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JOGOS DE SEDUÇÃO
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CAPÍTULO 9
O secretário introduziu Kyle numa sala de estar espartana na City, parte de uma série de aposentos como os que um advogado solteiro poderia usar. Kyle calculou que haveria uma alcova atrás da porta fechada no lado oposto, em frente da janela de três portas com o vidro em semicírculo por cima.
A sua carta para Lord Hayden tivera como resposta um convite para visitar aquele apartamento. Parecia que o seu anfitrião o usava para negócios e outras coisas. Mulheres, talvez, nos dias antes de casar. Assuntos privados, como os que estariam escritos nas folhas de papel arrumadas na secretária perto da janela.
Lord Hayden apareceu e cumprimentou-o. Sentaram-se em duas cadeiras estofadas a vermelho escuro perto da lareira.
A memória do seu último encontro privado lançava uma sombra sobre este. Lord Hayden Rothwell visitara Kyle nos seus aposentos, nessa vez, procurando-o depois de ele ter recusado um convite semelhante.
- Miss Longworth pediu-me que falasse por ela - disse Lord Hayden. - Indicou que foi uma sugestão sua.
- Quando pensou na minha proposta, ela não foi muito prática no que diz respeito às condições financeiras.
Lord Hayden recostou-se na cadeira como se uma conversa amigável fizesse parte do ritual de atribuição de dote.
- Eu não a conhecia antes da ruína do irmão. Ela culpou-me por isso e, embora agora saiba a verdade, ainda existe uma grande
formalidade entre nós. Conheci muito bem o irmão mais velho, mas não as irmãs.
- Refere-se a Benjamin. Aquele que morreu há alguns anos.
A expressão de Lord Hayden tornou-se severa, a máscara que geralmente mostrava ao mundo.
- A minha mulher diz-me que a prima não tem sido ela própria neste último ano. Diz que o caso com o Norbury foi um erro de avaliação cometido por uma mulher mergulhada numa profunda melancolia. O facto de ter negligenciado as condições financeiras da sua proposta reflecte também, sem dúvida, o seu estado de espírito.
- Nesse caso, é conveniente que tratemos nós dessa questão. Embora o seu estado de espírito, ainda que afectado, não seja já melancólico. Não quero aproveitar-me de uma mulher incapaz de tomar decisões acertadas.
- Nem quis insinuar que era esse o caso. Mesmo que fosse, a oportunidade que isto dará à Roselyn. ficarei satisfeito de a ver retomar a sua relação com a minha mulher.
Para um homem a quem aquele casamento agradava, Lord Hayden estava a preocupar-se bastante em acertar os detalhes.
- Fazer agora o papel de pai em discussões matrimoniais, por ela, é inesperado e um pouco inconveniente, Bradwell. Infelizmente, sei mais do que gostaria e vejo-me obrigado a discutir mais do que meras questões financeiras.
- Espero que saiba que as minhas intenções são honradas.
- Não é isso que me preocupa e creio que o sabe.
Claro que Kyle sabia. Simplesmente não sabia que estratégia Lord Hayden escolheria.
- Ela falou-lhe sobre os crimes do Timothy? Não posso censurá-la se não o fez - disse Lord Hayden.
- Foi muito honesta e fez questão de que eu soubesse tudo.
- Foi muito corajoso da parte de Rosalyn.
- Penso que ela presumiu que eu retiraria a proposta quando soubesse, portanto foi de facto muito corajoso. - Na verdade, desconfiava que ela esperava que a retirasse, poupando-lhe ter de tomar uma decisão. Já não confiava em si própria.
- Foi tão honesto com ela como ela consigo?
- Disse-lhe que já sabia o que o irmão tinha feito e que conheço uma das suas vítimas.
- Raios, o senhor foi uma das vítimas dele. Como administrador dos bens, essa perda também foi sua.
- Apenas porque eu a assumi. Tinha outras opções. - Só uma, na verdade. E estava a falar com ela naquele momento. A outra alternativa a reabastecer esse fundo com o seu próprio dinheiro era deixá-lo vazio e inútil. E não podia fazê-lo.
- Ela sabe que recusou a minha oferta de restituição?
- Não. Pensa que devo dizer-lhe?
- Não sei que diabo penso. - Lord Hayden levantou-se. com os lábios cerrados e a testa franzida, caminhou de um lado para o outro, pensando no dilema que afligia Kyle há várias semanas.
- Ela estava a pensar ir ter com o irmão - disse Kyle. - Recebeu outra carta e ele pediu-lhe que se juntasse a ele.
- Raios. - Lord Hayden abanou a cabeça. - No entanto, embora não esteja a enganá-la, também não está a ser completamente honesto.
Outro pedido de honestidade absoluta, como se tal coisa fosse, não apenas possível, mas normal.
Kyle teria negócios com aquele homem no futuro. Não queria que Lord Hayden o considerasse um mentiroso ou um patife. Tentaria explicar, embora quase nunca o fizesse com ninguém.
Levantou-se também e percorreu a divisão enquanto decidia o que devia dizer e o que seria melhor evitar. Passou junto da secretária e olhou para as palavras escritas nas folhas. Números e símbolos. Era ali que Lord Hayden efectuava as investigações matemáticas pelas quais constava ser apaixonado.
- Diga-me, Lord Hayden, o que pensaria o mundo se soubesse do crime de Longworth e a irmã dele fugisse também?
- O mundo não sabe do crime dele.
- Mas saberá. Um dia. É inevitável. Demasiadas pessoas ficaram queimadas para que o segredo se mantenha.
A confiança das suas palavras alarmou Lord Hayden.
- Todos eles foram recompensados das suas perdas, raios. Os seus olhos furiosos disseram o restante: "Excepto o senhor."
- Das perdas materiais, sim. Mas não do orgulho ferido. Talvez tenha calculado mal.
A ideia não agradou a Lord Hayden. Um suspiro de frustração indicou como aquelas palavras de Bradwell o afectavam.
- Se ela estivesse com ele quando a bomba rebentasse, provavelmente seria vista como sua cúmplice.
- É o que eu penso também. Então, acha que devo contar-lhe tudo? Se o fizer, se ela souber como eu fui afectado, pode mudar de ideias em relação ao casamento. Pode correr para junto do irmão, para o salvar ou ajudar ou para fugir ela própria à vergonha iminente. Ela julga que este segredo não o será durante muito tempo, embora o senhor pense de maneira diferente.
Lord Hayden semicerrou os olhos e inspeccionou Kyle, tal como Easterbrook fizera.
- Foi por isso que recusou o dinheiro? Por orgulho, como esses outros de quem fala?
- O crime não foi seu. Porque havia de ter de o pagar? E pagou-o bem caro. Pagou uma soma extraordinária por um crime do qual está inocente. Se eu aceitasse o seu dinheiro, teria recuperado as minhas perdas às custas de outra vítima, mais nada.
- Uma vítima voluntária, portanto, não é a mesma coisa. Julgo que, afinal de contas, sempre é orgulho.
A arrogância de Lord Hayden aborreceu Kyle. Indicou a sala onde estavam com um gesto largo.
- Não têm aqui sido forjados esquemas financeiros ultimamente, nem formados consórcios. Continua a viver naquela casa, que é modesta, pelos padrões de Mayfair. Até o senhor sofreu as consequências da perda de tanto dinheiro. Acha mesmo que eu devia ter-lhe extorquido mais vinte mil? Concordado com a chantagem que me propôs?
- Chantagem, uma ova. A sua bolsa teria sido poupada aos efeitos deste crime, apenas isso.
- Não se limitou a restituir as perdas. Exigiu que esquecessem a fraude. Silêncio em troca de dinheiro, isso era parte do acordo. Seria bom que todos os pecadores tivessem um anjo como o senhor a defender o seu caso.
Esperava uma discussão, até mesmo fúria. Em vez disso, Lord Hayden coçou a testa e falou em tom resignado.
- E quando o tempo se esgotar, como espera, Bradwell? A justiça requer que ele pague com a vida. Se esse dia chegar, o que dirá à Roselyn?
- Essa dor espera-a, quer case comigo ou não. Se esse dia chegar, eu protegê-la-ei e confortá-la-ei o melhor que puder.
Lord Hayden pensou nisso durante alguns momentos. Depois dirigiu-se à secretária e chamou Kyle com um gesto.
- Vamos preparar os documentos para os advogados. Eu estaria mais satisfeito com este casamento se me tivesse deixado pagar-lhe a tal chantagem. No entanto, esse episódio deplorável já ensombrou demasiado as irmãs Longworth. Talvez, depois deste casamento, pese menos no futuro da Roselyn.
- Está tão crescida, Miss Irene - disse Mr. Preston com um sorriso. - As mulheres da aldeia vão andar dias a falar desse chapéu.
Irene fez um sorriso radiante enquanto Mr. Preston contava o dinheiro de Rose e embrulhava as mercearias que ela comprara.
Parecia realmente muito crescida, pensou Rose. Alexia falara em apresentar Irene à sociedade na próxima estação. Era definitivamente altura, em termos da idade de Irene, mas provavelmente cedo de mais à luz de outras coisas. Mesmo o casamento não atenuaria o escândalo suficientemente depressa para que Irene fosse recebida esta estação.
A mera ideia de que Irene podia ter um futuro melhor acalmava o nervosismo de Rose em relação ao casamento iminente. A ausência de Kyle na última semana em nada contribuíra para acalmar essa agitação constante. Ele fora passar o Natal ao Norte, com os tios que o tinham criado.
A sua ausência significava que ela podia preparar-se sem distracções, mas a convicção de que conhecia o homem com quem ia casar diminuía de dia para dia.
- Estamos todos ansiosos pelo grande dia, Miss Longworth
- disse Mr. Preston com um grande sorriso. - Posso dizer-lhe que todas as pessoas que conheceram Mr. Bradwell o mês passado, quando ele esteve na aldeia, enaltecem os seus modos refinados e a sua simpatia.
- Obrigada. Espero que o senhor e Mrs. Preston nos honrem com a vossa presença.
- A minha mulher não o perderia por nada. Ela sempre disse que há pessoas que se precipitam a pensar o pior. Custou-lhe muito, a forma como alguns. - Calou-se abruptamente e lançou um olhar de relance a Irene. Os seus olhos transmitiram a Roselyn um pedido de desculpa por estar a falar no escândalo em frente dela.
- Fico muito sensibilizada por a sua mulher me ter defendido, Mr. Preston. Tenha um bom dia.
Ela e Irene saíram da loja. O chapéu impressionante de Irene, feito de seda grossa, aproximou-se do seu ouvido.
- Achas que toda a aldeia pensa como Mr. Preston?
- É pouco provável que Mrs. Preston deixasse o marido ser tão simpático connosco se o resto da aldeia estivesse contra nós.
- Nesse caso, parece que está tudo a correr como a Alexia esperava.
- Aqui, sim. Mas Watlington é uma coisa, Londres será outra.
- Penso que não será muito mau em Londres. O marquês de Easterbrook vai ao casamento. Quando se souber disso, as línguas compridas calar-se-ão depressa.
- Uma vez que também há muito falatório em relação a ele, eu não depositaria muita fé nos seus poderes a esse respeito.
Fora ideia de Kyle, não de Alexia, que fizessem o casamento aqui na província. Lord Hayden oferecera então Aylesbury Abbey, a propriedade do irmão nas imediações, mas Kyle dissera que seria preferível a casa dos Longworth. Embora ela tivesse obtido uma licença especial, casariam na paróquia da sua infância, entre as pessoas que a tinham conhecido toda a vida.
Rose percebia agora que era uma boa ideia. Kyle conhecia os aldeões melhor do que o irmão de um marquês alguma vez conheceria. O dinheiro que a família gastaria na aldeia em preparativos e a festa aberta a todos, faria mais para encorajar uma visão generosa daquele escândalo do que dez anos de uma vida honesta.
Ela e Irene percorreram a rua principal da aldeia, cumprimentando vizinhos e parando para algumas raparigas poderem admirar o belo chapéu de Irene. Compraram algumas fitas e tecido antes de empreenderem o caminho de regresso a casa.
Aí, aguardava-as uma grande azáfama. Três grandes carroças carregadas de mobílias ocupavam o caminho. Um exército de criados levava as coisas para dentro enquanto Alexia estava de sentinela à porta da frente, com uma comprida folha de papel na mão.
- Isso é para a biblioteca - disse a dois homens que carregavam um grande tapete.
- O que estás a fazer? - perguntou Rose, desviando-se quando um grande roupeiro passou por ela.
- Para o quarto sul - ordenou Alexia aos três homens curvados sob o peso do roupeiro. Olhou para Rose. - Não podes fazer um casamento numa casa sem cadeiras.
- Aquilo não era uma cadeira.
- Não te armes em orgulhosa comigo. Não te atrevas. O Hayden disse que o farias e eu não permitirei que lhe dês razão. Já fiquei suficientemente aborrecida por ele me ter obrigado a esperar tanto tempo para fazer isto. Se o mau tempo tivesse vindo para ficar, para a semana estarias a dar uma festa numa casa vazia. - Um indivíduo com uma arca às costas passou por elas. Alexia tocou-lhe no ombro com o papel. - Para a próxima, peça ajuda, meu bom homem. Nem sequer consegue ver para onde vai.
- Sou forte, minha senhora. Será preciso mais do que isto para me quebrar.
- Acredito. No entanto, basta um descuido para bater numa parede e deixar um buraco. Não temos tempo para estar a aplicar estuque novo. Rose, Aylesbury Abbey tem sótãos cheios de mobílias que nunca são usadas. É um pecado ver tanto desperdício. E isto não é um presente do Hayden. Aquela casa e o seu conteúdo não lhe pertencem.
Irene acenou.
- É verdade, Rose. É tudo do Easterbrook. Uma série de cadeiras passou por Rose.
- Alexia, o marquês deu-te autorização para assaltares os sótãos de Aylesbury?
Alexia contou as cadeiras e consultou a sua lista.
- Só descobri as riquezas que eles contêm quando lá chegámos, esta semana. No entanto, da última vez que estive com ele, falou-se do teu casamento, eu mencionei que estava a ajudar com os preparativos e ele deu-me liberdade para usar os criados de
Aylesbury e tudo o mais que precisasse. - Sorriu. - Isto é o "tudo o mais".
Rose imaginou o marquês na casa dela, sardónico quando não estava em silêncio, a olhar para as mobílias que lhe pareceriam estranhamente familiares. Só estivera com ele duas vezes depois do casamento de Alexia e achara-o um homem enigmático, com um humor bastante negro, que parecia precisar de apanhar uma boa dose de ar do campo.
- Claro, ele pode mudar de ideias em relação a estar presente
- murmurou, quase desejando que isso acontecesse, apesar de a presença dele ser uma grande ajuda para a sua redenção. A adulação e as reverências dos aldeões, no dia do casamento, seriam tão intensos que ninguém se divertiria.
- Oh, ele virá - disse Alexia. - A sua tia Henrietta estava a dizer que não compareceria e ele ordenou-lhe que o acompanhasse. Agora, fará um esforço para sair de Londres nem que seja para a aborrecer.
Irene fez uma careta.
- Ela também vem?
Rose olhou para a fila de bestas de carga humanas.
- Será que ela alguma vez examinou o conteúdo desses sótãos?
- Quer-me parecer que a Henrietta inventariou os bens do Easterbrook até à última almofada, desde que foi viver com ele na Primavera passada - disse Alexia.
- Nesse caso, já a estou a ver na festa de casamento. De cada vez que olhar para uma cadeira ou mesa vai erguer as sobrancelhas até elas desaparecerem na linha do cabelo.
Alexia e Irene entraram com ela, deixando-se levar pelo rio de mobílias.
Deixaram os homens a arrumar as coisas nas várias divisões, segundo o plano que Alexia fizera. Rose levou a irmã e a prima para o santuário do seu quarto no piso de cima.
A porta do sótão estava aberta. Espreitou lá para dentro e viu algumas das velhas mobílias da casa empilhadas lá dentro. A presença de alguns artigos surpreendeu-a.
Em vez de ir para o seu quarto, entrou no quarto sul. Era o maior. Todas as mobílias antigas tinham sido substituídas por objectos trazidos por Alexia. Uma grande cama aguardava o seu dossel,
e o roupeiro acabado de trazer brilhava encostado a uma das paredes. Uma cómoda de homem estava pronta para receber pincéis da barba e outros objectos pessoais.
Olhou para Alexia, cujo rosto reflectia o seu carácter estóico e prático.
- Está na altura, Rose. O Ben já morreu há anos - disse Alexia. - Esta casa terá um novo senhor e uma nova vida em breve, e este quarto deve ser dele.
Rose olhou em volta, para o quarto agora transformado por objectos estranhos, que em breve seria ocupado por uma presença estranha. O seu coração ficou apertado ao perceber a finalidade das acções de Alexia.
Irene mordeu o lábio.
- Ela tem razão, Rose. Acho que não te importarás tanto dentro de alguns dias.
Rose passou o braço pelos ombros da irmã.
- Já não me importo agora, querida. A Alexia tem razão. Está na altura de seguir em frente.
Saiu do quarto, levando Irene consigo. Os seus olhos cruzaram-se com os de Alexia ao passar por ela, e o olhar que trocaram era semelhante ao que tinham trocado em casa de Phaedra.
Às vezes, não havia realmente opção. Às vezes, só havia uma coisa a fazer e uma decisão a tomar, se a pessoa queria ter alguma hipótese de ser feliz.
CAPÍTULO 10
Jordan insistiu em vestir o seu amo na manhã do casamento. Requisitou o pessoal da estalagem Knights Lily em Watlington e deu ordens como um marechal de campo. Mandou vir pequeno-almoço e café, mandou preparar um banho e trazer toalhas, pediu mais água quente e exigiu um assistente enquanto manejava a lâmina de barbear.
Kyle sujeitou-se e presumiu que os criados da estalagem não se importavam com as imposições. Isso permitia-lhes participar no casamento que deixara toda a aldeia entusiasmada.
Enquanto isso, Jordan fazia-lhe o relatório sobre o progresso dos preparativos da casa de Londres para a chegada da futura Mrs. Bradwell.
Por fim, estava tudo feito. Jordan ajeitou-lhe o colarinho, alisou-lhe a manga e recuou para o inspeccionar.
- Está pronto, e uma hora adiantado. O colete foi uma escolha soberba, senhor. Esse leve toque de rosa escuro no cinzento é perfeito, com as listas finas azuis do casaco.
- Uma vez que o colete foi escolha tua, estou aliviado por ver que aprovas. Eu ainda acho que o cinzento simples teria sido melhor.
- É o seu casamento, senhor. Um toque de festividade na indumentária. um toque muito pequeno, diga-se. é não só apropriado, como esperado. - Jordan arrumou o resto dos seus instrumentos e fez uma vénia antes de sair. - Se me permite, senhor, é o
cavalheiro mais distinto que já vi. Foi um privilégio servi-lo neste dia tão feliz.
Kyle olhou para o espelho, para a bela imagem que o tempo, a prática e Jordan tinham criado. Sentia-se sem dúvida mais engomado, limpo e apresentável do que nunca. Fazia-lhe lembrar o dia em que a tia o esfregara até ficar vermelho, antes de o enviar a Kirtonlow Hall pela primeira vez, a pedido do conde de Cottington. Também nesse dia ficara pronto uma hora antes e a tia deixara-o sozinho, a tentar não arruinar o efeito enquanto transpirava.
Olhou pela janela, para a aldeia. Viam-se poucas pessoas. Todas estavam a preparar-se, como ele, para uma cerimónia e festa que ultrapassariam tudo o que tinham visto em anos.
Naquele dia longínquo, Kyle pensara que o conde queria repreendê-lo, na melhor das hipóteses, ou chicoteá-lo, na pior. Em vez disso, Cottington mudara a sua vida.
Para melhor, sem dúvida. Só um louco ou um ingrato não o admitiria. Mas agora, enquanto olhava pela janela para Watlington, sentiu uma nostalgia inesperada pela sua própria aldeia de Teeslow.
Teria sido bom ver alguns rostos conhecidos no casamento, mas eles estavam longe, tanto no tempo como no espaço. A generosidade de Cottington arrancara-o a esse mundo, mas não havia outro mundo onde pudesse colocá-lo.
Kyle conseguira construir algo semelhante a um círculo de amigos e colegas, mas não era o mesmo. Não pertencia na realidade a lado nenhum, já há algum tempo. A sua vida era como uma trepadeira, afastando-se cada vez mais das raízes de onde nascera.
E o casamento não mudaria as coisas. Ele estaria nas franjas do mundo de Roselyn, não lá dentro. Escolhera a sua esposa plenamente consciente disso. Sabia o que tinha a ganhar e aquilo que nunca alcançaria, de uma forma que nem mesmo Rose compreendia.
Os seus olhos pousaram na mala. Lá dentro estava uma carta que Jordan lhe trouxera de Londres. O conde estava demasiado doente para o receber quando estivera no Norte, mas recuperara o suficiente para lhe escrever, felicitando-o pelo casamento e oferecendo os seus conselhos, indicando ainda que o seu advogado recebera instruções para enviar um presente.
O conde não estaria presente. Nem a tia Prudence e o tio Harold, que não tinham conseguido ocultar o choque ao saber quem ele escolhera para mulher, quando lhes dera a notícia na sua visita pelo Natal. O tio Harold estava demasiado doente para viajar, mas, de qualquer maneira, nunca teriam empreendido uma viagem dessas em Janeiro. As outras pessoas da sua juventude também não festejariam com ele, e havia em Watlington apenas uma pessoa do seu actual mundo de contornos imprecisos.
Kyle foi à procura dele.
Entrou nos aposentos de Jean Pierre e encontrou-o a fazer o nó da gravata em frente ao espelho. Depois de algumas voltas e reviravoltas estudadas do tecido, o perfil esguio de Jean Pierre acenou com satisfação. Virou-se e examinou o rosto de Kyle.
- Mon dieu, porque é que os homens parecem sempre que vão para a guilhotina no dia do casamento? - Pegou numa garrafa de bolso que estava em cima da cómoda e atirou-lha. - Um trago, nada mais. Seria rude estares bêbado, embora talvez fosse menos penoso.
Kyle riu-se, mas aceitou a garrafa e bebeu um trago. Jean Pierre mexeu mais um pouco na gravata.
- Não me deixo impressionar por esse Easterbrook, mas, oui, estou a ser um tolo, de qualquer maneira. Digo a mim próprio que os cuidados que estou a ter com a indumentária não são por causa dele e do seu grande título. Os criados dizem que a tua noiva é muito bela e quero impressioná-la a ela, não a ele.
- Porquê? E a minha noiva. Uma risada. Um suspiro.
- Ainda bem que te vais casar. Nunca apreciaste o jogo. Algumas das tuas opiniões são. simples.
- Muito simples. - O seu tom era muito mais perigoso do que tencionara. Demasiado, de forma estúpida.
