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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


IT, A COISA - P.3 / Stephen King
IT, A COISA - P.3 / Stephen King

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Três convidados inesperados

 

No dia seguinte às ligações de Mike Hanlon, Henry Bowers começou a ouvir vozes. Vozes falando com ele o dia todo. Por um tempo, Henry pensou que vinham da lua. No final da tarde, ao olhar para cima do local onde capinava o jardim, ele conseguia ver a lua no céu diurno, pálida e pequena. Uma lua fantasma.

 

Na verdade, era por isso que ele acreditava que era a lua quem estava falando com ele. Só uma lua fantasma falaria com vozes de fantasma, as vozes dos velhos amigos e as vozes das crianças que brincavam no Barrens tanto tempo antes. Essas e outra voz... uma que ele não ousava nomear.

 

Victor Criss falou primeiro da lua. Eles estão voltando, Henry. Todos eles, cara. Estão voltando pra Derry.

 

 

 

 

Depois, Arroto Huggins falou da lua, talvez do lado escuro dela. Você é o único Henry. O único de nós que sobrou. Você precisa pegar eles por mim e por Vic. Nenhum pirralho pode humilhar a gente assim. Rebati uma bola uma vez no campo dos irmãos Tracker, e Tony Tracker disse que a bola era digna do estádio dos Yankees.

 

Ele capinou, olhando para a lua fantasma no céu, e depois de um tempo Fogarty foi até lá, bateu na nuca dele e o derrubou de cara no chão.

 

— Você está capinando as ervilhas junto com o mato, seu idiota.

 

Henry se levantou e tirou terra da cara e do cabelo. Ali estava Fogarty, um homem grande com casaco branco e calça branca, a barriga inchada e protuberante. Era ilegal os guardas (chamados de “conselheiros” em Juniper Hill) carregarem cassetetes, então vários deles (Fogarty, Adler e Koontz eram os piores) levavam rolinhos de moedas nos bolsos. Eles quase sempre batiam em você com isso no mesmo lugar, bem na base da nuca. Não havia regras contra moedas. Moedas não eram consideradas armas mortais em Juniper Hill, uma instituição para mentalmente insanos que ficava nos arredores de Augusta, perto da divisa com Sidney.

 

— Me desculpe, sr. Fogarty — disse Henry, e ofereceu um sorriso largo que mostrava uma linha irregular de dentes amarelos. Pareciam as tábuas em uma cerca ao redor de uma casa assombrada. Henry havia começado a perder os dentes quando tinha uns 14 anos.

 

— É, você pede desculpas — disse Fogarty. — Vai pedir muito mais se eu te pegar fazendo isso de novo, Henry.

 

— Sim, senhor, sr. Fogarty.

 

Fogarty se afastou, e os sapatos pretos deixaram marcas grandes e marrons na terra de West Garden. Como Fogarty estava de costas, Henry aproveitou o momento para olhar ao redor discretamente. Mandaram que eles fossem capinar assim que as nuvens se afastaram, todos da Ala Azul, que era para onde você ia se já tivesse sido perigoso, mas agora fosse considerado apenas moderadamente perigoso. Na verdade, todos os pacientes de Juniper Hill eram considerados moderadamente perigosos; era um local para os criminalmente insanos. Henry Bowers estava lá porque foi condenado por matar o pai no fim do outono de 1958. Foi um ano famoso por julgamentos por assassinato; quando se tratava de julgamentos por assassinato, 1958 foi campeão.

 

Só que, claro, não era só o pai dele que achavam que ele tinha matado; se tivesse sido só o pai, Henry não teria passado vinte anos no Hospital Mental Estadual de Augusta, muito desse tempo sob contenção química e física. Não, não só o pai; as autoridades achavam que ele tinha matado todo mundo, ou pelo menos a maioria.

 

Após o veredito, o News publicou um editorial de primeira página intitulado “O Fim da Longa Noite de Derry”. Nele, recapitularam os pontos importantes: o cinto na cômoda de Henry que pertencia ao desaparecido Patrick Hockstetter; o amontoado de livros escolares, alguns com o nome do desaparecido Arroto Huggins e outros do desaparecido Victor Criss, os dois amigos conhecidos do garoto Bowers, no armário de Henry; o mais terrível de tudo, as calcinhas encontradas enfiadas em um canto no colchão de Henry, calcinhas identificadas pela marca da lavanderia como sendo de Veronica Grogan, falecida.

 

Henry Bowers, declarou o News, era o monstro assombrando Derry na primavera e no verão de 1958.

 

Mas o News proclamou o fim da longa noite de Derry na primeira página da edição de 6 de dezembro, e mesmo um idiota como Henry sabia que em Derry a noite nunca acabava.

 

Eles o encheram de perguntas, ficaram ao redor dele em círculo, apontaram para ele. Duas vezes o chefe de polícia bateu na cara dele, e uma vez um detetive chamado Lottman deu um soco na barriga dele, mandando que ele confessasse, e que fosse rápido.

 

— Tem pessoas lá fora que não estão felizes, Henry — disse esse Lottman. — Não há linchamento em Derry há muito tempo, mas isso não quer dizer que não pode acontecer um.

 

Ele achava que eles continuariam fazendo aquilo enquanto fosse necessário, não porque algum deles realmente acreditasse que o povo de Derry fosse invadir a delegacia, carregar Henry e enforcá-lo em uma macieira, mas porque estavam desesperados para virar a página do sangue e horror daquele verão; eles teriam feito isso, mas Henry não deixou. Queriam que ele confessasse tudo, ele entendeu depois de um tempo. Henry não se importou. Depois do horror no esgoto, depois do que aconteceu com Arroto e Victor, ele não pareceu se importar com nada. Sim, disse ele, tinha matado o pai. Isso era verdade. Sim, tinha matado Victor Criss e Arroto Huggins. Isso também era verdade, pelo menos no sentido de que foi ele quem os levou até os túneis onde eles foram mortos. Sim, ele tinha matado Patrick. Sim, Veronica. Sim um, sim todos. Não era verdade, mas não importava. A culpa precisava ser atribuída. Talvez por isso ele foi poupado. E se ele se recusasse...

 

Ele entendeu a questão do cinto de Patrick. Ele ganhou de Patrick em um jogo de scat em um dia de abril, descobriu que não servia e jogou na cômoda. Também entendeu a questão dos livros; droga, os três viviam juntos e não davam a menor bola para os livros da recuperação tanto quanto não davam para os do ano letivo regular, o que quer dizer que se importavam com eles tanto quanto um pica-pau se importa com sapateado. Devia haver a mesma quantidade de livros nos armários deles, e os policiais deviam saber bem disso.

 

As calcinhas... Não ele não sabia como as calcinhas de Veronica Grogan foram parar no colchão dele.

 

Mas ele achava que sabia quem (ou o que) cuidou disso.

 

Era melhor não falar de coisas assim.

 

Era melhor calar a boca.

 

Assim, eles o mandaram para Augusta e, finalmente, em 1979 o transferiram para Juniper Hill. Ele só teve problema aqui uma vez, e foi porque no começo ninguém entendeu. Um cara tentou apagar a luz noturna de Henry. A luz era um Pato Donald tirando o bonezinho de marinheiro. Donald era proteção depois que o sol se punha. Sem a luz, coisas podiam entrar. As trancas na porta e a cerca de arame não as impediam. Elas vinham como névoa. Coisas. Elas falavam e riam... e às vezes agarravam. Coisas peludas, coisas escorregadias, coisas com olhos. O tipo de coisas que realmente mataram Vic e Arroto quando os três foram atrás dos garotos nos túneis debaixo de Derry em agosto de 1958.

 

Ao olhar ao redor agora, ele viu os outros da Ala Azul. Havia George DeVille, que assassinou a esposa e quatro filhos em uma noite de inverno em 1962. A cabeça de George estava cuidadosamente abaixada, com o cabelo branco voando na brisa, catarro escorrendo alegremente do nariz, o enorme crucifixo de madeira se balançando e dançando enquanto ele capinava. Havia Jimmy Donlin, e tudo que diziam nos jornais sobre Jimmy era que ele tinha matado a mãe em Portland no verão de 1965, mas o que não diziam nos jornais era que Jimmy fez uma tentativa nova para se livrar do cadáver: quando os policiais chegaram, Jimmy tinha comido mais da metade dela, incluindo o cérebro. “Me deixou bem mais inteligente”, confidenciou Jimmy para Henry uma noite depois do apagar das luzes.

 

Na fileira atrás de Jimmy, capinando fanaticamente e cantando o mesmo verso sem parar, como sempre, estava o francesinho Benny Beaulieu. Benny era incendiário, piromaníaco. Agora, enquanto capinava, ele cantava um verso do the Doors sem parar: “Try to set the night on fire, try to set the night on fire, try to set the night on fire, try to...”

 

Irritava depois de um tempo.

 

Atrás de Benny estava Franklin D’Cruz, que estuprou mais de cinquenta mulheres antes de ser pego com a calça abaixada no Terrace Park de Bangor. As idades das vítimas iam de 3 a 81 anos. Ele não era muito exigente, Frank D’Cruz. Atrás dele, bem mais para trás, estava Arlen Weston, que passava tanto tempo olhando com expressão sonhadora para a enxada quanto usando-a. Fogarty, Adler e John Koontz tinham tentado usar o truque do rolo de moedas no punho com Weston para convencê-lo de que ele podia ir um pouco mais rápido, e um dia Koontz bateu nele com um pouco de força demais, porque saiu sangue não só do nariz de Arlen Weston, mas também das orelhas, e, naquela noite, ele teve uma convulsão. Não das grandes; foi bem pequena. Mas, desde então, Arlen se desliga mais e mais para olhar para as trevas interiores, e agora é caso perdido, quase completamente desligado do mundo. Atrás de Arlen havia...

 

— É melhor você acelerar, senão vou te dar um pouco mais de ajuda, Henry! — gritou Fogarty, e Henry voltou a capinar. Ele não queria ter convulsões. Não queria acabar como Arlen Weston.

 

Em pouco tempo, as vozes recomeçaram. Mas, desta vez, eram as vozes dos outros, as vozes das crianças que o tinham metido nessa situação, sussurrando direto da lua fantasma.

 

Você não conseguiu nem pegar um garoto gordo, Bowers, sussurrou um deles. Agora estou rico e você está capinando ervilhas. Ha-ha pra você, babaca!

 

B-B-Bowers, você não c-c-conseguia p-pegar nem r-r-resfriado! Leu a-algum b-b-bom l-l-livro desde que entrou a-aqui? E-escrevi um monte! Estou r-r-rico e v-você está em J-J-Juniper Hill! Ha-ha pra você, babaca burro!

 

— Cala a boca — sussurrou Henry para as vozes fantasmas, capinando mais rápido, começando a capinar as ervilhas junto com as ervas daninhas. Suor escorria por suas bochechas como lágrimas. — Podíamos ter pegado você. Podíamos mesmo.

 

Conseguimos que você fosse preso, seu babaca, disse outra voz, rindo. Você correu atrás de mim e não conseguiu me pegar, e eu também fiquei rico! Muito bem, pé de banana!

 

— Cala a boca — murmurou Henry, capinando mais rápido. — Cala essa boca!

 

Você queria tirar minha calcinha, Henry?, disse outra voz com provocação. Que pena! Deixei todos eles me comerem, eu não passava de uma piranha, mas agora também estou rica e estamos todos juntos, e estamos transando de novo, mas você não conseguiria agora, mesmo se eu deixasse, porque não consegue fazer subir, então ha-ha pra você, Henry, ha-ha pra você TODO...

 

Ele capinou loucamente, com ervas daninhas, terra e ervilhas voando para todo lado; as vozes fantasmas da lua fantasma estavam bem altas agora, ecoando e voando em sua cabeça, e Fogarty estava correndo na direção dele, gritando, mas Henry não conseguia ouvir. Por causa das vozes.

 

Não conseguiu nem pegar um negro como eu, né?, disse outra voz fantasma zombeteira. Destruímos vocês naquela guerra de pedras! Acabamos com vocês! Ha-ha, babaca! Ha-ha pra você todo!

 

De repente, todas as vozes começaram a falar ao mesmo tempo, rindo dele, chamando-o de pé de banana, perguntando se ele gostou dos tratamentos de choque que deram nele quando ele foi para a Ala Vermelha, perguntando se ele gostava de J-J-Juniper Hill, perguntando e rindo, rindo e perguntando, e Henry largou a enxada e começou a gritar para a lua fantasma no céu azul, e primeiro ele gritou com fúria, depois a própria lua se modificou e virou a cara do palhaço, o rosto de um branco leitoso podre e cheio de marcas, os olhos como buracos negros, o sorriso vermelho sangue aberto e tão obscenamente ingênuo que era insuportável, e então Henry começou a gritar não de fúria, mas de terror mortal, e a voz do palhaço falou saindo da lua fantasma agora, e o que ela disse foi Você precisa voltar, Henry. Você precisa voltar e terminar o serviço. Você precisa voltar para Derry e matar todos eles. Por Mim. Por...

 

E Fogarty, que estava ali perto e gritando com Henry havia quase dois minutos (enquanto os outros detentos ficavam em seus lugares, segurando as enxadas como falos cômicos, com expressões não exatamente interessadas, mas, sim, quase pensativas, como se eles entendessem que isso era tudo parte do mistério que os tinha colocado ali, que o ataque repentino de gritos histéricos de Henry Bowers no Jardim Oeste era interessante de uma forma mais do que técnica), se cansou de gritar e deu um golpe realmente forte em Henry com as moedas, e Henry caiu como uma pilha de tijolos, com a voz do palhaço seguindo-o por aquele redemoinho horrível de escuridão, cantarolando sem parar: Matar todos eles, Henry, matar todos eles, matar todos eles, matar todos eles.

 

Henry Bowers estava deitado e acordado.

 

A lua estava baixa, e ele sentiu uma gratidão intensa por isso. A lua ficava menos fantasmagórica à noite, mais real. E se ele visse aquela horrível cara de palhaço no céu, sobre colinas, campos e bosques, ele achava que morreria de pavor.

 

Ele se deitou de lado e ficou olhando para a luz noturna com atenção. A do Pato Donald tinha queimado. Ele foi substituído por Mickey e Minnie Mouse dançando polca. Eles foram substituídos por Oscar de Vila Sésamo, e ano passado Oscar foi substituído pelo Urso Fozzie. Henry media os anos de prisão com luzes noturnas queimadas, não com colheres de café.

 

Exatamente às 2h04 na madrugada do dia 30 de maio, sua lâmpada queimou. Um gemido escapou de sua boca; não. Koontz estava na porta da Ala Azul naquela noite. Koontz, que era o pior do grupo. Pior até do que Fogarty, que bateu com tanta força nele à tarde que Henry mal conseguia virar a cabeça.

 

Dormindo ao redor dele estavam os outros detentos da Ala Azul. Benny Beaulieu dormia com amarras elásticas. Ele tinha tido permissão de assistir a uma reprise de Emergency na sala de TV quando eles voltaram de capinar e, por volta das 18h, começou a se masturbar constantemente e sem parar, gritando:

 

— Try to set the night on fire! Try to set the night on fire! Try to set the night on fire!

 

Ele foi sedado, e isso funcionou por umas quatro horas, mas ele começou de novo por volta das 23h, quando o efeito do Elavil passou. Ele bombava o bilau velho com tanta força que começou a sangrar, sempre gritando “Try to set the night on fire!” Então, o sedaram de novo e colocaram amarras. Agora ele estava dormindo, com o rosto enrugado tão sério nas luzes fracas quanto o de Aristóteles.

 

Ao redor da cama, Henry conseguia ouvir roncos baixos e roncos altos, resmungos e ocasionais peidos. Conseguia ouvir a respiração de Jimmy Donlin; era inconfundível, mesmo Jimmy dormindo cinco camas depois. Era um assobio rápido e baixo que por algum motivo sempre fazia Henry pensar em uma máquina de costura. Depois da porta, no corredor, ele conseguia ouvir o som baixo da TV de Koontz. Ele sabia que Koontz estaria vendo os filmes da madrugada no canal 38, tomando Texas Driver e comendo o almoço. Koontz preferia sanduíches com creme de amendoim com pedaços de cebola branca. Quando Henry soube disso, ele tremeu e pensou: E dizem que todas as pessoas loucas estão presas.

 

Desta vez, a voz não veio da lua.

 

Desta vez, veio de debaixo da cama.

 

Henry reconheceu a voz imediatamente. Era de Victor Criss, cuja cabeça foi arrancada em algum lugar embaixo de Derry 27 anos antes. Foi arrancada pelo monstro Frankenstein. Henry viu acontecer, depois viu os olhos do monstro mudarem e sentiu o olhar amarelo aquoso nele. Sim, o monstro Frankenstein matou Victor e depois matou Arroto, mas ali estava Vic de novo, como a reprise quase fantasmagórica de um programa preto e branco dos maravilhosos anos 1950, quando o presidente era careca e os Buicks tinham janelinhas redondas de ventilação.

 

E agora que tinha acontecido, agora que a voz tinha vindo, Henry percebeu que estava calmo e sem medo. Até aliviado.

 

— Henry — disse Victor.

 

— Vic! — exclamou Henry. — O que você está fazendo aí embaixo?

 

Benny Beaulieu roncou e falou dormindo. As inspirações e expirações nasais de máquina de costura de Jimmy fizeram uma pausa momentânea. No corredor, o volume da pequena Sony de Koontz estava baixo, e Henry Bowers conseguia senti-lo, com a cabeça inclinada para o lado, com uma das mãos no botão de volume da TV, os dedos da outra tocando no cilindro que preenchia o bolso branco da roupa branca, o rolo de moedas.

 

— Não precisa falar alto, Henry — disse Vic. — Consigo ouvir se você só pensar. E eles não conseguem me ouvir.

 

O que você quer, Vic?, perguntou Henry.

 

Não houve resposta por um longo tempo. Henry pensou que talvez Vic tivesse ido embora. Do lado de fora, o volume da TV de Koontz aumentou de novo. Houve um som de arranhar debaixo da cama; as molas gemeram de leve quando uma sombra escura saiu. Vic olhou para ele e sorriu. Henry retribuiu o sorriso com desconforto. O velho Vic estava se parecendo um pouco com o monstro Frankenstein ultimamente. Uma cicatriz como uma tatuagem de corda de forca envolvia seu pescoço. Henry pensou que talvez fosse onde a cabeça dele foi costurada de volta. Os olhos eram de uma estranha cor cinza-esverdeada, e as córneas pareciam flutuar em substância aquosa e viscosa.

 

Vic ainda tinha 12 anos.

 

— Quero a mesma coisa que você — disse Vic. — Quero retribuir.

 

Retribuir, disse Henry Bowers de forma sonhadora.

 

— Mas você vai ter que sair daqui pra fazer isso — disse Vic. — Vai ter que voltar pra Derry. Preciso de você, Henry. Todos precisamos de você.

 

Eles não podem machucar Você, disse Henry, entendendo que estava falando com mais do que Vic.

 

— Eles não podem Me machucar se acreditarem apenas parcialmente — disse Vic. — Mas houve alguns sinais perturbadores, Henry. Também achávamos que eles não seriam capazes de nos vencer naquela época. Mas o garoto gordo escapou de você no Barrens. O gordo, o sabichão e a piranha escaparam de nós naquele dia depois do cinema. E a guerra de pedra, quando eles salvaram o crioulo...

 

Não fale sobre isso!, gritou Henry para Vic, e por um momento toda a dureza peremptória que o tornou líder estava em sua voz. Mas ele se encolheu, pensando que Vic o machucaria, que Vic podia fazer o que quisesse por ser um fantasma, mas Vic só sorriu.

 

— Posso cuidar deles se eles só acreditarem parcialmente — disse ele —, mas você está vivo, Henry. Você pode pegar eles mesmo se eles acreditarem, só acreditarem um pouco ou não acreditarem nada. Você pode pegar um a um ou todos de uma vez. Você pode retribuir.

 

Retribuir, repetiu Henry. E olhou para Vic com dúvida de novo. Mas não posso sair daqui, Vic. Tem grade nas janelas e Koontz está na porta hoje. Koontz é o pior. Talvez amanhã à noite...

 

— Não se preocupe com Koontz — disse Vic, ficando de pé. Henry viu que ele ainda estava usando a calça jeans daquele dia, e que ela ainda estava manchada de gosma de esgoto seca. — Vou cuidar de Koontz. — Vic esticou a mão.

 

Depois de um momento, Henry a segurou. Ele e Vic andaram em direção à porta da Ala Azul e ao som da TV. Estavam quase lá quando Jimmy Donlin, que tinha comido o cérebro da mãe, acordou. Seus olhos se arregalaram quando ele viu o visitante noturno de Henry. Era sua mãe. A anágua estava aparecendo só um pouquinho, como sempre aparecia. O topo da cabeça tinha sido removido. Os olhos dela, horrivelmente vermelhos, rolaram na direção dele, e quando ela sorriu, Jimmy viu as manchas de batom nos dentes amarelos e acavalados, como sempre vira. Jimmy começou a gritar:

 

— Não, mãe! Não, mãe! Não, mãe!

 

Koontz entrou correndo. Primeiro, ele viu Bowers, de pé, barrigudo e quase ridículo de camisola, com a pele flácida pálida na luz que entrava do corredor. Em seguida, olhou para a esquerda e gritou sem conseguir emitir som. Ao lado de Bowers havia uma coisa de roupa de palhaço. Tinha uns 2,5 metros de altura. A roupa era prateada. Pompons laranja ocupavam a parte da frente. Havia sapatos grandes demais e engraçados nos pés. Mas a cabeça não era de homem nem de palhaço; era a cabeça de um dobermann, o único animal na face da Terra do qual John Koontz tinha medo. Os olhos dele estavam vermelhos. O focinho macio se enrugou para deixar dentes enormes à mostra.

 

Um cilindro de moedas caiu nos dedos inertes de Koontz e rolou pelo chão até o canto. No dia seguinte, Benny Beaulieu, que dormiu durante todo o acontecimento, o encontraria e esconderia no armário. As moedas serviram para ele comprar cigarros feitos por encomenda durante um mês.

 

Koontz pegou fôlego para gritar de novo quando o palhaço andou na direção dele.

 

— Está na hora do circo! — gritou o palhaço com voz rosnada, e as mãos com luvas brancas caíram nos ombros de Koontz.

 

Só que as mãos dentro daquelas luvas pareciam patas.

 

Pela terceira vez naquele dia, naquele longo, longo dia, Kay McCall foi ao telefone.

 

Ela foi mais longe desta vez do que nas duas primeiras ocasiões; desta vez, ela esperou o telefone ser atendido do outro lado e uma voz de policial irlandês dizer “Delegacia da rua Sixth, sargento O’Bannon, como posso ajudar?” antes de desligar.

 

Ah, você está indo bem. Meu Deus, sim. Lá pela oitava ou nona vez você terá reunido coragem o suficiente para dizer seu nome.

 

Ela foi até a cozinha e preparou um uísque com soda fraco, embora soubesse que não devia ser boa ideia depois de ter tomado o Darvon. Lembrou-se de um trecho de música folk das cafeterias da faculdade na juventude (Com a cabeça cheia de uísque e a barriga cheia de gin / O médico diz que vai me matar, mas não diz quando) e riu de maneira irregular. Havia um espelho por cima do bar. Ela viu o próprio reflexo e parou de rir abruptamente.

 

Quem é essa mulher?

 

Um olho estava inchado, quase fechado.

 

Quem é essa mulher ferida?

 

O nariz estava da cor do de um cavaleiro bêbado depois de uns trinta anos entornando em produtoras de gin, e inchado a um tamanho grotesco.

 

Quem é essa mulher ferida que parece as que se arrastam para um abrigo feminino depois de ficarem com medo o bastante ou de terem coragem o bastante ou simplesmente ficarem loucas o bastante para largar o homem que as está ferindo, que as machucou sistematicamente semana após semana e mês após mês e ano após ano?

 

Havia um arranhão em uma bochecha.

 

Quem é ela, Kay-Bird?

 

Um braço estava em uma tipoia.

 

Quem? É você? Pode ser você?

 

— Aqui está ela... a Miss América — cantarolou ela, querendo que sua voz saísse durona e cínica. Começou assim, mas tremeu lá pela sétima sílaba, e falhou na oitava. Não era uma voz durona. Era uma voz assustada. Ela sabia; tinha sentido medo antes e sempre superou. Mas achava que demoraria muito para superar isso.

 

O médico que cuidou dela em um dos pequenos cubículos perto da recepção do Hospital Sisters of Mercy, a 800 metros dali, era jovem e não era feio. Sob diferentes circunstâncias, ela poderia ter pensado inocentemente (ou talvez não tão inocentemente) em tentar levá-lo para casa para uma turnê sexual pelo mundo. Mas não sentiu nem um pouco de tesão. A dor não alimentava o tesão. Nem o medo.

 

O nome dele era Geffin, e ela não gostou da forma fixa como ele estava olhando para ela. Ele levou um copinho branco de papel até a pia do aposento, colocou água até a metade, tirou um maço de cigarros da gaveta e ofereceu a ela.

 

Ela pegou um, e ele acendeu para ela. Ele precisou acompanhar a ponta por um ou dois segundos com o fósforo, porque a mão dela estava tremendo. Ele jogou o fósforo no copo de papel. Fssss.

 

— Um hábito maravilhoso — disse ele. — Né?

 

— Fixação oral — respondeu Kay.

 

Ele assentiu, e eles ficaram em silêncio. Ele ficava olhando para ela. Ela teve a sensação de que ele estava esperando que ela chorasse, e isso a irritou porque ela sentia que podia acontecer. Ela odiava que previssem suas reações emocionais, principalmente um homem.

 

— Namorado? — perguntou ele por fim.

 

— Prefiro não falar sobre isso.

 

— Aham. — Ele tragou e olhou para ela.

 

— Sua mãe nunca falou que é falta de educação encarar? — Ela queria falar com aspereza, mas pareceu um pedido: Pare de olhar para mim, sei como estou, já vi. Esse pensamento foi seguido de outro, um que ela desconfiava que a amiga Beverly devia ter tido mais de uma vez, que o pior da surra acontece por dentro, onde você podia sofrer de uma coisa que poderia ser chamada de hemorragia interespiritual. Ela sabia como estava, sabia. Pior ainda, sabia o que estava sentindo. Ela se sentia amarela. Era uma sensação deplorável.

 

— Vou dizer só uma vez — disse Geffin. A voz dele estava baixa e agradável. — Quando trabalho no P. S., minha hora de encarar a tarefa desagradável, podemos dizer, vejo talvez vinte mulheres surradas por semana. Os residentes tratam mais vinte. Então olha, tem um telefone bem ali na mesa. Eu vou pegar. Você liga para a delegacia, dá seu nome e endereço, diz o que aconteceu e quem fez. Depois desliga, e pego a garrafa de uísque que guardo ali no armário, estritamente para fins medicinais, sabe, e vamos tomar para comemorar. Porque eu acho, e essa é minha opinião pessoal, que a única forma de vida mais baixa do que um homem que surra uma mulher é um rato com sífilis.

 

Kay sorriu com cansaço.

 

— Agradeço a proposta — disse ela —, mas vou passar. Por enquanto.

 

— Aham — disse ele. — Mas quando você voltar para casa, dê uma boa olhada no espelho, sra. McCall. Seja lá quem for, trabalhou com dedicação.

 

Ela começou a chorar nessa hora. Não conseguiu evitar.

 

Tom Rogan ligou por volta do meio-dia do dia em que ela se despediu de Beverly, querendo saber se Kay tinha tido contato com a esposa dele. Ele parecia calmo, sensato, nem um pouco aborrecido. Kay falou que não a via tinha quase duas semanas. Tom agradeceu e desligou.

 

Por volta das 13h, a campainha tocou quando ela estava escrevendo no estúdio. Ela foi até a porta.

 

— Quem é?

 

— Flores Cragin, senhora — disse uma voz aguda, e como ela foi burra de não perceber que era Tom em um falsete ruim, como ela foi burra de acreditar que Tom tinha desistido tão facilmente, como ela foi burra de tirar a corrente antes de abrir a porta.

 

Ele entrou, e ela só tinha chegado a dizer “Saia daq...” quando o punho de Tom saiu voando do nada e bateu no olho direito dela, fechando-o e gerando uma onda de dor muito intensa pela cabeça dela. Ela caiu para trás no corredor, segurando em coisas para tentar ficar de pé: um delicado vaso de uma flor que caiu e se espatifou, um cabide de casacos que virou. Ela caiu sobre os próprios pés; Tom fechou a porta e andou até ela.

 

— Saia daqui! — gritou ela para ele.

 

— Assim que você me disser onde ela está — disse Tom, andando pelo corredor na direção dela. Ela estava levemente ciente de que Tom não estava com aparência muito boa (na verdade, péssima podia ser considerada uma palavra melhor), e sentiu uma felicidade indistinta porém feroz borbulhar dentro dela. Independentemente do que Tom tivesse feito a Bev, parecia que Bev tinha devolvido quase igualmente. Foi o bastante para deixá-lo de cama por um dia inteiro, pelo menos, e ele ainda não parecia dever estar em outro lugar que não fosse um hospital.

 

Mas também parecia muito cruel e muito zangado.

 

Kay ficou de pé e recuou, mantendo os olhos nele como se mantém os olhos em um animal selvagem que fugiu da jaula.

 

— Falei que não a vi, e era verdade — disse ela. — Agora saia daqui antes que eu chame a polícia.

 

— Você viu ela — disse Tom. Os lábios inchados estavam tentando sorrir. Ela viu que os dentes estavam estranhamente irregulares. Alguns dos da frente estavam quebrados. — Eu ligo, digo que não sei onde Bev está. Você diz que não a vê há duas semanas. Não faz nem uma pergunta. Não diz nada desencorajador, embora eu saiba muito bem que você me odeia. Então onde ela está, sua puta? Me diga.

 

Kay se virou e saiu correndo para a extremidade do corredor, querendo chegar ao escritório, fechar as portas de correr de mogno e trancá-las. Ela chegou lá antes dele, pois ele estava mancando, mas antes que pudesse fechar a porta, ele enfiou o corpo entre as duas partes. Ele deu um empurrão convulsivo e se forçou a entrar. Ela se virou para correr de novo; ele a pegou pelo vestido e puxou com tanta força que rasgou a parte de trás até a cintura. Sua esposa fez esse vestido, seu merda, pensou ela com incoerência, e então foi virada.

 

— Onde ela está?

 

Kay levantou a mão e deu um tapa forte que fez a cabeça dele girar e um corte no lado esquerdo do rosto recomeçar a sangrar. Ele segurou o cabelo dela e puxou a cabeça para a frente, até seu punho. Ela teve a sensação de que o nariz explodiu. Gritou, inspirou para gritar de novo e começou a engasgar no próprio sangue. Estava completamente apavorada agora. Ela não sabia que podia existir tanto pavor no mundo. O filho da puta maluco ia matá-la.

 

Ela gritou, ela gritou, e então o punho dele a atingiu na barriga, tirando o fôlego dela. Ela só conseguiu ofegar. Começou a tossir e arfar ao mesmo tempo, e, por um momento apavorante, achou que engasgaria.

 

— Onde ela está?

 

Kay balançou a cabeça.

 

— Não... a vi — disse ela. — Polícia... você vai preso... babaca...

 

Ele a colocou de pé, e ela sentiu alguma coisa ceder em seu ombro. Mais dor, tão forte que a deixou enjoada. Ele a virou, ainda segurando o braço dela, e agora torceu-o por trás, e ela mordeu o lábio inferior, prometendo a si mesma não gritar de novo.

 

— Onde ela está?

 

Kay balançou a cabeça.

 

Ele puxou o braço para cima com tanta força que ela o ouviu resmungar. O hálito quente dele roçava sua orelha. Ela sentiu o próprio punho direito fechado tocar a omoplata esquerda e gritou de novo quando a coisa no ombro cedeu mais um pouco.

 

— Onde ela está?

 

— ... sei...

 

— O quê?

 

— Eu não SEI!

 

Ele a soltou e empurrou. Ela caiu no chão, chorando, com catarro e sangue saindo do nariz. Houve um estalo quase musical, e quando ela olhou ao redor, Tom estava inclinado sobre ela. Ele tinha quebrado a parte de cima de outro vaso, este de cristal Waterford. Estava segurando a base. O gargalo irregular estava a centímetros do rosto dela. Ela ficou olhando hipnotizada.

 

— Vou te dizer uma coisa — disse ele, com as palavras saindo em meio a ofegos e sopros de ar quente —, você vai me contar pra onde ela foi, senão vai ter que catar o rosto no chão. Você tem três segundos, talvez menos. Quando fico furioso, parece que o tempo passa bem mais rápido.

 

Meu rosto, pensou ela, e foi isso que finalmente a fez ceder... ou desmoronar, se isso explicar melhor: a ideia desse monstro usando o vaso Waterford quebrado para cortar o rosto dela.

 

— Ela foi pra casa — disse Kay, soluçando. — Pra cidade dela. Derry. Pra um lugar chamado Derry, no Maine.

 

— Como ela foi?

 

— Pegou um ônibus pra Milwaukee. Ia pegar um avião lá.

 

— Aquela piranhazinha de merda! — gritou Tom, ficando de pé. Ele andou em um semicírculo grande e sem direção, passando as mãos pelo cabelo e fazendo-o ficar espetado para todos os lados. — Aquela vaca, aquela piranha, aquela puta rampeira! — Ele pegou uma escultura delicada de um homem e uma mulher fazendo amor, que ela tinha desde os 22 anos, e jogou na lareira, onde se estilhaçou em pedaços. Deu de cara consigo mesmo por um momento no espelho acima da lareira e arregalou os olhos, como se olhando para um fantasma. Em seguida, virou-se para ela de novo. Ele tinha tirado alguma coisa do bolso do casaco que estava usando, e ela viu com perplexidade meio estúpida que era um livro. A capa era quase completamente preta, exceto pelas letras vermelhas metálicas que formava o título e pela foto de várias pessoas jovens de pé em um barranco alto acima de um rio. A correnteza negra.

 

— Quem é esse merda?

 

— Hã? O quê?

 

— Denbrough. Denbrough. — Ele sacudiu o livro com impaciência na frente do rosto dela, e de repente bateu nela com ele. A bochecha dela ardeu de dor e de um calor vermelho cego como carvão. — Quem é ele?

 

Ela começou a entender.

 

— Eles eram amigos. Quando eram crianças. Os dois cresceram em Derry.

 

Ele bateu nela com o livro de novo, desta vez do outro lado.

 

— Por favor — disse ela, chorando. — Por favor, Tom.

 

Ele puxou uma cadeira estilo colonial com pernas finas e graciosas para perto dela, virou-a e se sentou. O rosto fantasmagórico olhou para ela de cima da cadeira.

 

— Me escuta — disse ele. — Escuta seu velho tio Tommy. Você consegue fazer isso, sua puta queimadora de sutiã?

 

Ela assentiu. Conseguia sentir gosto de sangue quente e metálico na garganta. Seu ombro estava em chamas. Ela rezou para estar apenas deslocado, e não quebrado. Mas isso não era o pior. Meu rosto, ele ia cortar meu rosto...

 

— Se você ligar pra polícia e disser que estive aqui, vou negar. Você não tem como provar porra nenhuma. Hoje é folga da empregada e estamos só nós dois. É claro que podem me prender de qualquer jeito, tudo é possível, né?

 

Ela percebeu que estava assentindo de novo, como se a cabeça estivesse presa em um barbante.

 

— Claro que é. E o que eu faria seria pagar a fiança e voltar direto pra cá. Encontrariam seus peitos na mesa da cozinha e seus olhos no aquário. Entendeu? Está entendendo seu velho tio Tommy?

 

Kay caiu no choro de novo. Aquele barbante preso em sua cabeça ainda estava trabalhando; ela balançou para cima e para baixo.

 

— Por quê?

 

— O quê? Eu... eu não...

 

— Acorda, pelo amor de Deus! Por que ela voltou?

 

— Não sei! — Kay quase gritou.

 

Ele balançou o vaso quebrado na direção dela.

 

— Não sei — disse ela em tom mais baixo. — Por favor. Ela não me contou. Por favor, não me machuque.

 

Ele jogou o vaso na lixeira e ficou de pé.

 

Tom saiu sem olhar para trás, com a cabeça baixa, um homem enorme como um urso.

 

Ela saiu correndo atrás e trancou a porta. Correu para a cozinha e trancou a porta de lá. Depois de uma pausa, foi mancando até o andar de cima (tanto quanto sua barriga dolorida permitiu) e trancou a porta dupla que levava à varanda de cima. Não era uma possibilidade a ser descartada que ele pudesse decidir subir por uma das colunas e voltar por ali. Ele estava machucado, mas também era louco.

 

Ela foi até o telefone pela primeira vez, e tinha acabado de pousar a mão nele quando se lembrou do que ele disse.

 

E o que eu faria seria pagar a fiança e voltar direto pra cá... seus peitos na mesa da cozinha e seus olhos no aquário.

 

Ela tirou a mão do telefone.

 

Ela foi até o banheiro e olhou para o nariz vermelho como tomate que ainda pingava e para o olho roxo. Ela não chorou; a vergonha e o horror que sentia eram profundos demais para lágrimas. Ah, Bev, fiz o meu melhor, querida, pensou ela. Mas meu rosto... ele disse que ia cortar meu rosto...

 

Havia Darvon e Valium no armário de remédios. Ela pesou as duas alternativas e decidiu tomar um de cada. Em seguida, foi até o Sisters of Mercy para ser tratada e conheceu o famoso dr. Geffin, que agora era o único homem em quem ela conseguia pensar que não a deixaria perfeitamente feliz se desaparecesse da face da terra.

 

De lá, ela voltou para casa, voltou para casa, lá-lá-lá.

 

Ela foi até a janela do quarto e olhou para fora. O sol estava baixo no horizonte agora. Na costa leste, seria final do crepúsculo, por volta das 19h no Maine.

 

Você pode decidir o que fazer em relação à polícia depois. O importante agora é avisar Beverly.

 

Seria bem mais fácil, pensou Kay, se você tivesse me dito onde ia ficar, Beverly, meu amor. Imagino que nem você mesma sabia.

 

Embora tivesse parado de fumar dois anos antes, ela guardava um maço de Pall Malls na gaveta da escrivaninha para emergências. Ela tirou um do maço, acendeu e fez uma careta. Tinha fumado daquele maço pela última vez por volta de dezembro de 1982, e essa belezinha estava com mais gosto de velho do que a Emenda pelos Direitos Iguais no legislativo do estado de Illinois. Ela fumou mesmo assim, com um olho entrefechado por causa da fumaça, o outro só entrefechado, ponto. Graças a Tom Rogan.

 

Usando a mão esquerda com cuidado (o filho da puta tinha deslocado o braço bom dela), ela discou o serviço de informações no Maine e pediu o nome e número de todos os hotéis e motéis de Derry.

 

— Senhora, isso vai demorar um tempo — disse a telefonista do auxílio à lista com voz duvidosa.

 

— Vai levar bem mais tempo do que isso, irmã — disse Kay. — Vou ter que escrever com a mão ruim. A boa está de férias.

 

— Não é costumeiro...

 

— Me escute — disse Kay, não com grosseria. — Estou ligando de Chicago e estou tentando falar com uma amiga minha que largou o marido e voltou para Derry, onde morou na infância. O marido dela sabe pra onde ela foi. Ele arrancou a informação de mim depois de me dar uma surra. Esse homem é psicopata. Ela precisa saber que ele está indo pra lá.

 

Houve uma longa pausa, e então a telefonista falou em voz bem mais humana:

 

— Acho que o número do qual você precisa mesmo é do Departamento de Polícia de Derry.

 

— Tudo bem. Também vou anotar esse. Mas ela precisa ser avisada — disse Kay. — E... — Ela pensou nas bochechas cortadas de Tom, no galo na testa, no na têmpora, na perna mancando, nos lábios horrivelmente inchados. — E se ela souber que ele está indo, isso pode ser o bastante.

 

Houve outra longa pausa.

 

— Está aí, irmã? — perguntou Kay.

 

— Arlington Motor Lodge — disse a telefonista. — 643-8146. Bassey Park Inn, 648-4083. The Bunyan Motor Court...

 

— Um pouco mais devagar, tá? — pediu ela, escrevendo furiosamente. Ela procurou um cinzeiro, não encontrou e apagou o Pall Mall no mata-borrão. — Certo, pode ir.

 

— The Clarendon Inn...

 

Ela teve um pouco de sorte na quinta ligação. Beverly Rogan estava registrada no Derry Town House. Só teve um pouco porque Beverly tinha saído. Kay deixou o nome e o número, e um recado de que Beverly deveria ligar assim que voltasse, não importando a hora.

 

O recepcionista repetiu a mensagem. Kay subiu e tomou outro Valium. Deitou-se e esperou o sono. O sono não chegou. Sinto muito, Bev, pensou ela, olhando para a escuridão, flutuando por causa do remédio. O que ele disse sobre meu rosto... não consegui suportar isso. Ligue logo, Bev. Por favor, ligue logo. E tome cuidado com o filho da puta louco com quem você se casou.

 

O filho da puta louco com quem Bev tinha se casado se saiu melhor nas conexões do que Beverly no dia anterior, porque saiu de O’Hare, o centro da aviação comercial no centro dos Estados Unidos. Durante o voo, ele leu e releu a breve nota sobre o autor no final de A correnteza negra. Dizia que William Denbrough era da Nova Inglaterra e autor de três outros romances (que também estavam disponíveis no formato brochura da Signet, dizia a nota). Ele e a esposa, a atriz Audra Phillips, moravam na Califórnia. Ele estava trabalhando em um novo livro. Ao reparar que a edição de A correnteza negra tinha sido publicada em 1976, Tom supunha que o cara tinha escrito alguns outros romances desde então.

 

Audra Phillips... ele a tinha visto no cinema, não? Ele raramente reparava em atrizes (a ideia de Tom de um bom filme eram histórias de crime, de ação ou de monstros), mas se essa gata era a atriz em quem ele estava pensando, ele tinha reparado nela porque se parecia muito com Beverly: cabelos ruivos e longos, olhos verdes, peitos empinados.

 

Ele se sentou mais empertigado no assento enquanto batia com o livro na perna e tentava ignorar a dor na cabeça e na boca. Sim, ele tinha certeza. Audra Phillips era a ruiva com peitos lindos. Ele a tinha visto em um filme de Clint Eastwood, e um ano depois em um filme de terror chamado Lua de cemitério. Beverly foi com ele e, ao sair do cinema, ele mencionou o fato de que achava a atriz muito parecida com ela.

 

— Eu não acho — disse Bev. — Sou mais alta e ela é mais bonita. O cabelo dela é mais escuro.

 

Só isso. Ele não pensou no assunto desde então.

 

Ele e a esposa, a atriz Audra Phillips...

 

Tom tinha um leve entendimento sobre psicologia; usava isso para manipular a esposa durante todos os anos do casamento. E agora, uma sensação desagradável e irritante começou a incomodar, mais sentimento do que pensamento. Centralizava-se no fato de que Bev e esse Denbrough brincaram juntos quando crianças e que esse Denbrough tinha se casado com uma mulher que, apesar do que Beverly dissera, parecia-se muito com a esposa de Tom Rogan.

 

Que tipo de brincadeiras Denbrough e Beverly fizeram quando crianças? Salada mista? Jogo da verdade?

 

Outras brincadeiras?

 

Tom ficou sentado batendo com o livro na perna e sentiu as têmporas começarem a latejar.

 

Quando chegou ao aeroporto internacional de Bangor e observou os guichês de locadoras de carros, as garotas, algumas vestidas de amarelo, algumas de azul, outras de verde irlandês, olharam para o rosto perigoso e machucado dele com nervosismo e disseram (com ainda mais nervosismo) que não tinham carros para alugar, desculpe.

 

Tom foi até a banca e comprou um jornal de Bangor. Abriu nos anúncios de venda, indiferente aos olhares que recebia de quem passava, e marcou os que pareceram mais prováveis. Acertou na mosca na segunda ligação.

 

— No jornal diz que você tem um Ford sedã LTD 1976. Mil e quatrocentos dólares.

 

— Certo, isso mesmo.

 

— Olha só — disse Tom, tocando na carteira no bolso do casaco. Estava gorda de tanto dinheiro, seis mil dólares. — Se você trouxer pro aeroporto, acertamos aqui mesmo. Você me dá o carro e uma nota de venda e os documentos. Eu te pago em dinheiro.

 

O dono do carro fez uma pausa e disse:

 

— Eu teria que tirar as placas.

 

— Claro, tudo bem.

 

— Como vou reconhecer você, sr...?

 

— Sr. Barr — disse Tom. Ele estava olhando para uma placa do outro lado do saguão do terminal que dizia LINHAS AÉREAS BAR HARBOR LEVAM VOCÊ À NOVA INGLATERRA... E AO MUNDO! — Vou estar na última porta. Você vai me reconhecer porque meu rosto não está dos melhores. Minha esposa e eu fomos patinar ontem e caí feio. Mas acho que podia ter sido pior. Não quebrei mais nada além do rosto.

 

— Nossa, sinto muito por isso, sr. Barr.

 

— Vai melhorar. É só trazer o carro aqui, meu bom amigo.

 

Ele desligou, andou até a porta e saiu na noite quente e aromática de maio.

 

O cara com o LTD apareceu dez minutos depois, em meio ao crepúsculo. Era só um garoto. Eles fizeram o negócio; o garoto rabiscou uma nota de venda, que Tom enfiou com indiferença no bolso do casco. Ele ficou vendo o garoto retirar as placas do Maine do LTD.

 

— Te dou três dólares mais pela chave de fenda — disse Tom quando ele acabou.

 

O garoto olhou pensativamente para ele por um momento, deu de ombros, entregou a chave de fenda e pegou as três notas de um que Tom estava lhe entregando. Não é da minha conta, dizia o movimento de ombros, e Tom pensou: Você está mais certo do que imagina, meu companheiro. Tom o viu entrar em um táxi e se sentou ao volante do Ford.

 

O carro era uma bosta: o câmbio fazia barulho, a lataria toda gemia, o motor tremia, os freios custavam a funcionar. Nada disso importava. Ele dirigiu até o estacionamento para períodos mais longos, pegou um tíquete e entrou. Estacionou ao lado de um Subaru que parecia estar ali havia um tempo. Usou a chave de fenda do garoto para tirar as placas do Subaru e as colocou no Ford. Cantarolou enquanto trabalhava.

 

Por volta das 22h, ele estava dirigindo para o leste na autoestrada 2, com um mapa do Maine aberto no banco ao lado. Tinha descoberto que o rádio do LTD não estava funcionando, então seguiu em silêncio. Mas não tinha problema. Ele tinha muito em que pensar. Todas as coisas maravilhosas que faria com Beverly quando a pegasse, por exemplo.

 

Ele tinha uma certeza, no fundo do coração, de que Beverly estava por perto.

 

E fumando.

 

Ah, minha garota querida, você mexeu com o cara errado quando mexeu com Tom Rogan. E a pergunta é: o que exatamente vamos fazer com você?

 

O Ford seguiu pela noite atrás dos faróis, e quando Tom chegou a Newport, ele sabia. Ele encontrou uma loja de departamentos com farmácia ainda aberta na rua principal. Entrou e comprou um pacote de Camel. O proprietário desejou boa-noite a ele. Tom desejou o mesmo.

 

Ele jogou o pacote no banco e saiu dirigindo de novo. Seguiu lentamente pela autoestrada 7, em busca da saída. Aqui estava, a autoestrada 3, com uma placa que dizia HAVEN 34 DERRY 24.

 

Ele entrou e acelerou o Ford. Olhou para o pacote de cigarros e sorriu um pouco. No brilho verde do painel, o rosto cortado e inchado parecia estranho, fantasmagórico.

 

Trouxe uns cigarros pra você, Bevvie, pensou Tom conforme o carro seguia entre pinheiros e abetos, indo na direção de Derry a quase cem. Ah, sim. Um pacote inteiro. Só pra você. E quando eu te encontrar, querida, vou fazer você comer todos eles. E se esse tal de Denbrough precisar aprender umas coisinhas, também podemos dar um jeito. Não tem problema, Bevvie. Problema nenhum.

 

Pela primeira vez desde que a puta suja bateu nele e fugiu, Tom começou a se sentir bem.

 

Audra Denbrough voou de primeira classe para o Maine em um DC-10 da British Airways. Ela saiu de Heathrow às 18h10 e seguia atrás do sol desde então. O sol estava ganhando (já tinha ganhado, na verdade), mas isso não importava. Por um golpe providencial de sorte, ela descobriu que o voo 23 da British Airways, de Londres para Los Angeles, fazia um pouso para abastecer... no aeroporto internacional de Bangor.

 

O dia foi um pesadelo maluco. Freddie Firestone, o produtor de Sótão, quis falar imediatamente com Bill, claro. Houve alguma confusão com a dublê que tinha que cair por um lance de escadas no lugar de Audra. Parecia que os dublês também tinham sindicato, e essa mulher já tinha cumprido a cota de trabalhos de uma semana inteira, ou alguma coisa boba assim. O sindicato estava exigindo que Freddie assinasse um acordo de renegociação salarial ou contratasse outra mulher para fazer a cena. O problema era que não havia outra tão parecida com a estrutura corporal de Audra disponível. Freddie falou para o chefe do sindicato que eles teriam então que arrumar um homem para a cena, não? Afinal, a queda não aconteceria de calcinha e sutiã. Eles tinham uma peruca de cabelos ruivos, e a figurinista podia ajustar o figurino com seios falsos e almofadas para fazer os quadris. Dava até para fazer a bunda, se fosse necessário.

 

Não dá pra fazer, colega, disse o chefe do sindicato. É contra o acordo do sindicato botar um homem para fazer papel de mulher. É discriminação sexual.

 

O mau humor de Freddie era famoso na área do cinema, e, àquela altura, ele perdeu o controle. Ele disse para o chefe do sindicato, um homem gordo cujo fedor corporal era quase paralisante, para ir se foder. O chefe do sindicato disse para Freddie tomar cuidado com o que dizia, senão não haveria mais dublês no set de Sótão. Em seguida, esfregou o polegar e o indicador em um gesto pedindo grana que deixou Freddie doido. O chefe do sindicato era grande, mas flácido; Freddie, que ainda jogava futebol americano sempre que podia, era grande e firme. Ele derrubou o chefe do sindicato, foi para o escritório para meditar e saiu vinte minutos depois gritando por Bill. Ele queria a cena toda reescrita, de forma que a queda fosse eliminada. Audra teve que dizer a Freddie que Bill não estava mais na Inglaterra.

 

— O quê? — disse Freddie. Sua boca ficou aberta. Ele estava olhando para Audra como se acreditasse que ela tinha enlouquecido. — O que você está me dizendo?

 

— Ele foi chamado para os Estados Unidos, é isso que estou dizendo.

 

Freddie fez que ia segurá-la, e Audra recuou com um pouco de medo. Freddie olhou para as mãos, colocou-as nos bolsos e só olhou para ela.

 

— Sinto muito, Freddie — disse ela, com voz baixa. — De verdade.

 

Ela se levantou e se serviu de uma xícara de café da cafeteira de Freddie, e reparou que as mãos estavam tremendo de leve. Ao se sentar, ela ouviu a voz amplificada de Freddie nos alto-falantes do estúdio, mandando todo mundo ir para casa ou para o pub; as filmagens do dia estavam encerradas. Audra fez uma careta. No mínimo 10 mil dólares acabavam de descer pelo ralo.

 

Freddie desligou o microfone, ficou de pé e serviu café. Ele se sentou de novo e ofereceu o maço de cigarros Silk Cut.

 

Audra recusou com a cabeça.

 

Freddie pegou um, acendeu e apertou os olhos para olhar para ela em meio à fumaça.

 

— Isso é sério, não é?

 

— É — disse Audra, mantendo a compostura o melhor que podia.

 

— O que aconteceu?

 

E porque ela gostava genuinamente de Freddie e confiava nele, Audra contou tudo que sabia. Freddie ouviu com atenção e seriedade. Ela não demorou muito para contar; portas ainda estavam sendo fechadas e motores estavam sendo ligados no estacionamento lá fora quando ela terminou.

 

Freddie ficou em silêncio por um tempo, olhando pela janela. Em seguida, se virou para ela.

 

— Ele teve algum tipo de colapso nervoso.

 

Audra balançou a cabeça.

 

— Não. Não foi assim. Ele não estava assim. — Ela engoliu em seco e acrescentou: — Talvez você tivesse que estar lá.

 

Freddie deu um sorriso torto.

 

— Você deve saber que homens adultos raramente se sentem obrigados a cumprir promessas que fizeram quando crianças. E você leu os livros de Bill; sabe o quanto daquilo é sobre a infância, e é coisa boa de verdade. E é muito preciso. A ideia de que ele esqueceu tudo que aconteceu naquela época é absurda.

 

— As cicatrizes nas mãos dele — disse Audra. — Elas nunca estiveram lá. Só voltaram hoje de manhã.

 

— Bobagem! Você nunca reparou nelas até hoje de manhã.

 

Ela deu de ombros, impotente.

 

— Eu teria percebido.

 

Ela conseguiu ver que ele também não acreditava nisso.

 

— O que fazer, então? — perguntou Freddie, e ela só pôde balançar a cabeça. Freddie acendeu outro cigarro usando a ponta acesa do primeiro. — Consigo acertar as coisas com o chefe do sindicato — disse ele. — Talvez não eu; neste momento, ele preferiria me ver no inferno a me fornecer outro dublê. Vou mandar Teddy Rowland ir ao escritório dele. Teddy é uma bicha, mas consegue convencer pássaros a descerem das árvores. Mas o que acontece depois? Temos mais quatro semanas de filmagem, e seu marido foi pra algum canto de Massachusetts...

 

— Maine...

 

Ele balançou a mão.

 

— Tanto faz. E você vai ficar bem sem ele?

 

— Eu...

 

Ele se inclinou para a frente.

 

— Gosto de você, Audra. Gosto de verdade. E gosto de Bill, mesmo com essa confusão. Podemos resolver, eu acho. Se o roteiro precisar de um remendo, posso fazer. Já fiz minha cota desse tipo de coisa na minha época, Deus sabe... Se ele não gostar do resultado, vai ser o único culpado. Consigo me virar sem Bill, mas não consigo me virar sem você. Não posso correr o risco de você sair correndo pros Estados Unidos atrás do seu homem, e preciso de você trabalhando com força total. Você é capaz disso?

 

— Não sei.

 

— Nem eu. Mas quero que você pense em uma coisa. Podemos deixar as coisas quietas por um tempo, talvez pelo resto da filmagem, se você se mantiver firme como um bom soldado e fizer seu trabalho. Mas se você pular fora, não vai dar pra guardar segredo. Posso ser chato, mas não sou vingativo por natureza e não vou dizer que, se você pular fora, vou cuidar pra que nunca mais trabalhe no cinema. Mas você precisa saber que, se ganhar fama por temperamento, pode acabar presa a isso. Estou falando com sinceridade de amigo, eu sei. Você se ressente disso?

 

— Não — disse ela com indiferença. Na verdade, não ligava para nada daquilo. Bill era tudo em que ela conseguia pensar. Freddie era um homem bom, mas Freddie não entendia; em última análise, homem bom ou não, ele só conseguia pensar em como isso ia afetar o filme dele. Ele não tinha visto a expressão nos olhos de Bill... nem o ouvido gaguejar.

 

— Que bom. — Ele ficou de pé — Vamos comigo até o Hare and Hounds. Nós dois precisamos de uma bebida.

 

Ela balançou a cabeça.

 

— Uma bebida é a última coisa de que preciso. Vou pra casa pensar nisso tudo.

 

— Vou chamar um carro — disse ele.

 

— Não. Vou de trem.

 

Ele olhou fixamente para ela, com uma das mãos no telefone.

 

— Acredito que você pretende ir atrás dele — disse Freddie —, e estou dizendo que é um erro sério, querida. Ele está meio abalado, mas no fundo é um cara firme. Ele vai ajeitar tudo e, quando tiver ajeitado, vai voltar. Se ele quisesse você junto, teria dito.

 

— Ainda não decidi nada — disse ela, sabendo que na verdade já tinha decidido tudo; tinha decidido mesmo antes de o carro pegá-la naquela manhã.

 

— Cuide-se, amor — disse Freddie. — Não faça algo de que se arrependa depois.

 

Ela sentiu a força da personalidade dele intimidando-a, exigindo que ela cedesse, fizesse a promessa, fizesse seu trabalho, esperasse passivamente que Bill voltasse... ou desaparecesse de novo naquele buraco do passado do qual tinha vindo.

 

Ela foi até ele e deu um beijo leve na bochecha.

 

— Até mais, Freddie.

 

Ela foi para casa e ligou para a British Airways. Disse para a atendente que estaria interessada em chegar a uma cidadezinha do Maine chamada Derry, se fosse possível. Houve silêncio enquanto a mulher verificava o terminal do computador... e veio a notícia, como um sinal dos céus, de que o BA nº 23 fazia uma parada em Bangor, que ficava a menos de 80 quilômetros.

 

— Devo fazer a reserva no voo, senhora?

 

Audra fechou os olhos e viu o rosto áspero, quase sempre gentil e muito franco de Freddie; ouvi-o dizendo: Cuide-se, amor. Não faça algo de que se arrependa depois.

 

Freddie não queria que ela fosse; Bill não queria que ela fosse; então por que seu coração estava gritando que ela tinha que ir? Ela fechou os olhos. Meu Deus, me sinto tão confusa...

 

— Senhora? Ainda está na linha?

 

— Pode fazer a reserva — disse Audra, mas logo hesitou. Cuide-se, amor... Talvez ela devesse decidir depois de uma boa noite de sono, se distanciar um pouco dessa loucura. Ela começou a revirar a bolsa em busca do cartão American Express. — Amanhã. De primeira classe se você tiver, mas aceito qualquer coisa. — E se eu mudar de ideia, posso cancelar. É o que provavelmente vou fazer. Vou acordar lúcida e tudo vai estar mais claro.

 

Mas nada estava claro naquela manhã, e o coração dela clamava com o mesmo volume para que ela fosse. O sono foi uma tapeçaria louca de pesadelos. Assim, ela ligou para Freddie, não porque quisesse, mas porque sentia que devia a ele. Não tinha ido longe (estava tentando, meio sem jeito, dizer o quanto sentia que Bill talvez precisasse dela) quando houve um clique baixo no lado de Freddie. Ele desligou sem falar nada depois do alô inicial.

 

Mas, de certa forma, pensou Audra, aquele clique baixo dizia tudo que precisava ser dito.

 

O avião pousou em Bangor às 7h09, horário local. Audra foi a única passageira a descer, e os outros olharam para ela com uma espécie de curiosidade pensativa, provavelmente perguntando-se por que alguém escolheria descer ali, nesse lugarzinho esquecido. Audra pensou em dizer para eles: Estou procurando meu marido, é por isso. Ele voltou para uma cidadezinha perto daqui porque um dos amigos de infância ligou e o lembrou de uma promessa da qual ele não conseguia se lembrar. A ligação também o fez lembrar que ele não pensava no irmão morto havia vinte anos. Ah, sim, também trouxe a gagueira dele de volta... e umas cicatrizes brancas estranhas nas palmas das mãos.

 

E então, pensou ela, o agente da alfândega na ponte de embarque chamaria os homens de jalecos brancos.

 

Ela pegou sua única mala, que parecia muito solitária na esteira, e se aproximou dos guichês de aluguel de carros, assim como Tom Rogan faria uma hora depois. Ela teve mais sorte do que ele teria; a National Car Rental tinha um Datsun.

 

A garota preencheu o formulário, e Audra assinou.

 

— Achei mesmo que era você — disse a garota, e acrescentou com timidez: — Posso pedir um autógrafo?

 

Audra deu o autógrafo no verso de um formulário de aluguel e pensou: Aproveite enquanto puder, garota. Se Freddie Firestone estiver certo, não vai valer mais nada daqui a cinco anos.

 

Achando um pouco de graça, ela percebeu que, depois de apenas 15 minutos de volta aos Estados Unidos, tinha começado a pensar como americana de novo.

 

Ela pegou um mapa, e a garota, tão impressionada que mal conseguia falar, conseguiu traçar a melhor rota até Derry.

 

Dez minutos depois, Audra estava na estrada, lembrando a si mesma a cada cruzamento que, se ela esquecesse e começasse a dirigir à esquerda, teriam que raspá-la do asfalto depois.

 

Enquanto dirigia, ela percebeu que estava com mais medo do que em qualquer outra ocasião na vida.

 

Por uma dessas idiossincrasias do destino ou coincidências que às vezes acontecem (e que, na verdade, aconteciam com mais frequência em Derry), Tom pegou um quarto no Koala Inn na rua Outer Jackson, e Audra pegou um quarto no Holiday Inn; os dois motéis ficavam um ao lado do outro, com os estacionamentos separados só por uma calçada elevada de concreto. O Datsun alugado de Audra e o sedã LTD comprado de Tom estavam estacionados com as frentes viradas um para o outro, separados só pela calçadinha. Os dois estavam dormindo agora, Audra tranquilamente de lado, Tom Rogan de costas, roncando tanto que os lábios inchados estalavam.

 

Henry passou aquele dia se escondendo na vegetação rasteira nas laterais da autoestrada 9. Às vezes, ele dormia. Às vezes, ficava deitado vendo carros da polícia passarem como cães de caça. Enquanto os Otários almoçavam, Henry ouvia as vozes da lua.

 

E quando caiu a noite, ele foi para a beira da estrada e esticou o polegar.

 

Depois de um tempo, algum tolo apareceu e deu carona para ele.

 

DERRY:

TERCEIRO INTERLÚDIO

17 de março de 1985

 

O incêndio no Black Spot aconteceu no final do outono de 1930. Pelo que consigo determinar, aquele incêndio, do qual meu pai escapou por pouco, encerrou o ciclo de assassinatos e desaparecimentos que ocorreu nos anos 1929-30, assim como a explosão da siderúrgica encerrou um ciclo 25 anos antes. É como se um sacrifício monstruoso fosse necessário no final de cada ciclo para acalmar a força terrível que trabalha aqui... para fazer com que a Coisa adormeça por mais um quarto de século, aproximadamente.

 

Mas se é preciso um sacrifício assim para encerrar cada ciclo, parece que um evento similar é necessário para fazer um ciclo começar.

 

O que me leva à gangue Bradley.

 

A execução deles aconteceu na interseção tripla das ruas Canal, Main e Kansas (não muito longe do local da foto que começou a se mexer para Bill e Richie em um dia de junho de 1958), uns 13 meses antes do incêndio no Black Spot em outubro de 1929... não muito tempo antes da quebra da Bolsa de Valores.

 

Como no caso do incêndio no Black Spot, muitos residentes de Derry fingem não lembrar o que aconteceu naquele dia. Ou estavam fora da cidade, visitando parentes. Ou estavam cochilando à tarde e só descobriram o que aconteceu quando ouviram o noticiário do rádio naquela noite. Ou simplesmente olham diretamente na sua cara e mentem.

 

Os registros policiais daquele dia indicam que o chefe Sullivan não estava nem na cidade (Claro que lembro, disse Aloysius Nell sentado em uma cadeira no terraço do Lar para Idosos Paulson, em Bangor. Foi no meu primeiro ano na polícia, e é claro que lembro. Ele estava no oeste do Maine caçando pássaros. Os corpos já tinham sido removidos quando ele voltou. Jim Sullivan estava mais puto do que uma galinha molhada), mas uma foto em um livro de referência sobre gângsteres chamado Bloodletters and Badmen mostra um homem sorridente ao lado do corpo crivado de balas de Al Bradley no necrotério, e se aquele homem não é o chefe Sullivan, só pode ser o irmão gêmeo idêntico dele.

 

Foi do sr. Keene que finalmente ouvi o que acreditei ser a versão verdadeira da história; Norbert Keene, que foi proprietário da Center Street Drug Store de 1925 até 1975. Ele conversou comigo com boa vontade, mas, assim como o pai de Betty Ripsom, me fez desligar o gravador antes de realmente contar tudo. Não que importasse; ainda consigo ouvir a voz áspera dele. Era mais um cantor a capella no coral maldito que é esta cidade.

 

— Não tenho motivo pra não contar — disse ele. — Ninguém vai publicar, e ninguém acreditaria mesmo se publicassem. — Ele me ofereceu um vidro antiquado de farmácia. — Tiras de alcaçuz? Pelo que lembro, você sempre gostou mais das vermelhas, Mikey.

 

Peguei uma.

 

— O chefe Sullivan estava lá naquele dia?

 

O sr. Keene riu e pegou uma tira de alcaçuz.

 

— Você se questionou quanto a isso, é?

 

— Sim — eu concordei, mastigando um pedaço de tira vermelha de alcaçuz. Eu não comia isso desde criança, quando empurrava minhas moedas por cima da bancada para um sr. Keene muito mais jovem e ágil. Tinha o mesmo gosto bom daquela época.

 

— Você é novo demais para se lembrar de quando Bobby Thomson fez o home run pelos Giants na final de 1951 — disse o sr. Keene. — Só devia ter uns 4 anos. Bem! Publicaram um artigo sobre esse jogo no jornal alguns anos depois, e parecia que um milhão de pessoas de Nova York alegavam ter estado lá no estádio naquele dia.

 

O sr. Keene mastigou a tira de alcaçuz, e um pouco de baba escura pingou do canto da boca. Ele limpou cuidadosamente com o lenço. Estávamos sentados em um escritório nos fundos da farmácia, porque, apesar de Norbert Keene ter 85 anos e estar aposentado há dez, ele ainda cuidava da contabilidade para o neto.

 

— É o contrário quando o assunto é a gangue Bradley! — exclamou Keene. Ele estava sorrindo, mas não era um sorriso agradável. Era cínico, friamente reminiscente. — Umas 20 mil pessoas moravam no centro de Derry na época. Tanto a rua Main quanto a Canal estavam pavimentadas havia quatro anos, mas a Kansas ainda era de terra. Subia poeira no verão e virava um atoleiro em março e novembro. Costumavam jogar óleo na colina Up-Mile em junho e no Quatro de Julho, e o prefeito falava que iam pavimentar a rua Kansas, mas só aconteceu em 1942. Foi... mas o que eu estava dizendo?

 

— Vinte mil pessoas que moravam bem no centro — eu disse.

 

— Ah. É. Bem, dessas 20 mil, metade já deve ter morrido, talvez até mais. Cinquenta anos é muito tempo. E as pessoas têm um jeito engraçado de morrer jovens em Derry. Talvez seja o ar. Mas, das que sobraram, acho que você só vai encontrar umas dez que vão dizer que estavam na cidade no dia em que a gangue Bradley foi para Tofete. Butch Rowden, do açougue, acho que confessaria. Ele tem uma foto de um dos carros deles na parede da bancada em que corta a carne. Se você olhar para a foto, nem vai perceber que era um carro. Charlotte Littlefield contaria uma ou duas coisas, se você conseguisse que ela ficasse de bom humor. Ela dá aula na escola de ensino médio, e apesar de eu achar que não podia ter mais de 10 ou 12 anos na época, aposto que se lembra de muita coisa. Carl Snow... Aubrey Stacey... Eben Stampnell... e aquele velho que faz as pinturas engraçadas e bebe a noite toda no Wally’s... acho que o nome dele é Pickman. Eles se lembrariam. Todos estavam lá...

 

Ele parou de falar e ficou olhando para a tira de alcaçuz na mão. Pensei em cutucá-lo, mas decidi não fazer isso.

 

Por fim, ele disse:

 

— A maior parte dos outros mentiria sobre o assunto, da forma como as pessoas mentiram e disseram que estavam lá quando Bobby Thomson fez o home run. É só isso que quero dizer. Mas as pessoas mentiram sobre estar no jogo porque queriam estar lá. As pessoas mentiriam para você sobre estar em Derry naquele dia porque desejam que não estivessem. Você me entende, filho?

 

Eu assenti.

 

— Tem certeza de que quer ouvir o resto disso? — perguntou o sr. Keene. — Você parece meio perturbado, Mikey.

 

— Não — eu disse —, mas acho melhor ouvir mesmo assim.

 

— Certo — disse o sr. Keene com indulgência. Era meu dia de lembranças; quando ele me ofereceu o vidro com tiras de alcaçuz dentro, me lembrei de repente do programa de rádio que minha mãe e meu pai costumavam ouvir quando eu era pequeno: Sr. Keene, rastreador de pessoas desaparecidas.

 

— O xerife estava lá naquele dia, sim. Ele ia sair para caçar pássaros, mas mudou de ideia bem rápido quando Lal Machen disse para ele que estava esperando Al Bradley naquela mesma tarde.

 

— Como Machen sabia disso? — eu perguntei.

 

— Bem, isso é uma história instrutiva por si só — disse o sr. Keene, e o sorriso cínico surgiu em seu rosto de novo. — Bradley nunca foi o Inimigo Público Número Um na lista do FBI, mas estavam à procura dele desde 1928, mais ou menos. Para mostrar serviço, eu acho. Al Bradley e o irmão George tinham assaltado seis ou sete bancos no Meio-Oeste e sequestraram um banqueiro para pedir resgate. O resgate de 30 mil dólares foi pago, uma soma alta pra época, mas eles mataram o banqueiro mesmo assim.

 

“Àquela altura, o Meio-Oeste tinha ficado meio perigoso pras gangues de lá, então Al, George e seus capangas se dirigiram para o nordeste, pra este lado. Eles alugaram uma fazenda enorme no limite com Newport, perto de onde ficam as Fazendas Rhulin hoje em dia.

 

“Foi no período mais quente do verão de 1929, talvez em julho, talvez em agosto, talvez até mesmo no começo de setembro... não sei bem quando. Eles eram oito: Al Bradley, George Bradley, Joe Conklin e o irmão dele, Cal, um irlandês chamado Arthur Malloy, que era chamado de “Cegueta” Malloy, porque tinha miopia, mas só colocava os óculos se realmente precisasse, e Patrick Caudy, um jovem de Chicago que diziam ser doido de pedra, mas lindo como Adônis. Também havia duas mulheres com eles: Kitty Donahue, esposa de George Bradley, e Marie Hauser, que pertencia a Caudy, mas às vezes era compartilhada, de acordo com histórias que ouvimos depois.

 

“Eles fizeram uma suposição ruim quando vieram pra cá, filho... Eles acharam que estavam tão longe de Indiana que se sentiram em segurança.

 

“Eles ficaram quietos por um tempo; depois se entediaram e decidiram que queriam caçar. Tinham muitas armas, mas a munição não era grande. Assim, eles vieram todos para Derry no dia 7 de outubro em dois carros. Patrick Caudy levou as mulheres para fazer compras enquanto os outros homens foram até a Loja Machen de Produtos Esportivos. Kitty Donahue comprou um vestido na Freese’s e morreu com ele dois dias depois.

 

“Lal Machen atendeu os homens ele mesmo. Ele morreu em 1959. Era gordo demais. Sempre gordo demais. Mas não havia nada de errado com os olhos dele, e ele soube que era Al Bradley no momento em que o homem entrou. Ele achou que reconhecia alguns dos outros, mas não tinha certeza quanto a Malloy até ele colocar os óculos para olhar a vitrine de facas.

 

“Al Bradley andou até ele e disse: ‘Gostaríamos de comprar munição.’

 

“‘Bem’, diz Lal Machen, ‘vocês vieram para o lugar certo’.

 

“Bradley entregou um pedaço de papel para ele, e Lal leu o que estava escrito. O papel foi perdido, ao menos que eu saiba, mas Lal disse que faria seu sangue gelar. Eles queriam quinhentas balas de calibre 38, oitocentas balas de calibre 45, sessenta balas de calibre 50, que nem são mais fabricadas, cartuchos de escopeta carregados tanto para atirar em pássaros quanto para atirar em cervos e mil balas de calibre 22 para rifle de cano curto e de cano longo. Além disso, olhe só, 16 mil balas de metralhadora 45.”

 

— Puta merda! — eu disse.

 

O sr. Keene deu aquele sorriso cínico de novo e me ofereceu o vidro. Primeiro balancei a cabeça, mas acabei pegando outra tira de alcaçuz.

 

— “É uma lista de compras e tanto, garotos”, diz Lal.

 

“‘Vamos embora, Al’, diz Cegueta Malloy. ‘Eu falei que a gente não ia conseguir em um fim de mundo como esse. Vamos pra Bangor. Também não vão ter nada lá, mas o passeio vai ser bom.’

 

“‘Vamos com calma’, diz Lal, frio como um pepino. ‘É um pedido e tanto, e não quero perder praquele judeu de Bangor. Posso dar as balas calibre 22 agora, além das pra pássaros e metade das pra cervos. Posso dar também cem balas da 38 e da 45. Posso conseguir o resto pra vocês...’ Nessa hora, Lal entrefechou os olhos e bateu no queixo, como se calculando. ‘... depois de amanhã. Que tal?’

 

“Bradley sorriu como se a cabeça tivesse partido em duas e disse que estava perfeito. Cal Conklin disse que gostaria de ir até Bangor mesmo assim, mas foi vencido na votação.

 

“‘Se você não tiver certeza de que consegue o pedido, é melhor dizer agora’, diz Al Bradley para Lal, ‘porque sou um cara legal, mas, quando fico zangado, você não quer entrar numa briga comigo. Entendeu?’

 

“‘Entendi’, diz Lal, ‘e vou arrumar toda a munição que o senhor quiser, senhor...?

 

“‘Rader’, diz Bradley. ‘Richard D. Rader, a seu serviço.’

 

“Ele esticou a mão e Lal apertou, sorrindo o tempo todo. ‘É um prazer, sr. Rader.’

 

“Então Bradley perguntou que horas ele e os amigos poderiam passar lá para buscar a mercadoria, e Lal Machen respondeu perguntando se duas da tarde estaria bom. Eles concordaram. E foram embora. Lal os viu ir embora. Eles encontraram as duas mulheres e Caudy na calçada do lado de fora. Lal também reconheceu Caudy.

 

“E então”, disse o sr. Keene, olhando para mim intensamente, “o que você acha que Lal fez depois? Chamou a polícia?”

 

— Acho que não — eu disse —, baseado no que aconteceu. Se fosse eu, teria quebrado a perna ao correr pro telefone.

 

— Bem, talvez sim e talvez não — disse o sr. Keene com o mesmo sorriso cínico com olhos brilhantes, e eu tremi porque sabia o que ele queria dizer... e ele sabia que eu sabia. Quando uma coisa pesada começa a rolar, ela não pode ser impedida; vai simplesmente rolar até encontrar um lugar plano o bastante onde o movimento vai ser interrompido. Você pode ficar na frente dessa coisa e ser esmagado... mas isso também não vai fazê-la parar. — Talvez sim e talvez não — repetiu o sr. Keene. — Mas posso dizer o que Lal Machen fez. Durante o resto daquele dia e no seguinte, quando alguém chegava, algum homem, ele contava que sabia quem andava pelo bosque perto da divisa entre Newport e Derry atirando nos cervos e tetrazes e Deus sabe mais o que com armas de Kansas City. Era a gangue Bradley. Ele sabia porque os tinha reconhecido. Dizia que Bradley e seus homens voltariam no dia seguinte para pegar o resto da compra. Dizia que tinha prometido a Bradley toda a munição que ele quisesse, e era uma promessa que ele pretendia manter.

 

— Quantos? — eu perguntei. Eu me sentia hipnotizado pelo olho brilhante dele. De repente, o cheiro seco da sala dos fundos, cheiro de remédios e pós, de Musterole, Vick VapoRub e xarope para a tosse Robitussin... De repente, todos esses cheiros pareceram sufocantes. Mas eu não podia ir embora tanto quanto não conseguiria me matar só prendendo a respiração.

 

— Pra quantos homens Lal contou isso? — perguntou o sr. Keene.

 

Eu assenti.

 

— Não sei ao certo — disse o sr. Keene. — Não fiquei lá tomando nota. Todos em quem ele achou que podia confiar, eu acho.

 

— Aqueles em quem ele podia confiar — eu refleti. Minha voz estava meio rouca.

 

— É — disse o sr. Keene. — Homens de Derry, sabe? Não muitos eram criadores de vacas. — Ele ri da piada velha antes de prosseguir. — Cheguei por volta das 10h no dia seguinte à primeira visita dos Bradley a Lal. Ele me contou a história e perguntou como podia me ajudar. Eu só tinha ido ver se meu último rolo de filme tinha sido revelado, porque naqueles dias Machen cuidava de todos os filmes e câmeras Kodak, mas depois que peguei minhas fotos, também disse que precisava de munição pra minha Winchester. “Vai caçar, Norb?”, perguntou Lal, me passando as balas. “Pode ser que atire em uns patifes”, eu disse, e demos uma risada por causa disso.

 

O sr. Keene riu e bateu na perna magra como se fosse a melhor piada que ele já tinha ouvido. Ele se inclinou para a frente e deu um tapa no meu joelho.

 

— Eu só quero dizer, filho, que a história se espalhou o tanto quanto precisava. Cidade pequena, você sabe como é. Se você contar pras pessoas certas, o que precisa espalhar vai se espalhar... entende? Quer outra tira de alcaçuz?

 

Peguei uma com dedos dormentes.

 

— Vai engordar — disse o sr. Keene, e gargalhou. Ele pareceu velho nesse momento... infinitamente velho, com os óculos bifocais deslizando pelo nariz fino e a pele esticada demais nas bochechas para se enrugar.

 

— No dia seguinte, levei meu rifle pra loja comigo, e Bob Tanner, que trabalhava mais do que qualquer outro ajudante que tive depois, levou a arma do avô. Por volta das 11h daquele dia, Gregory Cole foi comprar bicarbonato de sódio e estava com uma Colt 45 enfiada no cinto.

 

“‘Não vai explodir as bolas com isso, Greg’, eu disse.

 

“‘Venho lá da floresta de Milford pra isso e estou com uma porra de ressaca’, diz Greg. ‘Acho que vou explodir as bolas de alguém antes de o sol se pôr.’

 

“Por volta das 13h30, pendurei na porta a plaquinha que eu tinha: VOLTO LOGO, FAVOR TER PACIÊNCIA, e peguei meu rifle e saí pelos fundos, na travessa Richard. Perguntei a Bob Tanner se ele queria ir junto, e ele disse que era melhor terminar o remédio da sra. Emerson e que me veria mais tarde. ‘Deixe um vivo pra mim, sr. Keene’, disse ele, mas falei que não podia prometer nada.

 

“Quase não havia tráfego na rua Canal, a pé e de carro. De vez em quando, um caminhão de entregas passava, mas só isso. Vi Jake Pinnette atravessar a rua, e ele estava com um rifle em cada mão. Ele encontrou Andy Criss, e eles seguiram andando até um dos bancos que ficavam no lugar do Memorial de Guerra... você sabe, onde o canal passa a ser subterrâneo.

 

“Petie Vanness, Al Nell e Jimmy Gordon estavam sentados nos degraus do fórum, comendo sanduíches e frutas direto dos potes, trocando algumas coisas por outras que lhes pareciam melhores, como as crianças fazem no recreio. Todos estavam armados. Jimmy Gordon estava com uma Springfield da Primeira Guerra Mundial que parecia maior do que ele.

 

“Vejo um garoto andando na direção da colina Up-Mile. Acho que talvez fosse Zack Denbrough, pai do seu velho amigo, o que virou escritor. Kenny Borton diz da janela da Sala de Leitura da Ciência Cristã: ‘É melhor você sair daí, garoto. Vai haver tiros.’ Zack deu uma olhada no rosto dele e saiu correndo.

 

“Havia homens para todos os lados, homens armados, de pé em portas e sentados em degraus e olhando por janelas. Greg Cole estava sentado em uma porta mais abaixo na rua com a 45 no colo e mais de 20 balas alinhadas ao lado dele como soldados de brinquedo. Bruce Jagermeyer e aquele sueco, Olaf Theramenius, estavam de pé debaixo da marquise do Bijou, na sombra.”

