Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
JOGO DUPLO
Primeira Parte
A limusina preta Wolga parou com um solavanco. Logo se formou poeira debaixo das rodas subitamente travadas, subindo em nuvens amareladas até às janelas do automóvel. O motorista, um sargento do Exército Vermelho, III Secção Ucraniana, voltou a cabeça para trás, esticando o corpo da cintura para cima. Tinha as mãos pousadas
nas coxas.
- Cá estamos, camarada major - anunciou num tom lacónico de militar.
- É aqui? - retorquiu o homem afundado no assento da limusina e olhando através da janela. - Não nos enganámos no caminho, Petros lakovlovitch?
- As ordens que recebi foi para o deixar neste sítio, camarada major - respondeu o sargento, que se voltou novamente para diante, sem pronunciar mais uma palavra.
«Tem toda a razão para ficar admirado», pensou. «Quem não o ficaria? Diz-se-lhe: ”Vai ser transferido, meu caro Andrei Nikolaivitch. Um comando honroso”... e onde se aterra? No meio de uma região acidentada e da mais absoluta solidão, atapetada de erva rasteira, oferecendo como paisagem alguns salgueiros e bétulas, sabugueiros e moitas de arbustos. Para onde quer que se olhasse, nem sombra de homem, nem uma cabeça de gado, um cavalo, um tractor, nem sequer uma ovelha... nada de nada, à excepção de uma terra com encostas e erva rasteira. No entanto, talvez tudo isso pudesse tornar-se suportável. Muito mais desconsolador ainda a rede de arame farpado electrificada e totalmente deslocada no local, medindo mais de três metros de altura - à maneira de aviso -, a cortar o terreno. De um lado ao outro do horizonte apenas uma rede de arame. Por detrás uma faixa nua, talvez com cinquenta metros de largura, desbravada, lavrada, arroteada, e só depois, novamente, alguns arbustos e bétulas. Até o mais parvo dos parvos, mesmo aquele que na falta de outro objecto bebe água pelo próprio sapato, sabia: ”Esta faixa sem nada é a morte! Aqui enterraram minas que atiram as pessoas pelo ar e as devolvem em tiras. Aqui encontram-se instalados, seja onde for, requintados mecanismos de autodefesa que são accionados por contactos invisíveis. Aqui soa imediatamente o alarme em fortins dissimulados se alguém conseguir realmente atravessar o arame e puser pé nos infernais cinquenta metros. Nada de passagem, camarada! Sete coelhos e quatro toupeiras já tinham tentado a proeza... rebentou um barulho infernal, os pobres animais desfizeram-se em bocadinhos e, seguidamente, alguns especialistas destacados para o efeito tinham-se dado ao trabalho de substituir as minas detonadas. Contudo, a partir dessa altura deixou de haver coelhos e toupeiras na região... a palavra de ordem espalhou-se pelos próprios animais: ”Afastem-se da rede!”»
O major Andrei Nikolaivitch Pleniakov saiu do Wolga e tirou do assento traseiro a mala forrada de um castanho-esverdeado. Pousou-a junto da limusina e tirou o boné de pala para limpar o suor da testa com as costas da mão. À sua frente estendiam-se a faixa da morte e a calma solidão. Na rede de arame farpado estava metido um portão de dois batentes; no poste de ferro, à direita, estava pendurada uma pequena caixa de lata, pintada de verde. A portinha fechava-se com um simples trinco.
Pleniakov, que tinha avançado três passos, voltou a cabeça na direcção do Wolga preto para o olhar. O sargento Petros lakovlovitch, um homem baixo de rosto impenetrável, também já descera nessa altura e foi buscar à mala do carro a restante bagagem: a pistola automática Kalachnikov, arrumada num estojo forrado de tecido castanho-terroso, um saco de viagem e um caixote que continha - sem grande surpresa de Petros - um radiotransístor e um gira-discos. Portanto, discos também. Beethoven, Wagner, Verdi, Meyerbeer, Bruckner e, naturalmente, Chopin, Tchaikovsky,
Glinka, Mussorgsky, Prokofiev, Rimsky-Korsakov e Borodine. Petros transportou tudo até ao portão da rede de arame electrificada e amontoou a bagagem junto de Pleniakov.
- Deseja mais alguma coisa, camarada major? - perguntou, enquanto Pleniakov contemplava a região em silêncio e de cenho franzido.
- Não, Petros lakovlovitch. Espere aí. Quero fazer-lhe uma pergunta. Já deixou muitos camaradas neste sítio?
- Bastantes, camarada major.
- E como reagiram?
- Ficaram surpreendidos, como o senhor.
- Não sabe mais nada?
- Não.
- O que fica do outro lado da encosta?
- Nunca pensei nisso, camarada major. Para quê? Uma pessoa puxa pela cabeça e nunca sabe nada. Além disso, que nos interessa? Aqui acaba um pedaço do mundo. Do outro lado começa um outro pedaço, mas não para nós. Para quê preocuparmo-nos? Os que se instalaram aqui decerto pensaram nisso.
- Seja como for, ali para trás deve correr o Bug. Partimos de Vinniza para o sul, sem avistar o rio. Agora, tem de ficar à nossa esquerda...
- É provável - interrompeu-o Petros lakovlovitch com um encolher dos ombros pequenos e a mesma expressão impenetrável. - Aqui só conheço o caminho entre Vinniza e este portão. Para quê saber mais?
Fez a saudação de despedida a Pleniakov e acrescentou:
- Na caixa pendurada no poste há um telefone, camarada major. Se levantar o auscultador, alguém o atenderá. Tenho de regressar.
- Boa viagem, Petros lakovlovitch.
- Muito obrigado, camarada major.
Pleniakov esperou, até que o Wolga preto desapareceu por detrás de uma encosta, numa nuvem de poeira amarelada, ficando apenas o ruído do motor no silêncio quase total. Algumas aves saltitavam nos ramos das bétulas e fitaram Pleniakov com surpresa. Fazia calor, de mais até para este dia de Maio. A terra já estava seca. Se o sol continuasse assim, haveria uma má colheita na Ucrânia e o Plano dos Cinco Anos fracassaria outra vez.
Pleniakov aproximou-se da caixa de lata, abriu a pequena porta e levantou o auscultador do telefone verde-escuro. Ouviram-se alguns toques e em seguida o major estremeceu, porque a voz que lhe soou ao ouvido era tão nítida e clara como se lhe estivesse a falar junto ao tímpano.
- Seja bem-vindo, Andrei Nikolaivitch! - exclamou a voz jovial antes que Pleniakov se anunciasse. A expansividade do homem invisível em nada se coadunava com o desconsolo do que o rodeava. - Chegou pontualmente. Contudo, nesse aspecto, a responsabilidade é de Petros... parece um relógio bem oleado. Ao olhar, neste momento, para o seu rosto, vejo que está a pensar: «O tacho de ferro que a minha mãe punha ao fogão tinha mais vida do que esta estrumeira.»
- Uma analogia muito a propósito - retorquiu Pleniakov, olhando em volta. Havia o arame farpado, o portão, a faixa da morte, os arbustos e as árvores. Não conseguia descobrir mais nada. A voz ao telefone soltou uma risada de satisfação.
- Estou a vê-lo, mas você procura em vão onde está a câmara televisiva. Trata-se de uma camuflagem perfeita.
- Os meus parabéns. Dantes tinha um olhar arguto - felicitou Pleniakov com um esboço de riso. - O que me espera agora?
- Vão aí buscá-lo. Um tenente e três praças. Pleniakov pousou o auscultador no lugar. Um outro ruído encheu subitamente a atmosfera quente e o seu ouvido treinado reconheceu o som: «É o motor de um camião. Um velho GAZ-69.» O major deixou-se estar no seio da bagagem e sentiu-se satisfeito por não se ter enganado quando o camião apareceu subitamente no cimo de uma colina. Que tal o seu exame final em Ust-Katovskaia? Tinham-no colocado, de olhos vendados, no meio de um caminho da floresta enquanto carros passavam ao seu lado, uns atrás dos outros:
«Este é um Fiat, agora um jeep, um Dodge, um Mercedes de quatro toneladas, um Man alemão, um Volvo arrastadeira, um T atra III 5-2, um Ural ZIS-375...»
E, seguidamente, os vários tipos de tanques e blindados, os carros de tropas e de munições. Reconhecera todos os modelos só pelo ruído do motor, tendo obtido o ambicionado «Muito bom» e um diploma. O melhor do seu curso. E este treino do ouvido era meramente uma ínfima parte da preparação. Havia outras coisas, mas dessas não se falava.
O camião atravessou o campo minado em ziguezague, parou junto do portão e um jovem tenente desceu. Os outros três «vermelhos» deixaram-se ficar sentados e apontaram as Kalachnikovs na direcção do major Pleniakov. Com a ajuda de uma simples chave - tão certo se estava da segurança daquele inferno de arame farpado - o tenente abriu o portão. Pleniakov fitou os canos das automáticas e nem se mexeu.
- Não são bem o tipo de anfitriões amáveis - limitou-se a comentar.
- Temos de o pôr à prova. Andrei Nikolaivitch retorquiu o jovem tenente, aproximando-se de Pleniakov e com um sorriso desenhado nos lábios como se lhe pedisse desculpa da missão que desempenhava. - Esperávamo-lo. Sabemos quem é. Mesmo assim...
- Cumpra o seu dever, camarada tenente. Quer que me dispa? Um homem nu já nada pode esconder.
- Concordo, mas não é necessário.
- Errado! - comentou Pleniakov com um sorriso de um canto ao outro da boca. - Ensinaram-me que num tubo que se enfia no ânus e chega ao intestino um homem pode transportar matéria plástica explosiva suficiente para fazer saltar uma ponte.
O jovem tenente olhou fixamente para Pleniakov, ao mesmo tempo que o sorriso se lhe gelava nos lábios e o olhar se tornava duro e cortante como aço.
- Dispa-se, camarada! - retorquiu bruscamente. Nunca tinha pensado nisso.
- Bravo! - aplaudiu Pleniakov com uma risada, ao mesmo tempo que desapertava o cinto das calças e as deixava cair até ao chão, depois do que começou a ocupar-se dos botões do casaco do uniforme. - Convença-se, camarada tenente - continuou sem deixar de proceder à operação -, que o intestino não é o único esconderijo para um homem nu. Existe toda uma série de outras possibilidades...
Algures na zona ouviu-se um som agudo. Pleniakov, que se preparava para tirar o casaco, deteve-se a meio. «É um alto-falante», pensou. Ali no meio das bétulas, mas completamente dissimulado. Uma camuflagem de mestre. Neste local conhecia-se bem o ofício.
Uma voz, a mesma que escutara ao telefone, ribombou, cortando o silêncio. Pleniakov esforçou-se o mais que lhe era possível, mas não conseguiu descobrir o alto-falante nem tão-pouco a câmara televisiva.
- Tenente Alaiev!
O jovem oficial deu meia volta e colocou-se em posição de sentido. Parecia um pouco ridícula tal atitude ante uma voz, mas Pleniakov tomou consciência imediata da disciplina que ali vigorava.
- Camarada general! - respondeu o tenente Alaiev. «Ah! Temos então um general na câmara televisiva.
Mas que honra!», pensou Pleniakov. Interrogou-se, no entanto, simultaneamente sobre como, naquele local, para onde fora destacado, tudo o quê ainda não podia ver devia ser importante, na medida em que um general se interessava por quem se aproximava do arame electrificado.
- Não precisa de revistar o cu do camarada major, Alaiev! Não traz explosivos com ele. Trata-se, aliás, de uma velha anedota entre agentes secretos. Andrei Nikolaivitch...
- Camarada general! - respondeu Pleniakov, colocando-se igualmente em sentido.
- Entre no nosso paraíso, que é mesmo a sério e melhor do que o antigo. Aqui, ninguém pode expulsar ninguém e não lhe vão oferecer a maçã proibida’. Pelo contrário. Quantos mais conhecimentos reunir tanto melhor. Vê-lo-ei mais tarde, Andrei...
Repetiu-se o som de há pouco e o alto-falante calou-se. O tenente Alaiev afastou-se para o lado, deixando o caminho livre, e Pleniakov avançou lentamente até ao camião. Dois «vermelhos» armados desceram, correram até junto da bagagem colocada diante do portão e transportaram-na para a terra proibida. Fiel ao regulamento, Alaiev verificou o conteúdo’ do caixote.
- Com que então, discos! - exclamou, ao mesmo tempo que um brilho lhe inundava o rosto jovem. De quem?
- Desde Beethoven a Bartok.
- Magnífico! - comentou Alaiev, fechando a tampa. É uma pena que lhos vão tirar e os ponham no armazém, camarada major.
- Qual o motivo?
- Não demorará a entender - respondeu Alaiev, tomando lugar no camião junto de Pleniakov. - Agora está noutro país. Isto já não é a Rússia...
O que Pleniakov tinha considerado como uma mera forma de expressão de Alaiev - tantas vezes se diz: «isto já não é a Rússia», quando se está irritado; pois ali estava a Rússia realmente com os seus campos ucranianos e os rios Bug, Dniepre e Dniestre, uma região rica e fértil - provou-se, alguns minutos mais tarde, após terem transposto o cimo da encosta, uma verdade ainda não apreendida: diante de Pleniakov estendia-se uma vasta planície, coberta de relva, apenas cortada por algumas moitas de arbustos verdes. Só quando estavam mais próximos se apercebeu tratar-se de pequenas casas de pedra, em redor das quais se tinham cultivado densas sebes de raízes entrelaçadas. Depois de descerem mais uma encosta, Pleniakov suspeitou da presença de lança-foguetes, alvos, projectores e contadores electrónicos.
- Faltam-nos mais duas barreiras - esclareceu o tenente Alaiev. - Por detrás da terceira, estará em casa.
- A que chama casa?
- Isso dir-lhe-á o camarada general. De facto, passaram ainda dois portões de barreiras electrificadas, sendo de cada vez submetidos a controlo e fotografados. Na terceira barreira, Pleniakov teve de transpor lentamente um portão de aço em arco. Uns olhos de vidro metidos na parede examinaram-no.
«Chapas», pensou. «Raios X. Estão a bater chapas. Aqui deixa de haver esconderijos... até mesmo cápsulas engolidas se tornarão visíveis. É a segurança total.»
- Ora cá temos Andrei Nikolaivitch! - exclamou do outro lado da arcada um capitão gorducho, ao mesmo tempo que estendia a mão a Pleniakov. Consultou, seguidamente, o relógio de pulso e fez um aceno de cabeça afirmativo. - Dentro de meia hora chega o autocarro. Temos tempo para mudar de roupa.
- Chega o quê? - retorquiu Pleniakov surpreendido.
- O bondei - disse o capitão, dando-lhe uma palmada no ombro. - E despimos rapidamente o bonito uniformezinho com as medalhas. Venha comigo, Andrei. Temos um óptimo conjunto de jeans ao seu dispor. Feitos de propósito... o seu metro e oitenta e cinco de altura e essa maldita largura de ombros levantaram um pequeno problema. Graças a Deus que tínhamos recebido de Ust-Katovskaia as suas medidas pela rádio - continuou o baixinho e gordo capitão, com um largo sorriso. - Até podemos dizer: «Graças a Deus!», já reparou? Há mesmo ordem para se ler a Bíblia. Sim. Vai-se habituar. E também a que lhe tire tudo o que traz consigo, meu caro Andrei.
- Tudo?
- Sem excepção. Acompanhe-me ao armazém. Aqui não se arranja nada. Sim. Tenho a certeza de que os jeans lhe assentarão como uma luva. As mulheres vão ficar doidas e põem-se a dar às ancas...
- Mulheres? Aqui? - surpreendeu-se Pleniakov, passando as duas mãos pelo cabelo claro encaracolado.
Era o que se chamava um bonito homem. Um homem junto de quem se pára e se segue com a vista, despertando no mais íntimo um misto de admiração e inveja. - Isso é uma grossa mentira, camarada.
- Chegou a um paraíso, como diz o general... convença-se de uma vez para sempre, Andrei. Garanto-lhe que dentro de meia hora verá as mulheres mais bonitas que existem do Alasca à Terra Nova. Uns corpinhos, digo-lhe! E se der um estalo apreciativo com a língua, rebolam o traseiro como resposta.
Empurrou Pleniakov, que subitamente pareceu apático, para um compartimento e fechou a porta atrás de si. Em cima de uma mesa grande havia um conjunto de jeans com rebites, uma camisa aos quadrados, um lenço vermelho de pescoço e um chapéu amaericano de abas largas, tipo Stetson, como se chamava. Debaixo da mesa via-se um par de botas de camurça, meias de fibra de nylon amarelo-vivo, debruadas a vermelho. Numa outra mesa estava exposta a roupa interior... slips de algodão florido, uma camisola com letras enormes no peito, em azul-vivo: «The Rangers-Baskets», junto a um boné com uma grande pala de plástico verde. Também no boné, à frente, as mesmas letras gritavam a Pleniakov: «The Rangers-Baskets».
- Não é uma maravilha? - pronunciou-se o gordo capitão jovialmente. - Quando tiver vestido esta roupa, camarada, terei de dar o alarme. As mulheres arrancarão as blusas só de olhar para elas.
- Que significa tudo isto? - quis saber Pleniakov, encostando-se à parede caiada de branco. - O que se passa aqui, Ilia Savelivitch? As barreiras impenetráveis, essa maldita conversa do paraíso, agora estes horríveis trapos americanos, um bonde que me vem buscar, mulheres nas proximidades... é tudo uma loucura!
- Mas com método, Andrei Nikolaivitch. Mude de roupa. Lembre-se: em que foi que’ mais batalharam consigo em Ust-Katovskaia? Então? Pense bem.
A decifrar.
- Nada disso. -O treino para sobreviver em situações extremas...
- Ora, ora, Andrei. O que conhecia na perfeição, e que conseguiu ainda aperfeiçoar mais.
- Os meus conhecimentos de língua inglesa.
- Sim. Ou melhor: o seu calão americano. Então? Já se acendeu alguma luzinha?
- Não - respondeu Pleniakov honestamente.
- É realmente difícil de entender - retorquiu o capitão, depois do que indicou a roupa. - Mude de roupa, Andrei. Daqui a um quarto de hora chega o autocarro. Vai levá-lo ao xerife...
- Aonde? - perguntou Pleniakov totalmente confuso.
- Tudo em ordem! - esquivou-se Ilia Savelivitch, abanando a cabeça. - Mude de roupa, Andrei. Rápido, rápido. Não é coisa que se explique, mas que se vê.
Mais tarde, Pleniakov viu-se sentado num autocarro de modelo americano, sentindo-se muito ridículo no seu conjunto de jeans com rebites, a camisa aos quadrados e o boné de pala com os grandes dizeres. Todas as suas coisas tinham ficado depositadas no armazém, metodicamente etiquetadas e catalogadas. Uma mala, um saco de viagem, uma Kalachnikov com estojo, uma automática Makarov de 9 mm com munições para 50 disparos, um uniforme, galões de major, sapatos, roupa interior, um caixote com rádio e gira-discos e 27 discos de música clássica. Guardadas para o major Andrei Nikolaivitch Pleniakov, chegado de Ust-Katovskaia, morador em Leninegrado, II Comando-Geral, Divisão A II. Carimbo. Assinatura.
E a partir daí deixou imediatamente de haver qualquer major Pleniakov. Quem se anichava no bonde americano, contemplava a região e parecia um alto e robusto trabalhador texano era nesse momento um anónimo, um apátrida, um desconhecido que não conseguia encontrar resposta para as perguntas que a si próprio fazia.
O autocarro prosseguia viagem aos solavancos por uma estrada de alcatrão. À esquerda e à direita estendiam-se amplas pastagens, cortadas de quando em vez por alguns moinhos de vento que puxavam a água do fundo de poços murados. Pleniakov encostou a cara ao vidro da janela e fixou a paisagem. «Isto já não é a Rússia», foi o pensamento que lhe ocorreu. «É a América, um pedaço da pradaria, precisamente como vimos em inúmeros filmes didácticos em Moscovo, em Frunze, em Kasan e, finalmente, em.Ust-Katovskaia: os imensos pastos do Oeste, a antiga terra dos búfalos, a reserva de carne da América.»
Estremeceu involuntariamente quando o autocarro passou a rasar uma manada de bois. Quatro cowboys montados em velozes cavalos de tamanho médio, malhados, agitaram os chapéus de aba larga num cumprimento, deram de esporas aos cavalos, galoparam ao longo da estrada, gritaram ao solitário e anichado passageiro Pleniakov qualquer coisa que ele não entendeu, soltaram depois ruidosas gargalhadas, deixaram-se ficar para trás e voltaram a prestar atenção ao gado.
- Os rapazes estão okay - disse o motorista do autocarro. Vestia apenas calças e camisola e tinha o boné obrigatório, com a comprida pala de plástico verde. Um indivíduo bem fornecido de músculos e com pescoço de touro. Era a primeira vez que se dirigia a Pleniakov e fê-lo no americano aberto de um algodoeiro do Alabama. - Não é mesmo um bom emprego? Ar puro, whisky, mulheres. Uma combinação de molhar as calças...
- Como se chama isto aqui? - interrompeu-o Pleniakov em russo e com um encolher de ombros.
- Está a falar um dialecto que não entendo, mister
- retorquiu o motorista observando-o pelo largo e comprido retrovisor.
- Como te chamas? - apressou-se Pleniakov a perguntar, mas não enganou o motorista.
- O que há? - retorquiu o robusto indivíduo.
- Gostaria de saber o seu nome - disse Pleniakov em inglês. O motorista fez um aceno de satisfação.
- Isso já um bom cristão entende. Chamo-me Jim Barkley. Os mais íntimos podem tratar-me por Búlly. Vai à procura de trabalho na cidade?
- Assim parece - respondeu Pleniakov soltando um profundo suspiro. - Disse cidade, Jim?
- Estaremos lá daqui a cinco minutos. Ah, gosto mesmo desta cidade! Também aprenderá a gostar dela, mister. De resto, amanhã há futebol. Os rapazes de West Side contra os de East Side. É um espectáculo a não perder, mister. São rapazes duros. Com a sua constituição!
A paisagem mudou subitamente. A pradaria cessou para dar lugar a bungalows, jardins com piscinas, campos de ténis, um estádio de futebol; junto da estrada erguia-se um motel onde se encontrava estacionada uma série de automóveis americanos, um posto de gasolina com um empregado que passava pelo sono numa cadeira de repouso à espera de freguesia e, em seguida, Pleniakov avistou as primeiras raparigas, de pernas altas, cabelos soltos e lisos, vestidas com jeans apertados ou hotpants ainda mais justos. Viu homens e mulheres nas lojas e nos drugstores, nos cafés e na rua que o autocarro atravessava e tudo era igual ao que conhecia dos filmes americanos, só que ainda mais vivo e empolgante.
Ao fundo, onde a rua descia e ia desembocar numa grande praça com um monumento, divisou o rio reluzindo ao sol, largo e de águas indolentes, revelando na outra margem as típicas ribanceiras naturais que se assemelhavam a cortiça castanha. «Aqui foi derramado sangue», pensou Pleniakov. «Alemão e nosso. De 1941 a 1944, os nazis dominaram a zona e os guerrilheiros escondiam as armas nas margens escarpadas. É realmente verdade? Estou no Bug?»
- Como se chama o rio, Jim? - perguntou ao motorista.
- Silver River, mister.
- Silver River? Não é o Bug?
- Bug? - repetiu o motorista fitando Pleniakov pelo retrovisor. - Nunca ouvi falar, mister, porque havia de ser?
Na grande praça, junto do Silver River, erguia-se a Câmara Municipal. Num poste estava içada a bandeira das estrelas, dois polícias conversavam diante da entrada, mastigando pastilha elástica. À esquerda era o acesso ao gabinete do xerife e comissariado da polícia; pela direita entrava-se na repartição de finanças, e a grande porca de vidro, no centro, conduzia aos serviços municipais. Jim travou o autocarro.
- Final da carreira, mister. E muitas felicidades. Sinto curiosidade em saber quando o voltarei a ver. Falta de trabalho não há entre nós. Informe-se junto do presidente da Câmara e não o trate por general. E pense bem que amanhã à tarde há futebol no estádio.
Pleniakov desceu e ficou a olhar para Jim. Este dirigiu-se a um self-service, com as mãos nos bolsos das calças, um homem que se sente feliz por poder comer um hamburger de «três andares».
«Pensemos com lógica», disse Pleniakov de si para si. «Analisemos o âmago da questão. Há pouco mais de uma hora, o general falou comigo pelo alto-falante. Foi do lado de fora da primeira rede de arame farpado electrificada e ainda estava em solo russo. Aqui é a América, e se é o general que está a presidir nesta câmara não é general mas presidente da câmara.Tudo isto é uma loucura, uma loucura perfeita. O que pretendem de mim? Em Ust-Katovskaia apenas me tinham dito: ”Vai ser destacado e encarregado de uma missão em que somente podemos utilizar os melhores. E consideramo-lo dos melhores. Muitas felicidades, Andrei Nikolaivitch...”»
Enterrou mais o horrível boné na cabeça, olhou para os indolentes polícias e entrou na Câmara Municipal. Sentiu imediatamente um fresco tão intenso que um arrepio o percorreu. «Ar condicionado», pensou Pleniakov. Claro. Procurou no enorme quadro de informações da entrada o número do gabinete do presidente da Câmara. O gabinete ficava no primeiro andar. Era o número 17. As inscrições eram no número 16. Através de uma porta aberta, chegou-lhe o ruído de uma acalorada discussão. No gabinete do serviço disciplinar um homem queixava-se em altos gritos que não podia adquirir um reclame luminoso para a sua sapataria.
Falava num texano impecável.
«Tudo isto é uma loucura», pensou Pleniakov novamente, sacudindo a cabeça. «No entanto, lá fora corre o Bug e estou a pisar o solo da Ucrânia. Palpita-me o que tudo isto quer dizer... e se estiver certo, trata-se da coisa mais fantástica que a Rússia produziu. Praticamente idêntico ao nosso programa espacial. Uma imagem da perfeição.»
Subiu a larga escadaria, bateu delicadamente à porta do número 16 e entrou quando a voz de uma jovem lhe deu permissão, em inglês.
A secretária, uma loura oxigenada, de caracóis, um rosto de boneca que parecia tirado da capa da revista Harper, o ideal da beleza americana recebeu-o com um sorriso e apontou com o polegar na direcção de uma porta com painéis de madeira.
- Entre, sir. Estão à sua espera.
Um dialecto perfeito de Wisconsin. Pleniakov correspondeu ao sorriso, tirou o maldito ’boné de pala verde, enfiou-o debaixo do braço, bateu ao de leve e entrou. O gabinete era enorme e praticamente sem mobiliário, com excepção de uma sólida secretária de mogno, um lavatório, um sifão metido na parede e as habituais bandeiras num canto, atrás da secretária. Entre duas janelas estavam pendurados dois retratos: Washington e Nixon. Um tinha uma moldura-padrão e outro uma de substituição. A História é mutável, mas os presidentes chegam e partem.
Por detrás da enorme secretária estava sentado, numa cadeira com assento de couro e encosto de madeira, um homem baixo e robusto, de cabelos grisalhos e curtos, em mangas de camisa e o nó da gravata desapertado. Bebia água gelada de um copo e apontou uma cadeira com o indicador, no momento em que Pleniakov fechava a porta atrás de si.
- Apresento-me ao serviço, camarada general - anunciou Pleniakov com uma postura militar, colocando-se em sentido atrás da cadeira. O general pousou o copo de água, limpou os lábios e arrotou discretamente. Em seguida, observou o visitante e sacudiu a cabeça.
- Mas que língua estranha está a falar? - comentou em inglês. - Não entendo uma palavra.
- Aqui estou, sir - retorquiu Pleniakov, desta feita igualmente em inglês. - Pensava que a brincadeira findasse atrás desta porta.
- Errou... pois é precisamente aqui que começa.
- O indivíduo robusto recostou-se confortavelmente e apreciou Pleniakov como se quisesse comprar um cavalo e Andrei Nikolaivitch fosse um garanhão de particular valia. Estive a ler o seu processo, meu caro. Um hino! Dava para um compositor fazer uma epopeia. Pelo que me chega de Moscovo, Frunze e Ust-Katovskaia... deve ser um génio. Não lhe estou a dizer tudo isto para o transformar num macaco vaidoso, mas apenas para que entenda que entre nós os génios são encarregados das missões mais difíceis - prosseguiu, abrindo um classificador no que devia ser o processo pessoal de Pleniakov e apoiando os punhos em cima dos papéis. - Sou Ivan Korneivitch Sinionev... isto apenas como nota marginal e que deve esquecer imediatamente. Agora, chamo-me James Bulder e sou presidente da Câmara desta cidade abençoada por Deus. Temos novecentos e cinquenta e quatro habitantes, três bares, dois drugstores, duas equipas de futebol, uma equipa de râguebi, um clube de ténis, um clube de natação, um clube recreativo, um campo de golfe com dezoito buracos, um salão de jogos com trinta e dois «bandidos mancos», um pavilhão de basebol, um ginásio de boxe, um hotel para a classe média, uma escola para todas as classes, um teatro e um bordel com cinco raparigas de classe. Não é uma verdadeira cidade?
- Sinto-me impressionado, sir.
- Em Silver River há um balneário, barcos a motor para aluguer e o restaurante do Billy, que é especialista em hamburgers e bifes. Billy foi, outrora, peso-pesado do boxe. Está a precisar de um homem que o ajude na confecção de’ hamburgers e a pôr os acompanhamentos. Seria um trabalho para si...
James Bulder bebeu mais um gole de água gelada. Tinha desligado o aparelho de ar condicionado e preferia aguentar a atmosfera quente e pesada a apanhar um resfriado com a mudança de quente para o frio. A princípio tinha sido pior... O general Sinionev tossia e sentia faltar-lhe o ar, até que descobriu que não suportava o ar condicionado. Amaldiçoou-o como uma mortífera invenção americana e a partir dessa altura deixou de o utilizar. Daí o seu consumo em triplicado de água gelada.
- Aceito, sir - declarou Pleniakov sem hesitar. Devo, na verdade, mencionar que em Ust-Katovskaia não me tinham dito para onde ia ser destacado...
- Essa parte é a que irá saber da minha boca, rapaz. Sente-se. Vou dar-lhe uma lição de uma hora sobre a história de Frazertown...
- Frazertown?
- Encontra-se na cidadezinha americana de Frazertown, algures no Texas. Lá fora, na rede de arame farpado, existe realmente uma tabuleta: «Novotchok. Barragem. Perigo de morte.» Contudo, não passa de um nome. Cada coisa tem de ter um nome e os habitantes de Vinniza, de momento, deram-se por satisfeitos e não se mostraram curiosos quando Novotchok apareceu na rede. Era compreensível. Mais um depósito. Talvez de foguetes. Não se devem fazer perguntas demasiadas, irmãozinhos. Traçamos um largo círculo em redor da rede de arame farpado e de Novotchok. Em seguida, ficaram curiosos... durante três anos construiu-se aqui de dia e de noite, rolaram colunas de camiões atravessando Vinniza, junto ao Bug, e surgiu esta cidade de Frazertown. Há dezassete anos que está a funcionar. Frazertown é tão completa como só uma cidadezinha americana pode ser.
- Há dezassete anos que ela existe aqui? - retorquiu Pleniakov em voz baixa. - E ninguém sabe.
- Sabem alguns, mas esses preferem morrer a dizer uma palavra que seja do assunto. Até agora foram introduzidos nos EUA, onde desempenham, competentemente, cargos na indústria americana, no exército, na marinha, na pesquisa e na força aérea, quatro mil cento e noventa e seis perfeitos americanos oriundos de Frazertown. As suas informações garantem a dianteira e invencibilidade da Rússia. Sabemos tudo. Com este objectivo, tudo vale a pena. Andrei Nikolaivitch. É esta a última vez que os trato assim. Foi-me enviado para que faça de si um perfeito americano. A sua mãe é oriunda da Georgia?
- Sim - respondeu Pleniakov num tom acalorado, pois o que acabara de ouvir queimava-o como fogo. - Em 1930, fez uma viagem à volta do mundo, esteve também em Irkutsk, ali conheceu o meu pai... engenheiro Nikolai Anatolovitch Pleniakov.
- ...ficou na sua companhia e casaram-se. Em 1939, nasci eu.
- Segue-se o resto da história - disse Bulder-Sinionev, folheando o processo. - Jovem pioneiro, membro do Komsomol, as melhores notas da escola, exames finais do liceu, Academia Militar, coeficiente de inteligência: cento e sessenta e sete. Depois, quando já estava em Frunze, morreram os seus pais.
- Sim... morreram queimados em Odessa, quando se incendiou o hotel. Estavam a passar férias. O meu pai tinha podido salvar-se, mas voltou a enfrentar as chamas para ir buscar a minha mãe que, tomada de pânico, torcera um pé e não conseguia correr. Então, foi atingido por uma trave em chamas.
- Os Pleniakovs foram sempre pessoas corajosas
- observou Bulder, fechando o processo com um estalido. Na sua casa falava-se russo e inglês. Foi criado num ambiente bilingue. Agora chegou a Frazertown e aqui queremos fazer de si um homem do topo. Dentro do mais tardar um ano estará nos EUA a servir a sua pátria na frente mais importante, ainda que invisível. Continua a amar a sua pátria, não?
- Claro, sir... - declarou Pleniakov num tom convicto, enquanto Bulder o fitava com uma expressão pensativa, perscrutadora, crítica e avaliadora. Um olhar que não permitia mentiras.
- Chama-se John Barryl - prosseguiu Bulder subitamente. - Como se chama?
- John Barryl.
- Aqui tem os seus documentos - declarou o general, empurrando, por cima da secretaria uma carteira de bolso a imitar cabedal. - Aí dentro estão o seu curriculum, árvore genealógica, nomes de amigos, certificados militares, declarações dos patrões... Até agora já mudou nove vezes de profissão!... Diplomas de nadador e de boxeur. É, realmente, um bom nadador e boxeur?
- Exacto, sir - respondeu Pleniakov com esforço. Devo inscrever-me aqui no ginásio de boxe?
- Acho boa ideia. De resto, está a viver em Frazertown como um americano livre. O que implica: apenas whisky em vez de vodka, Camel em vez de Papyrossi, e, naturalmente, dólares em vez de rubles. Duas vezes por semana há aulas de Geografia e de História da América, bem como de particularidades do dia-a-dia americano, em que se encontram incluídos os preços dos bens de consumo, apenas para dar um exemplo. Aqui são todos americanos... cada palavra russa é punida. Esqueça-se de que é russo, John! É americano! Tem algum passatempo?
- Gosto de ouvir música clássica.
- Permitido.
- Então posso ter os meus discos de volta?
- Não - respondeu Bulder com um riso paternal. Mencione algumas das suas preferências.
- As segunda, quarta e quinta sinfonias de Beethoven...
- Tocadas por quem?
- Pela Orquestra Filarmónica de Moscovo, dirigida por Kiril Kondrachin...
- Ora aí está! - exclamou Bulder, erguendo a gorda mão. - Em Frazertown ouvem-se discos tocados pela Filarmónica de Nova Iorque, dirigida por Bernstein, ou pela Orquestra de Filadélfia, dirigida por Solti. Trata-se da pequena diferença que, dadas as circunstâncias, pode salvar a vida. Você agora é americano, John!
- Eu sei, sir...
- Então muitas felicidades como fabricante de hamburggers.
desejou Bulder, levantando-se e estendendo a mão a
Pleniakov, por cima da secretária, num cumprimento vigoroso. - Vamos ver-nos com frequência, John. Se tiver problemas, estou aqui para o ajudar. E agora trate de procurar casa...
-- Procurar? - repetiu Pleniakov, surpreendido.
- Claro. É um americano livre. Não anda com a casa atrás de si. Agora, terá de cuidar de si. Good-bye, John...
- Até à vista, sir.
Pleniakov deu meia volta e dirigiu-se para a porta. Contudo, Bulder-Sinionev voltou a falar de Andrei Nikolaivitch a abrir.
- Mais uma coisa, John. Em Frazertown há uma série de raparigas bonitas. Presumo que hoje à noite já tenha agarrado uma...
- Todas colegas russas?
- Americanas - rugiu Bulder. - Habitue-se à ideia, John!
E depois, num tom mais calmo:
- Também isso pertence à instrução: flirt americano! As relações com as raparigas americanas são sensivelmente diferentes do namoro russo. Alguma objecção?
- Nenhuma, sir.
- Muito bem, então. Quando vir uma rapariga bonita, não lhe fale romanticamente da Mãezinha Volga, mas solte um leve assobio entre dentes e faça um piropo. Proceda como se não existisse mais nenhum homem ao cimo da Terra. E assuma um ar desportivo. As americanas têm um fraco por músculos. Por hoje basta... aprenderá mais nos cursos. e agora vá à sua vida, John!
Mais tarde, Pleniakov - a partir de agora passaremos a chamar-lhe John Barryl, a personalidade em que se vai transformar - sentou-se num banco junto ao rio, a olhar os barcos e o Restaurante Billy’s, o seu novo local de trabalho. No telhado imperava um gigantesco e colorido hamburger de plástico, com três camadas e um aspecto tão natural que fazia crescer água na boca. À noite aquele monumento estaria mesmo iluminado.
Pela margem passeavam rapazes e raparigas muito jovens, vestidos com roupa de algodão, jeans, shorts e camisas coloridas. Quatro barcos andavam em círculo pelas águas, e num canto relvado estavam acocorados quatre hippies que tocavam guitarra e cantavam. Um par de transeuntes atirou-lhes moedas. O bonde passou ao seu lado... o robusto motorista reconheceu John B any l, piscou-lhe o olho e fez um sorriso de um canto ao outro da boca. Estava calor e a própria brisa do rio - Silver River apenas trazia um calor húmido.
John abanou-se com o boné, seguidamente levantou-se e perguntou onde ficava uma agência imobiliária. Quando lá chegou - achava incrível pensar que também os dois funcionários eram oficiais soviéticos como ele - decidiu-se por uma pequena casa nas proximidades do estádio de natação, com um minúsculo jardim e um automóvel Ford incluídos no preço, assinou um contrato de aluguer e deixou o mobiliário igualmente ao cuidado da agência. A prestações, evidentemente, na medida em que setenta por cento da vida nos EUA se baseia nesse sistema.
John Barryl começava já a tornar-se americano.
Após ter sido bem sucedido na procura da casa, voltou até junto ao rio e apresentou-se ao novo patrão.
Billy Rampler - assim se chamava o dono do Billy’s decorado com o hamburger gigantesco no telhado - era um homem alto e bem constituído, no final da casa dos trinta anos e John pensou imediatamente: «Enquadra-se tanto como eu no protótipo de major do Exército Vermelho. Vê-se que é um camarada perfeitamente treinado.» Em seguida, pôs de lado este tipo de ideias e esforçou-se por se comportar como um americano.
- Ouvi dizer que precisa de um especialista em hamburgers, patrão! - foi a entrada de John Barryl. E o trabalho indicado para mim. Faço-lhe uns hamburgers que os seus clientes se sentirão excitados só de os comerem.
- Como te chamas? - perguntou Billy Rampler num tom de voz sombrio.
- John Barryl.
- O Serviço de Emprego já te tinha recomendado. Vai para a cozinha, põe um avental e começa. Pago cem dólares por semana.
- E chega?
- Não pago mais. Julgas que isto é o Hilton? Se achas pouco, vai procurar emprego noutro lado...
John Barryl ficou a trabalhar no restaurante de Billy Rampler. Não porque o general Sinionev lho tivesse ordenado - também podia ter recusado e verificado assim a veracidade de aqui em Frazertown se ser, de facto, um americano livre - e tão-pouco porque a preparação de hamburgers o atraísse, depois de ter passado cinco anos de academia em academia e recebido a melhor preparação de agentes russos, desde torturas de despedaçar os nervos a experiências mentais por computador... Não, ficou realmente porque, atrás do balcão onde se servia o leite no restaurante de Billy, tinha descoberto uma bonita jovem de cabelos pretos e pernas altas que nesse preciso instante polia as torneiras do depósito do leite. A jovem vestia uma saia provocantemente justa e curta, que deixava ver as pernas esguias até meio da coxa. E tinha uma pele lisa, morena, queimada do sol. Apenas uma vez e pelo espaço de segundos um mero instante, o seu olhar se cruzou com aqueles olhos quase pretos, depois do que a jovem continuou a dedicar toda a atenção às torneiras cromadas. Contudo, este olhar foi suficiente. Acertou como um raio no peito de John, onde ateou uma fogueira.
- Okay - concordou, dirigindo-se a Billy Rampler. Cem dólares e comida de graça.
- Claro. Dá-me sempre uma grande alegria que os meus rapazes tenham de comer o que eles próprios preparam. Põe-te ao trabalho... daqui a uma hora fecham os escritórios. Logo a seguir atropelam-se ao balcão como cães esfomeados...
- Rampler resmungou entre dentes, olhou para a rapariga de cabelos pretos, depois para John Barryl, deixou descair apreensivamente o lábio inferior e desapareceu num quarto das traseiras. Barryl deixou-se estar no mesmo sítio e esperou que a rapariga acabasse de polir as torneiras cromadas e metesse o pano numa gaveta.
- Chamo-me John Barryl - anunciou seguidamente em voz alta.
- Essa responsabilidade cabe aos seus pais - retorquiu a jovem olhando-o de cenho franzido. - Não o posso mudar...
Endireitou a cabeça, pegou em dois jarros com sumos de frutos e avançou com passo ligeiro para a cozinha. Abriu a porta de mola com uma pancada forte do pé.
Foi a partir deste momento que John Barryl começou a simpatizar com a cidadezinha-modelo americana de Frazertown e com tudo o que o esperava aqui.
Quem é desviado para Fort Thompson pode considerar-se atingido pelo destino e há que o lamentar.
Não que Fort Thompson seja a contrapartida de Novo Rasnopov no meio da Sibéria, onde se diz que os lobos mordem na própria cauda, tal a solidão - não é nada disso. Fort Thompson situa-se no Dacota do Sul, no meio de pradarias incomensuravelmente amplas, mais precisamente no Missuri, no sítio onde ele se alarga e é travessado por ilhas de areia e de pedra, porque é estancado junto a Pickstown pela barragem de Randall e em centenas de quilómetros para diante se transforma numa única e gigantesca represa, uma grandiosa cobra-de-água que serpenteia ao longo da terra fértil. Os habitantes que nasceram em Fort Thompson também morrerão nesse local dizem: «Este pedaço de mundo, onde a terra a perder de vista, o céu infindo e a água de um azul-prata se confundem numa enorme calma paradisíaca, não tem outro que se lhe compare no aspecto de uma beleza divina.» E relativamente a história do Dacota do Sul não há que discutir. Nomes como Sioux-Falls e Black Hills, Mount Rushmore e Little White River, Aberdeen e Fort Pierre são aprendidos por todas as crianças do Dacota do Sul na mesma altura e com a mesma facilidade com que começam a falar de coca-cola e de gelado.
No entanto, o major Robert Miller não conseguiu deixar de achar estranho que o levassem num pequeno avião da Força Aérea americana até ao ridiculamente pequeno campo de aviação de Pierre, onde um primeiro-tenente o esperava com um jeep. As belezas paisagísticas já as apreciara o suficiente do ar, a história do Dacota pouco interesse lhe despertava e. quando, na altura de uma curva descrita pelo avião, conseguiu avistar a enorme reserva de Big-Bend e a represa de Oahe - a que o piloto se referiu entusiasticamente -, limitou-se a resmungar por entre dentes:
- Okay, okay... tudo é muito imponente, rapaz... mas ficavas satisfeito se te transferissem para o meio das pradarias?
Fez a mesma pergunta ao primeiro-tenente que o foi buscar e o recebeu com um «Bem-vindo, Bob!» e uma expressão alegre.
- Não podemos escolher tarefas, quando usamos estas coisas - retorquiu o primeiro-tenente, apontando para a camisa do uniforme.
Estava calor, a pradaria reluzia e do Missuri estancado evaporava-se a água que ficava a pairar sobre a terra, assemelhando-se a um aglomerado de nuvens incolor. O jeep desceu, aos solavancos, uma pequena estrada junto à margem na direcção sudeste. Bob Miller recostou-se no assento, afastou o boné para trás e desapertou os botões do casaco do uniforme. Viajara devidamente fardado porque lhe tinham dito que o esperava uma missão extraordinariamente importante. Na sua mala de fechos metálicos, colocada no banco traseiro do jeep estava arrumado tudo do que se necessita para uma ausência temporária. Também lhe tinham dito: «Não leves bagagem de mais, Bob. Não precisas.»
Depressa os factos comprovaram que ele entendera algo diferente da realidade. Para o sítio onde o queriam mandar, não precisava de mala.
Fort Thompson apresentou-se a Bob Miller tal como o tinha imaginado. Um desconsolo atirado para uma paisagem maravilhosa, uma mistura de algumas ruas, casas aglomeradas, o resto do antigo forte erguido contra os índios Sioux, em cuja praça de revista às tropas continuava a flutuar, num enorme poste, a bandeira americana, qual monumento nacional de que os de Thompson se orgulhavam, dois hotéis, um campo de futebol e uma monotonia geral.
:- Tenho de ficar aqui? - perguntou Bob, esticando as pernas no chão do jeep. - Não me encontro numa unidade militar?
- Não.
- Como não?
- Somos apenas dez homens no velho edifício do forte.
- Mas tudo isto é uma brincadeira de péssimo gosto!
- Não te exaltes, Bob. Dentro de uma hora estarás convencido de teres aceite a tarefa mais dura que te podia esperar no Exército...
Entraram no velho forte e pararam diante da messe dos oficiais, uma construção baixa, onde estavam estacionados mais três jeeps. Mais estranha ainda foi a passagem de uma barreira e de três sentinelas munidas de metralhadoras, estando igualmente diante da porta um homem com uma MPl engatilhada. Bob Miller saltou do jeep, olhou para a bandeira americana e pôs o boné.
- Estamos a rodar aqui um filme com Sioux? - perguntou.
- O general Orwell espera-te, Bob - respondeu o primeiro-tenente.
- Dad Jack? - retorquiu Miller dando meia volta e com uma expressão da maior surpresa estampada no rosto. Aqui? - acrescentou com um gesto largo.
- Não faças perguntas... Entra.
A sentinela de guarda à porta revistou-o silenciosamente, mas com um sorriso quase de desculpa e fez um aceno de quem se dava por satisfeito.
- Permite-me que fique com o cinturão e as pistolas, sir?
- Acha que tenciono abrir um buraco na testa do general Orwell?
- Tenho ordens a cumprir, sir.
Miller desafivelou o cinturão, de onde pendiam as bolsas das pistolas, e atirou-o à sentinela. Em seguida, obteve permissão de entrada, chegou a uma espécie de antecâmara e avistou uma porta aberta, do lado esquerdo. Dado não se encontrar vivalma na sala, seguiu em frente e entrou na segunda sala. Aqui, o general Jack Orwell estava sentado por detrás de uma secretária e fez um sinal amigável a Miller.
- Aproxime-se mais, Bob. Que tal vai o Alasca? Miller descobriu-se e pôs o boné debaixo do braço.
Manteve-se no meio da sala como se fosse um cepo. Era um indivíduo de cabelos louros, olhos azuis-claros, um metro e oitenta e nove de altura, um corpo treinado até ao mais insignificante dos músculos, onde não havia uma grama a mais nem a menos, mas só carne rija. Contudo, o elemento mais significativo em si eram os olhos. Havia momentos em que relampejavam de entusiasmo, mas na maior parte do tempo caracterizavam-se por um brilho de melancolia, um bafejo de intrínseco romantismo que, particularmente nas mulheres, sempre que contemplavam estes olhos, desencadeava sentimentos irresistíveis de dádiva total. Os colegas de Bob Miller recusavam-se por esse motivo a apresentar-lhe as suas namoradas. Havia sempre confusão porque as jovens não cessavam de sonhar com Bob e a ruptura era infalível. Neste momento, fitava o general Orwell com grandes olhos sonhadores de criança. Tratava-se, no entanto, de uma falsa imagem... Há muito que Orwell conhecia Bob, e conhecia-o bem.
- Que tal vai o Alasca? Sabe-o melhor do que eu, sir limitou-se Bob a responder. - Ainda há quatro dias nos falou em Kvigillingkok.
- Quatro dias podem mudar o mundo, Bob. E muita coisa mudou.
- Aqui em Fort Thompson?
- É um nome como outro qualquer. Também poderia ter sido Oak Creek. Mandámos vir de avião para este eu do mundo um punhado de homens. Bob, porque a nossa posição no Alasca não me parecia oferecer segurança bastante. Tenho um projecto quente em que você entra, e atrás dos seus actos estará a sombra de Washington, do Pentágono, de toda a nação.
Soa-lhe bem, Bob?
- Continuo no plano do enigma, sir.
- Comecemos, portanto, pelos conhecidos.
O general Orwell recostou-se, indicou um assento de verga ao seu lado, tirou uma garrafa de whisky e dois copos de uma mala pessoal do equipamento militar, e encheu os copos. Bob Miller instalou-se, mas deixou ficar o copo nos joelhos, sem beber.
- Não tem sede? - perguntou Orwell.
- Falta de hábito. Há quase dois anos que ando a tomar apenas bebidas russas - vodka, krimseckt, cognac, vinho de Astracã, chá de Amur adoçado com mel. Pensei que para mim o whisky acabara, sir.
- Voltou novamente, Bob - observou Orwell, enquanto despejava o copo de um trago. - É o que existe de louco neste assunto: tivemos de fazer duas pessoas de si. Uma esquizofrenia perfeita. Em Smolenska educámo-lo para o transformar na imagem de um russo... agora é necessário que redescubra a forma de ser um perfeito americano. Mas sem esquecer que é igualmente um russo dos pés à cabeça. Fiz-me entender?
- Não, sir - respondeu Bob Miller, ao mesmo tempo que cheirava o whisky, se controlava manifestamente e bebia um gole. «Quão profundamente uma pessoa se pode desabituar de tudo a que se habituou», pensava. «A prova é que depois de viver dois anos no Alasca, na orla marítima de Kvigillingkok junto à baía de Kuskokvim, com vista para o estreito de Bering, ou seja, nos recônditos do mundo, numa cidade altamente secreta, construída até aos últimos detalhes à maneira russa e a que se chamava Smolenska, saiu realmente o que os psicólogos e investigadores tinham idealizado: um perfeito russo.»
Do esquema fizera parte jogar xadrez, suar nos Bania, assistir todos os sábados a uma reunião do partido, festejar o 1.º de Maio e a Revolução de Outubro... transportar algodão em fardos como tractorista ou descarregar nas margens do estreito, ter levado para a cama uma rapariga que se chamava Galina Adamovna e trabalhava em floricultura. Uma coisinha suave e terna com uma voz fraca quando se entregava inteiramente. Tinha havido também a passagem por aquele sítio na margem do estreito, chamado Ilanskaia, as conversas sobre Puchkin, levtuchenko e o grande sonho de uma ida ao Teatro Bolschoi para assistir ao Lago dos Cisnes.
A juntar a tudo isto existiram igualmente as difíceis semanas na pedreira e no gelo, a sobrevivência na base das mãos, a travessia de regiões antediluvianas, o suportar de torturas asiáticas animalescas, a fome e a sede até ao ponto de morder a casca das árvores e sugar algumas gotas das folhas molhadas de orvalho. Tudo isso se tinha vencido, restavam cicatrizes, nas pontas dos pés, por exemplo, por lhe terem metido pedacinhos de bambu por baixo das unhas e seguidamente pegado fogo aos mesmos. Só ao arder, pois tinham de arder, e a dor se tornara insuportável, os tinham retirado e fora transportado para a pequena enfermaria de Smolenska. Ali recebera a visita do general Orwell, que o felicitara: «E um osso duro de roer, Bob! Parabéns! Manteve a coragem. Posso garantir-lhe que o considero o meu melhor aluno destes últimos nove anos...»
Tudo isto serve para que uma pessoa se orgulhe. E, agora, estava ali sentado em Fort Thompson. Tudo fora inútil e seria obrigado a funcionar novamente como americano. Qual o cérebro capaz de entender tal coisa?
- Em que está a pensar, Bob? - perguntou o general Orwell num tom suave.
- No Alasca, em Smolenska, sir.
- E está a perguntar a si mesmo o objectivo de tudo isto, não?
Miller respondeu com um aceno de cabeça afirmativo. O velho sabia ler os pensamentos das pessoas como ninguém.
- Vou dizer-lhe uma coisa, Bob - acrescentou. Tudo o que aprendeu ser-lhe-á cem vezes útil! Como russo e como americano. Já ouviu falar de Vinniza?
- Uma cidade na Ucrânia, junto ao Bug - respondeu Bob como se fosse um computador. - Cento e trinta e cinco mil habitantes, já conhecida desde o século XIV, cenário de muitas batalhas entre Ucranianos e Polacos, até cair nas mãos dos Russos, em 1795. Hoje em dia um centro industrial e de caminho-de-ferro. Cidade natal do poeta russo Koziubinski. Horticultura maravilhosa, pomares, um clima quase meridional. Centro musical da Ucrânia. Famoso teatro de marionetas. Vinniza possui magníficos balneários na sua orla costeira rochosa e florestal...
- Sabe muito da geografia russa, Bob - interrompeu-o Orwell com um gesto. - E, no entanto, tudo isso é merda. A sul de Vinniza estende-se uma região de quinhentos quilómetros quadrados, onde não há magníficas estações termais, mas redes de arame farpado electrificadas, estradas da morte minadas e uma cidade interdita. Tal como a nossa querida Smolenska, por detrás de Kvigillingkok. Sabemos alguma coisa a este respeito, mas não o bastante. Apenas pedaços soltos. Oficialmente, a região chama-se Novotchok, mas isso nada significa.
O general Orwell encheu novamente o seu copo de whisky com uma coloração dourada. Bob Miller sorvia o seli em pequenos goles. Tinha-se habituado ao vodka. Agora o whisky sabia-lhe a um pedaço de cabedal gasto.
