Numa sala repleta de convivas, os seus olhares cruzam-se com uma intensidade invulgar. mas os seus mundos vão colidir violentamente. Ela é Roselyn Longworth e, antes de a noite terminar, vai ser leiloada. Ele é Kyle Bradwell, o homem que lhe dará a conhecer o Inferno.
Todavia, quando vence o leilão, Kyle trata Roselyn com uma delicadeza a que ela não está habituada desde que um escândalo familiar arruinou a sua reputação. E quando finalmente descobre o que o motivou a salvá-la do seu terrível passado, é já demasiado tarde: Roselyn está perdidamente apaixonada pelo homem que sabe os seus mais íntimos segredos. Agora, ele surpreende-a com um pedido de casamento - o primeiro passo num jogo de sedução que exigirá nada menos que a sua completa rendição.
CAPITULO 1
Roselyn Longworth contemplou a sua ruína. O inferno não era fogo e enxofre, percebeu. Era ver-se a si própria, sem misericórdia. No inferno, uma pessoa descobria a verdade sobre ela própria. Enfrentava as mentiras que tinha dito à sua alma para justificar actos errados.
O inferno era também uma humilhação eterna, como a que ela estava a sofrer naquela festa numa casa de campo.
À sua volta, os outros convidados de Lord Norbury riam e brincavam enquanto aguardavam a chamada para jantar. Quando chegara, na carruagem de Lord Norbury, descobrira que a lista de convidados não era a que ela esperava. Os homens eram todos membros da boa sociedade, mas as mulheres.
Um guincho agudo interrompeu os seus pensamentos. Uma mulher com um vistoso vestido de noite cor de safira fingia debater-se com um homem que a agarrara. Os outros homens soltaram gritos de encorajamento. Até Norbury o incentivou. Depois de uma exibição falsa de resistência, a cativa rendeu-se ao tipo de abraço e beijo que mais ninguém devia ver.
Roselyn estudou os rostos pintados e a indumentária exagerada das outras mulheres. Os homens não tinham trazido as esposas. Nem sequer tinham trazido as suas amantes mais refinadas. Aquelas mulheres eram prostitutas vulgares importadas dos bordéis de Londres. Suspeitava que algumas delas nem sequer a isso podiam aspirar.
E ali estava Roselyn, entre elas.
Não podia fugir às terríveis implicações. Os outros homens tinham trazido as suas prostitutas e Lord Norbury trouxera a dele.
Como podia ter compreendido tão mal os acontecimentos do último mês? Tentou recuar ao dia das primeiras lisonjas e propostas de Lord Norbury mas a memória desaparecera, reduzida a cinzas pelo fogo implacável da realidade das últimas vinte e quatro horas.
O amante em questão deambulou entre os convidados, dirigindo-se a ela. A cada passo, a luz dos seus olhos brilhava um pouco mais. Ela julgara que eram as chamas do amor e da paixão. Via-as agora como luz reflectida em gelo.
Fora pateticamente estúpida.
- Está muito calada, Rose. Tem estado assim todo o dia. Aproximou-se dela e parou ao lado da sua cadeira. Um dia antes, ela teria sentido prazer com aquela proximidade e achado as suas atenções românticas.
Mulher estúpida, estúpida.
- Supliquei-lhe que me deixasse partir. Estou nesta sala apenas porque me ordenou que descesse para jantar, portanto não se queixe por eu não participar nos seus jogos de festa. Não me agrada a companhia nem o comportamento libertino que vejo. - Ao canto, o casal de há pouco estava perdido para o mundo, mas o mundo podia ver sem dificuldade as suas apalpadelas.
- Céus, como é orgulhosa. Muito mais orgulhosa do que devia. - As palavras murmuradas foram ditas em tom cortante. Ela sentiu os cabelos da nuca arrepiados.
Ele estava a referir-se a mais do que à desaprovação pela festa que Roselyn manifestara. Recusara-lhe coisas, na noite anterior. Ao princípio, nem sequer compreendera o que ele queria, e não conseguira ocultar o choque quando ele lhe explicou.
Em poucos minutos, o amante afectuoso e generoso tornara-se num cliente zangado e desprezado. Frio. Duro. Cruel. Transformara-se num homem que pagara mais do que devia ter pago por um objecto, apenas para descobrir que fora defraudado.
Sentiu-se corar ao recordar a cena sórdida na sua alcova, antes de ele partir. Julgara que ele era o seu amado, o seu amante. Mas ele deixara bem claro que a considerava apenas uma prostituta vulgar.
As suas palavras mordazes tinham sido como bofetadas, despertando-a de uma ilusão criada pelo seu desespero e solidão.
- Se sou demasiado orgulhosa, chame a carruagem e deixe-me partir. Faça-me a amabilidade de me deixar conservar o pouco orgulho que me resta.
- Se o fizesse, ficaria sozinho, sem companhia feminina. Pareceria um idiota na minha própria casa.
- Podemos dizer que me senti mal. Podemos dizer.
A mão dele apertou-lhe o ombro com força, magoando-a, silenciando-a. Tentou reprimir um estremecimento de repugnância ao sentir a palma da mão dele na sua pele.
- Não diremos nada. Não irá a lado nenhum. Espero que continue a mostrar a sua gratidão pela minha generosidade. Se me agradar, o nosso acordo pode continuar. Sei que gosta dos vestidos e dos conjuntos, Rose. Quer as comodidades e coisas boas de que a desgraça da sua família a privou.
Ela sentiu um nó na garganta. Pestanejou para afastar as primeiras lágrimas do dia.
- Compreendeu-me mal.
- Deu-me a sua inocência madura e os seus favores. Aceitou os meus presentes. Não houve qualquer mal entendido.
Inclinou-se até o seu rosto estar a centímetros do dela. Rose combateu o impulso de se afastar da tez avermelhada e dos olhos claros e cabelo arruivado do homem que em tempos respeitara. Até conseguira convencer-se a si própria de que ele era atraente.
- Estamos entendidos, não é verdade? - perguntou, em tom autoritário. - Esta noite não haverá mais delicadezas infantis.
A sua boca formou uma linha tão dura que ela se sentiu grata por haver outras pessoas presentes. A mão no seu ombro apertou com mais força.
- Consegue levar a paciência de um homem ao limite, Rose.
Sentiu de novo um arrepio que lhe percorreu a espinha. Perscrutou a expressão dele, em busca de sinais do homem jovial que ainda há tão pouco tempo julgava que a amava. Não encontrou nenhum. Claro que não. Esse homem nunca existira.
Uma ligeira perturbação interrompeu aquela luta de vontades silenciosa. O mordomo entrou na sala. Norbury aceitou o cartão que ele lhe apresentou numa salva de prata. Leu-o e afastou-se.
Abriu as portas que davam para a biblioteca. Antes de a porta se fechar Rose vislumbrou um cavalheiro alto, de cabelo escuro, que o aguardava.
Sentiu o estômago às voltas e combateu o pânico que ameaçava invadi-la.
Fora novamente estúpida. Ignorante e cega. Aquilo que suportara até agora não era nada. Essa noite seria a sua verdadeira descida aos infernos.
Norbury parecia zangado quando entrou na biblioteca. Kyle apanhou um vislumbre da sala antes de as portas se fecharem.
- Bradwell, estava à sua espera mais cedo.
- Os topógrafos demoraram mais do que esperávamos. - Kyle apontou para a sala. - Vejo que tem visitas. Posso voltar amanhã.
- Não é necessário. Já cá está. Vamos ver o que tem. - O rosto de Norbury franziu-se num sorriso que pretendia ser tranquilizador.
Kyle depreendeu que o aborrecimento não era com a sua chegada tardia, mas com qualquer outra coisa. Tal como a maior parte dos homens da sua posição, o visconde Norbury, filho e herdeiro do conde de Cottington, não aceitava bem as contrariedades. Esperava que todos, excepto os seus pares, presumissem que tudo o que ele dizia ou fazia estava correcto. Parecia que alguém na sala de estar não se sujeitara a essas regras.
Kyle desenrolou sobre a secretária um grande rolo de papel e Norbury debruçou-se sobre ele. Estudou atentamente o mapa e depois colocou o dedo numa secção vazia perto de um curso de água.
- Porque deixou isto vazio? Cabia aqui outra propriedade. E de bom tamanho.
- O seu pai não quer mais nenhuma casa visível das traseiras do solar. com o rio, não há forma de usar essas terras sem posicionar a nova casa.
- Ele já não está em condições de tomar essas decisões. Sabe-o bem. Foi por isso que me entregou a gestão dos seus negócios.
- Mas as terras ainda são dele e transmitiu-me directamente os seus desejos.
A raiva de Norbury era agora decididamente dirigida a Kyle.
- É mesmo típico dele. Concordou em dividir uma das nossas propriedades em lotes mais pequenos para pessoas como os seus amigos novos-ricos, mas depois preocupa-se com as vistas do velho solar. Nunca o usamos, por que raio está ele preocupado? Estou a dizer-lhe para colocar outra aqui. Será o melhor lote e o que alcançará o preço mais alto.
Kyle não tinha qualquer interesse em discutir e ressentiu-se por ter de o fazer. Norbury não percebia nada de desenvolvimento de terras. Não sabia avaliar os melhores lotes, muito menos os preços que estes alcançariam. A sua família estava apenas a fornecer os terrenos e teria bons lucros com isso. O verdadeiro risco seria de Kyle e dos outros investidores que estavam a juntar-se ao consórcio para construir aquelas casas e estradas.
- Os desejos do seu pai podem ser irreflectidos, na sua opinião, mas não perderemos nada em respeitá-los. Os compradores também não desejarão olhar para o solar, tal como a sua família não deseja olhar para baixo e vê-los. Além disso, para desenvolver essa secção teríamos de avançar esta estrada aqui, o que corta duas outras parcelas e assim reduz o seu valor.
Norbury seguiu o dedo de Kyle quando este o deslocou sobre o mapa. Não gostava de estar errado. Nenhum homem gostava.
- bom, Kyle, suponho que está bem como está - disse, por fim.
Soava como uma aceitação, mas Kyle sabia que cada palavra fora escolhida por uma razão. "Como está" implicava que podia estar melhor. "Suponho" era a forma de o lorde dar a sua aprovação, de má vontade. E tratá-lo por Kyle era a maior forma de condescendência.
Conheciam-se muito bem um ao outro. Tinham-se encontrado muitas vezes ao longo dos anos, desde que eram rapazes. Mas, mesmo que gostassem um do outro, que não era o caso, a grande divergência de posição social e antigas discórdias significavam que nunca poderiam ser amigos. Norbury esforçava-se para evitar quaisquer mal-entendidos nesse aspecto. A forma como se dirigira a ele era uma maneira de pôr o arrivista no seu devido lugar, que era muito abaixo de Cottington e de Norbury. Escusado será dizer que Kyle não podia responder com a mesma informalidade.
- Vamos ver os planos das casas - disse Norbury, falando no plural num tom imperativo.
Kyle desenrolou vários dos seus desenhos arquitectónicos. Tendo em conta o estado de espírito de Norbury, decidiu que as suas suspeitas estavam certas. Algum dos presentes na sala espicaçara o orgulho do seu anfitrião.
Não seria preciso muito. Norbury era jovial na maior parte do tempo, mas podia ser muito temperamental. E também não era particularmente inteligente. Às vezes era preciso apontar-lhe o óbvio, como os problemas com o desenvolvimento daquela parcela de terreno. Infelizmente, Norbury podia tornar-se cruel quando se apercebia de que fora apanhado a ser estúpido ou a fazer figura de idiota.
O ambiente tornou-se mais leve enquanto discutiam a colocação das divisões e quantos aposentos para criados as casas necessitavam. Kyle fingiu aceitar a opinião de Norbury, de que toda a gente precisava de uma dúzia de criados para viver com um nível mínimo de conforto.
- Invejo-lhe esta habilidade - disse Norbury com um suspiro, apontando para um dos desenhos. - Gostaria de ter estudado estas coisas. Se não fosse o meu estatuto, quem sabe, talvez o mundo tivesse outro arquitecto. Mas o dever chama, não é?
Kyle sorriu evasivamente enquanto enrolava os desenhos.
- Vemo-nos em Londres, conforme planeado. Levarei os planos definitivos para a reunião.
- Prepare-se para uma longa tarde. Nessa altura já devemos ter recebido notícias de França sobre o Longworth, e o grupo reunir-se-á primeiro para decidir o caminho a seguir.
- Espero que isso esteja despachado em breve. E uma distracção.
- Não tema, a justiça será feita. Todos o jurámos. - Num acesso de boa disposição, como era capaz de ter ocasionalmente, Norbury ajudou-o a prender os desenhos.
Kyle preparava-se para sair, mas reparou que o seu anfitrião o examinava com expressão crítica.
O seu casaco não está muito sujo, tendo em conta que passou o dia nos campos.
- Não estive a plantar sebes.
- Na verdade, é um belo casaco. Diria mesmo que é mais do que apresentável.
- Faço os possíveis.
- Quero dizer que é suficientemente apresentável para poder juntar-se a nós ao jantar. - Inclinou a cabeça na direcção da sala. - Disse ao mordomo para chamar os meus convidados para a mesa e que me juntaria a eles quando estivéssemos despachados. Tem de vir comigo.
Norbury dirigiu-se à porta como um homem que esperava ser seguido.
- Achará o grupo muito divertido.
Como homem de negócios que era, Kyle nunca perdia uma oportunidade de se juntar a pessoas de dinheiro e posição elevada. E os cavalheiros não se importavam de o conhecer. O dinheiro era mais importante do que o sangue, na verdade, e ele tinha talento para ajudar os ricos a ficarem mais ricos.
Seguiu Norbury até à sala de jantar. Os sons abafados de uma festa animada transformaram-se num rugido quando as portas se abriram.
Kyle olhou para o grupo e percebeu de imediato que não faria quaisquer contactos de negócios nessa noite. Os homens podiam pertencer à boa sociedade, mas as mulheres não. Eram prostitutas vulgares, pintadas e exuberantes. Estavam completamente ébrias.
Excepto uma.
Uma mulher loura, extraordinariamente bela e elegante, sentada em silêncio na extremidade mais distante da mesa. Parecia não estar a reparar nos outros convidados. Olhava em frente, para o nada, com uma expressão de passividade.
Tudo nela, desde o toucado de plumas discreto, ao vestido de noite cor-de-rosa, à educação que lhe tinha dado tal aprumo e dignidade, a distinguia tanto das mulheres como dos homens que haviam abandonado todo o comedimento.
Kyle reconheceu-a. Vira-a pela primeira vez no teatro, há cerca de dois anos. Mal conseguira seguir a peça que se desenrolava no palco depois de avistar aquele rosto encantador.
Olhou para Norbury.
- O que está a fazer aqui a irmã do Timothy Longworth?
- Seduzi-a. Na verdade, quase não tive de me esforçar. Parece que o mau sangue corre nas veias de toda a família. Já fiz um pouco de justiça, enquanto espero para ver aquele canalha enforcado.
Roselyn tivera esperança de que o cavalheiro recém-chegado trouxesse notícias de algum desastre que obrigasse Lord Norbury a ausentar-se durante vários dias.
Sentiu-se agoniada quando, em vez disso, Norbury regressou à festa. Um estremecimento de desprezo percorreu-a enquanto ele se dirigia à cadeira vazia ao seu lado.
Viu que duas pessoas tinham reparado na sua reacção. O cavalheiro alto e moreno da biblioteca entrou com Norbury. Ao sentar-se na outra ponta da mesa, olhou para ela. Uma vaga alteração na sua expressão sugeria que ele se apercebera da repugnância que a invadira.
Do outro lado da mesa, uma mulher chamada Katy também reparou. Os seus olhos brilhantes viraram-se para Norbury e depois cruzaram-se com os de Rose.
Rose preparou-se para ver satisfação e desprezo pela dama orgulhosa que estava a ser reduzida à sua insignificância, mas Katy lançou-lhe um sorriso compreensivo. Os homens que a ladeavam estavam imersos em conversação e ela inclinou-se para a frente e disse em tom confidencial:
- Não está a correr muito bem, pois não?
A observação ficava tão aquém da realidade que Rose quase se riu.
- Não, nada bem mesmo.
Katy abanou a cabeça, exasperada.
- Ele já devia saber e você também. Não estabeleceram previamente as condições, pois não? Tem de se fazer isso logo ao início, onde quer que seja que ele a tenha encontrado, ou as coisas podem correr mal.
- Assim parece. - Norbury fizera uma pausa para conversar com um amigo, mas estaria sentado ao lado dela dentro de instantes.
- Eles são como rapazinhos, percebe. Se a mamã proíbe terminantemente as guloseimas, então eles já sabem que não vai haver guloseimas. Mas há sempre aqueles que não dão ouvidos, claro. Há sempre aqueles que gostam de fazer a mamã chorar, mas a maioria deles sabe onde encontrar aquilo que quer. Não é preciso magoar uma rapariga se há outra que fará tudo pelo mesmo preço, pois não?
Rose não podia discutir com a experiência ou a lógica de Katy. Sentiu Norbury aproximar-se e preparou-se. Katy olhou para o seu vestido e toucado.
- Podemos trocar, se quiser. Aqui o George é fácil e eu não me importo de tratar de homens como Sua Senhoria, desde que o preço seja bom.
- Obrigada, mas não quero o George. Não quero nenhum deles. Quero.
- Vejo que finalmente se dignou a falar. - Lord Norbury sentou-se ao lado dela. - Fico satisfeito. Não quero que cause mau ambiente na festa.
Os olhos de Katy mantiveram a oferta. Rose olhou para George, o corpulento irmão de um barão, que reparou e sorriu, encantado.
Katy decidiu que isso bastava como sinal de assentimento. Começou a namoriscar sem pudor com Lord Norbury. Rose tentou desesperadamente pensar numa estratégia para o caso de a troca realmente se concretizar.
O recém-chegado que entrara com Norbury olhou para ela. Parecia maior e mais forte do que os cavalheiros embriagados, ou talvez o mero facto de estar sóbrio criasse essa ilusão. Sentou-se ao lado de uma das mulheres, falando de vez em quando com ela e com o homem do outro lado da mesa. Mas, essencialmente, limitou-se a observar os outros enquanto comia.
Não havia nada refinado ou suave no seu rosto, mas era bastante atraente. Não vestia um fato de cerimónia, mas isso fazia pouca diferença na atmosfera informal da sala. As roupas que envergava eram totalmente irrepreensíveis. Era como se tivesse ido ao alfaiate e pedido roupas caras, de um corte e tecido a que ninguém pudesse fazer o mínimo reparo.
Katy parecia estar a fazer progressos na sua sedução a Lord Norbury. Mas, mesmo enquanto trocava insinuações chocantes
com Katy, Lord Norbury continuava a dar atenção a Rose. Ela tentou, em vão, ler os seus pensamentos. Era evidente que ele estava a preparar alguma coisa.
Depois Norbury levantou-se para se dirigir aos seus convidados. O silêncio instalou-se na mesa.
- Ocorreu-me que alguns de vós podem não conhecer muito bem um dos convidados presentes - disse. - Gostava de lhes possibilitar um conhecimento mais profundo.
Rose esperava que ele apresentasse o recém-chegado na outra ponta da mesa, mas Norbury estendeu-lhe a mão.
- Levante-se, minha querida.
Não podia fazer outra coisa senão obedecer. Todos os olhos estavam fixos nela. Os únicos sóbrios pertenciam ao recém-chegado.
- As belas donzelas aqui presentes devem estar a pensar quem será esta dama orgulhosa - disse Norbury. - Miss Longworth é irmã de um homem que fugiu às suas dívidas, e bem consideráveis eram. É de bom berço, mas não o suficiente, a sua fortuna há muito desapareceu e os seus parentes são demasiado afastados para terem qualquer significado. A sua última queda, mais precisamente para a minha cama, talvez tenha sido demasiado precipitada. Ela prefere presentes a dinheiro, para poder fingir que as coisas não são aquilo que são. Encheu-se de ideias românticas, quando me limitei a sugerir um bom acordo de negócios.
Rose cerrou os dentes para não chorar nem gritar. Toda a gente estava a olhar para ela, a rir. Até Katy. Todas as prostitutas acenaram com a cabeça. Sim, Miss Longworth era uma dessas damas que gostavam de fingir. Aquelas que nunca fingiam sentiam pouca simpatia por ela.
Não, nem toda a gente estava a olhar. O novo convidado parecia não estar a ouvir. Bebeu um gole do seu vinho como se o espectáculo não estivesse a acontecer.
- Ora, o que se passa é o seguinte - continuou Norbury. Tenho aqui esta mulher, mas fartei-me dela. Arrependo-me da indulgência e dos presentes que lhe permitem estar tão bela entre as restantes. Na verdade, estou de olho noutra. - Olhou de lado para Katy, que tentou parecer tímida e surpreendida. - O George parece achar que se impõe aqui uma simples troca. Deixe-se de coisas, George, bem o vi a namoriscar. Mas estou a pensar que talvez possa
recuperar o que perdi com este vestido e outras coisas. Então, que me dizem, cavalheiros? Leiloamos Miss Longworth?
O grupo achou que um leilão seria tremendamente divertido. Risos e gritos ecoaram no tecto enquanto todos se preparavam para passar um bom bocado.
Rose não conseguiu esconder o seu choque e horror. Virou-se para Norbury e deixou que ele o visse, o que só aumentou a satisfação dele.
- Não admito este ultraje. - Ela afastou a cadeira e virou-se para sair. Uma mão no seu braço deteve-a.
- Ela é temperamental e precisa de ser domada, cavalheiros. Só isso deve valer bom dinheiro para alguns de vós. - Apertou-a com força. Apesar do sorriso, o seu olhar era ameaçador.
Alguns dos homens endireitaram-se e olharam melhor para ela. Rose sentiu-se agoniada ao perceber que a ideia de uma mulher contrariada era, na verdade, excitante para eles.
- Deixem-me ver, devia apregoá-la um pouco, não devia? Norbury fingiu estar a pensar.
Ela teve vontade de lhe bater. Não, queria matá-lo. Tentou puxar o braço mas os dedos dele apenas se cravaram mais.
- Não fará uma coisa destas. Ele ignorou-a.
- bom, como todos podem ver, é muito bela. Sempre achei que era uma das mulheres mais belas de Londres.
- Essa beleza não durará muito - avisou uma das prostitutas.
- É uns bons anos mais velha do que eu, parece-me.
- É verdade que está a amadurecer, mas o homem que a levar já se terá livrado dela muito antes de a sua beleza deliciosa começar a desaparecer. - Coçou a cabeça. - Por uma questão de justiça, tenho de descrever também os seus defeitos, não é? Como hei-de dizê-lo delicadamente? Não há maneira, suponho. A honra obriga-me a revelar que ela não é uma mulher particularmente calorosa, se os cavalheiros me entendem.
Rose agarrou-se à fúria para não desfalecer. Mas os rostos pareceram multiplicar-se e mover-se, até que se sentiu como se estivesse no cadafalso em frente de cem rostos com expressões mal-intencionadas.
- Tenho também de dizer que, devido à sua iniciação tardia, ainda precisa de um treino considerável.
Deus do céu.
- Eu podia dar-lhe algumas lições - ofereceu uma das prostitutas em tom confiante.
Norbury fez-lhe uma vénia.
- Minha cara, no livro do conhecimento carnal, você está a escrever o capítulo vinte e Miss Longworth ainda não começou a ler o capítulo dois. Há homens que apreciam o papel de professor, e são estes que devem abrir os cordões à bolsa.
Rose recusou-se a reagir. O interesse de mais alguns homens despertou subitamente. Norbury apertou-lhe ainda mais o braço, que estava agora quase dormente.
- Contudo, em sua defesa, posso oferecer vários pontos disse. - Primeiro, não é gananciosa. Segundo, para aqueles que, como eu, foram prejudicados pela ruína do irmão, os seus favores são uma forma de pagamento.
De novo chocada, ela não conseguiu manter a pose de indiferença. Virou-se e olhou para ele. Não fazia ideia de que Norbury fora afectado por isso. Não fazia a mínima ideia.
Não compreendera as coisas tão bem como pensara, afinal. Ele perseguira-a e seduzira-a deliberadamente por vingança.
O canalha.
- .e terceiro, tem uns mamilos escuros extraordinariamente eróticos, para uma mulher tão loura.
Os convidados enlouqueceram. Entre os gritos, alguns exigiram ver os encantos que Norbury acabara de prometer.
Rose falou de forma a que apenas ele ouvisse.
- Nem sequer sonhe em humilhar-me ainda mais obedecendo a essa sugestão. Se ousar tentar, reagirei com violência e irei para o cadafalso de bom grado.
O sorriso de Lord Norbury vacilou. Abriu a licitação.
- Vinte e cinco libras - ofereceu George
- Trinnta!
- Trinta e cinco - subiu George, depois de uma pausa pouco galante.
- Cinquenta!
- Sessenta - um cavalheiro de olhar matreiro juntou-se à licitação. Rose reconheceu-o como Sir Maurice Fenwick. O interesse dele horrorizou-a. Era pouco provável que o seu consentimento tivesse muita importância para aquele homem.
- Sessenta e cinco - disse George em tom definitivo.
- Setenta.
- Setenta e cinco - subiu imediatamente Sir Maurice.
- Novecentas e cinquenta libras. - O lance calmo, feito em tom moderado, pareceu surgir do nada.
Um silêncio chocado abateu-se sobre a mesa por instantes, depois a sala encheu-se com um coro de murmúrios. Todos olharam em volta para ver que cavalheiro embriagado perdera o juízo.
