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JOGOS DO PRAZER
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CAPÍTULO 9

No centro financeiro da cidade, um empregado conduziu Kyle para uma sala sóbria que fazia parte de uma série de cômodos bastante apropriados a alguém como um advogado.
Kyle imaginou que houvesse um quarto ao fundo, atrás da porta fechada e em frente à janela veneziana de vidraça em semicírculo no topo.

A carta que ele tinha enviado a lorde Hayden motivara o convite para ir até lá. Aqueles cômodos davam a impressão de que seu anfitrião os usava não apenas para negócios.
Para encontrar mulheres, talvez, quando ainda era solteiro. Para tratar de assuntos pessoais, como os que deviam estar escritos nas folhas empilhadas na escrivaninha
perto da janela.

Lorde Hayden o cumprimentou. Sentaram-se em duas poltronas forradas de vermelho-escuro, perto da lareira.

A lembrança de seu último encontro particular era uma sombra sobre eles. Lorde Hayden Rothwell tinha ido à casa de Kyle, após um convite como esse de agora ter sido
recusado.

- A Srta. Longworth me pediu para falar em nome dela - disse lorde Hayden. - Disse que foi você quem sugeriu esse arranjo.

- Ela foi pouco prática em não dar importância aos termos financeiros quando avaliou minha proposta de casamento.

Lorde Hayden se estirou na poltrona como se uma conversa amena fizesse parte do ritual do acordo.

- Não a conheci antes da falência do irmão. Ela me culpou por isso e, embora agora saiba a verdade, ainda há muita formalidade entre nós. Conheci bem o irmão mais
velho, mas não as irmãs.

- O irmão mais velho era Benjamin, que morreu há alguns anos.

Lorde Hayden ficou sério, assumindo a máscara que costumava exibir para o mundo.

- Minha esposa disse que a prima mudou muito há um ano. E que aquele caso com Norbury foi fruto da má avaliação de uma mulher em profunda melancolia. A negligência
em relação aos termos financeiros de seu pedido certamente também é um reflexo de seu estado de espírito.

- Então é melhor cuidarmos do assunto por ela. Seu estado de espírito pode estar mudado, mas não é melancólico. Não estou me aproveitando de uma mulher incapaz de
tomar decisões sensatas.

- Eu não quis dizer que estivesse. Mesmo se estivesse, essa chance que ela terá... Ficarei feliz por ela poder voltar a ter contato com minha esposa.

Para alguém que ficaria feliz com algo naquele casamento, lorde Hayden estava demorando a negociar os detalhes.

- Não esperava fazer agora o papel de pai em acertos de casamento, e não me sinto muito à vontade, Bradwell. Infelizmente, sei mais do que gostaria e sou forçado
a tratar de mais que meros trocados.

- Espero que acredite que minhas intenções são honradas.

- Não estou preocupado com isso e acho que você sabe.

Claro que Kyle sabia. Só não sabia qual papel lorde Hayden iria assumir.

- Ela comentou dos delitos cometidos por Timothy? Se não comentou, não a culpo - disse o lorde.

- Ela foi muito sincera e insistiu que eu ouvisse tudo.

- Corajosa.

- Acho que ela pensou que eu retiraria o pedido quando soubesse, portanto foi bastante corajosa.

Na verdade, ele achava que ela esperava que retirasse e a poupasse de tomar uma decisão. Ela não confiava mais na própria cabeça.

- Foi tão sincero quanto ela?

- Eu disse que sabia o que o irmão tinha feito e que conheço uma das vítimas dele.

- Diabos, você foi uma das vítimas, também teve prejuízo.

- Só porque assumi a dívida. Podia ter escolhido outras saídas.

Na verdade, Kyle só tinha uma. Aquela que estava conversando com ele no momento. Ou ele ressarcia o dinheiro tirando do próprio bolso ou deixava o fundo zerado.
E isso ele não podia fazer.

- Ela sabe que você não quis ser ressarcido?

- Não. Acha que devo contar?

- Não sei que diabos eu acho.

Lorde Hayden se levantou. Com os lábios apertados e o cenho franzido, andou pela sala com a mesma dúvida que atormentara Kyle várias vezes nas últimas semanas.

- Ela planejava encontrar o irmão - informou Kyle. - Recebeu outra carta dele, pedindo para encontrá-lo.

- Maldição - rosnou lorde Hayden e balançou a cabeça. - Mas, se você não a está enganando, não está sendo totalmente sincero.

Mais um pedido de honestidade total, como se isso fosse não só possível como normal.

Faria negócios com aquele homem no futuro. Não queria que lorde Hayden pensasse que ele era um mentiroso ou um canalha. Tentaria explicar, embora quase nunca se
explicasse a ninguém.

Levantou-se também e andou pela sala enquanto pensava o que dizer. Os passos o levaram para perto da escrivaninha. Deu uma olhada nas folhas soltas. Estavam cheias
de números e anotações. Era ali que lorde Hayden fazia os estudos matemáticos pelos quais diziam que era apaixonado.

- Diga, lorde Hayden, o que todo mundo deduziria se soubesse do delito de Longworth e a irmã fosse encontrá-lo?

- Mas não é todo mundo que sabe.

- Vai saber. Um dia. É inevitável. Muita gente foi prejudicada e o fato não vai continuar em segredo.

A segurança dele assustou lorde Hayden.

- Todos foram ressarcidos, ora - argumentou, mas, olhando para Kyle, completou: - Menos você.

- Foram ressarcidos do dinheiro, mas não da ofensa. Você avaliou mal.

Lorde Hayden não gostou dessa hipótese. Um suspiro de frustração mostrou como era desgastante aquela conversa sobre Longworth.

- Se Roselyn estivesse com ele quando isso acontecesse, certamente seria considerada cúmplice.

- Concordo. Portanto, devo contar tudo a ela? Se contar, se ela souber do meu envolvimento, pode mudar de ideia quanto ao casamento. Pode correr para o irmão, seja
para salvá-lo, ajudá-lo, ou para fugir da própria vergonha. Ela sabe que esse segredo não vai durar muito, mesmo que você discorde.

Lorde Hayden olhou Kyle com atenção, um olhar parecido com o que Easterbrook lhe dedicara.

- Foi por isso que você recusou o dinheiro? Por orgulho, como os outros homens que citou?

- O delito não foi seu. Por que deveria pagar? E também pagou caro. Uma quantia enorme por algo de que não tinha culpa. Se eu aceitasse o seu dinheiro, seria ressarcido
às custas de outra vítima, nada mais.

- Uma vítima por opção, o que é diferente. Acho que, no fundo, foi orgulho.

A arrogância de lorde Hayden incomodou Kyle. Fez um gesto mostrando a sala.

- Nenhuma conspiração financeira foi elaborada aqui nos últimos tempos. Nenhuma associação de empresas se formou aqui. Você continua na mesma casa, que é modesta
para os padrões de Mayfair. Mesmo você sentiu o baque de pagar todo aquele dinheiro. Eu devia desfalcá-lo em mais 20 mil? Concordar com o suborno que você me propôs?

- Suborno? Maldição! O seu bolso não seria prejudicado pelo delito de Timothy, só isso.

- Você não restituiu o dinheiro para eles apenas, exigiu que esquecessem a trapaça. Silêncio em troca de dinheiro foi parte do acordo. Seria bom se cada pecador
tivesse um anjo como você para defendê-lo.

Ele esperou que houvesse uma contra-argumentação, até raivosa. Mas lorde Hayden passou a mão na testa e falou, resignado.

- E quando acontecer justamente o que espera, Bradwell? A Justiça vai exigir que ele pague com a vida. Se esse dia chegar, o que você vai dizer a ela?

- Esse sofrimento a espera, quer ela se case comigo ou não. Se esse dia chegar, vou protegê-la e consolá-la da melhor forma possível.

Lorde Hayden pensou nisso um bom tempo. Depois, foi até a escrivaninha e fez um gesto indicando que Kyle o acompanhasse.

- Vamos preparar os papéis para os advogados. Eu concordaria mais com esse casamento se você tivesse aceitado seu dinheiro de volta. Mas aquele lamentável episódio
já prejudicou as irmãs Longworth demais. Talvez depois do casamento isso pese menos sobre o futuro de Roselyn.

 

- Como está crescida, Srta. Irene - disse o Sr. Preston, com um sorriso. - As mulheres do vilarejo vão passar dias comentando seu gorro.

Irene sorriu enquanto o Sr. Preston contava o dinheiro de Rose e embrulhava os mantimentos que ela comprara.

Ela estava crescida mesmo, pensou Rose. Alexia tinha dado a ideia de apresentar Irene à sociedade na próxima temporada. Estava na hora, sem dúvida, levando em conta
a idade dela, mas talvez fosse cedo demais, considerando outras coisas. Nem seu casamento amenizaria o escândalo a tempo de Irene ser bem recebida na atual temporada.

A ideia de que Irene poderia ter um futuro melhor ajudava Rose a ficar mais calma em relação ao casamento que se aproximava. A ausência de Kyle na última semana
contribuíra para deixá-la agitada. Fora passar o Natal no norte, com os tios que o criaram.

A ausência dele significava que ela podia se concentrar nos preparativos, mas a cada dia tinha mais certeza de que não conhecia o homem com quem ia se casar.

- Estamos todos aguardando o grande dia, Srta. Longworth - disse o Sr. Preston com um sorriso largo. - Permita-me dizer que todos os que conheceram o Sr. Bradwell
no mês passado, quando esteve no vilarejo, exaltaram suas boas maneiras e sua simpatia.

- Obrigada. Espero que o senhor e sua esposa nos deem a honra de sua presença.

- Minha esposa não perderia a festa. Ela sempre diz que certas pessoas se precipitam em acreditar no pior. Ficou triste com a maneira como alguns...

Ele interrompeu a frase de repente e lançou um olhar expressivo na direção de Irene. Os olhos dele se desculpavam por se referir ao escândalo na frente da moça.

- Fico agradecida por sua esposa ter me defendido, Sr. Preston. Tenha um bom dia.

Ela e a irmã mais nova saíram da loja. Irene seguia bem perto dela, com seu marcante gorro de seda encorpada.

- Você acha que o vilarejo inteiro concorda com o Sr. Preston?

- É pouco provável que a Sra. Preston deixasse o marido ser tão simpático se todo o vilarejo discordasse.

- Então, parece estar acontecendo o que Alexia esperava.

- Aqui, sim. Mas Watlington é uma coisa e Londres será outra.

- Acho que em Londres não vai ser ruim. Easterbrook vem ao seu casamento. Quando os jornais publicarem isso, ninguém vai dar atenção às más línguas.

- Como as más línguas gostam muito de falar dele, não acredito que sua presença ajude tanto.

Realizar o casamento no interior tinha sido ideia de Kyle, não de Alexia. Lorde Hayden então oferecera a casa do irmão em Aylesbury Abbey, mas Kyle dissera que preferia
a dos Longworth. Iam se casar na paróquia da infância dela, entre pessoas que a conheciam desde menina.

Rose agora entendia a esperteza disso. Kyle conhecia os moradores de um vilarejo melhor do que um irmão de marquês poderia. O dinheiro que a família gastaria nos
preparativos e a festa aberta a todos os moradores ajudariam mais a criar uma visão favorável sobre aquele escândalo do que dez anos de vida honesta.

Rose e Irene seguiram pela estrada do vilarejo, cumprimentando vizinhos e parando para algumas moças poderem admirar o lindo gorro de Irene. Compraram algumas fitas
e tecidos antes de voltarem para casa.

Muita agitação as aguardava lá. Três carroças cheias de móveis enchiam a entrada da casa. Um exército de criados passava carregando coisas enquanto Alexia ficava
de sentinela na porta da frente, segurando uma grande folha de papel.

- Isso vai para a biblioteca - disse ela para dois homens que carregavam um grande tapete.

- O que você está fazendo? - perguntou Rose, afastando-se para o lado de forma que um guarda-roupa enorme pudesse passar.

- Para o quarto no lado sul - Alexia orientou os três homens que aguentavam o peso do guarda-roupa, depois se dirigiu a Rose: - Você não pode dar uma festa de casamento
numa casa que não tem cadeiras.

- O móvel que passou agora não era cadeira.

- Nem tente ser orgulhosa. Não ouse. Hayden disse que você não aceitaria isso, e não vou deixar que confirme que ele estava certo. Já estou bastante irritada por
ele ter me convencido a esperar tanto para fazer isso. Se viesse um mau tempo, você daria uma festa numa casa vazia na semana que vem.

Um homem passou carregando uma arca nas costas, com muito esforço. Ela deu uma batidinha com a folha de papel no ombro dele.

- Meu bom homem, da próxima vez, espere ajuda. Assim você nem enxerga para onde vai.

- Sou forte, madame. É preciso mais que isso para me derrubar.

- Com certeza, mas se virar para o lado errado, vai arrancar pedaços das paredes. Não temos tempo para refazer o reboco. Escute, Rose, o sótão da casa de Aylesbury
Abbey está cheio de móveis que jamais são usados. É um pecado esse desperdício. E não é presente de Hayden. A casa e tudo o que tem dentro não são dele.

Irene concordou com a cabeça.

- É verdade, Rose. É tudo de Easterbrook.

Uma fila de cadeiras passou por Rose.

- Alexia, o marquês a autorizou a esvaziar o sótão?

Alexia contou o número de cadeiras e consultou o papel.

- Só descobri a quantidade de coisas que havia lá nessa última visita. Mas, na última vez que o vi, conversamos sobre o seu casamento. Comentei que queria ajudar
nos preparativos e ele disse que eu podia usar os criados da casa de Aylesbury e tudo o mais que precisasse - explicou ela e sorriu. - Isso aqui é o "tudo o mais".

Rose imaginou o marquês na casa dela, sendo sarcástico quando não estivesse calado, ao ver aqueles móveis que pareciam bem conhecidos. Depois do casamento de Alexia,
Rose só encontrara o marquês duas vezes; achava-o enigmático e mal-humorado, alguém que poderia se beneficiar bastante do ar puro do campo.

- Bem, ele pode mudar de ideia sobre vir ao casamento - murmurou ela, desejando que não viesse, ainda que a presença dele pudesse contribuir para sua redenção.

Os moradores do vilarejo iam se ocupar tanto em bajulações e em tentar impressionar o marquês no dia do casamento que ninguém ia se divertir.

- Ah, ele virá - disse Alexia. - A tia, Henrietta, ficou dizendo que não viria e ele exigiu que o acompanhasse. Ele agora vai se arrastar de Londres até aqui nem
que seja só para aborrecer a tia.

Irene fez uma careta.

- Ela vem?

Rose seguiu pelo caminho dos carregadores.

- Gostaria de saber se ela algum dia olhou o que tinha naqueles sótãos.

- Suponho que Henrietta inventariou os bens de Easterbrook até o último travesseiro, desde que passou a morar com ele na primavera passada - disse Alexia.

- Então é possível que eu a veja na minha festa de casamento. A cada cadeira e mesa que ela vir, vai levantar as sobrancelhas até juntá-las com a linha dos cabelos.

Alexia e Irene se puseram ao lado dela e seguiram com o fluxo de móveis.

Deixaram os homens se ocuparem de colocar os móveis nos cômodos conforme os desenhos que Alexia tinha feito, e Rose levou a irmã e a prima para o andar de cima,
até o santuário de seu quarto.

A porta do sótão estava aberta. Ela deu uma olhada e viu móveis antigos da casa empilhados. Estranhou que algumas peças estivessem ali.

Em vez de ir para o próprio quarto, ela entrou no quarto sul. Era o maior de todos. Os móveis antigos tinham sido substituídos por outros, trazidos por Alexia. Uma
cama grande aguardava os lençóis e o guarda-roupa recém-chegado brilhava encostado a uma parede. Um toucador masculino estava pronto para receber escovas e objetos
pessoais.

Ela olhou para Alexia, cujo rosto refletia seu senso prático e sua firmeza.

- Está na hora, Rose. Ben já se foi há anos - disse Alexia. - Esta casa em breve terá outra vida e outro dono, e este quarto tem que ser dele.

Rose deu uma olhada no quarto, que estava diferente agora, com objetos estranhos que logo seriam de uma presença estranha. Seu coração se apertou com o aspecto decisivo
que a mudança feita por Alexia representava.

Irene mordeu o lábio inferior.

- Ela tem razão, Rose. Acho que em poucos dias você não vai mais se importar.

Rose pôs o braço no ombro de Irene.

- Não me importo, querida. Alexia está certa. É hora de seguir em frente.

Rose tirou Irene do quarto. Alexia olhou para a prima mais velha quando as duas passaram. O olhar que trocaram foi parecido com o do dia em que se viram na casa
de Phaedra.

Às vezes não havia mesmo escolha. Às vezes só havia uma decisão, uma única coisa possível a fazer, se você quisesse uma chance de ser feliz.

 

CAPÍTULO 10

Na manhã do casamento, Jordan insistiu em arrumar o patrão. Chamou os criados da hospedaria Knight's Lily, em Watlington, e deu ordens como um marechal de campo.
Mandou trazer o café da manhã, preparar o banho e pediu mais toalhas, mais água quente ainda e convocou um assistente enquanto manejava a navalha.

Kyle obedeceu e achou que os criados da pousada não se incomodaram com os mandos. Aquilo lhes dava a chance de participar do casamento que deixara o vilarejo inteiro
alvoroçado.

Enquanto isso, Jordan informava dos preparativos que tinha feito na casa em Londres da futura Sra. Bradwell.

Finalmente, ficou tudo pronto. Jordan ajeitou um colarinho, alisou uma manga de camisa e recuou para dar uma olhada.

- Pronto, e ainda falta uma hora. O colete foi uma ótima escolha, senhor. O leve toque de rosa-escuro no cinza está perfeito, com o azul suave da sobrecasaca.

- Já que você escolheu o colete, é bom que aprove. Ainda acho que um cinza mais claro seria melhor.

- É seu casamento, senhor. Um toque alegre no traje, um toque mínimo, devo dizer, é não só apropriado como esperado - argumentou e, tendo guardado o que restava
de seu arsenal, fez uma reverência para se retirar. - Permita-me dizer, senhor, que está numa elegância como nunca vi. É um privilégio servi-lo neste dia tão feliz
- arrematou.

Kyle olhou no espelho a ótima imagem que o tempo, a experiência e Jordan tinham conseguido formar. Sem dúvida, Kyle se sentia mais elegante, correto e apresentável
que em anos. Lembrou-se do dia em que a tia o arrumara com todo o capricho para ir a Kirtonlow Hall pela primeira vez, a pedido do conde de Cottington. Naquele dia,
ele também ficara pronto uma hora antes e tivera de ficar sozinho e quieto para não suar e estragar a roupa.

Olhou pela janela a rua do vilarejo. Viam-se poucas pessoas. Como ele, estavam todos se arrumando para uma cerimônia e uma festa mais grandiosas do que quaisquer
outras que tivessem visto em anos.

Naquele dia, quando criança, ele imaginara que, na melhor das hipóteses, o conde lhe daria uma bronca e, na pior, uma surra de chicote. Em vez disso, Cottington
tinha mudado a vida dele.

Mudado para melhor, claro. Só um idiota ou um ingrato não reconheceria. Então, ao olhar Watlington pela janela, sentiu uma inesperada falta de Teeslow, seu vilarejo.

Seria bom ter alguns rostos conhecidos no casamento, só que estavam todos longe, tanto no tempo quanto na distância. A generosidade de Cottington o tinha arrancado
daquele mundo, mas não encontrara outro onde colocá-lo.

Ele tinha criado uma espécie de círculo de amigos e sócios, mas não era a mesma coisa. Não pertencia mais a lugar algum, já fazia algum tempo. Sua vida parecia uma
videira com os ramos se distanciando cada vez mais das raízes.

Aquele casamento também não mudaria nada. Ele ficaria à margem do mundo de Roselyn, não dentro. Escolhera a esposa com toda a consciência disso. Sabia o que ganhava
e o que jamais teria, de uma forma que nem Rose entendia.

O olhar bateu na valise de viagem. Enfiada nela, estava uma carta que Jordan tinha trazido de Londres. Durante a visita de Kyle ao norte, o conde estivera muito
adoentado para recebê-lo, mas tinha conseguido mandar conselhos e cumprimentos pelo casamento e dito que recomendara ao advogado que lhe enviasse um presente.

O conde não estaria lá. Nem a tia Prudence e o tio Harold, que não conseguiram disfarçar o susto ao saberem da mulher que o sobrinho tomaria por esposa, quando ele
lhes contou na visita de Natal. Harold estava doente demais para viajar, mas os tios nunca fariam uma viagem assim no inverno. Os outros amigos que fizeram parte
de sua juventude também não iam festejar com ele e só uma pessoa de seu vago mundo atual estava em Watlington.

Kyle foi procurá-lo.

Entrou no quarto de Jean Pierre, que estava em frente ao espelho, colocando a gravata. Depois de Jean fazer algumas dobras e acertos no tecido, Kyle viu de perfil
o amigo assentir, satisfeito. Ele se virou e olhou para o noivo.

- Mon Dieu, por que os homens sempre parecem a caminho da guilhotina no dia do casamento? - falou, passando a mão numa garrafinha que estava no toucador e arremessando-a.
- Um gole, não mais. Seria grosseiro estar bêbado, embora fosse menos doloroso.

Kyle riu, mas tomou um gole mesmo assim.

Jean Pierre mexeu mais um pouco na gravata.

- Esse Easterbrook não me impressiona, mas, oui, de qualquer forma estou sendo um idiota. Tento me convencer de que meu cuidado com o traje não é por causa dele
e seu título importante. Os criados disseram que sua noiva é linda. É ela que quero impressionar, não ele.

- Por quê? Ela é minha noiva.

Um riso. Um suspiro.

- É bom que você se case. Você nunca achou graça nessa brincadeira. Algumas visões suas são... simplórias.

- Muito simplórias.

A voz dele soou mais perigosa do que ele pretendia. Muito perigosa.

- Espero que não se torne um daqueles sujeitos enfadonhos que ralham quando alguém elogia sua mulher. Ninguém colhe todas as flores que cheira.

- Elogie quanto quiser, mas sei muito bem o que você faz com as flores. Tenho certeza de que sabe que é melhor não brincar no meu jardim.

- Mon ami, você tem que aceitar que haverá flerte no ambiente que ela frequenta, e não ser idiota...

- Não preciso que me ensine nada. Sei de tudo isso. Estou apenas dizendo que você não vai arrancar, cheirar, nem mesmo passar por nenhuma cerca-viva.

- O nervosismo do dia já está afetando a sua cabeça. Ainda bem que estou aqui para ajudar. Acho que precisa de mais um gole dessa bebida. Depois jogaremos baralho
até a hora do casamento, assim você fica calmo e não fala feito um idiota.

- Estou bem tranquilo. Sereno como um lago num dia sem vento. Diabos, nunca estive tão calmo.

- Claro. Agora, mais um gole. Ah, bon.

 

- A carruagem de Aylesbury já passou.

A informação foi dada por um criado que ficara de sentinela na estrada. Alexia se levantou e sorriu ansiosa para Rose.

- Agora podemos ir.

Rose olhou para seu vestido. Não era novo. Tinha ficado escondido um ano, desde a época em que Tim vendera tudo o que encontrava. Irritada e de forma egoísta, ela
escondera alguns de seus melhores trajes, na esperança de ter motivo para usá-los de novo. Alexia a ajudara a reformar o vestido, assim não dava para perceber que
era usado.

Rose estava contente de, nesse dia, usar roupas que eram dela. Quase nada na casa era. Até a comida que estava sendo preparada na cozinha pelos criados de Aylesbury
não era dela. E Kyle tinha enviado os barris de cerveja e vinho. Ela se sentiria mais estranha ainda se usasse um dos vestidos de Alexia.

Saíram todos em direção às carruagens que os aguardavam. Lady Phaedra e lorde Elliot tinham vindo participar desse cortejo, em vez de seguirem com Easterbrook. Ela
ficou emocionada com o comparecimento de toda a família de lorde Hayden. Mostravam que a protegiam, graças ao amor que tinham por Alexia.

Alexia, Irene e lorde Hayden iam com ela numa pequena carruagem aberta. Ao chegarem ao vilarejo, não viram ninguém nas ruas. Todos estariam na igreja. Muitos se
aglomeravam do lado de fora porque na velha construção medieval de pedra não havia espaço para todos.

Quando Rose entrou na igreja, sentiu a mudança da luz e da temperatura. Ficou zonza. Tudo se tornou irreal, como imagens de um sonho.

Captava a cena ao redor ao ritmo do sangue que pulsava em sua cabeça. Sorrisos, murmúrios, mulheres apontando os trajes elegantes das damas, rostos que faziam parte
da vida inteira dela olhando... uma caminhada, longa e escura em direção ao altar.

Kyle a aguardava. A seu modo, estava lindo. O leve sorriso que ele dava para apoiá-la fazia o mundo voltar um pouco a seu lugar, mas não totalmente. Ela disse palavras
que pareceram muito distantes. Palavras sérias, votos e promessas, que a uniram irreversivelmente a alguém.

Sentiu-se tomada por uma súbita alegria quando percebeu que havia terminado. Teve a impressão de pairar no ar, impressionada com a própria coragem. Ao mesmo tempo,
temia que, a menos que surgissem anjos para segurá-la no voo, pudesse se esborrachar no chão do vale.

Viu-se de novo na carruagem aberta, agora ao lado de Kyle. Os moradores do vilarejo seguiam a pé ou em carruagens, todos para a casa.

Kyle segurou a mão dela. Aquele gesto a arrancou do devaneio. O sentido do que tinha acontecido se revelou de forma tão concreta que ela mal conseguiu acreditar.

Olhou o perfil do homem que agora era seu marido e senhor. Dele, conhecia apenas duas partes, a de salvador e pretendente. De resto, continuava sendo um estranho
em quase tudo.

 

Kyle observava a festa animada que lotava a casa de Rose. Os convidados mais importantes tinham se sentado para um café da manhã de núpcias, enquanto os moradores
do vilarejo andavam pela sala e a biblioteca e se espalhavam pelo jardim e o terreno. Agora todo mundo se misturava no aperto dizendo votos de felicidade para Rose,
que estava a poucos metros dali.

Kyle não olhava muito para ela. Não ousava. Quando olhou, viu detalhes que fez seu corpo se empertigar. A linha do pescoço, elegantemente debruçada numa conversa,
tinha fios de cabelo esparsos que pareciam seda. Os lábios, como um veludo para beijar, curvavam-se num sorriso sereno.

O vestido era de um tecido marfim macio que modelava o corpo de maneira que o fazia relembrar os seios que tinha acariciado. Pensou em como seria tirar aquele vestido
dali a pouco e no resto, a pele perfeita dela tocando seu corpo inteiro.

Ela percebeu o olhar dele. Deve ter concluído o que ele pensava, embora Kyle duvidasse que ela pudesse adivinhar os detalhes eróticos. Ela corou e voltou a conversar
com o convidado.

Ele se obrigou a prestar atenção na festa para se distrair. Observou Easterbrook chamando a atenção em frente à cornija da lareira. Os moradores do vilarejo se aproximaram
com deferência e receio, não só por ele ser um marquês.

O comportamento dele não incentivava aproximações. A aparência excêntrica tinha sido de certa maneira amenizada. Surpreendentemente, usava trajes conservadores e
os cabelos compridos tinham sido presos num rabo. Mas ele olhava de cima, satisfeito com os resultados de sua caprichosa intromissão.

Um riso de mulher desviou a atenção de Kyle. Perto, num canto da sala, Jean Pierre atraía Caroline, a jovem prima de Easterbrook. A linda moça enrubescia com a atenção
dele.

A mãe, lady Wallingford - tia Henrietta, para a família -, incentivava Jean Pierre a flertar mais um pouco. Pálida como a filha e enfeitada com um chapéu incrível
pelo excesso de plumas, a lady tinha um jeito alienado, com aquela expressão ausente, etérea. Segundo Rose, o rosto ingênuo escondia a sagacidade de uma mulher decidida
a ficar para sempre na casa de Easterbrook, depois de finalmente conseguir se acomodar nela no ano anterior. Os boatos diziam que o recluso marquês tinha cada vez
menos paciência para a intrusão da tia e da prima.

Dali a pouco, Jean Pierre pediu licença às duas damas e foi abrindo caminho até chegar onde Kyle estava.

- Jean Pierre, a respeito daquelas flores... lorde Hayden é o protetor de uma das que você cheirava há pouco. Olhe para ele. Quer ter esse homem como inimigo?

Jean Pierre procurou lorde Hayden com o olhar.

- Acho que ele não vai se incomodar.

- Ele não terá como não se incomodar. Ela é inocente.

- Eu não cheiro inocentes - garantiu ele, e olhou para Henrietta e Caroline. - A menina não me interessa. Lady Wallingford deve ter, no máximo, 30 e poucos anos.
Você vê uma matrona que usa chapéus horrorosos. Eu vejo uma mulher com uma beleza oculta e etérea que, meu nariz tem o prazer de informar, não se oporia a uma pequena
sedução.

Não adiantava tentar dissuadir Jean Pierre dessa conquista. Kyle imaginou que lorde Hayden não causaria um duelo em nome da virtude da tia.

De repente, a festa pareceu mudar. Acalmou-se. As pessoas se afastaram para formar um corredor. O marquês passou no meio, sorrindo de leve, afavelmente, para a direita
e a esquerda.

- Finalmente - resmungou Jean Pierre. - Agora é só esconda a cerveja e o vinho e todos os demais vão embora também.

Sim, finalmente.

Rose fez uma reverência quando Easterbrook se despediu dela. Kyle também fez uma reverência e torceu para que nada tirasse o homem de seu curso. Ninguém iria embora
antes dele.

A tia do marquês se sentiu na obrigação de acompanhá-lo. Em pouco tempo, os irmãos dele também se foram. A festa começava a acabar.

Kyle se imaginou colocando todos porta afora, os moradores do vilarejo e os criados, todo mundo. Teve de se esforçar para controlar a impaciência.

Uma coisa era desejar Rose antes. Mas desejá-la hoje, agora, quando sabia que poderia possuí-la, estava sendo uma tortura.

 

Fazia tanto tempo que Rose não tinha uma criada que ficou sem saber o que fazer com a mulher. Por sorte, a criada que Alexia arrumara não precisava de ordens. Com
gestos eficientes e de olhos baixos, preparou Rose para a noite de núpcias.

A casa agora estava quase vazia. Só ficaram o marido e a esposa, o criado pessoal de Kyle e a criada que arrumara Rose. Dali a pouco os dois últimos iriam desaparecer
em outros cômodos do andar superior.

As últimas horas tinham sido difíceis. A aproximação daquele momento tinha surtido efeito sobre cada minuto e cada segundo delas. Tanto Roselyn quanto Kyle não disseram
nada, nem mesmo na longa caminhada que fizeram enquanto os criados de Aylesbury limpavam a casa, tirando os pratos e os barris de vinho. A noite que estava para
chegar fora um manto invisível cobrindo cada instante e transformando cada olhar e cada toque.

Ela dispensou a criada e se empertigou. Não estava com medo. Nem um pouco. Estava nervosa, preocupada e curiosa, mas não com medo.

Passou a mão pelos cabelos, que tinham sido escovados e estavam soltos. Conferiu a camisola, quase recatada com suas mangas compridas e a gola alta franzida. Olhou
para a cama, que os aguardava com o lençol aberto. A vida inteira, ela vira a cama naquele mesmo lugar.

Não tinha certeza se queria que as coisas se passassem naquela cama. Não sabia nem se queria que fossem naquele quarto.

Ali ela havia sido uma criança feliz e uma garota cheia de esperanças. Ali chorara a morte dos pais e a de Benjamin; sofrera com a falência do irmão e a dela própria.
Aquele quarto continha toda a sua história, o bom e o ruim, e ainda guardava ecos de sonhos juvenis jamais realizados.

Se Kyle entrasse ali agora, ela não conseguiria voltar ao quarto sem que a presença dele influenciasse todas as lembranças.

Mudasse. Talvez até ofuscasse. A partir de agora, sua vida mudaria sob vários aspectos. Ela podia ao menos conservar aquele canto de seu antigo mundo.

Jogou um xale sobre os ombros. Pegou uma vela acesa e saiu de mansinho do quarto. Prestou atenção em sons vindos do quarto sul para saber se Jordan ainda estava
servindo o patrão.

Nenhuma voz, nenhum barulho. Entreabriu a porta e olhou.

Jordan não estava lá. Só Kyle. Ao lado da lareira, imerso em pensamentos que endureciam suas feições. Dava a impressão de que aquelas reflexões o tinham desviado
de seus preparativos. Ele estava nu da cintura para cima, mas ainda de calças.

Ao vê-lo assim, ela se assustou. O homem escondido por aquelas roupas elegantes agora estava exposto, de uma maneira não apenas física. Um cavalheiro podia praticar
boxe ou esgrima durante meses e não conseguir a força contida e autêntica que ele revelava. Não era tanto a altura e o corpo que ele tinha, embora a musculatura
firme e definida acentuasse o efeito. Era mais algo que vinha de dentro e não tinha explicação.

Ela teve noção de que estava vendo algo que ele não mostrava ao mundo. Escondia atrás da fala educada e das maneiras polidas, mas devia estar sempre nele. Rose havia
percebido desde o começo. Tinha sentido os efeitos tanto de formas sutis quanto fortes. Era essa força que a excitava e a fazia sentir-se ao mesmo tempo segura e
temerosa.

Ele se virou como se ouvisse o som vindo da porta, embora ela mal respirasse. Olhou-a por inteiro: o xale e a camisola, a vela e os cabelos.

- Eu já ia ao seu encontro - disse ele.

- Pensei em vir encontrá-lo. Você se importa?

- Claro que não.

Ela se aproximou e colocou a vela no toucador.

- Você estava tão absorto. No que pensava tanto?

- Em algo que aconteceu há muito tempo. Tinha até esquecido, só lembrei agora.

- Uma lembrança ruim?

- Sim.

- Então, ainda bem que entrei.

Ela ficou constrangida com o olhar dele. Talvez, vindo até ele ao invés de esperá-lo, tivesse criado uma expectativa de que faria algo mais.

- Ele machucou você?

A pergunta foi feita com tanta calma que ela levou um instante para entender. Ficou triste por ele falar em Norbury logo naquela noite.

- Pensei que jamais fosse falar...

- Ele machucou? Só pergunto por causa de agora e do que vamos desfrutar daqui a pouco. Veio à minha cabeça que talvez tivesse machucado. Que talvez eu o houvesse
considerado alguém melhor do que é, mesmo sabendo que é bem menos do que muita gente pensa.

Ela não entendeu direito a que ele se referia. Só que era a algo pior do que ela enfrentara. Embora, naquela derradeira noite, Norbury tivesse pedido algo que, parando
para pensar, poderia ser não só chocante, mas doloroso.

Olhou para o homem que, horas antes, tinha jurado protegê-la. A firmeza dele era perigosa e os olhos mostravam isso. Rose concluiu que ele não toleraria o que ela
acabara de se lembrar, ainda que ela lhe garantisse que não tinha chegado a acontecer.

- Não, ele não me machucou. Não da maneira que deve pensar.

- Fico contente.

Ele pareceu contente mesmo. Aliviado.

O leve sorriso ajudou a amenizar o clima e acabar com qualquer raiva causada pela lembrança do passado. O fantasma de Norbury ou de qualquer outro que tivesse entrado
naquele quarto sumiu como uma fumaça fina que esvaece pela janela.

Rose tinha certeza de que agora Kyle só pensava nela. E lhe dava toda a atenção. Isso a deixava nervosa e inquieta, ficar ali enquanto ele a olhava. Ela também olhava
o peito e os ombros banhados pelo brilho cálido da lareira. O corpo dela reagiu à expectativa que saturava o ar.

- Venha cá, Roselyn.

Claro que ela obedeceu. Fazia parte do que havia prometido naquele dia. Não era uma menina inocente e não ia mostrar quanto ainda se sentia como tal.

Ficou bem na frente do marido, com o peito nu dele a centímetros de seu nariz. Um peito atraente. Só a proximidade dos dois já era provocante e ela teve um impulso
de beijar o corpo que a atraía.

Ele a beijou primeiro. Pegou o rosto dela nas mãos e a beijou com mais carinho do que nunca. Era como se quisesse dar confiança a ela, o que Rose achou muito bom.
Só que ele já tinha feito isso na carruagem, no dia em que se encontraram no parque. Tinha consciência de que parte de seu dever de esposa podia ser desagradável,
mas agora também sabia que outra parte seria muito boa.

O corpo dela concordou. Reagiu ao beijo mais do que seria preciso. O nervosismo diminuiu e a excitação aumentou.

Kyle a levou para a cama. Sentou-se na beirada para não ficar tão mais alto que Rose. Assim podia beijá-la mais facilmente. Mais intimamente. Com menos cuidado.
Enquanto beijava, colocou a mão sobre o seio dela. As carícias a excitaram tão rápido que ela se assustou. Ela deixou o desejo fluir e notou que seu corpo latejava
lá embaixo, ansiando por ele.

Kyle observou a própria mão moldar o tecido da camisola ao redor do seio, exibindo sua forma. Ela ofegava toda vez que ele lhe roçava o mamilo, tão penetrante era
a sensação que causava.

- Você é muito bonita, Roselyn.

A beleza não tinha sido de muita utilidade em seu erro. Ainda assim, o elogio a agradava.

Ele a olhava com tanta intensidade que Rose teve medo de que ele se desapontasse com o que visse.

- Você já ouviu isso muitas vezes. Desde criança, imagino.

- Se você me achar linda esta noite, estarei feliz.

- Sempre achei. Eu a vi uma vez, há anos. Num teatro. Não sabia quem era, só que nunca tinha visto uma mulher tão encantadora. Depois, percebi seu irmão no mesmo
camarote e concluí que devia ser a bela Longworth que tantos elogiavam.

O toque leve causou tanta alegria, tanto prazer que ela quase o repreendeu por não ter ido procurá-la quando soube quem era. Conteve-se a tempo. Sabia o motivo.

Teria sido por isso que fizera a proposta de casamento? Ela mal conseguia pensar nisso, raciocinava de um jeito preguiçoso, indiferente. Ele não resistira à chance
de ter algo que o mundo proibira a um filho de mineiro?

Ela se entristeceu ao pensar nisso. E veio novamente o impulso de beijá-lo. Dessa vez ela obedeceu, beijou a curva do ombro dele.

Foi como se acendesse uma tocha, tal o efeito que causou, apesar de Kyle imediatamente tentar conter seu desejo. Mas os olhos dele se aprofundaram a ponto de ela
pensar que poderia se afogar neles se os mirasse por muito tempo.

Ele puxou as pontas do laço que prendia a camisola no pescoço. Rose olhou para a mão dele, enquanto as fitas acetinadas corriam e o nó se desatava. Pareceu levar
uma eternidade. Um ponto dentro de seu corpo latejou e se retesou, como se uma língua invisível estalasse em sua carne.

Percebeu que Kyle ia despi-la. Ali mesmo, despi-la inteira, com a vela acesa na mesinha lateral. Tinha certeza de que não era assim que se fazia. Só que ele podia
não saber. Mas...

Ela ainda estava surpresa por esses pensamentos quando a camisola escorregou pelos ombros. Kyle notou a surpresa, mas isso não o impediu de continuar. Desceu o tecido
até exibir os seios, túrgidos e com os mamilos escuros. Puxou a camisola mais para baixo, passando pela cintura e as pernas até Rose ficar nua sobre um lago de tecido
branco.

Rose ficou envergonhada. O quarto precisava estar escuro, ou quase, quando ela estivesse assim. E eles deviam ficar embaixo do lençol, quase anônimos nos gestos
por vir. Tentou se cobrir com os braços.

- Não.

Ele a segurou antes que conseguisse. Puxou-a mais para perto. Sua língua mal tocou a extremidade de um de seus mamilos.

Uma centelha de prazer percorreu seu corpo inteiro: intensa, direta, precisa. Depois, outra, e outra, sufocando seu constrangimento, fazendo-a querer apenas que
ele continuasse aquilo para sempre e que o prazer maravilhoso nunca cessasse.

Com a língua e a boca, ele a levava aos céus. Acariciou todo o corpo dela e ela então gostou de estar sem a camisola. O toque das mãos em sua pele, nas coxas e atrás,
nas costas, parecia certo, necessário e perfeito. Ela se virou, presa numa sensualidade e num desejo intensos, que pareciam aumentar cada vez mais, o prazer pedindo
mais prazer num crescendo infinito.

Ficou tão perdida nesse torpor que não percebeu que segurava o ombro de Kyle até ele soltar sua mão. Mal notou quando ele se levantou e a deitou na cama. Rose voltou
um pouco a si na pausa que se seguiu e o viu tirar a roupa à luz da vela que ainda queimava.

Ela esticou a mão e apagou a vela antes de ver o corpo inteiro dele como ele a vira. Kyle se transformou então numa silhueta, uma forma escura, indistinta e vaga.
Ele foi na direção dela na cama.

Um beijo, tão profundo e íntimo que ela jamais o esqueceria. Uma carícia, tão firme e possessiva que ela só podia render-se à sua maestria. Um toque, tão direto
e ciente de seu efeito que o corpo todo gritou com o prazer intenso.

Ele continuou. Ela manteve um grito ao mesmo tempo mudo e pleno de desejo, de sensação torturante. Rose perdera a consciência de seu corpo, exceto a tênue vontade
que exigia mais, qualquer coisa, tudo.

A voz dele, calma e profunda.

- Entregue-se. Vai entender o que quero dizer. Deixe acontecer. Solte-se.

Ela mal o ouviu. Não entendeu. Mas o corpo se soltou lentamente. O suficiente para que um tremor profundo surgisse e então aumentasse e subisse em ondas de prazer
cada vez mais altas, para no fim explodir em seu corpo e ofuscar sua mente, num momento etéreo de estupefação.

Kyle estava abraçado a ela, em cima dela. Sentiu-o entrar com cuidado. Com muito cuidado. Ela o deixou assim e ajeitou as coxas para que ele ficasse lá, para que
a penetrasse antes que aquela sensação maravilhosa tivesse fim.

A calma dele se foi. Veio a força. Ela não se importou. Não foi ruim, nem sequer desagradável. Ela se entregou a ele como se entregara ao próprio prazer, ainda flutuando
numa perfeição que as estocadas dele só fizeram prolongar.

 

Ele despertou perto da aurora e viu que Roselyn se fora. A certa altura da noite, talvez logo após ele adormecer, tinha voltado para seu quarto e sua cama.

Se ele tivesse ido até o quarto dela, Rose esperaria dele que saísse logo também. Era assim que se fazia com mulheres como ela. Elas não viviam em casebres, onde
marido e mulher compartilhavam a mesma cama a noite inteira, todas as noites.

Lembrou-se de, quando menino, ouvir murmúrios e risos íntimos no quarto ao lado. Aqueles sons pessoais davam vida à casa. Ele não tinha participação naquelas conversas,
mas os murmúrios traziam paz à noite.

Era estranho que a lembrança viesse naquele momento, tão vívida que, se ele fechasse os olhos, se sentiria na cama de sua infância outra vez. Esquisito que aquele
casamento tivesse aberto tantas portas para o passado. Só que ele olhava por essas portas como homem e via coisas que o menino jamais compreendera.

Uma das portas seria difícil de fechar. Se Roselyn não tivesse vindo na noite anterior, ele ficaria horas refletindo sobre o que vira de novo daquela soleira.