 

O sr. Keene olhou para mim, através de mim. Seus olhos não estavam intensos agora; estavam enevoados com lembranças, suaves como os olhos de um homem só ficam quando ele está se lembrando da melhor época da vida: o primeiro home run, talvez, ou a primeira truta que pescou e que era grande o bastante para levar para casa, ou a primeira vez que ele se deitou com uma mulher disposta a isso.

 

— Eu lembro que ouvi o vento, filho — disse ele com voz sonhadora. — Eu me lembro de ouvir o vento e ouvir o relógio do fórum bater as 14h. Bob Tanner chegou por trás de mim, e eu estava tão tenso que quase explodi a cabeça dele.

 

“Ele só assentiu para mim e atravessou para a Vannock’s Dry Goods, com a sombra seguindo logo atrás.

 

“Era de se pensar que, quando deu 14h10 e nada aconteceu, depois 14h15 e 14h20, as pessoas simplesmente teriam ido embora, não é? Mas não foi assim. As pessoas ficaram esperando. Porque...”

 

— Porque vocês sabiam que eles viriam, não sabiam? — eu perguntei. — Não havia dúvida quanto a isso.

 

Ele sorriu largamente para mim, como um professor satisfeito com a resposta de um aluno.

 

— Isso mesmo! — disse ele. — Nós sabíamos. Ninguém precisava falar nada, ninguém precisava dizer ‘Bem, vamos esperar até 14h20 e, se eles não aparecerem, vou ter que voltar para o trabalho’. Tudo ficou em silêncio, e por volta das 14h25 daquela tarde, dois carros, um vermelho e um azul-escuro, desceram pela colina Up-Mile e seguiram até o cruzamento. Um deles era um Chevrolet e o outro era um La Salle. Os irmãos Conklin, Patrick Caudy e Marie Hauser estavam no Chevrolet. Os Bradley, Malloy e Kitty Donahue estavam no La Salle.

 

“Eles passaram pelo cruzamento, e então Al Bradley pisou nos freios do La Salle tão de repente que Caudy quase bateu na traseira dele. A rua estava muito silenciosa, e Bradley percebeu. Ele não passava de um animal, mas não é preciso muito para deixar um animal alerta quando ele está sendo caçado como uma doninha no milharal há quatro anos.

 

“Ele abriu a porta do La Salle e ficou de pé no degrau por um momento. Olhou ao redor e fez um gesto de “volte” para Caudy com a mão. Caudy disse: ‘O que, chefe?’ Ouvi isso tão claramente quanto o dia, a única coisa que ouvi qualquer um deles dizer naquele dia. Houve um brilho de sol também. Me lembro disso. Veio de um espelhinho de bolsa. A mulher Hauser estava passando pó no nariz.

 

“Foi nessa hora que Lal Machen e o ajudante dele, Biff Marlow, saíram correndo da loja de Machen. ‘Levante as mãos, Bradley, você está cercado!’, grita Lal, e antes que Bradley pudesse fazer qualquer coisa além de virar a cabeça, Lal começou a atirar. Ele errou muito no começo, mas acabou acertando uma bala no ombro de Bradley. Começou a jorrar sangue do buraco imediatamente. Bradley segurou a parte de cima da porta do La Salle e se lançou dentro do carro. Engatou a marcha, e foi nessa hora que todo mundo começou a atirar.

 

“Acabou em quatro, talvez cinco minutos, mas pareceu bem mais tempo quando estava acontecendo. Petie, Al e Jimmy Gordon só ficaram ali, sentados na escada do fórum, metendo bala na traseira do Chevrolet. Vi Bob Tanner de joelho, disparando e mexendo na trava daquele rifle velho como um louco. Jagermeyer e Theramenius estavam disparando na lateral direita do La Salle de debaixo da marquise do cinema, e Greg Cole estava de pé na vala, segurando aquela 45 automática com as duas mãos, puxando o gatilho o mais rápido que conseguia.

 

“Devia haver cinquenta, sessenta homens disparando todos ao mesmo tempo. Depois que acabou, Lal Machen tirou 36 cartuchos da parede de tijolos da loja. E isso passados três dias, depois que todo mundo da cidade que queria guardar um de souvenir já tinha ido arrancar com um canivete. No pior momento, o som era o da Batalha do Marne. Janelas foram estouradas por tiros de rifle ao redor da loja de Machen.

 

“Bradley fez um semicírculo com o La Salle, e não foi devagar, mas, quando terminou, os quatro pneus estavam furados. Os dois faróis tinham estourado e o para-brisa também. Cegueta Malloy e George Bradley estavam cada um em uma janela de trás, disparando com pistolas. Vi uma bala acertar Malloy no alto do pescoço e abrir um buraco. Ele deu mais dois tiros e desmoronou na janela com os braços pendurados para fora.

 

“Caudy tentou fazer a volta com o Chevrolet e só conseguiu bater na traseira do La Salle de Bradley. Esse foi o fim para eles, filho. O para-choque da frente do Chevrolet travou com o traseiro do La Salle, e qualquer chance que eles tinham de fugir morreu ali.

 

“Joe Conklin saiu do banco de trás, ficou de pé no cruzamento, com uma pistola em cada mão, e começou a disparar. Estava mirando em Jake Pinnette e Andy Criss. Os dois caíram do banco em que estavam sentados e foram para a grama, com Andy Criss gritando ‘Estou morto! Estou morto!’ sem parar, apesar de nunca ter levado um tiro nem de raspão. Nenhum deles levou.

 

“Joe Conklin teve tempo de disparar todas as balas das duas armas antes de ser tocado por qualquer disparo. O casaco dele voou para trás e a calça tremeu como se uma mulher invisível estivesse costurando-a. Ele usava um chapéu de palha, que voou da cabeça dele de forma que dava para ver o cabelo dividido no meio. Uma das armas estava debaixo do braço, e ele tentava recarregar a outra quando alguém acertou as pernas dele e ele caiu. Kenny Borton alegou ter feito isso, mas não dava para saber. Poderia ter sido qualquer pessoa.

 

“O irmão de Conklin, Cal, saiu atrás dele assim que Joe caiu, e logo caiu também como uma pilha de tijolos, com um buraco na cabeça.

 

“Marie Hauser saiu. Talvez estivesse tentando se render, não sei. Ela ainda estava segurando na mão direita o espelho com o qual passava pó no nariz. Acho que estava gritando, mas era difícil de ouvir. Balas voavam ao redor dela. O espelho voou da mão dela com um tiro. Ela começou a voltar para o carro, mas levou um disparo no quadril. De alguma forma, ela conseguiu entrar.

 

“Al Bradley acelerou o La Salle o máximo que conseguiu e acabou colocando-o em movimento de novo. Ele arrastou o Chevrolet por uns 3 metros até o para-choque ser arrancado.

 

“Os garotos meteram chumbo nele. Todas as janelas foram estouradas. Um dos para-lamas caiu na rua. Malloy estava morto e pendurado na janela, mas os dois irmãos Bradley ainda estavam vivos. George estava atirando do banco de trás. A mulher dele estava morta ao seu lado com um dos olhos arrancados.

 

“Al Bradley chegou ao grande cruzamento, e então o carro subiu no meio-fio e permaneceu ali. Ele saiu de detrás do volante e começou a correr pela rua Canal. Estava todo perfurado.

 

“Patrick Caudy saiu do Chevrolet, pareceu por um minuto que ia se render, mas pegou uma 38 no coldre debaixo da axila. Ele a disparou talvez umas três vezes, atirando para qualquer lado, e então sua camisa pegou fogo no peito. Ele deslizou pela lateral do Chevy até estar sentado no degrau da porta. Deu mais um tiro, e, até onde sei, foi a única bala que acertou alguém. Ela ricocheteou em alguma coisa e raspou as costas da mão de Greg Cole. Deixou uma cicatriz que ele exibia quando estava bêbado, até que alguém, talvez Al Nell, o puxasse para o lado e dissesse que talvez fosse melhor calar a boca sobre o que aconteceu com a gangue Bradley.

 

“A mulher Hauser saiu, e dessa vez não houve dúvida de que ela estava tentando se render. Ela estava com as mãos levantadas. Talvez ninguém realmente pretendesse matá-la, mas, àquela altura, havia fogo cruzado, e ela andou bem no meio dele.

 

“George Bradley correu até o banco perto do Memorial de Guerra, mas então alguém transformou a parte de trás da cabeça dele em pasta com um tiro. Ele caiu morto com a calça cheia de mijo...”

 

Sem nem perceber direito o que estava fazendo, peguei uma tira de alcaçuz do vidro.

 

— Eles seguiram disparando nos carros por mais um minuto, até que começaram a diminuir — disse o sr. Keene. — Quando homens ficam de sangue quente, não se acalmam facilmente. Foi quando olhei ao redor e vi o xerife Sullivan atrás de Nell e dos outros na escada do fórum, atirando no Chevy parado com uma Remington. Não deixe ninguém dizer pra você que ele não estava lá; Norbert Keene está sentado na sua frente dizendo que ele estava.

 

“Quando o tiroteio acabou, os carros não pareciam mais carros, só pedaços de ferro-velho com vidro quebrado ao redor. Homens começaram a andar até lá. Ninguém falou nada. E só dava para ouvir o vento e pés esmagando cacos de vidro. Foi quando começaram a tirar fotos. E você deve saber disso, filho: quando começam a tirar fotos, a história acabou.”

 

O sr. Keene se balançou na cabeça, batendo com os chinelos placidamente no chão e me olhando.

 

— Não tem nada assim no Derry News — foi tudo em que consegui pensar para dizer. A manchete daquele dia dizia POLÍCIA ESTADUAL E FBI TROCAM TIROS E ACABAM COM A GANGUE BRADLEY EM BATALHA CAMPAL. Com o subtítulo “Polícia local oferece apoio”.

 

— É claro que não — disse o sr. Keene, rindo com prazer. — Vi o editor, Mack Laughlin, enfiar duas balas em Joe Conklin.

 

— Meu Deus — eu murmurei.

 

— Já comeu alcaçuz o suficiente, filho?

 

— Já — eu disse, e lambi os lábios. — Sr. Keene, como uma coisa assim... dessa magnitude... pôde ser encoberta?

 

— Não foi encoberta — disse ele, parecendo sinceramente surpreso. — Foi só que ninguém falou muito sobre o assunto. E, para falar a verdade, quem se importava? Não foram o presidente e a sra. Hoover que morreram naquele dia. Não foi pior do que atirar em cachorros loucos que te matariam com uma mordida se você desse chance.

 

— Mas as mulheres?

 

— Duas putas — disse ele com indiferença. — Além do mais, aconteceu em Derry, não em Nova York ou Chicago. O lugar faz a notícia tanto quanto o que aconteceu no lugar, filho. É por isso que as manchetes são maiores quando um terremoto mata 12 pessoas em Los Angeles do que quando um mata 3 mil em um país qualquer do Oriente Médio.

 

Além do mais, aconteceu em Derry.

 

Já ouvi isso antes, e acho que, se continuar a pesquisar isso, vou ouvir de novo... e de novo... e de novo. Dizem isso como se estivessem falando pacientemente com alguém com deficiência mental. Dizem da forma como diriam Por causa da gravidade se você perguntasse como é que a gente fica grudado no chão quando anda. Dizem como se fosse uma lei natural que qualquer homem natural deve entender. E, é claro, o pior de tudo é que eu entendo sim.

 

— O senhor viu alguém naquele dia que não reconheceu depois que o tiroteio começou?

 

A resposta do sr. Keene foi rápida o bastante para fazer minha temperatura corporal despencar mais de dez graus, ou ao menos foi o que pareceu.

 

— Você quer dizer o palhaço? Como soube dele, filho?

 

— Ah, ouvi em algum lugar — eu disse.

 

— Só tive um vislumbre dele. Quando as coisas esquentaram, fiquei prestando atenção em mim. Olhei ao redor só uma vez e o vi na rua atrás dos suecos, debaixo da marquise do Bijou — disse o sr. Keene. — Ele não estava usando roupa de palhaço nem nada do tipo. Estava usando um tipo de macacão de fazendeiro e camisa de algodão por baixo. Mas o rosto estava coberto com aquela tinta oleosa que eles usam, e um grande sorriso vermelho de palhaço estava pintado nele. Além do mais, tinha uns tufos de cabelo falso, sabe? Laranja. Meio cômicos.

 

“Lal Machen nunca viu o sujeito, mas Biff viu. Só que Biff devia estar confuso, porque ele pensou que o tinha visto em uma das janelas de um apartamento em algum ponto à esquerda, e, uma vez, quando perguntei a Jimmy Gordon, que morreu em Pearl Harbor, sabe, afundou com o navio, o California, acho que era o nome, ele disse que viu o cara atrás do Memorial de Guerra.”

 

O sr. Keene balançou a cabeça e sorriu um pouco.

 

— É engraçado como as pessoas ficam durante uma coisa assim, e mais engraçado ainda o que lembram depois que tudo acaba. Dá pra ouvir 16 histórias diferentes, e nem duas vão ser iguais. Por exemplo, tinha a arma que o palhaço estava segurando...

 

— Arma? — eu perguntei. — Ele também estava atirando?

 

— Ah, sim — disse o sr. Keene. — A única hora que olhei, parecia que ele estava com uma Winchester com trava, mas só depois concluí que devo ter pensado isso porque era a minha arma. Biff Marlow achou que ele estava com uma Remington, porque era a arma dele. E quando perguntei a Jimmy, ele disse que o cara estava com uma Springfield velha, como a dele. Engraçado, né?

 

— Engraçado — eu consegui dizer. — Sr. Keene... nenhum de vocês se perguntou que diabos um palhaço, principalmente um de macacão de fazendeiro, estava fazendo ali naquela hora?

 

— Claro — disse o sr. Keene. — Não era nada de mais, você deve entender, mas é claro que nos questionamos. A maior parte de nós achou que era alguém que queria participar da festa, mas não queria ser reconhecido. Um integrante da câmara municipal, talvez. Horst Mueller, possivelmente, ou até Trace Naugler, que era prefeito na época. Ou podia apenas ser um profissional que não queria ser reconhecido. Médico ou advogado. Eu não reconheceria meu próprio pai disfarçado daquele jeito.

 

Ele riu um pouco, e eu perguntei o que era engraçado.

 

— Tem também a possibilidade de que fosse um palhaço de verdade — disse ele. — Nos anos 1920 e 1930, a feira rural de Esty começava bem mais cedo do que começa agora, e estava funcionando a todo vapor na semana em que a gangue Bradley chegou ao fim da vida. Havia palhaços na feira rural. Talvez um deles tenha ouvido que íamos ter uma festa e foi até lá porque queria participar.

 

Ele sorriu para mim secamente.

 

— Já falei tudo que tinha para dizer — disse ele —, mas vou dizer mais uma coisa, já que você parece tão interessado e presta tanta atenção. Foi uma coisa que Biff Marlow disse uns 16 anos depois, quando estávamos tomando umas cervejas no Pilot’s, em Bangor. Ele falou inesperadamente. Disse que o palhaço estava tão inclinado para fora da janela que Biff não conseguiu acreditar que não estava caindo. Não eram só a cabeça, os ombros e os braços que estavam para fora; Biff disse que ele estava para fora até os joelhos, pairando no ar, atirando nos carros em que os Bradley chegaram, com aquele sorriso vermelho enorme no rosto. “Ele parecia uma abóbora de Halloween que levou um baita susto”, foi o que Biff disse.

 

— Como se estivesse flutuando — eu disse.

 

— Isso — concordou o sr. Keene. — E Biff disse que tinha outra coisa, uma coisa que o incomodou durante semanas. Uma dessas coisas que ficam na ponta da língua, mas você não consegue identificar, ou uma coisa que toca na sua pele como um mosquito ou um pernilongo. Ele disse que descobriu o que era uma noite em que teve que levantar pra tirar água do joelho. Estava de pé mijando no vaso, pensando em nada especial, quando de repente ele percebeu que eram 2h45 da tarde quando o tiroteio começou e o sol estava brilhando, mas aquele palhaço não fazia sombra. Sombra nenhuma.

 

JULHO DE 1958

A apocalíptica guerra de pedras

 

Bill chega primeiro. Ele se senta em uma das cadeiras dos fundos, perto da porta da Sala de Leitura, observando Mike cuidar dos últimos frequentadores da biblioteca daquela noite, uma senhora com uma pilha de livros góticos, um homem com um enorme livro histórico sobre a Guerra Civil e um garoto magrelo querendo levar um romance com um adesivo de empréstimo de sete dias no canto superior da capa de plástico. Bill percebe, sem surpresa nenhuma e sem sensação de acaso, que é seu último romance. Ele sente que não consegue mais sentir surpresa, que qualquer sensação de acaso é uma realidade que acabou se mostrando ser apenas um sonho.

 

Uma garota bonita, com saia xadrez presa por um grande alfinete dourado (meu Deus, não vejo um alfinete assim há anos, pensa Bill, será que estão voltando à moda?), está colocando moedas na máquina de xerox e copiando um artigo com um olho no grande relógio de pêndulo atrás da recepção. Os sons são os delicados e reconfortantes de uma biblioteca: o barulho de solas e saltos de sapato no linóleo preto e vermelho; o tique-taque regular do relógio marcando os segundos; o ronronar de gato da máquina de fotocópias.

 

O garoto pega o romance de William Denbrough e vai até a garota na máquina na hora em que ela termina de ajeitar as folhas de papel.

 

— Pode deixar o original na escrivaninha, Mary — diz Mike. — Eu guardo.

 

Ela dá um sorriso de agradecimento.

 

— Obrigada, sr. Hanlon.

 

— Boa noite. Boa noite, Billy. Vão direto pra casa.

 

— O bicho-papão pode te pegar se você... não... tomar... cuidado! — cantarola Billy, o garoto magrelo, e passa um braço possessivo na cintura fina da garota.

 

— Bem, acho que ele não iria querer um casal tão feio quanto vocês dois — diz Mike —, mas tomem cuidado mesmo assim.

 

— Pode deixar, sr. Hanlon — responde Mary com seriedade, e dá um soco leve no ombro do garoto. — Venha, seu feio — diz ela, e ri.

 

Quando ela faz isso, se transforma de estudante medianamente desejável na enérgica e quase desajeitada Beverly Marsh do passado... e, quando eles passam, Bill fica abalado pela beleza dela... e sente medo; ele quer ir até o garoto e dizer com sinceridade que eles devem ir para casa por ruas iluminadas e não olhar ao redor se alguém falar.

 

Não dá pra ter cuidado em um skate, moço, diz uma voz fantasma dentro de sua cabeça, e Bill dá um sorriso triste de adulto.

 

Ele vê o garoto abrir a porta para a garota. Eles saem pelo vestíbulo, aproximando-se um do outro, e Bill apostaria os direitos autorais do livro que o garoto chamado Billy está segurando debaixo do braço que ele rouba um beijo antes de abrir a porta externa para a garota. Você seria um tolo se não fizesse isso, meu amigo Billy, pensa ele. Agora, leva ela pra casa em segurança. Pelo amor de Deus, leva ela pra casa em segurança!

 

Mike diz:

 

— Estarei com você em um minuto, Big Bill. Só vou arquivar isto.

 

Bill assente e cruza as pernas. O saco de papel no colo dele estala um pouco. Tem uma garrafa de burbom lá dentro, e ele pensa que nunca quis tanto uma bebida na vida quanto quer agora. Mike vai ter água, ou até mesmo gelo, e pelo que ele está sentindo agora, água será o suficiente.

 

Ele pensa em Silver, apoiada na parede da garagem de Mike na alameda Palmer. E, a partir disso, seus pensamentos progridem naturalmente para o dia em que eles se encontraram no Barrens, todos exceto Mike, e cada um recontou sua história: leprosos debaixo de varandas, múmias que andavam sobre o gelo, sangue saindo de ralos e garotos mortos na Torre de Água e fotos que se moviam e lobisomens que perseguiam garotinhos por ruas desertas.

 

Eles foram mais fundo no Barrens naquele dia antes do Quatro de Julho, agora ele lembra. Estava quente na cidade, mas fresco na sombra na margem leste do Kenduskeag. Ele se lembra de um daqueles cilindros de concreto não muito longe, zumbindo baixinho, da mesma forma que a máquina de xerox zumbia para a garota bonita um pouco antes. Bill se lembra disso e de que, quando todas as histórias terminaram, todos olharam para ele.

 

Eles queriam que ele falasse o que todos deveriam fazer em seguida, como deveriam proceder, e ele simplesmente não sabia. O fato de não saber o encheu de uma espécie de desespero.

 

Ao olhar para a sombra de Mike agora, ampla na parede escura da sala de referências, uma certeza repentina surgiu em sua mente: ele não sabia na época porque eles não estavam completos quando se encontraram naquela tarde de 3 de julho. Isso só foi atingido mais tarde, na cascalheira abandonada atrás do lixão, onde dava para sair do Barrens com facilidade dos dois lados, pela rua Kansas e pela rua Merit. Bem onde ficava o viaduto da estrada interestadual agora, na verdade. A cascalheira não tinha nome; era velha, com laterais ruindo e coberta de mato e arbustos. Ainda havia muita munição ali, mais do que o suficiente para uma guerra de pedras apocalíptica.

 

Mas, antes disso, na margem do Kenduskeag, ele não teve certeza do que dizer. O que eles queriam que ele dissesse? O que ele queria dizer? Ele se lembra de olhar de um rosto para o seguinte: o de Ben; o de Bev; o de Eddie; o de Stan; o de Richie. E se lembra da música. Little Richard. “Whomp-bomp-a-lomp-bomp...”

 

Música. Baixa. E dardos de luz nos olhos. Ele se lembra dos dardos de luz porque

 

Richie tinha pendurado o rádio no galho mais baixo da árvore em que estava encostado. Apesar de eles estarem na sombra, o sol se refletia na superfície do Kenduskeag, batia na frente cromada do rádio e, de lá, ia para os olhos de Bill.

 

— T-Tira essa c-coisa d-d-daí, R-R-Richie — disse Bill. — Vai m-me c–cegar.

 

— Claro, Big Bill — disse Richie imediatamente, sem atrevimento nenhum, e tirou o rádio do galho. Ele também o desligou, e Bill desejou que não tivesse feito isso; o silêncio, rompido apenas pela água em movimento e pelo zumbido vago do maquinário de bombeamento do esgoto, parecia muito alto. Os olhos deles o observavam, e ele queria mandar que olhassem para outro lugar, o que eles achavam que ele era, uma aberração?

 

Mas é claro que ele não podia fazer isso, porque eles só estavam esperando que ele dissesse a eles o que fazer agora. Eles tinham chegado a uma conclusão assustadora e precisavam que ele dissesse o que fazer com ela. Por que eu?, ele queria gritar para os amigos, mas é claro que ele sabia isso também. Era porque, gostando ou não, ele tinha sido designado para a posição. Porque ele era o homem das ideias, porque tinha perdido um irmão para o que quer que aquilo fosse, mas, mais do que tudo, porque tinha se tornado, de uma forma obscura que jamais entenderia completamente, o Big Bill.

 

Ele olhou para Beverly e desviou rapidamente da calma confiança nos olhos dela. Olhar para Beverly provocou uma sensação esquisita na boca do estômago. Um tremor.

 

— N-Não p-podemos procurar a p-polícia — disse ele enfim. Sua voz pareceu rouca aos seus ouvidos, alta demais. — Também não p-podemos p-procurar nossos p-p-pais. A não ser que... — Ele olhou para Richie com esperança. — E s-sua m-mãe e seu p-pai, quatro olhos? Eles p-parecem b-bem n-normais.

 

— Meu bom homem — disse Richie com a Voz de Toodles, o Mordomo —, você obviamente não tem compreensão alguma sobre minha mãe e meu pai. Eles...

 

— Fale americano, Richie — disse Eddie de onde estava, ao lado de Ben. Ele estava sentado ao lado de Ben pelo simples motivo de que Ben fornecia sombra suficiente. O rosto dele parecia pequeno, tenso e preocupado, o rosto de um velho. A bombinha estava na mão direita.

 

— Eles achariam que estou pronto para Juniper Hill — disse Richie.

 

Ele estava usando um par de óculos velho hoje. No dia anterior, um amigo de Henry Bowers chamado Gard Jagermeyer tinha chegado por trás de Richie quando ele estava saindo da Sorveteria Derry com uma casquinha de pistache. “Peguei, tá com você!”, gritou esse Jagermeyer, que era uns 20 quilos mais pesado do que Richie, e deu um empurrão nas costas dele com as mãos unidas. Richie voou para o meio-fio e perdeu os óculos e a casquinha de sorvete. A lente esquerda dos óculos se estilhaçou; a mãe ficou furiosa com ele por causa disso e nem deu muita credibilidade às explicações do filho.

 

— Só sei que você fez alguma besteira — disse ela. — Sinceramente, Richie, você acha que tem uma árvore que dá óculos em algum lugar, de onde a gente arranca um par novo cada vez que você quebra o velho?

 

— Mas mãe, um garoto me empurrou, ele chegou por trás, um garoto grande, e me empurrou... — Richie já estava quase chorando. Não conseguir fazer a mãe entender doía muito mais do que ser empurrado na vala por Gard Jagermeyer, que era tão burro que nem se deram ao trabalho de botar de recuperação com aulas no verão.

 

— Não quero ouvir mais nada sobre isso — disse Maggie Tozier simplesmente. — Mas, da próxima vez que seu pai chegar exausto depois de trabalhar até tarde três dias seguidos, pense um pouco, Richie. Pense bem.

 

— Mas mãe...

 

— Chega, já falei. — A voz dela estava firme e definitiva. Pior, estava à beira das lágrimas. Ela saiu do aposento, e a TV foi ligada em um volume alto demais. Richie ficou sozinho, sentado com infelicidade à mesa da cozinha.

 

Foi essa lembrança que fez Richie balançar a cabeça de novo.

 

— Meus pais são legais, mas jamais acreditariam em uma coisa assim.

 

— E os o-outros g-garotos?

 

E eles olharam ao redor, Bill lembraria anos depois, como se procurando alguém que não estava lá.

 

— Quem? — perguntou Stan em tom de dúvida. — Não consigo pensar em mais ninguém em quem eu confie.

 

— Mesmo a-a-assim... — disse Bill com voz perturbada, e um silêncio se espalhou entre eles enquanto Bill pensava no que dizer em seguida.

 

Se você perguntasse, Ben Hanscom diria que Henry Bowers o odiava mais do que a qualquer outro dos integrantes do Clube dos Otários, por causa do que aconteceu no dia em que ele e Henry desceram para o Barrens pelo barranco da rua Kansas, por causa do que aconteceu no dia em que ele, Richie e Beverly fugiram do Aladdin, mas, mais do que tudo, porque, ao não permitir que Henry colasse nas provas, Ben fez com que ele fosse para a recuperação de verão e se tornasse objeto da ira do pai, o renomado louco Butch Bowers.

 

Se você perguntasse, Richie Tozier diria que Henry o odiava mais do que a qualquer outro, por causa do dia em que ele enganou Henry e os outros dois mosqueteiros na Freese’s.

 

Stan Uris teria dito que Henry o odiava mais do que a todos porque ele era judeu (quando Stan estava no terceiro ano e Henry no quinto, Henry uma vez esfregou a cara de Stan na neve até sangrar e ele gritar histericamente de dor e medo).

 

Bill Denbrough acreditava que Henry o odiava mais do que a todos porque ele era magrelo, porque gaguejava e porque gostava de se vestir bem (“O-O-Olha a p-p-porra do v-v-VEADINHO!”, gritou Henry quando foi o Dia da Profissão na escola, em abril, e Bill foi usando gravata; antes do fim do dia, a gravata foi arrancada e jogada em uma árvore na rua Charter).

 

Ele odiava os quatro, mas o garoto em Derry que ocupava a primeira posição na Parada de Ódio pessoal de Henry não era parte do Clube dos Otários naquele dia 3 de julho; era um garoto negro chamado Michael Hanlon, que morava a 400 metros da pequena fazenda Bowers, na mesma rua.

 

O pai de Henry, que era tão louco quanto diziam que era, se chamava Oscar “Butch” Bowers. Butch Bowers associava seu declínio financeiro, físico e mental à família Hanlon em geral e ao pai de Mike em particular. Ele gostava de dizer para os poucos amigos e para o filho que Will Hanlon fez com que ele fosse jogado na cadeia do condado quando todas as galinhas dele, Hanlon, morreram.

 

— Pra que ele pudesse receber o dinheiro do seguro, você não sabe? — dizia Butch, olhando para a plateia com a beligerância sinistra do capitão Billy Bones no Admiral Benbow. — Fez com que alguns amigos mentissem por ele, e foi assim que precisei vender meu Mercury.

 

— Quem mentiu por ele, pai? — perguntou Henry quando tinha 8 anos, fervendo por causa da injustiça cometida com o pai. Ele pensou que, quando fosse adulto, encontraria os mentirosos, cobriria de mel e jogaria em formigueiros, como em alguns daqueles filmes de faroeste que passavam no Cinema Bijou nas tardes de sábado.

 

E como o filho era um ouvinte incansável (embora, se alguém perguntasse, Butch diria que era assim que ele devia mesmo ser), Bowers Pai enchia os ouvidos do filho com a litania de ódio e má sorte. Ele explicou para o filho que, apesar de todos os negros serem burros, alguns também eram astuciosos, e que no fundo todos odiavam homens brancos e queriam explorar a fenda de uma mulher branca. Talvez não fosse só pelo dinheiro do seguro, dizia Butch; talvez Hanlon tivesse decidido botar nele a culpa das galinhas mortas porque Butch tinha a barraquinha seguinte de produtos frescos na estrada. Mas ele fez mesmo assim, com a mesma certeza de que merda gruda em um cobertor. Ele fez e arrumou um bando de amantes de crioulos na cidade para mentir para ele e ameaçar Butch com a prisão estadual se ele não pagasse para o crioulo.

 

— E por que não? — perguntava Butch para o filho sujo e silencioso de olhos arregalados. — Por que não? Eu era só um homem que lutou contra os japas pelo país. Havia muitos caras como nós, mas ele era o único crioulo do país.

 

O negócio das galinhas foi seguido por um incidente azarado após o outro. Um eixo do trator Deere quebrou; o rastelo bom estragou no campo do norte; ele teve uma queimadura no pescoço que infeccionou, teve que ser lancetada, infeccionou de novo e teve que ser removida cirurgicamente; o crioulo começou a usar o dinheiro obtido desonestamente para abaixar os próprios preços, vender mais barato do que Butch e tirar fregueses dele.

 

Aos ouvidos de Henry, era uma litania constante: o crioulo, o crioulo, o crioulo. Tudo era culpa do crioulo. O crioulo tinha uma bela casa branca com segundo andar e fornalha a óleo, enquanto Butch, a esposa e o filho moravam no que não era muito melhor do que uma cabana de papel alcatroado. Quando Butch não conseguiu mais ganhar dinheiro suficiente sendo fazendeiro e teve que ir trabalhar no bosque por um tempo, foi culpa do crioulo. Quando o poço dele secou em 1956, foi culpa do crioulo.

 

Mais tarde naquele mesmo ano, Henry, que tinha 10 anos de idade, começou a dar ossos velhos e sacos de batata frita para o cachorro de Mike, Mr. Chips, comer. Chegou ao ponto de Mr. Chips abanar o rabo e ir correndo quando Henry chamava. Quando o cachorro estava bem acostumado com Henry e com as guloseimas que ele dava, Henry um dia deu a ele meio quilo de carne batizada com inseticida. A lata de veneno para insetos ele encontrou na cabana do quintal; ele economizou durante três semanas para comprar a carne no Costello.

 

Mr. Chips comeu metade da carne envenenada e parou.

 

— Vai, termina seu lanche, Cão de Crioulo — disse Henry.

 

Mr. Chips abanou o rabo. Como Henry o chamava assim desde o começo, ele acreditava que era seu outro nome. Quando as dores começaram, Henry pegou um pedaço de corda de varal e amarrou Mr. Chips a um freixo para que ele não pudesse fugir e correr para casa. Ele então se sentou em uma pedra aquecida pelo sol, apoiou o queixo nas palmas das mãos e viu o cachorro morrer. Levou bastante tempo, mas Henry considerou tempo bem gasto. No final, Mr. Chips começou a ter convulsões, e uma espuma fina e verde saiu pela boca dele.

 

— Que tal isso, Cão de Crioulo? — perguntou Henry, e o cachorro revirou os olhos moribundos ao som da voz e tentou abanar o rabo. — Gostou do almoço, vira-lata de merda?

 

Quando o cachorro estava morto, Henry tirou a corda, foi para casa e contou para o pai o que tinha feito. Oscar Bowers já estava extremamente louco naquela época; um ano mais tarde, a esposa o deixaria depois de ele bater nela até quase matá-la. Henry também sentia medo do pai e um ódio terrível dele às vezes, mas também o amava. E, naquela tarde, depois que contou, ele sentiu que finalmente tinha encontrado a chave para o afeto do pai, porque o pai deu tapas nas costas dele (com tanta força que Henry quase caiu), levou-o para a sala e lhe deu uma cerveja. Foi a primeira cerveja que Henry tomou, e, pelo resto da vida, ele associaria o gosto com emoções positivas: vitória e amor.

 

— A um trabalho bem-feito — disse o pai maluco de Henry. Eles bateram as garrafas marrons uma na outra e beberam. Até onde Henry sabia, os crioulos nunca descobriram quem matou o cachorro, mas achava que eles tinham suas desconfianças. Ele esperava que sim.

 

Os outros do Clube dos Otários conheciam Mike de vista (em uma cidade em que ele era a única criança negra, seria estranho se não conhecessem), mas não passava disso, porque Mike não estudava na escola Derry Elementary. A mãe era batista devota, e Mike frequentava a escola batista da rua Neibolt. Entre geografia, leitura e aritmética, havia testes sobre a Bíblia, aulas de assuntos como O Significado dos Dez Mandamentos em um Mundo sem Deus e grupos de discussão sobre como lidar com problemas morais do dia a dia (se você visse um amigo furtando em uma loja ou ouvisse um professor falando o nome de Deus em vão).

 

Mike achava a escola batista boa. Havia momentos em que ele desconfiava de forma vaga que estava perdendo algumas coisas, uma comunicação maior com crianças da idade dele, talvez, mas estava disposto a esperar até o ensino médio para que essas coisas acontecessem. A perspectiva o deixava nervoso porque sua pele era marrom, mas tanto a mãe quanto o pai eram bem tratados na cidade até onde Mike conseguia perceber, e Mike acreditava que também seria bem tratado se tratasse os outros bem.

 

A exceção a essa regra, claro, era Henry Bowers.

 

Apesar de tentar demonstrar o mínimo possível, Mike vivia com pavor constante de Henry. Em 1958, Mike era magro e forte, mais alto do que Stan Uris, mas não tão alto quanto Bill Denbrough. Era rápido e ágil, e isso o salvou de várias surras nas mãos de Henry. E, claro, frequentava uma escola diferente. Por causa disso e da diferença de idade, os caminhos deles raramente se cruzavam. Mike fazia o que podia para que as coisas continuassem assim. Portanto, a ironia era a seguinte: apesar de Henry odiar Mike Hanlon mais do que a qualquer outro garoto de Derry, Mike foi o que menos sofreu na mão dele.

 

Ah, ele teve seus momentos. Na primavera depois que matou o cachorro de Mike, Henry pulou de um arbusto um dia quando Mike estava andando para a cidade, indo à biblioteca. Era final de março e estava quente o bastante para ele ir de bicicleta, mas naqueles dias a rua Witcham passava a ser de terra logo depois da casa dos Bowers, o que significava que estava um lamaçal, péssimo para bicicletas.

 

— Oi, crioulo — disse Henry, surgindo dos arbustos e sorrindo.

 

Mike recuou, olhando com cautela para a direita e para a esquerda, procurando uma oportunidade de fugir. Ele sabia que, se conseguisse contornar Henry, seria capaz de correr mais rápido. Henry era grande e Henry era forte, mas Henry também era lento.

 

— Quero um boneco de piche — disse Henry, indo para cima do garoto menor. — Você não é preto o suficiente, mas vou consertar isso.

 

Mike olhou para a esquerda e girou o corpo nessa direção. Henry mordeu a isca e foi para aquele lado, rápido demais e longe demais para conseguir voltar. Mudando a direção com velocidade natural, Mike saiu correndo para a direita (no ensino médio, ele entraria para o time de futebol americano como corredor principal no segundo ano, e só não bateu o recorde da escola porque quebrou a perna no meio da temporada em seu último ano). Ele teria conseguido passar facilmente por Henry se não fosse a lama. Estava escorregadia, e Mike caiu de joelhos. Antes que conseguisse se levantar, Henry estava em cima dele.

 

— Crioulocrioulocrioulo! — gritou Henry, em uma espécie de êxtase religioso, quando derrubou Mike.

 

A lama subiu por dentro da camisa de Mike e entrou pela calça. Ele conseguia senti-la se espremendo em seus pés. Mas só começou a chorar quando Henry esfregou lama em seu rosto e tampou as duas narinas.

 

— Agora você está preto! — gritou Henry com alegria, esfregando lama no cabelo de Mike. — Agora você está MEEEESMO preto! — Ele rasgou a jaqueta de popelina e a camisa de Mike, e enfiou um monte de lama no umbigo do garoto. — Agora você está tão preto quanto a meia-noite em uma MINA! — gritou Henry com triunfo, e enfiou bolos de lama em cada uma das orelhas de Mike. Depois recuou, com as mãos enlameadas na cintura, e gritou: — Matei seu cachorro, garoto preto! — Mas Mike não ouviu isso por causa da lama nos ouvidos e de seu choro apavorado.

 

Henry chutou um monte final e grudento de lama em Mike, se virou e andou para casa sem olhar para trás. Alguns momentos depois, Mike se levantou e fez a mesma coisa, ainda chorando.

 

Sua mãe ficou furiosa, claro; ela queria que Will Hanlon ligasse para o chefe Borton e o mandasse para a casa dos Bowers antes de o sol se pôr.

 

— Ele já perseguiu Mikey antes — Mike a ouviu dizer. Ele estava sentado na banheira, e os pais estavam na cozinha. Era a segunda banheira de água; a primeira ficou preta quase no mesmo momento em que ele entrou e se sentou nela. Em sua fúria, a mãe voltou ao dialeto pesado do Texas que Mike quase não entendia. — Coloca a polícia atrás dele, Will Hanlon! No grande e no pequeno! A polícia, entendeu?

 

Will entendeu, mas não fez o que a esposa pediu. Quando ela se acalmou (já era noite e Mike dormia havia duas horas), ele a relembrou os fatos da vida. O chefe Borton não era o xerife Sullivan. Se Borton fosse xerife quando aconteceu o incidente das galinhas envenenadas, Will jamais teria recebido seus 200 dólares e teria que aceitar a situação. Alguns homens apoiavam você, e outros não; Borton era do tipo que não. Na verdade, ele era um covarde.

 

— Mike já teve problema com esse garoto, é verdade — disse ele para Jessica. — Mas não tanto, porque ele toma cuidado com Henry Bowers. Isso vai fazer com que ele tome mais cuidado.

 

— Você está dizendo que vai deixar passar?

 

— Bowers contou ao filho histórias sobre o que aconteceu entre nós, eu imagino — disse Will —, e o filho nos odeia por causa disso, e porque o pai também disse para ele que odiar crioulos é o que os homens fazem. Em resumo, é isso. Não posso mudar o fato de que nosso filho é negro tanto quanto não posso ficar aqui dizendo pra você que Henry Bowers vai ser o último a pegar no pé dele porque a pele dele é marrom. Ele vai ter que lidar com isso pro resto da vida, como eu lidei com isso e como você lidou com isso. Ora, lá naquela escola cristã onde você quis tanto que ele fosse estudar, a professora disse para os alunos que os negros não são tão bons quanto os brancos porque o filho de Noé, Cam, olhou para o pai quando ele estava bêbado e nu, e os dois outros filhos de Noé afastaram o olhar. Foi por isso que os filhos de Cam foram condenados a sempre serem rachadores de lenha e buscadores de água, disse ela. E Mikey falou que ela estava olhando diretamente para ele enquanto contava essa história.

 

Jessica olhou para o marido, muda e infeliz. Duas lágrimas caíram, uma de cada olho, e desceram lentamente pelo rosto.

 

— Não tem como fugir disso um dia?

 

A resposta dele foi gentil, mas implacável; era uma época em que as esposas acreditavam nos maridos, e Jessica não tinha motivo para duvidar de Will.

 

— Não. Não tem como fugir da palavra crioulo, não agora, não no mundo em que vivemos, você e eu. Crioulos do interior do Maine ainda são crioulos. Já pensei várias vezes que o motivo de eu ter voltado pra Derry foi por não haver lugar melhor para me lembrar disso. Mas vou ter uma conversa com o garoto.

 

No dia seguinte, ele chamou Mike no celeiro. Will se sentou ao volante do arado e bateu no banco ao seu lado chamando Mike.

 

— Quero que você fique longe daquele Henry Bowers — disse ele.

 

Mike assentiu.

 

— O pai dele é maluco.

 

Mike assentiu de novo. Ele tinha ouvido isso na cidade. Alguns vislumbres do sr. Bowers reforçaram a ideia.

 

— Não quero dizer só um pouco louco — disse Will, acendendo um cigarro Bugler enrolado em casa e olhando para o filho. — Ele está a três passos do manicômio. Voltou da guerra assim.

 

— Acho que Henry também é maluco — disse Mike. Sua voz estava baixa, mas firme, e isso fortaleceu o coração de Will... embora ele não conseguisse acreditar, mesmo depois de uma vida cheia de altos e baixos cujos incidentes incluíam quase ser queimado vivo em um bar improvisado chamado de Black Spot, que um garoto como Henry pudesse ser maluco.

 

— Bem, ele escutou demais o pai, mas isso é natural — disse Will.

 

No entanto, seu filho estava mais próximo da verdade. Henry Bowers, ou pela companhia constante do pai, ou por causa de alguma outra coisa, alguma coisa interior, estava realmente enlouquecendo lentamente.

 

— Não quero que você chegue a ponto de viver para fugir dele — disse o pai —, mas como você é negro, provavelmente vai ter que aguentar mais coisas. Sabe o que quero dizer?

 

— Sei, papai — disse Mike, pensando em Bob Gautier na escola, que tinha tentado explicar para Mike que crioulo não podia ser uma palavra ruim, porque o pai dele usava o tempo todo. Na verdade, Bob contou para Mike com sinceridade, era uma palavra boa. Quando um lutador no programa Friday Night Fights levava uma surra e conseguia ficar de pé, seu pai dizia “A cabeça dele é dura como a de um crioulo”, e quando alguém estava enrolando muito no trabalho (o que, para o sr. Gautier, era o Star Beef, na cidade), seu pai dizia “Aquele homem trabalha como um crioulo”. “E meu pai é tão cristão quanto o seu”, concluiu Bob. Mike lembrou que, ao olhar para o rosto branco sincero e contraído de Bob Gautier, cercado dos pelos desgrenhados do capuz do casaco de neve de segunda mão, ele não sentiu raiva, mas uma tristeza terrível que o deixou com vontade de chorar. Ele viu sinceridade e boa intenção no rosto de Bob, mas o que sentiu foi solidão, distância, um grande vazio assobiante entre ele e o outro garoto.

 

— Estou vendo que você sabe o que quero dizer — disse Will, e mexeu no cabelo do filho. — E, no fim das contas, você vai ter que tomar cuidado com a posição que assume. Vai ter que se perguntar se Henry Bowers vale o trabalho. Vale?

 

— Não — disse Mike. — Não, acho que não. — Ainda demoraria um tempo até ele mudar de ideia. Até dia 3 de julho de 1958, na verdade.

 

Enquanto Henry Bowers, Victor Criss, Arroto Huggins, Peter Gordon e um garoto do ensino médio meio retardado chamado Steve Sadler (conhecido como Moose por causa do personagem dos quadrinhos de Archie) estavam correndo atrás de um ofegante Mike Hanlon pelo pátio de trens na direção do Barrens a uns 800 metros de distância, Bill e o resto do Clube dos Otários ainda estavam na margem do Kenduskeag, refletindo sobre o pesadelo de problema.

 

— S-Sei o-onde e-e-está, eu acho — disse Bill, rompendo o silêncio.

 

— Nos esgotos — disse Stan, e todos deram um salto ao ouvirem um som desagradável e repetido. Eddie sorriu com culpa ao colocar a bombinha de volta no colo.

 

Bill assentiu.

 

— Eu p-perguntei ao meu p-pai sobre os e-esgotos a-algumas n-n-noites a-a-atrás.

 

— Toda essa área era um pântano — disse Zack para o filho —, e os fundadores da cidade conseguiram colocar o que é atualmente o centro na pior parte. A área do canal que passa debaixo das ruas Center e Main e sai no parque Bassey não passa de um escoadouro que sustenta o Kenduskeag. Na maior parte do ano, os escoadouros ficam quase vazios, mas são importantes quando chega a primavera e a neve derrete, ou quando há enchentes... — Ele fez uma pausa, talvez pensando que foi durante uma enchente no outono anterior que ele perdeu o filho caçula — ... por causa das bombas — concluiu ele.

 

— B-B-Bombas? — perguntou Bill, virando a cabeça de leve sem nem perceber. Quando ele gaguejava em sons plosivos, voava cuspe de seus lábios.

 

— As bombas de escoamento — disse o pai. — Elas ficam no Barrens. São canos de concreto que saem do chão com a altura de quase um metro...

 

— B-B-Ben Hanscom chama de b-buracos de M-Morlocks — disse Bill, sorrindo.

 

Zack também sorriu... mas era apenas uma sombra de seu antigo sorriso. Eles estavam na oficina de Zack, onde ele estava girando hastes de cadeira sem muito interesse.

 

— Elas não passam de bombas de sucção, moleque — disse ele. — Ficam em cilindros de 3 metros de profundidade e bombeiam esgoto e neve derretida quando a inclinação do terreno some ou se inverte um pouco. É maquinário antigo, e a cidade deveria comprar bombas novas, mas a câmara sempre alega falta de fundos quando o assunto surge na agenda em reuniões sobre orçamento. Se eu ganhasse 25 centavos para cada vez que fui até lá com merda até os joelhos para reativar algum daqueles motores... mas você não quer ouvir sobre isso, Bill. Por que você não vai ver TV? Acho que vai passar Sugarfoot hoje.

 

— Mas q-q-quero o-ouvir — disse Bill, e não apenas porque tinha chegado à conclusão de que havia uma coisa terrível debaixo de Derry, em algum lugar.

 

— Por que você quer ouvir sobre um bando de bombas de esgoto? — perguntou Zack.

 

— T-Trabalho da e-e-escola — disse Bill de improviso.

 

— Você está de férias.

 

— A-A-Ano que vem.

 

— Ah, é um assunto bem chato — disse Zack. — O professor vai te dar um F por fazê-lo dormir. Olha, aqui está o Kenduskeag — ele desenhou uma linha reta na serragem sobre a mesa na qual ficava a serra dele — e aqui está o Barrens. Como o centro fica mais baixo do que as áreas residenciais, como a rua Kansas ou, digamos, Old Cape ou West Broadway, a maior parte do esgoto do centro tem que ser bombeado para o rio. O refugo das casas escoa para o Barrens praticamente sozinho. Entende?

 

— E-E-Entendo — disse Bill, chegando um pouco mais perto do pai para olhar para as linhas, perto o bastante para o ombro encostar no braço dele.

 

— Um dia, vão parar de bombear esgoto puro no rio, e esse vai ser o fim do negócio. Mas, por enquanto, temos essas bombas nos... como é que seu amigo chama?

 

— Buracos de Morlocks — disse Bill, sem nem um traço de gagueira; nem ele nem o pai repararam.

 

— É. É pra isso que servem as bombas nos buracos de Morlocks, e elas funcionam muito bem, exceto quando chove demais e os riachos transbordam. Porque, apesar de os escoadouros e esgotos com bombas terem sido feitos como sistemas separados, eles na verdade se cruzam em vários pontos. Entende? — Ele desenhou uma série de xis a partir da linha que representava o Kenduskeag, e Bill assentiu. — Bem, a única coisa que você precisa saber sobre escoamento de água é que ela vai para onde puder. Quando fica alta, ela começa a encher os escoadouros e os esgotos também. Quando a água nos escoadouros fica alta o bastante para chegar às bombas, elas quebram. Isso é problema pra mim, porque eu tenho que consertar.

 

— Pai, q-qual é o tamanho dos e-esgotos e escoadouros?

 

— Você quer saber o diâmetro interno?

 

Bill assentiu.

 

— Os esgotos principais têm 1,80 metro de diâmetro. Os secundários, das áreas residenciais, têm um metro a 1,20, eu acho. Alguns talvez sejam um pouco maiores. E acredite quando falo, Billy, e pode contar pros seus amigos: você nunca vai querer entrar em um desses canos, nem de brincadeira, nem por aposta, nem por motivo nenhum.

 

— Por quê?

 

— Mais de dez prefeitos construíram ali desde 1885, mais ou menos. Durante a Depressão, a gerência de projetos fez um sistema de escoamento secundário e um terciário; havia muito dinheiro para obras públicas naquela época. Mas o cara que gerenciou esses projetos morreu na Segunda Guerra Mundial, e uns cinco anos depois o Departamento de Águas descobriu que as plantas do sistema tinham desaparecido quase todas. São mais de 4 quilos de plantas que simplesmente desapareceram entre 1937 e 1950. O que quero dizer é que ninguém sabe onde esses malditos esgotos e escoadouros vão dar, nem por quê.

 

“Quando eles estão funcionando, ninguém liga. Quando não estão, três ou quatro infelizes do Departamento de Águas de Derry têm que tentar descobrir que bomba quebrou ou onde fica o entupimento. E quando eles descem lá, cortam um dobrado. É escuro e fedido, e tem ratos. Esses são bons motivos para não entrar, mas o melhor é que dá pra se perder. Já aconteceu.”

 

Perdido embaixo de Derry. Perdido nos esgotos. Perdido no escuro. Havia alguma coisa tão lúgubre e apavorante na ideia que Bill ficou momentaneamente em silêncio. Em seguida, falou:

 

— Mas nunca m-m-mandaram ninguém para mapear...

 

— Tenho que terminar com as cadeiras — disse Zack de repente, virando-se e afastando-se. — Vá ver o que está passando na TV.

 

— M-M-Mas p-p-pai...

 

— Vá, Bill — disse Zack, e Bill conseguiu sentir a frieza de novo. Aquela frieza tornava o jantar uma espécie de tortura enquanto o pai folheava periódicos sobre eletricidade (ele esperava ser promovido no ano seguinte), enquanto a mãe lia um dos infindáveis mistérios britânicos de que gostava: Marsh, Sayers, Innes, Allingham. Comer naquela frieza roubava o gosto da comida; era como comer jantares congelados que nunca foram colocados no forno. Às vezes, ele ia para o quarto depois e se deitava na cama, com a mão sobre o estômago dolorido, e pensava: Ele soca postes de montão e insiste que vê assombração. Ele pensava cada vez mais nisso depois que Georgie morreu, embora a mãe tivesse ensinado a frase dois anos antes. Ela ganhou um tom sobrenatural em sua mente: o dia em que ele conseguisse andar até a mãe e simplesmente falar a frase sem hesitar nem gaguejar, olhando bem nos olhos dela, a frieza se dissiparia; os olhos dela se iluminariam e ela o abraçaria e diria: “Que maravilha, Billy! Que menino bom! Que menino bom!”

 

Ele não contou isso para ninguém, é claro. Não falaria nem que a vaca tossisse; nada o levaria a revelar essa fantasia secreta, que morava no centro do coração dele. Se ele conseguisse dizer a frase que ela ensinou casualmente em uma manhã de sábado, quando ele e Georgie estavam vendo Guy Madison e Andy Devine em The Adventures of Wild Bill Hickok, o ato funcionaria como o beijo que despertou a Bela Adormecida dos sonhos frios para o mundo quente do amor de contos de fadas do príncipe.

 

Ele soca postes de montão e insiste que vê assombração.

 

Ele também não contou isso para os amigos naquele dia 3 de julho, mas contou o que o pai tinha dito sobre os sistemas de esgoto e escoamento de Derry. Ele era um garoto a quem a criatividade ocorria fácil e naturalmente (às vezes com mais facilidade do que dizer a verdade), e a cena que ele descreveu era bem diferente da cena na qual a conversa realmente aconteceu: ele e o pai estavam vendo TV juntos, disse ele, tomando canecas de café.

 

— Seu pai deixa você tomar café? — perguntou Eddie.

 

— C-C-Claro — disse Bill.

 

— Uau — disse Eddie. — Minha mãe nunca ia me deixar tomar café. Ela diz que a cafeína é perigosa. — Ele fez uma pausa. — Mas ela bem que toma bastante.

 

— Meu pai me deixa tomar café se eu quiser — disse Beverly —, mas ele me mataria se soubesse que fumei.

 

— O que faz vocês terem tanta certeza de que está no esgoto? — perguntou Richie, olhando de Bill para Stan Uris, e depois para Bill de novo.

 

— T-T-Tudo r-remete a i-i-isso — disse Bill. — As v-vozes que B-B-Beverly ouviu s-saíram do r-r-ralo. E o s-sangue. Quando o p-p-palhaço nos p-perseguiu, os b-botões l-laranja estavam ao lado de um b-bueiro. E G-G-George...

 

— Não era um palhaço, Big Bill — disse Richie. — Já falei isso. Sei que é loucura, mas era um lobisomem. — Ele olhou para os outros na defensiva. — Juro por Deus. Eu vi.

 

Bill disse:

 

— Era um lobisomem pra v-v-você.

 

— Hã?

 

Bill disse:

 

— V-Você não p-percebe? Era um l-l-lobisomem pra v-você porque v-você viu aquele filme i-idiota no A-A-A-Aladdin.

 

— Não entendi.

 

— Acho que entendi — disse Ben baixinho.

 

— Fui pra b-b-biblioteca e p-pesquisei — disse Bill. — Acho que é um gl-gl... — Ele fez uma pausa, fazendo um esforço com a garganta, e falou de repente: — um glamour.

 

— Clamor? — perguntou Eddie com dúvida.

 

— Gl-Gl-Glamour — disse Bill, e explicou. Ele falou sobre um verbete na enciclopédia que explicava o assunto e sobre um capítulo que ele leu em um livro chamado Night’s Truth. Glamour, disse ele, era o nome gaélico da criatura que estava assombrando Derry; outras raças e outras culturas em épocas diferentes usaram palavras diferentes para se referir a ela, mas todas significavam a mesma coisa. Os índios das planícies chamavam de manitu, que às vezes tomava a forma de um leão da montanha, de um alce ou de uma águia. Esses mesmos índios acreditavam que o espírito de um manitu às vezes podia se apossar deles, e nessas horas eles conseguiam fazer as nuvens assumirem os formatos dos animais em homenagem aos quais suas casas tinham sido batizadas. Os himalaios chamavam de tallus ou taelus, que significava um ser mágico do mal que conseguia ler sua mente e assumir a forma daquilo que mais provocava medo em você. Na Europa Central, ele era chamado de eylak, irmão do vurderlak, ou vampiro. Na França era le loup-garou, ou mutante de forma, um conceito que foi traduzido cruamente como lobisomem, mas, Bill contou a eles, le loup-garou (que ele pronunciou como le lup-garrú) podia ser qualquer coisa, qualquer uma que quisesse: lobo, águia, carneiro, até um inseto.

 

— Algum desses artigos ensinou como vencer um glamour? — perguntou Beverly.

 

Bill assentiu, mas não pareceu esperançoso.

 

— Os himalaios tinham um r-ritual para s-se l-l-livrarem d-dele, mas é bem n-n-nojento.

 

Eles olharam para ele, sem querer saber, mas precisando.

 

— E-E-Era ch-chamado de R-R-Ritual de Chüh-Chüd — disse Bill, e explicou o que era isso. Se você fosse um homem sagrado himalaio, você procurava o taelus. O taelus mostrava a língua. Você mostra a sua língua. Você e ele enrolavam línguas, e os dois mordiam até o fim, de forma que ficavam meio que grampeados juntos, cara a cara.

 

— Ah, acho que vou vomitar — disse Beverly, rolando na terra. Ben deu um tapinha hesitante nas costas dela, depois olhou ao redor para ver se tinha sido observado. Não tinha; os outros estavam olhando para Bill, hipnotizados.

 

— E depois? — perguntou Eddie.

 

— B-B-Bem — disse Bill —, pode parecer l-l-loucura, m-mas o livro d-dizia que d-depois os dois começavam a contar p-piadas e fazer ch-charadas.

 

— O quê? — perguntou Stan.

 

Bill assentiu, com a expressão de um correspondente que quer que você saiba, sem ter que dizer abertamente, que ele não faz a notícia, só relata. — I-Isso. P-Primeiro, o monstro t-taelas contaria u-u-uma, v-v-você precisaria c-c-contar u-uma, e s-seguia a-a-assim, os dois se r-revezando...

 

Beverly se sentou com os joelhos contra o peito, as mãos unidas na frente das canelas.

 

— Não entendo como as pessoas conseguiam falar com as línguas, sabe, presas uma na outra.

 

Richie esticou imediatamente a língua, segurou com os dedos e falou:

 

— Meu pai trabalha num cocô-nsultório!

 

Isso fez todos gargalharem por um tempo, apesar de ser mesmo uma piada infantil.

 

— T-Talvez f-fosse por t-telepatia — disse Bill. — E-Enfim, s-se o hu-hu-humano risse pr-pr-primeiro a-apesar da d-d-d-d...

 

— Dor? — perguntou Stan.

 

Bill assentiu.

 

— ... então o taelus p-podia m-m-matar e-ele e c-c-comer ele. A alma, eu acho. M-Mas s-se o ho-homem c-c-conseguisse fazer o t-taelus r-rir pr-pr-primeiro, ele tinha que sumir por c-c-cem a-anos.

 

— O livro dizia de onde vinha uma coisa assim? — perguntou Ben.

 

Bill balançou a cabeça.

 

— Você acredita nisso? — perguntou Stan, parecendo querer debochar, mas sem moral nem força mental para isso.

 

Bill deu de ombros e disse:

 

— Q-Quase a-acredito. — Ele parecia prestes a dizer mais, mas balançou a cabeça e ficou em silêncio.

 

— Isso explica muita coisa — disse Eddie lentamente. — O palhaço, o leproso, o lobisomem... — Ele olhou para Stan. — Os garotos mortos também, eu acho.

 

— Isso parece um trabalho para Richard Tozier — disse Richie com Voz do Narrador de Cinejornal. — O homem de mil piadas e 6 mil charadas.

 

— Se mandássemos você pra fazer isso, todos nós morreríamos — disse Ben. — Lentamente. Com muita dor. — Ao ouvir isso, todos riram de novo.

 

— Então o que devemos fazer sobre o assunto? — perguntou Stan, e mais uma vez Bill só conseguiu balançar a cabeça... e sentir que quase sabia. Stan ficou de pé. — Vamos pra outro lugar — disse ele. — Estou ficando com o bumbum cansado.

 

— Gosto daqui — disse Beverly. — Tem sombra e está gostoso. — Ela olhou para Stan. — Você deve querer fazer alguma coisa infantil como ir até o lixão e quebrar garrafas com pedras.

 

— Eu gosto de quebrar garrafas com pedras — disse Richie, ficando de pé ao lado de Stan. — É o delinquente juvenil que há em mim, gata. — Ele levantou a gola e começou a andar como James Dean em Juventude transviada. — Me magoaram — disse ele, com expressão mal-humorada e coçando o peito. — Muito, sabe? Meus pais. A escola. A So-CI-edade. É a pressão, gata. É...

 

— É merda — disse Beverly, e suspirou.

 

— Tenho umas bombinhas — disse Stan, e eles esqueceram os glamoures, os manitus e a imitação ruim de Richie de James Dean quando Stan tirou um pacote de bombinhas Black Cat do bolso da calça. Até Bill ficou impressionado.

 

— M-Meu Deus, S-S-Stan, o-onde você a-a-arrumou i-isso?

 

— Com um garoto gordo que vai na mesma sinagoga que eu às vezes — disse Stan. — Troquei um bando de revistinhas do Super-homem e da Luluzinha pelas bombinhas.

 

— Vamos acender! — gritou Richie, quase apoplético de alegria. — Vamos acender, Stanny, não vou dizer mais que você e seu pai mataram Cristo, eu prometo, o que você me diz? Vou dizer que seu nariz é pequeno, Stanny! Vou dizer que você não fez circuncisão!

 

Ao ouvir isso, Beverly começou a gargalhar e realmente pareceu à beira da apoplexia antes de cobrir o rosto com as mãos. Bill começou a rir, Eddie começou a rir, e depois de um tempo, até Stan começou a rir. O som se espalhou pela largura rasa do Kenduskeag naquele dia antes do Quatro de Julho, um som de verão, tão intenso quanto os raios de sol refletidos na água, e nenhum deles viu os olhos laranja observando-os por entre os bambus e arbustos estéreis de amoras à esquerda. Essa área de arbustos ocupava uma margem inteira por quase 10 metros, e no centro ficava um dos buracos de Morlocks de Ben. Foi desse cano erguido de concreto que os olhos, cada um com mais de 60 centímetros de largura, observavam.

 

O motivo de Mike ter entrado em conflito com Henry Bowers e seu grupo não muito feliz no mesmo dia foi porque o seguinte era o glorioso Quatro de Julho. A escola batista tinha uma banda na qual Mike tocava trombone. No Quatro de Julho, a banda marchava na parada anual, tocando “The Battle Hymn of the Republic”, “Onward Christian Soldiers” e “America the Beautiful”. Era uma ocasião pela qual Mike esperava com ansiedade havia mais de um mês. Ele foi andando para o ensaio final porque a corrente da bicicleta tinha arrebentado. O ensaio estava marcado só para as 14h30, mas ele saiu de casa às 13h porque queria polir o trombone, que ficava guardado na sala de música da escola, até estar brilhando. Apesar de não tocar trombone muito melhor do que Richie fazia vozes, ele gostava do instrumento, e sempre que se sentia triste, meia hora soprando marchinhas de Sousa, hinos religiosos ou melodias patrióticas o deixava alegre de novo. Havia uma lata de cera de polimento de metal Saddler em um dos bolsos da camisa cáqui e dois ou três panos limpos pendurados no bolso da calça jeans. O pensamento em Henry Bowers era a coisa mais distante de sua mente.

 

Um olhar para trás quando ele estava se aproximando da rua Neibolt e da escola dominical o teria feito mudar de ideia rapidamente, porque Henry, Victor, Arroto, Peter Gordon e Moose Sadler estavam na rua atrás dele. Se eles tivessem saído da casa de Bowers cinco minutos depois, Mike jamais teria sido visto por causa da colina à frente. A apocalíptica guerra de pedras e tudo que veio depois poderia ter acontecido de forma diferente, ou talvez nem acontecido.

 

Mas foi Mike mesmo, anos depois, quem aventou a ideia de que talvez nenhum deles fosse completamente dono de suas ações nos eventos daquele verão; que se a sorte e o livre-arbítrio tivessem agido, então o papel deles foi pequeno. Ele mostraria uma série de coincidências suspeitas para os outros durante o almoço de reencontro, mas havia pelo menos uma da qual ele não estava ciente. O encontro no Barrens naquele dia começou quando Stan Uris pegou a caixa de bombinhas, e o Clube dos Otários seguiu para o lixão para acendê-las. E Victor, Arroto e os outros foram até a fazenda de Bowers porque Henry tinha bombinhas, cabeças de nego e bombas M-80 (alguns anos depois, a posse desse último tipo seria considerada crime). Os garotos maiores estavam planejando ir para a mina de carvão atrás do pátio de trens para explodir os tesouros de Henry.

 

Nenhum deles, nem Arroto, ia até a fazenda Bowers em circunstâncias comuns. Primeiro, por causa do pai maluco de Henry, mas também porque eles sempre terminavam ajudando Henry em suas tarefas: arrancar ervas daninhas, remover pedras eternamente, cortar lenha, buscar água, amontoar feno, colher o que estivesse maduro no momento (ervilha, pepino, tomate, batata). Esses garotos não eram exatamente alérgicos a trabalho, mas tinham o suficiente para fazer em casa sem ter que suar pelo pai pirado de Henry, que não ligava muito para em quem batia (uma vez, ele bateu com um pedaço de lenha em Victor Criss quando ele deixou cair um cesto de tomates que estava levando para a barraquinha da estrada). Levar uma surra com um pedaço de freixo era bem ruim; o que piorou a situação foi que Butch Bowers ainda cantarolou “Vou matar todos os japas! Vou matar todos os porras de japas!” enquanto batia nele.

 

Por mais burro que fosse, Arroto Huggins foi quem expressou melhor:

 

— Não me meto com gente louca — disse ele para Victor um dia, dois anos antes. Victor riu e concordou.

 

Mas o chamado sedutor de todas aquelas bombinhas foi grande demais para eles suportarem.

 

— Vou te dizer uma coisa, Henry — disse Victor quando Henry ligou para ele naquela manhã às 9h e o convidou. — Te encontro na mina de carvão à uma hora, o que você acha?

 

— Se você aparecer na mina de carvão à uma, eu não vou estar lá — respondeu Henry. — Tenho tarefas demais. Se você aparecer na mina de carvão às três, eu vou estar lá. E o primeiro M-80 vai direto pro seu orifício mais escuro, Vic.

 

Vic hesitou, mas concordou em ir até lá para ajudar nas tarefas.

 

Os outros também foram, e com os cinco juntos, todos garotos grandes, trabalhando como loucos pela fazenda Bowers, eles conseguiram terminar as tarefas no começo da tarde. Quando Henry perguntou ao pai se podia ir, o Bowers coroa simplesmente balançou a mão lânguida para o filho. Butch estava acomodado para passar a tarde na varanda de trás, com uma garrafa de leite cheia de cidra forte ao lado da cadeira de balanço, o rádio portátil Philco na cerca da varanda (mais tarde o Red Sox jogaria contra o Washington Senators, um prospecto que provocaria arrepios em um homem que não fosse maluco). Uma espada japonesa fora da bainha estava no colo de Butch, um souvenir de guerra que, dizia Butch, ele tinha tirado do corpo de um japa moribundo na ilha de Tarawa (na verdade, ele tinha trocado seis garrafas de Budweiser e três baseados pela espada em Honolulu). Ultimamente, Butch quase sempre pegava a espada quando bebia. E como todos os garotos, inclusive Henry, estavam secretamente convencidos de que mais cedo ou mais tarde ele a usaria em alguém, era melhor ficar longe quando ela aparecia no colo de Butch.

 

Os garotos tinham acabado de pisar na rua quando Henry viu Mike à frente.

 

— É o crioulo! — disse ele, com os olhos se iluminando como os de uma criancinha contemplando a chegada iminente de Papai Noel na véspera de Natal.

 

— O crioulo? — Arroto Huggins pareceu intrigado, pois raramente via a família Hanlon, mas então seus olhos se iluminaram. — Ah, sim! O crioulo! Vamos pegar ele, Henry!

 

Arroto começou a correr fazendo barulho. Os outros estavam indo atrás quando Henry segurou Arroto e o puxou de volta. Henry tinha mais experiência do que os outros em ir atrás de Mike Hanlon, e sabia que pegá-lo não era tão fácil quanto parecia. Aquele pretinho sabia escapar.

 

— Ele não tá vendo a gente. Vamos andar rápido até ele ver. Diminuir a distância.

 

Eles fizeram isso. Um observador poderia achar engraçado: os cinco pareciam estar tentando fazer aquela competição peculiar de marcha olímpica. A barriga considerável de Moose Sadler balançava para cima e para baixo dentro da camiseta da Derry High School. Suor escorria pelo rosto de Arroto, que logo ficou vermelho. Mas a distância entre eles e Mike diminuiu, 200 metros, 150 metros, 100, e até o momento o pretinho de piche não tinha olhado para trás. Eles conseguiam ouvi-lo assobiando.

 

— O que você vai fazer com ele, Henry? — perguntou Victor Criss com voz baixa. Ele parecia apenas interessado, mas na verdade estava preocupado. Ultimamente, Henry tinha começado a preocupá-lo cada vez mais. Ele não ligava de Henry querer dar uma surra no garoto Hanlon, talvez até arrancar a camisa dele ou pendurar a calça e talvez a cueca em uma árvore, mas não tinha certeza se era só isso que Henry tinha em mente. Este ano, aconteceram muitos encontros desagradáveis com as crianças da Escola Derry a quem Henry se referia como “merdinhas”. Henry estava acostumado a dominar e aterrorizar os merdinhas, mas desde março foi frustrado por eles repetidas vezes. Henry e os amigos correram atrás de um deles, o garoto quatro olhos Tozier, até dentro da Freese’s, e ele escapou de alguma maneira quando parecia certo que eles o tinham pegado. Depois, no último dia de aula, o garoto Hanscom...

 

Mas Victor não gostava de pensar nisso.

 

O que o preocupara era simplesmente o seguinte: Henry poderia ir LONGE DEMAIS. O que LONGE DEMAIS poderia ser era algo em que Victor não gostava de pensar... mas seu coração inquieto insistiu na pergunta mesmo assim.

 

— Vamos pegar ele e levar praquela mina de carvão — disse Henry. — Pensei em colocar umas bombinhas nos sapatos dele pra gente ver se ele dança.

 

— Mas não as M-80, né?

 

Se Henry pretendia fazer uma coisa assim, Victor ia dar no pé. Uma M-80 em cada sapato ia explodir os pés do crioulo, e isso era LONGE DEMAIS mesmo.

 

— Só tenho quatro M-80 — disse Henry, sem tirar os olhos das costas de Mike Hanlon. Eles tinham diminuído a distância para 75 metros agora, e ele também estava falando em voz baixa. — Você acha que eu desperdiçaria duas em uma porra de mulatinho?

 

— Não, Henry. Claro que não.

 

— Vamos colocar uma bombinha Black Cat em cada sapato — disse Henry —, depois tirar a roupa dele e jogar no Barrens. Pode ser que ele pegue urtiga quando for buscar.

 

— E vamos fazer ele rolar no carvão — disse Arroto, com os olhos distantes agora brilhando intensamente. — Né, Henry? Não é legal?

 

— Legal como um pica-pau — disse Henry de uma forma casual da qual Victor não gostou. — Vamos fazer ele rolar no carvão, que nem fiz ele rolar na lama da outra vez. E... — Henry sorriu, mostrando dentes que já estavam começando a apodrecer aos 12 anos. — E tenho uma coisa pra contar pra ele. Acho que ele não ouviu quando contei antes.

 

— O que é, Henry? — perguntou Peter. Peter Gordon estava apenas um pouco interessado e empolgado. Ele era de uma das “boas famílias” de Derry. Morava na West Broadway, e em dois anos seria enviado para uma escola preparatória em Groton, ou ao menos era o que achava naquele 3 de julho. Era mais inteligente do que Victor Criss, mas não andava com eles tempo o bastante para entender como Henry estava se deteriorando.

 

— Você vai descobrir — disse Henry. — Agora cala a boca. Estamos chegando perto.

 

Eles estavam 25 metros atrás de Mike, e Henry estava abrindo a boca para dar a ordem de atacar quando Moose Sadler soltou a primeira bombinha do dia. Moose tinha comido três pratos de feijão na noite anterior, e o peido foi quase tão alto quanto um tiro de espingarda.

 

Mike olhou para trás. Henry viu os olhos dele se arregalarem.

 

— Peguem ele! — gritou Henry.

 

Mike ficou paralisado por um momento, mas logo disparou para salvar a vida.

 

Os Otários seguiram em meio aos bambus do Barrens nesta ordem: Bill, Richie, Beverly atrás de Richie, magra e linda de calça jeans e blusa branca sem mangas, com chinelos, seguida de Ben, tentando não bufar muito alto (embora estivesse fazendo 27°C naquele dia, ele estava usando um dos moletons frouxos), Stan e Eddie na retaguarda, com a ponta da bombinha aparecendo no bolso da frente da calça.

 

Bill tinha mergulhado em uma fantasia de “safári na selva”, como costumava fazer quando estava andando por essa parte do Barrens. Os bambus eram altos e brancos e limitavam a visibilidade ao caminho que eles tinham criado ali. A terra estava preta e molhada, com pedaços encharcados que eles tinham que evitar ou pular por cima se não queriam lama dentro dos sapatos. As poças de água parada tinham cores estranhas do arco-íris. O ar fedia em parte por causa do lixão e em parte por causa da vegetação apodrecida.

 

Bill parou a uma curva do Kenduskeag e se virou para Richie.

 

— T-T-Tigre à frente, T-T-Tozier.

 

Richie assentiu e se virou para Beverly.

 

— Tigre — sussurrou ele.

 

— Tigre — disse ela para Ben.

 

— Comedor de gente? — perguntou Ben, prendendo a respiração para não ofegar.

 

— Tem sangue nele todo — disse Beverly.

 

— Tigre comedor de gente — murmurou Ben para Stan, e ele passou a notícia para Eddie, cujo rosto magro estava tomado de empolgação.

 

Eles desapareceram em meio aos bambus, deixando o caminho de terra negra no meio dele magicamente vazio. O tigre passou à frente deles, e todos quase o viram: pesado, com uns 180 quilos, os músculos se movendo com graça e poder por baixo dos pelos listrados e sedosos. Eles quase viram os olhos verdes e as manchas de sangue ao redor do focinho dos últimos guerreiros pigmeus que ele tinha comido vivos.

 

Os bambus estalaram de leve, um som ao mesmo tempo musical e sinistro, e ficaram parados novamente. Devia ter sido um sopro de brisa do verão... ou talvez a passagem de um tigre africano a caminho do lado do Barrens perto de Old Cape.

 

— Já foi — disse Bill. Ele soltou ar e voltou para o caminho. Os outros foram atrás.

 

Richie foi o único a ir armado: ele pegou uma pistola de espoleta com punho coberto de fita adesiva.

 

— Eu poderia ter mira direta para ele se você tivesse se movido, Big Bill — disse ele com tristeza. Ele empurrou os óculos para cima no nariz com a boca da arma.

 

— Tem t-t-tutsis por a-aqui — disse Bill. — N-N-Não podemos a-arriscar um tiro. V-Você q-quer que eles venham pra c-cima de nós?

 

— Ah — disse Richie, convencido.

 

Bill fez um gesto para eles o seguirem e eles voltaram para o caminho, que se estreitava no final do bambuzal. Eles saíram na margem do Kenduskeag, onde uma série de pedras permitia a travessia do rio. Ben tinha mostrado como colocá-las. Você pegava uma pedra grande e colocava na água, depois colocava uma segunda na água enquanto estava de pé na primeira, depois pegava uma terceira e colocava na água quando estava de pé na segunda, e assim por diante até atravessar o rio todo (que aqui, e nessa época do ano, tinha menos de 30 centímetros de profundidade e vários bancos de areia) com os pés ainda secos. O truque era tão simples que chegava a ser infantil, mas nenhum deles tinha percebido até Ben explicar. Ele era bom em coisas assim, mas quando demonstrava, nunca fazia você se sentir burro.

 

Eles seguiram morro abaixo em fila e começaram a andar pelas pedras que tinham posicionado.

 

— Bill! — disse Beverly com urgência na voz.

 

Ele parou na hora, sem olhar para trás, com os braços esticados. A água corria e chiava ao redor dele.

 

— O quê?

 

— Tem piranhas aí! Vi elas comerem uma vaca inteira dois dias atrás. Um minuto depois que ela caiu na água, não tinha mais nada além de ossos. Não caia!

 

— Certo — disse Bill. — Tome cuidado, pessoal.

 

Eles seguiram se equilibrando pelas pedras. Um trem de carga passou pelo lado dos trilhos quando Eddie Kaspbrak chegou perto da metade, e o toque repentino da buzina o fez quase perder o equilíbrio. Ele olhou para a água reluzente e, por um momento, entre os raios de sol que dispararam para os seus olhos, ele realmente viu as piranhas. Elas não eram parte do faz de conta que acompanhava a fantasia do safári na selva de Bill; ele tinha certeza disso. Os peixes que ele viu pareciam peixes dourados gigantes com os maxilares enormes e horríveis de peixes-gato ou badejos. Dentes afiados se projetavam por entre os lábios grossos e, como peixes dourados, eles eram laranja. Tão laranja quanto os pompons fofos que às vezes se viam em roupas de palhaço de circo.

 

Elas se amontoavam na água rasa, batendo os dentes.

 

Eddie balançou os braços para se equilibrar. Vou cair, pensou ele. Vou cair, e elas vão me comer vivo...

 

Mas Stanley Uris segurou o pulso dele com firmeza e o fez recuperar o equilíbrio.

 

— Foi por pouco — disse Stan. — Se você caísse, sua mãe ia te matar.

 

Pela primeira vez, a mãe era a coisa mais distante dos pensamentos de Eddie. Os outros tinham chegado ao outro lado e estavam contando vagões no trem de carga. Eddie olhou desesperado para Stan, depois voltou a olhar para a água. Ele viu um saco de batata frita passar flutuando, mas só isso. Voltou a olhar para Stan.

 

— Stan, eu vi...

 

— O quê?

 

Eddie balançou a cabeça.

 

— Nada, eu acho — disse ele. — Só estou um pouco

 

(mas elas estavam ali, estavam sim, e iam me comer vivo)

 

— ... assustado. Foi o tigre, eu acho. Vamos em frente.

 

O lado oeste do Kenduskeag, o lado de Old Cape, era um amontoado de lama durante a época de chuvas e do degelo de primavera, mas não chovia pesado em Derry havia duas semanas ou mais, e a margem tinha secado e rachado, e vários dos cilindros de cimento se projetavam da terra seca, fazendo sombras estranhas. A uns 20 metros, um cano de cimento surgia acima do Kenduskeag e cuspia no rio um jorro fino de água marrom com aparência nojenta.

 

Ben falou baixinho:

 

— É apavorante aqui.

 

Os outros assentiram.

 

Bill os levou margem acima até a vegetação pesada, onde insetos zumbiam e chiavam. De vez em quando, havia um bater pesado de asas quando um pássaro levantava voo. Uma vez, um esquilo cruzou o caminho deles e, uns cinco minutos depois, quando eles se aproximaram de uma crista baixa na terra, um rato grande com um pedaço de celofane preso nos bigodes passou na frente de Bill, correndo em uma busca secreta em sua selva microcósmica.

 

O cheiro do lixão estava agora claro e intenso; uma coluna preta de fumaça subia no céu. O chão, apesar de ainda coberto de vegetação pesada exceto pelo caminho estreito por onde eles seguiam, começou a exibir sinais de lixo. Bill chamou isso de “caspa de lixão”, e Richie adorou. Ele riu até quase chorar.

 

— Você devia anotar, Big Bill — disse ele. — É muito bom.

 

Papéis presos em galhos balançavam e voavam como bandeiras vagabundas; aqui, havia um brilho prateado de sol de verão refletido em um amontoado de latas no fundo de um buraco verde e coberto de plantas; ali, o reflexo quente de raios de sol em uma garrafa de cerveja quebrada. Beverly viu uma boneca com o corpo de plástico tão cor-de-rosa que parecia quase fervido. Ela a pegou, depois largou com um gritinho ao ver os besouros cinza-esbranquiçados correndo por baixo da saia mofada pelas pernas podres. Ela esfregou os dedos na calça jeans.

 

Eles subiram até o alto do morrinho e olharam para o lixão.

 

— Ah, merda — disse Bill, e enfiou as mãos nos bolsos quando os outros se reuniram ao redor dele.

 

Estavam queimando o lado norte hoje, mas ali, do lado deles, o zelador do lixão (ele era, na verdade, Armando Fazio, Mandy para os amigos, e o irmão solteiro do zelador da Escola Derry) estava mexendo na escavadeira D-9 da época da Segunda Guerra Mundial que usava para formar montes para queimar. Ele estava sem camisa, e o grande rádio portátil sob o guarda-sol de lona no assento da escavadeira estava transmitindo as festividades pré-jogo de Red Sox contra Senators.

 

— Não podemos ir pra lá — concordou Ben. Mandy Fazio não era mau sujeito, mas quando via crianças no lixão, ele as espantava imediatamente, por causa dos ratos, por causa do veneno que espalhava constantemente para controlar a população de ratos, porque eles podiam se machucar, cair, se queimar... mas principalmente porque ele acreditava que um lixão não era lugar de criança.