- Em 1959 verificou-se um acidente de automóvel na estrada que vai de Memphis a Little Rock. Um tal major Harry W. Morgan embateu com o seu jeep de encontro a um camião e ficou gravemente ferido. - Orwell bebeu mais uma vez um trago enorme e limpou os lábios com as costas da mão. - O major Morgan deu entrada no hospital militar de Memphis, recebeu tratamento, mas manteve-se uma semana inconsciente. E, então, sucedeu algo misterioso. O bom do Harry falou durante esse período e pronunciou algumas frases num russo impecável! A nossa CIA pôs-se alerta, anotou as frases e quando o major Morgan ficou bom enfiaram-se-lhe alguns centímetros cúbicos de soro da verdade para se obter informações adicionais. Foi um sucesso, Bob! O tipo falou com um intérprete russo, como se se tivesse aberto uma represa. O que contou foi como se nos desse um soco. Em Vinniza, junto ao Bug, deve existir uma das mais especializadas e secretas escolas de agentes dos Soviéticos, designada nos círculos mais íntimos como «Pequena América», porque (e agora tenha calma, Bob), os Soviéticos tiveram a mesma ideia que nós e ali ergueram uma cidade totalmente americana, para nela educarem perfeitos americanos, que se vêm infiltrar entre nós, roubando-nos as posições-chave. São predestinados para tal. Trata-se de rapazes e raparigas de inteligência elevada. Quem é um «vinniziano» pertence a uma elite indiscutível. Os «professores» de Vinniza são os maiores conhecedores da língua inglesa. Até mesmo o antigo embaixador soviético em Washington, o camarada Paniuchin, recebe lições do quotidiano americano. Essa «Pequena América» deve ser um espanto!
Orwell retirou um mapa da gaveta e atirou-o a Bob Miller, Bob agarrou-o e, ainda quando vinha no ar, reconheceu a Ucrânia, com o Bug e Vinniza. Orwell acendeu um cigarro e expeliu a primeira fumaça para o tecto.
- Conseguimos saber tudo isto. O nosso contra-ataque iniciou-se logo, como é óbvio. Contudo (e este facto é de assinalar) até hoje ainda nenhum agente do nosso serviço secreto ocidental foi capaz de se introduzir nesta região proibida. Em 1962, um capitão francês conseguiu chegar ao terceiro posto de controlo. Foi então que o apanharam. Do seu destino nada mais se soube. Desde então apenas alarmes falsos. No entanto, algo certamente se está a passar, Bob! Suspeitamos que centenas de russos americanizados são preparados nesse local e é de prever que subitamente os cargos mais importantes se encontrem ocupados por essas pessoas. Era uma catástrofe nacional! Não os podemos desmascarar, porque estes russos são a imagem da perfeição. Temos o exemplo do major Morgan. Se não fosse o acidente, decerto agora já teria sido nomeado coronel. Sem um processo pessoal no Pentágono, evidentemente! Mas quem é que o vai pedir? Pense no capitão alemão de Kõpenick! Um uniforme é bastante para que todas as portas se abram. Nesse aspecto, os EUA em nada diferem da velha Europa! Morgan já tinha formado o seu círculo. Até existia uma «noiva», na base de apoio americana de Passau, na Alemanha. Trabalhava nos Serviços Administrativos, chamava-se Betty Morton e era, de facto, o segundo-tenente soviético Alexandra Koruni. Achas uma sujeira, Bob?
- Para que me conta tudo isso, sir? - perguntou Miller desconfiado, ao mesmo tempo que acabava o whisky.
- Como está a tua mãe russa, a bela Galina Fiodorovna Miller?
- Vive em paz... até agora...
- E o teu pai Johann?
- Ocupa-se do drugstore e do motel.
- Não é natural de Dusseldórfia?
- De Essen, sir. Quando, porém, emigrou para os EUA tinha apenas quatro anos. Hoje tem sessenta e seis...
- retorquiu Bob Miller, endireitando-se na cadeira. Os meus pais desconhecem que estive em Smolenska. Tanto quanto sabem, estou a estudar no Departamento de Línguas do Exército.
- Bob! - exclamou o general Orwell, cruzando as mãos na barriga. - Viajámos de avião até Fort Thompson, ao abrigo de todas as indiscrições, que até no Alasca são prováveis, expressamente para lhe perguntar: está disposto a deslocar-se à Rússia?
- Mais precisamente: a Vinniza?
- Sim. -- À cidade interdita a que se chama Novotchok.
- Esse nome é o que está na rede de arame. O nome da cidade é seguramente outro. Um nome americano. Tem todo o apoio de que necessitar... só que, se lhe puserem as mãos em cima, não conhece ninguém. Julga-se capaz?
- Julgo, sir - respondeu Miller sem hesitar.
- Já esperava a sua reacção, Bob. Se não fosse você, quem mais seria? E o meu melhor homem. Agora trata-se de entender o que lhe disse há pouco: tem de levar uma vida totalmente dupla e fazê-lo na perfeição. Ora russo, ora americano, de acordo com as necessidades do momento. Convença-se de que tem de ser assim, Bob! A sua missão consiste em introduzir-se na cidade secreta e fornecer-nos todos os nomes dos «americanos perfeitos» que ali são preparados, para os podermos ter debaixo de olho quando aparecerem entre nós. Não é um passeio, mas uma missão com risco de vida. Vinniza não é local para os que não sabem nadar!
- Então sou a pessoa indicada, sir - observou Bob Miller, fitando o general Orwell com os enormes e românticos olhos azuis. - No exército, fui campeão, dos mil metros bruços...
- Bem precisará desse seu humor e sangue-frio :- retorquiu Orwell levantando-se, no que foi imitado por Bob Miller. - Começamos dentro de duas semanas, Bob. Da Turquia, utilizando um barco de pesca através do mar Negro. De pára-quedas não resulta... Os Soviéticos têm uma vigilância aérea perfeita. Terá de aportar à costa russa durante a noite. Falaremos ainda depois quanto a pormenores. Em Vinniza terá à sua espera um nosso contacto, o tractorista Avdei Konstantinovitch Deviatov. Mora em Ulinskaia, onze.
- Orwell retirou o mapa da Ucrânia da mão de Miller e meteu-o dentro da gaveta. - Tem algum desejo especial, Bob?
- Tenho, sir - respondeu Bob Miller de olhos fixos na parede. - Gostava de ver a minha mãe antes de partir...
- Concedido, Bob - anuiu o general Orwell, sentindo um nó na garganta e dizendo de si’ para si: «Está a pensar o mesmo que eu: deste género de viagem não há regresso. Os milagres só raramente acontecem.»
- Voltamos a ver-nos daqui a dez dias, no campo de aviação. Aproveite bem estes dias, Bob - acrescentou.
- Vou esforçar-me por isso, sir - retorquiu Miller, que se pôs em sentido quando Orwell passou ao seu lado. Talvez não acredite, mas a ida a Vinniza agrada-me.
Amasra é um porto pesqueiro turco no mar Negro, à saída das montanhas pônticas. Constituído por casinhas baixas e caiadas de branco, uma praia arenosa onde se guardam os barcos e se põem as redes a secar em paus curvos. À volta da praça do mercado há alguns cafés que - seguindo a nova moda- até se chamam «bares», onde - para surpresa dos habitantes de Amasra - chegam frequentemente estrangeiros a este local, talvez por se situar estreito minarete de onde é ainda o próprio muezim que interessa. A areia é branca, não há dúvida de que aqui se descansa e existe também uma mesquita com um alto e estreito minarete de onde é ainda o próprio muezim que chama os crentes à oração, não se utilizando, como noutros locais, o mero registo magnético. Um forte sopro de romantismo oriental paira sobre Amasra. Até se viam ainda - isoladas - mulheres de rosto tapado, apesar da revolução de Ataturk e do seu movimento de emancipação, seja como for, o tempo aqui parou, mas todos andam contentes, vivem sem preocupações, vão buscar sustento ao mar ou aos imbecis dos estrangeiros, que pagam o que se lhes pede, sem regatear. Alá proteja os parvos... que sustentam os espertos.
Contudo, deu nas vistas quando, um dia, sete estrangeiros que falavam como se fossem americanos chegaram num velho camião de Zonguldak, a cidade mais próxima, na costa do mar Negro, à estação de Amasra e logo fizeram negócio, tendo alugado cinco quartos na casa de Yegi Gerilgiiii. Gerilgiiii era dono do que em Amasra se chama um hotel. Situava-se na praia e era famoso pelos seus pastéis com recheio de mel.
Logo se espalhou que os estrangeiros eram profissionais, pois discutiram os preços dos quartos durante três horas, até que apareceu o chefe da Polícia de Amasra (o que era quase uma sensação) e pôs fim ao regatear, ordenando a Gerilgiiii que fizesse um preço baixo.
É para o interesse da comunidade - disse-lhe. - Além disso, não te esqueças, Yegi, que nunca vi como despejas aguardente em chávenas de chá...
Os sete americanos demoraram-se quatro dias em Amasra e receberam inúmeras visitas de desconhecidos que chegaram em carros pesados, até mesmo de Angora. Em seguida, numa tarde, apareceu um barco de pesca estrangeiro, maior do que os barcos de Amasra e com motor mais potente. Ouviram-lhe imediatamente o som: motor potente, próprio para navegar, um barco capaz de aguentar vários dias no mar alto. Ancorou ao largo, em águas fundas, e deixou-se admirar. À noite, um dos americanos meteu-se sozinho num barco a remos, foi até outra embarcação, onde o içaram, e ao barco, para bordo. E ainda nessa noite o barco prosseguiu viagem e desapareceu na vastidão do mar Negro.
No dia seguinte, os restantes seis americanos também abandonaram a pequena localidade, ao som do cântico pronunciado pelo muezim, e dois dias mais tarde a visita fora esquecida até por Gerilgiiú, o dono do hotel, a quem o chefe da polícia disse: «Se pronunciares uma palavra que seja sobre este assunto, mando-te castrar como a um eunuco!» Para um muçulmano não existe ameaça mais horrível.
O barco de pesca seguiu a toda a velocidade para o norte, na direcção da costa russa, rumo ao golfo de Odessa. Bob Miller, encostado à amurada, contemplava a costa turca, que ficava para trás. De todo o seu ser tinha-se apoderado um curioso sentimento de frieza. Nada de despedidas demoradas, tão-pouco receio pela vida, nem sequer esquematização do que o futuro lhe reservava. Tal como no Alasca, no centro de preparação de Smolenska, quando o tinham enterrado na terra até ao pescoço e lhe tinham deitado água em cima durante horas a fio, até julgar que acabaria por dar um estoiro. Em seguida conseguiu desligar-se da situação - tinha aprendido - e apenas continuou a respirar, transformado num fole sem emoções.
A sua bagagem à prova de água continha o uniforme de um major soviético, uma pistola Tokarev, uma caixinha com material plástico explosivo, documentos e bilhete de identidade soviéticos, ordens de viagem devidamente preenchidas e carimbadas, poderes extraordinários conferidos pelo Departamento Central da KGB em Moscovo... e uma cápsula de gelatina com veneno, de efeito instantâneo. Quando vestisse este uniforme, deixava de existir Bob Miller. Passaria a chamar-se major Vassia Grigorevitch Chukov, de 33 anos de idade, inspector da KGB, em missão especial. Nenhum russo se atreveria a duvidar que assim era. Um uniforme é hoje em dia tão inviolável como outrora o felónio, o manto bordado a ouro do papa.
Bob Miller meteu a mão no bolso das calças, tirou um maço de cigarros amachucado e meteu um cigarro na boca. Sentou-se, seguidamente, em cima de um rolo de cordas e contemplou o mar Negro, iluminado por um pálido luar. As gaivotas voavam em círculo por julgarem que se tratava realmente de um barco de pesca e, por conseguinte, uma mesa posta para elas.
Nesse preciso momento, em Frazertown, John Barryl tinha preparado e vendido o último hamburger. Billy Rampler fechou a loja, desligou o enorme reclamo luminoso de plástico colocado no telhado, bateu na esta e disse:
- Estou farto. Vou-me embora. - E desapareceu.
John limpou o balcão de trabalho e aproximou-se de Norma Taylor, que estava novamente ocupada com as torneiras do leite. A limpeza e a higiene eram uma regra na loja de Billy Rampler. O seu receio de bactérias e bacilos era quase patológico... também, neste aspecto,- um americano típico. John admirou intimamente esta perfeição de comportamento. No caso de Norma parecia acontecer o mesmo.
Apoiou-se ao balcão, contemplou-a por momentos e, em seguida, bateu com os nós dos dedos no tampo de aço.
Norma fitou-o com uma expressão um tanto impertinente.
O que se passa? - perguntou.
Tive uma ideia... -respondeu John Barryl.
- Que estupidez!
Ainda podíamos ir ao Hillmoore e tomar um cocktail.
O que acha?
Não! - recusou, pondo o pano de lado e alisando a blusa. O conteúdo por baixo da blusa era de apreciar.
- Porquê, Norma?
- Ao ver a forma como está a olhar para o meu peito, sei o que pretende. Todos os homens querem o mesmo... e não me agrada! Ainda ninguém o informou de que pertenço à Liga dos Direitos da Mulher?
- Não. Céus! E o que está a fazer numa coisa dessas?
- Luto para que nos deixem de olhar, a nós, mulheres, como objectos de prazer.
- E isso acalma-a?
- Macaco! - exclamou Norma Taylor num tom rude, ao mesmo tempo que atirava o pano à cabeça de John e saía do restaurante. Ele soltou uma sonora gargalhada, apoiou-se ao balcão e prometeu a si mesmo arrancar toda a feminilidade de Norma Taylor cá para fora.
A essa mesma hora, Bob Miller, sentado no rolo das cordas, encostou-se à casa do leme e adormeceu profundamente. O vento quente do mar desalinhou-lhe o cabelo e encheu-lhe a camisa de ar.
Não é de se pensar que a” vida de John Barryl em Frazertown, a partir de então, se resumia meramente a preparar hamburgers, flirtar sem êxito com Norma Taylor, apanhar banhos de sol na margem-do Silver River, andar de barco a motor, nadar, incitar com gritos agudos a equipa de West Side no estádio de futebol e atirar garrafas de coca-cola pelos ares. Também as visitas informativas ao bordel frequentado por John não eram a descoberta da pólvora, embora as cinco raparigas, tal como o motorista do autocarro prometera, fossem do melhor que havia. Duas morenas, uma ruiva, uma loura exuberante e uma elegante asiática de pele branca que não queria compreender que o alto, bonito e musculoso rapaz apenas queria ver tudo, mas não demorar-se. John pagava a taxa inteira por aquela vista de olhos, mas isso não o salvava. Como era frequente, concluía que as jovens - até mesmo as que o faziam profissionalmente - ficavam com uma expressão sonhadora ao vê-lo e descobriam como que um verdadeiro amor em si.
A vida em Frazertown era qualquer coisa de muito diferente! Das oito da manhã à uma da tarde era-se um objecto, um pedaço de matéria que aqui recebia uma rigorosa instrução militar, segundo todas as regras científicas e rígidas. As aulas tinham lugar no cine-teatro e no salão de concertos: História, Geografia e Economia Americana. John decorou as categorias dos pugilistas, as equipas de basebol que se batiam pelo título, os nomes das grandes estrelas do mundo do cinema e do espectáculo da Broadway, o curriculum dos senadores mais importantes, as emissões das muitas estações de TV americanas, o quotidiano de uma família vulgar entre o Atlântico e o Pacífico. Comia pipocas nos transportes, ia três vezes por semana ao cinema ver os mais recentes filmes hollywoodescos, treinava boxe duas vezes por semana no ginásio, na classe dos pesos-médios, e aprendeu a conhecer uma série de pessoas que, como ele, falavam inglês, se cumprimentavam pelos nomes próprios: «Como vais, Bill?», «Como estás, Jack?» e eram, no entanto, sabia-o, oficiais soviéticos como ele.
Uma vez por semana tentavam fazer com que se fosse abaixo. Tal acontecia num fortim subterrâneo onde americanos de uniforme o prendiam, lhe batiam, o ligavam a um detector de mentiras e o interrogavam durante horas a fio: «De onde vem? Quem é? Qual o seu verdadeiro nome? Como é o seu nome russo? Qual a sua missão? Como se chamam os seus clientes? Onde recebeu instrução? Conte-nos tudo sobre essa escola de agentes em Vinniza! Fale...»
Nos primeiros quatro interrogatórios, John Barryl não se portou nada bem. «Cantou», como os oficiais de serviço registaram gostosamente. Em seguida, John refugiou-se na sua casinha, envergonhado, amaldiçoando a sua fraqueza, à espera que o afastassem de Vinniza com um rótulo de desonra e o destacassem para outro comando, algures na Sibéria, para qualquer lugar frio e votado ao esquecimento. O major Pleniakov, o grande frustrado! Aparentemente, a sua brilhante carreira dava a sensação de haver chegado ao fim. Ninguém o veio buscar de volta, de Jenessei ou de Lena.
Contudo, Mr. James Bulder, o presidente da Câmara de Frazertown, tinha uma outra opinião:
- Vai resultar, John! - observava satisfeito. - Os interrogatórios denotam uma curva positiva do seu endurecimento. Na primeira vez cantou ao fim de duas horas, na quarta vez só o fez passadas sete horas...
- Mas cantei, sir! - interrompeu-o Barryl num tom queixoso. - Não sirvo para nada.
- Andrei Nikolaivitch... Tencionava nunca mais o chamar por este nome, mas agora é necessário!... Até esta altura obteve as melhores notas do curso. Transformou-se no americano-modelo. Contudo, se alguma vez acontecer na realidade a situação para que o treinamos e o tentarem quebrar, sei que é um russo tão perfeito que preferirá morrer a deixar escapar uma palavra que seja! - disse o general Ivan Korneivitch Sinionev, ao mesmo tempo que colocava fraternalmente o braço em redor dos ombros de Pleniakov. E evidente que não se pode levar até ao fim uma coisa destas numa sala de simulacro e, além disso, há uma voz a dizer-lhe bem no fundo da consciência: «Não me vão deixar morrer. São meus camaradas!» E por isso fala-se, para pôr termo a tudo. Reage-se, dessa maneira, involuntariamente. Tudo isso desaparece quando se vive a realidade. Então, morremos, Andrei.
Pleniakov fez um aceno de cabeça afirmativo.
- Agradeço-lhe, camarada general - replicou em voz baixa. - Já tinha começado a odiar-me por falhar. Amo a minha pátria...
- Esse é o motivo por que também é americano! Ao trabalho, John... Aliás, Billy Rampler diz que há quatro anos que lhe prepara os melhores hamburgers. Não é assim, menino bonito?
- Dá-me uma alma nova, sir.
- Sou uma ilusão, John - retorquiu Bulder-Sinionev, metendo as mãos nos bolsos das calças, fazendo um balão com a pastilha elástica e rebentando-o, depois do que riu feliz com a habilidade conseguida. - Que tal vai isso de hormonas? Ainda não levou uma rapariga para a cama?
- Não, sir.
- Porquê? Umas mamas na mão dão mais coragem do que cem palavras minhas.
- Tenho uma jovem em vesta, sir.
- Bonita? Claro que é bonita! Com o aspecto que tem pode andar atrás de rainhas de beleza! Conheço-a?
- Aqui chama-se Norma Taylor...
- É de estalo, John! Se a conseguir, tem na mão um instrumento para mais tarde chegar até à Casa Branca.
- Quem é ela, sir?
- Norma Taylor.
- Quero dizer... fora de Frazertown.
- Não existe «fora de Frazertown» - retorquiu Bulder num tom duro e subitamente muito sério. - Note bem, John. Se se chama Norma, é Norma.
Barryl aceitou a ensaboadela, enfiou o boné de pala plástica verde na cabeça e saiu do gabinete do presidente da Câmara.
Nessa tarde estava de folga. Foi ao cinema, onde assistiu ao Padrinho, com Marlon Brando, em seguida foi até ao Hillmoore Bar, bebeu três whiskies com gelo e meteu-se no pavilhão de basebol.
No ringue estavam a aquecer-se duas «montanhas de carne». Treinavam um bocado, preparando-se para o espectáculo, que começava às 21 horas. O pavilhão estava vazio até de treinadores, oferecendo um conjunto desconsolador de cadeiras e bancadas. Em frente de Barryl, apenas tendo o ringue a interpor-se, uma outra pessoa observava solitária os pugilistas e os golpes aparentemente selváticos com que se atacavam um ao outro.
John deu a volta ao ringue e foi-se sentar junto do outro espectador solitário.
- Desde quando se interessa por carne suada, Norma? - quis saber.
- E o que está a fazer aqui? - retorquiu ela.
- Vim por sua causa.
- Como assim? - perguntou, fitando-o. Era a primeira vez desde há cinco semanas a essa parte que o olhar dela se detinha mais do que um segundo na sua pessoa. Permitiu-lhe fitá-la bem no fundo daqueles olhos dotados de um brilho dourado e um pouco rasgados, como agora se apercebia, e que lhe fizeram correr o sangue ainda com mais força nas veias. «De noite, devem ser fosforescentes como os de uma pantera», pensou. «São olhos de fera, dos quais se fica à mercê. Em momentos de êxtase devem ficar ainda maiores e dominar completamente o rosto. Céus! Que mulher!»
- Como assim? - repetiu, sem deixar de o fitar. Ficou com a sensação de que aquele modo de olhar lhe abria buracos no rosto.
- Sinto-me só quando não estou consigo, Norma... - atreveu-se.
- Ainda não se deu conta de que não passa de um imbecil, John? - comentou rudemente. - O belo John de Frazertown... ainda não ouviu dizer?
- Não - respondeu confuso.
- As outras raparigas não’ falam de outra coisa e comem-no com os olhos. Ainda não se deu conta de que nós, desde que está empregado no Billy’s, temos mais trinta por cento de clientela feminina?
- Não.
Claro que não. Só tem olhos para os seus hamburgers...
- E para si, Norma.
- Nesse caso, procure outro cenário. Só precisa dedesabotoar a camisa para que dez mulheres se lhe agarrem.
- Porque me fala dessa maneira, Norma? - replicou Barryl suavemente. - Lá no íntimo, você não é nada disso. E essa história da Liga das Mulheres para lutar contra o seu uso como objecto sexual... não passa de conversa fiada. Também tem um coração, Norma. Porque continua a repelir-me?
Não respondeu e limitou-se a levantar-se subitamente para entrar no ringue, batendo no ombro do mais alto e mais robusto colosso de carne. O colosso deu meia volta, esboçou um sorriso dirigido à bonequinha de cabelos negros e lançou um olhar provocante para a blusa que lhe recortava os seios.
- Antes do desafio não, miúda - disse-lhe com sotaque texano e esfregando as mãos enormes. - Se tudo correr bem, teremos sobremesa...
Nesse momento aconteceu algo que John Barryl só entendeu depois de chegado ao fim, tão rápido foi tudo o que se desenrolou no ringue.
Norma Taylor deu um passo em frente e estendeu os dois braços. Em seguida, ouviu-se um forte estalido, como que proveniente de um toque de magia, o montanha de carne foi erguido do chão, deu meia volta no ar e aterrou de frente no colchão. E para ali ficou deitado, não devido a atordoamento mas tomado de uma surpresa incomensurável.
Norma saiu do ringue e contemplou o desconcertado John Barryl com uma gargalhada significativa.
- É esta a razão por que não existe o que quer que seja entre nós, John Barryl - declarou calmamente. - Ainda acabaria por lhe partir os ossos todos...
Nessa mesma tarde John inscreveu-se num curso adiantado de karate. Norma foi logo informada pelo instrutor do curso e riu-se.
Como se vê o amor tinha os seus quês e porquês em Frazertown.
À quarta noite, o barco de pesca tinha-se aproximado tanto da costa russa do mar Negro que a vigilância soviética por radar o devia ter perfeitamente localizado.
Contudo, ninguém os incomodou. Ancoraram ao largo da zona de três milhas e lançaram algumas redes. Sabiam que há muito os tinham identificado como inofensivos pescadores turcos. Ao cair da noite, duas vedetas a motor soviéticas tinham descrito círculos, feito a respectiva inspecção, segundo parece igualmente tirado fotografias e, em seguida, tomado novamente a direcção de Odessa. Era raro os pescadores turcos virem deitar as redes neste local. Na maioria das vezes procuravam as presas nas proximidades da própria costa, por causa do transporte, pois até os barcos mais pequenos estavam equipados com frigorífico. Os peixes mortos aguentavam três dias sob calor ardente, mas começavam a cheirar mal e arruinavam toda a pesca.
Por volta das duas da manhã, sob um céu iluminado de estrelas que pela primeira vez não agradava a Bob Miller, deixaram escorregar o barquinho raso e pintado de preto até à água, tendo escrita na proa a palavra russa Sokol-Falcão. Um pequeno motor fora-de-borda, igualmente de tipo soviético, foi preso com segurança na parte de trás e uma mala de oficial soviético completou o equipamento da embarcação.
Bob Miller manteve-se calmamente encostado à amurada e esperou até que tudo estivesse em ordem. Vestia o uniforme de major soviético e fora passado em revista até ao mais ínfimo pormenor. O corte de cabelo era o conveniente e a própria água-de-colónia que lhe perfumava a cara provinha de uma fábrica de cosméticos de Tífilis. Nos bolsos levava fósforos russos, um maço de Papyrossi e uma navalha com lâmina de aço fabricada em Kasan. Só a cápsula de gelatina com o veneno era de origem americana; estava metida num botão do uniforme, o terceiro a contar da gola. Bastava arrancar com um puxão e meter na boca. Tão rapidamente que ninguém pudesse reagir.
- Está tudo em ordem, camarada major - anunciou o indivíduo da CIA, que estava vestido como um pescador turco, esboçando um largo sorriso. - Como te sentes, Vassia Grigorevitch?
- Curioso e nada mais.
- Faz boa figura, Bob! - desejou o homem da CIA, batendo ao de leve nas costelas de Miller. - Não sentes um aperto no estômago?
- Não.
- Ainda ninguém se atreveu a fazer o que vais fazer.
- Alguma vez tem de ser feito - retorquiu Miller, içando-se na amurada e descendo a estreita escada de corda. Por baixo dele a embarcação balouçava nas pequenas ondas. O mar Negro mostrava o seu lado mais suave. - Se tudo correr bem, dentro de dois dias encontro-me ao largo de Vinniza. Segue-se a primeira informação fornecida do exterior da cidade proibida.
- Deus seja contigo, Bob!
- Pouco me poderá ajudar - observou Miller com um último aceno de cabeça e arrumando, seguidamente, a escada de corda no barco. Deu três puxões no cabo do pequeno motor fora-de-borda e afastou-se com bastante velocidade, penetrando na escuridão difusa, apenas cortada pelo brilho das estrelas. O homem da CIA e o capitão turco ficaram a segui-lo com o olhar, até o barquinho escuro e raso acabar por desaparecer, levado pela suave ondulação.
- Irá voltar? - inquiriu o turco em voz baixa.
- Não - respondeu o indivíduo da CIA, pondo um cigarro na boca. - Teve de riscar três fósforos, tanto lhe tremiam as mãos. - Não tem qualquer hipótese. Temos uma profissão de merda. Uma profissão de merda...
Foi num local solitário entre Alexandtovka e o golfo de Dniestre, uma bela faixa de praia até onde, particularmente ao domingo, se deslocavam muitos camaradas de Odessa, pois pela terra dentro se erguiam barracas de madeira de cores variadas, quais soldados em posição de sentido, que Bob Miller - Agora para nós o major Vassia Grigorevitch Chukov - pisou solo russo. Iniciou a primeira parte da sua missão sem pressas, mas com a precisão de um computador: virou a embarcação Sokol novamente na direcção do mar, ligou o motor, fez três buracos no fundo do barco e empurrou o Falcão para o mar. Percorridos trezentos metros, a embarcação afundou-se, arrastada pelo motor fora-de-borda.
Em seguida, Vassia Grigorevitch Chukov pegou na sua mala de oficial e avançou com dificuldade pela terra dentro, pisando a areia. Sabia exactamente onde se encontrava. Tinha o mapa na cabeça: três quilómetros a sudoeste situava-se a linha férrea de Sarata-Odessa, uma linha secundária que habitualmente servia para o transporte dos trabalhadores e, aos domingos, dos excursionistas que iam até à costa. Nas imediações ficava a pequena localidade de Bilaki, que vivia de uma herdade vinícola produtora de um vinho magnífico e dourado do Sul. No entanto, o comboio só parava em Bilaki quando era necessário. A maior parte dos passageiros ia de autocarro até Akkarsha ou, quando já estavam no Akkarsha, pelo mesmo meio de transporte até mais longe, pela bonita e ampla estrada que levava a Odessa. Uma viagem através de florestas de palmeiras e de jardins, pomares e olivais. Um pedaço de terra que Deus beijara, como diziam os orgulhosos russos do mar Negro.
ChuKov percorreu os três quilómetros a passo lento, até avistar as primeiras casas de Bilaki. Ninguém lhe apareceu com excepção de quatro cães dispersos que não podiam perguntar como é que um major do Exército soviético atravessava a terra de noite, sozinho e com uma mala na mão.
Vassia Ungorevitch descansou sob a protecção de um grupo de ibiscos até que a aurora pintou o céu com um indescritível vermelho-aveludado, observou, através dos densos ramos do esconderijo, três camiões que transportavam trabalhadores da Vinadielije Lenin - Cooperativa Vinícola Lénine - para as plantações de vinhas, agarrou seguidamente na mala e avançou muito direito é inacessível, como convém a um major do Exército Vermelho, descendo a rua principal na direcção da pequena estação de caminho-de-ferro pintada de amarelo.
O seu aparecimento provocou uma acção verdadeiramente desenfreada.
Vitali Polikarpovitch Baidukiev, o chefe da estação de caminho-de-ferro, que agradecia, intimamente, uma vez por semana, a todos os seus santos que o destino o tivesse tratado tão benevolamente e contemplado com esta posição despreocupada, estava a molhar precisamente um scone na sua grande chávena de chá, quando viu entrar o major na estação Assustou-se e deixou cair o scone, olhou para o horário e partiu do princípio de que o camarada major devia querer apanhar o comboio das 6 e 19 para Odessa. O facto constituía um grave problema, na medida em que se tratava de um comboio rápido e só em circunstâncias muito especiais é que os comboios rápidos paravam em Bilaki por causa de um único passageiro.
Baidukiev limpou as calças sujas, colocou o boné de chefe da estação de caminho-de-ferro na cabeça grisalha, apertou o cinto e pediu - uma vez mais, intimamente a todos os santos que o camarada major fosse uma pessoa pacífica que não começasse de imediato a ralhar e a proferir ameaças e tão-pouco levantasse problemas infindos.
Vitali Polikarpovitch deu ainda uma espreitadela à cozinha, pois a sua casa ficava pegada ao gabinete de trabalho, o que era prático, na medida em que, quando fazia a sua soneca da tarde, a sua mulher, Rimma Teofilovna, podia observar da cozinha, os sinais de luzes dos mecanismos das agulhas e providenciar uma circulação à tabela e sem problemas, como era compreensível numa cidade socialista.
- Chegou uma pessoa importante, Rimma! - anunciou Baidukiev olhando para o espelho, colocando o boné como devia ser e sacudindo uma migalha de bolo do bigode. Um major. Tenho de mandar parar o rápido. Telefona para Puchkari... devem avisar os camaradas maquinistas.
Entrou na guarita dos sinais, colocou a alavanca de entrada no vermelho e, em seguida, apressou-se a voltar ao seu gabinete. Ali foi encontrar o major, um indivíduo alto, de porte orgulhoso e condecorado, por detrás da mala e observando um cartaz que elogiava o vinho de Bilaki com frases efusivas.
Baidukiev bateu os calcanhares e emitiu uma sonora saudação. Chukov deu meia volta.
Como se permite a pregar-me um susto destes? - rugiu imediatamente. - Parecia o som de dez cavalos a atravessarem a região.
«Oh! Este é mesmo dos duros», pensou Baidukiev. «Com ele não se pode discutir. Sopra como uma tempestade de Outono vinda do mar.»
Tentou um esboço de sorriso e deixou-se ficar em posição de sentido. «Um comportamento militar não o vai irritar», prosseguiu na sua linha de raciocínio. «Senão, porque seria um major?»
- O camarada major pretende seguir para Odessa?
- inquiriu quando Chukov se calou.
- Se possível.
- Temos um comboio rápido às 6 e 19, camarada major.
- Convém - comentou Chukov olhando para o relógio de pulso, um modelo da fábrica de relógios de Kiev. Passa, portanto, daqui a dez minutos?
- Se chegar à tabela. Normalmente não falha. Quando é o Kostilev a dirigi-lo, é pontual. Contudo, quando o Repkin está de serviço, pode chegar mais tarde. O Repkin tem medo das curvas. Alguém consegue entender tal coisa? Há vinte e nove anos que conduz um comboio, sempre pelo mesmo percurso, e continua a ter medo das curvas! Um homem sensível, o Repkin. Joga xadrez e canta Mozart. Conhece qualquer outro condutor de locomotivas que cante Mozart, camarada major? Alguém já disse que o medo que ele tem das curvas se deve a que canta Mozart...
Baidukiev calou-se, desconsolado. Apercebeu-se de que, aparentemente, o major não era um conhecedor de Mozart. Chukov fitou o pequeno chefe da estação com uma expressão irritada.
- Gosta mesmo de falar, não? - perguntou seguidamente, num tom brusco, fazendo com que Baidukiev sentisse o suor a escorrer-lhe da testa.
- Estava só a tentar pôr o camarada major a par das particularidades da nossa estação ferroviária. O sinal já está colocado no vermelho. O comboio rápido parará aqui. Contudo, se for o Kostilev a conduzi-lo, as pragas que dirá! Faz ponto de honra de chegar a Odessa precisamente à tabela. Quando, porém, vir o camarada major, será a delicadeza em pessoa. À sua inteira disposição.
Chukov voltou a consultar o relógio de pulso, com a visível intenção de provocar. Baidukiev limpou rapidamente o suor,da testa com as costas da mão.
- Ainda faltam cinco minutos, camarada major.
- Graças ao Céu. Quantos filhos têm?
- Só um. Um rapaz.
- Foi o que pensei. Já falou de mais...
- Contudo, já tenho nove netos, camarada major. E o meu filho é propagandista em duas sedes do Partido de Odessa.
Esgotaram-se os últimos minutos. Ouviram, ao longe, o apito da locomotiva, forte e demorado, pois o sinal de aviso estava já no vermelho.
- E o Kostilev, camarada major - anunciou Baidukiev, arreganhando os dentes. - Ah! Deve estar mesmo fulo! Apita como um louco! O Repkin não faria uma coisa dessas e entraria sem barulho. Contudo, o Kostilev... é um colérico, sou eu que lho digo. Agora deve estar a cuspir de irritação! Cá está o rápido, camarada major - disse Vitali Polikarpovitch, ao mesmo tempo que corria ao longo da plataforma, erguia a bandeira vermelha e fazia sinal. - Comboio para Odessa - gritou. - Cuidado! Recuar!
O comboio deteve-se com um guinchar de travões. Uma cabeça emergiu da janela da locomotiva. Só podia tratar-se de Kostilev, pois o indivíduo rugiu imediatamente:
- Como é que o sinal está vermelho, meu bode velho? Estiveste a beber toda a noite e já não consegues distinguir as cores. Quero a linha livre, velho enferrujado.
Em seguida avistou o major de pé, na plataforma, engoliu imediatamente o fraseado com que se dispunha a continuar e desapareceu atrás da janela.
Não lhe tinha dito? - retorquiu Baidukiev, abrindo a porta da carruagem de primeira,classe. Um revisor que surgiu a toda a pressa, vindo do extremo do comboio, pegou na mala e meteu-a lá dentro. - No entanto, agora o bom do Kostilev já não sabe o que fazer. Viu-o e zás: desapareceu! Boa viagem, camarada major...
Chukov subiu, entrou num compartimento onde apenas um indivíduo adormecido se aninhava a um canto e instalou-se. O revisor colocou a mala na rede das bagagens e desapareceu imediatamente. Do lado de fora, Baidukiev ergueu a bandeira. Caminho desimpedido. A sua mulher, Rimma Teofilovna, mudou o sinal para verde.
- Era um homem distinto - comentou Vitali Polikarpovitch, depois do que se instalou novamente, molhou o biscoito de manteiga no chá e comeu mastigando com gosto. - É, de facto, um acontecimento poder voltar a conversar com pessoas instruídas. Imagina, Rimma, que não me chamou imbecil uma vez que fosse. Um verdadeiro cavalheiro, sou eu que to digo!
- E o que está a fazer um major às seis da manhã, só com uma mala, aqui em Bilaki? - retorquiu Rimma Teofilovna pensativamente. - De onde vem?
- E se fosses tu, atrevias-te a perguntar-lhe, hem?
- exaltou-se Baidukiev. - Mas que raio de ideias têm estas mulheres! Um major do Exército Vermelho pode estar em qualquer lado e a qualquer hora do dia. Ninguém lhe faz perguntas. Nunca.
- Mas não deixa de ser estranho - insistiu, sentando-se e olhando para a plataforma agora vazia. - Em Bilaki, os oficiais não caem do céu. Convence-te disso...
- Era uma pessoa distinta! - exclamou Baidukiev, impaciente e batendo com o punho em cima da mesa tratou-me como se fosse seu igual. Não é coisa que nos aconteça todos os dias.
Chukov desceu em Odessa, verificou no horário qual era o próximo comboio com destino a Vinniza e viu que teria de descer em Chemerinka. Havia um outro comboio, a uma hora mais tardia, que seguia directamente até Kiev e parava em Vinniza, mas Chukov resolveu afastar-se o mais rapidamente possível das proximidades da costa e desaparecer na vasta e fértil planície da Ucrânia. Os dois primeiros riscos tinham sido ultrapassados de uma forma surpreendentemente simples: o desembarque na Rússia e a viagem até Odessa.
Vassia Grigorevitch fez o que todo o oficial faz quando tem de esperar por um comboio: instalou-se numa das luxuosas salas de espera, com as paredes revestidas de mármore e iluminadas por gigantescos lustres de cristal, mandando vir um copo de vinho da Crimeia. Já conhecia a estação de caminho-de-ferro de Odessa através de fotografias, mas apesar de tudo estava impressionado com o esbanjamento a que não se tinham poupado naquela construção. As estações de caminho-de-ferro e do metropolitano, os estádios e os edifícios para congressos desde há muito que constituíam o orgulho dos Soviéticos, uma demonstração da sua grandeza e da cultura jamais destruída. O que as palavras não tinham poder para concretizar estava expresso indiscutivelmente nas construções. A Rússia é um país do Eterno.
Tudo se passou exactamente como se tinha esperado em Fort Thompson, na medida em que se estudara com precisão a maneira de ser russa. Chukov não foi incomodado, interrogado ou controlado. O uniforme que vestia era uma prova da sua integridade. A quem vai passar pela cabeça que na estação de caminho-de-ferro de Odessa um oficial americano disfarçado de major do Exército Vermelho compre um bilhete para Odessa? Corresponde ao mesmo que deter em Filadélfia um major americano de viagem até Nova Iorque.
Chukov arranjou lugar numa carruagem onde se sentavam um engenheiro, um médico e um arquitecto que também mudavam em Chemerinka, mas pretendiam seguir até Kiev. Era de prever com toda a probabilidade uma companhia de viagem muito taciturna, pois o major contemplava a paisagem com uma expressão arrogante e, aparentemente, não mostrava qualquer interesse em conversar. Por fim, o arquitecto e o engenheiro acabaram por jogar xadrez - um russo traz quase sempre consigo um jogo de xadrez - e o médico dirigiu-se à carruagem-restaurante para beber uma chávena de chá.
Vassia Grigorevitch chegou, por conseguinte, sem que o incomodassem, à cidade de Vinniza e desceu. Avistou pela primeira vez o Bug, o rio maravilhoso que corria ao longo de uma paisagem plena de verdura, a recordar-lhe a Florida. Só faltavam as palmeiras. No entanto, todo o país e a própria cidade recebiam o sopro de uma alegria meridional que desabrochava sob o céu de um azul-sedoso. Chukov deixou-se ficar parado, a contemplar o novo bairro da cidade, que, com a sua arquitectura uniforme, se assemelhava a outras cidades e lhe arrancava ao cérebro o plano da cidade que tinha estudado durante semanas a fio, até conhecer todas as ruas, esquinas e travessas, para além do aglomerado de casas.
«A Ulinskaia 11 é uma parte velha da cidade», pensou. Ali existe uma fábrica de máquinas agrícolas, uma fábrica de lâminas e uma fábrica de conservas. A Ulinskaia é formada por velhas casas de dois andares, uma típica colónia de trabalho. O facto de o tractorista Avdev Konstantinovitch Deviatov ter telefone era uma coisa rara, mas as pessoas já se tinham habituado. Deviatov era, afinal, um operário especializado e qualificado membro do Partido, tinha sido eleito duas vezes como «trabalhador-modelo» e gozava igualmente de há muito alguns privilégios que lhe eram concedidos sem inveja. Possuía, por exemplo, aparelho de televisão e aparelhagem estereofónica e era um camarada e um comunista tão exemplar que, nas transmissões especiais, tais como de desporto ou teatro, convidava os vizinhos para assistirem e chegava a servir-lhes chá ou um leve vinho rose. Um bom tipo, este Avdev Konstantinovitch.
Chukov dirigiu-se à cabina telefónica mais próxima e levantou o auscultador. Tal como no resto da Rússia, também aqui não havia lista telefónica na cabina, mas Chukov sabia de cor o número de Deviatov. Marcou os algarismos e, quando Deviatov atendeu, disse:
- Quero apresentar-lhe cumprimentos da sua avozinha, Avdev Konstantinovitch. Gostava muito de lhe ter vindo fazer uma visita, mas não suporta o comboio.
- Os velhos, meu caro camarada, os velhos. O que se pode fazer contra isso? - retorquiu Deviatov, que, em seguida, desligou.
Tinham-se entendido. Decorridos cerca de dez minutos, uma limusina moscovita parou diante da estação de caminho-de-ferro. O major Chukov entrou, um motorista pressuroso meteu a mala no porta-bagagens e depois avançou a toda a velocidade, não de volta à cidade mas rumo a sul, onde se situavam as grandes plantações de frutos.
Rodaram cerca de dez minutos pela estrada larga, meteram seguidamente por um atalho e pararam em frente de uma granja que tinha os portões escancarados. Deviatov deu um salto do tractor, veio até ao portão e depois trancou-o.
- Seja bem-vindo, Vassia Grigorevitch - cumprimentou, indo ao encontro do automóvel e abrindo a porta do lado de Chukov. - Chegou mais depressa a Vinniza do que o esperávamos.
Chukov desceu, apertou a mão de Deviatov e teve, finalmente, oportunidade de examinar de mais perto o contacto do serviço secreto americano. Avdev era um russo típico, de rosto afilado, no começo dos trinta anos e apresentava-se vestido com o fato cinzento que a classe trabalhadora obtém nos armazéns. Para a camada elevada, os privilegiados do Império Vermelho, havia lojas de modas especiais, onde apenas se podia comprar com cartões.
- É simples entrar no vosso país - declarou Chukov, enquanto desabotoava o casaco do uniforme. Estava quente e abafado na granja. - Para mim é um enigma porque é que publicam histórias tão assustadoras na imprensa e nos livros.
- Nem todos dispõem da protecção de uma organização tão poderosa como a CIA, major - retorquiu Deviatov, tirando a mala do porta-bagagens. - Esta passará a ser a sua asa Aluguei a granja e a terra em redor. Uma oportunidade que apenas se pôde concretizar porque sou membro do Partido e fui eleito «trabalhador-modelo» duas vezes. Aqui ninguém o incomodará se não se deixar ver durante o dia.
Não é minha intenção passar umas férias em Vinniza, Avdev Konstantinovitch. - Chukov tinha despido o uniforme para enfiar umas calças de algodão, semelhantes às que os trabalhadores da região usavam. Vestiu uma camisa aberta no peito e calçou uns sapatos com sola de borracha. Retirou a cápsula de gelatina com veneno do botão do uniforme e meteu-a na cavidade da fivela do cinto. Deviatov observava-o cheio de interesse.
- Seria capaz, realmente, de a engolir em caso de necessidade? - perguntou-lhe.
- Sim - respondeu Chukov num tom brusco. - Tem aqui alguma coisa que se beba? No comboio, vi-me obrigado a desempenhar o papel de um oficial austero. Tenho a língua a arder.
Deviatov foi buscar ao carro uma mala frigorífica, que abriu. Continha limonada deliciosamente fresca, duas embalagens com pão e carnes frias, bem como uma garrafinha de duzentos gramas cheia de um vodka claro como água.
- Também tenho gelado - retorquiu Deviatov. - Três qualidades: baunilha, chocolate e pistácia - continuou, batendo com os dedos num termo de metal cromado. - Sabe, major? O gelado russo é o melhor do mundo. Indiscutível! E uma coisa que dá cabo dos nervos dos Italianos. - Riu, tirou a tampa e colocou o termo mesmo debaixo do nariz de Chukov. - Nem a mulher mais bonita tem um aroma destes.
Chukov riu também, instalou-se num cepo que havia na granja, apertou o recipiente de gelado entre os joelhos, pegou numa colher e serviu-se de uma fatia de gelado de pistácia. Tinha um sabor realmente maravilhoso, simultaneamente a natas e a fruta, mas não saberia diferenciar se se tratava do melhor do mundo. Uma pessoa não pode saber tudo.
- Falou em mulheres, Avdev. Mulheres bonitas. Também se sabe por estas bandas se há mulheres em Novotchok?
- Não se sabe... mas imagina-se - respondeu Deviatov com um encolher de ombros. - É lógico que existam mulheres por lá, pois já que se constrói uma cidade americana não faz sentido esquecer as mulheres.
- Uma cidade precisa de ser permanentemente abastecida. Os motoristas dos transportes já devem ter visto...
- Os abastecimentos só chegam à primeira barreira. Ali, todas as mercadorias são carregadas por camiões do outro lado. A sexta-feira é o dia da semana em que se procede ao maior carregamento até à rede de arame electrificada. Nós, os Russos não fazemos perguntas onde as perguntas não são desejadas. Aqui é Vinniza, lá é Novotchok, duas coisas que nada têm a ver uma com a outra. Para quê mostrar curiosidade? Quando se paga por isso? A disciplina dos Russos é também a melhor do mundo, tal como os gelados.
- E estranho que durante todos estes anos não se pudesse ter descoberto se ali também são preparadas mulheres. É uma peça em falta no quebra-cabeças. Li os depoimentos de todas as espias. Surgem sempre as mesmas escolas de agentes nossas conhecidas, mas nunca Vinniza - observou Chukov retirando do recipiente uma colher cheia de gelado de chocolate. - Sabe. Avdev, que as mulheres da nossa profissão são mais espertas, frias, requintadas e perigosas do que nós? No que nos diz respeito, agimos com um cálculo político... e as mulheres põem sempre o coração no que fazem. E têm um sexto sentido para destrinça do verdadeiro e do falso.
Comeram ainda duas sanduíches de carne assada, beberam um copinho de vodka e esconderam o uniforme de major russo na granja, por baixo de um alçapão, que Avdev voltou a encher de trapos.
- Agora pode dormir um pouco Vassia Grigorevitch
- sugeriu Deviatov. - Há quase vinte e quatro horas que está de pé.
Chukov esboçou um gesto de desacordo. Pôs-se em cima de uns fardos de palha e friccionou as plantas dos pés uma na outra. Os olhos tinham adquirido a expressão sonhadora, o romantismo comovente que tanto enganava. - Deve, no entanto, existir algures um sítio de onde se possa ver qualquer coisa de Novotchok - declarou. - Vedou-se todo o rio? Não faz sentido.
O que chega pelo lado de cima do Bug tem como término Vinniza e é descarregado em camiões ou vagões de caminho-de-ferro. Segue-se a barreira e o rio apenas é navegável cinco jardas mais abaixo. - Deviatov desembrulhou um bombom e começou a saboreá-lo gostosamente. Era um substituto do cigarro: fazer fogo nesta granja seca era quase um suicídio. - O bloqueio atinge a perfeição. Só há um sítio de onde se pode ver qualquer coisa.
Então, vamos já para lá - exclamou Chukov, pondo-se de pé.
- Da outra margem do Bug, do alto de uma encosta a que aqui chamam «o Barrete dos Cossacos», é possível avistar-se os quatro postes luminosos do estádio de Novotchok. Construíram, por conseguinte, um verdadeiro estádio. Quando a neve derreteu, tentei servir-me de uma jangada de madeira para atingir a região das barreiras, fazendo-me passar por um estúpido jangadeiro que pretendia ir para sul... tudo acabou um pouco para lá de Vinniza. Havia três patrulhas no rio que me trouxeram para terra. É, portanto, impossível qualquer intrusão pelo rio. Os barcos vigiam todo o Bug com radar.
Além disso, encontram-se espalhados fios eléctricos a vários níveis da água e que devem estar acoplados a uma sofisticada aparelhagem, porque quando os peixes lhes tocam não há alarme, o mesmo acontecendo com outros objectos, e são tantos os que descem o rio! No entanto, se uma pessoa tocar no fio, desencadeia um barulho infernal - prosseguiu Deviatov engolindo o bombom com a ajuda de um gole de limonada. - Já tem provavelmente um plano, Vassia Grigorevitch?
- Não - respondeu Chukov erguendo-se e voltando a calçar os sapatos. - Sei apenas uma coisa: se cheguei aqui, vou atravessar a terceira porta.
Com um sorriso amável e dizendo: «Bom dia para todos, camaradas!»
- Talvez. Muitas vezes consegue dar-se a volta a problemas insolúveis com as ideias mais simples.
- Aqui na Rússia a sabedoria dos antigos já não tem cabimento. Aqui é outra música, Vassia Grigorevitch.
- Temos tempo - comentou Chukov, abrindo um pouco o portão e espreitando lá para fora, onde o reflexo dourado da tarde se espalhava pela terra ardente. - Podemos ir até essa encosta a que chamam «o Barrete dos Cossacos»?
- Quando se fizer escuro, iremos de barco pelo Bug. Contudo, não se iluda. Pouco terá para ver.
Durante a noite chegaram ao alto da encosta, deitaram-se na erva alta e observaram com potentes binóculos a região que se estendia a seus pés, protegida por uma barreira tripla e a que os Russos chamavam Novotchok. Tal como Deviatov avisara, Chukov apenas tinha no campo de visão os quatro postos de iluminação, encontrando-se tudo o mais dissimulado por uma cadeia de encostas. Os projectores estavam ligados, o que significava estar a decorrer um desafio de futebol! O céu que cobria este pedaço de terra denotava um brilho pálido, como acontece em todas as cidades, onde milhares de lâmpadas formam um círculo luminoso.
- Uma iluminação perfeita! - observou Chukov, pondo os binóculos de lado. - Presumo que ali brilham os mais variados reclamos luminosos.
- Um pedaço da América - retorquiu Deviatov sem deixar de observar a campanula de luz. - Para si não deve constituir novidade. Para mim, um russo, é algo de fantástico. É uma coisa que apenas se vê de vez em quando nos filmes americanos informativos da decadência e da influência das massas através do sistema capitalista.
- Tem sempre esse tipo de conversa de merda. Avdev Konstantinovitch?
- É também a maneira como devia falar, Vassia. Agora é um russo. Ainda o é. Só do outro lado pode ser novamente americano. É mesmo de loucura, não? Chega como um falso russo à Rússia para ser um verdadeiro americano na Rússia. Um mundo completamente absurdo. Vamos embora.
Para onde?
Para a sua granja. Vou seguidamente de carro a Vinniza para ainda mandar um radiograma a comunicar que chegou kem informou Deviatov soltando uma sonora gargalhada e valsando nos calcanhares. O céu estrelado era algo adequado aos poetas, uma coisa muito simplesmente apropriada para tocar uma alma simples com a sua beleza. - Devia ver como as coisas se passam, Vassia. Na presença de um mínimo de dez testemunhas. Sempre que telegrafo, convido os vizinhos para ouvirem um concerto na aparelhagem estereofónica. E para ali ficam sentados, escutam atentamente como alunos de convento, reviram os olhos sempre que o maestro Sviatoslav dirige e eu sento-me junto do aparelho rodando ora um botão, ora outro e telegrafo as minhas informações. O que sabem os camaradas de como funciona uma complicada aparelhagem estereofónica? Pensam que estou a centrar a música para que tudo seja realmente um prazer. Tão simples como isso...
- E a marcação por radiogoniometria?
- Os camaradas apenas ouvem um guincho. As informações são divididas até à impossibilidade de reconhecimento e só os receptores especiais as conseguem juntar electronicamente - explicou Deviatov, levantando-se e sacudindo a erva seca do fato. - Seria um milagre se me descobrissem.
O milagre - sem que Avdev Konstantinovitch o suspeitasse - estava sentado em Vinniza na central telegráfica do III Batalhão de Informações do Exército Vermelho e chamava-se capitão Stanislav lakovlovitch Slobin. Apenas tinha passado a isolar de vez em quando crescentes ruídos no éter depois de se haver certificado não se poder tratar de perturbações atmosféricas causadas por protuberâncias. A origem das perturbações situava-se algures, na cidade velha. Até aí já tinha chegado! No entanto, ainda não havia conseguido descobrir o que se estava a passar.
Cinco dias depois, Deviatov apareceu novamente na granja.
Vinha a esfregar as mãos. Chukov estava deitado, de mau humor, em cima dos fardos de palha, tendo ao lado um monte de jornais e revistas russos. Após a sua leitura, qualquer russo autêntico ficaria a pensar que a União Soviética se situava no topo de todos os Estados. Medicina, agricultura, arquitectura, física e química, investigação espacial e cibernética, desporto e tempos livres, assistência social e fusão da grande indústria - nada deste mundo se sobrepunha ao lugar ocupado pela Rússia. Chukov também já tinha aprendido o mesmo no Alasca, na cidade-modelo russa de Smolenska, a fim de conseguir expressar-se com o orgulho dos Russos. Caso a poderosa conquista industrial da Sibéria continuasse e a riqueza incomensurável deste país fosse trazida à luz do dia, não restava qualquer dúvida de que dentro de dez anos a Rússia Soviética estaria realmente acima dos restantes povos. Uma visão aterradora para um americano.
- Tem um ar tão alegre como o colegial que conseguiu levar para a cama a sua jovem e bonita professora - observou Chukov desagradavelmente. - E eu para aqui a sacudir os mosquitos e a caçar ratazanas.
- Anteontem soou o alarme na sebe exterior... - comunicou Deviatov fitando Chukov com uma expressão interrogativa.
- Fui eu!
- Logo imaginei.