- Espero que não sejas um desses homens entediantes que se enfurecem quando alguém elogia a sua mulher. Um homem não tem de colher todas as flores que cheira.
- Elogia à vontade, mas sei muito bem como és com as flores. Tenho a certeza de que terás a sensatez de não brincar no meu jardim.
- A sério, mon ami, tens de aceitar que no círculo dela haverá galanteios, e não ser estúpido.
- Não preciso de lições tuas. Sei disso tudo. Estou apenas a dizer-te a ti, que não colherás, não cheirarás, nem sequer te passearás perto da sebe.
- A tensão do dia já está a afectar-te a mente. Ainda bem que estou aqui para te ajudar. Julgo que será necessário mais um gole dessa garrafa. Depois jogaremos às cartas até à hora do casamento, para que possas acalmar-te e parar de falar como um idiota.
- Estou muito calmo. Perfeitamente sereno. Raios, nunca estive tão tranquilo.
- Claro que sim. Agora, mais um gole. Ah, bon.
- A carruagem de Aylesbury já passou.
A informação veio de um lacaio que estava de sentinela ao fundo da estrada. Alexia levantou-se e sorriu a Rose com ar expectante.
- Podemos ir.
Rose olhou para o seu vestido. Não era realmente novo. Tinha sido guardado um ano antes, quando tom estava a vender tudo aquilo a que deitava a mão. Zangada, e numa atitude egoísta, ela escondera algumas das suas melhores roupas, na esperança de um dia ter oportunidade de as voltar a usar. Alexia ajudara-a a transformar o vestido, para que a sua história não fosse evidente.
Rose estava contente por poder usar as suas próprias roupas. Muito pouco nesta casa lhe pertencia agora. Até a comida que estava a ser confeccionada na cozinha pelos criados de Aylesbury não era dela, e Kyle enviara a cerveja e o vinho. Ter-se-ia sentido ainda mais estranha se envergasse agora um dos vestidos de Alexia.
Saíram todos e dirigiram-se em fila às carruagens que os aguardavam. Lady Phaedra e Lord Elliot tinham vindo juntar-se àquele grupo, em vez de chegarem no de Easterbrook. A presença de toda a família de Lord Hayden deixava-a sensibilizada. Anunciavam assim a sua protecção, motivados pelo amor que sentiam por Alexia.
Alexia, Irene e Lord Hayden foram com ela numa carruagem aberta. Não se via ninguém nas ruas quando chegaram à aldeia. Em vez disso, toda a gente a aguardava na igreja. No exterior havia um grupo de pessoas considerável, porque o velho edifício de pedra medieval não tinha espaço para todos.
Quando Rose entrou na igreja, a alteração na luminosidade e na temperatura afectou-a. Ficou tonta. A cena tornou-se irreal, como imagens de um sonho.
O sangue latejava-lhe nas têmporas e as imagens sucediam-se ao seu ritmo. Sorrisos e murmúrios e mulheres que apontavam para os belos trajes das damas - rostos de toda a sua vida, que se viravam para olhar - uma caminhada, longa e sombria, até ao padre.
Kyle estava à espera dela, muito atraente, à maneira dele. O seu leve sorriso tranquilizador fez com que as coisas parecessem regressar à normalidade, mas não completamente. Ela pronunciou palavras que pareciam muito distantes. Palavras importantes, votos e promessas, que a prendiam irrevogavelmente.
Sentiu-se subitamente animada quando se apercebeu de que acabara. Era como se voasse, espantada com a sua própria coragem, mas também com medo de, a menos que aparecessem anjos que a segurassem no seu voo, se despenhar sobre o solo do vale.
Quando deu por si estava de novo na carruagem, desta vez com Kyle ao seu lado. A aldeia seguiu-os, a pé ou em carruagens, enquanto se dirigiam a casa dela.
Kyle pegou-lhe na mão. O gesto arrancou-a ao seu torpor. O significado do que acabara de acontecer abateu-se sobre ela com uma realidade tão absoluta que mal conseguia suportá-lo.
Olhou para o perfil do homem que era agora seu marido e senhor. Conhecia apenas duas partes dele, a de salvador e pretendente. No resto, que era quase tudo, continuava a ser um desconhecido.
Kyle observou o grupo animado que enchia a casa de Rose. Os convidados de honra tinham-se sentado a comer um pequeno-almoço de casamento, enquanto os aldeões percorriam livremente a sala de estar e a biblioteca, transbordando para os jardins e o resto da propriedade. Agora toda a gente se unia numa multidão, apresentando os seus votos de felicidade a Rose, que estava de pé a três metros de distância.
Kyle não olhava muito para ela. Não se atrevia. Quando o fazia, via detalhes que o deixavam tenso. A curva da sua nuca, elegantemente inclinada para uma conversa, os cabelos finos que pareciam
seda. Os seus lábios, suaves como veludo, com um sorriso sereno.
O seu vestido era de um material cor de marfim, suficientemente justo para ele sentir de novo na mente os seios que acariciara. Imaginou-a sem aquele vestido, em breve, e a pele perfeita ao longo do corpo dela.
Rose reparou no seu olhar. Deve ter percebido o sentido geral dos seus pensamentos, embora ele duvidasse que conseguisse adivinhar os seus detalhes eróticos. Corou e virou de novo o rosto para o convidado com quem estava a falar.
Kyle forçou-se a prestar atenção à festa, para se distrair. Viu Easterbrook com o seu séquito em frente da lareira. Os aldeões aproximavam-se dele com deferência e nervosismo, e não era apenas por ele ser um marquês.
Os modos do homem não encorajavam outra coisa. A sua aparência excêntrica estava algo atenuada. A indumentária era surpreendentemente conservadora e tinha o cabelo comprido preso na nuca. Mas olhava para tudo de cima, satisfeito com os resultados da sua intervenção caprichosa.
Um risinho feminino chamou a atenção de Kyle. Num canto da sala, Jean Pierre encantava a jovem prima de Easterbrook, Caroline. A bela rapariga corou sob as suas atenções.
A mãe dela, Lady Wallingford - tia Henrietta, para a família
- encorajou Jean Pierre a namoriscar mais um pouco. Pálida como a filha e adornada com um chapéu de plumagem excessiva e extravagante, Lady Wallingford parecia algo apalermada, com as suas expressões vagas e etéreas. Segundo Rose, aquele rosto simples escondia a mente perspicaz e calculista de uma mulher decidida a permanecer para sempre na casa de Easterbrook, depois de finalmente ter conseguido entrada no ano anterior. Constava que o reservado marquês suportava a intrusão prolongada da tia e da prima com uma paciência cada vez mais forçada.
Jean Pierre pediu licença às duas senhoras e abriu caminho entre ombros e traseiros até junto de Kyle.
- Jean Pierre, em relação a essas flores. o marquês de Easterbrook é guardião da que estás a cheirar. Olha para ele. Tens a certeza de que queres a inimizade daquele homem?
Jean Pierre procurou o marquês com o olhar.
- Acho que ele não se importará.
- Não terá alternativa a não ser importar-se. Ela é uma inocente.
- Não gosto de cheirar inocentes. - Olhou para Henrietta e Caroline. - A criança não me interessa. Lady Wallingford não deve ter mais do que trinta e poucos anos. Tu vês uma matrona que usa chapéus feios. Eu vejo uma mulher com uma beleza escondida e etérea que, segundo me diz o meu nariz, não se importaria com um pouco de sedução.
Não adiantava tentar dissuadir Jean Pierre dos seus intentos. Kyle esperava que Easterbrook não considerasse a virtude da tia questão para um duelo.
A atmosfera da festa mudou subitamente e o ruído das conversas diminuiu. As pessoas afastaram-se para abrirem passagem. O marquês percorreu-o, com um leve sorriso condescendente no rosto.
- Por fim - murmurou Jean Pierre. - Agora tens de esconder a cerveja e o vinho e os outros partirão também.
Sim, por fim.
Rose fez uma vénia a Easterbrook quando ele se despediu dela. Kyle inclinou a cabeça e esperou que nada distraísse o homem do seu caminho. Enquanto Easterbrook não partisse, mais ninguém o faria.
A tia do marquês sentiu-se obrigada a segui-lo. Pouco depois, os irmãos dele fizeram o mesmo. O fim das festividades tinha começado.
Kyle incentivou-os mentalmente a saírem. Os aldeões e os criados, toda a gente. Só com esforço conseguiu controlar a sua impaciência.
Desejar Rose, antes, era uma coisa. Desejá-la agora, hoje, quando sabia que a podia ter, estava a revelar-se uma verdadeira tortura.
Há tanto tempo que Rose não tinha uma criada que não sabia o que fazer com a mulher. Felizmente, a aia que Alexia lhe arranjara não precisava de instruções. com movimentos eficientes e um olhar recatado, preparou Rose para a noite de núpcias.
A casa estava agora quase vazia. Não restava ninguém a não ser
marido e mulher, aia e criado. Em breve estes últimos desapareceriam, retirando-se para os aposentos que lhes tinham sido destinados.
As últimas horas tinham sido muito penosas. A aproximação daquele momento afectara cada segundo e cada minuto. Nem ela nem Kyle tinham dito nada, nem mesmo durante o longo passeio que deram enquanto os criados de Aylesbury limpavam e arrumavam a casa. A noite que se aproximava era apenas um manto invisível que rodeava cada instante e transformava todos os olhares e toques.
Rose mandou a aia embora e tentou acalmar-se. Não tinha medo. Nenhum. Estava nervosa e preocupada e curiosa, mas não realmente com medo.
Passou a mão pelo cabelo, escovado e solto. Verificou a camisa de dormir, quase demasiado recatada, com mangas compridas e gola de renda. Olhou para a cama, aberta e à espera, que estivera naquele mesmo local durante toda a sua vida.
Não tinha a certeza de querer que tudo acontecesse naquela cama. Nem sequer sabia se queria que acontecesse naquele quarto.
Fora ali que vivera uma infância feliz e uma juventude repleta de esperança. Fora ali que chorara a morte dos pais e a de Benjamin, e fora ali que sofrera durante a ruína do irmão e depois do resto da família. Aquele quarto continha toda a sua história, boa e má, e ainda ecoava com sonhos de menina nunca realizados.
Se Kyle entrasse ali nessa noite, ela nunca mais conseguiria entrar naquele quarto sem que a presença dele afectasse todas as recordações.
Alterando-as. Eliminando-as, talvez. A sua vida ia mudar de tantas formas, agora. Devia pelo menos poder conservar intacto aquele cantinho do seu antigo mundo.
Pôs um xaile aos ombros, pegou numa vela e saiu do quarto. Ficou à escuta de sons provenientes do quarto sul, para ver se Jordan ainda estava a cuidar do seu amo.
Não ouviu vozes nem movimentos. Empurrou um pouco a porta e espreitou para o interior. Jordan não estava lá. Apenas Kyle. Estava de pé junto da lareira, distraído por pensamentos que lhe endureciam a expressão. A reflexão interrompera os seus preparativos, ao que parecia. Despira-se da cintura para cima, mas ainda estava de calças.
Vê-lo assim sobressaltou-a. O homem escondido por aqueles belos casacos estava agora completamente exposto aos seus olhos, de formas que não eram apenas físicas. Um cavalheiro podia praticar pugilismo e esgrima durante meses e nunca alcançar aquela força contida e crua que aquele homem emanava agora. Não era tanto o seu tamanho e o seu físico, embora a sua musculatura esguia e tensa nada fizesse para diminuir o efeito. Provinha antes de dentro, e não precisava de explicação.
Sabia que estava a ver algo que ele escondia do mundo. Ocultava-o por trás do discurso educado e dos modos refinados, mas provavelmente era algo que estava sempre vivo nele. Mas Rose sentira-o desde o princípio. Sentira os seus efeitos de formas subtis e fortes. Era este o poder que a excitara e a fizera sentir-se ao mesmo tempo segura e assustada.
Ele virou-se para ela como se tivesse ouvido algum som à porta, quando na realidade ela nem sequer respirara. O seu olhar estudou-a - o xaile e a camisa de dormir, a vela e o cabelo.
- Ia agora ter consigo - disse ele.
- Pensei em vir antes eu ter consigo. Importa-se?
- Claro que não.
Ela aproximou-se e pousou a vela no toucador.
- Estava muito pensativo. O que o distraía tanto?
- Uma recordação antiga. Tão antiga que a tinha esquecido completamente, até agora.
- Uma memória desagradável?
- Sim.
- Nesse caso, estou contente por o ter interrompido. Sentiu-se embaraçada sob a atenção dele. Talvez, como viera
ter com ele em vez de esperar que ele a procurasse, Kyle esperasse que ela fizesse alguma coisa.
- Ele magoou-a?
Perguntou-o em tom tão calmo que Rose demorou um instante a perceber o que queria dizer. Entristecia-a que se referisse a Norbury agora, logo naquela noite.
- Pensei que nunca ia falar.
- Magoou-a? Pergunto apenas por causa desta noite e daquilo que em breve vamos partilhar. Acabou de me ocorrer que talvez isso tenha acontecido. Que talvez eu tenha presumido que ele era
melhor do que na realidade é, embora saiba que é muito pior do que muitas pessoas julgam.
Ela não sabia ao certo o que Kyle queria dizer. Sabia apenas que estava a fazer alusão a algo mais sombrio do que aquilo que ela vivera. Embora naquela última noite, Norbury lhe tivesse pedido algo que, se pensasse bem nisso, para além de chocante, podia tê-la magoado.
Olhou para o homem que jurara protegê-la. Havia perigo na sua intensidade e isso via-se nos seus olhos. Achou que ele não aceitaria bem a possibilidade que lhe passara agora pela cabeça, mesmo que ela lhe garantisse que nunca tinha chegado a acontecer.
- Não, ele não me magoou. Não da forma a que penso que se refere.
- Ainda bem. - Kyle parecia de facto contente. Aliviado.
O seu sorriso leve ajudou muito a aligeirar o ambiente e a afastar a raiva que o invadira enquanto pensava na recordação antiga, fosse ela qual fosse. O fantasma de Norbury e dessa outra pessoa do passado que entrara no quarto desapareceram como fumo a flutuar por uma janela aberta.
Os pensamentos de Kyle eram agora todos para ela, percebeu Rose. E a sua atenção também. Deixava-a nervosa e agitada estar ali enquanto ele a observava. Observou-o também, ombros e tronco banhados pelo brilho quente da lareira. O seu corpo reagiu à antecipação que saturava o ar.
- Venha, Roselyn.
Claro que obedeceu. Isso fazia parte do que prometera hoje. Não era uma jovenzinha inocente e, embora se sentisse assim, nunca o revelaria.
Parou mesmo à frente dele. O seu peito nu estava a centímetros do nariz dela. Um peito sedutor. Bastava essa proximidade para a excitar e teve vontade de beijar o corpo que tanto a atraía.
Kyle beijou-a primeiro. Segurou-lhe a cabeça com as mãos e beijou-a mais cuidadosamente do que alguma vez a beijara. Era como se quisesse tranquilizá-la, o que ela achou ser muito atencioso da parte dele. Mas já o fizera na carruagem, naquele dia em que se tinham encontrado no parque. Rose sabia que parte daquele dever podia ainda ser desagradável, mas sabia também que outra parte seria muito boa.
O seu corpo estava de acordo. Respondeu ao beijo com mais ardor do que esperava. O nervosismo diminuiu e a excitação aumentou.
Kyle puxou-a para a cama. Sentou-se na beira, para não estar tão mais alto do que ela. Agora conseguia beijá-la mais facilmente. com mais espontaneidade. Enquanto a beijava, pousou-lhe a mão no seio. As carícias dele despertaram tão rapidamente o seu desejo que ela ficou espantada. Decidiu ceder à tentação e reparou que ela se apoderava do seu corpo e da sua alma.
Viu como a mão de Kyle moldava o tecido da camisa de dormir sobre o seu seio, deixando visível a sua forma. Susteve a respiração de cada vez que ele roçava no mamilo, tão intensa era a sensação que isso lhe causava.
- É muito bela, Roselyn.
Essa beleza servira-a mal, por sua própria culpa. Mas, apesar de tudo, o elogio agradou-lhe.
Ele fitou-a nos olhos, tão profundamente que ela temeu que tivesse ficado desapontado com o que via.
- Suponho que já o ouviu muitas vezes. Desde que era criança, imagino.
- Se me acha bela esta noite, fico contente.
- Sempre achei. Vi-a uma vez, há vários anos. Num teatro. Não sabia quem era, apenas que nunca tinha visto uma mulher tão bela. Depois reparei no seu irmão, que também estava no camarote, e percebi que devia ser a bela irmã Longworth que tantos admiravam.
O seu toque lento dava-lhe tanta alegria, tanto prazer, que ela quase o repreendeu por não a ter procurado depois de saber quem era. Conteve-se a tempo. Sabia por que motivo não o fizera.
Seria por isso que a tinha pedido em casamento? A mente de Rose mal conseguia pensar no assunto e fê-lo de forma indolente e indiferente. Teria ele sido incapaz de resistir à possibilidade de possuir algo que o filho de um mineiro estava proibido de cobiçar?
A ideia entristeceu-a. Despertou-lhe de novo a vontade de o beijar. Desta vez fê-lo, no ombro.
Foi como se tivesse acendido uma tocha, tão evidentes foram os efeitos que esse beijo teve em Kyle, apesar de se ter refreado
de imediato. Os olhos dele escureceram, de tal forma que ela julgou que se afogaria neles se os fitasse durante muito tempo.
Kyle puxou a ponta das fitas que fechavam a camisa de dormir de Rose no pescoço. Ela baixou os olhos para a mão dele e para as fitas, enquanto estas deslizavam e se desprendiam e separavam. Parecia estar a demorar uma eternidade. Nas profundezas do seu corpo, sentiu um frémito e uma tensão, como se uma língua invisível lhe tivesse tocado.
Percebeu que ele ia despi-la. Ali mesmo, de pé, com a luz da vela a brilhar na mesa ao seu lado. Estava bastante certa de que não devia ser assim. E ele sabia-o. Mas.
A camisa de dormir já lhe deslizava pelos ombros quando foi surpreendida por esses pensamentos. A expressão dele mostrava que se apercebera do espanto de Rose, mas não parou. Baixou mais a camisa até os seus seios aparecerem, agora pesados e com os mamilos escuros tensos. Baixou-a mais, sobre as ancas e ao longo das pernas, até ela estar nua sobre um monte de tecido branco.
A timidez invadiu-a. Deviam estar às escuras, ou quase, para ela estar assim. Deviam estar às escuras e deviam estar debaixo de um lençol e quase anónimos nos actos que se seguiriam. Fez menção de se cobrir com os braços.
- Não. - Ele segurou-lhe nos braços antes de ela se conseguir tapar. Puxou-a para si e roçou levemente com a língua na ponta de um mamilo.
Uma vaga de prazer percorreu-a - intenso, directo e determinado. Depois outra, e outra, ofuscando a sua vergonha, fazendo com que ela desejasse apenas que ele nunca mais parasse, que aquele prazer maravilhoso não acabasse.
A língua e a boca dele levaram-na ao paraíso. Acariciou-lhe todo o corpo e ela ficou contente por já não ter a camisa vestida. A sensação das mãos dele no seu corpo, nas suas ancas e nádegas, nas suas coxas e costas, parecia certa e necessária e perfeita. Mergulhou num torvelinho de sensualidade e desejo, intenso e cada vez mais forte, com o prazer a despertar mais prazer, num crescendo interminável.
Estava tão perdida nesse torvelinho que só se apercebeu de que estava a apertar-lhe o ombro quando ele lhe retirou a mão. Mal
reparou quando ele a deitou. Recuperou alguma consciência na pausa que se seguiu, e viu-o a despir-se à luz da vela que ainda ardia.
Estendeu a mão e apagou-a antes que pudesse ver o corpo dele tão completamente como ele vira o dela. Ele tornou-se então uma silhueta, uma figura escura e vaga. Depois juntou-se a ela na cama.
Um beijo, tão profundo e íntimo que ela nunca o esqueceria. Uma carícia, tão firme e possessiva que ela só podia render-se. Um toque, tão directo e conhecedor que todo o corpo dela gritou com o prazer agudo que despertou.
Ele não parou. Ela permaneceu naquele grito silencioso, mergulhada no desejo e em sensações lancinantes. Perdeu o controlo sobre si própria, sabia apenas que queria mais, qualquer coisa, tudo.
A voz dele, calma e profunda.
- Rende-te. Perceberás o que quero dizer. Deixa acontecer. Escolhe-o.
Ela mal o ouviu. Não compreendeu. Mas o seu corpo relaxou um pouco. Apenas o suficiente para um profundo estremecimento começar, depois aumentar e crescer em ondas de prazer que alcançaram picos cada vez mais altos. Explodiu no seu corpo e apagou a sua mente num momento etéreo de assombro.
Ele estava agora sobre ela, nos seus braços. Sentiu-o pressionar para a penetrar, gentilmente. com demasiada gentileza. Agarrou-o e moveu as ancas, colando-se a ele, antes que esta experiência inacreditável se dissipasse.
A paciência dele cedeu. O seu poder libertou-se. Ela não se importou. Não era horrível, nem sequer desagradável. Rendeu-se à forma como ele a possuía, tal como se rendera à libertação, ainda a flutuar numa perfeição que os movimentos dele apenas prolongavam.
Kyle acordou de madrugada e viu que Roselyn não estava ao seu lado. Durante a noite, talvez pouco depois de ele adormecer, ela regressara ao seu quarto e à sua cama.
Se tivesse sido ele a ir ter com ela, Rose também esperaria que ele saísse depressa. Era assim que as coisas se faziam entre as pessoas da classe dela. Não viviam em pequenas casinhas com cinco divisões, onde marido e mulher partilhavam uma cama a noite toda, todas as noites.
Vieram-lhe à cabeça memórias de murmúrios e risos íntimos no quarto debaixo do seu, quando era rapaz. Esses sons privados davam vida à casa. Ele não tinha lugar nessas conversas, mas os seus sons traziam paz à noite. Era estranho que essa memória surgisse agora tão viva que, se fechasse os olhos, era como estar de novo na cama da sua juventude. Era estranho que o casamento tivesse aberto na sua mente tantas portas para o passado. Mas agora olhava através delas como um homem, e via coisas que o rapaz que fora nunca poderia ter compreendido.
Seria difícil voltar a fechar uma das portas. Se não fosse a chegada de Roselyn, na noite anterior, ele podia ter ficado horas a pensar naquilo que vira para lá do limiar.
As imagens queriam ocupar-lhe a mente. Fez um esforço para as afastar, por agora. Talvez para sempre. A verdade completa, tal como a honestidade total, nem sempre era uma coisa boa.
Dormitou um pouco e acordou de novo, sobressaltado. O dia já ia adiantado. Não dormira apenas um pouco.
Havia água à sua espera e roupas preparadas. Jordan estivera no quarto mas deixara o noivo dormir. Kyle não chamou o criado e preparou-se sozinho para o dia.
