, quando tentava se lembrar de caminhos, pontes ou encruzilhadas específicas, constatava, furioso, que as imagens eram difusas e os detalhes lhe escapavam.

           Terminou de almoçar – um ensopado de peixe picante –, e então abordou em voz baixa um grupo de motoristas sentado à mesa ao seu lado.

           – Preciso de uma carona até Cerbère. – Esse era o último vilarejo antes da fronteira com a Espanha. – Algum de vocês está indo para lá?

           Provavelmente todos seguiam naquela direção: era o único motivo para estarem ali, naquela estrada para sudoeste. Apesar disso, os homens hesitaram. Aquilo era a França de Vichy, tecnicamente uma área independente, mas que, na prática, era submetida ao jugo dos nazistas que ocupavam a metade norte do país. Ninguém estava muito ansioso para ajudar um viajante desconhecido com sotaque estrangeiro.

           – Eu sou pedreiro – disse ele, erguendo a bolsa de lona. – Estou voltando para casa, na Espanha. Meu nome é Leandro.

           Um gordo de camiseta falou:

           – Posso levá-lo até a metade do caminho.

           – Obrigado.

           – Está pronto?

           – Claro.

           Os dois saíram do restaurante e embarcaram numa caminhonete Renault muito suja com o nome de uma loja de material elétrico escrito na lateral. Quando estavam indo embora, o motorista perguntou a Lloyd se ele era casado. Seguiu-se um interrogatório desagradável, de cunho pessoal, e Lloyd percebeu que o condutor tinha fascínio pela vida sexual dos outros. Sem dúvida era por isso que aceitara dar carona a Lloyd: a viagem lhe proporcionava uma oportunidade para fazer perguntas invasivas. Vários dos homens com quem Lloyd pegara carona tinham algum motivo escuso desse tipo.

           – Eu sou virgem – disse-lhe Lloyd, o que era verdade.

           No entanto isso só lhe rendeu mais uma série de perguntas sobre carícias trocadas com meninas no colégio. Nessa área Lloyd tinha uma experiência considerável, mas não iria compartilhá-la. Tentando não ser grosseiro, recusou-se a dar detalhes, e o motorista acabou desistindo.

           – Vou ter que virar aqui – disse ele, parando o veículo.

           Lloyd lhe agradeceu a carona e seguiu a pé.

           Havia aprendido a não marchar como um soldado, e desenvolvera o que pensava ser um andar arrastado de camponês razoavelmente convincente. Nunca levava um jornal ou um livro. Seus cabelos tinham enfim sido cortados por um barbeiro incompetente no bairro mais pobre de Toulouse. Ele se barbeava cerca de uma vez por semana, então quase sempre exibia uma barba por fazer, algo espantosamente eficaz para lhe dar o aspecto de um zé-ninguém. Parara de tomar banho e havia adquirido um cheiro forte que fazia as pessoas relutarem em falar com ele.

           Fosse na França ou na Espanha, quase ninguém da classe trabalhadora tinha relógio de pulso, de modo que precisara se desfazer do relógio de aço com mostrador quadrado que Bernie lhe dera de presente de formatura. Não pudera dá-lo de presente a nenhum dos muitos franceses que o haviam ajudado, pois um relógio britânico também os teria comprometido. Por fim, com grande pesar, o jogara num lago.

           Seu principal ponto fraco era não ter documentos de identidade.

           Tentara comprar os documentos de um homem vagamente parecido com ele e planejara roubar outros dois, mas as pessoas andavam cautelosas em relação a isso nos últimos tempos, o que não era de espantar. Sua estratégia, portanto, era evitar situações em que fosse obrigado a se identificar. Tentava passar despercebido. Sempre que podia, andava pelos campos em vez de usar as estradas, e nunca viajava em trens de passageiros, pois muitas vezes havia postos de controle nas estações. Até agora, tivera sorte. O policial de um vilarejo tinha lhe pedido os documentos, mas, quando ele explicara que havia sido roubado depois de tomar um porre e apagar num bar de Marselha, o policial acreditara na história e o mandara seguir seu caminho.

           Nesse dia, porém, a sorte o abandonou.

           Ele atravessava uma região agrícola pobre. Estava no sopé dos Pireneus, perto do mar Mediterrâneo, e o terreno era arenoso. A estrada poeirenta passava por aldeias de casas miseráveis. A paisagem era pouco povoada. À sua esquerda, em meio às colinas, despontavam pedacinhos azuis do mar distante.

           A última coisa que ele esperava era o Citroën verde que encostou ao seu lado com três gendarmes dentro.

           Tudo aconteceu muito de repente. Ele ouviu o carro se aproximar – o único que ouvira desde que o motorista o mandara descer. Continuou arrastando os pés, como um trabalhador cansado a caminho de casa. A estrada era ladeada por campos secos, cobertos por uma vegetação esparsa e árvores finas. Quando o carro parou, por um segundo ele cogitou tentar sair correndo pelos campos. Desistiu ao ver as pistolas no coldre dos dois policiais que saltaram. Eles provavelmente atiravam mal, mas poderiam ter sorte. Lloyd tinha mais chances de conseguir se safar na conversa. Aqueles eram policiais da zona rural, mais simpáticos do que os irredutíveis gendarmes urbanos franceses.

           – Documentos – pediu o policial que estava mais próximo dele.

           Lloyd abriu os braços, num gesto de impotência.

           – Monsieur, infelizmente meus documentos foram roubados em Marselha. Meu nome é Leandro, sou um pedreiro espanhol e estou voltando para...

           – Entre no carro.

           Lloyd hesitou, mas era inútil. Suas chances de escapar eram menores do que nunca.

           Um dos policiais o segurou com força pelo braço, empurrou-o para o banco traseiro e entrou no carro ao seu lado.

           Lloyd ficou desconsolado quando o Citroën começou a andar.

           O gendarme ao seu lado perguntou:

           – Você é inglês ou o quê?

           – Sou um pedreiro espanhol. Meu nome é...

           O policial fez um gesto casual com a mão e disse:

           – Nem precisa se dar o trabalho.

           Lloyd viu que tinha sido extremamente otimista. Um estrangeiro sem documentos a caminho da fronteira espanhola: eles apenas partiam do princípio de que ele era um soldado britânico foragido. Se ainda tivessem alguma dúvida, encontrariam a prova se o mandassem tirar a roupa, pois veriam a plaquinha de identificação em volta de seu pescoço. Ele não a tinha jogado fora porque, sem ela, seria automaticamente fuzilado como espião.

           E agora estava preso num carro com três homens armados, e a probabilidade de encontrar um jeito de escapar era nula.

           Foram em frente, na mesma direção em que ele seguia, enquanto o sol descia sobre as montanhas à sua direita. Não havia nenhuma cidade grande dali até a fronteira, então ele imaginou que os policiais pretendiam levá-lo para passar a noite na cadeia de algum vilarejo. Talvez ele conseguisse fugir de lá. Caso contrário, seria levado de volta a Perpignan no dia seguinte e entregue à polícia da cidade. E depois? Será que ele seria interrogado? Essa perspectiva o fez gelar de medo. A polícia francesa iria espancá-lo, os alemães iriam torturá-lo. Se ele sobrevivesse, acabaria indo parar num campo de prisioneiros de guerra, onde ficaria até o final do conflito ou até morrer de desnutrição. E estava a apenas alguns quilômetros da fronteira!

           Chegaram a uma cidadezinha. Será que ele conseguiria escapar entre o carro e a cadeia? Não foi capaz de bolar nenhum plano: não conhecia o terreno. Não havia nada que pudesse fazer a não ser permanecer alerta e aproveitar qualquer oportunidade que surgisse.

           Saíram da rua principal e entraram num beco atrás de uma fileira de lojas. Será que iriam matá-lo a tiros e deixar seu corpo ali?

           O carro parou nos fundos de um restaurante. O quintal estava coalhado de caixas e latas gigantescas. Por uma janelinha, Lloyd pôde ver uma cozinha bem-iluminada.

           O policial que estava no banco do carona desceu do carro, em seguida abriu a porta de Lloyd, do lado mais próximo ao restaurante. Seria aquela a sua chance? Teria que dar a volta no carro e sair correndo do beco. Já estava meio escuro: depois dos primeiros metros, não seria mais um alvo fácil.

           O policial estendeu a mão para dentro do carro, segurou o braço de Lloyd e não o soltou enquanto ele descia e ficava de pé. Seu colega saltou imediatamente depois de Lloyd. A oportunidade não fora boa o suficiente.

           Mas por que eles o haviam levado até lá?

           Foi conduzido para dentro da cozinha do restaurante. Um chef batia ovos numa tigela, enquanto um adolescente lavava louça numa pia grande. Um dos policiais falou:

           – Ele é inglês. Disse que se chama Leandro.

           Sem parar o que estava fazendo, o chef levantou a cabeça e gritou:

           – Teresa! Venha cá!

           Lloyd se lembrou de outra Teresa, uma linda anarquista espanhola que ensinava os soldados a ler e escrever.

           A porta da cozinha se abriu de par em par, e a própria adentrou a cozinha.

           Atônito, Lloyd ficou encarando a mulher. Não havia nenhuma dúvida: apesar de ela estar usando touca e avental brancos de garçonete, ele nunca esqueceria aqueles olhos grandes e aqueles cabelos pretos e cheios.

           No início, Teresa não olhou para ele. Pôs uma pilha de pratos sobre a bancada junto ao jovem que lavava louça, depois virou-se para os policiais com um sorriso e beijou cada um deles nas bochechas, dizendo:

           – Pierre! Michel! Como vão? – Então virou-se para Lloyd, encarou-o e falou em espanhol: – Não... não é possível! Lloyd... É você mesmo?

           Tudo o que ele conseguiu fazer foi menear a cabeça como um bobo.

           Ela o abraçou, apertando-o com força, e o beijou nas bochechas.

           – Pronto – disse um dos policiais. – Tudo certo. Temos que ir. Boa sorte! – Ele entregou a Lloyd sua bolsa de lona e os dois foram embora.

           Lloyd finalmente recuperou a fala.

           – O que está acontecendo? – perguntou a Teresa em espanhol. – Pensei que estivessem me levando para a cadeia!

           – Eles odeiam os nazistas, por isso nos ajudam – disse ela.

           – Nos ajudam?

           – Depois eu explico. Venha comigo. – Ela abriu uma porta que dava para uma escada e o conduziu até o andar de cima, onde havia um quarto parcamente mobiliado. – Espere aqui. Vou trazer alguma coisa para você comer.

           Lloyd se deitou na cama e ficou pensando na sua sorte extraordinária. Cinco minutos antes, imaginava que fosse enfrentar a tortura e a morte. Agora esperava que uma linda mulher lhe trouxesse o jantar.

           E tudo poderia mudar de novo a qualquer instante, pensou.

           Teresa voltou meia hora depois, com uma omelete e batatas fritas num prato rústico.

           – Tivemos muito movimento, mas vamos fechar daqui a pouco – disse ela. – Volto em alguns minutos.

           Ele comeu depressa.

           A noite caiu. Lloyd ouviu o burburinho dos clientes indo embora e os ruídos das panelas sendo guardadas. Então Teresa tornou a aparecer com uma garrafa de vinho tinto e dois copos.

           Lloyd lhe perguntou o que a fizera deixar a Espanha.

           – Nosso povo está sendo assassinado em massa – respondeu ela. – Para aqueles que os franquistas não matam, existe a Lei de Responsabilidade Política, que torna criminoso qualquer um que tenha apoiado o governo. Mesmo quem apenas se opôs a Franco por uma “passividade circunspecta” pode perder todos os bens. Só é inocente quem conseguir provar que o apoiou.

           Lloyd pensou com amargura na garantia que Chamberlain dera à Câmara dos Comuns, em março, de que Franco havia cessado as represálias políticas. Que mentiroso cruel era Chamberlain.

           – Muitos dos nossos camaradas ainda estão detidos em terríveis campos de prisioneiros – continuou Teresa.

           – Você tem alguma ideia do que aconteceu com meu amigo, o sargento Lenny Griffiths?

           Teresa fez que não com a cabeça.

           – Nunca mais o vi depois de Belchite.

           – E você...?

           – Fugi dos franquistas, vim para cá, arrumei este emprego de garçonete... e descobri que havia outro trabalho que podia fazer.

           – Qual?

           – Estou ajudando soldados a fugir pelas montanhas. Foi por isso que os policiais trouxeram você até mim.

           Lloyd ficou mais animado. Vinha planejando atravessar as montanhas sozinho, e não tinha certeza se encontraria o caminho. Agora talvez fosse ter uma guia.

           – Já tenho dois outros esperando – continuou ela. – Um artilheiro britânico e um piloto canadense. Estão numa fazenda nas montanhas.

           – E quando pretendem fazer a travessia?

           – Hoje à noite – respondeu ela. – Não exagere no vinho.

           Teresa saiu e voltou meia hora mais tarde, trazendo um sobretudo marrom velho e rasgado para ele vestir.

           – Faz frio no lugar aonde vamos – explicou.

           Os dois saíram de fininho pela porta da cozinha e atravessaram a pequena cidade sob a luz do luar. Deixaram as casas para trás e começaram a seguir uma trilha de terra batida que subia a colina num aclive regular. Uma hora depois, chegaram a um pequeno grupo de construções de pedra. Teresa assobiou, depois abriu a porta de um celeiro, e dois homens saíram lá de dentro.

           – Nós sempre usamos nomes falsos – disse ela, em inglês. – O meu é Maria, e estes são Fred e Tom. Nosso novo amigo se chama Leandro. – Os homens se cumprimentaram com apertos de mãos. – É proibido falar, é proibido fumar, e quem ficar para trás será deixado – prosseguiu ela. – Todos prontos?

           A partir dali, o caminho ficou mais íngreme. Lloyd viu-se escorregando em pedras. De vez em quando, agarrava-se a algum arbusto de urze franzino ao lado da trilha e usava-o para facilitar a subida. A pequenina Teresa não demorou a impor um ritmo que deixou os três homens ofegantes. Ela carregava uma lanterna, mas não quis usá-la enquanto as estrelas estivessem brilhando, dizendo que precisava poupar a pilha.

           O ar esfriou. Eles atravessaram um riacho gelado, e depois disso os pés de Lloyd não voltaram mais a se aquecer.

           Uma hora mais tarde, Teresa disse:

           – Tenham o cuidado de se manter no meio da trilha neste trecho.

           Lloyd olhou para baixo e percebeu que estava andando sobre um cume entre duas encostas íngremes. Ao ver de que altura poderia cair, ficou tonto, e imediatamente ergueu os olhos e fixou-os à frente, em Teresa, cuja silhueta se movia depressa. Em circunstâncias normais, teria saboreado cada instante daquela caminhada atrás de um corpo como o dela, mas agora estava tão cansado que não tinha energia nem para devorá-la com os olhos.

           As montanhas não eram totalmente desabitadas. Em determinado momento, um cão ladrou; em outro, ouviram um distante tilintar de sinetas que deixou os homens assustados, até Teresa lhes explicar que os pastores penduravam sinetas nas ovelhas para encontrar seus rebanhos.

           Lloyd pensou em Daisy. Será que ela ainda estava em Tŷ Gwyn? Ou teria voltado para o marido? Torceu para que ela não tivesse ido para Londres. Segundo os jornais franceses, a capital britânica estava sendo bombardeada todas as noites. Será que ela estava viva ou morta? Será que algum dia tornaria a vê-la? E, se visse, o que ela sentiria por ele?

           O grupo parava a cada duas horas para descansar, beber água e tomar alguns goles de uma garrafa de vinho que Teresa trouxera.

           Por volta do raiar do dia, começou a chover. Assim que ficou molhada, a terra sob seus pés tornou-se traiçoeira e todos passaram a tropeçar e a escorregar, mas Teresa não diminuiu o ritmo.

           – Agradeçam por não estar nevando – disse ela.

           A luz do dia revelou uma paisagem de vegetação esparsa, na qual as pedras despontavam como lápides. Ainda chovia, e uma névoa fria escondia o horizonte.

           Depois de algum tempo, Lloyd sentiu que estavam descendo.

           – Já estamos na Espanha – anunciou Teresa na parada seguinte.

           Lloyd deveria ficar aliviado, mas tudo o que conseguia sentir era exaustão.

           Aos poucos, a paisagem foi ficando mais suave, e as pedras deram lugar a capim grosso e arbustos.

           De repente, Teresa se jogou no chão e ficou deitada.

           Os três homens a imitaram imediatamente, sem precisar de aviso. Lloyd acompanhou o olhar de Teresa e viu dois homens de uniforme verde e chapéus esquisitos: deviam ser guardas de fronteira espanhóis. Percebeu que estar na Espanha não significava ficar livre de apuros. Se fosse pego tentando entrar no país de forma ilegal, poderia simplesmente ser mandado de volta. Ou pior: poderia desaparecer num dos campos de prisioneiros de Franco.

           Os guardas de fronteira seguiam por uma trilha na montanha que vinha na direção dos fugitivos. Lloyd se preparou para um confronto. Teria que agir depressa para dominá-los antes que eles conseguissem sacar as armas. Perguntou-se se os dois outros fugitivos seriam bons de briga.

           Mas a sua ansiedade foi em vão. Os dois guardas chegaram a um limite não demarcado e deram meia-volta. Teresa agiu como se soubesse que aquilo iria acontecer. Quando os guardas sumiram de vista, ela se levantou, e os quatro seguiram em frente.

           Logo depois, a névoa se dissipou. Lloyd viu uma aldeia de pescadores situada ao redor de uma baía arenosa. Já estivera ali antes, em 1936, quando chegara à Espanha. Lembrava-se até de que a aldeia tinha uma estação de trem.

           Entraram no povoado. Era um lugar modorrento, sem sinal de presença oficial: não havia policiais, prefeitura, soldados nem postos de controle. Sem dúvida devia ser por isso que Teresa escolhera aquele lugar.

           Foram até a estação e Teresa comprou as passagens, flertando com o vendedor como se os dois fossem velhos amigos.

           Lloyd foi se sentar num banco à sombra da plataforma, com os pés doloridos, exausto, agradecido e feliz.

           Uma hora mais tarde, pegaram um trem para Barcelona.

 

           Era a primeira vez que Daisy entendia o significado da palavra trabalho.

           Ou cansaço. Ou tragédia.

           Estava sentada na sala de aula de uma escola, bebendo chá inglês doce numa xícara sem pires. Usava um capacete de aço e galochas. Eram cinco da tarde, e ela ainda estava cansada por causa da noite anterior.

           Era agora voluntária da ARP do bairro de Aldgate. Em tese, trabalhava em turnos de oito horas, seguidos por oito horas de sobreaviso e oito de descanso. Na prática, trabalhava enquanto durasse o ataque aéreo e enquanto houvesse feridos a serem levados para o hospital.

           Londres fora bombardeada todas as noites de outubro de 1940.

           Daisy sempre trabalhava com outra mulher, auxiliar de motorista, e quatro homens: juntos formavam a equipe de resgate. Sua base era numa escola e eles agora estavam sentados nas carteiras dos alunos, esperando que os aviões chegassem, as sirenes tocassem e as bombas caíssem.

           Ela dirigia um Buick americano transformado em ambulância. A equipe tinha também um carro normal e outro motorista para transportar o que chamavam de pacientes sentados – feridos que conseguiam ficar sentados sem ajuda no trajeto até o hospital.

           Sua auxiliar chamava-se Naomi Avery, uma londrina loura e bonita que gostava de homens e apreciava a camaradagem da equipe. Nesse exato momento, estava provocando seu supervisor, um policial aposentado chamado Nobby Clarke.

           – O chefe dos voluntários é homem – disse ela. – O supervisor do bairro é homem. Você é homem.

           – Assim espero – retrucou Nobby, e os outros riram.

           – Há muitas mulheres na ARP – continuou Naomi. – Por que nenhuma delas tem um cargo de supervisão?

           Os homens riram. Um careca narigudo apelidado de George Bonitão falou:

           – Lá vamos nós outra vez... os direitos femininos. – Ele tinha certa tendência à misoginia.

           – Vocês não acham mesmo que todos os homens são mais inteligentes do que as mulheres, acham? – interveio Daisy.

           – Na verdade, há algumas mulheres supervisoras – disse Nobby.

           – Nunca conheci nenhuma – disse Naomi.

           – É uma questão de tradição, não é? – disse Nobby. – As mulheres sempre foram donas de casa.

           – Como Catarina, a Grande, da Rússia – disse Daisy com sarcasmo.

           – Ou a rainha Elizabeth – emendou Naomi.

           – Amelia Earhart.

           – Jane Austen.

           – Ou Marie Curie, a única cientista a ganhar o Nobel duas vezes.

           – Catarina, a Grande? – indagou George Bonitão. – Não é ela que tem uma história com um cavalo?

           – Olhe lá, temos damas no recinto – disse Nobby em tom de reprovação. – Mas posso responder à pergunta de Daisy.

           Disposta a deixá-lo brilhar, Daisy falou:

           – Então responda.

           – Admito que algumas mulheres podem ser tão inteligentes quanto os homens – falou, com ar de quem estava fazendo uma concessão incrivelmente generosa. – Mas mesmo assim há um motivo muito bom para que a maioria dos supervisores da ARP consista de homens.

           – E que motivo seria esse, Nobby?

           – É muito simples: homens não aceitam receber ordens de mulheres. – Ele se recostou na cadeira com uma expressão de triunfo, certo de que tinha ganhado a discussão.

           A ironia era que, quando as bombas estavam caindo, enquanto eles reviravam os destroços para resgatar os feridos, homens e mulheres eram, sim, iguais. Nessa hora não havia hierarquia. Se Daisy gritasse para Nobby segurar a outra ponta de uma viga, ele obedeceria sem pestanejar.

           Daisy adorava aqueles homens, até mesmo George. Eles dariam a vida por ela, e ela por eles.

           Ouviu um apito grave soar lá fora, na rua. Aos poucos, o som foi se tornando mais agudo, até virar a sirene cansativamente conhecida de um alarme antiaéreo. Segundos depois, ouviu-se o estrondo de uma explosão distante. Com frequência o alarme chegava tarde demais; às vezes, soava depois que as primeiras bombas já haviam caído.

           O telefone tocou e Nobby atendeu.

           Todos se levantaram. Com a voz cansada, George perguntou:

           – Esses alemães nunca tiram uma droga de uma folga?

           Nobby pôs o fone no gancho e anunciou:

           – Nutley Street.

           – Sei onde fica – disse Naomi enquanto todos saíam apressados. – A nossa deputada mora nessa rua.

           Entraram depressa nos carros. Enquanto Daisy engatava a marcha da ambulância e arrancava, Naomi, sentada ao seu lado, comentou:

           – Bons tempos.

           Ela estava sendo irônica, porém, por mais que parecesse estranho, Daisy estava mesmo feliz. Que esquisito, pensou, enquanto fazia uma curva em disparada. Noite após noite, via destruição, tragédias horríveis, corpos terrivelmente mutilados. Havia uma boa chance de ela própria morrer nessa mesma noite, dentro de um prédio em chamas. Apesar disso, sentia-se ótima. Estava trabalhando e sofrendo em prol de uma causa e, por mais paradoxal que isso fosse, era melhor do que agradar a si mesma. Ela fazia parte de um grupo capaz de arriscar tudo para ajudar os outros, e essa era a sensação mais gratificante do mundo.

           Daisy não odiava os alemães por tentarem matá-la. Seu sogro, o conde Fitzherbert, lhe dissera por que eles estavam bombardeando Londres. Até agosto, a Luftwaffe vinha atacando apenas portos e campos de pouso. Num momento de sinceridade pouco usual, Fitz havia lhe explicado que os britânicos não tiveram os mesmos escrúpulos: o governo aprovara em maio o bombardeio de cidades alemãs, e durante todo o mês de junho a Real Força Aérea lançara bombas sobre mulheres e crianças em suas casas. Furioso, o povo alemão exigira uma retaliação. O resultado era a Blitz.

           Daisy e Boy vinham mantendo as aparências, mas ela trancava a porta do quarto sempre que o marido estava em casa, e ele não protestava. Seu casamento era uma farsa, mas ambos estavam ocupados demais para tomar qualquer atitude a respeito. Quando pensava nisso, Daisy ficava triste, pois agora havia perdido os dois, Boy e Lloyd. Felizmente, mal tinha tempo para pensar.

           A Nutley Street estava em chamas. A Luftwaffe lançava ao mesmo tempo bombas incendiárias e explosivos de alta potência. Os maiores danos eram causados pelo fogo, mas as bombas quebravam as janelas, deixando penetrar o oxigênio que alimentava as chamas.

           Daisy parou a ambulância cantando pneus, e eles puseram mãos à obra.

           As vítimas com ferimentos leves eram acompanhadas até a estação de primeiros socorros mais próxima. As mais graves eram levadas para o St. Bart’s ou para o Hospital de Londres, em Whitechapel. Daisy fez várias viagens. Quando a noite caiu, ela acendeu os faróis. Por causa do blecaute, eles estavam cobertos, deixando passar apenas um estreito facho de luz. Mas isso agora parecia uma precaução inútil – Londres ardia como uma fogueira.

           O bombardeio prosseguiu até de madrugada. Em plena luz do dia, os aviões ficavam vulneráveis demais e corriam o risco de ser abatidos pelos caças pilotados por Boy e seus companheiros. Assim, a intensidade do bombardeio foi diminuindo. Enquanto a luz cinzenta e fria começava a iluminar os destroços, Daisy e Naomi voltaram para a Nutley Street e viram que não havia mais vítimas a serem levadas para o hospital.

           Exaustas, as duas se sentaram sobre o que restava de uma mureta de tijolos que demarcava um jardim. Daisy tirou o capacete de aço. Estava suja e esgotada. Nem imagino o que as moças do Iate Clube de Buffalo iriam pensar de mim agora, disse a si mesma. Então percebeu que já não se importava com isso. A época em que a aprovação daquelas garotas era a coisa mais importante do mundo para ela parecia muito distante no passado.

           – Quer uma xícara de chá, minha linda? – perguntou alguém.

           Ela reconheceu o sotaque galês. Ergueu os olhos e viu uma atraente mulher de meia-idade, com uma bandeja na mão.

           – Puxa, é disso mesmo que preciso – falou, aceitando.

           Agora já tinha tomado gosto pela bebida. O sabor era amargo, mas tinha um efeito incrivelmente restaurador.

           A mulher deu um beijo em Naomi, que explicou a Daisy:

           – Nós somos parentes. Millie, a filha dela, é casada com meu irmão, Abie.

           Daisy ficou olhando a mulher circular com a bandeja pelo pequeno grupo de voluntários da ARP, bombeiros e vizinhos. Ela tinha um ar de autoridade e Daisy achou que devia ser uma celebridade local. Apesar disso, era obviamente uma mulher do povo e se dirigia a todos de forma descontraída e calorosa, fazendo-os sorrir. Conhecia Nobby e George Bonitão, e cumprimentou-os como se fossem velhos amigos.

           A mulher então pegou a última xícara da bandeja para si e foi se sentar ao lado de Daisy.

           – Seu sotaque é americano – comentou, simpática.

           Daisy assentiu.

           – Sou casada com um inglês.

           – Eu moro nesta rua... mas minha casa escapou das bombas na noite passada. Sou deputada por Aldgate. Meu nome é Eth Leckwith.

           O coração de Daisy parou de bater por um segundo. Aquela era a famosa mãe de Lloyd! Cumprimentou-a com um aperto de mãos.

           – Daisy Fitzherbert.

           Ethel arqueou as sobrancelhas.

           – Ah! – disse ela. – Você é a viscondessa de Aberowen.

           Daisy enrubesceu e baixou a voz.

           – Ninguém na ARP sabe disso.

           – Seu segredo está seguro comigo.

           Daisy hesitou antes de continuar:

           – Conheci seu filho, Lloyd. – Não pôde evitar as lágrimas que marejaram seus olhos ao pensar no tempo que os dois haviam passado juntos em Tŷ Gwyn, e no modo como ele cuidara dela na noite do aborto. – Ele foi muito gentil comigo uma vez, quando precisei de ajuda.

           – Obrigada – disse Ethel. – Mas não fale como se ele estivesse morto.

           A reprimenda foi branda, mas Daisy teve a sensação de ter sido terrivelmente insensível.

           – Perdoe-me! – desculpou-se. – Soube que ele desapareceu em combate. Que estupidez a minha.

           – Mas ele não está mais desaparecido – disse Ethel. – Fugiu pela Espanha. Chegou em casa ontem.

           – Ah, meu Deus! – O coração de Daisy agora estava disparado. – Ele está bem?

           – Está, sim. Na verdade, está com uma aparência ótima, apesar de tudo por que passou.

           – Onde... – Daisy engoliu em seco. – Onde ele está agora?

           – Ora, deve estar em algum lugar por aqui. – Ethel olhou em volta. – Lloyd? – chamou.

           Nervosíssima, Daisy correu os olhos pela multidão. Seria mesmo verdade?

           Um homem de sobretudo marrom rasgado virou-se e disse:

           – Sim, Mam?

           Daisy o encarou. Seu rosto estava bronzeado e ele estava extremamente magro, no entanto parecia mais bonito do que nunca.

           – Venha cá, meu amor – pediu Ethel.

           Lloyd deu um passo à frente e então viu Daisy. De repente, sua expressão se transformou. Ele abriu um sorriso.

           – Oi – falou.

           Daisy se levantou com um pulo.

           – Lloyd, há alguém aqui de quem você talvez se lembre...

           Daisy não conseguiu se conter. Correu até Lloyd e atirou-se em seus braços. Apertou-o com força. Encarou aqueles olhos verdes, beijou as faces queimadas de sol e o nariz quebrado, depois beijou sua boca.

           – Eu te amo – falou, desatinada. – Eu te amo, te amo, te amo.

           – Eu também te amo, Daisy – respondeu ele.

           Atrás de si, Daisy ouviu a voz cheia de ironia de Ethel:

           – Estou vendo que se lembra muito bem.

 

           Lloyd estava comendo torradas com geleia quando Daisy entrou na cozinha da casa da Nutley Street. Parecendo exausta, ela sentou-se à mesa e tirou o capacete de aço. Tinha o rosto encardido e os cabelos sujos de cinza e poeira. Lloyd achou-a irresistivelmente linda.

           Ela passava lá quase todas as manhãs, depois de terminados os bombardeios e de a última vítima ter sido levada para o hospital. A mãe de Lloyd lhe dissera para se sentir em casa, e Daisy levara suas palavras ao pé da letra.

           Ethel lhe serviu uma xícara de chá e perguntou:

           – Noite difícil, minha querida?

           Daisy assentiu, com ar funesto.

           – Uma das piores. O edifício Peabody, na Orange Street, foi incendiado.

           – Ah, não! – exclamou Lloyd, consternado.

           Conhecia o lugar: uma casa de cômodos imensa e superlotada, habitada por famílias pobres com vários filhos.

           – É um prédio bem grande – comentou Bernie.

           – Era – corrigiu-o Daisy. – Centenas de pessoas morreram queimadas e só Deus sabe quantas crianças ficaram órfãs. Quase todos os meus pacientes não resistiram e faleceram a caminho do hospital.

           Lloyd estendeu o braço por cima da pequena mesa e segurou a mão dela.

           Daisy ergueu os olhos da xícara de chá.

           – É impossível se acostumar com isso. Você pensa que vai ficando menos sensível, mas não. – Estava tomada pela tristeza.

           Num gesto de compaixão, Ethel pousou a mão no ombro da moça por alguns instantes.

           – E nós estamos fazendo o mesmo com as famílias na Alemanha – completou Daisy.

           – Incluindo meus velhos amigos Maud e Walter e seus filhos, imagino – concordou Ethel.

           – Não é um horror? – Daisy balançou a cabeça, desanimada. – Qual é o problema conosco?

           – Qual é o problema com a raça humana? – emendou Lloyd.

           Bernie, sempre prático, falou:

           – Vou dar um pulo na Orange Street para me certificar de que todo o possível está sendo feito pelas crianças.

           – Vou com você – disse Ethel.

           O casal pensava de forma parecida, agia junto sem qualquer esforço e muitas vezes um parecia ler o pensamento do outro. Lloyd os vinha observando com atenção desde que voltara para casa, preocupado que o casamento deles pudesse ter sido abalado pela chocante revelação de que Ethel nunca tivera um marido chamado Teddy Williams e de que o pai de Lloyd na verdade era o conde Fitzherbert. Conversara bastante sobre isso com Daisy, que agora já sabia de toda a verdade. Qual seria a sensação de Bernie após ter sido enganado por duas décadas? Mas Lloyd não conseguia ver nenhum sinal de que isso fizesse diferença. A seu modo pouco sentimental, Bernie tinha adoração por Ethel, que, a seus olhos, era incapaz de cometer qualquer erro. Acreditava que ela nunca faria nada para magoá-lo, e tinha razão. Isso fazia Lloyd torcer para um dia, quem sabe, também ter um casamento assim.

           Daisy reparou que ele estava de uniforme.

           – Aonde você vai?

           – Fui chamado ao Ministério da Guerra. – Ele olhou para o relógio no consolo da lareira. – É melhor eu ir.

           – Pensei que você já tivesse contado o que aconteceu.

           – Venha comigo até o meu quarto que lhe explico enquanto ponho a gravata. Traga seu chá.

           Os dois foram para o andar de cima. Daisy olhou em volta com interesse, e ele se deu conta de que era a primeira vez que ela entrava em seu quarto. Olhou para a cama de solteiro, para a estante que continha livros em alemão, francês e espanhol, para a escrivaninha com sua fileira de lápis apontados, e se perguntou o que ela estaria pensando de tudo aquilo.

           – Que quartinho mais agradável – comentou ela.

           Não era um quartinho. Tinha o mesmo tamanho dos outros quartos da casa. Mas os padrões de Daisy eram diferentes.

           Ela pegou um porta-retratos. Era uma foto da família à beira-mar: Lloyd ainda menino, de calça curta, a bebê Millie de maiô, uma jovem Ethel com um grande chapéu mole, e Bernie de terno cinza, com uma camisa branca com o colarinho aberto e um lenço amarrado na cabeça.

           – Foi em Southend – explicou Lloyd.

           Pegando a xícara da mão dela, pousou-a sobre a penteadeira, e tomou Daisy nos braços. Beijou-a na boca. Ela retribuiu o beijo com uma ternura cansada e acariciou o rosto dele, deixando o corpo pesar contra o seu.

           Um minuto depois, ele a soltou. Ela estava mesmo cansada demais para carícias, e ele tinha um compromisso.

           Ela tirou as botas e se deitou na cama.

           – O Ministério da Guerra me pediu que fosse lá de novo – disse ele enquanto dava o nó na gravata.

           – Mas da última vez você passou horas lá.

           Era verdade. Tivera de cavar fundo em sua memória para se lembrar de cada detalhe do tempo que passara foragido na França. Eles queriam saber a patente e o regimento de cada alemão com quem ele havia cruzado. É claro que Lloyd não se lembrava de todos, mas tinha sido um aluno aplicado em Tŷ Gwyn e conseguiu lhes dar muitas informações.

           Aquele era um relatório padrão de inteligência militar. No entanto, eles também lhe perguntaram sobre sua fuga e quiseram saber que estradas ele havia usado e quem o havia ajudado. Demonstraram interesse até mesmo por Maurice e Marcelle, e o repreenderam por não saber o sobrenome do casal. Ficaram muito entusiasmados com Teresa, que claramente poderia se tornar uma importante colaboradora para futuros fugitivos.

           – Hoje vou conversar com pessoas diferentes. – Ele olhou de relance para um bilhete datilografado sobre a penteadeira. – No Hotel Metropole, na Northumberland Avenue. Quarto 424. – O endereço ficava perto da Trafalgar Square, num bairro com muitos escritórios do governo. – Parece que é um departamento novo responsável pelos prisioneiros de guerra britânicos. – Ele pôs a boina pontuda na cabeça e se olhou no espelho. – Estou elegante?

           Não houve resposta. Ele olhou para a cama. Daisy havia adormecido.

           Lloyd pôs um cobertor sobre ela, deu-lhe um beijo na testa e saiu.

           Disse à mãe que Daisy estava dormindo em sua cama, e Ethel garantiu-lhe que daria uma olhada nela mais tarde, para ver se estava tudo bem.

           Lloyd então pegou o metrô até o centro de Londres.

           Quando contara a Daisy a verdade sobre suas origens, ela acreditara sem pestanejar, pois de repente se lembrou de Boy ter lhe dito que Fitz tinha um filho ilegítimo em algum lugar.

           – Que estranho – comentara ela, adotando um ar pensativo. – Os dois ingleses por quem me apaixonei na verdade são meios-irmãos. – Então estudara Lloyd com um olhar avaliador. – Você herdou a beleza de seu pai. Boy só herdou o egoísmo.

           Lloyd e Daisy ainda não tinham ido para a cama. Um dos motivos era porque ela nunca tirava folga. E, na única ocasião em que os dois tiveram uma chance de ficar a sós, as coisas deram errado.

           Fora no domingo anterior, na casa de Daisy em Mayfair. Seus empregados tinham tirado a tarde de folga e, sem ninguém por perto, ela o levou até seu quarto. No entanto, estava nervosa e pouco à vontade. Depois de beijá-lo, virou a cabeça para o lado. Quando ele pôs as mãos em seus seios, ela as afastou. Ele não entendeu nada: se não devia se comportar assim, o que os dois estavam fazendo ali no quarto dela?

           – Sinto muito – dissera Daisy por fim. – Amo você, mas não consigo fazer isso. Não consigo trair meu marido na casa dele.

           – Mas ele traiu você.

           – Pelo menos foi em outro lugar.

           – Tudo bem.

           Ela o encarou.

           – Você acha que estou sendo boba?

           Ele deu de ombros.

           – Depois de tudo por que passamos juntos, essa sua atitude me parece excessivamente correta, sim... mas escute, se é assim que você se sente, tudo bem. Eu seria um canalha se tentasse forçá-la a fazer algo para o qual você não está preparada.

           Ela o envolveu com os braços e apertou com força.

           – Já falei isso antes – disse. – Você é muito maduro.

           – Não vamos desperdiçar a tarde inteira – disse ele. – Vamos ao cinema.

           Foram ver Charlie Chaplin em O grande ditador e riram bastante. Depois do filme, ela voltou ao trabalho.

           Pensamentos agradáveis sobre Daisy ocuparam a mente de Lloyd durante todo o trajeto até a Embankment Station. Em seguida, ele subiu a Northumberland Avenue até o Metropole. As réplicas de antiguidades do hotel tinham sido removidas, e o lugar agora estava mobiliado com mesas e cadeiras utilitárias.

           Após alguns minutos de espera, Lloyd foi conduzido até um coronel alto de modos enérgicos.

           – Li seu relatório, tenente – comentou o coronel. – Bom trabalho.

           – Obrigado.

           – Nós esperamos que mais pessoas sigam o seu exemplo, e gostaríamos de ajudá-las. Estamos especialmente interessados em pilotos cujos aviões tenham sido derrubados. É caro treinar esses homens, e nós os queremos de volta para que possam continuar voando.

           Lloyd considerava essa uma atitude dura. Se um homem sobrevivesse a um pouso de emergência, deveria mesmo ser chamado para se arriscar a passar por tudo outra vez? Mas os feridos eram mandados de volta ao combate assim que se recuperavam. Isso era a guerra.

           – Nós estamos montando uma espécie de ferrovia clandestina da Alemanha até a Espanha – disse o coronel. – Estou vendo aqui que você fala alemão, francês e espanhol. O mais importante, porém, é que já esteve na situação de um fugitivo. Gostaríamos de transferi-lo para o nosso departamento.

           Lloyd não esperava por isso e não soube muito bem o que pensar a respeito.

           – Obrigado, coronel, fico honrado. Mas é um trabalho burocrático?

           – De forma alguma. Queremos que volte para a França.

           O coração de Lloyd disparou. Ele não pensava que precisaria enfrentar esses perigos outra vez.

           O coronel viu a consternação em seu rosto.

           – Você sabe o perigo que isso representa.

           – Sei, sim, coronel.

           Em tom abrupto, o superior disse:

           – Pode recusar, se quiser.

           Lloyd pensou em Daisy na Blitz, nas pessoas mortas no incêndio do edifício Peabody, e percebeu que não queria recusar.

           – Se o senhor achar importante, coronel, estou inteiramente disposto a voltar, é claro.

           – Você é um homem bom – comentou o coronel.

           Meia hora mais tarde, Lloyd voltou atordoado para a estação de metrô. Agora fazia parte de um departamento chamado MI9. Voltaria à França com documentos falsos e grandes quantias em dinheiro. Dezenas de alemães, holandeses, belgas e franceses já haviam sido recrutados no território ocupado para a perigosíssima tarefa de ajudar pilotos britânicos e da Commonwealth a voltar para casa. Ele seria um dos vários agentes do MI9 encarregados de expandir essa rede.

           Se fosse pego, seria torturado.

           Apesar do medo, também estava empolgado. Pegaria um avião até Madri: seria sua primeira viagem aérea. Tornaria a entrar na França pelos Pireneus, e lá entraria em contato com Teresa. Circularia disfarçado entre os inimigos e conduziria os resgates bem debaixo do nariz da Gestapo. Iria garantir que os homens que seguissem os seus passos não se sentissem tão sozinhos e sem amigos quanto ele próprio se sentira.

           Voltou para a Nutley Street às onze horas. Encontrou um recado da mãe: “A Miss Estados Unidos não deu nem um pio.” Depois de passar no prédio bombardeado, Ethel devia ter ido à Câmara dos Comuns, e Bernie ao Conselho do Condado. Lloyd e Daisy tinham a casa só para si.

           Ele subiu até o quarto. Daisy continuava dormindo. Sua jaqueta de couro e a grossa calça de lã estavam jogadas no chão de qualquer maneira. Ela estava deitada vestida apenas com a roupa de baixo. Aquilo nunca tinha acontecido antes.

           Ele tirou o paletó e a gravata.

           Uma voz sonolenta falou:

           – Pode tirar o resto.

           Ele olhou para ela.

           – O quê?

           – Tire a roupa e deite-se aqui.

           A casa estava vazia: ninguém iria incomodá-los.

           Lloyd tirou as botas, a calça, a camisa e as meias, em seguida hesitou.

           – Você não vai ficar com frio – disse ela.

           Remexeu-se debaixo das cobertas, e jogou em cima dele um baby-doll de seda.

           Ele esperava que aquele momento fosse solene e de grande paixão, mas Daisy parecia achar que a situação merecia risos e diversão. Lloyd estava disposto a se deixar levar.

           Tirou a camiseta e a cueca e enfiou-se ao seu lado na cama. Sentiu seu corpo morno, lânguido. Estava nervoso: na verdade, nunca lhe dissera que era virgem.

           Sempre ouvira falar que era o homem quem deveria tomar a iniciativa, mas Daisy parecia não saber disso. Depois de beijá-lo e acariciá-lo, segurou seu pênis.

           – Ah, rapaz... eu estava torcendo para que você tivesse um desses.

           Então Lloyd não se sentiu mais nervoso.

             

1941 (I)

            Num domingo frio de inverno, Carla von Ulrich acompanhou a criada da família, Ada, numa visita a seu filho Kurt, no Sanatório Infantil Wannsee, que ficava à beira do lago de mesmo nome a oeste de Berlim. Levaram uma hora para chegar lá de trem. Durante essas visitas, Carla sempre usava seu uniforme de enfermeira, pois a equipe do sanatório conversava com mais franqueza sobre Kurt com uma colega de profissão.

           No verão, a região do lago ficaria repleta de famílias e crianças brincando na praia e remando na parte rasa, mas nesse dia havia apenas algumas pessoas caminhando, bem agasalhadas contra o frio, e um nadador corajoso cuja esposa, ansiosa, aguardava na margem.

           A instituição, especializada no cuidado de crianças com deficiências graves, ficava numa casa imponente cujos elegantes salões tinham sido subdivididos, pintados de verde-claro e mobiliados com camas e berços de hospital.

           Kurt estava com 8 anos. Conseguia andar e comer com a mesma desenvoltura de um menino de 2, mas não falava e ainda usava fraldas. Havia muitos anos que não dava nenhum sinal de melhora. Apesar disso, não restava dúvida quanto à alegria que sentiu ao ver Ada. Seu rosto se iluminou de felicidade, ele começou a emitir ruídos de animação e estendeu os braços para que ela o pegasse no colo, o abraçasse e beijasse.

           O menino também reconheceu Carla. Sempre que o via, ela se lembrava das circunstâncias assustadoras de seu nascimento, quando fizera o parto sozinha enquanto Erik corria para chamar o Dr. Rothmann.

           As duas passaram mais ou menos uma hora brincando com Kurt. Ele gostava de trenzinhos e carrinhos de brinquedo, e de livros com ilustrações bem coloridas. Então foi chegando a hora de seu cochilo da tarde, e Ada cantou para o filho dormir.

           Quando estavam de saída, uma enfermeira chamou Ada.

           – Frau Hempel, por favor, queira me acompanhar até a sala do Herr Professor Doutor Willrich. Ele gostaria de falar com a senhora.

           Willrich era o diretor do sanatório. Carla nunca o encontrara, e não tinha certeza se Ada já o vira.

           – Algum problema? – indagou a criada, nervosa.

           – Tenho certeza de que o diretor só quer conversar com a senhora sobre a evolução de Kurt – respondeu a enfermeira.

           – Fräulein Von Ulrich vai me acompanhar – disse Ada.

           A enfermeira não gostou disso.

           – O professor Willrich mandou chamar só a senhora.

           Mas Ada sabia ser teimosa quando necessário.

           – Fräulein Von Ulrich vai comigo – repetiu com firmeza.

           – Venham comigo – respondeu a enfermeira, dando de ombros.

           As duas foram conduzidas até uma sala agradável. Aquele cômodo não fora subdividido. Havia uma lareira a carvão acesa, e uma bay window dava para o lago Wannsee. Carla viu que alguém velejava: a embarcação cortava as águas impulsionada por uma brisa forte. Willrich estava sentado atrás de uma escrivaninha de tampo de couro. Sobre a mesa, uma lata de fumo e um suporte com cachimbos de tamanhos variados. O médico tinha cerca de 50 anos, era alto e corpulento. Todos os seus traços pareciam grandes: nariz avantajado, maxilar quadrado, orelhas imensas e uma cabeça calva em forma de domo. Ele olhou para Ada e perguntou:

           – Frau Hempel, suponho? – Ada assentiu. Willrich virou-se para Carla. – E Fräulein...

           – Carla von Ulrich, professor. Sou madrinha de Kurt.

           O médico arqueou as sobrancelhas.

           – A senhorita não é um pouco jovem para ser madrinha?

           – Ela fez o parto de Kurt! – respondeu Ada com indignação. – Tinha apenas 11 anos, mas saiu-se melhor do que o médico, que não estava lá!

           Willrich ignorou esse comentário. Sem tirar os olhos de Carla, prosseguiu em tom de desdém:

           – E estou vendo que pretende ser enfermeira.

           Carla usava um uniforme de iniciante, mas se considerava mais do que uma simples aspirante.

           – Sou uma enfermeira em treinamento – falou. Não gostou de Willrich.

           – Sentem-se, por favor. – Ele abriu uma pasta fina. – Kurt está com 8 anos, mas só alcançou o desenvolvimento de um menino de 2.

           Fez uma pausa. Nenhuma das duas disse nada.

           – É insatisfatório – disse ele.