- Apanhei uma lebre e dirigi-me a um sítio da rede que dava a sensação de não estar há meses sob controlo. Em seguida atirei a lebre para o arame.
- E...
- Funcionou. Saltaram clarões do fio de alta tensão, a pobre lebre, uma vítima ao serviço dos EUA, morreu imediatamente e algures soou o alarme. Não há espaços vagos na rede.
- E mesmo que houvesse, Vassia Grigorevitch... por detrás existe o campo minado.
- Tenho comigo um pequeno detector de minas e nada lhe serve. Decorridos quatrocentos metros está a segunda barreira. É caso para desistir da ideia - retorquiu Deviatov esfregando novamente as mãos e soltando uma risada que lhe iluminou o rosto. - Contudo, conheço o buraco na rede. Sei como vai poder entrar no local.
Não acredito! - exclamou Chukov, erguendo-se de um salto.
Mas é verdade! Oficialmente, através das três barreiras e com uma escolta do Exército Vermelho.
- Você está bêbado, Avdev!
- De alegria, camarada. Não lhe expliquei que, habitualmente, todas as entregas para Novotchok são descarregadas na primeira barreira para outros camiões? Agora, vai fugir-se ao sistema pela primeira vez. Foi adquirida uma ceifeira-debulhadora americana que é entregue amanhã.
- Uma ceifeira-debulhadora?
- Da fábrica Ferguson & Sons. O modelo mais recente. Já que se pretende fazer a colheita na «Pequena América», há que utilizar naturalmente uma máquina americana. E a nossa firma vai fazer a entrega. Na qualidade de «trabalhador-modelo» eleito duas vezes e condecorado duplamente, designaram-me para levar a ceifeira-debulhadora a Novotchok.
- Até à cidade? - quis saber Chukov, entusiasmadíssimo. - Tanta sorte seria de desconfiar, Avdev.
- Até onde vou ainda não sei. A última reunião é hoje a tarde. Mas diga você o que disser, é a primeira vez que, de há anos a esta parte, uma coisa não pode ser transbordada. A ceifeira tem de atravessar as barreiras para se efectuar a entrega.
- E eu vou escondido na ceifeira.
- Foi o que pensei.
- Quer transformar-me em palhiço, Avdev?
- Mas você conhece essas ceifeiras! Uma coisa com a altura de duas casas. Um robot de estalo!
- E se conheço! Até já conduzi uma. Ceifa, debulha, separa o trigo do palhiço, prensa a palha, ata-a e fá-la sair em tardos. Tudo automaticamente. A pessoa senta-se lá em cima, numa cabina de vidro, e apenas precisa de manejar umas alavancas. Ah! - exclamou Chukov, fitando intensamente Deviatov. - O contentor do palhiço. Enquanto a máquina trabalha, dá tempo para se fazer uma soneca. O contentor do palhiço, Avdev.
- Foi nisso que pensei! - retorquiu Deviatov, batendo com um punho de encontro ao outro. - Ia apostar que ninguém se vai lembrar de procurar espiões num contentor de palhiço, e sobretudo quando é um «trabalhador-modelo» duas vezes condecorado a conduzir o gigante...
- Quando? - perguntou Chukov num tom calmo.
- Amanhã cedo, às seis - respondeu Deviatov, dando uma palmada no ombro de Chukov. - Venho buscá-lo hoje à noite, Vassia Grigorevitch e meto-o no contentor do palhiço.
Em Frazertown, o motivo por que o presidente da Câmara o mandara chamar novamente era de perfeito desconhecimento de John Barryl. O patrão, Billy Rampler, atendeu o telefone e deu-lhe uma cotovelada nas costelas.
- Tens de ir ao Serviço de Emprego. Bulder quer ver-te. O que se passa?
- Não faço a mínima ideia, patrão - respondeu Barryl, tirando o avental. - Já era um profissional na preparação de hamburgers com queijo e tomate.
- Bulder quer que amanhã tenhas todo o dia livre.
- Para mim é novidade. De manhã, tencionava ir ao ginásio de boxe e à tarde há uma conferência sobre as últimas posições da ONU.
- Deve ser coisa importante -comentou .Billy Rampler. - Não me deixes ficar mal, John.
À saída, John encontrou-se novamente com Norma Taylor. Havia grande afluência ao balcão; era meio-dia e muitos vinham ao Billy’s para comer um hamburger ou uma sanduíche e saborear os deliciosos batidos de leite que Norma preparava. Os operários da construção civil que trabalhavam nas margens do rio de Frazertown eram os maiores apreciadores dos batidos de Norma.
As margens de Frazertown, realmente! Há dezassete anos que nelas se erguiam edifícios e a mão-de-obra continuava a ser precisa, pois sempre que tudo estava pronto e vistoriado pela Comissão da Construção Civil apareciam algumas dragas enormes que deitavam tudo abaixo, destruíam a margem e, assim, proporcionavam trabalho para novos colonos. Nada havia para que os habitantes de Frazertown não estivessem preparados.
Como sempre acontecia, James Bulder recebeu John Barryl em mangas de camisa e a mascar pastilha elástica. A jovem da recepção, a loura de cabelo oxigenado e aos caracóis, falou a John com tanta confiança como se já tivessem ido juntos para a cama. Fez sobressair os seios, sentou-se de maneira a que as compridas pernas metidas nos hotpants não lhe pudessem passar despercebidas e cumprimentou: «Olá, bonitão!» John era um homem persistente. Continuava a aproximar-se de Norma Taylor, sem desistir e cheio de nódoas negras que recebia incessantemente na escola de karate. Ainda há poucos dias, ela, ao passar por ele, perguntou-lhe: «Não receia que o seu belo rosto sofra alguma coisa?» E respondeu-lhe bruscamente: «Se tem um fraco por homens feios, deixo que o Frankenstein me opere só por sua causa.»
- Trata-se de uma coisa de que gostava de o encarregar, John - dizia-lhe Bulder nesse momento. - Vejo pelo seu processo que, em Kasakstan, também trabalhou numa brigada de colheitas e conduziu uma ceifeira-debulhadora. Ainda seria capaz de o fazer?
Em qualquer altura sir - respondeu John Barryl admirado. - Tenho de ir a Kasakstan?
Que disparate! Kasakstan fica tão longe como daqui à Lua. Estamos aqui, em Frazertown, e amanhã recebemos uma ceifeira-debulhadora, a fim de proceder à colheita, segundo autênticos processos americanos, de duzentos hectares de trigo. Modelo Ferguson & Sons. Preparado, John?
- Não vejo dificuldades, sir.
- Amanhã, logo às seis horas, a coisa encontra-se diante do portão. Será trazida por um camarada mais que comprovado, membro do Partido, condecorado duas vezes e que o familiarizará com os pormenores técnicos. E, depois, a colheita será na segunda-feira. Suponho que fica contente, John. Certamente já anda a ter sonhos sexuais com hamburgers.
Meia hora mais tarde, John Barryl estava novamente de regresso à praça diante do rio, comprou um gelado nas máquinas automáticas e instalou-se num dos bancos pintados de branco. Não usufruiu muito tempo da solidão. A secretária de Bulder ficou com a tarde por sua conta e veio sentar-se ao seu lado. Tinha a blusa desabotoada até ao cinto dos hotpants e o que a abertura da blusa deixava a descoberto era redondo, bem modelado e sem qualquer suporte. Também se deliciava com um gelado, mas, ao comê-lo, chupando de lábios húmidos e olhos semicerrados, dedicava-se a uma nítida e excitante demonstração de felatio.
- Moro numas agradáveis águas-furtadas - informou, voltando a rodear a bola gelada com os lábios. - E, em seguida, fez um movimento com a perna direita, que abriu ainda mais a blusa e permitiu que John lhe visse o bonito seio direito em toda a sua pujança. - Faço colecção de animais embalsamados. Ternos, pequeninos animais embalsamados. Decerto o interessariam, John...
- Sem dúvida.
Recostou-se para trás, olhou para a blusa e pensou em Norma Taylor. «Quando a Norma se despe, deve fazer com que um homem perca a razão», pensou. «É possível que um homem que ela possua uma vez se desinteresse por todas as outras. Como ela não pode haver segunda. Pertencer-lhe é como que um fenómeno elementar da natureza. Tem essa noção e receia-se a si própria. A sua inimizade pelo homem não passa de uma fuga ao seu temperamento explosivo. Amar Norma Taylor é o mesmo que roubar uma estrela e queimar-se nela.»
- Hoje, à noite? - perguntou a lourinha oxigenada.
St. Stephans Street, doze.
John Barryl recompôs-se. Verificara-se a destruição dos belos devaneios sobre Norma Taylor.
Esta semana não pode ser - respondeu, levantando-se do banco. Desse ângulo, os seios sobressaíam ainda mais. Eram dotados de grandes mamilos de um castanho-dourado, semelhantes a pequenas nozes. - Tenho trabalho demasiado.
- À noite também?
- Cairia de cansaço. Não é a altura própria, miúda.
- Chamo-me Britt. Britt Lawson - prosseguiu, voltando a lamber o gelado com uma língua pontiaguda e metendo praticamente todo o cone na boca. - Mais tarde, talvez?
- Sim mais tarde -retorquiu John Barryl levando a mão ao boné de pala verde e apressando-se para apanhar o autocarro que o levaria ao ginásio de boxe.
«Uma ceifeira-debulhadora», pensou. «Para ceifar duzentos hectares de trigo.» Tratava-se, realmente, de uma mudança desejável após a preparação e venda de hamburgers.
Além disso, serviria para demonstrar se Norma Taylor lhe sentiria a falta, caso deixasse de trabalhar no restaurante. Por isso se sentia mais entusiasmado.
Durante a noite, Deviate v e Chukov introduziram-se secretamente no pátio da fábrica onde estava a ceifeira-debulhadora de Ferguson & Sons, assemelhando-se a um monstro gigantesco e bizarro. Não a vigiavam... não há hipótese de roubar uma coisa daquele tamanho. Deviatov subiu para a cabina do condutor e Chukov içou-se pela parte de trás para verificar a caixa do palhiço. Tinha o tamanho de uma pequena roulotte, lisa por dentro e coberta com uma chapa de zinco. A zarabatana que ia desembocar no cimo, à esquerda, e serviria para introduzir o palhiço tinha o diâmetro dos braços de dois homens robustos.
Deviatov debruçou-se da janela da cabina do condutor na direcção de Chukov, que estava em baixo. Vassia Grigorevitch vestia agora a sua roupa americana, como se fosse trabalhar num posto de gasolina. Em Fort Thompson tinha sido esse o grupo profissional escolhido. Empregados das bombas e mecânicos de automóveis são duas das profissões mais populares na América. Era de supor, sem sombra de dúvida, que na cidade junto ao Bug se cultivasse precisamente esta imagem. Além disso, um homem com fato-macaco encontra-se, por estranho que pareça, fora de suspeitas. É o uniforme do bom mineiro. Encarado deste ponto de vista, o melhor disfarce dentro das possibilidades.
- Tudo em ordem? - perguntou Deviatov.
- Uma maravilha! - respondeu Chukov deitando-se no chão do contentor de palhiço. - Se conseguir sair daqui antes que me debulhem...
Uma vez que ninguém estava ao corrente de quanto tempo iria durar a viagem, Chukov levava consigo dois termos de plástico com água, uma toalha grande e uma pequena botija de oxigénio com um bocal. O tempo comprovaria o acerto de tal precaução.
Em seguida, Deviatov fechou a tampa do recipiente de palhiço, colocou o fecho e bateu uma vez mais com os nós dos dedos na parede.
- Muitas felicidades, Vassia Grigorevitch - desejou. Está a ouvir-me?
- Como se a sua voz me chegasse das nuvens - respondeu a voz de Chukov que parecia vir do fundo de um poço.
- Não se esqueceu de nada?
- De nada.
Chukov apalpou o segundo botão do seu fato-macaco. A cápsula de gelatina com o veneno estava na cavidade.
Pontualmente, às seis e meia, começaram a ouvir-se rumores à volta da ceifeira-debulhadora. Chukov escutou uma imensidade de vozes, seguidamente soou qualquer coisa parecida com o bater de ferro, alguém trepou para o gigante e deu uma pancada leve na caixa do palhiço. Deviatov. O sinal. Entrou na cabina do condutor. Começou a viagem para a terra proibida.
Chukov sentou-se no chão do seu esconderijo, pôs ao alcance da mão a toalha, a botija de oxigénio e os recipientes de plástico com água e apanhou um grande susto quando o pesado motor começou a funcionar ocasionando um forte trepidar em toda a máquina. Depois, o colosso pôs-se em movimento, saiu do pátio da fábrica e iniciou a sua marcha rumo a Novochok. Dois carros da Polícia Militar munidos com uma luz azul seguiam à frente para abrir caminho e dois automóveis com funcionários da brigada do Departamento da Agricultura de Vinniza seguiam atrás do monstro ameaçador.
Pouco depois das seis da manhã, a coluna chegou à rede electrificada de arame farpado e ao famoso Portão VI, através do qual Pleniakov tinha ingressado num mundo novo. Os carros da Polícia Militar deram meia volta e seguiram imediatamente de volta a Vinniza e os funcionários desceram e cumprimentaram três oficiais do Exército Vermelho. O portão estava escancarado... Deviatov avaliou distâncias e concluiu que seria uma passagem que deixava milímetros de espaço.
- Camaradas! - gritou da cabina e debruçou-se até ficar meio fora da janela. - Todos sabem que sou um patriota. Contudo, recuso-me a ser idiota, embora as sílabas finais sejam as mesmas. O portão é estreito de mais. Serei queimado vivo se bater de lado e tocar no fio de alta tensão? Ninguém me pode exigir uma coisa dessas, caros camaradas.
- Será desligada a corrente durante os segundos de que precisa para atravessar - gritou um dos oficiais, levantando a cabeça na direcção de Deviatov. - Não se esteja para aí a queixar como uma freira grávida. Pensou-se em tudo.
- Já me sinto mais calmo - retorquiu Deviatov, voltando a instalar-se atrás das suas alavancas. - Esperava que Chukov tivesse entendido a atitude. Agora não podia estar mais excitado relativamente ao que se seguiria. Será que o deixariam conduzir na região da barreira? Nada dava a entender que um dos oficiais fosse dirigir a enorme ceifeira-debulhadora.
Os funcionários do Departamento de Agricultura entregaram aos oficiais as listas de transporte, os documentos da ceifeira-debulhadora, esperaram que lhes fosse passado o recibo, deram mais uma volta ao monstro, com uma expressão orgulhosa, e, em seguida, despediram-se com beijos na face e desapareceram com os seus automóveis por detrás das colinas. Para trás ficou apenas Deviatov na sua cabina de vidro. Sentia o coração quase a sair-lhe pela boca. «Vou entrar», pensou cheio de alegria. «Santa Mãe de Kasan, vou entrar, serei o único habitante de Vinniza que terá visto a cidade misteriosa!»
Um dos oficiais fez-lhe um gesto, a que Deviatov correspondeu erguendo a mão.
- Posso seguir?
- Agora, prove que é um verdadeiro especialista - rosnou-lhe o oficial. - A corrente está desligada. Seja como for, não precisa de dar cabo do portão. Conduza devagar, camarada. E, agora... partida!
Deviatov estava realmente à altura das duas medalhas recebidas. Dirigiu o monstro tão perfeitamente entre os postes de ferro que não tocou em qualquer deles, embora de cada um dos lados restasse um espaço livre de uns meros centímetros. Os oficiais corriam entusiasmados na sua frente, acenavam, davam instruções com as mãos, começaram a suar de excitação e, caso Deviatov se tivesse deixado guiar pelos seus sinais, decerto teria destruído o portão. Por conseguinte, não se preocupou, avançou ruidosamente centímetro a centímetro e não retirou aos oficiais a agradável sensação de que lhe tinham dado indicações precisas.
Assim que Deviatov ultrapassou o portão, fecharam-no logo de seguida e, da central, que vigiava tudo por meio de câmaras televisivas, voltaram a ligar a rede à corrente. Um dos oficiais trepou para a ceifeira-debulhadora e meteu a cabeça na cabina do condutor.
- Irá conduzir até à próxima barreira - gritou-lhe, erguendo a voz acima do ruído do motor. - Em seguida, desce. Levá-lo-ão de volta.
- E o que vão fazer com esta coisa, camarada? - inquiriu Deviatov no mesmo tom. - Fica parada?
A sua missão foi entregar a máquina - respondeu o oficial limpando o rosto suado e coberto de poeira. – Nada mais.
Sentou-se em cima da tampa da caixa do palhiço, tirou o boné e começou a abanar-se. Deviatov prosseguiu viagem, com um sorriso de lado a lado. Se Vassia Grigorevitch soubesse que em cima da sua cabeça estava o cu de um oficial! No entanto, certamente nada vai acontecer. Quem irá dizer: «Levante as bochechas, camarada capitão, pois suspeitamos que por baixo de si viaja um passageiro clandestino! Ninguém se lembraria de uma coisa tão inconcebível.
Diante da segunda barreira estava à espera um indivíduo alto e magro, vestido com jeans, a camisa aberta, um boné com uma enorme pala de plástico verde e que fumava um cigarro. Os oficiais da segunda vigia rodeavam-no, o portão estava escancarado e a corrente dava a sensação de já se encontrar desligada. Aqui terminava a viagem. Deviatov avistou, pela primeira vez, um habitante da cidade misteriosa... um americano típico, que era na verdade um oficial russo. Que língua falaria? Inglês ou russo?
- John Barryl assistiu à aproximação do monstro trovejante com um visível interesse. Parecia diferente das ceifeiras-debulhadoras soviéticas, mais complicado, e de forma alguma idealizado com a genial simplicidade que desde sempre caracterizava as máquinas soviéticas e reduzia as eventualidades. Quanto mais complicada era uma máquina, mais dificuldades tinha. Deviatov travou a alguns metros do grupo, desligou o motor e contemplou o lado de fora da cabina. O oficial que o acompanhava desceu de cima da caixa do palhiço e bateu com o punho no revestimento do motor.
- É um material fantástico, camaradas! - gritou para os outros oficiais. - Tão fácil de conduzir como uma bicicleta.
- Quando se sabe conduzir! - retorquiu Deviatov da sua cabina. - Tal como uma mulher robusta, camaradas. Tem de se saber onde a agarrar, para a derrubar.
Todos riram, e quem ri não vigia. O americano aproximou-se, trepou para a máquina e abriu a porta da cabina do condutor. Deviatov olhou-o com uma expressão amigável mas desconfiada. «Visto de perto, parece diferente», pensou. «Um rapaz perigoso, de tão bonito. Dos olhos desprende-se energia e os músculos debaixo da camisa revelam treino. Se forem todos assim nesta cidade proibida, Chukov está na medida, pois o seu corpo musculoso não parecerá deslocado. Ainda por cima os seus olhos, onde paira toda a melancolia da vastidão da Sibéria... não deverá acontecer nada!» O único perigo residia no pequeno transistor de ondas curtas que Chukov levava no bolso das calças.
- Percebe da coisa, camarada? - perguntou Deviatov com uma expressão desprendida. - Dê uma vista de olhos e explico-lhe como funciona cada alavanca.
- Obrigado, camarada.
«Fala russo», pensou Deviatov. «Claro! Ninguém deve saber que por detrás da colina se ergue uma cidade americana.» Desceu da cabina, encostou-se casualmente ao contentor do palhiço e cedeu o lugar a John Barryl.
Decorridos dez minutos e uma prova experimental, já John Barryl tinha compreendido o funcionamento. Fez um sinal de cabeça aos oficiais, Deviatov desceu para o solo e nem sequer teve tempo de se despedir. Um dos oficiais empurrou-o para um jeep, pisou o acelerador e devolveu-o a toda a pressa à primeira barreira. A missão de Deviatov estava cumprida. Agora a situação dependia exclusivamente do que Chukov conseguisse por mérito próprio.
John Barryl dirigiu a máquina com segurança através da segunda barreira e continuou ao longo da estrada. Vencidos duzentos metros, numa descida, sentiu-se dominado pela curiosidade. Deu a curva, avançou até à beira de um campo de trigo e pôs o mecanismo em funcionamento. As pás rotativas baixaram e a primeira enchente de talos foi lançada para dentro da máquina.
Chukov, refugiado no seu esconderijo, verificou surpreendido como da espessa zarabatana lhe chegava uma violenta corrente de ar que quase o atirou de encontro à parede.
Em seguida, levantou-se o pó das primeiras nuvens de palhiço que lhe tiraram o ar, como se estivesse no meio de uma tempestade de areia. Deixou-se cair no chão, abriu um dos recipientes de água, esvaziou-o na toalha e premiu o tecido molhado de encontro ao rosto. Sobre o seu corpo abateram-se nuvens de poeira, e o palhiço, que circulava à sua volta, surtia o efeito de milhares de agulhas. A ventilação era tão forte que julgou que os pedacinhos de palhiço se lhe iriam enfiar na pele, meter-se-lhe nas veias e misturar-se no seu sangue até fazer puré. Respirava dificilmente; procurou de olhos fechados a garrafa de oxigénio e meteu o bocal entre os dentes.
«Não vou sobreviver a isto», pensou. «Os malditos palhiços vão dar cabo de mim, sufocar-me e empalhar-me como a um urso de brincar.» Encostou o rosto à parede de zinco, respirou o oxigénio puro da garrafa e enterrou a cara na toalha molhada. Nas suas costas matraqueava a torrente dos pedaços de palhiço.
O ventilador parou tão repentinamente como quando tinha começado a funcionar. John Barryl satisfizera a sua curiosidade. Concluiu que a máquina americana era uma boa aquisição, desligou o aparelho e regressou à estrada firme. Deixava atrás de si cinco fardos de palha, firmemente comprimidos e atados com dois fios.
Chukov deitou-se de costas e afastou a toalha do rosto. Continuou a respirar o oxigénio da garrafa, e só muito lentamente se foi habituando à ideia de que ainda estava vivo.
John Barryl passou a terceira barreira sem dificuldades. Neste local era esperado pelo presidente da Câmara, James Bulder, que trepou até chegar ao seu lado, à cabina do condutor.
O que me diz a isto, John? - perguntou. – Se soubesse o caminho que esta coisa percorreu. Foi comprada na Suecia por intermediários, depois mandámo-la para a Finlândia e dai para Vinniza. Segundo estou a ver, conduz a máquina como se tivesse nascido dentro dela.
Gosto do trabalho da terra, sir - retorquiu Johnryl, ligando novamente o motor. - E agora quem faz os hamburgers’?
- O próprio Billy. Depois das colheitas, voltará a trabalhar com o Rampler. Ele faz questão nisso. E, aliás, a Norma também. Queixou-se da sua substituição.
John Barryl não se pronunciou, mas o seu sorriso foi uma resposta.
De noite - Chukov consultou as horas no seu relógio de mostrador luminoso - esgueirou-se do esconderijo. Deviatov tinha previdentemente destrancado o fecho, antes de ceder o lugar a John Barryl, que nem sequer olhara para o contentor de madeira. Chukov levantou prudentemente a tampa, olhou em redor e verificou que se encontrava nas traseiras de uma granja enorme. Nos edifícios da cooperativa agrícola já não havia luz. Uma pessoa decente ia para a cama à uma da noite.
Chukov desceu da ceifeira-debulhadora, levando consigo as latas de plástico e a botija de oxigénio semivazia. Em seguida reconsiderou, mudou de direcção e correu até ao rio. Ali, desfez-se de todo o material, retirou do corpo a poeira do palhiço, chegou mesmo a nadar na água extraordinariamente refrescante do Bug, até meio do rio, e sacudiu a roupa.
Às duas da manhã estava a passear ao longo da margem e, por intermédio do reclamo de uma oficina para barcos a motor mergulhada na escuridão e situada junto ao rio, verificou onde se encontrava. «Motores Frazertown. Os melhores motores do mundo».
Frazertown!
Chukov soltou um profundo suspiro. Tinha conseguido. O segredo mais bem guardado da Rússia deixara de ser segredo.
Continuou a andar, e a seguir a uma curva do rio avistou repentinamente a cidade diante de si. O espectáculo dominou-o por momentos. Tratava-se de uma cidadezinha do Middle West dos EUA, quase parecendo saída de qualquer livro, sem esquecer a floresta de antenas de televisão nos telhados e os reclamos de néon que apagavam e acendiam. No telhado de Billy Rampler brilhava ainda o hamburger gigantesco... dominava soberanamente toda a praça junto ao rio com os seus cabeços de prender os barcos, os bancos, o supermercado e o salão de jogos.
Bob Miller - agora era ele de novo - apenas se deixou arrastar pela admiração durante uns segundos. Seguidamente, avançou de mãos nos bolsos e deu uma espreitadela ao restaurante de Billy. Apenas duas mesas estavam postas e por detrás de um balcão de tampo cromado recortava-se a figura de uma jovem de cabelos pretos e uma camisola justa.
- Assim já há um toque mais humano - exclamou Miller baixinho e desistiu de entrar no paraíso de hamburgers do Billy’s. Era mais importante dar uma vista de olhos pela cidade. Onde ficavam a Câmara, a polícia, o médico e a farmácia? E, sobretudo, onde se poderia pernoitar até ao dia seguinte sem levantar suspeitas?
Bob Miller decidiu-se por agir de acordo com o mais liberal temperamento americano. Sentou-se num banco junto ao rio, acendeu um cigarro e esperou pelo amanhecer.
Era mesmo um pedaço da América, pois uma meia hora mais tarde apareceu junto de Miller um polícia, um guarda de patrulha, que começou a medi-lo com o olhar. Entretanto, o hamburger de Billy Rampler tinha-se apagado, o mesmo acontecendo com os reclamos luminosos do salão de jogos e das proximidades de Hillmoore. Toda a cidade de Frazertown dormia esperando o novo dia. «É a única coisa em que esta cidade se diferencia da autêntica vida americana», pensou Miller. Não havia criminalidade, o que constituía uma falha na preparação. Em Smolenska, na cidade feita à maneira russa no Alasca, era-se pelo menos roubado. «Nós, Americanos, somos perfeitos», continuou Miller a pensar satisfeito.
O guarda de patrulha deu a sensação de já ter visto o suficiente. Bob Miller mostrou-lhe uma expressão risonha. Há novidade? - perguntou. O que está a fazer aqui sentado no banco?
- E proibido?
- A esta hora da noite é de estranhar, mister...
- Trate-me calmamente por Bob - retorquiu Miller estendendo as pernas. - Já alguma vez ouviu falar em insónias? Os olhos não obedecem e junto a nós há alguém que não nos quer ouvir. Como faz bem o ar fresco nessas alturas! Vai um cigarro, guarda?
- Obrigado - agradeceu o polícia num tom hesitante, depois do que deu meia volta e seguiu caminho. Bob Miller soltou um leve suspiro. «Foi por pouco!», pensou. «Por estes lados não são tão americanos como isso. Cá o rapaz sabe, porém, dominar-se... para um oficial russo reagiu brilhantemente e dominou a situação. Pensará em aprender mais.»
De manhã, Bob tomou o pequeno almoço no restaurante self-service de Yenkin, junto da Câmara, tirou das máquinas automáticas café forte e dois pãezinhos com fiambre, depois do que procurou a agência de aluguer de casas. Os dois amáveis empregados não pediram informações... quem chegava a Frazertown não necessitava de bilhete de identidade. Bob Miller arranjou uma casinha de madeira pintada de branco e com jardim, muito próxima da de John Barryl, assinou, como toda a gente, um contrato de pagamento a prestações pela casa e pelos móveis e sentiu-se como se estivesse em casa. Nada lhe faltava... desde o frigorífico à cadeira de baloiço, desde o piroso candeeiro ao poster com uma jovem de capa de revista e que colocou, à laia de estímulo, na parede em frente da cama.
Por volta do meio-dia já não fazia sentido dominar o impulso de observar de mais perto a jovem da espelunca dos hamburgers de Billy. Fez um desvio pelo Sharoon’s Menshop, deu trinta dólares por um casaco de linho azul-marinho e entrou no restaurante de Billy com ares de conquistador. O olhar perscrutador de Norma Taylor cruzou-se imediatamente com o seu. Fitou-a brevemente com uma expressão sonhadora, dirigiu-se a uma mesa junto ao balcão e sentou-se.
Já ali estava há uns vinte minutos, quando Norma saiu detrás do balcão e tossicou. Miller ergueu os olhos. Primeiro viu-lhe os seios e, em seguida, o rosto de olhos quase negros. Tudo era perfeito.
Ainda não se deu conta que aqui não há serviço de mesa? inquiriu Norma Taylor rispidamente. - Se quiser alguma coisa, tem de se mexer. Apenas fornecemos... e cada um vai buscar o que quer.
Não me está a dar uma novidade - riu Miller com a mesma expressão sonhadora no olhar. - Só quis que você saísse detrás dessa fortaleza de metal. Também me interessam as suas pernas. Não me desiludem. Na maioria dos casos é assim: por cima quase rebentam as costuras e por baixo as pernas são tortas.
Norma Taylor parecia ter perdido a fala. Miller apercebeu-se de que procurava uma resposta. Como não encontrou nenhuma à altura da situação, voltou-se bruscamente.
- Macaco! - limitou-se a resmungar entre dentes e voltou a refugiar-se a toda a pressa atrás do balcão. Miller seguiu-a com uma expressão fascinada. O seu movimento de ancas repercutia-se no seu intimo como pequenos sinos.
Nessa mesma tarde foi buscar, por duas vezes, batido de morango e dois hamburgers e à despedida soltou um gritinho abafado. Norma Taylor estremeceu:
- Você é doido varrido? - retorquiu.
- E assim que o macaco fala - replicou Miller alegremente. - E significa: Até amanhã, miúda...
Mal tinha saído do restaurante de Billy, quando Norma correu até à cozinha, arrastando John Barryl até à janela. Bob Miller seguia pela praça, a assobiar.
Conhece aquele indivíduo? - perguntou Norma. Não - respondeu John Barryl abanando a cabeça. Porquê?
- É a primeira vez que vem aqui. -Barryl observou Norma Taylor pelo canto do olho. Parecia muito excitada e respirava mais rapidamente do que era costume. Na cara tinham-se-lhe formado duas rosetas vermelhas.
Vou informar-me a respeito dele - prometeu, irritado com o tom ríspido da própria voz. - Tem boa aparência, o rapaz.
- E olhos de vaca - retorquiu Norma em voz alta. Olhos de boneco. Quer ir dançar comigo hoje à noite, John?
Barryl respondeu com um aceno de cabeça afirmativo. Sentiu instintivamente que Norma Taylor receava algo.
Gerald Hillmoore nada tinha contra a ideia de empregar um barman suplementar. Bob Miller representava a própria imagem da juventude. Tinha uma aparência fantástica: era alto e robusto, mostrava sempre que ria, uma dentadura como só se conseguia encontrar nos anúncios televisivos de pasta dos dentes e também não tinha ar de quem se deixasse prostar pelo fatigante serviço nocturno. Uma vez que em Frazertown ninguém perguntava às pessoas de onde vinham, pois era coisa sabida que representava a vida livre dos EUA em todas as suas variações. Hillmoore, que se chamava realmente levgeni Alexandrovitch Chimanov e era tenente-coronel, pensou, sem a mínima hesitação, ter na sua frente um oficial particularmente dotado do Exército Vermelho. Bob Miller dava a sensação de já ter alguns cursos no seu passado, pois denotava o comportamento mais americano que se poderia desejar. Foi pôr-se sem muitas palavras atrás do balcão, pegou num shaker, puxou algumas garrafas para junto de si e preparou um coktail, que deitou com gelo moído em copos altos. Empurrou um deles na direcção de Hillmoore e fez um aceno de cabeça, sorrindo.
- Com as minhas recomendações especiais, patrão - disse. - Uma bebida muito especial. Na Florida chamam-lhe «calcinhas abaixo», porque serve para nos meter qualquer rapariga no bucho. Cheeereeo!!!!
Fez uma saúde a Hillmoore, esvaziou meio copo de uma golada, e quando Hillmoore pretendeu imitá-lo ficou a saber o que eram goelas queimadas. Sentiu que lhe faltava o ar, ergueu os braços e tossiu até quase ter a certeza de que deitara fora metade de um pulmão. Bob Miller soltou uma gargalhada infantil e esvaziou o copo sem qualquer emoção visível.
Está contratado, Bob - arquejou Hillmoore.
- Com os diabos! Não pode preparar uma coisa dessas aqui. Iria matar metade de Frazertown: Também sabe preparar bebidas aceitáveis?
Se quiser, faço-lhe um cocktail com a suavidade de uma coxa coberta de penugem loura...
- Vai ter muito que fazer, Bob - interrompeu-o Hillmoore apreensivo. - Aqui em Frazertown temos aproximadamente sessenta e quatro mulheres. Não aguentará!
- Conseguiu um «muito bom» no treino de sobrevivência, patrão - riu Miller desarmando-o. Gerald Hillmoore ficou convencido de ter feito uma boa aquisição. À semelhança do que acontecia com todo o comércio de Frazertown, trabalhava cem por cento comercialmente, só que não podia ficar com os lucros, pois tinha de os entregar a James Bulder. Aqui, a economia americana tinha os seus limites.
- Abrimos às oito da noite - disse Hillmoore. No armazém há uniformes para empregados de bar de todos os tamanhos. Encontrará sem dúvida um que lhe sirva. O que vai fazer hoje à tarde, Bob?
- Tenho de arranjar a minha casa, patrão. E depois vou ao ginásio de boxe.
- Pratica boxe?
- E não só. Interesso-me por tudo o que seja desporto. Até logo...
Miller fez um cumprimento de despedida e abandonou o bar de Hillmoore. À saída sentiu uma curiosa sensação na nuca. «Está a observar-me», pensou. «Tenho a impressão de que aqui se cultiva um americanismo abafado. A maneira de ser do Middle West ainda não está integrada.» Tomou a decisão de se adaptar, mas sabia também que, assim, jamais Podia arrancar Norma Taylor da sua fortaleza.
Bob passou o resto da tarde a fazer compras e a visitar a cidade. Frazertown era uma cópia maravilhosa, mas mesmo assim não passava de uma cópia, como Bob Miller verificou satisfeito. Comparou a cidade à sua contrapartida do Alasca, a desconhecida Smolenska, e a balança pendeu a favor do Alasca. Smolenska era em algumas nuances mais russa do que Frazertown era americana, apesar dos drugstores, supermercado, salões de jogos, agência de apostas de cavalos, um jornal próprio - o Notícias de Frazertown -, cinema e o colorido quiosque de hamburgers de Billy Rampler.
O facto, porém, em nada alterava a realidade de que Frazertown constituía o local mais perigoso do mundo a nível da segurança internacional e, em especial, dos EUA. Todo o que saía da cidade, com ordens de Moscovo, era um agente camuflado na perfeição, para o qual deixavam de existir obstáculos devido à sua inteligência e preparação, perfeição e sangue-frio suicida.
No ginásio de boxe reinava um movimento enorme. Lutava-se em quatro ringues. Na atmosfera quente ouvia-se a respiração ofegante e o som dos golpes aplicados. No meio da confusão, os treinadores berravam e agitavam os braços como se estivessem sufocados. Bob Miller sentou-se junto a um ringue onde dois pesados se defrontavam, dois cepos maciços que mal se mexiam, mas apenas se martelavam com os punhos. Tinham um trabalho de pernas deplorável. O treinador gritava-lhes:
- Dancem! Dancem! Pensem no Cassius Clay. Não fiquem parados como os pilares do Capitólio. Mexam-se, seus calões.
Pouco conseguia, no entanto. Giravam apenas um em redor do outro.
Miller concluiu que não valia a pena continuar a observar e apresentou-se ao director do ginásio. Explicou-lhe que não era um novato e aguentara já muitos combates..
- Não quero enferrujar, chefe! - declarou. - O sangue quente é parte da vida. Quem resiste a quinze rounds no ringue, é também homem para qualquer mulher na cama.
- Podes começar amanhã, às quinze, Bob! - retorquiu Harry Fulton, o chefe do ginásio com um aceno afirmativo
de cabeça e avaliando Miller com olhar de perito. Acho que tenho o adversário exacto para ti. Com o mesmo corpo e estatura. Devem estar óptimos um para o outro. Anseio por ver.
Eu também, chefe.
«Quem será esse adversário?», pensava Miller ao ver-se novamente na rua e indeciso quanto a onde ir agora. Ver a Norma, de modo algum. Devia afastá-la do pensamento. «Do meu tamanho e estatura! Deve ser um tipo interessante!»
Miller estava satisfeito consigo. No espaço de um dia conseguira fazer uma série de bons conhecimentos e velara para que o ficassem a conhecer em muitos sítios de Frazertown. Principalmente nas lojas e no supermercado, que era, naturalmente, um ponto de troca de impressões diárias. Apenas lhe faltava o cabeleireiro, uma pessoa importante, pois quem tem um cabeleireiro como amigo pode contar com uma boa reputação.
Bob Miller foi aparar o cabelo, contou algumas graças espirituosas sentado na cadeira e fez propaganda do bar nocturno de Hillmoore.
- Quando lá for - prometeu ao cabeleireiro - preparo-lhe um sumo que tem o mesmo efeito de um quilo de jinsém. Terá dificuldade em se recompor...
Os clientes do salão de cabeleireiro ficaram entusiasmados e Bob Miller alargou o círculo de amigos. Mais tarde, foi sentar-se num banco pintado de branco junto ao rio, que agora já sabia chamar-se Silver River, e anotou no número mais recente do Notícias de Frazertown alguns dos pseudónimos americanos que descobrira serem utilizados pelos Russos, serviu-se para o efeito do quadrado das palavras cruzadas, mas em vez das soluções escreveu as maiúsculas dos nomes: Hillmoore, Fulton, Rampler... quando acabou já estava de posse de vinte e quatro nomes.
Vinte e quatro agentes russos que já não eram desconhecidos. Fosse qual fosse o sítio da América para onde mais os destacassem... viveriam com a sombra da CIA. Todas as suas acções seriam controladas, sem que o soubessem.
As dezanove horas, Bob Miller iniciou o seu serviço no bar de Hillmoore. Num armário que lhe tinham indicado descobriu um uniforme aceitável de barman, apresentou-se aos outros dois homens, que já tinham ouvido falar muito do novo camarada pela boca de Hillmoore, e ficou encarregado da Secção III, do lado direito do bar, em frente da pista de dança e da orquestra composta por quatro elementos. Duas jovens de alterno e a moça dos cigarros sorriram-lhe com ar de intimidade e cingiram mais as blusas, que eram de um tecido quase transparente. Bob Miller achou-as a todas perfeitas.
Às vinte horas chegaram os primeiros clientes e Bob preparou o seu primeiro cocktail Elliot. Fazia-se com 1/4 de gin seco, 1/4 de Cointreau, 1/4 de brandy-mel e 1/4 de sumo de limão. Misturava-se tudo com quatro cubos de gelo. Uma receita de boa disposição.
Gerald Hilmoore observava Miller de um canto da sala, decorada com mesas discretas e pequenos reservados com uma iluminação vermelha e estimulante.
«O camarada é perfeito», pensava Hillmoore. «Pouco gozaremos da sua companhia. O general Sinionev não demorará a introduzi-lo nos EUA. Decerto só dá aqui uma representação. O que pode Bob aprender ainda a nível de americanização?»
John Barryl arranjara-se com particular esmero.
Depois de ter passado a maior parte do dia no exterior, junto daquele seu monstro que era a ceifeira-debulhadora e estudado a gigantesca máquina em todos os pormenores, despendeu, à tarde, dos 250 dólares de «dinheiro para gastos» que lhe tinham dado nos serviços de recepção da Câmara,
150 dólares a compra de um fato azul-marinho, uma camisa creme a condizer e uma gravata azul pontilhada. Adquiriu ainda uma água-de-colónia francesa com um perfume mais agradável do que a americana. Ainda não pusera até essa altura qualquer dinheiro de parte da folga semanal. Na medida em que se cansara da decoração standard da casa, Comprara um pequeno bar e uma carpeta com um bizarro padrão anatólico, que colocara no centro da sala de estar. Se conseguisse trazer Norma Taylor a sua casa, certamente se surpreenderia. E na medida em que Frazertown, como na vida normal, tudo tinha de ser pago em dólares contados ou a prestações, John Barryl via-se constantemente com dificuldades de dinheiro. Apenas tinha poupado aqueles 250 dólares e sacrificava-os agora a favor de Norma Taylor, vestindo-se como um cavalheiro.
Norma esperava-o em frente do prédio onde tinha um apartamento no segundo andar. Estava belíssima. Vestia uma saia larga e comprida, enfeitada com papoilas enormes num fundo verde-claro, e uma blusa de corte ousado; a prender-lhe os cabelos pusera uma fita com a mesma cor vermelha das papoilas. John Barryl ficou mudo de espanto. Reparou imediatamente que Norma dispensara o soutien e os seios pendiam em liberdade. Quando lhe estendeu a mão, avançou como um adolescente a quem provam pela primeira vez porque é que uma vida sem mulheres é uma partida da natureza.
- Está com um óptimo aspecto, John - elogiou Norma com um ar desembaraçado: - É novo o fato?
- Há dez minutos que arranquei a etiqueta com o preço...
- retorquiu Barryl evitando olhar o arrojado decote da blusa de Norma. Chegou-lhe um aroma a perfume que contribuía para tornar mais sufocante a noite, já por si quente. Vamos? - perguntou, entusiasmado.
Deu-lhe o braço e julgou sentir-lhe o agradável calor da pele através da manga. Os seios moviam-se suavemente para baixo e para cima, acompanhando o ritmo do corpo... não era coisa que passasse despercebida, que se ignorasse, era uma Parte da magia que se apoderou de Barryl. Começou a sentir o bater das têmporas e teve de abrir um pouco a boca e controlar a respiração, pois se agora respirasse pelo nariz daria a sensação que resfolegava.
«roe-me doido», pensou. «Exige demasiado ao auto-domínio de um homem! Como é possível aguentar uma coisa destas toda a noite? Dêem-me um conselho, camaradas. Diz o velho ditado que, quando vires uma mulher bonita, foge ou deita-te aos pés dela... Mas que diabo de sabedoria!»
John Barryl estava disposto a capitular incondicionalmente perante Norma.
John já nada sabia do que lhe dissera a caminho do bar de Hillmoore, até chegarem finalmente à entrada, por cima da qual brilhava o reclamo de néon em cores variadas. Devia ter dito muitas parvoíces, pois Norma rira algumas vezes e apertara-lhe o braço. Foi como se lhe beijasse o corpo.
No Hillmoore já havia bastante gente, mas Barryl reservara uma mesa, num dos compartimentos iluminados a vermelho, onde se podia estar só entre a multidão.
Bob Miller preparava nesse preciso momento um refresco Lone Three e agitava o shaker na mão, quando viu entrar Norma. Sentiu-se como se tivesse recebido um soco em pleno estômago. Pousou o shaker e ficou a olhar desconfiado um homem alto e musculoso com muito boa aparência, vestido com um fato azul e uma gravata a condizer que apontou para um dos reservados, depois do que agarrou Norma pela cintura e se aproximou da pista de dança. Foi obra do acaso que, nesse instante, a orquestra fizesse uma pausa e o sussurro no local fosse o único barulho audível. Neste relativo silêncio ecoou como um raio um guincho agudo, quando Norma se aproximou. Norma Taylor deu meia volta, o seu olhar cruzou-se com o de Bob Miller, como se quisesse fulminá-lo. Em seguida, avançou muito direita e a passo rápido para o reservado. John Barryl parou, olhou surpreendido para Bob Miller e foi ao seu encontro.
- Tem alguma dor? - perguntou.
Bob Miller agarrou no shaker e fez um aceno de cabeça dirigido a Norma, que se sentava.
- É a língua dos macacos - retorquiu, ao mesmo tempo que Barryl o fitava, sentindo-se irritado com a expressão sonhadora dos olhos do indivíduo. - E significa: Alegrem-se, cristãos, porque um anjo desceu à Terra!
É doido ou quê? de modo algum. Conte o que se passou à sua companhia, pois ela entende.
- Norma?
Claro. Não sabia que a Norma é especialista em macacos?
Barryl desistiu de obter mais informações e dirigiu-se à sua mesa. Encontrou uma Norma Taylor, com duas rosetas vermelhas na face, que respirava aceleradamente e mordia o lábio inferior. «Tem todo o ar de alguém que não se importaria de cometer um crime», pensou, sentindo-se entusiasmado com Norma.
- Devo voltar atrás e dar-lhe um murro? - perguntou, sem se mexer do mesmo sítio.
- Eu própria sou capaz de o fazer sem ajuda! - exclamou deitando um olhar furibundo a Bob Miller, com uma expressão de fera e os músculos tensos. - Com aquela cara de miúdo! Disse-lhe que era a língua dos macacos?
- Exacto - respondeu John Barryl espantadíssimo. Conhece-o?
As narinas abriram-se-lhe ainda mais. Bob Miller tinha voltado a pegar no shakér, agitou-o, atirou-o ao ar com elegância e seguidamente despejou o Lone Three em copos altos. Os dois indivíduos a quem serviu sorriam com uma expressão apreciadora.
- É uma maravilha! - pronunciou-se um deles. Como se chama?
- Bob.
- Aprendeu com a Norma Taylor? Esforço inútil. Quando não está a fazer os seus batidos de leite, fica em casa a ler a banda desenhada do Mickey...
- Vou oferecer-lhe o Sexus do Henry Miller.
Ela dava-lhe um soco. Aposto dez dólares como não é capaz.
Norma Taylor olhou para Miller como se o pudesse fulminar com raio laser.
Trá-lo aqui! - pediu subitamente. John Barryl sobressaltou-se. Por dois motivos. Em primeiro lugar estava a tratá-lo por tu e em segundo lugar a voz soava-lhe mais rouca e profunda do que o habitual. Um som que entrava nas veias.
- Aqui? - repetiu Barryl. - Estás realmente disposta a bater-lhe?
- Vai buscá-lo imediatamente, John! - disse, batendo com o pequeno punho no tampo da mesa. - Vocês, os homens, fazem tantas perguntas!
Barryl levantou-se, pois, e dirigiu-se ao balcão do bar. Neste momento, teria feito tudo por Norma. Se lhe tivesse ordenado «Mata-o!», não estava certo se o não faria. «Isso é de loucura», pensava, enquanto se encostava ao balcão do bar. «Todos sabemos porque estamos em Frazertown, queremos ser os melhores da União Soviética, a elite, a pátria espera algo de grande da nossa parte, temos à frente uma missão quase sagrada... e, no entanto, vê-se uma mulher e a paixão sobrepõe-se à razão. Também nos deviam preparar para a perfeição, de molde a tornar-nos imunes ao fascínio feminino. Prenderem-nos durante um mês ou mais com ’as mulheres mais encantadoras e que conhecessem todos os truques. Só quem aguenta uma coisa dessas é a máquina perfeita e de aço que pretendem fazer de nós.»
- O que desejas, pá? - perguntou Bob Miller inclinando-se um pouco para John Barryl. - Um coco para a senhora?
- Tem de vir à mesa - retorquiu Barryl num tom perigosamente calmo.
- Estou de serviço.
- Se houver problemas, eu falo com o Hillmoore.
- Nesse caso... certo! - concordou Bob Miller, que limpou as mãos, despiu o casaco de barman de seda vermelha e saiu do balcão. John Barryl seguia atrás dele. Eram quase do mesmo tamanho, largura de ombros e peso. Uma bela constituição física. «Deve ser um russo branco», pensou John. «Talvez da região do mar Báltico. Saberia imediatamente pela pronúncia. Embora seja estritamente proibido em Frazertown.
Vou falar com ele em russo!»
Norma Taylor mediu Bob com o olhar frio de uma ursa. Ele mantinha-se na sua frente, alto e robusto, sem desfitar lascivamente os seios, que a blusa colorida praticamente não tapava. Apercebeu-se do olhar descarado, mas nada fez para puxar o decote mais para cima ou ajeitar a blusa.
Aqui estou - começou despreocupadamente. - Chamo-me Bob Miller, tenho trinta e três anos, nasci num pequeno ninho do Novo México, onde é uso que tanto os homens como as mulheres se esfreguem com gelo antes de dormirem juntos. Em seguida, têm de suar como se estivessem dentro de sacos de plástico.
- Você é um porco, Bob - insultou Barryl nas costas de Miller. - Um javardo. Vai engolir isso?
- O seu moço estaria convencido de que me ia fechar as portas e bater-se comigo? - retorquiu Bob Miller dirigindo-se a Norma com uma risada. - Aqui vivemos num país livre e cada valente cidadão americano pode dizer o que pensa.
- Voltou-se para Barryl. Estavam tão próximos que os narizes quase se tocavam. - Isto é a América, certo?
- Mas há os exageros, Bob - retorquiu John Barryl irritado. - O jogo pára onde entram as emoções...
- Pelo contrário, é aí que começa - disse Bob Miller, dando a volta à pequena mesa e sentando-se à esquerda de Norma. Era este, realmente, o lugar que pertencia a John, que não o reclamou. Foi buscar a outra cadeira e instalou-se a direita de Norma. - Aprendi que as emoções são um luxo perigoso. Lá havia um acampamento onde nos era aplicado o terceiro grau do interrogatório. Quem conseguia chegar a meio intacto e com a cabeça fresca, tinha sorte - prosseguiu, fitando Barryl. - Não esteve neste acampamento?
Não. Venho de... - Calou-se e encolheu os ombros, à guisa de desculpa.
Estamos aqui entre nós. O velho tio Sinionev não nos ouve...
A minha última estada foi em Frunze. :
- A imagem brilhante de um oficial! - exclamou Bob Miller, recostando-se, ao mesmo tempo que via Hillmoore à porta do reservado, observando-o. Contudo, não se aproximou. - Nunca vi Frunze. Tão-pouco a Academia de Moscovo.
- Também lá estive - retorquiu Barryl orgulhosamente.
- Claro! Uma estrela do seu calibre! Passei, pois, um ano nos pântanos de Chernovskaia, no centro da Sibéria, e em Spornoi, a norte de Magadan. Batiam-nos com pedras no tórax. Atiraram-me de um avião, em pára-quedas, sobre o Senka, um rio sujo no meio de Jakutien. E o que tinha comigo? Apenas as mãos e nada mais. Contudo, saí-me bem, fiz facas e machados de pedras, armadilhas com ramos, apanhei assim lebres e raposas, e esfreguei pedras umas nas outras até conseguir algumas faíscas em musgo seco e, finalmente, uma fogueira. E quem tem fogo é um conquistador da natureza. Muitas vezes, as minhas mãos não passavam de uma massa inchada e sangrenta. E o que fiz? Mijei em cima delas. É melhor do que penicilina, arde como uma queimadura, mas desinfecta e mata os micróbios - continuou Bob Miller, sacudindo a cabeça. - Não, meu caro camarada, não me venha falar de emoções. São elas que podem produzir uma imagem de Frunze como você.
Voltou-se na direcção de Norma. Nos olhos brilhava-lhe o fascínio silencioso mas quase palpável que nunca dava a perceber. Esse olhar afagou o rosto de Bob, sentiu-o fisicamente, em seguida afastou-se e fixou-se na pista de dança. A orquestra regressou do intervalo. Norma Taylor voltou a fugir a si própria.
- O que vamos beber? - perguntou Bob. - Quer que lhe prepare, um cocktail Dom, Norma? Cognac, Dom Beneditine, tríplice seco, sumo de laranja. Uma maravilha! Parece o tipo de pessoa capaz de apreciar sabores com um travo, Norma.
- Sabe o meu nome?
- Foi o primeiro sobre que me informei aqui em Frazertown. Tive de saber como se chamava a grande zoóloga que me classificava entre os macacos.
- Esqueça isso, Bob.
- Chamo-me John Barryl - interrompeu Barryl, irritado por o diálogo o deixar de lado e nada ter a acrescentar ao tema. - Tomo um whisky simples. Enquanto se ocupa do shaker, no balcão, vou dançar um pouco com a Norma.
Pôs-se imediatamente de pé e puxou-a da cadeira, pelo braço, sem esperar pelo seu assentimento. Ela não se recusou, deu-lhe o braço, e na pista de dança rodeou o pescoço de Barryl com uma suavidade que lhe fez subir o sangue ao rosto. Dançaram assim um blue para namorados; ela estreitava-se de encontro ao seu corpo, fazendo-lhe sentir os seios firmes e dando-lhe a respirar o aroma do perfume que se evolava da pele. Quando diminuíram a iluminação e jogos de luzes de cores variadas inundaram os dançarinos, Norma apoiou a cabeça no peito de Barryl, mal se mexendo do mesmo sítio. Era um roçar e uma carícia, uma pressão e um enlaçar que quase anestesiaram Barryl. A ternura que até aí recebera das mulheres não passava de rudes carícias em comparação com a maneira de ser insinuante e selvagem de Norma. Deixou que as mãos lhe deslizassem ao longo das costas, acabando por lhe rodear as nádegas. Cuidadosamente, como que interrogando, atraiu-a mais a si. Norma continuou com o rosto encostado ao peito dele e entregou-se-lhe da cintura para baixo. John sentiu como os músculos das nádegas enrijeciam e correspondiam à pressão exercida.
«É a vitória», pensou John Barryl, incapaz de pronunciar uma palavra, tão grande era a felicidade que sentia. «Conquistei a mulher mais maravilhosa do mundo.»
Bob Miller observava-os, enquanto preparava o cocktail. Dom.
«Meu refinadíssimo burro», pensava satisfeito. «O pobre John está nas nuvens e nem se apercebe do corpo insensível que arrasta pela pista. Está a demonstrar-lhe como pode ser. Mais tarde, irá dar-lhe um beijo ao de leve no nariz como despedida e o bom do John terá de tomar um duche frio para se acalmar.»
Encheu o copo, provou o cocktail, achou-o uma maravilha e beijou o vidro no preciso momento em que Norma Taylor, ao dar uma volta, tinha os olhos pousados nele. Voltou a encostar imediatamente a cabeça no peito de John e dançou o blue até ao final, como se fosse o complemento de um orgasmo.
Às quatro da manhã foram os dois acompanhar Norma até casa. Tal como Bob imaginara, deu um beijo no nariz de John, estendeu a mão despreocupadamente a Miller e desapareceu por detrás da porta do prédio de apartamentos. Bob olhou para Barryl, que, intimamente, fervia de irritação.