As imagens queriam invadir a cabeça dele. Ele as expulsou por ora. Quem sabe, de uma vez por todas. Assim como a honestidade absoluta, a pura verdade nem sempre
era benéfica.

Cochilou, depois acordou de novo, num sobressalto. Era tarde. Não tinha apenas cochilado.

A água para lavar o rosto estava à espera. As roupas tinham sido preparadas para que se vestisse. Jordan estivera lá, mas deixara o noivo dormir. Ele não chamou
o criado, mas se arrumou para mais um dia.

Desceu a escada e acompanhou o som das vozes na cozinha, nos fundos da casa. Rose estava lá com Jordan. Usava um vestido simples, cinza, que ficaria bem numa dona
de casa modesta. Continuava linda.

Não conseguia olhar para ela sem relembrar seu corpo à luz da vela, a timidez e os tremores de sua excitação. Apagar a vela tinha, sem dúvida, sido sensato, embora
ele tivesse vontade de olhar para a esposa a noite inteira. Na escuridão, ela conseguira se libertar um pouco e ele conseguira se controlar para não possuí-la com
voracidade.

O primeiro olhar que Rose lhe deu continha um agradecimento pela noite. Ela então abaixou os olhos.

Jordan serviu o café da manhã.

- Este lugar é simples, senhor, mas a vista do jardim e a luz são agradáveis. Posso servir o café na sala de jantar, se o senhor preferir.

- Assim está ótimo.

Ele se sentou à mesa onde havia almoçado com Rose no dia em que fizera o pedido de casamento. Com gestos eficientes, Jordan serviu um café da manhã bem tardio.

Quando Kyle terminou, Roselyn trouxe para a mesa o último prato a saborear.

- É torta de maçã - avisou ela. - Você disse que gosta tanto que às vezes come no café da manhã...

- Muito bem, Jordan.

- Não foi ele quem fez. Fui eu.

Ao fundo, Jordan terminou de secar uma jarra. Pegou seu casaco.

- Quero olhar um pouco o jardim, madame. Com sua permissão, posso sugerir algumas melhorias.

- Claro, Jordan.

Rose cortou uma grande fatia de torta e colocou num prato. Deu um passo atrás e esperou que o marido provasse.

Ele deu uma boa mordida.

A torta anterior estava ruim. Já esta estava horrível. Olhou para o armário e todos os mantimentos. Tinha presumido que a primeira torta ficara ruim por falta de
açúcar e sal. Pelo jeito, o problema não era esse. Roselyn é que fazia tortas horríveis.

Ela teve prazer de vê-lo comer. Por sua expressão facial e os sons que fazia, ele estava gostando.

- Deliciosa - falou ao engolir o último pedaço.

- Fico contente que tenha gostado. Jordan ficou estalando a língua enquanto eu assava, mas acho que só estava irritado por eu estar fazendo o trabalho dele.

Ele a segurou e a puxou para si.

- Você não precisa mais cozinhar. Não precisa fazer tortas.

- Eu sei. Só que esta manhã me lembrei de que servi torta a primeira vez que esteve aqui e que pareceu gostar. Então quis fazer outra.

Ele percebeu que tinha acabado de ser elogiado pela noite anterior.

Beijou-a e a soltou. Não estava com fome naquele momento, pelo menos de comida. Muito menos daquela torta.

Mesmo assim, cortou mais uma fatia.

 

CAPÍTULO 11

Kyle colocou os rolos de projetos numa grande sacola de lona.

O assunto não podia esperar mais. Muito já fora investido naquilo. Ele não tinha escolha senão encontrar Norbury, como estava marcado fazia tanto tempo.

Tentou ouvir algum som vindo do quarto de Roselyn. Ela costumava acordar cedo. Não tinha o hábito de ficar na cama até o meio-dia como certas damas. Nesse dia, entretanto,
o pavimento onde ficavam seus quartos continuava estranhamente silencioso. Como ele a mantivera acordada quase a noite inteira, não se surpreendeu.

Ela não parecera se importar em dormir pouco. A noite lhe despertara novos apetites. E, ao contrário do que ocorrera em Oxfordshire, onde ela sempre o procurava,
como se quisesse demonstrar que cumpria seus deveres conjugais, ali em Londres era o contrário: ele é que ia encontrá-la. Isso significava que, às vezes, como na
noite anterior, Kyle se demorava bastante por lá.

Ela não se importava, mas, ao mesmo tempo, preparava os rituais da noite de maneira a não ficar constrangida. Depois daquela primeira noite, sempre apagava as velas
mais cedo. Apesar da escuridão, Kyle conhecia o corpo da esposa melhor do que ela pensava. O toque revelava muito e a luz da lua, mais ainda. Ela podia preferir
as sombras, podia até esquecer o rosto do homem que a possuía, mas ele jamais esquecia que era Roselyn que ele acariciava.

Riu para si mesmo ao se lembrar da pequena batalha que seu corpo enfrentava todas as noites. Roselyn Longworth lhe provocava um desejo tão forte, tão arrasador,
que muitas vezes ele ficava agressivo. Mas, como se tratava de Roselyn, uma dama que ainda se intimidava e se espantava com a nudez, ele tinha de se controlar.

Isso não era um problema. O final era sempre bom. Os doces êxtases dela e os gozos fortes dele o encantavam. Depois de tudo, era com pesar que ele abria mão da satisfação
absoluta que encontrava nos braços dela. Às vezes, como na noite anterior, ele passava horas recusando-se a ir embora, o que significava ter relações mais de uma
vez.

Desceu a escada. Aquela casa ainda parecia nova e estranha para ele. Roselyn ficara muito contente quando ele a levara para lá. Ocupava-se agora de arrumá-la a seu
jeito e de fazer as primeiras reaparições na sociedade.

Ele cuidava dos negócios, como essa reunião agora. Foi a cavalo para a casa de Norbury, com a sacola de lona presa à sela. O dia estava melhor que o humor dele.
Não falava em Norbury com a esposa, mas sua fome insaciável da noite anterior, o desejo de possuí-la, estava ligada à desagradável expectativa do encontro que se
seguiria.

Na verdade, aquele homem agora entrava em sua cabeça com muita frequência. Não só por causa de Rose, apesar de ele ter de se esforçar para afastar as lembranças
daquele caso. Pensar nisso só lhe dava raiva e uma vontade enorme de bater no canalha.

Kyle continuava também com a lembrança que tivera na noite de núpcias, como se aquilo precisasse ser revisto. Era o rosto de uma mulher espancada e machucada. Os
olhos da mulher o assombravam. A humilhação que mostravam parecia o rosto de Rose na noite do leilão.

No dia em que encontrara a tia ferida ao se defender dos jovens ricos que se divertiam com ela, Kyle lutara como um possesso. Eram três contra um e ele tinha apenas
12 anos, mas seus inimigos não haviam passado quatro anos carregando carvão na mina.

Ele achara que a havia salvado. Só agora, que os detalhes começavam a ressurgir em sua cabeça, ele reavaliava o ocorrido. Talvez não tivesse chegado no início da
violência contra a tia, mas no final.

Pensar em Rose o fez lembrar-se de tudo isso na noite de núpcias. Enquanto ele avaliava como lidar com ela, como lhe mostrar os caminhos do prazer sem deixá-la assustada,
chegara a sombra do amante anterior. Com a lembrança, viera o pensamento inesperado de que o sexo trivial devia ser o menor motivo para Rose não gostar de contato
físico.

Parou o cavalo na frente da casa de Norbury. Olhou a fachada em perfeito estilo paladiano que dava tanta elegância à construção. Considerava-a uma das melhores moradias
de Londres, de uma excelência que para muitos passaria despercebida num mar de influências clássicas. Era um desperdício, pois Norbury tinha pouca sensibilidade
para essas coisas.

Não podia se distrair com a estética, como costumava ocorrer. A nova pergunta sobre aquela briga travada fazia tanto tempo afetava bem mais do que a infância dele.
Fazia com que imaginasse mais do que gostaria sobre o caso de Rose. Chegava a incomodá-lo no encontro de hoje, pois Norbury tinha sido um dos meninos em que ele
batera.

A tia garantira que ele havia chegado a tempo e ele acreditara. Mas aquelas conversas noturnas no casebre deles sumiram por muito tempo e o tio nunca aprovou a ajuda
dada por Cottington. Aceite o dinheiro, mas não seja um lacaio, Kyle, meu jovem. Use-os da mesma maneira que eles usam os outros, mas não se torne um deles.

O mordomo sorriu ao receber o cartão de visita de Kyle. A familiaridade não era desrespeitosa. Os criados daquela casa, como os de muitas outras elegantes residências
londrinas, logo se afeiçoavam ao menino pobre que se tornara um homem bem-sucedido, alguém que circulava pelos dois mundos que eles conheciam.

- Meu patrão está ocupado, mas poderá recebê-lo em menos de uma hora - informou o mordomo ao retornar.

Kyle o seguiu até a biblioteca, sabendo que "menos de uma hora" significava uma espera de pelo menos 59 minutos.

Assim que a porta da biblioteca foi fechada, Kyle a abriu de novo. Desceu a escada para a cozinha. Norbury não devia estar ocupado coisa nenhuma. O atraso era apenas
a maneira enfadonha de o visconde mostrar a própria importância. Mas o tempo que Norbury tinha dado seria útil.

A confeiteira se virou, surpresa, ao ouvir os passos dele na escada.

- Sr. Bradwell! Que honra. Nossa, como o senhor está bonito. Parece que o casamento lhe fez bem.

- Olá, Lizzy. Você também está bem. Com um pouco mais de farinha que o habitual.

Ela passou as mãos nos cabelos grisalhos, fazendo surgir uma nuvem branca. Lizzy era uma das muitas criadas da casa que tinha família em Teeslow. Quando moça, fora
trabalhar para Cottington, depois se mudara para Londres quando Norbury fora para a cidade.


O cozinheiro, um homem sério, cumprimentou Kyle com a cabeça e resmungou parabéns pelo casamento. Tirou uma panela grande da mesa e, com o pé, empurrou um banquinho
até o espaço recém-liberado. Depois voltou a ralhar com uma criada na copa. Kyle sentou no banquinho.

- Veio falar com o patrão, não é? - perguntou Lizzy, enquanto partia ao meio a massa de pão e pegava um pedaço grande. - Uma daquelas conversas sobre dinheiro que
ninguém entende?

- Sim.

- Tem gente que diz que é como um jogo.

- É parecido, só que sou eu quem decide onde fica a maioria das cartas.

- Ainda assim, uma cartada errada e...

- É, pode acontecer.

- Não é muito provável que aconteça com o senhor, eu diria. Sempre foi mais esperto que a maioria, deve saber dar as cartas.

Geralmente. Normalmente. Mas havia sempre um risco. O importante em qualquer jogo era não se importar muito em ganhar ou perder. Um homem nervoso ou desesperado
sempre joga mal.

O sucesso dele dependia da certeza de que, se tudo desse errado, sempre poderia se recuperar e que um revés de alguns anos não faria muita diferença em sua vida.

O casamento mudava tudo. Percebera isso ao fazer seus votos durante a cerimônia. A responsabilidade dele em relação a Rose significava que nunca mais poderia ser
absolutamente destemido, e os outros perceberiam isso, ainda que ele tentasse esconder a verdade.

Tinha sido por isso que, dois dias antes, fizera um fundo de investimento para a esposa.

Dois cheques tinham estado à espera de que eles retornassem a Londres. Um, enviado por Cottington, era presente de casamento. O outro, os 10 mil de Easterbrook,
era de uma quantia bem maior e viera sem uma carta, um bilhete que fosse.

Se Rose soubesse da existência daquele dinheiro, pensaria que alguém havia pagado para que ele se casasse, o que de certa maneira era verdade. Enquanto olhava o
cheque, ele concluíra que não queria que ela pensasse isso. Ela não ia enganar a si mesma e ter qualquer ilusão romântica sobre casamento, mas seria ruim que não
tivesse ilusão nenhuma.

Só o presente de Cottington já bastava para salvá-lo do desastre, então pegara o suficiente de Easterbrook para prover Rose no caso de se tornar viúva e deixara
o resto num fundo de investimento para ela. Sua esposa teria como se sustentar se, no futuro, as cartas do baralho não fossem distribuídas como ele gostaria.

- Tem recebido notícias de Teeslow, Lizzy?

Lizzy era chegada a fofocas, por isso Kyle gostava de conversar com ela. A criada sabia tudo sobre Teeslow pelas cartas da família, com muito mais detalhes do que
a tia contava a ele.

- Bom, a garota dos Hazletts está esperando um filho e ninguém sabe aonde o pai foi parar. Peter Jenkins morreu, mas foi um descanso, porque ele estava muito doente.
E há boatos de que aquele túnel na mina vai ser reaberto. Você sabe qual.

Ele sabia. Tinha ouvido o boato quando estivera lá, em dezembro. Pelo jeito, o boato continuava, portanto devia ser verdade.

- Como vai Cottington?

- Mal, infelizmente. Quando ele se for, a criadagem vai chorar rios, garanto. Muita coisa vai mudar com a morte dele.

- Não é só a criadagem que vai chorar. Todos vão lastimar que o herdeiro assuma o lugar dele.

Lizzy conferiu onde estava o cozinheiro, antes de fazer uma cara que mostrava que ela pensava o mesmo. Concentrou sua força em sovar a massa do pão.

- Imagino que o visconde não foi ao seu casamento.

- Não mesmo.

O olhar dela foi bem expressivo. Significava que Norbury não se daria ao trabalho de ir, mesmo se fosse convidado. E que, naturalmente, a noiva de Kyle não ia querer
o ex-amante no próprio casamento.

- Fez muito bem, Sr. Bradwell. A ajuda que o senhor deu para aquela pobre mulher e o que agora faz por ela. É o que todos dizem.

- Infelizmente, não pude bater nele como fiz naquela vez, embora quisesse.

Esperou a reação dela. Na época da surra, Lizzy trabalhava para Cottington. Numa casa assim, os criados costumavam saber de tudo.

Ela pareceu surpresa por ele tocar no assunto. Olhou bem para ele, depois se voltou de novo para a massa de pão. Sovou com força.

A reação dela era plausível com um assunto que fosse tão escandaloso que seus detalhes tivessem de ficar em segredo.

Um simples mau comportamento de alguns jovens ricos, a história que ele conhecia, não seria motivo para isso.

 

- Continuo achando que as casas não têm quartos de criados em quantidade suficiente - reclamou Norbury após examinar os projetos por dez minutos.

Até então, as coisas iam bem. Recebera Kyle com indiferença e os dois se ocuparam dos projetos. Norbury parecia se esforçar para ser cavalheiro, mas Kyle via que
o visconde tentava ocultar um lado bem menos civilizado.

- As casas serão compradas por famílias com renda de milhares de libras por ano. Cinco quartos de criados, mais os da estrebaria para o treinador e o cocheiro deveriam
ser mais que suficientes.

- Milhares de libras. É incrível como eles conseguem.

Era uma observação idiota feita por um idiota, com a intenção de enfatizar como ele estava acima de preocupações frívolas como milhares de libras a mais ou a menos.
Norbury inclinou mais um pouco a cabeça loura sobre os projetos.

- Meu advogado disse que papai pretende assinar os papéis do terreno - comentou Norbury, e seu lábio inferior tremeu. - Ele não está participando de nada e não viu
os projetos, mas decidiu de qualquer forma.

Ótimo, iremos em frente, mas quem decide é o velho, não eu. Vou lucrar bastante com o seu trabalho, mas não que eu tenha escolhido isso.

Para Kyle, era indiferente como as coisas se passariam. Agora lamentava que estivesse nesse projeto, que o obrigava a aceitar a presença de Norbury. Se o conde não
se recuperasse para retomar as rédeas dos negócios, essa seria sua última parceria com a família dele.

- Procurarei o seu advogado amanhã - disse Kyle, juntando os projetos. - O trabalho nas estradas vai começar logo; a madeira e os demais suprimentos estão encomendados.
As primeiras casas estarão prontas em meados do verão, creio.

O dono da casa acompanhou os preparativos da saída do visitante. Deu-lhe um olhar gelado.

- Preciso lhe dar os parabéns.

- Obrigado.

- Não fui convidado.

- Foi um casamento no vilarejo, não em Londres.

- Li que Easterbrook compareceu.

A informação o incomodara. Kyle não sabia se pelo fato de aquele lorde especificamente ter sido convidado ou porque a presença dele fizera a ausência de Norbury
ficar irrelevante.

- A casa de campo dele fica perto e minha esposa é parente. Indireta, digo.

Norbury riu.

- Você fez bem em se casar com a minha puta, Kyle.

Kyle se obrigou a continuar encarando os projetos e mal controlou a vontade de estrangular Norbury. Eram palavras assim que motivavam duelos. Homens idiotas diziam
coisas idiotas por orgulho ou ressentimento. Coisas que outro homem não poderia permitir.

- Repita isso ou algo parecido, para mim ou para qualquer pessoa, e acabo com você. Se eu souber que sequer mencionou o comportamento vergonhoso que teve com ela,
só vou parar de bater quando você não conseguir se mexer por duas semanas.

Norbury ficou tão vermelho que Kyle esperou que ele desse o primeiro soco. Queria muito que desse.

- Bata, maldito. Pratico boxe duas vezes por semana.

- Isso só ajuda se o seu opositor obedecer às regras do esporte. Você vai lutar com um filho de mineiro e suas mãos suaves e inúteis não são nada contra mim.

Kyle se encaminhou para a porta. As palavras ríspidas de Norbury o acompanharam.

- Meu advogado disse que papai mandou um presente de casamento para você.

- Mandou mesmo. Foi muito generoso.

- Generoso, quanto? Quanto foi que ele mandou?

Norbury exalava agressividade, como se a quantia fosse a única coisa que interessasse.

Talvez fosse. Talvez Norbury nunca tivesse engolido que o pai ajudasse Kyle financeiramente. Já era ruim ter levado aquela surra. Pior ainda era que, por isso, o
pai ficasse sabendo do comportamento desonroso do filho naquele dia, por pior que fosse.

- Quanto? Uma quantia incrível, faltou só 50 para completar mil libras.

Kyle se satisfez ao ver a expressão de Norbury quando saiu. O homem era burro, mas não tanto. Em poucos minutos, concluiria que o presente de Cottington fora tirado
da herança destinada ao filho.

O que significa que Norbury tinha indiretamente devolvido o dinheiro do leilão e que o pai tinha sabido do que acontecera.

 

Nesse dia, Henrietta parecia diferente. Roselyn se sentou na sala de visitas em Grosvenor Square e tentou identificar por quê.

Era preciso considerar o efeito do chapéu. Um gorro com carapuça de renda, o que parecia bem mais comportado e elegante do que os chapéus que ela costumava usar.
Rose notou também que os cabelos louros tinham sido arrumados de outro jeito, combinando melhor com o rosto delicado.

Mas o que tinha mudado acima de tudo era sua expressão. Naquela tarde, seu jeito aéreo fazia com que parecesse jovem, em vez de desligada. E seu rosto não estava
contorcido de forma desdenhosa. Em vez disso, surpreendentemente, parecia quase o de uma jovem.

Conversaram sobre moda, sociedade e fizeram previsões para a próxima temporada. Alexia estava com elas. Além de mais três damas, todas de boa posição social e bom
humor. Alexia tinha levado Rose em visitas àquelas damas na semana anterior, provavelmente com a permissão delas. Elas agora, por sua vez, visitavam Henrietta no
dia que Alexia tinha sugerido, de forma que Rose pudesse comparecer também.

Tudo fazia parte de uma pequena campanha da qual, maravilha das maravilhas, Henrietta aceitara participar. Se ela não estivesse fazendo sua parte tão bem, não estivesse
sendo tão simpática e solícita, Rose iria pensar que Alexia tinha achado um jeito de subornar a tia do marido.

As visitas não se demoraram muito, mas ficaram o bastante. Podia ser que jamais visitassem a própria Rose para nada, mas, quando foram embora, tinham dado mais um
largo passo no sentido de aceitá-la.

Ia ser uma caminhada em círculos. A proveniência do marido causaria desvios de rota e interdições na pista. O escândalo no qual ela se envolvera criaria outros transtornos.
Mas a campanha de Alexia parecia estar dando resultado mais rápido do que se podia esperar.

- A reunião foi boa - confidenciou Henrietta, quando as três ficaram a sós de novo. - Creio que a Sra. Vaughn logo vai convidar você, Roselyn, para ir ao teatro.
Foi o que pareceu quando comentou sobre peças preferidas e tal. Como a tia dela se casou com um importador, ela não deve fazer muitas restrições a um comerciante
e pode até receber seu marido também.

Rose mordeu a língua. Henrietta não pretendia fazer uma provocação com aquele comentário. Ao mesmo tempo, não havia por que se ofender com a verdade.

Mas ela se ofendeu. Muito mais do que esperava. Kyle aceitava as coisas do jeito que eram, mas ela se irritava cada vez mais.

Não entendia como alguém que o conhecesse, que conversasse com ele, pudesse não aceitá-lo em sua sala de visitas. O trabalho dele também não era banal, juntava finanças,
arte e investimento. Quando os irmãos dela viraram banqueiros, algumas portas se fecharam para eles, mas a maioria, não.

Claro, tudo estava ligado ao berço. À família e aos antepassados. À família que Kyle jamais renegaria. Tinha-a avisado sobre isso.

Enquanto iam para a biblioteca, Alexia explicou a nova fase de sua campanha bélica, que incluía um jantar na casa dela. Aquelas três damas seriam convidadas, além
de duas amigas delas. Ela esperava que as convidadas que tinham acabado de sair convencessem as outras a comparecer. As cinco tinham maridos tidos como dóceis. Se
alguns deles deixassem suas esposas ficarem amigas de Rose, havia mais possibilidade de outros fazerem o mesmo.

Enquanto elas discutiam estratégias, Easterbrook entrou na biblioteca. Desculpou-se pela intromissão e ficou perto das estantes, examinando as lombadas. A presença
dele chamou a atenção de Henrietta, que se rendeu à curiosidade.

- Pretende ir ao exterior, Easterbrook? Porque está olhando memórias de viagem e títulos assim.

Ele tirou um livro da prateleira e deu uma olhada no texto.

- Não vou a lugar nenhum. Estou pesquisando para minha jovem prima.

- Ah, céus, vai mandar Caroline fazer uma viagem pelo continente? Eu desejei tanto isso... Ela precisa ir a Paris, claro, e...

- Não, não é uma viagem pelo continente - resmungou ele. - Busco informação sobre lugares bem específicos, para onde as jovens vão às vezes, mas parece que nenhum
desses autores tem nada de especial sobre eles.

Henrietta franziu o cenho.

- Que tipo de lugar?

Ele colocou o livro na prateleira e tirou outro.

- Conventos.

- Conventos!

Rose achou que Henrietta ia precisar de sais. Alexia a acalmou e se dirigiu ao marquês.

- Tenho certeza de que está brincando. Por favor, diga à sua tia que está querendo irritá-la de novo.

- Gostaria de estar. Na verdade, gostaria que Hayden assumisse seu papel de responsável por isso, em vez de me deixar mexendo em assuntos que não entendo e não me
interessam.

- Viram? Ele ainda não a perdoou por aquele flerte com Suttonly no verão passado - disse Henrietta, alto. - Ela obedeceu a sua ordem, Easterbrook. Há semanas que
não pronuncia o nome dele.

- Henrietta, o verão passado já foi bastante ruim, mas lastimo dizer que estou às voltas com mais um daqueles desastres causados pelas jovens. Prever um duelo por
ano já bastava, obrigado. Mas ter de me preparar para dois é uma provação para a minha paciência.

Ele franziu o cenho para os livros e tirou mais um da estante.

- Vou me livrar logo desse dever maçante. Vou duelar com o sujeito, deixá-lo bem ferido, mandar Caroline para um convento e ficar sossegado por alguns anos, pelo
menos.

Henrietta chorou. Easterbrook continuou a mexer calmamente nos livros. Alexia tentou ser diplomática.

- Sua tia e eu não sabemos de nenhum admirador de Caroline no momento. Acho que está enganado.

Ele fechou o livro com força.

- Não se trata exatamente de um admirador. Trata-se de um sedutor. Não estou enganado, Alexia. Lastimo dizer que estou convencido de que Caroline já perdeu sua virtude.

Isso causou um susto. Henrietta se espantou tanto que ficou ofegante e boquiaberta. Depois chorou copiosamente.

- E quem é esse homem? - exigiu saber Alexia.

- Aquele químico francês. Amigo de Bradwell.

Henrietta parou de chorar. Arregalou os olhos. Olhou de esguelha para ver a que distância dela estava o marquês.

- Garanto que está enganado - disse Alexia.

- Vi-o esta manhã mesmo. Ao nascer do dia, eu estava olhando o jardim pela janela e o vi. Saindo desta casa.

Ele deu uma olhada preocupada para a tia.

- Agora tenho de ser babá também, tia Henrietta? Até eu me impressiono por se descuidar tanto dela. Eu, que não dou a menor importância a essas coisas.

Henrietta ficou imóvel. Easterbrook estava atrás dela, então não viu o que Rose e Alexia viram. O rosto da jovem senhora ficava cada vez mais vermelho.

Rose olhou para Alexia exatamente quando Alexia se voltava para ela. As duas encararam Henrietta.

- Easterbrook, continuo achando que está enganado - insistiu Alexia. - Se foi ao nascer do dia, não era possível ver direito o que era, ou quem. Talvez um dos jardineiros
estivesse andando por ali.

- Não, Alexia. Era ele.

O marquês desistiu de olhar os livros.

- Infelizmente, esses livros não trazem indicação de conventos. Vou pedir ao advogado que faça umas pesquisas discretas. Um convento na França, por exemplo, para
tia Henrietta poder visitá-la uma vez por ano.

Quando Easterbrook seguiu em direção à porta, Alexia se pôs no caminho dele.

- Mesmo se estiver certo e fosse ele no jardim, isso não prova que esteve na casa. Nem que procurou Caroline. Afinal, podia estar atrás de uma das criadas.

Ele a olhou com carinho, como sempre.

- Vi-o flertando com ela no casamento da sua prima. Fui descuidado em não avisar, mas Henrietta estava com eles e concluí...

Todos congelaram enquanto a cena pairava no ar. Rose quase conseguiu ouvir o marquês recapitulando, pensando, rejeitando... reconsiderando.

Easterbrook virou e olhou para a tia. Moveu a cabeça, observando-a. Ela estremeceu enquanto ele examinava o chapéu novo, o penteado diferente e o viço recém-adquirido.

- Alexia, seu valoroso bom senso me poupa de cumprir obrigações desagradáveis. Eu talvez tenha sido um pouco precipitado ao pensar o pior de Caroline. Talvez não
fosse monsieur Lacroix que estivesse no jardim.

Pediu licença. Da porta, antes de sair, ele voltou a falar.

- Contudo, caso tenha sido... Henrietta, por favor, fale com as criadas. Se uma delas está recebendo um homem, espero que os dois se divirtam. Mas é melhor que ele
saia quando ainda estiver escuro, de forma que não haja mais nenhum mal-entendido.

 

Rose atravessou a porta que ligava seu quarto de vestir aos aposentos de Kyle. Ele não iria procurá-la nessa noite. Suas regras haviam chegado. Encontrar uma maneira
delicada de dizer isso a ele exigira muita habilidade sua. Ele parecera achar graça das sutilezas que a esposa usara, mas a havia compreendido.

Ela ouviu a voz de Jordan e o som do marido despindo-se. Depois, ficou tudo em silêncio. Abriu a porta. Os quartos de vestir não eram opulentos e espaçosos: o quarto
dele ficava a poucos passos. A lamparina ainda não tinha se apagado e ela percebeu as silhuetas do toucador, as escovas e o espelho dele.

Prosseguiu, deu uma olhada. As cortinas do dossel não tinham sido fechadas. Ele estava deitado, com o camisolão aberto mostrando o peito forte.

Ficou olhando. Não o via despido desde a noite de núpcias. Ela sempre apagava as velas e lamparinas, mesmo quando o procurava em Oxfordshire. A escuridão fazia a
cama misteriosa e sobrenatural e evitava um grande embaraço. Tornava mais fácil que ela se entregasse.

Ele estava com a cabeça apoiada nos braços dobrados. Parecia compenetrado, como se tivesse percebido algo no teto que exigisse sua atenção. Mas estava tão imóvel
que talvez nem estivesse acordado.

- Kyle, está dormindo? - sussurrou ela.

Ele se sentou na cama. Olhou para a esposa e observou sua camisola e o penhoar, que não eram nem novos nem tão bonitos.

- Acordei você? - insistiu ela.

- Não. Estava pensando em alguns problemas que tive hoje.

- Sobre terras, associações de mineiros e coisas assim?

- É.

Ela entrou no quarto cautelosamente.

- Alexia combinou de algumas damas me visitarem. Bom, não a mim, mas a Henrietta. Porém elas sabiam que eu estaria junto e foram mesmo assim.

- Venha aqui me contar isso.

Ela subiu na cama e contou sua pequena vitória.

Ele pareceu muito interessado.

- Lady Alexia age rápido.

- Ela ainda acredita que Irene tem chance de ser apresentada nessa temporada, acho.

Irene não tinha saído da casa de Alexia. Todos achavam que sua única esperança era que a prima a apresentasse à sociedade.

- Quando ela der esse jantar, você deve usar um vestido novo - disse ele. - Vou mandá-la para lá tão bem-vestida que será a mulher mais elegante da mesa.

- Talvez você me acompanhe, em vez de apenas me mandar ao jantar.

- Pouco provável. Lady Alexia é esperta demais para lutar em duas frentes ao mesmo tempo.

- Então não sei se vou querer ir.

A expressão no rosto dele mudou um pouco, o suficiente para ficar indecifrável.

- Quer saber de uma fofoca? - perguntou ela. - É sobre alguém que você conhece.

- Todo mundo quer saber de uma fofoca, principalmente sobre alguém que se conhece.

- É fofoca das boas. Tudo indica que seu amigo, o Sr. Lacroix, está tendo um caso com... Henrietta!

- Quais são as provas?

- Ninguém menos que Easterbrook o viu saindo da casa. Você acredita?

- Que indiscrição de Jean Pierre. Devo avisá-lo?

- Desde que não seduza Caroline, acho que Easterbrook não se importa se ele ficar com todas as mulheres da casa. Quanto a Henrietta, o marquês pareceu encantado
e feliz por poder cutucá-la sobre isso nos próximos anos.

Eles riram. Foi bem agradável ficar ali de noite, conversando sobre fatos do cotidiano. Mas quando terminou a história, Rose sentiu que o marido estava se distraindo
outra vez. Os olhos dele ficaram insondáveis como quando ela havia chegado ao quarto.

- Bom, boa noite - disse ela, saindo da cama.

Ele pegou sua mão.

- Fique.

Talvez as palavras brandas que ela usara tivessem sido vagas demais.

- Eu... quero dizer, hoje eu... estou naquela semana em que...

- Fique, mesmo assim.

Rose sentiu algo diferente no coração quando, sem jeito, entrou embaixo dos lençóis. Kyle apagou a lamparina e a escuridão envolveu a casta intimidade dos dois.
Ele a abraçou.

Ela não dormiu logo. Ficou preocupada com a novidade daquele tipo diferente de afeto.

- Preciso ir ao norte outra vez - disse ele, e sua voz não a assustou, tão calma veio na noite. - Daqui a duas semanas, talvez. Não vou ficar mais de uma semana.

- Posso ir junto? Você disse que iríamos na primavera, mas, se vai agora, eu também gostaria de ir.

- A viagem vai ser no frio. E você tem aquele jantar.

- Alexia pode marcá-lo de acordo com a viagem. E não tenho medo de um pouco de frio.

Duas semanas antes, ela jamais pediria para ir. Mesmo alguns dias antes, ela poderia ter apenas deixado a informação passar. Mas agora queria muito ver como fora
a vida dele. O abraço nessa noite a emocionou, mas também deixou bem claro que, mesmo com tanto prazer, havia um vazio naquele casamento que ela não conseguia explicar.

Não sabia se um dia esse vazio seria preenchido. Talvez Kyle fosse sempre um pouco estranho. Talvez ele preferisse assim. Ela não tinha ao menos certeza se gostaria
do que seria preenchido, se isso ocorresse. Só sabia que o vazio parecia grande nesta noite, talvez porque uma nova emoção o destacasse. Sua alma quase doía por
desejar algo tão fora de alcance.

- Veremos - disse ele. - Amanhã vou para Kent e passarei uns dias lá. Você não pode ir, já que iniciarei algumas obras e só haverá operários, muita lama de inverno
e eu...

Algumas obras. Em Kent. Devia ter sido o trabalho que fora tratar com Norbury no dia do leilão.

Súbito, entendeu por que Kyle estava tão pensativo na hora em que ela entrou no quarto. Devia ter encontrado Norbury. Talvez naquele mesmo dia.

Ele jamais a deixaria saber se Norbury os insultara. Jamais contaria se pensava naquele caso. Mas Rose tinha certeza que sim. Talvez até naquele instante, enquanto
os pensamentos vagavam pela noite.

Ela podia saber mais sobre ele e começar a preencher aquele vazio. Eles podiam ter muitas noites como essa, em que conversavam como amigos e não como amantes.

Entretanto, não importava o que acontecesse, não importava quanto tempo ficassem casados, Norbury seria uma sombra entre eles, afetando tudo, mesmo as coisas boas,
ainda que nenhum dos dois jamais pronunciasse o nome dele.

Esse pensamento quase estragou aquela noite agradável. Norbury tinha entrado na cabeça dela. E quase dava para ouvi-lo falando na de Kyle. Sua influência malévola
ficou tão opressora que ela pensou em sair da cama.

Kyle virou de lado, dormindo. O braço ficou casualmente sobre ela. A mão estava sobre o seio, num gesto ao mesmo tempo confortador e possessivo. Ficou assim a noite
toda, impedindo-a de escapar.

 

CAPÍTULO 12

Kyle estava em Kent fazia dois dias quando Roselyn recebeu a carta. Tinha sido reenviada de Watlington. Reconheceu a letra na hora: Timothy tinha escrito outra vez,
embora a carta estivesse assinada como Sr. Goddard.

Dessa vez, não escrevera de Dijon, mas de uma cidade italiana chamada Prato.

 


Finalmente atravessei os Alpes. Estou morando aqui por ser menos dispendioso do que Florença. E também por haver menos possibilidade de eu ser reconhecido. A viagem
foi exaustiva e o clima, horrível. Tive medo de morrer. Passei mal quase todo o tempo. Agora vivo entre estranhos cuja língua ignoro e sofro de uma tristeza grande
demais para aguentar.

Pretendo ficar aqui até que venha ao meu encontro. Por favor, escreva logo, dizendo que vem. Só verei o sol na minha janela quando você chegar. Conte-me seus planos,
de forma que eu tenha algo por que esperar.

Rose, meu bolso se ressentiu da longa estada em Dijon e dos honorários dos médicos, que não serviram para nada, mas foram caros. Quero que venda a casa e o terreno
em Oxfordshire e traga o dinheiro. Esta carta a autoriza a fazer isso em meu nome. Leve-a a Yardley, nosso velho advogado. Ele reconhecerá minha letra e lhe dirá
o que fazer. Eu o autorizo a ser meu procurador na venda caso, por ser mulher, você não seja aceita. Se houver mais exigências, escreva-me imediatamente, de maneira
que possamos efetuar a venda o mais rápido possível.

Sei que ainda faltam meses, mas conto os dias na esperança de que ainda seja minha adorável irmã de sempre, um coração bondoso que me deu força por quase a vida
inteira. Prometo que tudo vai melhorar quando estivermos juntos outra vez.


Timothy

Ele ainda parecia perdido e só. A menção a uma doença não ajudava a melhorar as coisas. Rose não sabia se deveria torcer para que ele estivesse se referindo a passar
mal por excesso de bebida, já que esse era o grande fraco do irmão, ou por outro motivo.

E agora ela não podia ir encontrá-lo, por mais doente que ficasse. Ele jamais saberia que, por um curto espaço de tempo, quando passara algumas horas de grande felicidade
deitada numa colina, ela cogitara fazer isso.

Ela também não podia negar a verdade por trás da escolha que fizera. Ao aceitar o pedido de Kyle, deixara de lado as necessidades do irmão para tentar salvaguardar
a própria vida e a de Irene na Inglaterra - o que talvez se tornasse uma necessidade desesperada. Se não agora, um dia.

Ele afirmara estar ficando sem dinheiro. Isso despertara um pouco de raiva em Rose. Ela havia sobrevivido com quase nada esses meses todos. Ele deveria ser mais
controlado, em vez de gastar todo o dinheiro que roubara.

Deu um suspiro, tão fundo que o corpo todo estremeceu. Timothy estava sendo apenas Timothy. Sem a influência dela, continuaria sendo a pior versão de si mesmo. Ela
não podia salvá-lo. Não agora, depois de Kyle ter dito tão claramente que ela jamais iria ao encontro do irmão. Mas não podia abandoná-lo, como Kyle esperava.

Chamou a criada e trocou o vestido matinal por um conjunto para usar em carruagem. Tinha de encontrar Alexia na modista e encomendar alguns trajes novos. Mas antes
iria ao centro financeiro da cidade. Precisava saber se ainda podia ajudar o irmão.

 

Kyle observou o engenheiro perfurar a terra dura para conferir novamente o terreno antes de iniciar as fundações.

A uns 200 metros, outro homem marcava as árvores que seriam derrubadas e as que seriam poupadas quando a nova estrada fosse construída. Kyle imaginou a casa que
dali a pouco se ergueria ao lado daquele matagal.

Se tudo saísse conforme planejado, dentro de dois anos haveria famílias morando naqueles campos e carruagens passando por novas estradas. A propriedade de Cottington
seria valorizada e seus parceiros veriam os lucros.

Incluindo ele. Kyle ainda estava andando na corda bamba. Era bom e experiente em se equilibrar. Não chegava a perder o sono por causa dos riscos. Mas, como qualquer
homem, ele preferia ter os pés firmes no lado com dinheiro daquela corda.

O operário que marcava as árvores o chamou e fez um gesto apontando para o sul. Kyle olhou para a estrada naquela direção. Atrás da carroça que trazia as ferramentas
a serem usadas nesse dia, vinha uma carruagem.

Ele reconheceu o veículo. Foi até a estrada e chegou ao mesmo tempo que Norbury saltava.

- Espero que não tenha vindo da cidade só para ver o andamento da obra - disse Kyle. - Ainda não há muito o que conferir.

Sob a aba do chapéu de copa alta, Norbury olhou a elevação de terra.

- Estou oferecendo uma recepção na minha mansão. Resolvi vir aqui antes que os hóspedes chegassem.

Norbury olhou atentamente para Kyle, querendo avaliar sua reação. Kyle o deixou olhar à vontade. Não precisava que Norbury o lembrasse da última festa que tinha
dado. A imagem da humilhação de Rose vinha sempre à cabeça, sem que ninguém precisasse ajudar.


E ela chegou trazendo fúria e uma urgência de espancar o visconde. Kyle tinha controlado essa vontade na última vez em que se encontraram. Agora ela voltava e o
deixava tenso.

- Espero que essa festa seja mais discreta do que a última. Se espalharem o boato de que fazem orgias aqui perto, essas casas jamais serão compradas.

- Aposto que serão compradas mais rápido.

Norbury fez um gesto para que Kyle o acompanhasse.

- Vim falar de assuntos de interesse mútuo, além dessas casas. Recebi um recado de Kirtonlow Hall. Meu pai sofreu uma leve apoplexia. O médico disse que ele não
vai durar muito.

- Ele é mais forte do que a maioria. Pode durar mais do que os médicos imaginam.

Mais do que você espera. O filho era tão diferente do pai que nunca houvera muito afeto entre eles. De diversas maneiras, o conde deixara claro a seu herdeiro quanto
ele o decepcionava.

Não era apenas a capacidade intelectual de Cottington que não passara despercebida a Norbury. Algo fundamental faltava no filho, além de inteligência. Ele parecia
não ter a empatia natural que um ser humano sente pelos demais. Ou ter uma empatia deformada. Norbury não seguia os princípios morais que costumam guiar as pessoas
em assuntos grandiosos ou corriqueiros.

- Podemos desejar que ele viva para sempre, mas ninguém consegue - falou Norbury com uma sobriedade dramática. - Quanto ao outro assunto que eu queria tratar com
você, os vivos podem influenciar. Andei pensando no seu casamento.

Kyle apertou o passo, fazendo com que o outro o seguisse na estrada. Olhou para trás, para saber a distância que estavam dos operários. Será que veriam ou ouviriam
se ele quebrasse o queixo de Norbury com um soco?

- Pode parar de olhar para mim como um boxeador se preparando para uma luta - disse Norbury. - Sua decisão de se casar com uma mulher dessas é loucura. Estou mais
interessado no irmão dela e em como esse casamento muda nossos planos em relação a ele. Depois de me recuperar do choque de você se juntar a ela para sempre, vi
uma luz na escuridão.

- A única luz que existe é a da minha felicidade na escolha da minha esposa. Timothy Longworth foi embora. Nem ela nem eu temos ligações com ele.

- Ele não escreve para ela? É bem provável que sim.

- Não tem por quê.

- É irmã dele. Você precisa ver as cartas que ela recebe, assinada com o nome verdadeiro ou de Goddard. Veja qualquer carta enviada do continente, principalmente
da Itália.

- Não.

- Vai economizar muito tempo. Se ele escrever para ela, teremos...

- Não. Estou fora disso. Não quero participar e não vou ajudá-lo.

Um aperto no braço. Era a ordem de parar. Kyle olhou para Norbury, cujo rosto tinha perdido qualquer traço de gentileza.

- Céus, com que rapidez o cavaleiro puro foi seduzido e maculado. Esqueceu rápido seus lindos ideais sobre justiça, Kyle.

- Não vou espionar minha esposa.

- Não espione. Faça com que ela lhe conte.

- Ela não vai nos dar de bandeja a cabeça do irmão na nossa forca. Nem eu vou pedir.

- Porcaria nenhuma! Não há desonra nisso. Maldição, assim você vai até protegê-la.

A explosão de Norbury despertara seu pensamento. Seus olhos ficaram dissimulados.

- Na verdade, se não fizer isso, vai colocá-la em risco - concluiu.

Norbury podia ter um raciocínio lento, mas funcionava quando necessário. Kyle viu novas ideias surgindo, transformando seu rosto numa máscara de presunção.

- Ela decerto foi cúmplice desde o começo - disse Norbury.

- Claro que não.

- Maldição, eu devia ter percebido antes. Isso explica o reembolso feito por Rothwell. Não estava poupando um homem que já tinha escapado de nós, mas a cúmplice
que ficara para trás. Ela pode até estar com quase todo o dinheiro aqui, na Inglaterra. Aquela humildade era um disfarce para afastar suspeitas. Maldição, Longworth
nem era tão inteligente. Deve ter sido tudo ideia dela...

- Está falando bobagem.

- Até mesmo o que teve comigo. Pensei que eu a tivesse seduzido, mas vai ver ela quisesse ficar perto de mim para saber se as vítimas estavam prestes a descobri-la.
Seria irônico, não? Se ela estivesse o tempo todo...

- Continue insinuando isso e mato você.

- Está tão encantado pela beleza dela que é capaz de arriscar tudo? Duvido. Daqui a alguns meses não estará mais tão embevecido com seu grande prêmio. E verá o que
há por baixo da bela aparência. O irmão é ladrão e ela mesma mostrou ter caráter fraco e imoral.

Kyle agarrou Norbury pelo colarinho. Puxou-o e o levantou do chão.