           Ada olhou para Carla. A jovem não entendia aonde o médico queria chegar, e indicou isso dando de ombros.

           – Existe um novo tratamento disponível para casos como esse. Mas para isso Kurt precisa ser transferido para outro hospital. – Willrich fechou a pasta. Olhou para Ada e, pela primeira vez, sorriu. – Tenho certeza de que a senhora gostaria que Kurt recebesse um tratamento que talvez possa melhorar sua situação.

           Carla não gostou daquele sorriso, que lhe pareceu sinistro.

           – Pode nos explicar um pouco melhor o tratamento, professor? – pediu.

           – Temo que as explicações estejam além do seu nível de compreensão – respondeu ele. – Mesmo a senhorita sendo uma enfermeira em treinamento.

           Mas Carla não iria deixá-lo escapar.

           – Tenho certeza de que Frau Hempel gostaria de saber se o tratamento incluiria cirurgias, remédios ou eletrochoques, por exemplo.

           – Remédios – disse ele, com evidente relutância.

           – Para onde ele teria que ir? – perguntou Ada.

           – O hospital fica em Akelberg, na Bavária.

           Ada não entendia muito de geografia, e Carla percebeu que ela não fazia ideia de como isso era longe.

           – A 300 quilômetros daqui – esclareceu.

           – Ah, não! – reclamou Ada. – Como irei visitá-lo?

           – De trem – respondeu Willrich, impaciente.

           – Levaria umas quatro ou cinco horas – disse Carla. – Ela provavelmente teria que passar a noite lá. E o custo da passagem?

           – Não posso me preocupar com esse tipo de coisa! – respondeu Willrich, zangado. – Sou médico, não agente de viagens!

           Ada estava quase chorando.

           – Se isso significa que Kurt vai melhorar, aprender a dizer algumas palavras e a não se sujar... um dia talvez possamos trazê-lo para casa.

           – Exatamente – disse Willrich. – Eu tinha certeza de que a senhora não negaria ao seu filho uma chance de melhorar só por causa de suas motivações egoístas.

           – É isso que o senhor está nos dizendo? – indagou Carla. – Que Kurt talvez possa levar uma vida normal?

           – A medicina não dá garantias – respondeu ele. – Até mesmo uma enfermeira em treinamento deveria saber disso.

           Carla tinha aprendido com os pais a ser impaciente com quem não respondia diretamente às perguntas.

           – Não estou pedindo uma garantia – retrucou, seca. – Mas um prognóstico. Coisa que o senhor deve ter, ou então não estaria propondo o tratamento.

           O médico enrubesceu.

           – É um tratamento novo. Espero que melhore a condição de Kurt. É isso que estou lhe dizendo.

           – Um tratamento experimental?

           – Toda a medicina é experimental. Qualquer terapia funciona para alguns pacientes e não para outros. A senhorita deveria prestar atenção no que estou lhe dizendo: a medicina não dá garantias.

           Carla quis contradizê-lo pelo simples fato de ele se mostrar tão arrogante, mas percebeu que não deveria avaliar um médico por causa disso. Além do mais, não sabia muito bem se Ada tinha alternativa. Se a saúde da criança estivesse em risco, os médicos podiam contrariar a vontade dos pais: na verdade, tinham o poder de fazer o que bem entendessem. Willrich não estava pedindo a permissão de Ada – não precisava disso. Só estava falando com ela para evitar confusão.

           – O senhor pode dizer a Frau Hempel em quanto tempo Kurt vai voltar para Berlim? – perguntou Carla.

           – Em breve – respondeu Willrich.

           Aquilo não era resposta, mas Carla sentiu que, se o pressionasse, ele tornaria a se zangar.

           Ada tinha um ar impotente. Carla sentiu pena da mãe do menino: ela própria não sabia bem como agir. Elas não tinham recebido informações suficientes. Já percebera que os médicos muitas vezes eram assim: pareciam querer guardar seu conhecimento para si. Preferiam responder com lugares-comuns e, quando questionados, adotavam uma postura defensiva.

           – Bom, se houver uma chance de ele melhorar... – disse Ada, com lágrimas nos olhos.

           – Assim é que se fala – incentivou Willrich.

           Mas Ada ainda não tinha terminado.

           – O que você acha, Carla?

           Willrich pareceu indignado por ela pedir a opinião de uma reles enfermeira.

           – Concordo com você, Ada – respondeu Carla. – Temos que aproveitar essa oportunidade pelo bem de Kurt, mesmo que seja difícil para você.

           – Muito sensato – disse Willrich, pondo-se de pé. – Obrigado por terem vindo conversar comigo.

           Ele foi até a porta e a abriu. Carla teve a sensação de que o médico estava com pressa de se livrar delas.

           As duas saíram do sanatório e voltaram a pé para a estação. O trem estava vazio e, quando ele começou a andar, Carla pegou um folheto que fora deixado em cima do banco. O título era COMO FAZER OPOSIÇÃO AOS NAZISTAS, e o texto listava dez coisas que a população podia fazer para apressar o fim do regime, a começar por diminuir seu ritmo de trabalho.

           Já vira publicações desse tipo, embora não com frequência. Eram distribuídas por algum movimento clandestino de resistência.

           Ada arrancou o folheto de suas mãos, amassou-o e o jogou pela janela.

           – Você pode ser presa por ler uma coisa dessas! – falou.

           Ela havia sido sua babá e às vezes se comportava como se Carla não tivesse crescido. A jovem não se importava com esse ocasional comportamento mandão, pois sabia que era prova de amor.

           Nesse caso, porém, Ada não estava exagerando. Pessoas podiam ser presas não apenas por ler publicações como aquela, mas pelo simples fato de não denunciarem um folheto encontrado. Ada poderia ter problemas só por ter jogado o papel pela janela. Felizmente, não havia mais ninguém no vagão para ver o que ela fizera.

           A criada ainda estava nervosa por causa do que ouvira no sanatório.

           – Você acha que fizemos a coisa certa? – perguntou a Carla.

           – Na verdade, não sei – respondeu Carla com sinceridade. – Acho que sim.

           – Você é enfermeira, entende mais dessas coisas que eu.

           Carla estava gostando da enfermagem, mas ainda se sentia frustrada por não a terem deixado estudar medicina. Agora, com tantos rapazes no Exército, a atitude em relação às mulheres havia mudado, e mais moças estavam entrando na faculdade para se tornarem médicas. Carla poderia ter se candidatado novamente a uma bolsa – mas sua família era tão pobre que dependia de seu parco salário. O pai não tinha trabalho nenhum, a mãe sobrevivia dando aulas de piano, e Erik mandava para casa o máximo que podia do soldo militar. A família não pagava Ada havia muitos anos.

           Ada era naturalmente estoica e, ao chegar em casa, já tinha superado sua aflição. Entrou na cozinha, pôs o avental e começou a preparar o jantar para a família. A rotina pareceu consolá-la.

           Carla não iria jantar em casa. Tinha planos para aquela noite. Achou que estava abandonando Ada à própria tristeza e sentiu um pouco de culpa, mas não o suficiente para comprometer sua saída.

           Pôs um vestido na altura do joelho, parecido com os que se usavam para jogar tênis, que ela mesma fizera, diminuindo a bainha puída de um velho vestido da mãe. Mas não estava indo jogar tênis: ia dançar, e seu objetivo era parecer americana. Passou batom, cobriu o rosto com pó de arroz e desembaraçou os cabelos, desafiando a preferência do governo por tranças.

           O espelho refletiu a imagem de uma moça moderna, de rosto bonito e ar desafiador. Ela sabia que sua segurança e autoconfiança deixavam muitos rapazes intimidados. Às vezes, desejava ser, além de inteligente, sedutora – algo que a mãe sempre fora, mas que não era parte da natureza de Carla. Já fazia muito tempo que ela havia parado de tentar ser cativante: isso só a fazia se sentir boba. Os rapazes precisavam aceitá-la como ela era.

           Alguns a temiam, outros, porém, se sentiam atraídos, e nas festas ela sempre acabava cercada por um pequeno grupo de admiradores. Gostava dos rapazes, sobretudo quando eles se esqueciam de tentar impressionar os outros e começavam a falar de modo normal. Seus preferidos eram os que a faziam rir. Embora já tivesse beijado vários garotos, ainda não tivera nenhum namorado sério.

           Para completar o visual, vestiu um blazer listrado que havia comprado numa carroça de roupas de segunda mão. Sabia que os pais não aprovariam aqueles trajes e tentariam fazê-la se trocar, dizendo que era perigoso contrariar os preconceitos dos nazistas. Por isso precisava sair de casa sem ser vista. Não deveria ser muito complicado. Sua mãe estava dando uma aula de piano: Carla podia ouvir o som irritante produzido pelo dedilhar canhestro do aluno. Seu pai devia estar lendo o jornal na mesma sala, pois eles não podiam arcar com os custos de aquecer mais de um cômodo. Erik estava no Exército, embora no momento se encontrasse estacionado perto de Berlim e em breve devesse receber uma licença para visitar a família.

           Ela se cobriu com uma capa de chuva convencional e guardou os sapatos brancos nos bolsos.

           Desceu até o hall, abriu a porta da frente e gritou:

           – Tchau, já volto! – E saiu correndo.

           Encontrou Frieda na estação da Friedrichstrasse. A amiga estava vestida de forma semelhante à sua: vestido listrado debaixo de um sobretudo bege simples e cabelos soltos. A principal diferença era que as roupas de Frieda eram novas e caras. Na plataforma, dois rapazes usando uniformes da Juventude Hitlerista encararam as duas com um misto de reprovação e desejo.

           Elas desceram no subúrbio de Wedding, bairro de classe trabalhadora que era um bastião da esquerda. Seguiram em direção ao Salão Pharus, onde antes costumavam acontecer as reuniões dos comunistas. Agora, naturalmente, não havia mais nenhuma atividade política ali. Mesmo assim, o prédio se tornara o centro de um movimento chamado Jovens do Swing.

           Jovens entre 15 e 25 anos de idade já começavam a se reunir nas ruas ao redor do salão. Os garotos usavam paletós listrados e carregavam guarda-chuva a fim de parecerem ingleses. Deixavam os cabelos crescerem, numa demonstração de desprezo pelas Forças Armadas. As garotas, por sua vez, usavam maquiagem e roupas esportivas ao estilo americano. Todos achavam a Juventude Hitlerista uma bobagem e uma chatice, com suas músicas folclóricas e seus bailes comunitários.

           Carla pensava que aquilo era uma ironia. Quando pequena, as outras crianças implicavam com ela e a chamavam de estrangeira porque sua mãe era inglesa. Agora um pouco mais velhas, essas mesmas crianças achavam que ser inglês era o auge da moda.

           Carla e Frieda entraram no salão. O lugar era sede de um clube juvenil convencional e inocente, com garotas de saias de pregas e garotos de calças curtas jogando pingue-pongue e bebendo um licor de laranja espesso. Mas o quente mesmo eram as salas laterais.

           Rapidamente, Frieda conduziu Carla até um amplo espaço que servia de depósito, com cadeiras empilhadas junto às paredes. Ali seu irmão Werner tinha ligado um toca-discos. De cinquenta a sessenta rapazes e moças dançavam o jitterbug. Carla reconheceu a música que estava tocando: “Ma, He’s Making Eyes at Me”. Ela e Frieda começaram a dançar.

           Como a maioria dos músicos de jazz era negra, os discos desse estilo musical eram proibidos na Alemanha. Os nazistas eram obrigados a denegrir tudo o que os não arianos fizessem bem, pois isso ameaçava sua teoria da superioridade. Infelizmente para eles, os alemães amavam o jazz tanto quanto qualquer outro povo. Viajantes que visitavam outros países traziam discos para casa e também era possível comprá-los de marinheiros americanos em Hamburgo. O mercado negro funcionava a todo vapor.

           Werner, é claro, tinha muitos discos. Ele tinha tudo: um carro, roupas modernas, cigarros, dinheiro. Continuava sendo o rapaz dos sonhos de Carla, embora sempre escolhesse moças mais velhas do que ela. Moças, não: mulheres, na verdade. Todos imaginavam que ele as levasse para a cama. Carla ainda era virgem.

           Heinrich von Kessel, o animado amigo de Werner, aproximou-se delas assim que chegaram e começou a dançar com Frieda. Usava paletó e colete pretos que, junto com seus cabelos escuros e meio compridos, produziam um efeito vistoso. Ele era louco por Frieda. Ela também gostava dele – adorava conversar com homens inteligentes –, mas não queria sair com ele porque o achava velho demais: tinha 25 ou 26 anos.

           Em pouco tempo, um rapaz que Carla não conhecia chamou-a para dançar, e a noite começou a se mostrar promissora.

           Ela se deixou levar pela música: a percussão irresistível e sensual, as letras cantadas de forma sugestiva, os emocionantes solos de trompete, o arroubo vivaz da clarineta. Ela rodopiava, dava chutes, fazia a saia rodar escandalosamente alto, caía nos braços de seu par e tornava a se afastar.

           Quando já havia mais ou menos uma hora que estavam dançando, Werner pôs uma música lenta. Frieda e Heinrich começaram a dançar de rosto colado. Não havia nenhum rapaz disponível de quem Carla gostasse o suficiente para dançar uma música lenta, por isso ela saiu da pista e foi pegar uma Coca-Cola. Seu país não estava em guerra com os Estados Unidos, então o xarope da Coca-Cola continuava a ser importado e engarrafado na Alemanha.

           Para sua surpresa, Werner a seguiu até o lado de fora da sala, deixando outra pessoa em seu lugar para trocar os discos por algum tempo. Ela ficou lisonjeada com o fato de o homem mais atraente da festa querer falar com ela.

           Carla lhe contou sobre a transferência de Kurt para Akelberg, e Werner disse que o mesmo acontecera com Axel, seu irmão caçula de 15 anos que tinha nascido com espinha bífida.

           – Será que o mesmo tratamento poderia funcionar para os dois? – indagou ele, com o cenho franzido.

           – Duvido, mas na verdade não sei dizer – respondeu Carla.

           – Por que será que os médicos nunca explicam o que estão fazendo? – questionou Werner, irritado.

           Ela deu uma risadinha sem graça.

           – Eles acham que, se as pessoas comuns entenderem a medicina, não vão mais reverenciá-los como deuses.

           – É o mesmo princípio de um vidente: fica mais impressionante se você não souber qual é o truque – comentou Werner. – Os médicos são tão egocêntricos quanto qualquer outra pessoa.

           – São muito mais – disse Carla. – Sou enfermeira, sei do que estou falando.

           Ela lhe contou sobre o folheto que tinha lido no trem.

           – Como você se sentiu em relação a isso? – indagou Werner.

           Carla hesitou. Era perigoso falar abertamente sobre esse tipo de coisa. Mas ela conhecia Werner desde menina, ele sempre fora de esquerda, e era um dos Jovens do Swing. Merecia sua confiança.

           – Agrada-me o fato de alguém estar se opondo aos nazistas – disse ela. – Isso mostra que nem todos os alemães estão paralisados pelo medo.

           – Há muitas coisas que se pode fazer contra os nazistas – disse ele em voz baixa. – Além de usar batom.

           Ela supôs que ele estivesse sugerindo que ela poderia distribuir aqueles panfletos. Será que Werner estava envolvido nesse tipo de atividade? Não. Ele era muito playboy. Heinrich talvez: era um rapaz muito arrebatado.

           – Não, obrigada – disse ela. – Tenho muito medo.

           Os dois terminaram suas Cocas e tornaram a entrar. A pista agora estava lotada e mal havia espaço para dançar.

           Para surpresa de Carla, Werner a convidou para a última dança. Pôs um disco de Bing Crosby cantando “Only Forever”. Carla ficou animada. Ele a segurou com força e, juntos, eles deslizaram, mais do que dançaram, ao som da balada lenta.

           No final, como era tradição, alguém apagou a luz por um minuto, para que os casais pudessem se beijar. Carla ficou encabulada: conhecia Werner desde que os dois eram crianças. No entanto, sempre se sentira atraída por ele, então ergueu o rosto, ansiosa. Como ela imaginava, ele lhe deu um beijo experiente e ela retribuiu com entusiasmo. Para seu deleite, sentiu a mão dele apalpar delicadamente seu seio. Incentivou-o abrindo a boca. Então a luz se acendeu e tudo terminou.

           – Bem, isso foi uma surpresa – disse ela, ofegante.

           Ele deu seu sorriso mais charmoso.

           – Talvez eu possa surpreender você de novo algum dia desses.

 

           Carla estava passando pelo hall de casa a caminho da cozinha para tomar café quando o telefone tocou.

           – Carla von Ulrich.

           Ouviu a voz de Frieda:

           – Ai, Carla, meu irmãozinho morreu!

           – O quê? – Carla mal pôde acreditar no que tinha escutado. – Ah, Frieda, eu sinto muito! Onde ele morreu?

           – Naquele hospital. – Frieda soluçava.

           Carla se lembrou de Werner ter lhe contado que Axel fora transferido para o mesmo hospital de Akelberg onde Kurt estava.

           – Morreu de quê?

           – Apendicite.

           – Que horror! – Carla estava triste pela amiga, mas também desconfiada. No mês anterior, quando o professor Willrich lhes falara sobre o novo tratamento de Kurt, tivera uma sensação ruim. Será que o tratamento era mais experimental do que o médico dera a entender? Será que poderia até ser perigoso? – Você sabe de mais alguma coisa?

           – Nós só recebemos uma carta breve. Meu pai está furioso. Ele ligou para o hospital, mas não conseguiu falar com os responsáveis.

           – Vou passar na sua casa. Chegarei aí em alguns minutos.

           – Obrigada.

           Carla desligou e entrou na cozinha.

           – Axel Franck morreu naquele tal hospital de Akelberg – anunciou.

           Walter, seu pai, estava conferindo a correspondência da manhã.

           – Ah! – exclamou ele. – Pobre Monika.

           Carla se lembrou de que, segundo as histórias da família, Monika Franck já fora apaixonada por Walter. A expressão preocupada no rosto do pai lhe pareceu tão sofrida que ela se perguntou se ele sentira algum carinho por Monika, mesmo estando apaixonado por Maud. Que complicação, o amor.

           A mãe de Carla, atualmente melhor amiga de Monika, comentou:

           – Ela deve estar arrasada.

           Walter tornou a baixar os olhos para a correspondência e disse, em tom de surpresa:

           – Esta carta é para Ada.

           O silêncio dominou a cozinha.

           Carla ficou encarando o envelope branco enquanto a empregada o pegava da mão de Walter.

           Ada não recebia muitas cartas.

           Erik estava em casa – era o último dia de sua curta licença –, de modo que quatro pessoas observaram Ada abrir o envelope.

           Carla prendeu a respiração.

           Ada sacou uma carta datilografada em papel timbrado. Leu a mensagem depressa, deu um arquejo e então começou a gritar:

           – Não! Não pode ser!

           Maud pulou da cadeira e tomou Ada nos braços.

           Walter pegou a carta de sua mão e leu.

           – Ah, não, que tristeza – falou. – Pobrezinho do Kurt. – Ele pousou o papel sobre a mesa do café da manhã.

           Ada começou a soluçar.

           – Meu menininho, meu menininho querido, e morreu longe da mãe... não posso suportar isso!

           Carla lutou para conter as lágrimas. Estava atordoada.

           – Axel e Kurt? – falou. – Ao mesmo tempo?

           Ela pegou a carta. O papel estava timbrado com o nome do hospital e o endereço em Akelberg. O texto dizia:

            

           Prezada Sra. Hempel,

           É com pesar que venho comunicar-lhe a perda irreparável de seu filho, Kurt Walter Hempel, de 8 anos. Ele faleceu no dia 4 de abril, neste hospital, em decorrência de um apêndice supurado. Todo o possível foi feito para tentar salvá-lo, mas sem resultado. Queira aceitar minhas mais sinceras condolências.

            

           A carta estava assinada pelo chefe da equipe médica.

           Carla ergueu os olhos. Sua mãe estava sentada ao lado de Ada, com os braços em volta dela e segurando sua mão enquanto ela soluçava.

           Carla também estava triste, porém mais alerta do que Ada. Foi com a voz trêmula que se dirigiu ao pai:

           – Há algo de errado nesta história.

           – Por que está dizendo isso?

           – Leia de novo. – Ela lhe entregou a carta. – Apendicite.

           – E daí?

           – Kurt já tinha removido o apêndice.

           – Eu me lembro – falou o pai. – Ele passou por uma cirurgia de emergência logo depois de completar 6 anos.

           À dor de Carla misturava-se uma desconfiança irritada. Será que Kurt tinha morrido por causa de alguma experiência perigosa que o hospital agora estava tentando acobertar?

           – Por que eles iriam mentir? – perguntou ela.

           Erik bateu com o punho na mesa.

           – Por que vocês estão dizendo que é mentira? – bradou. – Por que sempre acusam o governo? Está claro que isto é um erro! Algum datilógrafo se enganou ao copiar o texto!

           Mas Carla não tinha tanta certeza.

           – Um datilógrafo que trabalha num hospital provavelmente sabe o que é um apêndice.

           – Você está se aproveitando desta tragédia pessoal para atacar as autoridades! – disse Erik, furioso.

           – Calados, vocês dois – ordenou Walter.

           Os dois filhos olharam para ele. Havia um tom diferente em sua voz.

           – Erik talvez tenha razão – ponderou. – Se for assim, o hospital não vai criar problemas para responder às nossas perguntas e fornecer mais detalhes sobre as mortes de Kurt e Axel.

           – É claro que não – concordou Erik.

           – E, se quem tiver razão for Carla – prosseguiu Walter –, eles vão tentar impedir as investigações, guardar informações e intimidar os pais das crianças mortas sugerindo que suas perguntas são injustificadas.

           Tal sugestão deixou Erik menos à vontade.

           Meia hora antes, Walter era um homem murcho. Agora, por algum motivo, parecia ter ganhado corpo outra vez.

           – Vamos descobrir assim que começarmos a fazer perguntas.

           – Vou fazer uma visita a Frieda – disse Carla.

           – Você não tem que trabalhar? – indagou sua mãe.

           – Hoje estou no plantão da noite.

           Carla telefonou para Frieda, contou-lhe que Kurt também havia morrido e disse que estava indo lá para conversar sobre o assunto. Vestiu o sobretudo, pôs o chapéu e as luvas e empurrou a bicicleta até o lado de fora da casa. Era uma ciclista veloz, e levou apenas 15 minutos para chegar à residência dos Franck, em Schöneberg.

           O mordomo a deixou entrar e disse que a família ainda estava reunida na sala de jantar. Assim que ela pôs os pés no cômodo, o pai de Frieda, Ludwig Franck, perguntou-lhe aos berros:

           – O que disseram a vocês lá no Sanatório Infantil Wannsee?

           Carla não gostava muito de Ludwig. Era um homem truculento, de direita, e havia apoiado os nazistas nos primeiros tempos. Talvez tivesse mudado de opinião – àquela altura, muitos empresários já não pensavam como antes –, mas não demonstrava a humildade que deveria acompanhar o fato de ter estado tão errado.

           Ela não respondeu imediatamente. Sentou-se à mesa e olhou para a família reunida: Ludwig, Monika, Werner e Frieda, o mordomo parado ao fundo. Organizou as ideias.

           – Vamos, menina, diga! – exigiu Ludwig. Estava zangado e agitava no ar uma carta muito parecida com a de Ada.

           Monika levou a mão ao braço do marido para contê-lo.

           – Calma, Ludi.

           – Eu quero saber! – bradou ele.

           Carla encarou seu semblante rosado e seu bigodinho preto. Viu que ele estava transtornado de tristeza. Em qualquer outra circunstância, teria se recusado a conversar com alguém tão grosseiro. Mas Ludwig tinha uma desculpa para o mau comportamento, e ela resolveu deixar passar.

           – O diretor, professor Willrich, nos disse que havia um novo tratamento para a doença de Kurt.

           – O mesmo que disse a nós – falou Ludwig. – Que tipo de tratamento?

           – Eu lhe fiz essa mesma pergunta, mas ele alegou que eu não seria capaz de entender. Quando insisti, ele disse que o tratamento envolvia remédios, mas não deu informações mais detalhadas. Posso ver sua carta, Herr Franck?

           A expressão de Ludwig lhe deu a entender que era ele quem deveria estar fazendo as perguntas, mas mesmo assim ele entregou o papel a Carla.

           A carta era exatamente igual à de Ada, e a moça teve uma sensação esquisita de que o datilógrafo tinha escrito várias delas, mudando apenas os nomes.

           – Como é possível dois meninos terem morrido de apendicite ao mesmo tempo? – indagou Franck. – Não é uma doença contagiosa.

           – Kurt com certeza não morreu de apendicite, pois não tinha apêndice – disse Carla. – Foi removido há dois anos.

           – Certo – disse Ludwig. – Chega de conversa. – Ele arrancou a carta da mão de Carla. – Vou falar com alguém do governo sobre isso. – Ele saiu.

           Monika foi atrás do marido, seguida pelo mordomo.

           Carla foi até Frieda e segurou sua mão.

           – Eu sinto muito – falou.

           – Obrigada – respondeu Frieda com um sussurro.

           Carla foi até Werner. Ele se levantou e a abraçou. Ela sentiu uma lágrima cair em sua testa. Foi dominada por uma forte emoção que não soube identificar muito bem. Tinha o coração triste, mas a pressão do corpo de Werner contra o seu e o toque suave de suas mãos a deixaram animada.

           Depois de vários instantes, Werner deu um passo atrás.

           – Meu pai ligou duas vezes para o hospital – falou, zangado. – Da segunda vez, disseram que não tinham mais nenhuma informação e desligaram na cara dele. Mas vou descobrir o que aconteceu com meu irmão, e ninguém vai me dispensar.

           – Descobrir não vai trazê-lo de volta – declarou Frieda.

           – Mesmo assim, eu quero saber. Se for preciso, irei até Akelberg.

           – Fico me perguntando se há alguém em Berlim que possa nos ajudar – disse Carla.

           – Teria de ser alguém do governo – falou Werner.

           – O pai de Heinrich trabalha no governo – lembrou Frieda.

           Werner estalou os dedos.

           – É claro! Antigamente ele era do Partido do Centro, mas agora é nazista, e tem um cargo importante no Ministério das Relações Exteriores.

           – Será que Heinrich nos levaria para conversar com ele? – indagou Carla.

           – Se Frieda pedir, sim – respondeu Werner. – Ele faz qualquer coisa por Frieda.

           Carla não duvidava disso. Heinrich sempre fora muito intenso em tudo o que fazia.

           – Vou ligar para ele agora mesmo – disse Frieda.

           Ela foi até o hall. Carla e Werner sentaram-se lado a lado. Ele pôs o braço em volta dela, e ela encostou a cabeça em seu ombro. Carla não soube dizer se essas mostras de afeição eram apenas um efeito colateral da tragédia ou se tinham outro significado.

           Frieda voltou a entrar na sala e disse:

           – Se formos até lá imediatamente, o pai de Heinrich pode falar conosco agora mesmo.

           Entraram todos no carro esporte de Werner, espremendo-se no banco da frente.

           – Não sei como você consegue manter este carro funcionando – comentou Frieda quando o irmão começou a dirigir. – Nem papai consegue gasolina para uso particular.

           – Digo ao meu chefe que é para assuntos oficiais – respondeu Werner, que trabalhava para um general importante. – Mas não sei por quanto tempo ainda ele vai engolir essa história.

           A família Von Kessel morava no mesmo subúrbio que os Franck. Werner levou cinco minutos para chegar lá.

           Embora menor que a dos Franck, a residência dos Von Kessel era luxuosa. Heinrich foi recebê-los na porta e os conduziu até uma sala de estar cheia de livros encadernados em couro e com uma antiga escultura alemã em madeira representando uma águia.

           Frieda o cumprimentou com um beijo.

           – Obrigada por fazer isso – disse ela. – Não deve ter sido fácil... sei que você não se dá muito bem com seu pai.

           Heinrich ficou radiante de prazer.

           A mãe dele lhes ofereceu café e bolo. Parecia uma pessoa afetuosa, simples. Depois de servi-los, retirou-se como se fosse uma criada.

           Então Gottfried, pai de Heinrich, entrou na sala. Tinha os mesmos cabelos grossos e lisos do filho, só que grisalhos.

           – Pai, estes são Werner e Frieda Franck. O pai deles fabrica os “Rádios do Povo” – apresentou Heinrich.

           – Ah, sim – disse Gottfried. – Já vi seu pai no Herrenklub.

           – E esta é Carla von Ulrich... acredito que o senhor também conheça o pai dela.

           – Fomos colegas na embaixada alemã de Londres – respondeu Gottfried com cautela. – Em 1914.

           Ele claramente não estava feliz em ter sido lembrado de sua antiga associação com um social-democrata. Pegou um pedaço de bolo, deixou-o cair desastradamente em cima do tapete, tentou sem sucesso recolher as migalhas, então desistiu e se recostou na cadeira.

           Do que será que ele tem medo?, pensou Carla.

           Heinrich foi direto ao motivo da visita:

           – Pai, imagino que o senhor já tenha ouvido falar em Akelberg.

           Carla observava Gottfried com atenção. Algo atravessou seu semblante por uma fração de segundo, mas ele logo adotou uma expressão indiferente.

           – Uma cidadezinha na Bavária? – falou.

           – Tem um hospital lá – disse Heinrich. – Para deficientes mentais.

           – Não me lembro de ter ouvido falar disso.

           – Desconfiamos que alguma coisa estranha esteja acontecendo por lá, e estávamos nos perguntando se o senhor estaria a par.

           – É claro que não. O que está acontecendo por lá?

           Werner entrou na conversa:

           – Meu irmão morreu nesse hospital, de apendicite, ao que parece. O filho da criada dos Von Ulrich morreu no mesmo dia, no mesmo hospital, da mesma doença.

           – Que tristeza... Mas deve ser coincidência, não?

           – O filho da minha criada não tinha apêndice – disse Carla. – Ele foi submetido a uma cirurgia para retirá-lo há dois anos.

           – Entendo que vocês estejam ansiosos para averiguar o que aconteceu – disse Gottfried. – A versão fornecida é muito insatisfatória. Mas a explicação mais provável é que haja um erro no documento.

           – Neste caso, gostaríamos de ter certeza – disse Werner.

           – É claro. Já escreveram para o hospital?

           – Escrevi uma vez perguntando quando minha criada poderia visitar o filho – disse Carla. – Ninguém nunca respondeu.

           – Meu pai ligou para o hospital hoje de manhã – disse Werner. – O chefe da equipe médica bateu o telefone na cara dele.

           – Puxa. Que falta de educação. Mas vocês sabem que isso não chega a ser um assunto para o Ministério das Relações Exteriores.

           Werner inclinou o corpo para a frente.

           – Herr Von Kessel, seria possível que os dois meninos estivessem envolvidos num experimento secreto que deu errado?

           – Não, impossível – respondeu ele, e Carla teve a sensação de que era verdade. – Isso com certeza não está acontecendo. – Sua voz soava aliviada.

           As perguntas de Werner pareciam ter se esgotado, mas Carla não estava satisfeita. Perguntou-se por que Gottfried parecia tão feliz com a garantia que acabara de dar. Será que estava escondendo algo ainda pior?

           Ocorreu-lhe uma possibilidade tão terrível que ela mal conseguiu concebê-la.

           – Bem, se for só isso... – disse Gottfried.

           – O senhor tem certeza de que eles não morreram por causa de uma terapia experimental que deu errado? – indagou Carla.

           – Certeza absoluta.

           – Para ter tanta certeza de que não foi por isso, o senhor deve ter alguma ideia do que de fato está acontecendo em Akelberg.

           – Não necessariamente – disse ele, mas toda a sua tensão havia retornado, e ela percebeu que havia tocado num ponto sensível.

           – Eu me lembro de ter visto um cartaz nazista – prosseguiu ela. Fora essa a lembrança que desencadeara a terrível ideia que acabara de ter. – Mostrava um enfermeiro ao lado de um deficiente mental. O texto dizia algo como “Sessenta mil marcos alemães: é o que essa pessoa portadora de um defeito hereditário custa para nossa sociedade durante a vida. Companheiro, esse dinheiro é seu também!” Acho que era um anúncio numa revista.

           – Já vi propagandas desse tipo – disse Gottfried com desdém, como se aquilo não tivesse nada a ver com ele.

           Carla se levantou.

           – Herr Von Kessel, o senhor é católico e criou Heinrich segundo os preceitos da fé cristã.

           – Heinrich agora diz que é ateu – disse Gottfried, com um muxoxo de desdém.

           – Mas o senhor não é. E considera a vida humana sagrada.

           – Sim, considero.

           – Está nos dizendo que os médicos de Akelberg não estão testando novas e perigosas terapias nos deficientes, e acredito no senhor.

           – Obrigado.

           – Mas eles por acaso estão fazendo outra coisa? Algo ainda pior?

           – Não, não.

           – Eles estão matando os deficientes de propósito?

           Gottfried balançou a cabeça em silêncio.

           Carla chegou mais perto dele e baixou a voz, como se houvesse apenas os dois na sala:

           – Como um católico que considera a vida humana sagrada, o senhor seria capaz de pôr a mão no coração e me dizer que crianças deficientes mentais não estão sendo assassinadas em Akelberg?

           Gottfried sorriu, fez um gesto tranquilizador e abriu a boca para falar, mas não conseguiu pronunciar uma palavra sequer.

           Carla se ajoelhou no tapete diante dele.

           – Pode fazer isso agora, por favor? Neste instante? Aqui na sua casa estão quatro jovens alemães, seu filho e três amigos. Conte-nos a verdade, é só o que lhe pedimos. Olhe nos meus olhos e diga que o seu governo não mata crianças deficientes.

           O silêncio na sala era total. Gottfried pareceu prestes a dizer alguma coisa, mas mudou de ideia. Fechou os olhos com força, torceu a boca num esgar e então baixou a cabeça. Os quatro jovens ficaram observando, com assombro, seu rosto contorcido.

           Por fim, ele abriu os olhos. Olhou para cada um deles, e por último encarou o próprio filho.

           Então se levantou e saiu da sala.

 

           No dia seguinte, Werner disse a Carla:

           – Que horror. Estamos falando sobre o mesmo assunto há mais de 24 horas. Se não fizermos outra coisa, acabaremos loucos. Vamos ao cinema.

           Eles foram até a Kurfürstendamm, uma rua de teatros e lojas que todos chamavam de Ku’damm. A maioria dos bons cineastas alemães já tinha ido para Hollywood anos antes, e os filmes produzidos no país agora eram de segunda categoria. Eles assistiram a Três soldados, que se passava durante a invasão da França.

           Os três soldados eram um sargento nazista durão, um rapaz que vivia choramingando e reclamando e tinha um ar de judeu, e um jovem idealista. O idealista fazia perguntas do tipo “Mas os judeus nos fazem algum mal?” e, em resposta, ouvia longas e severas preleções do sargento. Quando a batalha começava, o chorão admitia ser comunista, desertava e morria atingido por uma bomba durante um ataque aéreo. O idealista lutava com bravura, era promovido a sargento e tornava-se um admirador do Führer. O roteiro era ruim, mas as cenas de batalha eram emocionantes.

           Werner segurou a mão de Carla durante todo o filme. Ela torceu para que ele a beijasse na sala escura, mas isso não aconteceu.

           Quando as luzes se acenderam, ele falou:

           – Bem, o filme era péssimo, mas ao menos consegui me distrair por algumas horas.

           Os dois saíram do cinema e foram até o carro.

           – Quer dar uma volta? – sugeriu ele – Talvez seja nossa última oportunidade. A partir da próxima semana este carro vai ficar na garagem.

           Ele dirigiu até a floresta de Grunewald. No caminho, Carla voltou a pensar na conversa que tivera com Gottfried von Kessel na véspera. Por mais que a virasse e revirasse na mente, não havia como evitar a terrível conclusão à qual todos os quatro haviam chegado. Kurt e Axel não tinham sido vítimas acidentais de um experimento médico perigoso, como ela pensara no início. Gottfried havia negado isso de forma veemente. No entanto, apesar de se esforçar, ele não conseguira negar que o governo estava matando deliberadamente os deficientes e mentindo para as famílias. Era difícil acreditar nisso, mesmo em se tratando de pessoas implacáveis e brutais como os nazistas. No entanto, a reação de Gottfried fora o exemplo mais óbvio de culpa que Carla já testemunhara na vida.

           Quando chegaram à floresta, Werner saiu da estrada e percorreu uma trilha de terra batida até o carro ficar escondido pela vegetação. Carla imaginou que ele já tivesse levado outras garotas até ali.

           Ele apagou os faróis e eles foram cercados por uma escuridão profunda.

           – Vou falar com o general Dorn – disse ele. Dorn era seu chefe, um oficial importante da Aeronáutica. – E você?

           – Meu pai disse que não existe mais oposição política, mas que as igrejas continuam fortes. Ninguém que seja fiel às suas crenças religiosas aprovaria o que está sendo feito.

           – Você é religiosa? – perguntou Werner.

           – Na verdade, não. Meu pai é. Para ele, a fé protestante faz parte da herança alemã que tanto ama. Minha mãe frequenta a igreja com ele, embora eu desconfie que a teologia dela talvez não seja tão ortodoxa. Eu acredito em Deus, mas não consigo imaginar que Ele se importe com o fato de as pessoas serem protestantes, católicas, muçulmanas ou budistas. E gosto de cantar os hinos.

           A voz de Werner se transformou num sussurro:

           – Não consigo acreditar num Deus que deixa os nazistas assassinarem crianças.

           – Não culpo você por isso.

           – O que seu pai vai fazer?

           – Falar com o pastor da nossa igreja.

           – Ótimo.

           Os dois passaram algum tempo em silêncio. Ele passou o braço em volta dela.

           – Tudo bem? – perguntou, com um sussurro.

           Ela estava tensa de tanta expectativa e sua voz pareceu falhar. Sua resposta soou como um grunhido. Ela tentou outra vez e conseguiu dizer:

           – Se isso fizer você parar de se sentir tão triste... sim.

           Então ele a beijou.

           Ela retribuiu o beijo com sofreguidão. Ele acariciou-lhe os cabelos e, em seguida, os seios. Nesse ponto, ela sabia que muitas garotas lhe pediriam que parasse. Segundo elas, se você fosse mais longe, poderia perder o controle.

           Carla decidiu arriscar.

           Tocou seu rosto enquanto ele a beijava. Acariciou-lhe o pescoço com a ponta dos dedos, deliciando-se com a textura de sua pele cálida. Pôs a mão dentro do paletó dele e começou a explorar seu corpo, deslizando os dedos pelos ombros, as costelas e a espinha.

           Ao sentir a mão dele em sua coxa, por baixo da saia, ela deu um suspiro. Assim que ele a tocou entre as pernas, ela afastou os joelhos. As moças diziam que os rapazes a considerariam uma vadia se fizesse isso, mas ela não conseguiu evitar.

           Ele a tocou exatamente no ponto certo. Não tentou pôr a mão dentro de sua roupa de baixo, mas a acariciou de leve por cima do tecido de algodão. Ela se ouviu emitir pequenos gemidos, primeiro bem baixinho, em seguida mais alto. Depois de algum tempo, gritou de prazer, enterrando o rosto no pescoço dele para abafar o som. Então teve que afastar a mão dele, porque o lugar ficara demasiado sensível.

           Carla estava ofegante. Quando começou a recuperar o fôlego, beijou o pescoço dele. Werner tocou seu rosto carinhosamente.

           Depois de alguns segundos, ela perguntou:

           – Posso fazer alguma coisa por você?

           – Só se você quiser.

           Ela ficou encabulada por querer tanto fazer aquilo.

           – O único problema é que eu nunca...

           – Eu sei – disse ele. – Deixe que eu mostro.

 

           O pastor Ochs era corpulento, tinha uma vida confortável e morava numa casa grande com sua esposa simpática e cinco filhos. Carla temeu que ele não fosse querer se envolver naquela história. Mas ela o havia subestimado. Ele já ouvira boatos que vinham atormentando sua consciência, e concordou em acompanhar Walter até o Sanatório Infantil Wannsee. O professor Willrich não poderia recusar a visita de um religioso interessado.

           Como Carla estivera presente no encontro do médico com Ada, os dois decidiram levá-la também. Talvez o diretor achasse mais difícil mudar sua história na frente dela.

           No trem, Ochs sugeriu que seria melhor ele próprio falar.

           – O diretor deve ser nazista – disse. A maioria das pessoas que ocupava cargos de direção era filiada ao partido. – É natural que considere um ex-deputado social-democrata seu inimigo. Vou desempenhar o papel de árbitro imparcial. Acho que assim poderemos descobrir mais coisas.

           Carla não estava tão certa disso. Na sua opinião, o pai seria um interrogador mais experiente. Walter, porém, aceitou a sugestão do pastor.

           Era primavera, e o tempo estava mais quente do que na última visita de Carla. Havia barcos no lago. Carla decidiu pedir a Werner que fizessem um piquenique ali. Queria aproveitar o máximo que podia, antes de ele se afastar dela para sair com outra garota.

           Na sala do professor Willrich, a lareira estava acesa, mas uma janela aberta deixava entrar a brisa fresca vinda do lago.

           O diretor apertou a mão do pastor Ochs e de Walter. Lançou um breve olhar de reconhecimento para Carla e, em seguida, a ignorou. Convidou-os a se sentarem, mas Carla percebeu que, por baixo daquele verniz de cortesia, havia certa hostilidade. Estava claro que o professor não gostava da ideia de ser interrogado. Pegou um de seus cachimbos e, nervoso, começou a manuseá-lo. Nesse dia, diante de dois homens no lugar de duas mulheres jovens, estava menos arrogante.

           Ochs iniciou a conversa:

           – Professor Willrich, Herr Von Ulrich e outros membros da minha congregação estão preocupados com as misteriosas mortes de várias crianças deficientes que eles conheciam.

           – Nenhuma criança morreu de forma misteriosa aqui – disparou Willrich em resposta. – Na verdade, nenhuma criança morreu aqui nos últimos dois anos.

           Ochs se virou para Walter.

           – Considero isso muito reconfortante, Walter, você não?

           – Sim – respondeu Walter.

           Carla não pensava o mesmo, mas manteve a boca fechada por enquanto.

           Ochs prosseguiu com voz melíflua:

           – Tenho certeza de que seus pacientes recebem os melhores cuidados possíveis.

           – Sim. – Willrich pareceu um pouco menos ansioso.

           – Mas vocês transferem crianças para outros hospitais?

           – É claro, se outra instituição puder oferecer ao paciente algum tratamento não disponível aqui.

           – E, quando uma criança é transferida, imagino que os senhores não sejam necessariamente mantidos a par do tratamento que ela recebe ou de seu estado de saúde.

           – Exato!

           – A não ser que elas voltem.

           Willrich não disse nada.

           – Alguma delas voltou?

           – Não.

           Ochs deu de ombros.

           – Neste caso, o senhor não pode saber o que aconteceu com elas.

           – Justamente.

           Ochs se recostou na cadeira e abriu os braços, num gesto franco.

           – Quer dizer que não tem nada a esconder!

           – Absolutamente nada.

           – Algumas dessas crianças que foram transferidas morreram.

           Willrich ficou calado.

           Com delicadeza, o pastor insistiu:

           – Isso é verdade, não é?

           – Não posso lhe dar certeza, Herr Pastor.

           – Ah! – exclamou Ochs. – Afinal, o senhor não seria avisado nem mesmo se uma dessas crianças morresse.

           – Como já foi dito anteriormente.

           – Perdoe-me ser repetitivo, mas só quero esclarecer, de forma que não reste nenhuma dúvida, que o senhor não pode ser solicitado a esclarecer essas mortes.

           – De forma alguma.

           Mais uma vez, Ochs se virou para Walter.

           – Acho que estamos esclarecendo as coisas de forma esplêndida.

           Walter assentiu.

           Carla, por sua vez, quis dizer: Nada foi esclarecido!

           Mas Ochs tinha voltado a falar:

           – Quantas crianças aproximadamente foram transferidas, digamos, nos últimos 12 meses?

           – Dez – respondeu Willrich. – Exatamente dez. – Ele deu um sorriso condescendente. – Nós, cientistas, preferimos não trabalhar com aproximações.

           – Dez pacientes de...?

           – Hoje temos aqui 107 crianças.

           – Uma proporção bem pequena! – disse Ochs.

           Carla estava ficando irritada. Era óbvio que Ochs estava do lado de Willrich! Por que seu pai engolia aquilo?

           – E todas essas crianças sofriam da mesma doença, ou de várias? – perguntou Ochs.

           – Várias. – Willrich abriu uma pasta em cima da mesa. – Debilidade mental, síndrome de Down, microcefalia, hidrocefalia, malformação dos membros, do crânio e da coluna vertebral, e paralisia.

           – São esses os tipos de pacientes que o senhor foi instruído a encaminhar para Akelberg?

           Aquilo era um avanço. Era a primeira menção a Akelberg e a primeira sugestão de que Willrich recebera instruções de uma instância superior. Talvez Ochs fosse mais sutil do que parecia.

           Willrich abriu a boca para dizer alguma coisa, mas Ochs se antecipou a ele e fez outra pergunta:

           – Onde todas deveriam receber o mesmo tratamento especial?

           Willrich sorriu.

           – Mais uma vez, não fui informado, de modo que não posso lhe dizer.

           – Simplesmente acatou...

           – As instruções que recebi, sim.

           Ochs sorriu.

           – O senhor é um homem prudente. Escolhe as palavras com cuidado. As crianças tinham idades variadas?

           – No início, o programa se limitava às crianças com menos de 3 anos, mas depois foi ampliado para atender a todas as idades.

           Carla reparou na menção a um “programa”. Aquilo não tinha sido admitido antes. Começou a perceber que Ochs era mais esperto do que parecia à primeira vista.

           O pastor pronunciou a frase seguinte como se estivesse confirmando algo que já havia sido dito:

           – E todas as crianças deficientes judias foram incluídas, independentemente da deficiência específica que tivessem.

           Seguiram-se alguns instantes de silêncio. Willrich pareceu chocado. Carla se perguntou como Ochs sabia sobre as crianças judias. Talvez não soubesse e estivesse apenas dando um palpite.

           Após uma pausa, o pastor acrescentou:

           – Crianças judias e de raça mista, melhor dizendo.

           Willrich não falou nada, mas assentiu de leve.

           – Nos dias de hoje – prosseguiu Ochs –, é raro crianças judias terem preferência... não é?

           Willrich desviou os olhos.

           O pastor se levantou e, quando tornou a falar, sua voz ecoou de tanta raiva:

           – Então, o senhor está me dizendo que dez crianças portadoras de doenças variadas, que não poderiam de forma alguma receber o mesmo tratamento, foram transferidas para um hospital especial do qual jamais voltaram, e que as crianças judias tiveram prioridade. O que achou que fosse acontecer com essas crianças, Herr Professor Doutor Willrich? Pelo amor de Deus, o que o senhor achou?

           Willrich parecia que iria chorar.

           – O senhor pode não responder, é claro – disse Ochs, em voz mais baixa. – Mas um dia uma autoridade superior vai lhe fazer a mesma pergunta. Na verdade, a maior autoridade de todas. – Ele esticou o braço e apontou um dedo acusador. – E nesse dia, meu filho, você vai responder.

           Então o pastor virou as costas e saiu da sala.

           Carla e Walter foram atrás.

