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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


IT, A COISA - P.2 / Stephen King
IT, A COISA - P.2 / Stephen King

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

O quarto de Georgie e a casa na rua Neibolt

 

Richard Tozier desliga o rádio, que estava tocando “Like a Virgin”, de Madonna, na WZON (uma estação que se declara “a roqueira estéreo AM de Bangor!” com uma espécie de frequência histérica), para no acostamento, desliga o motor do Mustang que o pessoal da Avis alugou para ele no aeroporto internacional de Bangor e sai. Ouve sua própria inspiração e expiração nos ouvidos. Ele viu uma placa que fez a pele em suas costas ficar toda arrepiada.

 

Ele anda até a frente do carro e coloca uma das mãos no capô. Ouve o motor estalando baixinho enquanto esfria. Ouve uma gralha gritar rapidamente e calar a boca. Há grilos. E no que diz respeito à trilha sonora, isso é tudo.

 

Ele viu a placa, passou por ela, e de repente está em Derry de novo. Depois de 25 anos, Richie “Boca de Lixo” Tozier voltou para casa. Ele...

 

 

 

 

Uma dor que queima penetra em seus olhos de repente e apaga seus pensamentos. Ele dá um gritinho estrangulado e leva as mãos até o rosto. A única vez que sentiu uma coisa remotamente parecida com essa queimação foi quando prendeu um cílio na lente de contato na faculdade, e isso foi em um olho só. Essa dor terrível é nos dois.

 

Antes que ele consiga alcançar metade do caminho até o rosto, a dor some.

 

Ele baixa a mão lentamente, pensativo, e olha para a autoestrada 7. Ele saiu da via expressa na saída Etna-Haven, querendo, por algum motivo que não entendia, não chegar pela via expressa, que ainda estava em construção na área de Derry quando ele e os pais tiraram a sujeira dessa cidadezinha estranha das solas dos sapatos e foram para o Meio-Oeste. Não, a via expressa teria sido mais rápida, mas teria sido errada.

 

Assim, ele dirigiu pela autoestrada 9 pelo ninho adormecido de prédios que era Haven Village, depois saiu para a autoestrada 7. E conforme seguiu, o dia ficou cada vez mais claro.

 

Agora, essa placa. Era do mesmo tipo de placa que marcava as fronteiras de mais de seiscentas cidades do Maine, mas como essa apertou seu coração!

 

Condado de

Penobscot

D

E

R

R

Y

Maine

 

Atrás dessa, uma placa da Elks, uma placa do Rotary Club e, completando a trindade, uma placa proclamando o fato de que OS LEÕES DE DERRY RUGEM PELO FUNDO UNIDO! Depois dessa, só há a autoestrada 7 de novo, seguindo em linha reta entre áreas de pinheiros e abetos. Nessa luz silenciosa do dia que se firma, essas árvores parecem tão sonhadoras quanto fumaça azul-acinzentada de cigarro presa no ar parado de um quarto fechado.

 

Derry, pensa ele. Derry, que Deus me ajude. Derry. Inacreditável.

 

Aqui está ele, na autoestrada 7. Oito quilômetros à frente, se o tempo ou um tornado não tiver derrubado nos anos que se passaram, está a fazenda Rhulin, onde a mãe comprava ovos e a maior parte dos legumes e verduras. Três quilômetros depois disso, a autoestrada 7 virava a estrada Witcham, e é claro que a estrada Witcham acaba virando a rua Witcham, digam aleluia por toda eternidade amém. E em algum lugar entre a fazenda Rhulin e a cidade, ele passaria pela casa dos Bowers e pela dos Hanlon. Um quilômetro e meio depois da dos Hanlon, ele veria o primeiro brilho do Kenduskeag e o primeiro trecho de verde venenoso: a área baixa que era conhecida por algum motivo como o Barrens.

 

Não sei se sou capaz de encarar tudo aquilo, pensa Richie. Vamos falar a verdade aqui, pessoal. Não sei se sou capaz.

 

A noite anterior inteira se passou como um sonho para ele. Enquanto ele continuou viajando, deslocando-se, percorrendo quilômetros, o sonho prosseguiu. Mas agora ele parou, ou melhor, a placa o fez parar, e ele despertou para uma verdade estranha: o sonho era realidade. Derry é a realidade.

 

Parece que ele não consegue parar de lembrar. Ele pensa que as lembranças vão acabar deixando-o maluco, e agora morde o lábio e junta as palmas das mãos, aperta-as, como se para se impedir de desmoronar. Ele sente que vai desabar, e logo. Parece haver uma parte louca dele que espera ansiosamente o que pode estar por vir, mas a maior parte só se pergunta como ele vai conseguir passar pelos dias a seguir. Ele...

 

E agora, seus pensamentos são interrompidos novamente.

 

Um cervo está andando pela estrada. Ele consegue ouvir o baque suave dos cascos no asfalto.

 

A respiração de Richie é interrompida no meio da expiração, depois recomeça lentamente. Ele olha boquiaberto, parte dele pensando que nunca viu nada assim na Rodeo Drive. Não, ele precisou voltar para casa para ver uma coisa assim.

 

É uma fêmea. Ela saiu do bosque à direita e faz uma pausa no meio da autoestrada 7, com as pernas da frente de um lado da linha branca pontilhada e as pernas de trás do outro. Os olhos escuros observam Rich Tozier pacificamente. Ele lê interesse naqueles olhos, mas não medo.

 

Ele olha para ela maravilhado, pensando que é um presságio, um prenúncio ou alguma espécie de merda de madame Azonka assim. E então, inesperadamente, a lembrança do sr. Nell volta à mente dele. Que susto ele deu nos garotos naquele dia, chegando logo depois das histórias de Bill, Ben e Eddie! O grupo todo quase todo pulou até o céu.

 

Agora, ao olhar para o cervo, Rich inspira e se vê falando com uma das Vozes... mas, pela primeira vez em 25 anos ou mais, é a voz do Policial Irlandês, uma que ele incorporou ao repertório depois daquele dia memorável. Ela sai rolando pelo silêncio da manhã como uma grande bola de boliche; sai mais alta e maior do que Richie jamais acreditaria.

 

— Je-sús Cristo de calça curta! Que confusão é essa que você está fazendo aqui, cervo? Je-sús Cristo! Vá pra casa antes que eu decida dedurar você pro padre O’Staggers.

 

Antes de os ecos terem morrido, antes de a primeira gralha em choque conseguir começar a chamar a atenção dele pelo sacrilégio, o cervo balança o rabo para ele como uma bandeira de trégua e desaparece nos abetos cinzentos do lado esquerdo da estrada, deixando uma pequena pilha de cocôs fumegantes para trás para mostrar que, mesmo aos 37 anos, Richie Tozier ainda é capaz de Mandar Bem de tempos em tempos.

 

Richie começa a rir. No começo, só com risinhos baixos, mas sua própria ridicularidade o surpreende, ali de pé sob a luz do amanhecer do Maine, a 5,5 mil quilômetros de casa, gritando com um cervo com sotaque de policial irlandês. As risadinhas viram uma série de risadas controladas, as risadas viram gargalhadas, as gargalhadas viram uivos, e ele acaba tendo que se segurar no carro enquanto lágrimas descem por seu rosto e ele se questiona rapidamente se vai mijar nas calças. Cada vez que começa a se controlar, ele olha para a pilha de cocôs e recomeça tudo de novo.

 

Ainda às gargalhadas, ele enfim consegue voltar para o banco do motorista e ligar o motor do Mustang. Um caminhão Orinco de fertilizante químico passa em uma rajada de vento. Depois que passa, Richie volta para a estrada e segue para Derry. Ele já se sente melhor, sob controle... ou talvez seja apenas o fato de estar em movimento de novo, percorrendo quilômetros, e o sonho ter se reafirmado.

 

Ele começa a pensar no sr. Nell de novo, no sr. Nell e naquele dia na represa. O sr. Nell perguntou a eles quem elaborou aquela gracinha. Ele consegue ver os cinco olhando com desconforto uns para os outros e lembra-se de como Ben acabou dando um passo à frente, com bochechas pálidas e olhar baixo, o rosto todo tremendo com a luta para não gaguejar. O pobre garoto deve ter achado que pegaria de cinco a dez anos em Shawshank por fazer os bueiros da rua Witcham transbordarem, Richie pensa agora, mas assumiu mesmo assim. E ao fazer isso, ele forçou o resto a se manifestar e apoiá-lo. Era isso ou se considerarem meninos ruins. Covardes. Todas as coisas que os heróis da TV não eram. E isso os uniu, para o bem ou para o mal. Aparentemente, os uniu pelos últimos 27 anos. Às vezes, acontecimentos são como dominós. O primeiro derruba o segundo, o segundo derruba o terceiro, e não tem mais volta.

 

Richie se pergunta quando ficou tarde demais para voltar atrás. Quando ele e Stan apareceram e começaram a ajudar na construção da barragem? Quando Bill contou que a foto escolar do irmão virou a cabeça e piscou? Talvez... mas para Rich Tozier, parece que os dominós só começaram mesmo a cair quando Ben Hanscom deu um passo à frente e disse: “Eu mostrei a eles

 

— ... como fazer. É culpa minha.

 

O sr. Nell apenas ficou olhando para ele, com os lábios apertados, as mãos no cinto de couro preto. Ele olhou para Ben e para a piscina atrás da represa, depois para Ben de novo, com o rosto de um homem que não consegue acreditar no que está vendo. Ele era um irlandês corpulento, com o cabelo prematuramente branco, penteado em ondas arrumadas por baixo do quepe azul. Seus olhos eram azul-claros, o nariz era vermelho. Havia pequenas redes de capilares estourados nas bochechas. Ele era um homem de altura mediana, mas para os cinco garotos de pé na frente dele, parecia ter pelo menos 2,5 metros .

 

O sr. Nell abriu a boca para falar, mas antes que pudesse, Bill Denbrough ficou de pé ao lado de Ben.

 

— F-F-F-Foi i-i-i-ideia m-m-mi-minha — ele conseguiu dizer. Ele inspirou fundo e, enquanto o sr. Nell olhava para ele impassível, com o sol reluzindo em seu distintivo, Bill conseguiu gaguejar o resto do que precisava dizer: não era culpa de Ben; Ben só tinha ido junto e mostrado como fazer melhor o que eles já estavam fazendo mal.

 

— Eu também — disse Eddie abruptamente, e foi para o outro lado de Ben.

 

— Que “eu também” é esse? — perguntou o sr. Nell. — Esse é seu nome ou seu endereço, vaqueiro?

 

Eddie ficou vermelho até a raiz dos cabelos.

 

— Eu estava com Bill antes mesmo de Ben chegar — disse ele. — Foi só isso que eu quis dizer.

 

Richie foi até o lado de Eddie. A ideia de que uma Voz ou duas podiam alegrar o sr. Nell um pouco, fazer com que tivesse pensamentos alegres, surgiu em sua cabeça. Pensando melhor (e pensar melhor era uma coisa extremamente rara para Richie, além de ser uma coisa maravilhosa), talvez uma Voz ou duas só fossem piorar as coisas. O sr. Nell não parecia estar com o que Richie às vezes via como um humor hahazento. Na verdade, parecia que hahas eram a última coisa na mente do sr. Nell. Então ele falou apenas “eu também participei” com voz baixa e se obrigou a calar a boca.

 

— E eu — disse Stan, indo ficar de pé ao lado de Bill.

 

Agora os cinco estavam na frente do sr. Nell, lado a lado. Ben olhou para um lado e para o outro, mais do que surpreso; ele estava quase estupefato por ter o apoio deles. Por um momento, Richie pensou que o velho Monte de Feno cairia no choro de gratidão.

 

— Je-sús — disse o sr. Nell de novo, e apesar de dar a impressão de profundamente enojado, pareceu que ele talvez fosse começar a gargalhar. — Nunca vi um bando mais infeliz de moleques. Se os pais de vocês soubessem onde vocês estão, acho que alguns iam ficar de bunda quente hoje. Pode ser mesmo que alguns fiquem.

 

Richie não conseguiu mais controlar; sua boca simplesmente se abriu e saiu correndo como o homem biscoito, como fazia com tanta frequência.

 

— Como estão as coisas no velho continente, sr. Nell? — disse ele. — Ah, o senhor é um colírio pros meus olhos, não tenha dúvida, é um homem lindo, um alívio...

 

— Vou ser um alívio pro seu traseiro em uns três segundos, meu querido amiguinho — disse o sr. Nell secamente.

 

Bill se virou para ele e rosnou:

 

— Pelo a-a-amor de D-D-Deus, R-R-Richie, ca-ca-cala a BOCA!

 

— Bom conselho, Mestre William Denbrough — disse o sr. Nell. — Aposto que Zack não sabe que você está aqui no Barrens brincando com os cocôs flutuantes, sabe?

 

Bill baixou os olhos e balançou a cabeça. Suas bochechas ficaram como rosas vermelhas.

 

O sr. Nell olhou para Ben.

 

— Não me lembro do seu nome, filho.

 

— Ben Hanscom, senhor — sussurrou Ben.

 

O sr. Nell assentiu e olhou para a represa de novo.

 

— Foi ideia sua?

 

— Como construir, foi. — O sussurro de Ben agora estava quase inaudível.

 

— Você é um tremendo engenheiro, garotão, mas não sabe porra nenhuma sobre o Barrens e sobre o sistema de drenagem de Derry, sabe?

 

Ben balançou a cabeça.

 

Não sem gentileza, o sr. Nell falou para ele:

 

— O sistema tem duas partes. Uma parte carrega os detritos humanos sólidos. Merda, se não for ofensa pros ouvidos jovens de vocês. A outra parte carrega água cinza, ou seja, água da descarga de vasos sanitários ou que desce pelos ralos de pias e máquinas de lavar e chuveiros; também é a água que desce pelos bueiros para os escoadouros.

 

“Você não causou problema nenhum na retirada de detritos sólidos, graças a Deus; tudo isso é jogado no Kenduskeag um pouco mais para baixo. Já deve haver alguns trechos bem empapados naquela direção, uns 800 metros abaixo, secando ao sol graças ao que vocês fizeram, mas você pode ter certeza de que não tem merda grudando no teto de ninguém por causa disso.

 

“Mas quanto à água cinza... bem, não tem bomba pra água cinza. Isso tudo desce morro abaixo no que os engenheiros chamam de escoamento por gravidade. E aposto que você sabe onde todos os escoamentos por gravidade terminam, não sabe, garotão?”

 

— Ali em cima — disse Ben. Ele apontou para a área atrás da represa, que eles tinham submergido quase toda. Ele fez isso sem erguer o olhar. Grandes lágrimas começaram a descer lentamente por suas bochechas. O sr. Nell fingiu não reparar.

 

— Isso mesmo, meu jovem e grande amigo. Todos os escoamentos por gravidade saem nos riachos que correm pelo alto do Barrens. Na verdade, muitos dos córregos que vêm pingando são apenas água cinza, saindo de escoadouros que você não consegue nem ver de tão enterrados que estão na vegetação. A merda vai pra um lado e o resto vai pro outro, que Deus abençoe o cérebro inteligente dos homens, e já cruzou a mente de vocês que vocês passaram o dia todo pisando no mijo e na água suja de Derry?

 

Eddie de repente começou a ofegar e precisou usar a bombinha.

 

— O que vocês fizeram foi provocar refluxo em filtros que servem a Witcham, a Jackson, a Kansas e quatro ou cinco outras pequenas ruas que passam entre elas. — O sr. Nell lançou um olhar seco para Bill Denbrough. — Um deles serve a sua casa, jovem senhor Denbrough. Então é assim que estamos, com pias que não escoam, com máquinas de lavar que não escoam, com canos vazando alegremente em porões...

 

Ben soltou um soluço seco e choroso. Os outros se viraram para ele e afastaram o olhar. O sr. Nell colocou a mão grande no ombro do garoto. Era calejada e dura, mas, naquele momento, também foi gentil.

 

— Pronto, pronto. Não precisa se aborrecer, garotão. Talvez não seja tão ruim, pelo menos ainda não. Pode ser que eu tenha exagerado só um pouquinho pra fazer vocês entenderem. Me mandaram aqui pra ver se uma árvore tinha caído no rio. Acontece de tempos em tempos. Não tem necessidade de nenhuma outra pessoa além de mim e vocês cinco sabermos que não foi isso. Temos coisas mais importantes com que nos preocuparmos na cidade esses dias, não um pequeno acúmulo de água. Vou dizer no meu relatório que descobri onde foi a queda e que alguns garotos apareceram e me ajudaram a afastar ela do caminho da água. Não que eu vá mencionar vocês pelo nome. Vocês não vão ser intimados por construírem uma represa no Barrens.

 

Ele observou os cinco. Ben estava secando furiosamente os olhos com o lenço; Bill estava olhando pensativo para a represa; Eddie estava segurando a bombinha em uma das mãos; Stan estava perto de Richie, com uma das mãos no braço dele, pronto para apertar com força se Richie desse algum sinal de ter qualquer coisa para dizer além de muito obrigado.

 

— Vocês não têm nada que brincar em um lugar sujo desses — prosseguiu o sr. Nell. — Deve ter uns sessenta tipos diferentes de doença se multiplicando aqui. O lixão fica de um lado, os riachos são cheios de xixi e água cinza, catarro e restos de comida, insetos e plantas, lama... vocês não têm nada que brincar num lugar assim. A cidade tem quatro parques limpos pra vocês jogarem bola o dia todo, e eu pego vocês aqui. Je-sús Cristo.

 

— N-N-Nós g-g-gostamos da-a-aqui — disse Bill de repente, desafiador. — Q-Quando b-b-brincamos aqui, n-n-ninguém se me-e-ete com a g-g-gente.

 

— O que ele disse? — perguntou o sr. Nell para Eddie.

 

— Ele disse que quando a gente brinca aqui, ninguém se mete com a gente — disse Eddie. Sua voz estava aguda e baixa, mas também inconfundivelmente firme. — E ele está certo. Quando garotos como a gente vão pro parque e dizem que querem jogar beisebol, os outros dizem claro, em que posição vocês querem jogar?

 

Richie gargalhou.

 

— Eddie Manda Bem! E... você conseguiu!

 

O sr. Nell virou a cabeça para olhar para ele.

 

Richie deu de ombros.

 

— Desculpa. Mas ele está certo. E Bill também está certo. Gostamos daqui.

 

Richie achou que o sr. Nell ficaria zangado de novo com isso, mas o policial de cabelo branco o surpreendeu, surpreendeu a todos, com um sorriso.

 

— É — disse ele. — Eu também gostava daqui quando garoto, gostava mesmo. E não vou proibir vocês. Mas prestem atenção no que estou dizendo. — Ele apontou um dedo para eles, e todos olharam com seriedade. — Se vocês vierem aqui brincar, venham em grupo como agora. Juntos. Entenderam?

 

Eles assentiram.

 

— Isso significa juntos o tempo todo. Nada de brincadeira de pique-esconde em que vocês se separam. Vocês todos sabem o que está acontecendo nesta cidade. Mesmo assim, não proíbo vocês de virem aqui, principalmente porque vocês viriam de qualquer jeito. Mas pro bem de vocês, aqui ou em qualquer outro lugar, fiquem juntos. — Ele olhou para Bill. — Você discorda de mim, jovem mestre Bill Denbrough?

 

— N-N-Não, senhor — disse Bill. — V-Vamos ficar j-j-jun...

 

— Pra mim, está bom — disse o sr. Nell. — Vamos apertar as mãos.

 

Bill esticou a mão e o sr. Nell a apertou.

 

Richie se soltou de Stan e deu um passo à frente.

 

— Não tenha dúvida, sr. Nell, o senhor é um príncipe entre os homens! Um homem de primeira! Um homem de primeiríssima! — Ele esticou a mão, segurou a mãozona do irlandês e a balançou furiosamente, sorrindo o tempo todo. Para o perplexo sr. Nell, o garoto parecia uma paródia terrível de Franklin D. Roosevelt.

 

— Obrigado, garoto — disse o sr. Nell, recolhendo a mão. — É melhor trabalhar um pouco nisso. Por enquanto, você fala com sotaque tão irlandês quanto Groucho Marx.

 

Os outros garotos riram, mais por alívio. Mesmo rindo, Stan lançou um olhar de reprovação para Richie: Cresça, Richie!

 

O sr. Nell apertou a mão de todos, sendo a de Ben a última;

 

— Você não tem nada do que ter vergonha além de uma avaliação ruim, garotão. Quanto àquilo... você aprendeu como fazer em um livro?

 

Ben balançou a cabeça.

 

— Descobriu sozinho?

 

— Sim, senhor.

 

— Macacos me mordam! Você vai fazer coisas grandiosas um dia, não tenho dúvida. Mas o Barrens não é lugar pra elas. — Ele olhou ao redor, pensativo. — Nenhuma coisa grandiosa vai ser feita aqui. É um lugar horrível. — Ele suspirou. — Derrubem, garotos. Apenas derrubem. Acho que vou me sentar naquela sombra e esperar vocês terminarem. — Ele olhou ironicamente para Richie ao falar, como se convidando outra explosão louca.

 

— Sim, senhor — disse Richie humildemente, e isso foi tudo.

 

O sr. Nell assentiu satisfeito, e os garotos começaram a trabalhar, mais uma vez se voltando para Ben, desta vez para que mostrasse a eles a forma mais rápida de destruir o que ele havia mostrado como construir. Enquanto isso, o sr. Nell pegou uma garrafa marrom dentro da jaqueta e deu um gole grande. Ele tossiu, expirou em um grande suspiro e observou os garotos com olhos úmidos e benevolentes.

 

— E o que tem na sua garrafa, senhor? — perguntou Richie do lugar onde estava, com água até os joelhos.

 

— Richie, você não consegue calar a boca nunca? — sibilou Eddie.

 

— Isto? — O sr. Nell olhou para Richie com surpresa controlada e olhou para a garrafa de novo. Não tinha nenhum tipo de etiqueta. — É o xarope pra tosse dos deuses, meu garoto. Agora vamos ver se você consegue trabalhar tão rápido quanto consegue mexer a boca.

 

Bill e Richie estavam andando pela rua Witcham juntos mais tarde. Bill estava empurrando Silver. Depois de primeiro construir e mais tarde destruir a barragem, ele não tinha a energia necessária para andar na bicicleta. Os dois garotos estavam sujos, desgrenhados e bem cansados.

 

Stan tinha perguntado se eles queriam ir até a casa dele jogar Monopólio ou Parcheesi ou alguma outra coisa, mas ninguém quis. Estava ficando tarde. Ben, parecendo cansado e deprimido, disse que ia para casa ver se alguém tinha devolvido seus livros da biblioteca. Ele tinha esperança disso, pois a biblioteca de Derry insistia em escrever o endereço de quem retirou o livro junto com o nome em cada cartão de retirada. Eddie disse que iria assistir The Rock Show na TV porque Neil Sedaka participaria, e ele queria ver se o cantor era negro. Stan disse para Eddie não ser idiota, Neil Sedaka era branco, dava para saber que ele era branco só de ouvi-lo. Eddie alegou que não dava para saber de nada só ouvindo; até o ano anterior, ele tinha certeza de que Chuck Berry era branco, mas quando ele apareceu em Bandstand, Eddie viu que era negro.

 

— Minha mãe ainda pensa que ele é branco, o que é uma coisa boa — disse Eddie. — Se ela descobrir que é negro, não vai me deixar mais ouvir as músicas dele.

 

Stan apostou quatro revistinhas que Neil Sedaka era branco, e os dois foram juntos para a casa de Eddie a fim de resolver a questão.

 

E aqui estavam Bill e Richie, seguindo em uma direção que os levaria para a casa de Bill depois de um tempo, e nenhum dos dois estava falando muito. Richie se viu pensando na história de Bill sobre a foto que virou a cabeça e piscou. E, apesar do cansaço, uma ideia lhe ocorreu. Era loucura... mas também era bem atraente.

 

— Billy, meu garoto — disse ele. — Vamos parar um pouco. Cinco minutos. Estou morto.

 

— Não d-d-dá — disse Bill, mas parou, colocou Silver cuidadosamente no gramado verde do Seminário Teológico, e os dois garotos se sentaram nos degraus largos de pedra que levavam até o prédio vitoriano vermelho.

 

— Que d-d-dia — disse Bill com tristeza. Havia manchas roxas embaixo dos olhos dele. Seu rosto parecia cansado e velho. — É melhor você ligar pra sua casa q-quando chegarmos na mi-minha. Pros seus p-pais não ficarem d-d-doidos.

 

— É. Pode apostar. Escuta, Bill...

 

Richie fez uma pausa por um momento, pensando na múmia de Ben, no leproso de Eddie e no que Stan quase contou para eles, fosse o que fosse. Por um momento, uma coisa surgiu em sua mente, uma coisa sobre aquela estátua de Paul Bunyan no City Center. Mas aquilo foi só um sonho, pelo amor de Deus.

 

Ele afastou os pensamentos irrelevantes e falou:

 

— Vamos pra sua casa, o que você acha? Dar uma olhada no quarto de Georgie. Quero ver aquela foto.

 

Bill olhou para Richie, chocado. Ele tentou falar, mas não conseguiu; ficou nervoso demais. Acabou balançando a cabeça violentamente.

 

Richie disse:

 

— Você ouviu a história de Eddie. E de Ben. Você acredita no que eles disseram?

 

— Não s-s-sei. Acho q-que eles d-d-devem ter vi-visto alguma c-coisa.

 

— É. Eu também. Todos os garotos que foram mortos aqui, acho que todos eles teriam histórias pra contar também. A única diferença entre Ben e Eddie e esses outros garotos é que Ben e Eddie não foram pegos.

 

Bill ergueu as sobrancelhas, mas não mostrou grande surpresa. Richie supusera que Bill chegaria à mesma conclusão sozinho. Ele não conseguia falar muito bem, mas não era burro.

 

— Pensa um pouco nisso, Big Bill — disse Richie. — Um cara poderia se vestir com roupa de palhaço pra matar crianças. Não sei por que iria querer fazer isso, mas ninguém sabe por que os loucos fazem as coisas que fazem, certo?

 

— Ce-e-erto.

 

— Certo. Não é muito diferente do Coringa em uma revistinha do Batman. — Richie ficava empolgado só de ouvir suas ideias em voz alta. Ele se perguntou rapidamente se estava tentando provar alguma coisa ou apenas lançando uma cortina de fumaça de palavras para poder ver aquele quarto, aquela foto. No final, não importava muito. No final, talvez só ver os olhos de Bill se iluminarem com empolgação fosse o bastante.

 

— M-M-Mas onde a fo-foto se enc-caixa?

 

— O que você acha, Billy?

 

Com voz baixa, sem olhar para Richie, Bill falou que achava que não tinha nada a ver com os assassinatos.

 

— Acho que foi o f-f-fantasma de Gi-Gi-Georgie.

 

— Um fantasma numa foto?

 

Bill assentiu.

 

Richie pensou sobre o assunto. A ideia de fantasmas não era problema nenhum para sua mente infantil. Ele tinha certeza de que existiam. Seus pais eram metodistas, e Richie ia à igreja todos os domingos, e às reuniões de quintas à noite da Juventude Metodista também. Ele já sabia muita coisa da Bíblia, e sabia que a Bíblia acreditava em todo tipo de coisa estranha. De acordo com a Bíblia, o próprio Deus era pelo menos um terço Espírito, e isso era apenas o começo. Dava para perceber que a Bíblia acreditava em demônios, porque Jesus tirou um bando deles de um cara. Demônias bem gostosas, na verdade. Quando Jesus perguntou ao cara qual era seu nome, os demônios responderam e disseram para Ele ir para a Legião Estrangeira. Ou alguma coisa assim. A Bíblia acreditava em bruxas, senão por que diria “A feiticeira não deixarás viver”? Algumas das coisas na Bíblia até eram melhores do que quadrinhos de terror. As pessoas eram fervidas em óleo ou penduradas como Judas Iscariotes; a história de quando o rei Acaz caiu da torre e todos os cachorros lamberam seu sangue; os assassinatos em massa de bebês que se seguiram ao nascimento de Moisés e Jesus Cristo; caras que saíam dos túmulos ou voavam; soldados que enfeitiçaram muros para derrubá-los; profetas que viam o futuro e lutavam com monstros. Tudo isso estava na Bíblia, e cada palavra era verdade; ao menos, era o que dizia o reverendo Craig, e era o que diziam os pais de Richie, e era o que dizia Richie. Ele estava perfeitamente disposto a aceitar a possibilidade da explicação de Bill; era a lógica que o perturbava.

 

— Mas você disse que ficou com medo. Por que o fantasma de George iria querer assustar você?

 

Bill passou a mão na boca e a secou. A mão estava tremendo de leve.

 

— E-Ele deve estar z-z-zangado co-co-comigo. Por m-mandar ele p-pra mo-o-orte. Foi minha c-c-culpa. Eu m-mandei ele pra rua com o b-b-b... — Ele não conseguiu formular a palavra, então balançou a mão no ar. Richie assentiu para mostrar que entendeu o que Bill queria dizer... mas não para indicar que concordava.

 

— Acho que não — disse ele. — Se você tivesse enfiado uma faca nas costas dele ou dado um tiro, seria diferente. Até se tivesse dado pra ele uma arma carregada que era do seu pai, ele tivesse ido brincar e acabasse dando um tiro nele mesmo. Mas não era uma arma, era só um barco. Você não queria machucar ele; na verdade — Richie ergueu um dedo e balançou na direção de Bill parecendo um advogado —, você só queria que o garoto se divertisse um pouco, certo?

 

Bill pensou no que aconteceu, pensou desesperadamente. O que Richie tinha acabado de dizer o fez sentir melhor em relação à morte de Georgie pela primeira vez em meses, mas havia uma parte dele que insistia com firmeza silenciosa que ele não devia se sentir melhor. É claro que foi sua culpa, insistia aquela parte dele; não completamente, talvez, mas pelo menos parcialmente.

 

Se não foi, como é que tem aquele lugar frio no sofá entre sua mãe e seu pai? Se não foi, como ninguém fala mais nada na mesa do jantar? Agora são apenas garfos e facas batendo até você não aguentar mais e pedir l-l-licença, por favor.

 

Era como se ele fosse o fantasma, uma presença que falava e se movia, mas não era ouvida nem vista, uma coisa sentida vagamente, mas ainda não aceita como real.

 

Ele não gostava da ideia de que tinha culpa, mas a única alternativa na qual ele conseguia pensar para explicar o comportamento deles era bem pior: que todo o amor e atenção que os pais deram a ele antes foram resultado da presença de George e, sem George, não havia nada para ele... e tudo isso aconteceu aleatoriamente, sem motivo nenhum. E se você colocasse o ouvido nessa porta, dava para ouvir os ventos da loucura soprando lá dentro.

 

Assim, ele refletiu sobre o que tinha feito, sentido e dito no dia em que Georgie morreu, parte dele torcendo para o que Richie falou ser verdade, parte dele torcendo com a mesma intensidade para que não fosse. Ele não era um irmão mais velho santo, isso era certo. Eles brigaram, e muitas vezes. Devem ter brigado naquele dia, não?

 

Não. Briga nenhuma. Primeiro, porque o próprio Bill ainda estava se sentindo mal demais para ter uma boa briga com George. Ele estava dormindo, sonhando alguma coisa, sonhando com

 

(uma tartaruga)

 

algum animalzinho engraçado, ele não conseguia lembrar qual, e acordou com o som da chuva diminuindo lá fora e George resmungando sozinho com tristeza na sala de jantar. Ele perguntou a George qual era o problema. George entrou no quarto e disse que estava tentando fazer um barco de papel seguindo as instruções de seu livro de atividades, mas sempre ficava errado. Bill falou para George pegar o livro. E sentado ao lado de Richie, nos degraus que levavam ao seminário, ele se lembrou de como os olhos de Georgie se iluminaram quando o barco de papel ficou certo, e no quanto aquela expressão o fez se sentir bem, como se George o achasse fodão mesmo, um cara bom, o sujeito que era capaz de tentar até acertar. Que o fez se sentir, em resumo, um irmão mais velho.

 

O barco matou George, mas Richie estava certo; não era a mesma coisa do que dar a George uma arma carregada para brincar. Bill não sabia o que aconteceria. Não havia como.

 

Ele inspirou fundo, tremendo, sentindo alguma coisa como uma pedra, uma coisa que ele nem sabia que estava lá, sair de seu peito. De repente, sentiu-se melhor, melhor com relação a tudo.

 

Ele abriu a boca para dizer isso a Richie e acabou caindo no choro.

 

Alarmado, Richie passou o braço pelos ombros de Bill (depois de dar uma olhada rápida ao redor para ter certeza de que ninguém que pudesse os confundir com um casal de bichas estivesse olhando).

 

— Você está bem — disse ele. — Você está bem, Billy, né? Vamos lá. Desliga a torneirinha.

 

— Eu não q-q-queria q-que ele mo-o-orresse! — soluçou Bill. — N-NÃO ESTAVA N-NA MI-MINHA C-C-CABEÇA!

 

— Meu Deus, Billy, eu sei que não — disse Richie. — Se você quisesse dar fim nele, teria empurrado da escada, sei lá. — Richie bateu desajeitado no ombro de Bill e deu um abraço forte antes de soltá-lo. — Vamos lá, para de chorar, tá? Você parece um bebê.

 

Pouco a pouco, Bill parou. Ele ainda estava sentindo dor, mas essa dor parecia mais limpa, como se ele tivesse se cortado e tirado uma coisa que estava apodrecendo dentro dele. E a sensação de alívio ainda estava lá.

 

— Eu n-não q-queria que ele m-m-morresse — repetiu Bill —, e s-se vo-vo-você c-contar pra alguém q-que eu ch-chorei, v-vou q-quebrar seu na-nariz.

 

— Não vou contar — disse Richie —, não se preocupe. Ele era seu irmão, caramba. Se meu irmão morresse, eu ia chorar até a cabeça explodir.

 

— V-V-Você n-não tem irm-mão.

 

— É, mas se tivesse.

 

— V-Você ia?

 

— Claro. — Richie fez uma pausa, avaliou Bill com cautela e tentou decidir se ele tinha superado a crise. Ele ainda estava secando os olhos vermelhos com o trapo de meleca, mas Richie decidiu que achava que sim. — Eu só quis dizer que não sei por que George iria querer te assombrar. Então quem sabe a foto tem alguma coisa a ver com... bem, com aquele outro. O palhaço.

 

— D-De re-re-repente Gi-Gi-George n-n-não s-sabe. De repente ele p-p-pensa...

 

Richie entendeu o que Bill estava tentando dizer e afastou o pensamento com um gesto.

 

— Depois que você bate as botas, sabe tudo que as pessoas já pensaram sobre você, Big Bill. — Ele falou com o ar indulgente de um grande professor corrigindo as ideias insensatas de um caipira. — Está na Bíblia. Ela diz: “Sim, apesar de não conseguirmos ver muito no espelho agora, veremos através dele como se fosse uma janela depois da morte.” Está na Primeira Epístola aos Tessalonicenses ou na Segunda aos Babilônios, esqueci qual. Significa...

 

— E-Entendi o q-que s-s-significa — disse Bill.

 

— O que você diz então?

 

— Hã?

 

— Vamos pro quarto dele dar uma olhada. Quem sabe a gente consegue uma pista de quem está matando as crianças.

 

— Estou c-com m-m-medo.

 

— Eu também — disse Richie, pensando que era mais areia, alguma coisa a dizer para fazer Bill se mexer, e então uma coisa pesada se revirou em suas entranhas e ele descobriu que era verdade: estava roxo de medo.

 

Os dois garotos entraram na casa da família Denbrough como fantasmas.

 

O pai de Bill ainda estava no trabalho. Sharon Denbrough estava na cozinha, lendo um livro à mesa. O cheiro do jantar, bacalhau, chegava ao saguão da frente. Richie ligou para casa, para sua mãe saber que ele não estava morto, só estava na casa de Bill.

 

— Tem alguém aí? — gritou a sra. Denbrough quando Richie colocou o telefone no gancho. Os dois ficaram imóveis e se entreolharam com culpa. E então, Bill gritou:

 

— E-Eu, mãe. E R-R-R-R-R...

 

— Richie Tozier, senhora — gritou Richie.

 

— Oi, Richie — gritou a sra. Denbrough em resposta, com a voz desligada, quase ausente. — Quer ficar pro jantar?

 

— Obrigado, senhora, mas minha mãe vem me pegar em meia hora.

 

— Diga que mandei um oi, certo?

 

— Pode deixar, senhora, eu digo.

 

— V-Vem — sussurrou Bill. — Chega de c-conversinha.

 

Eles subiram a escada e seguiram pelo corredor até o quarto de Bill. Era arrumado no estilo de um garoto, o que queria dizer que teria dado à mãe do garoto em questão apenas uma dor de cabeça mediana ao olhar. As prateleiras estavam lotadas com coleções de livros e quadrinhos. Havia mais quadrinhos, alguns modelos, brinquedos e uma pilha de discos de 45 rotações sobre a escrivaninha. Havia também uma velha máquina de escrever Underwood sobre ela. Os pais tinham lhe dado de Natal dois anos antes, e Bill às vezes escrevia histórias nela. Ele fazia isso com um pouco mais de frequência desde a morte de George. O fingimento parecia acalmar sua mente.

 

Havia uma vitrola no chão em frente à cama com uma pilha de roupas dobradas empilhadas sobre a tampa. Bill colocou as roupas nas gavetas da cômoda e pegou os discos na escrivaninha. Procurou entre eles e separou uns seis. Ele colocou-os no pino grosso da vitrola e ligou o aparelho. The Fleetwoods começou a cantar “Come Softly Darling”.

 

Richie apertou o nariz.

 

Bill sorriu apesar do coração disparado.

 

— E-Eles n-não g-g-gostam de rock-and-r-roll — disse ele. — Me de-deram esse d-de aniversário. E dois d-discos de P-Pat B-B-Boone e T-T-Tommy Sands. Guardo L-L-Little R-Richard e S-Screaming J-Jay Hawkins pra quando eles não estão aq-qui. Mas se ela ouvir a m-m-música, vai pe-pensar que estamos n-no m-meu quarto. V-Vem.

 

O quarto de George ficava do outro lado do corredor. A porta estava fechada. Richie olhou para ela e lambeu os lábios.

 

— Não deixam trancada? — sussurrou ele para Bill. De repente, viu-se torcendo para estar trancada. De repente, estava tendo dificuldade em acreditar que isso tinha sido ideia dele.

 

Bill, com rosto pálido, balançou a cabeça e girou a maçaneta. Ele entrou e olhou para trás, para Richie. Depois de um momento, Richie foi atrás. Bill fechou a porta, abafando o som do The Fleetwoods. Richie deu um pulinho ao ouvir a maçaneta estalando.

 

Ele olhou ao redor, com medo e intensamente curioso ao mesmo tempo. A primeira coisa que reparou foi na secura mofada do ar. Ninguém abre nem uma janela aqui há muito tempo, pensou ele. Droga, ninguém respira aqui há muito tempo. É essa a sensação de verdade. Ele tremeu um pouco com esse pensamento e lambeu os lábios de novo.

 

Seus olhos seguiram para a cama, e ele pensou em George dormindo agora debaixo de um edredom de terra no cemitério Mount Hope. Apodrecendo lá. Com as mãos não unidas, porque você precisava ter duas para fazer o gesto das mãos unidas no peito, e George foi enterrado só com uma.

 

Um som baixo escapou da garganta de Richie. Bill se virou e olhou para ele com curiosidade.

 

— Você está certo — disse Richie com voz rouca. — É assustador aqui. Não sei como você conseguiu aguentar entrar sozinho.

 

— E-Ele era m-meu irmão — disse Bill simplesmente. — Às v-vezes eu q-q-quero, só isso.

 

Havia pôsteres nas paredes, pôsteres de garoto pequeno. Um mostrava Tom Terrific, o personagem animado do programa do Captain Kangaroo. Tom estava dando uma cambalhota e segurando as mãos de Crabby Appleton, que era, é claro, Podre até o Caroço. Outro mostrava os sobrinhos do Pato Donald, Huguinho, Zezinho e Luizinho, marchando para a selva com os bonés de escoteiro de pele de guaxinim. Um terceiro, que o próprio George tinha colorido, mostrava Mr. Do controlando o trânsito de forma que um grupo de criancinhas indo para a escola pudesse atravessar a rua. MR. DO MANDA ESPERAR O GUARDA PARA ATRAVESSAR!, dizia a legenda.

 

O garoto não conseguia nem pintar dentro das linhas, pensou Richie, depois tremeu. O garoto também nunca iria melhorar nisso. Richie olhou para a mesa ao lado da janela. A sra. Denbrough tinha colocado todos os boletins de George ali, entreabertos. Ao olhar para eles, sabendo que jamais haveria outros, sabendo que George tinha morrido antes mesmo de conseguir pintar dentro das linhas, sabendo que a vida dele tinha terminado irrevogável e eternamente com apenas aqueles poucos boletins do jardim e do primeiro ano, toda a verdade idiota da morte bateu com tudo na cara de Richie pela primeira vez. Foi como se um cofre grande de ferro tivesse caído em seu cérebro e afundado lá. Eu poderia morrer!, gritava sua mente com ele de repente, em tons de horror traído. Qualquer pessoa poderia! Qualquer pessoa poderia!

 

— Cara, ah, cara — disse ele com voz trêmula. Ele não conseguia falar mais nada.

 

— É — disse Bill em um quase sussurro. Ele se sentou na cama de George. — Olha.

 

Richie seguiu o dedo esticado de Bill e viu o álbum de fotos caído no chão, fechado. MINHAS FOTOGRAFIAS, leu Richie. GEORGE ELMER DENBROUGH, 6 ANOS.

 

Seis anos!, gritou sua mente nos mesmos tons de pura traição. Seis anos para sempre! Qualquer pessoa poderia! Merda! Qualquer porra de pessoa!

 

— Estava a-a-aberto — disse Bill. — A-Antes.

 

— Então ele se fechou — disse Richie com desconforto. Ele se sentou na cama ao lado de Bill e olhou para o álbum de fotos. — Muitos livros se fecham sozinhos.

 

— As p-p-páginas, talvez, mas n-não a c-c-capa. Ela se f-fechou sozinha. — Ele olhou para Richie com seriedade, com olhos muito escuros no rosto pálido e cansado. — M-Mas ele q-quer que v-você o a-abra de no-novo. É o que eu a-acho.

 

Richie se levantou e andou lentamente até o álbum de fotografias. Estava embaixo de uma janela coberta com cortinas leves. Ao olhar para fora, ele viu a macieira no quintal dos Denbrough. Um balanço ia lentamente para a frente e para trás, pendurado em um galho preto e retorcido.

 

Ele olhou para o álbum de George de novo.

 

Uma mancha seca marrom coloria a lateral das páginas no meio do livro. Podia ser ketchup velho. Claro; era bem fácil ver George olhando para o álbum de fotos enquanto comia um cachorro-quente ou um hambúrguer cheio de molho. Ele dá uma mordida e um pouco de ketchup cai no álbum. Crianças pequenas sempre faziam coisas retardadas assim. Podia ser ketchup. Mas Richie sabia que não era.

 

Ele tocou rapidamente no álbum e afastou a mão. Estava frio. Estava em um lugar sob forte luz do sol de verão, apenas levemente filtrada pelas cortinas leves, e teria captado a luz o dia todo, mas estava frio.

 

Vamos deixar ele em paz, pensou Richie. Não quero olhar mesmo pra esse álbum idiota, ver um monte de gente que não conheço. Acho que vou dizer pro Bill que mudei de ideia e que podemos ir pro quarto dele ler quadrinhos por um tempo, depois vou pra casa jantar e dormir cedo porque estou bem cansado, e quando eu acordar amanhã de manhã, vou ter certeza de que era só ketchup. É isso que vou fazer. Sim, senhor.

 

Assim, ele abriu o álbum com mãos que pareciam a mil quilômetros de distância do corpo, no final de longos braços de plástico, e olhou para os rostos e lugares no álbum de George, as tias, os tios, os bebês, as casas, os velhos Fords e Studebakers, os fios telefônicos, as caixas de correio, as cercas brancas, as marcas de pneus com água lamacenta, a roda-gigante na feira do condado de Esty, a Torre de Água, as ruínas da Siderúrgica Kitchener...

 

Seus dedos viraram mais e mais rápido as páginas, e de repente elas estavam em branco. Ele virou de volta, sem querer, mas incapaz de se impedir. Aqui estava uma foto do centro de Derry, da rua Main e da rua Canal de cerca de 1930, e depois dela não havia nada.

 

— Não tem foto escolar de George aqui — disse Richie. Ele olhou para Bill com uma mistura de alívio e exasperação. — Que tipo de peça você queria me pregar, Big Bill?

 

— O q-q-quê?

 

— Essa foto antiga do centro é a última do álbum. Todas as outras páginas estão vazias.

 

Bill levantou da cama e foi até Richie. Olhou para a foto do centro de Derry como era quase trinta anos antes, com carros e caminhões antiquados, postes de luz velhos com amontoados de globos como grandes uvas brancas, pedestres ao lado do canal pegos em meio à caminhada pelo clique de uma lente. Virou a página e, como Richie havia dito, não havia nada.

 

Não, espere... não exatamente nada. Havia uma cantoneira, do tipo que se usava para prender as fotos.

 

— E-E-Estava aqui — disse ele, e bateu na cantoneira. — O-Olha.

 

— Caramba! O que você acha que aconteceu com ela?

 

— Eu n-não s-s-sei.

 

Bill tinha tirado o álbum da mão de Richie e agora estava segurando-o no colo. Ele voltou as páginas em busca da foto de George. Desistiu depois de um minuto, mas as páginas, não. Elas viraram sozinhas, devagar mas com firmeza, com grandes e deliberados sons de movimento. Bill e Richie se entreolharam, espantados, depois se voltaram para o álbum.

 

Ele finalmente chegou na última foto de novo, e as páginas pararam de virar. Aqui estava o centro de Derry em tons de sépia, a cidade como era bem antes de Bill e Richie nascerem.

 

— Puts! — disse Richie de repente, e pegou o álbum da mão de Bill. Não havia medo na voz dele agora, e seu rosto estava tomado de espanto. — Puta merda!

 

— O q-quê? O que a-aconteceu?

 

— Nós! É isso que aconteceu! Minha nossa senhora, olha!

 

Bill segurou um lado do álbum. Inclinados sobre ele, compartilhando-o, eles pareciam garotos em um coral. Bill inspirou de repente, e Richie soube que também tinha visto.

 

Presos sob a superfície brilhosa da velha foto em preto e branco, dois garotos pequenos andavam pela rua Main na direção do ponto em que a Main e a Center se cruzavam, o ponto em que o canal passava a ser subterrâneo por pouco mais de 2 quilômetros. Os dois garotos apareciam claramente em frente ao muro baixo de concreto na lateral do canal. Um estava de calção. O outro usava uma roupa que quase parecia de marinheiro. Usava um boné de tweed na cabeça. Eles estavam virados com três quartos de perfil em direção à câmera, olhando para alguma coisa do outro lado da rua. O garoto de calção era Richie Tozier, sem dúvida nenhuma. E o garoto de roupa de marinheiro e boné de tweed era Bill Gago.

 

Eles olharam para si mesmos em uma foto quase três vezes mais velha que eles, hipnotizados. O interior da boca de Richie de repente ficou seco como poeira e liso como vidro. Alguns passos à frente dos garotos na foto havia um homem segurando a aba do chapéu, com o sobretudo congelado para sempre voando atrás dele em uma rajada súbita de vento. Havia Fords Modelo T nas ruas, um Pierce-Arrow, Chevrolets com degraus embaixo da porta para embarque.

 

— N-N-N-Não ac-credito... — Bill começou a dizer, e foi aí que a foto começou a se mover.

 

O Modelo T que deveria ter ficado eternamente no meio do cruzamento (ou pelo menos até os produtos químicos da velha foto se dissolverem completamente) passou por ele, com uma névoa de fumaça saindo do escapamento. Seguiu na direção da colina Up-Mile. Uma pequena mão branca saiu pela janela do motorista e sinalizou que entraria à esquerda. Ele entrou na rua Court e passou pela borda branca da foto, para fora do campo de visão.

 

O Pierce-Arrow, os Chevrolets, os Packards... todos começaram a andar atrás, seguindo caminhos separados no cruzamento. Depois de 28 anos, a beirada do sobretudo do homem finalmente terminou o movimento sob o vento. Ele enfiou o chapéu com mais firmeza na cabeça e seguiu em frente.

 

Os dois garotos terminaram de virar, ficando totalmente de frente, e um momento depois Richie viu que eles estavam olhando para um cachorro sarnento que andava pela rua Center. O garoto de roupa de marinheiro, Bill, levou dois dedos até o canto da boca e assobiou. Perplexo muito além de sua capacidade de se mover e pensar, Richie percebeu que conseguia ouvir o assobio, conseguia ouvir os motores irregulares como máquinas de costura dos carros. Os sons eram baixos, como sons ouvidos através de vidro grosso, mas estavam lá.

 

O cachorro olhou para os dois garotos, depois seguiu andando. Os garotos trocaram um olhar e caíram na gargalhada, com vozes agudas. Eles continuaram andando, e então o Richie de calção segurou Bill pelo braço e apontou para o canal. Eles se viraram naquela direção.

 

Não, pensou Richie, não façam isso, não...

 

Eles foram até o muro baixo de concreto, e de repente o palhaço surgiu atrás como um boneco horrível saindo de uma caixa, um palhaço com o rosto de George Denbrough, com o cabelo penteado para trás, a boca com um sorriso medonho cheio de tinta manchada, olhos de buracos negros. Uma das mãos segurava três balões com barbante. Ele esticou a outra para o garoto de roupa de marinheiro e segurou seu pescoço.

 

— NA-NA-NÃO! — gritou Bill, e esticou a mão para a foto.

 

Esticou a mão para dentro da foto.

 

— Para, Bill! — gritou Richie, e esticou a mão para segurá-lo.

 

Quase foi tarde demais. Ele viu as pontas dos dedos de Bill entrarem pela superfície da foto, naquele outro mundo. Viu as pontas dos dedos passarem do rosado quente de pele viva à mumificada cor creme que era o branco das fotos velhas. Ao mesmo tempo, ficaram pequenos e desconectados. Era como a peculiar ilusão de ótica que se vê ao enfiar a mão em uma tigela de vidro cheia de água: a parte da mão debaixo da água parece estar flutuando, desencorpada, a centímetros da parte que ainda está fora da água.

 

Uma série de cortes diagonais surgiu nos dedos de Bill no ponto em que deixaram de ser os dedos dele e passaram a ser dedos da foto; era como se ele tivesse enfiado as mãos nas pás de um ventilador em vez de em uma foto.

 

Richie segurou o antebraço dele e deu um grande puxão. Os dois caíram. O álbum de George bateu no chão e se fechou com um estalo seco. Bill enfiou os dedos na boca. Lágrimas de dor surgiram em seus olhos. Richie conseguia ver sangue escorrendo pela palma até o pulso em filetes.

 

— Deixa eu ver — disse ele.

 

— D-Dói — disse Bill.

 

Ele esticou a mão para Richie, com a palma para baixo. Havia cortes parecendo uma escada pelo indicador, dedo médio e anelar. O mindinho mal tinha tocado na superfície da foto (se é que ela tinha uma superfície), e apesar de o dedo não ter sido cortado, Bill disse para Richie depois que a unha tinha sido cortada, como se por uma tesoura de manicure.

 

— Meu Deus, Bill — disse Richie. Band-aids. Era só nisso que ele conseguia pensar. Deus, eles tiveram sorte. Se ele não tivesse puxado o braço de Bill naquele momento, seus dedos podiam ter sido amputados em vez de estarem apenas com cortes feios. — Temos que ajeitar isso. Sua mãe pode...

 

— N-N-Não se p-preocupe com m-minha m-mãe — disse Bill. Ele pegou o álbum de foto, e gotas de sangue caíram no chão.

 

— Não abre isso de novo! — gritou Richie, apertando freneticamente o ombro de Bill. — Jesus Cristo, Billy, você quase perdeu seus dedos!

 

Bill o afastou. Ele virou as páginas, e havia uma determinação macabra em seu rosto que assustou Richie mais do que qualquer outra coisa. Os olhos de Bill pareciam quase loucos. Os dedos feridos marcaram o álbum de George com sangue novo. Ainda não parecia ketchup, mas quando o sangue tivesse tempo de secar, pareceria. Sem dúvida.

 

E ali estava a foto do centro de novo.

 

O Modelo T estava no meio do cruzamento. Os outros carros estavam congelados nos mesmos lugares de antes. O homem andando na direção do cruzamento segurava a aba do chapéu; o casaco mais uma vez voava no vento.

 

Os dois garotos tinham sumido.

 

Não havia garoto nenhum nessa foto. Mas...

 

— Olha — sussurrou Richie, e apontou. Ele teve o cuidado de manter a ponta do dedo longe da foto. Um arco aparecia logo acima da beirada do muro baixo de pedra do canal, a parte de cima de uma coisa redonda.

 

Uma coisa que parecia um balão.

 

Eles saíram do quarto de George bem na hora. A mãe de Bill era uma voz no pé da escada e uma sombra na parede.

 

— Vocês estão lutando, meninos? — perguntou ela com intensidade. — Ouvi um baque.

 

— Só um p-p-pouco, m-mãe. — Bill olhou para Richie. Fica quieto, dizia o olhar.

 

— Quero que parem. Achei que o teto ia cair na minha cabeça.

 

— T-Tá bom.

 

Eles a ouviram voltar para a frente da casa. Bill tinha enrolado o lenço na mão, que ainda sangrava. O lenço estava ficando vermelho e a qualquer momento começaria a pingar. Os garotos foram até o banheiro, onde Bill colocou a mão debaixo da torneira até o sangramento parar. Limpos, os cortes pareciam finos, mas muito fundos. Olhar para as beiradas brancas e para a carne vermelha dentro fez Richie ficar enjoado. Ele os enrolou com band-aids o mais rápido que conseguiu.

 

— D-D-Dói pra diabos — disse Bill.

 

— Por que você foi colocar a mão lá, seu merda?

 

Bill olhou com seriedade para os anéis de band-aid nos dedos e depois para Richie.

 

— E-E-Era o p-palhaço — disse ele. — E-Era o p-palhaço fingindo ser Gi-Gi-George.

 

— Isso mesmo — disse Richie. — Assim como era o palhaço fingindo ser a múmia quando Ben viu. Como era o palhaço fingindo ser o mendigo doente quando Eddie viu.

 

— O le-le-leproso.

 

— Isso.

 

— Mas é m-mesmo um p-p-palhaço?

 

— É um monstro — disse Richie com voz séria. — Algum tipo de monstro. Algum tipo de monstro bem aqui em Derry. E está matando crianças.

 

Em um sábado, não muito tempo depois do incidente da represa no Barrens, do sr. Nell e da foto que se mexeu, Richie, Ben e Beverly Marsh ficaram cara a cara não com um monstro, mas dois, e pagaram por isso. Ao menos, Richie pagou. Esses monstros eram assustadores, mas não realmente perigosos; eles perseguiam as vítimas nas telas do Cinema Aladdin enquanto Richie, Ben e Bev assistiam do balcão.

 

Um dos monstros era um lobisomem, interpretado por Michael Landon, e ele era legal porque, mesmo quando era o lobisomem, ainda tinha uma espécie de corte de cabelo com topete. O outro era uma máquina viva, interpretado por Gary Conway. Ele foi trazido de volta à vida por um descendente de Victor Frankenstein, que deu todas as partes de que não precisava para um bando de crocodilos que tinha no porão. Também no programa: um cinejornal que mostrava a mais recente moda em Paris e as explosões de foguetes em Cabo Canaveral; dois desenhos da Warner Brothers; um desenho do Popeye e um desenho do Picolino (por algum motivo, o chapéu do Picolino sempre fazia Richie morrer de rir); e PRÉVIAS DE FUTURAS ATRAÇÕES. As futuras atrações incluíam dois filmes que Richie imediatamente colocou na lista dos que queria assistir: Casei-me com um monstro e A bolha assassina.

 

Ben ficou muito calado durante a sessão. O velho Monte de Feno quase tinha sido visto por Henry, Arroto e Victor mais cedo, e Richie supôs que era isso que o perturbava. Mas Ben já tinha esquecido os calhordas (eles estavam sentados perto da tela no andar de baixo, jogando caixas de pipoca uns nos outros e gritando). Beverly era o motivo do silêncio dele. A proximidade dela era algo tão intenso que ele quase estava se sentindo mal. Seu corpo ficava todo arrepiado e, se ela ao menos se mexesse na cadeira, sua pele ficava quente, como se com febre. Quando a mão dela roçou nele à procura de pipoca, ele tremeu de exultação. Depois, pensou que aquelas três horas no escuro ao lado de Beverly foram as mais longas e mais curtas de sua vida.

 

Richie, sem saber que Ben estava entregue aos devaneios do amor juvenil, se sentia muito bem, obrigado. Na opinião dele, a única coisa melhor do que uns filmes E... o mulo falou eram filmes de terror em um cinema cheio de crianças, todas gritando e berrando nas partes nojentas. Ele não fez nenhuma ligação entre o que acontecia nos dois filmes de baixo orçamento da American-International a que eles estavam assistindo e o que estava se passando na cidade... não naquele momento, pelo menos.

 

Ele tinha visto o anúncio da Maratona Dupla de Horror na Matinê de Sábado no Derry News na sexta de manhã e esqueceu quase imediatamente o quanto tinha dormido mal na noite anterior, e também que acabou se levantando para acender a luz dentro do armário, o tipo de coisa que se faz para acalmar bebês. E que não conseguiu pregar o olho até fazer isso. Mas na manhã seguinte, as coisas pareceram normais de novo... bem, quase. Ele começou a pensar que talvez ele e Bill tivessem compartilhado uma alucinação. É claro que os cortes nos dedos de Bill não eram alucinação, mas talvez tenham sido cortes de papel feitos por algumas das folhas do álbum de George. O papel era bem grosso. Era possível. Talvez. Além do mais, não havia lei que dizia que ele tinha que passar dez anos pensando no assunto, havia? Não.

 

E assim, depois de uma experiência que poderia ter feito um adulto sair correndo atrás do psicólogo mais próximo, Richie Tozier se levantou, comeu um monte de panquecas no café da manhã, viu o anúncio dos dois filmes de terror na página de diversões do jornal, verificou seu dinheiro, viu que não tinha muito (bem... “nenhum” podia ser uma palavra melhor) e começou a perturbar o pai para lhe passar tarefas.

 

O pai, que já tinha ido para a mesa usando o jaleco de dentista, colocou a seção de esportes do jornal sobre a mesa e se serviu de uma segunda xícara de café. Ele era um homem de aparência agradável com rosto um tanto estreito. Usava óculos com armação de aço, estava ficando careca no alto da cabeça e morreria de câncer na laringe em 1973. Ele olhou para o anúncio para o qual Richie apontava.

 

— Filmes de terror — disse Wentworth Tozier.

 

— É — disse Richie, sorrindo.

 

— Parece que você precisa ir — disse Wentworth Tozier.

 

— É!

 

— Parece que você vai morrer de convulsões de decepção se não for ver esses dois filmes trash.

 

— É, é, eu morreria! Eu sei que morreria! Agghhh! — Richie caiu da cadeira no chão, segurando a garganta, com a língua para fora. Essa era a forma peculiar de Richie tentar encantar.

 

— Meu Deus, Richie, dá pra parar? — pediu a mãe, que estava no fogão fritando ovos para ele colocar em cima das panquecas.

 

— Nossa, Rich — disse o pai quando Richie se sentou na cadeira. — Acho que devo ter me esquecido de dar sua mesada na segunda. É o único motivo em que consigo pensar pra você precisar de mais dinheiro na sexta.

 

— Bem...

 

— Acabou?

 

— Bem...

 

— É um assunto muito profundo pra um garoto com mente tão rasa — disse Wentworth Tozier. Ele colocou o cotovelo na mesa e acomodou o queixo na palma da mão, observando o único filho com o que parecia ser profunda fascinação. — Pra onde ele foi?

 

Richie imediatamente começou a usar a Voz de Toodles, o Mordomo Inglês.

 

— Ah, eu gastei, não, meu senhor? Com coisinhas aqui e acolá. Minha parte no esforço pós-guerra. Temos que fazer nossa parte para vencer os malditos hunos, não? Não é nada fácil, certo? Não passa...

 

— Não passa de uma pilha de bosta — disse Went com simpatia, e pegou a compota de morango.

 

— Faça-me o favor de me poupar dessas vulgaridades à mesa do café da manhã — disse Maggie Tozier para o marido ao levar os ovos de Richie para a mesa. E para Richie: — Não sei por que você quer encher a cabeça com esse tipo de lixo.

 

— Ah, mãe — disse Richie. Ele estava arrasado por fora, exultante por dentro. Conseguia ler o pai e a mãe como livros, livros bem gastos e amados, e tinha certeza de que iria conseguir o que queria: tarefas e permissão para ir ao cinema no sábado à tarde.

 

Went se inclinou para a frente na direção de Richie e sorriu largamente.

 

— Acho que você está bem onde eu quero — disse ele.

 

— É mesmo, pai? — disse Richie, e sorriu em resposta... com um pouco de desconforto.

 

— Ah, sim. Sabe nosso gramado, Richie? Você conhece nosso gramado?

 

— Conheço sim, senhor — disse Richie, virando Toodles de novo, ou tentando. — Meio malcuidado, não?

 

— Exatamente — concordou Went. — E você, Richie, vai consertar essa condição.

 

— Vou?

 

— Vai. Corte a grama, Richie.

 

— Certo, pai, claro — disse Richie, mas uma desconfiança tinha surgido de repente em sua mente. Talvez o pai não estivesse falando só do gramado da frente.

 

O sorriso de Wentworth Tozier se alargou para um sorriso predatório de tubarão.

 

— O gramado todo, ó produto idiota das minhas entranhas. Da frente. De trás. Dos lados. E quando terminar, vou colocar em sua mão dois pedaços de papel verde com a cara de George Washington de um lado e uma foto da pirâmide com o olho da providência no alto do outro.

 

— Não entendi, pai — disse Richie, mas achava que tinha entendido.

 

— Duas pratas.

 

— Duas pratas pelo gramado todo? — gritou Richie, genuinamente ofendido. — É o maior gramado do quarteirão! Nossa, pai!

 

Went suspirou e pegou o jornal. Richie conseguia ler a manchete da primeira página: GAROTO DESAPARECIDO DESPERTA NOVOS MEDOS. Ele pensou rapidamente no álbum estranho de George Denbrough, mas isso havia sido alucinação, claro... e mesmo se não tivesse sido, aquilo foi ontem, e hoje era um novo dia.

 

— Acho que você não queria tanto assim ir ver aqueles filmes — disse Went por trás do jornal. Um momento depois, seus olhos surgiram por cima, observando Richie. Avaliando-o com um pouco de arrogância, na verdade. Avaliando-o como um homem com quatro cartas iguais observa seu oponente no pôquer por cima das cartas em mãos.

 

— Quando os gêmeos Clark cortam tudo, você dá dois dólares pra cada um!

 

— É verdade — admitiu Went. — Mas até onde eu sei, eles não querem ir ao cinema amanhã. Ou, se querem, devem ter dinheiro suficiente pra ocasião, porque não apareceram para verificar o estado da vegetação ao redor de nosso domicílio ultimamente. Você, por outro lado, quer sair e encontra-se com falta de recursos para isso. Essa pressão que você sente na barriga pode ser pelas cinco panquecas e dois ovos que comeu no café da manhã, Richie, ou pode ser o barril que estou segurando em cima de você. E então? — Os olhos de Went voltaram para trás do jornal.

 

— Ele está me chantageando — disse Richie para a mãe, que estava comendo torrada pura. Ela estava tentando perder peso de novo. — Isso é chantagem, espero que você saiba disso.

 

— Sim, querido, eu sei disso — disse a mãe. — Tem ovo no seu queixo.

 

Richie limpou o ovo do queixo.

 

— Três pratas se eu terminar tudo antes de você voltar pra casa hoje? — perguntou ele para o jornal.

 

Os olhos do pai apareceram brevemente.

 

— Dois e cinquenta.

 

— Ah, cara — disse Richie. — Você e Jack Benny.

 

— Meu ídolo — disse Went por trás do jornal. — Tome uma decisão, Richie. Quero ler os resultados.

 

— Combinado — disse Richie, e suspirou. Quando seus pais seguravam pelas bolas, eles realmente sabiam apertar. Era bem engraçado, se você pensasse bem.

 

Enquanto cortava a grama, ele praticava as Vozes.

 

Ele terminou as partes da frente, de trás e laterais por volta das 15h de sexta-feira e começou o sábado com 2 dólares e 50 centavos no bolso. Quase uma fortuna. Ele ligou para Bill, mas Bill disse com mau humor que tinha que ir para Bangor fazer um exame de fonoaudiologia.

 

Richie se solidarizou e acrescentou em sua melhor Voz de Bill Gago:

 

— A-A-Arrebenta, B-B-Big B-Bill.

 

— N-No c-cu, T-T-Tozier — disse Bill, e desligou.

 

Ele ligou para Eddie Kaspbrak depois, mas Eddie pareceu ainda mais deprimido do que Bill. A mãe tinha comprado um passe de ônibus de dia inteiro para cada um e eles visitariam as tias de Eddie em Haven, Bangor e Hampden. Todas as três eram gordas, como a sra. Kaspbrak, e todas as três eram solteiras.

 

— Todas beliscam minhas bochechas e me dizem o quanto cresci — disse Eddie.

 

— É porque elas sabem como você é fofo, Eds, que nem eu. Percebi que você era fofo desde a primeira vez que te vi.

 

— Às vezes você é um pentelho, Richie.

 

— Só um pentelho reconhece outro, Eds, e você reconhece todos. Vai pro Barrens semana que vem?

 

— Acho que vou, se vocês forem. Quer brincar de armas?

 

— Talvez. Mas... acho que eu e Big Bill temos uma coisa pra contar.

 

— O quê?

 

— A história é de Bill, eu acho. Nos vemos depois. Aproveite suas tias.

 

— Muito engraçado.

 

A terceira ligação foi pra Stan, o Cara, mas Stan estava encrencado com os pais porque tinha quebrado a janela. Ele estava brincando de disco voador com um prato de torta e o prato voou. Crash. Ele tinha tarefas por todo o fim de semana e provavelmente no seguinte também. Richie sentiu pena e perguntou a Stan se ele iria para o Barrens na semana seguinte. Stan disse que achava que sim, se o pai não decidisse deixá-lo de castigo.

 

— Nossa, Stan, foi só uma janela — disse Richie.

 

— É, mas era uma janela grande — disse Stan, e desligou.

 

Richie começou a sair da sala, mas pensou em Ben Hanscom. Ele folheou o catálogo telefônico e encontrou o número de uma Arlene Hanscom. Como ela era a única Hanscom mulher dentre os quatro listados, ele achou que deveria ser o número de Ben e ligou.

 

— Eu gostaria de ir, mas já gastei minha mesada — disse Ben. Ele parecia deprimido e envergonhado de admitir isso; na verdade, tinha gastado tudo com doces, refrigerantes, batatas e tiras de carne-seca.

 

Richie, que estava cheio da grana (e que não gostava de ir ao cinema sozinho), disse:

 

— Tenho bastante dinheiro. Você pode ficar me devendo.

 

— É? Sério? Você faria isso?

 

— Claro — disse Richie, intrigado. — Por que não?

 

— Tudo bem! — disse Ben alegremente. — Certo, vai ser ótimo! Dois filmes de terror! Você disse que um é de lobisomem?

 

— É.

 

— Cara, eu adoro filmes de lobisomem!

 

— Nossa, Monte de Feno, não molha a calça.

 

Ben riu.

 

— Te encontro em frente ao Aladdin, tá?

 

— Tá, combinado.

 

Richie desligou e olhou para o telefone, pensativo. De repente, ocorreu-lhe que Ben Hanscom era solitário. E isso o fez se sentir um tanto heroico. Ele estava assobiando quando subiu para pegar umas revistas em quadrinhos para ler antes do cinema.

 

O dia estava ensolarado, fresco e gostoso. Richie andou gingando pela rua Center em direção ao Aladdin, estalando os dedos e cantando “Rockin’ Robin” baixinho. Estava se sentindo bem. Ir ao cinema sempre o fazia se sentir bem. Ele adorava aquele mundo mágico, aqueles sonhos mágicos. Sentia pena de quem tinha tarefas chatas em um dia assim; Bill com a fonoaudiologia, Eddie com as tias, o pobre Stan, o Cara, que passaria a tarde esfregando os degraus da varanda ou varrendo a garagem porque o prato de torta que ele estava jogando pela casa virou para a direita quando deveria virar para a esquerda.

 

Richie estava com o ioiô enfiado no bolso de trás, e agora ele o pegou e tentou fazê-lo dormir. Essa era uma habilidade que Richie desejava dominar, mas até agora, nada. O porrinha não fazia o que ele queria. Ou ele descia e voltava em seguida, ou descia e ficava parado na ponta do barbante.

 

Na metade da rua Center, ele viu uma garota de saia plissada bege e blusa branca sem manga sentada em um banco em frente à farmácia Shook’s. Ela estava comendo uma casquinha de sorvete que parecia de pistache. O cabelo era ruivo brilhante, e as mechas iluminadas pareciam de cobre e às vezes quase louras, caindo sobre os ombros. Richie só conhecia uma garota com cabelo daquela cor. Era Beverly Marsh.

 

Richie gostava muito de Bev. Bem, ele gostava dela, mas não daquele jeito. Admirava a aparência dela (e sabia que não estava sozinho; garotas como Sally Mueller e Greta Bowie odiavam Beverly com todas as forças, jovens demais ainda para entender como podiam ter tudo facilmente... e ainda ter que competir em questão de aparência com uma garota que morava naqueles apartamentos horríveis na rua Lower Main), mas gostava dela principalmente porque ela era forte e tinha um ótimo senso de humor. Além do mais, ela costumava ter cigarros. Em resumo, ele gostava dela porque ela era um cara legal. Ainda assim, uma vez ou outra ele se viu se perguntando que cor de calcinha ela estava usando por baixo da pequena coleção de saias surradas, e esse não era o tipo de coisa que você pensava sobre os amigos, era?

 

E Richie tinha que admitir que ela era um amigo muito bonito.

 

Ao se aproximar do banco onde ela estava sentada tomando o sorvete, Richie prendeu um sobretudo invisível ao redor da cintura, colocou um chapéu invisível e fingiu ser Humphrey Bogart. Acrescentando a Voz correta, ele se tornou Humphrey Bogart, pelo menos para ele mesmo. Para os outros, pareceria Richie Tozier com uma congestão nasal.

 

— Oi, querida — disse ele, deslizando até o banco em que ela estava sentada e olhando para o tráfego. — Não faz sentido esperar o ônibus aqui. Os nazistas atrapalharam nossa fuga. O último avião sai à meia-noite. Vá nele. Ele precisa de você, querida. Eu também... mas vou sobreviver.

 

— Oi, Richie — disse Bev, e quando se virou, ele viu o hematoma roxo-enegrecido na bochecha direita, como a sombra da asa de um corvo. Ele mais uma vez ficou surpreso com a boa aparência dela... só que agora pensou que ela podia ser realmente bonita. Ele nunca tinha pensado até aquele momento que podiam existir garotas bonitas fora dos filmes, ou que ele pudesse conhecer uma. Talvez tenha sido o hematoma que permitiu que ele visse a possibilidade da beleza dela, um contraste essencial, uma falha específica que primeiro chamou atenção para si e depois, de alguma forma, definiu o resto: os olhos cinza-azulados, os lábios naturalmente vermelhos, a pele cremosa e lisa de criança. Ela tinha algumas sardas no nariz.

 

— Está vendo alguma coisa verde? — perguntou ela, erguendo a cabeça com orgulho.

 

— Você, querida — disse Richie. — Você ficou esverdeada. Mas quando te tirarmos de Casablanca, você vai pro melhor hospital que o dinheiro puder pagar. Vamos te fazer ficar branca de novo. Juro pelo nome da minha mãe.

 

— Você é um babaca, Richie. Isso não parece nada com Humphrey Bogart. — Mas ela sorriu um pouco ao falar.

 

Richie se sentou ao lado dela.

 

— Você vai ao cinema?

 

— Não tenho dinheiro — disse ela. — Posso ver seu ioiô?

 

Ele entregou para ela.

 

— Acho que vou devolver — disse ele. — Ele devia dormir, mas não dorme. Acho que está quebrado.

 

Ela enfiou o dedo no aro de barbante e Richie empurrou os óculos para cima no nariz para poder ver melhor o que ela estava fazendo. Ela virou a mão com a palma para o céu e o ioiô Duncan preso no vale de carne formado pela mão encurvada. Ela rolou o ioiô pelo dedo indicador. Ele caiu até a ponta do barbante e dormiu. Quando ela mexeu os dedos em um gesto de quem está chamando para vir até aqui, ele imediatamente despertou e subiu pelo barbante até a palma da mão dela.

 

— Ah, caramba, olha isso — disse Richie.

 

— Isso é coisa de criancinha — disse Bev. — Olha isso.

 

Ela soltou o ioiô de novo. Deixou-o dormir por um momento e depois o fez passear como cachorro, com uma série de puxões do cordão.

 

— Ah, para — disse Richie. — Odeio exibicionismo.

 

— Que tal isso? — perguntou Bev, sorrindo docemente.

 

Ela moveu o ioiô para a frente e para trás, fazendo o Duncan vermelho de madeira parecer uma raquete com bolinha que Richie teve uma época. Ela terminou com a Volta ao Mundo (quase batendo em uma senhora de idade, que olhou para eles com raiva). O ioiô terminou na palma da mão dela, com o barbante bem enrolado. Bev o devolveu para Richie e se sentou de novo no banco. Richie se sentou ao lado dela, com o queixo caído em perfeita e sincera admiração. Bev olhou para ele e riu.

 

— Fecha a boca, vai entrar mosca.

 

Richie fechou a boca de repente.

 

— Além do mais, essa parte final foi sorte. Foi a primeira vez na vida que fiz duas Voltas ao Mundo seguidas sem errar. — Havia crianças passando por eles agora, indo para o cinema. Peter Gordon passou com Marcia Fadden. Eles iam juntos, mas Richie achava que era por eles serem vizinhos na West Broadway e serem tão idiotas que precisavam do apoio e atenção um do outro. Peter Gordon já estava tendo bastante acne, embora só tivesse 12 anos. Ele às vezes andava com Bowers, Criss e Huggins, mas não era corajoso o bastante para fazer nada sozinho.

 

Ele olhou para Richie e Bev sentados juntos no banco e cantarolou:

 

— Com quem será, com quem será, com que será que o Richie vai casar? Vai depender, vai depender, vai depender se a Bev vai querer. Ela aceitou, ela aceitou...

 

— ... tiveram dois filhinhos e depois se separou — concluiu Marcia, dando gargalhadas.

 

— Senta nisso, queridinha — disse Bev, e mostrou o dedo do meio para eles. Marcia afastou o olhar, repugnada, como se não conseguisse acreditar que uma pessoa pudesse ser tão grosseira. Gordon passou o braço ao redor dela e falou por cima do ombro para Richie:

 

— Quem sabe a gente se encontra mais tarde, quatro olhos.

 

— Quem sabe você vê o cinto da sua mãe — respondeu Richie com esperteza (mesmo que meio sem sentido). Beverly teve uma crise de riso. Ela se apoiou no ombro de Richie por um momento, e Richie teve tempo o suficiente para refletir que o toque dela e a sensação do peso leve não eram exatamente desagradáveis. E então, ela se empertigou de novo.

 

— Que dupla de babacas — disse ela.

 

— É, acho que Marcia Fadden mija água de rosas — disse Richie, e Beverly começou a rir de novo.

 

— Chanel Número Cinco — disse ela, com a voz abafada porque as mãos estavam sobre a boca.

 

— Pode apostar — disse Richie, embora não tivesse a menor ideia do que era Chanel Número Cinco. — Bev?

 

— O quê?

 

— Você pode me ensinar a fazer o ioiô dormir?

 

— Acho que posso. Nunca tentei ensinar a ninguém.

 

— Como você aprendeu? Quem te ensinou?

 

Ela olhou para ele com nojo.

 

— Ninguém me ensinou. Eu descobri sozinha. Como girar um bastão. Sou ótima nisso...

 

— O convencimento não está na sua família — disse Richie, revirando os olhos.

 

— Bem, eu sou — disse ela. — Mas não tive aulas nem nada.

 

— Você sabe mesmo girar?

 

— Claro.

 

— Vai acabar sendo líder de torcida no fundamental II, né?

 

Ela sorriu. Era o tipo de sorriso que Richie nunca tinha visto antes. Era inteligente, cínico e triste, tudo ao mesmo tempo. Ele recuou um pouco devido ao poder desconhecido, assim como havia se afastado da foto do centro no álbum de Georgie quando ela começou a se mover.

 

— Isso é pra garotas como Marcia Fadden — disse ela. — Ela, Sally Mueller e Greta Bowie. Garotas que mijam água de rosas. Os pais delas ajudam a comprar os equipamentos esportivos e os uniformes. Elas entram. Eu nunca vou ser líder de torcida.

 

— Nossa, Bev, essa não é a atitude...

 

— Claro que é, se é verdade. — Ela deu de ombros. — Não ligo. Quem quer fazer cabriolas e mostrar a calcinha pra milhões de pessoas, afinal? Olha, Richie. Olha isso.

 

Durante os dez minutos seguintes, ela mostrou para Richie como fazer o ioiô dormir. Perto do final, Richie realmente começou a entender, embora só conseguisse chegar à metade do barbante depois de acordar.

 

— Você não está movendo os dedos com força suficiente, só isso — disse ela.

 

Richie olhou para o relógio no Merrill Trust do outro lado da rua, deu um pulo e enfiou o ioiô no bolso.

 

— Caramba, tenho que ir, Bev. Vou encontrar o velho Monte de Feno. Ele vai pensar que mudei de ideia.

 

— Quem é Monte de Feno?

 

— Ah. Ben Hanscom. Mas eu chamo ele de Monte de Feno. Você sabe, como Monte de Feno Calhoun, o lutador.

 

Bev franziu a testa.

 

— Isso não é muito gentil. Eu gosto de Ben.

 

— Num me bate, sinhá! — gritou Richie com sua Voz de Garoto Negro, revirando os olhos e batendo as mãos. — Num me chicoteia, vou sê bonzinho, sinhá, juro...

 

— Richie — disse Bev com voz fraca.

 

Richie parou.

 

— Eu também gosto dele — disse ele. — Nós construímos uma barragem no Barrens uns dias atrás e...

 

— Vocês vão lá? Você e Ben brincam lá?

 

— Claro. Um bando de garotos também. É legal lá. — Richie olhou para o relógio de novo. — Preciso ir logo pro cinema. Ben vai estar esperando.

 

— Tá.

 

Ele fez uma pausa, pensou e disse:

 

— Se você não for fazer nada, vem comigo.

 

— Já falei. Não tenho dinheiro.

 

— Eu pago pra você. Tenho dois dólares.

 

Ela jogou o resto da casquinha em uma lixeira ali perto. Seus olhos, daquele belo tom claro de azul-acinzentado, se direcionaram para os dele. Estavam com expressão divertida. Ela fingiu ajeitar o cabelo e perguntou:

 

— Ah, querido, você está me convidando pra um encontro?

 

Por um momento, Richie ficou confuso. Chegou a sentir um rubor subindo para as bochechas. Ele tinha feito a proposta de uma maneira perfeitamente natural, assim como fez com Ben... Mas não tinha falado alguma coisa para Ben sobre ele pagar depois? Sim. Mas não falou nada disso para Bev.

 

Richie se sentiu meio estranho de repente. Ele baixou os olhos, se encolheu do olhar divertido e se deu conta agora de que a saia dela havia se levantado um pouco quando ela se inclinou para a frente para jogar a casquinha na lixeira. Agora, ele conseguia ver os joelhos dela. Ele ergueu o olhar, mas isso não ajudou; agora ele estava olhando para os brotos que eram os seios dela.

 

Richie, como costumava fazer em momentos de confusão, se refugiou no absurdo.

 

— Sim! Um encontro! — gritou ele, ficando de joelhos à frente dela e erguendo as mãos unidas. — Venha, por favor! Venha, por favor! Vou me matar se você disser não, entendeu? Entendeu?

 

— Ah, Richie, você é tão mongo — disse ela, rindo de novo... mas as bochechas dela não estavam um pouco vermelhas? Se sim, fez com que ela ficasse mais linda do que nunca. — Se levanta antes que seja preso.

 

Ele se levantou e se sentou ao lado dela de novo. Sentia que seu equilíbrio havia voltado. Um pouco de bobeira sempre ajudava quando você ficava tonto, acreditava ele.

 

— Quer ir?

 

— Claro — disse ela. — Muito obrigada. Pensa bem! Meu primeiro encontro. Espera só eu escrever no meu diário hoje à noite. — Ela juntou as mãos entre os seios em crescimento, bateu as pestanas rapidamente e riu.

 

— Eu queria que você parasse de falar assim — disse Richie.

 

Ela suspirou.

 

— Você não tem muito romance na alma.

 

— Não tenho mesmo.

 

Mas ele se sentiu feliz consigo mesmo. O mundo de repente pareceu muito claro e muito simpático. Ele se viu olhando para o lado, para ela, de tempos em tempos. Ela estava olhando para as vitrines, para os vestidos e camisolas em Cornell-Hopley’s, para as toalhas e panelas na vitrine do Discount Barn, e ele roubou olhares para os cabelos dela, para a linha do maxilar. Observou a forma como os braços nus saíam dos buracos redondos da blusa. Viu a borda da alça da camiseta de baixo. Todas essas coisas o fascinaram. Ele não saberia dizer por que, mas o que aconteceu no quarto de George Denbrough nunca pareceu mais distante do que naquele momento. Era hora de ir, hora de encontrar Ben, mas ele ficaria aqui um momento a mais enquanto os olhos dela observavam as vitrines, porque era bom olhar para ela e estar com ela.

 

As crianças estavam pagando pelos ingressos de 25 centavos na bilheteria do Aladdin e entrando no saguão. Ao olhar pelas portas de vidro, Richie conseguiu ver um grupo ao redor da bombonière. A máquina de pipoca estava trabalhando a toda velocidade, cuspindo jatos de milho estourado, com a tampa oleosa subindo e descendo. Ele não viu Ben em lugar nenhum. Perguntou a Beverly se ela o estava vendo. Ela balançou a cabeça.

 

— Pode ser que ele já tenha entrado.

 

— Ele disse que não tinha dinheiro. E a Filha de Frankenstein ali não deixaria ele entrar sem ingresso. — Richie apontou para a sra. Cole com o polegar, a porteira do Aladdin desde antes de os filmes serem falados. O cabelo dela, pintado de vermelho-vivo, era tão fino que dava para ver o couro cabeludo. Ela tinha lábios enormes e moles que pintava de batom da cor de ameixa. Bolotas de blush cobriam suas bochechas. As sobrancelhas eram desenhadas com lápis preto. A sra. Cole era uma perfeita democrata. Odiava todas as crianças igualmente.

 

— Cara, não quero entrar sem ele, mas o filme vai começar — disse Richie. — Onde ele está?

 

— Você pode comprar o ingresso dele e deixar na bilheteria — disse Bev com racionalidade. — E então, quando ele chegar...

 

Mas, naquele momento, Ben dobrou a esquina da rua Center com a Macklin. Estava ofegante, e a barriga balançava debaixo do suéter. Ele viu Richie e levantou uma das mãos para acenar. Em seguida, viu Bev e a mão parou na metade do caminho. Seus olhos se arregalaram momentaneamente. Ele terminou o aceno e andou devagar até onde eles estavam, sob a marquise do Aladdin.

 

— Oi, Richie — disse ele, e então olhou rapidamente para Bev. Era como se tivesse medo de um olhar prolongado resultar em uma queimadura. — Oi, Bev.

 

— Oi, Ben — disse ela, e um estranho silêncio se instalou entre os dois. Não era precisamente constrangido; Richie pensou que era quase poderoso. E sentiu uma pontada de ciúme, porque alguma coisa se passou entre eles, e fosse o que fosse, ele estava excluído.

 

— Olá, Monte de Feno! — disse ele. — Pensei que você tivesse amarelado. Esses filmes vão te dar tanto medo que você vai perder 5 quilos desse corpo fofo. Ah, pode crer, ah, pode crer, eles vão deixar seus cabelos brancos, garoto. Quando você sair do cinema, vai precisar de um lanterninha pra te ajudar a andar de tanto que vai estar tremendo.

 

Richie foi na direção da bilheteria, e Ben tocou no braço dele. Ben começou a falar, olhou para Bev, que estava sorrindo para ele, e teve que começar tudo de novo.

 

— Eu estava aqui — disse ele —, mas subi a rua e dobrei a esquina quando aqueles garotos chegaram.

 

— Que garotos? — perguntou Richie, mas achava que já sabia a resposta.

 

— Henry Bowers. Victor Criss. Arroto Huggins. Uns outros caras também.

 

Richie assobiou.

 

— Eles já devem ter entrado. Não estou vendo eles comprando balas.

 

— É, acho que sim.

 

— Se eu fosse eles, não ia me dar ao trabalho de pagar pra ver uns filmes de terror — disse Richie. — Eu ia ficar em casa e olhar no espelho. Pra poupar uma grana.

 

Bev riu com alegria, mas Ben só sorriu um pouco. Henry Bowers talvez tivesse começado querendo machucá-lo naquele dia na semana anterior, mas no final queria matá-lo. Ben tinha certeza disso.

 

— Vou te dizer uma coisa — disse Richie. — Vamos pro balcão. Eles devem estar sentados na segunda ou na terceira fila com os pés na cadeira da frente.

 

— Tem certeza? — perguntou Ben. Ele não sabia se Richie entendia o quanto aqueles caras eram terríveis... E Henry, é claro, era o pior de todos.

 

Richie, que escapou por pouco do que poderia ter sido uma grande surra nas mãos de Henry e dos amigos doentes dele três meses antes (conseguiu fugir deles no departamento de brinquedos da loja Freese’s, logo lá), entendia mais sobre Henry e sua gangue do que Ben imaginava.

 

— Se eu não tivesse certeza, não entraria — disse ele. — Quero ver esses filmes, Monte de Feno, mas não quero, sei lá, morrer por eles.

 

— Além do mais, se eles arrumarem confusão com a gente, a gente manda Foxy expulsar eles — disse Bev. Foxy era o sr. Foxworth, o homem magro, pálido e de aparência abatida que era gerente do Aladdin. Ele estava agora vendendo doces e pipoca, cantarolando sua litania de “Espere sua vez, espere sua vez, espere sua vez”. De smoking esfarrapado e camisa amarelada, ele parecia um coveiro que passou por dificuldades.

 

Ben olhou com dúvida para Bev, depois para Foxy e para Richie.