- Eu avisei.

Norbury arregalou os olhos e inclinou a cabeça para trás.

- Ouse dar um soco e eu não vou me conter. Acho que um juiz gostaria de ouvir a questão e refletiria bastante antes de achar que estou errado. Meu ponto de vista
pode dar um bom processo. Com um pouco de esforço, talvez até se encontrem algumas provas.

A ameaça era óbvia. Justiça corrupta ainda era pior do que falta de justiça e um lorde tinha muitas formas de conseguir a primeira.

Kyle mal conteve a própria fúria. Soltou o colarinho de Norbury, que se ajeitou, alisando a roupa e ajustando a gravata. Endireitou-se e olhou com o deleite de um
homem que, de súbito, se descobria com um ás na mão.

- Descubra onde está o bastardo, Kyle - ordenou Norbury, já andando em direção à carruagem. - Com toda a honra que você acha que tem, não vai lhe fazer falta sacrificar
um pouco dela.

 

Assim que Kyle voltou de Kent, Rose percebeu que ele tinha encontrado Norbury novamente. Ele carregava uma nuvem pesada para dentro de casa. Sua expressão estava
diferente, mais dura que de hábito.

Naquela noite, quando se sentou para jantar, tratou-a como sempre. Até a ouviu pacientemente contar como foram os dias em que estiveram longe um do outro. Mas a
presença de Norbury na cabeça de Kyle era tão evidente que o outro bem podia estar à mesa com eles.

Quando o criado foi dispensado, ela se preparou. Era melhor desanuviar o ambiente e saber o que o estava preocupando. Isso não queria dizer que ela ficasse feliz
com uma possível discussão.

- Rose, quando ficou em Oxfordshire, recebeu alguma carta de seu irmão? Refiro-me a alguma além daquela da primeira vez em que fui visitá-la.

Ela não esperava essa pergunta, ou assunto. Não fosse pela intensidade com que o marido fizera a pergunta, ela podia ter contado tudo. Mas se conteve, tentando imaginar
por que ele perguntava e se a resposta tinha importância.

- Creio que ele escreveu pelo menos mais uma vez - acrescentou Kyle.

- Sim. Uma.

Era verdade, mas não toda ela. Rose havia recebido só mais uma carta quando estava em Oxfordshire.

- Então eu tinha razão: quando você falou em ir embora para sempre, era com ele.

Ela assentiu.

O fato de ter razão não alterou o humor dele.

- Não quero que tenha mais qualquer contato com ele, Rose. Se ele escrever de novo, queime as cartas sem ler. Não as guarde. Nem sequer veja de que cidade ele escreveu.

Ela ficou um bom tempo em estado de choque, sem conseguir pensar. Então o choque foi substituído pela raiva.

- Antes de nos casarmos, você disse que eu jamais poderia encontrá-lo, nem para visitas. Não disse que não podia escrever ou receber cartas dele.

- Eu disse. Mas, caso tenha entendido mal, estou repetindo agora.

- Eu disse que não o consideraria morto, mas agora você exige que eu aja como se estivesse.

- É.

O olhar dele era de ordem, mais do que a voz.

Ela se levantou e saiu da sala de jantar. Buscou um pouco de privacidade na biblioteca. Para sua surpresa, ele foi atrás.

- É melhor me deixar sozinha para aceitar o que você exige em relação a meu irmão - avisou.

- Preciso saber se aceita mesmo. Quero a sua palavra de honra.

- Minha palavra de honra? E o que me diz da sua? Se a minha puder mudar com a mesma rapidez, eu a dou com prazer. Naquele dia, você me convenceu de que tinha retirado
essa exigência.

Ela pensou que a culpa poderia amaciá-lo. Só que aumentou a raiva.

- Tenho um motivo para exigir isso. Gostaria que você acreditasse em mim, mas, se não acreditar, isso não muda nada. Você sabe como é o seu irmão. Você mesma disse
que ele é um perigo para você. Não pode ter contato com ele.

- Ele é meu irmão.

- Ele é um ladrão covarde. Um criminoso.

A firmeza de Kyle a surpreendeu. Ela o olhou atônita, surpreendida pela força que emanava dele, vendo-a e a sentindo sem controle.

Ele se acalmou, mas a tensão ficou no ar.

- Rose, você entende o que ele fez? Quantas pessoas ele roubou?

- Lorde Hayden...

- Lorde Hayden impediu que as vítimas ficassem na miséria total. Quanto você acha que ele pagou?

Ela se sentiu como uma criança na escola tentando adivinhar a resposta de uma conta.

- Muito dinheiro. No mínimo 20 mil.

A raiva chegou a dar expressão à risada curta e baixa que ele soltou.

- Essa quantia não faria a menor diferença para Rothwell. Pense na casa onde sua prima ainda mora. Ela lhe mostrou alguma joia nova? Ou trajes novos? Pense neles
e nos tecidos e enfeites que ela usa.

Rose sentiu o estômago embrulhar. Nunca tinha calculado a quantia, em parte porque sabia o suficiente para desconfiar que não gostaria da soma total.

- Quanto? - perguntou ela, num sussurro.

- Ao fim e ao cabo, no mínimo 100 mil libras. Talvez muito mais.

Ela arquejou. Quanto dinheiro!

Kyle se aproximou. Os olhos dele tinham um pequeno brilho solidário em meio a todos os de raiva.

- Seu irmão não sabia que Rothwell iria reembolsar nem uma libra. Presumiu que cada vítima simplesmente amargaria o próprio prejuízo. Assim como os clientes, quando
o banco faliu. Ele não roubou só dos ricos, mas de velhinhas, órfãos indefesos e pessoas que dependiam dessas reservas para viver.

- Tenho certeza de que ele não entendeu bem... Ele não podia... de propósito...

- Claro que ele entendeu. Tudo. Com toda a certeza, fez de propósito.

De novo, Kyle controlou a raiva. Foi visível seu esforço de se recompor.

- É tão estranho assim que eu queira que corte relações com um homem tão canalha?

Ela já não conseguia enxergar Kyle direito. Virou-se e tentou conter os soluços. Meu Deus, 100 mil libras! E Alexia e Hayden...

Enxugou os olhos e tomou fôlego.

- Você disse que conhece pessoas que perderam dinheiro. Quem são elas?

Por um instante, Rose pensou que ele não fosse responder.

- Meus tios.

Ela teve outro choque. Não eram amigos, mas pessoas da família.

- Porém foram ressarcidos, não?

- Sim, foram. É assim que você justifica, quando pensa no seu irmão? Pelo menos as vítimas foram ressarcidas. Pelo menos apenas uma vítima pagou caro em vez de dúzias
perderem tudo? É assim que você o desculpa?

- Eu não o desculpo.

- Acho que desculpa. Ele é seu irmão e você busca motivos para diminuir a culpa dele. Mas ele não é meu irmão, Rose.

Não, e Kyle não desculparia nada. Não se sentia nem um pouco solidário, nem tinha intenção de salvá-lo. Se Tim fosse preso, Kyle acharia justo que fosse para a forca.

Ela não tinha palavras para argumentar. Não tinha nada para contrapor, a não ser o amor por um irmão que tinha sido uma pessoa bem melhor quando criança do que adulto.

Ela pensava que Kyle fosse ao menos entender, se não aprovasse. Mas ele estava implacável, irredutível e disposto a fazer com que ela condenasse Tim como todo mundo.

- Você vai cortar qualquer contato com ele - repetiu. - Se tem cartas, queime-as. Se receber mais uma, destrua-a imediatamente.

Ele saiu da biblioteca. Não tinha pedido que ela prometesse, tinha ordenado. E ela deveria obedecer.

 

Naquela noite, Rose pensou em trancar a porta de seu quarto de vestir.

Nunca tinha feito isso. Não se importava que ele a procurasse todas as noites. Era a esposa, ele tinha esse direito e nunca saíra do quarto sem que ela tivesse alcançado
toda a liberdade que o prazer podia proporcionar.

Essa noite era diferente. Não tinha certeza se reagiria ao toque dele. Após a discussão, um silêncio duro como pedra caíra sobre a casa. E ainda afetava o ambiente
e ela.

Nessa noite, uma pequena parte de Kyle que ela ainda desconhecia se revelara. Ficara espantada com a força de vontade dele. Já a havia percebido antes, mas vê-la
dirigida a ela a assustara um pouco.

Devia ter suposto quanto ele era seguro. Em relação a si mesmo e às decisões que tomava. Sem isso, ele não teria sobrevivido no caminho que percorrera. Poucos homens
saíam de um vilarejo de mineiros de carvão para as salas de visitas de Londres em pouco mais de dez anos.

Poucos homens nascidos num vilarejo assim pediriam Roselyn Longworth em casamento, independentemente das condições em que estivessem suas finanças, sua reputação
ou o status de sua família.

Ela ficou na frente da porta, olhando a tranca. Não era a primeira vez que achava que, com esse homem, não devia agir guiando-se pelo capricho. Não que ele fosse
derrubar a porta se ela a trancasse. Acreditava que ele nem sequer se irritaria.

Em vez disso, imaginava que duas coisas poderiam ocorrer. Ou os dois teriam uma conversa igual à anterior, em que ele diria o que aceitava ou não que ela fizesse
ou haveria frieza e formalidade na cama na próxima vez que ele a procurasse, podendo se estender para as seguintes por bastante tempo. Talvez até para sempre.

Ela se afastou da porta e voltou para a cama. Apagou as lamparinas como fazia todas as noites e foi envolvida pela escuridão.

Talvez ele não viesse, embora já fizesse alguns dias que não se encontravam, por causa das regras dela e do tempo que ele passara em Kent. Sem dúvida, ele sentia
que a discussão ainda ecoava na casa. Tinha se retirado para o escritório e o trabalho, mas talvez as palavras ressoassem na cabeça dele como faziam na dela.

O coração dela ainda batia pesado ao lembrar como ele via a culpa de Tim. Cem mil libras. Ela às vezes pensava em reembolsar Alexia e Hayden, mas jamais poderia
ressarcir uma quantia dessas. Jamais. Por isso Alexia fora tão enfática ao desencorajá-la de encontrar Tim na Itália.

Só que agora ela estava casada com um homem que teria prazer em enforcar Tim com as próprias mãos. Não podia defender o irmão. Não podia dizer que Kyle estava errado.
Mas uma irmã não julga com base no certo e no errado, na justiça.

Cem mil libras. Como uma quantia dessas podia estar chegando ao fim? Tim dizia que precisava de mais dinheiro, e ela acreditava nele.

Um movimento sutil no quarto a tirou de seus pensamentos. Abriu os olhos na escuridão. Kyle estava ao lado da cama, não passava de uma silhueta negra no quarto sem
luz.

Tinha vindo, afinal. Isso a surpreendeu. E também a reação que teve: o coração bateu de alívio antes que ela conseguisse se controlar.

Kyle parecia estar à espera de algo ou decidindo alguma coisa. Ela não sabia o quê. Mexeu-se na cama e isso fez as cordas que sustentavam o colchão reclamarem.

Kyle também fez sons e movimentos quase imperceptíveis. Roupão caindo. Calor se aproximando. Braços se esticando e peles se tocando. Ela respirou e o sentiu inteiro
na cama, aquela presença total que transformava a noite.

Ele soltou o laço da camisola, fazendo-a escorregar pelos ombros e o corpo de Rose.

- Obrigado por não trancar a porta.

Será que ele a ouvira discutindo consigo mesma? Como era típico dele tocar no assunto, em vez de deixar que fosse uma escolha silenciosa. Rose esperava que não comentassem
também o motivo para ela pensar em trancar.

As carícias e o beijo mostraram que não comentaria.

- E se eu tivesse trancado?

Ela já nem estava muito interessada na resposta. As deliciosas palpitações da excitação a distraíam.

- Não sei. Ainda não havia decidido o que faria quando tentei abrir a porta.

Ela não pensou na resposta, apenas percebeu o perigo daquela incerteza. Mas o prazer já desviava sua atenção. Seduzia-a. Isso também era perigoso. O prazer embotava
os pensamentos e colocava tudo sob a melhor perspectiva.

Kyle se assegurava de que ela gostasse. Com suas carícias e beijos hábeis e firmes, levava-a à entrega que tinha se tornado tão habitual, tão atraente. O prazer
obrigava a uma espécie de abandono, concluiu ela. Abrir mão de ser racional e de si mesmo. Nunca chegara a compreender isso antes.

Dali a pouco, ela não entendia mais nada, nem mesmo a discussão. A névoa de sensações obscurecia tudo, menos o desejo de que ele lambesse seus seios e beijasse sua
barriga e tocasse a carne que ansiava por ser penetrada.

Kyle a tirou do colchão e a sentou em seu colo com as pernas afastadas. Puxou-a pelo quadril e a penetrou tão fundo que ela gemeu com a deliciosa sensação de completude.

Ele roçava os mamilos dela com as mãos e ela ganhava vida onde seus corpos se uniam. Diretamente. Maravilhosamente. A excitação desceu direto por seu corpo e se
instalou ao redor da completude que ele proporcionava.

- Venha aqui.

No escuro, Kyle a puxou para a frente até deixá-la apoiada sobre os braços. Seus seios pairavam acima dele. Ele então substituiu as mãos pela boca. O prazer aumentou
tanto que ela arfou. O jeito como a excitava era bom demais, urgente demais, irresistível demais para que ela conseguisse se controlar minimamente que fosse.

Ela se entregou à loucura, gritando e gemendo e se mexendo para senti-lo mais, melhor, mais firme. Ele a segurou pelas coxas e a penetrou com força para atingir
o ápice. Ela ficou completamente dominada.

Quando ele terminou, ela continuava excitada. Apesar das muitas ondas de prazer e entrega, o corpo dela ainda tinha fome. Ele percebeu. Colocou-a de costas e a acariciou
de novo, desta vez nas dobras da carne sensível e pulsante.

Ela quase desfaleceu. Agarrou-o com as unhas para fugir do prazer quase doloroso. Ouviu-o como naquela primeira noite, dizendo-lhe que se entregasse.

Dessa vez, foi o mais doce dos gozos. Primeiro a atingiu com força, depois se espalhou em turbilhões que deixaram seu corpo atônito. Ela se maravilhou nessa sensação
e prendeu o fôlego para que durasse para sempre.

Não durou, claro, ainda que seu corpo tenha demorado a entender isso.

Os acontecimentos anteriores da noite voltaram junto com a noção de espaço e tempo. Talvez tivessem saído dos pensamentos de Kyle também, banidos pelo delírio.

Ele não ficou por muito tempo depois que ela recobrou os sentidos. Naquele breve período tão saturado de paz, ela sentiu a sombra nele.

Desconfiou de que ele não esquecera aquela discussão, nem mesmo no momento do orgasmo. Tinha-a procurado nessa noite em parte por causa da briga. Havia deixado claro
que tais coisas jamais ficariam entre eles naquela que era a parte mais fundamental do casamento. Ele também se assegurara de que ela não se incomodaria com isso.

Esse frio cálculo não mudou a verdade de como ele a tratava. Se Kyle trouxera alguma raiva para aquela cama, não demonstrara. Como sempre, ele tivera consideração
e pedira pouco dela, além de que tivesse prazer.

Rose pensou uma coisa. Uma coisa incrível. Quem era ele e quem era ela, a forma como se encontraram, o escândalo e a redenção influenciavam tudo. Principalmente
o que acontecia naquela cama na melhor e na pior das noites.

 

CAPÍTULO 13

Kyle não havia mentido. No final de janeiro, a estrada para o norte era fria. Quando entraram no condado de Durham, o céu estava baixo, com nuvens de chuva.

Mais para o norte, a paisagem ficava montanhosa e cada vez mais deserta. Passaram por vilarejos pequenos e grandes. Rose identificou aqueles onde os mineiros viviam.
Os resíduos da mina, que os trabalhadores carregavam em seus corpos e roupas, deixavam marcas pelo caminho.

Quando se aproximaram de Teeslow, ela ficou nervosa. Kyle não tinha estimulado que ela fosse, mas concordara por insistência dela. Rose queria conhecer sua casa
e os tios, mas talvez não fosse bem-vinda.

- Você tem outros parentes além deles? - perguntou ela.

- Morreram. Meus tios tinham duas filhas mais jovens que eu. Morreram de cólera quando eu estava em Paris.

- Você sempre morou com eles?

A conversa parecia não incomodá-lo, mas tampouco lhe agradava.

- Meu pai morreu num acidente na mina, quando eu tinha 9 anos. Minha mãe tinha morrido alguns anos antes. O irmão dela ficou comigo.

Dali a pouco, a carruagem deles entrou no vilarejo. Rose olhou as poucas ruas e lojas, os amontoados de casas. Pó de carvão cobria as soleiras e batentes de algumas
casas, além do rosto e das roupas de algumas pessoas.

Kyle e Rose não pararam no vilarejo, continuaram em outra estrada que ia para o norte. No final dela, havia uma linda casa de pedra. Com dois andares, era parecida
com as casas menores encontradas no sul do país, geralmente destinadas a um administrador ou caseiro.

- Não esperava que fosse assim - disse ela.

- Pensou que seria uma casinha de cinco cômodos, no máximo? Eles moraram anos numa assim, lá no vilarejo. Há cinco anos, construí essa casa para eles.

Ele saltou da carruagem.

- Vou entrar, espere aqui. Eles não sabiam que eu vinha, e você vai ser uma surpresa total.

Foi até a porta, abriu-a e sumiu. Rose observou a casa. Viu o rosto de uma mulher, de relance, numa janela. Certamente, a tia olhava a surpresa total.

Ele estava sendo cuidadoso. Quando ela conhecesse seus parentes, os rostos disfarçariam o que pensavam, como ele também costumava fazer. Se não gostassem dela ou
achassem que não era uma boa esposa para o sobrinho, não demonstrariam isso num momento de surpresa.

Kyle voltou e estendeu a mão para ajudá-la a descer da carruagem. Uma mulher surgiu à porta, sorrindo para lhe dar boas-vindas.

- Rose, esta é minha tia, Prudence Miller.

Prudence tinha palavras amáveis e gestos afáveis.

- Ficamos muito contentes de você vir.

Esguia, de cabelos pretos e olhos brilhantes, Prudence tinha chegado à meia-idade com a beleza quase intacta. Rose a imaginou aos 20 ou 30 anos, de pele clara e
olhos escuros.

Como Prudence a recebeu sozinha, Rose concluiu que o tio de Kyle estivesse na mina. Assim que a levaram para a sala de visitas, viu que não era isso.

O tio Harold estava sentado perto da lareira. Tinha cabelos negros como os da esposa e era quase tão magro quanto ela. Apesar do rosto emaciado, Rose o achou parecido
com Kyle nos olhos azuis vívidos e nas feições de traços duros.

Ele a observou atentamente durante as apresentações. Rose notou sua palidez e o lençol que cobria suas pernas e o colo. Havia uma escarradeira numa mesa baixa perto
da perna direita dele. Tio Harold estava doente.

Os cumprimentos o fizeram tossir. Virou a cabeça e cuspiu na escarradeira.

- Você tem de fazer uma torta, Pru. Não podemos receber Kyle sem oferecer as tortas de que ele tanto gosta.

- Teremos uma no jantar - disse ela. - Esperem aqui um instante, vou ao andar de cima arejar um pouco o quarto.

Dava a entender que eles iam se hospedar lá. Kyle saiu e voltou com o cocheiro e as bagagens. A casa tinha um abrigo de carruagem e ele mandou o cocheiro para lá.

Carregou ele mesmo a bagagem para cima, seguindo a tia na escada. Rose sentou numa cadeira perto de Harold, que continuava a observá-la.

- É uma linda mulher, Sra. Bradwell. Agora entendo melhor este casamento.

- Espero que o senhor me trate por Rose.

Ele riu.

- Bom, vai ser uma experiência rara, tratar uma dama como a senhora com tal intimidade.

Tinha sido a imaginação dela ou havia um tom desaprovador na voz do tio? Considerando as circunstâncias do casamento, o "uma dama como a senhora" podia ter vários
sentidos.

Ela achava que o escândalo não podia ter chegado a Teeslow, mas talvez tivesse. Ou talvez Kyle houvesse explicado tudo em detalhes quando esteve lá, em dezembro.
Tenho a oportunidade de casar com uma dama porque ela está em tamanha ruína que nunca conseguirá algo melhor. A reputação dela vai me atingir, mas daqui a uma geração
ninguém vai lembrar muito disso.

Ela tentou manter uma conversa amistosa. Até o momento em que Harold começou a tossir. Ele estava com alguma doença muito grave. Rose se levantou para tentar ajudar,
sem saber como. Ele levantou a mão, impedindo-a. A tosse diminuiu e ele cuspiu de novo na escarradeira.

- Estou doente, como pode ver. É o mal dos mineiros. Achei que ainda teria uns bons dez anos de vida quando isso me atacou.

- Lamento.

Ele deu de ombros.

- Não se pode tirar o carvão sem levantar pó.

Kyle então voltou, poupando-a de encontrar o que dizer.

- Acho que vou roubá-la do senhor, tio. O quarto está pronto e Rose precisa descansar e se aquecer depois da viagem.

 

No quarto, Rose tirou o manto que usava em viagens e se aproximou da lareira.

- Seu tio está muito doente, não é?

- Está morrendo.

Ela assentiu, como se fosse óbvio.

- Ele disse que é o mal dos mineiros. Por causa do pó.

- Muitos adoecem dos pulmões. É de esperar, por isso levam uma vida tão controlada. Suas economias precisam ser suficientes para o sustento da família quando morrerem.

- É triste. Mas você fala sem emoção.

- A vida é assim, Rose. Essa doença é tão normal para esses homens como a gota é para os lordes. Um mineiro entra na mina sabendo disso, da mesma maneira que um
marinheiro embarca no navio sabendo que pode se afogar.

Kyle começou a desfazer sua mala. Nunca tinha levado Jordan lá, pelos mesmos motivos que ficara indeciso quanto a levar Rose. A casa não tinha nada de errado, mas
os tios não saberiam o que fazer tendo criados por perto.

Ele estava feliz de saber que Rose podia se virar sozinha. Do contrário, teria insistido em ficarem numa hospedaria, só que a mais próxima não seria conveniente.
Além disso, a tia ficaria ofendida se aquele casamento mudasse tão rapidamente os hábitos da família.

Mesmo assim...

- Você vai se sentir bem aqui? Se não for, pode me dizer.

Ela deu uma olhada no quarto, na cama sem dossel e nas cortinas de que tia Pru tinha tanto orgulho.

- É muito melhor que uma hospedaria. Vamos ficar juntos?

- Vamos.

Ela não pareceu se incomodar. Sentou na cama, depois se deitou.

- Acho que vou descansar um pouco. Nunca imaginei que viajar de carruagem vários dias pudesse ser tão cansativo.

 

Quando Roselyn acordou, Kyle tinha saído. Ela desceu a escada à procura dele.

Harold cochilava na cadeira ao lado da lareira acesa. Ela seguiu os sons que vinham da cozinha, nos fundos da casa.

Prudence estava lá trabalhando, sovando massa de torta. Sorriu e indicou o fogão com a cabeça.

- Aquele jarro em cima das pedras tem sidra e na mesa tem um copo, se quiser.

Rose se serviu e viu por uma janela dos fundos o pequeno pomar de árvores frutíferas novas, que estavam nuas agora, no frio do inverno. Havia um grande jardim no
lado oeste do pomar, à espera de ser cultivado na primavera.

- A casa é muito agradável - disse ela. - A vista de todas as janelas é linda.

- Kyle a construiu para nós. Quando voltou da França. Foi para Londres ganhar dinheiro, depois construiu. Harold não queria aceitar, claro, mas eu sabia que ele
estava adoecendo. Você vai ver que meu marido vai alfinetar Kyle por causa das roupas elegantes e das maneiras finas, mas se orgulha muito das conquistas do sobrinho.

Rose se aproximou para ver Prudence preparar a massa.

- Também faço tortas.

- É mesmo? Eu achava que as damas não sabiam cozinhar.

- A maioria não sabe. Mas eu gosto. Posso ajudar, se quiser.

Prudence separou algumas maçãs e uma tigela.

- Você pode descascar e depois cortar as maçãs aqui dentro.

Rose começou a trabalhar.

- Aonde Kyle foi?

- Foi andando até o vilarejo. Imagino que vá visitar o padre e depois tomar uma cerveja com os homens na taberna. Teria levado Harold na carruagem, mas ele estava
dormindo. Pode ser que amanhã leve. Harold sente falta da cerveja com os rapazes.

Rose imaginou Kyle andando quase um quilômetro até Teeslow. Voltando à antiga vida. Será que ele se livrara dos casacos antes de ir? Removera as camadas de gestos
educados e a mudança pela qual aceitara passar para ganhar dinheiro em Londres? Voltara a falar com o sotaque de Harold?

Nessa taverna, ele não seria o Kyle que ela conhecia. Seria o Kyle que continuava um estranho.

- Ele é amigo do padre?

Prudence riu.

- Bem, amigo não é bem a palavra. O conde encarregou o padre de ensinar Kyle a escrever e contar, além de latim e francês. Ele foi um professor exigente. De vez
em quando, esquentava o traseiro dos alunos com uma vara. Kyle não gostava das aulas, mas sabia que poderiam mudar a vida dele e continuou indo.

- O conde? Você quer dizer o conde de Cottington? Ele era o benfeitor de Kyle?

- Exatamente.

Ele nunca tinha dito. Pelo menos, não com todas as palavras. Ela concluíra que o benfeitor tinha sido... alguém. Não um conde. Não Cottington. Não o pai de Norbury.

Isso explicava muita coisa. A parceria naquelas novas construções. A presença de Kyle na festa de Norbury.

- Por que o conde fez isso?

Prudence estava atenta, raspando açúcar mascavo.

- O conde conheceu Kyle por acaso. Na mesma hora, viu que não era um menino comum, mas inteligente e corajoso. E que meu sobrinho seria desperdiçado na mina, embora
desde pequeno ele já pudesse fazer o trabalho de um homem. Por isso, o conde mandou o padre dar aulas a Kyle, de forma que, quando crescesse, pudesse ir a escolas
e tal.

Colocou o açúcar numa xícara.

- O conde é um homem bom e justo. Como poucos.

A pequena história trouxe dúvidas à cabeça de Rose. Tantas que não podia perguntar a Prudence sem parecer que a colocasse no banco dos réus.

Ela sabia pouco da vida do marido. Tinha muita curiosidade, mas nunca perguntara, apesar de ele ser a melhor fonte de informação.

Nunca perguntara, mas Kyle também nunca dissera. Não acreditava que fosse por vergonha do passado ou por não falar muito de si.

Os dois evitavam tudo aquilo porque falar no passado dele significava falar em Norbury.

A sombra daquele caso tinha influenciado até a maneira como os dois se conheciam.

 

- Vai dar problema. Não tem dúvida - assegurou Jon e bebeu um pouco de cerveja para enfatizar.

Kyle também bebeu, concordando. Jonathan era um mineiro quase da mesma idade que ele. Entraram na mina na mesma época, quando meninos, e carregaram os cestos de
carvão juntos, escada acima.

Agora Jon era um radical, o que o fazia imprudente ao falar com o amigo de roupas elegantes, que tinha morado lá fazia muito tempo.

Os demais mineiros foram simpáticos, até alegres. Brindaram quando Kyle entrou na taberna e o crivaram de perguntas sobre Londres. Mas não estavam dispostos a falar
sobre o que vinha acontecendo na própria cidade. Uma palavra errada poderia arruinar suas vidas.

- O comitê foi três vezes até os proprietários para se colocar contra a reabertura do túnel e explicar o perigo - disse Jon. - É mais barato perder alguns homens
do que fazer o que é preciso. Já vimos isso e veremos de novo.

Kyle, sem dúvida, tinha visto. Os ossos do pai ainda estavam naquele túnel fechado. Era perigoso demais retirar os mortos. A primeira tentativa servira apenas para
causar outro desmoronamento.

- Você falou com Cottington? - perguntou Kyle. - Ele vendeu quase toda a mina há bastante tempo, mas ainda tem certa influência. As terras ao redor ainda são dele.

- Dois dos nossos colegas tentaram. Ele está tão doente que não deixam ninguém chegar perto. Nem você pôde entrar na última vez em que esteve aqui. Quanto a falar
com o herdeiro... - a frase ficou no ar e a expressão de Jon mostrou a opinião que tinha sobre o tal herdeiro.

Ele olhou por cima do ombro. Passou a mão nos cachos louros, depois se inclinou sobre a mesa para confidenciar:

- Estamos nos organizando para irmos juntos. Não só aqui. Tivemos reuniões com grupos de outras cidades e com mineiros que têm outros patrões. Se ficarmos lado a
lado e falarmos juntos, seremos ouvidos.

- Cuidado, Jon.

- Cuidado, uma ova. A lei agora permite isso, finalmente. Temos o direito de nos unir. O que eles podem fazer? Me matar? Não podem matar todos nós. Não podem demitir
todos. Você mesmo falou isso há anos, antes de...

Jon desviou o olhar e bebeu mais cerveja.

Antes de ir embora e se tornar um deles.

- Quando se fica lado a lado, é preciso que todos estejam unidos. É preciso que todos aceitem passar fome. Haverá sempre os que vão abandonar o movimento.

- Se nós sairmos da mina, nenhum homem vai entrar. Vamos cuidar disso.

- Há sempre os que precisam trabalhar.

- Se as frentes se formarem na entrada das minas, isso não vai fazer diferença.

- Eles vão chamar a cavalaria. Vai ser um massacre.

Jon deu um soco na mesa.

- Pare de falar como minha mulher. Esqueceu o que acontece lá? Vá até aquela linda casa que você construiu para Harold e pegue as botas e as roupas dele. Venha comigo
amanhã, caso tenha esquecido por que o perigo não importa para gente como nós.

Aquele "gente como nós" não incluía Kyle. Ele era um deles, mas também não era mais. Ali era sua cidade natal, mas ele tinha ido tão longe, de tantas maneiras, que
cada vez que voltava, fazia menos parte daquele mundo.

Ele sentia isso, mas não conseguia evitar. Seus vínculos àquele lugar eram como tentar segurar areia: por mais forte que fechasse a mão, ela escorria entre os dedos.

Quanto tempo levaria até que poucos o reconhecessem quando andasse por aquelas estradas? Chegaria o dia em que ele entraria na taberna e as vozes se calariam e os
olhares examinariam o cavalheiro intruso.

- Vou a Kirtonlow enquanto estou aqui - disse ele. - Falarei com Cottington a respeito desse túnel.

O dar de ombros de Jon mostrou que não achava que isso fizesse alguma diferença. Pediu mais cerveja e deixou a conversa de lado junto com o copo vazio.

 

Kyle voltou para casa a tempo de jantar. Rose ajudou Prudence a servir. A conversa ia abarcando coisas corriqueiras, como costuma acontecer entre estranhos. Até
que Harold não aguentou. Queria saber as novidades que Kyle ouvira na taberna.

- Os rapazes não vêm muito aqui. É muito longe para andar depois de um dia de trabalho - explicou Harold.

Tia Pru sorriu de leve, como se pedisse desculpas pelo que parecia ingratidão pela casa que ganharam. Kyle não se importou. Harold sabia que não o visitariam muito,
ainda que ele continuasse morando no vilarejo. Um homem sem forças para ir à taberna era um homem isolado.

- Há boatos da reabertura do túnel - disse ele. - Ouvi isso em dezembro, mas parece que vai ocorrer mesmo.

- Aqueles idiotas. Idiotas gananciosos.

A notícia deixou Harold tão agitado que ele teve um ataque de tosse.

- Pelo menos pode ser que seu pai e os outros possam ter um enterro cristão - disse Pru, baixo.

Rose ergueu o olhar, surpresa. Seus olhos demonstraram algo que Kyle tinha visto várias vezes naquela noite. Curiosidade. Talvez reavaliação. Falar no túnel trouxera
à tona algo em que já vinha pensando.

Tia Pru trouxe uma de suas tortas. O cheiro bastou para melhorar o ânimo de todos. Pru era famosa por todos os tipos de tortas. Mesmo que precisasse usar frutas
que tinham passado todo o inverno estocadas num porão, ela conseguia que a receita ficasse deliciosa.

Kyle se sentiu menino outra vez, prevendo o gosto delicioso que só sentia em dias de pagamento, quando podiam comprar um pouco de açúcar.

Prudence cortou a torta em fatias.

- Rose me ajudou a fazer - contou.

- É mesmo?

- Nada como cozinhar junto para as mulheres se conhecerem - disse Harold. - Fico satisfeito que sua esposa goste de cozinhar, Kyle, meu rapaz. É bom saber que você
não vai passar fome lá em Londres.

- Rose faz ótimas tortas - disse ele.

Rose sorriu com o elogio. Kyle olhou a fatia de torta na frente dele.

- Então, tenho de agradecer a você por isso, querida?

- Não fiz muita coisa. Apenas cortei as maçãs.

Ele comeu. Não, ela não havia ajudado muito. A torta estava ótima.

Rose ficou observando-o comer cada fatia. Ela estava de novo com aquele olhar. Algo atiçara seu pensamento.

 

CAPÍTULO 14

Rose queria conversar com o marido. Ficou aborrecida quando ele não foi para o quarto com ela, deixando-a subir sozinha.

Assim que chegou ao quarto, Rose entendeu por que ele não a acompanhara. Dividindo aquele quarto, eles não teriam nenhuma privacidade. Os preparativos para dormir,
que costumavam ser feitos separadamente, teriam de acontecer na presença do outro.

Ela pensou nisso enquanto tirava o vestido e o espartilho, a camisa e o calção. Vestiu a camisola e sentou na cama para soltar os cabelos. Imaginou-o também ali,
despindo-se.

Olhou para a cama. Prudence e Harold dormiam há anos na mesma cama a noite inteira, todas as noites. Não se afastavam depois de cumprirem seus deveres conjugais.
Como seria viver totalmente ligada a outra pessoa?

Ela achou que devia ser muito bom, se houvesse amor. Horrível, se houvesse ódio. Invasivo, se houvesse indiferença.

Ouviu o som das botas dele na escada e concluiu que tinha mesmo se demorado por respeito a ela. Aquele casamento tinha muito disso.

Deixou a lamparina acesa e permaneceu onde estava. Não era uma cama muito grande. Aquela visita os forçaria a todo tipo de intimidade.

Kyle bateu na porta antes de entrar. Rose não acreditava que Harold alguma vez tivesse feito isso para ter certeza que Prudence o deixaria entrar.

Controlou o impulso de virar para o outro lado para que Kyle também tivesse sua privacidade. Mas ele não era uma flor delicada e ela queria conversar.

Ele tirou os casacos e os pendurou no guarda-roupa.

- Gostou da torta? - perguntou ela.

Ele sentou na cadeira e tirou as botas.

- Muito. Quase tão boa quanto as suas.

Ela ficou muda. O coração se encheu de uma sensação doce e pungente.

Na verdade, as tortas dela eram horríveis. Ninguém jamais a ensinou a cozinhar. Por necessidade, tentara quando era menina até conseguir algo que os irmãos achassem
mais ou menos comestível. O resultado não dava, de maneira alguma, para comparar com o toque mágico de Prudence.

Hoje ela havia assistido a Prudence fazer a torta e vira o que lhe faltara naqueles anos todos. E também sentira o gosto diferente.

Mas eis que Kyle mentia para ela não se sentir mal. Ele tinha a opção de não mencionar suas tortas. Como podia ter comido só um pedacinho da que ela fizera na manhã
seguinte ao casamento.

Naquele dia, cada garfada de torta devia ter entalado na garganta dele.

- Prudence disse que você hoje decerto visitaria o padre. E que ele ensinou as primeiras lições a você.

Não sabia se continuava a conversa. Eles podiam passar o restante da vida sem tocar nos assuntos que surgiram na cabeça dela nesse dia. Talvez fosse melhor assim.

Só que ela não ia dormir se não perguntasse. As respostas ajudariam não só no que sabia sobre o Kyle estranho, mas a entender o Kyle que conhecia.

- Ela disse que Cottington mandou o padre dar essas aulas. Que o conde era o seu benfeitor. Você nunca me disse isso.

Ele tirou a gravata.

- Você nunca perguntou.

- É verdade. Nunca perguntei. Estou perguntando agora. Quero saber.

- Quer saber pelas razões erradas.

O que aquilo queria dizer?

- Quero saber porque você é meu marido e esse fato extraordinário mudou a sua vida e o tornou o homem com quem me casei.

Ele se recostou na cadeira e olhou para ela.

- Certo. O conde reparou em mim quando eu tinha 12 anos. Achou que eu tinha talentos que deviam ser aprimorados. Combinou com o padre que me desse aulas, depois
pagou para um engenheiro em Durham ser meu professor durante dois anos. Conseguiu que eu fizesse provas para a Escola de Belas-Artes de Paris e me mandou para estudar
arquitetura lá. Quando voltei, ele me deu 100 libras e sua generosidade acabou aí, mas continuamos amigos e, às vezes, trabalhamos juntos.

E aquelas 100 libras tinham se transformado em mil, depois em mais e mais.

- É uma história surpreendente. Que seu progresso surpreende é fato, mas também achei a atitude do conde surpreendente. Por que fez tudo isso por você? Foi porque
seu pai morreu no túnel?

- Ele não sabia que meu pai era um dos mortos. O acidente tinha sido três anos antes.

Kyle desabotoou os punhos da camisa.

- Não sei por que fez isso. Acho que porque eu bati no filho dele. Talvez tenha admirado a minha audácia. Ou achou que o filho merecesse uma surra e gostou que outro
garoto tivesse coragem de dá-la por ele.

- Você bateu em Norbury? Que maravilha. Mas é lastimável que essa história esteja ligada a ele.

- Lastimável, mas inevitável, Rose. Não finja que, quando perguntou, não sabia aonde a história ia levar.

Ele tirou a camisa. Despejou água na bacia e começou a se lavar.

Ela não o via sem roupa desde a noite do casamento. Depois daquela noite, ele tinha sido apenas uma silhueta no escuro. Rose tinha sentido aqueles ombros e abraçado
aquela nudez, mas não tinha visto.

A luz fraca o favorecia, mas o vigor dele teria impressionado mesmo sob um sol de verão. Não havia um músculo flácido. Nenhuma gordura ameaçadora acumulada devido
a uma vida amena. Os músculos não pareciam volumosos, apenas proporcionais à altura dele. Como o rosto, o corpo parecia esculpido de maneira rústica e fazia supor
uma energia prestes a explodir. Ela ficou pensando se aquela tensão sumia em algum momento. Talvez, quando ele dormisse, ela ficasse escondida.

Rose prestou tanta atenção nele que quase se esqueceu da conversa. Kyle estranhou o silêncio e notou que estava sendo observado. Voltou a se lavar.

- Acho que eu sabia onde a história ia acabar - disse ela. - Sempre me surpreendi por você conhecer Norbury tão bem. Mas continuar a trabalhar com ele e a usar as
terras da família...

- Meu trabalho é com Cottington. Sempre foi. Norbury só tem participado agora porque o conde está muito doente.

A conversa se encaminhava para um terreno perigoso. Ela viu o espaço entre eles subitamente cheio de buracos e fendas. O tom da voz dele demonstrava que seria insensato
seguir adiante.

- Se o conde está tão doente, é provável que Norbury participe da sua vida por muito tempo - disse ela. - Pelo jeito, já participa. Está nas nossas vidas, Kyle.

Ele jogou a toalha no chão.

- Quando preciso falar com ele, eu falo. Depois, ele some da minha vista e da minha cabeça. Não faz parte de nossas vidas.

- Não? E como foi que nos conhecemos? Eu sinto a presença dele como se fosse um espectro. Acho que ele não sai da sua cabeça, no que me diz respeito. Acho que você
tenta esquecer o meu caso, mas...

- Sim, eu realmente me esforço para esquecer, maldição! É isso ou a vontade de matá-lo. Por causa da maneira vergonhosa como tratou você naquele jantar. Da maneira
como desconfio que tratou antes. Imagino-o com você e...

Ele abriu e fechou as mãos. Ficou tenso e, de um jeito sombrio, forçou-se a ficar calmo.

- Mas não penso nele quando estou com você. Não se reflete em você.

- Como não? Influi em tudo. Aquela noite afeta todas as coisas, até a maneira de você me tratar como esposa.

- Se você se refere à ordem que dei em relação ao seu irmão...

- Meu irmão? Céus, meu irmão é o problema nosso com o qual Norbury não tem nada a ver. Não gostei daquela nossa discussão, mas, pelo menos uma vez, falei com o homem
com quem me casei. Com ele por inteiro. O real. Não a invenção atenta e educada, que se veste tão bem, fala tão bem e me dá prazer tão corretamente e com tanto respeito.

Ela achou que jamais poderia vê-lo tão surpreso. Durou poucos segundos. Depois, ele fixou o olhar nela de tal forma que seu coração subiu para a garganta.

- Trato você com respeito, como uma dama, e você reclama?

- Não estou reclamando. Sei que tenho sorte de ter um amante tão atencioso. Só acho que você toma tanto cuidado por motivos que me entristecem.

Ele não gostou da crítica. Nenhum homem gostaria.

- Parece que você conhece a mim e aos meus motivos melhor do que eu, Rose.

Ela devia recuar, desculpar-se, ficar calada e grata. Mas, se fizesse isso, ele só ia se lembrar de uma ofensa que ela não tivera intenção de fazer.

- Talvez eu conheça mesmo, Kyle. Ou talvez o pouco que conheço de você me faça entender mal. Diga-me uma coisa: se não fosse aquela noite horrível, se não fosse
a minha situação, você precisaria ser tão cuidadosamente respeitoso? Se tivesse casado com uma moça ingênua daqui do vilarejo ou com uma mulher que nunca foi chamada
de puta, pensaria nisso o tempo todo? Se você não tivesse nascido neste vilarejo, mas numa grande mansão e me pedisse em casamento em outras circunstâncias, acharia
tão importante me tratar como uma dama?

Pelo menos a explosão dela não o deixou mais irritado. Ele ficou sério e contido, mas não furioso. O tempo passou tão lenta e silenciosamente que ela se arrependeu
do que disse.

- Desculpe. Eu não devia... - disse, puxando um fio solto do cobertor. - É que, quando estamos juntos, eu sinto... Você está quase sempre usando seus casacos de
corte impecável, Kyle, até na cama, quando está completamente nu.

Ela piorou uma situação que já estava ruim. Deitou-se e se cobriu bem para esconder os destroços do naufrágio que certamente fizera de seu casamento.

Desejou ser escritora ou poeta, para conseguir se explicar. Gostaria de ter palavras para expressar como a origem dela e a dele, a redenção dele e o escândalo dela,
o conhecimento que ele tinha de seu caso e a necessidade que ela tinha de não ser tratada como puta fizeram com que se erguessem aquelas barreiras de formalidade
entre os dois.

Era impossível explicar. Pouco provável que a situação mudasse. Ela devia aceitar. Devia se policiar para não ficar tentando alcançar algo que não sabia o que era,
daquele jeito doloroso e incessante. Ela devia...

- Os casacos não caem bem quando estou aqui, Rose. Apesar de todo o talento do alfaiate, ficam apertados demais quando venho para casa.

A voz baixa dele chegou a Rose através do silêncio tenso.

- Imagino que seja desconfortável.

- Muito.

- Ou os casacos estão apertados e você só nota quando vem para casa.

- Talvez você tenha razão.

Ela se sentou outra vez. Ele agora prestava atenção no fogo baixo da lareira e nos próprios pensamentos. Apoiava o braço na cornija enquanto olhava as chamas. Ficou
lindamente iluminado.