Desceu as escadas e seguiu o som de vozes até à cozinha nas traseiras da casa. Rose estava lá, com Jordan. Vestia um simples vestido cinzento que seria adequado a uma esposa de aldeia. Mesmo assim, estava linda.
Não conseguia olhar para ela sem ver o seu corpo à luz da vela, e a sua timidez, e os tremores da sua excitação. Apagar a vela fora provavelmente sensato, apesar de ele querer olhar para ela a noite inteira. Rose encontrara alguma liberdade na escuridão e Kyle encontrara forças para se controlar e não ser impaciente.
O primeiro olhar que ela lançou na sua direcção dizia que também ela se recordava bem da noite. Depois baixou o olhar.
Jordan estava a preparar o pequeno-almoço.
- A cozinha é rústica, senhor, mas a vista do jardim e a luz são agradáveis. Posso mudar as coisas para a sala de jantar, se preferir.
- Não, está bem aqui. - Sentou-se à mesa onde ele e Rose tinham jantado na noite em que a pedira em casamento. com movimentos eficientes, Jordan serviu-lhe um pequeno-almoço muito tardio.
Quando acabou, Roselyn aproximou-se e pôs o último prato
na mesa.
- É uma tarte de maçã - disse. - Disseste-me que gostavas tanto de tarte de fruta que, às vezes, a comias ao pequeno-almoço.
- Muito bem, Jordan.
- Não foi ele que a fez. Fui eu.
Jordan acabou rapidamente de limpar uma panela e pegou no casaco.
- Quero estudar o jardim, minha senhora. com a sua permissão, acho que posso recomendar algumas melhorias.
- com certeza, Jordan.
Rose cortou uma grande fatia de tarte e colocou-a num prato. Depois afastou-se e esperou que o marido a provasse.
Kyle deu uma grande dentada.
A última tarte não estava muito boa. Esta estava horrível. Olhou para a prateleira, desta vez repleta de provisões. Atribuíra o mau gosto da anterior à falta de açúcar e sal. Ao que parecia, o problema não era esse. Roselyn simplesmente fazia tartes terríveis.
Ela mostrou prazer ao vê-lo comer. Kyle emitiu pequenas exclamações de apreciação.
- Maravilhosa - disse, engolindo o último pedaço.
- Estou aliviada por teres gostado. O Jordan não parava de estalar a língua enquanto eu a fazia, mas acho que estava apenas aborrecido por eu estar a atrapalhar.
Ele estendeu a mão e puxou-a para si.
- Já não precisas de cozinhar mais. Não precisas de fazer as tuas próprias tartes.
- Eu sei. Mas esta manhã lembrei-me de como te servi tarte na primeira vez que me visitaste, e, como me pareceu que gostaste, pensei em fazer outra.
Ele apercebeu-se de que acabara de ser elogiado pelo que tinha acontecido na noite anterior.
Deu-lhe um beijo e soltou-a. Já não estava com fome, pelo menos de comida. Muito menos daquela tarte.
Apesar disso, serviu-se de mais uma fatia.
CAPÍTULO 11
Kyle colocou os desenhos enrolados num grande saco de lona. O assunto não podia ser adiado mais tempo. Havia demasiado dinheiro investido. Não tinha alternativa a não ser comparecer na reunião há muito marcada com Norbury.
Parou e tentou perceber se havia barulho no quarto de Roselyn. Geralmente, ela começava o dia cedo. Não tinha o hábito de ficar na cama até ao meio-dia, como algumas senhoras. Mas, hoje, esse lado da casa estava completamente silencioso. Uma vez que ele a mantivera acordada a maior parte da noite, não era de admirar.
Ela não parecia importar-se. Não se comportava como se estivesse a comer papas de aveia. E, ao contrário do que acontecera em Oxfordshire, onde era sempre ela que o procurava como se quisesse provar que não se esquivaria aos seus deveres conjugais, ali em Londres era ele que ia ter com ela. Isso queria dizer que algumas vezes, como na noite anterior, não tinha pressa para a deixar.
Ela não se importava, mas também arranjara maneira de o ritual nocturno não a embaraçar. Depois dessa primeira noite, apagavam sempre as luzes cedo. Ele conhecia o corpo dela melhor do que ela julgava, apesar da escuridão. O toque revelava tudo e o luar ainda mais. Ela podia preferir a protecção das sombras, podia até esquecer o rosto do homem que a possuía, mas ele nunca se esquecia de que era Roselyn que acariciava.
Sorriu para si próprio ao pensar na pequena guerra que o seu corpo travava todas as noites. Roselyn Longworth despertava
nele um desejo tão intenso, tão avassalador, que muitas vezes quase cedia à ferocidade. Mas, por se tratar de Roselyn, uma senhora que ainda era capaz de ser tímida e de ficar chocada com a nudez, perder o controlo estava fora de questão.
Não importava. O fim era sempre bom. Os êxtases doces dela e os seus próprios clímaxes violentos espantavam-no. Depois, era com pesar que abandonava a satisfação total que sentia nos braços dela. Às vezes, como na noite passada, recusava-se a sair durante horas, o que significava possuí-la mais do que uma vez.
Desceu as escadas. A casa ainda lhe parecia nova e estranha. Roselyn parecera muito feliz com ela, quando lha mostrara. Andava agora a redecorá-la de acordo com as suas preferências, e ocupada com as primeiras incursões cuidadosas na sociedade.
Ele passava o tempo com os negócios, como aquela reunião. Foi de cavalo até casa de Norbury, com o saco de lona preso à sela. O dia estava mais bonito do que a sua disposição. Não falaria de Norbury a Rose, mas a fome repetida de a possuir que sentira na noite anterior estava relacionada com a antecipação desagradável da reunião com o visconde.
Na verdade, o homem andava a intrometer-se demasiado nos seus pensamentos. Não só por causa de Rose, embora Kyle tivesse de se esforçar para afastar da mente imagens da relação de ambos. Esses pensamentos só provocavam fúria e um desejo tremendo de ferir gravemente aquele canalha.
A memória que surgira na noite do casamento também insistia em reaparecer, exigindo ser reavaliada. Via constantemente o rosto de uma mulher, espancado e negro. Os olhos dessa mulher assombravam-no. A humilhação que reflectiam fazia lembrar a expressão de Rose naquela noite do leilão.
Quando encontrara a tia, nesse dia longínquo, maltratada ao tentar defender-se dos jovens que se divertiam com ela, Kyle lutara como um homem possuído. Eram três contra um e ele tinha apenas doze anos, mas os seus inimigos não tinham já sobre as costas quatro anos a carregar cestos de carvão na mina.
Julgara que a tinha salvado. Mas agora, à medida que os detalhes continuavam a ressurgir de forma implacável na sua mente, tinha algumas dúvidas. Talvez não tivesse chegado no princípio dos acontecimentos, mas sim no fim.
Estava a pensar em Rose, na noite do casamento, e isso despertara essa memória. Ao reflectir sobre a melhor forma de lidar com ela, de se certificar de que não era papas de aveia mas também não era assustador, a sombra do ex-amante de Rose pairara sobre ele. E depois surgira-lhe essa recordação e, com ela, o pensamento inesperado de que papas de aveia podia ser a menos importante das razões para o desagrado de Rose pela intimidade física.
Parou o cavalo em frente da casa de Norbury. Olhou para a fachada de estilo pseudoclássico do século XVI que dava tanta elegância ao edifício. Considerava-a uma das melhores casas de Londres, com uma excelência que a maioria das pessoas não veria, no meio de um mar de derivações clássicas. Era um desperdício com Norbury, que tinha pouca sensibilidade para esse tipo de coisas.
A estética não conseguiu distraí-lo, como acontecia normalmente. O novo ponto de interrogação sobre essa luta de há tantos anos afectava muito mais do que a história da sua juventude. Fazia-o pensar mais do que queria na anterior relação de Rose. Até tinha a ver com a reunião de hoje, porque Norbury fora um desses rapazes com quem ele lutara.
A tia dissera-lhe que ele tinha chegado a tempo e ele acreditara. Mas aqueles murmúrios no piso de baixo da casa tinham-se silenciado durante muito tempo depois desse dia, e o tio nunca aceitara de bom grado a protecção de Cottington em relação a Kyle.
Aceita o dinheiro mas não sejas o lacaio dele, Kyle, meu rapaz. Usa-os bem, tal como eles usam os outros, mas nunca te transformes num deles.
O lacaio sorriu ao receber o seu cartão de visita. Essa familiaridade não era uma falta de respeito. Os criados daquela casa, tal como os criados de muitas outras boas residências de Londres, rapidamente tinham ganhado simpatia pelo rapaz pobre que subira na vida, o homem que estava entre os dois mundos que eles conheciam.
- O senhor está ocupado, mas recebê-lo-á dentro de menos de uma hora - disse o lacaio, ao regressar. Kyle seguiu-o até à biblioteca, presumindo que "menos de uma hora" significava que teria de esperar pelo menos cinquenta e nove minutos.
Mal a porta da biblioteca se fechou, Kyle voltou a abri-la. Desceu as escadas e dirigiu-se à cozinha. Provavelmente Norbury não
estava ocupado com nada. A espera era apenas a maneira de o visconde declarar a sua própria importância. Mas o tempo que Norbury lhe concedera seria útil.
A pasteleira virou-se, surpreendida, quando ouviu os passos dele nas escadas.
- Mr. Bradwell! Mas que grande honra. Ora vejam só como está bonito. O seu novo estado civil parece assentar-lhe bem.
- Olá, Lizzy. Também está com bom ar. Um bocadinho mais farinha do que o normal.
Ela sacudiu o cabelo grisalho e uma nuvem ergueu-se. Lizzy era uma das várias criadas daquela casa que tinha família em Teeslow. Começara a trabalhar para Cottington quando era jovem e mudara-se para Londres quando Norbury ali estabelecera residência.
O cozinheiro, um homem de ar severo, acenou um cumprimento a Kyle e murmurou as suas felicitações pelo casamento. Tirou uma grande panela da mesa, empurrou um banco com o pé e começou a ralhar com uma criada de copa. Kyle sentou-se no banco.
- Veio visitar Sua Senhoria? - Lizzy dividiu em quatro um grande monte de massa de pão. - Tratar de uma dessas coisas de dinheiro que ninguém compreende?
- Sim.
- Há quem diga que é como o jogo.
- É um pouco como o jogo, mas eu é que decido onde estarão a maior parte das cartas no baralho.
- Mesmo assim, uma jogada errada e.
- Pode acontecer.
- Mas não consigo, quero dizer. Sempre foi mais inteligente do que a maioria, por isso provavelmente arruma o baralho melhor do que a maioria.
Geralmente. Normalmente. Mas o risco estava sempre presente. O mais importante em relação ao jogo era que uma pessoa não podia importar-se demasiado se perdia ou ganhava. Um homem nervoso ou desesperado jogava sempre mal.
O sucesso de Kyle dependia da sua forte convicção de que, se tudo fosse por água abaixo, podia sempre voltar, e que alguns anos de dificuldades não fariam grande diferença na sua vida.
Mas o casamento viera alterar isso. Apercebera-se assim que acabara de proferir os votos. A sua responsabilidade para com Rose significava que nunca mais podia ser temerário, e os outros pressentiriam essa mudança, por mais que ele tentasse disfarçar a verdade.
Fora por isso que, dois dias antes, criara um fundo para a sua mulher.
No regresso a Londres, encontrara dois cheques à sua espera. Um deles, de Cottington, era uma prenda de casamento.
O outro era muito maior. As dez mil libras de Easterbrook tinham chegado sem qualquer carta ou bilhete.
Se Rose soubesse desse dinheiro, pensaria que significava que alguém pagara a Kyle para casar com ela, o que, de certa forma, era verdade. Ao olhar para o cheque, percebeu que não queria que ela pensasse isso. Ela recusava-se a mentir a si própria e a criar quaisquer ilusões românticas sobre aquela união, mas não seria bom para Rose não ter absolutamente ilusões nenhumas.
O presente de Cottington bastava para equilibrar o estado precário das suas finanças, por isso usou apenas o suficiente do dote de Easterbrook para pagar os bens dotais de Rose e colocou o restante num fundo para ela. Se as cartas alguma vez se voltassem contra ele, no futuro, ela estaria em segurança.
- Tem tido notícias de Teeslow, Lizzy?
Lizzy gostava de mexericos, e essa era uma das razões pelas quais Kyle gostava de a visitar. Ela sabia tudo o que se passava em Teeslow, pelas cartas da família, com muito mais detalhes do que ele recebia da tia.
- Bem, aquela rapariga, a Hazlett, apareceu grávida e ninguém sabe quem é o pai. O Peter Jenkins morreu. E foi o melhor, estava tão doente. E fala-se em reabrir aquele túnel na mina. Sabe qual é.
Ele sabia. Ouvira esse rumor quando visitara a aldeia, em Dezembro. Agora parecia que o assunto não caíra no esquecimento, como teria acontecido se fosse um rumor falso.
- Como está o Cottington?
- Não muito bem, receio. Aquela casa chorará muito o conde quando ele se for, garanto-lhe. Muita coisa mudará com a sua morte.
- Muitos o chorarão, para além da família. Todos lamentarão que o herdeiro assuma o seu lugar.
Lizzy verificou a proximidade do cozinheiro antes de permitir que a sua expressão concordasse com a parte sobre o herdeiro. Recomeçou a amassar o pão.
- Suponho que o visconde não esteve no seu casamento.
- Naturalmente que não.
O olhar dela era muito eloquente. Claro que Norbury não se daria ao trabalho de aparecer, mesmo que tivesse sido convidado. Claro que a noiva de Kyle nunca quereria o ex-amante na sua festa de casamento.
- Foi muito generoso da sua parte, Mr. Bradwell, como ajudou aquela pobre mulher e o que está agora a fazer por ela. É o que toda a gente diz.
- Infelizmente, não pude dar uma tareia ao Norbury, como fiz da última vez, por mais que me apetecesse.
Ficou à espera da reacção dela. Lizzy já estava ao serviço de Cottington quando se dera o caso com a tia de Kyle. Numa casa daquelas, os criados sabiam muitas vezes de tudo.
Ela pareceu surpreendida com a observação. Olhou para ele, depois para a massa do pão. Amassou com mais vigor.
Agia como se aquele acontecimento tivesse sido chocante e toda a gente soubesse que os pormenores eram segredo.
E um mero mau comportamento por parte de alguns rapazes
- a história que ele conhecia - não preenchia esses requisitos.
- Continuo a dizer que as casas não têm aposentos suficientes para criados - queixou-se Norbury depois de estudar os desenhos durante dez minutos.
Até ali, as coisas estavam a correr bem. A recepção de Norbury fora fria e indiferente e tinham estado ocupados com o projecto. Norbury parecia estar a fazer um esforço para agir como um cavalheiro, mas Kyle sentia que o visconde escondia um indivíduo muito menos civilizado.
- Estas casas serão compradas por famílias com rendimentos de alguns milhares por ano. Cinco quartos para criados, mais os dos estábulos para o moço de estrebaria e o cocheiro, serão mais do que suficientes.
- Poucos milhares. É espantoso como conseguem sobreviver.
Era uma afirmação estúpida feita por um homem estúpido, que pretendia apenas enfatizar o quanto ele estava acima de preocupações tão mesquinhas como um milhar a mais ou a menos. Norbury inclinou de novo a cabeça sobre os desenhos.
- O meu advogado diz que o meu pai tenciona assinar os documentos das terras. - Norbury franziu os lábios. - Está fraco das ideias e nem sequer viu os desenhos, mas mandou essa informação.
O que ele queria dizer era, Muito bem, iremos em frente, mas é a decisão do velho, não minha. Ganharei bom dinheiro às suas custas, mas esta associação não é por escolha minha.
Kyle não queria saber da forma como aconteceria. Ressentia-se agora daquele projecto, que exigia que ele aceitasse a companhia de Norbury. Se o conde não recuperasse e não retomasse as rédeas dos seus negócios, seria a última vez que se associava à família.
- Visitarei o seu advogado amanhã. - Arrumou os desenhos.
- Os trabalhos nas estradas vão começar em breve e a madeira e os materiais já estão encomendados. As primeiras casas estarão disponíveis em meados do Verão, segundo creio.
O seu anfitrião examinou-o enquanto se preparava para partir. Um brilho gelado surgiu-lhe nos olhos.
- Suponho que devo dar-lhe os parabéns.
- Obrigado.
- Não fui convidado.
- Foi um casamento de aldeia, não em Londres.
- Li no jornal que o Easterbrook esteve presente. - A ideia irritava-o. Kyle não sabia se era por esse nobre ter sido convidado, ou porque a presença de Easterbrook tornava irrelevante a ausência de Norbury.
- A casa de campo de Easterbrook fica perto e a minha esposa é parente dele por afinidade, claro.
Norbury semicerrou os olhos.
- Saiu-se muito bem, Kyle, ao casar com a minha puta.
Kyle fez um esforço para continuar a arrumar os desenhos, mas quase não conseguiu controlar a vontade de estrangular Norbury. Era assim que os duelos eram travados. Homens estúpidos diziam coisas estúpidas porque o seu orgulho ou despeito levava a melhor sobre eles. Diziam coisas que outro homem não podia tolerar.
- Se lhe chamar outra vez isso, ou qualquer coisa do género, perante mim ou qualquer outra pessoa, dou cabo de si. Se me chegar aos ouvidos que fez sequer uma insinuação sobre o seu comportamento desonroso em relação a ela, quando acabar consigo não se conseguirá mexer durante duas semanas.
Norbury ficou tão vermelho que Kyle quase esperou que ele desse o primeiro soco ali mesmo. Desejou ardentemente que o fizesse.
- Uma ova é que dará cabo de mim. Pratico boxe duas vezes por semana.
- Isso só é útil se o seu adversário seguir as regras de Queensberry. Mas, comigo, estará a lutar com o filho de um mineiro e as suas mãos macias e inúteis não servirão de nada contra mim.
Kyle dirigiu-se à porta. A voz rancorosa de Norbury seguiu-o.
- O meu advogado disse-me que o meu pai lhe enviou um presente de casamento.
- É verdade. Foi muito generoso.
- Quanto? Quanto foi? - A animosidade transbordava de Norbury, como se isso fosse na realidade a única coisa que interessava.
Talvez fosse. Talvez Norbury nunca tivesse conseguido engolir a protecção de Cottington a Kyle. Já era mau ter levado aquela tareia ignóbil. Mais ainda porque significara que o pai ficara a saber do seu comportamento desonroso daquele dia.
- Quanto? Uma quantia espantosa, apenas cinquenta menos do que um milhar.
Kyle sentiu-se satisfeito ao ver a expressão de Norbury antes de sair. O homem era estúpido, mas não demasiado estúpido. Dentro de poucos minutos, Norbury perceberia que o presente de Cottington saíra da fortuna que o seu herdeiro em breve receberia.
O que significava que Norbury lhe devolvera, indirectamente, o preço do leilão, e que o seu pai tivera conhecimento do que se passara nesse leilão.
Henrietta parecia diferente, hoje. Sentada na sala de visitas em Grovesnor Square, Roselyn tentou perceber porquê.
Não podia pôr de lado o efeito do chapéu. Um chapéu arcadiano por cima de uma touca de renda, muito mais discreto e elegante
do que os que costumava usar. E, agora que reparava melhor, o seu cabelo claro estava arranjado de maneira diferente, mais adequada ao rosto de ossos delicados.
Mas, essencialmente, a mudança estava na expressão dela. O seu ar vago e aéreo, essa tarde, fazia-a parecer jovem em vez de pateta. E o desdém não lhe franzira as feições, que, inesperadamente, pareciam quase juvenis sob aquela luz.
Falaram sobre moda e sociedade e especularam sobre a estação que se aproximava. Alexia estava com elas. Estavam também presentes três outras senhoras, todas de boa posição social e natureza generosa. Alexia arrastara Rose em visitas a essas senhoras na semana passada, presumivelmente com permissão delas. Agora, por sua vez, elas retribuíam a visita a Henrietta num dia que Alexia determinara, para que Rose também estivesse presente.
Fazia tudo parte de uma pequena campanha na qual, maravilha das maravilhas, Henrietta concordara em participar. Se Hen não estivesse a desempenhar tão bem o seu papel, se não estivesse a ser tão graciosa e prestável, Rose pensaria que Alexia tinha encontrado uma forma de chantagear a tia do marido.
As visitas não se demoraram muito, mas ficaram o tempo suficiente. Podiam nunca visitar a própria Rose, mas, quando elas saíram, Rose dera mais um passo em direcção a um certo nível de aceitação.
Essa estrada seria sinuosa. O marido que escolhera criaria desvios e caminhos bloqueados. O seu próprio escândalo faria o mesmo. Mas a campanha de Alexia parecia estar a dar resultado e mais depressa do que alguém se atreveria a esperar.
- Correu bem - confidenciou Hen quanto as três estavam de novo a sós. - Acho que Mrs. Vaughn a vai convidar para ir com ela ao teatro em breve, Roselyn. Foi o que me pareceu, quando conversou consigo sobre as suas peças preferidas. Uma vez que a tia dela casou com aquele importador, provavelmente não é muito esquisita em relação a um homem trabalhador, e pode até receber também o seu marido.
Rose mordeu a língua. Hen não tencionava provocá-la com aquele comentário. E não valia a pena ficar incomodada com a verdade.
Mas ficava. Muito mais do que esperara. Kyle aceitava as coisas como elas eram, mas Rose rebelava-se cada vez mais.
Não compreendia como qualquer pessoa que o conhecesse podia colocar objecções à presença dele na sua sala de visitas. Até a profissão de Kyle não era do tipo normal, mas combinava finanças, arte e investimento. Quando os seus irmãos se tinham tornado banqueiros, algumas portas tinham-se fechado, mas a maioria não.
Tinha a ver com o sangue, claro. com família e antepassados. com a família que Kyle nunca renegaria. Ele avisara-a em relação a isso.
Enquanto se dirigiam à biblioteca, Alexia explicou-lhe a próxima fase da guerra, que envolvia um jantar em casa dela. Aquelas três senhoras seriam convidadas, bem como duas outras que eram suas amigas. Ela esperava que as que tinham visitado hoje convencessem as outras a comparecer. As cinco tinham maridos conhecidos por serem tolerantes. Assim que alguns maridos permitissem que as mulheres se relacionassem com Rose, seria mais provável que outros lhes seguissem o exemplo.
Enquanto discutiam a estratégia, Easterbrook entrou na biblioteca. Pediu desculpa pela intromissão e parou perto das estantes, examinando as lombadas dos livros. A sua presença distraiu Henrietta, cuja curiosidade acabou por levar a melhor.
- Tenciona viajar para o estrangeiro, Easterbrook? Essa é a estante dos diários de viagem e coisas do género.
Ele tirou um livro e folheou-o.
- Não vou a lado nenhum. Estou a fazer pesquisa para a minha jovem prima.
- Oh, céus, vai enviar a Caroline numa viagem? Tinha tanta esperança. ela tem de ir a Paris, claro. e.