- Neste caso bastava um! - comentou John bruscamente, quando ficaram sós na rua. Na linha do horizonte, a leste, o céu nocturno começava a clarear. Uma ténue claridade espalhava-se sobre a terra. - Porque veio também, Bob? Ninguém lho pediu!
- Vínhamos para o mesmo sítio, John. A união faz a força.
- Porque não deixa esse sarcasmo? De onde lhe vêm esses olhos de expressão romântica? Com a sua maneira de ser estavam a calhar olhos de aço.
- Da minha mãe, John. É natural de Gorki. Uma mulher espantosa. Se não fosse meu pai, sentiria ciúmes dele por poder amar uma coisa assim.
- Os meus pais morreram num incêndio que destruiu um hotel onde passavam férias. Também eu tive uma mãe maravilhosa. Somos naturais de Irkutsk. Bob...
- Sim, John?
- Vamos até minha casa. Temos de celebrar o nosso conhecimento.
- Ressentimentos por causa de Norma?
- Isso é outra história. Agora estamos entre homens. Talvez ainda precisemos um do outro...
- Com certeza! - acedeu Bob Miller calmamente. Tem toda a razão, John.
Ficaram no bungalow de Barryl, até John ter de ir para o trabalho no restaurante de Billy Rampler. Abria às dez horas da manhã, pois nessa altura os operários da construção iam comer um hamburger como segundo pequeno-almoço. Norma só entrava por volta do meio-dia e durante a manhã era o próprio Billy que se punha atrás do balcão e preparava os batidos de leite. Embora as misturas fossem as mesmas, todos achavam que o leite preparado por Norma sabia melhor.
Podes deitar-te no divã, Bob - ofereceu John, depois de vestir o fato de trabalho de todos os dias. - Para quê andares por aí? Como está o teu programa?
- Às dez e meia, uma prelecção sobre os bastidores dos bancos americanos. Uma maçada. O que se passa por detrás das paredes de vidro dos bancos apenas sabem os que estão lá dentro. Metade deles nunca mais poderiam andar em liberdade numa cidade capitalista.
- Fecha a porta quando saíres - disse John Barryl enfiando o boné de pala verde. - Café, chá, leite, o que precisares, e também ovos e presunto, estão na cozinha.
- Vou desforrar-me, John - retorquiu Miller estendendo-se de facto no divã e metendo uma almofada debaixo da cabeça. - Para a próxima serás tu o meu convidado.
John fez um aceno de cabeça afirmativo, mas ao chegar à porta deteve-se e virou-se. ainda.
- Estás com o olho em Norma?
- Estou - respondeu Miller, calmamente.
- Nesse caso somos amigos e rivais.
- Tal como dizes, John - concordou Bob com um duplo sentido.
Um verdadeiro absurdo. Com a missão que nos espera... amanhã já Norma pode ter desaparecido de Frazertown.
Tão rápido como isso?
As ordens vêm do Centralburo. Ninguém sabe quando irá. Nestas sete semanas que já aqui passei, assisti ao desaparecimento de pelo menos catorze camaradas de uma noite para a outra. -Barryl passou subitamente a expressar-se em russo. Em compensação chegaram catorze novos. Tu, entre eles. Pode acontecer que hoje cheguemos ao restaurante do Billy e a Norma desapareça no intervalo do almoço.
- Interessante - comentou Miller com um bocejo, embora estivesse perfeitamente desperto. - Catorze camaradas - repetiu, falando agora igualmente russo com um genuíno staque de Gorki. - Se um de nós tiver de partir subitamente, John, um deve ter tempo para vir dar um abraço ao outro.
- Andrei Nikolai vitch.
- Eu sou Vassia Grigorevitch.
- E quanto à Norma? - retorquiu Barryl, encostando-se à ombreira da porta.
- Chama-se Dunia Andreievna. Foi Billy Rarripler que mo revelou.
- Não achas que tem de ser a própria Dunia a decidir?
- Já O fez. Hoje à noite.
- Pode ser - acedeu Miller, fechando os olhos e voltando a falar em inglês. - Aguardemos, John. As mulheres são como as gatas. Ronronam e arranham ao mesmo tempo
- acrescentou, voltando a bocejar e espreguiçando-se. Sinto-me Cansado, com os diabos! Cala a boca, John. Deíxa-me dormir uma hora.
Barryl soltou uma risada, fez um gesto de despedida a Bob e saiu do bungalow. Sentia-se tomado de um profundo sentimento de amizade. «Vale a pena ter um bom camarada», pensou. «somos igualmente semelhantes a nível de força física, secreto patriotismo e da alegria que traz a expectativa de grandes missões futuras. Podíamos ter realmente sido irmãos de sangue. Perfeitamente razoável que se ame a mesma rapariga, tão parecidos somos. Sim. É Dunia Andreievn que tem de se decidir. Para quê uma faca apontada?»
Saiu para a manhã inundada de sol, parou ao fundo do jardinzinho e abriu os braços como se pudesse abarcar o céu. «Casarei com Dunia», pensou. Contudo, logo tomou consciência de que na sua profissão isso não era possível. A sua vida era dirigida pelo Centralburo. Era, realmente, uma pessoa, mas com o destino traçado por desconhecidos de Moscovo.
Deixou pender os braços ao longo do corpo, enterrou mais o boné, porque o sol agora nascido o cegava, e pôs-se a caminho do paraíso de hamburgers de Billy Rampler.
Bob Miller observava-o por detrás das cortinas e esperou ainda dez ’minutos até ter a certeza de que Barryl não voltaria atrás. Em seguida, começou a revistar a casa, parede por parede, canto por canto, desde as tábuas do soalho ao tecto. Encontrou muita coisa pessoal que defendia o sentimentalismo de John Barryl: discos de música clássica, romances de Hemingway, Dos Passos e Wouk, três aguarelas iniciadas e revelando John como um pintor de talento, algumas notas diárias sem grande valor informativo e uma carta nunca enviada a Norma Taylor em que Barryl abria o coração. Em seguida, um bar bem fornecido e um bilhetinho, onde uma tal Britt Lawson escrevera com uma bonita caligrafia: «Já tenho mais um animal embalsamado. Um ursinho de pelúcia. Quando vem visitar-me, John?»
Um ursinho de pelúcia! Bob Miller deu por finda a sua inspecção, sentindo-se um pouco desiludido. Apesar de tudo, não fora um dia perdido. Conhecia os nomes russos e catorze agentes iam a caminho dos EUA.
Voltou a instalar-se no divã e olhou para o jardim. Andrei Nikolaivitch, com o nome de John Barryl... constituía um sério perigo para a América se conseguisse pôr os pés fora dali. E Bob não duvidava nem por um instante de que o conseguiria. «É um dos melhores homens de Moscovo», pensou. «Se uma destas manhãs John não estiver em Frazertown, dou o alarme geral.»
E depois?
O problema que o preocupava só podia ser solucionado com uma sorte danada: como sairia de Frazertown?
A conferência sobre bancos americanos foi realmente monótona. Pertencia, no entanto, ao programa obrigatório da preparação, pois também nos bancos seriam introduzidos agentes a fim de investigarem a mistura do dinheiro com a política e sobretudo com o plano do armamento bélico. Na medida em que as principais missões de pesquisa na América eram entregues a firmas privadas e estas trabalhavam juntamente com os bancos, um espião era, por exemplo, introduzido no departamento de crédito de um banco importante e com o lugar exacto. Além disso, ninguém em Frazertown sabia como e onde seria introduzido. O conhecimento geral da vida americana era, por conseguinte, indispensável.
Bob Miller estava apenas meio atento e aproveitava a ocasião para examinar os outros participantes do curso. Tinha-se colocado na última fila, de onde podia observar toda a sala e não chamava as atenções com aquele seu exame ao que se passava em redor. A seu lado estava sentada uma jovem que quando se instalou lhe piscou o olho e cruzou as pernas. Pernas compridas e esguias, queimadas pelo sol e com uma pele maravilhosa. Bob deitou-lhe o costumado olhar sonhador, sorriu-lhe e depois repartiu-se entre a conferência e a apreciação dos colegas.
- Interessa-lhe o assunto? - perguntou a jovem,em voz baixa, passado um bocado. Bob Miller respondeu com um aceno de cabeça:
- Tanto, pelo menos, como o fabrico de óleo de rícino. Riu gostosamente e pôs um lenço em frente da boca.
- Chamo-me Brenda Goldstein. Podiam ter-me escolhido um nome melhor. Queixei-me. Perguntei-lhes: «Porque é que me rotulam com um nome judeu, camaradas? Olhem bem para mim. Sou loura!»
- Também há judias louras, Brenda - retorquiu Bob no mesmo tom. - Quem sabe como e onde a introduzirão? Na América há uma quantidade de pessoas famosas e influentes de origem judia. Acho que Goldstein lhe fica bem.
- Foi mais ou menos isso o que me disseram os camaradas - observou, olhando-o surpreendida. – Também esteve no acampamento de Ticorizi?
- Não. Mandaram-me para a Sibéria.
«Ticorizi é um nome novo. Desconhecido pela nossa espionagem», pensou Bob satisfeito. «Será um acampamento de mulheres?»
- Há por lá raparigas tão bonitas como você, Brenda? - perguntou.
- O nosso curso compunha-se de cento e vinte camaradas.
- Assim valia a pena ensinar lá! - comentou Bob Miller, levando o dedo aos lábios quando Brenda pretendeu aprofundar o flirt. O professor falava precisamente das hipotecas em Nova Iorque e como os bancos estavam metidos nisso. - Deve prestar atenção, Brenda. É extraordinariamente importante.
Pouco antes de a aula terminar conseguiu, servindo-se de uma desculpa, abandonar a sala antes de Brenda Goldstein. Saltou para o bonde, aberto por causa do calor, que passava por ele e tirou um bilhete para o ginásio de boxe. Pouco faltava para o meio-dia e recordou-se, nada a propósito, do filme com Gary Cooper.
Harry Fulton dava a sensação de ter estado à espera de Bob. Andava a passear no corredor que levava ao ringue e agarrou em Miller como um animal à espreita da presa.
- Estava a rezar para que viesse hoje, Bob! - exclamou Fulton num tom quase arrebatado. - Também está aqui o indivíduo que tinha debaixo de olho para si. Está a treinar no saco de areia, porque ninguém quer ir com ele para o ringue. E mesmo a pessoa indicada para si! Quer vê-lo?
- E um desses elefantes? - retorquiu Miller sacudindo a cabeça. - Antes abrir buracos a soco numa parede.
- Confie cá no Harry - retorquiu Fulton jovialmente. Quando vir o homem, o seu coração de desportista rejubilar-se-á.
Empurrou Miller na sua frente para o salão e deu-lhe uma palmada no ombro. Em dois ringues estavam a treinar e outros dois apresentavam-se vazios. No canto dos aparelhos, quatro homens saltavam à corda e dois trabalhavam no convertedor.
Um homem treinava-se no saco de areia, mantendo-se afastado dos outros. O ruído era enorme.
- Então? - incitou Fulton cheio de entusiasmo. O que acha, Bob?
- O tipo do saco? - retorquiu Miller com um sorriso enorme. - Pergunte-lhe se ele está disposto.
Deram a volta aos ringues e aproximaram-se do boxeur pelas costas. No momento em que ia disparar mais um potente soco no saco oscilante, Bob agarrou-lhe no punho. O indivíduo deu meia volta.
- Tu, Bob? - exclamou o boxeur surpreendido.
- Conhecem-se?
- Claro que conheço o írmãozinho John - disse Miller num tom jovial. - Se sair alguma coisa de tudo isto, vais viver o acontecimento da tua vida, Harry. É dele a ideia de que joguemos boxe, John. Por mim, nada tenho contra.
John Barryl riu, limpou com o braço o suor que lhe escorria da testa e sacudiu a cabeça negativamente.
- Não vai haver combate nenhum, Bob. Não conseguiria magoar-te.
- E o que pensas, John! - replicou Bob Miller, cuja expressão adquirira um súbito ar de gravidade. Barryl fitou-o, como se lhe tivessem dado um pontapé na canela. - Hoje à noite, enquanto estava deitado no teu divã, não consegui dormir, e quanto mais tempo pensava, mais certo ficava de que Norma me pertence.
John Barryl respirava com força. Fulton olhava ora um ora outro e não demorou a aperceber-se de que o boxe podia igualmente ser uma conversa pessoal.
- Desconhecia tudo isso - disse bruscamente. - Esqueçamos a ideia, rapazes.
- Eu aceito - declarou Barryl com uma voz que lhe vinha lá do fundo. - Quando? Imediatamente?
- Imediatamente! - acedeu Bob, olhando para os punhos de John. Tremiam um pouco. O corpo musculoso brilhava de suor. - Há quanto tempo estás a treinar com o saco?
- Mais ou menos há um quarto de hora.
- Vai para debaixo do duche. Também vou treinar o quarto de hora. Iguais oportunidades para cada um, John. Não podes estar mais cansado do que eu.
Meia hora mais tarde, Bob e John treparam para o ringue no 3. Todos os que estavam no ginásio de boxe se sentaram em volta do quadrado; tinha-se espalhado o rumor de que se tratava de Norma Taylor, e quem não conhecia Norma? Harry Fulton ainda tentara organizar o combate e havia proposto dez rounds. No entanto, Barryl fitara-o irritado e resmungara entre dentes:
- Até ao final, Harry. Até que um de nós caia. Norma vale muito mais do que dez miseráveis rounds.
Bob Miller era da mesma opinião.
- Uma vez que o John está disposto a ficar parecido com os hamburgers que faz, para quê impedi-lo?
- Irão ter um problema dos grandes com o burgomestre Bulder - avisou Fulton.
- Se não lhe for contar, tudo ficará entre nós. Onde vivemos? Não estamos numa América livre?
Fulton olhou irritado para Miller e deixou de servir de moderador. Estipulou os campos, intitulou-se árbitro e mandou avisar o dr. William Ford, um médico assistente. O Dr. Ford era um dos dois médicos de Frazertown e chamava-se, na verdade, Afanasi Petrovitch Dronov, capitão-médico do Exército Vermelho de Leninegrado. Tanto ele como o seu colega e dentista de Frazertown estavam a ser preparados ali na cidade e, dentro em pouco, iriam abrir consultório, algures nos EUA, como simples médicos. Na proximidade, como é óbvio, de acampamentos militares... E ao médico - isto pertence ao âmbito da psicologia das profundidades - conta-se frequentemente mais do que à mulher ou à amante. Os padres e os médicos são os muros de lamentações das almas.
Fulton verificou as ligaduras, não tinha quaisquer objecções a fazer e deixou que pusessem as luvas de boxe. Seguidamente, chamou John e Bob para o centro do ringue... processando-se tudo como se fosse um combate entre profissionais em Madison Square Garden.
- Poupa-nos aos teus conselhos, Harry! - retorquiu John Barryl num tom surdo. Fixou os olhos sonhadores de Bob, a sua expressão de uma ternura ilusória. No entanto, tudo o que deles vinha não iludia. Havia os músculos a ressaltarem sob a pele. John recordou-se subitamente de uma das frases pronunciadas por Bob: «A norte de Magadan partiram-me pedras no tórax...»
-Conseguirei a Norma - anunciou Bob Miller calmamente. - Ouve bem o que te digo, John. Vou levar aquela ferazinha para a cama...
- Sai do ringue, Harry - ordenou Barryl num tom surdo. - Não precisamos de gongo. Para o diabo com as regras. Fora!
Empurrou Fulton para o lado e avaliou Bob Miller com os ombros erguidos. «Cá o temos!», pensou Bob friamente. «O instinto assassino. O desejo inexorável de matar.»
Começou a valsar, saltitou em redor de Barryl e esquivou-se rapidamente ao primeiro directo, que tinha como objectivo acertar-lhe entre os olhos. «É um cão rápido», pensou Miller, continuando a dançar em redor do ringue. «Nem se vê de onde partem os golpes. Percebe bastante de boxe. É pena que seja um espião soviético.»
Parou inesperadamente, deixou que Barryl se aproximasse, simulou um golpe ao estômago e disparou simultaneamente a direita na direcção da cabeça. John caiu na armadilha. Descobriu o corpo e o gancho de Bob atingiu-lhe o queixo em cheio.
Aguentou-o, no entanto, sem estremecer. Apenas os olhos se lhe estreitaram mais. Recuou dois passos, encaixou os golpes seguintes de Miller e desencadeou um ataque súbito. Martelou Miller com os dois punhos, corpo, cabeça, corpo, cabeça, atacando Bob de muito perto e cobrindo-se. Os punhos assemelhavam-se a martelos, incansáveis, direita, esquerda, direita, esquerda, e por detrás de cada golpe não havia meramente a força dos seus músculos e o peso do corpo, mas a raiva concreta e o pensamento fixo em Norma.
Miller esquivou-se, afastando-se até às cordas e ganhou distância. A saraivada do corpo a corpo dificultava-lhe a respiração. «Foste mesmo bom, John», pensou. «És um tipo duro, e isso agrada-me. Céus! Que bons amigos podíamos ser se tu não fosses um major soviético e eu um major americano. Não haveria barreiras... contudo, ambos nas nossas profissões aceitámos a mais amaldiçoada das missões, um trabalho de merda, John, onde não pode haver lugar para sentimentos.»
Saltitava no seu canto, consciente do perigo de ser imobilizado e observou de tras como Harry Fulton coçava a cabeça nervosamente. Barryl seguiu-o imediatamente, apercebendo-se da oportunidade, baixou-se e atirou-se com toda a força.
Cometeu o erro por que Miller esperava. Um gancho violento, disparado de baixo, destruiu a defesa de John. Pelo espaço de um segundo ficou escancarado como um portão e Bob disparou com a esquerda na direcção do peito.
Barryl cambaleou, faltou-lhe o ar e nos olhos apareceu-lhe uma surpresa quase infantil. No entanto, esquivou-se imediatamente ao ataque de Miller e aterrou-lhe uma esquerda na fonte. Em seguida, recuperou o controlo, a ligeira nuvem diante dos olhos desapareceu-lhe e viu que Miller dançava através do ringue, como se executasse passos de ballet.
O gongo que assinalava o fim do primeiro round destruiu-lhe a imensa alegria interior. Barryl voltou ao seu canto e deitaram-lhe imediatamente água fria em cima. Bob também se sentou no banquinho e deixou que lhe massajassem as partes do corpo que estavam vermelhas e lhe ardiam.
- Mostra gana! - observou o massagista, que não o conhecia. - Aguenta o que quer que seja na cabeça, mas pode tirar-se-lhe o ar. Claro que já se pode cobrir, pois sabe perfeitamente as suas fraquezas, mas se conseguires passar algumas vezes, fica mole...
Bob fez um aceno afirmativo de cabeça. Do canto é possível dizer tudo. Ele tinha uma opinião bem diversa. O primeiro round já lhe tinha mostrado que nunca na sua vida defrontara um adversário como John Barryl. Nem no ginásio de Jimmy Fleischer, há meio ano, no Alasca, para vencer um negro da Jórgia, uma montanha de músculos e cheio de instinto. Foi nessa altura preparado pela CIA para o ingresso na América do Sul e algumas vezes as turmas de boxe de Smolenska e do acampamento de Rio Margareta defrontavam-se. No ginásio de Jimmy Fleischer, Bob vencera com um gancho em pleno queixo no 11.º round e quando já decidira desistir no 12.º round.
Agora, não haveria desistência! No Jimmy’s tinha sido desporto, mas aqui em Frazertown tratava-se do combate pelo primeiro lugar de uma hierarquia interna. E Norma era o prémio! Um factor a ponderar!
O gongo!
Bob Miller avançou lentamente até ao meio do ringue. John Barryl dançava à sua volta, adoptando a táctica de Bob, esquivando-se, aguardando, não oferecendo um alvo, e sem se deixar tocar. Bob Miller sorriu-lhe.
- Hoje é sexta-feira - disse no instante em que se enfrentavam. - No domingo, já a Norma estará na cama, ao meu lado. Depois mando-te uma madeixa escura, um escalpe da ursinha...
O rosto de Barryl desfigurou-se um pouco. O suor perlou-lhe a cara e todo o corpo lhe estremeceu de cólera. Sem atender à defesa ou a regras de boxe, deum um salto para Miller e atacou-o como se fosse a lâmina de uma debulhadora. Harry Fulton resmungou qualquer coisa entre dentes e queria intrometer-se, mas John empurrou-o de encontro às cordas. Fulton ficou nessa posição, abriu os braços com um gesto de impotência e deixou que as coisas se desenrolassem naturalmente.
A partir dessa altura deixou de haver gongo, repartição por rounds, intervalos ou tão-pouco massagens... Bob e John atacavam-se com um desejo de destruição que ultrapassava o entendimento. O Dr. William Ford, que tinha aparecido no ringue, puxou Fulton pelas pernas e gritou-lhe:
- Interrompa o combate! Eles matam-se um ao outro, Harry. Isto já não tem nada a ver com o desporto. É crime!
Separe-os, Harry.
Faça-o você - rugiu Fulton. - Vamos! Apanhe um soco nos queixos. Neste caso só os bombeiros os conseguem separar.
Bob Miller e John Barryl dançavam no ringue. Sempre que se aproximavam, aplicavam golpes contra todas as regras e como calhava.
- Vou dormir nas mamas dela! - ofegou Bob quando se engancharam e embateram com as cabeças. - E se tiver sede, lambo-lhe o suor dos poros.
- Porco - insultou Barryl. - Grande porco! Dou cabo de ti.
Passada meia hora sem gongo e sem intervalo, ficaram pendurados nas cordas longe um do outro. Entre os dois havia o ringue vazio, que atingia dimensões incomensuráveis, ante os olhos cansados e fechados, transformando-se numa terra vasta e fria, cheia de pó, inexpugnável e batida por um sol ardente.
John Barryl foi o primeiro a deixar-se cair, lentamente, de joelhos, e a encostar a cabeça às cordas do ringue. Bob Miller ainda o viu, à distância, qual sombra no horizonte. Em seguida, também se deixou escorregar pelas cordas, apoiou-se com os punhos no chão do ringue e a cabeça pendeu-lhe sem força sobre o peito.
Harry Fulton saltou para o meio do quadrado.
- O combate está empatado! - gritou. - E, agora, vejam se vão para casa, seus burros. Que ninguém lhes toque. Entendido? - prosseguiu, voltando-se para os massagistas e para o Dr. Ford. - Nem que rastejem. Uma coisa mais: ninguém viu nada. Este combate não se deu. Ou preferem que todos tenhamos um processo disciplinar?
Bob e John deixaram-se estar deitados no ringue, até sentirem que as forças lhes voltavam lentamente. Estavam gelados, os nervos vibravam-lhes como teclas de piano, e o vazio que sentiam na cabeça transmitia-se a todo o corpo. Puseram-se novamente de pé, agarrando-se às cordas, e fitaram-se.
- Estamos vivos - declarou Barryl num tom surdo. Estamos mesmo vivos, Bob.
- Foste fabuloso, John - elogiou Miller avançando cambaleante até ao meio do ringue. John veio ao seu encontro. Abraçaram-se e apoiaram-se. - Nunca acreditei que pudesse algum dia vir a ter um amigo assim.
- Também eu não, Bob. Sinto-me feliz.
- Seja o que for que a vida nos traga... nunca poderemos esquecer que somos amigos.
- Nunca. Deixa que te abrace, Vassia Grigorevitch.
- Meu amigo do coração, Andrei Nikolaivitch. Abraçaram-se, beijaram-se três vezes na face, à maneira russa, e seguiram, de braço dado, até aos duches.
- Doidos! - exclamou Fulton, que os observava dissimuladamente. - O Dr. William Ford mordiscava um bombom. - Acredite no que lhe digo, doutor: são doidos varridos!
Mais tarde John e Bob estavam sentados na casinha de madeira branca de Miller, bebendo um refrescante sumo de laranja preparado por Bob no seu minúsculo bar. Do frigorífico tirara dois grossos bifes de carne crua, colocando-os na palma da mão de Barryl.
- Põe-nos em cima dos olhos, John - dissera. - Faz bem. É um velho truque dos profissionais. O inchaço desaparece rapidamente. Não me olhes com esse ar de parvo... Coloca-os nas tuas estrelas azuis.
Agora, Barryl estava semideitado no divã, tendo os olhos tapados pelos dois bifes em sangue, bebendo o segundo sumo de laranja em pequenos goles.
- Na segunda-feira começo com a debulha do trigo retorquiu. - Já te tinha dito? Recebemos uma verdadeira ceifeira-debulhadora americana. Tudo o que aqui fazem é mesmo perfeito.
- Dentro de meia hora mudamos os bifes - foi a resposta de Bob Miller, nesse momento refrescando os olhos com álcool graduado, o que lhe provocava dores de morte. - Vais trabalhar só, John?
- O quê?
- Com a ceifeira-debulhadora. Estou a lembrar-me de uma coisa. Estou de serviço até às quatro no Hillmoore e depois durmo cinco horas. Não preciso de mais... podia ir ajudar-te às onze horas.
John soltou uma risada. Oferecia um espectáculo absurdo, enroscado no divã, com a cabeça deitada para trás e os bifes de carne crua a tapar-lhe os olhos.
- Se quiseres, Bob - num tom de voz suave. Era tão duro fisicamente como fácil, porém, de se comover com coisas que lhe tocavam bem no fundo do coração. E a amizade verdadeira vem do coração. - Seria uma maravilha...
- Lá estarei, John - interrompeu-o Miller encostando-se à parede e fitando Barryl.
«Porque será que mais tarde nos viremos a destruir forçosamente?», pensou amargamente. «Deus permita que não nos defrontemos. Era horrível, John. Serias, nesse caso, o oficial soviético ou o meu amigo? Podes fazer-me a mesma pergunta e tenho de te responder: não sei. Que tal nunca aconteça!»
- Porque disseste aquelas coisas sobre a Norma? - perguntou Barryl.
- Queria pôr-te em brasa, John.
- Conseguiste.
- Contudo, não deste o braço a torcer como eu esperava. Acabei por não conseguir puxar-te pelas pernas.
- Nem eu a ti, Bob. É como se fôssemos gémeos.
- Quem iria adivinhar! - comentou Bob, aproximando-se de John. - E, agora, tira os bifes. Os meus olhos parecem sacos de borracha.
Trocaram de lugar. Bob colocou a carne em sangue nos olhos de John Barryl preparou um cocktail com gin, vermute e Grenadine a que Miller chamava Atta Boy e que, segundo pensava, lhe tinha servido pela primeira vez por Harry Craddock do Savoy, em Londres. Barry provou, gostou e considerou sem qualquer sentimento de inveja que Bob era perito no campo das bebidas.
Eram amigos e... no entanto separados por mundos, porque as ideologias transformam as pessoas em máquinas de morte. Resta a pergunta se Deus terá ponderado neste pormenor quando criou o mundo.
Cinco dias mais tarde.
John guiava ruidosamente a monstruosa ceifeira-debulhadora ao longo dos vastos campos de trigo junto ao Bug que aqui, do lado de dentro das barreiras, se chamava Silver River. O burgomestre Bulder aparecera duas vezes. Observou como ia a colheita e perguntou:
- Algum problema, John? Consegue arranjar-se sozinho?
- A brincar, sir - gritou Barryl do seu púlpito de vidro. - Dentro de uma semana pode mandar-me para outro lado. Acabo com isto.
James Bulder riu, acenou paternalmente a Barryl e regressou a Frazertown no seu jeep americano. Por volta do meio-dia e meia apareceu Bob Miller, trepou para a ceifeira-debulhadora, deu um pontapé no contentor do palhiço, o que John não registou, e substituiu Barryl na cabina do motorista.
Bob não voltara a aparecer junto de Norma. Suspeitava que ela estava ansiosa, não conseguia arranjar explicação para o seu afastamento, informava-se a seu respeito por toda a parte, mas nunca dos lábios lhe saíra uma pergunta dirigida a John. O orgulho interditava-lhe que aparecesse tão depressa no bar de Hillmoore.
O trabalho no bar era o emprego mais indicado que em Frazertown poderia haver para Miller. Aqui vinham sentar-se agentes, lado a lado, ao balcão, descobria-lhes os nomes americanos, algumas vezes até os russos, ouvia falar das suas preparações especiais que tinham como finalidade a forma como seriam introduzidos nos EUA.
Ao raiar da manhã do sexto dia da sua vida em Frazertown, Bob conseguiu finalmente, por intermédio do emissor de ondas curtas acoplado no transistor, estabelecer ligação com Avdev Konstantinovitch Deviatov, em Vinniza. Utilizando as cifras do código secreto - eram grupos de palavras das páginas 23 a 37 de O Velho e o Mar, de Hemingway, edição de 1953 -, transmitiu os nomes que até agora tinha descoberto e referiu o perigo de um agente especialmente importante. John Barryl - o major Andrei Nikolaivitch Pleniakov - estava, pois, à cabeça da lista.
«Lamento, miúdo...», disse Miller depois de ter transmitido as informações e de Deviatov lhe ter respondido com um breve «Entendido.» «Talvez esteja a contribuir para te salvar. Quando meteres o nariz na nossa fronteira, põem-te a mão em cima e a tua missão de merda acaba logo. Invejo a vida longa e tranquila que te espera.»
Voltou a arrumar o transistor na prateleira por detrás do barzinho e bebeu um whisky duplo puro. O seu primeiro radiograma estava feito... à tarde já o general Orwell teria a mensagem decifrada em cima da secretária. E diria aos restantes oficiais metidos no segredo: «Não tinha razão? Uma coisa destas só o Bob conseguiria. Uma vergonha que não o possamos voltar a ver...»
Bob Miller não pensava na última frase. Para ele, a vida em Frazertown só agora começava verdadeiramente. À noite, no bar de Hillmoore, ao meio-dia no campo de trigo na companhia de John e à tarde duas horas de descanso, que dedicava a pensar em Norma.
Por duas ou três vezes foi até ao rio, sentou-se à distância num dos bancos pintados de branco, de olhos fixos no restaurante de Billy Rampler com o hamburger gigantesco no telhado. Quando, ao cair da noite, aquela sanduíche enorme era acesa do interior e a carne picada, as rodelas de pepino e os tomates brilhavam num espectáculo de cores variadas, Bob tinha de controlar a ansiedade de se ir encontrar com Norma. Sabia que ela estava por detrás do reluzente balcão dos batidos de leite sem despregar os olhos da porta.
Na quinta tarde a seguir ao combate, considerou Norma como preparada. Tinha tomado duche, vestido uma camisa lavada e cheirava a uma loção de barbear seca. Tinha-se «correspondido» durante meia hora com Deviatov, em Vinniza. Deviatov telegrafou: «Tudo em ordem. O paizinho está de saúde e manda-te um beijo.» Tal significava realmente que o general Orwell recebera todas as mensagens, estava satisfeito e dava uma palmada amigável, à distância, no ombro de Bob. Norma Taylor estremeceu no momento em que Bob Miller empurrou a porta e apareceu no restaurante de Billy. Dirigiu-se sem rodeios e imediatamente ao balcão com um largo sorriso para Norma. Os olhos românticos aparentavam uma expressão mais terna do que nunca, pois Norma deixou transbordar o copo de leite que tirava da torneira.
- Um batido de ananás, doçura - pediu Bob, ao mesmo tempo que pegava na mão de Norma e lhe beijava a palma, sem encontrar resistência. Sentiu que toda ela estremecia, como se tivesse recebido um choque. - Tem de ser tão doce como tu...
Retirou a mão e refugiou-se por detrás das torneiras cromadas. Tinha mudado de penteado... agora usava o cabelo solto, preso com uma fita. Parecia mais suave, meridional, mais atraente e insinuante.
- Esteve doente? - perguntou.
- Não. Sinto-me tão bem que poderia imediatamente armar em herói.
- Andou à pancada com o John.
- Foi um combate justo. Empatados. Por sua causa, Norma.
- Eu sei. Uma parvoíce das grandes. Como se eu apenas apreciasse músculos e nada mais. À pancada como rapazes da rua! - comentou, depois de tirar o batido de ananás e empurrando ruidosamente o copo na direcção de Bob. - Pelo que me diz respeito, podiam ter partido a cabeça um ao outro. Foi o que também disse ao John.
- Onde está o John neste momento?
- A nadar na piscina. Passa o dia inteiro com a debulhadora e anda sempre cheio de pó. - Calou-se abruptamente, fitando-o com uma expressão irritada. - Porquê?
- Porquê o quê?
- Porque pergunta pelo John? Tornaram-se grandes amigos depois de quase se terem morto um ao outro.
- Teria lamentado, Norma?
- Pelo que lhe diz respeito, não.
Bob riu. Inclinou-se no balcão e brindou Norma erguendo o batido de ananás. - é maravilhosa, miúda. Um momento... és maravilhosa. Posso usar o tu?
- Não - respondeu de imediato num tom ríspido. A que pretexto?
- É muito vulgar entre as pessoas civilizadas, Norma - retorquiu voltando a agarrar-lhe o braço tão rapidamente que ela não teve tempo de se esquivar. Manteve, no entanto, os pés bem firmes no chão, quando a tentou atrair a si.
- Largue-me imediatamente - sibilou. - Largue-me imediatamente.
- Só uma pergunta: não se trata por tu uma mulher com quem se vai para a cama?
Fitou-o pasmada e novamente as pequenas asas das narinas resfolegaram. A sua ferocidade retida quase lhe rebentava a pele. «Que mulher», pensou Bob. «Nela vive a Rússia com todas as suas surpresas.»
- Escuta - disse-lhe meigamente. - Para mim não há qualquer problema. Quero dormir contigo e tu queres dormir comigo. Se ontem, hoje ou amanhã... pouco interessa. Iremos buscar o céu e cobriremos os corpos quentes com a sua frescura. Faremos amor até ao esgotamento...
Com um erguer de ombros, soltou-se e bateu-lhe. O som da bofetada assustou-a... Contemplou quase horrorizada como a cara dele se tingia rapidamente de vermelho. A marca do anel, uma água-marinha azul-clara rectangular, imprimiu uma mancha na pele.
- Dunia Andreievna - disse Bob calmamente, se bem que agora falasse em russo. - Deviam mandá-la de volta para Ticorizi. Nunca será uma americana.
Atirou o barro à parede e foi bem sucedido. Dunia-Norma meteu as mãos em água como se a queimassem.
- Como sabe que venho de Ticorizi?
- Sei, como está a ver. - «Graças à minha querida Brenda Goldstein», pensou aliviado. Acabou de beber o batido de ananás e empurrou o copo contra o cotovelo esquerdo de Norma. Ela estremeceu como se se tivesse picado.
- Não chega a saber tirar leite e falar um dialecto das cidades do Sul, Norma - prosseguiu em voz alta. Convença-se disso. Uma rapariga do Novo México reage de uma forma bem diversa se lhe oferecer a minha cama.
Deu meia volta e saiu do restaurante de Billy sem se voltar uma única vez para trás. Mal transpôs a porta, logo Rampler veio a correr da cozinha, por detrás do balcão. Enquanto John Barryl estivesse ocupado com a colheita, voltava a ter de preparar os hamburgers.
- O que é que ele queria? - perguntou. - Mas que cara é essa, Norma? Não se volte contra mim, não fiz nada! E também não deite fogo ao restaurante... está com o ar de quem o vai fazer!
- É o indivíduo mais antipático que existe ao de cimo da Terra - explodiu selvaticamente. - Teria acabado com ele em qualquer parte do mundo... só aqui em Frazertown é que não posso, Billy. Mas ainda o mato. Ainda o mato! Ainda o mato!
A cada palavra que pronunciava mexia nas torneiras e os cabelos soltos flutuavam de um lado para o outro; depois, ergueu subitamente os braços, tapou o rosto com as mãos, rebentou em soluços e fugiu a correr para a cozinha, saindo pelas traseiras.
Cerca das quatro da manhã, Bob Miller regressou do bar de Hillmoore. Sentia-se cansado, não só devido ao trabalho com os shakers mas também pelas infindáveis perguntas de John Barryl. Tinha aparecido cerca das dez da noite a pedir conselho e ajuda a Bob.
- A Norma não está no Billy’s - informou excitado. Ao que parece, ninguém sabe dela. Apenas trabalhou três horas e, em seguida, desapareceu. Como se o Billy não soubesse o que se passa! Mas não! Jura que não sabe! Mente, Bob. Não engana ninguém. E todos os outros são também uns mentirosos. Fui a casa de Norma... e não está no apartamento.
- Bebe um Night Cap Flip, que serve para te desanuviar as ideias, John - aconselhou Bob tranquilamente. - Já pensaste que pode ter ido ao cinema?
- Durante as horas de serviço? Nesse caso, o Rampler ter-lhe-ia dado folga. Mas não: ele não sabe onde ela está!
- Bebe isto, John...
- Vai para o diabo com as tuas beberagens - interrompeu-o Barryl, agarrando-se ao varão do balcão do bar. Se alguém a convocou inesperadamente, Bob... Sabes perfeitamente que essas coisas acontecem de um momento para o outro. Se a Norma desapareceu para sempre...
- Aprendemos a contar com essas coisas. Não te esqueças onde estamos, John.
- Mesmo assim, a ideia é insuportável - retorquiu John Barryl, deixando pender a cabeça. - É horrível. Dá-me um copo, Bob. Um atrás do outro... Preciso de me embriagar.
Não se chegou a embriagar. Miller conseguiu convencer Barryl de que Norma não podia ter sido chamada em circunstância alguma. Nunca se iria embora sem dar notícias, e apenas mediante convocação.
Fora muito difícil acalmar John e Bob soltou um suspiro de alívio quando ele, finalmente, saiu do bar de Hillmoore, com o moral ligeiramente mais elevado.
Bob chegou a casa, fechou a cancela da sua casinha de madeira e sentiu-se contente com a perspectiva da cama. Sobre o rio pairava novamente a maravilhosa claridade da luz anunciadora de um outro dia.
Por detrás da sebe junto da porta saiu inesperadamente uma figura que pisou com a ponta do sapato o primeiro degrau das escadas da entrada. Bob Miller deu meia volta com movimentos precisos e as mãos erguidas para aplicar um golpe mortal, tal como lhe tinham ensinado.
- Não me mates! -disse Norma, baixinho.- Se alguém tem motivos para matar, sou eu.
- Norma! - exclamou Bob puxando-a pelos ombros de encontro ao seu corpo. Ao primeiro reflexo fosco do alvorecer os olhos quase pretos pareciam grandes e ovais. - Desde quando estás aqui?
- Há três horas. O resto do tempo passei-o junto ao rio. Tenho de falar contigo, Bob. - Permitiu que ele lhe rodeasse os ombros com o braço e lhe afastasse o cabelo do rosto com a outra mão. - Tens de me explicar porque é que as raparigas americanas são diferentes de mim...
Fez um aceno afirmativo, beijou-lhe o cabelo e passou-lhe a mão, numa carícia, pelos olhos rasgados.
- Entra - convidou ternamente. - Entra em casa, Norma...
Há pessoas - e essas constituem a grande maioria - que se admiram com qualquer coisa e pouco depois logo a esquecem perante outros acontecimentos. E outras há que, quando lhes surge inesperadamente na vida qualquer problema fora do vulgar, fazem dele um fulcro que lhes ocupa permanentemente o cérebro e não lhes dá descanso, embora a base não seja de grande importância.
Harry Fulton, o director do ginásio de boxe de Frazertown, era uma destas pessoas obstinadas. Na escola de oficiais, em Leninegrado, chamavam-lhe «a Toupeira», porque andava sempre a revolver insignificâncias do dia-a-dia que os outros há muito tinham deixado cair no esquecimento. Aconteceu, assim, ter seguido, durante seis semanas, uma pista ridícula: alguém do seu curso tinha-lhe arrancado, de noite, um botão do uniforme, que pregara no seu. Fulton, que nessa altura ainda se chamava Gavril Savelivitch Gordiev, teve um ataque de cólera, passou o quarto a pente fino, como um louco, omportou-se tal como se durante a noite alguém se tivesse utilizado do seu sono profundo para o castrar sem dor, e elaborou uma informação oficial sobre este infame e pérfido roubo. Teria sido extraordinariamente simples ir buscar outro botão ao quarto de vestir e pregá-lo. Só que, de maneira nenhuma! Gavril Savelivitch achava que o roubo nocturno de um botão era a antecâmara do cortar de uma cabeça. Jurou apanhar o ladrão e fazer-lhe pagar a violação da sua honra. Nessa altura todos troçaram de Gordiev, fizeram um poema e chegaram a compor uma cançoneta sobre o botão roubado, o que no entanto apenas serviu para lhe aumentar a ira, prosseguiu determinado a procurar o ladrão.
Decorridas seis semanas, apanhou-o. Seis semanas de espera, sondagens, registos e avaliações de pedaços de conversação. E quando já ninguém pensava no maldito botão, e outras coisas mais significativas e importantes ocupavam os oficiais da escola de Leninegrado, Gordiev desfechou o golpe. Apresentou a prova com uma expressão fixa e inamovível. O ladrão arrancou o botão do seu uniforme, devolveu-o a Gordiev e disse: «Aqui o tens, Gavril Savelivitch. Prega-o no olho do cu!»
Gordiev não respondeu à provocação. No entanto, dois dias depois, o larápio do botão, um primeiro-tenente, foi transferido para local desconhecido. Assim teve de ser feito. Tratava-se de uma informação oficial de roubo e Gordiev não se demoveu a retirar as provas apesar da insignificância, apesar do fraseado convicto e do tempo que o general, o comandante da escola, gastou com ele.
Gavril Savelivitch era uma pessoa deste calibre e também não mudara depois de o terem transformado em Harry Fulton e de lhe entregarem a direcção do ginásio de boxe de Frazer
Era um fanático quando estavam em causa pontos escuros. E, agora, aqui em Frazertown havia uma pergunta Rara a qual se impunha que arranjasse resposta: quem era Bob Miller?
Sabia por intermédio de Hillmoore e também de John arryl que era o major Vassia Grigorevitch Chukov. No que lhe dizia respeito, Fulton simpatizara com ele à primeira vista; por um lado devido à sua figura de boxeur, por outro por causa dos olhos de expressão sonhadora, que Fulton considerava um truque particularmente eficaz. No entanto, a partir do combate contra John Barryl, que, apesar das consequentes reconciliação e confraternização, tinha sido uma verdadeira «guerra de extermínio», Fulton ficara a pensar no caso. Na sua opinião, não restavam dúvidas de que apenas o equilíbrio de forças entre John e Bob tinham impedido um homicídio.
Por conseguinte, três dias após o combate, Fulton trocou impressões sobre o assunto com o médico, o Dr. William Ford. Eram amigos e, quando estavam sós, falavam russo um com o outro apesar da proibição existente. Estavam, pois, a beber whisky, pois em Frazertown não havia vodka, tão-pouco no bar de Hillmoore. Uma pequena e insignificante falha numa encenação de resto impecavelmente americana.
- Foi por causa da Norma - observou o Dr. William Ford, quando Fulton voltou a examinar o combate em todos os pormenores. - Um triângulo amoroso mobiliza mais forças do que um campeonato do mundo, Gavril Savelivitch!
- Ter-se-iam morto, Afanasiv Petrovitch. E foi sempre Bob a incitar John com as palavras mais ordinárias. Ouvi-as nitidamente, pois nunca abandonei o ringue. Tudo o que Bob disse, era dirigido ao cérebro de John. E porque lho disse? Para fazer com que John cegasse de fúria e em seguida o poder derrubar friamente. A pergunta que te faço é: é vulgar entre camaradas, entre oficiais soviéticos? Todos sabemos porque estamos aqui e... há uma altura em que aparece um oficial que coloca o seu interesse pessoal acima da honra do Exército Vermelho. Um homem com um instinto assassino!
- Também John Barryl o demonstrou, Gavril Savelivitch!
- Porque foi picado. Tudo tinha começado como um inofensivo combate de boxe, uma medição de forças, como desporto, Afanasiv Petrovitch. E no que se transformou seguidamente, pela mão de Bob Miller? Numa destruição!
- E, hoje em dia, são amigos inseparáveis! – observou o Dr. Ford jovialmente, ao mesmo tempo que saboreava um gole de whisky e ia buscar um cubo de gelo ao balde. - Em qual deles recaiu a escolha de Norma?
- Em nenhum - retorquiu Fulton, fitando a parede forrada de papel do seu bungalow, que estava guarnecida com fotografias de boxeurs nas típicas posições de ataque. - E há ainda outra coisa, camarada Dronov. Bob Miller (ou será que entre nós o devemos tratar por Vassia Grigorevitch?) domina uma série de sujeiras do boxe que certamente não aprendeu entre nós. Visíveis golpes de nuca aplicados com a velocidade de um raio, cabeçadas de baixo para cima, e estes são apenas dois vícios - prosseguiu Fulton, ao mesmo tempo que unia as mãos no peito.
- Certamente concordas que entendo alguma coisa de boxe. Especializaram-me nesse domínio. E digo-te uma coisa, Afanasiv Petrovitch: em toda a União Soviética não há um único boxeur que aprenda estas sujeiras americanas. Contudo, Bob Miller aplica-as!
- É um campeão naquilo para que foi designado - observou o Dr. Ford sacudindo a cabeça. - Não sejas novamente uma toupeira, Gavril Savelivitch! Bob, ou melhor, Vassia Grigorevitch, é um talento de eleição. As bebidas que prepara no bar são de uma perfeição tão fantástica como tudo o que faz.
- E isso não te chama a atenção? Uma máscara pode ser perfeita, só que por debaixo existe sempre a própria pele. E há sempre um momento em que se divisa um pedacinho dessa pele. A nossa pele russa, Afanasiv Petrovitch! Contudo, quanto a Vassia Grigorievitch, não descubro um mínimo poro russo! - retorquiu Fulton, ao mesmo tempo que metia a mão no bolso das calças, tirava um pacote amachucado de Reyno e oferecia um cigarro, que o Dr. Ford agradeceu mas recusou.
- O que estás a pensar é um absurdo, Gavril Savelivitch! Oh! Estou a seguir perfeitamente a tua linha de raciocínio. Conheço-te há muito e bem. Lá no íntimo estás a ferver como uma chaleira. Se houvesse possibilidade de de destapar o crânio, deitaria vapor. Contudo, são vapores falsos, acredita em mim. Alguém que chegue a Frazertown é radiografado, tal como nós, médicos, o taxemos com os aparelhos de raios X. Deixaram de haver pontos escuros.
- De onde vem esse Vassia Grigorevitch? - inquiriu Fulton, ao mesmo tempo que era ele a dar a resposta.
- De Irkutsk, ao que consta. Foi lá que nasceu.
- Não. Esse é Andrei Nikolaivitch. Vassia é natural de Gorki.
- Seja! - acedeu Fulton, olhando para o Dr. Ford um tanto desconcertado. - De Gorki, portanto! E prepararam-no na Sibéria, no Lena e nas montanhas a norte de Magadan... tudo locais de que nunca nenhum de nós ouviu falar. Ou sabias que em Spornoi existe um acampamento especial? Que se atiram pessoas sobre o Senka, de avião? Tudo isso foi vivido por Vassia Grigorievitch... o único de todos nós! Há um ano que estou aqui, passaram mais de novecentos camaradas pelo ginásio de boxe... e nenhum alguma vez pôs a vista em Spornoi ou se viu obrigado, como ele, a atravessar as taigas sem mais nada do que as mãos. Não é de despertar certos pensamentos?
- Faz parte do teu gozo muito pessoal - comentou o Dr. Ford, que se levantou, acabou o whisky que tinha no copo e se dirigiu à porta. - Uns bebem, outros jogam xadrez e também há os que dedicam as noites às coxas femininas... só tu, Gavril Savelivitch, te dás ao luxo de, noite após noite, pensares em coisas que não passam de manias. Vais ver onde isso te leva. Dorme bem!
Fulton não respondeu. Trancou a porta nas costas do Dr. Ford, instalou-se à janela, fitou a noite iluminada pelas estrelas e uniu, qual quebra-cabeças, à semelhança do que acontecera com o botão de uniforme roubado, todas as observações e palavras. O quebra-cabeças mostrava-se ainda incompreensível, não fornecia a figura, havia algumas peças que ainda não se conjugavam.
- Um homem estranho, este Vassia Grigorevitch!
- comentou Fulton em voz baixa, de si para si. - Não se compreende. Devia pressentir-se um pouco da alma russa.
Nessa mesma noite, Harry Fulton decidiu esforçar-se por conquistar a amizade de Bob Miller, colar-se-lhe como uma sanguessuga.
Assemelhando-se a uma jovem tímida que se vê pela primeira vez sozinha com um homem numa casa estranha, defendendo-se intimamente mas ao mesmo tempo deixando-se arrastar pelo fascínio, Norma encontrava-se de pé na sala que se estendia a toda a largura da casa. Bob Miller desabotoou a camisa, despiu-a pela cabeça e dirigiu-se, em tronco nu, ao pequeno barzinho. Norma fitava-o sem pronunciar palavra.
- Nas noites quentes preciso de sentir o corpo livre
- disse, ao mesmo tempo que pegava em algumas garrafas. E quando se tem de passar a noite metido num uniforme de serviço, torna-se um alívio deixar que a pele respire. Quando estou só, ando sempre nu pela casa...
- Devo pensar que é tão delicado que agora o não faz na minha presença? - retorquiu agressiva.
- Já estávamos na fase do tu, Norma! - replicou Bob erguendo os olhos da bebida que preparava e sacudindo a cabeça.
- Não é verdade!
- Em frente da porta disseste: «Não me mates...» e «Preciso de falar contigo.»
Ela calou-se, atravessou a sala muito direita e instalou-se numa poltrona. Bob observou-a. Vestia calças compridas e uma blusa larga... numa dissimulação consciente do seu corpo maravilhoso.
- O John anda à tua procura como um ingénuo apaixonado -informou.
- Só sabes recorrer a comparações cínicas? resfolegou.
- Saem-me instintivamente pela boca fora. Deve ser um dom da natureza. Uns sabem abanar as orelhas, outros chiam como ratinhos quando fazem amor...
- Bob!
- Vou esforçar-me, Norma, palavra de honra! - prometeu Bob agitando o shaker. - Que habilidades desejas? Um Morning Glory Cooler?1 Glória, Glória, Aleluia... Foi uma graça muito’pouco espirituosa. Norma... Não te rias. Contudo, a manhã já vai alta. Vamos então ao Morning Glory?
- Deixo isso ao teu cuidado. - Recostou-se mais na poltrona e fechou os olhos.
«Está morta de cansaço», pensou ternamente. «Devia pegar-lhe ao colo e levá-la para a cama. Aconchegá-la como a uma criança e deixá-la dormir tranquilamente. Com os diabos! Como posso não tocar numa rapariga que amo’.’»
- O que diz o John? - perguntou-lhe ela subitamente.
- Se pudesse, punha todas as estrelas a chorar. Acredita firmemente que te levaram de Frazertown para entrada em acção - respondeu, começando a misturar em gelo cognac, whisk, tríplice seco, sumo de laranja, Pernod e sumo de limão, uma verdadeira bomba matutina, capaz de varrer todo o sono do corpo, segundo estava comprovado. - Dissuadi-o.
- Obrigada, Bob...
- Se acredita ou não, ignoro. Quando saiu do Hillmoore, ia cheio de álcool até ao nariz. Contudo, caminhava direito como um fuso - continuou Bob, sem deixar de agitar a bebida e fazendo dançar o shaker entre as mãos. - Agora a sério. Norma. Amas o John Barryl?
- Não tens o mínimo direito de me fazer perguntas tão directas - retorquiu, voltando a endireitar a cabeça e abrindo os olhos.
- Claro que tenho esse direito, Norma. Amo-te...
- Não digas idiotices, Bob! - interrompeu-o, tentando um sorriso, que se afundou algures na tristeza que por vezes lhe suavizava tanto o rosto. - Quase atiras o shaker até ao tecto e fazes uma declaração de amor entre o tilintar dos cubos de gelo. Como queres que te tome a sério?
1 - Referência à primeira bebida alcoólica com que se começa o dia.
- Agarro-me ao shaker - declarou Bob com uma expressão repentinamente muito séria - porque me impede de te agarrar e possuir. Se soubesses como custa...
- Sei karate. Bob...
- Também eu, Norma - interrompeu-a, pousando o shaker no tampo do bar. - Já uma vez te disse: «Se um dia nos defrontarmos, matamo-nos de amor!» Teríamos de nos atar com cordas para dormirmos como pessoas desligadas.
- Encheu os copos e colocou-os num tabuleiro de laca japonês que pertencia ao mobiliário. - Contudo, não devia dizer uma coisa destas. A honra do camarada Koroliov é ofendida.
- Esse tipo de diálogo soa bem às mulheres americanas?
- À primeira frase, tiram o vestido. À segunda...
- Bob!
- Vieste a minha casa, Norma, para colher informações sobre o sexo nos Estados Unidos. Se a teoria já chega...
Colocou o tabuleiro em cima da mesinha e sentou-se ousadamente diante de Norma, em cima do divã. Não o encarava, mas se olhasse um pouco de lado, podia ver reflectidos num espelho o tronco nu e musculoso de Bob, o peito largo e peludo, no qual, segundo contava, haviam partido pedras a martelo. Tinha considerado a história um exagero indescritível, jactância barata. Contudo, agora ao contemplar-lhe o tronco acreditava sem hesitação.
- Pode acontecer que me destaquem inesperadamente
- disse e mirou-se de lado no espelho, ao mesmo tempo que Bob brincava com um cordão de ouro que trazia pendurado ao pescoço.
- Não pertences ao quadro efectivo de Frazertown?
- Não. Sei que me vão introduzir na América. Já estão destacadas três camaradas...
Bob Miller recostou-se. Respirava fundo pelo nariz e soube porque é que o coração lhe começara a bater rapidamente. Até ao momento ainda não tinha mencionado a Deviatov o nome de Norma nas informações pela rádio que transmitia para Vinniza. Por conseguinte, Norma também não era conhecida para o general Orwell. Agora, porém, teria de o fazer ela, e só essa ideia lhe produzia calafrios.
- Façamos um brinde, Norma! - sugeriu com voz rouca, rodeando o copo com os dedos e bebendo um pequeno gole. O Morning Glory soube-lhe a cianeto de potássio. «Deve ser esta a sensação quando alguma vez, se necessário, tiver de morder a cápsula de veneno», pensou. «Na nossa profissão, Norma, devia-se antes do mais mandar substituir o coração por uma bomba de plástico. E o cérebro por um computador.»
Ela bebeu um gole enorme, respirou fundo e voltou a fitá-lo com os grandes olhos pretos e sérios.