 

— Você não pode deixar eles mandarem na sua vida, cara — disse Richie. — Você não sabe disso?

 

— Acho que sei — disse Ben, e suspirou. Na verdade, ele não sabia de nada disso... mas a presença de Beverly deu um tom louco à equação. Se ela não tivesse ido, ele teria tentado persuadir Richie a ir ao cinema outro dia. E se Richie tivesse persistido, Ben talvez amarelasse. Mas Bev estava junto. Ele não queria parecer covarde na frente dela. E a ideia de estar com ela no balcão, no escuro (mesmo com Richie entre os dois, como provavelmente ficaria), era uma atração poderosa.

 

— Vamos esperar o filme começar pra entrar — disse Richie. Ele sorriu e deu um soco no braço de Ben. — Merda, Monte de Feno, você quer viver pra sempre?

 

As sobrancelhas de Ben se aproximaram uma da outra, e então ele deu um ronco de gargalhada. Richie também começou a gargalhar. Ao olhar para eles, Beverly gargalhou também.

 

Richie voltou a se aproximar da bilheteria. Lábios de Fígado Cole olhou para ele de mau humor.

 

— Boa tarde, prezada senhora — disse ele em sua melhor Voz de Barão Butthole. — Necessito de três ingressos para apreciar seu adorável filme americano.

 

— Para de merda e me diz o que quer, garoto! — disse Lábios de Fígado pelo buraco redondo no vidro, e alguma coisa na forma como as sobrancelhas pintadas dela subiam e desciam perturbou tanto Richie que ele apenas empurrou uma nota amassada de um dólar pelo buraco e murmurou:

 

— Três, por favor.

 

Três ingressos saíram pelo buraco. Richie pegou-os. Lábios de Fígado devolveu uma moeda de 25 centavos para ele.

 

— Não seja espertinho, não jogue caixas de pipoca, não grite, não corra no saguão, não corra nos corredores.

 

— Não, senhora — disse Richie, afastando-se para onde estavam Ben e Bev. Ele disse para os dois: — Sempre sinto calor no coração quando vejo uma velha mala como essa, que gosta mesmo de crianças.

 

Eles ficaram do lado de fora um pouco mais, esperando o começo do filme. Lábios de Fígado olhou para eles com desconfiança da cabine de vidro. Richie deleitou Bev com a história da represa no Barrens, repetindo as falas do sr. Nell com a nova Voz do Policial Irlandês. Beverly logo começou a dar risadinhas e passou a gargalhar não muito depois. Até Ben estava sorrindo um pouco, apesar de seus olhos ficarem indo da porta do Aladdin para o rosto de Bev.

 

O balcão era legal. Durante o primeiro rolo de I Was a Teenage Frankenstein, Richie viu Henry Bowers e os amigos de merda. Estavam na segunda fila, como ele achou que estariam. Eram cinco ou seis ao todo, alunos do quinto, sexto e sétimo anos, todos com as botas apoiadas nos bancos da frente. Foxy mandava que eles botassem os pés no chão. Eles botavam. Foxy ia embora. As botas voltavam a subir imediatamente depois. Cinco ou dez minutos depois, Foxy voltava, e a palhaçada toda acontecia de novo. Foxy não tinha coragem de expulsá-los, e eles sabiam.

 

Os filmes eram ótimos. O Frankenstein Adolescente era bem nojento. Mas o Lobisomem Adolescente era ainda mais assustador... talvez porque também parecia meio triste. O que acontecia não era culpa dele. Havia um hipnotizador que fez merda nele, mas o único motivo de ele conseguir fazer isso foi porque o garoto que virava lobisomem era cheio de raiva e sentimentos ruins. Richie começou a se perguntar se havia muitas pessoas no mundo escondendo sentimentos ruins assim. Henry Bowers transbordava sentimentos ruins, mas não se dava ao trabalho de esconder.

 

Beverly se sentou entre os garotos, comeu pipoca das caixinhas deles, gritou, cobriu os olhos, algumas vezes riu. Quando o Lobisomem estava observando a garota se exercitando no ginásio depois da aula, ela apertou o rosto no braço de Ben, e Richie ouviu o som sufocado de surpresa de Ben mesmo com os gritos de duzentas crianças abaixo.

 

O Lobisomem acabou sendo morto. Na última cena, um policial contou solenemente a outro que isso devia ensinar as pessoas a não mexerem com as coisas de Deus. A cortina desceu e as luzes se acenderam. Algumas pessoas aplaudiram. Richie se sentia totalmente satisfeito, ainda que com uma leve dor de cabeça. Ele achava que teria que ir ao oculista de novo em breve para trocar as lentes dos óculos mais uma vez. Acabaria usando fundos de garrafa de Coca na frente dos olhos quando chegasse ao ensino médio, pensou ele com tristeza.

 

Ben puxou a manga dele.

 

— Eles viram a gente, Richie — disse ele com voz seca e consternada.

 

— Hã?

 

— Bowers e Criss. Eles olharam aqui pra cima quando estavam saindo. Eles viram a gente!

 

— Tudo bem, tudo bem — disse Richie. — Calma, Monte de Feno. Acaaalme-se. Vamos sair pela porta lateral. Não tem com que se preocupar.

 

Eles desceram a escada, com Richie na frente, Beverly no meio e Ben na retaguarda, olhando por cima do ombro a cada dois passos.

 

— Esses caras estão mesmo atrás de você, Ben? — perguntou Beverly.

 

— É, acho que estão — disse Ben. — Me meti numa briga com Henry Bowers no último dia de aula.

 

— Ele te deu uma surra?

 

— Não tanto quanto queria — disse Ben. — Acho que é por isso que ainda está furioso.

 

— O velho Tanque Hank perdeu muita pele — murmurou Richie. — Foi o que ouvi. Acho que não ficou muito feliz.

 

Ele abriu a porta e os três saíram na viela entre o Aladdin e a Lanchonete Nan’s. Um gato que estava revirando uma lata de lixo sibilou e passou correndo pelo beco, bloqueado no final por uma cerca de tábuas. O gato pulou e subiu na cerca. Uma tampa de lata de lixo estalou. Bev deu um pulo, agarrou o braço de Richie e riu com nervosismo.

 

— Acho que ainda estou com medo do filme — disse ela.

 

— Você não...

 

— Oi, seu merda — disse Henry Bowers atrás deles.

 

Assustados, os três se viraram. Henry, Victor e Arroto estavam na boca da viela. Havia mais dois caras atrás deles.

 

— Ah, merda, eu sabia que isso ia acontecer — gemeu Ben.

 

Richie se virou rapidamente para o Aladdin, mas a saída já tinha se fechado atrás deles e não havia como abrir por fora.

 

— Diz tchau, seu merda — disse Henry, e saiu correndo de repente para cima de Ben.

 

As coisas que aconteceram em seguida pareceram a Richie tanto no momento quanto depois como coisas saídas de um filme. Coisas assim não aconteciam na vida real. Na vida real, os garotos pequenos apanhavam, recolhiam seus dentes e iam para casa.

 

Não foi assim desta vez.

 

Beverly deu um passo à frente e para um dos lados, quase como se pretendesse se encontrar com Henry, talvez apertar a mão dele. Richie conseguia ouvir as travas da bota dele estalando. Victor e Arroto estavam atrás. Os outros dois garotos ficaram na entrada do beco, tomando conta.

 

— Deixa ele em paz! — gritou Beverly. — Procura alguém do seu tamanho!

 

— Ele é do tamanho de um caminhão Mack, piranha — rosnou Henry, nem um pouco cavalheiro. — Agora sai da minha...

 

Richie esticou o pé. Ele não achou que pretendia fazer isso. Seu pé se moveu da mesma forma que piadinhas perigosas à saúde saíam de sua boca, por vontade própria. Henry correu na direção dele e caiu para a frente. A superfície de pedras do beco estava escorregadia com lixo derrubado das lixeiras transbordantes no lado da lanchonete. Henry saiu deslizando como se estivesse sobre gelo.

 

Ele começou a se levantar, com a camisa suja de grãos de café, lama e pedaços de alface.

 

— Ah, vocês vão MORRER! — gritou ele.

 

Até aquele momento, Ben estava apavorado. Agora, alguma coisa estalou dentro dele. Ele soltou um rugido e pegou uma das latas de lixo. Por apenas um momento, quando estava segurando-a no alto, com lixo derramando para todo o lado, ele realmente pareceu Monte de Feno Calhoun. Seu rosto estava pálido e furioso. Ele jogou a lata de lixo. Ela bateu na lombar de Henry e derrubou-o de novo.

 

— Vamos sair daqui! — gritou Richie.

 

Eles correram em direção à entrada do beco. Victor Criss pulou na frente deles. Berrando, Ben baixou a cabeça e bateu com ela na barriga de Victor.

 

— Uff! — resmungou Victor, e caiu sentado.

 

Arroto pegou o rabo de cavalo de Beverly e empurrou-a com força contra a parede de tijolos do Aladdin. Beverly quicou e correu pelo beco, esfregando o braço. Richie correu atrás dela e pegou uma tampa de lata de lixo no caminho. Arroto Huggins socou-o com um punho quase do tamanho de um presunto. Richie ergueu a tampa de aço galvanizado. O punho de Arroto se chocou contra ela. Houve um bong! alto, um som quase delicado. Richie sentiu o choque subir pelo braço até o ombro. Arroto gritou e começou a pular, segurando a mão que começava a inchar.

 

— Ali fica a tenda do meu pai — disse Richie como em segredo, fazendo uma Voz bem passável de Tony Curtis, e correu atrás de Ben e Beverly.

 

Um dos garotos na entrada do beco tinha segurado Beverly. Ben estava lutando com ele. O outro garoto começou a socá-lo na base da coluna. Richie deu impulso com o pé, que se chocou diretamente com a bunda do garoto dos socos. O garoto berrou de dor. Richie segurou o braço de Beverly com uma das mãos e o de Ben com a outra.

 

— Corram! — gritou ele.

 

O garoto com quem Ben estava lutando soltou Beverly e deu um soco em Richie. Sua orelha explodiu em dor momentânea, depois ficou dormente e muito quente. Um som alto de assobio começou a soar em sua cabeça. Parecia o barulho que você devia ouvir quando a enfermeira da escola colocava os fones de ouvido em você para o teste de audição.

 

Eles correram pela rua Center. As pessoas se viraram para olhar para eles. A barriga de Ben sacudia para cima e para baixo. O rabo de cavalo de Bev balançava. Richie soltou Ben e segurou os óculos contra a testa com o polegar esquerdo, para não perdê-los. Sua cabeça ainda apitava, e ele acreditava que sua orelha incharia, mas sentia-se maravilhoso. Ele começou a gargalhar. Beverly se juntou a ele. Em pouco tempo, Ben também estava rindo.

 

Eles entraram na rua Court e despencaram em um banco em frente à delegacia de polícia. Naquele momento, parecia ser o único lugar de Derry onde eles poderiam estar em segurança. Beverly passou o braço pelo pescoço de Ben e de Richie e deu um abraço furioso neles.

 

— Isso foi demais! — Os olhos dela brilharam. — Vocês viram aqueles caras? Vocês viram?

 

— Eu vi muito bem — disse Ben, ofegante. — E nunca mais quero ver de novo.

 

Isso gerou outra explosão de gargalhadas histéricas. Richie ainda esperava que a gangue de Henry dobrasse a esquina da rua Court e fosse para cima deles, independentemente da delegacia de polícia. Ainda assim, não conseguia parar de rir. Beverly estava certa. Foi demais.

 

— O Clube dos Otários Manda Bem! — gritou Richie com entusiasmo. — Wacka-wacka-wacka! — Ele colocou as mãos nas laterais da boca e fez a Voz de Ben Bernie: — SIM, senhor, SIM, senhor, SIM, SENHOR, crianças!

 

Um policial colocou a cabeça para fora de uma janela aberta no segundo andar e gritou:

 

— Saiam daqui, crianças! Agora mesmo! Vão passear!

 

Richie abriu a boca para dizer alguma coisa brilhante, possivelmente em sua novíssima Voz de Policial Irlandês, e Ben chutou seu pé.

 

— Cala a boca, Richie — disse ele, e imediatamente teve dificuldade para acreditar que disse uma coisa dessas.

 

— Isso aí, Richie — disse Bev, olhando para ele com carinho. — Bip-bip.

 

— Tá — disse Richie. — O que vocês querem fazer? Procurar Henry Bowers pra perguntar se ele quer resolver em uma partida de Banco Imobiliário?

 

— Morde a língua — disse Bev.

 

— Hã? O que isso quer dizer?

 

— Deixa pra lá — disse Bev. — Algumas pessoas são ignorantes demais.

 

Com hesitação e corando furiosamente, Ben perguntou:

 

— Aquele sujeito machucou seu cabelo, Beverly?

 

Ela sorriu para ele com gentileza, e naquele momento teve certeza de uma coisa de que apenas desconfiava antes: que foi Ben Hanscom quem mandou o cartão-postal com o belo haicai.

 

— Não, não foi nada de mais — disse ela.

 

— Vamos pro Barrens — propôs Richie.

 

E foi para onde eles foram... ou para onde fugiram. Richie pensaria depois que isso gerou um padrão para o resto do verão. O Barrens se tornou o local deles. Beverly, como Ben no dia do primeiro encontro com os garotos grandes, nunca tinha ido até lá embaixo. Ela andou entre Richie e Ben em fila única pela trilha. A saia dela balançava lindamente, e ao olhar para ela, Ben percebia ondas de sentimento poderosas como cólicas estomacais. Ela estava usando a tornozeleira. Brilhava sob o sol da tarde.

 

Eles atravessaram a parte do Kenduskeag onde os garotos haviam feito a represa (o córrego se dividia cerca de 70 metros à frente e voltava a ser um só 200 metros depois, na direção da cidade) usando pedras abaixo do ponto em que ela ficou, encontraram outro caminho e acabaram saindo na margem do lado leste do rio, que era bem mais largo do que o outro. Ele cintilava sob a luz da tarde. À esquerda, Ben conseguia ver dois dos cilindros de concreto com tampa em cima. Abaixo deles, surgindo por cima do rio, havia canos largos de concreto. Filetes de água enlameada caíam pela boca desses canos direto no Kenduskeag. Uma pessoa caga na cidade e é aqui que tudo vem parar, pensou Ben, lembrando-se da explicação do sr. Nell sobre o sistema de drenagem de Derry. Ele sentiu uma espécie cega de raiva impotente. No passado, deviam existir peixes nesse rio. Agora, suas chances de pegar um pedaço usado de papel higiênico seriam bem maiores.

 

— É tão bonito aqui — disse Bev, suspirando.

 

— É, não é ruim — concordou Richie. — As moscas sumiram e tem uma brisa suficiente pros mosquitos ficarem longe. — Ele olhou para ela com esperança. — Tem cigarro?

 

— Não — disse ela. — Tinha dois, mas fumei ontem.

 

— Que pena — disse Richie.

 

Houve o som de uma buzina, e todos viram um trem de carga passar pelo outro lado do Barrens, na direção do pátio de trens. Nossa, se fosse um trem de passageiros, eles teriam uma vista linda, pensou Richie. Primeiro as casas do pessoal pobre em Old Cape, depois os pântanos de bambu do outro lado do Kenduskeag, e por fim, antes de sair do Barrens, o buraco fumegante que era o lixão da cidade.

 

Por apenas um momento, ele se viu pensando na história de Eddie de novo, do leproso debaixo da casa abandonada na rua Neibolt. Afastou a história da mente e se voltou para Ben.

 

— Qual foi a melhor parte pra você, Monte de Feno?

 

— Hã? — Ben se virou para ele com culpa. Enquanto Bev olhava para o outro lado do Kenduskeag, perdida em pensamentos, ele estava olhando para o perfil dela... e para o hematoma na bochecha.

 

— Dos filmes, Dumbo. Qual foi sua parte favorita?

 

— Gostei quando o dr. Frankenstein começou a jogar os corpos pros crocodilos da casa dele — disse Ben. — Foi minha parte favorita.

 

— Isso foi nojento — disse Beverly, e estremeceu. — Odeio coisas assim. Crocodilos, piranhas e tubarões.

 

— É? O que são piranhas? — perguntou Richie, imediatamente interessado.

 

— São uns peixinhos — disse Beverly. — Elas têm uns dentinhos que são superafiados. E se você entrar num rio cheio delas, elas te comem até o osso.

 

— Uau!

 

— Vi um filme uma vez, e os índios queriam atravessar um rio, mas a ponte tinha caído — disse ela. — Eles colocaram uma vaca na água pendurada em uma corda e atravessaram quando as piranhas estavam comendo a vaca. Quando puxaram a corda, a vaca era só um esqueleto. Tive pesadelos durante uma semana.

 

— Cara, eu queria ter uns peixes desses — disse Richie com alegria. — Eu ia colocar na banheira de Henry Bowers.

 

Ben começou a rir.

 

— Acho que ele nem toma banho.

 

— Isso eu não sei, mas sei que é melhor a gente tomar cuidado com eles — disse Beverly. Os dedos dela foram até o hematoma na bochecha. — Meu pai bateu na minha cabeça anteontem porque quebrei uma pilha de pratos. Uma vez por semana já basta.

 

Houve um momento de silêncio que poderia ter sido constrangedor, mas não foi. Richie interrompeu-o dizendo que sua parte favorita foi quando o Lobisomem Adolescente pegou o hipnotizador mau. Eles conversaram sobre os filmes, e também sobre outros filmes de terror que tinham visto, e sobre o programa de TV Alfred Hitchcock Presents por mais de uma hora. Bev viu margaridas crescendo na margem e pegou uma. Segurou-a primeiro debaixo do queixo de Richie e depois debaixo do de Ben para ver se eles gostavam de manteiga. Ela disse que os dois gostavam. Enquanto ela segurava a flor debaixo do queixo deles, cada um ficou ciente do toque leve dela nos ombros deles e do cheiro limpo do cabelo. O rosto dela ficou perto do de Ben só por um momento ou dois, mas naquela noite ele sonhou com os olhos dela naquele breve período infinito de tempo.

 

A conversa estava diminuindo quando eles ouviram os sons de estalo de pessoas se aproximando pela trilha. Os três se viraram rapidamente na direção do som e Richie ficou ciente de que o rio estava às costas deles. Não havia para onde correr.

 

As vozes chegaram mais perto. Eles ficaram de pé, e Richie e Ben foram um pouco para a frente de Beverly sem nem pensar.

 

A tela de arbustos no final da trilha tremeu, e de repente Bill Denbrough surgiu. Outro garoto estava com ele, um que Richie conhecia um pouco. O nome dele era Bradley alguma coisa, e ele falava ceceando. Devia ter ido para Bangor com Bill para aquele negócio de fonoaudiologia, pensou Richie.

 

— Big Bill! — disse ele, e na Voz de Toodles: — Estamos felizes em vê-lo, sr. Denbrough, mestre.

 

Bill olhou para eles e sorriu, e uma certeza peculiar tomou conta de Richie quando Bill olhou para ele, para Ben e para Beverly, e depois de novo para Bradley sei lá o quê. Beverly era parte do grupo. Os olhos de Bill diziam isso. Bradley sei lá o quê não era. Ele poderia ficar um pouco hoje, poderia até voltar ao Barrens (ninguém diria a ele que não, sinto muito, o Clube dos Otários está lotado, já temos nosso sócio com problema de fala), mas não era parte do grupo. Não era parte deles.

 

Esse pensamento levou a um medo repentino e irracional. Por um momento, ele se sentiu da mesma forma que você se sentia quando de repente se dava conta de que tinha nadado para longe demais e a água não dava mais pé. Ele teve um vislumbre intuitivo: Estamos sendo levados para alguma coisa. Sendo escolhidos. Nada disso é acidental. Já estamos todos aqui?

 

Em seguida, a intuição se transformou em um fluxo incoerente de pensamentos, como uma vidraça quebrando sobre um piso de pedra. Além do mais, não importava. Bill estava aqui, e Bill resolveria; Bill não deixaria as coisas saírem de controle. Ele era o mais alto, e sem dúvida o mais bonito. Richie só precisava olhar de lado para a expressão fixa de Bev, grudada em Bill, e mais para longe, para os olhos de Ben, grudados com compreensão e infelicidade no rosto de Bev, para saber disso. Bill também era o mais forte de todos, e não apenas fisicamente. Havia bem mais do que isso, mas como Richie não conhecia a palavra carisma nem o significado completo da palavra magnetismo, só sentia que a força de Bill era profunda e podia se manifestar de muitas formas, algumas provavelmente inesperadas. E Richie desconfiava que, se Beverly se apaixonasse por ele ou “ficasse caidinha por ele”, ou fosse lá como se falasse, Ben não sentiria ciúmes (como sentiria, pensou Richie, se ela ficasse caidinha por mim); ele aceitaria como uma coisa natural. E havia mais uma coisa: Bill era bom. Era burrice pensar uma coisa dessas (ele não pensou exatamente; ele sentiu), mas ali estava. A bondade e a força pareciam irradiar de Bill. Ele era como um cavaleiro em um filme antigo, um filme brega, mas que ainda tinha o poder de fazer você chorar, torcer e bater palmas no final. Forte e bom. E cinco anos mais tarde, depois que as lembranças do que aconteceu em Derry durante e depois daquele verão tivessem começado a desaparecer rapidamente, ocorreu a Richie Tozier, na metade da adolescência, que John Kennedy o fazia lembrar-se de Bill Gago.

 

Quem?, responderia sua mente.

 

Ele ergueria o olhar, ligeiramente intrigado, e balançaria a cabeça. Um cara que conheci, ele pensaria, e deixaria de lado o desconforto com um empurrão dos óculos no nariz e voltando para o dever de casa. Um cara que conheci muito tempo atrás.

 

Bill Denbrough colocou as mãos nos quadris, sorriu com alegria e disse:

 

— B-B-Bem, a-aqui e-e-estamos... agora o q-q-q-que estamos f-f-fazendo?

 

— Trouxe cigarro? — perguntou Richie com esperanças.

 

Cinco dias depois, com junho se aproximando do final, Bill contou a Richie que queria ir até a rua Neibolt para investigar debaixo da varanda onde Eddie tinha visto o leproso.

 

Eles tinham acabado de chegar à casa de Richie, e Bill estava empurrando Silver. Ele levou Richie na garupa durante a maior parte do caminho, em uma viagem empolgante e veloz por Derry, mas teve o cuidado de deixar Richie descer a uma quadra da casa dele. Se a mãe de Richie visse Bill com ele na garupa, teria um troço.

 

O cesto de Silver estava cheio de revólveres de brinquedo, dois de Bill e três de Richie. Eles passaram a maior parte da tarde no Barrens, brincando de armas. Beverly Marsh apareceu por volta das 15h usando uma calça jeans surrada e carregando um rifle de ar comprimido Daisy muito velho que tinha perdido a maior parte do impacto; quando você puxava o gatilho preso com fita adesiva, ele soltava um apito que, para Richie, parecia alguém se sentando em uma almofada de pum muito velha. A especialidade dela era de atiradora de elite japonesa. Ela era muito boa em subir em árvores e atirar nos desavisados que passavam por baixo. O hematoma na bochecha dela tinha passado a amarelo bem claro.

 

— O que você disse? — perguntou Richie. Ele estava chocado... mas também um pouco intrigado.

 

— Eu q-q-quero dar uma o-olhada debaixo daquela v-v-varanda — disse Bill. A voz estava teimosa, mas ele não olhou para Richie. Havia um ponto bem vermelho no alto das bochechas dele. Eles tinham chegado em frente à casa de Richie. Maggie Tozier estava na varanda lendo um livro. Ela acenou para eles e disse:

 

— Oi, garotos! Querem chá gelado?

 

— Já vamos entrar, mãe — disse Richie, e depois, para Bill: — Não vai ter nada lá. Ele deve ter visto um mendigo e morreu de medo. Você conhece Eddie.

 

— É, eu c-conheço E-E-Eddie. M-Mas le-le-lembra da f-foto no á-álbum?

 

Richie mexeu os pés com desconforto. Bill levantou a mão direita. Os band-aids não estavam mais lá, mas Richie conseguia ver os círculos de casca de ferida nos três dedos.

 

— É, mas...

 

— M-Me e-e-escuta — disse Bill. Ele começou a falar bem devagar, sustentando o olhar de Richie. Mais uma vez, relatou as similaridades entre a história de Ben e a de Eddie... e fez uma ligação entre elas e o que eles tinham visto na foto em movimento. Ele sugeriu de novo que o palhaço tinha assassinado os garotos e garotas encontrados mortos em Derry desde dezembro. — E t-talvez não só e-eles — concluiu Bill. — E t-t-todos os q-que de-desapareceram? E E-E-Eddie C-C-Corcoran?

 

— Merda, o padrasto dele assustou ele — disse Richie.

 

— T-Talvez s-sim, e t-talvez n-n-não — disse Bill. — Eu t-também conhecia ele um p-pouco, e s-s-sei que o p-p-pai b-b-batia nele. E t-também sei que ele p-p-passava n-noites fo-fora pra f-ficar longe d-dele.

 

— Então pode ser que o palhaço tenha pegado ele enquanto ele estava passando a noite fora — disse Richie, pensativo. — É isso?

 

Bill assentiu.

 

— O que você quer então? O autógrafo dele?

 

— Se o pa-pa-a-lhaço matou os o-o-outros, então e-ele m-m-matou Gi-Georgie — disse Bill. Ele encarou Richie com olhos que pareciam ardósia: duros, inflexíveis, imperdoáveis. — Eu q-quero m-m-matar ele.

 

— Jesus Cristo — disse Richie, assustado. — Como você vai fazer isso?

 

— M-Meu p-pai tem uma p-pistola — disse Bill. Um pouco de cuspe voou dos lábios dele, mas Richie nem percebeu. — E-Ele não s-sabe que eu sei, mas s-sei. Está na p-prateleira do alto do a-armário dele.

 

— Isso é ótimo se ele for um homem — disse Richie — e se conseguirmos encontrar ele sentado em uma pilha de ossos das crianças...

 

— Servi o chá gelado, meninos! — gritou a mãe de Richie com alegria. — É melhor vocês virem tomar!

 

— Já vamos, mãe! — gritou Richie de novo, oferecendo um grande sorriso falso que desapareceu assim que ele se virou para Bill. — Porque eu não atiraria em um cara só por ele estar usando uma roupa de palhaço, Billy. Você é meu melhor amigo, mas eu não faria isso e não deixaria você fazer se pudesse impedir.

 

— E s-se re-realmente ti-tivesse uma p-pilha de o-o-ossos?

 

Richie lambeu os lábios e não disse nada por um momento. Em seguida, perguntou a Bill:

 

— O que você vai fazer se não for um homem, Billy? E se for algum tipo de monstro? E se coisas assim existirem? Ben Hanscom disse que era a múmia, que os balões estavam flutuando contra o vento e não faziam sombra. A foto no álbum de Georgie... ou nós imaginamos aquilo, ou foi magia, e tenho que falar, cara, acho que não imaginamos. Seus dedos não imaginaram, né?

 

Bill balançou a cabeça.

 

— Então o que vamos fazer se não for um homem, Billy?

 

— E-Então n-n-nós vamos ter que p-pensar em o-outra coisa.

 

— Ah, é — disse Richie. — Consigo imaginar. Depois de você atirar quatro ou cinco vezes e ele continuar vindo pra cima da gente como o Lobisomem Adolescente do filme que vi com Ben e Bev, você pode tentar usar um estilingue. E se isso não funcionar, vou jogar um pouco do meu rapé nele. E se ele continuar vindo depois disso, vamos pedir tempo e dizer “Espera aí. Isso não está dando certo, seu Monstro. Olha, tenho que ir pesquisar na biblioteca. Volto logo. Com licença.” É isso que você vai dizer, Big Bill?

 

Ele olhou para o amigo e sentiu a cabeça latejando rapidamente. Parte dele queria que Bill insistisse na ideia de verificar debaixo da varanda daquela casa velha, mas outra parte queria desesperadamente que Bill desistisse da ideia. De algumas maneiras, tudo isso era como entrar em um daqueles filmes de terror de sábado à tarde do Aladdin, mas, de outra maneira, de uma maneira crucial, era bem diferente. Porque não era seguro como um filme, onde você sabia que tudo terminaria bem e, mesmo que não terminasse, não era com você que as coisas davam errado. A foto no quarto de Georgie não foi como um filme. Ele achou que estava se esquecendo daquilo, mas aparentemente estava se enganando porque agora conseguia ver os cortes ao redor dos dedos de Billy. Se ele não tivesse puxado Bill...

 

Incrivelmente, Bill estava sorrindo. Sorrindo de verdade.

 

— V-V-Você q-queria q-que eu levasse v-você pra o-olhar a fo-foto — disse ele. — A-Agora q-quero te le-evar pra o-olhar uma c-casa. O-Olho por olho.

 

— Você não tem peito — disse Richie, e os dois caíram na gargalhada.

 

— A-Amanhã de m-m-manhã — disse Bill, como se tivesse sido decidido.

 

— E se for um monstro? — perguntou Richie, sustentando o olhar de Bill. — Se a arma do seu pai não detiver ele, Big Bill? Se ele continuar vindo?

 

— V-V-Vamos p-p-pensar em a-alguma c-coisa — disse Bill de novo. — V-Vamos ter que p-pensar. — Ele jogou a cabeça para trás e riu como um louco. Depois de um momento, Richie se juntou a ele. Era impossível não rir junto.

 

Eles andaram pela calçada até a varanda de Richie. Maggie tinha preparado copos enormes de chá gelado com raminhos de menta e um prato de biscoito de baunilha.

 

— V-Você q-q-quer?

 

— Ah, não — disse Richie. — Mas eu vou.

 

Bill bateu nas costas dele com força, e isso pareceu tornar o medo suportável, embora Richie tenha tido uma certeza repentina (e não estava errado) de que o sono demoraria a chegar naquela noite.

 

— Vocês pareciam estar tendo uma conversa séria ali — disse a sra. Tozier, sentando-se com o livro em uma das mãos e um copo de chá gelado na outra. Ela olhou para os garotos com expectativa.

 

— Ah, Denbrough está com uma ideia maluca de que os Red Sox vão terminar na primeira divisão — disse Richie.

 

— E-Eu e meu p-p-p-pai a-achamos que e-eles têm ch-chance de te-terceiro lugar — disse Bill, e tomou um gole de chá gelado. — E-Está m-m-muito g-gostoso, sra. T-Tozier.

 

— Obrigada, Bill.

 

— O ano em que o Sox terminar na primeira divisão vai ser o ano que você vai parar de gaguejar, boca de mingau — disse Richie.

 

— Richie! — gritou a sra. Tozier, chocada. Ela quase deixou o copo de chá gelado cair. Mas tanto Richie quanto Bill Denbrough começaram a rir histericamente, sem parar. Ela olhou para o filho, para Bill e de novo para o filho, tomada de uma curiosidade que era mais uma simples perplexidade, mas em parte um medo tão delicado e pungente que penetrou no coração dela e vibrou lá como um diapasão feito de gelo.

 

Não entendo nenhum dos dois, pensou ela. Para onde vão, o que fazem, o que querem... ou o que vão se tornar. Às vezes, ah, às vezes os olhos deles ficam selvagens, e às vezes tenho medo por eles, e às vezes tenho medo deles...

 

Ela se viu pensando, não pela primeira vez, que seria bom se ela e Went tivessem tido uma menina também, uma loura bonita que ela poderia ter vestido de saia com lacinhos combinando e com sapatos de couro preto aos domingos. Uma menininha bonita que pediria para assar bolinhos depois da escola e que iria querer bonecas em vez de livros sobre ventriloquismo e modelos de carro Revell que andavam rápido.

 

Uma menininha que ela conseguiria compreender.

 

— Pegou? — perguntou Richie com ansiedade.

 

Eles estavam caminhando com as bicicletas pela rua Kansas, ao lado do Barrens, às 10h da manhã seguinte. O céu estava cinza. Havia chuva prevista para aquela tarde. Richie só conseguiu dormir depois de meia-noite e achava que Denbrough parecia ter tido uma noite bem insone também; o velho Big Bill carregava um par de malas Samsonite, uma debaixo de cada olho.

 

— P-Peguei — disse Bill. Ele bateu no casaco esporte verde que estava usando.

 

— Me deixa ver — disse Richie com fascinação.

 

— Agora, não — disse Bill, e depois sorriu. — A-Alguém pode ver. Mas o-o-olha o que mais eu t-trouxe. — Ele levou a mão às costas por baixo do casaco e pegou o estilingue Bullseye no bolso de trás.

 

— Ah, merda, estamos com problemas — disse Richie, começando a rir.

 

Bill fingiu estar magoado.

 

— F-F-Foi ideia s-sua, T-T-Tozier.

 

Bill ganhou o estilingue de alumínio feito especialmente para ele de aniversário no ano anterior. Foi o acordo que Zack conseguiu fazer entre a arma de calibre 22 que Bill queria e a recusa peremptória de sua mãe de sequer pensar em dar uma arma de fogo para um garoto da idade de Bill. O livreto de instruções dizia que um estilingue podia ser uma boa arma de caça depois que se aprendia a usá-lo. “Nas mãos certas, seu estilingue Bullseye é tão mortal e eficiente quanto um arco de freixo ou uma arma de fogo”, proclamava o livreto. Com tais virtudes devidamente exaltadas, o livreto prosseguia e anunciava que um estilingue podia ser perigoso; o dono não devia mirar uma das vinte bolinhas de metal que vinham com ele em uma pessoa, tanto quanto não miraria um revólver carregado em uma pessoa.

 

Bill ainda não era muito bom com ele (e no fundo achava que jamais seria), mas achava que o aviso do livreto era apropriado; o elástico grosso do estilingue era forte, e quando você acertava uma lata de alumínio com ele, fazia um buraco enorme.

 

— Melhorou no estilingue, Big Bill? — perguntou Richie.

 

— Um p-p-pouco — disse Bill. Era verdade apenas em parte. Depois de muito estudar as fotos no livreto (que eram chamadas de figs, fig 1, fig 2 e assim por diante) e treinar o bastante no Parque Derry a ponto de cansar o braço, ele chegou a conseguir atingir o alvo de papel que também veio com o estilingue talvez três a cada dez vezes. E uma vez ele acertou na mosca. Quase.

 

Richie puxou o elástico pela parte de trás, fez com que vibrasse e o devolveu. Ele não disse nada, mas internamente duvidou que teria o mesmo valor que a arma de Zack Denbrough quando fosse hora de matar monstros.

 

— É? — disse ele. — Você trouxe seu estilingue, certo, grande coisa. Isso não é nada. Olha o que eu trouxe, Denbrough. — E de dentro do casaco ele tirou uma caixa com um desenho de um homem careca dizendo A-TCHIM! com as bochechas inchadas como as de Dizzy Gillespie. PÓ DE RAPÉ DO DR. WACKY, dizia a caixa. É UMA GARGALHADA SÓ!

 

Os dois se olharam por bastante tempo e então desabaram, gritando, gargalhando e batendo nas costas um do outro.

 

— E-E-Estamos pr-preparados para q-qualquer coisa — disse Bill por fim, ainda dando risadinhas e secando os olhos com a manga do casaco.

 

— Sua cara e minha bunda, Bill Gago — disse Richie.

 

— A-A-Achei que e-era o c-c-contrário — disse Bill. — Agora escuta. V-Vamos g-guardar s-sua bi-bi-bicicleta no B-Barrens. O-Onde d-deixo Silver quando brincamos. V-Você vai na m-minha g-g-garupa pro c-caso de a g-gente ter que fu-fugir r-r-rápido.

 

Richie assentiu, não sentindo necessidade de discutir. A bicicleta Raleigh aro 22 (ele às vezes batia com os joelhos no guidão quando estava pedalando rápido) parecia uma bicicleta pigmeia ao lado da enormidade esquelética que era Silver. Ele sabia que Bill era mais forte e Silver era mais rápida.

 

Eles chegaram à pequena ponte e Bill ajudou Richie a guardar a bicicleta lá embaixo. Em seguida, eles se sentaram e, com o ocasional tremor do tráfego passando acima da cabeça deles, Bill abriu o casaco e pegou a arma do pai.

 

— T-Tenha m-muito c-c-cuidado — disse Bill, entregando-a depois de Richie assobiar em aprovação. — N-Não tem t-trava de s-se-segurança em uma p-pistola assim.

 

— Está carregada? — perguntou Richie, impressionado. A pistola, uma PPK Walther que Zack Denbrough adquiriu durante a ocupação do Japão, parecia incrivelmente pesada.

 

— A-ainda n-não — disse Bill. Ele bateu no bolso. — T-T-Tenho umas b-b-ba-balas a-aqui. Mas meu p-p-pai di-diz que às v-vezes você o-olha e então, s-se a a-a-a-arma a-acha que v-você não está tomando c-cuidado, ela s-se c-c-carrega s-sozinha. P-Pra poder a-a-atirar em você. — O rosto dele formou um sorriso estranho enquanto ele falava, um sorriso que dizia que, embora ele não acreditasse em uma coisa boba assim, também acreditava inteiramente.

 

Richie entendia. Havia uma mortalidade enjaulada no objeto que ele nunca sentira na 22 do pai, nem na 30-30, nem no rifle (embora houvesse alguma coisa no rifle, não? Alguma coisa na forma como ele ficava encostado, mudo e lubrificado, no canto do armário da garagem; como se pudesse dizer, caso pudesse falar: Eu poderia ser mau se quisesse; muito mau, pode apostar). Mas essa pistola, essa Walther... era como se ela tivesse sido feita com o propósito claro de atirar em pessoas. Com um tremor, Richie percebeu que era esse o motivo de sua fabricação. Que outra coisa se podia fazer com uma pistola? Usá-la para acender seus cigarros?

 

Ele virou o cano em sua direção, tomando cuidado de manter as mãos longe do gatilho. Uma olhada dentro do olho preto sem pálpebra da Walther o fez entender perfeitamente o sorriso peculiar de Bill. Ele se lembrou do pai dizendo: Se você lembrar que não existe arma descarregada, vai ficar bem com armas de fogo por perto pelo resto da vida, Richie. Ele devolveu a pistola para Bill, feliz de se livrar dela.

 

Bill a guardou dentro do casaco de novo. De repente, a casa na rua Neibolt pareceu menos assustadora para Richie... mas a possibilidade de que sangue pudesse ser derramado, isso parecia bem mais forte.

 

Ele olhou para Bill, talvez pretendendo apelar para essa ideia de novo, mas viu o rosto do amigo, leu a expressão e apenas disse:

 

— Pronto?

 

Como sempre, quando Bill finalmente tirou o segundo pé do chão, Richie teve certeza de que eles iriam cair e abrir o crânio no cimento duro. A bicicleta enorme tremeu loucamente de um lado para o outro. As cartas presas nos raios pararam de fazer sons individuais e começaram a disparar como uma metralhadora. Os tremores bêbados da bicicleta ficaram mais pronunciados. Richie fechou os olhos e esperou o inevitável.

 

E então, Bill gritou:

 

— Hi-yo Silver, VAMOOOS!

 

A bicicleta pegou velocidade e o balanço enjoativo de um lado para o outro acabou parando. Richie deixou de apertar a cintura de Bill e se segurou na garupa acima da roda de trás. Bill atravessou a rua Kansas inclinado, disparou pelas ruas laterais em ritmo ainda mais rápido e seguiu para a Witcham como se apostando corrida. Eles saíram com tudo na rua Strapham e depois na Witcham em uma velocidade exorbitante. Bill quase fez Silver deitar e gritou “Hi-yo Silver!” de novo.

 

— Pedala, Big Bill — gritou Richie, tão apavorado que estava quase sujando a calça, mas rindo loucamente ao mesmo tempo. — Fica de pé nessa belezinha!

 

Bill ajustou a ação à palavra, ficou de pé e se inclinou por cima do guidão, pedalando em ritmo alucinado. Ao olhar para as costas de Bill, que eram incrivelmente largas para um garoto de 11, quase 12 anos, vendo-as trabalhar por baixo do casaco, com os ombros se inclinando primeiro para um lado e depois para o outro enquanto ele jogava o peso de um pedal para o outro, Richie de repente teve certeza de que eles eram invencíveis... que viveriam para todo o sempre. Bem... talvez não eles, mas Bill, sim. Bill não fazia ideia do quanto era forte, do quanto era seguro e perfeito.

 

Eles seguiram em disparada, e as casas começaram a rarear e as ruas cruzavam a Witcham em intervalos mais longos.

 

— Hi-yo Silver! — gritou Bill, e Richie gritou com sua Voz de Negro Jim, alta e aguda:

 

— Hi-yo Silva, mestre, issaí! Ocê tá mandando ver na bike! Meu Deus do céu! Hi-yo Silva VAMOOOS!

 

Agora eles estavam passando por campos verdes que pareciam chapados e sem profundidade sob o céu cinzento. Richie conseguia ver a velha estação de trem de tijolo ao longe. À direita dela, havia vários armazéns. Silver bateu em um trilho de trem, depois em outro.

 

E aqui estava a rua Neibolt, surgindo à direita. PÁTIO DE TRENS DE DERRY, dizia uma placa azul debaixo da placa da rua. Estava enferrujada e torta. Abaixo dela havia uma placa bem maior, de fundo amarelo e letras pretas. Parecia um comentário sobre o próprio pátio de trens: BECO SEM SAÍDA, dizia ela.

 

Bill entrou na rua Neibolt, foi reduzindo até a calçada e colocou o pé no chão.

 

— Vamos a-andar a partir daqui.

 

Richie saiu da garupa com uma sensação misturada de alívio e arrependimento.

 

— Tudo bem.

 

Eles andaram pela calçada rachada e cheia de ervas daninhas. À frente, no pátio de trens, um motor a diesel acelerou lentamente, parou e recomeçou. Uma ou duas vezes eles ouviram a melodia metálica de acoplamentos se unindo.

 

— Com medo? — Richie perguntou a Bill.

 

Bill, empurrando Silver pelo guidão, olhou para Richie brevemente e assentiu.

 

— S-Sim. Você?

 

— Sem dúvida — disse Richie.

 

Bill contou a Richie que tinha perguntado ao pai sobre a rua Neibolt na noite anterior. O pai disse que muitos funcionários de trens moraram aqui até o final da Segunda Guerra Mundial: engenheiros, condutores, sinaleiros, funcionários do pátio, operadores de bagagem. A rua entrou em declínio junto com os trens, e conforme Bill e Richie seguiam por ela, as casas ficaram mais separadas, mais velhas, mais sujas. As últimas três ou quatro dos dois lados estavam vazias e cobertas por tábuas, com os jardins malcuidados. Uma placa de VENDE-SE balançava desamparada na varanda de uma. Para Richie, a placa parecia ter mil anos de idade. A calçada sumiu, e agora eles estavam andando no chão de terra batida em que cresciam algumas ervas daninhas.

 

Bill parou e apontou.

 

— A-Ali está — disse ele baixinho.

 

O número 29 da rua Neibolt já tinha sido uma casa elegante no estilo Cape Cod. Talvez, pensou Richie, um engenheiro morasse ali, um solteirão que não usava calça social, mas sim calça jeans e um monte de luvas com punhos rígidos e quatro ou cinco bonés, um cara que iria para casa uma ou duas vezes por mês por períodos de três ou quatro dias e escutaria rádio enquanto mexia no jardim; um cara que comeria basicamente comidas fritas (e nada de legumes, apesar de plantar para os amigos) e que, em noites com vento, pensaria na Garota que Deixou para Trás.

 

Agora a tinta vermelha tinha desbotado até um cor-de-rosa lavado que estava descascando em pedaços feios que pareciam feridas. As janelas eram olhos cegos cobertos de tábuas. A maior parte das telhas tinha caído. Ervas daninhas cresciam de forma desenfreada dos dois lados da casa, e o gramado estava coberto com a primeira leva de dentes-de-leão da estação. À esquerda, uma cerca alta, talvez no passado branca e bem-cuidada, mas agora em um tom cinza que era quase igual ao céu baixo, aparecia esporadicamente entre a vegetação densa. A meio caminho dessa cerca, Richie conseguia ver uma área monstruosa de girassóis. Os mais altos pareciam ter um metro e meio ou mais. Tinham uma aparência inchada e feia da qual ele não gostou. Uma brisa os fez balançar e eles pareceram assentir juntos: Os garotos chegaram, não é legal? Mais garotos. Nossos garotos. Richie tremeu.

 

Enquanto Bill encostava Silver com cuidado em um olmo, Richie observou a casa. Ele viu uma roda na grama alta perto da varanda e mostrou para Bill. Bill assentiu; era o triciclo virado que Eddie mencionara.

 

Eles olharam para um lado e para o outro da rua Neibolt. O som do motor a diesel aumentou e diminuiu, depois recomeçou. O som parecia harmonizar com o céu como um encanto. A rua estava completamente deserta. Richie conseguia ouvir carros ocasionais passando na autoestrada 2, mas não conseguia vê-los.

 

O motor a diesel soou e sumiu, soou e sumiu.

 

Os enormes girassóis assentiram juntos com sabedoria. Garotos frescos. Bons garotos. Nossos garotos.

 

— E-E-Está p-pronto? — perguntou Bill, e Richie deu um salto.

 

— Sabe, eu estava pensando que acho que os últimos livros que peguei na biblioteca vencem hoje — disse Richie. — Acho que devo...

 

— P-P-Para de m-merda, R-R-Richie. Você e-está pronto ou n-n-não?

 

— Acho que sim — disse Richie, sabendo que não estava nada pronto, que nunca estaria pronto para essa situação.

 

Eles atravessaram o gramado alto até a varanda.

 

— O-Olha a-a-ali — disse Bill.

 

Na extremidade do lado esquerdo, a grade de ripas entrelaçadas da varanda estava forçada para fora na direção dos arbustos. Os dois garotos conseguiam ver os pregos enferrujados que tinham se soltado. Havia roseiras velhas ali, e apesar de as rosas à direita e à esquerda do pedaço solto de cercado estarem florescendo de forma aleatória, as que ficavam ao redor estavam murchas e mortas.

 

Bill e Richie se entreolharam com expressão soturna. Tudo que Eddie disse parecia verdade; sete semanas depois, as evidências ainda estavam lá.

 

— Você não quer mesmo entrar lá embaixo, quer? — perguntou Richie. Ele estava quase implorando.

 

— N-N-Não — disse Bill —, m-mas eu v-vou.

 

E com o coração despencando, Richie viu que ele estava falando sério. Aquela luz cinza estava de volta aos olhos de Bill, brilhando com firmeza. Havia uma ansiedade pétrea nas linhas do rosto dele que o fazia parecer mais velho. Richie pensou: Acho que ele pretende mesmo matar o monstro se ele ainda estiver lá. Matar e quem sabe cortar a cabeça fora, levar pro pai e dizer “Olha, foi isso que matou Georgie, agora você vai voltar a falar comigo de noite, quem sabe só me contar como foi seu dia, ou quem perdeu quando vocês tiraram cara ou coroa pra decidir quem ia pagar o café da manhã?”

 

— Bill — disse ele, mas Bill não estava mais lá. Estava andando em direção ao lado direito da varanda, onde Eddie deve ter entrado rastejando. Richie teve que ir atrás e quase tropeçou no triciclo no meio da grama, enferrujando lentamente no chão.

 

Ele alcançou Bill quando ele estava agachado, olhando debaixo da varanda. Não havia cerca deste lado; alguém, algum vagabundo, tinha arrancado tempos antes para ter acesso ao abrigo ali embaixo, para fugir da neve de janeiro ou da chuva fria de novembro ou de uma tempestade de verão.

 

Richie se agachou ao lado dele, com o coração disparado. Não havia nada debaixo da varanda além de montes de folhas podres, jornais amarelados e sombras. Sombras demais.

 

— Bill — repetiu ele.

 

— O q-q-quê?

 

Bill estava com a Walther do pai na mão de novo. Ele puxou o pente e pegou quatro balas no bolso da calça. Carregou uma de cada vez. Richie observou com fascinação, depois olhou debaixo da varanda de novo. Desta vez, viu outra coisa. Vidro quebrado. Pedaços reluzentes de vidro estilhaçado. Sua barriga se contraiu dolorosamente. Ele não era um garoto burro, e entendeu que isso praticamente confirmava a história de Eddie. Estilhaços de vidro nas folhas podres debaixo da varanda significavam que a janela tinha sido quebrada de dentro. Do porão.

 

— O q-quê? — perguntou Bill de novo, olhando para Richie. Seu rosto estava sério e pálido. Ao olhar para aquele rosto determinado, Richie jogou mentalmente a toalha.

 

— Nada — disse ele.

 

— Você v-vem?

 

— Vou.

 

Eles se arrastaram para debaixo da varanda

 

O cheiro de folhas podres era um cheiro do qual Richie costumava gostar, mas não havia nada de agradável no cheiro ali embaixo. As folhas pareciam esponjosas debaixo de suas mãos e joelhos, e ele teve uma impressão de que podiam formar uma pilha de 60 a 90 centímetros. Ele se perguntou de repente o que faria se uma mão ou uma garra surgisse no meio daquelas folhas e o agarrasse.

 

Bill estava examinando a janela quebrada. Havia vidro para todo lado. A tábua de madeira que ficava no meio da vidraça estava partida em dois debaixo dos degraus da varanda. A parte de cima da moldura da janela se projetava como um osso quebrado.

 

— Alguma coisa bateu nessa porra com força — murmurou Richie. Bill, agora olhando para dentro, ou ao menos tentando, assentiu.

 

Richie empurrou-o com o cotovelo o bastante para também poder olhar. O porão era uma confusão escura de caixas e engradados. O chão era de terra e, como as folhas, emitia um aroma úmido. Havia uma fornalha à esquerda, com canos redondos que iam até o teto baixo. Atrás dela, no final do porão, Richie conseguia ver uma cabine grande com laterais de madeira. Uma baia de cavalo foi seu primeiro pensamento, mas quem guardava cavalos em um porão? Logo ele se deu conta de que em uma casa velha como essa, a fornalha devia usar carvão em vez de óleo. Ninguém tinha se dado ao trabalho de converter a fornalha porque ninguém queria aquela casa. Aquela coisa com paredes era um depósito de carvão. À extrema direita, Richie conseguia ver um lance de escadas indo para o térreo.

 

Agora Bill estava se sentando... se encolhendo para a frente... e antes que Richie conseguisse acreditar no que ele estava fazendo, as pernas de seu amigo desapareceram na janela.

 

— Bill! Pelamordedeus — sibilou ele —, o que você está fazendo? Sai daí!

 

Bill não respondeu. Ele deslizou pelo buraco, arrastou o casaco pelas costas e passou perto de um pedaço de vidro que teria feito um corte feio. Um segundo depois, Richie ouviu os tênis dele baterem na terra dura lá dentro.

 

— Merda de ideia — murmurou Richie freneticamente para si mesmo, olhando para o quadrado de escuridão no qual seu amigo desapareceu. — Bill, você perdeu a cabeça?

 

A voz de Bill veio lá de dentro:

 

— P-Po-pode ficar aí em c-cima se q-quiser, R-R-Richie. F-Fica vi-vigiando.

 

O que ele fez foi rolar sobre a barriga e enfiar as pernas pela janela do porão antes que o medo pudesse tomar conta dele, torcendo para não cortar as mãos nem a barriga nos pedaços de vidro quebrado.

 

Alguma coisa agarrou suas pernas. Richie gritou.

 

— S-S-Sou s-s-só e-eu — sibilou Bill, e um momento depois Richie estava de pé ao lado dele no porão, ajeitando a camisa e o casaco. — Q-Quem v-você a-achou que e-era?

 

— O bicho-papão — disse Richie, e deu uma risada trêmula.

 

— V-Você v-vai p-por a-ali e e-e-eu v-v-v...

 

— Foda-se isso — disse Richie. Ele conseguia ouvir seus batimentos na voz, fazendo-a parecer trêmula e irregular, primeiro aguda e depois grave. — Vou ficar com você, Big Bill.

 

Eles seguiram em direção ao depósito de carvão primeiro, Bill um pouco à frente com a arma na mão, Richie logo atrás, tentando olhar para todos os lados ao mesmo tempo. Bill ficou ao lado de uma das laterais do depósito de carvão por um momento, depois deu um salto de repente, apontando a arma com as duas mãos. Richie fechou bem os olhos e se preparou para a explosão. Ela não aconteceu. Ele abriu os olhos de novo com cuidado.

 

— N-N-Nada além de c-carvão — disse Bill, e riu com nervosismo.

 

Richie andou até Bill e olhou. Ainda havia um resto de carvão velho lá dentro, empilhado quase até o teto no fundo do depósito e descendo até os pés deles. Era preto como as asas de um corvo.

 

— Vamos... — começou Richie, e então a porta no alto da escada do porão se abriu com força contra a parede, fazendo um estrondo alto e espalhando a luz mortiça do dia pela escadaria.

 

Os dois garotos gritaram.

 

Richie ouviu sons de rosnado. Eram bem altos, os sons que um animal selvagem em uma jaula poderia fazer. Viu sapatos descendo os degraus. Uma calça jeans surrada acima deles, mãos balançando...

 

Mas não eram mãos... eram patas. Enormes, deformadas.

 

— S-S-Sobe no c-c-carvão! — gritou Bill, mas Richie estava paralisado por saber de repente o que estava atrás deles, o que ia matá-los nesse porão com fedor de terra úmida e vinho barato derramado nos cantos. Sabendo, mas precisando ver. — Tem uma j-j-janela no a-alto do c-carvão!

 

As patas eram cobertas de pelos castanhos densos que se encaracolavam como arame; os dedos tinham unhas irregulares nas pontas. Agora, Richie viu uma jaqueta de cetim. Era preta com viés laranja, as cores da Derry High School.

 

— V-V-Vai! — gritou Bill, e deu um empurrão gigantesco em Richie. Ele caiu esparramado no carvão. Pontas afiadas o cutucaram dolorosamente, fazendo-o despertar. Mais carvão caiu sobre suas mãos. O rosnado louco prosseguiu.

 

O pânico tomou conta da mente de Richie.

 

Mal percebendo o que estava fazendo, ele subiu a montanha de carvão, progredindo, escorregando, subindo de novo, sempre gritando. A janela no alto estava manchada de preto e não deixava entrar luz nenhuma. Estava bem trancada. Richie pegou a tranca, que era do tipo que se girava, e jogou o peso contra ela. A tranca nem se mexeu. O rosnado estava mais próximo agora.

 

A arma foi disparada abaixo dele, e o som foi quase ensurdecedor no ambiente fechado. Fumaça intensa e acre fez o nariz de Richie arder. Isso provocou um choque que o levou à percepção, e ele se deu conta de que estava tentando girar a tranca para o lado errado. Ele mudou a direção da força que estava aplicando e a tranca cedeu com um gemido enferrujado. Poeira de carvão cobriu suas mãos como pimenta.

 

A arma soou de novo com um segundo estrondo ensurdecedor. Bill Denbrough gritou:

 

— VOCÊ MATOU MEU IRMÃO, SEU MERDA!

 

Por um momento, a criatura que tinha descido a escada pareceu rir, pareceu falar. Era como se um cachorro cruel tivesse começado a latir de repente palavras desconexas, e por um momento Richie pensou que a coisa de jaqueta do ensino médio tinha rosnado Também vou matar você.

 

— Richie! — gritou Bill, e Richie ouviu carvão estalando e deslizando conforme Bill se esforçava para subir. Os rosnados e rugidos prosseguiram. Madeira rachou. Houve uma mistura de latidos e uivos, sons de um pesadelo terrível.

 

Richie deu um empurrão na janela, sem se importar se o vidro quebraria e cortaria suas mãos em pedacinhos. Tinha passado do ponto de ligar. Ela não quebrou; abriu para fora com a dobradiça de aço coberta de ferrugem. Mais poeira de carvão voou, desta vez no rosto de Richie. Ele saiu no pátio lateral como uma enguia, sentindo o cheiro de ar fresco, sentindo a grama alta bater no rosto. Mal percebeu que estava chovendo. Ele conseguia ver os caules altos dos enormes girassóis, verdes e peludos.

 

A Walther foi disparada uma terceira vez, e a fera no porão gritou, um som primitivo de pura fúria. E então, Bill gritou:

 

— Ele me p-pegou, Richie! Socorro! Ele me p-p-pegou!

 

Richie se virou de quatro e viu o círculo apavorado do rosto do amigo no quadrado da janela do porão pela qual a quantidade de carvão suficiente para todo o inverno era jogada a cada mês de outubro.

 

Bill estava deitado no carvão. Suas mãos se balançavam e procuravam sem resultado a moldura da janela, que estava fora de alcance. Sua camisa e casaco estavam levantados até o peito. E ele estava deslizando para trás... não, ele estava sendo puxado para trás por alguma coisa que Richie mal conseguia ver. Era uma sombra enorme em movimento atrás de Bill. Uma sombra que rosnava e murmurava e parecia quase humana.

 

Richie não precisava vê-la. Tinha visto no sábado anterior, na tela do cinema Aladdin. Era loucura, loucura total, mas mesmo assim nunca ocorreu a Richie duvidar de sua própria sanidade nem de sua conclusão.

 

O Lobisomem Adolescente tinha agarrado Bill Denbrough. Só que não era aquele Michael Landon com um monte de maquiagem e um monte de pelos falsos. Era real.

 

Como se para provar isso, Bill gritou de novo.

 

Richie se esticou e segurou as mãos de Bill. A pistola Walther estava em uma delas, e pela segunda vez naquele dia, Richie olhou em seu olho negro... só que desta vez ela estava carregada.

 

Eles fizeram cabo de guerra por Bill, Richie puxando pelas mãos, o Lobisomem pelos tornozelos.

 

— S-S-Sai daqui, Richie! — gritou Bill. — S-Sai...

 

O rosto do Lobisomem saiu da escuridão de repente. A testa era baixa e projetada, coberta de esparsos pelos. As bochechas eram afundadas e peludas. Os olhos eram castanho-escuros, tomados de uma inteligência horrível, uma percepção horrível. A boca se abriu e ele começou a rosnar. Uma espuma branca escorreu pelos cantos do lábio inferior em dois filetes que pingaram do queixo. O cabelo na cabeça estava puxado para trás em uma paródia hedionda de um penteado adolescente. Ele jogou a cabeça para trás e rugiu, sem tirar os olhos de Richie.

 

Bill lutou para subir pelo carvão. Richie segurou os antebraços dele e puxou. Por um momento, ele achou que venceria. Mas então o Lobisomem voltou a segurar as pernas de Bill e ele foi puxado para trás, em direção à escuridão mais uma vez. Ele era mais forte. Estava segurando Bill e pretendia ficar com ele.

 

Sem pensar no que estava fazendo nem por que, Richie ouviu a Voz do Policial Irlandês saindo da boca, a voz do sr. Nell. Mas não era Richie Tozier fazendo uma imitação ruim; não era nem exatamente o sr. Nell. Era a Voz de cada policial irlandês que já tinha vivido, feito batidas e girado um cassetete pela cordinha ao testar portas de lojas fechadas depois da meia-noite:

 

— Solta ele, meu chapa, senão racho sua cuca! Juro por Deus! Solta ele agora senão vou servir sua bunda numa bandeja!

 

A criatura no porão soltou um rugido de ira de arrebentar os tímpanos... mas pareceu a Richie que havia uma outra emoção nesse grito. Talvez medo. Ou dor.

 

Ele deu outro puxão forte, e Bill voou pela janela e caiu na grama. Olhou para Richie com olhos sombrios e apavorados. A parte da frente do casaco estava manchada de preto de poeira de carvão.

 

— R-R-Rápido! — ofegou Bill. Estava quase gemendo. Ele agarrou a camisa de Richie. — T-T-Temos...

 

Richie conseguia ouvir carvão deslizando de novo. Um momento depois, a cara do Lobisomem ocupou a janela do porão. Ele rosnou para eles. Enfiou as patas na grama.

 

Bill ainda estava com a Walther, tinha ficado com a arma na mão o tempo todo. Agora, ele a segurou com as duas mãos, apertou bem os olhos e puxou o gatilho. Houve outro estrondo ensurdecedor. Richie viu um pedaço do crânio do Lobisomem se soltar e uma torrente de sangue escorrer pela lateral do rosto dele, molhando o pelo e a gola da jaqueta que ele usava.

 

Rugindo, ele começou a sair pela janela.

 

Com movimentos lentos, sonhadores, Richie enfiou a mão dentro do casaco até o bolso de trás da calça. Pegou o envelope com a foto do homem espirrando. Abriu-o enquanto a criatura sangrenta que rugia saía pela janela à força, afundando as garras na terra. Richie abriu o pacote e apertou-o.

 

— Volte pro seu lugar, meu chapa! — ordenou ele com a Voz do Policial Irlandês. Uma nuvem branca voou na cara do Lobisomem. Os rugidos pararam de repente. Ele olhou para Richie com surpresa quase cômica e fez um som engasgado. Os olhos, vermelhos e embaçados, rolaram na direção de Richie e pareceram marcá-lo para todo o sempre.

 

E então, ele começou a espirrar.

 

Ele espirrou sem parar. Filetes de saliva voavam de seu focinho. Pedaços verde-enegrecidos de meleca voavam das narinas. Uma dessas caiu na pele de Richie e queimou como ácido. Ele a limpou com um grito de dor e nojo.

 

Ainda havia raiva na cara dele, mas também havia dor. Era inconfundível. Bill poderia tê-lo ferido com a pistola do pai, mas Richie o feriu mais... primeiro com a Voz do Policial Irlandês, depois com o pó de rapé.

 

Meu Deus, se eu tivesse pó de mico também e quem sabe um aparelho de choque, poderia até matar ele, pensou Richie, e então Bill segurou a gola do casaco dele e puxou-o para trás.

 

Ainda bem que ele fez isso. O Lobisomem parou de espirrar tão repentinamente quanto começou e pulou para cima de Richie. E foi rápido, incrivelmente rápido.

 

Richie poderia ter ficado ali com o envelope vazio de pó de rapé do dr. Wacky na mão, olhando para o Lobisomem com uma espécie de espanto drogado, pensando no quanto o pelo dele era castanho, no quanto o sangue era vermelho, que nada era em preto e branco na vida real. Poderia ter ficado ali até as patas dele se fecharem ao redor de seu pescoço e suas longas unhas arrancarem sua garganta, mas Bill o puxou de novo até ficar de pé.

 

Richie cambaleou atrás dele. Eles correram até a frente da casa, e Richie pensou: Ele não vai ousar nos caçar mais, estamos na rua agora, ele não vai ousar nos caçar, não vai ousar, não vai ousar...

 

Mas estava vindo. Richie conseguia ouvi-lo logo atrás, murmurando, rosnando e babando.

 

Ali estava Silver, ainda encostada na árvore. Bill pulou no selim e jogou a pistola do pai na cestinha da frente, onde eles já tinham carregado tantas armas de brinquedo. Richie lançou um olhar para trás ao correr para a garupa e viu o Lobisomem atravessando o gramado na direção deles, a menos de 6 metros de distância. Sangue e baba se misturavam na jaqueta. Um osso branco brilhava no ferimento na têmpora direita. Havia manchas brancas de rapé nas laterais do nariz dele. E Richie viu duas outras coisas que pareceram completar o horror. Não havia zíper na jaqueta da coisa; em vez disso, havia grandes botões macios laranja, como pompons. A outra coisa era pior. Foi a outra coisa que o fez achar que ia desmaiar, ou apenas desistir e deixar que a coisa o matasse. Havia um nome bordado na jaqueta em linha dourada, o tipo de coisa que dava para mandar fazer por um dólar na Machen se que você quisesse.

 

Bordadas no peito esquerdo sangrento da jaqueta do Lobisomem, manchadas, mas legíveis, estavam as palavras RICHIE TOZIER.

 

A coisa pulou para cima deles.

 

— Vai, Bill! — gritou Richie.

 

Silver começou a se mover, mas devagar, devagar demais. Bill demorava tanto para pegar o embalo...

 

O Lobisomem atravessou o caminho irregular na mesma hora em que Bill saiu pedalando na rua Neibolt. Sangue manchava a calça jeans surrada do monstro, e ao olhar para trás por cima do ombro, tomado de uma espécie de fascinação terrível e firme que parecia hipnose, Richie viu que as costuras da calça estavam se abrindo em alguns pontos e tufos de pelos castanhos estavam aparecendo.

 

Silver balançou loucamente de um lado para o outro. Bill estava de pé, segurando o guidão da bicicleta por baixo, com a cabeça virada para o céu nublado e os tendões se destacando no pescoço. E as cartas ainda estavam fazendo disparos individuais.

 

Uma pata raspou em Richie. Ele gritou com infelicidade e se encolheu. O Lobisomem rosnou e sorriu. Estava perto o bastante para Richie conseguir ver as córneas amareladas dos olhos dele, conseguir sentir o cheiro de carne doce e podre no hálito dele. Os dentes eram presas tortas.

 

Richie gritou de novo quando o monstro o atacou com a pata. Tinha certeza de que ele ia arrancar sua cabeça, mas a pata passou na frente dele, errando por uns 3 centímetros. A força do movimento fez o cabelo suado de Richie voar da testa.

 

— Hi-yo Silver VAMOOOS! — gritou Bill com todo o fôlego.

 

Ele chegou ao alto de uma colina baixa. Não era muito, mas o bastante para dar impulso em Silver. As cartas ganharam velocidade e começaram a soar em uníssono. Bill pedalava loucamente. Silver parou de balançar e desceu reto pela rua Neibolt em direção à autoestrada 2.

 

Graças a Deus, graças a Deus, graças a Deus, pensou Richie com incoerência. Graças...

 

O Lobisomem rugiu de novo — ah! meu Deus, ele parece estar BEM AO MEU LADO — e Richie ficou sem ar quando sua camisa e seu casaco foram puxados por cima de sua traqueia. Ele fez um som estrangulado e conseguiu agarrar a cintura de Bill bem na hora em que seria arrancado da bicicleta. Bill foi puxado para trás, mas se segurou no guidão de Silver. Por um momento, Richie achou que a grande bicicleta simplesmente viraria e derrubaria os dois no chão. Mas seu casaco, que estava pronto para ir para o lixo de qualquer jeito, se rasgou nas costas com um som alto que pareceu um grande peido. Richie conseguia respirar de novo.

 

Ele virou a cabeça e olhou diretamente dentro daqueles olhos enevoados e assassinos.

 

— Bill! — Ele tentou berrar, mas a palavra não tinha força, não tinha som.

 

Bill pareceu ouvi-lo mesmo assim. Ele pedalou com mais força, mais do que em qualquer outra ocasião de sua vida. Suas entranhas pareciam inflar, se soltar. Ele conseguia sentir gosto de sangue e cobre no fundo da garganta. Seus globos oculares estavam saltados. Sua boca estava escancarada, absorvendo ar. E uma sensação louca e inelutável de euforia tomou conta dele, uma coisa que era selvagem e livre e apenas dele. Um desejo. Ele ficou de pé nos pedais; seduziu-os; maltratou-os.

 

Silver continuou a ganhar velocidade. Ela estava começando a sentir a rua agora, começando a voar. Bill conseguia senti-la ir.

 

— Hi-yo Silver! — gritou ele de novo. — Hi-yo Silver, VAMOOOS!

 

Richie conseguia sentir o baque de sapatos no asfalto. Ele se virou. A pata do Lobisomem bateu acima dos olhos dele com força perturbadora, e por um momento Richie achou que a parte de cima do seu crânio tinha sido arrancada. As coisas de repente pareceram embotadas, nada importantes. Os sons iam e vinham. As cores sumiram do mundo. Ele se virou de novo, agarrando-se desesperadamente a Bill. Sangue quente escorreu em seu olho direito e o fez arder.

 

A pata atacou de novo e acertou o para-choque de trás desta vez. Richie sentiu a bicicleta balançar loucamente, à beira de virar por um momento, mas finalmente se ajeitando. Bill gritou Hi-yo Silver, VAMOOOS! de novo, mas isso também soou distante, como um eco ouvido antes de desaparecer.

 

Richie fechou os olhos, se agarrou a Bill e esperou o fim.

 

Bill também ouviu os passos e entendeu que o palhaço ainda não tinha desistido, mas não ousava se virar para olhar. Ele saberia se o monstro os alcançasse e derrubasse. Isso era tudo que precisava realmente saber.

 

Vamos, rapaz, pensou ele. Me dá tudo agora! Tudo que você consegue! Vamos, Silver! VAMOS!

 

Assim, mais uma vez Bill Denbrough se viu correndo para vencer o diabo, só que agora o diabo era um palhaço sorridente horroroso cujo rosto suava em tinta branca oleosa, cuja boca se curvava em um sorriso vermelho vampiresco e predador, cujos olhos eram moedas prateadas brilhantes. Um palhaço que estava, por algum motivo louco, usando uma jaqueta da Derry High School por cima da roupa prateada com gola laranja e botões de pompom laranja.

 

Vamos, rapaz, vamos... Silver, o que você diz?

 

A rua Neibolt era uma mancha agora. Silver estava começando a murmurar. Os passos estavam mesmo um pouco mais distantes? Ele ainda não ousava se virar para olhar. Richie estava agarrado a ele com toda força, estava dificultando sua respiração, e Bill queria mandar Richie afrouxar o aperto, mas não ousava perder fôlego com isso também.

 

Um pouco à frente, como um belo sonho, estava a placa de PARE que marcava o cruzamento da rua Neibolt com a autoestrada 2. Carros passavam de um lado para o outro na Witcham. Em seu estado de terror exausto, isso pareceu um milagre aos olhos de Bill.

 

Agora, como ele teria que acionar os freios em um momento (ou fazer alguma coisa muito criativa), ele arriscou uma olhada por cima do ombro.

 

O que ele viu o fez reverter os pedais de Silver com um movimento único e repentino. Silver deslizou, queimou borracha do pneu traseiro travado e a cabeça de Richie bateu dolorosamente no ombro direito de Bill.

 

A rua estava completamente vazia.

 

Mas a cerca de 20 metros atrás deles, perto da primeira casa abandonada que formava uma espécie de cortejo fúnebre até o pátio de trens, ele viu um movimento laranja. Estava perto de um bueiro paralelo ao meio-fio.

 

— Ahhhh...

 

Quase tarde demais, Bill percebeu que Richie estava deslizando da garupa de Silver. Os olhos de Richie estavam virados para cima, de forma que Bill só conseguia ver a parte de baixo das íris por baixo das pálpebras superiores. Os óculos remendados estavam tortos. Sangue escorria lentamente da testa dele.

 

Bill segurou o braço dele, os dois deslizaram para a direita, e Silver perdeu o equilíbrio. Eles caíram na rua em um emaranhado de braços e pernas. Bill bateu com o cotovelo com força e urrou de dor. Os olhos de Richie tremeram depois do grito.

 

— Vou mostrarr pra usted como conseguirr esses tesouros, senhorr, mas esse tal de Dobbs é bastante perigoso — disse Richie em um ofego rouco.

 

Era sua Voz de Pancho Villa, mas o tom flutuante e desconectado assustou Bill terrivelmente. Ele viu vários pelos castanhos presos no ferimento superficial na testa de Richie. Os pelos eram meio encaracolados, como os pelos pubianos de seu pai. Eles fizeram Bill sentir mais medo, e ele deu um tapa forte na lateral da cabeça de Richie.

 

— Aiii! — gritou Richie. Seus olhos tremeram, depois se arregalaram. — Por que você me bateu, Big Bill? Vai quebrar meus óculos. Já não estão em boas condições, caso você não tenha reparado.

 

— Eu pe-pe-pensei que você e-e-estivesse m-m-morrendo, sei l-lá — disse Bill.

 

Richie se sentou lentamente na rua e colocou a mão na cabeça. Ele gemeu.

 

— O que acont...

 

Mas lembrou-se. Seus olhos se arregalaram com o choque e o pavor repentinos, e ele ficou de joelhos, ofegando desesperado.

 

— N-N-Não — disse Bill. — F-Foi e-e-embora, R-R-Richie. Foi embora.

 

Richie viu a rua vazia onde nada se mexia e de repente explodiu em lágrimas. Bill olhou para ele por um momento, passou os braços pelo ombro do amigo e o abraçou. Richie agarrou o pescoço de Bill e retribuiu o abraço. Ele queria dizer alguma coisa inteligente, alguma coisa sobre como Bill devia ter tentado usar o estilingue no Lobisomem, mas nada saiu. Nada além de soluços.

 

— N-Não, R-Richie — disse Bill — n-n-n-não...

 

Mas ele também começou a chorar, e os dois apenas se abraçaram de joelhos na rua ao lado da bicicleta caída, e as lágrimas fizeram marcas claras nas bochechas deles, cobertas de poeira de carvão.

 

Arrumação

 

Em algum lugar no estado de Nova York, na tarde do dia 29 de maio de 1985, Beverly Rogan começa a rir de novo. Ela sufoca as gargalhadas com as duas mãos, com medo de alguém achar que ela é maluca, mas não consegue evitar.

 

Nós ríamos muito naquela época, pensa ela. É outra coisa, outra luz na escuridão. Sentíamos medo o tempo todo, mas não conseguíamos deixar de rir, tanto quanto não consigo parar agora.

 

O cara sentado ao lado dela na poltrona do corredor é jovem, tem cabelo comprido e é bonito. Ele lhe lançou vários olhares de apreciação desde que o avião decolou em Milwaukee às 14h30 (quase duas horas e meia atrás agora, contando uma parada em Cleveland e outra na Filadélfia), mas respeitou o desejo evidente dela de não conversar; depois de duas interações triviais às quais ela respondeu com educação e nada mais, ele abriu a bolsa e pegou um romance de Robert Ludlum.

 

Agora ele fecha o livro, marca a página com o dedo e diz com um pouco de preocupação:

 

— Tudo bem com você?

 

Ela assente, tentando fazer expressão séria, mas gargalha alto. Ele sorri um pouco, intrigado, curioso.

 

— Não é nada — diz ela, mais uma vez tentando ficar séria, mas não funciona; quanto mais ela tenta ficar séria, mais o rosto dela quer se abrir com uma risada. Assim como antigamente. — É que de repente me dei conta de que não sei em que linha aérea estou. Só que tinha um p-p-pato grande na l-l-lateral... — Mas o pensamento é demais para ela. Ela dá gargalhadas estridentes. As pessoas olham para ela, algumas com testas franzidas.

 

— Republic — diz ele.

 

— Como?

 

— Você está voando a 760 quilômetros por hora como cortesia da Republic Airlines. Está no folheto DAAV no bolso à sua frente.

 

— DAAV?

 

Ele pega o folheto (que tem mesmo o logo da Republic na frente) no bolso do assento. O papel plastificado mostra onde ficam as saídas de emergência, onde ficam os coletes salva-vidas, como usar as máscaras de oxigênio, como ficar em posição de pouso de emergência.

 

— O folheto Dê Adeus À Vida — diz ele, e desta vez os dois caem na gargalhada.

 

Ele é mesmo bonito, pensa ela de repente. É um pensamento novo, um tanto claro, o tipo de pensamento que se espera ter ao despertar, quando sua mente não está lotada de pensamentos. Ele está usando um suéter e calça jeans surrada. O cabelo louro escuro está preso com uma tira de couro, e isso a faz pensar no rabo de cavalo que sempre usou quando era criança. Ela pensa: Aposto que ele tem um belo pau de universitário bem-educado. Grande o bastante para dar prazer, não grosso o bastante a ponto de ser arrogante.

 

Ela começa a rir de novo, totalmente incapaz de parar. Percebe que nem tem um lenço para limpar as lágrimas dos olhos, e isso a faz rir ainda mais.

 

— É melhor você se controlar, senão a comissária vai jogar você do avião — diz ele solenemente, e ela só balança a cabeça e ri; sua cintura e seu estômago estão doendo agora.

 

Ele entrega para ela um lenço branco limpo e ela o usa. De alguma forma, isso a ajuda a recuperar o controle. Mas ela não para imediatamente. As gargalhadas vão diminuindo para uma série de soluços e ofegos. De vez em quando, ela pensa no pato na lateral do avião e dá outra série de pequenas risadinhas.

 

Ela devolve o lenço depois de um tempo.

 

— Obrigada.

 

— Meu Deus, moça, o que aconteceu com sua mão? — Ele a segura por um momento, preocupado.

 

Ela olha para a mão e vê as unhas quebradas, as que se estragaram quando ela virou a penteadeira por cima de Tom. A lembrança dói mais do que as unhas em si, e isso acaba de vez com as gargalhadas. Ela puxa a mão da dele, mas com delicadeza.

 

— Bati na porta do carro no aeroporto — diz ela, pensando em todas as vezes que mentiu sobre as coisas que Tom fez a ela e todas as vezes que mentiu sobre os hematomas que o pai provocou nela. Será que é a última vez, a última mentira? Que maravilha seria... Quase maravilhoso demais para se acreditar. Ela pensa em um médico indo ver um paciente terminal de câncer e dizendo: O raio X mostra que o tumor está diminuindo. Não fazemos ideia do motivo, mas está acontecendo.

 

— Deve doer pra caramba — diz ele.

 

— Tomei aspirina. — Ela abre a revista de voo de novo, apesar de ele provavelmente saber que ela já a leu duas vezes.

 

— Pra onde você está indo?

 

Ela fecha a revista, olha para ele, sorri.

 

— Você é muito simpático — diz ela —, mas não quero conversar. Tudo bem?

 

— Tudo bem — diz ele, sorrindo em resposta. — Mas se quiser beber em homenagem ao grande pato na lateral deste avião quando chegarmos a Boston, eu pago.

 

— Obrigada, mas tenho outro avião pra pegar.

 

— Caramba, meu horóscopo estava completamente errado hoje de manhã — diz ele, e reabre o livro. — Mas você parece ótima quando ri. Um cara poderia se apaixonar.

 

Ela abre a revista de novo, mas se vê olhando para as unhas machucadas em vez de para o artigo de prazeres de Nova Orleans. Há bolhas roxas de sangue debaixo de duas delas. Em sua mente, ela ouve Tom gritando na escada: “Vou te matar, sua puta! Sua puta de merda!” Ela treme de frio. Uma puta para Tom, uma puta para a estilista que fazia besteiras antes de desfiles importantes e descontava em Beverly Rogan, uma puta para o pai bem antes de Tom e a estilista patética se tornarem parte da vida dela.

 

Uma puta.

 

Sua puta.

 

Sua puta de merda.

 

Ela fecha os olhos por um momento.

 

O pé, cortado por um estilhaço de vidro de perfume enquanto ela fugia do quarto, lateja mais do que os dedos. Kay deu-lhe um band-aid, um par de sapatos e um cheque de mil dólares, que Beverly trocou imediatamente, às 9h, no First Bank of Chicago na praça Watertower.

 

Sob protestos de Kay, Beverly preencheu um cheque de mil dólares em uma folha branca.

 

— Li uma vez que o banco tem que aceitar um cheque, independente do que está escrito nele — disse ela para Kay. Sua voz parecia vir de outro lugar. De um rádio em outro aposento, talvez. — Uma pessoa trocou um cheque uma vez que estava escrito em um pedaço de munição. Li isso no Livro das listas, eu acho. — Ela fez uma pausa, depois riu com desconforto. Kay olhou para ela com seriedade, solenemente até. — Mas eu descontaria logo, antes que Tom pense em congelar as contas.

 

Apesar de ela não sentir cansaço (mas ela está ciente de que a essa altura deve estar funcionando à base de adrenalina e do café preto de Kay), a noite anterior parece algo que ela deve ter sonhado.

 

Ela consegue se lembrar de ter sido seguida por três adolescentes que gritaram e assobiaram, mas não ousaram ir até ela. Ela se lembra do alívio que tomou conta dela quando viu o brilho branco e fluorescente de um Seven-Eleven na calçada de um cruzamento. Ela entrou e deixou que o atendente cheio de espinhas olhasse para a parte da frente da velha blusa e o convenceu a emprestar 40 centavos para o telefone público. Não foi difícil, considerando o que ele estava vendo.

 

Ela ligou para Kay McCall primeiro, pois sabia o número de cor. O telefone tocou umas dez vezes, e ela começou a ter medo de Kay estar em Nova York. A voz sonolenta de Kay murmurou, bem na hora em que Beverly ia desligar:

 

— É melhor ser importante, seja você quem for.

 

— É Bev, Kay — disse ela. Depois hesitou, mas acabou sendo direta. — Preciso de ajuda.

 

Houve um momento de silêncio e Kay voltou a falar, parecendo completamente desperta agora.

 

— Onde você está? O que aconteceu?

 

— Estou em um Seven-Eleven na esquina da avenida Streyland e uma outra rua. Eu... Kay, eu larguei Tom.

 

Kay, rápida, enfática e animada:

 

— Que bom! Finalmente! Viva! Vou buscar você! Aquele filho da puta! Aquele merda! Vou buscar você com a porra do Mercedes! Vou contratar uma banda! Vou...

 

— Eu pego um táxi — disse Bev, segurando as outras duas moedas de dez centavos na mão suada. Pelo espelho redondo do fundo da loja, ela conseguia ver o recepcionista com espinhas olhando para a bunda dela com concentração profunda e sonhadora. — Mas você vai precisar pagar quando eu chegar aí. Não tenho dinheiro. Nem um centavo.

 

— Vou dar 5 pratas de gorjeta — gritou Kay. — É a melhor porra de notícia desde a renúncia de Nixon! Venha pra cá, garota. E... — Ela fez uma pausa, e quando falou de novo, sua voz estava séria e tão cheia de gentileza e amor que Beverly teve vontade de chorar. — Graças a Deus que você finalmente agiu, Bev. Estou falando sério. Graças a Deus.

 

Kay McCall é uma ex-estilista que se casou com um homem rico, se separou e ficou ainda mais rica e descobriu a política feminista em 1972, cerca de três anos antes de Beverly conhecê-la. Na época de sua maior popularidade/controvérsia, ela foi acusada de ter abraçado o feminismo depois de usar leis arcaicas e chauvinistas para tirar do marido produtor cada centavo que a lei permitisse.

 

— Besteira! — exclamou Kay uma vez para Beverly. — As pessoas que dizem essas coisas nunca tiveram que ir pra cama com Sam Chacowicz. Duas bombadas, um tremor e um jato, esse era o lema do velho Sammy.O único modo de ele demorar mais do que 70 segundos era quando fazia na banheira. Não o traí; só recebi minha indenização de forma retroativa.

 

Ela escreveu três livros: um sobre feminismo e a mulher que trabalha fora, um sobre feminismo e a família e um sobre feminismo e a espiritualidade. Os primeiros dois foram bem populares. Nos três anos seguintes ao último, ela saiu um pouco de moda, e Beverly achava que foi um alívio para ela. Seus investimentos foram bem (“O feminismo e o capitalismo não são mutuamente exclusivos, ainda bem”, disse ela uma vez para Bev) e agora ela era uma mulher rica com uma casa na cidade, uma no campo e dois ou três amantes viris o bastante para satisfazê-la, mas não o bastante para ganhar dela no tênis.

 

— Quando eles ficam bons assim, eu largo imediatamente — disse ela, e apesar de a própria Kay achar que era piada, Beverly tinha dúvidas.

 

Beverly chamou um táxi e, quando ele chegou, entrou atrás com a mala, feliz de estar longe dos olhos do recepcionista, e deu ao motorista o endereço de Kay.

 

Ela estava esperando na calçada, usando o casaco de visom por cima de uma camisola de flanela. Estava com tamanquinhos cor-de-rosa felpudos com grandes pompons nos pés. Nada de pompons laranja, graças a Deus. Isso poderia ter feito Beverly sair correndo pela noite de novo. O trajeto até a casa de Kay foi estranho: coisas estavam voltando à mente dela, lembranças surgindo tão claras e tão rapidamente que era assustador. A sensação era de que alguém tinha ligado uma escavadeira em sua cabeça e começado a remexer em um cemitério mental que ela nem sabia que existia. Só que eram nomes em vez de corpos que surgiam, nomes nos quais ela não pensava havia anos: Ben Hanscom, Richie Tozier, Greta Bowie, Henry Bowers, Eddie Kaspbrak... Bill Denbrough. Especialmente Bill, Bill Gago, eles o chamavam com aquela sinceridade das crianças que às vezes é chamada de candura, às vezes de crueldade. Ele parecia tão alto, tão perfeito (até abrir a boca e começar a falar, era verdade).

 

Nomes... lugares... coisas que tinham acontecido.

 

Sentindo frio e calor alternadamente, ela se lembrou das vozes do ralo... e do sangue. Ela gritara e o pai deu uma porrada nela. Seu pai... Tom...

 

Lágrimas ameaçaram surgir... e então Kay estava pagando e dando uma gorjeta boa o bastante para fazer o motorista surpreso exclamar:

 

— Obrigado, dona! Uau!

 

Kay a levou para dentro de casa, colocou-a no chuveiro, deu um roupão quando ela saiu, fez café, examinou os ferimentos, passou mercurocromo no pé cortado e colocou um band-aid. Ela acrescentou uma dose generosa de conhaque na segunda xícara de café de Bev e a fez tomar até a última gota. Em seguida, fez um bife malpassado para cada uma com cogumelos frescos salteados para acompanhar.

 

— Muito bem — disse ela. — O que aconteceu? Ligamos pra polícia ou só mandamos você pra Reno pra estabelecer nova residência?

 

— Não posso contar muita coisa — disse Beverly. — Pareceria maluquice demais. Mas foi minha culpa, basicamente...

 

Kay bateu com a mão na mesa. O som no mogno envernizado foi o de um tiro de pistola de calibre baixo. Bev deu um pulo.

 

— Não diga isso — disse Kay. As bochechas dela estavam vermelhas e seus olhos castanhos pegavam fogo. — Há quanto tempo somos amigas? Nove anos? Dez? Se eu ouvir você dizer que foi sua culpa mais uma vez, vou vomitar. Está ouvindo? Vou vomitar, porra. Não foi sua culpa desta vez, nem da última vez, nem na vez anterior, nem em nenhuma. Você não sabe que a maior parte dos seus amigos achava que cedo ou tarde ele te mandaria pro hospital ou talvez até te matasse?

 

Beverly estava olhando para ela com olhos arregalados.

 

— E isso teria sido sua culpa, pelo menos até determinado ponto, por ficar e permitir que acontecesse. Mas agora você foi embora. Agradeço a Deus pelas pequenas coisas. Mas não fique aí sentada com as unhas meio arrancadas e o pé cortado e marcas de cinto nos ombros me dizendo que a culpa foi sua.

 

— Ele não usou o cinto em mim — disse Bev. A mentira foi automática... assim como a vergonha profunda que fez as bochechas dela ficarem vermelhas.

 

— Se você não quer mais saber de Tom, é melhor parar com as mentiras também — disse Kay baixinho, e olhou para Bev por tanto tempo e com tanto amor que Bev teve que baixar os olhos. Ela conseguia sentir o gosto de lágrimas salgadas no fundo da garganta. — Quem você achou que estava enganando? — perguntou Kay, ainda falando baixinho. Ela esticou a mão por cima da mesa e segurou as de Bev. — Os óculos escuros, as blusas de gola alta e manga comprida... talvez você tenha enganado um comprador ou outro. Mas não se pode enganar os amigos, Bev. Não as pessoas que te amam.