- Não, não é uma viagem - murmurou ele. - Estou à procura de informação sobre um tipo de local muito específico que as jovens visitam por vezes, mas parece que nenhum destes escritores fala pormenorizadamente sobre eles.
Hen franziu a testa.
- Que tipo de local?
Ele arrumou o livro na estante e retirou outro.
- Conventos.
- Conventos!
Rose pensou que Hen ia precisar dos seus sais. Alexia acalmou-a e depois virou-se para o marquês.
- Estou certa de que é apenas uma brincadeira. Por favor, diga à sua tia que está mais uma vez a provocá-la.
- Quem me dera que assim fosse. Na verdade, quem me dera que o Hayden assumisse este papel de guardião, em vez de me deixar a tratar de assuntos nos quais não sou especialista nem tenho qualquer interesse.
- Vêem, ele ainda não lhe perdoou aquele namorico com o Suttonly no Verão passado - gritou Hen. - Ela aceitou a sua autoridade em relação a esse assunto, Easterbrook. Não menciona o nome dele há semanas.
- Henrietta, o Verão passado já foi bastante mau, mas lamento dizer que temos entre mãos outro desses desastres dramáticos que as jovens causam. A perspectiva de um duelo por ano é mais do que suficiente, muito obrigado. Ter de me preparar para dois esgota-me a paciência. - Olhou para os livros de testa franzida e tirou outro da estante. - vou resolver de uma vez esta questão. Lutarei com o indivíduo, deixando-o bastante ferido, depois enviarei a Caroline para um convento e ficarei descansado pelo menos durante alguns anos.
Hen começou a chorar. Easterbrook inspeccionou calmamente os livros. Alexia tentou a diplomacia.
- Nem a sua tia nem eu temos conhecimento de que haja algum pretendente a rondar a Caroline neste momento. Penso que está equivocado.
Ele fechou o livro com um gesto brusco.
- Este homem não é um pretendente. É um sedutor. Não estou equivocado, Alexia. Lamento dizer que estou convencido de que a virtude da Caroline já está perdida.
Isto causou alarme geral. O choque de Hen deixou-a sem fôlego e de boca aberta. Depois gritou.
- Por favor, diga-nos, quem é esse homem? - quis saber Alexia.
- Aquele químico francês. O amigo do Bradwell. Henrietta parou de chorar e abriu muito os olhos. Olhou para
o lado para avaliar a proximidade do sobrinho.
- Certamente que está enganado - insistiu Alexia.
- Ainda esta manhã o vi. Ao nascer do dia, estava à janela que dá para o jardim e ali estava ele. A sair desta casa. - Lançou um olhar aborrecido à tia. - Acha que agora também tenho de ser ama-seca, tia Hen? Até eu estou chocado com a sua negligência em relação a ela, e eu não dou grande importância a essas coisas.
Hen estava muito calada. Easterbrook estava atrás dela, por isso não viu o que Rose e Alexia viram. Ela estava a ficar cada vez mais corada.
Rose olhou para Alexia precisamente quando Alexia se virava para ela. Depois ambas olharam para Henrietta.
- Easterbrook, acho que está enganado - disse Alexia. - Se foi ao nascer do dia, pode ter percebido mal o que viu, ou confundido a identidade de quem viu. Talvez um dos jardineiros já andasse a pé.
- Não, Alexia. Era ele. - Desistiu dos livros. - Infelizmente, não há qualquer referência a conventos. vou pedir ao advogado que faça algumas investigações discretas. Talvez em França, para que a Hen a possa visitar uma vez por ano.
Enquanto Easterbrook se dirigia à porta, Alexia bloqueou-lhe o caminho.
- Mesmo que tenha razão, e que ele estivesse de facto no jardim, não há provas de que tenha estado dentro de casa. Nem de que tenha estado com a Caroline. Pode ter sido com uma das criadas.
Ele lançou-lhe um olhar carinhoso, como fazia sempre.
- Vi-o a namoriscar com ela no casamento da sua prima. Fiz mal em não o avisar de imediato, mas a Hen estava com eles e parti do princípio de que.
Todos ficaram paralisados, como um quadro vivo, enquanto a mente dele trabalhava. Rose quase conseguia ouvir a mente do marquês a rever, a questionar, a rejeitar. a reconsiderar.
Easterbrook virou-se e olhou para a tia. Inclinou a cabeça e estudou-a. Ela agitou-se, incomodada, enquanto ele reparava no chapéu novo, no penteado novo e no seu novo brilho de juventude.
- Alexia, o seu inestimável bom senso poupa-me a obrigações que me desagradam. Provavelmente fui demasiado precipitado ao presumir o pior sobre a Caroline. Talvez não fosse Monsieur Lacroix que vi no jardim.
Pediu licença e dirigiu-se à porta, mas, antes de sair, falou de novo:
- No entanto, para o caso de ter sido. Henrietta, por favor, fale com as criadas. Se uma delas anda a receber algum homem, desejo apenas prazer a ambos. No entanto, talvez seja melhor se ele sair ainda durante a noite, para que não haja mais mal-entendidos.
Rose atravessou o quarto de vestir até à porta que fazia a ligação com os aposentos de Kyle. Ele não a procuraria essa noite. Estava com as regras. Arranjar uma forma delicada de o informar disso exigira uma dose considerável de engenho. Ele parecera divertido com os eufemismos dela, mas compreendera.
Ouvira os sons de Kyle a despir-se e os murmúrios de Jordan. Depois ficou tudo em silêncio. Abriu a porta. Os quartos de vestir não eram elaborados e grandes, e a porta do quarto dele estava a pouco mais de dois metros. O candeeiro não tinha sido apagado e ela conseguiu distinguir as sombras do toucador, das escovas e do espelho.
Aproximou-se da porta aberta e espreitou para dentro do quarto. As cortinas da cama não estavam fechadas. Ele estava deitado, com uma camisa de dormir aberta que deixava ver o seu peito forte.
O olhar de Rose demorou-se nele. Não voltara a vê-lo despido desde a noite de núpcias. Apagava sempre as velas e os candeeiros, mesmo ainda em Oxfordshire, quando era ela que o procurava. A escuridão fazia com que aquela cama parecesse misteriosa e sobrenatural e eliminava grande parte do constrangimento. Ajudava-a a render-se ao abandono.
Ele tinha os braços dobrados e a cabeça apoiada nas mãos. Parecia muito sério, como se o seu olhar encontrasse algum padrão no dossel que requeria uma análise atenta. Por outro lado, estava tão quieto que talvez estivesse a dormir.
- Kyle, estás a dormir? - murmurou ela.
Ele sentou-se. O seu olhar percorreu-a, reparando na touca de dormir e no roupão, nenhum dos quais era particularmente novo ou bonito.
- Acordei-te? - perguntou ela.
- Não. Estava a pensar em alguns assuntos que tive de tratar hoje.
- Terras e consórcios e essas coisas?
- Sim.
Rose entrou no quarto.
- A Alexia combinou com algumas senhoras virem visitar-me. bom, não a mim, à Henrietta. Mas elas sabiam que eu lá estaria e apareceram de qualquer maneira.
- Entra e conta-me tudo.
Ela sentou-se na cama e descreveu a sua pequena vitória. Kyle parecia muito interessado.
- Lady Alexia está a mover-se depressa.
- Penso que ela ainda acha que há uma possibilidade de apresentar a Irene esta estação. - Irene não deixara Hill Street. Toda a gente concordava que a sua única esperança era se fosse Alexia a apresentá-la.
- Quando ela der esse jantar, tens de levar um vestido novo disse ele. - Quando te mandar, quero que sejas a mulher mais elegante sentada àquela mesa.
- Talvez, em vez de me mandares, possas acompanhar-me.
- Não é muito provável. Lady Alexia é demasiado inteligente para combater em duas frentes ao mesmo tempo.
- Nesse caso, não sei se me agradará ir.
A expressão dele alterou-se ligeiramente, o suficiente para se tornar ilegível.
- Queres ouvir um mexerico? - perguntou Rose. - É sobre uma pessoa que conheces.
- Toda a gente gosta de ouvir um mexerico, especialmente se for sobre alguém que conhece.
- Este mexerico é muito bom. Há evidências de que o teu amigo, Mr. Lacroix, está a ter um caso com. a Henrietta!
- Evidências?
- O próprio Easterbrook o viu a sair da casa. Acreditas?
- Que indiscreto da parte do Jean Pierre. Achas que devo avisá-lo para se afastar?
- Desde que ele não seduza a Caroline, acho que o Easterbrook não se importaria se ele dormisse com todas as mulheres daquela
casa. Quanto à Henrietta, o marquês pareceu fascinado e encantado por saber que pode provocá-la com o assunto durante os próximos anos.
Riram-se ambos. Era muito agradável estarem ali sentados, à noite, a conversar sobre coisas mundanas. Mas, quando os mexericos acabaram, Rose sentiu que ele estava a ficar distraído. Os seus olhos escureceram e ficaram mais profundos, como os vira antes de entrar.
- bom, boa-noite - disse, fazendo menção de se levantar. Kyle pegou-lhe na mão.
- Fica.
Talvez, afinal de contas, os seus eufemismos tivessem sido demasiado vagos.
- Eu. quer dizer, hoje. é aquela altura em que.
- Fica, de qualquer maneira.
Uma estranha sensação invadiu-a quando se enfiou atabalhoadamente debaixo das cobertas. Ele apagou o candeeiro e a escuridão envolveu aquela intimidade casta. Kyle puxou-a para si, num abraço.
Rose não adormeceu logo. A novidade daquele tipo diferente de calor preocupava-a.
- Preciso de ir ao Norte, outra vez. - A voz dele não a assustou, pois falou baixinho. - Talvez dentro de duas semanas. Não estarei fora mais do que uma semana.
- Posso ir contigo? Disseste que iríamos na Primavera, mas, se vais lá voltar agora, gostaria de ir também.
- A viagem será fria. E tens o tal jantar.
- A Alexia pode marcá-lo para mais tarde. E não tenho medo de um pouco de frio.
Duas semanas antes, não teria pedido para ir. Mesmo alguns dias antes, talvez não tivesse dito nada. Mas, naquele momento, o desejo de ver a vida antiga de Kyle era muito forte. O abraço comovera-a, mas também deixara bem claro que, apesar de todo o prazer, havia um vazio no seu casamento que não conseguia explicar.
Não sabia se alguma vez seria preenchido. Talvez ele fosse, para sempre, um desconhecido até certo ponto. Talvez até o preferisse assim. Nem sequer tinha a certeza de que gostaria do que preencheria esse vazio, se alguma vez tal acontecesse. Sabia apenas
que esse espaço lhe parecia muito grande nessa noite, talvez por estar envolto numa nova emoção. A alma quase lhe doeu, com a sensação de estar a querer atingir algo fora do seu alcance.
- Veremos - disse ele. - Amanhã vou ao Kent e terei de ficar fora também vários dias. Não podes vir comigo, pois vou começar a construção das novas casas e serei apenas eu, alguns trabalhadores e muita lama.
As novas casas. No Kent. Devia ser o negócio por causa do qual visitara Norbury naquele dia do leilão.
De súbito, compreendeu a intensidade dos pensamentos de Kyle quando entrara no seu quarto essa noite. Devia ter-se encontrado com Norbury há pouco tempo. Talvez até mesmo nesse dia.
Ele nunca lhe diria se Norbury o insultara. Nunca revelaria se pensava nesse caso. Mas Rose tinha a certeza de que pensava. Talvez nesse preciso momento, enquanto a sua mente vagueava na noite.
Podia chegar a conhecê-lo melhor e começar a preencher esse vazio. Podiam ter muito mais noites como aquela, em que falavam como amigos e não como amantes.
Mas, acontecesse o que acontecesse, por mais anos que fossem casados, Norbury seria sempre uma sombra feia entre eles, afectando tudo, até mesmo as coisas boas, sem que nenhum deles mencionasse sequer o seu nome.
Esse pensamento quase arruinou aquela noite agradável. Norbury entrara-lhe na mente. Quase o conseguia ouvir a falar dentro da cabeça de Kyle. A sua influência malévola tornou-se tão opressiva que começou a procurar uma forma de sair da cama.
Kyle virou-se de lado ao adormecer. Tinha o braço sobre o corpo dela, num abraço casual, a mão no seu seio, num gesto ao mesmo tempo reconfortante e possessivo. E assim ficou toda a noite, impedindo-a de se escapulir.
CAPÍTULO 12
Kyle estava no Kent há dois dias quando Roselyn recebeu a carta. Vinha reencaminhada de Watlington. Percebeu de imediato, pela caligrafia, que era Timothy que lhe escrevia de novo, embora a carta viesse em nome de Mr. Goddard.
Desta vez, Timothy não escrevia de Dijon, mas de uma cidade italiana chamada Prato.
Atravessei finalmente os Alpes e estou a residir aqui porque é mais barato do que Florença. Também é menos provável que eu seja reconhecido. A viagem foi penosa e o clima é terrível. Tive medo de morrer e estive quase sempre doente. Agora caminho entre estranhos cuja língua não conheço e sofro de uma melancolia quase insuportável.
Tenciono permanecer aqui até poderes juntar-te a mim. Por favor, escreve depressa e diz que virás. Não verei o sol pela minha janela enquanto não chegares. Preciso que me escrevas e contes os teus planos, para que possa ter algo por que ansiar.
Rose, a minha bolsa sofreu muito com a longa estada em Dijon e com o que tive de pagar aos médicos que acabaram por se revelar inúteis mas caros. Quero que vendas a casa e a propriedade em Oxfordshire e tragas o dinheiro da venda contigo. Esta carta dá-te permissão para o fazeres em meu nome. Leva-a ao Yardley, o nosso
velho advogado. Ele reconhecerá a minha caligrafia e poderá aconselhar-te. Autorizo-o por este meio a agir como meu representante na venda se, por seres mulher, a tua representação não for aceitável. Se precisares de mais alguma coisa da minha parte, escreve-me imediatamente, para que possamos concluir este negócio o mais depressa possível.
Sei que ainda demorará meses, mas fico a contar os dias e espero que continues a ser, como sempre, a minha adorada irmã, de cuja força e coração tenho dependido tanto ao longo da maior parte da minha vida. Prometo que tudo correrá melhor quando estivermos de novo juntos.
Timothy
Ele ainda parecia perdido e só. A referência à doença não ajudava nada. Rose não sabia se havia de desejar que ele se estivesse a referir ao álcool, que era a grande fraqueza de Tim, ou a outra enfermidade.
E não podia ir ter com o irmão agora, por mais doente que ele ficasse. E Timothy nunca saberia que, por breves instantes, ela tencionara fazê-lo, durante algumas horas de felicidade na encosta de uma colina.
Também não podia negar a verdade por trás da sua escolha. Ao aceitar a proposta de Kyle, rejeitara a necessidade do irmão para poder recuperar uma vida em Inglaterra para Irene e para si própria.
Uma necessidade desesperada, talvez. Se ainda não o era, acabaria por o ser.
Ele dizia que a sua bolsa estava a ficar rapidamente vazia. Essa frase despertou nela alguma irritação. Rose vivera praticamente sem nada durante todos aqueles meses. Ele podia ter sido mais frugal a gastar todo o dinheiro que roubara.
Suspirou, um suspiro tão profundo que todo o seu corpo se afundou sobre si próprio. Timothy estava apenas a ser ele próprio. Sem a influência da irmã, continuaria a ser ele próprio, no pior dos sentidos. Ela não podia salvá-lo. Não agora, não depois de Kyle lhe ter dito tão directamente que ela nunca iria ter com o irmão.
No entanto, também não podia abandoná-lo como Kyle esperava que ela fizesse.
Mandou chamar a sua criada e trocou o vestido de casa por um conjunto de passeio. Ia encontrar-se com Alexia, numa modista, para mandar fazer algumas peças novas para o seu guarda-roupa. Mas, primeiro, passaria pela City. Precisava de descobrir se ainda era possível ajudar o irmão.
Kyle viu o seu engenheiro enfiar uma broca na terra dura, para verificar uma última vez o solo antes de as fundações começarem a ser construídas. A cerca de duzentos metros, outro homem assinalava quais as árvores a abater e quais poupar quando a nova estrada fosse construída. Kyle imaginou a casa que em breve se ergueria ao lado daquela mata.
Se tudo corresse como planeado, dentro de dois anos aqueles campos estariam habitados por famílias e haveria carruagens a passar nas novas estradas. Os cofres de Cottington ficariam mais recheados e a sociedade veria os seus lucros.
Tal como ele. Kyle ainda caminhava sobre uma corda bamba. O seu equilíbrio estava bem treinado. Os riscos não lhe tiravam o sono. No entanto, como qualquer outro homem, preferia ter os pés bem assentes na terra e saber que tinha capacidade para pagar as suas dívidas.
O homem junto das árvores chamou-o e apontou para sul. Kyle virou-se para a estrada. Uma carruagem estava a parar atrás da carroça que trouxera as ferramentas.
Reconheceu o veículo recém-chegado. Desceu o caminho e aproximou-se quando Norbury estava a sair.
- Espero que não tenha vindo da cidade apenas para ver os progressos - disse Kyle. - Ainda não há muito para inspeccionar.
Norbury olhou para a elevação de terreno, por baixo da aba da sua cartola.
- vou dar uma festa no solar. Decidi passar por aqui antes de os convidados chegarem.
Olhou para Kyle de lado, tentando avaliar a sua reacção. Kyle deixou-o olhar à vontade. Não precisava que Norbury aludisse à
última festa que dera para se recordar dela. A imagem da humilhação de Rose ocorria-lhe com frequência suficiente e sem ajuda de ninguém.
Essa imagem deixava-o fora de si e despertava nele uma vontade de espancar o visconde até o deixar em sangue. Trouxera esse impulso consigo da última reunião e agora ele invadiu-o de novo.
- Espero que esta festa seja mais discreta do que a anterior. Se começarem a correr rumores de que há orgias nas redondezas, estas casas nunca se venderão.
- Ou então ainda se venderão mais depressa. - Norbury começou a andar e fez sinal a Kyle para o acompanhar. - Vim falar consigo sobre outros assuntos de interesse mútuo. Tive notícias de Kirtonlow Hall. O meu pai teve outro pequeno enfarte. O médico diz que não viverá muito mais.
- Ele é mais forte do que a maioria. Pode viver mais do que o médico espera.
Mais do que você espera. O filho era tão diferente do pai que nunca tinha havido muito afecto entre ambos. O conde mostrava de muitas formas ao seu herdeiro como este se revelara uma desilusão.
Não que Norbury não tivesse a profundidade intelectual de Cottington. Mas faltava ao filho algo essencial, para além da inteligência. A simpatia natural que um ser humano sentia pelos outros parecia não existir ou estar mal formada. Norbury não possuía o núcleo moral que servia de guia à maioria das pessoas, em questões pequenas e grandes.
- Podemos desejar que ele nunca morra, mas ninguém vive para sempre - disse Norbury, com sobriedade dramática. - Agora, em relação à outra questão, é algo que os vivos podem influenciar. Tenho andado a pensar no seu casamento.
Kyle acelerou o passo, encorajando o seu companheiro a afastar-se mais. Olhou para trás para avaliar a que distância estavam os trabalhadores. O que veriam ou ouviriam se partisse o maxilar a Norbury com um soco?
- Pode pôr de lado esse ar de pugilista a preparar-se para um assalto no ringue - disse Norbury. - A decisão de casar com uma mulher daquelas é uma loucura apenas sua. Estou mais interessado no irmão dela e em como este casamento afecta os nossos planos
em relação a ele. Depois de recuperar do choque de saber que se tinha unido a ela de forma tão permanente, vi o lado positivo da situação.
- Não há qualquer lado positivo para além da minha felicidade com a mulher que escolhi para esposa. O Timothy Longworth desapareceu. Nem eu nem ela estamos ligados a ele.
- Ele escreve-lhe? Penso que é muito provável que o faça.
- Não tem motivos para o fazer.
- Ela é irmã dele. Tem de verificar se ela recebe cartas dele, quer em nome próprio quer em nome de Goddard. O melhor é procurar quaisquer cartas do continente, especialmente de Itália.
- Não.
- Poupar-nos-á muito tempo. Se ele lhe escrever podemos.
- Não. Estou fora desse assunto. Não quero participar em nada e não o ajudarei.
Norbury agarrou-lhe o braço, exigindo-lhe silenciosamente que parasse de andar. Kyle baixou os olhos para Norbury, cuja expressão perdera toda a pretensão.
- Meu Deus, como o cavaleiro puro foi rapidamente seduzido e conspurcado. Esqueceu muito depressa as suas ideias sobre justiça, Kyle.
- Não vou espiar a minha mulher.
- Então não a espie. Obrigue-a a dizer-lhe.
- Ela não entregará voluntariamente o irmão ao cadafalso. Nem eu o exigirei que o faça.
- Que raio está a dizer? Não há qualquer desonra nisso. Raios, estará a protegê-la. - Depois desta explosão, os olhos de Norbury tornaram-se matreiros. - Na verdade, se não o fizer, pode até estar a colocá-la em perigo.
A mente de Norbury podia ser lenta, mas trabalhava quando era preciso. Kyle viu os novos pensamentos a alinharem-se, transformando o rosto de Norbury numa máscara de astúcia.
- Provavelmente, ela foi cúmplice dele desde o princípio disse o visconde.
- Claro que não foi.
- Raios, eu devia ter percebido antes. Isso explica por que motivo o Rothwell nos devolveu o dinheiro. Não estava a proteger um homem que já escapara às nossas mãos, mas sim a cúmplice que
ele deixou para trás. Ela pode até ter guardado a maior parte do dinheiro aqui em Inglaterra. Sem dúvida que toda aquela simplicidade e humildade eram apenas uma fachada para afastar as suspeitas. Ora, o Longworth nem sequer era muito esperto. A ideia pode ter partido dela.
- Está a dizer disparates.
- Até aquela situação comigo. Eu pensava que estava a seduzi-la, mas ela pode ter querido ficar perto de mim para descobrir se as vítimas desconfiavam dela. Seria irónico, não? Se o tempo todo ela.
- Continue com essa linha de pensamento e mato-o.
- Está tão embriagado pela beleza dela que seria capaz de arriscar tudo? Duvido. Dentro de alguns meses deixará de estar tão fascinado pelo seu bonito prémio. Nessa altura verá o que se esconde por trás do brilho. O irmão é um ladrão e o carácter dela já revelou ser fraco e imoral.
Kyle agarrou no colarinho de Norbury, puxou-o para si e levantou-o do chão.
- Eu avisei-o.
Norbury arregalou os olhos e inclinou a cabeça para trás.
- Atreva-se a desferir um golpe que seja e eu não susterei a minha própria mão. Julgo que um juiz ouviria atentamente e pensaria bem antes de presumir que sou eu a parte errada. Julgo que o meu ponto de vista tem bastante peso. com algum esforço, podemos até encontrar certas evidências nesse sentido.