Roselyn estava tão espantada como os restantes. E muito preocupada. Uma coisa seria negar a um homem o que comprara por setenta e cinco libras. Um homem disposto a pagar novecentas e cinquenta seria provavelmente menos fácil de levar.
O grupo virou a sua atenção para o fundo da mesa, onde o convidado recém-chegado bebia o seu vinho.
Lord Norbury fitou-o de testa franzida.
- Novecentas e cinquenta libras, Bradwell? com certeza enganou-se.
O convidado chamou um criado e murmurou-lhe qualquer coisa, depois olhou para Norbury com expressão séria.
- De todo. Por favor, continue com a licitação.
Norbury percorreu a mesa com o olhar, mas o lance elevado acabara com o leilão. Mr. Bradwell esperou, como um homem sem qualquer pressa. Parecia estar mais interessado em admirar os candelabros na mesa do que no jogo no qual entrara.
Quando o silêncio se prolongara tempo suficiente, levantou-se e atravessou a sala.
Rose estudou o seu tamanho e porte. O seu instinto disse-lhe que estaria melhor com o corpulento e alegre George, ou mesmo com o perigoso Sir Maurice. Talvez até tivesse sido melhor ficar com Lord Norbury, que, acabara de descobrir, a julgava capaz da violência com que ela o ameaçara.
Não havia nada visivelmente sinistro em Mr. Bradwell. A sua indumentária muito apresentável e perfeitamente confeccionada, o cabelo escuro e ondulado, tudo o distinguia como um homem de
posses, ainda mais do que o seu lance no leilão. O seu rosto, sob a luz das velas, parecia esculpido em pedra. Se alguém lhe chamasse atraente, que o era, teria vontade de acrescentar "à maneira dele".
A sua pele tinha mais cor do que os rostos dos outros homens presentes, como se passasse bastante tempo ao ar livre, e a forma como o casaco lhe assentava nos ombros revelava que praticava desporto. A força via-se na sua estrutura elevada e nos movimentos fluidos e confiantes.
Não havia nada particularmente ameaçador nele, mas assustou-a apesar disso. Rose sentiu que o ar se afastava para o deixar passar. A cautela que a invadiu era semelhante à que uma pessoa sente quando encontra um cão desconhecido na rua. Os seus instintos diziam-lhe que seria sensato passar bastante ao largo daquele animal.
Ele parou ao lado de Norbury e as velas iluminaram-lhe o rosto. Rose viu os olhos mais azuis que alguma vez vira. Aqueles lagos profundos não se viraram para ela. Em vez disso, fixaram-se no homem que ainda lhe segurava no braço com a força de um torno.
- Estamos despachados? - perguntou Mr. Bradwell calmamente. - Ou sente-se obrigado a arrematá-la?
Embora "arrematar" fosse uma expressão de leilão, Lord Norbury pareceu achar que havia segundos sentidos nas palavras. Corou.
- É louco por gastar tanto dinheiro.
- Certamente, mas se um homem não pode fazer loucuras por uma mulher bela, para que serve o dinheiro?
- Fê-lo apenas para. - Norbury calou-se antes de terminar a acusação petulante. Os reflexos gelados iluminaram-lhe os olhos.
- Veja onde o seu orgulho a levou, Rosie. De um visconde para um homem nascido nas minas de Durham. A sua queda pode muito bem ser a mais rápida na história da prostituição.
Mr. Bradwell não reagiu ao insulto.
- Pode largá-la, agora. Ela vem comigo. O dinheiro será entregue na sua casa de Londres dentro de dois dias.
Lord Norbury soltou-a. Rose viu as marcas dos seus dedos na pele. Mr. Bradwell também as viu. Uma expressão subtil de raiva passou-lhe brevemente pelo rosto calmo. A energia animal daquele homem era incontrolável. Tratava-se de alguém que não gostava que os outros danificassem o que era seu.
- Está impaciente, é? - disse Norbury em voz alta, para diversão dos restantes.
- Sem dúvida - disse Mr. Bradwell. - Venha comigo, Miss Longworth.
Ela não queria ir com ele. Não esperava que ele continuasse a portar-se como um cavalheiro assim que estivessem sozinhos. Sentiu o estômago às voltas só de pensar no que a esperava.
Ele inclinou-se para ela. Deus do céu, ia beijá-la! Em frente de toda a gente!
O beijo foi apenas um roçar de lábios, mas a sala explodiu em aplausos e gritos. Enquanto o seu rosto estava perto do de Rose e a sua boca junto da orelha dela, ele falou de novo:
- Não resista. Já se divertiram o suficiente às suas custas, imagino que não queira dar-lhes mais espectáculo.
Ela não teve escolha senão aceitar que ele a escoltasse; caso contrário, cumpriria a ameaça de causar mais espectáculo. Reunindo o melhor que pôde os restos esfarrapados da sua dignidade, preparando-se para a batalha iminente, acompanhou o homem que a comprara e saiu da sala.
CAPÍTULO 2
Miss Longworth caminhou ao lado dele como uma rainha. Kyle admirou-a ao ver como escondia bem a sua humilhação. Mais ninguém se apercebeu das lágrimas nos seus olhos.
Quase se foi abaixo quando as portas se fecharam atrás deles. Quase. Uma longa pausa nos degraus, uma inspiração profunda e continuou a andar.
Ela recusava-se a olhar para ele. Claro. Encontrava-se numa posição muito vulnerável. Ambos sabiam que estava à mercê dele. A quantia que licitara por ela dava-lhe razões para se preocupar.
Novecentas e cinquenta libras. Fora um idiota. Mas a alternativa era permitir que aquele leilão sólido prosseguisse. E não teria sido George, gordo e manipulável, o vencedor.
Sir Maurice Fenwick estava determinado a ficar com ela, e a maneira como examinara o objecto para venda não abonava a favor das suas intenções. Sir Maurice era famoso pelos seus excessos sombrios.
- Mandei que me trouxessem a carruagem - disse ele. - Suba com o criado e arrume as suas coisas. Ele trará a sua bagagem para baixo. Seja rápida.
A postura de Rose endireitou-se mais.
- Não necessito de fazer as malas. Tudo o que tenho lá em cima foi mal ganho e não quero qualquer recordação do homem que mo ofereceu.
- Pagou bem caro por cada vestido e cada jóia. Seria tola se os deixasse ficar.
O rosto encantador manteve-se calmo e perfeito, mas as centelhas nos olhos dela desafiavam-no a tornar ainda pior uma noite já horrível.
- Muito bem, como quiser. - Despiu o casaco e colocou-o sobre os ombros dela, fazendo-lhe sinal para o seguir.
- Não vou consigo.
- Acredite que vem. E já, antes que o Norbury pense melhor e decida não o permitir.
Rose manteve os olhos fixos no lado da cabeça dele. Era como se estivesse a tentar ver através de uma peça de mobiliário que lhe obstruísse a visão.
Kyle admirou o seu orgulho. Mas, naquele momento, era inoportuno e um aborrecimento. Perguntou-se se ela se aperceberia do quão perigosa fora a sua posição naquela casa, e ainda era.
- Estou certa de que sabe que não concordei com aquele espectáculo, Mr. Bradwell.
- Não? Raios. Que desilusão.
- Parece divertido. Tem um sentido de humor estranho.
- E você escolheu uma má altura e local para esta conversa. Ela recusou-se a ceder.
- Se for consigo, para onde me levará?
- Talvez para um bordel, para poder recuperar aquilo que vou pagar a Lord Norbury. Não parece justo privar-me do preço e do prémio, não acha?
Rose olhou abruptamente para o rosto dele. Tentou esboçar uma expressão desdenhosa, mas o medo era suficientemente evidente para fazer com que ele se arrependesse da sua resposta cruel.
- Miss Longworth, temos de partir já. Estará em segurança, prometo-lhe. - Forçou a situação passando o braço sobre os ombros dela e levando-a do vestíbulo.
Já estavam à porta da carruagem quando ela resistiu. Estacou abruptamente e olhou para o espaço escuro e fechado. Ele fez um esforço para ser paciente.
De súbito, o seu casaco atingiu-o no rosto. Afastou-o e viu-a a descer o caminho, na noite. O cabelo e vestido claros faziam com que parecesse um sonho.
Provavelmente devia deixá-la ir. Mas ela não tinha, para onde ir, especialmente com aqueles sapatinhos finos que as mulheres usavam em jantares elegantes. A cidade ou quinta mais próxima ficavam a vários quilómetros. Se lhe acontecesse alguma coisa.
Atirou o casaco para dentro da carruagem, disse ao cocheiro para o seguir e foi atrás dela.
- Miss Longworth, não posso permitir que parta sozinha. Está escuro, o caminho é perigoso e está frio - mal ergueu a voz, mas ela ouviu-o muito bem. Virou a cabeça rapidamente para avaliar a que distância ele estava.
- Garanto-lhe que estará em segurança comigo. - Caminhou mais depressa mas ela fez o mesmo e virou na direcção do bosque que ladeava o caminho. - Perdoe-me pela minha piada grosseira. Volte e entre na carruagem.
Ela começou a correr para o bosque. Se lá chegasse, Kyle teria de perder horas à sua procura. O arvoredo denso não deixava entrar o luar.
Correu atrás dela, ganhando rapidamente terreno. Ela correu mais depressa quando ouviu as suas botas a aproximarem-se. O cheiro do seu medo chegou até ele na brisa fria.
Ela gritou quando Kyle a apanhou. Perdeu a cabeça, lutou e arranhou-o. As suas unhas encontraram o rosto dele.
Kyle segurou-lhe as mãos e prendeu-as atrás das costas dela com a sua mão esquerda. Prendeu-lhe o corpo com o braço direito e apertou-a contra si.
Rose gritou de fúria e indignação. A noite engoliu os sons. Ela contorceu-se como uma louca furiosa, mas ele apertou-a mais.
- Pare com isso! - ordenou. - Não vou fazer-lhe mal. Já lhe disse que está segura comigo.
- Mente! É um patife como os outros!
No entanto, acalmou-se de súbito e ergueu os olhos para ele. O luar mostrava a sua raiva e angústia, mas o seu olhar era determinado.
Depois ela apertou mais o corpo contra o dele. Kyle sentiu os seios dela contra o peito. O contacto voluntário surpreendeu-o. Reagiu como qualquer homem reagiria, instantaneamente. Ela sentiu a sua erecção.
- Está a ver? Como todos eles - disse ela. - Seria louca se confiasse em si.
Kyle mal a ouviu. O seu rosto sob o luar era muito belo. Hipnótico. O momento prolongou-se e ele esqueceu o que levara àquele abraço. Só se apercebeu de todos os locais onde os corpos de ambos se tocavam e da suavidade do corpo que segurava. O desejo ribombou na sua cabeça.
A expressão dela suavizou-se. Abriu mais os olhos numa expressão encantadora de espanto. Os seus lábios entreabriram-se. A vontade de lutar abandonou-a por completo e tornou-se maleável nos braços dele.
Esticou-se para receber o beijo que ele queria dar-lhe e o luar realçou ainda mais a sua perfeição.
Mas, de súbito, revelou também os dentes dela, arreganhados em direcção ao seu rosto.
Kyle afastou a cabeça mesmo a tempo. Ela aproveitou a oportunidade para tentar libertar-se novamente.
Amaldiçoando-se a si próprio por ser outra vez um idiota, baixou-se e colocou Rose sobre o ombro. Ela bateu-lhe nas costas com os punhos fechados. Amaldiçoou-o o caminho todo até à carruagem.
Kyle atirou-a para dentro da carruagem e sentou-se em frente dela.
- Se me atacar de novo, ponho-a ao colo e dou-lhe umas palmadas. Não represento qualquer perigo para si e diabos me levem se a vou deixar arranhar-me e morder-me depois de eu ter pago uma fortuna para a salvar de homens que, eles sim, são perigosos.
Não percebeu se tinha sido a ameaça que a subjugara ou se ela simplesmente desistira. A carruagem começou a andar. Encontrou o casaco por baixo dos rolos de desenhos e estendeu-lho.
- Vista isto para não ter frio.
Rose obedeceu. O seu medo e cautela encheram o ar durante vários quilómetros silenciosos.
- Novecentas e cinquenta libras foi um preço muito elevado para pagar por nada - disse ela, por fim.
- A alternativa era deixar um homem pagar muito menos por algo, não era?
Ela pareceu encolher dentro do casaco.
- Obrigada - pronunciou numa vozinha trémula.
Não estava a chorar, embora tivesse boas razões para o fazer. O seu orgulho, tão admirável meia hora antes, agora irritava-o. Os arranhões que lhe ardiam no rosto tinham provavelmente alguma coisa a ver com isso.
Pensou se ela compreenderia as consequências daquela noite. Escapara aos abusos de um homem, mas não escaparia à desgraça quando o mundo soubesse da festa e do leilão. E ele não tinha a menor dúvida de que o mundo ia saber.
Talvez agora, na calmaria após a tempestade, ela estivesse a avaliar os custos, tal como ele estava a avaliar os seus. Norbury ficara furioso com a sua interferência. Não gostara que ele lhe tivesse estragado a diversão e interferido na sua vingança. O conde de Cottington podia ser o benfeitor, mas era o seu herdeiro que tinha agora os cordões da bolsa e a influência.
- Peço desculpa por ter perdido a cabeça.
- É compreensível, depois do que passou. - Às vezes ainda o impressionava, como conseguira aprender bem as lições e a sintaxe do discurso refinado. Tinham-se tornado uma segunda natureza, mas às vezes a primeira natureza ainda falava na sua cabeça. Bem podes pedir desculpa.
- Tenho tanta sorte por ter aparecido. Estou tão feliz por haver ali um homem sóbrio, capaz de se sentir horrorizado com o que o Norbury estava a fazer, e imune aos seus engodos perversos.
Oh, ele ficara horrorizado, mas não era de forma alguma imune. Afinal de contas, pagara uma fortuna.
Algumas imagens especulativas passaram-lhe pela cabeça relativamente ao que teria comprado se não fosse tão decente. Aquele abraço no caminho tornou a breve fantasia bastante vívida.
Deu graças pela escuridão, por Rose não poder ver os seus pensamentos. Também não conseguia ver o rosto dela, e ainda bem. Possuía o tipo de beleza que deixava metade da alma de um homem perpetuamente estupefacta. Não lhe agradava esse tipo de desvantagem.
- Posso fazer-lhe algumas perguntas? - Ela parecia de novo recomposta. A dama fora salva, como era seu direito. Dormiria satisfeita essa noite.
- Pode perguntar-me o que quiser.
- O montante do seu lance foi estranho. Julgo que cem libras teriam sido suficientes.
- Se eu tivesse oferecido cem, Sir Maurice teria oferecido duzentas, e, quando acabássemos, talvez o montante fosse muito superior ao que paguei. Milhares, até. Licitei muito alto para chocar os restantes e os reduzir ao silêncio.
- Se ele teria oferecido milhares, porque não ofereceria mil?
- Uma coisa é saltar de cem para duzentas, e depois para quatrocentas, e por aí fora. Outra coisa é saltar de setenta e cinco para mil. E teria de ser mil, claro. Novecentos e setenta e cinco pareceria mesquinho e sovina.
- Sim, compreendo o que quer dizer. Licitar mil tão cedo ou de imediato faria qualquer um hesitar. É inegavelmente uma quantia muito disparatada.
Também novecentas e cinquenta o eram, especialmente quando ele mal tinha esse dinheiro. Um ano antes, não teria dificuldade em cobrir a licitação, embora fossem poucos os homens que podiam gabar-se de não dar por um rombo desses na sua bolsa. Dali a um ano, provavelmente poderia fazê-lo também. Mas, naquele momento, pagar a Norbury faria com que as suas finanças já de si periclitantes, ficassem ainda mais frágeis.
Miss Longworth escolhera uma má altura para precisar de salvação. Mas era a única coisa que ele podia ter feito. Queria acreditar que teria feito o mesmo por qualquer mulher.
Claro, ela não era uma mulher qualquer. Era Roselyn Longworth. Fora vulnerável à sedução de Norbury porque os actos criminosos do irmão a tinham deixado na ruína. Não lhe passou ao lado a ironia de Timothy Longworth ter, de certa forma, acabado de conseguir tirar ainda mais dinheiro do bolso de Kyle Bradwell.
- Julgo que sabe que nunca poderei pagar-lhe as novecentas e cinquenta libras. Talvez esteja à espera que eu concorde em pagá-las de outras formas? Talvez pense que eu me sinta obrigada, eliminando assim a questão do importuno.
Era isso que ela pensava que tinha acontecido no bosque? Ele não estava a pensar em pagamentos, não estava a pensar em nada, na verdade. Nem achava que ela se tivesse sentido obrigada a corresponder
como correspondera. E ela correspondera. Antes de tentar morder-lhe, claro.
- Não tenho quaisquer expectativas ou ilusões de gozar os seus favores dessa forma ou por esses motivos, Miss Longworth.
Céus, que nobre que me saíste, Kyle. E um idiota, tão elegante, também.
Mas não conseguia afastar as especulações. A recordação daquele abraço estava bem viva. Provavelmente cederia a algumas fantasias. Já que as pagara bem caro, não se sentiria culpado.
- Talvez tenha mencionado o bordel apenas para se certificar de que eu compreendo que o que aconteceu esta noite faz com que eu não sirva para muito mais. Estou bem consciente disso. compreendo o preço elevado do que aconteceu.
Sim, provavelmente compreendia. Mas a sua compostura fazia-o questionar-se. E o rapaz das minas de carvão de Durham ressentia-se dessa compostura recuperada, ao mesmo tempo que a admirava. Uma mulher irremediavelmente desgraçada não devia ser tão fria. Devia chorar, como as mulheres na sua aldeia de mineiros choravam as suas perdas.
- Miss Longworth, o preço que pagará não terá nada a ver comigo. Perdoe-me por a ter tratado de forma tão cruel. O meu aborrecimento pelo preço que eu próprio paguei levou a melhor sobre mim.
Ela inclinou-se para a frente, como se estivesse a tentar perceber se ele era sincero. O luar que entrava na carruagem dava forma às suas feições - os olhos grandes e os lábios cheios e o rosto perfeito. Mesmo essa visão fugaz da sua beleza deixava-o sem fôlego.
- Foi muito amável e galante, Mr. Bradwell. Se quiser censurar-me e recordar-me o papel que desempenhei na minha própria desgraça, suponho que devo ser graciosa o suficiente para o ouvir.
Ele não a censurou. Não falou muito, sobre uma coisa ou outra. E ela quase desejou que o fizesse. A breve conversa deixara-a menos constrangida. Durante os silêncios, tinha apenas a sua preocupação por companhia, e a presença dele sufocava-a.
Não podia afastar-se mais. O espaço livre na carruagem estava ocupado por grandes rolos de papel. Perguntou a si própria o que seriam.
Os seus instintos mantiveram-na alerta a qualquer movimento. Sabia que estava à mercê da honra daquele homem. Ele também o sabia e o momento, no bosque, confundira as coisas. Houvera um segundo ou dois, não mais do que isso, em que o abraço não fora forçado.
Afastou a recordação da mente. Não queria pensar mais em como a sua estupidez a levara tão depressa a compreender mal outro homem. Não queria recordar como se sentira excitada, mais facilmente do que convinha a uma mulher decente.
Ele falara do preço que pagara. A que se referiria, senão ao dinheiro? O nome dele ficaria ligado aos mexericos sobre a festa e à sua "compra", mas, como era um homem, tal não lhe destruiria a reputação. Até podia torná-lo mais interessante, em certos meios.
Talvez estivesse apenas a falar do dinheiro. Era uma soma enorme, para qualquer pessoa. Talvez não tivesse dinheiro para pagar essa estranha dívida.
Se não pagasse, seria destruído nos círculos que importavam. Na maior parte dos círculos, desconfiava ela. Mesmo naqueles das minas de Durham.
Essa referência fora interessante. O que quereria Norbury dizer com o comentário? O discurso e os modos de Mr. Bradwell não davam a entender que ele fosse tão comum.
- Se não vai levar-me para um bordel em Londres, para onde vamos?
- vou levá-la a casa da sua prima. O jornal do condado dizia que ela está neste momento na propriedade do marido, aqui no Kent.
Aquele homem continuava a surpreendê-la. Não só com aquela informação, mas também com o facto de estar a par dos movimentos da sua prima Alexia.
- Não sabia que ela tinha deixado a cidade. Quem me dera ter sabido. Podia ter fugido esta manhã e caminhado até lá.
- É pelo menos uma hora de caminho, de carruagem. Não poderia ir a pé. E parece-me que não teria conseguido fugir.
- Sabe se ela está sozinha?
- O jornal dizia que veio com a família.
Isso provavelmente queria dizer que Irene estava com ela. Pelo menos poderia ver a irmã antes de. Sentiu os olhos a arder e mordeu
o lábio com tanta força que sentiu o gosto de sangue. A perspectiva de ver Alexia e Irene abalara-a mais do que tudo até ali.
- Presumo que Lord Hayden está com ela - ouviu a sua própria voz a falhar. Os contornos de Mr. Bradwell ficaram desfocados. - Peço-lhe, não vamos importuná-los.
- Não posso ficar consigo numa estalagem.
- Não vejo porque não. A minha reputação já está totalmente arruinada.
- A minha não.
- Claro. Sim, compreendo. Peço perdão. Não quero sujeitá-lo a mais escândalos. Simplesmente Lord Hayden já foi demasiado amável e eu fui tão ingrata no passado, e aparecer agora à porta dele com esta situação horrível, desesperada.
Um soluço incontrolável estrangulou-lhe as palavras. Depois outro. Mordeu novamente o lábio, com força. Desta vez, não serviu de nada.
Ele pegou-lhe na mão e colocou um lenço nela. O contacto firme ficou gravado na sua pele e na sua mente. Não estava a magoá-la, como Norbury. Mas também não era fraco nem hesitante. Apenas cuidadoso e forte, e um pouco áspero. Como aquele abraço na orla do bosque.
Era o toque de um amigo. A sua desconfiança esfumou-se. Teve finalmente a certeza de que estava segura.
A sua compostura esfumou-se também. O seu salvador não fez qualquer tentativa para a consolar. Sabia que nada podia alterar o que ia acontecer.
A compostura de Rose aborrecera-o. Agora, o seu pranto deixava-o consternado.
Resistiu ao impulso de a apertar nos braços e de a reconfortar. Podia assustá-la. Sabia que ela ainda tinha dúvidas a seu respeito. No bosque, ela provara que ele a desejava, o que lhe dava bons motivos para desconfiar das suas motivações.
Rose continuou a chorar. Por fim, Kyle não aguentou mais. Afastou os mapas e sentou-se ao lado dela. Abraçou-a com cautela, pronto para se afastar rapidamente se ela quisesse estar só na sua infelicidade.
Mas ela não o repeliu. Chorou no ombro dele enquanto a abraçava. Kyle tentou ignorar a forte consciência que tinha do corpo frágil nos seus braços. Conteve as palavras falsas de consolo que queriam brotar dos seus lábios. Calculou que ela as rejeitaria de imediato. Suspeitava que ela nunca mais mentiria a si própria sobre nada.
A carruagem saiu da estrada principal e ela apercebeu-se de que a viagem estava a chegar ao fim. Corajosamente, tentou engolir as lágrimas. Kyle disse ao cocheiro para abrandar, de modo a dar-lhe mais tempo.
Ela recuperou a compostura pouco antes de chegarem à casa. Mas o abraço não se tornou constrangedor e Rose não fez qualquer tentativa de se afastar. Kyle segurou-a contra si até a carruagem parar.
Depois desceu e estendeu-lhe a mão.
Ela olhou para a casa. Viam-se as formas verticais de colunas clássicas e longos blocos de ambos os lados da fachada central.
- Estamos a meio da noite. Devem estar todos a dormir disse ela.
- Deve haver um criado ao pé da porta. Venha.
Ela pousou a mão na dele. Kyle sentiu uma aspereza subtil que o surpreendeu, mas o toque era essencialmente suave e quente. Ela desceu. Uma pausa, uma inspiração profunda e caminhou com ele até à porta. Deixou ficar a mão na de Kyle, como uma criança assustada.
Por fim, um criado abriu a porta.
- Esta é Miss Longworth, a prima de Lady Alexia - explicou Kyle. - Por favor, peça a Lord Hayden para nos receber, se estiver em casa.
O criado conduziu-os até à biblioteca. Kyle observou as proporções perfeitas da sala. O seu olho experiente reparou que até as colunas dóricas de madeira que decoravam as estantes de mogno eram fiéis ao antigo sistema de medida. Lord Hayden dava preferência a um classicismo puro, baseado em modelos gregos e não romanos.
Miss Longworth não quis sentar-se. Devolveu-lhe o casaco e depois percorreu a sala com passos nervosos, torcendo o lenço dele nas mãos.
- Importa-se de ficar enquanto eu explico, Mr. Bradwell? Por favor? Lord Hayden é bom homem, mas. não tenho medo dele, mas depois de tudo o resto. Acho que ele não é tão severo como aparenta, mas esta história punha à prova a paciência de um santo, e o amor que ele sente pela minha prima pode não ser suficiente para me poupar a sua pior reacção.
Kyle encontrara-se com Lord Hayden uma vez e concordava que ele parecia severo. No entanto, também sabia o que ela queria dizer com "tudo o resto", e sabia que isso indicava que ele não era tão duro como parecia. Ou então, como Rose sugerira, Lord Hayden estava tão apaixonado que pusera a severidade de lado em relação aos familiares da sua esposa.
Presumivelmente, "tudo o resto" incluiria agora apoio à familiar ali presente hoje. Miss Longworth enfrentava a ruína total, mas Kyle presumiu que Lord Hayden se certificaria de que ela não morreria à fome no seu exílio da família e da sociedade decente.