Ela se encantou com a cena. A luz da lareira parecia encher o quarto todo. O calor chegou até ela.

- Na verdade, desde que cheguei aqui, acho que minhas roupas também estão apertadas, Kyle. Talvez seja o ar do campo. Ou as tortas.

Ele sorriu.

- Então você devia parar de usá-las.

- Não estou acostumada a me livrar desses acessórios. Vivo apertada num espartilho desde o dia em que nasci.

Kyle a encarou. O coração dela perdeu o compasso, depois acelerou. Mesmo no dia em que a pedira em casamento, ele não demonstrara seu desejo com tanto despudor.

Ele se aproximou.

- Vou considerar isso um convite, Rose.

Abraçou-a com tanta força que a levantou da cama. Beijou-a de um jeito possessivo, firme, como quem não quer nada e quer tudo. Desta vez, não conteve seu desejo.
Puxou-a para um remoinho de força incontrolável.

Os beijos pediam, mandavam e a excitavam. Nem se quisesse, ela não podia fazer nada contra o domínio que ele tinha. Rose havia pedido isso e deixou que as próprias
reações selvagens se apossassem dela. Superaram o medo e a surpresa iniciais.

Beijos quentes. Fortes e profundos, mordendo e devorando. Braços de aço a impediram de reagir à fúria ardente em seu pescoço e na sua boca. Uma sequência de choques
maravilhosos atravessou seu corpo como flechas de fogo. Trouxe à tona o instinto primitivo dela até fazê-la gemer com o ataque glorioso e fazê-la perder qualquer
decoro.

Ele a apoiou de novo na beirada da cama. Acariciou suas pernas por baixo da camisola. Passou a mão no quadril e na bunda. Um toque furtivo e erótico no sexo. Os
dedos dele causaram um incrível formigamento.

Ela afastou uma perna para incentivá-lo a prosseguir naquela deliciosa tortura. Ele prosseguiu, mas interrompeu o longo beijo. Com a outra mão, ele levantou a camisola
dela até os ombros e a retirou por cima da cabeça. A camisola caiu ao chão, aos pés dele.

Ele olhou a nudez da esposa sério de tanto desejo. Suas carícias cobriam os seios enquanto a outra mão esfregava e provocava embaixo. A dupla sensação a deixou tremendo,
cambaleante, enfraquecida pelo prazer. Ela se inclinou para se apoiar nele até o rosto tocar suavemente em seu peito.

A mão de Kyle puxou sua nuca para mais perto até o rosto encostar por completo na pele lisa.

- Posso tirar a camisola, Rose, mas as outras peças que a escondem você mesma precisa tirar.

Ela compreendeu. O incentivo a encorajou. Espalmou as mãos no peito dele, olhando e sentindo ao mesmo tempo. O simples toque fez com que ele ficasse ainda mais excitado
e que uma nova rigidez o percorresse.

Ela o acariciou com mais ênfase. Olhou as mãos passando pelo peito dele, escorregando e percorrendo os sulcos dos músculos e costelas rígidos. Ele a olhou também
e as carícias e toques no corpo dela copiavam as delas. A respiração cálida dos dois se encontrou e se fundiu em beijos cada vez mais vorazes enquanto a excitação
os levava à loucura.

Ele tirou a mão das pernas dela e desabotoou os calções. Antes que ela pudesse se conter, deu um gemido insolente, afastou as mãos dele e assumiu os botões. As mãos
dele voltaram a afagá-la embaixo, fazendo-a quase desfalecer.

Ela lutava com a roupa dele, desajeitada, enquanto ele a tocava mais deliberadamente. Inclinou a cabeça para aproximá-la do pescoço e do ouvido da esposa. O dedo
dele apalpava com cuidado.

- É assim que você quer, Rose?

Ela não podia responder. Não conseguia falar. Mal conseguia se manter ereta. Agarrou a roupa dele sem ver, sem jeito, empurrando-a pernas abaixo às cegas, enquanto
os leves toques no seio e entre suas pernas a faziam gemer.

- Ou assim?

A mão dele contornou a perna e a tocou pela frente. Uma estocada longa, lenta e incrível fez um tremor de prazer percorrer seu corpo.

Rose sabia que ele tinha noção de quanto a deixava indefesa. Agarrou-se aos ombros dele e se segurou em busca de apoio.

Ele soltou uma das mãos dela, beijou-a e a guiou para a parte inferior do próprio corpo. Uma leve noção de racionalidade voltou, o bastante para ela entender o que
ele estava fazendo, o que queria. Perdida demais para se importar, ou se constranger, deixou que ele colocasse a mão dela no pênis.

Ele a tocou diabolicamente mais uma vez, o que deixou tudo mais fácil. O prazer passou pelo corpo dela como uma onda revolta, e em resposta ela acariciou como era
acariciada.

Qualquer decoro que ele ainda tivesse se rompeu. Beijou-a com nova selvageria. Ela sentiu a tensão em todo o corpo, no beijo dele e até na maneira como a tocava.
Intencional, agora. Disposto a fazê-la entregar-se por inteiro.

O orgulho perdeu qualquer sentido. Mesmo de joelhos, ela se movia ritmadamente, curvando-se aos beijos dominadores, gemendo de tanto querê-lo.

Ele a mudou de posição, mas não como ela esperava. Virou-a de maneira a ficar de costas para ele e acariciou seus seios. Ela se inclinou na direção de Kyle. Os mamilos
se eriçaram, se intumesceram, endureceram, implorando mais, qualquer coisa, tudo.

Ele a mudou de posição novamente, curvando o corpo dela até deixá-la de joelhos na beirada da cama com as pernas dobradas sob o corpo. Um tremor incrivelmente erótico
estremeceu suas ancas.

Ele levantou o quadril dela. Ela esperou, ofegante, tão excitada que não conseguia aguentar. O corpo latejava na expectativa. Rose imaginou o que ele via, as nádegas
viradas para ele, mostrando aquela carne escondida. A imagem despudorada só a excitou mais.

Ele não a possuiu imediatamente. Deixou-a esperar, chegar à beira da loucura. Ficou acariciando as nádegas dela, roçando as curvas da pele, olhando para ela, com
certeza. Assistiu à submissa rendição e ao seu desespero.

Tocou-a de novo, ela gritou. Desta vez foi diferente. Rose estava exposta e aberta e sabia que ele olhava, sabia que via o corpo nu. Ela desceu mais as costas e
levantou mais as nádegas.

Dali a pouco, estava implorando. Implorando, gemendo e abafando os gritos nos lençóis. Finalmente, ele a penetrou numa estocada longa e lenta, proposital. Abaixo
de seu gemido de prazer, ela teve a impressão de ouvir o dele também.

Depois, ela se perdeu. Tudo o que sentia era o torturante prazer da necessidade de ser preenchida e a violenta intensidade da completude.

 

- Você veio aqui para ver Cottington antes que ele morra?

Rose estava nos braços de Kyle, sob os lençóis. Fazia algum tempo que ele tinha levantado o corpo lânguido dela e a colocado ali de maneira a ficar colada nele,
que estava sentado, com as costas apoiadas na cabeceira. A vela ainda iluminava a satisfação dos dois.

- Um dos motivos foi esse. Vou tentar vê-lo amanhã.

- Tentar? Ele não recebe você mais?

- Não sabe que eu o procurei. O secretário e o médico dele só avisam das visitas se quiserem. Agora é assim.

Ela achou que, provavelmente, tinha sido sempre assim. Era comum que condes tivessem empregados para evitar serem incomodados se não quisessem. Agora que Cottington
estava doente, eram outras pessoas que decidiam quando ele queria ou não. Só isso mudara.

- Se ele não puder recebê-lo agora, talvez receba na primavera, quando você planeja voltar.

- Acho que ele não estará vivo na primavera.

Ela concluiu que Kyle tinha ouvido falar que o conde estava à beira da morte. Por isso tinha ido ao norte agora.

- Vai ser muito triste não se despedir dele, depois de tudo o que fez por você. Certamente, o secretário dele sabe disso.

- Para o secretário, eu sou só o garoto de Teeslow - explicou Kyle, inclinando a cabeça e dando um beijo distraído nos cabelos dela. - Não é só me despedir. Quero
ver se ele ainda está consciente. Preciso pedir um último favor para os mineiros.

- É sobre a reabertura do túnel?

- Sim. Alguns homens querem impedir, só que de uma forma que só vai prejudicá-los.

- Poderia dar certo, se todos eles...

- Não serão todos. Há famílias que perderam parentes no desmoronamento e vão querer a reabertura para poderem enterrar seus mortos.

- Você disse que seu pai morreu num acidente. Foi nesse, não?

Ele concordou com a cabeça.

- Eu também gostaria de enterrá-lo. Mas aquele túnel jamais será seguro, a menos que as coisas sejam feitas de outra maneira. As paredes se movem.

- O túnel é de rocha. Rocha não se move.

- A terra é uma coisa viva, Rose. Antes de construir, preciso ver se o terreno é firme. A mina não está em terra firme e a parte daquele túnel é a pior. Sei disso
desde menino. Eu vi.

Ela sentou e se virou para ele. Ao olhá-lo, sentiu um eco dos tremores da noite. Não era possível a uma mulher deixar um homem fazer aquelas coisas sem depois ficar
em desvantagem com ele. Rose sentia que cedera o controle de outras formas também, que estavam entre os dois agora, incentivando aqueles tremores.

- Quanto tempo você trabalhou na mina, Kyle?

- Entrei pela primeira vez aos 8 anos. As crianças carregam o carvão em cestos. Geralmente, começam aos 9 ou 10 anos, mas eu era grande para a idade. Não tão grande
quanto um homem. Por isso, eu via o que eles não viam porque tinham de ficar abaixados. Havia fendas acima e quase no alto das paredes. Acompanhei a movimentação
delas durante meses. Avisei ao meu pai. Ele e os outros mineiros não acharam perigoso porque não viram e não notaram as mudanças. Até que um dia... caiu tudo. Dez
homens foram enterrados vivos do outro lado de uma parede nova.

- E ficaram simplesmente abandonados lá?

- Ninguém é abandonado, a menos que não haja opção. Começaram a cavar para retirá-los, mas isso fez mais pedras caírem, e outro mineiro morreu. Então ninguém mais
cavou. Fizeram uma cerimônia religiosa. Rezaram. E dois dias depois os homens voltaram à mina. Menos os parentes dos que estavam soterrados. Esses esperaram uma
semana. À essa altura, quem tinha ficado preso teria morrido. Por falta de ar e de água.

Ela imaginou Kyle de vigília com os tios. Viu o menino pensando no pai atrás daquela parede de rocha, talvez ainda vivo, mas sem poder ser socorrido.

- Eu disse aos homens que devíamos cavar por cima do túnel. Fazer um buraco para entrar ar até encontrarmos uma forma de tirá-los de lá. Ninguém dava ouvidos a uma
criança, muito menos os supervisores dos donos da mina. Hoje, sei que isso poderia dar certo. Um engenheiro podia fazer isso. Eu posso, se houver um desmoronamento
num túnel lateral.

Sim, provavelmente podia, mesmo se o terreno fosse desfavorável. Se preciso, ele cavaria com as próprias mãos, pensou ela. Se ele decidisse, não havia rocha nem
terra que o impedisse.

Ele contara sua história e respondera às perguntas de Rose. Ela sabia que agora ele pensava em outras coisas. Tinha deixado a vela acesa por um motivo.

Kyle a pegou pelo braço e a puxou em sua direção. Sentou-a de frente, com as pernas envolvendo as dele.

Ele olhou as mãos cobrirem os seios dela e os dedos roçarem os grandes mamilos escuros.

- Vi você muito bem no escuro ou, pelo menos, minha imaginação viu. Mas prefiro assim.

Em outras palavras, não queria mais que as lamparinas e velas fossem apagadas como se ela fosse uma dama. Ela não se importava. Assim também podia vê-lo. Mas ia
demorar um pouco para não ficar tímida quando o marido olhasse para o corpo dela como fazia agora.

Ele a ergueu e a posicionou sobre sua perna, lambendo e mordiscando os seios dela. A posição em que estavam permitia que ela também o acariciasse.

- Acho que você devia me levar quando for a Kirtonlow tentar falar com Cottington - sugeriu Rose.

Os dedos dele substituíram a boca, permitindo que respondesse.

- Não.

Ela imaginou se ele não queria que ela o visse sendo dispensado.

- Se eu for com você, o secretário não vai nos expulsar.

- Vai, sim, e não quero que você seja ofendida.

- É bem mais difícil dizer não a uma dama, Kyle. Diremos para ele não ousar fazer isso, pois o conde não vai gostar, se souber.

- Não.

Ela fez a mão deslizar para baixo no corpo dele, na tentativa de convencê-lo. Envolveu sua ereção e ficou roçando o polegar na cabeça do pênis.

- Você se casou comigo por causa da minha origem, Kyle. Devia me deixar abrir portas quando posso.

O sorriso dele não escondia a tempestade erótica que as carícias causavam.

- Rose, você está usando artifícios femininos para me deixar flexível?

Ela olhou o que sua mão estava fazendo.

- Parece que só estou conseguindo o efeito contrário. Não há nada flexível em você agora. A não ser um pouco, bem aqui. Ela apertou de leve a ponta.

Ele a segurou pela bunda e a ergueu de leve. Ela sabia o que fazer sem instruções, pois parecia natural e necessário. Mexeu-se e se colocou numa posição que permitia
guiá-lo para dentro dela.

O primeiro toque da penetração causou um choque de prazer em seu corpo todo. A sensação a deslumbrou e a fez perder o fôlego. Não se mexeu para ele penetrar mais.
Ficou assim, só um pouco encaixada, deixando os deliciosos tremores se prolongarem.

Ele permitiu, embora o desejo o dominasse tanto que ele cerrava os dentes. Ela se abaixou um pouco para senti-lo melhor.

- Você vai me matar, Rose - gemeu e segurou as pernas dela. - Pode me torturar durante horas outra noite, mas agora...

Puxou-a, descendo-a até seus corpos se aconchegarem.

Depois disso, ele a guiou, as mãos fortes facilitando o movimento das coxas num ritmo de absorção e soltura que ela ditava. Rose descobriu novos prazeres com mudanças
sutis e pressões no corpo. Fechou os olhos e o apertou dentro de si, mais e mais.

Ele então a penetrou mais, tão fundo que ela arfou. Abriu os olhos, o encarou e não conseguiu mais desviar o olhar. Não o via se mexer, mas sentia que era preenchida,
estocada e dominada enquanto seu olhar profundo a convidava a mergulhar em mares cor de safira. No final, ele a segurou forte pelas coxas. Presa, ela se rendeu à
invasão de seu corpo e de sua alma.

O orgasmo violento dela quase doeu de tão intenso. Ela desmoronou sobre ele, o rosto contra seu peito, ligada a ele num abraço forte enquanto o corpo aos poucos
abria mão das últimas palpitações do gozo.

- A que horas você vai amanhã a Kirtonlow Hall? - perguntou ela, depois que a respiração e o coração de ambos se acalmaram.

Um braço estendido. Um lençol ondulando. Ele puxou os lençóis e os prendeu em volta dela.

- Meio-dia, eu acho.

- Quero ir com você. Estarei pronta ao meio-dia.

Esperou o "não" dele. Não veio. Em vez disso, o abraço se ajustou nela, envolvendo-a, e a respiração de Kyle aqueceu sua testa com um beijo.

 

CAPÍTULO 15

As colinas desoladas sumiram a uns dez quilômetros de Kirtonlow Hall e a paisagem foi ficando mais luxuriante a cada momento. A casa surgiu alta e ampla, à beira
de um grande lago que refletia suas pedras cinzentas na água prateada.

Quando a carruagem deles percorreu o caminho de entrada, Rose deu uma olhada em sua roupa e na de Kyle. A gravata dele estava impecável. O casaco, com caimento perfeito
nos ombros. Até a corrente do relógio de colete dele brilhava, fazendo um arco indefectível. Uma gravura de moda não estaria mais correta.

Ela usava os melhores trajes que tinha trazido, um recém-adquirido conjunto lilás com manto bem-cortado e debruado forrado de pele de esquilo cinza. Fora selecionado
para sua bagagem devido à sua praticidade, mas o estilo e o luxo discreto tinham outra finalidade naquele dia. O obediente secretário do conde jamais saberia que
a pele tinha sido de um antigo traje, que ficara completamente fora de moda.

O criado levou o cartão de visitas de Kyle. Dali a pouco, ouviram-se passos de duas pessoas na escada. O criado vinha com um homem baixo e careca.

- Ora, ora. Pelo menos dessa vez o próprio Conway vai me dispensar - resmungou Kyle. - Você tem razão. Ele não ousa mandar uma dama embora sem dar uma explicação.

O Sr. Conway se aproximou com um sorriso simpático.

- Sr. Bradwell. Sra. Bradwell. Infelizmente, o conde está doente demais para receber visitas. Lastimo dizer que ele piorou desde que o senhor esteve aqui na última
vez. Mas, naturalmente, darei qualquer recado, embora não garanta que ele vá entender tudo.


- Meu recado é para o conde apenas, quer ele esteja em boas condições ou não - disse Kyle. - Já que está piorando, insisto em vê-lo.

O sorriso do Sr. Conway perdeu a força.

- Eu também tenho um recado para dar pessoalmente - disse Rose. - Lorde Easterbrook me encarregou de transmitir suas palavras exatas a lorde Cottington.

- Lorde Easterbrook!

- É meu parente indireto. Vou regularmente à casa dele em Londres e ele aceitou incluir meu marido e a mim em seu círculo pessoal.

O Sr. Conway franziu o cenho, preocupado, ao saber disso.

- Temo que Easterbrook fique muito zangado se eu voltar a Londres dizendo que não consegui. O senhor parece um criado eficiente e bastante zeloso quanto ao conforto
de seu patrão, mas acho que terei de citar seu nome na minha triste história. Como deve saber, Easterbrook é um tanto excêntrico. Nunca se sabe o que vai fazer,
seja para favorecer ou prejudicar alguém.

Conway piscou com força ao ouvir a ameaça implícita. Rose deu o sorriso mais doce que conseguiu. Kyle ficou parado, mas ela notou um brilho em seus olhos demonstrando
que achara o discurso incrível.

Conway mordeu o lábio enquanto ruminava as ideias.

- Madame, perdoe. Não sabia do seu parentesco com o marquês. Mas lorde Norbury insistiu para que não permitíssemos que o pai ficasse agitado por receber visitas.

- Agitado? A sua presença o deixa agitado, meu caro senhor?

- Claro que não. Ele me conhece tão bem que...

- Então o Sr. Bradwell também não vai agitá-lo. O conde conhece meu marido tão bem quanto conhece o senhor. Mais até, eu diria. Transmitirei os cumprimentos de Easterbrook
e os deixarei a sós, para evitar qualquer agitação. Quanto a lorde Norbury, como não está em casa, a menos que o senhor o avise, ele não precisa saber da visita,
e dessa forma jamais precisará desperdiçar seu tempo avaliando se somos visitas que causam agitação ao pai.

Rose deixou que sua expressão e postura mostrassem que presumia ser atendida. O Sr. Conway pareceu aliviado com as justificativas que ela arrumara.

- Sendo assim... sim, levarei os senhores até ele. Tratando-se de visitas como os senhores, não se pode falar em agitação. Por favor, sigam-me, senhora. Sir.

Eles foram atrás do Sr. Conway, que se encaminhou para a grande escadaria. Kyle deu o braço à esposa e aproximou o rosto do dela.

- Não sabia que você tinha um recado de Easterbrook - murmurou. - Devia ter me dito.

- Tenho certeza de que ele gostaria de enviar saudações ao colega e votos de pronto restabelecimento.

- Fazemos parte do círculo mais íntimo de Easterbrook, é?

- Ninguém sabe se ele tem algum círculo além da família. Eu de fato visito Henrietta. Ele gosta muito de Alexia. Não creio que eu tenha exatamente faltado à verdade.

- Você não faltou à verdade. Você foi magnífica.

- É justo que você receba algum benefício deste casamento. Meus relacionamentos são o único dote que posso oferecer.

Ele apertou a mão dela.

- Hoje de manhã, a última coisa em que pensei foi nas vantagens que obteria dos seus relacionamentos.

A insinuação a agradou. Ecos dos tremores da noite, capazes de agitar almas, se manifestaram de seu jeito calmo e devastador. Ela se concentrou nas costas do Sr.
Conway para manter a compostura, mas só o mistério masculino ao seu lado chamava sua atenção. Imagens passaram, lindas, impressionantes, das várias maneiras como
ele a fizera conhecer o erotismo da intimidade do casal.

Seus últimos passos rumo aos aposentos do conde foram inseguros. Súbito, o rosto do Sr. Conway apareceu na frente dela.

- Por favor, aguardem aqui. Preciso anunciá-los e confirmar se pode recebê-los. Se não puder, tentaremos amanhã.

Conway entrou no quarto e voltou logo. Abriu a porta branca almofadada e deu passagem.

O conde estava sentado numa grande poltrona verde ao lado da lareira acesa. Mantas cobriam as pernas e os pés, que descansavam num suporte. A idade e a doença tinham
reduzido qualquer semelhança com o filho, exceto talvez por certo orgulho.

Os cabelos grisalhos do conde tinham sido cuidadosamente penteados e o rosto, muito bem barbeado. Apesar da doença, seu criado pessoal o arrumara com gravata e um
colete de seda colorido. Rose esperava que a parte escondida pela manta também estivesse apresentável num dia em que ele não esperava sair daquela cadeira.

O casal foi examinado por olhos bem mais argutos que os de Norbury. Surgiu um sorriso no rosto pálido. Que foi só de um lado da boca. O resto ficou flácido, consequência
das apoplexias que o conde sofrera.

- Bem, aproxime-se, Bradwell. Traga sua esposa aqui para eu vê-la.

A doença não afetara o tom de comando, apesar de ter enrolado as palavras.

Kyle conduziu Rose e fez as apresentações formais. O conde a olhou dos pés à cabeça.

- Conway disse que tem um recado para mim, Sra. Bradwell. De Easterbrook.

- Tenho, sim. O marquês envia seus cumprimentos e sinceros votos por uma pronta recuperação.

- É mesmo? Não vejo Easterbrook há anos. Desde que voltou tão estranho e diferente daquela viagem para Deus sabe onde. Não fui muito a Londres. Que generoso ele
se lembrar de mim e enviar cumprimentos.

O tom era sarcástico e os olhos, bastante espertos. Rose procurou não corar ao ver que ele tinha percebido o ardil facilmente.

- Leve uma resposta ao marquês, Sra. Bradwell. Faria isso por um velho moribundo?

- Claro, Sir.

- Diga que ele foge vergonhosamente aos seus deveres. Que está na hora de parar de ser excêntrico e participar do mundo. Precisa casar, ter um herdeiro e assumir
seu posto no governo. Aquela família é muito inteligente para desperdiçar isso e a vida não é para ser levada como se quer. Essa é a maldita verdade.

- Prometo que transmitirei sua opinião.

- Opinião? Diabos! Palavra por palavra, é como vai transmitir, sem suavizar nada, como fazem as mulheres - exigiu ele, e um riso rouco escapuliu. - Mas espere até
eu morrer. Se ele não gostar, pode se vingar no meu filho.

- Se devo esperar até que o senhor morra, garanto que vou demorar a cumprir essa obrigação. Com sua licença, sairei para deixar que meu marido fale com o senhor
a sós.

 

Cottington observou Rose sair do quarto. Fez um gesto para seu secretário.

- Pode ir. Se eu precisar de você, o Sr. Bradwell o chamará.

Assim que Conway saiu, o conde deu outra ordem.

- Tem conhaque naquele armário lá, Kyle. Sirva um pouco para mim e para você, se quiser. Eles não me deixam beber nada. Acham que devo enfrentar a morte completamente
sóbrio.

Kyle achou o conhaque e os copos, serviu um dedo para cada um. O conde bebeu como se fosse um néctar.

- É infernal ser tratado como criança. Agora estou melhor que há quinze dias. Passei uma semana precisando dos criados até para os cuidados de higiene mais elementares.

- Parece então que está se recuperando.

- Morro até chegar o verão, se não antes. Não preciso que o médico me diga. Eu sei. É estranho, mas a pessoa sabe.

Descansou o copo e usou um lenço para enxugar o conhaque que tinha escorrido no lado paralisado da boca.

- Linda a sua esposa. O bastante para fazer com que o resto não tenha muita importância, imagino. O irmão, coisa e tal.

- Quanto ao coisa e tal, obrigado pelo presente de casamento.

O conde achou graça.

- Meu filho vai ficar furioso. Seria melhor se você não se tivesse se envolvido desta vez. Azar. Seria melhor que não tivesse sido você a forçá-lo pela segunda vez
a encarar o próprio comportamento desonroso.

Apesar do riso, os olhos do conde mostravam muita tristeza. Piscou para afastá-la. Norbury era apenas mais uma decepção numa vida que, como todas, tinha várias.

- Quer dizer que veio até aqui para se despedir, não? Gostei.

- Sim, mas também trago um pedido, que não sabia que faria até que cheguei a Teeslow.

- Não posso fazer mais nada por ninguém.

Kyle falou sobre a mina. O conde ouviu, sério.

- Era uma rica jazida - disse ele. - Quiseram voltar alguns anos depois, eu impedi. Já tinha vendido quase tudo, mas minha opinião ainda importava. Às vezes, ser
conde ajuda. Meu filho não vai agir como eu. Mesmo assim, vou escrever e usar a minha influência, mas quando eu morrer...

Quando ele morresse, o desejo de lucro pesaria mais numa avaliação em que a vida dos homens valia pouco.

- Mesmo se demorarem alguns meses, vai dar tempo de se acalmarem - disse Kyle. - Os mineiros estão com os ânimos exaltados. Se houver uma voz forte, um líder, haverá
problema.

O conde suspirou e fechou os olhos. Ficou assim tanto tempo que pareceu ter caído no sono. Kyle tinha resolvido sair sem fazer barulho, quando o conde voltou a falar.

- Não vamos nos ver mais, Sr. Bradwell. Se quer perguntar alguma coisa, tem que ser agora. - Os olhos se abriram e o encararam. - Tem perguntas, não?

Kyle tinha várias. A mais recente, entretanto, não podia ser feita. Embora ela permanecesse em sua mente. Não podia perguntar a um moribundo se seu único filho tinha
sido pior quando menino do que quando adulto.

- Tenho uma pergunta.

- Pois faça.

- Por quê?

- Por que o quê?

- Fez tudo por mim. Por quê?

- Ah. Essa pergunta - falou o conde e parou para pensar. - Fiz, em parte, por impulso. Em parte, por instinto.

De novo aquele sorriso pela metade.

- Primeiro, eu sabia que, se você ficasse em Teeslow, os mineiros teriam uma voz e um líder dali a poucos anos, quando você ficasse adulto.

Kyle o observou, avaliando se o conde falava sério. Durante todos os anos em que trocaram generosidade e gratidão, nunca lhe passara pela cabeça que o conde tivesse
motivos ocultos. Principalmente, porque Kyle não achava que a generosidade pudesse trazer alguma vantagem para um conde.

- Bom, não foi só por isso. Lá, você seria desperdiçado. Percebi logo. Vi em seus olhos e em sua determinação. Naquele dia, quando você chegou todo limpo e arrumado,
vi o homem que um dia poderia ser. Já tinha ouvido falar em você. Soube do menino que sugeriu que cavássemos de cima para chegar àquele túnel quando ele desmoronou.

- Teria dado certo.

- Não interessa se eu achava que ia ou não. O simples fato de que um menino pensasse isso e ousasse propor... Trouxeram você até mim no dia seguinte ao que bateu
em meu filho, e a lembrança do administrador rindo daquela audácia veio à minha cabeça não sei como. Eu sabia que aquele menino tinha sido você. Sabia, mas, de todo
jeito, conferi.

Enxugou a saliva que se formou no canto da boca.

- Depois, aquela questão com meu filho. Lá estava você outra vez, ousando o que muitos homens não ousariam. Portanto, em parte fiz aquilo para você não ser desperdiçado.
E, em parte, para não se tornar um líder deles.

O conde fez uma pausa, então voltou a falar.

- Admito que, em parte, fiz também para castigar meu filho, favorecendo o menino que bateu nele. Claro que isso não adiantou muito. Como você sabe mais que qualquer
um, ele até hoje se comporta de maneira vergonhosa com as mulheres.

Era isso. Kyle já sabia quase tudo. A generosidade não tivera motivações totalmente caridosas, mas poucos atos ou decisões humanos tinham.

O rosto inteiro do conde perdeu a firmeza. Como se o dano do lado ruim invadisse o lado bom.

- O senhor está cansado, precisa repousar. Vou embora. Obrigado por me receber.

Antes que Kyle pudesse se afastar, o conde esticou a mão para ele. Kyle a segurou e, pela primeira vez, sentiu o cumprimento daquele homem como o de um amigo.

- Você não é pior por isso, não importa o motivo - disse o conde, com voz enrolada. - Mas imagino que, de vez em quando, deseje que eu não houvesse interferido.

- Se pesarmos as perdas e os ganhos, veremos que lucrei muito. Mas, sejam quais foram os seus motivos, agradeço. Jamais o esquecerei. Nem meus filhos e os filhos
deles.

O aperto de mão ficou mais forte. Os olhos do velho pareceram cobertos por uma fina película. Fechou-os. A mão caiu, depois subiu num gesto derradeiro de bênção
e despedida.

 

Quando saiu do quarto de Cottington, Kyle parecia calmo. Rose o deixou com seus pensamentos enquanto desciam a escada e saíam no frio.

Ele não entrou logo na carruagem; deu uma volta e olhou o lago. Ela o seguiu e esperou. Não estava se despedindo apenas de um homem. Com a morte de Cottington, uma
fase inteira de sua vida terminaria.

- Você veio aqui muitas vezes? - perguntou ela.

- Não muitas. Mas, quando fui embora para estudar, o conde mandava me chamar sempre que eu vinha para casa entre os períodos de aula. Na primeira vez, metade do
vilarejo seguiu o mensageiro até a casinha do meu tio: queriam saber o que estava acontecendo.


- O conde recebia você regularmente, portanto.

- Sim. Talvez fizesse parte do aprendizado.

- É mais provável que quisesse saber do seu progresso. E você trazia notícias de Durham, mais tarde de Paris e Londres. Garanto que a sua conversa era mais interessante
do que a da maioria das pessoas aqui do condado.

- Talvez.

Ele deixou a carruagem esperar enquanto caminhava pela propriedade.

Rose o acompanhou.

- Falou com ele sobre a mina?

Kyle concordou com a cabeça.

- Ele vai fazer o possível, mas, no máximo, a obra será adiada. Isso pode dar tempo para verem o que é mais seguro. Há como fazer isso.

Ele não parecia acreditar que fossem fazer o mais seguro.

- Acho que você fez tudo o que podia.

- Fiz?

Eles viraram e voltaram para a carruagem.

- Você está calado, Kyle. O encontro não foi bom? Não pôde falar o que queria?

- O encontro foi muito bom. Ele estava aberto a perguntas e respondeu tudo o que, em sã consciência, eu podia perguntar.

- Tinha alguma coisa que você não podia perguntar?

- Só uma. Eu queria saber, pois ele é a única pessoa que responderia honestamente. Mas, ao vê-lo... achei que o assunto só lhe traria tristeza e era só para satisfazer
a minha curiosidade.

- Se só restou uma pergunta entre os dois, o encontro foi muito bom. Acho que poucas pessoas que se conhecem têm apenas uma pergunta não respondida.

Kyle encarou a esposa. De repente, não estavam mais falando de Cottington, mas de si mesmos.

- Ele está morrendo, Rose. Não tem mais nada a perder por dar respostas. Não haverá orgulho ferido nem consequências ruins. Nem para quem pergunta nem para quem
responde.

Chegaram à carruagem. Ele ficou menos calado na viagem de volta a Teeslow.

- Você também está pensativa, Rose. Tem alguma pergunta?

- Tenho várias, mas não é por isso que estou séria. Penso se sobreviverei ao encontro com Easterbrook quando fizer a reclamação de Cottington.

 

A carruagem estava quase passando de Teeslow, quando Kyle reparou no silêncio. Tinha ficado tão perdido em pensamentos que o silêncio incomum não chamara sua atenção.

Mandou a carruagem parar. Olhou pela janela.

Rose também olhou.

- O que foi? Acho que está tudo calmo.

- Calmo demais. A essa hora, a estrada devia ter mais movimento. As mulheres deviam estar aqui.

Ele apurou os ouvidos, atento. Olhou para os telhados das casas e chalés. Onde estariam todos? Na mina? Era cedo demais para terem agido. Sobravam apenas a taberna
ou a igreja.

Abriu a porta da carruagem e saltou. Rose segurou a saia e estendeu a mão.

- Não, Rose. A carruagem vai levar você até Pru. Eu volto logo.

- Acha que haverá agitação? Perigo?

- Não, mas eu...

- Se não há perigo, não precisa me mandar para casa. Tenho curiosidade por esse vilarejo. Se vai fazer uma visita, quero acompanhá-lo.

Ele colocou o braço no batente da carruagem, impedindo que ela descesse.

- Nos últimos dias, você anda muito curiosa.

- É da natureza feminina. E descobri que satisfazer a curiosidade pode ser prazeroso.

Ela se referia à noite anterior. O que o deixou excitado. Ele ficou cheio de lembranças, de gritos implorando, de toques tímidos mas firmes, das costas dela abaixando
e das nádegas subindo. Das pernas envolvendo-o, ele se perdendo em sua calidez e os dois girando num abraço de corpos e olhares grudados.

As lembranças lhe deram vontade de beijá-la e de possuí-la bem ali, na estrada. Fizeram com que esquecesse todos os motivos por que ela deveria voltar para a casa
dos tios.

Com um olhar atrevido, ela o transformara num idiota.

- Pensa em me mandar para casa, Kyle? Então, devo avisar que os maridos têm um número finito de ordens a dar às esposas e seria tolice desperdiçá-las em bobagens.

Onde estaria sua dócil esposa? A noite anterior tinha mudado mais do que o calor e a intensidade da paixão deles. A formalidade sutil daquele casamento estava sumindo
rápido.

O olhar dela mostrava um claro desafio.

- Pode vir comigo, Rose, mas só se sair assim que eu mandar. Creio que não haverá agitação, mas posso estar enganado. Seria melhor você voltar quando...

Ela olhou para baixo.

Diabos.

Ele disse ao cocheiro onde aguardar e ajudou Rose a descer.

 

O vilarejo estava reunido na igreja. Ouviu as vozes enquanto ele e Rose se aproximavam da velha construção de pedra, com sua torre na fachada. Séculos antes, a igreja
fazia parte de um convento nas terras cedidas por um antepassado de Cottington. Até descobrirem carvão nos arredores, Teeslow tinha sido um simples vilarejo de agricultores.

- Os homens não deviam estar na mina agora? - perguntou Rose.

- Sim, trabalhando com as crianças maiores e até com algumas mulheres.

Kyle abriu a antiga porta de madeira e o rugido de uma discussão caiu sobre os dois. Entraram e ficaram nos fundos da nave. Poucas pessoas notaram a chegada deles.
Todas as atenções se concentravam nos homens que estavam na frente do altar. Jon estava lá, com os cabelos louros revoltos, tentando fazer prevalecer sua vontade.

Isso parecia impossível. As vozes se cruzavam e se interrompiam. Os ânimos estavam exaltados e agressivos. Gritos de incentivo e de mofa competiam.

- Não consigo nem entender o que está sendo discutido - cochichou Rose.

- Os mineiros receberam ordem hoje de tirar aquela pedra que caiu. Em vez disso, eles foram embora. Estão tentando decidir o que fazer amanhã.

- Pensei que você tinha dito que o túnel desmoronou ainda mais na última vez em que tentaram.

- Os donos da mina enviaram um engenheiro, que garantiu que não haverá outro desmoronamento.

Jon fazia com que algumas vozes atendessem ao seu pedido de não entrar na mina. Mas não era o suficiente, o que significava que não ia resolver nada.

As vozes chegaram até Kyle. Identificou quase todas. Conhecia aqueles homens e brincara com alguns deles nas estradas, quando menino.

Percorreu com o olhar as famílias presentes e parou numa bonita ruiva de pele clara, que segurava duas crianças pelas mãos. Fora com ela que trocara o primeiro beijo,
aos 14 anos.

Uma mulher bem mais bonita estava ao lado dele agora. Ninguém a havia notado ainda, mas notariam logo. A roupa que tinha impressionado Conway parecia ainda mais
luxuosa ali, com seu debrum de pele e seus bordados caros. O gorro que ela usava contrastava com os lenços que as mulheres tinham na cabeça. A pouca luz da velha
igreja parecia se concentrar nela, fazendo sua beleza loura irradiar.

- Temos de ir embora - disse ele.

- Se eu não estivesse aqui, você iria?

Ele não sabia. Aquele não era mais o mundo dele. Não era a luta dele.

- Vou embora se a minha presença comprometer o que você disser, se para eles eu provo apenas que você percorreu um longo caminho, saindo desse vilarejo - disse ela.
- Mas se só sirvo para lembrar o que perderia se falasse, então mais uma pergunta foi respondida, e da maneira que eu não esperava.

Roselyn se virou para o marido.

- Você ainda não é um estranho para eles, mesmo se eles forem cada vez mais estranhos para você.

A compreensão o emocionou. O fato de tentar entender o tocou profundamente.

Ele saiu do lado dela e procurou Jon. Como a cabeça dele estava acima das outras na nave, a voz chegou lá.

- Jon, você sabe que não está pronto para isso. Você disse ombro a ombro, mas parece que há ombros aqui que não ficarão ao seu lado.

O barulho diminuiu. Jon o viu.

- Temos aqui um cavalheiro para nos aconselhar. Trouxe sua elegante esposa. Que sorte a nossa de termos o conselho dele.

Kyle não olhou para trás, mas soube pelos murmúrios e exclamações que notaram a presença de Rose.

- Trouxe minha esposa para conhecer meus velhos amigos, Jon. Imagine a minha surpresa ao encontrar uma reunião política nesta igreja. O que esperam ganhar se ficarem
parados, a não ser muitas mulheres e crianças com fome?

- Menos corpos para enterrar.

- Falei hoje com Cottington. Ele vai escrever para os sócios. O túnel não será aberto enquanto ele estiver vivo.

- Você nos conseguiu alguns dias, talvez algumas semanas, nada mais.

- Já basta para garantir que, quando o túnel for aberto, será seguro.

Jon fez pouco.

- Seguro! Disseram hoje para retirarmos aquela pedra. Encontraram um engenheiro que garante que o túnel já é seguro.

- Então você precisa achar alguém que discorde. Alguém que não receba salário dos donos e que tenha estudos para basear suas conclusões.

Kyle foi até a frente da nave.

- Alguém como eu.

Jon consultou os quatro homens que o rodeavam. A igreja ficou num silêncio tenso enquanto eles discutiam.

- Você vai entrar lá? - perguntou o mais velho dos homens, com leve zombaria.

Chamava-se Peter MacLaran e era o radical dos tempos anteriores, que agora passava a coroa para Jon.

- Vai sujar seus casacos elegantes, meu senhor. E pode levar alguns dias. Perderia aqueles jantares finos em Londres.

O sarcasmo de Peter recebeu algumas risadinhas.

- Entro agora mesmo. Não será a primeira vez. Os casacos podem ficar aqui. Arrume umas botas emprestadas para mim e cinco homens que me acompanhem, e começamos hoje.
Não sairei de Teeslow enquanto não souber o que preciso. Se o túnel for perigoso, vou dizer num relatório. Se puder ficar seguro, vou mostrar como. Se, mesmo assim,
eles prosseguirem e houver outro desmoronamento, o relatório vai enforcá-los.

- Eles não vão permitir.

- O nome de Cottington vai me ajudar. Ele ainda não morreu.

Não esperou que Jon e Peter concordassem. Os gritos em volta mostravam que Kyle tinha vencido a discussão.

Ele voltou para onde Rose estava.

- Você deve voltar para Pru agora. Vou levá-la até a carruagem.

- Posso ir sozinha. Faça o que precisa.

Ele desabotoou os casacos, tirou-os e os entregou à esposa. Surgiu um menino trazendo um par de botas. Kyle sentou e as calçou. Cinco mineiros dos mais experientes
esperavam na porta da igreja, com lamparinas.

Rose segurou os casacos e olhou os preparativos. Ficou tão interessada que parecia assistir a um ritual em alguma terra exótica.

- Avise a Pru que vou precisar de muita água quente quando chegar em casa - disse ele.

Ela se esticou para falar no ouvido dele.

- Espero que precise de um bom banho. Talvez esteja tão cansado que eu tenha de ajudar.

Ele ficou excitado na hora. Lembrar-se da noite anterior, das noites por vir, daquele banho, só fez piorar as coisas.

Ele trincou os dentes, olhou para o chão de pedra e se controlou.

- Rose. Querida. Vou ficar horas num poço escuro. Isso foi maldade sua.

Ela nem fingiu constrangimento. Quando ele foi embora, Rose parecia bem satisfeita consigo mesma.


CONTINUA

CAPÍTULO 9

No centro financeiro da cidade, um empregado conduziu Kyle para uma sala sóbria que fazia parte de uma série de cômodos bastante apropriados a alguém como um advogado.
Kyle imaginou que houvesse um quarto ao fundo, atrás da porta fechada e em frente à janela veneziana de vidraça em semicírculo no topo.

A carta que ele tinha enviado a lorde Hayden motivara o convite para ir até lá. Aqueles cômodos davam a impressão de que seu anfitrião os usava não apenas para negócios.
Para encontrar mulheres, talvez, quando ainda era solteiro. Para tratar de assuntos pessoais, como os que deviam estar escritos nas folhas empilhadas na escrivaninha
perto da janela.

Lorde Hayden o cumprimentou. Sentaram-se em duas poltronas forradas de vermelho-escuro, perto da lareira.

A lembrança de seu último encontro particular era uma sombra sobre eles. Lorde Hayden Rothwell tinha ido à casa de Kyle, após um convite como esse de agora ter sido
recusado.

- A Srta. Longworth me pediu para falar em nome dela - disse lorde Hayden. - Disse que foi você quem sugeriu esse arranjo.

- Ela foi pouco prática em não dar importância aos termos financeiros quando avaliou minha proposta de casamento.

Lorde Hayden se estirou na poltrona como se uma conversa amena fizesse parte do ritual do acordo.

- Não a conheci antes da falência do irmão. Ela me culpou por isso e, embora agora saiba a verdade, ainda há muita formalidade entre nós. Conheci bem o irmão mais
velho, mas não as irmãs.

- O irmão mais velho era Benjamin, que morreu há alguns anos.

Lorde Hayden ficou sério, assumindo a máscara que costumava exibir para o mundo.

- Minha esposa disse que a prima mudou muito há um ano. E que aquele caso com Norbury foi fruto da má avaliação de uma mulher em profunda melancolia. A negligência
em relação aos termos financeiros de seu pedido certamente também é um reflexo de seu estado de espírito.

- Então é melhor cuidarmos do assunto por ela. Seu estado de espírito pode estar mudado, mas não é melancólico. Não estou me aproveitando de uma mulher incapaz de
tomar decisões sensatas.

- Eu não quis dizer que estivesse. Mesmo se estivesse, essa chance que ela terá... Ficarei feliz por ela poder voltar a ter contato com minha esposa.