 

E Beverly chorou, muito e por muito tempo, e Kay a abraçou, e depois, pouco antes de ir para a cama, ela contou a Kay o que conseguiu: que um velho amigo de Derry, Maine, onde ela cresceu, ligou e lembrou-a de uma promessa que ela fez há muito tempo. Tinha chegado a hora de cumprir a promessa, disse ele. Ela iria? Ela disse que sim. E então começou o problema com Tom.

 

— Que promessa é essa? — perguntou Kay.

 

Beverly balançou a cabeça devagar.

 

— Não posso contar isso, Kay. Por mais que eu quisesse.

 

Kay pensou sobre isso e assentiu.

 

— Certo. É justo. O que você vai fazer em relação a Tom quando voltar do Maine?

 

E Bev, que tinha começado a achar cada vez mais que ela não ia voltar de Derry nunca mais, disse apenas:

 

— Vou vir pra cá primeiro e vamos decidir juntas. Tudo bem?

 

— Muitíssimo bem — disse Kay. — É uma promessa?

 

— Assim que eu voltar — disse Bev com firmeza —, pode contar com isso. — E abraçou Kay com força.

 

Com o cheque de Kay descontado e os sapatos de Kay nos pés, ela pegou um ônibus Greyhound para o norte, para Milwaukee, com medo de Tom ter ido para o aeroporto O’Hare em busca dela. Kay, que foi com ela até o banco e à rodoviária, tentou convencê-la a não fazer isso.

 

— O’Hare vive lotado de seguranças, querida — disse ela. — Você não precisa se preocupar com ele. Se ele chegar perto de você, é só gritar como louca.

 

Beverly balançou a cabeça.

 

— Quero evitá-lo completamente. É a melhor maneira.

 

Kay olhou para ela com sagacidade.

 

— Você tem medo de ele convencer você a não ir, não é?

 

Beverly pensou nos sete de pé no riacho, em Stanley e a garrafa de Coca quebrada brilhando no sol; pensou na dor aguda quando ele cortou a palma da mão dela em uma linha inclinada; pensou neles unindo as mãos em um círculo infantil, prometendo voltar se tudo começasse de novo... voltar e matar a coisa de vez.

 

— Não — disse ela. — Ele não conseguiria me convencer de não fazer isso. Mas poderia me machucar, mesmo com seguranças lá. Você não o viu ontem, Kay.

 

— Eu o vi o bastante em outras ocasiões — disse Kay, erguendo as sobrancelhas. — Aquele babaca que anda como se fosse um homem.

 

— Ele estava louco — disse Bev. — Os seguranças talvez não conseguissem detê-lo. Assim é melhor. Acredite.

 

— Tudo bem — disse Kay com relutância, e Bev achou graça porque Kay parecia desapontada de não haver um grande confronto, um grande conflito.

 

— Desconte o cheque logo — disse Beverly de novo —, antes que ele pense em congelar as contas. Ele vai fazer isso, sabe?

 

— Claro — disse Kay. — Se ele fizer isso, vou visitar o filho da puta com um chicote.

 

— Fique longe dele — disse Beverly com intensidade. — Ele é perigoso, Kay. Acredite. Ele parecia... — Meu pai foi o que chegou a tremer nos lábios dela. Mas ela disse: — Ele parecia um louco.

 

— Certo — disse Kay. — Fique tranquila, querida. Vá cumprir sua promessa. E pense bem no que vai acontecer depois.

 

— Pode deixar — disse Bev, mas era mentira. Ela tinha muitas outras coisas em que pensar: no que havia acontecido no verão que ela tinha 11 anos, por exemplo. Em quando mostrou a Richie Tozier como fazer o ioiô dormir, por exemplo. Em vozes no ralo, por exemplo. E em uma coisa que ela tinha visto, uma coisa tão horrível que mesmo naquele momento, abraçando Kay pela última vez ao lado do grande ônibus Greyhound prateado, a mente dela não a deixava ver.

 

Agora, quando o avião com um pato na lateral começa sua longa descida na área de Boston, sua mente volta a isso de novo... e a Stan Uris... e a um poema sem assinatura que chegou em um cartão-postal... e às vozes... e aos poucos segundos em que ela ficou cara a cara com uma coisa que talvez fosse infinita.

 

Ela olha pela janela, olha para baixo e pensa que a maldade de Tom é uma coisa pequena e insignificante perto do mal que a espera em Derry. Se existe compensação, é que Bill Denbrough vai estar lá... e houve uma época em que uma garota de 11 anos chamada Beverly Marsh amava Bill Denbrough. Ela se lembra do cartão-postal com o lindo poema escrito atrás e lembra que já soube quem escreveu. Ela não lembra mais, tanto quanto não lembra exatamente o que o poema dizia... mas acha que pode ter sido Bill. Sim, pode muito bem ter sido Bill Gago Denbrough.

 

Ela pensa de repente em quando estava se aprontando para dormir na noite seguinte em que Richie e Ben a levaram para ver os dois filmes de terror. Depois de seu primeiro encontro. Ela brincou bastante com Richie por causa disso (naqueles dias, essa era a defesa dela quando estava na rua), mas parte dela ficou emocionada e empolgada e um pouco assustada. Foi mesmo o primeiro encontro dela, apesar de haver dois garotos em vez de um. Richie pagou a entrada e tudo, como em um encontro de verdade. Depois, houve o problema com os garotos que foram atrás deles... e eles passaram o resto da tarde no Barrens... e Bill Denbrough chegou com outro garoto, ela não conseguia lembrar quem, mas lembrava a forma como os olhos de Bill pousaram nos dela por um momento e o choque elétrico que sentiu... o choque e um rubor que pareceu aquecer seu corpo todo.

 

Ela se lembra de pensar em todas essas coisas enquanto vestia a camisola e ia para o banheiro lavar o rosto e escovar os dentes. Ela se lembra de pensar que demoraria muito para dormir naquela noite, porque havia tanta coisa em que pensar... e em que pensar de uma forma boa, porque eles pareciam garotos bons, garotos com quem se podia brincar e em quem se podia confiar um pouco. Isso seria legal. Isso seria... bem, o paraíso.

 

E, ao pensar nessas coisas, ela pegou a toalha e se inclinou para a pia para pegar um pouco de água e a voz saiu sussurrando do ralo:

 

— Me ajuda...

 

Beverly recuou, assustada, e deixou a toalha seca cair no chão. Balançou um pouco a cabeça, como se para pensar melhor, e voltou a se inclinar na direção da pia para olhar curiosamente para o ralo. O banheiro ficava nos fundos do apartamento de quatro cômodos. Ela conseguia ouvir baixinho algum programa de faroeste na TV. Quando acabasse, o pai provavelmente mudaria para um jogo de beisebol, ou para lutas, e acabaria dormindo na poltrona.

 

O papel de parede do banheiro tinha uma estampa horrível de sapos sobre grandes folhas. Estava cheio de bolhas por cima do gesso irregular. Tinha marcas em alguns pontos, estava descascando em outros. A banheira tinha manchas de ferrugem e o assento do vaso estava rachado. Uma lâmpada de 40 watts saía do bocal de porcelana acima da pia. Beverly conseguia lembrar vagamente que já houvera um lustre, que se quebrou anos antes e nunca foi substituído. O chão era coberto de linóleo cuja estampa tinha se apagado, exceto por uma pequena área debaixo da pia.

 

Não era um aposento alegre, mas Beverly o usava havia tanto tempo que não reparava mais em como era.

 

A pia também tinha manchas de água. O ralo era um círculo simples de cerca de 5 centímetros de diâmetro. Já houvera uma cobertura cromada, que também tinha descascado tempos antes. Uma tampa de ralo de borracha presa a uma corrente envolvia despretensiosamente a torneira com a letra F. o ralo estava escuro, e quando se inclinou para perto, ela reparou pela primeira vez que havia um cheiro leve e desagradável, meio de peixe, saindo de dentro. Ela torceu o nariz com um pouco de nojo.

 

— Me ajuda...

 

Ela sufocou um grito. Tinha pensado em um tremor nos canos... ou talvez apenas sua imaginação... resquício dos filmes...

 

— Me ajuda, Beverly...

 

Ondas alternadas de frio e calor percorreram seu corpo. Ela tinha tirado o elástico do cabelo, que estava caído sobre os ombros em uma cascata brilhante. Ela conseguia sentir as raízes tentando enrijecer.

 

Sem saber que pretendia falar, ela se inclinou sobre a pia de novo e meio que sussurrou:

 

— Oi? Tem alguém aí?

 

A voz do ralo era de uma criança bem pequena que talvez tivesse acabado de aprender a falar. E apesar do arrepio nos braços, a mente procurou uma explicação racional. Era uma casa com apartamentos. A família Marsh morava no apartamento dos fundos no térreo. Havia outros quatro apartamentos. Talvez houvesse uma criança se divertindo falando no ralo. E algum truque de som...

 

— Tem alguém aí? — perguntou ela ao ralo do banheiro, mais alto desta vez. De repente ocorreu a ela que, se seu pai entrasse agora, acharia que ela estava louca.

 

Não houve resposta do ralo, mas o cheiro desagradável pareceu mais forte. Isso a fez pensar no pântano de bambu no Barrens e no lixão atrás; isso evocou imagens de fumaças lentas e acres e de lama preta que tentava arrancar o sapato do seu pé.

 

Não havia crianças pequenas no prédio, essa era a questão. Os Tremont tinham um garoto com 5 anos, uma garota com 3 anos e uma com 6 meses, mas o sr. Tremont perdeu o emprego na sapataria da avenida Tracker, eles atrasaram o aluguel e, um dia, pouco tempo depois do início das férias, eles sumiram no velho Buick Power-Flite enferrujado do sr. Tremont. Havia Skipper Bolton no apartamento da frente do segundo andar, mas Skipper tinha 14 anos.

 

— Todos nós queremos te conhecer, Beverly...

 

Ela levou a mão à boca e seus olhos se arregalaram de pavor. Por um momento... por apenas um momento... ela acreditou ter visto alguma coisa se movendo lá dentro. Ela percebeu de repente que seu cabelo estava agora caído por cima do ombro em duas grandes mechas, e que estavam penduradas bem perto, muito perto do ralo. Algum instinto a fez se empertigar e afastar o cabelo dali.

 

Ela olhou ao redor. A porta do banheiro estava bem fechada. Ela conseguia ouvir a TV baixinho, Cheyenne Bodie avisando o cara mau para baixar a arma antes que alguém se ferisse. Ela estava sozinha. Exceto, é claro, por aquela voz.

 

— Quem é você? — perguntou ela para a pia, baixando a voz.

 

— Matthew Clements — sussurrou a voz. — O palhaço me trouxe aqui pros canos e eu morri, e logo, logo ele vai pegar você, Beverly, e Ben Hanscom, e Bill Denbrough, e Eddie...

 

Ela levou as mãos às bochechas e as apertou. Seus olhos se arregalaram, arregalaram, arregalaram. Ela sentiu o corpo ficando gelado. Agora a voz parecia engasgada e antiga... e ainda estava tomada de alegria corrompida.

 

— Você vai flutuar aqui com seus amigos, Beverly, todos flutuamos aqui, diz pro Bill que Georgie diz olá, diz pro Bill que Georgie tem saudade dele, mas vai ver ele logo, diz que Georgie vai estar no armário uma noite dessas com uma corda de piano pra enfiar nos olhos dele, diz pra ele...

 

A voz começou a dar uma série de soluços engasgados, e de repente uma bolha vermelha surgiu no ralo e estourou, espirrando gotas de sangue na porcelana manchada.

 

A voz engasgada falou rapidamente agora, e enquanto falava, mudava; agora era a voz jovem da criança que ela ouviu primeiro, agora era uma voz de garota adolescente, agora (horrivelmente) se tornou a voz de uma garota que Beverly conhecia... Veronica Grogan. Mas Veronica estava morta, ela foi encontrada morta no bueiro...

 

— Sou Matthew... Sou Betty... Sou Veronica... Estamos aqui embaixo... aqui embaixo com o palhaço... e a criatura... e a múmia... e o lobisomem... e você, Beverly, estamos aqui embaixo com você, e flutuamos, mudamos...

 

Um jorro de sangue saiu de repente do ralo, manchando a pia, o espelho e o papel de parede com a estampa de sapos e folhas. Beverly deu um grito repentino e agudo. Ela se afastou da pia, bateu na porta, quicou, abriu-a de qualquer jeito e correu para a sala, onde o pai estava ficando de pé.

 

— Que diabos há de errado com você? — perguntou ele, unindo as sobrancelhas. Os dois estavam sozinhos naquela noite. A mãe de Bev estava trabalhando no turno de 15 às 23h no Green’s Farm, o melhor restaurante de Derry.

 

— O banheiro! — gritou ela histericamente. — O banheiro, papai, no banheiro...

 

— Tinha alguém espiando você, Beverly? Hã? — Ele esticou a mão e segurou o braço dela com força, afundando na carne. Havia preocupação no rosto dele, mas era uma preocupação predatória, de alguma forma mais assustadora do que reconfortante.

 

— Não... a pia... na pia... o... o... — Ela começou um choro histérico antes de conseguir dizer qualquer coisa mais. Seu coração estava tão disparado no peito que ela achou que sufocaria.

 

Al Marsh a empurrou para o lado com uma expressão de “Ai, meu Deus, e agora” no rosto e foi até o banheiro. Ficou tanto tempo lá que Beverly ficou com medo de novo.

 

E então, ele gritou:

 

— Beverly! Venha cá, garota!

 

Não havia possibilidade de não ir. Se os dois estivessem na beirada de um precipício e ele a mandasse pular agora, garota, sua obediência instintiva quase certamente a levaria beirada abaixo antes que sua mente racional pudesse interceder.

 

A porta do banheiro estava aberta. Ali estava seu pai, um homem grande que agora estava perdendo o cabelo ruivo que tinha passado para Beverly. Ele ainda estava de calça e camisa cinza (ele era zelador no Derry Home Hospital) e estava olhando com rigidez para Beverly. Ele não bebia, ele não fumava, ele não ia atrás de mulheres. Tenho todas as mulheres de que preciso em casa, dizia ele de vez em quando, e quando dizia isso, um sorriso peculiar e dissimulado se abria em seu rosto. Não o iluminava, fazia o oposto. Ver aquele sorriso era como ver a sombra de uma nuvem viajar rapidamente por um campo pedregoso. Elas cuidam de mim, e quando precisam, eu cuido delas.

 

— Que diabos de tolice foi essa? — perguntou ele quando ela entrou.

 

Beverly sentiu como se a garganta estivesse coberta de ardósia. Seu coração disparou no peito. Ela achou que talvez fosse vomitar. Havia sangue no espelho, escorrendo em filetes. Havia manchas de sangue na luz acima da pia; ela conseguia sentir o cheiro dele cozinhando sobre a lâmpada de 40 watts. Sangue escorria pelas laterais de porcelana da pia e caía em gotas gordas no chão de linóleo.

 

— Papai... — sussurrou ela com voz rouca.

 

Ele se virou, com nojo dela (como acontecia com frequência), e começou a lavar casualmente as mãos na pia suja.

 

— Meu Deus, menina. Fala. Você me assustou muito. Explica, pelo amor de Deus.

 

Ele estava lavando as mãos na pia, ela conseguia ver sangue manchando o tecido cinza da calça no ponto em que encostava na beirada da pia, e se a testa dele encostasse no espelho (estava perto), iria parar na pele dele. Ela fez um som de engasgo na garganta.

 

Ele girou a torneira, pegou uma toalha na qual duas manchas de sangue da pia tinham caído e começou a secar as mãos. Ela viu, quase desmaiando, o sangue espalhar pelos nós dos dedos grandes e pelas linhas das palmas das mãos. Ela conseguia ver sangue debaixo das unhas dele como marcas de culpa.

 

— Bem? Estou esperando. — Ele jogou a toalha suja de sangue no suporte.

 

Havia sangue... sangue para todo lado... e o pai dela não via.

 

— Papai... — Ela não fazia ideia do que diria depois, mas o pai a interrompeu.

 

— Eu me preocupo com você — disse Al Marsh. — Acho que você nunca vai crescer, Beverly. Você sai correndo por aí, quase não faz as tarefas da casa, não sabe cozinhar, não sabe costurar. Metade do tempo você está com a cabeça nas nuvens, com o nariz enfiado em um livro, e a outra metade está doente ou com dor de cabeça. Eu me preocupo.

 

Ele moveu a mão de repente e bateu dolorosamente em seu traseiro. Ela deu um grito, com os olhos fixos nos dele. Havia uma gotinha de sangue na sobrancelha peluda. Se eu olhar muito tempo, vou ficar maluca, e nada disso vai ter importância, pensou ela.

 

— Eu me preocupo muito — disse ele e bateu nela de novo, com mais força, no braço acima do cotovelo. O braço doeu e pareceu ficar dormente. Ela teria um hematoma grande e roxo ali no dia seguinte. — Bastante mesmo. — disse ele, e deu um soco na barriga dela.

 

Ele aliviou o soco no último segundo, e Beverly perdeu parte do fôlego. Ela se inclinou para a frente, ofegante, com lágrimas surgindo nos olhos. O pai olhou para ela impassível. Ele enfiou as mãos sujas de sangue nos bolsos da calça.

 

— Você precisa crescer, Beverly — disse ele, e agora sua voz estava gentil e misericordiosa. — Não é verdade?

 

Ela assentiu. Sua cabeça latejava. Ela estava chorando, mas em silêncio. Se soluçasse alto, se começasse o que o pai chamava de “esse choramingo de bebê”, ele poderia começar a dar nela de verdade. Al Marsh viveu a vida toda em Derry e dizia para as pessoas que perguntavam (e às vezes para as que não perguntavam) que pretendia ser enterrado aqui, com sorte com a idade de 110 anos. “Não há motivo pra eu não viver pra sempre”, dizia ele às vezes para Roger Aurlette, que cortava seu cabelo uma vez por mês. “Não tenho vícios.”

 

— Agora se explique — disse ele —, e seja rápida.

 

— Tinha... — Ela engoliu em seco, e doeu por não haver umidade em sua garganta, umidade nenhuma. — Tinha uma aranha. Uma aranha grande e gorda. Ela... ela saiu do ralo e eu... acho que voltou pra lá.

 

— Ah! — Ele sorriu um pouco para ela agora, como se satisfeito com a explicação. — Era isso? Nossa! Se você tivesse me dito, Beverly, eu não teria batido em você. Todas as garotas têm medo de aranha. Minha nossa! Por que você não falou?

 

Ele se inclinou por cima do ralo, e ela precisou morder o lábio para não gritar um aviso... e uma outra voz falou dentro dela, uma voz terrível que não podia ser parte dela; sem dúvida era a voz do próprio demônio: Deixa que pegue ele, se quiser. Deixa que puxe ele pra baixo. Já vai tarde.

 

Ela se afastou dessa voz, horrorizada. Permitir que um pensamento assim ficasse mesmo que um momento em sua cabeça certamente a mandaria para o inferno.

 

Ele olhou no buraco do ralo. Suas mãos se encharcaram com o sangue na beirada da pia. Beverly lutou contra a garganta. Sua barriga doía onde o pai tinha batido.

 

— Não vejo nada — disse ele. — Essas construções são velhas, Bev. Os ralos são do tamanho de estradas, sabe? Quando eu era zelador na antiga escola de ensino médio, encontrávamos ratos afogados em privadas de vez em quando. As garotas ficavam loucas. — Ele riu com carinho ao lembrar-se dos medos e sofrimentos das garotas. — Em geral, quando o Kenduskeag estava alto. Mas os animais nos canos diminuíram depois que instalaram o novo sistema de esgoto.

 

Ele passou o braço pelos ombros dela e a abraçou.

 

— Olha só. Vai pra cama e não pensa mais no assunto. Tá?

 

Ela sentiu seu amor por ele. Eu nunca bato em você quando você não merece, Beverly, ele disse uma vez quando ela gritou que uma certa punição foi injusta. E isso devia ser verdade, porque ele era capaz de amar. Às vezes passava um dia inteiro com ela, mostrando a ela como fazer coisas ou apenas contando coisas ou andando pela cidade com ela, e quando ele era gentil assim, ela achava que seu coração incharia de felicidade até ela morrer. Ela o amava e tentava entender que ele precisava puni-la com frequência porque era (como ele dizia) sua missão dada por Deus. Filhas, dizia Al Marsh, precisam de mais punição do que filhos. Ele não tinha filhos, e ela achava que isso talvez fosse em parte culpa dela também.

 

— Certo, papai — disse ela. — Não vou pensar.

 

Eles andaram até o pequeno quarto dela juntos. Seu braço direito agora doía intensamente pelo golpe recebido. Ela olhou por cima do ombro e viu a pia sangrenta, o espelho sangrento, a parede sangrenta, o chão sangrento. A toalha sangrenta que o pai usou e pendurou casualmente no suporte. Ela pensou: Como posso entrar lá e me lavar de novo? Por favor, Deus, querido Deus, me desculpe se tive um pensamento ruim sobre meu pai, e o Senhor pode me punir por isso se quiser, eu mereço ser punida, me faz cair e me machucar ou me faz pegar uma gripe como no inverno passado, quando tossi tanto que cheguei a vomitar, mas, por favor, Deus, faz o sangue ter desaparecido de manhã, por favor, Deus, tá? Tá?

 

O pai a colocou na cama como sempre fazia e beijou a testa dela. Ele ficou ali por um momento do jeito que ela sempre pensaria como sendo o jeito “dele” de ficar de pé, talvez o jeito dele de ser: um pouco inclinado para a frente, com as mãos enfiadas até acima dos pulsos nos bolsos da calça, com os olhos azuis intensos do rosto triste de bassê hound olhando para ela de cima. Em anos posteriores, bem depois de ela ter parado de pensar em Derry completamente, ela via um homem sentado no ônibus ou talvez de pé em uma esquina com a marmita na mão, formas, ah, formas de homem, às vezes vistas no fim do dia, às vezes vistas do outro lado da praça Watertower à luz do meio-dia em um dia claro e cheio de vento de outono, formas de homens, regras de homens, desejos de homens; ou Tom, tão parecido com o pai quando tirava a camisa e ficava com os ombros meio caídos em frente ao espelho do banheiro para se barbear. Formas de homens.

 

— Às vezes me preocupo com você, Bev — disse ele, mas não havia perturbação nem raiva na voz agora. Ele tocou no cabelo dela com delicadeza, afastando-o da testa.

 

O banheiro está cheio de sangue, papai!, ela quase gritou naquele momento. Você não viu? Está por toda parte! Esquentando na lâmpada por cima da pia até! Você não VIU?

 

Mas ela se manteve em silêncio enquanto ele saía e fechava a porta, enchendo o quarto dela de escuridão. Ela ainda estava acordada, ainda olhando para a escuridão quando a mãe chegou às 23h30 e a TV foi desligada. Ela ouviu os pais indo para o quarto e ouviu as molas da cama rangendo com regularidade enquanto eles faziam a coisa-sexo deles. Beverly tinha ouvido Greta Bowie contando para Sally Mueller que a coisa-sexo doía como fogo e que nenhuma garota boa queria fazer (“No final, o homem mija na sua perereca”, disse Greta, e Sally gritou: “Eca, eu nunca ia deixar um garoto fazer isso comigo!”). Se doía tanto quanto Greta dizia, então a mãe de Bev guardava a dor para si; Bev tinha ouvido a mãe gritar uma ou duas vezes em voz baixa, mas não pareceu nada com um grito de dor.

 

O ranger lento das molas aumentou para um ritmo tão rápido que era quase frenético, depois parou. Houve um período de silêncio, depois um pouco de conversa baixa, depois o som dos passos da mãe quando ela foi ao banheiro. Beverly prendeu a respiração, esperando para ver se a mãe gritaria ou não.

 

Não houve grito, só o som de água correndo na pia. Isso foi seguido de som de água batendo. Depois a água escorreu da pia com o som familiar. A mãe estava escovando os dentes agora. Momentos depois, as molas na cama dos pais rangeram de novo quando a mãe se deitou na cama.

 

Cinco minutos depois disso, seu pai começou a roncar.

 

Um medo negro tomou conta do coração dela e fechou sua garganta. Ela se viu com medo de virar para o lado direito, sua posição favorita para dormir, porque poderia ver alguma coisa olhando para ela pela janela. Assim, ela ficou deitada de costas, reta como uma vara, olhando para o teto. Algum tempo depois, se minutos ou horas, ela não tinha como saber, ela caiu em um sono leve e agitado.

 

Beverly sempre acordava quando o despertador tocava no quarto dos pais. Ela tinha que ser rápida, porque o pai desligava o despertador assim que ele começava a tocar. Ela se vestiu rapidamente enquanto o pai usava o banheiro. Fez uma pequena pausa (como quase sempre fazia) para olhar para o peito no espelho e decidir se os seios tinham aumentado durante a noite. Eles tinham começado a crescer no final do ano anterior. Doeu um pouco no começo, mas agora não doía mais. Eles eram bem pequenos, não passavam de botões, mas estavam ali. Era verdade; a infância terminaria e ela seria uma mulher.

 

Ela sorriu para o próprio reflexo e colocou a mão atrás da cabeça, levantando o cabelo e empinando o peito. Deu um risinho não afetado de garotinha... e de repente se lembrou do sangue espirrando do ralo do banheiro na noite anterior. As risadinhas sumiram abruptamente.

 

Ela olhou para o braço e viu o hematoma que se formou ali durante a noite, uma mancha feia entre o ombro e o cotovelo, uma mancha com muitos dedos descoloridos.

 

A descarga soou.

 

Movendo-se rapidamente, sem querer que ele ficasse zangado com ela esta manhã (sem querer que ele sequer reparasse nela esta manhã), Beverly vestiu uma calça jeans e o moletom da Derry High School. Como não dava mais para adiar, saiu do quarto para o banheiro. O pai passou por ela na sala a caminho do quarto para se vestir. O pijama azul caía frouxo no corpo dele. Ele resmungou alguma coisa que ela não entendeu.

 

— Tá, papai — respondeu ela mesmo assim.

 

Ela ficou de pé na frente da porta fechada do banheiro por um momento, tentando preparar a mente para o que poderia ver dentro. Pelo menos é dia, pensou ela, e isso trouxe um pouco de alento. Não muito, mas um pouco. Ela segurou a maçaneta, girou e entrou.

 

Foi uma manhã agitada para Beverly. Ela fez o café da manhã do pai: suco de laranja, ovos mexidos, a versão de Al Marsh de torrada (o pão quente, mas não realmente tostado). Ele se sentou à mesa, escondido atrás do News, e comeu tudo.

 

— Onde está o bacon?

 

— Acabou, papai. Comemos o resto ontem.

 

— Faz um hambúrguer.

 

— Só tem um pouco...

 

O jornal tremeu e foi abaixado. O olhar azul caiu sobre ela com peso.

 

— O que você disse? — perguntou ele baixinho.

 

— Eu disse agora mesmo, papai.

 

Ele olhou para ela por mais um tempo. Em seguida, o jornal voltou a subir e Beverly correu até a geladeira para pegar a carne.

 

Ela fritou um hambúrguer depois de amassar um pouco da carne moída que tinha sobrado na geladeira o máximo que conseguiu para fazer parecer maior. Ele comeu lendo a página de esportes, e Beverly fez o almoço dele, dois sanduíches de creme de amendoim com geleia, um pedaço grande de bolo que a mãe levou do Green’s Farm na noite anterior, uma garrafa térmica com café quente com bastante açúcar.

 

— Diz pra sua mãe que mandei arrumar a casa hoje — disse ele, pegando a marmita. — Isso aqui parece um chiqueiro. Meu Deus! Passo o dia todo limpando a sujeira do hospital. Não preciso voltar pra um chiqueiro em casa. Não esquece, Beverly.

 

— Certo, papai. Pode deixar.

 

Ele deu um beijo na bochecha dela, deu um abraço desajeitado e saiu. Como sempre, Beverly foi até a janela do quarto e o viu descer a rua. E, como sempre, ela teve uma sensação sorrateira de alívio quando ele virou a esquina... e se odiou por isso.

 

Ela lavou a louça e levou o livro que estava lendo para a escada de trás. Lars Theramenius, com o cabelo louro e longo brilhando com sua luz serena interior, veio andando com o balanço de uma criança pequena do prédio ao lado para mostrar a Beverly seu novo caminhão Tonka e os arranhões novos nos joelhos. Beverly emitiu exclamações de admiração pelas duas coisas. A mãe dela a chamou.

 

Elas trocaram os lençóis das duas camas, lavaram o piso e enceraram o linóleo da cozinha. A mãe limpou sozinha o piso do banheiro, e Beverly ficou extremamente grata por isso. Elfrida Marsh era uma mulher pequena com cabelo grisalho e expressão triste. O rosto marcado contava ao mundo que ela estava por aqui havia um tempo e pretendia ficar por mais... Também contava ao mundo que nada tinha sido fácil e que ela não esperava nenhuma mudança das condições da vida no futuro próximo.

 

— Você limpa as janelas da sala, Bevvie? — perguntou ela, voltando para a cozinha. Ela tinha trocado de roupa e colocado o uniforme de garçonete. — Tenho que ir até o Saint Joe’s em Bangor pra visitar Cheryl Tarrent. Ela quebrou a perna ontem à noite.

 

— Pode deixar, eu limpo — disse Beverly. — O que aconteceu com a sra. Tarrent? Ela caiu? — Cheryl Tarrent era a mulher com quem Elfrida trabalhava no restaurante.

 

— Ela e aquele imprestável com quem ela casou sofreram um acidente de carro — disse a mãe de Beverly com tristeza. — Ele tinha bebido. Agradeça a Deus todas as noites por seu pai não beber, Bevvie.

 

— Eu agradeço — disse Bev. Ela agradecia mesmo.

 

— Ela vai perder o emprego, eu acho, e ele não consegue manter nenhum. — Agora tons de puro horror surgiram na voz de Elfrida. — Eles vão ter que viver às custas do governo, eu acho.

 

Era a pior coisa em que Elfrida Marsh conseguia pensar. Perder um filho ou descobrir que tinha câncer não chegavam nem perto. Você podia ser pobre; podia passar a vida fazendo o que ela chamava de “se virando”. Mas no fundo do poço, inferior até à sarjeta, estava o momento em que você tivesse que viver às custas do governo e beber suor da testa dos outros como brinde. Ela sabia que esse era o prospecto que assombrava Cheryl Tarrent.

 

— Depois que você lavar as janelas e tirar o lixo, pode ir brincar um pouco se quiser. Hoje é noite de boliche do seu pai, então você não vai precisar fazer jantar, mas quero que volte antes de escurecer. Você sabe por quê.

 

— Tá, mãe.

 

— Meu Deus, você está crescendo rápido — disse Elfrida. Ela olhou por um momento para as protuberâncias no moletom de Beverly. O olhar dela era amoroso, mas sem pena. — Não sei o que vou fazer quando você casar e tiver sua casa.

 

— Vou ficar sempre por aqui — disse Beverly, sorrindo.

 

A mãe a abraçou rapidamente e beijou o canto da boca com lábios quentes e secos.

 

— Eu sei que não — disse ela. — Mas amo você, Bevvie.

 

— Também amo você, mamãe.

 

— Tome cuidado pra não deixar nenhuma marca nas janelas quando terminar — disse ela, pegando a bolsa e indo até a porta. — Se tiver, você vai ouvir o diabo do seu pai.

 

— Vou ser cuidadosa. — Quando a mãe abriu a porta para sair, Beverly perguntou em um tom que esperava ser casual: — Você viu alguma coisa estranha no banheiro, mãe?

 

Elfrida olhou para ela com a testa um pouco franzida.

 

— Estranha?

 

— Bem... Vi uma aranha lá ontem. Saiu do ralo. Papai não contou?

 

— Você irritou seu pai ontem, Bevvie?

 

— Não! Hã-hã! Falei pra ele que uma aranha saiu do ralo e me assustou, e ele disse que às vezes eles encontravam ratos afogados nos vasos na antiga escola de ensino médio. Por causa dos esgotos. Ele não te contou da aranha que eu vi?

 

— Não.

 

— Ah. Bem, não importa. Eu só queria saber se você tinha visto.

 

— Não vi aranha nenhuma. Queria ter dinheiro pra um linóleo novo pro chão do banheiro. — Ela olhou para o céu, que estava azul e sem nuvens. — Dizem que matar uma aranha atrai chuva. Você não matou ela, matou?

 

— Não — disse Beverly. — Não matei.

 

A mãe olhou para ela com os lábios tão apertados que quase não apareciam.

 

— Tem certeza de que seu pai não ficou irritado com você ontem à noite?

 

— Não!

 

— Bevvie, ele toca em você?

 

— O quê? — Beverly olhou para a mãe com total perplexidade. Meu Deus, o pai tocava nela todos os dias. — Não estou entendendo o que...

 

— Deixa pra lá — disse Elfrida brevemente. — Não se esqueça do lixo. E se as janelas ficarem manchadas, você não vai precisar do seu pai pra ouvir o diabo.

 

— Não vou

 

(ele toca em você)

 

— esquecer.

 

— E volte antes de escurecer.

 

— Pode deixar.

 

(ele)

 

(se preocupa muito)

 

Elfrida saiu. Beverly foi para o quarto de novo e a viu dobrar a esquina e sumir de vista, como tinha feito com o pai. E então, quando tinha certeza de que a mãe estava a caminho do ponto de ônibus, Beverly pegou o balde, o Windex e alguns panos debaixo da pia. Ela foi para a sala e começou a trabalhar nas janelas. O apartamento parecia silencioso demais. Cada vez que o piso estalava ou uma porta batia, ela dava um pulo. Quando a descarga do apartamento dos Bolton soou acima, ela sufocou um grito que quase saiu.

 

E ela toda hora olhava para a porta fechada do banheiro.

 

Por fim ela andou até lá, abriu a porta e olhou. A mãe tinha feito a limpeza de manhã, e a maior parte do sangue acumulado debaixo da pia tinha sumido. O mesmo aconteceu com o sangue na beirada da pia. Mas ainda havia manchas marrons secando dentro da própria pia, no espelho e no papel de parede.

 

Beverly olhou para seu reflexo pálido e se deu conta com medo repentino e supersticioso de que o sangue no espelho fazia o rosto dela parecer estar sangrando. Ela pensou de novo: O que vou fazer sobre isso? Fiquei louca? Estou imaginando?

 

O ralo de repente deu uma risada que parecia um arroto.

 

Beverly gritou e bateu a porta, e cinco minutos depois, suas mãos ainda tremiam tanto que ela quase deixou o vidro de Windex cair enquanto lavava as janelas da sala.

 

Eram umas 15h, o apartamento estava trancado e a chave extra estava bem guardada no bolso da calça jeans quando Beverly Marsh por acaso entrou na travessa Richard, uma passagem estreita que ligava as ruas Main e Center, e deu de cara com Ben Hanscom, Eddie Kaspbrak e um garoto chamado Bradley Donovan brincando de jogar moedas.

 

— Oi, Bev! — disse Eddie. — Teve pesadelo por causa dos filmes?

 

— Não — disse Beverly, agachando-se para ver o jogo. — Como você soube do cinema?

 

— Monte de Feno me contou — disse Eddie, apontando para Ben com o polegar. Ben estava vermelho por algum motivo que Beverly não conseguia entender.

 

— Que filmesh? — perguntou Bradley, e agora Beverly o reconheceu: ele tinha ido ao Barrens uma semana antes com Bill Denbrough. Eles frequentavam sessões de fonoaudiologia juntos em Bangor. Beverly o tinha tirado da mente. Se perguntassem, ela talvez dissesse que ele parecia menos importante do que Ben e Eddie, menos presente.

 

— Dois filmes de monstros — disse ela para ele, e andou agachada até ficar entre Ben e Eddie. — Sua vez?

 

— É — disse Ben. Ele olhou para ela rapidamente e afastou o olhar.

 

— Quem está ganhando?

 

— Eddie — disse Ben. — Eddie é muito bom.

 

Ela olhou para Eddie, que poliu as unhas solenemente na frente da camisa e riu.

 

— Posso jogar?

 

— Por mim, tudo bem — disse Eddie. — Tem uma moeda de um centavo?

 

Ela procurou no bolso e achou três.

 

— Nossa, como você ousa sair de casa com tamanha fortuna? — perguntou Eddie. — Eu teria medo.

 

Ben e Bradley Donovan riram.

 

— Garotas também podem ser corajosas — disse Beverly com seriedade, e um momento depois todos estavam rindo.

 

Bradley jogou primeiro, depois Ben e Beverly. Como estava ganhando, Eddie ia por último. Eles jogaram as moedas de um centavo na parede de trás da Center Street Drug Store. Às vezes a moeda parava antes, às vezes batia na parede e quicava de volta. No final de cada rodada, o jogador com a moeda mais próxima da parede ficava com as quatro moedas. Cinco minutos depois, Beverly tinha 24 centavos. Ela só perdeu uma rodada.

 

— Garotash roubam! — disse Bradley com nojo, e ficou de pé para ir embora. O bom humor dele sumiu e ele olhou para Beverly com raiva e humilhação. — Garotash não deviam poder...

 

Ben ficou de pé em um salto. Era incrível ver Ben saltar.

 

— Retira o que disse!

 

Bradley olhou para Ben boquiaberto.

 

— O quê?

 

— Retira! Ela não roubou!

 

Bradley olhou para Ben, para Eddie e para Beverly, que ainda estava de joelhos. Em seguida, olhou para Ben de novo.

 

— Quer ficar com a boca gorda pra combinar com o reshto de você, eshcroto?

 

— Claro — disse Ben, e um sorriso de repente se abriu em seu rosto. Alguma coisa nele fez Bradley dar um passo surpreso e desconfortável para trás. Talvez o que ele viu naquele sorriso tenha sido o simples fato de que, depois de encarar Henry Bowers e sair vivo e em vantagem não apenas uma vez, mas duas, Ben Hanscom não se deixaria aterrorizar pelo magrelo Bradley Donovan (que tinha verrugas nas mãos além do ceceio na fala).

 

— É, pra depoish vocêsh virem todosh pra chima de mim — disse Bradley, dando outro passo para trás. A voz dele adquiriu um certo tremor, e lágrimas surgiram em seus olhos. — Todosh um bando de ladrõesh!

 

— É só retirar o que você disse sobre ela — disse Ben.

 

— Deixa pra lá, Ben — disse Beverly. Ela entregou um punhado de moedas para Bradley. — Pega o que é seu. Eu não estava jogando pra ganhar dinheiro.

 

Lágrimas de humilhação desceram pelas pálpebras inferiores de Bradley. Ele tirou as moedas da mão de Beverly e correu para o lado da rua Center da travessa Richard. Os outros ficaram olhando para ele boquiabertos. Com a segurança se aproximando, Bradley se virou e gritou:

 

— Você é shó uma putinha, shó issho! Ladra! Ladra! Shua mãe é proshtituta!

 

Beverly sufocou um grito. Ben correu pela travessa na direção de Bradley e conseguiu apenas tropeçar em uma caixa vazia e cair. Bradley tinha ido embora, e Ben sabia que não conseguiria alcançá-lo. Ele se virou para Beverly para ver se ela estava bem. Aquela palavra o chocou tanto quanto a ela.

 

Ela viu a preocupação no rosto dele. Abriu a boca para dizer que estava bem, que ele não precisava se preocupar, que paus e pedras quebram meu corpo, mas xingamentos nunca vão... e aquela pergunta estranha que a mãe fez

 

(ele toca em você)

 

voltou à mente. Pergunta estranha, sim. Simples, mas sem sentido, cheia de entrelinhas ruins, nebulosa como café velho. Em vez de dizer que xingamentos nunca iriam machucá-la, ela começou a chorar.

 

Eddie olhou para ela com desconforto, pegou a bombinha do bolso da calça e inspirou. Em seguida, se abaixou e começou a pegar as moedas espalhadas. Havia uma expressão inquieta e cuidadosa no rosto dele.

 

Ben andou na direção dela instintivamente, querendo abraçar e confortar, depois parou. Ela era bonita demais. Frente a tanta beleza, ele se sentia impotente.

 

— Se anima — disse ele, sabendo que devia parecer idiota, mas incapaz de pensar em alguma coisa mais útil. Ele tocou nos ombros dela de leve (ela tinha colocado as mãos por cima do rosto para esconder os olhos molhados e bochechas vermelhas), mas puxou as mãos de volta como se ela estivesse quente demais para ser tocada. Ele agora estava tão vermelho que parecia com raiva. — Se anima, Beverly.

 

Ela baixou as mãos e gritou com voz aguda e furiosa:

 

— Minha mãe não é prostituta! Ela... ela é garçonete!

 

Isso foi recebido com silêncio absoluto. Ben olhou para ela com o queixo um pouco caído. Eddie olhou para ela da superfície de paralelepípedos da travessa, com as mãos cheias de moedas. E de repente os três estavam rindo histericamente.

 

— Garçonete! — gritou Eddie, rindo. Ele só tinha uma leve ideia do que prostituta era, mas alguma coisa na comparação pareceu deliciosa mesmo assim. — É isso que ela é!

 

— É! Sim, é isso! — disse Beverly, engasgada, gargalhando e chorando ao mesmo tempo.

 

Ben estava rindo tanto que não conseguia ficar de pé. Ele se sentou pesadamente em uma lata de lixo. Seu peso enfiou a tampa para dentro da lata e o derrubou no chão de lado. Eddie apontou para ele e berrou gargalhando. Beverly o ajudou a ficar de pé.

 

Uma janela se abriu acima deles e uma mulher gritou:

 

— Saiam daí, crianças! Tem gente que trabalha à noite, sabe? Sumam!

 

Sem pensar, os três deram as mãos, com Beverly no meio, e correram para a rua Center. Eles ainda estavam rindo.

 

Eles juntaram o dinheiro e descobriram que tinham 40 centavos, o bastante para dois frapês de sorvetes na farmácia. Como o velho sr. Keene era um rabugento e não deixava crianças com menos de 12 anos ficarem na bancada (ele alegava que as máquinas de pinball na sala dos fundos poderiam corrompê-los), eles levaram os frapês em dois copos descartáveis enormes até o Parque Bassey e se sentaram para tomá-los. Ben escolheu de café, Eddie escolheu de morango. Beverly estava sentada entre os dois garotos com um canudo, tomando um pouco de cada vez como uma abelha nas flores. Ela se sentiu bem de novo pela primeira vez desde que o ralo cuspiu sangue na noite anterior. Desanimada e exausta, mas bem, em paz consigo mesma. Por enquanto, pelo menos.

 

— Só não entendo qual era o problema de Bradley — disse Eddie depois de um tempo. A fala teve o tom de um pedido de desculpas constrangido. — Ele nunca agiu assim antes.

 

— Você me defendeu — disse Beverly, e beijou Ben de repente na bochecha. — Obrigada.

 

Ben ficou vermelho de novo.

 

— Você não roubou — murmurou ele, e engoliu abruptamente metade do frapê de café em três goles monstruosos. Isso foi seguido por um arroto alto como um tiro.

 

— Ainda tem mais aí, rapaz? — perguntou Eddie, e Beverly riu com força, segurando a barriga.

 

— Chega — riu Beverly. — Minha barriga está doendo. Por favor, parem.

 

Ben estava sorrindo. Naquela noite, antes de dormir, ele repetiria na mente várias vezes seguidas o momento em que ela o beijou.

 

— Você está bem mesmo agora? — perguntou ele.

 

Ela assentiu.

 

— Não foi ele. Não foi nem o que ele disse sobre a minha mãe. Foi uma coisa que aconteceu ontem à noite. — Ela hesitou, olhando de Ben para Eddie e depois para Ben de novo. — Eu... eu tenho que contar pra alguém. Ou mostrar pra alguém. Ou alguma coisa assim. Acho que chorei porque estou com medo de estar ficando de miolo mole.

 

— De que você está falando, miolo mole? — perguntou uma nova voz.

 

Era Stanley Uris. Como sempre, ele parecia pequeno, magro e sobrenaturalmente arrumado, arrumado demais para um garoto que tinha acabado de fazer 11 anos. De camisa branca enfiada para dentro da calça jeans novinha, o cabelo penteado, as pontas dos Keds de cano alto brilhando, ele parecia ser o menor adulto do mundo. Mas então ele sorriu, e a ilusão desapareceu.

 

Ela não vai dizer o que ia dizer, pensou Eddie, porque ele não estava lá quando Bradley chamou a mãe dela daquela coisa.

 

Mas depois de um momento de hesitação, Beverly contou. Porque, de alguma forma, Stanley era diferente de Bradley. Ele estava presente de uma maneira que Bradley não esteve.

 

Stanley é um de nós, pensou Beverly, e se perguntou por que isso fazia seus braços ficarem arrepiados de repente. Não estou fazendo bem nenhum a eles ao contar, pensou ela. Não a eles, e também não a mim.

 

Mas era tarde demais. Ela já estava falando. Stan se sentou com eles, com o rosto imóvel e sério. Eddie ofereceu a ele o final do frapê de morango, e Stan só balançou a cabeça, sem tirar os olhos do rosto de Beverly. Nenhum dos garotos falou.

 

Ela contou sobre as vozes. Sobre reconhecer a voz de Ronnie Grogan. Ela sabia que Ronnie estava morta, mas era a voz dela mesmo assim. Contou a eles sobre o sangue, e que o pai não viu nem sentiu, e que a mãe também não viu de manhã.

 

Quando terminou, ela olhou para os rostos deles, com medo do que poderia ver lá... mas não viu descrença. Pavor, mas não descrença.

 

Por fim, Ben disse:

 

— Vamos lá ver.

 

Eles entraram pela porta dos fundos, não só porque era de lá que Bev tinha a chave, mas porque ela disse que o pai a mataria se a sra. Bolton a visse entrando no apartamento com três garotos quando os pais dela estavam fora.

 

— Por quê? — perguntou Eddie.

 

— Você não entenderia, bobão — disse Stan. — Fica quieto.

 

Eddie começou a responder, olhou de novo para o rosto branco e tenso de Stan e decidiu ficar de boca calada.

 

A porta levava à cozinha, que estava tomada pelo sol do fim da tarde e pelo silêncio do verão. A louça do café da manhã brilhava no escorredor. Os quatro ficaram de pé reunidos ao lado da mesa da cozinha, e quando uma porta bateu no andar de cima, eles pularam e riram com nervosismo.

 

— Onde é? — perguntou Ben. Ele estava sussurrando.

 

Com o coração latejando nas têmporas, Beverly os levou pelo pequeno corredor com o quarto dos pais de um lado e a porta fechada do banheiro no final. Ela a abriu, entrou rapidamente e puxou a corrente por cima da pia. Depois deu um passo para trás, para ficar entre Ben e Eddie de novo. O sangue tinha secado e virado manchas marrons no espelho, pia e papel de parede. Ela olhou para o sangue porque de repente era mais fácil olhar para isso do que para eles.

 

Com uma voz baixa que ela mal conseguiu reconhecer como sua, ela perguntou:

 

— Vocês veem? Algum de vocês vê? Está ali?

 

Ben deu um passo à frente, e mais uma vez ela ficou surpresa pelo quanto ele se movia delicadamente para um garoto tão gordo. Ele tocou em uma das manchas de sangue; depois em outra; depois em uma que tinha escorrido pelo espelho.

 

— Aqui. Aqui. Aqui. — A voz dele estava monótona e autoritária.

 

— Caramba! Parece que alguém matou um porco aqui — disse Stan, impressionado de repente.

 

— Tudo isso saiu do ralo? — perguntou Eddie. A visão de sangue o deixou enjoado. Sua respiração estava ficando curta. Ele pegou a bombinha.

 

Beverly precisou lutar para se impedir de recomeçar a chorar. Ela não queria fazer isso; estava com medo de que, se chorasse, eles a deixassem de lado por ser uma garota qualquer. Mas precisou agarrar a maçaneta quando o alívio tomou conta dela em uma onda de força assustadora. Até aquele momento, ela não tinha percebido o quanto tinha certeza de que estava enlouquecendo, tendo alucinações, alguma coisa assim.

 

— E sua mãe e seu pai não viram — comentou Ben impressionado. Ele tocou em um borrão de sangue que tinha secado na pia, depois puxou a mão e limpou no traseiro da calça jeans. — Caramba.

 

— Não sei como vou conseguir voltar aqui — disse Beverly. — Nem pra me lavar, nem pra escovar os dentes, nem pra... vocês sabem.

 

— Ah, por que a gente não limpa o banheiro? — perguntou Stanley de repente.

 

Beverly olhou para ele.

 

— Limpar?

 

— Claro. Pode ser que a gente não consiga tirar tudo do papel de parede, porque ele parece meio que nas últimas, mas a gente podia limpar o resto. Você não tem uns panos?

 

— Debaixo da pia da cozinha — disse Beverly. — Mas minha mãe vai querer saber onde foram parar se usarmos.

 

— Tenho 50 centavos — disse Stan baixinho. Seus olhos nunca desgrudaram do sangue que tinha se espalhado na área do banheiro ao redor da pia. — A gente pode limpar o melhor que conseguir, depois leva os panos pra lavanderia que tinha no caminho que a gente pegou pra vir pra cá. A gente lava e seca, e eles estarão de volta no lugar antes de seus pais voltarem.

 

— Minha mãe diz que não dá pra tirar sangue de um pano — objetou Eddie. — Ela diz que ele impregna, sei lá.

 

Ben deu uma risadinha histérica.

 

— Não importa se vai sair do pano ou não — disse ele. — Eles não conseguem ver.

 

Ninguém precisou perguntar o que ele queria dizer com “eles”.

 

— Tudo bem — disse Beverly. — Vamos tentar.

 

Pela meia hora seguinte, os quatro limparam como condenados, e conforme o sangue desaparecia das paredes, do espelho e da pia de porcelana, Beverly sentia seu coração ficar cada vez mais leve. Ben e Eddie cuidaram da pia e do espelho enquanto ela esfregava o chão. Stan trabalhou no papel de parede com cuidado redobrado, usando um pano quase seco. No final, eles conseguiram tirar quase tudo. Ben terminou trocando a lâmpada por cima da pia e substituindo por uma da caixa de lâmpadas na despensa. Havia muitas: Elfrida Marsh tinha comprado um suprimento de dois anos no Derry Lions durante a venda anual de lâmpadas no outono anterior.

 

Eles usaram o balde de Elfrida, o Ajax e muita água quente. Trocaram a água com frequência porque nenhum deles gostava de enfiar a mão lá depois que ficava rosa.

 

Por fim, Stan recuou, observou o banheiro com o olhar crítico de um garoto para quem a limpeza e a arrumação não estavam apenas entranhadas, mas eram inatas, e disse para eles:

 

— É o melhor que podemos fazer, eu acho.

 

Ainda havia leves marcas de sangue no papel de parede à esquerda da pia, onde estava tão fino que Stanley não ousou fazer nada além de bater com o pano de leve. Mas mesmo lá o sangue perdeu a força apavorante; não passava de uma mancha de tom pastel sem sentido.

 

— Obrigada — disse Beverly para todos. Ela não conseguia se lembrar de outra ocasião em que agradeceu de forma tão sincera e profunda. — Obrigada a todos.

 

— Tudo bem — murmurou Ben. Ele estava corando de novo, é claro.

 

— De nada — concordou Eddie.

 

— Vamos lavar logo esses panos — disse Stanley. O rosto dele estava composto, quase sério. E depois, Beverly pensaria que talvez só Stan se desse conta de que eles tinham dado outro passo em direção a um confronto inimaginável.

 

Eles pegaram uma xícara do sabão em pó da sra. Marsh e colocaram em um vidro vazio de maionese. Bev encontrou um saco de papel para colocar os panos sujos, e os quatro seguiram para a Kleen-Kloze Washateria na esquina das ruas Main e Cony. Duas quadras depois, eles conseguiam ver o canal brilhando em azul no sol da tarde.

 

A Kleen-Kloze estava vazia exceto por uma mulher com uniforme branco de enfermeira que estava esperando a secadora parar. Ela olhou para as quatro crianças com desconfiança e voltou para o exemplar de Peyton Place.

 

— Água fria — disse Ben com voz baixa. — Minha mãe diz que sangue se lava em água fria.

 

Eles jogaram os panos na máquina enquanto Stan trocava as duas moedas de 25 centavos por quatro de dez e duas de cinco. Ele voltou e viu Bev jogar o sabão sobre os panos e fechar a porta da máquina. Em seguida, colocou duas moedas de dez no buraco das moedas e girou o botão para iniciar o ciclo.

 

Beverly tinha usado quase todas as moedas de um centavo que ganhou no jogo para ajudar a comprar os frapês, mas descobriu quatro sobreviventes no fundo do bolso esquerdo da calça jeans. Ela as pegou e ofereceu a Stan, que fez cara de sofrimento.

 

— Caramba — disse ele —, eu levo uma garota pra um encontro na lavanderia e ela já quer dividir a conta.

 

Beverly riu um pouco.

 

— Tem certeza?

 

— Tenho — disse Stan do seu jeito seco. — Quero dizer, está mesmo partindo meu coração abrir mão desses quatro centavos, Beverly, mas tenho certeza.

 

Os quatro foram até a fileira de cadeiras de plástico encostadas na parede de cimento da lavanderia e ficaram sentados ali, sem falar. A máquina Maytag com os panos dentro tremia e balançava. Espuma batia na porta redonda de vidro grosso. A princípio, a espuma estava avermelhada. Olhar para ela deixou Beverly um pouco enjoada, mas ela percebeu que era difícil afastar o olhar. A espuma sangrenta exercia uma espécie distorcida de fascínio. A moça de uniforme de enfermeira olhou para eles cada vez com mais frequência por cima do livro. Ela talvez tivesse tido medo de eles causarem confusão; agora, o silêncio parecia irritá-la. Quando a secadora parou, ela pegou as roupas, dobrou-as, colocou em um saco plástico azul e saiu, lançando um olhar intrigado para eles ao passar pela porta.

 

Assim que ela saiu, Ben disse abruptamente, quase com crueldade.

 

— Você não está sozinha.

 

— O quê? — perguntou Beverly.

 

— Você não está sozinha. — repetiu Ben. — Sabe...

 

Ele parou e olhou para Eddie, que assentiu. Olhou para Stan, que pareceu infeliz... mas que, depois de um momento, deu de ombros e também assentiu.

 

— De que você está falando? — perguntou Beverly. Estava cansada de pessoas dizendo coisas inexplicáveis para ela hoje. Ela segurou o antebraço de Ben. — Se você sabe alguma coisa sobre isso, me conta!

 

— Você quer falar? — Ben perguntou a Eddie.

 

Eddie balançou a cabeça. Ele tirou a bombinha do bolso e inspirou por um tempo absurdo.

 

Falando lentamente, escolhendo as palavras, Ben contou a Beverly como conheceu Bill Denbrough e Eddie Kaspbrak no Barrens no último dia de aula, quase uma semana antes, por mais difícil que fosse de acreditar. Contou a ela que eles construíram a barragem no Barrens no dia seguinte. Contou a história de Bill de que a foto da escola do irmão mais novo tinha virado a cabeça e piscado. Contou a própria história da múmia que tinha andado no canal gelado no meio do inverno com balões que flutuavam contra o vento. Beverly ouviu com horror crescente. Ela conseguia sentir seus olhos se arregalando, as mãos e os pés ficando gelados.

 

Ben parou e olhou para Eddie. Eddie inspirou de novo na bombinha e contou a história do leproso de novo, falando tão rapidamente quanto Ben tinha falado devagar, com palavras tropeçando umas nas outras na urgência de fugir dali. Terminou com um meio-soluço, mas desta vez não chorou.

 

— E você? — perguntou ela, olhando para Stan Uris.

 

— Eu...

 

Houve um silêncio repentino, que os assustou da mesma forma que uma explosão teria feito.

 

— A lavagem acabou — disse Stan.

 

Eles o viram ficar de pé, pequeno, econômico, gracioso, e abrir a lavadora. Ele tirou os panos amontoados e os examinou.

 

— Ficou uma mancha pequena — disse ele —, mas não está ruim. Parece suco de cranberry.

 

Ele os mostrou, e todos assentiram com seriedade, como se sobre documentos importantes. Beverly sentiu um alívio similar ao que sentiu quando o banheiro estava limpo de novo. Ela conseguia suportar a mancha de tom pastel no papel de parede velho e a mancha avermelhada nos panos de limpeza da mãe. Eles fizeram alguma coisa sobre o assunto, isso parecia o importante. Talvez não tivesse funcionado completamente, mas ela descobriu que funcionou bem o bastante para dar tranquilidade ao coração dela, e cara, era bom o bastante para Beverly, a filha de Al Marsh.

 

Stan os jogou em uma das secadoras em forma de barril e colocou duas moedas de cinco. A secadora começou a girar, e Stan voltou para seu lugar entre Eddie e Ben.

 

Por um momento, os quatro ficaram em silêncio de novo, vendo os panos girarem e caírem, girarem e caírem. O ruído da secadora era tranquilizante, quase soporífero. Uma mulher passou pela porta escancarada empurrando um carrinho de compras. Ela olhou para eles e seguiu em frente.

 

— Eu vi sim uma coisa — disse Stan de repente. — Eu não queria falar sobre isso porque queria pensar que foi um sonho, sei lá. Quem sabe até uma convulsão, como aquele garoto Stavier tem. Algum de vocês conhece ele?

 

Ben e Bev balançaram a cabeça. Eddie disse:

 

— O garoto que tem epilepsia?

 

— É, ele mesmo. Foi ruim assim. Eu preferia pensar que tinha uma coisa assim a pensar que vi mesmo uma coisa... verdadeira.

 

— O que foi? — perguntou Beverly, mas não sabia se queria saber. Não era como ouvir histórias de terror ao redor de uma fogueira enquanto se comia salsicha no pão torrado e se assavam marshmallows nas chamas até ficarem pretos e crocantes. Eles estavam sentados em uma lavanderia abafada e ela conseguia ver grandes bolas de poeira debaixo das máquinas (cocô de fantasma, dizia o pai dela), conseguia ver poeira flutuando nos raios de sol que entravam pela vitrine suja da lavanderia, conseguia ver as revistas velhas com as capas arrancadas. Eram coisas normais. Boas, normais e chatas. Mas ela estava com medo. Com um medo danado. Porque sentia que nenhuma dessas coisas eram histórias inventadas, monstros inventados: a múmia de Ben, o leproso de Eddie... qualquer um dos dois ou os dois poderiam aparecer quando o sol se pusesse. Ou o irmão de Bill Denbrough, com um braço só e implacável, passeando pelos canos pretos debaixo da cidade com moedas de prata no lugar de olhos.

 

Mas quando Stan não respondeu imediatamente, ela perguntou de novo:

 

— O que foi?

 

Falando com cautela, Stan disse:

 

— Eu estava naquele parque onde fica a Torre de Água...

 

— Ah, Deus, não gosto daquele lugar — disse Eddie com pesar. — Se existe uma casa mal-assombrada em Derry, é lá.

 

— O quê? — disse Stan com voz aguda. — O que você disse?

 

— Você não sabe sobre aquele lugar? — perguntou Eddie. — Minha mãe não me deixava nem chegar perto desde antes de as crianças começarem a morrer. Ela... ela cuida muito bem de mim. — Ele deu um sorriso desconfortável e segurou a bombinha com mais força no colo. — Sabe, algumas crianças se afogaram lá. Três ou quatro. Elas... Stan? Stan, você está bem?

 

O rosto de Stan Uris ficou cinza-escuro. Sua boca trabalhava sem emitir som. Seus olhos se reviraram até os outros só conseguirem ver as curvas inferiores das íris. Uma das mãos agarrou fracamente o ar e caiu sobre a coxa dele.

 

Eddie fez a única coisa em que conseguiu pensar. Ele se inclinou, passou um braço fino ao redor dos ombros caídos, enfiou a bombinha na boca de Stan e emitiu um jato longo.

 

Stan começou a tossir, sufocar e engasgar. Ele se sentou ereto, com os olhos em foco de novo. Tossiu nas mãos em concha. Por fim, deu um arroto e relaxou de volta na cadeira.

 

— O que foi isso? — conseguiu dizer ele.

 

— Minha medicação de asma — disse Eddie, como que pedindo desculpas.

 

— Meu Deus, tem gosto de merda de cachorro morto.

 

Todos riram disso, mas foi uma risada nervosa. Os outros olhavam inquietos para Stan. Uma corzinha tinha voltado às suas bochechas.

 

— É bem ruim mesmo — disse Eddie com um pouco de orgulho.

 

— É, mas é kosher? — disse Stan, e todos riram de novo, embora nenhum deles (incluindo Stan) soubesse direito o que “kosher” queria dizer.

 

Stan parou de rir primeiro e olhou para Eddie com atenção.

 

— Me conta o que você sabe sobre a Torre de Água — disse ele.

 

Eddie começou, mas tanto Ben quanto Bev também contribuíram. A Torre de Água de Derry ficava na rua Kansas, 2,5 quilômetros a oeste do centro, perto da beirada sul do Barrens. Uma época, perto do final do século XIX, ela fornecia toda a água de Derry e armazenava 6,5 milhões de litros. Como a galeria circular abaixo do teto da Torre de Água oferecia uma vista espetacular da cidade e da área ao redor, era um local popular até 1930, mais ou menos. Famílias iam para o pequeno Parque Memorial em tardes de sábado ou domingo quando o tempo estava bom, subiam os 160 degraus dentro da Torre até a galeria e observavam a vista. Com frequência, as pessoas abriam uma toalha de piquenique lá em cima.

 

A escada ficava entre o exterior da Torre de Água, que era branco, e a camada interna, um enorme cilindro de aço inoxidável com 32 metros de altura. Ela subia até o alto em uma espiral estreita.

 

Pouco abaixo do nível da galeria, uma porta grossa de madeira na camada interna da Torre de Água levava a uma plataforma sobre a água, um lago negro que batia delicadamente nas paredes e era iluminado por lâmpadas de magnésio presas em suportes refletores. A água tinha exatamente 30 metros de profundidade quando o armazenamento era total.

 

— De onde vinha a água? — perguntou Ben.

 

Bev, Eddie e Stan se entreolharam. Nenhum deles sabia.

 

— E as crianças que se afogaram?

 

Eles só sabiam um pouco sobre isso. Parecia que naqueles dias (“velhos dias” era como Ben os chamava solenemente em sua parte da história) a porta que levava à plataforma sobre a água sempre era deixada destrancada. Uma noite, duas crianças... ou talvez apenas uma... ou quem sabe três... encontraram a porta de baixo também destrancada. Elas subiram por causa de uma aposta. Foram até a plataforma acima da água em vez de para a galeria por engano. No escuro, caíram pela beirada antes mesmo de saberem onde estavam.

 

— Ouvi de um tal Vic Crumly, que disse que ouviu do pai — disse Beverly —, então talvez seja verdade. Vic disse que o pai falou que, quando elas caíram na água, estavam praticamente mortas, porque não tinha nada em que pudessem se segurar. A plataforma ficava alta demais. Ele disse que elas ficaram nadando um pouco, pedindo ajuda a noite toda, provavelmente. Só que ninguém ouviu elas, e elas se cansaram mais e mais até...

 

Ela parou de falar, sentindo o horror penetrar sua mente. Ela conseguia imaginar os garotos, de verdade ou inventados, nadando de um lado para o outro como cachorrinhos encharcados. Afundando, subindo e cuspindo água. Espalhando mais água e nadando menos conforme o pânico aumentava. Com tênis molhados afundando na água. Dedos procurando inutilmente qualquer suporte nas paredes lisas de aço. Ela conseguia sentir o gosto da água que eles deviam ter engolido. Conseguia ouvir o tom angustiado e o eco dos gritos. Quanto tempo? Quinze minutos? Meia hora? Quanto tempo até os gritos pararem e eles passarem a flutuar com a cara para baixo, peixes estranhos que o zelador encontraria de manhã?

 

— Meu Deus — disse Stan secamente.

 

— Ouvi que teve uma mulher que perdeu o bebê também — disse Eddie de repente. — Foi quando fecharam o lugar de vez. Pelo menos, foi o que me disseram. Deixavam mesmo as pessoas subirem, disso eu sei. Mas uma vez uma moça subiu com o bebê. Não sei quanto tempo o bebê tinha. Mas essa plataforma ficava por cima da água. E a moça foi até a beirada e estava, sabe, segurando o bebê, e ela o deixou cair ou ele se contorceu. Ouvi que um cara tentou salvar ele. Bancou o herói, sabe? Ele pulou na água, mas o bebê tinha sumido. Talvez estivesse de casaco, sei lá. Quando as roupas ficam molhadas, elas puxam a gente pra baixo.

 

Eddie colocou a mão no bolso de repente e tirou um pequeno vidro marrom. Ele o abriu, pegou dois comprimidos brancos e engoliu sem água.

 

— O que era isso? — perguntou Beverly.

 

— Aspirina. Estou com dor de cabeça. — Ele olhou para ela na defensiva, mas Beverly não disse mais nada.

 

Ben concluiu. Depois do incidente do bebê (ele disse que ouviu que era uma criança, na verdade, uma garotinha de uns 3 anos), a câmara municipal votou para que a Torre de Água fosse trancada, tanto embaixo quanto em cima, e para que não fossem mais feitas visitas nem piqueniques na galeria. Ela ficava trancada desde então. Ah, o zelador ia e vinha, e os homens da manutenção de vez em quando, e bem raramente havia visitas guiadas. Cidadãos interessados podiam seguir uma senhora da Sociedade Histórica escada acima até a galeria, onde podiam se impressionar com a vista e clicar nas suas Kodaks para mostrar para os amigos. Mas a porta da parte interna sempre ficava fechada agora.

 

— Ainda fica cheia de água? — perguntou Stan.

 

— Acho que fica — disse Ben. — Já vi carros de bombeiro sendo cheios lá durante a época de incêndios na mata. Eles prendem uma mangueira ao cano embaixo.

 

Stanley estava olhando para a secadora de novo, vendo os panos girarem e caírem. Eles estavam separados agora, e alguns flutuavam como paraquedas.

 

— O que você viu lá? — perguntou Bev com gentileza.

 

Por um momento, pareceu que ele não ia responder. Mas ele inspirou fundo e disse uma coisa que para eles pareceu não ter nada a ver.

 

— Deram o nome de Parque Memorial em homenagem à infantaria 23 do Maine na Guerra Civil. Os Derry Blues, era assim que eram chamados. Havia uma estátua, mas ela caiu durante uma tempestade nos anos 1940. Não tinham dinheiro pra consertar a estátua, então colocaram um bebedor de pássaros no lugar. Um grande bebedor de pássaros feito de pedra.

 

Todos estavam olhando para ele. Stan engoliu em seco. Houve um clique audível na garganta dele.

 

— Eu observo pássaros, sabe? Tenho um álbum, um binóculo Zeiss-Ikon e tudo. — Ele olhou para Eddie. — Você tem mais aspirina?

 

Eddie entregou o vidro para ele. Stan pegou duas, hesitou, depois pegou mais uma. Ele devolveu o vidro e engoliu os comprimidos, um atrás do outro, com uma careta. E prosseguiu com a história.

 

O encontro de Stan aconteceu em uma noite chuvosa de abril dois meses antes. Ele colocou a capa, guardou o livro sobre pássaros e o binóculo em uma bolsa à prova de água que amarrava em cima e foi para o Parque Memorial. Ele e o pai costumavam ir juntos, mas o pai precisou “trabalhar até mais tarde” naquela noite e ligou na hora do jantar para conversar com Stan.

 

Um dos clientes na agência, também observador de pássaros, tinha visto o que ele acreditava ser um cardeal macho (Fringillidae richmondena) bebendo no bebedor de pássaros no Parque Memorial, ele contou para Stan. Eles gostavam de comer, beber e tomar banho por volta do pôr do sol. Era bem raro ver um cardeal tão ao norte de Massachusetts. Será que Stan gostaria de ir lá ver se conseguia observá-lo? Ele sabia que o tempo estava bem ruim, mas...

 

Stan concordou. Sua mãe o fez prometer ficar com o capuz da capa o tempo todo, mas Stan teria feito isso, mesmo que ela não pedisse. Ele era um garoto meticuloso. Nunca havia brigas para ele usar galochas ou as calças para neve no inverno.

 

Ele andou os 2,5 quilômetros até o Parque Memorial em uma chuva tão fina e hesitante que não era nem um chuvisco; era mais uma neblina constante. O ar estava quieto, mas ao mesmo tempo excitante. Apesar das últimas pilhas de neve debaixo de arbustos e em sulcos nas árvores (para Stan, elas pareciam pilhas de fronhas sujas largadas), havia um aroma de crescimento no ar. Ao olhar para os galhos dos olmos, bordos e carvalhos contra o céu branco-acinzentado, Stan pensou que as silhuetas pareciam misteriosamente mais grossas. Eles se abririam em uma semana ou duas e libertariam folhas de um verde delicado, quase transparente.

 

O ar está com cheiro verde hoje, pensou ele, e sorriu um pouco.

 

Ele andou rapidamente porque a luz sumiria em uma hora ou menos. Ele era tão exigente com a observação quanto com roupas e hábitos de estudo, e a não ser que houvesse luz o bastante para ter certeza absoluta, ele jamais se permitiria considerar o cardeal como um pássaro avistado se não soubesse de coração que o tinha visto mesmo.

 

Ele cortou o Parque Memorial em diagonal. A Torre de Água era uma forma branca à esquerda. Stan mal olhou para ela. Não tinha interesse nenhum na Torre de Água.

 

O Parque Memorial era um retângulo inclinado. A grama (branca e morta nessa época do ano) era bem aparada no verão, e havia canteiros circulares de flores. Mas não havia brinquedos de parquinho. Esse parque era considerado um parque para adultos.

 

Na extremidade, havia um trecho plano antes de uma descida íngreme até a rua Kansas e o Barrens além. O bebedor de pássaros que o pai mencionou ficava na área plana. Era um prato raso de pedra sobre um pedestal baixo grande demais para a função humilde que executava. O pai de Stan disse para ele que, antes de o dinheiro acabar, pretendiam colocar a estátua do soldado de volta lá.

 

— Gosto mais do bebedor de pássaros, papai — disse Stan.

 

O sr. Uris bagunçou o cabelo dele.

 

— Eu também, filho — disse ele. — Mais bebedores e menos balas, esse é meu lema.

 

No alto desse pedestal, uma frase tinha sido entalhada na pedra. Stanley leu, mas não entendeu; a única coisa que ele entendia de latim eram as classificações de gênero dos pássaros no livro.

 

Apparebat eidolon senex.

 

— PLÍNIO

 

dizia a inscrição.

 

Stan se sentou em um banco, pegou o livro de pássaros na bolsa e abriu na imagem do cardeal mais uma vez, inspecionando-o, se familiarizando com os pontos reconhecíveis. Um cardeal macho seria difícil de confundir por mais um motivo: ele era vermelho como um carro de bombeiros, mesmo não sendo grande. Mas Stan era uma criatura de hábito e convenções; essas coisas lhe davam conforto e reforçavam seu senso de lugar e de fazer parte do mundo. Assim, ele estudou a foto por uns três minutos antes de fechar o livro (a umidade no ar estava fazendo os cantos se virarem) e o colocou de volta na bolsa. Ele pegou o binóculo e levou aos olhos. Não havia necessidade de ajustar o foco, porque na última vez que ele usou o binóculo estava sentado no mesmo banco olhando para o mesmo bebedouro.

 

Garoto meticuloso, garoto paciente. Ele não ficou se mexendo. Não se levantou e saiu andando nem virou o binóculo em outras direções para ver o que mais havia para observar. Ficou sentado parado, com as lentes apontadas para o bebedouro, e a névoa se acumulava em gotas grossas na capa amarela.

 

Ele não estava entediado. Estava olhando para o equivalente a um centro de convenções de aves. Quatro pardais marrons ficaram lá por um tempo, mergulhando os bicos na água, jogando gotas de água casualmente por cima dos ombros, nas costas. Um gaio-azul surgiu como um policial apartando uma briga. O gaio era do tamanho de uma casa no binóculo de Stan, com gritos brigões absurdamente agudos em comparação (depois de você olhar pelo binóculo sem parar durante um tempo, os pássaros ampliados que você via começavam a parecer não estranhos, mas perfeitamente corretos). Os pardais saíram voando. O gaio, agora no comando, caminhou, se banhou, ficou entediado e foi embora. Os pardais voltaram, depois foram embora quando um par de pintarroxos se aproximou para tomar banho e (talvez) discutir assuntos de importância para os pássaros de peito afundado. O pai de Stan rira da sugestão hesitante de Stan de que talvez pássaros conversassem, e ele tinha certeza de que o pai estava certo quando dizia que pássaros não eram inteligentes o bastante para conversar, que o cérebro deles era pequeno demais, mas eles realmente pareciam estar conversando. Um novo pássaro se juntou a eles. Era vermelho. Stan ajustou rapidamente o foco do binóculo, de leve. Será que era...? Não. Era um sanhaço escarlate, um pássaro bom, mas não o cardeal que ele estava esperando. Um pica-pau que era visitante frequente do bebedor de pássaros do Parque Memorial se juntou a ele. Stan o reconheceu pela asa direita machucada. Como sempre, ele especulou sobre como isso aconteceu. Um encontro perigoso com um gato parecia a explicação mais provável. Outros pássaros chegaram e foram embora. Stan viu um melro, desajeitado e feio como um vagão de trem, um pássaro azul e outro pica-pau. Ele acabou sendo recompensado com um novo pássaro; não o cardeal, mas um chupim que parecia enorme e estúpido nas lentes do binóculo. Ele o soltou sobre o peito e tirou o livro da bolsa de novo, na esperança de o chupim não sair voando antes de ele poder confirmar que era isso mesmo. Ele teria alguma coisa para levar para casa, para mostrar ao pai, pelo menos. E era hora de ir. A luz estava sumindo rápido. Ele estava com frio e molhado. Ele olhou no livro, depois olhou pelo binóculo de novo. O pássaro ainda estava lá, não se banhando, mas apenas de pé na beirada com aparência idiota. Era quase com certeza um chupim. Sem marcas distintas, pelo menos nenhuma que ele conseguisse ver àquela distância, e na luz morrente, era difícil ter cem por cento de certeza, mas talvez ele tivesse tempo e luz suficiente para mais uma verificada. Ele olhou para a foto no livro, observando com a testa franzida de concentração, depois pegou de novo o binóculo. Ele tinha acabado de mirar no bebedouro quando um bum! seco espantou o chupim, se é que era um chupim, que saiu voando no ar. Stan tentou acompanhá-lo com o binóculo, sabendo que as chances de encontrá-lo de novo eram poucas. Ele o perdeu e fez um som de raiva entre os dentes. Bem, se ele tinha aparecido uma vez, talvez voltasse. E era só um chupim

 

(provavelmente um chupim)

 

afinal, não uma águia-dourada nem um arau-gigante.

 

Stan colocou o binóculo no estojo e guardou o livro de pássaros. Em seguida, ficou de pé e olhou ao redor, para ver se conseguia descobrir o que causara aquele barulho alto e repentino. Não pareceu uma arma nem um escapamento de carro. Parecia mais uma porta sendo aberta em um filme de terror sobre castelos e calabouços... com os efeitos de eco e tudo.

 

Ele não conseguiu ver nada.

 

Ele ficou de pé e começou a andar na direção da ladeira que ia até a rua Kansas. A Torre de Água estava agora à sua direita, um cilindro branco-giz, como um fantasma na névoa e na escuridão crescente. Parecia quase... flutuar.

 

Foi um pensamento estranho. Ele achava que tinha vindo de sua própria cabeça (de onde mais um pensamento viria?), mas não parecia ser um pensamento dele.

 

Ele olhou para a Torre de Água com mais atenção e seguiu na direção dela sem nem pensar no que estava fazendo. Janelas circulavam a construção em intervalos, subindo em uma espiral que fez Stan pensar no poste de barbearia em frente à loja do sr. Aurlette, onde ele e o pai cortavam o cabelo. As telhas brancas como osso se avolumavam acima de cada uma das janelas escuras como sobrancelhas sobre olhos. Queria saber como fizeram isso, pensou Stan (não com tanto interesse quanto Ben Hanscom teria, mas com um pouco), e foi nessa hora que ele viu que havia um espaço de escuridão bem maior no pé da Torre, um paralelogramo evidente na base circular.

 

Ele parou, franziu a testa e pensou que era um lugar estranho para uma janela: ficava completamente fora de simetria em comparação às outras. Mas percebeu que não era uma janela. Era uma porta.

 

O barulho que eu ouvi, pensou ele. Foi aquela porta se abrindo.

 

Ele olhou ao redor. Estava começando a anoitecer. O céu branco estava passando a um roxo embotado e escuro, e a névoa estava ficando mais densa e virando a chuva consistente que cairia durante a maior parte da noite. Escuridão, névoa e nenhum vento.

 

Assim... se a porta não se abriu no vento, será que alguém a empurrou? Por quê? E parecia uma porta bastante pesada para fazer um barulho como aquele estrondo. Ele achava que uma pessoa bem grande... talvez...

 

Com curiosidade, Stan andou para mais perto a fim de olhar melhor.

 

A porta era maior do que ele achara, com 1,80 metro de altura e 60 centímetros de largura, com tábuas presas por tiras de metal. Stan a abriu até a metade. Ela se deslocou suavemente nas dobradiças apesar do tamanho. O movimento também foi silencioso, não houve um único rangido. Ele a moveu para ver o quanto foi danificada por ter aberto com força daquele jeito. Não havia dano nenhum; nem mesmo uma marquinha. Estranholândia, como Richie diria.

 

Bem, não foi a porta que você ouviu, só isso, pensou ele. Talvez um jato de Loring voando sobre Derry ou alguma coisa assim. A porta já devia estar aberta...

 

Seu pé encostou em alguma coisa. Stan olhou para baixo e viu que era um cadeado... ou melhor, eram os restos de um cadeado. Ele foi arrebentado. Na verdade, parecia que alguém tinha enchido o buraco do cadeado com pólvora e colocou um fósforo. Flores de metal, mortalmente afiadas, se destacavam no cadeado como um spray rígido. Stan conseguia ver as camadas de aço dentro. O ferrolho grosso estava pendurado torto por um parafuso que foi arrancado três quartos do tamanho da madeira. Os outros três parafusos estavam na grama molhada. Estavam retorcidos como pretzels.

 

Franzindo a testa, Stan voltou a abrir a porta e olhou dentro.

 

Uma escada estreita levava ao andar de cima, seguindo em espiral até sumir de vista. A parede externa da escada era de madeira sustentada por gigantescas vigas presas com estacas em vez de pregos. Para Stan, algumas das estacas pareciam mais grossas do que o braço dele. A parede interna era de aço, de onde rebites gigantescos surgiam como bolhas.

 

— Tem alguém aqui? — perguntou Stan.

 

Não houve resposta.

 

Ele hesitou, depois entrou para poder ver um pouco melhor pela garganta estreita da escada. Nada. E era a Cidade do Pavor ali dentro. Como Richie também diria. Ele se virou para sair... e ouviu música.

 

Estava baixa, mas ainda imediatamente reconhecível.

 

Música de realejo.

 

Ele inclinou a cabeça para o lado e prestou atenção, com a testa franzida começando a relaxar um pouco. Música de realejo, realmente, a música de feiras e parques de diversão. Ela despertou lembranças que eram tão alegres quanto efêmeras: pipoca, algodão-doce, bolinhos fritando em gordura quente, os estalos de correntes de brinquedos como a montanha-russa e o chapéu mexicano e a roda-gigante.

 

Agora, a testa franzida virou um sorriso hesitante. Stan subiu um degrau, depois mais dois, com a cabeça ainda inclinada. Ele fez outra pausa. Era como se pensar em parques de diversão pudesse realmente criar um; ele agora sentia o cheiro de pipoca, algodão-doce, bolinhos... e mais! Pimentão, cachorro-quente, fumaça de cigarro e serragem. Havia o cheiro acre de vinagre branco, do tipo que você coloca na batata frita por um buraquinho na tampa. Ele sentia cheiro de mostarda, amarela e ardente, a que você passa no cachorro-quente com uma pazinha.

 

Isso era impressionante... incrível... irresistível.

 

Ele deu outro passo, e foi quando ouviu o movimento de passos arrastados e ansiosos acima dele, descendo a escada. Ele inclinou a cabeça de novo. A música do realejo ficou mais alta de repente, como se para esconder o som dos passos. Ele conseguia reconhecer a melodia agora, era “Camptown Races”.

 

Passos, sim; mas não eram exatamente passos arrastados, eram? Na verdade, pareciam... molhados, não? O som era como pessoas andando de galochas cheias de água.

 

As senhoras do gueto cantam essa música, doodah doodah

(Splash-splash)

A pista de corrida do gueto tem 15 quilômetros, doodah doodah

(Splash-splosh, mais perto agora)

Correndo a noite toda

Correndo o dia todo...

 

Agora havia sombras na parede acima dele.

 

O pavor desceu pela garganta de Stan de uma vez; era como engolir uma coisa quente e horrível, um remédio ruim que de repente estimulava você como eletricidade. Foram as sombras que provocaram isso.

 

Ele as viu por apenas um momento. Ele teve essa pequena janela de tempo para observar que eram duas, que estavam curvadas e eram de alguma forma nada naturais. Ele só teve aquele momento porque a luz ali dentro estava desaparecendo, desaparecendo rápido demais, e quando ele se virou, a pesada porta da Torre de Água se fechou pesadamente atrás dele.

 

Stanley correu escada abaixo (de alguma forma ele tinha subido mais de dez degraus, embora só conseguisse se lembrar de subir dois ou três no máximo), agora com muito medo. Estava escuro demais para ele ver alguma coisa. Ele conseguia ouvir a própria respiração, conseguia ouvir o realejo tocando em algum lugar acima

 

(o que um realejo está fazendo lá em cima no escuro? quem está tocando?)

 

e conseguia ouvir os passos molhados. Aproximando-se dele agora. Chegando mais perto.

 

Ele bateu na porta com as mãos abertas, com força o bastante para despertar pontadas de dor até os cotovelos. Ela tinha se aberto com tanta facilidade antes... e agora, nem se mexia.

 

Não... isso não era bem verdade. A princípio, ela se mexeu só um pouco, o bastante para ele ver uma tira vertical debochada de luz cinza à sua esquerda. Ela sumiu. Como se alguém estivesse do outro lado empurrando a porta.

 

Ofegante, apavorado, Stan empurrou a porta com toda força. Ele conseguia sentir o metal das juntas afundando nas mãos. Nada.

 

Ele se virou e encostou as costas e as mãos abertas na porta. Conseguia sentir suor, oleoso e quente, escorrendo pela testa. A música do realejo tinha ficado ainda mais alta. Ela se espalhou e ecoou pela escada em espiral. Não havia nada de alegre nela agora. Ela tinha mudado. Tinha virado um canto fúnebre. Ela gritava como vento e água, e na mente Stan viu uma feira no final de outono, com vento e chuva atingindo o terreno deserto, pendões voando, tendas se inflando, caindo, rolando como morcegos de lona. Ele viu brinquedos vazios contra o céu como andaimes; o vento batia e assoviava nos ângulos estranhos dos suportes. Ele entendeu de repente que a morte estava naquele lugar com ele, que a morte estava indo atrás dele saída do escuro e que ele não podia correr.

 

Um jato repentino de água escorreu escada abaixo. Agora os cheiros não eram de pipoca, bolinho e algodão-doce, mas podridão molhada, o fedor de porco morto que explodia em uma fúria de larvas em um lugar escondido do sol.

 

— Quem está aqui? — gritou ele com voz alta e trêmula.

 

A resposta foi uma voz baixa e borbulhante que parecia engasgada em lama e água velha.

 

— Os mortos, Stanley. Somos os mortos. Afundamos, mas agora flutuamos... e você também vai flutuar.

 

Ele conseguia sentir água escorrendo ao redor dos pés. Encolheu-se contra a porta em uma agonia de medo. Eles estavam muito perto agora. Ele conseguia sentir a proximidade deles. Conseguia sentir o cheiro deles. Alguma coisa estava se afundando em seu quadril conforme ele empurrava a porta sem parar em um esforço maquinal e inútil para escapar.

 

— Estamos mortos, mas às vezes fazemos palhaçadas por aí, Stanley. Às vezes nós...

 

Era seu livro de pássaros.

 

Sem pensar, Stan o pegou. Estava preso na bolsa e não queria sair. Um deles estava embaixo agora; ele conseguia senti-lo arrastando os pés molhados pela pequena área de pedra por onde ele tinha entrado. Esticaria a mão a qualquer momento, e ele sentiria o toque da carne fria.

 

Ele deu um puxão forte, e o livro de pássaros saiu em suas mãos. Ele o segurou à frente do corpo como um escudo insignificante, sem pensar no que estava fazendo, mas de repente certo de que isso era o certo.

 

— Pintarroxos! — gritou ele para a escuridão, e por um momento a coisa se aproximando (sem dúvida estava a menos de cinco passos agora) hesitou; ele tinha quase certeza de que sim. E por um momento ele não sentiu a porta ceder um pouco, com ele empurrando-a?

 

Mas ele não estava empurrando mais. Estava de pé ereto na escuridão. Quando isso tinha acontecido? Não havia tempo para pensar. Stan lambeu os lábios e começou a cantarolar:

 

— Pintarroxo! Garçota-cinza! Mobelha! Sanhaço-escarlate! Melro! Pica-pau-rei! Chupim! Cambaxirra! Peli...

 

A porta se abriu com um grito de protesto, e Stan deu um passo gigantesco para trás, para o ar enevoado. Ele caiu estatelado na grama morta. Tinha dobrado o livro de pássaros quase no meio, e mais tarde veria as marcas claras dos dedos dele afundadas na capa, como se ela fosse feita de massa de modelar em vez de cartão prensado.

 

Ele não tentou ficar de pé, mas começou a afundar os pés na terra, deslizando o traseiro pela grama escorregadia. Seus lábios estavam repuxados sobre os dentes. Dentro do paralelogramo escuro, ele conseguia ver dois pares de pernas abaixo da linha diagonal de sombra provocada pela porta, que agora estava entreaberta. Conseguia ver uma calça jeans que tinha apodrecido até ficar roxo-enegrecida. Fiapos laranja estavam presos nas costuras, e água pingava das barras e formava poças ao redor de sapatos que tinham apodrecido quase completamente, deixando à mostra dedos roxos e inchados dentro.

 

As mãos estavam caídas na lateral do corpo, longas demais, brancas e pálidas demais. Presos em cada dedo havia um pequeno pompom laranja.

 

Segurando o livro de pássaros amassado na frente do corpo, seu rosto molhado da chuva leve, de suor e de lágrimas, Stan sussurrou em um tom monótono e rouco:

 

— Gavião miúdo... azulão... beija-flor... albatroz... kiwi...

 

Uma dessas mãos se virou e exibiu uma palma da qual a água infinita havia erodido todas as linhas, deixando alguma coisa tão lisa quanto a mão de um manequim de loja de departamentos.