 

— Vocês não são bonzinhos? — gritava ele para as crianças que via, que tinham sido atraídas para o lixão com armas de espoleta para atirar em garrafas (ou em ratos, ou em gaivotas) ou pela fascinação exótica da “busca no lixão”: você podia encontrar um brinquedo ainda funcionando, uma cadeira que podia ser consertada para uma sede de clube ou uma TV velha com o tubo de imagens ainda intacto. Se você jogasse uma pedra em um desses, havia uma explosão muito satisfatória. — Vocês não são crianças boazinhas? — gritava Mandy (ele gritava não por estar zangado, mas por ser surdo e usar aparelho auditivo). — Seus pais não ensinaram vocês a serem bonzinhos? Garotos e garotas bonzinhos não brincam no lixão! Vão pro parque! Vão pra biblioteca! Vão pra Casa Comunitária jogar totó! Sejam bonzinhos!

 

— Não — disse Richie. — Parece que o lixão está descartado.

 

Eles todos se sentaram por alguns momentos para observar Mandy usando a escavadeira, torcendo para ele parar e ir embora, mas sem acreditar que ele faria isso; a presença do rádio sugeria que Mandy pretendia passar a tarde toda ali. Era o suficiente para deixar até a melhor pessoa irritada, pensou Bill. Não havia lugar melhor do que o lixão para ir estourar bombinhas. Dava para colocar as bombinhas debaixo de latas e vê-la voar no ar quando a bombinha explodia, ou dava para acender o pavio e jogar dentro de garrafas, e sair correndo como louco. As garrafas nem sempre quebravam, mas era o que costumava acontecer.

 

— Queria ter umas M-80 — suspirou Richie, sem saber que em pouco tempo uma seria jogada na cabeça dele.

 

— Minha mãe diz que as pessoas devem ficar felizes com o que têm — disse Eddie tão seriamente que todos riram.

 

Quando as gargalhadas sumiram, todos olharam para Bill de novo.

 

Bill pensou e disse:

 

— C-Conheço um l-lugar. Tem uma c-c-cascalheira velha no final do B-Barrens, perto do p-p-pátio de trens...

 

— É! — disse Stan, ficando de pé. — Conheço esse lugar! Você é um gênio, Bill!

 

— As bombinhas vão fazer muito eco lá — concordou Beverly.

 

— Bem, então vamos — disse Richie.

 

Os seis, com um a menos do que o número mágico, andaram pelo alto do morro que cercava o lixão. Mandy Fazio ergueu o olhar uma vez e os viu contra o céu azul como índios em um grupo de busca. Ele pensou em gritar, pois o Barrens não era lugar para criança, mas voltou para o trabalho. Pelo menos, eles não estavam em seu lixão.

 

Mike Hanlon passou correndo pela escola batista sem fazer pausa e seguiu direto pela rua Neibolt na direção do pátio de trens de Derry. Havia um zelador na NCS, mas o sr. Gendron era muito velho e ainda mais surdo do que Mandy Fazio. Além do mais, ele gostava de passar a maior parte dos dias de verão dormindo no porão ao lado do boiler desligado, esticado em uma espreguiçadeira velha com o Derry News no colo. Mike ainda estaria batendo na porta e gritando para que o velho o deixasse entrar quando Henry Bowers chegasse por trás e arrancasse a cabeça dele.

 

Então, Mike correu.

 

Mas não cegamente. Ele estava tentando se acalmar, tentando controlar a respiração, sem dar tudo de si ainda. Henry, Arroto e Moose Sadler não eram problema; mesmo descansados, eles corriam como búfalos feridos. Mas Victor Criss e Peter Gordon eram bem mais rápidos. Quando Mike passou pela casa em que Bill e Richie tinham visto o palhaço (ou o lobisomem), ele lançou um olhar para trás e ficou alarmado ao ver que Peter Gordon estava bem perto. Peter estava sorrindo com alegria, um sorriso de corrida de obstáculos, um sorriso de jogo de polo, um sorriso de bom show, e Mike pensou: Eu queria saber se ele sorriria assim se soubesse o que vai acontecer se me pegarem... Será que ele acha que só vão dizer “Peguei, tá com você” e sair correndo?

 

Conforme o portão do pátio de trens com a placa PROPRIEDADE PRIVADA NÃO ENTRE INVASORES SERÃO PROCESSADOS se aproximou, Mike foi obrigado a ir até seu limite. Não sentiu dor, pois sua respiração estava rápida mas controlada, porém ele sabia que tudo ia começar a doer se ele tivesse que manter esse ritmo por muito tempo.

 

O portão estava entreaberto. Ele lançou um segundo olhar para trás e viu que tinha se afastado de Peter de novo. Victor estava a talvez dez passos de Peter, e os outros a uns 40 ou 50 metros. Mesmo com aquele olhar rápido, Mike conseguiu ver a raiva negra no rosto de Henry.

 

Ele deslizou pela abertura, se virou e fechou o portão. Ouviu um clique do trinco. Um momento depois, Peter Gordon se chocou com a cerca, e um momento depois disso, Victor Criss apareceu ao lado dele. O sorriso de Peter tinha sumido. Um olhar ressentido e traído surgiu no lugar. Ele esticou a mão para pegar o trinco, mas não havia trinco: ele ficava por dentro.

 

Incrivelmente, ele disse:

 

— Anda, garoto, abre o portão. Não é justo.

 

— Qual é sua ideia de justo? — perguntou Mike, ofegante. — Cinco contra um?

 

— Seja justo — repetiu Peter, como se não tivesse ouvido Mike falar.

 

Mike olhou para Victor, viu a expressão perturbada no rosto dele. Ele começou a falar, mas foi nessa hora que os outros chegaram ao portão.

 

— Abre, crioulo! — gritou Henry. Ele começou a sacudir a cerca de arame com tanta ferocidade que Peter olhou para ele assustado. — Abre! Abre agora!

 

— Não vou abrir — disse Mike baixinho.

 

— Abre! — gritou Arroto. — Abre, seu neguinho de merda!

 

Mike recuou do portão com o coração disparado no peito. Ele não conseguia se lembrar de outra ocasião em que sentiu tanto medo, tanta chateação. Eles se alinharam em frente ao portão, gritando com ele, xingando-o de nomes para negro que ele nem sabia que existiam: caça-noturno, Ubangui, espada, amora, chimpanzé e outros. Ele nem percebeu direito que Henry estava tirando alguma coisa do bolso, que tinha acendido um fósforo com a unha, e então uma coisa redonda e vermelha voou sobre a cerca, e ele se encolheu instintivamente quando o cabeção explodiu à esquerda dele, fazendo subir poeira.

 

O estrondo os silenciou por um momento. Mike ficou olhando sem acreditar pela cerca, e eles olharam em resposta. Peter Gordon parecia chocado, e até Arroto parecia perplexo.

 

Agora estão com medo dele, pensou Mike de repente, e uma nova voz falou dentro dele, talvez pela primeira vez, uma voz que era perturbadoramente adulta. Eles estão com medo, mas isso não vai fazer com que parem. Você tem que fugir, Mikey, senão alguma coisa vai acontecer. Nem todos eles vão querer que aconteça, talvez. Victor, não, e talvez não Peter Gordon. Mas vai acontecer mesmo assim, porque Henry vai fazer acontecer. Então, vá embora. Vá logo pra longe.

 

Ele recuou mais dois ou três passos, e então Henry Bowers disse:

 

— Fui eu que matei seu cachorro, crioulo.

 

Mike ficou paralisado, sentindo como se tivesse levado um golpe de bola de boliche na barriga. Ele olhou nos olhos de Henry Bowers e entendeu que ele estava contando a verdade simples: ele tinha matado Mr. Chips.

 

Aquele momento de compreensão pareceu quase eterno para Mike. Ao olhar para os olhos loucos e envoltos em suor e para o rosto escuro de ódio, ele teve a impressão de que entendeu muitas coisas pela primeira vez, e o fato de que Henry era muito mais maluco do que Mike sonhava era apenas uma delas. Ele percebeu acima de tudo que o mundo não era gentil, e foi isso mais do que a novidade em si que despertou o grito nele:

 

— Seu caipira filho da mãe de merda!

 

Henry deu um grito de raiva e atacou a cerca, subindo até o alto com uma força bruta apavorante. Mike fez uma pausa momentânea, esperando para ver se a voz adulta que falou dentro dele era real, e sim, era real: depois de uma pequena hesitação, os outros também começaram a escalar.

 

Mike se virou e saiu correndo pelo pátio de trens, com a sombra atrás. O trem de carga que os Otários tinham visto atravessando o Barrens já tinha ido embora, e não havia nenhum som além da respiração de Mike e o estalar musical da cerca conforme Henry e os outros subiam.

 

Mike correu por cima de três trilhos, com os tênis levantando cinzas quando passou. Ele tropeçou no segundo trilho e sentiu uma dor vibrar no tornozelo. Mas levantou-se e continuou a correr. Ouviu um baque quando Henry pulou do alto da cerca atrás.

 

— Estou indo te pegar, crioulo! — gritou Henry.

 

O lado racional de Mike concluiu que o Barrens era sua única chance agora. Se ele conseguisse descer até lá, poderia se esconder na vegetação, em meio aos bambus... ou, se as coisas ficassem realmente desesperadas, ele poderia entrar em um daqueles canos e esperar.

 

Ele talvez pudesse fazer essas coisas... mas havia uma fagulha quente de fúria no peito dele que não tinha nada a ver com seu lado racional. Ele conseguia entender Henry correndo atrás dele quando tinha oportunidade, mas Mr. Chips? Matar Mr. Chips? Meu CACHORRO não era crioulo, seu merda, pensou Mike enquanto corria, e a raiva perplexa cresceu.

 

Agora, ele ouviu outra voz, a do pai. Não quero que você chegue ao ponto de viver para fugir dele... e, no fim das contas, você vai ter que tomar cuidado com a posição que assume. Vai ter que se perguntar se Henry Bowers vale o trabalho...

 

Mike estava correndo em linha reta pelo pátio de trens, em direção às cabanas de depósito. Atrás delas, havia outra cerca de arame que separava o pátio de trens do Barrens. Ele estava planejando subir aquela cerca e pular para o outro lado. Mas acabou fazendo uma curva para a direita, para a cascalheira.

 

A cascalheira tinha sido usada como mina de carvão até 1935, mais ou menos, e como posto de abastecimento para os trens que passavam pelo pátio de Derry. Mas depois vieram os trens a diesel, e depois os elétricos. Por vários anos após o fim do carvão (os restos tendo sido roubados por pessoas com fornalhas a carvão), um empreiteiro local tirou cascalho dali, mas faliu em 1955 e, desde então, o local ficou deserto. Um ramal de trem ainda subia até a cascalheira e voltava para o pátio, mas os trilhos estavam enferrujados e havia mato crescendo ali. O mesmo mato crescia na própria cascalheira, brigando por espaço com solidagos e girassóis. Em meio à vegetação, havia muita escória de carvão, o que as pessoas costumavam chamar no passado de “escumalho”.

 

Quando Mike estava correndo na direção daquele lugar, ele tirou a camisa. Chegou à extremidade da cascalheira e olhou para trás. Henry estava atravessando os trilhos, com os amigos ao redor. Estava tudo bem, talvez.

 

Movendo-se o mais rápido que conseguia, usando a camisa como trouxa, Mike pegou alguns punhados de escumalhos duros. Depois, correu na direção da cerca, balançando a camisa pelos braços. Em vez de subir a cerca quando chegou nela, ele se virou de forma a ficar de costas para ela. Derrubou o carvão da camisa, se abaixou e pegou dois pedaços.

 

Henry não viu o carvão; ele só via que o negro estava encurralado na cerca. Ele saiu correndo e gritando:

 

— Isso é pelo meu cachorro, seu filho da mãe! — gritou Mike, sem perceber que tinha começado a chorar. Ele jogou um dos pedaços de carvão, que voou em linha reta. Atingiu a testa de Henry com um estalo alto e ricocheteou no ar. Henry caiu de joelhos. Colocou a mão na cabeça. Sangue escorreu imediatamente pelos dedos dele, como a surpresa de um mágico.

 

Os outros pararam de repente, com os rostos exibindo expressões idênticas de descrença. Henry deu um grito alto de dor e ficou de pé, ainda com a mão na cabeça. Mike jogou outro pedaço de carvão. Henry se abaixou. Ele começou a andar na direção de Mike, e quando Mike jogou um terceiro pedaço de carvão, Henry tirou uma das mãos da testa cortada e empurrou o carvão casualmente para o lado. Ele estava sorrindo.

 

— Ah, você vai ter uma baita surpresa — disse ele. — Uma baita... AH MEU DEUS! — Henry tentou dizer mais, mas só sons inarticulados saíram de sua boca.

 

Mike tinha jogado outro pedaço de carvão, que atingiu Henry bem no pescoço. Henry caiu de joelhos de novo. Peter Gordon abriu a boca. A testa de Moose Sadler estava franzida, como se ele estivesse tentando entender um problema difícil de matemática.

 

— O que vocês estão esperando? — Henry conseguiu dizer. Sangue escorria entre seus dedos. A voz dele soou enferrujada e distante. — Peguem ele! Peguem o mariquinhas!

 

Mike não esperou para ver se eles iam obedecer ou não. Ele largou a camisa e pulou na cerca. Começou a se erguer até o alto, mas sentiu mãos ásperas segurarem seu pé. Olhou para baixo e viu o rosto contorcido de Henry Bowers, manchado de sangue e carvão. Mike puxou o pé. O tênis saiu na mão de Henry. Ele empurrou o pé descalço no rosto de Henry e ouviu alguma coisa estalar. Henry gritou de novo e cambaleou para trás, agora segurando o nariz que sangrava.

 

Outra mão, de Arroto Huggins, tocou brevemente na barra da calça jeans de Mike, mas ele conseguiu se soltar. Ele passou uma das pernas pelo alto da cerca, mas então alguma coisa atingiu a lateral de seu rosto com muita força. Uma coisa quente escorreu pela bochecha dele. Outra coisa atingiu seu quadril, seu antebraço, sua coxa. Eles estavam jogando a própria munição dele nele.

 

Ele ficou pendurado pelas mãos, se soltou e rolou duas vezes. O chão áspero era inclinado ali, e talvez isso tenha salvado a visão de Mike ou até sua vida; Henry tinha se aproximado da cerca de novo e agora jogou uma das quatro bombas M-80 por cima da cerca. Ela estourou com um som intenso que ecoou e destruiu um pedaço de gramado.

 

Mike, com os ouvidos zumbindo, deu uma cambalhota e ficou de pé. Agora ele estava em mato alto, na beirada do Barrens. Ele passou a mão pela bochecha direita, e ela ficou manchada de sangue. O sangue não o preocupava muito; ele não esperava sair daquilo ileso.

 

Henry jogou uma cabeça de nego, mas Mike viu e se afastou facilmente.

 

— Vamos pegar ele! — gritou Henry, e começou a subir a cerca.

 

— Nossa, Henry, não sei... — Aquilo já tinha ido longe demais para Peter Gordon, que nunca tinha visto uma situação sair de controle tão repentinamente. As coisas não deviam descambar para o sangue, ao menos não para o seu grupo, quando você tinha a maioria claramente a seu favor.

 

— É melhor você saber — disse Henry, olhando para Peter depois de escalar metade da cerca. Ele ficou pendurado ali como uma aranha inchada e venenosa com forma humana. Seus olhos malignos estavam voltados para Peter, com sangue em torno dos dois. O chute de Mike tinha quebrado o nariz dele, embora Henry não fosse saber disso por um tempo. — É melhor você saber, senão vou atrás de você, seu palhaço de merda.

 

Os outros começaram a subir a cerca, Peter e Victor com certa relutância, Arroto e Moose tão ansiosos e vagos quanto antes.

 

Mike não esperou para ver mais. Ele se virou e correu para a vegetação. Henry gritou:

 

— Vou te encontrar, crioulo! Vou te encontrar!

 

Os Otários tinham chegado à extremidade da cascalheira, que agora era pouco mais do que uma grande mancha cheia de mato na terra, três anos depois que o último carregamento de cascalho foi retirado. Eles estavam reunidos ao redor de Stan, olhando com admiração para a caixinha de Black Cats, quando a primeira explosão soou. Eddie deu um pulo, pois ainda estava assustado pelas piranhas que pensou ter visto (ele não sabia direito como era uma piranha de verdade, mas tinha certeza de que não parecia um peixe dourado gigante com dentes).

 

— Calma aí, Eddie-san — disse Richie, fazendo a Voz de Operário Chinês. — É só outlos galotos acendendo bombinhas.

 

— Essa é p-pior que j-jiló, Ri-Ri-Richie — comentou Bill. Os outros riram.

 

— Estou tentando, Big Bill — disse Richie. — Sinto que, se ficar bom o bastante, um dia vou conquistar seu amor. — Ele fez gestos de beijos no ar. Bill mostrou o dedo do meio para ele. Ben e Eddie estavam lado a lado, sorrindo.

 

— Ah, sou tão jovem e você é tão velha — cantou Stan Uris de repente, fazendo uma imitação assustadoramente precisa de Paul Anka —, foi o que me disseram, querida...

 

— Ele sabi cantá! — gritou Richie com a voz de Garoto Negro. — Minha nossa, esse minino sabi cantá! — E então, a Voz do Narrador de Cinejornal: — Quero que você assine aqui, garoto, na linha pontilhada. — Richie passou um braço pelos ombros de Stan e deu um sorriso imenso. — Vamos deixar seu cabelo crescer, garoto. Vamos comprar uma gui-tarra. Vamos...

 

Bill deu dois tapas no braço de Richie, rápidos e leves. Estavam todos empolgados com a ideia de acender bombinhas.

 

— Abre aí, Stan — disse Beverly. — Eu trouxe fósforos.

 

Eles se reuniram de novo quando Stan abriu cuidadosamente a caixa de bombinhas. Havia exóticas letras chinesas no rótulo preto e um aviso sério em inglês que fez Richie rir de novo. “Não fique segurando depois que acender o pavio”, dizia o aviso.

 

— Que bom que avisaram — disse Richie. — Eu sempre segurava depois de acender. Pensei que fosse assim que a gente arrancava as peles das unhas.

 

Trabalhando lentamente, quase com reverência, Stan tirou o celofane vermelho e colocou os tubos de papelão azuis, vermelhos e verdes na palma da mão. Os pavios estavam unidos e enrolados.

 

— Vou desenrolar os... — Stan começou a dizer, mas houve uma explosão bem mais alta. O eco se espalhou lentamente pelo Barrens. Uma revoada de gaivotas subiu do lado leste do lixão, berrando e gritando. Todos pularam nessa hora. Stan largou as bombinhas e precisou recolhê-las.

 

— Isso foi dinamite? — perguntou Beverly com nervosismo. Ela estava olhando para Bill, com a cabeça erguida e os olhos arregalados. Ela achou que nunca o tinha visto tão bonito, mas havia alguma coisa alerta demais, tensa demais na posição da cabeça dele. Ele parecia um cervo sentindo cheiro de fogo no ar.

 

— Acho que foi uma M-80 — disse Ben baixinho. — No Quatro de Julho passado, eu estava no parque e havia um bando de garotos do ensino médio com algumas. Eles colocaram uma em uma lata de lixo de metal. Fez um barulho assim.

 

— Não fez um buraco na lata, Monte de Feno? — perguntou Richie.

 

— Não, mas ela ficou deformada de um lado. Parecia que havia um carinha dentro empurrando. Eles saíram correndo.

 

— A grande foi mais perto — disse Eddie. Ele também olhou para Bill.

 

— Vocês querem acender essas bombinhas ou não? — perguntou Stan. Ele tinha soltado umas dez bombinhas e colocado o resto com cuidado dentro do papel encerado para mais tarde.

 

— Claro — disse Richie.

 

— G-G-Guarda e-elas.

 

Eles olharam para Bill sem entender, com um pouco de medo. Foi o tom abrupto dele mais do que as palavras.

 

— G-G-Guarda e-e-elas — repetiu Bill, com o rosto contorcido pelo esforço que ele estava fazendo para falar as palavras. Voou saliva dos lábios dele. — A-Alguma c-coisa vai a-a-acontecer.

 

Eddie lambeu os lábios, Richie empurrou os óculos com o polegar no nariz suado, e Ben chegou mais perto de Beverly sem nem pensar no que estava fazendo.

 

Stan abriu a boca para dizer alguma coisa, mas houve outra explosão, só que menor. Outra cabeça de nego.

 

— P-Pedras — disse Bill.

 

— O quê, Bill? — perguntou Stan.

 

— P-P-Pedras. Munição.

 

Bill começou a catar pedras e enfiar nos bolsos até ficarem cheios. Os outros olharam para ele como se ele tivesse ficado louco... mas então Eddie sentiu o suor na testa. De repente, soube como era um ataque de malária. Ele sentiu uma coisa assim no dia em que ele e Bill conheceram Ben (só que Eddie, como os outros, já estava começando a pensar em Ben como Monte de Feno), o dia em que Henry Bowers fez seu nariz sangrar. Mas aquilo parecia pior. A sensação era de que Hiroshima aconteceria no Barrens.

 

Ben começou a pegar pedras, depois Richie, movendo-se rapidamente, sem falar agora. Os óculos dele escorregaram e caíram no chão de cascalho. Ele os dobrou sem prestar atenção e enfiou dentro da camisa.

 

— Por que você fez isso, Richie? — perguntou Beverly. A voz dela estava fina e tensa demais.

 

— Não sei, garota — disse Richie, e continuou a pegar pedras.

 

— Beverly, talvez seja melhor você, hã, voltar pro lixão por um tempo — disse Ben. Suas mãos estavam cheias de pedras.

 

— Nada dessa merda — disse ela. — Nada dessa merda aí, Ben Hanscom. — Ela se inclinou e começou a catar pedras também.

 

Stan olhou para eles de forma pensativa enquanto eles catavam pedras como fazendeiros loucos. E então, começou a pegar pedras também, com os lábios apertados em uma linha fina e tensa.

 

Eddie sentiu um aperto familiar quando a garganta começou a se fechar.

 

Não desta vez, meleca, pensou ele de repente. Não se meus amigos precisam de mim. Como Bev disse, nada dessa merda.

 

Ele também começou a pegar pedras.

 

Henry Bowers tinha ficado grande demais em muito pouco tempo para ser rápido ou ágil em circunstâncias comuns, mas essas circunstâncias não eram comuns. Ele estava em um frenesi de dor e ira, e isso dava a ele uma genialidade física efêmera não calculada. O pensamento consciente tinha sumido; sua mente parecia um gramado queimado em fim de verão quando a noite se aproxima, todo rosa-avermelhado e cinzento. Ele disparou atrás de Mike Hanlon como um touro atrás de uma bandeira vermelha. Mike estava seguindo um caminho rudimentar na lateral da grande mina, um caminho que acabaria levando ao lixão, mas Henry estava fora de si demais para pensar em coisas como caminhos; ele correu pela vegetação e pelos arbustos em linha reta, não sentindo nem os pequenos cortes causados pelos espinhos nem os golpes de galhos no rosto e braços. A única coisa que importava era a cabeça do crioulo cheia de cabelo ruim chegando mais perto. Henry estava com uma das M-80 na mão direita e um fósforo na esquerda. Quando ele pegasse o crioulo, ia acender o fósforo, acender o pavio e enfiar aquela bomba dentro da calça dele.

 

Mike sabia que Henry estava chegando perto e que os outros vinham logo atrás. Ele tentou se forçar a ir mais rápido. Estava com muito medo agora, evitando o pânico apenas por uma grande força de vontade. Ele tinha virado o tornozelo com mais força do que pensara quando atravessava os trilhos, e agora estava mancando enquanto corria. Os estalos e estrondos do progresso de Henry atrás dele despertavam imagens desagradáveis de ser perseguido por um cachorro assassino ou um urso perigoso.

 

O caminho se abria mais à frente, e Mike caiu mais do que correu para a cascalheira. Ele rolou até o fundo, ficou de pé, e estava na metade do caminho quando percebeu que havia crianças ali, seis crianças. Estavam em linha reta e havia uma expressão engraçada nos rostos delas. Só mais tarde, quando teve oportunidade de refletir sobre seus pensamentos, ele percebeu o que havia de estranho naquelas expressões: era como se elas o estivessem esperando.

 

— Socorro — Mike conseguiu dizer enquanto mancava para perto deles. Ele falou instintivamente com o garoto alto de cabelo ruivo. — Garotos... garotos grandes...

 

Foi quando Henry surgiu na cascalheira. Ele viu os seis e parou de repente. Por um momento, seu rosto foi tomado por incerteza, e ele olhou para trás, por cima do ombro. Ele viu sua tropa, e quando Henry voltou a olhar para os Otários (Mike agora estava ao lado e um pouco para trás de Bill Denbrough, ofegando rapidamente), estava sorrindo.

 

— Conheço você, garoto — disse ele, falando com Bill. Ele olhou para Richie. — Conheço você também. Onde estão seus óculos, quatro-olhos? — E antes que Richie pudesse responder, Henry viu Ben. — Ah, filho da puta! O judeu e o gordo também estão aqui! É sua namorada, gordo?

 

Ben deu um pulinho, como se tivesse sido cutucado.

 

Naquele momento, Peter Gordon chegou ao lado de Henry. Victor ficou do outro lado de Henry; Arroto e Moose Sadler chegaram por último. Eles se posicionaram ao lado de Peter e Victor, e agora os dois grupos inimigos estavam encarando um ao outro em filas organizadas e quase formais.

 

Ofegando pesadamente enquanto falava e ainda soando muito como um touro humano, Henry disse:

 

— Tenho pendências com muitos de vocês, mas posso deixar isso de lado hoje. Quero o crioulo. Então podem sumir, seus merdinhas.

 

— Certo! — disse Arroto rapidamente.

 

— Ele matou meu cachorro! — gritou Mike, com voz aguda e falha. — Ele falou!

 

— Vem aqui agora — disse Henry — e pode ser que eu não te mate.

 

Mike tremeu, mas não se mexeu.

 

Falando baixo e claramente, Bill disse:

 

— O B-Barrens é nosso. Saiam v-vocês d-daqui.

 

Henry arregalou os olhos. Era como se ele tivesse levado um tapa inesperado.

 

— Quem vai me obrigar? — perguntou ele. — Você, perna de pau?

 

— N-N-Nós — disse Bill. — N-Não vamos mais aguentar suas merdas, B-B-Bowers. S-Sai daqui.

 

— Sua aberração gaga — disse Henry. Ele baixou a cabeça e atacou.

 

Bill estava com um punhado de pedras na mão. Todos estavam, exceto Mike e Beverly, que segurava só uma. Bill começou a jogar em Henry, sem apressar os lançamentos, mas jogando com força e com boa precisão. A primeira pedra passou direto; a segunda acertou Henry no ombro. Se ele tivesse errado a terceira, Henry poderia ter se aproximado de Bill e lutado com ele no chão, mas ele não errou. Acertou a cabeça abaixada de Henry.

 

Henry gritou de dor e surpresa, ergueu o olhar... e foi acertado mais quatro vezes: uma mensagem de amor de Richie Tozier no peito, uma de Eddie que ricocheteou na omoplata, uma de Stan Uris que acertou na canela e a única pedra de Beverly, que o acertou na barriga.

 

Ele olhou para eles sem acreditar, e de repente o ar ficou lotado de mísseis sibilantes. Henry hesitou, com aquela mesma expressão perplexa e de sofrimento no rosto.

 

— Venham, caras! — gritou ele. — Me ajudem!

 

— A-A-Ataquem eles — disse Bill em voz baixa, e sem querer ver se eles iam fazer isso ou não, saiu correndo.

 

Os outros foram junto, jogando pedras não só em Henry, mas em todos os outros. Os garotos grandes estavam tateando no chão em busca de munição, mas antes de conseguirem reunir o suficiente, iam sendo massacrados. Peter Gordon gritou quando uma pedra jogada por Ben quicou em sua bochecha e fez sangrar. Ele recuou alguns passos, fez uma pausa e jogou uma pedra hesitante ou duas... e fugiu correndo. Ele não aguentava mais; as coisas não eram feitas assim na West Broadway.

 

Henry pegou um punhado de pedras em um gesto selvagem. Felizmente para os Otários, a maior parte delas era de pedrinhas. Ele jogou uma das maiores em Beverly e fez um corte no braço dela. Ela gritou.

 

Gritando, Ben partiu para cima de Henry Bowers, que olhou ao redor a tempo de vê-lo se aproximando, mas não a tempo de desviar. Henry estava desequilibrado; Ben tinha 60 quilos, a caminho de 70. O resultado foi indiscutível. Henry não caiu, mas voou. Caiu de costas e deslizou. Ben correu na direção dele de novo e só ficou vagamente ciente de uma dor quente e crescente na orelha quando Arroto Huggins o acertou com uma pedra do tamanho de uma bola de golfe.

 

Henry estava grogue, ficando de joelhos, quando Ben chegou nele e deu um chute com força, acertando solidamente o pé calçado de tênis no quadril esquerdo de Henry. Henry rolou de costas. Seus olhos dispararam fogo para Ben.

 

— Você não pode jogar pedras em garotas! — gritou Ben. Ele não conseguia se lembrar de se sentir tão furioso na vida. — Não pode!

 

E então, ele viu uma chama na mão de Henry quando ele acendeu o fósforo de madeira. Ele o encostou no pavio da M-80, que jogou no rosto de Ben. Agindo sem pensar, Ben bateu na bomba com a palma da mão, empurrando-a como se faria com uma raquete em uma peteca de badminton. A M-80 caiu. Henry a viu se aproximando. Seus olhos se arregalaram e ele rolou para longe, gritando. A bomba explodiu uma fração de segundo depois, deixando a parte de trás da camisa de Henry preta e arrancando um pedaço do tecido.

 

Um momento depois, Ben levou um golpe de Moose Sadler e caiu de joelhos. Seus dentes bateram por cima da língua e saiu sangue. Ele olhou ao redor, confuso. Moose estava indo na direção dele, mas antes de conseguir chegar ao local onde Ben estava ajoelhado, Bill chegou por trás e começou a jogar pedras no garoto. Moose se virou, gritando.

 

— Você me acertou por trás, covarde! — gritou Moose — Seu merda desonesto!

 

Ele se preparou para atacar, mas Richie se juntou a Bill e também começou a jogar pedras em Moose. Richie não se deixou impressionar pela retórica de Moose sobre a questão do que poderia ou não constituir comportamento covarde; ele tinha visto os cinco correndo atrás de um garoto assustado e achava que isso não os colocava no mesmo nível que o Rei Arthur e os Cavaleiros da Távola Redonda. Um dos mísseis de Richie abriu a pele acima da sobrancelha esquerda de Moose. Moose berrou.

 

Eddie e Stan Uris foram se juntar a Bill e Richie. Beverly foi junto, com o braço sangrando, mas os olhos loucamente alertas. Arroto Huggins gritou quando um deles acertou o osso do cotovelo dele. Ele começou a dançar de um jeito estranho, esfregando o cotovelo. Henry ficou de pé, com a parte de trás da camisa em frangalhos, a pele embaixo quase milagrosamente sem marcas. Antes que ele pudesse se virar, Ben Hanscom jogou uma pedra na nuca dele e o fez cair de joelhos de novo.

 

Foi Victor Criss quem causou o maior dano aos Otários naquele dia, em parte porque era um bom lançador de beisebol, mas mais (paradoxalmente) por ser o menos emocionalmente envolvido. Ele não queria estar ali. As pessoas podiam se machucar muito em brigas com pedras; um garoto podia abrir o crânio, ficar com a boca cheia de dentes quebrados, podia até perder um olho. Mas, como ele estava envolvido, resolveu participar. Pretendia causar danos.

 

Aquela frieza permitiu a ele demorar 30 segundos a mais e pegar um punhado de pedras de bom tamanho. Ele jogou uma em Eddie quando os Otários rearrumavam a fila de combate irregular e acertou no queixo. Ele caiu gritando, com sangue já começando a jorrar. Ben se virou para ele, mas Eddie já estava se levantando, com o sangue grotescamente forte na pele pálida, os olhos apertados.

 

Victor jogou uma pedra em Richie, que bateu no peito dele. Richie jogou de volta, mas Vic desviou facilmente e jogou uma em Bill Denbrough. Bill virou a cabeça, mas não rápido o bastante; a pedra provocou um corte na bochecha.

 

Bill se virou para Victor. Eles trocaram olhares, e Victor viu uma coisa no olhar do garoto gago que o deixou apavorado. Absurdamente, as palavras Retiro o que fiz! tremeram atrás de seus lábios... mas esse não era o tipo de coisa que se diz para um garotinho. Não, se você não queria que seus amigos começassem a arrasar com você.

 

Bill começou a andar na direção de Victor, e Victor começou a andar na direção de Bill. No mesmo momento, como se por sinal telepático, eles passaram a jogar pedras um no outro, ainda encurtando a distância. A luta diminuiu ao redor deles quando os outros se viraram para olhar. Até Henry virou a cabeça.

 

Victor desviou e se abaixou, mas Bill não fez nenhum esforço assim. As pedras de Victor bateram no peito dele, no ombro, na barriga. Uma arranhou a orelha. Aparentemente impassível a tudo isso, Bill jogou uma pedra atrás da outra com força assassina. A terceira bateu no joelho de Victor com um som de estalo, e Victor deu um gemido sufocado. Ele estava sem munição. Bill tinha uma pedra. Era lisa e branca, salpicada de quartzo, do tamanho aproximado de um ovo de pato. Victor Criss achou que parecia muito dura.

 

Bill estava a menos de um metro e meio dele.

 

— S-S-Sai d-d-daqui a-a-agora — disse ele — senão v-vou a-a-abrir sua c-c-cabeça. Estou f-falando s-sério.

 

Ao olhar nos olhos dele, Victor viu que estava mesmo. Sem dizer mais nada, ele se virou e foi embora pelo mesmo caminho que Peter Gordon.

 

Arroto e Moose Sadler estavam olhando ao redor com insegurança. Sangue escorria do canto da boca do garoto Sadler, e sangue de um ferimento na cabeça escorria pela lateral do rosto de Arroto.

 

A boca de Henry se mexeu, mas nenhum som saiu.

 

Bill se virou para Henry.

 

— S-S-Sai — disse ele.

 

— E se eu não sair? — Henry estava tentando falar com coragem, mas Bill conseguia ver agora uma coisa diferente nos olhos de Henry. Ele estava com medo e iria embora. Isso devia ter feito Bill se sentir bem, até triunfante, mas ele só se sentia cansado.

 

— S-Se você n-não for — disse Bill —, v-v-vamos p-partir pra c-cima de v-você. Acho que n-nós s-seis conseguimos m-mandar você pro ho-hospital.

 

— Sete — disse Mike Hanlon, e juntou-se a eles. Ele estava com uma pedra do tamanho de uma bola de softball em cada mão. — Pode pagar pra ver, Bowers. Eu ia adorar.

 

— Seu crioulo de MERDA! — A voz de Henry falhou e tremeu, à beira das lágrimas. Aquela voz tirou o que ainda havia de vontade de lutar em Arroto e Moose; eles recuaram, e as pedras que ainda tinham em mãos caíram quando as mãos relaxaram. Arroto olhou ao redor, como se questionando onde exatamente podia estar.

 

— Sai desse lugar — disse Beverly.

 

— Cala a boca, sua piranha — disse Henry. — Sua...

 

Quatro pedras voaram ao mesmo tempo, atingindo Henry em quatro lugares diferentes. Ele gritou e cambaleou para trás no chão coberto de mato, com os farrapos da camisa voando ao redor do corpo. Ele olhou dos rostos sérios, velhos-jovens dos garotos menores para os rostos desesperados de Arroto e Moose. Não havia ajuda aqui; ajuda nenhuma. Moose se virou, constrangido.

 

Henry ficou de pé, soluçando e fungando com o nariz quebrado.

 

— Vou matar todos vocês — disse ele, e saiu correndo de repente. Um momento depois, ele tinha sumido.

 

— V-V-Vai — disse Bill, falando com Arroto. — S-Sai daqui. E n-não v-v-volte mais a-aqui. O B-B-Barrens é n-n-nosso.

 

— Você vai desejar não ter contrariado Henry, garoto — disse Arroto. — Vem, Moose.

 

Eles começaram a se afastar, de cabeças abaixadas, sem olhar para trás.

 

Os sete fizeram um semicírculo irregular, todos sangrando em alguma parte do corpo. A apocalíptica guerra de pedras durou menos de quatro minutos, mas Bill sentia como se tivesse lutado durante toda a Segunda Guerra Mundial, nos dois locais, sem nem um intervalo.

 

O silêncio foi rompido por Eddie Kaspbrak ofegando e sussurrando na luta para respirar. Ben foi na direção dele, sentiu os três Twinkies e os quatro Ding-Dongs que tinha comido a caminho do Barrens começarem a lutar e se revirar em seu estômago, e passou correndo por Eddie até os arbustos, onde vomitou da forma mais particular e silenciosa que conseguiu.

 

Richie e Bev é que foram até Eddie. Beverly passou um braço ao redor da cintura do garoto magro enquanto Richie pegava a bombinha no bolso.

 

— Morde aqui, Eddie — disse ele, e Eddie respirou com dificuldade quando Richie apertou.

 

— Obrigado — Eddie conseguiu dizer.

 

Ben saiu dos arbustos corando e limpando a boca com a mão. Beverly foi até ele e segurou suas duas mãos.

 

— Obrigada por me defender — disse ela.

 

Ben assentiu, olhando para os tênis sujos.

 

— Disponha, garota — disse ele.

 

Um a um, eles se viraram para olhar para Mike, Mike e sua pele escura. Eles olharam com atenção, com cautela, pensativos. Mike já tinha sentido curiosidade assim antes (não houve época de sua vida em que não tenha sentido) e retribuiu o olhar com franqueza.

 

Bill olhou de Mike para Richie. Richie olhou nos olhos dele. E Bill pareceu quase ouvir um clique, uma parte final se encaixando perfeitamente a uma máquina de objetivo desconhecido. Ele sentiu lascas de gelo se espalharem por suas costas. Estamos todos juntos agora, pensou ele, e a ideia foi tão forte, tão certa, que por um momento ele achou que tinha falado em voz alta. Mas é claro que não havia necessidade de falar em voz alta; ele conseguia ver nos olhos de Richie, de Ben, de Eddie, de Beverly, de Stan.

 

Estamos todos juntos agora, pensou ele de novo. Ah, Deus nos ajude. Agora vai começar de verdade. Por favor, Deus, nos ajude.

 

— Qual é seu nome, garoto? — perguntou Beverly.

 

— Mike Hanlon.

 

— Quer acender umas bombinhas? — perguntou Stan, e o sorriso de Mike foi resposta suficiente.

 

O álbum

 

No fim das contas, Bill não é o único; todos levam álcool.

 

Bill leva uísque, Beverly leva vodca e uma caixa de suco de laranja. Richie leva seis latinhas de cerveja, Ben Hanscom uma garrafa de Wild Turkey. Mike tem seis latinhas de cerveja na geladeira da sala dos funcionários.

 

Eddie Kaspbrak chega por último segurando um pequeno saco de papel pardo.

 

— O que você trouxe aí, Eddie? — pergunta Richie. — Za-Rex ou Kool-Aid?

 

Sorrindo com nervosismo, Eddie tira primeiro uma garrafa de gim e depois uma garrafa de suco de ameixa.

 

No silêncio perplexo que se segue, Richie diz baixinho:

 

— Alguém tem que ligar pros caras de jaleco branco. Eddie Kaspbrak finalmente pirou de vez.

 

— Gim com suco de ameixa é muito saudável — responde Eddie na defensiva... e então, todos caem na gargalhada, e o som da alegria deles ecoa repetidamente pela biblioteca silenciosa, desce e volta pelo corredor de vidro entre a biblioteca adulta e a biblioteca infantil.

 

— Mergulha de cabeça — diz Ben, limpando os olhos úmidos. — Mergulha de cabeça, Eddie. Aposto que também ajuda o intestino.

 

Sorrindo, Eddie coloca suco até três quartos de um copo de papel e acrescenta sobriamente duas tampinhas de gim.

 

— Ah, Eddie, eu te amo — diz Beverly, e Eddie levanta o olhar, assustado mas sorrindo. Ela olha de um lado para outro da mesa. — Amo todos vocês.

 

Bill diz:

 

— N-Nós amamos você também, B-Bev.

 

— É — diz Ben. — Nós amamos você. — Os olhos dele se arregalam um pouco, e ele ri. — Acho que nós todos ainda amamos uns aos outros... Vocês sabem o quanto isso deve ser raro?

 

Há um momento de silêncio, e Mike não está surpreso de ver que Richie está de óculos.

 

— Minhas lentes de contato começaram a arder e tive que tirar — diz Richie brevemente quando Mike pergunta. — Que tal a gente ir direto ao assunto?

 

Todos olham para Bill, como fizeram na cascalheira, e Mike pensa: Eles olham para Bill quando precisam de um líder, para Eddie quando precisam de um navegador. Ir direto ao assunto, que frase danada é essa. Conto para eles que os corpos das crianças encontradas na época e agora não foram molestados sexualmente, nem mesmo mutilados de forma precisa, mas parcialmente comidos? Conto que tenho sete capacetes de mineiro, do tipo com luzes fortes na frente, guardados nos fundos da minha casa, um para um cara chamado Stan Uris, que não conseguiu chegar à cena, como costumávamos dizer? Ou será que basta dizer para irem para casa e dormirem uma boa noite de sono, porque o fim é amanhã ou amanhã à noite para sempre, seja para a Coisa, seja para nós?

 

Nenhuma dessas coisas precisa ser dita, talvez, e o motivo para isso já foi iniciado: eles ainda se amam. As coisas mudaram nos últimos 27 anos, mas isso, milagrosamente, não. Mike pensa: É nossa única esperança verdadeira.

 

A única coisa que resta é terminar de passar por isso, completar a tarefa de capturar, de grampear o passado ao presente de forma que a faixa de experiência forme uma espécie de roda de meia-tigela. Sim, pensa Mike, é isso. A tarefa desta noite é fazer a roda; amanhã podemos ver se ela ainda gira... da mesma forma que girou quando expulsamos os garotos grandes da cascalheira e para fora do Barrens.

 

— Você se lembrou do resto? — pergunta Mike a Richie.

 

Richie bebe um pouco de cerveja e balança a cabeça.

 

— Me lembro de você nos contar sobre o pássaro... e sobre o buraco de fumaça. — Um sorriso surge no rosto de Richie. — Me lembrei disso andando pra cá com Bevvie e Ben. Que merda de show de horrores foi aquilo...

 

— Bip-bip, Richie — diz Beverly, sorrindo.

 

— Ah, você sabe — diz ele, ainda sorrindo e empurrando os óculos no nariz em um gesto que os faz lembrar assustadoramente do velho Richie. Ele pisca para Mike. — Você e eu, certo, Mike?

 

Mike dá uma gargalhada e assente.

 

— Sinhá Scarlett! Sinhá Scarlett! — grita Richie com a Voz do Garoto Negro. — Tá ficano meio quente na casa de defumação, sinhá Scarlett!

 

Rindo, Bill diz:

 

— Outro triunfo da engenharia e arquitetura de Ben Hanscom.

 

Beverly assente.

 

— A gente estava cavando a sede do clube quando você apareceu com o álbum de fotos do seu pai no Barrens, Mike.

 

— Ah, Deus! — diz Bill, sentando-se ereto de repente. — E as fotos...

 

Richie assente com expressão de medo.

 

— A mesma coisa que no quarto de Georgie. Só que todos nós vimos.

 

Ben diz:

 

— Eu lembrei o que aconteceu com o dólar de prata.

 

Todos se viram para olhar para ele.

 

— Dei os outros três pra um amigo antes de vir pra cá — diz Ben baixinho. — Pros filhos dele. Lembrei que tinha um quarto, mas não conseguia lembrar o que aconteceu com ele. Agora, lembro. — Ele olha para Bill. — Fizemos uma bolinha de prata com ele, não foi? Você, eu e Richie. A princípio, íamos fazer uma bala de prata...

 

— Você tinha certeza de que era capaz de fazer — concorda Richie. — Mas no final...

 

— Ficamos c-com m-medo. — Bill assente lentamente. A lembrança voltou naturalmente para o lugar, e ele ouve o mesmo clique baixo e distinto quando acontece. Estamos chegando perto, pensa ele.

 

— Voltamos para a rua Neibolt — diz Richie. — Todos nós.

 

— Você salvou minha vida, Big Bill — diz Ben repentinamente, e Bill balança a cabeça. — Salvou sim — insiste Ben, e desta vez Bill não balança a cabeça. Ele desconfia que talvez tenha feito isso mesmo, embora não lembre ainda como... e foi ele mesmo? Ele pensa que talvez tenha sido Beverly... mas isso ainda não encaixou. Ainda não, pelo menos.

 

— Com licença por um segundo — diz Mike. — Tenho umas cervejas na geladeira de trás.

 

— Toma uma das minhas — diz Richie.

 

— Hanlon não bebe cerveja de homem branco — responde Mike. — Principalmente a sua, Boca de Lixo.

 

— Bip-bip, Mikey — diz Richie com seriedade, e Mike vai buscar a cerveja ao som de uma onda calorosa de gargalhadas.

 

Ele acende a luz da salinha, um aposento cafona com cadeiras velhas, uma bancada que precisa muito ser esfregada e um quadro de avisos coberto de recados velhos, informações sobre salários e horários e algumas tirinhas de quadrinhos da New Yorker que estão ficando amarelas e com as beiradas enroladas. Abre a pequena geladeira e sente o choque atingi-lo até o osso, branco como gelo, da mesma forma que o frio de fevereiro penetrava em você quando chegava e parecia que abril não chegaria nunca. Balões azuis e laranja saíram flutuando, dezenas deles, um buquê de Ano-Novo feito de balões de festa, e ele pensa incoerentemente em meio ao medo: Só precisamos de Guy Lombardo tocando “Auld Lang Syne”. Os balões passam pelo rosto dele e sobem em direção ao teto. Ele está tentando gritar, mas não consegue ao ver o que estava atrás dos balões, o que a Coisa tinha colocado na geladeira ao lado da cerveja dele, como se para um lanche noturno depois que os amigos inúteis tivessem contado as histórias inúteis e voltado para as camas alugadas nesta cidade natal que não é mais lar para eles.

 

Mike dá um passo para trás enquanto leva as mãos ao rosto, bloqueando a visão. Ele tropeça em uma das cadeiras, quase cai e afasta as mãos. Ainda está ali: a cabeça cortada de Stan Uris ao lado da caixa de seis cervejas Bud Light de Mike, não a cabeça de um homem, mas de um garoto de 11 anos. A boca está aberta em um grito silencioso, mas Mike não consegue ver nem dentes nem língua porque a boca foi enchida com penas. As penas são marrom-claras e indescritivelmente enormes. Ele sabe muito bem de que pássaro vieram aquelas penas. Ah, sabe. Sabe mesmo. Ele viu o pássaro em maio de 1958, e todos viram em agosto de 1958, e depois, anos mais tarde, quando visitando o pai moribundo, ele descobriu que Will Hanlon o tinha visto uma vez, depois de fugir do incêndio no Black Spot. O sangue do pescoço cortado de Stan tinha pingado e formado uma poça coagulada na prateleira de baixo da geladeira. A poça brilha em um tom vermelho-rubi escuro na luz descompromissada emitida pela lâmpada interna.

 

— Hã... hã... hã... — Mike consegue dizer, mas não consegue emitir nenhum outro som além desses. E então, a cabeça abre os olhos, e são os olhos prateados de Pennywise, o Palhaço. Esses olhos giram na direção dele e os lábios da cabeça começam a se mexer em volta das penas. Ele está tentando falar, talvez tentando enunciar uma profecia como o oráculo em uma peça grega.

 

Pensei em vir me juntar a vocês, Mike, porque vocês não vão conseguir vencer sem mim. Não vão conseguir vencer sem mim e você sabe, não sabe? Vocês poderiam ter alguma chance se eu tivesse vindo inteiro, mas não consegui suportar o estresse em meu cérebro americano, se é que você sabe o que estou falando, malandro. O que vocês seis conseguem fazer sozinhos é relembrar os velhos tempos e irem morrer. Portanto, pensei em tirar isso da sua cabeça. Da sua cabeça, entendeu, Mikey? Entendeu, amigão? Entendeu, seu porra de crioulo de merda?

 

Você não é real!, grita ele, mas nenhum som sai de sua boca; ele é como uma TV com o controle de volume todo abaixado.

 

De forma incrível e grotesca, a cabeça pisca para ele.

 

Sou real, sim. Real como a chuva. E você sabe de que estou falando, Mikey. O que vocês seis estão planejando fazer é como decolar com um avião sem trem de pouso. Não faz sentido subir se você não pode descer, faz? Também não faz sentido descer se você não pode subir. Vocês nunca vão pensar nas charadas e piadas certas. Vocês nunca vão me fazer rir, Mikey. Vocês todos esqueceram como virar os gritos de cabeça pra baixo. Bip-bip, Mikey, o que você diz? Se lembra do pássaro? Não passava de um pardal, mas era uma gracinha, não era? Grande como um celeiro, grande como um daqueles monstros bobos de filmes japoneses que te davam medo quando você era criança. Os dias em que você sabia afastar aquele pássaro da sua vida se foram pra sempre. Acredite, Mikey. Se você souber usar a sua cabeça, vai sair daqui, sair de Derry, agora mesmo. Se não souber, ela vai acabar que nem essa aqui. A frase de hoje para a grande estrada da vida é usar antes de perder, meu bom homem.

 

A cabeça gira sobre o rosto (as penas na boca fazem um som horrível) e cai da geladeira. Ela faz um baque no chão e rola na direção dele como uma horrenda bola de boliche, com o cabelo manchado de sangue trocando de lugar com o rosto sorridente; ela rola na direção dele, deixando uma trilha grudenta de sangue e pedaços de penas, e a boca não para de se mexer ao redor do amontoado.

 

Bip-bip, Mikey!, grita ela enquanto Mike recua loucamente para se afastar dela, com as mãos esticadas em um gesto que pede distância. Bip-bip, bip-bip, bip-porra-bip.

 

E então, há um estalo alto, o som de uma rolha de plástico retirada de uma garrafa de champanhe barata. A cabeça desaparece (Real, pensa Mike, nauseado; não havia nada de sobrenatural naquele estalo; foi o som de ar voltando para um espaço repentinamente vazio... real, ah, Deus, real). Uma rede fina de gotas de sangue flutua e cai no chão. Mas não há necessidade de limpar a salinha; Carole não vai ver nada quando entrar amanhã, nem mesmo se precisar andar em meio a balões para chegar à cafeteira e fazer a primeira xícara de café do dia. Que prático. Ele dá uma risadinha aguda.

 

Ele ergue o olhar e sim, os balões ainda estão ali. Os azuis dizem: CRIOULOS DE DERRY QUE SE FODAM. Os laranja dizem: OS OTÁRIOS CONTINUAM OTÁRIOS, MAS STANLEY URIS FINALMENTE SAIU NA FRENTE.

 

Não faz sentido subir se não dá para descer, a cabeça falante tinha dito, não faz sentido descer se não dá para subir. Essa última parte o faz pensar de novo nos capacetes de mineiro guardados. E era verdade? De repente, ele está pensando no primeiro dia em que desceu para o Barrens depois da guerra de pedras. Seis de julho, foi esse o dia, dois dias depois que ele marchou no desfile de Quatro de Julho... dois dias depois de ele ver Pennywise, o Palhaço em pessoa pela primeira vez. Foi depois desse dia no Barrens, depois de ouvir as histórias deles e de contar a sua com hesitação, que ele foi para casa e perguntou ao pai se podia olhar o álbum de fotos.

 

Por que exatamente ele foi para o Barrens naquele dia 6 de julho? Será que ele sabia que os encontraria lá? Parecia que sim, e não só que eles estariam lá, mas onde estariam. Eles estavam falando sobre algum tipo de clubinho, lembra ele, mas pareceu que estavam falando sobre isso porque havia outra coisa sobre a qual não sabiam como falar.

 

Mike olha para os balões sem realmente vê-los agora, tentando lembrar exatamente como foi aquele dia, aquele dia muito quente. De repente, parece muito importante lembrar exatamente o que aconteceu, cada nuance, seu estado de espírito.

 

Porque foi nesse dia que tudo começou a acontecer. Antes disso, os outros conversaram sobre matar a Coisa, mas não houve movimento de ação, não houve plano. Quando Mike chegou, o círculo se fechou, a roda começou a girar. Só mais tarde naquele dia, Bill, Richie e Ben foram para a biblioteca e começaram a pesquisar seriamente sobre uma ideia que Bill tivera um dia ou uma semana ou um mês antes. Tudo começou a...

 

— Mike? — chama Richie da sala de referências, onde todos se reuniram. — Você morreu aí?

 

Quase, pensa Mike, olhando para os balões, para o sangue, para as penas dentro da geladeira.

 

Ele responde:

 

— Acho que vocês deviam vir aqui.

 

Ele ouve cadeiras arrastando, o murmúrio das vozes deles; ouve Richie dizendo “Ah, Deus, o que foi agora?”, e outro ouvido, esse em sua lembrança, ouve Richie dizendo outra coisa, e de repente ele se lembra do que estava procurando; mais ainda, ele entende por que pareceu tão elusivo. A reação dos outros quando ele entrou na clareira na parte mais escura, mais profunda e com vegetação mais densa no Barrens naquele dia foi... nenhuma. Nada de surpresa, nada de perguntas sobre como ele os encontrou, nada de mais. Ben estava comendo um Twinkie, ele lembra, Beverly e Richie estavam fumando cigarros, Bill estava deitado de costas com as mãos atrás da cabeça, olhando para o céu, Eddie e Stan estavam olhando com dúvida para uma série de barbantes que tinham sido presos ao chão para formar um quadrado de aproximadamente 1,5 metro de lado.

 

Nenhuma surpresa, nenhuma pergunta, nada de mais. Ele apenas apareceu e foi aceito. Era como se, mesmo sem saber, eles estivessem esperando por ele. E, com aquele terceiro ouvido, o ouvido das lembranças, ele ouve a Voz de Garoto Negro de Richie, tão alta quanto hoje:

 

— Sinhora, sinhá Claudy, aqui está

 

aquele muleque preto di novo! Minha nossa, num sei o que esse Barrens vai virá! Olha essa cabeça crespa, Big Bill!

 

Bill nem ergueu o rosto; só continuou olhando com expressão sonhadora para as nuvens gordas de verão flutuando no céu. Ele estava refletindo com atenção sobre uma pergunta importante. Mas Richie não ficou ofendido com a falta de atenção. Ele prosseguiu:

 

— Só olhá pra essa cabeça crespa me faz acreditá que priciso tomá mais coquetel de hortelã! Vô tomá aqui na varanda, onde tá um pouco mais fresco...

 

— Bip-bip, Richie — disse Ben com a boca cheia de Twinkie, e Beverly riu.

 

— Oi — disse Mike com insegurança. O coração dele estava batendo meio forte demais, mas ele estava determinado a prosseguir. Ele tinha que agradecer, e o pai tinha dito que você sempre precisava pagar seus débitos, e o mais rápido possível, antes que os juros se acumulassem.

 

Stan olhou ao redor.

 

— Oi — disse ele, e voltou a olhar para o quadrado de barbante preso no centro da clareira. — Ben, tem certeza de que vai funcionar?

 

— Vai funcionar — disse Ben. — Oi, Mike.

 

— Quer um cigarro? — perguntou Beverly. — Tenho mais dois.

 

— Não, obrigado. — Mike respirou fundo e disse: — Quero agradecer a todos por me ajudarem naquele dia. Aqueles caras queriam me machucar feio. Peço desculpas se alguns de vocês ficaram machucados.

 

Bill balançou a mão, desconsiderando.

 

— N-N-Não se p-p-preocupe. E-E-Eles estão a-atrás de n-nós o a-ano todo. — Ele se sentou e olhou para Mike com interesse repentino. — P-Posso f-fazer uma p-p-pergunta?

 

— Acho que sim — disse Mike. Ele se sentou com cautela. Já tinha ouvido esse tipo de coisa antes. O garoto Denbrough ia perguntar como era ser negro.

 

Mas o que Bill disse foi:

 

— Quando L-L-Larsen fez os l-l-lançamentos não rebatidos na S-Série Mundial dois anos atrás, v-você acha que foi só s-sorte?

 

Richie tragou o cigarro e começou a tossir. Beverly bateu nas costas dele afavelmente.

 

— Você é principiante, Richie. Vai aprender.

 

— Acho que vai despencar, Ben — disse Eddie com preocupação, olhando para o quadrado de barbante. — Não sei se gosto da ideia de ser enterrado vivo.

 

— Você não vai ser enterrado vivo — disse Ben. — E se for, é só ficar sugando sua maldita bombinha até alguém te tirar.

 

Isso pareceu deliciosamente engraçado a Stanley Uris. Ele se apoiou no cotovelo com a cabeça virada para o céu e riu até Eddie chutar a canela dele e mandá-lo calar a boca.

 

— Sorte — disse Mike por fim. — Acho que qualquer jogada daquelas é mais sorte do que habilidade.

 

— E-E-Eu t-também — disse Bill. Mike esperou para ver se havia mais, mas Bill pareceu satisfeito. Ele se deitou de novo, entrelaçou os dedos atrás da cabeça e voltou a estudar as nuvens que passavam.

 

— O que vocês estão fazendo? — perguntou Mike, olhando para o quadrado de barbantes.

 

— Ah, essa é a grande ideia da semana do Monte de Feno — disse Richie. — Na última vez, ele alagou o Barrens e foi bem legal, mas essa ideia é campeã. É o Mês de Cavar Sua Sede de Clube. Mês que vem...

 

— V-Você não p-precisa botar B-B-B-Ben pra b-baixo — disse Bill, ainda olhando para o céu. — Vai ficar b-bom.

 

— Pelo amor de Deus, Bill, eu só estava brincando.

 

— Às v-vezes você b-brinca demais, R-Richie.

 

Richie aceitou a censura em silêncio.

 

— Ainda não entendi — disse Mike.

 

— Ah, é bem simples — disse Ben. — Eles queriam uma casa na árvore, e a gente podia fazer isso, mas as pessoas têm o mau hábito de quebrar os ossos quando caem de casas na árvore...

 

— Kookie... Kookie... me empresta seus ossos — disse Stan, e riu de novo enquanto os outros olhavam para ele intrigados. Stan não tinha muito senso de humor, e o pouco que tinha era meio peculiar.

 

— Usted está ficando loco, senhorr — disse Richie. — É el calor e las cucarachas, eu acho.

 

— De qualquer modo — disse Ben —, o que vamos fazer é cavar um metro e meio no quadrado que marquei. Não podemos ir mais fundo que isso, senão vamos alcançar a água que passa embaixo, eu acho. Fica bem perto da superfície aqui. Depois, vamos reforçar as laterais só pra garantir que não desmoronem. — Ele olhou para Eddie nesse momento, mas Eddie estava preocupado.

 

— E depois? — perguntou Mike, interessado.

 

— Vamos cobrir o topo.

 

— Hã?

 

— Vamos colocar tábuas no alto do buraco. Podemos colocar uma portinha ou alguma coisa assim pra podermos entrar e sair, até janela se quisermos...

 

— Vamos precisar de d-d-dobradiças — disse Bill, ainda olhando para as nuvens.

 

— Podemos comprar na Reynolds Material de Construção — disse Ben.

 

— V-Vocês t-t-têm suas m-m-mesadas — disse Bill.

 

— Tenho cinco dólares — disse Beverly. — Guardei dos dias que trabalhei de babá.

 

Richie começou imediatamente a rastejar na direção dela.

 

— Amo você, Bevvie — disse ele, fazendo olhar de cachorro sem dono para ela. — Quer se casar comigo? Vamos morar em um bangalô cercado de pinheiros...

 

— O quê? — perguntou Beverly, enquanto Ben os observava com uma mistura estranha de ansiedade, diversão e concentração.

 

— Um pinhalô cercado de bangos — disse Richie. — Cinco pratas basta, querida, você, eu e o bebê, seremos três...

 

Beverly riu, ficou vermelha e se afastou dele.

 

— Vamos d-dividir os g-gastos — disse Bill. — Pra isso temos um clube.

 

— Depois que cobrirmos o buraco com tábuas — prosseguiu Ben —, vamos colocar cola pesada, Tangle-Track é o nome, e depois colocamos a terra com grama de volta. Talvez a gente possa cobrir de folhas de pinheiro. Poderíamos estar lá embaixo, e as pessoas, pessoas como Henry Bowers, poderiam passar por cima da gente e nem saber que estaríamos lá.

 

— Você inventou isso? — disse Mike. — Nossa, é demais!

 

Ben sorriu. Foi a vez dele de corar.

 

Bill se sentou de repente e olhou para Mike.

 

— Q-Q-Quer a-ajudar?

 

— Bem... claro — disse Mike. — Seria divertido.

 

Um olhar passou entre os outros. Mike o sentiu tanto quanto viu. Há sete de nós aqui, pensou Mike sem motivo nenhum, e tremeu.

 

— Quando vocês vão começar a cavar?

 

— L-Logo — disse Bill, e Mike sabia, sabia que não era só da sede subterrânea do clube que Bill estava falando. Ben também sabia. Assim como Richie, Beverly e Eddie. Stan Uris tinha parado de sorrir. — V-Vamos c-começar esse pr-projeto l-logo, logo.

 

Houve uma pausa então, e Mike ficou ciente de repente de duas coisas: eles queriam dizer alguma coisa, contar alguma coisa para ele... e ele não tinha certeza se queria ouvir. Ben pegou uma vareta e estava rabiscando aleatoriamente na terra, com o cabelo escondendo o rosto. Richie estava mordendo as unhas já roídas. Só Bill estava olhando diretamente para Mike.

 

— Tem alguma coisa errada? — perguntou Mike com desconforto.

 

Falando bem lentamente, Bill disse:

 

— E-E-Estamos em um c-clube. V-Você pode entrar pro clube se q-quiser, mas t-tem que g-guardar nossos se-se-segredos.

 

— Como a sede do clube? — perguntou Mike, mais desconfortável do que nunca. — Ah, claro...

 

— Temos outro segredo, garoto — disse Richie, ainda sem olhar para Mike. — E Big Bill diz que temos uma coisa mais importante pra fazer no verão do que cavar clubes subterrâneos.

 

— Ele está certo — acrescentou Ben.

 

Houve um ofegar repentino e assobiado. Mike deu um pulo. Era apenas Eddie usando a bombinha. Eddie olhou para Mike como se pedindo desculpas, deu de ombros e assentiu.

 

— Ah — disse Mike por fim —, não me deixem no suspense. Me contem.

 

Bill estava olhando para os outros.

 

— T-Tem alguém a-aqui que n-não quer ele no c-clube?

 

Ninguém disse nada nem levantou a mão.

 

— Q-Quem quer c-contar? — perguntou Bill.

 

Houve outra longa pausa, e desta vez Bill não a quebrou. Por fim, Beverly suspirou e olhou para mim.

 

— As crianças que morreram — disse ela. — Sabemos quem está matando elas, e não é nada humano.

 

Eles contaram, um a um: o palhaço no gelo, o leproso debaixo da varanda, o sangue e as vozes vindas do ralo, os garotos mortos na Torre de Água. Richie contou o que aconteceu quando ele e Bill voltaram à rua Neibolt, e Bill falou por último para contar sobre a foto da escola que se mexeu e a foto em que ele enfiou a mão. Ele terminou explicando que essa coisa tinha matado seu irmão Georgie, e que o Clube dos Otários se dedicava a matar o monstro... o que quer que o monstro fosse realmente.

 

Mike pensou depois, ao voltar para casa naquela noite, que ele devia ter ouvido com descrença, quase horror, para depois sair correndo o mais rápido possível, sem olhar para trás, convencido de que ou estava sendo debochado por um bando de garotos brancos que não gostavam de negros ou que estava na presença de seis verdadeiros lunáticos que tinham, de certa forma, pegado a loucura uns dos outros, da mesma maneira que todo mundo na mesma turma podia pegar um vírus forte de gripe.

 

Mas ele não saiu correndo, porque, apesar do horror, sentia uma estranha sensação de conforto. Conforto e outra coisa, uma coisa mais básica: uma sensação de volta ao lar. Há sete de nós aqui, pensou ele de novo quando Bill terminou de falar.

 

Ele abriu a boca, sem saber direito o que ia dizer.

 

— Eu vi o palhaço — disse ele.

 

— O quê? — Richie e Stan perguntaram ao mesmo tempo, e Beverly virou a cabeça tão rapidamente que o rabo de cavalo voou do ombro esquerdo para o direito.

 

— Eu o vi no Quatro — disse Mike lentamente, se dirigindo mais a Bill. Os olhos de Bill, intensos e totalmente concentrados, estavam nos dele, exigindo que prosseguisse. — Sim, no Quatro de Julho... — Ele parou de falar por um momento, pensando: Mas eu conhecia ele. Eu conhecia ele porque não foi a primeira vez que vi uma coisa... uma coisa errada.

 

Ele pensou no pássaro então, e foi a primeira vez que se permitiu realmente pensar nele (exceto em pesadelos) desde maio. Ele achava que estava ficando maluco. Foi um alívio descobrir que não era maluco... mas era um alívio apavorante mesmo assim. Ele molhou os lábios.

 

— Continua — disse Bev com impaciência. — Anda logo.

 

— Bom, a questão é, eu estava no desfile. Eu...

 

— Eu te vi — disse Eddie. — Você estava tocando saxofone.

 

— Ah, na verdade é um trombone — disse Mike. — Toco na banda da Escola Batista Neibolt. Então, eu vi o palhaço. Ele estava entregando balões pras crianças no cruzamento das três ruas no centro. Estava exatamente como Ben e Bill disseram. De roupa prateada com botões laranja, maquiagem branca no rosto, sorriso grande e vermelho. Não sei se era batom ou maquiagem, mas parecia sangue.

 

Os outros estavam assentindo, agitados agora, mas Bill só continuou olhando para Mike com atenção.

 

— Tufos laranja de cabelo? — perguntou Mike, fazendo-os inconscientemente na própria cabeça com os dedos.

 

Mike assentiu.

 

— Ver ele assim... me deu medo. E enquanto eu estava olhando para ele, ele se virou e acenou pra mim, como se tivesse lido minha mente ou meus sentimentos, ou sei lá como se diz. E isso... ah, me deu mais medo ainda. Eu não sabia por que na hora, mas ele me deu tanto medo que, por alguns segundos, não consegui tocar mais o trombone. Minha boca secou completamente e senti... — Ele olhou rapidamente para Beverly. Ele lembrava claramente agora, a forma como o sol de repente pareceu insuportavelmente intenso no metal do trombone e no cromado dos carros, a música alta demais, o céu azul demais. O palhaço levantou uma das mãos com luvas brancas (a outra estava cheia de fios de balões) e acenou lentamente, de um lado para o outro, com o sorriso sangrento vermelho demais e largo demais, um grito de cabeça para baixo. Ele lembrava como a pele de seus testículos ficou arrepiada, que seu intestino de repente pareceu frouxo e quente, como se ele pudesse eliminar um bolo casual de merda na calça. Mas não podia dizer isso na frente de Beverly. Não se diziam coisas assim na frente de garotas, mesmo se elas fossem o tipo de garotas para quem se pode dizer coisas como “piranha” e “filho da puta”. — ... senti medo — concluiu ele, sentindo que era uma declaração fraca, mas não sabendo como dizer o resto.

 

Mas eles estavam assentindo como se entendessem, e ele sentiu um alívio indescritível tomar conta de si. De alguma forma, aquele palhaço olhando para ele, dando o sorriso vermelho, com a mão de luva branca se balançando de um lado para o outro... aquilo foi pior do que Henry Bowers e todos os outros atrás dele. Muito pior.

 

— Logo passamos por ele — prosseguiu Mike. — Marchamos até a colina da rua Main. E vi ele de novo, dando balões pras crianças. Só que muitas delas não queriam pegar. Algumas das menores estavam chorando. Não consegui entender como ele conseguiu chegar lá no alto tão rápido. Pensei que deviam ser dois, sabe, os dois vestidos do mesmo jeito. Uma dupla. Mas ele se virou e acenou pra mim de novo, e eu sabia que era ele. Era o mesmo cara.

 

— Ele não é um cara — disse Richie, e Beverly tremeu. Bill passou o braço ao redor dela por um momento, e ela olhou para ele com gratidão.

 

— Ele acenou pra mim... e piscou. Como se a gente tivesse um segredo. Ou como... como se ele soubesse que eu tinha reconhecido ele.

 

Bill tirou o braço dos ombros de Beverly.

 

— Você re-re-reconheceu ele?

 

— Acho que sim — disse Mike. — Preciso verificar uma coisa antes de dizer com certeza. Meu pai tem umas fotos... Ele coleciona... Escuta, vocês brincam aqui sempre, né?

 

— Claro — disse Ben. — É por isso que estamos construindo a sede.

 

Mike assentiu.

 

— Vou verificar se estou certo. Se estiver, posso trazer as fotos.

 

— F-F-Fotos v-velhas? — perguntou Bill.

 

— É.

 

— O q-q-que mais? — perguntou Bill.

 

Mike abriu a boca e voltou a fechar. Ele olhou ao redor com insegurança e disse:

 

— Vocês iam achar que estou louco. Louco ou mentindo.

 

— V-Você a-a-acha que n-nós s-somos l-l-loucos?

 

Mike balançou a cabeça.

 

— Pode apostar que não somos — disse Eddie. — Tem muita coisa errada comigo, mas não sou lelé. Acho que não.

 

— Não — disse Mike. — Não acho que vocês são loucos.

 

— N-Não vamos p-pensar que você é lo-lo... doido também — disse Bill.

 

Mike olhou para eles, limpou a garganta e disse:

 

— Eu vi um pássaro. Uns três meses atrás. Eu vi um pássaro.

 

Stan olhou para Mike.

 

— Que tipo de pássaro?

 

Falando com mais relutância do que nunca, Mike disse:

 

— Parecia um pardal, mais ou menos, mas também parecia um pintarroxo. Tinha peito laranja.

 

— Bem, o que um pássaro tem de tão especial? — perguntou Ben. — Tem um monte de pássaros em Derry.

 

Ele se sentiu desconfortável e, ao olhar para Stan, teve certeza de que ele estava se lembrando do que tinha acontecido na Torre de Água e como impediu que as coisas acontecessem gritando nomes de pássaros. Mas esqueceu tudo sobre isso quando Mike voltou a falar.

 

— O pássaro era maior do que um trailer — disse ele.

 

Ele olhou para os rostos chocados e impressionados. Esperou pelas gargalhadas, mas não ouviu nenhuma. Stan parecia que tinha levado um golpe com um tijolo. O rosto dele estava tão pálido que ficou da cor da luz delicada do sol de novembro.

 

— Juro que é verdade — disse Mike. — Era um pássaro gigante, como um daqueles em filmes de monstros que são pra ser pré-históricos.

 

— É, como em O ataque vem do polo — disse Richie. Ele pensou no pássaro que tinha uma aparência meio falsa, mas, quando chegou a Nova York, ele ainda estava empolgado o bastante para derramar a pipoca pela amurada do balcão do Aladdin. Foxy Foxworth o teria expulsado, mas o filme já tinha acabado mesmo. Às vezes você levava uma surra, mas, como Big Bill dizia, às vezes você também ganhava uma.

 

— Mas não parecia pré-histórico — disse Mike. — E não parecia um daqueles sei lá como se diz, que os gregos e romanos inventavam histórias sobre eles...

 

— R-R-Rocas? — sugeriu Bill.

 

— É, acho que é isso. Não parecia um desses também. Era só uma combinação de pintarroxo e pardal. Os dois pássaros mais comuns que se vê. — Ele riu com um pouco de exagero.

 

— O-O-Onde... — começou Bill.

 

— Conta pra gente — disse Beverly simplesmente, e depois de um momento para relembrar, Mike contou. E ao contar a história, ver os rostos deles ficarem preocupados e assustados, mas não incrédulos nem debochados, ele sentiu um peso incrível ser retirado do peito. Como Ben com sua múmia ou Eddie com seu leproso e Stan com os garotos afogados, ele tinha visto uma coisa que deixaria um adulto louco, não só de pavor, mas com a força intensa de uma irrealidade grande demais para ser explicada ou, por falta de explicação racional, simplesmente ignorada. O rosto de Elias ficou queimado e preto com a luz do amor de Deus, pelo que Mike leu; mas Elias era um homem velho quando isso aconteceu, e talvez isso fizesse diferença. Não teve um outro desses caras da Bíblia, um pouco mais velho do que uma criança, que lutou com um anjo de igual para igual?

 

Ele tinha visto aquilo e prosseguiu com a vida; tinha integrado a lembrança à visão do mundo. Ainda era jovem o bastante, e a visão estava tremendamente ampla. Mas o que aconteceu naquele dia assombrou os cantos escuros de sua mente mesmo assim, e às vezes em sonhos ele corria daquele pássaro grotesco quando a sombra dele caía sobre Mike vinda do céu. Ele se lembrava de alguns desses sonhos, e não se lembrava de outros, mas eles estavam lá, sombras que se moviam sozinhas.

 

O quão pouco ele tinha esquecido e o quanto isso ainda o perturbava (conforme ele cumpria suas tarefas diárias: ajudando o pai, indo para a escola, andando de bicicleta, fazendo pequenos serviços para a mãe, esperando que os grupos americanos aparecessem em American Bandstand depois da escola) talvez fosse mensurável apenas de uma maneira: o alívio que ele sentiu ao compartilhar com os outros. Quando fez isso, ele percebeu que foi a primeira vez que se permitiu pensar inteiramente no acontecimento desde aquela manhã perto do canal, quando ele viu as marcas estranhas... e o sangue.

 

Mike contou a história do pássaro na siderúrgica e como ele correu para dentro da chaminé para fugir dele. Mais tarde, três dos Otários (Ben, Richie e Bill) foram andando na direção da Biblioteca Pública de Derry. Ben e Richie estavam de olho em Bowers e Companhia, mas Bill só olhava para a calçada, com a testa franzida, perdido em pensamento. Cerca de uma hora depois de contar a história, Mike foi embora, dizendo que o pai o queria em casa às quatro para colher ervilhas. Beverly tinha que ir ao mercado e fazer o jantar do pai, disse ela. Tanto Eddie quanto Stan tinham coisas para fazer. Mas, antes de se separarem, eles começaram a cavar o que se tornaria, se Ben estivesse certo, a sede subterrânea do clube. Para Bill (e para todos eles, desconfiava ele), começar a cavar pareceu um ato quase simbólico. Eles tinham começado. Fosse lá o que eles tivessem que fazer como grupo, como unidade, eles tinham começado.

 

Ben perguntou a Bill se ele acreditava na história de Mike Hanlon. Eles estavam passando pela Casa Comunitária de Derry, e a biblioteca ficava logo à frente, uma construção de pedra confortavelmente protegida pela sombra de olmos de um século de idade e intocados pela grafiose que mais tarde os infectaria e diminuiria sua quantidade.

 

— Acredito — disse Bill. — A-Acho que era v-verdade. L-L-Loucura, mas verdade. E você, R-R-Richie?

 

Richie assentiu.

 

— Acredito. Detesto acreditar, se é que vocês me entendem, mas acho que entendem. Lembram o que ele disse sobre a língua do pássaro?

 

Bill e Ben assentiram. Tufos laranja nela.

 

— Foi o detalhe final — disse Richie. — Parece coisa de vilão de quadrinhos. Lex Luthor ou o Coringa, ou alguém assim. Sempre deixa uma marca.

 

Bill assentiu pensativamente. Era como um vilão de quadrinhos. Por que eles viam assim? Pensavam nele assim? Sim, talvez fosse isso. Era coisa de criança, mas parecia que era disso que essa coisa se alimentava, de coisas de criança.

 

Eles atravessaram a rua para o lado da biblioteca.

 

— P-P-Perguntei a S-S-Stan s-se ele j-já o-ouviu falar de um p-pássaro assim — disse Bill. — N-N-Não n-necessariamente g-grande, mas s-só...

 

— De verdade? — sugeriu Richie.

 

Bill assentiu.

 

— E-Ele d-disse que p-pode existir um p-pássaro assim na A-América do S-S-Sul ou na Á-Á-África, mas n-não por a-aqui.

 

— Então ele não acreditou? — perguntou Ben.

 

— E-E-Ele a-acreditou s-s-sim — disse Bill. E então contou uma outra coisa que Stan sugeriu quando Bill andou com ele até onde tinha deixado a bicicleta. A ideia de Stan era de que mais ninguém poderia ter visto aquele pássaro antes de Mike contar a história para eles. Outra coisa, talvez, mas não aquele pássaro, porque o pássaro era o monstro pessoal de Mike Hanlon. Mas agora... porque agora o pássaro era propriedade do Clube dos Otários todo, não era? Qualquer um deles poderia ver. Poderia não ter exatamente a mesma aparência; Bill poderia ver como um corvo, Richie como falcão, Beverly como uma águia-dourada, até onde Stan sabia... mas a Coisa podia ser um pássaro para todos eles agora. Bill falou para Stan que, se isso fosse verdade, então qualquer um deles poderia ver o leproso, a múmia ou possivelmente os garotos mortos.

 

— O que quer dizer que temos que fazer alguma coisa logo, se é que vamos fazer alguma coisa — respondera Stan. — A Coisa sabe...

 

— O q-quê? — perguntara Bill intensamente. — T-Tudo que s-sabemos?

 

— Cara, se a Coisa souber disso, estamos ferrados — respondera Stan. — Mas pode apostar que a Coisa sabe que sabemos sobre a Coisa. Acho que vai tentar nos atingir. Você ainda está pensando na nossa conversa de ontem?

 

— Estou.

 

— Eu queria poder ir com você.

 

— B-B-Ben e R-Richie v-vão. Ben é muito i-i-inteligente, e R-R-Richie também quando n-não está de s-sacanagem.

 

Agora, de pé em frente à biblioteca, Richie perguntou a Bill exatamente o que ele tinha em mente. Bill contou para eles, falando lentamente para não gaguejar demais. A ideia vinha circulando em sua mente nas duas últimas semanas, mas foi preciso a história de Mike sobre o pássaro para que ela se cristalizasse.

 

O que você fazia quando queria se livrar de um pássaro?

 

Ah, atirar nele era definitivo.

 

O que você fazia quando queria se livrar de um monstro?

 

Ah, os filmes sugeriam que atirar neles com uma bala de prata era bem definitivo.

 

Ben e Richie ouviram isso com respeito suficiente. Depois, Richie perguntou:

 

— Como se arruma uma bala de prata, Big Bill? Manda encomendar?

 

— Muito e-e-engraçado. Vamos ter que f-f-fazer.

 

— Como?

 

— Acho que é por isso que estamos na biblioteca — disse Ben.

 

Richie assentiu e empurrou os óculos no nariz. Por trás deles, seus olhos estavam atentos e pensativos... mas cheios de dúvida, pensou Bill. Ele mesmo estava cheio de dúvidas. Pelo menos, não havia tolice nos olhos de Richie, e isso era um passo na direção certa.

 

— Está pensando na Walther do seu pai? — perguntou Richie. — A que levamos pra rua Neibolt?

 

— É — disse Bill.

 

— Mesmo se pudéssemos realmente fazer balas de prata — disse Richie —, onde conseguiríamos a prata?

 

— Deixa que eu me preocupo com isso — disse Ben baixinho.

 

— Ah... tudo bem — disse Richie. — Vamos deixar o Monte de Feno se preocupar com isso. E depois, o quê? A rua Neibolt de novo?

 

Bill assentiu.

 

— A rua Ne-Ne-Neibolt de n-novo. E então a gente e-explode a porra da c-cabeça dela.

 

Os três ficaram ali mais um momento, olhando uns para os outros solenemente, depois foram para a biblioteca.