Para alguém que ficaria feliz com algo naquele casamento, lorde Hayden estava demorando a negociar os detalhes.

- Não esperava fazer agora o papel de pai em acertos de casamento, e não me sinto muito à vontade, Bradwell. Infelizmente, sei mais do que gostaria e sou forçado
a tratar de mais que meros trocados.

- Espero que acredite que minhas intenções são honradas.

- Não estou preocupado com isso e acho que você sabe.

Claro que Kyle sabia. Só não sabia qual papel lorde Hayden iria assumir.

- Ela comentou dos delitos cometidos por Timothy? Se não comentou, não a culpo - disse o lorde.

- Ela foi muito sincera e insistiu que eu ouvisse tudo.

- Corajosa.

- Acho que ela pensou que eu retiraria o pedido quando soubesse, portanto foi bastante corajosa.

Na verdade, ele achava que ela esperava que retirasse e a poupasse de tomar uma decisão. Ela não confiava mais na própria cabeça.

- Foi tão sincero quanto ela?

- Eu disse que sabia o que o irmão tinha feito e que conheço uma das vítimas dele.

- Diabos, você foi uma das vítimas, também teve prejuízo.

- Só porque assumi a dívida. Podia ter escolhido outras saídas.

Na verdade, Kyle só tinha uma. Aquela que estava conversando com ele no momento. Ou ele ressarcia o dinheiro tirando do próprio bolso ou deixava o fundo zerado.
E isso ele não podia fazer.

- Ela sabe que você não quis ser ressarcido?

- Não. Acha que devo contar?

- Não sei que diabos eu acho.

Lorde Hayden se levantou. Com os lábios apertados e o cenho franzido, andou pela sala com a mesma dúvida que atormentara Kyle várias vezes nas últimas semanas.

- Ela planejava encontrar o irmão - informou Kyle. - Recebeu outra carta dele, pedindo para encontrá-lo.

- Maldição - rosnou lorde Hayden e balançou a cabeça. - Mas, se você não a está enganando, não está sendo totalmente sincero.

Mais um pedido de honestidade total, como se isso fosse não só possível como normal.

Faria negócios com aquele homem no futuro. Não queria que lorde Hayden pensasse que ele era um mentiroso ou um canalha. Tentaria explicar, embora quase nunca se
explicasse a ninguém.

Levantou-se também e andou pela sala enquanto pensava o que dizer. Os passos o levaram para perto da escrivaninha. Deu uma olhada nas folhas soltas. Estavam cheias
de números e anotações. Era ali que lorde Hayden fazia os estudos matemáticos pelos quais diziam que era apaixonado.

- Diga, lorde Hayden, o que todo mundo deduziria se soubesse do delito de Longworth e a irmã fosse encontrá-lo?

- Mas não é todo mundo que sabe.

- Vai saber. Um dia. É inevitável. Muita gente foi prejudicada e o fato não vai continuar em segredo.

A segurança dele assustou lorde Hayden.

- Todos foram ressarcidos, ora - argumentou, mas, olhando para Kyle, completou: - Menos você.

- Foram ressarcidos do dinheiro, mas não da ofensa. Você avaliou mal.

Lorde Hayden não gostou dessa hipótese. Um suspiro de frustração mostrou como era desgastante aquela conversa sobre Longworth.

- Se Roselyn estivesse com ele quando isso acontecesse, certamente seria considerada cúmplice.

- Concordo. Portanto, devo contar tudo a ela? Se contar, se ela souber do meu envolvimento, pode mudar de ideia quanto ao casamento. Pode correr para o irmão, seja
para salvá-lo, ajudá-lo, ou para fugir da própria vergonha. Ela sabe que esse segredo não vai durar muito, mesmo que você discorde.

Lorde Hayden olhou Kyle com atenção, um olhar parecido com o que Easterbrook lhe dedicara.

- Foi por isso que você recusou o dinheiro? Por orgulho, como os outros homens que citou?

- O delito não foi seu. Por que deveria pagar? E também pagou caro. Uma quantia enorme por algo de que não tinha culpa. Se eu aceitasse o seu dinheiro, seria ressarcido
às custas de outra vítima, nada mais.

- Uma vítima por opção, o que é diferente. Acho que, no fundo, foi orgulho.

A arrogância de lorde Hayden incomodou Kyle. Fez um gesto mostrando a sala.

- Nenhuma conspiração financeira foi elaborada aqui nos últimos tempos. Nenhuma associação de empresas se formou aqui. Você continua na mesma casa, que é modesta
para os padrões de Mayfair. Mesmo você sentiu o baque de pagar todo aquele dinheiro. Eu devia desfalcá-lo em mais 20 mil? Concordar com o suborno que você me propôs?

- Suborno? Maldição! O seu bolso não seria prejudicado pelo delito de Timothy, só isso.

- Você não restituiu o dinheiro para eles apenas, exigiu que esquecessem a trapaça. Silêncio em troca de dinheiro foi parte do acordo. Seria bom se cada pecador
tivesse um anjo como você para defendê-lo.

Ele esperou que houvesse uma contra-argumentação, até raivosa. Mas lorde Hayden passou a mão na testa e falou, resignado.

- E quando acontecer justamente o que espera, Bradwell? A Justiça vai exigir que ele pague com a vida. Se esse dia chegar, o que você vai dizer a ela?

- Esse sofrimento a espera, quer ela se case comigo ou não. Se esse dia chegar, vou protegê-la e consolá-la da melhor forma possível.

Lorde Hayden pensou nisso um bom tempo. Depois, foi até a escrivaninha e fez um gesto indicando que Kyle o acompanhasse.

- Vamos preparar os papéis para os advogados. Eu concordaria mais com esse casamento se você tivesse aceitado seu dinheiro de volta. Mas aquele lamentável episódio
já prejudicou as irmãs Longworth demais. Talvez depois do casamento isso pese menos sobre o futuro de Roselyn.

 

- Como está crescida, Srta. Irene - disse o Sr. Preston, com um sorriso. - As mulheres do vilarejo vão passar dias comentando seu gorro.

Irene sorriu enquanto o Sr. Preston contava o dinheiro de Rose e embrulhava os mantimentos que ela comprara.

Ela estava crescida mesmo, pensou Rose. Alexia tinha dado a ideia de apresentar Irene à sociedade na próxima temporada. Estava na hora, sem dúvida, levando em conta
a idade dela, mas talvez fosse cedo demais, considerando outras coisas. Nem seu casamento amenizaria o escândalo a tempo de Irene ser bem recebida na atual temporada.

A ideia de que Irene poderia ter um futuro melhor ajudava Rose a ficar mais calma em relação ao casamento que se aproximava. A ausência de Kyle na última semana
contribuíra para deixá-la agitada. Fora passar o Natal no norte, com os tios que o criaram.

A ausência dele significava que ela podia se concentrar nos preparativos, mas a cada dia tinha mais certeza de que não conhecia o homem com quem ia se casar.

- Estamos todos aguardando o grande dia, Srta. Longworth - disse o Sr. Preston com um sorriso largo. - Permita-me dizer que todos os que conheceram o Sr. Bradwell
no mês passado, quando esteve no vilarejo, exaltaram suas boas maneiras e sua simpatia.

- Obrigada. Espero que o senhor e sua esposa nos deem a honra de sua presença.

- Minha esposa não perderia a festa. Ela sempre diz que certas pessoas se precipitam em acreditar no pior. Ficou triste com a maneira como alguns...

Ele interrompeu a frase de repente e lançou um olhar expressivo na direção de Irene. Os olhos dele se desculpavam por se referir ao escândalo na frente da moça.

- Fico agradecida por sua esposa ter me defendido, Sr. Preston. Tenha um bom dia.

Ela e a irmã mais nova saíram da loja. Irene seguia bem perto dela, com seu marcante gorro de seda encorpada.

- Você acha que o vilarejo inteiro concorda com o Sr. Preston?

- É pouco provável que a Sra. Preston deixasse o marido ser tão simpático se todo o vilarejo discordasse.

- Então, parece estar acontecendo o que Alexia esperava.

- Aqui, sim. Mas Watlington é uma coisa e Londres será outra.

- Acho que em Londres não vai ser ruim. Easterbrook vem ao seu casamento. Quando os jornais publicarem isso, ninguém vai dar atenção às más línguas.

- Como as más línguas gostam muito de falar dele, não acredito que sua presença ajude tanto.

Realizar o casamento no interior tinha sido ideia de Kyle, não de Alexia. Lorde Hayden então oferecera a casa do irmão em Aylesbury Abbey, mas Kyle dissera que preferia
a dos Longworth. Iam se casar na paróquia da infância dela, entre pessoas que a conheciam desde menina.

Rose agora entendia a esperteza disso. Kyle conhecia os moradores de um vilarejo melhor do que um irmão de marquês poderia. O dinheiro que a família gastaria nos
preparativos e a festa aberta a todos os moradores ajudariam mais a criar uma visão favorável sobre aquele escândalo do que dez anos de vida honesta.

Rose e Irene seguiram pela estrada do vilarejo, cumprimentando vizinhos e parando para algumas moças poderem admirar o lindo gorro de Irene. Compraram algumas fitas
e tecidos antes de voltarem para casa.

Muita agitação as aguardava lá. Três carroças cheias de móveis enchiam a entrada da casa. Um exército de criados passava carregando coisas enquanto Alexia ficava
de sentinela na porta da frente, segurando uma grande folha de papel.

- Isso vai para a biblioteca - disse ela para dois homens que carregavam um grande tapete.

- O que você está fazendo? - perguntou Rose, afastando-se para o lado de forma que um guarda-roupa enorme pudesse passar.

- Para o quarto no lado sul - Alexia orientou os três homens que aguentavam o peso do guarda-roupa, depois se dirigiu a Rose: - Você não pode dar uma festa de casamento
numa casa que não tem cadeiras.

- O móvel que passou agora não era cadeira.

- Nem tente ser orgulhosa. Não ouse. Hayden disse que você não aceitaria isso, e não vou deixar que confirme que ele estava certo. Já estou bastante irritada por
ele ter me convencido a esperar tanto para fazer isso. Se viesse um mau tempo, você daria uma festa numa casa vazia na semana que vem.

Um homem passou carregando uma arca nas costas, com muito esforço. Ela deu uma batidinha com a folha de papel no ombro dele.

- Meu bom homem, da próxima vez, espere ajuda. Assim você nem enxerga para onde vai.

- Sou forte, madame. É preciso mais que isso para me derrubar.

- Com certeza, mas se virar para o lado errado, vai arrancar pedaços das paredes. Não temos tempo para refazer o reboco. Escute, Rose, o sótão da casa de Aylesbury
Abbey está cheio de móveis que jamais são usados. É um pecado esse desperdício. E não é presente de Hayden. A casa e tudo o que tem dentro não são dele.

Irene concordou com a cabeça.

- É verdade, Rose. É tudo de Easterbrook.

Uma fila de cadeiras passou por Rose.

- Alexia, o marquês a autorizou a esvaziar o sótão?

Alexia contou o número de cadeiras e consultou o papel.

- Só descobri a quantidade de coisas que havia lá nessa última visita. Mas, na última vez que o vi, conversamos sobre o seu casamento. Comentei que queria ajudar
nos preparativos e ele disse que eu podia usar os criados da casa de Aylesbury e tudo o mais que precisasse - explicou ela e sorriu. - Isso aqui é o "tudo o mais".

Rose imaginou o marquês na casa dela, sendo sarcástico quando não estivesse calado, ao ver aqueles móveis que pareciam bem conhecidos. Depois do casamento de Alexia,
Rose só encontrara o marquês duas vezes; achava-o enigmático e mal-humorado, alguém que poderia se beneficiar bastante do ar puro do campo.

- Bem, ele pode mudar de ideia sobre vir ao casamento - murmurou ela, desejando que não viesse, ainda que a presença dele pudesse contribuir para sua redenção.

Os moradores do vilarejo iam se ocupar tanto em bajulações e em tentar impressionar o marquês no dia do casamento que ninguém ia se divertir.

- Ah, ele virá - disse Alexia. - A tia, Henrietta, ficou dizendo que não viria e ele exigiu que o acompanhasse. Ele agora vai se arrastar de Londres até aqui nem
que seja só para aborrecer a tia.

Irene fez uma careta.

- Ela vem?

Rose seguiu pelo caminho dos carregadores.

- Gostaria de saber se ela algum dia olhou o que tinha naqueles sótãos.

- Suponho que Henrietta inventariou os bens de Easterbrook até o último travesseiro, desde que passou a morar com ele na primavera passada - disse Alexia.

- Então é possível que eu a veja na minha festa de casamento. A cada cadeira e mesa que ela vir, vai levantar as sobrancelhas até juntá-las com a linha dos cabelos.

Alexia e Irene se puseram ao lado dela e seguiram com o fluxo de móveis.

Deixaram os homens se ocuparem de colocar os móveis nos cômodos conforme os desenhos que Alexia tinha feito, e Rose levou a irmã e a prima para o andar de cima,
até o santuário de seu quarto.

A porta do sótão estava aberta. Ela deu uma olhada e viu móveis antigos da casa empilhados. Estranhou que algumas peças estivessem ali.

Em vez de ir para o próprio quarto, ela entrou no quarto sul. Era o maior de todos. Os móveis antigos tinham sido substituídos por outros, trazidos por Alexia. Uma
cama grande aguardava os lençóis e o guarda-roupa recém-chegado brilhava encostado a uma parede. Um toucador masculino estava pronto para receber escovas e objetos
pessoais.

Ela olhou para Alexia, cujo rosto refletia seu senso prático e sua firmeza.

- Está na hora, Rose. Ben já se foi há anos - disse Alexia. - Esta casa em breve terá outra vida e outro dono, e este quarto tem que ser dele.

Rose deu uma olhada no quarto, que estava diferente agora, com objetos estranhos que logo seriam de uma presença estranha. Seu coração se apertou com o aspecto decisivo
que a mudança feita por Alexia representava.

Irene mordeu o lábio inferior.

- Ela tem razão, Rose. Acho que em poucos dias você não vai mais se importar.

Rose pôs o braço no ombro de Irene.

- Não me importo, querida. Alexia está certa. É hora de seguir em frente.

Rose tirou Irene do quarto. Alexia olhou para a prima mais velha quando as duas passaram. O olhar que trocaram foi parecido com o do dia em que se viram na casa
de Phaedra.

Às vezes não havia mesmo escolha. Às vezes só havia uma decisão, uma única coisa possível a fazer, se você quisesse uma chance de ser feliz.

 

CAPÍTULO 10

Na manhã do casamento, Jordan insistiu em arrumar o patrão. Chamou os criados da hospedaria Knight's Lily, em Watlington, e deu ordens como um marechal de campo.
Mandou trazer o café da manhã, preparar o banho e pediu mais toalhas, mais água quente ainda e convocou um assistente enquanto manejava a navalha.

Kyle obedeceu e achou que os criados da pousada não se incomodaram com os mandos. Aquilo lhes dava a chance de participar do casamento que deixara o vilarejo inteiro
alvoroçado.

Enquanto isso, Jordan informava dos preparativos que tinha feito na casa em Londres da futura Sra. Bradwell.

Finalmente, ficou tudo pronto. Jordan ajeitou um colarinho, alisou uma manga de camisa e recuou para dar uma olhada.

- Pronto, e ainda falta uma hora. O colete foi uma ótima escolha, senhor. O leve toque de rosa-escuro no cinza está perfeito, com o azul suave da sobrecasaca.

- Já que você escolheu o colete, é bom que aprove. Ainda acho que um cinza mais claro seria melhor.

- É seu casamento, senhor. Um toque alegre no traje, um toque mínimo, devo dizer, é não só apropriado como esperado - argumentou e, tendo guardado o que restava
de seu arsenal, fez uma reverência para se retirar. - Permita-me dizer, senhor, que está numa elegância como nunca vi. É um privilégio servi-lo neste dia tão feliz
- arrematou.

Kyle olhou no espelho a ótima imagem que o tempo, a experiência e Jordan tinham conseguido formar. Sem dúvida, Kyle se sentia mais elegante, correto e apresentável
que em anos. Lembrou-se do dia em que a tia o arrumara com todo o capricho para ir a Kirtonlow Hall pela primeira vez, a pedido do conde de Cottington. Naquele dia,
ele também ficara pronto uma hora antes e tivera de ficar sozinho e quieto para não suar e estragar a roupa.

Olhou pela janela a rua do vilarejo. Viam-se poucas pessoas. Como ele, estavam todos se arrumando para uma cerimônia e uma festa mais grandiosas do que quaisquer
outras que tivessem visto em anos.

Naquele dia, quando criança, ele imaginara que, na melhor das hipóteses, o conde lhe daria uma bronca e, na pior, uma surra de chicote. Em vez disso, Cottington
tinha mudado a vida dele.

Mudado para melhor, claro. Só um idiota ou um ingrato não reconheceria. Então, ao olhar Watlington pela janela, sentiu uma inesperada falta de Teeslow, seu vilarejo.

Seria bom ter alguns rostos conhecidos no casamento, só que estavam todos longe, tanto no tempo quanto na distância. A generosidade de Cottington o tinha arrancado
daquele mundo, mas não encontrara outro onde colocá-lo.

Ele tinha criado uma espécie de círculo de amigos e sócios, mas não era a mesma coisa. Não pertencia mais a lugar algum, já fazia algum tempo. Sua vida parecia uma
videira com os ramos se distanciando cada vez mais das raízes.

Aquele casamento também não mudaria nada. Ele ficaria à margem do mundo de Roselyn, não dentro. Escolhera a esposa com toda a consciência disso. Sabia o que ganhava
e o que jamais teria, de uma forma que nem Rose entendia.

O olhar bateu na valise de viagem. Enfiada nela, estava uma carta que Jordan tinha trazido de Londres. Durante a visita de Kyle ao norte, o conde estivera muito
adoentado para recebê-lo, mas tinha conseguido mandar conselhos e cumprimentos pelo casamento e dito que recomendara ao advogado que lhe enviasse um presente.

O conde não estaria lá. Nem a tia Prudence e o tio Harold, que não conseguiram disfarçar o susto ao saberem da mulher que o sobrinho tomaria por esposa, quando ele
lhes contou na visita de Natal. Harold estava doente demais para viajar, mas os tios nunca fariam uma viagem assim no inverno. Os outros amigos que fizeram parte
de sua juventude também não iam festejar com ele e só uma pessoa de seu vago mundo atual estava em Watlington.

Kyle foi procurá-lo.

Entrou no quarto de Jean Pierre, que estava em frente ao espelho, colocando a gravata. Depois de Jean fazer algumas dobras e acertos no tecido, Kyle viu de perfil
o amigo assentir, satisfeito. Ele se virou e olhou para o noivo.

- Mon Dieu, por que os homens sempre parecem a caminho da guilhotina no dia do casamento? - falou, passando a mão numa garrafinha que estava no toucador e arremessando-a.
- Um gole, não mais. Seria grosseiro estar bêbado, embora fosse menos doloroso.

Kyle riu, mas tomou um gole mesmo assim.

Jean Pierre mexeu mais um pouco na gravata.

- Esse Easterbrook não me impressiona, mas, oui, de qualquer forma estou sendo um idiota. Tento me convencer de que meu cuidado com o traje não é por causa dele
e seu título importante. Os criados disseram que sua noiva é linda. É ela que quero impressionar, não ele.

- Por quê? Ela é minha noiva.

Um riso. Um suspiro.

- É bom que você se case. Você nunca achou graça nessa brincadeira. Algumas visões suas são... simplórias.

- Muito simplórias.

A voz dele soou mais perigosa do que ele pretendia. Muito perigosa.

- Espero que não se torne um daqueles sujeitos enfadonhos que ralham quando alguém elogia sua mulher. Ninguém colhe todas as flores que cheira.

- Elogie quanto quiser, mas sei muito bem o que você faz com as flores. Tenho certeza de que sabe que é melhor não brincar no meu jardim.

- Mon ami, você tem que aceitar que haverá flerte no ambiente que ela frequenta, e não ser idiota...

- Não preciso que me ensine nada. Sei de tudo isso. Estou apenas dizendo que você não vai arrancar, cheirar, nem mesmo passar por nenhuma cerca-viva.

- O nervosismo do dia já está afetando a sua cabeça. Ainda bem que estou aqui para ajudar. Acho que precisa de mais um gole dessa bebida. Depois jogaremos baralho
até a hora do casamento, assim você fica calmo e não fala feito um idiota.

- Estou bem tranquilo. Sereno como um lago num dia sem vento. Diabos, nunca estive tão calmo.

- Claro. Agora, mais um gole. Ah, bon.

 

- A carruagem de Aylesbury já passou.

A informação foi dada por um criado que ficara de sentinela na estrada. Alexia se levantou e sorriu ansiosa para Rose.

- Agora podemos ir.

Rose olhou para seu vestido. Não era novo. Tinha ficado escondido um ano, desde a época em que Tim vendera tudo o que encontrava. Irritada e de forma egoísta, ela
escondera alguns de seus melhores trajes, na esperança de ter motivo para usá-los de novo. Alexia a ajudara a reformar o vestido, assim não dava para perceber que
era usado.

Rose estava contente de, nesse dia, usar roupas que eram dela. Quase nada na casa era. Até a comida que estava sendo preparada na cozinha pelos criados de Aylesbury
não era dela. E Kyle tinha enviado os barris de cerveja e vinho. Ela se sentiria mais estranha ainda se usasse um dos vestidos de Alexia.

Saíram todos em direção às carruagens que os aguardavam. Lady Phaedra e lorde Elliot tinham vindo participar desse cortejo, em vez de seguirem com Easterbrook. Ela
ficou emocionada com o comparecimento de toda a família de lorde Hayden. Mostravam que a protegiam, graças ao amor que tinham por Alexia.

Alexia, Irene e lorde Hayden iam com ela numa pequena carruagem aberta. Ao chegarem ao vilarejo, não viram ninguém nas ruas. Todos estariam na igreja. Muitos se
aglomeravam do lado de fora porque na velha construção medieval de pedra não havia espaço para todos.

Quando Rose entrou na igreja, sentiu a mudança da luz e da temperatura. Ficou zonza. Tudo se tornou irreal, como imagens de um sonho.

Captava a cena ao redor ao ritmo do sangue que pulsava em sua cabeça. Sorrisos, murmúrios, mulheres apontando os trajes elegantes das damas, rostos que faziam parte
da vida inteira dela olhando... uma caminhada, longa e escura em direção ao altar.

Kyle a aguardava. A seu modo, estava lindo. O leve sorriso que ele dava para apoiá-la fazia o mundo voltar um pouco a seu lugar, mas não totalmente. Ela disse palavras
que pareceram muito distantes. Palavras sérias, votos e promessas, que a uniram irreversivelmente a alguém.

Sentiu-se tomada por uma súbita alegria quando percebeu que havia terminado. Teve a impressão de pairar no ar, impressionada com a própria coragem. Ao mesmo tempo,
temia que, a menos que surgissem anjos para segurá-la no voo, pudesse se esborrachar no chão do vale.

Viu-se de novo na carruagem aberta, agora ao lado de Kyle. Os moradores do vilarejo seguiam a pé ou em carruagens, todos para a casa.

Kyle segurou a mão dela. Aquele gesto a arrancou do devaneio. O sentido do que tinha acontecido se revelou de forma tão concreta que ela mal conseguiu acreditar.

Olhou o perfil do homem que agora era seu marido e senhor. Dele, conhecia apenas duas partes, a de salvador e pretendente. De resto, continuava sendo um estranho
em quase tudo.

 

Kyle observava a festa animada que lotava a casa de Rose. Os convidados mais importantes tinham se sentado para um café da manhã de núpcias, enquanto os moradores
do vilarejo andavam pela sala e a biblioteca e se espalhavam pelo jardim e o terreno. Agora todo mundo se misturava no aperto dizendo votos de felicidade para Rose,
que estava a poucos metros dali.

Kyle não olhava muito para ela. Não ousava. Quando olhou, viu detalhes que fez seu corpo se empertigar. A linha do pescoço, elegantemente debruçada numa conversa,
tinha fios de cabelo esparsos que pareciam seda. Os lábios, como um veludo para beijar, curvavam-se num sorriso sereno.

O vestido era de um tecido marfim macio que modelava o corpo de maneira que o fazia relembrar os seios que tinha acariciado. Pensou em como seria tirar aquele vestido
dali a pouco e no resto, a pele perfeita dela tocando seu corpo inteiro.

Ela percebeu o olhar dele. Deve ter concluído o que ele pensava, embora Kyle duvidasse que ela pudesse adivinhar os detalhes eróticos. Ela corou e voltou a conversar
com o convidado.

Ele se obrigou a prestar atenção na festa para se distrair. Observou Easterbrook chamando a atenção em frente à cornija da lareira. Os moradores do vilarejo se aproximaram
com deferência e receio, não só por ele ser um marquês.

O comportamento dele não incentivava aproximações. A aparência excêntrica tinha sido de certa maneira amenizada. Surpreendentemente, usava trajes conservadores e
os cabelos compridos tinham sido presos num rabo. Mas ele olhava de cima, satisfeito com os resultados de sua caprichosa intromissão.

Um riso de mulher desviou a atenção de Kyle. Perto, num canto da sala, Jean Pierre atraía Caroline, a jovem prima de Easterbrook. A linda moça enrubescia com a atenção
dele.

A mãe, lady Wallingford - tia Henrietta, para a família -, incentivava Jean Pierre a flertar mais um pouco. Pálida como a filha e enfeitada com um chapéu incrível
pelo excesso de plumas, a lady tinha um jeito alienado, com aquela expressão ausente, etérea. Segundo Rose, o rosto ingênuo escondia a sagacidade de uma mulher decidida
a ficar para sempre na casa de Easterbrook, depois de finalmente conseguir se acomodar nela no ano anterior. Os boatos diziam que o recluso marquês tinha cada vez
menos paciência para a intrusão da tia e da prima.

Dali a pouco, Jean Pierre pediu licença às duas damas e foi abrindo caminho até chegar onde Kyle estava.

- Jean Pierre, a respeito daquelas flores... lorde Hayden é o protetor de uma das que você cheirava há pouco. Olhe para ele. Quer ter esse homem como inimigo?

Jean Pierre procurou lorde Hayden com o olhar.

- Acho que ele não vai se incomodar.

- Ele não terá como não se incomodar. Ela é inocente.

- Eu não cheiro inocentes - garantiu ele, e olhou para Henrietta e Caroline. - A menina não me interessa. Lady Wallingford deve ter, no máximo, 30 e poucos anos.
Você vê uma matrona que usa chapéus horrorosos. Eu vejo uma mulher com uma beleza oculta e etérea que, meu nariz tem o prazer de informar, não se oporia a uma pequena
sedução.

Não adiantava tentar dissuadir Jean Pierre dessa conquista. Kyle imaginou que lorde Hayden não causaria um duelo em nome da virtude da tia.

De repente, a festa pareceu mudar. Acalmou-se. As pessoas se afastaram para formar um corredor. O marquês passou no meio, sorrindo de leve, afavelmente, para a direita
e a esquerda.

- Finalmente - resmungou Jean Pierre. - Agora é só esconda a cerveja e o vinho e todos os demais vão embora também.

Sim, finalmente.

Rose fez uma reverência quando Easterbrook se despediu dela. Kyle também fez uma reverência e torceu para que nada tirasse o homem de seu curso. Ninguém iria embora
antes dele.

A tia do marquês se sentiu na obrigação de acompanhá-lo. Em pouco tempo, os irmãos dele também se foram. A festa começava a acabar.

Kyle se imaginou colocando todos porta afora, os moradores do vilarejo e os criados, todo mundo. Teve de se esforçar para controlar a impaciência.

Uma coisa era desejar Rose antes. Mas desejá-la hoje, agora, quando sabia que poderia possuí-la, estava sendo uma tortura.

 

Fazia tanto tempo que Rose não tinha uma criada que ficou sem saber o que fazer com a mulher. Por sorte, a criada que Alexia arrumara não precisava de ordens. Com
gestos eficientes e de olhos baixos, preparou Rose para a noite de núpcias.

A casa agora estava quase vazia. Só ficaram o marido e a esposa, o criado pessoal de Kyle e a criada que arrumara Rose. Dali a pouco os dois últimos iriam desaparecer
em outros cômodos do andar superior.

As últimas horas tinham sido difíceis. A aproximação daquele momento tinha surtido efeito sobre cada minuto e cada segundo delas. Tanto Roselyn quanto Kyle não disseram
nada, nem mesmo na longa caminhada que fizeram enquanto os criados de Aylesbury limpavam a casa, tirando os pratos e os barris de vinho. A noite que estava para
chegar fora um manto invisível cobrindo cada instante e transformando cada olhar e cada toque.

Ela dispensou a criada e se empertigou. Não estava com medo. Nem um pouco. Estava nervosa, preocupada e curiosa, mas não com medo.

Passou a mão pelos cabelos, que tinham sido escovados e estavam soltos. Conferiu a camisola, quase recatada com suas mangas compridas e a gola alta franzida. Olhou
para a cama, que os aguardava com o lençol aberto. A vida inteira, ela vira a cama naquele mesmo lugar.

Não tinha certeza se queria que as coisas se passassem naquela cama. Não sabia nem se queria que fossem naquele quarto.

Ali ela havia sido uma criança feliz e uma garota cheia de esperanças. Ali chorara a morte dos pais e a de Benjamin; sofrera com a falência do irmão e a dela própria.
Aquele quarto continha toda a sua história, o bom e o ruim, e ainda guardava ecos de sonhos juvenis jamais realizados.

Se Kyle entrasse ali agora, ela não conseguiria voltar ao quarto sem que a presença dele influenciasse todas as lembranças.

Mudasse. Talvez até ofuscasse. A partir de agora, sua vida mudaria sob vários aspectos. Ela podia ao menos conservar aquele canto de seu antigo mundo.

Jogou um xale sobre os ombros. Pegou uma vela acesa e saiu de mansinho do quarto. Prestou atenção em sons vindos do quarto sul para saber se Jordan ainda estava
servindo o patrão.

Nenhuma voz, nenhum barulho. Entreabriu a porta e olhou.

Jordan não estava lá. Só Kyle. Ao lado da lareira, imerso em pensamentos que endureciam suas feições. Dava a impressão de que aquelas reflexões o tinham desviado
de seus preparativos. Ele estava nu da cintura para cima, mas ainda de calças.

Ao vê-lo assim, ela se assustou. O homem escondido por aquelas roupas elegantes agora estava exposto, de uma maneira não apenas física. Um cavalheiro podia praticar
boxe ou esgrima durante meses e não conseguir a força contida e autêntica que ele revelava. Não era tanto a altura e o corpo que ele tinha, embora a musculatura
firme e definida acentuasse o efeito. Era mais algo que vinha de dentro e não tinha explicação.

Ela teve noção de que estava vendo algo que ele não mostrava ao mundo. Escondia atrás da fala educada e das maneiras polidas, mas devia estar sempre nele. Rose havia
percebido desde o começo. Tinha sentido os efeitos tanto de formas sutis quanto fortes. Era essa força que a excitava e a fazia sentir-se ao mesmo tempo segura e
temerosa.

Ele se virou como se ouvisse o som vindo da porta, embora ela mal respirasse. Olhou-a por inteiro: o xale e a camisola, a vela e os cabelos.

- Eu já ia ao seu encontro - disse ele.

- Pensei em vir encontrá-lo. Você se importa?

- Claro que não.

Ela se aproximou e colocou a vela no toucador.

- Você estava tão absorto. No que pensava tanto?

- Em algo que aconteceu há muito tempo. Tinha até esquecido, só lembrei agora.

- Uma lembrança ruim?

- Sim.

- Então, ainda bem que entrei.

Ela ficou constrangida com o olhar dele. Talvez, vindo até ele ao invés de esperá-lo, tivesse criado uma expectativa de que faria algo mais.

- Ele machucou você?

A pergunta foi feita com tanta calma que ela levou um instante para entender. Ficou triste por ele falar em Norbury logo naquela noite.

- Pensei que jamais fosse falar...

- Ele machucou? Só pergunto por causa de agora e do que vamos desfrutar daqui a pouco. Veio à minha cabeça que talvez tivesse machucado. Que talvez eu o houvesse
considerado alguém melhor do que é, mesmo sabendo que é bem menos do que muita gente pensa.

Ela não entendeu direito a que ele se referia. Só que era a algo pior do que ela enfrentara. Embora, naquela derradeira noite, Norbury tivesse pedido algo que, parando
para pensar, poderia ser não só chocante, mas doloroso.

Olhou para o homem que, horas antes, tinha jurado protegê-la. A firmeza dele era perigosa e os olhos mostravam isso. Rose concluiu que ele não toleraria o que ela
acabara de se lembrar, ainda que ela lhe garantisse que não tinha chegado a acontecer.

- Não, ele não me machucou. Não da maneira que deve pensar.

- Fico contente.

Ele pareceu contente mesmo. Aliviado.

O leve sorriso ajudou a amenizar o clima e acabar com qualquer raiva causada pela lembrança do passado. O fantasma de Norbury ou de qualquer outro que tivesse entrado
naquele quarto sumiu como uma fumaça fina que esvaece pela janela.

Rose tinha certeza de que agora Kyle só pensava nela. E lhe dava toda a atenção. Isso a deixava nervosa e inquieta, ficar ali enquanto ele a olhava. Ela também olhava
o peito e os ombros banhados pelo brilho cálido da lareira. O corpo dela reagiu à expectativa que saturava o ar.

- Venha cá, Roselyn.

Claro que ela obedeceu. Fazia parte do que havia prometido naquele dia. Não era uma menina inocente e não ia mostrar quanto ainda se sentia como tal.

Ficou bem na frente do marido, com o peito nu dele a centímetros de seu nariz. Um peito atraente. Só a proximidade dos dois já era provocante e ela teve um impulso
de beijar o corpo que a atraía.

Ele a beijou primeiro. Pegou o rosto dela nas mãos e a beijou com mais carinho do que nunca. Era como se quisesse dar confiança a ela, o que Rose achou muito bom.
Só que ele já tinha feito isso na carruagem, no dia em que se encontraram no parque. Tinha consciência de que parte de seu dever de esposa podia ser desagradável,
mas agora também sabia que outra parte seria muito boa.

O corpo dela concordou. Reagiu ao beijo mais do que seria preciso. O nervosismo diminuiu e a excitação aumentou.

Kyle a levou para a cama. Sentou-se na beirada para não ficar tão mais alto que Rose. Assim podia beijá-la mais facilmente. Mais intimamente. Com menos cuidado.
Enquanto beijava, colocou a mão sobre o seio dela. As carícias a excitaram tão rápido que ela se assustou. Ela deixou o desejo fluir e notou que seu corpo latejava
lá embaixo, ansiando por ele.

Kyle observou a própria mão moldar o tecido da camisola ao redor do seio, exibindo sua forma. Ela ofegava toda vez que ele lhe roçava o mamilo, tão penetrante era
a sensação que causava.

- Você é muito bonita, Roselyn.

A beleza não tinha sido de muita utilidade em seu erro. Ainda assim, o elogio a agradava.

Ele a olhava com tanta intensidade que Rose teve medo de que ele se desapontasse com o que visse.

- Você já ouviu isso muitas vezes. Desde criança, imagino.

- Se você me achar linda esta noite, estarei feliz.

- Sempre achei. Eu a vi uma vez, há anos. Num teatro. Não sabia quem era, só que nunca tinha visto uma mulher tão encantadora. Depois, percebi seu irmão no mesmo
camarote e concluí que devia ser a bela Longworth que tantos elogiavam.

O toque leve causou tanta alegria, tanto prazer que ela quase o repreendeu por não ter ido procurá-la quando soube quem era. Conteve-se a tempo. Sabia o motivo.

Teria sido por isso que fizera a proposta de casamento? Ela mal conseguia pensar nisso, raciocinava de um jeito preguiçoso, indiferente. Ele não resistira à chance
de ter algo que o mundo proibira a um filho de mineiro?

Ela se entristeceu ao pensar nisso. E veio novamente o impulso de beijá-lo. Dessa vez ela obedeceu, beijou a curva do ombro dele.

Foi como se acendesse uma tocha, tal o efeito que causou, apesar de Kyle imediatamente tentar conter seu desejo. Mas os olhos dele se aprofundaram a ponto de ela
pensar que poderia se afogar neles se os mirasse por muito tempo.

Ele puxou as pontas do laço que prendia a camisola no pescoço. Rose olhou para a mão dele, enquanto as fitas acetinadas corriam e o nó se desatava. Pareceu levar
uma eternidade. Um ponto dentro de seu corpo latejou e se retesou, como se uma língua invisível estalasse em sua carne.

Percebeu que Kyle ia despi-la. Ali mesmo, despi-la inteira, com a vela acesa na mesinha lateral. Tinha certeza de que não era assim que se fazia. Só que ele podia
não saber. Mas...

Ela ainda estava surpresa por esses pensamentos quando a camisola escorregou pelos ombros. Kyle notou a surpresa, mas isso não o impediu de continuar. Desceu o tecido
até exibir os seios, túrgidos e com os mamilos escuros. Puxou a camisola mais para baixo, passando pela cintura e as pernas até Rose ficar nua sobre um lago de tecido
branco.

Rose ficou envergonhada. O quarto precisava estar escuro, ou quase, quando ela estivesse assim. E eles deviam ficar embaixo do lençol, quase anônimos nos gestos
por vir. Tentou se cobrir com os braços.

- Não.

Ele a segurou antes que conseguisse. Puxou-a mais para perto. Sua língua mal tocou a extremidade de um de seus mamilos.

Uma centelha de prazer percorreu seu corpo inteiro: intensa, direta, precisa. Depois, outra, e outra, sufocando seu constrangimento, fazendo-a querer apenas que
ele continuasse aquilo para sempre e que o prazer maravilhoso nunca cessasse.

Com a língua e a boca, ele a levava aos céus. Acariciou todo o corpo dela e ela então gostou de estar sem a camisola. O toque das mãos em sua pele, nas coxas e atrás,
nas costas, parecia certo, necessário e perfeito. Ela se virou, presa numa sensualidade e num desejo intensos, que pareciam aumentar cada vez mais, o prazer pedindo
mais prazer num crescendo infinito.

Ficou tão perdida nesse torpor que não percebeu que segurava o ombro de Kyle até ele soltar sua mão. Mal notou quando ele se levantou e a deitou na cama. Rose voltou
um pouco a si na pausa que se seguiu e o viu tirar a roupa à luz da vela que ainda queimava.

Ela esticou a mão e apagou a vela antes de ver o corpo inteiro dele como ele a vira. Kyle se transformou então numa silhueta, uma forma escura, indistinta e vaga.
Ele foi na direção dela na cama.

Um beijo, tão profundo e íntimo que ela jamais o esqueceria. Uma carícia, tão firme e possessiva que ela só podia render-se à sua maestria. Um toque, tão direto
e ciente de seu efeito que o corpo todo gritou com o prazer intenso.

Ele continuou. Ela manteve um grito ao mesmo tempo mudo e pleno de desejo, de sensação torturante. Rose perdera a consciência de seu corpo, exceto a tênue vontade
que exigia mais, qualquer coisa, tudo.

A voz dele, calma e profunda.

- Entregue-se. Vai entender o que quero dizer. Deixe acontecer. Solte-se.

Ela mal o ouviu. Não entendeu. Mas o corpo se soltou lentamente. O suficiente para que um tremor profundo surgisse e então aumentasse e subisse em ondas de prazer
cada vez mais altas, para no fim explodir em seu corpo e ofuscar sua mente, num momento etéreo de estupefação.

Kyle estava abraçado a ela, em cima dela. Sentiu-o entrar com cuidado. Com muito cuidado. Ela o deixou assim e ajeitou as coxas para que ele ficasse lá, para que
a penetrasse antes que aquela sensação maravilhosa tivesse fim.

A calma dele se foi. Veio a força. Ela não se importou. Não foi ruim, nem sequer desagradável. Ela se entregou a ele como se entregara ao próprio prazer, ainda flutuando
numa perfeição que as estocadas dele só fizeram prolongar.

 

Ele despertou perto da aurora e viu que Roselyn se fora. A certa altura da noite, talvez logo após ele adormecer, tinha voltado para seu quarto e sua cama.

Se ele tivesse ido até o quarto dela, Rose esperaria dele que saísse logo também. Era assim que se fazia com mulheres como ela. Elas não viviam em casebres, onde
marido e mulher compartilhavam a mesma cama a noite inteira, todas as noites.

Lembrou-se de, quando menino, ouvir murmúrios e risos íntimos no quarto ao lado. Aqueles sons pessoais davam vida à casa. Ele não tinha participação naquelas conversas,
mas os murmúrios traziam paz à noite.

Era estranho que a lembrança viesse naquele momento, tão vívida que, se ele fechasse os olhos, se sentiria na cama de sua infância outra vez. Esquisito que aquele
casamento tivesse aberto tantas portas para o passado. Só que ele olhava por essas portas como homem e via coisas que o menino jamais compreendera.

Uma das portas seria difícil de fechar. Se Roselyn não tivesse vindo na noite anterior, ele ficaria horas refletindo sobre o que vira de novo daquela soleira.

As imagens queriam invadir a cabeça dele. Ele as expulsou por ora. Quem sabe, de uma vez por todas. Assim como a honestidade absoluta, a pura verdade nem sempre
era benéfica.

Cochilou, depois acordou de novo, num sobressalto. Era tarde. Não tinha apenas cochilado.

A água para lavar o rosto estava à espera. As roupas tinham sido preparadas para que se vestisse. Jordan estivera lá, mas deixara o noivo dormir. Ele não chamou
o criado, mas se arrumou para mais um dia.

Desceu a escada e acompanhou o som das vozes na cozinha, nos fundos da casa. Rose estava lá com Jordan. Usava um vestido simples, cinza, que ficaria bem numa dona
de casa modesta. Continuava linda.

Não conseguia olhar para ela sem relembrar seu corpo à luz da vela, a timidez e os tremores de sua excitação. Apagar a vela tinha, sem dúvida, sido sensato, embora
ele tivesse vontade de olhar para a esposa a noite inteira. Na escuridão, ela conseguira se libertar um pouco e ele conseguira se controlar para não possuí-la com
voracidade.

O primeiro olhar que Rose lhe deu continha um agradecimento pela noite. Ela então abaixou os olhos.

Jordan serviu o café da manhã.

- Este lugar é simples, senhor, mas a vista do jardim e a luz são agradáveis. Posso servir o café na sala de jantar, se o senhor preferir.

- Assim está ótimo.

Ele se sentou à mesa onde havia almoçado com Rose no dia em que fizera o pedido de casamento. Com gestos eficientes, Jordan serviu um café da manhã bem tardio.

Quando Kyle terminou, Roselyn trouxe para a mesa o último prato a saborear.

- É torta de maçã - avisou ela. - Você disse que gosta tanto que às vezes come no café da manhã...

- Muito bem, Jordan.

- Não foi ele quem fez. Fui eu.

Ao fundo, Jordan terminou de secar uma jarra. Pegou seu casaco.

- Quero olhar um pouco o jardim, madame. Com sua permissão, posso sugerir algumas melhorias.

- Claro, Jordan.

Rose cortou uma grande fatia de torta e colocou num prato. Deu um passo atrás e esperou que o marido provasse.

Ele deu uma boa mordida.

A torta anterior estava ruim. Já esta estava horrível. Olhou para o armário e todos os mantimentos. Tinha presumido que a primeira torta ficara ruim por falta de
açúcar e sal. Pelo jeito, o problema não era esse. Roselyn é que fazia tortas horríveis.