 

Um dedo se esticou... depois se enrolou de novo. E o pompom quicou e balançou, balançou e quicou.

 

A coisa o estava chamando.

 

Stan Uris, que morreria em uma banheira com cruzes cortadas nos braços 27 anos depois, ficou de joelhos, depois de pé, e correu. Ele atravessou a rua Kansas sem olhar para nenhum dos lados e fez uma pausa, ofegando, na outra calçada, para olhar para trás.

 

Do ângulo de onde estava, ele não conseguia ver a porta na base da Torre de Água; só a própria Torre, grossa, mas graciosa mesmo assim, de pé nas trevas.

 

— Eles estavam mortos — sussurrou Stan para si mesmo, chocado.

 

Ele se virou de repente e correu para casa.

 

A secadora tinha parado. E Stan também.

 

Os outros três só olharam para ele por um longo momento. A pele dele estava quase tão cinza quanto a noite de abril que ele tinha acabado de descrever.

 

— Uau — disse Ben depois de um tempo. Ele soltou a respiração em um suspiro irregular e sibilante.

 

— É verdade — disse Stan com voz baixa. — Juro por Deus que é.

 

— Eu acredito em você — disse Beverly. — Depois do que aconteceu na minha casa, eu acreditaria em qualquer coisa.

 

Ela se levantou de repente, quase derrubou a cadeira e seguiu para a secadora. Começou a tirar os panos um a um e foi dobrando-os. Ela estava de costas, mas Ben desconfiava que estava chorando. Queria ir até ela, mas lhe faltava coragem.

 

— Precisamos falar com Bill sobre isso — disse Eddie. — Bill vai saber o que fazer.

 

— Fazer? — disse Stan, se virando para olhar para ele. — O que você quer dizer com fazer?

 

Eddie olhou para ele com desconforto.

 

— Bem...

 

— Não quero fazer nada — disse Stan. Ele estava olhando para Eddie com tanta firmeza e intensidade que Eddie se remexeu na cadeira. — Quero esquecer essa história. É tudo que quero fazer.

 

— Não é tão fácil — disse Beverly baixinho, virando-se. Ben estava certo: a luz do sol quente que entrava inclinada pela vidraça suja da lavanderia refletia as linhas brilhantes das lágrimas na bochecha dela. — Não somos só nós. Eu ouvi Ronnie Grogan. E o garotinho que ouvi primeiro... acho que devia ser o garoto Clements. O que desapareceu do triciclo.

 

— E daí? — disse Stan em tom desafiador.

 

— E se ele pegar mais? — perguntou ela. — E se ele pegar mais crianças?

 

Seus olhos, de um castanho-escuro, se prenderam aos azuis dela, respondendo a pergunta sem falar: E daí se pegar?

 

Mas Beverly não baixou o olhar nem virou para o outro lado, e Stan acabou baixando os olhos... talvez só porque ela ainda estivesse chorando, mas talvez porque a preocupação dela a tornava mais forte de alguma forma.

 

— Eddie está certo — disse ela. — Temos que falar com Bill. Depois talvez com o chefe de polícia...

 

— Certo — disse Stan. Se ele estava tentando parecer desdenhoso, não conseguiu. A voz saiu com som apenas de cansada. — Garotos mortos na Torre de Água. Sangue que só crianças conseguem ver, adultos não. Palhaços andando no canal. Balões que voam contra o vento. Múmias. Leprosos debaixo de varandas. O chefe Borton vai rir até mijar... e depois vai enfiar a gente no manicômio.

 

— Se todos nós fôssemos até ele — disse Ben, perturbado. — Se todos fôssemos juntos...

 

— Claro — disse Stan. — Certo. Conta mais, Monte de Feno. Escreve um livro. — Ele se levantou e foi até a janela, com as mãos nos bolsos, com aparência zangada, aborrecida e assustada. Olhou para fora por um momento, com ombros tensos e defensivos por baixo da camisa arrumada. Sem se virar para eles, ele repetiu: — Escreva uma porcaria de livro!

 

— Não — disse Ben baixinho —, Bill vai escrever os livros.

 

Stan recuou surpreso, e os outros olharam para ele. Havia uma expressão de choque no rosto de Ben Hanscom, como se ele tivesse de repente dado um tapa em si mesmo, de forma inesperada.

 

Bev dobrou os últimos panos.

 

— Pássaros — disse Eddie.

 

— O quê? — disseram Bev e Ben juntos.

 

Eddie estava olhando para Stan.

 

— Você escapou gritando nomes de pássaros pra eles?

 

— Talvez — disse Stan com relutância. — Ou quem sabe a porta estava presa e se soltou de repente.

 

— Sem você se encostar nela? — perguntou Bev.

 

Stan deu de ombros. Não foi um gesto mal-humorado; só expressava que ele não sabia.

 

— Acho que foram os nomes de pássaros que você gritou pra eles — disse Eddie. — Mas por quê? Nos filmes, as pessoas mostram uma cruz...

 

— ... ou fazem uma oração... — acrescentou Ben.

 

— ... ou dizem o Salmo 23 — concluiu Beverly.

 

— Eu conheço o Salmo 23 — disse Stan com irritação —, mas não teria muita chance com o negócio do crucifixo. Sou judeu, lembra?

 

Eles afastaram o olhar com constrangimento, ou por ele ter nascido assim, ou por eles terem esquecido.

 

— Pássaros — disse Eddie de novo. — Jesus! — Ele olhou para Stan com culpa de novo, mas Stan estava olhando com mau humor para o outro lado da rua, para o prédio da Bangor Hydro.

 

— Bill vai saber o que fazer — disse Ben de repente, como se finalmente concordando com Bev e Eddie. — Aposto qualquer coisa nisso. Aposto qualquer quantia de dinheiro.

 

— Olha — disse Stan, olhando para eles com sinceridade. — Tudo bem. Podemos falar com Bill sobre isso se vocês quiserem. Mas é aí que as coisas acabam pra mim. Vocês podem me chamar de covarde ou dizer que amarelei, não ligo. Não sou covarde, acho que não. É que aquelas coisas na Torre de Água...

 

— Se você não tivesse medo de uma coisa daquelas, teria que ser louco, Stan — disse Beverly baixinho.

 

— É, eu fiquei com medo, mas esse não é o problema — disse Stan com irritação. — Não é nem disso que estou falando. Vocês não veem...

 

Eles estavam olhando para Stan com expectativa, com olhos perturbados e levemente esperançosos, mas Stan concluiu que não conseguia explicar como se sentia. As palavras tinham sumido. Havia um tijolo de sentimento dentro dele, quase sufocando-o, e ele não conseguia tirá-lo da garganta. Por mais organizado que fosse, por mais seguro que fosse, ele ainda era apenas um garoto de 11 anos que tinha acabado de terminar o quarto ano.

 

Ele queria contar para eles que havia coisas piores do que sentir medo. Você podia sentir medo de coisas como quase ser atropelado por um carro quando estava andando de bicicleta ou, antes da vacina Salk, de pegar pólio. Você podia sentir medo daquele maluco Khrushchev ou de se afogar se mergulhasse de cabeça. Você podia ter medo de todas essas coisas e ainda assim continuar agindo.

 

Mas aquelas coisas na Torre de Água...

 

Ele queria contar para eles que aqueles garotos mortos que desceram pela escada em espiral fizeram uma coisa pior do que dar medo nele: eles o ofenderam.

 

Ofenderam, sim. Era a única palavra em que ele conseguia pensar, e se ele usasse essa palavra, os amigos ririam. Eles gostavam de Stan, ele sabia disso, mas ririam de qualquer modo. Ainda assim, havia coisas que não deviam existir. Elas ofendiam o senso de ordem de qualquer pessoa sã, ofendiam a ideia central de que Deus tinha dado um empurrão na Terra para que ela se inclinasse um pouco e o crepúsculo só durasse cerca de 12 minutos na Linha do Equador e demorasse uma hora ou mais lá onde os esquimós faziam suas casas de cubos de gelo, que Ele fizera isso e dissera: “Certo, se vocês conseguirem entender a inclinação, vocês conseguem entender qualquer coisa que queiram. Porque mesmo a luz tem peso, e quando a nota de um apito de trem muda de tom, é o efeito Doppler, e quando um avião rompe a barreira do som, aquele estrondo não é o aplauso de anjos nem a flatulência dos demônios, mas só o ar despencando de volta no lugar. Fiz a inclinação para vocês e me sentei na metade do auditório para assistir o show. Não tenho mais nada a dizer, exceto que dois e dois dá quatro, as luzes no céu são estrelas, se houver sangue, adultos conseguem ver, assim como as crianças, e garotos mortos ficam mortos.” Você pode viver com medo, eu acho, Stan teria dito se conseguisse. Talvez não para sempre, mas por um longo, longo tempo. É com a ofensa que você talvez não consiga viver, porque ela abre uma rachadura dentro do seu pensamento, e se você olhar dentro dela, vê que há coisas vivas ali, e elas têm olhinhos amarelos que não piscam, e tem um fedor naquela escuridão, e depois de um tempo você acha que talvez haja um outro universo lá dentro, um universo em que uma lua quadrada sobe no céu e as estrelas riem com vozes frias e alguns dos triângulos têm quatro lados, e alguns têm cinco, e alguns têm cinco elevado a cinco lados. Nesse universo, podem crescer rosas que cantam. Tudo leva a tudo, ele teria dito para os amigos se pudesse. Vão para suas igrejas e ouçam as histórias sobre Jesus andando sobre a água, mas se eu visse um cara fazendo isso, eu gritaria e gritaria e gritaria. Porque não pareceria um milagre para mim. Pareceria uma ofensa.

 

Porque ele não conseguia dizer nenhuma dessas coisas, ele apenas reiterou:

 

— Ter medo não é o problema. Só não quero me envolver com uma coisa que vai me levar pro manicômio.

 

— Você pelo menos vai com a gente falar com ele? — perguntou Bev. — Pra ouvir o que ele diz?

 

— Claro — disse Stan, e riu. — Pode ser uma boa ideia levar meu livro de pássaros.

 

Todos riram nessa hora, e tudo ficou um pouco mais fácil.

 

Beverly se separou deles em frente ao Kleen-Kloze e levou os panos para casa sozinha. O apartamento ainda estava vazio. Ela colocou os panos debaixo da pia da cozinha e fechou o armário. Ficou de pé e olhou para o banheiro.

 

Não vou lá, pensou ela. Vou assistir a Bandstand na TV. Pra ver se consigo aprender a fazer o cachorrinho.

 

Assim, ela foi para a sala e ligou a TV; cinco minutos depois desligou, quando Dick Clark estava mostrando quanta oleosidade apenas uma esponja medicada Stri-Dex podia tirar do rosto de um adolescente comum (“Se você acha que consegue ficar limpo com apenas sabão e água”, disse Dick, segurando a esponja suja em frente à câmera, para que todos os adolescentes dos Estados Unidos pudessem dar uma boa olhada, “você devia dar uma boa olhada nisto”).

 

Ela foi até o armário da cozinha em cima da pia, onde o pai guardava as ferramentas. Dentre elas havia uma trena, do tipo com uma língua grande para medir os centímetros. Ela segurou o objeto com a mão fria e foi até o banheiro.

 

Estava brilhando de tão limpo e silencioso. Em algum lugar, bem ao longe, ao que parecia, ela conseguia ouvir a sra. Doyon gritando para que o filho Jim saísse da rua agora mesmo.

 

Ela foi até a pia do banheiro e espiou o olho escuro do ralo.

 

Ficou ali por um tempo, com as pernas frias como mármore dentro da calça jeans, os mamilos parecendo afiados e duros o bastante para cortar papel, os lábios secos. Ela esperou as vozes.

 

Nenhuma voz soou.

 

Um suspiro trêmulo saiu dela, e ela começou a colocar a fita da trena dentro do ralo. Ela desceu com facilidade, como uma espada na garganta de um artista de feira. Quinze centímetros, 20 centímetros, 25. Parou ao chegar ao joelho debaixo da pia, supunha Beverly. Ela a remexeu, empurrando com delicadeza ao mesmo tempo, e a trena acabou descendo mais pelo ralo. Quarenta centímetros agora, depois 60, depois 90.

 

Ela viu a fita amarela saindo do estojo de aço cromado, gasto até ficar preto nas laterais pela mão grande do pai. Na mente, ela a via deslizando pelo cano escuro, grudando em sujeira, raspando em áreas enferrujadas. Lá embaixo, onde o sol nunca brilha e a noite nunca tem fim, pensou ela.

 

Ela imaginou a cabeça da fita, com a pequena ponta de aço do tamanho de uma unha, deslizando cada vez mais na escuridão, e parte de sua mente gritou O que você está fazendo? Ela não ignorou essa voz... mas pareceu incapaz de dar atenção a ela. Ela viu a ponta da fita descendo direto agora, até o porão. Viu-a batendo no cano do esgoto... e na hora em que ela viu isso, a fita prendeu de novo.

 

Ela voltou a mexer, e a fita, fina o bastante para ser flexível, fez um som assustador e baixo que a lembrou um pouco do som de um serrote quando você o curva de um lado para o outro sobre as pernas.

 

Ela conseguia visualizar a ponta batendo no fundo desse cano mais largo, que devia ter superfície de cerâmica. Conseguia vê-la se dobrando... e acabou conseguindo empurrá-la mais um pouco.

 

Ela chegou a 1,80 metro. Dois metros e dez. Dois metros e setenta...

 

E de repente a fita começou a correr pela mão dela sozinha, como se alguma coisa lá embaixo estivesse puxando a ponta. Não apenas puxando; correndo com ela. Ela olhou para a fita que se desenrolava, com olhos arregalados, a boca redonda em uma expressão de medo. Medo, sim, mas não surpresa. Ela não sabia? Ela não sabia que alguma coisa assim ia acontecer?

 

A fita chegou ao fim. Cinco metros e meio.

 

Uma risadinha baixa subiu pelo ralo, seguida de um sussurro baixo que era quase reprovatório:

 

— Beverly, Beverly, Beverly... você não pode lutar contra nós... vai morrer se tentar... morrer se tentar... morrer se tentar... Beverly... Beverly... Beverly... ly-ly-ly...

 

Uma coisa estalou dentro do estojo da trena, e a fita de repente começou a voltar rapidamente para dentro da caixa, com os números e marcas passando rapidamente. Perto do final, do último metro e meio, o amarelo ficou um vermelho escuro e úmido; ela gritou e largou a trena no chão, como se a fita tivesse de repente virado uma cobra viva.

 

Sangue fresco pingou na porcelana branca e limpa da pia e pelo olho arregalado do ralo. Ela se inclinou, chorando agora, o medo um peso gelado na barriga, e pegou a fita. Ela a aperou entre o polegar e o indicador da mão direita e, segurando-a na frente do corpo, levou-a para a cozinha. Enquanto andava, sangue pingava da fita no linóleo gasto do corredor e da cozinha.

 

Ela se controlou pensando no que o pai diria para ela, no que faria com ela, se descobrisse que ela encheu a trena dele de sangue. É claro que ele não conseguiria ver o sangue, mas ajudava pensar assim.

 

Ela pegou um dos panos limpos, ainda morno como pão quente, recém-saído da secadora, e voltou para o banheiro. Antes de começar a limpar, colocou o tampo de borracha no ralo para fechar aquele olho. O sangue estava fresco e foi fácil de limpar. Ela seguiu sua própria trilha, limpando gotas do tamanho de moedas no linóleo, depois lavou o pano, torceu e colocou de lado.

 

Ela pegou um segundo pano e usou para limpar a trena do pai. O sangue era denso, viscoso. Em dois pontos, havia pedaços de coisas pretas e esponjosas.

 

Apesar de o sangue só se estender a pouco mais de um metro e meio, ela limpou a fita toda e tirou todos os vestígios de sujeira do cano. Depois disso, guardou a trena de volta no armário em cima da pia e levou os dois panos sujos para trás do apartamento. A sra. Doyon estava gritando com Jim de novo. A voz estava clara, quase como um sino no fim de tarde ainda quente.

 

No quintal, que era praticamente só de terra, ervas daninhas e varais, havia um incinerador enferrujado. Beverly jogou os panos lá dentro e se sentou nos degraus dos fundos. As lágrimas vieram de repente, com violência surpreendente, e desta vez ela não fez esforço para segurá-las.

 

Ela colocou os braços ao redor dos joelhos, apoiou a cabeça e chorou enquanto a sra. Doyon gritava para Jim sair da rua, ele queria ser atropelado e morrer?

 

DERRY:

 

SEGUNDO INTERLÚDIO

 

14 de fevereiro de 1985

Dia dos Namorados

 

Houve mais dois desaparecimentos na semana passada, duas crianças. Quando eu estava começando a relaxar. O primeiro foi um garoto de 16 anos chamado Dennis Torrio, o outro uma garota de apenas 5 anos que estava andando de trenó nos fundos da casa, na West Broadway. A mãe histérica encontrou o trenó, um daqueles discos azuis, e mais nada. Uma nevasca caiu na noite anterior, uns 10 centímetros. Não havia nenhuma pegada além das dela, disse o chefe Rademacher quando liguei para ele. Acho que ele está ficando extremamente irritado comigo. Não é nada que vá me fazer perder o sono; tenho coisas piores a fazer, não tenho?

 

Perguntei a ele se podia ver as fotos da polícia. Ele disse que não.

 

Perguntei se as pegadas dela levavam na direção de um bueiro ou vala. Isso foi seguido de um longo período de silêncio. Em seguida, Rademacher disse:

 

— Estou começando a pensar se você não deveria ir ao médico, Hanlon. Do tipo que espia a cabeça. A garota foi levada pelo pai. Você não lê o jornal?

 

— O garoto Torrio foi levado pelo pai? — eu perguntei.

 

Outra longa pausa.

 

— Dá um tempo, Hanlon — disse ele. — Me dá um tempo.

 

Ele desligou.

 

É claro que eu lia os jornais. Não sou eu quem os coloca na Sala de Leitura da Biblioteca Pública todas as manhãs? A garotinha, Laurie Ann Winterbarger, estava sob a guarda da mãe depois de um divórcio difícil na primavera de 1982. A polícia está trabalhando na teoria de que Horst Winterbarger, que supostamente trabalha com manutenção de maquinário em algum lugar da Flórida, dirigiu até o Maine para pegar a filha. A polícia também acha que ele estacionou o carro ao lado da casa e chamou a filha, que foi até ele, e por isso não há pegadas além das da garotinha. Os policiais não têm muito a dizer sobre o fato de que a garota não via o pai desde que tinha 2 anos. Parte do ressentimento que acompanhou o divórcio dos Winterbarger veio das alegações da sra. Winterbarger de que, em pelo menos duas ocasiões, Horst Winterbarger molestou sexualmente a criança. Ela pediu ao tribunal para negar direitos de visitação a Winterbarger, um pedido que foi aceito apesar de ele negar com veemência. Rademacher alega que a decisão do tribunal, que afastou Winterbarger completamente da única filha, pode ter sido o impulso para que ele a sequestrasse. Isso pelo menos era ligeiramente plausível, mas pergunte-se o seguinte: a pequena Laurie Ann o teria reconhecido depois de três anos e corrido para ele quando ele a chamou? Rademacher diz que sim, apesar de ela ter apenas 2 anos na última vez que viu o pai. Eu acho que não. E a mãe diz que Laurie Ann estava bem treinada quanto a não se aproximar nem falar com estranhos, uma lição que a maioria das crianças de Derry aprende cedo e aprende bem. Rademacher diz que colocou a Polícia Estadual da Flórida para procurar Winterbarger e que sua responsabilidade termina ali.

 

— Questões de custódia são mais terreno de advogados do que da polícia — atribui o Derry News da última sexta-feira a esse babaca pomposo e gordo.

 

Mas o garoto Torrio... a história dele é outra. Tinha uma maravilhosa vida em casa. Jogava futebol americano nos Derry Tigers. Era aluno brilhante. Foi para a Escola de Sobrevivência Outward Bound no verão de 1984 e passou com honra ao mérito. Não tinha histórico de uso de drogas. Tinha uma namorada por quem parecia estar apaixonado. Tinha tudo para uma boa vida. Tudo para querer ficar em Derry, pelo menos por mais dois anos.

 

Mesmo assim, ele sumiu.

 

O que aconteceu com ele? Teve um ataque repentino de vontade de ir embora? Um motorista bêbado talvez o tenha atropelado, matado e enterrado? Ou será que ainda está em Derry, no lado noturno de Derry, na companhia de gente como Betty Ripsom, Patrick Hockstetter e Eddie Corcoran e todo o resto? Será

 

(mais tarde)

 

Estou fazendo tudo de novo. Estou repetindo as mesmas coisas, não fazendo nada de construtivo, só reclamando até o ponto de gritar. Eu pulo quando a escada de ferro para alcançar as prateleiras altas estala. Pulo por causa de sombras. Fico me perguntando como reagiria se estivesse guardando livros no alto, empurrando meu carrinho de rodas de borracha, e uma mão surgisse entre duas fileiras de livros, uma mão tateando...

 

Tive de novo um desejo quase insuportável de começar a ligar para eles esta tarde. Em determinado momento, cheguei a ligar o 404, código de área de Atlanta, com o número de Stanley Uris à frente. Mas só segurei o telefone junto à orelha, me perguntando se queria ligar para eles porque tinha certeza, cem por cento de certeza, ou apenas porque agora estou tão apavorado que não consigo ficar sozinho; que preciso falar com alguém que saiba (ou vai saber) que estou com medo.

 

Por um momento, consegui ouvir Richie dizendo Distintivos? DISTINTIVOS? Não precisamos de porras de distintivos, senhor! com a Voz de Pancho Vanilla, tão claramente quanto se ele estivesse do meu lado... e desliguei o telefone. Porque quando você quer tanto ver alguém como eu queria ver Richie naquele momento, ou qualquer um deles, você não pode confiar nas suas motivações. Mentimos melhor quando mentimos para nós mesmos. O fato é que ainda não tenho cem por cento de certeza. Se outro corpo aparecer, eu ligarei... mas, por enquanto, devo supor que até um imbecil pomposo como Rademacher pode estar certo. Ela poderia ter se lembrado do pai; ela pode ter fotos dele. E acho que um adulto bem persuasivo poderia convencer uma criança a ir para o carro dele, independentemente do que ensinaram à criança.

 

Tem outro medo que me assombra. Rademacher sugeriu que eu podia estar enlouquecendo. Não acredito nisso, mas se eu ligar agora, eles podem pensar que estou louco. Pior do que isso, e se não se lembrarem de mim? Mike Hanlon? Quem? Não me lembro de Mike Hanlon nenhum. Não me lembro de você. Que promessa?

 

Sinto que chegará uma hora certa para ligar para eles... e quando essa hora chegar, eu vou saber que é a certa. Os circuitos deles vão se abrir ao mesmo tempo. É como se houvesse duas enormes rodas entrando em uma espécie de convergência poderosa uma com a outra, eu e o resto de Derry em uma e todos os meus amigos de infância na outra.

 

Quando a hora chegar, eles vão ouvir a voz da Tartaruga.

 

Então, vou esperar, e mais cedo ou mais tarde, vou saber. Não acredito que seja mais questão de ligar para eles ou não.

 

É só uma questão de quando.

 

20 de fevereiro de 1985

 

O incêndio no Black Spot.

 

“Um exemplo perfeito de como a Câmara de Comércio vai tentar reescrever a história, Mike”, teria dito o velho Albert Carson para mim, provavelmente gargalhando ao falar. “Vão tentar, e às vezes quase conseguem... mas as pessoas velhas se lembram de como as coisas realmente aconteceram. Elas sempre se lembram. E às vezes elas contam, se você perguntar direito.”

 

Há pessoas que moram em Derry há vinte anos e não sabem que já existiu um alojamento “especial” para subalternos na velha Base do Corpo Aéreo do Exército de Derry, um alojamento que ficava a pelo menos 800 metros do resto da base. E, no meio de fevereiro, com a temperatura a 17°C negativos e ventos uivantes de 65 quilômetros por hora nas pistas de decolagem e diminuindo a sensação térmica para uma coisa que mal se podia acreditar, aqueles 800 metros a mais se tornavam uma coisa que poderia fazer você congelar ou sofrer de geladura, ou talvez até morrer.

 

Os outros sete alojamentos tinham aquecimento a óleo, janelas reforçadas contra tempestades e isolamento térmico. Eram quentes e aconchegantes. O alojamento “especial”, que abrigava os 27 homens da Companhia E, era aquecido por uma fornalha velha a lenha. Suprimentos de madeira para ela eram na base do pegue o quanto conseguir. O único isolamento térmico era a barreira de ramos de pinheiros e abetos que os homens colocavam do lado de fora. Um dos homens forneceu um conjunto completo de janelas reforçadas contra tempestades, mas os 27 oficiais subalternos do alojamento “especial” foram mandados para Bangor naquele dia para ajudar com um trabalho na base de lá, e quando voltaram naquela noite, cansados e com frio, todas as janelas tinham sido quebradas. Cada uma delas.

 

Isso foi em 1930, quando metade da força aérea americana ainda era composta de biplanos. Em Washington, Billy Mitchell foi processado e rebaixado a pilotar uma escrivaninha porque a insistência impertinente em tentar construir uma força aérea mais moderna acabou irritando os mais velhos o bastante para que o derrubassem com força. Pouco tempo depois, ele pediu demissão.

 

Assim, poucos e preciosos voos aconteciam na base de Derry, apesar das três pistas de decolagem (uma delas asfaltada). A maior parte da atividade que acontecia ali era de trabalho pro forma.

 

Um dos soldados da Companhia E que voltaram para Derry depois que seu período de serviço terminou em 1937 foi meu pai. Ele me contou esta história:

 

— Um dia, na primavera de 1930, cerca de seis meses antes do incêndio no Black Spot, eu estava voltando com quatro amigos de uma folga de três dias que tiramos em Boston.

 

“Quando entramos pelo portão, havia um coroa depois do ponto de verificação, apoiado em uma pá e tirando a cueca de dentro da bunda. Um sargento de algum lugar do sul. Com cabelo ruivo cor de cenoura. Dentes horríveis. Espinhas. Não passava de um macaco sem os pelos no corpo, se é que você me entende. Havia muitos assim no exército durante a Depressão.

 

“Nós chegamos, quatro jovens voltando da folga, todos ainda felizes, e conseguíamos ver nos olhos dele que ele estava procurando alguma coisa pra pegar no nosso pé. Batemos as continências como se ele fosse o próprio general Black Jack Pershing. Acho que poderíamos ter ficado bem, mas era um dia bonito de final de abril, com o sol brilhando, e eu tinha que abrir minha boca. ‘Boa tarde para você, sargento Wilson, senhor’, eu disse, e ele caiu em cima de mim com os dois pés.

 

“‘Eu dei permissão para falar comigo?’, pergunta ele.

 

“‘Não, senhor’, eu digo.

 

“Ele olha para o resto de nós, Trevor Dawson, Carl Roone e Henry Whitsun, que morreu no incêndio naquela primavera, e diz para eles: ‘Esse negrinho espertalhão está mexendo comigo. Se o resto de vocês, crioulinhos, não quiser se juntar a ele em uma tarde de trabalho árduo e sujo, vão pro alojamento, guardem o equipamento e vão ver o oficial responsável. Entenderam?’

 

“Bem, eles foram, e Wilson grita: ‘Marcha acelerada, seus merdas! Quero ver as solas dos seus coturnos!’

 

“Assim, eles marcharam mais rápido, e Wilson me levou até um dos depósitos de equipamento e pegou uma pá. Ele me levou para o campo grande que ficava bem onde fica o terminal do Airbus da Northeast Airlines hoje. E olha para mim meio que sorrindo, aponta para o chão e diz: ‘Está vendo aquele buraco ali, crioulo?’

 

“Não havia buraco nenhum, mas achei melhor concordar com o que ele dizia, então olhei para o chão, para onde ele estava apontando, e disse que via, sim. Ele me deu um soco no nariz e me derrubou, e ali estava eu no chão, com sangue escorrendo na minha última camisa limpa.

 

“‘Você não vê porque um imbecil preto bocudo o preencheu!’, gritou ele para mim, e tinha duas bolotas vermelhas nas bochechas. Mas estava sorrindo, e dava para perceber que estava se divertindo. ‘O que você vai fazer, senhor Boa Tarde Pra Você, é tirar a terra do meu buraco. Marcha acelerada!’

 

“Assim, cavei por mais de duas horas, e em pouco tempo eu estava até o queixo dentro do buraco. O último meio metro era de argila, mas quando terminei, estava com água até os tornozelos e meus sapatos estavam encharcados.

 

“‘Saia daí, Hanlon’, disse o sargento Wilson. Ele estava sentado na grama, fumando um cigarro. Não ofereceu ajuda nenhuma. Eu tinha terra e lama dos pés à cabeça, sem mencionar o sangue secando na camisa. Ele ficou de pé e andou até mim. Apontou para o buraco.

 

“‘O que você vê aí, crioulo?’, perguntou ele.

 

“‘Seu buraco, sargento Wilson’, eu digo.

 

“‘Ah, bem, decidi que não quero mais ele’, diz ele. ‘Não quero um buraco feito por um crioulo. Coloque minha terra de volta aí dentro, soldado Hanlon.’

 

“Assim, enchi o buraco, e quando terminei, o sol começava a descer e estava esfriando. Ele vem até mim e olha para o buraco depois que terminei de bater o resto da terra com a parte achatada da pá.

 

“‘Agora o que você vê, crioulo?’, pergunta ele.

 

“‘Um monte de terra, senhor’, eu disse, e ele bateu em mim de novo. Meu Deus, Mikey, cheguei perto de dar um pulo e abrir a cabeça dele com a lateral da pá. Mas se tivesse feito isso, jamais veria o céu de novo, só entre barras de ferro. Mas ainda havia momentos em que eu quase achava que teria valido a pena. Mas de alguma forma consegui me controlar.

 

“‘Não é um monte de terra, seu pretinho cretino!’, grita ele para mim, com cuspe voando da boca. ‘É MEU BURACO, e é melhor você tirar a terra dele agora mesmo! Marcha acelerada!’

 

“Assim, eu cavei a terra do buraco e o enchi de novo, e ele me pergunta por que fechei o buraco quando ele estava se preparando pra dar uma cagada dentro dele. Cavei o buraco de novo, e ele baixa as calças e coloca a bunda branquela e mirrada por cima do buraco e sorri para mim enquanto faz o que queria fazer e diz: ‘Como você está, Hanlon?’

 

“‘Estou ótimo, senhor’, eu respondo, porque decidi que não ia desistir até desmaiar ou cair morto. Eu estava furioso.

 

“‘Bem, pretendo consertar isso’, diz ele. ‘Pra começar, é melhor você fechar esse buraco, soldado Hanlon. E quero ver animação. Você está ficando lento.’

 

“Assim, fechei o buraco de novo e consegui ver pelo sorriso dele que ele estava apenas esquentando. Mas naquele momento um dos amigos dele se aproximou pelo campo com um lampião a gás e disse para ele que houvera uma inspeção surpresa e que Wilson estava encrencado por ter perdido. Meus amigos me ajudavam e eu ficava bem, mas os amigos de Wilson, se era disso que ele os chamava, não se davam a esse trabalho.

 

“Ele me deixou ir nessa hora, e esperei para ver se o nome dele apareceria na lista de punições do dia seguinte, mas não aconteceu. Acho que ele deve ter dito que perdeu a inspeção porque estava ensinando a um negrinho respondão quem era o dono de todos os buracos da base de Derry, os que já tinham sido cavados e os que não. Devem ter dado a ele uma medalha em vez de batatas pra descascar. E as coisas na Companhia E aqui em Derry eram assim.”

 

Foi por volta de 1958 que meu pai me contou a história, e acho que ele tinha quase 50 anos, embora minha mãe só tivesse 40 e poucos. Perguntei para ele por que ele tinha voltado se as coisas em Derry eram assim.

 

— Bem, eu só tinha 16 anos quando entrei pro exército, Mikey — disse ele. — Menti a idade pra entrar. Não foi minha ideia. Minha mãe me mandou. Eu era grande, e esse foi o único motivo para acreditarem, eu acho. Eu nasci e cresci em Burgaw, na Carolina do Norte, e a única vez que víamos carne era logo depois de o tabaco ser vendido ou às vezes no inverno, se meu pai acertasse um guaxinim ou um gambá. A única coisa boa que me lembro de Burgaw era a torta de gambá com bolo de milho, uma delícia indescritível.

 

“Quando meu pai morreu em um acidente com máquinas de fazenda, minha mãe disse que ia levar Philly Loubird até Corinth, onde tinha familiares. Philly Loubird era o caçula da família.”

 

— O senhor está falando do tio Phil? — eu perguntei, sorrindo ao pensar em alguém chamando-o de Philly Loubird. Ele era advogado em Tucson, Arizona, e era da Câmara Municipal de lá havia seis anos. Quando eu era criança, achava que tio Phil era rico. Para um homem negro em 1958, acho que era mesmo. Ele ganhava 20 mil dólares por ano.

 

— É dele mesmo que estou falando — disse meu pai. — Mas naquela época ele era apenas um garoto de 12 anos que usava chapéu de marinheiro de papel de arroz, macacão remendado e que não tinha sapatos. Ele era o mais novo, eu era um pouco mais velho do que ele. Todos os outros tinham ido embora: dois mortos, dois casados, um na prisão. Esse era Howard. Ele nunca prestou.

 

“‘Você vai entrar pro exército’, disse sua avó Shirley. ‘Não sei se começam a pagar imediatamente ou não, mas quando pagarem, você vai me mandar uma parte todo mês. Detesto mandar você pra longe, filho, mas se você não cuidar de mim e de Philly, não sei o que vai acontecer com a gente.’ Ela me deu minha certidão de nascimento, para mostrar para o oficial, e vi que alterou o ano para eu ter 18 anos.

 

“Fui para o tribunal onde o oficial de recrutamento ficava e perguntei sobre alistamento. Ele me mostrou os papéis e a linha onde eu tinha que botar o dedo. ‘Sei escrever meu nome’, eu disse, e ele riu como se não acreditasse.

 

“‘Então pode escrever, negrinho’, diz ele.

 

“‘Espere um minuto’, eu respondo. ‘Quero fazer umas perguntas.’

 

“‘Pode falar’, diz ele. ‘Posso responder qualquer coisa que você queira perguntar.’

 

“‘Tem carne duas vezes por semana no exército?’, eu perguntei. ‘Minha mãe disse que sim, mas ela está decidida a me fazer me alistar.’

 

“‘Não, não tem carne duas vezes por semana’, diz ele.

 

“‘Ah, foi o que pensei’, eu digo, pensando que o homem parece um merda, mas pelo menos é um merda sincero.

 

“E então, ele diz: ‘Tem carne todas as noites’, o que me faz questionar como fui achar que ele era sincero.

 

“‘Você deve me achar um completo idiota’, eu digo.

 

“‘Isso aí, crioulo’, diz ele.

 

“‘Bem, se eu me alistar, tenho que fazer alguma coisa por minha mãe e por Philly Loubird’, eu digo. ‘Minha mãe diz que é locação.’

 

“‘É isso bem aqui’, diz ele, e bate no formulário de alocação. ‘O que mais você tem em mente?’

 

“‘Bem’, eu digo, ‘e o treinamento pra ser oficial?’

 

“Ele jogou a cabeça para trás quando falei isso e riu até eu achar que ia engasgar com cuspe. Em seguida, ele diz: ‘Filho, no dia que tiver oficiais crioulos nesse exército, vai ser o dia em que você vai ver Jesus Cristo dançando o Charleston no Birdland. Agora assine ou não assine. Minha paciência acabou. Além do mais, você está deixando o ambiente fedido.’

 

“Eu assinei e o vi grampear o formulário de alocação na minha folha de inspeção, depois ele me deu o juramento e eu me tornei soldado. Eu estava achando que iam me mandar pra New Jersey, onde o exército estava construindo pontes por não ter nenhuma guerra em que lutar. Mas acabei vindo pra Derry, Maine, pra Companhia E.”

 

Ele suspirou e se mexeu na cadeira, um homem grande com cabelos brancos encaracolados junto à cabeça. Naquela época, tínhamos uma das grandes fazendas em Derry, e provavelmente a melhor barraca de beira de estrada de produtos frescos ao sul de Bangor. Nós três dávamos duro, e meu pai tinha que contratar gente na época da colheita, e assim sobrevivíamos.

 

Ele disse:

 

— Voltei porque vi o sul e vi o norte, e havia o mesmo ódio nos dois lugares. Não foi o sargento Wilson que me convenceu disso. Ele não era nada além de um invasor da Geórgia, e levava o sul consigo onde quer que fosse. Ele não precisava estar ao sul da linha Mason-Dixon pra odiar negros. Ele simplesmente odiava. Não, foi o incêndio no Black Spot que me convenceu disso. Você sabe, Mikey, de certa forma...

 

Ele olhou para minha mãe, que estava tricotando. Ela não ergueu o olhar, mas eu sabia que estava ouvindo com atenção, e meu pai também sabia, eu acho.

 

— De certa forma, foi o incêndio que me tornou homem. Sessenta pessoas morreram naquele incêndio, 18 delas da Companhia E. Não sobrou companhia nenhuma quando o incêndio acabou. Henry Whitsun... Stork Anson... Alan Snopes... Everett McCaslin... Horton Sartoris... todos meus amigos, todos mortos naquele incêndio. E o fogo não foi provocado pelo velho sargento Wilson nem pelos amigos branquelos dele. Foi provocado pelo ramo de Derry da Legião da Decência Branca do Maine. Alguns dos garotos que estudam na sua escola, filho, os pais deles riscaram os fósforos que botaram fogo no Black Spot. E não estou falando dos garotos pobres.

 

— Por que, papai? Por que fizeram isso?

 

— Bem, em parte foi culpa de Derry — disse meu pai, franzindo a testa. Ele acendeu o cachimbo devagar e balançou o fósforo. — Não sei por que aconteceu aqui; não consigo explicar, mas ao mesmo tempo, não fico surpreso.

 

“A Legião da Decência Branca era a versão do norte da Ku Klux Klan, sabe? Eles usavam os mesmos lençóis brancos, queimavam as mesmas cruzes, escreviam as mesmas mensagens de ódio para os negros que achavam estar passando dos limites ou assumindo empregos que eram de homens brancos. Nas igrejas em que os pastores falavam sobre igualdade negra, eles às vezes colocavam bananas de dinamite. A maior parte dos livros de história fala mais sobre a KKK do que sobre a Legião da Decência Branca, e muitas pessoas nem sabem que ela existia. Acho que pode ser porque a maior parte das histórias foi escrita por pessoas do norte, e elas têm vergonha.

 

“Era mais popular nas cidades grandes e nas regiões de fábricas. Nova York, Nova Jersey, Detroit, Baltimore, Boston, Portsmouth, todas tinham seu ramo. Tentaram organizar no Maine, mas Derry foi o único lugar em que tiveram sucesso. Ah, por um tempo houve um ramo forte em Lewiston, por volta da mesma época do incêndio no Black Spot, mas eles não estavam preocupados com negros estuprando mulheres brancas ou assumindo empregos que deviam ser de homens brancos porque não havia crioulos por lá. Em Lewiston, estavam preocupados com vagabundos e andarilhos e que uma coisa chamada “exército bônus” se juntasse com uma coisa que chamavam de “exército da escória comunista”, que queria dizer qualquer homem desempregado. A Legião da Decência costumava mandar essa gente pra fora da cidade assim que chegava. Às vezes, colocavam hera venenosa dentro da calça deles. Às vezes, tacavam fogo nas camisas deles.

 

“Bem, a Legião praticamente acabou aqui depois do incêndio do Black Spot. As coisas fugiram ao controle, sabe? Da forma como parece acontecer nessa cidade às vezes.”

 

Ele fez uma pausa e tragou.

 

— É como se a Legião da Decência Branca fosse apenas mais uma semente, Mikey, que achou uma terra onde cresceu bem. Era um clube comum de riquinhos. E depois do incêndio, eles todos tiraram os lençóis, mentiram uns para os outros e tudo ficou pra trás. — Havia agora uma espécie de desprezo na voz dele que fez minha mãe erguer o olhar com a testa franzida. — Afinal, quem morreu? Dezoito crioulos do exército, 14 ou 15 crioulos da cidade, quatro integrantes de uma banda de jazz de crioulos... e um bando de gente que gostava de crioulos. Que importância tinha?

 

— Will — minha mãe disse baixinho. — Já chega.

 

— Não — eu falei. — Quero saber!

 

— Está chegando sua hora de dormir, Mikey — disse ele, bagunçando meu cabelo com a mão grande e forte. — Só quero contar mais uma coisa, e acho que você não vai entender, porque não sei se eu entendo. O que aconteceu naquela noite no Black Spot, por pior que tenha sido... Não acho que tenha acontecido porque éramos negros. Nem porque o Spot ficava perto da West Broadway, onde os brancos ricos de Derry moravam e ainda moram hoje. Não acho que a Legião da Decência Branca tenha crescido tão bem aqui porque os integrantes odiavam os negros e os vagabundos com mais intensidade em Derry do que em Portland ou Lewiston ou Brunswick. É por causa do solo. Parece que coisas ruins, coisas cruéis, se dão bem no solo desta cidade. Pensei nisso várias vezes ao longo dos anos. Não sei por que é assim... mas é.

 

“Mas tem gente boa aqui também, e havia gente boa naquela época. Quando os enterros aconteceram depois, milhares de pessoas compareceram, e foram aos dos negros assim como aos dos brancos. O comércio fechou por quase uma semana. Os hospitais trataram os feridos sem cobrar. Deram cestos de comida e cartas de condolências sinceras. E havia mãos solidárias prontas a ajudar. Conheci meu amigo Dewey Conroy naquela época, e você sabe que ele é tão branco quanto sorvete de creme, mas sinto que é como um irmão. Eu morreria por Dewey se ele me pedisse, e apesar de nenhum homem conhecer de verdade o coração de outro, acho que ele também morreria por mim se fosse necessário.

 

“O exército acabou dispensando os que sobraram após aquele incêndio, como se estivesse com vergonha... e acho que estava mesmo. Acabei em Fort Hood e fiquei lá por seis anos. Conheci sua mãe lá e nos casamos em Galveston, na casa dos pais dela. Mas durante todos aqueles anos, Derry nunca saiu da minha cabeça. E depois da guerra, eu trouxe sua mãe pra cá. E tivemos você. E aqui estamos, a menos de 5 quilômetros de onde ficava o Black Spot em 1930. E acho que está na sua hora de dormir, rapazinho.”

 

— Quero saber sobre o incêndio! — eu falei. — Me conta, papai!

 

E ele olhou para mim com aquela testa franzida que sempre me fazia calar a boca... talvez porque não fazia aquela expressão com frequência. Na maior parte do tempo, ele era um homem sorridente.

 

— Não é história pra um garoto — disse ele. — Em outra ocasião, Mikey. Quando tivermos envelhecido mais alguns anos, nós dois.

 

Acabamos envelhecendo mais quatro anos até eu ouvir a história do que aconteceu no Black Spot naquela noite, e os dias de caminhar do meu pai já estavam esgotados. Ele me contou em um leito de hospital onde estava deitado, dopado, entrando e saindo da realidade enquanto o câncer crescia dentro dos intestinos dele e o consumia.

 

26 de fevereiro de 1985

 

Li o que escrevi por último neste caderno e surpreendi a mim mesmo ao começar a chorar por causa do meu pai, que está morto há 23 anos. Consigo me lembrar do sofrimento pela perda dele. Durou quase dois anos. Quando me formei no ensino médio em 1965 e minha mãe olhou para mim e disse “Seu pai morreria de orgulho de você!”, choramos nos braços um do outro e pensei que era o fim, que tínhamos terminado o processo de enterrá-lo com aquelas lágrimas. Mas quem sabe quanto tempo o sofrimento dura? Não é possível que, mesmo trinta ou quarenta anos depois da morte de um filho, irmão ou irmã, uma pessoa possa estar meio acordada e pensar naquela pessoa com o mesmo vazio perdido, aquele sentimento de lugares que talvez nunca sejam preenchidos... talvez nem mesmo na morte?

 

Ele saiu do exército em 1937 com pensão por invalidez. Àquelas alturas, o exército do meu pai tinha ficado bem mais voltado para a guerra; qualquer pessoa com meio olho, contou-me ele uma vez, podia ver naquela época que logo as armas sairiam dos depósitos. Ele tinha subido até o posto de sargento e perdeu a maior parte do pé esquerdo quando um novo recruta que estava com tanto medo que quase cagou caroços de pêssego puxou o pino de uma granada de mão e deixou cair em vez de jogar. Ela rolou até meu pai e explodiu com um som que ele disse parecer uma tosse no meio da noite.

 

Boa parte do armamento que aqueles soldados de antigamente tinham para treinar era defeituosa ou tinha ficado tanto tempo esquecida em paióis que nem funcionava mais. Havia balas que não disparavam e fuzis que às vezes explodiam nas mãos quando as balas disparavam. A marinha tinha torpedos que não iam para onde eram apontados e não explodiam quando iam. O Corpo Aéreo do Exército e o Corpo Aéreo da Marinha tinham aviões cujas asas caíam se pousavam com impacto demais, e em Pensacola em 1939, li que um oficial de almoxarifado descobriu um conjunto de caminhões do governo que não funcionava porque baratas comeram as mangueiras e correias.

 

Assim, a vida do meu pai foi salva (incluindo, é claro, a parte dele que se tornou Seu Devotado Servo Michael Hanlon) por uma combinação de inutilidade burocrática e equipamento defeituoso. A granada explodiu com metade da potência, e ele perdeu apenas metade de um pé em vez de tudo do peito para baixo.

 

Por causa do dinheiro do acidente, ele pôde se casar com minha mãe um ano antes do que planejara. Eles não vieram para Derry imediatamente; mudaram-se para Houston, onde fizeram trabalhos relacionados à guerra até 1945. Meu pai era capataz em uma fábrica de cápsulas de bombas. Minha mãe era uma Rosie the Riveter, as mulheres americanas que trabalhavam em fábricas de munição durante a guerra. Mas como ele me contou naquela noite em que eu tinha 11 anos, o pensamento em Derry nunca saiu de sua cabeça. E agora, eu me pergunto se aquela coisa cega não podia já estar trabalhando naquela época, atraindo-o de volta para eu poder ocupar meu lugar naquele círculo no Barrens naquela noite de agosto. Se as rodas do universo forem verdade, então o bem sempre compensa o mal, mas o bem também pode ser terrível.

 

Meu pai tinha assinatura do Derry News. Ele acompanhava os anúncios de terras à venda. Eles economizaram um bom dinheiro. Ele acabou encontrando uma fazenda à venda que parecia uma boa proposta... pelo menos no papel. Os dois viajaram do Texas em um ônibus Trailways, visitaram a fazenda e compraram no mesmo dia. O banco First Merchants of Penobscot County emitiu uma hipoteca de dez anos, e eles se mudaram.

 

— Tivemos alguns problemas no começo — disse meu pai em outra ocasião. — Havia pessoas que não queriam negros na região. Sabíamos que seria assim, pois eu não tinha me esquecido do Black Spot, e nos preparamos para esperar passar. Crianças se aproximavam e jogavam pedras ou latas de cerveja. Devo ter trocado umas vinte janelas naquele primeiro ano. E algumas pessoas nem eram crianças. Um dia, quando me levantei, havia uma suástica pintada na lateral do galinheiro e todas as galinhas estavam mortas. Alguém envenenou a ração. Foram as últimas galinhas que tentei criar.

 

“Mas o xerife do condado (não tinha chefe de polícia naquela época, Derry não era grande o bastante pra isso) começou a trabalhar na questão e se esforçou bastante. É isso que quero dizer, Mikey, quando digo que o bem está aqui tanto quanto o mal. Não fazia diferença para aquele sujeito Sullivan que minha pele era marrom e meu cabelo era encaracolado. Ele veio várias vezes, conversou com as pessoas e acabou descobrindo quem foi. E quem você acha que foi? Vou te dar três chances de adivinhar, e as primeiras duas nem vão contar!”

 

— Não sei — eu disse.

 

Meu pai riu até lágrimas escorrerem dos olhos. Ele pegou um lenço branco no bolso e as secou.

 

— Ah, foi Butch Bowers, foi ele! O pai do garoto que você diz que é o maior valentão da escola. O pai é um cocô e o filho é um peidinho.

 

— Tem garotos na escola que dizem que o pai de Henry é doido — eu disse para ele. Acho que eu estava no quarto ano na época, o bastante para já ter sido agredido por Henry Bowers mais de uma vez... e agora que penso no assunto, a maior parte dos termos pejorativos para “negro” que ouvi saíram primeiro dos lábios de Henry Bowers, entre o primeiro e o quarto ano.

 

— Bem, vou te contar — disse ele —, a ideia de que Butch Bowers é louco não deve estar muito errada. As pessoas diziam que ele nunca foi o mesmo depois que voltou do Pacífico. Ele foi fuzileiro na guerra. O xerife o prendeu e Butch ficou gritando que era armação e que eram todos uns amantes de crioulos. Ah, ele ia processar todo mundo. Acho que fez uma lista que iria daqui até a rua Witcham. Duvido que tivesse uma única cueca sem um furo no traseiro, mas ele ia me processar, ia processar o xerife Sullivan, a cidade de Derry, o condado de Penobscot e Deus sabe quem mais.

 

“Quanto ao que aconteceu depois... bem, não posso jurar que seja verdade, mas foi assim que ouvi de Dewey Conroy. Dewey disse que o xerife foi ver Butch na cadeia em Bangor. E o xerife Sullivan disse: ‘Está na hora de você calar a boca e ouvir, Butch. Aquele cara negro, ele não quer fazer denúncia. Não quer mandar você pra Shawshank, só quer o valor das galinhas dele. Ele acha que duzentos dólares bastam.’

 

“Butch diz pro xerife pra enfiar os duzentos dólares onde o sol não brilha, e o xerife Sullivan diz para Butch: ‘Tem uma mina de calcário em Shank, e em uns dois anos, sua língua fica verde como picolé de limão. Pode escolher. Dois anos quebrando calcário ou duzentos dólares. O que você acha?’

 

“‘Nenhum júri no Maine vai me condenar’, diz Butch, ‘não por matar galinhas de um crioulo.’

 

“‘Sei disso’, diz Sullivan.

 

“‘Então por que diabos estamos tagarelando?’, pergunta Butch.

 

‘É melhor você acordar, Butch. Não vão prender você por causa das galinhas, mas vão prender pela suástica que você pintou na porta depois de matar elas.’

 

“Bem, Dewey disse que o queixo de Butch praticamente caiu, e Sullivan foi embora para deixar que ele pensasse no assunto. Três dias depois, Butch falou para o irmão, o que morreu congelado dois anos depois quando saiu para caçar bêbado, para vender o Mercury novo, que Butch tinha comprado com o dinheiro da dispensa militar e que ele adorava. Assim, recebi meus duzentos dólares e Butch jurou que ia acabar comigo. Ele saiu por aí dizendo isso pros amigos. Acabei encontrando-o uma tarde. Ele tinha comprado um Ford de antes da guerra para substituir o Merc, e eu estava com minha picape. Eu o fechei na rua Witcham, perto do pátio de trens, e saí com meu rifle Winchester.

 

“‘Se acontecer qualquer incêndio na minha propriedade, um negro furioso vai atrás de você com essa arma, chefe’, eu disse para ele.

 

“‘Você não pode falar comigo assim, crioulo’, disse ele, e estava quase gritando, parecendo alguma coisa entre furioso e apavorado. ‘Você não pode falar com nenhum homem branco assim, não um preto como você.’

 

“Bem, eu estava cansado daquilo tudo, Mikey. E sabia que, se não o assustasse de vez naquele momento, jamais ficaria livre dele. Não tinha ninguém por perto. Enfiei uma das mãos naquele Ford e o peguei pelo cabelo. Encostei a coronha da arma na fivela do cinto e levei o cano até debaixo do queixo dele. Eu disse: ‘Na próxima vez que você me chamar de crioulo ou preto, seu cérebro vai escorrer da lâmpada do carro. E acredite, Butch. Qualquer incêndio que me atingir, venho atrás de você. Posso ir atrás de sua esposa e de seu moleque, e de seu irmão inútil também. Cansei.’

 

“Nessa hora, ele começou mesmo a chorar, e nunca vi uma coisa tão feia na minha vida. ‘Olha só a que ponto as coisas chegaram’, diz ele, ‘quando um cri... quando um pre... quando um cara pode colocar uma arma na cabeça de um trabalhador em plena luz do dia no meio da rua.’

 

“‘É, o mundo deve estar virando o próprio inferno quando uma coisa assim pode acontecer’, eu concordei. ‘Mas isso não importa agora. Tudo que importa é: temos um acordo ou você quer ver se consegue aprender a respirar pela testa?’

 

“Ele concordou que tínhamos um acordo, e foi a última vez que tive problema com Butch Bowers, com exceção talvez de quando seu cachorro, Mr. Chips, morreu. Não tenho provas de que foi coisa do Bowers. Chippy pode ter só comido veneno.

 

“Desde aquele dia, fomos deixados em paz pra seguir nossa vida, e quando olho pra trás, não tem muita coisa de que me arrependa. Temos uma boa vida aqui, e se há noites em que sonho com aquele incêndio, bem, ninguém consegue viver uma vida normal sem ter alguns pesadelos.”

 

28 de fevereiro de 1985

 

Há dias me sentei para escrever a história do incêndio no Black Spot que meu pai me contou, mas ainda não cheguei lá. Acho que é no livro O Senhor dos Anéis que um dos personagens diz que “um caminho leva a outro”; que você podia começar em um caminho que levava a um lugar tão fantástico quanto os degraus da sua casa que levavam à calçada e de lá você podia seguir... bem, para qualquer lugar. É igual com histórias. Uma leva a outra, a outra e a outra; talvez elas sigam na direção que você pretendia, e talvez não. Talvez no final seja a voz que conta a história que importa mais do que as próprias histórias.

 

É da voz dele que me lembro, certamente; a voz do meu pai, baixa e lenta, e a forma como ele às vezes dava risadinhas ou gargalhadas altas. As pausas para acender o cachimbo ou assoar o nariz ou ir pegar uma lata de Narragansett (Nada Gansett, como ele chamava) na geladeira. Aquela voz, que para mim é como a voz de todas as vozes, a voz de todos os anos, a verdadeira voz deste lugar. Uma voz que não está em nenhuma das entrevistas de Ives e em nenhuma das pobres histórias desta cidade... e nem em nenhuma das minhas fitas.

 

A voz do meu pai.

 

Agora são 22h, a biblioteca fechou uma hora atrás e uma tempestade está começando lá fora. Consigo ouvir partículas de gelo batendo nas janelas daqui e no corredor de vidro que leva à biblioteca infantil. Consigo ouvir também outros sons: estalos baixos e baques fora do círculo de luz em que estou sentado, escrevendo nas folhas amarelas pautadas de um bloco. São só os sons de um prédio velho, eu digo para mim mesmo... mas fico em dúvida. Assim como fico em dúvida se em algum lugar lá fora, na tempestade, há um palhaço vendendo balões hoje.

 

Bem... não importa. Acho que finalmente encontrei o caminho da história final do meu pai. Ouvi-a no quarto de hospital dele seis semanas antes de ele morrer.

 

Fui vê-lo com minha mãe todas as tardes depois da escola, e sozinho todas as noites. Minha mãe tinha que ficar cuidando da casa, mas insistia para que eu fosse. Eu ia de bicicleta. Ela não me deixava pegar carona, nem mesmo quatro anos após o fim dos assassinatos.

 

Foram seis semanas difíceis para um garoto de apenas 15 anos. Eu amava meu pai, mas passei a odiar aquelas visitas noturnas e vê-lo murchar e encolher, ver as marcas da dor se espalhando e se aprofundando no rosto dele. Às vezes ele chorava, embora tentasse não chorar. E, ao voltar para casa, já estava escurecendo e eu pensava no verão de 1958; ficava com medo de olhar para trás, porque o palhaço poderia estar lá... ou o lobisomem... ou a múmia de Ben... ou meu pássaro. Mas eu tinha mais medo de que, independente da forma que a Coisa assumisse, ela aparecesse com o rosto destruído pelo câncer do meu pai. Portanto, eu pedalava o mais rápido que conseguisse, apesar da força dos batimentos do meu coração no peito, e chegava em casa ruborizado, com os cabelos suados e sem fôlego. E minha mãe dizia: “Por que você pedala tão rápido, Mikey? Vai acabar ficando doente.” E eu dizia: “Quero voltar a tempo de ajudar nas tarefas”; ela me dava um abraço, um beijo e me dizia que eu era um bom garoto.

 

Com a passagem do tempo, as coisas chegaram a um ponto em que eu mal conseguia pensar em coisas para conversar com ele. Enquanto ia pedalando até a cidade, ficava procurando assuntos para conversa, com medo do momento em que nós dois ficaríamos sem ter o que dizer. A morte lenta dele me assustava e enfurecia, mas também me envergonhava; eu achava na época e acho agora que, quando um homem ou uma mulher morre, o processo deveria ser rápido. O câncer estava fazendo mais do que o matando. Estava degradando-o, diminuindo-o.

 

Nunca falávamos do câncer, e em alguns daqueles silêncios eu pensava que devíamos falar, que não haveria mais nada e ficaríamos presos a isso como crianças sem lugar para sentar na dança das cadeiras quando a música para, e eu ficaria quase desesperado tentando pensar em alguma coisa (qualquer coisa!) para dizer, para que não precisássemos reconhecer a coisa que agora estava destruindo meu pai. Meu pai, que uma vez segurou Butch Bowers pelo cabelo e enfiou o rifle debaixo do queixo dele para ser deixado em paz. Seríamos forçados a falar disso, e se fôssemos, eu choraria. Não conseguiria evitar. E aos 15 anos, acho que a ideia de chorar em frente ao meu pai me assustava e me perturbava mais do que qualquer outra coisa.

 

Foi durante uma dessas pausas intermináveis e apavorantes que perguntei a ele de novo sobre o incêndio no Black Spot. Ele estava bastante dopado naquela noite porque a dor era forte, e ele resvalava entre a consciência e a inconsciência, às vezes falando claramente, às vezes falando naquela língua exótica que chamo de Lama do Sono. Às vezes eu sabia que ele estava falando comigo, mas em outras ocasiões ele parecia me confundir com o irmão, Phil. Perguntei a ele sobre o Black Spot sem motivo particular; foi só uma coisa que apareceu na minha cabeça e resolvi aproveitar.

 

Os olhos ganharam foco e ele sorriu um pouco.

 

— Você nunca se esqueceu disso, né, Mikey?

 

— Não, senhor — eu disse, e apesar de não ter pensado no assunto durante três anos ou mais, acrescentei o que ele às vezes dizia: — Nunca saiu da minha mente.

 

— Ah, vou contar pra você agora — disse ele. — Quinze anos é idade suficiente, eu acho, e sua mãe não está aqui pra me impedir. Além do mais, você precisa saber. Acho que uma coisa assim só poderia ter acontecido em Derry, e você também precisa saber disso. Pra poder tomar cuidado. As condições pra essas coisas sempre pareceram certas aqui. Você toma cuidado, não toma, Mikey?

 

— Sim, senhor — eu disse.

 

— Que bom — disse ele, e recostou a cabeça no travesseiro. — Muito bom.

 

Pensei que ele fosse cochilar de novo, pois seus olhos haviam se fechado, mas ele começou a falar.

 

— Quando eu estava na base do exército aqui em 1929 e 1930 — disse ele —, havia um clube de suboficiais lá em cima da colina, onde agora fica a Faculdade Comunitária de Derry. Ficava bem atrás do PX, onde era possível comprar um maço de Lucky Strike Greens por sete centavos. O clube de suboficiais era só um grande galpão de aço corrugado, mas tinham arrumado bem por dentro, com tapetes no chão, mesas ao longo das paredes, uma jukebox, e dava para tomar refrigerante no fim de semana... se você fosse branco, claro. Tinha uma banda tocando quase todos os sábados à noite, e era um ótimo local pra se ir. Só vendiam refrigerantes no bar, por ser época da Lei Seca, mas diziam que dava para conseguir bebidas mais fortes se você quisesse... e se tivesse uma estrelinha verde em sua identidade militar. Era como um sinal secreto. Em geral, só cerveja caseira, mas nos fins de semana dava para conseguir coisa mais forte. Se você fosse branco.

 

“Nós, os garotos da Companhia E, não tínhamos permissão para chegar nem perto, é claro. Nós íamos pra cidade se tivéssemos um passe para a noite. Naqueles dias, Derry ainda era uma cidadezinha madeireira, e havia oito a dez bares, a maioria em uma parte da cidade chamada Meio Acre do Inferno. Não eram speakeasies, bares clandestinos; esse era um nome grandioso demais pra eles. Eram o que as pessoas chamavam de ‘porcos cegos’, e era bem isso mesmo, porque a maioria dos frequentadores agia como porcos quando estava lá, e estavam praticamente cegos quando saíam. O xerife sabia e os policiais sabiam, mas eram lugares que passavam a noite lotados, do mesmo jeito que nos anos 1890. Imagino que mãos eram molhadas, mas talvez não tantas e não com tanto dinheiro quanto era de se imaginar; em Derry, as pessoas tinham o hábito de olhar pro outro lado. Alguns serviam bebidas fortes assim como cerveja, e por tudo que ouvi, o que se podia conseguir na cidade era dez vezes melhor do que o uísque vagabundo e o gim de fundo de quintal que havia no bar dos subalternos brancos nas noites de sexta e sábado. A bebida dos bares da cidade vinha do Canadá em caminhões de madeira, e a maioria das garrafas continha o que o rótulo dizia. As bebidas boas eram caras, mas havia bastante da vagabunda, e ela podia te deixar de ressaca, mas não matava, e se você ficasse mesmo cego, a cegueira não durava. Em qualquer noite comum, era preciso baixar a cabeça quando as garrafas começavam a voar. Havia o Nan’s, o Paradise, o Wally’s Spa, o Silver Dollar e um bar, o Powderhorn, onde às vezes dava pra arrumar uma prostituta. Ah, dava pra pegar mulher em qualquer porco, não era preciso nem se esforçar muito (havia muitas que queriam descobrir se o gosto do pão preto era diferente), mas para garotos como eu, Trevor Dawson e Carl Roone, meus amigos naquela época, a ideia de comprar uma prostituta, uma prostituta branca, era uma coisa que exigia reflexão.”

 

Como falei, ele estava muito dopado naquela noite. Acho que jamais teria dito nada daquilo, não para o filho de 15 anos, se não fosse isso.

 

— Bem, não demorou para um representante da Câmara Municipal aparecer querendo ver o major Fuller. Ele disse que queria falar sobre “alguns problemas entre o povo da cidade e os homens alistados”, “preocupações do eleitorado” e “questões de propriedade”, mas o que ele queria mesmo que Fuller soubesse estava claro como uma vidraça. Eles não queriam crioulos do exército nos porcos, incomodando mulheres brancas e tomando bebidas ilegais em um bar onde apenas homens brancos deviam estar tomando bebidas ilegais.

 

“Tudo isso era uma piada, claro. A essência das mulheres brancas com quem eles estavam tão preocupados era um bando de escória frequentadora de bares, e quanto a atrapalhar os homens...! Bem, só posso dizer que nunca vi um integrante da Câmara Municipal de Derry no Silver Dollar nem no Powderhorn. Os homens que bebiam naquelas pocilgas eram lenhadores com enormes jaquetas xadrez vermelhas e pretas, cicatrizes e feridas nas mãos, alguns sem um dedo ou um olho, todos sem quase todos os dentes, todos com cheiro de madeira, serragem e seiva. Eles usavam calças verdes de flanela e botas verdes de borracha e espalhavam neve pelo chão até ficar coberto e preto. Tinham cheiro forte, Mikey, andavam com força e falavam com força. Eram fortes. Fui ao Wally’s Spa uma noite e vi um cara rasgar a manga da camisa fazendo queda de braço com outro. A camisa não simplesmente rasgou. Você deve pensar que é isso que quero dizer, mas não é. A manga da camisa do sujeito praticamente explodiu; ela saltou do braço em pedaços de trapos. E todos gritaram e aplaudiram; alguém bateu nas minhas costas e disse: ‘Isso é que se chama de peido de queda de braço, cara preta.’

 

“O que estou dizendo é que, se os homens que iam àqueles porcos cegos nas noites de sexta e sábado quando saíam do bosque pra tomar uísque e comer mulheres em vez de buracos na madeira preenchidos com banha, se aqueles homens não nos quisessem lá, eles teriam jogado a gente no meio da rua. Mas o fato, Mikey, era que eles pareciam não ligar nada pra gente.

 

“Um deles me chamou de lado uma noite, e ele tinha um metro e oitenta, bem alto praqueles dias, e estava caindo de bêbado, e tinha cheiro de um cesto de pêssegos que ficou num canto por mais de um mês. Se ele tivesse tirado as roupas, acho que elas ficariam de pé sozinhas. Ele olha pra mim e diz: ‘Cara, vou fazer uma pergunta. Você é um negro?’

 

“‘Isso mesmo’, eu digo.

 

“‘Comment ça va!’, diz ele em um francês do vale do rio Saint John que parece quase dialeto cajun, e dá um sorriso tão grande que vi todos os quatro dentes dele. ‘Eu sabia que você era, sabia! Ei! Vi num livro uma vez! Tinha os mesmos...’, e como não conseguiu pensar em como dizer o que tinha em mente, ele estica a mão e bate na minha boca.

 

“‘Lábios grossos’, eu digo.

 

“‘É, é!’, diz ele, rindo como uma criança. ‘Lábios grossssssos! Épais lèvres! Lábios grossssssos! Vou te pagar uma cerveja, eu vou!’

 

“‘Pode pagar’, eu digo, sem querer irritá-lo.

 

“Ele riu disso também e bateu nas minhas costas, quase me derrubando de cara no chão, e foi até o balcão de madeira do bar, onde devia haver uns setenta homens e 15 mulheres aglomerados. ‘Preciso de duas cervejas antes de derrubar essa pocilga!’, grita ele para o barman, que era um cara grande com o nariz quebrado chamado Romeo Dupree. ‘Uma pra mim e uma pour l’homme avec les épais lèvres!’ E todos morreram de rir disso, mas não de uma maneira cruel, Mikey.

 

“Ele pega as cervejas, me dá a minha e diz: ‘Qual é seu nome? Não quero te chamar de Lábios Grosssssssos. Não soa bem.’

 

“‘William Hanlon’, eu digo.

 

“‘À sua saúde, Weelyum Anlon’, diz ele.

 

“‘Não, à sua saúde’, eu digo. ‘Você é o primeiro homem branco a me pagar uma bebida.’ E era verdade.

 

“Assim, bebemos as cervejas, depois tomamos mais duas, e ele diz: ‘Tem certeza de que você é um negro? Fora os lábios épais, você parece um homem branco com pele marrom.’”

 

Meu pai começou a gargalhar depois de contar isso, e eu também ri. Ele riu tanto que o estômago começou a doer, e ele o segurou fazendo uma careta, olhando para cima e mordendo o lábio inferior.

 

— Quer que eu chame a enfermeira, papai? — eu perguntei alarmado.

 

— Não... não. Vou ficar bem. A pior coisa disso, Mikey, é que você não pode nem mais rir quando sente vontade. E são bem poucas vezes.

 

Fiquei em silêncio por alguns momentos, e agora percebo que foi a única vez que chegamos perto de conversar sobre o que o estava matando. Talvez tivesse sido melhor, melhor para nós dois, se tivéssemos falado mais.

 

Ele tomou um gole de água e prosseguiu.

 

— Enfim, não eram as poucas mulheres que iam aos porcos e não eram os lenhadores que formavam a clientela principal que queriam que deixássemos de ir lá. Eram os cinco velhos da Câmara Municipal que estavam ofendidos, eles e os dez que existiam por trás deles, a linha velha de Derry, sabe? Nenhum deles jamais tinha colocado o pé dentro do Paradise ou do Wally’s Spa, eles enchiam a cara no country club que ficava em Derry Heights na época, mas queriam ter certeza de que nenhuma das mulheres da escória que frequentava os bares nem os lenhadores fossem contaminados pelos negros da Companhia E.

 

“Então o major Fuller diz: ‘Eu nunca quis eles aqui. Fico pensando que foi um descuido e que eles vão voltar pro sul ou quem sabe pra Nova Jersey.’

 

“‘Não é problema meu’, diz o velho. Acho que o nome dele era Mueller...”

 

— O pai de Sally Mueller? — perguntei, assustado. Sally Mueller era da mesma turma de ensino médio que eu.

 

Meu pai deu um sorriso torto e amargo

 

— Não, devia ser o tio dela. O pai de Sally Mueller estava na faculdade em outra cidade. Mas se ele estivesse em Derry, estaria presente, eu acho, junto do irmão. E se você estiver querendo saber o quanto essa parte da história é verdade, só posso dizer que essa conversa foi repetida pra mim por Trevor Dawson, que estava esfregando o piso na sala do oficial naquele dia e ouviu tudo.

 

“‘Pra onde o governo manda os rapazes pretos é problema seu, não meu’, diz Mueller para o major Fuller. ‘Meu problema é o local pra onde vocês estão deixando eles irem na sexta e no sábado à noite. Se eles continuarem a fazer baderna na cidade, vai haver confusão. Temos a Legião nesta cidade, sabe?’

 

“‘Bem, estou em uma situação complicada aqui, sr. Mueller’, diz ele. ‘Não posso deixar que eles bebam no clube dos subalternos. Não só é contra o regulamento que os negros bebam com os brancos, mas eles também não poderiam. É um clube de subalternos, entende? Todos os garotos negros são apenas soldados.’

 

“‘Isso também não é problema meu. Apenas acredito que você vá cuidar do assunto. A responsabilidade acompanha a patente.’ E ele sai andando.

 

“Fuller resolveu o problema. A base aérea de Derry ocupava uma área enorme de terra naqueles dias, apesar de não ter muita coisa nela. Mais do que 100 acres, somando tudo. Ao norte, terminava atrás da West Broadway, onde uma espécie de cinturão verde foi plantado. O Black Spot ficava no local onde fica o Parque Memorial agora.

 

“Era só um depósito de coisas confiscadas no começo de 1930, quando tudo isso aconteceu, mas o major Fuller reuniu a Companhia E e disse que seria o ‘nosso’ clube. Agiu como se fosse o Papai Noel e talvez até tenha se sentido assim ao dar um lugar pra um bando de soldados negros, mesmo não passando de um depósito. Depois ele acrescentou, como se não fosse nada, que os porcos da cidade eram locais proibidos pra nós.

 

“Houve muito ressentimento, mas o que podíamos fazer? Não tínhamos poder nenhum. Foi um sujeito jovem, um soldado chamado Dick Hallorann, cozinheiro, quem sugeriu que poderíamos caprichar e deixar o local bem bonito.

 

“Foi o que fizemos. E conseguimos fazer um bom trabalho, considerando tudo. Na primeira vez que fomos até lá olhar, ficamos bem deprimidos. Era escuro e fedido, cheio de ferramentas velhas e caixas de papéis que mofaram. Só tinha duas janelinhas e não havia eletricidade. O chão era de terra. Carl Roone riu de um jeito meio amargo, eu me lembro disso, e disse: ‘O velho major, ele é um príncipe, né? Nos deu nosso próprio clube. Claro!’

 

“E George Brannock, que também morreu no incêndio daquele outono, disse: ‘É, é um tremendo buraco negro, é mesmo.’ E foi disso que veio o nome.

 

“Mas Hallorann nos motivou... Hallorann, Carl e eu. Mas acho que Deus vai nos perdoar pelo que fizemos, porque Ele sabe que não tínhamos ideia do que ia acontecer.

 

“Depois de um tempo, o resto do pessoal foi ajudar. Com a maior parte de Derry proibida pra nós, não havia muito mais o que fazer. Martelamos, pregamos e limpamos. Trev Dawson era um bom carpinteiro e nos mostrou como fazer mais janelas nas laterais, e Alan Snopes conseguiu em algum lugar vidraças de cores diferentes, uma mistura entre vidro de cristal colorido e do tipo que se vê nas janelas das igrejas.

 

“‘Onde você arrumou isso?, perguntei a ele. Alan era o mais velho de nós; tinha uns 42 anos, velho o bastante pra quase todos nós o chamarmos de Vovô Snopes.

 

“Ele enfiou um Camel na boca e me deu uma piscadela. ‘Peguei emprestado’, diz ele, e não quis dizer mais nada.

 

“O lugar foi ficando bom, e no meio do verão já estávamos usando. Trev Dawson e alguns outros dividiram a parte de trás e montaram uma pequena cozinha, só uma grelha e duas fritadeiras, pra podermos comer hambúrguer com batatas fritas se quiséssemos. Havia um bar em um dos lados, mas só com refrigerantes e bebidas como Virgin Mary, um Bloody Mary sem álcool. Porra, nós sabíamos nosso lugar. Não tinham nos ensinado? Se quiséssemos encher a cara, faríamos escondido.

 

“O chão ainda era de terra, mas deixávamos ele bem lisinho. Trev e Vovô Snopes arrumaram uma fiação elétrica, mais coisa emprestada, imagino. Em julho, dava para ir lá em qualquer noite de sábado, se sentar e tomar um refrigerante e comer um hambúrguer ou um cachorro-quente com repolho. Era bom. O local nunca foi terminado, ainda estávamos ajeitando quando o fogo o destruiu. Passou a ser uma espécie de hobby... ou uma forma de desprezar Fuller e Mueller e a Câmara Municipal. Mas acho que soubemos que o local era nosso quando Ev McCaslin e eu penduramos uma placa um dia que dizia THE BLACK SPOT, e logo abaixo, COMPANHIA E & CONVIDADOS. Como se fosse um clube exclusivo, sabe?

 

“O local ficou tão bom que os garotos brancos começaram a reclamar, e num piscar de olhos, o clube dos brancos estava mais arrumado do que nunca. Estavam acrescentando uma sala especial e um pequeno café. Parecia que eles queriam competir. Mas era uma competição da qual não queríamos participar.”

 

Meu pai sorriu para mim do leito de hospital.

 

— Éramos jovens, exceto por Snopesy, mas não éramos bobos. Sabíamos que os brancos deixavam que a gente apostasse corrida com eles, mas se começasse a parecer que nós íamos ganhar, alguém aparecia pra quebrar nossas pernas pra não conseguirmos mais correr. Nós tínhamos o que queríamos e isso bastava. Mas então... aconteceu uma coisa. — Ele ficou em silêncio com a testa franzida.

 

— O que foi, papai?

 

— Descobrimos que tínhamos uma banda de jazz bem boa — disse ele lentamente. — Martin Devereaux, que era cabo, tocava bateria. Ace Stevenson tocava corneta. Vovô Snopes tocava piano bem direitinho. Não era ótimo, mas não era ruim. Tinha outro cara que tocava clarineta, e George Brannock tocava saxofone. Alguns outros participavam de vez em quando, tocando violão, gaita ou berimbau de boca ou mesmo um pente com papel-manteiga por cima.

 

“Isso não aconteceu tudo de uma vez, entenda bem, mas no final de agosto, havia um grupo bem animado de jazz tocando nas noites de sexta e sábado no Black Spot. O grupo foi ficando cada vez melhor com a proximidade do outono, e apesar de nunca se tornarem ótimos, não quero que você tenha essa ideia, eles tocavam de uma maneira diferente... mais animada... que...” Ele balançou a mão magrela acima da coberta.

 

— Eles eram destemidos — eu sugeri, sorrindo.

 

— Isso mesmo! — exclamou ele, sorrindo para mim. — Você entendeu! Eles eram destemidos. E de repente, as pessoas da cidade começaram a ir pro nosso clube. Até mesmo alguns dos soldados brancos da base. Chegou ao ponto do local ficar lotado todos os fins de semana. E isso não aconteceu de repente. A princípio, os rostos brancos pareciam pontinhos de sal em um pote de pimenta, mas mais e mais vieram com o tempo.

 

“Quando os brancos apareceram, foi esse o momento em que nos esquecemos de tomar cuidado. Eles traziam bebida em sacos pardos, a maioria da melhor qualidade, que fazia as bebidas dos porcos na cidade parecer refrigerante. Estou falando de bebida do country club, Mikey. Bebida de gente rica. Chivas. Glenfiddich. O tipo de champanhe que serviam pra passageiros de primeira classe em navios transatlânticos. ‘Champers’ era como alguns chamavam. Devíamos ter encontrado uma forma de acabar com aquilo, mas não sabíamos como. Eles eram a cidade! Porra, eles eram brancos!

 

“E, como falei, éramos jovens e sentíamos orgulho do que tínhamos feito. E subestimávamos o quanto as coisas podiam ficar ruins. Todos sabíamos que Mueller e os amigos deviam saber o que estava acontecendo, mas acho que nenhum de nós percebia que a situação estava deixando todos loucos, e quero dizer isso mesmo: loucos. Eles estavam em suas velhas casas vitorianas na West Broadway, a menos de 400 metros de onde nós estávamos, ouvindo coisas como ‘Aunt Hagar’s Blues’ e ‘Diggin My Potatoes’. Isso era ruim. Saber que os jovens deles também estavam lá, junto dos negros, isso deve ter sido bem pior. Porque não eram só os lenhadores e a escória feminina que estava indo lá quando setembro virou outubro. Passou a ser um evento na cidade. Os jovens iam beber e dançar ao som da banda de jazz sem nome até que chegava a uma hora da madrugada, a hora de fechar. E as pessoas não iam só de Derry. Iam de Bangor e Newport e Haven e Cleaves Mill e Old Town e das redondezas. Dava para ver garotos de fraternidade da Universidade do Maine de Orono dançando com as namoradas, e quando a banda aprendeu a tocar uma versão ragtime de ‘The Maine Stein Song’, quase derrubaram o telhado. É claro que era um clube de soldados, ao menos tecnicamente, e não aberto a civis, que não eram convidados. Mas na verdade, Mikey, abríamos a porta às 19h e deixávamos aberta até uma hora. No meio de outubro, chegou um ponto em que, se você fosse para a pista de dança, encostava em seis pessoas ao mesmo tempo. Não havia espaço para dançar, então você tinha que ficar lá de pé e se contorcer... mas se alguém se importava, nunca ouvi reclamar. À meia-noite, era como um vagão de carga vazio se balançando nos trilhos do trem em alta velocidade.”

 

Ele fez uma pausa, tomou outro gole de água e prosseguiu. Seus olhos agora estavam iluminados.

 

— Bem, bem. Fuller colocaria um ponto final naquilo mais cedo ou mais tarde. Se tivesse sido mais cedo, bem menos pessoas teriam morrido. Tudo que ele precisava fazer era enviar a polícia militar e mandar confiscar todas as garrafas de bebida que as pessoas levavam. Isso teria sido o suficiente, bem o que ele queria, na verdade. Teria fechado o local de vez. Alguns teriam que ir pra corte marcial e alguns seriam presos em Rye, e o resto seria transferido. Mas Fuller foi lento. Acho que ele estava com medo da mesma coisa que alguns de nós, de que alguns cidadãos fossem se enfurecer. Mueller não tinha voltado para vê-lo, e acho que o major Fuller devia estar com medo de ir para a cidade ver Mueller. Ele falava com pompa, o Fuller, mas era durão e corajoso como uma água-viva.

 

“Então, em vez de a coisa terminar de uma forma armada que teria deixado pelo menos todos os que morreram queimados naquela noite vivos, a Legião da Decência acabou com tudo. Eles foram usando os lençóis brancos no começo de novembro e fizeram um churrasco.”

 

Ele ficou em silêncio de novo, sem beber água desta vez, só olhando mal-humorado para o canto do quarto enquanto um sino baixo soou do lado de fora e uma enfermeira passou pela porta aberta, com as solas dos sapatos chiando no linóleo. Eu conseguia ouvir uma TV em algum lugar, um rádio em outro. Lembro que conseguia ouvir o vento soprando do lado de fora, assobiando na lateral do prédio. E apesar de ser agosto, o vento fazia um som frio. Não queria nem saber de Cain’s Hundred na televisão, nem do Four Seasons cantando “Walk Like a Man” no rádio.

 

— Alguns chegaram pelo cinturão verde entre a base e a West Broadway — retomou ele. — Devem ter se reunido na casa de alguém por lá, talvez no porão, para vestir os lençóis e para fazer as tochas que usaram.

 

“Eu soube que os outros entraram direto na base pela estrada Ridgeline, que era o caminho principal. Ouvi, não vou dizer onde, que chegaram em um automóvel Packard novinho em folha, vestidos com os lençóis brancos e com os chapéus brancos de goblin no colo e tochas no chão. As tochas eram tacos de beisebol Louisville Slugger com grandes pedaços de estopa presos nas partes mais grossas com elásticos vermelhos, do tipo que as damas usavam para fechar compotas. Havia uma guarita onde a estrada Ridgeroad bifurcava e levava à base, e o oficial responsável deixou o Packard passar direto.

 

“Era uma noite de sábado e o local estava lotado, na maior animação. Devia ter umas duzentas pessoas ali, talvez trezentas. E logo chegaram aqueles homens brancos, seis ou oito no Packard verde, e mais chegando pelas árvores que ficavam entre a base e as casas bacanas na West Broadway. Eles não eram jovens, ao menos a maioria, e às vezes me pergunto quantos casos de angina e úlceras estouradas aconteceram no dia seguinte. Espero que muitos. Aqueles putos sorrateiros, imundos e assassinos.

 

“O Packard estacionou na colina e piscou os faróis duas vezes. Quatro homens saíram e se juntaram ao resto. Alguns tinham latas de dois galões de gasolina, do tipo que dava para comprar em postos naquela época. Todos carregavam tochas. Um ficou atrás do volante do Packard. Mueller tinha um Packard, sabe? Tinha mesmo. Verde.

 

“Eles se reuniram atrás do Black Spot e encharcaram as tochas de gasolina. Talvez só quisessem nos assustar. Ouvi o contrário, mas também ouvi isso. Prefiro acreditar que a intenção era essa, porque mesmo agora não sinto tanta raiva a ponto de querer acreditar no pior.

 

“Pode ter sido que a gasolina escorreu até a base de algumas tochas, e quando eles as acenderam, os que estavam com elas entraram em pânico e jogaram de qualquer jeito para se livrar delas. Seja como for, aquela noite negra de novembro estava de repente iluminada de tochas. Alguns as estavam segurando alto e balançando, com pedaços ardentes de estopa caindo do alto. Alguns estavam gargalhando. Mas, como digo, alguns as jogaram pelas janelas dos fundos, no que era nossa cozinha. O local estava em chamas em um minuto e meio.

 

“Os homens do lado de fora estavam usando os capuzes pontudos. Alguns estavam cantarolando ‘Saiam, crioulos! Saiam, crioulos! Saiam, crioulos!’ Talvez alguns estivessem cantarolando pra nos assustar, mas prefiro acreditar que a maioria estava tentando nos avisar, assim como prefiro acreditar que talvez as tochas que foram parar na cozinha tenham sido por acidente.

 

“De qualquer forma, não importava muito. A banda estava tocando mais alto do que um apito de fábrica. Todo mundo estava dançando e se divertindo. Ninguém lá dentro sabia que havia alguma coisa errada até Gerry McCrew, que era ajudante de cozinheiro naquela noite, abrir a porta da cozinha e quase ser queimado vivo. As chamas chegaram a 3 metros e queimaram a jaqueta dele. Queimaram também quase todo o cabelo.

 

“Eu estava sentado na metade da parede leste com Trev Dawson e Dick Hallorann na hora, e a princípio achei que o fogão a gás tinha explodido. Eu mal tinha ficado de pé quando fui derrubado pelas pessoas correndo pra porta. Umas vinte passaram correndo por cima de mim, e acho que foi a única vez durante o acontecimento em que senti medo de verdade. Eu conseguia ouvir as pessoas gritando e dizendo umas para as outras que elas tinham que sair, que o local estava pegando fogo. Mas cada vez que eu tentava me levantar, alguém pisava em mim e me derrubava. Alguém apoiou o sapatão na minha nuca e vi estrelas. Meu nariz foi esmagado no chão liso, inspirei terra e comecei a tossir e espirrar ao mesmo tempo. Outra pessoa pisou na minha lombar. Senti um salto de mulher se enfiar entre as minhas nádegas, e filho, nunca quero outro enema de meia bunda daqueles. Se a traseira da minha calça cáqui tivesse rasgado, eu estaria sangrando até hoje.

 

“Parece engraçado agora, mas eu quase morri naquela correria. Fui golpeado, pisado, maltratado, esmagado e chutado em tantas partes que não conseguia andar no dia seguinte. Eu estava gritando, mas nenhuma daquelas pessoas de pé me ouviu ou prestou atenção.

 

“Foi Trev quem me salvou. Vi a mão grande e marrom dele na minha frente e agarrei como um homem se afogando se agarra em uma boia. Eu o segurei, ele me puxou e comecei a me levantar. O pé de alguém atingiu a lateral do meu pescoço bem aqui...”

 

Ele massageou a área onde o maxilar sobe em direção à orelha, e eu assenti.

 

— ... e doeu tanto que acho que desmaiei por um minuto. Mas não soltei a mão de Trev, e ele não soltou a minha. Fiquei de pé quando a parede que colocamos entre o salão e a cozinha caiu. Ela fez um barulho alto, o barulho que uma poça de gasolina faz quando você bota fogo nela. Eu a vi subir em um monte de faíscas e vi pessoas correndo pra sair do caminho na hora que ela caiu. Algumas conseguiram. Outras, não. Um dos nossos caras, acho que deve ter sido Hort Sartoris, ficou preso debaixo dela, e só por um segundo vi suas mãos debaixo dos carvões em brasa, abrindo e fechando. Tinha uma garota branca, com pouco mais de 20 anos, com a parte de trás do vestido em chamas. Ela estava com um universitário, e ouvi-a gritando para ele, implorando que ele a ajudasse. Ele deu dois tapas nas chamas e saiu correndo com o resto. Ela ficou gritando enquanto o vestido queimava ao redor do corpo dela.

 

“Parecia um inferno onde antes era a cozinha. As chamas eram tão intensas que não dava pra olhar pra elas. O calor era de um forno, Mikey, torrando a gente. Dava para ver a pele ficando brilhosa. Dava pra sentir os pelos do nariz ficando queimados.

 

“‘Temos que sair daqui!’, grita Trev, e começa a me arrastar ao lado da parede. ‘Vem!’

 

“Naquela hora, Dick Hallorann o segura. Ele não podia ter mais de 19 anos, e seus olhos estavam do tamanho de bolas de bilhar, mas ele manteve a calma melhor do que nós. Ele salvou nossas vidas. ‘Não por aí!’, grita ele. ‘Por aqui!’ E apontou na direção do palco... na direção do fogo.

 

“‘Você está louco!’, gritou Trevor. Ele tinha uma voz grave e alta, mas mal dava para ouvi-lo em meio ao fogo e às pessoas gritando. ‘Morra se quiser, mas eu e Willy vamos sair!’