 

           O inspetor Thomas Macke sorriu. Às vezes, os inimigos do Estado faziam seu trabalho por ele. Em vez de operar em segredo e de se esconder em lugares onde fosse difícil encontrá-los, vinham até ele, identificavam-se e forneciam generosamente provas irrefutáveis de seus crimes. Eram como peixes que não precisavam de isca nem de anzol – simplesmente pulavam do rio para dentro da cesta do pescador e imploravam para serem fritos.

           O pastor Ochs era um desses peixes.

           Macke tornou a ler a carta escrita pelo pastor, endereçada ao ministro da Justiça, Franz Gürtner.

            

           Prezado Senhor Ministro,

           O governo está matando crianças deficientes? Faço essa pergunta assim, sem rodeios, porque preciso de uma resposta clara.

            

           Que idiota! Se a resposta fosse não, aquilo era uma calúnia criminosa. Se fosse sim, Ochs era culpado de revelar segredos de Estado. Será que ele não conseguia entender isso por conta própria?

            

           Depois que se tornou impossível ignorar os boatos que vinham circulando na minha congregação, fiz uma visita ao Sanatório Infantil Wannsee e conversei com o diretor da instituição, professor Willrich. Suas respostas foram tão insatisfatórias que fiquei convencido de que algo terrível está acontecendo, algo que provavelmente é um crime e, sem dúvida, um pecado.

            

           Aquele homem tinha a ousadia de escrever sobre crimes! Por acaso não lhe ocorria a ideia de que acusar agências governamentais de atos ilegais era, por si só, um ato ilegal? Ele por acaso achava que vivia numa democracia liberal degenerada?

           Macke sabia do que Ochs estava falando. O programa se chamava Aktion T4, em referência a seu endereço, o número 4 da Tiergartenstrasse. Oficialmente, o lugar se chamava Fundação Beneficente para a Cura e o Cuidado Institucional, embora fosse supervisionada pelo escritório particular de Hitler, a Chancelaria do Führer. Sua tarefa era providenciar a morte indolor dos deficientes que não pudessem sobreviver sem cuidados dispendiosos. A agência vinha fazendo um trabalho exemplar nos últimos anos e já tinha se livrado de dezenas de milhares de pessoas inúteis.

           O problema era que a opinião pública alemã ainda não possuía sofisticação suficiente para entender a necessidade dessas mortes, por isso o programa precisava ser mantido em sigilo.

           Macke estava a par do segredo. Tinha sido promovido a inspetor e finalmente aceito na elite paramilitar do Partido Nazista, a Schutzstaffel, ou SS. Fora informado sobre o Aktion T4 ao ser encarregado do caso Ochs. Não cabia em si de orgulho: agora estava de fato por dentro das coisas.

           Infelizmente, algumas pessoas haviam sido descuidadas, e existia o risco de que informações sobre o Aktion T4 vazassem.

           A tarefa de Macke era cobrir esse furo.

           Investigações preliminares logo revelaram que três homens precisavam ser silenciados: o pastor Ochs, Walter von Ulrich e Werner Franck.

           Franck era o filho mais velho de um fabricante de rádios que fora um importante partidário do nazismo nos primeiros tempos. O próprio industrial, Ludwig Franck, exigira, furioso, informações sobre a morte de seu filho caçula, que era deficiente. No entanto, após uma ameaça de fechamento de suas fábricas, se calara. Já o jovem Werner, oficial em rápida ascensão no Ministério da Aeronáutica, insistira em fazer perguntas constrangedoras e tentara envolver seu influente superior, o general Dorn.

           O Ministério da Aeronáutica, que diziam ser o maior prédio de escritórios da Europa, era um edifício ultramoderno que ocupava um quarteirão inteiro da Wilhelmstrasse, bem perto do quartel-general da Gestapo, na Prinz-Albrecht-Strasse. Macke foi a pé até lá.

           Vestido com seu uniforme da SS, pôde ignorar os sentinelas. Diante da mesa da recepção, bradou:

           – Leve-me até o tenente Werner Franck imediatamente.

           A recepcionista o conduziu de elevador até um dos andares superiores, depois o guiou por um corredor até a porta aberta de uma pequena sala. No início, o rapaz sentado à mesa não ergueu os olhos dos papéis à sua frente. Ao observá-lo, Macke calculou que tivesse 22 anos. Por que não estava no front bombardeando a Inglaterra? O pai decerto mexera alguns pauzinhos, pensou Macke, ressentido. Werner tinha o aspecto de um filho da classe privilegiada: uniforme feito sob medida, anéis de ouro e cabelos muito compridos, visivelmente não militares. Macke já o desprezava.

           Werner fez uma anotação a lápis e depois ergueu os olhos. A expressão afável de seu rosto logo se apagou ao ver o uniforme da SS, e Macke observou com interesse um lampejo de medo. O rapaz tentou disfarçar com uma demonstração de simpatia excessiva, levantando-se em atitude respeitosa e dando um sorriso de boas-vindas, mas o inspetor não se deixou enganar.

           – Boa tarde, inspetor – disse Werner. – Sente-se, por favor.

           – Heil Hitler! – saudou Macke.

           – Heil Hitler! Em que posso ajudá-lo?

           – Sente-se e cale a boca, garoto idiota – cuspiu Macke.

           Werner se esforçou para esconder o medo.

           – O que fiz para causar tamanha ira?

           – Não se atreva a me questionar. Só fale quando for solicitado.

           – Como quiser.

           – A partir de agora, você não vai fazer mais nenhuma pergunta sobre seu irmão Axel.

           Macke ficou surpreso ao ver uma expressão momentânea de alívio cruzar o rosto de Werner. Que curioso! Será que ele tivera medo de outra coisa, algo mais assustador que uma simples ordem para não fazer mais perguntas sobre o irmão? Será que Werner estava envolvido em outras atividades subversivas?

           Provavelmente não, pensou Macke após refletir um pouco. O mais provável era que estivesse aliviado por não ser preso e levado para os porões da Prinz-Albrecht-Strasse.

           Mas Werner ainda não estava completamente acovardado. Reuniu coragem para perguntar:

           – Por que não devo investigar a morte de meu irmão?

           – Já falei para não me questionar. Saiba que você só está sendo tratado de forma branda porque seu pai tem sido um amigo valioso do Partido Nazista. Se não fosse por isso, seria você que estaria na minha sala. – Essa era uma ameaça que qualquer um entendia.

           – Fico grato pela sua indulgência – disse Werner, esforçando-se para manter um fiapo de dignidade. – Mas quero saber quem matou meu irmão, e por quê.

           – Não importa o que faça, não vai saber de mais nada. E qualquer nova investigação será considerada alta traição.

           – Depois desta visita, não preciso investigar mais nada. Agora está claro que as minhas piores suspeitas são verdadeiras.

           – Exijo que pare imediatamente com essa campanha sediciosa.

           Werner o encarou com ar desafiador, mas não disse nada.

           – Se não parar, o general Dorn será informado de que a sua lealdade está sendo questionada – disse Macke.

           Werner não tinha dúvidas do que ele estava querendo dizer. Iria perder o emprego em Berlim e seria despachado para uma caserna em alguma pista de pouso no norte da França.

           Sua expressão se fez menos desafiadora e mais pensativa.

           Macke se levantou. Já havia passado muito tempo ali.

           – Parece que o general Dorn o considera um assessor capaz e inteligente – disse. – Se fizer a coisa certa, talvez continue assim.

           Macke saiu da sala, mas estava nervoso, insatisfeito. Não tinha certeza se havia conseguido dobrar Werner. Sentira que o rapaz tinha um ar desafiador que permanecera intocado.

           Voltou os pensamentos para o pastor Ochs. Com o religioso seria necessário uma abordagem diferente. Macke voltou ao quartel-general da Gestapo e reuniu uma pequena equipe: Reinhold Wagner, Klaus Richter e Günther Schneider. Os quatro pegaram um Mercedes 260D preto, o carro preferido da polícia secreta, que passava despercebido por ser do mesmo modelo e da mesma cor de muitos táxis berlinenses. Nos primeiros tempos, a Gestapo fora incentivada a manter grande visibilidade e deixar a população ver a forma brutal como lidava com a oposição. No entanto, a tarefa de aterrorizar o povo alemão já fora completada muito tempo antes e a violência aberta já não era mais necessária. Hoje em dia, a Gestapo agia com discrição, sempre sob o manto da legalidade.

           Os quatro foram até a casa de Ochs, ao lado da grande igreja protestante de Mitte, o bairro central de Berlim. Assim como Werner talvez achasse que tinha a proteção do pai, Ochs devia imaginar que a Igreja garantia sua segurança. Estava prestes a descobrir que não era bem assim.

           Macke tocou a campainha. Antigamente, teriam derrubado a porta, só para impressionar.

           Uma criada veio abrir e ele adentrou um hall amplo e bem-iluminado, com piso de tábuas enceradas e tapetes pesados. Os outros três agentes entraram atrás.

           – Onde está seu patrão? – perguntou Macke à empregada, em tom educado.

           Apesar de ele não a ter ameaçado, ainda assim ela estava com medo.

           – No escritório, senhor – falou, apontando para uma porta.

           – Reúna as mulheres e as crianças na sala ao lado.

           Ochs abriu a porta do escritório e espiou para o hall, com o cenho franzido.

           – O que está havendo aqui? – perguntou, indignado.

           Macke caminhou direto para cima dele, forçando-o a dar um passo atrás e a entrar no escritório. Era um cômodo pequeno, bem-equipado, com uma escrivaninha de tampo de couro e várias estantes tomadas por volumes contendo comentários sobre os textos bíblicos.

           – Feche a porta – ordenou Macke.

           Com relutância, Ochs obedeceu.

           – É melhor o senhor ter uma explicação muito boa para esta intrusão – falou em seguida.

           – Sente-se e cale a boca – bradou Macke.

           Ochs ficou pasmo. Provavelmente ninguém o mandava calar a boca desde que ele era menino. Insultos ao clero não eram comuns, nem mesmo vindos da polícia. Mas os nazistas ignoravam essas convenções enfraquecedoras.

           – Mas isto é um ultraje! – conseguiu dizer Ochs, por fim. Então sentou-se.

           Do lado de fora do escritório, uma voz de mulher se ergueu em protesto: a esposa, decerto. Ochs empalideceu ao ouvir aquilo e se levantou da cadeira.

           Macke o empurrou para fazê-lo sentar outra vez.

           – Fique aí.

           O pastor era um homem pesado e mais alto do que Macke, mas não resistiu.

           O inspetor adorava ver sujeitinhos pomposos como ele encolhidos de medo.

           – Quem é o senhor? – perguntou Ochs.

           Macke nunca respondia a essa pergunta. É claro que eles podiam adivinhar, porém era mais assustador se não tivessem certeza. Depois, se alguém por acaso questionasse a operação, toda a equipe juraria ter começado se identificando como agentes da polícia e mostrando os distintivos.

           Ele saiu do escritório. Seus homens estavam empurrando várias crianças para a sala de visitas. Macke mandou que Reinhold Wagner fosse até o escritório e mantivesse Ochs lá dentro. Então entrou na outra sala atrás das crianças.

           Havia cortinas floridas, fotos de família no consolo da lareira e um conjunto de confortáveis poltronas estofadas com tecido xadrez. Uma bela casa, uma bela família. Por que não podiam ser leais ao Reich e cuidar da própria vida?

           A criada estava junto à janela, com a mão na boca, como se tentasse impedir a si mesma de gritar. Quatro filhos se aglomeravam ao redor da esposa de Ochs, uma mulher feia, de seios fartos, na casa dos 30 anos. Ela segurava no colo uma quinta criança, uma menina de 2 anos com a cabeça cheia de cachinhos louros.

           Macke afagou a cabeça da menina.

           – Qual é o nome desta pequenina aqui? – indagou.

           Frau Ochs estava apavorada.

           – Lieselotte – sussurrou em resposta. – O que o senhor quer conosco?

           – Venha com o tio Thomas, pequena Lieselotte – disse Macke, estendendo os braços.

           – Não! – gritou Frau Ochs, segurando a menina com mais força e virando-se para o outro lado.

           Lieselotte começou a chorar bem alto.

           Macke meneou a cabeça para Klaus Richter.

           Richter segurou Frau Ochs por trás, puxando seus braços para junto das costas e forçando-a a soltar a filha. Macke segurou Lieselotte antes que ela caísse. A menina se contorceu como um peixe, mas ele simplesmente a segurou com mais força, como teria feito com um gato. Ela chorou ainda mais alto.

           Um menino de seus 12 anos partiu para cima de Macke, desferindo golpes inofensivos com os punhos pequenos. Já estava na hora de ele aprender a respeitar uma autoridade, decidiu o inspetor. Apoiando Lieselotte no quadril esquerdo, agarrou o menino pela frente da camisa, levantou-o do chão e o jogou do outro lado da sala, certificando-se de que ele aterrissasse sobre uma das poltronas. O garoto berrou de medo, e Frau Ochs também gritou. A poltrona caiu para trás e o menino se estatelou no chão. Não chegou a se machucar, mas abriu o berreiro.

           Macke levou Lieselotte para o hall. A menina gritava a plenos pulmões, chamando a mãe. Macke a pôs no chão. Ela correu até a porta da sala de visitas e começou a bater, guinchando de terror. Ainda não aprendera a girar maçanetas, constatou Macke.

           Deixando a menina no hall, o inspetor tornou a entrar no escritório. Wagner estava junto à porta, vigiando-a. Ochs encontrava-se de pé no meio do cômodo, pálido de medo.

           – O que está fazendo com meus filhos? – indagou. – Por que Lieselotte está gritando?

           – O senhor vai escrever uma carta – disse Macke.

           – Sim, sim, qualquer coisa – respondeu Ochs, dirigindo-se à escrivaninha com tampo de couro.

           – Agora não, mais tarde.

           – Está bem.

           Macke estava gostando daquilo. Ao contrário de Werner, Ochs rendera-se completamente.

           – Uma carta para o ministro da Justiça – prosseguiu ele.

           – Então é disso que se trata.

           – Vai dizer que agora percebe que não havia verdade nenhuma nas alegações feitas em sua primeira carta. Comunistas clandestinos o levaram a se enganar. Vai pedir desculpas ao ministro pelos problemas causados por suas ações impensadas e garantir que nunca mais tocará no assunto com ninguém.

           – Sim, vou escrever. O que estão fazendo com minha mulher?

           – Nada. Ela está gritando por causa do que vai acontecer com ela caso o senhor não escreva a carta.

           – Quero vê-la.

           – Vai ser pior para ela se o senhor me incomodar com pedidos idiotas.

           – É claro, sinto muito, peço que me desculpe.

           Os oponentes do nazismo eram tão fracos!

           – Escreva a carta hoje à noite e ponha no correio amanhã.

           – Sim. Devo lhe mandar uma cópia?

           – Ela vai chegar a mim de qualquer maneira, seu imbecil. Por acaso acha que o ministro lê pessoalmente os seus rabiscos sem sentido?

           – Não, é claro que não, eu entendo.

           Macke foi até a porta.

           – E fique longe de pessoas como Walter von Ulrich.

           – Ficarei. Prometo.

           Macke saiu e acenou para que Wagner o seguisse. Sentada no chão, Lieselotte gritava descontroladamente. Macke abriu a porta da sala de visitas e chamou Richter e Schneider.

           Os quatro saíram da casa.

           – Às vezes a violência é realmente desnecessária – comentou Macke, pensativo, enquanto entravam no carro.

           Wagner assumiu o volante, e Macke lhe deu o endereço da casa dos Von Ulrich.

           – Mas, em outros casos, é o jeito mais simples – acrescentou.

           Von Ulrich morava no mesmo bairro da igreja, num antigo imóvel espaçoso que ele obviamente não tinha dinheiro para manter. A tinta estava descascando, havia ferrugem por toda a grade e uma vidraça quebrada fora tapada com papelão. Não era algo raro de se ver: a austeridade da guerra estava prejudicando a manutenção de muitas casas.

           A porta foi aberta por uma criada. Macke deduziu que devia ser a mulher cujo filho deficiente causara todo aquele problema, mas não se deu o trabalho de perguntar. Prender moças era perda de tempo.

           Walter von Ulrich entrou no hall vindo de um cômodo lateral.

           Macke se lembrava dele. Era o primo de Robert von Ulrich, cujo restaurante ele e o irmão haviam comprado oito anos antes. Na época, era orgulhoso e arrogante. Agora vestia um terno gasto, mas mantinha a atitude atrevida.

           – O que o senhor deseja? – perguntou Walter, como se ainda tivesse poder para exigir explicações.

           Macke não pretendia perder muito tempo ali.

           – Algemem este homem – ordenou.

           Wagner deu um passo à frente com as algemas.

           Uma mulher alta e atraente apareceu e se postou na frente de Von Ulrich.

           – Digam-me quem são e o que querem – exigiu ela.

           Só podia ser a esposa. Tinha sotaque estrangeiro. Isso não era nenhuma surpresa.

           Wagner lhe deu um tapa no rosto, e ela cambaleou para trás.

           – Vire-se e junte os pulsos – ordenou Wagner a Walter. – Ou então a farei engolir os próprios dentes.

           Von Ulrich obedeceu.

           Uma jovem bonita de uniforme de enfermeira desceu a escada correndo.

           – Pai! – exclamou. – O que está acontecendo?

           Macke se perguntou quantas outras pessoas poderia haver na casa. Sentiu uma pontada de ansiedade. Uma família normal não seria capaz de subjugar agentes de polícia treinados, mas, se fosse numerosa, seria capaz de criar uma confusão que permitisse a Von Ulrich fugir.

           Mas o próprio Walter não queria briga.

           – Não os enfrente! – ordenou à filha em tom urgente. – Fique onde está!

           A enfermeira adotou uma expressão aterrorizada e obedeceu.

           – Ponham-no dentro do carro – disse Macke.

           Wagner saiu pela porta conduzindo Von Ulrich.

           A esposa começou a soluçar.

           – Para onde o estão levando? – perguntou a enfermeira.

           Macke foi até a porta. Olhou para as três mulheres: a criada, a esposa e a filha.

           – Toda essa confusão por causa de um débil mental de 8 anos – falou. – Nunca vou entender essa gente.

           Então saiu da casa e entrou no carro.

           Eles fizeram o curto trajeto até a Prinz-Albrecht-Strasse. Wagner estacionou nos fundos do prédio da sede da Gestapo, ao lado de uns dez carros idênticos. Todos saltaram.

           Von Ulrich foi conduzido por uma porta nos fundos e pela escada até o subsolo, e posto dentro de um cômodo com paredes de ladrilhos brancos.

           Macke abriu um armário e pegou três cassetetes compridos e pesados, como tacos de beisebol. Entregou um a cada auxiliar.

           – Acabem com ele – falou, e retirou-se para deixar que cumprissem a ordem.

 

           O capitão Volodya Peshkov, chefe da seção berlinense da Inteligência do Exército Vermelho, encontrou-se com Werner Franck no Cemitério dos Inválidos, junto ao canal de Berlim-Spandau.

           Era uma boa escolha de local. Ao correr os olhos cuidadosamente pelo cemitério, Volodya pôde confirmar que ninguém havia seguido Werner nem ele. A única pessoa ali era uma senhora idosa de lenço preto na cabeça, que já estava de saída.

           O ponto de encontro era o túmulo do general Von Scharnhorst, uma base enorme com a estátua de um leão adormecido feita de canhões inimigos derretidos. Era um dia ensolarado de primavera, e os dois jovens espiões tiraram os paletós para caminhar entre os túmulos daqueles heróis germânicos.

           Após o pacto entre Hitler e Stalin, quase dois anos antes, a espionagem soviética na Alemanha havia prosseguido, assim como a vigilância dos funcionários da embaixada soviética por parte dos alemães. Todos achavam que o tratado era temporário, embora ninguém soubesse quanto. Sendo assim, agentes de contrainteligência ainda seguiam Volodya por toda parte.

           Eles deviam saber quando ele estava saindo para uma verdadeira missão secreta, pensou, pois era nessas ocasiões que os despistava. Quando ia comprar um salsichão para o almoço, deixava que o seguissem. Perguntou-se se eles seriam inteligentes o bastante para perceber isso.

           – Você tem visto Lili Markgraf ultimamente? – perguntou Werner.

           Era uma moça com quem os dois tinham saído em momentos diferentes do passado. Volodya a havia recrutado como agente, e ela aprendera a criar e a decifrar mensagens usando o código da Inteligência do Exército Vermelho. Naturalmente, Volodya não podia dizer isso a Werner.

           – Faz algum tempo que não a vejo – mentiu. – E você?

           Werner fez que não com a cabeça.

           – Outra pessoa conquistou meu coração. – Ele parecia encabulado. Talvez estivesse com vergonha por contradizer sua reputação de playboy. – Mas por que você queria me ver?

           – Recebemos informações devastadoras – disse Volodya. – Uma notícia que vai mudar o curso da História... se for verdade.

           Werner assumiu uma expressão cética. Volodya prosseguiu:

           – Uma fonte nos revelou que a Alemanha vai invadir a União Soviética em junho. – Repetir essa frase o deixou eletrizado. A informação era uma vitória imensa para a Inteligência do Exército Vermelho, e uma terrível ameaça para a União Soviética.

           Werner afastou um cacho de cabelo dos olhos, num gesto que devia fazer o coração das moças disparar.

           – Uma fonte de confiança?

           A fonte era um jornalista de Tóquio – um comunista disfarçado – que tinha uma relação privilegiada com o embaixador alemão na capital japonesa. Tudo o que dissera até então se revelara verdadeiro. Mas Volodya não podia dizer isso a Werner.

           – Sim, de confiança – respondeu.

           – Então você acredita?

           Volodya hesitou. Era esse o problema. Stalin não acreditava. Segundo o líder soviético, isso era uma desinformação dos Aliados com o objetivo de semear a desconfiança entre ele e Hitler. Seu ceticismo em relação a esse furo de inteligência deixara os superiores de Volodya consternados, azedando sua alegria.

           – Estamos buscando confirmação – disse ele.

           Werner olhou em volta para as árvores do cemitério, cujas folhas começavam a brotar.

           – Queira Deus que seja verdade – falou, com súbita veemência. – Vai ser o fim dos malditos nazistas.

           – É – concordou Volodya. – Se o Exército Vermelho estiver preparado.

           Werner se espantou.

           – Vocês não estão preparados?

           Mais uma vez, Volodya não pôde dizer toda a verdade a Werner. Stalin achava que os alemães não iriam atacar antes de terem derrotado os britânicos, por temerem uma guerra em dois fronts. Enquanto a Grã-Bretanha resistisse à Alemanha, a União Soviética estaria segura: era o que ele achava. Consequentemente, o Exército Vermelho não estava nem de longe preparado para uma invasão do Reich.

           – Nós estaremos preparados – disse Volodya –, se você conseguir confirmar para mim o plano de invasão.

           Ele não pôde evitar se envaidecer por um breve instante. Seu espião talvez fosse a chave de tudo.

           – Infelizmente, não vou poder ajudá-los – disse Werner.

           Volodya franziu o cenho.

           – Como assim?

           – Não posso confirmar nem desmentir essa informação e tampouco vou conseguir obter qualquer outra. Estou prestes a ser demitido do meu cargo no Ministério da Aeronáutica. Provavelmente serei mandado para a França... ou, se a sua inteligência estiver correta, para a União Soviética.

           Volodya ficou horrorizado. Werner era seu melhor espião. Fora graças a suas informações que ele havia sido promovido a capitão. Ele mal conseguia respirar. Com esforço, disse:

           – Que diabo aconteceu?

           – Meu irmão morreu numa clínica para deficientes e o mesmo aconteceu com o afilhado da minha namorada. E nós andamos fazendo mais perguntas do que devíamos.

           – E por que isso faria você perder o emprego?

           – Os nazistas estão matando os deficientes, mas é um programa secreto.

           Volodya se esqueceu da própria missão por alguns instantes.

           – Como assim? Simplesmente matando e pronto?

           – Parece que sim. Ainda não sabemos os detalhes. Mas, se não tivessem nada a esconder, não teriam me punido por fazer perguntas... a mim e a outras pessoas.

           – Quantos anos tinha o seu irmão?

           – Quinze.

           – Meu Deus! Uma criança ainda!

           – Eles não vão se safar dessa. Eu me recuso a ficar calado.

           Os dois pararam em frente ao túmulo de Manfred von Richthofen, o ás da aviação. Era uma lápide imensa, com 1,80m de altura e o dobro de largura. Sobre ela, esculpida em elegantes letras maiúsculas, estava escrito apenas o nome RICHTHOFEN. Volodya sempre achava aquele despojamento comovente.

           Tentou recuperar o sangue-frio. Disse a si mesmo que, afinal de contas, a polícia secreta soviética também assassinava pessoas, sobretudo os suspeitos de deslealdade. O chefe da NKVD, Lavrentiy Beria, era um torturador cujo passatempo favorito, segundos os boatos, era mandar os capangas catarem uma ou duas moças bonitas na rua para ele estuprar à noite, por diversão. Mas pensar que os comunistas podiam ser tão bestiais quanto os nazistas não era nenhum consolo. Um dia, lembrou a si mesmo, os soviéticos iriam se livrar de Beria e da sua laia, e então poderiam começar a construir o verdadeiro comunismo. Enquanto isso, a prioridade era derrotar os nazistas.

           Chegaram à mureta do canal e ficaram parados ali, observando um barco avançar lentamente pela água, cuspindo uma fumaça preta oleosa. Volodya refletiu sobre a confissão alarmante de Werner.

           – O que aconteceria se você parasse de investigar essas mortes de crianças deficientes? – indagou.

           – Eu perderia a namorada – respondeu Werner. – Ela está tão revoltada quanto eu com essa história.

           Volodya teve o pensamento assustador de que talvez Werner contasse a verdade à namorada.

           – Com certeza não poderia dizer a ela o verdadeiro motivo para ter mudado de ideia – falou, enfático.

           Werner adotou uma expressão infeliz, mas não discutiu.

           Volodya percebeu que, se convencesse Werner a abandonar aquela campanha, estaria ajudando os nazistas a ocultarem seus crimes. Afastou esse pensamento desagradável.

           – Mas, se você desistisse desse assunto, poderia manter o cargo com o general Dorn?

           – Sim. É o que eles querem. Mas não vou permitir que abafem o assassinato do meu irmão. Eles podem até me mandar para o front, mas não vou me calar.

           – O que acha que vão fazer com você quando perceberem toda a sua determinação?

           – Me jogar em algum campo.

           – E de que isso vai adiantar?

           – Não posso simplesmente baixar a cabeça.

           Volodya tinha que fazer Werner voltar atrás, mas até agora não conseguira convencê-lo. O alemão tinha resposta para tudo. Era um rapaz inteligente, por isso se tornara um espião tão valioso.

           – E os outros? – perguntou Volodya.

           – Que outros?

           – Deve haver milhares de outros adultos e crianças deficientes. Os nazistas vão matar todos eles?

           – Provavelmente.

           – Você não poderá detê-los se estiver num campo de prisioneiros.

           Pela primeira vez, Werner não soube o que responder.

           Volodya deu as costas para a água e correu os olhos pelo cemitério. Um rapaz de terno estava ajoelhado junto a uma pequena lápide. Será que o estava seguindo? Volodya observou com atenção. O corpo do rapaz se convulsionava com soluços. Parecia sincero: agentes de contrainteligência não eram bons atores.

           – Olhe só para ele – disse Volodya a Werner.

           – Por quê?

           – Ele está chorando a morte de alguém. Igual a você.

           – E daí?

           – Observe.

           Um minuto depois, o rapaz se levantou, enxugou o rosto com um lenço e se afastou.

           – Agora ele está feliz – disse Volodya. – Prantear alguém é isso. Não adianta nada. Só faz você se sentir melhor.

           – Você acha que só estou fazendo perguntas para me sentir melhor?

           Volodya se virou para encará-lo.

           – Não estou criticando você – falou. – Quer descobrir a verdade, gritá-la aos quatro ventos. Mas pense de maneira lógica. A única maneira de pôr fim a isso é derrubando o regime. E a única maneira de isso acontecer é se os nazistas forem derrotados pelo Exército Vermelho.

           – Pode ser.

           Com uma ponta de esperança, Volodya percebeu que Werner estava fraquejando.

           – Pode ser? – repetiu. – E quem mais poderia derrotar os alemães? Os britânicos estão acabados, tentando desesperadamente resistir à Luftwaffe. Os americanos não estão interessados em picuinhas europeias. Todas as outras nações apoiam os fascistas. – Ele pôs as mãos nos ombros de Werner. – O Exército Vermelho é sua única esperança, amigo. Se nós perdermos, os nazistas vão passar mais mil anos sangrentos assassinando crianças deficientes... sem falar nos judeus, comunistas e homossexuais.

           – Que inferno! – exclamou Werner. – Você tem razão.

 

           No domingo, Carla e a mãe foram ao culto. Maud estava preocupada com a prisão de Walter, desesperada para saber para onde o marido fora levado. A Gestapo, naturalmente, recusava-se a fornecer qualquer informação. Mas a igreja do pastor Ochs era um templo popular, e moradores dos subúrbios mais ricos iam assistir à missa ali: a congregação incluía alguns poderosos, e talvez um deles descobrisse alguma coisa.

           Carla baixou a cabeça e rezou para que o pai não fosse espancado nem torturado. Na verdade, não acreditava em preces, mas seu desespero era tão grande que estava disposta a tentar qualquer coisa.

           Sentiu-se satisfeita ao ver a família Franck sentada algumas filas mais à frente. Ficou olhando a nuca de Werner. Ao contrário da maioria dos homens, que tinha os cabelos bem curtos, os dele se anelavam um pouco na parte de trás do pescoço. Ela havia tocado aquela nuca e beijado seu pescoço. Ele era um doce. Era de longe o rapaz mais simpático que já a beijara. Todas as noites, antes de dormir, ela se lembrava da ocasião em que tinham ido a Grunewald.

           Mas não estava apaixonada por ele, disse a si mesma.

           Ainda não.

           Quando o pastor Ochs entrou na igreja, ela logo viu que ele havia sido derrotado. A mudança era estarrecedora. Ele caminhou lentamente até o atril, de cabeça baixa, ombros caídos, fazendo alguns membros da congregação trocarem sussurros aflitos. Recitou as preces sem expressão, depois leu o sermão de um livro. Carla, que já era enfermeira havia dois anos, reconheceu nele sintomas de depressão. Calculou que o pastor também tivesse recebido uma visita da Gestapo.

           Reparou que Frau Ochs e os cinco filhos do casal não estavam em seus lugares habituais na primeira fila.

           Quando os fiéis estavam cantando o último hino, Carla jurou não desistir, por mais assustada que estivesse. Ainda tinha alguns aliados: Frieda, Werner, Heinrich. Mas o que eles poderiam fazer?

           Desejou ter alguma prova concreta das ações dos nazistas. Ela não tinha dúvida de que estivessem exterminando os deficientes – a reação extremada da Gestapo deixava isso claro. Mas não podia convencer os outros sem provas.

           Como consegui-las?

           Depois da missa, saiu da igreja ao lado de Frieda e Werner. Afastou os irmãos dos pais e disse:

           – Acho que precisamos conseguir provas do que está acontecendo.

           Frieda entendeu na mesma hora a que ela estava se referindo.

           – Deveríamos ir a Akelberg – disse ela. – Visitar o hospital.

           Werner havia proposto isso logo no começo, mas eles tinham decidido iniciar as investigações ali mesmo, em Berlim. Agora, Carla voltava a cogitar essa primeira possibilidade.

           – Precisamos de autorizações para viajar.

           – Como vamos conseguir uma coisa dessas?

           Carla estalou os dedos.

           – Nós duas fazemos parte do Clube de Ciclismo Mercúrio. Eles podem conseguir autorizações para passeios de bicicleta. – Esse era justamente o tipo de coisa que os nazistas apreciavam: exercícios saudáveis ao ar livre para os jovens.

           – Será que conseguiríamos entrar no hospital?

           – Poderíamos tentar.

           – Acho que vocês deveriam esquecer essa história toda – disse Werner.

           – Como assim? – rebateu Carla, espantada.

           – É óbvio que o pastor Ochs levou um susto tão grande que quase morreu de medo. Essa história é muito perigosa. Vocês poderiam ser presas, torturadas. E nada disso vai trazer de volta Axel ou Kurt.

           Ela o encarou, incrédula.

           – Você quer que cruzemos os braços?

           – Vocês têm que cruzar. Estão falando como se a Alemanha fosse um país livre! Vão acabar sendo mortas, as duas.

           – Temos que correr riscos! – disse Carla, zangada.

           – Então me deixem fora disso – falou ele. – Também recebi uma visita da Gestapo.

           Carla ficou preocupada.

           – Ah, Werner... o que aconteceu?

           – Até agora, só ameaças. Se eu fizer mais alguma pergunta, serei mandado para o front.

           – Bem, graças a Deus não é nada pior.

           – Já é ruim o suficiente.

           As moças passaram algum tempo caladas, então Frieda disse o que Carla estava pensando:

           – Você precisa entender que isso é mais importante do que o seu emprego.

           – Não venha me dizer o que eu preciso entender – retrucou Werner.

           Na superfície, estava zangado, mas por baixo da raiva Carla pôde ver que ele na verdade sentia vergonha.

           – Não é a sua carreira que está em jogo – prosseguiu ele. – E vocês ainda não se encontraram com a Gestapo.

           Carla ficou pasma. Pensava conhecer Werner. Poderia ter jurado que ele pensaria como ela em relação àquela questão.

           – Na verdade, encontrei, sim – disse ela. – Eles levaram meu pai.

           – Ah, não, Carla! – exclamou Frieda, consternada, passando o braço sobre os ombros da amiga.

           – Não conseguimos descobrir onde ele está – acrescentou Carla.

           Werner não deu nenhuma mostra de empatia.

           – Nesse caso, você deveria ter juízo para não desafiá-los! – disse ele. – Eles também teriam prendido você, mas o inspetor Macke acha que garotas não representam perigo.

           Carla teve vontade de chorar. Estivera prestes a se apaixonar por Werner e agora ele se revelava um covarde.

           – Está dizendo que não vai nos ajudar? – indagou Frieda.

           – Estou.

           – Porque você quer manter seu emprego?

           – É inútil... não podemos vencê-los!

           A covardia e o derrotismo dele estavam deixando Carla furiosa.

           – Não podemos simplesmente deixar isso acontecer!

           – Confronto aberto é uma loucura. Há outras formas de se opor.

           – Quais, por exemplo? – indagou Carla. – Trabalhando devagar, como dizem aqueles folhetos? Isso não vai impedi-los de matar crianças deficientes!

           – Desafiar o governo é suicídio!

           – Qualquer outra atitude é covardia!

           – Eu me recuso a ser julgado por duas garotas! – Com isso, ele saiu pisando firme.

           Carla engoliu as lágrimas. Não podia chorar na frente de 200 pessoas em pé sob o sol na frente da igreja.

           – Pensei que ele fosse diferente – falou.

           Frieda estava chateada, mas também intrigada.

           – Ele é diferente – disse ela. – Conheço meu irmão desde sempre. Alguma coisa está acontecendo, algo que ele não nos contou.

           A mãe de Carla se aproximou. Não reparou na agitação da filha, o que não era comum.

           – Ninguém sabe nada! – disse Maud, desesperada. – Não consigo descobrir onde seu pai possa estar.

           – Vamos continuar tentando – disse Carla. – Ele não tinha amigos na embaixada americana?

           – Conhecidos. Já perguntei, mas eles não conseguiram nenhuma informação.

           – Vamos perguntar de novo amanhã.

           – Ah, meu Deus... deve haver um milhão de esposas alemãs na mesma situação que eu.

           Carla assentiu.

           – Vamos para casa, mãe.

           As duas fizeram o caminho de volta devagar, sem dizer nada, ambas perdidas em pensamentos. Carla sentia raiva de Werner, e mais ainda por ter se enganado tanto em relação a seu caráter. Como podia ter se apaixonado por alguém tão fraco?

           Chegaram à sua rua.

           – Amanhã de manhã irei à embaixada americana – disse Maud ao se aproximarem de casa. – Se for preciso, passarei o dia inteiro esperando na recepção. Implorarei para que façam alguma coisa. Se quiserem mesmo, podem abrir um inquérito semioficial sobre o cunhado de um ministro de governo britânico. Ué! Por que a porta de nossa casa está aberta?

           O primeiro pensamento que ocorreu a Carla foi de que a Gestapo tivesse lhes feito uma segunda visita. Só que não havia nenhum carro preto parado junto ao meio-fio. E uma chave pendia da fechadura.

           Maud entrou no hall e berrou.

           Carla entrou correndo atrás dela.

           Um homem jazia no chão, coberto de sangue.

           Carla conseguiu conter um grito.

           – Quem é? – perguntou.

           Maud se ajoelhou junto ao homem.

           – Walter – falou. – Ah, Walter, o que fizeram com você?

           Então Carla viu que aquele era seu pai. Estava tão gravemente ferido que quase não era possível reconhecê-lo. Um dos olhos estava fechado, a boca inchada formava um imenso hematoma, e os cabelos estavam cobertos de sangue seco. Um dos braços estava torcido de forma estranha. A frente do paletó estava toda suja de vômito.

           – Walter, fale comigo, fale comigo! – pediu Maud.

           Ele abriu a boca e deu um gemido.

           Carla reprimiu a histeria e o sofrimento que brotaram em seu peito e passou a agir de modo profissional. Foi pegar uma almofada e apoiou a cabeça do pai. Pegou um copo d’água na cozinha e despejou um filete sobre seus lábios. Ele engoliu e abriu a boca, pedindo mais. Quando ele já se havia hidratado o suficiente, ela foi até seu escritório, pegou uma garrafa de schnapps e lhe deu algumas gotas para beber. Seu pai as engoliu, depois tossiu.

           – Vou chamar o Dr. Rothmann – disse Carla. – Lave o rosto dele e lhe dê mais água. Não tente mudá-lo de posição.

           – Está bem, está bem... ande logo! – disse Maud.

           Carla empurrou a bicicleta até a rua e saiu pedalando. O Dr. Rothmann não tinha mais autorização para exercer a medicina – judeus não podiam ser médicos –, mas ainda atendia pessoas pobres extraoficialmente.

           Carla pedalou feito louca. Como seu pai conseguira chegar em casa? Imaginou que eles o tivessem levado de carro e que ele tivesse conseguido cambalear do meio-fio até dentro de casa, para em seguida desabar.

           Chegou à casa dos Rothmann. Assim como a sua, o imóvel estava em mau estado. A maioria das janelas fora quebrada por antissemitas. Frau Rothmann atendeu.

           – Meu pai foi espancado – disse Carla, ofegante. – Pela Gestapo.

           – Meu marido vai cuidar dele – disse Frau Rothmann. Virando-se para o alto da escada, gritou: – Isaac!

           O médico desceu.

           – É Herr Von Ulrich – disse-lhe a esposa.

           O médico pegou uma sacola de compras feita de lona encostada junto à porta. Como ele estava proibido de praticar a medicina, Carla imaginou que não pudesse carregar nada parecido com uma maleta de instrumentos médicos.

           Os dois saíram de casa.

           – Vou na frente de bicicleta – disse Carla.

           Quando ela chegou, encontrou a mãe sentada diante da porta, aos prantos.

           – O médico já está vindo! – falou.

           – Não adianta mais – respondeu Maud. – Seu pai está morto.

 

           Eram duas e meia da tarde, e Volodya estava em frente à loja de departamentos Wertheim, junto à Alexanderplatz. Havia percorrido as redondezas várias vezes, à procura de homens que pudessem ser policiais à paisana. Estava seguro de não ter sido seguido, mas não era impossível que, passando ali por acaso, um agente da Gestapo o reconhecesse e se perguntasse o que ele estava fazendo. Um local movimentado e cheio de gente era o melhor disfarce, mas não era perfeito.

           Seria verdade o boato sobre a invasão? Caso fosse, ele não iria permanecer em Berlim por muito mais tempo. Teria que se despedir de Gerda e Sabine. Provavelmente voltaria para a sede da Inteligência do Exército Vermelho em Moscou. Estava ansioso para passar algum tempo com a família. Sua irmã, Anya, dera à luz um casal de gêmeos que ele ainda não conhecia. Volodya também achava que um descanso seria bem-vindo. Operar na clandestinidade significava um estresse permanente: despistar agentes da Gestapo, organizar encontros secretos, recrutar agentes, preocupar-se com traições. Um ano ou dois na sede não seria nada mau, imaginando, é claro, que a União Soviética fosse durar todo esse tempo. Ou então ele poderia ser transferido para outro posto no exterior. Gostava de Washington. Sempre tivera vontade de conhecer os Estados Unidos.

           Tirou do bolso um lenço de papel amassado e jogou-o dentro de uma lixeira. Faltando um minuto para as três, acendeu um cigarro, embora não fumasse. Cuidadosamente, deixou o palito de fósforo aceso cair dentro da lixeira, fazendo-o aterrissar bem em cima do lenço de papel embolado. Então afastou-se.

           Segundos depois, alguém gritou:

           – Fogo!

           No exato momento em que todas as pessoas em volta prestaram atenção no incêndio dentro da lixeira, um táxi encostou em frente à loja, um Mercedes 260D preto, modelo normal. Um rapaz bonito com uniforme de tenente da Força Aérea desceu do carro. Quando o tenente estava pagando o taxista, Volodya entrou no táxi e bateu a porta.

           No chão do carro, num lugar que o motorista não conseguia ver, havia um exemplar da Neues Volk, a revista nazista de propaganda racial. Volodya o pegou, mas não leu.

           – Algum imbecil tocou fogo numa lixeira – comentou o taxista.

           – Hotel Adlon – disse Volodya, e o carro começou a andar.

           Ele folheou as páginas da revista e confirmou que havia um envelope pardo escondido lá dentro.

           Apesar de ansioso para abri-lo, esperou.

           Desceu do táxi em frente ao hotel, mas não entrou. Em vez disso, atravessou o Portão de Brandemburgo e foi para o parque. As árvores exibiam folhas novas e viçosas. Era um dia quente de primavera, e várias pessoas estavam dando seu passeio vespertino.

           A revista parecia queimar a pele da mão de Volodya. Ele encontrou um banco num local discreto e sentou-se.

           Desdobrou a revista e, usando-a como barreira, abriu o envelope pardo.

           Retirou um documento. Era uma cópia em papel-carbono, um pouco apagada, mas legível. Tinha o título de:

            

           Diretriz nº 21: Operação “Barbarossa”

             

           Friedrich Barbarossa foi o imperador alemão que liderou a Terceira Cruzada, em 1189.

           O texto começava assim: “A Wehrmacht alemã precisa estar preparada, antes mesmo do término da guerra contra a Inglaterra, para derrotar a Rússia numa campanha rápida.”

           Volodya soltou um arquejo. Aquilo era pura dinamite. O espião de Tóquio estava certo; e Stalin, errado. A União Soviética corria um perigo mortal.

           Com o coração aos pulos, ele verificou o final do documento. Estava assinado “Adolf Hitler”.

           Vasculhou as páginas em busca de uma data e encontrou. A invasão estava marcada para 15 de maio de 1941.

           Junto a essa data havia uma anotação a lápis com a letra de Werner Franck: “A data foi mudada para 22 de junho.”

           – Ah, Deus, ele conseguiu – disse Volodya alto. – Confirmou a invasão.

           Tornou a guardar o documento no envelope e este dentro da revista.

           Aquilo mudava tudo.

           Levantou-se do banco e seguiu caminhando até a embaixada soviética para dar a notícia.

 

           Não havia estação em Akelberg, por isso Carla e Frieda desceram na parada mais próxima, a pouco mais de 15 quilômetros, e tiraram suas bicicletas do trem.

           Estavam de short e suéter, calçavam sandálias confortáveis e tinham tranças no cabelo. Pareciam duas integrantes da Liga das Jovens Alemãs, a Bund Deutscher Mädel, ou BDM. Era comum essas moças saírem juntas em viagens de bicicleta. Se faziam outra coisa além de pedalar, sobretudo à noite, nos hotéis espartanos em que se hospedavam, era tema de farta especulação. Segundo os rapazes, BDM era uma sigla para Bubi Drück Mir, algo como “venha me comer”.

           As duas consultaram o mapa e saíram da cidade em direção a Akelberg.

           Carla pensava no pai 24 horas por dia. Sabia que nunca iria superar o horror de tê-lo encontrado violentamente espancado e à beira da morte. Passara dias aos prantos. Mas outra emoção acompanhava sua tristeza: raiva. Não iria simplesmente ficar triste. Faria alguma coisa.

           Transtornada de dor, Maud no início tentara convencer a filha a não ir a Akelberg.

           – Meu marido morreu, meu filho está no Exército... Não quero que minha filha arrisque a vida também! – protestara ela.

           Depois do enterro, quando o horror e a histeria cederam lugar a um luto mais calmo e profundo, Carla lhe perguntara qual seria a vontade do pai. Maud passou um longo tempo pensando. Só no dia seguinte respondeu:

           – Ele iria querer que você continuasse a luta.

           Era difícil para Maud dizer aquilo, mas ambas sabiam que era verdade.

           Frieda não tivera nenhuma conversa desse tipo com os pais. Sua mãe, Monika, fora apaixonada por Walter quando jovem e ficara arrasada com a morte dele. Mesmo assim, teria se horrorizado se soubesse o que Frieda estava fazendo. Seu pai, Ludi, a teria trancado na adega. Ambos achavam que ela tinha ido passear de bicicleta ou, no máximo, que tivesse saído para encontrar algum namorado pouco recomendável.

           A região era montanhosa, mas as duas amigas estavam em boa forma e, uma hora depois, já desciam uma encosta rumo à pequena cidade de Akelberg. Carla ficou apreensiva: elas agora estavam em território inimigo.

           Entraram num café. Não havia Coca-Cola à venda.

           – Isto aqui não é Berlim! – disse a mulher atrás do balcão, indignada como se elas tivessem pedido que uma orquestra lhes fizesse uma serenata.

           Carla se perguntou por que alguém que não gostava de forasteiros decidia abrir um café.

           Compraram dois copos quentes de Fanta, um refrigerante alemão, e aproveitaram a oportunidade para encher seus cantis com água.

           Não sabiam onde exatamente ficava o hospital. Tinham que pedir informações, mas Carla temia que levantassem suspeitas. Os nazistas da cidade talvez se interessassem por duas desconhecidas fazendo perguntas. Quando estavam pagando, Carla disse:

           – Temos que encontrar o restante do nosso grupo no cruzamento perto do hospital. Em que direção fica?

           A mulher não a encarou.

           – Não tem hospital nenhum aqui.

           – A Instituição Médica de Akelberg – insistiu Carla, repetindo o nome que constava no papel timbrado.

           – Deve ser outra Akelberg.

           Carla teve a impressão de que a mulher estava mentindo.

           – Que estranho – disse ela, continuando a fingir. – Espero que não estejamos no lugar errado.

           Elas saíram empurrando as bicicletas pela rua principal. Não havia outro jeito, pensou Carla: teria que pedir informações.

           Um velho de aspecto inofensivo estava sentado num banco em frente a um bar, aproveitando o sol da tarde.

           – Onde fica o hospital? – perguntou-lhe Carla, disfarçando o nervosismo com um tom jovial.

           – Atravessem a cidade e subam a colina à esquerda – respondeu ele. – Mas não entrem lá... poucas pessoas saem! – Ele deu uma gargalhada, como se houvesse acabado de contar uma piada.