Ela teve prazer de vê-lo comer. Por sua expressão facial e os sons que fazia, ele estava gostando.

- Deliciosa - falou ao engolir o último pedaço.

- Fico contente que tenha gostado. Jordan ficou estalando a língua enquanto eu assava, mas acho que só estava irritado por eu estar fazendo o trabalho dele.

Ele a segurou e a puxou para si.

- Você não precisa mais cozinhar. Não precisa fazer tortas.

- Eu sei. Só que esta manhã me lembrei de que servi torta a primeira vez que esteve aqui e que pareceu gostar. Então quis fazer outra.

Ele percebeu que tinha acabado de ser elogiado pela noite anterior.

Beijou-a e a soltou. Não estava com fome naquele momento, pelo menos de comida. Muito menos daquela torta.

Mesmo assim, cortou mais uma fatia.

 

CAPÍTULO 11

Kyle colocou os rolos de projetos numa grande sacola de lona.

O assunto não podia esperar mais. Muito já fora investido naquilo. Ele não tinha escolha senão encontrar Norbury, como estava marcado fazia tanto tempo.

Tentou ouvir algum som vindo do quarto de Roselyn. Ela costumava acordar cedo. Não tinha o hábito de ficar na cama até o meio-dia como certas damas. Nesse dia, entretanto,
o pavimento onde ficavam seus quartos continuava estranhamente silencioso. Como ele a mantivera acordada quase a noite inteira, não se surpreendeu.

Ela não parecera se importar em dormir pouco. A noite lhe despertara novos apetites. E, ao contrário do que ocorrera em Oxfordshire, onde ela sempre o procurava,
como se quisesse demonstrar que cumpria seus deveres conjugais, ali em Londres era o contrário: ele é que ia encontrá-la. Isso significava que, às vezes, como na
noite anterior, Kyle se demorava bastante por lá.

Ela não se importava, mas, ao mesmo tempo, preparava os rituais da noite de maneira a não ficar constrangida. Depois daquela primeira noite, sempre apagava as velas
mais cedo. Apesar da escuridão, Kyle conhecia o corpo da esposa melhor do que ela pensava. O toque revelava muito e a luz da lua, mais ainda. Ela podia preferir
as sombras, podia até esquecer o rosto do homem que a possuía, mas ele jamais esquecia que era Roselyn que ele acariciava.

Riu para si mesmo ao se lembrar da pequena batalha que seu corpo enfrentava todas as noites. Roselyn Longworth lhe provocava um desejo tão forte, tão arrasador,
que muitas vezes ele ficava agressivo. Mas, como se tratava de Roselyn, uma dama que ainda se intimidava e se espantava com a nudez, ele tinha de se controlar.

Isso não era um problema. O final era sempre bom. Os doces êxtases dela e os gozos fortes dele o encantavam. Depois de tudo, era com pesar que ele abria mão da satisfação
absoluta que encontrava nos braços dela. Às vezes, como na noite anterior, ele passava horas recusando-se a ir embora, o que significava ter relações mais de uma
vez.

Desceu a escada. Aquela casa ainda parecia nova e estranha para ele. Roselyn ficara muito contente quando ele a levara para lá. Ocupava-se agora de arrumá-la a seu
jeito e de fazer as primeiras reaparições na sociedade.

Ele cuidava dos negócios, como essa reunião agora. Foi a cavalo para a casa de Norbury, com a sacola de lona presa à sela. O dia estava melhor que o humor dele.
Não falava em Norbury com a esposa, mas sua fome insaciável da noite anterior, o desejo de possuí-la, estava ligada à desagradável expectativa do encontro que se
seguiria.

Na verdade, aquele homem agora entrava em sua cabeça com muita frequência. Não só por causa de Rose, apesar de ele ter de se esforçar para afastar as lembranças
daquele caso. Pensar nisso só lhe dava raiva e uma vontade enorme de bater no canalha.

Kyle continuava também com a lembrança que tivera na noite de núpcias, como se aquilo precisasse ser revisto. Era o rosto de uma mulher espancada e machucada. Os
olhos da mulher o assombravam. A humilhação que mostravam parecia o rosto de Rose na noite do leilão.

No dia em que encontrara a tia ferida ao se defender dos jovens ricos que se divertiam com ela, Kyle lutara como um possesso. Eram três contra um e ele tinha apenas
12 anos, mas seus inimigos não haviam passado quatro anos carregando carvão na mina.

Ele achara que a havia salvado. Só agora, que os detalhes começavam a ressurgir em sua cabeça, ele reavaliava o ocorrido. Talvez não tivesse chegado no início da
violência contra a tia, mas no final.

Pensar em Rose o fez lembrar-se de tudo isso na noite de núpcias. Enquanto ele avaliava como lidar com ela, como lhe mostrar os caminhos do prazer sem deixá-la assustada,
chegara a sombra do amante anterior. Com a lembrança, viera o pensamento inesperado de que o sexo trivial devia ser o menor motivo para Rose não gostar de contato
físico.

Parou o cavalo na frente da casa de Norbury. Olhou a fachada em perfeito estilo paladiano que dava tanta elegância à construção. Considerava-a uma das melhores moradias
de Londres, de uma excelência que para muitos passaria despercebida num mar de influências clássicas. Era um desperdício, pois Norbury tinha pouca sensibilidade
para essas coisas.

Não podia se distrair com a estética, como costumava ocorrer. A nova pergunta sobre aquela briga travada fazia tanto tempo afetava bem mais do que a infância dele.
Fazia com que imaginasse mais do que gostaria sobre o caso de Rose. Chegava a incomodá-lo no encontro de hoje, pois Norbury tinha sido um dos meninos em que ele
batera.

A tia garantira que ele havia chegado a tempo e ele acreditara. Mas aquelas conversas noturnas no casebre deles sumiram por muito tempo e o tio nunca aprovou a ajuda
dada por Cottington. Aceite o dinheiro, mas não seja um lacaio, Kyle, meu jovem. Use-os da mesma maneira que eles usam os outros, mas não se torne um deles.

O mordomo sorriu ao receber o cartão de visita de Kyle. A familiaridade não era desrespeitosa. Os criados daquela casa, como os de muitas outras elegantes residências
londrinas, logo se afeiçoavam ao menino pobre que se tornara um homem bem-sucedido, alguém que circulava pelos dois mundos que eles conheciam.

- Meu patrão está ocupado, mas poderá recebê-lo em menos de uma hora - informou o mordomo ao retornar.

Kyle o seguiu até a biblioteca, sabendo que "menos de uma hora" significava uma espera de pelo menos 59 minutos.

Assim que a porta da biblioteca foi fechada, Kyle a abriu de novo. Desceu a escada para a cozinha. Norbury não devia estar ocupado coisa nenhuma. O atraso era apenas
a maneira enfadonha de o visconde mostrar a própria importância. Mas o tempo que Norbury tinha dado seria útil.

A confeiteira se virou, surpresa, ao ouvir os passos dele na escada.

- Sr. Bradwell! Que honra. Nossa, como o senhor está bonito. Parece que o casamento lhe fez bem.

- Olá, Lizzy. Você também está bem. Com um pouco mais de farinha que o habitual.

Ela passou as mãos nos cabelos grisalhos, fazendo surgir uma nuvem branca. Lizzy era uma das muitas criadas da casa que tinha família em Teeslow. Quando moça, fora
trabalhar para Cottington, depois se mudara para Londres quando Norbury fora para a cidade.


O cozinheiro, um homem sério, cumprimentou Kyle com a cabeça e resmungou parabéns pelo casamento. Tirou uma panela grande da mesa e, com o pé, empurrou um banquinho
até o espaço recém-liberado. Depois voltou a ralhar com uma criada na copa. Kyle sentou no banquinho.

- Veio falar com o patrão, não é? - perguntou Lizzy, enquanto partia ao meio a massa de pão e pegava um pedaço grande. - Uma daquelas conversas sobre dinheiro que
ninguém entende?

- Sim.

- Tem gente que diz que é como um jogo.

- É parecido, só que sou eu quem decide onde fica a maioria das cartas.

- Ainda assim, uma cartada errada e...

- É, pode acontecer.

- Não é muito provável que aconteça com o senhor, eu diria. Sempre foi mais esperto que a maioria, deve saber dar as cartas.

Geralmente. Normalmente. Mas havia sempre um risco. O importante em qualquer jogo era não se importar muito em ganhar ou perder. Um homem nervoso ou desesperado
sempre joga mal.

O sucesso dele dependia da certeza de que, se tudo desse errado, sempre poderia se recuperar e que um revés de alguns anos não faria muita diferença em sua vida.

O casamento mudava tudo. Percebera isso ao fazer seus votos durante a cerimônia. A responsabilidade dele em relação a Rose significava que nunca mais poderia ser
absolutamente destemido, e os outros perceberiam isso, ainda que ele tentasse esconder a verdade.

Tinha sido por isso que, dois dias antes, fizera um fundo de investimento para a esposa.

Dois cheques tinham estado à espera de que eles retornassem a Londres. Um, enviado por Cottington, era presente de casamento. O outro, os 10 mil de Easterbrook,
era de uma quantia bem maior e viera sem uma carta, um bilhete que fosse.

Se Rose soubesse da existência daquele dinheiro, pensaria que alguém havia pagado para que ele se casasse, o que de certa maneira era verdade. Enquanto olhava o
cheque, ele concluíra que não queria que ela pensasse isso. Ela não ia enganar a si mesma e ter qualquer ilusão romântica sobre casamento, mas seria ruim que não
tivesse ilusão nenhuma.

Só o presente de Cottington já bastava para salvá-lo do desastre, então pegara o suficiente de Easterbrook para prover Rose no caso de se tornar viúva e deixara
o resto num fundo de investimento para ela. Sua esposa teria como se sustentar se, no futuro, as cartas do baralho não fossem distribuídas como ele gostaria.

- Tem recebido notícias de Teeslow, Lizzy?

Lizzy era chegada a fofocas, por isso Kyle gostava de conversar com ela. A criada sabia tudo sobre Teeslow pelas cartas da família, com muito mais detalhes do que
a tia contava a ele.

- Bom, a garota dos Hazletts está esperando um filho e ninguém sabe aonde o pai foi parar. Peter Jenkins morreu, mas foi um descanso, porque ele estava muito doente.
E há boatos de que aquele túnel na mina vai ser reaberto. Você sabe qual.

Ele sabia. Tinha ouvido o boato quando estivera lá, em dezembro. Pelo jeito, o boato continuava, portanto devia ser verdade.

- Como vai Cottington?

- Mal, infelizmente. Quando ele se for, a criadagem vai chorar rios, garanto. Muita coisa vai mudar com a morte dele.

- Não é só a criadagem que vai chorar. Todos vão lastimar que o herdeiro assuma o lugar dele.

Lizzy conferiu onde estava o cozinheiro, antes de fazer uma cara que mostrava que ela pensava o mesmo. Concentrou sua força em sovar a massa do pão.

- Imagino que o visconde não foi ao seu casamento.

- Não mesmo.

O olhar dela foi bem expressivo. Significava que Norbury não se daria ao trabalho de ir, mesmo se fosse convidado. E que, naturalmente, a noiva de Kyle não ia querer
o ex-amante no próprio casamento.

- Fez muito bem, Sr. Bradwell. A ajuda que o senhor deu para aquela pobre mulher e o que agora faz por ela. É o que todos dizem.

- Infelizmente, não pude bater nele como fiz naquela vez, embora quisesse.

Esperou a reação dela. Na época da surra, Lizzy trabalhava para Cottington. Numa casa assim, os criados costumavam saber de tudo.

Ela pareceu surpresa por ele tocar no assunto. Olhou bem para ele, depois se voltou de novo para a massa de pão. Sovou com força.

A reação dela era plausível com um assunto que fosse tão escandaloso que seus detalhes tivessem de ficar em segredo.

Um simples mau comportamento de alguns jovens ricos, a história que ele conhecia, não seria motivo para isso.

 

- Continuo achando que as casas não têm quartos de criados em quantidade suficiente - reclamou Norbury após examinar os projetos por dez minutos.

Até então, as coisas iam bem. Recebera Kyle com indiferença e os dois se ocuparam dos projetos. Norbury parecia se esforçar para ser cavalheiro, mas Kyle via que
o visconde tentava ocultar um lado bem menos civilizado.

- As casas serão compradas por famílias com renda de milhares de libras por ano. Cinco quartos de criados, mais os da estrebaria para o treinador e o cocheiro deveriam
ser mais que suficientes.

- Milhares de libras. É incrível como eles conseguem.

Era uma observação idiota feita por um idiota, com a intenção de enfatizar como ele estava acima de preocupações frívolas como milhares de libras a mais ou a menos.
Norbury inclinou mais um pouco a cabeça loura sobre os projetos.

- Meu advogado disse que papai pretende assinar os papéis do terreno - comentou Norbury, e seu lábio inferior tremeu. - Ele não está participando de nada e não viu
os projetos, mas decidiu de qualquer forma.

Ótimo, iremos em frente, mas quem decide é o velho, não eu. Vou lucrar bastante com o seu trabalho, mas não que eu tenha escolhido isso.

Para Kyle, era indiferente como as coisas se passariam. Agora lamentava que estivesse nesse projeto, que o obrigava a aceitar a presença de Norbury. Se o conde não
se recuperasse para retomar as rédeas dos negócios, essa seria sua última parceria com a família dele.

- Procurarei o seu advogado amanhã - disse Kyle, juntando os projetos. - O trabalho nas estradas vai começar logo; a madeira e os demais suprimentos estão encomendados.
As primeiras casas estarão prontas em meados do verão, creio.

O dono da casa acompanhou os preparativos da saída do visitante. Deu-lhe um olhar gelado.

- Preciso lhe dar os parabéns.

- Obrigado.

- Não fui convidado.

- Foi um casamento no vilarejo, não em Londres.

- Li que Easterbrook compareceu.

A informação o incomodara. Kyle não sabia se pelo fato de aquele lorde especificamente ter sido convidado ou porque a presença dele fizera a ausência de Norbury
ficar irrelevante.

- A casa de campo dele fica perto e minha esposa é parente. Indireta, digo.

Norbury riu.

- Você fez bem em se casar com a minha puta, Kyle.

Kyle se obrigou a continuar encarando os projetos e mal controlou a vontade de estrangular Norbury. Eram palavras assim que motivavam duelos. Homens idiotas diziam
coisas idiotas por orgulho ou ressentimento. Coisas que outro homem não poderia permitir.

- Repita isso ou algo parecido, para mim ou para qualquer pessoa, e acabo com você. Se eu souber que sequer mencionou o comportamento vergonhoso que teve com ela,
só vou parar de bater quando você não conseguir se mexer por duas semanas.

Norbury ficou tão vermelho que Kyle esperou que ele desse o primeiro soco. Queria muito que desse.

- Bata, maldito. Pratico boxe duas vezes por semana.

- Isso só ajuda se o seu opositor obedecer às regras do esporte. Você vai lutar com um filho de mineiro e suas mãos suaves e inúteis não são nada contra mim.

Kyle se encaminhou para a porta. As palavras ríspidas de Norbury o acompanharam.

- Meu advogado disse que papai mandou um presente de casamento para você.

- Mandou mesmo. Foi muito generoso.

- Generoso, quanto? Quanto foi que ele mandou?

Norbury exalava agressividade, como se a quantia fosse a única coisa que interessasse.

Talvez fosse. Talvez Norbury nunca tivesse engolido que o pai ajudasse Kyle financeiramente. Já era ruim ter levado aquela surra. Pior ainda era que, por isso, o
pai ficasse sabendo do comportamento desonroso do filho naquele dia, por pior que fosse.

- Quanto? Uma quantia incrível, faltou só 50 para completar mil libras.

Kyle se satisfez ao ver a expressão de Norbury quando saiu. O homem era burro, mas não tanto. Em poucos minutos, concluiria que o presente de Cottington fora tirado
da herança destinada ao filho.

O que significa que Norbury tinha indiretamente devolvido o dinheiro do leilão e que o pai tinha sabido do que acontecera.

 

Nesse dia, Henrietta parecia diferente. Roselyn se sentou na sala de visitas em Grosvenor Square e tentou identificar por quê.

Era preciso considerar o efeito do chapéu. Um gorro com carapuça de renda, o que parecia bem mais comportado e elegante do que os chapéus que ela costumava usar.
Rose notou também que os cabelos louros tinham sido arrumados de outro jeito, combinando melhor com o rosto delicado.

Mas o que tinha mudado acima de tudo era sua expressão. Naquela tarde, seu jeito aéreo fazia com que parecesse jovem, em vez de desligada. E seu rosto não estava
contorcido de forma desdenhosa. Em vez disso, surpreendentemente, parecia quase o de uma jovem.

Conversaram sobre moda, sociedade e fizeram previsões para a próxima temporada. Alexia estava com elas. Além de mais três damas, todas de boa posição social e bom
humor. Alexia tinha levado Rose em visitas àquelas damas na semana anterior, provavelmente com a permissão delas. Elas agora, por sua vez, visitavam Henrietta no
dia que Alexia tinha sugerido, de forma que Rose pudesse comparecer também.

Tudo fazia parte de uma pequena campanha da qual, maravilha das maravilhas, Henrietta aceitara participar. Se ela não estivesse fazendo sua parte tão bem, não estivesse
sendo tão simpática e solícita, Rose iria pensar que Alexia tinha achado um jeito de subornar a tia do marido.

As visitas não se demoraram muito, mas ficaram o bastante. Podia ser que jamais visitassem a própria Rose para nada, mas, quando foram embora, tinham dado mais um
largo passo no sentido de aceitá-la.

Ia ser uma caminhada em círculos. A proveniência do marido causaria desvios de rota e interdições na pista. O escândalo no qual ela se envolvera criaria outros transtornos.
Mas a campanha de Alexia parecia estar dando resultado mais rápido do que se podia esperar.

- A reunião foi boa - confidenciou Henrietta, quando as três ficaram a sós de novo. - Creio que a Sra. Vaughn logo vai convidar você, Roselyn, para ir ao teatro.
Foi o que pareceu quando comentou sobre peças preferidas e tal. Como a tia dela se casou com um importador, ela não deve fazer muitas restrições a um comerciante
e pode até receber seu marido também.

Rose mordeu a língua. Henrietta não pretendia fazer uma provocação com aquele comentário. Ao mesmo tempo, não havia por que se ofender com a verdade.

Mas ela se ofendeu. Muito mais do que esperava. Kyle aceitava as coisas do jeito que eram, mas ela se irritava cada vez mais.

Não entendia como alguém que o conhecesse, que conversasse com ele, pudesse não aceitá-lo em sua sala de visitas. O trabalho dele também não era banal, juntava finanças,
arte e investimento. Quando os irmãos dela viraram banqueiros, algumas portas se fecharam para eles, mas a maioria, não.

Claro, tudo estava ligado ao berço. À família e aos antepassados. À família que Kyle jamais renegaria. Tinha-a avisado sobre isso.

Enquanto iam para a biblioteca, Alexia explicou a nova fase de sua campanha bélica, que incluía um jantar na casa dela. Aquelas três damas seriam convidadas, além
de duas amigas delas. Ela esperava que as convidadas que tinham acabado de sair convencessem as outras a comparecer. As cinco tinham maridos tidos como dóceis. Se
alguns deles deixassem suas esposas ficarem amigas de Rose, havia mais possibilidade de outros fazerem o mesmo.

Enquanto elas discutiam estratégias, Easterbrook entrou na biblioteca. Desculpou-se pela intromissão e ficou perto das estantes, examinando as lombadas. A presença
dele chamou a atenção de Henrietta, que se rendeu à curiosidade.

- Pretende ir ao exterior, Easterbrook? Porque está olhando memórias de viagem e títulos assim.

Ele tirou um livro da prateleira e deu uma olhada no texto.

- Não vou a lugar nenhum. Estou pesquisando para minha jovem prima.

- Ah, céus, vai mandar Caroline fazer uma viagem pelo continente? Eu desejei tanto isso... Ela precisa ir a Paris, claro, e...

- Não, não é uma viagem pelo continente - resmungou ele. - Busco informação sobre lugares bem específicos, para onde as jovens vão às vezes, mas parece que nenhum
desses autores tem nada de especial sobre eles.

Henrietta franziu o cenho.

- Que tipo de lugar?

Ele colocou o livro na prateleira e tirou outro.

- Conventos.

- Conventos!

Rose achou que Henrietta ia precisar de sais. Alexia a acalmou e se dirigiu ao marquês.

- Tenho certeza de que está brincando. Por favor, diga à sua tia que está querendo irritá-la de novo.

- Gostaria de estar. Na verdade, gostaria que Hayden assumisse seu papel de responsável por isso, em vez de me deixar mexendo em assuntos que não entendo e não me
interessam.

- Viram? Ele ainda não a perdoou por aquele flerte com Suttonly no verão passado - disse Henrietta, alto. - Ela obedeceu a sua ordem, Easterbrook. Há semanas que
não pronuncia o nome dele.

- Henrietta, o verão passado já foi bastante ruim, mas lastimo dizer que estou às voltas com mais um daqueles desastres causados pelas jovens. Prever um duelo por
ano já bastava, obrigado. Mas ter de me preparar para dois é uma provação para a minha paciência.

Ele franziu o cenho para os livros e tirou mais um da estante.

- Vou me livrar logo desse dever maçante. Vou duelar com o sujeito, deixá-lo bem ferido, mandar Caroline para um convento e ficar sossegado por alguns anos, pelo
menos.

Henrietta chorou. Easterbrook continuou a mexer calmamente nos livros. Alexia tentou ser diplomática.

- Sua tia e eu não sabemos de nenhum admirador de Caroline no momento. Acho que está enganado.

Ele fechou o livro com força.

- Não se trata exatamente de um admirador. Trata-se de um sedutor. Não estou enganado, Alexia. Lastimo dizer que estou convencido de que Caroline já perdeu sua virtude.

Isso causou um susto. Henrietta se espantou tanto que ficou ofegante e boquiaberta. Depois chorou copiosamente.

- E quem é esse homem? - exigiu saber Alexia.

- Aquele químico francês. Amigo de Bradwell.

Henrietta parou de chorar. Arregalou os olhos. Olhou de esguelha para ver a que distância dela estava o marquês.

- Garanto que está enganado - disse Alexia.

- Vi-o esta manhã mesmo. Ao nascer do dia, eu estava olhando o jardim pela janela e o vi. Saindo desta casa.

Ele deu uma olhada preocupada para a tia.

- Agora tenho de ser babá também, tia Henrietta? Até eu me impressiono por se descuidar tanto dela. Eu, que não dou a menor importância a essas coisas.

Henrietta ficou imóvel. Easterbrook estava atrás dela, então não viu o que Rose e Alexia viram. O rosto da jovem senhora ficava cada vez mais vermelho.

Rose olhou para Alexia exatamente quando Alexia se voltava para ela. As duas encararam Henrietta.

- Easterbrook, continuo achando que está enganado - insistiu Alexia. - Se foi ao nascer do dia, não era possível ver direito o que era, ou quem. Talvez um dos jardineiros
estivesse andando por ali.

- Não, Alexia. Era ele.

O marquês desistiu de olhar os livros.

- Infelizmente, esses livros não trazem indicação de conventos. Vou pedir ao advogado que faça umas pesquisas discretas. Um convento na França, por exemplo, para
tia Henrietta poder visitá-la uma vez por ano.

Quando Easterbrook seguiu em direção à porta, Alexia se pôs no caminho dele.

- Mesmo se estiver certo e fosse ele no jardim, isso não prova que esteve na casa. Nem que procurou Caroline. Afinal, podia estar atrás de uma das criadas.

Ele a olhou com carinho, como sempre.

- Vi-o flertando com ela no casamento da sua prima. Fui descuidado em não avisar, mas Henrietta estava com eles e concluí...

Todos congelaram enquanto a cena pairava no ar. Rose quase conseguiu ouvir o marquês recapitulando, pensando, rejeitando... reconsiderando.

Easterbrook virou e olhou para a tia. Moveu a cabeça, observando-a. Ela estremeceu enquanto ele examinava o chapéu novo, o penteado diferente e o viço recém-adquirido.

- Alexia, seu valoroso bom senso me poupa de cumprir obrigações desagradáveis. Eu talvez tenha sido um pouco precipitado ao pensar o pior de Caroline. Talvez não
fosse monsieur Lacroix que estivesse no jardim.

Pediu licença. Da porta, antes de sair, ele voltou a falar.

- Contudo, caso tenha sido... Henrietta, por favor, fale com as criadas. Se uma delas está recebendo um homem, espero que os dois se divirtam. Mas é melhor que ele
saia quando ainda estiver escuro, de forma que não haja mais nenhum mal-entendido.

 

Rose atravessou a porta que ligava seu quarto de vestir aos aposentos de Kyle. Ele não iria procurá-la nessa noite. Suas regras haviam chegado. Encontrar uma maneira
delicada de dizer isso a ele exigira muita habilidade sua. Ele parecera achar graça das sutilezas que a esposa usara, mas a havia compreendido.

Ela ouviu a voz de Jordan e o som do marido despindo-se. Depois, ficou tudo em silêncio. Abriu a porta. Os quartos de vestir não eram opulentos e espaçosos: o quarto
dele ficava a poucos passos. A lamparina ainda não tinha se apagado e ela percebeu as silhuetas do toucador, as escovas e o espelho dele.

Prosseguiu, deu uma olhada. As cortinas do dossel não tinham sido fechadas. Ele estava deitado, com o camisolão aberto mostrando o peito forte.

Ficou olhando. Não o via despido desde a noite de núpcias. Ela sempre apagava as velas e lamparinas, mesmo quando o procurava em Oxfordshire. A escuridão fazia a
cama misteriosa e sobrenatural e evitava um grande embaraço. Tornava mais fácil que ela se entregasse.

Ele estava com a cabeça apoiada nos braços dobrados. Parecia compenetrado, como se tivesse percebido algo no teto que exigisse sua atenção. Mas estava tão imóvel
que talvez nem estivesse acordado.

- Kyle, está dormindo? - sussurrou ela.

Ele se sentou na cama. Olhou para a esposa e observou sua camisola e o penhoar, que não eram nem novos nem tão bonitos.

- Acordei você? - insistiu ela.

- Não. Estava pensando em alguns problemas que tive hoje.

- Sobre terras, associações de mineiros e coisas assim?

- É.

Ela entrou no quarto cautelosamente.

- Alexia combinou de algumas damas me visitarem. Bom, não a mim, mas a Henrietta. Porém elas sabiam que eu estaria junto e foram mesmo assim.

- Venha aqui me contar isso.

Ela subiu na cama e contou sua pequena vitória.

Ele pareceu muito interessado.

- Lady Alexia age rápido.

- Ela ainda acredita que Irene tem chance de ser apresentada nessa temporada, acho.

Irene não tinha saído da casa de Alexia. Todos achavam que sua única esperança era que a prima a apresentasse à sociedade.

- Quando ela der esse jantar, você deve usar um vestido novo - disse ele. - Vou mandá-la para lá tão bem-vestida que será a mulher mais elegante da mesa.

- Talvez você me acompanhe, em vez de apenas me mandar ao jantar.

- Pouco provável. Lady Alexia é esperta demais para lutar em duas frentes ao mesmo tempo.

- Então não sei se vou querer ir.

A expressão no rosto dele mudou um pouco, o suficiente para ficar indecifrável.

- Quer saber de uma fofoca? - perguntou ela. - É sobre alguém que você conhece.

- Todo mundo quer saber de uma fofoca, principalmente sobre alguém que se conhece.

- É fofoca das boas. Tudo indica que seu amigo, o Sr. Lacroix, está tendo um caso com... Henrietta!

- Quais são as provas?

- Ninguém menos que Easterbrook o viu saindo da casa. Você acredita?

- Que indiscrição de Jean Pierre. Devo avisá-lo?

- Desde que não seduza Caroline, acho que Easterbrook não se importa se ele ficar com todas as mulheres da casa. Quanto a Henrietta, o marquês pareceu encantado
e feliz por poder cutucá-la sobre isso nos próximos anos.

Eles riram. Foi bem agradável ficar ali de noite, conversando sobre fatos do cotidiano. Mas quando terminou a história, Rose sentiu que o marido estava se distraindo
outra vez. Os olhos dele ficaram insondáveis como quando ela havia chegado ao quarto.

- Bom, boa noite - disse ela, saindo da cama.

Ele pegou sua mão.

- Fique.

Talvez as palavras brandas que ela usara tivessem sido vagas demais.

- Eu... quero dizer, hoje eu... estou naquela semana em que...

- Fique, mesmo assim.

Rose sentiu algo diferente no coração quando, sem jeito, entrou embaixo dos lençóis. Kyle apagou a lamparina e a escuridão envolveu a casta intimidade dos dois.
Ele a abraçou.

Ela não dormiu logo. Ficou preocupada com a novidade daquele tipo diferente de afeto.

- Preciso ir ao norte outra vez - disse ele, e sua voz não a assustou, tão calma veio na noite. - Daqui a duas semanas, talvez. Não vou ficar mais de uma semana.

- Posso ir junto? Você disse que iríamos na primavera, mas, se vai agora, eu também gostaria de ir.

- A viagem vai ser no frio. E você tem aquele jantar.

- Alexia pode marcá-lo de acordo com a viagem. E não tenho medo de um pouco de frio.

Duas semanas antes, ela jamais pediria para ir. Mesmo alguns dias antes, ela poderia ter apenas deixado a informação passar. Mas agora queria muito ver como fora
a vida dele. O abraço nessa noite a emocionou, mas também deixou bem claro que, mesmo com tanto prazer, havia um vazio naquele casamento que ela não conseguia explicar.

Não sabia se um dia esse vazio seria preenchido. Talvez Kyle fosse sempre um pouco estranho. Talvez ele preferisse assim. Ela não tinha ao menos certeza se gostaria
do que seria preenchido, se isso ocorresse. Só sabia que o vazio parecia grande nesta noite, talvez porque uma nova emoção o destacasse. Sua alma quase doía por
desejar algo tão fora de alcance.

- Veremos - disse ele. - Amanhã vou para Kent e passarei uns dias lá. Você não pode ir, já que iniciarei algumas obras e só haverá operários, muita lama de inverno
e eu...

Algumas obras. Em Kent. Devia ter sido o trabalho que fora tratar com Norbury no dia do leilão.

Súbito, entendeu por que Kyle estava tão pensativo na hora em que ela entrou no quarto. Devia ter encontrado Norbury. Talvez naquele mesmo dia.

Ele jamais a deixaria saber se Norbury os insultara. Jamais contaria se pensava naquele caso. Mas Rose tinha certeza que sim. Talvez até naquele instante, enquanto
os pensamentos vagavam pela noite.

Ela podia saber mais sobre ele e começar a preencher aquele vazio. Eles podiam ter muitas noites como essa, em que conversavam como amigos e não como amantes.

Entretanto, não importava o que acontecesse, não importava quanto tempo ficassem casados, Norbury seria uma sombra entre eles, afetando tudo, mesmo as coisas boas,
ainda que nenhum dos dois jamais pronunciasse o nome dele.

Esse pensamento quase estragou aquela noite agradável. Norbury tinha entrado na cabeça dela. E quase dava para ouvi-lo falando na de Kyle. Sua influência malévola
ficou tão opressora que ela pensou em sair da cama.

Kyle virou de lado, dormindo. O braço ficou casualmente sobre ela. A mão estava sobre o seio, num gesto ao mesmo tempo confortador e possessivo. Ficou assim a noite
toda, impedindo-a de escapar.

 

CAPÍTULO 12

Kyle estava em Kent fazia dois dias quando Roselyn recebeu a carta. Tinha sido reenviada de Watlington. Reconheceu a letra na hora: Timothy tinha escrito outra vez,
embora a carta estivesse assinada como Sr. Goddard.

Dessa vez, não escrevera de Dijon, mas de uma cidade italiana chamada Prato.

 


Finalmente atravessei os Alpes. Estou morando aqui por ser menos dispendioso do que Florença. E também por haver menos possibilidade de eu ser reconhecido. A viagem
foi exaustiva e o clima, horrível. Tive medo de morrer. Passei mal quase todo o tempo. Agora vivo entre estranhos cuja língua ignoro e sofro de uma tristeza grande
demais para aguentar.

Pretendo ficar aqui até que venha ao meu encontro. Por favor, escreva logo, dizendo que vem. Só verei o sol na minha janela quando você chegar. Conte-me seus planos,
de forma que eu tenha algo por que esperar.

Rose, meu bolso se ressentiu da longa estada em Dijon e dos honorários dos médicos, que não serviram para nada, mas foram caros. Quero que venda a casa e o terreno
em Oxfordshire e traga o dinheiro. Esta carta a autoriza a fazer isso em meu nome. Leve-a a Yardley, nosso velho advogado. Ele reconhecerá minha letra e lhe dirá
o que fazer. Eu o autorizo a ser meu procurador na venda caso, por ser mulher, você não seja aceita. Se houver mais exigências, escreva-me imediatamente, de maneira
que possamos efetuar a venda o mais rápido possível.

Sei que ainda faltam meses, mas conto os dias na esperança de que ainda seja minha adorável irmã de sempre, um coração bondoso que me deu força por quase a vida
inteira. Prometo que tudo vai melhorar quando estivermos juntos outra vez.


Timothy

Ele ainda parecia perdido e só. A menção a uma doença não ajudava a melhorar as coisas. Rose não sabia se deveria torcer para que ele estivesse se referindo a passar
mal por excesso de bebida, já que esse era o grande fraco do irmão, ou por outro motivo.

E agora ela não podia ir encontrá-lo, por mais doente que ficasse. Ele jamais saberia que, por um curto espaço de tempo, quando passara algumas horas de grande felicidade
deitada numa colina, ela cogitara fazer isso.

Ela também não podia negar a verdade por trás da escolha que fizera. Ao aceitar o pedido de Kyle, deixara de lado as necessidades do irmão para tentar salvaguardar
a própria vida e a de Irene na Inglaterra - o que talvez se tornasse uma necessidade desesperada. Se não agora, um dia.

Ele afirmara estar ficando sem dinheiro. Isso despertara um pouco de raiva em Rose. Ela havia sobrevivido com quase nada esses meses todos. Ele deveria ser mais
controlado, em vez de gastar todo o dinheiro que roubara.

Deu um suspiro, tão fundo que o corpo todo estremeceu. Timothy estava sendo apenas Timothy. Sem a influência dela, continuaria sendo a pior versão de si mesmo. Ela
não podia salvá-lo. Não agora, depois de Kyle ter dito tão claramente que ela jamais iria ao encontro do irmão. Mas não podia abandoná-lo, como Kyle esperava.

Chamou a criada e trocou o vestido matinal por um conjunto para usar em carruagem. Tinha de encontrar Alexia na modista e encomendar alguns trajes novos. Mas antes
iria ao centro financeiro da cidade. Precisava saber se ainda podia ajudar o irmão.

 

Kyle observou o engenheiro perfurar a terra dura para conferir novamente o terreno antes de iniciar as fundações.

A uns 200 metros, outro homem marcava as árvores que seriam derrubadas e as que seriam poupadas quando a nova estrada fosse construída. Kyle imaginou a casa que
dali a pouco se ergueria ao lado daquele matagal.

Se tudo saísse conforme planejado, dentro de dois anos haveria famílias morando naqueles campos e carruagens passando por novas estradas. A propriedade de Cottington
seria valorizada e seus parceiros veriam os lucros.

Incluindo ele. Kyle ainda estava andando na corda bamba. Era bom e experiente em se equilibrar. Não chegava a perder o sono por causa dos riscos. Mas, como qualquer
homem, ele preferia ter os pés firmes no lado com dinheiro daquela corda.

O operário que marcava as árvores o chamou e fez um gesto apontando para o sul. Kyle olhou para a estrada naquela direção. Atrás da carroça que trazia as ferramentas
a serem usadas nesse dia, vinha uma carruagem.

Ele reconheceu o veículo. Foi até a estrada e chegou ao mesmo tempo que Norbury saltava.

- Espero que não tenha vindo da cidade só para ver o andamento da obra - disse Kyle. - Ainda não há muito o que conferir.

Sob a aba do chapéu de copa alta, Norbury olhou a elevação de terra.

- Estou oferecendo uma recepção na minha mansão. Resolvi vir aqui antes que os hóspedes chegassem.

Norbury olhou atentamente para Kyle, querendo avaliar sua reação. Kyle o deixou olhar à vontade. Não precisava que Norbury o lembrasse da última festa que tinha
dado. A imagem da humilhação de Rose vinha sempre à cabeça, sem que ninguém precisasse ajudar.


E ela chegou trazendo fúria e uma urgência de espancar o visconde. Kyle tinha controlado essa vontade na última vez em que se encontraram. Agora ela voltava e o
deixava tenso.

- Espero que essa festa seja mais discreta do que a última. Se espalharem o boato de que fazem orgias aqui perto, essas casas jamais serão compradas.

- Aposto que serão compradas mais rápido.

Norbury fez um gesto para que Kyle o acompanhasse.

- Vim falar de assuntos de interesse mútuo, além dessas casas. Recebi um recado de Kirtonlow Hall. Meu pai sofreu uma leve apoplexia. O médico disse que ele não
vai durar muito.

- Ele é mais forte do que a maioria. Pode durar mais do que os médicos imaginam.

Mais do que você espera. O filho era tão diferente do pai que nunca houvera muito afeto entre eles. De diversas maneiras, o conde deixara claro a seu herdeiro quanto
ele o decepcionava.

Não era apenas a capacidade intelectual de Cottington que não passara despercebida a Norbury. Algo fundamental faltava no filho, além de inteligência. Ele parecia
não ter a empatia natural que um ser humano sente pelos demais. Ou ter uma empatia deformada. Norbury não seguia os princípios morais que costumam guiar as pessoas
em assuntos grandiosos ou corriqueiros.

- Podemos desejar que ele viva para sempre, mas ninguém consegue - falou Norbury com uma sobriedade dramática. - Quanto ao outro assunto que eu queria tratar com
você, os vivos podem influenciar. Andei pensando no seu casamento.

Kyle apertou o passo, fazendo com que o outro o seguisse na estrada. Olhou para trás, para saber a distância que estavam dos operários. Será que veriam ou ouviriam
se ele quebrasse o queixo de Norbury com um soco?

- Pode parar de olhar para mim como um boxeador se preparando para uma luta - disse Norbury. - Sua decisão de se casar com uma mulher dessas é loucura. Estou mais
interessado no irmão dela e em como esse casamento muda nossos planos em relação a ele. Depois de me recuperar do choque de você se juntar a ela para sempre, vi
uma luz na escuridão.

- A única luz que existe é a da minha felicidade na escolha da minha esposa. Timothy Longworth foi embora. Nem ela nem eu temos ligações com ele.

- Ele não escreve para ela? É bem provável que sim.

- Não tem por quê.

- É irmã dele. Você precisa ver as cartas que ela recebe, assinada com o nome verdadeiro ou de Goddard. Veja qualquer carta enviada do continente, principalmente
da Itália.

- Não.

- Vai economizar muito tempo. Se ele escrever para ela, teremos...

- Não. Estou fora disso. Não quero participar e não vou ajudá-lo.

Um aperto no braço. Era a ordem de parar. Kyle olhou para Norbury, cujo rosto tinha perdido qualquer traço de gentileza.

- Céus, com que rapidez o cavaleiro puro foi seduzido e maculado. Esqueceu rápido seus lindos ideais sobre justiça, Kyle.

- Não vou espionar minha esposa.

- Não espione. Faça com que ela lhe conte.

- Ela não vai nos dar de bandeja a cabeça do irmão na nossa forca. Nem eu vou pedir.

- Porcaria nenhuma! Não há desonra nisso. Maldição, assim você vai até protegê-la.

A explosão de Norbury despertara seu pensamento. Seus olhos ficaram dissimulados.

- Na verdade, se não fizer isso, vai colocá-la em risco - concluiu.

Norbury podia ter um raciocínio lento, mas funcionava quando necessário. Kyle viu novas ideias surgindo, transformando seu rosto numa máscara de presunção.

- Ela decerto foi cúmplice desde o começo - disse Norbury.

- Claro que não.

- Maldição, eu devia ter percebido antes. Isso explica o reembolso feito por Rothwell. Não estava poupando um homem que já tinha escapado de nós, mas a cúmplice
que ficara para trás. Ela pode até estar com quase todo o dinheiro aqui, na Inglaterra. Aquela humildade era um disfarce para afastar suspeitas. Maldição, Longworth
nem era tão inteligente. Deve ter sido tudo ideia dela...

- Está falando bobagem.

- Até mesmo o que teve comigo. Pensei que eu a tivesse seduzido, mas vai ver ela quisesse ficar perto de mim para saber se as vítimas estavam prestes a descobri-la.
Seria irônico, não? Se ela estivesse o tempo todo...

- Continue insinuando isso e mato você.

- Está tão encantado pela beleza dela que é capaz de arriscar tudo? Duvido. Daqui a alguns meses não estará mais tão embevecido com seu grande prêmio. E verá o que
há por baixo da bela aparência. O irmão é ladrão e ela mesma mostrou ter caráter fraco e imoral.

Kyle agarrou Norbury pelo colarinho. Puxou-o e o levantou do chão.

- Eu avisei.

Norbury arregalou os olhos e inclinou a cabeça para trás.

- Ouse dar um soco e eu não vou me conter. Acho que um juiz gostaria de ouvir a questão e refletiria bastante antes de achar que estou errado. Meu ponto de vista
pode dar um bom processo. Com um pouco de esforço, talvez até se encontrem algumas provas.

A ameaça era óbvia. Justiça corrupta ainda era pior do que falta de justiça e um lorde tinha muitas formas de conseguir a primeira.

Kyle mal conteve a própria fúria. Soltou o colarinho de Norbury, que se ajeitou, alisando a roupa e ajustando a gravata. Endireitou-se e olhou com o deleite de um
homem que, de súbito, se descobria com um ás na mão.

- Descubra onde está o bastardo, Kyle - ordenou Norbury, já andando em direção à carruagem. - Com toda a honra que você acha que tem, não vai lhe fazer falta sacrificar
um pouco dela.

 

Assim que Kyle voltou de Kent, Rose percebeu que ele tinha encontrado Norbury novamente. Ele carregava uma nuvem pesada para dentro de casa. Sua expressão estava
diferente, mais dura que de hábito.

Naquela noite, quando se sentou para jantar, tratou-a como sempre. Até a ouviu pacientemente contar como foram os dias em que estiveram longe um do outro. Mas a
presença de Norbury na cabeça de Kyle era tão evidente que o outro bem podia estar à mesa com eles.

Quando o criado foi dispensado, ela se preparou. Era melhor desanuviar o ambiente e saber o que o estava preocupando. Isso não queria dizer que ela ficasse feliz
com uma possível discussão.

- Rose, quando ficou em Oxfordshire, recebeu alguma carta de seu irmão? Refiro-me a alguma além daquela da primeira vez em que fui visitá-la.

Ela não esperava essa pergunta, ou assunto. Não fosse pela intensidade com que o marido fizera a pergunta, ela podia ter contado tudo. Mas se conteve, tentando imaginar
por que ele perguntava e se a resposta tinha importância.

- Creio que ele escreveu pelo menos mais uma vez - acrescentou Kyle.

- Sim. Uma.

Era verdade, mas não toda ela. Rose havia recebido só mais uma carta quando estava em Oxfordshire.

- Então eu tinha razão: quando você falou em ir embora para sempre, era com ele.

Ela assentiu.

O fato de ter razão não alterou o humor dele.