 

— Minha nossa senhora, é aquele sujeito negro de novo! — gritou Richie com a Voz do Policial Irlandês.

 

Uma semana tinha se passado; já era quase o meio de julho e a sede subterrânea do clube estava praticamente pronta.

 

— Uma ótima manhã para você, sr. O’Hanlon! E um dia lindo, lindo ele promete ser, lindo como batatinhas crescendo, como minha mãe...

 

— Até onde eu sei, a manhã acaba ao meio-dia, Richie — disse Ben, aparecendo no buraco —, e meio-dia foi duas horas atrás.

 

Ele e Richie estavam reforçando as laterais do buraco. Ben tinha tirado o moletom porque o dia estava quente e o trabalho, pesado. A camiseta dele tinha a cor cinza de suor e grudava no peito e na barriga protuberante. Ele parecia incrivelmente alheio à aparência, mas Mike achou que, se Ben ouvisse Beverly chegando, colocaria aquele moletom largo antes que desse para piscar.

 

— Não seja tão fresco. Você parece Stan, o Cara — disse Richie. Ele tinha saído do buraco cinco minutos antes porque, ele disse para Ben, estava na hora do intervalo para um cigarro.

 

— Pensei que você tivesse dito que não tinha cigarros — dissera Ben.

 

— Não tenho — respondera Richie —, mas o princípio permanece o mesmo.

 

Mike estava com o álbum de fotos do pai debaixo do braço.

 

— Cadê todo mundo? — perguntou. Ele sabia que Bill tinha que estar ali por perto, porque havia deixado a bicicleta parada debaixo da ponte perto de Silver.

 

— Bill e Eddie foram para o lixão meia hora atrás pra procurar mais tábuas — disse Richie. — Stanny e Bev foram até a Reynolds Material de Construção pra buscar dobradiças. Não sei o que o Monte de Feno está fazendo lá embaixo, mas não deve ser coisa boa. O garoto precisa que alguém fique de olho nele, sabe? Aliás, você nos deve 23 centavos se ainda quer participar do clube. Sua parte nas dobradiças.

 

Mike passou o álbum do braço direito para o esquerdo e enfiou a mão no bolso. Ele contou 23 centavos (deixando um total de dez em seu tesouro pessoal) e entregou para Richie. Em seguida, andou até o buraco e olhou dentro.

 

Só que não era mais um buraco. As laterais estavam quase retas. Cada lado foi reforçado com tábuas. Eram tábuas velhas, mas Ben, Bill e Stan tinham trabalhado direito para ajeitá-las com ferramentas da oficina de Zack Denbrough (e Bill tinha tomado muito cuidado para garantir que todas as ferramentas voltassem para o lugar todas as noites, e na mesma condição que estavam quando retiradas). Ben e Beverly tinham pregado pedaços em cruz entre os suportes. O buraco ainda deixava Eddie um pouco nervoso, mas era da natureza de Eddie. Empilhados cuidadosamente em um dos lados estavam quadrados de terra com grama que mais tarde seriam presos à cobertura.

 

— Acho que vocês sabem o que estão fazendo — disse Mike.

 

— Claro — disse Ben, e apontou para o álbum. — O que você trouxe?

 

— O álbum de Derry do meu pai — disse Mike. — Ele coleciona fotos velhas e recortes sobre a cidade. É o hobby dele. Eu estava olhando alguns dias atrás. Contei que pensei ter visto aquele palhaço antes. E vi. Aqui. Por isso, eu trouxe. — Ele estava com vergonha de acrescentar que não tinha tido coragem de pedir permissão ao pai para fazer isso. Por medo das perguntas que um pedido desses poderia despertar, ele tirou o álbum da casa como um ladrão enquanto o pai plantava batatas no campo oeste e a mãe pendurava roupas no quintal. — Pensei que vocês deviam dar uma olhada.

 

— Vamos ver, então — disse Richie.

 

— Eu gostaria de esperar até todo mundo estar aqui. Pode ser melhor.

 

— Tudo bem. — Para falar a verdade, Richie não estava tão ansioso para ver mais fotos de Derry, desse ou de qualquer outro álbum. Não depois do que aconteceu no quarto de Georgie. — Quer ajudar a mim e Ben com o resto do reforço?

 

— Pode apostar.

 

Mike colocou o álbum do pai no chão com cuidado, longe o bastante do buraco para não ficar sujo com terra voando, e pegou a pá de Ben.

 

— Cave aqui — disse Ben, mostrando o local para Mike. — Cave uns 30 centímetros. Depois, vou colocar uma tábua e segurar reta contra a lateral enquanto você coloca a terra de volta.

 

— Bom plano, cara — disse Richie com sabedoria de onde estava na beirada da escavação, com os tênis balançando no buraco.

 

— O que tem de errado com você? — perguntou Mike.

 

— Tem um osso na minha perna — disse Richie confortavelmente.

 

— Como está indo seu projeto com Bill? — Mike parou para tirar a camisa e começou a cavar. Estava quente ali, mesmo no Barrens. Grilos cricrilavam baixo, como relógios de verão na vegetação.

 

— Ah... nada mau — disse Richie, e Mike pensou tê-lo visto lançar um olhar de aviso para Ben. — Eu acho.

 

— Por que você não liga o rádio, Richie? — perguntou Ben. Ele colocou uma tábua no buraco que Mike cavou e a segurou ali. O rádio de Richie estava pendurado pela tira no lugar de sempre, no galho grosso de um arbusto ali perto.

 

— As pilhas acabaram — disse Richie. — Você levou meus últimos 25 centavos pras dobradiças, lembra? Cruel, Monte de Feno, muito cruel. Depois de todas as coisas que fiz por você. Além do mais, aqui só pega a WABI, e lá só toca rock bobo.

 

— Hã? — perguntou Mike.

 

— Monte de Feno acha que Tommy Sands e Pat Boone cantam rock-and-roll — disse Richie —, mas isso é porque ele é doente. Elvis canta rock-and-roll. Ernie K. Doe canta rock-and-roll. Carl Perkins canta rock-and-roll. Bobby Darin. Buddy Holly. “Ah-ow Peggy... my Peggy Suh-uh-oo...”

 

— Por favor, Richie — disse Ben.

 

— Além desses — disse Mike, apoiando-se na pá —, tem Fats Domino, Chuck Berry, Little Richard, Shep and the Limelights, LaVerne Baker, Frankie Lymon and the Teenagers, Hank Ballard and the Midnighters, the Coasters, the Isley Brothers, the Crests, the Chords, Stick McGhee...

 

Eles estavam olhando para Mike com tanta admiração que ele riu.

 

— Me perdi depois de Little Richard — disse Richie. Ele gostava de Little Richard, mas se tinha um herói secreto do rock-and-roll naquele verão, era Jerry Lee Lewis. A mãe dele tinha entrado por acaso na sala quando Jerry Lee estava tocando em American Bandstand. Foi na parte do show em que Jerry Lee subia no piano e tocava de cabeça para baixo, com o cabelo caindo no rosto. Ele estava cantando “High School Confidential”. Por um momento, Richie achou que a mãe ia desmaiar. Ela não desmaiou, mas ficou tão traumatizada pelo que viu que falou no jantar daquela noite sobre mandar Richie para um daqueles acampamentos estilo militar durante o resto do verão. Agora, Richie balançou a cabeça para o cabelo cair sobre o rosto e começou a cantar: — “Come on over baby all the cats are at the high school rockin...”

 

Ben começou a cambalear ao redor do buraco, segurando a barriga protuberante e fingindo vomitar. Mike tapou o nariz, mas estava rindo tanto que saíam lágrimas dos olhos.

 

— Qual é o problema? — perguntou Richie. — O que incomoda vocês? Isso foi bom! Foi muito bom!

 

— Ah, cara — disse Mike, e agora ele estava rindo tanto que mal conseguia falar. — Foi incrível. Quero dizer, foi realmente incrível.

 

— Negros não têm gosto — disse Richie. — Acho que até está na Bíblia.

 

— Yo mamma — disse Mike, rindo mais do que nunca. Quando Richie perguntou com perplexidade sincera o que aquilo queria dizer, Mike se sentou e se balançou para a frente e para trás, uivando e segurando a barriga.

 

— Você deve achar que estou com inveja — disse Richie. — Deve achar que quero ser negro.

 

Agora Ben também caiu sentado, rindo loucamente. Seu corpo todo tremia e balançava de forma alarmante. Seus olhos estavam saltados.

 

— Chega, Richie — conseguiu dizer ele. — Vou cagar na calça. Vou m-m-morrer se você não p-parar...

 

— Eu não quero ser negro — disse Richie. — Quem quer usar calça rosa e morar em Boston e comprar pizza de fatia? Quero ser judeu que nem o Stan. Quero ser dono de uma casa de penhores e vender canivetes e vômito de plástico e guitarras usadas.

 

Ben e Mike agora estavam berrando de tanto rir. As gargalhadas deles ecoavam pela vegetação e pela ravina que tinha o nome errôneo de Barrens, fazendo pássaros levantarem voo e esquilos ficarem momentaneamente paralisados. Era um som jovem, penetrante, vital, sem sofisticação, livre. Quase todas as coisas vivas no alcance daquele som reagiram a ele de alguma forma, mas a coisa que saiu de um esgoto largo de concreto no alto do Kenduskeag não estava viva. Na tarde anterior, tinha havido uma tempestade repentina (a futura sede do clube não tinha sido muito afetada — desde que as operações de escavação começaram, Ben cobria o buraco cuidadosamente cada noite com um pedaço rasgado de lona que Eddie tinha arrumado atrás do Wally’s Spa; tinha cheiro de tinta, mas funcionou), e os escoadouros abaixo de Derry ficaram lotados de água durante duas ou três horas. Foi o fluxo da água que empurrou essa coisa desagradável para o sol, para que as moscas encontrassem.

 

Era o corpo de um garoto de 9 anos chamado Jimmy Cullum. Exceto pelo nariz, o rosto não existia mais. Havia uma maçaroca sem feições onde antes ele ficava. A carne viva estava sarapintada de marcas pretas fundas que talvez apenas Stan Uris reconhecesse o que eram: bicadas. Bicadas feitas por um bico bem grande.

 

Água corria por cima da calça de algodão lamacenta de Jimmy Cullum. As mãos brancas flutuavam como peixes mortos. Elas também tinham sido bicadas, mas não tanto quanto o rosto. A camisa estampada inflava e murchava, inflava e murchava, como uma bexiga.

 

Bill e Eddie, carregando tábuas obtidas no lixão, atravessaram o Kenduskeag pisando em pedras a menos de 40 metros do corpo. Eles ouviram Richie, Ben e Mike rindo, sorriram um pouco e se apressaram pelos destroços não vistos de Jimmy Cullum para ver o que era tão engraçado.

 

Eles ainda estavam rindo quando Bill e Eddie chegaram à clareira, suando com o peso da madeira. Até Eddie, normalmente pálido como um queijo, estava com o rosto corado. Eles largaram as tábuas na pilha de suprimentos quase vazia. Ben saiu do buraco para inspecioná-las.

 

— Que beleza! — disse ele. — Uau! Ótimo!

 

Bill desmoronou no chão.

 

— Posso t-ter meu a-a-ataque cardíaco agora ou p-preciso esperar até mais t-tarde?

 

— Mais tarde — disse Ben distraidamente.

 

Ele tinha levado algumas ferramentas para o Barrens e estava agora examinando as novas tábuas com atenção, martelando pregos e retirando parafusos. Ele jogou uma de lado porque estava rachada. Bater em outra provocou um som oco em pelo menos três pontos, e ele também a descartou. Eddie estava sentado em um monte de terra, observando-o. Ele deu uma borrifada na bombinha na mesma hora que Ben tirou um prego enferrujado de uma tábua com a parte de trás do martelo. O prego gemeu como um animal desagradável no qual alguém pisou e que não gostou nada disso.

 

— Você pode pegar tétano se se cortar com um prego enferrujado — Eddie informou a Ben.

 

— É? — disse Richie. — O que é têta-no? Parece doença de mulher.

 

— Você é um palhaço — disse Eddie. — É tétano, não têta-no, e é um tipo de infecção. Tem uns micróbios especiais que crescem na ferrugem, sabe, e, se você se cortar, eles podem entrar no seu corpo e, hum, foder seus nervos. — Eddie ficou ainda mais vermelho e usou a bombinha de novo.

 

— Jesus — disse Richie, impressionado. — Parece horrível.

 

— Pode apostar. Primeiro, seu maxilar trava com tanta força que você não consegue nem abrir a boca, nem pra comer. É preciso abrir um buraco na sua bochecha pra enfiar líquidos por um tubo.

 

— Ah, cara — disse Mike, de pé na beira do buraco. Seus olhos estavam arregalados, as córneas muito brancas no rosto marrom. — Tem certeza?

 

— Minha mãe me contou — disse Eddie. — Depois, sua garganta trava e você não consegue comer mais, e acaba morrendo de fome.

 

Eles refletiram sobre esse horror em silêncio.

 

— Não tem cura — acrescentou Eddie.

 

Mais silêncio.

 

— Então — disse Eddie bruscamente —, sempre prestem atenção em pregos enferrujados e merdas assim. Tive que tomar vacina de tétano uma vez e doeu muito.

 

— Então por que você foi pro lixão com Bill e trouxe toda essa merda? — perguntou Richie.

 

Eddie olhou rapidamente para Bill, que estava olhando para a sede do clube, e havia amor e adoração ao herói suficiente naquele olhar para responder à pergunta, mas Eddie disse baixinho:

 

— Algumas coisas precisam ser feitas mesmo quando existe risco. Foi a primeira coisa importante que aprendi e que não foi com a minha mãe.

 

Eles ficaram mais um pouco em um silêncio não tão desconfortável. E então, Ben voltou a martelar pregos enferrujados e, depois de um tempo, Mike Hanlon se juntou a ele.

 

O rádio de Richie, agora sem voz (pelo menos até que ele recebesse a mesada ou encontrasse um gramado para aparar), se balançou no galho baixo na brisa fraca. Bill teve tempo para refletir sobre como tudo isso era estranho, como era estranho e perfeito que eles todos estivessem ali no verão. Ele conhecia algumas crianças que tinham ido visitar parentes. Conhecia algumas que tinham ido para a Disneylândia, na Califórnia, ou para Cape Cod, ou, no caso de um cara, para um lugar inimaginável que parecia muito distante, com o nome estranho e ligeiramente familiar de Gstaad. Havia crianças em acampamentos de igreja, em acampamentos de escoteiros, em campos de riquinhos onde se aprendia a nadar e jogar golfe, acampamentos onde você aprendia a dizer “Ei, mandou bem” em vez de “Foda-se” quando seu oponente mandava um saque fatal para cima de você no tênis. Havia crianças cujos pais simplesmente as levaram para LONGE. Bill conseguia entender isso. Ele conhecia algumas crianças que queriam ir para LONGE, apavoradas pelo bicho-papão que rondava Derry nesse verão, mas desconfiava que havia ainda mais pais apavorados por esse bicho-papão. Pessoas que tinham decidido passar as férias em casa resolveram ir para LONGE

 

(Gstaad? Era na Suécia? Argentina? Espanha?)

 

de repente. Parecia um pouco o pânico da pólio em 1956, quando quatro crianças que foram nadar na piscina do O’Brian Memorial pegaram a doença. Adultos, uma palavra totalmente sinônima de mães e pais na mente de Bill, decidiram na época, assim como agora, que LONGE era melhor. Mais seguro. Qualquer pessoa que pudesse se afastar se afastou. Bill entendia LONGE, e conseguia refletir sobre uma palavra de tamanho mistério como Gstaad, mas mistério era um consolo frio em comparação com o desejo; Gstaad era LONGE, Derry era desejo.

 

E nenhum de nós foi pra LONGE, pensou ele, vendo Ben e Mike arrancarem pregos velhos de tábuas velhas, enquanto Eddie andava até os arbustos para dar uma mijada (você tinha que ir assim que pudesse para evitar dano sério à bexiga, disse ele para Bill uma vez, mas também tinha que tomar cuidado com hera venenosa, porque quem precisava disso no pinto?). Estamos todos aqui em Derry. Nada de acampamento, nada de parentes, nada de férias, nada de LONGE. Todos aqui. Presentes e participantes.

 

— Tem uma porta ali embaixo — disse Eddie, fechando o zíper ao voltar.

 

— Espero que você tenha balançado, Eddie — disse Richie. — Se você não balançar sempre, pode pegar câncer. Minha mãe me disse.

 

Eddie pareceu assustado, um pouco preocupado, mas depois viu o sorriso de Richie. Ele lançou um olhar intenso (ou tentou) e disse:

 

— Era grande demais para nós carregarmos. Mas Bill disse que, se todos nós fôssemos lá, dava pra trazer pra cá.

 

— É claro que nunca dá pra sacudir completamente — prosseguiu Richie. — Quer saber o que um homem sábio me disse uma vez, Eds?

 

— Não — disse Eddie —, e não quero mais que você me chame de Eds, Richie. Eu sou sincero. Não chamo você de Dick. Tipo “Tem um chiclete aí, Dick?”, então não entendo por que...

 

— Esse homem sábio — disse Richie — me contou isso: “Não importa o quanto você se contorça e dance, as últimas duas gotas sempre ficam na cueca.” E é por isso que tem tanto câncer no mundo, Eddie, meu amor.

 

— O motivo de ter tanto câncer no mundo é que nerds como você e Beverly Marsh fumam cigarros — disse Eddie.

 

— Beverly não é nerd — disse Ben com voz ameaçadora. — Cuidado com o que fala, Boca de Lixo.

 

— Bip-bip, p-pessoal — disse Bill sem prestar muita atenção. — E falando de B-B-Beverly, ela é bem f-forte. Poderia a-ajudar a pegar aquela p-porta.

 

Ben perguntou que tipo de porta era.

 

— De m-m-mogno, eu a-acho.

 

— Alguém jogou fora uma porta de mogno? — perguntou Ben, surpreso, mas não descrente.

 

— As pessoas jogam tudo fora — disse Mike. — Aquele lixão? Me mata ir até lá. Falando sério, me mata.

 

— É — concordou Ben. — Muitas daquelas coisas poderiam ser consertadas com facilidade. E tem gente na China e na América do Sul que não tem nada. É o que a minha mãe diz.

 

— Tem gente que não tem nada bem aqui no Maine, Sunny Jim — disse Richie de forma implacável.

 

— O q-q-que é i-isso? — perguntou Bill, reparando no álbum que Mike levou. Mike contou para ele e disse que mostraria a foto do palhaço quando Stan e Beverly voltassem com as dobradiças.

 

Bill e Richie trocaram um olhar.

 

— Qual é o problema? — perguntou Mike. — O que aconteceu no quarto do seu irmão, Bill?

 

— É — disse Bill e não quis falar mais nada.

 

Eles se revezaram trabalhando no buraco até Stan e Beverly voltarem, cada um com um saco de papel pardo com dobradiças. Enquanto Mike falava, Ben ficou sentado de pernas cruzadas e fez janelas sem vidraças que abririam e fechariam em duas das tábuas longas. Talvez só Bill tivesse reparado o quanto os dedos dele trabalhavam rápida e facilmente; o quanto eram competentes e sábios, como dedos de cirurgião. Bill admirou isso.

 

— Algumas dessas fotos são de cem anos atrás, meu pai disse — contou Mike a eles, segurando o álbum no colo. — Ele consegue nessas vendas de jardim que as pessoas fazem e em lojas de coisas usadas. Às vezes, ele compra ou troca com outros colecionadores. Algumas são estereoscópios: são duas iguais em um cartão comprido, e quando você olha por um negócio que parece um binóculo, elas parecem uma foto só, mas em 3-D. Como A casa de cera ou O monstro da lagoa negra.

 

— Por que ele gosta dessas coisas? — perguntou Beverly. Ela estava usando uma calça Levi’s comum, mas tinha feito uma coisa diferente na barra, tinha coberto os últimos 10 centímetros com um tecido estampado chamativo, de forma que parecia calça de um marinheiro extravagante.

 

— É — disse Eddie. — Durante a maior parte do tempo, Derry é bem entediante.

 

— Ah, não sei direito, mas acho que é porque ele não nasceu aqui — disse Mike com timidez. — É como se... sei lá... como se fosse tudo novo pra ele, ou como se, sabe, se você entrasse no meio de um filme...

 

— C-C-Claro, você iria querer ver o c-começo — disse Bill.

 

— É — disse Mike. — Tem muita história em Derry. Eu acho meio legal. E acho que parte dela tem a ver com esse negócio... essa Coisa, se você quiser chamar assim.

 

Ele olhou para Bill, e Bill assentiu, com olhos pensativos.

 

— Então eu estava olhando o álbum depois do desfile de Quatro de Julho porque eu sabia que tinha visto aquele palhaço antes. Eu sabia. E vejam.

 

Ele abriu o álbum, folheou as páginas e entregou a Ben, que estava sentado à sua direita.

 

— N-N-Não t-t-toque nas p-p-páginas! — disse Bill, e havia tanta urgência na voz dele que todos pularam. Ele tinha fechado a mão que cortou ao enfiar no álbum de Georgie, Richie percebeu. Fechado e apertado em um nó rígido e protetor.

 

— Bill está certo — disse Richie, e aquela voz branda, totalmente diferente da de Richie, teve um poderoso efeito de convencimento. — Tomem cuidado. É como Stan disse. Se vimos acontecer, vocês também podem ver.

 

— Sentir — acrescentou Bill sombriamente.

 

O álbum passou de mão em mão, e cada um segurou com cuidado, como se ele fosse uma banana de dinamite respingando gotas grandes de nitroglicerina.

 

O álbum voltou para Mike. Ele o abriu em uma das primeiras páginas.

 

— Papai diz que não tem como descobrir a data dessa, mas deve ser do começo ou do meio dos anos 1700 — disse Mike. — Ele consertou a serra de fita de um cara por uma caixa de livros e fotos velhas. Essa era uma delas. Ele diz que pode valer quarenta pratas ou até mais.

 

A foto era uma xilogravura, do tamanho de um cartão-postal grande. Quando chegou a vez de Bill olhar, ele ficou aliviado de ver que o pai de Mike tinha o tipo de álbum em que as fotos ficavam por baixo de uma folha de plástico para protegê-las. Ele olhou com fascinação e pensou: Pronto. Estou vendo-o, ou vendo a Coisa. Vendo mesmo. Essa é a cara do inimigo.

 

A foto mostrava um sujeito engraçado fazendo malabarismo com pinos de boliche enormes no meio de uma rua lamacenta. Havia poucas casas dos dois lados da rua, e algumas cabanas que Bill supôs serem lojas, ou postos de escambo, ou como quer que chamassem naquela época. Não parecia em nada com Derry, exceto pelo canal. Estava ali, com as laterais feitas de pedra. No fundo, ao alto, Bill conseguia ver um grupo de mulas em um caminho de sirga, arrastando uma barcaça.

 

Havia um grupo de talvez seis crianças reunidas ao redor do sujeito engraçado. Uma delas estava usando um chapéu de palha pastoril. Outra estava com um aro e uma vareta para fazê-lo rolar. Não era o tipo de vareta que viria com um aro que se comprava hoje em dia na Woolworth’s; era um galho de árvore. Bill conseguia ver os nós onde os galhos menores tinham sido cortados com uma faca ou uma machadinha. Aquela gracinha não foi feita em Taiwan nem na Coreia, pensou ele, fascinado por esse garoto que poderia ter sido ele se tivesse nascido quatro ou cinco gerações antes.

 

O sujeito engraçado tinha um sorriso enorme no rosto. Não usava maquiagem (só que, para Bill, a cara inteira dele parecia maquiagem), mas era careca exceto por dois tufos de cabelo esticados como chifres por cima das orelhas, e Bill não teve dificuldade em reconhecer o palhaço deles. Duzentos anos atrás ou mais, pensou ele, e sentiu uma onda louca de terror, raiva e empolgação percorrer o corpo. Vinte e sete anos depois, sentado na Biblioteca Pública de Derry lembrando-se da primeira vez que olhou o álbum do pai de Mike, ele percebeu que se sentiu como um caçador deveria se sentir ao dar de cara com o primeiro rastro recente de um velho tigre assassino. Duzentos anos atrás... tanto tempo, e só Deus sabe por quanto tempo mais. Isso o levou a se perguntar por quanto tempo o espírito de Pennywise estava aqui em Derry, mas descobriu que era um pensamento que não queria desenvolver.

 

— Me dá, Bill! — Richie estava dizendo, mas Bill ficou segurando o álbum um momento mais, olhando fixamente para a imagem, com a certeza de que ela começaria a se mexer: os pinos de boliche (se é que eram isso) que o cara engraçado estava usando para malabarismo subiriam e cairiam, subiriam e cairiam, as crianças ririam e aplaudiriam (só que talvez elas não fossem todas rir e aplaudir; algumas talvez gritassem e saíssem correndo), as mulas puxando a barcaça sairiam da extremidade da foto.

 

Não aconteceu, e ele passou o álbum para Richie.

 

Quando o álbum voltou para Mike, ele virou mais algumas páginas, procurando uma coisa.

 

— Aqui — disse ele. — Essa é de 1856, quatro anos antes de Lincoln ser eleito presidente.

 

O álbum passou de mão em mão de novo. Essa imagem era colorida, uma espécie de desenho, que mostrava alguns bêbados de pé na frente de um saloon enquanto um político gordo de costeletas e bigode declamava de cima de um palco que tinha sido colocado entre dois barris. Ele segurava uma caneca de cerveja coberta de espuma em uma das mãos. O palco no qual ele aparecia de pé estava consideravelmente curvado sob o peso dele. A uma certa distância, um grupo de mulheres de chapéu estava olhando para o show de palhaçada e descontrole com asco. A legenda embaixo da imagem dizia: POLÍTICA EM DERRY É TRABALHO ÁRDUO, DIZ O SENADOR GARNER!

 

— Papai disse que imagens assim foram muito populares por uns vinte anos antes da Guerra Civil — disse Mike. — Chamavam de “cartões bobos”, e as pessoas mandavam umas pras outras. Eram como algumas das charges da Mad, eu acho.

 

— S-S-Sátira — disse Bill.

 

— É — disse Mike. — Mas agora, olha o canto dessa aqui.

 

A foto parecia com a Mad de outra forma: tinha tantos detalhes e pequenas piadas quanto um painel de Mort Drucker. Havia um homem gordo e sorridente derramando um copo de cerveja na boca de um cachorro malhado. Havia uma mulher que tinha caído de bunda em uma poça de lama. Havia dois moleques de rua enfiando fósforos nas solas dos sapatos de um empresário de aparência próspera, e uma garota pendurada de cabeça pra baixo em um olmo, com a calcinha aparecendo. Mas, apesar dessa quantidade impressionante de detalhes, nenhum deles precisou que Mike mostrasse o palhaço. Vestido com um berrante terno xadrez de três peças de caixeiro-viajante, ele estava fazendo o jogo dos três copinhos com um bando de lenhadores bêbados. Estava piscando para um lenhador que, a julgar pela expressão surpresa e boquiaberta, tinha acabado de escolher o copinho errado. O caixeiro-viajante/palhaço estava recebendo uma moeda dele.

 

— Ele de novo — disse Ben. — Quanto... cem anos depois?

 

— Mais ou menos — disse Mike. — E aqui tem uma de 1891.

 

Era um recorte da primeira página do Derry News. VIVA!, dizia com exuberância a manchete. A SIDERÚRGICA ABRE! Logo abaixo disso: “Cidade se prepara para piquenique.” A foto mostrava uma imagem da cerimônia de corte de fita inaugural da Siderúrgica Kitchener; o estilo lembrou a Bill as gravuras de Currier and Ives que a mãe tinha na sala de jantar, embora essa não fosse nem um pouco tão definida. Um cara vestido de paletó e cartola segurava uma tesoura enorme aberta acima do laço de fita da siderúrgica enquanto um grupo de talvez quinhentas pessoas assistia. À esquerda estava um palhaço, fazendo uma pirueta para um grupo de crianças. O artista o tinha capturado de cabeça para baixo, o que transformou o sorriso em um grito.

 

Ele passou o álbum rapidamente para Richie.

 

A foto seguinte era uma sob a qual Will Hanlon tinha escrito: 1933, Revogação em Derry. Embora nenhum dos garotos soubesse muito sobre a Lei Seca e a revogação dela, a foto deixava os fatos importantes bem claros. A foto era do Wally’s Spa no Meio Acre do Inferno. O lugar estava quase literalmente cheio até a borda de homens usando camisas brancas abertas, chapéus-palhetas, camisas de lenhador, camisetas, ternos de banqueiro. Todos seguravam copos e garrafas no alto, com pose de vitória. Havia dois cartazes grandes nas janelas. BEM-VINDO DE VOLTA, JOHN BARLEYCORN!, dizia um. O outro dizia: CERVEJA GRÁTIS HOJE. O palhaço, vestido como o maior dândi que você já viu (de sapatos brancos, polainas, calça de gângster), estava com o pé no degrau debaixo da porta de um automóvel Reo e tomando champanhe em um sapato de mulher de salto alto.

 

— Mil novecentos e quarenta e cinco — disse Mike.

 

O Derry News de novo. A manchete: JAPÃO SE RENDE — ACABOU! GRAÇAS A DEUS, ACABOU! Um desfile seguia dançando pela rua Main na direção da colina Up-Mile. E ali estava o palhaço ao fundo, usando a roupa prateada com os botões laranja, congelado na matriz de pontos que compunha a foto granulada do jornal, parecendo sugerir (ao menos para Bill) que nada tinha acabado, ninguém tinha se rendido, nada foi vencido, nada ainda era a regra, nada ainda era o costume; parecendo sugerir acima de tudo que tudo ainda estava perdido.

 

Bill se sentiu gelado, seco e assustado.

 

De repente, os pontos na foto desapareceram e ela começou a se mover.

 

— Foi o que... — começou Mike a dizer.

 

— O-O-Olhem — disse Bill. A palavra caiu de sua boca como um cubo de gelo parcialmente derretido. — P-P-Pessoal, o-o-olha i-isso!

 

Eles se reuniram ao redor do álbum.

 

— Ah, meu Deus — sussurrou Beverly, estupefata.

 

— É A COISA! — Richie quase gritou, batendo nas costas de Bill de empolgação. Ele olhou para o rosto branco e contraído de Eddie e para o paralisado de Stan Uris. — Foi o que vimos no quarto de George! Foi exatamente o que...

 

— Shh — disse Ben. — Escute. — E então, quase chorando: — Dá pra ouvir... Cristo, dá pra ouvir eles aí.

 

E, no silêncio rompido apenas pelo movimento leve da brisa de verão, todos perceberam que conseguiam ouvir. A banda estava tocando uma marchinha, em tom baixo e metálico devido à distância... ou à passagem de tempo... ou o que quer que fosse. Os gritos da multidão pareciam sons de uma estação de rádio mal sintonizada. Havia estalos, também baixos, como o som abafado de dedos estalando.

 

— Bombinhas — sussurrou Beverly, e esfregou os olhos com mãos trêmulas. — São bombinhas, não são?

 

Ninguém respondeu. Eles ficaram olhando a foto, com os olhos ocupando metade da cara.

 

O desfile seguiu na direção deles, mas pouco antes de as pessoas chegarem ao limite da frente, no ponto em que parecia que sairiam da foto e entrariam em um mundo 13 anos depois, elas sumiram, como se em uma espécie de curva imperceptível. Os soldados da Primeira Guerra Mundial primeiro, com os rostos estranhamente velhos sob os capacetes, com a faixa que dizia: OS VETERANOS DE GUERRA DE DERRY SAÚDAM A CHEGADA DOS RAPAZES CORAJOSOS, depois os escoteiros, os Kiwanians, a tropa médica, a banda cristã de Derry, depois os veteranos de Derry da Segunda Guerra Mundial em pessoa, com a banda do ensino médio logo atrás. A multidão se movia e deslocava. Tiras de papel e confete voavam das janelas de segundo e terceiro andar dos prédios comerciais nas ruas. O palhaço pulava na lateral, fazendo splits e dando estrelas, imitando um atirador de elite, imitando uma saudação. E Bill reparou pela primeira vez que as pessoas estavam se afastando dele, mas não como se o vissem, exatamente; parecia mais que sentiam uma corrente de ar ou o cheiro de alguma coisa estragada.

 

Só as crianças realmente o viam, e elas se encolhiam para longe dele.

 

Ben esticou a mão para a foto, como Bill fez no quarto de George.

 

— N-N-N-NÃO! — gritou Bill.

 

— Acho que não tem problema, Bill — disse Ben. — Veja. — E colocou a mão no plástico protetor sobre a foto por um momento e a levantou de volta. — Mas se você tirasse essa cobertura...

 

Beverly gritou. O palhaço parou de fazer palhaçadas quando Ben afastou a mão. Saiu correndo na direção deles, com a boca sangrenta pintada murmurando e rindo. Bill se encolheu, mas continuou segurando o álbum, achando que ele sumiria da mesma forma que o desfile, a bandinha, os escoteiros, o Cadillac conversível com a Miss Derry de 1945.

 

Mas o palhaço não desapareceu naquela curva que parecia definir a beirada daquela existência antiga. Em vez disso, deu um salto com uma graça assustadora e ágil para cima de um poste que ficava na extrema esquerda da imagem. Ele pulou como um macaco em um galho e, de repente, o rosto dele estava pressionado contra a grossa folha plástica que Will Hanlon tinha colocado por cima de cada uma das páginas do álbum. Beverly gritou de novo, e desta vez Eddie se juntou a ela, embora o grito dele fosse baixo e quase sem fôlego. O plástico foi empurrado para fora; mais tarde, todos concordariam terem visto isso. Bill viu o bulbo do nariz vermelho do palhaço se achatar, da forma como seu nariz se achata quando você o pressiona em uma janela.

 

— Matar todos vocês! — O palhaço estava rindo e gritando. — Tentem me impedir e vou matar todos vocês! Vou enlouquecer vocês e depois matar todos! Vocês não podem me deter! Sou o Homem Biscoito de Gengibre! Sou o Lobisomem Adolescente!

 

E, por um momento, a Coisa foi o Lobisomem Adolescente, com o rosto prateado e redondo do licantropo olhando para eles por cima da gola da roupa prateada, com dentes brancos à mostra.

 

— Não podem me deter, sou o leproso!

 

Agora o rosto do leproso, assombrado e descascando, podre de tantas feridas, olhava para eles com olhos de morto-vivo.

 

— Não podem me deter, sou a múmia!

 

O rosto do leproso envelheceu e foi tomado de rachaduras estéreis. Ataduras velhas ocupavam parte da pele e estavam solidificadas ali. Ben se virou, com o rosto branco como coalhada, uma das mãos sobre o pescoço e o ouvido.

 

— Não podem me deter, sou os garotos mortos!

 

— Não! — gritou Stan Uris. Os olhos dele saltaram acima dos arcos de pele que pareciam hematomas. Olheiras de choque, pensou Bill aleatoriamente, e foi uma expressão que ele usaria em um livro 12 anos depois, sem fazer ideia de onde tinha vindo, simplesmente a usaria como escritores usam as palavras certas na hora certa, como um mero dom daquele espaço sideral

 

(espaço adicional)

 

de onde as boas palavras vêm às vezes.

 

Stan arrancou o álbum das mãos dele e fechou com força. Segurou-o fechado com as duas mãos, e os tendões saltaram na parte interna dos pulsos e antebraços. Ele olhou ao redor para os outros com olhos que pareciam quase insanos.

 

— Não — disse ele rapidamente. — Não, não, não.

 

E, de repente, Bill percebeu que estava mais preocupado com a negação insistente de Stan do que com o palhaço, e entendeu que esse era exatamente o tipo de reação que o palhaço queria provocar, porque...

 

Porque talvez a Coisa esteja com medo de nós... com medo de verdade pela primeira vez em sua longa vida.

 

Ele segurou Stan e o sacudiu duas vezes, com força, segurando nos ombros dele. Os dentes de Stan estalaram ao baterem e ele largou o álbum. Mike o pegou e guardou rapidamente, não gostando de tocar nele depois do que viu. Mas ainda era do pai dele, e ele entendia de forma intuitiva que o pai jamais veria ali dentro o que ele tinha acabado de ver.

 

— Não — disse Stan baixinho.

 

— Sim — disse Bill.

 

— Não — disse Stan de novo.

 

— Sim. Todos n-n-nós...

 

— Não.

 

— ... n-n-nós v-vimos, Stan — disse Bill. Ele olhou para os outros.

 

— Sim — disse Ben.

 

— Sim — disse Richie.

 

— Sim — disse Mike. — Ah, Deus, sim.

 

— Sim — disse Bev.

 

— Sim — Eddie conseguiu dizer, ofegante pela garganta que se fechava rapidamente.

 

Bill olhou para Stan, exigindo com os olhos que Stan olhasse para ele também.

 

— N-Não deixa isso t-t-te a-afetar, cara — disse Bill. — V-Você t-t-também v-viu.

 

— Eu não queria! — choramingou Stan. Havia suor na testa dele, uma camada oleosa.

 

— Mas v-v-você v-v-viu.

 

Stan olhou para os outros, um a um. Passou as mãos pelo cabelo curto e deu um grande suspiro trêmulo. Seus olhos pareceram se livrar daquela loucura que tanto perturbou Bill.

 

— Sim — disse ele. — Sim. Tá. Sim. É isso que vocês querem? Sim.

 

Bill pensou: Ainda estamos todos juntos. Ele não nos deteve. Ainda podemos matar a Coisa. Ainda podemos matar a Coisa... se formos corajosos.

 

Bill olhou para os outros e viu em cada par de olhos uma parte da histeria de Stan. Não com tanta intensidade, mas estava lá.

 

— É-É — disse ele, e sorriu para Stan. Depois de um momento, Stan também sorriu, e parte daquele choque horrível sumiu de seu rosto. — Era o que eu q-q-queria, seu m-mijão.

 

— Bip-bip, Dumbo — disse Stan, e todos riram. Foram gargalhadas histéricas e berradas, mas melhor do que nenhuma gargalhada, pensou Bill.

 

— V-V-Vamos — disse ele, porque alguém tinha que dizer alguma coisa. — Vamos t-t-terminar a sede do clube. O que vocês d-d-dizem?

 

Ele viu gratidão nos olhos deles e sentiu uma certa felicidade por eles... mas a gratidão quase não ajudou a fazer desaparecer o horror que ele sentia. Na verdade, havia alguma coisa na gratidão deles que o fazia ter vontade de odiá-los. Será que ele jamais poderia expressar seu próprio pavor, com o risco de os laços frágeis que os uniam se soltarem? E, na verdade, uma coisa assim não era justa, era? Porque, de certa forma, ele os estava usando, usando os amigos, botando a vida deles em risco, para acertar as contas da morte do irmão. E era essa a questão? Não, porque George estava morto, e se a vingança podia ser executada, Bill desconfiava que só podia ser executada em prol dos vivos. E o que isso o tornava? Um merdinha egoísta sacudindo uma espada de lata e tentando se fazer parecer o rei Arthur?

 

Ah, Deus, gemeu ele em pensamento, se é nisso que os adultos têm que pensar, nunca quero crescer.

 

A determinação dele ainda estava forte, mas era uma determinação amarga.

 

O buraco de fumaça

 

Richie Tozier empurra os óculos no nariz (o gesto já parece perfeitamente familiar, embora ele use lentes de contato há 20 anos) e pensa com surpresa que a atmosfera mudou na sala enquanto Mike relembrava o incidente com o pássaro na siderúrgica e os lembrava do álbum de fotos do pai que se moveu.

 

Richie sentiu um tipo de energia louca e eufórica crescendo na sala. Ele tinha usado cocaína umas nove ou dez vezes ao longo dos últimos dois anos (em festas, em geral; cocaína não era o tipo de coisa que você iria querer ter em casa se era um disc-jóquei famoso), e a sensação era bem parecida, mas não idêntica. Essa sensação era mais pura, mais um barato de droga injetada na veia principal. Ele pensou reconhecer o sentimento da infância, quando o sentia todos os dias e passou a encará-lo como parte da vida. Ele achava que, se alguma vez pensou naquele tipo de energia profunda quando criança (ele não conseguia se lembrar de já ter pensado), simplesmente descartou como fato da vida, uma coisa que sempre estaria presente, como a cor de seus olhos ou as deformações horrendas dos dedos dos pés.

 

Bem, isso acabou não sendo verdade. A energia que lhe dava vida de forma tão extravagante quando você era criança, a energia que você achava que jamais terminaria, ela sumiu em algum momento entre os 18 e os 24 anos e foi substituída por uma coisa mais sem graça, uma coisa tão falsa quanto o barato de cocaína: propósito, talvez, ou objetivos, ou qualquer palavra da Câmara Júnior de Comércio que você quisesse usar. Não era nada de mais; não sumia tudo de uma vez, com um estalo. E talvez, pensou Richie, essa fosse a parte assustadora. Que você não deixa de ser criança de uma vez, com um grande estrondo explosivo, como um dos balões daquele palhaço com slogans de Burma-Shave nas laterais. A criança em você ia se esgotando, como o ar em um pneu. E um dia você se olhava no espelho e havia um adulto olhando para você. Você podia continuar usando calça jeans, podia continuar indo a shows de Springsteen ou Seger, podia pintar o cabelo, mas o rosto no espelho era de um adulto de qualquer jeito. Talvez tudo acontecesse quando você estava dormindo, como uma visita da Fada do Dente.

 

Não, pensa ele. Não da Fada do Dente. Da Fada da Idade.

 

Ele ri alto da extravagância estúpida dessa imagem, e quando Beverly olha para ele querendo saber o que foi, ele balança a mão para ela.

 

— Nada, gata — diz ele. — Só estou pensando pensamentos.

 

Mas agora, aquela energia voltou. Não, não completamente, ao menos ainda não, mas está voltando. E não é só nele; ele consegue senti-la ocupando a sala. Mike parece bem pela primeira vez desde que todos se reuniram para aquele almoço horroroso perto do shopping. Quando Richie entrou no saguão e viu Mike sentado ali com Ben e Eddie, ele pensou, chocado: Ali há um homem que está ficando louco, talvez quase pronto pra cometer suicídio. Mas aquela expressão já sumiu. Não foi apenas sublimada; sumiu. Richie está sentado ali observando os últimos traços desaparecerem do rosto de Mike enquanto revivia a experiência do pássaro e do álbum. Ele está energizado. E o mesmo está acontecendo com todos. Está no rosto deles, nas vozes, nos gestos.

 

Eddie se serve de outra dose de gim com suco de ameixa. Bill bebe um pouco de uísque, e Mike abre outra cerveja. Beverly olha para os balões que Bill prendeu à microfilmadora na mesa principal e termina o terceiro screwdriver rapidamente. Todos estão bebendo com entusiasmo, mas nenhum deles está bêbado. Richie não sabe de onde vem a energia que está sentindo, mas não é de uma garrafa de bebida.

 

CRIOULOS DE DERRY QUE SE FODAM: azuis.

 

OS OTÁRIOS CONTINUAM OTÁRIOS, MAS STANLEY URIS FINALMENTE SAIU NA FRENTE: laranja.

 

Meu Deus, Richie pensa, abrindo uma nova cerveja. Não é ruim o bastante que a Coisa possa ser qualquer monstro que queira, e não é ruim o bastante que a Coisa possa se alimentar de nossos medos. Ela também acaba sendo Rodney Dangerfield vestido de mulher.

 

É Eddie quem rompe o silêncio.

 

— O quanto vocês acham que a Coisa sabe sobre o que estamos fazendo agora? — pergunta ele.

 

— Ela esteve aqui, não esteve? — diz Ben.

 

— Não sei se isso quer dizer muita coisa — responde Eddie.

 

Bill assente.

 

— São apenas imagens — diz ele. — Não sei se quer dizer que a Coisa consegue nos ver, ou saber o que estamos planejando. A gente consegue ver um repórter de notícias na TV, mas ele não consegue ver a gente.

 

— Esses balões não são apenas imagens — diz Beverly, e aponta para eles por cima do ombro com o polegar. — São de verdade.

 

— Mas não é verdade — diz Richie, e todos olham para ele. — Imagens são reais. Claro que eles são. Eles...

 

E de repente, uma outra coisa se encaixa, uma coisa nova: se encaixa com força tão firme que ele coloca as mãos nos ouvidos. Seus olhos se arregalam por trás dos óculos.

 

— Ah, meu Deus! — grita ele de repente. Ele tateia na mesa, começa a se levantar, depois cai na cadeira de novo com um baque. Derruba a lata de cerveja ao tentar pegá-la, consegue segurar e bebe o que restou. Ele olha para Mike enquanto os outros olham para ele, assustados e preocupados.

 

— O ardor! — ele quase grita. — O ardor nos meus olhos! Mike! O ardor nos meus olhos...

 

Mike está assentindo, sorrindo um pouco.

 

— R-Richie? — pergunta Bill. — O que foi?

 

Mas Richie mal o escuta. A força da lembrança o percorre como uma onda, deixando-o alternadamente com frio e calor, e ele de repente entende por que essas lembranças voltaram uma de cada vez. Se ele tivesse se lembrado de tudo de uma vez, a força teria sido como a de um tiro psicológico a 2 centímetros de sua têmpora. Teria destruído toda a parte de cima de sua cabeça.

 

— Nós vimos a Coisa chegando! — diz ele para Mike. — Nós vimos a Coisa chegando, não vimos? Você e eu... ou fui só eu? — Ele segura a mão de Mike, que está em cima da mesa. — Você também viu, Mikey, ou fui só eu? Você viu a Coisa? O incêndio na floresta? A cratera?

 

— Eu vi — diz Mike baixinho, e aperta a mão de Richie.

 

Richie fecha os olhos por um momento, pensando que nunca sentiu uma onda tão calorosa e poderosa de alívio na vida, nem mesmo quando o jatinho que pegou de Los Angeles para São Francisco deslizou na pista e parou de repente, sem ninguém morrer, sem ninguém nem se ferir. Algumas malas caíram dos compartimentos superiores e isso foi tudo. Ele pulou no escorrega amarelo de emergência e ajudou uma mulher a se afastar do avião. A mulher virou o tornozelo em uma protuberância escondida na grama. Ela estava rindo e dizendo: “Não acredito que não estou morta, não acredito, não consigo acreditar.” Então Richie, que estava meio que carregando a mulher com um dos braços e balançando o outro para os bombeiros que faziam gestos desesperados para os passageiros irem logo, disse: “Tudo bem, você está morta, você está morta, está melhor agora?”, e os dois riram loucamente. Aquela foi uma risada de alívio... mas esse alívio era maior.

 

— De que vocês estão falando? — pergunta Eddie, olhando de um para o outro.

 

Richie olha para Mike, mas Mike balança a cabeça.

 

— Vá em frente, Richie. Já falei demais por hoje.

 

— Vocês não sabem ou talvez não lembrem porque foram embora — conta Richie. — Eu e Mikey, nós fomos os dois últimos índios no buraco de fumaça.

 

— O buraco de fumaça — reflete Bill. Os olhos dele estão distantes e azuis.

 

— A sensação de queimação nos olhos — diz Richie — por baixo das lentes de contato. Senti pela primeira vez depois que Mike ligou pra mim na Califórnia. Eu não soube o que era na hora, mas sei agora. Foi a fumaça. Fumaça com 27 anos de idade. — Ele olha para Mike. — Psicológico, você diria? Psicossomático? Uma coisa do subconsciente?

 

— Eu diria que não — responde Mike baixinho. — Eu diria que o que você sentiu foi tão real quanto esses balões, ou a cabeça que vi na geladeira, ou o cadáver de Tony Tracker que Eddie viu. Conta pra eles, Richie.

 

Richie diz:

 

— Foi quatro ou cinco dias depois que Mike levou o álbum do pai dele pro Barrens. Lá pra meados de julho, eu acho. A sede do clube estava pronta. Mas... o troço do buraco de fumaça, aquilo foi ideia sua, Monte de Feno. Você tirou de um de seus livros.

 

Sorrindo um pouco, Ben assente.

 

Richie pensa: Estava nublado naquele dia. Sem brisa. Estava trovejando. Como no dia, um mês depois, mais ou menos, em que ficamos de pé no riacho e fizemos um círculo e Stan cortou nossas mãos com aquele caco de garrafa de Coca. O ar estava parado, esperando que alguma coisa acontecesse, e mais tarde Bill disse que foi por isso que ficou tão ruim lá, e tão rápido, porque não tinha vento.

 

Dezessete de julho. Sim, foi isso, aquele foi o dia do buraco de fumaça. Dezessete de julho de 1958, quase um mês depois do início das férias de verão e o núcleo dos Otários, Bill, Eddie e Ben, ter se formado no Barrens. Deixe-me procurar a previsão do tempo para aquele dia quase 27 anos atrás, pensa Richie, e posso dizer as palavras antes mesmo de lê-las: Richard Tozier, também conhecido como o Grande Mentalizador. “Quente, úmido, com chances de chuvas de verão. E cuidado com visões que podem acompanhar enquanto você está lá embaixo no buraco de fumaça...”

 

Isso foi dois dias depois que o corpo de Jimmy Cullum foi descoberto, o dia depois que o sr. Nell desceu para o Barrens de novo e se sentou na sede do clube sem saber que ela existia, porque eles já a tinham coberto e o próprio Ben tinha cuidado da aplicação de cola e recolocação da terra. Se você não ficasse de quatro e engatinhasse pela área, nem sonharia que havia alguma coisa ali. Como a represa, a sede do clube de Ben foi um sucesso estrondoso, mas desta vez o sr. Nell não soube nada sobre ela.

 

Ele os interrogou detalhadamente, de forma oficial, e anotou as respostas no caderninho preto, mas havia pouco que eles pudessem contar, ao menos sobre Jimmy Cullum, e o sr. Nell foi embora depois de lembrá-los mais uma vez que eles não deviam brincar no Barrens sozinhos... nunca. Richie supôs que o sr. Nell teria simplesmente mandado que eles fossem embora se alguém do Departamento de Polícia de Derry realmente acreditasse que o garoto Cullum (ou qualquer um dos outros) tinha sido morto no Barrens. Mas eles sabiam que não; por causa do esgoto e do sistema de escoamento, ali era apenas onde os restos costumavam ir parar.

 

O sr. Nell foi no dia 16, sim, um dia também quente e úmido, mas ensolarado. O dia 17 é que estava nublado.

 

— Você vai contar pra gente ou não, Richie? — pergunta Bev. Ela está sorrindo um pouco, com lábios carnudos e rosados, os olhos iluminados.

 

— Só estou pensando em por onde começar — diz Richie. Ele tira os óculos, limpa na camisa e de repente sabe onde: com o chão se abrindo aos pés dele e de Bill. É claro que ele sabia sobre a sede do clube, assim como Bill e o resto deles, mas ainda se apavorou ao ver o chão se abrindo como um pedaço de escuridão daquele jeito.

 

Ele se lembra de Bill levando-o na garupa de Silver para o local habitual na rua Kansas e depois guardando a bicicleta debaixo da ponte. Ele se lembra dos dois seguindo pelo caminho para a clareira, às vezes tendo que virar de lado porque a vegetação era muito densa. Eles estavam no meio do verão, e o Barrens se encontrava no apogeu da vida daquele verão. Ele se lembra de bater nos mosquitos que zumbiam perto demais dos ouvidos deles; até se lembra de Bill dizendo (ah, como tudo volta tão claramente, não como se tivesse acontecido ontem, mas como se estivesse acontecendo agora) “A-A-Aguenta, um s-s-s...

 

egundo, R-Richie. Tem um e-e-enorme na s-sua n-nuca.

 

— Ah, Deus — disse Richie. Ele odiava mosquitos. Pequenos vampiros voadores, era isso que eles eram se você analisasse os fatos. — Mata, Big Bill.

 

Bill bateu na nuca de Richie.

 

— Ai!

 

— E-E-Está v-vendo?

 

Bill esticou a mão na frente do rosto de Richie. Havia um corpo de mosquito partido no meio de uma mancha irregular de sangue. Meu sangue, pensou Richie, que foi derramado por você e por muitos.

 

— Eeeeca — disse ele.

 

— N-Não se p-preocupe — disse Bill. — O merdinha n-nunca mais vai dançar t-t-tango.

 

Eles seguiram andando, batendo em mosquitos, afastando muriçocas atraídas por alguma coisa no cheiro do suor deles, uma coisa que anos depois seria identificada como “feromônios”. Fossem lá o que fossem.

 

— Bill, quando você vai contar pro pessoal sobre as balas de prata? — perguntou Richie quando eles se aproximaram da clareira. Nesse caso, o “pessoal” era Bev, Eddie, Mike e Stan, embora Richie achasse que Stan já tinha uma boa noção do que eles estavam estudando na Biblioteca Pública. Stan era arguto, arguto até demais, Richie às vezes pensava. No dia em que Mike levou o álbum do pai para o Barrens, Stan quase surtou. Richie chegou a ficar quase convencido de que eles não veriam Stan de novo, e o Clube dos Otários viraria um sexteto (uma palavra da qual Richie gostava muito, sempre com ênfase na primeira sílaba). Mas Stan voltou no dia seguinte, e Richie o respeitou ainda mais por isso. — Vai contar hoje?

 

— N-Não hoje — disse Bill.

 

— Você acha que não vai dar certo, né?

 

Bill deu de ombros, e Richie, que talvez compreendesse Bill Denbrough melhor do que qualquer outra pessoa compreenderia até a chegada de Audra Phillips, desconfiava de todas as coisas que Bill poderia ter dito se não fosse o bloqueio criado pela gagueira: que crianças fazerem balas de prata era coisa de livros de garotos, coisa de revistas em quadrinhos... Em uma palavra, era besteira. Besteira perigosa. Eles podiam tentar, claro. Ben Hanscom talvez até conseguisse executar, claro. Em um filme, funcionaria, claro. Mas...

 

— E então?

 

— Tenho uma i-i-ideia — disse Bill. — Mais simples. Mas só se Be-Be-Beverly...

 

— Se Beverly o quê?

 

— D-Deixa pra lá.

 

E Bill não quis falar mais nada sobre o assunto.

 

Eles chegaram à clareira. Se você olhasse com atenção, poderia achar que a grama ali parecia meio esmagada, tinha uma aparência meio usada. Poderia até pensar que havia alguma coisa meio artificial, quase planejada, nas folhas espalhadas por cima da terra. Bill pegou uma embalagem de Ring-Ding (de Ben, era quase certo) e colocou distraidamente no bolso.

 

Os garotos andaram até o centro da clareira... e um pedaço de chão com uns 25 centímetros de comprimento por 8 de largura se levantou com um gemido de dobradiças e revelou uma pálpebra preta. Olhos observaram daquela escuridão, o que provocou um arrepio momentâneo em Richie. Mas eram apenas os olhos de Eddie Kaspbrak, e foi Eddie, que ele visitaria no hospital uma semana depois, que falou com voz seca:

 

— Quem está passando pela minha ponte?

 

Risos vindos de baixo, e o piscar de uma lanterna.

 

— Suemos los rurales, senhorr — disse Richie, agachado, girando um bigode invisível e falando com a Voz de Pancho Vanilla.

 

— É? — perguntou Beverly lá de baixo. — Mostra seus distintivos.

 

— Los distintivos? — gritou Richie, satisfeito. — Non precisamos de malditos los distintivos!

 

— Vai pro inferno, Pancho — respondeu Eddie, e fechou a grande pálpebra. Houve mais risadas abafadas vindas de baixo.

 

— Saiam com as mãos para o alto! — gritou Bill com voz grave e autoritária de adulto. Ele começou a andar de um lado para o outro por cima da tampa coberta de terra da sede do clube. Conseguia ver o chão se movendo ao passar de um lado para o outro, mas bem de leve; eles tinham feito um bom trabalho. — Vocês não têm chance! — berrou ele, vendo-se como o destemido Joe Friday do Departamento de Polícia de Los Angeles em sua imaginação. — Saiam daí, punks! Senão vou começar a ATIRAR!

 

Ele pulou para enfatizar o que disse. Gritos e risadas soaram embaixo. Bill estava sorrindo, sem perceber que Richie estava olhando para ele com sabedoria... olhando para ele não como uma criança olha para outra, mas, naquele breve momento, como um adulto olha para uma criança.

 

Ele não sabe que nem sempre gagueja, pensou Richie.

 

— Deixa eles entrarem, Ben, antes que derrubem o teto — disse Bev. Um momento depois, a porta se abriu como a escotilha de um submarino. Ben olhou para fora. Estava vermelho. Richie soube imediatamente que Ben estava sentado ao lado de Beverly.

 

Bill e Richie entraram pela abertura e Ben fechou-a de novo. Agora estavam todos ali, apertados nas tábuas que serviam de parede com as pernas encolhidas, os rostos ligeiramente visíveis na luz da lanterna de Ben.

 

— O q-q-que está r-r-rolando? — perguntou Bill.

 

— Nada de mais — disse Ben. Ele estava realmente sentado ao lado de Beverly, e o rosto dele parecia feliz, além de vermelho. — Só estávamos...

 

— Conta, Ben — interrompeu Eddie. — Conta a história pra eles! Vamos ver o que acham.

 

— Não seria bom pra sua asma — disse Stan em seu melhor tom de “alguém tem que ser prático aqui”.

 

Richie se sentou entre Mike e Ben, segurando os joelhos com as mãos unidas. Estava agradavelmente fresco ali embaixo, deliciosamente secreto. Seguindo o brilho da lanterna ao ser dirigida para um rosto atrás do outro, ele esqueceu temporariamente o que o impressionou tanto um minuto antes.

 

— De que vocês estão falando?

 

— Ah, Ben estava contando uma história sobre uma cerimônia indígena — disse Bev. — Mas Stan está certo, não seria muito bom pra sua asma, Eddie.

 

— Pode ser que não cause nada — disse Eddie, parecendo (para crédito dele, pensou Richie) apenas um pouco desconfortável. — Normalmente, é só quando me aborreço. De qualquer modo, eu gostaria de tentar.

 

— Tentar o q-q-quê? — perguntou Bill.

 

— A Cerimônia do Buraco de Fumaça — disse Eddie.

 

— O q-q-que é i-isso?

 

O raio da lanterna de Ben apontou para cima, e Richie seguiu-o com os olhos. Ele seguiu aleatoriamente pelo teto de madeira da sede do clube enquanto Ben explicava. O raio de luz atravessou os painéis cinzelados e rachados da porta de mogno que os sete carregaram até lá direto do lixão três dias antes, o dia anterior ao corpo de Jimmy Cullum ser descoberto. A coisa de que Richie se lembrava melhor sobre Jimmy Cullum, um garoto tranquilo que também usava óculos, era que ele gostava de jogar Palavras Cruzadas em dias de chuva. Não vai mais jogar Palavras Cruzadas, pensou Richie, e tremeu um pouco. Na escuridão, ninguém viu o tremor, mas Mike Hanlon, que estava sentado ombro a ombro com ele, deu uma olhada curiosa na direção dele.

 

— Ah, peguei um livro na biblioteca semana passada — dizia Ben. — Ghosts of the Great Plains, esse é o nome, e fala sobre as tribos indígenas que viviam no oeste 150 anos atrás. Os paiutes, os pawnees, os kiowas, os otoes e comanches. Era um livro muito bom. Eu adoraria um dia ir lá onde eles viviam. No Iowa, no Nebraska, Colorado, Utah...

 

— Cala a boca e conta sobre a Cerimônia do Buraco de Fumaça — disse Beverly, dando uma cotovelada nele.

 

— Claro — disse ele. — Certo.

 

E Richie acreditou que a resposta dele teria sido a mesma se Beverly o tivesse cutucado e dito “Tome o veneno agora, Ben, tá?”

 

— Sabe, quase todos aqueles índios tinham uma cerimônia especial, e a sede do nosso clube me fez pensar nisso. Sempre que eles tinham que tomar uma decisão importante, fosse deslocar o rebanho de búfalos ou encontrar água potável, ou se iam lutar contra os inimigos ou não, eles cavavam um buraco grande no chão e cobriam com galhos, exceto por um buraquinho no alto.

 

— O buraco de fu-fu-fumaça — disse Bill.

 

— Sua mente ligeira nunca deixa de me impressionar, Big Bill — disse Richie com seriedade. — Você devia participar de Twenty-One. Aposto que seria capaz de vencer até o velho Charlie van Doren.

 

Bill fingiu que ia bater nele; Richie se encolheu e acabou batendo com a cabeça com força na lateral.

 

— Ai!

 

— Você m-mereceu — disse Bill.

 

— Vou mataaaar você, seu gringo podre — disse Richie. — Não precisamos de porcaria nenhuma...

 

— Será que vocês podem parar? — pediu Beverly. — Isso é interessante. — E lançou um olhar tão caloroso para Ben que Richie pensou que vapor começaria a sair das orelhas do Monte de Feno em alguns minutos.

 

— Tudo bem, B-B-Ben — disse Bill. — C-C-Continua.

 

— Claro — disse Ben. A palavra saiu rouca. Ele precisou limpar a garganta e recomeçar. — Quando o buraco de fumaça era concluído, eles acendiam uma fogueira lá embaixo. Usavam madeira verde, pra fazer uma fogueira com bastante fumaça. E então, todos os bravos desciam lá e ficavam sentados ao redor da fogueira. O local ficava tomado de fumaça. O livro dizia que era uma cerimônia religiosa, mas também era uma espécie de competição, sabe? Depois de metade de um dia, mais ou menos, a maior parte dos bravos saía por não conseguir mais suportar a fumaça, e só restavam dois ou três. E eles deviam ter visões.

 

— É, se eu inspirasse fumaça por umas cinco ou seis horas, provavelmente teria visões também — disse Mike, e todos riram.

 

— As visões deviam dizer pra tribo o que fazer — disse Ben. — E não sei se essa parte é verdade ou não, mas os livros diziam que, na maior parte das vezes, as visões estavam certas.

 

Um silêncio se espalhou, e Richie olhou para Bill. Percebeu que todos estavam olhando para Bill, e teve a sensação de novo de que a história de Ben sobre o buraco de fumaça era mais do que uma coisa que você lia em um livro e precisava experimentar, como um experimento de química ou truque de mágica. Ele sabia, todos sabiam. Talvez Ben soubesse mais do que todo mundo. Era uma coisa que eles deveriam fazer.

 

Eles deviam ter visões... Na maior parte das vezes, as visões estavam certas.

 

Richie pensou: Aposto que, se perguntássemos, Monte de Feno diria que o livro praticamente pulou na mão dele. Como se alguma coisa quisesse que ele lesse aquele livro em particular e nos contasse sobre a cerimônia do buraco de fumaça. Porque tem uma tribo bem aqui, não tem? Tem. Nós. E sim, acho que precisamos saber o que acontece depois.

 

Esse pensamento levou a outro: Será que isso tinha que acontecer? Desde a hora que Ben teve a ideia de uma sede subterrânea pro clube em vez de uma casa na árvore, será que era pra isso acontecer? O quanto disso é ideia nossa e o quanto é ideia induzida?

 

De certa forma, ele achava que uma ideia assim devia ser quase reconfortante. Era legal imaginar que uma coisa maior do que você, mais inteligente do que você, estava pensando no seu lugar, como adultos que planejavam suas refeições, compravam suas roupas e controlavam seu tempo. E Richie estava convencido de que a força que os reuniu, a força que usara Ben como mensageiro para levar a ideia do buraco de fumaça, não era a mesma que estava matando as crianças. Era uma espécie de contraforça àquela outra... à

 

(ah, é melhor dizer de uma vez)

 

Coisa. Mas, por outro lado, ele não gostava dessa sensação de não estar no controle de suas ações, de ser controlado, de ser guiado.

 

Todos olharam para Bill; todos esperaram para ver o que Bill diria.

 

— S-S-Sabe — disse ele —, a i-ideia é b-bem l-l-legal.

 

Beverly suspirou, e Stan se mexeu com desconforto... e só.

 

— M-M-Muito l-legal — repetiu Bill, olhando para as mãos, e talvez fosse apenas a lanterna inquieta nas mãos de Ben, ou talvez sua imaginação, mas Richie pensou que Bill parecia mais pálido e bem mais assustado, apesar de estar sorrindo. — Talvez uma v-visão seja b-bom pra nos dizer o que f-f-fazer com relação ao nosso p-p-problema.

 

E, se alguém tiver uma visão, pensou Richie, vai ser Bill. Mas ele se enganou quanto a isso.

 

— Olha — disse Ben —, só deve funcionar pros índios, mas pode ser legal tentar.

 

— É, provavelmente vamos desmaiar por causa da fumaça e morrer aqui dentro — disse Stan com desânimo. — Seria bem legal mesmo.

 

— Você não quer participar, Stan? — perguntou Eddie.

 

— Ah, mais ou menos — disse Stan, e suspirou. — Acho que vocês estão me deixando maluco, sabe? — Ele olhou para Bill. — Quando?

 

Bill disse:

 

— B-Bem, n-nada é m-melhor do que o p-p-presente, n-né?

 

Fez-se um silêncio assustado e pensativo. Então Richie ficou de pé, abriu a porta de cima e deixou que a luz daquele dia parado de verão entrasse.

 

— Estou com minha machadinha — disse Ben, saindo atrás dele. — Quem quer me ajudar a cortar madeira verde?

 

No final, todos ajudaram.

 

Eles demoraram quase uma hora para ficar prontos. Cortaram quatro ou cinco braçadas de pequenos galhos verdes, dos quais Ben tirou folhas e galhos menores.

 

— Vão fazer bastante fumaça — disse ele. — Nem sei se vamos conseguir fazer pegar fogo.

 

Beverly e Richie desceram até a margem do Kenduskeag e trouxeram uma variedade de pedras de bom tamanho, usando o casaco de Eddie (a mãe dele sempre o obrigava a levar um casaco, mesmo se estivesse fazendo 27ºC — pode chover, dizia a sra. Kaspbrak, e se você tiver um casaco pra vestir, sua pele não vai ficar encharcada) como sacola improvisada. Quando estava carregando as pedras para a sede do clube, Richie disse:

 

— Você não pode fazer isso, Bev. É uma garota. Ben disse que só os bravos desciam pro buraco de fumaça, não as índias.

 

Beverly fez uma pausa e olhou para Richie com uma mistura de diversão e irritação. Uma mecha de cabelo tinha se soltado do rabo de cavalo; ela esticou o lábio inferior e soprou para afastá-lo da testa.

 

— Eu poderia lutar com você qualquer hora, Richie. E você sabe.

 

— Num importa, sinhá Scarlett! — disse Richie, arregalando os olhos para ela. — A sinhá ainda é uma garota, e vai sempre sê uma garota! Num é bravo índio nenhum!

 

— Vou ser uma bravete, então — disse Beverly. — Agora nós vamos levar essas pedras pro clube ou vou ter que jogar algumas na sua cabeça de cu?

 

— Meu Deus do céu, sinhá Scarlett, não tenho cu na cabeça! — gritou Richie, e Beverly riu tanto que largou o lado que estava segurando do casaco de Eddie e todas as pedras caíram. Ela repreendeu Richie durante todo o tempo em que eles estavam pegando-as novamente; Richie brincou e gritou com muitas Vozes, e ficou pensando o quanto ela era linda.

 

Apesar de Richie não estar falando sério sobre excluí-la do buraco de fumaça por causa do sexo, aparentemente, Bill Denbrough estava.

 

Ela ficou de frente para ele, com as mãos nos quadris, as bochechas vermelhas de raiva.

 

— Você pode pegar essa sua opinião e enfiar com uma vara comprida, Bill Gago! Também estou nessa, ou será que não sou mais integrante da sua porcaria de clube?

 

Pacientemente, Bill disse:

 

— N-Não é a-assim, B-B-Bev, e v-você s-sabe. Alguém tem que ficar a-a-aqui em cima.

 

— Por quê?

 

Bill tentou, mas parecia travado de novo. Ele olhou para Eddie pedindo ajuda.

 

— É o que Stan falou — disse Eddie baixinho. — Sobre a fumaça. Bill diz que pode mesmo acontecer, podemos desmaiar lá embaixo. E então, a gente morreria. Bill diz que é o que acontece com a maior parte das pessoas em incêndios em casa. Elas não pegam fogo. Sufocam até a morte com a fumaça. Elas...

 

Agora, ela se virou para Eddie.

 

— Tá, tudo bem. Ele quer que alguém fique do lado de fora pro caso de dar problema?

 

Com infelicidade, Eddie assentiu.

 

— Que tal você? É você quem tem asma.

 

Eddie não disse nada. Ela se virou para Bill. Os outros ficaram ao redor, com as mãos nos bolsos, olhando para os tênis.

 

— É porque eu sou menina, não é? Essa é a verdade, não é?

 

— Be-Be-Be-Be...

 

— Você não precisa falar — cortou ela. — Só balance a cabeça dizendo sim ou não. Sua cabeça não gagueja, né? É porque sou menina?

 

Com relutância, Bill fez que sim.

 

Ela olhou para ele por um momento com os lábios tremendo, e Richie achou que iria chorar. Mas, na verdade, ela explodiu.

 

— Ah, vai se foder! — Ela se virou para olhar para os outros, e eles se encolheram do olhar dela, tão quente que estava quase radioativo. — Vão se foder todos vocês se pensam a mesma coisa! — Ela se virou para Bill e começou a falar rápido, metralhando-o com palavras. — Isso é mais do que um joguinho de criança, e você sabe, Bill. Nós temos que fazer isso. Faz parte. E você não vai me cortar fora só porque sou menina. Entendeu? É melhor não me cortar, senão vou embora agora mesmo. E se eu for, não volto. Nunca mais. Entendeu?

 

Ela parou. Bill olhou para ela. Ele parecia ter recuperado a calma, mas Richie estava com medo. Sentia que qualquer chance que eles tinham de vencer, de encontrar uma forma de pegar a coisa que tinha matado George Denbrough e as outras crianças, de pegar e matar, agora estava correndo risco. Sete, pensou Richie. É o número mágico. Temos que ser sete. É como deve ser.

 

Um pássaro cantou em algum lugar; parou; cantou de novo.

 

— T-Tudo b-bem — disse Bill, e Richie soltou a respiração que estava presa. — Mas a-a-alguém tem que f-ficar de f-fora. Quem q-q-quer?

 

Richie pensou que Eddie ou Stan seriam voluntários nesse caso, mas Eddie não disse nada. Stan estava pálido e pensativo e silencioso. Mike estava com os polegares no cinto como Steve McQueen em Wanted: Dead or Alive, sem nada se movendo além dos olhos.

 

— V-V-Vamos l-lá — disse Bill, e Richie percebeu que não havia mais fingimento; o discurso apaixonado de Bev e o rosto grave e envelhecido de Bill tinham cuidado disso. Isso era parte do processo, talvez tão perigoso quanto a expedição que ele e Bill fizeram à casa número 29 da rua Neibolt. Eles sabiam... e não tinha ninguém que pudesse impedi-los. De repente, ele sentiu muito orgulho dos amigos. Sentiu muito orgulho de estar com eles. Depois de todos os anos sendo descartado, ele estava incluído. Finalmente incluído. Ele não sabia se eles ainda eram otários ou não, mas sabia que estavam juntos. Eram amigos. Muito amigos. Richie tirou os óculos e esfregou vigorosamente com a barra da camisa.

 

— Sei como a gente pode fazer — disse Bev, e pegou uma carteira de fósforos no bolso. Na frente, tão pequenas que seria preciso uma lente de aumento para olhar direito, havia fotos das candidatas do ano a título de Miss Rheingold. Beverly acendeu um fósforo e soprou. Arrancou mais seis e acrescentou o fósforo queimado. Ela virou de costas para eles e, quando se virou, as pontas brancas dos sete fósforos apareciam saindo de dentro da mão fechada dela. — Pegue — disse ela, esticando a mão com os fósforos para Bill. — Quem pegar o fósforo com a ponta queimada fica de fora e puxa o resto se alguém desmaiar.

 

Bill olhou para ela de frente.

 

— É a-assim que v-v-você q-quer?

 

Ela sorriu para ele, e o sorriso deixou seu rosto radiante.

 

— É, seu bobão, é assim que quero. E você?

 

— Eu te a-a-amo, B-B-Bev — disse ele, e ela ficou com as bochechas vermelhas como chamas.

 

Bill não pareceu reparar. Ele observou as pontas dos fósforos saindo da mão dela e acabou escolhendo um. A ponta estava azul e intacta. Ela se virou para Ben e ofereceu os seis que sobraram.

 

— Eu também te amo — disse Ben com voz rouca. O rosto dele estava da cor de ameixa; ele parecia estar quase tendo um derrame. Mas ninguém riu. Em algum lugar do Barrens, o pássaro cantou de novo. Stan saberia que pássaro é, pensou Richie sem mais nem menos.

 

— Obrigada — disse ela, sorrindo, e Ben pegou um fósforo. A cabeça estava intacta.

 

Ela ofereceu para Eddie em seguida. Eddie sorriu, um sorriso tímido incrivelmente doce e vulnerável a ponto de quase partir o coração.

 

— Acho que também te amo, Bev — disse ele, e pegou um fósforo cegamente. A cabeça estava azul.

 

Beverly agora ofereceu os quatro fósforos na mão para Richie.

 

— Também amu a sinhá Scarlet! — gritou Richie com a voz mais alta que conseguiu, e fez gestos exagerados de beijo com os lábios. Beverly só olhou para ele, sorrindo um pouco, e Richie de repente sentiu vergonha. — Eu te amo mesmo, Bev — disse ele, e tocou no cabelo dela. — Você é legal.

 

— Obrigada — disse ela.

 

Ele pegou um fósforo e olhou, com a certeza de que tinha escolhido o queimado. Mas não era.

 

Ela ofereceu para Stan.

 

— Eu te amo — disse Stan, e tirou um dos fósforos da mão dela. Intacto.

 

— Você e eu, Mike — disse ela, e ofereceu a mão com os dois que sobraram.

 

Ele deu um passo à frente.

 

— Não te conheço bem o bastante pra te amar — disse ele —, mas te amo mesmo assim. Acho que você podia dar aulas de gritos pra minha mãe.

 

Todos riram, e Mike pegou um fósforo. A cabeça também estava intacta.

 

— Acho que é v-v-você no f-fim das c-contas, Bev — disse Bill.

 

Com cara de nojo, depois de tanta confusão por nada, Beverly abriu a mão.

 

A cabeça do fósforo que sobrou também estava azul e intacta.

 

— V-V-Você t-trocou o q-queimado — acusou Bill.

 

— Não. Não troquei. — O tom dela não era de protesto irritado, o que teria sido suspeito, mas de surpresa perplexa. — Juro por Deus que não troquei.

 

E então, ela mostrou a palma da mão. Todos viram a marca leve de fuligem da cabeça queimada do fósforo.

 

— Bill, juro pela minha mãe!

 

Bill olhou para ela por um momento e assentiu. Por concordância silenciosa, todos entregaram os fósforos para Bill. Sete fósforos, com cabeças intactas. Stan e Eddie começaram a procurar no chão, mas não havia fósforo queimado ali.

 

— Não troquei — disse Beverly de novo, para ninguém em particular.

 

— Então o que fazemos agora? — perguntou Richie.

 

— D-Descemos t-t-todos — disse Bill. — Porque é i-isso que t-t-temos que f-fazer.

 

— E se desmaiarmos todos? — perguntou Eddie.

 

Bill olhou para Beverly de novo.

 

— S-Se B-Bev está f-falando a v-verdade, e ela está, não v-vamos.

 

— Como você sabe? — perguntou Stan.

 

— A-Apenas s-sei.

 

O pássaro cantou de novo.

 

Ben e Richie desceram primeiro, e os outros passaram as pedras para eles uma a uma. Richie as passou para Ben, que fez um pequeno círculo de pedra no meio do piso de terra da sede do clube.

 

— Está bom — disse ele. — Já chega.

 

Os outros desceram, cada um carregando um punhado de galhos verdes que tinham cortado com a machadinha de Ben. Bill desceu por último. Ele fechou o teto e abriu a janelinha.

 

— P-P-Pronto — disse ele. — A-Aí está nosso b-buraco de f-f-fumaça. Temos gravetos pra a-a-acender o fogo?

 

— Pode usar isso se quiser — disse Mike, e pegou uma revistinha velha de Archie no bolso de trás. — Já li tudo.

 

Bill arrancou as páginas do gibi uma a uma, trabalhando devagar e com seriedade. Os outros ao redor das paredes, joelho com joelho e ombro com ombro, ficaram olhando sem parar. A tensão pesava.

 

Bill colocou pequenos galhos por cima do papel e olhou para Beverly.

 

— V-V-Você e-está com os f-fósforos — disse ele.

 

Ela acendeu um, com um pequeno brilho amarelo na escuridão.

 

— A porcaria provavelmente nem vai acender — disse ela com voz meio trêmula, e encostou a chama no papel em vários pontos. Quando a chama do fósforo chegou perto dos dedos dela, ela jogou no meio.

 

As chamas aumentaram estalando, enchendo o rosto deles de alívio, e naquele momento Richie não teve dificuldade em acreditar na história sobre índios de Ben, e pensou que devia ser assim naqueles dias do passado, quando a ideia de homens brancos ainda não passava de um boato ou uma história para aqueles índios que seguiam rebanhos tão grandes de búfalos que poderiam cobrir a terra de um horizonte a outro, rebanhos tão grandes que a passagem fazia o chão tremer como um terremoto. Naquele momento, Richie conseguiu visualizar aqueles índios, kiowas ou pawnees ou qualquer outra tribo, dentro de seu buraco de fumaça, joelho com joelho e ombro com ombro, vendo as chamas aumentarem e se espalharem na madeira verde como feridas quentes, ouvindo o sibilar baixo e firme da seiva escorrendo para fora da madeira úmida, esperando que a visão surgisse.

 

É. Sentado ali agora, ele conseguia acreditar em tudo... e ao olhar para os rostos sombrios enquanto eles observavam as chamas e as páginas queimadas do gibi de Archie de Mike, ele conseguiu ver que eles também acreditavam.

 

Os galhos estavam pegando fogo. A sede do clube começou a ser tomada de fumaça. Parte dela, branca como sinais de fumaça de algodão de um filme da matinê de sábado com Randolph Scott ou Audie Murphy, saiu pelo buraco de fumaça. Mas sem ar se deslocando lá fora para criar uma brisa, a maior parte ficou lá dentro. Tinha um teor acre que fazia os olhos arderem e as gargantas latejarem. Richie ouviu Eddie tossir duas vezes, um som seco como tábuas sendo batidas uma na outra, depois ficar em silêncio de novo. Ele não devia estar aqui embaixo, pensou ele... mas uma outra coisa parecia ter opinião diferente.

 

Bill jogou outro punhado de galhos verdes no fogo e perguntou com voz fraca que não se parecia muito com a voz com que costumava falar:

 

— Alguém está tendo a-alguma v-v-visão?

 

— Visões de sair daqui — disse Stan Uris. Beverly riu disso, mas a gargalhada virou um ataque de tosse e engasgo.

 

Richie apoiou a cabeça na parede e olhou para o buraco de fumaça, um retângulo pequeno de luz branca esmaecida. Pensou na estátua de Paul Bunyan naquele dia de março... mas aquilo foi só uma miragem, uma alucinação, uma

 

(visão)

 

— A fumaça está me matando — disse Ben. — Uuu!

 

— Então sai — murmurou Richie, sem tirar os olhos do buraco de fumaça.

 

Ele sentia que estava pegando o jeito. Sentia que tinha perdido cinco quilos. E, sem porra de dúvida nenhuma, sentia que a sede do clube tinha ficado maior. Essa última era certeza. Ele estava sentado com a perna direita gorda de Ben Hanscom esmagada contra a sua esquerda e com o ombro esquerdo ossudo de Bill Denbrough enfiado em seu braço direito. Agora, ele não estava encostado em nenhum dos dois. Ele olhou preguiçosamente para a direita e para a esquerda a fim de verificar que sua percepção era verdade, e era. Ben estava 30 centímetros à sua esquerda. À direita, Bill estava ainda mais longe.

 

— O lugar está maior, amigos e vizinhos — disse ele.