- É o que bebes de manhã? - perguntou, sufocada. Céus! Então, o que bebes à noite?
- Algo muito mais suave, miúda. Durante a noite exigem-me que esteja em forma. Um homem cansado na cama de uma mulher sedenta de amor assina uma sentença de morte.
- Bob!
Fitou-o severamente. Bob fez um aceno de cabeça, apertou as mãos entre os joelhos e não se sentiu, muito simplesmente, preparado naquele dia para a obrigatoriedade de informar Deviatov a respeito de Norma.
- Em todos os cursos que frequentei, ninguém me ensinou que, como americana, deveria primeiro ser boa na cama e só depois na profissão.
- Não acho que devas ter uma perspectiva tão dura, Norma. A América não é o único país onde este tipo de moral impera. Em todo o lado, principalmente no âmbito dos negócios, uma rapariga bonita chega mais rapidamente ao topo da carreira se não usar blusas fechadas até ao colarinho, mas antes T-shirts. E importante que mostrem o corpo, estimulem a fantasia e sejam um poço de promessas. Os chefes mais importantes são homens no auge da vida, que regressarão aos «verdes anos» por intermédio das suas bonitas colaboradoras.
- Mas isso é nojento, Bob. Nós, as mulheres, não passamos de objectos de prazer? Os homens não pensam em mais nada?
- Em que queres que pense ao olhar para ti, Norma? Que és uma rapariga inteligente, uma jovem corajosa, praticas karate, falas línguas, sabes disparar e és capaz de matar pela tua pátria soviética. É isso?
- Talvez...
- Mas será essa a verdadeira Norma Taylor? Onde se situa a Dunia Andreievna que tem consciência perfeita da ternura que possui? Que neste preciso momento está sentada em frente de um Bob Miller meio despido, com a expressão sem vida de uma máquina, mas que no íntimo anseia realmente que a acariciem...
Não respondeu. Levantou-se de um pulo, acabou de beber o que tinha no copo e ajeitou a blusa fechada e larga.
- Agora tenho de me ir embora - disse num tom ríspido. Acho que, quando estiver na América, me vou filiar na Liga dos Direitos da Mulher para me defender de homens como tu.
- Serás uma agente muito medíocre, Dunia - retorquiu Bob, passando a falar em russo. Era como se a tivesse realmente acariciado... ficou parada a meio da sala e todo o corpo lhe estremeceu, como que exposto a mãos exploradoras. O trabalho que te espera é duro.
- Eu sei, Vassia Grigorevitch. Não desiludirei a Rússia.
- E o que te leva a fugires de mim?
- Não fazes parte da minha missão.
- Só vives para cumprir ordens?
- Só.
- Tens de aprender a mentir melhor... Dunia. Ergueu-se de um salto, mas ela recuou até à porta do quarto e ameaçou-o com o punho direito. - Quieto, Vassia! - ordenou com a respiração ofegante. - Suplico-te. Não te aproximes.
- Amo-te, Dunia. Com os diabos! Não somos máquinas, se bem que tenhamos de funcionar como máquinas.
O problema de ambos não ficou solucionado naquela manhã. A campainha da porta soou. Não era um toque discreto, apropriado a uma visita, mas cinco toques seguidos; e, depois, o impaciente não tirou mais o dedo da campainha.
Norma Taylor olhou em volta como uma fera encurralada, Bob Miller acabou rapidamente a bebida e meteu os dois copos e o tabuleiro japonês num armário de correr colocado atrás do barzinho.
- É o John - disse Bob. - Continua a caça atrás de ti e agora está desesperado. Tenho de o deixar entrar. Sabe que estou em casa.
- Por onde posso sair? - perguntou num fio de voz. Não pode ver-me aqui. Sei que desta vez se matariam um ao outro.
- O John tem direitos sobre ti, Dunia?
- Nem pensar, Bob. Tenho de me ir embora.
- Agora é impossível. Do lado de trás as janelas são gradeadas e o John está na frente. - declarou Bob, ao mesmo tempo que escancarava uma porta e indicava o outro compartimento. - Não pode ser de outra forma. Como esconderijo, apenas te posso oferecer o meu quarto de dormir e a minha cama.
Passou por ele a toda a pressa e sentou-se na beira da cama. Naquele momento parecia pequena e perdida, como uma jovem fugitiva que volta a ser apanhada.
- E se ele entrar aqui dentro?
- Posso impedi-lo.
Do lado de fora voltou a ecoar a tempestade. Ouviu-se a voz de John Barryl, aos gritos:
- Acorda, Bob! Sou eu, John!
- Estende-te e tenta dormir - disse Bob, ao mesmo tempo que se inclinava subitamente para Norma, lhe tomava a cabeça entre as mãos e lhe beijava os olhos. Por momentos nada fez, mas depois tocou-lhe sem uma palavra no lado direito da cara. Ele afastou o rosto com um esgar de dor, soltou-lhe a cabeça e esboçou um sorriso.
- Foi merecido - replicou. - Tens toda a razão. Foi no sítio contra-indicado. Devia ter-te tomado os lábios. Para a próxima, Norma.
- Odeio-te - pronunciou num tom surdo. - Uma coisa como tu só serve para se odiar.
Fechou a porta atrás dele, avançou a passo lento até à entrada da casa e abriu. John Barryl entrou de rompante, como se fosse perseguido, invadiu a sala e olhou em volta com uma expressão desvairada.
Bob Miller abanou a cabeça.
- Estás a representar o papel de Mac Beth a fugir das bruxas? O que se passa, John?
- Onde está a Norma, Bob?
:- Presumo que é o mistério que andas a tentar decifrar, não?
- Não está aqui?
- Idiota! - disse-lhe Bob amigavelmente, ao mesmo tempo que esboçava um gesto largo e convidativo com a mão. - Vê com os teus olhos. Debaixo do tapete, talvez? Ou atrás da almofada do divã? Vim do trabalho, meu caro, e com vontade de tomar um duche. Se não te excita ver um homem nu, é precisamente o que vou fazer agora. Podes até esfregar-me as costas e verificar se tenho a Norma escondida no olho do cu...
- Bob! Estou esgotado. Não tomes tudo tão a peito - interrompeu-o John Barryl deixando-se cair no divã e afastando o cabelo suado da testa. - São quatro da manhã. Lá fora está claro...
- É a manhã que se aproxima. Ainda ninguém conseguiu escurecer o Sol.
- Não me apetece ouvir graçolas - gritou John Barryl descontrolado. - A Norma desapareceu. Desde a hora do almoço que ninguém a viu em parte alguma. Perguntei apenas a quem podia perguntar. Às nove horas, quando abrir a Câmara, vou ter com o Bulder e pergunto-lhe. Ele tem de saber.
- Arranjas um sarilho e uma reprimenda no teu processo pessoal. é só - disse Bob, encostando-se à porta do quarto de dormir. - Ou esperas que o Paizinho General te encoste a cabeça ao peito dele e te sussurre, chorando, toda a verdade ao ouvido? Pensa noutra hipótese.
- Já considerei todas as possibilidades. Não consigo pensar em mais nada, Bob.
- Quase nos matámos um ao outro por causa da Norma e que agradecimento nos dá? Se pudesse, cuspia-nos para os olhos. Experimenta pensar logicamente pelo menos uma vez na vida, John. Quando uma rapariga por quem lutam dois homens como nós, fazendo figura de parvos diante de toda a gente, não se deixa convencer, qual podia ser a hipótese?
- Nunca, Bob. Isso nunca! - gritou Barryl, fitando Miller com uma expressão selvagem.
- Ah! Começas a entender. Claro que é possível. A Norma há muito que tem outro tipo em vista e nós, idiotas que somos, andamos a saltitar em volta dela como dois ursinhos amestrados. Hoje, tem o seu dia erótico e, enquanto tu percorres Frazertown de fio a pavio, ela está bem quente na caminha numa troca de hormonas.
- Há alturas em que merecias que te matassem, Bob pronunciou John num tom surdo. - Se são essas as tuas suspeitas... não te sentes fora de ti?
- Não. Isso vai modificar os acontecimentos? A decisão pertence à Norma. Ou queres obrigá-la, só porque és o major Andrei Nikolaivitch Pleniakov, a reconhecer o teu baixo-ventre como a única fonte de felicidade?
John Barryl ficou abatido. Enroscou-se num canto do divã, passando as palmas das mãos suadas pelo tecido. - Nunca desconfiaria de uma coisa dessas por parte da Norma disse num tom triste. - Nunca. E tu. Bob?
- É um puro-sangue. Uma mulher daquelas não fica sozinha a acariciar os seios diante do espelho. Não é uma imagem que se enquadre com a Norma.
- Sempre disse que odeia os homens. Também nunca saiu acompanhada. A primeira vez foi para dançar... comigo. Dançou e de que maneira!
- Bem vi, John - comentou Bob Miller, brincando com os pêlos do peito. - Com uns bicos de mamas como aqueles, admiro-me que não tenhas ficado com dois buracos no corpo.
- E agora falas-me da existência de outro? - retorquiu Barryl desesperado.
- Se hoje ao meio-dia a Norma estiver novamente atrás do balcão, não restam dúvidas. Nessa altura, interroga-a, John. Pergunta-lhe: «Quem é o piolhoso, esse misterioso sifilítico com quem andas por aí?» A Norma vai chegar-te das boas, mas ficas com a certeza. Além do mais, há outras raparigas bonitas em Frazertown.
- A cabra oxigenada da Britt Lawson, com a sua colecção de animais embalsamados?
- Causa uma impressão de arromba...
- É a Norma que amo, Bob!
- Isso é um drama privado, caro amigo. Uma coisa que deves mastigar e engolir em seco. Já o fiz.
- Para ti a Norma está despachada?
- Em certa medida... sim. Claro que nos veremos e seremos delicados um para o outro... Temos uma grande missão à nossa frente, John. A América espera por nós.
- Estou a atravessar um momento em que odeio a minha profissão - declarou Barryl num fio de voz.
- Já ontem à noite disse o mesmo, John. Contudo, isso em nada modifica os acontecimentos. É a Rússia que devemos ter no coração e não a Norma Taylor.
Convém sempre ter à mão palavras bem sonantes, heróicas, patrióticas, na medida em que dissimulam sentimentos genuínos e provocam em todo o homem a vontade de ser um herói. É o conforto idêntico ao que se utiliza quando se acalma uma criança lavada em lágrimas com um bombom.
Passada uma meia hora, John Barryl despediu-se com a certeza de que Norma Taylor tinha realmente passado a noite com outro homem. Foi uma ideia que arrastou consigo como se fosse um peso de cinquenta quilos. Bob Miller ficou à espera até perder John de vista e, seguidamente, entrou no quarto. Uma vez que Norma tinha podido escutar toda a conversa através da delgada porta, esperava como reacção mínima que lhe atirasse o candeeiro de mesa.
Contudo, tal não aconteceu. Norma estava profundamente adormecida em cima da cama, com a cabeça de lado e os lábios a fazer beicinho, como os de uma criança.
Bob deteve-se a observá-la durante um bocado e usufruiu da calma felicidade de a poder acariciar e possuir com o olhar. Seguidamente, inclinou-se sobre o seu corpo, tirou-lhe os sapatos e hesitou em fazer-lhe o mesmo relativamente à blusa e às calças. Pôs a ideia de lado... tinha a certeza de que a visão do corpo nu acabaria com o seu pseudo-autodomínio.
Tapou cuidadosamente Norma com um lençol e saiu do quarto em bicos dos pés. Na casa de banho tirou as calças, pôs-se debaixo do duche frio, embrulhou-se numa toalha de banho e deitou-se no sofá. Adormeceu rapidamente e nem se apercebeu de que, ao dar uma volta, a toalha de banho deslizou, deixando-lhe a descoberto o corpo nu, estendido nas almofadas.
Foi assim que Norma o encontrou quando saiu do quarto, três horas mais tarde.
Levantou a toalha e cobriu-lhe a nudez, dobrou-se cuidadosamente sobre a sua cabeça e depositou-lhe um beijo nas pálpebras cerradas. Estremeceram ante o contacto dos lábios entreabertos, mas não acordou.
- Obrigada, Vassiuchka - agradeceu baixinho.
A sua ternura foi como um vento quente que lhe aflorou a pele.
Stanislav lakovlovitch Slobin era um perito, como atrás dissemos. Na qualidade de capitão do III Batalhão de Informações de Vinniza, apenas se interessava pelas coisas mais importantes, e importantes eram, de facto, desde há semanas, os estranhos guinchos e zumbidos que, de vez em quando, apareciam na sua onda transmissora. A sua opinião de que se podia tratar de perturbações atmosféricas, na medida em que se verificavam sobretudo nos dias quentes de Verão ou quando o sol abrasava, foi-se dissipando mais à medida que na última semana ouvia cada vez mais frequentemente o estalido rítmico. A interferência era, além disso, tão nítida e concreta como se se estivesse sentado no centro da área eléctrica.
O capitão Slobin registou a gravação em fita magnética, voltou a escutá-la em seguida no maior silêncio, depois do que se pôs em contacto telefónico com o comandante da guarnição de Vinniza. Fazia questão, declarou ao dar a notícia, de que também estivesse presente o chefe local do comando político do Exército.
Slobin não se deteve com um prolongado discurso de introdução. Ligou o gravador e deixou que se ouvissem os ruídos e estalidos. O comandante, um coronel, olhou-o sem entender e, irritado, aguentou a audição. Só quando Slobin achou já ter produzido guinchos suficientes é que voltou a desligar o aparelho.
- Aí está! - concluiu num tom orgulhoso. - O coronel fez um aceno de cabeça.
- Colocou algum microfone na latrina, Stanislav lakovlovitch e registou os traques de um batalhão? - inquiriu. Muito interessante. Contudo, pouco apropriado para o Museu do Exército, tão original é a ideia...
- Camarada coronel - começou o capitão Slobin com um olhar suplicante para o oficial político, um major que contemplava pensativamente a gravação magnética. - A informação que dei é alarmante!
- A minha guarnição sofre de colite?
- E uma mensagem cifrada, camarada coronel - declarou calmamente o oficial político.
- Isso mesmo! - exclamou o capitão Slobin. - Uma mensagem cifrada.
- Têm de me explicar mais pormenorizadamente, camaradas - replicou o coronel olhando ora um ora outro, sem entender. - Por mais que me esforce, não consigo ouvir mais nada do que alguém a cortar madeira.
- é uma questão radiotécnica, camarada coronel- começou Slobin, pensando na melhor maneira de explicar uma coisa daquelas a um leigo servindo-se das palavras simples. Existe aqui um emissor que, a horas incertas, mas quase diariamente, envia e recebe mensagens. Para tornar incompreensível o texto enviado - séries de algarismos ou combinações de palavras - os sinais de emissão são deformados, portanto feitos em pedaços, de forma a que apenas se ouça um estalido. O receptor, servindo-se de um reconstituidor, volta a dar um sentido às palavras. Um truque simples mas sempre eficaz. Estou obviamente a explicar-lhe tudo isto de uma forma leiga, camarada.
- E gravou esse material aqui, Stanislaw lakovlovitch?
- Sim. Ignoro há quanto tempo o emissor se encontra em actividade. Como sabe, cheguei a Vinniza apenas há quatro meses. Não há quaisquer informações deixadas pelos meus antecessores. No entanto, há um certo tempo que venho observando isto. De início julguei tratar-se de um fenómeno atmosférico... mas agora tenho provas. As perturbações verificam-se diariamente, na maior parte das vezes por volta das seis da manhã ou à tarde, cerca das sete, e prolongam-se em média cinco minutos, raramente mais. Durante dois meses fiz uma estatística realmente fascinante - informou Slobin soltando um profundo suspiro. - Existe, sem dúvida, um posto emissor secreto em Vinniza ou nas imediações mais próximas.
- Não pronuncie em voz alta mais do que o necessário, Slobin! - explodiu o coronel, fitando a gravação magnética como se fosse um monte de lixo mal-cheiroso. - Um posto emissor secreto na minha zona militar... seria uma catástrofe! Pode tratar-se meramente de um erro! Quem iria enviar mensagens daqui? Porquê? Talvez um amador de rádio que nos quer irritar, que sabe que há um Stanislav lakovlovitch com um ouvido apurado...
- Pode tratar-se de um agente de uma força estrangeira
- sugeriu o oficial político.
- Em Vinniza, camarada major? - riu o coronel desdenhosamente. - Andará a espiar os progressos da nova colheita de trigo? Que este ano os pêssegos são mais suculentos do que no ano passado? Ah! Isso irá atrapalhar a economia americana! E os Alemães suicidar-se-ão porque os nossos tomates são o triplo dos deles. Vinniza irá modificar o mundo, porque também formiga de espiões estrangeiros! - prosseguiu o coronel levando a mão à testa. - Tenho mesmo de me rir, camaradas...
- E a cidade desconhecida ao sul de Vinniza? - retorquiu o major da Força Política, recostando-se na cadeira. Ou está a par do que acontece nos cinquenta mil hectares, camarada coronel?
- Não. E você?
- Também não. Ninguém o sabe. Apenas se fala que ali existe uma tripla barreira de alta tensão e que algures se passa algo de importante. Contudo, onde existem segredos há sempre caçadores em sua busca. E, uma vez que Stanislav lakovlovitch descobriu um posto emissor com mensagens cifradas, é realmente caso para alarme!
- Óptimo! É caso para alarme. E a quem pretende alarmar, camarada major? Os camaradas da terra proibida? Não conseguirá. Não existem contactos com Vinniza. Vivem num mundo à parte.
- Passarei a informação, por Kiev e Odessa, ao comando geral. Deve haver alguém com competência para tratar do assunto. - O major tocou com o dedo na fita magnética. É capaz de marcar a posição do posto emissor, capitão Slobin? Se estiver em Vinniza, temos de lhe fazer cerco.
- O tempo de emissão é demasiado curto. Além disso falta-me aparelhagem especial. Somos uma brigada de informações normal, camarada major. Isto é trabalho para peritos.
- Virão até aqui o mais rapidamente possível - retorquiu o major puxando a fita magnética na sua direcção e metendo-a numa pasta. - Continue a registar os ruídos, Stanislav lakovlovitch. A horas certas. Deve haver um sistema a descobrir. Acima de tudo, o importante é avisar os nossos camaradas da terra proibida...
Dois dias mais tarde chegaram dois técnicos de Kiev e montaram antenas especiais e instrumentos de medição na caserna das informações. O capitão Slobin estava entusiasmado. No terceiro dia, a caserna viu-se invadida por mais carros detectores e, à tarde, avançaram até ao centro da cidade, estacionaram na Praça de Lenine e ficaram à espera. O capitão Slobin estava sentado junto de um dos peritos vindos de Kiev, num dos carros, e tinha colocado os auscultadores.
Pontualmente, às dezanove horas, Deviatov ligou a sua enorme aparelhagem estereofónica. Nove vizinhos e as respectivas mulheres estavam em sua casa como convidados e mostravam-se satisfeitos.
- O que iremos ouvir, Avdev Konstantinovitch? - perguntaram. - Da última vez, foi Chopin... falámos nisso muito tempo. É uma maravilha esta aparelhagem. Este som de alta fidelidade. Como se estivéssemos sentados junto ao violino. O que nos oferece hoje, camarada?
- Borodin. O Príncipe Igor...
- Que maravilha.
- Do Bolschoi, de Moscovo.
- Um autêntivo festival, Avdev Konstantinovitch.
Os vizinhos instalaram-se. Deviatov colocou o disco e a abertura de O Príncipe Igor iluminou os rostos. Entrou simultaneamente em comunicação pela rádio com Bob Miller.
- Estão a radiogonismetrar-me. Temos de interromper até ver. Fim.
- E esse porco! - gritou o capitão Slobin no carro detector, quando começou a ouvir o estalido no auscultador. - Cá está! Cá está! Como se estivesse sentado no nosso colo. Apanhaste-o?
- Fim. Dezassete segundos! Achas-me capaz de milagres? Nunca o alcançaremos.
- Foi o tempo de emissão mais curto até hoje - explodiu Slobin, arrancando os auscultadores e com uma expressão como se tivesse vontade de morder. - Está a brincar ao gato e ao rato connosco. Um autêntico canalha! Um cão de merda! Não conseguiu registar nada?
- O emissor está na cidade - declarou o técnico de Kiev, observando o minúsculo traçado no registo electrónico.
- Isso também eu sei sem um aparelho que custa milhões! Mas onde? Onde?
- Com uma transmissão de dezassete segundos, precisava de se ser vidente.
Mantiveram-se na Praça de Lenine até cerca da meia-noite e seguidamente voltaram à caserna. A operação fora um fracasso. Slobin rangia os dentes raivosamente.
- Não se suicide já, camarada capitão - aconselhou o técnico de Kiev alegremente. - Nos próximos dias, descobrimo-lo. Ainda não houve nenhum que nos escapasse. Apenas precisamos de um pouco mais de tempo para lhe deitarmos a mão.
- Este caso trouxe a KGB a Odessa - anunciou o major do comando político ao coronel, na manhã seguinte. - Tudo leva a crer que existe um agente estrangeiro em Vinniza.
- E a terra proibida?
- Está englobada. No entanto, dali para fora não há o mínimo perigo. Os camaradas de Odessa não deram pormenores, mas têm a certeza de que seria mais fácil cair uma estrela do céu em Novotchok do que um estrangeiro se infiltrar. Podemos riscar a suspeita. E em Vinniza que está esse porco...
O que o major declarou fez sintonia com a reacção do burgomestre James Bulder quando, primeiro de Kiev e depois pela KGB, foi chamado a Odessa.
- É impossível, camaradas! - afirmou extremamente convicto e quase ofendido ante a ideia de que um agente pudesse estar em Frazertown e comunicar facilmente pela rádio com a região. - Se me provarem que há um espião debaixo da cama de Brejnev, também me começo a preocupar com a ideia de que se possa esconder um estranho debaixo da minha! É um absurdo, camaradas! Dirijo um convite às vossas melhores tropas a infiltrarem-se na minha zona. Contudo, tragam caixões que cheguem. Ninguém sairá com vida. Tão certo como estar aqui agora. Entendido?
Os camaradas de Kiev e de Odessa declararam que nunca tinham duvidado de que assim fosse, mas que as informações chegadas de Vinniza lhes tinham posto os cabelos em pé. Era uma questão delicada, camarada general!
Apesar de tudo, nessa mesma tarde Bulder mandou recado a John Barryl para que interrompesse a debulha. Serviu-se para o efeito de um dos seus polícias, naturalmente com a farda de guarda de patrulha. Tratava-se, na sua maioria, de jovens segundos-tenentes que recebiam a sua «preparação de base» americana em Frazertown devido às suas notas elevadas na Escola de Guerra e nos cursos. Tinham um secreto e enorme respeito pelos «veteranos» como John Barryl e também Bob Miller, que suspeitavam terem, no mínimo, a categoria de major e serem os melhores do Exército Vermelho.
Por conseguinte, o polícia não fez qualquer pergunta ao encontrar Bob Miller junto de John Barryl, na cabina da debulhadora. Limitou-se a levar John ao burgomestre, deixando Bob entregue a considerações e numa enorme expectativa. «Será que as coisas se passam assim? Vão destacar o John? Vai ingressar nos EUA? E agora, como informar Deviatov e o general Orwell?» Vinniza estava incomunicável. Com a posição marcada. Mais não sabia Bob, mas o facto de Deviatov ter transmitido tão à pressa e excitado levava-o a pressentir o grande perigo que pairava sobre a sua cabeça. Estava sectorizado, reduzido à espera e, caso John Barryl entrasse de facto em acção, não havia de momento a mínima possibilidade de avisar a CIA e seguir John assim que pusesse pé em solo americano. Assim que submergisse na multidão, apenas o factor sorte podia contar. E esta é a aliada mais incerta desta profissão de morte.
Bob acocorou-se em cima da ceifeira-debulhadora, a fumar nervosamente um cigarro e consolou-se com pensamentos agradáveis, embora traidores: «Não pude transmitir o nome de Dunia. Não figura em nenhuma lista.»
Estava sentado à cerca de uma hora grande na debulha quando viu que se aproximavam dois camiões militares ao longo do campo já ceifado. Vinham cheios e avançavam em linha, precisamente na sua direcção.
Foi como se o coração lhe parasse subitamente. Deixou pender a cabeça, fechou rapidamente os olhos e despediu-se da vida. Nunca pensara que pudesse ser tão simples. Pensava-se numa ânsia enorme - no caso presente, Dunia Andreievna pensava-se na mãe e no pai e em seguida nada mais existia que valesse a pena nestes derradeiros minutos. O que lhe tinham dito no Alasca? «Quando meteres a cápsula na boca e a morderes limita-te a pensar: ”Oh, merda! É a liberdade!” Em quatro segundos tudo acaba... já nem sentes o corpo a contorcer-se e a dobrar-se. Não penses: ”É cedo de mais!” ou ”Porquê precisamente agora?”, ou ”Como a vida é bela” Deixas de ter futuro, se te agarrarem! Sobreviver... é um conto de fadas. Não penses em nada! A cápsula na boca e trincar com os dentes.»
Bob Miller ficou a aguardar os dois camiões militares que avançavam ao seu encontro. A lona da coberta estava puxada para trás, o chão do camião a abarrotar de soldados com os seus uniformes castanhos, cor de terra. Cabeça ao lado de cabeça. Deixou-se ficar acocorado em cima da caixa do palhiço, meteu a mão direita entre o cinto e a barriga e enfiou o polegar e o indicador na cavidade da fivela.
A cápsula estava achatada e um pouco mole devido ao calor. Uma morte elástica...
A pouca distância da ceifeira-debulhadora, os camiões travaram e os soldados saltaram para terra. Um oficial desceu, com um salto, da cabina de motorista do primeiro camião e acenou amigavelmente a Bob Miller.
- Podemos começar, camarada? - perguntou num tom sonoro.
Bob deixou que a respiração lhe saísse do nariz como uma coluna de vapor de uma locomotiva. «Vou rebentar», pensou. «Meu Deus! Tantas vezes que praticámos este exercício em Smolenska, mas apesar de tudo vou rebentar mesmo. Não há exercícios que possam substituir a realidade. Sabe-se sempre que se acaba por escapar.»
Libertou novamente a cápsula de gelatina na fivela do cinto e retribuiu o cumprimento com um aceno alegre. Não sabia o que estava para acontecer.
- Se tomaram um bom pequeno-almoço, irmãozinhos, venham cá! Cumpram o vosso dever!
O oficial cumprimentou-o novamente, voltou-se, em seguida, para os seus soldados, ditou ordens com voz de trovão e dividiu-os em grupos diferentes. Uns marcharam depois pelo campo ceifado e acarretaram os pesados fardos de palha para junto dos camiões. Um outro destacamento atou os sacos de cem quilos de trigo ceifado e amontoou-os para o transporte. Um terceiro grupo também fez uma pilha com os sacos de cores diferentes que continham o palhiço, que era soprado quando o recipiente estava cheio.
Bob Miller olhou-os e sacudiu a cabeça. «Isto é a Rússia», pensou. «Instalam o modelo mais recente de ceifeira-debulhadora, mas em vez de ficar tudo o mais igualmente a cargo dos camiões, deixa-se cair os restos no campo e destaca-se metade de uma companhia para se fazer o trabalho à força do braço humano. Se se tem gente bastante... para quê deixar que façam cera e tenham pensamentos ambíguos? O homem como máquina. Porque é que o Ocidente não entende o enigma da força imorredoura da Rússia?»
Ainda os soldados estavam a carregar os camiões, quando o polícia trouxe John Barryl de volta. John tinha uma expressão muito séria, parecendo habituado à presença dos soldados, e instalou-se ao lado de Bob, em cima da caixa do palhiço.
- Tens um cigarro? - perguntou.
- Sim. O que se passa? O Bulder soube da tua perseguição nocturna a Norma?
John puxou uma fumaça rápida e, em seguida, devolveu o cigarro a Bob. A amizade que os unia estava precisamente a enquadrar-se nos padrões arcaicos.
- Prometi não falar do assunto a ninguém, Bob - disse. - Só eu e o Bulder é que sabemos.
- Então cala o bico, John. Continuamos a ceifar?
- A KGB de Odessa deu a entender que em Frazertown podia estar a viver o agente de uma potência estrangeira...
Bob Miller interrompeu-o com uma sonora gargalhada. Saiu-lhe bem, apesar do frio que se voltou a apoderar dele. «Deviatov», pensou. «O perigo agora está mesmo ao meu lado.»
- Mas que parvoíce! - exclamou acaloradamente. O Bulder não se riu?
- Directamente não, mas deu a perceber nitidamente aos camaradas de Odessa os fantasistas que são. Nem sequer os ratos de campo conseguiriam transpor a primeira fila de minas. E temos três!
- E o que respondeu Odessa?
- Desculparam-se - retorquiu John, sacudindo a cabeça.- A KGB apresentou desculpas.
- Delicados. Camaradas bem-educados...
- Vejo o assunto de outra maneira, Bob. Beijam o Bulder nas duas faces para simultaneamente o apunhalarem pelas costas. A KGB não pede desculpas. Nunca! Trabalhei o tempo suficiente com eles. Conheço os camaradas. Quer em Moscovo, Leninegrado, Irkusk ou Odessa... são todos iguais. Quando têm uma suspeita, nunca mais deixa de crescer.
- E tu também acreditas... vejo-o na tua cara, John.
- Não achas que tudo é possível, Bob?
- As redes de arame farpado electrificadas diante de Frazertown delimitam as fronteiras da possibilidade.
- Também acho. Apesar de tudo, devemos estar alerta. Bulder encarregou-me de examinar secretamente toda a gente da cidade, Bob... -Tirou o cigarro da boca de Miller e puxou as duas últimas fumaças antes de o esmagar no tampo da caixa do palhiço. - Considero-te como meu irmão. Queres ajudar-me nessa vigilância?
- Podes deixar isso ao meu cuidado! - prometeu Bob Miller do coração. - Todo eu serei olhos.
Por volta das dez da manhã, Norma Taylor retomou o seu lugar atrás do balcão do leite. Tinha-se mudado no quarto de vestir do pessoal, pondo novamente a sainha curta, a blusa justa de corte ousado e colocado um cravo vermelho no cabelo preto. Parecia mais bonita do que nunca, e os trabalhadores que àquela hora já enchiam completamente o restaurante de hamburgers de Billy olharam-na com agrado.
Rampler, que andava na cozinha mal-humorado e às voltas com a carne picada, as fatias de queijo, os tomates e os pepinos, praguejando contra a agricultura que lhe tinha roubado o talentoso John Barryl, que preparava uns hamburgers impecáveis, acorreu atrás do balcão e mostrou-se tão surpreendido como se Norma estivesse nua junto às torneiras dos batidos.
- O que aconteceu? - perguntou nervoso.
- O que aconteceu? - retorquiu num tom indiferente.
- Ontem. Passou uma coisa pela cabeça do John e esteve aqui, disposto a derrubar paredes. Pôs-nos doidos a todos. Onde estiveste, Norma?
- Andei a passear...
- Perdão! - ironizou Rampler encostando-se à prateleira com os copos de vidro e taças de porcelana. - Passear, portanto? À beira-rio, talvez?
- Precisamente à beira-rio. Senti repentinamente o desejo de estar só, totalmente só, de me sentar na relva a olhar para a água. De resto, no rio há muitos peixes grandes, sabe, Billy?
- Agora deste em histérica, Norma? - ripostou Rampler, ofegante. Estava irritado e com razão. John Barryl não só lhe tinha dado cabo dos nervos, como os clientes se tinham queixado de não ser a bonita Norma a preparar os batidos de leite, mas estar substituída atrás do balcão por uns ombros largos e umas pernas musculosas que os fazia sentir como se cumprissem o serviço militar. Quem, por exemplo, se queixava de que o batido tinha pouca fruta levava um grito como na parada do quartel. O clima de trabalho nesse dia não era bom, por Deus que não! Quem poderia levar a mal a Rampler que não ficasse satisfeito com o impulso romântico de Norma?
- Essa é novidade - resmungou Billy entre dentes, ao ver que Norma não lhe dava resposta. - É evidente que há peixes grandes no rio, mas o mais gordo de todos foi assado aqui. John andou a espalhar por toda a parte que te tinham destacado. Desprezou, portanto, a ordem mais importante, de nunca, fosse quais fossem as circunstâncias, mencionar a nossa missão. Tive de o fechar à chave no meu escritório, até ter bebido o suficiente para o poder despachar para o Bob. E tudo só porque a senhora lhe apeteceu sentar-se junto ao rio e ficar a olhar para os peixes.
- Já são águas passadas! - retorquiu Norma examinando os recipientes dos sumos de frutas e provando para se certificar de que o leite estava fresco e na temperatura ideal. Não estava. - Quente de mais! - observou.
- Bem podias apagar a fogueira - insinuou Rampler. Céus! Decide-te pelo Bob ou pelo John! Assim, cortas o mal pela raiz. Mais cedo ou mais tarde, tudo irá acabar...
- É precisamente isso, Billy - comentou Norma pondo o sistema do frio a trabalhar, e o motor logo arrancou suavemente. - Não podemos ter coração... mas infelizmente temos! E uma coisa a que temos de aprender a adaptarmo-nos!
Rampler compreendeu a mensagem e regressou à cozinha, aos hamburgers semipreparados. «Até nos podem dar ordem para comermos a própria merda», pensou. «E quando, na altura da preparação na Sibéria, nos fizeram uma sopa com cortiça, folhas de árvore e erva, que nos saciou mas nos provocou também uma diarreia de três dias! Por fim só deitámos água e estávamos tão cansados que só conseguíamos andar de gatas. No entanto, tínhamos satisfeito o objectivo do cumprimento de ordens. Podem fazer tudo connosco... apenas o amor por uma mulher se contrapõe às ordens. O problema de Norma vai ser coisa difícil. Irá sentar-se ainda muitas vezes sozinha junto ao rio a olhar os peixes.»
À tarde, John Barryl apareceu no restaurante de Billy, cansado da colheita, mas refrescado depois de umas braçadas do estádio de natação. Fazia calor junto ao Bug naqueles últimos dias de Verão, que ainda escorriam qual braseiro e demonstravam a imensidade do céu russo. Sem nuvens, azul-claro, atravessado por reflexos dourados, pairava sobre a terra fértil.
Os clientes do paraíso dos hamburgers de Billy retiveram a respiração. «Agora vai começar aos gritos», apostavam. «Salta para cima do balcão e arma em doido. Ou pega muito simplesmente em Norma ao colo. Só lhe fará bem, camaradas! Precisa disso como uma panela de um testo!»
Contudo, John Barryl reagiu de uma forma totalmente diferente. Embora o coração quase lhe saltasse do peito ao avistar Norma, atravessou o restaurante em passada regular, instalou-se ao balcão e pôs uma moeda de dez cêntimos no tampo.
- Um batido de framboesa dos grandes! - pediu num tom de voz um pouco forçado, o único indício que atraiçoou a excitação que o tomava. Os clientes ficaram desiludidos. Já não havia Romeu e Julieta. Também Otelo não tinha um seguidor em John Barryl.
Norma preparou o batido de framboesa e empurrou o copo na direcção de John. Fitou-o, simultaneamente, bem fundo nos olhos.
- Portaste-te como uma criança, John - comentou em voz baixa.
Através da porta da cozinha aberta, Rampler fixava-os atentamente, tendo diante de si uma montanha de hamburgers preparados. Na grelha grande estavam a fritar costeletas de borrego. A turma de basquetebol tinha encomendado jantar e pedido borrego.
- O que te passou pela cabeça? - prosseguiu. - Já não posso passar uma tarde sem a tua fiscalização?
- Receei que te tivessem destacado - justificou-se, bebendo um gole de leite, que teve dificuldade em engolir. Tinha um nó a oprimir-lhe a garganta e o peito. - Norma, eu...
- Há sempre uma vez em que nos descontrolamos, John - interrompeu-o suavemente. «Um futuro apavorante», pensou. Rememorava Bob, nessa manhã, nu e deitado em cima do divã e viu-se a cobri-lo novamente com o lençol de banho caído e a beijar-lhe os olhos. Em seguida tinha fugido receosa ao desejo que a tomara de também se despir e deitar-se ao seu lado.
- Nestas horas tomei verdadeiramente consciência de quanto te amo, Norma - confessou John Barryl sem erguer a voz.
Norma soltou uma leve risada. Um falava-lhe de amor ao mesmo tempo que atirava um shaker ao ar, o outro fazia-o entre duas goladas de um batido de framboesa. Eram considerados os homens mais duros da União Soviética e não passavam de dois adolescentes imbecis.
- Porque não dizes nada, Norma? - implorou John.
- O que queres que responda a uma coisa dessas?
- Disse-te que te amo...
- E eu ouvi.
- E não tens mais nada a acrescentar?
- Estamos em Frazertown, John.
- Só. que também continuamos a ser pessoas, Norma - retorquiu John rodeando o copo de leite com os dedos. Porque têm nesse caso um bordel com cinco raparigas?
- E eu sou uma substituição de bordel?
- Norma! - exclamou Barryl passando desesperadamente as mãos pelo seu cabelo curto. - Só digo idiotices. Estou completamente desfeito. Saímos hoje à noite?
- Estou no turno da noite, John.
- Depois. O Hillmoore está aberto até às quatro da manhã. O Bob também ficaria contente. Deu-me uma ajuda fantástica na ceifa de hoje. É como se tivéssemos sido criados no mesmo berço.
- Não pode ser, John. Estarei cansada, muito cansada. Amanhã, talvez...
Tinha de regressar novamente às torneiras dos batidos. Novos clientes haviam chegado, ocupando lugares, a fim de serem servidos pela bonita Norma e deitarem um olhar de relance para os seios cobertos pela blusa. Era muito simplesmente um pormenor da atmosfera característica dos hamburgers do Billy’s e da pausa nocturna no trabalho.
John Barryl conformou-se e foi andando pela noite quente até ao bar de Hillmoore. Ali, começava o movimento, e a orquestra tocou o primeiro tango. Bob preparava bebidas por detrás do balcão do bar e gracejava com uma jovem exuberante que estava sentada no banco diante dele. Tinha um olhar faminto, com que mentalmente despia Bob de uma ponta à outra do corpo.
- A Norma voltou - disse John num tom de voz como se quisesse dar brilho a todas as estrelas.
- Ainda bem, John - congratulou-se Bob Miller, apontando com o polegar para a fileira de garrafas dispostas atrás de si e acrescentando: - Escolhe o que quiseres. Sou eu que quero pagar essa grande alegria.
- Vou beber rum! - declarou Barryl instalando-se junto ao banco ocupado pela loura exuberante. - Rum read i puro! E, quando cair, ampare-me, beleza.
- Não -recusou a «brasa», olhando-o distraidamente, pois estava programada para Bob. - Se está disposto a embriagar-me, vá bater a outra porta.
- Depois do décimo rum sou fogo, menina! - declarou John alegremente. - Nunca experimentou uma coisa assim.
Um pouco mais tarde, Bob foi às traseiras do bar e telefonou a Norma. Primeiro foi Rampler que veio ao telefone e comunicou-lhe que Harry Fulton estava no restaurante e entoava hinos de louvor a Bob Miller. Bob riu, mas logo esqueceu o facto e sentiu-se contente quando finalmente escutou a voz de Norma do outro lado do fio.
- O John acabou de chegar e deita alegria por todos os poros, querida. O que lhe disseste?
- Nada. E, de resto, não sou a tua querida.
- Ainda não. No entanto, marquei um ponto: dormiste na minha cama. É maravilhoso. O perfume do teu corpo ainda continua na colcha... aproveito cada minuto em que estou acordado para meter o nariz de fora e cheirar...
Norma colocou o auscultador no descanso e regressou irritada ao seu posto. Rampler agarrou-a firmemente pelo braço.
- Brigaram outra vez? - perguntou desconfiado. Agora o Bob tem ciúmes ou quê?
- Não, mas alguém bem podia acertar-lhe entre os olhos, como se faz a um touro. Pode ser que ainda seja eu um dia a fazê-lo.
Rampler deixou-a falar e fez um sinal de cabeça, indicando o restaurante.
- O Fulton gostava de te falar - disse.
- Comigo? O que tenho a ver com o boxe?
- Quer fazer-te umas perguntas sobre o Bob...
- O Fulton não me agrada - declarou Norma guiada pelo instinto. - Tem olhos parecidos com os de um lobo faminto...
Três dias mais tarde, John Barryl feriu-se na ceifeira-debulhadora americana. Qualquer parte empenou na prensa da palha. Pesquisou a avaria, sacudiu aqui, bateu ali, mexeu em lâminas, cilindros e em tudo com o motor ligado. Tinha pressa. Mais três dias e a colheita estaria terminada. Depois, voltava ao restaurante de Billy, prepararia hamburgers e podia ver e falar com Norma o dia inteiro.
A sua imprudência deu mau resultado, como era inevitável. O mecanismo de compressão voltou a funcionar, a máquina pôs-se em marcha com um esticão, precisamente no instante em que Barryl ainda tinha metade do braço dentro do engenho. Ainda conseguiu tirar o braço, mas uma lâmina das que dortavam a palha atingiu-o no antebraço, arrancando-lhe uns dez centímetros de carne. Jorrou imediatamente uma golfada de sangue para a máquina. John cambaleou e colocou o polegar a comprimir a artéria da dobra do braço. Dava a sensação de que o golpe era tão profundo que tinha trespassado todas as artérias principais, chegando aos nervos e aos músculos, na medida em que o braço se contraiu sem que ele o conseguisse evitar, e um frio de gelo eliminou toda a dor.
«Agora sou um aleijado», pensou. «Vão amputar-me o braço. Nunca irei para a América. A minha carreira como agente da KGB acabou. Poderei casar com Norma... como aleijado é-me finalmente permitido ter coração!»
Apertou cuidadosamente a ferida com o polegar, mas o esguicho de sangue não parava mesmo assim. O sangue escorria-lhe do braço para o chão, empapando-lhe as calças e os sapatos.
Assim o foi encontrar Bob Miller, que chegou pouco depois com um pequeno jeep alugado para render John. Barryl estava sentado junto da debulhadora, tinha atado o cinto à volta do braço e estancara o sangue. A ferida estava aberta, assemelhando-se à fenda de uma cratera.
- Arranjaste-a bonita, grande burro! - insultou Bob, que pegou em John, o meteu no jeep e seguiu a toda a velocidade até Frazertown. Ouviu os pormenores do acidente pelo caminho, fez o gesto de quem o achava doido e parou com um guinchar de travões diante da entrada do hospital. Uma enfermeira jovem e um médico acorreram. - A fazer uma reparação com o motor a trabalhar! Deviam dar-te uma boa sova no traseiro ainda por cima!
John ficou instalado num belo quarto particular - contrariamente a todos os outros hospitais do mundo, em Frazertown havia muito espaço e era de bater palmas quando seis quartos se encontravam ocupados - e foi imediatamente transportado para a sala de observações.
- Que lhe parece? - perguntou Bob ao jovem médico, quando voltaram a trazer John na maca. - Tinham decidido que Barryl ficaria internado.
- Ainda não posso emitir uma opinião - respondeu o médico dando-se ar de muito importante e roendo as unhas. E uma ferida com muito mau aspecto. Muito mau, mesmo.
- O John também nunca teve desejo de ir a qualquer concurso de beleza. Volto amanhã.
O jovem médico fitou intensamente Bob Miller, semicerrou os olhos e irritou-se com esta arrogância americana. «Exagerar sim, mas tanto não!», pensou. «Contudo, não há nada a fazer com os oficiais superiores do Exército Vermelho: sempre duzentos por cento na vanguarda!»
Bob Miller foi comunicar o acidente à Câmara Municipal e declarou-se desde logo disposto a substituir o trabalho de colheita de John com a ceifeira-debulhadora. Ficaram satisfeitos por descobrirem rápida e inesperadamente um substituto para o sinistrado John Barryl e acederam sem grandes obstáculos. Só mais tarde Bob se lembrou, assustado, de como tudo podia ter corrido para o torto se na Câmara Municipal lhes tivesse passado pela cabeça consultarem o ficheiro pessoal de Frazertown.
- Pela tarde - estava um calor de abrasar e, no campo, Bob suava como um cavalo acabado de montar - avistou um ponto que cada vez se aproximava mais, atravessando as colinas. Desligou o motor da debulhadora, desceu da cabina do condutor e sentou-se no tampo da sua «amada» caixa do palhiço.
O ponto estava cada vez mais próximo e através do silêncio chegou-lhe o ruído de um motor; reconheceu seguidamente tratar-se de uma motorizada que atravessava o terreno por ceifar, e quem vinha sentado no selim devia ter um traseiro de ferro!
Contudo, não era por tal prisma que Bob Miller via neste caso; imaginava-o até com uma pele lisa e linhas firmes, um pouco mais fresco do que as restantes partes do corpo, um fenómeno que já verificara em muitas mulheres.
Norma Taylor travou diante da ceifeira-debulhadora e desmontou. Trazia uns jeans apertados, ténis com grossas solas de borracha, uma camisola leve e um lenço vermelho atado à cabeça. Retirou um cesto do porta-bagagem da motorizada e levantou a tampa. Bob Miller desceu com um salto da gigantesca ceifeira-debulhadora e aproximou-se.
- O Capuchinho Vermelho veio ter com o Lobo Mau
- comentou.- Com bolos e uma garrafa de cerveja...
- Com gelado de baunilha e duas costeletas frias
- interrompeu-o erguendo o cesto e fitando-o com os olhos negros, como se tivesse desejo de lhe fugir novamente. Está um calor tão grande, Bob, que pensei que te apeteceria qualquer coisa fresca. Matas-te com este monstro!
Fez um aceno de cabeça sem pronunciar palavra, pegou no cesto, que colocou ao seu lado, rodeou Norma pela cintura, atraiu-a a si e beijou-a. Ela bateu-lhe com os punhos no peito e fez pressão para o afastar, mas deixou-se beijar. E, quando a apertou mais de encontro ao corpo, fechou os olhos e os lábios entreabriram-se-lhe.
- Amo-te... -disse Bob, quando finalmente se separaram. - Meu Deus! Como te amo!
- Fui ver o John - informou num tom de voz quase inaudível. - Trata-se meramente de uma ferida profunda. Não foram afectados tendões nem artérias. Teve uma sorte enorme. Daqui a três dias já pode sair do hospital.
- Vem para a sombra! - convidou Bob, pondo-lhe o braço sobre o ombro, ao mesmo tempo que, com a mão livre, pegava no cesto com o gelado e as costeletas. - Para trás da ceifeira-debulhadora, Norma. É o único sítio onde há sombra. Trouxeste gelado para quantas pessoas? O cesto pesa como chumbo!
- Também há chá frio com limão, sumo de laranja, duas melancias pequenas e...
- Amo-te, Norma, amo-te...
Atrás da debulhadora, Bob despiu a camisa e estendeu-a para que Norma se sentasse entre dois fardos de palha.
- O restolho pica -explicou.- Ainda não frequentámos um treino especial de faquires. - Atraiu-a para a sombra e quando a teve sentada a seu lado, beijou-a novamente enquanto lhe metia a mão por baixo da camisola. Sentiu os seios firmes e maravilhosos e, ao agarrá-los, a respiração dela tornou-se ofegante.
- Não faças isso, Bob... - balbuciou. - Por favor, Bob! E uma loucura! Seremos as pessoas mais infelizes...
- As mais felizes, Dunia. Chamarei mentiroso a quem for capaz de se dizer mais feliz do que nós. Seremos um só, e ninguém nos poderá separar! Dunia...
Soltou um gemido e agarrou-se-lhe, como se os olhos, a boca e todo o rosto fossem um grito e uma entrega única. Bob sentiu como o corpo lhe tremia quando lhe tirou a camisola pela cabeça e lhe desapertou os jeans. Movia-se-lhe entre as mãos como uma cobra e metia-lhe os dedos entre os cabelos, não para o afastar, mas para o puxar para ela.
- Mato-te! - gritou, mordendo-o no ombro e percorrendo-lhe o corpo com a boca num beijo. - Depois, mato-te...
- Fá-lo Dunia. Fá-lo, por Deus. Para quê viver, agora que conquistei o céu...
Inundou-a uma entrega total, ao mesmo tempo que toda a dor e a tristeza avassaladora a abandonavam. Enterrou-lhe as unhas nas costas, fazendo-lhe vergões na pele e marcando-lhe as nádegas, puxou-o com força a si e voltou a mordê-lo no ombro, ao mesmo tempo que lhe bebia o suor com os lábios.
- Vassiuchka! - gritava. - Oh, Vassiuchka! Como poderei continuar a viver sem ti? Vassienka...
E, seguidamente, algo de estranho explodiu no seu íntimo, afundou-se numa nuvem quente, como que ainda a procurar um último apoio, agarrou-se-lhe fortemente e desfaleceu com um suspiro para um estado que se assemelhava à morte.
Tinha feito bem ao colocar o gelado de baunilha numa caixa frigorífica. Em duas horas, ao sol escaldante, também o gelado russo derrete...
Também para um amor como o de Bob e Norma não bastava um dia. O sol continuou o seu caminho no céu e a sombra por detrás da ceifeira-debulhadora mudou de sítio, sem que dessem por isso. Apenas quando se soltaram daquele abraço e os dentes aguçados dela lhe largaram o ombro mordido é que se aperceberam estarem sob o sol ardente. Os corpos cobertos de suor recebiam desprotegidos todo aquele fogo, mas estavam demasiado felizes, satisfeitos e cansados, demasiado libertos de todos os problemas para se irem refugiar na sombra. Deixaram-se estar de costas, muito juntos e limitaram-se a fechar os olhos com força para que aquele fogo descido do céu os não cegasse. O restolho do campo de trigo ceifado picava-lhes as costas e as pernas, mas também essa era uma sensação que praticamente se desvanecia ante o amor, o prazer infindo e que, agora, vindo o esgotamento, se assemelhava a uma bebedeira.
Ela puxou-lhe a cabeça para o peito ainda ofegante e rodeou-lhe as ancas com as pernas. Os corpos ainda lhes estremeciam após o arrebatamento vulcânico do movimento dos rins.
- Querias matar-me... -disse Bob suavemente.- Estou preparado.
- Não te defenderias? - perguntou, ao mesmo tempo que deslizava a mão ao longo da coxa, agarrando-lhe a virilidade, qual pequeno molusco.
- A vida ofereceu-me o mais belo que tem para dar. Tudo o mais perde valor. Que seria de mim sem ti, Dunia...
- Não seria capaz. Nunca, nunca, nunca. Mas seria capaz de matar quem te tocasse.
- O John também?
- Ele também. O que me aconteceu, Vassia?
- Temos de nos tratar por Bob e Norma... esquecemos depressa de mais quem somos.
- Junto a ti, quero esquecê-lo. Onde estamos aqui? Na Rússia, na América, noutro planeta. Que me interessa? Estou ao teu lado. Que importância têm o nome, os lugares, o tempo? Sinto-te... e o que agarro, tudo, tudo o que é teu me pertence. Não preciso de mais nada para viver...
- Vamos dizer ao John? - perguntou subitamente. Sacudiu a cabeça negativamente e passou-lhe os lábios pelo corpo, beijando-o. Em cada mordidela e mancha vermelha, detinha-se e traçava um círculo com a língua, como se assim pudesse apagar as provas da sua paixão.
- Não... -respondeu, ao mesmo tempo que lhe percorria a curva do pescoço com os lábios.
- Nada de nada?
- Ainda não.
- Tens medo dele?
- Medo? Ele não tem qualquer direito para que me possa provocar medo.
- Mas amaste-o, Norma?
- Antes de tu chegares. Secretamente. Ele nunca deu por isso. Tratei-o muitas vezes mal e muitas vezes me fez pena. Agora sei que agi da maneira certa. Como se tivesse suspeitado
Que irias surgir na minha vida. Inconscientemente, estava à tua espera.
- Pelo menos existiu um homem antes de mim...
Fez um aceno afirmativo, beijou-o na boca e mordiscou-lhe seguidamente a orelha com os dentes afiados. - Houve dois, Bob. Achas de mais com vinte e quatro anos?
- Se mos mostrares, sou capaz de lhes esmagar o crânio!
- Um foi um primeiro-tenente. Em Alma Ata. Tinha nessa altura dezassete anos, e Ostap (era esse o nome dele) sabia cantar tão bem! Sempre admirei homens que soubessem cantar bem. Sabes cantar, Bob?
- Como uma vaca diante de uma meda de palha.
- Tudo se torna subitamente muito importante, Bob! Ostap sabia cantar divinamente, chegou mesmo a compor uma canção que me dedicou. Chamava-se Dunia Ssianije Ssolnza.
- O Sol Dunia... idiota e pouco imaginativo.
- Eu era uma jovem, órfã de pai e de mãe, criada pela Assistência Social. E um primeiro-tenente a compor uma canção para mim! - retorquiu erguendo a cabeça e fitando Bob, que mostrava uma expressão talhada à faca, onde o suor escorria em pequenas gotas. - Ciumento?
- A mais não poder...
- Amo-te, Vassienka...
- E o número dois?
- Agora não rias, senão dou-te uma dentada na garganta, como se fosse um tigre. Era cantor de ópera!
- Santo Estêvão nos valha...
- Um tenor de ópera em Sarcóvia. Quando representou a figura de Rudolfo da Boémia chorei de emoção. Tinha dezanove anos e foi lá que aprendi a falar inglês. Tinham descoberto como era dotada para as línguas. Igor, o cantor, foi uma desilusão. Amava-me como se gosta de uma boneca e estava igualmente apaixonado pelo segundo-bailarino do Ballet de Sarcóvia.
- Foi muito bem feito. Só porque um indivíduo consegue arrancar uns sons lá de dentro, agarra a mulher mais bonita...
- Bob! Olha que te mordo! - disse-lhe Norma junto ao ouvido. - Não sejas tão vulgar! Quando me apercebi de como ele era, bati-lhe com a perna de uma cadeira na cabeça. Durante quatro semanas ficou impossibilitado de cantar. E, agora, tenho vinte e quatro anos...
- Não tiveste ninguém durante cinco anos? - inquiriu Bob, surpreendido. - Uma mulher como tu...
- Nem senti a falta. Os nossos cursos eram duros. Não tão duros como os vossos, mas para uma rapariga atingiam a fronteira do insuportável. Não houve espaço para homens...