A ameaça era inconfundível. A justiça pervertida era pior do que a justiça negada, e um lorde tinha mais maneiras de fazer a primeira do que a segunda.
Kyle mal conseguiu conter a fúria. Largou o visconde. Norbury endireitou-se, alisou a roupa e ajeitou a gravata. Levantou o queixo e olhou para ele com a expressão plácida de satisfação de um homem que acaba de descobrir um ás na mão.
- Descubra onde está o filho da mãe, Kyle - disse, recomeçando a andar na direcção da carruagem. - com toda a honra que pensa ter, sacrificar um bocadinho não será muito grave.
Assim que Kyle regressou do Kent, Rose percebeu que ele tinha voltado a ver Norbury. Trouxe essa sombra para dentro de casa. Afectava-lhe a expressão, tornando-a mais dura do que o habitual.
Não a tratou de forma diferente quando se sentaram para jantar nessa noite. Até escutou generosamente as suas descrições do que fizera nos dias em que tinham estado separados. Mas era como se Norbury estivesse sentado na sala com eles, de tal forma a sua presença nos pensamentos de Kyle era perceptível.
Quando ele mandou o criado sair, Rose preparou-se. Talvez fosse melhor afastar de uma vez o que quer que fosse que estava a ensombrar o estado de espírito do marido. No entanto, isso não significava que ela ficasse feliz com o rebentar da tempestade.
- Rose, quando estavas em Oxfordshire, o teu irmão escreveu-te? Para além da carta que tinhas recebido na primeira vez que te visitei, claro está.
Ela não estava à espera daquela pergunta ou daquele tema. Se não fosse pela intensidade contida de Kyle, talvez tivesse dito a verdade. Em vez disso, mordeu a língua enquanto a sua mente tentava perceber o porquê da pergunta e se a sua resposta teria na realidade alguma importância.
- Penso que te escreveu, pelo menos mais uma vez - acrescentou ele.
- Sim. Uma vez. - Era a verdade, embora não fosse toda a verdade. Ela só tinha de facto recebido mais uma carta do irmão enquanto estava em Oxfordshire.
- Eu tinha razão, então. Quando falaste em partir para sempre, referias-te a ir ter com ele.
Rose acenou com a cabeça.
O facto de ter razão não parecia ter melhorado o estado de espírito de Kyle.
- Não quero que tenhas qualquer contacto com ele daqui para a frente, Rose. Se ele voltar a escrever, deves queimar as cartas dele sem as ler. Não as guardes. Nem sequer repares no nome da cidade de onde ele te escreve.
O choque bloqueou-lhe os pensamentos durante muito tempo. Depois, a fúria tomou o seu lugar.
- Antes de casarmos, disseste-me que eu nunca poderia ir ter com ele, nem sequer visitá-lo. Não me disseste que não podia escrever-lhe nem receber cartas dele.
- Na verdade, disse-o. No entanto, para o caso de me teres compreendido mal, estou a dizê-lo de novo agora.
- Eu disse-te que me recusava a considerá-lo morto, mas agora exiges-me que o trate como se assim fosse.
- Sim. - A força da ordem era ainda mais notável no seu olhar do que na sua voz.
Rose levantou-se da cadeira e saiu da sala de jantar. Procurou alguma privacidade na biblioteca. Para seu espanto, Kyle seguiu-a.
- Farias melhor se me deixasses sozinha, para tentar aceitar aquilo que me exiges em relação a ele - disse ela.
- Preciso de ter a certeza de que o aceitas, de facto. Quero que me dês a tua palavra.
- A minha palavra? E a tua palavra? Se a minha palavra pode ser alterada tão rapidamente como a tua, não terei problemas em dá-la. Deixaste-me acreditar que retiraras esta exigência, naquele dia.
Pensara que o sentimento de culpa talvez o suavizasse. Mas a fúria dele era ainda mais intensa.
- Tenho uma razão para te fazer esta exigência. Gostava que acreditasses nisso, mas, acredites ou não, isso não muda nada. Sabes o que ele é. Disseste-me o perigo que ele representa para ti. Não podes ter qualquer contacto com ele.
- Ele é meu irmão.
- Ele é um cobarde e um ladrão. Um criminoso.
A violência da resposta de Kyle assustou-a. Fitou-o, espantada com a força que emanava dele, vendo-a e sentindo-a totalmente descontrolada.
Ele acalmou-se com esforço, mas a tempestade continuava a pairar sobre ambos.
- Rose, compreendes realmente aquilo que ele fez? Quantas pessoas ele roubou?
- Lord Hayden.
- Lord Hayden impediu que uma desgraça incalculável se abatesse sobre as vítimas. Quanto achas que ele teve de gastar para o fazer?
Ela sentia-se como uma menina de escola à procura da resposta para um problema de aritmética.
- Muito. Pelo menos vinte mil libras.
Kyle soltou uma gargalhada curta e seca, repleta de raiva.
- Por vinte mil libras, o Rothwell nem sequer pestanejaria. Pensa na casa onde a tua prima ainda vive. Que jóias novas te mostrou ela? Até as roupas novas. imagina-as na tua cabeça, vê a escolha de tecidos e adornos.
Rose sentiu um aperto no estômago. Nunca somara as evidências, em parte porque reparara no suficiente para desconfiar de que não gostaria nada do resultado da soma.
- Quanto? - murmurou.
- No fim de tudo, pelo menos cem mil. Provavelmente muito mais.
Ela susteve a respiração. Tanto!
Kyle aproximou-se dela. Um pequeno brilho de compreensão surgiu entre as centelhas de fúria nos seus olhos.
- O teu irmão não sabia que o Rothwell pagaria uma libra que fosse às suas vítimas. O teu irmão achou que as vítimas teriam pura e simplesmente de sofrer. Tal como os outros depositantes, quando o banco abrisse falência. Não roubou apenas aos ricos, mas a mulheres de idade e órfãos vulneráveis e servidores que dependiam desses fundos para sobreviver.
- Estou certa de que ele não compreendeu bem. não pode tê-lo feito deliberadamente.
- Claro que compreendeu. Muito bem. E podes ter a certeza de que o fez deliberadamente. - Conteve de novo a fúria e fez um esforço visível para se recompor. - É assim tão espantoso que eu te ordene que cortes todas as relações com um canalha desses?
A visão de Rose desfocou-se. Virou o rosto e tentou esconder os soluços que lhe oprimiam o peito. Cem mil libras. Deus do céu. E Alexia e Hayden.
Limpou os olhos e recuperou o fôlego.
- Disseste que conhecias pessoas que tinham perdido fundos. Quem eram?
Por um instante, julgou que ele não ia responder.
- Os meus tios.
O choque invadiu-a de novo. Não amigos, mas família.
- Mas foram recompensados, não foram?
- Sim, o dinheiro foi-lhes restituído. E isso que dizes a ti própria, quando pensas nele? Pelo menos as pessoas foram recompensadas? Pelo menos houve apenas uma vítima que pagou bem caro, em vez de dezenas que perderam tudo? É essa a tua desculpa para ele?
- Não o desculpo.
- Eu acho que sim. Ele é teu irmão e queres encontrar razões para diminuir a culpa dele. Mas não é meu irmão, Rose.
Não, e Kyle não lhe daria qualquer desculpa. Nem simpatia ou vontade de o salvar. Se Tim tivesse sido apanhado, Kyle acharia justo quando ele subisse ao cadafalso.
Rose não podia discutir com isso. Não tinha nada a oferecer, excepto o seu amor por um irmão que em tempos fora uma pessoa muito melhor, enquanto rapaz, do que se revelara ao tornar-se homem.
Pensou que Kyle compreenderia, pelo menos, mesmo que não aprovasse. Mas ele continuava implacável, inflexível e decidido a fazer com que ela condenasse Tim tal como todas as outras pessoas.
- Tens de cortar todo o contacto - repetiu ele. - Se tens cartas, queima-as. Se receberes outra, destrói-a imediatamente.
E, com estas palavras, saiu da biblioteca. Não voltara a pedir que ela lhe prometesse. Dera uma ordem e era suposto que ela obedecesse.
Rose pensou em trancar a porta do quarto de vestir nessa noite.
Nunca o fizera, desde que se casara com Kyle. Não se importava que ele a procurasse todas as noites. Era sua mulher e ele tinha esse direito, e nunca a deixava sem garantir que ela atingia a deliciosa liberdade que o prazer podia criar.
Mas aquela noite era diferente. Ela não sabia se conseguiria reagir ao toque dele. Um silêncio frágil instalara-se na casa depois de terem discutido. Ainda afectava o ambiente, e a ela.
Uma pequena parte do Kyle que ainda lhe era estranho fora-lhe revelada nessa noite. A sua força de vontade deixara-a aturdida. Adivinhara-a nele, mas vê-la, senti-la dirigida a si, assustava-a um pouco.
Devia ter imaginado quanta convicção interior ele tinha. Em si próprio e nas suas decisões. Nunca teria sobrevivido de outra forma no caminho que trilhara. Não eram muitos os homens que passavam de uma aldeia de mineiros de carvão para as salas de estar de Londres, em pouco mais de uma década.
Não eram muitos os homens nascidos numa aldeia dessas que pediriam em casamento Roselyn Longworth, fosse qual fosse o estado da sua família, das suas finanças ou da sua reputação.
Parou em frente da porta e olhou para a tranca. Suspeitava, e não pela primeira vez, que não devia agir de forma caprichosa com Kyle. Não achava que ele arrombaria a porta se a trancasse. Não acreditava sequer que ele ficasse zangado.
Mas calculava que aconteceria uma de duas coisas. Podiam ter outra conversa como a de hoje, em que ele lhe explicaria aquilo que estava e não estava disposto a aceitar no seu comportamento. Ou, possivelmente, uma formalidade gélida entraria na sua cama da próxima vez que ele a procurasse, e ficaria entre ambos durante muito tempo. Talvez até para sempre.
Virou costas à porta e voltou para a cama. Apagou os candeeiros como fazia todas as noites e a escuridão envolveu-a.
Talvez ele não viesse, apesar de já terem passado alguns dias desde a última vez, com as regras dela e os dias que ele tivera de passar no Kent. Mas certamente que Kyle também sentia a forma como a discussão ainda ecoava na casa. Ele retirara-se para o estúdio e refugiara-se no trabalho, mas talvez as palavras que tinham trocado ecoassem na sua mente, tal como na dela.
Ainda sentia o coração aos saltos quando se lembrava da forma como ele expusera a culpa de Tim. Cem mil libras. Muitas vezes, Rose sonhava em devolver a Alexia e Hayden o dinheiro que tinham gasto, mas uma soma daquelas nunca poderia ser paga. Nunca. Não admirava que Alexia tivesse sido tão implacável a desencorajá-la do seu plano para se juntar a Tim em Itália.
Mas agora estava casada com um homem que, desconfiava ela, de boa vontade enforcaria Tim com as suas próprias mãos. Não podia defender o irmão. Não podia dizer que Kyle estava errado. Mas certo e errado e justiça não eram a base do julgamento de uma irmã.
Cem mil libras. Como podia ele já ter gasto quase tudo? Tim afirmara precisar de mais dinheiro e ela acreditava nele.
Uma subtil deslocação de ar arrancou-a aos seus pensamentos. Abriu os olhos na escuridão. Kyle estava de pé ao lado da cama, apenas uma presença mais escura num quarto sem luz.
Ele viera, apesar de tudo. Isso surpreendeu-a. E a sua reacção também foi inesperada. O seu coração cantou de alívio antes de a sua mente conseguir controlar os instintos.
Ele parecia estar à espera de alguma coisa, ou a tomar alguma decisão. Rose não imaginava o que seria. Chegou-se para o lado na cama.
O corpo dele fez também sons e movimentos quase invisíveis. O roupão a cair. Um calor junto dela. Membros a estenderem-se e pele a tocar-se. Respirou fundo e sentiu-o na cama consigo, aquela presença total que transformava a noite.
Kyle soltou-lhe os cordões da camisa de dormir e fê-la deslizar sobre os seus ombros e corpo.
- Fico feliz por a porta não estar trancada.
Tê-la-ia ouvido ali de pé, a debater consigo própria? Era mesmo dele tocar no assunto, não permitir que fosse uma escolha silenciosa. Esperava que não tivessem de falar de novo do motivo pelo qual essa escolha lhe passara sequer pela cabeça.
As suas carícias e o seu beijo disseram-lhe que não.
- E se a tivesse trancado? - Já não estava muito interessada na resposta dele. Os tremores voluptuosos da excitação começavam a distraí-la.
- Não sei. Ainda não tinha decidido o que faria quando a tentei abrir.
Ela não pensou muito na resposta, limitando-se a observar que a ambiguidade continha algum perigo. O prazer já a levara noutra direcção. Seduzindo-a. Isso também era perigoso. O prazer embotava os seus pensamentos e levava-a a ver tudo sob uma luz favorável, mesmo durante o dia.
Kyle fazia questão de que ela ficasse satisfeita. com as suas carícias e beijos hábeis, levava-a àquele abandono agora tão familiar, tão cativante. O prazer forçava uma espécie de rendição, apercebeu-se Rose. Nela, havia perda de vontade e perda de identidade. Nunca o tinha compreendido bem antes.
Pouco depois já nada fazia sentido, nem sequer a discussão. O torvelinho de sensações ofuscava tudo excepto o desejo que sentia por ele.
Kyle levantou-a e colocou-a por cima dele. Moveu as ancas e penetrou-a tão profundamente que ela gemeu com a sensação bem-vinda de plenitude.
As palmas das mãos dele tocavam-lhe com ardor e ela ganhou vida graças ao seu desejo.
Depois ele puxou-a para a frente, na escuridão, até ela estar apoiada nos braços. Os seus seios pairavam sobre o rosto de Kyle. A sua boca substituiu as mãos. Ela gemeu de prazer. A forma como ele a excitava era demasiado intensa, demasiado envolvente, demasiado avassaladora para que conseguisse manter qualquer resquício de controlo.
Abandonou-se àquela loucura, gritando e gemendo e movendo-se para o conseguir sentir mais e melhor. Ele segurou-lhe nas ancas e os seus movimentos tornaram-se mais fortes e insistentes, em direcção à conclusão. O corpo de Rose submeteu-se-lhe por completo.
Ainda estava excitada quando ele terminou. Apesar das ondas repetidas de prazer e libertação, o seu corpo ainda queria mais. Ele pareceu aperceber-se. Deitou-a de costas e acariciou-a de novo.
Ela quase morreu. Arranhou-o para fugir àquele prazer quase doloroso. Ouviu-o, como naquela primeira noite, dizer-lhe para se render.
Desta vez, aguardava-a um êxtase delicioso. Invadiu-a primeiro com violência, depois esbateu-se em ondas que aturdiram todo o seu corpo. Rose, maravilhada, susteve a respiração para o fazer durar para sempre.
Mas não durou, claro, apesar de o seu corpo demorar muito tempo a aceitá-lo.
Os eventos da noite anterior regressaram com a consciência de tempo e espaço. Talvez também tivessem abandonado os pensamentos dele, banidos pelo delírio.
Kyle não ficou muito tempo depois de ela recuperar os sentidos. No breve rescaldo, tão saturado de paz, Rose sentiu a sombra dentro dele.
Desconfiava que ele nunca se esquecera da discussão, nem mesmo no momento da sua libertação. Procurara-a nessa noite, em parte, por causa desse confronto. Quisera deixar bem claro que essas coisas não se ergueriam entre eles na parte mais básica do casamento. E fizera tudo para se certificar de que ela não se importaria muito.
No entanto, a frieza desse cálculo não alterava a verdade de como a tratara. Se tinha trazido alguma raiva consigo para a cama, não o mostrara. Como sempre, fora apenas atencioso e pedira pouco dela excepto que sentisse prazer.
Rose apercebeu-se de algo surpreendente. Quem ela era e quem ele era, a forma como se tinham conhecido e o escândalo e redenção afectavam tudo. Em especial aquilo que acontecia naquela cama, nas melhores noites e nas piores.
CAPÍTULO 13
Kyle não mentira quando lhe dissera que a viagem para o Norte seria fria em finais de Janeiro. Quando atravessaram o condado de Durham, o céu estava carregado de nuvens baixas.
O terreno para norte tornava-se mais acidentado e também casa vez mais árido. Passaram por aldeias grandes e pequenas. Rose aprendeu a reconhecer aquelas onde viviam os mineiros. Os resíduos das minas próximas, nas roupas e nos corpos dos trabalhadores, deixavam as suas marcas de maneiras mais e menos visíveis.
À medida que se aproximavam de Teeslow, começou a ficar nervosa. Kyle tentara desencorajá-la de vir, mas cedera quando ela insistira. Rose queria ver onde ele crescera e conhecer os seus tios, mas era possível que não fosse bem recebida.
- Há mais parentes e família para além deles? - perguntou.
- Vivos não. Eles tinham duas filhas, mais novas do que eu. Morreram ambas de cólera quando eu estava em Paris.
- Viveste sempre com eles?
Kyle não se importava com a conversa, mas também não se podia dizer que lhe agradasse.
- O meu pai morreu num acidente na mina quando eu tinha nove anos. A minha mãe tinha morrido poucos anos antes. O irmão dela recebeu-me.
Pouco depois a carruagem entrou na aldeia. Rose examinou as poucas ruas e lojas, os aglomerados de pequenas casas. O pó de
carvão cobria os parapeitos das janelas e as ombreiras das portas em alguns dos edifícios, e os rostos e roupas de alguns residentes.
Não pararam na aldeia e continuaram a descer a estrada até outro caminho que virava para norte, ao fim do qual havia uma bonita casa de pedra. Tinha dois pisos e parecia semelhante às casas mais pequenas que se encontravam nas propriedades a sul, onde viviam mordomos ou rendeiros.
- Não é o que eu esperava - disse ela.
- Pensaste que seria uma casinha de cinco divisões, no máximo? Viveram numa assim, durante anos, na aldeia. Fui eu que mandei construir esta casa para eles, há cinco anos.
Kyle desceu da carruagem.
- Eu entro primeiro. Espera aqui. Não estão à minha espera e a tua presença será uma surpresa total.
Dirigiu-se à porta, abriu-a e desapareceu. Rose observou a casa. Viu um rosto de mulher aparecer brevemente à janela. A tia, sem dúvida, a espreitar para ver a surpresa total.
Ele estava a ser muito cuidadoso. Assim, quando Rose os conhecesse, os seus rostos esconderiam os seus pensamentos, como também ele fazia frequentemente. Se a desaprovassem, ou a considerassem um mau partido para o sobrinho, não o revelariam num momento de surpresa.
Kyle voltou e ajudou-a a descer. Uma mulher apareceu à porta, dando-lhe as boas-vindas com um sorriso.
- Rose, esta é a minha tia, Prudence Miller.
Prudence estava preparada, com palavras amáveis e expressões de simpatia.
- Estamos muito felizes por ter vindo.
Era uma mulher magra com cabelo escuro e olhos brilhantes, atingira a meia-idade com grande parte da sua beleza intacta. Rose tentou imaginá-la com vinte e trinta anos, de pele pálida e olhos escuros.
Uma vez que Prudence a viera receber sozinha, Rose presumiu que o tio de Kyle estaria na mina. Assim que entraram na sala de estar, viu que estava enganada.
Harold, o tio de Kyle, estava sentado numa cadeira perto da lareira, com o cabelo tão escuro como o da mulher e quase tão magro como ela. Apesar do rosto macilento, Rose conseguiu ver
a semelhança com Kyle nos olhos azuis vivos e nos ângulos do semblante.
Ele examinou-a atentamente durante as apresentações. Ela reparou na sua palidez e no cobertor que lhe cobria as pernas. Numa mesinha baixa, à sua direita, estava um escarrador. O tio Harold era um homem muito doente.
Quando lhe deu as boas-vindas, tossiu. Virou a cabeça e cuspiu para o escarrador.
- Tens de fazer uma tarte, Pru. Não podemos deixar que o Kyle nos venha visitar sem levar a barriga cheia de tarte.
- Farei uma para o jantar - disse ela. - Agora conversem um bocadinho enquanto eu vou lá acima arejar o quarto.
Parecia que ficariam ali a dormir. Kyle saiu e voltou a entrar com o cocheiro e a bagagem. A casa tinha uma cocheira, para onde mandou o condutor da carruagem.
Levou ele próprio a bagagem para cima, seguindo a tia pelas escadas. Rose sentou-se numa cadeira perto de Harold, que continuava a observá-la.
- É uma mulher muito bela, Mrs. Bradwell. Agora começo a compreender melhor este casamento.
- Espero que me trate por Rose. Ele riu-se.
- Ora, essa seria uma experiência rara, dirigir-me a uma dama como a senhora com tamanha familiaridade.
Teria imaginado o tom de desaprovação na sua voz? Tendo em conta as circunstâncias daquele casamento, a frase "uma dama como a senhora" podia ter vários significados.
Não pensara que o escândalo tivesse chegado a Teeslow, mas talvez tivesse. Ou talvez Kyle tivesse explicado as coisas detalhadamente quando visitara a aldeia em Dezembro.
Tive a oportunidade de casar com uma dama porque ela, se arruinou de tal maneira que nunca arranjará ninguém melhor. Tenho de aguentar a sua nódoa, mas dentro de uma geração quase ninguém se lembrará.
Fez um esforço para encontrar um tema de conversa, necessidade que desapareceu quando Harold começou a tossir. A tosse violenta agitou-lhe o corpo. Rose levantou-se para tentar ajudá-lo,
embora não fizesse ideia de como. Ele ergueu a mão, detendo-a. por fim a tosse diminuiu e ele usou de novo o escarrador.
- Não estou bem de saúde, como pode ver. É a doença dos mineiros. Pensava que ainda teria uns bons dez anos antes de me atacar desta maneira.
- Lamento muito.
O tio Harold encolheu os ombros.
- Não se pode tirar o carvão sem levantar o pó.
Kyle voltou nessa altura, salvando-a de ter de encontrar resposta para isso.
- Tenho de lha roubar, tio. O quarto está pronto e a Rose devia descansar e aquecer-se, depois da viagem.
Rose tirou o manto de viagem dos ombros e aproximou-se do lume.
- O teu tio está muito doente, não está?
- Está a morrer.
Ela acenou, como se isso fosse evidente.
- Ele disse-me que é a doença dos mineiros. Por causa do pó.
- Muitos deles ficam doentes dos pulmões. É de esperar e, em resultado disso, são pessoas muito poupadas. O que ganham tem de chegar para sustentar as famílias que deixam para trás.
- Isso é triste, e falas do assunto de forma tão desapaixonada.
- É a vida, Rose. Para estes homens, é tão comum como a gota entre os lordes. Um mineiro vai para as minas sabendo o que pode acontecer, tal como um marinheiro sabe que pode afogar-se.