           A informação era meio vaga, mas teria que bastar, pensou Carla. Decidiu não atrair mais atenção perguntando outra vez.

           Uma mulher de lenço na cabeça segurou o braço do velho.

           – Não deem ouvidos a ele... Não sabe o que está dizendo – falou ela, com ar preocupado. Puxou o velho para fazê-lo se levantar e começou a empurrá-lo pela calçada. – Fique de boca fechada, seu velho idiota – resmungou.

           Aquelas pessoas pareciam desconfiar do que estava acontecendo em sua cidade. Por sorte, elas reagiam sendo antipáticas e não se intrometendo. Talvez não fossem correr para chamar a polícia ou o Partido Nazista.

           Carla e Frieda seguiram mais um pouco pela rua e encontraram um Albergue da Juventude. Havia milhares de estabelecimentos como aquele na Alemanha, destinados a acolher justamente o tipo de pessoa que elas estavam fingindo ser: jovens atléticas fazendo um vigoroso passeio ao ar livre. Pediram um quarto. As acomodações eram muito simples, com beliches de três andares, mas o preço era módico.

           A tarde já caía quando elas saíram da cidade montadas nas bicicletas. Pouco menos de dois quilômetros adiante, chegaram a uma curva à esquerda. Não havia placa, mas a estrada subia a colina, então seguiram por ela.

           A apreensão de Carla aumentou. Quanto mais perto chegassem, mais difícil seria parecer inocentes caso fossem interpeladas.

           Cerca de um quilômetro e meio depois, viram uma casa grande no meio de um parque. Não parecia isolada por muro ou cerca, e a estrada conduzia até a porta. Mais uma vez, não havia placas.

           Inconscientemente, Carla esperava encontrar no alto da colina um castelo sinistro de pedra cinzenta, janelas gradeadas e portas de carvalho com dobradiças de ferro. Mas aquilo ali era uma casa de campo típica da Bavária: telhado bem inclinado, beirais largos, sacadas de madeira, um pequeno campanário. Com certeza nada tão horrível quanto o assassinato de crianças poderia acontecer ali. A casa também parecia pequena para um hospital. Foi então que ela viu que um anexo moderno fora construído numa das laterais, com uma chaminé bem alta.

           As duas desceram das bicicletas e as apoiaram na lateral da casa. Carla estava com o coração na boca ao subir os degraus até a entrada. Por que não havia guardas? Talvez porque ninguém fosse tão ousado para investigar aquele lugar.

           Não havia campainha nem aldraba, mas, quando Carla empurrou a porta, esta se abriu. A garota entrou e Frieda foi atrás. As duas se viram no meio de um hall frio, com chão de pedra e paredes brancas nuas. Havia diversas portas ali, mas todas estavam fechadas. Uma mulher de meia-idade e óculos descia uma escada larga. Usava um vestido cinza elegante.

           – Pois não? – falou.

           – Olá – disse Frieda, em tom casual.

           – O que estão fazendo? Não podem entrar aqui.

           Frieda e Carla tinham preparado uma história.

           – Eu só queria visitar o lugar onde meu irmão morreu – disse Frieda. – Ele tinha 15 anos...

           – Isto aqui não é uma instituição pública! – disse a mulher, indignada.

           – É, sim. – Frieda fora criada numa família rica e não se deixava intimidar por subalternos.

           Uma enfermeira de seus 19 anos surgiu de uma das portas laterais e as encarou. A mulher de vestido cinza se dirigiu a ela.

           – Enfermeira König, vá chamar Herr Römer agora mesmo.

           A moça se retirou, apressada.

           – Vocês deveriam ter escrito antes – disse a mulher.

           – A senhora não recebeu minha carta? – perguntou Frieda. – Escrevi para o chefe da equipe médica. – Não era verdade: ela estava improvisando.

           – Não recebemos nenhuma carta desse tipo! – Estava claro que a mulher achava que uma solicitação estapafúrdia como a de Frieda não teria passado despercebida.

           Carla aguçou os ouvidos. Havia um silêncio estranho naquele lugar. Já convivera com deficientes físicos e mentais, adultos e crianças, e eles em geral não eram silenciosos. Mesmo atrás daquelas portas fechadas, deveria ser possível ouvir gritos, risos, choros, vozes protestando bem alto e balbucios desconexos. Mas ali não havia nada. Aquilo mais parecia um necrotério.

           Frieda experimentou uma nova tática.

           – Talvez a senhora possa me dizer onde fica o túmulo do meu irmão? Eu gostaria de visitá-lo.

           – Não há túmulos aqui. Nós temos um incinerador. – Ela se corrigiu na hora: – Um crematório.

           – Sim, eu vi a chaminé – disse Carla.

           – Onde estão as cinzas do meu irmão? – quis saber Frieda.

           – Elas serão mandadas para vocês no devido tempo.

           – Não as misturem com as de mais ninguém, sim?

           O pescoço da mulher ficou muito vermelho, e Carla imaginou que eles de fato misturavam as cinzas, imaginando que ninguém fosse notar.

           A enfermeira König reapareceu seguida por um homem corpulento usando um uniforme de enfermeiro.

           – Ah, Römer – disse a mulher de cinza. – Por favor, queira acompanhar estas moças para fora daqui.

           – Só um instante – disse Frieda. – Têm certeza de que isto é certo? Eu só queria ver o lugar onde meu irmão morreu.

           – Certeza absoluta.

           – Então a senhora não vai se importar em me dizer seu nome.

           A mulher hesitou por um segundo.

           – Frau Schmidt. Agora, por favor, vão embora.

           Römer avançou na direção das duas com uma atitude ameaçadora.

           – Já estamos indo – disse Frieda, com a voz fria. – Não temos nenhuma intenção de dar a Herr Römer um pretexto para nos molestar.

           O homem mudou de direção e abriu a porta para elas.

           As duas saíram, subiram nas bicicletas e tornaram a descer a estrada.

           – Você acha que ela acreditou na nossa história? – perguntou Frieda.

           – Totalmente – respondeu Carla. – Nem perguntou nossos nomes. Se tivesse desconfiado de algo, teria chamado a polícia na mesma hora.

           – Mas nós não descobrimos muita coisa. Vimos a chaminé. Mas não encontramos nada que se possa chamar de prova.

           Carla estava um pouco desanimada. Conseguir provas não era tão simples quanto parecia.

           Voltaram para o albergue, tomaram banho, trocaram de roupa e saíram em busca de algo para comer. O único café era o da dona mal-humorada. Lá comeram panquecas de batata com salsicha. Em seguida, foram até o bar da cidade. Pediram duas cervejas e puxaram conversa alegremente com os outros clientes, mas ninguém lhes deu atenção. Isso por si só já era suspeito. Por toda a Alemanha, as pessoas tinham receio de desconhecidos, pois qualquer um poderia ser um delator nazista, ainda assim Carla se perguntou em quantas cidades duas jovens poderiam passar uma hora dentro de um bar sem que ninguém tentasse flertar com elas.

           Voltaram para o albergue a fim de dormir cedo. Carla não sabia mais o que fazer. No dia seguinte, voltariam para casa de mãos vazias. Parecia-lhe inacreditável estar a par daquelas mortes terríveis mas ser incapaz de impedi-las. Tinha vontade de gritar de tanta frustração.

           Ocorreu-lhe que Frau Schmidt – se é que esse era mesmo seu nome – poderia desenvolver alguma suspeita em relação às visitantes. Na hora, aceitara que Carla e Frieda fossem o que diziam ser, mas talvez ficasse desconfiada mais tarde e chamasse a polícia só para garantir. Não seria difícil encontrar as duas. Havia apenas cinco hóspedes no albergue nessa noite, e elas eram as únicas mulheres. Ficaram de orelha em pé, temendo a batida fatal na porta.

           Se questionadas, contariam parte da verdade: que o irmão de Frieda e o afilhado de Carla tinham morrido em Akelberg, e que elas queriam visitar os túmulos, ou ao menos ver o local onde haviam morrido e passar alguns instantes ali prestando homenagem a eles. A polícia da cidade talvez acreditasse nessa história. Se verificassem com Berlim, porém, logo descobririam a ligação delas com Walter von Ulrich e Werner Franck, dois homens investigados pela Gestapo por terem feito perguntas capciosas a respeito de Akelberg. Então Carla e Frieda estariam em sérios apuros.

           Quando se preparavam para se deitar nos beliches de aspecto desconfortável, alguém bateu à porta.

           O coração de Carla parou. Ela pensou no que a Gestapo tinha feito com seu pai. Sabia que não suportaria ser torturada. Em dois minutos, diria o nome de todos os Jovens do Swing que conhecia.

           Frieda, que era menos fantasiosa, falou:

           – Não faça essa cara de apavorada! – Então abriu a porta.

           Não era a Gestapo, mas uma moça baixinha, bonita e loura. Carla levou alguns instantes para reconhecer a enfermeira König sem o uniforme.

           – Preciso falar com vocês – disse ela. Estava abalada, ofegante e chorosa.

           Frieda a convidou a entrar. A moça se sentou numa das camas e enxugou os olhos com a manga do vestido. Então disse:

           – Não consigo mais guardar isso para mim.

           Carla olhou de relance para Frieda. As duas estavam pensando a mesma coisa.

           – Guardar o quê, enfermeira König?

           – Meu nome é Ilse.

           – O meu é Carla, e esta é Frieda. A que você está se referindo, Ilse?

           A moça falou com uma voz tão baixa que elas mal conseguiram escutá-la:

           – Nós matamos todo mundo.

           Carla mal conseguia respirar.

           – No hospital? – conseguiu articular.

           Ilse assentiu com um gesto de cabeça.

           – Os pobres coitados que chegam nos ônibus cinza. São crianças, às vezes bebês, e pessoas idosas, avós. Todos mais ou menos incapazes. Às vezes estão com um aspecto horrível, babados e sujos dos próprios excrementos, mas não é culpa deles, e alguns são de fato encantadores e inocentes. Não faz diferença... matamos todos.

           – Como?

           – Com uma injeção de escopolamina associada a morfina.

           Carla assentiu. Era um anestésico muito comum, fatal se houvesse overdose.

           – E o tratamento especial que os doentes supostamente deveriam receber?

           Ilse balançou a cabeça.

           – Não há tratamento algum.

           – Ilse, deixe eu ver se entendi direito – falou Carla. – Eles matam todos os pacientes que vêm para cá?

           – Todos.

           – Assim que chegam?

           – No mesmo dia, no máximo no dia seguinte.

           Era o que Carla desconfiava, mas ainda assim a realidade nua e crua era aterrorizante, e ela sentiu náuseas.

           Depois de alguns instantes, perguntou:

           – Tem algum paciente lá agora?

           – Vivo, não. Passamos a tarde aplicando injeções. Por isso Frau Schmidt ficou tão assustada quando vocês apareceram.

           – Por que eles não dificultam o acesso de estranhos à casa?

           – Acham que guardas e arame farpado em volta de um hospital tornariam óbvio que algo sinistro acontece lá. Seja como for, ninguém nunca tentou nos visitar antes.

           – Quantas pessoas morreram hoje?

           – Cinquenta e duas.

           Carla sentiu um arrepio.

           – O hospital matou 52 pessoas na tarde de hoje, por volta da hora em que estivemos lá?

           – Isso.

           – Quer dizer que agora estão todas mortas?

           Ilse assentiu.

           Uma ideia vinha brotando na mente de Carla, e ela decidiu levá-la adiante.

           – Eu quero ver – falou.

           Ilse assumiu uma expressão assustada.

           – Como assim?

           – Quero entrar no hospital e ver os cadáveres.

           – Eles já estão sendo incinerados.

           – Então quero ver isso. Você consegue nos pôr para dentro?

           – Hoje à noite?

           – Agora mesmo.

           – Ah, meu Deus.

           – Você não é obrigada a fazer nada – disse Carla. – Já foi muito corajosa de vir falar conosco. Se não quiser fazer mais nada, tudo bem. Mas, se nós quisermos pôr fim a isso, precisamos de provas.

           – Provas.

           – É. Olhe aqui, o governo tem vergonha desse projeto... Por isso que ele é mantido em segredo. Os nazistas sabem que os alemães normais não vão tolerar o assassinato de crianças. Mas as pessoas preferem acreditar que nada está acontecendo, e é fácil não dar atenção a um boato, sobretudo vindo de uma garota. Então precisamos de provas.

           – Entendo. – O rosto bonito de Ilse adquiriu um ar de sombria determinação. – Está bem, então. Vou levar vocês.

           Carla se levantou.

           – Como você chega lá normalmente?

           – De bicicleta. Deixo do lado de fora.

           – Então vamos todas de bicicleta.

           Elas saíram. A noite havia caído. O céu estava parcialmente encoberto, e as estrelas emitiam pouca luz. Usaram os faróis das bicicletas para sair da cidade e subir a colina. Quando puderam ver o hospital, apagaram os faróis e continuaram a pé, empurrando as bicicletas. Ilse as conduziu por uma trilha na floresta que levava aos fundos do prédio.

           Carla sentiu um cheiro desagradável, parecido com o cano de descarga de um carro. Aspirou o ar pelo nariz, intrigada.

           – O incinerador – explicou Ilse.

           – Ah, não!

           Elas esconderam as bicicletas no meio de alguns arbustos e, sem fazer barulho, caminharam até a porta dos fundos. Estava destrancada. Entraram.

           Os corredores estavam muito iluminados. Não havia recantos de sombra: aquilo parecia mesmo o hospital que fingia ser. Se cruzassem com alguém, estariam totalmente visíveis. Suas roupas as denunciariam como intrusas. O que elas fariam nesse caso? Sairiam correndo, decerto.

           Ilse percorreu depressa um corredor, dobrou numa curva e abriu uma porta.

           – Aqui – sussurrou.

           As três entraram.

           Frieda deixou escapar um guincho de horror e tapou a boca.

           – Ai, meu santo Pai do céu! – lamentou Carla.

           Em uma sala grande e fria estavam dispostos cerca de trinta cadáveres, todos nus, deitados de costas sobre as mesas. Alguns eram gordos, outros magros; alguns velhos e encarquilhados, outros crianças, e um deles era um bebê de cerca de 1 ano. Uns poucos estavam encolhidos e deformados, mas a maioria parecia fisicamente normal.

           Todos tinham um pequeno curativo autoadesivo no braço esquerdo, local onde fora aplicada a injeção.

           Carla ouviu Frieda chorar baixinho e se obrigou a ser forte.

           – Onde estão os outros? – perguntou com um sussurro.

           – Já foram levados para o forno – respondeu Ilse.

           Elas ouviram vozes vindas de trás da porta dupla no canto mais afastado da sala.

           – Temos que sair! – falou Ilse.

           Voltaram para o corredor. Carla fechou a porta, deixando apenas uma frestinha para espiar. Viu Herr Römer e outro homem entrarem pelas portas empurrando um carrinho de hospital.

           Eles não olharam na direção de Carla. Estavam conversando sobre futebol. Ela ouviu Römer dizer:

           – Faz só nove anos que ganhamos o campeonato nacional. Ganhamos do Eintracht Frankfurt por 2 a 0.

           – Sim, mas metade dos seus craques era de judeus e foram todos embora.

           Carla entendeu que eles estavam falando sobre o Bayern de Munique.

           – Os velhos tempos vão voltar, basta termos a estratégia certa – disse Römer.

           Ainda conversando, os dois foram até uma mesa sobre a qual jazia o cadáver de uma mulher gorda. Seguraram-na pelos ombros e joelhos e então, sem cuidado algum, transferiram-na para o carrinho, grunhindo por causa do esforço.

           Empurraram o carrinho até outra mesa e puseram um segundo cadáver por cima do primeiro.

           Depois de recolherem três corpos, saíram da sala empurrando o carrinho.

           – Vou atrás deles – disse Carla.

           Ela atravessou o necrotério até a porta dupla, seguida por Frieda e Ilse. Entraram numa área de aspecto mais industrial que médico: paredes pintadas de marrom, piso de concreto, armários e suportes para ferramentas.

           Espiaram por trás de uma curva.

           Viram um cômodo amplo como uma garagem, iluminado por luzes fortes que lançavam sombras compridas. Fazia calor lá dentro e um leve cheiro de algo cozinhando pairava no ar. No meio do espaço havia uma caixa de aço grande o suficiente para comportar um carro. Um toldo de metal saía do topo da caixa e atravessava o telhado. Carla entendeu que estava olhando para um forno.

           Os dois homens tiraram um dos cadáveres de cima do carrinho e o transferiram para uma esteira rolante de aço. Römer apertou um botão na parede. A esteira se moveu, uma porta se abriu e o cadáver entrou no forno.

           Então puseram o cadáver seguinte sobre a esteira.

           Carla já tinha visto o suficiente.

           Virando-se, acenou para as outras, assinalando que deveriam voltar. Frieda esbarrou em Ilse, que não conseguiu conter um grito. As três congelaram.

           Ouviram Römer perguntar:

           – O que foi isso?

           – Um fantasma – respondeu o outro.

           – Não brinque com essas coisas! – A voz de Römer estava trêmula.

           – Vai segurar a outra ponta deste presunto ou não?

           – Está bem, está bem.

           As três moças voltaram depressa para o necrotério. Ao ver os cadáveres que ainda estavam lá, Carla pensou em Kurt, filho de Ada, e sentiu uma pontada de tristeza. O menino ficara deitado ali, com um curativo autoadesivo no braço, e depois fora jogado sobre a esteira rolante e eliminado como um saco de lixo. Mas você não foi esquecido, Kurt, pensou.

           Saíram para o corredor. Quando estavam fazendo a curva em direção à porta dos fundos, ouviram passos e a voz de Frau Schmidt:

           – Por que esses dois estão demorando tanto?

           Seguiram depressa pelo corredor e passaram pela porta. A lua tinha surgido no céu e o jardim estava muito claro. Uns 200 metros à frente no gramado, Carla viu os arbustos onde haviam escondido as bicicletas.

           Frieda foi a última a sair e, na pressa, deixou a porta bater.

           Carla pensou depressa: Frau Schmidt provavelmente sairia para investigar aquele barulho. As três não conseguiriam chegar aos arbustos antes que ela abrisse a porta. Precisavam se esconder.

           – Por aqui! – sibilou Carla e deu a volta correndo pela quina do prédio. As outras a seguiram.

           Elas se encolheram junto à parede. Carla ouviu a porta se abrir. Prendeu a respiração.

           Houve uma pausa demorada. Então Frau Schmidt resmungou algo ininteligível e a porta tornou a bater.

           Carla espiou pela quina. A mulher tinha ido embora.

           As três atravessaram correndo o gramado e pegaram as bicicletas.

           Foram empurrando-as pela trilha da floresta até chegarem à estrada. Acenderam os faróis, subiram nas bicicletas e começaram a pedalar. Carla estava eufórica. Tinham conseguido!

           Quando foram chegando perto da cidade, a sensação de vitória se transformou em considerações mais práticas. O que exatamente haviam conseguido? Qual seria o seu próximo passo?

           Precisavam contar para alguém o que tinham visto. Ela não sabia muito bem para quem. De qualquer modo, precisavam convencer alguém. Será que havia uma pessoa que fosse acreditar nelas? Quanto mais pensava no assunto, menos certeza tinha.

           Quando chegaram ao albergue e desceram das bicicletas, Ilse falou:

           – Que bom que tudo isso acabou. Nunca fiquei tão apavorada em toda a minha vida.

           – Ainda não acabou – disse Carla.

           – Como assim?

           – Só vai acabar quando conseguirmos fechar esse hospital e outros do mesmo tipo.

           – E como vão fazer isso?

           – Precisamos de você – disse-lhe Carla. – Você é a prova.

           – Estava com medo de ouvi-la dizer isso.

           – Aceita vir conosco amanhã, quando voltarmos para Berlim?

           Houve uma longa pausa, e então Ilse respondeu:

           – Sim, aceito.

 

           Volodya Peshkov estava contente por ter voltado para casa. Era verão, e Moscou estava no auge, ensolarada e quente. Na segunda-feira, 30 de junho, ele retornou à sede da Inteligência do Exército Vermelho, vizinha ao campo de pouso de Khodynka.

           Tanto Werner Franck quanto o espião de Tóquio estavam certos: a Alemanha invadira a União Soviética no dia 22 de junho. Volodya e todo o pessoal da embaixada soviética em Berlim tinham voltado para Moscou de navio e de trem. Ele tivera prioridade e chegara mais depressa do que a maioria: alguns ainda estavam a caminho.

           Percebia agora quanto Berlim o estava deprimindo. Os nazistas eram maçantes com sua prepotência e seu triunfalismo. Eram como um time de futebol na comemoração de uma vitória, que ia ficando cada vez mais embriagado e mais chato e se recusava a ir para casa. Volodya estava farto deles.

           Algumas pessoas poderiam dizer que, na União Soviética era a mesma coisa, com sua polícia secreta, sua rígida ortodoxia e suas atitudes puritanas em relação a prazeres abstratos como a pintura e a moda. Mas elas estavam erradas. O comunismo era uma obra em andamento, e erros eram cometidos no caminho para uma sociedade justa. A NKVD, com suas câmaras de tortura, era uma aberração, um câncer no corpo do comunismo. Um dia, ela seria extirpada. Mas provavelmente não enquanto durasse a guerra.

           Preparando-se para o início do conflito, Volodya havia equipado seus espiões de Berlim com rádios e manuais de código clandestinos com bastante antecedência. Agora, mais do que nunca, era vital que os poucos e corajosos opositores do nazismo continuassem a passar informações para os soviéticos. Antes de partir, ele destruíra todos os registros de seus nomes e endereços, que agora só existiam em sua cabeça.

           Encontrara seu pai e sua mãe bem-dispostos e com saúde, embora o pai parecesse preocupado: era responsabilidade sua preparar Moscou para os ataques aéreos. Fora visitar a irmã Anya e o marido, Ilya Dvorkin, bem como os sobrinhos gêmeos, que tinham agora 1 ano e meio: Dmitriy, cujo apelido era Dimka, e Tatiana, que todos chamavam de Tania. Infelizmente, Volodya achou o pai das crianças tão desprezível quanto antes.

           Depois de um dia agradável em casa e de uma boa noite de sono em seu antigo quarto, estava pronto para voltar ao trabalho.

           Passou pelo detector de metais na entrada do prédio da Inteligência. Apesar de feios e utilitários, os conhecidos corredores e escadarias lhe despertaram nostalgia. Ao caminhar pelo prédio, quase esperou que as pessoas viessem parabenizá-lo: muitas deviam saber que fora ele quem confirmara a operação Barbarossa. No entanto, ninguém o abordou. Talvez estivessem apenas sendo discretos.

           Ele entrou numa grande área aberta, cheia de datilógrafas e arquivistas, e dirigiu-se a uma recepcionista de meia-idade:

           – Olá, Nika... ainda por aqui?

           – Bom dia, capitão Peshkov – respondeu ela, não tão calorosa quanto ele esperava. – O coronel Lemitov gostaria de falar com o senhor imediatamente.

           Assim como o pai de Volodya, Lemitov não era importante o suficiente para sofrer com o grande expurgo do final dos anos 1930, e tinha sido promovido para o lugar de um infeliz ex-superior. Volodya não sabia muita coisa sobre o expurgo, mas achava difícil acreditar que tantos oficiais importantes tivessem sido desleais a ponto de merecer a punição. Não que soubesse exatamente que punição era essa. Eles podiam estar exilados na Sibéria, presos em algum lugar ou então mortos. Sabia apenas que tinham desaparecido.

           – Ele agora fica na sala grande no fim do corredor principal – acrescentou Nika.

           Volodya percorreu a sala coletiva, acenando com a cabeça e sorrindo para um ou dois conhecidos, mas novamente teve a sensação de que não era o herói que esperava ser. Bateu na porta de Lemitov torcendo para que o chefe pudesse esclarecer a situação.

           – Pode entrar.

           Volodya entrou, bateu continência e fechou a porta atrás de si.

           – Bem-vindo de volta, capitão. – Lemitov deu a volta na mesa. – Cá entre nós, excelente trabalho em Berlim. Obrigado.

           – Fico honrado com o elogio, senhor – respondeu Volodya. – Mas por que cá entre nós?

           – Porque você contradisse Stalin. – O coronel ergueu a mão para impedir que ele protestasse. – Ele não sabe que foi você, claro. Mesmo assim, depois do expurgo, algumas pessoas por aqui ficam nervosas em se associar a qualquer um que siga o caminho errado.

           – O que eu deveria ter feito? – indagou Volodya, incrédulo. – Falsificado informações erradas?

           Lemitov balançou a cabeça enfaticamente.

           – Não me entenda mal, você fez o que era certo. E eu o protegi. Só não espere que as pessoas por aqui o tratem como herói.

           – Está bem – disse Volodya. A situação era pior do que ele imaginava.

           – Pelo menos agora você tem sua própria sala... fica a três portas daqui. Vai precisar passar um ou dois dias se atualizando.

           Volodya interpretou aquilo como uma dispensa.

           – Sim, coronel – falou. Bateu continência e saiu.

           Pequena e sem tapete, a sala não tinha nenhum luxo, mas era só dele. Como andara ocupado tentando voltar para casa o mais rápido possível, estava desatualizado em relação ao avanço da invasão alemã. Sendo assim, deixou a decepção de lado e começou a ler os relatórios dos comandantes do campo de batalha sobre a primeira semana de guerra.

           À medida que a leitura avançava, foi ficando cada vez mais desanimado.

           A invasão tinha pego o Exército Vermelho de surpresa.

           Parecia impossível, mas sua mesa estava coberta de evidências disso.

           Em 22 de junho, dia do ataque alemão, muitas unidades avançadas do Exército Vermelho estavam sem munição.

           E não parava por aí. Nos campos de pouso, os aviões tinham sido dispostos em filas bem certinhas, sem camuflagem, de forma que, nas primeiras horas da guerra, a Luftwaffe destruíra 1.200 aeronaves soviéticas. Unidades do Exército tinham sido enviadas para enfrentar os alemães sem armamentos adequados, sem cobertura aérea e sem informação sobre as posições inimigas; consequentemente, foram aniquiladas.

           E, o pior de tudo, a ordem de Stalin para o Exército Vermelho agora era a seguinte: é proibido recuar. Todas as unidades tinham que lutar até o último homem, e os oficiais deveriam se suicidar com um tiro para não serem capturados. Os soldados nunca podiam se reagrupar em posição defensiva diferente e mais forte. Isso significava que todas as derrotas se transformavam em massacres.

           O resultado era que o Exército Vermelho estava perdendo muitos homens e equipamentos.

           O alerta do espião de Tóquio e a confirmação de Werner Franck tinham sido ignorados por Stalin. Mesmo depois que o ataque começara, o líder soviético insistira que aquilo era um ato de provocação pontual, conduzido por oficiais militares alemães sem o conhecimento de Hitler, que poria um fim à agressão assim que ficasse sabendo dela.

           Quando se tornou impossível negar que aquilo não era uma provocação, mas a maior invasão da história da guerra, os alemães já haviam dizimado as posições avançadas soviéticas. Em uma semana, conseguiram adentrar quase 500 quilômetros no território soviético.

           Era uma catástrofe – mas o que fazia Volodya ter vontade de gritar era que tudo aquilo poderia ter sido evitado.

           Não restava dúvida sobre de quem era a culpa. A União Soviética era uma autocracia. Uma única pessoa tomava as decisões: Josef Stalin. Ele havia cometido um erro desastroso por conta da teimosia e da burrice. E agora seu país estava correndo um grande perigo.

           Até então, Volodya acreditava que o comunismo soviético fosse a verdadeira ideologia, maculada apenas pelos excessos da polícia secreta, a NKVD. Agora entendia que o defeito estava no topo da cadeia de comando. Beria e a NKVD só existiam porque Stalin permitia. Era ele quem estava impedindo a marcha rumo ao verdadeiro comunismo.

           Mais tarde nesse mesmo dia, enquanto olhava pela janela para o campo de pouso banhado de sol, refletindo sobre o que havia descoberto, Volodya recebeu uma visita de Kamen. Quatro anos antes, quando eram recém-formados pela Academia de Inteligência Militar, haviam sido tenentes juntos e dividido uma sala com outros dois colegas. Na época, Kamen era um palhaço: fazia piada de todo mundo e atrevia-se a zombar da inflexível ortodoxia soviética. Agora estava mais gordo e parecia mais sério. Talvez com o objetivo de aparentar mais maturidade, deixara crescer um bigodinho preto igual ao de Molotov, o ministro das Relações Exteriores.

           Kamen fechou a porta atrás de si e sentou-se. Tirou do bolso um brinquedo: um soldadinho de metal com uma chave nas costas. Deu corda na chave e pôs o brinquedo sobre a mesa de Volodya. O soldadinho começou a balançar os braços como se estivesse marchando, e o mecanismo foi perdendo energia com um ruído alto que lembrava os estalos de uma lingueta.

           – Stalin não é visto há dois dias – disse Kamen em voz baixa.

           Volodya entendeu que o soldadinho de corda estava ali para abafar qualquer grampo que pudesse estar escondido em sua sala.

           – Como assim, não é visto? – indagou.

           – Não apareceu no Kremlin e não atende o telefone.

           Volodya ficou espantado. O líder de uma nação não podia simplesmente sumir.

           – O que ele está fazendo?

           – Ninguém sabe. – O soldadinho parou. Kamen deu corda no brinquedo outra vez. – No sábado à noite, quando ficou sabendo que o Grupamento Militar Ocidental soviético fora cercado pelos alemães, ele disse: “Tudo está perdido. Eu desisto. Lenin criou esta nação, e nós fodemos com ela.” Então foi para Kuntsevo. – Stalin tinha uma casa de campo perto dessa cidade, nos arredores de Moscou. – Ontem não apareceu no Kremlin no horário habitual, meio-dia. Quando ligaram para Kuntsevo, ninguém atendeu. O mesmo aconteceu hoje.

           Volodya se inclinou para a frente.

           – Será que ele está tendo... – Sua voz se transformou num sussurro. – ...um colapso mental?

           Kamen fez um gesto de impotência.

           – Não seria de espantar. Contrariando todos os indícios, ele insistiu que a Alemanha não iria nos atacar este ano, e veja só o que aconteceu.

           Volodya assentiu. Fazia sentido. Stalin se permitira ser oficialmente chamado de Pai, Professor, Grande Líder, Transformador da Natureza, Grande Guia, Gênio da Humanidade, o Maior Gênio de Todos os Tempos e Povos. Mas agora ficara provado até mesmo para ele que estava errado, ao passo que todos os outros estavam certos. Havia quem se matasse em circunstâncias como essas.

           A crise era ainda pior do que Volodya pensava. A União Soviética não estava apenas sendo atacada e perdendo; também estava sem líder. Aquele devia ser o momento mais perigoso para o país desde a revolução.

           Mas seria também uma oportunidade? Seria uma chance de se livrar de Stalin?

           A última vez que Stalin parecera vulnerável fora em 1924, quando o testamento de Lenin afirmara que ele não tinha capacidade para assumir o controle da nação. Desde que superara essa crise, seu poder parecia inabalável, mesmo – e Volodya agora via isso com clareza – quando suas decisões beiravam a loucura: os expurgos, os erros na Espanha, a nomeação do sádico Beria como chefe da polícia secreta, o pacto com Hitler. Seria aquela situação a chance de finalmente escapar do seu jugo?

           Volodya escondeu sua animação de Kamen e de todos os outros. Guardou os pensamentos para si durante o trajeto de ônibus para casa sob a luz suave do entardecer de verão. A viagem foi atrasada por um lento comboio de caminhões que rebocavam peças de artilharia antiaérea – provavelmente ordenado por seu pai, responsável pela defesa de Moscou contra ataques aéreos.

           Será que Stalin poderia ser deposto?

           Volodya pensou quantas pessoas próximas ao Kremlin estariam se fazendo a mesma pergunta.

           Entrou na Casa do Governo, o prédio de dez andares onde ficava o apartamento dos pais, bem em frente ao Kremlin, na outra margem do rio Moscou. Seus pais tinham saído, mas sua irmã estava lá com os gêmeos. O menino tinha olhos e cabelos escuros. Com um lápis vermelho na mão, rabiscava um jornal velho. A menina tinha os mesmos olhos azuis intensos de Grigori – assim como Volodya, segundo diziam. Veio imediatamente mostrar a boneca ao tio.

           No apartamento estava também Zoya Vorotsyntsev, a linda física que Volodya conhecera quatro anos antes, às vésperas de partir para a Espanha. Ela e Anya tinham descoberto um interesse comum pela música folclórica russa: iam juntas a recitais, e Zoya tocava gudok, um instrumento de três cordas. Nenhuma das duas tinha dinheiro para comprar um fonógrafo, mas havia um na casa de Grigori, e elas estavam ouvindo a gravação de uma orquestra de balalaikas. Grigori não era um grande apreciador de música, mas achou o disco animado.

           Zoya usava um vestido de verão de mangas curtas do mesmo tom claro de seus olhos azuis. Quando Volodya lhe fez a pergunta-padrão sobre como ela estava, a resposta foi um ríspido:

           – Muito brava.

           Os russos tinham muitos motivos para estarem bravos naquele momento.

           – Por quê? – perguntou Volodya.

           – Minha pesquisa de física nuclear foi cancelada. Todos os cientistas com os quais trabalho foram transferidos para outros projetos. Eu mesma estou trabalhando para aprimorar o projeto das miras dos bombadeiros.

           Volodya achou isso bastante razoável.

           – Estamos em guerra, afinal de contas.

           – Você não entende – disse ela. – Escute o que vou dizer: quando passa por um processo chamado fissão, o metal urânio libera uma quantidade de energia descomunal. Descomunal. Nós sabemos disso, e os cientistas ocidentais também sabem... já lemos seus artigos em publicações científicas.

           – Mesmo assim, a questão das miras dos bombardeiros parece mais urgente.

           – Esse processo, a fissão, poderia ser usado para criar bombas cem vezes mais potentes do que as que existem agora – disse Zoya, zangada. – Uma única explosão nuclear poderia aniquilar Moscou. E se os alemães fabricarem uma bomba dessas e nós não tivermos uma também? Vai ser como se eles tivessem fuzis e nós apenas espadas!

           – Mas há algum motivo para crer que os cientistas de outros países estejam trabalhando numa bomba de fissão? – perguntou Volodya, cético.

           – Temos certeza de que estão. O conceito de fissão conduz automaticamente à ideia de uma bomba. Se nós pensamos nisso, por que eles não iriam pensar? Mas há outro motivo, também. Eles divulgaram todos os primeiros resultados em publicações científicas... E então, de um ano para cá, pararam de repente. Desde este mesmo período no ano passado nenhum artigo sobre fissão é publicado.

           – E você acha que os políticos e generais do Ocidente perceberam o potencial militar dessa pesquisa e a tornaram secreta?

           – Não consigo pensar em outro motivo. E a União Soviética nem sequer começou a procurar urânio debaixo da terra.

           – Hum. – Volodya estava fingindo duvidar, mas na verdade considerava tudo aquilo extremamente verossímil. Nem mesmo os maiores admiradores de Stalin, grupo que incluía seu próprio pai, alegavam que ele entendesse de ciência. E era muito fácil para um autocrata ignorar qualquer coisa que o deixasse pouco à vontade.

           – Já falei com seu pai – prosseguiu Zoya. – Ele me dá ouvidos, mas ninguém o escuta.

           – O que você vai fazer, então?

           – O que posso fazer? Vou projetar uma mira de bombardeiro muito boa para os nossos aviadores e cruzar os dedos.

           Volodya assentiu. Gostava daquela atitude. Gostava daquela moça. Ela era inteligente, arrebatada, e um colírio para os olhos. Pensou se aceitaria um convite seu para ir ao cinema.

           Aquela conversa sobre física o fez se lembrar de Willi Frunze, que estudara com ele na Academia para Meninos de Berlim. Segundo Werner Franck, Willi era um físico brilhante que agora estudava na Inglaterra. Talvez ele soubesse alguma coisa sobre a bomba de fissão que estava deixando Zoya tão zangada. E, se ainda fosse comunista, talvez estivesse disposto a revelar o que sabia. Volodya disse a si mesmo que não podia se esquecer de mandar um telegrama para o setor da Inteligência do Exército Vermelho na embaixada de Londres.

           Seus pais entraram na sala. Grigori usava um uniforme de gala. Katerina estava de sobretudo e chapéu. Voltavam de uma das muitas intermináveis cerimônias que o Exército tanto amava: apesar da invasão alemã, Stalin insistia em que esses rituais continuassem, pois eram bons para o moral.

           Os avós fizeram carinho nos gêmeos, mas Grigori parecia preocupado. Resmungou algo sobre um telefonema, depois se refugiou no escritório. Katerina começou a preparar o jantar.

           Volodya ficou na cozinha conversando com as três mulheres, mas estava louco para falar com o pai. Pensava saber o teor do telefonema urgente que ele tinha que dar: a derrubada de Stalin estava sendo planejada ou evitada naquele exato momento, provavelmente naquele mesmo prédio.

           Após alguns minutos, ele decidiu interromper o pai, mesmo se arriscando a enfurecê-lo. Pediu licença e foi até o escritório. Mas Grigori já estava de saída.

           – Tenho que ir a Kuntsevo – disse ele.

           Volodya estava louco para saber o que estava acontecendo.

           – Por quê? – indagou.

           O pai ignorou a pergunta.

           – Mandei chamar meu carro, mas meu motorista já foi para casa. Você pode me levar.

           Volodya ficou animado. Nunca fora à datcha de Stalin. Agora iria até lá num momento de crise.

           – Vamos – disse-lhe o pai, impaciente.

           Eles gritaram suas despedidas do hall e saíram.

           O carro de Grigori era um ZIS 101-A preto, cópia soviética do Packard americano, com câmbio automático de três marchas. A velocidade máxima ficava em torno de 130 quilômetros por hora. Volodya se acomodou ao volante e partiu.

           Passou pelo Arbat, bairro de artesãos e intelectuais, e pegou a autoestrada Mozhaisk na direção oeste.

           – O senhor foi convocado pelo camarada Stalin? – perguntou ao pai.

           – Não. Stalin está incomunicável há dois dias.

           – Foi o que ouvi dizer.

           – Ouviu? Deveria ser segredo.

           – Não se pode guardar segredo sobre uma coisa dessas. O que está acontecendo agora?

           – Estamos indo em grupo a Kuntsevo falar com ele.

           Volodya fez a pergunta-chave:

           – Com que objetivo?

           – Em primeiro lugar, para descobrir se ele está vivo ou morto.

           Será que Stalin poderia de fato já estar morto sem que ninguém soubesse?, perguntou-se Volodya. Parecia improvável.

           – E se ele estiver vivo?

           – Não sei. Mas, aconteça o que acontecer, prefiro estar lá para ver do que ficar sabendo depois.

           Volodya estava ciente de que grampos não funcionavam em carros em movimento: tudo o que o microfone conseguia captar era o barulho do motor. Assim, sentia-se seguro de que ninguém iria ouvi-lo. Apesar disso, um temor o acometeu quando ele disse o impensável:

           – Stalin pode ser deposto?

           – Já disse que não sei – respondeu seu pai, irritado.

           Volodya ficou eletrizado. Uma pergunta como aquela exigia uma negação veemente. Qualquer outra coisa significava um sim. Seu pai acabara de admitir a possibilidade de Stalin estar acabado.

           A esperança de Volodya aumentou exponencialmente.

           – Pense em como poderia ser! – falou, animado. – O fim dos expurgos! Os campos de trabalhos seriam fechados. Meninas não seriam mais pegas na rua para serem estupradas pela polícia secreta. – Ele quase esperava que o pai o interrompesse, mas Grigori apenas escutava, com os olhos semicerrados. Volodya prosseguiu: – A expressão idiota “espião trotskista-fascista” vai desaparecer da nossa língua. Unidades militares que estiverem em desvantagem numérica e sem armamentos poderão recuar, em vez de se sacrificar inutilmente. As decisões serão tomadas de forma lógica, por grupos de homens inteligentes que se esforçarão para determinar o que é melhor para todos. É esse o comunismo com o qual o senhor sonhou trinta anos atrás!

           – Seu rapaz tolo – disse Grigori com desprezo. – A última coisa que queremos numa hora como esta é perder nosso líder. Estamos em guerra e recuando! Nosso único objetivo deve ser defender a revolução, custe o que custar. Precisamos de Stalin agora mais do que nunca.

           Volodya teve a sensação de ter levado um tapa. Já fazia muitos anos que seu pai não o chamava de tolo.

           Será que Grigori tinha razão? A União Soviética precisava mesmo de Stalin? O líder havia tomado tantas decisões desastrosas que Volodya não via como o país poderia ficar pior sob o comando de outra pessoa.

           Chegaram ao seu destino. A casa de Stalin era chamada de datcha por convenção, mas não era nenhum chalé no campo. A construção comprida e baixa, com cinco janelas altas de ambos os lados de uma entrada grandiosa, ficava no meio de uma floresta de pinheiros e era pintada de um verde fosco, como para camuflá-la. Centenas de soldados armados protegiam os portões e a cerca dupla de arame farpado. Grigori apontou uma bateria antiaérea parcialmente camuflada por uma rede.

           – Fui eu quem pus aquilo ali – comentou.

           O guarda do portão reconheceu Grigori, mas ainda assim pediu para ver seus documentos de identificação. Embora Grigori fosse general e Volodya capitão da Inteligência, ambos foram revistados em busca de armas.

           Volodya dirigiu até a porta da casa. Não havia nenhum outro carro ali.

           – Vamos esperar pelos outros – falou seu pai.

           Instantes depois, três outras limusines ZIS se aproximaram. Volodya se lembrou de que ZIS significava Zavod Imeni Stalin, Fábrica Chamada Stalin. Teriam os carrascos acabado de chegar em veículos batizados para homenagear sua vítima?

           Todos desceram dos carros: oito homens de meia-idade vestidos de terno e com chapéus, que tinham nas mãos o futuro do país. Entre eles, Volodya reconheceu Molotov, o ministro das Relações Exteriores, e Beria, chefe da polícia secreta.

           – Vamos – disse Grigori.

           Volodya se espantou.

           – Vou entrar com vocês?

           Grigori levou a mão até debaixo do banco e entregou ao filho uma pistola Tokarev TT-33.

           – Ponha no bolso – disse ele. – Se aquele filho da mãe do Beria tentar me prender, mate-o com um tiro.

           Volodya pegou a arma com cuidado: a TT-33 não tinha trava de segurança. Guardou-a no bolso do paletó – a pistola tinha uns 18 centímetros de comprimento – e desceu do carro. O pente tinha oito balas, recordou.

           Todos entraram. Volodya temeu que o revistassem outra vez e encontrassem a arma, mas não houve novas revistas.

           A casa era pintada em cores escuras e estava mal-iluminada. Um oficial conduziu o grupo ao que parecia uma pequena sala de jantar. Stalin estava sentado numa poltrona lá dentro.

           O homem mais poderoso do hemisfério oriental parecia abatido e deprimido. Correu os olhos pelo grupo que entrava na saleta e perguntou:

           – Por que vieram até aqui?

           Volodya deu um arquejo. Era óbvio que o líder achava que eles estavam ali para prendê-lo ou executá-lo.

           Houve uma pausa demorada e Volodya entendeu que aqueles homens não tinham planejado nada. Como poderiam ter feito isso quando nem sabiam se Stalin estava vivo?

           Mas o que eles fariam agora? Matá-lo com um tiro? Talvez jamais houvesse outra oportunidade.

           Por fim, Molotov se adiantou.

           – Viemos pedir que o senhor volte ao trabalho – disse o ministro.

           Volodya teve que reprimir o impulso de protestar.

           Stalin fez que não com a cabeça.

           – Será que eu saberei corresponder às expectativas das pessoas? Será que conseguirei conduzir o país à vitória?

           Volodya estava embasbacado. Será que ele iria mesmo recusar?

           – Talvez haja candidatos melhores – acrescentou Stalin.

           Ele estava lhes dando uma segunda chance de tirá-lo do poder!

           Outro membro do grupo tomou a palavra, e Volodya reconheceu o marechal Voroshilov.

           – Não há ninguém mais digno – disse ele.

           De que adiantava aquilo? Não era hora para adulações explícitas.

           Então seu pai interveio dizendo:

           – É verdade!

           Eles não iriam tirar Stalin do poder? Como podiam ser tão burros?

           Molotov foi o primeiro a dizer algo sensato:

           – Nossa proposta é formar um conselho de guerra chamado Comitê de Defesa do Estado, uma espécie de versão condensada do Politburo, com um número de componentes bem reduzido e poderes abrangentes.

           Stalin logo perguntou:

           – E quem vai ser o líder desse comitê?

           – O senhor, camarada Stalin.

           Volodya quis gritar: “Não!”

           Houve outro longo silêncio.

           Por fim, Stalin disse:

           – Muito bem. E quem mais fará parte dele?

           Beria deu um passo à frente e começou a propor nomes.

           Estava tudo acabado, percebeu Volodya, sentindo a cabeça girar de tanta frustração e decepção. Eles tinham perdido sua chance. Poderiam ter deposto um tirano, mas não tiveram coragem. Como os filhos de um pai violento, temiam não conseguir continuar sem ele.

           Na verdade, constatou com um pessimismo crescente, era pior do que isso. Talvez Stalin tivesse mesmo sofrido um colapso nervoso – com certeza parecia o caso –, mas também tinha dado uma cartada política de mestre. Todos os homens que poderiam substituí-lo estavam naquela sala. Na hora em que seu julgamento equivocado e catastrófico fora exposto aos olhos do mundo, ele havia forçado os rivais a procurá-lo e implorar que voltasse a ser seu líder. Apagara seu erro lamentável e proporcionara a si mesmo um novo começo.

           Stalin não tinha apenas voltado.

           Ele agora estava mais forte do que nunca.

 

           Quem teria coragem de protestar publicamente contra o que estava acontecendo em Akelberg? Carla e Frieda tinham visto tudo com seus próprios olhos e trazido Ilse König como testemunha, mas agora precisavam de um advogado. Não havia mais representantes políticos eleitos na Alemanha: todos os deputados do Reichstag eram nazistas. Tampouco havia jornalistas de verdade, apenas bajuladores sem talento. Os juízes, todos nomeados pelos nazistas, eram subservientes ao governo. Carla nunca tinha percebido como costumava ser protegida pelos políticos, jornalistas e juristas. Sem eles, constatava agora, o governo podia fazer o que bem entendesse, até mesmo matar pessoas.

           A quem poderiam recorrer? Heinrich von Kessel, admirador de Frieda, tinha um amigo que era padre católico.

           – Peter era o garoto mais inteligente da minha turma – contara-lhes ele. – Mas não era o mais popular. Era um pouco sério, tenso. Acho que vai nos ouvir.

           Carla achava que valia a pena tentar. O pastor protestante da igreja que ela frequentava tinha abraçado sua causa até a Gestapo aterrorizá-lo e obrigá-lo a se calar. Talvez a mesma coisa voltasse a acontecer. Mas ela não via alternativa.

           Num domingo do mês de julho, de manhã bem cedo, Heinrich levou Carla, Frieda e Ilse até a igreja de Peter, em Schöneberg. Heinrich estava elegante, de terno preto; as moças usavam seus uniformes de enfermeira, símbolos de confiabilidade. Entraram por uma porta lateral e foram até um cômodo pequeno e empoeirado, mobiliado com algumas cadeiras velhas e um grande armário. Encontraram o padre Peter sozinho, orando. Ele devia ter ouvido quando entraram, mas permaneceu ajoelhado por alguns instantes antes de se pôr de pé e se virar para cumprimentá-los.