- Ficarei até estar tudo explicado, se assim deseja.
Lord Hayden não desceu sozinho. A esposa acompanhou-o. Chegaram em roupas de dormir, ele com um roupão de brocado azul-escuro e ela com um vestido de andar por casa amarelo-claro. Uma touca orlada de renda cobria a maior parte do seu cabelo escuro. Kyle nunca estivera com Lady Alexia antes, mas parecia ser uma mulher bondosa, mais ou menos da mesma idade de Miss Longworth. A meio da casa dos vinte, calculou. Nesse momento, os seus olhos cor de violeta demonstravam uma considerável preocupação pela prima.
Lord Hayden parecia resignado, como se não esperasse nada de bom se estava a ser arrancado à cama por uma Longworth. O seu olhar penetrante não deixou passar a forma como a tentativa de fuga de Miss Longworth deixara suja de terra a bainha do seu vestido. A sua atenção deteve-se por instantes no rosto de Kyle, sem dúvida avaliando os arranhões obviamente feitos por uma mulher.
As duas mulheres abraçaram-se e Miss Longworth fez as apresentações. Lord Hayden acenou silenciosamente, indicando que as apresentações eram desnecessárias uma vez que ele e Kyle já se conheciam.
- Mr. Bradwell ajudou-me a fugir de uma festa em casa de Lord Norbury - anunciou Miss Longworth.
Lord Hayden trocou um olhar significativo com a mulher. Era o olhar de um homem que já sabia dessa relação e que adivinhara o pior desde o início.
- Receio - acrescentou Miss Longworth depois de uma pausa embaraçada -, receio que tenha acontecido algo muito escandaloso nessa festa, algo que todo o mundo conhecerá dentro de poucos dias. Mr. Bradwell trouxe-me aqui porque não havia outro sítio para onde pudesse ir esta noite, mas de manhã peço-vos que me disponibilizem um transporte para voltar a Oxfordshire.
- O que aconteceu, exactamente? - perguntou Lord Hayden. Ela contou-lhes. Francamente. Não se poupou a nada. Aceitou
toda a culpa da situação, o que Kyle achou ser um pouco duro de mais. A sua participação numa festa de prostitutas, a sua venda em leilão, a sua estupidez ao compreender mal o afecto de Norbury foi tudo bem claro, específico e honesto. De forma implacável.
- Portanto, voltarei a Oxfordshire amanhã - concluiu Miss Longworth. - Se eu desaparecer completamente e cortarmos todas as nossas ligações sociais, talvez não sejam muito afectados pelas consequências do meu comportamento.
- Não sejas tão precipitada - disse Lady Alexia. - Certamente que não é tão mau como dizes. Hayden, diz-lhe que não precisa de cortar relações connosco. Se nós.
- Não, Alexia - disse Miss Longworth. - Sei que tem de ser assim, e tu também o sabes. Não forces o teu marido a ordená-lo.
Lady Alexia parecia perto das lágrimas. Miss Longworth manteve a compostura. Kyle fez uma vénia a ambas e afastou-se, preparando-se para fugir àquela crise familiar privada.
Miss Longworth fitou-o nos olhos.
- Peço perdão por não ter confiado em si. Lamento muito os arranhões. Obrigada pela sua amabilidade.
Não havia nada a dizer em resposta, portanto saiu da biblioteca. Lord Hayden seguiu-o.
- Diga-me, Bradwell. foi mesmo tão sórdido como ela diz? Ou há alguma esperança de que talvez. - Encolheu os ombros, incapaz de pensar no que poderia ser o talvez.
- Quer mesmo a verdade, Lord Hayden?
O homem hesitou.
- Sim, suponho que sim.
- O Norbury declarou publicamente que ela era uma reles prostituta e tratou-a como tal, em frente de uma dúzia de homens que o senhor encontra todos os dias nos seus clubes. Lamento muito por ela, sinceramente, mas nem todo o seu dinheiro e protecção podem salvar esta Longworth.
Os olhos de Lord Hayden cintilaram de fúria perante a alusão, mas a sua ira passou depressa. Em seu lugar, surgiu uma expressão de aceitação resignada.
- Tem a minha gratidão por ter intervindo para cuidar dela e a proteger, Bradwell. Numa sala de jantar cheia de cavalheiros, apenas você agiu como um.
- Uma vez que eu era o único homem presente que não é um cavalheiro, esse devia ser o verdadeiro escândalo, não lhe parece?
Kyle saiu de casa e afastou-se da triste sinfonia que era tocada dentro dela. Uma melodia que em breve se tornaria num cântico fúnebre.
Dirigiu-se à carruagem na noite fria. O perfume de Miss Longworth permanecia no seu casaco, enchendo-lhe a cabeça.
Depois de garantir que haveria uma carruagem pronta logo de manhã, Lord Hayden deixou-as e voltou para a cama. Alexia puxou Rose para um sofá e pediu-lhe que se sentasse.
- Graças a Deus, Mr. Bradwell interveio para te proteger.
- Foi muito decente da parte dele. E eu retribuí arranhando-lhe a cara.
- Estavas perturbada. Tenho a certeza de que ele compreendeu. Pelo menos, foi o que mostrou.
Sim, ele compreendera. Tudo.
Viu-o de novo a caminhar em direcção a ela depois do leilão. Nenhum homem se atrevera a desafiá-lo depois de ele dar o primeiro passo. Nem mesmo Lord Norbury. Aqueles imbecis bêbados tinham reconhecido um homem melhor do que eles.
Lembrou-se do seu abraço delicado na carruagem, enquanto ela chorava. A sua força tranquilizara-a. Lamentou nunca mais poder voltar a recorrer a ela. A memória do cheiro dele e da textura
do seu colete e camisa regressaram-lhe à mente, dando-lhe mais alguns momentos de paz.
Mas, acima de tudo, pensou no abraço apertado depois de ter tentado fugir. Devia ter ficado aterrorizada pela maneira rude como ele a tratara, mas em vez disso os braços dele tinham-lhe parecido um abrigo. Pressionara o corpo contra o dele para o chocar, e fora ela que ficara chocada.
Aquela proximidade agitara algo dentro de si. Por um momento, esquecera-se de o temer, mesmo quando viu o desejo no seu rosto e o sentiu. Na verdade, reagira como a prostituta que Norbury a acusara de ser. Uma excitação inegável percorrera-lhe as veias. Isso chocara-a e levara a uma última tentativa desesperada de se libertar.
- Que horrores deves ter passado. O Norbury portou-se de forma muito desonrosa em relação a ti e. - Um soluço cortou as palavras de Alexia. Rose sentiu os olhos encheram-se de lágrimas e apertou Alexia nos braços.
- Por favor, acalma-te. O Norbury é um canalha, mas não vamos fingir que eu fui outra coisa que não uma tola. Sempre soube que um futuro conde nunca poderia casar comigo. Não depois do que o Tim fez. Convenci-me que era para ele mais do que uma mulher comprada, mas apercebo-me agora de que as suas palavras de amor eram apenas parte do jogo.
Alexia fungou.
- Falaste em cortar relações connosco completamente. Em deixares de existir para mim. Não tencionas decerto. não suporto a ideia de saber que és passada de mão em mão, Rose. Por favor, promete que aceitarás pelo menos uma mesada nossa, para que nunca estejas desesperada a esse ponto.
- Nada temas. Descobri que sou uma péssima amante e seria uma cortesã ainda pior. Para começar, não exijo jóias suficientes, e além disso o meu amante não obtém prazer suficiente.
- Então aceitarás o dinheiro? Finalmente?
Era uma discussão antiga. Primeiro, fora o orgulho que a fizera recusar a ajuda de Lord Hayden depois da ruína de Timothy. Orgulho e raiva, por acreditar que a culpa da desgraça de Timothy fora de Lord Hayden. Mais tarde, quando descobrira que Lord Hayden
tinha na realidade protegido Timothy, o orgulho fora substituído por mortificação e embaraço.
- Ele pagou todas as dívidas. Protegeu a nossa propriedade em Oxfordshire. Aceitar ainda mais.
- Tens de aceitar. Não me deixes assim apoquentada, Rose. Já é suficientemente mau pensar que posso perder-te, como queres que te imagine naquela casa vazia, com fome e doente?
- Não morrerei à fome. As rendas não são muito, mas chegarão para pão e lenha. E tenho de pedir a tua generosidade noutra questão. A Irene. - dizer o nome da irmã afectou-a de tal maneira que não conseguiu prosseguir.
- Claro que ficará connosco - tranquilizou-a Alexia. - Ela tem gostado de cá estar ao longo deste mês.
Rose enviara Irene para junto de Alexia, para impedir que ela soubesse do caso com Norbury. Agora, a irmã seria a mais vulnerável ao escândalo causado por essa relação.
- Ela está satisfeita com vocês? - perguntou.
- Muito satisfeita. Prefere a cidade, mas também já fez alguns amigos aqui no campo.
- As pessoas dirão coisas e evitá-la-ão. Ela saberá de tudo. Vai odiar-me.
- Ela está a crescer, Rose. Já não é uma menina egoísta. Até pediu desculpa ao Hayden pelas coisas que disse na última Primavera. Sobreviverá aos mexericos.
Rose imaginou Irene a tentar sobreviver e isso perturbou-a ainda mais.
- Achas que haverá ainda alguma esperança para o futuro dela, Alexia?
- Quando o Hayden e os seus irmãos a tratarem como uma de nós, ela será poupada ao pior. Também tem aquelas cinco mil libras do teu irmão, embora agora eu desejasse que não tivesses pedido ao Hayden que pusesse o dinheiro num fundo para ela. Penso que te faria mais falta a ti.
- Esse dinheiro é fruto de um crime, Alexia. Não poderia tocar-lhe, mas a Irene nunca saberá a sua origem.
Alexia deu-lhe uma palmadinha na mão, como uma mãe a confortar uma criança. De súbito, Rose sentiu-se exausta, suja e triste.
Mais sábia do que seis meses antes, mas, em comparação, a ignorância fora o paraíso.
- vou dormir com a Irene esta noite, se não te importas, Alexia. Partirei pouco depois do dia nascer, mas primeiro vou explicar-lhe tudo para que ela perceba por que motivo não voltará para casa, para junto de mim. - Nem agora, nem nunca. Dizer adeus a Irene partir-lhe-ia o coração.
Alexia passou um braço sobre os seus ombros.
- Se é assim que queres fazer, é o que faremos.
Rose inclinou-se e apoiou a cabeça no ombro de Alexia.
- Abraça-me um pouco, minha querida amiga. Em breve terei morrido para vocês as duas, e não suporto pensar nisso.
CAPÍTULO 3
Jordan parecia caminhar ao som de uma fanfarra inaudível enquanto atravessava a sala com uma carta. O seu nariz fino e pontiagudo estava mais erguido do que o habitual, fazendo com que o seu rabicho antiquado de cabelo grisalho lhe caísse sobre as costas.
- Esta carta foi entregue em mão, senhor. Agora mesmo. Um mensageiro trouxe-a. Um mensageiro de libré.
Quando Kyle viu a carta, compreendeu a atitude do seu criado. O papel devia ter custado cinco libras a resma. Uma insígnia proclamava a elevada posição do seu remetente.
Reconheceu o brasão. O marquês de Easterbrook.
Quem havia de dizer.
- Diz-me, Jordan, posso simplesmente quebrar o selo, ou tenho de executar algum ritual primeiro?
O rosto magro de Jordan franziu-se numa expressão confusa. Orgulhava-se de ser o especialista a quem o filho do mineiro recorria quando precisava de conselhos sobre as subtilezas da navegação nas franjas da boa sociedade.
- Ritual? Não creio que. ah, está a brincar, senhor. Ah, ah, ah, não, não é necessário qualquer ritual, tanto quanto sei.
- bom, se vieres a descobrir que existe algum, não digas a ninguém que não o executámos.
Kyle quebrou o selo. O pescoço de Jordan esticou-se, na esperança de vislumbrar algumas palavras.
- Fui convidado para visitar o marquês de Easterbrook disse Kyle. - Pelo menos, acho que é um convite. Parece mais uma convocatória.
- O que diz?
- Que o marquês teria gosto em me receber esta tarde.
- Claro que é um convite.
- Óptimo. Isso quer dizer que posso recusar. vou escrever a manifestar o meu pesar por já ter outro compromisso.
- Oh, meu Deus, não, senhor. - Jordan conteve um suspiro horrorizado. - Quando um marquês manifesta gosto em receber alguém, quando convida a pessoa a visitá-lo, a pessoa tem de ir.
Kyle sabia como era. Já fora recebido por um conde bastantes vezes. Deixou Jordan apoquentar-se enquanto estudava a carta.
Dizia-se que Easterbrook não recebia muito, quanto mais homens como Kyle Bradwell. No entanto, era o irmão mais velho de Lord Hayden Rothwell, Christian Rothwell. Easterbrook ouvira sem dúvida falar sobre o triste episódio com Miss Longworth, quatro noites antes. Provavelmente queria certificar-se de que o salvador não tentaria lucrar com a história ou aproveitar-se de outra forma da ruína desta sua familiar.
Kyle decidiu que responderia à convocatória, mas pelos seus próprios motivos. No decurso da conversa, talvez ficasse a saber como estava Miss Longworth. Pensara bastante nela ao longo dos últimos dias. Entregara-se a algumas daquelas fantasias que prometera a si próprio, mas havia também preocupações na sua mente.
- Se desejar, vou preparar-lhe a indumentária apropriada disse Jordan.
- Muito bem, mas não exageres. Ele não é o rei.
Pôs o "convite" de lado. A reunião com Easterbrook seria certamente curta. O marquês não precisaria de muito tempo para o ameaçar.
Kyle nunca estivera dentro de uma casa em Grosvenor Square. Só isso bastava para tornar a sua visita a Easterbrook interessante. Estudou a estrutura e as mobílias enquanto o criado o conduzia à sala de visitas no primeiro piso.
A enorme sala de tecto alto era extremamente luxuosa. A decoração estava um pouco ultrapassada, mas era impressionante, na sua opulência contida. Cada elemento, desde as carpetes aos relevos do tecto, dos apliques às borlas das tapeçarias, era o melhor que o dinheiro podia comprar.
Esperou muito tempo pela recepção tão generosamente oferecida. Passou o tempo a estudar os quadros que cobriam as paredes, tentando adivinhar os artistas.
- Esse foi atribuído a Ghirlandaio e a Verrocchio. O que acha? Kyle rodou sobre si próprio ao ouvir a pergunta. Um homem
de cabelo escuro estava três metros atrás dele. Presumiu ser o marquês, e não apenas por causa da semelhança com Lord Hayden. Nenhum criado se atreveria a vestir-se assim, sem colete nem gravata e com o cabelo comprido solto sobre os ombros.
- Não saberia dizer - respondeu Kyle.
- Estava a examinar os quadros como se soubesse. Kyle encolheu os ombros.
- É pré-rafaelita e não é de Botticelli. Não consigo dizer mais do que isso.
- Já é mais do que muitos conseguiriam dizer. - Apontou para um grupo de cadeiras e um divã. - Vamos sentar-nos aqui. Vão trazer-nos. qualquer coisa. Café, suponho.
Kyle sentou-se numa cadeira e Easterbrook no divã. O marquês inspeccionou o seu convidado com ar pensativo. Kyle devolveu o exame. O tempo passou enquanto se estudavam mutuamente em silêncio.
- Parece-me ser um homem interessante, Mr. Bradwell. - Um sorriso formou-se no rosto de Easterbrook, apesar da sua expressão crítica. - Não está minimamente constrangido. Imagino que o patrocínio do Cottington o tenha ajudado a desenvolver uma certa familiaridade com pessoas como eu. Talvez até algum desdém.
Ao que parecia, Easterbrook dera-se ao trabalho de descobrir uma ou duas coisas sobre ele antes de enviar o convite.
- Não sinto qualquer desdém por pessoas como o senhor. Se assim fosse, não estaria aqui. Estou simplesmente à espera para saber por que motivo quis encontrar-se comigo.
- Examina-me muito ousadamente enquanto espera. O que está a pensar?
- Estou a perguntar a mim próprio o quão rico teria de ser para poder deixar de estrangular o meu pescoço com uma gravata.
- Suficientemente rico para poder não dar qualquer importância àquilo que o mundo pensa, suponho.
Ambos sabiam que, na verdade, o dinheiro não tinha nada a ver com o assunto.
- E enquanto o senhor me examina, em que pensa? Easterbrook inspeccionou-o longamente mais uma vez.
- Penso que estou a ver o futuro.
Os criados apareceram com vários tabuleiros cobertos de bules de café e chá, garrafas de licor e bolos. Parecia que, ao receberem a ordem de Easterbrook para prepararem "qualquer coisa", os criados da cozinha tinham chegado à conclusão de que o mais seguro seria preparar quase tudo.
Passou-se mais um quarto de hora enquanto os criados ofereciam e serviam várias bebidas. Por fim, o marquês indicou-lhes que saíssem com um aceno.
- Segundo sei, foi apresentado ao meu irmão há poucas noites
- disse.
Estavam finalmente a falar do que interessava.
- Por acaso, já conhecia Lord Hayden. Mas é verdade que estive com ele no Kent há algumas noites.
- Ele voltou para a cidade e trouxe a Alexia com ele. Sei que ela está inconsolável, a sofrer muito pela prima. Gosto muito da minha nova irmã. Ela está grávida e a sua perturbação preocupa-me.
- Lamento saber que ela está tão aflita. Teve notícias da prima dela? Encontra-se bem?
- Não soube nada sobre a saúde de Miss Longworth. - Mas Kyle percebeu que o seu anfitrião achava a pergunta interessante, embora não imaginasse porquê.
- O meu irmão voltou para a cidade para garantir que toda a gente sabe que o senhor entregou Miss Longworth na casa dele, no Kent, pouco mais de uma hora depois de a retirar da festa em casa do Norbury.
Kyle duvidava que isso ajudasse muito. O escândalo já estava a rebentar e a chamar mais atenção para ele do que lhe agradava. Jordan fora abordado na rua por um indivíduo de um dos jornais
de escândalos, que lhe perguntara se Miss Longworth residia agora na casa de Mr. Bradwell.
Easterbrook levantou-se. Percorreu lentamente a sala, parecendo distraído com os seus pensamentos, mas descrevendo um círculo à volta da cadeira de Kyle.
- A sua reputação será poupada, graças aos esforços do Hayden. Provavelmente será considerado tão decente que nunca mais ninguém o convidará para nada divertido em toda a sua vida observou Easterbrook. - A minha dúvida é se poderemos fazer algo para poupar também Miss Longworth, para que a Alexia não esteja tão infeliz.
- O tempo que Miss Longworth passou comigo foi o menos preocupante dessa noite.
- Fale-me sobre o resto. Os criados contam-me apenas fragmentos soltos e o meu irmão só diz que ela está perdida.
Kyle descreveu os acontecimentos da noite, tal como os testemunhara, e Easterbrook continuou a caminhar em círculo enquanto o ouvia. Fez algumas perguntas para clarificar os pormenores. Caminhou mais um pouco.
- Parece que Miss Longworth embarcou numa relação com um homem que julgou que a amava e ele, por sua vez, destruiu-a deliberadamente. Pergunto a mim próprio se teria algum motivo para o fazer. Tenho de partir do princípio que sim. - Mais três passos em contemplação. - Julgo que isto terá a ver com o amaldiçoado irmão dela.
Kyle deixou a conclusão ficar suspensa no ar. Deu a Easterbrook o crédito de compreender melhor as motivações humanas do que a maioria das pessoas.
A meditação de Easterbrook terminou abruptamente. Sentou-se de novo no divã, desta vez mais perto de Kyle. Seguiu-se mais uma inspecção prolongada.
- Licitou um montante muito elevado. Foi inteligente da sua parte, mas um estratagema que lhe saiu bastante caro.
Pela primeira vez desde que pusera os pés naquela casa, Kyle sentiu-se pouco à vontade. Não gostava da forma como o marquês o estava a fitar agora. Os seus instintos diziam-lhe que uma ameaça directa seria preferível ao que aquele homem tinha em mente, fosse lá o que fosse.
- Deve ter aberto um bom rombo na sua bolsa, pagar uma quantia dessas de uma só vez.
- Está paga. - Quase não o conseguira. Assinara mais documentos de hipoteca nos últimos dois dias do que gostava de recordar.
Easterbrook recostou-se no divã.
- Miss Longworth é uma mulher muito bela. Não acha?
- Muito bela. - Por que raio sentia que, com esta concordância, acabara de ceder terreno numa batalha?
- Não creio que Miss Longworth tenha de estar perdida para a minha cunhada. Penso que, com um pouco de esforço, nós podemos atenuar o pior, de forma a que ela ainda possa ter um futuro. Pode haver sempre rumores, mas a situação não é irremediável.
Nós? Que raio queria ele dizer com "nós"?
- Diz-se que o senhor raramente sai desta casa, portanto talvez tenha esquecido como estas coisas funcionam. Ela não sobreviverá a isto com um fragmento que seja da sua reputação intacto. O seu irmão sabe-o. Até Miss Longworth o sabe.
- Isso é porque o meu irmão e Miss Longworth estão a aceitar as coisas tal como o Norbury as encenou. No entanto, nas mãos de outro encenador, todas estas cenas podem afectar o público de forma diferente. Temos apenas de alterar o desfecho. - O marquês fez um gesto indolente, como se isso fosse coisa de pouca monta.
Kyle mal conseguiu conter uma gargalhada de desdém. Easterbrook julgava que podia alterar a história e o destino.
- Deixe-me mostrar-lhe outra forma de ver esta história, Bradwell. Na minha peça, uma mulher virtuosa é atraída por um libertino para uma festa particular. Aí, ela descobre que as intenções dele não são honrosas. Quando lhe resiste, ele vinga-se humilhando-a publicamente de forma a garantir a sua ruína e degradação. É uma história plausível, não lhe parece?
Kyle encolheu os ombros. Era plausível e até bastante fiel à verdade. No entanto, não era correcta na parte mais importante. Quando entrara naquela festa, Miss Longworth já perdera a sua virtude. Não resistira à sedução, fossem quais fossem os motivos.
- Ninguém no público tem a certeza disso - Easterbrook parecia ter-lhe lido os pensamentos, o que era muito irritante. Têm apenas a palavra do vilão. Ora, na minha versão, os planos do
Norbury são inesperadamente frustrados por um cavaleiro corajoso. O homem mais inesperado naquele jantar arrisca a sua fortuna para salvar esta pobre inocente de um destino pior do que a morte.
- Agora está a ser melodramático.
- O público adora melodrama e adora romance, ainda mais do que escândalos. O que nos leva ao meu novo desfecho. O cavaleiro não se aproveita da gratidão desta bela dama, como poderia ter feito. Em vez disso, protege-a e entrega-a sã e salva à família. - De novo aquele gesto indolente. - E, depois, casa com ela.
Casa com ela.
Kyle fitou Easterbrook nos olhos. Raios, o homem estava a falar a sério.
- Está louco.
- É uma solução perfeita.
- Então case o senhor com ela.
- Não fui eu o cavaleiro. Nem ela é mulher para mim. É tão encantadora que ainda me passou pela cabeça torná-la minha amante, mas, sendo prima da mulher do meu irmão, bom.
Raios, aquele marquês não era melhor do que Norbury.
- Tinha razão. Há alturas em que sinto de facto desdém por homens como o senhor.
- Eu disse que me passou pela cabeça. Não disse que a tinha perseguido. - O marquês não se mostrou minimamente insultado.
- Mas vejo por que razão a minha confissão pode ter ofendido o seu sentido de justiça. Pobre Miss Longworth, tão vulnerável após a ruína da família, sem dinheiro, atraindo estes abutres aristocráticos.
- Sim, isso ofende-me, maldito seja.
A sua imprecação ficou suspensa no ar. Kyle cerrou os dentes e combateu a vaga súbita de fúria que causara a explosão.
- Tal como as coisas estão, o futuro dela será provavelmente nas camas desses abutres, mas, se casar, terá uma oportunidade de levar uma vida decente - disse Easterbrook. - Esta manhã, estava a pensar quanto me custaria convencê-lo a fazer isto. Vendo como está ofendido, talvez não seja preciso tanto como pensei.
- Compre alguém da sua laia. Um homem mais apropriado à posição dela. Sem dúvida que deve haver um quinto filho de um barão qualquer para venda.
- Isso não encaixaria na minha história. Se o senhor casar com ela, aquele leilão torna-se um princípio romântico, não um final sórdido.
Easterbrook não deixava de o observar com aquela maldita expressão arrogante. Kyle teve vontade de lhe dar um murro no rosto presunçoso. Em vez disso, levantou-se e afastou-se em direcção à porta.
A voz de Easterbrook seguiu-o.
- Casar com ela fá-lo-ia subir na sociedade. Tem dinheiro e educação. Aprendeu a vestir-se e a falar, mas, sozinho, nunca conseguirá passar de certas portas. Por outro lado, eu e toda a minha família recebê-lo-emos se a sua mulher for a Roselyn Longworth. E, se nós o fizermos, outros o farão.
Agora furioso, Kyle continuou a andar.
- Não me interessa entrar ou não nessas malditas portas.
- Acredito, agora que o conheço. Mas os seus filhos.
Kyle parou a pouca distância de uma das portas em questão. Easterbrook era um diabo esperto. Perigosamente perspicaz. Sabia que uma coisa era um homem aceitar as cartas que o destino lhe dera, mas outra era negar cartas melhores aos seus filhos.