Começou a desfazer a mala. Nunca trazia Jordan para ali, pelas mesmas razões que hesitara em trazer Rose. Não havia nada errado com a casa, mas os seus tios não saberiam o que fazer com os criados por perto.
Felizmente, sabia que Rose era capaz de tomar conta de si própria. Se assim não fosse, teria insistido para que ficassem numa estalagem, e a mais próxima não era conveniente para os seus objectivos. Além disso a tia teria ficado magoada se o casamento alterasse tão rapidamente os seus hábitos.
No entanto.
- Ficarás confortável aqui? Diz-me se assim não for.
Ela olhou em volta, para a cama sem dossel e para as cortinas de que a tia Pru tanto se orgulhava.
- É muito melhor do que uma estalagem. Vamos partilhar o quarto?
- Sim.
Ela não parecia importar-se com isso. Sentou-se na cama, depois deitou-se.
- Acho que vou descansar um pouco. Nunca tinha percebido que estar sentada numa carruagem durante vários dias podia ser tão cansativo.
Quando acordou, Kyle não estava no quarto. Desceu as escadas e foi procurá-lo.
Harold estava a dormitar na sua cadeira, junto da lareira da sala. Seguiu os sons até à cozinha nas traseiras da casa.
Prudence estava a trabalhar, a esticar massa. Sorriu-lhe e inclinou a cabeça para o lume.
- Há sidra quente naquela panela em cima das pedras, e uma caneca na mesa, se quiser.
Rose serviu-se e olhou pela janela para um pequeno pomar de árvores de fruto ainda jovens, agora despidas no frio do Inverno. No lado ocidental havia uma grande horta, que aguardava a plantação da Primavera.
- Esta casa é muito agradável - disse. - A vista de todas as janelas é encantadora.
- Foi o Kyle que a mandou construir para nós. Quando veio de França. Foi para Londres à procura de fortuna, depois mandou construí-la. O Harold não queria aceitar, claro, mas eu já via que ele estava a ficar doente. Verá que ele se mete com o Kyle por causa das roupas bonitas e dos modos finos, mas quase rebenta de orgulho com aquilo em que o filho da sua irmã conseguiu tornar-se.
Rose aproximou-se para ver Prudence trabalhar.
- Também faço tartes.
- Sim? Não pensava que as damas cozinhassem muito.
- A maioria não cozinha. Mas eu gosto. Posso ajudá-la, se quiser.
Prudence empurrou para ela algumas maçãs e uma tigela.
- Pode descascá-las e parti-las para aqui. Rose deitou mãos ao trabalho.
- Onde está o Kyle?
- Foi à aldeia. Imagino que deve ter ido visitar o vigário e beber um copo com os homens na taberna. Teria levado o Harold na carruagem, mas ele estava a dormir. Talvez amanhã. O Harold sente falta das cervejas com os rapazes.
Rose imaginou Kyle a percorrer a pé os cerca de oitocentos metros até Teeslow. A regressar à sua velha vida. Iria largando casacos à medida que caminhava? Removendo as camadas de educação e mudança que aceitara para poder fazer fortuna em Londres? Voltaria àquele sotaque carregado que marcava o discurso de Harold?
O homem que estava naquela taberna não era o Kyle que ela conhecia. Era o Kyle que ainda continuava a ser um desconhecido para ela.
- Ele é amigo do vigário? Prudence riu-se.
- bom, amigo não será a melhor palavra. O conde encarregou o vigário de ensinar ao Kyle as letras e os números, latim e francês. Era um professor duro. De vez em quando aquecia o traseiro dos alunos com a vara. O Kyle não gostava nada disso, mas sabia que as aulas podiam significar uma vida diferente, por isso voltava sempre.
- O conde? Refere-se ao conde de Cottington? Foi ele o benfeitor do Kyle?
- Ele mesmo.
Kyle nunca lho dissera, pelo menos directamente. Rose simplesmente presumira que o benfeitor fora. alguém. Não um conde. Não Cottington. Não o pai de Norbury.
Isso explicava muita coisa. A sociedade naquelas novas casas. A sua presença naquele infame jantar.
- Porque faria o conde uma coisa dessas?
Prudence estava concentrada a raspar açúcar de um cone.
- O conde conheceu o Kyle por acaso. Percebeu de imediato que ele tinha qualquer coisa. Viu que não era um rapaz vulgar, mas sim inteligente e corajoso. Sabia que seria um desperdício mandar o meu sobrinho para as minas, apesar de em rapaz ele já conseguir fazer o trabalho de um homem. Por isso disse ao vigário para o ensinar, para que ele pudesse frequentar escolas quando crescesse. -
Juntou o açúcar numa chávena. - O conde é um homem bom e justo. Não há muitos assim.
A pequena história deixou a mente de Rose a fervilhar de perguntas. Demasiadas perguntas para fazer a Prudence sem parecer que estava a interrogá-la.
Sabia muito pouco sobre a vida do marido. Tinha curiosidade, mas nunca lhe pedira essas informações, apesar de ele ser a fonte mais provável para as obter.
Nunca perguntara, mas ele também nunca explicara. Rose não acreditava que fosse por Kyle se sentir embaraçado em relação ao passado, nem sequer por ser um homem que não falava muito sobre si próprio.
Ambos tinham evitado esses assuntos porque falar sobre o passado dele implicava falar sobre Norbury.
A sombra daquela relação afectava até o conhecimento que tinham um do outro.
- Vai haver sarilhos. Não há outra possibilidade - disse Jon, bebendo um trago de cerveja para sublinhar a afirmação.
Kyle bebeu também, em concordância. Jonathan era um mineiro mais ou menos da mesma idade que ele. Tinham entrado nas minas na mesma altura, quando eram rapazes, e costumavam carregar os cestos juntos pelas escadas acima.
Agora, Jon era um radical, o que o fazia ser indiscreto com o indivíduo de roupas finas que ali vivera, há tanto tempo.
Os restantes mineiros eram bastante simpáticos, até mesmo joviais. Ergueram os copos em saudação quando Kyle entrou na taberna e cobriram-no de perguntas sobre Londres. Mas não estavam dispostos a falar sobre o que realmente se passava na aldeia. Uma palavra irreflectida podia custar-lhes o ganha-pão.
- Já por três vezes que o comité foi ter com os proprietários a opor-se à reabertura daquele túnel e a explicar os perigos - disse Jon. - Mas é mais barato perder alguns homens do que fazer o que tem de ser feito. Já o vimos antes e vai acontecer de novo.
Kyle vira-o antes, sem dúvida. Os ossos do seu pai ainda estavam dentro daquele túnel selado. Na altura, era demasiado perigoso
escavar para libertar os homens. A primeira tentativa tinha apenas causado outro desabamento.
- Já foram falar com o Cottington? - perguntou. - Ele vendeu a maior parte a terceiros, há muito tempo, mas ainda tem influência. As terras circundantes ainda lhe pertencem.
- Dois de nós tentaram. Ele está tão doente que não deixam ninguém aproximar-se. Nem tu conseguiste lá entrar da última vez que cá estiveste. Quanto a falar com o herdeiro. - A expressão de Jon deixava bem clara a sua opinião sobre isso e sobre o filho em questão.
Jon olhou por cima do ombro. Passou a mão pelos caracóis louros e depois inclinou-se sobre a mesa e falou em tom confidencial.
- Estamos a organizar-nos para falar e agir como um só. E não só aqui. Tivemos reuniões com outros grupos, de outras cidades e que trabalham para outros proprietários. Se nos unirmos e falarmos a uma só voz, seremos ouvidos.
- Cuidado, Jon.
- Cuidado, uma ova. A lei que proibia a associação de trabalhadores já morreu, finalmente, e temos o direito de nos unirmos. O que podem fazer? Matar-me? Não podem matar-nos a todos. Não podem despedir-nos a todos. Tu próprio falaste sobre isso há anos, antes de. - Desviou os olhos e bebeu mais um trago de cerveja.
Antes de te ires embora e te tornares um deles.
- Quando estiverem lado a lado, todos os homens têm de estar unidos. Todos os homens têm de estar dispostos a passar fome. Há sempre alguns que quebrarão.
- Se sairmos da mina, homem nenhum lá entrará. Nós trataremos disso.
- Há sempre outros que precisam de trabalho.
- Se formarmos uma linha em frente das minas, isso não importará.
- Chamarão a milícia. Será outro massacre como o de Peterloo. Jon deu um murro na mesa.
- Pára de falar como a minha mulher. Já te esqueceste de como é estar lá em baixo? Volta para a casa elegante que mandaste construir para o Harold e pede-lhe emprestadas as botas e as roupas.
Vem comigo amanhã, se te esqueceste por que motivo o perigo não importa para pessoas como nós.
Essas pessoas não incluíam Kyle. Ele era um deles, mas ao mesmo tempo já não era um deles. Aquela era a sua casa, mas viajara para tão longe dela, em tantos aspectos, que, cada vez que regressava, sentia que fazia menos parte desse mundo.
Sentia-o. E não podia fazer nada. Os seus elos de ligação com aquele lugar eram como areia que lhe escorria entre os dedos por mais que os fechasse.
Quanto tempo passaria até já poucas pessoas o reconhecerem quando caminhasse por aquelas ruas? Chegaria o dia em que ele entraria na taberna e todas as vozes se silenciariam enquanto todos os olhos examinavam o cavalheiro intruso.
- vou a Kirtonlow enquanto cá estou - disse. - Falarei com o Cottington sobre esse túnel.
O encolher de ombros de Jon mostrava a sua falta de fé em que isso fizesse alguma diferença. Mandou vir mais cerveja e pôs a conversa de lado, juntamente com o copo vazio.
Kyle regressou a casa à hora de jantar. Rose ajudou Prudence a levar a comida para a mesa. A conversa girou à volta de pequenas coisas, como acontece frequentemente entre estranhos. Por fim, o tio Harold não aguentou mais. Exigiu saber o que ele soubera na taberna.
- Eles não vêm muitas vezes cá acima - explicou. - É uma caminhada muito grande depois de um dia de trabalho.
A tia Pru sorriu debilmente, pedindo desculpa em silêncio por aquilo que podia parecer falta de gratidão pela casa. Kyle não disse nada. Harold sabia que ninguém o visitaria muito, mesmo que vivesse na aldeia. Um homem demasiado fraco para ir à taberna era um homem isolado.
- Fala-se em reabrir o túnel - disse. - Já tinha ouvido falar nisso em Dezembro, mas parece que agora é certo.
- Os imbecis. Aqueles imbecis gananciosos. - A notícia deixou Harold tão agitado que teve um ataque de tosse.
- Pelo menos, talvez o teu pai e os outros possam agora ter um enterro cristão - disse Pru baixinho.
Rose ergueu os olhos, surpreendida. Uma expressão que Kyle vira várias vezes aquela noite invadiu-lhe os olhos. Curiosidade. Talvez reavaliação. Ela tinha algo na cabeça e a referência ao túnel estimulara qualquer coisa.
A tia Pru trouxe uma das suas tartes. O aroma era tão delicioso que bastava para melhorar o estado de espírito geral. Pru era famosa pela sua mão para todo o tipo de doces. Não importava se a fruta tinha estado numa cave o Inverno inteiro, ela ainda conseguia fazer magia com ela.
Sentiu-se como se fosse outra vez um rapaz, antecipando uma guloseima que só apreciavam no dia de receber, quando havia dinheiro para comprar açúcar.
Prudence partiu-a.
- A Rose ajudou-me a fazê-la. -Sim?
- Não há nada como duas mulheres a cozinharem juntas para se conhecerem uma à outra - disse Harold. - Fico feliz por ver que a tua mulher gosta de cozinhar, Kyle. E bom saber que não passarás mal em Londres.
- A Rose faz umas tartes excelentes - disse. Ela sorriu, radiante pelo elogio. Kyle olhou para a fatia de tarte à sua frente. Então tenho a agradecer-te por esta, minha querida?
- Não fiz muito. Só cortei as maçãs.
Kyle atacou. Não, ela não ajudara muito. Estava maravilhosa. Rose observou-o a comer cada pedacinho. Aquela expressão surgiu-lhe novamente nos olhos. Algo a fizera pensar outra vez.
CAPITULO 14
Rose queria conversar com o marido. Ficou aborrecida quando ele não se recolheu com ela e a deixou subir para o quarto sozinha.
Mas, assim que lá chegou, percebeu por que motivo ele não a acompanhara. Partilhar um quarto significava que não havia privacidade. Os preparativos que normalmente eram feitos em separado, seriam agora efectuados à frente um do outro.
Pensou nisso enquanto despia o vestido e o corpete e a combinação e as meias. Enfiou a camisa de dormir e sentou-se na cama para soltar o cabelo. Imaginou-o ali, a despir-se também.
Olhou para a cama. Prudence e Harold tinham partilhado a mesma cama a noite inteira, todas as noites, durante anos. Não se separavam depois de cumpridos os deveres conjugais. Como seria, ter a vida tão completamente entrelaçada com a de outra pessoa?
Bastante bom se estivessem apaixonados, pensou. Horrível se houvesse ódio. Incómodo se houvesse indiferença.
Ouviu as botas dele nas escadas pouco tempo depois, apenas o tempo suficiente para ter a certeza de que ele de facto se demorara por respeito à delicadeza dela. Havia muito disso no seu casamento.
Deixou o candeeiro aceso e enfiou-se na cama, que não era muito larga. Ver-se-iam obrigados a todo o tipo de intimidades durante aquela visita.
Kyle bateu antes de entrar. Rose duvidava que Harold alguma vez tivesse batido para saber se Prudence o deixava entrar.
Lutou contra o impulso de se virar para o lado para que ele também tivesse privacidade. Mas ele não era uma florzinha delicada e ela queria falar.
Ele despiu o casaco e pendurou-o no roupeiro.
- Gostaste da tarte? - perguntou.
Ele sentou-se na cadeira e descalçou as botas.
- Sim, muito. Estava quase tão boa como as tuas.
Rose deu por si incapaz de falar. O seu coração encheu-se de uma emoção doce e comovente.
A verdade era que ela fazia tartes medíocres. Nunca ninguém a ensinara a fazê-las. Em rapariga, por necessidade, fora fazendo experiências até conseguir algo que os irmãos consideravam mais ou menos comestível. O resultado não se comparava, de forma alguma, com a magia de Prudence.
Hoje, observara Prudence e vira o que faltara às suas tartes ao longo de todos aqueles anos. E sentira a diferença na boca, também.
E contudo ali estava Kyle, a mentir para que ela não se sentisse mal. Podia simplesmente não ter mencionado as tartes dela. Tal como podia ter comido apenas uma pequena fatia na manhã a seguir ao casamento.
Provavelmente quase se engasgara com cada pedaço, nesse dia.
- A tia Prudence disse que provavelmente tinhas ido visitar o vigário hoje. Contou-me como ele te deu as tuas primeiras lições. - Debateu consigo própria se devia ou não continuar. Podiam viver a vida inteira sem nunca abordar as questões que hoje tinham sido despertadas na mente dela. E talvez fosse melhor assim.
Mas não conseguiria dormir se não fizesse essas perguntas. As respostas afectavam não só o seu conhecimento do desconhecido, mas a compreensão que tinha do Kyle que conhecia.
- Ela disse-me que foi o Cottington que pediu ao vigário que te desse aulas. Que o conde é o teu benfeitor. Nunca me tinhas dito isso.
Kyle tirou a gravata.
- Nunca me perguntaste.
- É verdade. Nunca perguntei. Mas estou a perguntar agora. Quero que me fales sobre isso.
- Queres saber pelas razões erradas. O que queria ele dizer com isso?
- Quero saber porque és meu marido e esse facto extraordinário mudou a tua vida e fez de ti o homem com quem casei.
Ele recostou-se na cadeira e olhou para ela.
- Muito bem. O conde reparou em mim pela primeira vez quando eu tinha doze anos. Decidiu que eu tinha capacidades que deviam ser desenvolvidas. Pediu ao vigário que me desse aulas e pagou as despesas para eu ir estudar com um engenheiro em Durham durante dois anos. Depois arranjou forma de eu fazer os exames de admissão na Ecole dês Beaux-Arts em Paris e mandou-me para lá estudar Arquitectura. Quando voltei, deu-me cem libras e a generosidade chegou ao fim, embora tenha continuado a ser um amigo e, de vez em quando, parceiro de negócios.
E essas cem libras tinham sido transformadas em mil, e depois, em mais e mais.
- É uma história espantosa. Obviamente que me espanto contigo, mas também com o conde. Por que motivo decidiu ele beneficiar-te com a sua protecção? Por causa da morte do teu pai no túnel?
- Ele não fazia ideia de que eu era filho de um desses homens. Isso aconteceu três anos antes. - Começou a abrir os punhos da camisa. - Não sei porque o fez. Penso que foi porque eu tinha dado uma sova no filho dele. Talvez admirasse a minha audácia. Talvez achasse simplesmente que o filho merecia uma sova e estivesse contente por outro rapaz se ter atrevido a fazê-lo em seu lugar.
- Bateste no Norbury? Que delicioso. Mas é pena que esta história tenha alguma coisa a ver com ele.
- É pena, mas é inevitável, Rose. Não finjas que não sabias onde a história iria parar quando me fizeste a pergunta.
Despiu a camisa. Despejou água na bacia e começou a lavar-se.
Ela nunca mais o vira assim despido, desde a noite do casamento. Depois dessa noite ele fora sempre apenas uma silhueta na escuridão. Sentira aqueles ombros e abraçara a sua nudez, mas não a vira.
A luz fraca favorecia-o, mas a sua força seria impressionante mesmo sob a luz forte do sol do meio-dia. Não se via nada suave. Não havia a ameaça da corpulência causada por uma vida fácil. Os seus músculos não pareciam demasiado volumosos, apenas do tamanho e firmeza necessários à sua altura. Tal como o rosto, o seu
corpo parecia uma escultura grosseira e sugeria uma energia contida à espera de ser libertada. Rose perguntou-se se aquela tensão alguma vez desapareceria. Talvez ficasse dormente quando ele adormecia.
Kyle cativava de tal forma a sua atenção que quase abandonou a conversa. O seu silêncio chamou-lhe a atenção e Kyle apanhou-a a observá-lo. Virou-se e continuou a lavar-se.
- Suponho que sabia de facto onde a história levaria - disse ela. - Sempre foi uma surpresa para mim o facto de conheceres o Norbury tão bem. O facto de continuares em sociedade com ele e de usares as terras da família dele.
- Os meus negócios são com o Cottington. Sempre foram. O Norbury está envolvido agora, apenas porque o conde está muito doente.
A conversa estava a desviar-se para terreno perigoso. Ela viu o espaço entre ambos subitamente cheio de buracos e fendas. O tom dele avisou-a de que seria insensato prosseguir nessa direcção.
- Se o conde está assim tão doente, o Norbury pode permanecer na tua vida durante muito tempo - disse ela. - Já é assim, ao que parece. Ele está nas nossas vidas, agora, Kyle.
Ele atirou a toalha para o lado.
- Quando tenho de o ver, vejo-o. Depois ele desaparece dos meus pensamentos bem como da minha presença. Ele não está nas nossas vidas.
- Como pode não estar, tendo em conta como nos conhecemos? Sinto-o; é como um espectro. E não acredito que saia dos teus pensamentos, no que diz respeito a mim. Acho que fazes um grande esforço para tentar esquecer a minha relação com ele, mas.
- Sim, raios, faço um grande esforço. A alternativa é querer matá-lo. Pela forma vergonhosa como te tratou naquele jantar. Pela forma como suspeito que te terá tratado antes. Imagino-o contigo e. - Cerrou o punho, ficou tenso e só com esforço recuperou alguma calma. - Mas não está na minha mente quando estou contigo. Não se reflecte em ti.
- Como é possível? Ele afecta tudo. Aquela noite afecta tudo, mesmo a forma como me tratas enquanto tua esposa.
- Se estás a falar da ordem que te dei em relação ao teu irmão.
- O meu irmão? Meu Deus, o meu irmão é uma coisa que partilhamos em que o Norbury não toca. Não gostei dessa discussão, mas pelo menos, para variar, falei com o homem com quem casei. O homem inteiro. O homem real. Não essa criação delicada e cuidadosa que se veste de forma tão impecável e fala com tanta perfeição e me dá prazer de modo tão correcto e com um respeito tão irrepreensível.
Rose duvidava se alguma vez o voltaria a ver tão surpreendido em toda a sua vida. Mas durou apenas alguns segundos. Depois o seu olhar fixou-se nela de uma forma que lhe acelerou o coração.
- Trato-te com respeito, como uma senhora, e estás a queixar-te?
- Não estou a queixar-me. Sei que tenho sorte por ter um amante tão atencioso. Acho apenas que tens tanta preocupação em mostrar esse respeito por razões que me entristecem.
Ele não gostou da crítica. Nenhum homem gostaria.
- Parece que conheces a minha mente e as minhas razões melhor do que eu, Rose.
Ela devia recuar, pedir desculpa, ficar calada e sentir-se grata. Mas, se o fizesse, a única coisa que ele recordaria seria um insulto que ela não tivera intenção de dizer.
- Talvez conheça, Kyle. Ou talvez o pouco que conheço da tua mente me tenha feito compreender mal. Diz-me uma coisa: se não fosse aquela noite terrível, se não fosse a minha relação com o Norbury, sentirias a necessidade de ser tão cuidadoso e respeitoso? Se tivesses casado com uma rapariga inocente desta aldeia, ou com uma mulher a quem nunca tivessem chamado prostituta, estarias sempre a pensar em tal coisa? Se não tivesses nascido nesta aldeia, mas num solar, e me tivesses pedido em casamento noutras circunstâncias, acharias tão importante tratar-me como uma senhora?
Pelo menos ele não parecia mais furioso com aquela explosão. Intenso e sério, mas não furioso. Mesmo assim, o tempo passou tão devagar, tão silenciosamente, que ela se arrependeu das suas palavras.
- Lamento. Não devia. - Apanhou uma linha solta da colcha. - É só porque sinto, quando estamos juntos. que tens quase sempre vestidos os teus fatos perfeitamente confeccionados, Kyle. Mesmo na cama, quando na realidade não tens nada vestido.
Conseguira piorar uma situação já de si má. Deitou-se de costas e puxou as cobertas para cima, para se esconder dos destroços do naufrágio no qual transformara sem dúvida o seu casamento.
Desejou ser escritora ou poeta e poder explicar o que quisera dizer. Desejou que houvesse palavras para exprimir como sentia que o seu berço e o dele, o escândalo e a redenção, o facto de ele saber da sua relação anterior e a necessidade de não a tratar como uma prostituta, tinham criado aquelas barreiras invisíveis de formalidade.
Era impossível explicar. E improvável de alterar. Devia aceitar as coisas como elas eram. Devia repreender o seu coração para que este não continuasse a procurar alcançar algo desconhecido de forma tão dolorosa e desassossegada. Devia.
- Os fatos não me assentam bem quando estou aqui, Rose. Por mais que seja a habilidade do alfaiate, ficam demasiado apertados quando volto para casa.