           Peter era alto e magro, tinha traços regulares e um corte de cabelo caprichado. Tinha sido da turma de Heinrich, então Carla calculou que tivesse 27 anos. Sem se dar o trabalho de esconder a irritação por ter sido interrompido, ele franziu o cenho para os quatro jovens.

           – Estou me preparando para a missa – falou, severo. – Fico feliz em vê-lo na igreja, Heinrich, mas preciso ficar só. Podemos nos ver depois.

           – Trata-se de uma urgência espiritual, Peter – disse Heinrich. – Sente-se, temos algo importante a lhe dizer.

           – Não deve ser mais importante do que a missa.

           – É, sim, Peter. Acredite em mim. Em cinco minutos você vai concordar.

           – Está bem.

           – Esta é minha namorada, Frieda Franck.

           Carla ficou espantada. Frieda era namorada de Heinrich agora?

           – Eu tinha um irmão mais novo que nasceu com espinha bífida – disse Frieda. – No começo deste ano, ele foi transferido para um hospital em Akelberg, na Bavária, para receber um tratamento especial. Pouco depois, recebemos uma carta dizendo que ele tinha morrido de apendicite.

           Ela se virou para Carla, que continuou a história:

           – Minha criada teve um filho que nasceu com problemas mentais. Ele também foi transferido para Akelberg. Ela recebeu uma carta igualzinha à dos Franck, no mesmo dia.

           O padre Peter abriu os braços, num gesto de quem pergunta “E daí?”.

           – Já ouvi esse tipo de coisa antes. É propaganda contra o governo. A igreja não se mete em política.

           Que bobajada, pensou Carla. A igreja estava mergulhada até o pescoço na política. Mas deixou aquilo passar.

           – O filho da minha criada não tinha apêndice – prosseguiu ela. – Tinha sido submetido a uma cirurgia para removê-lo dois anos antes.

           – Por favor – disse o padre Peter. – O que isso prova?

           Carla ficou desanimada. Era óbvio que o padre estava de má vontade com eles.

           – Espere, Peter – disse Heinrich. – Você ainda não ouviu a história toda. Esta é Ilse, ela trabalhava no hospital de Akelberg.

           O padre Peter olhou a enfermeira com ar de expectativa.

           – Eu fui criada de acordo com o catolicismo, padre – disse Ilse.

           Carla não sabia disso.

           – Não sou uma boa católica – prosseguiu Ilse.

           – Nenhum de nós é bom, filha, só Deus – disse o padre Peter, devoto.

           – Eu sabia que o que estava fazendo era pecado – disse Ilse. – Mas fiz mesmo assim, porque eles mandaram e eu estava com medo. – Ela começou a chorar.

           – Fez o quê?

           – Matei aquelas pessoas. Ah, padre, será que Deus vai me perdoar?

           O padre ficou encarando a jovem enfermeira. Não podia descartar aquilo como propaganda: estava olhando para uma alma atormentada. Ele empalideceu.

           Os outros não disseram nada. Carla prendeu a respiração.

           – Os deficientes chegam ao hospital em um ônibus cinza – disse Ilse. – Não recebem nenhum tratamento especial. Nós lhes aplicamos uma injeção e eles morrem. Depois nós os cremamos. – Ela ergueu os olhos para o padre. – Será que algum dia serei perdoada pelo que fiz?

           O padre abriu a boca para falar. As palavras ficaram presas em sua garganta, e ele tossiu. Por fim, perguntou baixinho:

           – Quantos?

           – Em geral, quatro. Quero dizer, quatro ônibus. Cada um com cerca de 25 doentes.

           – Cem pessoas?

           – Sim. Por semana.

           Seu rosto estava cinza, quase branco; e a boca, escancarada.

           – Cem deficientes por semana?

           – Sim, padre.

           – Que tipo de deficiência?

           – Todos os tipos, mentais e físicas. Alguns idosos com demência senil, alguns bebês com malformações, homens e mulheres paralíticos, retardados ou simplesmente incapazes.

           O padre não conseguia parar de repetir aquilo:

           – E os funcionários do hospital matam todo mundo?

           Ilse começou a soluçar.

           – Perdão, perdão, eu sabia que era errado.

           Carla observou o padre Peter. Ele não tinha mais um ar arrogante. Era uma transformação notável. Depois de anos ouvindo os católicos ricos daquele subúrbio arborizado confessarem seus pecados sem graça, ele de repente se via diante do mal em estado puro. E estava chocado.

           Mas o que iria fazer?

           Peter se levantou. Pegou Ilse pela mão e a fez ficar de pé.

           – Retorne ao seio da Igreja – disse ele. – Confesse seus pecados ao seu padre. Deus irá perdoá-la. Tenho certeza disso.

           – Obrigada – sussurrou ela.

           Ele soltou as mãos da moça e olhou para Heinrich.

           – Talvez não seja tão simples para o restante de nós – falou.

           Então lhes virou as costas e se ajoelhou para rezar outra vez.

           Carla olhou para Heinrich, e o rapaz deu de ombros. Eles se levantaram e saíram da saleta, Carla com o braço em volta de Ilse, que ainda chorava.

           – Vamos ficar para a missa – disse ela. – Talvez ele volte a falar conosco depois.

           Os quatro subiram a nave da igreja. Ilse parou de chorar e se acalmou. Frieda segurou o braço de Heinrich. Eles se sentaram entre os fiéis ali reunidos, homens prósperos, mulheres roliças e crianças agitadas vestidas com suas roupas mais elegantes. Uma gente assim jamais mataria os deficientes, pensou Carla. Mas seu governo matava em seu nome. Como isso podia acontecer?

           Não sabia o que esperar do padre Peter. Ele obviamente acreditara na história de Ilse. Quisera dispensá-los dizendo que a motivação deles era política, mas a sinceridade da enfermeira o convencera. Ele ficara horrorizado. No entanto, não tinha feito nenhuma promessa, exceto ao afirmar que Deus iria perdoá-la.

           Carla correu os olhos pela igreja. A decoração era mais colorida do que a dos templos protestantes aos quais estava habituada. Havia mais estátuas e pinturas, mais mármores e dourações, estandartes, velas. Protestantes e católicos tinham travado guerras por causa daqueles detalhes sem importância. Como parecia estranho que, num mundo no qual crianças podiam ser assassinadas, alguém se importasse com velas.

           A missa começou. Os sacerdotes entraram, paramentados com suas vestes. O padre Peter era o mais alto. Carla não conseguiu ler nada na expressão de seu rosto, exceto uma religiosidade severa.

           Os hinos e as preces não a interessaram. Tinha rezado pelo pai e, duas horas depois, o encontrara violentamente espancado e à beira da morte no chão de sua casa. Sentia saudade dele todos os dias; às vezes, todas as horas. Preces não tinham conseguido salvá-lo, e tampouco protegeriam as pessoas que o governo julgasse incapazes. Era preciso ação, não palavras.

           Pensar no pai a fez se lembrar do irmão, Erik. Ele estava em algum lugar da Rússia. Escrevera uma carta para casa, comemorando com júbilo o progresso rápido da invasão e recusando-se, zangado, a acreditar que Walter fora assassinado pela Gestapo. Afirmava que o pai obviamente fora liberado ileso pela polícia e depois atacado na rua por bandidos, comunistas ou judeus. Erik vivia num mundo de fantasia, além do alcance da razão.

           Será que o mesmo se aplicava ao padre Peter?

           O padre subiu no púlpito. Carla não sabia que ele faria um sermão. Perguntou-se o que ele diria. Será que iria se inspirar no que ouvira antes da missa? Falaria de algo irrelevante, da virtude da modéstia ou do pecado da inveja? Ou será que fecharia os olhos para agradecer piamente a Deus pelas sucessivas vitórias do Exército alemão na Rússia?

           De pé no púlpito, muito alto, o padre correu pela igreja um olhar que poderia ser de arrogância, orgulho ou desafio.

           – “Não matarás”, diz o quinto mandamento.

           Carla cruzou olhares com Heinrich. O que o padre Peter iria dizer?

           A voz do sacerdote se elevou entre as pedras da nave e ecoou pela igreja:

           – Existe um lugar em Akelberg, na Bavária, onde o nosso governo está violando esse mandamento cem vezes por semana!

           Carla soltou um arquejo. Ele estava mesmo fazendo isso – pronunciando um sermão contra o programa! Aquilo poderia mudar tudo.

           – Pouco importa que as vítimas sejam deficientes físicos ou doentes mentais, pouco importa que não consigam se alimentar sozinhas ou estejam paralisadas. – Peter estava demonstrando sua raiva. – Bebês indefesos e velhos senis também são filhos de Deus, e a vida deles é tão sagrada quanto a minha e a de vocês. – Ele elevou o tom de voz: – Matá-los é pecado mortal! – Ergueu o braço direito com o punho cerrado, e sua voz estremeceu de emoção: – Estou dizendo a vocês: se não tomarmos uma providência, estaremos pecando tanto quanto os médicos e as enfermeiras que aplicam as injeções letais. Se ficarmos calados... – Fez uma pausa. – Se nos calarmos, seremos assassinos também!

 

           O inspetor Thomas Macke estava furioso. Tinha feito papel de bobo aos olhos do superintendente Kringelein e de seus outros superiores. Garantira a eles que havia estancado o vazamento. O segredo de Akelberg – e dos outros hospitais daquele tipo espalhados pelo país – estava seguro, afirmara. Encontrara os três criadores de caso, Werner Franck, pastor Ochs e Walter von Ulrich, e os silenciara, cada um à sua maneira.

           Mesmo assim, o segredo viera à tona.

           O homem responsável por isso era um jovem padre arrogante chamado Peter.

           O padre Peter estava agora diante de Macke, nu, amarrado pelos pulsos e tornozelos a uma cadeira construída especialmente para aquele fim. Sangrava pelas orelhas, pelo nariz e pela boca, e havia vomitado sobre o peito. Tinha eletrodos presos aos lábios, mamilos e pênis. Uma faixa em volta da testa o impedia de quebrar o pescoço ao ser sacudido pelas convulsões.

           Um médico sentado ao seu lado verificou seus batimentos cardíacos com um estetoscópio e fez uma cara de dúvida.

           – Ele não vai aguentar muito mais – falou, em tom casual.

           O sermão sedicioso do padre Peter já tivera desdobramentos. O bispo de Münster, clérigo muito mais importante, fizera um sermão parecido denunciando o programa T4. O bispo apelara a Hitler para salvar essas pessoas da Gestapo, dando a entender, de forma astuta, que o Führer não tinha conhecimento do programa e fornecendo ao líder alemão um álibi pronto para ser usado.

           O sermão do bispo fora datilografado, reproduzido e passado de mão em mão por toda a Alemanha.

           A Gestapo havia prendido todas as pessoas que encontrara com um exemplar, mas de nada adiantara. Aquela era a única ocasião na história do Terceiro Reich em que a população reagira indignada a alguma ação do governo.

           A repressão foi feroz, mas não surtiu efeito: as cópias do sermão continuavam a se multiplicar, mais sacerdotes rezavam pelos deficientes, e houve até uma passeata de protesto em Akelberg. Aquilo tinha fugido ao controle.

           E a culpa era de Macke.

           Ele se curvou sobre Peter. Os olhos do padre estavam fechados e sua respiração curta, mas ele ainda estava consciente. Macke gritou em seu ouvido:

           – Quem lhe contou sobre Akelberg?

           Não houve resposta.

           Peter era a única pista de Macke. As investigações na cidade de Akelberg não haviam revelado nada de significativo. Reinhold Wagner ouvira uma história sobre duas jovens ciclistas que tinham ido visitar o hospital, mas ninguém sabia quem eram, e outra sobre uma enfermeira que se demitira de repente e escrevera uma carta dizendo que iria se casar às pressas, mas sem revelar quem era o marido. Nenhuma das duas pistas levou a lugar algum. De toda forma, Macke tinha certeza de que aquela calamidade não podia ser obra de um grupo de garotas.

           Ele meneou a cabeça para o técnico que operava a máquina e este girou um botão.

           Peter gritou de dor quando a corrente elétrica percorreu seu corpo, supliciando seus nervos. Sacudiu-se como se estivesse tendo um ataque, e seus cabelos se eriçaram.

           O operador desligou a corrente.

           – Diga-me o nome dele! – berrou Macke.

           Por fim, Peter abriu a boca.

           Macke chegou mais perto.

           – Não é ele – sussurrou Peter.

           – Ela, então! Qual o nome dela?

           – Foi um anjo.

           – Maldito seja você! – Macke segurou o botão e o girou pessoalmente. – Isto vai continuar até você me contar! – berrou, enquanto Peter estremecia e gritava.

           A porta se abriu. Um jovem agente espiou dentro da sala, ficou pálido e acenou chamando Macke.

           O operador desligou a corrente e os gritos cessaram. O médico se inclinou para a frente para auscultar o coração de Peter.

           – Perdão, inspetor Macke, mas o superintendente Kringelein quer falar com o senhor.

           – Agora? – indagou Macke, irritado.

           – Foi o que ele disse, senhor.

           Macke olhou para o médico, que deu de ombros e falou:

           – Ele é jovem. Vai estar vivo quando o senhor voltar.

           Macke saiu da sala e seguiu o agente ao andar de cima. A sala de Kringelein ficava no primeiro piso. Ele bateu e entrou.

           – O maldito padre ainda não falou – informou, sem preâmbulos. – Preciso de mais tempo.

           Kringelein era um homem franzino, de óculos, inteligente, mas fraco de espírito. Convertido tardiamente ao nazismo, não fazia parte da elite da SS. Faltava a ele o fervor de entusiastas como Macke.

           – Não precisa mais se preocupar com esse padre – disse ele. – Não estamos mais interessados em nenhum membro do clero. Joguem todos eles em algum campo e esqueçam que existem.

           Macke não pôde acreditar no que estava ouvindo.

           – Mas essas pessoas conspiraram para prejudicar o Führer!

           – E conseguiram – disse Kringelein. – Enquanto o senhor, por sua vez, fracassou.

           Macke desconfiava que, no seu íntimo, Kringelein estivesse contente com aquilo.

           – As instâncias superiores tomaram uma decisão – prosseguiu o superintendente. – O Aktion T4 foi cancelado.

           Macke ficou estarrecido. Os nazistas nunca permitiam que as suas decisões fossem influenciadas pelo receio dos ignorantes.

           – Não chegamos aonde estamos agora nos dobrando à opinião pública! – exclamou.

           – Desta vez vamos nos dobrar.

           – Por quê?

           – O Führer não me explicou pessoalmente a sua decisão – respondeu Kringelein com sarcasmo. – Mas posso adivinhar. O programa atraiu protestos extremamente irados de uma população em geral passiva. Se insistirmos nele, correremos o risco de um confronto aberto com igrejas de todas as religiões. Isso seria péssimo. Não podemos enfraquecer a unidade e a determinação do povo alemão, sobretudo agora que estamos em guerra contra a União Soviética, nosso inimigo mais forte até o momento. Sendo assim, o programa foi cancelado.

           – Muito bem, superintendente – disse Macke, controlando a raiva. – Mais alguma coisa?

           – Dispensado – respondeu Kringelein.

           Macke foi até a porta.

           – Macke.

           Ele tornou a se virar.

           – Pois não, superintendente?

           – Troque de camisa.

           – Camisa?

           – A sua está suja de sangue.

           – Sim, senhor. Desculpe-me, senhor.

           Macke desceu a escada pisando firme, bufando de raiva. Voltou à sala no subsolo. O padre Peter ainda estava vivo.

           Enfurecido, ele tornou a gritar:

           – Quem contou a você sobre Akelberg?

           Não houve resposta.

           Ele ajustou a corrente na intensidade máxima.

           O padre Peter gritou por muito tempo, mas por fim se calou num derradeiro silêncio.

 

           O casarão em que a família Franck morava ficava dentro de um pequeno parque. A uns 200 metros da casa, num aclive suave, havia um pequeno pagode oriental, aberto de todos os lados, com bancos para se sentar. Quando crianças, Carla e Frieda brincavam que ali era sua casa de campo, e passavam horas fingindo dar grandes festas nas quais dezenas de criados serviam seus convidados glamourosos. Mais tarde, aquele se tornou seu lugar favorito para conversar a sós.

           – A primeira vez que me sentei neste banco, meus pés não alcançavam o chão – disse Carla.

           – Ah, que vontade de voltar a esse tempo... – falou Frieda.

           A tarde estava quente, nublada e úmida, e ambas usavam vestidos sem manga. Estavam desanimadas. O padre Peter havia morrido: segundo a polícia, tinha se suicidado na prisão, deprimido pelos crimes que cometera. Carla se perguntou se ele fora espancado como seu pai. Por mais terrível que fosse, parecia bem provável.

           Dezenas de pessoas também estavam presas por toda a Alemanha. Algumas haviam protestado publicamente contra a matança dos deficientes, outras não tinham feito nada além de passar adiante cópias do sermão do bispo Von Galen. Ela imaginou se todas essas pessoas seriam torturadas. Perguntou-se por quanto tempo conseguiria escapar desse mesmo destino.

           Werner saiu da casa com uma bandeja na mão. Atravessou o gramado e foi até o pagode.

           – Que tal uma limonada, meninas? – ofereceu, alegre.

           Carla virou a cara.

           – Não, obrigada – respondeu, fria.

           Não entendia como ele podia fingir ser seu amigo depois de ter se comportado de modo tão covarde.

           – Para mim, não – respondeu Frieda.

           – Espero que nossa amizade não esteja abalada – disse Werner, olhando para Carla.

           Como ele podia dizer uma coisa dessas? É claro que a amizade estava abalada.

           – O padre Peter morreu, Werner – disse Frieda.

           – Provavelmente foi torturado até a morte pela Gestapo por ter se recusado a aceitar a morte de pessoas como o seu irmão – continuou Carla. – Meu pai também morreu pelo mesmo motivo. Várias outras pessoas estão na prisão ou em campos. Mas você conservou seu empreguinho burocrático, então tudo bem.

           Werner pareceu magoado. Isso deixou Carla surpresa. Esperava que ele fosse contradizê-la ou que pelo menos aparentasse indiferença. Mas ele parecia genuinamente abalado.

           – Você não acha que cada um de nós faz o que pode a seu modo? – perguntou ele.

           Que argumento mais fraco.

           – Você não fez nada! – retrucou Carla.

           – Pode ser – disse ele, pesaroso. – Então não vão querer limonada?

           Nenhuma das duas respondeu, e ele voltou para dentro de casa.

           Apesar de indignada e com raiva, Carla não podia evitar uma ponta de arrependimento. Antes de descobrir que Werner era um covarde, estava embarcando num romance com ele. Havia gostado muito dele, dez vezes mais do que de qualquer outro rapaz que tivesse beijado. Não estava exatamente com o coração partido, mas profundamente decepcionada.

           Frieda tinha mais sorte, pensou Carla ao ver Heinrich sair da casa. Sua amiga era uma moça glamourosa, que gostava de se divertir, enquanto Heinrich era sério e intenso. Mesmo assim, por alguma razão misteriosa, os dois combinavam.

           – Você está apaixonada por ele? – perguntou a Frieda enquanto ele ainda não podia escutar.

           – Ainda não sei – respondeu ela. – Mas ele é um encanto. Eu o adoro.

           Talvez aquilo não fosse amor, pensou Carla, mas estava no bom caminho.

           Heinrich trazia novidades.

           – Tive que vir contar a vocês imediatamente – disse ele. – Meu pai me falou depois do almoço.

           – Falou o quê? – quis saber Frieda.

           – O governo cancelou o projeto. Chamava-se Aktion T4. O extermínio dos deficientes. Eles vão parar.

           – Quer dizer então que nós vencemos? – perguntou Carla.

           Heinrich assentiu vigorosamente.

           – Meu pai está pasmo. Disse que é a primeira vez que vê o Führer ceder à opinião pública.

           – E fomos nós que o forçamos a fazer isso! – exclamou Frieda.

           – Mas ninguém sabe disso, graças a Deus – disse Heinrich, enfático.

           – Quer dizer que eles simplesmente vão fechar os hospitais e acabar com o programa? – perguntou Carla.

           – Não exatamente.

           – Como assim?

           – Meu pai disse que todos esses médicos e enfermeiras vão ser transferidos.

           Carla franziu o cenho.

           – Para onde?

           – Para a Rússia – respondeu Heinrich.

             

1941 (II)

            O telefone da mesa de Greg Peshkov tocou numa quente manhã de julho. Ele acabara de concluir seu penúltimo ano em Harvard e, mais uma vez, estava fazendo estágio no Departamento de Estado, no setor de informações. Era bom em física e matemática, e passava nas provas sem dificuldade, mas não tinha nenhum interesse em ser cientista. Política: isso, sim, o entusiasmava. Ele atendeu.

           – Greg Peshkov.

           – Bom dia, Sr. Peshkov. Tom Cranmer falando.

           O coração de Greg começou a bater um pouco mais depressa.

           – Obrigado por retornar minha ligação. O senhor deve se lembrar de mim.

           – Hotel Ritz-Carlton, 1935. A única vez que minha foto saiu no jornal.

           – O senhor ainda é detetive do hotel?

           – Agora trabalho com varejo. Sou detetive de uma loja.

           – E ainda faz serviços como autônomo?

           – Claro. O que o senhor tem em mente?

           – Estou no escritório agora. Gostaria de conversar sobre isso em particular.

           – O senhor trabalha no Antigo Edifício do Gabinete Executivo, em frente à Casa Branca, do outro lado da rua.

           – Como o senhor sabe?

           – Sou detetive.

           – Ah, claro.

           – Estou bem pertinho, no Café Aroma, esquina da Rua F com a 19.

           – Não posso ir aí agora. – Greg olhou para o relógio. – Na verdade, tenho que desligar.

           – Eu esperarei.

           – Me dê uma hora.

           Greg desceu a escada correndo. Chegou à entrada principal bem na hora que um Rolls-Royce encostava em frente ao prédio sem fazer barulho. Um motorista gordo saiu com dificuldade do banco da frente e abriu a porta de trás. O passageiro que saltou era alto, esbelto e atraente, com uma basta cabeleira de fios prateados. Usava um terno de abotoamento duplo e corte perfeito, de flanela cinza-clara, que envolvia seu corpo de um jeito que só os alfaiates londrinos eram capazes de conseguir. Quando ele começou a subir os degraus de granito para entrar no prédio imponente, o motorista gordo o seguiu apressado, carregando sua pasta.

           Aquele era Sumner Welles, subsecretário de Estado, o segundo homem mais importante do Departamento de Estado e amigo pessoal do presidente Roosevelt.

           O motorista estava prestes a entregar a pasta a um recepcionista do departamento que aguardava no alto da escada quando Greg se adiantou.

           – Bom dia, subsecretário – disse ele, pegando a pasta da mão do motorista com um gesto desenvolto e segurando a porta para Welles passar. Então o seguiu para dentro do prédio.

           Greg havia conseguido entrar para o setor de informações porque fora capaz de mostrar as matérias factuais e bem-escritas que fizera para o Harvard Crimson. Mas não queria virar assessor de imprensa. Tinha ambições maiores.

           Greg admirava Sumner Welles, que o fazia pensar em seu pai. A beleza física, as roupas elegantes e o charme do político escondiam um profissional implacável. Welles estava determinado a ocupar o lugar do chefe, o secretário de Estado Cordell Hull, e nunca hesitava em passar por cima dele e falar diretamente com o presidente – o que deixava Hull furioso. Greg achava empolgante conviver com alguém poderoso e que não tinha medo de usar esse poder. Era isso que ele queria para si.

           Welles simpatizara com ele. As pessoas muitas vezes simpatizavam com Greg, sobretudo quando ele queria. No caso de Welles, porém, havia outro motivo. Embora fosse casado – um casamento aparentemente feliz, com uma rica herdeira –, o subsecretário tinha um fraco por belos rapazes.

           Greg era heterossexual convicto. Tinha uma namorada firme em Harvard, uma aluna de Radcliffe chamada Emily Hardcastle, que prometera providenciar um método contraceptivo antes da volta às aulas, em setembro. Ali em Washington, ele estava saindo com Rita, a voluptuosa filha de um congressista texano chamado Lawrence. Assim, evitava qualquer contato físico com Welles ao mesmo tempo que se mantinha afável o suficiente para não perder o favoritismo. Porém mantinha distância do subsecretário depois da happy hour, quando as inibições de Welles fraquejavam e sua mão começava a ficar boba.

           Agora, enquanto os integrantes mais graduados do departamento se encontravam em sua sala para a reunião das dez, Welles falou:

           – Pode assistir a esta reunião, meu rapaz. Vai ser bom para a sua formação.

           Greg ficou exultante. Será que aquela reunião lhe daria uma oportunidade de brilhar?, pensou. Queria que as pessoas reparassem nele e ficassem impressionadas.

           Alguns minutos depois, o senador Dewar entrou acompanhado pelo filho Woody. Tanto o pai quanto o filho eram magros e altos, tinham a cabeça avantajada e estavam usando ternos de verão parecidos, de abotoamento simples, feitos de linho azul-escuro. Mas Woody se diferenciava do pai pela veia artística: suas fotografias para o Harvard Crimson tinham sido premiadas. Woody meneou a cabeça para o principal assessor de Welles, Bexforth Ross: os dois já deviam se conhecer. Bexforth era um sujeito extremamente arrogante, que chamava Greg de “Russinho” por causa de seu sobrenome.

           Welles abriu a reunião dizendo:

           – Preciso contar aos senhores algo extremamente confidencial, que não deve ser repetido fora desta sala. O presidente vai se reunir com o primeiro-ministro britânico no mês que vem.

           Greg se conteve, prestes a exclamar um Uau.

           – Ótimo! – disse Gus Dewar. – Onde?

           – O plano é que eles se encontrem de navio em algum lugar do Atlântico, por questões de segurança e também para poupar o tempo de viagem de Churchill. O presidente quer que eu esteja presente, enquanto o secretário de Estado Hull fica aqui em Washington cuidando das coisas. Quer que você vá também, Gus.

           – Vai ser uma honra – disse Gus. – Qual a pauta da reunião?

           – Parece que, até o momento, os britânicos conseguiram afastar o perigo de uma invasão, mas não têm força suficiente para atacar os alemães no continente europeu... a não ser que nós os ajudemos. Então Churchill vai nos pedir que declaremos guerra à Alemanha. Vamos recusar, é claro. Quando tivermos passado por essa parte, o presidente quer que seja feita uma declaração conjunta de objetivos.

           – Não objetivos de guerra – disse Gus.

           – Não, porque os Estados Unidos não estão em guerra nem têm a intenção de entrar. No entanto, somos aliados não beligerantes dos britânicos: estamos fornecendo praticamente tudo de que eles precisam, com crédito ilimitado, e, quando a paz enfim chegar, esperamos influenciar a forma como o mundo pós-guerra será administrado.

           – Isso vai incluir uma Liga das Nações mais forte? – perguntou Gus.

           Greg sabia que aquela ideia era a menina dos olhos do senador e também de Welles.

           – É sobre isso que eu gostaria de falar com você, Gus. Se quisermos que nosso plano seja implementado, temos que estar preparados. Precisamos fazer Roosevelt e Churchill se comprometerem com o plano na declaração conjunta.

           – Nós dois sabemos que, em tese, o presidente é a favor da Liga, mas que a opinião pública o deixa nervoso – disse Gus.

           Um assessor entrou na sala e entregou um bilhete a Bexforth, que o leu e disse:

           – Ah, meu Deus!

           – O que foi? – perguntou Welles, ríspido.

           – Como vocês sabem, o Conselho Imperial japonês se reuniu na semana passada – disse Bexforth. – Recebemos informações sobre o que foi discutido.

           Ele estava sendo vago em relação à fonte das informações, mas Greg sabia do que se tratava. A unidade de inteligência telegráfica do Exército americano era capaz de interceptar e decodificar mensagens enviadas pelo Ministério das Relações Exteriores do Japão a suas embaixadas. Os dados obtidos eram conhecidos pelo nome MAGIC. Greg sabia disso, embora supostamente não devesse – na verdade, a coisa iria ficar feia caso o Exército descobrisse que ele conhecia o segredo.

           – Os japoneses estão falando em ampliar seu império – prosseguiu Bexforth. Greg sabia que o Japão já havia anexado a vasta região da Manchúria e deslocado tropas para quase todo o restante da China. – Eles não gostam da ideia de se expandir para oeste, em direção à Sibéria, pois isso significaria uma guerra contra a União Soviética.

           – Que bom! – disse Welles. – Isso quer dizer que os russos podem se concentrar em combater os alemães.

           – Sim, senhor. Em vez disso, porém, os japoneses estão planejando se expandir para o sul, assumindo o controle da Indochina e, depois, das Índias Orientais Holandesas.

           A notícia deixou Greg chocado. Era uma informação quente – e ele estava entre os primeiros a saber.

           Welles ficou indignado.

           – Mas isso não passa de uma guerra imperialista!

           – Tecnicamente, Sumner, não é uma guerra – interpôs Gus. – Os japoneses já têm alguns soldados na Indochina, com permissão expressa da potência colonial em exercício, a França, representada pelo governo de Vichy.

           – Esse governo é marionete dos nazistas!

           – Por isso eu disse “tecnicamente”. E as Índias Orientais Holandesas, em tese, são governadas pelos Países Baixos, hoje ocupados pelos alemães, que veem com muito bons olhos o fato de seus aliados japoneses ocuparem uma colônia holandesa.

           – Isso é um jogo de palavras.

           – Um jogo de palavras que outras pessoas farão conosco... a começar pelo embaixador japonês.

           – Tem razão, Gus. Obrigado por me alertar.

           Greg estava atento, esperando uma oportunidade de participar da conversa. Mais do que tudo, queria impressionar os homens mais importantes à sua volta. Só que todos sabiam muito mais do que ele.

           – O que os japoneses querem, afinal? – indagou Welles.

           – Petróleo, borracha e estanho – respondeu Gus. – Eles estão garantindo seu acesso a recursos naturais. Não chega a ser surpresa, já que não paramos de interferir no abastecimento deles. – Os Estados Unidos haviam embargado a exportação para o Japão de matérias-primas como petróleo e sucata, na tentativa fracassada de desestimular os japoneses de invadir áreas ainda maiores da Ásia.

           – Nosso embargo nunca foi aplicado de forma muito eficaz – comentou Welles, irritado.

           – Não, mas é óbvio que a ameaça foi suficiente para fazer os japoneses entrarem em pânico: eles não têm quase nenhum recurso natural próprio.

           – Está claro que precisamos tomar medidas mais eficazes – disparou Welles. – Os japoneses têm muito dinheiro em bancos americanos. Podemos bloquear os seus bens?

           Os políticos reunidos em volta da mesa adotaram um ar de reprovação. Aquela era uma ideia radical. Depois de alguns instantes, Bexforth disse:

           – Acho que sim. Seria mais eficaz do que qualquer embargo. Eles não poderiam comprar petróleo nem qualquer outra matéria-prima aqui nos Estados Unidos, porque não teriam como pagar.

           – O secretário de Estado, como sempre, vai querer tomar cuidado para evitar qualquer atitude que possa levar à guerra – disse Gus Dewar.

           Ele estava certo. Cordell Hull era tão cuidadoso que beirava a passividade, e muitas vezes batia de frente com seu auxiliar Welles, mais agressivo.

           – O Sr. Hull sempre seguiu esse curso, e de forma muito sensata – disse Welles. Todos sabiam que ele não estava sendo sincero, mas a etiqueta assim o exigia. – No entanto, os Estados Unidos precisam ter uma postura assertiva no cenário internacional. Somos prudentes, não covardes. Vou apresentar essa ideia de bloqueio de bens ao presidente.

           Greg estava pasmo. Poder era isso. Num piscar de olhos, Welles podia fazer uma proposta que iria abalar toda uma nação.

           Gus Dewar franziu o cenho.

           – Sem o petróleo importado, a economia japonesa vai ficar estagnada, e a potência militar do país vai acabar.

           – Isso é ótimo! – exclamou Welles.

           – Será mesmo? O que o senhor acha que o governo militar do Japão vai fazer quando for confrontado com uma catástrofe dessa proporção?

           Welles não gostava muito de ser contrariado.

           – Por que não me diz, senador?

           – Eu não sei. Mas acho que deveríamos ter uma resposta antes de tomarmos essa atitude. Homens desesperados são perigosos. E sei que os Estados Unidos não estão preparados para entrar em guerra contra o Japão. Nossa Marinha não está pronta, tampouco nossa Força Aérea.

           Greg viu sua oportunidade de falar e a aproveitou:

           – Subsecretário, talvez o senhor ache útil saber que a opinião pública é a favor de uma guerra contra o Japão, e não de apaziguamento, por dois contra um.

           – Bem lembrado, Greg, obrigado. Os americanos não querem deixar o Japão cometer assassinato e se safar.

           – Mas também não querem uma guerra – disse Gus. – Não importa o que diga a pesquisa.

           Welles fechou a pasta que tinha sobre a mesa.

           – Bem, senador, nós concordamos em relação à Liga das Nações e discordamos em relação ao Japão.

           Gus se levantou.

           – E, nos dois casos, a decisão final será do presidente.

           – Obrigado por ter vindo.

           A reunião foi encerrada.

           Greg saiu de lá nas nuvens. Fora chamado para assistir à reunião, ouvira notícias surpreendentes e fizera um comentário pelo qual Welles tinha lhe agradecido. Uma excelente forma de começar o dia.

           Saiu do prédio e tomou a direção do Café Aroma.

           Nunca havia contratado um detetive particular na vida. Aquilo lhe parecia ligeiramente ilegal. Mas Cranmer era um cidadão respeitável. E não havia nada de criminoso em tentar entrar em contato com uma antiga namorada.

           Os clientes do Café Aroma eram duas moças com jeito de secretárias aproveitando um intervalo no expediente, um casal mais velho que fora às compras e Cranmer, um homem de peito largo vestido com um terno de anarruga amarrotado e fumando um cigarro. Greg sentou-se na frente dele e pediu um café à garçonete.

           – Estou tentando entrar em contato com Jacky Jakes – disse ele ao detetive.

           – A menina negra?

           Na época ela era mesmo uma menina, pensou Greg com nostalgia. Tinha só 16 anos, embora se fizesse passar por mais velha.

           – Já faz seis anos. Ela não é mais uma menina.

           – Quem a contratou para aquela pequena encenação foi seu pai, não eu.

           – Não quero pedir a ele. Mas o senhor consegue encontrá-la, não consegue?

           – Imagino que sim. – Cranmer sacou um caderninho e um lápis. – Imagino que Jacky Jakes fosse um nome artístico.

           – Seu nome verdadeiro é Mabel Jakes.

           – Ela é atriz, certo?

           – Era aspirante. Não sei se conseguiu decolar na carreira. – Jacky tinha beleza e charme de sobra, mas não havia muitos papéis para atores negros.

           – É óbvio que ela não está na lista telefônica, ou então o senhor não precisaria de mim.

           – Ela poderia estar fora da lista. O mais provável, porém, é que não tenha dinheiro para um telefone.

           – O senhor a viu desde 1935?

           – Duas vezes. A primeira foi há dois anos, não muito longe daqui, na Rua E. A segunda foi há duas semanas, a dois quarteirões deste café.

           – Bom, ela com certeza não mora neste bairro chique, então deve trabalhar aqui por perto. O senhor tem uma foto?

           – Não.

           – Lembro-me vagamente dela. Bonita, pele escura, sorriso largo.

           Greg assentiu, lembrando-se daquele sorriso radiante.

           – Só quero o endereço dela para lhe mandar uma carta.

           – Não preciso saber para que o senhor quer a informação.

           – Melhor ainda. – Seria mesmo tão fácil?, pensou Greg.

           – Cobro dez dólares a diária, mínimo de dois dias, mais as despesas.

           Era menos do que Greg imaginara. Ele pegou a carteira e entregou 20 dólares a Cranmer.

           – Obrigado – disse o detetive.

           – Boa sorte – falou Greg.

 

           No sábado fez calor, então Woody e seu irmão, Chuck, foram à praia.

           Toda a família Dewar estava em Washington. Tinham um apartamento de nove cômodos perto do Hotel Ritz-Carlton. Chuck estava de licença da Marinha, seu pai trabalhava doze horas por dia no planejamento da reunião de cúpula à qual se referia como Conferência do Atlântico, e sua mãe estava escrevendo um livro sobre primeiras-damas.

           Woody e Chuck vestiram shorts e camisas polo, pegaram toalhas, óculos escuros e jornais e embarcaram num trem com destino à praia de Rehoboth, no litoral de Delaware. A viagem levou cerca de duas horas, mas aquele era o único lugar aonde ir num sábado de verão. A faixa de areia era larga, e uma brisa refrescante soprava do Atlântico. Além disso, havia mil garotas de roupa de banho.

           Os dois irmãos eram bem diferentes. Chuck era mais baixo, tinha o corpo compacto e atlético. Herdara a beleza e o sorriso arrebatador da mãe. Fora mau aluno na escola, mas também revelara ter a mesma inteligência arguta da mãe, sempre encarando a vida de um ângulo inusitado. Era melhor do que Woody em todos os esportes, menos na corrida, na qual as pernas compridas de Woody lhe davam velocidade, e no boxe, no qual os braços compridos do irmão tornavam quase impossível acertá-lo.

           Em casa, Chuck não falava muito sobre a Marinha, sem dúvida porque os pais ainda estavam bravos com ele por não ter ido para Harvard. No entanto, quando estava sozinho com Woody, ele se abria um pouco.

           – O Havaí é incrível, mas estou muito decepcionado por ter uma função em terra – disse ele. – Entrei na Marinha para ir para o mar.

           – O que exatamente você está fazendo?

           – Sou da unidade de inteligência telegráfica. Ficamos escutando mensagens de rádio, sobretudo da Marinha Imperial japonesa.

           – Mas essas mensagens não são em código?

           – São, mas dá para saber muita coisa mesmo sem decifrar os códigos. É o que chamamos de análise de tráfego. Um súbito aumento do número de mensagens indica alguma ação iminente. E você aprende a identificar padrões no tráfego. Um desembarque anfíbio, por exemplo, tem uma configuração de sinais específica.

           – Que interessante. Aposto que você é bom nisso.

           Chuck deu de ombros.

           – Sou só um funcionário burocrático, que anota e arquiva as transcrições. Mas não dá para evitar aprender o básico.

           – E a vida social no Havaí?

           – Muito divertida. Os bares da Marinha podem ser bem animados. O Café Gato Preto é o melhor de todos. Tenho um bom amigo, Eddie Parry, e sempre que podemos surfamos na praia de Waikiki. Tenho me divertido bastante. Mas gostaria de estar embarcado.

           Os dois nadaram no mar frio do Atlântico, almoçaram cachorros-quentes, tiraram fotos um do outro com a câmera de Woody e ficaram observando as moças em roupas de banho até o sol começar a baixar. Quando estavam indo embora, abrindo caminho entre os banhistas, Woody viu Joanne Rouzrokh.

           Não precisou olhar duas vezes. Ela era diferente de qualquer outra garota ali na praia; na verdade, era diferente de qualquer garota em todo o estado de Delaware. Não havia como confundir aquelas maçãs do rosto pronunciadas, aquele nariz adunco, os fartos cabelos escuros, a pele da mesma cor e com a textura sedosa de café com leite.

           Sem hesitar, ele foi direto até ela.

           Joanne estava absolutamente deslumbrante. O maiô preto tinha alças finas que deixavam à mostra o contorno elegante de seus ombros. As cavas retas na parte superior das coxas deixavam suas pernas compridas e morenas quase completamente expostas.

           Ele mal podia acreditar que um dia havia segurado aquela mulher incrível nos braços e a beijado como se não houvesse amanhã.

           Ela ergueu os olhos para ele, protegendo-os do sol.

           – Woody Dewar! Não sabia que você estava em Washington.

           Esse convite bastou. Ele se ajoelhou na areia ao seu lado. O simples fato de estar assim tão próximo fez sua respiração se acelerar.

           – Oi, Joanne. – Ele olhou de relance para a moça roliça de olhos castanhos sentada ao lado dela. – Onde está seu marido?

           Ela soltou uma gargalhada.

           – O que fez você achar que sou casada?

           Ele ficou sem jeito.

           – Fui a uma festa no seu apartamento alguns anos atrás.

           – Foi mesmo?

           – Eu me lembro – disse a amiga. – Perguntei seu nome, mas você não respondeu.

           Woody não se lembrava daquela outra moça.

           – Desculpe ter sido tão mal-educado – disse ele. – Meu nome é Woody Dewar, e este é Chuck, meu irmão.

           A moça de olhos castanhos apertou a mão de ambos e disse:

           – Diana Taverner.

           Chuck sentou-se ao seu lado na areia, o que pareceu agradá-la: ele era um rapaz atraente, bem mais bonito que Woody.

           – Enfim, entrei na cozinha para procurar você, e um tal de Bexforth Ross se apresentou como seu noivo – continuou Woody. – Deduzi que a esta altura você já estivesse casada. Ou será um daqueles noivados que nunca terminam?

           – Deixe de ser bobo – disse ela, com uma leve irritação, e ele se lembrou de que ela não reagia muito bem a provocações. – Como estava praticamente morando no nosso apartamento, Bexforth ficava dizendo a todo mundo que éramos noivos.

           Woody ficou espantado. Será que isso queria dizer que Bexforth dormia lá? Com Joanne? Não era uma coisa rara, é claro, mas poucas moças admitiam isso.

           – Foi ele quem falou em casamento – prosseguiu ela. – Eu nunca aceitei.

           Então ela era solteira. Woody não teria ficado mais feliz se tivesse ganhado na loteria.

           Talvez ela tivesse namorado, alertou a si mesmo. Teria que descobrir. De toda forma, porém, um namorado não era a mesma coisa que um marido.

           – Estive em uma reunião com Bexforth alguns dias atrás – disse Woody. – Ele é uma figura importante no Departamento de Estado.

           – Ele tem futuro, e vai encontrar uma mulher mais adequada que eu para ser esposa de uma figura importante no Departamento de Estado.

           Seu tom indicava que ela não nutria nenhum afeto pelo ex-namorado. Woody ficou satisfeito com isso, embora não fosse capaz de explicar por quê.

           Reclinou-se, apoiado no cotovelo. A areia estava quente. Teve certeza de que, se ela tivesse um namorado sério, não demoraria muito para encontrar um jeito de mencioná-lo.

           – Por falar em Departamento de Estado, você ainda trabalha lá? – perguntou.

           – Sim. Sou assistente do subsecretário para assuntos europeus.

           – Que interessante.

           – Neste momento, é mesmo.

           Woody estava olhando para a linha em que o maiô cortava as coxas dela e pensando que, por menor que fosse a roupa que uma moça estivesse usando, um homem sempre ficava imaginando as partes escondidas. Começou a ter uma ereção, então rolou e ficou de bruços para escondê-la.

           Joanne percebeu a direção de seu olhar e disse:

           – Gostou do meu maiô? – Ela sempre fora muito franca. Era uma de suas muitas qualidades que ele julgava atraente.

           Decidiu ser igualmente sincero:

           – Eu gosto de você, Joanne. Sempre gostei.

           Ela riu.

           – Nada de rodeios, Woody... Vá direto ao assunto!

           À sua volta, as pessoas começavam a arrumar suas coisas.

           – É melhor irmos embora – disse Diana.

           – Também já estávamos de saída – falou Woody. – Vamos pegar o trem juntos?

           Aquela era a hora de ela dar uma desculpa educada para afastá-lo. Poderia facilmente dizer: Ah, não, obrigada, podem ir na frente. Em vez disso, falou:

           – Claro, por que não?

           As moças vestiram saídas de praia, jogaram suas coisas dentro das bolsas, e, juntos, os quatro subiram a praia.

           O trem estava lotado de banhistas como eles, queimados de sol, famintos e sedentos. Woody comprou quatro Cocas na estação e as distribuiu quando o trem estava partindo.

           – Você já comprou uma Coca para mim num dia quente lá em Buffalo, lembra? – disse Joanne.

           – Naquela passeata. É claro que lembro.

           – Nós éramos duas crianças.

           – Comprar Coca-Cola é uma técnica que costumo usar com mulheres bonitas.

           – E funciona? – perguntou ela, rindo.

           – Nunca me rendeu um beijo sequer.

           – Bem, continue tentando – disse ela, erguendo a garrafa para um brinde.

           Ele interpretou isso como um incentivo, então falou:

           – Quando chegarmos a Washington, vocês querem sair para comer um hambúrguer ou, sei lá, talvez ir ao cinema?

           Era a hora de ela dizer: Não, obrigada, vou sair com meu namorado.

           – Eu gostaria – disse Diana depressa. – E você, Joanne?

           – Claro.

           Nada de namorado – e um encontro marcado! Woody tentou esconder a empolgação.

           – Poderíamos assistir a Uma noiva caída do céu – sugeriu ele. – Ouvi dizer que é bem engraçado.

           – Quem são os atores? – quis saber Joanne.

           – James Cagney e Bette Davis.

           – Eu topo.

           – Eu também – disse Diana.

           – Então combinado – disse Woody.

           – E você, Chuck? – falou o irmão mais novo, zombando. – Você também topa? Ah, claro, topo sim. Foi muita gentileza sua me convidar, irmão.

           Não foi nada engraçado, mas Diana deu uma risadinha encorajadora.

           Pouco depois, Joanne pegou no sono com a cabeça no ombro de Woody.

           Seus cabelos escuros lhe faziam cócegas no pescoço e ele podia sentir sua respiração morna na pele, logo abaixo da manga curta da camisa. Não cabia em si de tanta alegria.

           Separaram-se na Union Station, foram para casa se trocar e tornaram a se encontrar num restaurante chinês no centro da cidade.

           Enquanto comiam um chow mein e bebiam cerveja, conversaram sobre o Japão. Todo mundo estava falando do Japão.

           – Alguém precisa deter essa gente – disse Chuck. – Eles são fascistas.

           – Pode ser – disse Woody.

           – São militaristas e agressivos, e o modo como tratam os chineses é racista. O que mais precisam fazer para serem fascistas?

           – Isso eu posso responder – disse Joanne. – A diferença está na visão que têm do futuro. Os verdadeiros fascistas querem matar todos os seus inimigos e criar um tipo de sociedade radicalmente diferente. Os japoneses estão fazendo as mesmas coisas que eles, só que em defesa de grupos de poder tradicionais: a casta militar e o imperador. Pelo mesmo motivo, a Espanha não é fascista: Franco está assassinando pessoas em nome da Igreja Católica e da antiga aristocracia, não para criar um mundo novo.

           – Seja como for, alguém precisa deter os japas – disse Diana.

           – Não penso assim – disse Woody.

           – Está bem, Woody, então como você pensa? – indagou Joanne.

           Ele sabia que ela dava muita importância à política e que iria gostar de uma resposta elaborada.

           – O Japão é um país mercante, sem qualquer recurso natural: não tem petróleo nem ferro, só umas poucas florestas. A única forma de sobreviver é fazendo comércio. Por exemplo, eles importam algodão cru, tecem e vendem o tecido para a Índia e as Filipinas. Só que, durante a Depressão, os dois grandes impérios econômicos, a Grã-Bretanha e os Estados Unidos, criaram tarifas para proteger suas indústrias. Foi o fim do comércio japonês com o Império Britânico, inclusive com a Índia, e com a zona americana, que inclui as Filipinas. Foi um golpe duro.