 

Ele respirou fundo e tossiu com força. Doeu, doeu bem no fundo do peito, da mesma forma que a tosse dói quando você tem resfriado, gripe ou alguma coisa assim. Por um tempo ele achou que nunca passaria; que ele seguiria tossindo até terem que arrastá-lo para fora. Se ainda conseguissem, pensou ele, mas o pensamento foi fraco demais para provocar medo.

 

Mas então Bill bateu nas costas dele e o ataque de tosse passou.

 

— Você não sabe que nem sempre — disse Richie. Ele estava olhando para o buraco de fumaça de novo em vez de para Bill. Como parecia iluminado! Quando fechou os olhos, ainda conseguiu sentir o retângulo flutuando lá no escuro, mas verde-claro em vez de bem branco.

 

— O q-q-q-que você quer d-dizer? — perguntou Bill.

 

— Gagueja. — Ele fez uma pausa, ciente de que outra pessoa estava tossindo, mas sem saber quem era. — Você devia fazer as Vozes, não eu, Big Bill. Você...

 

A tosse ficou mais alta. De repente, a sede foi tomada de luz do dia, tão repentina e tão clara que Richie precisou apertar os olhos. Ele só conseguiu enxergar Stan Uris, subindo e saindo desajeitado.

 

— Me desculpem — Stan conseguiu dizer no meio da tosse espasmódica. — Me desculpem, não consigo...

 

— Tudo bem — Richie se ouviu dizer. — Você não precisa de distintivos. — A voz dele parecia vir de um corpo diferente.

 

A porta de saída se fechou um momento depois, mas tinha entrado ar fresco o bastante para clarear sua mente. Antes de Ben se mover para preencher o espaço deixado por Stan, Richie percebeu a perna de Ben de novo, apertando a sua. Como ele pôde pensar que a sede tinha ficado maior?

 

Mike Hanlon jogou mais galhos no fogo fumacento. Richie voltou a respirar de forma curta e olhar para o buraco de fumaça. Ele não tinha noção de tempo real passando, mas estava vagamente ciente de que, além da fumaça, a sede do clube estava ficando muito quente.

 

Ele olhou ao redor, olhou para os amigos. Era difícil vê-los, meio envoltos em sombra de fumaça e ainda brancos de luz do sol. A cabeça de Bev estava inclinada para trás, encostada na parede, as mãos nos joelhos, lágrimas escorrendo pelas bochechas na direção das orelhas. Bill estava sentado de pernas cruzadas, com o queixo no peito. Ben estava...

 

Mas de repente Ben ficou de pé e abriu a porta de novo.

 

— Lá se vai Ben — disse Mike. Ele estava sentado em posição indígena diretamente à frente de Richie, com olhos tão vermelhos quanto os de uma doninha.

 

Uma certa tranquilidade voltou a tomar conta deles. O ar ficou mais fresco quando saiu fumaça pela porta. Ben estava tossindo e engasgado. Ele saiu com a ajuda de Stan, e antes que os dois pudessem fechar a saída, Eddie ficou de pé, cambaleante, com o rosto pálido exceto pelas marcas que pareciam hematomas debaixo dos olhos até acima das bochechas. O peito magro estava subindo e descendo em espasmos rápidos. Ele tateou na borda fracamente e teria caído se Ben não tivesse segurado uma das mãos dele e Stan a outra.

 

— Desculpem — Eddie conseguiu dizer em um sussurro chiado, e os outros dois o puxaram para cima. A porta se fechou de novo.

 

Houve um período longo e silencioso. A fumaça aumentou até virar uma neblina densa e parada dentro da sede. A mim, parece poluição, Watson, pensou Richie, e por um momento se imaginou como Sherlock Holmes (um Holmes muito parecido com Basil Rathbone e totalmente em preto e branco), andando com altivez pela rua Baker; Moriarty estava em algum lugar ali perto, um táxi o estava esperando e o jogo tinha começado.

 

O pensamento foi incrivelmente claro, incrivelmente sólido. Parecia quase ter peso, como se não fosse um pequeno sonho acordado do tipo que ele tinha o tempo todo (rebatendo para o Bosox, final do jogo, as bases prontas, e lá vai, está no ar... JÁ FOI! Home run, Tozier... e isso bate o recorde de Babe!), mas uma coisa que era quase real.

 

Ainda havia uma parte dele sabichona demais para pensar que, se ele só ia tirar disso uma visão de Basil Rathbone como Sherlock Holmes, então a ideia toda de visões era um tremendo exagero.

 

Só que, é claro, não é Moriarty quem está lá. A Coisa está lá, alguma Coisa, e é real. A Coisa...

 

E então a porta se abriu de novo, e Beverly estava se esforçando para sair, tossindo secamente, com uma das mãos sobre a boca. Ben segurou uma das mãos e Stan a segurou por baixo do outro braço. Meio puxada, meio se esforçando por conta própria, ela logo desapareceu.

 

— E-E-Está ma-ma-maior — disse Bill.

 

Richie olhou ao redor. Viu o círculo de pedras com o fogo fazendo fumaça dentro, emitindo nuvens brancas. Do outro lado, ele viu Mike de pernas cruzadas como um totem entalhado em mogno, olhando para ele por cima do fogo com os olhos vermelhos por causa da fumaça. Só que Mike estava a mais de 20 metros de distância, e Bill estava ainda mais longe, à direita de Richie. A sede subterrânea do clube agora tinha o tamanho de um salão de baile.

 

— Não importa — disse Mike. — Vai vir bem rápido. Alguma coisa vai.

 

— É-É-É — disse Bill. Mas eu... eu... eu...

 

Ele começou a tossir. Tentou controlar, mas a tosse piorou, um som seco. Richie viu Bill cambalear e ficar de pé, esticar os braços para a porta de cima e abri-la.

 

— M-M-Meu D-D-De...

 

E então, sumiu, arrastado pelos outros.

 

— Parece que ficamos só eu e você, Mikey, meu velho — disse Richie, e começou a tossir. — Eu tinha certeza de que seria Bill...

 

A tosse piorou. Ele se inclinou para a frente, tossindo secamente, sem conseguir respirar. Sua cabeça estava latejando, vibrando, como um nabo cheio de sangue. Os olhos lacrimejavam por trás dos óculos.

 

De longe, ele ouviu Mike dizendo:

 

— Pode sair se precisar, Richie. Não vai ter um troço. Não vai se matar.

 

Ele levantou a mão para Mike e balançou

 

(nada de porras de distintivos)

 

em um gesto negativo. Pouco a pouco, começou a controlar a tosse. Mike estava certo; alguma coisa ia acontecer, e logo. Ele queria ainda estar aqui quando acontecesse.

 

Ele inclinou a cabeça para trás e olhou para o buraco de fumaça de novo. O ataque de tosse o deixou meio tonto, e agora ele parecia estar flutuando em uma almofada de ar. Era uma sensação agradável. Ele respirou de leve e pensou: Um dia, vou ser um astro do rock-and-roll. Isso mesmo, é. Vou ser famoso. Vou gravar discos e fazer filmes. Vou ter uma jaqueta preta e sapatos brancos e um Cadillac amarelo. E quando eu voltar a Derry, eles vão se roer de inveja, até Bowers. Uso óculos, mas e daí? Buddy Holly usa óculos. Vou cantar até estourar e dançar até ficar preto. Vou ser o primeiro astro do rock-and-roll nascido no Maine. Vou...

 

O pensamento desapareceu. Não importava. Ele descobriu que não precisava respirar de leve. Seus pulmões tinham se adaptado. Ele conseguia respirar tanta fumaça quanto quisesse. Talvez fosse de Vênus.

 

Mike jogou mais gravetos no fogo. Para não ficar para trás, Richie também jogou alguns.

 

— Como está se sentindo, Rich? — perguntou Mike.

 

Richie sorriu.

 

— Melhor. Quase bem. E você?

 

Mike assentiu e sorriu.

 

— Me sinto bem. Você andou tendo pensamentos estranhos?

 

— Sim. Pensei que eu fosse Sherlock Holmes por um minuto. Depois, pensei que fosse capaz de dançar como os Dovells. Seus olhos estão tão vermelhos que nem dá pra acreditar, sabe?

 

— Os seus também. Duas doninhas na gaiola, é isso que somos.

 

— É?

 

— É.

 

— Quer dizer beleza?

 

— Beleza. Você quer dizer que tá sabendo?

 

— Tô sabendo, Mikey.

 

— Tá, tudo bem.

 

Eles sorriram um para o outro, e Richie encostou a cabeça na parede e olhou para o buraco de fumaça. Em pouco tempo, começou a cochilar. Não... não cochilar. Subir. Ele estava subindo. Como...

 

(flutuamos aqui embaixo, todos nós)

 

um balão.

 

— V-V-Vocês e-estão b-b-bem?

 

A voz de Bill, vinda pelo buraco de fumaça. Vinda de Vênus. Preocupada. Richie se sentiu voltar para dentro de si.

 

— Tudo bem — ele ouviu sua voz dizer, distante, irritada. — Tudo bem, nós dissemos que tudo bem, fica quieto, Bill, deixa a gente ficar mudo, a gente quer dizer que entende o

 

(mundo)

 

mudo.

 

A sede do clube estava maior do que nunca, agora com piso de madeira encerada. A fumaça estava densa como uma névoa, e estava difícil de ver a fogueira. Aquele piso! Pelo amor de Deus! Era tão grande quanto o de um salão de baile em um musical da MGM. Mike olhou para ele do outro lado, uma forma quase perdida na névoa.

 

Você vem, Mikey, meu velho?

 

Estou bem aqui com você, Richie.

 

Ainda quer ficar mesmo?

 

Quero... mas segura minha mão... você consegue alcançar?

 

Acho que sim.

 

Richie esticou a mão, e apesar de Mike estar do outro lado desse salão enorme, ele sentiu aqueles dedos fortes e marrons se fecharem sobre seu pulso. Ah, e era bom, era um toque bom. Era bom encontrar desejo no conforto, encontrar conforto no desejo, encontrar substância na fumaça e fumaça na substância...

 

Ele inclinou a cabeça para trás e olhou para o buraco de fumaça, tão branco e pequeno. Estava mais alto agora. A quilômetros de distância. No céu venusiano.

 

Estava acontecendo. Ele começou a flutuar. Venha então, pensou ele, e começou a subir mais rápido pela fumaça, pela neblina, pela névoa, o que quer que fosse.

 

Eles não estavam mais dentro.

 

Os dois estavam de pé juntos no meio do Barrens, e era quase hora do pôr do sol.

 

Era o Barrens, ele sabia, mas tudo estava diferente. A folhagem estava mais vibrante, mais escura, muito aromática. Havia plantas que ele nunca tinha visto antes, e Richie percebeu que algumas das coisas que ele primeiro tinha achado que eram árvores eram na verdade samambaias gigantes. Havia o som de água corrente, mas bem mais alto do que deveria. Essa água soava não como o fluxo tranquilo do Kenduskeag, mas mais como ele imaginava que o rio Colorado soaria ao passar pelo meio do Grand Canyon.

 

E estava quente. Não que não ficasse quente no Maine no verão, e úmido o bastante para às vezes você se sentir grudento quando estava deitado na cama à noite, mas isso era mais calor e mais umidade do que ele jamais tinha sentido na vida. Uma névoa baixa, escura e densa se escondia nos cantos e se esgueirava entre as pernas dos garotos. Tinha um aroma leve e acre como madeira verde queimando.

 

Ele e Mike começaram a andar na direção do som de água corrente sem falar, abrindo caminho pela folhagem densa. Cipós grossos caíam entre algumas árvores como teias, e uma vez Richie ouviu alguma coisa se deslocando em meio à vegetação. Parecia maior do que um cervo.

 

Ele parou por tempo o suficiente para olhar ao redor, girando em círculo, observando o horizonte. Ele sabia onde o cilindro grande e branco da Torre de Água deveria estar, mas não estava lá. Nem os suportes da rede ferroviária que passava pelo pátio no final da rua Neibolt, nem a área residencial de Old Cape. Havia morros e pedras cercados de samambaias gigantescas e pinheiros onde Old Cape deveria estar.

 

Houve um som de batidas acima. Os garotos se abaixaram quando um esquadrão de morcegos passou voando. Eram os maiores morcegos que Richie já tinha visto, e por um momento ele ficou mais apavorado do que quando Bill estava tentando botar Silver em movimento e ele ouviu o lobisomem se aproximando por trás. A imobilidade e estranheza daquele local eram terríveis, mas a horrível familiaridade era bem pior.

 

Não precisa ter medo, disse ele para si mesmo. Lembre que é só um sonho, ou uma visão, ou como quer que você queira chamar. Eu e o velho Mikey estamos mesmo é na sede do clube, envoltos em fumaça. Em pouco tempo, Big Bill vai ficar nervoso porque não vamos mais responder, e ele e Ben vão descer e nos levar lá pra cima. É como Conway Twitty sempre diz: só faz de conta.

 

Mas ele conseguia ver que a asa de um dos morcegos era tão fina que o sol brilhava através dela, e quando eles passaram por baixo das samambaias gigantescas, ele conseguiu ver uma lagarta gorda e amarela se arrastando por um galho verde e grosso, deixando uma sombra atrás. Havia pequenas pulgas pretas pulando e estalando no corpo da lagarta. Se isso era um sonho, era o mais definido que ele já teve.

 

Eles seguiram na direção do som de água, e na névoa densa que ia até o joelho, Richie não conseguia sentir se seus pés estavam tocando no chão ou não. Eles chegaram a um ponto em que tanto a névoa quanto o chão acabavam. Richie olhou sem acreditar. Esse não era o Kenduskeag, mas ao mesmo tempo, era. O riacho fervia e corria por uma passagem estreita naquela mesma pedra em pedaços; ao olhar para o outro lado, ele conseguia ver eras cortadas nas camadas empilhadas de pedra, vermelha, laranja e vermelha de novo. Não dava para atravessar esse rio pulando de pedra em pedra; seria preciso uma ponte de cordas e, se você caísse, seria carregado pela correnteza imediatamente. O som da água era o som de raiva amarga e tola, e enquanto Richie olhava, boquiaberto, ele viu um peixe rosa-prateado pular em um arco impossivelmente alto, mordendo na direção dos insetos que formavam nuvens errantes bem acima da superfície da água. Ele caiu com um ruído, dando a Richie tempo o suficiente para registrar a presença dele e para perceber que nunca tinha visto um peixe exatamente assim na vida, nem mesmo em livro.

 

Pássaros voavam no céu, gritando alto. Não uma dúzia e nem duas dúzias; por um momento, o céu ficou tão escuro de pássaros que eles bloquearam o sol. Uma outra coisa fez barulho na vegetação, e mais outras coisas. Richie se virou, com o coração disparado dolorosamente no peito, e viu uma coisa que parecia um antílope passar, seguindo para sudeste.

 

Vai acontecer alguma coisa. E eles sabem.

 

Os pássaros passaram, presumivelmente pousando em algum lugar ao sul, en masse. Outro animal passou por eles... e outro. E então, tudo ficou em silêncio, exceto pelo ronco firme do Kenduskeag. O silêncio tinha uma qualidade de espera, uma qualidade grávida da qual Richie não gostava. Ele sentiu os cabelos se mexendo e tentando se arrepiar na sua nuca e tateou em busca da mão de Mike de novo.

 

Você sabe onde nós estamos?, gritou ele para Mike. Tá sabendo?

 

Meu Deus, sim!, gritou Mike em resposta. Eu tô sabendo! Aqui é o passado, Richie! O passado!

 

Richie assentiu. O passado no sentido de antigamente, muito antigamente, quando todos morávamos na floresta e ninguém morava em nenhum outro lugar. Eles estavam em um passado inimaginável antes da Era do Gelo, quando a Nova Inglaterra era tão tropical quanto a América do Sul hoje em dia... se ainda houvesse hoje em dia. Ele olhou ao redor de novo, com nervosismo, quase esperando ver um brontossauro levantar o pescoço de guindaste em direção ao céu e olhar para eles, com a boca cheia de lama e com plantas penduradas, ou um tigre-dentes-de-sabre sair correndo da vegetação.

 

Mas só havia aquele silêncio, como nos cinco ou dez minutos antes de uma tempestade, quando nuvens roxas se acumulam no céu e a luz fica de um tom estranho, roxo-amarelado, e o vento morre completamente e você consegue sentir um aroma denso de bateria de carro no ar.

 

Estamos no passado, um milhão de anos atrás, talvez, ou 10 milhões, ou 80 milhões, mas estamos aqui e alguma coisa vai acontecer, não sei o quê, mas alguma coisa, e estou com medo, quero que acabe, quero voltar, e Bill, por favor, Bill, por favor, nos tire, parece que caímos no filme, em algum filme, por favor, por favor, socorro...

 

A mão de Mike apertou a dele, e ele percebeu que agora o silêncio tinha sido rompido. Havia uma vibração baixa e regular. Ele conseguia sentir mais do que ouvir, fazendo vibrar a pele esticada de seus tímpanos, fazendo tremer os pequenos ossos que conduziam o som. Aumentou com firmeza. Não tinha tom; apenas estava lá:

 

(a palavra no começo era a palavra o mundo o)

 

um som sem melodia e sem alma. Ele tateou em direção à árvore da qual estavam perto, e quando sua mão tocou nela, contornou a curva do tronco, ele conseguiu sentir a vibração lá dentro. No mesmo momento, percebeu que conseguia sentir dentro dos pés, um formigamento que subia por seus tornozelos e panturrilhas até os joelhos, transformando seus tendões em diapasões.

 

Aumentou. E aumentou.

 

Estava vindo do céu. Não querendo, mas sem conseguir se impedir, Richie virou o rosto para cima. O sol era uma moeda derretida queimando um círculo no céu baixo e nublado, cercado de uma auréola de umidade. Abaixo dele, o terreno verdejante que era o Barrens estava completamente imóvel. Richie pensou que entendia o que era essa visão: eles estavam prestes a ver o surgimento da Coisa.

 

A vibração assumiu uma voz, um rugido trêmulo que foi aumentando até virar um som esmagador. Ele colocou as mãos nos ouvidos e gritou, e não conseguiu se ouvir gritando. Ao lado dele, Mike Hanlon estava fazendo a mesma coisa, e Richie viu que o nariz de Mike estava sangrando um pouco.

 

As nuvens no oeste se acenderam em uma flor de fogo vermelho. O fogo seguiu na direção deles, aumentando de uma linha a uma faixa a um rio de cor ameaçadora; e então, quando um objeto em chamas apareceu no céu, o vento chegou. Estava quente e intenso, fumacento e sufocante. A coisa no céu era gigantesca, uma cabeça de fósforo em chamas que era quase iluminada demais para se olhar. Arcos de eletricidade voavam dela, linhas azuis que piscavam a partir dela e criavam trovão ao passar.

 

Uma nave espacial!, gritou Richie, caindo de joelhos e cobrindo os olhos. Ah, meu Deus, é uma nave espacial! Mas ele acreditava (e diria para os outros depois, da melhor maneira que conseguisse) que não era uma nave espacial, apesar de poder ter vindo através do espaço para chegar aqui. O que chegou naquele dia do passado distante veio de um lugar muito mais longe do que outra estrela ou outra galáxia, e se nave espacial foi a primeira definição a surgir em sua mente, talvez fosse só porque sua mente não tinha outra forma de entender o que seus olhos estavam vendo.

 

Houve uma explosão então, um rugido de som seguido por um estrondo violento que derrubou os dois. Desta vez, foi Mike quem procurou a mão de Richie. Houve outra explosão. Richie abriu os olhos e viu um brilho de fogo e um pilar de fumaça subindo para o céu.

 

A Coisa!, gritou ele para Mike, em um êxtase de terror agora. Nunca em sua vida, antes ou depois, ele sentiria qualquer emoção tão profundamente, ficaria tão mergulhado nela. A Coisa! A Coisa! A Coisa!

 

Mike o puxou até que ficasse de pé, e eles correram pela margem alta do jovem Kenduskeag, sem perceber o quanto estavam perto do precipício. Uma vez, Mike tropeçou e caiu escorregando de joelhos. Depois foi a vez de Richie cair, arranhando a canela e rasgando a calça. O vento tinha voltado e estava forçando o aroma de floresta queimada para cima deles. A fumaça ficou mais densa, e Richie ficou levemente ciente de que ele e Mike não estavam correndo sozinhos. Os animais estavam correndo de novo, fugindo da fumaça, do fogo, da morte no fogo. Correndo da Coisa, talvez. A nova chegada no mundo deles.

 

Richie começou a tossir. Ele conseguia ouvir Mike ao seu lado, também tossindo. A fumaça estava mais densa, encobrindo os verdes e cinza e vermelhos do dia. Mike caiu de novo, e Richie perdeu a mão dele. Tateou em busca dela e não conseguiu encontrar.

 

Mike!, gritou ele em pânico, tossindo. Mike, onde você está? Mike! MIKE!

 

Mas Mike tinha sumido; Mike não estava em lugar nenhum. richie! richie! richie!

 

(!!SLAP!!)

 

— richie! richie! richie, você está bem?

 

Os olhos dele se abriram, e ele viu Beverly ajoelhada ao seu lado, limpando sua boca com um lenço. Os outros, Bill, Eddie, Stan e Ben, estavam atrás dela, com rostos sérios e assustados. A lateral do rosto de Richie estava doendo muito. Ele tentou falar com Beverly, mas só conseguiu gemer. Tentou limpar a garganta e quase vomitou. Sua garganta e seus pulmões pareciam estar forrados de fumaça.

 

Por fim, ele conseguiu dizer:

 

— Você me deu um tapa, Beverly?

 

— Foi a única coisa em que consegui pensar — disse ela.

 

— Slap — murmurou Richie.

 

— Achei que você não ia ficar bem, só isso — disse Beverly, e começou a chorar de repente.

 

Richie bateu no ombro dela meio sem jeito, e Bill colocou a mão na nuca dela. Ela esticou a mão imediatamente, segurou-a e apertou-a.

 

Richie conseguiu se sentar. O mundo começou a tremer em ondas. Quando ficou firme, ele viu Mike encostado em uma árvore ali perto, com o rosto atordoado e pálido como cinzas.

 

— Eu vomitei? — perguntou Richie a Bev.

 

Ela assentiu, ainda chorando.

 

Com uma Voz tremida e falha de Policial Irlandês, ele perguntou:

 

— Respingou em você, gata?

 

Bev riu em meio às lágrimas e balançou a cabeça.

 

— Virei você de lado. Fiquei com medo... m-m-medo de você e-e-engasgar. — Ela começou a chorar muito de novo.

 

— N-N-Não é j-justo — disse Bill, ainda segurando a mão dela. — Q-Q-Quem g-g-gagueja aqui s-sou e-eu.

 

— Nada mal, Big Bill — disse Richie. Ele tentou ficar de pé e voltou a se sentar pesadamente. O mundo ainda estava balançando. Ele começou a tossir e virou a cabeça, ciente de que vomitaria de novo um momento antes de acontecer. Ele vomitou uma mistura de espuma verde e saliva grossa que saiu em tiras. Ele fechou bem os olhos e gemeu: — Alguém quer lanchar?

 

— Ah, merda — gritou Ben, com nojo e rindo ao mesmo tempo.

 

— Pra mim, parece vômito — disse Richie, embora, na verdade, seus olhos ainda estivessem bem fechados — A merda costuma sair pelo outro lado, pelo menos pra mim. Não sei você, Monte de Feno. — Quando ele abriu os olhos, viu a sede do clube a uns 20 metros. As duas janelinhas e a porta grande de entrada estavam abertas. Saía fumaça, agora em tiras finas, por todas as passagens.

 

Desta vez, Richie conseguiu se levantar. Por um momento, teve certeza de que vomitaria de novo, ou desmaiaria, ou os dois.

 

— Slap — murmurou ele, vendo a palavra tremer e se dobrar na frente dos olhos. Quando o sentimento passou, ele seguiu até onde Mike estava. Os olhos de Mike ainda estavam vermelhos como os de uma doninha, e pela umidade nas barras da calça dele, Richie pensou que talvez o velho Mikey tivesse ido dar um passeio de elevador estomacal também.

 

— Pra um garoto branco, você foi muito bem — gemeu Mike, e deu um soco fraco no ombro de Richie.

 

Richie ficou sem palavras, uma condição de raridade extrema.

 

Bill se aproximou. Os outros foram junto.

 

— Vocês nos tiraram? — perguntou Richie.

 

— E-Eu e B-Ben. V-Vocês estavam g-gritando. Os d-d-dois. M-M-Mas... — Ele olhou para Ben.

 

Ben disse:

 

— Deve ter sido a fumaça, Bill. — Mas não havia convicção na voz do garoto gordo.

 

Sem emoção na voz, Richie disse:

 

— Vocês estão querendo dizer o que eu acho que querem dizer?

 

Bill deu de ombros.

 

— O q-q-que, R-Richie?

 

Mike respondeu:

 

— Não estávamos lá de primeira, estávamos? Vocês desceram porque nos ouviram gritando, mas de cara não nos viram lá.

 

— Estava com muita fumaça — disse Ben. — Ouvir vocês dois gritando daquele jeito foi muito apavorante. Mas os gritos... pareciam... bem...

 

— P-P-Pareceram muito di-distantes — disse Bill.

 

Gaguejando muito, ele contou que, quando ele e Ben desceram, eles não conseguiram ver nem Richie nem Mike. Foram tateando pela sede cheia de fumaça, em pânico, com medo de os dois garotos morrerem por inalação de fumaça se eles não agissem rápido o bastante. Por fim, Bill segurou a mão de alguém, a de Richie. Ele deu um “tre-tre-tremendo puxão” e Richie veio voando pela escuridão, semiconsciente. Quando Bill se virou, viu Ben abraçando Mike, os dois tossindo. Ben jogou Mike para cima, para a saída.

 

Ben ouviu isso tudo assentindo.

 

— Eu fiquei tateando, sabe? Não fazendo mais nada além de enfiar a mão pra frente, como se quisesse apertar a mão de alguém. Você segurou ela, Mike. E que bom que segurou naquela hora. Acho que você estava praticamente morto.

 

— Vocês fazem a sede do clube parecer muito maior do que é — disse Richie. — Com esse papo de andar de um lado pro outro. Ela só tem um metro e meio de lado.

 

Houve um momento de silêncio em que todos olharam para Bill, que estava de testa franzida, concentrado.

 

— E-E-Estava m-maior — disse ele por fim. — N-N-Não estava, Ben?

 

Ben deu de ombros.

 

— Parecia. A não ser que fosse a fumaça.

 

— Não foi a fumaça — disse Richie. — Pouco antes de acontecer, antes de a gente apagar, me lembro de pensar que estava pelo menos do tamanho do salão de baile de um filme. Como naqueles musicais. Sete noivas para sete irmãos, uma coisa assim. Eu mal conseguia ver Mike do outro lado.

 

— Antes de vocês apagarem? — perguntou Beverly.

 

— Bem... o que quero dizer... é...

 

Ela agarrou o braço de Richie.

 

— Aconteceu, não foi? Aconteceu mesmo! Vocês tiveram uma visão, que nem no livro de Ben! — O rosto dela estava vibrando. — Aconteceu mesmo!

 

Richie olhou para si mesmo e para Mike. Um dos joelhos da calça de veludo de Mike estava furado, e os dois joelhos de sua calça jeans estavam rasgados. Ele conseguia olhar pelos buracos e ver arranhões com sangue nos dois joelhos.

 

— Se foi visão, nunca mais quero ter uma — disse ele. — Não sei sobre o rei da cocada preta aí, mas quando desci pra sede, minha calça não tinha buraco nenhum. É praticamente nova, caramba. Minha mãe vai me encher o saco.

 

— O que aconteceu? — perguntaram Ben e Eddie ao mesmo tempo.

 

Richie e Mike trocaram um olhar e Richie disse:

 

— Bevvie, você tem um cigarro?

 

Ela tinha dois, enrolados em um lenço de papel. Richie colocou um na boca e, quando ela acendeu, o primeiro trago o fez tossir tanto que ele devolveu para ela.

 

— Não consigo. Desculpa.

 

— Foi o que aconteceu — disse Mike.

 

— Porra nenhuma — disse Richie. — Não foi só o que aconteceu. Foi o passado.

 

— Ah, certo. Estávamos no Barrens, mas o Kenduskeag corria a um quilômetro por minuto. Era fundo. Era selvagem pra cacete. Desculpa, Bevvie, mas era. E tinha peixe nele. Salmão, eu acho.

 

— M-Meu p-p-pai d-diz q-que n-não t-tem p-peixe no K-Kendusk-k-keag há m-muito t-tempo. Por causa do esg-goto.

 

— Isso foi mesmo há muito tempo — disse Richie. Ele olhou para os outros com insegurança. — Acho que foi um milhão de anos atrás, pelo menos.

 

Um silêncio perplexo veio em seguida. Beverly foi quem o rompeu.

 

— Mas o que aconteceu?

 

Richie sentiu as palavras na garganta, mas teve que se esforçar para fazê-las saírem. Quase pareceu com vomitar de novo.

 

— Vimos a Coisa chegar — disse ele por fim. — Eu acho que era ela.

 

— Cristo — murmurou Stan. — Ah, Cristo.

 

Houve um sibilar agudo quando Eddie usou a bombinha.

 

— Veio do céu — disse Mike. — Eu nunca quero ver nada assim na vida. Era tão quente que nem dava pra olhar direito. Descarregava eletricidade e provocava trovões. O barulho... — Ele balançou a cabeça e olhou para Richie. — Parecia o fim do mundo. E quando caiu, provocou um incêndio na floresta. E foi o fim.

 

— Era uma nave espacial? — perguntou Ben.

 

— Era — disse Richie.

 

— Não — disse Mike.

 

Eles se entreolharam.

 

— Bem, acho que era — disse Mike, e ao mesmo tempo Richie disse:

 

— Não, não era exatamente uma nave espacial, sabe, mas...

 

Eles fizeram outra pausa enquanto os outros olhavam para eles com perplexidade.

 

— Você conta — disse Richie para Mike. — Queremos dizer a mesma coisa, eu acho, mas eles não estão entendendo.

 

Mike tossiu na mão fechada e olhou para os outros, quase pedindo desculpas.

 

— Não sei como contar — disse ele.

 

— T-T-Tente — disse Bill com urgência.

 

— Veio do céu — repetiu Mike —, mas não era exatamente uma nave espacial. Também não era um meteoro. Era mais como... bem... como a Arca da Aliança na Bíblia, que tinha o Espírito de Deus dentro... só que isso não era Deus. Só de sentir a Coisa, de ver a Coisa chegar, já dava pra saber que ela pretendia fazer o mal, que era má.

 

Ele olhou para os amigos.

 

Richie assentiu.

 

— Veio de... fora. Tive essa sensação. De fora.

 

— De fora onde, Richie? — perguntou Eddie.

 

— De fora de tudo — disse Richie. — E quando a Coisa caiu... fez o maior buraco que você já viu na vida. Transformou uma colina enorme em um donut, mais ou menos. Caiu bem onde fica o centro de Derry agora.

 

Ele olhou para os amigos.

 

— Entenderam?

 

Beverly largou o cigarro pela metade e pisou em cima.

 

Mike disse:

 

— Ela sempre esteve aqui, desde o começo dos tempos... desde antes de existirem homens em qualquer lugar, a não ser que houvesse alguns em alguma parte da África, se balançando em árvores ou morando em cavernas; a cratera não existe mais, e a Era do Gelo provavelmente deixou o vale mais fundo e mudou algumas coisas por aqui e preencheu a cratera... mas a Coisa já estava aqui, dormindo, talvez, esperando que o gelo derretesse, esperando que as pessoas chegassem.

 

— É por isso que ela usa o esgoto e os bueiros — disse Richie. — Devem ser passagens comuns pra Coisa.

 

— Vocês não viram como a Coisa era? — perguntou Stan Uris abruptamente, com voz meio rouca.

 

Eles balançaram a cabeça.

 

— Somos capazes de vencer a Coisa? — disse Eddie no silêncio. — Uma coisa assim?

 

Ninguém respondeu.

 

A fratura ruim de Eddie

 

Quando Richie termina, todos estão assentindo. Eddie está assentindo junto, lembrando com eles, quando a dor sobe de repente pelo braço esquerdo. Sobe? Não. Arrebenta; parece que alguém está tentando afiar uma serra enferrujada no osso lá dentro. Ele faz uma careta e enfia a mão no bolso do paletó esporte, revira uma série de vidros pelo tato e pega o Excedrin. Engole dois com um pouco de gim com suco de ameixa. O braço está incomodando o dia todo. No começo, ele classificou como as pontadas de bursite que sente às vezes em dias úmidos. Mas, no meio da história de Richie, uma nova lembrança se encaixa para ele, e ele entende a dor. Não estamos mais passeando pela alameda das Lembranças, pensa ele; está virando mais e mais o Expresso de Long Island.

 

Cinco anos antes, durante um checkup de rotina (Eddie faz checkup de rotina a cada seis semanas), o médico disse objetivamente:

 

— Tem uma fratura antiga aqui, Ed... Você caiu de uma árvore quando era criança?

 

— Mais ou menos isso — concordou Eddie, sem se dar ao trabalho de dizer para o dr. Robbins que a mãe sem dúvida cairia morta de hemorragia cerebral se tivesse visto ou ouvido falar de seu Eddie subindo em árvores. A verdade era que ele não conseguia lembrar direito como tinha quebrado o braço. Não parecia importante (embora, pensa Eddie agora, a falta de interesse por si só era muito estranha; afinal, ele é um homem que dá a mesma importância para um espirro e uma ligeira mudança na cor das fezes). Mas era uma fratura antiga, um incômodo insignificante, uma coisa que aconteceu há muito tempo, em uma infância da qual ele mal conseguia se lembrar nem fazia questão disso. Doía um pouco quando ele dirigia tempo demais em dias chuvosos. Duas aspirinas resolviam bem o problema. Não era nada de mais.

 

Mas agora não é apenas um incômodo; é algum maluco afiando aquela serra enferrujada, tocando melodias no osso, e ele lembra que a sensação era essa no hospital, principalmente tarde da noite, nos primeiros três ou quatro dias depois que aconteceu. Ele deitado na cama, suando no calor do verão, esperando que a enfermeira fosse levar um comprimido, com lágrimas escorrendo em silêncio pelo rosto até as orelhas, pensando Parece que algum maluco está afiando uma serra aí.

 

Se essa é a alameda das Lembranças, pensa Eddie, troco por um grande enema cerebral: uma lavagem mental de cólon.

 

Sem perceber que está falando, ele diz:

 

— Foi Henry Bowers quem quebrou meu braço. Vocês lembram?

 

Mike assente.

 

— Foi pouco antes do desaparecimento de Patrick Hockstetter. Não lembro a data.

 

— Eu lembro — diz Eddie secamente. — Foi no dia 20 de julho. O garoto Hockstetter foi dado como desaparecido em... que dia?... No dia 23?

 

— Vinte e dois — diz Beverly Rogan, embora não diga por que tem tanta certeza da data: é porque ela viu a Coisa levar Hockstetter. Ela também não conta que acreditou e ainda acredita que Patrick Hockstetter era louco, talvez mais louco do que Henry Bowers. Ela vai contar, mas agora é a vez de Eddie. Ela vai falar em seguida, e acha que depois Ben vai narrar o clímax dos eventos daquele mês de julho... a bala de prata que eles não ousaram fazer. Um planejamento de pesadelo, se é que já existiu algum, pensa ela. Mas aquela euforia louca persiste. Quando ela se sentiu jovem assim pela última vez? Ela mal consegue ficar parada.

 

— No dia 20 de julho — reflete Eddie, rolando o aspirador pela mesa de uma mão para a outra. — Três ou quatro dias depois do buraco de fumaça. Passei o resto do verão de gesso, lembram?

 

Richie dá um tapa na testa em um gesto de antigamente que todos lembram, e Bill pensa, com uma mistura de diversão e desconforto, que por um momento Richie pareceu idêntico a Beaver Cleaver.

 

— Sim, claro! Você estava de gesso quando fomos pra casa da rua Neibolt, não estava? E depois... no escuro... — Mas agora, Richie balança a cabeça um pouco, confuso.

 

— O quê, R-Richie? — pergunta Bill.

 

— Ainda não consigo lembrar essa parte — admite Richie. — Você consegue?

 

Bill balança a cabeça devagar.

 

— Hockstetter estava com eles naquele dia — diz Eddie. — Foi a última vez que vi ele vivo. Talvez tenha entrado pra substituir Peter Gordon. Acho que Bowers não queria mais Peter por perto depois que ele saiu correndo no dia da guerra de pedras.

 

— Todos morreram, né? — pergunta Beverly baixinho. — Depois de Jimmy Cullum, os únicos que morreram foram os amigos de Henry Bowers... ou ex-amigos.

 

— Todos menos Bowers — concorda Mike, olhando para os balões presos à microfilmadora. — E ele está em Juniper Hill. Um asilo pra loucos particular em Augusta.

 

Bill diz:

 

— C-C-Como foi quando eles quebraram seu braço, E-E-Eddie?

 

— Sua gagueira está piorando, Big Bill — diz Eddie solenemente, e termina a bebida em um gole.

 

— Isso não importa — diz Bill. — C-Conta.

 

— Conta — repete Beverly, e coloca a mão de leve em seu braço. A dor surge ali de novo.

 

— Tudo bem — diz Eddie. Ele se serve de mais bebida, observa o copo e diz: — Dois dias depois que saí do hospital, vocês foram lá em casa me mostrar as bilhas de prata. Lembra, Bill?

 

Bill assente.

 

Eddie olha para Beverly.

 

— Bill perguntou se você dispararia se fosse preciso... porque você tinha a melhor mira. Acho que você disse que não... que sentiria medo demais. E você nos contou outra coisa, mas não consigo lembrar o que era. Era... — Eddie estica a língua e puxa a ponta, como se houvesse alguma coisa grudada ali. Richie e Ben dão um sorriso. — Era alguma coisa sobre Hockstetter?

 

— Era — diz Beverly. — Conto quando você terminar. Continua.

 

— Foi depois disso, depois que vocês foram embora, que minha mãe entrou e tivemos uma briga horrível. Ela não queria que eu andasse mais com vocês. E podia ter me convencido a concordar, porque ela tinha um jeito de convencer, sabe...

 

Bill assente de novo. Ele se lembra da sra. Kaspbrak, uma mulher enorme com um rosto estranho e esquizofrênico, um rosto capaz de parecer pétreo, furioso, infeliz e assustado, tudo ao mesmo tempo.

 

— É, ela talvez tivesse me convencido a concordar — diz Eddie. — Mas aconteceu outra coisa no mesmo dia em que Bowers quebrou meu braço. Uma coisa que me abalou muito.

 

Ele dá uma risadinha, pensando: Me abalou mesmo... Isso é tudo que você consegue dizer? De que serve falar se você nunca consegue dizer pras pessoas o que sente de verdade? Em um livro ou filme, o que descobri no dia em que Bowers quebrou meu braço teria mudado minha vida para sempre, e nada teria acontecido como aconteceu... em um livro ou filme, teria me libertado. Em um livro ou filme, eu não teria uma mala cheia de comprimidos no meu quarto no Town House, eu não seria casado com Myra, eu não teria essa porra de bombinha bem aqui comigo. Em um livro ou filme. Porque...

 

De repente, com todos olhando, o aspirador de Eddie rola pela mesa sozinho. Enquanto rola, faz um barulho seco, um pouco como maracas, um pouco como ossos... um pouco como risadas. Ao chegar do outro lado, entre Richie e Ben, ele se vira no ar e cai no chão. Richie estica a mão para pegar em um gesto assustado, e Bill grita com desespero:

 

— Não t-t-toca nisso!

 

— Os balões! — grita Ben, e todos se viram.

 

Os dois balões presos à microfilmadora agora dizem REMÉDIO DE ASMA DÁ CÂNCER! Abaixo do slogan, há caveiras sorridentes.

 

Eles explodem com estrondos gêmeos.

 

Eddie olha para isso, com a boca seca e a sensação familiar de sufocação começando a apertar seu peito como trancas.

 

Bill olha para ele.

 

— Quem c-contou pra você o q-quê?

 

Eddie lambe os lábios, com vontade de ir buscar a bombinha, mas sem ousar. Quem sabia o que podia haver lá dentro agora?

 

Ele pensa naquele dia, no dia 20, em como estava quente, quando sua mãe lhe deu um cheque todo preenchido, exceto pela quantia, e um dólar em dinheiro para ele, sua mesada.

 

— O sr. Keene — diz ele, e sua voz soa distante aos seus ouvidos, sem força. — Foi o sr. Keene.

 

— Não exatamente o homem mais gentil de Derry — diz Mike, mas Eddie, perdido em pensamentos, mal escuta.

 

Sim, estava quente naquele dia, mas fresco dentro da Center Street Drug, com os ventiladores de madeira girando alegremente sob o teto de metal prensado, e havia aquele cheiro reconfortante de pós e panaceias. Era o lugar onde saúde era vendida; essa era a convicção não dita, mas claramente comunicada de sua mãe, e, com a cabeça desligada que ele tinha, Eddie nunca desconfiou que a mãe poderia estar errada quanto a isso, ou mesmo quanto a qualquer outra coisa.

 

Bem, o sr. Keene tratou de botar um fim nisso, pensa ele agora com uma espécie de raiva doce.

 

Ele se lembra de estar de pé em frente à estante de quadrinhos por um tempo, girando devagar para ver se havia algum Batman ou Superboy novo, ou seu favorito, Homem-Borracha. Ele dera a lista (ela o mandava para a farmácia como as mães de outros garotos os mandavam para a mercearia da esquina) e o cheque da mãe para o sr. Keene; ele preencheria o pedido e escreveria a quantia no cheque, depois daria o recibo a Eddie, para que ela pudesse descontar a quantia no orçamento do talão de cheques. Era procedimento padrão para Eddie. Três tipos diferentes de receita para sua mãe, além de um vidro de Geritol, porque, disse ela misteriosamente, “é cheio de ferro, Eddie, e mulheres precisam de mais ferro do que homens”. Além do mais, haveria as vitaminas dele, um vidro de Dr. Swett’s Elixir para Crianças... e, é claro, o remédio de asma.

 

Era sempre a mesma coisa. Mais tarde, ele pararia no mercado da avenida Costello com seu dólar para comprar duas barras de chocolate e uma Pepsi. Ele comeria o chocolate, tomaria o refrigerante e iria balançando o bolso com as moedas do troco no caminho todo para casa. Mas esse dia foi diferente; terminaria com ele no hospital, o que já era diferente, mas começou a ficar diferente quando o sr. Keene o chamou. Porque, em vez de entregar a ele o saco branco e grande cheio de curas e o recibo, avisando que ele devia colocar o recibo no bolso para não perder, o sr. Keene olhou para ele pensativo e disse:

 

— Venha aqui no escritório um minuto, Eddie. Quero conversar com você.

 

Eddie só olhou para ele por um momento, piscando, um pouco assustado. A ideia de que talvez o sr. Keene achasse que ele tinha furtado alguma coisa cruzou sua mente. Havia um cartaz do lado da porta que ele sempre lia quando entrava na Center Street Drug. Estava escrito em letras pretas acusatórias tão grandes que ele apostava que até Richie Tozier conseguia ler sem os óculos: FURTO NÃO É “LEGAL” NEM “BACANA” NEM “UMA FARRA”! FURTO É CRIME, E VAMOS PROCESSAR QUEM FURTAR!

 

Eddie nunca tinha furtado nada na vida, mas aquele cartaz sempre o deixava culpado. Fazia com que ele achasse que o sr. Keene sabia alguma coisa sobre ele que nem ele mesmo sabia.

 

E então, o sr. Keene o confundiu ainda mais ao dizer:

 

— Que tal uma vaca-preta?

 

— Bem...

 

— Ah, por conta da casa. Sempre tomo uma no escritório nesse horário. Dá energia, a não ser pra quem precisa controlar o peso, e eu diria que não é o caso pra nenhum de nós. Minha esposa diz que pareço um barbante inchado. Aquele seu amigo, o garoto Hanscom, é ele que precisa tomar cuidado com o peso. Que sabor, Eddie?

 

— Minha mãe me mandou voltar pra casa assim que...

 

— Você tem cara de sujeito que prefere chocolate. Chocolate está bom pra você? — Os olhos do sr. Keene brilharam, mas foi um brilho seco, como o sol refletindo em mica no deserto. Ou foi o que Eddie, como fã de escritores de faroeste como Max Brand e Archie Joceylen, pensou.

 

— Claro — cedeu Eddie. Alguma coisa na forma como o sr. Keene empurrou os óculos de aro dourado nariz acima o deixou tenso. Alguma coisa na forma como o sr. Keene parecia nervoso e secretamente satisfeito. Ele não queria ir para o escritório com o sr. Keene. O motivo disso tudo não era a bebida. Não. E o que quer que fosse, Eddie achava que não era coisa boa.

 

Talvez ele vá me contar que estou com câncer, ou alguma outra doença, pensou Eddie loucamente. Aquele câncer de criança. Leucemia. Meu Deus!

 

Ah, não seja tão idiota, respondeu ele para si mesmo, tentando falar como Bill Gago, ao menos em sua mente. Bill Gago substituíra Jock Mahoney, que fazia o papel de Tim Relâmpago na TV aos sábados de manhã, como o grande herói da vida de Eddie. Apesar de não conseguir falar direito, Big Bill sempre pareceu saber de tudo. Esse cara é farmacêutico, não médico, pelo amor de Deus. Mas Eddie ainda estava nervoso.

 

O sr. Keene tinha levantado a passagem na bancada e estava chamando Eddie com um dedo ossudo. Eddie foi, mas com relutância.

 

Ruby, a atendente do balcão, estava sentada ao lado da registradora lendo um exemplar da revista Silver Screen.

 

— Você pode fazer duas vacas-pretas, Ruby? — disse o sr. Keene para ela. — Uma de chocolate, uma de café?

 

— Claro — disse Ruby, marcando a página na revista com uma embalagem de chiclete de papel-alumínio e se levantando.

 

— Traga para o escritório.

 

— Pode deixar.

 

— Venha, filho. Não vou morder. — E o sr. Keene piscou, deixando Eddie completamente atônito.

 

Ele nunca tinha ido para trás da bancada, e olhou para todas as garrafas, comprimidos e vidros com interesse. Teria permanecido ali se estivesse sozinho, examinando o pilão e o socador do sr. Keene, as balanças e os pesos, as tigelas cheias de cápsulas. Mas o sr. Keene o empurrou para o escritório e fechou a porta com firmeza. Quando ouviu o clique da porta se fechando, Eddie sentiu um aperto no peito, mas lutou contra a sensação. Haveria uma bombinha nova com as coisas da mãe, e ele poderia dar uma longa e satisfatória aspirada assim que saísse dali.

 

Havia um jarro de tiras de alcaçuz no canto da escrivaninha do sr. Keene. Ele ofereceu para Eddie.

 

— Não, obrigado — disse Eddie educadamente.

 

O sr. Keene se sentou na cadeira giratória atrás da escrivaninha e pegou uma. Em seguida, abriu a gaveta e tirou alguma coisa. Colocou ao lado do jarro alto de tiras de alcaçuz, e Eddie sentiu um temor lhe percorrer o corpo. Era um aspirador. O sr. Keene inclinou a cadeira giratória para trás até sua cabeça estar quase tocando o calendário na parede atrás dele. A foto no calendário mostrava mais comprimidos. Dizia SQUIBB. E...

 

... e, por um momento de pesadelo, quando o sr. Keene abriu a boca para falar, Eddie lembrou o que aconteceu na loja de sapatos quando ele era pequeno, quando sua mãe gritou com ele por ter colocado o pé na máquina de raios X. Por aquele momento de pesadelo, Eddie pensou que o sr. Keene diria: “Eddie, nove entre dez médicos concordam que remédio de asma causa câncer, assim como as máquinas de raios X que usavam em lojas de sapato. Você já deve estar com a doença. Achei que você precisava saber.”

 

Mas o que o sr. Keene disse foi tão peculiar que Eddie não conseguiu pensar em resposta nenhuma; ele só conseguiu ficar sentado ereto na cadeira de madeira do outro lado da escrivaninha do sr. Keene como uma pedra.

 

— Isso já está indo longe demais.

 

Eddie abriu a boca e fechou novamente.

 

— Quantos anos você tem, Eddie? Onze, não é?

 

— Sim, senhor — disse Eddie baixinho.

 

Sua respiração estava mesmo ficando fraca. Ele ainda não estava apitando como uma chaleira (que era como Richie dizia: Alguém desliga o Eddie! Ele está fervendo!), mas isso poderia acontecer a qualquer momento. Ele olhou com desejo para o aspirador na escrivaninha do sr. Keene, e como algo mais parecia precisar ser dito, ele falou:

 

— Faço 12 em novembro.

 

O sr. Keene assentiu, depois se inclinou para a frente como um farmacêutico de comercial de TV e uniu as mãos. Seus óculos brilharam sob a luz forte lançada pelas lâmpadas fluorescentes.

 

— Você sabe o que é um placebo, Eddie?

 

Com nervosismo e dando seu melhor palpite, Eddie disse:

 

— É aquela coisa da onde sai o leite da vaca, não é?

 

O sr. Keene riu e se balançou para trás na cadeira.

 

— Não — disse ele, e Eddie ficou vermelho até a raiz do corte de cabelo militar. Agora, ele conseguia ouvir o assobio surgindo na respiração. — Um placebo...

 

Ele foi interrompido por uma batida dupla brusca na porta. Sem esperar autorização, Ruby entrou com um copo antiquado de vaca-preta em cada mão.

 

— O seu deve ser o de chocolate — disse ela para Eddie, e deu um sorriso.

 

Ele retribuiu da melhor maneira que conseguiu, mas seu interesse em sorvete com refrigerante era o mais baixo da história de vida dele. Ele sentia medo de uma forma que era ao mesmo tempo vaga e específica; era o modo como ele sentia medo quando estava sentado de cueca na mesa de exames do dr. Handor, esperando que o médico entrasse e sabendo que a mãe estava na sala de espera, ocupando a maior parte de um sofá, com um livro (provavelmente O poder do pensamento positivo, de Norman Vincent Peale, ou Dr. Jarvis’s Vermont Folk Medicine) erguido com firmeza na frente dos olhos como um livro de oração. Sem roupas e indefeso, ele se sentia preso entre os dois.

 

Ele tomou um pouco da bebida quando Ruby saiu, mas sem sentir o gosto direito.

 

O sr. Keene esperou até que a porta estivesse fechada e deu o sorriso seco de sol batendo em mica de novo.

 

— Relaxe, Eddie. Não vou morder nem machucar você.

 

Eddie assentiu, porque o sr. Keene era um adulto e as crianças deviam concordar com os adultos a todo custo (a mãe lhe ensinou isso), mas por dentro ele estava pensando: Ah, já ouvi esse tipo de baboseira antes. Era o que o médico dizia quando abria o esterilizador e o aroma pungente e apavorante de álcool se espalhava, fazendo suas narinas arderem. Aquele era o cheiro de injeções, e esse era o cheiro de baboseira, e os dois eram a mesma coisa, no final: quando diziam que seria só uma picadinha, uma coisa que você quase não sentiria, isso significava que ia doer muito.

 

Ele sugou o canudo sem muito ânimo de novo, mas não adiantou; ele precisava de todo espaço na garganta estreita para a passagem do ar. Eddie olhou para a bombinha no mata-borrão do sr. Keene, queria pedi-la, mas não ousava. Um pensamento estranho lhe ocorreu: talvez o sr. Keene soubesse que ele queria, mas não ousava pedir, que talvez o sr. Keene o estivesse

 

(torturando)

 

provocando. Só que era uma ideia idiota, não era? Um adulto, particularmente um adulto distribuidor de saúde, não provocaria um garotinho assim, provocaria? Claro que não. Não era algo nem a ser considerado, porque considerar uma ideia assim poderia exigir uma reavaliação apavorante do mundo como Eddie o via.

 

Mas ali estava, ali estava, tão perto e tão longe, como água fora do alcance de um homem morrendo de sede no deserto. Ali estava, na mesa abaixo dos olhos sorridentes de Mica do sr. Keene.

 

Eddie desejou, mais do que qualquer outra coisa, estar no Barrens com os amigos ao redor. A ideia de um monstro, um monstro enorme, escondido debaixo da cidade em que ele nasceu e cresceu, usando os esgotos e bueiros para se deslocar de um lugar para o outro, era uma ideia bem apavorante, e a ideia de lutar com essa criatura, de encará-la, era ainda mais apavorante... mas, de alguma forma, isso era pior. Como você podia lutar contra um adulto que dizia que não ia doer quando você sabia que ia? Como você podia lutar contra um adulto que fazia perguntas esquisitas e dizia coisas obscuras e sinistras como Isso já está indo longe demais?

 

E, quase sem querer, em uma espécie de pensamento paralelo, Eddie descobriu uma das grandes verdades de sua infância. Os adultos são os verdadeiros monstros, pensou ele. Não era nada de mais, não um pensamento que surgiu em um brilho revelatório nem se anunciou com trombetas e sinos. Apenas surgiu e sumiu, quase enterrado sob o pensamento mais forte e dominador: Quero minha bombinha e quero sair daqui.

 

— Relaxe — disse o sr. Keene de novo. — A maior parte dos seus problemas, Eddie, vem de você ser tão tenso e rígido o tempo todo. Veja sua asma, por exemplo. Olhe aqui.

 

O sr. Keene abriu a gaveta da escrivaninha, mexeu lá dentro e tirou um balão. Depois de expandir o peito estreito o máximo que conseguiu (sua gravata balançou como um barco estreito em uma onda mediana), ele soprou o balão. CENTER STREET DRUG, dizia o balão. RECEITUÁRIOS, MISCELÂNEAS, SUPRIMENTOS DE OSTOMIA. O sr. Keene apertou a ponta do balão e levantou à frente dele.

 

— Agora finja só por um momento que isso seja um pulmão — disse ele. — Seu pulmão. Eu devia encher dois, é claro, mas como só tinha sobrado um da liquidação que fizemos depois do Natal...

 

— Sr. Keene, posso pegar meu aspirador agora? — A cabeça de Eddie estava começando a latejar. Ele conseguia sentir a faringe se fechando. Seus batimentos estavam altos, e havia suor em sua testa. A vaca-preta de sorvete de chocolate estava no canto da mesa, com a cereja no topo afundando lentamente em uma gosma de chantilly.

 

— Em um minuto — disse o sr. Keene. — Preste atenção, Eddie. Quero ajudar você. Está na hora de alguém fazer isso. Se Russ Handor não é homem o bastante para fazer isso, eu sou. Seu pulmão é como este balão, só que é cercado por uma cobertura de músculo; esses músculos são como os braços de um homem bombeando um fole, entende? Em uma pessoa saudável, esses músculos ajudam os pulmões a se expandirem e contraírem com facilidade. Mas se o dono desses pulmões saudáveis sempre fica tenso e contraído, os músculos começam a trabalhar contra os pulmões em vez de com eles. Veja!

 

O sr. Keene colocou a mão fechada e com manchas senis ao redor do balão e apertou. O balão se inchou ao redor da mão fechada, e Eddie fez uma careta, tentando se preparar para o estouro. Ao mesmo tempo, sentiu sua respiração parar. Ele se inclinou na escrivaninha e pegou a bombinha sobre o mata-borrão. Seu ombro bateu no copo de vaca-preta. Ele caiu da mesa e se estilhaçou no chão como uma bomba.

 

Eddie ouviu o barulho de longe. Ele estava apertando a parte de cima do aspirador, enfiando o orifício na boca, disparando-o. Ele respirou com dificuldade, com os pensamentos em pânico como sempre ficavam em momentos assim: Por favor mamãe estou sufocando não consigo RESPIRAR ah meu bom Deus ah Jesus amado do céu não consigo RESPIRAR por favor não quero morrer ah por favor...

 

E então, a névoa do aspirador se condensou nas paredes inchadas de sua garganta, e ele conseguiu respirar de novo.

 

— Me desculpe — disse ele, quase chorando. — Me desculpe pelo copo... vou limpar e pagar por ele... só não conte pra minha mãe, por favor, tá? Me desculpe, sr. Keene, mas eu não conseguia respirar...

 

Houve aquela batida dupla na porta de novo e Ruby colocou a cabeça lá dentro.

 

— Está tudo...?

 

— Tudo está ótimo — disse o sr. Keene com intensidade. — Nos deixe.

 

— Ah, me descuuulpa! — disse Ruby. Ela revirou os olhos e fechou a porta.

 

A respiração de Eddie estava começando a apitar na garganta de novo. Ele bombeou o aspirador mais uma vez e recomeçou o pedido de desculpas desajeitado. Só parou quando viu que o sr. Keene estava sorrindo para ele, com aquele sorriso seco peculiar. As mãos do sr. Keene estavam entrelaçadas sobre a barriga. O balão estava sobre a mesa. Um pensamento surgiu na mente de Eddie; ele tentou bloqueá-lo, mas não conseguiu. O sr. Keene estava com cara de quem achava o ataque de asma de Eddie mais gostoso do que a vaca-preta de café pela metade.

 

— Não se preocupe — disse ele. — Ruby vai limpar a sujeira depois, e se você quer saber a verdade, estou até feliz de você ter quebrado o copo. Porque prometo não contar pra sua mãe que você quebrou se você prometer não contar que tivemos essa conversinha.

 

— Ah, isso eu prometo — disse Eddie com ansiedade.

 

— Que bom — disse o sr. Keene. — Então nos entendemos. E você se sente bem melhor agora, não é?

 

Eddie assentiu.

 

— Por quê?

 

— Por quê? Bem... porque usei meu remédio. — Ele olhou para o sr. Keene da mesma forma como olhava para a sra. Casey na escola quando dava uma resposta da qual não tinha certeza.

 

— Mas você não tomou remédio nenhum — disse o sr. Keene. — Você tomou um placebo. Um placebo, Eddie, é uma coisa que parece remédio e tem gosto de remédio, mas não é remédio. Um placebo não é remédio porque não tem ingredientes ativos. Ou, se é remédio, é remédio de um tipo bem especial. Remédio de cabeça. — O sr. Keene sorriu. — Você entende isso, Eddie? Remédio de cabeça.

 

Eddie entendia, sim; o sr. Keene estava dizendo que ele era louco. Mas por lábios dormentes, ele disse:

 

— Não, não entendo.

 

— Vou contar uma historinha — disse o sr. Keene. — Em 1954, foi feita uma série de testes médicos em pacientes com úlcera na DePaul University. Cem pacientes com úlcera receberam comprimidos. Disseram para todos que os comprimidos ajudariam com as úlceras, mas cinquenta pacientes na verdade receberam placebos... Eram apenas M&M’s com cobertura cor-de-rosa. — O sr. Keene deu uma risadinha aguda estranha, a de um homem descrevendo um trote em vez de um experimento. — Desses cem pacientes, 93 disseram que sentiram uma melhora evidente, e 81 tiveram real melhora. O que você acha? Que conclusão você tira de um experimento assim, Eddie?

 

— Não sei — disse Eddie baixinho.

 

O sr. Keene bateu solenemente na cabeça.

 

— A maior parte das doenças começa aqui, é o que eu acho. Estou nesse ramo há muito, muito tempo, e já sabia sobre placebos muitos anos antes de os médicos da DePaul University fazerem o estudo. Normalmente, são os velhos que tomam placebos. O idoso ou a idosa que vai ao médico com a convicção de ter doença de coração, câncer, diabetes ou alguma coisa qualquer. Mas, em muitos casos, não é nada disso. Eles não se sentem bem porque estão velhos, só isso. Mas o que o médico pode fazer? Dizer que são como relógios com mecanismos desgastados? Rá! Não dá. Médicos gostam muito do que ganham. — E agora, o rosto do sr. Keene assumiu uma expressão que ficava entre um sorriso e um esgar de desprezo.

 

Eddie ficou ali sentado esperando que acabasse, que acabasse, que acabasse. Você não tomou remédio nenhum; essas palavras ecoavam em sua mente.

 

— Os médicos não dizem isso, e eu também não digo isso para eles. Por que se dar ao trabalho? Às vezes, alguma pessoa idosa entra com um receituário que diz claramente: Placebo, ou 25 gramas de Céu Azul, como o velho Doc Pearson costumava escrever.

 

O sr. Keene riu brevemente e tomou um pouco de vaca-preta.

 

— Bem, e qual é o problema disso? — perguntou ele a Eddie, e quando Eddie não disse nada, o sr. Keene respondeu sua própria pergunta. — Ah, nada! Nada de errado!

 

“Ao menos... normalmente.

 

“Placebos são uma bênção pra pessoas velhas. E há também os outros casos... pessoas com câncer, pessoas com doença degenerativa do coração, pessoas com coisas terríveis que ainda não entendemos, algumas crianças como você, Eddie! Em casos assim, se um placebo faz o paciente se sentir melhor, qual é o problema? Você vê algum problema, Eddie?”

 

— Não, senhor — disse Eddie, e olhou para a sujeira de sorvete de chocolate, refrigerante, chantilly e copo quebrado no chão. No meio disso tudo estava a cereja ao marrasquino, tão acusatória quanto uma mancha de sangue em uma cena de crime. Olhar para essa sujeira fez seu peito se apertar de novo.

 

— Então somos como Ike e Mike! Pensamos igual! Cinco anos atrás, quando Vernon Maitland teve câncer no esôfago, um tipo muito doloroso de câncer, e os médicos ficaram sem alternativas eficientes para dar a ele para a dor, entrei no quarto de hospital dele com um vidro de comprimidos de açúcar. Ele era um amigo especial, sabe? E falei: “Vern, esses comprimidos são experimentais, especiais para dor. O médico não sabe que vou dar pra você, então, pelo amor de Deus, tome cuidado e não me delate. Podem não funcionar, mas acho que vão, sim. Tome só uma por dia, e só se a dor estiver bem ruim.” Ele me agradeceu com lágrimas nos olhos. Lágrimas, Eddie! E deram certo pra ele! Sim! Eram apenas comprimidos de açúcar, mas acabaram com a maior parte da dor dele... porque a dor está aqui.

 

Solenemente, o sr. Keene bateu com o dedo na cabeça de novo.

 

Eddie disse:

 

— Meu remédio funciona.

 

— Sei que funciona — respondeu o sr. Keene, e deu um sorriso enlouquecedor e complacente de adulto. — Funciona no seu peito porque funciona na sua cabeça. HydrOx, Eddie, é água com um toque de cânfora para dar um gosto de remédio.

 

— Não — disse Eddie. Sua respiração estava apitando de novo.

 

O sr. Keene tomou um pouco da bebida, pegou um pouco do sorvete com a colher e limpou cuidadosamente o queixo com o lenço enquanto Eddie usava a bombinha de novo.

 

— Quero ir agora — disse Eddie.

 

— Me deixe terminar, por favor.

 

— Não! Quero ir, o senhor já tem seu dinheiro e eu quero ir!

 

— Me deixe terminar — disse o sr. Keene, de forma tão ameaçadora que Eddie se encostou na cadeira. Adultos conseguiam ser tão odiosos com seu poder às vezes. Tão odiosos.

 

— Parte do problema aqui é que seu médico, Russ Handor, é fraco. E parte do problema é que sua mãe tem certeza de que você está doente. Você, Eddie, está preso no meio.

 

— Não sou maluco — sussurrou Eddie, e as palavras saíram quase como um sussurro.

 

A cadeira do sr. Keene estalou como um grilo monstruoso.

 

— O quê?

 

— Falei que não sou maluco! — gritou Eddie. E então, imediatamente, um rubor infeliz subiu ao seu rosto.

 

O sr. Keene sorriu. Pense o que quiser, aquele sorriso dizia. Pense o que você quiser, e eu penso o que eu quiser.

 

— Tudo que estou dizendo, Eddie, é que você não está fisicamente doente. Seus pulmões não têm asma; sua mente tem.

 

— Você está dizendo que sou louco.

 

O sr. Keene se inclinou para a frente e olhou para ele intensamente por cima das mãos cruzadas.

 

— Não sei — disse ele baixinho. — É?

 

— É tudo mentira! — gritou Eddie, surpreso pelo fato de as palavras terem saído com tanta força de seu peito apertado. Ele estava pensando em Bill, em como Bill reagiria a acusações tão absurdas. Bill saberia o que dizer, com ou sem gagueira. Bill saberia ser corajoso. — É tudo uma grande mentira! Tenho asma, tenho sim!

 

— Sim — disse o sr. Keene, e agora o sorriso seco tinha virado um sorrisinho estranho de esqueleto. — Mas quem te deu a asma, Eddie?

 

O cérebro de Eddie vibrou e girou. Ah, ele se sentia doente, ele se sentia muito doente.

 

— Quatro anos atrás, em 1954, o mesmo ano dos testes DePaul, estranhamente, o dr. Handor começou a receitar HydrOx para você. O nome quer dizer hidrogênio e oxigênio, os dois componentes da água. Venho tolerando essa enganação desde então, mas não vou mais tolerar. Seu remédio de asma funciona na sua mente, e não no seu corpo. Sua asma é resultado de um aperto nervoso do diafragma que é ordenado por sua mente... ou por sua mãe.

 

“Você não está doente.”

 

A sala foi mergulhada em um silêncio terrível.

 

Eddie ficou sentado na cadeira, com a mente em turbilhão. Por um momento, ele considerou a possibilidade de o sr. Keene poder estar falando a verdade, mas havia ramificações em uma ideia assim que ele não era capaz de encarar. Mas por que o sr. Keene mentiria, principalmente sobre uma coisa tão séria?

 

O sr. Keene ficou dando o sorriso largo, seco, sem coração e desértico.

 

Tenho mesmo asma, tenho sim. Naquele dia que Henry Bowers deu um soco no meu nariz, no dia em que Bill e eu estávamos tentando fazer uma represa no Barrens, eu quase morri. Devo pensar que minha mente estava só... só inventando aquilo tudo?

 

Mas por que ele mentiria? (Só anos depois, na biblioteca, Eddie se fez a pergunta mais terrível: Por que ele falaria a verdade?)

 

Ele ouviu o sr. Keene falando baixinho:

 

— Ando de olho em você, Eddie. Contei isso tudo para você porque você tem idade suficiente para entender, mas também porque reparei que você finalmente fez amizades. Eles são bons amigos, não são?

 

— São — disse Eddie.

 

O sr. Keene inclinou a cadeira para trás (ela fez aquele barulho de grilo de novo) e fechou um olho no que poderia ser uma piscadela, ou não.

 

— E aposto que sua mãe não gosta muito deles, gosta?

 

— Ela gosta deles, sim — disse Eddie, pensando nas coisas sarcásticas que a mãe dissera sobre Richie Tozier (Ele tem a boca suja... e já senti o hálito dele, Richie... acho que ele fuma), no comentário torto para que ele não emprestasse dinheiro para Stan Uris porque ele era judeu, na antipatia evidente por Bill Denbrough e “aquele garoto gordo”.

 

Ele repetiu para o sr. Keene:

 

— Ela gosta muito deles.

 

— Gosta? — disse o sr. Keene, ainda sorrindo. — Bem, talvez ela esteja certa e talvez esteja errada, mas pelo menos você tem amigos. Talvez você devesse conversar com eles sobre esse seu problema. Essa... essa fraqueza mental. Pra ver o que eles têm a dizer.

 

Eddie não respondeu. Ele não ia mais falar com o sr. Keene; parecia mais seguro. E estava com medo de, se não saísse logo dali, acabar chorando.

 

— Bem! — disse o sr. Keene, e ficou de pé. — Acho que isso encerra nosso papo, Eddie. Se perturbei você, sinto muito. Eu só estava fazendo o que achei que devia. Eu...

 

Mas antes que ele pudesse dizer qualquer outra coisa, Eddie agarrou o aspirador e o saco branco de comprimidos e panaceias e saiu correndo. Um dos pés escorregou na sujeira de sorvete no chão e ele quase caiu. Mas logo estava correndo, disparando para fora da Center Street Drug Store apesar da respiração ofegante. Ruby ficou olhando para ele por cima da revista, com a boca aberta.

 

Ele pareceu sentir o sr. Keene lá atrás, na porta do escritório, observando a fuga graciosa por cima do balcão, magro, arrumado, pensativo e sorridente. Sorrindo aquele sorriso de deserto seco.

 

Ele fez uma pausa no cruzamento triplo da Kansas, Main e Center. Deu outra aspirada na bombinha, sentado no murinho de pedra ao lado do ponto de ônibus. Sua garganta estava escorregadia com aquele gosto medicinal,

 

(nada além de água com um pouco de cânfora misturada)

 

e ele pensou que, se tivesse que usar a bombinha hoje de novo, provavelmente acabaria vomitando as tripas.

 

Ele a colocou no bolso e observou o tráfego passando de um lado para o outro, subindo a rua Main e descendo a colina Up-Mile. Tentou não pensar. O sol batia na cabeça dele, fervendo. Cada carro que passava lançava raios de reflexo em seus olhos, e uma dor de cabeça estava começando a latejar em suas têmporas. Ele não conseguia encontrar uma forma de ficar com raiva do sr. Keene, mas não tinha a menor dificuldade em se sentir mal por Eddie Kaspbrak. Ele achava que Bill Denbrough nunca desperdiçava tempo sentindo pena de si mesmo, mas Eddie não conseguia evitar.

 

Mais do que qualquer coisa, ele queria fazer exatamente o que o sr. Keene tinha sugerido: ir para o Barrens e contar tudo para os amigos, ver o que eles diriam, descobrir que respostas teriam. Mas não podia fazer isso agora. A mãe o esperaria em casa com os remédios em pouco tempo,

 

(por sua mente... ou por sua mãe)

 

e, se ele não estivesse lá,

 

(sua mãe tem certeza de que você está doente)

 

teria problemas. Ela suporia que ele estava com Bill, Richie ou com “o garoto judeu”, como ela chamava Stan (insistindo que não pretendia ser preconceituosa quando o chamava assim, mas que estava apenas “botando as cartas na mesa”, a expressão dela para falar a verdade em situações difíceis). E, ali na esquina, tentando desesperadamente organizar os pensamentos disparados, Eddie sabia o que ela diria se soubesse que um dos outros amigos era negro e a outra era uma garota, uma garota com idade para começar a ter seios.

 

Ele começou a subir a colina Up-Mile, com medo da subida nesse calor. Estava quase quente o bastante para fritar um ovo na calçada. Pela primeira vez, ele se viu desejando a volta da escola, uma nova série e as peculiaridades de uma nova professora com as quais lidar. Que esse verão horrível acabasse.

 

Ele parou na metade da colina, não longe de onde Bill Denbrough redescobriria a bicicleta Silver 27 anos depois, e tirou o aspirador do bolso. Névoa de Hydrox, dizia o rótulo. Administrar conforme necessário.

 

Outra coisa deu um estalo. Administrar conforme necessário. Ele era só uma criança, ainda imaturo (como sua mãe às vezes dizia quando estava “botando as cartas na mesa”), mas mesmo um garoto de 11 anos sabia que não se dava a alguém remédio de verdade e escrevia no rótulo Administrar conforme necessário. Se fosse remédio de verdade, seria fácil demais se matar administrando sempre que fosse necessário. Ele achava que dava para se matar usando uma simples aspirina dessa forma.

 

Ele olhou fixamente para o aspirador, sem perceber a senhora idosa que olhou curiosamente para ele quando passou colina abaixo na direção da rua Main com a cesta de compras no braço. Ele se sentia traído. E, por um momento, quase jogou a embalagem plástica na vala. Melhor ainda, pensou ele, era jogar dentro do bueiro. Claro! Por que não? Que a Coisa pegasse a bombinha lá nos túneis e canos pingando. Tome um pla-ce-bo, seu monstro de mil caras! Ele deu uma gargalhada descontrolada e chegou muito perto de fazer isso. Mas, no final, o hábito era simplesmente forte demais. Ele recolocou a bombinha no bolso da frente da calça e saiu andando, sem nem ouvir a ocasional buzina ou o estrondo do escapamento do ônibus do Parque Bassey ao passar por ele. Também não estava ciente do quanto estava perto de descobrir como era se machucar de verdade.

 

Quando ele saiu do mercado da avenida Costello 25 minutos depois com uma Pepsi em uma das mãos e duas barras de chocolate PayDay na outra, Eddie teve a desagradável surpresa de ver Henry Bowers, Victor Criss, Moose Sadler e Patrick Hockstetter ajoelhados no cascalho à esquerda da loja. Por um momento, Eddie achou que eles estavam jogando dados; mas logo viu que estavam juntando o dinheiro que tinham na camisa de beisebol de Victor. Os livros da recuperação de verão estavam jogados de lado em uma pilha desorganizada.

 

Em um dia comum, Eddie poderia apenas voltar silenciosamente para a loja e pedir ao sr. Gedreau se podia sair pela porta dos fundos, mas esse não era um dia comum. Eddie ficou paralisado onde estava, com a mão ainda segurando a porta de tela com as propagandas de cigarro em placas de metal (WINSTON É GOSTOSO, COMO UM CIGARRO DEVE SER, 21 BONS TIPOS DE TABACO FORMAM 21 CIGARROS, o garoto que dizia PEÇA PHILIP MORRIS), a outra segurando o saco pardo de compras e o saco branco da farmácia.

 

Victor Criss o viu e cutucou Henry. Henry ergueu o olhar; Patrick Hockstetter fez o mesmo. Moose, que era mais lento, continuou contando moedas por cinco segundos, mais ou menos, antes de o silêncio repentino atingi-lo e ele também olhar.

 

Henry ficou de pé e tirou o cascalho grudado nos joelhos do macacão que estava usando. Havia talas nas laterais do nariz coberto de curativo, e a voz tinha um tom anasalado.

 

— Ora, quem diria — disse ele. — Um dos jogadores de pedras. Onde estão seus amigos, babaca? Estão lá dentro?

 

Eddie estava balançando a cabeça com torpor antes de perceber que isso era outro erro.

 

O sorriso de Henry se alargou.

 

— Ah, tudo bem — disse ele. — Não me importo de pegar um de cada vez. Vem até aqui, babaca.

 

Victor ficou de pé ao lado de Henry; Patrick Hockstetter estava atrás deles, com um sorriso vazio que Eddie conhecia bem da escola. Moose ainda estava se levantando.

 

— Vem cá, babaca — disse Henry. — Vamos conversar sobre jogar pedras. Vamos conversar sobre isso. Quer?

 

Agora que era tarde demais, Eddie concluiu que seria melhor entrar na loja. Voltar para a loja onde havia um adulto. Mas, quando ele recuou, Henry deu um pulo e o agarrou. Ele puxou o braço de Eddie, puxou com força, e seu sorriso virou um rosnado. A mão de Eddie foi arrancada da porta de tela. Ele foi empurrado pelos degraus, e teria caído de cabeça no cascalho se Victor não o tivesse segurado pelas axilas. Victor o jogou. Eddie conseguiu ficar de pé, mas só dando dois rodopios. Os quatro garotos estavam de frente para ele agora a uma distância de uns 3 metros, Henry um pouco à frente dos outros, sorrindo. O cabelo estava de pé atrás, no estilo boi-lambeu.

 

Atrás de Henry, à esquerda, estava Patrick Hockstetter, um garoto genuinamente assustador. Eddie nunca o tinha visto acompanhado até hoje. Ele estava acima do peso o bastante para a barriga sempre se projetar por cima do cinto, que tinha fivela de Red Ryder. O rosto era perfeitamente redondo e costumava ser branco como leite. Agora, ele estava levemente queimado de sol, o nariz mais queimado e descascando, mas o tom rosado se espalhava pelas bochechas como asas. Na escola, Patrick gostava de matar moscas com a régua verde de plástico e guardá-las no estojo. Às vezes, ele mostrava a coleção de moscas para algum garoto novo no parquinho durante o recreio, sorrindo com os lábios grossos e os olhos cinza-esverdeados sóbrios e pensativos. Ele nunca falava quando mostrava as moscas mortas, independente do que o garoto novo pudesse falar. Aquela expressão estava em seu rosto agora.

 

— Como vai, Homem das Pedras? — perguntou Henry, diminuindo a distância entre eles. — Tem alguma pedra aí?

 

— Me deixa em paz — disse Eddie com voz trêmula.

 

— “Me deixa em paz” — imitou Henry, balançando a mão fingindo medo. Victor riu. — O que você vai fazer se eu não deixar, Homem das Pedras? Hã? — Ele esticou a mão com rapidez incrível, que explodiu na bochecha de Eddie com o som de disparo de arma. A cabeça de Eddie foi lançada para trás. Lágrimas começaram a escorrer do olho esquerdo.

 

— Meus amigos estão lá dentro — disse Eddie.

 

— “Meus amigos estão lá dentro” — guinchou Patrick Hockstetter. — Aaaah! Aaaah! Aaaah! — Ele começou a seguir para a direita de Eddie.

 

Eddie começou a se virar naquela direção, mas a mão de Henry disparou de novo, e desta vez foi a outra bochecha que pegou fogo.

 

Não chore, pensou ele, é isso que eles querem, mas não faça isso Eddie. Bill não choraria, Bill não faria isso, então não chore tamb...

 

Victor deu um passo à frente e deu um empurrão no meio do peito de Eddie. Eddie cambaleou meio passo para trás e caiu em cima de Patrick, que tinha se agachado diretamente atrás de seus pés. Ele caiu no cascalho e arranhou os braços. Houve um som de uff! quando o ar saiu de seus pulmões.

 

Um momento depois, Henry Bowers estava em cima dele, com os joelhos prendendo os braços de Eddie, o traseiro em cima da barriga.

 

— Tem alguma pedra, Homem das Pedras? — disse Henry para ele, e Eddie sentiu mais medo da luz louca nos olhos de Henry do que por causa da dor nos braços ou pela incapacidade de recuperar o fôlego. Henry era doido. Em algum ponto ali perto, Patrick riu.

 

— Quer jogar pedras? Hã? Vou te dar pedras! Aqui! Toma algumas pedras!

 

Henry pegou um punhado de cascalho e esfregou no rosto de Eddie. O cascalho cortou a pele, as bochechas, as pálpebras, os lábios. Eddie abriu a boca e gritou.

 

— Quer pedras? Vou te dar pedras! Tome algumas pedras, Homem das Pedras! Quer pedras? Tá! Tá! Tá!

 

Cascalho foi enfiado em sua boca aberta, cortando suas gengivas, batendo nos dentes. Ele sentiu fagulhas voarem nas obturações. Gritou de novo e cuspiu cascalho.

 

— Quer mais pedras? Quer? Que tal mais algumas? Que tal...?

 

— Pare com isso! Ei, ei! Pare com isso! Ei, garoto! Deixa ele! Agora mesmo! Está ouvindo? Deixa ele!

 

Por olhos entreabertos e manchados de lágrimas, Eddie viu a mão grande de alguém descer e segurar Henry pela gola da camisa e pela tira direita do macacão. A mão deu um puxão e Henry foi tirado de cima dele. Ele caiu no cascalho e se levantou. Eddie se levantou mais devagar. Estava tentando ficar de pé, mas parecia não ter equilíbrio. Ele ofegou e cuspiu pedaços de cascalho com sangue.

 

Era o sr. Gedreau, vestido com o avental branco e comprido, e parecia furioso. Não havia medo no rosto dele, embora Henry fosse 8 centímetros mais alto e provavelmente pesasse 25 quilos a mais do que ele. Não havia medo em seu rosto porque ele era o adulto e Henry era a criança. Só que, desta vez, pensou Eddie, isso talvez não significasse nada. O sr. Gedreau não entendia. Ele não sabia que Henry era louco.

 

— Saiam daqui — disse o sr. Gedreau, indo para perto de Henry até ficar cara a cara com o garoto com expressão de raiva. — Saiam e não voltem. Não aturo sua valentia. Não aturo quatro contra um. O que as mães de vocês pensariam?

 

Ele olhou para os outros com raiva e irritação. Moose e Victor baixaram o olhar e examinaram os tênis. Patrick só ficou olhando para e através do sr. Gedreau com aquela expressão vazia cinza-esverdeada. O sr. Gedreau olhou de volta para Henry e chegou a dizer “Peguem suas bicicletas e...” quando Henry deu um empurrão nele.