Um filho ou uma filha que nascesse na vida que ele construíra, estaria penosamente consciente daquilo que o seu passado lhe negaria. A verdade cruel era que o sangue tinha importância. Havia portas, mais importantes do que as de salas de visitas, que nunca se abririam aos seus filhos.
Uma mãe nascida numa família de classe alta não o remediaria completamente, mas faria uma grande diferença. Em especial se essa mãe estivesse ligada por afinidade a um marquês, fosse recebida por ele e fizesse parte do círculo de Lady Alexia.
- Talvez não queira saber de ligações sociais para si, mas julgo que lhe agradariam as ligações de negócios. O meu irmão Hayden gere os negócios da família e é famoso pelo sucesso que obtém sempre nos seus esquemas. Como membro da família, de certa forma, o senhor seria incluído - Easterbrook falou para as costas dele, mas num tom que dava a entender que as negociações estavam abertas.
Kyle virou-se.
- Não tem havido quaisquer esquemas, ultimamente. - Ele sabia porquê, mas não tinha a certeza se o marquês sabia.
- Tem andado distraído com a sua nova esposa. Acredite, você será mais rico do que alguma vez sonhou. Tem tido sucesso com esses consórcios, pelo que oiço, mas ninguém pode ultrapassar o meu irmão nesses assuntos.
Kyle desconfiava que o marquês poderia, se alguma vez decidisse fazê-lo. Quanto a Lord Hayden, estava actualmente numa fase complicada, mas sem dúvida que recuperaria.
- Uma bela esposa de classe elevada, possibilidade de alcançar riquezas incalculáveis. como era o resto do suborno que planeei? Ah, sim. Cinco mil libras para reabastecer os seus cofres.
- Dez.
Easterbrook sorriu lentamente.
- Esperava que quisesse vinte.
- Se estivesse disposto a pagar vinte, teria oferecido mais à partida.
Easterbrook parecia satisfeito consigo próprio.
- Posso partir do princípio de que temos um acordo? Estou certo de que a Alexia ficaria encantada por poder falar sobre o assunto com Miss Longworth.
- Ainda não tem a minha assinatura na escritura de venda. Kyle dirigiu-se de novo à porta. - E, se decidir fazê-lo, eu próprio falarei com Miss Longworth.
CAPÍTULO 4
Roselyn dobrou a folha de papel e selou-a. Pegou na carta que recebera na véspera e copiou a morada.
Os seus olhos pararam na assinatura do irmão, ao fundo da página. A caneta dele falhara no fim.
Pobre Tim. Tocou gentilmente nos sítios da carta onde as lágrimas tinham esborratado a tinta. Ele estava agora tão sozinho. As suas palavras eram tão tristes. Havia quem dissesse que tinha aquilo que merecia, e outros que diriam que merecia bem pior, mas era seu irmão. Podia ser fraco e estar errado, mas Roselyn ainda o amava.
A carta fizera-a chorar as suas perdas como nada até então. Nem mesmo dizer adeus a Irene a deixara a sentir-se tão vazia e tão consciente de como a sua família estava perdida, destruída pelos seus próprios erros. A notícia que Tim lhe dava, sobre a morte do seu companheiro de viagem, era apenas a curva horrível mais recente numa espiral descendente implacável.
Levantou-se e prendeu o chapéu, pegou no cesto e guardou a carta dentro dele. Tim nunca sobreviveria sozinho. Agora, estava perdido. Perdido e triste e sozinho num país estranho. Dizia que queria vir para casa, mas era óbvio que não podia.
Continuou a pensar nele enquanto caminhava até à aldeia. Teria de contar a Alexia o conteúdo da carta de Tim. Alexia tinha de saber.
Entrou na mercearia à entrada da aldeia. Duas mulheres saíram do estabelecimento assim que ela entrou. O merceeiro, Mr. Preston,
mostrou-se desagradado pela forma como a sua presença afectava o negócio.
Atendeu-a em silêncio, colocando em cima do balcão a farinha e o sal e os outros artigos da sua lista. Um mês antes, teriam conversado enquanto ela fazia as compras. Mr. Preston teria sorrido no seu jeito paternal. Agora os seus lábios estavam comprimidos numa linha dura que dizia que lhe venderia o que precisava, mas que ela não merecia mais do que isso.
Tirou algumas moedas da bolsa para pagar. Mr. Preston nunca lhe dissera que ela já não tinha crédito na loja. Três dias antes, a mulher dele seguira-a até à rua e explicara-lho.
O escândalo chegara a Watlington há uma semana. Parecia flutuar no vento. Pessoas que tinham sido simpáticas e prestáveis depois de Tim fugir, amigos que a conheciam há anos, conseguiam agora passar por ela sem a ver. De agora em diante, viveria ainda mais isolada do que antes.
Entregou mais uma moeda e a carta a Mr. Preston.
- Importa-se de a enviar? Aqui está o dinheiro para a franquia. Arrumou as compras no cesto e saiu da loja. Mais uma vez, Mrs. Preston apareceu do nada e seguiu-a até à estrada.
- Esteve aqui um homem à sua procura - disse. Rose parou.
- Que homem?
- Não disse o nome. Um cavalheiro, a julgar pelo aspecto. Entrou há cerca de meia hora e perguntou onde era a sua casa. Mrs. Preston fez um esforço para não demonstrar a sua curiosidade e censura, mas sem sucesso.
Rose sentiu o coração afundar-se no peito. Era só o que lhe faltava - um desconhecido a pedir indicações para a casa de Miss Longworth. O último cavalheiro que a visitara fora Lord Norbury e toda a gente sabia o que isso significava.
Não suportaria o insulto de ter um estranho a bater-lhe à porta, apresentando-se sem cerimónia como se ela fosse a prostituta que o escândalo dizia que era.
- Não estou à espera de visitas, Mrs. Preston. Nem desejo receber ninguém. Peço que a senhora e o seu marido não voltem a satisfazer a curiosidade de desconhecidos de passagem quanto à minha residência.
- Oh, nós não lhe dissemos nada. Não seremos nós a auxiliar o demónio. - Mrs. Preston levantou a cabeça e olhou para a estrada. - Ali está ele, a sair da taberna.
Rose olhou rapidamente por cima do ombro e vislumbrou um homem a subir para o seu cavalo.
Decidiu que a visita ao talhante podia esperar até ao dia seguinte. De qualquer maneira, não tinha dinheiro para muita carne. Começou a caminhar pela beira da estrada que saía da aldeia, em direcção à sua casa.
Não ouviu nada, mas sabia que o homem a vira. Sentiu-o a segui-la. Por fim, o som abafado dos cascos do cavalo aproximou-se atrás dela.
- Miss Longworth?
Rose conhecia aquela voz. Virou-se.
- Mr. Bradwell, que surpresa.
Ele baixou os olhos para ela, aqueles olhos azuis admiráveis, meio escondidos pela aba do chapéu. Como da última vez em que o vira, a sua indumentária não mostrava o mínimo excesso ou individualidade. O casaco de montar escuro, as calças castanhas-claras e as botas altas haviam sido escolhidas para serem irrepreensíveis.
- Estava na zona e pensei em ver como está, Miss Longworth.
- Olhou para as casas distantes da aldeia e depois novamente para a estrada. - Posso acompanhá-la?
Seria rude recusar e, na verdade, ela não se importaria de ter um pouco de companhia.
- Sim, pode.
Kyle desmontou. Começaram a caminhar, com o animal pela rédea. Ele tirou-lhe o cesto das mãos.
- Pensei que tinha percebido mal a sua morada. Ninguém na aldeia parecia conhecê-la.
- À maneira deles, acho que estavam a tentar proteger-me. O senhor não é conhecido por aqui.
- Claro. Compreendo.
Isso era algo que lhe agradava naquele homem. Ele compreendia. Partilhara aquela noite com ela. Compreendia que ela se entregara a um homem quando não o devia ter feito. Compreendia que o leilão teria provavelmente levado à sua violação. Compreendia
que conseguira poupar-lhe esse horror, mas não as outras consequências dessa noite.
Enquanto caminhavam, olhou para ele de lado. Nunca o tinha visto à luz do dia. Os ossos fortes e os ângulos do seu rosto não pareciam agora tão grosseiros, sem a luz dos candeeiros e do luar a esculpi-los. Era um rosto totalmente masculino e a sua expressão e os seus modos reflectiam a confiança calma que o levara a fazer de seu salvador.
As outras impressões que formara nessa noite não se alteraram muito com a luz forte do sol. Ainda sentia uma energia contida nele, apesar do seu discurso delicado, quase reservado. O seu tamanho e presença ainda pareciam forçar o ar a afastar-se para lhe dar espaço. Até despertava nela a mesma leve sensação de cautela.
Isso não fazia sentido. Não tinha motivos para temer aquele homem. Provara ser digno de confiança e mais do que decente. Na verdade, sentia-se em segurança com ele ao seu lado. E contudo havia também uma espécie de desconfiança física. Não era totalmente desagradável, mas estava demasiado consciente do tamanho dele e da forma como o seu sangue e os seus instintos lhe reagiam.
- As coisas têm sido muito más para si, na cidade? Refiro-me ao escândalo, claro - perguntou-o apenas para fazer conversa, embora ele não parecesse necessitar de falar. Mas a forma como se limitava a caminhar em silêncio ao seu lado tornara-se um pouco constrangedora. Pelo menos para ela. Sem palavras, tudo o que partilhavam era o próprio caminho, como os desconhecidos que praticamente eram.
Não, não como desconhecidos. Existia uma intimidade palpável e silenciosa, nascida dos eventos terríveis daquela noite. O constrangimento devia-se ao facto de haver uma familiaridade tão grande com alguém que mal conhecia.
- Já está a passar, e outro homem talvez tivesse até gostado das atenções - respondeu ele com um leve sorriso. - São assim as injustiças do mundo, Miss Longworth.
- Fico aliviada por saber disso. O seu papel foi muito galante e não gostaria de pensar que teve de o pagar com a sua reputação, para além da sua bolsa. Suponho que sou mais do que suficiente como bode expiatório. Ainda sou o tema preferido na cidade, ou a história dos meus pecados já só é contada nas salas de visitas do campo?
A expressão dele ficou mais séria.
- A sua prima não comunicou consigo? Julgo que Lady Alexia seria mais indicada para lhe responder a essa pergunta.
- A Alexia escreveu-me duas vezes, apesar de não dever fazê-lo. Lord Hayden não deve saber que ela arrisca o seu próprio bom-nome ao continuar com esta relação, ou então não consegue proibi-la de o fazer. Devolvi ambas as cartas sem as abrir.
- Ninguém saberia se as lesse.
- É espantoso aquilo que as pessoas podem vir a saber. Não correrei o risco de macular de alguma forma a reputação da Alexia com esta história. Contudo. - Pensou na carta de Tim, e em como aquela sua determinação também podia causar problemas.
- Vai regressar a Londres em breve, Mr. Bradwell? Se assim for, talvez possa levar uma mensagem à minha prima. Há alturas em que uma pessoa tem de contactar os vivos, apesar de estar praticamente morta.
- Regressarei esta tarde. Terei todo o gosto em ser seu mensageiro.
Ela olhou para o cesto, que baloiçava ligeiramente à medida que Kyle caminhava.
- Talvez seja melhor se não falar com ela, mas sim com Lord Hayden. Ele transmitirá a mensagem. Sim, será melhor.
- Farei como preferir.
Ela recorreu a todas as suas forças, para falar sem perder a compostura e sem se emocionar.
- Por favor, diga-lhe que recebi notícias do Timothy. Diga-lhe que o Tim me escreveu e me disse que o seu companheiro de viagem morreu, de uma febre contraída no final do Verão.
- Nada mais? Não quer que transmita notícias de como ou onde ele está?
Roselyn virou o rosto e viu que ele a observava. Os seus olhos azuis pareciam mais escuros, sob a aba do chapéu. Escuros e curiosos e. duros.
- Ele está tão bem como seria de esperar, para um homem sozinho e triste.
- Também me parece sozinha e triste. Espero que ele não esteja melhor do que a Rose. Isso seria injusto.
Rose achou que era um comentário peculiar. Continha uma boa dose de verdade, mas aquele homem não tinha forma de saber porquê.
- Não me importo de estar sozinha. A tristeza que vê é apenas o estado de espírito de hoje, causado pela carta do meu irmão. Se tivesse aparecido amanhã, eu seria melhor companhia.
Chegaram ao caminho que levava a casa dela. Mr. Bradwell virou também nessa direcção.
- Não respondeu à minha pergunta. Presumo que isso significa que os mexericos a meu respeito ainda correm e são tão maus como eu temia - disse ela.
- Se lhe serve de algum consolo, Lord Norbury também não escapou incólume.
- Por cada crítica, receberá dois convites para jantar. Ser libertino nunca foi muito prejudicial para um homem.
As árvores que ladeavam o caminho tornaram-se mais escassas e desapareceram quando chegaram junto da casa. Mr. Bradwell tirou o chapéu e estudou a propriedade com olhar lento e atento. Parecia aprovar aquilo que via.
Rose parou e olhou para a sua casa, vendo-a através dos olhos daquele homem. Tinha mais charme do que distinção, com o seu centro de blocos de pedra e várias alas que não condiziam umas com as outras. com dois pisos apenas, era maior em comprimento do que em altura. Era grande, embora não particularmente grandiosa, mas os jardins à sua volta enchiam todas as divisões de perfumes maravilhosos na Primavera e no Verão.
- A minha família vive aqui há cinco gerações. A propriedade foi em tempos muito maior, mas ainda restam algumas terras e seis pequenas quintas.
Ele observou de olhos semicerrados os telheiros quase invisíveis para além da ala leste.
- É uma propriedade alodial?
- Não há vínculo. O meu avô não o aprovava e o meu pai nunca tratou disso depois de ele morrer.
- Imprudente.
Ela abriu a porta. A sua voz ecoou nas paredes vazias, que aguardavam os seus passos solitários.
Agradeceu a Mr. Bradwell e pegou no cesto.
Para sua surpresa, ele afastou-se um pouco e atou as rédeas do cavalo a um poste.
- Tenho um interesse particular por edifícios, Miss Longworth. Talvez possa ter a amabilidade de me deixar ver o interior da
sua casa.
Esperou pacientemente que ela respondesse. Alto. Imponente. Impressionante. A brisa era leve, mas Rose sentiu de novo o ar a agitar-se no espaço entre ambos. Aquela sensação de cautela estúpida, quase excitante, invadiu-a com mais intensidade.
Olhou em volta, para o pátio vazio, e apercebeu-se do seu isolamento.
- Seria ridículo eu pôr-me com cerimónias agora, não acha? Convidá-lo a entrar é uma inconveniência tão pequena, à luz das outras que estão ligadas ao meu nome.
- Se preferir evitá-la, apesar disso, eu compreendo.
Claro que compreendia. Mas não deixaria de ser ridículo e ele compreendê-lo-ia também. Aquele homem provavelmente não pediria tal coisa a uma mulher cuja reputação ainda tivesse algo a perder. Tal como a sua indumentária, o seu comportamento seria irrepreensível ao máximo.
Mas não foi nessa base que tomou a decisão. A verdade cruel era que estava ansiosa por ouvir outra voz para além da sua. Aquela visita inesperada animara-a e ajudara a aliviar a dor causada pela carta de Tim.
- Por favor, entre e estude a casa à sua vontade.
Kyle não mentira. Estava de facto na zona e viera ver como ela estava. Mas fizera um bom desvio do seu caminho e a oferta de Easterbrook não lhe saía da cabeça há dias, naqueles períodos de tempo em que a mente não estava ocupada com outras coisas.
Reconhecera-a na rua, mesmo à distância. De trás, a única coisa que conseguia ver era o seu chapéu e a capa, mas ela chamara-lhe de imediato a atenção. O orgulho com que caminhava identificara-a mais claramente do que qualquer retrato alguma vez conseguiria.
Entrou na casa, aceitando o convite que uma boa mulher não devia fazer. Estava contente por ela não ter feito cerimónia. Podia
ainda haver jogos entre eles, mas ela era demasiado sensata para tentar jogar as cartas da virtude, da decência ou da segurança.
Kyle estava curioso em relação àquela casa e a Rose. Enquanto observava o lugar, percebeu de imediato como ela estava a viver. Nada bem. As divisões estavam praticamente vazias. Quase todas as mobílias que em tempos tinham enfeitado aquele lar haviam sido vendidas.
Era evidente que não havia quaisquer criados. O pátio estava vazio e não havia ruído proveniente dos estábulos ou dos jardins. A casa vibrava com um silêncio que a presença deles parecia apenas amplificar.
Ela viu-o apreender tudo isso. Tirou a capa e virou-se para desprender o chapéu.
- O meu irmão Timothy sofreu reveses financeiros. Muito sérios. Talvez tenha ouvido falar no assunto na Primavera passada.
- Sim, estou a par da questão. - Reveses financeiros, uma ova. O canalha não se atrevia a regressar a Inglaterra. - Como sobreviveu a propriedade sem ser vendida?
- Lord Hayden quis certificar-se de que a minha irmã e eu não ficaríamos na rua. Protegeu-nos, a nós e a esta propriedade. Era a isso que me referia naquela noite, quando falei na generosidade dele. Ele pagou todas as dívidas do meu irmão. Naturalmente, nunca poderei retribuir-lhe.
Na verdade, Lord Hayden não cobrira todas as dívidas, por mais que o tivesse tentado. Pelo menos uma pessoa recusara-se a ser paga por qualquer outro a não ser o próprio Longworth. E mesmo esse pagamento não satisfizera todos os que o tinham aceitado.
Ela conduziu-o à sala de visitas. Restavam ainda três cadeiras de madeira e uma pequena mesa sobre um tapete gasto. As janelas estavam despojadas das suas sedas e tinham apenas uma leve cortina branca, quase transparente.
- Por favor, sente-se, Mr. Bradwell. Permita-me que lhe sirva qualquer coisa.
Antes que pudesse recusar, ela já desaparecera. Ele não se sentou, preferindo caminhar pela divisão, tirando-lhe as medidas a olho e com os passos. Examinou os parapeitos e o tecto, depois passou à sala de jantar e fez o mesmo.
Examinou a biblioteca e dirigiu-se às traseiras da casa. Foi atraído para a cozinha por leves sons.
Miss Longworth estava de pé junto de uma bancada, perto de uma janela. O sol da tarde incidia no seu cabelo louro e banhava-lhe o perfil numa luz forte que não deixava esconder quaisquer imperfeições. Mesmo da entrada, ele conseguia ver a linha delicada daquele perfil e contar as compridas pestanas louras sobre a curva encantadora da sua face de porcelana.
Ela não é para os da tua laia, rapaz. Fora isso que pensara na noite em que a admirara no teatro. O aviso repetira-se várias vezes ao longo dos últimos dias, enquanto os esquemas loucos de Easterbrook ganhavam raízes na sua cabeça.
Ela era bela, elegante e orgulhosa. Era de uma família que estivera entre as melhores do país durante cinco gerações. Decididamente, não era para ele.
Rose estava a cortar cuidadosamente uma tarte, ou o que restava dela. Do lado de fora da janela, Kyle viu árvores de fruto. Ela apanhara as maçãs e confeccionara a tarte com as suas próprias mãos. Olhou para as provisões escassas nas prateleiras da cozinha. Aquela tarte, provavelmente, fora feita para durar uma semana.
Dois copos de sidra aguardavam sobre a mesa. Rose pôs as fatias de tarte em dois pratos.
- Deixe-me ajudá-la - ofereceu-se ele.
Rose rodopiou sobre si própria como uma bailarina, ao ouvir a voz dele. Kyle ignorou o seu rubor e pegou nos copos, regressando à sala de visitas.
- Vejo que trata de tudo sozinha - disse, depois de algumas dentadas na tarte. Era quase intragável. Parecia que ela tinha poupado no açúcar e no sal.
- O meu pai deixou dívidas, por isso, depois da sua morte, vivemos modestamente. Só quando o meu irmão comprou uma sociedade num banco de Londres é que a nossa situação melhorou. Por algum tempo.
- Refere-se ao seu irmão mais velho, Benjamin? Aquele que morreu na Grécia?
A expressão dela ensombrou-se ao ouvir falar nessa dor antiga, de tal forma que ele se arrependeu de ter tocado no assunto.
Rose baixou os olhos, respondendo com uma expressão pesarosa à referência.
Depois, enquanto comia um pouco de tarte, disse:
- Devido a esses primeiros anos de frugalidade, tenho uma vasta experiência em tomar conta de mim própria. Não me importo. É bom estar ocupada.
- Seria de esperar que Lord Hayden não a quisesse a viver sozinha numa casa vazia.
- Recusei a generosidade dele para com a minha pessoa. Não posso fazer o mesmo em relação à minha irmã mais nova. Ela vive com eles. A Alexia diz que sou demasiado orgulhosa, mas não é o orgulho que me faz recusar. O marido dela está a pagar bem caro por questões que não são de sua responsabilidade. Estou-lhe grata, mas já me sinto suficientemente culpada para aceitar também uma mesada.
Corou ao dizer a palavra culpada. Ele não sabia se ela estava a referir-se aos seus pecados recentes ou aos do seu irmão Timothy. Se fosse este último caso, esse sentimento de culpa era despropositado.
Ela era apenas mais uma das muitas vítimas de Timothy Longworth. Sem dúvida que o patife contara com a mesada de Lord Hayden para que as irmãs continuassem a viver pelo menos de forma modesta. Se assim era, Longworth avaliara mal o sentido de justiça de outra pessoa.
- A tarte está muito boa - disse, depois de a acabar.
- Está só a ser amável. - Mas percebia-se que o elogio lhe agradara.
- De todo. Como muitas tartes de fruta e sei reconhecer quando uma é boa. Às vezes, até as como ao pequeno-almoço, de tanto que gosto delas. Tem uma macieira no seu jardim?
- Sim. Gostaria de a ver? Podemos dar um passeio. Se quiser, mostro-lhe o jardim e a propriedade.
- Estou sempre interessado nesse tipo de coisas.
Só depois de saírem para o jardim ela voltou a falar. Já estavam suficientemente afastados da casa para que Kyle conseguisse ter uma boa perspectiva da parte traseira.
- Vejo que o seu interesse em edifícios e terras não é meramente casual, Mr. Bradwell.
- Na verdade, o meu interesse não é casual, mas sim profissional.
- É agente imobiliário?
- Ocasionalmente. Construo casas e estou a roubar ideias da sua.
- É arquitecto, então?
- Ocasionalmente.
Ele desviou os olhos da casa a tempo de ver a expressão de compreensão no rosto dela. Rose franziu os lábios e semicerrou ligeiramente os olhos.
- É um desses homens que pega em propriedades e as divide, não é? Como têm feito tanto em Middlesex.
Percebeu que a ideia lhe desagradava, como acontecia com muitas pessoas.
- As pessoas que possuem terras querem muitas vezes desenvolvê-las. Mayfair não existiria se, há décadas, não tivesse havido homens como eu. Nem as praças de Londres. - Conhecia todas as objecções. Respondeu àquelas que suspeitava que se estariam a formar na cabeça dela. - Garanto-lhe que, quando desenho as casas para essas pequenas propriedades, ninguém diria que não estão ali há gerações. Tal como disse, estou a roubar ideias da sua com esse objectivo.
- Podem exigi-lo? As pessoas que arrendam ou vendem as terras podem exigir que as novas casas não estraguem a paisagem?
- Uma vez que nunca há terra suficiente para satisfazer a procura, podem exigir aquilo que quiserem.
Sem mais comentários, Rose continuou a percorrer o jardim a passo lento. Ele seguiu-a por um caminho que revelou secções quadradas de terreno arado, indicando que ali cresciam legumes e flores no Verão.
- Até que ponto percebe de terras, Mr. Bradwell? Consegue apenas avaliar o seu valor para construção, ou está familiarizado com questões agrícolas?
- Sei um pouco de agricultura.
- Nesse caso, quero pedir o seu conselho sobre uma coisa. Passaram por um portão e ela conduziu-o ao longo de um
campo coberto de ervas daninhas. Provavelmente, fora um pasto em tempos melhores. Um sítio para os cavalos da família pastarem.
Ela subiu uma inclinação no terreno até ao cume de uma colina. Daí, tinham uma bela vista dos terrenos ondulados, salpicados pelos telhados de casas de quinta. Os rendeiros dela, sem dúvida. Kyle avaliou rapidamente a propriedade. À distância, conseguia distinguir os edifícios de Oxford, talvez a trinta quilómetros.
- Já pensou em vender? - perguntou-lhe.
- Não é minha para a poder vender. Mas houve um homem como o senhor que me escreveu a perguntar o mesmo. Talvez o conheça. Mr. Harrison.
- Conheço-o. Deve ter ficado interessado devido à proximidade desta propriedade em relação a Oxford.
- Fez-me uma oferta tentadora, mas não valia a pena encorajá-lo. Esta é a casa da minha família e pertence ao meu irmão, não a mim. Nunca será vendida, se eu tiver alguma palavra a dizer.
Desceram a colina e entraram num campo com cerca de dois hectares. Os restos de uma colheita estavam espalhados pelos sulcos na terra escura.
- Isto é parte de uma das quintas - explicou ela. - O rendeiro vai-se embora. Disse-mo há dois meses.
Não era por causa do escândalo, então. Se ela dependia das rendas para viver, perder um rendeiro seria um problema.
- Outro virá ocupar o seu lugar.
- Talvez não. - Ela remexeu na terra com a biqueira da bota.
- Ele disse que a colheita foi pobre e que tem vindo a piorar de ano para ano. Disse que o solo enfraqueceu. Se for verdade, pode não haver outro. E, mesmo que haja, a renda não poderá ser a mesma.
Kyle agachou-se e encheu a mão de terra.