 

“Ele ainda estava me segurando pela mão e começou a me puxar para a porta de novo, apesar de haver tantas pessoas ao redor que eu não conseguia ver nada. Eu teria ido com ele. Estava tão em choque que não sabia que lado era a direita e que lado era a esquerda. Só sabia que não queria assar como um peru humano.

 

“Dick segurou Trev pelo cabelo com o máximo de força que conseguiu, e quando Trev se virou, Dick deu um tapa na cara dele. Eu me lembro de ver a cabeça de Trev bater na parede e de pensar que Dick tinha ficado louco. Em seguida, ele gritou na cara de Trev: ‘Se você for por ali, vai morrer! Eles bloquearam aquela porta, negão!’

 

“‘Você não sabe!’, gritou Trev para ele, e houve um estrondo alto como uma bombinha, só que era o calor explodindo a bateria de Marty Devereaux. O fogo estava se espalhando pelas vigas acima e o óleo no chão estava se incendiando.

 

“‘Eu sei!’, gritou Dick em resposta. ‘Eu sei!’

 

“Ele segurou minha outra mão, e por um minuto me senti como a corda em um cabo de guerra. Mas Trev deu uma boa olhada na porta e seguiu o caminho indicado por Dick, que nos levou até uma janela e pegou uma cadeira para quebrá-la, mas antes de jogá-la, o calor fez a vidraça explodir. Ele segurou Trev Dawson pelo traseiro da calça e o levantou. ‘Sobe!’, grita ele. ‘Sobe, filho da puta!’ E Trev subiu e passou de cabeça pela janela.

 

“Ele me empurrou em seguida, e eu subi. Segurei as laterais da janela e dei impulso. Fiquei com um monte de bolhas nas palmas das mãos no dia seguinte. A madeira já estava soltando fumaça. Caí de cabeça, e se Trev não tivesse me segurando, eu poderia ter quebrado o pescoço.

 

“Nos viramos e vimos o que parecia ser o pior pesadelo do mundo, Mikey. Aquela janela era um quadrado amarelo e ardente de luz. Chamas subiam pelo telhado de metal em vários pontos. Conseguíamos ouvir as pessoas gritando lá dentro.

 

“Vi duas mãos marrons acenando na frente do fogo, as mãos de Dick. Trev Dawson fez pezinho com as mãos e enfiei o braço pela janela e agarrei Dick. Quando peguei o peso dele, minha barriga bateu na lateral do prédio, e tive a sensação de encostar a barriga num fogão que está começando a ficar quente de verdade. O rosto de Dick apareceu, e por alguns segundos pensei que não íamos conseguir puxá-lo. Ele tinha inspirado fumaça e estava quase desmaiando. Seus lábios estavam rachados. As costas da camisa soltavam fumaça.

 

“E eu quase soltei, porque consegui sentir o cheiro das pessoas pegando fogo lá dentro. Ouvi pessoas dizerem que o cheiro é como o de costelinhas de porco na churrasqueira, mas não é assim. É mais parecido com o que acontece às vezes depois de castrarem cavalos. Fazem uma fogueira enorme e jogam toda aquela merda nela, e quando o fogo fica bem quente, você ouve as bolas de cavalo estourando como castanhas, e é esse o cheiro de pessoas sendo cozidas ainda de roupas. Consegui sentir esse cheiro e soube que não poderia suportar por muito tempo, então dei um puxão forte e Dick saiu pela janela. Ele tinha perdido um dos sapatos.

 

“Caí das mãos de Trev e me esborrachei. Dick caiu em cima de mim, e estou aqui pra contar que a cabeça daquele negão era dura. Fiquei quase completamente sem fôlego e continuei deitado no chão por alguns segundos, rolando e segurando a barriga.

 

“Em pouco tempo, consegui ficar de joelhos e depois de pé. E vi várias formas correndo na direção do cinturão verde. A princípio, pensei que fossem fantasmas, mas vi os sapatos deles. Àquelas alturas, já estava tão claro ao redor do Black Spot que parecia pleno dia. Vi sapatos e entendi que eram homens vestindo lençóis. Um deles tinha ficado um pouco para trás e vi...”

 

Ele parou de falar e lambeu os lábios.

 

— O que o senhor viu, papai? — eu perguntei.

 

— Deixa pra lá — disse ele. — Me dá minha água, Mikey.

 

Eu dei. Ele tomou quase tudo e teve um acesso de tosse. Uma enfermeira que estava passando olhou para dentro e disse:

 

— Precisa de alguma coisa, sr. Hanlon?

 

— De uns intestinos novos — disse meu pai. — Tem algum por aí, Rhoda?

 

Ela deu um sorriso nervoso e indeciso e seguiu em frente. Meu pai me entregou o copo e coloquei-o de volta na mesa.

 

— Demora mais tempo contando do que lembrando — disse ele. — Você vai encher meu copo antes de ir embora?

 

— Claro, pai.

 

— Essa história vai te dar pesadelos, Mikey?

 

Abri a boca para mentir, mas pensei melhor. E acho agora que, se eu tivesse mentido, ele teria parado na mesma hora. Ele já estava meio fora de si, mas talvez nem tanto.

 

— Acho que vai — eu disse.

 

— Não é uma coisa tão ruim — disse ele. — Nos pesadelos, podemos pensar no pior. É pra isso que eles servem, eu acho.

 

Ele esticou a mão. Eu a segurei, e ficamos de mãos dadas enquanto ele terminava.

 

— Olhei ao redor a tempo de ver Trev e Dick indo para a frente do galpão, e corri atrás deles, ainda tentando recuperar o fôlego. Havia umas quarenta ou cinquenta pessoas lá, algumas chorando, algumas vomitando, algumas gritando, algumas fazendo tudo isso ao mesmo tempo, ao que parecia. Outras estavam deitadas na grama, desmaiadas por causa da fumaça. A porta estava fechada, e ouvimos pessoas gritando do outro lado, gritando para que as deixassem sair, pelo amor de Deus, que elas estavam pegando fogo.

 

“Era a única porta, exceto pela que havia na cozinha, que levava à área das latas de lixo. Para entrar, você empurrava a porta. Para sair, tinha que puxar.

 

“Algumas pessoas tinham saído, mas então o resto começou a se amontoar em volta da porta e empurrar. A porta travou. Quem estava atrás ficava empurrando para a frente para fugir do fogo, e todo mundo ficou preso. Quem estava na frente foi esmagado. Não tinha como abrirem aquela porta com todo o peso de quem estava atrás. Eles estavam ali, presos, e o fogo ardia.

 

“Foi Trev Dawson que deu um jeito pra que só oitenta morressem em vez de cem ou duzentos, e o que ele ganhou pelo que fez não foi uma medalha, mas dois anos na prisão de Rye. Naquele exato momento, um grande caminhão de carga parou, e quem estava no volante senão meu velho amigo sargento Wilson, o cara que era dono de todos os buracos da base.

 

“Ele sai e começa a gritar ordens que não faziam muito sentido e que as pessoas também não conseguiam ouvir. Trev segurou meu braço e corremos até ele. Eu tinha me perdido de Dick Hallorann e só o vi no dia seguinte.

 

“‘Sargento, preciso usar seu caminhão!’, grita Trev na frente dele.

 

“‘Sai do meu caminho, crioulo’, diz Wilson e o empurra. Em seguida, começa a gritar toda aquela merda confusa de novo. Ninguém estava prestando atenção nele, e ele não continuou por muito tempo, porque Trevor Dawson apareceu como um palhaço de mola em uma caixa e deu um soco nele.

 

“Trev era capaz de bater com muita força, e em qualquer outro dia, o sujeito teria ficado derrubado, mas aquele maldito tinha a cabeça dura. Ele ficou de pé com sangue pingando da boca e do nariz e disse: ‘Vou te matar por isso.’ Bem, Trev deu um soco na barriga dele com o máximo de força que conseguiu, e quando ele se dobrou, juntei minhas mãos e bati na nuca dele com o máximo de força que eu consegui. Foi uma coisa covarde bater em um homem por trás daquele jeito, mas momentos desesperados pedem medidas desesperadas. E eu estaria mentindo, Mikey, se dissesse que bater naquele filho da puta imundo não me deu um pouco de prazer.

 

“Ele caiu como um boi atingido por uma machadinha. Trev correu para o caminhão, ligou o motor e dirigiu-o de forma a deixá-lo de frente para o Black Spot, mas à esquerda da porta. Ele passou a primeira, apertou o acelerador e ali fomos nós!

 

“‘Cuidado!’, eu gritei para as pessoas ao redor. ‘Cuidado com o caminhão!’

 

“Elas se espalharam como aves, e por milagre Trev não atropelou ninguém. Ele acertou a lateral do prédio a uns 50 km/h e bateu com o rosto com força no volante. Vi o sangue voar do nariz quando ele balançou a cabeça. Ele deu ré, recuou 50 metros e bateu de novo com o caminhão. POW! O Black Spot não passava de metal corrugado, e aquele segundo golpe funcionou. A lateral toda daquele forno caiu e as chamas saíram com tudo. Como qualquer coisa ainda podia estar viva lá dentro, eu não sei, mas ali estava. Pessoas bem mais fortes do que você acreditaria, Mikey, e se você não acredita, dá uma olhada em mim, escorregando do mundo pendurado pelas unhas. Aquele lugar era uma fornalha derretendo, era um inferno de chamas e fumaça, mas as pessoas saíram correndo de lá em uma torrente regular. Havia tantas que Trev nem ousou dar ré no caminhão de novo por medo de atropelar algumas. Assim, ele saiu e voltou correndo até mim, deixando-o onde estava.

 

“Ficamos ali vendo o final. Nem cinco minutos tinham se passado, mas parecia uma eternidade. Os últimos dez ou 15 que saíram estavam pegando fogo. As pessoas os seguraram e começaram a rolá-los no chão, tentando apagar as chamas. Ao olhar para dentro, dava para ver outras pessoas tentando sair, e sabíamos que elas nunca conseguiriam.

 

“Trev segurou minha mão e eu segurei a dele com o dobro de força. Ficamos de mãos dadas como você e eu agora, Mikey, ele com o nariz quebrado e sangue escorrendo pelo rosto e olhos inchados, e nós dois vendo as pessoas. Elas eram os verdadeiros fantasmas que vimos naquela noite, nada além de espectros no formato de homens e mulheres naquele incêndio, andando em direção à abertura que Trev abriu com o caminhão do sargento Wilson. Algumas estavam com os braços esticados, como se esperassem que alguém as salvasse. Outras simplesmente andavam, mas não pareciam chegar a lugar nenhum. As roupas estavam em chamas. Os rostos estavam derretendo. E, uma após a outra, elas caíram, e você de repente não as via mais.

 

“A última foi uma mulher. O vestido dela tinha queimado todo e ela estava de combinação. Estava queimando como uma vela. Ela pareceu olhar diretamente pra mim no final, e vi que as pálpebras estavam pegando fogo.

 

“Quando ela caiu, tinha acabado. O lugar todo ardeu em um pilar de fogo. Quando os carros de bombeiro da base e mais dois do quartel da rua Main chegaram, o local já estava completamente em chamas. Esse foi o incêndio do Black Spot, Mikey.”

 

Ele terminou de beber a água e me entregou o copo, para que eu enchesse no bebedor do corredor.

 

— Acho que você vai fazer xixi na cama hoje, Mikey.

 

Beijei a bochecha dele e saí para o corredor para encher o copo. Quando voltei, ele estava ficando inconsciente de novo, com olhos vidrados e contemplativos. Quando coloquei o copo na mesa de cabeceira, ele murmurou um obrigado que mal consegui entender. Olhei para o Westclox na mesa dele e vi que eram quase 20h. Hora de eu voltar para casa.

 

Eu me inclinei para dar um beijo nele... mas acabei me ouvindo sussurrar:

 

— O que o senhor viu?

 

Os olhos dele, que agora estavam fechados, mal se viraram na direção do som da minha voz. Ele talvez soubesse que era eu, ou talvez tenha acreditado estar ouvindo a voz de seus próprios pensamentos.

 

— Hã?

 

— A coisa que o senhor viu — eu sussurrei. Eu não queria ouvir, mas precisava ouvir. Eu estava com calor e com frio, com olhos ardendo, mãos congelando. Mas eu tinha que ouvir. Assim como acho que a esposa de Lot precisou se virar e ver a destruição de Sodoma.

 

— Foi um pássaro — disse ele. — Por cima dos últimos homens que corriam. Um falcão, talvez. O que chamam de gavião. Mas era grande. Nunca contei pra ninguém. Teriam me internado. Aquele pássaro devia ter uns 18 metros de envergadura. Era do tamanho de um Mitsubishi A6M Zero. Mas eu vi... vi os olhos dele... e acho... que ele me viu...

 

A cabeça dele pendeu para o lado, na direção da janela, onde a escuridão se aproximava.

 

— Ele desceu e pegou o último homem. Pegou pelo lençol, foi... e ouvi as asas daquele pássaro... O som era como fogo... e ele pairou... e eu pensei: pássaros não conseguem pairar... mas esse conseguia, porque... porque...

 

Ele ficou em silêncio.

 

— Por que, papai? — eu sussurrei. — Por que ele conseguia pairar?

 

— Ele não pairou — disse ele.

 

Fiquei em silêncio, achando que ele tinha adormecido de verdade agora. Nunca senti tanto medo na vida... porque, quatro anos antes, eu vi aquele pássaro. De alguma forma, de alguma maneira inimaginável, eu quase tinha esquecido aquele pesadelo. Foi meu pai quem o trouxe de volta.

 

— Ele não pairou — disse ele. — Ele flutuou. Ele flutuou. Havia um monte de balões amarrados em cada asa e ele flutuou.

 

Meu pai adormeceu.

 

1º de março de 1985

 

Voltou. Agora eu sei. Vou esperar, mas sei no coração. Não sei se consigo suportar. Quando criança, consegui lidar com a situação, mas crianças são diferentes. De uma forma essencial, é diferente.

 

Escrevi aquilo tudo ontem à noite em uma espécie de frenesi. Não que eu pudesse ter voltado para casa. Derry está envolta em uma camada grossa de gelo, e apesar de o sol ter saído esta manhã, nada se move.

 

Escrevi até bem depois das 3h da madrugada, empunhando a caneta cada vez mais rápido, tentando botar tudo para fora. Eu tinha me esquecido de ter visto o pássaro gigante quando tinha 11 anos. Foi a história do meu pai que trouxe a lembrança... e nunca mais esqueci. Nenhuma parte. De certa forma, acho que foi o presente final dele para mim. Um presente terrível, você poderia dizer, mas maravilhoso à sua maneira.

 

Dormi bem onde eu estava, com a cabeça nos braços, o caderno e a caneta sobre a mesa à minha frente. Acordei hoje de manhã com a bunda dormente e as costas doendo, mas me sentindo livre, de certa forma... purificado daquela velha história.

 

E então, vi que tive companhia à noite enquanto dormia.

 

As marcas, secando e virando leves impressões de lama, levavam da porta da frente da biblioteca (que eu tranquei; eu sempre a tranco) até a mesa onde eu dormi.

 

Não havia marcas saindo da biblioteca.

 

Fosse o que fosse, foi até mim à noite, deixou seu talismã... e simplesmente desapareceu.

 

Preso à minha lâmpada de leitura havia um único balão. Cheio de hélio, flutuando no sol da manhã que entrava por uma das janelas altas.

 

Nele havia uma imagem do meu rosto, sem os olhos, com sangue escorrendo das órbitas, um grito distorcendo a boca na superfície fina e emborrachada do balão.

 

Olhei para isso e gritei. O grito ecoou pela biblioteca e ecoou de volta, vibrando da escada circular de ferro que levava às estantes.

 

O balão estourou com um estrondo.

 

ADULTOS

Bill Denbrough pega um táxi

 

O telefone estava tocando, fazendo-o acordar e sair de um sono profundo demais para ter sonhos. Ele tateou em busca do aparelho sem abrir os olhos, sem despertar completamente. Se tivesse parado de tocar naquele momento, ele teria adormecido na mesma hora sem dificuldade; teria adormecido com a mesma simplicidade e facilidade com que descia pelos morros cobertos de neve do Parque McCarron com o trenó portátil. Você corria com o trenó, se jogava em cima dele e descia no que parecia a velocidade do som. Não dava para fazer isso sendo adulto; machucava demais as bolas.

 

Seus dedos passearam pelo disco do telefone, escorregaram, subiram de novo. Ele tinha uma leve premonição de que seria Mike Hanlon, Mike Hanlon ligando de Derry, dizendo que ele tinha que voltar, dizendo que ele tinha que lembrar, dizendo que eles tinham feito uma promessa, que Stan Uris tinha cortado as palmas das mãos deles com o pedaço de garrafa de Coca e eles prometeram...

 

Só que tudo isso já tinha acontecido.

 

Ele tinha chegado tarde na noite anterior, pouco depois das 18h. Ele achava que, como foi a última ligação da lista de Mike, todos os outros já deviam ter chegado em horários variados; alguns talvez tivessem até passado a maior parte do dia ali. Ele mesmo não tinha visto nenhum deles nem sentia pressa de ver. Ele apenas chegou, fez o check-in, subiu para o quarto, pediu comida do serviço de quarto que, depois de servida, ele descobriu que não conseguia comer, caiu na cama e dormiu sem sonhar até aquele momento.

 

Bill abriu um dos olhos e procurou o telefone. O fone caiu da mesa, e ele tateou enquanto abria o outro olho. Sentia-se totalmente vazio dentro da cabeça, totalmente desligado, funcionando à base de pilhas.

 

Ele acabou conseguindo pegar o aparelho. Apoiou-se em um cotovelo e colocou o fone no ouvido.

 

— Alô?

 

— Bill? — Era a voz de Mike Hanlon. Nisso, pelo menos, ele acertou. Na semana anterior, ele nem se lembrava de Mike, e agora uma única palavra bastava para identificá-lo. Era um tanto maravilhoso... mas de uma maneira agourenta.

 

— Oi, Mike.

 

— Acordei você, é?

 

— É, acordou. Não tem problema. — Na parede acima da TV havia um quadro horrível de lagosteiros de capas de chuva e chapéus amarelos puxando redes de lagostas. Ao olhar, Bill se lembrou de onde estava: no Derry Town House na rua Upper Main. Oitocentos metros acima e do outro lado da rua ficava o Parque Bassey... a Ponte do Beijo... o canal. — Que horas são, Mike?

 

— Quinze pras dez.

 

— De que dia?

 

— Dia 30. — Mike pareceu achar engraçado.

 

— Tá. Tudo bem.

 

— Marquei um reencontro — disse Mike. Ele parecia tímido agora.

 

— É? — Bill tirou as pernas de cima da cama. — Todos vieram?

 

— Todos menos Stan Uris — disse Mike. Agora havia alguma coisa na voz dele que Bill não conseguiu interpretar. — Bev foi a última. Ela chegou tarde da noite ontem.

 

— Por que você diz última, Mike? Stan pode chegar hoje.

 

— Bill, Stan está morto.

 

— O quê? Como? O avião dele...?

 

— Nada do tipo — disse Mike. — Olha, se não fizer diferença pra você, acho que é melhor esperar até nos juntarmos. Seria melhor se eu pudesse contar pra todo mundo ao mesmo tempo.

 

— Tem a ver com isto?

 

— É, acho que tem. — Mike fez uma pausa breve. — Tenho certeza de que tem.

 

Bill sentiu o peso familiar do medo envolver seu coração de novo. Seria uma coisa com a qual dava para se acostumar tão rápido? Ou era algo que ele tinha carregado consigo, sem sentir nem pensar sobre, como acontecia com o fato inevitável de sua própria morte?

 

Ele esticou a mão para pegar um cigarro, acendeu e soprou o fósforo na primeira tragada.

 

— Ninguém se encontrou ontem?

 

— Não, acho que não.

 

— E você ainda não viu nenhum de nós.

 

— Não, só falei por telefone.

 

— Tudo bem — disse ele. — Onde vai ser o reencontro?

 

— Lembra onde era a velha siderúrgica?

 

— Na estrada Pasture, claro.

 

— Você está atrasado, amigão. Agora é a estrada Mall. Temos o terceiro maior shopping do estado lá. Quarenta e Oito Lojas Diferentes Sob o Mesmo Teto, Para a Sua Conveniência.

 

— Parece bem a-a-americano mesmo.

 

— Bill?

 

— O quê?

 

— Você está bem?

 

— Estou. — Mas seu coração estava batendo rápido demais, a ponta do cigarro estava tremendo um pouco. Ele tinha gaguejado. Mike ouviu.

 

Houve um momento de silêncio, e Mike disse:

 

— Depois do shopping, tem um restaurante chamado Jade do Oriente. Lá tem salas particulares pra festas. Reservei uma ontem. Podemos ficar com ela a tarde toda, se quisermos.

 

— Você acha que vai demorar tanto?

 

— Não sei.

 

— Um táxi vai saber chegar lá?

 

— Claro.

 

— Tudo bem — disse Bill. Ele escreveu o nome do restaurante no bloco ao lado do telefone. — Por que lá?

 

— Porque é novo, eu acho — disse Mike lentamente. — Pareceu... sei lá...

 

— Campo neutro? — sugeriu Bill.

 

— É. Acho que é isso.

 

— A comida é boa?

 

— Não sei — disse Mike. — Como é seu apetite?

 

Bill soprou fumaça e deu uma risadinha que era em parte tosse.

 

— Não tão bom, amigão.

 

— É — disse Mike. — Entendo.

 

— Meio-dia?

 

— Mais pra perto de 13h, eu acho. Vamos deixar Beverly roncar um pouco mais.

 

Bill tragou o cigarro.

 

— Ela está casada?

 

Mike hesitou de novo.

 

— Vamos saber de tudo mais tarde — disse ele.

 

— É como quando você vai pra reunião do ensino médio dez anos depois, hein? — disse Bill. — Você descobre quem está gordo, quem ficou careca, quem tem f-filhos.

 

— Eu queria que fosse assim — disse Mike.

 

— É. Eu também, Mikey. Eu também.

 

Ele desligou o telefone, tomou um longo banho e pediu um café da manhã que não queria e que só beliscou. Não; seu apetite não andava mesmo muito bom.

 

Bill ligou para a empresa de táxi Big Yellow Cab e pediu para ser buscado às 12h45, pensando que 15 minutos seriam suficientes para ele chegar à estrada Pasture (ele era totalmente incapaz de pensar nela como estrada Mall, mesmo quando viu o shopping), mas subestimou o fluxo de trânsito da hora do almoço... e o quanto Derry tinha crescido.

 

Em 1958, era um vilarejo grande, não mais do que isso. Havia umas 30 mil pessoas dentro dos limites municipais de Derry e talvez mais 7 mil nas cidadezinhas das redondezas.

 

Agora, ela tinha se tornado uma cidade. Uma cidade pequena em comparação com os padrões de Londres e Nova York, mas que estava indo muito bem pelos padrões do Maine, onde Portland, a maior cidade do estado, mal passava de 300 mil pessoas.

 

Conforme o táxi descia lentamente a rua Main (estamos sobre o canal agora, pensou Bill; não consigo vê-lo, mas está bem aqui, correndo no escuro) e virava na Center, seu primeiro pensamento foi bem previsível: o quanto tudo tinha mudado. Mas o pensamento previsível foi acompanhado de um grande desalento que ele jamais teria esperado. Ele se lembrava da infância ali como uma época temerosa e nervosa... não só por causa do verão de 1958, quando os sete encararam o terror, mas por causa da morte de George, pelo sonho profundo no qual os pais pareceram ter caído depois disso, pelas provocações constantes por causa da gagueira, por Bowers, Huggins e Criss indo sempre atrás deles depois da briga no Barrens

 

(Bowers, Huggins e Criss, meu Deus! Bowers, Huggins e Criss, meu Deus!)

 

e por uma sensação de que Derry era fria, de que Derry era dura, de que Derry estava cagando se qualquer um deles vivia ou morria, e muito menos se eles triunfariam sobre Pennywise, o Palhaço. O povo de Derry vivia com Pennywise em todos os seus disfarces havia muito tempo... e talvez, de alguma forma louca, tivesse até passado a compreendê-lo. A gostar dele, precisar dele. Amá-lo? Talvez. Sim, talvez isso também.

 

Então por que esse desalento?

 

Talvez só porque parecia uma mudança tão banal. Ou talvez porque Derry parecia ter perdido sua cara essencial aos olhos dele.

 

O Cinema Bijou não existia mais e tinha sido substituído por um estacionamento (SÓ COM AUTORIZAÇÃO, dizia a placa acima da rampa; INFRATORES ESTARÃO SUJEITOS A REBOQUE). A loja de sapatos The Shoeboat e o restaurante Bailley’s Lunch, que ficavam ao lado, também não existiam mais. Eles tinham sido substituídos por uma agência do Northern National Bank. Um placar digital na frente da estrutura sem graça de concreto mostrava a hora e a temperatura, esta última tanto em graus Fahrenheit quanto em graus Celsius. A Center Street Drug, lar do sr. Keene e local onde Bill conseguiu o remédio de asma de Eddie naquele dia, também não existia mais. A travessa Richard tinha se tornado um híbrido estranho chamado “minishopping”. Ao olhar para lá quando o táxi parou no sinal vermelho, Bill conseguiu ver uma loja de discos, uma loja de comida natural e uma loja de brinquedos e jogos com TUDO DE DUNGEONS AND DRAGONS em liquidação.

 

O táxi deu uma arrancada e parou.

 

— Vai demorar — disse o motorista. — Eu queria que todos esses malditos bancos variassem os horários de almoço. Desculpe o vocabulário se você for religioso.

 

— Não tem problema — disse Bill. O céu estava nublado, e agora algumas gotas de chuva bateram na janela do táxi. O rádio murmurou alguma coisa sobre um paciente que fugiu de alguma instituição mental e que era muito perigoso, depois começou a falar sobre o Red Sox. Chuvas logo cedo, depois céu limpo. Quando Barry Manilow começou a gemer sobre Mandy, que vinha e se entregava sem pedir nada em troca, o taxista desligou o rádio.

 

— Quando eles surgiram?

 

— O quê? Os bancos?

 

— Aham.

 

— Ah, no final dos anos 1960, começo dos 1970, pelo menos a maioria — disse o motorista. Ele era um homem grande com pescoço largo. Usava uma jaqueta xadrez vermelha e preta de caçador. Um boné laranja fluorescente estava enfiado em sua cabeça. Estava manchado de óleo de motor. — Receberam uma grana de reforma urbana. Partilha de receitas é o nome que dão. E assim, começaram a derrubar tudo. E os bancos chegaram. Acho que eram os únicos que poderiam vir. Diz muita coisa, não é? Reforma urbana, eles dizem. Merda pro jantar, eu digo. Desculpe o vocabulário se você for religioso. Teve muita falação dizendo que iam revitalizar o centro. É, revitalizaram muito bem. Derrubaram a maior parte das lojas antigas e construíram um monte de bancos e estacionamentos. E ainda não dá pra achar uma porra de vaga pra estacionar. Deviam pendurar a câmara municipal todinha pelo pinto. Exceto pela mulher Polock. Ela devia ser pendurada pelas tetas. Pensando bem, parece que ela não tem tetas. É achatada como uma porra de tábua. Desculpe o vocabulário se você for religioso.

 

— Eu sou — disse Bill, sorrindo.

 

— Então sai do meu táxi e vai pra porra da igreja — disse o motorista, e os dois caíram na gargalhada.

 

— Você mora aqui há muito tempo? — perguntou Bill.

 

— A vida toda. Nasci no Derry Home Hospital, e vão enterrar as porras dos meus restos mortais no Cemitério Mount Hope.

 

— Parece bom — disse Bill.

 

— Ah, tá — disse o motorista. Ele limpou a garganta, abriu a janela e cuspiu uma bola de catarro grande e verde-amarelada na chuva. A atitude dele, contraditória mas um tanto atraente, um tanto mordaz, era de alegria sombria. — O cara que pegar isso não vai precisar comprar porra de chiclete nenhum por uma semana. Desculpe o vocabulário se você for religioso.

 

— Nem tudo mudou — disse Bill. A fileira deprimente de bancos e estacionamentos estava ficando para trás conforme eles subiam a rua Center. Acima da colina e depois do First National, eles começaram a ganhar velocidade. — O Aladdin ainda está no lugar.

 

— É — concordou o motorista. — Mas por pouco. Os merdas tentaram derrubar ele também.

 

— Pra fazer outro banco? — perguntou Bill, em parte achando graça por descobrir que outra parte dele estava horrorizada com a ideia. Ele não conseguia acreditar que qualquer pessoa em sã consciência iria querer derrubar aquele grandioso domo do prazer com o candelabro cintilante de vidro, as escadarias da direita e da esquerda que seguiam em curva até o balcão e a cortina monumental, que não apenas se abria quando o filme começava, mas que subia em dobras mágicas, pregas e ondas, tudo iluminado em tons fabulosos de vermelho, azul, amarelo e verde enquanto roldanas nas laterais do palco gemiam e estalavam. Não o Aladdin, aquela parte chocada dele gritou. Como puderam pensar em derrubar o Aladdin pra construir um BANCO?

 

— Ah, era isso mesmo, um banco — disse o taxista. — Você acertou na porra da mosca, desculpe o vocabulário se você for religioso. Era o First Merchants of Penobscot County que estava de olho no Aladdin. Queriam derrubar e levantar o que estavam chamando de “complexo bancário”. Conseguiram os papéis todos na câmara municipal, e o Aladdin estava condenado. Mas um grupo formou um comitê, um pessoal que morava aqui há muito tempo, e fizeram um abaixo-assinado, fizeram passeata, gritaram e acabaram conseguindo uma reunião com a câmara. Hanlon expulsou aqueles babacas. — O taxista parecia extremamente animado.

 

— Hanlon? — perguntou Bill, surpreso. — Mike Hanlon?

 

— Isso aí — disse o motorista. Ele se virou rapidamente para olhar para Bill, mostrando um rosto redondo e ressecado, óculos de aro de chifre com velhas manchas de tinta branca. — Bibliotecário. Sujeito negro. Conhece?

 

— Conhecia — disse Bill, lembrando-se de como conheceu Mike em julho de 1958. Foi culpa de Bowers, Huggins e Criss de novo... é claro. Bowers, Huggins e Criss

 

(ah Deus)

 

em cada virada, desempenhando seu papel, tentáculos involuntários aproximando os sete, cada vez com mais força.

 

— Brincávamos juntos quando éramos crianças. Antes de eu ir embora.

 

— Olha só — disse o motorista. — Essa porra de mundo é muito pequeno, desculpe o...

 

— ... vocabulário se você for religioso — concluiu Bill por ele.

 

— Olha só — repetiu o taxista com tranquilidade, e eles seguiram em silêncio por um tempo até ele dizer: — Mudou muito, Derry, mas sim, muita coisa ainda está aqui. O Town House, onde peguei você. A Torre de Água no Parque Memorial. Se lembra desse lugar, moço? Quando éramos crianças, achávamos que era assombrando.

 

— Lembro, sim — disse Bill.

 

— Olha, ali está o hospital. Reconhece?

 

Eles estavam passando pelo Derry Home Hospital à direita. Atrás dele, o Penobscot corria em direção ao ponto de encontro com o Kenduskeag. Sob o céu chuvoso da primavera, o rio estava azul-acinzentado. O hospital de que Bill se lembrava, um prédio branco com duas alas e três andares, ainda estava lá, mas agora estava cercado, diminuído por um complexo de prédios, talvez uns dez. Ele conseguia ver um estacionamento à esquerda, e parecia haver mais de quinhentos carros estacionados lá.

 

— Meu Deus, não é um hospital, é uma porra de campus de faculdade! — exclamou Bill.

 

O taxista gargalhou.

 

— Como não sou religioso, vou desculpar seu vocabulário. Verdade, é quase tão grande agora quanto a Eastern Maine em Bangor. Tem laboratórios de radiação, um centro de terapia e seiscentos quartos e lavanderia própria e só Deus sabe mais o quê. O velho hospital ainda está lá, mas é só parte administrativa agora.

 

Bill teve uma estranha sensação dupla na mente, o tipo de sensação que ele se lembrava de ter tido na primeira vez que viu um filme em 3D. De tentar juntar duas imagens que não encaixavam. Dava para enganar os olhos e o cérebro para que executassem o truque, ele lembrava, mas você tinha chance de acabar com uma tremenda dor de cabeça... e ele conseguia sentir uma chegando agora. Nova Derry, tudo bem. Mas a velha Derry ainda estava presente, como o prédio de madeira do Home Hospital. A velha Derry estava quase toda enterrada debaixo de construções novas... mas seus olhos eram arrastados incontrolavelmente para ela... para procurá-la.

 

— O pátio de trens também deve ter sido destruído, não? — perguntou Bill.

 

O motorista riu de novo, satisfeito.

 

— Pra alguém que se mudou quando era criança, você tem boa memória, moço. — Bill pensou: Você devia ter me visto semana passada, meu amigo de vocabulário caprichado. — Ainda está lá, mas não passa de ruínas e trilhos enferrujados agora. Os trens de carga nem param mais. Um cara queria comprar o terreno e montar um centro de entretenimento completo, com minigolfe, jaulas pra rebater bolas de beisebol, campo de golfe, kart, fliperama, não sei mais o quê, mas tem alguma confusão sobre quem é o dono do terreno agora. Acho que ele vai acabar conseguindo, porque é um cara persistente, mas agora está com processo nos tribunais.

 

— E o canal — murmurou Bill quando eles saíram da rua Outer Center e entraram na estrada Pasture, que, como Mike dissera, agora tinha uma placa verde dizendo ESTRADA MALL. — O canal ainda está no lugar.

 

— É — disse o motorista. — Ele sempre vai ficar no mesmo lugar, eu acho.

 

Agora o Derry Mall estava à esquerda de Bill e, quando eles passaram, ele teve aquela estranha sensação dupla de novo. Quando eles eram crianças, aquilo tudo era um campo comprido e amplo cheio de mato e enormes girassóis que marcava o lado nordeste do Barrens. Atrás dele, a oeste, ficava o conjunto habitacional Old Cape. Ele conseguia se lembrar deles explorando esse campo, tomando o cuidado para não cair no buraco aberto da siderúrgica Kitchener, que tinha explodido no domingo de Páscoa do ano de 1906. O campo era cheio de relíquias, e eles as descobriam com o interesse solene de arqueólogos explorando ruínas egípcias: tijolos, conchas, pedaços de ferro com parafusos enferrujados pendurados, pedaços de vidro, garrafas cheias de gosma não identificada com cheiro do pior veneno do mundo. Uma coisa ruim tinha acontecido perto dali, na cascalheira perto do lixão, mas ele ainda não conseguia lembrar. Só conseguia se lembrar de um nome, Patrick Humboldt, e que tinha alguma coisa a ver com uma geladeira. E alguma coisa relacionada a um pássaro que tinha perseguido Mike Hanlon. O que...?

 

Ele balançou a cabeça. Fragmentos. Pedaços de palha ao vento. Só isso.

 

O campo não existia mais, assim como os restos da siderúrgica. Bill se lembrou de repente da grande chaminé. Coberta de azulejos, escurecida por causa da fuligem nos três últimos metros, ela ficava no meio da grama alta como um cano gigantesco. Eles conseguiram subir e andaram em cima, com os braços esticados como se estivessem na corda bamba, rindo...

 

Ele balançou a cabeça como se para afastar a miragem do shopping, um aglomerado feio de prédios com placas que diziam SEARS, J. C. PENNEY, WOOLWORTH’S, CVS, YORK’S STEAK HOUSE, WALDENBOOKS e dezenas de outras lojas. Havia caminhos pavimentados entrando e saindo de estacionamentos. O shopping não sumiu porque não era miragem. A siderúrgica Kitchener não existia mais, e o campo que cresceu ao redor das ruínas dela também. O shopping era realidade, não as lembranças.

 

Mas, de alguma forma, ele não acreditava nisso.

 

— Aqui, moço — disse o taxista. Ele parou no estacionamento de um prédio que parecia um grande pagode de plástico. — Um pouco atrasado, mas antes tarde do que nunca, certo?

 

— Sem dúvida — disse Bill. Ele deu uma nota de cinco para o motorista. — Fique com o troco.

 

— Que beleza! — exclamou o motorista. — Se precisar de alguém pra te levar, liga pra Big Yellow e pede pelo Dave. Me peça pelo nome.

 

— Vou pedir o sujeito religioso — disse Bill, sorrindo. — O que já escolheu o túmulo no Mount Hope.

 

— Isso mesmo — disse Dave, rindo. — Tenha um bom-dia, moço.

 

— Você também, Dave.

 

Ele ficou de pé na chuva leve por um momento e observou o táxi se afastar. Deu-se conta de que pretendia fazer mais uma pergunta ao motorista, mas que tinha esquecido, talvez de propósito.

 

Ele pretendia perguntar a Dave se ele gostava de morar em Derry.

 

Abruptamente, Bill Denbrough se virou e entrou no Jade do Oriente. Mike Hanlon estava no saguão, sentado em uma cadeira de vime com encosto enorme. Ele ficou de pé, e Bill sentiu uma irrealidade profunda tomar conta dele, por dentro dele. Aquela sensação de duplo estava de volta, mas agora estava bem, bem pior.

 

Ele se lembrava de um garoto que tinha 1,60 metro, era magro e ágil. À sua frente estava um homem com 1,75 metro. Era esquelético. As roupas pareciam penduradas nele. E as linhas no rosto diziam que ele tinha quarenta e muitos anos, e não apenas uns 38.

 

O choque de Bill deve ter ficado evidente no rosto, porque Mike disse baixinho:

 

— Sei como estou.

 

Bill ficou vermelho e disse:

 

— Não está ruim, Mike, é só que eu me lembro de você criança. Só isso.

 

— É mesmo?

 

— Você parece meio cansado.

 

— Eu estou meio cansado — disse Mike —, mas vou sobreviver. Eu acho. — Ele sorriu, e o sorriso iluminou seu rosto. Nele, Bill viu o garoto que conheceu 27 anos antes. Assim como o velho Home Hospital de madeira tinha sido cercado de vidro moderno e cimento, o garoto que Bill conhecera foi cercado dos acessórios inevitáveis da vida adulta. Havia rugas na testa, linhas nos cantos da boca que iam quase até o queixo, e o cabelo estava ficando grisalho dos dois lados nas têmporas. Mas, assim como o velho hospital, que estava cercado, mas ainda estava lá, visível, o garoto que Bill conhecera também estava.

 

Mike esticou a mão e disse:

 

— Bem-vindo de volta a Derry, Big Bill.

 

Bill ignorou a mão e abraçou Mike. Mike o abraçou com força, e Bill conseguiu sentir o cabelo dele, duro e encaracolado, em seu ombro e na lateral do pescoço.

 

— Seja lá o que houver de errado, Mike, vamos resolver — disse Bill. Ele ouviu o som rouco de lágrimas em sua garganta e não se importou. — Vencemos uma vez e somos capazes de v-vencer de n-n-novo.

 

Mike se afastou dele e segurou-o com os braços esticados; apesar de ainda estar sorrindo, havia brilho demais em seus olhos. Ele pegou o lenço e os secou.

 

— Claro, Bill — disse ele. — Pode apostar.

 

— Cavalheiros, podem me acompanhar? — perguntou a recepcionista. Era uma mulher oriental sorridente com um delicado quimono rosa, no qual um dragão se contorcia e curvava o rabo metálico. O cabelo escuro estava preso na cabeça com pentes de marfim.

 

— Sei o caminho, Rose — disse Mike.

 

— Muito bem, sr. Hanlon. — Ela sorriu para os dois. — Vocês são muito amigos, acredito.

 

— Acho que somos — disse Mike. — Por aqui, Bill.

 

Ele o levou por um corredor escuro, passando pelo salão principal em direção a uma porta com uma cortina de contas.

 

— Os outros...? — disse Bill.

 

— Todos aqui agora — disse Mike. — Todos que puderam vir.

 

Bill hesitou por um momento do lado de fora, com um medo repentino. Não era o desconhecido que o assustava, nem o sobrenatural; era o simples conhecimento de que estava quase 40 centímetros mais alto do que era em 1958 e sem a maior parte do cabelo. Ele ficou desconfortável de repente, quase apavorado com a ideia de ver todos eles de novo, com os rostos infantis quase desaparecidos, quase enterrados sob a mudança, como o velho hospital. Com bancos construídos na mente onde antes palácios mágicos ficavam.

 

Nós crescemos, pensou ele. Não achamos que aconteceria, não naquela época, não conosco. Mas aconteceu, e se eu entrar aí, vai ser real. Somos todos adultos agora.

 

Ele olhou para Mike, repentinamente confuso e tímido.

 

— Como eles estão? — ele se ouviu perguntando com voz falha. — Mike... como eles estão?

 

— Entre e descubra — disse Mike com delicadeza, e levou Bill para a salinha particular.

 

Bill Denbrough dá uma olhada

 

Talvez fosse apenas a penumbra da sala que provocasse a ilusão, que durou por um brevíssimo momento, mas Bill se perguntou depois se não era alguma espécie de mensagem exclusivamente para ele: que o destino também podia ser gentil.

 

Naquele breve momento, pareceu que nenhum deles tinha crescido, que seus amigos tinham feito um ato de Peter Pan e ainda eram todos crianças.

 

Richie Tozier estava recostado na cadeira a ponto de tocar a parede e dizendo alguma coisa para Beverly Marsh, que estava com a mão sobre a boca para esconder uma risadinha; Richie mostrava um sorriso espertalhão no rosto que era perfeitamente familiar. Ali estava Eddie Kaspbrak, sentado à esquerda de Beverly, e na frente dele na mesa, ao lado do copo de água, uma garrafinha plástica com uma tampa com gatilho no alto. Os detalhes eram um pouco mais modernos, mas o objetivo era obviamente o mesmo: uma bombinha. Do outro lado da mesa, observando o trio com expressão de ansiedade, diversão e concentração, estava Ben Hanscom.

 

Bill sentiu vontade de colocar a mão na cabeça e percebeu com diversão e tristeza que, naquele segundo, quase passou a mão na careca para ver se o cabelo tinha voltado por magia; aquele cabelo ruivo e fino que ele começou a perder no começo da faculdade.

 

Aquilo estourou a bolha. Ele viu que Richie não estava de óculos e pensou: Ele deve usar lentes de contato agora, é o tipo de coisa que ele faria. Ele odiava aqueles óculos. As camisetas e calças de amarrar que ele costumava usar foram substituídas por um terno que não foi comprado em loja de departamento. Bill estimava estar olhando para uma vestimenta de novecentos dólares feita por alfaiate.

 

Beverly Marsh (se é que o nome dela ainda era Marsh) tinha se tornado uma mulher incrivelmente linda. Em vez do rabo de cavalo casual, o cabelo dela, que era quase exatamente do mesmo tom que o dele antes, caía sobre os ombros da blusa branca lisa Ship ‘n Shore em uma torrente de cor branda. Na luz turva, ele apenas brilhava como um amontoado de brasas. Na luz do dia, mesmo em um dia nublado como aquele, Bill imaginava que pegava fogo. E ele se viu se perguntando como seria enfiar as mãos naquele cabelo. A história mais velha do mundo, pensou ele com ironia. Amo minha esposa, mas ah, você.

 

Eddie, era estranho, mas era verdade, tinha crescido e passado a se parecer bastante com Anthony Perkins. Seu rosto tinha rugas prematuras (apesar de nos trejeitos ele parecer mais jovem do que Richie e Ben), e ele parecia ainda mais velho pelos óculos sem aro que usava — óculos que você imaginaria um advogado britânico usando quando se aproximava do banco dos réus ou mexia nos arquivos. Seu cabelo estava curto, em um estilo antiquado que foi conhecido como Ivy League no final dos anos 1950 e começo dos 1960. Estava usando uma jaqueta quadriculada berrante que parecia ter sido tirada da arara de liquidação de uma loja de roupas masculinas prestes a fechar... mas o relógio no pulso era Patek Philippe, e o anel no mindinho da mão direita tinha um rubi. A pedra era grande e ostentosa demais para não ser verdadeira.

 

Ben era quem tinha realmente mudado, e, ao olhar para ele de novo, Bill sentiu uma irrealidade tomar conta dele. O rosto era o mesmo, e o cabelo, embora grisalho e mais comprido, estava penteado do mesmo jeito incomum, dividido do lado direito. Mas Ben estava magro. Estava sentado confortavelmente na cadeira, com o colete de couro sem enfeites aberto e exibindo uma camisa azul de cambraia por baixo. Usava uma calça Levi’s com corte reto, botas de caubói e um cinto largo com fivela surrada de prata. As roupas caíam bem em um corpo magro e de quadris estreitos. Ele usava uma pulseira com aros grossos em um pulso, não de ouro, mas de cobre. Ele ficou magro, pensou Bill. É uma sombra de quem era antes, podemos dizer... O velho Ben ficou magro. As maravilhas não terminam nunca.

 

Houve um momento de silêncio entre os seis que não podia ser descrito. Foi um dos momentos mais estranhos que Bill já viveu na vida. Stan não estava lá, mas havia um sétimo elemento mesmo assim. Ali, naquela salinha particular de um restaurante, Bill sentiu a presença com tanta intensidade que era quase personificada, mas não como um velho de túnica branca com uma foice no ombro. Era o ponto branco no mapa que ficava entre 1958 e 1985, uma área que um explorador poderia chamar de o Grande Não Sei. Bill se perguntou o que exatamente havia lá. Beverly Marsh de saia curta que deixava à mostra a maior parte das pernas longas e enérgicas, uma Beverly Marsh de botas brancas sem salto, com o cabelo dividido no meio e alisado? Richie Tozier carregando um cartaz que dizia PAREM A GUERRA de um lado e TIREM OS OFICIAIS DO CAMPUS do outro? Ben Hanscom de capacete amarelo com adesivo da bandeira na frente, dirigindo uma escavadeira debaixo de um guarda-sol de lona, sem camisa, mostrando uma barriga cada vez menos protuberante por cima da calça? A sétima criatura era negra? Sem relação com H. Rap Brown nem Grandmaster Flash, não esse cara, esse cara usava camisas brancas e calças marrons da J. C. Penney, se sentava em um cubículo de biblioteca na Universidade do Maine e escrevia trabalhos sobre a origem das notas de rodapé e as possíveis vantagens dos números ISBN no catálogo de livros enquanto manifestantes caminhavam do lado de fora e Phil Ochs cantava “Richard Nixon, encontre outro país do qual participar” e homens morriam com a barriga estourada em vilarejos cujos nomes eles não conseguiam pronunciar; ele ficava ali sentado dedicado ao estudo (Bill o via), que estava sob um raio de luz branca de inverno, com o rosto sóbrio e absorto, sabendo que ser bibliotecário era chegar o mais perto que qualquer ser humano poderia chegar de se sentar no assento mais alto do motor da eternidade. Ele era o sétimo? Ou era um jovem de pé na frente do espelho, olhando para a forma como a testa crescia, olhando para o pente cheio de cabelos ruivos que caíam, olhando para uma pilha de cadernos da faculdade sobre a mesa refletida no espelho, cadernos com o primeiro rascunho completo e bagunçado de um romance chamado Joanna, que seria publicado um ano depois?

 

Algum dos itens anteriores, todos os itens anteriores, nenhum dos itens anteriores.

 

Não importava, na verdade. O sétimo estava presente, e naquele momento todos sentiram... e talvez tenham entendido melhor o poder maligno da coisa que os trouxe de volta. A Coisa está viva, pensou Bill, sentindo frio por baixo da roupa. Olho da salamandra, rabo do dragão, Mão da Glória... fosse o que a Coisa fosse, ela está aqui de novo, em Derry. A Coisa.

 

E ele sentiu de repente que a Coisa era o sétimo; que a Coisa e o tempo eram intercambiáveis, que a Coisa usava os rostos de todos eles, assim como os milhares de outros com os quais tinha aterrorizado e matado... e a ideia de que a Coisa pudesse ser eles era a ideia mais apavorante de todas. O quanto de nós ficou aqui?, pensou ele com terror crescente e repentino. O quanto de nós nunca saiu dos canos e esgotos onde a Coisa vivia... e onde a Coisa se alimentava? Foi por isso que esquecemos? Porque parte de cada um de nós nunca teve futuro, nunca cresceu, nunca saiu de Derry? É por isso?

 

Ele não viu respostas nos rostos deles... só suas próprias perguntas refletidas.

 

Pensamentos se formam e somem em questão de segundos ou milissegundos; criam seus próprios intervalos de tempo, e tudo isso se passou pela mente de Bill Denbrough em um espaço de não mais de cinco segundos.

 

E então, Richie Tozier, recostado contra a parede, sorriu de novo e disse:

 

— Minha nossa, olhem isso. Bill Denbrough escolheu o visual do aeroporto de mosquito. Há quanto tempo você encera a cabeça, Big Bill?

 

E Bill, que não fazia a menor ideia do que poderia sair, abriu a boca e se ouviu dizer:

 

— Foda-se você e o cavalo que você monta, Boca de Lixo.

 

Houve um momento de silêncio e a sala acabou explodindo em gargalhadas. Bill andou até eles e começou a apertar mãos, e apesar de haver alguma coisa de horrível no que ele sentia agora, havia também algo reconfortante: a sensação de ter voltado para casa de vez.

 

Ben Hanscom fica magro

 

Mike Hanlon pediu bebidas e, como se para compensar o silêncio anterior, todos começaram a falar ao mesmo tempo. Beverly Marsh agora era Beverly Rogan, no fim das contas. Ela disse que era casada com um homem maravilhoso em Chicago que transformou a vida dela e que, por alguma magia benigna, conseguiu transformar o talento simples da esposa para costurar em um bem-sucedido negócio de fabricação de vestidos. Eddie Kaspbrak era dono de uma empresa de limusines em Nova York.

 

— Pelo que sei, minha esposa pode estar na cama com o Al Pacino agora — disse ele, sorrindo docemente, e a sala quase desabou.

 

Todos sabiam o que aconteceu na vida de Ben e Bill, mas Bill tinha a sensação peculiar de que as pessoas que eles conheciam quando crianças não fizeram associação pessoal entre si e os nomes deles (o de Ben como arquiteto e o seu como escritor) até muito recentemente. Beverly tinha exemplares em formato brochura de Joanna e A correnteza negra na bolsa e pediu que ele autografasse os dois. Bill fez o que ela pediu e reparou que eles estavam em perfeitas condições, como se tivessem sido comprados na loja do aeroporto quando ela saiu do avião.

 

Da mesma forma, Richie disse para Ben o quanto admirava o centro de convenções da BBC em Londres... mas havia uma luz intrigada em seus olhos, como se ele não conseguisse associar aquele prédio com o homem... ou com o garoto gordo e sério que mostrou a eles como inundar metade do Barrens com tábuas velhas e uma porta de carro enferrujada.

 

Richie era disc-jóquei na Califórnia. Ele contou que era conhecido como o Homem das Mil Vozes, e Bill resmungou:

 

— Meu Deus, Richie, suas Vozes sempre foram tão ruins.

 

— O elogio não vai levar você a lugar nenhum, mestre — respondeu Richie com altivez.

 

Quando Beverly perguntou se ele usava lentes de contato, Richie disse em voz baixa:

 

— Chega mais perto, gatinha. Olha nos meus olhos. — Beverly olhou e exclamou com prazer quando Richie inclinou a cabeça um pouco e ela conseguiu ver a parte de baixo das lentes gelatinosas Hydromist que ele usava.

 

— A biblioteca continua igual? — perguntou Ben a Mike Hanlon.

 

Mike pegou a carteira e mostrou uma foto da biblioteca tirada de cima. O gesto foi o de um homem orgulhoso mostrando fotos dos filhos quando alguém perguntava da família.

 

— Um cara tirou essa foto de um avião — disse ele conforme a foto foi passando de mão em mão. — Estou tentando convencer a câmara municipal ou algum próspero doador particular a doar fundos suficientes pra ampliar e fazer um mural na biblioteca infantil. Até agora, nada. Mas é uma boa foto, não é?

 

Todos concordaram que era. Ben ficou mais tempo com ela na mão, olhando fixamente. Por fim, bateu o dedo no corredor de vidro que unia os dois prédios.

 

— Você reconhece isso de outro lugar, Mike?

 

Mike sorriu.

 

— É seu centro de comunicações — disse ele, e os seis caíram na gargalhada.

 

As bebidas chegaram. Eles se sentaram.

 

Aquele silêncio, repentino, constrangido e desconcertante se espalhou de novo. Eles se entreolharam.

 

— E então? — perguntou Beverly com a voz doce e levemente rouca. — A que bebemos?

 

— A nós — disse Richie de repente. E agora, ele não estava sorrindo. Ele olhou nos olhos de Bill e, com uma força tamanha que ele mal conseguiu suportar, Bill lembrou-se de estar com Richard no meio da rua Neibolt, depois que a coisa que talvez fosse um palhaço e que talvez fosse um lobisomem tinha desaparecido, os dois abraçados e chorando. Quando ele pegou o copo, sua mão estava tremendo, e um pouco da bebida derramou no guardanapo.

 

Richie ficou de pé lentamente, e, um a um, os outros acompanharam: primeiro Bill, depois Ben e Eddie, Beverly e, por fim, Mike Hanlon.

 

— A nós — disse Richie, e como a mão de Bill, sua voz tremeu um pouco. — Ao Clube dos Otários de 1958.

 

— Aos Otários — disse Beverly, achando um pouco de graça.

 

— Aos Otários — disse Eddie. Seu rosto estava pálido e velho por trás dos óculos sem aro.

 

— Aos Otários — concordou Ben. Um sorriso leve e sofrido surgiu nos cantos dos lábios dele.

 

— Aos Otários — disse Mike Hanlon baixinho.

 

— Aos Otários — concluiu Bill.

 

Eles bateram copos. Eles beberam.

 

Aquele silêncio voltou, e desta vez Richie não acabou com ele. Desta vez, o silêncio pareceu necessário.

 

Eles voltaram a sentar e Bill disse:

 

— Manda ver, Mike. Conta pra gente o que está acontecendo aqui e o que a gente pode fazer.

 

— Vamos comer primeiro — disse Mike. — E conversar depois.

 

Então eles comeram... e comeram bem e por bastante tempo. Como aquela velha piada sobre o homem condenado, pensou Bill, mas seu apetite estava melhor naquele dia do que em uma eternidade... desde que era criança, ele ficou tentado a pensar. A comida não era incrivelmente boa, mas não chegava nem perto de ruim, e era bem farta. Os seis começaram a trocar pratos — costela, moo goo gai pan, asas de frango delicadamente cozidas, rolinhos primavera, castanhas envoltas em bacon, tiras de carne em espetinhos de madeira.

 

Eles começaram com uma entrada pu-pu, e Richie tratou de grelhar um pouco de tudo de forma infantil e divertida na chama no meio do prato que ele estava dividindo com Beverly, inclusive meio rolinho primavera e alguns feijões vermelhos.

 

— Flambado na minha mesa, adoro — disse ele para Ben. — Eu comeria carne-seca processada se fosse flambada na minha mesa.

 

— E provavelmente comeu — observou Bill. Beverly riu tanto por causa disso que teve que cuspir um pouco de comida no guardanapo.

 

— Ah, Deus, acho que vou chamar o Raul — disse Richie com uma imitação estranhamente precisa de Don Pardo, e Beverly riu ainda mais, até ficar vermelha.

 

— Para, Richie — disse ela. — Estou avisando.

 

— Aviso recebido — disse Richie. — Coma bem, querida.

 

Rose em pessoa levou a sobremesa: um baked Alaska enorme que ela acendeu na cabeceira da mesa, onde Mike estava.

 

— Mais flambado na mesa — disse Richie, com a voz de um homem que morreu e foi para o céu. — Deve ser a melhor refeição que já comi na vida.

 

— Mas é claro — disse Rose com modéstia.

 

— Se eu soprar isso, meu desejo se realiza? — perguntou ele.

 

— No Jade do Oriente, todos os desejos se realizam, senhor.

 

O sorriso de Richie hesitou de repente.

 

— Aprovo a ideia — disse ele —, mas sabe, duvido muito da veracidade.

 

Eles quase destruíram o baked Alaska. Quando Bill se recostou na cadeira, com a barriga forçando a cintura da calça, ele reparou nos copos sobre a mesa. Parecia haver centenas deles. Ele sorriu um pouco, dando-se conta de que tinha tomado dois martínis antes do almoço e Deus sabia quantas garrafas de cerveja Kirin junto com a comida. Os outros beberam do mesmo jeito. No estado deles, pedaços fritos de um pino de boliche teriam gosto bom. Mas ele não se sentia bêbado.

 

— Não como assim desde que era criança — disse Ben. Todos olharam para ele, e um leve tom rosado cobria suas bochechas. — Literalmente. Deve ter sido a maior refeição que comi desde o segundo ano do ensino médio.

 

— Você fez dieta? — perguntou Eddie.

 

— Fiz — disse Ben. — Fiz sim. A Dieta da Liberdade de Ben Hanscom.

 

— O que aconteceu? — perguntou Richie.

 

— Vocês não querem saber essa história antiga... — Ben se mexeu com desconforto.

 

— Não posso falar por todo mundo — disse Bill —, mas eu quero. Vamos lá, Ben. Conta. O que transformou Monte de Feno Calhoun no modelo de revista que estamos vendo agora?

 

Richie deu uma risada.

 

— Monte de Feno, é. Eu tinha me esquecido disso.

 

— Não é bem uma história — disse Ben. — Não tem história, na verdade. Depois do verão, depois de 1958, ficamos em Derry mais dois anos. Aí minha mãe perdeu o emprego e acabamos nos mudando pro Nebraska, porque ela tinha uma irmã lá que ofereceu de nos abrigar até minha mãe conseguir botar as coisas nos eixos. Não foi muito bom. A irmã dela, minha tia Jean, era uma vaca sovina que tinha que ficar repetindo qual era seu lugar no mundo, que nós tínhamos sorte de minha mãe ter uma irmã que podia ser caridosa conosco, que tínhamos sorte de não estarmos dependendo da assistência social, essas coisas. Eu era tão gordo que dava nojo nela. Ela não conseguia parar de falar. “Ben, você devia fazer mais exercícios. Ben, você vai ter um ataque do coração antes dos quarenta se não perder peso. Ben, com tantas criancinhas passando fome no mundo, você devia ter vergonha.”

 

Ele fez uma pausa momentânea e tomou um gole de água.

 

— A questão era que ela também mencionava as criancinhas passando fome se eu não limpasse o prato.

 

Richie riu e assentiu.

 

— Enfim, o país estava saindo de uma recessão e minha mãe demorou quase um ano pra encontrar trabalho firme. Quando saímos da casa de tia Jean em La Vista e fomos pra uma nossa em Omaha, eu estava com 40 quilos a mais do que quando vocês me conheceram. Acho que o motivo de ganhar esse peso foi pra contrariar minha tia Jean.

 

Eddie assobiou.

 

— Isso faria você ter uns...

 

— Uns 95 quilos — disse Ben com seriedade. — Eu estudava na East Side High School em Omaha, e as aulas de educação física eram... ah, bem ruins. Os outros garotos me chamavam de Barril. Acho que já dá pra vocês terem uma ideia.

 

“A provocação prosseguiu por uns sete meses, e então, um dia, quando estávamos trocando de roupa no vestiário depois da aula, dois ou três caras começaram a... dar tapas na minha barriga. Diziam que eram ‘bofetes na gordura’. Em pouco tempo, mais dois ou três se juntaram a eles. Depois, mais quatro ou cinco. Logo eram todos eles, correndo atrás de mim no vestiário e pelo corredor, batendo na minha barriga, na minha bunda, nas minhas costas, nas minhas pernas. Fiquei com medo e comecei a gritar. Isso fez todos eles rirem como loucos.”

 

Ele olhou para baixo e arrumou os talheres cuidadosamente.

 

— Sabe, esse dia é a última vez que consigo me lembrar de pensar em Henry Bowers até Mike me ligar dois dias atrás. O garoto que começou era um moleque de fazenda com mãos enormes, e enquanto eles corriam atrás de mim, eu me lembro de pensar que Henry tinha voltado. Acho... não, eu sei que foi aí que entrei em pânico.

 

“Eles me perseguiram pelo corredor, pelos armários onde os atletas guardavam as coisas. Eu estava nu e vermelho como uma lagosta. Tinha perdido qualquer senso de dignidade e... e de mim mesmo, acho que posso dizer. De onde eu estava. Eu estava gritando e pedindo ajuda. E eles corriam atrás de mim gritando ‘Bofetes na gordura! Bofetes na gordura! Bofetes na gordura!’ Havia um banco...”

 

— Ben, você não precisa se fazer passar por isso — disse Beverly de repente. O rosto dela estava pálido e cinzento. Ela estava brincando com o copo de água e quase o derrubou.

 

— Deixa ele terminar — disse Bill.

 

Ben olhou para ele por um momento e assentiu.

 

— Tinha um banco no final do corredor. Caí por cima dele e bati a cabeça. Eles me cercaram em um ou dois minutos, e então uma voz disse: ‘Pronto. Já chega. Podem ir trocar de roupa.’

 

“Era o treinador, bem ali na porta, com a calça de moletom azul com a listra branca nas laterais e a camiseta branca. Não dava pra saber há quanto tempo ele estava ali. Todos olharam para ele, alguns sorrindo, alguns com culpa, alguns com expressão meio vazia. Eles foram embora. E eu caí no choro.

 

“O treinador ficou ali na porta, mandando todos de volta pro ginásio, me olhando, olhando o garoto gordo nu com a pele vermelha dos bofetes na gordura, vendo o garoto gordo chorando no chão.

 

“E ele disse depois de um tempo: ‘Benny, por que você não cala essa porra de boca?’

 

“Fiquei tão chocado de ouvir um professor usar aquela palavra que calei a boca. Olhei para ele, e ele se aproximou e se sentou no banco por cima do qual eu caí. Ele se inclinou por cima de mim, e o apito ao redor do pescoço dele balançou e bateu na minha testa. Por um segundo, pensei que ele fosse me beijar, sei lá, e me encolhi pra me afastar dele. Mas o que ele fez foi segurar uma teta em cada mão e apertar. Depois, ele afastou as mãos e esfregou na calça como se tivesse encostado em alguma coisa suja.

 

“‘Você acha que vou te consolar?’, perguntou ele. ‘Não vou. Você enoja esses garotos e também me enoja. Temos motivos diferentes, mas isso é porque eles são crianças e eu, não. Eles não sabem por que você os enoja. É porque vejo você enterrando o bom corpo que Deus te deu em uma pilha enorme de gordura. É permissividade burra demais e me dá vontade de vomitar. Agora me escuta, Benny, porque é a única vez que vou dizer isso pra você. Tenho um time de futebol americano pra treinar, e de basquete, e corrida, e no meio disso tenho a equipe de natação. Então só vou dizer uma vez. Você é gordo aqui.’ E bateu na minha testa, bem onde o apito tinha batido. ‘É onde todo mundo é gordo. Se você colocar de dieta o que você tem entre as orelhas, vai perder peso. Mas caras como você nunca perdem.’”

 

— Que babaca! — disse Beverly com indignação.

 

— É — disse Ben, sorrindo. — Mas ele não sabia que era um babaca de tão burro que era. Ele devia ter visto Jack Webb naquele filme The D. I. umas sessenta vezes e achava mesmo que estava me fazendo um favor. No fim das contas, estava mesmo. Porque pensei em uma coisa naquele momento. Eu pensei...

 

Ele afastou o olhar e franziu a testa, e Bill teve a estranha sensação de que sabia o que Ben ia dizer antes mesmo de ele falar.

 

— Falei que a última vez que me lembro de pensar em Henry Bowers foi quando os outros garotos estavam correndo atrás de mim e me batendo. Mas quando o treinador estava se levantando pra ir embora, essa foi a última vez que pensei no que fizemos no verão de 1958. Pensei...

 

Ele hesitou de novo, olhou para cada um deles e pareceu procurar alguma coisa em seus rostos. Ben prosseguiu com cautela.

 

— Pensei no quanto éramos bons juntos. Pensei no que fizemos e em como fizemos, e de repente percebi que, se o treinador tivesse que encarar uma coisa daquelas, o cabelo dele ficaria todo branco de uma vez e o coração dele pararia no peito como um relógio velho. Não era justo, claro, mas ele não foi justo comigo. O que aconteceu foi bem simples...

 

— Você ficou puto — disse Bill.

 

Ben sorriu.

 

— É, isso mesmo — disse ele. — Eu gritei “Treinador!”

 

“Ele se virou e me olhou. ‘Você disse que treina corrida?’, eu perguntei.

 

“‘Isso mesmo’, disse ele. ‘Não que importe pra você.’

 

“‘Me escuta, seu filho da puta burro e cabeça-dura’, eu disse, e o queixo dele caiu e os olhos saltaram. ‘Vou entrar na equipe de corrida em março. O que você acha disso?’

 

“‘Acho melhor você fechar a boca antes de ela te meter em confusão’, disse ele.

 

“‘Vou correr mais rápido do que todos os seus atletas’, eu disse. ‘Vou correr mais rápido do que o seu melhor. E então, quero uma porra de pedido de desculpas de você.’

 

“Ele fechou os punhos, e por um minuto eu pensei que ele ia voltar e me dar porrada. Mas acabou abrindo as mãos. ‘Vai falando, gordo’, disse ele baixinho. ‘Sua boca é rápida. Mas no dia em que você conseguir correr mais rápido do que meu melhor atleta, vou pedir demissão daqui e voltar a colher milho.’ E foi embora.”

 

— Você perdeu peso? — perguntou Richie.

 

— Bem, perdi — disse Ben. — Mas o treinador estava errado. Não começou na minha cabeça. Começou com minha mãe. Fui pra casa naquela noite e falei pra ela que queria perder peso. Acabamos tendo uma briga enorme, com nós dois chorando. Ela começou com a mesma ladainha: que eu não era gordo, só tinha ossos grandes, e um garoto grande que ia ser um homem grande tinha que comer bem pra se manter. Era... uma questão de segurança pra ela, eu acho. Era assustador pra ela tentar criar um filho sozinha. Ela não tinha estudo nem capacitação, só disposição pra trabalhar duro. E quando podia me dar um segundo prato de comida... ou quando podia olhar pra mim do outro lado da mesa e ver que eu estava bem e robusto...

 

— Ela sentia que estava vencendo a batalha — disse Mike.

 

— Aham. — Ben tomou o resto da cerveja e limpou um bigode de espuma do lábio superior com as costas da mão. — Então a maior luta não foi com a minha cabeça. Foi com ela. Ela não quis aceitar, demorou meses. Não ajustava minhas roupas nem comprava novas. Eu tinha começado a correr, corria pra todo lado, e às vezes meu coração batia tão forte que eu achava que ia desmaiar. As primeiras corridas de mais de um quilômetro terminaram comigo vomitando e desmaiando. Depois, eu só vomitei por um tempo. E depois de mais um tempo, eu tinha que segurar a calça enquanto corria.

 

“Comecei a entregar jornais e corria com a bolsa pendurada no pescoço, batendo no peito, enquanto segurava a calça. Minhas camisas começaram a parecer velas de barco. E nas noites em que eu ia pra casa e só comia metade do que tinha no prato, minha mãe começava a chorar e dizia que eu estava passando fome, me matando, que eu não amava mais ela, que não ligava pro quanto ela se esforçava e trabalhava pra mim.”

 

— Meu Deus — murmurou Richie, e acendeu um cigarro. — Não sei como você aguentou, Ben.

 

— Mantive o rosto do treinador em mente — disse Ben. — Fiquei lembrando a forma como ele olhou pra mim depois de segurar minhas tetas no corredor do vestiário masculino. Foi assim que consegui. Comprei umas calças jeans novas e umas roupas com o dinheiro da entrega de jornais, e o coroa no apartamento do primeiro andar usou o furador pra fazer buracos novos no meu cinto. Uns cinco, pelo que lembro. Acho que devo ter me lembrado da outra vez em que precisei comprar uma calça jeans nova, quando Henry me empurrou no Barrens naquele dia e a calça ficou toda rasgada.

 

— É — disse Eddie, sorrindo. — E você me contou sobre o leite achocolatado. Se lembra disso?

 

Ben assentiu.

 

— Se eu lembrei — prosseguiu ele —, foi só por um segundo. Apareceu e sumiu. Na mesma época, comecei a ter aulas de saúde e nutrição na escola, e descobri que dava para comer praticamente qualquer coisa verde e crua que você quisesse sem ganhar peso. Um dia, minha mãe serviu uma salada com alface e espinafre cru, pedaços de maçã e um restinho de presunto. Eu nunca fui fã de comida de coelho, mas repeti duas vezes e fiquei repetindo pra minha mãe o quanto estava bom.

 

“Isso ajudou muito a resolver o problema. Ela não ligava muito para o que eu comia, desde que comesse muito. Ela me entupiu de salada. Comi isso durante três anos. Havia vezes em que eu tinha que me olhar no espelho pra ter certeza de que meu nariz não estava tremendo.”

 

— O que aconteceu com o treinador? — perguntou Eddie. — Você foi pra equipe de corrida? — Ele botou a mão na bombinha, como se a ideia de correr o tivesse feito se lembrar disso.

 

— Ah, fui sim — disse Ben. — Pra correr os 200 e os 400 metros. Àquela altura, eu já tinha perdido 30 quilos e crescido 5 centímetros, então o que sobrou estava mais bem distribuído. No primeiro dia de testes eu ganhei os 200 metros por seis cabeças e os 400 metros por oito. Então fui até o treinador, que parecia furioso o bastante pra roer as unhas e cuspir grampos e disse: ‘Parece que está na hora de você sair de cena e começar a colher milho. Quando você vai pro Kansas?’

 

“Ele não falou nada no começo, só me deu um soco e me derrubou no chão. Depois, me mandou sair do campo de treinos. Disse que não queria um babaca bocudo como eu na equipe de corrida.

 

“‘Eu não ia querer participar dela nem se o presidente Kennedy me mandasse’, eu disse, limpando sangue do canto da boca. ‘E como foi você quem me motivou, não vou guardar ressentimento... mas na próxima vez que você for comer um pratão de milho cozinho, pense em mim.’

 

“Ele me disse que, se eu não fosse embora naquele momento, ia me dar uma surra.”

 

Ben estava sorrindo um pouco... mas não havia nada de agradável naquele sorriso, e certamente nada de nostálgico.

 

— Foram as palavras dele. Todo mundo estava nos olhando, inclusive os garotos que venci. Eles pareciam constrangidos. Então eu só disse: “Quer saber, treinador, vou deixar passar uma porque você é um coitado fracassado, mas velho demais pra aprender agora. Mas se encostar o dedo em mim, vou fazer o possível pra você perder o emprego. Não sei se consigo, mas posso me esforçar bastante. Perdi peso pra poder ter dignidade e paz. São coisas que fazem valer a pena lutar.”

 

Bill disse:

 

— Tudo isso parece maravilhoso, Ben... mas o escritor em mim se pergunta se alguma criança realmente fala assim.

 

Ben assentiu, ainda dando aquele sorriso peculiar.

 

— Duvido que algum garoto que não passou pelas coisas que passamos fale — disse ele. — Mas eu falei... e falei sério.

 

Bill pensou sobre isso e assentiu.

 

— Certo.

 

— O treinador ficou me olhando com as mãos nos quadris do moletom — disse Ben. — Ele abriu a boca e voltou a fechar. Ninguém disse nada. Eu saí andando, e foi a última vez que interagi com o treinador Woodleigh. Quando meu professor orientador me entregou a grade de horários do terceiro ano, vi que alguém tinha digitado a palavra dispensado ao lado de educação física, e ele rubricou.

 

— Você venceu! — exclamou Richie, e balançou as mãos unidas acima da cabeça. — Que demais, Ben!

 

Ben deu de ombros.

 

— Acho que o que fiz foi vencer uma parte de mim. O treinador me fez começar, eu acho... mas foi pensar em vocês que me fez acreditar de verdade que eu era capaz. E consegui mesmo.

 

Ben deu de ombros de uma maneira encantadora, mas Bill achou que conseguia ver gotas de suor na testa dele.

 

— Fim das Confissões Verdadeiras. Mas uma cerveja caía bem. Falar dá sede.

 

Mike fez sinal para a garçonete.

 

Os seis acabaram pedindo outra rodada e conversaram de assuntos mais leves até as bebidas chegarem. Bill olhou para a cerveja e observou a forma como as bolhas se moviam para as laterais do copo. Ele achou graça e ficou ao mesmo tempo perplexo ao se dar conta de que estava esperando que outra pessoa começasse a história sobre os anos anteriores — que Beverly contasse sobre o homem maravilhoso com quem casou (mesmo se fosse chato, como a maioria dos homens maravilhosos era), ou que Richie Tozier começasse a relatar Incidentes Engraçados do Estúdio de Transmissão, ou que Eddie Kaspbrak contasse como Teddy Kennedy era de verdade, quanto Robert Redford dava de gorjeta... ou talvez emitisse alguma opinião esclarecedora explicando por que Ben conseguiu se livrar do peso extra enquanto ele ainda precisava da bombinha.

 

O fato é que, pensou Bill, Mike vai começar a falar a qualquer minuto agora, e não sei se quero ouvir o que ele tem pra dizer. O fato é que meu coração está batendo um pouco rápido demais e minhas mãos estão um pouco frias demais. O fato é que estou 25 anos velho demais pra ficar com tanto medo assim. Todos estamos. Então, alguém diga alguma coisa. Vamos conversar sobre carreiras e cônjuges e como é olhar pros antigos amigos e se dar conta de que você também levou algumas porradas no nariz dadas pelo tempo. Vamos conversar sobre sexo, beisebol, o preço da gasolina, o futuro das nações do Pacto de Varsóvia. Qualquer coisa, menos o que viemos aqui para conversar. Então, alguém diga alguma coisa.

 

Alguém disse. Eddie Kaspbrak disse. Mas não foi como Teddy Kennedy era de verdade e nem o quanto Robert Redford dava de gorjeta, nem por que ele achava necessário manter o que Richie às vezes chamava antigamente de “chupador de pulmão de Eddie”. Ele perguntou a Mike quando Stan Uris morreu.

 

— Na noite de anteontem. Quando fiz as ligações.

 

— Teve a ver com... com o motivo de estarmos aqui?

 

— Eu poderia fugir da pergunta e dizer que, como ele não deixou bilhete, não dá pra ter certeza — respondeu Mike —, mas como aconteceu quase imediatamente depois que liguei pra ele, acho que a suposição é segura.

 

— Ele se matou, não foi? — disse Beverly devagar. — Ah Deus... pobre Stan.

 

Os outros estavam olhando para Mike, que terminou a bebida e disse:

 

— Ele cometeu suicídio sim. Aparentemente, foi para o banheiro pouco depois que eu liguei, encheu a banheira e cortou os pulsos.

 

Bill olhou para a mesa, que de repente pareceu tomada de rostos chocados e pálidos. Não corpos, só aqueles rostos, como círculos brancos. Como balões brancos, balões da lua, presos aqui por uma velha promessa que deveria ter sido invalidada faz tempo.

 

— Como você descobriu? — perguntou Richie. — Saiu nos jornais daqui?

 

— Não. Já tem algum tempo que assino os jornais das cidades mais próximas de todos vocês. Fiquei de olho durante anos.

 

— Xereta. — O rosto de Richie estava azedo. — Obrigado, Mike.

 

— Era meu trabalho — disse Mike simplesmente.

 

— Pobre Stan — repetiu Beverly. Ela parecia perplexa, incapaz de aceitar a notícia. — Mas ele foi tão corajoso naquela época. Tão... determinado.

 

— As pessoas mudam — disse Eddie.

 

— Mudam? — perguntou Bill. — Stan era... — Ele passou a mão pela toalha de mesa enquanto procurava as palavras certas. — Ele era uma pessoa ordenada. Do tipo que precisa separar os livros por ficção e não ficção nas prateleiras... e depois, organiza cada parte em ordem alfabética. Me lembro de uma coisa que ele disse uma vez. Não lembro onde estávamos nem o que estávamos fazendo, pelo menos ainda não, mas acho que foi perto do final dos acontecimentos. Ele disse que conseguia suportar ter medo, mas odiava ficar sujo. Pra mim, isso pareceu a essência de Stan. Talvez tenha sido demais quando Mike ligou. Ele viu suas escolhas se reduzirem a duas: ficar vivo e se sujar ou morrer limpo. Talvez as pessoas não mudem tanto quanto pensamos. Talvez apenas... talvez apenas enrijeçam.

 

Houve um momento de silêncio, e Richie disse:

 

— Muito bem, Mike. O que está acontecendo em Derry? Conta pra gente.

 

— Posso contar uma parte — disse Mike. — Posso contar, por exemplo, o que está acontecendo agora, e posso contar algumas coisas sobre vocês. Mas não posso contar tudo que aconteceu no verão de 1958 e não acredito que vai ser preciso. Vocês vão acabar lembrando sozinhos. E acho que, se eu contasse demais antes das mentes de vocês estarem prontas pra lembrar, o que aconteceu com Stan...

 

— Poderia acontecer com a gente? — perguntou Ben baixinho.

 

Mike assentiu.

 

— Sim. É exatamente disso que tenho medo.

 

Bill disse:

 

— Então conta o que pode, Mike.

 

— Tudo bem — disse ele. — Vou contar.

 

Os Otários ficam sabendo

 

— Os assassinatos recomeçaram — disse Mike objetivamente.

 

Ele olhou por toda a mesa e fixou os olhos nos de Bill.

 

— O primeiro dos “novos assassinatos”, se vocês me permitem essa pavorosa extravagância, começou na ponte da rua Main e terminou debaixo dela. A vítima foi um homem gay e um tanto infantil chamado Adrian Mellon. Ele sofria de asma severa.

 

A mão de Eddie disparou e tocou na lateral da bombinha.

 

— Aconteceu no verão passado, no dia 21 de julho, na última noite do Festival do Canal, que era uma espécie de comemoração, um... um...

 

— Um ritual de Derry — disse Bill em voz baixa. Seus dedos longos massageavam lentamente as têmporas, e era difícil não adivinhar que ele estava pensando no irmão, George... George, que quase certamente abriu o caminho na última vez que isso aconteceu.

 

— Um ritual — disse Mike baixinho. — Sim.

 

Ele contou rapidamente a história do que aconteceu com Adrian Mellon, observando sem prazer nenhum os olhos deles ficarem cada vez maiores. Contou o que o News publicou e o que não publicou... incluindo o testemunho de Don Hagarty e de Christopher Unwin sobre um certo palhaço que estava debaixo da ponte como o troll na famosa história de outrora, um palhaço que parecia um cruzamento de Ronald McDonald e Bozo, de acordo com Hagarty.

 

— Era ele — disse Ben, com voz enojada e rouca. — Era aquele porra do Pennywise.

 

— Tem mais uma coisa — disse Mike, olhando para Bill. — Um dos investigadores, o que tirou Adrian Mellon de dentro do canal, era um policial da cidade chamado Harold Gardener.

 

— Ah, Jesus Cristo — disse Bill, com voz fraca e lacrimosa.

 

— Bill? — Beverly olhou para ele e colocou a mão em seu braço. A voz dela estava tomada de preocupação assustada. — Bill, o que foi?

 

— Harold tinha uns 5 anos naquela época — disse Bill. Seus olhos perplexos buscaram confirmação no rosto de Mike.

 

— Sim.

 

— O que foi, Bill? — perguntou Richie.

 

— Ha-Ha-Harold Gardener era f-filho de Dave Gardener — disse Bill. — Dave morava na mesma rua que nós na época em que George m-morreu. Foi ele quem chegou a G-G... ao meu irmão primeiro e levou ele até em casa, enrolado em uma c-colcha.

 

Eles ficaram sentados em silêncio, sem dizer nada. Beverly cobriu brevemente os olhos com a mão.

 

— Tudo encaixa demais, né? — disse Mike por fim.

 

— É — disse Bill em voz baixa. — Encaixa mesmo.

 

— Fiquei de olho em vocês seis ao longo dos anos, como falei — prosseguiu Mike —, mas só nessa época comecei a entender por que estava fazendo isso, que eu tinha um propósito real e concreto. Ainda assim, me segurei e esperei pra ver como as coisas iam se desenvolver. Senti que eu tinha que ter certeza absoluta antes... de perturbar as vidas de vocês. Não noventa por cento, nem mesmo 95. Só servia cem por cento.

 

“Em dezembro do ano passado, um garoto de 18 anos chamado Steven Johnson foi encontrado morto no Parque Memorial. Como Adrian Mellon, ele tinha sido muito mutilado pouco antes ou logo depois da morte, mas parecia que podia ter morrido de puro medo.”

 

— Sexualmente molestado? — perguntou Eddie.

 

— Não. Só mutilado.

 

— Quantos no total? — perguntou Eddie, sem parecer querer mesmo saber.

 

— A situação é ruim — disse Mike.

 

— Quantos? — repetiu Bill.

 

— Nove. Até agora.

 

— Não pode ser! — gritou Beverly. — Eu teria lido sobre isso no jornal... visto no noticiário! Quando aquele policial maluco matou todas aquelas mulheres em Castle Rock, Maine... e aquelas crianças foram assassinadas em Atlanta...

 

— É, tem isso — disse Mike. — Pensei bastante sobre o assunto. É o correlativo mais próximo ao que está acontecendo aqui, e Bev está certa: foram histórias que alcançaram o país. De algumas formas, o comparativo de Atlanta é o que mais me assusta nisso tudo. Assassinatos de nove crianças... devíamos ter correspondentes de noticiários aqui, médiuns falsos e repórteres do The Atlantic Monthly e da Rolling Stone... todo o circo na mídia, em resumo.

 

— Mas não foi o que aconteceu — disse Bill.

 

— Não — respondeu Mike —, não foi. Ah, teve um suplemento de domingo sobre o assunto no Telegram de Portland e outro no Boston Globe depois dos dois últimos. Um programa de televisão com base em Boston chamado Good Day! fez um segmento em fevereiro sobre assassinatos não resolvidos, e um dos especialistas mencionou os assassinatos de Derry, mas só de passagem... e não deu indicação nenhuma de saber que houve uma série similar de assassinatos em 1957-58 e outra em 1929-30.

 

“Há alguns motivos ostensivos, é claro. Atlanta, Nova York, Chicago, Detroit... todas são grandes cidades midiáticas, e em lugares assim, quando alguma coisa acontece, chama atenção. Não existe uma única estação de rádio ou de TV em Derry, a não ser que você conte a pequena rádio FM organizada pelo departamento de Inglês e Discurso do ensino médio. Bangor é a líder do mercado quando o assunto é a imprensa.”

 

— Exceto pelo Derry News — disse Eddie, e todos riram.

 

— Mas nós sabemos que isso não acompanha a forma como o mundo está. A rede de comunicações existe, e em algum ponto a história devia ter alcançado o país. Mas não alcançou. E acho que o motivo é simples: a Coisa não quer que alcance.

 

— A Coisa — disse Bill, quase refletindo consigo mesmo.

 

— A Coisa — concordou Mike. — Se temos que dar um nome a ela, que seja da mesma forma como chamávamos antes. Sabem, comecei a pensar que a Coisa está aqui há tanto tempo... seja lá o que ela for... que se tornou parte de Derry, tão parte da cidade quanto a Torre de Água, o Canal, o Parque Bassey e a biblioteca. Só que a Coisa não é um item geográfico externo, entendem. Talvez tenha sido assim uma época, mas agora a Coisa está... dentro. De alguma forma, a Coisa entrou. É a única forma em que consigo pensar pra entender todos os acontecimentos terríveis que se passaram aqui, o explicável e também o completamente inexplicável. Houve um incêndio em um clube de negros chamado Black Spot em 1930. Um ano antes, um bando de foras da lei da Depressão foi assassinado a tiros na rua Canal no meio da tarde.

 

— A gangue Bradley — disse Bill. — O FBI pegou eles, certo?

 

— É o que as histórias dizem, mas não é bem verdade. Tanto quanto consegui descobrir, e eu daria muito pra acreditar que não foi isso, porque amo esta cidade, a gangue Bradley, com todos os sete integrantes, foi assassinada pelos bons cidadãos de Derry. Qualquer hora conto pra vocês.

 

“Houve a explosão na siderúrgica Kitchener durante uma caçada a ovos de Páscoa em 1906. Houve uma série horrível de mutilação a animais naquele mesmo ano que acabou sendo atribuída a Andrew Rhulin, o tio-avô do homem que agora dirige as fazendas Rhulin. Aparentemente, ele foi golpeado até a morte por três policiais que deviam levá-lo preso. Nenhum deles foi levado a julgamento.”

 

Mike Hanlon tirou um caderninho de um bolso interno, folheou-o e continuou a falar sem erguer o olhar.

 

— Em 1877, houve quatro enforcamentos sem julgamento dentro dos limites incorporados da cidade. Um dos pendurados foi o pastor da igreja metodista, que aparentemente afogou os quatro filhos na banheira como se eles fossem gatinhos e depois deu um tiro na cabeça da esposa. Ele colocou a arma na mão dela pra fazer parecer suicídio, mas ninguém acreditou. Um ano antes, quatro lenhadores foram encontrados mortos em um chalé Kenduskeag abaixo, literalmente destruídos. Desaparecimentos de crianças, de famílias inteiras, estão registrados em velhos trechos de diários... mas não em documentos públicos. Ainda tem muito mais, mas acho que deu pra pegar a ideia.

 

— Entendi bem a ideia sim — disse Ben. — Tem alguma coisa acontecendo aqui, mas é uma coisa particular.

 

Mike fechou o caderno, colocou no bolso interno e olhou para eles com sobriedade.

 

— Se eu fosse segurador em vez de bibliotecário, faria um gráfico, talvez. Ele mostraria uma taxa alta e incomum de todos os crimes violentos que conhecemos, sem excluir estupro, incesto, invasão de propriedade privada, roubos de carros, abuso infantil, violência doméstica, agressão.

 

“Existe uma cidade de tamanho mediano no Texas onde a taxa de crimes violentos é bem abaixo do que se esperaria pra uma cidade daquele tamanho e com a mistura racial que existe lá. A placidez extraordinária das pessoas que moram lá foi atribuída a alguma coisa na água... algum tipo de tranquilizante natural. O extremo oposto acontece aqui. Derry é um local violento de se morar em um ano qualquer. Mas a cada 27 anos, apesar de o ciclo nunca ter sido perfeitamente exato, essa violência aumenta a um pico furioso... e isso nunca chegou ao noticiário nacional.”

 

— Você está dizendo que tem um câncer ativo aqui — disse Beverly.

 

— De jeito nenhum. Um câncer sem tratamento invariavelmente mata. Derry não morreu; ao contrário, ela prosperou... de uma forma nada espetacular e nada digna dos noticiários, claro. É apenas uma cidade pequena razoavelmente próspera em um estado de população relativamente baixa onde coisas ruins acontecem com frequência demais... e onde coisas violentas acontecem a cada um quarto de século, mais ou menos.