 

Uma expressão de surpresa que seria cômica em outras circunstâncias se espalhou no rosto do sr. Gedreau quando ele foi jogado para trás, com cascalho solto voando debaixo das solas dos sapatos. Ele caiu sentado com força nos degraus que levavam à porta de tela.

 

— Por que você...? — ele começou a dizer.

 

A sombra de Henry caiu em cima dele.

 

— Entra — disse ele.

 

— Você... — disse o sr. Gedreau, e desta vez parou por conta própria. O sr. Gedreau tinha finalmente visto, percebeu Eddie, aquela luz nos olhos de Henry. Ele se levantou rapidamente, com o avental balançando. Subiu os degraus o mais rápido que conseguiu, tropeçou no penúltimo e se apoiou brevemente em um joelho. Levantou-se rápido, mas aquele tropeço, por mais breve que tenha sido, pareceu tirar o resto de sua autoridade de adulto.

 

Ele se virou no alto e gritou:

 

— Vou chamar a polícia!

 

Henry fingiu que ia partir para cima dele, e o sr. Gedreau se encolheu. Aquele foi o fim, percebeu Eddie. Por mais incrível e impensável que parecesse, não havia proteção para ele aqui. Era hora de ir.

 

Enquanto Henry estava no pé dos degraus olhando com raiva para o sr. Gedreau e enquanto os outros olhavam hipnotizados (e, exceto por Patrick Hockstetter, nem um pouco horrorizados) esse desafio repentino e bem-sucedido de desacato à autoridade adulta, Eddie viu sua chance. Ele girou e saiu correndo.

 

Estava na metade do quarteirão quando Henry se virou, com olhos pegando fogo.

 

— Peguem ele! — gritou ele.

 

Com ou sem asma, Eddie deu uma boa corrida naquele dia. Houve espaços, alguns de até 15 metros, em que ele não conseguia lembrar se as solas dos sapatos tocaram na calçada ou não. Por alguns momentos, ele até considerou uma ideia eufórica de que conseguiria correr mais do que eles.

 

E então, pouco antes de ele chegar à rua Kansas e o que poderia ser a segurança, um garotinho de triciclo saiu de uma casa direto no caminho de Eddie. Eddie tentou desviar, mas pela velocidade que estava correndo, teria sido melhor pular por cima do garoto (o nome do garoto era Richard Cowan, e ele cresceria, se casaria e seria pai de um garoto chamado Frederick Cowan, que se afogaria na privada e seria parcialmente comido por uma coisa que subiu pelo vaso como fumaça preta e assumiu uma forma inimaginável), ou pelo menos tentar.

 

Um dos pés de Eddie prendeu na parte de trás do triciclo, onde um merdinha aventureiro poderia ficar de pé e empurrar o triciclo como se fosse um patinete. Richard Cowan, cujo filho não nascido seria assassinado pela Coisa 27 anos depois, mal balançou no triciclo. Mas Eddie saiu voando. Ele bateu na calçada com o ombro, quicou, caiu de novo e deslizou 3 metros, destruindo a pele dos cotovelos e dos joelhos. Estava tentando se levantar quando Henry Bowers bateu nele como uma bala de bazuca e o derrubou. O nariz de Eddie se chocou bruscamente com o concreto. Sangue voou.

 

Henry rolou de lado como um paraquedista militar e se levantou de novo. Segurou Eddie pela nuca e pelo pulso direito. A respiração dele, roncando pelo nariz inchado e quebrado, estava quente e úmida.

 

— Quer pedras, Homem das Pedras? Claro! Merda! — Ele torceu o pulso de Eddie até as costas. Eddie gritou. — Pedras pro Homem das Pedras, certo, Homem das Pedras? — Ele puxou o pulso ainda mais para cima. Eddie gritou. Atrás dele, ao longe, ele conseguia ouvir os outros se aproximando, e o garotinho no triciclo começar a chorar. Bem-vindo ao clube, garoto, pensou ele, e apesar da dor, apesar das lágrimas e do medo, ele deu uma sonora gargalhada.

 

— Você acha engraçado? — perguntou Henry, parecendo de repente atônito em vez de furioso. — Acha isso engraçado? — E Henry também não parecia com medo? Anos depois, Eddie pensaria: Sim, com medo, ele pareceu estar com medo.

 

Eddie girou o pulso na mão de Henry. Ele estava molhado de suor e quase conseguiu se soltar. Talvez tenha sido por isso que Henry puxou o pulso de Eddie ainda mais do que antes. Eddie ouviu um estalo no braço como o som de madeira no inverno cedendo embaixo de uma camada acumulada de gelo. A dor que subiu do braço fraturado era indistinta e gigantesca. Ele gritou, mas o som pareceu distante. A cor estava sumindo do mundo, e quando Henry o soltou e empurrou, ele pareceu flutuar até a calçada. Levou muito tempo para chegar até o chão. Ele deu uma boa olhada em cada rachadura na calçada enquanto deslizava. Teve a oportunidade de admirar a forma como o sol de julho brilhava nos pedaços de mica no meio da calçada. Teve a oportunidade de reparar nos restos de uma amarelinha desenhada com giz rosa na calçada. E então, só por um momento, as linhas tremeram e pareceram outra coisa. Pareceram uma tartaruga.

 

Ele poderia ter desmaiado, mas caiu no braço recém-quebrado, e a dor foi intensa, ardente, quente, terrível. Ele sentiu as pontas da fratura em galho verde se roçarem. Eddie mordeu a língua, o que provocou um novo jorro de sangue. Ele rolou de costas e viu Henry, Victor, Moose e Patrick acima. Eles pareciam impossivelmente altos, impossivelmente elevados, como carregadores de caixão olhando dentro de um túmulo.

 

— Gostou disso, Homem das Pedras? — perguntou Henry, com a voz sumindo ao longe, flutuando pelas nuvens de dor. — Gostou da agitação, Homem das Pedras? Gostou do agito da vez?

 

Patrick Hockstetter riu.

 

— Seu pai é maluco — Eddie se ouviu dizer —, e você também é.

 

O sorriso de Henry sumiu tão rápido que pareceu arrancado de seu rosto. Ele puxou o pé para chutar... mas uma sirene surgiu na tarde quente e imóvel. Henry parou. Victor e Moose olharam ao redor com desconforto.

 

— Henry, acho melhor a gente sair daqui — disse Moose.

 

— Só sei que eu vou sair daqui — disse Victor. Como as vozes deles pareciam distantes! Como os balões do palhaço, elas pareciam flutuar. Victor saiu correndo na direção da biblioteca, atravessando o parque McCarron para fugir da rua.

 

Henry hesitou por um momento, talvez torcendo para o carro da polícia estar cuidando de outra coisa e ele poder continuar o que estava fazendo. Mas a sirene soou de novo, mais perto.

 

— Você teve sorte, cara de cu — disse ele. Ele e Moose saíram correndo atrás de Victor.

 

Patrick Hockstetter esperou mais um momento.

 

— Toma uma coisinha extra pra você — sussurrou ele com a voz baixa e rouca. Ele inspirou e cuspiu catarro verde no rosto virado, suado e sangrento de Eddie. Splat. — Não come tudo de uma vez se não quiser — disse Patrick, dando o sorriso doentio e perturbador. — Guarda um pouco pra depois se quiser.

 

E então, ele se virou lentamente e foi embora.

 

Eddie tentou limpar o catarro com o braço bom, mas mesmo aquele pequeno movimento fez a dor disparar de novo.

 

Quando você saiu para a farmácia, nunca pensou que acabaria na calçada da avenida Costello com o braço quebrado e a meleca de Patrick Hockstetter escorrendo pelo seu rosto, não é? Você nem chegou a beber a Pepsi. A vida é cheia de surpresas, não é?

 

Incrivelmente, ele deu outra gargalhada. Foi um som fraco e fez o braço quebrado doer, mas a sensação foi boa. E havia mais uma coisa: nada de asma. Sua respiração estava bem, ao menos por enquanto. E isso era bom. Ele jamais conseguiria pegar a bombinha. Nem em mil anos.

 

A sirene estava perto agora, apitando e apitando. Eddie fechou os olhos e viu tudo vermelho sob as pálpebras. E então, o vermelho ficou preto quando uma sombra caiu sobre ele. Era o garotinho do triciclo.

 

— Tudo bem? — perguntou o garotinho.

 

— Eu pareço bem? — perguntou Eddie.

 

— Não, você está horrível — disse o garotinho, e saiu pedalando e cantando “The Farmer in the Dell”.

 

Eddie começou a dar risadinhas. Aqui estava o carro da polícia; ele conseguiu ouvir o barulho dos freios. Ele se viu torcendo vagamente para que o sr. Nell estivesse dentro, apesar de saber que o sr. Nell fazia patrulha a pé.

 

Por que você está rindo, em nome de Deus?

 

Ele não sabia, tanto quanto não sabia por que devia sentir, apesar da dor, um alívio tão intenso. Seria porque ele ainda estava vivo, porque o pior que ele sofreu foi um braço quebrado, e ainda havia pedaços para juntar? Ele decidiu que era isso, mas, anos depois, sentado na Biblioteca de Derry com um copo de gim com suco de ameixa à frente e o aspirador bem perto, ele contou para os outros que achava que era mais do que isso; ele era velho o bastante para sentir mais, mas não para entender e definir.

 

Acho que foi a primeira dor verdadeira que senti na vida, diria ele para os outros. Não foi como eu achava que seria. Não acabou comigo como pessoa. Acho... que me deu base de comparação, pude descobrir que ainda dava para existir dentro da dor, apesar da dor.

 

Eddie virou a cabeça fracamente para a direita e viu grandes pneus pretos Firestone, para-choques cromados cegantes e luzes azuis pulsantes. Ouviu a voz do sr. Nell naquele momento, densamente irlandesa, impossivelmente irlandesa, parecendo mais com a Voz do Policial Irlandês de Richie do que a voz verdadeira do sr. Nell... mas talvez fosse efeito da distância.

 

— Meu Deus do céu, é o moleque Kaspbrak!

 

Nesse momento, Eddie apagou.

 

E, com uma exceção, ficou apagado por um tempo.

 

Houve um breve período de consciência na ambulância. Ele viu o sr. Nell sentado à frente dele, tomando um gole da garrafinha marrom e lendo um livro chamado Eu, o júri. A garota na capa tinha os maiores seios que Eddie já tinha visto. Seus olhos passaram do sr. Nell para o motorista. O motorista olhou para Eddie com um grande sorriso malicioso, a pele lívida de tinta e talco, os olhos brilhando como moedas novas. Era Pennywise.

 

— Sr. Nell — disse Eddie com voz rouca.

 

O sr. Nell ergueu o olhar e sorriu. — Como você está, moleque?

 

— ... motorista... o motorista...

 

— Sim, vamos chegar lá num pulo — disse o sr. Nell, e entregou para ele a garrafinha marrom. — Toma um pouquinho. Vai te ajudar a se sentir melhor.

 

Eddie bebeu o que parecia fogo líquido. Ele tossiu, o que fez o braço doer. Ele olhou para a frente e viu o motorista de novo. Só um cara de cabeça quase raspada. Nada de palhaço.

 

Ele apagou de novo.

 

Muito depois, ele estava no pronto-socorro e uma enfermeira estava limpando o sangue, a sujeira, o catarro e o cascalho de seu rosto com um pano frio. Ardia, mas a sensação era maravilhosa ao mesmo tempo. Ele ouviu a mãe fazendo um escarcéu lá fora e tentou dizer para a enfermeira não deixar que ela entrasse, mas nenhuma palavra saía, independente do quanto ele se esforçasse.

 

— ... se ele estiver morrendo, quero saber! — gritava a mãe. — Está ouvindo? É meu direito saber, e é meu direito vê-lo! Posso processar você, sabe? Conheço advogados, muitos advogados! Alguns dos meus melhores amigos são advogados!

 

— Não tente falar — disse a enfermeira para Eddie. Ela era jovem, e ele conseguia sentir os seios dela encostando em seu braço. Por um momento, ele teve a ideia louca de que a enfermeira era Beverly Marsh, mas logo apagou de novo.

 

Quando voltou a si, sua mãe estava no quarto, falando com o dr. Handor em uma velocidade absurda. Sonia Kaspbrak era uma mulher enorme. As pernas, envoltas em meias de compressão, pareciam troncos, mas estranhamente lisos. O rosto estava pálido agora, exceto por bolotas vermelhas no rosto.

 

— Mãe — Eddie conseguiu dizer — ... tudo bem... estou bem

 

— Não está, não está — gemeu a sra. Kaspbrak. Ela torceu as mãos. Eddie ouviu os dedos estalarem e se apertarem. Começou a sentir a respiração ficar curta assim que olhou para ela, que viu o estado em que ela estava, como essa sua última aventura a tinha afetado. Ele queria dizer para ela se acalmar, senão ela teria um ataque cardíaco, mas não conseguiu. Sua garganta estava seca demais. — Você não está bem, sofreu um acidente sério, um acidente muito sério, mas você vai ficar bem, eu prometo, Eddie, você vai ficar bem, mesmo se precisarmos trazer todos os especialistas do mundo, ah Eddie... Eddie... seu pobre braço...

 

Ela caiu em um choro barulhento. Eddie viu que a enfermeira que tinha lavado seu rosto estava olhando para ela sem muita pena.

 

Durante toda essa ladainha, o dr. Handor ficou gaguejando:

 

— Sonia... por favor, Sonia... Sonia...?

 

Ele era um homem magro com aparência desnutrida e um bigodinho que não tinha crescido muito bem e que ele não tinha aparado direito, ainda por cima, de forma que estava mais comprido do lado esquerdo. Ele parecia nervoso. Eddie se lembrou do que o sr. Keene contou naquela manhã e sentiu uma certa pena do dr. Handor.

 

Por fim, reunindo as forças, Russ Handor conseguiu dizer:

 

— Se você não conseguir se controlar, vai ter que ir embora, Sonia.

 

Ela se virou para ele, e ele se encolheu.

 

— Não vou fazer isso! Nem sugira! É meu filho que está deitado ali em sofrimento! Meu filho deitado nessa cama de dor!

 

Eddie surpreendeu a todos ao conseguir falar em voz alta.

 

— Quero que você vá embora, mãe. Se vão fazer alguma coisa que vai me fazer gritar, e acho que vão, você vai se sentir melhor se for embora.

 

Ela se virou para ele, atônita... e magoada. Ao ver a mágoa no rosto dela, ele sentiu seu peito começar a apertar inexoravelmente.

 

— É claro que eu não vou! — gritou ela. — Que coisa horrível de dizer, Eddie! Você está delirante! Você não entende o que está dizendo, é a única explicação!

 

— Não sei qual é a explicação e não ligo — disse a enfermeira. — Só sei que estamos aqui sem fazer nada enquanto deveríamos estar ajeitando o braço do seu filho.

 

— Você está sugerindo... — começou Sonia, com a voz subindo ao tom agudo e estridente que assumia quando ela estava mais aborrecida.

 

— Por favor, Sonia — disse o dr. Handor. — Não vamos discutir aqui. Vamos ajudar Eddie.

 

Sonia recuou, mas seus olhos fuzilantes, os olhos de uma mãe urso cujo filhote foi ameaçado, prometeram confusão à enfermeira mais tarde. Possivelmente até um processo. Então os olhos dela ficaram úmidos, o que afastou a raiva, ou pelo menos escondeu. Ela segurou a mão boa de Eddie e apertou com tanta força que ele fez uma careta.

 

— Está ruim, mas você vai ficar bom logo — disse ela. — Vai ficar bom logo, eu prometo.

 

— Claro, mãe — disse Eddie, respirando ruidosamente. — Posso usar minha bombinha?

 

— É claro — disse ela. Sonia Kaspbrak olhou para a enfermeira de forma triunfante, como se vingada depois de uma acusação criminal ridícula. — Meu filho tem asma — disse ela. — É bem grave, mas ele lida com o problema lindamente.

 

— Que bom — disse a enfermeira em tom neutro.

 

A mãe segurou a bombinha para ele aspirar. Um momento depois, o dr. Handor estava apalpando o braço quebrado de Eddie. Ele foi o mais delicado possível, mas a dor ainda foi enorme. Eddie teve vontade de gritar e trincou os dentes. Estava com medo de a mãe gritar também se ele gritasse. Suor surgiu em sua testa em gotas grandes e transparentes.

 

— Você está machucando ele — disse a sra. Kaspbrak. — Sei que está! Não há necessidade disso! Pare! Não tem necessidade de machucar ele! Ele é muito delicado, não pode suportar esse tipo de dor!

 

Eddie viu a enfermeira trocar um olhar furioso com o cansado e preocupado do dr. Handor. Viu a conversa sem palavras que se passou entre eles: Mande essa mulher pra fora daqui, doutor. E no fechar dos olhos dele: Não posso. Não ouso.

 

Havia grande clareza dentro da dor (embora, na verdade, essa não fosse uma clareza que Eddie gostaria de experimentar com frequência; o preço era alto demais), e, naquela conversa silenciosa, Eddie aceitou tudo que o sr. Keene disse para ele. A bombinha de HydrOx estava cheia nada mais do que água com sabor. A asma não estava em sua garganta nem em seus pulmões, mas na cabeça. De uma forma ou de outra, ele teria que lidar com essa verdade.

 

Ele olhou para a mãe, viu-a claramente em meio à dor: cada flor no vestido Lane Bryant, as marcas de suor debaixo dos braços, onde os absorventes que ela usava tinham ficado encharcados, as marcas no sapato gasto. Ele viu o quanto os olhos dela eram pequenos nas bolsas de pele, e agora um pensamento terrível surgiu em sua mente: aqueles olhos eram quase predatórios, como os do leproso que saiu do porão do número 29 da rua Neibolt. Estou chegando, Eddie, isso mesmo... não vai ser bom pra você correr, Eddie...

 

O dr. Handor colocou delicadamente as mãos ao redor do braço quebrado de Eddie e apertou. A dor explodiu.

 

Eddie apagou.

 

Deram um líquido para ele beber, e o dr. Handor colocou a fratura no lugar. Ele ouviu o dr. Handor contar para sua mãe que era uma fratura de galho verde, uma simples fratura infantil.

 

— É o tipo de fratura que crianças têm quando caem de árvores — disse ele, e Eddie ouviu a mãe responder furiosamente:

 

— Eddie não sobe em árvores! Agora quero a verdade! O quanto ele está mal?

 

Mas a enfermeira lhe deu um comprimido. Ele sentiu os seios dela no ombro de novo e ficou grato pela pressão reconfortante. Mesmo em meio ao atordoamento, ele conseguiu ver que a enfermeira estava zangada, e pensou ter dito Ela não é o leproso, por favor, não pense isso, ela só está me comendo porque me ama, mas talvez nada tenha saído, porque o rosto furioso da enfermeira não mudou.

 

Ele tinha uma lembrança leve de ser empurrado por um corredor em uma cadeira de rodas e da voz de sua mãe em algum lugar atrás, ficando mais baixa:

 

— O que você quer dizer com horário de visita? Não fale comigo sobre horário de visita, ele é meu filho!

 

Diminuindo. Ele estava feliz por ela estar sumindo, feliz por ele estar sumindo. A dor tinha desaparecido e a claridade foi embora junto. Ele não queria pensar. Queria apagar. Percebeu que o braço direito estava muito pesado. Perguntou-se se já tinham colocado gesso. Ele parecia não conseguir ver. Estava vagamente ciente de rádios tocando em quartos, de pacientes que pareciam fantasmas de camisolas de hospital andando de um lado para o outro em corredores largos e de que estava quente... muito quente. Quando ele foi levado para o quarto, conseguiu ver o sol se pondo em uma explosão laranja de sangue e pensou incoerentemente: Como um grande botão de roupa de palhaço.

 

— Vamos, Eddie, você consegue andar — disse uma voz, e ele descobriu que conseguia. Ele foi colocado entre lençóis frios e engomados. A voz disse que ele sentiria um pouco de dor à noite, mas que não deveria tocar a campainha para chamar a enfermeira e pedir analgésico a não ser que a dor ficasse muito forte. Eddie perguntou se podia beber água. A água veio com um canudo com uma sanfona no meio, para poder dobrá-lo. Estava fria e gostosa. Ele bebeu tudo.

 

Houve dor à noite, muita dor. Ele ficou deitado na cama, segurando a campainha na mão esquerda, mas sem apertar. Uma tempestade caía lá fora, e quando os relâmpagos brilhavam em azul e branco, ele virava o rosto para longe da janela, com medo de ver um sorriso monstruoso e sorridente no céu em meio àquele fogo elétrico.

 

Ele acabou dormindo de novo e, durante o sono, teve um sonho. No sonho ele viu Bill, Ben, Richie, Stan, Mike e Bev, seus amigos, chegando ao hospital de bicicleta (Bill estava com Richie na garupa de Silver). Ele ficou surpreso ao ver Beverly de vestido; era um tom lindo de verde, da cor do Caribe em uma gravura da National Geographic. Ele não conseguia lembrar se já a tinha visto de vestido; só se lembrava de calças jeans e calças capri e o que as garotas chamavam de “uniforme de escola”: saias e blusas, com blusas normalmente brancas com gola redonda, saias geralmente plissadas e marrons e abaixo dos joelhos, para esconder os machucados.

 

No sonho, ele os viu chegando para o horário de visitas das 14h, e sua mãe, que estava esperando pacientemente desde as 11h, gritou tão alto com eles que todos se viraram para olhar para ela.

 

Se vocês acham que vão entrar, podem tirar o cavalinho da chuva!, gritou a mãe de Eddie, e agora o palhaço, que estava sentado na sala de espera o tempo todo (mas bem no canto, com um exemplar da revista Look na frente do rosto até aquele momento), deu um pulo e fez uma mímica de aplauso, batendo as mãos com luvas brancas uma na outra rapidamente. Ele saltou e dançou, fez uma estrela, fez uma pirueta, enquanto a sra. Kaspbrak tagarelava com os amigos Otários de Eddie e enquanto eles se escondiam, um a um, atrás de Bill, que ficou ali de pé, pálido mas aparentemente calmo, com as mãos enfiadas fundo nos bolsos da calça jeans (talvez para que ninguém, incluindo o próprio Bill, pudesse ver se estavam tremendo ou não). Ninguém viu o palhaço além de Eddie... embora um bebê dormindo tranquilamente no colo da mão tivesse acordado e começado a chorar com intensidade.

 

Vocês já fizeram muito mal!, gritou a mãe de Eddie. Sei quem eram aqueles garotos! Eles estão com problema na escola, estão com problema até com a polícia! E só porque aqueles garotos têm alguma coisa contra vocês, não é motivo pra eles terem alguma coisa contra ele. Falei isso para ele, e ele concorda comigo. Ele quer que eu mande vocês irem embora, ele cansou de vocês, nunca mais quer voltar a ver nenhum de vocês. Ele não quer mais a suposta amizade de vocês! De nenhum de vocês! Eu sabia que daria confusão, e vejam só! Meu Eddie no hospital! Um garoto delicado como ele...

 

O palhaço pulou, dançou, fez splits e ficou apoiado em uma das mãos. O sorriso dele era verdadeiro o bastante agora, e no sonho Eddie percebeu que obviamente era isso que o palhaço queria, uma barreira que os separasse, afastando-os e destruindo qualquer chance de ação em conjunto. Em uma espécie de êxtase imundo, o palhaço rodopiou duas vezes e deu um beijo burlesco na bochecha de sua mãe.

 

A-A-Aqueles g-g-g-garotos que f-f-fizeram isso... começou Bill.

 

Não me responda!, gritou a sra. Kaspbrak. Não ouse me responder! Ele não quer mais saber de vocês, eu disse! Chega!

 

E então, um interno entrou correndo na sala de espera e disse para a mãe de Eddie que ela teria que fazer silêncio, senão teria que sair do hospital. O palhaço começou a sumir, começou a ficar mais transparente e, ao mesmo tempo, começou a mudar. Eddie viu o leproso, a múmia, o pássaro; ele viu o lobisomem e um vampiro cujos dentes eram lâminas Gillette em ângulos estranhos como espelhos em uma casa de espelhos de parque de diversão; ele viu Frankenstein, a criatura, e uma coisa carnuda que parecia uma concha e que se abria e fechava como uma boca; ele viu uma dezena de outras coisas terríveis, cem. Mas, pouco antes de o palhaço sumir completamente, ele viu a coisa mais terrível de todas: o rosto de sua mãe.

 

Não!, ele tentou gritar. Não! Não! Ela não! Minha mãe não!

 

Mas ninguém olhou; ninguém ouviu. E, nos momentos finais do sonho, ele percebeu com horror frio e apavorante que eles não conseguiam ouvi-lo. Ele estava morto. A Coisa o tinha matado, e ele estava morto. Ele era um fantasma.

 

O triunfo agridoce de Sonia Kaspbrak por mandar os ditos amigos do filho para longe evaporou assim que ela entrou no quarto particular de Eddie na tarde seguinte, no dia 21 de julho. Ela não sabia explicar exatamente por que a sensação de triunfo estava sumindo assim, nem por que foi desalojada por um medo não direcionado; era alguma coisa no rosto pálido do filho, que não estava contorcido de dor e ansiedade, mas com uma expressão que ela não conseguia se lembrar de ter visto nos olhos dele. Era penetrante, de alguma forma. Penetrante, alerta e determinada.

 

O confronto entre os amigos e a mãe de Eddie não aconteceu na sala de espera, como no sonho; ela sabia que eles estavam indo para lá, os “amigos” de Eddie, que provavelmente o estavam ensinando a fumar cigarros apesar da asma, os “amigos” que tinham um poder nada saudável sobre ele a ponto de Eddie só falar sobre eles quando chegava em casa à noite, os “amigos” que fizeram com que o braço dele fosse quebrado. Ela contou tudo isso para a vizinha, a sra. Van Prett.

 

— Chegou a hora — disse a sra. Kaspbrak sombriamente — de botar as cartas na mesa.

 

A sra. Van Prett, que tinha problemas horríveis de pele e que quase sempre podia-se contar que concordaria com ansiedade quase patética com tudo que Sonia Kaspbrak dizia, nesse caso teve a temeridade de discordar.

 

Você devia ficar feliz porque ele fez amigos, disse a sra. Van Prett enquanto elas penduravam a roupa no frescor da manhã antes do trabalho. Isso foi na primeira semana de julho. E ele está mais seguro se estiver com outras crianças, sra. Kaspbrak, você não acha? Com tudo que vem acontecendo nesta cidade e todas as pobres crianças que foram assassinadas?

 

A única resposta da sra. Kaspbrak foi um fungar irritado (na verdade, ela não conseguiu pensar naquela hora em uma resposta verbal adequada, embora conseguisse pensar em dezenas, algumas delas extremamente pungentes, mais tarde), e quando a sra. Van Prett a chamou naquela noite, parecendo um tanto ansiosa, para perguntar se a sra. Kaspbrak iria ao Beano em Saint Mary com ela como sempre, a sra. Kaspbrak só respondeu friamente que achava que ia ficar em casa naquela noite e descansar os pés.

 

Bem, ela esperava que a sra. Van Prett estivesse satisfeita agora. Ela esperava que a sra. Van Prett visse agora que o único perigo em Derry nesse verão não era o maníaco sexual matando crianças e bebês. Aqui estava o filho dela, deitado na cama de dor do Derry Home Hospital. Ele talvez nunca mais conseguisse usar o bom braço direito de novo, ela já tinha ouvido falar de coisas assim, ou, que Deus não permitisse, pedaços soltos da fratura podiam entrar na corrente sanguínea, seguir até o coração, perfurá-lo e matar Eddie, ah, é claro que Deus nunca permitiria que isso acontecesse, mas ela tinha ouvido falar de coisas assim, então isso significava que Deus podia permitir que uma coisa assim acontecesse. Em alguns casos.

 

Assim, ela ficou na varanda comprida e coberta do Home Hospital esperando, sabendo que eles apareceriam, friamente determinada a encerrar essa chamada “amizade”, essa camaradaria que tinha culminado em braços quebrados e camas de dor, de uma vez por todas.

 

Eles acabaram indo, como ela sabia que iriam, e para seu horror ela viu que um deles era crioulo. Não que ela tivesse alguma coisa contra crioulos; ela achava que eles tinham todo o direito de andar onde quisessem nos ônibus lá no sul e de comer em bancadas de lanchonete de brancos, e não deviam ter que sentar no paraíso negro nos cinemas a não ser que incomodassem

 

(mulheres)

 

pessoas brancas, mas ela também acreditava firmemente no que chamava de Teoria do Pássaro: os assuns-pretos voavam com outros assuns-pretos, não com pintarroxos. Melros se reproduziam com outros melros; eles não se misturavam com pássaros azuis nem com rouxinóis. Cada um com o que é seu era o lema dela, e ver Mike Hanlon chegar pedalando com os outros como se ele fizesse parte do ambiente fez a decisão dela, como a raiva e a consternação, ficar mais forte. Ela pensou em tom reprovador, como se Eddie estivesse presente e pudesse ouvi-la: Você nunca me contou que um dos seus “amigos” era crioulo.

 

Bem, pensou ela vinte minutos depois, ao entrar no quarto de hospital onde o filho estava deitado com o braço em um gesso enorme preso ao peito (o coração dela doía só de olhar), ela os mandou para longe antes de a coisa ficar preta... com o perdão do trocadilho. Nenhum deles exceto o garoto Denbrough, o que gaguejava de uma maneira horrível, teve a coragem de sequer falar com ela. A garota, fosse lá quem ela fosse, piscou um par de olhos de jade de piranha para Sonia (da rua Lower Main ou algum lugar até pior era a opinião de Sonia Kaspbrak), mas teve a sabedoria de ficar de boca calada. Se ela tivesse ousado dar um pio, Sonia teria dito poucas e boas para ela; teria dito para ela que tipo de garota anda com garotos. Havia nomes para garotas assim, e ela não queria o filho dela associado, nem agora nem nunca, com as garotas que eram chamadas assim.

 

Os outros apenas olharam para os próprios pés. Era o que ela esperava mesmo. Quando ela terminou de falar o que tinha a dizer, eles subiram em suas bicicletas e foram embora. O garoto Denbrough estava com o garoto Tozier na garupa de uma bicicleta enorme com aparência nada segura, e com um tremor interior, a sra. Kaspbrak se perguntou quantas vezes seu Eddie tinha andado naquela bicicleta perigosa, arriscando os braços, as pernas, o pescoço e a vida.

 

Fiz isso por você, Eddie, pensou ela ao entrar no hospital com a cabeça erguida. Sei que você pode sentir uma certa decepção no começo; é bem natural. Mas pais sabem mais do que os filhos; o motivo de Deus ter criado os pais era para guiar, instruir... e proteger. Depois da decepção inicial, ele entenderia. E ela sentiu um certo alívio agora, é claro que foi para o bem de Eddie, e não por ela. O alívio só era esperado quando você salvava seu filho de más companhias.

 

Só que seu sentimento de alívio estava manchado por um novo desconforto agora, ao olhar para o rosto de Eddie. Ele não estava dormindo, como ela achava que estaria. Em vez de um sono drogado do qual ele acordaria desorientado, atordoado e psicologicamente vulnerável, havia um olhar intenso e alerta, tão diferente dos olhares hesitantes e delicados habituais de Eddie. Como Ben Hanscom (embora Sonia não soubesse disso), Eddie era o tipo de garoto que olhava rapidamente para um rosto, como se para testar o clima emocional se desenvolvendo ali, e afastava o olhar rapidamente também. Mas ele estava olhando para ela diretamente agora (talvez seja a medicação, pensou ela, é claro que é isso; vou ter que conversar com o dr. Handor sobre essa medicação), e foi ela quem sentiu que precisava olhar para o lado. Pareceu que ele estava me esperando, pensou ela, e era um pensamento que devia tê-la deixado feliz. Um garoto esperando pela mãe devia ser uma das melhores criações de Deus...

 

— Você mandou meus amigos embora. — As palavras saíram sem emoção, sem dúvida e sem pergunta.

 

Ela se encolheu quase com culpa, e sem dúvida o primeiro pensamento a surgir na mente dela foi de culpa (Como ele sabe disso? Ele não tem como saber disso!), e ela ficou imediatamente furiosa consigo mesma (e com ele) por se sentir assim. Então, ela sorriu para ele.

 

— Como estamos nos sentindo hoje, Eddie?

 

Aquela foi a resposta certa. Alguém, alguma voluntária maldita ou talvez até aquela enfermeira incompetente e antagônica do dia anterior, andou fazendo fofocas. Alguém.

 

— Como estamos nos sentindo? — perguntou ela de novo quando ele não respondeu. Ela achou que ele não a tinha escutado. Ela nunca tinha lido na literatura médica de um osso quebrado afetar a audição, mas supôs que era possível, tudo era possível.

 

Eddie continuou sem responder.

 

Ela entrou mais no quarto, odiando o sentimento hesitante, quase tímido dentro de si, sem confiar nele porque nunca se sentira hesitante nem tímida perto de Eddie. Ela também sentia raiva, embora essa ainda estivesse surgindo. Que direito ele tinha de fazê-la se sentir assim, depois de tudo que ela fez por ele, depois de tudo que sacrificou por ele?

 

— Conversei com o dr. Handor, e ele me garantiu que você vai ficar perfeitamente bem — disse Sonia bruscamente, sentando-se na cadeira de madeira de costas retas ao lado da cama. — É claro que, se houver algum problema, vamos a um especialista em Portland. Em Boston, se precisar. — Ela sorriu, como se concedendo um grande favor. Eddie não retribuiu o sorriso. E também não respondeu.

 

— Eddie, você está me ouvindo?

 

— Você mandou meus amigos embora — repetiu ele.

 

— Mandei — disse ela, deixando o fingimento de lado, e não falou mais nada. Aquele era um jogo que podia ser jogado por duas pessoas. Ela simplesmente ficou olhando para ele.

 

Mas uma coisa estranha aconteceu; uma coisa terrível, na verdade. Os olhos de Eddie pareceram... crescer de alguma forma. As manchas cinza neles pareciam estar se deslocando, como nuvens de tempestade em movimento. Ela percebeu de repente que ele não estava “fazendo bico” nem “chateado” nem nada disso. Ele estava furioso com ela... e Sonia ficou com medo, porque alguma coisa além de seu filho parecia estar no quarto. Ela baixou os olhos e abriu a bolsa com mãos desajeitadas. Começou a procurar um Kleenex.

 

— Sim, eu os mandei embora — disse ela, e descobriu que a voz ficava forte o bastante e firme o bastante... desde que ela não olhasse para ele. — Você se feriu seriamente, Eddie. Não precisa de visitas agora, exceto por sua mãe, e não precisa de visitantes assim nunca na vida. Se não fossem eles, você estaria em casa assistindo TV agora, ou construindo seu carrinho de rolimã na garagem.

 

Era o sonho de Eddie construir um carrinho de rolimã e levar para Bangor. Se ele fosse o vencedor lá, ganharia uma viagem com tudo pago para Akron, Ohio, para assistir à Corrida Nacional de Carrinhos de Rolimã. Sonia estava perfeitamente disposta a permitir esse sonho desde que parecesse a ela que o término do carrinho, que era feito de caixas de laranja e rodas de um trem Choo-Choo Flyer, fosse apenas isso: um sonho. Ela não tinha intenção nenhuma de deixar Eddie arriscar a vida em uma empreitada tão perigosa, nem em Derry, nem em Bangor e muito menos em Akron, que (Eddie tinha dito para ela) significaria pegar um avião e fazer uma corrida suicida por uma colina íngreme em uma caixa de laranja com rodas e sem freios. Mas, como sua mãe dizia com frequência, o que uma pessoa não sabia não podia lhe fazer mal (sua mãe também gostava de dizer “Diga a verdade e que se dane o diabo”, mas quando a questão era lembrar os aforismas dela, Sonia, como a maior parte das pessoas, conseguia ser incrivelmente seletiva).

 

— Meus amigos não quebraram meu braço — disse Eddie com aquela mesma voz sem emoção. — Contei pro dr. Handor ontem à noite e contei pro sr. Nell quando ele veio hoje de manhã. Henry Bowers quebrou meu braço. Tinha outros garotos com ele, mas foi Henry. Se eu estivesse com meus amigos, jamais teria acontecido. Aconteceu porque eu estava sozinho.

 

Isso fez Sonia pensar no comentário da sra. Van Prett de que era mais seguro ter amigos, e isso trouxe a fúria de volta como um tigre. Ela ergueu a cabeça.

 

— Isso não importa e você sabe! O que você acha, Eddie? Que sua mãe nasceu ontem? É isso que você acha? Sei muito bem por que o garoto Bowers quebrou seu braço. Aquele policial irlandês também esteve na nossa casa. Aquele garoto grande quebrou seu braço porque você e seus “amigos” o irritaram de alguma forma. Agora você acha que isso teria acontecido se você me ouvisse e ficasse longe deles?

 

— Não. Eu acho que uma coisa bem pior poderia ter acontecido — disse Eddie.

 

— Eddie, você não está falando sério.

 

— Estou — disse ele, e ela sentiu aquele poder vindo dele, emanando dele, em ondas. — Bill e os meus outros amigos vão voltar, mãe. Isso é uma coisa que eu sei. E, quando eles voltarem, você não vai proibir eles de entrar. Não vai dizer nada pra eles. Eles são meus amigos, e você não vai roubar meus amigos só porque tem medo de ficar sozinha.

 

Ela ficou olhando para ele, atônita e apavorada. Lágrimas encheram seus olhos e escorreram pelas bochechas, molhando o pó que ela tinha passado ali.

 

— É assim que você fala com sua mãe agora, estou vendo — disse ela em meio ao choro. — Talvez seja assim que seus “amigos” falam com os pais. Acho que você aprendeu com eles.

 

Ela se sentia mais segura em meio às lágrimas. Normalmente, quando ela chorava, Eddie também chorava. Era uma arma baixa, alguns poderiam dizer, mas será que havia mesmo armas baixas quando a questão era proteger o filho? Ela achava que não.

 

Ela ergueu o rosto com lágrimas escorrendo dos olhos, sentindo-se incrivelmente triste, desolada, traída... e segura. Eddie não conseguiria encarar um fluxo de lágrimas e dor desses. Aquele olhar frio e intenso sumiria do rosto dele. Talvez ele começasse a ofegar e assobiar um pouco, e isso seria um sinal, como sempre era, de que a briga tinha acabado e ela tinha conquistado mais uma vitória... por ele, é claro. Sempre por ele.

 

Ela ficou tão chocada de ver aquela mesma expressão no rosto dele (se mudou em alguma coisa, foi para ficar mais intensa) que sua voz tremeu em um soluço. Havia sofrimento sob a expressão dele, mas até isso era assustador: pareceu a ela um sofrimento adulto, e pensar em Eddie como adulto sempre fazia as asinhas de um pássaro em pânico baterem dentro da mente dela. Era assim que ela se sentia nas raras ocasiões em que se perguntou o que aconteceria se seu Eddie não quisesse estudar na Derry Business College ou na University of Maine em Orono ou na Husson em Bangor, para que pudesse ir para casa todos os dias depois do fim das aulas, o que aconteceria se ele conhecesse uma garota, se apaixonasse, quisesse se casar. Onde é que tem lugar para mim nessa história?, gritava a voz do pássaro em pânico quando esses pensamentos estranhos, quase de pesadelo, surgiam. Qual seria meu lugar em uma vida assim? Eu te amo, Eddie! Eu te amo! Eu cuido de você e amo você! Você não sabe cozinhar, nem trocar os lençóis, nem lavar suas cuecas! Por que deveria? Eu sei fazer essas coisas pra você! Sei porque amo você!

 

Ele falou para si mesmo agora:

 

— Eu te amo, mãe. Mas amo meus amigos também. Acho... Acho que você está forçando o choro.

 

— Eddie, você me magoa tanto — sussurrou ela, e novas lágrimas fizeram o rosto dele ficar duplo, triplo. Se as lágrimas dela alguns momentos atrás foram calculadas, essas não eram. De sua forma peculiar, ela era forte; tinha acompanhado o marido até o túmulo sem desmoronar, tinha conseguido um emprego em um mercado em depressão, no qual não era fácil conseguir um, tinha criado o filho e, quando foi necessário, ela lutou por ele. Essas foram as primeiras lágrimas totalmente não afetadas e não calculadas que ela chorava em anos, talvez desde que Eddie apresentou a bronquite aos 5 anos e ela teve certeza de que ele morreria enquanto estava ali deitado na cama de dor, brilhando de febre, tremendo, tossindo e ofegando para respirar. Ela chorava agora por causa daquela expressão terrivelmente adulta e um tanto estranha no rosto dele. Estava com medo por ele, mas também estava, de certa forma, com medo dele, com medo da aura que parecia envolvê-lo... que parecia exigir alguma coisa dela.

 

— Não me faça ter que escolher entre você e meus amigos, mãe — disse Eddie. A voz dele estava irregular, forçada, mas ainda sob controle. — Porque não é justo.

 

— São amigos ruins, Eddie! — gritou ela, quase frenética. — Sei disso, sinto no meu coração, eles só vão te fazer sentir dor e sofrimento! — E a coisa mais horrível de todas era que ela sentia mesmo isso; alguma parte dela tinha intuído pelos olhos do garoto Denbrough, que ficou de pé em frente a ela com as mãos nos bolsos, o cabelo ruivo ardendo no sol de verão. Os olhos dele estavam tão sérios, tão estranhos e distantes... como os de Eddie agora.

 

E não havia a mesma aura ao redor dele que havia ao redor de Eddie agora? A mesma, mas mais forte? Ela achava que sim.

 

— Mãe...

 

Ela ficou de pé tão de repente que quase derrubou a cadeira de costas retas.

 

— Volto de noite — disse ela. — É o choque, o acidente, a dor, essas coisas, que fazem você falar assim. Eu sei. Você... você... — Ela procurou e encontrou o texto original em meio à confusão em sua mente. — Você sofreu um acidente horrível, mas vai ficar bem. E vai ver que estou certa, Eddie. Eles são amigos ruins. Não do nosso tipo. Não pra você. Pense bem e pergunte-se se sua mãe já se enganou antes. Pense sobre o assunto e... e...

 

Vou fugir!, pensou ela com consternação doentia e sofrida. Vou fugir do meu próprio filho! Ah, Deus, por favor, não permita!

 

— Mãe.

 

Por um momento, ela quase fugiu mesmo assim, com medo dele agora, ah, sim, ele era mais do que Eddie; ela sentiu os outros nele, os “amigos” dele e mais alguma outra coisa, uma coisa que era maior até do que eles, e teve medo de que aparecesse para ela. Era como se ele estivesse sob o domínio de alguma coisa, de uma febre horrível, como foi dominado pela bronquite naquela época aos 5 anos, quando quase morreu.

 

Ela fez uma pausa com a mão na maçaneta, sem querer ouvir o que ele pudesse dizer... e, quando ele disse, foi tão inesperado que por um momento ela não entendeu. Quando a compreensão chegou, foi como um bloco solto de cimento, e por um momento ela pensou que desmaiaria.

 

Eddie disse:

 

— O sr. Keene disse que meu remédio de asma é só água.

 

— O quê? O quê? — Ela virou os olhos furiosos na direção dele.

 

— Só água. Com uma outra coisa pra ficar com gosto de remédio. Ele disse que era um pla-ce-bo.

 

— É mentira! Não passa de uma grande mentira! Por que o sr. Keene contaria uma mentira dessas? Bem, existem outras farmácias em Derry, pelo que sei. Eu acho...

 

— Tive tempo pra pensar — disse Eddie com voz baixa e implacável, sem tirar os olhos dos dela — e eu acho que ele está falando a verdade.

 

— Eddie, estou dizendo que não está! — O pânico tinha voltado, tremendo.

 

— O que acho — disse Eddie — é que deve ser verdade, senão haveria algum aviso no vidro, do tipo que se você usar demais, vai morrer, ou pelo menos passar mal. Mesmo...

 

— Eddie, não quero ouvir isso! — gritou ela, e colocou as mãos sobre os ouvidos. — Você... você... você não está sendo você, só isso!

 

— Mesmo quando é uma coisa que se pode comprar sem receita, sempre tem alguma instrução no rótulo — prosseguiu ele, sem elevar a voz. Os olhos cinzentos estavam pousados nos dela, e ela não conseguiu baixar o olhar, nem mesmo deslocá-lo. — Mesmo se for xarope Vick pra tosse... ou seu Geritol.

 

Ele fez uma pequena pausa. Ela tirou as mãos dos ouvidos; parecia dar trabalho demais segurá-las no alto. Pareciam muito pesadas.

 

— E me parece... que você devia saber disso também, mãe.

 

— Eddie! — Ela falou, quase choramingando.

 

— Porque — prosseguiu ele, como se ela não tivesse falado nada; ele estava de testa franzida agora, concentrado no problema — porque os pais devem saber sobre remédios. Eu uso essa bombinha umas cinco, seis vezes por dia. E você não me deixaria fazer isso se achasse que podia, sei lá, me fazer mal. Porque é sua função me proteger. Sei porque é o que você sempre diz. Então... você sabia, mãe? Sabia que era só água?

 

Ela não disse nada. Seus lábios estavam tremendo. Parecia que o rosto dela inteiro estava tremendo. Ela não estava mais chorando. Estava com medo demais para chorar.

 

— Porque se sabia — disse Eddie, ainda com a testa franzida —, se sabia, eu gostaria de saber por quê. Consigo entender algumas coisas, mas não por que minha mãe iria querer que eu achasse que água é remédio... ou que eu tinha asma aqui — ele apontou para o peito — quando o sr. Keene diz que só tenho aqui — e ele apontou para a cabeça.

 

Ela pensou em explicar tudo naquele momento. Ela explicaria de forma tranquila e lógica. Que ela achou que ele ia morrer quando tinha 5 anos, e que ficaria louca se isso acontecesse depois de perder Frank apenas dois anos antes. Que ela entendia que só se podia proteger o filho com atenção e amor, que é preciso cuidar de um filho como se cuida de um jardim, fertilizando, tirando as ervas daninhas, e, sim, ocasionalmente podando e aparando, por mais que doesse. Ela contaria que às vezes era melhor para uma criança, principalmente uma criança delicada como Eddie, pensar que estava doente em vez de realmente ficar doente. E terminaria conversando com ele sobre a tolice insuportável dos médicos e o poder do amor; ela contaria a ele que sabia que ele tinha asma, e que não importava o que os médicos pensavam ou davam para ele para tratar isso. Ela contaria que dava para fazer remédios com mais do que o pilão e o socador de um farmacêutico maldoso e intrometido. Eddie, ela diria, é remédio porque o amor da sua mãe faz com que seja, e, dessa forma, enquanto você quiser e permitir, posso fazer isso. É um poder que Deus dá para as mães que amam e cuidam. Por favor, Eddie, por favor, amor do meu coração, você precisa acreditar.

 

Mas, no final, ela não disse nada. O medo era grande demais.

 

— Mas pode ser que a gente nem precise falar sobre isso — prosseguiu Eddie. — O sr. Keene poderia estar brincando comigo. Às vezes os adultos... você sabe, eles gostam de pregar peças em crianças. Porque as crianças acreditam em quase tudo. É maldade fazer isso com crianças, mas às vezes os adultos fazem.

 

— Sim — disse Sonia Kaspbrak avidamente. — Eles gostam de brincar e às vezes são idiotas... maus... e... e...

 

— Então vou ficar esperando Bill e meus outros amigos — disse Eddie — e vou continuar usando meu remédio de asma. Acho que é o melhor, você não acha?

 

Ela só percebeu agora, tarde demais, a armadilha primorosa (e cruel) armada para ela. O que ele estava fazendo era quase chantagem, mas que escolha ela tinha? Ela queria perguntar a ele como ele podia ser tão calculista, tão manipulador. Abriu a boca para perguntar... mas voltou a fechar. Era muito provável que, nesse humor atual, ele acabasse respondendo.

 

Mas ela sabia uma coisa. Sim. Uma coisa com certeza: ela nunca, nunca mais colocaria o pé na farmácia do sr. Intrometido Keene.

 

A voz dele, estranhamente tímida agora, interrompeu seus pensamentos.

 

— Mãe?

 

Ela olhou e viu que era Eddie de novo, só Eddie, e foi até ele com felicidade.

 

— Você pode me dar um abraço, mãe?

 

Ela o abraçou, mas com cuidado, para não machucar o braço quebrado (nem desalojar qualquer fragmento solto de osso que pudesse penetrar no fluxo sanguíneo dele e se alojar no coração. Que mãe mataria o filho com amor?), e Eddie retribuiu o abraço.

 

Na opinião de Eddie, a mãe saiu na hora certa. Durante o horrível confronto com ela, ele sentiu sua respiração cada vez mais presa no pulmão e na garganta, parada e imóvel, insípida e repulsiva, ameaçando envenená-lo.

 

Ele se segurou até a porta estar bem fechada após a saída dela e então começou a ofegar e assobiar. O ar azedo em sua garganta apertada subiu e desceu como um atiçador quente. Ele pegou a bombinha, o que fez o braço doer, mas ele não se importou. Lançou um longo jato na garganta. Ele inspirou o gosto de cânfora, pensando: Não importa se é pla-ce-bo, as palavras não importam se uma coisa funciona.

 

Ele se deitou nos travesseiros de olhos fechados, respirando livremente pela primeira vez desde que ela entrou. Estava com medo, com muito medo. As coisas que ele disse para ela, a forma como agiu... era ele, mas não era. Havia alguma coisa trabalhando nele, trabalhando por meio dele, alguma força... e sua mãe sentiu. Ele viu nos olhos dela e nos lábios trêmulos. Ele não sentia essa força como cruel, mas seu poder enorme era assustador. Era como entrar em um brinquedo de parque de diversão que era muito perigoso e perceber que você só podia sair quando acabasse, acontecesse o que acontecesse.

 

Não tem volta, pensou Eddie, sentindo o peso quente e incômodo do gesso ao redor do braço quebrado. Ninguém volta pra casa até chegarmos ao final. Mas Deus, estou com tanto medo, tanto medo. E ele sabia que o motivo mais verdadeiro para exigir que ela não o afastasse dos amigos era uma coisa que ele jamais poderia contar a ela: Não posso encarar isso sozinho.

 

Ele chorou um pouco naquele momento, depois caiu em um sono inquieto. Sonhou com uma escuridão em que bombas funcionavam sem parar.

 

Estava ameaçando chover em pancadas de novo à noite, quando Bill e os outros Otários voltaram ao hospital. Eddie não ficou surpreso ao vê-los entrando em fila. Ele sabia que eles voltariam.

 

O dia tinha sido quente (mais tarde, todos concordaram que a terceira semana de julho foi a mais quente em um verão excepcionalmente quente), e as nuvens começaram a aparecer por volta das quatro da tarde, preto-arroxeadas e enormes, grávidas de chuva, carregadas de relâmpagos. As pessoas fizeram suas obrigações rapidamente e com um certo desconforto, sempre com um olho observando o céu. A maioria concordou que choveria forte até a hora do jantar, o que tiraria um pouco da densa umidade do ar. Os parques e parquinhos de Derry, lotados durante todo o verão, ficaram desertos por volta das 18h. A chuva ainda não tinha caído e os balanços estavam imóveis e sem fazer sombra em uma luz que era de um amarelo estranho e sem profundidade. Um trovão explodiu ruidosamente. Isso, os latidos de um cachorro e o barulho baixo do tráfego na rua Outer Main foram os únicos sons a chegar na janela de Eddie até os Otários chegarem.

 

Bill foi o primeiro, seguido de Richie. Beverly e Stan vieram atrás, depois Mike. Ben entrou por último. Ele parecia excruciantemente desconfortável com um suéter branco de gola alta.

 

Eles foram até a cama dele com expressões solenes. Nem Richie estava sorrindo. As caras deles, pensou Eddie, fascinado. Minhanossinhora, as caras deles!

 

Ele estava vendo neles o que sua mãe viu naquela tarde: aquela estanha combinação de poder e impotência. A luz amarela da tempestade caía na pele deles, fazendo os rostos parecerem fantasmagóricos, distantes, ensombreados.

 

Estamos atravessando, pensou Eddie. Atravessando para alguma coisa nova. Estamos na fronteira. Mas o que tem do outro lado? Para onde vamos? Para onde?

 

— O-O-Oi, E-E-Eddie — disse Bill. — Como você e-e-está?

 

— Tudo bem, Big Bill — disse Eddie, e tentou sorrir.

 

— Teve um dia e tanto ontem, né? — disse Mike. Um trovão ribombou junto com a voz dele.

 

Nem a luz do teto nem a luz do abajur estavam acesas no quarto de Eddie, e todos eles pareciam sumir e aparecer na luz estranha. Eddie pensou nessa luz em toda Derry agora, inclinada e imóvel no Parque McCarron, entrando pelos buracos no teto da Ponte do Beijo em raios manchados e espalhados, deixando o Kenduskeag parecido com vidro embaçado ao seguir pelo caminho largo e raso pelo Barrens; ele pensou nas gangorras em ângulos estranhos atrás da Escola Derry enquanto as nuvens só aumentavam; ele pensou nessa luz amarela que acompanha os trovões e na imobilidade, como se toda a cidade tivesse adormecido... ou morrido.

 

— Sim — disse ele. — Foi um dia e tanto.

 

— Meus p-pais v-vão ao c-cinema d-daqui a d-duas n-noites — disse Bill. — Quando m-mudarem os f-filmes em cartaz. V-Vamos f-fazer nesse dd-dia. As b-b-b...

 

— Bolas de prata — disse Richie.

 

— Eu pensei...

 

— É melhor assim — diz Ben baixinho. — Ainda acho que poderíamos fazer as balas, mas pensar não basta. Se fôssemos adultos...

 

— Ah, é, o mundo seria delicioso se fôssemos adultos — disse Beverly. — Adultos podem fazer tudo que querem, né? Adultos podem fazer tudo que querem e sempre dá certo. — Ela riu, um som trêmulo e nervoso. — Bill quer que eu dispare. Você consegue imaginar isso, Eddie? Pode me chamar de Beverly Oakley.

 

— Não sei de que vocês estão falando — disse Eddie, mas achava que sabia. Ele estava tendo uma ideia, pelo menos.

 

Ben explicou. Eles derreteriam um dos dólares de prata dele e fariam duas bolas de prata, um pouco menores do que bilhas. E então, se fosse mesmo um lobisomem que morava no número 29 da rua Neibolt, Beverly colocaria uma bola de prata na cabeça dele com o estilingue de Bill. Adeus, lobisomem. E se eles estivessem certos sobre ser uma criatura com muitas faces, era adeus, Coisa.

 

Devia haver algum tipo de expressão no rosto de Eddie, porque Richie deu uma gargalhada e assentiu.

 

— Sei o que você está sentindo, cara. Eu achei que Bill devia ter perdido os parafusos que ainda tinha quando começou a falar em usar o estilingue em vez de a arma do pai. Mas hoje à tarde... — Ele parou e limpou a garganta. Hoje à tarde, depois que sua mãe nos expulsou era como ele ia começar, e isso obviamente não seria nada bom. — Hoje à tarde, fomos pro lixão. Bill levou o estilingue. Olha. — Do bolso de trás, Richie pegou uma lata achatada que já tinha sido de pedaços de abacaxi da marca Del Monte. Havia um buraco irregular de uns 5 centímetros de diâmetro no meio dela. — Beverly fez isso com uma pedra, de 6 metros de distância. Pra mim, parece uma .38. O Boca de Lixo ficou convencido. E quando o Boca de Lixo fica convencido, o Boca de Lixo fica convencido.

 

— Matar latas é uma coisa — disse Beverly. — Se fosse outra coisa... uma coisa viva... Bill, devia ser você. De verdade.

 

— N-Não — disse Bill. — T-T-Todos nós d-disparamos. Você v-viu como f-foi.

 

— Como foi? — perguntou Eddie.

 

Bill explicou, lentamente, fazendo pausas, enquanto Beverly olhava pela janela com os lábios tão apertados que estavam brancos. Por motivos que não conseguia explicar nem para si mesma, ela estava mais do que com medo: estava profundamente constrangida pelo que tinha acontecido hoje. No caminho até o hospital, ela argumentou de novo, apaixonadamente, para que eles tentassem fazer as balas sim... não por ter mais certeza do que Bill ou Richie de que elas funcionariam quando a hora chegasse, mas porque, se alguma coisa acontecesse naquela casa, a arma estaria nas mãos de

 

(Bill)

 

outra pessoa.

 

Mas fatos eram fatos. Cada um pegou dez pedras e disparou com o estilingue em dez latas a 6 metros de distância. Richie acertou uma em dez (e a que acertou foi de raspão), Ben acertou duas, Bill acertou quatro, Mike acertou cinco.

 

Beverly, disparando quase casualmente e parecendo não mirar, acertou nove de dez latas bem no meio. A décima caiu quando a pedra que ela disparou quicou na beirada.

 

— Mas primeiro n-n-n-nós te-temos que fazer a mu-mu-munição.

 

— Daqui a duas noites? Já devo ter saído daqui — disse Eddie. Sua mãe iria protestar... mas ele achava que não protestaria muito. Não depois daquela tarde.

 

— Seu braço está doendo? — perguntou Beverly. Ela estava usando um vestido rosa (não o vestido que ele tinha visto no sonho; talvez ela o tivesse usado à tarde, quando sua mãe os expulsou) no qual ela tinha costurado pequenas flores. E uma meia de seda ou de náilon; ela parecia muito adulta, mas infantil de alguma forma, como uma garota brincando de se vestir de adulta. A expressão dela estava sonhadora e distante. Eddie pensou: Aposto que ela fica assim quando está dormindo.

 

— Não muito — disse ele.

 

Eles conversaram por um tempo, com vozes pontuadas pelo trovão. Eddie não perguntou sobre o que aconteceu quando eles foram ao hospital naquela tarde, e nenhum deles mencionou. Richie pegou o ioiô, fez dormir uma vez ou duas e guardou.

 

A conversa prosseguiu, e em uma das pausas houve um clique curto que fez Eddie olhar ao redor. Bill estava com alguma coisa na mão, e por um momento Eddie sentiu seu coração disparar de alarme. Naquele breve momento, ele pensou que era uma faca. Mas então Stan acendeu a luz do quarto, acabando com a escuridão, e ele viu que era só uma caneta esferográfica. Sob a luz todos pareceram naturais de novo, reais, apenas seus amigos.

 

— Pensei que devíamos assinar no seu gesso — disse Bill. Ele olhou diretamente nos olhos de Eddie.

 

Mas não é isso, pensou Eddie com lucidez repentina e alarmada. É um contrato. É um contrato, Big Bill, não é, ou o mais próximo que vamos chegar de um. Ele estava com medo... e, logo em seguida, com vergonha e raiva de si mesmo. Se ele tivesse quebrado o braço antes do verão, quem teria assinado no gesso? A mãe, sem dúvida, e talvez o dr. Handor? As tias de Haven?

 

Eles eram seus amigos, e sua mãe estava errada: eles não eram amigos ruins. Talvez, pensou ele, não existam coisas como amigos bons ou ruins. Talvez existam só amigos, pessoas que ficam ao seu lado quando você se machuca e que ajudam você a não se sentir muito sozinho. Talvez valha a pena sentir medo por eles, sentir esperança por eles e viver por eles. Talvez valha a pena morrer por eles também, se chegar a isso. Não amigos bons. Não amigos ruins. Só pessoas com quem você quer e precisa estar; pessoas que constroem casas no seu coração.

 

— Tudo bem — disse Eddie, com a voz meio rouca. — Tudo bem, isso seria ótimo, Big Bill.

 

Assim, Bill se inclinou solenemente por cima da cama e escreveu o nome no gesso que envolvia o braço de Eddie em processo de cicatrização, com letras grandes e redondas. Richie assinou com um floreio. A caligrafia de Ben era tão estreita quanto ele era gordo, com as letras inclinadas para trás. Pareciam prontas para cair ao mais leve empurrão. A caligrafia de Mike Hanlon era grande e estranha porque ele era canhoto e a posição estava ruim para ele. Ele assinou acima do cotovelo de Eddie e circulou o nome. Quando Beverly se inclinou sobre ele, ele conseguiu sentir um cheiro leve de perfume floral. Ela assinou com caligrafia arredondada do método Palmer. Stan foi o último, e assinou o nome em letrinhas espremidas perto do pulso de Eddie.

 

Todos deram um passo para trás em seguida, como se cientes do que tinham acabado de fazer. Do lado de fora, os trovões resmungaram pesadamente de novo. Relâmpagos inundaram o exterior de madeira do hospital em uma luz breve e hesitante.

 

— Pronto? — perguntou Eddie.

 

Bill assentiu.

 

— V-V-Vai pra minha ca-casa d-depois do ja-antar no dia d-depois de a-amanhã se pu-puder, t-tá?

 

Eddie assentiu, e o assunto foi encerrado.

 

Houve outro período de conversa casual, quase sem sentido. Em parte foi sobre o assunto dominante em Derry naquele mês de julho, o julgamento de Richard Macklin pelo assassinato a porradas do enteado Dorsey e o desaparecimento do irmão mais velho de Dorsey, Eddie Corcoran. Macklin só desabaria e confessaria no banco das testemunhas em dois dias, mas os Otários concordavam que Macklin provavelmente não tinha nada a ver com o desaparecimento de Eddie. O garoto ou tinha fugido... ou a Coisa o tinha pegado.

 

Eles saíram por volta de 18h45, e a chuva ainda não tinha caído. Continuou ameaçando até bem depois de a mãe de Eddie chegar, fazer sua visita e ir embora de novo (ela ficou horrorizada ao ver as assinaturas no gesso de Eddie, e ficou ainda mais horrorizada pela determinação dele de sair do hospital no dia seguinte; ela estava imaginando uma estada de uma semana ou mais em tranquilidade absoluta, para que as pontas da fratura pudessem “se juntar”, como ela dizia).

 

As nuvens de chuva acabaram se dissipando e afastando. Nem uma gota de chuva caiu em Derry. A umidade permaneceu, e as pessoas dormiram em varandas, gramados e em sacos de dormir em quintais naquela noite.

 

A chuva veio no dia seguinte, não muito depois de Beverly ver uma coisa horrível acontecer com Patrick Hockstetter.

 

Mais um desaparecido: a morte de Patrick Hockstetter

 

Quando termina, Eddie se serve de outra bebida com a mão não muito firme. Ele olha para Beverly e diz:

 

— Você viu a Coisa, não viu? Você viu a Coisa pegar Patrick Hockstetter no dia seguinte ao que vocês assinaram no meu gesso.

 

Os outros se inclinam para a frente.

 

Beverly prende o cabelo em uma nuvem avermelhada. Por baixo dele, seu rosto está extraordinariamente pálido. Ela tira um cigarro do maço com mãos desajeitadas, o último, e dispara o Bic. Ela parece não conseguir guiar a chama até a ponta do cigarro. Depois de um momento, Bill segura o pulso dela com mão leve, mas firme, e coloca a chama no local onde deve ir. Beverly olha para ele com agradecimento e expira uma nuvem de fumaça azul-acinzentada.

 

— É — diz ela. — Eu vi acontecer.

 

Ela treme.

 

— Ele era l-l-louco — diz Bill, e pensa: Só o fato de Henry deixar um pirado como Patrick Hockstetter andar com ele conforme o verão passava... isso diz alguma coisa, não diz? Ou que Henry estava perdendo um pouco do velho charme, um pouco da atração, ou que a loucura de Henry tinha progredido tanto a ponto de o garoto Hockstetter parecer legal para ele. As duas coisas davam no mesmo: a crescente... o quê? Degeneração de Henry? É essa a palavra? Sim, considerando o que aconteceu com ele, onde ele foi parar, acho que sim.

 

E tem outra coisa que sustenta essa ideia, pensa Bill, mas só consegue se lembrar da ideia vagamente. Ele, Richie e Beverly estavam nos Irmãos Tracker. Era começo de agosto, e a recuperação que manteve Henry longe deles durante a maior parte do verão estava quase terminando. E Victor Criss não tinha se aproximado deles? Um Victor Criss muito assustado? Sim, isso tinha acontecido. As coisas estavam se aproximando rapidamente do fim, e Bill pensa agora que todas as crianças de Derry sentiram; os Otários e o grupo de Henry, mais do que todos. Mas isso tudo foi depois.

 

— Ah, é bem isso mesmo — diz Beverly sem emoção. — Patrick Hockstetter era louco. Nenhuma das garotas queria sentar na frente dele na escola. Você estava ali sentada, fazendo trabalho de aritmética ou escrevendo uma história ou redação, e de repente sentia a mão dele... quase tão leve quanto uma pena, mas quente e suada. Carnuda. — Ela engole em seco, e há um pequeno clique em sua garganta. Os outros a observam solenemente ao redor da mesa. — Você sentia na lateral do corpo, ou talvez no seio. Não que nós tivéssemos exatamente seios naquela época. Mas Patrick não parecia se importar com isso.

 

“Você sentia aquele... aquele toque, e pulava para longe, se virava e ali estava Patrick, sorrindo com aqueles lábios grandes e borrachudos. Ele tinha um estojo...”

 

— Cheio de moscas — disse Richie de repente. — Claro. Ele matava elas com a régua verde e colocava no estojo. Até lembro como era: vermelho, com uma capa branca encerada que deslizava pra abrir e fechar.

 

Eddie está assentindo.

 

— Você pulava pra longe, e ele sorria e às vezes abria o estojo pra você poder ver as moscas mortas dentro — diz Beverly. — E o pior, a coisa mais horrível, era a forma como ele sorria e nunca dizia nada. A sra. Douglas sabia. Greta Bowie dedurou ele, e acho que Sally Mueller também disse alguma coisa uma vez. Mas... acho que a sra. Douglas também tinha medo dele.

 

Ben está equilibrado nas pernas de trás da cadeira, com as mãos atrás da nuca. Ela ainda não consegue acreditar no quanto ele está magro.

 

— Tenho certeza de que você está certa — diz ele.

 

— O q-que a-aconteceu com e-e-ele, Beverly? — pergunta Bill.

 

Ela engole em seco de novo, tentando lutar contra o poder de pesadelo do que ela viu naquele dia no Barrens, com os patins amarrados um no outro e pendurados no ombro, um joelho ardendo e doendo de uma queda na via Saint Crispin, outra das ruas pequenas e arborizadas que acabavam onde o terreno despencava (e ainda despenca) diretamente no Barrens. Ela lembra (ah, essas lembranças, quando elas vêm, são tão claras e poderosas) que estava usando um short jeans curto demais, que passava pouco da barra da calcinha. Ela tinha começado a prestar mais atenção no próprio corpo no último ano... nos últimos seis meses, na verdade, quando começou a formar curvas e ficar mais feminino. O espelho era um motivo para essa percepção aumentada, é claro, mas não o principal; o principal era que o pai parecia mais rígido ultimamente, com mais tendência a usar a mão ou mesmo o punho. Ele parecia inquieto, quase enjaulado, e ela ficava cada vez mais nervosa quando estava perto dele, mais e mais atenta. Era como se houvesse um cheiro entre eles, um cheiro que não existia quando ela ficava no apartamento sozinha, um cheiro que não costumava existir quando eles estavam lá dentro juntos, ao menos não antes daquele verão. E quando a mãe saía, ficava pior. Se havia um cheiro, algum cheiro, então ele talvez também soubesse, porque Bev via cada vez menos o pai conforme o clima ficava mais quente, em parte por causa da liga de boliche do verão, em parte porque ele estava ajudando o amigo Joe Tammerly a consertar carros... mas ela desconfia que era em parte pelo cheiro, o que fluía entre eles, sem nenhum dos dois pretender, mas que fluía mesmo assim, os dois tão impotentes para impedir quanto parar de suar em julho.

 

A visão dos pássaros, centenas e milhares deles, descendo sobre os telhados das casas, em postes telefônicos, em antenas de TV, surge de novo.

 

— E hera venenosa — diz ela em voz alta.

 

— O q-q-quê? —pergunta Bill.

 

— Alguma coisa sobre hera venenosa — diz ela lentamente, olhando para ele. — Mas não era. Só parecia hera venenosa. Mike...?

 

— Não se preocupe — diz Mike. — Você vai lembrar. Conte o que lembra, Bev.

 

Me lembro do short azul, ela contaria a eles, e de como estava ficando desbotado; o quanto estava apertado nos quadris e na bunda. Eu tinha metade de um maço de Lucky Strike em um bolso e o estilingue Bullseye no outro...

 

— Se lembra do Bullseye? — pergunta ela a Richie, mas todos assentem.

 

— Bill deu pra mim — diz ela. — Eu não queria, mas... ele... — Ela sorri para Bill com um certo cansaço. — Não dava pra dizer não pro Big Bill, era isso. Então eu estava com ele, e era por isso que saí sozinha naquele dia. Pra treinar. Eu ainda não achava que teria coragem de usar quando chegasse a hora. Só que... usei naquele dia. Tive que usar. Matei um deles... uma das partes da Coisa. Foi horrível. Mesmo agora, tenho dificuldade de pensar nisso. E um dos outros me pegou. Olhem.

 

Ela levanta o braço e vira, para que todos possam ver uma cicatriz inchada na parte mais redonda do antebraço. Parece que um objeto circular quente do tamanho de um charuto Havana foi pressionado sobre a pele dela. É um pouco afundada, e olhar para ela provoca um tremor em Mike Hanlon. Essa é uma das partes da história da qual, como a conversa não desejada de Eddie com Keene, ele desconfia, mas nunca ouviu.

 

— Você estava certo sobre uma coisa, Richie — diz ela. — Aquele Bullseye era de matar. Eu tinha medo dele, mas também amava, de certa forma.

 

Richie ri e bate nas costas dela.

 

— Merda, eu sabia naquela época, garotinha boba.

 

— Sabia? Sério?

 

— É, sério — diz ele. — Era alguma coisa nos seus olhos, Bevvie.

 

— O que quero dizer é que parecia um brinquedo, mas era real. Dava pra abrir buraco nas coisas.

 

— E você abriu um buraco em uma coisa com ele naquele dia — reflete Ben.

 

Ela assente.

 

— Foi Patrick que você...

 

— Não, meu Deus, não! — diz Beverly. — Foi o outro... espere. — Ela apaga o cigarro, toma um gole de bebida e recupera o controle. Por fim, está controlada. Bem... não. Mas ela tem a sensação de que é o mais próximo que vai conseguir hoje. — Eu estava patinando, sabe? E caí e acabei com um arranhão. Então, decidi ir pro Barrens treinar. Fui até a sede do clube primeiro pra ver se vocês estavam lá. Não estavam. Só tinha aquele cheiro de fumaça. Vocês lembram quanto tempo aquele lugar ficou cheirando a fumaça?

 

Todos assentem, sorrindo.

 

— Nunca conseguimos acabar com o cheiro, né? — diz Ben.

 

— Então eu fui pro lixão — diz ela —, porque foi onde fizemos... o teste, acho que dá pra chamar assim, e eu sabia que lá tinha muita coisa em que disparar. Talvez até, sabe, ratos. — Ela faz uma pausa. Tem uma névoa fina de suor na testa dela agora. — Era em ratos que eu queria disparar — diz ela. — Alguma coisa viva. Não uma gaivota, eu sabia que não conseguiria disparar em uma gaivota, mas um rato... Eu queria ver se conseguia.

 

“Foi bom eu ter ido pela rua Kansas, e não pelo lado de Old Cape, porque não havia muito esconderijo ali perto da área da linha do trem. Eles teriam me visto, e só Deus sabe o que teria acontecido.”

 

— Quem teria t-te vi-visto?

 

— Eles — diz Beverly. — Henry Bowers, Victor Criss, Arroto Huggins e Patrick Hockstetter. Eles estão no lixão e...

 

De repente, surpreendendo a todos, ela começa a rir como uma criança, com as bochechas ficando vermelhas. Ela ri até ficar com lágrimas nos olhos.

 

— Que porra, Bev — diz Richie. — Conta a piada pra gente.

 

— Ah, foi mesmo uma piada — diz ela. — Foi uma piada, mas acho que eles podiam ter me matado se soubessem que eu vi.

 

— Agora eu lembro! — grita Ben, e começa a rir também. — Eu me lembro de você contar pra gente!

 

Rindo muito, Beverly diz:

 

— Eles estavam de calça abaixada, peidando.

 

Há um instante de silêncio surpreso, e todos começam a gargalhar. O som ecoa pela biblioteca.

 

Pensando em como exatamente contar para eles sobre a morte de Patrick Hockstetter, a coisa em que ela se fixa primeiro é em como chegar ao lixão da cidade pela rua Kansas pareceu entrar em um estranho cinturão de asteroides. Havia um caminho de terra (uma estrada de interior, na verdade; tinha até nome, rua Old Lynne) que seguia da rua Kansas até o lixão, a única estrada de verdade que entrava no Barrens. Os caminhões de lixo da cidade a usavam. Beverly caminhou perto da rua Old Lynne, mas não seguiu por ela, pois tinha ficado mais cautelosa, como achava que todos estavam agora, desde que o braço de Eddie foi quebrado. Principalmente quando estava sozinha.

 

Ela seguiu pela vegetação pesada, desviou de uma área de hera venenosa com folhas oleosas avermelhadas, sentindo o cheiro enfumaçado e podre do lixão, ouvindo as gaivotas. À esquerda, por brechas ocasionais na folhagem, ela conseguia ver a rua Old Lynne.

 

Os outros estão olhando para ela, esperando. Ela verifica o maço de cigarros e vê que está vazio. Sem falar nada, Richie joga um dos seus para ela.

 

Ela acende, olha ao redor e diz:

 

— Chegar ao lixão pela rua Kansas era um pouco como

 

entrar em um estranho cinturão de asteroides. O cinturão lixoide. A princípio, não havia nada além da vegetação crescendo a partir do chão esponjoso abaixo, e logo você via seu primeiro lixoide: uma lata enferrujada que já foi o recipiente de molho de macarrão Prince, talvez, ou uma garrafa de refrigerante S’OK cheia de bichos atraídos pelos restos doces e grudentos de baunilha ou ervas. Depois, havia um piscar intenso de sol em um resto de papel-alumínio preso em uma árvore. Você talvez visse uma mola de colchão (ou talvez tropeçasse nela, se não tomasse cuidado por onde andava), ou um osso que algum cachorro tinha carregado, mastigado e largado.

 

O lixão em si não era tão ruim. Era, na verdade, meio que interessante, pensou Beverly. O que era ruim (e meio assustador) era a forma que ele tinha de se espalhar. De criar esse cinturão de lixoide.

 

Ela estava chegando mais perto agora; as árvores eram maiores, quase todas abetos, e os arbustos estavam diminuindo. As gaivotas gritavam e chiavam com as vozes agudas e rabugentas, e o ar estava tomado do cheiro de queimado.

 

Agora, à direita de Beverly, apoiada na base de uma árvore, havia uma geladeira Amana enferrujada. Beverly olhou para ela, pensando vagamente no policial estadual que visitou a turma quando ela estava no terceiro ano. Ele contou que coisas como geladeiras jogadas fora eram perigosas; uma criança podia entrar em uma brincando de pique-esconde, por exemplo, e sufocar até a morte lá dentro. Embora por que alguém iria querer entrar em uma coisa velha assim...

 

Ela ouviu um grito, tão perto que a fez pular, seguido de gargalhadas. Beverly sorriu. Então eles estavam ali. Tinham saído da sede do clube por causa do fedor de fumaça e ido para lá. Talvez estivessem quebrando garrafas com pedras, talvez só catando coisas.

 

Ela começou a andar um pouco mais rápido, e o arranhão feio que tinha feito foi rapidamente esquecido na ansiedade de vê-los... de vê-lo, com o cabelo ruivo tão parecido com o dela, para ver se ele iria sorrir para ela daquele jeito estranhamente fofo de um lado só que era típico dele. Ela sabia que era nova demais para amar um garoto, jovem demais para qualquer coisa que não fosse umas “quedinhas”, mas amava Bill mesmo assim. E andou um pouco mais rápido, com os patins balançando no ombro, o elástico do Bullseye batendo delicadamente na nádega esquerda.

 

Ela quase entrou no meio deles, mas conseguiu perceber que não eram seus amigos, mas sim a gangue de Bowers.

 

Ela saiu do meio dos arbustos, e o lado mais íngreme do lixão ficava cerca de 70 metros à frente, uma avalanche cintilante de lixo no ângulo da cascalheira. A escavadeira de Mandy Fazio estava à esquerda. Bem mais perto, à frente dela, havia uma área de carros velhos. No final de cada mês, eles eram esmagados e levados para Portland, para um ferro-velho, mas agora havia mais de 12, apoiados em rodas sem pneus, alguns de lado, um ou dois apoiados no teto como cachorros mortos. Eles estavam arrumados em duas filas, e Beverly andou pelo corredor improvisado tomado de lixo entre eles como uma noiva punk do futuro, perguntando-se se conseguiria quebrar um para-brisa com o estilingue. Um dos bolsos do short azul estava lotado de bilhas que eram sua munição de treino.

 

As vozes e as risadas vinham de depois dos carros e para a esquerda, na beirada do lixão. Beverly contornou o último, um Studebaker sem toda a parte da frente. Seu oi morreu nos lábios. A mão que ela tinha levantado para acenar não exatamente desceu até a lateral do corpo; ela pareceu murchar.

 

O primeiro pensamento furiosamente constrangido foi: Ah, Deus, por que estão todos pelados?

 

Isso foi seguido pela assustadora percepção de quem eles eram. Ela ficou parada na frente do meio Studebaker, com a sombra grudada aos calcanhares dos tênis de cano baixo. Naquele momento, ela ficou completamente visível para eles; se algum dos quatro tivesse olhado do círculo onde estavam agachados, não teria como não vê-la, uma garota de altura mediana, um par de patins sobre um ombro, o joelho de uma perna comprida e cheia de energia ainda com sangue escorrendo, a boca aberta de surpresa, as bochechas vermelhas.

 

Antes de correr para trás do Studebaker, ela viu que eles não estavam completamente nus, afinal; todos estavam de camisa, e as calças e cuecas estavam só abaixadas até os sapatos, como se eles tivessem que Fazer o Número Dois (em seu estado de choque, a mente de Beverly automaticamente se reverteu ao eufemismo que ensinaram a ela quando pequena). No entanto, quem já tinha ouvido falar de quatro garotos indo Fazer o Número Dois ao mesmo tempo?

 

Quando já estava escondida de novo, seu primeiro pensamento foi de ir embora, e ir embora rápido. Seu coração estava disparado, os músculos vibravam com adrenalina. Ela olhou ao redor, viu o que não tinha se dado ao trabalho de reparar quando andou até ali, quando achou que as vozes eram de seus amigos. A fileira de carros velhos à esquerda era bem dispersa; eles não estavam grudados porta a porta como estariam em uma semana, mais ou menos, quando o esmagador chegasse para transformá-los em pedaços rudimentares de metal cintilante. Ela ficou exposta aos garotos várias vezes quando andou até onde estava agora; se recuasse, ficaria exposta de novo, e desta vez poderia ser vista.

 

Além do mais, ela sentia uma certa curiosidade vergonhosa: o que eles poderiam estar fazendo?

 

Cuidadosamente, ela espiou por trás do Studebaker.

 

Henry e Victor Criss estavam mais ou menos virados na direção dela. Patrick Hockstetter estava à esquerda de Henry. Arroto Huggins estava de costas para ela. Ela observou o fato de que Arroto tinha uma bunda extremamente grande, extremamente cabeluda, e risadinhas meio histéricas de repente subiram por sua garganta como a espuma em um copo de ginger ale. Ela teve que colocar as duas mãos em cima da boca e se esconder atrás do Studebaker novamente, lutando para segurar as gargalhadas.

 

Você tem que sair daqui, Beverly. Se eles pegarem você... ela olhou entre os carros velhos, ainda com as mãos sobre a boca. O corredor devia ter uns 3 metros de largura, estava tomado de latas, cintilando com pedacinhos de vidro Daf-T-Glas como pecinhas de quebra-cabeça e cheio de mato rasteiro. Se ela fizesse qualquer ruído, eles talvez a ouvissem... particularmente se a concentração deles na coisa estranha que estavam fazendo se perdesse. Quando ela pensou no quanto andou até aqui casualmente, seu sangue gelou. Além do mais...