- Ou nunca mais houve tão bons cantores? Tentemos, então. La-la-ri-la-lo... A minha pombinha tem um biquinho que pica como uma forquilha... oh, patife!
Tinha-o mordido, enterrando-lhe os dentes no pescoço e agarrando-lhe os cabelos. Deixou-se ficar muito quieto, sem se mexer, tal como qualquer pessoa se deve comportar quando atirada a terra por um cão amestrado. Tinha mordido com mais força do que pretendia e sentia nos lábios o sangue quente e adocicado.
- Avisei-te - retorquiu ternamente, quando lhe largou o pescoço. - Sou como a aranha que come os seus machos. Nunca mais voltes a cantar. Provocas uma raiva de morte!
- Tirou-se debaixo dele e ajoelhou-se ao seu lado. Olhar-lhe o corpo nu constituía um prazer supremo. - Tenho de regressar, Bob... Apenas te quis vir trazer a comida e o gelado, mais nada.
- Eu sei - concordou a rir, sentando-se e acenando várias vezes com a cabeça. - Também aprendemos a mentir nos cursos. Só vieste até aqui porque já não aguentavas mais.
- Ainda dou cabo de ti, Bob! - retorquiu, tirando a tampa da geleira. - O gelado ainda estava duro; partiu-o com uma colher e colocou-o num dos pratos de sobremesa tipicamente americanos. Sentaram-se depois, nus, à nova sombra da ceifeira-debulhadora, saborearam o gelado e Bob comeu ainda uma costeleta fria e despejou avidamente três copos de chá frio. Norma vestiu-se, voltou a meter tudo na cesta e tocou com a ponta do sapato no corpo de Bob, que continuava nu, sentado na terra.
- Não te queres vestir?
- Não.
- Agora tenho de me ir embora. Nem penses que me consegues agarrar novamente.
- Compreendo perfeitamente. Contudo, talvez apareça por aqui outra jovem que também há cinco anos que...
Não chegou a terminar a frase. Agarrou-lhe os cabelos com as duas mãos, puxou-lhe a cabeça para trás e beijou-o tão violentamente que lhe tirou a respiração. Só quando se deu conta de que o estava a abraçar com força demasiada, lhe libertou os lábios.
- Se houver outra mulher capaz de te amar tanto como eu, diz-me - ofegou. - Oh, não. Não te mato... mato-me, porque depois já não sirvo para nada. - Deu meia volta, agarrando o cesto com força, correu para a motorizada e arrancou pelo terreno irregular como se levasse o diabo atrás dela.
Bob acompanhou-a com o olhar, encostando-se nu à sua ceifeira-debulhadora. Pensava no general Orwell e na sua obrigação de telegrafar também o nome de Dunia à CIA. Era impossível. Era como se tivesse encontrado Deus. Dunia Andreievna Koroliov... só a Rússia era capaz de produzir uma mulher assim!
À noite voltaram a encontrar-se, no hospital, junto do leito de John Barryl. Norma tinha saído meia hora mais cedo do restaurante do Bill Rampler para visitar John. Não havia muito movimento no restaurante de hamburgers de Rampler. Uma grande parte dos cidadãos de Frazertown estava sentada no estádio a apreciar o espectáculo de um desafio de basquetebol e outra parte, mais reduzida, estava presente na sala de concertos. Um professor convidado de Sverdlovsk proferia uma conferência sobre bases de foguetões americanas que se haviam descoberto através de fotografias de satélites.
- É uma maravilha vê-los a ambos! - exclamou John. Que parvoíce estar para aqui deitado na cama! Só por causa de uma ferida no braço. No entanto, os médicos é que sabem. Sara mais depressa quando se está deitado, não? O que se há-de fazer? A cada protesto, recebe-se a resposta: «Lembre-se, camarada, de como é valioso para o povo russo!» A isso nada se pode contrapor sem correr o risco de se passar por traidor.
Todos riram e Norma desembrulhou uvas, que John comeu com grande apetite, enquanto Bob informava que naquele dia tinha ceifado um belo bocado com a debulhadora.
- Gosto mesmo do trabalho no campo - disse. - Este encanto da natureza! Goza-se a vida em toda a sua pujança...
Norma deu-lhe uma canelada. John não deu por nada e Bob teve de se controlar para que o rosto nada deixasse transparecer. Apesar do calor da tarde que se fazia sentir, vestia uma camisola de gola alta. De outro modo, não seria possível esconder as mordidelas de Norma. Chegavam à curva do pescoço, mesmo acima da gola da camisa.
- Fazes de mim um inválido - dissera-lhe Bob. Uma semana contigo e tenho de pôr gesso.
- Saio dentro de três dias - anunciou John. - Foi o que me prometeram. Não é de enlouquecer? Primeiro, repouso absoluto na cama e depois, passados três dias, fica-se repentinamente curado! Os médicos têm a sua lógica muito pessoal.
- Fitou Bob com um olhar interrogativo. - Ouviste dizer alguma coisa? Já sabes...
- Nada. Segundo parece, Bulder tem razão. Alguém entrou em histerismo. A nossa cidade está limpa.
Mais tarde, quando já tinham deixado John e seguiam juntos pela tarde quente, Norma quis saber:
- O que devias ter ouvido, Bob? Quem está histérico?
- É apenas um assunto entre o John e Bulder. Oficialmente, nada sei. - Parou e ficou a admirar as cores do gigantesco hamburger iluminado do telhado do restaurante. Trata-se de uma suspeita da KGB - acrescentou despreocupadamente.
Norma virou subitamente a cabeça, fitando-o com os olhos pretos. Semicerrara-os um pouco. Pareciam uma nesga. Reminiscências dos antepassados. - A KGB? Em Frazertown?
- Ainda não. Os camaradas de Odessa e de Kiev andam doidos. Receberam mensagens de rádio cifradas e localizaram o emissor em Vinniza. E, agora, interrogam-se sobre se haverá um agente em Frazertown.
- Impossível, Bob!
- Também é essa a minha opinião. - Continuaram a andar e chegaram à esquina onde tinham de se separar. Bob para o bar de Hillmoore e Norma para os hamburgers do Billy’s. - Contudo, sabemos como é a KGB. Não podem deixar em branco uma pista...
Beijou Norma na boca, porque estavam sós na rua, e ela acariciou-lhe o rosto. Dentro de meia hora Frazertown voltaria a ser uma cidadezinha barulhenta... pois acabaria o desafio de basquetebol e também a conferência sobre novas bases de foguetões americanas. Bob Miller foi posto a par do teor da conferência, por escrito, através de outro colega do bar. Era regra que sempre que uma pessoa ia a uma conferência e depois informava outra é porque se faria a elaboração de listas de presença. Bob procedia como se estivesse registado. Se passasse pela cabeça de alguém comparar essas listas de registo com as da Câmara Municipal, seria grande a surpresa de que um tal Bob Miller não estivesse inscrito como cidadão de Frazertown. Contudo, só nesses casos se tornava arriscado... na rua, nos armazéns e lojas e por toda a parte da cidade ninguém perguntava quem se era nem de onde se vinha. Quem vivia em Frazertown situava-se para lá de todas as perguntas.
Bob ficou a olhar Norma, que descia a rua na direcção do restaurante de Bill, uma mulher de pernas esguias, um belo exemplar selvagem que não se podia amestrar.
Levou a mão à garganta, onde a mordidela latejava e ficara um chupão mesmo no sítio da laringe.
«É um fenómeno da natureza, tal como as enormes tempestades da Rússia», pensou. «Como as infindas florestas de taigas. Como as estepes sem fronteiras de Kasaktã.»
Qual a forma de impedir que fosse uma vítima da guerra fria do Serviço Secreto?
O encerramento das comunicações pela rádio com o tractorista Deviatov, em Vinniza, deu-se para o general Jack Orwell precisamente no momento menos oportuno.
Após a rápida despedida de Deviatov a uma hora não combinada, tinha-se realmente tentado na central do Alasca e no quartel-general secreto do Forte Patmos entrar novamente em comunicação com o elemento de contacto, mas Avdev Konstantinovitch não respondeu. Os técnicos de Kiev interceptaram com a sua altamente sensível aparelhagem as longínquas e codificadas mensagens, só que não conseguiram restituí-las e depois decifrar o sentido das palavras. Dois oficiais do departamento de descodificação receberam orelhas de burro e tiveram de confessar que não se conseguira nada. Apenas uma coisa era certa: a mensagem pela rádio vinha do exterior da Rússia. Onde se poderia encontrar o emissor era impossível dizer. Fosse como fosse, a correspondente de Vinniza não respondeu.
- Foi avisado - declarou o capitão da KGB enviado a Odessa, olhando irritado para Stanislav lakovlovitch Slobin, que tinha sido o primeiro a detectar o emissor. - São cometidos muitos erros, erros demasiados. Deviam ter-nos informado imediatamente. Toda esta radiogoniometria em força pela região não passou, como é óbvio, despercebida a esse porco traidor. Enquanto se mantiver calado, temos de ficar sentados sem nos mexermos.
No Forte Patmos, o general Orwell não estava disposto a resignar-se. Esperava que Deviatov voltasse a ligar e ouvisse a chamada da América. - Não deixem o homem! -ordenou. - Entrem em contacto às horas combinadas! Não posso perder o Bob Miller! É o único com todas as possibilidades à mão.
Estas possibilidades eram imperiosamente precisas. Fotografias, cuja proveniência nem sequer a Orwell era comunicada e que o Pentágono lhe enviava com um correio oficial diplomático, não deixavam sombra de dúvida de que a ocidente do gigantesco Lena, na baixa planície da Lindya, se estava a construir um centro de foguetões. Rampas de lançamento completamente desconhecidas representavam um sério perigo para os EUA. Se se tratasse da concretização dos boatos relativos aos novos foguetões de ida e volta soviéticos Intercontinental, sobre os quais e apesar de todos os esforços não se possuíam informações, a Rússia tinha hipótese de, a partir da Lindya, destruir todo o Norte, Ocidente e Sul dos EUA com foguetes nucleares. Os acordos internacionais de desarmamento e controlo atómico não passavam de papel escrito em que apenas os políticos ingénuos acreditavam. Os militares eram mais realistas na forma de pensar... conheciam-se bem de mais uns aos outros. A sua afinidade de ideias era surpreendente. Quem sabe ou alguma vez vai descobrir se na Lindya ou algures no Novo México se encontram montadas armas, debaixo do solo, capazes de eliminar milhões de pessoas no espaço de segundos? Sobre essas coisas não se fala. Suspeita-se uns dos outros, e quando os políticos, depois da assinatura de um acordo, apertam as mãos para a imprensa e televisão, os militares riem calmamente.
Segundo as mais recentes fotografias chegadas do Pentágono, existia, por conseguinte, a ocidente de Lena, uma nova base de foguetões que dispunha de rampas de lançamento até aí nunca vistas. Nas fotografias apresentavam-se vazias... como eram os novos foguetões, ninguém o sabia. Suspeitava-se, no entanto, que continham um aparelho de prospecção electrónico programado que funcionava como um computador e a arma mortífera ia atingir mortalmente o alvo calculado por um cérebro electrónico.
- Tenho de entrar em contacto com Bob - repetia o general Orwell todas as vezes que o aparelho emissor o informava: «Nenhum contacto com Vinniza.» - Já sabemos o que há em Frazertown. Temos os nomes principais. O Bob, daqui a duas ou três semanas, estará em posição de poder abandonar o posto. Nessa altura conheceremos também os restantes nomes e Bob terá em caixa as fotografias dos agentes mais importantes. Pode fornecê-los a Deviatev e, seguidamente, continuar viagem para a Sibéria. Se há alguém capaz de conseguir aproximar-se dos novos foguetões, esse alguém só pode ser Miller. A sua maior vantagem: já se encontra na Rússia. É um russo tão perfeito que, realmente, nada irá correr mal. E está de posse dos mais perfeitos documentos. Desde major a soldador pode trabalhar em todas as profissões. Com os diabos! Pelo menos uma vez o Deviatov tem de receber a mensagem. No entanto, ninguém percebe isso! Por conseguinte, telegrafava-se... de manhã, ao meio-dia e à tarde. Em Vinniza praguejava-se ao desafio, o oficial da KGB gritou que não era de admirar quando apanhou a icterícia e o capitão Slobin, que havia desencadeado o processo e foi o mais atingido pelas circunstâncias, decidiu intimamente nunca mais participar voluntariamente uma observação feita nem meter-se na alta política. Havia necessidade disso? Vinniza era uma bela e calma guarnição, onde se podia viver bem com pouco trabalho e ainda por cima na companhia de mulheres bonitas e apaixonadas. Cumpria-se a obrigação, e ponto final. A vida é tão curta, camaradas, para quê dificultá-la? Nunca mais voltar a fazer mais do que o necessário... Lá bem no fundo, o capitão Slobin classificava-se de idiota, sentado com uma expressão sombria no carro com a antena radiogoniométrica.
A perseverança do general Orwell foi bem sucedida. No nono dia a seguir ao silêncio do posto emissor de Deviatov chegou finalmente uma resposta. Uma palavra apenas: «ESCUTO.» Tratou-se, na realidade, de um mero acaso. Desta vez sem a presença dos vizinhos apreciadores de música, Deviatov pôs a tocar um disco de David Oistrach, um concerto para violino de Prokofiev, e, por curiosidade, colocou o botão do emissor para receber. O ruído característico ecoou no alto-falante, Deviatov fez funcionar o restituidor e anotou o conjunto de palavras.
«Comunicar imediatamente. Comunicar imediatamente.
Grau I. Comunicar imediatamente.»
Deviatov coçou a cabeça, hesitou e em seguida comutou para emissão. Telegrafou meramente um breve «ESCUTO» e logo desligou.
- Cá está ele! - gritou Slobin na central de rádio e deu um pulo na cadeira, como se o tivessem picado. - Cá está! Ouviram, camaradas? Mesmo próximo daqui...
O capitão da KGB de Odessa fez um aceno afirmativo mal-humorado.
- Um segundo. E agora recebe as informações, enquanto nós ficamos para aqui sentados como imbecis que mijaram nas calças!
- Ele vai responder, camarada capitão. Tem de responder. E, nessa altura, apanhamo-lo - gritou Slobin num arranque de entusiasmo. - Está sentado diante do nosso nariz. Só precisamos de paciência, paciência”, meus amigos...
Contudo, a paciência não compensou. O ruído distante soou e Deviatov limitou-se a responder: «ENTENDIDO.» Tal não chegava evidentemente para uma localização exacta. O capitão Slobin sentia vontade de chorar.
- Um canalha! - explodiu. - Um cão danado. Oh, se o desmascara. Faço-o em tiras...
- Nunca o localizaremos - declarou o capitão da KGB de Odessa. - Se for um só, mesmo um russo, pode estar ao nosso lado e olhar-nos com lealdade... nunca o reconheceremos. Presentemente só o acaso nos poderá ajudar. Não acredito na sorte, camaradas. No entanto, os acasos são os colaboradores dos espertos. Sejamos, pois, espertos...
Nesse mesmo dia, entraram novamente em acção quatro carros radiogoniométricos de Kiev que, sob o disfarce inofensivo de camiões, percorriam Vinniza de uma ponta a outra. De dia e de noite, divididos em três turnos. No posto de rádio do Batalhão de Informações os especialistas continuavam sentados com os auscultadores electrónicos.
Esperar... esperar... esperar... A grande e insuperável virtude dos Russos.
Apenas houve um pequeno mas fatídico erro em toda esta perfeição e ninguém se apercebeu da sua existência: o carro radiogoniométrico no 2 teve uma avaria. Os travões estavam lassos. E dado a melhor oficina de Vinniza ser a brigada de reparações de máquinas agrícolas, permitiram que os camaradas da agricultura examinassem o mecanismo dos travões.
Um dos mecânicos que verificavam atentamente o camião era Avdev Konstantinovitch Deviatov. Soube por intermédio de um dos técnicos, na qualidade de bom amigo, que mais três camiões disfarçados fiscalizavam as imediações.
- Uma coisa em grande, camarada! - disse o técnico. Uma coisa mesmo em grande, digo-lhe eu.
Não havia necessidade de convencer Deviatov de que realmente assim era.
A capacidade de improvisação é uma das grandes virtudes dos Russos. Em coisas que outras pessoas levam ao pormenor, examinando cada parafuso com testes, fiscalizações e aperfeiçoamentos, um russo observa pensativamente, reflecte um pouco virando-se para o seu interior e decide-se a solucionar o problema com talento e a ajuda de Deus da forma mais simples.
Sempre foi assim... desde a construção das aldeias às metralhadoras da última guerra que suportavam o lodo, a areia, a água e tanto podiam ser submetidas a um calor ardente como a quarenta e cinco graus negativos. Limpavam-se, carregavam-se e verificava-se que disparavam em condições, onde as maravilhas mais qualificadas da técnica nem um som produziam. Uma construção da maior simplicidade, em que até o gatilho podia abanar... sempre que era possível os soldados alemães, desfaziam-se das suas PMI, que deixavam de funcionar com um simples grão de areia, e trocavam-nas pela Sudaiev russa.
Deviatov não teria sido um russo genuíno se, ante a repentina informação de que o queriam detectar e ao emissor com quatro camiões disfarçados, não tivesse tomado imediatamente uma represália improvisada. Na medida em que o mais simples se revelava sempre o melhor e o mais inofensivo processo, e numa refeição de camponeses só se atraiçoa o que limpa a boca com um guardanapo, mas nunca o que arrota na presença do anfitrião e com isso o elogia, Deviatov engendrou um plano genial.
Numa carroça de camponês, ou seja, num monstro de rodas de madeira guinchantes e paredes laterais de toros espessos, instalou sob a parte de baixo o seu aparelho emissor. Em seguida atrelou-lhe os varais a um tractor pertencente à cooperativa agrícola e, mal arranjou tempo livre, guiou-o através da terra fértil junto ao Bug, através das plantações de vinhas e dos pomares, parou aqui, depois mais além, pôs-se debaixo da carroça por causa do sol e utilizou-se do emissor sem que o incomodassem. Sempre alguns segundos, com um chamamento a Bob Miller. Seguidamente, voltava a subir para o tractor, prosseguindo caminho, com o gorro metido na cabeça, a camisa aberta até ao umbigo e calças de trespano coçadas. Um camarada activo e alegre. Deus o abençoe... lavra a terra que o céu ofereceu.
Entretanto, o capitão Slobin, que se mantinha no carro de TSF, apresentava fundas olheiras e as mãos tremiam-lhe. O camarada da KGB de Odessa parecia igualmente ter emagrecido, apresentava um tom de pele amarelado no rosto e vestígios nítidos de tiques nervosos. Sempre que Deviatov enviava «INFORMAR! INFORMAR!» e em seguida logo desligava, Slobin gemia baixinho e profundamente preocupado. A requintada aparelhagem tinha um papel insignificante.
- Está a brincar connosco! - exclamou o capitão da KGB fora de si. - Sabe perfeitamente que andamos à procura dele. Quer arrasar-nos os nervos. Mas não o vai conseguir! - explodiu subitamente, sem se conseguir dominar. Nunca o conseguirá. Tenho nervos de aço. Sou calmo. Um homem perfeitamente calmo!
Durante três dias, foram nove as vezes que Deviatov avistou os camiões disfarçados. Apenas os reconheceu devido as compridas antenas que tinham colocado habilmente na carroçaria. Os motoristas estavam vestidos como se fossem activistas da brigada de transportes, mas debaixo das lonas sentavam-se os especialistas de Kiev junto aos instrumentos de medição e esperavam... esperavam...
Ao passar por eles com o tractor, Deviatov cumprimentou-os com um gesto amigável. A carroça de madeira, ao ser arrastada, saltava no terreno irregular. Na altura devida, parava novamente e enviava o seu maldito «INFORMAR! INFORMAR!» para o ar. Três vezes um dos camiões detectores passou por ele como louco, enquanto permanecia calmamente deitado à sombra da carroça a comer uma melancia. A arte da improvisação russa e da ideia simples e genial novamente triunfou.
- O camarada acaso também não nos ajuda - dizia o capitão Slobin ao seu camarada da KGB. - O que nos pode ajudar, agora que sabemos que o emissor é móvel? Nada! Absolutamente nada. Pelo contrário... cada vez nos escapa mais.
- Controlaremos tudo o que se passa nas ruas - decidiu o homem de Odessa entre dentes.
- Tudo? Isso provocará um caos no trânsito.
- Se o espião não for descoberto, talvez a própria Rússia se transforme num caos, Stanislav lakovlovitch. É preferível pôr Vinniza às avessas. Tem uma opinião diferente?
Claro que Slobin não tinha uma opinião diferente, embora a tivesse. Contrariar as determinações da KGB é um acto de uma tal estupidez que o castigo que se segue naturalmente é justo. Outrora dizia-se: a palavra de Deus é sagrada. Só que, nessa altura, ainda não se conhecia a KGB! A segurança do Estado é uma coisa tão vasta que não pode haver outra igual. Na Rússia não, camaradas...
Esta atitude pouco afectava Deviatov, pois, com o génio de todos os improvisadores, calculara que tal acontecesse. Por quatro vezes o mandaram parar, perguntaram-lhe o nome e pediram-lhe a documentação. Todas as ruas e caminhos de acesso transbordavam de milícia e de militares, chegando-se a. mandar parar jovens mães e avós respeitáveis, bem como a revistar os carrinhos de bebés que estas empurravam naquela bela tarde de domingo.
Como é lógico, tais medidas provocaram discussões acaloradas.
- Dispam o bebé também! - gritou por exemplo a avozinha Sofia Johanovna, ao mesmo tempo que pegava no neto de quatro meses. - Revistem nas fraldas! Revistem. O que querem encontrar, hem? Moedas de ouro? Diamantes? O meu pequeno lakov evacua normalmente, não há nenhum segredo aí...
E a jovem mãe Tâmara Mikailovna, que andava a passear com o carrinho de bebé pela margem do Bug, foi mesmo ao ponto de levantar as saias e mostrar as reduzidas cuecas de algodão à milícia.
- Está aqui o que procuram? - gritou. - Seus caras de bode... ó que querem de mim? Ah! Como os vossos olhos brilham. Porque é que ainda não despiram as calças, camaradas?
Tâmara Mikailovna não pertencia à gente mais fina, mas ninguém. Após o quarto controlo, conseguiu que um oficial lhe respondesse, sem primeiro ter revistado o carrinho de bebé, como acontecera no caso da avó Sofia. Choveram reclamações na direcção do Partido, junto da chefia da cidade e do comandante da milícia e dos militares... mas de nada serviu. O controlo prosseguiu.
Contudo, Deviatov não voltou a ser incomodado por ninguém. Após o quarto controlo conseguiu que um oficial lhe escrevesse um papel que colou no tractor. «Pode circular livremente!», estava escrito. «Foi controlado várias vezes!» Tinha sido colocado o carimbo da milícia... o mais importante deste pedaço de papel. Sem carimbo, na Rússia como em qualquer outra parte do mundo, um documento tem apenas o valor de um papel.
Deviatov continuou, portanto, sem ser molestado, a atravessar toda a região. Passava todas as barreiras, dividia de vez em quando uma sumarenta melancia com os militares que aguentavam o sol escorrendo suor, e em breve sabia a colocação de todos os controlos. Cumprimentavam-no e trocava algumas palavras amigáveis com todos.
Na granja, onde debaixo da terra estava enterrado o uniforme do major Vassia Grigorevitch Chukov, Deviatov carregou palha, para não andar de um lado para o outro sempre vazio, o que também iria dar nas vistas. No terceiro dia, ia a caminho com um carregamento de milho e acabava precisamente de assar numa fogueira junto da carroça umas grossas maçarocas numa travessa de ferro, quando foi detido pelo, até esse momento, nono controlo. Há um quarto de hora que Deviatov voltara a telegrafar a sua chamada: «INFORMAR! INFORMAR!», e o capitão Slobin lutava no seu posto com uma forte cãibra.
A milícia, que seguia em dois jeeps, parou, examinou o rótulo pregado no tractor que Deviatov lhes indicou com o polegar, pois tinha a boca cheia de pipocas acabadas de assar, e desceu. Deviatov franziu um pouco o sobrolho.
- Cheira maravilhosamente - observou o chefe da patrulha, um segundo-tenente, e farejou como um cão a travessa de ferro quente. - Tens a carroça cheia de milho, Avdev Konstantinovitch... assa- nos umas maçarocas! Damos-te vinte copeques.
- E acham que eu receberia um copeque que fosse dos amigos da milícia? -retorquiu Deviatov profundamente ofendido. - Sejam meus convidados, camaradas. Nunca houve milho tão bom como este Verão! - acrescentou, colocando algumas maçarocas enormes na travessa a escaldar, e o aroma do assado penetrou tentadoramente no nariz de todos. - Para quê realmente estes controlos? - perguntou Deviatov inocentemente. - Esta ética! Andam por todo o lado. Mataram alguém?
- Andamos à procura de um emissor - respondeu o segundo tenente amistosamente. - Um emissor móvel.
- E um assunto de Estado - comentou Deviatov arregalando os olhos. - Não sejam negligentes, camaradas. Talvez eu tenha aqui um aparelho transmissor por baixo do milho...
Os soldados da milícia riram sonoramente, mordiscaram as maçarocas e depois prosseguiram viagem, convictos de que Deviatov era um fiel amigo. Cinco minutos depois, radiotelegrafou novamente, deitado por baixo da carroça, para Frazertown: «CONTACTAR! CONTACTAR! URGENTE.»
Cinco minutos depois, os jeeps da milícia passaram novamente a toda a velocidade junto a ele, alertados pela central. Os polícias acenaram a Deviatov.
Tudo se passava como no conto da lebre e do ouriço. Só que a versão era russa e mortal.
No entanto, Bob Miller não entrou em contacto.
Enquanto Deviatov continuava a chamar desesperadamente, Bob esquecia nos braços macios mas prementes de Norma que para além desta mulher havia um mundo a rodeá-los. Nada mais lhe interessava... vivia apenas para o amor, arrebatado a cada momento por emoções que nem mesmo ele entendia.
Na manhã de domingo e segundo Harry Fulton tinha descoberto, Bob Miller gozou durante duas horas o prazer de um passeio num barco a motor. Podiam alugar-se, logo abaixo do restaurante de hamburgers de Billy, a dois dólares à hora. A faixa do passeio encontrava-se, realmente, limitada de uma a outra barreira, mas não deixava de ser um prazer subir e descer o rio, ou ficar parado no meio a contemplar Frazertown, nadar na água corrente ou mesmo pescar à linha de dentro do barco.
Bob Miller divertiu-se a descer e a subir o rio, mesmo de uma barreira à outra, até que os postos de observação e os soldados dos pequenos barcos de vigia o passaram a reconhecer de longe, deixando de buzinar o sinal de aviso : «Alto! Perigo! Quem avançar será abatido sem mais aviso.»
Foi assim que Bob Miller se familiarizou com a desconhecida região de Frazertown, até ao sítio da patrulha da margem do Bug... que aqui se chamava Silver River. Fotografou a cidadezinha americana com os seus símbolos característicos - o hamburger de plástico colocado no telhado de Billy’s -, em toda a sua extensão, recolheu detalhes da costa baixa e escarpada e foi ao ponto de conseguir apanhar os barcos de vigia diante da câmara que montara nuns óculos de mergulhador. Sentava-se, pois, no pequeno barco a motor, acenava alegremente aos pequenos barcos de guerra, com os óculos bem assentes na testa, e a câmara automática fazia um clic - clic - clic inaudível. Eram realmente as primeiras fotografias existentes da cidade secreta.
Em Frazertown havia também, de facto, duas lojas de fotografia, equipadas com estúdio e laboratório, que faziam muito dinheiro, porque se fotografava muito na cidade... mas todos sabiam que, quando fossem chamados para a infiltração, tinham de devolver todas as fotografias, e de Frazertown nada mais ficava do que as recordações pessoais. O que não existia, não era possível fotografar... e oficialmente Frazertown não existia. A única coisa que se conhecia nos EUA e na CIA eram as guaritas locais da primeira rede de arame farpado. Contudo, aí havia a indicação de Novotchok, um nome que nem sequer em Vinniza se levava a sério.
Bob Miller estava aproximadamente há uma hora no rio, quando Harry Fulton se aproximou num barco a motor semelhante ao dele. Bob, que acabara precisamente de fotografar uma parte da margem escarpada, continuou a avançar como se não tivesse visto Fulton e desligou o motor junto à margem oposta. Frazertown desaparecera atrás de uma curva e a próxima barreira a sul encontrava-se a cerca de trezentos metros de distância após uma curva do Bug... aqui havia apenas a paisagem banhada pelo sol, as águas do rio brilhando sob os seus raios e reflectindo o azul do céu sem nuvens. A margem apresentava- se escarpada e os ramos das árvores, profundamente enraizadas na ribanceira, pendiam em arco sobre as águas como um toldo verde. Neste local podia pescar-se em paz, aqui era um sítio onde os peixes abundavam. Viam-se percorrendo velozmente as águas de um lado para o outro, brilhando ao sol, como se fossem de prata reluzente.
Bob Miller olhou em seu redor. Estava só neste trecho do rio. Era um domingo quente, não corria uma brisa e a maior parte das raparigas estavam nesse momento sentadas a desfrutar o ar condicionado enquanto comiam gelados ou bebiam coca-cola. A estação de banhos do rio estava cheia de gente e só o indivíduo que alugava os barcos não estava a fazer grande negócio. Apenas à tarde é que os românticos escolhiam a água... ao cair da escuridão, as luzes dos barcos assemelhavam- se a uma nuvem de pirilampos sobre o rio.
Harry Fulton aproximou- se e deixou que o barco vogasse ao lado do de Bob Miller. Este, que preparava o anzol, não acolheu Fulton com muito agrado. Tinha posto debaixo do banco os óculos com a câmara fotográfica. Fulton acenou-lhe, com um sorriso que se assemelhava a um esgar distorcido.
- Está a afugentar-me a pescaria, Harry - disse Bob quando Fulton ficou mesmo encostado a ele. - Avistei alguns exemplares maravilhosos e agora desapareceram. Isso vai custar-lhe um convite para uma refeição só de peixe.
- Preciso de falar consigo, Bob! - retorquiu Fulton num tom de voz estranhamente sombrio.
- Num domingo e no Silver River? Vem convencer-me a entrar num combate? Só tem boxe na cabeça, Harry?
- Nem só - respondeu Fulton, observando Miller de olhos semicerrados. - Também me ocupo de casos da vida. Mistérios! Perguntas sem resposta. E da justiça. Sou um fanático da verdade.
- Escolheu a profissão’indicada, Harry. No rinque só a verdade tem valor. Ali vêm à tona as fraquezas. No entanto, é motivo bastante para me afugentar a pescaria?
Bob Miller recolheu a linha no barco. Não fitava Fulton nos olhos, mas sentia os músculos tensos. A sensação palpável de perigo iminente, o instinto do fugitivo, percorria-o como uma onda de calor. Naquele dia, Fulton mostrava-se totalmente diferente do que era habitual, e era visível que estava à espreita de Miller.
- Há muitas perguntas em Frazertown... -observou Fulton tranquilamente.
- Claro. Como em qualquer outra cidade. E vou dizer-lhe qual a mais importante, que a todos e também a si interessa profundamente. Com quem é que a Norma Taylor vai, na realidade, para a cama?. Como estão, de facto, as apostas, Harry? Vou à frente? Qual o seu prognóstico?
- Tenho andado a pensar, Bob. Ou prefere que o trate por Vassia Grigorevitch?
- Se lhe dá prazer... Aqui ninguém nos ouve. Podemos entender-nos em russo, Gavril Savelivitch Gordeiev...
- Sabe o meu nome?
- Sou como você. Um fanático da verdade.
- Fala um belo dialecto gorkiano.
- A minha mãe era de Gorki. O meu pai de Novgorod. Uma bela ligação! No entanto, não nos tornámos Chukovs com o marechal Chukov. Infelizmente. Talvez já fosse há muito coronel ou, quem sabe, general.
- Contudo, é um americano perfeito...
- Frequentei um curso especial durante quatro anos, exactamente como você, Gavril Savelivitch.
- Sou um pobre gago em comparação consigo. É o americano mais perfeito que me foi dado conhecer aqui em Frazertown.
- Fui sempre o melhor do meu curso. Pensa talvez que há qualquer coisa por trás disso?
- Tomei as minhas próprias notas e depois juntei tudo como num quebra-cabeças, Vassia Grigorevitch. Emprega americanismos que não se aprendem em nenhum curso. Coisas assim só de nativos! Trata-se meramente de pormenores que me chamaram a atenção, mas foram-se acumulando e formaram um todo compacto.
Bob Miller sentiu que o perigo o atingira. Cercava-o e exigia-lhe uma evasão, um contra-ataque, a eliminação impiedosa do adversário. Tinha recebido um treino intenso nesse sentido, em Smolenska. A total supressão da consciência, a recusa de toda a moral inata, o tornear do último resquício de humanidade. «Mata primeiro»... era a palavra de ordem matraqueada. «Pensa sempre nisso: o outro também matará! Sê mais rápido!»
Bob Miller fincou as pernas no fundo do barco e fitou Fulton com olhos sonhadores, quase piedosamente. O olhar de um jovem a quem atiraram a bola para o rio e não a pode recuperar.
- Desenfarde, Harry. Oh, perdão... Gavril Savelivitch... Também é americanice a mais?
- Em certa medida... sim. Um russo a quem se tivesse cuspido na cara, como o fiz (simbolicamente), teria cuspido também ou erguido os punhos.
- Não tenciono dar cabo de si, camarada - riu Bob afavelmente. - Embora como russo que se preza, lhe devesse ter saltado à garganta ao ouvir alguém dizer-me que não sou russo. Andou a praticar boxe em excesso, Gavril? Deram-lhe cabo da moleirinha? Já foi ao doutor Ford? Ou devo chamar-lhe doutor Afanasiv Petrovitch Dronov?
- As suas informações são espantosas, Vassia. Até parece que não veio a Frazertown para se tornar americano, mas para os desmascarar a nós, americanos, como russos.
- A sua atracção pelo fantasmagórico é realmente notável, Gordeiev. Não faça figuras ridículas. Vá amanhã cedo ao burgomestre Bulder e conte-lhe que o major Chukov é um enigma. Quando Miller fala inglês não diz educadamente: «Amanhã irei cometer o coito com a Fipsy...» Não. Diz, de uma forma perfeitamente ordinária: «Amanhã vou foder com a Fipsy.» Isso convencerá imediatamente o Bulder de que algo está errado com Bob Miller.
- Quem é a Fipsy? - perguntou Fulton, momentaneamente perturbado.
- Ninguém. Um nome que me ocorreu. Não quis comprometer ninguém. - Bob levou a mão ao bolso das calças. Não trazia qualquer arma consigo, apenas um canivete, mas defender-se com ele seria diletantismo. O importante, agora, era arrancar mais coisas a Gordeiev. Por seu intermédio estava a tomar consciência dos erros que cometera em Frazertown, embora sempre tivesse pensado haver-se integrado perfeitamente na vida da cidade. «Americano de mais», pensava. «Deve ter sido esse o grande erro. Em Smolenska éramos todos russos perfeitos... mas o Fulton fez uma análise correcta. Apesar de todas as perfeitas situações de circunstância, um russo nunca se poderá transformar num americano perfeito. Nem um francês; nem um italiano. Nem um sueco. Um alemão talvez... num país de permanentes vitórias e derrotas absorve-se tudo. No entanto, a verdade é que um russo nunca deixa de ser russo. Dentro dele vive algo da eternidade da paisagem.»
- Já tinha realmente pensado em ir falar com o Bulder
- retorquiu Fulton. - Contudo, o meu egoísmo saiu vencedor.
- É pena. O camarada general Sinionev teria ficado satisfeito.
- Certo. No entanto, quero ser eu a receber os louros. Sabe, por acaso, Bob Miller (e parto do princípio que é esse o seu verdadeiro nome) que se prometeram vinte e cinco mil rublos, uma fortuna portanto, se alguém detectasse um agente inimigo que se tivesse conseguido infiltrar em Frazertown? Trata-se praticamente de uma impossibilidade, e daí a elevada recompensa. No que me diz respeito, Bob, acho que já tenho os vinte e cinco mil rublos no bolso. Que acha você?
No íntimo de Bob desapareceram as últimas emoções e escrúpulos. O importante agora era sobreviver. No entanto, os olhos sonhadores não acusaram qualquer mudança. Iludiam quem quer que fosse, porque não reflectiam o mínimo dos seus pensamentos.
- Esses vinte e cinco mil rublos são uma boa coisa observou Bob tranquilamente. - Quando ouvi falar neles, também os desejei secretamente.
- Agora sou eu que os tenho, Bob Miller! - retorquiu Harry Fulton com um esgar ordinário. - Veio cair na minha armadilha como um urso cego. Nunca houve um prémio de vinte e cinco mil rublos. Desmascarar um agente não tem pagamento... é uma honra nacional! Agora está nu na minha frente...
- Está certo, Gavril Savelivitch. É um indivíduo esperto riu Bob Miller, como se estivesse a falar com um bom amigo. - Vamos, portanto, imediatamente ao general Sinionev a fim de partilharmos com ele a sensacional descoberta. Em Frazertown, o mais vigiado pedacinho da Rússia, vive um americano de raiz! Vai ser uma festa para ele. Apresentarei os meus documentos, a minha ordem de transferência, os certificados da escola militar, mesmo tudo o que o major Chukov deve ter em seu poder. E Ivan Korneivitch, o generalzinho, dir-lhe-á: «Camarada Gordeiev, vou condecorá-lo... como o maior burro do Exército Vermelho!» Voltemos, então, à cidade.
Bob Miller fez menção de pôr novamente o motor a trabalhar. Harry Fulton fitou-o desconfiado e de súbito também com alguma incerteza.
- Não me deita poeira nos olhos com belos discursos, Vassia Grigorevitch - exclamou num tom rouco. - Não me vai conseguir baralhar. Descobri-o bem no íntimo. Como conseguiu entrar na terra proibida?
- Durante a noite. Pus umas asas e sobrevoei como uma grande ave de rapina - retorquiu Bob com um sorriso de um canto ao outro da boca. - Entre nós, na América, aprende-se tudo na CIA. Os Russos ainda têm muito que aprender no aspecto de requinte de técnica. Uma parte dos nossos está a receber treino de toupeira e outros especializaram-se a deixar-se arrastar para as regiões vedadas, como se fossem cadáveres ao sabor da água. Deixam-se pescar, levar para a casa mortuária e depois desaparecem de lá...
- Agora está a ridicularizar-nos - comentou Fulton sombriamente, ao mesmo tempo que na mão lhe aparecia de súbito uma pequena Makarov, que apontou ao peito de Bob.
- Passe para o meu barco. Com os braços erguidos e as mãos atrás da nuca! Já basta de conversa...
Bob Miller acedeu obedientemente a tudo o que Fulton lhe exigiu. Entregou-se sem resistência e aparentemente vencido, passou para o outro barco e sentou-se no estreito banco. Fulton lançou um breve olhar ,de soslaio para a embarcação de Bob.
- Não traz armas consigo?
- Queria pescar, camarada. E mergulhar. Está a ver os óculos de mergulhador? Um homem inofensivo não vai nadar com uma pistola, e disparar contra os peixes é o máximo do antidesportivismo.
- Em breve lhe farão perder a ironia. Deixe estar as mãos na nuca.
- Não me mexi, camarada. - Bob estendeu as pernas no assento. Era a posição inicial para um salto calculado em pormenor, quando Fulton estivesse a uma distância crítica. Os músculos das coxas e do abdómen de Bob estavam esticados ao máximo. Eram cordas duras como o aço. No entanto, Fulton não se apercebia de que assim era sob a roupa de Bob. - E agora, camarada? Quem liga o motor? Se o fizer, terá de desviar a Makarov e deixar de me olhar. Virar-me mesmo as costas! Vai arriscar-se?
- Ponha você o motor a trabalhar. Vamos. Passe para trás.
- Não é tão parvo como isso, Gavril Savelivitch. Consegue dominar as situações.
Bob Miller levantou-se, com os braços erguidos, as mãos atrás da nuca, e passou junto a Fulton. Atingira a proximidade crítica, o segundo que mudava tudo. Encontravam-se agora de frente no pequeno barco, apenas afastados uns centímetros um do outro, e tão próximos que Fulton teve de aproximar a pistola mais do corpo.
Bob respirou fundo e tudo nele explodiu subitamente. Antes de Fulton poder reagir, porque o barco oscilou um pouco, o que o fez perder o equilíbrio, as mãos de Bob desceram rapidamente, na vertical, sobre Fulton. A esquerda encontrou a pistola, quase partindo o pulso de Fulton, e a direita atingiu a fonte de Fulton e pô-lo sem sentidos antes mesmo que compreendesse o que lhe acontecera. Miller agarrou no corpo desfalecido, recuperou o equilíbrio do barco, que oscilava fortemente, até tudo ficar calmo, içou o corpo de Fulton para fora e depois meteu-lhe a cabeça no rio. Fulton estrebuchou, os nervos retesaram-se, o corpo rebelou-se contra a morte, agitou as pernas, mas Miller agarrou na cabeça de Fulton com as duas mãos e meteu-a debaixo de água até à relaxação total e absoluta da morte.
Bob esperou ainda uns minutos, soltou Fulton e fitou a cabeça que estava mergulhada, até aos ombros, nas águas correntes do Bug. Em seguida, içou novamente o morto para bordo, verificou escrupulosamente se não havia quaisquer marcas exteriores, deixou deslizar novamente o corpo para a água e colocou as mãos de Fulton nos apoios do motor fora-de-borda. Dava assim a sensação de que Fulton, surpreendido por um súbito enfraquecimento ainda se agarrara ao barco, mas não conseguira trepar. Estava afogado e segurava-se apenas com uma das mãos ao motor, com a cabeça submersa.
Bob meteu no bolso a Makarov de Fulton, prendeu o barco do morto a um dos ramos flexíveis e pendentes, uma prova de que Fulton tinha ido nadar e se assegurara de que o barco não se afastaria, trepou seguidamente para o seu barco, descreveu um arco até à outra margem e daí regressou a toda a velocidade a Frazertown.
Entregou o barco ao indivíduo que o alugara, pagou mais cinquenta centimes, devido ao prolongamento do aluguer, e dirigiu-se ao restaurante de hamburgers de Billy. Levava os óculos de mergulhador e a Makarov numa mala de pano a tiracolo, semelhante a tantas outras usadas pelos pescadores à linha. Carregava os apetrechos ao ombro. Norma Taylor, que estava no turno de domingo à tarde, parecia esperá-lo. Os olhos escuros adquiriram um brilho dourado quando Bob entrou. John Barryl estava novamente a trabalhar na cozinha. Após lhe terem dado alta do hospital - tinha sido no dia anterior - aproveitou o domingo para passar novamente o dia inteiro próximo de Norma. Bob teve pena... é horrível, quando um homem embate sempre e sempre numa parede de borracha.
- Lá vem o grande pescador! - exclamou Norma em voz alta. - John deixou os hamburgers e apareceu à porta da cozinha. - Chega para três? - perguntou.
- Teria chegado para um exército inteiro – retorquiu Bob. pousando a pesca no balcão de aço reluzente. Foi uma aventura das grandes. Mal tinha lançado a isca, senti um puxão na linha. Comecei a enrolar, mas nada se mexia. E, de súbito, apareceu o que tinha pescado. Uma baleia! Um colosso! E calculei: aqui tenho peixe que chegue para uma companhia. Banha que dê para três meses e dos ossos podem fazer-se enfeites.-.. Que alegria tão grande! Contudo, meus bons amigos, conhecem alguém capaz de pescar uma baleia com um anzol e puxá-la para terra com uma linha tão fina? Indiquem-me uma só pessoa. Uma só. Por conseguinte, a baleia desprendeu-se, piscou-me o olho, salpicou-me com o repuxo... e afastou-se! Mas foi um acontecimento, digo-vos. Um acontecimento!
Todos os que estavam a ouvir a história, e a essa hora o restaurante de Billy estava cheio, soltaram uma gargalhada e. dobraram-se com o riso. Norma serviu a Bob o seu batido de morango favorito e John trouxe-lhe o hamburger mais bem servido desse dia.
- Ainda tenho três horas - anunciou Bob em voz baixa, enquanto John voltava à cozinha para dar provas da sua arte culinária. Norma inclinou-se sobre o balcão com um olhar tão ardente e cheio de desejo que ele sentiu um calafrio a percorrer-lhe a espinha. Ao mesmo tempo, porém, pensava em Fulton. Tinha morto uma pessoa. Pela primeira vez na sua vida, Bob Miller matara com as suas próprias mãos. Outrora, no Vietname, onde tinha vivido quatro meses antes da missão, dizia-se: «É a guerra. O outro lado também dispara.» E tudo ficara nos disparos. Nunca se vira na emergência de matar com facas ou punhais num corpo-a-corpo: apenas tinha treinado no Alasca, durante semanas e meses até se transformar num hábito. No entanto, tinham sido apenas exercícios: para além dos bonecos em que se espetavam facas no peito ou no corpo, ninguém era atingido. No entanto, naquele dia, tinha assassinado pela primeira vez uma pessoa conscientemente e a sangue-frio, por necessidade, claro, aproveitando uma chance, para sobreviver... contudo, era e continua a ser uma morte com as suas próprias mãos. Agora, no íntimo, tinha dificuldade em enfrentar o facto calmamente.
- Ficas por aqui? - Perguntou Norma. Voltou à realidade e riu-se.
- Era isso exactamente o que queria dizer. Vou arrastar-me por aqui durante três horas, olhando para ti, a celebrar orgia atrás de orgia contigo apenas em pensamento. Oh, Norma! O que faremos juntos...
- Se continuas a falar dessa maneira, atiro-te com um copo de leite à cabeça.
- Isso não me impede de pensar no sinalzinho que tens por baixo do seio esquerdo...
- Vai para casa, Bob! - interrompeu-o num tom ríspido, sem que no entanto deixasse de o acariciar com os olhos. Não te suporto quando dizes essas coisas.
Bob Miller deixou-se, porém, ficar no restaurante dê Billy. Esperava um certo acontecimento que devia indubitavelmente estar a rebentar. A sua presença ali no restaurante de Billy constituía um forte álibi, presenciado por muitas testemunhas. Sem esquecer a história contada em voz alta sobre a baleia de Silver River.
Pouco antes das dezanove horas, quando Bob se devia ir embora para entrar de serviço no bar de Hillmoore, aconteceu. Ouviu-se uma algazarra vinda do lado do rio, e através das janelas começou a ver-se uma pequena multidão que se aglomerava junto à margem. Em seguida, ouviu-se igualmente a sirena da polícia. O pequeno automóvel era seguido por uma limusina preta de carroçaria comprida. Os vidros estavam tapados com cortinas: era uma carrinha mortuária.
Minutos depois, o indivíduo que alugava os barcos irrompeu pelo restaurante de Billy. Os clientes deixaram-se ficar à janela, olhando lá para fora.
- Uma infelicidade! - gritava o indivíduo, excitado. Dá-me um copo de leite com whisky, preparado especialmente para mim, Norma. Imaginem só: o Harry Fulton afogou-se! Foi nadar, teve uma baixa de tensão, ainda se agarrou ao motor, mas depois afogou-se. Uma vítima do calor. Decerto meteu-se dentro de água cedo de mais. Quando o encontraram ainda estava agarrado ao barco.
Bob Miller respirou fundo. Correcto! Sem um erro. «Não te felicites, ’meu rapaz... era um homem como tu!»
- Quem diz que o Harry se afogou? - inquiriu.
- O doutor Ford - respondeu o homem dos barcos, limpando o suor- que lhe escorria da testa. Estava profundamente abalado. - E a primeira vez que alguém se afoga aqui no rio. Somos todos bons nadadores. É este calor, este maldito calor...
Foi uma noite calma de domingo. O bar de Hillmoore tinha pouca gente... a quem apetecia dançar agora? Fulton conhecera toda a gente em Frazertown, e quem se aproximava do balcão de Bob era para discutir o caso com ele.
- Nunca entro na água sem primeiro me refrescar
- disse Bob. - Contudo, o Harry era assim: tudo à farta.
Ao dizer isto, ficou subitamente triste e com ar infeliz.
Na noite de domingo, Deviate v conseguiu finalmente apanhar Bob Miller.
Bob colocara o rádio emissor na recepção com a esperança de que pudessem ter levantado a proibição de radiotelegrafar, na medida em que a morte de Fulton teria de ser incondicionalmente informada. Quando escutou o «CONTACTAR! CONTACTAR!», ligou imediatamente o botão emissor e começou a transmitir em código.
Deviatov respondeu com uma precipitação que Bob nunca vira até aí. «Meu Deus!», pensou. «Está a telegrafar com perigo de vida. O que se terá passado?»
Escreveu os símbolos restituidores e dispô-los, segundo o livro de código - O Velho e o Mar, de Hemingway -, em frases lógicas. Deviatov calou-se durante muito tempo e seguiu novamente caminho com a sua carroça através dos vinhedos. Foram, no entanto, chamar o capitão Slobin, que estava deitado.
- Está a telegrafar! - exclamou um técnico. - Dezanove segundos até agora. Hoje, à noite, apanhamo-lo.
O capitão Slobin soltou um grito, enfiou o uniforme e dirigiu-se apressadamente à estação emissora. Ali sentavam-se os especialistas de Kiev e praguejavam como cossacos montados em cavalos coxos.
- Acabou! - disse um deles como se pedisse uma execução humana. - Não se localiza em sítio algum...
Bob Miller acabara finalmente de descodificar o texto. Ao lê-lo, agora de uma forma coerente, compreendeu porque Deviatov o tinha chamado tão apressadamente.
O general Orwell tinha transmitido:
PARTIR IMEDIATAMENTE DE V. TENTE IR DE V. À SIBÉRIA E DESCER NA ESTAÇÃO IAKUTSK. ALI NOVAS INFORMAÇÕES. URGENTE! NO RIO LYNDIA NOVA BASE DE FOGUETÕES COM MODELOS E TRAJECTÓRIAS DESCONHECIDOS. GRAU l A. FIM.
Bob leu a ordem três vezes e, seguidamente, queimou o papel num cinzeiro, desfez as cinzas e atirou-as pela janela.
O que Orwell lhe ordenava era a separação, a insuportável separação de Dunia Andreievna. Um pensamento que Bob não desejava levar até ao fim. Uma ideia que, naquele momento, não conseguia realizar.
Colocou o botão na emissão e chamou Deviatov. Respondeu-lhe, finalmente, decorrida uma hora. Encontrava-se, nessa altura, com o tractor e a carroça no grande pátio da Cooperativa de Máquinas Agrícolas. As viaturas da milícia percorriam Vinniza de uma ponta à outra. Os quatro camiões detectores descreviam um círculo pela cidade. Bob respondeu:
ORDEM COMPREENDIDA. FICO EM V. MISSÃO AQUI AINDA POR CUMPRIR. TALVEZ EM QUATRO SEMANAS. LAMENTO. FIM.
«Quatro semanas!», pensava Bob Miller. «Ganhámos quatro semanas, Dunia. Hoje é um dia especial. Não só matei um homem pela primeira vez, como igualmente pela primeira vez me recusei a cumprir uma ordem. Até este momento nunca me teria passado pela cabeça tal coisa. O major Bob Miller já não obedece! Dunia Andreievna, meu cisnezinho negro, o que fizeste de mim...
Era de prever que a morte de Harry Fulton não fosse considerada como uma espécie de castigo da Providência. O presidente da Câmara, James Bulder, que durante uma hora voltou a ser o general Sinionev, estudou o processo pessoal de Gavril Savelivitch Gordeiev, que há um ano estava à frente do ginásio de boxe de Frazertown com o nome de Fulton, na medida em que Moscovo pensava introduzi-lo na devida altura num dos muitos ginásios americanos. Ali, Fulton teria a oportunidade de contactar com altas personalidades, na medida em que a actividade do boxe era na maioria dos casos controlada e dominada pela Mafia. Juntamente com a prostituição e os jogos de azar ilegais, os locais desportivos constituíam um dos bastiões favoritos da Casa Nostra. Não havia praticamente um combate de profissionais em que os «homens de bem» não estivessem entalados pela organização. As considerações de Moscovo eram, por conseguinte, inteiramente lógicas. Quem tivesse posto pé nos EUA como instrutor de boxe entrava igualmente em contacto com homens poderosos que abriam as portas para os segredos. Havia dois tipos certos de «abridores de portas»: as mulheres e a Mafia. A KGB manejava ambos.
Sinionev ordenou, por conseguinte, uma autópsia, a fim de que a morte de Fulton pudesse ficar incontestavelmente esclarecida. Em nenhum dos cursos especiais que frequentou constavam quaisquer actas de casos de ataque de coração ou baixa de tensão. Até essa altura, Gordeiev tinha sido extremamente saudável, aliás um pressuposto para se entrar em Frazertown.
Só que ninguém está livre de surpresas a nível de saúde. As doenças podem atacar quem quer que seja, surgir repentinamente sem que o máximo dos cuidados e precauções as possa evitar. Se Fulton-Gordeiev tivesse realmente sofrido um ataque de coração por ter saltado para a água fria do rio com o corpo quente de mais, tudo parecia explicável embora altamente estranho. A verdade é que, nestes últimos dias de Verão, a água do Bug estava a vinte e três graus, o que definitivamente não se pode considerar frio. O calor de semanas aquecera permanentemente a água. O ataque de coração de Gordeiev tinha, portanto, de se dever a qualquer razão orgânica.
A autópsia foi realizada pelo Dr. William Ford, o capitão-médico Afanasi Petrovitch Danov. Cortou o pobre Fulton desde o externo ao púbis a todo o comprimento e esvaziou-o totalmente. Dispôs seguidamente o interior em duas tinas de zinco e deu início à investigação patológica. De uma coisa não havia praticamente dúvidas: Fulton morrera afogado! Nos pulmões havia água e o afogamento é como se sabe uma morte por sufocação.
- Acabámos, camarada general - anunciou o Dr. Dronov.