           – E isso por acaso dá a eles o direito de conquistar o mundo? – perguntou Diana.

           – Não, mas os faz pensar que a única garantia de segurança econômica é ter um império próprio, como os britânicos, ou pelo menos dominar o hemisfério em que estão situados, como os Estados Unidos. Nesse caso, ninguém mais poderia pôr fim aos negócios deles. Então o que querem é transformar o Extremo Oriente no seu quintal.

           Joanne concordou:

           – E o ponto fraco da nossa política é que, sempre que impomos sanções econômicas em retaliação à agressividade dos japoneses, apenas reforçamos sua sensação de que precisam ser autossuficientes.

           – Pode ser – disse Chuck. – Ainda assim, eles precisam ser detidos.

           Woody deu de ombros. Não tinha resposta para isso.

           Depois do jantar, foram ao cinema. O filme foi ótimo. Em seguida, Woody e Chuck acompanharam as moças de volta a seu apartamento. No caminho, Woody segurou a mão de Joanne. Ela sorriu e apertou a mão dele, que interpretou isso como um incentivo.

           Em frente ao prédio onde elas moravam, ele a abraçou. Pelo canto do olho, viu Chuck fazer o mesmo com Diana.

           Joanne deu um beijo rápido, quase casto, na boca de Woody, e disse:

           – O tradicional beijo de boa-noite.

           – Não houve nada de tradicional no último beijo que você me deu – disse ele, curvando-se para beijá-la outra vez.

           Ela encostou o indicador em seu queixo e o afastou.

           Seria possível que ele só fosse conseguir aquele selinho?

           – Eu estava bêbada naquela noite – disse ela.

           – Eu sei. – Entendeu qual era o problema: ela tinha medo que ele a achasse uma moça fácil. – Você é ainda mais atraente quando está sóbria.

           Ela pareceu refletir por alguns segundos.

           – Essa era a coisa certa a dizer – declarou ela por fim. – Você ganhou o prêmio. – Ela então tornou a beijá-lo, um beijo demorado, não com a urgência da paixão, mas com uma concentração que sugeria afeto.

           Cedo demais, Woody ouviu Chuck dizer:

           – Boa noite, Diana!

           Joanne interrompeu o beijo.

           – Meu irmão foi um pouco rápido! – disse Woody, arrasado.

           Ela riu baixinho.

           – Boa noite, Woody – falou, e então se virou e foi andando para o prédio.

           Diana já estava na porta, claramente desapontada.

           – Podemos sair outra vez? – perguntou Woody, sem pensar. Sua voz soou carente até mesmo a seus próprios ouvidos, e ele amaldiçoou sua afobação.

           Mas Joanne não pareceu se importar.

           – Me ligue – disse ela, e entrou.

           Woody ficou olhando as duas moças até desaparecerem, então tornou a se virar para o irmão.

           – Por que não beijou Diana por mais tempo? – perguntou, zangado. – Ela parecia bem simpática.

           – Não faz o meu tipo – retrucou Chuck.

           – Ah, é? – Mais do que irritado, Woody estava intrigado. – Peitos redondinhos, rosto bonito... O que ela tem de errado? Eu a teria beijado se não estivesse com Joanne.

           – Gosto não se discute.

           Os dois começaram a caminhar de volta para o apartamento dos pais.

           – Bem, qual é o seu tipo, então? – perguntou Woody.

           – Acho que eu deveria lhe explicar uma coisa antes de você planejar mais um encontro para mim.

           – Tudo bem. O que é?

           Chuck parou de andar e obrigou Woody a fazer o mesmo.

           – Você tem que jurar que não vai contar para o papai e a mamãe.

           – Eu juro. – À luz amarela dos postes de rua, Woody observou o irmão. – Que mistério é esse?

           – Eu não gosto de garotas.

           – Elas são umas chatas, concordo, mas o que se há de fazer?

           – Para ser mais exato, não gosto de abraçá-las nem de beijá-las.

           – Como assim? Deixe de ser bobo.

           – Cada um é de um jeito, Woody.

           – É, mas nesse caso você teria que ser alguma espécie de maricas.

           – Justamente.

           – Justamente o quê?

           – É isso mesmo que eu sou: um maricas.

           – Você é mesmo um fanfarrão.

           – Woody, não estou brincando. Estou falando sério.

           – Você é bicha?

           – É exatamente isso que sou. Não escolhi ser assim. Quando éramos crianças e começamos a nos masturbar, você pensava em peitos saltitantes e bocetas cabeludas. Eu nunca lhe contei, mas pensava em paus duros.

           – Eca, Chuck, que nojo!

           – Não é nojo nenhum. Alguns rapazes são assim. Mais do que você imagina... principalmente na Marinha.

           – Há maricas na Marinha?

           Chuck assentiu com vigor.

           – Vários.

           – Bem... Como você sabe?

           – Geralmente sabemos nos reconhecer. Assim como os judeus sempre sabem quem é judeu. O garçom do restaurante chinês, por exemplo.

           – Ele era?

           – Não ouviu quando ele disse que tinha gostado do meu paletó?

           – Ouvi, mas não dei importância.

           – Então pronto.

           – Ele ficou atraído por você?

           – Acho que sim.

           – Por quê?

           – Provavelmente pelo mesmo motivo que Diana. Sou mais bonito que você, ora!

           – Que conversa mais estranha.

           – Venha, vamos para casa.

           Os dois seguiram seu caminho. Woody ainda não acreditava no que tinha ouvido.

           – Quer dizer que existem chineses maricas?

           Chuck riu.

           – Claro!

           – Sei lá, eu nunca tinha pensado nos chineses assim.

           – Lembre-se: nem um pio com ninguém, principalmente com nossos pais. Só Deus sabe o que papai diria.

           Depois de algum tempo, Woody pôs o braço sobre os ombros de Chuck.

           – Caramba! Pelo menos você não é republicano.

 

           Greg Peshkov acompanhou Sumner Welles e o presidente Roosevelt num cruzador pesado, o Augusta, até a baía de Placentia, no litoral da Terra Nova. Também faziam parte do comboio o encouraçado Arkansas, o cruzador Tuscaloosa e 17 destróieres.

           As embarcações foram ancoradas em duas filas compridas, separadas por uma larga faixa de mar. Às nove da manhã do sábado, 9 de agosto, sob o sol forte, as tripulações dos vinte navios se reuniram junto às amuradas dos conveses trajando seus uniformes de gala para assistir à chegada do encouraçado britânico Príncipe de Gales, que entrou majestosamente pelo corredor de mar entre os navios americanos soltando fumaça pela chaminé e escoltado por três destróieres. A bordo estava o primeiro-ministro Churchill.

           Aquela era a demonstração de poder mais impressionante que Greg já vira, e fazer parte dela o deixava muito alegre.

           Mas também preocupado. Torcia para que os alemães não tivessem conhecimento daquele encontro. Se descobrissem, um único submarino poderia matar os dois líderes do que restava da civilização ocidental – sem falar nele próprio.

           Antes de sair de Washington, Greg havia se encontrado outra vez com o detetive Tom Cranmer. Este lhe dera o endereço de uma casa num bairro modesto, depois da estação ferroviária Union Station.

           – Ela é garçonete no Clube Universitário Feminino, perto do Hotel Ritz-Carlton. Foi por isso que você a viu duas vezes nessas redondezas – dissera o detetive enquanto embolsava o restante de sua remuneração. – Acho que a carreira de atriz não deu certo... Mas ela ainda é conhecida como Jacky Jakes.

           Greg escrevera uma carta para ela.

            

           Querida Jacky,

           Só quero saber por que você fugiu de mim seis anos atrás. Achei que estivéssemos muito felizes juntos, mas devo ter me enganado. Fiquei intrigado, só isso.

           Você parece assustada quando me vê, mas não há o que temer. Não estou zangado, apenas curioso. Jamais faria nada para magoá-la. Você foi a primeira garota que amei na vida.

           Podemos nos encontrar, nem que seja só para um café ou algo assim, para conversar?

           Com toda a sinceridade,

           Greg Peshkov

            

           Acrescentara seu número de telefone e pusera a carta no correio no mesmo dia que embarcara para a Terra Nova.

           O presidente fazia questão de que a conferência produzisse uma declaração conjunta. Sumner Welles, chefe de Greg, elaborou um rascunho desse acordo, mas Roosevelt se recusou a usá-lo, dizendo que era melhor deixar que Churchill redigisse a primeira versão.

           Greg logo viu que o presidente norte-americano era um negociador esperto. Para ser justo, quem redigisse a primeira versão precisaria acrescentar às próprias reivindicações algumas das demandas do outro lado. Dessa forma, as solicitações da outra parte se transformariam num mínimo irredutível, enquanto as de quem apresentasse a proposta ainda estariam abertas a discussão. Portanto, quem redigisse a minuta estaria em desvantagem. Greg jurou sempre se lembrar de jamais redigir a primeira versão de nada.

           No sábado, presidente e primeiro-ministro tiveram um almoço amigável a bordo do Augusta. No domingo, assistiram à missa no convés do Príncipe de Gales, e as bandeiras dos Estados Unidos e do Reino Unido pintaram o altar de vermelho, branco e azul. Na manhã de segunda-feira, quando já eram bons amigos, trataram do que interessava.

           Churchill apresentou um plano com cinco tópicos que deixou Sumner Welles e Gus Dewar muito satisfeitos, pois defendia uma organização internacional eficaz que garantisse a segurança de todos os países – em outras palavras, uma Liga das Nações fortalecida. No entanto, os dois ficaram decepcionados ao constatar que aquilo era demais para Roosevelt. Embora fosse a favor, o presidente temia os isolacionistas, aqueles que ainda acreditavam que os Estados Unidos não precisavam se meter nos problemas do restante do mundo. Ele era extremamente sensível à opinião pública e vivia se esforçando para não provocar a oposição.

           Mas Welles e Dewar não desistiram, nem os britânicos. Eles se uniram para buscar um meio-termo aceitável para ambos os líderes. Greg tomou notas para Welles. O grupo formulou uma cláusula que defendia o desarmamento “em contrapartida à criação de um sistema de segurança geral mais amplo e permanente”.

           Apresentaram a nova cláusula aos dois líderes, que aceitaram.

           Welles e Dewar mal couberam em si de tanta satisfação.

           Mas Greg não entendia por quê.

           – Parece muito pouco – disse ele. – Todo esse esforço... Os líderes de duas grandes nações reunidos depois de viajar milhares de quilômetros, comitivas compostas por dezenas de pessoas, 24 navios, três dias de conversas... Tudo em troca de umas poucas palavras que não dizem exatamente o que nós queremos.

           – Nós avançamos em centímetros, não em quilômetros – respondeu Gus Dewar com um sorriso. – Política é isso.

 

           Fazia cinco semanas que Woody estava saindo com Joanne.

           Ele queria vê-la todas as noites, mas se continha. Ainda assim, na última semana tinham saído quatro vezes. No domingo, foram à praia; na quarta, jantaram; na sexta, assistiram a um filme; e agora, sábado, estavam passando o dia inteiro juntos.

           Ele nunca se cansava de conversar com ela. Joanne era divertida, inteligente e tinha a língua afiada. Ele adorava seu jeito de se mostrar veemente em relação a tudo. Os dois passavam horas falando sobre as coisas de que gostavam ou detestavam.

           As notícias da Europa eram ruins. Os alemães continuavam liquidando o Exército Vermelho. A leste de Smolensk, haviam dizimado o 16o e o 20o Exércitos russos, capturando 300 mil prisioneiros e deixando poucas forças soviéticas entre os alemães e Moscou. No entanto, notícias ruins vindas de longe não diminuíam a empolgação de Woody.

           Joanne não era tão louca por Woody quanto ele por ela, mas dava para ver que tinha carinho pelo rapaz. Os dois sempre se despediam com um beijo de boa-noite, e ela parecia gostar de beijá-lo, embora não demonstrasse a paixão da qual ele sabia que ela era capaz. Talvez fosse porque sempre precisassem se beijar em lugares públicos, como no cinema ou então na porta de algum prédio na rua perto da casa dela. Sempre que estavam no apartamento de Joanne, havia pelo menos uma de suas colegas na sala, e ela ainda não o convidara para ir ao seu quarto.

           A licença de Chuck terminara algumas semanas antes, e ele tinha voltado para o Havaí. Woody ainda não sabia o que pensar sobre a confissão de seu irmão. Às vezes ficava chocado, como se o mundo tivesse virado de cabeça para baixo; em outras ocasiões, perguntava-se que diferença aquilo fazia. Mas manteve a promessa de não contar a ninguém, nem mesmo a Joanne.

           Então o pai de Woody viajou com o presidente, e sua mãe foi passar alguns dias com os pais, em Buffalo. Woody ficou com o apartamento de Washington só para si por alguns dias – todos os nove cômodos. Decidiu tentar achar uma oportunidade para convidar Joanne a ir até lá, na esperança de conseguir um beijo de verdade.

           Os dois almoçaram juntos e foram assistir a uma exposição chamada “Arte Negra”, criticada por jornalistas conservadores, para os quais o conceito de arte negra não existia – apesar da genialidade inconfundível de artistas como o pintor Jacob Lawrence e a escultora Elizabeth Catlett.

           Quando estavam saindo da mostra, Woody perguntou:

           – Quer tomar um drinque enquanto decidimos onde jantar?

           – Não, obrigada – respondeu ela, com o mesmo tom decidido de sempre. – Eu gostaria mesmo é de uma xícara de chá.

           – Chá? – Ele não sabia onde tomar um bom chá em Washington. Então teve uma ideia genial: – Minha mãe tem chá inglês em casa – falou. – Poderíamos ir ao apartamento.

           – Está bem.

           O prédio ficava a alguns quarteirões dali, na Rua 22 NW, perto da L. Os dois respiraram aliviados ao trocarem o calor do verão pela portaria refrigerada. Um ascensorista subiu com eles no elevador.

           Ao entrarem no apartamento, Joanne disse:

           – Vejo seu pai em Washington o tempo todo, mas há muitos anos não falo com sua mãe. Tenho que dar os parabéns a ela pelo sucesso do livro.

           – Ela não está – disse Woody. – Venha até a cozinha.

           Ele encheu a chaleira com água da torneira e a pôs no fogo. Então abraçou Joanne e disse:

           – Enfim, sós.

           – Onde estão seus pais?

           – Viajaram, os dois.

           – E Chuck está no Havaí.

           – Isso mesmo.

           Ela se afastou.

           – Woody, como você pôde fazer isso comigo?

           – Isso o quê? Estou fazendo chá!

           – Você me trouxe aqui sob um falso pretexto! Pensei que seus pais estivessem em casa.

           – Eu não disse isso.

           – Por que não me falou que eles estavam viajando?

           – Você não perguntou! – respondeu ele, indignado, embora a reclamação dela tivesse fundamento. Ele não teria mentido para ela, mas torcera para não precisar lhe dizer de antemão que o apartamento estaria vazio.

           – Você me trouxe até aqui para se aproveitar! Acha que sou uma garota fácil.

           – Não acho, não! É que nós nunca ficamos realmente a sós. Eu só esperava ganhar um beijo.

           – Não tente me enganar.

           Agora ela estava sendo injusta. Sim, ele esperava ir para a cama com ela um dia, mas não naquele.

           – Vamos embora, então – falou. – Podemos tomar chá em outro lugar. O Ritz-Carlton fica nesta rua e todos os britânicos se hospedam lá. Eles devem ter chá.

           – Ora, deixe de ser bobo. Não precisamos ir embora. Não tenho medo de você, sei me defender. Só estou zangada. Não quero um homem que sai comigo porque acha que sou fácil.

           – Fácil? – disse ele, alterando a voz. – Caramba! Esperei seis anos para você se dignar a sair comigo. Mesmo agora, tudo o que estou pedindo é um beijo. Se você é fácil, eu detestaria estar apaixonado por uma garota difícil!

           Para sua surpresa, ela começou a rir.

           – O que foi agora? – perguntou ele, irritado.

           – Desculpe, você tem razão. Se quisesse uma garota fácil, teria desistido de mim faz tempo.

           – Exatamente!

           – Depois que eu o beijei daquele jeito quando estava bêbada, achei que você fosse fazer mal juízo de mim. Imaginei que estivesse tentando sair comigo atrás de emoções fáceis. Tenho até me preocupado com isso nas últimas semanas. Eu o julguei mal. Desculpe-me.

           Ele ficava atordoado com as súbitas mudanças de humor de Joanne, mas supôs que essa última reviravolta fosse uma coisa boa.

           – Mesmo antes daquele beijo, eu já era louco por você – disse ele. – Acho que você não reparou.

           – Eu mal reparava em você.

           – Sou bem alto.

           – É o seu único atrativo, fisicamente falando.

           Ele sorriu.

           – Conversar com você certamente não vai me deixar convencido...

           – Não se eu puder evitar.

           A água ferveu na chaleira. Woody pôs chá dentro de um bule de louça e despejou água por cima.

           Joanne estava pensativa.

           – Mas você disse outra coisa agora há pouco.

           – O quê?

           – Você disse: “Eu detestaria estar apaixonado por uma garota difícil.” Estava falando sério?

           – Em relação a quê?

           – A estar apaixonado.

           – Ah! Não foi minha intenção dizer isso. – Então ele resolveu deixar a cautela de lado. – Mas, se você quer mesmo saber a verdade, estou apaixonado por você, sim. Acho que a amo há muitos anos. Adoro você, quero...

           Ela pôs as mãos atrás de seu pescoço e o beijou.

           Dessa vez foi um beijo de verdade: sua boca se moveu com urgência, a ponta da língua tocando seus lábios, o corpo apertado contra o seu. Foi como em 1935, só que sem o gosto de uísque. Aquela era a garota que ele amava, a verdadeira Joanne, pensou Woody, em êxtase: uma mulher de paixões fortes. E ela estava nos seus braços, beijando-o com todo o vigor de que era capaz.

           Ela enfiou as mãos por dentro de sua camisa de verão informal e acariciou seu peito, pressionando os dedos contra as suas costelas, esfregando os mamilos com as palmas e segurando seus ombros como se quisesse enterrar as unhas bem fundo em sua carne. Woody percebeu que ela também tinha sua parcela de desejo frustrado que agora transbordava, incontrolável, como uma represa que se rompe. Ele a imitou, acariciando as laterais de seu corpo e tocando seus seios com uma alegre sensação de liberdade, como uma criança autorizada a não ir à escola, feliz com o feriado inesperado.

           Quando ele pressionou a mão entre suas coxas, ela recuou.

           Mas o que disse o surpreendeu:

           – Você tem preservativo?

           – Não! Desculpe...

           – Não faz mal. Na verdade, é até melhor. Isso prova que não planejava mesmo me seduzir.

           – Antes tivesse planejado.

           – Não tem problema. Conheço uma médica que vai resolver isso para mim na segunda-feira. Até lá, teremos que improvisar. Me beije outra vez.

           Enquanto a beijava, ele sentiu que ela desabotoava sua calça.

           – Ah – disse ela, instantes depois. – Que beleza.

           – Era exatamente o que eu estava pensando – sussurrou ele.

           – Talvez eu precise usar as duas mãos.

           – O quê?

           – Acho que deve ser porque você é muito alto.

           – Não sei do que você está falando.

           – Então vou calar a boca e continuar beijando você.

           Alguns minutos depois, ela perguntou:

           – Você tem um lenço?

           Felizmente, isso ele tinha.

           Woody abriu os olhos alguns segundos antes do fim e viu Joanne olhando para ele. Em sua expressão viu desejo, excitação e alguma outra coisa que, pensou, poderia até ser amor.

           Quando tudo terminou, ele se sentiu invadido por uma tranquilidade alegre. Eu amo esta mulher, pensou, e estou feliz. Como a vida é boa.

           – Foi incrível – falou. – Gostaria de fazer a mesma coisa por você.

           – Gostaria mesmo?

           – Pode apostar.

           Eles continuavam de pé na cozinha, apoiados na porta da geladeira, mas nenhum dos dois queria se mexer. Ela segurou sua mão e a guiou por baixo do vestido de verão, para dentro da calcinha de algodão. Ele sentiu pele quente, pelos crespos e uma fenda molhada. Tentou enfiar um dedo lá dentro, mas ela o impediu.

           Segurando a ponta de seu dedo, guiou-o pelas dobras macias. Ele sentiu algo pequenino e duro, do tamanho de uma ervilha, logo abaixo da pele. Ela moveu seu dedo em pequenos círculos.

           – Isso – falou, fechando os olhos. – Assim mesmo.

           Ele ficou observando seu rosto com adoração enquanto ela se abandonava ao prazer. Uns dois minutos depois, ela soltou um gritinho, que repetiu duas ou três vezes. Então retirou a mão dele e deixou-se cair contra seu corpo.

           Depois de algum tempo, Woody falou:

           – Seu chá deve ter esfriado.

           Ela riu.

           – Eu amo você, Woody.

           – Ama mesmo?

           – Espero que não fique assustado por eu dizer isso.

           – Não. – Ele sorriu. – Fico muito feliz.

           – Eu sei que as moças não devem dizer isso assim, de forma tão direta. Mas não consigo fingir que estou em dúvida. Não quando já tomei uma decisão.

           – É – falou Woody. – Eu já tinha percebido.

 

           Greg Peshkov estava morando nos aposentos permanentes que seu pai mantinha no Ritz-Carlton. Lev aparecia de vez em quando, nos deslocamentos entre Buffalo e Los Angeles, e passava alguns dias no hotel. Atualmente, porém, Greg tinha o apartamento só para si – e para Rita Lawrence, a curvilínea filha do congressista, que tinha passado a noite lá e agora estava adoravelmente despenteada usando um roupão de seda vermelha masculino.

           Um garçom lhes trouxe o café da manhã, os jornais e um envelope com um recado.

           A declaração conjunta de Roosevelt e Churchill tivera mais efeito do que Greg previra. Mais de uma semana depois, ainda era a principal notícia dos jornais. A imprensa a havia batizado de Carta do Atlântico. Para Greg, a declaração não passava de expressões cautelosas e compromissos vagos, mas o mundo não pensava assim. Ela foi recebida como um prenúncio de liberdade, democracia e comércio mundial. Diziam que Hitler estava furioso e afirmava que aquilo equivalia a uma declaração de guerra dos Estados Unidos à Alemanha.

           Até os países que não tinham participado da conferência queriam assinar a carta, e Bexforth Ross sugerira que os signatários fossem chamados de Nações Unidas.

           Enquanto isso, os alemães seguiam derrotando a União Soviética. Ao norte, aproximavam-se de Leningrado. Ao sul, os russos em retirada tinham explodido a barragem do Dnieper, maior complexo hidrelétrico do mundo e sua menina dos olhos, só para não deixá-lo cair nas mãos dos invasores alemães – um sacrifício de partir o coração.

           – O Exército Vermelho conseguiu refrear um pouco a velocidade da invasão – disse Greg a Rita, com os olhos pregados no Washington Post. – Mas os alemães continuam avançando oito quilômetros por dia. E afirmam ter matado três milhões e meio de soviéticos. Será possível?

           – Você tem algum parente na Rússia?

           – Tenho, sim. Um dia, quando estava meio bêbado, meu pai me contou que deixou uma garota grávida lá.

           Rita fez uma careta de reprovação.

           – Infelizmente, ele é assim – disse Greg. – É um grande homem, e grandes homens não obedecem às regras.

           Ela não disse nada, mas ele entendeu sua expressão: Rita não concordava com sua opinião, mas não queria discutir por isso.

           – Enfim, tenho um meio-irmão russo, ilegítimo como eu – continuou Greg. – O nome dele é Vladimir. Não sei mais nada a seu respeito. Talvez a esta altura já esteja morto. Ele tem idade para lutar. Deve estar entre esses três milhões e meio.

           Ele virou a página do jornal.

           Ao terminar as notícias, leu o recado que o garçom havia trazido.

           Era de Jacky Jakes. Nele, estavam escritos um número de telefone e as palavras Não entre uma e três da tarde.

           De repente, Greg mal podia esperar para se livrar de Rita.

           – A que horas você tem que estar em casa? – perguntou, sem muita sutileza.

           Ela olhou para o relógio.

           – Meu Deus, seria bom eu voltar antes de minha mãe começar a me procurar. – Ela dissera aos pais que passaria a noite na casa de uma amiga.

           Os dois se vestiram juntos e saíram em táxis diferentes.

           Greg imaginou que o telefone devia ser do trabalho de Jacky, e que ela estaria ocupada entre uma e três da tarde. Ligaria mais ou menos no meio da manhã.

           Perguntou-se por que aquela animação toda. Afinal, estava apenas curioso. Embora Rita Lawrence fosse linda e muito sexy, ele jamais conseguira – nem com ela nem com nenhuma outra – reproduzir o arrebatamento daquele primeiro caso de amor com Jacky. Sem dúvida porque nunca mais voltaria a ter 15 anos.

           Chegou ao Antigo Edifício do Gabinete Executivo e deu início à sua principal tarefa do dia: redigir um comunicado à imprensa sobre conselhos aos americanos que moravam no norte da África, onde britânicos, italianos e alemães estavam em guerra, sobretudo numa faixa costeira de três mil quilômetros de extensão por 65 de largura.

           Às dez e meia, ligou para o número escrito no recado.

           – Clube Universitário Feminino – atendeu uma voz de mulher.

           Greg nunca estivera lá: homens só podiam entrar como convidados das sócias.

           – Jacky Jakes está? – perguntou.

           – Sim, ela está esperando uma ligação. Um instante, por favor.

           Provavelmente ela precisava de permissão especial para receber um telefonema no trabalho, pensou ele.

           Alguns instantes depois, ouviu sua voz:

           – Jacky Jakes falando, quem é?

           – Greg Peshkov.

           – Eu já imaginava. Como conseguiu meu endereço?

           – Contratei um detetive particular. Podemos nos encontrar?

           – Acho que não tenho escolha. Mas com uma condição.

           – Qual?

           – Você tem que jurar por tudo o que é mais sagrado que não vai contar ao seu pai. Nunca.

           – Por quê?

           – Depois eu explico.

           – Tudo bem – concordou ele.

           – Jura?

           – Claro.

           – Então diga que jura – insistiu ela.

           – Eu juro, está bem?

           – Ótimo. Você pode me pagar o almoço.

           Greg estranhou aquilo.

           – Algum restaurante aqui no bairro aceita servir um branco e uma negra juntos?

           – Só conheço um... o Electric Diner.

           – Sei onde fica. – Ele havia reparado no nome, mas nunca entrara lá: era uma lanchonete barata, de balcão, frequentada por zeladores e mensageiros. – A que horas?

           – Onze e meia.

           – Tão cedo assim?

           – A que horas você acha que as garçonetes almoçam... à uma da tarde?

           Ele sorriu.

           – Você continua atrevida.

           Então ela desligou.

           Greg terminou de redigir o comunicado à imprensa e levou as folhas datilografadas até a sala do chefe. Deixou o rascunho dentro da bandeja de documentos a tratar e perguntou:

           – Mike, será que eu poderia almoçar mais cedo hoje? Por volta de onze e meia?

           Mike estava lendo a página de opinião do The New York Times.

           – Sim, claro, sem problemas – respondeu, sem erguer os olhos.

           Sob o sol forte, Greg passou em frente à Casa Branca e chegou à lanchonete às onze e vinte. O lugar estava deserto, com exceção de umas poucas pessoas fazendo uma pausa no trabalho. Acomodou-se numa mesa afastada do balcão e pediu um café.

           Perguntou-se o que Jacky teria para lhe dizer. Estava ansioso para saber a resposta de um enigma que o intrigava havia seis anos.

           Ela chegou às 11h35, usando um vestido preto e sapatos baixos – o uniforme de garçonete sem o avental, ele supôs. Ficava bem de preto, e ele se lembrou nitidamente do prazer que sentia ao admirá-la: a boca em forma de arco de Cupido, os grandes olhos castanhos. Ela se sentou na sua frente e pediu uma salada e uma Coca-Cola. Greg pediu mais café: estava tenso demais para comer.

           O rosto de Jacky havia perdido o aspecto rechonchudo e infantil de que ele se lembrava. Ela estava com 16 anos quando os dois se conheceram. Agora tinha 22. Na época, eram duas crianças brincando de ser adultos. Agora eram adultos de verdade. Em seu rosto, Greg leu uma história que, anos antes, não estava escrita ali: decepção, sofrimento, dificuldade.

           – Trabalho no turno do dia – disse ela. – Chego às nove, ponho as mesas, preparo o salão. Sirvo durante o almoço, limpo tudo e vou embora às cinco.

           – A maioria das garçonetes trabalha à noite.

           – Gosto de ter as noites e os fins de semana livres.

           – Continua gostando de festas!

           – Não... em geral fico em casa ouvindo rádio.

           – Imagino que tenha vários namorados.

           – Todos os que eu quero.

           Ele levou alguns instantes para entender que aquilo podia significar qualquer coisa.

           O almoço de Jacky chegou. Ela bebeu a Coca e quase não tocou na salada.

           – E então, por que você fugiu de mim em 1935? – perguntou Greg.

           Ela deu um suspiro.

           – Não quero contar, porque você não vai gostar.

           – Eu preciso saber.

           – Recebi uma visita do seu pai.

           Greg assentiu.

           – Imaginei que ele tivesse algo a ver com isso.

           – Ele levou um capanga... Joe não sei o quê.

           – Joe Brekhunov. Ele é um brutamontes. – Greg começou a ficar com raiva. – Ele machucou você?

           – Não precisou, Greg. Só de olhar para ele já fiquei morrendo de medo. Aceitei fazer o que seu pai queria.

           Greg reprimiu a ira.

           – E o que ele queria?

           – Ele disse que eu tinha que ir embora imediatamente. Podia deixar um recado para você, mas ele iria ler. Eu tinha que voltar para cá, para Washington. Fiquei tão triste por deixá-lo...

           Greg se lembrou da angústia que ele próprio sentira.

           – Eu também – falou.

           Sentiu-se tentado a estender a mão por cima da mesa e segurar a de Jacky, mas não teve certeza se ela iria gostar disso.

           – Ele disse que me daria uma quantia em dinheiro todas as semanas só para me manter afastada de você – prosseguiu ela. – Continua me pagando até hoje. São só uns trocados, mas dão conta do aluguel. Eu prometi... mas, não sei como, consegui reunir coragem para impor uma condição.

           – Qual?

           – Ele nunca poderia dar em cima de mim. Se fizesse isso, eu contaria tudo a você.

           – E ele concordou?

           – Concordou.

           – Não é muita gente que consegue ameaçar meu pai e se safar.

           Ela empurrou o prato para longe.

           – Então ele disse que, se eu faltasse com a minha palavra, Joe iria cortar minha cara. Joe me mostrou a navalha.

           Tudo fez sentido.

           – É por isso que você continua assustada.

           A pele escura dela estava pálida de medo.

           – Mas é claro, droga.

           A voz de Greg se transformou num sussurro:

           – Jacky, eu sinto muito.

           Ela forçou um sorriso.

           – Tem certeza de que seu pai estava tão errado assim? Você só tinha 15 anos. Não é uma boa idade para se casar.

           – Se ele tivesse me dito isso, talvez a história fosse outra. Mas ele decide o que vai acontecer e simplesmente executa, como se ninguém mais tivesse direito a uma opinião.

           – Mesmo assim, nós tivemos bons momentos.

           – Com certeza.

           – Eu fui o seu presente.

           Ele riu.

           – O melhor que já ganhei.

           – Mas o que você tem feito ultimamente?

           – Estou passando o verão trabalhando na assessoria de imprensa do Departamento de Estado.

           Ela fez uma careta.

           – Parece bem chato.

           – Pelo contrário! É incrível ver homens poderosos sentados diante de suas mesas tomando decisões que vão influenciar o mundo inteiro. Eles governam o mundo!

           Apesar do ar cético, ela comentou:

           – Bem, deve ser melhor do que servir mesas.

           Ele começou a ver como os dois haviam se afastado.

           – Em setembro, volto para Harvard para meu último ano.

           – Aposto que você é o terror das universitárias.

           – Há muitos alunos homens, e poucas mulheres.

           – Aindo assim você se vira direitinho, não é?

           – Não posso mentir para você.

           Ele se perguntou se Emily Hardcastle teria cumprido sua promessa e providenciado um método anticoncepcional.

           – Vai se casar com uma delas, ter lindos filhos e morar em uma casa à beira de um lago.

           – Eu gostaria de ser político, quem sabe secretário de Estado, ou talvez senador, como o pai de Woody Dewar.

           Ela olhou para o outro lado.

           Greg pensou na tal casa à beira do lago. Aquele devia ser o sonho de Jacky. Ficou triste por ela.

           – Você vai conseguir – disse ela. – Eu sei. Tem uma aura à sua volta. Mesmo aos 15 anos, já havia. Você é igual ao seu pai.

           – Como assim? Pare com isso!

           Ela deu de ombros.

           – Pense um pouco, Greg. Você sabia que eu não queria vê-lo. E mesmo assim pôs um detetive particular atrás de mim. Ele decide o que vai acontecer e simplesmente executa, como se ninguém mais tivesse direito a uma opinião. Foi o que disse sobre o seu pai um minuto atrás.

           Greg ficou consternado.

           – Espero não ser totalmente igual a ele.

           Jacky o olhou de cima a baixo.

           – Os jurados ainda não chegaram a um veredicto.

           A garçonete tirou seu prato.

           – Aceitam uma sobremesa? – perguntou. – A torta de pêssego está ótima.

           Nenhum dos dois quis sobremesa, e a garçonete entregou a conta a Greg.

           – Espero ter matado a sua curiosidade – disse Jacky.

           – Obrigado, fico-lhe grato.

           – Da próxima vez que me vir na rua, passe direto.

           – Se você prefere assim.

           Ela se levantou.

           – Vamos sair separados. Eu ficaria mais à vontade.

           – Como quiser.

           – Boa sorte, Greg.

           – Para você também.

           – Deixe gorjeta para a garçonete – disse ela, e foi embora.

             

1941 (III)

            Em outubro, a neve derretia ao cair no solo, e as ruas de Moscou estavam frias e molhadas. Volodya vasculhava o armário de mantimentos à procura de suas valenki, as botas de feltro tipicamente russas que aqueciam os pés dos moscovitas no inverno, quando se espantou ao encontrar seis caixas de vodca.

           Seus pais não eram grandes apreciadores de álcool. Raramente bebiam mais que uma pequena dose. De vez em quando, o pai comparecia a um daqueles longos jantares regados a álcool oferecidos por Stalin a velhos camaradas, e entrava cambaleando pela porta a altas horas da madrugada, bêbado feito um gambá. Em casa, porém, uma garrafa de vodca durava no mínimo um mês.

           Volodya entrou na cozinha. Seus pais estavam tomando café da manhã: sardinhas em lata, pão preto e chá.

           – Pai, por que temos um estoque de seis anos de vodca no armário de mantimentos? – perguntou.

           Seu pai pareceu surpreso.

           Os dois olharam para Katerina, que enrubesceu. Ela ligou o rádio e baixou o volume até um sussurro quase inaudível. Será que desconfiava que o apartamento estivesse grampeado?, perguntou-se Volodya.

           Quando ela falou, sua voz saiu baixa, mas zangada.

           – Que dinheiro vocês vão usar quando os alemães chegarem? – perguntou. – Não pertenceremos mais à elite privilegiada. Vamos morrer de fome, a menos que possamos comprar comida no mercado negro. Estou velha demais para vender meu corpo. Vodca vai valer mais do que ouro.

           Volodya ficou chocado por ouvir a mãe falar daquele jeito.

           – Os alemães não vão chegar aqui – disse o pai.

           Volodya não tinha tanta certeza. O inimigo avançava outra vez, fechando o cerco a Moscou. Já tinham tomado Kalinin, ao norte, e Kaluga, ao sul, ambas muito próximas, a cerca de 160 quilômetros da capital. As baixas soviéticas eram assustadoramente altas. Um mês antes, o contingente de soldados do Exército Vermelho era de 800 mil homens; agora, porém, segundo as estimativas que chegavam à mesa de Volodya, restavam apenas 90 mil.

           – E quem vai detê-los, droga? – perguntou ao pai.

           – As linhas de abastecimento dos alemães estão longas demais. Eles não estão preparados para o nosso inverno. Vamos contra-atacar quando eles estiverem enfraquecidos.

           – Nesse caso, por que vocês estão tirando o governo de Moscou?

           A burocracia estava em pleno processo de transferência para a cidade de Kuibyshev, pouco mais de três mil quilômetros a leste. Os moscovitas tinham ficado apreensivos ao ver funcionários do Estado retirando caixas de documentos dos prédios governamentais e carregando-as em caminhões.

           – É só por precaução – disse Grigori. – Stalin continua na cidade.

           – Há uma solução – argumentou Volodya. – Temos centenas de milhares de homens na Sibéria. Precisamos trazê-los como reforços.

           Grigori fez que não com a cabeça.

           – Não podemos deixar o leste indefeso. O Japão ainda é uma ameaça.

           – O Japão não vai nos atacar... Sabemos disso! – Volodya olhou para a mãe. Não deveria falar sobre informações secretas de inteligência na sua frente, mas não conseguiu se conter. – A mesma fonte de Tóquio que nos avisou, corretamente, que a invasão alemã era iminente nos disse que os japoneses não vão atacar. Não é possível que o governo vá ignorá-la outra vez!

           – Avaliar informações de inteligência nunca é fácil.

           – Não temos outra opção! – exclamou Volodya, zangado. – Temos 12 exércitos na reserva... um milhão de homens. Se os mobilizarmos, Moscou talvez sobreviva. Se não, estamos perdidos.

           Grigori fez cara de aflito.

           – Não fale assim, nem mesmo numa conversa particular.

           – Por que não? Provavelmente vou morrer em breve mesmo.

           Katerina começou a chorar.

           – Olhe só o que você fez – disse Grigori.

           Volodya saiu da cozinha. Enquanto calçava as botas, perguntou-se por que havia gritado com o pai e levado a mãe às lágrimas. Então entendeu: era porque agora acreditava que a Alemanha fosse derrotar a União Soviética. O estoque de vodca da mãe, destinado a servir de moeda de troca durante uma ocupação nazista, o forçara a encarar a realidade. Nós vamos perder, disse a si mesmo. O fim da Revolução Russa está próximo.

           Vestiu o sobretudo e pôs o chapéu. Então voltou à cozinha. Deu um beijo na mãe e um abraço no pai.

           – Para que isso tudo? – perguntou Grigori. – Você está apenas indo trabalhar.

           – É só para o caso de nunca mais nos vermos – respondeu Volodya, e saiu.

           Quando atravessou a ponte para o centro da cidade, constatou que todos os transportes públicos tinham parado de funcionar. O metrô estava fechado e nenhum ônibus ou bonde circulava.

           Parecia haver apenas más notícias.

           O boletim dessa manhã do SovInformBuro, divulgado no rádio e em postes pintados de preto e equipados com alto-falantes nas esquinas da cidade, fora mais sincero do que o usual: “Na madrugada de 14 para 15 de outubro, a posição do front oeste piorou”, comunicara a agência de informações. “Uma grande quantidade de tanques alemães penetrou nossas defesas.” Todos sabiam que o SovInformBuro sempre mentia, então imaginaram que a situação fosse ainda pior.

           O centro da cidade estava abarrotado de refugiados que chegavam aos montes, vindos do oeste do país, empurrando seus pertences em carrinhos de mão e conduzindo pelas ruas rebanhos de vacas esqueléticas, porcos imundos e ovelhas encharcadas, todos a caminho da zona rural a leste de Moscou, desesperados para se afastar o máximo possível do avanço alemão.

           Volodya tentou pegar uma carona. O tráfego de veículos civis em Moscou não era muito grande ultimamente. O combustível vinha sendo poupado para os intermináveis comboios militares que circulavam pelo rodoanel de Moscou. Um jipe GAZ-64 novo parou para ele.

           Ao observar a rua pelo veículo aberto, Volodya viu muitos estragos causados por bombas. Diplomatas que tinham voltado da Inglaterra diziam que aquilo não era nada comparado à Blitz londrina, mas, para os moscovitas, já era ruim o bastante. Volodya passou por vários prédios em ruínas e dezenas de casas de madeira incendiadas.

           Grigori, encarregado da defesa antiaérea, mandara instalar peças de artilharia no topo dos prédios mais altos e erguer balões de barragem abaixo das nuvens de neve. A mais estranha de suas decisões tinha sido mandar pintar os domos dourados das igrejas de verde e marrom, para camuflá-los. Ele admitira para o filho que isso não influenciaria em nada o fato de as bombas acertarem ou não o alvo, mas daria aos cidadãos a sensação de estarem sendo protegidos.

           Se os alemães ganhassem e os nazistas tomassem Moscou, o sobrinho e a sobrinha de Volodya, filhos de sua irmã Anya, seriam criados não como patriotas comunistas, mas como nazistas abjetos, com a mão erguida para saudar Hitler. A Rússia ficaria igual à França, um país servil, tendo à frente um governo pró-fascista subserviente, que recolhia os judeus e os deportava para campos de concentração. Essa simples ideia era um tormento. Volodya queria um futuro no qual a União Soviética pudesse se libertar da liderança maligna de Stalin e da brutalidade da polícia secreta para começar a construir o verdadeiro comunismo.

           Quando chegou ao prédio da Inteligência, junto ao campo de pouso de Khodynka, viu que o ar estava cheio de flocos acinzentados que não eram neve, mas cinzas. A Inteligência do Exército Vermelho estava queimando seus arquivos para impedir que caíssem nas mãos do inimigo.

           Pouco depois de ele chegar, o coronel Lemitov entrou em sua sala.

           – Você mandou um memorando para Londres sobre um físico alemão chamado Wilhelm Frunze. Foi uma iniciativa muito inteligente, que se revelou uma ótima pista. Parabéns.

           Que diferença faz?, pensou Volodya. Os blindados estavam a apenas 160 quilômetros de Moscou. Era tarde para espiões poderem ajudar. Mesmo assim, forçou-se a se concentrar.

           – Frunze, sim. Estudei com ele na escola, em Berlim.

           – Londres entrou em contato com ele e Frunze estava disposto a falar. O encontro aconteceu em local seguro.

           Enquanto falava, Lemitov não parava de mexer no relógio de pulso. Mostrar-se agitado não era do seu feitio. Era óbvio que estava tenso. Todos estavam.

           Volodya não disse nada. Sem dúvida, alguma informação tinha sido obtida no encontro em Londres, do contrário Lemitov não estaria falando sobre isso.

           – Londres disse que Frunze no início ficou ressabiado, e suspeitou que nosso homem pertencesse à polícia secreta britânica – disse Lemitov com um sorriso. – Na verdade, depois do primeiro encontro, ele foi a Kensington Palace Gardens, bateu na porta da nossa embaixada e solicitou confirmação de que o nosso homem era um agente legítimo!

           Volodya sorriu.

           – Um verdadeiro amador.

           – Exato – concordou Lemitov. – Um agente de desinformação jamais faria algo tão estúpido.

           A União Soviética ainda não estava completamente acabada. Volodya precisava continuar como se Willi Frunze tivesse importância.

           – Que informação ele nos deu, coronel?

           – Segundo Frunze, ele e outros colegas cientistas estão colaborando com os americanos na fabricação de uma superbomba.

           Volodya teve um sobressalto, lembrando-se das palavras de Zoya Vorotsyntsev. Aquilo confirmava os piores temores da moça.

           – Mas há um problema com a informação – prosseguiu Lemitov.

           – Que problema?

           – Embora a tenhamos traduzido, não conseguimos entender nada. – Lemitov entregou a Volodya um maço de páginas datilografadas.

           – “Separação de isótopos por difusão gasosa” – disse Volodya, lendo um dos títulos em voz alta.

           – Entende o que eu quero dizer?

           – Estudei línguas na universidade, coronel, não física.

           – Mas você já mencionou que conhece uma cientista. – Lemitov sorriu. – Uma loura deslumbrante que não aceitou seu convite para ir ao cinema, se bem me lembro.

           Volodya corou. Falara sobre Zoya com Kamen, que devia ter passado a fofoca adiante. O problema de se trabalhar para um espião era que seu chefe sempre sabia de tudo.

           – É uma amiga da minha família. Ela me falou sobre um processo explosivo chamado fissão. Quer que eu lhe faça algumas perguntas?

           – De modo informal e extraoficial. Não quero fazer uma tempestade por causa disso antes de entender do que se trata. Frunze talvez seja maluco e poderíamos fazer papel de bobos. Descubra do que tratam estes relatórios e se o que Frunze está dizendo faz sentido, cientificamente falando. Se a informação dele for legítima, os britânicos e americanos realmente podem fabricar uma superbomba? E os alemães?

           – Já faz uns dois ou três meses que não vejo Zoya.

           Lemitov deu de ombros. Na verdade, pouco importava que relação Volodya tinha com Zoya. Na União Soviética, responder a perguntas feitas pelas autoridades nunca era uma opção.

           – Vou encontrá-la.

           Lemitov assentiu.

           – Hoje mesmo – disse o coronel, e saiu da sala.

           Volodya franziu o cenho, pensativo. Zoya tinha certeza de que os americanos estavam fabricando uma superbomba, e conseguira persuadir Grigori a mencionar o assunto para Stalin, mas o líder comunista desdenhara a informação. Agora, um espião na Inglaterra estava dizendo a mesma coisa que ela. Zoya parecia estar certa. E Stalin errado – de novo.

           Os líderes da União Soviética tinham uma perigosa tendência a negar as más notícias. Na semana anterior mesmo, uma missão de reconhecimento aéreo tinha localizado blindados alemães a apenas 130 quilômetros de Moscou. O Estado-Maior se recusara a acreditar na informação antes que ela fosse confirmada duas vezes. Então ordenara que a NKVD prendesse e torturasse o oficial da Aeronáutica que fizera a descoberta, por “provocação”.

           Era difícil pensar a longo prazo com os alemães tão perto, mas a ideia de uma bomba que pudesse aniquilar Moscou não podia ser menosprezada, nem mesmo naquele momento de extremo perigo. Se os soviéticos derrotassem os alemães, talvez depois viessem a ser atacados pela Grã-Bretanha e pelos Estados Unidos: algo parecido acontecera após a guerra de 1914 a 1918. Será que a União Soviética se veria indefesa diante de uma superbomba capitalista-imperialista?

           Volodya instruiu seu assistente, o tenente Belov, a encontrar Zoya.

           Enquanto aguardava o endereço, ficou estudando os relatórios de Frunze, tanto no original em inglês quanto na tradução russa, e decorou o que lhe pareciam ser as expressões-chave, uma vez que não podia tirar os documentos do prédio. Uma hora depois, tinha compreensão suficiente para fazer perguntas.

           Belov descobriu que Zoya não estava na universidade, nem no prédio anexo onde residiam os cientistas. O administrador do prédio, porém, contou-lhe que todos os residentes mais jovens tinham sido convocados para ajudar na construção de novas defesas internas para a cidade e informou-lhe onde Zoya estava trabalhando.

           Volodya vestiu o sobretudo e saiu.

           Estava animado, mas não sabia muito bem se era por causa de Zoya ou da superbomba. Talvez as duas coisas.

           Conseguiu arrumar um ZIS militar e um motorista.