 

Que diabos eles podem estar fazendo?

 

Ela espiou de novo e observou mais detalhes desta vez. Havia livros e papéis espalhados de forma descuidada ali perto, material escolar. Eles tinham acabado de chegar das aulas de recuperação então, o que a maior parte das crianças chamava de Aula de Burros ou Aula de Tapa-Buraco. E como Henry e Victor estavam virados na direção dela, ela conseguia ver as coisas deles. Foram as primeiras coisas que ela viu na vida, sem contar as imagens em um livrinho manchado que Brenda Arrowsmith mostrou a ela no ano anterior, e naquelas imagens não dava para ver muita coisa. Bev observou agora que as coisas deles eram tubinhos pendurados entre as pernas. O de Henry era pequeno e pelado, mas o de Victor era bem grande, e havia um emaranhado de pelos finos e pretos acima.

 

Bill tem um assim, pensou ela, e de repente seu corpo todo pareceu ficar vermelho de uma vez. O calor a percorreu em uma onda tal que a deixou tonta, fraca e quase enjoada. Naquele momento, ela se sentiu da mesma forma que Ben Hanscom no último dia de aula, ao olhar para a tornozeleira dela e observar a forma como cintilava ao sol... mas ele não sentiu o terror misturado que ela sentiu agora.

 

Ela olhou para trás mais uma vez. Agora, o caminho entre os carros que levava ao abrigo do Barrens parecia muito mais longo. Ela estava com medo de se mexer. Se eles soubessem que ela tinha visto as coisas deles, provavelmente a machucariam. E não só um pouco. Eles a machucariam muito.

 

Arroto Huggins deu um berro de repente, o que a fez pular, e Henry gritou:

 

— Noventa centímetros! Puta merda, Arroto! Foi de 90 centímetros! Não foi, Vic?

 

Vic concordou que sim, e todos urraram com gargalhadas de trolls.

 

Beverly deu outra olhada ao redor do Studebaker velho. Patrick Hockstetter tinha se virado e meio que levantado, de forma que a bunda estava quase na cara de Henry. Na mão de Henry havia um objeto prateado e brilhoso. Depois de um momento de observação, ela percebeu que era um isqueiro.

 

— Pensei que você tivesse dito que sentiu um chegando — disse Henry.

 

— Estou sentindo — disse Patrick. — Vou avisar na hora. Se prepara!... Se prepara, está chegando! Vai.. agora!

 

Henry acendeu o isqueiro. No mesmo momento, houve o inconfundível som trêmulo de um belo peido. Não havia como confundir aquele som; Beverly o tinha ouvido o bastante em casa, normalmente nas noites de sábado, depois de feijão com salsicha. O pai dela era um grande amante de feijão. Quando Patrick soltou e Henry acendeu o isqueiro, ela viu uma coisa que fez seu queixo cair. Uma chama azul e comprida pareceu sair diretamente do bumbum de Patrick. Para Bev, pareceu a chama piloto em um aquecedor a gás.

 

Os garotos urraram com as gargalhadas de troll, e Beverly se recolheu atrás dos carros, sufocando risadinhas loucas de novo. Ela estava rindo, mas não por estar achando graça. De alguma maneira muito estranha, era engraçado, sim, mas ela estava rindo mais porque sentiu uma repulsa profunda acompanhada de uma espécie de horror. Ela estava rindo porque não conhecia outra forma de lidar com o que tinha visto. Tinha alguma coisa a ver com ver as coisas dos garotos, mas isso não chegava nem perto de ser tudo, nem mesmo grande parte do que ela sentia. Ela sabia, afinal, que garotos tinham coisas, da mesma forma que sabia que garotas tinham coisas diferentes; isso era apenas o que poderíamos chamar de visão de confirmação. Mas o resto do que eles estavam fazendo parecia tão estranho, tão absurdo, mas ao mesmo tempo tão primitivo que ela se viu, apesar do ataque de gargalhadas, procurando o centro de si mesma com um certo desespero.

 

Pare, pensou ela, como se isso fosse a resposta, pare, eles vão te ouvir, então pare logo, Bevvie!

 

Mas era impossível. O melhor que ela conseguiu foi gargalhar sem envolver as cordas vocais, de forma que o som saiu dela em uma série de engasgos quase inaudíveis, pelas mãos por cima da boca, e as bochechas tão vermelhas quanto maçãs, os olhos transbordando de lágrimas.

 

— Puta merda, isso dói! — gritou Victor.

 

— Três metros e meio! — berrou Henry. — Juro por Deus, Vic, foram três metros e meio! Juro pelo nome da minha mãe!

 

— Não ligo se foram seis porras de metros, você queimou minha bunda! — gritou Victor, e houve mais gargalhadas urradas; ainda tentando rir silenciosamente por trás do abrigo do carro, Beverly pensou em um filme que tinha visto na TV. Jon Hall trabalhava nele. Era sobre uma tribo na selva que tinha um ritual secreto, e se você visse, era sacrificado para o deus deles, que era um grande ídolo de pedra. Isso não fez os risinhos dela pararem, e sim os incendiou a um tom quase febril. Eles estavam ficando mais e mais como gritos silenciosos. A barriga dela estava doendo. Lágrimas escorreram pelo rosto.

 

Henry, Victor, Arroto e Patrick Hockstetter acabaram no lixão acendendo os peidos uns dos outros naquela tarde quente de julho por causa de Rena Davenport.

 

Henry sabia o que resultava de consumir grandes quantidades de feijão. O resultado talvez fosse melhor expressado em uma rima que ele aprendeu no colo do pai quando ainda era bem pequeno: Feijão, feijão, quero mais um! Quanto mais eu como, mais solto pum! Quando solto pum, não me sinto mais fraco! E logo quero mais um prato!

 

Rena Davenport e o pai dele se cortejavam havia quase oito anos. Ela era gorda, tinha 40 anos e estava quase sempre imunda. Henry achava que Rena e o pai às vezes trepavam, embora não conseguisse imaginar ninguém esmagando Rena Davenport com o corpo.

 

O feijão de Rena era seu orgulho. Ela deixava de molho no sábado à noite e cozinhava em fogo baixo durante todo o domingo. Henry achava o feijão dela gostoso, ao menos era uma coisa para enfiar na boca e mastigar, mas depois de oito anos, qualquer coisa perdia o encanto.

 

E Rena não ficava satisfeita em fazer só um pouco de feijão; ela cozinhava em grande quantidade. Quando chegava no domingo à noite no velho De Soto verde (havia uma boneca de borracha nua pendurada no retrovisor, parecendo a menor vítima de linchamento do mundo), ela costumava estar com o feijão dos Bowers fervendo no assento ao lado, em um panelão de aço galvanizado. Os três comiam feijão naquela noite (Rena falando sobre a maravilha de sua comida o tempo todo, o louco do Butch Bowers resmungando e pegando caldo de feijão com um pedaço de pão ou simplesmente mandando-a calar a boca se houvesse jogo no rádio, Henry só comendo e olhando pela janela, pensando — foi sobre um prato de feijão de domingo à noite que ele teve a ideia de envenenar o cachorro de Mike Hanlon, Mr. Chips), e Butch requentava outra panelada na noite seguinte. Às terças e quartas, Henry levava um pote cheio de feijão para a escola. Na quinta e sexta, nem Henry nem o pai conseguiam mais comer. Os dois quartos da casa estariam com cheiro de peido sufocado apesar das janelas abertas. Butch pegava os restos, misturava com outras gororobas e dava para Bip e Bop, os dois porcos dos Bowers. Rena aparecia de novo com outro panelão de feijão no domingo seguinte, e o ciclo recomeçaria tudo de novo.

 

Naquela manhã, Henry tinha colocado no pote uma enorme quantidade de sobras de feijão, e os quatro comeram tudo ao meio-dia, sentados no parquinho, à sombra do grande olmo. Eles comeram até estarem quase estourando.

 

Foi Patrick quem sugeriu que eles fossem para o lixão, que estaria bem tranquilo no meio de uma tarde de verão em dia de semana. Quando eles chegaram, o feijão já estava agindo com todo o gás.

 

Pouco a pouco, Beverly se controlou novamente. Ela sabia que tinha que sair dali; bater em retirada era menos perigoso do que ficar por perto. Eles estavam absortos no que estavam fazendo, e mesmo se acontecesse o pior, ela conseguiria uma vantagem (e, no fundo da mente, também tinha decidido que, se o pior acontecesse, alguns disparos com o estilingue poderiam desencorajá-los).

 

Ela estava prestes a começar a se afastar quando Victor disse:

 

— Tenho que ir, Henry. Meu pai quer que eu ajude a colher milho hoje à tarde.

 

— Ah, merda — disse Henry. — Ele vai sobreviver.

 

— Não, ele está zangado comigo. Por causa do que aconteceu no outro dia.

 

— Foda-se ele se não aguenta uma piada.

 

Beverly prestou mais atenção agora, desconfiando que poderia ser sobre a briga que acabou com o braço de Eddie quebrado que eles estavam falando.

 

— Não, eu tenho que ir.

 

— Acho que a bunda dele está doendo — disse Patrick.

 

— Olha o que fala, cara de cu — disse Victor. — Pode acabar dando merda pra você.

 

— Eu também tenho que ir — disse Arroto.

 

— Seu pai quer que você colha milho? — perguntou Henry com raiva. Isso talvez fosse o que Henry considerasse uma piada; o pai de Arroto estava morto.

 

— Não. Mas arrumei um emprego pra entregar o Weekly Shopper. Tenho que fazer isso hoje à noite.

 

— Que merda é essa de Weekly Shopper? — perguntou Henry, agora parecendo aborrecido, além de zangado.

 

— É um emprego — disse Arroto com paciência ponderada. — Pra ganhar dinheiro.

 

Henry fez um som de nojo, e Beverly arriscou outra olhada por cima do carro. Victor e Arroto estavam de pé, fechando os cintos. Henry e Patrick ainda estavam agachados, de calça arriada. O isqueiro brilhava na mão de Henry.

 

— Você não vai pular fora, né? — perguntou Henry a Patrick.

 

— Não — disse Patrick.

 

— Você não precisa colher milho nem fazer um trabalho de veadinho?

 

— Não — disse Patrick de novo.

 

— Bem — disse Arroto com hesitação —, te vejo por aí, Henry.

 

— Claro — disse Henry, e cuspiu perto de um dos sapatos de Arroto.

 

Vic e Arroto saíram andando juntos na direção das duas fileiras de carros velhos... na direção do Studebaker atrás do qual Beverly estava agachada. A princípio, ela só conseguiu fazer uma careta, paralisada de medo como um coelho. Em seguida, contornou o lado esquerdo do Studebaker e recuou pelo espaço entre ele e o Ford maltratado e sem porta ao lado. Por um momento, ela fez uma pausa, olhando de um lado para o outro, ouvindo-os se aproximarem. Ela hesitou, com a boca seca como se cheia de algodão, com as costas coçando de suor; parte da mente dela estava se perguntando de forma entorpecida como ela ficaria com um gesso igual ao de Eddie, com os nomes dos Otários assinados. Em seguida, entrou pela porta do passageiro do Ford. Ela se encolheu no tapete imundo, deixando-se do menor tamanho possível. Estava fervendo dentro do Ford, e o cheiro de poeira, assentos podres e merda de rato velho era tão forte que ela teve que lutar para não espirrar e tossir. Ela ouviu Arroto e Victor passarem ali perto, falando em voz baixa. Logo, eles sumiram.

 

Ela espirrou três vezes, rápida e silenciosamente, nas mãos fechadas.

 

Ela achava que poderia ir embora agora se tomasse cuidado. A melhor maneira seria passar para o lado do motorista do Ford, se esgueirar pelo corredor e desaparecer. Ela acreditava que era capaz, mas o choque de quase ser descoberta tirou a coragem dela, ao menos naquele momento. Ela se sentia mais segura no Ford. E talvez, agora que Victor e Arroto tinham ido embora, os outros dois também fossem em breve. E então, ela poderia ir para a sede do clube. Tinha perdido todo o interesse em treinar a mira.

 

Além do mais, precisava mijar.

 

Anda logo, pensou ela. Anda logo, vão embora, vão logo, por fa-VOOOR!

 

Um momento depois, ela ouviu Patrick urrar com uma mistura de gargalhada e dor.

 

— Um metro e oitenta! — berrou Henry. — Igual um lança-chamas do caralho! Juro por Deus!

 

Silêncio por alguns momentos. Suor escorrendo pelas costas dela. O sol batendo no para-brisa rachado do Ford e na nuca dela. Peso na bexiga.

 

Henry berrou tão alto que Beverly, que estava quase cochilando apesar do desconforto, quase deu um grito.

 

— Droga, Hockstetter! Você queimou minha bunda! O que você está fazendo com esse isqueiro?

 

— Três metros — riu Patrick (o simples som fez Beverly se sentir gelada e repugnada, como se tivesse visto uma minhoca se contorcer na salada). — Três metros ou até mais, Henry. Bem azul. Três metros. Juro por Deus!

 

— Me dá isso — resmungou Henry.

 

Andem logo, seus idiotas, vão embora!

 

Quando Patrick falou de novo, a voz dele estava tão baixa que Bev mal conseguiu ouvir. Se houvesse um sopro de vento no ar naquela tarde quente, ela não teria conseguido.

 

— Quero te mostrar uma coisa — disse Patrick.

 

— O quê? — perguntou Henry.

 

— Só uma coisa. — Patrick fez uma pausa. — É gostoso.

 

— O quê? — perguntou Henry de novo.

 

Em seguida, silêncio.

 

Não quero olhar, não quero ver o que eles estão fazendo agora, e, além do mais, eles podem me ver, na verdade, provavelmente vão ver, porque você usou toda sua sorte de hoje, garotinha. Então fique bem aqui. Nada de espiar...

 

Mas a curiosidade superou o bom senso. Havia alguma coisa estranha naquele silêncio, alguma coisa um pouco assustadora. Ela levantou a cabeça centímetro a centímetro até conseguir olhar pelo para-brisa rachado e sujo do Ford. Ela não precisava ter medo de ser vista; os dois garotos estavam concentrados no que Patrick estava fazendo. Ela não entendeu o que estava vendo, mas sabia que era nojento... não que ela esperasse qualquer outra coisa de Patrick, que era tão estranho.

 

Ele estava com a mão entre as coxas de Henry e a outra entre as próprias coxas. Uma das mãos massageava a coisa de Henry delicadamente; com a outra, Patrick massageava a sua. Só que ele não estava exatamente massageando. Ele estava meio que... espremendo, puxando, deixando cair solto de novo.

 

O que ele está fazendo?, perguntou-se Beverly consternada.

 

Ela não sabia, não tinha certeza, mas ficou com medo. Achava que não ficava com tanto medo desde que o ralo do banheiro vomitou sangue e manchou tudo. Uma parte profunda dela gritava que, se eles descobrissem que ela tinha visto isso, fosse o que fosse, poderiam fazer mais do que machucá-la; poderiam realmente chegar a matá-la.

 

Ainda assim, ela não conseguia afastar o olhar.

 

Ela viu que a coisa de Patrick tinha ficado um pouco mais comprida, mas não muito; ainda ficava pendurada entre as pernas dele como uma cobra sem espinha dorsal. A de Henry, no entanto, tinha crescido de uma maneira absurda. Estava de pé, rígida e dura, quase cutucando seu umbigo. A mão de Patrick subia e descia, subia e descia, às vezes parava para apertar, às vezes apertava aquele saco estranho e pesado debaixo da coisa de Henry.

 

São as bolas dele, pensou Beverly. Os garotos têm que andar por aí com isso o tempo todo? Meu Deus, eu ficaria louca! Outra parte da mente dela sussurrou: Bill tem isso. Por conta própria, sua mente visualizou-a segurando-as, aninhando na mão, verificando a textura... e aquele sentimento quente percorreu o corpo dela de novo, despertando um rubor furioso.

 

Henry olhava para a mão de Patrick como se hipnotizado. O isqueiro estava no terreno pedregoso ao lado, refletindo o sol quente da tarde.

 

— Quer que eu coloque na boca? — perguntou Patrick. Os lábios grandes e escuros deram um sorriso complacente.

 

— Hã? — perguntou Henry, como se despertado de um sonho profundo.

 

— Posso colocar na boca se você quiser. Não me... — A mão de Henry voou, meio dobrada, não exatamente formando um punho. Patrick caiu esparramado. Sua cabeça bateu no cascalho. Beverly se escondeu de novo, com o coração disparado no peito, os dentes travados para impedir um choramingo. Depois de derrubar Patrick, Henry se virou e, por um momento, pouco antes de ela se encolher no lado do passageiro, pareceu que os olhos de Henry grudaram nos dela.

 

Por favor Deus o sol estava nos olhos dele, rezou ela. Por favor Deus me desculpe por espiar. Por favor Deus.

 

Houve uma pausa agonizante. A blusa branca estava grudada no corpo de suor. Gotas como pérolas pequenas brilhavam nos braços bronzeados. A bexiga latejava dolorosamente. Ela sentiu que em pouco tempo molharia a calça. Esperou que o rosto furioso de Henry surgisse na abertura onde antes ficava a porta do passageiro do Ford, é claro que aconteceria... Como ele poderia não tê-la visto? Ele a arrastaria para fora e a machucaria. Ele...

 

Um pensamento novo e ainda mais terrível surgiu na mente dela, e mais uma vez ela precisou se esforçar de forma dolorosa para não molhar a calça. E se ele fizesse alguma coisa com ela com a coisa dele? E se ele quisesse enfiar em alguma parte dela? Ela sabia qual era o lugar onde entrava, claro; parecia que o conhecimento chegou à mente dela com toda força. Ela pensou que, se Henry tentasse colocar a coisa dele nela, ela ficaria louca.

 

Por favor, não, por favor, Deus, não deixe que ele tenha me visto, por favor, tá?

 

E então, Henry falou, e para seu horror crescente, a voz estava vindo de algum lugar bem mais perto.

 

— Não gosto dessas coisas de veado.

 

De mais longe, a voz de Patrick:

 

— Você estava gostando.

 

— Eu não estava gostando! — gritou Henry. — E se você contar pra alguém que eu estava, vou te matar, seu veadinho de merda!

 

— Você ficou duro — disse Patrick. Ele parecia estar sorrindo. Por mais que ela sentisse medo de Henry Bowers, o sorriso não teria surpreendido Beverly. Patrick era louco, mais louco do que Henry, talvez, e pessoas tão loucas não tinham medo de nada. — Eu vi.

 

Passos esmagaram o cascalho, cada vez mais perto. Beverly ergueu o rosto com olhos arregalados. Pelo para-brisa velho do Ford, ela agora conseguia ver a parte de trás da cabeça de Henry. Ele estava olhando para Patrick, mas se se virasse...

 

— Se você contar pra alguém, vou dizer que você chupa pau — disse Henry. — Depois, vou te matar.

 

— Você não me assusta, Henry — disse Patrick, e riu. — Mas pode ser que eu não conte se você me der um dólar.

 

Henry se mexeu com desconforto. Ele se virou um pouco; Beverly agora conseguia ver um quarto do perfil dele em vez de só a parte de trás da cabeça. Por favor, Deus, por favor, Deus, implorou ela com incoerência, e a bexiga latejou com mais força.

 

— Se você contar — disse Henry, com voz baixa e calculada —, vou contar o que você anda fazendo com os gatos. Com os cachorros também. Vou contar sobre sua geladeira. Sabe o que vai acontecer, Hockstetter? Vão pegar você e levar pra porra do hospício.

 

Silêncio de Patrick.

 

Henry bateu com os dedos no capô do Ford em que Beverly estava escondida.

 

— Entendeu?

 

— Entendi. — Patrick pareceu aborrecido agora. Aborrecido e com um pouco de medo. Ele disse de repente: — Você gostou! Ficou duro! Foi o maior pau duro que eu já vi!

 

— É, aposto que você já viu muitos, seu veado homo de merda. Mas lembra o que falei sobre a geladeira. Sua geladeira. E se eu te encontrar por aí, vou te cobrir de porrada.

 

Mais silêncio de Patrick.

 

Henry se afastou. Beverly virou a cabeça e viu-o passar pelo lado do motorista do Ford. Se ele tivesse olhado um pouquinho para a esquerda, a teria visto. Mas não olhou. Um momento depois, ela o ouviu seguindo pelo mesmo caminho de Victor e Arroto.

 

Agora, só havia Patrick.

 

Beverly esperou, mas nada aconteceu. Cinco minutos se arrastaram. A necessidade dela de urinar agora estava desesperadora. Ela talvez conseguisse segurar por mais dois ou três minutos, mas não mais. E estava inquieta por não saber onde Patrick estava.

 

Ela espiou pelo para-brisa de novo e o viu sentado ali. Henry tinha esquecido o isqueiro. Patrick tinha colocado os livros em uma bolsa pequena de lona e pendurado no pescoço, como a de um entregador de jornal, mas a calça e a cueca ainda estavam abaixadas até os tornozelos. Ele estava brincando com o isqueiro. Girava a roldana, produzia uma chama que era quase invisível no dia claro, fechava o isqueiro e começava tudo de novo. Parecia hipnotizado. Uma linha de sangue escorria do canto da boca até o queixo, e os lábios estavam inchando do lado direito. Ele pareceu não ter reparado, e mais uma vez Beverly sentiu uma espécie de repulsa. Patrick era louco mesmo; ela nunca na vida quis tanto se afastar de alguém.

 

Movendo-se com cautela, ela passou pela parte central do Ford, onde fica o câmbio, e se espremeu embaixo do volante. Colocou os pés no chão e foi para trás do carro. Depois, correu rapidamente pelo mesmo caminho que tinha vindo. Quando entrou no meio dos pinheiros atrás dos carros velhos, ela olhou para trás por cima do ombro. Não tinha ninguém ali. O lixão estava parado sob o sol. Ela sentiu a pressão ao redor do peito e do estômago se afrouxar de alívio, e só sobrou a vontade de urinar, tão grande que ela estava quase passando mal.

 

Ela percorreu uma parte do caminho e entrou à direita. Abriu o short quase antes de a vegetação ter se fechado atrás dela novamente. Ela deu uma olhadinha rápida ao redor para ter certeza de que não havia hera venenosa por perto; em seguida, se agachou, segurando-se no tronco grosso de um arbusto para se equilibrar.

 

Ela estava vestindo o short quando ouviu passos se aproximando do lixão. Tudo que conseguiu ver em meio aos arbustos foi jeans azul e o xadrez desbotado de uma camisa de escola. Era Patrick. Ela se abaixou e ficou esperando que ele seguisse na direção da rua Kansas. Estava mais otimista quanto ao esconderijo agora. O local era bom, ela não precisava mais urinar, e Patrick estava perdido em seu mundo da lua. Quando ele fosse embora, ela daria meia-volta e seguiria para a sede do clube.

 

Mas Patrick não passou. Ele parou no caminho quase em frente a ela e ficou olhando para a geladeira Amana enferrujada.

 

Beverly conseguiu observar Patrick por entre os arbustos sem chance de ser vista. Agora que estava aliviada da pressão na bexiga, viu-se curiosa de novo. E se Patrick por acaso a visse, ela tinha certeza de que conseguiria correr mais rápido do que ele. Ele não era tão gordo quanto Ben, mas era gorducho. Mas tirou o estilingue do bolso e colocou meia dúzia de bilhas de aço no bolso do peito da blusa velha Ship ‘n Shore. Louco ou não, um bom disparo no joelho poderia desencorajar rapidamente sujeitos como Patrick Hockstetter.

 

Ela se lembrava bem da geladeira agora. Havia muitas geladeiras no lixão, mas de repente ocorreu a ela que essa era a única que ela tinha visto que Mandy Fazio não tinha alterado arrancando o mecanismo de tranca com um alicate ou simplesmente removendo a porta.

 

Patrick começou a cantarolar e se balançar na frente da geladeira velha e enferrujada, e Beverly sentiu um tremor novo percorrer seu corpo. Ele era como um cara em um filme de terror tentando despertar um cadáver em uma cripta.

 

O que ele quer fazer?

 

Mas se ela soubesse o que ele queria fazer ou se soubesse o que aconteceria quando Patrick finalmente terminasse seu ritual particular e abrisse a porta enferrujada da Amana, ela teria fugido o mais rápido possível.

 

Ninguém, nem mesmo Mike Hanlon, tinha a menor ideia do quanto Patrick Hockstetter era realmente louco. Ele tinha 12 anos, era filho de um vendedor de tintas. A mãe era católica devota e morreria de câncer de mama em 1962, quatro anos depois que Patrick foi consumido pela entidade das trevas que existia em e abaixo de Derry. Apesar de seu QI ser declarado de baixo a normal em um teste, Patrick já tinha repetido duas vezes, o primeiro e o terceiro ano. Ele estava fazendo aula de recuperação para não precisar repetir o quinto também. Os professores o achavam um aluno apático (vários deles anotaram isso nas seis linhas dos boletins da Escola Derry reservadas para os COMENTÁRIOS DOS PROFESSORES) e também bastante perturbador (mas isso ninguém anotou; os sentimentos eram vagos demais, difusos demais, para serem expressos em sessenta linhas, quanto mais em seis). Se ele tivesse nascido dez anos depois, um orientador talvez o tivesse direcionado para um psicólogo infantil, que poderia (ou não; Patrick era bem mais inteligente do que os testes medíocres de QI indicavam) ter percebido as profundezas apavorantes por trás daquele rosto redondo flácido e pálido.

 

Ele era um sociopata, e talvez naquele julho quente de 1958 tivesse se tornado um verdadeiro psicopata. Ele não conseguia se lembrar de uma época em que acreditava que as outras pessoas (qualquer criatura viva, na verdade) eram “reais”. Ele acreditava que era uma criatura de verdade, provavelmente a única no universo, mas não estava nada convencido de que isso o tornava “real”. Ele não tinha noção de machucar nem de ser machucado (sua indiferença ao levar um tapa na boca de Henry no lixão era uma prova). Mas, apesar de achar a realidade um conceito completamente sem sentido, ele entendia perfeitamente o conceito de “regras”. E apesar de todos os professores o acharem estranho (tanto a sra. Douglas, a professora do quinto ano, quanto a sra. Weems, que deu aula para Patrick no terceiro ano, sabiam sobre o estojo cheio de moscas, e embora nenhuma das duas ignorasse completamente as implicações, cada uma tinha entre vinte e 28 outros alunos, cada um com seus próprios problemas), nenhum tinha problemas disciplinares sérios com ele. Ele podia entregar provas completamente em branco, ou em branco exceto por um grande ponto de interrogação decorado, e a sra. Douglas descobriu que era melhor deixá-lo longe das garotas por causa das mãos inquietas e dedos safados, mas ele era calmo, tão calmo que havia vezes em que poderia ser encarado como um monte de argila modelado para se parecer com um garoto. Era fácil ignorar Patrick, que repetia de ano em silêncio, quando você tinha que lidar com garotos como Henry Bowers e Victor Criss, que eram ativamente os agitadores e insolentes, garotos que roubavam o dinheiro do lanche e destruíam com alegria propriedade da escola se tivessem oportunidade, e garotas como a tragicamente batizada de Elizabeth Taylor, que era epilética e cujos poucos neurônios funcionavam esporadicamente, e que tinha que ser desencorajada a levantar o vestido no parquinho para mostrar a calcinha nova. Em outras palavras, a Escola Derry era o típico carnaval educacional confuso, um circo com tantos picadeiros que o próprio Pennywise talvez passasse despercebido. Certamente, nenhum dos professores de Patrick (nem os pais, aliás) desconfiava que ele, quando tinha 5 anos, assassinou o irmãozinho ainda bebê, Avery.

 

Patrick não gostou quando a mãe chegou com Avery do hospital. Ele não ligava (ao menos, foi o que disse para si mesmo) se os pais tinham dois, cinco ou cinquenta filhos, desde que a criança ou crianças não alterassem a agenda dele. Mas descobriu que Avery afetava. As refeições saíam tarde. O bebê chorava à noite e o acordava. Parecia que os pais estavam sempre em volta do berço dele e, quando ele tentava chamar a atenção dos dois, descobriu que não conseguia. Em uma das poucas vezes de sua vida, Patrick sentiu medo. Ocorreu a ele que se os pais o tinham trazido para casa do hospital, e se ele era “real”, então talvez Avery também fosse “real”. Poderia até acontecer que, quando Avery ficasse grande o bastante para andar e falar, para pegar o exemplar do pai do Derry News na varanda e entregar as fôrmas para a mãe quando ela fazia pão, eles acabassem decidindo se livrar completamente de Patrick. Não era que ele tivesse medo de os pais amarem mais Avery (embora estivesse óbvio para Patrick que eles amavam mais o bebê, e nesse caso sua avaliação provavelmente estava correta). O que importava para ele era: 1. as regras que estavam sendo quebradas ou mudaram desde que Avery chegou; 2. a possível realidade de Avery; e 3. a possibilidade de se livrarem dele em favor de Avery.

 

Patrick entrou no quarto de Avery uma tarde por volta das 14h30, pouco depois de o ônibus escolar deixá-lo em casa após a aula do jardim de infância. Foi em janeiro. Do lado de fora, a neve estava começando a cair. Um vento poderoso soprava pelo Parque McCarron e fazia as janelas do andar de cima tremerem. A mãe estava cochilando no quarto; Avery tivera várias noites agitadas. O pai estava trabalhando. Avery estava dormindo de bruços, com a cabeça virada para o lado.

 

Patrick, com o rosto redondo sem expressão, virou a cabeça de Avery de forma a ficar diretamente apontada para o travesseiro. Avery fungou e virou a cabeça de novo para o lado. Patrick observou isso e ficou pensando um pouco enquanto a neve derretia das botas amarelas e fazia uma poça no chão. Talvez cinco minutos tenham se passado (pensar rápido não era especialidade de Patrick), e então ele virou o rosto de Avery para o travesseiro de novo e ficou segurando por um momento. Avery se mexeu sob a mão dele e lutou. Mas os esforços foram fracos. Patrick soltou. Avery virou a cabeça para o lado de novo, deu um chorinho engasgado e voltou a dormir. O vento soprou e balançou as janelas. Patrick esperou para ver se o chorinho acordaria a mãe. Não acordou.

 

Agora, ele se sentia tomado de grande empolgação. O mundo parecia saltar claramente na frente dele pela primeira vez. Seu equipamento emocional tinha defeitos graves e, naqueles poucos momentos, ele se sentiu como uma pessoa totalmente daltônica devia se sentir se recebesse uma injeção que permitisse que ela visse as cores pela primeira vez... ou como um drogado se sente quando a droga faz seu cérebro entrar em órbita. Era uma coisa nova. Ele não desconfiava que existia.

 

Delicadamente, ele virou o rosto de Avery para o travesseiro de novo. Desta vez, quando Avery lutou, Patrick não soltou. Ele apertou o rosto do bebê com mais firmeza no travesseiro. O bebê estava chorando com voz abafada agora, e Patrick sabia que estava acordado. Ele tinha a vaga ideia de que a mãe acabaria descobrindo se parasse. Ele ficou segurando. O bebê lutou. Patrick ficou segurando. O bebê peidou. A luta ficou mais fraca. Patrick continuou segurando. O bebê acabou ficando completamente parado. Patrick o segurou por mais cinco minutos, sentindo aquela empolgação chegar a um pico e começar a sumir: a dose acabando, o mundo ficando cinza de novo, a droga virando o estado habitual de torpor.

 

Patrick desceu a escada, pegou um prato de biscoitos e se serviu de um copo de leite. A mãe desceu meia hora depois e disse que nem o ouviu chegar de tanto que estava cansada (não vai ficar mais, mãe, pensou Patrick, não se preocupe, eu resolvi). Ela se sentou com ele, comeu um biscoito e perguntou como foi a escola. Patrick disse que foi tudo bem e mostrou o desenho que tinha feito de uma árvore e uma casa. O papel estava coberto de rabiscos redondos sem sentido feitos com lápis de cera preto e marrom. A mãe disse que estava muito bonito. Patrick levava para casa os mesmos rabiscos pretos e marrons todos os dias. Às vezes, ele dizia que era um peru, às vezes, uma árvore de Natal, às vezes, um garoto. A mãe sempre dizia que estava bonito... mas, às vezes, em uma parte tão profunda dela que ela nem sabia que existia, ficava preocupada. Havia alguma coisa perturbadora na mesmice escura daqueles rabiscos arredondados e grandes em preto e marrom.

 

Ela só descobriu a morte de Avery às 17h; até aquele momento, simplesmente supôs que ele estava tirando uma soneca muito longa. Patrick estava assistindo Crusader Rabbit na televisão de sete polegadas, e continuou assistindo durante toda a confusão que aconteceu em seguida. Estava passando Whirlybirds quando a sra. Henley chegou da casa ao lado (sua mãe estava gritando e segurando o cadáver do bebê na porta aberta da cozinha, acreditando de alguma maneira cega que o ar frio talvez o reavivasse; Patrick estava com frio e pegou um suéter no armário do andar de baixo). Highway Patrol, o programa favorito de Ben Hanscom, estava passando quando o sr. Hockstetter chegou do trabalho. Quando o médico chegou, Science Fiction Theater, com Seu Anfitrião Truman Bradley, estava começando. “Quem sabe que coisas estranhas o universo pode conter?”, especulou Truman Bradley enquanto a mãe de Patrick berrava e lutava contra os braços do marido na cozinha. O médico observou a calma profunda de Patrick e o olhar sério e supôs que o garoto estivesse em estado de choque. Ele queria que Patrick tomasse um comprimido. Patrick não se importou.

 

Foi diagnosticado como morte súbita. Anos depois, talvez houvesse questionamento sobre uma fatalidade daquelas, talvez desvios da habitual síndrome de morte súbita infantil fossem observados. Mas, quando aconteceu, a morte foi simplesmente registrada e o bebê foi enterrado. Patrick ficou grato porque depois que tudo foi resolvido, suas refeições começaram a chegar na hora de novo.

 

Na loucura daquela tarde e daquela noite (pessoas entrando e saindo da casa, as luzes vermelhas da ambulância do Derry Home Hospital pulsando nas paredes, a sra. Hockstetter gritando, chorando e se recusando a ser consolada), só o pai de Patrick chegou perto da verdade. Ele estava entorpecido ao lado do berço vazio de Avery cerca de vinte minutos depois que o corpo foi removido, estava simplesmente ali de pé, incapaz de acreditar que aquilo tinha acontecido. Ele olhou para baixo e viu duas marcas no chão de madeira. Tinham sido feitas pela neve derretendo das botas amarelas de borracha de Patrick. Ele olhou para elas e um pensamento horrível surgiu brevemente em sua mente, como gás tóxico de uma mina profunda. Sua mão foi lentamente até a boca e seus olhos se arregalaram. Uma imagem começou a se formar em sua mente. Antes que pudesse ficar clara, ele saiu do quarto e bateu a porta com tanta força que a moldura de cima quebrou.

 

Ele nunca fez perguntas a Patrick.

 

Patrick nunca fez nada parecido novamente, embora talvez tivesse feito se uma chance houvesse surgido. Ele não sentia culpa, não tinha pesadelos. Mas, conforme o tempo passou, ele ficou ciente do que teria acontecido com ele se tivesse sido descoberto. Havia regras. Coisas desagradáveis aconteciam se você não as seguisse... ou se fosse pego violando-as. Você podia ser preso ou colocado na cadeira de eletrocussão.

 

Mas aquele sentimento de empolgação relembrada, aquele sentimento de cor e sensações, era simplesmente forte demais e maravilhoso demais para abrir mão completamente. Patrick matava moscas. No começo, só matava com o mata-moscas da mãe; mais tarde, descobriu que podia matar com eficiência usando uma régua de plástico. Ele também descobriu a alegria dos papéis mata-moscas. Um pedaço comprido e grudento podia ser comprado por dois centavos no mercado da avenida Costello, e Patrick às vezes ficava na garagem por até duas horas, vendo moscas pousarem e lutarem para se libertar, com a boca entreaberta, os olhos enevoados iluminados com aquela empolgação rara, suor escorrendo pelo rosto redondo e pelo corpo largo. Patrick matava besouros, mas se possível capturava-os primeiro. Às vezes, ele roubava uma agulha comprida da caixa de costuras da mãe, empalava um besouro japonês com ela e se sentava de pernas cruzadas no jardim para vê-lo morrer. A expressão dele nessas horas era a de um garoto que estava lendo um livro muito bom. Uma vez, ele descobriu um gato atropelado que estava morrendo na vala da rua Lower Main e ficou observando até uma velha vê-lo empurrando a coisa esmagada e chorosa com o pé. Ela bateu nele com a vassoura que estava usando para varrer a calçada. Vá pra casa!, gritou ela para ele. Você é o quê, louco? Patrick foi para casa. Não ficou com raiva da mulher. Ele tinha sido visto violando as regras, só isso.

 

No ano anterior (não teria surpreendido Mike Hanlon e nenhum dos amigos dele àquela altura saber que foi, na verdade, no mesmo dia em que George Denbrough foi assassinado), Patrick descobriu a geladeira Amana enferrujada, um dos maiores lixoides no cinturão que cercava o próprio lixão.

 

Como Bev, ele tinha ouvido avisos sobre aparelhos abandonados como aquele, informando que 30 milhões de crianças morriam sufocadas dentro de objetos assim todos os anos. Patrick ficou olhando para a geladeira por um longo tempo, coçando o saco com as mãos enfiadas nos bolsos. Aquela empolgação tinha voltado, mais forte do que nunca, exceto pela vez que ele deu um jeito em Avery. A empolgação tinha voltado porque, nos cafundós apavorantes e espumantes do cérebro, Patrick Hockstetter tinha tido uma ideia.

 

Os Luce, que moravam três casas depois dos Hockstetter, deram falta do gato, Bobby, uma semana depois. Os filhos dos Luce, que não conseguiam se lembrar da época em que Bobby não existia, passaram horas caminhando pelo bairro em busca dele. Até juntaram dinheiro e colocaram um anúncio na coluna de Achados e Perdidos do Derry News. Não deu em nada. E se algum deles viu Patrick naquele dia, mais parrudo do que nunca com a parca de inverno com cheiro de naftalina (depois que a enchente baixou naquele outono de 1957, ficou muito frio quase imediatamente), carregando uma caixa de papelão, eles não acharam nada de mais.

 

Os Engstrom, que moravam no outro quarteirão, quase diretamente atrás da casa dos Hockstetter, perderam o filhote de cocker uns dez dias antes do Dia de Ação de Graças. Outras famílias perderam cachorros e gatos nos seis ou oito meses seguintes, e Patrick pegou todos, é claro, sem mencionar mais de dez cachorros de rua na área do Meio Acre do Inferno de Derry.

 

Ele os colocou dentro da Amana enferrujada perto do lixão, um a um. Cada vez que levava outro animal, com o coração disparado no peito, os olhos quentes e lacrimejantes de empolgação, ele esperava descobrir que Mandy Fazio tinha arrancado a tranca da geladeira ou as dobradiças com a marreta. Mas Mandy nunca tocou naquela geladeira em particular. Talvez não se desse conta de que ela estava lá, talvez a força da vontade de Patrick o mantivesse longe... ou talvez alguma outra força estivesse fazendo isso.

 

O cocker dos Engstrom foi o que durou mais. Apesar do frio incomum, ele ainda estava vivo quando Patrick voltou pela terceira vez em três dias, embora tivesse perdido toda a energia (ele estava balançando o rabo e lambendo as mãos dele freneticamente quando Patrick o tirou da caixa e colocou na geladeira). Quando voltou um dia depois, o cachorrinho quase conseguiu fugir. Patrick teve que correr atrás dele até quase o lixão, quando conseguiu pular e segurar uma perna traseira. O cachorrinho mordeu Patrick com dentinhos afiados. Patrick não se importou. Apesar das mordidas, ele levou o cocker de volta até a geladeira e colocou lá dentro. Ele estava com uma ereção nesse momento. Isso não era incomum.

 

No segundo dia, o cachorro tentou sair de novo, mas se deslocou devagar demais. Patrick o enfiou lá dentro de volta, fechou a porta enferrujada da geladeira e se apoiou nela. Ele conseguia ouvir o cachorrinho arranhando a porta. Conseguia ouvir o choramingo abafado.

 

— Bom cachorro — disse Patrick Hockstetter. Seus olhos estavam fechados e ele estava respirando rápido. — Você é um bom cachorro.

 

No terceiro dia, o cachorro só conseguiu revirar os olhos na direção do rosto de Patrick quando a porta se abriu. As laterais do corpo estavam subindo e descendo rapidamente. Quando Patrick voltou no dia seguinte, o cachorro estava morto com uma camada de espuma seca na boca e no focinho. Isso fez Patrick pensar em picolé de coco, e ele gargalhou enquanto tirava o cadáver da caixa de matar e jogava no mato.

 

O fornecimento de vítimas (que Patrick encarava quando pensava neles como “animais de teste”) foi escasso no verão. Sem contar as questões da realidade, o senso de autopreservação dele estava bem desenvolvido, e sua intuição, apurada. Ele desconfiava que suspeitavam dele. Quem, ele não sabia: o sr. Engstrom? Talvez. O sr. Engstrom se virou e lançou um longo olhar especulativo para Patrick no A&P em um dia de primavera. O sr. Engstrom estava comprando cigarros, e Patrick foi mandado ao mercado para comprar pão. A sra. Josephs? Talvez. Ela às vezes ficava sentada em frente à janela da sala com um telescópio e era, de acordo com a sra. Hockstetter, uma “xereta”. O sr. Jacubois, que tinha um adesivo da Sociedade Protetora dos Animais no para-choque traseiro do carro? O sr. Nell? Outra pessoa? Patrick não tinha certeza, mas sua intuição dizia que desconfiavam dele, e ele nunca discutia com sua intuição. Ele pegou alguns animais entre as moradias caindo aos pedaços no Meio Acre, escolheu só os que pareciam magros ou doentes, mas isso foi tudo.

 

Mas ele descobriu que a geladeira perto do lixão tinha um poder intenso e estranho sobre ele. Ele começou a fazer desenhos dela na escola quando estava entediado. Às vezes, sonhava com ela à noite, e nos sonhos a Amana tinha uns 20 metros de altura, um sepulcro branco, uma cripta pesada presa sob o luar gelado. Nesses sonhos, a porta gigante se abria e ele via olhos enormes o observando. Ele acordava suando frio, mas descobria que não conseguia abrir mão completamente das alegrias da geladeira.

 

Hoje, ele finalmente descobriu quem desconfiava. Bowers. Saber que Henry Bowers tinha o segredo de sua caixa de morte nas mãos deixou Patrick tão perto do pânico quanto ele poderia ficar. Na verdade, isso não era realmente perto, mas ele ainda achava esse... não medo exatamente, mas desconforto mental, opressivo e desagradável. Henry sabia. Sabia que Patrick às vezes violava as regras.

 

Sua vítima mais recente foi um pombo que ele encontrou na rua Jackson dois dias antes. O pombo tinha sido atropelado e não conseguia voar. Patrick foi para casa, pegou a caixa na garagem e colocou o pombo dentro. O pombo bicou as costas da mão de Patrick várias vezes, deixando marcas rasas e sangrentas. Patrick não se importou. Quando verificou a geladeira no dia seguinte, o pombo estava morto, mas ele não recolheu o corpo. Agora, depois da ameaça de Henry de contar, Patrick decidiu que era melhor se livrar imediatamente do corpo do pombo. Talvez ele até pegasse um balde de água e alguns panos para limpar o interior da geladeira. O cheiro não estava muito bom. Se Henry contasse e o sr. Nell fosse verificar, talvez conseguisse perceber que alguma coisa (várias coisas, na verdade) tinha morrido lá dentro.

 

Se ele contar, pensou Patrick, sentado na área de pinheiros e olhando para a Amana enferrujada, vou contar que ele quebrou o braço de Eddie Kaspbrak. É claro que já deviam saber disso, mas não podiam provar nada porque todos disseram que estavam brincando na casa de Henry naquele dia, e o pai maluco de Henry confirmou. Mas, se ele contar, vou contar. Olho por olho.

 

Mas isso não importava agora. O que ele tinha que fazer era se livrar do pássaro. Ele deixaria a porta da geladeira aberta e voltaria com os panos e a água para limpar. Ótimo.

 

Patrick abriu a porta da geladeira para sua própria morte.

 

A princípio, ele ficou intrigado, sem conseguir entender o que estava vendo. Não significava nada para ele. Não tinha contexto. Patrick ficou apenas olhando, com a cabeça inclinada para o lado e os olhos arregalados.

 

O pombo não era nada além de um esqueleto cercado por penas caídas. Não havia carne nenhuma no corpo. E, ao redor dele, presos nas paredes internas da geladeira, pendurados na parte embaixo do compartimento do congelador, pendendo das grades das prateleiras, havia dezenas de objetos de cor de carne que pareciam macarrões em forma de concha. Patrick viu que se moviam lentamente, tremiam, como se sob uma brisa. Só que não havia brisa. Ele franziu a testa.

 

De repente, uma das coisas em forma de concha abriu asas de inseto. Antes que Patrick conseguisse qualquer coisa mais do que registrar o fato, ele voou pelo espaço entre a geladeira e o braço esquerdo de Patrick. Grudou com um som de beijo. Houve um instante de calor, mas que logo sumiu, e o braço de Patrick voltou a ficar como antes... mas o corpo de concha da criatura começou a ficar rosa, e depois, com rapidez chocante, vermelho-vivo.

 

Embora Patrick não tivesse medo de quase nada no sentido comumente compreendido da palavra (é difícil sentir medo de coisas que não são “reais”), houve pelo menos uma coisa que o encheu de nojo e ódio. Ele tinha saído do lago Brewster em um dia quente de agosto quando tinha 7 anos e encontrou quatro ou cinco sanguessugas agarradas em sua barriga e pernas. Ele gritou com voz rouca até o pai tirar todas.

 

Agora, em uma explosão mortal de inspiração, ele percebeu que isso era alguma espécie de sanguessuga voadora. Elas tinham infestado a geladeira.

 

Patrick começou a gritar e bater na coisa grudada em seu braço. Ela tinha inchado até quase o tamanho de uma bola de tênis. No terceiro golpe, ela explodiu com um som repugnante. Sangue, o sangue dele, espirrou no braço do cotovelo até o pulso, mas a cabeça sem olhos e com textura de geleia da coisa ficou grudada. De certa forma, era como a cabeça estreita de um pássaro com uma estrutura similar a um bico na ponta, só que o bico não era achatado e nem pontudo; era tubular e rombudo como uma probóscide de mosquito. Essa probóscide estava enterrada no braço de Patrick.

 

Ainda gritando, ele segurou a criatura esmagada entre os dedos e puxou. A probóscide saiu inteira, seguida de um jorro de sangue misturado com um líquido amarelo-esbranquiçado como pus. Tinha criado um buraco indolor do tamanho de uma moeda de dez centavos em seu braço.

 

E a criatura, embora esmagada, ainda estava se retorcendo, se movendo e procurando os dedos dele.

 

Patrick jogou-a longe, se virou... e mais delas saíram voando da geladeira, pousando nele na mesma hora em que ele tateava em busca da maçaneta da porta. Elas pousaram em suas mãos, seus braços, seu pescoço. Uma pousou na testa dele. Quando Patrick levantou o braço para retirá-la, viu mais quatro na mão, tremendo, ficando primeiro rosa e depois vermelhas.

 

Não havia dor... mas havia uma sensação horrível de esvaziamento. Gritando, girando, batendo na cabeça e no pescoço com as mãos cobertas de sanguessugas, a mente de Patrick Hockstetter resmungou: Isso não é real, é só um sonho ruim, não se preocupe, não é real, nada é real...

 

Mas o sangue jorrando das sanguessugas esmagadas parecia bem real, o som das asas zumbindo parecia bem real... e o pavor dele parecia bem real.

 

Uma delas caiu dentro da camisa dele e pousou no peito. Enquanto ele batia nela freneticamente e via a mancha de sangue se espalhar acima do ponto em que havia grudado, outra pousou em seu olho direito. Patrick o fechou, mas isso não ajudou; ele sentiu uma dor breve e quente quando o bico da coisa furou sua pálpebra e começou a sugar o fluido de seu globo ocular. Patrick sentiu o olho despencar na órbita e gritou de novo. Uma sanguessuga voou para dentro da boca quando ele fez isso e se aninhou na língua.

 

Foi quase indolor.

 

Patrick foi cambaleando e se balançando pelo caminho na direção dos carros velhos. Havia parasitas pendurados nele todo. Alguns sugaram o quanto conseguiram e explodiram como balões; quando isso aconteceu com os maiores, eles encharcaram Patrick com quase 300 mililitros do sangue quente dele mesmo. Ele conseguia sentir a sanguessuga dentro da boca inchando e abriu a boca porque o único pensamento coerente que ainda tinha era que ela não podia estourar lá dentro; não podia, não podia.

 

Mas estourou. Patrick ejetou um enorme jorro de sangue e carne de parasita como se fosse vômito. Ele caiu no chão de cascalho e começou a rolar e gritar. Pouco a pouco, o som dos gritos dele começou a parecer baixo e distante.

 

Pouco antes de desmaiar, ele viu uma pessoa sair de detrás dos carros velhos. A princípio, Patrick pensou que fosse um cara, Mandy Fazio, talvez, e que seria salvo. Mas quando a pessoa se aproximou, ele viu que o rosto estava escorrendo como cera. Às vezes começava a ficar duro e parecer alguma coisa, ou alguém, e depois começava a escorrer de novo, como se não conseguisse decidir quem o ou que queria ser.

 

— Oi e tchau — disse uma voz borbulhante dentro da cera escorrendo que eram as feições da pessoa, e Patrick tentou gritar de novo. Ele não queria morrer; como a única pessoa “real”, ele não devia morrer. Se morresse, todas as pessoas no mundo morreriam com ele.

 

A forma humana segurou os braços cobertos de sanguessugas e começou a arrastá-lo na direção do Barrens. A mochila manchada de sangue batia e fazia barulho ao lado dele, com a tira ainda passada pelo pescoço. Patrick, ainda tentando gritar, perdeu a consciência.

 

Ele acordou só uma vez: quando, em algum inferno escuro, fedido e úmido onde não havia luz, luz nenhuma, a Coisa começou a se alimentar.

 

No começo, Beverly não tinha certeza do que estava vendo nem do que estava acontecendo... só que Patrick Hockstetter tinha começado a se debater, dançar e gritar. Ela se levantou com cautela, segurando o estilingue em uma das mãos e duas bilhas na outra. Conseguia ouvir Patrick se movendo no caminho, ainda gritando como louco. Naquele momento, Beverly parecia nos mínimos detalhes a linda mulher que se tornaria, e se Ben Hanscom estivesse por perto para vê-la naquela hora, seu coração talvez não conseguisse suportar.

 

Ela estava completamente ereta, com a cabeça inclinada para a esquerda, os olhos arregalados, o cabelo preso em tranças que foram amarradas com pequenos laços de veludo que ela comprou na Dahlie’s por dez centavos. A postura era de total atenção e concentração; era felina, como a de um lince. Ela tinha dado um passo à frente com o pé esquerdo, com o corpo meio virado como se para ir atrás de Patrick, e as pernas do short desbotado tinham subido o bastante para deixar à mostra a beirada da calcinha amarela de algodão. Embaixo da calcinha, as pernas já tinham músculos levemente definidos e eram belas apesar dos machucados, hematomas e manchas de terra.

 

É armação. Ele te viu e sabe que não consegue te pegar, então está tentando te fazer sair. Não vai, Bevvie!

 

Mas outra parte dela pensava que havia medo demais e dor demais naqueles gritos. Ela queria ter visto mais claramente o que aconteceu com Patrick, se alguma coisa tivesse mesmo acontecido. Queria mais do que tudo ter ido para o Barrens por outro caminho e não visto nada daquilo.

 

Os gritos de Patrick pararam. Um momento depois, Beverly ouviu alguém falar, mas sabia que aquilo só podia ser a imaginação dela. Ela ouviu seu pai dizer “Oi e tchau”. Seu pai nem estava em Derry naquele dia; tinha partido para Brunswick às 8h. Ele e Joe Tammerly iam buscar uma picape Chevy lá. Ela balançou a cabeça como se para desembaralhar os pensamentos. A voz não falou de novo. Imaginação dela, claro.

 

Ela saiu dos arbustos e foi até o caminho, pronta para sair correndo assim que visse Patrick indo para cima dela, com as reações engatilhadas como bigodes delicados de gatos. Ela olhou para o caminho e arregalou os olhos. Havia sangue aqui. Muito sangue.

 

Sangue de mentira, insistiu sua mente. Dá pra comprar um vidrinho de sangue de mentira na Dahlie’s por 49 centavos. Cuidado, Bevvie!

 

Ela se ajoelhou e tocou rapidamente no sangue com os dedos. Olhou para eles de perto. Não era sangue de mentira.

 

Ela sentiu um calor no braço esquerdo, logo abaixo do cotovelo. Olhou e viu uma coisa que pensou a princípio ser algum tipo de carrapicho. Não, não era um carrapicho. Carrapichos não se contorciam nem tremiam. Essa coisa estava viva. Um momento depois, ela percebeu que a criatura a estava mordendo. Beverly bateu nela com as costas da mão esquerda, e a criatura estourou e esguichou sangue. Ela recuou um passo, se preparando para gritar agora que tinha acabado... e viu que não tinha acabado. A cabeça sem rosto da criatura ainda estava no braço dela, com o bico enfiado na pele.

 

Com um grito agudo de nojo e medo, ela agarrou a cabeça e viu a probóscide sair do braço como uma pequena adaga, com sangue pingando. Ela agora entendia o sangue no chão, ah, sim, e os olhos dela se dirigiram para a geladeira.

 

A porta tinha se fechado e a tranca tinha travado, mas vários parasitas ficaram do lado de fora e estavam rastejando lentamente na cobertura branca enferrujada. Quando Beverly estava olhando, uma delas abriu as asas membranosas com as de moscas e voou na direção dela.

 

Ela agiu sem pensar, colocou uma das bilhas no elástico do estilingue e disparou. Quando os músculos do braço esquerdo se flexionaram delicadamente, ela viu sangue jorrar do buraco que a coisa fez em seu braço. Mas disparou mesmo assim, mirando inconscientemente na coisa voadora.

 

Merda! Errei!, pensou ela quando o Bullseye estalou e a bilha voou, um pedaço cintilante de luz sob o sol forte. E mais tarde ela contaria aos Otários que sabia que tinha errado, da mesma forma que um jogador de boliche sabe que não vai fazer strike assim que a bola sai de sua mão. Mas então, ela viu a bolinha fazer uma curva. Aconteceu em uma fração de segundo, mas a imagem foi bem clara: ela fez uma curva. Bateu na coisa voadora, que estourou em uma gosma. Houve uma chuva de gotas amareladas no chão.

 

Beverly recuou lentamente no começo, com olhos arregalados, os lábios tremendo, o rosto de um tom branco-acinzentado de puro choque. Seu olhar estava grudado na porta da geladeira velha, esperando para ver se alguma outra daquelas coisas sentiria o cheiro ou a presença dela. Mas os parasitas só rastejaram lentamente para um lado e para o outro, como moscas de outono drogadas com o frio.

 

Por fim, ela se virou e saiu correndo.

 

O pânico tomou conta dos pensamentos dela, mas ela não cedeu a ele completamente. Ficou segurando o estilingue na mão esquerda e olhou por cima do ombro algumas vezes. Ainda havia sangue no caminho e nas folhas de alguns arbustos ao redor, como se Patrick tivesse cambaleado de um lado para o outro enquanto corria.

 

Beverly saiu na área dos carros velhos de novo. À frente, havia uma mancha grande de sangue começando a encharcar a terra cheia de cascalho. O local parecia bagunçado, com manchas mais escuras de terra na superfície branca. Como se tivesse havido uma luta ali. Duas marcas, com cerca de 80 centímetros de distância uma da outra, seguiam para longe do local.

 

Beverly parou, ofegante. Olhou para o braço e ficou aliviada ao ver que o jorro de sangue estava finalmente diminuindo, embora o antebraço e a palma da mão estivessem sujos e grudentos. A dor estava começando agora, um latejar leve e regular. A sensação era parecida com a que ela sentia na boca depois de ir ao dentista, quando o efeito da xilocaína começava a passar.

 

Ela olhou para trás de novo, não viu nada e voltou a olhar para as marcas que seguiam para longe dos carros velhos, para longe do lixão, na direção do Barrens.

 

Aquelas coisas estavam na geladeira. Foram pra cima dele... claro que foram, tem muito sangue. Ele chegou até aqui e

 

(oi e tchau)

 

aconteceu alguma coisa. O quê?

 

Ela teve a infelicidade de achar que sabia. As sanguessugas eram parte da Coisa, e levaram Patrick até outra parte da Coisa da mesma forma que um novilho enlouquecido pelo pânico é levado até o abatedouro.

 

Sai daqui! Sai, Bevvie!

 

Mas ela acabou seguindo as marcas na terra, com o estilingue bem firme nas mãos suadas.

 

Pelo menos chame os outros!

 

Vou chamar... daqui a pouco.

 

Ela continuou a andar, seguindo as marcas conforme o terreno se inclinava e ficava mais macio. Seguiu-as até a vegetação densa. Em algum lugar, uma cigarra cantou alto e voltou ao silêncio. Mosquitos pousaram no braço manchado de sangue. Ela balançou a mão para afastá-los. Seus dentes estavam apertando o lábio inferior.

 

Havia alguma coisa no chão à frente. Ela pegou e olhou. Era uma carteira feita à mão, o tipo de coisa que uma criança poderia fazer em um projeto de artesanato na Casa Comunitária. Só que ficou óbvio para Bev que a criança que fez aquilo não era muito boa artesã; a costura larga de plástico já estava se soltando e o compartimento de notas ficava aberto como uma boca frouxa. Ela encontrou uma moeda de 25 centavos no compartimento de moedas. A única outra coisa na carteira era um cartão de biblioteca com o nome de Patrick Hockstetter. Ela jogou a carteira de lado, com o cartão da biblioteca e tudo. Limpou os dedos no short.

 

Quinze metros depois, encontrou um tênis. A vegetação rasteira agora era densa demais para ela conseguir seguir as marcas na terra, mas não era preciso ser o Pathfinder para acompanhar as manchas e gotas de sangue nas plantas.

 

A trilha seguia por um matagal íngreme. Bev perdeu o equilíbrio uma vez, escorregou e foi ferida pelos espinhos. Linhas de sangue surgiram na coxa dela. Ela estava respirando rápido agora, com o cabelo suado grudado na cabeça. As manchas de sangue levavam a um dos caminhos pelo Barrens. O Kenduskeag estava perto.

 

O outro tênis de Patrick, com cadarços sujos de sangue, estava abandonado no caminho.

 

Ela se aproximou do rio com o estilingue Bullseye meio abaixado. As marcas na terra tinham reaparecido. Estavam mais rasas agora. Isso é porque ele perdeu o tênis, pensou ela.

 

Ela chegou a uma curva final e encontrou o rio. As marcas iam até a margem e levavam a um dos cilindros de concreto, uma das estações de bombeamento. Ali, sumiam. A cobertura de ferro no topo do cilindro estava entreaberta.

 

Quando ela ficou de pé acima e olhou para baixo, uma risada densa e monstruosa surgiu de lá.

 

Foi demais. O pânico que ameaçara antes agora surgiu. Beverly se virou e saiu correndo para a clareira e para a sede do clube, com o braço esquerdo sujo de sangue erguido para proteger o rosto dos galhos que batiam nela.

 

Às vezes, eu também me preocupo, papai, pensou ela loucamente. Às vezes, eu me preocupo MUITO.

 

Quatro horas depois, todos os Otários exceto Eddie estavam agachados nos arbustos perto do ponto em que Beverly ficou escondida vendo Patrick Hockstetter ir até a geladeira e abri-la. O céu estava escuro com nuvens pretas, e o cheiro de chuva estava no ar de novo. Bill estava segurando a ponta de um fio longo de varal nas mãos. Os seis juntaram o dinheiro que tinham e compraram o varal e um kit de primeiros socorros Johnson para Beverly. Bill colocou com cuidado uma gaze sobre o buraco sangrento no braço dela.

 

— D-Diz pros seus pa-pais que v-você se a-arranhou quando estava pa-a-tinando — disse Bill.

 

— Meus patins! — gritou Beverly, consternada. Ela os tinha esquecido completamente.

 

— Ali — disse Ben, e apontou. Eles estavam caídos não muito longe, e ela foi pegá-los antes que Ben ou Bill ou qualquer outro deles pudesse se oferecer. Ela lembrou agora que os colocou de lado quando foi urinar. Não queria nenhum dos outros ali.

 

O próprio Bill tinha amarrado uma ponta do varal na maçaneta da geladeira Amana, embora todos tivessem se aproximado juntos, prontos para sair correndo ao primeiro sinal de movimento. Bev ofereceu de devolver o estilingue para Bill; ele insistiu para que ela ficasse com ele. No fim das contas, nada se moveu. Embora a área no caminho em frente à geladeira estivesse manchada de sangue, os parasitas tinham sumido. Talvez tivessem saído voando.

 

— A gente podia trazer o chefe Borton e o sr. Nell e cem outros policiais aqui, mas não faria diferença — disse Stan com amargura.

 

— Não. Eles não veriam nada — concordou Richie. — Como está seu braço, Bev?

 

— Doendo. — Ela fez uma pausa e olhou de Bill para Richie e para Bill de novo. — Será que minha mãe e meu pai veriam o buraco que aquela coisa fez no meu braço?

 

— A-A-Acho que n-n-não — disse Bill. — S-Se p-preparem pra co-co-correr. Vou a-amarrar.

 

Ele passou a ponta da corda de varal pela maçaneta cromada e coberta de ferrugem da geladeira, trabalhando com a cautela de um homem desmontando uma bomba. Ele fez um nó torto e deu um passo para trás, desenrolando a corda.

 

Bill deu um pequeno sorriso para os outros quando estava a uma certa distância.

 

— Ufa — disse ele. — Ainda bem que essa p-parte p-passou.

 

Agora, a uma distância segura (esperavam eles) da geladeira, Bill falou novamente para eles se prepararem para correr. Um trovão ribombou diretamente acima, e todos pularam. As primeiras gotas hesitantes começaram a cair.

 

Bill puxou a corda com o máximo de força que conseguiu. Seu nó torto se soltou da maçaneta, mas não sem abrir a porta da geladeira de novo. Uma avalanche de pompons laranja caiu para fora, e Stan Uris deu um gemido doloroso. Os outros só ficaram olhando boquiabertos.

 

A chuva começou a cair mais forte. Trovões estalavam acima deles, fazendo-os se encolherem, e relâmpagos roxo-azulados brilharam quando a porta se abriu toda. Richie viu primeiro e gritou, um som agudo e ferido. Bill deu uma espécie de grito de raiva e medo. Os outros ficaram em silêncio.

 

Escritas na parte de dentro da geladeira, com sangue secando, havia as seguintes palavras:

 

Granizo misturado com a chuva forte. A porta da geladeira balançou de um lado para o outro no vento crescente, e as letras pintadas ali começaram a pingar e escorrer agora, adquirindo a aparência ameaçadora de um pôster de filme de terror.

 

Bev não tinha percebido que Bill se levantou até vê-lo avançando pelo caminho na direção da geladeira. Ele estava balançando os dois punhos. Água escorria pelo rosto dele e grudou sua camisa às costas.

 

— N-Nós vamos ma-matar você! — gritou Bill.

 

Um trovão estalou. O relâmpago brilhou com tanta força que ela conseguiu sentir o cheiro dele, e, não muito longe, houve um barulho de coisa rachando e explodindo na hora em que a árvore caiu.

 

— Bill, volta! — gritou Richie. — Volta, cara! — Ele começou a se levantar, e Ben o puxou de volta.

 

— Você matou meu irmão George! Seu filho da puta! Seu maldito! Seu gigolô! Aparece agora! Aparece agora!

 

O granizo caiu com força e os feriu mesmo no meio dos arbustos. Beverly levantou o braço para proteger o rosto. Ela conseguia ver marcas vermelhas nas bochechas molhadas de Ben.

 

— Bill, volta! — gritou ela com desespero, e outro trovão encobriu a voz dela; ele estourou no Barrens abaixo das nuvens pretas.

 

— Quero ver você sair agora, seu merda!

 

Bill chutou como louco a pilha de pompons que tinha caído da geladeira. Ele se virou e começou a andar na direção deles, com a cabeça baixa. Parecia não sentir o granizo, apesar de as pedrinhas agora cobrirem o chão como neve.

 

Ele entrou no meio dos arbustos, e Stan teve que segurar o braço dele para impedir que entrasse nos que tinham espinhos. Estava chorando.

 

— Está tudo bem, Bill — disse Ben, passando um braço desajeitado ao redor dele.

 

— É — disse Richie. — Não se preocupe. Não vamos pular fora. — Ele olhou ao redor, com olhos enlouquecidos no rosto molhado. —Tem alguém aqui que vai pular fora?

 

Eles balançaram as cabeças.

 

Bill levantou o rosto e secou os olhos. Estavam todos encharcados e pareciam uma ninhada de filhotes de cachorro que acabou de atravessar um rio.

 

— E-Ela e-está com me-me-medo de n-n-nós, sabe — disse ele. — Consigo se-sentir. Juro por D-Deus que co-co-consigo.

 

Bev assentiu sobriamente.

 

— Acho que você está certo.

 

— M-M-Me a-a-ajudem — disse Bill. — P-P-Po-Por favor. M-M-Me ajudem.

 

— Nós vamos ajudar — disse Beverly. Ela tomou Bill nos braços. Não tinha percebido o quanto seus braços o envolviam facilmente, o quanto ele era magro. Ela conseguia sentir o coração dele disparado debaixo da camisa; conseguia senti-lo perto do dela. Ela pensou que nenhum toque parecera tão doce e tão forte.

 

Richie colocou os braços ao redor dos dois e apoiou a cabeça no ombro de Beverly. Ben fez o mesmo do outro lado. Stan Uris colocou os braços ao redor de Richie e Ben. Mike hesitou, mas passou um braço pela cintura de Beverly e a outra pelos ombros trêmulos de Bill. Eles ficaram assim, abraçados, e o granizo voltou a ser só chuva, chuva tão pesada que parecia quase uma nova atmosfera. O relâmpago andava e o trovão falava. Ninguém disse nada. Os olhos de Beverly estavam bem fechados. Eles ficaram na chuva em grupo, abraçando-se, ouvindo a água bater nos arbustos. Era daquilo que ela se lembrava melhor: do som da chuva e do silêncio compartilhado e de uma tristeza leve por Eddie não estar ali com eles. Ela se lembrava dessas coisas.

 

Ela se lembrava de se sentir muito jovem e muito forte.

 

O estilingue

 

— Tudo bem, Monte de Feno — diz Richie. — Sua vez. A ruiva fumou todos os cigarros dela e quase todos os meus. Está ficando tarde.

 

Ben olha para o relógio. Sim, está tarde; quase meia-noite. Só dá tempo pra mais uma história, pensa ele. Mais uma história antes da meia-noite. Só pra nos manter aquecidos. Qual deveria ser? Mas isso, claro, não passa de piada, e não muito boa; só falta uma história, pelo menos que ele lembre, e é a história das bolinhas de prata: como foram feitas na oficina de Zack Denbrough na noite de 23 de julho e como foram usadas no dia 25.

 

— Tenho minhas próprias cicatrizes — diz ele. — Vocês lembram?

 

Beverly e Eddie balançam a cabeça; Bill e Richie assentem. Mike fica em silêncio, com olhos alertas no rosto cansado.

 

Ben fica de pé, desabotoa a camisa que está usando e abre. Há uma cicatriz antiga com o formato da letra H. As linhas estão rompidas, pois a barriga era bem maior quando a cicatriz foi feita, mas a forma ainda está identificável.

 

A cicatriz grande que desce da barra horizontal do H é bem mais clara. Parece uma corda retorcida da qual o nó foi cortado.

 

Beverly leva as mãos até a boca.

 

— O lobisomem! Naquela casa! Ah, meu Deus! — E ela se vira para a janela, como se para vê-lo observando da escuridão.

 

— Isso mesmo — diz Ben. — E quer saber de uma coisa engraçada? Essa cicatriz não estava aí duas noites atrás. O velho cartão de visitas de Henry estava; eu sei porque mostrei pra um amigo meu, um barman chamado Ricky Lee lá de Hemingford Home. Mas esta... — Ele ri sem achar muita graça e começa a abotoar a camisa de novo. — Esta acabou de voltar.

 

— Como as das nossas mãos.

 

— É — diz Mike quando Ben está abotoando a camisa. — O lobisomem. Todos vimos a Coisa como lobisomem naquela vez.

 

— Porque foi assim que R-R-Richie viu a Co-Coisa antes — murmura Bill. — É por isso, não é?

 

— É — diz Mike.

 

— Estávamos próximos, não estávamos? — diz Beverly. — O bastante pra ler as mentes uns dos outros.

 

— O velho peludão quase arrancou as tripas da gente, Ben — diz Richie, e não está sorrindo ao falar. Ele empurra os óculos remendados nariz acima e, por trás deles, seu rosto está branco, cansado e fantasmagórico.

 

— Bill salvou sua pele — diz Eddie de repente. — Quero dizer, Bev salvou todos nós, mas se não fosse você, Bill...

 

— É — concorda Ben. — Foi você, Big Bill. Eu estava, tipo, completamente doido.

 

Bill aponta rapidamente para a cadeira vazia.

 

— Tive um pouco de ajuda de Stan Uris. E ele pagou por isso. Talvez tenha morrido por isso.

 

Ben Hanscom está balançando a cabeça.

 

— Não diga isso, Bill.

 

— Mas é v-verdade. E se é s-sua cu-culpa, é minha culpa também, e de t-t-todo mundo aqui, porque fomos em frente. Mesmo depois de Patrick e do que estava escrito na geladeira, fomos em frente. Seria minha culpa m-mais do que de todos, eu acho, porque eu q-q-queria que a gente fosse em frente. Por causa do Gi-George. Talvez até porque eu pensava que, se eu matasse o que tinha m-matado George, meus p-pais teriam que a-a-a...

 

— Amar você de novo? — pergunta Beverly delicadamente.

 

— É. É claro. Mas n-n-não acho que tenha sido cu-culpa de n-ninguém, Ben. Era a estrutura de Stan.

 

— Ele não conseguia encarar — diz Eddie. Ele está pensando na revelação do sr. Keene sobre o remédio de asma, e como ele não conseguiu abrir mão do uso mesmo assim. Está pensando que poderia ter conseguido abrir mão do hábito de ficar doente; era o hábito de acreditar que ele não tinha sido capaz de deixar para trás. No fim das contas, talvez o hábito tenha salvado sua vida.

 

— Ele foi ótimo naquele dia — diz Ben. — Stan e seus pássaros.

 

Uma risada surge entre eles, e eles olham para a cadeira onde Stan estaria em um mundo correto e são em que os mocinhos sempre venciam. Sinto falta dele, pensa Ben. Meu Deus, como sinto falta dele! Ele diz:

 

— Se lembra daquele dia, Richie, quando você falou pra ele que tinha ouvido dizer que ele tinha matado Cristo, e Stan diz, impassível: “Acho que foi meu pai”?

 

— Lembro — diz Richie com a voz quase baixa demais para ser ouvida. Ele puxa o lenço do bolso de trás, tira os óculos, seca os olhos e recoloca os óculos. Guarda o lenço e, sem erguer o olhar das mãos, diz: — Por que você não conta logo, Ben?

 

— Dói, né?

 

— É — diz Richie. Sua voz está tão rouca que é difícil entendê-lo. — Sim, claro. Dói.

 

Ben olha ao redor e assente.

 

— Tudo bem, então. Mais uma história antes da meia-noite. Só pra nos manter aquecidos. Bill e Richie tiveram a ideia das balas...

 

— Não — refuta Richie. — Bill pensou primeiro, e também ficou nervoso primeiro.

 

— Comecei a ter me-medo...

 

— Acho que não importa — diz Ben. — Nós três passamos bastante tempo na biblioteca naquele mês de julho. Estávamos tentando descobrir como fazer balas de prata. Eu tinha a prata: quatro dólares de prata que tinham sido do meu pai. Mas Bill ficou nervoso, pensando no que poderia acontecer se o tiro não desse certo com um tipo de monstro partindo pra cima do pescoço da gente. E quando vimos como Beverly era boa com aquele estilingue dele, acabamos usando um dos meus dólares de prata pra fazer bolinhas. Pegamos todo o material e fomos pra casa de Bill. Eddie, você estava lá...

 

— Falei pra minha mãe que a gente ia jogar Banco Imobiliário — diz Eddie. — Meu braço estava doendo muito, mas tive que ir andando. Ela estava muito furiosa comigo. E todas as vezes que eu ouvia alguém atrás de mim na calçada, eu me virava achando que era Bowers. Não ajudou com a dor.

 

Bill sorri.

 

— E o que fizemos foi ficar olhando Ben fazer a munição. Acho que Ben podia m-mesmo ter feito balas de p-prata.

 

— Ah, não tenho tanta certeza — diz Ben, embora tenha. Ele lembra que a noite tinha começado a cair lá fora (o sr. Denbrough havia prometido levar todos para casa de carro), do som dos grilos na grama, dos primeiros vaga-lumes piscando do lado de fora das janelas. Bill tinha montado o tabuleiro de Banco Imobiliário na sala de jantar e arrumou de forma que parecesse que o jogo já estava acontecendo havia mais de uma hora.

 

Ele se lembra disso e do círculo de luz amarela caindo sobre a bancada de trabalho de Zack. Ele se lembra de Bill dizendo:

 

— Temos que tomar c-c

 

— ... cuidado. Não quero deixar uma b-b-bagunça. Meu pai vai ficar... — ele cuspiu um monte de Ps e acabou conseguindo dizer: — ... puto.

 

Richie fez um gesto exagerado de secar a bochecha.

 

— Você oferece toalhas junto com esses banhos, Bill Gago?

 

Bill fingiu que ia bater nele. Richie se encolheu e gritou com a Voz do Garoto Negro.

 

Ben não prestou atenção neles. Viu Bill arrumar os utensílios e ferramentas um a um sob a luz. Parte de sua mente desejava um dia ter uma bancada de trabalho legal assim. Mas a maior parte de seus pensamentos estava voltada para o trabalho à frente. Não seria tão difícil quanto fazer balas de prata, mas ele seria cuidadoso mesmo assim. Não havia desculpa para fazer um trabalho descuidado. Não era uma coisa que alguém lhe havia ensinado ou explicado; ele apenas sabia.

 

Bill tinha insistido que Ben fizesse as bolinhas, assim como continuava a insistir que Beverly deveria ficar com o estilingue. Essas coisas podiam ter sido e foram discutidas, mas só 27 anos depois, ao contar a história, Ben percebeu que ninguém nem sugeriu que uma bala de prata ou uma bilha poderia não parar um monstro. Eles tinham o peso do que pareciam ser mil filmes de terror em mente.

 

— Tudo bem — disse Ben. Ele estalou os dedos e olhou para Bill. — Está com os moldes?

 

— Ah! — Bill teve um pequeno sobressalto. — A-A-Aqui. — Ele enfiou a mão no bolso da calça e pegou o lenço. Colocou-o na bancada e desdobrou. Havia duas bolas de metal dentro, cada uma com um pequeno buraco. Eram moldes de bilhas.

 

Depois de decidir por bolinhas em vez de balas, Bill e Richie voltaram na biblioteca e pesquisaram como fazer bilhas.

 

— Vocês andam tão concentrados — dissera a sra. Starrett. — Em uma semana, balas, e bilhas na outra! E estão em férias de verão!

 

— Gostamos de manter a mente afiada — disse Richie. — Né, Bill?

 

— É-É.

 

Acabou que fazer bilhas era tranquilo se você tinha moldes. A única questão era onde conseguir. Algumas perguntas discretas a Zack Denbrough cuidaram da questão... e nenhum dos Otários ficou surpreso de descobrir que a única loja de Derry onde moldes assim poderiam ser comprados era a Kitchener Precision Tool & Die. O Kitchener que era dono da loja e cuidava dela era tatara-sobrinho dos irmãos que foram donos da Siderúrgica Kitchener.

 

Bill e Richie foram juntos com todo o dinheiro que os Otários conseguiram juntar em tão pouco tempo, dez dólares e 59 centavos, no bolso de Bill. Quando Bill perguntou quanto dois moldes de bilhas de duas polegadas custariam, Carl Kitchener, que parecia um veterano bêbado e fedia como um cobertor velho de cavalo, perguntou o que dois garotos queriam com moldes de bilhas. Richie deixou Bill falar por saber que as coisas seriam mais fáceis assim. As crianças debochavam da gagueira de Bill, mas os adultos ficavam constrangidos. Às vezes, isso ajudava de uma maneira surpreendente.

 

Bill chegou na metade da explicação que ele e Richie tinham elaborado no caminho, uma coisa sobre um modelo de moinho para o projeto de ciências do ano seguinte, quando Kitchener acenou para que ele parasse de falar e citou o inacreditável preço de cinquenta centavos cada molde.

 

Quase sem conseguir acreditar na sorte deles, Bill entregou uma única nota de dólar.

 

— Não espere que eu dê um saco pra vocês — disse Carl Kitchener, olhando para eles com o desprezo de um homem que acredita já ter visto tudo que há no mundo, e quase tudo duas vezes. — Só coloco em um saco se vocês gastarem pelo menos 5 pratas.

 

— Tudo b-b-bem, s-senhor — disse Bill.

 

— E não fiquem aí na frente — disse Kitchener. — Vocês dois precisam cortar o cabelo.

 

Do lado de fora, Bill disse:

 

— J-Já r-reparou, R-Richie, que os a-a-adultos n-não vendem n-n-nada exceto d-doces e r-r-revistinhas e talvez e-e-entrada de cinema sem q-querer saber p-primeiro pra que v-v-você q-quer?

 

— Claro — disse Richie.

 

— P-Por quê? Por que e-eles fazem isso?

 

— Porque acham que somos perigosos.

 

— É? V-Você a-acha?

 

— Acho — disse Richie, e riu. — Vamos ficar aqui na frente, que tal? A gente pode levantar as golas das camisas e olhar com desprezo pras pessoas enquanto deixa o cabelo crescer.

 

— Vá se foder — disse Bill.

 

— Certo — disse Ben, olhando para os moldes com atenção e colocando-os sobre a bancada. — Ótimo. Agora...

 

Eles abriram mais espaço e olharam para ele com esperança, da mesma forma como um homem que não entende nada de carro e tem problemas no motor olha para o mecânico. Ben não reparou nas expressões deles. Estava concentrado no trabalho.

 

— Me dá aquele morteiro — disse ele — e o maçarico.

 

Bill entregou os restos de um morteiro para ele. Era uma lembrança de guerra. Zack o pegou cinco dias depois que ele e o resto do exército do general Patton atravessaram o rio e entraram na Alemanha. Houve uma época, quando Bill era muito pequeno e George ainda usava fralda, em que o pai usara como cinzeiro. Mais tarde, ele parou de fumar, e a casca de morteiro desapareceu. Bill a encontrou nos fundos da garagem uma semana antes.

 

Ben colocou a casca de morteiro no torno de Zack, firmou e pegou o maçarico da mão de Beverly. Enfiou a mão no bolso, pegou um dólar de prata e colocou no cadinho improvisado, o que gerou um som oco.

 

— Seu pai te deu isso, é? — perguntou Beverly.

 

— Foi — disse Ben —, mas não me lembro muito bem dele.

 

— Tem certeza de que quer fazer isso?

 

Ele olhou para ela e sorriu.

 

— Tenho — disse ele.

 

Ela sorriu em resposta. Foi o bastante para Ben. Se ela tivesse sorrido para ele duas vezes, ele faria com alegria bilhas de prata suficientes para atirar em um pelotão de lobisomens. Ele afastou o olhar rapidamente.

 

— Certo. Aqui vamos nós. Tá tranquilo. É moleza, né?

 

Eles assentiram com hesitação.