- Tanto quanto se lembra, alguma vez este campo esteve em pousio?
- Não me lembro de alguma vez ter ficado por trabalhar. Inclinou-se sobre o ombro dele para ver o que ele estava a fazer. Uma vez que não estava na realidade a fazer nada, Kyle apercebeu-se intensamente da proximidade do seu rosto e corpo. Talvez demasiado intensamente.
Enterrou mais os dedos na terra, remexendo-a. Encheu o chapéu com umas boas mãos-cheias. Jordan não ia achar graça nenhuma.
- Conheço um homem na cidade que faz experiências para ver se o solo está esgotado. vou levar-lhe esta terra e veremos se o problema é mesmo da terra. Se não for, talvez o seu rendeiro fosse apenas um mau agricultor.
Endireitou-se. Rose aproximara-se para ver e, quando ele se levantou, o corpo dela não estava a mais do que quinze centímetros. Deu um salto, sobressaltada, como se Kyle se tivesse materializado no ar.
A sua feminilidade rodeou-o, convocando memórias daquele abraço na noite do leilão. O chapéu cheio de terra, até a própria paisagem, deixaram de existir quando baixou os olhos para aquele rosto encantador. Vieram-lhe à cabeça detalhes daquelas fantasias roubadas.
Ela devolveu o olhar com uma prudência que a fazia parecer muito jovem. Não parecia assustada nem insultada, apenas curiosa. E expectante, como se presumisse que ele ia recuar para uma distância mais apropriada.
Mas a sua vontade era fazer o oposto. Os olhos dela eram incrivelmente expressivos. Perguntou-se se ela saberia o quanto revelavam. Viu a dor que ela sentira hoje, a sua preocupação com aquelas terras e a solidão que tinha agora de suportar. E havia algo mais. Uma franqueza. Um reconhecimento da intimidade forjada entre ambos numa noite que não permitira dissimulações.
Rose virou a cabeça, corada, e quebrou o contacto visual. Ele estendeu a mão e passou dois dedos pela sua face inacreditavelmente suave, até lhe segurar no queixo. Virou-lhe o rosto para o seu.
O orgulho dela dissolveu-se enquanto olhavam um para o outro. Estavam de novo no caminho da casa de Norbury, sob o luar, só que agora era de dia e o sol brilhante deixava ver melhor as reacções dela. Cautela. Surpresa. Confusão. Tudo isso o fascinava tanto como a sua beleza, e apenas intensificava a vibração no palmo de ar que os separava.
Mal lhe tocou, mas sentiu-a tremer levemente.
Ela não é para os da tua laia, rapaz.
Era verdade, sem dúvida. Mas beijou-a, mesmo assim.
Foi um beijo muito breve, apesar de ele querer muito mais. De tal forma, que não confiava em si próprio. A suavidade dos lábios
quentes e macios de Rose e a sua aceitação fizeram-no recordar o seu primeiro beijo, muitos anos antes.
Ela corou. Afastou-se, embaraçada, procurando alguma distância.
Depois fitou-o directamente e, desta vez, não havia confusão. Era um pouco triste, a expressão que os seus olhos lhe transmitiam.
- Disse-me que não tinha expectativas desse tipo.
- Disse-lhe que não tinha ilusões relativamente aos seus favores por causa daquela noite. Mas é uma mulher muito bela e eu não seria um homem se não reparasse.
A compostura dela vacilou de forma visível.
- Tendo em conta as minhas circunstâncias actuais, é quase um insulto quando um homem repara em mim dessa forma. Terei sempre a dúvida se o meu admirador não estará a pensar que eu sou aquilo que o escândalo diz que sou.
- Eu sou o único homem em Inglaterra que não pensará assim, porque sei como tudo se passou. Mas, para que não pense que eu penso assim, e para que não se sinta insultada, tentarei ser indiferente à sua beleza. Embora duvide que o consiga.
Ela riu-se das suas palavras, ou talvez de si própria, e virou-se para a casa. Apontou para o chapéu dele quando recomeçaram a andar.
- É muito amável por me ajudar, de novo. Receio que o seu chapéu ficará estragado.
- O chapéu não tem importância.
com o chapéu de terra na mão, caminhou ao lado dela. Rose dirigiu-se à casa com passo decidido. A sua expressão tornou-se um pouco aborrecida devido aos seus pensamentos.
Quando chegaram ao jardim, ela parou debaixo dos ramos da macieira. Kyle calculou que devia estar agora hesitante em deixá-lo entrar de novo. Não era uma inocente e vira e sentira o que havia dentro dele quando a beijara, no campo.
- Qual é o seu nome próprio, Mr. Bradwell? Se um homem me rouba um beijo, acho que tenho o direito de o saber.
Ele não roubara nada e ela sabia-o.
- Kyle.
- Kyle. Gosto do nome. Lord Norbury disse que era das minas de Durham. O que quis dizer com isso?
- Quis dizer que eu nasci numa família de mineiros, numa aldeia mineira no Norte.
- E agora é arquitecto ocasionalmente, agente imobiliário ocasionalmente e tem interesse profissional em edifícios e terras. É uma história invulgar.
- Recebi a atenção de um benfeitor e pude estudar. Ele mandou-me para França para estudar engenharia e arquitectura.
- França! A sua história ainda é mais invulgar do que eu julgava. Imagino que esse benfeitor deve estar satisfeito com o seu investimento. É evidente que a sua educação foi completa.
Olhou para ele de lado, estudando o resultado desses anos de melhoramentos. Pretendia que a avaliação fosse lisonjeira, portanto ele aceitou-a nesse espírito.
- Gosto de pensar que sim, que está satisfeito. A sua opinião é muito importante para mim.
O sorriso dela mudou. Era agora reconfortante, um pouco condescendente. O calor dos seus olhos deixou-o deslumbrado, por isso, não se importou muito. Ela estivera abatida até então. Agora, aquele sorriso devolvia-lhe uma certa vitalidade.
- Tenho de ir, Miss Longworth. Muito obrigado pela tarte e pela visita à propriedade. - Ergueu o chapéu. - Depois digo-lhe o que descobrir sobre o solo da sua quinta.
Dirigiu-se ao portão lateral do jardim. Uma das dobradiças estava partida, pelo que teve de o abrir com um pontapé para conseguir passar. Contornou a casa até junto do cavalo, pensando em como havia de transportar o chapéu cheio de terra em cima da sela.
Não queria perder aquela terra. Era a sua desculpa para voltar a ver Miss Longworth.
CAPÍTULO 5
Não precisas de esperar. Não vou fazer nada agora. Lá para o fim da semana, talvez arranje tempo.
Jean Pierre falou distraidamente, enxotando Kyle com um gesto. Não desviou a atenção da série de tubos e provetas que formavam uma cidade de vidro na mesa comprida entre os dois homens.
Agachou-se e espreitou para uma engenhoca que destilava um líquido. O recipiente abaulado ampliava a visão que Kyle tinha do rosto magro e das pálpebras pesadas de Jean Pierre, distorcendo o semblante do francês que tão facilmente fazia mulheres sensatas perderem o juízo.
A terra da propriedade de Miss Longworth, agora numa pequena caixa de madeira, estava em cima da mesa de trabalho de Jean Pierre, naquele estúdio apinhado nas águas-furtadas, à espera de ser analisada quando o jovem químico se dignasse a conceder-lhe o seu tempo.
Kyle conhecia os vários assuntos que podiam adiar essa experiência. Jean Pierre Lacroix aprendera ciência com algumas das melhores mentes francesas e mencionava frequentemente os seus nomes. Essas referências conseguiam-lhe trabalho suficiente em Londres para sustentar a sua pesquisa e os seus pecados.
Kyle contornou a mesa e sentou-se numa cadeira, onde sabia que estaria a atrapalhar Jean Pierre.
- Não quero esperar pelo fim da semana. Nessa altura já terás esquecido completamente o assunto. A flor que estás presentemente
a cultivar certamente estará pronta a colher dentro de um ou dois dias, e depois não haverá experiências durante duas semanas.
Jean Pierre soltou um estalo exasperado com a língua. Esticou o braço por cima de K. para pegar num pratinho de vidro com alguns grãos de metal. Kyle desviou-se apenas o suficiente para estorvar o movimento.
- Mon dieu, que aborrecido. Vai-te embora. Kyle apontou para a caixa de madeira.
- A terra. Agora.
- A terra, a terra. que diabo te interessa a terra? Não lavras a terra. Afasta-la para construir.
- É para uma senhora minha amiga.
- Uma senhora. Não é uma palavra que vocês, ingleses, usem de ânimo leve. Esta terra é daquela mulher que não mostrou qualquer discrição quando jogámos a semana passada? Ela bebe bebidas fortes, mon ami, e isso é muito desagradável. E se anda a aborrecer-te com as suas preocupações sobre terra. - Encolheu os ombros.
Kyle conhecia aquele encolher de ombros. Desde que conhecera Jean Pierre, quando ambos eram estudantes em Paris, aquele movimento descontraído significava que o francês tinha muito mais para dizer mas achava que seria uma perda de tempo.
- Não é a senhora descarada, ébria e jogadora, mas outra. Um brilho divertido surgiu nos olhos de Jean Pierre. Ajustou a
chama por baixo da sua destilação e voltou a atenção para Kyle.
- Outra?
- Outra.
- Temia que não tivesses compreendido a sorte que te bateu à porta nestas últimas semanas, mas, cest bon, pelos vistos não és tão cego como eu pensava. Sou como um velho tio, que te considera demasiado burguês para aproveitar as oportunidades que nascem destes grandes escândalos que vocês, ingleses, fazem por tudo e por nada. - Fez um sorriso irónico e abanou o dedo. - Eu devia saber que és demasiado esperto para desperdiçar a bonne chance e.
- De que raio estás para aí a falar?
- Dessa senhora da terra. De outras senhoras e de muitas mais que não são propriamente senhoras. Tantas mulheres que te procuram agora. Querem conhecer melhor esse homem que pagou uma fortuna para proteger uma prostituta. Todas as minhas amigas me
perguntam como tu és - suspirou. - Devo dizer-te que estas perguntas são um fardo.
- Não me aproveitei deste escândalo, mas parece que tu não tiveste os mesmos escrúpulos.
- Elas sabem que te conheço e, como moscas, colam-se a mim. É verdade que há algumas que te consideram um estúpido ou um camponês pedante, mas muitas outras estão perdidas de amores, como certamente sabes.
O francês assumira o papel de escudeiro do cavaleiro. Não admirava que estivesse tão ocupado. Provavelmente há dias que não trabalhava na sua mesa de químico.
Jean Pierre observou-o.
- Que expressão tão neutra. Tão. britânica. Não me digas que desperdiçaste este escândalo. Não me digas que recusaste os convites que te têm sido feitos. Expulso-te já daqui e nunca mais bebo um copo de vinho contigo.
As admoestações de Jean Pierre eram muitas vezes assim, incentivando Kyle a aproveitar ao máximo as mulheres disponíveis enquanto ainda era novo, rico e livre.
Kyle ignorava as lições. Geria essa parte da sua vida à sua própria maneira. Não era nenhum monge, mas, para consternação de Jean Pierre, também não era um libertino. Tinha de facto recebido nos últimos tempos muitos convites para jantar. Simplesmente não estava interessado em jantares para os quais pudesse estar a ser convidado por causa daquela noite, quer fossem servidos numa mesa ou numa cama.
A menos que fosse Miss Longworth a servir a refeição.
- A terra - disse, apontando. - Se já te aproveitaste bem da minha fama, podes tratar dela imediatamente.
Jean Pierre revirou os olhos. Pegou na caixa e pousou-a à sua frente com gestos bruscos. Começou a juntar pequenos frascos com líquidos.
- Não me digas que agora vais comprar terra para cultivar. Não me digas que decidiste tornar-te um bom e aborrecido agricultor inglês.
- Tens uma longa lista de coisas que eu não posso dizer-te. Tão longa, que me deixaste sem palavras. vou apenas ficar aqui sentado a ver.
- Boa ideia. - Jean Pierre colocou pequenas quantidades de terra numa série de tubos de vidro compridos e começou a despejar os líquidos dos frasquinhos por cima. - Isto é apenas uma teoria, compreendes? Mas é uma boa teoria e julgo que está correcta. Sabemos que químicos o solo deve conter para as plantas crescerem. Agora, tentaremos ver se eles estão ausentes.
Jean Pierre despejou o último líquido. Tapou todos os tubos e agitou-os, depois colocou-os num suporte.
- Agora esperamos. - Abriu um armário, tirou uma garrafa de vinho e dois copos e conduziu Kyle a uma mesa sob uma janela voltada para Cheapside Street.
O céu de Dezembro estava carregado e cinzento. Um fogo agradável crepitava na lareira. As cadeiras de ferro forjado eram semelhantes às que se encontravam em terraços e varandas em França. Jean Pierre reconstruíra um pouco da sua pátria junto daquela janela, um recanto que recordava sempre Kyle dos anos que lá passara.
A educação na École fora rigorosa e instrutiva, mas tinha aprendido também outras lições em Paris. Havia o currículo sexual, claro. Jean Pierre tratara disso. Mais interessante fora poder testemunhar uma visão da sociedade em mutação. Napoleão estava morto, a Revolução há muito acabada, e governava de novo um rei, mas uma geração de gritos de égalité alterara para sempre a perspectiva francesa.
Não completamente, claro. Mesmo em França, quando se tratava de casamento, o sangue era o sangue. A diferença era que o país inteiro não aceitava que o sangue devia governar todos os aspectos da vida.
Seria por isso que Cottington o enviara para lá? O conde não era um radical. Mais provavelmente, escolhera França por causa de Norbury, que na altura já tinha começado a ressentir-se do prolongado papel do pai como benfeitor.
- Estou a pensar em casar. - Kyle esticou as pernas e tentou pôr-se à vontade. Era muito mais alto do que Jean Pierre e as cadeiras de ferro, embora fossem pitorescas, deixavam algo a desejar em termos de conforto. - Ainda não decidi, mas estou a pensar nisso.
- A senhora da terra?
- Sim.
- É mesmo uma senhora?
- Sim, mas como a tua mamselle Janette, no ano em que te conheci.
- Ah, oui. bom berço, parentes corruptos, sem dinheiro. Jean Pierre ergueu o copo. - E, pelo aspecto daqueles tubos, terra fraca. Parabéns.
- Vejo que não aprovas.
- Ela vai passar a vida a recordar-te, todos os dias, que não és suficientemente bom para ela. Vais esvaziar a bolsa numa tentativa vã de a fazer feliz. Os teus próprios filhos considerar-te-ão inferior a eles. Não, não aprovo.
Podia sempre contar com a franqueza de Jean Pierre. Sabia, por experiência própria com a língua francesa, que a subtileza era a última coisa que se aprendia numa língua nova, e muitas vezes era impossível de alcançar.
Portanto ali estava, uma boa razão para recusar o grande plano de Easterbrook. O marquês podia achar que isso era apenas uma preocupação menor, mas, como vivia no topo da escala, nunca compreenderia como essa objecção podia ser importante.
- Quem é esta senhora? - perguntou Jean Pierre, fitando-o de olhos semicerrados.
- Miss Longworth.
- Bem me parecia. É tão típico de vocês, os ingleses. - Inclinou-se para a frente e apoiou os braços na mesa. - Por causa do teu cavalheirismo, agora sentes-te responsável. Ela é bela e lisonjeia-te com a sua gratidão. Portanto sentes-te obrigado a salvá-la do resto.
Jean Pierre estava a entrar bastante bem na peça do marquês e a tocar em mais verdades do que Kyle gostava de admitir.
- Deixa-me dizer-te como as coisas são realmente com essas damas em perigo, mon ami. No meu país ainda temos as canções antigas e romans, por isso sabemos a verdade. O cavaleiro salva a bela dama, que fica muito grata. Depois ele leva-a para o campo ao lado da estrada, despe-a, fornica-a bem, volta a subir para o cavalo e desaparece.
Kyle teve de se rir.
- Isso é muito parecido com um sonho que tive a noite passada.
- Tu sabes que não precisas de casar com ela se ela te agrada e a desejas. Neste momento, ela fará qualquer coisa. Porque hás-de casar com uma mulher assim, sobre a qual o país inteiro fala?
Porquê, de facto? Essencialmente, porque a desejava e gostava de se considerar melhor do que abutres como Norbury. Talvez porque o destino criara uma situação rara, em que ela podia mesmo aceitar.
Isso não queria dizer que não tivesse pensado na alternativa. Ela já fora seduzida uma vez e a visita que lhe fizera convencera-o de que provavelmente poderia ser seduzida de novo. Especialmente pelo cavaleiro que a salvara.
- Haveria um acordo financeiro - disse.
- com quem? Diz-se que o irmão dela fugiu por causa das dívidas. Mais uma coisa que estaria sempre entre ambos.
- Não com a família dela. A oferta foi feita por outra pessoa.
- Nesse caso, esse acordo não será suficientemente grande. As pessoas de bom coração nunca são generosas com as suas bolsas. Preferem mandar rezar missas e prometer uma recompensa no céu.
- Na verdade, é um acordo bastante interessante.
- Vraiment? Interessante até mesmo para ti?
- Até para mim.
Jean Pierre estava impressionado. Serviu mais vinho.
- Porque não disseste logo? Isso muda tudo, claro.
Roselyn subiu a colina atrás da sua casa. Não se importou com o dia nublado nem com o vento que lhe açoitava o rosto. Não reparou nas folhas mortas que esvoaçavam em volta das suas pernas. Na sua mente, caminhava sob o calor do sol, num mundo repleto de flores que nunca morriam.
Apertou mais a capa e sentou-se no cimo da colina. Virou as costas ao vento e o rosto na direcção que lhe permitia ver até mais longe. Tirou duas cartas de dentro da capa. Ambas prometiam aliviar a sua solidão implacável.
As cartas estavam à sua espera na aldeia, no dia anterior, quando lá fora comprar linha. Ao lê-las, a luz reentrara no seu mundo cinzento.
Uma vinha de Londres, de uma mulher que ela nunca conhecera. Phaedra Blair, recentemente casada com Elliot, o irmão de Lord Hayden, era conhecida por ser outré1 nas suas ideias, comportamento e aparência. Agora, Lady Phaedra escrevera-lhe para se apresentar e declarar que o exílio de Roselyn era bárbaro e injusto.
Lady Phaedra, que não era mulher de se queixar e não agir, dizia-lhe também que possuía uma pequena casa perto de Aldgate que Roselyn podia usar, se alguma vez quisesse ir a Londres. Deixou também bem claro que Roselyn seria recebida por ela e por Lord Elliot, que se recusavam ambos a ceder à hipocrisia do mundo.
As palavras veementes, escritas com tanta firmeza, fizeram Rose rir. Lord Elliot devia ter uma vida muito interessante.
A sensação de estar a rir quase a chocou. Era tão estranho. Tão invulgar. Quando se rira pela última vez? Olhou para o horizonte e tentou lembrar-se. Há semanas, sem dúvida. Talvez meses. Estava tão destreinada de ser feliz que a sua alegria de agora a deixou meio tonta.
Olhou para a outra carta que causara aquele estado de espírito inesperado.
Tim voltara a escrever. Ela ficara espantada ao ver a sua caligrafia. Era impossível que, em tão pouco tempo, aquela carta fosse uma resposta à missiva que lhe enviara. Assim que a abriu, percebeu que ele não estava a responder, mas sim a enviar mais notícias.
Não chegaria a ver a carta dela porque ia deixar a cidade francesa de onde lhe escrevera. No entanto, lera-lhe os pensamentos e propunha-lhe aquilo que ela lhe sugerira nessa carta. Queria que Rose se juntasse a ele e voltaria a escrever quando estivesse instalado em Itália.
Ela leu as suas súplicas. Tim não sabia que não precisava de a tentar persuadir. O irmão ainda não sabia que não lhe restava qualquer vida em Inglaterra.
Tim descrevia viagens e aventuras. Prometia montanhas e o mar, Florença e Roma e mais além. Rose não conseguira dormir nessa noite, de tal forma as imagens a tinham deixado entusiasmada. Há tanto tempo que não tinha qualquer esperança, mas agora sentia-se embriagada com ela.
1. Em francês, no original. Bizarro, pouco convencional. (N. do E.)
Deitou-se na relva e olhou para o céu. Dizia-se que havia mais sol no continente. Já conseguia sentir o seu calor. Pensar nisso despertava nela uma felicidade e uma sensação de liberdade entusiasmantes.
Estava feliz por Tim lhe ter escrito antes de receber a carta dela. Isso significava que ele queria realmente tê-la ao seu lado, que não estava apenas a ser amável. Agora estavam ambos sozinhos, ambos desgraçados. Haveria liberdade no estrangeiro e seriam de novo uma família.
Levantou-se e começou a caminhar em direcção a casa. Nessa tarde examinaria o seu guarda-roupa, aquilo que conseguira salvar quando a família abandonara Londres, arruinada. Ainda demoraria algum tempo até poder juntar-se a Tim, mas, pelo menos, podia preencher os seus dias com sonhos e planos.
Entrou no jardim pelo portão das traseiras. Quando passou pela macieira, um som leve intrometeu-se nos seus pensamentos. Mais curiosa do que cautelosa, seguiu a série de pequenas pancadas e raspadelas até ao portão lateral.
Uma camisa branca, bem visível no dia cinzento, obstruía a sua vista do portão. Cobria umas costas fortes e largas, por cima de um par de calças castanhas-claras. Braços bronzeados, expostos sob as mangas arregaçadas, seguravam o portão. Uma cabeça morena virou-se, revelando um perfil forte.
Mr. Bradwell não a ouviu aproximar-se, enquanto pegava no portão e o encaixava cuidadosamente nas dobradiças. Uma dessas dobradiças era nova e cintilava.
O linho macio da camisa e o corte justo das calças revelavam as suas formas quando se movia. O vento agitou-lhe os cabelos escuros, despenteando-os. Apesar da gravata e do colarinho, ele parecia desenvolto, sensual e muito competente.
Um bom empurrão, um baque surdo e o portão movia-se de novo com suavidade. Ele testou-o, depois desenrolou as mangas.
Foi então que a viu. Não pareceu nada incomodado por ela o ter visto a trabalhar assim. Cumprimentou-a enquanto acabava de se arranjar.
Rose aproximou-se e examinou o portão. Estava partido há anos.
- Reparei que precisava de arranjo na última vez que cá estive
- disse ele, pegando no casaco que pousara sobre a relva.
- Obrigada. - Parecia que estava sempre a agradecer-lhe por qualquer coisa. - Estava novamente na zona, Mr. Bradwell? De passagem?
Ele vestiu o casaco e endireitou-se. Parecia agora muito decente. Ela preferia-o activo e com menos roupa.
- Vim de Londres apenas para a ver, Miss Longworth. Tenho informações sobre a sua terra e uma mensagem da sua prima.
Podia ter transmitido as mensagens por carta. Rose desconfiava que o verdadeiro motivo da visita era aquele beijo. Provavelmente, antes de se ir embora, tentaria beijá-la de novo.
Era agora evidente que ele a desejava. Oh, não a fitava de forma insultuosa, não. O desejo apenas intensificava a franqueza do seu olhar e ensombrava ligeiramente a vitalidade que ele emanava. Aquele homem tinha muita prática a esconder os seus desejos, mas não conseguia controlar a tensão criada pelo seu interesse e a forma como isso afectava a atmosfera. E a ela. Hoje, estava demasiado feliz para tentar enganar-se a si própria.
Provavelmente, devia sentir-se insultada. Mas, hoje, não importava. Nem o interesse dele, nem a resposta dela.
Talvez o deixasse dar-lhe esse beijo. Nem sequer ficaria magoada quando ele lhe oferecesse o acordo especial que esperava que esse segundo beijo anteciparia. Iria manchar a memória daquela noite. Mostraria que, afinal de contas, ele não era um cavalheiro perfeito, mas agora já nem isso teria importância.
Em breve, partiria. Dentro de poucas semanas, Roselyn Longworth desapareceria completamente.
- Por favor, entre e dê-me essas notícias. - Ela conduziu-o até à casa.
Hoje parecia muito mais alegre. E muito bela. Sempre bela.
Kyle viu folhinhas de relva na capa dela enquanto a seguia. Tinha estendido a capa no chão, na colina. Uma vez que estava frio, ele desconfiava de que não a teria despido primeiro.
Imaginou-a, no seu isolamento, uma figura solitária deitada na relva sob o céu. Conseguia compreender o porquê de ela querer olhar para o espaço infinito. Tinha uma boa casa, mas não deixava de ser uma prisão.
- Receio não ter tarte para lhe oferecer, hoje. - Rose despiu a capa e sacudiu as folhas de relva. - Na verdade, não tenho nada para lhe oferecer.
- A sua prima enviou algumas coisas. O cesto está lá fora, junto da porta da frente. Se me dá licença.
Ela acenou enquanto acrescentava alguns galhos à lareira na sala de visitas. Ele foi buscar o cesto. Rose sentou-se numa das cadeiras de madeira e remexeu nos presentes, pegando nas coisas com um sorriso encantado.
Pousou as caixas de chá e biscoitos na pequena mesa. Depois retirou o saco de café, a garrafa de vinho e o frasco de mel.
- O que é isto aqui no fundo? - Era um embrulho grande.
- Acho que é uma ave qualquer cozinhada. Pato ou ganso, segundo percebi.
Ela riu-se. Kyle nunca a ouvira rir, pelo menos tão abertamente. Era um riso encantador. Melodioso. Angélico.
Cuidado, Kyle, meu rapaz. Não tarda nada estás a escrever má poesia.