 

— Isso é verdade desde sempre? — perguntou Ben.

 

Mike assentiu.

 

— Desde sempre. 1715-16, 1740 até mais ou menos 1743, no que deve ter sido um período bem ruim, 1769-70, e assim por diante. Até o presente. Tenho a sensação de que está ficando cada vez pior, talvez por haver mais gente em Derry no final de cada ciclo, ou talvez por algum outro motivo. E em 1958, o ciclo parece ter chegado a um fim prematuro. Pelo qual fomos responsáveis.

 

Bill Denbrough se inclinou para a frente, com os olhos iluminados de repente.

 

— Tem certeza disso? Certeza?

 

— Tenho — disse Mike. — Todos os outros ciclos chegaram ao pico por volta de setembro e terminaram de maneira grandiosa. A vida já tinha voltado ao ritmo mais ou menos normal por volta do Natal... no máximo na Páscoa. Em outras palavras, existiram “anos” ruins de 14 a vinte meses a cada 27 anos. Mas o ano ruim que começou quando seu irmão morreu em outubro de 1957 terminou abruptamente em agosto de 1958.

 

— Por quê? — perguntou Eddie com ansiedade. A respiração dele estava mais superficial; Bill se lembrou daquele apito alto quando Eddie inspirava e soube que logo ele estaria com o chupador de pulmão na boca. — O que fizemos?

 

A pergunta ficou no ar. Mike pareceu refletir sobre ela... e acabou por balançar a cabeça.

 

— Vocês vão lembrar — disse ele. — Com o tempo, vão lembrar.

 

— E se não lembrarmos? — perguntou Ben.

 

— Então que Deus nos ajude.

 

— Nove crianças mortas este ano — disse Richie. — Meu Deus.

 

— Lisa Albrecht e Steven Johnson no final de 1984 — disse Mike. — Em fevereiro, um garoto chamado Dennis Torrio desapareceu. Um garoto de ensino médio. O corpo dele foi encontrado em meados de março, no Barrens. Mutilado. Isso estava perto.

 

Ele tirou uma foto do mesmo bolso onde tinha colocado o caderno. Ela passou de mão em mão pela mesa. Beverly e Eddie olharam intrigados, mas Richie Tozier reagiu violentamente. Ele a largou como se estivesse quente.

 

— Meu Deus! Meu Deus, Mike! — Ele levantou o rosto com olhos arregalados e em choque. Um momento depois, passou a foto para Bill.

 

Bill olhou para ela e sentiu o mundo ser tomado por tons de cinza ao seu redor. Por um momento, teve certeza de que desmaiaria. Ouviu um gemido e soube que tinha sido ele mesmo a produzi-lo. Ele largou a foto.

 

— O que é? — ele ouviu Beverly dizendo. — O que significa, Bill?

 

— É a foto escolar do meu irmão — disse Bill depois de um tempo. — É Ge-Georgie. A foto do álbum dele. A que se mexeu. A que piscou.

 

Eles passaram a foto de mão em mão de novo, com Bill sentado imóvel como uma pedra na cabeceira da mesa, olhando para o nada. Era a foto de uma foto. A imagem mostrava uma foto escolar surrada apoiada contra um fundo branco, lábios sorridentes abertos e exibindo dois buracos onde dentes novos nunca cresceram (a não ser que cresçam no caixão, pensou Bill e tremeu). Na margem abaixo da foto de George havia as palavras AMIGOS DA ESCOLA 1957-58.

 

— Foi encontrada este ano? — perguntou Beverly de novo. Mike assentiu e ela se virou para Bill. — Quando você viu a foto pela última vez, Bill?

 

Ele umedeceu os lábios e tentou falar. Nada saiu. Ele tentou de novo e ouviu as palavras ecoarem na mente, ciente da gagueira voltando, lutando contra ela, lutando contra o terror.

 

— Não vejo essa foto desde 1958. Naquela primavera, no ano em que George morreu. Quando tentei mostrar pro Richie, ela tinha s-sumido.

 

Houve um ofego explosivo que fez todos olharem ao redor. Eddie estava recolocando a bombinha na mesa com aparência meio constrangida.

 

— Eddie Kaspbrak explode! — gritou Richie com alegria, e depois, a Voz repentina e apavorante do Narrador de Cinejornal saiu da boca de Richie: — Hoje, em Derry, uma cidade inteira se prepara para os Asmáticos em Desfile, e o astro do show é o Grande Ed, Cabeça de Meleca, conhecido por toda a Nova Inglaterra como...

 

Ele parou de repente e levou uma das mãos ao rosto, como se para cobrir os olhos, e Bill pensou de repente: Não, não, não é isso. Não pra cobrir os olhos, mas pra empurrar os óculos pra cima. Os óculos que ele nem usa mais. Ah, meu bom Jesus, o que está acontecendo aqui?

 

— Eddie, me desculpe — disse Richie. — Foi crueldade. Não sei em que diabos eu estava pensando. — Ele olhou ao redor, perplexo.

 

Mike Hanlon quebrou o silêncio.

 

— Prometi a mim mesmo depois que o corpo de Steven Johnson foi descoberto que, se alguma outra coisa acontecesse, se houvesse mais um caso óbvio, eu faria as ligações que acabei demorando mais dois meses pra fazer. Era como se eu estivesse hipnotizado pelo que estava acontecendo, pela consciência de tudo, pela deliberação. A foto de George foi encontrada ao lado de um tronco caído a menos de 3 metros do corpo do garoto Torrio. Não estava escondida; o oposto, na verdade. Era como se o assassino quisesse que ela fosse encontrada. E tenho certeza de que queria.

 

— Como você conseguiu a foto da polícia, Mike? — perguntou Ben. — É uma foto da polícia, não é?

 

— É, sim. Tem um cara no departamento de polícia que não se incomoda em ganhar uma graninha a mais. Pago vinte pratas por mês pra ele, que é o quanto posso pagar. Ele é um informante.

 

“O corpo de Dawn Roy foi encontrado quatro dias depois do garoto Torrio. No Parque McCarron. Ela tinha 13 anos. Decapitada.

 

“Vinte e três de abril deste ano. Adam Terrault. Dezesseis. Registrado como desaparecido depois de não voltar do ensaio da banda. Encontrado no dia seguinte ao lado do caminho que passa pelo cinturão verde atrás da West Broadway. Também decapitado.

 

“Seis de maio. Frederick Cowan. Dois anos e meio. Encontrado em um banheiro do andar de cima de casa, afogado na privada.”

 

— Ah, Mike! — exclamou Beverly.

 

— É, está ruim — disse ele, quase com raiva. — Você acha que não sei?

 

— A polícia está convencida de que não podia ser... bem, alguma espécie de acidente? — perguntou Bev.

 

Mike balançou a cabeça.

 

— A mãe estava pendurando roupas no quintal. Ela ouviu sons de briga, ouviu o filho gritando. Correu o mais rápido que conseguiu. Ao subir a escada, disse que ouviu o barulho da descarga sendo acionada repetidamente. Isso e uma pessoa gargalhando. Ela disse que não pareceu um som humano.

 

— E ela não viu nada? — perguntou Eddie.

 

— O filho — disse Mike com simplicidade. — A espinha dele tinha sido quebrada e o crânio fraturado. A porta de vidro do box estava quebrada. Havia sangue pra todo lado. A mãe está no Instituto de Saúde Mental de Bangor agora. Minha... minha fonte no departamento de polícia diz que ela perdeu a sanidade.

 

— Não é surpresa, porra — disse Richie, com voz rouca. — Quem tem um cigarro?

 

Beverly deu um a ele. Rich o acendeu com mãos que tremiam muito.

 

— A linha da polícia é que o assassino entrou pela porta da frente enquanto a mãe do garoto Cowan estava pendurando as roupas no quintal. Quando ela subiu correndo escada acima, ele supostamente pulou da janela do banheiro no quintal do qual ela tinha acabado de sair e escapou sem ser visto. Mas a janela é uma daquelas bem pequenas. Um garoto de 7 anos teria que se espremer pra passar. E a queda era de 7,5 metros em um pátio de pedras. Rademacher não gosta de falar sobre essas coisas, e ninguém na imprensa, e certamente ninguém no News fez pressão pra saber mais sobre o assunto.

 

Mike tomou um gole de água e passou outra foto de mão em mão. Não era uma foto da polícia; era outra foto escolar. Mostrava um garoto sorridente de uns 13 anos. Ele estava com suas melhores roupas para a foto da escola e as mãos estavam limpas e cruzadas no colo... mas havia um brilho malicioso nos olhos dele. Ele era negro.

 

— Jeffrey Holly — disse Mike. — Dia 13 de maio. Uma semana depois da morte do menino Cowan. Foi todo aberto. Encontrado no Parque Bassey, perto do canal.

 

“Nove dias depois, no dia 22 de maio, um garoto do quinto ano chamado John Feury foi encontrado morto na rua Neibolt...

 

Eddie deu um grito agudo e trêmulo. Pegou o aspirador e o derrubou no chão. Ele rolou até Bill, que se abaixou e pegou. O rosto de Eddie tinha ficado de um tom amarelo doentio. Sua respiração apitava friamente na garganta.

 

— Arrumem uma coisa pra ele beber! — rugiu Ben. — Arrumem alguma...

 

Mas Eddie estava balançando a cabeça. Ele disparou o aspirador na garganta. O peito subiu e desceu enquanto ele absorvia uma lufada de ar. Ele disparou o aspirador de novo e se recostou, com olhos entrefechados e ofegante.

 

— Vou ficar bem — disse ele, com dificuldade. — Me deem um minuto, estou com vocês.

 

— Eddie, tem certeza? — perguntou Beverly. — Talvez você devesse se deitar...

 

— Vou ficar bem — repetiu ele com mau humor. — Foi só... o choque. Isso. O choque. Eu tinha esquecido a rua Neibolt.

 

Ninguém respondeu; não era preciso. Bill pensou: Você acredita que chegou ao limite da sua capacidade, e então Mike fornece outro nome, e outro, como um mágico negro com um chapéu cheio de truques malignos, e você cai sentado no chão de novo.

 

Era coisa demais para encarar toda de uma vez, esse despejo de violência inexplicável, de alguma forma direcionada às seis pessoas ali presentes. Ou ao menos era o que a fotografia de George parecia sugerir.

 

— As duas pernas de John Feury tinham sumido — continuou Mike baixinho —, mas o legista diz que foram arrancadas depois que ele morreu. O coração dele falhou. Ele parece ter literalmente morrido de medo. Foi encontrado pelo carteiro, que viu uma mão saindo de debaixo da varanda...

 

— Foi no número 29, não foi? — disse Rich, e Bill olhou para ele rapidamente. Rich devolveu o olhar, assentiu de leve e olhou para Mike. — No número 29 da rua Neibolt.

 

— Ah, foi — disse Mike com aquela voz calma. — Foi no número 29. — Ele tomou mais água. — Você está bem mesmo, Eddie?

 

Eddie assentiu. A respiração estava menos ruidosa.

 

— Rademacher fez uma prisão no dia depois da descoberta do corpo de Feury — disse Mike. — Houve um editorial de primeira página no News no mesmo dia exigindo a renúncia dele, aliás.

 

— Depois de oito assassinatos? — disse Ben. — Radicalismo deles, você não acha?

 

Beverly quis saber quem foi preso.

 

— Um cara que mora em uma cabana na autoestrada 7, quase no limite com Newport — disse Mike. — Meio eremita. Queima restos de madeira no fogão, fez o telhado com telhas e calotas que achou por aí. O nome é Harold Earl. Não deve ver nem a cor de 200 dólares em dinheiro ao longo de um ano inteiro. Alguém passando de carro o viu de pé na porta de casa, olhando para o céu, no dia em que o corpo de John Feury foi descoberto. As roupas dele estavam cobertas de sangue.

 

— Então talvez... — começou Rich com esperanças.

 

— Ele estava com três cervos mortos na cabana — disse Mike. — Tinha ido caçar em Haven. O sangue nas roupas era de cervo. Rademacher perguntou se ele matou John Feury, e dizem que Earl falou: “Ah, aham, matei um monte de gente. Atirei na maioria durante a guerra.” Ele também disse que tinha visto coisas na floresta à noite. Luzes azuis às vezes, flutuando a centímetros do chão. Luzes de cadáver foi como ele chamou. E o Pé Grande.

 

“Mandaram ele pro Instituto de Saúde Mental de Bangor. De acordo com o relatório médico, o fígado dele quase não existe mais. Ele andou bebendo solvente de tintas...”

 

— Ah, meu Deus — disse Beverly.

 

— ... e tem tendências a alucinações. Estão mantendo ele lá, e até três dias atrás Rademacher estava insistindo na ideia de que Earl era o suspeito mais provável. Ele mandou oito caras cavarem ao redor da cabana dele em busca das cabeças desaparecidas, de abajures feitos de pele humana e Deus sabe mais o quê.

 

Mike fez uma pausa com a cabeça baixa e prosseguiu. Sua voz estava ligeiramente rouca agora.

 

— Eu adiei e adiei. Mas quando vi esse último, fiz as ligações. Queria muito ter feito antes.

 

— Vamos ver — disse Ben abruptamente.

 

— A vítima foi outro aluno do quinto ano — disse Mike. — Colega do menino Feury. Foi encontrado ao lado da rua Kansas, perto de onde Bill escondia a bicicleta quando íamos pro Barrens. O nome dele era Jerry Bellwood. Ele foi destroçado. O que... sobrou dele foi encontrado no pé de um muro de cimento de contenção que foi construído ao longo da maior parte da rua Kansas uns vinte anos atrás pra deter a erosão do solo. Esta foto da polícia da parte do muro onde Bellwood foi encontrado foi tirada menos de meia hora depois da remoção do corpo. Aqui.

 

Ele passou a foto para Rich Tozier, que olhou e passou para Beverly. Ela olhou rapidamente, fez uma careta e entregou para Eddie, que olhou por bastante tempo antes de dar para Ben. Ben passou a foto para Bill com uma olhada rápida.

 

Havia algo escrito no muro de concreto.

 

 

Bill olhou para Mike com expressão sombria. Estava perplexo e assustado; agora sentia o primeiro despertar da raiva. Ele ficou feliz. Raiva não era uma coisa muito boa de se sentir, mas era melhor do que o choque, melhor do que o medo infeliz.

 

— Está escrito com o que eu acho que está?

 

— Está — disse Mike. — Com o sangue de Jerry Bellwood.

 

Richie é bipado

 

Mike pegou as fotos de volta. Ele achava que Bill talvez pedisse a última foto escolar de George, mas ele não pediu. Mike colocou-as de volta no bolso da jaqueta e, quando não estavam mais visíveis, todos eles, inclusive ele próprio, tiveram uma sensação de alívio.

 

— Nove crianças — disse Beverly baixinho. — Não consigo acreditar. Quero dizer... consigo acreditar, mas não consigo acreditar. Nove crianças e nada? Absolutamente nada?

 

— Não é bem assim — disse Mike. — As pessoas estão com raiva, estão com medo... ou é o que parece. É impossível saber quem se sente assim de verdade e quem está fingindo.

 

— Fingindo?

 

— Beverly, você se lembra, quando éramos crianças, do homem que dobrou o jornal e entrou em casa enquanto você gritava pedindo ajuda pra ele?

 

Por um momento, uma coisa pareceu pular nos olhos dela, e ela se mostrou ao mesmo tempo apavorada e ciente. Em seguida, só se revelou intrigada.

 

— Não... quando foi isso Mike?

 

— Deixa pra lá. Vai voltar com o tempo. Tudo que posso dizer agora é que tudo está como deveria em Derry. Por conta dessa onda pavorosa de assassinatos, as pessoas estão fazendo todas as coisas que você esperaria que fizessem, e muitas são as mesmas que aconteceram quando crianças estavam desaparecendo e sendo assassinadas em 1958. O Comitê Salvem Nossas Crianças está se reunindo de novo, só que desta vez na Derry Elementary School em vez de na Derry High. Há 16 detetives da Procuradoria do Estado na cidade, além de um contingente de agentes do FBI. Não sei quantos, e embora Rademacher encha a boca pra falar, acho que ele também não sabe. O toque de recolher voltou...

 

— Ah, sim. O toque de recolher. — Ben estava esfregando a lateral do pescoço lentamente. — Funcionou maravilhas em 1958. Me lembro bem disso.

 

— ... e há Grupos de Mães Andarilhas que cuidam pra que todas as crianças em idade escolar, desde as menores até as de 8 anos, tenham companhia até chegarem em casa. O News recebeu mais de duas mil cartas exigindo soluções só nas três últimas semanas. E, é claro, a debandada recomeçou. Às vezes eu penso que é a única maneira de saber de verdade quem é sincero sobre querer o fim dos assassinatos e quem não é. As pessoas sinceras mesmo ficam com medo e vão embora.

 

— As pessoas estão mesmo indo embora? — perguntou Richie.

 

— Acontece todas as vezes em que o ciclo se reinicia. É impossível saber quantas pessoas vão embora porque o ciclo não cai em ano de recenseamento desde 1850. Mas é um número razoável. As pessoas saem correndo como crianças que acabaram de descobrir que a casa era mesmo assombrada, afinal.

 

— Vem pra casa, vem pra casa, vem pra casa — disse Beverly baixinho. Quando ela levantou o rosto, foi para Bill que olhou, não Mike. — A Coisa queria que a gente voltasse. Por quê?

 

— Ela pode querer todos nós de volta — disse Mike de forma um tanto enigmática. — Claro. É possível. Pode querer vingança. Afinal, nós detivemos ela uma vez.

 

— Vingança... ou colocar as coisas em ordem — disse Bill.

 

Mike assentiu.

 

— As coisas estão fora de ordem nas vidas de vocês também, sabe? Nenhum de vocês saiu de Derry ileso... sem que a Coisa deixasse marcas. Todos esqueceram o que aconteceu aqui, e suas lembranças daquele verão ainda são fragmentos. E há o fato curioso de que todos são ricos.

 

— Ah, para com isso! — disse Richie. — Isso não é...

 

— Calma, calma — disse Mike, levantando as mãos e sorrindo de leve. — Não estou acusando vocês de nada, só tentando colocar os fatos na mesa. Vocês são ricos pelos padrões de um bibliotecário de cidade pequena que ganha 11 mil dólares por ano descontados os impostos, tá?

 

Rich balançou os ombros do terno caro com desconforto. Ben pareceu profundamente absorto em rasgar tiras finas do guardanapo. Ninguém estava olhando diretamente para Mike, exceto Bill.

 

— Nenhum de vocês está na mesma categoria de H. L. Hunt, sem dúvida — disse Mike —, mas todos estão bem de vida até para os padrões da classe média alta americana. Somos todos amigos aqui, então podem confessar: se algum de vocês declarou menos de 90 mil dólares no imposto de renda de 1984, levante a mão.

 

Eles olharam uns para os outros quase furtivamente, constrangidos como os americanos sempre parecem ficar pelo simples fato do sucesso obtido, como se dinheiro fosse ovos cozidos e a prosperidade fosse os peidos que inevitavelmente seguem uma overdose deles. Bill sentiu as bochechas quentes e não conseguiu impedir o sangue de subir e deixar seu rosto vermelho. Ele recebeu 10 mil a mais do que o valor que Mike mencionou só por concluir a primeira versão do roteiro de Sótão. Mais 20 mil dólares foram prometidos para cada uma das duas vezes que ele reescrevesse, se fosse necessário. Havia também os direitos autorais... e o volumoso adiantamento de um contrato para dois livros que ele tinha acabado de assinar... Quanto ele declarou no imposto de renda de 1984, afinal? Uns 800 mil dólares, não? O bastante, pelo menos, para parecer quase monstruoso à luz da renda de Mike Hanlon de 11 mil dólares por ano.

 

Então é isso que te pagam pra cuidar do farol, Mike, garotão, pensou Bill. Meu Deus, você deveria ter pedido aumento em algum momento!

 

Mike disse:

 

— Bill Denbrough, romancista de sucesso em uma sociedade com poucos e menos ainda com sorte de ganhar a vida com a arte. Beverly Rogan, que está no ramo de roupas, um campo para o qual muitos são chamados, mas poucos são escolhidos. Na verdade, ela é a estilista mais procurada da área central do país no momento.

 

— Ah, não sou eu — disse Beverly. Ela deu uma risadinha nervosa e acendeu um cigarro com a guimba do anterior. — É Tom. Tom é o cara. Sem ele, eu ainda estaria forrando saias e costurando bainhas. Não tenho o menor tino pra negócios, até Tom diz isso. É só... vocês sabem, Tom. E sorte. — Ela deu uma tragada no cigarro e soprou a fumaça.

 

— Tô achando que a sinhá tá reclamando muito — disse Richie com malícia.

 

Ela se virou rapidamente na cadeira e lançou-lhe um olhar duro, com as bochechas bem vermelhas.

 

— O que isso quer dizer, Richie Tozier?

 

— Num bate em mim, sinhá Scarlett! — gritou Richie com a voz alta, aguda e caricatural de Garoto Negro. Naquele momento, Bill conseguiu ver com clareza sinistra o garoto que conhecera; ele não era apenas uma presença existente sob o exterior adulto de Rich Tozier, mas uma criatura quase mais real do que o próprio homem. — Num bate! Vô pegá outro coquetel de hortelã, sinhá Scarlett! A sinhá pode bebê na varanda quando refrescá! Num bate nesse minino aqui!

 

— Você é impossível, Richie — disse Beverly friamente. — Está na hora de crescer.

 

Richie olhou para ela com o sorriso se transformando lentamente em incerteza.

 

— Até eu voltar pra cá — disse ele —, eu achei que já tinha crescido.

 

— Rich, você talvez seja o disc-jóquei mais bem-sucedido dos Estados Unidos — disse Mike. — Não há dúvida de que tem Los Angeles na palma da mão. Além disso, há dois programas derivados, um com a lista de quarenta músicas mais tocadas, o outro uma coisa chamada Os Quarenta Estranhos...

 

— É melhor tomar cuidado, seu tolo — disse Richie com uma voz rouca do sr. T, mas estava vermelho. — Vou trocar suas costas de lugar com a parte da frente do seu corpo. Vou fazer cirurgia no seu cérebro com o punho. Vou...

 

— Eddie — prosseguiu Mike, ignorando Richie —, você tem um próspero serviço de limusines em uma cidade em que se esbarra com um carro preto e comprido a cada esquina. Duas empresas de limusine por semana decretam falência na Big Apple, mas você está indo bem.

 

“Ben, você deve ser o jovem arquiteto mais bem-sucedido no mundo.”

 

Ben abriu a boca, provavelmente para protestar, mas fechou-a de repente.

 

Mike sorriu para eles e abriu as mãos.

 

— Não quero constranger ninguém, mas quero todas as cartas na mesa. Há pessoas que chegam ao sucesso quando ainda estão jovens e há pessoas que alcançam o sucesso em profissões altamente especializadas. Se não houvesse pessoas que contrariassem o padrão de forma positiva, acho que todo mundo desistiria. Se fosse apenas um ou dois de vocês, poderíamos ver como coincidência. Mas não é apenas um ou dois. São todos vocês, e isso inclui Stan Uris, que foi o jovem contador mais bem-sucedido de Atlanta... o que quer dizer de todo o sul. Minha conclusão é de que o sucesso de vocês deriva do que aconteceu aqui 27 anos atrás. Se vocês tivessem sido expostos a amianto naquela época e tivessem desenvolvido câncer de pulmão, a correlação não seria menos clara e persuasiva. Alguém vai discordar?

 

Ele olhou para os amigos. Ninguém respondeu.

 

— Todos menos você — disse Bill. — O que aconteceu com você, Mikey?

 

— Não é óbvio? — Ele sorriu. — Eu fiquei aqui.

 

— Você cuidou do farol — disse Ben. Bill se virou e olhou para ele assustado, mas Ben estava olhando fixamente para Mike e não viu. — Isso não me faz sentir bem, Mike. Na verdade, me faz sentir um cocozão.

 

— Amém — disse Beverly.

 

Mike balançou a cabeça com paciência.

 

— Vocês não precisam sentir culpa de nada, nenhum de vocês. Vocês acham que foi minha escolha ficar aqui e que foi escolha de vocês irem embora? Caramba, nós éramos crianças. Por um motivo ou outro, seus pais se mudaram, e vocês eram parte da bagagem que eles levaram. Meus pais ficaram. E será que foi mesmo decisão deles, de qualquer um deles? Eu acho que não. Como foi decidido quem iria e quem ficaria? Por sorte? Destino? Pela Coisa? Alguma Outra Coisa? Não sei. Mas não fomos nós. Então parem.

 

— Você não... tem ressentimentos? — perguntou Eddie timidamente.

 

— Ando ocupado demais pra ter ressentimentos — disse Mike. — Passei muito tempo observando e esperando... Eu já estava esperando e observando antes mesmo de saber, eu acho, mas nos últimos cinco anos entrei no que vocês podem chamar de alerta vermelho. Na virada do ano, comecei a escrever em um diário. E quando um homem escreve, ele pensa melhor... ou talvez apenas mais especificamente. E uma das coisas sobre a qual passei um tempo escrevendo e refletindo é a natura da Coisa. A Coisa muda; nós sabemos disso. Acho que a Coisa também manipula e deixa sua marca nas pessoas pela mera natureza do que é, da mesma forma que dá pra sentir o cheiro de um gambá no corpo mesmo depois de um longo banho se ele soltar o fedor muito perto da gente. Da mesma forma como o gafanhoto cospe fluidos na sua mão se você segurar um.

 

Mike desabotoou a camisa lentamente e abriu bem. Todos conseguiam ver as marcas rosadas de cicatriz na pele lisa e marrom do peito entre os mamilos.

 

— Da mesma forma que garras deixam marcas — disse ele.

 

— O lobisomem — disse Richie, quase gemendo. — Ah, Deus. Big Bill, o lobisomem! Quando voltamos à rua Neibolt!

 

— O quê? — perguntou Bill. Ele pareceu um homem arrancado de um sonho. — O que, Richie?

 

— Você não lembra?

 

— Não... você?

 

— Eu... eu quase lembro... — Parecendo confuso e com medo, Richie parou de falar.

 

— Você está dizendo que essa coisa não é má? — perguntou Eddie abruptamente para Mike. Ele estava olhando hipnotizado para as cicatrizes. — Que é apenas parte da... da ordem natural?

 

— Não é parte de uma ordem natural que nós entendemos ou toleramos — disse Mike, reabotoando a camisa —, e não vejo motivo pra operar a partir de qualquer base diferente da que entendemos: que a Coisa mata, mata crianças, e isso é errado. Bill entendeu antes de qualquer um de nós. Você lembra, Bill?

 

— Lembro que queria matar a Coisa — disse Bill, e pela primeira vez (e sempre depois disso), ele ouviu o substantivo comum ganhar status de nome próprio em sua voz. — Mas eu não tinha uma visão ampla do assunto, se é que você me entende. Eu só queria matar a Coisa porque a Coisa matou George.

 

— E ainda quer matar?

 

Bill refletiu com cautela. Olhou para as mãos abertas sobre a mesa e se lembrou de George de capa amarela, com o capuz sobre a cabeça, o barco de papel com a camada fina e brilhosa de parafina na mão. Ele olhou para Mike.

 

— M-M-Mais do que nunca — disse ele.

 

Mike assentiu como se fosse exatamente o que ele esperava.

 

— A Coisa deixou suas marcas em nós. Impôs sua vontade em nós, assim como fez o mesmo com toda a cidade, dia após dia, mesmo durante os longos períodos em que dorme, hiberna ou seja lá o que a Coisa faz nos intervalos... dos períodos mais movimentados.

 

Mike levantou um dedo.

 

— Mas se ela impôs a vontade a nós, em algum ponto, de alguma forma, nós também impusemos nossa vontade a ela. Nós impedimos a Coisa antes que ela terminasse. Sei que impedimos. Será que enfraquecemos ela? Machucamos? Será que, na verdade, quase matamos a Coisa? Acho que sim. Acho que chegamos tão perto de matar a Coisa que fomos embora achando que tínhamos conseguido.

 

— Mas você também não se lembra dessa parte, lembra? — perguntou Ben.

 

— Não. Consigo me lembrar de tudo até o dia 15 de agosto de 1958 quase perfeitamente. Mas daí até o dia 4 de setembro, mais ou menos, quando as aulas voltaram, tudo é um vazio total. Não está enevoado nem obscuro; simplesmente desapareceu. Com uma exceção: eu me lembro de Bill gritando sobre alguma coisa chamada de postigos.

 

O braço de Bill tremeu de forma convulsiva. Bateu em uma das garrafas vazias de cerveja, que se estraçalhou no chão como uma bomba.

 

— Você se cortou? — perguntou Beverly. Ela estava começando a se levantar.

 

— Não — disse ele. Sua voz estava seca e áspera. Os braços estavam arrepiados. Pareceu que seu crânio tinha crescido; ele conseguia senti-lo

 

(os postigos)

 

empurrando a pele esticada do rosto em latejos firmes e entorpecedores.

 

— Vou pegar a...

 

— Não, fica sentada. — Ele queria olhar para ela, mas não conseguia. Não conseguia tirar os olhos de Mike.

 

— Você se lembra dos postigos, Bill? — perguntou Mike baixinho.

 

— Não — disse ele. A sensação que ele tinha na boca era parecida com quando o dentista se empolgava demais com a xilocaína.

 

— Vai lembrar.

 

— Por Deus, espero que não.

 

— Vai acabar lembrando — disse Mike. — Mas por enquanto... não. Nem eu. Alguém lembra?

 

Um a um, eles balançaram as cabeças.

 

— Mas fizemos alguma coisa — disse Mike baixinho. — Em algum momento, conseguimos usar alguma espécie de vontade coletiva. Em algum momento, atingimos uma compreensão especial, fosse consciente ou inconsciente. — Ele se mexeu com desconforto. — Deus, eu queria que Stan estivesse aqui. Tenho a sensação de que Stan, com a mente organizada, poderia ter alguma ideia.

 

— Pode ser que ele tenha tido — disse Beverly. — Pode ser por isso que se matou. Pode ser que ele tenha entendido que, se houvesse magia, ela não funcionaria com adultos.

 

— Mas acho que poderia funcionar — disse Mike. — Porque tem uma coisa que nós seis temos em comum. Me pergunto se algum de vocês se deu conta do que é.

 

Foi a vez de Bill de abrir a boca e voltar a fechar.

 

— Vá em frente — disse Mike. — Você sabe o que é. Consigo ver no seu rosto.

 

— Não sei bem se sei — respondeu Bill —, mas acho que nenhum de nós tem filhos. É i-isso?

 

Houve um momento de silêncio chocado.

 

— É — disse Mike. — É isso.

 

— Meu Deus do céu! — Eddie falou com indignação. — Que diabos isso tem a ver com o preço do feijão no Peru? O que deu a vocês a ideia de que todo mundo no mundo tem que ter filhos? Isso é loucura!

 

— Você e sua esposa têm filhos? — perguntou Mike.

 

— Se você está acompanhando todos nós como disse, sabe muito bem que não temos. Mas ainda não quer dizer absolutamente nada.

 

— Vocês tentaram ter filhos?

 

— Não usamos métodos contraceptivos, se é o que você quer dizer. — Eddie falou com uma estranha dignidade comovente, mas suas bochechas estavam vermelhas. — Acontece que minha esposa é meio... Ah, porra. Ela é muito gorda. Fomos a uma médica, que disse que minha esposa talvez nunca tivesse filhos se não perdesse peso. Isso faz de nós criminosos?

 

— Calma aí, Eds — disse Richie com voz tranquilizadora, e se inclinou na direção dele.

 

— Não me chame de Eds e não ouse beliscar minha bochecha! — gritou ele, virando-se para Richie. — Você sabe que odeio isso! Sempre odiei!

 

Richie recuou, olhando com surpresa.

 

— Beverly? — perguntou Mike. — E você e Tom?

 

— Sem filhos — disse ela. — E também sem métodos contraceptivos. Tom quer filhos... e eu também, claro — acrescentou ela de forma apressada, olhando para eles. Bill pensou que os olhos dela pareciam brilhantes demais, quase os olhos de uma atriz desempenhando muito bem seu papel. — Apenas não aconteceu ainda.

 

— Vocês fizeram exames? — perguntou Ben a ela.

 

— Ah, sim, claro — disse ela, e deu uma risadinha quase sufocada.

 

E em um daqueles estalos de compreensão que às vezes ocorrem a pessoas abençoadas tanto com curiosidade quanto com compreensão, Bill de repente entendeu muito sobre Beverly e o marido Tom, também conhecido como o Melhor Homem do Mundo. Beverly foi fazer exames de fertilidade. Seu palpite era de que o Melhor Homem do Mundo se recusou a sequer pensar na ideia de que poderia haver alguma coisa errada com o esperma sendo produzido nos Sacos Sagrados.

 

— E você e sua esposa, Big Bill? — perguntou Richie. — Estão tentando?

 

Todos olharam para ele com curiosidade... porque sua esposa era uma pessoa que eles conheciam. Audra não era nem de perto a atriz mais conhecida e mais amada do mundo, mas era parte do seleto grupo de celebridades que usava o talento como meio de troca na segunda metade do século XX. Saiu uma foto dela na revista People quando ela cortou o cabelo curto e, durante uma época particularmente entediante em Nova York (a peça que ela planejava fazer no circuito Off Broadway foi cancelada), ela fez uma participação de uma semana em Hollywood Squares, com objeções veementes de seu empresário. Ela era uma estranha cujo adorável rosto era conhecido deles. Ele achou que Beverly pareceu particularmente curiosa.

 

— Estamos tentando nos últimos seis anos — disse Bill. — Paramos há oito meses por causa do filme que estamos fazendo. Chama-se Sótão.

 

— Temos um programinha de entretenimento todos os dias das 17h15 às 17h30 — disse Richie. — O nome é Vendo Estrelas. Fizeram uma matéria sobre esse filme aí na semana passada. No estilo Marido e Mulher Trabalhando Juntos Felizes para Sempre. Disseram o nome de vocês dois, mas nunca fiz a ligação. Engraçado, né?

 

— Muito — disse Bill. — Pois então, Audra disse que teríamos a maior sorte se ela ficasse grávida durante a pré-produção e ela tivesse que atuar exaustivamente por 10 semanas com enjoos matinais ao mesmo tempo. Mas queremos filhos, sim. E tentamos bastante.

 

— Fizeram exames de fertilidade? — perguntou Ben.

 

— Aham. Quatro anos atrás, em Nova York. Os médicos descobriram um pequeno tumor benigno no útero de Audra e disseram que foi sorte, porque, apesar de não impedi-la de engravidar, poderia ter provocado gravidez tubária. Mas ela e eu somos férteis.

 

Eddie repetiu com teimosia:

 

— Ainda não prova nada.

 

— Mas é sugestivo — murmurou Ben.

 

— Nenhum pequeno acidente com você, Ben? — perguntou Bill. Ele ficou chocado e ao mesmo tempo achou engraçado o fato de que sua boca quase falou Ben Monte de Feno.

 

— Não me casei, sempre tomei cuidado e não houve nenhum processo de paternidade — disse Ben. — Fora isso, acho que não tenho como saber de verdade.

 

— Querem ouvir uma história engraçada? — perguntou Richie. Ele estava sorrindo, mas não havia sorriso em seus olhos.

 

— Claro — disse Bill. — Você sempre foi bom com as coisas engraçadas, Richie.

 

— Sua cara e minha bunda, camarada — disse Richie com a voz do Policial Irlandês. Foi uma excelente Voz de Policial Irlandês. Você melhorou demais, Richie, pensou Bill. Quando criança, você não conseguia fazer um Policial Irlandês por mais que se esforçasse. Exceto uma vez... ou duas... quando

 

(os postigos)

 

foi?

 

— Sua cara e minha bunda. É bom se lembrar da comparação, meu querido camarada.

 

Ben Hanscom de repente tapou o nariz e gritou em uma voz trêmula de garoto:

 

— Bip-bip, Richie! Bip-bip! Bip-bip!

 

Depois de um momento, Eddie, rindo, tapou o nariz e se juntou a ele. Beverly fez o mesmo.

 

— Tudo bem! Tudo bem! — gritou Richie, também rindo. — Tudo bem, eu desisto! Pelamor de Deus!

 

— Ah, cara — disse Eddie. Ele se encostou na cadeira rindo tanto que estava quase chorando. — Te pegamos desta vez, Boca de Lixo. Isso aí, Ben.

 

Ben estava sorrindo, mas parecia meio perplexo.

 

— Bip-bip — disse Bev, e riu. — Eu tinha me esquecido disso. A gente sempre bipava você, Richie.

 

— Vocês nunca apreciaram um verdadeiro talento, só isso — disse Richie confortavelmente. Como antigamente, dava para tirar o equilíbrio dele, mas ele era como um daqueles bonecos joões-bobos infláveis com areia na base: voltava a ficar de pé quase imediatamente. — Essa foi uma das suas pequenas contribuições pro Clube dos Otários, não foi, Monte de Feno?

 

— É, acho que foi.

 

— Que homem! — disse Richie com voz trêmula e impressionada, e começou a fazer salamaleques por cima da mesa, quase enfiando o nariz na xícara de chá cada vez que se inclinava. — Que homem! Ah, caramba, que homem!

 

— Bip-bip, Richie — disse Ben solenemente, e explodiu em gargalhadas em um tom barítono intenso completamente diferente da voz falhada da infância. — Você é o mesmo papa-léguas de sempre.

 

— Vocês querem ouvir essa história ou não? — perguntou Richie. — Não é nada de mais. Podem bipar se quiserem. Eu aguento. Vocês estão olhando pra um cara que já entrevistou o Ozzy Osbourne.

 

— Conta — disse Bill.

 

Ele olhou para Mike e viu que ele parecia mais feliz, ou pelo menos mais descansado, desde que o almoço começou. Seria por ter visto a reunião quase inconsciente que estava acontecendo, o tipo de volta tranquila aos velhos papéis que quase nunca acontecia quando velhos amigos se reencontravam? Bill achava que sim. E pensou: Se existirem certas precondições para a crença na magia que tornam possíveis o uso da magia, então talvez essas precondições inevitavelmente se ajeitem. Não era um pensamento muito reconfortante. Fez com que ele se sentisse como um homem preso na ogiva de um míssil guiado.

 

Bip-bip mesmo.

 

— Bem — disse Richie —, eu poderia tornar essa história longa e triste ou poderia dar a versão em quadrinhos no estilo Blondie e Dagoberto, mas vou escolher o meio-termo. Um ano depois que me mudei pra Califórnia, conheci uma garota e nos apaixonamos. Fomos morar juntos. Ela tomava pílula no começo, mas acabava ficando enjoada quase o tempo todo. Ela falou em colocar um DIU, mas eu não me animei muito. As primeiras histórias de que a proteção não era completa estavam começando a aparecer nos jornais.

 

“A gente tinha conversado muito sobre filhos e decidido que não queria, mesmo se oficializasse o relacionamento. Era irresponsável botar filhos em um mundo tão ruim, perigoso, cheio de gente... e blá-blá-blá, mi-mi-mi, vamos sair e colocar uma bomba no banheiro masculino do Bank of America, voltar pra cama, fumar maconha e falar sobre as diferenças entre o maoismo e o trotskismo, se é que vocês me entendem.

 

“Pode ser que eu esteja sendo duro demais comigo mesmo e com ela. Merda, éramos idealistas jovens e irresponsáveis. A consequência foi que mandei cortar a fiação, como diz o pessoal de Beverly Hills com o irremediável jeito vulgar chique. A cirurgia ocorreu sem problemas e não sofri efeitos colaterais. Pode acontecer, sabe? Tive um amigo cujas bolas incharam até ficarem do tamanho dos pneus de um Cadillac 1959. Eu ia dar pra ele um suspensório e uns barris de aniversário, coisa chique de estilista mesmo, mas murcharam antes disso.”

 

— Tudo dito com o tato e a dignidade de sempre — comentou Bill, e Beverly começou a gargalhar de novo.

 

Richie deu um sorriso largo e sincero.

 

— Obrigado, Bill, pelas palavras de apoio. A palavra “porra” foi usada 206 vezes no seu último livro. Eu contei.

 

— Bip-bip, Boca de Lixo — disse Bill solenemente, e todos riram. Bill achava quase impossível acreditar que eles estavam falando sobre crianças mortas menos de dez minutos antes.

 

— Segue em frente, Richie — disse Ben. — Está ficando tarde.

 

— Sandy e eu moramos juntos durante dois anos e meio — prosseguiu Richie. — Chegamos bem perto de nos casarmos duas vezes. No fim das contas, acho que evitamos muito sofrimento e toda aquela merda de construção de comunidade ao manter o relacionamento simples. Ela recebeu uma proposta de entrar de sócia em uma firma de advocacia em Washington na mesma época em que recebi a proposta de ir para a KLAD como DJ de fim de semana. Não era muito, mas era botar o pé na porta de entrada. Ela me disse que era sua grande oportunidade e que eu devia ser o porco chauvinista mais insensível dos Estados Unidos por bater o pé, e além do mais ela estava de saco cheio da Califórnia. Falei pra ela que também tinha uma oportunidade. Falamos mal das propostas, falamos mal um do outro, e no fim de tanto falar mal, Sandy foi embora.

 

“Um ano depois disso, decidi tentar reverter a vasectomia. Não tinha nenhum motivo específico para isso, e sabia pelo que tinha lido que as chances eram poucas, mas pensei em tentar mesmo assim.”

 

— Você estava namorando alguém na época? — perguntou Bill.

 

— Não. Essa é a parte curiosa — disse Richie, franzindo a testa. — Só acordei um dia com um... sei lá, um desejo de mandar reverter.

 

— Você devia estar louco — disse Eddie. — Anestesia geral em vez de local? Cirurgia? Talvez uma semana no hospital depois?

 

— É, o médico me disse tudo isso — respondeu Richie. — E falei pra ele que queria fazer mesmo assim. Não sei por quê. O médico me perguntou se eu entendia que o pós-operatório seria doloroso e que o resultado era uma mera questão de sorte. Eu disse que sim. Ele concordou, e perguntei quando. Minha ideia era quanto antes, melhor. Então ele diz segura a onda, filho, segura a onda, o primeiro passo é fazer uma análise do seu esperma pra ver se a operação é mesmo necessária. Eu disse: “Pare com isso, fiz o exame depois da vasectomia. Ela deu certo.” Ele me disse que às vezes os vasos se reconectavam espontaneamente. “Caramba!”, eu digo. “Ninguém nunca me contou isso.” Ele disse que as chances eram poucas, infinitesimais, até, mas como a operação era muito séria, ele precisava verificar. Assim, fui pro banheiro masculino com um catálogo de lingerie da Frederick’s of Hollywood e gozei em um copinho...

 

— Bip-bip, Richie — disse Beverly.

 

— É, você está certa — disse Richie. — A parte sobre o catálogo é mentira. Nunca tem nada de bom em um consultório médico. Enfim, o médico me chamou três dias depois e perguntou o que eu queria primeiro, a boa ou a má notícia.

 

“‘Me dá a boa notícia primeiro’, eu disse.

 

“‘A boa notícia é que a cirurgia não vai ser necessária’, disse ele. ‘A má notícia é que qualquer pessoa com quem você tenha ido pra cama nos últimos dois ou três anos pode aparecer com um processo de paternidade a qualquer momento.’

 

“‘Você está dizendo o que acho que está dizendo?’, eu perguntei.

 

“‘Estou dizendo que seus disparos estão vindo carregados já tem um tempo’, disse ele. ‘Tem milhões de coisinhas se remexendo na sua amostra de esperma. Seus dias de se divertir sem proteção e sem perguntar nada estão temporariamente cancelados, Richard.’

 

“Eu agradeci e desliguei. Depois, liguei pra Sandy em Washington.

 

“‘Rich’, diz ela.” A voz de Richie de repente virou a dessa garota Sandy, que ninguém ali conhecia. Não era uma imitação nem uma voz parecida, não exatamente. Era mais uma pintura auditiva. “‘Que bom ter notícias suas! Eu me casei!’

 

“‘É, que ótimo’, eu disse. ‘Você devia ter me avisado. Eu teria mandado um liquidificador de presente.’

 

“Ela diz: ‘O mesmo Richie de sempre, cheio de piadinhas.’

 

“E eu disse: ‘Claro, o mesmo Richie de sempre, cheio de piadinhas. Aliás, Sandy, você por acaso não teve um filho depois que foi embora de Los Angeles, né? Ou um aborto espontâneo?’

 

“‘Não é engraçado, Rich’, disse ela, e tive a sensação de que ela estava prestes a desligar na minha cara. Então, contei o que aconteceu. Ela começou a gargalhar, mas desta vez com muita vontade. Estava rindo da forma como eu ria com vocês, como se alguém tivesse contado a maior piada do mundo. Quando ela começa a diminuir o ritmo, eu pergunto o que é tão engraçado. ‘É que é tão maravilhoso’, disse ela. ‘Desta vez, a vítima da piada é você. Depois de tantos anos, a piada finalmente é sobre Discos Tozier. Quantos filhos bastardos você teve desde que vim pro leste, Rich?’

 

“‘Posso concluir que isso quer dizer que você ainda não vivenciou as alegrias da maternidade?’, eu pergunto.

 

“‘Vai nascer em julho’, diz ela. ‘Mais alguma pergunta?’

 

“‘Sim’, eu digo. ‘Quando você mudou de ideia sobre a imoralidade de botar filhos em um mundo tão horrível?’

 

“‘Quando finalmente conheci um homem que não era horrível’, responde ela, e desliga.”

 

Bill começou a rir. Riu até lágrimas rolarem pelas bochechas.

 

— É — disse Richie. — Acho que ela desligou rápido pra poder ter a última palavra, mas ela poderia ter ficado na linha o dia inteiro que teria sido igual. Sei quando fui vencido. Voltei ao médico uma semana depois e perguntei se ele podia ser um pouco mais claro quanto às chances de esse tipo de regeneração espontânea acontecer. Ele disse que tinha conversado com alguns colegas sobre o assunto. Acontece que, no período de três anos entre 1980 e 1982, a filial da Califórnia da Associação Americana de Médicos registrou 23 relatos de regeneração espontânea. Seis foram cirurgias malfeitas. Outros seis foram mentira, caras tentando arrancar uma indenização do médico. Então... 11 casos de verdade em três anos.

 

— Onze dentre quantos? — perguntou Beverly.

 

— Vinte e oito mil, seiscentos e dezoito — disse Richie calmamente.

 

Silêncio ao redor da mesa.

 

— Ganhei a loteria holandesa — disse Richie —, mas ainda não tenho filho pra provar. Isso te faz dar umas boas hahas, Eds?

 

Eddie começou a falar com teimosia:

 

— Ainda não prova...

 

— Não — disse Bill —, não prova nada. Mas sugere uma ligação. A questão é o que fazemos agora. Você já pensou nisso, Mike?

 

— Pensei, claro — disse Mike —, mas foi impossível decidir qualquer coisa antes de vocês voltarem e nós conversarmos como estamos conversando. Não havia como eu prever como esse reencontro seria até que acontecesse.

 

Ele fez uma longa pausa e olhou para eles de forma pensativa.

 

— Tenho uma ideia — disse ele —, mas antes de falar qual é, acho que temos que concordar se temos ou não coisas a fazer aqui. Queremos tentar de novo fazer o que tentamos antes? Queremos tentar matar a Coisa de novo? Ou só dividimos a conta por seis e voltamos pro que estávamos fazendo antes?

 

— Parece que... — começou Beverly, mas Mike balançou a cabeça para ela. Ele não tinha terminado.

 

— Vocês precisam entender que nossas chances de sucesso são impossíveis de prever. Sei que não são boas, assim como sei que seriam um pouco melhores se Stan também estivesse aqui. Mesmo assim, não seriam boas, mas melhores. Sem Stan, o círculo que fizemos naquele dia está quebrado. Acho que não podemos realmente destruir a Coisa, nem mesmo mandar ela pra longe por um tempo como fizemos antes com o círculo quebrado. Acho que a Coisa vai matar a gente, um a um a um, e provavelmente de formas horrendas. Quando crianças, formamos um círculo completo de alguma forma que não entendo até hoje. Acho que, se concordarmos em ir em frente, teremos que tentar formar um círculo menor. Não sei se pode ser feito. Acredito que deve ser possível pensar que conseguimos para acabarmos descobrindo quando for tarde demais... se... que era tarde demais.

 

Mike olhou para eles de novo, com olhos afundados e cansados no rosto escuro.

 

— Assim, acho que precisamos votar. Ficar e tentar de novo ou ir pra casa. Essas são as escolhas. Eu trouxe vocês aqui pela força de uma velha promessa da qual eu nem sabia se vocês se lembrariam, mas não posso segurar vocês aqui por causa dessa promessa. Os resultados seriam ainda piores.

 

Ele olhou para Bill, e naquele momento Bill entendeu o que viria depois. Ele temia, mas não podia impedir, e então, com a mesma sensação de alívio que imaginava sentir um suicida quando tira as mãos do volante de um carro em alta velocidade e apenas as usa para cobrir os olhos, ele aceitou. Mike os tinha levado até ali, Mike tinha preparado tudo para eles... e agora estava passando adiante o manto da liderança. Ele pretendia que o manto voltasse para a pessoa que o usou em 1958.

 

— O que você diz, Big Bill? Faça a pergunta.

 

— Antes que eu faça — disse Bill —, t-todo mundo entendeu a pergunta? Você ia dizer alguma coisa, Bev.

 

Ela balançou a cabeça.

 

— Muito bem; a-acho que a pergunta é: ficamos e lutamos ou esquecemos a coisa toda? Quem é a favor de ficar?

 

Ninguém da mesa se moveu durante talvez cinco segundos, e Bill lembrou-se de leilões a que assistiu em que o preço de um item subia para a estratosfera de repente e os que não queriam mais dar lances ficavam praticamente como estátuas; as pessoas tinham medo de se coçar ou afastar uma mosca do nariz por medo de o leiloeiro achar que era um lance de mais 5 mil ou 25 mil.

 

Bill pensou em Georgie, Georgie que nunca fez mal a ninguém, que só queria sair de casa depois de ficar preso uma semana inteira, Georgie com as bochechas vermelhas, o barco de papel na mão, fechando os botões da capa amarela com a outra, Georgie agradecendo a ele... e se inclinando e beijando a bochecha febril de Bill. Obrigado, Bill. É um barco legal.

 

Ele sentiu a antiga fúria crescer dentro de si, mas estava mais velho agora e sua perspectiva era mais ampla. Não era apenas Georgie agora. Uma série horrenda de nomes marchou por sua cabeça: Betty Ripsom, encontrada congelada no chão, Cheryl Lamonica, tirada de dentro do Kenduskeag, Matthew Clements, arrancado do triciclo, Veronica Grogan, com 9 anos e encontrada em um esgoto, Steven Johnson, Lisa Albrecht, todos os outros, e só Deus sabia quantos mais dos desaparecidos.

 

Ele levantou a mão lentamente e disse:

 

— Vamos matar a Coisa. Desta vez, vamos matar a Coisa de verdade.

 

Por um momento, sua mão ficou no alto sozinha, como a mão do único garoto da sala que sabe a resposta certa, o que todos os outros odeiam. E então Richie suspirou, levantou a mão e disse:

 

— Que diabos. Não pode ser pior do que entrevistar Ozzy Osbourne.

 

Beverly levantou a mão. Seu rosto tinha recuperado a cor, mas em placas assimétricas que surgiram em suas bochechas. Ela parecia tremendamente excitada e morrendo de medo ao mesmo tempo.

 

Mike levantou a mão.

 

Ben levantou a mão.

 

Eddie Kaspbrak ficou sentado na cadeira, parecendo querer se fundir nela e desaparecer. O rosto dele, magro e com aparência delicada, ficou terrivelmente apavorado quando ele olhou primeiro para a direita, depois para a esquerda e por fim para Bill. Por um momento, Bill teve certeza de que Eddie simplesmente empurraria a cadeira, ficaria de pé e sairia da sala sem olhar para trás. Mas ele ergueu a mão no ar e agarrou a bombinha com força com a outra.

 

— Muito bem, Eds — disse Richie. — Vamos dar umas boas hahas desta vez, aposto.

 

— Bip-bip, Richie — disse Eddie com voz trêmula.

 

Os Otários comem sobremesa

 

— Qual é sua ideia, Mike? — perguntou Bill. O clima tinha sido quebrado por Rose, a hostess, que entrou com um prato de biscoitos da sorte. Ela olhou para as seis pessoas com a mão no alto com uma falta de curiosidade cuidadosamente educada. Elas as abaixaram rapidamente, e ninguém disse nada até Rose sair de novo.

 

— É bem simples — disse Mike —, mas pode ser bastante perigosa também.

 

— Manda ver — disse Richie.

 

— Acho que devemos nos separar durante o resto do dia. Acho que cada um deve voltar pro lugar em Derry do qual se lembra melhor... sem ser o Barrens, claro. Acho que nenhum de nós deveria ir lá, ainda não. Encarem como passeios a pé, se quiserem.

 

— Com que propósito, Mike? — perguntou Ben.

 

— Não sei direito. Vocês precisam entender que estou seguindo a intuição aqui...

 

— Mas essa tem uma batida boa e dá pra dançar com ela — disse Richie.

 

Os outros sorriram. Mike, não. Ele só assentiu.

 

— É uma boa forma de expressar. Seguir a intuição é como sentir uma batida e dançar acompanhando. Usar a intuição é uma coisa difícil pra adultos fazerem, e é o motivo principal de eu achar que pode ser a coisa certa. Crianças, afinal, funcionam baseadas nela oitenta por cento do tempo, pelo menos até uns 14 anos.

 

— Você está falando de nos conectarmos de volta à situação — disse Eddie.

 

— Acho que sim. De qualquer modo, essa é minha ideia. Se vocês não se lembrarem de algum lugar específico pra onde ir, sigam os pés e vejam onde vão parar. Nos encontramos hoje à noite na biblioteca pra conversar sobre o que aconteceu.

 

— Se alguma coisa acontecer — disse Ben.

 

— Ah, eu acho que coisas vão acontecer.

 

— Que tipo de coisas? — perguntou Bill.

 

Mike balançou a cabeça.

 

— Não faço ideia. Acho que o que acontecer deve ser desagradável. Acho que é até possível que algum de nós não apareça na biblioteca hoje à noite. Não tenho motivo especial pra achar isso... exceto pela intuição de novo.

 

As palavras dele foram recebidas com silêncio.

 

— Por que sozinhos? — perguntou Beverly. — Se temos que fazer isso em grupo, por que você quer que comecemos sozinhos, Mike? Principalmente se o risco for mesmo alto como você acha que é?

 

— Acho que posso responder isso — disse Bill.

 

— Vá em frente, Bill — disse Mike.

 

— Começou pra cada um de nós quando estávamos sozinhos — disse Bill para Beverly. — Não me lembro de tudo, ainda não, mas me lembro disso. A foto no quarto de George que se mexeu. A múmia de Ben. O leproso que Eddie viu debaixo da varanda da rua Neibolt. Mike encontrando o sangue na grama perto do canal no Parque Bassey. E o pássaro... havia alguma coisa com um pássaro, não havia, Mike?

 

Mike assentiu com seriedade.

 

— Um pássaro grande.

 

— Sim, mas não simpático como o da Vila Sésamo. — Richie gargalhou loucamente. — A resposta de Derry a James Brown Manda Bem! Ah, caramba, somos abençoados ou não somos?

 

— Bip-bip, Richie — disse Mike, e Richie parou.

 

— Com você foi a voz no cano e o sangue que saiu do ralo — disse Bill para Beverly. — E com Richie... — Mas ele fez uma pausa, intrigado.

 

— Devo ser a exceção que prova a regra, Big Bill — disse Richie. — A primeira vez que tive contato com qualquer coisa estranha naquele verão, e estou falando de estranho de verdade, foi no quarto de George, com você. Quando você e eu voltamos pra sua casa naquele dia e olhamos o álbum de fotos dele. A foto da rua Center perto do canal começou a se mover. Você lembra?

 

— Lembro — disse Bill. — Mas você tem certeza de que não houve nada antes, Richie? Nada mesmo?

 

— Eu... — Alguma coisa brilhou nos olhos de Richie. Ele falou lentamente: — Bem, teve o dia em que Henry e os amigos correram atrás de mim. Foi antes do fim das aulas, e escapei deles no departamento de brinquedos da Freese’s. Passei pelo City Center e me sentei em um banco de parque por um tempo, e pensei ter visto... mas foi só um sonho.

 

— O quê? — perguntou Beverly.

 

— Nada — disse Richie quase bruscamente. — Um sonho. De verdade. — Ele olhou para Mike. — Mas não me importo de caminhar. Vai matar o tempo. Uma visita ao antigo lar.

 

— Então estamos de acordo? — perguntou Bill.

 

Eles assentiram.

 

— E vamos nos encontrar na biblioteca de noite às... que horas você sugere, Mike?

 

— Às 19 horas. Toquem a campainha se chegarem depois. A biblioteca fecha às 19 horas em dias de semana até que comecem as férias de verão das crianças.

 

— Às 19, então — disse Bill, e passou os olhos sobriamente por eles. — E tomem cuidado. Vocês devem lembrar que nenhum de nós sabe bem o que estamos f-fa-fazendo. Pense nisso como um reconhecimento. Se virem alguma coisa, não lutem. Corram.

 

— Sou amante, não lutador — disse Richie com uma voz sonhadora de Michael Jackson.

 

— Bem, se vamos fazer isso mesmo, é melhor irmos logo — disse Ben. Um pequeno sorriso levantava o canto de seus lábios. Era mais amargo do que divertido. — Mas não tenho a menor ideia de para onde estou indo, se o Barrens está de fora. Era o melhor de tudo pra mim, ir pra lá com vocês. — Seus olhos se deslocaram até Beverly, ficaram ali por um momento, se afastaram. — Não consigo pensar em outro lugar que signifique tanto pra mim. Acho que só vou andar por aí umas horinhas, pra olhar as construções e ficar com os pés molhados.

 

— Você vai encontrar um lugar pra ir, Monte de Feno — disse Richie. — Visite algum dos seus velhos pontos de parada pra comida e encha o tanque.

 

Ben riu.

 

— Minha capacidade caiu muito desde os 11 anos. Estou tão cheio que vocês talvez tenham que me empurrar rolando daqui.

 

— Bem, estou pronto — disse Eddie.

 

— Esperem um segundo! — gritou Beverly quando eles começaram a se levantar. — Os biscoitos da sorte! Não se esqueçam deles!

 

— É — disse Richie. — Já consigo ver o meu. VOCÊ VAI SER COMIDO POR UM MONSTRO ENORME. TENHA UM ÓTIMO DIA.

 

Eles riram, e Mike passou a tigela de biscoitos pra Richie, que pegou um e passou adiante. Bill reparou que ninguém abriu o biscoito até todos estarem com um na mão; eles ficaram sentados com os pequenos biscoitos curvados sobre a mesa ou na mão, e quando Beverly ainda sorrindo pegou o dela, Bill sentiu um grito crescendo na garganta: Não! Não, não façam isso, é parte de tudo, coloquem de volta, não abram!

 

Mas era tarde demais. Beverly já tinha aberto o dela, Ben estava fazendo o mesmo, Eddie estava cortando o seu com a ponta do garfo, e pouco antes de o sorriso de Beverly virar uma careta de horror, Bill teve tempo de pensar: Nós sabíamos, de alguma forma nós sabíamos, porque ninguém simplesmente mordeu o biscoito da sorte. Seria a coisa normal a fazer, mas ninguém fez. De alguma forma, uma parte de nós ainda se lembra... de tudo.

 

E para ele, essa certeza insensata foi a percepção mais apavorante de todas; representava com mais eloquência do que Mike poderia ter exprimido a certeza e a profundidade do efeito da Coisa em cada um deles... e como o efeito da Coisa ainda estava agindo sobre eles.

 

Sangue jorrou do biscoito da sorte de Beverly como se de uma artéria cortada. Escorreu pela mão dela e no guardanapo branco que cobria a mesa, manchando-o de vermelho intenso, que foi absorvido e se espalhou em dedos rosados.

 

Eddie Kaspbrak deu um grito estrangulado e se afastou da mesa com confusão revoltada tão repentina de braços e pernas que a cadeira quase virou. Um inseto enorme, com carapaça quitinosa de um amarelo-amarronzado feio, estava saindo do biscoito da sorte dele como se de um casulo. Seus olhos de obsidiana olhavam cegamente para a frente. Quando ele andou para o pratinho de pão de Eddie, migalhas de biscoito caíram de suas costas em um pequeno jorro que Bill ouviu claramente e que voltou para assombrar seus sonhos quando ele dormiu um pouco no fim daquela tarde. Depois de se libertar completamente, ele esfregou as pernas finas de trás, o que gerou um zumbido seco e agudo, e Bill percebeu que era uma espécie de grilo com uma mutação terrível. Ele chegou à beirada do prato e caiu na toalha de costas para baixo.

 

— Ah, Deus! — disse Richie com voz engasgada. — Ah Deus Big Bill é um olho meu bom Deus é um olho a porra de um olho...

 

Bill virou a cabeça e viu Richie olhando fixamente para o biscoito da sorte, com lábios repuxados sobre os dentes em uma espécie de careta enojada. Um pedaço do biscoito tinha caído na toalha, deixando à mostra um buraco pelo qual um olho humano espiava com intensidade vidrada. Migalhas estavam espalhadas pela íris castanha e incorporadas à esclera.

 

Ben Hanscom jogou o dele. Não foi um gesto calculado, mas a reação assustada de uma pessoa completamente surpreendida por algo bem horrível. Quando seu biscoito da sorte rolou pela mesa, Bill viu dois dentes dentro do vão, com raízes escuras e sangue coagulado. Eles batiam um no outro como sementes em uma abóbora sem o miolo.

 

Ele olhou de novo para Beverly e viu que ela estava pegando fôlego para gritar. Os olhos dela estavam fixos na coisa que tinha saído do biscoito de Eddie, a coisa que agora chutava com as pernas lentas enquanto ficava deitada virada sobre a toalha de mesa.

 

Bill começou a se mover. Não estava pensando, só reagindo. Intuição, pensou ele loucamente ao sair correndo da cadeira e colocar a mão sobre a boca de Beverly antes que ela pudesse dar o grito. Aqui estou eu, agindo baseado na intuição. Mike devia sentir orgulho de mim.

 

O que saiu da boca de Beverly não foi um grito, mas um “mmmmph” estrangulado.

 

Eddie estava fazendo aqueles sons de apito de que Bill se lembrava tão bem. Não tinha problema nenhum, uma boa borrifada do chupador de pulmão deixaria Eddie bem. Firme como um tripé, teria dito Freddie Firestone, e Bill se perguntou, não pela primeira vez, por que uma pessoa tinha pensamentos tão estranhos em um momento assim.

 

Ele olhou para os outros intensamente, e o que saiu foi outra coisa daquele verão, uma coisa que parecia impossivelmente arcaica e perfeitamente certa:

 

— Pianinho! Todo mundo! Nem um pio! Todo mundo pianinho!

 

Rich passou a mão pela boca. A pele de Mike tinha ficado cinza como sujeira, mas ele assentiu para Bill. Todos se afastaram da mesa. Bill não tinha aberto seu biscoito da sorte, mas agora conseguia ver a parte de dentro se movendo lentamente, inflando e murchando, inflando e murchando, inflando e murchando, enquanto seu brinde da festa tentava sair.

 

— Mmmmmph! — disse Beverly debaixo da mão dele, com o hálito fazendo cócegas na palma.

 

— Pianinho, Bev — disse ele, e afastou a mão.

 

O rosto dela parecia ser ocupado só pelos olhos. A boca tremeu.

 

— Bill... Bill, você viu... — Os olhos dela voltaram para o grilo e permaneceram nele. O grilo parecia estar morrendo. Os olhos enrugados se fixaram nela, e imediatamente Beverly começou a gemer.

 

— P-P-Para com isso — disse ele em tom sombrio. — Vai pra perto da mesa.

 

— Não consigo, Billy, não consigo chegar perto daquela co...

 

— Consegue! Você p-precisa! — Ele ouviu passos leves e rápidos no curto corredor do outro lado da cortina de contas. Ele olhou ao redor, para os outros. — Todos vocês! Cheguem perto da mesa! Conversem! Ajam com naturalidade!

 

Beverly olhou para ele implorando, e Bill balançou a cabeça. Ele se sentou e puxou a cadeira, tentando não olhar para o biscoito da sorte sobre o prato. Ele tinha inchado a um tamanho inimaginável, uma bolha se enchendo de pus. E ainda pulsava lentamente. Eu poderia ter mordido isso, pensou ele.

 

Eddie disparou a bombinha na garganta, jogando névoa nos pulmões com um som agudo e estridente.

 

— Quem você acha que vai vencer o campeonato? — Bill perguntou a Mike, sorrindo insanamente. Rose entrou pela cortina naquele momento, com o rosto educadamente indagatório. Com o canto do olho, Bill viu que Bev tinha se aproximado da mesa. Boa menina, pensou ele.

 

— Acho que os Chicago Bears estão com boa chance — disse Mike.

 

— Está tudo bem? — perguntou Rose.

 

— T-tudo ótimo — disse Bill. Ele apontou para Eddie com o polegar. — Nosso amigo teve um ataque de asma. Já tomou o remédio e está melhor agora.

 

Rose olhou para Eddie com preocupação.

 

— Melhor — disse Eddie com voz aguda.

 

— Querem que eu retire a mesa agora?

 

— Daqui a pouco — disse Mike, e ofereceu um sorriso largo e falso.

 

— Estava bom? — Os olhos dela percorreram a mesa de novo, com uma camada de dúvida sobre um poço profundo de serenidade. Ela não viu o grilo, o olho, os dentes nem a forma como o biscoito de Bill parecia estar respirando. Seu olhar passou também sobre a mancha de sangue na toalha de mesa sem se incomodar.

 

— Tudo estava muito bom — disse Beverly, e sorriu. Foi um sorriso mais natural do que os de Bill e Mike. Isso pareceu tranquilizar Rose, convencê-la de que, se alguma coisa deu errado ali dentro, não era culpa do serviço de Rose nem da cozinha. A garota tem muita coragem, pensou Bill.

 

— A sorte dos biscoitos foi boa? — perguntou Rose.

 

— Bem — disse Richie —, não sei quanto aos outros, mas vou ficar de olho na minha.

 

Bill ouviu um estalo rápido. Olhou para o prato e viu uma perna saindo cegamente do biscoito da sorte. A perna arranhou o prato.

 

Eu poderia ter mordido isso, pensou ele de novo, mas manteve o sorriso.

 

— Muito boa — disse ele.

 

Richie estava olhando para o prato de Bill. Uma enorme mosca preta-acinzentada estava nascendo rapidamente em meio ao biscoito despedaçado. Ela zumbiu em tom baixo. Gosma amarela escorreu do biscoito e fez uma poça na toalha. Havia um cheiro agora, o cheiro denso e pungente de um ferimento infeccionado.

 

— Bem, se não posso ajudar em nada neste momento...

 

— Neste momento, não — disse Ben. — Mas foi uma refeição maravilhosa. Muito... muito diferente.

 

— Vou deixá-los, então — disse ela, e fez uma reverência, saindo pela cortina de contas. As contas ainda estavam balançando e estalando quando todos se afastaram da mesa de novo.

 

— O que é? — perguntou Ben baixinho, olhando para a coisa no prato de Bill.

 

— Uma mosca — disse Bill. — Uma mosca mutante. Cortesia de um escritor chamado George Langlahan, eu acho. Ele escreveu uma história chamada “A mosca”. Foi feito um filme baseado nela, um filme não muito bom. Mas a história me assustou pra caramba. A Coisa voltou a usar seus velhos truques. Essa coisa da mosca anda muito na minha cabeça porque estou pensando em um romance. Andei pensando em chamar de Insetos de estrada. Sei que o nome é m-meio idiota, mas sabem...

 

— Com licença — disse Beverly com voz distante. — Acho que preciso vomitar.

 

Ela sumiu antes que qualquer um dos homens pudesse se levantar.

 

Bill balançou o guardanapo e jogou por cima da mosca, que era do tamanho de um pardal bebê. Nada grande assim poderia sair de uma coisa tão pequena quanto um biscoito da sorte chinês... mas saiu. Ela zumbiu duas vezes debaixo do guardanapo e ficou em silêncio.

 

— Jesus — disse Eddie baixinho.

 

— Vamos sair dessa porra de lugar — disse Mike. — Podemos nos encontrar com Beverly no saguão.

 

Beverly estava saindo do banheiro feminino quando eles se reuniram em frente à caixa registradora. Estava pálida, mas recomposta. Mike pagou a conta, beijou a bochecha de Rose e todos saíram para a tarde chuvosa.

 

— Isso faz alguém mudar de ideia? — perguntou Mike.

 

— Acho que não pra mim — disse Ben.

 

— Não — disse Eddie.

 

— Que ideia? — disse Richie.

 

Bill balançou a cabeça e olhou para Beverly.

 

— Eu fico — disse ela. — Bill, o que você quis dizer com a Coisa voltou a usar seus velhos truques?

 

— Andei pensando em escrever uma história sobre insetos — disse ele. — Aquela história de Langlahan se entranhou no meu pensamento. Assim, vi uma mosca. O seu era sangue, Beverly. Por que você estava com sangue na cabeça?

 

— Acho que por causa do sangue no ralo — disse Beverly imediatamente. — O sangue que saiu do ralo do banheiro na minha antiga casa, quando eu tinha 11 anos. — Mas era mesmo isso? Ela achava que não. Porque o que passou imediatamente na cabeça dela quando o sangue jorrou em seus dedos como um jato quente foi a pegada de sangue que ela deixou quando pisou no vidro de perfume quebrado. Tom. E

 

(Bevvie, às vezes me preocupo muito)

 

o pai.

 

— Você também tirou um inseto — disse Bill para Eddie. — Por quê?

 

— Não apenas um inseto — disse Eddie. — Um grilo. Tem grilos no nosso porão. Uma casa de 200 mil dólares e não conseguimos nos livrar dos grilos. Eles nos enlouquecem à noite. Duas noites antes de Mike ligar, tive um pesadelo horrível. Sonhei que acordei e minha cama estava cheia de grilos. Eu estava tentando disparar nele com minha bombinha, mas quando eu apertava, ela só dava uns estalos, e logo que acordei percebi que ela também estava cheia de grilos.

 

— A hostess não viu nada — disse Ben. Ele olhou para Beverly. — Como seus pais nunca viram o sangue que saiu do ralo, mesmo estando por toda parte.

 

— É — disse ela.

 

Eles ficaram se olhando sob a chuva fina de primavera.

 

Mike olhou para o relógio.

 

— Um ônibus vai passar em uns 20 minutos — disse ele —, ou posso levar quatro de vocês no carro se nos apertarmos. Ou posso chamar uns táxis. O que vocês preferirem.

 

— Acho que vou andando — disse Bill. — Não sei pra onde vou, mas um pouco de ar fresco parece uma boa ideia agora.

 

— Vou pedir um táxi — disse Ben.

 

— Divido com você se você me deixar no centro — disse Richie.

 

— Tá. Pra onde você vai?

 

Richie deu de ombros.

 

— Ainda não sei direito.

 

Os outros preferiram esperar o ônibus.

 

— Sete da noite — lembrou Mike. — E tomem cuidado, pessoal.

 

Eles concordaram em tomar cuidado, embora Bill não soubesse como se podia fazer uma promessa assim quando lidando com uma enorme quantidade de fatores desconhecidos.

 

Ele ia falar isso, mas olhou para os rostos deles e viu que eles já sabiam.

 

Bill saiu andando e ergueu uma das mãos para se despedir. O ar enevoado provocava uma sensação boa contra o rosto. A caminhada de volta para a cidade seria longa, mas não tinha problema. Ele tinha muito em que pensar. Estava feliz de o reencontro ter acabado e a ação estar começando.

 

Caminhadas

Ben Hanscom faz uma retirada

 

Richie Tozier saiu do táxi na interseção tripla das ruas Kansas, Center e Main, e Ben saiu no alto da colina Up-Mile. O motorista era o “sujeito religioso” de Bill, mas nem Richie nem Ben sabiam. Dave tinha caído em silêncio taciturno. Ben poderia ter saído no mesmo lugar que Richie, mas parecia melhor que cada um começasse sozinho.

 

Ele ficou de pé na esquina da rua Kansas com a Daltrey Close, viu o táxi se afastar com as mãos enfiadas nos bolsos e tentou tirar o final horrível do almoço da mente. Mas não conseguiu; seus pensamentos ficavam voltando para a mosca preta-acinzentada saindo do biscoito da sorte no prato de Bill, com asas estriadas grudadas nas costas. Ele tentava afastar a mente dessa imagem desagradável, achava que tinha conseguido, mas descobria cinco minutos depois que estava pensando naquilo de novo.

 

Estou tentando justificar de alguma forma, pensou ele, falando não no sentido moral, mas sim no matemático. Prédios são construídos a partir da observação de certas leis da natureza; todas as leis da natureza podem ser expressas por equações; equações precisam ser justificadas. Onde estava a justificativa para o que tinha acontecido menos de meia hora antes?

 

Deixa pra lá, disse ele para si mesmo, não pela primeira vez. Você não é capaz de justificar, então deixa pra lá.

 

Muito bom conselho; o problema era que ele não conseguia aplicá-lo. Ele lembrou que, no dia seguinte ao dia em que viu a múmia no canal congelado, sua vida voltou ao normal. Ele sabia que aquilo, fosse o que fosse, chegou bem perto de pegá-lo, mas sua vida prosseguiu: ele foi à escola, fez uma prova de aritmética, foi até a biblioteca depois da aula e comeu com o apetite de sempre. Ele simplesmente incorporou a coisa que viu no canal à vida, e se tinha quase sido morto por ela... bem, crianças sempre estavam quase sendo mortas. Elas corriam pelas ruas sem olhar, entravam no lago e percebiam de repente que tinham passado para a parte funda demais com os barcos infláveis e tinham que remar de volta, caíam do trepa-trepa de bunda no chão e de árvores de cabeça.

 

Agora, de pé no chuvisco em frente a uma loja de Materiais de Construção Trustworthy, que era uma casa de penhores em 1958 (Irmãos Frati, lembrou Ben, com a vitrine dupla sempre cheia de pistolas, rifles, navalhas e violões pendurados pelo braço como animais exóticos), ele concluiu que crianças eram melhores em quase morrer, e também eram melhores em incorporar o inexplicável à vida. Elas acreditavam implicitamente no mundo invisível. Milagres bons e ruins deviam ser levados em consideração, sim, certamente, mas não faziam o mundo parar. Um aumento repentino de beleza ou de terror aos 10 anos não excluía um cachorro-quente com queijo ou dois a mais no almoço.

 

Mas quando você crescia, tudo isso mudava. Você não ficava mais acordado na cama, certo de que havia algo agachado no armário ou arranhando a janela... mas quando uma coisa acontecia, alguma coisa além da explicação racional, os circuitos ficavam sobrecarregados. Os axônios e dendritos esquentavam. Você começava a tremer, começava a sacudir, sua imaginação começava a girar e mexer com seus nervos. Não dava para incorporar o que tinha acontecido à experiência de vida. Não dava para digerir. Sua mente ficava voltando à situação, cutucando de leve como um gatinho com um novelo de lã... até que, é claro, você acabava ficando louco ou chegava a um ponto em que era impossível viver.

 

E se isso acontecer, pensou Ben, a Coisa vai me pegar. A nós. Fácil.

 

Ele começou a subir a rua Kansas, sem ciência de estar indo para algum lugar em particular. E pensou de repente: O que fizemos com o dólar de prata?

 

Ele ainda não conseguia lembrar.

 

O dólar de prata, Ben... Beverly salvou sua vida com ele. A sua... talvez a de todo mundo... e principalmente a de Bill. A Coisa quase tinha arrancado minhas entranhas quando Beverly fez... o quê? O que ela fez? E como pôde funcionar? Ela afastou a Coisa e todos a ajudamos. Mas como?

 

Uma palavra surgiu de repente em sua mente, uma palavra que não significava nada, mas deixou sua pele arrepiada: Chüd.

 

Ele olhou para a calçada e, por um momento, viu a forma de uma tartaruga desenhada ali, e o mundo pareceu dançar aos seus olhos. Ele os fechou com força e, quando abriu, viu que não era uma tartaruga; só uma amarelinha meio apagada pela chuva.

 

Chüd.

 

O que significava?

 

— Não sei — disse ele em voz alta e, quando olhou rapidamente ao redor para ver se alguém o tinha ouvido falando sozinho, percebeu que tinha virado da rua Kansas para a avenida Costello. No almoço, ele disse que o Barrens era o único lugar em Derry onde ele foi feliz quando criança... mas não era bem verdade, era? Houve outro lugar. Acidentalmente ou sem perceber, ele foi para esse outro lugar: a Biblioteca Pública de Derry.

 

Ele ficou em frente à porta por um ou dois minutos, com as mãos ainda nos bolsos. O local não tinha mudado; ele admirou as linhas agora tanto quanto admirava quando era criança. Como tantos prédios de pedra que tinham sido bem projetados, ele conseguia confundir o olho que observava de perto com suas contradições: a solidez de pedra era contrabalançada pela delicadeza dos arcos e das colunas finas; ele parecia ao mesmo tempo sólido como um cofre de banco, mas também delicado e simples (bem, era tão delicado quanto construções urbanas podem ser, principalmente as erigidas na virada do século XX, e as janelas, com tiras finas de ferro em xis, eram graciosas e redondas). Essas contradições salvavam a biblioteca da feiura, e ele não ficou completamente surpreso ao sentir uma onda de amor pelo local.

 

Pouca coisa tinha mudado na avenida Costello. Ao olhar ao redor, ele conseguiu ver a Casa Comunitária de Derry, e perguntou-se se o Mercado Costello ainda existia no ponto em que a avenida, que era semicircular, voltava a cruzar com a rua Kansas.

 

Ele atravessou o gramado da biblioteca, sem nem reparar que as botas elegantes estavam ficando molhadas, para dar uma olhada na passarela de vidro entre a biblioteca dos adultos e a infantil. Também não tinha mudado, e dali, junto aos galhos curvos de um salgueiro chorão, ele conseguia ver as pessoas indo de uma para a outra. O velho prazer tomou conta dele, e pela primeira vez ele se esqueceu de verdade do que aconteceu no almoço de reencontro. Ele conseguia se lembrar de andar até aquele mesmo ponto quando criança, só que, no inverno, atravessar a área com neve quase até o quadril e ficar ali por até 15 minutos. Ele lembrou que ia após o crepúsculo, e de novo foi o contraste que o atraiu e o segurou ali, com as pontas dos dedos ficando entorpecidas e a neve derretendo dentro das galochas verdes. Estaria bem escuro no ponto onde ele estava, com o mundo ficando roxo com as sombras do início de inverno, o céu da cor de cinzas no leste e brasas no oeste. Estaria frio no ponto onde ele estava, talvez 10°C negativos, e mais frio do que isso se o vento estivesse soprando do Barrens congelado, como costumava.

 

Mas ali, a menos de 40 metros de onde ele estava, as pessoas caminhavam de um lado para o outro de camiseta de manga curta. Ali, a menos de 40 metros de onde ele estava, havia um tubo de luz branca que se espalhava das lâmpadas fluorescentes no alto. Criancinhas riam juntas, namorados adolescentes davam as mãos (e quando a bibliotecária os via, mandava soltarem). Era mágico, mágico de uma maneira boa que ele era jovem demais para perceber junto com coisas tão mundanas quanto a luz elétrica e o aquecimento a óleo. A magia era aquele cilindro brilhante de luz e vida ligando aqueles dois prédios escuros como uma linha da vida, a magia estava em ver as pessoas o atravessarem pelo campo sombrio de neve, intocadas pela escuridão e pelo frio. Isso as deixava adoráveis e divinas.

 

Ele acabava indo embora (como estava fazendo agora) e contornava o prédio até a porta da frente (como estava fazendo agora), mas sempre parava e olhava para trás mais uma vez (como estava fazendo agora) antes que a esquina de pedra da biblioteca dos adultos cobrisse o campo de visão para aquele delicado cordão umbilical.

 

Com uma pontada de dor e achando graça da nostalgia que oprimia seu coração, Ben subiu os degraus até a porta da biblioteca dos adultos e fez uma pausa na varanda estreita depois das colunas, sempre tão alta e fria mesmo quando o dia estava quente. Em seguida, abriu a porta de ferro com a janelinha para os livros serem colocados e entrou silenciosamente.

 

A força da lembrança quase o deixou tonto por um momento quando ele entrou na luz baixa dos globos de vidro pendurados. A força não foi física, não como um golpe no queixo ou um tapa. Foi mais parecida com aquela sensação estranha de duplicidade que as pessoas chamam, por falta de palavra melhor, de déjà-vu. Ben já tinha tido a sensação antes, mas ela nunca o atingiu com tanta força desorientadora; por um momento ou dois depois de entrar, ele se sentiu literalmente perdido no tempo, sem saber direito quantos anos tinha. Trinta e oito ou 11?

 

Ali, o silêncio murmurante era o mesmo, interrompido apenas por um sussurro ocasional, o baque surdo de um bibliotecário carimbando livros ou avisos de prazo estourado, o movimento de páginas de jornal ou revista sendo viradas. Ele adorava o tipo da luz agora tanto quanto antigamente. Ela entrava inclinada pelas janelas altas, cinzenta como as asas de um pombo nessa tarde chuvosa, uma luz que era de alguma forma sonolenta e entorpecedora.

 

Ele caminhou pelo aposento amplo com o linóleo com desenhos em vermelho e preto quase completamente desaparecidos com o tempo, tentando como sempre fazia na época silenciar o barulho dos passos. A biblioteca dos adultos tinha um domo no meio, e todos os sons eram amplificados.

 

Ele viu que as escadas de ferro circulares que levavam às estantes ainda estavam no lugar, de cada lado da recepção em forma de ferradura, mas também viu que um pequeno elevador de metal tinha sido acrescentado em algum momento nos 25 anos depois que ele e a mãe se mudaram. Deu um certo alívio, pois diminuiu um pouco a sensação sufocante de déjà-vu.

 

Ele se sentiu um invasor quando atravessou o aposento amplo, um espião de outro país. Ficou esperando que a bibliotecária levantasse a cabeça, olhasse para ele e o desafiasse com voz límpida e ecoante que destruiria a concentração de todos os leitores e dirigiria todos os olhares para ele: “Você! É, você! O que está fazendo aqui? Não tem nada que estar aqui! Você é de Fora! Você é do Antes! Volte pro lugar de onde veio! Volte agora, antes que eu chame a polícia!”

 

Ela realmente olhou, uma garota jovem, bonita, e, por um momento absurdo, pareceu a Ben que a fantasia viraria mesmo realidade, e seu coração subiu na garganta quando os olhos azul-claros dela tocaram os dele. Em seguida, eles seguiram em frente com indiferença, e Ben viu que conseguia andar de novo. Se ele era um espião, não tinha sido descoberto.

 

Ele passou debaixo da espiral de uma das escadas estreitas, íngremes e quase suicidas de ferro forjado no caminho para o corredor que levava à biblioteca infantil e achou graça ao perceber (só depois de já ter feito) que tinha seguido outro padrão de comportamento da infância. Ele tinha levantado o olhar como sempre fazia na infância na esperança de ver uma garota de saia descendo a escada. Ele conseguia se lembrar (agora conseguia) de olhar lá para cima sem motivo nenhum um dia quando tinha 8 ou 9 anos e ver debaixo da saia de brim de uma garota bonita do ensino médio, de ver a calcinha cor-de-rosa. Assim como o brilho repentino do sol na tornozeleira de Beverly Marsh disparou uma flecha de uma coisa mais primitiva do que simplesmente amor ou afeição em seu coração no último dia de aula em 1958, a visão da calcinha da garota de ensino médio também o afetou; ele conseguia se lembrar de ter sentado à mesa na biblioteca infantil pensando na visão inesperada por talvez uns vinte minutos, com a bochecha e a testa vermelhas, um livro sobre a história dos trens aberto sem ser lido à frente, com o pênis duro como um galho dentro da cueca, um galho que enfiou as raízes até dentro de sua barriga. Ele fantasiou ser casado com ela, morando em uma casinha nos arredores da cidade, se permitindo prazeres que ainda não entendia.

 

A sensação passou quase tão repentinamente quanto chegou, mas ele nunca mais passou debaixo da escada sem olhar para cima. Nunca mais viu nada tão interessante ou impactante (uma vez, uma moça gorda descendo com cuidado redobrado, mas ele afastou o olhar daquilo rapidamente, sentindo-se envergonhado, como quem faz algo proibido), mas o hábito persistiu e ele o repetiu agora, quando adulto.

 

Ele andou lentamente pela passarela de vidro, reparando em outras mudanças agora: adesivos amarelos que diziam A OPEP ADORA QUANDO VOCÊ DESPERDIÇA ENERGIA, ENTÃO ECONOMIZE WATTS! tinham sido colados nos interruptores. Os quadros emoldurados na parede oposta quando ele entrou nesse mundo menor de mesas de madeira clara e pequenas cadeiras, esse mundo onde o bebedouro só tinha 1,20 metro de altura, não eram de Dwight Eisenhower e Richard Nixon, mas de Ronald Reagan e George Bush. Reagan, lembrava Ben, era o apresentador de GE Theater no ano em que ele se formou no quinto ano, e George Bush ainda não tinha chegado aos 30 anos na época.

 

Mas...

 

Aquela sensação de déjà-vu tomou conta dele de novo. Ele ficou impotente antes, e desta vez sentiu o horror entorpecido de um homem que finalmente percebe, depois de meia hora batendo os braços à toa, que a margem não está se aproximando e ele vai se afogar.

 

Era a hora da história, e, no canto, um grupo de umas dez crianças pequenas estava sentado solenemente nas cadeirinhas em semicírculo, ouvindo.

 

— Quem está passando pela minha ponte? — disse a bibliotecária com a voz baixa e grunhida do troll da história, e Ben pensou: Quando ela levantar a cabeça, vou ver que é a srta. Davies, sim, é a srta. Davies, e ela não vai estar nem um dia mais velha...

 

Mas quando ela levantou a cabeça, ele viu uma mulher bem mais jovem do que a srta. Davies era na época.

 

Algumas das crianças cobriram a boca e riram, mas outras só a observaram, com os olhos refletindo o eterno fascínio da história: será que o monstro seria vencido... ou se alimentaria?

 

— Sou eu, o carneirinho, passando pela sua ponte — disse a bibliotecária, e Ben, pálido, passou por ela.

 

Como pode ser a mesma história? Exatamente a mesma história? Devo acreditar que é apenas coincidência? Porque não acredito... droga, não acredito!

 

Ele se inclinou no bebedouro, e teve que se inclinar tanto que se sentiu como Richie fazendo um dos seus salamaleques.

 

Preciso falar com alguém, pensou ele em pânico. Mike... Bill... alguém. Tem mesmo alguma coisa juntando o passado com o presente aqui, ou estou apenas imaginando? Porque se não estiver, não sei se é bem isso que quero. Eu...