Sinionev, que se encontrava a uns três metros da mesa de autópsia, encostado à parede de mosaicos, fez um aceno afirmativo. Invadia-o uma leve sensação de náusea quase sufocante. Durante a guerra tinha visto bastantes mortos e também as feridas mais horríveis, provocadas por estilhaços de granadas, e não há herói da guerra que pareça belo ou sublime, como ainda hoje se cita nos poemas épicos e nos discursos patrióticos. Contudo, é muito diferente estar sentado a ver cortar um amigo, de cima a baixo, numa mesa, e a tirarem-lhe as entranhas. «Um espectáculo nada estético», poderá dizer-se. E também se torna difícil uma habituação ao cheiro: um afogado incha devido a gases interiores e quando se lhe abre a barriga saem barulhos. Um médico tem mesmo de ter nervos de aço. camarada. O general Sinionev fitou o Dr. Dronov com uma certa palidez e desviou rapidamente o olhar quando Afanasi Petrovich começou a proceder à classificação dos pulmões, a preparar o sistema dos vasos e a descoser o coração do pobre Gordeiev. «Se Dronov mexer nos intestinos», resolveu Sinionev de si para si, «saio da sala.»
Ninguém lhe podia levar a mal.
- Afogou-se, portanto? - inquiriu Sinionev interessado.
- Sem sombra de dúvida! Deve ter-se apercebido, porque ainda se agarrou com força aos apoios do motor e magoou-se nas têmporas, segundo parece numa tentativa desesperada de se içar. No osso temporal direito há um ligeiro avermelhamento. Sem importância.
- Pobre Gavril Savelivitch! - lamentou Sinionev num tom quase inaudível.
- Pode dizer-se mesmo isso. Tinha o coração são como um pêro. Os vasos estavam perfeitamente irrigados. Nenhuns depósitos nos grandes vasos e também nenhum motivo para uma baixa de tensão. Estou ansioso por ver o que o cérebro tem para nos oferecer...
- Vai tirar-lhe o cérebro cá para fora? - interrompeu-o Sinionev, olhando de soslaio para o Dr. Dronov.
- Tenho de o fazer no caso de autópsia.
- E como?
- Escalpelo o crânio. Faço uma bela cobertura artificial...
- Você é um sádico, Afanasi Petrovitch.
Sinionev sentia-se tão nauseado que se levantou de um salto, dirigindo-se à porta. Dronov seguiu-o com um esgar. Os generaizinhos não têm medo diante de um exército, mas perdem as forças diante de um corpo dissecado. Um mundo de loucos.
- Dê-me a informação por escrito e o mais detalhada possível - disse ainda Sinionev junto da porta. - Quando a poderei ter?
- Amanhã de manhã cedo, senhor burgomestre. Sinionev fez um aceno de cabeça, olhou mais uma vez de relance para o cadáver escortanhado de Gordeiev e sentiu uma necessidade premente de ar fresco, sol, céu azul e flores aromáticas. Abandonou a sala de autópsias quase a fugir. O Dr. Dronov remexeu os instrumentos e voltou tudo de uma ponta à outra em busca das coisas necessárias para uma autópsia ao crânio. Já não precisava de se preocupar, neste caso, com a esterilização dos instrumentos.
Por seu lado, a polícia não perdeu tempo. O indivíduo que alugava os barcos teve de fornecer os nomes de todas as pessoas que nesse dia tinham alugado um barco a motor, e três polícias logo iniciaram um aceso interrogatório aos bons cidadãos de Frazertown. Bob Miller estava, como é óbvio, incluído, só que possuía o melhor álibi de todos os condutores de barcos do Silver River.
- Na altura em que Fulton se deve ter afogado, estava há muito no restaurante do Billy - declarou educadamente, o que causa sempre uma boa impressão nos polícias. Um polícia é alguém muito sensível... todo aquele a que ainda chamam buldogue fica no íntimo profundamente agradecido se se mostrar um pouco de receio nos lábios e na expressão ante a difícil missão de um defensor da ordem. Bob Miller foi uma verdadeira parada. Conquistou o coração dos polícias com um charme indiscutível.
- Pergunte a Norma Taylor - declarou solícito, o que não era natural, na medida em que muitos dos interrogados se sentiram profundamente ofendidos por os submeterem àquele tipo de prova. Como se se pudesse ser responsável pelo afogamento de Fulton! - Além disso, o paraíso de hamburgers de Billy estava bastante cheio. Devia haver mais ou menos uns quarenta clientes. Todos podem testemunhar que regressei tão cedo do Silver River que era impossível...
A polícia pegou na palavra. Quem está sentado ao balcão de Norma não pode ter observado os acontecimentos no rio. E antes?
- Antes estive só e queria pescar. - Bob Miller fez algo que nunca se faz diante da polícia e que qualquer levaria a mal: interrogou a polícia. Os interrogados apenas têm de responder, o que constitui a margem natural de distanciamento da lei. - Quando é que Fulton alugou o barco? Deve saber-se a hora. Está registada no diário de aluguer.
Os polícias consultaram os documentos. Não levaram a mal a pergunta de Bob, uma prova da consideração que lhe estavam a dar.
- Do registo consta dez horas e trinta minutos informou o tenente polícia erguendo os olhos do papel. - E então?
- Nesse caso, devo-me ter cruzado com Fulton na margem, sem suspeitar de nada, pois eram dez e quarenta e três quando entrei no restaurante do Billy...
- Está assim tão certo da hora, mister Miller?
- Claro que sim. Consultei o relógio e disse com os meus botões: «Que horas são? Agora começa a parte mais bonita do domingo. Posso olhar para as mamas de Norma.» Não é motivo para se verem as horas?
Os polícias riram e despediram-se de Bob Miller como se de um bom amigo se tratasse. Bob saiu do Comissariado com um peso a menos no peito. Lá fora, respirou fundo uma série de vezes para deixar sair a tensão interior. Tinha feito bluff e ganho mais uma vez. Partira do princípio que o homem que alugava os barcos - como bom russo que era - não seria muito perfeito nos registos, não por desleixo, mas porque tinha de pagar semanalmente por cada lucro obtido. O que se ganhava em Frazertown era dinheiro do Estado. Eram tentos tomados a sério, que faziam parte do dia-a-dia e - sempre que se acumulavam - tinham de ser entregues. Apesar disso, havia sempre alguns camaradas que punham os bons dólares de parte, embora soubessem que, no final, tudo teria de ser devolvido... estava no entanto em causa o atractivo da proibição, o prazer oculto em todos os seres humanos de ganhar dinheiro e possuí-lo. Por que motivo o indivíduo que alugava os barcos, aliás um capitão de Sverdlovsk e, como siberiano, particularmente amante de dinheiro, iria constituir uma excepção?
O cálculo de Bob saiu certo. Quando, depois do acidente, lhe pediram os registos, o indivíduo que alugava os barcos tinha acrescentado a toda a pressa os barcos «esquecidos» e apontado horas a seu bel-prazer. Assim, era possível que oficialmente Fulton tivesse alugado um barco a uma hora a que já estava afogado há muito, agarrado aos apoios do motor.
Era óbvio que os inquéritos da polícia conduziam ao nada. Coisa alguma se apurou. Apenas dois camaradas se sentiram pouco à vontade, porque tiveram de confessar nada haver visto de Fulton, do barco nem tão-pouco do que acontecera no rio. Estavam deitados no fundo dos barcos, entregando-se a um fatigante desporto, dominical com as suas companheiras, particularmente atractivas. Contudo, quem é a pessoa que conta tal coisa voluntariamente e, além do mais, para um interrogatório oficial da polícia?
Na manhã seguinte, o Dr. Dronov apresentou o relatório da autópsia.
A massa cerebral de Fulton-Gordeiev também não apresentava as mínimas alterações, tão-pouco uma pequena apoplexia, ou a menor prova de um derrame primário interno. Também não havia traumatismos cranianos. O afogamento de Fulton mantinha-se envolto em mistério; devia ter sido uma morte repentina, por choque. Só era estranho que não houvesse bases para que se fundamentasse esta possibilidade.
«Podia enviar-se Gordeiev para Moscovo, e aí submetê-lo a pormenorizados exames serológicos e cérebro-patológicos», sugeria o Dr. Dronov no final do relatório. «As possibilidades de uma sectio legalis encontram-se aqui naturalmente limitadas a um diagnóstico vulgar e objectivo.»
- Um pouco menos de latim seria preferível - resmungou Sinionev. Examinou as fotografias do corpo e do cérebro autopsiados de Fulton, que Dronov tirara e tinham sido reveladas e aumentadas durante a noite, e escreveu no canto do dossier: «Arquivado». Tal significava que o camarada Gavril Salelivitch podia ser enterrado.
Do armazém da Câmara Municipal enviou-se um caixão para o hospital. De facto, em Frazertown, uma agência funerária era coisa que não existia. Fugira-se à perfeição da imitação de um dos ramos melhor equipados dos EUA. Era lamentável, na medida em que tudo o que uma agência funerária pode organizar relativamente à vida extraterrena de um morto encontra-se profundamente enraizado na consciência cultural da pessoa e proporciona aos que ficam um sentimento orgulhoso, o de terem oferecido aos entes «mais queridos» uma despedida de cortar o coração. Desde o caixão de mogno polido com almofadas de brocado (mediante desejo, também sedas antigas), perfumador inserido e accionado por pilhas com a duração de seis semanas (aromas de livre escolha, desde lavanda a violeta) até ao séquito fúnebre agitando leques (de dez pessoas até um número ilimitado de participantes, havendo já bastantes desempregados que levam dois dólares por enterro), que para encanto dos que ficavam - quase se assemelhava à marcha triunfal da Aitia, nada havia que uma agência funerária americana não conseguisse tornar realidade. Tratava-se de um ramo profissional muito respeitável.
Frazertown teve de abdicar desse ponto, mas era coisa que se aprendia nas lições dos cursos e, com grande deleite dos Russos, mostravam-se filmes a cores de enterros americanos. De facto, havia em Frazertown um cemitério com os comovedores e sepulcrais monumentos correspondentes à veneração americana pelos mortos, mas - e era um aspecto típico desta cidade - não havia qualquer morto por baixo dos monumentos de uma mármore, de uma pomposidade circunstancial. Quem morria em Frazertown - acontecimento extremamente raro - era transferido após o óbito ter sido confirmado pelo presidente da Câmara. Uma agência funerária não fazia assim, sentido. O caixão, de madeira simples, era carregado num camião militar após o terem levado até à terceira, a mais interior das barreiras, pois ali acabava-se Frazertown e começava novamente a Rússia. Na maioria dos casos, os melhores amigos constituíam o séquito até à brigada de vigia, com grande gozo dos soldados, na medida em que, para eles, que nunca entravam na cidade secreta, a roupa americana dos camaradas destacados para o acto era um tipo de vestuário que, no ambiente russo, se tornava bastante ridículo. Infelizmente, era um prazer de que raramente desfrutavam. Nos últimos doze anos apenas seis pessoas tinham morrido em Frazertown! Todas vítimas do acaso. Gordeiev era a sétima. Não foi considerado o facto como obra do acaso.
O funeral de Gavril Svellivitch não foi, de resto, acompanhado, pois nesse caso Frazertown em peso o teria feito Um dos camaradas de quem todos gostavam. Apenas o burgomestre Bulder, o tenente-comissário da polícia e o Dr. Dronov acompanharam o caixão, que haviam colocado debaixo da coberta do camião. A certidão de óbito e a documentação da autópsia seguiam com o morto.
Bob Miller e John Barryl estavam à janela do restaurante de hamburgers Billy’s no momento em que carregavam o caixão e o camião militar se afastou. Norma não quis assistir à trasladação de Fulton. Polia as torneiras cromadas, tendo no rosto uma expressão sombria.
- Para onde o levam agora? - perguntou Bob, falando num tom de voz baixo e triste. Barryl passou a mão pelos olhos. Também ele gostava de Fulton. Tinha sido um extraordinário instrutor de boxe.
- Por acaso, sei - respondeu. - Estava junto do Bulder por causa das estúpidas investigações, calcula! Em Vinniza devem andar todos malucos... quatro camiões de antenas radiogoniométricas andam por toda a cidade, todas as ruas estão vigiadas e a milícia está a revistar as mulheres, até por baixo das saias. Um histerismo nunca visto! No sábado, chegaram até a mandar despejar os cestos de compras.
Bob Miller observava, desinteressadamente, através da janela. O falecido Fulton parecia interessar-lhe mais.
- E para onde vai?
- Para Odessa. Para o cemitério dos heróis. Será enterrado junto dos camaradas que caíram a combater pela pátria.
- Invejo-o - retorquiu Miller calmamente. - Gavril Savelivitch merece-o. Não se pode esquecer que morreu no cumprimento do dever...
- És um amigo fantástico - exclamou John Barryl numa efusão de afecto, abraçando Bob e beijando-o nas faces. Se tivéssemos mais homens na Rússia como tu...
Bob Miller voltou-se e sentou-se de costas para a janela. O camião com o cadáver de Fulton avançou pela estrada que levava à terceira barreira. «Não sejas santo, Bob», dizia de si para si. «Não te deixes levar por escrúpulos. Cerra os dentes, jovem. Ele está a abraçar-te e a beijar-te e telegrafaste o seu nome à CIA, mataste-lhe um amigo, estás aqui para causares danos irreparáveis ao seu país... e ainda por cima também lhe roubaste secretamente a rapariga que ama. Segundo os conceitos éticos normais és um porco, Bob Miller! Contudo, não estás aqui para reflectires sobre a ética. A tua profissão consiste em seres um homem sem consciência. E a tua pátria venera-te por isso. Se sentes vergonha, vai para casa, Bob Miller, põe-te diante do espelho e parte a cara a ti próprio. É uma libertação momentânea, mas apenas momentânea...»
- O que fazes hoje à hora do almoço? - perguntou John Barryl.
Bob Miller recostou-se e colocou as pernas em cima da cadeira que tinha em frente. «O que faço?», perguntou igualmente a si próprio. «Às dezasseis horas há uma conferência sobre as bases americanas dos barcos U. Uma coisa interessante! Qual o comportamento dos Russos a respeito dos nossos abrigos marítimos para os barcos atómicos? Possuem uma lista completa? Trata-se de uma informação que pertence ao âmbito das mais ”quentes”. Mas antes disso?»
- Acabaste a colheita? - perguntou. John Barryl respondeu com um aceno de cabeça afirmativo.
- Mais duas horas hoje, e amanhã a máquina será limpa e entregue à Cooperativa de Máquinas Agrícolas.
- Vou ajudar-te, John.
Bob Miller acendeu um cigarro e olhou para Norma. Ia vê-lo todas as noites. Tinha-lhe dado uma chave da casinha de madeira e quando ele chegava por volta das três da manhã, cansado do serviço no bar de Hillmoore, encontrava a sua maravilhosa nudez na cama. Tomava em seguida um duche frio, eliminava todo o cansaço dos nervos e acordava ternamente Norma ao entrar na cama. Uma hora de um amor vulcânico privava-os de toda a razão, depois do que dormiam até ser manhã, ao lado um do outro, semideitados um em cima do outro ou com um bizarro entrelaçar de membros. Quem despertava primeiro acordava o outro com beijos e ocupava-se dos preparativos na cozinha. Era uma vida cheia de felicidade, sem pensamentos de futuro, o fascínio do entendimento físico, que dissimulava qualquer conhecimento do final terrível e iminente.
Norma saía da casa de Bob e voltava novamente ao trabalho, no restaurante de Billy. Era praticamente um milagre que John Barryl ainda não se tivesse apercebido de nada. Até mesmo quando ia dançar com Norma, o que era impossível para Bob, na medida em que a essa hora já se encontrava a preparar cocktails no bar de Hillmoore, conseguia escapar-se até à casa de Miller. John acompanhava-a sempre cavalheirescamente, beijava-a à despedida, o que lhe permitia há uma semana e o tornava imensamente feliz, depois do que Norma esperava um quarto de hora, até ter a certeza de que Barryl ia a caminho de casa, e voltava a escapar-se do seu apartamento para, dez minutos depois, se meter na cama de Bob.
Muitas vezes, Barryl ainda passava novamente pelo bar e dizia a Bob:
- Ela ama-me, Bob! Sinto-o em cada partícula do seu corpo. Se tivesses visto como me beijou ao despedir-se... Oh! É uma coisa que não te passa pela cabeça. Não há outra mulher que consiga beijar assim! Tem uns lábios que queimam. Um romance como este nunca viveste!
- Felizardo! - respondia Bob, atirando seguidamente o shaker quase até ao tecto. - Parabéns.
- Sou realmente um felizardo, Bob.
- E quando é que, finalmente, vais com ela para a cama? Tens de te aventurar, John. Se ela te abriu a porta, entra. Impõe-se!
- Norma ficaria assustada. O nosso amor cresce como uma planta, Bob. Como uma árvore que nenhuma tempestade será já capaz de arrancar pela raiz. O nosso amor é, de facto, grandioso...
Às três da manhã, Bob dizia depois a Norma:
- Não te sentes um pouco atraída pelo John? Se o rapaz já fica colado aos teus lábios ardentes...
- Ciumento, Vassienka?
Oferecia-lhe os seios e desfrutava, de olhos fechados.e lábios trémulos, o jogo de mãos a que ele se entregava com os bicos do peito. Seguidamente, abria as pernas e na maioria das vezes metia-lhe as mãos nos cabelos e puxava-o a si com uma brutalidade de tirar a respiração.
- Pões-me louca... - arquejava, mordendo-lhe como sempre o ombro e não mais o largando com os dentes. Urso! Meu urso louco! Meu urso louco e potente! Fazes-me perder a cabeça...
Quem ia falar de John numa altura dessas?
- Vamos! - disse Bob, acordando para a realidade e tirando as pernas de cima da cadeira. - Às dezasseis horas há a conferência sobre as bases americanas dos barcos U. Vais assistir. John?
- Tenho de limpar a ceifeira-debulhadora, Bob. Conta-me depois o que ouvires.
- De acordo.
Dirigiram-se depois até junto de Norma e beijaram-lhe as faces. John a direita, Bob a esquerda. Amigos.
E abandonaram de braço dado o restaurante de hamburgers de Billy Rampler.
Ao longo de duas semanas, Bob Miller lutou contra o impulso interior de colocar uma vez mais o botão do emissor na recepção, a fim de escutar o que acontecera lá fora, no mundo. Sabia que Deviatov tinha comunicado o seu radiograma ao general Orwell e que, na central da CIA, apenas havia uma explicação: o major Miller deve ter enlouquecido.
Orwell, no entanto, era mais esperto. Ao receber a resposta de Miller, não se irritou, tão-pouco apresentou a proposta de julgar o major Miller à revelia, num tribunal militar, e protelar o debate até o ter novamente à mão... informou a Central de que, de momento, Bob não tinha qualquer hipótese de sair de Frazertown tão claramente como havia entrado. Orwell guardou o radiograma nos seus aposentos privados, fechando-o no cofre-forte.
«Se ao menos ele não caísse sempre com timbales e trombetas nos braços das mulheres», dizia Orwell de si para si, Nesta situação fazia-lhe bem pensar em voz alta; não podia meter mais ninguém no assunto. «Tem de haver certamente uma mulher metida nisto! Uma russa com uma suave pele asiática...»
Era espantoso como o bom «Papá Orwell» assim lhe chamavam, conhecia tão bem o seu «filho» Bob Miller. Restava sempre a esperança de que Bob se escapasse em devido tempo dos ternos braços e recuperasse a sensatez. Não seria de forma alguma a primeira vez. Não havia nenhuma mulher a que Bob se prendesse por mais tempo do que quatro semanas.
E foi esse o maior erro de Orwell. Se tivesse conhecido Dunia Andreievna, tomaria conhecimento do perigo em que se encontrava o melhor dos seus homens. O perigo de pertencer eternamente a esta mulher maravilhosa.
Relativamente a Deviatov, o silêncio de Miller constituiu a melhor das protecções. Os especialistas de Kiev continuavam sentados, de cabeça pendente, sujeitando-se a invectivas de falhados, cabeças-de-atum, burros e outro fraseado bem pouco agradável, e era sobretudo o major da KGB de Odessa que a todos excedia em expressões apenas ouvidas no mercado de peixe. Só que isso em nada ajudava. Apenas de vez em quando ecoava no éter, no momento em que Deviatov enviava o seu «INFORMAR! INFORMAR!», depois do que se calava imediatamente. Sempre que tal acontecia, o capitão Slobin soltava um suspiro digno de compaixão, fitava os colegas da KGB com um olhar cansado e triste e fazia um aceno de cabeça afirmativo.
- Sei-o finalmente! Emissão curta de mais! - explodiu o homem de Odessa, que estava a fumar dois maços de Papyrossi por dia sem atender ao cancro do pulmão. – Ele está aqui! Aqui! Aqui! Sentado diante dos nossos narizes!
Em Vinniza. Só de pensar nisso, é como se me dinamitassem!
O maior desejo de Slobin era o de que o homem da KGB fosse realmente pelos ares. Há mais de duas semanas que se dera a mais longa e a última emissão do adversário invisível, mas também tudo se precipitou de tal maneira que dois camiões detectores quase chocaram ao partirem velozmente em sentidos diferentes. Deviate v estava a carregar leiteiras na sua carroça, a fim de as ordenhar na planície, quando os dois camiões surgiram ribombando no enorme pátio...
Na medida em que Deviatov granjeava a fama de um bom amigo e camarada diligente, dirigiram-lhe um breve aceno de cumprimento e ficaram sem saber o que fazer. Seria possível que numa cooperativa agrícola trabalhasse um emissor inimigo?
- O impossível não existe! - rugiu o oficial da KGB de Odessa, quando os camiões radiogoniométricos lhe puseram a questão. - A caminho, Slobin... Imediatamente para a cooperativa! Vamos revolver tudo de uma ponta à outra! Um rasgo de esperança, finalmente! Dê o alarme na sua companhia... assumo a responsabilidade em nome de Moscovo. Em nome de Moscovo era uma afirmação convincente. O capitão Slobin recorreu aos grandes meios. Trinta minutos depois, dez camiões cheios de militares pararam na cooperativa agrícola, os soldados desceram, irromperam pelo edifício, arrombando as portas, naturalmente fechadas durante a noite. Deu-se início à grande razia.
Nessa altura, há muito que Deviatov se encontrava novamente na terra. Colocara o emissor debaixo da carroça, apto a receber, e esperava notícias de Bob Miller. Miller, porém, reduzia-se ao silêncio. Quando na CIA os ânimos se começaram a exaltar, o general Orwell declarou apaziguadoramente:
- O major aceitou a missão mais difícil que alguma vez foi confiada a alguém da profissão. E foi bem sucedido! Agora é como no alpinismo. Chegou ao cimo da montanha e tem de voltar a descer pelo mesmo caminho. E isso torna-se muitas vezes mais difícil do que subir. Temos de ter paciência, meus senhores. Aprendamos a arte de esperar com os Russos. Faz-nos a todos muito bem.
Na terceira semana de silêncio aconteceu aquilo de que Bob sempre tivera medo, um medo verdadeiro, de animal.
Após uma noite com a violência costumada, Norma voltara às suas torneiras do leite no restaurante de Billy. Bob tinha arrumado a casa, feito a cama, metido a louça na máquina de lavar e arejado o quarto, que parecia absorver o perfume de Norma como uma esponja. O aroma do seu corpo era tão intenso que tinha de o fazer desaparecer, na medida em que John Barryl não poderia deixar de o notar. Na maioria das vezes chegava por volta das dez da manhã, quando tinha o turno da tarde, ou cerca das três da tarde, quando guarnecia os hamburgers de manhã, com mãos de artista.
Naquele dia, John tinha o turno da tarde. Bob Miller fez um café forte, preparou a frigideira, os ovos e o bacon, ficando à espera do amigo. Contudo, chegaram as onze horas sem que Barryl aparecesse ou telefonasse a explicar porque não podia ir. Ao meio-dia e meia, Bob, que já estava muito preocupado, enfiou o boné e saiu ao encontro de John. A casa ficava somente umas esquinas mais adiante, apenas separada pelo estádio de natação.
Mal entrou nas tranquilas ruas com os seus limpos bungalows e belos jardins à frente, Bob teve a típica sensação de perigo. Em seguida, avistou diante do bungalow de John o camião de uma firma de mudanças. Três homens estavam a colocar tudo o que Barryl «tinha comprado a prestações» no meio da rua, para depois irem arrumando no camião de transportes. O divã, a poltrona, a carpete, a mesa, a televisão. Até mesmo o capacete de futebol de John, as pesadas luvas e as camisolas de malha estavam em cima de uma mesa trazida cá para fora.
Bob sentiu que os cabelos se lhe punham em pé. «A colheita», pensou. «A típica colheita por todos nós receada. O destacamento para infiltração. Deixou de existir um tal major Andrei Nikolaivitch Pleniakov, major do Exército Vermelho... passou a circular por aí desde a noite, e, por conseguinte, há horas, o perfeito americano John Barryl, que tinha como missão infiltrar-se nos segredos da América.»
O grau de alarme atingiu-se. O homem mais inteligente e mais perigoso de Moscovo ia a caminho.
«O meu amigo John!», pensou Bob Miller amargamente. «Como pessoa, realmente um bom amigo, mas que significado tem ainda ser pessoa? A máquina da destruição começou a funcionar... os mundos políticos rivais não conhecem fuga para os recônditos da alma.»
Acelerou o passo e, sem prestar atenção aos carregadores, que o fitavam de olhos arregalados, entrou na casa de John. O gerente da casa de móveis estava no meio da sala vazia. Bob também fora seu cliente e dirigiu-se ao encontro dele.
- Ainda ontem estava aqui - disse Bob excitadíssimo.
- Sim. É tudo tão rápido como isso - comentou o negociante de móveis, na realidade tenente-coronel da Brigada de Foguetões soviética, apontando com o polegar na direcção da parede. - O que estou a fazer não é, de facto, permitido, mas sei como vocês dois eram amigos. Está ali pendurada qualquer coisa.
Bob Miller arrancou o pedaço de papel que John colocara num prego da parede. O último indício antes da imensa escuridão onde desaparecera.
Apenas algumas linhas rabiscadas à pressa, em russo: Adeus Vassid Grigorevitch! Chegou a hora. Não tenho tempo para me despedir, nem de Norma. Vai ter com ela e consola-a. Diz-lhe que a amo. E se voltar irei descobri-la onde estiver também. Estou contente com o destacamento, embora também me sinta triste por vos ter de abandonar. Beijo-te, meu querido amigo. Talvez, quem sabe, nos encontremos na América? Dá um beijo à Norma por mim... agora permito-te. Teu Andrei Nikolaivitch. Duas horas da manhã. Bob Miller meteu o papel no bolso das calças e fitou o negociante de móveis.
- É o que vai acontecer a todos - observou.
- Por esse motivo estamos aqui - retorquiu o negociante de móveis com um gesto largo. - Só que todo este maldito cenário! Vir buscar móveis. Amanhã vem um novo inquilino... trazer móveis. De cá para lá... há meio ano que ando nisto. Não é uma estupidez?
- Tudo se deve passar como na realidade - observou Bob. - É isso o importante. Concretizar a perfeição da vida americana. Não somos portanto ninguém, camarada.
- Ninguém. Realmente ninguém, camarada - acedeu o negociante de móveis numa explosão de patriotismo. Agora, haverá lágrimas no rosto de Norma.
- Encarrego-me do assunto. Vou imediatamente ter com ela.
- Prepare-a. Diga-lhe a pouco e pouco.
- Será uma coisa difícil, camarada...
Bob Miller efectuou o percurso até ao rio de autocarro. Quando este parou, Bob desceu. Ao olhar de longe o hamburger gigantesco de Rampler no telhado, sentiu um aperto no coração.
Viu como Norma o olhou surpreendida quando entrou no local. Não era uma hora habitual. Billy estava na cozinha e fez-lhe um aceno com uma longa faca de que se servia para cortar pepinos.
- Encosta-te à parede, -Dunia... - disse Bob, dando a volta por detrás do balcão. - Ou então senta-te. Vais sentir as pernas fracas...
Fitou-o e os olhos pretos eram dois poços de uma fundura imensa, como sempre acontecia quando deslizava para baixo dele. Apoiou-se obedientemente à parede e estendeu a mão.
- O que se passa, Vassienka?
Bob tirou do bolso o bocado de papel e entregou-o a Norma. Leu-o, deixou pender os braços e ficou momentaneamente silenciosa. Apenas os olhos falavam... perdidos em horizontes longínquos.
- E agora? - acabou por perguntar a Bob, que tinha evitado ser o primeiro a falar.
- Agora estamos sós, Dunia.
- E quando... quando desapareceres às duas horas da manhã?...
- É uma coisa que presenciarás, porque a essa hora estarás ao meu lado...
- Gritarei, gritarei sem parar!
- Não é ajuda nenhuma, e sabe-lo bem. Não estamos aqui como pensionistas. Cada um de nós sabe o que tem a esperar.
- Agarro-me a ti. Terão de me levar contigo. Não nos podem separar, Vassia! Nunca! Nunca! Como iria viver sem ti?
- Ainda estou aqai.
- Ainda! Ainda. Mas por quanto tempo? Por quanto tempo? O John sabia quando teria de partir?
Rampler apareceu, vindo da cozinha. Escutara a última frase.
- O que aconteceu ao John? - inquiriu com voz rouca. - Pressentiu. Bastou-lhe olhar para Dunia.
Esta deu-lhe o papel de Barryl, que ele leu, pousando-o seguidamente em cima do balcão. Encheu um jarro de leite, para não trair emoções. - Devíamos fechar o olho do cu!
- comentou rispidamente. - Com mil raios! Aqui, esquecemos inteiramente que trabalhamos para a Rússia. Pensemos no John com estima. Agora cabe-lhe a honra de servir a pátria. Mas mil raios mais uma vez! Ninguém sabia fazer tão bons hamburgers como ele. A freguesia irá afastar-se!
Não havia mais nada a dizer sobre o assunto. Andrei Nikolaivitch Pleniakov, de nome John Barryl, iria transformar-se num herói da União Soviética.
Nessa tarde, Bob foi ter com Hillmoore e explicou-lhe que estava com dores de estômago. Talvez isso se devesse a, num ataque de fraqueza, ter bebido água mineral em vez de whisky.
IHlmoore riu gostosamente e respondeu:
- Vai-te deitar, Bob, e leva uma bela botija para te aquecer na cama. É o melhor remédio para todas as dores.
Podemos passar sem ti por uma noite. As melhoras.
À hora de emissão combinada com o seu contacto russo, Bob elevou a antena do transistor, construído especialmente para ele na América. Rodou o botão de ondas médias... procedendo assim à ligação do emissor. Carregando nas «ondas longas» encontrava-se pronto a receber. A cabeça do botão para centrar era extraordinariamente saída e sensível. Caso se utilizasse como tecla podiam-se enviar sinais de morse. Um descodificador colocado no interior do rádio reduzia os sinais a guinchos.
O combinado «INFORMAR! INFORMAR! INFORMAR!» surgiu no éter. No entanto, desta vez foi Deviatov que não respondeu. Tinha decidido fazer uma pausa de uma semana, a fim de desorientar os camiões radiogoniométricos de Kiev e apagar os vestígios que, encarniçadamente, tinham recolhido. A revista à Cooperativa de Máquinas Agrícolas a nada conduzira, evidentemente, à excepção de uma acesa guerra de papéis entre a administração da cooperativa, o governo militar e a KGB de Odessa. Os funcionários do Partido estavam agora ocupados a acalmar os ânimos dos lados exaltados, e para tal serviam-se de um fraseado bem sonante. O capitão Slobin parecia esgotado, pálido e vencido, o oficial da KGB de Odessa sofria de uma tensão demasiado elevada e os especialistas na decifração de comunicações sentavam-se inactivos, perscrutavam o éter e, nos intervalos, jogavam xadrez.
Finalmente, por volta da uma da noite, Bob Miller conseguiu estabelecer contacto com Deviatov. Também Avdev Konstantinovitch tinha, sem pretensão de enviar qualquer mensagem, colocado o aparelho no comprimento de onda crítico e escutou, surpreendido, na sua estereofonia o combinado «INFORMAR! INFORMAR!»
- Já não se pode confiar em nada - resmungou entre dentes. - Julguei que se ia manter no silêncio.
Colocou o botão no emissor e respondeu com um curto «ESCUTO.»
Bob Miller respirou de alívio. Já tinha preparado o radiograma segundo o livro de código O Velho e o Mar e apressou-se a enviar, de imediato, provavelmente a informação mais importante que a CIA tinha recebido nos últimos anos: JOHN BARRYL EM ACÇÃO NOS EUA DESDE ONTEM DUAS MANHÃ. MISSÃO ENTENDIDA. CONTACTO NOVAMENTE DE IRKUTSK OU IAKUTSK. TODAS AS BASES DOS BARCOS U AMERICANAS CONHECIDAS PELO INIMIGO. FIM.
Tratava-se de Uma informação que fez empalidecer o próprio Deviatov. Deixou de se ocupar da recepção e dirigiu-se até junto da janela. Lá em baixo, na Ulinskaia, um camião radiogoniométrico passou a toda a velocidade e desapareceu na esquina seguinte. Deviatov soltou um suspiro que lhe saiu bem do fundo e congratulou-se por naquele momento não se encontrar em ligação. Em contrapartida, o capitão Slobin ficou pálido de cera quando um dos especialistas radiogoniométricos lhe comunicou que desta vez as informações não podiam ter sido transmitidas de Vinniza. Algures, nas redondezas, encontrava-se o emissor, mas, como sempre, o tempo utilizado não chegara para se descobrir o local exacto.
- Mas o tipo de Vinniza tem de responder - gritou o homem da KGB de Odessa. - Paciência. Paciência. Apanhamo-lo. Há sempre uma vez que tem de se atraiçoar. A experiência demonstrou que toda a gente comete imprudências, uma vez que seja. Não desistam, camaradas!
Bob Miller esperava a resposta de Deviatov. Mantinha-se sentado diante do seu aparelho transistor com os pequenos auscultadores nos ouvidos e enviava, com intervalos de dez minutos, o pedido «CONFIRMAR!» Ao verificar que Deviatov continuava silencioso, desligou o emissor e pôs-se a ouvir música suave. «Andam a persegui-lo em Vinniza», pensou. «No entanto, o Deviatov é um tipo esperto. Se transmitir a minha informação a Orwell por partes, nunca o apanharão. Sempre apenas cinco segundos e depois a pausa de uma hora. Os especialistas radiogoniométricos devem estar doidos.»
Apeteceu-lhe um cigarro e inclinou-se um pouco para a caixa, quando uma voz disse atrás de si:
- Vassia...
Sem se levantar, mas com movimentos rápidos, Bob Miller deu meia volta. Mantinha nos ouvidos os pequenos auscultadores ligados ao aparelho pelo delgado cabo.
Norma Taylor estava junto à porta com as mãos unidas junto ao peito. Nos olhos reflectia-se um espanto mudo.
- Dunia! - Bob Miller arrancou os auscultadores dos ouvidos e atirou-os para o lado. Era como se um punho invisível lhe tivesse acertado em cheio no coração, fazendo-o parar. - Dunia... - repetiu num fio de voz. - Há... há quanto tempo já estás aí?...
- Oh, Vassia... - balbuciava ela. - Vassia...
- Há quanto tempo? - rugiu Bob, enquanto se precipitava para ela, arrancando-a à parede a que se encostava e atraindo-a a si. - Porque entraste assim furtivamente?
- Eu... eu vi luz. Queria... queria fazer-te uma surpresa. Vassia... - interrompeu-se, fitando-o. O incompreensível, que começava a compreender, distorcia-lhe as feições. - O que fizeste? O que fizeste, Vassienka?...
- Escuta-me com calma, Dunia - pediu-lhe muito excitado. - Descontrai-te completamente. Agora temos de ser fortes, ambos temos de ser muito fortes...
- O que fizeste? - gritou-lhe subitamente, ao mesmo tempo que lhe levava as mãos ao cabelo, puxando-o. A cabeça oscilava-lhe de um lado para o outro e ele fitava-a nos olhos, que se assemelhavam a dois buracos sem fundo. - Vassia! Deixa que morramos ambos, se o que penso é verdade!
- O que viste? - inquiriu, pegando-lhe ao colo e levando-a para o divã. No entanto, ela não permitiu que a deitasse nas almofadas, agarrando-se-lhe fortemente, continuando a puxar-lhe os cabelos, quase pendurada na cabeça dele.
- Vi tudo... tudo! - gritou-lhe. - Isso não é um rádio, mas um emissor.
- Tenho de te explicar uma coisa - interrompeu-a num tom rouco. - Dissemos uma vez um ao outro, Dunia, que no mundo apenas existíamos tu e eu e que o mais não tinha importância. Tem calma, Dunia, descontrai-te... - Ela começou a tremer violentamente e ele rodeou-a com os braços, atraindo-a de encontro ao corpo. Ela bateu-lhe com a cabeça no peito como se fosse um muro que tivesse de quebrar com a testu. - Amo-te, Dunia. Não te esqueças de que te amo infinitamente...
- Quem és? - gritou-lhe com a cabeça encostada ao peito dele. - Quem és.
- O major Bob Miller... respondeu num tom apático.
- Isso sei eu. Aqui. Mas quem és realmente?
- Apenas e só Bob Miller.
Lutou com os punhos para se libertar daquele abraço e fitou-o surpreendida. A rapidez com que tinha compreendido que ele telegrafava secretamente juntava-se à incompreensão de que em Frazertown se tivesse realmente podido infiltrar um americano.
- Vassia... - balbuciou.
- O Vassia Grigorevitch Chukov existe apenas na documentação. Documentação abalizada, Dunia... -Agarrou-lhe firmemente o braço quando ela se afastou dele, e atraiu-a de novo a si.
- És... és americano? -perguntou-lhe num fio de voz. - Um americano de verdade? És o espião que todos procuram?
- Sou - concordou, largando-a e recuando dois passos. Ela não deixou de o fitar e os olhos pestanejaram quando Bob retirou, debaixo da almofada do divã, a automática Makarov de Fulton. Entregou-a a Dunia com o braço estendido. Sê uma boa comunista. Sê uma patriota. Serás condecorada por isso...
Bateu com o punho na pistola. A arma descreveu um círculo através do quarto e foi cair no chão, junto do barzinho.
- Porque não me dás tu um tiro? - gritou-lhe, pondo-se de pé. - Seria mais simples. Descobri-te. Tens ainda missões, grandes missões na tua frente, certo? Frazertown é só o começo, presumo. O major Miller, da CIA. Põe de lado tudo o que se atravessa no caminho. Estou aqui na tua frente.
Dá cabo de mim.
Arrancou a blusa do corpo e fechou os olhos. Estava a tremer tanto que só dificilmente se aguentava nas pernas.
- Sabes perfeitamente que nunca o podia fazer - retorquiu Bob Miller respirando dificilmente. Sentia o coração na garganta.. Nestes minutos decidia-se tudo e estava preparado para aceitar qualquer decisão. O fim como um novo princípio.
- Mas eu devo fazê-lo? - gritou.
- Tens todos os motivos para isso. No entanto, há ainda uma outra hipótese, Dunia.
- Apetecia-me morrer... -declarou ao mesmo tempo que voltava a cobrir os seios com a blusa. - Como posso continuar a viver. Bob?...
- Denuncias-me ao general Sinionev. - Estava agora muito calmo, tal como daquela vez no campo de trigo quando os soldados o rodeavam e pensou que tinham intenção de o prender. E, no entanto, apenas tinham ordem para o ajudar na colheita. - Será um triunfo para ti.
- E depois? O que será de mim?
- Tenho uma cápsula em meu poder. Actua rapidamente e sem dor.
- Cianeto?
- Algo melhor. Uma nova mistura.
- Oh, Bob! Bob! - Correu para ele e abraçou-o fortemente. Cambalearam ambos, foram de encontro ao barzinho e apoiaram-se no estreito balcão. Aos pés deles estava a Mukiirov de Fulton. - Dá-me a cápsula. Por favor, por favor. Dá-me a cápsula...
- Não, Dunia. Sei como tratam os vossos prisioneiros...
- Não podes morrer. Amo-te, Bob, amo-te. Canalha sem vergonha. Cão americano. Velhaco maldito. - Rompeu subitamente em lágrimas, esbofeteou-o com a palma da mão direita no rosto e seguidamente beijou-lhe a face atingida. Amo-te... Apenas nos resta morrer. Que mais podemos fazer, Bob? Mas tu sozinho, não... fico a teu lado... dá-me metade da cápsula... Suplico-te, Bob, dá-me metade...
Pegou-lhe ao colo, levou-a novamente para o divã, deitou-a e sentou-se a seu lado. Chorou ainda mais, o corpo sacudido pelos soluços, desfez-se em lágrimas e ele acariciou-lhe o cabelo, o rosto, o corpo trémulo, até que ela lhe mordeu a mão tão profunda e selvaticamente que o sangue lhe saltou imediatamente.
- Porque fizeste tudo isto, Bob? - perguntou, olhando a mão que sangrava. - Porque queres destruir o meu país?
- Porque estás em Frazertown, Dunia, à espera de que te destaquem para actuares no meu país?
- O mundo capitalista é a nossa infelicidade.
- Para nós, esse papel cabe ao bolchevista.
- E nós os dois amamo-nos...
- Com a imensidade do céu.
- Dá-me o veneno, Bob.
- Devemos deixar-nos arrastar pela loucura da política?
- Inclinou-se sobre o corpo dela, beijou-lhe os lábios salgados e colocou seguidamente a cabeça entre os seios. Adormecera muitas vezes assim, deitado na almofada branca daquele corpo. - Tenho de sair daqui, Dunia - disse. Entrego-me inteiramente nas tuas mãos. Tens de me ajudar a sair de Frazertown... o mais rapidamente possível.
- Queres ir-te embora? Deixar-me? - perguntou, agarrando-lhe a cabeça e enterrando-a de tal maneira entre os seios que lhe faltou a respiração. - Queres fugir, espião velhaco? E eu? Eu? Queres abandonar-me? Sozinha, com toda a culpabilidade e todo o amor? Canalha. Porco miserável.
Agarrou-lhe a camisa, rasgou-a nas costas e enterrou-lhe na pele os dedos transformados em garras. Semelhantes a dez pregos, as unhas despedaçaram-lhe a pele, em todos os sentidos, fazendo vergão atrás de vergão, até dar a sensação de o terem chicoteado com uma vergasta munida de pregos. Gemeu sem retirar o rosto de entre os seus seios e uniu as pernas, tal a dor. Contudo, não se defendeu.
- Quando... quando te queres ir embora? - perguntou subitamente.
Ergueu a cabeça, mas ela atingiu-o com o punho na nuca.
Voltou a deixar-se cair, semidesfalecido.
- Dunia... -gemeu.- Oh, Dunia! Agora, tudo está nas tuas mãos.
- Nunca mais te verei - disse, colocando-lhe as palmas das mãos nas costas magoadas, como se fossem uma ligadura. - Não te voltar a ver! Nunca mais. Não o suportarei, Vassienka... é uma coisa que não podes exigir de mim...
- Tudo terminará rapidamente (e nessa altura sem retorno) se se descobrir que um tal Vassia Grigorevitch Chukov nunca foi destacado para Frazertown com o nome de Bob Miller. O general Sinionev não me inscreverá em qualquer lista. Ninguém investiga, só pela extrema segurança aqui existente. Contudo, por quanto tempo se manterá a situação? Um dia as pessoas começarão a interrogar-se porque é que todos são destacados para infiltração e apenas esse Bob Miller não. E será nessa altura que irão procurar nas listas... E sabes o que acontece então, Dunia...?
- Deixa de haver salvação possível. No entanto, agora, agora podes salvar tudo... Tu só!
- E nunca mais te ver - retorquiu, estendendo-se e dando finalmente a Bob uma hipótese de se libertar dos seus seios e do alcance das suas unhas. Tinha as costas em chama. - Ainda dois ou três meses contigo... e depois morrer! Não é melhor? Nada sou sem ti, Vassia. Nada. Vivo apenas através de ti. Sugaste-me. Mataste uma pessoa. Não existe amor maior.
Ele levantou-se, despiu a camisa feita em tiras, tirou as calças e meteu-se nu debaixo do duche. Ali, deixou que a água gelada lhe corresse pelas costas retalhadas; provocava-lhe um ardor infernal, mas seguidamente a frescura reconfortante compensava. Regressou ao quarto até junto de Dunia, tão nu como viera ao mundo. Continuava deitada no divã a olhar para o tecto.
- Se me ajudares, voltamos a ver-nos - insistiu. Prometo-te.
- Como? E onde? - replicou, voltando a cabeça na sua direcção, ao mesmo tempo que com o olhar apreciava toda a sua nudez. A respiração tornou-se-lhe mais acelerada. Como podes fazer uma promessa tão louca?
- Encontrar-te-ei - disse. - O mundo tornou-se pequeno. E se puser nos principais jornais de todos os países um anúncio: «Estou aqui. Telefona-me, Dunia!», voltamos a ver-nos. Amo-te acima de tudo o que existe no mundo, só que não faz sentido que fiquemos juntos em Frazertown. O meu desaparecimento é compreensível, tal como o de John pareceu absolutamente normal... Temos um futuro, Dunia, se bem que agora tudo pareça desfeito.
- Leva-me para a cama, Bob - pediu-lhe baixinho e fechando os olhos. - E não fales mais... não digas nada...
Inclinou-se sobre ela, despiu-a, tomou-a nos braços e levou-a para o quarto. Voltou a chorar, desta vez sem um ruído, um choro interior, sem lágrimas, mas quando ele se deitou ao seu lado, agarrou-se-lhe com um grito e fez amor com ele de todas as formas e com um tal ardor que se assemelhava a um desespero mortal. Batia-lhe e beijava-o, mordia-o e acariciava-o, lançava-lhe as palavras mais vulgares em rosto, sussurrava as frases mais ternas, e mostrava-se insaciável.
De súbito, entre dois suspiros do esgotamento que se segue ao amor, disse-lhe:
- Depois de amanhã, vêm buscar o lixo. De todos os sítios, lojas e supermercado. Também o do Billy. As barricas para a comida têm uma faixa verde na tampa. São levadas para a cooperativa agrícola, para alimentação dos porcos. Claro que ninguém se lembra de as revistar.
Abraçou o corpo quente e maravilhoso que tinha em cima dele e beijou os lábios que lhe haviam ferido o corpo.
- Se numa dessas barricas se fizerem uns buracos para a respiração... - pensou em voz alta.
- Dou-te a minha máscara e dois filtros - disse-lhe. Recebemo-los para determinados exercícios. Enterraram-nos e conseguimos ficar vinte e quatro horas debaixo de terra. As barricas do lixo são bastante grandes. Se te acocorares lá dentro, ainda te posso deitar em cima uma boa camada de hortaliça.
- És um anjo, Dunia...
- Cala a boca! - ordenou-lhe num fio de voz, ao mesmo tempo que nos corpos se lhes reacendia a respiração provocada por um sentimento vulcânico. - Oh, cala a boca, Satã. Amo-te. Amo-te. Nunca me conseguirás amar como eu te amo...
Arrancou-lhe uma chama que se alimentou da última gota do seu ser.
O Serviço Municipal de Limpeza de Frazertown estava bem organizado. O lixo diário era removido com um camião moderno, que igualmente servia para triturar o lixo. O segundo destacamento era especializado, conduzia dois camiões com rampas e carregava as barricas de zinco em que se metiam os restos aproveitáveis. Mais tarde, este lixo era transportado para a cooperativa agrícola e um especialista - na Rússia há sempre especialistas de serviço - calculava quantos porcos se poderiam alimentar com esta comida adicional. Assim, Frazertown recebia mais tarde a sua carne de porco, deduzidos vinte por cento de gastos, que revertiam a favor de toda a população. A verdade é que se estava num Estado socialista.
Tal como Norma dissera, ninguém registava as barricas de tampo verde destinadas à cooperativa agrícola Brigada de Engorda de Porcos. Robustos trabalhadores de Frazertown carregavam-nas para os camiões e seguidamente processava-se o transporte, de acordo com as devidas medidas de segurança. Os trabalhadores conduziam os camiões até à terceira barreira e ali os militares encarregavam-se do transporte até à primeira barreira. Diante da elevada rede de arame farpado electrifizada com o letreiro «Novotchok» esperavam verdadeiros funcionários dos Serviços de Limpeza de Vinniza e levavam ainda uma meia hora de viagem até entregarem as barricas na cooperativa agrícola. Ali, faziam-nas rolar para um armazém, onde, na manhã seguinte, as despejavam para as grandes caldeiras da cozinha da engorda dos porcos.
Billy Rampler, que desde o súbito desaparecimento de John esperava que lhe enviassem um novo ajudante, assim que ingressassem novos «cidadãos» em Frazertown, tinha bastante que fazer com os seus hamburgers e, por conseguinte, pouco tempo para reparar em Norma, que se dividia entre o balcão do leite e as barricas colocadas no pátio. De facto, tinha sempre qualquer coisa na mão para deitar fora, mas naquela manhã estava irritada e nervosa, gritou com Billy, que lhe perguntou qualquer coisa sem importância, e abespinhou-se com um cliente que lhe pedira uma chávena de café e teve de esperar porque a máquina ainda não estava com pressão.
- Está virada do avesso - explicou Billy Rampler ao cliente ofendido, ao mesmo tempo que lhe piscava o olho. O John partiu. A Norma apaixonou-se pela primeira vez. Não se pode ligar. Sejamos compreensivos para o seu coraçãozinho ferido. Tens o café daqui a dez minutos.
Por conseguinte, ninguém se queixou quando Norma ergueu por várias vezes a tampa da barrica III, deitou qualquer coisa lá para dentro e se curvou um pouco sobre o lixo. As pessoas haviam-se admirado, pois os restos de comida não cheiravam tão bem como isso.
Bob Miller, que se acocorava na barrica desde o alvorecer, tendo em cima de si vinte centímetros de restos de comida e a máscara de respiração a tapar-lhe o rosto, não se podia mexer. No entanto, quando Norma bateu contra a barrica, respondeu-lhe com os nós dos dedos. Tudo em ordem.
Por volta das dez horas chegaram os funcionários do Serviço de Limpeza de Frazertown. Tratava-se de um trabalho indigno de um oficial do Exército Vermelho e todos a quem Bulder distribuía a tarefa protestavam de imediato e com calor. No entanto, de nada lhes servia.
- E se tivessem de amassar merda em cima de tijolos e de a deixar secar ao sol? - retorquia Bulder aos que reclamavam. - O vosso pensamento tem de ser sempre: «Sirvo a minha pátria. O transporte do lixo é uma tarefa honrosa.»
Bob encolheu a cabeça quando agarraram na sua barrica. Puseram-na aos ombros e seguidamente empurraram-na pelo chão. Nos camiões, dois homens pegaram-lhe pelas asas e ergueram-na. Oscilou um pouco, embateu contra as outras e depois ficou quieta.
Norma mantinha-se no pátio do restaurante de Billy a olhar para as barricas. Quando os taipais do camião foram erguidos e pregados, levou as mãos ao peito e soltou o grito que dele subia.
Naquele preciso momento em que o camião seguiu caminho e a barrica ligeiramente oscilante lhe desapareceu do alcance da vista soube que não voltaria a ver Bob, que não existia retorno, nem um raio de esperança relativamente ao futuro. Um capítulo da sua vida encerrara-se e afastava-se como lixo malcheiroso. Restava meramente a vida da agente soviética Norma Taylor, na KGB primeiro-tenente Dunia Andreievna Koroliov, uma máquina de precisão com um corpo humano. Em qualquer altura seria enviada para a América. Como John Barryl. Em honra da União Soviética. Para a vitória da revolução mundial.
Encostou-se à parede do pátio e seguiu com a vista o camião, que ia a caminho do supermercado, a última paragem antes de sair de Frazertown. «Não quero viver», pensou. «Oh céus! Que me interessa viver agora? Esta separação é definitiva. Não posso mais, Bob. Não posso mais! Estou destruída... e os destroços varrem-se.» Regressou com passo arrastado ao restaurante e foi de encontro ao cliente que ainda esperava pelo café diante do balcão.
- Se tiver de importar o meu café do Brasil ou da Colômbia, diga-me, Norma - propôs o cliente. - Voltarei daqui a três meses.
Deu meia volta, de olhos chispantes.
- Pode ser ainda mais rápido - gritou histérica. Abro-lhe o crânio em dois segundos.
Como é óbvio, o cliente não disse nem mais uma palavra. Tinha encomendado uma chávena de café e não um crânio rachado. Há uma grande diferença. Recuou, por conseguinte, surpreendido e fitou implorativamente Billy Rampler, que surgia vindo da cozinha, trazendo nas mãos carne picada fresca, acabada de temperar.
- O que se passa, Norma? - gritou. - Sou capaz de aguentar tudo menos mulheres histéricas. Não nos podes responsabilizar por terem ido buscar o John Barryl à cama.
- Vocês todos me enojam. Todos, todos vocês! - retorquiu Norma aos gritos. - Vou para casa. Sinto-me doente. Não digas mais nada, Billy, senão ficas sem copos no armário.
Despiu o avental e atirou-o com tanta pontaria que acertou na cabeça de Billy, e saiu a correr do restaurante. Nesse preciso momento o camião do lixo afastava-se pela estrada que conduzia à terceira barreira.
Ficou parada na praça junto à margem, esperando que o coração lhe parasse e tombasse morta. Ergueu a mão e esboçou um ligeiro aceno para o camião dos serviços de limpeza... Seguidamente agarrou-se a um candeeiro e encostou a testa ao poste de aço, sem entender porque é que o coração lhe continuava a bater, o ouvido a escutar e a língua a sentir as lágrimas que lhe corriam para a boca.
Mais tarde, deitou-se na cama do apartamento dele, sem mais lágrimas para chorar, esgotada pela dor e acariciando a seu lado a automática Makarov que tinha tirado a Bob.
Estava carregada e engatilhada...
A viagem rumo à liberdade era precisamente continuar naquela barrica de lixo malcheirosa.
Bob Miller vivia a sua viagem com crescente alegria, pois cada andamento, após uma paragem, significava ter quebrado pela segunda vez a inexpugnabilidade de Frazertown. Contou: barreira número m. Troca de motorista. Barreira II, apenas alguns gritos. Barreira i, o grande portão de ingresso. Recepção da carga pelos funcionários da limpeza de Vinniza. Gargalhadas. Nenhum controlo. O que Bob temera, apesar do desmentido de Dunia, não aconteceu. Nem abriram as tampas das barricas nem as remexerem com as pontas das baionetas. Era o que certamente teriam feito no Alasca, em Smolenska. Ali, os restos da cozinha também eram esmagados em camiões especiais logo à chegada.