- É mesmo coisa da Alexia. Luxos, mas coisas práticas. Tem de me fazer companhia a comer a ave e a beber o vinho, Mr. Bradwell. Partilharemos um festim.
- Talvez seja melhor se guardar tudo para si.
- Que disparate. - Pousou o cesto no chão ao seu lado. - E então, quais são as notícias sobre o meu solo?
Kyle sentou-se noutra cadeira, com a pequena mesa entre ambos e a lareira a aquecer-lhes os ombros.
- As experiências que foram feitas são teóricas. No entanto, parecem mostrar que o solo está esgotado. Os seus irmãos nunca exigiram que os rendeiros fizessem rotação de colheitas? Está provado que é muito útil. Pelo menos, o velho sistema de deixar os campos em pousio de três em três anos teria ajudado.
- O meu pai recebia as rendas, nada mais. Os seus interesses estavam na cidade, não aqui. Depois da sua morte ninguém se preocupou em gerir verdadeiramente a propriedade. Presumimos, pelos vistos, de forma errada, que os agricultores saberiam cultivar e não tornariam a terra menos produtiva.
- Ter mais um campo de colheitas é tentador. Há pessoas capazes de esgotar as terras e depois deixá-las.
Rose encolheu os ombros.
- Assim parece.
Aquele encolher de ombros foi a sua única reacção. Ele trouxera-lhe más notícias, que afectariam um rendimento já de si escasso, mas ela parecia não se importar.
Os olhos de Rose brilharam quando passou o dedo fino pelo rebordo da caixa de chá. Kyle observou essa carícia distraída e imaginou-a em si, os dedos dela a deslizarem lentamente pelo seu corpo. Teve de cerrar os dentes para controlar o que a pequena fantasia despertou nele.
Estava contente por ela não estar triste, mas, em vez disso, parecia quase ébria. Sabia que o sorriso aberto e olhos cintilantes de Rose não se deviam à visita dele.
- É um péssimo mentiroso, Mr. Bradwell. Não foi a Alexia que lhe deu este cesto. Penso que foi o senhor que comprou estes artigos.
- O que a faz pensar uma coisa dessas?
- A Alexia teria mandado uma marca de chá diferente e outros biscoitos. Também teria incluído sabonetes e ganchos para o cabelo e outros luxos práticos que uma mulher não pode comer.
O seu rosto abriu-se num sorriso malicioso. Estava sem dúvida bem-disposta hoje. Animada. Quase coquete.
- Apanhou-me, Miss Longworth. Esperava evitar constrangimentos dizendo que era da sua prima.
- Este presente é por causa daquele beijo? Devem estar aqui coisas no valor de pelo menos dez xelins, e aquele beijo mal valeu um. Por outro lado, talvez esteja à espera de mais nove.
Agora estava a ficar ousada.
- O cesto não teve nada a ver com o beijo, mas sim com a minha preocupação pela sua saúde e falta de comodidades. E talvez para a ajudar a sentir-se menos triste com as implicações das notícias que lhe trouxe sobre a sua terra.
- Claro. Peço desculpa por duvidar dos seus motivos. - Os seus olhos eram trocistas, apesar da seriedade das palavras. Começou a guardar de novo os artigos no cesto. - Vamos sentar-nos e comer uma refeição decente. Se a partilhar comigo, as razões por que a trouxe não importarão. Embora, de certa forma, nada tenha já qualquer importância.
Kyle tirou-lhe o cesto dos braços quando ela se levantou e
seguiu-a até à cozinha. Os seus modos lisonjeavam-no. E também o excitavam. O seu desejo ardia como óleo tocado por uma tocha.
No entanto, aquele comportamento também o perturbava, e não por ela ter falado com demasiada franqueza e ter perdido a frieza e a compostura. Roselyn Longworth agia como alguém que tivesse tomado uma decisão, uma decisão que tornava irrelevantes todas as delicadezas.
Kyle perguntou a si próprio o que teria ela estado a pensar quando se deitara na relva, sob o céu cinzento.
Ficou de pé junto da bancada, a observá-la, enquanto ela arrumava e preparava a comida. Era de facto um homem atraente. E à medida que "à maneira dele" se tornava mais familiar, ele tornava-se ainda mais atraente. Os seus olhos, em particular, chamavam a atenção. Olhos inteligentes. Intensos, por vezes, como agora, ao seguirem os seus movimentos. Demasiado intensos, talvez, tendo em conta que ela não fizera nada especial para merecer um escrutínio tão atento.
A sua indumentária perfeita parecia-lhe agora menos apropriada. O efeito que ele procurara criar, de um homem abastado, reservado e discreto, só resultava se a pessoa nunca o tivesse visto vestido de outra maneira.
Mas ela vira-o sem aquele casaco. Vira-o em mangas de camisa, as costas tensas sob o linho branco e os músculos dos braços flectidos com o peso do portão. O casaco continha um espírito reprimido, que se tornava palpável quando era despido. Era como pôr uma gravata e um colete a um animal selvagem.
A atenção de Kyle causou-lhe aquela estranha excitação que lhe provocava sempre. Rose até gostava daquela sensação estimulante. E hoje o elemento de cautela parecia-lhe desnecessário. Estava demasiado feliz para se sentir assustada, ou insultada, ou preocupada.
Ferveu água para o chá. A ave era um ganso e ainda estava quente. Ele devia tê-la comprado numa aldeia ou cidadezinha próxima.
- Pareceu muito calma quando lhe dei a notícia sobre a terra
- disse ele. - Estou aliviado por isso não a ter perturbado.
Rose virou-se para uma mesa tosca de madeira e pôs um pouco de pão e queijo ao lado do ganso.
- Muito em breve, a terra e as rendas deixarão de ter importância. Já não precisarei delas. Mas estou-lhe muito grata por ter feito isto por mim.
Ele franziu levemente a testa enquanto se sentavam para comer.
- Também não me perguntou qual era a mensagem da sua prima.
- Meu Deus, tem razão. Que esquecimento da minha parte. Conte-me, por favor, o que diz a Alexia?
- Diz que lamenta muito pelo seu irmão e por não poder estar consigo. Diz que receberá uma carta da mulher de Lord Elliot e que espera que aceite a oferta de uma residência na cidade que Lady Phaedra lhe fará.
- Já recebi essa carta. A Alexia pretende esgueirar-se às escondidas para me ver, se eu usar essa casa. Contudo, talvez para uma última visita. Sim, talvez o faça.
Kyle mergulhou nos seus pensamentos enquanto comiam em silêncio. Mas era seu convidado e Rose não o ignorou. De qualquer maneira, seria impossível, com aquele homem. No entanto, o silêncio dele permitia que metade da sua mente se ocupasse com as aventuras sob o sol que esperava poder viver dentro de poucos meses.
- Está muito mais alegre hoje, Miss Longworth.
- Espero que isso lhe agrade.
- Claro que sim. Contudo, a sua indiferença em relação ao futuro, aos problemas com as suas terras, a falta de curiosidade sobre a mensagem da sua prima. Não tenho o direito de me preocupar, mas o seu estado de espírito de hoje inquieta-me mais do que a sua tristeza durante a minha última visita.
- Não precisa de se preocupar. Se estou um pouco leviana, ou indiferente em relação aos pormenores da minha vida, é porque espero muito em breve deixar para trás esta vida e este escândalo e esta solidão. Tomei uma decisão, Mr. Bradwell. vou partir para longe, para sempre.
A expressão dele ensombrou-se. Fitou-a com ar alarmado, e depois a determinação invadiu-lhe o rosto. Recostou-se, cruzou os braços e lançou-lhe um olhar directo.
- Não, não o fará. Não o permitirei.
- Não pode impedir-me. A decisão é minha.
- É a decisão do diabo. - A sua força contida libertou-se e soprou em volta dela como um vendaval. - Eu devia ter visto a sua melancolia por aquilo que era. Falarei com a sua prima e com Lord Hayden e encontraremos um sítio para onde possa ir descansar, longe desta aldeia e dos malditos mexericos. Dentro de poucas semanas perceberá que.
- Mr. Bradwell, por favor. - Ela levantou a mão, cortando-lhe a palavra. Ele compreendera-a muitíssimo mal. - Mr. Bradwell, as suas conclusões são demasiado sombrias e estão erradas. Não estou melancólica. Não vou magoar-me a mim própria, se foi isso que dei a entender. vou simplesmente partir. Para o continente. Estou apenas à espera da carta de uma pessoa amiga para fazer as malas.
Ele ficou muito calado. Olhou para a janela ao lado da mesa, contemplando algo que ela não sabia o que era.
- Para o continente?
- Sim. Itália.
- Quem é essa pessoa amiga?
- com certeza que isso não é da sua conta. Ele não gostou da resposta.
- Vai deixar a sua irmã? A sua prima?
- Elas já estão perdidas para mim, e eu para elas.
- Como se sustentará?
- Não se preocupe com isso. Fique feliz por mim, por eu ter esta oportunidade de uma vida nova. É muito melhor do que ser enterrada viva nesta casa. É a decisão certa. E a única opção que me oferece um futuro.
Ele olhou para ela. A estranha intimidade que partilhavam encheu esse olhar de significado. Não era apenas a familiaridade de amigos. Ele era um homem e ela era uma mulher e ele sabia demasiado sobre ela.
De súbito, a excitação que ele lhe causava invadiu-a. O seu sangue ficou mais quente. Sentiu-se como se sentira no campo, antes de ele a beijar - expectante e vulnerável e em desvantagem.
- Duas mulheres a viajarem sozinhas? Em Itália? Não é seguro nem sensato. Quem as protegerá? A sua amiga tem criados, pelo menos?
Ela recusou-se a responder. A ajuda que lhe oferecera naquela noite não lhe dava o direito de a interrogar daquela maneira.
- Essa pessoa amiga não é uma mulher, pois não? - perguntou ele, conseguindo esconder a maior parte da sua desaprovação.
- Quem quer que ele seja, acabará por a deixar. E se isso acontecer enquanto estiverem no estrangeiro? E se as intenções desse homem forem ainda piores do que as do último? No continente, não poderá recorrer à sua prima.
- Não é um amante. Não é esse tipo de amigo.
- É o que ele diz agora.
- Conheço muito bem este homem. Sei que estarei em segurança. Não é aquilo que pensa.
A atenção prolongada dele deixou-a pouco à vontade. A sua desaprovação crepitava no ar.
- Não é a única opção - disse Kyle. - Se a viagem não a levar a um lar seguro e a um futuro seguro, nem sequer é a opção certa.
- É melhor do que isto - disse-o em tom mais amargo do que tencionara. O desacordo persistente dele estava a aborrecê-la. Estava tão contente e agora ele estava a dar cabo da sua boa disposição com uma litania de problemas práticos.
- Isto também não é a única alternativa.
- Não? Talvez me tenha trazido outras notícias. A absolvição da Cantuária, da rainha e das frequentadoras do clube Almacks? Talvez a Alexia tenha mandado notícias de uma herança que me foi legada por algum parente rico e desconhecido?
- Se eu fosse mágico, faria com que tudo isso se tornasse verdade para si. Contudo, pode ter pelo menos parte, sem magia. Pode ter segurança. Pode ter novamente a sua irmã e a sua prima e dar um grande passo para recuperar a sua reputação.
Ele não lhe oferecera falsas esperanças na noite do leilão. Desapontava-a que o estivesse a fazer agora.
- Aquilo que descreve não poderia acontecer sem magia, senhor. Não me pinte quadros bonitos e sentimentais para tentar desencorajar-me do meu plano. As suas garantias são condescendentes e cruéis.
- Eu nunca pinto quadros bonitos, Miss Longworth. Sou um homem que desenha mapas de estradas onde passarão carroças e plantas de casas onde as pessoas têm de viver. Tudo o que descrevo pode ser seu. Tem apenas de casar com um homem respeitável e bem estabelecido - sorriu. - Um homem como eu, por exemplo.
CAPÍTULO 6
Roselyn olhou para ele. Kyle mencionara o casamento com uma calma incrível e sem qualquer cerimónia. Fora quase um aparte, uma mera observação para provar os méritos dos seus argumentos. Confusa, Rose demorou alguns instantes a perceber que ele estava a falar a sério. Acabara de a pedir em casamento.
- Tem um lado muito imprudente, Mr. Bradwell. Já é a segunda vez que age precipitadamente em relação a mim. Pensava que a última vez já lhe tinha custado o suficiente.
- Nunca lhe faria esta oferta se não tivesse reflectido nela muito cuidadosamente.
O choque invadiu-a, causando uma agitação interior. Estar sentada sob o olhar dele deixava-a em desvantagem, por isso levantou-se. Uma vez que, por uma questão de cortesia, ele tinha de se levantar também, isso não ajudou em nada.
- Está apenas a ser amável.
Kyle abanou ligeiramente a cabeça.
- Não sou assim tão boa pessoa.
- O mundo troçará de si. Eu sou o escândalo da estação.
- O mundo pensará melhor em relação ao escândalo se nos casarmos. Será preciso algum tempo para recuperar a posição que tinha na sociedade há um ano, mas a sua prima e a família do seu marido recebê-la-ão de imediato.
E a ele também. Certamente que o levara em conta, quando pesara o que arriscaria e o que poderia ganhar.
A confusão de Rose dissipou-se. Percebeu as contas. Soube o que acontecera.
- Mr. Bradwell, já ultrapassei há muito a idade normal de casamento. Nunca se perguntou por que motivo estou na prateleira?
- Presumi que nunca tivesse conhecido um homem do seu agrado. Ou que não lhe agradasse a ideia do casamento e pudesse dar-se ao luxo de agir de acordo com essa preferência.
O que já não acontece. Ele estava enganado, se era isso que pensava. Ela podia esperar por notícias de Timothy. Podia partir para longe.
- Não recebi qualquer oferta quando era mais jovem. Vivíamos aqui e a nossa sorte não era das melhores. Mais tarde, depois do investimento no banco, depois de os meus irmãos ficarem ricos, houve muitas ofertas. A corte foi-me feita por homens de todas as classes, mas o seu interesse num acordo financeiro excedia sempre, sempre, o interesse que tinham por mim. Preferi não casar apenas para enriquecer a bolsa de um homem qualquer.
- Compreendo. Tinha de ser de novo pobre para acreditar que a corte de um homem era resultado de afecto e não de cobiça. Suponho que é compreensível. Isso também explicaria porque se entregou ao Norbury, quando tinha rejeitado ofertas mais honradas antes.
Ela corou. Ele fitou-a com uma expressão firme mas gentil, sugerindo que compreendia mais do que ela desejava.
- Miss Longworth, já não é irmã de um banqueiro rico.
- É verdade. Agora, não sou ninguém. Há tantas razões para o desencorajar de uma proposta tão precipitada que tenho de questionar por que razão a fez. Espero que não tenha sido por piedade.
Tinha de se mexer, de aliviar as palpitações nervosas do seu coração. Começou a arrumar os restos da refeição. Levou os pratos para a bacia do outro lado da cozinha.
Ele ficou de pé perto da mesa e da janela, mas a sua presença invadia todos os centímetros da divisão.
- Não é por piedade - disse, por fim. - Admito que sinto alguma preocupação por si, mas não piedade.
Rose pousou os pratos na bacia. Não estava a lidar bem com a situação. Seria melhor aliviar a atmosfera e falar honestamente. Ele merecia-o.
Virou-se para ele e percebeu de imediato que isso fora um erro.
O olhar dele era como um íman, puxando-a do outro lado da cozinha. Nos seus olhos e no sorriso leve havia calor e alguma diversão, implicando que ele estava à espera de um desafio e que isso não o incomodava nada.
- Foi Lord Hayden que o persuadiu a fazer isto, não foi? A Alexia pediu-lhe para falar consigo, sem dúvida, mas foi ele que o abordou. De quanto é o acordo financeiro que lhe ofereceu?
- Lord Hayden não tem qualquer conhecimento disto. Não me ofereceu nada.
O seu tom quase a levou a acreditar nele. Quase. Se estava a dizer a verdade, o que ela duvidava, então era um idiota.
- Então propõe casamento a uma mulher desprezada apenas porque sente alguma preocupação e porque será recebido pela família da prima dela? Para um homem de negócios bem-sucedido, faz maus negócios quando reflecte cuidadosamente nas suas acções.
A expressão dele mostrou desagrado com a crítica.
- Está muito segura de ter adivinhado os meus motivos. No entanto, esquece o mais importante. Não receberei nada, excepto os pequenos benefícios que mencionou.
- Não vejo que mais poderá ganhar.
- A si, Miss Longworth. Ficarei consigo, como mãe dos meus filhos e esposa na minha cama.
Caminhou em direcção a ela. O casaco já não conseguia esconder o homem que o vestia. Era como se se tivesse libertado dele e tivesse o cabelo e a camisa a esvoaçarem ao vento. A sua expressão deixou-a aturdida. Era conhecedora. Confiante. Avassaladora.
Cada passo aumentava a força daquele íman. Ela segurou-se à beira da mesa atrás de si. À medida que ele se aproximava, recuou, alarmada, até bater com as costas na bacia.
Encontrou a sua voz, mas teve menos sucesso em encontrar a compostura.
- A maior parte dos homens não me consideraria digna de ser mãe dos seus filhos.
- Os outros homens não conhecem o seu verdadeiro carácter como eu conheço.
- A maioria dos homens não quereria uma mulher cuja virtude
foi perdida de forma tão pública. Exigiriam que a sua noiva estivesse intacta.
- Este homem exige apenas que a sua noiva seja tocada apenas por ele deste dia em diante.
Kyle estava tão perto que ela não podia endireitar-se sem convidar o seu toque. A presença dele pressionava-a não apenas de uma forma física. A profundidade dos seus olhos azuis atraía-a. Perdeu o fio aos pensamentos.
Ficarei consigo, como esposa na minha cama. Ela sentira esse desejo nele. Antecipara que haveria uma abordagem hoje. Mas não aquela.
- Mesmo assim, é um mau negócio - balbuciou. - Foi avisado naquela noite de que eu não sou calorosa da forma que os homens desejam. Seria errado deixá-lo pensar que ele mentiu em relação a isso.
- Que mulher tão honesta. Mas não estou inclinado a aceitar a avaliação de outro homem numa coisa dessas. Acho que formarei a minha própria opinião, em especial porque já tenho razões para acreditar que ele estava muito enganado.
Tocou-lhe no pescoço e o contacto fê-la saltar. Acariciou-lhe o pescoço até a sua mão lhe segurar firmemente na nuca.
Rose não conseguia falar. Não conseguia opor-se. Ele puxou-a para si, gentilmente.
O beijo foi muito diferente daquele que lhe tinha dado no campo. Este era doce e também cauteloso, mas pretendia derrubar todas as objecções. Despertou um calor profundo que lhe invadiu a alma e a fez suspirar. Isto é tão agradável. Talvez só mais um pouco, só mais algum tempo.
Inúmeros arrepios percorreram-lhe o corpo, despertando locais muito longe da boca que ele estava a beijar. Sim, só mais um bocadinho.
Derreteu-se contra ele, desacostumada que estava à perícia deste ataque delicioso. Não havia nada hesitante neste longo beijo, mas ela sentiu o cuidado e a tentativa deliberada de lhe dar prazer. Sim, esta parte, pelo menos, pode ser boa. Tão boa.
A boca dele sobrepôs-se ao seu deslumbramento. A pressão gentil na sua nuca ordenava-lhe que o aceitasse. Ele levou-a a entreabrir os lábios.
A pequena invasão pareceu inevitável. Ela pensou em rebelar-se mas, em vez disso, rendeu-se. As sensações derrubaram defesas que há muito tinham perdido as suas fundações. Em vez de choque, ela reagiu com espanto à forma como o beijo ecoava com uma intimidade erótica.
Estás perdida e ele sabe-o. Podia ter-te agora, se quisesse, e sabe-o. Ao cederes no passado, perdeste a tua melhor arma e a tua melhor razão para resistires, e ele sabe-o.
Não ligou ao aviso da sua mente. Não queria que o encanto se quebrasse. Aquele prazer levava-a para muito longe do mundo triste onde vivia agora.
De qualquer maneira, o beijo chegou ao fim. Rose abriu os olhos e viu-o a fitá-la com uma expressão séria, como se estivesse a pesar o significado da sua falta de resistência. Depois Kyle fechou os olhos e encostou a testa à dela. Ainda tinha a mão na sua nuca, mantendo o contacto. Ela quase conseguiu ouvir os argumentos que o desejo dele lhe dava.
- É suficientemente calorosa para mim. - Acariciou-lhe os lábios com a ponta dos dedos, sorrindo. - Embora haja alguma verdade na afirmação de que lhe falta a experiência.
A sua alusão àquela noite, a Norbury, surpreendeu-a. De todos os homens, Kyle nunca poderia esquecer a sua vergonha.
- Como pode falar disso tão calmamente? Sabe que eu. sabe-o.
- Sei aquilo que tenho em si. Não estou a dizer que o escândalo não importa. Não estou a afirmar que não me importo. Mas não importa o suficiente.
Mesmo assim, ele importava-se e tinha alguma importância. Claro que sim. Ele fora um cavalheiro com ela, mas não era santo. Nenhum homem o era.
Rose não acreditava que ele fora ali hoje para lhe propor casamento. Ainda desconfiava que ele escolhera outra forma de a ter na sua cama. Só se desviara para aquele caminho porque julgara que ela ia entregar-se a outro.
Esses pensamentos passaram-lhe pela cabeça, mas tão fugazmente como qualquer outro, naquele momento. A sua mente revelou-se incapaz de ser sensata enquanto ele lhe tocava e aquele beijo ainda a afectava tão profundamente.
- Não espero uma resposta hoje. Peço-lhe apenas que considere a minha proposta desta outra alternativa. Sei que tem muito a levar em conta. Sei que nunca esperou casar com um homem como eu quando era jovem, mas muita coisa mudou desde então. - Os seus dedos acariciaram levemente o rosto dela com aquele toque leve e cauteloso que usara no campo. - Diga-me que vai pensar nisso.
Não era um pedido, na verdade. Nem ela possuía força de vontade suficiente para discordar.
Ele tirou um papel do bolso do casaco.
- É aqui que eu vivo, em Londres. Quando decidir, mande chamar-me. Ou escreva, se preferir. Se não tiver notícias suas dentro de dez dias, voltarei.
Pousou o papel ao lado da bacia. Ao dirigir-se à porta, o som das suas botas pareceu muito alto na casa vazia.
Algumas gotas de água mancharam a morada no papel enquanto ela lavava os pratos. Dobrou-se desajeitadamente e afastou o papel com o cotovelo seco para que não ficasse ilegível.
Mr. Bradwell já tinha saído há um bom bocado quando Rose finalmente se mexera. Demorara uma hora a recuperar um pouco da sua compostura habitual. Calculava que seriam precisos dias para conseguir pensar claramente no que acontecera ali.
Capitulara com uma rapidez chocante - tão chocante que não o censuraria se reconsiderasse aquilo que julgava conhecer do seu carácter. Mas não esperara gostar daquele beijo. A perícia dele fora uma revelação que a colocara em desvantagem.
Supunha que a sua falta de virtude também contribuíra para isso. Evidentemente, era muito fácil ceder quando já se cedera uma vez. Não era o que as mulheres mais velhas estavam sempre a dizer?
Suficientemente calorosa para mim. Ele não sabia isso. As intimidades do casamento envolviam mais do que beijos numa cozinha.
Ela não gostara dessa parte de ser amante de Norbury. Os beijos eram relativamente divertidos, mas o resto - fez uma careta ao recordar o embaraço e o desconforto e a dificuldade. Sabia que algumas mulheres não tinham muito prazer, mas ninguém a avisara
de como era desagradável permanecer indiferente enquanto o seu amante perdia todo o comedimento.
Depois de terminar de lavar a loiça, limpou as mãos a uma toalha. O sol baixo revelou a aspereza da sua pele. Usava cremes nas mãos quando era mais nova, e ainda o fazia, quando tinha dinheiro para comprar as loções. Mas já tinha lavado e esfregado o suficiente na vida para nunca mais vir a ter as mãos de uma senhora.
Muita coisa mudou desde então. Meu Deus, como era verdade.
A sua inclinação era rejeitar a proposta. Na sua mente ecoavam avisos sobre todas as formas em que aquele casamento podia ser horrível.
Provavelmente ele recebera uma oferta de dinheiro, mas esse dinheiro depressa seria gasto ou esquecido e eles continuariam unidos para sempre.
Na melhor das hipóteses, ele oferecera-se apenas por impulso, para a salvar de novo. Julgara que ela tencionava partir para o estrangeiro com outro canalha e sentira-se obrigado a sacrificar-se.
Fosse como fosse, a proposta estava feita. Era outra opção. Seria louca se a recusasse sem pensar. Mas duvidava que conseguisse pôr de lado todos os ressentimentos e preocupações e preconceitos que já se preparavam para a desencorajar.
Desejou que Alexia estivesse aqui. Alexia era tão sensata e sábia. Alexia ajudá-la-ia a pensar claramente sobre aquele desenvolvimento inesperado.
CAPITULO 7
A chamada à casa de Norbury chegou quatro dias depois de Kyle ter visitado Miss Longworth. Uma vez que o recado de Norbury não indicava o tema da reunião, Kyle pensou que talvez o visconde tivesse ouvido falar do pedido de casamento, de alguma forma.
Foi a cavalo desde a sua casa, em Picadilly, até Mayfair. Não voltara a ver Norbury desde a noite do leilão e os acontecimentos dessa festa eram suficientes para causar alguma tensão entre ambos hoje. Não esperava que a sua presunção ao pedi-la em casamento escapasse a algumas palavras mordazes.
Claro, Miss Longworth ainda não aceitara. Nem sequer lhe escrevera. Talvez nunca o fizesse.