 

Anos depois, ao recontar tudo isso, Ben pensaria: Atualmente, uma criança pode simplesmente sair e comprar um maçarico de propano... ou o pai dela pode ter um na oficina.

 

Não havia coisas assim em 1958; no entanto, Zack Denbrough tinha um a gasolina, o que deixava Beverly nervosa. Ben conseguia ver que ela estava nervosa, queria dizer para não se preocupar, mas estava com medo de sua voz tremer.

 

— Não se preocupe — disse ele para Stan, que estava de pé ao lado dela.

 

— Hã? — disse Stan, olhando para ele sem entender.

 

— Não se preocupe.

 

— Não estou preocupado.

 

— Ah. Pensei que estivesse. E só queria que você soubesse que isso é seguro. Se você estivesse. Preocupado, é isso que quero dizer.

 

— Você está bem, Ben?

 

— Estou ótimo — murmurou Ben. — Me dá os fósforos, Richie.

 

Richie entregou uma carteira de fósforos a ele. Ben girou a válvula no tanque e acendeu um fósforo sob a boca do maçarico. Houve um flump! e um brilho azul e laranja. Ben deixou a chama mais azulada e começou a aquecer a base da casca de morteiro.

 

— Está com o funil? — perguntou ele a Bill.

 

— B-B-Bem aqui. — Bill entregou um funil caseiro que Ben tinha feito mais cedo. O buraquinho na base encaixava no buraco dos moldes de bilhas quase perfeitamente. Ben fez isso sem uma única medição. Bill ficou impressionado, quase atônito, mas não sabia como dizer isso sem constranger Ben.

 

Absorto no que estava fazendo, Ben conseguiu falar com Beverly. Ele falou com a precisão seca de um cirurgião se dirigindo a uma enfermeira.

 

— Bev, você tem as mãos mais firmes. Coloque o funil naquele buraco. Use uma luva pra não se queimar.

 

Bill entregou a ela uma das luvas de trabalho do pai. Beverly colocou o pequeno funil no molde. Ninguém falou. O sibilar da chama do maçarico parecia muito alto. Eles ficaram observando com olhos apertados, quase fechados.

 

— E-E-Espera — disse Bill de repente, e correu até a casa. Voltou um minuto depois com um par de óculos de sol Turtle barato que estava na gaveta da cozinha havia mais de um ano. — É m-melhor c-colocar isso, M-M-Monte de F-Feno.

 

Ben pegou os óculos, sorriu e colocou no rosto.

 

— Merda, é Fabian! — disse Richie. — Ou Frankie Avalon, ou um daqueles carcamanos do Bandstand.

 

— Vai se foder, Boca de Lixo — disse Ben, mas começou a rir apesar de não querer. A ideia de ele ser Fabian ou alguém assim era louca demais. A chama tremeu, e ele parou de rir. Ben voltou a se concentrar no trabalho.

 

Dois minutos depois, ele entregou o maçarico a Eddie, que o segurou com cuidado com a mão boa.

 

— Está pronto — disse ele para Bill. — Me dá aquela outra luva! Rápido! Rápido!

 

Bill deu a luva a ele. Ben colocou-a e segurou a casca de morteiro com a mão enluvada enquanto virava a alavanca do torno com a outra.

 

— Segure firme, Bev.

 

— Estou pronta, não precisa me esperar — respondeu ela.

 

Ben inclinou a casca sobre o funil. Os outros observaram um filete de prata correr entre os dois receptáculos. Ben despejou com precisão; nem uma gota foi derramada. E, por um momento, ele se sentiu energizado. Ele parecia ver tudo aumentado por um brilho branco forte. Por aquele momento, não se sentiu o Ben Hanscom gordo e comum, que usava moletons para disfarçar a barriga e os peitinhos; ele se sentiu como Thor, controlando o trovão e o relâmpago na forja dos deuses.

 

E então, o sentimento sumiu.

 

— Tudo bem — disse ele. — Vou ter que reaquecer a prata. Alguém enfia um prego ou alguma coisa assim na boca do funil pra gosma não endurecer ali.

 

Stan fez o que Ben mandou.

 

Ben prendeu a casca de morteiro no torno de novo e pegou o maçarico da mão de Eddie.

 

— Certo — disse ele —, número dois.

 

E voltou ao trabalho.

 

Dez minutos depois, estava pronto.

 

— E agora? — perguntou Mike.

 

— Agora jogamos Banco Imobiliário por uma hora — disse Ben — enquanto elas endurecem dentro dos moldes. Depois, vou abrir com um cinzel nas linhas de corte, e está pronto.

 

Richie olhou com desconforto para o mostrador rachado do Timex, que já tinha sido muito maltratado e continuava batendo.

 

— Quando seus pais voltam, Bill?

 

— S-S-Só depois das d-dez ou dez e m-m-meia — disse Bill. — É s-s-s-sessão dupla no A-A-A...

 

— Aladdin — disse Stan.

 

— É. E eles vão comer p-pizza depois. Quase s-sempre c-comem.

 

— Então temos bastante tempo — disse Ben.

 

Bill assentiu.

 

— Então vamos entrar — disse Beverly. — Quero ligar pra casa. Prometi que ia ligar. E vocês fiquem todos quietos. Ele acha que estou na Casa Comunitária e que vou pegar carona pra casa.

 

— E se ele quiser ir buscar você mais cedo? — perguntou Mike.

 

— Então — disse Beverly —, vou estar com um problemão.

 

Ben pensou: Eu protegeria você, Beverly. Em sua mente, um sonho instantâneo surgiu, com um final tão doce que o fez tremer. O pai de Bev tinha começado a maltratá-la, a gritar com ela e tudo (mesmo em fantasia, ele não imaginava o quanto Al Marsh podia ser cruel). Ben se jogava na frente dela e mandava Marsh pegar leve.

 

Se você quer problema, moleque gordo, continue a proteger minha filha.

 

Hanscom, que normalmente era do tipo tranquilo e reservado, pode virar um tigre louco quando irritado. Ele fala com Al Marsh com muita sinceridade. Se você quer pegar ela, vai ter que me pegar primeiro.

 

Marsh dá um passo... mas o brilho de aço nos olhos de Ben o faz parar.

 

Você vai lamentar, murmura ele, mas está claro que não quer mais brigar. Ele é só um tigre de papel, no fim das contas.

 

Duvido disso, diz Hanscom com um sorriso de Gary Cooper, e o pai de Beverly vai embora.

 

O que aconteceu com você, Ben?, grita Bev, mas os olhos dela estão brilhando e parecem estrelados. Você parecia pronto pra matar ele!

 

Matar ele?, diz Hanscom, com o sorriso de Gary Cooper ainda nos lábios. De jeito nenhum, gata. Ele pode ser cruel, mas ainda é seu pai. Posso ter sido durão com ele, mas só porque fico furioso quando alguém fala assim com você. Entende?

 

Ela joga os braços ao redor do pescoço dele e o beija (nos lábios! nos LÁBIOS!). Eu te amo, Ben!, diz ela, soluçando. Ele consegue sentir os pequenos seios contra o peito e...

 

Ele tremeu um pouco e afastou com esforço a imagem intensa e terrivelmente clara da mente. Richie estava de pé na porta, perguntando se ele ia junto, e Ben se deu conta de que estava sozinho na oficina.

 

— Vou — disse ele, com um pequeno sobressalto. — Claro que vou.

 

— Você está ficando gagá, Monte de Feno — disse Richie quando Ben passou pela porta, mas bateu no ombro dele. Ben sorriu e passou o braço pelo pescoço de Richie.

 

Não houve problema com o pai de Beverly. Ele tinha chegado tarde do trabalho, disse a mãe ao telefone, adormeceu em frente à TV e acordou por tempo suficiente apenas para ir até a cama.

 

— Você tem carona pra casa, Bevvie?

 

— Tenho. O pai de Bill Denbrough vai levar um bando de crianças pra casa.

 

A sra. Marsh pareceu alarmada de repente.

 

— Você não foi pra um encontro, foi, Bevvie?

 

— Não, claro que não — disse Bev, olhando pela passagem em arco entre o saguão escuro em que estava e a sala de jantar, onde os outros estavam sentados ao redor do tabuleiro de Banco Imobiliário. Mas bem que queria estar. — Garotos, eca. Mas tem uma lista de nomes aqui, e cada noite um pai ou mãe diferente leva crianças pra casa. — Isso pelo menos era verdade. O resto era uma mentira tão descarada que ela conseguia se sentir ficando vermelha no escuro.

 

— Tudo bem — disse sua mãe. — Eu só queria ter certeza. Porque se seu pai te pegasse saindo pra namorar na sua idade, ficaria furioso. — Quase como um pensamento adicional, ela acrescentou: — Eu também.

 

— É, eu sei — disse Bev, ainda olhando para a sala de jantar. Ela sabia; mas aqui estava ela, não com um garoto, mas com seis, em uma casa sem a presença dos pais. Ela viu Ben olhando para ela com ansiedade e fez uma pequena saudação com um sorriso. Ele corou, mas retribuiu a saudação.

 

— Tem alguma das suas amigas aí?

 

Que amigas, mãe?

 

— Hum, Patty O’Hara está aqui. E Ellie Geiger, eu acho. Está jogando lá embaixo.

 

A facilidade com a qual as mentiras chegavam aos seus lábios a deixou com vergonha. Ela queria estar falando com o pai; estaria com mais medo, mas menos vergonha. Ela supunha que realmente não era uma boa menina.

 

— Eu te amo, mãe — disse ela.

 

— Eu sinto o mesmo por você, Bev. — A mãe fez uma pausa breve e acrescentou: — Tome cuidado. O jornal diz que pode ter acontecido outro. Um garoto chamado Patrick Hockstetter. Ele sumiu. Você o conhecia, Bevvie?

 

Ela fechou os olhos brevemente.

 

— Não, mãe.

 

— Bem... tchau, então.

 

— Tchau.

 

Ela se juntou aos outros à mesa e, durante uma hora, eles jogaram Banco Imobiliário. Stan foi o grande vencedor.

 

— Judeus são bons em ganhar dinheiro — disse Stan enquanto colocava um hotel na avenida Atlântica e mais duas casas vermelhas na avenida Paulista. — Todo mundo sabe disso.

 

— Jesus, me faça virar judeu — disse Ben imediatamente, e todo mundo riu. Ben estava quase falido.

 

Beverly olhava por cima da mesa de tempos em tempos para Bill, reparando nas mãos limpas, nos olhos azuis, no cabelo ruivo e fino. Quando ele estava movendo o sapatinho prateado que estava usando como pino no tabuleiro, ela pensou: Se ele segurasse minha mão, acho que eu ficaria tão feliz que morreria. Uma luz calorosa pareceu brilhar no peito dela, e ela sorriu secretamente, olhando para as mãos.

 

O final da noite foi quase frustrante. Ben pegou um dos cinzéis de Zack na prateleira e usou um martelo para bater nas linhas dos moldes. Eles se abriram facilmente. Duas bilhas de prata caíram de dentro. Em uma, eles conseguiam ver de leve a parte de uma data: 925. Na outra, as linhas onduladas que Beverly pensou serem os resquícios do cabelo de Lady Liberdade. Eles olharam sem falar por um momento, e Stan pegou uma na mão.

 

— Bem pequena — disse ele.

 

— A pedra no estilingue de Davi também era quando ele lutou com Golias — disse Mike. — Me parecem bem poderosas.

 

Ben se viu assentindo. Ele achava o mesmo.

 

— Está tudo p-p-pronto? — perguntou Bill.

 

— Pronto — disse Ben. — Aqui. — Ele jogou a segunda bilha para Bill, que ficou tão surpreso que quase deixou cair.

 

As bilhas foram passadas de um a um. Cada criança olhou com atenção para as duas, maravilhadas com a forma, o peso, a realidade delas. Quando voltaram para a mão de Ben, ele as segurou e olhou para Bill.

 

— O que fazemos com elas agora?

 

— D-D-Dá pra B-Beverly.

 

— Não!

 

Ele olhou para ela. Seu rosto estava bem gentil, mas severo.

 

— B-B-Bev, já falamos d-disso, já de-decidimos, e...

 

— Eu vou fazer — disse ela. —Vou disparar as porcarias quando chegar a hora. Se chegar. Vou acabar fazendo com que a gente seja morto, mas vou fazer. Mas não quero levar pra casa. Um dos meus

 

(pai)

 

pais pode acabar encontrando. Aí, eu estaria encrencada.

 

— Você não tem um esconderijo? — perguntou Richie. — Eita, eu tenho quatro ou cinco.

 

— Eu tenho — disse Beverly. Havia um pequeno corte na base da cama box onde ela às vezes guardava cigarros, revistinhas e, ultimamente, revistas de cinema e moda. — Mas nenhum em que eu confiaria pra uma coisa assim. Fica com elas, Bill. Até chegar a hora, pelo menos, você fica com elas.

 

— Tudo bem — disse Bill, e, naquele momento, as luzes dos faróis iluminaram a entrada da garagem. — Ai, meu D-Deus, ele ch-ch-chegaram cedo. V-Vamos sair d-daqui.

 

Eles estavam se sentando ao redor do tabuleiro de Banco Imobiliário quando Sharon Denbrough abriu a porta da cozinha.

 

Richie revirou os olhos e fingiu limpar suor da testa. Os outros riram com vontade. Richie tinha Mandado Bem.

 

Um momento depois, ela entrou.

 

— Seu pai está esperando seus amigos no carro, Bill.

 

— T-T-Tudo bem, m-mãe — disse Bill. — A g-gente estava me-esmo t-terminando.

 

— Quem ganhou? — perguntou Sharon, sorrindo com olhos cintilantes para os amiguinhos de Bill. A garota ficaria muito bonita, pensou ela. Ela achava que, em um ano ou dois, as crianças precisariam de adultos tomando conta se houvesse garotas junto, e não só um grupo de garotos. Mas sem dúvida era cedo demais para se preocupar com a careta feia do sexo.

 

— S-Stan ga-ga-ganhou — disse Bill. — J-J-Judeus são muito b-bons em g-ganhar dinheiro.

 

— Bill! — gritou ela, horrorizada e ficando vermelha... e então, olhou para eles espantada, quando eles caíram na gargalhada, inclusive Stan. O espanto virou uma outra coisa que parecia medo (embora ela não tenha dito nada disso para o marido mais tarde, na cama). Havia um sentimento no ar, como eletricidade estática, só que bem mais poderosa, bem mais assustadora. Ela sentiu que, se tocasse em qualquer um deles, levaria um tremendo choque. O que aconteceu com eles?, pensou ela, consternada, e talvez tenha até aberto a boca para dizer alguma coisa assim. Mas logo Bill estava pedindo desculpas (mas ainda com aquele brilho diabólico nos olhos), e Stan estava dizendo que tudo bem, era só uma piada que faziam com ele de tempos em tempos, e ela se viu confusa demais para dizer qualquer coisa.

 

Mas se sentiu aliviada quando as crianças foram embora e seu filho gago e intrigante foi para o quarto e apagou a luz.

 

O dia em que o Clube dos Otários finalmente travou combate cara a cara com a Coisa, o dia em que a Coisa quase arrancou as tripas de Ben Hanscom, foi o dia 25 de julho de 1958. Estava quente, úmido e sem brisa. Ben se lembrava do tempo bem claramente; foi o último dia quente. Depois daquele dia, um longo período de tempo fresco e nublado se iniciou.

 

Eles chegaram ao número 29 da rua Neibolt por volta das dez da manhã, Bill levando Richie na garupa de Silver, Ben com o amplo traseiro espalhado no banco da Raleigh. Beverly chegou à rua Neibolt na Schwinn de menina, com o cabelo ruivo preso por uma faixa verde de cabelo. As mechas caíam pelas costas. Mike chegou sozinho e, uns cinco minutos depois, Stan e Eddie chegaram andando juntos.

 

— C-C-Como está s-s-seu b-braço, E-E-Eddie?

 

— Ah, não está ruim. Dói se eu me viro pro lado dele quando estou dormindo. Trouxe as coisas?

 

Havia uma trouxinha de lona na cesta de Silver. Bill pegou e abriu. Ele entregou o estilingue para Beverly, que pegou com uma careta, mas não disse nada. Havia também uma latinha de Sucrets. Bill abriu-a e mostrou as duas bolinhas de prata. Eles olharam em silêncio, reunidos no gramado ralo da casa de número 29 na rua Neibolt, um gramado onde só ervas daninhas pareciam conseguir crescer. Bill, Richie e Eddie tinham visto a casa antes; os outros não, e olharam com curiosidade.

 

As janelas parecem olhos, pensou Stan, e levou a mão ao livro que carregava no bolso de trás para ter sorte. Ele carregava o livro para quase todo lado. Era o Guia de pássaros norte-americanos de M. K. Handey. Parecem olhos cegos e sujos.

 

A casa fede, pensou Beverly. Consigo sentir o cheiro, mas não exatamente com o nariz.

 

Mike pensou: É que nem aquela vez no local onde ficava a Ironworks. Tem a mesma sensação... como se estivesse nos mandando entrar.

 

É um dos lugares da Coisa mesmo, pensou Ben. Um dos lugares como os buracos de Morlocks, por onde a Coisa sai e entra. E Ela sabe que a gente está aqui. Está esperando que a gente entre.

 

— V-V-Vocês todos ainda querem ir? — perguntou Ben.

 

Eles olharam para Bill, pálidos e solenes. Ninguém disse não. Eddie tirou a bombinha do bolso e deu uma boa aspirada.

 

— Me dá um pouco disso — disse Richie.

 

Eddie olhou para ele com surpresa, esperando a piadinha.

 

Richie esticou a mão.

 

— Não é mentira, Bira. Posso experimentar?

 

Eddie deu de ombros com o ombro bom, um movimento estranhamente desconjuntado, e entregou a bombinha. Richie disparou o aspirador e inspirou.

 

— Estava precisando — disse ele, e devolveu o objeto. Ele tossiu um pouco, mas os olhos permaneceram sóbrios.

 

— Eu também — disse Stan. — Posso?

 

Um a um, eles usaram a bombinha de Eddie. Quando voltou para suas mãos, Eddie enfiou no bolso de trás, com a cabeça para fora. Eles se viraram para olhar de novo para a casa.

 

— Alguém mora nessa rua? — perguntou Beverly com voz baixa.

 

— Não nessa ponta — disse Mike. — Ninguém mais. Só os mendigos que ficam um tempo e vão embora nos trens.

 

— Eles não veriam nada — disse Stan. — Estariam em segurança. A maioria, pelo menos. — Ele olhou para Bill. — Algum adulto consegue ver a Coisa, Bill?

 

— Não s-sei — disse Bill. — Deve ter a-a-algum.

 

— Eu queria conhecer um — disse Richie com tristeza. — Isso não é trabalho pra crianças, sabem o que quero dizer?

 

Bill sabia. Sempre que os Hardy Boys se metiam em confusão, Fenton Hardy estava perto para resolver. O mesmo acontecia com o pai de Rick Brant, Hartson, nos livros da série Rick Brant Science Adventures. Porra, até Nancy Drew tinha um pai que aparecia bem na hora se os bandidos a amarravam e jogavam em uma mina abandonada, por exemplo.

 

— Devia ter um adulto junto — disse Richie, olhando para a casa fechada com a tinta descascando, as janelas sujas, a varanda escura. Ele suspirou com cansaço. Por um momento, Ben sentiu a certeza deles virar dúvida.

 

E então, Bill disse:

 

— V-V-Venham a-a-a-aqui. Olhem i-isso.

 

Eles andaram até o lado esquerdo da varanda, onde o cercado estava arrancado. As rosas ainda estavam lá... e as que o leproso de Eddie tinha tocado quando saiu de lá de baixo ainda estavam pretas e mortas.

 

— Só tocou nelas e fez isso? — perguntou Beverly, horrorizada.

 

Bill assentiu.

 

— Vocês t-têm c-c-certeza?

 

Por um momento, ninguém respondeu. Eles não tinham certeza; apesar de todos saberem pelo rosto de Bill que ele iria sem os amigos, eles não tinham certeza. Havia também uma espécie de vergonha no rosto de Bill. Como ele tinha dito antes, George não era irmão deles.

 

Mas todas as outras crianças, pensou Ben. Betty Ripsom, Cheryl Lamonica, aquele garoto Clements, Eddie Corcoran (talvez), Ronnie Grogan... até Patrick Hockstetter. Ela mata crianças, caramba, crianças!

 

— Eu vou, Big Bill — disse ele.

 

— Isso aí, merda — disse Beverly.

 

— Claro — disse Richie. — Você acha que vou deixar só você se divertir, boca mole?

 

Bill olhou para eles com a garganta trabalhando e assentiu. Ele entregou a latinha para Beverly.

 

— Tem certeza, Bill?

 

— T-T-Tenho.

 

Ela assentiu, imediatamente horrorizada pela responsabilidade e encantada com a confiança. Abriu a latinha, pegou as bolinhas e colocou uma no bolso da frente da calça jeans. A outra ela colocou no elástico do estilingue, e foi pelo elástico que o carregou. Ela conseguia sentir a bolinha na mão fechada, fria no começo e depois ficando quente.

 

— Vamos — disse ela, com a voz não tão firme. — Vamos antes que eu amarele.

 

Bill assentiu e olhou intensamente para Eddie.

 

— V-Você consegue f-f-fazer isso, E-E-Eddie?

 

Eddie assentiu.

 

— Claro que consigo. Eu estava sozinho da última vez. Desta vez, estou com meus amigos. Certo? — Ele olhou para eles e deu um sorrisinho. Sua expressão estava tímida, frágil e bem bonita.

 

Richie deu um tapa nas costas dele.

 

— Issaí, senhorr. Se alguém tentarr roubarr seu assipirador, vamos matarr ele. Mas vamos matarr devagarr.

 

— Foi horrível, Richie — disse Bev, rindo.

 

— D-D-Debaixo da v-varanda — disse Bill. — To-Todo mundo a-a-atrás de mim. Depois, pro po-porão.

 

— Se você for primeiro e a Coisa pular em você, o que faço? — perguntou Beverly. — Disparo através de você?

 

— Se p-precisar — disse Bill. — Mas s-su-sugiro que v-você tente d-dar a v-volta primeiro.

 

Richie teve uma crise de riso.

 

— Vamos a-a-andar pela c-casa inteira se p-precisarmos. — Ele deu de ombros. — Talvez a gente n-não encontre n-nada.

 

— Você acredita nisso? — perguntou Mike.

 

— Não — disse Bill brevemente. — Ela e-está a-a-aqui.

 

Ben achava que ele estava certo. A casa 29 da rua Neibolt parecia estar cercada de um envoltório envenenado. A Coisa não podia ser vista... mas podia ser sentida. Ele lambeu os lábios.

 

— P-P-Prontos? — perguntou Bill.

 

Todos olharam para ele.

 

— Prontos, Bill — disse Richie.

 

— V-Vamos então — disse Bill. — Fique p-perto de mim, B-Beverly. — Ele ficou de joelhos, engatinhou pelas roseiras e para debaixo da varanda.

 

Eles foram na seguinte ordem: Bill, Beverly, Ben, Eddie, Richie, Stan e Mike. As folhas debaixo da varanda estalaram e soltaram um aroma velho e azedo. Ben torceu o nariz. Será que ele já tinha sentido cheiro de folhas caídas como essas? Ele achava que não. Uma ideia desagradável lhe ocorreu. Elas tinham o cheiro que ele imaginava que uma múmia teria depois que quem a descobriu tivesse aberto o caixão: só poeira e ácido tânico velho e acre.

 

Bill tinha chegado à janela quebrada do porão e estava olhando para dentro. Beverly engatinhou até o lado dele.

 

— Está vendo alguma coisa?

 

Bill balançou a cabeça.

 

— Mas isso n-não quer d-d-dizer que não tem n-nada ali. O-Olha. Ali está a pilha de c-carvão que eu e R-R-Richie usamos pra f-fugir.

 

Ben, que estava olhando entre os dois, viu o carvão. Ele estava ficando empolgado também, além de sentir medo, e achava a empolgação boa por reconhecer instintivamente que ela poderia ajudar. Ver a pilha de carvão foi um pouco como ver um grande marco sobre o qual você só leu ou ouviu os outros falarem.

 

Bill se virou e passou pela janela. Beverly deu o estilingue para Ben e dobrou a mão dele sobre o elástico com a bolinha aninhada.

 

— Me dá assim que eu descer — disse ela. — No mesmo segundo.

 

— Pode deixar.

 

Ela desceu com facilidade e leveza. Houve, ao menos para Ben, um momento em que o coração parou, quando a blusa dela saiu da calça jeans e ele viu a barriga branca e reta. Houve também a emoção das mãos dela sobre as dele quando ele devolveu o estilingue.

 

— Tudo bem, estou com ele. Vem.

 

Ben se virou e começou a se contorcer pela janela. Ele devia ter previsto o que aconteceu em seguida; era inevitável. Ele entalou. Seu traseiro se prendeu na janela retangular do porão e ele não conseguiu descer mais. Ele começou a se puxar para sair e percebeu, horrorizado, que seria capaz de fazer isso, mas provavelmente a calça e talvez também a cueca desceriam até os joelhos. E ali estaria ele, com a bunda extremamente grande praticamente na cara de sua amada.

 

— Anda! — disse Eddie.

 

Ben se empurrou com as duas mãos. Por um momento, não conseguiu se mexer, mas então sua bunda passou pelo buraco. A calça jeans apertou dolorosamente a virilha e esmagou as bolas. A parte de cima da janela puxou a camisa até os ombros. Agora, a barriga estava de fora.

 

— Encolhe a barriga, Monte de Feno — disse Richie, rindo histericamente. — É melhor você encolher a barriga, senão vamos ter que mandar Mike chamar o pai pra trazer a roldana e a corrente e te tirar daí.

 

— Bip-bip, Richie — disse Ben por entre dentes. Ele encolheu a barriga o máximo que conseguiu. Desceu mais um pouco, mas parou de novo.

 

Ele virou a cabeça do jeito que foi capaz, lutando contra o pânico e a claustrofobia. Seu rosto tinha ficado vermelho e suado. O aroma azedo das folhas pesava e tampava suas narinas.

 

— Bill! Vocês conseguem me puxar?

 

Ele sentiu Bill segurar um de seus tornozelos e Beverly, o outro. Encolheu a barriga de novo e, um momento depois, passou pela janela. Bill o segurou. Os dois quase caíram. Ben não conseguia olhar para Bev. Nunca na vida tinha ficado tão sem graça quanto estava naquele momento.

 

— V-V-Você está bem, c-c-cara?

 

— Estou.

 

Bill deu uma risada trêmula. Beverly se juntou a ele, e Ben também conseguiu rir um pouco, embora anos se passariam até ele conseguir ver qualquer coisa de remotamente engraçada no que tinha acontecido.

 

— Ei! — disse Richie lá de fora. — Eddie precisa de ajuda, tá?

 

— T-T-Tudo bem. — Bill e Ben se posicionaram debaixo da janela. Eddie desceu de costas. Bill segurou as pernas dele acima dos joelhos.

 

— Presta atenção no que tá fazendo — disse Eddie com voz nervosa e rabugenta. — Eu sinto cócegas.

 

— Ramon es mucho sensible, senhorr — disse Richie lá de fora.

 

Ben segurou Eddie pela cintura, tentando manter a mão longe do gesso e da faixa que o prendia. Ele e Bill puxaram Eddie pela janela do porão como um cadáver. Eddie gritou uma vez, mas só isso.

 

— E-E-Eddie?

 

— É — disse Eddie —, está tudo bem. Não foi nada. — Mas havia gotas grandes de suor em sua testa e ele estava respirando rapidamente. Seus olhos avaliaram o porão.

 

Bill recuou de novo. Beverly estava perto dele, agora segurando o estilingue pelo cabo e pelo elástico, pronta para disparar se necessário. Seus olhos percorriam o porão constantemente. Richie entrou depois, seguido por Stan e Mike, todos movendo-se com uma graça delicada da qual Ben morria de inveja. Todos estavam agora no porão onde Bill e Richie tinham visto a Coisa apenas um mês antes.

 

O aposento estava na penumbra, mas não no escuro. Uma luz turva entrava pelas janelas e marcava o chão sujo. O porão parecia muito grande aos olhos de Ben, quase grande demais, como se ele estivesse testemunhando uma ilusão de ótica de algum tipo. Vigas poeirentas se cruzavam acima. Os canos da fornalha estavam enferrujados. Algum tipo de pano branco estava pendurado nos canos de água em tiras e farrapos. O fedor também podia ser sentido ali embaixo. Um cheiro amarelo e sujo. Ben pensou: A Coisa está mesmo aqui. Ah, está.

 

Bill seguiu em direção à escada. Os outros foram atrás. Ele parou e olhou embaixo. Esticou um pé e deu um chute em alguma coisa. Todos olharam sem falar nada. Era uma luva branca de palhaço, agora manchada de poeira e sujeira.

 

— E-E-Em cima — disse ele.

 

Eles subiram e saíram em uma cozinha suja. Uma cadeira simples de costas retas estava abandonada no centro do linóleo estufado. Era toda a mobília que havia. Havia garrafas vazias de bebida em um canto. Ben conseguia ver outras na despensa. Conseguia sentir cheiro de bebida, o de vinho com mais intensidade, e de cigarros velhos. Esses aromas eram os dominantes, mas aquele outro cheiro também estava ali. Estava ficando cada vez mais forte.

 

Beverly foi até o armário e abriu uma porta. Deu um grito agudo quando um rato marrom-escuro caiu quase na cara dela. O rato bateu na bancada com um baque alto e olhou para eles com olhos pretos. Ainda gritando, Beverly levantou o estilingue e puxou o elástico.

 

— NÃO! — berrou Bill.

 

Ela se virou para ele, pálida e apavorada. Mas assentiu e relaxou o braço. A bolinha de prata continuou intacta, mas Ben pensou que foi por pouco, muito pouco. Ela recuou lentamente, esbarrou em Ben, deu um pulo. Ele passou um braço firme ao redor dela.

 

O rato correu pela bancada, pulou no chão, correu para a despensa e sumiu.

 

— Ele queria que eu disparasse nele — disse Beverly com voz fraca. — Que usasse metade de nossa munição nele.

 

— É — disse Bill. — É c-c-como o treinamento de t-tiros do FBI em Qua-Qua-Quantico, de certa f-f-forma. M-Mandam v-você descer uma rua f-f-falsa e uns a-alvos a-aparecem. Se você a-atirar em algum cidadão honesto em v-vez de só em b-b-bandidos, p-perde p-pontos.

 

— Não consigo fazer isso, Bill — disse ela. — Vou fazer besteira. Aqui. Você. — Ela levantou o estilingue, mas Bill balançou a cabeça.

 

— Você p-p-precisa, B-Beverly.

 

Houve um choramingo vindo de outro armário.

 

Richie andou na direção dele.

 

— Não chegue perto demais! — disse Stan com voz estridente. — Pode...

 

Richie olhou dentro, e uma expressão de puro nojo cruzou seu rosto. Ele bateu a porta do armário com um estrondo que produziu um eco morto pela casa vazia.

 

— Uma ninhada. — Richie parecia enjoado. — A maior ninhada que já vi... que qualquer pessoa já viu, provavelmente. — Ele passou as costas da mão pela boca. — Tem centenas de filhotes ali. — Ele olhou para os amigos, com a boca se contorcendo para um dos lados. — Os rabos... estavam todos emaranhados, Bill. Amarrados. — Ele fez uma careta. — Como cobras.

 

Eles olharam para a porta do armário. O choramingo estava abafado, mas ainda audível. Ratos, pensou Ben, olhando para o rosto branco de Bill e, por cima do ombro dele, para o cinzento de Mike. Todo mundo tem medo de ratos. A Coisa sabe.

 

— V-V-Venham — disse Bill. — A-Aqui na rua N-N-Neibolt, a d-d-diversão não termina n-nunca.

 

Eles seguiram pelo corredor. Aqui, os desagradáveis aromas de reboco podre e urina velha estavam misturados. Eles conseguiram olhar para a rua por vidraças sujas e ver as bicicletas. As de Bev e Ben estavam de pé sobre os descansos. A de Bill estava apoiada em um bordo atrofiado. Aos olhos de Ben, as bicicletas pareciam a mil quilômetros de distância, como coisas vistas pelo lado errado de um telescópio. A rua deserta com os pedaços casuais de asfalto, o céu úmido e claro, o constante ding-ding-ding de uma locomotiva passando... essas coisas pareciam sonhos, alucinações para ele. O real era esse corredor nojento com o fedor e as sombras.

 

Havia um amontoado de vidro quebrado em um canto; garrafas de Rheingold.

 

No outro canto, havia uma revista pequena de pornografia, molhada e inchada. A mulher da capa estava inclinada sobre uma cadeira, a saia atrás deixava à mostra o alto da meia arrastão e a calcinha preta. A foto não parecia particularmente sexy para Ben, nem o constrangeu o fato de que Beverly também olhou. A umidade havia amarelado a pele da mulher e coberto a capa de ondulações que pareciam rugas no rosto dela. O olhar lascivo tinha virado a expressão de desprezo de uma prostituta morta.

 

(Anos depois, quando Ben estava recontando isso, Beverly deu um grito repentino, assustando todos eles — eles não estavam tanto ouvindo a história, mas revivendo-a. “Era ela!”, gritou Beverly. “A sra. Kersh! Era ela!”)

 

Enquanto Ben estava olhando, a jovem/velha senhora da revista piscou para ele e balançou o traseiro em um chamado obsceno.

 

Sentindo frio em todo o corpo, mas suando ao mesmo tempo, Ben afastou o olhar.

 

Bill abriu uma porta à esquerda e eles o seguiram para um aposento amplo que talvez já tivesse sido uma sala. Uma calça verde amassada estava pendurada nos fios elétricos que pendiam do teto. Como o porão, aquela sala pareceu grande demais para Ben, quase tão comprida quanto um vagão de trem. Comprida demais para uma casa tão pequena como essa parecia ser quando vista de fora...

 

Ah, mas aquilo foi de fora, disse uma nova voz dentro da cabeça dele. Era uma voz jocosa e aguda, e Ben percebeu com certeza repentina que estava ouvindo o próprio Pennywise; a Coisa estava falando com ele por algum rádio mental maluco. Do lado de fora, as coisas sempre parecem menores do que são de verdade, não é, Ben?

 

— Vai embora — sussurrou ele.

 

Richie se virou para olhar para ele, com o rosto ainda tenso e pálido.

 

— Falou alguma coisa?

 

Ben balançou a cabeça. A voz tinha sumido. Isso era uma coisa importante, uma coisa boa. Mas

 

(do lado de fora)

 

ele tinha entendido. Essa casa era um lugar especial, uma espécie de estação, um dos locais de Derry, um de muitos, talvez, pelo qual a Coisa conseguia chegar ao mundo externo. Essa casa fedida e podre onde tudo era meio errado. Não era só que ela parecia grande demais; os ângulos eram errados, a perspectiva era maluca. Ben se encontrava depois da porta entre a sala e o corredor, e os outros estavam se afastando dele por um espaço que agora parecia do tamanho do Parque Bassey... mas conforme eles se afastavam, pareciam ficar maiores em vez de menores. O piso parecia se inclinar, e...

 

Mike se virou.

 

— Ben! — gritou ele, e Ben viu alarme no rosto dele. — Vem! Estamos perdendo você! — Ele mal conseguiu ouvir a última palavra. Ela se apagou como se os outros estivessem sendo levados por um trem veloz.

 

Apavorado de repente, ele começou a correr. A porta atrás dele se fechou com um baque surdo. Ele gritou... e alguma coisa pareceu passar voando pelo ar atrás dele e fazer sua camisa tremer. Ele olhou para trás, mas não havia nada. Mas isso não mudou a certeza dele de que houve alguma coisa.

 

Ele alcançou os outros. Estava ofegante, sem ar, e teria jurado que correu pelo menos um quilômetro... mas, quando olhou para trás, a parede da sala estava a menos de 3 metros.

 

Mike segurou o ombro dele com força suficiente para machucar.

 

— Você me assustou, cara — disse ele. Richie, Stan e Eddie estavam olhando para Mike sem entender. — Ele estava pequeno — disse Mike. — Como se estivesse a mais de um quilômetro de distância.

 

— Bill!

 

Bill olhou para trás.

 

— A gente tem que prestar atenção pra todo mundo ficar perto — disse Ben, ofegante. — Este lugar... é como a casa maluca em um parque de diversões, sei lá. A gente vai se perder. Acho que a Coisa quer que a gente se perca. Que a gente se separe.

 

Bill olhou para ele por um momento com lábios apertados.

 

— Tudo bem — disse ele. — Vamos t-todos ficar p-p-perto, Nada de f-ficar pra t-trás.

 

Eles assentiram em concordância, assustados, amontoados perto da porta. A mão de Stan apertou o livro sobre pássaros no bolso de trás. Eddie estava segurando a bombinha, apertando-a, soltando, apertando-a de novo, como um fracote de 45 quilos tentando exercitar os músculos com uma bola de tênis.

 

Bill abriu a porta e havia outro corredor depois, mais estreito. O papel de parede, com estampa de rosas e elfos com gorros verdes, estava se soltando do reboco esponjoso em tiras. Marcas amarelas de água se espalhavam em anéis senis no teto acima. Um raio de luz escura entrava por uma janela fechada no final do corredor.

 

O corredor pareceu se alongar abruptamente. O teto subiu e começou a diminuir acima deles como um estranho foguete. As portas cresceram com o teto, esticando como caramelo. Os rostos dos elfos ficaram compridos e se tornaram anormais, com olhos como buracos pretos e sangrentos.

 

Stan gritou e colocou as mãos sobre os olhos.

 

— N-N-Não é r-r-r-REAL! — gritou Bill.

 

— É sim! — gritou Stan, com os punhos pequenos e fechados tampando os olhos. — É real, você sabe que é, Deus, estou ficando maluco, isso é loucura, isso é loucura...

 

— C-C-CUIDADO! — gritou Bill para Stan, para todos eles, e Ben, com a cabeça girando, viu Bill se inclinar, se inclinar, se encolher e de repente pular. Seu punho fechado bateu em nada, absolutamente nada, mas houve um som bem alto. Poeira de gesso caiu de um lugar onde não havia mais teto... e então, havia. O corredor era só um corredor de novo, estreito, com teto baixo, sujo, mas as paredes não estavam mais se esticando por uma eternidade. Só havia Bill, olhando para eles e segurando a mão sangrenta, que estava coberta de pó de gesso. Acima, havia a marca clara que o punho fez no gesso mole do teto.

 

— N-N-Não é r-r-real — disse ele para Stan, para todos eles. — É só uma c-c-cara f-f-falsa. Como uma m-m-máscara de Halloween.

 

— Pra você, talvez — disse Stan lentamente.

 

Seu rosto estava chocado e horrorizado. Ele olhou ao redor, como se não soubesse mais onde estava. Ao olhar para ele, ao sentir o fedor saindo dos poros dele, Ben, que estava feliz da vida pela vitória de Bill, ficou com medo de novo. Stan estava quase surtando. Em pouco tempo, ficaria histérico, começaria a gritar, talvez, e o que aconteceria então?

 

— Pra você — disse Stan novamente. — Mas, se eu tentasse fazer isso, nada teria acontecido. Porque... você tem seu irmão, Bill, mas eu não tenho nada.

 

Eles olharam ao redor, primeiro para a sala, que tinha adquirido uma atmosfera sombria e marrom, tão densa e enevoada que eles mal conseguiam ver a porta pela qual tinham entrado, depois para o corredor, que estava claro, mas de alguma forma escuro, sujo, completamente louco. Elfos faziam cabriolas no papel de parede podre embaixo de roseiras. O sol brilhava na vidraça da janela no fim do corredor, e Ben sabia que, se eles fossem até lá, veriam moscas mortas... mais vidro quebrado... e o que mais? O piso se abrindo, derramando uma escuridão morta onde dedos ansiosos esperavam para pegá-los? Stan estava certo; Deus, por que eles tinham ido para o lar da Coisa sem nada, só duas bolinhas idiotas de prata e uma porcaria de estilingue?

 

Ele viu o pânico de Stan pular de um para o outro para o outro, como o incêndio em uma floresta espalhado por um vento quente; fez Eddie arregalar os olhos, fez a boca de Beverly se abrir em uma expressão ferida, fez Richie empurrar os óculos com as duas mãos e olhar para trás como se estivesse sendo seguido por um demônio.

 

Eles hesitaram, à beira de fugir, com o aviso de Bill para ficarem juntos quase esquecido. Estavam ouvindo a ventania do pânico soprando entre os ouvidos. Como se em sonho, Ben ouviu a srta. Davis, a bibliotecária assistente, lendo para os pequenos: Quem está passando pela minha ponte? E os viu, os pequenos, inclinados para a frente, com os rostos imóveis e solenes, os olhos refletindo a eterna fascinação da historinha: será que o monstro seria vencido... ou a Coisa se alimentaria?

 

— Não tenho nada! — choramingou Stan Uris, e pareceu muito pequeno, quase pequeno o bastante para passar escorregando por uma das rachaduras no piso do corredor, como uma carta humana. — Você tem seu irmão, cara, mas eu não tenho nada!

 

— Tem s-s-s-sim! — gritou Bill. Ele segurou Stan, e Ben teve certeza de que Bill daria um soco nele, e, em pensamentos, ele gemeu: Não, Bill, por favor, esse é o jeito de Henry, se você fizer isso, a Coisa vai matar a gente agora!

 

Mas Bill não bateu em Stan. Virou-o com mãos nada delicadas e arrancou o livro do bolso de trás da calça jeans dele.

 

— Me dá! — gritou Stan, começando a chorar. Os outros ficaram perplexos, se afastaram de Bill, cujos olhos agora pareciam queimar. A testa dele brilhava como uma lâmpada, e ele esticou o livro na frente de Stan como um padre esticando uma cruz para afastar um vampiro.

 

— Você t-t-tem seus p-p-pa-pas-pas...

 

Ele virou a cabeça para cima, com os tendões no pescoço se projetando, o pomo de adão como uma flecha afundada na garganta. Ben ficou tomado de medo e pena do amigo Bill Denbrough, mas havia também uma sensação forte de alívio. Ele tinha duvidado de Bill? Algum deles tinha? Ah, Bill, diz, por favor, você não consegue dizer?

 

E, de alguma forma, Bill disse.

 

— Você tem seus PA-PA-PA-PÁSSAROS! Seus PA-PA-PÁSSAROS!

 

Ele empurrou o livro para Stan. Stan pegou e olhou para Bill em silêncio. Lágrimas brilharam nas bochechas dele. Ele segurou o livro com tanta força que seus dedos ficaram brancos. Bill olhou para ele e para os outros.

 

— V-Venham — disse ele de novo.

 

— Os pássaros vão funcionar? — perguntou Stan. Sua voz estava baixa e rouca.

 

— Funcionaram na Torre de Água, né? — perguntou Bev.

 

Stan olhou para ela com dúvida.

 

Richie botou a mão no ombro dele.

 

— Vamos, Stanzinho — disse ele. — Você é um homem ou um rato?

 

— Devo ser um homem — disse Stan com voz trêmula e secou lágrimas do rosto com a beirada da mão esquerda. — Até onde eu sei, ratos não cagam na calça.

 

Eles riram, e Ben poderia jurar ter sentido a casa se afastando deles, do som. Mike se virou.

 

— Aquela sala grande. Por onde a gente entrou. Olhem!

 

Eles olharam. A sala estava agora quase preta. Não era fumaça e nenhum tipo de gás; era só escuridão, um pretume quase sólido. Toda a luz tinha sido roubada do ar. A escuridão pareceu rolar e se flexionar enquanto eles olhavam, quase se aglutinar em formas de rostos.

 

— V-V-Venham.

 

Eles viraram de costas para a escuridão e desceram o corredor. Havia três portas nele, duas com maçanetas sujas de porcelana, a terceira com apenas um buraco onde antes ficava a maçaneta. Bill segurou a primeira, virou-a e abriu a porta. Bev ficou ao lado dele com o estilingue levantado.

 

Ben se encolheu, ciente de que os outros estavam fazendo o mesmo, encolhidos atrás de Bill como covardes apavorados. Era um quarto vazio, onde só havia um colchão manchado. Os fantasmas enferrujados das molas de uma cama box que não existia mais estavam evidentes na cobertura amarela do colchão. Fora da janela do quarto, girassóis se inclinavam e assentiam.

 

— Não tem nada... — Bill começou a dizer, mas então o colchão começou a inchar e se encolher ritmadamente. Ele se rasgou de repente bem no meio. Um fluido preto viscoso começou a jorrar, manchando o colchão e escorrendo pelo chão na direção da porta. Aproximou-se em tiras longas e contorcidas...

 

— Fecha, Bill! — gritou Richie. — Fecha a porra da porta!

 

Bill bateu a porta, olhou ao redor e assentiu.

 

— Venham.

 

Ele mal tinha tocado na maçaneta da segunda porta, que ficava do outro lado do corredor, quando o grito vibrante começou atrás da madeira vagabunda.

 

Até Bill recuou quando ouviu aquele grito agudo e inumano. Ben achou que o som poderia deixá-lo louco; sua mente visualizou um grilo gigante atrás da porta, como uma coisa saída de um filme em que a radiação fez todos os insetos ficarem grandes — The Beginning of the End, talvez, ou O escorpião negro, ou aquele sobre as formigas nos bueiros de Los Angeles. Ele não teria conseguido correr nem se aquele horror enrugado e zumbente tivesse arrebentado a porta e começado a acariciá-lo com as pernas compridas e peludas. Ele estava vagamente ciente de Eddie ofegante ao seu lado.

 

O grito cresceu, sem nunca perder o tom de zumbido de inseto. Bill deu outro passo para trás, com o rosto completamente pálido agora, os olhos saltados, os lábios apenas uma marca roxa abaixo do nariz.

 

— Dispara nele, Beverly! — Ben se ouviu gritar. — Dispara nele pela porta, dispara antes de pegar a gente! — E o sol entrou pela janela suja na ponta do corredor com um peso intenso e febril.

 

Beverly ergueu o estilingue como uma garota em um sonho quando o grito foi ficando mais alto, mais alto, mais alto...

 

Mas, antes que ela pudesse armar o estilingue, Mike estava gritando:

 

— Não! Não! Não, Bev! Ah, Deus! Não acredito! — E, incrivelmente, Mike estava rindo. Ele deu um passo à frente, segurou a maçaneta, girou e abriu a porta. Ela se soltou da moldura com um grunhido. — É um mooseblower! Só um mooseblower, só isso, uma coisa que serve pra assustar os corvos!

 

O quarto era uma caixa vazia. No chão, havia uma lata com as duas extremidades removidas. No meio, esticado e preso em buracos nas laterais da lata, havia um pedaço de barbante encerado. Apesar de não haver brisa no quarto (a única janela estava fechada e coberta por tábuas, permitindo que a luz entrasse apenas por frestas), não tinha como haver dúvida de que o zumbido vinha da lata.

 

Mike andou até ela e deu um chute forte. O zumbido parou quando a lata caiu no canto.

 

— Só um mooseblower — disse ele para os outros, como se pedindo desculpas. — Colocamos uns desses nos espantalhos. Não é nada. Só um truque barato. Mas eu não sou corvo. — Ele olhou para Bill, não mais rindo, mas ainda sorrindo. — Ainda tenho medo da Coisa, acho que todos nós temos, mas a Coisa também tem medo de nós. Pra falar a verdade, acho que a Coisa está com muito medo.

 

Bill assentiu.

 

— T-Também acho — disse ele.

 

Eles foram até a porta no final do corredor e, quando Ben viu Bill colocar o dedo no buraco onde antes ficava a maçaneta, entendeu que era ali que tudo ia terminar; não haveria truque por trás daquela porta. O cheiro estava pior agora, e aquela sensação atormentada de duas forças opostas girando ao redor deles estava bem mais forte. Ele olhou para Eddie, com um braço na tipoia, a mão boa segurando a bombinha. Olhou para Bev do outro lado, com o rosto pálido, segurando o estilingue como um ossinho da sorte. Ele pensou: Se tivermos que fugir, vou tentar te proteger, Beverly. Eu juro que vou tentar.

 

Ela talvez tenha sentido o pensamento, porque se virou na direção dele e deu um sorriso tenso. Ben sorriu em resposta.

 

Bill abriu a porta. As dobradiças deram um grito rouco e ficaram em silêncio. Era um banheiro... mas havia alguma coisa errada nele. Alguém quebrou alguma coisa aqui foi tudo que Ben conseguiu perceber no começo. Não uma garrafa de bebida... o quê?

 

Cacos e pedaços brancos estavam espalhados para todos os lados, brilhando de forma malévola. E então, ele entendeu. Era a insanidade suprema. Ele riu. Richie se juntou a ele.

 

— Alguém deve ter dado o avô de todos os peidos — disse Eddie, e Mike começou a rir e assentir. Stan estava sorrindo um pouco. Só Bill e Beverly permaneceram sérios.

 

Os pedaços brancos que cobriam o chão eram cacos de porcelana. A privada tinha explodido. O tanque estava caído de lado em uma poça de água, e só não virou porque a privada tinha sido colocada em um canto do banheiro e o tanque caiu apoiado na parede.

 

Eles se amontoaram atrás de Bill e Beverly, com os pés esmagando os pedacinhos de porcelana. Independente do que isso foi, pensou Ben, explodiu a pobre privada direto pro inferno. Ele teve uma visão de Henry Bowers jogando duas ou três M-80 dentro dela, fechando a tampa e saindo correndo. Não conseguiu pensar em mais nada que teria feito um trabalho tão cataclísmico além de dinamite. Havia alguns pedaços maiores, mas bem poucos; a maior parte do que sobrou eram caquinhos finos como dardos. O papel de parede (roseiras e elfos cabriolantes, como no corredor) estava coberto de buracos por todo o banheiro. Pareciam estilhaços, mas Ben sabia que era porcelana enfiada na parede pela força da explosão.

 

Havia uma banheira com pés em forma de garras e gerações de sujeira grudada. Ben espiou dentro e viu uma poça de sedimentos e areia no fundo. Um chuveiro enferrujado parecia olhar para eles. Havia uma pia e um armário entreaberto acima dela, exibindo prateleiras vazias. Havia pequenos anéis de ferrugem nessas prateleiras, onde um dia houvera vidros e garrafas.

 

— Eu não chegaria muito perto disso, Big Bill! — disse Richie rapidamente, e Ben olhou para lá.

 

Bill estava se aproximando do buraco no chão sobre o qual a privada ficava antes de explodir. Ele se inclinou na direção... e se virou para os outros.

 

— Consigo o-o-ouvir o m-m-maquinário b-bombeando... que nem no B-Ba-arrens!

 

Bev chegou mais perto de Bill. Ben a seguiu e, sim, ele conseguia ouvir: aquele som ritmado e constante. Só que, ecoando por esses canos, não parecia de máquinas. Parecia uma coisa viva.

 

— F-Foi d-d-daqui que a Coisa v-v-veio — disse Bill. Seu rosto estava mortalmente pálido, mas os olhos estavam acesos de excitação. — Foi d-daqui que a Coisa s-saiu naquele d-dia, e é de o-onde s-s-sempre sai! Dos e-e-esgotos!

 

Richie estava assentindo.

 

— A gente estava no porão, mas não era lá que a Coisa estava. A Coisa desceu a escada. Porque é por aqui que ela consegue sair.

 

— E ela fez isso? — perguntou Beverly.

 

— Estava com p-p-pressa, eu a-acho — disse Bill com voz grave.

 

Ben olhou para o cano. Tinha uns 90 centímetros de diâmetro e estava escuro como em uma mina. A superfície interna de cerâmica estava imunda de coisas sobre as quais ele nem queria saber. Aquele som vibrante subia de forma hipnótica... e, de repente, ele viu uma coisa. Não viu com os olhos físicos, não no começo, mas com o olho no fundo da mente.

 

A Coisa estava disparada na direção dele, movendo-se em velocidade de trem expresso, enchendo a garganta desse cano escuro de um lado a outro; a Coisa estava na forma de Coisa agora, fosse lá qual fosse; assumiria alguma forma da mente deles quando chegasse. A Coisa estava vindo, vindo de seu esconderijo imundo e de sua catacumba negra debaixo da terra, com os olhos brilhando em um tom verde-amarelado selvagem, vindo, vindo; a Coisa estava vindo.

 

E então, a princípio como fagulhas, eles viram os olhos da Coisa naquela escuridão. Eles tomaram forma, flamejantes e malignos. Acima do som vibrante do maquinário, Ben agora conseguia ouvir um novo som: Uuuuuuuuu... Um aroma fétido saiu da boca irregular do cano e ele recuou, tossindo e com ânsia de vômito.

 

— Está chegando! — gritou ele. — Bill, eu vi a Coisa, está chegando!

 

Beverly ergueu o estilingue.

 

— Que bom — disse ela.

 

Alguma coisa explodiu para fora do cano. Ben, tentando lembrar-se daquele primeiro confronto mais tarde, só conseguia visualizar uma forma irregular prateada e laranja. Não era fantasmagórica; era sólida, e ele sentiu uma outra forma, real e definitiva, por trás da Coisa... mas seus olhos não conseguiam compreender o que estavam vendo, não precisamente.

 

E então Richie estava cambaleando para trás, com o rosto uma máscara de terror, gritando sem parar:

 

— O Lobisomem! Bill! É o Lobisomem! O Lobisomem Adolescente! — E, de repente, a forma assumiu uma realidade, para Ben e para todos eles.

 

O Lobisomem estava em cima do cano, com um pé cabeludo de cada lado de onde antes ficava a privada. Os olhos verdes os observavam com raiva no rosto selvagem. O focinho se repuxou e espuma amarelo-esbranquiçada escorreu entre os dentes. Ele deu um único rosnado. Os braços se esticaram na direção de Beverly, e os punhos do casaco de ensino médio foram repuxados sobre os braços cobertos de pelos. O cheiro era quente e cru e assassino.

 

Beverly gritou. Ben segurou as costas da blusa dela e puxou com tanta força que rasgou as costuras debaixo dos braços. A mão em forma de garra atacou o ar onde ela estava apenas um momento antes. Beverly cambaleou para trás contra a parede. A bola de prata caiu do elástico do estilingue. Por um momento, brilhou no ar. Mike, mais rápido do que o mais rápido dos homens, agarrou-a e devolveu para ela.

 

— Dispara na Coisa, gata — disse ele. A voz estava perfeitamente calma, quase serena. — Dispara na Coisa agora mesmo.

 

O Lobisomem deu um rugido rouco que virou um uivo de congelar a pele, com o focinho virado para o teto.

 

O uivo virou uma gargalhada. A Coisa pulou para cima de Bill na hora em que ele se virou para olhar para Beverly. Ben o empurrou para o lado, e ele caiu estatelado.

 

— Dispara na Coisa, Bev! — gritou Richie. — Pelo amor de Deus, dispara na Coisa!

 

O Lobisomem pulou para a frente, e não havia dúvida na mente de Ben, na hora nem depois, de que ela sabia exatamente quem estava no comando. Era Bill que a Coisa queria pegar. Beverly disparou. A bola voou e foi para longe do alvo, mas desta vez não fez nenhuma curva salvadora. Errou por mais de 30 centímetros e abriu um buraco no papel de parece acima da banheira. Bill, com os braços cobertos de pedaços de porcelana e sangrando em várias partes, gritou um palavrão.

 

A cabeça do Lobisomem virou; os olhos verdes brilhantes avaliaram Beverly. Sem pensar, Ben entrou na frente dela enquanto ela tateava o bolso em busca da outra bolinha de prata. A calça jeans que ela estava usando estava apertada demais. Ela escolheu sem pensar em provocação; era só que, assim como o short que usou no dia de Patrick Hockstetter e da geladeira, ela ainda estava usando a do ano anterior. Os dedos se fecharam sobre a bolinha, mas ela escapou. Ela tateou de novo e conseguiu pegar. Tirou-a do bolso e virou-o do avesso, derrubando no chão 14 centavos, pedaços de dois ingressos do Aladdin e um monte de linha.

 

O Lobisomem pulou em Ben, que estava de pé na frente dela de forma protetora... e bloqueando o espaço para ela disparar. A cabeça da Coisa estava inclinada no ângulo questionador de predador, com a mandíbula estalando. Ben esticou a mão cegamente na direção dela. Parecia não haver espaço para terror em suas reações agora; ele sentia uma espécie de raiva esclarecida, misturada com perplexidade e uma sensação de que o tempo tinha parado de repente. Ele enfiou as mãos no cabelo crespo e sujo (pele, pensou ele, peguei a pele da Coisa agora) e conseguiu sentir o osso pesado do crânio da Coisa por baixo. Ele empurrou aquela cabeça lupina com toda a força, mas apesar de ser um garoto grande, não adiantou nada. Se não tivesse cambaleado para trás e batido na parede, a Coisa teria aberto a garganta dele com os dentes.

 

A Coisa foi para cima dele, com os olhos verde-amarelados flamejando, rosnando a cada respiração. Tinha cheiro do esgoto e de outra coisa, um odor selvagem e desagradável como de avelãs podres. Uma das patas pesadas se ergueu, e Ben desviou da melhor maneira que conseguiu. A pata, com unhas longas, fez ferimentos sem sangue no papel de parede e no gesso embaixo. Ele conseguia ouvir Richie gritando alguma coisa ao longe, Eddie berrando para Beverly disparar na Coisa, disparar na Coisa. Mas Beverly não disparou. Essa era a única chance. Isso não importava; ela pretendia que fosse a única da qual ela precisaria. Uma frieza clara que ela nunca viu novamente na vida tomou conta da visão dela. Nela, tudo se destacava e se projetava; ela nunca mais veria as três dimensões da realidade tão claramente definidas. Ela via cada cor, cada ângulo, cada distância. O medo sumiu. Ela sentiu a simples ânsia do caçador com a certeza e a perspectiva da realização. Sua pulsação ficou mais lenta. O tremor histérico no qual ela segurava o estilingue diminuiu, sua mão se firmou e ficou natural. Ela inspirou fundo. Parecia que seus pulmões jamais se encheriam completamente. Ao longe, de leve, ela ouviu estouros. Não importava o que era. Ela virou para a esquerda, esperando que a improvável cabeça do Lobisomem entrasse perfeitamente na área do V do estilingue.

 

As garras do Lobisomem desceram de novo. Ben tentou se encolher, mas de repente estava nas mãos da Coisa. Ela o puxou para a frente como se ele não passasse de uma boneca de pano. O maxilar se abriu.

 

— Filho da mãe...

 

Ele enfiou o polegar em um dos olhos da Coisa. Ela gritou de dor, e uma daquelas patas com unhas rasgou sua camisa. Ben encolheu a barriga, mas uma das garras fez uma linha ardida de dor em seu tronco. O sangue jorrou e caiu na calça, nos tênis, no chão. O Lobisomem o jogou na banheira. Ele bateu a cabeça, viu estrelas, se esforçou para se sentar e viu o colo coberto de sangue.

 

O Lobisomem se virou. Ben observou com aquela mesma lucidez lunática que ele estava usando uma calça jeans Levi’s surrada. As costuras tinham rasgado. Uma bandana suja de meleca, do tipo que um funcionário de trem carrega, estava pendurada no bolso de trás. Escritas nas costas da jaqueta preta e laranja do ensino médio havia as palavras EQUIPE DE ASSASSINATO DA DERRY HIGH SCHOOL. Abaixo, o nome PENNYWISE. E, no meio, um número: 13.

 

A Coisa partiu para cima de Bill de novo. Ele tinha ficado de pé e estava agora de costas para a parede, olhando para ela com firmeza.

 

— Dispara na Coisa, Beverly! — gritou Richie de novo.

 

— Bip-bip, Richie — ela se ouviu responder de mil quilômetros de distância. A cabeça do Lobisomem de repente estava ali, no meio do V. Ela cobriu um dos olhos verdes da Coisa com o elástico e soltou. Não havia tremor em nenhuma das mãos dela; ela disparou tão tranquila e naturalmente quanto nas latas no lixão no dia em que eles se revezaram para ver quem era o melhor.

 

Houve tempo para Ben pensar Ah, Beverly, se você errar essa, estamos todos mortos, e não quero morrer nessa banheira suja, mas não consigo sair. Não houve erro. Um olho redondo, não verde, mas preto, apareceu de repente no meio do focinho da Coisa: ela mirou no olho direito e errou por menos de um centímetro.

 

O grito da Coisa, um grito quase humano de surpresa, dor, medo e raiva, foi ensurdecedor. Os ouvidos de Ben tremeram. E então, o buraco perfeitamente redondo no focinho da Coisa sumiu, obscurecido por um jorro de sangue. Não estava escorrendo; ele jorrava do ferimento em uma torrente cheia de pressão. O fluxo encharcou o cabelo e o rosto de Bill. Não importa, pensou Ben histericamente. Não se preocupe, Bill. Ninguém vai conseguir ver mesmo quando a gente sair daqui. Se a gente sair.

 

Bill e Beverly foram para cima do Lobisomem e, atrás deles, Richie gritou histericamente:

 

— Dispara de novo, Beverly! Mata a Coisa!

 

— Mata a Coisa! — gritou Mike.

 

— Isso mesmo, mata a Coisa! — disse Eddie.

 

— Mata a Coisa! — gritou Bill, com a boca repuxada e trêmula. Havia uma mancha branco-amarelada de pó de gesso no cabelo dele. — Mata a Coisa, Beverly, não deixa ela fugir!

 

Não tem mais munição, pensou Ben com incoerência, estamos sem bolinhas. Como assim, matar a Coisa? Mas ele olhou para Beverly e entendeu. Se o coração dele já não fosse dela antes daquele momento, teria passado a ser. Ela puxou o estilingue de novo. Os dedos estavam fechados sobre o elástico, escondendo o fato de que estava vazio.

 

— Mata a Coisa! — gritou Ben, e virou desajeitado pela beirada da banheira. A calça jeans e a cueca estavam encharcadas de sangue e grudadas na pele. Ele não fazia ideia se estava muito ferido ou não. Depois do ardor inicial, não houve muita dor, mas havia uma quantidade absurda de sangue.

 

Os olhos esverdeados do Lobisomem brilharam entre eles, agora tomados de incerteza, assim como dor. Sangue jorrava na frente da jaqueta.

 

Bill Denbrough sorriu. Foi um sorriso gentil e um tanto adorável... mas não chegou aos seus olhos.

 

— Você não devia ter começado com meu irmão — disse ele. — Manda o merda pro inferno, Beverly.

 

A dúvida sumiu dos olhos da criatura; ela acreditou. Com graça delicada e leve, ela se virou e mergulhou no cano. Quando começou a se deslocar, ela mudou. A jaqueta da Derry High derreteu sobre o pelo e a cor sumiu dos dois. A forma do crânio da Coisa se alongou, como se ela fosse feita de cera e agora estivesse amolecendo e começando a escorrer. A forma da Coisa mudou. Por um instante, Ben acreditou quase ter visto a forma verdadeira da Coisa, e seu coração congelou no peito, deixando-o ofegante.

 

— Vou matar todos vocês! — rugiu uma voz de dentro do cano. Era grave, selvagem, nem um pouco humana. — Matar todos vocês... matar todos vocês... matar todos vocês... — As palavras foram sumindo, diminuindo, desaparecendo, ficando distantes... e por fim juntaram-se ao latejar baixo do maquinário de bombeamento que se ouvia pelos canos.

 

A casa pareceu se firmar com um pesado baque quase audível. Mas não estava se firmando, percebeu Ben; de alguma forma estranha, estava encolhendo, voltando ao tamanho normal. A magia que a Coisa tinha usado para fazer a casa de número 29 da rua Neibolt parecer maior agora tinha sumido. A casa voltou, como se feita de elástico. Era apenas uma casa agora, com cheiro úmido e um pouco podre, uma casa sem mobília aonde vagabundos e mendigos às vezes iam para beber e conversar e fugir da chuva.

 

A Coisa tinha ido embora.

 

Depois da saída dela, o silêncio pareceu muito alto.

 

— T-T-Temos q-q-que s-s-sair d-d-daqui — disse Bill. Ele andou até onde Ben estava, tentando se levantar, e segurou uma das mãos esticadas. Beverly estava perto do cano. Ela olhou para si mesma e aquela frieza desapareceu em uma onda que pareceu transformar a pele em cobertura quente. Deve ter sido uma respiração funda mesmo. Os sons de estouro foram os botões da blusa dela. Eles tinham sumido, cada um deles. A blusa estava aberta, e os pequenos seios estavam à mostra. Ela fechou a blusa com a mão.

 

— R-R-Richie — disse Bill. — Me ajuda com B-B-Ben. Ele e-e-e...

 

Richie se juntou a ele, Stan e Mike. Os quatro levantaram Ben. Eddie tinha ido até Beverly e passou o braço com constrangimento nos ombros dela.

 

— Você foi ótima — disse ele, e Beverly caiu no choro.

 

Ben deu dois passos cambaleantes até a parede e se encostou nela antes de cair de novo. Sua cabeça estava leve. O mundo estava ficando sem cor, depois com cor de novo. Ele estava com vontade de vomitar.

 

Logo o braço de Bill estava ao redor dele, forte e reconfortante.

 

— E-E-Está m-muito r-r-ruim, M-M-Monte de Feno?

 

Ben se obrigou a olhar para a barriga. Executar duas ações simples (inclinar a cabeça e abrir o rasgo na camisa) exigiu mais coragem do que foi preciso para entrar na casa. Ele esperava ver metade de suas tripas penduradas em tiras nojentas. Mas só viu um fluxo de sangue que virou um gotejar lento. O Lobisomem tinha feito um corte comprido e fundo, mas aparentemente não mortal.

 

Richie se juntou a eles. Ele olhou para o corte, que descia irregular pelo peito de Ben até a parte superior da barriga, depois olhou para o rosto de Ben.

 

— A Coisa quase pegou suas tripas pra usar de suspensório, Monte de Feno. Sabia?

 

— Mentira, Bira — disse Ben.

 

Ele e Richie se olharam por um longo tempo e caíram em gargalhadas histéricas ao mesmo tempo, jogando uma chuva de cuspe um no outro. Richie pegou Ben nos braços e bateu nas costas dele.

 

— Vencemos a Coisa, Monte de Feno! Vencemos a Coisa!

 

— A g-g-gente n-n-não v-v-venceu a Coisa — disse Bill com voz séria. — Tivemos s-s-sorte. Vamos s-sair a-a-antes que e-e-ela d-decida v-voltar.

 

— Pra onde? — perguntou Mike.

 

— Pro B-B-Barrens — disse Bill.

 

Beverly foi até eles, ainda segurando a blusa. As bochechas dela estavam vermelhas.

 

— Pra sede do clube?

 

Bill assentiu.

 

— Alguém pode me dar a camisa? — pediu Beverly, corando mais do que nunca. Bill olhou para ela e ficou ruborizado na mesma hora. Ele afastou o olhar rapidamente, mas naquele momento Ben sentiu uma onda de compreensão e ciúme funesto. Naquele instante, naquele breve um segundo, Bill a percebeu de uma forma que só Ben já tinha visto antes.

 

Os outros também olharam e depois viraram a cabeça. Richie tossiu nas costas da mão. Stan ficou vermelho. E Mike Hanlon deu um passo ou dois para trás, como se com medo da leve curva daquele pequeno seio branco, visível abaixo da mão dela.

 

Beverly ergueu a cabeça e balançou o cabelo embaraçado. Ainda estava vermelha, mas seu rosto estava lindo.

 

— Não posso fazer nada quanto ao fato de que sou uma garota — disse ela —, nem de que estou começando a crescer em cima... Agora, por favor, alguém pode me dar uma camisa?

 

— C-C-Claro — disse Bill. Ele tirou a camiseta branca e deixou o peito estreito à mostra, com a marca das costelas bem visível e os ombros queimados de sol e cheios de sardas. — T-T-Toma.

 

— Obrigada, Bill — disse ela, e por um momento ardente, eles se olharam diretamente. Bill não afastou o olhar desta vez. Seu olhar foi firme, adulto.

 

— De n-n-n-nada — disse ele.

 

Boa sorte, Big Bill, pensou Ben, e afastou o rosto daquele olhar entre os dois. Estava doendo nele, doendo em um lugar mais profundo do que qualquer vampiro ou lobisomem seria capaz de tocar. Por outro lado, havia a questão do decoro. Ele não conhecia a palavra, mas o conceito estava bem claro. Olhar para eles quando eles estavam se olhando daquele jeito seria tão errado quanto olhar para os seios dela quando ela soltasse a blusa para vestir a camiseta de Bill. Se tiver que ser assim. Mas você nunca vai amar ela como eu amo. Nunca.

 

A camiseta de Bill ia quase até os joelhos dela. Se não fosse a calça jeans aparecendo por baixo da barra, pareceria que ela estava usando um vestido curto.

 

— V-V-Vamos — repetiu Bill. — N-N-Não s-sei v-vocês, mas pra mim por hoje já chega.

 

Já chegava para todos eles.

 

Uma hora depois, eles estavam na sede do clube, com a janela e a porta abertas. Estava fresco lá dentro, e o Barrens estava abençoadamente silencioso naquele dia. Eles ficaram sentados sem falar muito, cada um perdido em seus pensamentos. Richie e Bev compartilharam um Marlboro. Eddie deu uma aspirada na bombinha. Mike espirrou várias vezes e pediu desculpas. Ele disse que estava pegando um resfriado.

 

— É a úúúnica cooooisa que você pode pegar, senhorr — disse Richie com coleguismo, e isso foi tudo.

 

Ben ficava esperando que o momento louco na casa da rua Neibolt assumisse tons de sonho. Vai se afastar e desmoronar, pensou ele, assim como acontece com os pesadelos. Você acorda ofegante e suando muito, mas 15 minutos depois não consegue nem lembrar sobre o que era o sonho.

 

Mas isso não aconteceu. Tudo que tinha acontecido, desde a hora em que ele forçou passagem pela janela do porão até o momento em que Bill usou a cadeira da cozinha para quebrar uma janela para eles poderem sair, permaneceu claro e fixo em sua memória. Não foi sonho. O ferimento coagulado em seu peito e barriga não era sonho, e não importava se a mãe conseguia ver ou não.

 

Por fim, Beverly ficou de pé.

 

— Tenho que ir pra casa — disse ela. — Quero trocar de roupa antes da minha mãe chegar. Se ela me vir usando a camiseta de um garoto, vai me matar.

 

— Vai matarr você, senhorrita — concordou Richie —, mas vai matarr devagarr.

 

— Bip-bip, Richie.

 

Bill estava olhando para ela com seriedade.

 

— Vou devolver sua camiseta, Bill.

 

Ele assentiu e balançou a mão para indicar que isso não era importante.

 

— Você vai ficar encrencado? Por chegar em casa sem ela?

 

— N-Não. Eles n-nem re-eparam direito em m-mim quando estou p-por p-perto.

 

Ela assentiu e mordeu o lábio inferior, uma garota de 11 anos que era alta para a idade e simplesmente linda.

 

— O que vai acontecer agora, Bill?

 

— N-N-Não s-s-sei.

 

— Não acabou, né?

 

Bill balançou a cabeça.

 

Ben disse:

 

— A Coisa vai querer a gente mais do que nunca agora.

 

— Mais bolinhas de prata? — perguntou ela a ele. Ele percebeu que mal conseguia suportar olhar nos olhos dela. Eu te amo, Beverly... me deixa ter isso, pelo menos. Você pode ficar com Bill, ou com o mundo, ou com o que quiser. Só me deixa ter isso, me deixa continuar te amando, e acho que vai ser o bastante.

 

— Não sei — disse Ben. — A gente poderia fazer, mas...

 

Ele parou de falar e deu de ombros. Não conseguia expressar o que sentia, não conseguia botar em palavras que isso era como estar em um filme de monstros, mas não era. A múmia tinha aparência diferente de algumas formas... formas que confirmavam sua realidade essencial. O mesmo era verdade quanto ao Lobisomem. Ele podia garantir isso porque o viu em um close paralisante que nenhum filme, nem mesmo em 3-D, poderia permitir, e colocou a mão na pelagem emaranhada da Coisa, viu um ponto pequeno e laranja (como um pompom!) em um dos olhos verdes. Aquelas coisas eram... bem... eram sonhos que viraram realidade. E quando os sonhos viram realidade, eles fogem ao poder do sonhador e se tornam coisas mortais por si só, capazes de ação independente. A bolinha de prata funcionou porque os sete estavam unificados na crença de que funcionaria. Mas não matou a Coisa. E, na próxima vez, a Coisa viria em outra forma, ou uma forma sobre a qual a prata não tinha poder.

 

Poder, poder, pensou Ben, olhando para Beverly. Agora não tinha problema; os olhares dela e o de Bill se encontraram de novo e eles estavam se observando como se perdidos. Foi só por um momento, mas a Ben pareceu muito longo.

 

Sempre se trata de poder. Amo Beverly Marsh e ela tem poder sobre mim. Ela ama Bill Denbrough e ele tem poder sobre ela. Mas acho que ele está começando a amar ela. Pode ser que seja o rosto dela, a expressão quando ela disse que não podia evitar o fato de ser garota. Pode ser que tenha sido ver um seio só por um segundo. Pode ser a aparência dela às vezes quando a luz está certa, ou os olhos dela. Não importa. Mas se ele está começando a amar ela, ela está começando a ter poder sobre ele. O Super-homem tem poder, menos quando tem criptonita por perto. O Batman tem poder, apesar de não conseguir voar nem ver através das paredes. Minha mãe tem poder sobre mim, e o chefe dela tem poder sobre ela. Todo mundo tem um pouco... menos talvez criancinhas e bebês.

 

Mas ele pensou que até crianças e bebês têm poder; eles podiam chorar até você ter que fazer alguma coisa para eles pararem.

 

— Ben? — disse Beverly, olhando para ele. — O gato comeu sua língua?

 

— Hã? Não. Eu estava pensando sobre poder. O poder das bolinhas de prata.

 

Bill estava olhando para ele com atenção.

 

— Eu estava me perguntando de onde veio aquele poder — disse Ben.

 

— V-V-Ve... — começou Bill, mas parou de falar. Uma expressão pensativa ocupou seu rosto.

 

— Tenho mesmo que ir — disse Beverly. — Vejo vocês depois, né?

 

— Claro, vem pra cá amanhã — disse Stan. — A gente vai quebrar o outro braço do Eddie.

 

Todos riram. Eddie fingiu que ia jogar a bombinha em Stan.

 

— Tchau então — disse Beverly, e saiu pela abertura.

 

Ben olhou para Bill e viu que ele não estava rindo junto. Aquela expressão pensativa ainda estava no rosto dele, e Ben sabia que seria preciso falar o nome dele duas ou três vezes para ele responder. Ele sabia em que Bill estava pensando; ele mesmo pensaria nisso nos dias seguintes. Não o tempo todo, não. Haveria roupas para pendurar e guardar para a mãe, brincadeiras de pique e de armas no Barrens e, durante um período chuvoso nos quatro primeiros dias de agosto, os sete realizariam uma partida louca de Parcheesi na casa de Richie Tozier, fazendo bloqueios, mandando o outro voltar casas com entrega total, deliberando como dividir os números dos dados enquanto a chuva caía lá fora. A mãe dele anunciaria que acreditava que Pat Nixon era a mulher mais bonita dos Estados Unidos e ficaria horrorizada quando Ben preferisse Marilyn Monroe (exceto pela cor do cabelo, Ben achava que Bev se parecia mais com Marilyn Monroe). Haveria tempo para ele comer quantos Twinkies, Ring-Dings e Devil Dogs conseguisse, e tempo para ficar sentado na varanda dos fundos lendo O robô de Júpiter. Haveria tempo para todas essas coisas enquanto o ferimento no peito e na barriga dele cicatrizasse, formasse casca e começasse a coçar, porque a vida prosseguia e, aos 11 anos, apesar de inteligente e esperto, ele não tinha senso real de perspectiva. Ele conseguiria viver com o que aconteceu na casa da rua Neibolt. Afinal, o mundo era cheio de mistérios.

 

Mas haveria momentos estranhos em que ele observaria as perguntas e refletiria: O poder da prata, o poder das bolinhas... de onde vem poder assim? De onde qualquer poder vem? Como se consegue? Como se usa?

 

Parecia que a vida deles poderia depender daquelas perguntas. Uma noite, quando ele estava adormecendo, com a chuva fazendo um ruído regular no telhado e contra as janelas, ocorreu a ele que havia outra pergunta, talvez a única pergunta. A Coisa tinha forma real; ele quase a viu. Ver aquela forma era ver o segredo dela. Isso também era verdade quanto ao poder? Talvez fosse. Pois não era verdade que o poder, como a Coisa, era um mutante de forma? Era um bebê chorando no meio da noite, era uma bomba atômica, era uma bolinha de prata, era a forma como Beverly olhava para Bill e como Bill olhava para ela.

 

O que exatamente era poder, afinal?

 

Quase nada aconteceu nas duas semanas seguintes.

 

 

 

                                                   CONTINUA

 

 

DERRY:

QUARTO INTERLÚDIO

6 de abril de 1985

Vou contar uma coisa, amigos e vizinhos: estou bêbado hoje. Bêbado pra cacete. Uísque. Fui até o Wally’s e comecei, fui até o mercado na rua Center meia hora antes de fechar e comprei um quinto de garrafa de uísque vagabundo. Sei em que estou me metendo. Bebida barata hoje, uma baita ressaca amanhã. Então, aqui está ele, um negro bêbado em uma biblioteca pública depois de fechar, com este caderno aberto na frente e a garrafa de Old Kentucky à esquerda. “Diga a verdade e que se dane o diabo”, dizia minha mãe, mas ela se esqueceu de me dizer que às vezes não dá para mandar o sr. Capiroto se danar quando se está sóbrio. Os irlandeses sabem, mas é claro que eles são os negros brancos de Deus e, quem sabe, talvez estejam um passo à frente.

Quero escrever sobre beber e o diabo. Lembram-se de Ilha do tesouro? O velho lobo do mar na Hospedaria Almirante Benbow. “Ainda vamos fazer, Jacky!” Aposto que o merdinha amargo até acreditava nisso. Cheio de rum (ou uísque), você consegue acreditar em qualquer coisa.

A bebida e o diabo. Certo.

 

 

 

 

Acho engraçado às vezes pensar quanto tempo eu duraria se publicasse algumas dessas coisas que escrevo na calada da noite. Se eu exibisse alguns dos esqueletos no armário de Derry. Há um Comitê de Diretores da biblioteca. São 11 pessoas. Um é um escritor de 70 anos que teve um derrame dois anos atrás e agora precisa de ajuda para encontrar seu lugar na agenda de cada reunião (e que às vezes é visto tirando melecas grandes e secas das narinas peludas e colocando na orelha, como se para guardar com cuidado). Outra é uma mulher controladora que veio para cá de Nova York com o marido médico e que fala em monólogo constante e reclamão sobre o quanto Derry é provinciana, que ninguém aqui entende A EXPERIÊNCIA JUDAICA e que é preciso ir a Boston para comprar uma saia com a qual se gostaria de ser vista usando. Na última vez que essa gata anoréxica falou comigo sem os serviços de um intermediário foi na festa de Natal do comitê um ano e meio atrás. Ela tinha ingerido uma grande quantidade de gim e me perguntou se alguém em Derry entendia A EXPERIÊNCIA NEGRA. Eu também tinha ingerido uma grande quantidade de gim e respondi: “Sra. Gladry, os judeus podem ser um grande mistério, mas os negros são compreendidos no mundo inteiro.” Ela se engasgou com a bebida, se virou tão rapidamente que a calcinha ficou visível por um segundo embaixo da saia leve (não foi uma visão muito interessante; se ao menos tivesse sido Carole Danner!), e assim acabou minha última conversa informal com a sra. Ruth Gladry. Não foi uma grande perda.

Os outros integrantes do comitê são descendentes dos barões da madeira. O apoio à biblioteca é um ato de expiação herdada: eles estupraram a floresta e agora cuidam dos livros como um libertino poderia decidir na meia-idade cuidar dos filhos bastardos que...

 

 

                                                                  Stephen King

 

 

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