A sua voz calma flutuou até ela através do silêncio tenso.
- Imagino que deve ser desconfortável.
- Terrivelmente desconfortável.
- Por outro lado, talvez estejam sempre demasiado apertados, mas só repares nisso quando voltas para casa.
- Penso que és capaz de ter razão.
Rose sentou-se de novo. Ele virara o rosto para o lume e estava imerso em pensamentos. Tinha um braço apoiado na prateleira por cima da lareira enquanto olhava para as chamas. A luz iluminava-o de forma maravilhosa.
A imagem deixou-a como que hipnotizada. Todo o quarto pareceu encher-se com o brilho da lareira. O calor das chamas invadiu-a.
- Na verdade, também reparei que as minhas roupas parecem apertadas desde que aqui cheguei, Kyle. Talvez seja do ar. Ou das tartes.
Ele sorriu.
- Nesse caso, devias despi-las.
- Não tenho prática a despir estas roupas. Fui apertada neste espartilho desde o dia em que nasci.
Ele olhou para ela. O coração de Rose deu um salto e começou a bater mais depressa. Nem no dia em que a pedira em casamento ele lhe permitira ver tão claramente o seu desejo.
Kyle aproximou-se dela.
- vou entender isso como um convite, Rose.
Apertou-a num abraço tão forte que a levantou do colchão. Beijou-a possessivamente, com força, sem pedir nada e pedindo tudo. Desta vez, não colocou limites ao seu desejo. Puxou-a para o turbilhão do seu poder descontrolado.
Os beijos exigiam, ordenavam e excitaram-na rapidamente. Não conseguiria ter-se oposto à forma como ele assumia o controlo sobre ela, mesmo que quisesse. Fora isso que ela pedira, e deu rédea livre às suas próprias reacções irracionais, que submergiram o seu medo e surpresa iniciais.
Beijos escaldantes. Fortes e profundos e penetrantes e devoradores. Braços de aço ergueram-na para a fúria que lhe queimava o pescoço e a boca. Ondas de choque deliciosas percorreram-lhe o corpo como setas de fogo. Ele libertou o seu lado mais primitivo, até ela gemer com aquele ataque glorioso e abandonar todo o controlo.
Kyle pousou-a de joelhos sobre a cama. Acariciou-lhe as coxas por baixo da camisa de dormir. A sua mão deslizou sobre as suas ancas e nádegas. Um toque hábil e erótico provocou um estremecimento avassalador, seguindo o mesmo caminho até ao ponto onde os dedos dele a provocavam.
Afastou um joelho para o encorajar a continuar com a tortura deliciosa. E ele assim fez, mas interrompeu o longo beijo. com a outra mão, puxou a camisa de dormir dela para cima e despiu-lha pela cabeça, deixando-a cair para o chão, aos pés dele.
Kyle olhou para a nudez de Rose com uma expressão que o desejo tornava severa. Acariciou-lhe os seios ao de leve enquanto a outra mão se movia e a provocava lá em baixo. A dupla sensação deixou-a a tremer, enfraquecida de prazer e sem fôlego. Encostou-se a ele para se apoiar, ficando com o rosto junto do seu peito. Uma mão na nuca puxou-a para mais perto, até ter a face encostada à pele firme.
- Posso despir-te a camisa de noite, Rose, mas o resto das roupas tens de ser tu a afastar.
Ela compreendeu. O seu encorajamento deu-lhe ousadia. Pousou as mãos no peito dele, sentindo-o e vendo-o ao mesmo tempo.
Aquele mero toque despertava ainda mais o desejo dele e uma nova rigidez invadiu-o.
Ela acariciou-o de forma mais premeditada. Viu as mãos deslizarem sobre o peito dele, pelas saliências duras dos seus músculos e costelas. Kyle olhou para ela tal como ela olhava para ele, acariciando e tocando o seu corpo tal como ela tocava o dele. Os seus hálitos quentes encontraram-se e fundiram-se em beijos cada vez mais frenéticos, enquanto as sensações os mergulhavam numa loucura cada vez mais intensa.
Ele tirou a mão da coxa dela e começou a desabotoar as calças. Um gemido petulante escapou-se da garganta de Rose antes que conseguisse contê-lo. Afastou as mãos dele e desabotoou ela própria os botões. A sensação do toque de Kyle de novo na sua pele quase a fez desfalecer.
Lutou com a peça de roupa enquanto ele a acariciava mais deliberadamente. Kyle inclinou a cabeça para o seu pescoço e ouvido. O seu dedo penetrou-a cuidadosamente.
- Assim, Rose?
Ela não conseguia responder. Não conseguia falar. Mal conseguia manter-se direita. Agarrou nas calças dele desajeitadamente, às cegas, puxando-as para baixo enquanto os toques leves nos seus seios e entre as suas coxas a faziam gemer.
- Ou assim? - A mão dele contornou-lhe a anca a e tocou-lhe pela frente. Uma carícia longa, lenta, incrível, que fez com que fosse percorrida por um arrepio de prazer.
Rose sabia que ele via como a estava a deixar indefesa. Agarrou-se aos ombros dele, apoiando-se nele.
Kyle pegou numa das suas mãos, beijou-a e moveu-a para baixo, encostada ao seu corpo. Uma pequena centelha de racionalidade regressou, o suficiente para ela compreender o que ele estava a fazer, o que queria. Demasiado perdida para se importar, demasiado descontrolada para sentir vergonha, deixou-o fechar-lhe os dedos sobre o seu membro.
Outra carícia diabólica tornou as coisas mais fáceis para ela. O prazer percorreu-lhe o corpo numa vaga interminável e, em resposta, acariciou-o como ele a acariciava.
As barreiras que ainda o continham dissiparam-se nesse momento. Beijou-a com uma nova selvajaria. Ela sentiu a tensão nele,
na sua postura e no seu beijo, até na forma como lhe tocava. Deliberadamente, agora. Determinado a levá-la à rendição total.
O orgulho perdeu o significado. Cambaleou sobre os joelhos, arqueando o corpo ao encontro daqueles beijos dominadores, gemendo de desejo.
Ele moveu-a, mas não da maneira que ela esperava. Virou-a de costas para si e as suas mãos acariciaram-lhe livremente os seios. Ela inclinou-se para ele, arqueando as costas. Os seus mamilos ergueram-se, tensos e duros, implorando mais, qualquer coisa, tudo.
Ele moveu-a de novo, dobrando-lhe o corpo até ela estar ajoelhada à beira da cama com as pernas dobradas debaixo do corpo. Um extraordinário tremor erótico assaltou-lhe o ventre.
Ele levantou-lhe as ancas. Ela esperou, sem fôlego, tão excitada que quase não o conseguia suportar. O seu corpo palpitava, à espera, na expectativa. Imaginou o que Kyle veria, o seu traseiro erguido para ele e aquela parte oculta revelada. Essa imagem escandalosa excitou-a mais ainda.
Ele não a possuiu de imediato. Deixou-a esperar, suspensa à beira da loucura. Acariciou-lhe as nádegas, massajando firmemente a pele suave, olhando para ela, Rose tinha a certeza disso. Observando a sua rendição e submissão e o seu desespero.
Tocou-a de novo e ela gritou. Desta vez era diferente. Estava exposta e aberta e sabia que ele estava a olhar, que ele via o seu corpo nu. Baixou a cabeça e levantou mais as nádegas.
Pouco depois estava a implorar. A implorar e a gemer e a abafar os gritos na roupa da cama. Por fim ele penetrou-a num golpe longo, lento, deliberado. Por trás do seu próprio gemido de alívio, Rose julgou ouvir também o dele.
Depois disso, perdeu-se. Sentiu apenas o prazer torturante da necessidade e o crescendo violento da satisfação.
- Vieste para ver o Cottington antes de ele morrer? - Rose estava nos braços de Kyle, por baixo das cobertas. Já passara algum tempo desde que ele pegara no seu corpo inerte e a colocara assim, de modo a ficar aninhada nele enquanto ele estava sentado, com as costas encostadas à cabeceira da cama. A vela ainda iluminava a sua satisfação mútua.
- Essa foi uma das razões. vou tentar amanhã.
- Tentar? Ele já não te recebe?
- Não sabe que eu o visitei. O secretário e o médico não lhe falam sobre os visitantes a menos que assim o entendam. E assim que as coisas se passam agora.
Rose pensou que era provável que sempre assim tivesse sido. Um conde tinha normalmente pessoas que se certificavam que não era incomodado a menos que quisesse ser. Agora que Cottington estava doente, eram outras pessoas que o decidiam em seu lugar. Era a única coisa que mudara.
- Se ele não puder receber-te agora, talvez na Primavera, quando tinhas pensado voltar.
- Acho que ele não viverá até à Primavera.
Rose percebeu que Kyle tinha ouvido dizer que o conde estava a morrer. Fora por esse motivo que quisera vir mais cedo.
- Será muito triste se não puderes despedir-te, depois de tudo o que ele fez por ti. com certeza que o secretário sabe disso.
- Para o secretário, eu sou apenas o rapaz de Teeslow. - Beijou-lhe o cabelo. - Não é apenas para me despedir. Preciso de ver se ele ainda está no seu perfeito juízo. Gostava de lhe pedir um último favor, para os mineiros.
- É sobre a reabertura daquele túnel?
- Sim. Alguns pensam em impedir que isso aconteça, de formas que só farão com que acabem com a cabeça partida.
- Podia resultar, se todos.
- Não serão todos. Há famílias que perderam homens no desabamento e que querem a reabertura do túnel, para poderem enterrar os seus mortos.
- Disseste que o teu pai morreu num acidente. Foi esse, não foi?
Kyle acenou com a cabeça.
- Eu também gostava de poder enterrá-lo. Mas sei que aquele túnel nunca será seguro a menos que as coisas sejam feitas de maneira diferente. As paredes mexem-se.
- É rocha maciça. A rocha não se mexe.
- A terra é uma coisa viva, Rose. Antes de construir, tenho de me certificar de que o solo é estável. Aquela mina não está em solo estável e aquele túnel era o pior. Já o sabia em rapaz. Via-o.
Ela endireitou-se e olhou para ele. Um eco dos tremores do princípio da noite percorreu-a quando o fitou. Uma mulher não pode permitir que um homem faça aquelas coisas sem aceitar uma certa desvantagem em relação a ele no futuro. Ela sentia que lhe tinha cedido o domínio sobre si própria também em outros aspectos, aspectos que estavam agora entre eles, encorajando esses tremores.
- Quanto tempo trabalhaste na mina, Kyle?
- Desci pela primeira vez quando tinha oito anos. As crianças trazem o carvão para cima, em cestos. Geralmente têm nove ou dez anos quando começam, mas eu era grande para a idade. Mas não tão grande como um homem. Por isso conseguia ver o que os homens nunca viam, porque estava por cima das suas cabeças curvadas. Havia rachas no tecto e na parte de cima das paredes. Durante meses, vi-as deslocarem-se. Disse ao meu pai. Ele e os outros não viram qualquer perigo porque não tinham estado a observar e não tinham visto as alterações. Depois, um dia. desabou tudo. Dez homens ficaram enterrados vivos do outro lado de uma parede nova.
- E deixaram-nos lá?
- Nunca são abandonados, se houver alguma coisa a fazer. Os homens começaram a cavar. Caíram mais rochas e outro homem morreu. Depois disso não houve mais escavações. Rezou-se uma missa. Disseram-se orações. E dois dias depois os homens voltaram à mina. Excepto as famílias dos homens perdidos. Esses esperaram uma semana. Nessa altura eles já estariam mortos de certeza. Ao fim desse tempo, a falta de ar ou de água teria acabado com eles.
Rose imaginou-o, de vigília com a tia e o tio. Viu a criança que ele fora a imaginar o pai atrás daquela parede de rocha, talvez ainda vivo mas para além de qualquer possibilidade de ajuda.
- Eu disse aos homens que devíamos cavar de cima. Abrir um buraco até ao poço para que eles tivessem ar enquanto tentávamos perceber como chegar até eles. Mas ninguém deu ouvidos a uma criança, muito menos os homens que supervisionavam as operações em nome dos proprietários. Agora, sei que podia ter resultado. Um engenheiro teria conseguido. Eu seria capaz de o fazer agora, se um desabamento desses acontecesse num túnel lateral.
Sim, provavelmente conseguiria, mesmo que o solo não o permitisse. Fá-lo-ia com as próprias mãos, calculou Rose, se fosse preciso. Se se decidisse a isso, nem rocha nem terra o conseguiriam deter.
Ele contara-lhe a história e respondera às suas perguntas. Percebeu que a mente dele se voltara agora para outras coisas. Deixara a vela acesa por uma razão.
Kyle segurou-lhe no braço e puxou-a para si. Endireitou-se e sentou-a em cima de si, voltada para ele, com as pernas à volta das suas ancas.
Olhou para os seios dela enquanto os acariciava e roçou com os polegares nos grandes mamilos escuros.
- Via-te bastante bem na escuridão, pelo menos na minha cabeça. Mas gosto mais assim.
Por outras palavras, não queria mais delicadezas de dama e velas e candeeiros apagados à noite. Rose não se importava. Assim, também podia vê-lo. No entanto, seria preciso algum tempo para deixar de sentir alguma timidez quando ele olhava daquela maneira para o seu corpo.
Ele levantou-a e moveu a perna até ela estar sentada nela, puxando-a mais para cima. com a língua e os dentes começou a provocar-lhe o seio, com dentadinhas e lambidelas lentas e avassaladoras.
A posição permitia que ela também o acariciasse livremente. Passou as mãos pelos ombros dele.
- Acho que devias levar-me contigo quando fores a Kirtonlow tentar ver o Cottington.
Os dedos dele substituíram a boca, deixando-a livre para responder.
- Não.
Rose pensou que talvez ele não quisesse que ela visse ser-lhe recusada a entrada.
- Se eu for contigo, o secretário não nos impedirá de entrar.
- Sim, impedirá, e não estou disposto a que sejas insultada.
- É muito mais difícil despachar uma senhora, Kyle. Dir-lhe-emos que é melhor não se atrever a fazê-lo, que o conde ficará muito aborrecido se o tentar.
-Não.
A mão dela desceu entre os seus corpos, numa tentativa de lhe abrir a mente. Fechou os dedos em volta do seu membro duro e provocou a ponta com o polegar.
- Casaste comigo pelo meu sangue, Kyle. Devias deixar-me abrir-te portas, se puder.
O seu sorriso não conseguia esconder a tempestade sensual causada pela carícia dela.
- Rose, estás a usar artimanhas femininas para me tornar maleável ?
Ela olhou para o que a sua mão estava a fazer.
- Parece que estou a obter o efeito oposto. Não há nada maleável em ti neste momento. Excepto muito ligeiramente, aqui. - Apertou a ponta ao de leve.
As mãos dele seguraram-lhe nas nádegas e elevaram-na um pouco. Ela soube o que fazer sem precisar de instruções, porque parecia natural e necessário. Mudou de posição de forma a conseguir conduzi-lo para dentro de si.
O primeiro toque de penetração causou um choque de prazer que lhe percorreu todo o corpo. A sensação cativou-a e tirou-lhe o fôlego. Não se moveu para o receber mais, mas permaneceu assim, os corpos de ambos apenas ligeiramente unidos, para que aqueles tremores deliciosos não parassem.
Ele permitiu-o, embora o desejo o invadisse de forma tão violenta que cerrou os dentes e arreganhou os lábios. Ela baixou-se ligeiramente para o poder sentir mais um pouco.
- Vais matar-me, Rose - disse ele, apertando-lhe as ancas. Podes torturar-me durante horas noutra noite, mas agora. Puxou-a para si e baixou-a até estarem completamente encaixados.
Depois disso guiou-a, as suas mãos fortes movimentando-lhe as ancas num ritmo que ela também controlava. Rose descobriu novos prazeres com alterações subtis de posição e pressões no seu próprio corpo. Fechou os olhos uma e outra vez.
Depois ele penetrou-a mais, tão profundamente que ela arquejou. Abriu os olhos, fitou os dele e não conseguiu desviá-los de novo. Não o via mover-se, mas sentia-o dentro dela, a empurrar e a exigir, enquanto os seus olhos a chamavam a afogar-se em profundidades cor de safira. No fim, segurou-lhe as ancas com firmeza,
mantendo-as imóveis. Abandonando toda a liberdade, ela rendeu-se à forma como ele lhe invadia o corpo e a alma.
O clímax violento foi quase doloroso na sua intensidade. Rose tombou sobre ele, o rosto encostado ao seu peito, presa pelos braços fortes enquanto o seu corpo esgotava lentamente as últimas centelhas de êxtase.
- A que horas vais a Kirtonlow Hall amanhã? - perguntou, depois de as suas respirações e os seus corações terem acalmado.
Ele esticou o braço e puxou as cobertas para cima, ajeitando-as à volta de ambos.
- Ao meio-dia, penso eu.
- Quero ir contigo. Estarei pronta ao meio-dia.
Ficou à espera do "não". Mas não o ouviu. Em vez disso, o braço dele aconchegou-a mais contra si e a sua respiração aqueceu-lhe a têmpora com um beijo.
CAPÍTULO 15
A aridez das colinas desapareceu a oito quilómetros de Kirtonlow Hall e a paisagem tornava-se mais luxuriante de minuto para minuto. A casa surgiu, alta e larga, sobre um lago que reflectia as pedras cinzentas na água prateada.
Enquanto a carruagem percorria a curva do caminho, Rose examinou Kyle e ela própria. O nó da gravata dele era irrepreensível. O casaco assentava-lhe perfeitamente nos ombros. Até a corrente do relógio brilhava num arco de elos perfeito. Uma gravura numa revista de moda não seria mais correcta.
Ela usava o melhor fato que trouxera, um conjunto de passeio novo, lilás, com uma capa curta forrada e decorada com pêlo de esquilo cinzento. Colocara-a na bagagem para aquela viagem pela mais prática das razões, por ser quente, mas hoje o estilo moderno e o luxo discreto serviriam outro objectivo. O secretário intrometido nunca saberia que a pele fora aproveitada de uma peça de roupa antiga que estava irremediavelmente fora de moda.
O criado levou o cartão de Kyle. Por fim, ouviram passos, desta vez de duas pessoas. O criado desceu as escadas seguido por um homem baixo e careca.
- Ora, ora. Pelo menos desta vez serei mandado embora pelo próprio Conway - murmurou Kyle. - Tinhas razão. Ele não se atreveria a escorraçar uma senhora sem uma explicação.
Mr. Conway aproximou-se com um sorriso obsequioso.
- Mr. Bradwell, Mrs. Bradwell. Lamento informar que o conde está demasiado doente para receber visitas. O seu estado piorou muito infelizmente, desde que nos visitou da última vez, Mr. Bradwell. Naturalmente, transmitir-lhe-ei qualquer mensagem que desejem, mas não posso garantir que ele compreenderá aquilo que lhe for dito.
- A minha mensagem é apenas para os ouvidos do conde, capazes ou não, esteja ele como estiver - disse Kyle. - Uma vez que a sua saúde está a piorar, tenho de insistir em vê-lo.
O sorriso de Mr. Conway tornou-se mais frio.
- Trago também uma mensagem que deve ser entregue directamente - disse Rose. - Lord Easterbrook encarregou-me especificamente de transmitir as suas palavras exactas a Lord Cottington, pessoalmente.
- Lord Easterbrook!
- É meu parente, por afinidade. Visito regularmente a sua casa em Londres e ele dá-nos a honra de incluir o meu marido e eu própria no seu círculo.
Mr. Conway franziu o sobrolho com ar infeliz ao ouvir aquela notícia.
- Temo a fúria de Lord Easterbrook se regressar a Londres e tiver de lhe dizer que falhei na missão de que me encarregou. Parece-me ser um servidor fiel, Mr. Conway, e sei que pretende apenas garantir o conforto do seu senhor, mas duvido que possa omitir o seu nome quando relatar esta triste história. Como talvez tenha ouvido dizer, Lord Easterbrook é um pouco excêntrico. Nunca se sabe o que ele poderá fazer quando alguém lhe agrada ou desagrada.
Os olhos de Conway pestanejaram ao ouvir a ameaça velada. Rose fez o sorriso mais doce que conseguiu. Kyle permaneceu calado, mas ela detectou um brilho nos seus olhos que indicava que ficara estupefacto com o seu discurso.
Conway mordeu o lábio enquanto remoía os pensamentos.
- Minha senhora, perdoe-me. Não estava a par da sua relação com o marquês. No entanto, Lord Norbury insistiu para que o pai não fosse perturbado por visitas.
- Perturbado? E a sua presença perturba-o, meu bom homem?
- Claro que não. Conhece-me tão bem que.
- Nesse caso, a presença de Mr. Bradwell também não o perturbará. Ele conhece o meu marido tão bem como o conhece a si. Melhor, talvez. Eu apresentarei os cumprimentos de Lord Easterbrook e deixá-los-ei a sós de imediato, para evitar qualquer perturbação. Quanto a Lord Norbury, se não se encontra aqui, não precisa de saber desta visita, a menos que o informe, e assim não terá de perder o seu tempo a avaliar se nós nos qualificamos como visitas perturbadoras, segundo os parâmetros da sua ordem.
Deixou que a sua expressão e pose mostrassem que estava segura de que a sua vontade seria feita. Mr. Conway pareceu aliviado pelas desculpas que a actuação dela lhe proporcionava.
- Dadas as circunstâncias. sim, vou levar-vos até ele. No caso de visitas como as dos senhores, a questão da perturbação não se coloca. Por favor, sigam-me.
Seguiram Mr. Conway pela grandiosa escadaria. Kyle pegou no braço de Rose e inclinou a cabeça para a dela.
- Não fazia ideia de que trazias uma mensagem do Easterbrook - murmurou. - Devias ter-me dito.
- Estou certa de que ele gostaria de apresentar os seus cumprimentos a outro nobre e deixar os seus desejos de rápidas melhoras.
- E fazemos parte do círculo íntimo do Easterbrook, é?
- Não é bem claro se ele tem algum círculo, para além da família. Eu visito muito a Henrietta. E ele tem um grande afecto pela Alexia. Não creio ter faltado muito à verdade.
- Não faltaste à verdade. E foste magnífica.
- É justo que tenhas alguns benefícios com este casamento. As minhas relações são o único dote que te trouxe.
Kyle apertou-lhe a mão.
- O benefício das tuas relações é a última coisa em que pensaria esta manhã.
A insinuação fê-la corar. Ecos dos tremores inimagináveis da noite anterior afectaram-na de forma profunda. Concentrou-se nas costas de Mr. Conway para manter o equilíbrio, mas não conseguia reparar em mais nada a não ser no mistério masculino ao seu lado. Imagens sucederam-se na sua mente, maravilhosas, chocantes, das várias formas em que ele a conduzira a uma intimidade erótica.
Os últimos passos que deu até aos aposentos do conde foram
vacilantes. De súbito, o rosto de Mr. Conway surgiu-lhe à frente dos olhos.