Ela não se mostrara muito receptiva a esse novo desenlace para o seu drama. Kyle duvidava que isso se alterasse a seu favor, enquanto ela debatia as várias hipóteses. Ficar presa a um homem de nascimento comum, que mal conhecia, provavelmente não era muito apelativo, em comparação com as aventuras que lhe eram oferecidas por esse outro homem.
Uma série de protectores era o destino comum das mulheres cuja queda se dava de forma tão pública. A confiança de Easterbrook em relação a isso era enfurecedora por ser fundada. Depois de ter visto como Miss Longworth vivia, depois de ter visto o seu futuro sem perspectivas e o seu triste isolamento, só a alma mais empedernida não compreenderia a tentação.
Itália. Raios,
Ela julgara que a sua proposta de casamento era impulsiva e precipitada. Em vez disso, parecia que perdera demasiado tempo a reflectir nela. Tempo suficiente para que outro abutre encontrasse, seduzisse e tentasse Miss Longworth.
Tanto tempo, que um criado de libré entregara outra carta do marquês na manhã a seguir à visita ao laboratório de Jean Pierre. Desta vez, o papel elegante não trazia palavras, apenas um grande ponto de interrogação desenhado com elegância.
A rua em frente da casa de Norbury estava repleta de lacaios. Um deles levava um cavalo pela rédea. Parecia que este não seria, afinal de contas, um confronto pessoal relacionado com Miss Longworth.
Assim que Kyle entrou na biblioteca percebeu que os homens ali reunidos tinham na verdade uma ligação com ela. Todos tinham sido enganados pelo seu irmão Timothy.
A reunião recordou-lhe que, embora tivesse pensado demasiado tempo na proposta, ainda não resolvera o maior debate que tinha lugar dentro da sua cabeça. O irmão era um ladrão e um criminoso, mas ela ficaria provavelmente furiosa se tivesse conhecimento de que as suas vítimas se estavam a reunir em casa de Norbury.
Por outro lado, a reunião sublinhava também que, um dia, o actual escândalo de Miss Longworth perderia inevitavelmente o interesse em comparação com o outro que aguardava para a envolver. Na sua situação vulnerável, isso arrasaria o pouco orgulho e dignidade que ainda lhe restavam.
Norbury mal reparou na chegada de Kyle. O visconde continuou a conversa com outro homem enquanto Kyle procurava uma cadeira e aceitava o café oferecido por um criado.
Norbury afastou-se do seu convidado e dirigiu-se a todos os presentes.
- Cavalheiros, temos uma decisão a tomar e achei que seria melhor reunir-vos a todos para a podermos resolver rapidamente.
As conversas silenciaram-se e todos os olhos se voltaram para o anfitrião.
- Recebi uma carta do Royds. Chegou ontem e ele escreve de Dijon.
- Já conseguiu apanhar o canalha? - inquiriu a voz profunda de Sir Robert Lillingston. - Não sei por que raio está a demorar tanto.
Um coro de murmúrios de concordância apoiou a observação.
- Infelizmente, não. Contudo.
Os murmúrios aumentaram de intensidade.
- Cavalheiros, permitam-me que continue. Mr. Royds diz que descobriu porque tem sido tão difícil localizar a sua presa. O Longworth não viajava sozinho, como lhe dissemos. Teve sempre um companheiro. Apesar disso, o Royds seguiu o seu rasto até Dijon, onde o Longworth esteve a viver algum tempo, usando o apelido Goddard. O seu companheiro, um homem chamado Pennilot, apanhou uma febre e morreu, e o Longworth foi forçado a perder tempo em resultado dessa doença.
- Então onde está ele agora? - perguntou Lillingston. - Não é em Dijon, pelo que nos diz.
- Não é em Dijon - confirmou Norbury. - O Royds desencontrou-se com ele por pouco. Tem bons motivos para acreditar que o Longworth se dirige para sul, tendo como destino Itália.
Ninguém gostou de o ouvir. A notícia do desencontro causou muitas queixas.
Kyle não disse nada. A sua atenção fora captada pelo último pormenor.
Itália. Roselyn falara de viajar até Itália com um amigo. Não, agora que revia a conversa na sua mente, ela nunca dissera que atravessaria o continente com esse homem. Podia estar a planear encontrar-se com ele lá.
Amaldiçoou a sua própria estupidez. Roselyn não estava a ser falsa ou ingénua quando insistira que o amigo não tinha outros interesses. Não estava a planear uma vida como amante. Tencionava juntar-se ao canalha do irmão.
As implicações desse facto, para ela, para ele, para a sua proposta e para as opções dela, distraíram-no. Continuou a seguir a discussão na biblioteca apenas com uma pequena parte da sua atenção.
- Mr. Royds seguiu-o, mas prevê custos elevados se tiver de prosseguir com a busca em Itália - explicou Norbury. - com todos os pequenos Estados soberanos na península, serão necessários muitos subornos. Tenho de lhe escrever para uma morada em
Milão a dar autorização para incorrer nessas despesas e uma garantia de que nós as cobriremos.
- Mas ele pode andar à procura em Itália durante anos insistiu Mr. Barston, um importador abastado. - Começo a pensar que seria melhor pormos fim a isto. Graças a Lord Hayden Rothwell, não ficámos demasiado prejudicados. Eu quero ver esse canalha pagar, tanto como qualquer um aqui presente, mas parece que esta caça ao homem pode durar para sempre. Não tenho qualquer interesse numa justiça perfeita se isso me custar centenas de libras.
Norbury ficou muito vermelho.
- Ele fê-lo passar por idiota. A todos nós. Insinuou-se nos nossos círculos e persuadiu-nos a usar o seu banco. Enganou-nos como imbecis e depois fugiu com o saque. Por amor de Deus, tenham algum orgulho!
- Mas parece que o Royds nem sequer sabe para onde é que ele vai - contrapôs Barston.
- Há-de encontrá-lo. Usará os mesmos métodos que usou para chegar a Dijon.
- E demorou meses a localizar o Longworth em Dijon. Pode demorar meses até que o Royds ou qualquer outra pessoa saiba onde o Longworth vai parar a seguir.
Isso não era verdade, apercebeu-se Kyle. Havia uma pessoa em Inglaterra que saberia muito em breve onde seria o novo covil de Timothy Longworth. Roselyn estava à espera de uma carta antes de embarcar para a sua nova vida.
Olhou para os homens à sua volta. Alguns eram cavalheiros e outros eram comerciantes, como Barston. Um era um financeiro muito conhecido. A única coisa que os unia era a sede de vingança.
Não por causa de grandes prejuízos. Lord Hayden tinha restituído o dinheiro a todos. Essa restituição pretendera aplacar a fúria das vítimas e impedi-las de apresentar queixa. Tinham ficado a saber como Longworth forjara nomes e documentos para vender os títulos de crédito à guarda do seu banco, mas um homem recompensado esquece-se rapidamente de muita coisa.
com a maioria das vítimas, o plano de Lord Hayden resultara. Mas os homens ali presentes não tinham ficado satisfeitos. A devolução do dinheiro não fora suficiente para eles.
Lentamente, tinham-se encontrado uns aos outros. Tinham-se unido na causa de encontrar Longworth e de o trazer de volta. Nos meses desde então as notícias tinham sido escassas.
Norbury perscrutou a sala em busca de mais objecções.
- Estou confiante de que ele será encontrado em breve. No entanto, mesmo que o Royds tenha de ir a todas as cidades de Itália, será dinheiro bem gasto. Não duvido de que o Longworth janta em grande estilo enquanto se ri dos idiotas que roubou. Alguns de vós podem estar dispostos a viver com essa imagem, mas nenhum homem de honra o conseguirá.
Essa insinuação acabou com a discussão. Foi feita uma votação informal. Encarregaram Norbury de escrever a Royds e prometer os pagamentos necessários.
Os homens levantaram-se e trocaram-se despedidas. Kyle deixou-se ficar para trás enquanto os outros partiam. Era altura de testar o terreno nas areias movediças que era Norbury e ver até onde conseguiria andar sem se enterrar.
O seu anfitrião fingiu ignorá-lo durante alguns minutos, enquanto arrumava papéis. Por fim, levantou a cabeça e os olhos claros fitaram-no.
- Esteve muito calado hoje, Kyle. Muito sensato da sua parte.
- Não tinha nada para dizer.
- Ao contrário de há bem pouco tempo. Lembro-me de belos discursos sobre os porquês e os porque nãos, sobre os pobres homens enforcados todas as semanas por muito menos, só por não terem amigos ricos para comprarem a sua vida junto das vítimas. Pregou sobre moral como um vigário ou um maldito filósofo, mas não é uma coisa nem outra e as suas opiniões não têm importância. - Semicerrou os olhos faiscantes. - Quer imitar as ideias que aprendeu com livros e tutores, mas esquece-se de que é impertinente um homem como você atrever-se a dar sermões aos que lhe são superiores.
- Não dei sermões a ninguém.
- Uma ova, é que não deu. A sua actuação na minha festa falou bem alto. - A expressão de Norbury era petulante. - Lord Hayden deu-se a grandes trabalhos para fazer com que se soubesse que não chegou a gozar o prémio que comprou nessa noite. Fê-lo apenas para.
- Que lhe importa porque o fiz? Ganhou dez vezes mais do que seria de esperar e está livre dela. Como disse, as opiniões de um homem como eu não têm importância para um homem como o senhor.
Norbury desviou os olhos. Pareceu acalmar-se um pouco. Kyle aproveitou esse momento para sair. Estava já à porta quando Norbury falou de novo.
- Estou farto das suas presunções, Kyle. As suas ideias simples são mais adequadas para os mineiros ignorantes da sua aldeia. - A sua voz transformou-se numa rosnadela. - Não volte a contrariar-me.
- Vivi aqui quase dez anos. E muito modesta, mas a rua é mais segura do que parece.
Lady Phaedra dirigiu-se à porta da casa em questão. O seu vestido e capa pretos esvoaçaram ao vento, revelando o inesperado forro dourado da capa. O cabelo ruivo e ondulado caiu como uma cortina de fogo de um dos lados do seu rosto quando se inclinou para enfiar a chave na fechadura.
Rose esperou, de mala na mão. A última frase de Lady Phaedra tranquilizara-a um pouco. A rua, não muito longe de Aldgate, não parecia de facto muito segura. O cocheiro de Lord Elliot devia concordar com ela, porque estava sentado muito direito, com o chicote na mão.
As casas eram velhas e a rua estreita. Uma pedinte estava sentada a menos de cinco metros da porta de Phaedra. Outra mulher, numa janela aberta do outro lado da rua, chamava com uma familiaridade suspeita os homens que passavam.
Lady Phaedra reparou e riu-se.
- O Elliot avisou-me de que ficaria chocada. Disse que devíamos arrendar uma casa melhor e apresentá-la como se fosse minha e a Roselyn nunca saberia a verdade. Mas a Alexia disse que é demasiado orgulhosa para aceitar esse tipo de caridade e eu não tenho jeito para viver uma mentira.
- Ainda bem que não o fez. Se viveu aqui quase dez anos, julgo que serei muito feliz durante alguns dias.
Phaedra abriu a porta.
- Tem de a arejar. Está fechada há mais de um mês.
A casa era tão invulgar como a sua proprietária. A sala de estar servia também de biblioteca. Uma das paredes estava coberta de estantes altas, as outras decoradas com pinturas e gravuras estranhas. Em frente das janelas havia um velho divã, coberto por vários xailes coloridos que não escondiam completamente os estofos gastos.
- vou mandar uma criada para ficar aqui consigo, de modo a que fique mais confortável - disse Lady Phaedra.
- Por favor, não é preciso. Já foi demasiado generosa, e muito amável ao não mostrar qualquer surpresa quando apareci à sua porta. Nem sequer me conhece.
- Mas sei tudo a seu respeito, e sei que a Alexia a ama muito. Sei também como é ser objecto de murmúrios e desprezo. Só tem importância se permitir que tenha, Roselyn. Há muitas pessoas que não se regem pelos ditames da sociedade e que a aceitarão sem preconceitos.
Rose compreendeu a lição que Lady Phaedra estava a tentar transmitir-lhe. Sabia que havia círculos que se regiam por regras diferentes. Phaedra Blair não se conformara e, segundo Alexia, levara uma vida interessante e colorida antes de aceder a casar com Lord Elliot. Ao que parecia, a sua benfeitora era uma senhora que nunca encaixara completamente na boa sociedade, apenas porque assim o preferira.
No entanto, Rose também sabia que não era Phaedra Blair. Não fora criada em círculos artísticos e radicais e sentir-se-ia tola se tentasse juntar-se a eles. Lady Phaedra tentava mostrar-lhe que havia ainda outra opção para o seu futuro, mas era uma opção que Rose não considerava viável.
- É fácil encontrar tipóias de aluguer na rua do lado - explicou Phaedra enquanto lhe mostrava a cozinha e a sala de jantar. As lojas ficam também aí.
No piso de cima, Rose deixou a mala num dos dois pequenos quartos. A janela dava para um jardim minúsculo, nas traseiras, que precisava de alguns cuidados.
- Deixo-a a descansar - disse Lady Phaedra quando voltaram a descer. - Passou demasiado tempo numa carruagem e isso é sempre muito cansativo. Volto amanhã para ver como está.
Rose viu a capa negra ondular até à rua e entrar na carruagem que levaria Phaedra de volta à bonita casa em Mayfair que agora partilhava com Lord Elliot. Não era longe da casa em Hill Street, onde Alexia vivia.
Imaginou Alexia a percorrer essa casa. Não era difícil invocar imagens da prima em todas as divisões. Ambas tinham lá vivido apenas há um ano. Na altura era a casa dos Longworth, onde se tinham reunido todos como uma família.
Muita coisa mudou desde então.
Tudo mudara desde então.
Rose ouviu a carruagem parar lá fora na manhã seguinte. Levantou-se de um salto e foi espreitar pela janela da frente.
Reconheceu a carruagem. Tal como antecipara, Alexia soubera desta visita através de Phaedra e viera vê-la.
Sentiu uma leve desilusão quando a porta da carruagem se abriu. Um homem alto, de aspecto severo, saiu das sombras e deu a mão para ajudar a prima a descer. Lord Hayden Rothwell acompanhara a mulher.
Talvez fosse pelo melhor. Tinha perguntas para ele e seria melhor fazê-las directamente.
Abriu a porta quando eles se aproximaram. Alexia sorriu, encantada por a ver. Lord Hayden estava demasiado ocupado a olhar para a pedinte e para a prostituta com ar reprovador.
- Costumavas vir visitar a Phaedra aqui? - ouviu-o perguntar a Alexia. - Sozinha, antes de casarmos? Mesmo depois?
- De vez em quando - respondeu Alexia, ignorando a consternação do marido. Entrou na casa e abraçou Rose. - Não ralhes comigo, Rose. Quando devolveste as minhas cartas por abrir, deixaste bem claro que não estavas disposta a permitir que eu corresse qualquer risco, mas até o Hayden concorda que é pouco provável que este encontro chegue aos ouvidos das bruxas da sociedade. Os residentes deste bairro não nos conhecem e, de qualquer maneira, não trocam mexericos nas salas da boa sociedade.
Rose conduziu-os até à estranha sala de estar. Lord Hayden dedicou a sua atenção às gravuras bizarras na parede.
- Estou feliz por teres vindo, Alexia. E o senhor também, Lord Hayden. Estava com esperança de que viesse. Não tenciono ficar muito tempo, portanto a vossa visita é bem-vinda.
A expressão de Alexia ensombrou-se.
- Não há necessidade de regressares já a Oxfordshire. com certeza que podes ficar na cidade até depois do Natal. Tinha esperança de que pudéssemos jantar juntas nessa altura, se não antes.
- Isso não seria sensato. Temos de aceitar o castigo pelos meus erros, se não por ti, então pela minha irmã. - Pegou na mão da prima e apertou-a. - Por favor, senta-te, Alexia. Preciso do teu conselho.
Alexia sentou-se no divã. Lord Hayden continuou a estudar os bens de Phaedra, dedicando agora a sua atenção à estante.
Rose sentou-se numa cadeira de onde conseguia ver o perfil dele. Por mais atentamente que parecesse estar a ler as lombadas, Rose duvidava que ele perdesse uma só palavra da sua conversa com a prima.
- Alexia, aconteceu uma coisa muito inesperada há quatro dias. Mr. Bradwell propôs-me casamento.
O espanto de Alexia era genuíno. Lord Hayden limitou-se a semicerrar ligeiramente os olhos.
- E aceitaste? - quis saber Alexia.
- Fiquei tão espantada que não consegui tomar uma decisão de imediato. A minha vontade foi recusar. Temo que ele não compreenda as consequências dessa união. Na verdade, não consigo imaginar por que motivo teria falado de forma tão precipitada. A menos, claro.
- A menos o quê?
- A menos que tivesse sido encorajado a fazê-lo por alguém, com a promessa de uma doação. - Olhou de lado para Lord Hayden, mas não viu qualquer reacção à sua insinuação.
Alexia virou-se também para o marido.
- Hayden, tiveste alguma coisa a ver com isto? Ele olhou para elas.
- Não subornei Mr. Bradwell.
- Certamente - disse Rose. - Contudo, uma doação matrimonial não é regra geral considerada um suborno.
- Porque presume que esse pedido foi originado pela minha interferência? É possível que Mr. Bradwell compreenda muito bem as consequências, talvez melhor do que julga. Esse casamento seria vantajoso para ambos. No seu caso, Miss Longworth, o casamento transformará este escândalo noutro muito menos prejudicial.
Rose admitiu que Lord Hayden era brilhante, mas aquele pequeno discurso não abonava em favor da sua honestidade. Parecia que ele o tinha ensaiado, e não no último meio minuto. Também não declarara explicitamente que não oferecera uma doação.
Marido e mulher trocaram um olhar eloquente. Lord Hayden fez uma vénia e dirigiu-se à porta.
- Se é este o motivo da sua visita à cidade, Miss Longworth, imagino que agora deve haver muita conversa de mulheres e confidências que nenhum homem deve ouvir. Despeço-me com os desejos de um bom dia e volto para a carruagem.
Rose esperou até a porta se fechar atrás dele.
- Não sei se acredito nele.
- Quando ele fala tão claramente, deves acreditar. Pode ser muito inteligente, mas raramente é dissimulado. - Alexia tirou o alfinete que prendia a sua capa curta e deixou-a cair dos ombros.
- Presumo que não queres aceitar essa proposta e estás à procura de uma desculpa para recusar.
- Porque pensas assim?
- Sei como desprezaste, no passado, propostas de casamento com incentivos financeiros. Encontraste a melhor desculpa para convencer o teu coração a recusar Mr. Bradwell. Mas estás errada em relação a essa doação; que desculpa usarás agora?
Alexia esperou por uma resposta, como se Rose tivesse alguma.
- Devo enumerar os benefícios desta união? - perguntou Alexia. - O Hayden está certo, e eu também o percebi imediatamente. Se casares com Mr. Bradwell, isso transformará este escândalo. Ele não é um cavalheiro, mas a honra que demonstrou em relação a ti fará com que o Norbury pareça ainda mais um imbecil e um canalha. As suposições que as pessoas têm vindo a fazer serão repensadas. Talvez muitas acreditem até que não tiveste qualquer relação com o Norbury antes daquela noite escandalosa.
Rose imaginou essa transformação. Mr. Bradwell aludira a isso, mas foi preciso o olhar firme de Alexia para o tornar plausível.
- Na verdade, é brilhante - continuou Alexia, indicando que também ela estava a começar a perceber todas as nuances.
- E o que receberá ele em troca?
- O teu sangue e as tuas relações, Roselyn. És filha de um cavalheiro. Tens uma prima ligada por casamento a um marquês. E, claro, ficará com uma esposa muito bela.
- A beleza desaparecerá em breve e o sangue está muito sujo. Também não me parece que ele tenha grande interesse em relações sociais. Vês porque estou desconfiada da franqueza do teu marido? Sem dúvida que ele teme que eu o rejeite sem rodeios se souber a verdade, já que é mais uma dívida que nunca lhe poderei pagar.
- Se estiveres certa, então essa dívida é minha e não há esse tipo de contas entre o Hayden e eu. Não cedemos a jogos tão infantis. - Alexia levantou-se e cruzou os braços. A sua expressão ficou séria enquanto andava de um lado para o outro, perdida em pensamentos. - Este homem desagrada-te, Rose?
- De todo. Embora, para dizer a verdade, não o conheça muito bem.
- Eu diria que sabes as coisas mais importantes a respeito dele. Ele repugna-te? - Corou um pouco. - Sabes a que me refiro.
- Não. - Pelo menos, tanto quanto sabia. Mas não admitiria a Alexia que a perspectiva do lado carnal do casamento a deixava fria. Alexia era tão apaixonada que não compreenderia esse problema.
- Tens esperança de encontrar melhor? Outro salvador, mas desta vez mais apropriado às tuas origens?
- Dificilmente.
- Nesse caso, não compreendo. Talvez me consideres demasiado prática, mas se a escolha for entre pobreza e ruína, ou segurança e salvação.
- Há outra oferta.
Alexia parou e os seus olhos arregalaram-se de espanto.
- Outra oferta? Mas não é outro salvador, espero. Por favor, diz-me que não estás a ser assediada por outro Norbury, e que não recebeste uma oferta para ser um objecto possuído por algum cavalheiro.
- Não é esse tipo de oferta. Recebi outra carta do Timothy. Ele pede-me que vá ter com ele, que vá viver com ele.
Uma expressão de sofrimento invadiu o rosto de Alexia. Fechou os olhos para conter o seu pesar. Rose não disse nada, mas o seu coração juntou-se ao de Alexia na dor pungente que a menção do nome do seu irmão despertava.
- E estás a considerar fazê-lo? - perguntou Alexia.
- Sim. Já me tinha decidido, antes de Mr. Bradwell falar comigo. Alexia sentou-se de novo no divã. Os seus olhos cor de violeta ficaram húmidos.
- Estás preocupada com ele, claro. Agora que ele está sozinho. Ele foi sempre o mais fraco dos irmãos e agora. quero que saibas que compreendo, Rose. E compreendo como deve ser tentadora, a perspectiva de viagens e uma nova vida. Mas.
- Sim, é tentador. Muito tentador. Assumiria outro nome. Ninguém saberia quem eu sou, ninguém saberia o que se passou com o Norbury, com o Tim. Ninguém saberia nada.
Ouviu a força e a amargura na sua própria voz. Alexia inclinou a cabeça e deixou a veemência da prima rodeá-la.
- Tu saberás sempre - disse, em tom gentil. - Não quiseste ficar com as cinco mil libras. Não aceitaste o apoio do Hayden. Estás agora disposta a viver dos frutos desse crime?
- Não tem de ser assim. Posso arranjar trabalho. O Tim pode trabalhar como secretário e sustentar-nos a ambos. Posso convencê-lo a devolver o dinheiro.
- Ele nunca o fará. Provavelmente, a maior parte já desapareceu, em bebida e jogo. Desde a ruína do teu irmão que tens vivido em sofrimento constante, fora de ti. Compreendo por que motivo queres fugir, mas não estás a pensar com clareza.
- Duvido que compreendas.
- Duvida disso, se quiseres, mas não duvides do meu afecto, Rose, nem da minha compreensão pela tua vontade de escapar. Admitiste ter mentido a ti própria em relação ao Norbury. Peço-te, não mintas a ti própria em relação a isto.
Cada palavra que Alexia pronunciava adicionava pedras a um muro que rodeava aos poucos um espaço muito pequeno e do qual não havia fuga possível. Rose tinha vontade de gritar que Alexia estava errada e era arrogante. Uma parte amargurada do seu coração dizia que Alexia era demasiado presumida, na sua própria felicidade, para ser capaz de todo o entendimento e compreensão que alardeava.
Ao ver esse muro a erguer-se, teve vontade de correr para casa e subir a colina. Queria deitar-se sob o céu e conhecer de novo a alegria e a esperança que sentira naquele dia.
Um som interrompeu os seus pensamentos. Uma pequena voz intrometeu-se na sua raiva e ressentimento.
- Está frio na carruagem e Lord Hayden disse que eu já podia entrar. Devia ter esperado mais, Alexia?
Uma vaga de emoção abalou a compostura de Roselyn. Olhou para a porta através das lágrimas.
Irene estava ali. A sua irmã parecia muito elegante e fresca. O comprido cabelo louro estava solto, sob um bonito chapéu, e o vestido verde-maçã realçava a sua juventude e beleza. Todas as roupas eram novas, presentes de Alexia.
- Não fiques zangada, Rose - implorou Irene. - Tenho estado tão infeliz desde que partiste, a sofrer por nunca mais poder falar contigo. A Alexia disse que podia ver-te hoje e até o Hayden concordou e disse que ninguém saberia.
- Não estou zangada, querida. Estou surpreendida e grata e comovida. - Levantou-se e abriu os braços. Irene correu a abraçá-la.
Apertou a irmã contra si e olhou para Alexia por cima do ombro dela. Era evidente que Alexia considerava que a discussão estava terminada.
CAPÍTULO 8
Viu-a de imediato, sentada ao lado do canal, com a sua capa azul. A carta dela trazia instruções detalhadas sobre o local do encontro, em Regents Park. Àquela hora, não se viam mais do que uma mão-cheia de pessoas por perto.
Kyle não sabia o que esperar quando Rose finalmente o contactou, mas não estava à espera daquela carta breve a pedir um encontro em Londres. Não havia nada encorajador naquelas poucas frases.