 

Ele olhou para a recepção, e seu coração pareceu parar no peito por um momento antes de recomeçar a bater em velocidade dobrada. O pôster era simples, direto... e familiar. Dizia apenas:

 

LEMBREM-SE DO TOQUE DE RECOLHER.

19H.

DEPARTAMENTO DE POLÍCIA DE DERRY

 

Naquele instante, tudo pareceu ficar claro para ele. Aconteceu em um brilho repentino de luz, e ele se deu conta de que a votação que eles fizeram antes foi piada. Não havia como desistir, nunca houve. Eles estavam em um caminho tão pré-planejado quanto o instinto que o fez olhar para cima quando passou debaixo da escadaria que levava às estantes. Havia um eco aqui em Derry, um eco mortal, e eles só podiam esperar que o eco fosse mudado o bastante a favor deles para que eles conseguissem escapar com vida.

 

— Cristo — murmurou ele, e passou a mão pela bochecha com força.

 

— Posso ajudar, senhor? — perguntou uma voz vinda de trás do seu cotovelo, e ele deu um pequeno pulo. Era uma garota de uns 17 anos, talvez, com cabelo louro-escuro afastado do rosto belo de estudante com grampos de cabelo. Assistente de biblioteca, claro; em 1958 também havia isso, garotas e garotos do ensino médio que guardavam livros, mostravam às crianças como usar o catálogo de cartões, discutiam resenhas de livros e trabalhos de escola, ajudavam estudantes perdidos com notas de pé de página e bibliografias. O pagamento era ínfimo, mas sempre havia adolescentes dispostos a assumir o trabalho. Era serviço agradável.

 

Logo em seguida, ao interpretar o olhar agradável, porém questionador da garota um pouco mais de perto, ele lembrou que não pertencia mais ao local. Era um gigante em uma terra de pequenos. Um intruso. Na biblioteca dos adultos, ele sentiu desconforto pela possibilidade de ser observado ou de falarem com ele, mas ali, isso foi uma espécie de alívio. Primeiro, porque provava que ele ainda era adulto, e o fato de que a garota estava sem sutiã por baixo da camisa fina também provocou mais alívio do que excitação. Se fosse necessária uma prova de que eles estavam em 1985 e não em 1958, as marcas claras dos mamilos no algodão da camiseta deixavam isso claro.

 

— Não, obrigado — disse ele, e sem nenhum motivo que pudesse entender, ouviu-se acrescentar: — Eu estava procurando meu filho.

 

— Ah? Qual é o nome dele? Pode ser que eu tenha visto. — Ela sorriu. — Conheço a maioria das crianças.

 

— O nome dele é Ben Hanscom — disse ele. — Mas não estou vendo ele aqui.

 

— Me diga como ele é e dou seu recado, se você quiser.

 

— Bem — disse Ben, desconfortável agora e começando a desejar não ter iniciado essa conversa. — Ele é meio forte e se parece um pouco comigo. Mas não é nada de mais, moça. Se você o vir, só diga que o pai dele passou aqui quando estava indo para casa.

 

— Pode deixar — disse ela, e sorriu, mas o sorriso não chegou aos olhos, e Ben percebeu de repente que ela não foi falar com ele apenas por educação e desejo de ajudar. Ela era a bibliotecária assistente na biblioteca infantil de uma cidade em que nove crianças haviam sido mortas em um período de oito meses. Você vê um homem estranho nesse mundo em miniatura para onde os adultos raramente vão exceto para levar ou buscar os filhos. Você fica desconfiada... é claro.

 

— Obrigado — disse ele, deu um sorriso que esperou ser tranquilizador e saiu rapidamente.

 

Ele percorreu o corredor até a biblioteca dos adultos e foi até a recepção por um impulso que não entendeu... mas é claro que eles deviam seguir os impulsos naquela tarde, não? Seguir os impulsos e ver onde dariam.

 

O nome na placa na recepção identificava a bela e jovem bibliotecária como Carole Danner. Por trás dela, Ben conseguiu ver uma porta com painel de vidro fosco. Nela, estava escrito MICHAEL HANLON BIBLIOTECÁRIO-CHEFE.

 

— Posso ajudar? — perguntou a srta. Danner.

 

— Acho que sim — disse Ben. — Espero que sim. Eu gostaria de fazer um cartão da biblioteca.

 

— Muito bem — disse ela, e pegou um formulário. — Você é residente de Derry?

 

— Não no momento.

 

— Endereço residencial, então?

 

— Autoestrada Rural Star 2, Hemingford Home, Nebraska. — Ele fez uma pequena pausa, achando um pouco de graça no olhar dela, e disse o CEP: — 59341.

 

— Isso é piada, sr. Hanscom?

 

— De jeito nenhum.

 

— Você vai se mudar para Derry, então?

 

— Não tenho planos, não.

 

— É uma grande distância pra se percorrer pra pegar livros, não é? Não existem bibliotecas no Nebraska?

 

— É uma questão sentimental — disse Ben. Ele achou que contar isso a uma estranha seria constrangedor, mas viu que não era. — Eu cresci em Derry, sabe? É a primeira vez que volto desde que era criança. Andei por aí pra ver o que mudou ou não. E de repente me ocorreu que passei uns dez anos da minha vida aqui, entre as idades de 3 e 13 anos, e não tenho absolutamente nada de recordação da época. Nem um cartão-postal. Eu tinha uns dólares de prata, mas perdi um e dei os outros pra um amigo. Acho que o que quero é uma lembrança da minha infância. É tarde, mas não dizem que antes tarde do que nunca?

 

Carole Danner sorriu, e o sorriso transformou o rosto bonito em lindo.

 

— Acho muito lindo — disse ela. — Se você quiser dar uma olhada por aí, o cartão estará pronto em uns dez ou 15 minutos.

 

Ben sorriu de leve.

 

— Deve haver uma taxa — disse ele. — Por eu ser de fora e tudo mais.

 

— Você tinha cartão quando criança?

 

— Claro que tinha. — Ben sorriu. — Fora meus amigos, acho que aquele cartão da biblioteca era a coisa mais importante...

 

— Ben, pode vir até aqui? — disse uma voz de repente, cortando o silêncio da biblioteca como um bisturi.

 

Ele se virou com um pulo de culpa, como as pessoas fazem quando alguém grita na biblioteca. Não viu ninguém que conhecia... e percebeu um momento depois que ninguém tinha levantado o olhar nem mostrado sinal de surpresa ou irritação. Os idosos continuavam lendo os exemplares do Derry News, do Boston Globe, da National Geographic, da Time, da Newsweek, do U. S. News & World Report. Nas mesas da Sala de Referências, duas garotas do ensino médio ainda estavam com as cabeças unidas por cima de uma pilha de papéis e fichas. Várias pessoas continuavam procurando livros nas prateleiras marcadas FICÇÃO CONTEMPORÂNEA – EMPRÉSTIMOS DE 7 DIAS. Um homem idoso com um boné ridículo e um cachimbo apagado preso entre os dentes continuou a folhear um livro com desenhos de Luis de Vargas.

 

Ele se voltou para a jovem, que estava olhando para ele intrigada.

 

— Algum problema?

 

— Não — disse Ben, sorrindo. — Pensei ter ouvido uma coisa. Acho que estou mais perturbado pelo fuso horário do que pensei. O que você estava dizendo?

 

— Bem, na verdade você estava dizendo. Mas eu estava prestes a acrescentar que, se você tinha cartão quando era residente, seu nome ainda deve estar nos arquivos — disse ela. — Guardamos tudo em microfichas agora. Uma grande mudança de quando você era criança e morava aqui, eu acho.

 

— É — disse ele. — Muitas coisas mudaram em Derry... mas muitas coisas também parecem ter permanecido iguais.

 

— De qualquer modo, posso procurar seu nome e fazer renovação de cartão. Sem cobrar.

 

— Isso é ótimo — disse Ben, e antes que pudesse acrescentar um agradecimento, a voz destruiu o silêncio sagrado da biblioteca de novo, mais alta agora, ameaçadoramente alegre.

 

— Venha, Ben! Venha, seu merdinha gordo! Esta é Sua Vida, Ben Hanscom!

 

Ben limpou a garganta.

 

— Eu agradeço — disse ele.

 

— Não é nada. — Ela inclinou a cabeça. — Esquentou lá fora?

 

— Um pouco — disse ele. — Por quê?

 

— Você está...

 

— Foi Ben Hanscom! — gritou a voz. Estava vindo do alto, das estantes. — Ben Hanscom matou as crianças! Peguem ele! Peguem ele!

 

— ... transpirando — concluiu ela.

 

— Estou? — disse ele de forma idiota.

 

— Vou preparar seu cartão imediatamente — disse ela.

 

— Obrigado.

 

Ela seguiu para a velha máquina de escrever Royal no canto da mesa.

 

Ben se afastou lentamente, com o coração disparado no peito. Sim, estava suando; ele conseguia sentir o suor escorrendo pela testa, pelas axilas, molhando os pelos do peito. Ele ergueu o olhar e viu Pennywise, o Palhaço, de pé no alto da escada da esquerda, olhando para ele. Seu rosto estava pintado de branco. A boca sangrava batom em um sorriso assassino. Havia buracos vazios onde os olhos deviam estar. Ele estava segurando balões em uma das mãos e um livro na outra.

 

Não ele, pensou Ben. A Coisa. Estou no meio da rotunda da Biblioteca Pública de Derry no final de uma tarde de 1985, sou um homem adulto e estou cara a cara com meu maior pesadelo de infância. Estou cara a cara com a Coisa.

 

— Venha cá, Ben — chamou Pennywise. — Não vou te machucar. Tenho um livro pra você! Um livro... e um balão! Venha cá!

 

Ben abriu a boca para responder: Você está louco se acha que vou aí em cima. Mas de repente se deu conta de que, se fizesse isso, todo mundo olharia para ele, todo mundo pensaria Quem é esse maluco?

 

— Ah, sei que você não pode responder — disse Pennywise, e riu. — Mas quase te enganei por um segundo, não foi? “Com licença, senhora, seu coração está batendo?... Está?... Então é melhor abrir a porta pra ele!” “Com licença, senhor, seu táxi está livre?... Está?... Então viva a liberdade!”

 

O palhaço no alto lançou a cabeça para trás e deu gargalhadas agudas. O som cresceu e ecoou no domo da rotunda como um voo de morcegos negros, e Ben só conseguiu se impedir de colocar as mãos em cima das orelhas por uma tremenda força de vontade.

 

— Venha cá, Ben — disse Pennywise. — Vamos conversar. Terreno neutro. O que você acha?

 

Não vou subir aí, pensou Ben. Quando eu finalmente chegar até você, você não vai querer me ver, eu acho. Vamos te matar.

 

O palhaço deu gargalhadas agudas de novo.

 

— Me matar? Me matar? — E, de repente, de uma forma horrível, a voz era de Richie Tozier, não a voz dele precisamente, mas Richie Tozier fazendo a Voz de Garoto Negro: — Num mi mata, mestre, sô um bom negrinho, num mata esse minino preto, Monti di Feno! — E gargalhou alto de novo.

 

Trêmulo e pálido, Ben andou pelo centro ecoante da biblioteca dos adultos. Sentia que ia vomitar em breve. Ele ficou de pé em frente a uma prateleira de livros e pegou um aleatório com a mão tremendo muito. Os dedos frios viraram as páginas.

 

— Esta é sua chance, Monte de Feno! — gritou a voz por trás e acima dele. — Saia da cidade. Saia antes de escurecer. Vou atrás de você hoje... de você e dos outros. Você está velho demais pra me deter, Ben. Vocês estão todos velhos demais. Velhos demais pra fazer qualquer coisa além de provocar a própria morte. Saia, Ben. Você quer ver isto esta noite?

 

Ele se virou lentamente, ainda segurando o livro com mãos geladas. Não queria olhar, mas era como se houvesse uma mão invisível por baixo do seu queixo, virando sua cabeça mais e mais para cima.

 

O palhaço tinha sumido. Drácula estava de pé no alto da escada da esquerda, mas não era um Drácula de filme; não era Bela Lugosi nem Christopher Lee nem Frank Langella nem Francis Lederer nem Reggie Nalder. Uma coisa-homem velha com o rosto como uma raiz retorcida estava ali de pé. Seu rosto era mortalmente pálido, seus olhos eram vermelho-arroxeados, da cor de coágulos de sangue. Sua boca se abriu e revelou duas fileiras de lâminas Gilette que tinham sido enfiadas nas gengivas formando ângulos; era como olhar em um labirinto de espelhos mortal em que um único passo em falso podia fazer você ser cortado ao meio.

 

— CRUUUUUNCH! — gritou o monstro, e seu maxilar se fechou.

 

Sangue jorrou de sua boca em um jato vermelho-enegrecido. Pedaços de lábios cortados caíram na seda branca da camisa social e deslizaram pela frente, deixando trilhas de sangue atrás.

 

— O que Stan Uris viu antes de morrer? — gritou o vampiro no alto da escada para ele, rindo pelo buraco de sangue na boca. — Foi um coração batendo? Foi Davy Crockett, o Rei do Oeste Selvagem? O que ele viu, Ben? Você também quer ver? O que ele viu? O que ele viu? — Em seguida, soou aquela gargalhada gritada de novo, e Ben soube que acabaria gritando também, sim, não havia como impedir o grito, ele surgiria. Sangue pingava do alto da escadaria em uma chuva pavorosa. Uma gota caiu na mão contorcida pela artrite de um idoso lendo The Wall Street Journal. Estava escorrendo entre os dedos, sem ser visto nem sentido.

 

Ben inspirou, com a certeza de que o grito viria depois, impensável no silêncio dessa tarde de primavera, tão chocante quanto um golpe de faca... ou uma boca cheia de lâminas.

 

Em vez disso, o que saiu em um turbilhão trêmulo e irregular, falado em vez de gritado, falado baixo como uma oração, foram as seguintes palavras:

 

— Transformamos em bolinhas, claro. Transformamos os dólares de prata em bilhas de prata.

 

O cavalheiro de boné observando os desenhos de Vargas ergueu o olhar rapidamente:

 

— Besteira — disse ele. Agora as pessoas realmente olharam; alguém sibilou “Shhh!” para o homem com voz irritada.

 

— Me desculpe — disse Ben, com voz baixa e trêmula. Ele estava vagamente ciente de que seu rosto agora estava todo escorrendo de suor e que sua camisa estava grudada no corpo. — Eu estava pensando em voz alta...

 

— Besteira — repetiu o cavalheiro idoso, com voz mais alta. — Não dá pra fazer balas de prata a partir de dólares de prata. É um erro comum. Tirado de literatura barata. O problema é com a gravidade específica...

 

De repente a mulher, srta. Danner, estava ao lado dele.

 

— Sr. Brockhill, o senhor precisa fazer silêncio — disse ela com gentileza. — As pessoas estão lendo...

 

— O sujeito está doente — disse ele abruptamente, e voltou a atenção para o livro. — Dá uma aspirina pra ele, Carole.

 

Carole Danner olhou para Ben e seu rosto se contraiu de preocupação.

 

— Você está doente, sr. Hanscom? Sei que é muita falta de educação o que vou dizer, mas você está com péssima aparência.

 

Ben disse:

 

— Eu... comi comida chinesa no almoço. Acho que não me caiu bem.

 

— Se quiser se deitar, tem um colchão no escritório do sr. Hanlon. Você poderia...

 

— Não. Obrigado, mas não. — O que ele queria não era se deitar, mas sair logo da Biblioteca Pública de Derry. Ele olhou para o alto. O palhaço tinha sumido. O vampiro tinha sumido. Mas preso ao corrimão de ferro fundido da escada havia um balão. Na superfície inflada, havia as palavras: TENHA UM BOM-DIA! ESTA NOITE VOCÊ MORRE!

 

— Estou com seu cartão da biblioteca — disse ela, colocando a mão hesitante no braço dele. — Você ainda o quer?

 

— Sim, obrigado — disse Ben. Ele inspirou fundo. — Me desculpe por isso.

 

— Só espero que não seja intoxicação alimentar — disse ela.

 

— Não funcionaria — disse o sr. Brockhill sem erguer o olhar do livro e sem tirar o cachimbo apagado do canto da boca. — Coisa de literatura barata. A bala iria cair.

 

E falando de novo sem saber de antemão que falaria, Ben disse:

 

— Projéteis, não balas. Percebemos quase imediatamente que não conseguiríamos fazer balas. Éramos apenas crianças. Foi ideia minha...

 

— Shhh! — disse alguém de novo.

 

Brockhill lançou um olhar assustado para Ben, pareceu prestes a falar, mas voltou a atenção para os desenhos.

 

Na recepção, Carole Danner entregou a ele um cartãozinho laranja com BIBLIOTECA PÚBLICA DE DERRY impresso no alto. Perplexo, Ben se deu conta de que era o primeiro cartão de biblioteca de adulto que ele tinha na vida. O que ele tinha quando criança era amarelo canário.

 

— Tem certeza de que não quer se deitar, sr. Hanscom?

 

— Estou me sentindo melhor, obrigado.

 

— Tem certeza?

 

Ele conseguiu sorrir.

 

— Tenho certeza.

 

— Você parece mesmo estar melhor — disse ela, mas falou em tom de dúvida, como se compreendendo que era a coisa certa a dizer, mas sem acreditar de verdade.

 

Em seguida, ela colocou um livro debaixo do aparelho de microfilme que usavam atualmente para registrar empréstimos de livros, e Ben sentiu um toque de humor quase histérico. É o livro que tirei da prateleira quando o palhaço começou com a Voz de Garoto Negro, pensou ele. Ela achou que eu queria retirar. Peguei meu primeiro empréstimo na Biblioteca Pública de Derry em 25 anos e nem sei que livro é. Além do mais, não me importo. Só quero sair daqui, tá? Isso basta.

 

— Obrigado — disse ele, e colocou o livro debaixo do braço.

 

— De nada, sr. Hanscom. Tem certeza de que não quer uma aspirina?

 

— Certeza absoluta — disse ele, e hesitou. — Você por acaso não saberia o que aconteceu com a sra. Starrett, saberia? Barbara Starrett? Ela era a chefe da biblioteca infantil.

 

— Ela morreu — disse Carole Danner. — Três anos atrás. Teve um derrame, pelo que eu soube. Foi uma pena. Ela era relativamente jovem... tinha 58 ou 59, eu acho. O sr. Hanlon fechou a biblioteca naquele dia.

 

— Ah — disse Ben, e sentiu um vazio se abrir no coração. Era isso que acontecia quando se voltava ao passado, como dizia a música. A cobertura do bolo era doce, mas o recheio embaixo era amargo. As pessoas se esqueciam de você ou morriam ou perdiam o cabelo e os dentes. Em alguns casos, você descobria que tinham perdido a sanidade. Ah, era tão bom estar vivo. Caramba.

 

— Sinto muito — disse ela. — Você gostava dela, não é?

 

— Todas as crianças gostavam da sra. Starrett — disse Ben, e ficou alarmado ao perceber que as lágrimas estavam muito perto agora.

 

— Você...?

 

Se ela me perguntar se estou bem mais uma vez, acho mesmo que vou chorar. Ou gritar. Ou alguma coisa.

 

Ele olhou para o relógio e disse:

 

— Tenho que ir logo. Obrigado pela gentileza.

 

— Tenha um bom-dia, sr. Hanscom.

 

Claro. Porque esta noite eu morro.

 

Ele acenou para ela com o dedo e seguiu o caminho para a porta. O sr. Brockhill olhou para ele uma vez, com intensidade e desconfiança.

 

Ele olhou para o alto da escada da esquerda. O balão ainda estava flutuando lá, amarrado pelo barbante ao corrimão de ferro fundido. Mas agora, o texto nele dizia:

 

EU MATEI BARBARA STARRETT!

—PENNYWISE, O PALHAÇO

 

Ele afastou o olhar, sentindo a pulsação na garganta começar a disparar de novo. Ele saiu e levou um susto com a luz do sol. As nuvens no céu estavam se desmanchando e um sol quente de fim de maio estava surgindo, deixando a grama impossivelmente verde e viva. Ben sentiu uma coisa começar a flutuar em seu coração. Pareceu que ele tinha deixado um peso insuportável para trás na biblioteca... e então, ele olhou para o livro que tinha retirado inadvertidamente e seus dentes trincaram com dor repentina e intensa. Era Bulldozer, de Stephen W. Meader, um dos livros que ele retirou da biblioteca no dia que mergulhou no Barrens para fugir de Henry Bowers e amigos.

 

E falando em Henry, a marca da bota dele ainda estava na capa do livro.

 

Ele mexeu nas páginas com mãos trêmulas e virou o livro. A biblioteca tinha passado a sistema de microfilme. Ele tinha visto isso. Mas ainda havia um compartimento na parte de trás do livro com um cartão dentro. Havia um nome em cada linha do cartão, seguido de um carimbo com a data de devolução. Ao olhar para o cartão, Ben viu isto:

 

NOME

DEVOLVER NA DATA CARIMBADA

 

Charles N. Brown

 

14 de maio de 1958

 

David Hartwell

 

1º de junho de 1958

 

Joseph Brennan

 

17 de junho de 1958

 

E, na última linha do cartão, sua assinatura infantil, escrita com movimentos pesados de lápis:

 

Benjamin Hanscom

 

9 de julho de 1958

 

Carimbada no cartão, carimbada na folha de guarda, carimbada no contorno das páginas, carimbada repetidamente com tinta vermelha manchada que parecia sangue, havia uma palavra: CANCELAR.

 

— Ah, meu Deus — murmurou Ben. Ele não sabia o que mais dizer; isso pareceu cobrir toda a situação. — Ah, meu Deus, meu Deus.

 

Ele ficou de pé na nova luz do sol, perguntando-se de repente o que estava acontecendo com os outros.

 

Eddie Kaspbrak faz uma jogada

 

Eddie desceu do ônibus na esquina da rua Kansas com a travessa Kossuth. A Kossuth era uma rua que tinha 400 metros de ladeira e acabava de repente em terra e no Barrens. Ele não fazia a menor ideia do motivo para ter escolhido aquele lugar para saltar do ônibus; a travessa Kossuth não significava nada para ele, e ele não conhecia ninguém nessa parte da rua Kansas. Mas parecia o lugar certo. Era tudo que ele sabia, mas, àquela altura, parecia ser o bastante. Beverly desceu do ônibus com um aceno em um dos pontos da rua Lower Main. Mike tinha levado o carro de volta para a biblioteca.

 

Agora, observando o pequeno e um tanto absurdo ônibus Mercedes se afastar, ele se perguntou exatamente o que estava fazendo ali, de pé em uma esquina obscura em uma cidade obscura a quase 800 quilômetros de distância de Myra, que sem dúvida estava chorando de preocupação por causa dele. Ele sentiu um instante de tontura quase dolorosa, encostou no bolso do paletó e lembrou que tinha deixado a dramamina no Town House junto com o resto da farmacopeia. Mas ele tinha aspirina. Eddie não sairia sans aspirina tanto quanto não sairia sans calça. Ele engoliu duas a seco e começou a andar pela rua Kansas, pensando vagamente em ir para a Biblioteca Pública ou talvez atravessar para a avenida Costello. Estava começando a clarear agora, e ele achava que podia até andar para a West Broadway e admirar as velhas casas vitorianas de lá, nas duas únicas quadras residenciais realmente bonitas de Derry. Ele fazia isso às vezes quando criança: andava pela West Broadway de forma casual, como se estivesse indo para algum lugar. Havia a casa dos Mueller, perto da esquina da Witcham com a West Broadway, uma casa vermelha com torres de cada lado e uma cerca viva na frente. Os Mueller tinham um jardineiro que sempre olhava para Eddie com desconfiança até ele seguir caminho.

 

Havia a casa dos Bowie, que ficava quatro casas depois da dos Mueller, do mesmo lado. Ele achava que esse era um dos motivos de Greta Bowie e Sally Mueller serem tão amigas desde o ensino fundamental. Tinha telhado verde e também tinha torres... mas enquanto as torres na casa dos Mueller eram retas em cima, as da casa dos Bowie tinham coisas no alto em forma de cone que Eddie achava parecidas com chapéus de burro. No verão, sempre havia mobília no gramado lateral: uma mesa com um guarda-sol amarelo em cima, cadeiras de vime, uma rede de corda esticada entre duas árvores. Sempre havia também um jogo de croquet na parte de trás. Eddie sabia disso apesar de nunca ter sido convidado para a casa de Greta para jogar croquet. Ao passar por ali casualmente (como se estivesse indo para outro lugar), Eddie às vezes ouvia o estalo das bolas, risadas, gemidos quando as bolas de alguém “iam errado”. Uma vez, ele viu a própria Greta, com uma limonada em uma das mãos e o martelo de croquet na outra, magra e bonita muito além das palavras de todos os poetas (até os ombros queimados de sol pareciam maravilhosamente lindos aos olhos de Eddie Kaspbrak, que tinha 9 anos na época), indo atrás da bola, que tinha “ido errado”; ela ricocheteou em uma árvore e acabou deixando Greta visível para Eddie.

 

Ele se apaixonou um pouco por ela naquele dia, com o cabelo louro brilhoso caindo pelos ombros do vestido rodado de um tom claro de azul. Ela olhou ao redor e, por um momento, ele pensou que ela o tinha visto, mas não foi o que aconteceu, porque quando ele levantou a mão para um cumprimento tímido, ela não levantou a dela em resposta. Só bateu na bola de volta para o gramado e saiu correndo atrás. Ele continuou a andar sem ressentimento pelo cumprimento não correspondido (ele realmente acreditou que ela não devia tê-lo visto) e pelo fato de nunca ter sido convidado para ir a um dos jogos de croquet de sábado à tarde. Por que uma garota bonita como Greta Bowie iria querer convidar um garoto como ele? Ele era magro, asmático e tinha o rosto de um rato afogado.

 

É, pensou ele, andando sem destino pela rua Kansas, eu devia ter ido para a West Broadway para olhar para aquelas casas de novo... a dos Mueller, a dos Bowie, a do dr. Hale, a dos Tracker...

 

Seus pensamentos foram abruptamente interrompidos após o último nome porque (falando do diabo!) aqui estava ele, de pé na frente da transportadora dos irmãos Tracker.

 

— Ainda está aqui — disse Eddie em voz alta, e riu. — Filho da mãe!

 

A casa na West Broadway que pertencia a Phil e Tony Tracker, dois solteirões convictos, devia ser a mais bonita das grandes casas daquela rua, uma casa branca impecável de meados do período vitoriano com gramados verdes e grandes canteiros de flores que cresciam desenfreadamente (de uma forma organizada, é claro) durante toda a primavera e verão. A entrada para carros era pavimentada todos os outonos, de forma que permanecia negra como um espelho escuro. As telhas inclinadas nas várias partes do telhado estavam sempre pintadas em um tom de verde que combinava perfeitamente com o gramado, e as pessoas às vezes paravam para tirar fotos das janelas com barras verticais entre as vidraças, que eram muito antigas e impressionantes.

 

— Dois caras que se dão ao trabalho de manter a casa tão arrumada só podem ser bichas — disse a mãe de Eddie uma vez com certa irritação, e Eddie não ousou pedir esclarecimento.

 

A transportadora era o oposto exato da casa dos Tracker na West Broadway. Era uma estrutura baixa de tijolos; os tijolos eram velhos e estavam se desfazendo em alguns pontos, e o tom laranja-sujo estava desbotando para um preto-fuligem na base da construção. As janelas estavam uniformemente imundas, exceto por um ponto circular em uma das vidraças mais baixas do escritório do gerente. Aquela janela era mantida impecavelmente limpa por garotos antes de Eddie e dos outros que vieram depois, porque o gerente tinha um calendário da Playboy em cima da mesa. Nenhum garoto jogava beisebol no terreno dos fundos sem antes parar para limpar o vidro com a luva e examinar a pinup do mês.

 

A transportadora era cercada de uma área de cascalho em três dos lados. Caminhões de transporte de longa distância, Jimmy-Petes, Kenworths e Rios, todos pintados com as palavras IRMÃOS TRACKER DERRY NEWTON PROVIDENCE HARTFORD NOVA YORK, às vezes ficavam estacionados ali em profusão desordenada. Às vezes eram caminhões inteiros, às vezes apenas cabines ou caçambas, apoiadas silenciosamente em rodas de trás e suportes.

 

Os irmãos mantinham os caminhões fora do terreno nos fundos do prédio o máximo que podiam porque eram ambos fãs ávidos de beisebol e porque gostavam que as crianças fossem jogar lá. Phil Tracker transportava cargas, então os garotos raramente o viam, mas Tony Tracker, um homem com braços enormes e uma barriga combinando, cuidava dos livros e da contabilidade, e Eddie (que nunca jogava — sua mãe o teria matado se ouvisse que ele estava jogando beisebol, correndo por aí e enchendo os delicados pulmões de poeira, correndo o risco de quebrar a perna, de ter concussões e só Deus sabia o que mais) se acostumou a vê-lo. Ele era presença fixa no verão, e sua voz era tão parte do jogo para Eddie quanto a de Mel Allen passou a ser mais tarde: Tony Tracker, grande, mas de alguma forma fantasmagórico, com a camisa branca reluzindo conforme o sol descia e os vaga-lumes começavam a surgir no ar com luz própria, gritando: “Você precisa entrar debaixo da boooola antes de pegar, Ruivo!... Você tirou os olhos da boooola, Meio Quilo! Não dá pra rebater se não está olhando!... Escorregue, Pé de Cavalo! Se você enfiar as solas dos tênis Keds na cara do sujeito da segunda base, ele nunca vai botar você pra fora!”

 

Nunca chamava nenhum dos meninos pelo nome, lembrou Eddie. Era sempre ei, Ruivo, ei, Louro, ei, Quatro Olhos, ei, Meio Quilo. Nunca era bola, era sempre boooola. Nunca era taco, Tony sempre chamava de “vara de freixo”, como, por exemplo, “Você nunca vai acertar essa boooola se não segurar direito a vara de freixo, Pé de Cavalo.”

 

Sorrindo, Eddie, chegou mais perto... e o sorriso sumiu. O prédio comprido de tijolos onde pedidos eram gerenciados, caminhões eram consertados e mercadoria ficava armazenada por períodos curtos agora estava escuro e silencioso. Ervas daninhas cresciam em meio ao cascalho, e não havia caminhões em nenhum dos lados do pátio... só uma caçamba com laterais enferrujadas e velhas.

 

Ao chegar ainda mais perto, ele viu que havia uma placa de VENDE-SE de uma imobiliária na janela.

 

A transportadora fechou, pensou ele, e ficou surpreso pela tristeza que o pensamento gerou... como se alguém tivesse morrido. Ele ficou feliz por não ter andado até a West Broadway. Se a transportadora fechou, a transportadora dos Irmãos Tracker, que parecia eterna, o que poderia ter acontecido naquele lado da rua no qual ele gostava tanto de andar quando criança? Ele se deu conta com desconforto de que não queria saber. Não queria ver Greta Bowie com o cabelo ficando grisalho, com os quadris e as pernas mais grossos de tanto ficar sentada, comer e beber; era melhor e mais seguro ficar longe.

 

Era o que todos devíamos ter feito, ficado longe. Não temos nada que estar aqui. Voltar pra cidade onde você cresceu é como fazer uma postura louca de ioga, colocar o pé na própria boca e de alguma forma engolir a si próprio para que não sobre nada; não dá pra fazer e qualquer pessoa sã deveria ficar feliz por isso... o que você acha que aconteceu com Tony e Phil Tracker, afinal?

 

Ataque cardíaco no caso de Tony, talvez; ele carregava uns 35 quilos de carne extra no corpo. Era preciso prestar atenção no que seu coração poderia estar tramando. Os poetas podiam romancear sobre corações partidos e Barry Manilow podia cantar sobre isso, e por Eddie, tudo bem (ele e Myra tinham todos os discos gravados por Barry Manilow), mas ele preferia fazer um confiável eletrocardiograma todos os anos. Claro, o coração de Tony provavelmente desistira de funcionar. E Phil? Talvez má sorte na estrada. Eddie, que também ganhava a vida atrás do volante (pelo menos, no passado; atualmente, ele só dirigia para as celebridades e passava o resto do tempo pilotando uma escrivaninha), conhecia a má sorte de estrada. O velho Phil talvez tivesse perdido o controle do caminhão em algum ponto de New Hampshire ou Hainesville Woods, no norte do Maine, em época de nevasca, ou talvez os freios tenham falhado em uma ladeira ao sul de Derry, a caminho de Haven enquanto dirigia sob uma chuva de primavera. Essas coisas ou qualquer outra sobre as quais se cantava naquelas músicas country grudentas sobre caminhoneiros que usavam chapéus Stetson e só pensavam em traição. Pilotar a escrivaninha era solitário às vezes, mas Eddie já havia se sentado no banco do motorista mais de uma vez, com a bombinha sobre o painel (e um monte de comprimidos no porta-luvas), e sabia que a verdadeira solidão era um borrão vermelho: a cor do farol de trás do carro à sua frente refletida no pavimento molhado sob chuva forte.

 

— Ah, merda, o tempo passa — disse Eddie Kaspbrak em uma espécie de sussurro suspirado, e nem percebeu que tinha falado em voz alta.

 

Sentindo-se emocionado e infeliz ao mesmo tempo, um estado mais comum a ele do que ele gostaria de acreditar, Eddie contornou o prédio, com os sapatos Gucci estalando no cascalho, para olhar para a área onde os jogos de beisebol aconteciam quando ele era criança. Quando parecia que noventa por cento do mundo era composto de crianças.

 

O pátio não tinha mudado muito, mas uma olhada bastou para convencê-lo sem sombra de dúvida de que os jogos tinham acabado, uma tradição que simplesmente morreu em algum momento sem motivo aparente nos anos que se passaram.

 

Em 1958, o campo em forma de diamante era definido não por linhas de calcário, mas por sulcos feitos por pés. Os garotos que jogavam beisebol ali não tinham bases de verdade (garotos que eram todos mais velhos do que os Otários, embora Eddie lembrasse agora que Stan Uris às vezes jogava; ele rebatia razoavelmente, mas conseguia correr rápido no campo e tinha os reflexos de um anjo), mas quatro pedaços de lona suja ficavam debaixo da plataforma de carregamento atrás do prédio comprido de tijolos, para serem cerimoniosamente retirados quando havia garotos o suficiente no local para jogar, e cerimoniosamente devolvidos quando as sombras da noite tinham caído o bastante para acabar com a brincadeira.

 

De pé ali agora, Eddie não conseguia ver sinal das marcas do campo de beisebol. Mato havia crescido em meio ao cascalho de forma desordenada. Garrafas quebradas de refrigerante e cerveja brilhavam aqui e ali; antigamente, cacos que vidro assim eram religiosamente retirados. A única coisa que estava igual era a cerca de arame nos fundos do campo, com 3,5 metros de altura e enferrujada como sangue seco. Ela quebrava o céu em milhares de pedaços em forma de diamante.

 

Era território de home-run, pensou Eddie, perplexo, com as mãos no bolso, de pé em um lugar onde havia uma base 27 anos antes. Por cima da cerca e para dentro do Barrens. Chamavam de O Automático. Ele riu alto e olhou ao redor com nervosismo, como se um fantasma tivesse gargalhado em vez de um cara com uma calça de 60 dólares, um cara tão sólido quanto... bem, tão sólido quanto... quanto...

 

Pare com isso, Eds, pareceu sussurrar a voz de Richie. Você não é nada sólido, e nos últimos anos as hahas foram diminuindo e ficando cada vez mais espaçadas. Certo?

 

— É, isso mesmo — disse Eddie com voz baixa, e chutou algumas pedras soltas.

 

Na verdade, ele só tinha visto duas bolas passarem por cima da cerca e irem para o terreno atrás da transportadora, as duas rebatidas pelo mesmo garoto: Arroto Huggins. Arroto era quase comicamente grande, já com 1,80 metro aos 12 anos, e pesava talvez uns 75 quilos. Ele ganhou o apelido porque conseguia dar arrotos de duração e volume impressionantes. Nos melhores, ele parecia um cruzamento entre sapo-boi e cigarra. Às vezes, ele batia a mão rapidamente sobre a boca aberta enquanto arrotava, emitindo um som que parecia um índio rouco.

 

Arroto era grande e não muito gordo, lembrou Eddie, mas era como se Deus nunca pretendesse realmente que um garoto de 12 anos tivesse um tamanho tão avantajado; se ele não tivesse morrido naquele verão, poderia ter chegado a 2 metros ou mais, e talvez pudesse ter aprendido no processo de crescimento a controlar o corpo grande demais em um mundo de pessoas menores. Eddie pensou que ele poderia até ter aprendido a ser gentil. Mas, aos 12 anos, ele era desajeitado e cruel, não retardado, mas quase parecendo, porque todas as ações de seu corpo pareciam incrivelmente desastradas e mal calculadas. Ele não tinha nada do ritmo internalizado de Stanley; era como se o corpo de Arroto não conversasse com o cérebro e existisse em seu próprio cosmos de trovão lento. Eddie conseguia se lembrar da noite em que uma bola lenta foi lançada diretamente para a posição de Arroto na extremidade do campo. Arroto nem precisava se mover. Ele ficou olhando para cima, levantou a luva em um gesto de soco quase não direcionado, e, em vez de cair em sua luva, a bola bateu no alto de sua cabeça, produzindo um som oco. Foi como se a bola tivesse sido largada do terceiro andar no teto de um Ford sedã. Ela quicou por um bom 1,20 metro e caiu direitinho na luva de Arroto. Um garoto infeliz chamado Owen Phillips riu do som oco. Arroto andou até ele e chutou a bunda dele com tanta força que Phillips foi correndo para casa com um buraco na calça. Mais ninguém riu... pelo menos não externamente. Eddie achava que, se Richie Tozier estivesse lá, ele não conseguiria se segurar, e Arroto provavelmente o teria mandado para o hospital. Arroto também era lento na base. Era fácil eliminá-lo e, se ele rebatesse para o chão, até os jogadores mais desajeitados não tinham dificuldade em eliminá-lo de cara. Mas quando ele acertava uma, ela ia bem, bem longe. As duas bolas que Eddie viu Arroto rebater por cima da cerca foram incríveis. A primeira nunca foi recuperada, embora mais de dez garotos tenham andado pela ladeira inclinada que descia para o Barrens em busca dela.

 

A segunda, entretanto, foi recuperada. A bola pertencia a outro garoto do sexto ano (Eddie não conseguia lembrar agora qual era o nome dele, só que todos os garotos o chamavam de Fungão porque ele sempre estava resfriado) e foi usada durante a maior parte da primavera e começo do verão de 1958. Como resultado, não era mais a criação esférica branca quase perfeita com costuras vermelhas que tinha sido ao sair da caixa; estava gasta, manchada de grama e com vários cortes pelas centenas de viagens e quedas no cascalho ao redor. A costura estava começando a se desfazer em um ponto, e Eddie, que pegou quatro bolas que caíram fora do campo quando sua asma não estava ruim (apreciando cada Obrigado, garoto! casual quando jogava a bola de volta para o campo), sabia que em pouco tempo alguém apareceria com um rolo de fita isolante preta para consertá-la, para que durasse mais uma semana ou duas.

 

Mas antes da chegada desse dia, um garoto do sétimo ano com o nome improvável de Stringer Dedham jogou o que ele chamava de uma bola com “mudança de velocidade” para Arroto Huggins. Arroto calculou o momento perfeitamente (as mais lentas eram bem a velocidade dele, com o perdão do trocadilho) e acertou o irmão mais velho de Fungão, Spalding, com tanta força que a capa se soltou e voou até poucos metros da segunda base como uma mariposa branca. A bola em si continuou a subir e subir no belo céu crepuscular, se desfazendo e se desfazendo enquanto subia, com os garotos se virando para acompanhar o progresso com perplexidade estúpida, e ela seguiu por cima da cerca, ainda subindo, e Eddie lembrava que Stringer Dedham dissera “Pu-ta merda!” com voz baixa e impressionada enquanto a bola seguia para o céu. E todos viram a bola se desfazendo, e antes mesmo de ela cair, seis garotos já estavam subindo a cerca, e Eddie conseguia se lembrar de Tony Tracker rindo como louco e gritando:

 

— Essa podia ter saído direto do estádio dos Yankees! Estão ouvindo? Essa podia ter saído direto da porra do estádio dos Yankees!

 

Foi Peter Gordon quem encontrou a bola, não longe do córrego onde o Clube dos Otários faria a represa menos de três semanas depois. O que sobrou não tinha nem 7 centímetros de diâmetro; era uma espécie de milagre absurdo o centro não ter se quebrado.

 

Com consentimento silencioso, os garotos levaram os restos da bola de Fungão para Tony Tracker, que a examinou sem dizer nada, cercado de garotos igualmente silenciosos. Visto de longe, aquele círculo de garotos ao redor do homem alto com a barriga proeminente poderia parecer com intenção quase religiosa, em veneração a um objeto sagrado. Arroto Huggins nem correu pelas bases. Apenas ficou em meio aos outros como um garoto que não fazia ideia precisa do que era. O que Tony Tracker entregou para ele naquele dia era menor do que uma bola de tênis.

 

Eddie, perdido nas lembranças, andou do local onde ficava a primeira base, passou pelo morrinho do lançador (só que nunca houve um morrinho; era uma depressão da qual o cascalho havia sido retirado) e andou até a defesa entre a segunda e a terceira base. Ele fez uma pausa curta, surpreso pelo silêncio, e caminhou até a cerca de arame. Estava mais enferrujada do que nunca, e tomada por uma espécie de hera feia, mas ainda estava lá. Ao olhar pela cerca, ele conseguiu ver que o chão descia em uma ladeira de verde agressivo.

 

O Barrens estava parecendo uma selva mais do que nunca, e pela primeira vez ele se viu se perguntando por que uma vegetação tão densa e virulenta era chamada de Barrens: o local era muitas coisas, mas estéril não era uma delas. Por que não Mato? Ou Selva?

 

Barrens.

 

O som era agourento, quase sinistro, mas o que ele conjurava na mente não eram emaranhados de arbustos e árvores tão densos que tinham que lutar para encontrar espaço ao sol; ele evocava imagens de dunas de areia se deslocando infinitamente, ou áreas cinzentas de rocha ou deserto. Árido. Mike disse antes que eles eram todos estéreis, e parecia verdade. Sete pessoas e nem um único filho. Mesmo naquela época de paternidade planejada, era contra todas as estatísticas.

 

Ele olhou para a cerca enferrujada com elos em formato de diamante e ouviu o ruído distante dos carros na rua Kansas e o movimento de água abaixo. Conseguia ver brilhos dela em meio ao sol de primavera, como pedaços de vidro cintilando. A área de bambu ainda estava lá embaixo, com aparência branca doentia, como trechos de fungo em meio ao verde. Atrás disso, na área pantanosa à margem do Kenduskeag, diziam haver lama movediça.

 

Passei os momentos mais felizes da minha infância nessa imundície, pensou ele, e tremeu.

 

Ele estava prestes a se virar quando uma coisa chamou sua atenção: um cilindro de cimento com uma pesada tampa de aço em cima. Buracos de Morlocks era como Ben costumava chamá-los, rindo com a boca, mas não com os olhos. Se você fosse até um, ele ia até a cintura mais ou menos (se você fosse criança), e dava para ver DEPARTAMENTO DE OBRAS PÚBLICAS DE DERRY em alto-relevo em um semicírculo no metal. E dava para ouvir um zumbido vindo de dentro. Algum tipo de maquinário.

 

Buracos de Morlocks.

 

Foi pra lá que fomos. Em agosto. No final. Entramos em um dos buracos de Morlocks de Ben, nos esgotos, mas depois de um tempo não eram mais esgotos. Eram... eram... o quê?

 

Patrick Hockstetter estava lá embaixo. Antes de a Coisa levar ele, Beverly viu ele fazendo uma coisa ruim. Ela achou graça, mas saiba que era ruim. Alguma coisa a ver com Henry Bowers, não foi? É, acho que sim. E...

 

Ele se virou de repente e começou a voltar para a transportadora abandonada, sem querer olhar mais para o Barrens, sem gostar do pensamento que aquilo despertava. Queria estar em casa com Myra. Não queria estar ali. Ele...

 

— Pega, garoto!

 

Ele se virou em direção ao som da voz, e uma espécie de bola passou por cima da cerca e seguiu na direção dele. Eddie esticou a mão e segurou. No reflexo, sem pensar, ele pegou tão bem que foi quase com elegância.

 

Ele olhou para o que estava segurando e tudo dentro de seu corpo ficou frio e frouxo. Aquilo já tinha sido uma bola de beisebol. Agora, era só uma esfera de barbante enrolado, porque a cobertura tinha caído. Ele conseguia ver o barbante desenrolando. Seguia por cima da cerca como uma teia de aranha e desaparecia no Barrens.

 

Ah Jesus, pensou ele. Ah Jesus, a Coisa está aqui, a Coisa está aqui comigo AGORA...

 

— Vem brincar, Eddie — disse a voz do outro lado da cerca, e Eddie percebeu com um horror apavorante que era a voz de Arroto Huggins, que tinha sido assassinado nos túneis debaixo de Derry em agosto de 1958. E agora, aqui estava o próprio Arroto, lutando para subir pela ladeira do outro lado da cerca.

 

Ele estava usando um uniforme listrado de beisebol do New York Yankees coberto de pedaços de folhas de outono e manchado de verde. Era Arroto, mas também era o leproso, uma criatura despertada horrivelmente depois de anos em um túmulo molhado. A carne do rosto estava pendurada em pedaços pútridos. Um dos olhos era um buraco vazio. Coisas se remexiam em seu cabelo. Ele estava com uma luva de beisebol coberta de limo em uma das mãos. Enfiou os dedos apodrecidos da mão direita pelos buracos em forma de diamante da cerca e, quando os fechou, Eddie ouviu um som úmido terrível que achou que o levaria à loucura.

 

— Essa podia ter saído direto do estádio dos Yankees — disse Arroto, e sorriu. Um sapo, horrivelmente branco e se contorcendo, caiu de sua boca direto no chão. — Está ouvindo? Essa podia ter saído direto da porra do estádio dos Yankees! Aliás, Eddie, quer um boquete? Faço por dez centavos. Porra, faço de graça.

 

O rosto de Arroto mudou. O nariz gelatinoso caiu e revelou dois canais vermelhos em carne viva que Eddie já tinha visto em sonhos. O cabelo se engrossou e se afastou das têmporas, ficou branco cor de teia de aranha. A pele podre da testa se abriu, deixando à mostra osso branco coberto de substância semelhante a muco, como a lente suja de uma lanterna. Arroto tinha sumido; a coisa que estava embaixo da varanda do número 29 da rua Neibolt estava ali agora.

 

— Bobby me chupa por dez centavos — cantou ele, começando a subir a cerca. Deixou pedaços de carne nos orifícios em forma de diamante formados pelo arame. A cerca tremeu e estalou com o peso dele. Quando ele tocava na hera que subia pela cerca, ela ficava preta. — Ele faz a qualquer hora. Quinze centavos se demorar.

 

Eddie tentou gritar. Nada saiu além de um gritinho seco e sem sentido. Seus pulmões pareciam as ocarinas mais secas do mundo. Ele olhou para a bola na mão, e de repente sangue começou a escorrer entre o barbante enrolado. Pingou no cascalho e manchou os sapatos dele.

 

Ele a jogou no chão e deu dois passos cambaleantes para trás, com os olhos saltando da cara, e esfregou as mãos na frente da camisa. O leproso tinha chegado no alto da cerca. Sua cabeça se balançou contra o céu, um formato de pesadelo como uma abóbora inchada de Halloween. A língua se desenrolou para fora com 1,20 metro, talvez 1,80. Ela se retorceu pela cerca abaixo como uma cobra saindo da boca sorridente do leproso.

 

Estava ali em um segundo... e sumiu no seguinte.

 

Ele não sumiu como um fantasma em um filme; apenas piscou e deixou de existir. Mas Eddie ouviu um som que confirmou a solidez essencial: um estalo, como uma rolha saindo de uma garrafa de champanhe. Era o som do ar preenchendo o lugar onde o leproso antes estava.

 

Ele se virou e começou a correr, mas antes de percorrer 3 metros, quatro formas rígidas saíram voando das sombras debaixo da plataforma de carregamento da transportadora abandonada. Primeiro, ele pensou que fossem morcegos, gritou e cobriu a cabeça... Mas viu que eram quadrados de lona, os quadrados que serviam de base quando os garotos grandes jogavam ali.

 

Eles giraram e rodopiaram no ar parado; ele precisou se abaixar para desviar de um deles. Cada um pousou nos lugares de sempre ao mesmo tempo, levantando nuvens de poeira. A base principal, a primeira, a segunda e a terceira.

 

Ofegante, com a respiração curta na garganta. Eddie passou correndo pela base principal, com os lábios repuxados e o rosto branco como queijo cottage.

 

WHACK! O som de um taco batendo em uma bola fantasma. E então...

 

Eddie parou quando perdeu todas as forças nas pernas e um gemido escapou de seus lábios. O chão estava inflando em linha reta da base principal até a primeira, como se uma toupeira gigante estivesse fazendo rapidamente um túnel embaixo da superfície da terra. O cascalho rolou para os dois lados. A forma debaixo da terra chegou à base, e a lona voou no ar. Subiu com tanta força e rapidez que fez um estalo, o mesmo que um engraxate faz quando está animado e estala a flanela. O chão começou a subir entre a primeira e a segunda base, cada vez mais rápido. A segunda base voou no ar com estalo similar e mal tinha pousado no chão quando a forma chegou à terceira base e estava voltando para a principal.

 

A base principal também voou, mas antes que caísse, a coisa saiu do chão como um brinquedo de festa de criança, e a coisa era Tony Tracker, com um crânio no lugar da cabeça com alguns pedaços de carne ainda presos na cara, a camisa branca em tiras brancas e podres de linho. Ele saiu da terra na base principal da cintura para cima, balançando-se para a frente e para trás como uma minhoca grotesca.

 

— Você pode segurar a vara de freixo como quiser — disse Tony Tracker com voz arenosa e áspera. Dentes expostos sorriam com companheirismo lunático. — Não importa, Apito. Vamos te pegar. Você e seus amigos. Vamos arrasaaaar!

 

Eddie gritou e cambaleou para trás. Havia uma mão em seu ombro. Ele se encolheu para se afastar dela. A mão o apertou por um momento, mas acabou cedendo. Ele se virou. Era Greta Bowie. Estava morta. Metade do rosto dela não existia mais; vermes rastejavam na carne vermelha que tinha sobrado. Ela estava segurando um balão verde em uma das mãos.

 

— Acidente de carro — disse a metade reconhecível da boca, e ela sorriu. O sorriso provocou um indescritível som de rasgo, e Eddie conseguiu ver tendões se movendo como tiras terríveis. — Eu tinha 18 anos, Eddie. Estava bêbada e cheia de Seconal. Seus amigos estão aqui, Eddie.

 

Eddie se afastou dela com as mãos erguidas na frente do rosto. Ela andou na direção dele. O sangue tinha respingado e secado na perna dela em longas manchas. Ela estava usando mocassins.

 

E agora, atrás dela, ele viu o maior horror do mundo: Patrick Hockstetter estava cambaleando na direção dele pelo campo. Ele também estava usando um uniforme do New York Yankees.

 

Eddie correu. Greta o segurou de novo, o que rasgou sua camisa e derramou algum líquido terrível em suas costas, pela parte de trás da gola. Tony Tracker estava saindo do buraco de toupeira de tamanho humano. Patrick Hockstetter cambaleou e se arrastou. Eddie correu, sem saber onde estava encontrando fôlego para isso, mas correndo mesmo assim. Enquanto corria, ele viu as palavras flutuando em sua frente, as palavras que estavam escritas no balão verde que Greta Bowie estava segurando:

 

REMÉDIO DE ASMA PROVOCA CÂNCER DE PULMÃO!

CUMPRIMENTOS DA CENTER STREET DRUG

 

Eddie correu. Ele correu e correu, e, em algum momento, caiu quase desmaiado perto do Parque McCarron. Algumas crianças o viram e ficaram longe porque ele parecia um doido para eles, como se pudesse ter algum tipo de doença estranha, e, pelo que eles sabiam, podia até ser o assassino, e eles falaram em denunciá-lo para a polícia, mas no final não denunciaram.

 

Bev Rogan faz uma visita

 

Beverly andou distraidamente pela rua Main a partir do Derry Town House, para onde tinha ido vestir uma calça jeans e uma bata amarela. Não pensava para onde estava indo. O que ela pensou foi:

 

Cabelos de fogo

como brasas no inverno.

Meu coração queima.

 

Ela tinha escondido isso na gaveta de baixo, sob as calcinhas. A mãe talvez tivesse visto, mas não tinha problema. O importante era que o pai nunca olhava naquela gaveta. Se ele tivesse visto o cartão, poderia ter olhado para ela com aquela expressão alegre, quase simpática e completamente paralisante e perguntado de uma forma quase gentil: “Andou fazendo alguma coisa que não devia, Bev? Andou fazendo alguma coisa com algum garoto?” E se ela dissesse sim ou se dissesse não, haveria um movimento rápido, tão rápido e tão forte que nem doía a princípio; demorava alguns segundos para o vácuo se dissipar e a dor preencher o lugar onde ele estava. E então, a voz dele de novo, quase simpática: “Me preocupo muito com você, Beverly. Me preocupo demais. Você precisa crescer, não é verdade?”

 

O pai dela podia ainda estar morando aqui em Derry. Estava ali na última vez que ela teve notícias dele, mas isso tinha sido... havia quanto tempo? Dez anos? Bem antes de ela ter se casado com Tom. Ela recebeu um cartão-postal dele, não um cartão-postal simples como aquele no qual o poema foi escrito, mas um com a imagem da horrível estátua de plástico de Paul Bunyan que ficava na frente do City Center. A estátua foi erigida em algum momento nos anos 1950 e era um dos marcos da infância dela, mas o cartão do pai não despertou nostalgia nenhuma nem lembranças; podia muito bem ser um cartão exibindo o Portal em Arco de Saint Louis ou a Ponte Golden Gate em São Francisco.

 

“Espero que você esteja bem e sendo boazinha”, dizia o cartão. “Espero que me mande alguma coisa se puder, porque não tenho muito. Amo você Bevvie. Papai.”

 

Ele a amava, e de certa forma ela achava que isso tinha tudo a ver com o motivo de ela ter se apaixonado tão desesperadamente por Bill Denbrough naquele longo verão de 1958 — porque, de todos os garotos, Bill era o que projetava a sensação de autoridade que ela associava com o pai... mas era um tipo diferente de autoridade, de alguma maneira. Era autoridade que escutava. Ela não via suposição nem nos olhos nem nas ações dele de que ele acreditava que o tipo de preocupação do pai dela era o único motivo para a autoridade precisar existir... como se as pessoas fossem bichinhos de estimação, para serem mimadas e também punidas.

 

Fosse qual fosse o motivo, no final da primeira reunião deles como grupo completo em julho daquele ano, da reunião que Bill liderou de forma tão completa e sem esforço, ela já estava louca e completamente apaixonada por ele. Chamar de amor de pré-adolescente era como dizer que um Rolls-Royce era um carro de quatro rodas, alguma coisa como uma carroça de feno. Ela não dava risadinhas nem ficava vermelha quando o via, nem escrevia o nome dele com giz em árvores nem nas paredes da Ponte do Beijo. Apenas vivia com o rosto dele no coração o tempo todo, um tipo de dor doce e sofrida. Ela teria morrido por ele.

 

Ela supunha ser bem natural que ela quisesse acreditar que tinha sido Bill quem mandou o poema de amor... embora nunca tenha chegado ao ponto de convencer a si mesma disso. Não, ela sabia quem tinha escrito o poema. E, mais tarde, em algum momento, o autor não admitiu para ela? Sim, Ben contou para ela (apesar de ela não conseguir lembrar agora, por nada desse mundo, nem quando nem sob que circunstâncias ele falou em voz alta), e apesar de o amor dele por ela ficar quase tão bem escondido quanto o amor que ela sentia por Bill,

 

(mas você contou pra ele Bevvie você contou pra ele que amava ele)

 

era óbvio para qualquer pessoa que olhasse de verdade (e que fosse gentil). Dava para perceber pela forma como ele sempre mantinha um espaço cuidadoso entre eles, pela inspiração dele quando ela tocava no braço ou na mão dele, pela forma como ele se vestia quando sabia que se encontraria com ela. O querido, doce e gordo Ben.

 

De alguma forma, aquele difícil triângulo pré-adolescente acabou, mas como acabou era uma das coisas de que ela ainda não conseguia se lembrar. Ela achava que Ben tinha confessado a autoria e o envio do poeminha de amor. Achava que ela tinha contado a Bill que o amava, que o amaria para sempre. E, de alguma forma, essas duas informações tinham ajudado a salvar a vida de todos eles... Seria possível? Ela não conseguia lembrar. Essas lembranças (ou lembranças das lembranças: isso se aproximava mais do que realmente eram) eram como ilhas que não eram realmente ilhas, mas apenas pedaços de um coral que por acaso surgiu acima da superfície, não separados, mas uma única peça. Mas sempre que ela tentava mergulhar e ver o resto, uma imagem enlouquecedora interferia: os melros que voltavam a cada primavera para a Nova Inglaterra, cobrindo as linhas telefônicas, árvores e telhados, brigando por espaço e ocupando o ar frio de fim de março com sua fofoca barulhenta. A imagem voltou à mente dela repetidas vezes, estranha e perturbadora, como um raio pesado de rádio que esconde o sinal que você quer realmente captar.

 

Ela percebeu com choque repentino que estava de pé em frente à Kleen-Kloze Washateria, para onde ela, Stan Uris, Ben e Eddie tinham levado os panos de chão naquele dia no fim de junho, panos manchados de sangue que só eles conseguiam ver. As janelas agora estavam opacas de sabão, e havia um cartaz escrito à mão com as palavras À VENDA PELO DONO colado à porta. Ao olhar por entre as partes ensaboadas, ela conseguiu ver um aposento vazio com quadrados mais claros nas paredes sujas e amareladas marcando o local onde ficavam as máquinas.

 

Estou indo pra casa, pensou ela com tristeza, mas prosseguiu mesmo assim.

 

O bairro não tinha mudado muito. Algumas árvores não estavam mais lá, provavelmente olmos que tombaram após alguma praga. As casas pareciam mais maltratadas; janelas quebradas pareciam um pouco mais comuns do que quando ela era criança. Algumas das vidraças quebradas foram substituídas por papelão. Algumas, não.

 

E aqui estava ela, em frente ao prédio de número 127 da rua Lower Main. Ainda aqui. O branco descascado do qual ela se lembrava tinha virado marrom chocolate descascado em algum momento ao longo dos anos que se passaram, mas o local ainda era inconfundível. Ali estava a janela do que era a cozinha; ali estava a janela do quarto dela.

 

(Jim Doyon, sai da rua! Sai agora, você quer ser atropelado e morrer?)

 

Ela tremeu e cruzou os braços sobre os seios formando um X, acomodando os cotovelos nas palmas das mãos.

 

Papai poderia ainda estar morando aqui; ah, poderia mesmo. Ele não se mudaria a não ser que precisasse. Apenas ande até lá, Beverly. Olhe nas caixas de correio. Três caixas para três apartamentos, como antigamente. E se houver uma escrito MARSH, você pode tocar a campainha, e logo vai ouvir chinelos sendo arrastados no corredor, a porta vai se abrir e você pode olhar para ele, o homem cujo esperma fez você ser ruiva, canhota e deu a você a capacidade de desenhar... lembra como ele desenhava? Ele conseguia desenhar qualquer coisa que quisesse. Se tivesse vontade, é claro. Ele não sentia vontade com frequência. Acho que tinha muitas coisas com que se preocupar. Mas quando queria, dava para passar horas sentada vendo-o desenhar gatos, cachorros, cavalos e vacas com um MU saindo da boca em balõezinhos. Você ria e ele ria, e ele dizia Agora você, Bevvie, e quando você segurava a caneta, ele guiava sua mão e você via a vaca ou o gato ou o homem sorridente surgindo por baixo de seus dedos enquanto sentia o cheiro da loção pós-barba Mennen Skin Bracer e o calor da pele dele. Vá até lá, Beverly. Toque a campainha. Ele virá e vai estar velho, as rugas no rosto dele serão fundas, e os dentes dele, os que tiverem sobrado, vão estar amarelados; ele vai olhar para você e vai dizer Nossa, é a Bevvie, Bevvie veio pra casa ver o pai velho, entre, Bevvie, estou tão feliz de ver você, estou feliz porque me preocupo com você, Bevvie, me preocupo MUITO.

 

Ela seguiu o caminho lentamente, e o mato crescendo entre os pedaços rachados de concreto roçaram nas pernas da calça jeans. Ela olhou com atenção para as janelas do primeiro andar, mas elas estavam cobertas por cortinas. Ela olhou para as caixas de correio. Terceiro andar, STARKWEATHER. Segundo andar, BURKE. Primeiro andar (ela perdeu o fôlego), MARSH.

 

Mas não vou tocar a campainha. Não quero vê-lo. Não vou tocar a campainha.

 

Foi uma decisão firme, finalmente! A decisão que abriu o portão para uma vida cheia e útil de decisões firmes! Ela voltou pelo caminho! Para o centro da cidade! Até o Derry Town House! Fez a mala! Pegou um táxi! Um avião! Mandou Tom cair fora! Viveu com sucesso! Morreu feliz!

 

Tocou a campainha.

 

Ela ouviu o toque familiar na sala de estar, o toque que sempre pareceu aos ouvidos dela um nome chinês: Ching-Chong! Silêncio. Nenhuma resposta. Ela se mexeu de um pé para o outro, com uma necessidade repentina de urinar.

 

Não tem ninguém em casa, pensou ela, aliviada. Posso ir agora.

 

Em vez de ir, ela tocou de novo: Ching-Chong! Sem resposta. Ela pensou no poeminha lindo de Ben e tentou lembrar exatamente quando e como ele confessou a autoria, e por que, por um breve segundo, isso gerou uma associação com seu primeiro ciclo menstrual. Ela começou a menstruar aos 11 anos? Sem dúvida que não, embora os seios tenham começado a crescer dolorosamente no meio do inverno. Por quê...? E então, interrompendo, uma imagem mental de milhares de melros em linhas telefônicas e telhados, todos falando no céu branco de primavera.

 

Vou embora agora. Já toquei duas vezes; isso basta.

 

Mas ela tocou de novo.

 

Ching-Chong!

 

Agora, ela ouviu alguém se aproximando, e o som foi exatamente como ela imaginou: o sussurro cansado de chinelos velhos. Ela olhou ao redor desesperadamente e chegou bem, bem perto de sair correndo. Será que ela conseguia descer o caminho de cimento e dobrar a esquina, deixando o pai a pensar que não tinha sido nada além de uma brincadeira de criança? Ei, moço, seu coração está batendo...?

 

Ela expirou intensamente e precisou segurar a garganta, porque tudo que queria sair era uma gargalhada de alívio. Não era o pai dela. De pé na porta e olhando para ela, havia uma mulher com aparência de quase 80 anos. O cabelo era comprido e bonito, quase todo branco, mas com mechas de puro ouro. Por trás dos óculos sem aro estavam olhos azuis como as águas nos fiordes pelos quais os ancestrais dela provavelmente viajaram. Ela estava usando um vestido roxo de seda moiré. Estava velho, mas ainda era elegante. O rosto cheio de rugas era gentil.

 

— Sim, moça?

 

— Me desculpe — disse Beverly. A vontade de rir passou com a mesma rapidez que chegou. Ela reparou que a senhora usava um camafeu no pescoço. Era quase certamente de marfim de verdade, cercado por uma tira de ouro tão fina que era quase invisível. — Devo ter tocado a campainha errada. — Ou tocado a campainha errada de propósito, sussurrou sua mente. — Eu pretendia tocar na residência dos Marsh.

 

— Marsh? — Ela enrugou a testa delicadamente.

 

— É, sabe...

 

— Não tem nenhum Marsh aqui — disse a mulher idosa.

 

— Mas...

 

— A não ser... Você não está falando de Alvin Marsh, está?

 

— Sim! — disse Beverly. — Meu pai!

 

A mão da mulher idosa foi até o camafeu e tocou nele. Ela olhou com mais atenção para Beverly, fazendo-a se sentir ridiculamente jovem, como se devesse estar com uma caixa de biscoitos de bandeirante nas mãos, ou talvez umas bandeirinhas de torcida dos Tigers da Derry High School. E então a mulher sorriu... um tipo de sorriso que era triste.

 

— Você sumiu mesmo, moça. Não quero ser quem vai dar a notícia, uma estranha, mas seu pai está morto há cinco anos.

 

— Mas... na campainha... — Ela olhou de novo e emitiu um som baixo e perplexo que não era bem uma gargalhada. Em sua agitação, no subconsciente junto com a certeza de que o pai ainda estaria ali, ela leu KERSH como MARSH.

 

— A senhora é a sra. Kersh? — perguntou ela. Estava surpresa pela notícia sobre o pai, mas também se sentiu idiota pelo erro. A senhora pensaria que ela não passava de uma analfabeta.

 

— Sra. Kersh — concordou ela.

 

— A senhora... conheceu meu pai?

 

— Muito pouco eu o conheci — disse a sra. Kersh. Ela pareceu um pouco o Yoda falando em O império contra-ataca, e Beverly sentiu vontade de rir de novo. Quando é que as emoções dela ficaram tão contraditórias? A verdade era que ela não conseguia se lembrar de um momento... mas sentiu um medo pesaroso de que lembraria logo. — Ele alugava o apartamento do térreo antes de mim. Nós nos víamos, eu vindo e ele indo, no espaço de alguns dias. Ele se mudou para a travessa Roward. Você conhece?

 

— Conheço — disse Beverly. A travessa Roward começava na rua Lower Main a quatro quadras dali, onde os apartamentos eram menores e mais descuidados.

 

— Eu o via no mercado da avenida Costello às vezes — disse a sra. Kersh —, e na Washateria antes de fechar. Trocamos algumas palavras de tempos em tempos. Nós... garota, você está pálida. Sinto muito. Entre e vou servir um chá.

 

— Não, eu não poderia — disse Beverly fracamente, mas na verdade sentia-se pálida, como gás enevoado pelo qual mal dava para enxergar. Um chá cairia bem, e uma cadeira para se sentar e bebê-lo.

 

— Poderia e vai — disse a sra. Kersh calorosamente. — É o mínimo que posso fazer por ter dado uma notícia tão desagradável.

 

Antes de poder protestar, Beverly se viu sendo levada pelo corredor escuro para dentro de seu antigo apartamento, que agora parecia bem menor, mas bem seguro. Seguro, achava ela, porque quase tudo estava diferente. Em vez da mesa de fórmica cor-de-rosa com três cadeiras, havia uma pequena mesa redonda, não muito maior do que uma mesa de canto, com flores de seda em um vaso. Em vez da velha geladeira Kelvinator com o motor redondo no alto (o pai mexia nele constantemente para manter funcionando), havia uma Frigidaire da cor de cobre. O fogão era pequeno, mas de aspecto eficiente. Havia um micro-ondas Amana RadarRange em cima. Cortinas azuis cobriam as janelas, e ela conseguia ver um canteiro de flores do lado de fora. O piso, de linóleo quando ela era criança, tinha sido arrancado e deixado na madeira original. Muitas enceragens deixaram-no delicadamente brilhoso.

 

A sra. Kersh olhou para ela do fogão, onde estava colocando uma chaleira.

 

— Você cresceu aqui?

 

— Cresci — disse Beverly. — Mas está diferente agora... tão bem-cuidado e arrumado... maravilhoso!

 

— Que gentil você é — disse a sra. Kersh, e seu sorriso a deixou mais jovem. Era radiante. — Tenho um pouco de dinheiro, sabe? Não muito, mas vivo bem com minha aposentadoria. Eu morava na Suécia quando criança. Vim para este país em 1920, com 14 anos e sem dinheiro, que é a melhor maneira de aprender o valor dele, você não acha?

 

— Acho — disse Bev.

 

— No hospital eu trabalhei — disse a sra. Kersh. — Muitos anos, desde 1925 trabalhei lá. Cheguei ao cargo de zeladora principal. Todas as chaves eu tinha. Meu marido investiu bem nosso dinheiro. Agora, conquistei este porto seguro. Olhe por aí, senhorita, enquanto a água ferve!

 

— Não, eu não poderia...

 

— Por favor... ainda me sinto culpada. Olhe se quiser!

 

E assim, ela foi olhar. O quarto dos pais dela agora era o quarto da sra. Kersh, e a diferença era enorme. O quarto parecia mais iluminado e arejado agora. Um baú grande de cedro, com as iniciais R. G. entalhadas, espalhava o delicado aroma no ar. Uma enorme colcha bordada cobria a cama. Nela, ela conseguia ver mulheres pegando água, garotos levando gado, homens fazendo montes de feno. Uma colcha linda.

 

O quarto dela tinha se tornado um quarto de costura. Havia uma máquina Singer preta sobre uma mesa de ferro fundido debaixo de um par de eficientes lâmpadas Tensor. Uma imagem de Jesus estava pendurada em uma parede, uma foto de John F. Kennedy na outra. Uma linda cristaleira ficava debaixo da foto de JFK. Estava cheia de livros em vez de porcelana, mas não parecia pior por isso.

 

Ela foi até o banheiro por último.

 

Ele tinha sido reformado em um tom rosado que era pálido e agradável demais para parecer berrante. Todas as louças eram novas, mas mesmo assim ela se aproximou da pia sentindo que o velho pesadelo a tinha agarrado de novo; ela olharia naquele olho preto e sem pálpebra, os sussurros começariam e o sangue...

 

Ela se inclinou por cima da pia, teve um vislumbre de seu rosto pálido e olhos escuros no espelho acima e olhou para aquele olho, esperando as vozes, as gargalhadas, os grunhidos, o sangue.

 

Quanto tempo ela ficou ali inclinada sobre a pia, esperando as visões e os sons de 27 anos antes, ela não sabia; foi a voz da sra. Kersh que a trouxe de volta.

 

— Chá, moça!

 

Ela se empertigou, com a semi-hipnose interrompida, e saiu do banheiro. Se havia magia negra em algum ponto daquele ralo, não existia mais agora... ou estava dormindo.

 

— Ah, a senhora não devia!

 

A sra. Kersh olhou para ela com alegria, com um sorriso de leve.

 

— Ah, moça, se você soubesse o quanto é raro eu ter visitas atualmente, não diria isso. Fiz mais do que isso pro homem da Bangor Hydro que vem aferir meu hidrômetro! Estou deixando ele gordo!

 

Havia xícaras e pires delicados sobre a mesa redonda da cozinha, brancas com bordas azuis. Havia um pratinho de bolinhos e biscoitos. Ao lado dos doces, um bule de peltre soltava vapor e uma fragrância agradável. Confusa, Bev pensou que as únicas coisas que faltavam eram sanduichinhos de pão de fôrma com a casca cortada: sanduichesdetia era como ela pensava, sempre como uma única palavra. Os três tipos principais de sanduichesdetia eram de cream cheese com azeitona, de agrião e de salada de ovo.

 

— Sente-se — disse a sra. Kersh. — Sente-se, moça, e vou servir o chá.

 

— Não sou moça — disse Beverly, e levantou a mão para mostrar a aliança.

 

A sra. Kersh sorriu e balançou a mão no ar. Besteira, dizia o gesto.

 

— Chamo todas as garotas jovens e bonitas de moça — disse ela. — Por hábito. Não se ofenda.

 

— Não — disse Beverly. — De jeito nenhum. — Mas, por algum motivo, ela sentiu um toque leve de desconforto: havia alguma coisa no sorriso da velha mulher que parecia um pouco... o quê? Desagradável? Falso? Sagaz? Mas isso era ridículo, não era?

 

— Adorei o que a senhora fez com o apartamento.

 

— É mesmo? — disse a sra. Kersh, e serviu o chá. A aparência era escura, lamacenta. Beverly não tinha certeza se queria bebê-lo... e, de repente, não tinha certeza se ainda queria estar aqui.

 

Dizia mesmo Marsh embaixo da campainha, sussurrou a mente dela de repente, e ela sentiu medo.

 

A sra. Kersh passou o chá para ela.

 

— Obrigada — disse Beverly. A aparência podia ser lamacenta, mas o aroma era maravilhoso. Ela experimentou. Estava bom. Pare de ter medo de sombras, disse ela para si mesma. — Aquele baú de cedro é uma peça maravilhosa.

 

— É antiguidade, aquele baú! — disse a sra. Kersh, e riu. Beverly reparou que a beleza da mulher era maculada em um aspecto, e um que era bem comum ali no norte. Os dentes dela eram bem ruins. Com aparência forte, mas bem estragados. Eram amarelados, e os dois da frente eram tortos. Os caninos pareciam muito longos, quase presas.

 

Eram brancos... Quando ela foi abrir a porta, ela sorriu e você pensou no quanto eles eram brancos.

 

De repente, ela não estava apenas com um pouco de medo. De repente, queria, precisava estar longe dali.

 

— Muito velho, ah, sim! — exclamou a sra. Kersh, e tomou a xícara de chá de um gole só, com um ruído repentino e chocante. Ela sorriu para Beverly, um sorriso apertado, e Beverly viu que os olhos da mulher também tinham mudado. As córneas agora estavam amarelas, antigas, cobertas de linhas vermelhas irregulares. O cabelo estava mais fino; a trança parecia malcuidada, não mais prateada com mechas douradas, mas cinza e sem vida.

 

— Muito velho — repetiu a sra. Kersh por cima da xícara vazia, olhando maliciosamente para Beverly com os olhos amarelados. Os dentes encavalados apareceram naquele sorriso repulsivo, quase predador. — De casa ele veio comigo. O RG entalhado? Você reparou?

 

— Reparei. — A voz veio de longe, e parte de seu cérebro gritou: Se ela não souber que você reparou na mudança, talvez você ainda esteja em segurança, se ela não souber, não perceber...

 

— Meu pai — disse ela, e Beverly viu que o vestido também mudou. Tinha virado de um tom preto escabroso e desbotado. O camafeu era um esqueleto, com o maxilar aberto em expressão doentia. — O nome dele era Robert Gray, mais conhecido como Bob Gray, mais conhecido como Pennywise, o Palhaço Dançarino. Embora esse também não fosse o nome dele. Mas ele adorava essa piada, meu pai.

 

Ela riu de novo. Alguns dos dentes tinham ficado tão pretos quanto o vestido. As rugas na pele agora estavam mais profundas. A pele rosada e leitosa tinha ficado amarela em um tom doentio. Os dedos eram como garras. Ela sorriu para Beverly.

 

— Coma alguma coisa, querida. — A voz dela tinha subido meia oitava, mas a oitava estava falha nesse registro, e a voz era como a porta de uma cripta balançando com dobradiças cobertas de terra negra.

 

— Não, obrigada — Beverly ouviu sua boca dizer em uma voz aguda de criança em tom de “preciso ir”. As palavras não pareceram se originar no cérebro dela; na verdade, saíram da boca e precisaram viajar até os ouvidos para ela ficar ciente do que havia dito.

 

— Não? — perguntou a bruxa, e sorriu. As garras dela arranharam o prato e ela começou a enfiar biscoitos finos de melado e delicadas fatias de bolo com cobertura na boca com as duas mãos. Os dentes horríveis subiam e desciam; as unhas, longas e sujas, afundavam nos doces; migalhas caíam pelo queixo ossudo. O hálito dela tinha o cheiro de coisas mortas há muito tempo que se abriram com a explosão dos gases de sua decomposição. A gargalhada agora era um riso morto. O cabelo estava mais fino. O couro cabeludo descamando aparecia em alguns pontos.

 

— Ah, ele amava essa piada, meu pai! Isso é uma piada, senhorita, se você gosta de piadas: meu pai me carregou em vez da minha mãe. Ele me cagou pelo cu! Rá! Rá! Ráa!

 

— Tenho que ir — Beverly se ouviu dizer com aquela mesma voz aguda e ferida, a voz de uma garotinha que fizeram passar vergonha em sua primeira festa. Não havia forças em suas pernas. Ela estava ligeiramente ciente de que não era chá que havia em sua xícara, mas bosta, bosta líquida, um pequeno brinde dos esgotos embaixo da cidade. Ela tinha bebido um pouco daquilo, não muito, mas um gole, ah Deus, ah Deus, ah Jesus abençoado, por favor, por favor...

 

A mulher estava encolhendo na frente dela, emagrecendo; agora, ela era uma anciã com rosto de maçã murcha sentada do outro lado da mesa, dando risadas com voz alta e aguda e se balançando para a frente e para trás.

 

— Ah, meu pai e eu somos como uma pessoa só — disse ela —, só eu, só ele, e, querida, se você for esperta, você vai correr, correr de volta pro lugar de onde veio, e bem rápido, porque ficar vai ser pior do que sua morte. Ninguém que morre em Derry morre de verdade. Você já sabia disso antes; pode acreditar agora.

 

Em câmera lenta, Beverly puxou as pernas debaixo da mesa. Como se de fora, ela se viu ficando de pé e recuando da mesa e da bruxa com agonia de horror e descrença, descrença porque ela percebeu pela primeira vez que a mesinha da sala de jantar não era de carvalho escuro, mas de chocolate. Enquanto ela olhava, a bruxa, ainda rindo, com os olhos amarelados e velhos desviados maliciosamente para o canto da sala, quebrou um pedaço dela e enfiou avidamente no buraco preto que era sua boca.

 

Ela viu que as xícaras eram de tronco branco, cuidadosamente enfeitadas com cobertura azul. As imagens de Jesus e John Kennedy eram criações de fios de açúcar quase transparentes, e quando ela olhou para os quadros, Jesus botou a língua para fora e Kennedy deu uma piscadela safada.

 

— Estamos todos esperando por você! — gritou a bruxa, e suas unhas arranharam a superfície da mesa de chocolate, fazendo marcas fundas. — Ah sim! Ah sim!

 

As luzes acima eram globos de bala dura. Os lambris eram tiras de caramelo. Ela olhou para baixo e viu que seus sapatos estavam deixando marcas no piso, que não era de madeira, mas feito de fatias de chocolate. O cheiro de doce era nauseante.

 

Ah Deus é João e Maria é a bruxa a que sempre me deu mais medo porque comia as crianças...

 

— Você e seus amigos! — gritou a bruxa, rindo. — Você e seus amigos! Na gaiola! Na gaiola até o forno ficar quente! — Ela gargalhou gritando, e Beverly correu para a porta, mas correu como se em câmera lenta. A risada da bruxa girou ao redor da cabeça dela, uma nuvem de morcegos. Beverly berrou. O corredor tinha cheiro de açúcar, nougat e toffee e enjoativos morangos sintéticos. A maçaneta, imitação de cristal quando ela entrou, era um monstruoso açúcar de diamante.

 

— Eu me preocupo com você, Bevvie... Me preocupo MUITO!

 

Ela se virou, com mechas de cabelo ruivo voando ao redor do rosto, e viu o pai cambaleando na direção dela pelo corredor, usando o vestido preto da bruxa e o camafeu de esqueleto; o rosto do pai estava coberto de carne mole e escorrendo, com olhos pretos como obsidianas, as mãos abrindo e fechando, a boca sorrindo com fervor intenso.

 

— Eu batia em você porque queria COMER você, Bevvie, era o que eu queria fazer, queria FODER você, queria COMER você, queria comer sua BOCETA, queria CHUPAR seu CLITÓRIS entre os dentes, HUMM, Bevvie, aaaahhhhh, MAS QUE DELÍCIA, eu queria colocar você na gaiola... e esquentar o forno... e sentir sua BOCETA... sua BOCETA gordinha... e quando estivesse gordinha o bastante para comer... comer... COMER...

 

Gritando, ela segurou a maçaneta grudenta e saiu correndo para uma varanda decorada com acessórios de praliné e coberta de calda de chocolate. Bem longe, distante, parecendo dançar em sua visão, ela viu carros indo de um lado para o outro e uma mulher empurrando um carrinho com compras do Mercado Costello.

 

Preciso sair daqui, pensou ela, quase incoerente. É a realidade aquilo lá fora, se eu conseguir chegar na calçada...

 

— Não vai ajudar nada correr, Bevvie — disse o pai dela

 

(meu pai)

 

rindo. — Esperamos por isso durante muito tempo. Vai ser divertido. Vai ser uma DELÍCIA pra TODO MUNDO.

 

Ela olhou para trás de novo, e agora o pai morto não estava usando o vestido preto da bruxa, mas a roupa de palhaço com os grandes botões laranja. Havia um gorro de pele do estilo de 1958, popularizado por Fess Parker no filme da Disney sobre Davy Crockett, na cabeça dele. Com uma das mãos, ele segurava alguns balões. Com a outra, segurava a perna de uma criança como uma coxa de frango. Escrita em cada balão estava a legenda A COISA VEIO DO ESPAÇO SIDERAL.

 

— Diz pros seus amigos que sou o último de uma raça em extinção — disse a Coisa, sorrindo o sorriso afundado enquanto cambaleava e se arrastava pelos degraus da varanda atrás dela. — O único sobrevivente de um planeta morto. Vim roubar todas as mulheres... estuprar todos os homens... e aprender a dançar o Peppermint Twist!

 

Ela começou a fazer uma dança louca, com os balões em uma das mãos e a perna cortada e sangrenta na outra. A roupa de palhaço balançou e sacudiu, mas Beverly não sentiu vento nenhum. Suas pernas se embolaram uma na outra e ela caiu na calçada, esticando as mãos abertas para amenizar o impacto, que doeu até os ombros. A mulher empurrando o carrinho de compras fez uma pausa e olhou para trás com dúvida, depois andou um pouco mais rápido.

 

O palhaço continuou na direção dela e jogou a perna cortada de lado. Ela caiu no gramado com um baque indescritível. Beverly ficou deitada esparramada no chão por um instante, com a certeza de que em algum momento acordaria logo, que não podia ser real, tinha que ser um sonho...

 

Ela se deu conta de que isso não era verdade um momento antes de os dedos tortos e longos como garra do palhaço tocarem nela. A Coisa era real; a Coisa a mataria. Como tinha matado as crianças.

 

— Os melros sabem seu nome verdadeiro! — gritou ela para a Coisa de repente. A Coisa se encolheu, e pareceu a Beverly que por um momento o sorriso nos lábios dentro do grande sorriso vermelho pintado ao redor da boca se tornou uma careta de ódio e dor... e talvez também de medo. Podia ser apenas a imaginação dela, e ela não fazia ideia do motivo de ter dito uma coisa tão louca, mas, com isso, ela ganhou um instante.

 

Beverly ficou de pé e saiu correndo. Freios chiaram, e uma voz rouca, furiosa e assustada gritou:

 

— Por que não olha pra onde vai, piranha louca?

 

Ela teve uma visão borrada do caminhão de padaria que quase a atropelou quando saiu correndo para a rua como uma criança atrás de uma bola, e logo estava na calçada oposta, ofegante, com uma dor forte do lado esquerdo. O caminhão de padaria prosseguiu pela Lower Main.

 

O palhaço tinha sumido. A perna tinha sumido. A casa ainda estava lá, mas ela viu agora que estava desmoronando e deserta, com as janelas cobertas de tábuas e os degraus que levavam à varanda rachados e quebrados.

 

Estive mesmo lá dentro ou sonhei tudo?

 

Mas sua calça jeans estava suja, a blusa amarela, manchada de poeira.

 

E havia chocolate em seus dedos.

 

Ela os esfregou nas pernas da calça e saiu andando rápido, com o rosto quente, as costas frias como gelo, os olhos parecendo pulsar com os batimentos rápidos do coração.

 

Não podemos vencer a Coisa. Seja lá o que ela for, não podemos vencer. A Coisa até quer que a gente tente. Ela quer acertar as contas. Não vai ficar feliz com um empate, eu acho. Devíamos sair daqui... simplesmente ir embora.

 

Alguma coisa roçou em seu tornozelo, tão leve quanto a pata de um gato.

 

Ela se encolheu com um gritinho. Olhou para baixo e fez uma careta, com uma das mãos sobre a boca.

 

Era um balão, amarelo como sua blusa. Escritas na lateral dele em azul estavam as palavras ISSO AÍ, COELHO.

 

Ela o viu seguir saltando pela rua, levado pela brisa agradável do final da primavera.

 

Richie Tozier faz marcas

 

Bem, teve o dia em que Henry e os amigos correram atrás de mim, antes do último dia de aula...

 

Richie estava andando ao longo da rua Outer Canal, passando pelo Parque Bassey. Ele parou, com as mãos enfiadas nos bolsos, e olhou para a Ponte do Beijo, mas não a viu realmente.

 

Fugi deles no departamento de brinquedos da Freese’s...

 

Desde o fim louco do almoço de reencontro, ele estava andando sem destino, tentando fazer as pazes com as coisas horríveis que estavam nos biscoitos da sorte... ou com as coisas que pareceram estar nos biscoitos. Ele achava que nada saiu deles, provavelmente. Foi uma alucinação coletiva gerada pelas coisas apavorantes sobre as quais eles estavam conversando. A melhor prova dessa hipótese era que Rose não tinha visto nada. É claro que os pais de Beverly também nunca viram o sangue que saiu do ralo do banheiro, mas não era a mesma coisa.

 

Não? Por que não?

 

— Porque somos adultos agora — murmurou ele, e descobriu que o pensamento não tinha poder nem lógica nenhuma; podia muito bem ser uma fala nonsense de uma cantiga infantil de pular corda.

 

Ele voltou a caminhar.

 

Passei pelo City Center e me sentei em um banco de parque por um tempo, e pensei ter visto...

 

Ele parou de novo e franziu a testa.

 

Visto o quê?

 

... mas foi só um sonho.

 

Foi? Foi mesmo?

 

Ele olhou para a esquerda e viu o grande prédio de vidro, tijolo e aço que parecia tão moderno no final dos anos 1950, mas que agora se revelava antigo e brega.

 

E aqui estou eu, pensou ele. De volta ao maldito City Center. Cena daquela outra alucinação. Ou sonho. Ou o que quer que tenha sido.

 

Os outros o viam como o Palhaço da Turma, o Exibicionista Maluco, e ele voltou direitinho a esse papel. Ah, nós todos voltamos direitinho a nossos antigos papéis, você não reparou? Mas havia alguma coisa de incomum nisso? Ele achava que era comum se ver as mesmas coisas em cada reunião de turma de escola de dez ou vinte anos: o palhaço da turma que descobriu vocação para o sacerdócio voltaria quase automaticamente depois de dois drinques a ser o brincalhão de antes; o Crânio de Literatura que acabou sendo vendedor de caminhões de repente começaria a falar sobre John Irving ou John Cleever; o cara que tocava com os Moondogs no sábado à noite e que virou professor de matemática em Cornell de repente se veria no palco com uma banda, com uma guitarra Fender pendurada no ombro, cantando “Gloria” ou “Surfin’ Bird” com ferocidade alegre e embriagada. O que Springsteen disse mesmo? Sem recuar, baby, sem se render... Mas era mais fácil acreditar nas músicas velhas tocando na vitrola depois de uns dois drinques ou de um bom bagulho.