           Ao passar pela estação de Kazan – de onde saíam os trens para o leste –, viu que parecia haver no lugar um motim em pleno auge. A impressão era que as pessoas não conseguiam sequer entrar na estação, que diria embarcar. Homens e mulheres ricos lutavam para chegar às portas com filhos, animais de estimação, malas e baús. Volodya ficou chocado ao ver alguns deles trocando socos e chutes, sem o menor pudor. Alguns policiais assistiam a tudo, impotentes: seria necessário um exército para impor alguma ordem ali.

           Motoristas do Exército em geral eram taciturnos, mas aquele homem sentiu-se impelido a comentar:

           – Covardes filhos da puta. Fugindo e nos deixando aqui para combater os nazistas. Olhe só para eles, com seus sobretudos de merda.

           Volodya ficou surpreso. Criticar a elite governante era um perigo. Comentários como aquele podiam levar a uma denúncia. O infrator então passaria uma ou duas semanas nos porões do quartel-general da NKVD, na praça Lubyanka. Podia sair de lá aleijado.

           Volodya teve a incômoda sensação de que o rígido sistema de hierarquia e deferência que sustentava o comunismo soviético estava começando a enfraquecer e se desintegrar.

           Encontraram a equipe que estava montando a barricada exatamente no local informado pelo administrador. Volodya desceu do carro, pediu ao motorista que esperasse e pôs-se a observar o trabalho que estava sendo feito.

           Uma estrada principal estava coalhada de “ouriços” antitanque. Um ouriço consistia em três pedaços de trilho de trem, feitos de aço, com um metro de comprimento cada um, soldados entre si pelo meio para formar um asterisco que se apoiava no chão sobre três pernas e erguia três braços no ar. Aparentemente, eles causavam sérios danos às esteiras dos blindados.

           Atrás do campo de ouriços, uma vala antitanque estava sendo cavada com picaretas e pás, enquanto mais atrás era erguido um muro de sacos de areia, com fendas pelas quais os defensores pudessem atirar. Uma estreita faixa em zigue-zague fora deixada livre de obstáculos, para que a estrada ainda pudesse ser usada pelos moscovitas até a chegada dos alemães.

           Quase todos os operários da escavação e da construção do muro de sacos eram mulheres.

           Volodya encontrou Zoya ao lado de uma montanha de areia, enchendo sacos com uma pá. Passou um minuto a observá-la de longe. Ela usava um sobretudo imundo, luvas de lã e botas de feltro. Tinha os cabelos louros presos para trás e cobertos por um lenço de cor indefinida amarrado sob o queixo. Seu rosto estava sujo de lama, mas ainda assim ela continuava sexy. Manejava a pá num ritmo constante, fazendo um trabalho eficiente. Então o supervisor soprou um apito, e todos fizeram uma pausa para descansar.

           Zoya foi se sentar sobre uma pilha de sacos de areia e tirou do bolso do sobretudo um pacotinho embrulhado em jornal. Volodya se acomodou ao seu lado e disse:

           – Você poderia ter sido dispensada deste trabalho.

           – É a minha cidade – respondeu ela. – Por que eu não ajudaria a defendê-la?

           – Quer dizer que não vai fugir para o leste?

           – Não vou fugir dos filhos da puta dos nazistas.

           A veemência da resposta o surpreendeu.

           – Muita gente está fugindo.

           – Eu sei. Pensei que você já tivesse ido embora há muito tempo.

           – Você tem uma péssima opinião a meu respeito. Acha que pertenço a uma elite egoísta.

           Ela deu de ombros.

           – Quem pode se salvar geralmente aproveita.

           – Bem, você está enganada. Minha família toda continua aqui em Moscou.

           – Talvez eu tenha feito mau juízo de você. Aceita uma panqueca? – Ela abriu o pacotinho: lá dentro havia quatro discos de massa clara envoltos em folhas de repolho. – Prove.

           Ele aceitou e deu uma mordida. O sabor não era grande coisa.

           – O que é?

           – Casca de batata. É possível pegar baldes cheios na porta dos fundos de qualquer cantina do partido ou no refeitório militar. Depois é só passar no moedor, cozinhar até as cascas ficarem macias, misturar com um pouco de farinha e leite, pôr sal, se tiver, e fritar em banha.

           – Eu não sabia que a sua situação estava tão ruim assim – disse ele, constrangido. – Pode ir comer na nossa casa sempre que quiser.

           – Obrigada. O que traz você aqui?

           – Uma pergunta. O que é separação de isótopos por difusão gasosa?

           Ela o encarou.

           – Ah, meu Deus... O que aconteceu?

           – Nada. Só estou tentando avaliar algumas informações duvidosas.

           – Finalmente estamos construindo uma bomba de fissão?

           A reação dela confirmou que a informação de Frunze provavelmente era genuína. Ela havia entendido na hora o significado de suas palavras.

           – Responda à pergunta, por favor – disse ele, severo. – Mesmo que sejamos amigos, isto é um assunto oficial.

           – Está bem. Você sabe o que é um isótopo?

           – Não.

           – Alguns elementos existem na natureza sob formas ligeiramente diferentes. Os átomos de carbono, por exemplo, têm sempre seis prótons, mas alguns têm seis nêutrons, enquanto outros têm sete ou oito. Esses tipos diferentes são isótopos: carbono-12, carbono-13, carbono-14.

           – É bem simples, mesmo para quem estudou línguas – comentou Volodya. – E que importância tem isso?

           – O urânio tem dois isótopos: U-235 e U-238. No urânio natural, os dois tipos estão misturados. Mas só o U-235 é explosivo.

           – Ou seja, é preciso separá-los.

           – Em tese, a difusão gasosa seria uma das maneiras de fazer isso. Quando um gás é difundido através de uma membrana, as moléculas mais leves passam mais depressa. Portanto, o gás resultante é mais rico no isótopo mais baixo. É claro que nunca vi isso ser feito.

           O relatório de Frunze dizia que os britânicos estavam construindo uma fábrica de difusão gasosa no País de Gales, na região oeste da Grã-Bretanha. Os americanos também estavam construindo uma instalação desse tipo.

           – Uma fábrica dessas poderia ter alguma outra finalidade?

           – Não conheço nenhum outro motivo para separar isótopos. – Ela balançou a cabeça. – Pense bem – disse ela. – Se alguém está priorizando esse tipo de processo em tempos de guerra, ou está ficando maluco, ou está fabricando uma arma.

           Volodya viu um carro se aproximar da barricada e ziguezaguear pela faixa livre da estrada. Era um KIM-10, um veículo pequeno de duas portas projetado para famílias ricas. Em teoria, podia atingir a velocidade máxima de 95 quilômetros por hora, mas aquele ali estava tão abarrotado que provavelmente não chegaria nem a 65.

           Ao volante estava um homem de 60 e poucos anos, de chapéu e sobretudo de tecido em estilo ocidental. A seu lado, uma jovem com um chapéu de pele na cabeça. Uma pilha de caixas de papelão ocupava o banco traseiro. No teto, havia um piano amarrado de forma precária.

           Aquele era obviamente um integrante da elite governante tentando sair da cidade com a esposa ou a amante, e a maior quantidade de objetos de valor que pudesse carregar. O tipo de pessoa que Zoya pensava que Volodya fosse; talvez por isso não tivesse aceitado sair com ele. Volodya se perguntou se ela talvez pudesse rever a opinião que tinha a seu respeito.

           Uma das voluntárias da barricada empurrou um ouriço para a frente do KIM-10, e Volodya viu que haveria problemas.

           O carro seguiu avançando devagar até o para-choque encostar no ouriço. Talvez o motorista acreditasse que poderia tirar o obstáculo da frente empurrando-o. Várias outras mulheres se aproximaram para assistir. O ouriço fora projetado para resistir a empurrões. Suas pernas se cravavam no chão, imobilizando-o, e ele ficava bem firme. Ouviu-se um ruído de metal sendo amassado quando o para-choque dianteiro do carro se deformou. O motorista engatou a ré e recuou.

           Pôs a cabeça para fora da janela e gritou:

           – Tirem isso daí, agora! – Sua voz dava a entender que ele estava acostumado a ser obedecido.

           A voluntária, uma mulher atarracada de meia-idade, usando uma boina quadriculada masculina, cruzou os braços.

           – Tire você... seu desertor!

           O motorista desceu do carro com o rosto vermelho de raiva, e Volodya ficou espantado ao reconhecer o coronel Bobrov, com quem havia cruzado na Espanha. Bobrov ficara famoso por matar os próprios homens com um tiro na nuca quando eles recuavam. “Não há perdão para os covardes!” Esse era o seu lema. Em Belchite, Volodya o vira matar três membros da Brigada Internacional por terem recuado ao ficar sem munição. Agora que usava roupas civis, Volodya se perguntou se Bobrov iria atirar na mulher que havia impedido a sua passagem.

           Bobrov foi até diante do carro e segurou o ouriço. Era mais pesado do que ele previra. Com esforço, conseguiu tirá-lo do caminho.

           Enquanto ele voltava para o carro, a mulher de boina tornou a pôr o ouriço na frente do carro.

           Mais voluntárias se juntaram para assistir ao embate, sorrindo e fazendo piadas.

           Bobrov andou até a mulher enquanto tirava do bolso uma credencial.

           – Eu sou o general Bobrov! – bradou. Ele devia ter sido promovido desde que voltara da Espanha. – Deixem-me passar!

           – Você se diz soldado? – retrucou a mulher com desdém. – Então por que não está lutando?

           Bobrov corou. Sabia que o desprezo dela tinha fundamento. Teria ele sido convencido a fugir pela jovem esposa?, perguntou-se Volodya.

           – Para mim você é um traidor – prosseguiu a voluntária de boina. – Tentando fugir com seu piano e sua putinha. – Ela então derrubou o chapéu dele no chão.

           Volodya ficou estarrecido. Nunca tinha visto ninguém desafiar uma autoridade daquele jeito na União Soviética. Em Berlim, antes de os nazistas subirem ao poder, ficara surpreso ao ver alemães comuns discutirem sem medo com agentes da polícia; mas isso não acontecia em seu país.

           As mulheres reunidas vibraram.

           Bobrov tinha a cabeça inteiramente coberta por cabelos brancos rentes. Olhou para o chapéu que saíra rolando pela estrada molhada. Deu um passo para ir atrás, mas mudou de ideia.

           Volodya não se sentiu tentado a intervir. Não havia nada que pudesse fazer contra aquele grupo grande. Além disso, não nutria nenhuma simpatia por Bobrov. Parecia-lhe justo que ele fosse tratado com a mesma brutalidade que sempre dispensara aos demais.

           Outra voluntária, uma mulher mais velha envolta num cobertor imundo, abriu o porta-malas do carro.

           – Vejam só isto aqui! – exclamou.

           O compartimento estava cheio de malas de couro. Ela pegou uma das bagagens e soltou os trincos, fazendo a tampa se abrir. O conteúdo da mala caiu: roupa de baixo rendada, anáguas e camisolas de linho, meias e camisetas de seda, tudo obviamente fabricado no Ocidente, de qualidade superior à de qualquer roupa que mulheres russas já tivessem visto, que dirá comprado. As peças finas caíram na papa de neve da rua e ficaram presas ali como pétalas de flor sobre uma pilha de esterco.

           Algumas das mulheres começaram a recolher as roupas. Outras foram pegando mais malas. Bobrov correu até a traseira do carro e começou a empurrá-las para longe. Aquilo estava ficando feio, pensou Volodya. O general devia portar uma arma, e a qualquer momento iria sacá-la. Mas a mulher do cobertor ergueu uma pá e acertou Bobrov com força na cabeça. Uma mulher capaz de cavar uma vala com uma pá não era nada fraca, e o golpe produziu um barulho alto e nauseante. O general caiu no chão e as voluntárias começaram a chutá-lo.

           A jovem amante saltou do carro.

           – Vai nos ajudar a cavar? – gritou a mulher da boina, e as outras riram.

           A namorada do general, que parecia ter uns 30 anos, baixou a cabeça e pôs-se a seguir pela estrada na mesma direção de onde o carro tinha vindo. A mulher de boina quadriculada lhe deu um empurrão, mas ela se esquivou entre os ouriços e começou a correr. A voluntária foi atrás. A amante, que calçava sapatos de camurça bege de salto alto, escorregou no chão molhado e caiu. O chapéu de pele escapuliu de sua cabeça. Ela se levantou com dificuldade e voltou a correr. A mulher de boina a deixou ir embora e se atirou sobre o chapéu.

           Todas as malas estavam abertas em volta do carro abandonado. As operárias tiraram as caixas do banco de trás e as viraram de ponta-cabeça, esvaziando o conteúdo na estrada. Talheres se esparramaram, peças de louça se partiram, vidro se estilhaçou. Lençóis bordados e toalhas brancas foram arrastados na lama. Uma dezena de pares de sapatos finos se espalhou pelo asfalto.

           Bobrov conseguiu se ajoelhar e tentou ficar de pé. A mulher do cobertor tornou a golpeá-lo com a pá. Quando ela desabotoou seu sobretudo de lã de boa qualidade e tentou tirá-lo, Bobrov resistiu. A mulher então se enfureceu e começou a golpeá-lo repetidamente, até ele ficar parado, caído no chão, com a cabeça branca coberta de sangue. Em seguida ela descartou o cobertor velho e vestiu o sobretudo de lã.

           Volodya se aproximou do corpo imóvel de Bobrov. Os olhos estavam vidrados, sem vida. Ele se ajoelhou e procurou sinais vitais: respiração, batimentos cardíacos, pulso. Não encontrou nada. O general estava morto.

           – Não há perdão para os covardes – falou, mas mesmo assim fechou os olhos de Bobrov.

           Algumas das mulheres desamarraram o piano. O instrumento escorregou do teto do carro e bateu no chão com um tinido dissonante. Elas começaram a destruí-lo alegremente com picaretas e pás. Outras disputavam os objetos de valor espalhados pelo chão, recolhendo talheres, embolando os lençóis, rasgando as roupas de baixo elegantes na luta para ficar com elas. Houve brigas. Um bule de porcelana saiu voando pelos ares e por pouco não acertou a cabeça de Zoya.

           Volodya voltou depressa para perto dela.

           – Isto aqui está virando um motim generalizado – falou. – Tenho um carro militar com motorista. Posso tirá-la daqui.

           Ela hesitou apenas por um instante.

           – Obrigada.

           Os dois correram para o carro, subiram depressa e foram embora dali.

 

           A fé de Erik von Ulrich no Führer foi justificada pela invasão à União Soviética. À medida que os exércitos alemães avançavam em disparada pela vastidão da Rússia, repelindo o Exército Vermelho como se este fosse insignificante, Erik se alegrava com a genialidade militar do líder a quem havia prestado fidelidade.

           Não que fosse fácil. Durante o chuvoso mês de outubro, a zona rural ficara parecendo uma banheira de lama: os russos chamavam esse período de rasputitsa, “tempo sem estradas”. A ambulância de Erik tinha que abrir caminho a duras penas por um verdadeiro pântano. Uma onda de lama ia se formando na frente do veículo, diminuindo gradualmente sua velocidade até ele e Hermann serem obrigados a saltar e retirar a poça com pás antes de prosseguirem. Todo o Exército alemão enfrentava a mesma dificuldade, e o avanço sobre Moscou estava praticamente paralisado. Além do mais, estradas lamacentas significavam que os caminhões de abastecimento nunca conseguiam alcançar o front. O Exército tinha pouca munição, combustível e comida, e o estoque de remédios e material médico da unidade de Erik estava perigosamente baixo.

           Por isso ele a princípio ficara contente quando começara a gelar, no início de novembro. O gelo parecia uma bênção: tornava as estradas duras outra vez e permitia que a ambulância se movesse em velocidade normal. No entanto, o sobretudo de verão e a roupa de baixo de algodão deixavam Erik tremendo de frio – os uniformes de inverno ainda não tinham chegado da Alemanha. Também não haviam recebido os lubrificantes resistentes a baixas temperaturas necessários para manter em funcionamento os motores da ambulância e de todos os caminhões, blindados e peças de artilharia do Exército. Quando não estavam avançando pela estrada, Erik acordava de duas em duas horas durante a noite para ligar o motor e deixá-lo funcionar por cinco minutos; era a única forma de impedir que o óleo congelasse e o líquido de refrigeração se solidificasse. Mesmo assim, por precaução, ele acendia uma fogueira debaixo da ambulância todas as manhãs, uma hora antes de partir.

           Centenas de veículos enguiçaram e foram abandonados. Aviões da Luftwaffe, deixados ao relento durante a noite em pistas de pouso improvisadas, congelaram e não puderam mais ser ligados, e os abrigos para os soldados se protegerem dos ataques aéreos simplesmente desapareceram.

           Apesar de tudo isso, os russos estavam recuando. Ainda que lutassem com bravura, continuavam a ser repelidos. A unidade de Erik parava o tempo todo para tirar cadáveres russos do caminho, e os mortos congelados empilhados no acostamento formavam uma mureta sinistra. Incansável e impiedoso, o Exército alemão se aproximava cada vez mais de Moscou.

           Erik tinha certeza de que muito em breve veria Panzers adentrarem majestosamente a praça Vermelha, enquanto bandeiras com a suástica tremulariam triunfantes acima das torres do Kremlin.

           Enquanto isso, a temperatura já tinha chegado a -10oC, e continuava a cair.

           A unidade médica da qual Erik fazia parte ficou baseada numa cidadezinha ao lado de um canal congelado, cercada por uma floresta de abetos. Erik desconhecia o nome daquele lugar. Os russos muitas vezes destruíam tudo ao recuar, mas a cidade sobrevivera relativamente intacta. Havia um hospital moderno, agora ocupado pelo alemães. O Dr. Weiss dera uma instrução rápida aos médicos que trabalhavam lá: mandarem os pacientes para casa, qualquer que fosse sua condição.

           Agora, Erik estava examinando um paciente, um rapaz de uns 18 anos que sofria de geladura. De tão rígida, a pele amarelada e cerosa de seu rosto parecia gelo. Quando Erik e Hermann cortaram o fino uniforme de verão, viram que os braços e as pernas estavam cobertos de bolhas roxas. As botas, rasgadas e rotas, tinham sido enchidas com jornal na vã tentativa de proteger os pés do frio. Quando Erik as retirou, sentiu o cheiro característico de putrefação da gangrena.

           Mesmo assim, achou que talvez pudessem evitar que o rapaz fosse amputado.

           Sabiam o que fazer. Estavam tratando mais homens por causa de geladura do que de ferimentos de combate.

           Encheu uma banheira com água morna, e então ele e Hermann Braun puseram o paciente lá dentro.

           Erik ficou estudando o corpo enquanto este descongelava. Viu a cor negra da gangrena num dos pés e nos dedos do outro.

           Quando a água começou a esfriar, tiraram o rapaz da banheira, secaram-no com cuidado, puseram-no na cama e o cobriram com mantas. Em seguida dispuseram à sua volta pedras quentes enroladas em toalhas.

           O rapaz estava consciente e alerta.

           – Vou perder o pé? – perguntou.

           – É o médico quem vai decidir – respondeu Erik de modo automático. – Somos apenas ordenanças.

           – Mas vocês veem vários pacientes – insistiu ele. – Qual é a sua opinião?

           – Acho que talvez não seja necessário – disse Erik.

           Se estivesse enganado, sabia o que iria acontecer. No pé menos afetado, Weiss amputaria os dedos, removendo-os com um cortador grande parecido com um alicate. A outra perna seria amputada abaixo do joelho.

           Alguns minutos depois, Weiss entrou e examinou os pés do rapaz.

           – Preparem o paciente para a amputação – ordenou, ríspido.

           Erik ficou desolado. Mais um jovem na flor da idade passaria o resto da vida aleijado. Que lástima.

           Mas o paciente não pensava assim.

           – Graças a Deus – disse ele. – Não terei mais que lutar.

           Enquanto preparavam o paciente para a cirurgia, Erik julgou que aquele soldado era um dos muitos que insistiam em manter uma atitude derrotista – sua própria família pertencia a esse grupo. Pensava muito no falecido pai. Misturada à dor e à saudade, sentia uma raiva profunda. O pai não teria se juntado à maioria para celebrar o triunfo do Terceiro Reich, refletiu com amargura. Teria reclamado de alguma coisa, questionado as decisões do Führer, prejudicado o moral das Forças Armadas. Por que seu pai tivera de ser tão rebelde? Por que demonstrara tanto apego à ideologia ultrapassada da democracia? A liberdade não tinha feito nada pela Alemanha, ao passo que o fascismo salvara o país!

           Mesmo zangado com o pai, Erik sentiu lágrimas quentes encherem seus olhos ao pensar na forma como ele morrera. No início havia negado que Walter tivesse sido morto pela Gestapo, mas logo percebera que provavelmente era verdade. Os membros da Gestapo não eram santos: espancavam quem espalhasse mentiras maldosas sobre o nazismo. Seu pai insistira em perguntar se o governo estava matando crianças deficientes. Fora tolo ao dar ouvidos à esposa inglesa e à filha excessivamente emotiva. Erik amava as duas, o que tornava ainda mais doloroso o fato de elas se mostrarem tão equivocadas e teimosas.

           Enquanto estava de licença em Berlim, fora visitar o pai de Hermann, o homem que lhe apresentara pela primeira vez a empolgante filosofia nazista, quando ele e o amigo eram pequenos. Herr Braun agora fazia parte da SS. Erik disse ter conhecido um homem num bar que afirmara que o governo matava deficientes em hospitais especiais.

           – É verdade que os deficientes são um estorvo dispendioso na marcha rumo à nova Alemanha – respondera-lhe Herr Braun. – A raça tem que ser purificada reprimindo os judeus e outros tipos degenerados, e impedindo os casamentos mistos que produzem uma gente bastarda. Mas a eutanásia nunca foi uma política nazista. Somos determinados, somos duros, às vezes até brutais, mas não matamos pessoas. Isso é uma calúnia comunista.

           As acusações de seu pai não tinham fundamento. Ainda assim, Erik de vez em quando chorava.

           Por sorte, tinha muito com que se ocupar. Pela manhã sempre havia muitos pacientes, em sua maioria feridos da véspera. Em seguida vinha um curto período de calmaria antes de chegarem as baixas do dia. Depois de Weiss operar o rapaz com geladura, ele, Erik e Hermann fizeram uma pausa na sala de funcionários lotada.

           Hermann ergueu os olhos de um jornal.

           – Em Berlim estão dizendo que nós já ganhamos! – exclamou. – Eles deveriam vir aqui ver com os próprios olhos.

           Com seu cinismo habitual, o Dr. Weiss disse:

           – O Führer fez um discurso muito interessante no Sportspalast. Discorreu sobre a inferioridade bestial dos russos. Acho isso muito reconfortante. Estava com a impressão de que os russos fossem os mais ferozes combatentes que já encontramos. Lutaram por mais tempo e com mais garra do que poloneses, belgas, holandeses, franceses ou britânicos. Eles podem até não ter equipamentos suficientes, estar malcomandados e passando fome, mas correm na direção de nossas metralhadoras empunhando seus fuzis antiquados como se não se importassem em viver ou morrer. Fico feliz em saber que isso nada mais é do que um indício de sua bestialidade. Estava começando a temer que eles talvez fossem corajosos e patriotas.

           Como sempre, Weiss fingia concordar com o Führer, mas pensava exatamente o contrário. Hermann fez cara de quem não estava entendendo, mas Erik compreendeu tudo e ficou furioso.

           – Independentemente do que sejam os russos, eles estão perdendo – falou. – Estamos a 65 quilômetros de Moscou. O Führer tinha razão.

           – E ele é bem mais inteligente do que Napoleão – comentou o Dr. Weiss.

           – Na época de Napoleão, nada se movia mais depressa que um cavalo – disse Erik. – Hoje em dia temos automóveis e telégrafo sem fio. Os meios de comunicação modernos nos permitiram ter sucesso onde Napoleão falhou.

           – Ou terão permitido, quando tomarmos Moscou.

           – Coisa que faremos em poucos dias, se não em horas. Não é possível que o senhor ainda duvide!

           – Será mesmo? Acho que alguns dos nossos próprios generais já sugeriram que paremos onde estamos e montemos uma linha defensiva. Podemos garantir nossas posições, nos reabastecer durante o inverno e voltar à ofensiva quando a primavera chegar.

           – Isso me parece uma covardia traiçoeira! – disse Erik, exaltado.

           – Tem razão... Você deve ter razão, porque, pelo que sei, foi isso mesmo que Berlim disse aos generais. Mas eu entendo. Naturalmente, quem está no quartel-general tem uma visão muito mais abrangente do que os homens que estão no front.

           – Nós praticamente destruímos o Exército Vermelho!

           – Mas Stalin parece conseguir materializar novas divisões do nada, como um mágico. No início da campanha, pensávamos que houvesse 200. Agora achamos que são mais de 300. Onde ele encontrou mais cem divisões?

           – O Führer está certo, e isso vai ser provado... mais uma vez.

           – É claro que vai, Erik.

           – Ele nunca errou antes!

           – Um homem pensou que pudesse voar, então pulou do alto de um prédio de dez andares e, quando estava passando pelo quinto, agitando os braços no ar inutilmente, ouviram-no dizer: “Até agora estou indo bem.”

           Um soldado entrou correndo na sala de funcionários.

           – Houve um acidente – anunciou. – Na pedreira ao norte da cidade. Uma colisão, três veículos. Há oficiais da SS feridos.

           A SS havia sido originalmente a guarda pessoal de Hitler, e agora formava uma elite poderosa. Erik admirava sua disciplina soberba, seus uniformes ultraelegantes e sua relação privilegiada com Hitler.

           – Vamos mandar uma ambulância – disse Weiss.

           – É o Einsatzgruppe, o Grupamento Especial – disse o soldado.

           Erik já ouvira falar vagamente dos Grupamentos Especiais. Eles entravam nos territórios conquistados logo depois do Exército para prender arruaceiros e sabotadores em potencial, como comunistas, por exemplo. Provavelmente estavam montando um campo de prisioneiros do lado de fora da cidade.

           – Quantos feridos? – perguntou Weiss.

           – Seis ou sete. Ainda estão tirando pessoas das ferragens.

           – Certo. Braun e Von Ulrich, vão até lá.

           Erik ficou satisfeito. Agradava-lhe poder conviver com os mais fervorosos partidários do Führer, e ficaria ainda mais feliz se pudesse lhes prestar algum serviço.

           O soldado lhe entregou um papel com instruções para chegar ao local.

           Erik e Hermann engoliram depressa o chá que estavam tomando, apagaram seus cigarros e saíram da sala. Erik vestiu um sobretudo de pele que havia roubado de um oficial russo morto, mas não o abotoou, para deixar o uniforme alemão à mostra. Os dois seguiram apressados até a garagem, e Hermann saiu com a ambulância. Erik foi lendo as instruções, estreitando os olhos para tentar ver através da neve fina que caía.

           A estrada saía da cidade e seguia serpenteando pela floresta. Eles passaram por vários ônibus e caminhões vindo na direção contrária. A neve que cobria a estrada estava compacta e dura, e Hermann não podia ir muito depressa para não derrapar. Era fácil imaginar como o acidente havia acontecido.

           O dia era curto e já estava de tarde. Nessa época do ano, o sol nascia às dez e se punha às cinco. Uma luz cinzenta atravessava as nuvens de neve. Os pinheiros altos agrupados dos dois lados da estrada a tornavam ainda mais escura. Erik teve a sensação de estar num conto de fadas dos irmãos Grimm, seguindo a trilha rumo à floresta profunda onde o mal espreitava.

           Ficaram atentos para uma curva à esquerda, e encontraram-na vigiada por um soldado que lhes indicou o caminho. Seguiram sacolejando por uma estradinha traiçoeira entre as árvores até um segundo guarda acenar para eles e dizer:

           – Vão bem devagar. Foi assim que a batida aconteceu.

           Um minuto depois, chegaram ao local do acidente. Os três veículos danificados pareciam soldados uns aos outros: um ônibus, um jipe e uma limusine Mercedes com pneus revestidos por correntes de neve. Erik e Hermann saltaram depressa da ambulância.

           O ônibus estava vazio. Havia três homens no chão, talvez os passageiros do jipe. Vários soldados estavam reunidos em volta do carro espremido entre os dois outros veículos, aparentemente tentando tirar os passageiros lá de dentro.

           Erik ouviu uma saraivada de tiros de fuzil e, por um instante, perguntou a si mesmo quem estaria atirando, mas afastou esse pensamento e se concentrou no trabalho.

           Ele e Hermann examinaram os feridos um após outro, avaliando seu estado. Dos três caídos no chão, um estava morto, outro tinha o braço quebrado e o terceiro parecia ter sofrido apenas escoriações. Dentro do carro, um dos passageiros morrera de hemorragia, outro estava desacordado e um terceiro gritava.

           Erik aplicou uma injeção de morfina no homem que gritava. Quando a droga fez efeito, ele e Hermann conseguiram tirá-lo do veículo e colocá-lo na ambulância. Sem ele no caminho, os soldados puderam soltar o passageiro desacordado, que estava preso nas ferragens retorcidas do Mercedes. O homem tinha um ferimento na cabeça que iria matá-lo, pensou Erik, mas não disse isso aos demais. Voltou sua atenção para os homens do jipe. Hermann pôs uma tala no de braço quebrado, e Erik levou o que tinha ferimentos leves até a ambulância e o fez sentar-se lá.

           Então voltou ao Mercedes.

           – Vamos demorar uns cinco, dez minutos para conseguir tirá-lo – falou um capitão. – Esperem aqui.

           – Está bem – disse Erik.

           Tornou a ouvir tiros e adentrou um pouco mais a floresta, curioso para saber o que o Grupamento Especial estaria fazendo ali. A neve no chão entre as árvores estava muito pisada e coberta de guimbas de cigarro, talos de maçã, jornais velhos e todo tipo de lixo, como se uma excursão de operários de uma fábrica tivesse passado por ali.

           Chegou a uma clareira onde havia caminhões e ônibus estacionados. Várias pessoas tinham sido levadas para lá. Alguns ônibus partiam, desviando do local do acidente; outro estava chegando quando Erik passou. Depois do estacionamento, ele deparou com mais ou menos uma centena de russos de todas as idades, aparentemente prisioneiros, embora muitos carregassem malas, caixas e sacolas às quais se agarravam como quem protege seus bens mais preciosos. Um dos homens segurava um violino. Uma menininha com uma boneca cruzou olhares com Erik, e um pressentimento nauseante lhe revirou as entranhas.

           Os prisioneiros estavam sendo vigiados por agentes da polícia local armados com cassetetes. Independentemente do que estivesse fazendo, era óbvio que o Grupamento Especial tinha colaboradores. Os policiais olharam para Erik, repararam no uniforme militar alemão visível por baixo do sobretudo aberto e não disseram nada.

           Quando ele passou, um prisioneiro russo bem-vestido se dirigiu a ele em alemão:

           – Senhor, sou diretor da fábrica de pneus desta cidade. Nunca acreditei no comunismo, só aceitava da boca para fora, como todos os industriais tinham que fazer. Eu posso ajudá-lo... sei onde fica tudo por aqui. Por favor, me leve embora deste lugar.

           Erik o ignorou e seguiu andando na direção dos tiros.

           Chegou à pedreira. Era um buraco grande e irregular aberto no chão, com a borda margeada por abetos altos que pareciam guardas de uniforme verde-escuro coberto de neve. Em um dos lados, um declive comprido conduzia ao fundo. Enquanto ele observava, 12 prisioneiros começaram a descer em direção ao buraco escuro, dois a dois, conduzidos por soldados.

           Erik reparou que entre os prisioneiros havia três mulheres e um menino de uns 11 anos. Será que o campo para onde seriam levados ficava em algum lugar daquela pedreira? Mas eles não tinham mais bagagem. A neve caía sobre suas cabeças descobertas qual uma bênção.

           Erik se dirigiu a um soldado da SS em pé ali perto:

           – Sargento, quem são esses prisioneiros?

           – Comunistas – respondeu o soldado. – Da cidade. Comissários políticos, essas coisas.

           – Como assim? Até aquele menininho?

           – Judeus, também – disse o sargento.

           – Bem, o que eles são? Comunistas ou judeus?

           – Que diferença faz?

           – Não é a mesma coisa.

           – Claro que é. Praticamente todos os comunistas são judeus. E todos os judeus são comunistas. Você por acaso não sabe de nada?

           O diretor da fábrica de pneus que tinha falado com ele não parecia ser nem comunista nem judeu, pensou Erik.

           Os prisioneiros chegaram ao fundo da pedreira. Até ali, andavam como ovelhas num rebanho, sem falar nem olhar em volta. Nesse momento, porém, começaram a se agitar, apontando para alguma coisa no chão. Esforçando-se para ver por entre os flocos de neve, Erik distinguiu o que pareciam ser cadáveres espalhados entre as pedras, com as roupas salpicadas de branco.

           Pela primeira vez, reparou em 12 homens armados com fuzis em pé na borda do barranco, entre as árvores. Doze prisioneiros, 12 fuzis: entendeu o que estava acontecendo ali, e um misto de incredulidade e horror lhe subiu pela garganta feito bile.

           Os homens ergueram os fuzis e apontaram para os prisioneiros.

           – Não! – gritou Erik. – Não, vocês não podem fazer isso!

           Mas ninguém o escutou.

           Uma das prisioneiras gritou. Erik a viu segurar o menino de 11 anos e apertá-lo de encontro a seu corpo, como se seus braços pudessem deter as balas de fuzil. Devia ser a mãe.

           Um oficial bradou:

           – Fogo!

           Os fuzis dispararam. Os prisioneiros cambalearam e caíram. O estrondo fez um pouco de neve se soltar dos pinheiros e cair sobre os atiradores, salpicando-os de branco.

           Erik viu mãe e filho desabarem, ainda abraçados.

           – Não! – repetiu. – Ah, não!

           O sargento olhou para ele.

           – Qual é o seu problema? – indagou, irritado. – Quem é você, aliás?

           – Sou ordenança médico – respondeu Erik, sem tirar os olhos da cena macabra no fundo da pedreira.

           – E o que está fazendo aqui?

           – Eu trouxe uma ambulância para os oficiais feridos no acidente. – Erik viu que outros 12 prisioneiros já estavam sendo conduzidos encosta abaixo, para dentro da pedreira. – Ah, meu Deus, meu pai tinha razão – gemeu. – Nós estamos matando pessoas.

           – Pare de choramingar e volte para a porra da sua ambulância.

           – Sim, sargento – respondeu Erik.

 

           No final de novembro, Volodya pediu transferência para uma unidade de combate. Não achava mais que seu trabalho de inteligência fosse importante: o Exército Vermelho não precisava de espiões em Berlim para descobrir as intenções de um Exército alemão que já estava nos arredores de Moscou. Ele queria lutar por sua cidade.

           Suas reservas em relação ao governo pareciam irrelevantes. A estupidez de Stalin, a brutalidade da polícia secreta, a forma como nada na União Soviética parecia funcionar como deveria – tudo isso desapareceu. A única coisa que ele sentia era a ardente necessidade de repelir o invasor que ameaçava trazer violência, estupro, fome e morte para sua mãe, sua irmã, seus sobrinhos gêmeos – Dimka e Tania – e Zoya.

           Tinha plena consciência de que, se todos pensassem como ele, não haveria espiões. Para seus informantes alemães, o patriotismo e a lealdade tinham menos importância do que a maldade insustentável dos nazistas. Era grato a eles por sua coragem e pela moralidade irredutível que os movia. Mas não sentia o mesmo.

           Muitos dos soldados mais jovens da Inteligência do Exército Vermelho pensavam como Volodya, e um pequeno grupo se alistou num batalhão de fuzileiros no início de dezembro. Ele se despediu dos pais com um beijo, escreveu um bilhete para Zoya dizendo que esperava sobreviver para revê-la e se mudou para o quartel.

           Stalin enfim trouxe reforços do leste para Moscou. Treze divisões siberianas foram mobilizadas contra os alemães, que não paravam de se aproximar. A caminho do front, alguns deles fizeram uma breve parada em Moscou, e os moscovitas não conseguiram desgrudar os olhos daqueles homens: sobretudos brancos acolchoados, botas quentes de pele de ovelha, esquis e óculos de neve, robustos pôneis das estepes. Eles chegaram a tempo do contra-ataque russo.

           Aquela era a última chance do Exército Vermelho. Nos cinco meses anteriores, a União Soviética enviara repetidamente centenas de milhares de homens de encontro aos invasores. A cada vez, os alemães tinham parado, enfrentado o ataque e prosseguido seu avanço implacável. Se essa nova tentativa fracassasse, porém, não haveria mais nenhuma. Os alemães tomariam Moscou e, quando isso acontecesse, teriam a União Soviética. Então sua mãe teria que ir ao mercado negro trocar vodca por leite para os netos gêmeos.

           No dia 4 de dezembro, os soviéticos saíram da cidade pelo norte, pelo oeste e pelo sul, e assumiram suas posições para a última investida. Para não alertar o inimigo, avançaram sem luz. Não podiam acender fogueiras nem fumar.

           Nessa noite, a frente de combate recebeu a visita de agentes da NKVD. Volodya não viu Ilya Dvorkin, seu cunhado cara de rato, que deveria estar entre eles. Um par de agentes que ele não reconheceu foi até o bivaque onde Volodya e mais uns dez homens limpavam seus fuzis.

           – Vocês ouviram alguém criticar o governo? – perguntaram. – O que os homens estão dizendo sobre o camarada Stalin? Algum de seus companheiros está questionando a sensatez da estratégia e das táticas do Exército?

           Volodya não conseguia acreditar. Que importância tinha aquilo a essa altura? Nos próximos dias, Moscou seria salva ou perdida. E daí se os soldados estivessem falando mal dos oficiais? Abreviou o interrogatório respondendo que ele e seus homens haviam feito voto de silêncio e que tinha ordens para fuzilar qualquer um que o violasse. No entanto – acrescentou, temerário –, perdoaria os agentes da polícia secreta se eles fossem embora imediatamente.

           Deu certo, mas Volodya não teve dúvidas de que a NKVD iria enfraquecer o moral dos soldados por todo o front.

           No fim da tarde de sexta-feira, 5 de dezembro, a artilharia russa entrou em ação com grande alarde. Ao amanhecer do dia seguinte, Volodya e seu batalhão partiram em meio a uma forte nevasca. Sua missão era tomar uma cidadezinha do outro lado de um canal.

           Volodya ignorou as ordens para atacar de frente as defesas alemãs – essa era a antiquada tática russa, e aquele não era o momento de se prender obstinadamente a ideias equivocadas. Com sua companhia de cem homens, ele subiu o canal congelado e o atravessou até o norte da cidade, depois avançou de encontro ao flanco dos alemães. Podia ouvir os estrondos e rugidos do combate à sua esquerda, então entendeu que estava atrás do front inimigo.

           A nevasca o deixava quase cego. De vez em quando, o clarão dos tiros iluminava as nuvens, mas no chão a visibilidade era de apenas poucos metros. No entanto, ele achou, otimista, que isso ajudaria os russos a chegar de mansinho e pegar os alemães de surpresa.

           O frio intenso chegava a -35ºC em alguns lugares. Embora essas condições fossem ruins para ambos os lados, eram piores para os alemães, que não tinham material adequado para temperaturas tão baixas.

           Volodya constatou, um pouco surpreso, que os alemães, em geral tão eficientes, não haviam consolidado sua linha de combate. Não havia trincheiras, valas antitanque nem abrigos subterrâneos. O seu front não passava de uma sucessão de pontos fortificados. Era fácil passar por entre as brechas, entrar na cidade e procurar alvos vulneráveis: casernas, cantinas, depósitos de munição.

           Seus homens abateram três sentinelas para tomar um campo de futebol onde havia cinquenta blindados estacionados. Seria tão fácil assim?, pensou Volodya. Será que a força que conquistara metade da Rússia estava agora depauperada e exaurida?

           Os cadáveres dos soldados soviéticos mortos em escaramuças anteriores e largados ao relento para congelar no mesmo lugar em que haviam morrido estavam sem botas e sobretudos, provavelmente roubados por alemães com frio.

           As ruas da cidade estavam cheias de veículos abandonados – caminhões vazios com as portas escancaradas, tanques cobertos de neve com o motor já frio e jipes de capô aberto, como se algum mecânico houvesse tentado consertá-los, mas tivesse desistido.

           Ao atravessar a rua principal, Volodya ouviu um motor de carro. Através da neve, distinguiu um par de faróis se aproximando pela esquerda. De início pensou que fosse um veículo soviético que havia conseguido passar pelas linhas alemãs. Então seu grupo foi alvejado, e ele gritou para todos se protegerem. O carro que surgiu era um Kubelwagen, um jipe da Volkswagen com o estepe preso na frente, acima do capô. Tinha um motor com resfriamento a ar, que por isso não havia congelado. O jipe passou sacolejando por eles a toda a velocidade, com os alemães disparando suas armas dos assentos.

           Volodya ficou tão espantado que se esqueceu de revidar os tiros. Por que um veículo cheio de alemães armados estava se afastando do local do combate?

           Conduziu sua companhia até o outro lado da rua. Imaginava que, a essa altura, eles já fossem estar lutando para entrar de casa em casa, mas encontraram apenas uma oposição mínima. As construções da cidade ocupada estavam trancadas, lacradas com tábuas, às escuras. Qualquer russo minimamente ajuizado que estivesse lá dentro já devia ter se escondido debaixo da cama.

           Outros carros apareceram na rua, e Volodya concluiu que os oficiais deviam estar fugindo da frente de batalha. Ordenou a uma seção armada com uma metralhadora leve Degtyarev DP-28 que se protegesse dentro de um café e os alvejasse. Não queria que aqueles alemães vivessem para matar russos no dia seguinte.

           Logo depois da rua principal, viu uma construção baixa de tijolos muito iluminada por trás de cortinas finas. Esgueirando-se por um sentinela que não conseguia enxergar muita coisa por causa da nevasca, conseguiu espiar lá dentro e distinguir alguns oficiais. Imaginou que estivesse olhando para o posto de comando de um batalhão.

           Sussurrou instruções para seus sargentos. Estes atiraram nas vidraças, depois lançaram granadas para dentro. Alguns alemães saíram com as mãos na cabeça. No minuto seguinte, Volodya já havia tomado o lugar.

           Escutou um barulho diferente. Apurou os ouvidos e franziu o cenho, intrigado. Aquilo parecia uma torcida de futebol. Saiu do prédio. O barulho vinha da frente de combate e estava ficando mais alto.

           Uma saraivada de metralhadora ecoou a uns cem metros dali, na rua principal, e em seguida um caminhão derrapou de lado, saiu da rua, bateu de frente num muro de tijolos e então explodiu – devia ter sido atingido pela DP-28 posicionada por Volodya. Dois outros veículos passaram logo depois e conseguiram escapar.

           Volodya correu até o café. A metralhadora estava posicionada em cima de uma das mesas, sobre o suporte de duas pernas. Por causa do pente de balas circular situado acima do cano, aquele modelo era conhecido como “toca-discos”.

           – É como atirar em pombos no quintal, capitão! – disse um artilheiro. – Moleza!

           Um dos homens tinha vasculhado a cozinha e encontrara um grande pote de sorvete milagrosamente intacto, que agora passava de mão em mão.

           Volodya olhou pela janela quebrada do café. Viu outro veículo se aproximar. Parecia um jipe com homens o seguindo, correndo. Quando chegaram mais perto, ele reconheceu uniformes alemães. Mais homens vinham atrás, dezenas, talvez centenas. Eram eles os responsáveis pelo barulho de torcida.

           O artilheiro apontou a metralhadora para o carro que se aproximava, mas Volodya levou a mão ao seu ombro.

           – Espere – ordenou.

           Cravou os olhos na nevasca, fazendo-os arder. Tudo o que conseguiu ver foram mais veículos e mais homens correndo, além de alguns cavalos.

           Um soldado ergueu seu fuzil.

           – Não atire – ordenou Volodya. Os alemães chegaram mais perto. – Não podemos deter tantos homens assim... seríamos derrotados em poucos minutos – falou. – Deixem que eles passem. Protejam-se.

           Seus homens se deitaram no chão. O artilheiro tirou a DP-28 de cima da mesa. Ele próprio se sentou no chão e ficou espiando por cima do peitoril.

           O barulho se transformou em estrondo. Os primeiros homens passaram pelo café. Todos corriam, cambaleando e mancando. Alguns portavam fuzis, outros pareciam ter perdido as armas. Uns usavam sobretudos e chapéus, outros apenas a túnica do uniforme. Havia muitos feridos. Volodya viu um soldado com a cabeça envolta numa atadura cair, rastejar por alguns metros e em seguida desabar no chão. Ninguém lhe deu atenção. Um cavaleiro montado pisoteou um soldado e seguiu galopando sem se deter. Jipes e carros de oficiais passavam pela rua conduzidos perigosamente, derrapando no gelo, buzinando feito loucos e fazendo os homens a pé se afastarem para os dois lados.

           Era uma debandada, percebeu Volodya. Os soldados passavam aos milhares. Era um verdadeiro estouro de boiada. Uma retirada.

           Os alemães finalmente estavam recuando.

             

1941 (IV)

            Woody Dewar e Joanne Rouzrokh pegaram um hidroplano Boeing B-314 de Oakland, Califórnia, até Honolulu. O voo da Pan Am levou 14 horas. Pouco antes do pouso, os dois tiveram uma séria discussão.

           O motivo talvez fosse eles terem passado tanto tempo confinados num espaço apertado. O hidroplano era uma das maiores aeronaves do mundo, mas os passageiros eram acomodados em seis pequenas cabines, cada uma delas com duas fileiras de quatro assentos, uma de frente para a outra.

           – Prefiro andar de trem – comentou Woody, cruzando desconfortavelmente as pernas compridas, e Joanne teve a gentileza de não comentar que não se podia chegar ao Havaí de trem.

           A viagem fora ideia dos pais de Woody. O casal decidira tirar férias no Havaí para visitar Chuck, o filho mais novo, que estava servindo lá. Então convidaram Woody e Joanne a se juntarem a eles na segunda semana da viagem.

           Woody e Joanne estavam noivos. Ele a pedira em casamento no final do verão, após quatro semanas de tempo quente e paixão arrebatada em Washington. Joanne tinha dito que ainda era muito cedo, mas Woody argumentara que já era apaixonado por ela havia seis anos e perguntara qual seria o tempo regulamentar. Ela acabara cedendo. O casamento estava marcado para junho do ano seguinte, assim que ele se formasse em Harvard. Enquanto isso, a condição de noivos lhes permitia viajar juntos com a família.

           Ela o chamava de Woods, e ele a chamava de Jo.

           O hidroplano começou a perder altitude ao se aproximar de Oahu, principal ilha do arquipélago havaiano. Lá embaixo viam-se montanhas cobertas de mata, alguns raros vilarejos espalhados pelas terras mais baixas e uma faixa de areia e mar.

           – Comprei um maiô novo – comentou Joanne.

           Os dois estavam sentados lado a lado, e o ronco das quatro turbinas Twin Cyclone de 14 cilindros fabricadas pela empresa Wright era alto o suficiente para nenhum dos outros passageiros ouvir sua conversa.

           Woody estava lendo As vinhas da ira, mas largou o livro de bom grado.

           – Mal posso esperar para vê-la com ele.

           Estava sendo sincero. Joanne tinha o corpo dos sonhos de qualquer fabricante de roupas de banho, e todos os modelos ficavam incríveis nela.

           A moça relanceou os olhos para o noivo, as pálpebras semicerradas.