Enquanto se aproximava, debateu consigo próprio se devia defender mais o seu caso. Duvidava que fizesse alguma diferença. Se ela tivesse decidido recusar a sua oferta, seria por motivos para os quais ele não tinha resposta.
Rose viu-o antes de ele chegar junto dela. O sol incidia no seu cabelo louro, visível sob o chapéu azul. O seu sorriso podia ser considerado, na melhor das hipóteses, educado, mas mesmo assim deixou-o desconcentrado.
Provavelmente o melhor seria mesmo se ela pusesse de lado aquela ideia louca.
- Obrigada por ter vindo, Mr. Bradwell. Especialmente tão cedo.
- Visito muitas vezes os parques às nove da manhã, Miss Longworth, por isso já temos alguma coisa em comum.
Kyle achava que ela nunca tinha estado num dos parques de Londres àquela hora. Mas, para estar com ele, procurava privacidade
em público, e havia poucos locais e horas em que pudesse encontrar-se com ela.
Olhou para os caminhos desertos e não viu qualquer meio de transporte a não ser o seu.
- Como veio até aqui?
- A pé. Uma amiga da Alexia ofereceu-me a sua casa e vim passar alguns dias a Londres.
- Já caminhou o suficiente, ou quer dar um passeio ao longo do canal?
Ela concordou. Enquanto esperava que Rose abordasse o motivo do encontro, Kyle ofereceu algumas palavras de circunstância.
- Mr. Bradwell, gostava que voltássemos a conversar sobre a sua generosa proposta. É minha convicção que, quando duas pessoas estão a considerar dar um passo tão irrevogável, o melhor é haver honestidade absoluta.
- A honestidade absoluta nunca é uma boa ideia, na minha opinião. Julgo que o mundo não lhe sobreviveria.
Rose olhou para ele, chocada. Ele riu-se.
- Vejo que a choquei. Contentar-se-á com uma honestidade circunspecta? Afinal de contas, algumas verdades mudam e outras nem sequer são conhecidas.
- Exijo apenas honestidade suficiente para que, se formos adiante com isto, haja um entendimento total.
Acabara de revelar mais do que toda a honestidade absoluta alguma vez poderia fazer. Independentemente do que debatera consigo própria ao longo dos últimos dias, a balança, de alguma forma, inclinara-se para o lado dele.
Só tu é que tens a perder alguma, coisa agora, meu rapaz.
- Fale francamente, Miss Longworth, e eu tentarei fazer o mesmo.
- Compreendo aquilo que me oferece. Quero que saiba que compreendo o valor da oferta. A segurança e a protecção são importantes, mas a possibilidade de redenção. agora apercebo-me da sua magnitude. Por favor, perdoe-me se pareço céptica. Saiba que lhe estou eternamente grata. No entanto, julgo que seria melhor se ambos soubermos o que retiraremos desta união, em termos concretos e práticos.
- Muito sensato. Ela corou.
- Pareço uma comerciante fria e sem coração, não é? Não foi essa a minha intenção. Mas sou incapaz de criar ilusões românticas. Essas ideias infantis já ficaram para trás.
Apesar do seu pedido de verdades absolutas, mostrava preferir a circunspecção. Mas Kyle ouviu a verdade, mesmo assim. Se fizermos isto, não espero amor. E não deve esperá-lo de mim.
- Mr. Bradwell, preciso de saber se compreende que qualquer redenção que eu possa alcançar nunca será completa. Nunca conseguirei fazer esquecer completamente o caso desastroso com Lord Norbury. Se nos casarmos, quando for velho e grisalho ainda haverá quem murmure quando passar. Uma vez que não é um cavalheiro, haverá mesmo quem lho dirá na sua cara.
- Sou filho de um mineiro. Estou acostumado a murmúrios e a palavras grosseiras.
- Pode haver um dia em que alguma pessoa maliciosa dirá que eu estou envolvida com outro homem. Gostava de saber se acha que terá inclinação para acreditar.
- Pensou em todas as possibilidades, não foi? Não sei no que acreditarei. Mas prometo perguntar-lhe se é verdade antes de matar o outro homem.
Ela parou de caminhar perto de uma árvore. A luz do sol reflectia-se na água do canal.
- Deve considerar-me mesquinha e cruel por estar a esmiuçar a sua oferta desta maneira.
- Penso que todas as mulheres inteligentes estudam bem as propostas de casamento. A única coisa invulgar é eu estar a ouvir todos os pontos que foram objecto de debate.
Ela fitou-o com um olhar directo e desconcertante. Franziu a testa, como se quisesse ver a alma dele e estivesse aborrecida por não o conseguir.
- Naquele dia, foi a casa do Norbury por algum motivo. É amigo dele?
- Conheço-o há anos. A nossa relação é muito antiga. De momento, estamos envolvidos em alguns negócios juntos.
- Então, encontrará este homem. Saberá, e ele saberá, e.
- Não são só as mulheres que estudam as propostas de casamento, Miss Longworth. Pensei em como isso poderá ser constrangedor. Prometo-lhe que ele não me falará no assunto. Pelo menos, mais do que uma vez. Não permitirei que homem algum insulte a minha esposa. - Pegou-lhe na mão e segurou-a entre as suas. Quando ela o permitiu, lamentou que ambos estivessem de luvas.
- Nem eu alguma vez lhe falarei nesse assunto. Cometeu um erro com um homem sem honra, mas acabou.
Ela perscrutou-lhe os olhos, como se estivesse a tentar ver se ele era sincero. Kyle deixou-a olhar o tempo que quis.
- É pouco provável que me apresente uma objecção na qual eu não tenha já pensado, Miss Longworth.
- Na verdade, há uma, e seria errado não falar disso. - Fez um esforço para manter a compostura, tal como fizera naquela noite. - Mr. Bradwell, estou muito perto de me ver envolvida num escândalo que fará o actual parecer uma brincadeira de crianças.
Ela parecia tão grave, corajosa e adorável. Os mártires dos tempos antigos provavelmente tinham a mesma expressão antes de
entrarem na arena.
- Que escândalo é esse?
- Disse-me que sabia quem era o meu irmão. Mas não sabe tudo. Ele roubou dinheiro a pessoas que tinham créditos e fundos no banco dele. E essas pessoas sabem-no. Ele prometeu restituir o dinheiro e, por isso, ninguém o denunciou, mas depois fugiu e Lord Hayden pagou as suas dívidas - disse-o rapidamente, numa torrente de confissão que obviamente lhe era penosa. - Há dezenas de vítimas e basta que uma delas dê queixa, compreende. Apenas uma e saber-se-á aquilo que ele fez, e a minha relação com ele fará com que a sua desgraça caia sobre mim. E sobre o meu marido, se eu for casada.
Kyle levantou a mão dela e inclinou a cabeça para a beijar.
- Já sei tudo sobre o seu irmão.
- Sabe? Como? Oh, meu Deus, não me diga que é um dos que ele.
- Não eu, mas uma pessoa que conheço.
- E mesmo assim propôs-me casamento?
- O crime foi dele. O pecado foi dele. A Rose está inocente.
É também uma das suas vítimas. Você e a sua irmã já sofreram muito por causa dele, não é verdade?
Ao ouvir falar da irmã, os seus olhos humedeceram-se. Kyle sentiu que tinha de aproveitar esse momento de vantagem.
- Esse é mais um dos motivos por que deve casar comigo. O casamento deixará bem claro que está afastada dele e ele de si. Não terá de suportar uma desgraça em cima de outra, como aconteceria se estivesse a viver no seu exílio em Oxfordshire.
- Não creio que alguém me veja como estando afastada. Sou irmã dele.
- Aos olhos do mundo, será minha mulher antes de ser irmã dele. Neste escândalo, mais ainda do que no outro, o casamento oferece protecção.
A resistência dela era palpável, bem como a sua vulnerabilidade.
- Disse que Lord Hayden não lhe ofereceu dinheiro para fazer isto. Presumo que o pagamento virá de outras formas.
- Nunca neguei que haverá benefícios.
- Devem ser maiores do que aqueles que consigo imaginar, para estar disposto a unir-se a tamanha desgraça.
- Pese os seus prós e contras, Miss Longworth, e deixe que eu me preocupe com os meus. Se não quisesse casar consigo, nada neste mundo me poderia levar a fazê-lo, fosse qual fosse o estado da sua fortuna, da sua família ou da sua virtude.
Ela parou de caminhar e virou-se para ele. Fitou-o com olhar crítico, como se estivesse a tentar decidir se aquele desejo de Kyle seria tolerável. Não havia palavras que a pudessem convencer disso. Contudo, para Rose, a decisão seria um fardo pesado, fosse ela qual fosse.
- Talvez não seja este o melhor momento para tomar a sua decisão, Miss Longworth. Não há pressa e é uma decisão que requer muita reflexão por parte de uma mulher.
A expressão dela suavizou-se.
- Obrigada, Mr. Bradwell. Confesso que o carácter permanente dessa decisão faz com que me falte a coragem. É, como sempre, muito amável e atencioso.
Dificilmente.
A carruagem dele seguira-os ao longo do caminho. Kyle fez sinal ao homem para esperar.
- Permita-me acompanhá-la a casa. Penso que já caminhou muito para um dia.
Aliviada da preocupação com a proposta dele por mais um dia, ela aceitou de boa vontade. Inocentemente. Até lhe sorriu enquanto se dirigiam à carruagem.
Kyle ajudou-a a subir. Estava na altura de encerrar as negociações.
Ela devia saber que o simpático Mr. Bradwell não a pressionaria a tomar uma decisão. Não era esse tipo de homem. Ele compreendera, como sempre. Sabia que um passo desses não poderia ser tomado de ânimo leve.
Instalou-se na carruagem e ele sentou-se à frente dela. A carruagem dirigiu-se à entrada do parque.
Ele era alto e imponente e a sua presença parecia sufocá-la, tal como naquela noite horrível. Mais uma vez, sentiu a estranha combinação de perigo e segurança.
- Não tem de tomar uma decisão hoje, mas espero que o faça em breve - disse ele.
- Claro. Amanhã, prometo. Nunca seria insensível ao ponto de deixar uma oferta destas pendente. Já me sinto embaraçada por estar a demorar tanto tempo.
- Não se preocupe. Eu compreendo os motivos. Compreenderia? Pela primeira vez, Rose perguntou-se se seria
mesmo assim. Duvidava que algum homem percebesse realmente o terror que uma mulher podia sentir quando confrontada com uma proposta de casamento, enquanto imagina todas as mudanças que esse acto pode trazer à sua vida, tanto as boas como as más.
- Talvez o melhor seja eu explicar-lhe algumas coisas, para que possa avaliar perfeitamente a situação. - O olhar dele tornou-se um pouco mais intenso, apenas o suficiente para despertar nela uma leve sensação de alarme, quase excitante.
- Por favor, fale à vontade, Mr. Bradwell.
- Ainda tenho família no Norte. Nunca os renegarei, ou esconderei, ou fingirei ser aquilo que não sou. Por ninguém. Nem mesmo por si.
- Julga-me capaz de querer algo assim?
- Não sei o que quererá, portanto estou a esclarecer como será. Além disso, quando começar a reentrar na sociedade, haverá pessoas dispostas a recebê-la mas que hesitarão em fazê-lo por minha causa. Quero que faça saber que aceitará convites e que eu os recusarei, quando for necessário. Deixarei nas suas mãos decidir quando essas situações surgirem.
Rose desejou poder dizer que isso nunca aconteceria. Achava muito nobre da parte dele não a querer limitar. Uma vez que lhe oferecia redenção, queria que fosse tão completa quanto possível.
- Manifestou interesse em saber se eu receberei alguma doação matrimonial - continuou ele. - Contudo, não falou nos seus bens dotais. Se me aceitar, discutirei esse assunto com Lord Hayden, se tal for aceitável.
- Sim, é aceitável. - Fora de facto uma falha da sua parte. Isso, mais do que qualquer outra coisa, reflectia a sua ambivalência em relação àquela proposta. Teria ele percebido que assim era? Provavelmente.
- Há ainda a questão do seu irmão.
- Disse-me no parque que isso não tinha importância para si.
- Disse que o crime dele não a mancha. No entanto, é muito importante, por si e pela família que conseguirá recuperar, que aceite o facto de ele estar morto para si.
Morto para si. De repente, o simpático Mr. Bradwell tornara-se rígido e frio e um pouco presunçoso nas suas exigências relativamente a um casamento que podia nem sequer acontecer.
As suas ordens aborreceram-na e alimentaram a sua resistência ao implacável "para sempre" que contemplava nesse momento.
- É meu irmão. É injusto da sua parte pedir-me uma coisa dessas.
- Não estou a pedir, mas sim a exigir. Agora era uma exigência.
- Está a oferecer-me de volta metade da minha família, enquanto insiste que eu esqueça a outra metade.
- Se é assim que quer ver as coisas, sim. Exijo-lhe isto com mais facilidade do que o exigiria a outra mulher. Vi-a na noite do leilão, a explicar a Lady Alexia que, a partir desse dia, tinha de morrer para ela e para a sua irmã. Quando ela lhe escreveu, devolveu as cartas sem as abrir, para se certificar de que não a prejudicaria.
É assim que tem de ser, foi o que disse. Se viu essa realidade, certamente que vê esta.
Ela sentiu-se corar. A maneira como ele a encurralava com as suas próprias palavras e acções melindrava-a.
- Não pensarei nele como morto. Não posso. Na verdade, se houver uma oportunidade de o ver, tenho de lhe exigir que me prometa agora que o permitirá.
O ultimato ficou suspenso no ar. O homem que podia vir a ser o seu marido fitou-a com ar pensativo. Rose quase esperou que ele retirasse a oferta naquele instante.
Em vez de sentir alívio com essa possibilidade, sentiu pânico. Era fugir que ela queria, por razões que não conseguia explicar a Alexia ou a si própria. Contudo, agora que enfrentava essa possibilidade, percebeu que, se isso acontecesse, não estaria a escolher honestamente uma vida decente.
Quase retirou as suas palavras. Uma voz pequena, confusa e solitária clamava por rendição. Sim, farei o que quer. Farei tudo o que quiser, desde que me alimente e me elogie e finja preocupar-se comigo. Esquecerei quem sou e abandonarei todos os meus sonhos e serei obediente se comprar lenha para a minha lareira para que eu não tenha frio.
Cerrou os dentes para que essa voz não levasse a melhor. Da última vez que dera atenção a essa parte deplorável da sua alma, acabara envolvida com um canalha.
Apesar disso, o desespero cresceu enquanto esperava que ele falasse. Odiava sentir-se assim. Odiava perceber que isso provava que não tinha realmente outra opção para além daquele casamento. Até odiava Tim, e o facto de ele a ter deixado mais uma vez equilibrada na corda bamba, entre a ruína total e uma dependência abjecta.
- Se ele voltar a Inglaterra, pode vê-lo - disse Kyle, por fim. - No entanto, não irá ao encontro dele onde está escondido neste momento. Quer case comigo ou não, não irá ter com ele, portanto pode eliminar essa possibilidade dos seus cálculos. E não pense que não posso impedi-la. Posso e fá-lo-ei.
Ela sentiu as faces a arder. Ele adivinhara o seu plano e quem era o outro homem.
E o compromisso que lhe oferecia não era generoso. Tim nunca
voltaria a Inglaterra. Não se atrevia. Mr. Bradwell vencia, mesmo quando recuava.
A carruagem parecia estar a atravessar a cidade muito lentamente. Rose desejou que se despachasse. Aquela conversa atormentava-a. Temia que Mr. Bradwell tivesse visto o seu desespero crescente enquanto aguardava que ele falasse. Se assim fora, podia continuar com aquelas "explicações" até ela ser pouco mais do que uma criança obediente naquele casamento que lhe propunha.
O seu ressentimento levou a melhor.
- Acho que vou precisar de mais do que um dia para tomar a minha decisão, já que guardou tantas condições para o fim. Por favor, diga-me, há mais alguma coisa?
- Apenas um detalhe.
- Esclareça-me.
- Não vivo pela moral dissoluta tão facilmente aceite na boa sociedade. Não me importo de partilhar o que é meu, se assim o decidir, mas nunca concordarei em a partilhar a si.
- No entanto, ainda me perguntará qual é a verdade antes de matar um homem por causa de um rumor? Espero que essa garantia não tenha sido falsa.
Ele sorriu.
- Não foi falsa.
- Há mais alguma coisa? Espero que não. Já assim, sou capaz de me esquecer de parte desta litania de condições cada vez mais desconcertantes. Devia ter trazido papel e lápis esta manhã, para poder tomar nota de tudo.
Ele inclinou-se para a frente e pegou-lhe na mão. O gesto implicava que tinha direito a confortá-la e, ao mesmo tempo, a reivindicá-la.
Acariciou-lhe suavemente a palma da mão com o polegar. Ela sentiu muito bem o toque através da luva. Causou-lhe um arrepio que percorreu todo o braço.
- Não acredito que alguma destas condições a deixe realmente desconcertada - disse ele. - Se precisa de mais tempo para tomar uma decisão, não é por causa das questões que abordámos hoje. Se quer que haja um entendimento total, como disse, temos de falar honestamente sobre a verdadeira razão.
Tinham discutido tudo o que importava, e muito mais que ela não esperara.
- Hoje está omnisciente, para além de exigente.
- Omnisciente? Não. Mencionou esta última preocupação quando eu a pedi em casamento. - Fitou-a nos olhos. - Está a tentar decidir se conseguirá suportar os deveres de uma esposa. Está a tentar decidir se não odiará a parte sexual deste casamento.
Ela sentiu as faces em chamas.
- Já lhe disse que não possuo quaisquer ilusões românticas. Na verdade, não tenho qualquer preocupação, porque isso implicaria uma questão deixada em aberto. Estava apenas a dar-lhe um aviso justo sobre como sei que as coisas serão.
- Se eu achasse que isso era verdade, encontraria forma de a fazer recusar a minha oferta. Sentimentos e ilusões românticas não são necessários para tornar toleráveis esses deveres, Miss Longworth. Pensar assim pode até tornar as coisas piores. Em vez de uma expressão de amor romântico eterno, é melhor pensar nessas relações como uma boa refeição que satisfaz uma fome.
Ela não queria acreditar que ele estava a falar tão francamente sobre estes assuntos. Um cavalheiro nunca o faria. Mas a verdade era que ele não era um cavalheiro. Pior ainda, esperava uma resposta, para além da consternação que aquela reviravolta indelicada da conversa lhe causara.
Uma refeição que satisfaz uma fome. Era uma forma bastante original, embora crua, de pensar no caso. Eliminava certamente a ideia de romance, mas, pelo menos, implicava algo mais satisfatório do que aquilo que ela conhecera.
- Essa refeição. seria papas de aveia ou faisão? - perguntou. Ele riu-se e pareceu também um pouco constrangido.
- Sabe, é que não gosto muito de papas de aveia. Já tive a minha dose - disse ela.
- Há muitos pratos e um menu inteiro por onde escolher. Estou certo de que encontraremos algo do seu agrado. Mas só poderemos descobrir o que é, se concordar em sentar-se à mesa.
Tinham chegado a outra condição através de um caminho indirecto. Ele estava a dizer que esperava que ela o aceitasse nesse aspecto, sem dramas e sem desculpas.
Rose tentou imaginá-lo. Imaginou-se deitada na cama com aquele homem ao lado. Preparou-se para a resignação desagradável que sentira na sua breve relação anterior.
Em vez disso, a imagem excitou-a. A espera continha uma antecipação tentadora que a afectava fisicamente. Embora houvesse algum medo, este tinha uma conotação deliciosa.
Kyle observou-a com uma expressão de charme perigoso, como se também ele a estivesse a imaginar nessa cama e soubesse que a espera era mais uma excitação do que uma imposição.
Ainda segurava a mão dela e apertou-a apenas o suficiente para a controlar e limitar. Puxou-a suavemente. O cenário do lado de fora da janela passou por eles enquanto o corpo de Rose flutuava em direcção a ele. com um gesto fluido e elegante, sentou-a ao seu colo.
A surpresa deu lugar ao alarme. A luz que os rodeava diminuiu de intensidade. Virou-se e viu que ele estava a fechar as cortinas.
- O que está a fazer? - Sentia as coxas dele sob ela, apesar do vestido. Começou a debater-se para se libertar.
O braço com que ele lhe apoiava as costas segurava-a para que não caísse no chão nem conseguisse libertar-se. Ela endireitou as costas para recuperar alguma independência.
- O que está a fazer? - repetiu.
Ele seguiu as pontas dos dedos com o olhar, enquanto lhe tocava no rosto daquela forma familiar. Mas, desta vez, o toque não acabou. Segurou-lhe gentilmente no queixo enquanto a beijava. Um beijo leve, como aquele primeiro no campo, mas os lábios de Rose tremeram e um arrepio percorreu-lhe o corpo.
- Estou a certificar-me de que avalia a minha oferta de forma imparcial e sem preconceitos. - Beijou-a de novo. - Estou a defender o meu caso, em relação à sua última preocupação, com o único argumento que importa.
- Última preocupação? - O significado do que ele estava a dizer chocou-a. Empurrou-o pelos ombros e tentou afastar-se.
Kyle sorriu lentamente, puxando-a de novo para si. Seguiu-se uma luta delicada, lenta e cuidadosa. Ela não se debateu verdadeiramente e ele não a subjugou verdadeiramente. Rose limitou-se a tentar afastar-se de um abraço mais íntimo e ele a mantê-la abraçada de qualquer maneira.
De alguma forma, colocou-a numa posição em que ela perdera
definitivamente a luta. Mas, se estava a pensar seduzi-la, estava muito enganado. Empurrou-lhe novamente os ombros.
- Meu Deus. com certeza não está a pensar. não aqui, numa carruagem.
- Claro que não. A menos que mo implore, claro. Implorar? Rose fez um esforço para não se rir, mas ele percebeu.
- Tem razão. Será melhor deixar isso para outro dia.
Ela teria rido alto da confiança dele, mas Kyle beijou-a nesse momento. De súbito, a sua insinuação deixou de ser uma piada.
O beijo no campo surpreendera-a. O beijo na cozinha derrotara-a. Aquele assustou-a.
Desta vez, a excitação não a invadiu levemente. Inundou-a numa vaga incontrolável. O beijo firme demoliu todas as barreiras que continham a sua compostura física. O seu corpo reagiu rapidamente, como se conhecesse os prazeres que o aguardavam e ansiasse por voltar a senti-los.
Beijos quentes levaram-na para um sítio onde não conseguia pensar nem respirar. Se o casamento fosse aquilo e apenas aquilo, ela estava bastante segura de que aceitaria a proposta.
Mas não era, e a paixão dele abrandava enquanto a dela se intensificava. Rose sentiu a contenção que ele estava a impor ao seu desejo, mas, mesmo assim, isso recordou-lhe qual era o objectivo desse desejo. Não punha de parte os pequenos prazeres de o compreender, mas não era inexperiente. Sabia como o prazer podia terminar abruptamente.
Desta vez ele não teve de a persuadir a beijá-lo. Ela estava rendida pois já antecipava o prazer. Ele beijou-a cuidadosa e deliberadamente, como se soubesse como provocar cada reacção e arrepio que lhe percorriam o corpo. Pouco depois, ela não pensava em mais nada senão no trajecto desses arrepios de prazer e em como queria sentir mais.
Ele acariciou-a e a brisa de Primavera do seu prazer transformou-se num vento quente de Verão. Sentiu a mão dele dentro da sua capa, através de tecido e espartilho, quente e firme e muito segura do seu caminho. O seu corpo moveu-se ao encontro dele apesar de aquele toque possessivo a chocar. Desagradava-lhe, agora,
o tecido que a impedia de sentir completamente o calor do seu toque. Uma vertigem ameaçava tomar conta dela.
Ele beijou-a com ardor, explorando o colo e os seios. Ela reagiu como se estivesse à espera desse toque.
Os dedos dele mergulharam-na num prazer tão voluptuoso que quase não conseguia suportá-lo. Ele alongou-se nas carícias e provocou-a até o corpo dela gemer. Na sua mente, surgiram imagens de outras intimidades e toques.
Kyle estava a deixá-la louca. Fora de si. Compreendia agora o que ele queria dizer com fome. Compreendia a alusão que fizera a implorar, porque as súplicas ecoavam na sua mente.
Agarrou nos braços dele e tentou não perder a noção do mundo exterior. Mas as mãos dele continuavam a explorá-la. Cerrou os dentes para se impedir de gritar ou gemer. Queria alívio. Queria mais.
O seu prazer atingiu uma intensidade a um só tempo penosa e maravilhosamente delirante. Foi então - quando o seu corpo gritava e o seu autocontrolo caiu por terra e ansiava por arrancar as roupas e senti-lo tocar em todo o seu corpo - foi então que ele parou.
Ela não conseguia respirar. Não conseguia pensar. O beijo doce com o qual ele pusera fim à paixão parecia uma piada cruel. Pestanejou até recuperar a consciência e viu a parede e o tecto da carruagem, e Kyle.
Ele fitou-a, tão insatisfeito como ela. Talvez estivesse à espera que ela implorasse, como lhe dissera que teria de fazer.
Quase o fez, Deus a perdoasse. Os dedos dele pousaram-lhe nos lábios, travando esse impulso.
- Aceite casar comigo agora, Roselyn.
O desejo ainda a estimulava. A doce tortura não cessara. Mas um estado de espírito tranquilo, de beleza e liberdade, abateu-se sobre ela enquanto a tempestade acalmava lentamente. Flutuou num torpor leve, descontraído, saturado com a intimidade daqueles beijos e daquelas carícias.
A forma como se sentia fez-lhe lembrar como se sentira na colina, naquele dia, olhando para o céu infinito.
- Sim. Casarei consigo.