 

Mas a reversão é que era a alucinação, acreditava Richie, não a vida atual. Talvez a criança fosse o pai do homem, mas pais e filhos costumam ter interesses bem diferentes e só uma semelhança passageira. Eles...

 

Mas você diz adultos, e agora parece besteira; parece muito blá-blá-blá. Por que, Richie? Por quê?

 

Porque Derry está mais estranha do que nunca. Por que não deixamos assim?

 

Porque as coisas não eram tão simples. Por isso.

 

Quando criança, ele era o palhaço, um comediante às vezes vulgar, às vezes divertido, porque era uma forma de sobreviver sem ser morto por garotos como Henry Bowers ou ficar absolutamente pirado de tédio e solidão. Ele percebia agora que boa parte do problema estava em sua própria cabeça, que costumava andar a uma velocidade dez a vinte vezes maior do que a dos colegas. Eles os achavam estranho, esquisito ou até suicida, dependendo da fuga em questão, mas talvez tenha sido um simples caso de hiperatividade mental, se é que alguma coisa em estar em hiperatividade mental constante era simples.

 

De qualquer forma, era o tipo de coisa que você passava a controlar depois de um tempo. Você passava a controlar ou encontrava formas de canalizar, com caras como Kinky Briefcase ou Buford Kissdrivel, por exemplo. Richie descobriu isso nos meses depois que começou na estação de rádio da faculdade, praticamente de impulso, e encontrou tudo que sempre quis durante sua primeira semana atrás do microfone. Ele não era muito bom no começo; estava empolgado demais para ser bom. Mas entendeu seu potencial de não ser apenas bom no trabalho, mas excelente, e saber disso foi o bastante para que ele ficasse no sétimo céu, em uma nuvem de euforia. Ao mesmo tempo, ele começou a entender o grande princípio que movia o universo, pelo menos a parte do universo relacionada a carreiras e sucesso: você encontrava o louco que estava correndo dentro de você e fodendo sua vida. Você o encurralava em um canto e o agarrava. Mas não o matava. Ah, não. Matar era bom demais para aquele merdinha. Você colocava um arreio no pescoço dele e começava a arar. O maluco trabalhava como um demônio quando você tinha o controle dele. E fornecia alguns hahas de tempos em tempos. Era só isso. E isso bastava.

 

Ele era engraçado, era mesmo, uma gargalhada por minuto, mas no final superou os pesadelos que viviam no lado obscuro de tantas gargalhadas. Ou achava que superou. Até hoje, quando a palavra adulto de repente parou de fazer sentido aos seus ouvidos. E agora, aqui estava outra coisa com a qual lidar, ou pelo menos sobre a qual pensar; aqui estava a enorme e completamente idiota estátua de Paul Bunyan em frente ao City Center.

 

Devo ser a exceção que prova a regra, Big Bill.

 

Tem certeza de que não havia nada, Richie? Nada mesmo?

 

No City Center... Eu pensei ter visto...

 

Uma dor aguda perfurou seus olhos pela segunda vez naquele dia e ele os cobriu com as mãos, com um gemido assustado saindo da boca. Mas sumiu de novo, tão rapidamente quanto surgiu. Mas ele também sentiu o cheiro de alguma coisa, não? Alguma coisa que não estava realmente ali, mas alguma coisa que estava ali, alguma coisa que o fez pensar em

 

(estou bem aqui com você Richie segure minha mão você pode pegar um resfriado)

 

Mike Hanlon. Foi a fumaça que fez seus olhos arderem e lacrimejarem. Vinte e sete anos atrás, eles inspiraram aquela fumaça; no final, só havia Mike e ele, e eles viram...

 

Mas sumiu.

 

Ele deu um passo para mais perto da estátua de plástico de Paul Bunyan, tão impressionado agora pela vulgaridade alegre dela quanto ficava impressionado com o tamanho quando criança. O mítico Paul tinha 6 metros de altura, e a base acrescentava quase 2 metros. Ele sorria para o tráfego de carros e pedestres na rua Outer Canal da beirada do gramado do City Center. O City Center tinha sido construído nos anos 1954-55 para um time de basquete menor que nunca se formou realmente. A Câmara Municipal de Derry votou no dinheiro para a estátua um ano depois, em 1956. Foi um debate acalorado tanto nas reuniões públicas da câmara quanto nas colunas de carta ao editor do Derry News. Muitos pensaram que seria uma estátua linda, que acabaria virando uma atração turística importante. Outros acharam a ideia de um Paul Bunyan de plástico horrível, extravagante e um fracasso incrível. Richie lembrava que a professora de artes da Derry High School escreveu uma carta para o News dizendo que, se uma monstruosidade dessas fosse realmente erigida em Derry, ela acabaria botando uma bomba nela. Sorrindo, Richie se perguntou se o contrato daquela moça tinha sido renovado.

 

A controvérsia, que Richie reconhecia agora como típica tempestade em copo d’água de crise de cidade grande e pequena, durou seis meses, e é claro que foi completamente sem sentido; a estátua foi comprada e, mesmo se a câmara municipal tivesse feito uma coisa tão aberrante (principalmente para a Nova Inglaterra) quanto decidir não usar um item pelo qual já tinha pago, onde é que ela poderia ter sido guardada? Assim, a estátua, não esculpida de verdade, mas moldada em plástico em Ohio, foi colocada no lugar, ainda coberta com um pedaço de lona grande o bastante para servir de vela de barco. Ela foi descoberta no dia 13 de maio de 1957, que foi o aniversário de 150 anos do município. Uma facção deu voz a previsíveis gemidos de ira; a outra, a igualmente previsíveis gemidos de entusiasmo.

 

Quando Paul foi revelado naquele dia, estava usando o macacão e uma camisa quadriculada vermelha e branca. A barba estava esplendidamente preta, esplendidamente cheia, esplendidamente lenhadora. Um machado de plástico, sem dúvida o Godzilla de todos os machados de plástico, estava apoiado em um ombro, e ele sorria sem parar para o céu do norte, que no dia da exibição estava azul como a pele do célebre companheiro de Paul (Babe não estava presente no momento da revelação; o custo estimado de acrescentar um boi azul à cena foi proibitivo).

 

As crianças que foram à cerimônia (havia centenas delas, e o Richie Tozier de 10 anos, na companhia do pai, era uma delas) ficaram completamente encantadas com o gigante de plástico. Pais levantaram crianças pequenas até o pedestal quadrado onde Paul estava, tiraram fotos e observaram com um misto de apreensão e diversão enquanto as crianças escalavam e engatinhavam, rindo, por cima das enormes botas pretas de Paul (correção: enormes botas pretas de plástico).

 

Foi em março do ano seguinte que Richie, exausto e apavorado, acabou se sentando em um dos bancos em frente à estátua depois de fugir por muito pouco dos senhores Bowers, Criss e Huggins em uma perseguição que começou na Escola Derry e percorreu a maior parte do centro. Ele conseguiu se livrar dos garotos no departamento de brinquedos da loja de departamentos Freese’s.

 

A filial da Freese’s de Derry era pobre em comparação à grande loja do centro de Bangor, mas Richie não se importava com coisas assim. Naquele momento, foi um caso de um porto seguro qualquer em meio à tempestade. Henry Bowers estava logo atrás dele, e Richie já estava bem cansado. Ele entrou pela porta giratória da loja de departamentos como último recurso. Henry, que aparentemente não entendia a física de um dispositivo daqueles, quase perdeu as pontas dos dedos tentando segurar Richie quando ele girou e entrou na loja.

 

Ao correr escada abaixo, com a camisa voando atrás de si, ele ouviu a porta giratória dar uma série de estalos quase tão altos quanto tiros na TV e entendeu que Larry, Moe e Curly ainda estavam atrás dele. Ele estava rindo quando desceu a escada para o subsolo, mas era apenas um tique nervoso; estava tão apavorado quanto um coelho preso em uma armadilha. Os garotos realmente pretendiam dar uma surra nele desta vez (ele não fazia ideia de que, em umas dez semanas, acreditaria que os três, particularmente Henry, fossem capazes de qualquer coisa menos assassinato, e certamente teria ficado gelado de choque se soubesse da apocalíptica guerra de pedras em julho, quando mesmo a última qualificação desapareceria de sua mente). E a coisa toda foi muito completa e tipicamente idiota.

 

Richie e os outros garotos da turma de quinto ano estavam entrando no ginásio em fila. Uma turma de sexto ano, com Henry entre eles como um boi entre vacas, estava saindo. Apesar de ainda estar no quinto ano, Henry fazia educação física com os garotos mais velhos. Os canos no teto estavam pingando de novo, e o sr. Fazio ainda não tinha colocado a placa que dizia CUIDADO! PISO MOLHADO! Henry escorregou em uma poça e caiu de bunda.

 

Antes que ele pudesse impedir, a boca traidora de Richie proferiu:

 

— Mandou bem, pé de banana!

 

Houve uma explosão de gargalhadas tanto dos colegas de Henry quanto dos de Richie, mas não havia sorriso no rosto de Henry quando ele se levantou, só um rubor fosco de tijolo recém-queimado.

 

— Até mais tarde, quatro olhos — disse ele, e saiu andando.

 

A gargalhada morreu imediatamente. Os garotos no corredor olharam para Richie como se ele já estivesse morto. Henry não parou para observar as reações; ele simplesmente saiu andando, com a cabeça baixa, os cotovelos vermelhos da queda, uma área grande e molhada no traseiro da calça. Ao olhar para o ponto molhado, Richie sentiu a boca suicida e espertinha se abrir de novo... mas desta vez a fechou tão rápido que quase amputou a ponta da língua com o abaixar dos dentes.

 

Ah, mas ele vai esquecer, disse ele para si mesmo com desconforto enquanto mudava de roupa no vestiário. Claro que vai. O velho Hank não tem tantos circuitos de memória funcionando. Cada vez que ele caga, deve ter que procurar as instruções no manual, haha.

 

Haha.

 

— Você está morto, Boca de Lixo — disse Vince “Meleca” Taliendo, puxando o short para cobrir um pênis do tamanho e do formato de um amendoim anêmico. Ele falou com um certo respeito triste. — Mas não se preocupe. Vou levar flores.

 

— Corte suas orelhas e leve couves-flores — respondeu Richie, e todo mundo riu. Até o velho “Meleca” Taliendo riu, por que não, todos podiam se permitir dar gargalhadas. O quê, eu me preocupar? Todos estariam em casa vendo Jimmy Dodd e os Mouseketeers no Clube do Mickey ou Frankie Lymon cantando “I’m Not a Juvenile Delinquent” em American Bandstand enquanto Richie estava correndo pelo departamento de lingerie feminina e pelo de utilidades domésticas a caminho do departamento de brinquedos com suor escorrendo pelas costas até a racha da bunda e as bolas apavoradas tão encolhidas que pareciam estar penduradas no umbigo. Claro, eles podiam rir. Har-de-har-har-har.

 

Henry não esqueceu. Richie saiu pela porta do jardim de infância do prédio da escola só por garantia, mas Henry tinha colocado Arroto Huggins lá, também por garantia. Har-de-har-har-har.

 

Richie viu Arroto primeiro, senão não haveria fuga. Arroto estava olhando na direção do parque Derry, segurando um cigarro apagado em uma das mãos e puxando a cueca de dentro da bunda distraidamente com a outra. Com o coração disparado, Richie andou silenciosamente pelo parquinho e estava quase na rua Charter quando Arroto virou a cabeça e o viu. Ele gritou para chamar Henry e Victor, e a partir daí começou a perseguição.

 

Quando Richie chegou ao departamento de brinquedos, ele estava horrivelmente vazio. Não havia nem um vendedor na área, um adulto bem-vindo para dar fim às coisas antes que elas saíssem completamente de controle. Ele conseguia ouvir os três dinossauros do apocalipse chegando mais perto. E simplesmente não conseguia mais correr. Cada respiração produzia uma dor aguda em seu lado esquerdo.

 

Seu olhar grudou em uma porta que dizia SAÍDA DE EMERGÊNCIA! UM ALARME SERÁ DISPARADO! A esperança cresceu em seu peito.

 

Richie correu por um corredor lotado de caixas surpresa do Pato Donald, tanques do Exército dos Estados Unidos feitos no Japão, pistolas de espoleta do Lone Ranger, robôs de corda. Chegou à porta e empurrou a barra com o máximo de força que conseguiu. A porta se abriu e permitiu a entrada do ar frio de março. O alarme disparou com um som estridente. Richie imediatamente deu meia-volta e ficou de quatro no corredor seguinte. Já estava abaixado antes mesmo de a porta voltar a fechar.

 

Henry, Arroto e Victor dispararam para o departamento de brinquedos quando a porta se fechou e o alarme parou. Eles correram para lá, com Henry na frente, o rosto firme e determinado.

 

Um vendedor finalmente apareceu correndo. Estava usando um avental azul de náilon por cima de um casaco xadrez de feiura excruciante. Os aros dos óculos eram tão cor-de-rosa quanto os olhos de um coelho branco. Richie pensou que ele parecia Wally Cox fazendo o papel de Mr. Peppers e precisou enfiar a boca traidora na parte gorda do antebraço para impedir-se de cair em uma série de gargalhadas exaustas.

 

— Garotos! — exclamou Mr. Peppers. — Vocês não podem sair por aí! É uma saída de emergência! Vocês! Ei! Garotos!

 

Victor olhou para ele com um pouco de nervosismo, mas Henry e Arroto nem se viraram, e Victor foi atrás. O alarme tocou de novo, por mais tempo desta vez, quando eles saíram para o beco. Antes de parar de soar, Richie já estava de pé correndo em direção ao departamento de lingerie.

 

— Vocês garotos vão ser proibidos de entrar na loja! — gritou o vendedor para ele.

 

Richie olhou para trás por cima do ombro e gritou com a voz da Vovó Grunt:

 

— Alguém já te disse que você é igual ao Mr. Peppers, meu jovem?

 

E assim, ele fugiu. E assim, ele acabou a um quilômetro e meio da Freese’s, em frente ao City Center... e longe do perigo, torcia ele fervorosamente. Pelo menos, por enquanto. Ele estava exausto. Sentou-se em um banco à esquerda da estátua de Paul Bunyan, querendo apenas um pouco de paz enquanto descansava. Em alguns momentos, ele se levantaria e iria para casa, mas no momento era bom demais ficar sentado no sol da tarde. O dia tinha começado escuro, frio e chuvoso, mas agora dava para acreditar que a primavera estava mesmo se aproximando.

 

Em outro ponto do gramado, ele conseguiu ver a marquise do City Center, que, naquele dia de março, exibia esta mensagem em grandes letras azuis transparentes:

 

EI, JOVENS!

NO DIA 28 DE MARÇO!

O SHOW DE ROCK-AND-ROLL DE ARNIE “WOO-WOO” GINSBERG!

JERRY LEE LEWIS

THE PENGUINS

FRANKIE LYMON AND THE TEENAGERS

GENE VINCENT AND THE BLUE CAPS

FREDDY “BOOM-BOOM” CANNON

 

UMA NOITE DE TREMENDA DIVERSÃO!!

 

Era um show a que Richie realmente gostaria de assistir, mas sabia que não havia a menor chance. A ideia que sua mãe tinha de uma tremenda diversão não incluía Jerry Lee Lewis dizendo para os jovens dos Estados Unidos que temos galinhas no celeiro, celeiro de quem, que celeiro, meu celeiro. Não, também não incluía Freddy Cannon, cuja garota de Tallahassee tinha um conjunto de primeira. Ela não tinha problema em admitir que teve sua parte na gritaria por Frank Sinatra (que ela agora chamava de Frank Arrogante) quando adolescente, mas, como a mãe de Bill Denbrough, odiava rock-and-roll. Chuck Berry a apavorava, e ela declarava que Richard Penniman, melhor conhecido pelo público adolescente e pré-adolescente como Little Richard, a deixava com vontade de “vomitar como uma galinha”.

 

Era uma expressão cujo significado Richard nunca perguntou qual era.

 

Seu pai era neutro no assunto de rock-and-roll e talvez pudesse ser convencido, mas Richie sabia bem que os desejos da mãe prevaleceriam quanto a esse assunto, ao menos até ele ter 16 ou 17 anos. E, até lá, sua mãe estava firmemente convencida de que a mania do rock-and-roll já teria passado.

 

Richie achava que Danny and the Juniors estavam mais certos sobre o assunto do que sua mãe — o rock-and-roll jamais morreria. Ele adorava, apesar de suas fontes serem apenas duas: American Bandstand no Canal 7 à tarde e a WMEX de Boston à noite, quando o ar ficava frio e a voz rouca e entusiasmada de Arnie Ginsberg surgia em ondas, como a voz de um fantasma invocado em uma sessão espírita. A batida fazia mais do que deixá-lo feliz. Ela o fazia se sentir maior, mais forte, mais presente. Quando Frankie Ford cantava “Sea Cruise” ou Eddie Cochran cantava “Summertime Blues”, Richie era transportado de alegria. Havia uma força naquelas músicas, uma força que parecia pertencer a todos os garotos magrelos, garotos gordos, garotos feios, garotos tímidos, os otários do mundo, em resumo. Nelas, ele sentia uma voltagem louca e hilariante que tinha o poder de matar e exaltar. Ele idolatrava Fats Domino (que fazia até Ben Hanscom parecer magro e belo) e Buddy Holly, que, como Richie, usava óculos, e Screaming Jay Hawkins, que saía de um caixão nos shows (ou pelo menos foi o que contaram para Richie), e os Dovells, que dançavam tão bem quanto negros.

 

Bem, quase.

 

Ele teria seu rock-and-roll um dia, se quisesse, pois tinha confiança de que ainda estaria presente quando a mãe finalmente cedesse e deixasse que ele ouvisse, mas não seria no dia 28 de março de 1958... nem em 1959... nem...

 

Seu olhar se afastou da marquise e então... bem... ele deve ter adormecido. Era a única explicação que fazia sentido. O que aconteceu depois só podia acontecer em sonhos.

 

E agora, aqui estava ele de novo, um Richie Tozier que tinha finalmente todo o rock-and-roll que sempre quis... e que descobriu com alegria que ainda não era o bastante. Seus olhos foram para a marquise da frente do City Center e viram que, por um tipo horrendo de acaso, as mesmas letras azuis diziam:

 

14 DE JUNHO

HEAVY METAL MANIA!!

JUDAS PRIEST

IRON MAIDEN

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OU EM QUALQUER PONTO DE VENDA TICKETRON

 

Em algum momento, deixaram de lado a parte sobre a tremenda diversão, mas, pelo que consigo perceber, é a única diferença, pensou Richie.

 

E ouviu Danny and the Juniors, baixo e distante, como vozes ouvidas no final de um longo corredor, saindo de um rádio barato: Rock-and-roll will never die, I’ll dig it to the end... It’ll go down in history, just you watch my friend...

 

Richie olhou para Paul Bunyan, patrono de Derry. Derry, que passou a existir, de acordo com as histórias, por ser o lugar onde os troncos paravam quando desciam rio abaixo. Houve uma época em que, na primavera, tanto o Penobscot quando o Kenduskeag ficavam cobertos de troncos de um lado a outro, com a casca preta brilhando no sol da primavera. Alguém que corresse rápido podia andar do Wally’s Spa no Meio Acre do Inferno até o Ramper’s em Brewster (o Ramper’s era uma taverna de reputação tão ruim que costumava ser chamada de Balde de Sangue) sem molhar as botas acima da terceira volta do cadarço. Ou era o que se dizia na infância de Richie, e ele achava que havia um pouco de Paul Bunyan em histórias assim.

 

O velho Paul, pensou ele, olhando para a estátua de plástico. O que você andou fazendo desde que fui embora? Fez alguma nova margem de rio ao voltar pra casa cansado e arrastar o machado atrás de si? Fez algum lago por querer uma banheira grande o bastante pra poder se sentar com água até o pescoço? Assustou mais alguma criancinha como me assustou naquele dia?

 

Ah, e de repente ele se lembrou de tudo, da mesma maneira como você pode se lembrar de repente de uma palavra que estava dançando na ponta da língua.

 

Ali estava ele, sentado no sol delicado de março, cochilando um pouco, pensando em ir para casa e ver a meia hora final de Bandstand, e de repente houve um sopro quente de ar em seu rosto. Fez o cabelo da sua testa voar. Ele olhou para cima, e a cara enorme de plástico de Paul Bunyan estava bem na frente da dele, maior do que um rosto em tela de cinema, preenchendo tudo. A lufada de ar foi causada pelo movimento de abaixamento de Paul... apesar de ele não exatamente se parecer mais com Paul. A testa agora estava baixa e projetada; tufos de cabelo encaracolado saíam de um nariz tão vermelho quanto o nariz de um beberrão convicto; seus olhos estavam injetados e um era meio vesgo.

 

O machado não estava mais em seu ombro. Paul estava apoiado no cabo, e a parte cega da cabeça tinha provocado uma fenda no concreto da calçada. Ele ainda estava sorrindo, mas não havia nada de alegre na expressão. Por entre gigantescos dentes amarelos saiu um cheiro de animais apodrecendo em meio a uma vegetação baixa.

 

— Vou comer você — disse o gigante, com voz grave e retumbante. Era o som de pedras batendo umas nas outras durante um terremoto. — A não ser que você devolva minha galinha, minha harpa e meus sacos de ouro, vou comer você todinho!

 

O hálito dessas palavras fez a camisa de Richie voar como uma vela em um furacão. Ele se encolheu no banco, com os olhos saltados e o cabelo eriçado para todos os lados como os espinhos de um porco-espinho, envolto em um aroma de carniça.

 

O gigante começou a gargalhar. Ele pousou as mãos na metade do cabo do machado como Ted Williams poderia ter segurado seu taco de beisebol favorito (ou vara de freixo, se você preferir) e o puxou do buraco que tinha provocado na calçada. O machado começou a subir no ar. Fez um som letal de movimento. Richie de repente entendeu que o gigante pretendia abri-lo bem no meio.

 

Mas ele sentia que não conseguia se mexer; uma espécie de apatia letárgica tinha tomado conta dele. Que importância tinha? Ele estava cochilando, sonhando. A qualquer momento, algum motorista buzinaria para uma criança atravessando a rua e ele acordaria.

 

— Isso mesmo — gritou o gigante —, você vai acordar no inferno! — E, no último instante, quando o machado chegou ao ponto mais alto e ficou equilibrado lá, Richie entendeu que não era um sonho... e, se fosse, era um sonho que podia matar.

 

Tentando gritar, mas sem emitir som algum, ele rolou do banco para a área de cascalho que cercava o que tinha sido uma estátua e agora era só uma base com dois enormes parafusos de aço espetados onde ficavam os pés. O som do machado em movimento encheu o mundo com seu sussurro insistente; o sorriso do gigante tinha virado a careta de um assassino. Os lábios estavam tão repuxados sobre os dentes que as gengivas vermelhas de plástico, horrivelmente vermelhas, brilhavam.

 

A lâmina do machado atingiu o banco em que Richie estava apenas um instante antes. A ponta estava tão afiada que quase não houve som, mas o banco foi partido em dois. As metades se afastaram uma da outra, e a madeira dentro da superfície pintada de verde era de um branco intenso e doentio.

 

Richie estava deitado de costas. Ainda tentando gritar, ele se empurrou para trás com os calcanhares. O cascalho entrou pela gola da camisa, pela cintura da calça. E ali estava Paul, por cima dele, olhando para ele com olhos do tamanho de tampas de bueiro; ali estava Paul, olhando para um garotinho se encolhendo no cascalho.

 

O gigante deu um passo na direção dele. Richie sentiu o chão tremer quando a bota preta desceu. Cascalho voou, formando uma nuvem.

 

Richie rolou para ficar de bruços e conseguiu se levantar. Suas pernas já estavam tentando correr antes de ele estar equilibrado, e o resultado foi que ele caiu de barriga no chão de novo. Ele ouviu o ar sair de seus pulmões. O cabelo caiu nos olhos. Ele conseguia ver o trânsito de um lado para o outro nas ruas Canal e Main, como em todos os dias, como se nada estivesse acontecendo, como se ninguém em nenhum daqueles carros conseguisse ver ou se importasse de Paul Bunyan ter ganhado vida e descido do pedestal para cometer assassinato com um machado do tamanho de um trailer.

 

A luz do sol foi obstruída. Richie estava em um trecho de sombra em formato de homem.

 

Ele ficou de joelhos, quase caiu de lado, conseguiu ficar de pé e correu o mais rápido que conseguiu, com os joelhos estalando e subindo até quase o peito e os cotovelos dando impulso. Atrás de si, ele conseguia ouvir o sussurro terrível e persistente aumentando de novo, um som que não parecia ser um som, mas pressão na pele e nos tímpanos: Swiiippppp!

 

A terra tremeu. Os dentes de cima e de baixo de Richie se chocaram uns contra os outros como pratos de porcelana em um terremoto. Ele não precisou olhar para saber que o machado de Paul tinha afundado na calçada a centímetros de seus pés.

 

Loucamente, em pensamento, ele ouviu os Dovells: Oh the kids in Bristol are sharp as a pistol When they do the Bristol Stomp...

 

Ele saiu da sombra do gigante para a luz do sol e, quando fez isso, começou a rir com a mesma gargalhada exausta que saiu dele quando desceu para o subsolo da Freese’s. Ofegante, com a dor aguda na lateral do corpo, ele finalmente arriscou um olhar por cima do ombro.

 

Ali estava a estátua de Paul Bunyan, em seu pedestal, onde sempre esteve, com o machado no ombro, a cabeça inclinada para o céu, os lábios abertos no eterno sorriso otimista do herói mítico. O banco cortado em dois estava inteiro e intacto, muito obrigado. O cascalho onde Tall Paul (He’s-a my all, cantou Annette Funicello com voz insana na cabeça de Richie) tinha colocado o pé enorme estava arrumado e imaculado, exceto pelo ponto no qual Richie tinha caído quando estava

 

(fugindo do gigante)

 

sonhando. Não havia pegada, nem marca de machado no concreto. Não havia nada além de um garoto que tinha sido perseguido por outros garotos, garotos maiores, o que fez com que ele tivesse um sonho pequeno (mas muito potente) sobre um Colosso homicida... o Henry Bowers em tamanho gigante, se você preferir.

 

— Merda — disse Richie com voz baixa e trêmula, e deu uma gargalhada incerta.

 

Ele ficou ali mais um pouco, esperando para ver se a estátua se moveria de novo, talvez piscando, talvez movendo o machado de um ombro para o outro, talvez descendo para ir atrás dele de novo. Mas é claro que nenhuma dessas coisas aconteceu.

 

É claro.

 

O quê, eu, me preocupar? Har-de-har-har-har.

 

Um cochilo. Um sonho. Nada mais do que isso.

 

Mas, como Abraham Lincoln ou Sócrates ou alguém assim observou uma vez, tem uma hora que basta. Era hora de ir para casa e esfriar a cabeça; fazer como Kookie em 77 Sunset Strip e relaxar.

 

E apesar de ser mais rápido cortar caminho pelo terreno do City Center, ele decidiu não fazer isso. Não queria chegar perto daquela estátua de novo. Assim, ele deu a volta, e, quando chegou a noite, já tinha praticamente esquecido o incidente.

 

Até hoje.

 

Aqui está um homem, pensou ele, aqui está um homem com um paletó verde-musgo comprado em uma das melhores lojas da Rodeo Drive; aqui está um homem com sapatos Bass Weejuns nos pés e cueca Calvin Klein cobrindo a bunda; aqui está um homem com lentes de contato gelatinosas nos olhos; aqui está um homem lembrando o sonho de um garoto que achava que uma camisa Ivy League com um aro de tecido nas costas e um par de sapatos Snap-Jack era o máximo da moda; aqui está um adulto, olhando para a mesma velha estátua, e ei, Paul, Tall Paul, estou aqui pra dizer que você continua o mesmo em todos os aspectos, não envelheceu nem uma porra de dia.

 

A velha explicação ainda parecia verdadeira em sua mente: um sonho.

 

Ele achava que conseguiria acreditar em monstros se precisasse; monstros não eram nada de mais. Ele não tinha ficado uma vez no estúdio da rádio lendo sobre gente como Idi Amin Dada e Jim Jones e aquele cara que explodiu aquela gente no McDonald’s ali pertinho? Caramba, monstros eram baratos! Quem precisava de um ingresso de cinema de cinco dólares quando dava para ler sobre monstros no jornal por 35 centavos ou ouvir sobre eles no rádio de graça? E ele achava que, se era capaz de acreditar no tipo Jim Jones, também podia acreditar na versão de Mike Hanlon, pelo menos por enquanto. A Coisa tinha seu charme próprio, porque a Coisa vinha de Fora e ninguém tinha que ser responsável por ela. Ele conseguia acreditar em um monstro que tinha tantas caras quanto existem máscaras de borracha em uma loja de brinquedos (se você vai comprar uma, é melhor comprar logo um monte, pensou ele, mais barato em atacado, certo, pessoal?), pelo menos por questão de argumentos... mas uma estátua de plástico de 9 metros que descia do pedestal e tentava enfiar o machado de plástico em você? Era querer um pouco demais. Como Abraham Lincoln ou Sócrates ou alguém também tinha dito, eu como peixe e como carne, mas tem algumas merdas que não como. Não era...

 

Aquela dor perfurante e aguda atingiu seus olhos de novo, sem aviso, despertando um grito consternado. Foi a pior de todas, mais profunda e de maior duração, e o deixou apavorado. Ele colocou as mãos nos olhos e tocou instintivamente as pálpebras inferiores com as pontas dos dedos, com a intenção de tirar as lentes de contato. Pode ser algum tipo de infecção, pensou ele vagamente. Mas Deus, como dói.

 

Ele puxou as pálpebras e estava pronto para dar a piscadela treinada que as jogaria para fora (e ele passaria os 15 minutos seguintes procurando-as com humilhação míope no cascalho ao redor do banco, mas Jesus Deus, quem se importava, agora parecia que havia unhas enfiadas em seus olhos) quando a dor desapareceu. Ela não diminuiu; simplesmente sumiu. Um momento estava aqui e no momento seguinte, não. Seus olhos lacrimejaram brevemente e pararam.

 

Ele baixou as mãos lentamente, com o coração disparado no peito, pronto para expulsá-las dos olhos assim que a dor recomeçasse. Não recomeçou. E, de repente, ele se viu pensando sobre o único filme de terror que deu medo nele quando criança, possivelmente porque ele aguentou muita provocação por causa dos óculos e passou tanto tempo pensando nos olhos. O filme era The Crawling Eye, com Forrest Tucker. Não era muito bom. Os outros garotos riram histericamente da história, mas Richie não riu. Richie ficou gelado, pálido e mudo, pela primeira vez sem uma única voz, quando o olho gelatinoso com tentáculos saiu da neblina fabricada de um velho set de filmagens inglês, balançando os tentáculos fibrosos à frente. A visão daquele olho foi ruim, a materialização de cem medos e inquietações não percebidas. Em uma noite não muito tempo depois, ele sonhou que se olhava em um espelho e enfiava lentamente um alfinete grande na íris preta do olho, o que o fez sentir uma elasticidade entorpecida e aquosa enquanto a parte de baixo do olho se enchia de sangue. Ele se lembrava (agora se lembrava) de acordar e descobrir que tinha molhado a cama. O melhor indicador do quanto o sonho foi horrendo foi que seu sentimento principal não foi vergonha do acidente noturno, mas alívio; ele aceitou a mancha molhada e quente e abençoou a realidade de sua visão.

 

— Foda-se isso — disse Richie Tozier, com uma voz baixa que não estava muito firme, e começou a se levantar.

 

Ele voltaria para o Derry Town House e tiraria uma soneca. Se essa era a Rua da Lembrança, ele preferia a via expressa de L. A. na hora do rush. A dor nos olhos não devia passar de sinal de exaustão e consequência da diferença de fusos horários, além do estresse de encontrar o passado todo de uma vez, em uma tarde. Bastava de choques; bastava de exploração. Ele não gostava da forma como sua mente pulava de um assunto a outro. Como era aquela música de Peter Gabriel? “Shock the Monkey.” Bem, seu macaco já tinha levado choques o suficiente. Era hora de dar uma dormidinha e talvez ganhar um pouco de perspectiva.

 

Quando ele se levantou, seus olhos se dirigiram para a marquise na frente do City Center de novo. De repente, toda a força sumiu de suas pernas e ele voltou a se sentar. Com força.

 

RICHIE TOZIER HOMEM DAS 1.000 VOZES

VOLTA PARA DERRY TERRA DAS 1.000 DANÇAS

 

EM HOMENAGEM À VOLTA DO BOCA DE LIXO

O CITY CENTER ORGULHOSAMENTE APRESENTA

O SHOW DE ROCK “TUDO MORTO” DE RICHIE TOZIER

 

BUDDY HOLLY RICHIE VALENS THE BIG BOPPER

FRANKIE LYMON GENE VINCENT MARVIN GAYE

BANDA DA CASA

JIMI HENDRIX NA GUITARRA

JOHN LENNON NA GUITARRA BASE

PHIL LINOTT NO BAIXO

KEITH MOON NA BATERIA

 

VOCALISTA CONVIDADO ESPECIAL: JIM MORRISON

 

BEM-VINDO AO LAR, RICHIE!

VOCÊ TAMBÉM ESTÁ MORTO!

 

Ele sentiu como se alguém tivesse sugado todo seu fôlego... e ouviu aquele som de novo, aquele som que era meio pressão na pele e nos tímpanos, aquele sussurro homicida, Swiiippppp! Ele rolou do banco para o cascalho, pensando Então é isso que querem dizer com déjà-vu, agora você sabe, agora nunca mais vai precisar perguntar...

 

Ele bateu com o ombro e rolou, olhando para a estátua de Paul Bunyan. Só que não era mais Paul Bunyan. O palhaço estava ali de pé no lugar dele, resplandecente e evidente, fantástico de plástico, 6 metros de cores intensas, com o rosto pintado acima de uma gola de babados cósmica. Botões laranja de pompom feitos de plástico, cada um do tamanho de uma bola de vôlei, se alinhavam na frente do macacão prateado. Em vez de um machado, ele segurava um gigantesco punhado de balões de plástico. Entalhadas em cada um havia duas legendas: AINDA É ROCK-AND-ROLL PRA MIM e O SHOW DE ROCK “TUDO MORTO” DE RICHIE TOZIER.

 

Ele se arrastou para trás, usando os calcanhares e as palmas das mãos. Entrou cascalho pela parte de trás da calça. Ele ouviu uma costura se desfazer embaixo da manga do paletó esporte da Rodeo Drive. Ele rolou, ficou de pé, cambaleou, olhou para trás. O palhaço olhou para ele. Seus olhos rolavam com umidade nas órbitas.

 

— Te dei um susto, cara? — disse ele, com voz de trovão.

 

E Richie ouviu sua boca dizer de forma independente do cérebro paralisado:

 

— Truques baratos de banco de trás de carro, Bozo. Só isso.

 

O palhaço sorriu e assentiu, como se não esperasse diferente. Lábios pintados de vermelho como sangue se abriram e exibiram dentes como presas, cada um com ponta afiada.

 

— Eu poderia pegar você agora se quisesse — disse ele. — Mas isso vai ser muito mais divertido.

 

— Divertido pra mim também — Richie ouviu sua boca dizer. — O mais divertido de tudo vai ser quando formos arrancar sua cabeça, baby.

 

O sorriso do palhaço ficou ainda mais e mais largo. Ele ergueu uma das mãos, coberta por uma luva branca, e Richie sentiu o vento do movimento soprar o cabelo de sua testa como tinha acontecido 27 anos antes. O indicador do palhaço apontou para ele. Era grande como uma viga.

 

Grande como uma vig... pensou Richie, e a dor atacou de novo. Foi como estacas enferrujadas penetrando na parte gelatinosa do olho. Ele gritou e colocou a mão no rosto.

 

— Antes de tirar o cisco do olho do seu vizinho, cuide da viga que há no seu — entoou o palhaço, com palavras que ressoavam e vibravam, e Richie mais uma vez foi envolvido no doce fedor do hálito de carniça.

 

Ele ergueu o olhar e deu alguns passos apressados para trás. O palhaço estava se inclinando, com as mãos enluvadas sobre os joelhos.

 

— Quer brincar mais, Richie? Que tal eu apontar pro seu pinto e te dar um câncer de próstata? Também posso apontar pra sua cabeça e te dar um belo tumor cerebral, apesar de eu ter certeza de que algumas pessoas diriam que eu só estaria acrescentando mais coisa à podridão que já tem lá. Posso apontar pra sua boca, e sua língua frouxa idiota vai virar pus escorrendo. Posso fazer isso tudo, Richie. Quer ver?

 

Os olhos dele estavam se arregalando, arregalando, e naquelas pupilas pretas, cada uma do tamanho de uma bola de softball, Richie viu a escuridão louca que devia existir nos limites do universo; viu uma felicidade vulgar que o levaria à insanidade. Naquele momento, ele entendeu que a Coisa era capaz de fazer qualquer uma dessas coisas e mais.

 

E, mesmo assim, ele ouviu sua boca, mas desta vez não era sua voz, nem nenhuma de suas Vozes, do passado ou do presente; era uma Voz que ele nunca tinha ouvido antes. Mais tarde, ele contaria para os outros com hesitação que era uma espécie de Voz do Sr. Malandro Negão, alta e orgulhosa, parodiando a si mesma e estridente.

 

— Me deixa em paz, seu palhaço branquelo! — gritou ele, e de repente estava rindo de novo. — Não tem choro nem vela, zé mané! Eu tenho jeito, tenho peito e tenho um pinto de respeito! Tenho coragem, tenho vantagem, sou um cara com marra, e se você vier de palhaçada, vai tomar uma porrada! Está ouvindo, seu cuzão branquelo?

 

Richie achou que o palhaço se encolheu, mas não ficou esperando para ter certeza. Ele correu, com os cotovelos dando impulso, o paletó voando atrás do corpo, sem ligar porque um pai que tinha parado para o filhinho admirar Paul estava olhando agora com desconfiança para ele, como se ele tivesse enlouquecido. Na verdade, pessoal, pensou Richie, tenho a sensação de que enlouqueci. Ah, Deus, se tenho. E essa deve ter sido a pior imitação de Grandmaster Flash da história, mas por algum motivo funcionou, por algum motivo...

 

Mas, de repente, a voz do palhaço trovejou atrás dele. O pai do garotinho não ouviu, mas o rosto do menino se franziu, e ele começou a chorar. O pai pegou o filho e o abraçou, perplexo. Apesar do terror que sentia, Richie observou esse showzinho de perto. A voz do palhaço estava talvez furiosamente alegre, talvez apenas furiosa:

 

— Estamos com o olho aqui, Richie... Está ouvindo? O que rasteja. Se você não quer voar, não quer cantar, venha com felicidade pra debaixo da cidade cumprimentar o globo ocular! Venha ver quando quiser. Na hora que quiser. Está ouvindo, Richie? Traga seu ioiô. Fale pra Beverly usar uma saia comprida com quatro ou cinco anáguas por baixo. Fale pra ela usar a aliança do marido no pescoço! Fale pra Eddie usar os sapatos bicolores! Vamos tocar bop, Richie. Vamos tocar TOOOODAS AS MÚSICAS!

 

Ao chegar à calçada, Richie ousou olhar por cima do ombro, e o que viu não foi nada reconfortante. Paul Bunyan continuava ausente, mas o palhaço também. Onde ele estava antes havia agora uma estátua de plástico de 6 metros de Buddy Holly. Ele estava usando um bottom em uma das lapelas estreitas do paletó xadrez. SHOW DE ROCK “TUDO MORTO” DE RICHIE TOZIER, dizia o bottom.

 

Um aro dos óculos de Buddy Holly tinha sido remendado com fita adesiva.

 

O garotinho ainda estava chorando histericamente; o pai estava andando apressado para o centro com o filho aos berros nos braços. Ele desviou de Richie.

 

Richie saiu andando,

 

(pés não falhem agora)

 

tentando não pensar

 

(vamos tocar TOOOODAS AS MÚSICAS)

 

no que tinha acabado de acontecer. Ele só queria pensar no copo enorme de uísque que ele tomaria no bar do Derry Town House antes de ir tirar aquela soneca.

 

A ideia de um drinque, só uma bebida comum, o fez se sentir melhor. Ele olhou por cima do ombro mais uma vez, e o fato de que Paul Bunyan estava de volta, sorrindo para o céu, com o machado de plástico por cima do ombro, o fez se sentir ainda melhor. Richie começou a andar mais rápido, deixando marcas e aumentando a distância entre si mesmo e a estátua. Ele tinha até começado a pensar na possibilidade de alucinações quando a dor atingiu seus olhos de novo, profunda e agonizante, fazendo com que ele desse um grito rouco. Uma garota bonita que andava à frente dele, observando distraidamente as nuvens, olhou para ele, hesitou e correu até ele.

 

— Senhor, você está bem?

 

— São minhas lentes de contato — disse ele, com voz tensa. — Minhas malditas len... ah meu Deus isso dói!

 

Desta vez, ele levantou os dedos tão rapidamente que quase machucou os olhos. Puxou as pálpebras inferiores e pensou: Não vou conseguir piscar para retirá-las, é isso que vai acontecer, não vou conseguir tirar e vou continuar sentindo dor e mais dor e mais dor até eu ficar cego ficar cego ficar ce...

 

Mas uma piscadela fez o que uma piscadela sempre fazia. O mundo aguçado e definido, onde as cores permaneciam dentro das linhas e onde os rostos que você via eram claros e óbvios, simplesmente desapareceu. Tiras largas de manchas pastel o substituíram. E apesar de ele e a garota do ensino médio, que estava solícita e preocupada, terem procurado na calçada durante quase 15 minutos, nenhum dos dois conseguiu encontrar lente nenhuma.

 

No fundo da mente, Richie pareceu ouvir o palhaço rindo.

 

Bill Denbrough vê um fantasma

 

Bill não viu Pennywise naquela tarde, mas viu um fantasma. Um fantasma de verdade. Foi o que Bill acreditou no momento, e nenhum evento subsequente fez com que ele mudasse de ideia.

 

Ele andou pela rua Witcham e fez uma pausa perto do bueiro onde George encontrou seu fim naquele dia chuvoso de outubro em 1957. Ele se agachou e olhou dentro, uma abertura nas pedras do meio-fio. Seu coração estava batendo com força, mas ele olhou mesmo assim.

 

— Sai daí, vamos — disse ele em voz baixa, e tinha a ideia não muito louca de que sua voz estava flutuando por corredores escuros e molhados, não sumindo, mas se propagando continuamente, se alimentando dos próprios ecos, quicando em paredes de pedra cobertas de limo e em maquinário há muito quebrado. Ele a sentiu flutuar sobre águas paradas e sujas e talvez sair suavemente por cem diferentes ralos em outras partes da cidade ao mesmo tempo.

 

— Sai daí, senão vamos aí te b-buscar.

 

Ele esperou corajosamente por uma resposta, agachado com as mãos entre as coxas como um recebedor entre jogadas. Não houve resposta.

 

Ele estava prestes a ficar de pé quando uma sombra caiu sobre ele.

 

Bill ergueu o olhar rapidamente, pronto para qualquer coisa... mas era só um garotinho de talvez 11, talvez 12 anos. Estava usando um short desbotado de escoteiro que deixava os joelhos ralados expostos. Estava com um sacolé na mão e um skate de fibra de vidro que parecia quase tão sofrido quanto os joelhos na outra. O sacolé era laranja fluorescente. O skate era verde fluorescente.

 

— Você sempre fala com bueiros, moço? — perguntou o garoto.

 

— Só em Derry — disse Bill.

 

Eles olharam um para o outro solenemente por um momento e caíram na gargalhada na mesma hora.

 

— Quero te fazer uma p-pergunta idiota — disse Bill.

 

— Tudo bem — disse o garoto.

 

— Você já ouviu alguma coisa saindo de um desses?

 

O garoto olhou para Bill como se ele estivesse louco.

 

— T-Tudo bem — disse Bill —, esquece que eu perguntei.

 

Ele saiu andando e tinha dado talvez 12 passos (estava indo ladeira acima, pensando vagamente em dar uma olhada em sua casa) quando o garoto chamou:

 

— Moço?

 

Bill se virou. Estava com o paletó esporte pendurado no dedo e jogado por cima do ombro. O colarinho da camisa estava desabotoado e a gravata, afrouxada. O garoto o estava observando com atenção, como se já arrependido da decisão de falar mais. Em seguida, ele deu de ombros, como se dizendo E daí?

 

— Já.

 

— Já?

 

— Já.

 

— O que disseram?

 

— Não sei. Era uma língua estrangeira. Ouvi saindo de uma daquelas estações de bombeamento do Barrens. As estações de bombeamento, que parecem canos saindo do chão...

 

— Sei do que você está falando. Foi uma criança que você ouviu?

 

— Primeiro era uma criança, mas depois parecia um homem. — O garoto fez uma pausa. — Fiquei com medo. Corri pra casa e contei pro meu pai. Ele disse que devia ser um eco espalhado nos canos vindo da casa de alguém.

 

— Você acredita nisso?

 

O garoto deu um sorriso encantador.

 

— Li no livro Ripley’s acredite se quiser que tinha um cara que ouvia música nos dentes. Música de rádio. As obturações funcionavam como radinhos. Acho que, se acreditei nisso, posso acreditar em qualquer coisa.

 

— A-Aham — disse Bill. — Mas você acreditou?

 

O garoto balançou a cabeça com relutância.

 

— Você voltou a ouvir as vozes?

 

— Uma vez, quando estava tomando banho de banheira — disse o garoto. — Era uma voz de garota. Só chorando. Sem dizer nada. Fiquei com medo de tirar a tampa do ralo quando acabei porque achei que, sei lá, podia afogar ela.

 

Bill assentiu de novo.

 

O garoto estava olhando abertamente para Bill agora, com olhos brilhando e fascinados.

 

— Você sabe sobre essas vozes, moço?

 

— Eu ouvi — disse Bill. — Muito, muito tempo atrás. Você conhecia alguma das c-crianças que foram assassinadas aqui, filho?

 

O brilho sumiu dos olhos do garoto; foi substituído por cautela e desconforto.

 

— Meu pai diz que não devo falar com estranhos. Diz que qualquer pessoa pode ser o assassino. — Ele deu um passo adicional para longe de Bill, indo para a sombra de um olmo no qual Bill se chocou de bicicleta 27 anos antes. Ele levou um tombo e entortou o guidão.

 

— Eu não, garoto — disse ele. — Passei os últimos quatro meses na Inglaterra. Cheguei em Derry ontem.

 

— Mesmo assim, não preciso falar com você — respondeu o garoto.

 

— Isso mesmo — concordou Bill. — Estamos em um país l-l-livre.

 

Ele fez uma pausa e disse:

 

— Eu andava com Johnny Feury às vezes. Ele era legal. Eu chorei — concluiu o garoto com objetividade, e tomou o resto do sacolé. Em seguida, colocou a língua para fora, temporariamente laranja, e lambeu o braço.

 

— Fique longe dos bueiros e ralos — disse Bill baixinho. — Fique longe de lugares vazios e desertos. Não vá ao pátio de trens. Mas mais do que tudo, fique longe dos bueiros e ralos.

 

O brilho tinha voltado para os olhos do garoto, e ele não disse nada por bastante tempo. E então:

 

— Moço? Quer ouvir uma coisa engraçada?

 

— Claro.

 

— Sabe aquele filme em que o tubarão comeu todas as pessoas?

 

— Todo mundo conhece. T-T-Tubarão.

 

— Tenho um amigo, sabe? O nome dele é Tommy Vicananza, e ele não é muito inteligente. Tem miolo mole, sabe?

 

— Sei.

 

— Ele acha que viu aquele tubarão no canal. Estava sozinho no Parque Bassey duas semanas atrás e disse que viu a barbatana. Diz que tinha 2,5 metros de altura, só a barbatana tinha esse tamanho todo, entende? Ele diz: “Foi aquilo que matou Johnny e os outros garotos. Foi o Tubarão, eu sei porque vi.” E eu digo: “Aquele canal é tão poluído que nada poderia viver lá dentro. E você acha que viu o Tubarão lá. Você está ruim da cabeça, Tommy.” Tommy diz que ele saiu da água daquele jeito do filme e tentou morder ele, e ele escapou bem a tempo. Engraçado, né, moço?

 

— Engraçado — concordou Bill.

 

— Ruim da cabeça, né?

 

Bill hesitou.

 

— Fique longe do canal também, filho. Entendeu?

 

— Você quer dizer que acredita?

 

Bill hesitou. Ele queria dar de ombros. Mas acabou assentindo.

 

O garoto expirou com um som baixo. E baixou a cabeça, como se com vergonha.

 

— É. Às vezes eu acho que eu devo estar ruim da cabeça.

 

— Sei o que você quer dizer. — Bill andou até o garoto, que olhou para ele solenemente, mas não se afastou desta vez. — Você está acabando com os joelhos nesse skate, filho.

 

O garoto olhou para os joelhos ralados e sorriu.

 

— É, acho que estou. Às vezes, eu caio.

 

— Posso experimentar? — perguntou Bill de repente.

 

O garoto olhou para ele, boquiaberto a princípio, depois rindo.

 

— Seria engraçado — disse ele. — Nunca vi um adulto num skate.

 

— Te dou uma moeda — disse Bill.

 

— Meu pai disse...

 

— Pra nunca receber dinheiro nem d-doces de estranhos. Bom conselho. Mas vou te dar a m-moeda mesmo assim. O que você diz? Só até a esquina da rua J-Jackson.

 

— Deixa a moeda pra lá — disse o garoto. Ele caiu na gargalhada de novo, um som alegre e descomplicado. Um som renovador. — Não preciso da sua moeda. Tenho dois dólares. Estou praticamente rico. Mas preciso ver isso. Só não me culpe se quebrar alguma coisa.

 

— Não se preocupe — disse Bill. — Tenho seguro.

 

Ele girou uma das rodinhas gastas do skate com o dedo, gostando da velocidade com a qual ela girava. Parecia que havia um milhão de bilhas lá dentro. Era um bom som. Despertava alguma coisa muito antiga no peito de Bill. Uma vontade calorosa como desejo, adorável como o amor. Ele sorriu.

 

— O que você acha? — perguntou o garoto.

 

— Acho que v-vou me matar — disse Bill, e o garoto riu.

 

Bill colocou o skate na calçada e um pé sobre ele. Empurrou-o para a frente e para trás para testar. O garoto ficou olhando. Em pensamento, Bill se viu rolando pela rua Witcham na direção da Jackson no skate verde-abacate do garoto, com a parte de trás do paletó inflada atrás, a cabeça careca brilhando no sol, os joelhos dobrados daquela maneira frágil como esquiadores dobram os joelhos na primeira vez que vão esquiar. Era uma postura que dizia que, na cabeça deles, eles já estavam caindo. Ele apostava que o garoto não andava de skate assim. Ele apostava que o garoto andava

 

(pra vencer o diabo)

 

como se não houvesse amanhã.

 

Aquela sensação boa morreu no peito dele. Ele viu claramente o skate sumindo de debaixo dos pés, disparando sozinho pela rua, um verde fluorescente improvável, uma cor que só uma criança poderia amar. Ele se viu caindo de bunda, talvez de costas. A imagem se dissolveu lentamente para um quarto individual no Derry Home Hospital, como o quarto em que eles foram para visitar Eddie depois que ele quebrou o braço. Bill Denbrough em um gesso de corpo inteiro, com uma perna pendurada. Um médico entra, olha para a prancheta, olha para ele e diz: “Você cometeu dois erros, sr. Denbrough. O primeiro foi o uso errôneo de um skate. O segundo foi esquecer que tem quase 40 anos de idade.”

 

Ele se inclinou, pegou o skate e devolveu para o garoto.

 

— Acho que não — disse ele.

 

— Covarde — disse o garoto, não com grosseria.

 

Bill colocou os polegares debaixo das axilas e bateu os cotovelos.

 

— Có-có-có — disse ele.

 

O garoto riu.

 

— Olha, tenho que voltar pra casa.

 

— Cuidado com isso — disse Bill.

 

— Não dá pra ter cuidado em um skate — respondeu o garoto, olhando para Bill como se fosse ele o ruim da cabeça.

 

— Certo — disse Bill. — Tudo bem. Como dizemos no meio do cinema, estou sabendo. Mas fique longe de bueiros e ralos. E ande com seus amigos.

 

O garoto assentiu.

 

— Estou pertinho de casa.

 

Meu irmão também estava, pensou Bill.

 

— Vai acabar logo, de qualquer modo — disse Bill para o garoto.

 

— Vai? — perguntou ele.

 

— Acho que sim — disse Bill.

 

— Tudo bem. Te vejo por aí... covarde!

 

O garoto colocou um pé no skate e deu impulso com o outro. Quando saiu deslizando, ele colocou o segundo pé em cima e desceu voando pela rua no que pareceu a Bill uma velocidade suicida. Mas seguiu como Bill desconfiava que ele faria: com graça preguiçosa e cheia de molejo. Bill sentiu amor pelo garoto, e euforia, e um desejo de ser o garoto, junto com um medo quase sufocante. O garoto andava de skate como se não existissem coisas como morte ou envelhecer. O garoto parecia eterno e inelutável de short cáqui de escoteiro e tênis surrados, com os tornozelos sem meias e bastante sujos, o cabelo voando atrás da cabeça.

 

Cuidado, garoto, você não vai conseguir parar na esquina!, pensou Bill alarmado, mas o garoto girou os quadris para a esquerda como um dançarino de break, os dedos dos pés giraram no skate de fibra de vidro e ele seguiu sem esforço pela esquina para a rua Jackson, simplesmente supondo que ninguém estaria no caminho. Garoto, pensou Bill, nem sempre vai ser assim.

 

Ele andou até sua antiga casa, mas não parou; apenas diminuiu a velocidade de caminhada. Havia pessoas no gramado: uma mãe em uma cadeira de jardim, com um bebê dormindo nos braços, olhando duas crianças, talvez de 10 e de 8 anos, jogando badminton na grama ainda molhada da chuva de antes. O mais novo, um garoto, conseguiu bater na peteca por cima da rede, e a mulher gritou:

 

— Boa, Sean!

 

A casa tinha a mesma cor verde-escura, e ainda havia a mesma claraboia em cima da porta, mas os canteiros de flor de sua mãe não existiam mais. Também não existia, pelo que ele podia ver, o trepa-trepa que o pai tinha construído com canos no quintal. Ele se lembrava do dia em que George caiu do alto e lascou o dente. Como ele gritou!

 

Ele viu essas coisas (as que estavam lá e as que não estavam) e pensou em andar até a mulher com o bebê dormindo nos braços. Pensou em dizer: Oi, meu nome é Bill Denbrough. Eu morava aqui. E a mulher diria: Que legal. O que mais poderia acontecer? Ele poderia perguntar se o rosto que ele entalhou em uma das vigas do sótão, o rosto em que ele e Georgie às vezes jogavam dardos, ainda estava lá. Poderia perguntar se os filhos dela às vezes dormiam na varanda com tela dos fundos, quando as noites de verão eram quentes, conversando em voz baixa enquanto olhavam os relâmpagos no horizonte. Ele achava que poderia perguntar algumas dessas coisas, mas tinha certeza de que gaguejaria muito se tentasse ser encantador... E será que queria mesmo saber as respostas para todas aquelas perguntas? Depois que Georgie morreu, a casa ficou fria, e o motivo de ele ter voltado para Derry não estava nela.

 

Assim, ele foi até a esquina e virou para a direita sem olhar para trás.

 

Logo que chegou à rua Kansas, ele voltou para o centro. Parou por um momento na cerca perto da calçada e olhou para o Barrens. A cerca era a mesma, de madeira bamba coberta com tinta branca desbotada, e o Barrens parecia o mesmo... mais selvagem, no máximo. As únicas diferenças que ele conseguia ver eram que a mancha suja de fumaça que sempre marcava o lixão tinha sumido (o lixão tinha sido substituído por uma estação moderna de tratamento de lixo) e um longo viaduto passava no meio da vegetação densa agora, a extensão da rodovia. Todo o resto continuava tão parecido que era como se ele tivesse visto no verão anterior: mato e arbustos descendo para a área pantanosa à esquerda e para as copas densas de árvores desgrenhadas à direita. Ele conseguia ver a área do que eles chamavam de bambu, com cabos prateados, quase brancos, com 3,5 a 4 metros de altura. Ele lembrava que Richie uma vez tentou fumar um pedaço, alegando que era o que os músicos de jazz fumavam e que deixava você alto. Mas Richie só ficou enjoado.

 

Bill conseguia ouvir água correndo em muitos riachos, conseguia ver o sol refletido no corpo denso do Kenduskeag. E o cheiro era igual, mesmo sem o lixão. O perfume pesado de coisas crescendo no auge da primavera não mascarava o cheiro de lixo e dejetos humanos. Era leve, mas inconfundível. Um cheiro de corrupção; um aroma do submundo.

 

Foi ali que acabou antes, e é onde vai acabar desta vez, pensou Bill com um tremor. Ali... debaixo da cidade.

 

Ele ficou mais um pouco por ali, convencido de que devia ver alguma coisa, alguma manifestação do mal contra o qual tinha voltado a Derry para lutar. Não havia nada. Ele ouviu água correndo, um som vital de fonte que o lembrava a represa que eles tinham construído lá embaixo. Ele conseguia ver árvores e arbustos tremendo na leve brisa. Não havia mais nada. Nenhum sinal. Ele seguiu andando enquanto tirava um resquício de tinta branca das mãos.

 

Ele continuou seguindo para a cidade, meio lembrando, meio sonhando, e logo apareceu outra criança; desta vez, uma garota de uns 10 anos, de calça de veludo de cintura alta e blusa vermelha desbotada. Ela estava fazendo uma bola quicar com uma das mãos e segurando uma boneca pelo cabelo louro com a outra.

 

— Ei! — disse Bill.

 

Ela ergueu o olhar.

 

— O quê?

 

— Qual é a melhor loja de Derry?

 

Ela pensou um pouco.

 

— Pra mim ou pra qualquer pessoa?

 

— Pra você — disse Bill.

 

— Secondhand Rose, Secondhand Clothes — disse ela, sem hesitação nenhuma.

 

— Como é que é? — perguntou Bill.

 

— Como é o quê?

 

— Isso aí é nome de loja?

 

— Claro — disse ela, olhando para Bill como se ele pudesse estar doente. — Secondhand Rose, Secondhand Clothes. Minha mãe diz que é loja de tralhas, mas eu gosto. Tem coisas velhas. Como discos de que você nunca ouviu falar. E cartões-postais. Tem cheiro de sótão. Tenho que ir pra casa agora. Tchau.

 

Ela saiu andando sem olhar para trás, fazendo a bola quicar e segurando a boneca pelo cabelo.

 

— Ei! — gritou ele de novo para ela.

 

Ela olhou para trás com curiosidade.

 

— Como é que foiquevocêfaloumesmo?

 

— A loja! Onde é?

 

Ela olhou por cima do ombro e disse:

 

— No caminho que você está indo. Fica na parte de baixo da colina Up-Mile.

 

Bill teve aquela sensação do passado se dobrando sobre si mesmo, se dobrando sobre ele. Ele não pretendia perguntar nada àquela garotinha; a pergunta surgiu em sua boca como uma rolha voando da boca de uma garrafa de champanhe.

 

Ele desceu a colina Up-Mile em direção ao centro. Os armazéns e abatedouros dos quais ele se lembrava da infância (prédios sombrios de tijolos com janelas sujas das quais saíam aromas fortíssimos de carne) quase não existiam mais, embora os abatedouros Armour e Star Beef ainda estivessem lá. Mas o Hemphill não existia mais, e havia um banco com estacionamento e uma padaria onde ficavam o Eagle Beef e o Kosher Meats. E ali, onde ficava o Anexo dos Irmãos Tracker, havia uma placa pintada com letras antiquadas que diziam, como a garota com a boneca dissera, SECONDHAND ROSE, SECONDHAND CLOTHES. Os tijolos vermelhos tinham sido pintados de um amarelo que talvez fosse vívido dez ou 12 anos antes, mas agora estava velho, de um tom que Audra chamava de amarelo-urina.

 

Bill andou lentamente na direção da loja, com aquela sensação de déjà-vu tomando conta dele de novo. Mais tarde, ele contou aos outros que sabia que fantasma veria antes mesmo de ver.

 

A vitrine da Secondhand Rose, Secondhand Clothes estava mais do que suja; estava encardida. Não era um antiquário de Downeast, com camas majestosas e armários Hoosier e jogos de copos da época da Depressão iluminados por pequenos holofotes escondidos; essa era o que sua mãe chamava com total desdém “uma casa de penhores ianque”. Os objetos estavam espalhados em profusão confusa, empilhados aleatoriamente aqui, ali, por toda parte. Vestidos pendurados em cabideiros. Violões pendurados pelo braço como criminosos executados. Havia uma caixa de discos de 45 rpm; 10 CENTAVOS CADA, dizia uma placa. DOZE POR UM DÓLAR. ANDREWS SISTERS, PERRY COMO, JIMMY ROGERS, OUTROS. Havia roupas de criança e sapatos horrendos com uma plaquinha de papelão na frente dizendo USADOS, MAS NÃO RUINS! $ 1,00 O PAR. Havia duas TVs que pareciam queimadas. Uma terceira mostrava imagens difusas de A Família Sol-Lá-Si-Dó para a rua. Uma caixa de livros velhos, quase todos com a capa arrancada (2 POR 25 CENTAVOS, 10 POR UM DÓLAR, MAIS DENTRO, ALGUNS “QUENTES”), estava em cima de um rádio grande com uma capa imunda de plástico branco e um dial tão grande quanto um despertador. Havia montes de flores de plástico em vasos sujos em uma mesa de jantar entalhada e empoeirada.

 

Bill viu todas essas coisas como pano de fundo caótico para a coisa em que seus olhos se grudaram imediatamente. Ele ficou olhando sem acreditar. A pele de todo o corpo ficou arrepiada. A testa ficou quente, as mãos ficaram frias e, por um momento, pareceu que todas as portas dentro dele se escancarariam e ele lembraria tudo.

 

Silver estava no lado direito da vitrine.

 

Ela continuava sem apoio e havia ferrugem nos para-choques da frente e de trás, mas a buzina ainda estava no guidão, com o bulbo de borracha agora coberto de rachaduras e de velhice. A buzina em si, que Bill sempre deixara polida, estava fosca e marcada. A garupa em que Richie tantas vezes se sentara ainda ficava sobre o para-choque traseiro, mas agora estava torta, pendurada por um único parafuso. Em algum momento, alguém cobriu o selim com um tecido imitando pele de tigre, que agora estava gasto e rasgado a ponto de as listras se tornarem quase invisíveis.

 

Silver.

 

Bill levantou a mão distraída para limpar as lágrimas que escorriam lentamente por suas bochechas. Depois de ter se limpado melhor com o lenço, ele entrou.

 

A atmosfera da Secondhand Rose, Secondhand Clothes tinha cheiro de velhice. Como a garota dissera, era o cheiro de sótão, mas não um cheiro bom, como o de alguns sótãos. Esse não era o cheiro de óleo de linhaça passado com amor nas superfícies de mesas velhas ou de plush e veludo antigos. Aqui, o cheiro era de lombadas de livros podres, almofadas sujas de vinil que pegaram muito sol no passado, de poeira, de cocô de rato.

 

Na TV da vitrine, a família Sol-Lá-Si-Dó cantava e gritava. Competindo com ela de algum lugar nos fundos havia a voz de rádio de um disc-jóquei que se identificava como “seu amigo Bobby Russell”, prometendo o novo álbum do Prince para o ouvinte que pudesse dizer o nome do ator que fizera o papel de Wally em Leave It to Beaver. Bill sabia, era um garoto chamado Tony Dow, mas ele não queria o novo disco do Prince. O rádio estava em uma prateleira alta em meio a um monte de retratos do século XIX. Abaixo, estava sentado o proprietário, um homem de uns 40 anos com jeans de marca e uma camiseta de redinha. O cabelo estava penteado para trás com gel, e ele era magro a ponto de estar esquelético. Os pés estavam apoiados na mesa, que estava lotada de livros contábeis e dominada por uma caixa registradora antiga. Ele estava lendo um livro que Bill achava nunca ter sido indicado para o prêmio Pulitzer. Chamava-se Garanhões de construções. No chão em frente à mesa havia um poste de barbearia, com a tira em espiral até a eternidade. A corda gasta caía pelo chão até um plugue, como uma cobra cansada. A placa na frente dele dizia: UMA ESPÉCIE EM EXTINÇÃO! $ 250.

 

Quando o sino acima da porta tocou, o homem atrás da mesa marcou a parte do livro com uma caixa de fósforos e ergueu o olhar.

 

— Posso ajudar?

 

— Pode — disse Bill, e abriu a boca para perguntar sobre a bicicleta na janela. Mas antes que ele conseguisse perguntar, sua mente se encheu de repente de uma única frase assombrada, palavras que afastaram o outro pensamento:

 

Ele soca postes de montão e insiste que vê assombração.

 

O que em nome de Deus?

 

(soca)

 

— Procurando alguma coisa em particular? — perguntou o proprietário. Sua voz era bem educada, mas ele estava olhando para Bill com atenção.

 

Ele está me olhando, pensou Bill, divertido apesar da aflição, como se achasse que andei fumando aquele negócio que deixa os músicos de jazz doidões.

 

— Sim, eu estava i-i-interessado em...

 

(soca postes de montão)

 

— ... naquele p-p-poste...

 

— Você está falando do poste de barbearia? — Os olhos do proprietário agora mostraram a Bill uma coisa que, mesmo em seu atual estado de confusão, ele lembrava e odiava desde a infância: a ansiedade de um homem ou mulher que tem que ouvir um gago, a vontade de se intrometer rapidamente e concluir o pensamento dele, fazendo o pobre coitado calar a boca. Mas eu não gaguejo! Eu superei! EU NÃO GAGUEJO, PORRA! EU...

 

(e insiste)

 

As palavras estavam tão claras em sua mente que parecia haver outra pessoa falando lá dentro, como um homem possuído por demônios nas épocas bíblicas, um homem invadido por alguma presença externa. Mas ele reconheceu a voz e sabia que era dele mesmo. Ele sentiu o suor surgir quente em seu rosto.

 

— Eu poderia te dar

 

(que vê assombração)

 

... um desconto no poste — dizia o proprietário. — Pra falar a verdade, 250 é muito. Posso fazer por 175, que tal? É a única antiguidade de verdade aqui.

 

(poste)

 

— POSTE. — Bill quase gritou, e o proprietário recuou um pouco. — Não é no poste que estou interessado.

 

— Você está bem, moço? — perguntou o proprietário. O tom solícito escondia a expressão de cautela nos olhos, e Bill viu a mão esquerda sair de cima da mesa. Ele sabia, com um brilho de uma coisa que era mais raciocínio indutivo do que intuição, que havia uma gaveta aberta abaixo do campo de visão de Bill, e que o proprietário tinha quase certamente colocado a mão em algum tipo de pistola. Ele talvez estivesse com medo de assalto, mas devia estar só preocupado. Afinal, ele era claramente gay, e essa era a cidade onde os juvenis locais tinham dado um banho terminal em Adrian Mellon.

 

(ele soca postes de montão e insiste que vê assombração)

 

Isso afastava todos os outros pensamentos; era como estar louco. De onde tinha vindo?

 

(ele soca)

 

Repetindo e repetindo.

 

Com um repentino esforço gigantesco, Bill atacou o pensamento. Ele fez isso forçando a mente a traduzir a frase alienígena para francês. Era a mesma maneira como ele venceu a gagueira quando adolescente. Quando as palavras entravam em seu campo de visão, ele as mudava... e de repente sentia o aperto da gagueira afrouxar.

 

Ele percebeu que o proprietário estava dizendo alguma coisa.

 

— P-P-Perdão?

 

— Falei que, se você vai ter um troço, vai pra rua. Não preciso dessas merdas aqui.

 

Bill respirou fundo.

 

— Vamos r-recomeçar — disse ele. — Finja que acabei de entrar.

 

— Certo — disse o proprietário, concordando — Você acabou de entrar. E agora?

 

— A b-bicicleta na vitrine — disse Bill. — Quanto você quer pela bicicleta?

 

— Pode ser vinte pratas. — Ele parecia mais tranquilo agora, mas a mão esquerda ainda não tinha reaparecido. — Acho que foi uma Schwinn em alguma época, mas agora é uma vira-lata. — Seu olhar avaliou Bill. — É uma bicicleta grande. Você poderia andar nela.

 

Pensando no skate verde do garoto, Bill disse:

 

— Acho que meus dias de andar de bicicleta já eram.

 

O proprietário deu de ombros. A mão esquerda finalmente voltou a subir.

 

— Tem um filho?

 

— T-Tenho.

 

— De quantos anos?

 

— O-O-Onze.

 

— É uma bicicleta grande pra um garoto de 11 anos.

 

— Você aceita cheque de viagem?

 

— Desde que não seja de mais de dez dólares acima do valor da compra.

 

— Posso te dar um de vinte — disse Bill. — Posso fazer uma ligação?

 

— Pode, se for local.

 

— É, sim.

 

— Fique à vontade.

 

Bill ligou para a Biblioteca Pública de Derry. Mike estava lá.

 

— Onde você está, Bill? — perguntou ele, e imediatamente em seguida: — Você está bem?

 

— Estou. Você viu algum dos outros?

 

— Não. Vamos ver todos hoje à noite. — Houve uma breve pausa. — É o que presumo. O que posso fazer por você, Big Bill?

 

— Vou comprar uma bicicleta — disse Bill calmamente. — Queria saber se posso levar até sua casa. Você tem uma garagem ou algum lugar onde eu possa guardar?

 

Silêncio.

 

— Mike? Você...

 

— Estou aqui — disse Mike. — É Silver?

 

Bill olhou para o proprietário. Ele voltou a ler o livro... ou talvez só estivesse olhando e prestando atenção.

 

— É — disse ele.

 

— Onde você está?

 

— A loja se chama Secondhand Rose, Secondhand Clothes.

 

— Tudo bem — disse Mike. — Meu endereço é alameda Palmer, 61. Você segue pela rua Main...

 

— Consigo encontrar.

 

— Tudo bem, te encontro lá. Quer jantar?

 

— Seria legal. Você pode sair do trabalho?

 

— Não tem problema. Carole cobre pra mim. — Mike hesitou de novo. — Ela disse que um cara apareceu aqui uma hora antes de eu voltar. Disse que ele saiu parecendo um fantasma. Pedi que ela o descrevesse. Era Ben.

 

— Tem certeza?

 

— Tenho. E a bicicleta. Também é parte disso, não é?

 

— Não é de surpreender — disse Bill, mantendo o olhar no proprietário, que ainda parecia absorto no livro.

 

— Vejo você lá em casa — disse Mike. — Número 61. Não se esqueça.

 

— Pode deixar. Obrigado, Mike.

 

— Deus te abençoe, Big Bill.

 

Bill desligou. O proprietário fechou imediatamente o livro de novo.

 

— Arrumou espaço pra guardar, amigo?

 

— Arrumei. — Bill pegou os cheques de viagem e assinou em um de vinte dólares. O proprietário examinou as duas assinaturas com uma atenção que, em circunstâncias mentais menos distraídas, Bill teria achado um tanto insultante.

 

Por fim, o proprietário preencheu um recibo de venda e guardou o cheque de viagem na velha caixa registradora. Ele ficou de pé, colocou as mãos na lombar e se alongou, depois andou até a frente da loja. Ele desviou de pilhas de lixo e mercadorias que eram quase lixo com uma delicadeza distraída que Bill achou fascinante.

 

Ele levantou a bicicleta, girou-a e a levou até a beirada da vitrine. Bill segurou o guidão para ajudar e, quando tocou nela, outro tremor o percorreu. Silver. De novo. Era Silver em suas mãos e

 

(ele soca postes de montão e insiste que vê assombração)

 

teve que forçar o pensamento a ir embora porque o fazia sentir vontade de desmaiar e provocava uma sensação estranha.

 

— O pneu de trás está um pouco murcho — disse o proprietário (na verdade, estava achatado como uma panqueca). O pneu da frente estava inflado, mas tão careca que aparecia o cordão em alguns pontos.

 

— Não tem problema — disse Bill.

 

— Dá pra levar daqui?

 

(eu lidava muito bem com ela; agora, não sei)

 

— Acho que sim — disse Bill. — Obrigado.

 

— Claro. E se você quiser conversar sobre aquele poste de barbearia, pode voltar.

 

O proprietário segurou a porta para ele. Bill saiu andando com a bicicleta, virou à esquerda e começou a seguir na direção da rua Main. As pessoas olharam com diversão e curiosidade para o homem careca empurrando a enorme bicicleta com pneu de trás murcho e a buzina acima da cesta enferrujada, mas Bill nem reparou. Estava maravilhado com o quanto as mãos adultas ainda cabiam bem nos apoios de borracha, estava lembrando que sempre pretendeu amarrar tiras finas de plástico de cores diferentes nos buracos em cada apoio, para que voassem ao vento. Ele nunca chegou a fazer isso.

 

Ele parou na esquina da Center e Main, em frente à loja Mr. Paperback. Encostou a bicicleta no prédio tempo o bastante para tirar o paletó esporte. Empurrar uma bicicleta com pneu murcho era trabalhoso, e a tarde estava bem quente. Ele jogou o paletó na cesta e seguiu em frente.

 

A corrente está enferrujada, pensou ele. Quem era o dono não cuidava muito bem

 

(dele)

 

dela.

 

Ele parou por um momento, franzindo a testa, tentando se lembrar do que tinha acontecido com Silver. Ele a tinha vendido? Dado? Perdido, talvez? Ele não conseguia lembrar. Em vez disso, aquela frase idiota

 

(ele soca postes de montão e insiste que vê assombração)

 

ressurgiu, tão estranha e deslocada quanto uma espreguiçadeira em um campo de batalhas, um toca-discos em uma lareira, uma fileira de lápis enfiada em uma calçada de cimento.

 

Bill balançou a cabeça. A frase se partiu e se dispersou como fumaça. Ele empurrou Silver até a casa de Mike.

 

Mike Hanlon faz uma ligação

 

Mas primeiro ele fez o jantar: hambúrgueres com cogumelos, cebola salteados e salada de espinafre. Eles já tinham terminado de trabalhar em Silver e estavam mais do que prontos para comer.

 

A casa era pequena e arrumada, no estilo Cape Cod, branca com detalhes verdes. Mike estava chegando quando Bill entrou com Silver na alameda Palmer. Ele estava atrás do volante de um velho Ford com lataria enferrujada embaixo e para-brisa traseiro rachado, e Bill se lembrou do fato que Mike observou tão tranquilamente: os seis integrantes do Clube dos Otários que saíram de Derry deixaram de ser otários. Mike ficou para trás e ainda estava atrás.

 

Bill empurrou Silver até a garagem de Mike, que tinha piso de terra oleada e era tão arrumada quanto o resto da casa. Havia ferramentas penduradas em ganchos, e as luzes, protegidas por cones de lata, pareciam as penduradas acima de mesas de bilhar. Bill apoiou a bicicleta na parede. Os dois olharam para ela sem falar, com as mãos nos bolsos.

 

— É Silver mesmo — disse Mike por fim. — Pensei que você pudesse estar enganado. Mas é ela. O que você vai fazer com ela?

 

— Não faço porra nenhuma de ideia. Você tem uma bomba de bicicleta?

 

— Tenho. Acho que também tenho um kit pra remendar pneu. Os pneus são sem câmara?

 

— Sempre eram. — Bill se inclinou para olhar para o pneu furado. — É. Sem câmara.

 

— Se preparando pra andar de novo?

 

— É c-claro que não — disse Bill intensamente. — Só não gosto de ver ela assim, de pneu f-f-furado.

 

— O que você quiser, Big Bill. Você que manda.

 

Bill ergueu o olhar rapidamente ao ouvir isso, mas Mike tinha ido para os fundos da garagem e estava pegando uma bomba de encher pneu. Ele pegou um kit de lata de remendar pneus em um dos armários e entregou para Bill, que olhou com curiosidade. Era como ele se lembrava de coisas assim da infância: uma pequena lata do mesmo tamanho e formato das que os homens que enrolavam os próprios cigarros tinham, só que a parte de cima era colorida e áspera; era usada para esfregar na borracha ao redor do buraco antes de fazer o remendo. A caixa parecia novinha, e ainda tinha o adesivo de preço da Woolco que dizia que tinha custado 7,23 dólares. Ele achava que, quando era criança, um kit desses custava coisa de 1,25 pratas.

 

— Você não tinha isso aí por acaso — disse Bill. Não era uma pergunta.

 

— Não — concordou Mike. — Comprei semana passada. No shopping, pra falar a verdade.

 

— Você tem bicicleta?

 

— Não — disse Mike, olhando nos olhos dele.

 

— E comprou esse kit sem motivo.

 

— Simplesmente tive vontade — concordou Mike, ainda olhando nos olhos de Bill. — Acordei pensando que poderia ser útil. O pensamento voltava toda hora ao longo do dia. Então... comprei o kit. E aqui está você pra usar.

 

— Aqui estou eu pra usar — concordou Bill. — Mas como dizem nas novelas, o que isso tudo quer dizer, querido?

 

— Pergunte aos outros — disse Mike. — Hoje à noite.

 

— Você acha que todos irão?

 

— Não sei, Big Bill. — Ele fez uma pausa e acrescentou: — Acho que tem uma chance de nem todos irem. Um ou dois podem decidir cair fora da cidade. Ou... — Ele deu de ombros.

 

— O que faremos se isso acontecer?

 

— Não sei. — Mike apontou para o kit de remendar pneus. — Paguei sete pratas por essa coisa. Você vai usar ou vai ficar olhando?

 

Bill tirou o paletó da cesta e pendurou com cuidado em um gancho desocupado. Em seguida, virou Silver de cabeça para baixo, apoiada sobre o banco, e começou a girar lentamente o pneu de trás. Ele não gostou da forma enferrujada como o eixo gemeu, e lembrou-se do clique quase silencioso das bilhas no skate do garoto. Um pouco de óleo 3 em 1 consertaria isso, pensou ele. Não faria mal passar óleo na corrente também. Está enferrujada pra caramba... E cartas de baralho. Ela precisa de cartas de baralho nos raios. Aposto que Mike teria cartas. Das boas. De motos, com cobertura de celuloide que as deixava tão rígidas e escorregadias que a primeira vez que você tentava embaralhar, elas sempre se espalhavam pelo chão. Cartas de baralho, claro, e pregadores de roupas para prendê-las...

 

Ele parou, gelado de repente.

 

Em que você está pensando, em nome de Jesus?

 

— Algum problema, Bill? — perguntou Mike baixinho.

 

— Nada. — Os dedos dele tocaram em uma coisa pequena, redonda e dura. Ele apoiou as unhas embaixo e puxou. Uma pequena tachinha saiu do pneu. — Aqui está o c-c-culpado — disse ele, e surgiu na mente dele de novo, estranha, espontânea e poderosa: Ele soca postes de montão e insiste que vê assombração. Mas desta vez a voz, sua voz, foi seguida da voz da mãe dizendo: Tente de novo, Billy. Você quase conseguiu agora. E Andy Devine como o parceiro de Guy Madison, Jingles, gritando Ei, Wild Bill, me espere!

 

Ele tremeu.

 

(postes)

 

Ele balançou a cabeça. Eu não consigo dizer isso sem gaguejar nem agora, pensou ele, e por apenas um momento sentiu que estava prestes a entender tudo. Mas então, sumiu.

 

Ele abriu o kit de remendo de pneu e começou a trabalhar. Demorou para acertar. Mike se encostou na parede em uma tira de sol de fim da tarde, com as mangas da camisa enroladas e a gravata puxada, assobiando uma melodia que Bill acabou por identificar como “She Blinded Me with Science”.

 

Enquanto esperava que a base secasse, Bill passou óleo na corrente de Silver (só para ter alguma coisa para fazer, ele disse para si mesmo), além da roda dentada e dos raios. Não deixou a aparência da bicicleta melhor, mas quando ele girou as rodas, viu que o gemido tinha sumido, e isso era satisfatório. Silver jamais teria ganhado mesmo nenhum concurso de beleza. A virtude dela era que disparava como um raio.

 

Àquela altura, 17h30, ele quase tinha se esquecido de que Mike estava ali; estava completamente absorto nos gestos pequenos, porém satisfatórios da manutenção. Ele prendeu a ponta da bomba na válvula do pneu de trás e viu o pneu inflar, procurando a pressão certa por palpite e sorte. Ficou feliz em ver que o remendo segurou bem.

 

Quando achou que tinha acertado, ele soltou a bomba e estava prestes a virar Silver quando ouviu o som rápido de cartas atrás de si. Ele se virou e quase derrubou Silver.

 

Mike estava de pé com um maço de cartas de moto de fundo azul em uma das mãos.

 

— Quer?

 

Bill soltou um suspiro longo e trêmulo.

 

— Também trouxe pregadores, né?

 

Mike tirou quatro do bolso da camisa e ofereceu a Bill.

 

— Tinha por aí por acaso?

 

— É, mais ou menos isso — disse Mike.

 

Bill pegou as cartas e tentou embaralhar. Suas mãos tremeram, e as cartas voaram das suas mãos. Estavam para todos os lados... mas só duas caíram viradas para cima. Bill olhou para elas e depois para Mike. O olhar de Mike estava vidrado nas cartas espalhadas. Os lábios dele estavam repuxados por cima dos dentes.

 

As duas cartas viradas para cima eram os ases de espadas.

 

— Isso é impossível — disse Mike. — Acabei de abrir o pacote. Olha. — Ele apontou para a lata de lixo ao lado da porta, e Bill viu o papel celofane. — Como um maço de cartas pode ter dois ases de espadas?

 

Bill se inclinou e os pegou.

 

— Como você pode espalhar um maço de cartas pelo chão e só duas caírem viradas para cima? — perguntou ele. — É ainda melhor do que...

 

Ele virou os ases, olhou e mostrou-os para Mike. Um deles tinha o fundo azul, o outro, vermelho.

 

— Meu Deus, Mikey, em que você nos meteu?

 

— O que você vai fazer com elas? — perguntou Mike, com voz entorpecida.

 

— Ora, vou usar — disse Bill e de repente começou a rir. — É isso que devo fazer, não é? Se há precondições para o uso de magia, essas precondições vão inevitavelmente aparecer sozinhas. Certo?

 

Mike não respondeu. Ele viu Bill ir até a roda de trás de Silver e prender as cartas. Suas mãos ainda estavam tremendo e demorou um tempo, mas ele acabou conseguindo, respirou fundo, prendeu o fôlego e girou a roda de trás. As cartas fizeram um som alto de metralhadora ao bater nos raios no silêncio da garagem.

 

— Venha — disse Mike baixinho. — Venha, Big Bill. Vou fazer a boia.

 

Eles comeram os hambúrgueres e agora estavam sentados fumando, vendo a escuridão surgir no quintal de Mike. Bill pegou a carteira, encontrou o cartão de alguém e escreveu nele a frase que o assombrava desde que ele viu Silver na vitrine da Secondhand Rose, Secondhand Clothes. Ele mostrou para Mike, que leu com atenção, com lábios repuxados.

 

— Significa alguma coisa pra você? — perguntou Bill.

 

— “Ele soca postes de montão e insiste que vê assombração.” — Ele assentiu. — Sim, sei o que é.

 

— Bem, então me conte. Ou vai vir com mais papo de m-merda de que tenho que descobrir sozinho?

 

— Não — disse Mike —, nesse caso, acho que não tem problema eu falar. A frase é antiga. É um trava-línguas que virou exercício de fala para quem ceceia e gagueja. Sua mãe ficava tentando fazer você dizer isso naquele verão. No verão de 1958. Você andava por aí murmurando baixinho.

 

— É mesmo? — disse Bill e, lentamente, respondendo a própria pergunta: — É mesmo.

 

— Você devia querer muito agradar a ela.

 

Bill, que de repente sentiu vontade de chorar, só assentiu. Ele não confiava que seria capaz de falar.

 

— Você nunca conseguiu — disse Mike. — Me lembro disso. Você tentou pra caramba, mas sempre gaguejava no meio.

 

— Mas eu consegui falar — respondeu Bill. — Pelo menos uma vez.

 

— Quando?

 

Bill bateu com os punhos na mesa de piquenique com força para doer.

 

— Não me lembro! — gritou ele. E então, lentamente, ele repetiu: — Não me lembro.

 

 

 

                                             CONTINUA

 

 

 

Três convidados inesperados

No dia seguinte às ligações de Mike Hanlon, Henry Bowers começou a ouvir vozes. Vozes falando com ele o dia todo. Por um tempo, Henry pensou que vinham da lua. No final da tarde, ao olhar para cima do local onde capinava o jardim, ele conseguia ver a lua no céu diurno, pálida e pequena. Uma lua fantasma.

Na verdade, era por isso que ele acreditava que era a lua quem estava falando com ele. Só uma lua fantasma falaria com vozes de fantasma, as vozes dos velhos amigos e as vozes das crianças que brincavam no Barrens tanto tempo antes. Essas e outra voz... uma que ele não ousava nomear.

Victor Criss falou primeiro da lua. Eles estão voltando, Henry. Todos eles, cara. Estão voltando pra Derry.

 

 

 

 

Depois, Arroto Huggins falou da lua, talvez do lado escuro dela. Você é o único Henry. O único de nós que sobrou. Você precisa pegar eles por mim e por Vic. Nenhum pirralho pode humilhar a gente assim. Rebati uma bola uma vez no campo dos irmãos Tracker, e Tony Tracker disse que a bola era digna do estádio dos Yankees.

Ele capinou, olhando para a lua fantasma no céu, e depois de um tempo Fogarty foi até lá, bateu na nuca dele e o derrubou de cara no chão.

— Você está capinando as ervilhas junto com o mato, seu idiota.

Henry se levantou e tirou terra da cara e do cabelo. Ali estava Fogarty, um homem grande com casaco branco e calça branca, a barriga inchada e protuberante. Era ilegal os guardas (chamados de “conselheiros” em Juniper Hill) carregarem cassetetes, então vários deles (Fogarty, Adler e Koontz eram os piores) levavam rolinhos de moedas nos bolsos. Eles quase sempre batiam em você com isso no mesmo lugar, bem na base da nuca. Não havia regras contra moedas. Moedas não eram consideradas armas mortais em Juniper Hill, uma instituição para mentalmente insanos que ficava nos arredores de Augusta, perto da divisa com Sidney.

— Me desculpe, sr. Fogarty — disse Henry, e ofereceu um sorriso largo que mostrava uma linha irregular de dentes amarelos. Pareciam as tábuas em uma cerca ao redor de uma casa assombrada. Henry havia começado a perder...

 

 

                                                                  Stephen King

 

 

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