- Não quero que tenha mais qualquer contato com ele, Rose. Se ele escrever de novo, queime as cartas sem ler. Não as guarde. Nem sequer veja de que cidade ele escreveu.

Ela ficou um bom tempo em estado de choque, sem conseguir pensar. Então o choque foi substituído pela raiva.

- Antes de nos casarmos, você disse que eu jamais poderia encontrá-lo, nem para visitas. Não disse que não podia escrever ou receber cartas dele.

- Eu disse. Mas, caso tenha entendido mal, estou repetindo agora.

- Eu disse que não o consideraria morto, mas agora você exige que eu aja como se estivesse.

- É.

O olhar dele era de ordem, mais do que a voz.

Ela se levantou e saiu da sala de jantar. Buscou um pouco de privacidade na biblioteca. Para sua surpresa, ele foi atrás.

- É melhor me deixar sozinha para aceitar o que você exige em relação a meu irmão - avisou.

- Preciso saber se aceita mesmo. Quero a sua palavra de honra.

- Minha palavra de honra? E o que me diz da sua? Se a minha puder mudar com a mesma rapidez, eu a dou com prazer. Naquele dia, você me convenceu de que tinha retirado
essa exigência.

Ela pensou que a culpa poderia amaciá-lo. Só que aumentou a raiva.

- Tenho um motivo para exigir isso. Gostaria que você acreditasse em mim, mas, se não acreditar, isso não muda nada. Você sabe como é o seu irmão. Você mesma disse
que ele é um perigo para você. Não pode ter contato com ele.

- Ele é meu irmão.

- Ele é um ladrão covarde. Um criminoso.

A firmeza de Kyle a surpreendeu. Ela o olhou atônita, surpreendida pela força que emanava dele, vendo-a e a sentindo sem controle.

Ele se acalmou, mas a tensão ficou no ar.

- Rose, você entende o que ele fez? Quantas pessoas ele roubou?

- Lorde Hayden...

- Lorde Hayden impediu que as vítimas ficassem na miséria total. Quanto você acha que ele pagou?

Ela se sentiu como uma criança na escola tentando adivinhar a resposta de uma conta.

- Muito dinheiro. No mínimo 20 mil.

A raiva chegou a dar expressão à risada curta e baixa que ele soltou.

- Essa quantia não faria a menor diferença para Rothwell. Pense na casa onde sua prima ainda mora. Ela lhe mostrou alguma joia nova? Ou trajes novos? Pense neles
e nos tecidos e enfeites que ela usa.

Rose sentiu o estômago embrulhar. Nunca tinha calculado a quantia, em parte porque sabia o suficiente para desconfiar que não gostaria da soma total.

- Quanto? - perguntou ela, num sussurro.

- Ao fim e ao cabo, no mínimo 100 mil libras. Talvez muito mais.

Ela arquejou. Quanto dinheiro!

Kyle se aproximou. Os olhos dele tinham um pequeno brilho solidário em meio a todos os de raiva.

- Seu irmão não sabia que Rothwell iria reembolsar nem uma libra. Presumiu que cada vítima simplesmente amargaria o próprio prejuízo. Assim como os clientes, quando
o banco faliu. Ele não roubou só dos ricos, mas de velhinhas, órfãos indefesos e pessoas que dependiam dessas reservas para viver.

- Tenho certeza de que ele não entendeu bem... Ele não podia... de propósito...

- Claro que ele entendeu. Tudo. Com toda a certeza, fez de propósito.

De novo, Kyle controlou a raiva. Foi visível seu esforço de se recompor.

- É tão estranho assim que eu queira que corte relações com um homem tão canalha?

Ela já não conseguia enxergar Kyle direito. Virou-se e tentou conter os soluços. Meu Deus, 100 mil libras! E Alexia e Hayden...

Enxugou os olhos e tomou fôlego.

- Você disse que conhece pessoas que perderam dinheiro. Quem são elas?

Por um instante, Rose pensou que ele não fosse responder.

- Meus tios.

Ela teve outro choque. Não eram amigos, mas pessoas da família.

- Porém foram ressarcidos, não?

- Sim, foram. É assim que você justifica, quando pensa no seu irmão? Pelo menos as vítimas foram ressarcidas. Pelo menos apenas uma vítima pagou caro em vez de dúzias
perderem tudo? É assim que você o desculpa?

- Eu não o desculpo.

- Acho que desculpa. Ele é seu irmão e você busca motivos para diminuir a culpa dele. Mas ele não é meu irmão, Rose.

Não, e Kyle não desculparia nada. Não se sentia nem um pouco solidário, nem tinha intenção de salvá-lo. Se Tim fosse preso, Kyle acharia justo que fosse para a forca.

Ela não tinha palavras para argumentar. Não tinha nada para contrapor, a não ser o amor por um irmão que tinha sido uma pessoa bem melhor quando criança do que adulto.

Ela pensava que Kyle fosse ao menos entender, se não aprovasse. Mas ele estava implacável, irredutível e disposto a fazer com que ela condenasse Tim como todo mundo.

- Você vai cortar qualquer contato com ele - repetiu. - Se tem cartas, queime-as. Se receber mais uma, destrua-a imediatamente.

Ele saiu da biblioteca. Não tinha pedido que ela prometesse, tinha ordenado. E ela deveria obedecer.

 

Naquela noite, Rose pensou em trancar a porta de seu quarto de vestir.

Nunca tinha feito isso. Não se importava que ele a procurasse todas as noites. Era a esposa, ele tinha esse direito e nunca saíra do quarto sem que ela tivesse alcançado
toda a liberdade que o prazer podia proporcionar.

Essa noite era diferente. Não tinha certeza se reagiria ao toque dele. Após a discussão, um silêncio duro como pedra caíra sobre a casa. E ainda afetava o ambiente
e ela.

Nessa noite, uma pequena parte de Kyle que ela ainda desconhecia se revelara. Ficara espantada com a força de vontade dele. Já a havia percebido antes, mas vê-la
dirigida a ela a assustara um pouco.

Devia ter suposto quanto ele era seguro. Em relação a si mesmo e às decisões que tomava. Sem isso, ele não teria sobrevivido no caminho que percorrera. Poucos homens
saíam de um vilarejo de mineiros de carvão para as salas de visitas de Londres em pouco mais de dez anos.

Poucos homens nascidos num vilarejo assim pediriam Roselyn Longworth em casamento, independentemente das condições em que estivessem suas finanças, sua reputação
ou o status de sua família.

Ela ficou na frente da porta, olhando a tranca. Não era a primeira vez que achava que, com esse homem, não devia agir guiando-se pelo capricho. Não que ele fosse
derrubar a porta se ela a trancasse. Acreditava que ele nem sequer se irritaria.

Em vez disso, imaginava que duas coisas poderiam ocorrer. Ou os dois teriam uma conversa igual à anterior, em que ele diria o que aceitava ou não que ela fizesse
ou haveria frieza e formalidade na cama na próxima vez que ele a procurasse, podendo se estender para as seguintes por bastante tempo. Talvez até para sempre.

Ela se afastou da porta e voltou para a cama. Apagou as lamparinas como fazia todas as noites e foi envolvida pela escuridão.

Talvez ele não viesse, embora já fizesse alguns dias que não se encontravam, por causa das regras dela e do tempo que ele passara em Kent. Sem dúvida, ele sentia
que a discussão ainda ecoava na casa. Tinha se retirado para o escritório e o trabalho, mas talvez as palavras ressoassem na cabeça dele como faziam na dela.

O coração dela ainda batia pesado ao lembrar como ele via a culpa de Tim. Cem mil libras. Ela às vezes pensava em reembolsar Alexia e Hayden, mas jamais poderia
ressarcir uma quantia dessas. Jamais. Por isso Alexia fora tão enfática ao desencorajá-la de encontrar Tim na Itália.

Só que agora ela estava casada com um homem que teria prazer em enforcar Tim com as próprias mãos. Não podia defender o irmão. Não podia dizer que Kyle estava errado.
Mas uma irmã não julga com base no certo e no errado, na justiça.

Cem mil libras. Como uma quantia dessas podia estar chegando ao fim? Tim dizia que precisava de mais dinheiro, e ela acreditava nele.

Um movimento sutil no quarto a tirou de seus pensamentos. Abriu os olhos na escuridão. Kyle estava ao lado da cama, não passava de uma silhueta negra no quarto sem
luz.

Tinha vindo, afinal. Isso a surpreendeu. E também a reação que teve: o coração bateu de alívio antes que ela conseguisse se controlar.

Kyle parecia estar à espera de algo ou decidindo alguma coisa. Ela não sabia o quê. Mexeu-se na cama e isso fez as cordas que sustentavam o colchão reclamarem.

Kyle também fez sons e movimentos quase imperceptíveis. Roupão caindo. Calor se aproximando. Braços se esticando e peles se tocando. Ela respirou e o sentiu inteiro
na cama, aquela presença total que transformava a noite.

Ele soltou o laço da camisola, fazendo-a escorregar pelos ombros e o corpo de Rose.

- Obrigado por não trancar a porta.

Será que ele a ouvira discutindo consigo mesma? Como era típico dele tocar no assunto, em vez de deixar que fosse uma escolha silenciosa. Rose esperava que não comentassem
também o motivo para ela pensar em trancar.

As carícias e o beijo mostraram que não comentaria.

- E se eu tivesse trancado?

Ela já nem estava muito interessada na resposta. As deliciosas palpitações da excitação a distraíam.

- Não sei. Ainda não havia decidido o que faria quando tentei abrir a porta.

Ela não pensou na resposta, apenas percebeu o perigo daquela incerteza. Mas o prazer já desviava sua atenção. Seduzia-a. Isso também era perigoso. O prazer embotava
os pensamentos e colocava tudo sob a melhor perspectiva.

Kyle se assegurava de que ela gostasse. Com suas carícias e beijos hábeis e firmes, levava-a à entrega que tinha se tornado tão habitual, tão atraente. O prazer
obrigava a uma espécie de abandono, concluiu ela. Abrir mão de ser racional e de si mesmo. Nunca chegara a compreender isso antes.

Dali a pouco, ela não entendia mais nada, nem mesmo a discussão. A névoa de sensações obscurecia tudo, menos o desejo de que ele lambesse seus seios e beijasse sua
barriga e tocasse a carne que ansiava por ser penetrada.

Kyle a tirou do colchão e a sentou em seu colo com as pernas afastadas. Puxou-a pelo quadril e a penetrou tão fundo que ela gemeu com a deliciosa sensação de completude.

Ele roçava os mamilos dela com as mãos e ela ganhava vida onde seus corpos se uniam. Diretamente. Maravilhosamente. A excitação desceu direto por seu corpo e se
instalou ao redor da completude que ele proporcionava.

- Venha aqui.

No escuro, Kyle a puxou para a frente até deixá-la apoiada sobre os braços. Seus seios pairavam acima dele. Ele então substituiu as mãos pela boca. O prazer aumentou
tanto que ela arfou. O jeito como a excitava era bom demais, urgente demais, irresistível demais para que ela conseguisse se controlar minimamente que fosse.

Ela se entregou à loucura, gritando e gemendo e se mexendo para senti-lo mais, melhor, mais firme. Ele a segurou pelas coxas e a penetrou com força para atingir
o ápice. Ela ficou completamente dominada.

Quando ele terminou, ela continuava excitada. Apesar das muitas ondas de prazer e entrega, o corpo dela ainda tinha fome. Ele percebeu. Colocou-a de costas e a acariciou
de novo, desta vez nas dobras da carne sensível e pulsante.

Ela quase desfaleceu. Agarrou-o com as unhas para fugir do prazer quase doloroso. Ouviu-o como naquela primeira noite, dizendo-lhe que se entregasse.

Dessa vez, foi o mais doce dos gozos. Primeiro a atingiu com força, depois se espalhou em turbilhões que deixaram seu corpo atônito. Ela se maravilhou nessa sensação
e prendeu o fôlego para que durasse para sempre.

Não durou, claro, ainda que seu corpo tenha demorado a entender isso.

Os acontecimentos anteriores da noite voltaram junto com a noção de espaço e tempo. Talvez tivessem saído dos pensamentos de Kyle também, banidos pelo delírio.

Ele não ficou por muito tempo depois que ela recobrou os sentidos. Naquele breve período tão saturado de paz, ela sentiu a sombra nele.

Desconfiou de que ele não esquecera aquela discussão, nem mesmo no momento do orgasmo. Tinha-a procurado nessa noite em parte por causa da briga. Havia deixado claro
que tais coisas jamais ficariam entre eles naquela que era a parte mais fundamental do casamento. Ele também se assegurara de que ela não se incomodaria com isso.

Esse frio cálculo não mudou a verdade de como ele a tratava. Se Kyle trouxera alguma raiva para aquela cama, não demonstrara. Como sempre, ele tivera consideração
e pedira pouco dela, além de que tivesse prazer.

Rose pensou uma coisa. Uma coisa incrível. Quem era ele e quem era ela, a forma como se encontraram, o escândalo e a redenção influenciavam tudo. Principalmente
o que acontecia naquela cama na melhor e na pior das noites.

 

CAPÍTULO 13

Kyle não havia mentido. No final de janeiro, a estrada para o norte era fria. Quando entraram no condado de Durham, o céu estava baixo, com nuvens de chuva.

Mais para o norte, a paisagem ficava montanhosa e cada vez mais deserta. Passaram por vilarejos pequenos e grandes. Rose identificou aqueles onde os mineiros viviam.
Os resíduos da mina, que os trabalhadores carregavam em seus corpos e roupas, deixavam marcas pelo caminho.

Quando se aproximaram de Teeslow, ela ficou nervosa. Kyle não tinha estimulado que ela fosse, mas concordara por insistência dela. Rose queria conhecer sua casa
e os tios, mas talvez não fosse bem-vinda.

- Você tem outros parentes além deles? - perguntou ela.

- Morreram. Meus tios tinham duas filhas mais jovens que eu. Morreram de cólera quando eu estava em Paris.

- Você sempre morou com eles?

A conversa parecia não incomodá-lo, mas tampouco lhe agradava.

- Meu pai morreu num acidente na mina, quando eu tinha 9 anos. Minha mãe tinha morrido alguns anos antes. O irmão dela ficou comigo.

Dali a pouco, a carruagem deles entrou no vilarejo. Rose olhou as poucas ruas e lojas, os amontoados de casas. Pó de carvão cobria as soleiras e batentes de algumas
casas, além do rosto e das roupas de algumas pessoas.

Kyle e Rose não pararam no vilarejo, continuaram em outra estrada que ia para o norte. No final dela, havia uma linda casa de pedra. Com dois andares, era parecida
com as casas menores encontradas no sul do país, geralmente destinadas a um administrador ou caseiro.

- Não esperava que fosse assim - disse ela.

- Pensou que seria uma casinha de cinco cômodos, no máximo? Eles moraram anos numa assim, lá no vilarejo. Há cinco anos, construí essa casa para eles.

Ele saltou da carruagem.

- Vou entrar, espere aqui. Eles não sabiam que eu vinha, e você vai ser uma surpresa total.

Foi até a porta, abriu-a e sumiu. Rose observou a casa. Viu o rosto de uma mulher, de relance, numa janela. Certamente, a tia olhava a surpresa total.

Ele estava sendo cuidadoso. Quando ela conhecesse seus parentes, os rostos disfarçariam o que pensavam, como ele também costumava fazer. Se não gostassem dela ou
achassem que não era uma boa esposa para o sobrinho, não demonstrariam isso num momento de surpresa.

Kyle voltou e estendeu a mão para ajudá-la a descer da carruagem. Uma mulher surgiu à porta, sorrindo para lhe dar boas-vindas.

- Rose, esta é minha tia, Prudence Miller.

Prudence tinha palavras amáveis e gestos afáveis.

- Ficamos muito contentes de você vir.

Esguia, de cabelos pretos e olhos brilhantes, Prudence tinha chegado à meia-idade com a beleza quase intacta. Rose a imaginou aos 20 ou 30 anos, de pele clara e
olhos escuros.

Como Prudence a recebeu sozinha, Rose concluiu que o tio de Kyle estivesse na mina. Assim que a levaram para a sala de visitas, viu que não era isso.

O tio Harold estava sentado perto da lareira. Tinha cabelos negros como os da esposa e era quase tão magro quanto ela. Apesar do rosto emaciado, Rose o achou parecido
com Kyle nos olhos azuis vívidos e nas feições de traços duros.

Ele a observou atentamente durante as apresentações. Rose notou sua palidez e o lençol que cobria suas pernas e o colo. Havia uma escarradeira numa mesa baixa perto
da perna direita dele. Tio Harold estava doente.

Os cumprimentos o fizeram tossir. Virou a cabeça e cuspiu na escarradeira.

- Você tem de fazer uma torta, Pru. Não podemos receber Kyle sem oferecer as tortas de que ele tanto gosta.

- Teremos uma no jantar - disse ela. - Esperem aqui um instante, vou ao andar de cima arejar um pouco o quarto.

Dava a entender que eles iam se hospedar lá. Kyle saiu e voltou com o cocheiro e as bagagens. A casa tinha um abrigo de carruagem e ele mandou o cocheiro para lá.

Carregou ele mesmo a bagagem para cima, seguindo a tia na escada. Rose sentou numa cadeira perto de Harold, que continuava a observá-la.

- É uma linda mulher, Sra. Bradwell. Agora entendo melhor este casamento.

- Espero que o senhor me trate por Rose.

Ele riu.

- Bom, vai ser uma experiência rara, tratar uma dama como a senhora com tal intimidade.

Tinha sido a imaginação dela ou havia um tom desaprovador na voz do tio? Considerando as circunstâncias do casamento, o "uma dama como a senhora" podia ter vários
sentidos.

Ela achava que o escândalo não podia ter chegado a Teeslow, mas talvez tivesse. Ou talvez Kyle houvesse explicado tudo em detalhes quando esteve lá, em dezembro.
Tenho a oportunidade de casar com uma dama porque ela está em tamanha ruína que nunca conseguirá algo melhor. A reputação dela vai me atingir, mas daqui a uma geração
ninguém vai lembrar muito disso.

Ela tentou manter uma conversa amistosa. Até o momento em que Harold começou a tossir. Ele estava com alguma doença muito grave. Rose se levantou para tentar ajudar,
sem saber como. Ele levantou a mão, impedindo-a. A tosse diminuiu e ele cuspiu de novo na escarradeira.

- Estou doente, como pode ver. É o mal dos mineiros. Achei que ainda teria uns bons dez anos de vida quando isso me atacou.

- Lamento.

Ele deu de ombros.

- Não se pode tirar o carvão sem levantar pó.

Kyle então voltou, poupando-a de encontrar o que dizer.

- Acho que vou roubá-la do senhor, tio. O quarto está pronto e Rose precisa descansar e se aquecer depois da viagem.

 

No quarto, Rose tirou o manto que usava em viagens e se aproximou da lareira.

- Seu tio está muito doente, não é?

- Está morrendo.

Ela assentiu, como se fosse óbvio.

- Ele disse que é o mal dos mineiros. Por causa do pó.

- Muitos adoecem dos pulmões. É de esperar, por isso levam uma vida tão controlada. Suas economias precisam ser suficientes para o sustento da família quando morrerem.

- É triste. Mas você fala sem emoção.

- A vida é assim, Rose. Essa doença é tão normal para esses homens como a gota é para os lordes. Um mineiro entra na mina sabendo disso, da mesma maneira que um
marinheiro embarca no navio sabendo que pode se afogar.

Kyle começou a desfazer sua mala. Nunca tinha levado Jordan lá, pelos mesmos motivos que ficara indeciso quanto a levar Rose. A casa não tinha nada de errado, mas
os tios não saberiam o que fazer tendo criados por perto.

Ele estava feliz de saber que Rose podia se virar sozinha. Do contrário, teria insistido em ficarem numa hospedaria, só que a mais próxima não seria conveniente.
Além disso, a tia ficaria ofendida se aquele casamento mudasse tão rapidamente os hábitos da família.

Mesmo assim...

- Você vai se sentir bem aqui? Se não for, pode me dizer.

Ela deu uma olhada no quarto, na cama sem dossel e nas cortinas de que tia Pru tinha tanto orgulho.

- É muito melhor que uma hospedaria. Vamos ficar juntos?

- Vamos.

Ela não pareceu se incomodar. Sentou na cama, depois se deitou.

- Acho que vou descansar um pouco. Nunca imaginei que viajar de carruagem vários dias pudesse ser tão cansativo.

 

Quando Roselyn acordou, Kyle tinha saído. Ela desceu a escada à procura dele.

Harold cochilava na cadeira ao lado da lareira acesa. Ela seguiu os sons que vinham da cozinha, nos fundos da casa.

Prudence estava lá trabalhando, sovando massa de torta. Sorriu e indicou o fogão com a cabeça.

- Aquele jarro em cima das pedras tem sidra e na mesa tem um copo, se quiser.

Rose se serviu e viu por uma janela dos fundos o pequeno pomar de árvores frutíferas novas, que estavam nuas agora, no frio do inverno. Havia um grande jardim no
lado oeste do pomar, à espera de ser cultivado na primavera.

- A casa é muito agradável - disse ela. - A vista de todas as janelas é linda.

- Kyle a construiu para nós. Quando voltou da França. Foi para Londres ganhar dinheiro, depois construiu. Harold não queria aceitar, claro, mas eu sabia que ele
estava adoecendo. Você vai ver que meu marido vai alfinetar Kyle por causa das roupas elegantes e das maneiras finas, mas se orgulha muito das conquistas do sobrinho.

Rose se aproximou para ver Prudence preparar a massa.

- Também faço tortas.

- É mesmo? Eu achava que as damas não sabiam cozinhar.

- A maioria não sabe. Mas eu gosto. Posso ajudar, se quiser.

Prudence separou algumas maçãs e uma tigela.

- Você pode descascar e depois cortar as maçãs aqui dentro.

Rose começou a trabalhar.

- Aonde Kyle foi?

- Foi andando até o vilarejo. Imagino que vá visitar o padre e depois tomar uma cerveja com os homens na taberna. Teria levado Harold na carruagem, mas ele estava
dormindo. Pode ser que amanhã leve. Harold sente falta da cerveja com os rapazes.

Rose imaginou Kyle andando quase um quilômetro até Teeslow. Voltando à antiga vida. Será que ele se livrara dos casacos antes de ir? Removera as camadas de gestos
educados e a mudança pela qual aceitara passar para ganhar dinheiro em Londres? Voltara a falar com o sotaque de Harold?

Nessa taverna, ele não seria o Kyle que ela conhecia. Seria o Kyle que continuava um estranho.

- Ele é amigo do padre?

Prudence riu.

- Bem, amigo não é bem a palavra. O conde encarregou o padre de ensinar Kyle a escrever e contar, além de latim e francês. Ele foi um professor exigente. De vez
em quando, esquentava o traseiro dos alunos com uma vara. Kyle não gostava das aulas, mas sabia que poderiam mudar a vida dele e continuou indo.

- O conde? Você quer dizer o conde de Cottington? Ele era o benfeitor de Kyle?

- Exatamente.

Ele nunca tinha dito. Pelo menos, não com todas as palavras. Ela concluíra que o benfeitor tinha sido... alguém. Não um conde. Não Cottington. Não o pai de Norbury.

Isso explicava muita coisa. A parceria naquelas novas construções. A presença de Kyle na festa de Norbury.

- Por que o conde fez isso?

Prudence estava atenta, raspando açúcar mascavo.

- O conde conheceu Kyle por acaso. Na mesma hora, viu que não era um menino comum, mas inteligente e corajoso. E que meu sobrinho seria desperdiçado na mina, embora
desde pequeno ele já pudesse fazer o trabalho de um homem. Por isso, o conde mandou o padre dar aulas a Kyle, de forma que, quando crescesse, pudesse ir a escolas
e tal.

Colocou o açúcar numa xícara.

- O conde é um homem bom e justo. Como poucos.

A pequena história trouxe dúvidas à cabeça de Rose. Tantas que não podia perguntar a Prudence sem parecer que a colocasse no banco dos réus.

Ela sabia pouco da vida do marido. Tinha muita curiosidade, mas nunca perguntara, apesar de ele ser a melhor fonte de informação.

Nunca perguntara, mas Kyle também nunca dissera. Não acreditava que fosse por vergonha do passado ou por não falar muito de si.

Os dois evitavam tudo aquilo porque falar no passado dele significava falar em Norbury.

A sombra daquele caso tinha influenciado até a maneira como os dois se conheciam.

 

- Vai dar problema. Não tem dúvida - assegurou Jon e bebeu um pouco de cerveja para enfatizar.

Kyle também bebeu, concordando. Jonathan era um mineiro quase da mesma idade que ele. Entraram na mina na mesma época, quando meninos, e carregaram os cestos de
carvão juntos, escada acima.

Agora Jon era um radical, o que o fazia imprudente ao falar com o amigo de roupas elegantes, que tinha morado lá fazia muito tempo.

Os demais mineiros foram simpáticos, até alegres. Brindaram quando Kyle entrou na taberna e o crivaram de perguntas sobre Londres. Mas não estavam dispostos a falar
sobre o que vinha acontecendo na própria cidade. Uma palavra errada poderia arruinar suas vidas.

- O comitê foi três vezes até os proprietários para se colocar contra a reabertura do túnel e explicar o perigo - disse Jon. - É mais barato perder alguns homens
do que fazer o que é preciso. Já vimos isso e veremos de novo.

Kyle, sem dúvida, tinha visto. Os ossos do pai ainda estavam naquele túnel fechado. Era perigoso demais retirar os mortos. A primeira tentativa servira apenas para
causar outro desmoronamento.

- Você falou com Cottington? - perguntou Kyle. - Ele vendeu quase toda a mina há bastante tempo, mas ainda tem certa influência. As terras ao redor ainda são dele.

- Dois dos nossos colegas tentaram. Ele está tão doente que não deixam ninguém chegar perto. Nem você pôde entrar na última vez em que esteve aqui. Quanto a falar
com o herdeiro... - a frase ficou no ar e a expressão de Jon mostrou a opinião que tinha sobre o tal herdeiro.

Ele olhou por cima do ombro. Passou a mão nos cachos louros, depois se inclinou sobre a mesa para confidenciar:

- Estamos nos organizando para irmos juntos. Não só aqui. Tivemos reuniões com grupos de outras cidades e com mineiros que têm outros patrões. Se ficarmos lado a
lado e falarmos juntos, seremos ouvidos.

- Cuidado, Jon.

- Cuidado, uma ova. A lei agora permite isso, finalmente. Temos o direito de nos unir. O que eles podem fazer? Me matar? Não podem matar todos nós. Não podem demitir
todos. Você mesmo falou isso há anos, antes de...

Jon desviou o olhar e bebeu mais cerveja.

Antes de ir embora e se tornar um deles.

- Quando se fica lado a lado, é preciso que todos estejam unidos. É preciso que todos aceitem passar fome. Haverá sempre os que vão abandonar o movimento.

- Se nós sairmos da mina, nenhum homem vai entrar. Vamos cuidar disso.

- Há sempre os que precisam trabalhar.

- Se as frentes se formarem na entrada das minas, isso não vai fazer diferença.

- Eles vão chamar a cavalaria. Vai ser um massacre.

Jon deu um soco na mesa.

- Pare de falar como minha mulher. Esqueceu o que acontece lá? Vá até aquela linda casa que você construiu para Harold e pegue as botas e as roupas dele. Venha comigo
amanhã, caso tenha esquecido por que o perigo não importa para gente como nós.

Aquele "gente como nós" não incluía Kyle. Ele era um deles, mas também não era mais. Ali era sua cidade natal, mas ele tinha ido tão longe, de tantas maneiras, que
cada vez que voltava, fazia menos parte daquele mundo.

Ele sentia isso, mas não conseguia evitar. Seus vínculos àquele lugar eram como tentar segurar areia: por mais forte que fechasse a mão, ela escorria entre os dedos.

Quanto tempo levaria até que poucos o reconhecessem quando andasse por aquelas estradas? Chegaria o dia em que ele entraria na taberna e as vozes se calariam e os
olhares examinariam o cavalheiro intruso.

- Vou a Kirtonlow enquanto estou aqui - disse ele. - Falarei com Cottington a respeito desse túnel.

O dar de ombros de Jon mostrou que não achava que isso fizesse alguma diferença. Pediu mais cerveja e deixou a conversa de lado junto com o copo vazio.

 

Kyle voltou para casa a tempo de jantar. Rose ajudou Prudence a servir. A conversa ia abarcando coisas corriqueiras, como costuma acontecer entre estranhos. Até
que Harold não aguentou. Queria saber as novidades que Kyle ouvira na taberna.

- Os rapazes não vêm muito aqui. É muito longe para andar depois de um dia de trabalho - explicou Harold.

Tia Pru sorriu de leve, como se pedisse desculpas pelo que parecia ingratidão pela casa que ganharam. Kyle não se importou. Harold sabia que não o visitariam muito,
ainda que ele continuasse morando no vilarejo. Um homem sem forças para ir à taberna era um homem isolado.

- Há boatos da reabertura do túnel - disse ele. - Ouvi isso em dezembro, mas parece que vai ocorrer mesmo.

- Aqueles idiotas. Idiotas gananciosos.

A notícia deixou Harold tão agitado que ele teve um ataque de tosse.

- Pelo menos pode ser que seu pai e os outros possam ter um enterro cristão - disse Pru, baixo.

Rose ergueu o olhar, surpresa. Seus olhos demonstraram algo que Kyle tinha visto várias vezes naquela noite. Curiosidade. Talvez reavaliação. Falar no túnel trouxera
à tona algo em que já vinha pensando.

Tia Pru trouxe uma de suas tortas. O cheiro bastou para melhorar o ânimo de todos. Pru era famosa por todos os tipos de tortas. Mesmo que precisasse usar frutas
que tinham passado todo o inverno estocadas num porão, ela conseguia que a receita ficasse deliciosa.

Kyle se sentiu menino outra vez, prevendo o gosto delicioso que só sentia em dias de pagamento, quando podiam comprar um pouco de açúcar.

Prudence cortou a torta em fatias.

- Rose me ajudou a fazer - contou.

- É mesmo?

- Nada como cozinhar junto para as mulheres se conhecerem - disse Harold. - Fico satisfeito que sua esposa goste de cozinhar, Kyle, meu rapaz. É bom saber que você
não vai passar fome lá em Londres.

- Rose faz ótimas tortas - disse ele.

Rose sorriu com o elogio. Kyle olhou a fatia de torta na frente dele.

- Então, tenho de agradecer a você por isso, querida?

- Não fiz muita coisa. Apenas cortei as maçãs.

Ele comeu. Não, ela não havia ajudado muito. A torta estava ótima.

Rose ficou observando-o comer cada fatia. Ela estava de novo com aquele olhar. Algo atiçara seu pensamento.

 

CAPÍTULO 14

Rose queria conversar com o marido. Ficou aborrecida quando ele não foi para o quarto com ela, deixando-a subir sozinha.

Assim que chegou ao quarto, Rose entendeu por que ele não a acompanhara. Dividindo aquele quarto, eles não teriam nenhuma privacidade. Os preparativos para dormir,
que costumavam ser feitos separadamente, teriam de acontecer na presença do outro.

Ela pensou nisso enquanto tirava o vestido e o espartilho, a camisa e o calção. Vestiu a camisola e sentou na cama para soltar os cabelos. Imaginou-o também ali,
despindo-se.

Olhou para a cama. Prudence e Harold dormiam há anos na mesma cama a noite inteira, todas as noites. Não se afastavam depois de cumprirem seus deveres conjugais.
Como seria viver totalmente ligada a outra pessoa?

Ela achou que devia ser muito bom, se houvesse amor. Horrível, se houvesse ódio. Invasivo, se houvesse indiferença.

Ouviu o som das botas dele na escada e concluiu que tinha mesmo se demorado por respeito a ela. Aquele casamento tinha muito disso.

Deixou a lamparina acesa e permaneceu onde estava. Não era uma cama muito grande. Aquela visita os forçaria a todo tipo de intimidade.

Kyle bateu na porta antes de entrar. Rose não acreditava que Harold alguma vez tivesse feito isso para ter certeza que Prudence o deixaria entrar.

Controlou o impulso de virar para o outro lado para que Kyle também tivesse sua privacidade. Mas ele não era uma flor delicada e ela queria conversar.

Ele tirou os casacos e os pendurou no guarda-roupa.

- Gostou da torta? - perguntou ela.

Ele sentou na cadeira e tirou as botas.

- Muito. Quase tão boa quanto as suas.

Ela ficou muda. O coração se encheu de uma sensação doce e pungente.

Na verdade, as tortas dela eram horríveis. Ninguém jamais a ensinou a cozinhar. Por necessidade, tentara quando era menina até conseguir algo que os irmãos achassem
mais ou menos comestível. O resultado não dava, de maneira alguma, para comparar com o toque mágico de Prudence.

Hoje ela havia assistido a Prudence fazer a torta e vira o que lhe faltara naqueles anos todos. E também sentira o gosto diferente.

Mas eis que Kyle mentia para ela não se sentir mal. Ele tinha a opção de não mencionar suas tortas. Como podia ter comido só um pedacinho da que ela fizera na manhã
seguinte ao casamento.

Naquele dia, cada garfada de torta devia ter entalado na garganta dele.

- Prudence disse que você hoje decerto visitaria o padre. E que ele ensinou as primeiras lições a você.

Não sabia se continuava a conversa. Eles podiam passar o restante da vida sem tocar nos assuntos que surgiram na cabeça dela nesse dia. Talvez fosse melhor assim.

Só que ela não ia dormir se não perguntasse. As respostas ajudariam não só no que sabia sobre o Kyle estranho, mas a entender o Kyle que conhecia.

- Ela disse que Cottington mandou o padre dar essas aulas. Que o conde era o seu benfeitor. Você nunca me disse isso.

Ele tirou a gravata.

- Você nunca perguntou.

- É verdade. Nunca perguntei. Estou perguntando agora. Quero saber.

- Quer saber pelas razões erradas.

O que aquilo queria dizer?

- Quero saber porque você é meu marido e esse fato extraordinário mudou a sua vida e o tornou o homem com quem me casei.

Ele se recostou na cadeira e olhou para ela.

- Certo. O conde reparou em mim quando eu tinha 12 anos. Achou que eu tinha talentos que deviam ser aprimorados. Combinou com o padre que me desse aulas, depois
pagou para um engenheiro em Durham ser meu professor durante dois anos. Conseguiu que eu fizesse provas para a Escola de Belas-Artes de Paris e me mandou para estudar
arquitetura lá. Quando voltei, ele me deu 100 libras e sua generosidade acabou aí, mas continuamos amigos e, às vezes, trabalhamos juntos.

E aquelas 100 libras tinham se transformado em mil, depois em mais e mais.

- É uma história surpreendente. Que seu progresso surpreende é fato, mas também achei a atitude do conde surpreendente. Por que fez tudo isso por você? Foi porque
seu pai morreu no túnel?

- Ele não sabia que meu pai era um dos mortos. O acidente tinha sido três anos antes.

Kyle desabotoou os punhos da camisa.

- Não sei por que fez isso. Acho que porque eu bati no filho dele. Talvez tenha admirado a minha audácia. Ou achou que o filho merecesse uma surra e gostou que outro
garoto tivesse coragem de dá-la por ele.

- Você bateu em Norbury? Que maravilha. Mas é lastimável que essa história esteja ligada a ele.

- Lastimável, mas inevitável, Rose. Não finja que, quando perguntou, não sabia aonde a história ia levar.

Ele tirou a camisa. Despejou água na bacia e começou a se lavar.

Ela não o via sem roupa desde a noite do casamento. Depois daquela noite, ele tinha sido apenas uma silhueta no escuro. Rose tinha sentido aqueles ombros e abraçado
aquela nudez, mas não tinha visto.

A luz fraca o favorecia, mas o vigor dele teria impressionado mesmo sob um sol de verão. Não havia um músculo flácido. Nenhuma gordura ameaçadora acumulada devido
a uma vida amena. Os músculos não pareciam volumosos, apenas proporcionais à altura dele. Como o rosto, o corpo parecia esculpido de maneira rústica e fazia supor
uma energia prestes a explodir. Ela ficou pensando se aquela tensão sumia em algum momento. Talvez, quando ele dormisse, ela ficasse escondida.

Rose prestou tanta atenção nele que quase se esqueceu da conversa. Kyle estranhou o silêncio e notou que estava sendo observado. Voltou a se lavar.

- Acho que eu sabia onde a história ia acabar - disse ela. - Sempre me surpreendi por você conhecer Norbury tão bem. Mas continuar a trabalhar com ele e a usar as
terras da família...

- Meu trabalho é com Cottington. Sempre foi. Norbury só tem participado agora porque o conde está muito doente.

A conversa se encaminhava para um terreno perigoso. Ela viu o espaço entre eles subitamente cheio de buracos e fendas. O tom da voz dele demonstrava que seria insensato
seguir adiante.

- Se o conde está tão doente, é provável que Norbury participe da sua vida por muito tempo - disse ela. - Pelo jeito, já participa. Está nas nossas vidas, Kyle.

Ele jogou a toalha no chão.

- Quando preciso falar com ele, eu falo. Depois, ele some da minha vista e da minha cabeça. Não faz parte de nossas vidas.

- Não? E como foi que nos conhecemos? Eu sinto a presença dele como se fosse um espectro. Acho que ele não sai da sua cabeça, no que me diz respeito. Acho que você
tenta esquecer o meu caso, mas...

- Sim, eu realmente me esforço para esquecer, maldição! É isso ou a vontade de matá-lo. Por causa da maneira vergonhosa como tratou você naquele jantar. Da maneira
como desconfio que tratou antes. Imagino-o com você e...

Ele abriu e fechou as mãos. Ficou tenso e, de um jeito sombrio, forçou-se a ficar calmo.

- Mas não penso nele quando estou com você. Não se reflete em você.

- Como não? Influi em tudo. Aquela noite afeta todas as coisas, até a maneira de você me tratar como esposa.

- Se você se refere à ordem que dei em relação ao seu irmão...

- Meu irmão? Céus, meu irmão é o problema nosso com o qual Norbury não tem nada a ver. Não gostei daquela nossa discussão, mas, pelo menos uma vez, falei com o homem
com quem me casei. Com ele por inteiro. O real. Não a invenção atenta e educada, que se veste tão bem, fala tão bem e me dá prazer tão corretamente e com tanto respeito.

Ela achou que jamais poderia vê-lo tão surpreso. Durou poucos segundos. Depois, ele fixou o olhar nela de tal forma que seu coração subiu para a garganta.

- Trato você com respeito, como uma dama, e você reclama?

- Não estou reclamando. Sei que tenho sorte de ter um amante tão atencioso. Só acho que você toma tanto cuidado por motivos que me entristecem.

Ele não gostou da crítica. Nenhum homem gostaria.

- Parece que você conhece a mim e aos meus motivos melhor do que eu, Rose.

Ela devia recuar, desculpar-se, ficar calada e grata. Mas, se fizesse isso, ele só ia se lembrar de uma ofensa que ela não tivera intenção de fazer.

- Talvez eu conheça mesmo, Kyle. Ou talvez o pouco que conheço de você me faça entender mal. Diga-me uma coisa: se não fosse aquela noite horrível, se não fosse
a minha situação, você precisaria ser tão cuidadosamente respeitoso? Se tivesse casado com uma moça ingênua daqui do vilarejo ou com uma mulher que nunca foi chamada
de puta, pensaria nisso o tempo todo? Se você não tivesse nascido neste vilarejo, mas numa grande mansão e me pedisse em casamento em outras circunstâncias, acharia
tão importante me tratar como uma dama?

Pelo menos a explosão dela não o deixou mais irritado. Ele ficou sério e contido, mas não furioso. O tempo passou tão lenta e silenciosamente que ela se arrependeu
do que disse.

- Desculpe. Eu não devia... - disse, puxando um fio solto do cobertor. - É que, quando estamos juntos, eu sinto... Você está quase sempre usando seus casacos de
corte impecável, Kyle, até na cama, quando está completamente nu.

Ela piorou uma situação que já estava ruim. Deitou-se e se cobriu bem para esconder os destroços do naufrágio que certamente fizera de seu casamento.

Desejou ser escritora ou poeta, para conseguir se explicar. Gostaria de ter palavras para expressar como a origem dela e a dele, a redenção dele e o escândalo dela,
o conhecimento que ele tinha de seu caso e a necessidade que ela tinha de não ser tratada como puta fizeram com que se erguessem aquelas barreiras de formalidade
entre os dois.

Era impossível explicar. Pouco provável que a situação mudasse. Ela devia aceitar. Devia se policiar para não ficar tentando alcançar algo que não sabia o que era,
daquele jeito doloroso e incessante. Ela devia...

- Os casacos não caem bem quando estou aqui, Rose. Apesar de todo o talento do alfaiate, ficam apertados demais quando venho para casa.

A voz baixa dele chegou a Rose através do silêncio tenso.

- Imagino que seja desconfortável.

- Muito.

- Ou os casacos estão apertados e você só nota quando vem para casa.

- Talvez você tenha razão.

Ela se sentou outra vez. Ele agora prestava atenção no fogo baixo da lareira e nos próprios pensamentos. Apoiava o braço na cornija enquanto olhava as chamas. Ficou
lindamente iluminado.

Ela se encantou com a cena. A luz da lareira parecia encher o quarto todo. O calor chegou até ela.

- Na verdade, desde que cheguei aqui, acho que minhas roupas também estão apertadas, Kyle. Talvez seja o ar do campo. Ou as tortas.

Ele sorriu.

- Então você devia parar de usá-las.

- Não estou acostumada a me livrar desses acessórios. Vivo apertada num espartilho desde o dia em que nasci.

Kyle a encarou. O coração dela perdeu o compasso, depois acelerou. Mesmo no dia em que a pedira em casamento, ele não demonstrara seu desejo com tanto despudor.

Ele se aproximou.

- Vou considerar isso um convite, Rose.

Abraçou-a com tanta força que a levantou da cama. Beijou-a de um jeito possessivo, firme, como quem não quer nada e quer tudo. Desta vez, não conteve seu desejo.
Puxou-a para um remoinho de força incontrolável.

Os beijos pediam, mandavam e a excitavam. Nem se quisesse, ela não podia fazer nada contra o domínio que ele tinha. Rose havia pedido isso e deixou que as próprias
reações selvagens se apossassem dela. Superaram o medo e a surpresa iniciais.

Beijos quentes. Fortes e profundos, mordendo e devorando. Braços de aço a impediram de reagir à fúria ardente em seu pescoço e na sua boca. Uma sequência de choques
maravilhosos atravessou seu corpo como flechas de fogo. Trouxe à tona o instinto primitivo dela até fazê-la gemer com o ataque glorioso e fazê-la perder qualquer
decoro.

Ele a apoiou de novo na beirada da cama. Acariciou suas pernas por baixo da camisola. Passou a mão no quadril e na bunda. Um toque furtivo e erótico no sexo. Os
dedos dele causaram um incrível formigamento.

Ela afastou uma perna para incentivá-lo a prosseguir naquela deliciosa tortura. Ele prosseguiu, mas interrompeu o longo beijo. Com a outra mão, ele levantou a camisola
dela até os ombros e a retirou por cima da cabeça. A camisola caiu ao chão, aos pés dele.

Ele olhou a nudez da esposa sério de tanto desejo. Suas carícias cobriam os seios enquanto a outra mão esfregava e provocava embaixo. A dupla sensação a deixou tremendo,
cambaleante, enfraquecida pelo prazer. Ela se inclinou para se apoiar nele até o rosto tocar suavemente em seu peito.