A viagem até à cooperativa agrícola. As típicas estradas russas, acidentadas, sem pontes seguras. As barricas oscilavam no chão do camião, embatiam umas de encontro às outras e o motorista russo guiava como se as horas estivessem igualmente incluídas no débito.
Bob comprimia os joelhos e as costas de encontro às paredes da barrica e tentava amortecer os solavancos. Respirar pela máscara era cansativo e o saco de plástico em que metera o radiotransístor e levava entre as pernas fazia-lhe doer os testículos. A cada solavanco era como se lhe dessem um soco nas partes baixas. Contudo, era impossível empurrar o saco de plástico para mais longe.
Finalmente, a viagem terminou. As barricas foram descarregadas, roladas para o armazém e arrumadas. Em seguida qualquer coisa guinchou de uma forma horrível... «Um portão de correr com gonzos enferrujados...», pensou Bob, e um homem, aparentemente o capataz à frente do serviço da engorda, andou de barrica em barrica, batendo com um pauzinho no latão.
- Quarenta e três, camaradas - anunciou uma voz. Menos doze do que da última vez. A comida estará a diminuir? Ou será que utilizam hortaliça em tudo? Todos se esquecem de que os porquinhos também querem viver.
Bob apercebeu-se de que os passos rudes se afastavam. Voltou o pulso e consultou o mostrador luminoso do relógio. Esperou ainda meia hora. Seguidamente foi-se erguendo empurrou cuidadosamente para cima os restos de comida que tinha em cima da cabeça e levantou com a cabeça a tampa da barrica. Muito lentamente, centímetro a centímetro. Os restos de comida caíram sobre a borda da barrica e foram aterrar no chão de cimento. Finalmente, viu-se com a cabeça liberta, com a possibilidade de espreitar por cima do bordo da barrica e arrancou a máscara do rosto. A atmosfera, embora cheia do fedor do lixo, pareceu-lhe tão preciosa como o ar puro das Rocky Mountains. Olhou para todos os lados, viu-se de pé numa floresta de barricas e trepou para a liberdade. Tinha as articulações e os músculos emperrados... pôs-se de pé em cima das barricas alinhadas umas ao lado das outras, estendeu os braços e as pèmas para o alto, muito para o alto, como um besouro dando às asas antes de levantar voo.
Só quando verificou que sentia novamente os músculos, pegou no valioso embrulho de plástico na mão e percorreu as barricas, saltando no final para o chão e procurando um esconderijo. Tratava-se de um grande armazém onde se arrumavam não só barricas de lixo, mas também máquinas fora de uso e tractores enferrujados, que já não valia a pena reparar mas que apesar disso se conservavam, na medida em que numa cooperativa agrícola cada parafuso é propriedade do Estado e uma destruição - mesmo no caso de sucata - pode ser considerada como sabotagem. Tudo se encontrava na total dependência dos camaradas de Natchalnik.
Bob Miller decidiu ficar alojado até à noite no meio dos tractores arrumados mais atrás. Estava bem protegido: tábuas velhas e restos de caixotes amontoavam-se na sua frente e impediam que quem quer que fosse se intrometesse nestas paragens, a não ser em caso de impreterível necessidade. Aqui se anichou Bob, esperando pelo escuro da noite. Por algumas vezes surgiram trabalhadores da cooperativa no armazém e rolaram ou retiraram qualquer coisa, mas de resto tudo permaneceu calmo e tranquilo. Quanto ao cheiro, também havia hipótese de habituação. Bob fechou os olhos e dedicou todo o pensamento a Dunia. Como iria suportar a sua primeira noite sozinha? Ocorreu-lhe subitamente que lhe tinha deixado a Makarov, e um medo repentino invadiu-o. «Não o faças, Dunia», pensou. E se é verdade que os pensamentos podem adquirir palpabilidade a grandes distâncias, deve-os ter sentido. «Vou buscar-te, se conseguir sobreviver na Sibéria. Juro-te. É a minha última missão. Apresento o meu pedido de demissão e algures neste mundo encontraremos um lugar onde levaremos uma vida como num paraíso em miniatura. Como tudo isto me soa bem! Não sabias, Dunia, que sou um romântico? Um romântico com a profissão mais dura deste mundo. Afasta a Makarov, Dunia... apenas umas fotografias da vossa maldita e recente base de foguetões no rio Lyndia - e depois vou procurar-te. Sê uma russa que se preza... Espera, espera...»
A luz diante da janela sombria e gradeada do armazém esmoreceu lentamente, a escuridão reinou e na cooperativa agrícola fez-se ouvir a sirena. Bob escutou o arrancar de camiões, o ruído característico dos tractores, mas ninguém mais entrou no armazém. Em seguida, morreram também os últimos barulhos e a guarda recolheu aos aposentos junto do edifício. Começava uma das espantosamente quentes noites de Vinniza.
Bob Miller conteve-se até perto da meia-noite. Só depois saiu do esconderijo, abriu uma frincha da porta do armazém e espreitou para todos os lados. O pátio apresentava-se vazio e em todos os edifícios não brilhava uma luz. Deslizou até lá fora, a coberto da sombra do alpendre da granja, e correu silenciosamente, nas pontas dos pés, para lá do pátio interior da cooperativa. Algures ladrou subitamente um cão, desperto pelo instinto... mas nessa altura já Bob tinha saído da cooperativa, estava em terreno livre e esquivava-se furtivamente por entre as árvores de um pomar.
Meia hora mais tarde chegava à granja de Deviatov. Junto aos vinhedos, deteve-se respirando com dificuldade, devido à corrida ininterrupta, e em seguida desembrulhou o emissor. Se Deviatov estivesse seguro, colocaria dentro de dez minutos o aparelho na recepção.
Bob Miller verificou as horas. Obedecendo a uma precisão de segundos, rodou o botão emissor. Faltavam apenas cinco segundos. Apenas um chamamento:
«PLANO I. PLANO I.»
Em Vinniza voltaram a arrancar ao sono o capitão Slobin e o homem da KGB de Odessa. Estavam na melhor das disposições de dar cabo do pobre especialista de Kiev que os tinha acordado.
- Está novamente lá - explicou o infeliz homem. No entanto, segundo as. nossas medições, é na cooperativa agrícola.
- Então, mate-o, camarada! - comentou Slobin num tom cansado. - Já não tenho forças. Na cooperativa agrícola! Exacto. Vá-se embora, antes que o mande castrar, homem.
Tratava-se, e infelizmente Slobin desconhecia o facto, do último radiograma que se verificaria durante longo tempo.
Deviatov apareceu uma hora depois, numa motorizada. Ia cumprimentar Bob com um abraço amigo, mas recuou espantado.
- Com mil diabos, Vassia Grigorevitch. Que cheiro horrível. O que lhe aconteceu? Está a apodrecer por dentro?
- Foi este cheiro que me trouxe para a liberdade. Avdev Konstantinovitch. Respire-o a plenos pulmões... é o cheiro de uma nova vida.
- Mas não se aproxime mais. Vamos tomar banho no rio, sim? Depois conto-lhe todos os pormenores do que o general Orwell ordenou. Meu Deus! Como é possível uma pessoa cheirar dessa maneira?
- Passando sete horas numa barrica de lixo. Pode acreditar, meu caro Deviatov, que para mim tem o aroma de rosas.
Mais tarde, depois do banho no Bug, deitaram-se na palha e examinaram, à luz de uma lanterna de bolso, o mapa que Deviatov trouxera consigo. Sibéria, o Lena, a planície de aluviões a oeste da corrente gigantesca. O Lyndia e um ponto vermelho, a norte de Borolgustak. Deviatov fez um sinal de cabeça afirmativo e apontou para o sítio assinalado.
- Aí mesmo. Arrancada ao solo. Sabemos apenas que se chama Base Verkokrassnoi. A nova Verkokrassnoi na Sibéria. Fica a seu cargo a maneira de lá chegar.
- Bastante sensato. E de que protecção disponho?
- Nenhuma. Apenas um contacto pela rádio com lakutsk. Indico-lhe a frequência. Fica entregue apenas a si próprio.
- Que descanso! - comentou Bob Miller, estudando novamente o mapa. - E Orwell acha que vou conseguir?
- Apenas você. E sozinho. Uma coisa dessas apenas se pode fazer só... -Deviatov foi buscar à bagageira pão, carnes frias e metade de uma garrafa de vinho tinto. - Coma alguma coisa, Vassia Grigorevitch. A barriga cheia atrai as boas ideias.
Dois dias mais tarde, Bob Miller, agora novamente major do Exército Vermelho, o camarada Chukov, apanhou o comboio de Vinniza para Kiev. Em Kiev desceu para tomar lugar no expresso rumo a Moscovo. Ninguém o revistou, ninguém o olhou de lado, ninguém se atreveu mesmo a dirigir-lhe a palavra. Para quê, afinal?
Um major de viagem para Moscovo... O que há de extraordinário, camaradas? Quantos majores viajam diariamente para Moscovo...
Chukov avistou Moscovo pela primeira vez.
Contudo, em nenhum momento, a partir de quando desceu do expresso de Kiev, lhe foi uma cidade estranha. Da preparação recebida no Alasca também fazia parte o conhecimento da capital soviética. Não só os aspectos topográficos, a história da cidade, os edifícios públicos, igrejas, conventos, teatros, escolas, armazéns e mercados... Da mesma maneira que, em Física e Química, de acordo com as melhores e antigas tradições escolares, se têm de aprender fórmulas, também Chukov e os seus camaradas do Alasca haviam metido teimosamente na cabeça todos os esquemas das cidades russas mais importantes.
Sentados com os olhos fechados em frente de qualquer mapa específico pendurado na parede, eram capazes de responder, durante um ano, ao que se lhes perguntasse.
- Complexo Samarkand: em que rua desemboca a Pendjikentskaia?
Resposta: na Taschkenskaia.
- Complexo Novosibirsk: quer ir de Verschanskaia ao Khmelnitskogo. Como vai?
Resposta: pela Rua Frunze até ao Projecto Krasnaia, descendo este, passando pela estação de caminho-de-ferro e atravessando a ponte do canal. Por detrás da ponte, à direita, fica o Khmelnitskogo.
Neste jogo de memória, Chukov obtivera uma vez um sucesso enorme, que ainda continuava a servir de piada no acampamento de Smolenska. Quando o general Orwell lhe perguntou: «Qual a maneira mais rápida de ir do Parque Gorki ao Parque de Ismailovski?», Chukov respondeu sem hesitações:
«Meto-me no metro. Vou da estação cinco à estação vinte e quatro.»
Nada havia a objectar, pois era mesmo assim. E além disso Chukov caracterizava-se por se movimentar para lá de todas as convenções. Qualquer outro interrogado teria descrito um longo caminho com muitos nomes de ruas, provando assim como fora um bom aluno... Em contrapartida, Chukov preferia as coisas mais simples como melhores soluções.
Agora, chegado a Moscovo, não se deteve a ver a cidade primeiro, por muito que o interessasse, na pele de um americano fardado de oficial soviético, ir até à Praça Vermelha, ou sentar-se num banco do Kremlin, deixando-se saudar pelos recrutas ou ainda ir comer comida típica ao Restaurante Baku. Preferiu dirigir-se imediatamente à praça de táxis mais próxima, fora da enorme estação de caminho-de-ferro, e bateu no pára-brisas do primeiro automóvel da fila. O condutor olhou imediatamente para fora e nem pestanejou.
Chukov escancarou a porta e deixou-se cair nos estofos. Na medida em que um motorista de táxi soviético é um empregado do Estado, tanto ganha a andar como estando parado. Pode assim, reduzir-se a um mínimo o cansativo trabalho de atravessar Moscovo de um lado ao outro, sobretudo no caso dos turistas estrangeiros que ficam parados e desesperados em frente de um táxi, pois ao repetirem «Kremlin», «Kremlin», recebem um delicado «Njet» como resposta. O porquê do «Njet» nunca é explicado. O camarada motorista nem sempre está nessa disposição. »
A situação muda repentinamente, quando se escancara muito simplesmente a porta do automóvel, a pessoa se instala e expressa o seu desejo. Nesse caso, o bom do camarada tem de andar, porque quem se senta no automóvel tem direito a transporte. Só é preciso conhecer as pessoas.
- Para onde, camarada major? - perguntava delicadamente o motorista nesse momento.
- O campo de aviação de Vnukovo - respondeu Chukov num tom ríspido. - Mas depressa!
- Paga as multas, camarada major?
- Com o meu depressa quero dizer que se decida a arrancar. - Chukov recostou-se no assento e olhou lá para fora, na direcção da estação de caminho-de-ferro. Tal como todas as estações de caminho-de-ferro moscovitas, assemelha-se a um palácio, na medida em que todos os edifícios públicos têm um absoluto valor de representação. «Vejam. A nossa Rússia é a mais bela Rússia que alguma vez existiu.»
«Em Vnukovo surgirão dificuldades», pensou Chukov. «Os voos para Irkutsk estarão cheios e um uniforme não vale de nada, se bem que na Rússia - como por toda a parte e sem excepção - os portadores de um uniforme estejam automaticamente acima de todas as categorias de pessoas.
O táxi arrancou com um barulho de motor e rangendo por todos os lados. Chukov inclinou-se para a frente e bateu no ombro do motorista.
- Aguenta até ao campo de aviação? Se achar que o motor vai cair aos bocados, diga a tempo.
- Se pagar, camarada, levo-o de carro até Irkutsk retorquiu o motorista por cima do ombro. - E um tanquezinho seguro. O ruído que ouve? Que interessa? Não conquistámos o universo? Ainda podemos perfeitamente chegar a Vnukovo.
Chukov fez um aceno de cabeça afirmativo e dedicou-se a observar a cidade. Deram a volta a Moscovo, atravessaram subúrbios modernos, pedaços de floresta onde se viam algumas datschas, passaram por fábricas e locais desportivos. Seguiu-se um enorme acampamento militar vedado, protegido com uma alta e dupla vedação de rede de arame por detrás da qual se avistam os jeeps em acção de uma pequena patrulha de estrada.
Decorrida mais uma meia hora de rápida viagem avistaram a torre de radar de Vnukovo e deram a curva, seguindo pela larga estrada de acesso alcatroada.
O motorista uniu os lábios e soltou um assobio jovial.
- Então? - perguntou depois desta introdução. - O tanquezinho parou? Está satisfeito, camarada major?
- Há uma mola solta no estofo. Tem de a consertar.
- Um bom conselho, camarada major - disse o motorista, ao mesmo tempo que reduzia a velocidade e esboçava um esgar no retrovisor dirigido a Chukov. - Mas como? Tiro o assento e levo-o a um estofador... quanto tempo vai demorar? Os clientes passam a sentar-se no chão do automóvel ou num poleiro como as galinhas? Informo os camaradas encarregados das reparações e peço-lhes um banco novo, para me expulsarem do Buro ou me mandarem examinar por um psiquiatra? Conserto-o eu mesmo... quem me paga? Portanto a mola vai ficar assim, tal como está... no que se refere aos sensíveis traseiros dos clientes a reclamação é justa. Mas quem reclama? Ninguém. Para quê? Iria melhorar as coisas? Os responsáveis ficam nervosos e isso é bom, é?
- E uma porcaria de desculpa da vossa parte - explodiu Chukov num tom ríspido. - E se transportam um estrangeiro?
- Não é problema nenhum - retorquiu o motorista entrando na rampa e detendo-se diante do enorme edifício onde se tratava das partidas dos aviões. - Se são americanos digo: «Conseguiram chegar à Lua e apesar disso ainda têm bandidos.» Se são franceses, digo: «A Rússia não depende de uma molazinha estragada. Perguntem ao vosso Napoleão.» Se são alemães digo: «Claro que tinham de criticar. O que seria de um alemão sem reparos?», e se são chineses, digo: «Ah! Meta-ma no cu.» Tem dado sempre resultado. Chegámos, camarada major. A tarifa mais o serviço público...
Chukov deu ao motorista um rublo de gorgeta, que ele realmente não podia aceitar, mas que meteu no entanto ao bolso com a observação de que o ia guardar como recordação do major mais simpático do mundo e até o ia pendurar na parede. Foi mesmo a ponto de transportar a mala de Chukov até ao amplo, claro e soalheiro hangar, depois do que a pousou, desejando-lhe boa viagem.
- Para onde, se é que se pode perguntar?
- Irkutsk.
- Uma cidade maravilhosa. Vai assumir um comando?
- Sim.
- Muitas felicidades, camarada.
- Obrigado - agradeceu Chukov, rindo com os seus botões. - Talvez lhe envie uns estofos novos de Irkutsk. Lá há três fábricas de estofos. -Tomei nota da matrícula do seu automóvel.
Em seguida ficou novamente só, procurou o guichet dos voos para a Sibéria e teve de esperar porque os membros de uma família de Tchita - pai, mãe, avô, avó e três filhos - entoavam uma sonora e queixosa cantilena ao serem informados de que só teriam tantos lugares livres dali a três dias.
- Três dias? - explodiu o avôzinho. - Não me podem fazer uma coisa dessas. Vou sentar-me durante três dias em cima de uma-mala? Vou para um hotel? Sabem, meus caros camaradas, quanto custa um quarto de hotel em Moscovo? E há algum hotel que deixe dormir sete pessoas num quarto? Acham-nos com ar de herdeiros de Stroganoff?
De nada serviram as queixas... para Tchita não há um avião diariamente e a viagem de comboio leva vários dias. A família saiu de junto do guichet, reuniu alguns metros mais adiante em redor da bagagem e conferenciou. Parecem ter chegado a uma conclusão, pois, em todo o lado, a arte de improvisação dos Russos é um fenómeno real, e levaram as malas para um canto do hangar. Aparentemente, faziam tenção de passar ali três dias.
Para kchukov er mais simples chegar a Ikutsk. O avião seguinte, das dezassete horas, estava completamente lotado, mas a ordem de Chukov tinha de seguir imediatamente para Irkutsk deu resultado. A bonita jovem de serviço examinou cuidadosamente o ofício do Ministério e levou-o a um camarada que estava diante dela, que igualmente o leu e se dirigiu imediatamente ao guichet.
- Podemos oferecer-lhe um lugar no cockpit, camarada major - disse. - É realmente proibido, mas dada a urgência do seu caso... Além disso, é oficial e não se encontra subordinado às leis civis.
- Sabia que havia uma maneira - retorquiu Chukov amistosamente. - Voltou a pegar na ordem falsificada, esperou que lhe despachassem o bilhete e em seguida entrou na luxuosa sala de espera. Faltavam três horas. Até esse momento tudo correra sem complicações. Mandou vir uma chávena de café, um bolo de mel muito doce e mergulhou em seguida na leitura da revista ilustrada União Soviética.
Dormiu durante todo o voo até Irkutsk. Nada havia para ver... a máquina íliuchin atravessou as nuvens, que pairavam naquela tarde sobre a região. Quando aterrou em Irkutsk, já era noite. Uma faixa estreita, o voo sobre o mar Baikal, enfeitado na margem com as fileiras de luzes que atravessavam as enormes florestas agora escuras, proporcionavam a Chukov a sensação de estar realmente na Sibéria. No coração da «Terra Moça», como os Russos ternamente lhe chamavam.
No aeroporto, o major Chukov voltou a apanhar um táxi até ao Hotel Sibir. Situava-se na Rua Lenine, no centro da cidade, um edifício moderno em cujo átrio se juntara um amálgama colorido de pessoas. Na recepção procederam como se estivessem à sua espera. Um groom precipitou-se na sua direcção e pegou-lhe na mala.
- É o camarada major Chukov? - inquiriu o empregado da recepção, ao mesmo tempo que riscava um nome na lista de reservas. - Bem-vindo a Irkutsk.
Chukov lançou um rápido olhar ao livro das reservas e leu de facto o seu nome. «Podia ter sido perigoso», pensou.
«Com o devido respeito pela perfeita organização da CIA... tudo o que é perfeito de mais pode igualmente ter falhas. O que aconteceria se não tivesse chegado a Irkutsk?»
- Fizeram-me a reserva? - perguntou Chukov despreocupadamente. - Para quanto tempo?
- Para os próximos três dias. Hoje era o primeiro. O seu quarto é o dezanove, camarada major.
O quarto dezanove era um compartimento espaçoso com duche e duas janelas para a rua. Tinha pouca mobília, mas estava limpo e até equipado com telefone e um aparelho de rádio. Chukov esperou até o groom ter fechado a porta, desabotoou seguidamente o casaco do uniforme e atirou-se para um dos três maples estofados colocados diante da cama, em redor de uma mesinha redonda.
«Irkutsk», pensou. «Fecha os olhos, Bob, e escuta o que o general Orwell te vai perguntar.»
Encostou a cabeça às costas do maple e cerrou os olhos. Irkutsk, 450 metros acima do nível do mar. Situada junto ao rio Angara, o afluente do mar Baikal. Verões quentes e breves e Invernos rigorosos. Temperaturas até 50° negativos. No Inverno, o leite é vendido em blocos gelados. Quinhentos mil habitantes. Uma universidade famosa, um bom teatro, um teatro de ópera muito bom, tudo construído no estilo clássico, com cúpulas e colunas. O maior estádio desportivo do Extremo Oriente. Avenidas largas, muitos parques, jardins e canteiros de flores. Uma bonita cidade com mais de 350 anos. Escolhida por Bojaren Ivan Pochabov como aquartelamento de Inverno para os seus cossacos em reconhecimento na Sibéria. A única cidade russa com uma «Casa Branca» - a Beliv Dom -, precisamente como em Washington, detentora de um estilo clássico, com elevadas colunas coríntias. Actualmente, a biblioteca universitária está aí instalada.
Chukov riu de olhos fechados. Diante dele estendia-se o plano da cidade de Irkutsk como se fosse o da cidadezinha de Heatsfield, onde nascera e cujos recantos conhecia como os dedos da mão. Era assim com Irkutsk e o mesmo acontecia relativamente a Kiev, Sarcóvia, Moscovo, Leningrado, lakutsk, Perm, Smolenska, Sverdlosk, Alma Ata, Vladivostok, Chabarovsk, Gorki... À semelhança de um computador, podia enumerar as cidades e sabia exactamente onde estava, para onde devia ir e qual o aspecto de tudo. Era essa a finalidade de no Alasca terem visto filmes uma e outra vez, discutido os roteiros das cidades em conjunto, durante meses a fio, até estarem cheios a mais não poder, como se os obrigassem a comer massa todos os dias. No entanto, depois ficava-se a conhecer tudo. Não se era estrangeiro.
- O mínimo descuido pode custar-vos a vida - dissera o general Orwell sempre que tinham protestado contra o absurdo desta insistência. - Se qualquer um de vocês tiver de ser um russo, nascido em Rostov junto ao Don, tem nesse caso de conhecer Rostov tão bem como os bicos do peito da noiva.
Era um argumento brilhante, que convencia sem comentários.
Chukov sobressaltou-se. Bateram delicadamente à porta. Deu um salto do assento, abotoou o casaco do uniforme e gritou:
- Entre!
Uma mulher ainda nova entrou no quarto, fez-lhe um aceno de cabeça, passou por ele na direcção do rádio, acendeu-o, levantou bastante o som e apontou silenciosamente com a mão para o maple. Chukov voltou a sentar-se e avaliou a sua visita. Podia andar na casa dos trinta e tal. Cabelo cortado curto, castanho-claro, encaracolado no pescoço. Uma cara redonda. Uma figura boa, um pouco flácida. Pernas surpreendentemente esguias e altas. O vestido de algodão, de fundo azul-escuro com pintas brancas, era de um armazém soviético. Sem cinto pareceria um saco, mas com cinto até lhe favorecia as formas.
A mulher aproximou-se de Chukov, sentou-se ao lado dele no braço do maple e inclinou-se na sua direcção. Chukov sorriu-lhe e rodeou-lhe a cintura com o braço, mas ela afastou-lhe a mão e abanou a cabeça.
- Um erro! - observou Chukov, ao mesmo tempo que encolhia os ombros num jeito de desculpa. - Pensei que o hotel tinha um serviço especial para fazer companhia aos hóspedes. Os costumes são diferentes em todo o lado. Sabe-se lá o que é hábito em Iskutsk? Em Ust Omshuk, a norte de Magadan, tive de pernoitar numa tribo. Deram-me uma aul só para mim (uma aul é uma cabana feita de estacas e de peles), grandes honras, e o meu anfitrião fez ponto de honra em que lhe desflorasse a filha. Tinha treze anos e cheirava a óleo de fígado de bacalhau. E quando penso em Taldy Kurgan, a leste de Alma Ata! «Camarada», dizia-me o anfitrião...
- Liguei o rádio e sentei-me na sua poltrona porque sei que há microfones no quarto - disse a mulher num tom sóbrio e baixo, mas pronunciando claramente as palavras junto ao ouvido de Chukov. - Vendo perfumes no átrio do hotel.
- Cheirava assim tão mal quando passei ao seu lado? O que me aconselha que use?
- Tome as coisas mais a sério - retorquiu quase zangada.
- Tentemos - disse Chukov, fitando-a novamente e ainda sem saber o que esperar. Entrava-lhe assim uma mulher pelo quarto, inutilizava o efeito de microfones escondidos pondo o rádio a tocar e comportava-se como uma profissional no ofício para que Chukov estava talhado. «Desta maneira, não», pensou satisfeito. «Não é assim que me põem à prova. É o processo menos indicado de tratar com Bob Miller. Sou um major soviético e portanto a cantiga é outra.»
- Escute uma coisa, camarada! - replicou num tom bastante ríspido e afastando, com a palma da mão, o rosto da mulher do seu ouvido. - É uma afronta ao Estado afirmar que nos hotéis soviéticos estão colocados aparelhos de escuta! Nunca se ouviu tal! Dizer tal coisa a um oficial soviético...
- Chamo-me Galina Teofilovna - interrompeu-o.
- Não modifica a situação.
- Saúdo-o da parte de O I.
- Ah! - exclamou Chukov, mexendo-se no maple.
Ao fazê-lo roçou com o ombro pelos seios de Galina. Eram redondos e firmes e recordavam-lhe o corpo maravilhoso de Dunia Andreievna. Dunia... Era naquele momento a hora de grande afluência ao restaurante de hamburgers de Billy, estava a misturar leite com sumos de frutas e detestava os homens mais do que nunca. Primeiro, John Barryl, destacado para acção, logo a seguir Bob Miller... agora em Frazertown
- chamavam-lhe em surdina a viúva dupla.
Dunia. Estava tão longe e tão fora do alcance como os contos de fadas. Vivia nele, estava permanentemente com ele. Era capaz de falar com ela, sabia exactamente quais as suas respostas, mas já não a podia agarrar. Transformara-se num desejo... talvez naquele desejo que debalde se persegue uma vida inteira.
- Vejamos... O I! -disse Chukov, como se Galina Teofilovna lhe tivesse contado uma anedota. - Como vai o velho? Quando o vi da última vez estava com um pequeno problema na próstata.
- Imaginava-o diferente, Vassia Grigorevitch - sussurrou-lhe Galina novamente ao ouvido. - Ver Kokrassnoi diz-lhe alguma coisa?
- Bastante. No Inverno atinge temperaturas de sessenta graus negativos. Até já uma vez se experimentou fornicar ao ar livre com esta temperatura. Sabe o que aconteceu?
- Tem lugar no voo da manhã para lakutsk. Como engenheiro electrotécnico especializado em alta frequência. Conserva o nome de Chukov. Trago comigo toda a documentação e bilhete de identidade. Chega-lhe, camarada major?
- Convenceu-me, Galina - respondeu Chukov voltando a rodear-lhe a cintura com o braço, sem que desta vez fosse repelido. - Tinha esperado tudo menos uma mulher tão bonita. Porque faz uma coisa destas, pombinha? Espiar para os capitalistas!
- Os meus avós foram abatidos a tiro durante a Revolução. O meu avô era coronel do general Denikin. O meu pai morreu num campo de concentração e a minha mãe desapareceu nas minas de Magadan. O meu pai era escritor e tinha escrito um romance sobre a morte do pai. A minha mãe foi apanhada quando pretendia entregar o manuscrito a um geólogo inglês. A Rússia dizimou a minha família. Não. Jamais a Rússia... este regime dos Vermelhos! - Mostrou subitamente uma expressão terrivelmente dura e Chukov absteve-se de comentários. Levantou-se e rodou o botão, de forma a que o som incidisse mesmo em cima deles e sentou-se novamente na poltrona.
- Em lakutsk alguém virá, portanto, ter comigo.
- observou.
- A situação muda. Em lakutsk estará só.
- E de onde recebo novas informações?
- Não há novas informações.
- Mas tínhamos um contacto em lakutsk.
- Tínhamos...
- Acabou?
- Obra do acaso. Uma coisa estúpida que nada teve a ver com política - respondeu Galina Teofilovna, ao mesmo tempo que abria a blusa. Chukov olhou interessado. Agora compreendia porque é que os seios eram tão duros. De cada lado do soutien tinha uma bolsa onde estavam metidos os documentos que se destinavam a Chukov. - O indivíduo deixou-se atropelar como se fosse um cão cego. O que me diz a isto?
- Anda com um dos tesouros mais interessantes que já vi. Contudo, o que faz se um amigo entusiasta de mamas lhe deitar a mão à blusa?
- Ninguém se atreve a fazê-lo - retorquiu, pousando os documentos na mesinha redonda e continuando com a blusa toda aberta quando se inclinou. - Pode ter a certeza de que não falta nada.
- Não falta realmente nada! - concordou Chukov sem despregar os olhos dos seios.
- Refiro-me aos documentos - disse bruscamente. Tem aqui o passaporte, o contrato, um certificado da gerência da instalação de Verkokrassnoi, a chave de um quarto no Dersherskaia dezanove, aqui em Irkutsk. Aí encontrará tudo do que necessita. Roupa de civil, roupas interiores, literatura especializada, pijama, roupão de banho, utensílios de barbear. Terá de ir sozinho, pois não posso permitir que me vejam.
- Mas pode visitar os hóspedes nos quartos do hotel?
- Vim trazer-lhe uma nova loção de barbear, a pedido seu - replicou, ao mesmo tempo que tirava um frasco com um líquido esverdeado do bolso da saia e o colocava junto aos documentos.
- É pena! - comentou Chukov.
- É pena o quê?
- Que tenha tirado o frasco do bolso da saia e não de outro sítio! Teria tido um efeito muito mais picante e estimulante.
- Não estou bem certa se escolheram o homem exacto quando resolveram enviá-lo - disse Galina Teofilovna. É o primeiro que não me agrada.
- Quantos agentes americanos já conheceu?
- Até agora, quatro.
- E onde estão? Na Sibéria, desaparecidos.
- Está a ver, Galinanka? É essa a diferença - comentou Chukov agarrando-lhe subitamente a cabeça e beijando-a. Ficou tão surpreendida que não reagiu. - Não desaparecerei... vou regressar!
Tudo correu como lhe dissera. No quarto da casa 19 do Derscherskaia, onde foi na manhã seguinte, estavam todas as coisas de que o engenheiro Vassia Grigorevitch Chukov necessitava. Bastava meramente despir o uniforme e enfiar a roupa de civil para se transformar noutra pessoa.
Da sua mala de oficial, Chukov apenas tirou o pequeno aparelho transistor, o requintado emissor em miniatura que quase levara o capitão Slobin de Vinniza à loucura. Deixou o mais no quarto e meteu tudo dentro da mala. O uniforme, os cartões de identidade, as botas e igualmente a pistola. Quanto a esta última, ainda hesitou, mas como é pouco natural que um engenheiro electrotécnico viaje pela taiga com uma pesada pistola do Exército, deixou-a ficar, com muita pena. Levou, evidentemente, consigo a pequena cápsula de veneno. Pendurada ao peito, numa pequena bolsinha de couro.
Em seguida, esperou no quarto vazio até faltar apenas uma hora para o seu voo. Pensou em Galina Teofilovna e no olhar demorado que lhe deitara ao passar, à saída, junto da perfumaria situada no átrio do hotel. Estava precisamente a vender um baton a uma caucasiana e tinha pintado seis traços de experiência nas costas da mão esquerda.
- Oh, vejo que está ocupada! - dissera. - Apenas lhe queria dizer que a sua loção é uma maravilha. Volto mais tarde. - E, ao verificar que com a sua insistência se fizera compreender, repetiu: - Vou voltar.
Seguiu-o com o olhar até ter chegado à rua. «Não acredita», pensou. «Foi assim que olhou muitas vezes colegas meus e os tipos desapareceram nas taigas. Também acha que eu não tenho hipótese. Deve ser terrível para ela ter de se despedir continuamente de indivíduos que estão praticamente mortos sem o saberem. A última estação antes do final: uma bela e jovem mulher que apenas se pretende vingar e acaba por nunca o conseguir fazer.»
O voo para lakutsk já se mostrou diferente dos outros voos. Os passageiros eram gente mais reservada, com a pele mais marcada pela natureza, vestida simplesmente, com sacos em vez de malas e bolsas de mão enormes. lakutsk era, indubitavelmente, uma cidade grande e moderna, como tudo o que na Sibéria mudara de feição nos últimos anos. Dantes dizia-se: Lena... Viliuv... Lyndia... Olenek... Nessa altura tudo era uma manifesta aventura, relativamente à qual se pensava em rios dourados, em terra de aluvião, onde reluziam diamantes, em florestas cheias de feras peludas, nos mais solitários campos de concentração e alcateias de lobos que nos Invernos rigorosos desciam às aldeias e se arrastavam pela neve até às portas das casas. E lakutsk constituía o ponto de acesso a esta terra selvagem, o ponto de encontro de aventureiros e idealistas que precisavam de muito tempo até dizerem: «Também em lakutsk se pode viver tal como em Moscovo e Leninegrado. Talvez seja um pouco mais fria, mas a uma longa distância do Kremlin.» Em lakutsk... não se luta por ideologias, mas enfrenta-se a natureza. O mundo que se vê diante da porta está ainda num estado primário. Aqui o homem ainda é como se lê na Bíblia; e «Ele» criou o homem à «Sua» imagem...
Quatro horas mais tarde, o avião aterrou em lakutsk. Vassia Grigorevitch Chukov esperou pela mala no terminal das bagagens e, seguidamente, para ir para a cidade, apanhou um eléctrico, que como sempre acontece na Rússia, ia a abarrotar. Aqui, o Verão já tinha acabado. Estava mais frio do que esperava e agradeceu intimamente a Galina Teofilovna por lhe ter deixado um casaco quente no quarto. O céu apresentava-se cinzento e encoberto e já pesado da humidade. Cheirava a chuvas outonais, que, depois do primeiro vento frio, se transformariam em neve permanente até que a geada a varresse igualmente e apenas o frio determinasse a vida sob um céu infindo.
Chukov desceu do eléctrico em frente do edifício do Central Buro Técnico, informou-se, atravessou sete salas cheias de funcionários rígidos, diligentes mas, segundo parecia, muito aborrecidos, o que lhe recordou vivamente Washington. Preencheu uma quantidade de formulários, recebeu um carimbo de cada funcionário na sua folha de racionamento, o que o fez sorrir, e, decorridas três horas, chegou finalmente junto do funcionário com poder de decisão, e que lhe disse:
- Os nossos cumprimentos, meu caro Vassia Grigorevitch. Vejo que tudo bateu certo. Os documentos estão em ordem.
- Depois de três horas em sete sítios diferentes!
- Mas isso são as Olimpíadas... um record mundial!
- riu o camarada chefe de secção. - Três horas? Você é um génio. Ah, um génio chamado Chukov. Há Camaradas que levam uma semana. Vai, portanto, para Verkokrassnoi.
Há duas possibilidades: helicóptero, mas esses são utilizados apenas para transportes importantes e não é tão importante que o justifique, Vassia Grigorevitch. Resta, pois, o comboio de mercadorias. Vai até Ottok. Daí (e nem sequer terá tempo para dizer o nome, meu caro) seguirá de camião. Se, realmente, está habituado a que o conduzam numa limusina até ao seu escritório... regresse imediatamente! Por detrás de Ottok começa o que as tribos chamam «Paz Eterna» ou «Silêncio Divino». Sabe uma coisa, Chukov? Dois anos depois já parece diferente. E é para isso que está aqui. E aos presos dos nossos campos de concentração não se dá nada...
- Têm presos aqui? - interrompeu Chukov sem erguer a voz.
- Bastantes. E vão ser eles o seu potencial de trabalho, camarada. Segundo penso, terá a seu cargo duas brigadas de trabalho que colocam novos alicerces em Verkokrassnoi. É um campo de aviação militar.
- Sou engenheiro electrotécnico, camarada, e não especialista em construção civil - esclareceu Chukov delicadamente. - Julguei que na posição de chefia...
- Foi isso o que lhe disseram em Moscovo? A sério? Que gente engraçada existe por lá. - O chefe de secção era realmente um indivíduo alegre. - Empurrou uma caixa de lata com cigarros na direcção de Chukov e tirou uma garrafa de vodka de sob a secretária. Da gaveta fez surgir um copo comprido e estreito, que encheu até cima. - Não se preocupe, Vassila Grigorevitch. Não é o primeiro a quem besuntam com mel e que depois recebe o ferrão das vespas. Precisamos de gente para a construção do país... No domínio interno de Verkokrassnoi, os civis são esmagados como pulgas. É o reino dos militares. Têm os seus helicópteros particulares... Nós, porém, temos de rastejar pela terra. Beba um copinho, meu caro Chukov, e dê uma passa. Não encare tudo por um prisma tão negro. Ottok também tem as suas vantagens. Um campo de mulheres com setecentos traseiros redondos. E então sendo você um tipo robusto e pujante. Sou eu que lhe digo: se se criarem determinadas condições de vida na Sibéria, e as mulheres são a número um, temos o paraíso na Terra. Só que não o podemos revelar a ninguém.
Já era próximo da noite quando Chukov se conseguiu finalmente libertar, e apanhou novamente o eléctrico, para o Hotel Lena. Também este edifício era de construção recente, conforme o novo estilo de construção soviética, com uma entrada apoiada em colunas; tinha seiscentos quartos, um salão de recepções enorme e uma sala de jantar com o tamanho de uma sala de congressos e brilhante de limpeza.
- Coma apenas rassolnik ou um assado de lombo de jovem touro siberiano com cebolas. Peça expressamente carne de touro - aconselhara o chefe de secção à despedida. Tudo o resto lhe saberá como se o cozinheiro tivesse adormecido a fazer a comida.
No átrio do hotel tudo estava convenientemente calmo, à excepção de uma mulher que se mantinha diante do balcão e batia com os pequenos punhos no tampo. A voz, clara, produzia o som semelhante ao de uma fanfarra em miniatura e era impossível não ouvir o que dizia.
- Está a mentir. Estão todos a mentir. Está cá, mas nega-se a aparecer. A peste já passou por aqui? Se não passou, desejo de todo o coração que lhe caia em cima.
O recepcionista deitou um olhar de desculpa a Chukov e encolheu os ombros.
- Saiu realmente, camarada - assegurou ao mesmo tempo que erguia as mãos num gesto implorativo. - Uma pessoa como ele tem de descansar de vez em quando.
Chukov aproximou-se mais, pousou a mala e avaliou com o olhar a mulher excitada. Por trás oferecia uma visão atraente. De estatura média, esbelta, com formas marcadas e uma passagem agradável da cintura para as coxas. Vestia uma blusa encarnada aberta nas costas e uma saia azul de roda presa na cintura por um largo cinto de cabedal. As pernas, proporcionalmente esguias, estavam cobertas por botas de cabedal macio que desapareciam por baixo da orla da saia. Aparentemente, o mais bonito nela eram os cabelos. De um negro brilhante como Chukov nunca tinha visto, nem sequer em Dunia, cujos cabelos eram como seda. O negro neste caso dava a sensação de metal reluzente, levemente frisado, caindo-lhe até aos ombros qual elmo de raios de aço negro e brilhante.
- Posso ajudá-la? - perguntou Chukov.
Disse-o com a melhor das intenções, mas a encolerizada mulher pareceu considerar a intervenção como uma nova agressão. Deu meia volta e fitou Chukov com os olhos brilhantes de raiva.
- Não preciso de ajuda nenhuma! - explodiu. Basto-me a mim própria.
Chukov calou-se, surpreendido. Não porque ela lhe gritasse, mas porque toda aquela beleza, que agora se lhe apresentava em pujança, lhe tirou a respiração. A mulher tinha um rosto pequeno, em que os olhos brilhantes rasgavam na oblíqua a forma oval das feições. Sob as maçãs salientes o rosto tornava-se afilado até terminar num pescoço alto, que constituía uma ligação harmónica com o pequeno busto que ressaltava por debaixo da blusa vermelha. Dado respirar ofegantemente, os seios erguiam-se e baixavam-se como lanças afiadas.
«Oh, céus!», pensou Chukov ao mesmo tempo que respirava com mais força pelas narinas. «É semiasiática. Uma visão que se instala no cérebro e elimina a razão. Ante mulheres deste género, os homens não levam mais de alguns segundos a transformarem-se em idiotas chapados.»
- O gerente recusa-se a aparecer - gritou para Chukov. Contudo, está cá e sei que é assim. E tem como obrigação escutar, pessoalmente, as reclamações dos hóspedes. A obrigação, repito! Se o denunciar à Comissão de Turismo, bem pode calçar os patins. Sabe o que me deram ao jantar? Dois blintschiki com carne rançosa. E sabe o que me disse o criado, aquele monte de esterco? «A carne não estava rançosa, camarada, mas a comida vem da região de Amur e essa é rançosa. Trouxe alguma coisa consigo?» - Os olhos pretos e rasgados novamente brilharam de cólera e reacenderam a beleza daquele rosto singular. - Não acha motivo de reclamação? Contudo, aqui tudo mente. Tudo.
- Talvez a possa ajudar - repetiu Chukov, compondo um esboço de sorriso. - Dou-lhe uma informação valiosa. Não como aqui um único blintschiki que seja, mas apenas carne de touro. Mas tome cuidado, camarada: deve ser de jovem touro siberiano. Touro!
- Nesta terra só vivem macacos - retorquiu a bonita asiática. - Mas que país!
- Já uma vez na minha vida escutei praticamente essas mesmas palavras - retorquiu Chukov brindando-a, sem cerimónia, com um daqueles olhares que fazem com que uma mulher se sinta nua. Um olhar descarado, sem palavras, a que na realidade apenas se pode responder com uma bofetada.
- E saíram da boca de uma mulher tão bela como você, camarada. Vivi muito tempo entre macacos e sou versado no assunto. - «Dunia-», pensou nesse preciso instante. «Não tenhas receio, miúda. Estás a meu lado, mas permite-me que admire esta mulher.» - Preste bem atenção!
Respirou fundo, encheu o peito e soltou repentinamente um daqueles gritos que já servira para fazer perder o controlo a Dunia Andreievna. A semiasiática também se sobressaltou e o recepcionista do hotel virou-se na sua direcção.
- Você é doido? - retorquiu no tom de voz límpido que a caracterizava.
- Isto significa «boa tarde» e era a linguagem do gorila da montanha... -esclareceu Chukov com uma ligeira vénia. - Dei-lhe um bom conselho, camarada. Carne de touro jovem. Permite mesmo que lhe dirija um convite? Daqui a uma hora já estarei de banho tomado, barba feita e apresentável. Se quiser...
Não lhe respondeu, limitando-se a olhá-lo desconcertada. Seguidamente deu meia volta e afastou-se a passos largos. A saia balouçava ao ritmo do pisar das botas e dava às ancas, como se tivesse estudado Marilyn Monroe até ao mais ínfimo pormenor.
- É mesmo um diabinho! - comentou o recepcionista, batendo com o belo dedo no peito de Chukov, que a seguia fascinado com o olhar. - Um verdadeiro diabinho! É a nona reclamação que recebemos, e o gerente, como é óbvio, está cá. Mas não acha que será de afirmar o contrário numa situação destas, camarada?
Foi assim que Chukov travou conhecimento com a médica soviética Valia loanovna Vuginskaia.
- Não pense que estou aqui para comer essa maldita carne siberiana - declarou Vuginskaia, que chegara, pontualmente, decorrida uma hora, e a quem o criado, ensinado com um rublo oferecido por Chukov, apanhara à entrada da sala de jantar e conduzia até junto de uma mesa bastante recatada. - Apenas senti o desejo de lhe vir dizer que não passa de um malcriado.
- É pena. Mandei vir duas grandes doses com cebolas douradinhas no forno. A acompanhar, um vinho especial da Grusinia, um Zinandali. Uma garrafa contendo o sol...
- Você é milionário?
- Tem forçosamente de se ser milionário para apreciar a carne de touro siberiano? Sou um pobre engenheiro a quem apetece estoirar o dinheiro que recebeu como adiantamento do ordenado. Peço-lhe que se sente, Valia loanovna.
- Sabe como me chamo? - perguntou ao mesmo tempo que se sentava à mesa, na sua frente, mantendo a devida distância.
- Foi a primeira informação que tirei. Quem não sabe o seu nome neste hotel?
- Pretendo meramente justiça!
- E foi por esse motivo que veio até à Sibéria?
- inquiriu Chukov num tom sarcástico.
A observação não caiu em cesto roto, e Valia ergueu as sobrancelhas. Nas maçãs do rosto surgiu um ligeiro rubor.
- Você não passa de um aventureiro, certo? - replicou. - Um desses homens que viajam até à Sibéria para se divertir! Capazes de matar um amigo que descobre ouro.
- Tenho aspecto disso?
Novamente surgiu o olhar terno, sonhador, com que Bob Miller conquistava um pouco das mulheres e que albergava uma mistura de suavidade e de paixão. Valia loanovna, aparentemente, não fugiu à regra. Deixou-se submergir por aquele olhar diabólico e mostrou-se visivelmente aliviada quando o criado apareceu com uma travessa enorme, ao mesmo tempo que toda a atmosfera se enchia de um aroma a carne assada e a cebolas douradas.
- Tem uma cunha no hotel? - inquiriu num tom ríspido. - Como conseguiu que lhe servissem a comida com esta rapidez? Sabe quanto tempo me obrigam a esperar?
- Se tivesse encomendado carne de touro jovem, Valia loanovna...
- Porque passa todo o tempo a dizer idiotices? Sente-se bem assim?
- Vou responder, por conseguinte, à sua primeira pergunta. Estou precisamente há uma hora no hotel e, se me servem tão prontamente, o facto deve-se certamente a ter-me atrevido a sentar-me à mesa consigo.
O criado tinha servido a carne e estava nesse momento a abrir a garrafa de vinho especial. Enquanto deitava o líquido nos copos piscou amigavelmente o olho a Chukov. «Dê-lhe uma lição, camarada. Pôs-nos os nervos em franja. Atrás da porta da cozinha, jogámos aos dados quem a iria servir. O derrotado foi abraçado e beijado como se o tivessem condenado ao cadafalso. Vai ver, irmãozinho, como se queixará da carne! Estas asiáticas bonitas! São feitas com o pão que o Diabo amassou.»
- Acha-me realmente um monstro? --retorquiu com uma ligeira risada, o que conferiu um certo toque felino ao rosto atraente. - Interrogo-me sobre as minhas reacções. Sentada para aqui com um estranho...
- Chamo-me Vassia Grigorevitch Chukov. Nada de confusões com o marechal Chukov. É uma pergunta que surge inevitavelmente. E você é médica?
- Fui destacada em serviço para um acampamento em Verkokrassnoi. É o meu primeiro cargo independente. Médica-chefe do complexo Paz Mundial.
- Um nome curioso para uma base de foguetões intercontinentais - contrapôs Chukov. Beberam um gole de vinho e em seguida dedicaram as atenções ao assado. Era tenro e cozinhado como devia ser, condimentado gostosamente, uma verdadeira delícia. - Já esteve alguma vez num campo de concentração?
- Campo de concentração! Cospe a palavra como se a tivesse entalada na garganta. Trata-se de infractores que estão a pagar as suas culpas.
- Na sua grande maioria, são políticos.
- Esses são os piores, Vassia Grigorevitch. Pode haver um traidor maior do que o que está contra a pátria?
O diálogo começou a deslizar para uma perigosa via ideológica. Chukov encheu novamente os copos e bebeu um gole enorme.
- Possivelmente viremos a trabalhar juntos, Valia loanovna. Informaram-me de que irei chefiar duas brigadas de construção. E compõem-se de reclusos. Será o acampamento para onde se dirige, não?
- Temos então o mesmo percurso. O comboio de mercadorias para Ottok...
- Será um prazer.
- Acha que sim? - retorquiu, voltando a olhá-lo perscrutadoramente. «Até que ponto estará a falar verdade?», era o que se lhe espelhava no olhar. «Outra vez sarcástico ou será mesmo a sério? Será que está mesmo contente por fazermos a viagem juntos?» - O comboio deve ser um desastre completo. Há quatro dias que estou aqui, porque três máquinas de locomotiva estão a ser reparadas. E se começam as grandes chuvadas, tudo se afunda em lama nestes sítios. Os carris, numa parte da linha férrea, são também provisórios. Quase três mil presos estão a trabalhar actualmente na rede de estradas para Verkokrassnoi.
Comeu todo o assado sem fazer um único reparo. O criado que estava à espera virou-se um pouco de lado e, uniu as mãos num gesto de agradecimento quando Chukov ergueu o olhar na sua direcção. «Vitória, camarada. Tem o diabinho no bolso. Come e cala. Quem iria pensar uma coisa dessas?» Ficaram uma hora à mesa a conversar e a beber, até que ouviram um ruído de encontro à janela, inesperado e violento como se um maremoto tivesse feito sair o Lena das margens, inundando a cidade.
- A chuva! - exclamou Chukov. - Cá está ela. Suspeitei quando hoje olhei para o céu. E o nosso comboio partirá depois de amanhã.
- Acha que sim?
- Claro. Quem não acredita na eficácia da nossa técnica é um mau russo.
Valia loanovna voltou a olhar para Chukov desconcertada. «Como conhecer o íntimo deste homem? Em cada frase que pronuncia é diferente, um enigma psicológico. E, além do mais, os olhos revelando uma melancolia que nos chega ao coração. Que tipo de pessoa será?»
- Há aqui algum sítio onde se possa dançar? - perguntou Chukov subitamente.
- Desconheço. Não sei dançar.
- Será possível que só saiba abrir barrigas, Valia? Você é uma mulher! Passou, realmente, todos estes anos apenas a estudar e a observar as pessoas por dentro? Nunca se sentiu excitada, exuberante, apaixonada, sem limitações? Nunca beijou? Nunca teve um amante?
- A comida estava excepcionalmente boa - retorquiu bruscamente. Levantou-se e afastou uma madeixa preta e brilhante da testa com um movimento enérgico da mão. Os olhos oblíquos lançavam chispas. - Contudo, você Vassia Grigorevitch, foi insuportável!
Afastou-se. Chukov seguiu-a com os olhos, enquanto ela atravessava a sala de jantar dando às ancas e os criados se esforçavam por não se lhe atravessar no caminho. Após ter transposto a porta, o criado que tinha servido à mesa aproximou-se de Chukov com um sorriso de um canto ao outro da boca.
- A gerência tem o maior prazer em lhe oferecer o jantar, camarada - anunciou num tom quase feliz. Uma pequena amabilidade. Peço-lhe, porém, que não espalhe a palavra. Não há necessidade de que se saiba.
- Qual é o número do quarto da camarada Vuginskaia?
- perguntou Chukov em voz baixa.
- Número quatrocentos e quarenta - respondeu o criado despejando o resto do vinho no copo de Chukov e olhando em seguida para os vidros da janela, chicoteados pela chuva. - Se fosse a si, esperava, camarada - acrescentou no tom delicado de um bom funcionário. - Antes de entrar na sala de jantar, a camarada também se tinha informado do número do seu quarto...
Trovejou e relampejou durante toda a noite. A chuva abateu-se sobre lakutsk, como se o céu siberiano se tivesse transformado em catadupa. Sempre que, depois de um relâmpago, a luz clara e trémula inundava o quarto, soava um trovão enorme e dava a sensação de que todo o hotel estremecia até ao mais fundo dos alicerces.
Seguidamente ao nono’ desses trovões - Chukov estava deitado na cama a ler um livro especializado sobre a técnica de alta frequência, o que lhe causava um aborrecimento de morte - a porta abriu-se de rompante e Vuginskaia entrou por ali dentro. Trazia vestido um roupão tártaro de seda, bordado a ouro, uma maravilhosa peça de trabalho manual proveniente das vastas estepes da Ásia. Fechou novamente a porta com o pé descalço e deixou-se ficar junto dela, encostada à parede. Chukov voltou a luz do candeeiro de cabeceira na sua direcção, de forma a arrancá-la ao escuro.
- Também tem a impressão de que o hotel estremece todo? - perguntou ela de chofre. Devia ter corrido a toda a pressa pelas escadas acima, sem se servir do elevador. Se for abaixo...
- Terá, na sua função de médica, muito que fazer - retorquiu Chukov calmamente.
- Você tem um autodomínio espantoso - gritou-lhe. Nunca sentiu medo?
«Tudo se repete, realmente», pensou Chukov. «Não eram palavras quase idênticas às que uma vez Dunia Andreievna pronunciara? Seja como for, as mulheres parecem-se sempre umas com as outras, são dominadas pelo mesmo tipo de emoções, reagem com igual espontaneidade, defrontam um homem com o mesmo tipo de sentimentos.»
- Tive medo uma vez, na minha vida - respondeu Chukov, fechando o livro. - Tinha na altura catorze anos e uma mulher de trinta e três levou-me para uma garagem. Quando se despiu, se deitou em cima da mala do carro e lhe vi os seios grandes em forma de pêras, com os bicos vermelho-escuros, e me disse «Anda. Vais habituar-te depressa», tive medo e fugi.
- Você é nojento - insultou-o com uma voz estranhamente rouca. Tratava-se de um tom suave, estranho nela, de onde apenas se esperaria ouvir uma voz estrepitosa e clara. Vive apenas para comer, beber e mulheres...
- Mais ou menos. Tem de se sobreviver na Sibéria. A comida e a bebida pertencem às leis básicas da vida e não amar uma mulher provoca a doença ou a loucura a longo prazo. No entanto, deve saber todas estas coisas como médica que é.
Não respondeu e foi instalar-se num dos maples em frente da cama. A chuva trouxera consigo uma mudança de temperatura. Estava nitidamente mais frio. Sempre que o Outono começa no Lena, é como se Deus abrisse a porta de um frigorífico sobre a Terra. De início, sente-se um sopro frio e, seguidamente, começa a geada, camada a camada, até...
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