           – Será que seus pais reservaram quartos contíguos para nós no hotel? – Seus olhos castanho-escuros pareciam duas brasas.

           Sua condição de noivos não lhes permitia dormir juntos, pelo menos não oficialmente. Apesar disso, a mãe de Woody não deixava escapar muita coisa, e talvez já tivesse adivinhado que os dois iam para a cama.

           – Não importa onde você esteja, vou encontrá-la – disse ele.

           – Espero mesmo que me encontre.

           – Não fale assim. Já estou bem desconfortável neste assento.

           Ela sorriu, satisfeita.

           A base naval americana apareceu. Uma lagoa com a forma de uma folha de palmeira fornecia um grande porto natural. Metade da Frota do Pacífico americana estava ancorada ali, cerca de cem embarcações. Os tanques de combustível dispostos em fila pareciam peças de um tabuleiro de damas.

           No meio da lagoa havia uma ilha com uma pista de pouso. Na extremidade ocidental, Woody viu cerca de uma dezena de hidroaviões ancorados.

           Bem junto à lagoa ficava a base aérea de Hickam. Várias centenas de aeronaves estavam estacionadas na pista, com precisão militar, as pontas das asas quase se tocando.

           O hidroplano se inclinou durante a aproximação e sobrevoou uma praia cheia de palmeiras e guarda-sóis de listras coloridas – Woody supôs que fosse Waikiki – e, em seguida, uma pequena cidade que devia ser a capital havaiana, Honolulu.

           Joanne tinha direito a alguns dias de folga no Departamento de Estado, mas Woody teria que faltar a uma semana de aulas para tirar aquelas férias.

           – Estou um pouco surpresa com seu pai – comentou Joanne. – Ele costuma ser contra qualquer coisa que afaste você dos estudos.

           – É – disse Woody. – Mas sabe qual é o verdadeiro motivo destas férias, Jo? Ele acha que talvez seja a última vez que veremos Chuck vivo.

           – Ai, meu Deus, sério?

           – Ele acredita que haverá uma guerra. E Chuck está na Marinha...

           – Acho que seu pai tem razão. Vai mesmo haver uma guerra.

           – Por que tanta certeza?

           – O mundo inteiro está contra a liberdade. – Ela apontou para o livro em seu colo, um sucesso de vendas chamado Diário de Berlim, do radialista William Shirer. – Os nazistas dominam a Europa. Os bolcheviques, a Rússia. E agora os japoneses estão assumindo o controle do Extremo Oriente. Não vejo como os Estados Unidos podem sobreviver num mundo assim. Temos que fazer comércio com alguém!

           – É mais ou menos o que meu pai pensa. Ele acredita que vamos entrar em guerra contra o Japão no ano que vem. – Woody franziu o cenho, pensativo. – O que está acontecendo na Rússia?

           – Os alemães não parecem estar conseguindo tomar Moscou. Logo antes de eu viajar, havia boatos de um contra-ataque russo maciço.

           – Que boa notícia!

           Woody olhou pela janela. Pôde ver o aeroporto de Honolulu. Supôs que o hidroplano fosse pousar numa enseada protegida, próxima à pista.

           – Espero que nada de muito importante aconteça enquanto eu estiver fora – disse Joanne.

           – Por quê?

           – Quero ser promovida, Woods... Então não quero ninguém inteligente e promissor brilhando durante a minha ausência.

           – Promovida? Você não comentou nada.

           – Ainda não está certo, mas meu objetivo é ser pesquisadora do governo.

           Ele sorriu.

           – Até onde você quer subir?

           – Gostaria de virar embaixadora em algum lugar fascinante e complexo, como Nanquim ou Adis Abeba.

           – É mesmo?

           – Não faça essa cara de cético. Frances Perkins é nossa primeira secretária do Trabalho... e ela é muito boa.

           Woody concordou com um gesto de cabeça. Frances Perkins chefiava a Secretaria do Trabalho desde o início do governo Roosevelt, já fazia oito anos, e conseguira o apoio dos sindicatos para o New Deal. Hoje em dia, uma mulher excepcional podia aspirar a praticamente qualquer coisa. E Joanne era realmente excepcional. Por algum motivo, porém, ele ficou chocado ao saber que ela era tão ambiciosa.

           – Mas um embaixador tem que morar no exterior – disse ele.

           – Não seria incrível? Uma cultura estrangeira, um clima diferente, costumes exóticos.

           – Mas... como conciliar isso com o casamento?

           – Como assim? – indagou ela, áspera.

           Ele deu de ombros.

           – Não acha que é uma pergunta natural?

           A expressão de Joanne não se alterou, mas suas narinas se dilataram – Woody sabia que isso era um sinal de que ela estava ficando zangada.

           – Eu por acaso fiz essa pergunta a você?

           – Não, mas...

           – Mas o quê?

           – Estou só pensando, Jo... Você espera que eu vá morar onde a sua carreira a levar?

           – Vou tentar me adaptar às suas necessidades, e acho que você também deveria tentar se adaptar às minhas.

           – Mas não é a mesma coisa.

           – Ah, não? – Ela agora estava obviamente irritada. – Eu não sabia disso.

           Ele se perguntou como a conversa tinha azedado daquele jeito em tão pouco tempo. Esforçando-se para manter o tom de voz controlado e agradável, falou:

           – Nós falamos em ter filhos, não foi?

           – Serão tão seus quanto meus.

           – Mas não exatamente da mesma forma.

           – Se os filhos forem me tornar uma cidadã de segunda classe nesse casamento, então não os teremos.

           – Não foi isso que eu quis dizer!

           – Então que diabo você quis dizer?

           – Se você for nomeada embaixadora em algum lugar, espera que eu largue tudo para acompanhá-la?

           – Eu espero que você diga: “Querida, que oportunidade maravilhosa para você, eu com certeza não vou ficar no seu caminho.” Por acaso é pedir muito?

           – É! – Woody agora estava indignado e bravo. – De que adianta estar casado se não estivermos juntos?

           – Se a guerra estourar, você vai se alistar?

           – Acho que sim.

           – E o Exército vai mandá-lo para onde precisar de você... Europa, Extremo Oriente...

           – Sim.

           – Quer dizer que você vai partir para onde o seu dever mandar e me deixar em casa?

           – Se for preciso.

           – Mas eu não posso fazer o mesmo?

           – É diferente! Por que você está fingindo que não é?

           – Por mais estranho que pareça, a minha carreira e o meu serviço ao país me parecem importantes... Tão importantes quanto os seus.

           – Você só está sendo cabeça-dura!

           – Bem, Woods, eu sinto muito se você pensa assim, porque tenho falado muito seriamente sobre o nosso futuro juntos. Agora me pergunto se ao menos temos mesmo um futuro.

           – É claro que temos! – Woody estava tão frustrado que poderia gritar. – Como foi que isso aconteceu? Como chegamos a este ponto?

           Com um baque, o hidroplano pousou nas águas do Havaí.

 

           Chuck Dewar estava morrendo de medo de que os pais descobrissem seu segredo.

           Quando ainda morava em Buffalo, nunca tivera um caso sério, só alguns amassos apressados em becos escuros com rapazes que mal conhecia. Um dos motivos que o fizeram entrar para a Marinha era poder viajar para lugares onde pudesse ser ele mesmo, sem que os pais soubessem.

           Desde que chegara ao Havaí, tudo havia mudado. Chuck agora fazia parte de uma comunidade clandestina de pessoas como ele. Frequentava bares, restaurantes e boates onde não precisava fingir que era heterossexual. Tivera alguns casos passageiros, depois se apaixonara. Muitas pessoas conheciam o seu segredo.

           E agora seus pais estavam ali.

           Gus fora convidado a visitar a unidade de inteligência de rádio da base naval, conhecida como Estação HYPO. Como era membro do Comitê de Relações Exteriores do Senado, Gus Dewar tinha conhecimento de muitos segredos militares e já visitara o Op-20-G, quartel-general da inteligência de rádio em Washington.

           Chuck foi buscar o pai no hotel de Honolulu onde estava hospedado ao volante de um carro da Marinha, uma limusine Packard LeBaron. Gus estava usando um chapéu de palha branco. Quando margearam o porto, deu um assobio.

           – A Frota do Pacífico – falou. – Que bela visão.

           – Espetacular, não é? – concordou Chuck.

           Navios eram uma coisa linda, principalmente na Marinha americana: estavam sempre bem-pintados, limpos e lustrosos. Chuck achava a Marinha incrível.

           – Todos esses encouraçados formando uma linha perfeita... – admirou-se Gus.

           – É a Fila dos Encouraçados, como chamamos por aqui. Atracados nesta ilha estão o Maryland, o Tennessee, o Arizona, o Nevada, o Oklahoma e o West Virginia. – Os navios recebiam nomes de estados americanos. – O California e o Pennsylvania também estão no porto, mas não dá para ver daqui.

           No portão principal do estaleiro da Marinha, o fuzileiro naval que estava de guarda reconheceu o carro oficial e acenou para que eles entrassem. Gus e Chuck foram até a base de submarinos e pararam no estacionamento atrás do quartel-general, o Antigo Prédio Administrativo. Chuck conduziu o pai até a ala nova, recém-inaugurada.

           O capitão Vandermeier estava à sua espera.

           Vandermeier era o maior temor de Chuck. O capitão tinha antipatizado com ele e descoberto seu segredo. Vivia chamando Chuck de boiola ou de maricas. Se pudesse, contaria para todo mundo.

           O capitão era um homem baixo, troncudo, que tinha a voz rascante e um hálito terrível. Cumprimentou Gus com uma continência e apertou sua mão.

           – Bem-vindo, senador. Será um privilégio lhe mostrar a Unidade de Inteligência em Comunicações do 14o Distrito Naval. – Era esse o título propositalmente vago do grupo encarregado de monitorar os sinais de rádio da Marinha Imperial japonesa.

           – Obrigado, capitão – disse Gus.

           – Mas primeiro tenho que lhe dar um breve aviso. Trata-se de um grupo informal. Esse tipo de trabalho muitas vezes é feito por pessoas excêntricas, que nem sempre usam uniforme. O oficial encarregado, comandante Rochefort, costuma usar uma jaqueta de veludo vermelho. – Vandermeier deu um sorriso de homem para homem. – O senhor talvez ache que ele parece uma droga de um homossexual.

           Chuck reprimiu uma careta.

           – Não direi mais nada até entrarmos na zona segura – disse o capitão.

           – Está bem – respondeu Gus.

           Os três desceram a escada até o subsolo, passando por duas portas trancadas no caminho.

           A Estação HYPO era um porão sem janelas, iluminado por luzes de neon, que abrigava trinta homens. Além das mesas e cadeiras habituais, tinha grandes bancadas onde mapas eram examinados, estantes com exóticas impressoras, classificadoras e tabuladoras da IBM, e duas camas para os analistas de criptografia tirarem cochilos durante as intermináveis sessões de decodificação. Alguns dos homens ali presentes usavam uniformes certinhos, mas outros, como alertara Vandermeier, trajavam roupas civis meio sujas, tinham a barba por fazer e – a julgar pelo cheiro – não tomavam banho com muita frequência.

           – Assim como todas as marinhas, a japonesa tem muitos códigos diferentes: usa os mais simples para mensagens menos secretas, como boletins meteorológicos, e guarda os mais complexos para as transmissões mais sensíveis – explicou Vandermeier. – Por exemplo, os indicativos de chamada que identificam o remetente e o destinatário de uma mensagem são registrados num código primitivo, mesmo quando o texto em si está redigido num código muito mais complexo. Recentemente eles mudaram o código dos indicativos de chamada, mas deciframos o novo em poucos dias.

           – Muito impressionante – comentou Gus.

           – Usando a triangulação, também podemos descobrir a origem da mensagem. Com as origens e os indicativos de chamada, podemos mapear com razoável precisão a localização dos navios japoneses, mesmo sem conseguir ler as mensagens.

           – Então sabemos onde eles estão e em que direção vão, mas não quais são suas ordens – disse Gus.

           – Sim, muitas vezes é isso mesmo.

           – Mas, se eles quiserem se esconder de nós, tudo o que precisam fazer é impor silêncio de rádio.

           – É verdade – concordou Vandermeier. – Se eles se calarem, toda esta operação se torna inútil, e nós ficamos realmente fodidos.

           Um homem de paletó de smoking e chinelos se aproximou e Vandermeier apresentou o chefe da unidade:

           – Além de ser um ás em análise de códigos, o comandante Rochefort fala japonês fluentemente.

           – Até alguns dias atrás, estávamos progredindo bastante na quebra do principal código japonês – explicou Rochefort. – Então os desgraçados mudaram de código e inutilizaram todo o nosso trabalho.

           – O capitão Vandermeier estava me dizendo que vocês conseguem descobrir muita coisa sem precisar ler as mensagens – disse Gus.

           – É verdade. – Rochefort apontou para uma planilha na parede. – Neste exato momento, a maior parte da frota imperial saiu das águas japonesas e está seguindo para o sul.

           – É um mau sinal.

           – Sem dúvida. Mas diga-me, senador, como o senhor interpreta as intenções dos japoneses?

           – Acho que eles vão declarar guerra aos Estados Unidos. Nosso embargo ao petróleo está prejudicando muito o Japão. Os britânicos e holandeses se recusam a abastecê-los, e eles agora estão tentando importar petróleo da América do Sul. Não vão conseguir sobreviver assim indefinidamente.

           – Mas o que eles ganhariam nos atacando? – indagou Vandermeier. – Um país pequeno como o Japão não pode invadir os Estados Unidos!

           – A Grã-Bretanha é um país pequeno, mas conseguiu dominar o mundo apenas controlando os mares. Os japoneses não precisam conquistar os Estados Unidos. Tudo o que têm que fazer é nos derrotar numa guerra naval para assumirem o controle do Pacífico. Então ninguém mais vai poder impedi-los de fazer comércio.

           – Então, na sua opinião, o que eles podem estar fazendo indo para o sul?

           – Seu alvo mais provável devem ser as Filipinas.

           Rochefort concordou com um gesto de cabeça.

           – Nós já reforçamos nossa base lá. Mas uma coisa está me incomodando: já faz vários dias que o comandante da frota de porta-aviões japonesa não recebe nenhuma mensagem de rádio.

           Gus franziu o cenho.

           – Silêncio de rádio. Isso já aconteceu antes?

           – Já. Os porta-aviões ficam mais silenciosos quando voltam às águas nacionais. Então supomos que seja essa a explicação agora.

           Gus assentiu.

           – Parece razoável.

           – É – concordou Rochefort. – Eu só queria ter certeza.

 

           Em Honolulu, as luzes de Natal da Fort Street estavam todas acesas. Era sábado, 6 de dezembro, e, naquele início de noite, as ruas estavam lotadas de militares usando o uniforme branco tropical da Marinha americana, todos com um quepe branco redondo na cabeça e um lenço preto cruzado em volta do pescoço, em busca de diversão.

           A família Dewar passeava, aproveitando o clima festivo. Rosa ia de braço dado com Chuck, enquanto Gus e Woody caminhavam com Joanne entre eles.

           Woody fizera as pazes com a noiva. Pedira desculpas por ter feito suposições equivocadas em relação ao que Joanne esperava de seu casamento. Ela, por sua vez, reconhecera que havia exagerado. Nada se resolvera de fato, mas a trégua fora suficiente para os dois arrancarem as roupas e se jogarem na cama.

           Depois do sexo, a briga parecia que tinha perdido a importância, e nada fazia muita diferença a não ser o amor que sentiam. Então prometeram um ao outro que, no futuro, iriam conversar sobre esse tipo de acordo de um jeito carinhoso e tolerante. Quando estavam se vestindo, Woody teve a sensação de que aquilo fora um divisor de águas. Eles haviam tido uma briga feia sobre uma diferença de opinião séria, mas sobreviveram. Talvez fosse até um bom sinal.

           Agora estavam indo jantar. Woody levava sua câmera e tirava fotos da cidade enquanto caminhavam. Não tinham avançado muito quando Chuck parou para lhes apresentar outro marinheiro.

           – Este é meu amigo Eddie Parry. Eddie, apresento-lhe o senador Dewar, a Sra. Dewar, meu irmão Woody e a noiva dele, Srta. Joanne Rouzrokh.

           – É um prazer conhecê-lo, Eddie – disse Rosa. – Chuck mencionou seu nome várias vezes nas cartas que mandou. Não quer jantar conosco? Vamos comer comida chinesa.

           Woody se espantou. Não era do feitio de sua mãe convidar um desconhecido para uma refeição em família.

           – Obrigado, madame. Seria uma honra – respondeu Eddie, com sotaque do Sul dos Estados Unidos.

           O grupo entrou num restaurante chamado Deleite Celeste e ocupou uma mesa para seis pessoas. Embora se mostrasse formal, chamando Gus de “senhor” e as mulheres de “madame”, Eddie parecia relaxado. Depois de pedirem a comida, ele falou:

           – Ouvi falar tanto nesta família que tenho a impressão de já conhecer todos vocês. – Tinha um rosto sardento e um sorriso largo, e Woody pôde ver que todos haviam simpatizado com ele.

           Eddie perguntou a Rosa o que ela achava do Havaí.

           – Para dizer a verdade, estou meio decepcionada. Honolulu se parece com qualquer cidade pequena americana. Esperava que fosse mais asiática.

           – Concordo – disse Eddie. – Aqui só tem restaurantes, hotéis de beira de estrada e bandas de jazz.

           Ele perguntou a Gus se haveria uma guerra. Todos faziam a mesma pergunta ao senador.

           – Já demos nosso sangue para tentar chegar a um modus vivendi com o Japão – respondeu Gus. Woody se perguntou se Eddie saberia o que era um modus vivendi. – O secretário de Estado Hull teve uma série de conversas com o embaixador Nomura que durou quase o verão inteiro. Mas parece que não conseguimos chegar a um acordo.

           – Qual é o problema? – quis saber Eddie.

           – Os Estados Unidos precisam de uma zona de livre comércio no Extremo Oriente, e o Japão diz que “tudo bem, ótimo, nós adoramos o livre comércio, vamos fazer isso não apenas em nosso quintal, mas no mundo inteiro”. Só que os Estados Unidos não conseguem fazer isso nem se quiserem. Então o Japão diz que, enquanto outros países tiverem sua própria zona econômica, eles também precisam de uma.

           – Continuo sem entender por que eles tiveram que invadir a China.

           Rosa, que sempre tentava ver o outro lado da questão, falou:

           – Os japoneses querem ter tropas na China, Indochina e Índias Orientais Holandesas para proteger seus interesses, do mesmo jeito que os americanos têm tropas nas Filipinas, os britânicos, na Índia, os franceses, na Argélia, e assim por diante.

           – Sob esse ponto de vista, os japas não parecem estar pedindo nada absurdo!

           – O que eles estão pedindo não é um absurdo, mas estão errados – disse Joanne com firmeza. – Conquistar um império é uma solução do século XIX. O mundo está mudando. Estamos nos afastando de impérios e zonas econômicas fechadas. Dar a eles o que estão pedindo seria um retrocesso.

           A comida foi servida.

           – Antes que eu me esqueça – disse Gus. – Amanhã de manhã vamos tomar café a bordo do Arizona. Às oito em ponto.

           – Não fui convidado, mas recebi ordens para acompanhá-los até lá – disse Chuck. – Passarei para pegar vocês às sete e meia, iremos de carro até o estaleiro da Marinha e depois atravessaremos o porto de lancha.

           – Ótimo.

           Woody começou a comer seu arroz frito.

           – Que delícia – comentou. – Deveríamos servir comida chinesa no nosso casamento.

           Gus riu.

           – Acho que não.

           – Por que não? É barato e muito bom.

           – Um casamento é mais do que uma refeição, é uma ocasião especial. Falando nisso, Joanne, preciso ligar para a sua mãe.

           Joanne franziu o cenho.

           – Para falar sobre o casamento?

           – Sim, sobre a lista de convidados.

           Joanne largou os hashis.

           – Algum problema?

           Woody viu as narinas da noiva se dilatarem e soube que, sim, haveria problemas.

           – Não um problema propriamente dito – respondeu Gus. – Tenho vários amigos e aliados políticos em Washington que ficariam ofendidos se não fossem convidados para o casamento do meu filho. Vou sugerir que sua mãe e eu dividamos as despesas.

           Woody avaliou que seu pai estava sendo atencioso. Como Dave vendera a cadeia de cinemas a preço de banana antes de morrer, a mãe de Joanne talvez não tivesse muito dinheiro para gastar com um casamento chique. Mas a moça não gostou nem um pouco da ideia de os dois fazerem combinações em relação ao casamento sem consultá-la.

           – De que amigos e aliados o senhor está falando? – indagou, fria.

           – Senadores e deputados, em sua maioria. Temos que convidar o presidente, mas ele não irá.

           – Que senadores e deputados? – insistiu Joanne.

           Woody viu a mãe esconder um sorriso. Ela estava achando graça na insistência da nora. Não eram muitas pessoas que tinham coragem de pôr Gus contra a parede daquele jeito.

           Gus começou a desfiar uma lista de nomes.

           Joanne o interrompeu:

           – O deputado Cobb, o senhor disse?

           – Sim.

           – Mas ele votou contra a lei antilinchamento!

           – Peter Cobb é um homem bom. Mas é um político do Mississippi. Nós vivemos em uma democracia, Joanne: temos que representar nossos eleitores. Os sulistas nunca vão aprovar uma lei antilinchamento. – Ele olhou para o amigo de Chuck. – Espero não estar pisando no calo de ninguém, Eddie.

           – Não precisa medir as palavras por minha causa, senador – disse Eddie. – Sou texano, mas sinto vergonha quando penso na política praticada lá no Sul. Detesto preconceito. Os homens são todos iguais, independentemente da cor.

           Woody olhou de relance para Chuck. O irmão parecia que ia explodir de tanto orgulho de Eddie.

           Nessa hora, Woody percebeu que Eddie era mais do que um simples amigo de Chuck.

           Que coisa esquisita.

           Havia três casais apaixonados naquela mesa: seu pai e sua mãe, Woody e Joanne, Chuck e Eddie.

           Ele encarou o rapaz. Namorado de Chuck, pensou.

           Muito esquisito.

           Eddie flagrou Woody o encarando e abriu um sorriso simpático.

           Woody olhou para outro lado. Graças a Deus papai e mamãe não perceberam, pensou.

           A menos que esse fosse o motivo para sua mãe ter convidado Eddie para jantar com a família. Será que ela sabia? Será que até mesmo aprovava? Não, essa possibilidade não existia.

           – Enfim, Cobb não tem escolha – continuou Gus. – E ele é liberal em todas as outras questões.

           – Isso não tem nada a ver com democracia – disse Joanne, exaltada. – Cobb não representa o povo do Sul. Lá só os brancos podem votar.

           – Nada é perfeito nesta vida – disse Gus. – Cobb apoiou o New Deal de Roosevelt.

           – Isso não quer dizer que eu tenha que convidá-lo para o meu casamento.

           – Eu também não quero convidá-lo, pai – disse Woody. – Ele tem as mãos sujas de sangue.

           – Que injustiça!

           – É nossa opinião.

           – Bem, a decisão não cabe apenas a vocês. Quem vai bancar a festa é a mãe de Joanne e, se ela permitir, vou dividir as despesas. Acho que isso nos dá o direito de opinar sobre a lista de convidados.

           Woody se recostou na cadeira.

           – Ora, mas é o nosso casamento!

           Joanne olhou para o noivo.

           – Talvez fosse melhor fazermos uma cerimônia discreta no cartório, só com alguns amigos.

           Woody deu de ombros.

           – Por mim, tudo bem.

           – Isso deixaria muitas pessoas chateadas – disse Gus, severo.

           – Mas não nós – retrucou Woody. – A pessoa mais importante desse dia é a noiva, e quero que ela tenha tudo o que deseja.

           – Escutem aqui, todos vocês – interrompeu Rosa. – Não vamos nos exaltar. Gus, querido, talvez você tenha que chamar Peter Cobb para conversar e explicar a ele, com delicadeza, que você tem a sorte de ter um filho idealista, que vai se casar com uma moça maravilhosa e igualmente idealista, e que os dois recusaram o seu veemente pedido de que o convidassem para o casamento. Você sente muito, mas não pode seguir as próprias inclinações nessa questão, da mesma forma que Peter não pôde seguir as dele ao votar contra a lei antilinchamento. Ele vai sorrir e dizer que compreende e que sempre gostou de você por sua sinceridade.

           Após vários instantes de hesitação, Gus decidiu ceder graciosamente:

           – Acho que você tem razão, querida. – Então sorriu para Joanne. – De toda forma, eu seria um bobo se brigasse com a minha adorável nora por causa de Peter Cobb.

           – Obrigada... – respondeu Joanne. – Já posso começar a chamá-lo de papai?

           Woody quase soltou um arquejo. Era a coisa perfeita a dizer. Como ela era esperta!

           – Isso me faria muito feliz – respondeu Gus.

           Woody pensou ter visto uma lágrima brilhar no olho do pai.

           – Então obrigada, papai – disse Joanne.

           Que tal, pensou Woody? Ela havia enfrentado o senador Dewar – e vencera.

           Que mulher!

 

           No domingo, Eddie quis ir com Chuck buscar sua família no hotel.

           – Não sei, amor – respondeu Chuck. – Você e eu devemos parecer bons amigos, não inseparáveis.

           Ainda não havia amanhecido. Os dois estavam num motel e tinham que voltar de fininho ao quartel antes que o sol raiasse.

           – Você tem vergonha de mim – disse Eddie.

           – Como você pode dizer uma coisa dessas? Eu o levei para jantar com a minha família!

           – Aquilo foi ideia da sua mãe, não sua. Mas o seu pai gostou de mim, não é?

           – Todos adoraram você. Quem não adoraria? Mas eles não sabem que você é um homossexual imundo.

           – Não sou um homossexual imundo. Sou um homossexual bem limpinho.

           – É verdade.

           – Deixe eu ir com você, por favor. Quero conhecer melhor a sua família. É muito importante para mim.

           Chuck deu um suspiro.

           – Está bem.

           – Obrigado. – Eddie o beijou. – Ainda temos tempo de...

           Chuck sorriu.

           – Se formos rápidos.

           Duas horas depois, os dois estavam em frente ao hotel no Packard da Marinha. Seus quatro passageiros apareceram às sete e meia. Rosa e Joanne usavam chapéus e luvas. Gus e Woody estavam de terno de linho branco. Woody levara sua câmera. Ele estava de mãos dadas com a noiva.

           – Olhe só o meu irmão – cochichou Chuck no ouvido de Eddie. – Ele está tão feliz!

           – Ela é linda.

           Os dois seguraram as portas do carro e os Dewar acomodaram-se no banco de trás da limusine. Woody e Joanne ocuparam os assentos retráteis. Chuck saiu com o carro e seguiu em direção à base naval.

           A manhã estava esplendorosa. No rádio, a estação KGMB tocava hinos religiosos. O sol brilhava na lagoa e se refletia nas escotilhas de vidro e amuradas de metal polido de uma centena de embarcações.

           – Uma beleza, não é? – comentou Chuck.

           Eles entraram na base e foram até o estaleiro da Marinha, onde havia uma dezena de navios em docas flutuantes e diques secos para reparos, manutenção e reabastecimento. Chuck parou em frente ao Cais dos Oficiais. Todos saltaram do carro para admirar os imponentes encouraçados que flutuavam na lagoa, maravilhosos à luz da manhã. Woody tirou uma foto.

           Faltavam poucos minutos para as oito. Chuck ouviu sinos de igreja badalarem ali perto, em Pearl City. A bordo dos navios, uma sirene convocava a tripulação do turno da manhã para o desjejum, e, às oito horas em ponto, equipes se reuniram para hastear as bandeiras. No convés do Nevada, uma banda tocava “The Star-Spangled Banner”, o hino nacional dos Estados Unidos.

           Os seis caminharam até o píer, onde uma lancha os aguardava. A embarcação tinha capacidade para 12 passageiros, e era equipada com um motor inboard, ou seja, localizado dentro de um compartimento na popa. Eddie deu a partida enquanto Chuck ajudava os outros a subir. O pequeno motor ganhou vida com um alegre borbulhar. Chuck ficou em pé na proa enquanto Eddie afastava a lancha do píer e a virava de frente para os encouraçados. Quando ganharam velocidade, a proa se levantou, projetando na água dois rastros de espuma simétricos, que pareciam as asas de uma gaivota.

           Chuck ouviu um avião e olhou para cima. A aeronave vinha do oeste e voava tão baixo que parecia correr o risco de cair. Imaginou que estivesse prestes a pousar na pista da Marinha localizada em Ford Island.

           Sentado na proa ao lado de Chuck, Woody franziu o cenho e perguntou:

           – Que avião é esse?

           Chuck conhecia todas as aeronaves do Exército e da Marinha, mas teve dificuldade para identificar aquela.

           – Está parecendo um Tipo 97 – disse ele.

           O Tipo 97 era o torpedeiro da Marinha Imperial japonesa e tinha como base um porta-aviões.

           Woody apontou a câmera para a aeronave.

           Quando ela se aproximou, Chuck viu dois grandes sóis vermelhos pintados nas asas.

           – É um avião japonês! – exclamou.

           Eddie, que estava na proa pilotando a lancha, ouviu o que ele disse e falou:

           – O pessoal deve ter pintado isso para algum exercício de simulação. Um treinamento-surpresa para estragar a manhã de domingo de todo mundo.

           – É, imagino que sim – disse Chuck.

           Foi então que viu um segundo avião atrás do primeiro.

           E mais outro.

           – Que diabo está acontecendo? – perguntou o senador, nervoso.

           Os aviões se inclinaram acima do estaleiro naval e passaram bem perto da lancha, seu barulho aumentando até virar um rugido digno das cataratas do Niágara. Chuck viu que eram uns dez; não, vinte; não, mais.

           Os aviões iam direto para a Fila dos Encouraçados.

           Woody parou de tirar fotos e disse:

           – Não pode ser um ataque de verdade... Ou pode? – Além de dúvida, sua voz também demonstrava medo.

           – Como esses aviões podem ser japoneses? – indagou Chuck, incrédulo. – O Japão fica a mais de 6.500 quilômetros daqui! Nenhum avião tem essa autonomia de voo.

           Ele se lembrou de que os porta-aviões da Marinha japonesa tinham entrado em silêncio de rádio. A unidade de inteligência havia suposto que estivessem em águas japonesas, mas nunca confirmara isso.

           Cruzou olhares com o pai e imaginou que Gus estivesse recordando a mesma conversa.

           De repente, tudo ficou claro, e a incredulidade se transformou em medo.

           O avião que liderava a formação sobrevoou o Nevada, o último encouraçado da fila. Ouviu-se uma salva de canhões. No convés, marinheiros correram para todos os lados e a banda parou de tocar, fazendo o som morrer de forma desordenada à medida que as notas eram interrompidas.

           Na lancha, Rosa deu um grito.

           – Meu Deus do céu, é um ataque! – exclamou Eddie.

           O coração de Chuck começou a bater acelerado. Os japoneses estavam bombardeando Pearl Harbor, e ele se encontrava numa pequena embarcação no meio da lagoa. Olhou para o rosto assustado dos outros – seus pais, seu irmão, Eddie –, e percebeu que todas as pessoas que ele amava estavam ali.

           Torpedos compridos em forma de bala começaram a cair do corpo dos aviões e a mergulhar nas águas calmas da lagoa.

           – Eddie, dê meia-volta! – gritou Chuck.

           Mas Eddie já estava manobrando a lancha, fazendo uma curva fechada.

           Quando a embarcação virou, Chuck viu que outro grupo de aeronaves com os grandes discos vermelhos pintados nas asas sobrevoava a base aérea de Hickam. Eram bombardeiros de mergulho e estavam descendo do céu como aves de rapina sobre as fileiras de aviões americanos perfeitamente dispostas nas pistas.

           Como era possível aqueles desgraçados estarem ali em tamanha quantidade? Metade da Força Aérea japonesa parecia estar sobrevoando Pearl.

           Woody voltou a tirar fotos.

           Chuck ouviu um baque surdo, como uma explosão subterrânea, seguido imediatamente por outro. Virou-se. Um clarão de chamas surgiu acima do Arizona, e o encouraçado começou a soltar fumaça.

           A popa da lancha afundou mais ainda na água quando Eddie acelerou.

           – Rápido, rápido! – disse Chuck, desnecessariamente.

           Chuck ouviu o chamado insistente e ritmado de uma sirene vindo de um dos navios, convocando a tripulação a seus postos de combate, e entendeu que aquilo era mesmo uma batalha e que sua família estava bem no meio dela. Instantes depois, em Ford Island, a sirene de ataque aéreo começou a ecoar como um lamento baixo, e foi ficando cada vez mais aguda, até alcançar sua nota mais alta e urgente.

           Uma longa série de explosões ecoava da Fila de Encouraçados conforme os torpedos atingiam seus alvos.

           – Olhe o Wee Vee! – gritou Eddie. Era assim que eles chamavam o West Virginia. – Está adernando para bombordo!

           Chuck viu que ele tinha razão. O encouraçado exibia um rombo do lado mais próximo aos aviões inimigos. Milhões de toneladas de água deviam ter entrado no casco em poucos segundos para fazer uma embarcação daquele porte tombar.

           Bem ao lado, o mesmo acontecia com o Oklahoma e, para seu horror, Chuck viu marinheiros escorregando indefesos, deslizando pelo convés inclinado e despencando dentro d’água pela lateral do navio.

           Ondas provocadas pelas explosões sacudiram a lancha. Todos se seguraram nas bordas.

           Chuck viu uma chuva de bombas atingir a base de hidroplanos, na ponta mais próxima de Ford Island. As frágeis aeronaves, atracadas próximas umas das outras, foram totalmente destruídas, e fragmentos de asas e fuselagens saíram voando pelo ar, como folhas num furacão.

           Graças ao seu treinamento de inteligência, Chuck tentava identificar tipos de aeronaves inimigas, e detectou um terceiro modelo: o mortal Mitsubishi Zero, o melhor caça do mundo a operar a partir de porta-aviões. O Zero tinha apenas duas bombas pequenas, mas também era equipado com duas metralhadoras e dois canhões de 20mm. Naquele ataque, devia ter a missão de escoltar os bombardeiros para defendê-los de caças americanos – só que todos os caças continuavam no solo, onde muitos já tinham sido destruídos. Isso deixava os Zeros livres para metralhar prédios, equipamentos e tropas.

           Ou então, pensou Chuck com medo, uma família que atravessava a lagoa, desesperada para chegar ao cais.

           Por fim, os Estados Unidos começaram a reagir. Em Ford Island e nos conveses dos navios ainda não atingidos, peças de artilharia antiaérea e metralhadoras normais ganharam vida, somando seu barulho à cacofonia de ruídos letais. Morteiros antiaéreos explodiam como flores negras desabrochando no céu. Quase na mesma hora, um operador de metralhadora em terra atingiu em cheio um caça de mergulho. O cockpit explodiu em chamas, e o avião caiu na lagoa com um forte baque, levantando água. Chuck vibrou e agitou os punhos no ar.

           O West Virginia adernado começou a voltar à vertical, mas continuou afundando, e Chuck entendeu que o comandante devia ter aberto as válvulas de segurança de estibordo para fazer com que a embarcação afundasse na vertical, dando à tripulação mais chances de sobreviver. O Oklahoma, porém, não teve a mesma sorte e, com um misto de assombro e terror, os ocupantes da lancha viram o imenso navio começar a emborcar.

           – Ah, meu Deus, olhem a tripulação – disse Joanne.

           Atarantados, os marinheiros escalavam o convés agora muito íngreme e pulavam por cima da amurada de estibordo, numa tentativa desesperada de se salvar. No entanto, quando o imenso navio enfim virou de cabeça para baixo e começou a afundar, Chuck percebeu que aqueles eram os que tiveram mais sorte: quantas centenas de homens não estariam presos sob o convés?

           – Segurem-se! – gritou Chuck.

           Uma imensa onda gerada pelo naufrágio do Oklahoma se aproximava. Seu pai segurou sua mãe, e Woody segurou Joanne. A onda os atingiu e ergueu a lancha até uma altura inimaginável. Chuck titubeou, mas continuou a segurar a borda. A lancha não afundou. Ondas menores se seguiram, fazendo-os balançar, mas todos estavam a salvo.

           Ainda se encontravam a quase meio quilômetro da margem, constatou ele, consternado.

           Por incrível que parecesse, o Nevada, que fora metralhado logo no início, começou a se afastar. Alguém devia ter tido a presença de espírito de mandar todos os navios zarparem do porto. Se conseguissem sair, talvez pudessem se separar e se tornar alvos mais difíceis.

           Então um estrondo dez vezes mais potente que os outros ecoou da Fila dos Encouraçados. A explosão foi tão violenta que Chuck sentiu seu impacto como um golpe no peito, embora já estivesse a quase um quilômetro de distância. Chamas foram cuspidas da torre de tiro número 2 do Arizona. Uma fração de segundo depois, a metade anterior do navio pareceu explodir. Destroços saíram voando, e vigas de metal retorcido e placas deformadas se ergueram no ar em meio à fumaça com a mesma lentidão de um pesadelo, como pedaços de papel queimado numa fogueira. A parte da frente do navio foi engolfada por labaredas e fumaça. O mastro imponente tombou para a frente como um bêbado.

           – O que foi isso? – perguntou Woody.

           – O depósito de munição do navio deve ter explodido – respondeu Chuck, percebendo, com profunda tristeza, que centenas de seus companheiros da Marinha deviam ter morrido naquela detonação gigantesca.

           Uma coluna de fumaça vermelho-escura como a de uma pira funerária subiu pelos ares.

           Então ouviu-se um barulho bem alto de algo caindo, e a lancha deu um tranco ao ser atingida por alguma coisa. Todos se abaixaram. Chuck caiu de joelhos e pensou que devia ser uma bomba, depois percebeu que isso não era possível, pois ainda estava vivo. Quando conseguiu se recuperar, viu que um pesado fragmento de metal de um metro de comprimento tinha perfurado o convés da lancha logo acima do motor. Era um milagre não ter acertado ninguém.

           Mas o motor morreu.

           A lancha perdeu velocidade e parou. Ficou à deriva enquanto os aviões japoneses despejavam o fogo do inferno sobre a lagoa.

           – Chuck, temos que sair daqui agora – disse Gus, tenso.

           – Eu sei. – Chuck e Eddie examinaram o estrago. Tentaram remover o pedaço de metal do convés de madeira, mas viram que estava bem preso.

           – Não há tempo para isso! – exclamou Gus.

           – O motor já era mesmo, Chuck – disse Woody.

           Eles ainda estavam distantes da margem. No entanto, a lancha era equipada para uma emergência como aquela. Chuck soltou um par de remos e empunhou um deles. Eddie pegou o outro. A lancha era grande para ser conduzida a remo, e eles avançaram devagar.

           Para sua sorte, houve uma pausa no ataque. O céu não estava mais cheio de aviões. Imensas espirais de fumaça subiam dos navios atingidos, incluindo uma coluna de 300 metros de altura do Arizona, que sofrera danos irreparáveis. No entanto, não houve novas explosões. Dando mostras de uma determinação incrível, o Nevada agora seguia em direção à entrada do porto.

           A água em volta dos navios estava coalhada de botes salva-vidas, lanchas a motor e marinheiros nadando ou boiando agarrados a destroços. Afogar-se não era seu único temor: o combustível dos navios avariados tinha se espalhado pela superfície da lagoa e pegara fogo. Os gritos de socorro dos que não conseguiam nadar se misturavam aos dos queimados, formando uma sinfonia dantesca.

           Chuck olhou de relance para o relógio de pulso. Tinha a impressão de que o ataque já durava muitas horas, mas, para sua surpresa, apenas meia hora havia se passado.

           No exato instante em que ele pensava isso, teve início a segunda fase.

           Dessa vez, os aviões vieram do leste. Alguns foram atrás do Nevada, que tentava fugir. Outros elegeram como alvo o estaleiro da Marinha, onde os Dewar haviam embarcado na lancha. Quase na mesma hora, o destróier Shaw, que estava sobre um dique flutuante, explodiu em chamas e nuvens de fumaça. Mais óleo se espalhou pela água e pegou fogo. Então, no maior dos diques secos, o encouraçado Pennsylvania foi atingido. Dois destróieres que estavam no mesmo dique também voaram pelos ares quando seus depósitos de munição explodiram.

           Chuck e Eddie remavam com força e suavam como cavalos de corrida.

           No estaleiro, surgiram fuzileiros navais – sem dúvida vindos da caserna próxima –, que começaram a trazer equipamentos de combate a incêndio.

           Por fim, a lancha chegou ao Cais dos Oficiais. Chuck pulou no píer e amarrou rapidamente a embarcação, enquanto Eddie ajudava os outros a desembarcar. Todos correram até o carro.

           Chuck pulou para o banco do motorista e deu a partida no motor. O rádio ligou automaticamente e eles ouviram o locutor da KGMB dizer:

           – Todo o pessoal do Exército, da Marinha e da Aeronáutica deve se apresentar para o serviço imediatamente.

           O próprio Chuck não tivera oportunidade de se apresentar a ninguém, mas tinha certeza de que suas primeiras ordens seriam para garantir a segurança dos quatro civis que estavam sob seus cuidados, sobretudo porque entre eles havia duas mulheres e um senador.

           Assim que todos entraram, o carro partiu.

           A segunda onda do ataque parecia estar chegando ao fim. A maioria dos aviões japoneses se afastava do porto. Mesmo assim, Chuck dirigiu depressa: talvez ainda houvesse uma terceira onda.

           O portão principal do estaleiro estava aberto. Se não estivesse, ele teria se sentido tentado a arrebentá-lo.

           Não havia mais nenhum carro na rua.

           Chuck saiu em disparada do porto e seguiu pela rodovia Kamehameba. Quanto mais se afastasse de Pearl Harbor, mais segura estaria sua família, pensou.

           Foi então que viu um Zero sozinho vindo na sua direção.

           O avião voava baixo, seguindo a rodovia, e em poucos instantes Chuck percebeu que seu alvo era o carro.

           Os canhões do caça ficavam nas asas, e havia uma boa chance de os japoneses não conseguirem acertar o carro, que era um alvo estreito. As metralhadoras, porém, situavam-se bem próximas uma da outra, de ambos os lados da tampa do motor. Se o piloto fosse esperto, iria usá-las.

           Atarantado, Chuck olhou para os dois lados da estrada. Não havia nenhum esconderijo, nada além de canaviais.

           Começou a ziguezaguear com o carro. Inteligente, o piloto do avião não tentou acompanhá-lo. A estrada não era muito larga e, se Chuck entrasse no canavial, a velocidade do carro diminuiria radicalmente. Ao perceber que quanto mais rápido andasse, menos chances teria de ser alvejado, ele pisou fundo no acelerador.

           De repente era tarde demais para qualquer estratégia. O avião estava tão perto que Chuck pôde ver nas asas os furos negros redondos pelos quais saíam os tiros dos canhões. No entanto, conforme ele previra, o piloto começou a atacar com as metralhadoras, e os tiros levantaram poeira da estrada à sua frente.

           Chuck moveu o carro para a esquerda até o meio da estrada, e então, em vez de continuar na mesma direção, deu uma guinada para a direita. O piloto corrigiu o curso da aeronave. Balas atingiram o capô do carro. O para-brisa se espatifou. Eddie soltou um urro de dor e, no banco de trás, uma das mulheres gritou.

           Então o Zero desapareceu.

           O carro começou a ziguezaguear, descontrolado. Uma das rodas dianteiras devia ter sido danificada. Chuck lutou com o volante para tentar se manter na estrada. O veículo derrapou no asfalto, bateu na vegetação que margeava a estrada e parou com um solavanco.

           O motor começou a soltar chamas, e Chuck sentiu cheiro de gasolina.

           – Todo mundo para fora do carro! – berrou. – Antes que o tanque exploda!

           Ele abriu a porta do motorista e pulou para fora. Escancarou a porta traseira para que o pai saltasse, puxando sua mãe atrás dele. Viu os demais descendo pelo outro lado.

           – Corram! – gritou Chuck, mas não havia necessidade.

           Eddie já seguia para o canavial, mancando como se tivesse sido atingido. Woody meio puxava, meio carregava Joanne, que também parecia ferida. Seu pai e sua mãe, aparentemente ilesos, entraram no canavial às pressas. Ele foi atrás. Todos percorreram cerca de cem metros, então se jogaram no chão.

           Houve um instante de calmaria. O barulho dos aviões tinha virado um zumbido distante. Chuck olhou para o céu e viu a fumaça oleosa do porto se elevar a milhares de metros. Acima dela, os últimos poucos bombardeiros de grande altitude se afastavam rumo ao norte.

           Então ouviu-se um estrondo que feriu seus tímpanos. Mesmo de olhos fechados, ele pôde perceber o forte clarão do tanque de gasolina explodindo. Uma onda de calor passou por cima dele.

           Erguendo a cabeça, olhou para trás. O carro estava pegando fogo.

           Ele se levantou com um pulo.

           – Mãe! Você está bem?

           – Por milagre, estou ilesa – respondeu Rosa com calma enquanto seu pai a ajudava a ficar de pé.

           Chuck então correu os olhos pelo canavial à procura dos outros. Correu até Eddie, que estava sentado com o tronco ereto, segurando a coxa.

           – Você foi atingido?

           – Dói pra caralho – respondeu Eddie. – Mas não está sangrando muito. – Ele forçou um sorriso. – Acho que foi no alto da coxa, mas não atingiu nenhum órgão vital.

           – Vamos levá-lo para o hospital.

           Foi então que Chuck ouviu um som terrível.

           Seu irmão estava aos prantos.

           Woody chorava não como um bebê, mas como uma criança perdida: um lamento alto e cheio de soluços, de puro sofrimento.

           Na mesma hora Eddie entendeu que aquele era o som de um coração partido.

           Chuck correu até o irmão. Woody estava ajoelhado no chão, com o peito tremendo, a boca aberta e os olhos inundados de lágrimas. Seu terno de linho branco estava todo sujo de sangue, mas ele não se ferira. Entre um soluço e outro, gemia:

           – Não, não!

           Joanne estava deitada de costas no chão à sua frente.

           Chuck logo viu que ela estava morta. Seu corpo permanecia imóvel, e os olhos abertos tinham uma expressão vazia. A frente do vestido de algodão estampado com listras de cores alegres estava empapada de sangue vermelho-vivo, que já escurecia em alguns pontos. Chuck não conseguiu ver o ferimento, mas imaginou que ela tivesse levado um tiro no ombro que atingira a artéria axilar. A hemorragia a devia ter matado em poucos minutos.

           Não soube o que dizer.

           Os outros se aproximaram e se postaram ao seu lado: a mãe, o pai e Eddie. Rosa se ajoelhou no chão ao lado de Woody e o abraçou.

           – Pobrezinho do meu filho – falou, como se ele ainda fosse uma criança.

           Eddie passou o braço em volta dos ombros de Chuck e lhe deu um abraço discreto.

           Gus se ajoelhou junto ao corpo. Estendeu a mão e segurou a do filho mais velho.

           Os soluços de Woody se acalmaram um pouco.

           – Feche os olhos dela, Woody – disse o pai.

           A mão de Woody tremia. Com esforço, ele conseguiu estabilizá-la.

           Levou as pontas dos dedos em direção às pálpebras de Joanne.

           Então, com infinita delicadeza, fechou seus olhos.

 

                                                                                 CONTINUA 

 

                      

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