- Por favor, queiram aguardar aqui. Tenho de vos anunciar e ver se ele se sente capaz de vos receber. Caso contrário, têm de voltar amanhã.
Conway entrou no quarto sozinho mas voltou pouco depois. Abriu a porta apainelada e afastou-se para o lado.
O conde estava sentado numa grande poltrona verde, ao lado de uma lareira crepitante. Tinha os pés apoiados num banquinho e as pernas cobertas por uma manta. A idade e a doença tinham reduzido qualquer parecença que pudesse ter com o filho, excepto talvez uma vaidade semelhante.
O cabelo branco do conde estava perfeitamente penteado e o seu rosto muito bem barbeado. Apesar da enfermidade, o seu criado vestira-o com um colete de seda colorida e uma gravata. Rose calculava que as partes escondidas pela manta estariam igualmente apresentáveis, num dia em que aquele homem não tinha qualquer expectativa de sair daquela poltrona.
Olhos muito mais astutos do que os de Norbury examinaram-nos. Um sorriso iluminou o rosto pálido, mas apenas de um lado da boca. O restante permaneceu inerte, vítima dos seus enfartes.
- Ora, entre, Bradwell. Traga-me cá essa sua esposa para eu a poder ver. - A doença não afectara o tom autoritário, apesar de o discurso não ser perfeitamente claro.
Kyle conduziu Rose e fez as apresentações formais. O conde mirou-a da cabeça aos pés.
- O Conway disse-me que tinha uma mensagem para mim, Mrs. Bradwell. De Lord Easterbrook.
- É verdade. O marquês envia os seus cumprimentos e os seus desejos fervorosos de uma rápida recuperação.
- Não me diga? Já não vejo o Easterbrook há alguns anos. Desde pouco depois de ele ter voltado daquela viagem sabe Deus onde, da qual regressou tão estranho e diferente. Não tenho ido muitas vezes a Londres. Foi muito generoso da parte dele lembrar-se de mim e mandar essa mensagem tão amável.
O seu tom era sardónico e os seus olhos demasiado entendidos. Rose tentou não corar perante a evidência de que ele vira tão facilmente através do seu ardil.
- Pode levar uma mensagem minha para o marquês, Mrs. Bradwell. Fará isso por um velho moribundo?
- com certeza, senhor.
- Diga-lhe que é uma vergonha a forma como se esquiva aos seus deveres. Diga-lhe que eu disse que está na altura de sair para o mundo e deixar de ceder à sua tendência para a excentricidade. Diga-lhe que tem de casar e produzir um herdeiro e assumir o seu lugar no governo. Essa família tem demasiada inteligência para desperdiçar e a vida dele não lhe pertence para a viver como entende, e esta é a verdade.
- Prometo-lhe que transmitirei os seus sentimentos.
- Sentimentos, uma ova. Palavra por palavra, é assim que o dirá, não vai enfeitar as minhas palavras com conversa de mulher. - Soltou um riso estrangulado. - Mas espere até eu estar morto. Se ele ficar zangado, pode vingar-se no meu filho, não em mim.
- Se tiver de aguardar pela sua morte, tenho a certeza de que enfrento uma longa espera até poder levar a cabo este dever. E agora, se me dá licença, deixo o meu marido a conversar consigo a sós.
Cottington seguiu Rose com os olhos enquanto esta saía do quarto. Depois fez um gesto ao secretário.
- Pode sair. Se precisar de si, Mr. Bradwell vai chamá-lo. Assim que Conway saiu, o conde deu outra ordem.
- Há brandy ali naquele armário. Sirva-me um copo, Kyle, e para si também, se quiser. Não me deixam beber. Na opinião deles, devo enfrentar a morte sóbrio.
Kyle encontrou o brandy e os copos e serviu uma pequena dose para cada um. O conde bebericou o seu como se fosse néctar.
- É do diabo, ser tratado como uma criança. E agora é bem melhor do que há duas semanas. Durante oito dias precisei de criados para tratarem até das mais básicas questões de higiene.
- Parece então que está a recuperar.
- Morrerei no Verão, se não for muito antes disso. Não preciso de um médico para mo dizer. Consigo senti-lo. É estranho, mas uma pessoa simplesmente sabe. - Pousou o copo e usou um lenço para limpar as gotas de bebida que lhe tinham escorrido pelo lado paralisado da boca. - É muito bela, a sua mulher. Suficientemente
bonita para fazer com que o resto não tenha tanta importância, suponho. A história do irmão e as outras coisas.
- Quanto às outras coisas, obrigado pela prenda de casamento. O conde riu-se.
- O meu filho ficará furioso com isso. Teria sido melhor se não se tivesse encontrado no meio desta vez, Kyle. Foi azar. Teria sido melhor se não tivesse sido você, pela segunda vez, a forçá-lo a encarar o seu comportamento desonroso.
Apesar do riso, os olhos do conde revelavam uma profunda mágoa. Pestanejou e o pesar desapareceu. Norbury era apenas mais uma desilusão numa vida que, como todas as vidas, provavelmente tivera muitas.
- Então veio cá acima para se despedir, foi? Fico contente por o ter feito.
- Foi por isso que vim, mas trago também um pedido, um pedido que não sabia que faria até chegar a Teeslow.
- Já não há muito que eu possa fazer por ninguém.
Kyle contou-lhe o que se passava com a mina. O conde ouviu com expressão séria.
- Esse depósito era muito rico - disse. - Quiseram voltar a abri-lo há alguns anos mas eu disse que não. Já tinha vendido a maior parte, mas a minha voz ainda tinha peso. Ser um conde, às vezes, é útil. O meu filho não os impedirá, como eu fiz. vou escrever uma carta, de qualquer maneira, e recorrer à minha influência, mas quando eu morrer.
Quando ele morresse, a ganância venceria, num confronto onde as vidas dos homens valiam pouco.
- Mesmo que consiga apenas um atraso de alguns meses, dará tempo a toda a gente para se acalmar - disse Kyle. - Os ânimos estão exaltados entre os mineiros. Basta que surja uma voz forte, um líder, e haverá problemas.
O conde suspirou e fechou os olhos. As suas pálpebras permaneceram fechadas tanto tempo que parecia que tinha adormecido. Kyle estava a pensar em deixá-lo quando o conde falou.
- Não voltaremos a ver-nos, Mr. Bradwell. Se tem alguma pergunta a fazer, esta é a altura certa. - Os olhos abriram-se e fitaram-no de forma penetrante. - Tem perguntas, não tem?
Kyle tinha várias perguntas. Mas a mais recente não podia ser feita. Por mais que lhe pesasse na mente. Não podia perguntar a um homem às portas da morte se o seu único filho fora ainda mais indigno em rapaz do que em homem.
- Tenho uma pergunta, sim.
- Venha ela.
- Porquê?
- Porquê? Porquê o quê?
- Tudo. Porquê?
- Ah! Esse porquê. - O conde reflectiu durante alguns instantes. - Em parte por impulso. Em parte por instinto. - Aquele meio sorriso de novo. - Para começar, sabia que se tivesse ficado em Teeslow os mineiros teriam a sua voz e o seu líder dentro de poucos anos, assim que você chegasse à idade adulta.
Kyle estudou-o, tentando perceber se ele estava a falar a sério. Em todos os anos de generosidade e gratidão partilhadas, nunca lhe passara pela cabeça que o conde tivesse segundas intenções. Isso, em grande medida, devia-se ao facto de não conseguir perceber como tanta generosidade podia alguma vez beneficiar um conde.
- Raios, mas não foi só isso. Seria um desperdício se tivesse ficado. Percebi-o de imediato. Vi-o nos seus olhos e na sua determinação. Entrou aqui naquele dia, todo arranjadinho e lavado, e eu vi o homem em que se tornaria. Já tinha ouvido falar em si, sabe. Já me tinham falado da criança que disse que devíamos ter perfurado de cima quando aquele túnel abateu.
- Teria funcionado.
- Raios me partam se sei se funcionaria ou não. Mas o facto de uma criança ter pensado nisso e se ter atrevido a propô-lo. foi-me apresentado naquele dia, depois de dar uma sova no meu filho, e a memória do capataz a rir-se do descaramento dessa criança veio-me à cabeça, sabe Deus de onde. Eu sabia que essa criança era você. Tinha a certeza, mas confirmei-o mais tarde, de qualquer modo.
Limpou a saliva que se formava ao canto da boca à medida que falava.
- Depois, aquela história com o meu filho. Lá estava você de novo, a atrever-se a fazer aquilo que a maioria dos homens feitos não se atreveria a fazer. Assim, em parte, fi-lo para que tudo isso não se perdesse. E, em parte, para que não se tornasse num homem
capaz de os liderar. - Fez uma pausa. - E, admito-o, em parte para castigar o meu filho, protegendo o rapaz que o envergonhara. Não que tenha servido de muito. Como sabe, melhor do que a maioria, o seu comportamento vergonhoso em relação às mulheres continua até hoje.
Então ali estava. Kyle já desconfiava da maior parte. A generosidade não fora inteiramente caridosa nas suas motivações, mas, na verdade, poucos actos ou decisões humanos o eram.
Uma expressão de desânimo invadiu o rosto do conde, parecendo começar no lado paralisado e invadir o outro.
- Está cansado e deve repousar. Vou-me embora. Obrigado por ter acedido em receber-me.
Antes que Kyle conseguisse afastar-se, o conde esticou uma mão na sua direcção. Kyle apertou-a gentilmente nas suas, sentindo pela primeira vez um contacto daquele homem como amigo.
- Fosse por que motivos fosse, saiu-se muito bem - disse o conde, com a fala muito entaramelada. - Embora eu imagine que há alturas em que deseja que eu não tivesse interferido.
- Pesando os ganhos e as perdas, ganhei muito mais do que perdi. Fossem quais fossem as suas razões, estou-lhe grato. Nunca o esquecerei. Nem os meus filhos, ou os filhos dos meus filhos.
O conde apertou-lhe mais a mão e os seus olhos humedeceram-se. Fechou as pálpebras, retirou a mão das dele e ergueu-a num gesto soberano de bênção e despedida.
Kyle estava muito sério quando saiu do quarto de Cottington. Rose deixou-o com os seus pensamentos enquanto desciam a escadaria e saíam para o frio.
Ele não entrou logo na carruagem, mas contornou-a e olhou para o lago. Ela seguiu-o e esperou. Kyle estava a despedir-se de mais do que um homem, hoje. Todo um período da sua vida chegaria ao fim com a morte de Cottington.
- Estiveste aqui muitas vezes? - perguntou.
- Não muitas. Mas quando parti, para estudar, ele mandava-me chamar sempre que eu voltava, nas férias. Da primeira vez, o mensageiro dele foi seguido até à casa do meu tio por metade dos habitantes da aldeia, que queriam ver o que se passava.
- Então ele recebia-te regularmente.
- Sim. Talvez fizesse parte das lições.
- Mais provavelmente queria saber do teu progresso. Também lhe trazias notícias de Durham, depois de Paris e de Londres. Imagino que as tuas conversas deviam ser mais interessantes do que a maioria das que ouvia por aqui.
- Talvez. - Ele deixou a carruagem à espera e começou a descer o caminho a pé.
Rose acompanhou-o.
- Falaste com ele sobre a mina? Ele acenou.
- Disse que ia fazer o que pudesse, mas, na melhor das hipóteses, conseguirá adiar o inevitável. Talvez lhes dê tempo de garantirem mais segurança. Há maneiras de o fazer.
Não parecia muito optimista em relação a essa possibilidade.
- Imagino que fizeste tudo o que podias.
- Terei feito ?
Viraram-se e dirigiram-se à carruagem.
- Estás muito calado, Kyle. O encontro não correu bem? Não pudeste falar como querias?
- O encontro correu muito bem. Ele convidou-me a fazer perguntas e respondeu a todas as que pude fazer-lhe em boa consciência.
- Havia algumas que não podias fazer?
- Apenas uma. Tinha planeado fazê-la, porque acho que ele seria a única pessoa que me responderia honestamente. No entanto, ao vê-lo. o assunto só lhe causaria sofrimento e a resposta serviria apenas para satisfazer a minha curiosidade.
- Se ficou apenas uma questão por responder entre ambos, então o encontro foi realmente bom. Não me parece que haja muitas pessoas que conheçam outra em relação a quem têm apenas uma pergunta sem resposta.
Ele olhou para ela. De repente, já não estavam a falar de Cottington, mas um do outro.
- É um homem moribundo, Rose. Não tem nada a perder em responder às perguntas. Não há consequências para o futuro nem perda de orgulho. Nem para a pessoa que faz a pergunta nem para a que a responde.
Chegaram junto da carruagem. A distracção dele dissipou-se assim que começaram a viagem de regresso a Teeslow.
- Pareces pensativa, Rose. Também tens alguma pergunta em mente?
- Tenho muitas, mas não são elas que me causam esta expressão apreensiva. Estou a pensar se sobreviverei ao encontro com o Easterbrook quando lhe transmitir o ralhete do Cottington.
A carruagem estava quase em Teeslow quando Kyle reparou no silêncio. Estava tão perdido nos seus próprios pensamentos que a calma pouco natural, ao princípio, não penetrou na sua consciência.
Mandou parar a carruagem e olhou pela janela.
Rose fez o mesmo.
- O que foi? Parece-me tudo calmo.
- Demasiado calmo. A estrada devia estar mais movimentada a esta hora do dia. Devia haver mulheres na rua.
Inclinou a cabeça e ficou à escuta. Olhou para os telhados dos edifícios e casas. Onde estariam todos? Na mina? Era demasiado cedo para uma acção desse género. Isso deixava a taberna ou a igreja.
Abriu a porta e saiu. Rose agarrou na saia e estendeu a mão.
- Não, Rose. A carruagem leva-te para casa. Eu não me demoro.
- Estás a prever problemas? Perigo?
- Não, mas.
- Se não há perigo, não tens razões para me mandar para casa. Tenho curiosidade em relação a esta aldeia. Se vais visitá-la, eu vou contigo.
Ele apoiou a mão na ombreira da porta da carruagem, bloqueando-lhe a saída com o braço.
- Ultimamente tens curiosidade em relação a muitas coisas.
- É a natureza das mulheres. E não tenho achado desagradável satisfazer a minha curiosidade.
Estava a referir-se à noite anterior, o que o deixou de imediato excitado. As memórias encheram-lhe a cabeça, dos gritos de súplica dela e do seu toque tímido mas seguro, das suas costas a baixarem e as nádegas a erguerem-se. Das pernas dela enroladas à sua volta
enquanto o recebia no seu calor e se baloiçavam juntos num abraço, de corpos unidos e olhos fixos um no outro.
Os pensamentos fizeram-no querer beijá-la e possui-la ali mesmo, no meio da rua. Fizeram-no esquecer todas as razões pelas quais queria que ela fosse para casa.
com um olhar ousado, ela transformou-o num idiota.
- Estás a pensar ordenar-me que vá para casa, Kyle? Se assim é, devo informar-te de que qualquer marido tem um número limitado de ordens por casamento e seria insensato desperdiçá-las com questões insignificantes.
Onde estava agora a sua esposa doce e submissa? A noite passada alterara mais do que o calor e intensidade da paixão entre ambos. A formalidade subtil que impregnara o casamento estava a dissipar-se rapidamente.
Os olhos dela continham um desafio claro.
- Podes vir, Rose, mas apenas se prometeres partir de imediato se eu o disser. Não estou à espera de problemas, mas posso estar enganado. Seria melhor se voltasses já.
Ela semicerrou os olhos. Raios.
Kyle disse ao cocheiro onde devia esperar por eles e estendeu a mão para ajudar Rose a descer.
A aldeia estava toda reunida na igreja. Kyle conseguiu ouvir as vozes à medida que ele e Rose se aproximavam da velha estrutura de pedra, com a torre do campanário por cima da porta. Séculos antes, fizera parte de um priorado, em terras doadas por um antepassado remoto de Cottington. Antes de encontrarem carvão nas imediações, Teeslow era apenas uma simples aldeia de agricultores.
- Os homens não deviam estar na mina a esta hora? - perguntou Rose.
- Os homens e as crianças mais velhas e até algumas das mulheres. - Abriu a antiga porta de madeira e o rugido de vozes erguidas em discussão abateu-se sobre eles.
Entraram e encostaram-se à parede ao fundo da nave. Poucas pessoas repararam na sua chegada. Todas as atenções estavam voltadas
para os homens de pé em frente do altar. Jon estava lá, com os caracóis louros desgrenhados, tentando impor a sua vontade à multidão. Estava a revelar-se impossível. Vozes cruzavam-se e interrompiam-se. As emoções estavam ao rubro e ecoavam gritos cortantes. Aplausos e insultos competiam entre si.
- Nem sequer consigo compreender o que estão a discutir murmurou Rose.
- Receberam ordens para começarem hoje a retirar as rochas do desabamento. Os homens, em vez de obedecerem, deixaram a mina. Agora têm de decidir o que fazer amanhã.
- Pensava que tinhas dito que, da última vez que o tentaram, causou outro desabamento.
- Os proprietários mandaram um engenheiro que diz que desta vez isso não acontecerá.
Jon estava a conseguir conquistar pessoas para o lado da sua opinião de não voltarem à mina. Mas não as suficientes, o que significava que não resolveria nada.
Kyle deixou as vozes fluírem à sua volta. Reconhecia a maior parte delas. Conhecia aqueles homens e tinha brincado nas ruas com alguns deles, em rapaz.
O seu olhar percorreu as famílias e parou numa mulher pálida e bonita, de cabelo ruivo, com duas crianças pela mão. Trocara o seu primeiro beijo com ela, quando tinha catorze anos.
Ao seu lado tinha hoje uma mulher muito mais bonita. Ninguém reparara nela, ainda, mas em breve reparariam. O conjunto de passeio que impressionara Conway parecia ainda mais faustoso ali, com as peles e os bordados caros. O seu chapéu contrastava com os lenços usados pelas outras mulheres. Toda a luz dentro daquele edifício velho e escuro parecia procurá-la, fazendo brilhar a sua beleza loura.
- Devíamos ir - disse.
- Se eu não estivesse aqui, sairias já?
Ele não sabia. Aquele já não era o seu mundo. Não era a sua batalha.
- Se pensas que a minha presença comprometerá a tua voz, se achas que eu sou apenas um símbolo para eles do quanto te afastaste desta aldeia, eu saio - disse ela. - Mas, se é apenas porque eu te faço lembrar o que tens a perder se falares, então mais uma pergunta
estará respondida, e não da forma que eu esperava. - Virou-se para ele. - Ainda não és um estranho para eles, apesar de eles serem cada vez mais estranhos para ti.
A compreensão dela comoveu-o. O facto de ela tentar sequer compreender tocou-o profundamente.
Kyle saiu de junto de Rose e caminhou em direcção a Jon. Uma vez que a sua cabeça se erguia acima das outras, a sua voz fazia-se ouvir.
- Ainda não estás pronto para este tipo de acção, Jon, e sabe-lo. Lado a lado, disseste. Parece que há aqui muita gente que não estará ao teu lado.
O rugido das vozes diminuiu de intensidade. Jon virou-se para ele.
- Temos aqui um cavalheiro para nos aconselhar. E trouxe também a sua bela esposa. Como temos sorte por podermos usufruir dos seus conselhos!
Kyle não olhou para trás, mas percebeu pelo zumbido de murmúrios e exclamações que tinham visto Rose.
- Trouxe a minha esposa para conhecer os meus velhos amigos, Jon. Imaginem a minha surpresa quando encontrei uma reunião política nesta igreja. O que achas que vão conseguir, se não forem à mina, excepto muitas mulheres e crianças com fome?
- Menos corpos para enterrar.
- Falei com o Cottington hoje. Ele vai escrever aos sócios. Aquele túnel não será aberto enquanto ele for vivo.
- Conseguiste-nos alguns dias, talvez algumas semanas, mais nada.
- Tempo suficiente para haver garantias de que, quando o túnel for aberto, será em segurança.
- Segurança! - exclamou Jon em tom trocista. - Hoje disseram-nos para tirar aquelas rochas. Arranjaram um engenheiro que diz que já é seguro fazê-lo.
- Então têm de arranjar outro que possa provar que não é. Um engenheiro que não dependa dos proprietários para ganhar a vida. Um engenheiro que tenha a educação necessária para compreender aquilo que descobrir. - Kyle atingiu a frente da nave. - Como eu.
Jon consultou os quatro homens mais velhos reunidos à sua volta. A igreja manteve-se num silêncio tenso enquanto eles debatiam.
- Está disposto a ir lá abaixo? - perguntou o mais velho com expressão desdenhosa. Chamava-se Peter MacLaran e era o radical do passado, que estava a passar agora o ceptro a Jon. - Sujará o seu belo casaco, senhor. E pode demorar alguns dias. Vai perder muitos jantares elegantes em Londres.
Peter obteve alguns risos pelo seu sarcasmo.
- Irei agora mesmo. Não será a primeira vez que entro naquela mina. O casaco pode ficar aqui. Arranje alguém que me empreste as suas botas, cinco dos seus melhores homens para me acompanharem e começaremos hoje. Não sairei de Teeslow enquanto não souber aquilo que preciso de saber. Se não for seguro, explicarei porquê num relatório. Se for possível torná-lo seguro, explicarei como. Se eles avançarem de qualquer maneira, e acontecer outro desabamento, o meu relatório irá condená-los.
- Não o deixarão entrar.
- O nome do Cottington dar-me-á entrada. Ele ainda não morreu.
Não esperou que Peter e Jon concordassem. Os gritos que se erguiam à sua volta diziam-lhe que tinha vencido. Regressou para junto de Rose.
- É melhor voltares agora para junto da tia Pru. Eu acompanho-te à carruagem.
- Não é preciso. Faz o que tens de fazer.
Ele desabotoou o casaco, despiu-o e entregou-o a Rose. Um rapaz apareceu junto dele com um par de botas. Kyle sentou-se e calçou-as. Cinco dos mineiros mais experientes aguardavam à porta da igreja com candeeiros.
Rose apertou o casaco contra o peito enquanto assistia aos preparativos. Era como se estivesse a observar um ritual estranho numa terra exótica, de tal forma parecia interessada.
- Diz à tia Pru que vou precisar de muita água quente quando chegar a casa - disse ele.
Rose inclinou-se para lhe falar ao ouvido.
- Imagino que precisarás de um banho completo. Talvez eu tenha de te ajudar, se estiveres muito cansado.
Ele ficou imediatamente excitado. Imagens da noite anterior, de noites futuras, desse banho, só pioraram as coisas.
Cerrou os dentes, olhou para o chão de pedra e lutou para controlar os seus impulsos.
- Rose, minha querida. Esperam-me horas numa mina escura. Isso foi muito perverso da tua parte.
Ela nem sequer se fingiu arrependida. Quando Kyle a deixou, aparentava estar muito satisfeita consigo própria.

 


CONTINUA