A mão de Kyle puxou sua nuca para mais perto até o rosto encostar por completo na pele lisa.

- Posso tirar a camisola, Rose, mas as outras peças que a escondem você mesma precisa tirar.

Ela compreendeu. O incentivo a encorajou. Espalmou as mãos no peito dele, olhando e sentindo ao mesmo tempo. O simples toque fez com que ele ficasse ainda mais excitado
e que uma nova rigidez o percorresse.

Ela o acariciou com mais ênfase. Olhou as mãos passando pelo peito dele, escorregando e percorrendo os sulcos dos músculos e costelas rígidos. Ele a olhou também
e as carícias e toques no corpo dela copiavam as delas. A respiração cálida dos dois se encontrou e se fundiu em beijos cada vez mais vorazes enquanto a excitação
os levava à loucura.

Ele tirou a mão das pernas dela e desabotoou os calções. Antes que ela pudesse se conter, deu um gemido insolente, afastou as mãos dele e assumiu os botões. As mãos
dele voltaram a afagá-la embaixo, fazendo-a quase desfalecer.

Ela lutava com a roupa dele, desajeitada, enquanto ele a tocava mais deliberadamente. Inclinou a cabeça para aproximá-la do pescoço e do ouvido da esposa. O dedo
dele apalpava com cuidado.

- É assim que você quer, Rose?

Ela não podia responder. Não conseguia falar. Mal conseguia se manter ereta. Agarrou a roupa dele sem ver, sem jeito, empurrando-a pernas abaixo às cegas, enquanto
os leves toques no seio e entre suas pernas a faziam gemer.

- Ou assim?

A mão dele contornou a perna e a tocou pela frente. Uma estocada longa, lenta e incrível fez um tremor de prazer percorrer seu corpo.

Rose sabia que ele tinha noção de quanto a deixava indefesa. Agarrou-se aos ombros dele e se segurou em busca de apoio.

Ele soltou uma das mãos dela, beijou-a e a guiou para a parte inferior do próprio corpo. Uma leve noção de racionalidade voltou, o bastante para ela entender o que
ele estava fazendo, o que queria. Perdida demais para se importar, ou se constranger, deixou que ele colocasse a mão dela no pênis.

Ele a tocou diabolicamente mais uma vez, o que deixou tudo mais fácil. O prazer passou pelo corpo dela como uma onda revolta, e em resposta ela acariciou como era
acariciada.

Qualquer decoro que ele ainda tivesse se rompeu. Beijou-a com nova selvageria. Ela sentiu a tensão em todo o corpo, no beijo dele e até na maneira como a tocava.
Intencional, agora. Disposto a fazê-la entregar-se por inteiro.

O orgulho perdeu qualquer sentido. Mesmo de joelhos, ela se movia ritmadamente, curvando-se aos beijos dominadores, gemendo de tanto querê-lo.

Ele a mudou de posição, mas não como ela esperava. Virou-a de maneira a ficar de costas para ele e acariciou seus seios. Ela se inclinou na direção de Kyle. Os mamilos
se eriçaram, se intumesceram, endureceram, implorando mais, qualquer coisa, tudo.

Ele a mudou de posição novamente, curvando o corpo dela até deixá-la de joelhos na beirada da cama com as pernas dobradas sob o corpo. Um tremor incrivelmente erótico
estremeceu suas ancas.

Ele levantou o quadril dela. Ela esperou, ofegante, tão excitada que não conseguia aguentar. O corpo latejava na expectativa. Rose imaginou o que ele via, as nádegas
viradas para ele, mostrando aquela carne escondida. A imagem despudorada só a excitou mais.

Ele não a possuiu imediatamente. Deixou-a esperar, chegar à beira da loucura. Ficou acariciando as nádegas dela, roçando as curvas da pele, olhando para ela, com
certeza. Assistiu à submissa rendição e ao seu desespero.

Tocou-a de novo, ela gritou. Desta vez foi diferente. Rose estava exposta e aberta e sabia que ele olhava, sabia que via o corpo nu. Ela desceu mais as costas e
levantou mais as nádegas.

Dali a pouco, estava implorando. Implorando, gemendo e abafando os gritos nos lençóis. Finalmente, ele a penetrou numa estocada longa e lenta, proposital. Abaixo
de seu gemido de prazer, ela teve a impressão de ouvir o dele também.

Depois, ela se perdeu. Tudo o que sentia era o torturante prazer da necessidade de ser preenchida e a violenta intensidade da completude.

 

- Você veio aqui para ver Cottington antes que ele morra?

Rose estava nos braços de Kyle, sob os lençóis. Fazia algum tempo que ele tinha levantado o corpo lânguido dela e a colocado ali de maneira a ficar colada nele,
que estava sentado, com as costas apoiadas na cabeceira. A vela ainda iluminava a satisfação dos dois.

- Um dos motivos foi esse. Vou tentar vê-lo amanhã.

- Tentar? Ele não recebe você mais?

- Não sabe que eu o procurei. O secretário e o médico dele só avisam das visitas se quiserem. Agora é assim.

Ela achou que, provavelmente, tinha sido sempre assim. Era comum que condes tivessem empregados para evitar serem incomodados se não quisessem. Agora que Cottington
estava doente, eram outras pessoas que decidiam quando ele queria ou não. Só isso mudara.

- Se ele não puder recebê-lo agora, talvez receba na primavera, quando você planeja voltar.

- Acho que ele não estará vivo na primavera.

Ela concluiu que Kyle tinha ouvido falar que o conde estava à beira da morte. Por isso tinha ido ao norte agora.

- Vai ser muito triste não se despedir dele, depois de tudo o que fez por você. Certamente, o secretário dele sabe disso.

- Para o secretário, eu sou só o garoto de Teeslow - explicou Kyle, inclinando a cabeça e dando um beijo distraído nos cabelos dela. - Não é só me despedir. Quero
ver se ele ainda está consciente. Preciso pedir um último favor para os mineiros.

- É sobre a reabertura do túnel?

- Sim. Alguns homens querem impedir, só que de uma forma que só vai prejudicá-los.

- Poderia dar certo, se todos eles...

- Não serão todos. Há famílias que perderam parentes no desmoronamento e vão querer a reabertura para poderem enterrar seus mortos.

- Você disse que seu pai morreu num acidente. Foi nesse, não?

Ele concordou com a cabeça.

- Eu também gostaria de enterrá-lo. Mas aquele túnel jamais será seguro, a menos que as coisas sejam feitas de outra maneira. As paredes se movem.

- O túnel é de rocha. Rocha não se move.

- A terra é uma coisa viva, Rose. Antes de construir, preciso ver se o terreno é firme. A mina não está em terra firme e a parte daquele túnel é a pior. Sei disso
desde menino. Eu vi.

Ela sentou e se virou para ele. Ao olhá-lo, sentiu um eco dos tremores da noite. Não era possível a uma mulher deixar um homem fazer aquelas coisas sem depois ficar
em desvantagem com ele. Rose sentia que cedera o controle de outras formas também, que estavam entre os dois agora, incentivando aqueles tremores.

- Quanto tempo você trabalhou na mina, Kyle?

- Entrei pela primeira vez aos 8 anos. As crianças carregam o carvão em cestos. Geralmente, começam aos 9 ou 10 anos, mas eu era grande para a idade. Não tão grande
quanto um homem. Por isso, eu via o que eles não viam porque tinham de ficar abaixados. Havia fendas acima e quase no alto das paredes. Acompanhei a movimentação
delas durante meses. Avisei ao meu pai. Ele e os outros mineiros não acharam perigoso porque não viram e não notaram as mudanças. Até que um dia... caiu tudo. Dez
homens foram enterrados vivos do outro lado de uma parede nova.

- E ficaram simplesmente abandonados lá?

- Ninguém é abandonado, a menos que não haja opção. Começaram a cavar para retirá-los, mas isso fez mais pedras caírem, e outro mineiro morreu. Então ninguém mais
cavou. Fizeram uma cerimônia religiosa. Rezaram. E dois dias depois os homens voltaram à mina. Menos os parentes dos que estavam soterrados. Esses esperaram uma
semana. À essa altura, quem tinha ficado preso teria morrido. Por falta de ar e de água.

Ela imaginou Kyle de vigília com os tios. Viu o menino pensando no pai atrás daquela parede de rocha, talvez ainda vivo, mas sem poder ser socorrido.

- Eu disse aos homens que devíamos cavar por cima do túnel. Fazer um buraco para entrar ar até encontrarmos uma forma de tirá-los de lá. Ninguém dava ouvidos a uma
criança, muito menos os supervisores dos donos da mina. Hoje, sei que isso poderia dar certo. Um engenheiro podia fazer isso. Eu posso, se houver um desmoronamento
num túnel lateral.

Sim, provavelmente podia, mesmo se o terreno fosse desfavorável. Se preciso, ele cavaria com as próprias mãos, pensou ela. Se ele decidisse, não havia rocha nem
terra que o impedisse.

Ele contara sua história e respondera às perguntas de Rose. Ela sabia que agora ele pensava em outras coisas. Tinha deixado a vela acesa por um motivo.

Kyle a pegou pelo braço e a puxou em sua direção. Sentou-a de frente, com as pernas envolvendo as dele.

Ele olhou as mãos cobrirem os seios dela e os dedos roçarem os grandes mamilos escuros.

- Vi você muito bem no escuro ou, pelo menos, minha imaginação viu. Mas prefiro assim.

Em outras palavras, não queria mais que as lamparinas e velas fossem apagadas como se ela fosse uma dama. Ela não se importava. Assim também podia vê-lo. Mas ia
demorar um pouco para não ficar tímida quando o marido olhasse para o corpo dela como fazia agora.

Ele a ergueu e a posicionou sobre sua perna, lambendo e mordiscando os seios dela. A posição em que estavam permitia que ela também o acariciasse.

- Acho que você devia me levar quando for a Kirtonlow tentar falar com Cottington - sugeriu Rose.

Os dedos dele substituíram a boca, permitindo que respondesse.

- Não.

Ela imaginou se ele não queria que ela o visse sendo dispensado.

- Se eu for com você, o secretário não vai nos expulsar.

- Vai, sim, e não quero que você seja ofendida.

- É bem mais difícil dizer não a uma dama, Kyle. Diremos para ele não ousar fazer isso, pois o conde não vai gostar, se souber.

- Não.

Ela fez a mão deslizar para baixo no corpo dele, na tentativa de convencê-lo. Envolveu sua ereção e ficou roçando o polegar na cabeça do pênis.

- Você se casou comigo por causa da minha origem, Kyle. Devia me deixar abrir portas quando posso.

O sorriso dele não escondia a tempestade erótica que as carícias causavam.

- Rose, você está usando artifícios femininos para me deixar flexível?

Ela olhou o que sua mão estava fazendo.

- Parece que só estou conseguindo o efeito contrário. Não há nada flexível em você agora. A não ser um pouco, bem aqui. Ela apertou de leve a ponta.

Ele a segurou pela bunda e a ergueu de leve. Ela sabia o que fazer sem instruções, pois parecia natural e necessário. Mexeu-se e se colocou numa posição que permitia
guiá-lo para dentro dela.

O primeiro toque da penetração causou um choque de prazer em seu corpo todo. A sensação a deslumbrou e a fez perder o fôlego. Não se mexeu para ele penetrar mais.
Ficou assim, só um pouco encaixada, deixando os deliciosos tremores se prolongarem.

Ele permitiu, embora o desejo o dominasse tanto que ele cerrava os dentes. Ela se abaixou um pouco para senti-lo melhor.

- Você vai me matar, Rose - gemeu e segurou as pernas dela. - Pode me torturar durante horas outra noite, mas agora...

Puxou-a, descendo-a até seus corpos se aconchegarem.

Depois disso, ele a guiou, as mãos fortes facilitando o movimento das coxas num ritmo de absorção e soltura que ela ditava. Rose descobriu novos prazeres com mudanças
sutis e pressões no corpo. Fechou os olhos e o apertou dentro de si, mais e mais.

Ele então a penetrou mais, tão fundo que ela arfou. Abriu os olhos, o encarou e não conseguiu mais desviar o olhar. Não o via se mexer, mas sentia que era preenchida,
estocada e dominada enquanto seu olhar profundo a convidava a mergulhar em mares cor de safira. No final, ele a segurou forte pelas coxas. Presa, ela se rendeu à
invasão de seu corpo e de sua alma.

O orgasmo violento dela quase doeu de tão intenso. Ela desmoronou sobre ele, o rosto contra seu peito, ligada a ele num abraço forte enquanto o corpo aos poucos
abria mão das últimas palpitações do gozo.

- A que horas você vai amanhã a Kirtonlow Hall? - perguntou ela, depois que a respiração e o coração de ambos se acalmaram.

Um braço estendido. Um lençol ondulando. Ele puxou os lençóis e os prendeu em volta dela.

- Meio-dia, eu acho.

- Quero ir com você. Estarei pronta ao meio-dia.

Esperou o "não" dele. Não veio. Em vez disso, o abraço se ajustou nela, envolvendo-a, e a respiração de Kyle aqueceu sua testa com um beijo.

 

CAPÍTULO 15

As colinas desoladas sumiram a uns dez quilômetros de Kirtonlow Hall e a paisagem foi ficando mais luxuriante a cada momento. A casa surgiu alta e ampla, à beira
de um grande lago que refletia suas pedras cinzentas na água prateada.

Quando a carruagem deles percorreu o caminho de entrada, Rose deu uma olhada em sua roupa e na de Kyle. A gravata dele estava impecável. O casaco, com caimento perfeito
nos ombros. Até a corrente do relógio de colete dele brilhava, fazendo um arco indefectível. Uma gravura de moda não estaria mais correta.

Ela usava os melhores trajes que tinha trazido, um recém-adquirido conjunto lilás com manto bem-cortado e debruado forrado de pele de esquilo cinza. Fora selecionado
para sua bagagem devido à sua praticidade, mas o estilo e o luxo discreto tinham outra finalidade naquele dia. O obediente secretário do conde jamais saberia que
a pele tinha sido de um antigo traje, que ficara completamente fora de moda.

O criado levou o cartão de visitas de Kyle. Dali a pouco, ouviram-se passos de duas pessoas na escada. O criado vinha com um homem baixo e careca.

- Ora, ora. Pelo menos dessa vez o próprio Conway vai me dispensar - resmungou Kyle. - Você tem razão. Ele não ousa mandar uma dama embora sem dar uma explicação.

O Sr. Conway se aproximou com um sorriso simpático.

- Sr. Bradwell. Sra. Bradwell. Infelizmente, o conde está doente demais para receber visitas. Lastimo dizer que ele piorou desde que o senhor esteve aqui na última
vez. Mas, naturalmente, darei qualquer recado, embora não garanta que ele vá entender tudo.


- Meu recado é para o conde apenas, quer ele esteja em boas condições ou não - disse Kyle. - Já que está piorando, insisto em vê-lo.

O sorriso do Sr. Conway perdeu a força.

- Eu também tenho um recado para dar pessoalmente - disse Rose. - Lorde Easterbrook me encarregou de transmitir suas palavras exatas a lorde Cottington.

- Lorde Easterbrook!

- É meu parente indireto. Vou regularmente à casa dele em Londres e ele aceitou incluir meu marido e a mim em seu círculo pessoal.

O Sr. Conway franziu o cenho, preocupado, ao saber disso.

- Temo que Easterbrook fique muito zangado se eu voltar a Londres dizendo que não consegui. O senhor parece um criado eficiente e bastante zeloso quanto ao conforto
de seu patrão, mas acho que terei de citar seu nome na minha triste história. Como deve saber, Easterbrook é um tanto excêntrico. Nunca se sabe o que vai fazer,
seja para favorecer ou prejudicar alguém.

Conway piscou com força ao ouvir a ameaça implícita. Rose deu o sorriso mais doce que conseguiu. Kyle ficou parado, mas ela notou um brilho em seus olhos demonstrando
que achara o discurso incrível.

Conway mordeu o lábio enquanto ruminava as ideias.

- Madame, perdoe. Não sabia do seu parentesco com o marquês. Mas lorde Norbury insistiu para que não permitíssemos que o pai ficasse agitado por receber visitas.

- Agitado? A sua presença o deixa agitado, meu caro senhor?

- Claro que não. Ele me conhece tão bem que...

- Então o Sr. Bradwell também não vai agitá-lo. O conde conhece meu marido tão bem quanto conhece o senhor. Mais até, eu diria. Transmitirei os cumprimentos de Easterbrook
e os deixarei a sós, para evitar qualquer agitação. Quanto a lorde Norbury, como não está em casa, a menos que o senhor o avise, ele não precisa saber da visita,
e dessa forma jamais precisará desperdiçar seu tempo avaliando se somos visitas que causam agitação ao pai.

Rose deixou que sua expressão e postura mostrassem que presumia ser atendida. O Sr. Conway pareceu aliviado com as justificativas que ela arrumara.

- Sendo assim... sim, levarei os senhores até ele. Tratando-se de visitas como os senhores, não se pode falar em agitação. Por favor, sigam-me, senhora. Sir.

Eles foram atrás do Sr. Conway, que se encaminhou para a grande escadaria. Kyle deu o braço à esposa e aproximou o rosto do dela.

- Não sabia que você tinha um recado de Easterbrook - murmurou. - Devia ter me dito.

- Tenho certeza de que ele gostaria de enviar saudações ao colega e votos de pronto restabelecimento.

- Fazemos parte do círculo mais íntimo de Easterbrook, é?

- Ninguém sabe se ele tem algum círculo além da família. Eu de fato visito Henrietta. Ele gosta muito de Alexia. Não creio que eu tenha exatamente faltado à verdade.

- Você não faltou à verdade. Você foi magnífica.

- É justo que você receba algum benefício deste casamento. Meus relacionamentos são o único dote que posso oferecer.

Ele apertou a mão dela.

- Hoje de manhã, a última coisa em que pensei foi nas vantagens que obteria dos seus relacionamentos.

A insinuação a agradou. Ecos dos tremores da noite, capazes de agitar almas, se manifestaram de seu jeito calmo e devastador. Ela se concentrou nas costas do Sr.
Conway para manter a compostura, mas só o mistério masculino ao seu lado chamava sua atenção. Imagens passaram, lindas, impressionantes, das várias maneiras como
ele a fizera conhecer o erotismo da intimidade do casal.

Seus últimos passos rumo aos aposentos do conde foram inseguros. Súbito, o rosto do Sr. Conway apareceu na frente dela.

- Por favor, aguardem aqui. Preciso anunciá-los e confirmar se pode recebê-los. Se não puder, tentaremos amanhã.

Conway entrou no quarto e voltou logo. Abriu a porta branca almofadada e deu passagem.

O conde estava sentado numa grande poltrona verde ao lado da lareira acesa. Mantas cobriam as pernas e os pés, que descansavam num suporte. A idade e a doença tinham
reduzido qualquer semelhança com o filho, exceto talvez por certo orgulho.

Os cabelos grisalhos do conde tinham sido cuidadosamente penteados e o rosto, muito bem barbeado. Apesar da doença, seu criado pessoal o arrumara com gravata e um
colete de seda colorido. Rose esperava que a parte escondida pela manta também estivesse apresentável num dia em que ele não esperava sair daquela cadeira.

O casal foi examinado por olhos bem mais argutos que os de Norbury. Surgiu um sorriso no rosto pálido. Que foi só de um lado da boca. O resto ficou flácido, consequência
das apoplexias que o conde sofrera.

- Bem, aproxime-se, Bradwell. Traga sua esposa aqui para eu vê-la.

A doença não afetara o tom de comando, apesar de ter enrolado as palavras.

Kyle conduziu Rose e fez as apresentações formais. O conde a olhou dos pés à cabeça.

- Conway disse que tem um recado para mim, Sra. Bradwell. De Easterbrook.

- Tenho, sim. O marquês envia seus cumprimentos e sinceros votos por uma pronta recuperação.

- É mesmo? Não vejo Easterbrook há anos. Desde que voltou tão estranho e diferente daquela viagem para Deus sabe onde. Não fui muito a Londres. Que generoso ele
se lembrar de mim e enviar cumprimentos.

O tom era sarcástico e os olhos, bastante espertos. Rose procurou não corar ao ver que ele tinha percebido o ardil facilmente.

- Leve uma resposta ao marquês, Sra. Bradwell. Faria isso por um velho moribundo?

- Claro, Sir.

- Diga que ele foge vergonhosamente aos seus deveres. Que está na hora de parar de ser excêntrico e participar do mundo. Precisa casar, ter um herdeiro e assumir
seu posto no governo. Aquela família é muito inteligente para desperdiçar isso e a vida não é para ser levada como se quer. Essa é a maldita verdade.

- Prometo que transmitirei sua opinião.

- Opinião? Diabos! Palavra por palavra, é como vai transmitir, sem suavizar nada, como fazem as mulheres - exigiu ele, e um riso rouco escapuliu. - Mas espere até
eu morrer. Se ele não gostar, pode se vingar no meu filho.

- Se devo esperar até que o senhor morra, garanto que vou demorar a cumprir essa obrigação. Com sua licença, sairei para deixar que meu marido fale com o senhor
a sós.

 

Cottington observou Rose sair do quarto. Fez um gesto para seu secretário.

- Pode ir. Se eu precisar de você, o Sr. Bradwell o chamará.

Assim que Conway saiu, o conde deu outra ordem.

- Tem conhaque naquele armário lá, Kyle. Sirva um pouco para mim e para você, se quiser. Eles não me deixam beber nada. Acham que devo enfrentar a morte completamente
sóbrio.

Kyle achou o conhaque e os copos, serviu um dedo para cada um. O conde bebeu como se fosse um néctar.

- É infernal ser tratado como criança. Agora estou melhor que há quinze dias. Passei uma semana precisando dos criados até para os cuidados de higiene mais elementares.

- Parece então que está se recuperando.

- Morro até chegar o verão, se não antes. Não preciso que o médico me diga. Eu sei. É estranho, mas a pessoa sabe.

Descansou o copo e usou um lenço para enxugar o conhaque que tinha escorrido no lado paralisado da boca.

- Linda a sua esposa. O bastante para fazer com que o resto não tenha muita importância, imagino. O irmão, coisa e tal.

- Quanto ao coisa e tal, obrigado pelo presente de casamento.

O conde achou graça.

- Meu filho vai ficar furioso. Seria melhor se você não se tivesse se envolvido desta vez. Azar. Seria melhor que não tivesse sido você a forçá-lo pela segunda vez
a encarar o próprio comportamento desonroso.

Apesar do riso, os olhos do conde mostravam muita tristeza. Piscou para afastá-la. Norbury era apenas mais uma decepção numa vida que, como todas, tinha várias.

- Quer dizer que veio até aqui para se despedir, não? Gostei.

- Sim, mas também trago um pedido, que não sabia que faria até que cheguei a Teeslow.

- Não posso fazer mais nada por ninguém.

Kyle falou sobre a mina. O conde ouviu, sério.

- Era uma rica jazida - disse ele. - Quiseram voltar alguns anos depois, eu impedi. Já tinha vendido quase tudo, mas minha opinião ainda importava. Às vezes, ser
conde ajuda. Meu filho não vai agir como eu. Mesmo assim, vou escrever e usar a minha influência, mas quando eu morrer...

Quando ele morresse, o desejo de lucro pesaria mais numa avaliação em que a vida dos homens valia pouco.

- Mesmo se demorarem alguns meses, vai dar tempo de se acalmarem - disse Kyle. - Os mineiros estão com os ânimos exaltados. Se houver uma voz forte, um líder, haverá
problema.

O conde suspirou e fechou os olhos. Ficou assim tanto tempo que pareceu ter caído no sono. Kyle tinha resolvido sair sem fazer barulho, quando o conde voltou a falar.

- Não vamos nos ver mais, Sr. Bradwell. Se quer perguntar alguma coisa, tem que ser agora. - Os olhos se abriram e o encararam. - Tem perguntas, não?

Kyle tinha várias. A mais recente, entretanto, não podia ser feita. Embora ela permanecesse em sua mente. Não podia perguntar a um moribundo se seu único filho tinha
sido pior quando menino do que quando adulto.

- Tenho uma pergunta.

- Pois faça.

- Por quê?

- Por que o quê?

- Fez tudo por mim. Por quê?

- Ah. Essa pergunta - falou o conde e parou para pensar. - Fiz, em parte, por impulso. Em parte, por instinto.

De novo aquele sorriso pela metade.

- Primeiro, eu sabia que, se você ficasse em Teeslow, os mineiros teriam uma voz e um líder dali a poucos anos, quando você ficasse adulto.

Kyle o observou, avaliando se o conde falava sério. Durante todos os anos em que trocaram generosidade e gratidão, nunca lhe passara pela cabeça que o conde tivesse
motivos ocultos. Principalmente, porque Kyle não achava que a generosidade pudesse trazer alguma vantagem para um conde.

- Bom, não foi só por isso. Lá, você seria desperdiçado. Percebi logo. Vi em seus olhos e em sua determinação. Naquele dia, quando você chegou todo limpo e arrumado,
vi o homem que um dia poderia ser. Já tinha ouvido falar em você. Soube do menino que sugeriu que cavássemos de cima para chegar àquele túnel quando ele desmoronou.

- Teria dado certo.

- Não interessa se eu achava que ia ou não. O simples fato de que um menino pensasse isso e ousasse propor... Trouxeram você até mim no dia seguinte ao que bateu
em meu filho, e a lembrança do administrador rindo daquela audácia veio à minha cabeça não sei como. Eu sabia que aquele menino tinha sido você. Sabia, mas, de todo
jeito, conferi.

Enxugou a saliva que se formou no canto da boca.

- Depois, aquela questão com meu filho. Lá estava você outra vez, ousando o que muitos homens não ousariam. Portanto, em parte fiz aquilo para você não ser desperdiçado.
E, em parte, para não se tornar um líder deles.

O conde fez uma pausa, então voltou a falar.

- Admito que, em parte, fiz também para castigar meu filho, favorecendo o menino que bateu nele. Claro que isso não adiantou muito. Como você sabe mais que qualquer
um, ele até hoje se comporta de maneira vergonhosa com as mulheres.

Era isso. Kyle já sabia quase tudo. A generosidade não tivera motivações totalmente caridosas, mas poucos atos ou decisões humanos tinham.

O rosto inteiro do conde perdeu a firmeza. Como se o dano do lado ruim invadisse o lado bom.

- O senhor está cansado, precisa repousar. Vou embora. Obrigado por me receber.

Antes que Kyle pudesse se afastar, o conde esticou a mão para ele. Kyle a segurou e, pela primeira vez, sentiu o cumprimento daquele homem como o de um amigo.

- Você não é pior por isso, não importa o motivo - disse o conde, com voz enrolada. - Mas imagino que, de vez em quando, deseje que eu não houvesse interferido.

- Se pesarmos as perdas e os ganhos, veremos que lucrei muito. Mas, sejam quais foram os seus motivos, agradeço. Jamais o esquecerei. Nem meus filhos e os filhos
deles.

O aperto de mão ficou mais forte. Os olhos do velho pareceram cobertos por uma fina película. Fechou-os. A mão caiu, depois subiu num gesto derradeiro de bênção
e despedida.

 

Quando saiu do quarto de Cottington, Kyle parecia calmo. Rose o deixou com seus pensamentos enquanto desciam a escada e saíam no frio.

Ele não entrou logo na carruagem; deu uma volta e olhou o lago. Ela o seguiu e esperou. Não estava se despedindo apenas de um homem. Com a morte de Cottington, uma
fase inteira de sua vida terminaria.

- Você veio aqui muitas vezes? - perguntou ela.

- Não muitas. Mas, quando fui embora para estudar, o conde mandava me chamar sempre que eu vinha para casa entre os períodos de aula. Na primeira vez, metade do
vilarejo seguiu o mensageiro até a casinha do meu tio: queriam saber o que estava acontecendo.


- O conde recebia você regularmente, portanto.

- Sim. Talvez fizesse parte do aprendizado.

- É mais provável que quisesse saber do seu progresso. E você trazia notícias de Durham, mais tarde de Paris e Londres. Garanto que a sua conversa era mais interessante
do que a da maioria das pessoas aqui do condado.

- Talvez.

Ele deixou a carruagem esperar enquanto caminhava pela propriedade.

Rose o acompanhou.

- Falou com ele sobre a mina?

Kyle concordou com a cabeça.

- Ele vai fazer o possível, mas, no máximo, a obra será adiada. Isso pode dar tempo para verem o que é mais seguro. Há como fazer isso.

Ele não parecia acreditar que fossem fazer o mais seguro.

- Acho que você fez tudo o que podia.

- Fiz?

Eles viraram e voltaram para a carruagem.

- Você está calado, Kyle. O encontro não foi bom? Não pôde falar o que queria?

- O encontro foi muito bom. Ele estava aberto a perguntas e respondeu tudo o que, em sã consciência, eu podia perguntar.

- Tinha alguma coisa que você não podia perguntar?

- Só uma. Eu queria saber, pois ele é a única pessoa que responderia honestamente. Mas, ao vê-lo... achei que o assunto só lhe traria tristeza e era só para satisfazer
a minha curiosidade.

- Se só restou uma pergunta entre os dois, o encontro foi muito bom. Acho que poucas pessoas que se conhecem têm apenas uma pergunta não respondida.

Kyle encarou a esposa. De repente, não estavam mais falando de Cottington, mas de si mesmos.

- Ele está morrendo, Rose. Não tem mais nada a perder por dar respostas. Não haverá orgulho ferido nem consequências ruins. Nem para quem pergunta nem para quem
responde.

Chegaram à carruagem. Ele ficou menos calado na viagem de volta a Teeslow.

- Você também está pensativa, Rose. Tem alguma pergunta?

- Tenho várias, mas não é por isso que estou séria. Penso se sobreviverei ao encontro com Easterbrook quando fizer a reclamação de Cottington.

 

A carruagem estava quase passando de Teeslow, quando Kyle reparou no silêncio. Tinha ficado tão perdido em pensamentos que o silêncio incomum não chamara sua atenção.

Mandou a carruagem parar. Olhou pela janela.

Rose também olhou.

- O que foi? Acho que está tudo calmo.

- Calmo demais. A essa hora, a estrada devia ter mais movimento. As mulheres deviam estar aqui.

Ele apurou os ouvidos, atento. Olhou para os telhados das casas e chalés. Onde estariam todos? Na mina? Era cedo demais para terem agido. Sobravam apenas a taberna
ou a igreja.

Abriu a porta da carruagem e saltou. Rose segurou a saia e estendeu a mão.

- Não, Rose. A carruagem vai levar você até Pru. Eu volto logo.

- Acha que haverá agitação? Perigo?

- Não, mas eu...

- Se não há perigo, não precisa me mandar para casa. Tenho curiosidade por esse vilarejo. Se vai fazer uma visita, quero acompanhá-lo.

Ele colocou o braço no batente da carruagem, impedindo que ela descesse.

- Nos últimos dias, você anda muito curiosa.

- É da natureza feminina. E descobri que satisfazer a curiosidade pode ser prazeroso.

Ela se referia à noite anterior. O que o deixou excitado. Ele ficou cheio de lembranças, de gritos implorando, de toques tímidos mas firmes, das costas dela abaixando
e das nádegas subindo. Das pernas envolvendo-o, ele se perdendo em sua calidez e os dois girando num abraço de corpos e olhares grudados.

As lembranças lhe deram vontade de beijá-la e de possuí-la bem ali, na estrada. Fizeram com que esquecesse todos os motivos por que ela deveria voltar para a casa
dos tios.

Com um olhar atrevido, ela o transformara num idiota.

- Pensa em me mandar para casa, Kyle? Então, devo avisar que os maridos têm um número finito de ordens a dar às esposas e seria tolice desperdiçá-las em bobagens.

Onde estaria sua dócil esposa? A noite anterior tinha mudado mais do que o calor e a intensidade da paixão deles. A formalidade sutil daquele casamento estava sumindo
rápido.

O olhar dela mostrava um claro desafio.

- Pode vir comigo, Rose, mas só se sair assim que eu mandar. Creio que não haverá agitação, mas posso estar enganado. Seria melhor você voltar quando...

Ela olhou para baixo.

Diabos.

Ele disse ao cocheiro onde aguardar e ajudou Rose a descer.

 

O vilarejo estava reunido na igreja. Ouviu as vozes enquanto ele e Rose se aproximavam da velha construção de pedra, com sua torre na fachada. Séculos antes, a igreja
fazia parte de um convento nas terras cedidas por um antepassado de Cottington. Até descobrirem carvão nos arredores, Teeslow tinha sido um simples vilarejo de agricultores.

- Os homens não deviam estar na mina agora? - perguntou Rose.

- Sim, trabalhando com as crianças maiores e até com algumas mulheres.

Kyle abriu a antiga porta de madeira e o rugido de uma discussão caiu sobre os dois. Entraram e ficaram nos fundos da nave. Poucas pessoas notaram a chegada deles.
Todas as atenções se concentravam nos homens que estavam na frente do altar. Jon estava lá, com os cabelos louros revoltos, tentando fazer prevalecer sua vontade.

Isso parecia impossível. As vozes se cruzavam e se interrompiam. Os ânimos estavam exaltados e agressivos. Gritos de incentivo e de mofa competiam.

- Não consigo nem entender o que está sendo discutido - cochichou Rose.

- Os mineiros receberam ordem hoje de tirar aquela pedra que caiu. Em vez disso, eles foram embora. Estão tentando decidir o que fazer amanhã.

- Pensei que você tinha dito que o túnel desmoronou ainda mais na última vez em que tentaram.

- Os donos da mina enviaram um engenheiro, que garantiu que não haverá outro desmoronamento.

Jon fazia com que algumas vozes atendessem ao seu pedido de não entrar na mina. Mas não era o suficiente, o que significava que não ia resolver nada.

As vozes chegaram até Kyle. Identificou quase todas. Conhecia aqueles homens e brincara com alguns deles nas estradas, quando menino.

Percorreu com o olhar as famílias presentes e parou numa bonita ruiva de pele clara, que segurava duas crianças pelas mãos. Fora com ela que trocara o primeiro beijo,
aos 14 anos.

Uma mulher bem mais bonita estava ao lado dele agora. Ninguém a havia notado ainda, mas notariam logo. A roupa que tinha impressionado Conway parecia ainda mais
luxuosa ali, com seu debrum de pele e seus bordados caros. O gorro que ela usava contrastava com os lenços que as mulheres tinham na cabeça. A pouca luz da velha
igreja parecia se concentrar nela, fazendo sua beleza loura irradiar.

- Temos de ir embora - disse ele.

- Se eu não estivesse aqui, você iria?

Ele não sabia. Aquele não era mais o mundo dele. Não era a luta dele.

- Vou embora se a minha presença comprometer o que você disser, se para eles eu provo apenas que você percorreu um longo caminho, saindo desse vilarejo - disse ela.
- Mas se só sirvo para lembrar o que perderia se falasse, então mais uma pergunta foi respondida, e da maneira que eu não esperava.

Roselyn se virou para o marido.

- Você ainda não é um estranho para eles, mesmo se eles forem cada vez mais estranhos para você.

A compreensão o emocionou. O fato de tentar entender o tocou profundamente.

Ele saiu do lado dela e procurou Jon. Como a cabeça dele estava acima das outras na nave, a voz chegou lá.

- Jon, você sabe que não está pronto para isso. Você disse ombro a ombro, mas parece que há ombros aqui que não ficarão ao seu lado.

O barulho diminuiu. Jon o viu.

- Temos aqui um cavalheiro para nos aconselhar. Trouxe sua elegante esposa. Que sorte a nossa de termos o conselho dele.

Kyle não olhou para trás, mas soube pelos murmúrios e exclamações que notaram a presença de Rose.

- Trouxe minha esposa para conhecer meus velhos amigos, Jon. Imagine a minha surpresa ao encontrar uma reunião política nesta igreja. O que esperam ganhar se ficarem
parados, a não ser muitas mulheres e crianças com fome?

- Menos corpos para enterrar.

- Falei hoje com Cottington. Ele vai escrever para os sócios. O túnel não será aberto enquanto ele estiver vivo.

- Você nos conseguiu alguns dias, talvez algumas semanas, nada mais.

- Já basta para garantir que, quando o túnel for aberto, será seguro.

Jon fez pouco.

- Seguro! Disseram hoje para retirarmos aquela pedra. Encontraram um engenheiro que garante que o túnel já é seguro.

- Então você precisa achar alguém que discorde. Alguém que não receba salário dos donos e que tenha estudos para basear suas conclusões.

Kyle foi até a frente da nave.

- Alguém como eu.

Jon consultou os quatro homens que o rodeavam. A igreja ficou num silêncio tenso enquanto eles discutiam.

- Você vai entrar lá? - perguntou o mais velho dos homens, com leve zombaria.

Chamava-se Peter MacLaran e era o radical dos tempos anteriores, que agora passava a coroa para Jon.

- Vai sujar seus casacos elegantes, meu senhor. E pode levar alguns dias. Perderia aqueles jantares finos em Londres.

O sarcasmo de Peter recebeu algumas risadinhas.

- Entro agora mesmo. Não será a primeira vez. Os casacos podem ficar aqui. Arrume umas botas emprestadas para mim e cinco homens que me acompanhem, e começamos hoje.
Não sairei de Teeslow enquanto não souber o que preciso. Se o túnel for perigoso, vou dizer num relatório. Se puder ficar seguro, vou mostrar como. Se, mesmo assim,
eles prosseguirem e houver outro desmoronamento, o relatório vai enforcá-los.

- Eles não vão permitir.

- O nome de Cottington vai me ajudar. Ele ainda não morreu.

Não esperou que Jon e Peter concordassem. Os gritos em volta mostravam que Kyle tinha vencido a discussão.

Ele voltou para onde Rose estava.

- Você deve voltar para Pru agora. Vou levá-la até a carruagem.

- Posso ir sozinha. Faça o que precisa.

Ele desabotoou os casacos, tirou-os e os entregou à esposa. Surgiu um menino trazendo um par de botas. Kyle sentou e as calçou. Cinco mineiros dos mais experientes
esperavam na porta da igreja, com lamparinas.

Rose segurou os casacos e olhou os preparativos. Ficou tão interessada que parecia assistir a um ritual em alguma terra exótica.

- Avise a Pru que vou precisar de muita água quente quando chegar em casa - disse ele.

Ela se esticou para falar no ouvido dele.

- Espero que precise de um bom banho. Talvez esteja tão cansado que eu tenha de ajudar.

Ele ficou excitado na hora. Lembrar-se da noite anterior, das noites por vir, daquele banho, só fez piorar as coisas.

Ele trincou os dentes, olhou para o chão de pedra e se controlou.

- Rose. Querida. Vou ficar horas num poço escuro. Isso foi maldade sua.

Ela nem fingiu constrangimento. Quando ele foi embora, Rose parecia bem satisfeita consigo mesma.


CONTINUA

CAPÍTULO 9

No centro financeiro da cidade, um empregado conduziu Kyle para uma sala sóbria que fazia parte de uma série de cômodos bastante apropriados a alguém como um advogado.
Kyle imaginou que houvesse um quarto ao fundo, atrás da porta fechada e em frente à janela veneziana de vidraça em semicírculo no topo.

A carta que ele tinha enviado a lorde Hayden motivara o convite para ir até lá. Aqueles cômodos davam a impressão de que seu anfitrião os usava não apenas para negócios.
Para encontrar mulheres, talvez, quando ainda era solteiro. Para tratar de assuntos pessoais, como os que deviam estar escritos nas folhas empilhadas na escrivaninha
perto da janela.

Lorde Hayden o cumprimentou. Sentaram-se em duas poltronas forradas de vermelho-escuro, perto da lareira.

A lembrança de seu último encontro particular era uma sombra sobre eles. Lorde Hayden Rothwell tinha ido à casa de Kyle, após um convite como esse de agora ter sido
recusado.

- A Srta. Longworth me pediu para falar em nome dela - disse lorde Hayden. - Disse que foi você quem sugeriu esse arranjo.

- Ela foi pouco prática em não dar importância aos termos financeiros quando avaliou minha proposta de casamento.

Lorde Hayden se estirou na poltrona como se uma conversa amena fizesse parte do ritual do acordo.

- Não a conheci antes da falência do irmão. Ela me culpou por isso e, embora agora saiba a verdade, ainda há muita formalidade entre nós. Conheci bem o irmão mais
velho, mas não as irmãs.

- O irmão mais velho era Benjamin, que morreu há alguns anos.

Lorde Hayden ficou sério, assumindo a máscara que costumava exibir para o mundo.

- Minha esposa disse que a prima mudou muito há um ano. E que aquele caso com Norbury foi fruto da má avaliação de uma mulher em profunda melancolia. A negligência
em relação aos termos financeiros de seu pedido certamente também é um reflexo de seu estado de espírito.

- Então é melhor cuidarmos do assunto por ela. Seu estado de espírito pode estar mudado, mas não é melancólico. Não estou me aproveitando de uma mulher incapaz de
tomar decisões sensatas.

- Eu não quis dizer que estivesse. Mesmo se estivesse, essa chance que ela terá... Ficarei feliz por ela poder voltar a ter contato com minha esposa.

Para alguém que ficaria feliz com algo naquele casamento, lorde Hayden estava demorando a negociar os detalhes.

- Não esperava fazer agora o papel de pai em acertos de casamento, e não me sinto muito à vontade, Bradwell. Infelizmente, sei mais do que gostaria e sou forçado
a tratar de mais que meros trocados.

- Espero que acredite que minhas intenções são honradas.

- Não estou preocupado com isso e acho que você sabe.

Claro que Kyle sabia. Só não sabia qual papel lorde Hayden iria assumir.

- Ela comentou dos delitos cometidos por Timothy? Se não comentou, não a culpo - disse o lorde.

- Ela foi muito sincera e insistiu que eu ouvisse tudo.

- Corajosa.

- Acho que ela pensou que eu retiraria o pedido quando soubesse, portanto foi bastante corajosa.

Na verdade, ele achava que ela esperava que retirasse e a poupasse de tomar uma decisão. Ela não confiava mais na própria cabeça.

- Foi tão sincero quanto ela?

- Eu disse que sabia o que o irmão tinha feito e que conheço uma das vítimas dele.

- Diabos, você foi uma das vítimas, também teve prejuízo.

- Só porque assumi a dívida. Podia ter escolhido outras saídas.

Na verdade, Kyle só tinha uma. Aquela que estava conversando com ele no momento. Ou ele ressarcia o dinheiro tirando do próprio bolso ou deixava o fundo zerado.
E isso ele não podia fazer.

- Ela sabe que você não quis ser ressarcido?

- Não. Acha que devo contar?

- Não sei que diabos eu acho.

Lorde Hayden se levantou. Com os lábios apertados e o cenho franzido, andou pela sala com a mesma dúvida que atormentara Kyle várias vezes nas últimas semanas.

- Ela planejava encontrar o irmão - informou Kyle. - Recebeu outra carta dele, pedindo para encontrá-lo.

- Maldição - rosnou lorde Hayden e balançou a cabeça. - Mas, se você não a está enganando, não está sendo totalmente sincero.

Mais um pedido de honestidade total, como se isso fosse não só possível como normal.

Faria negócios com aquele homem no futuro. Não queria que lorde Hayden pensasse que ele era um mentiroso ou um canalha. Tentaria explicar, embora quase nunca se
explicasse a ninguém.

Levantou-se também e andou pela sala enquanto pensava o que dizer. Os passos o levaram para perto da escrivaninha. Deu uma olhada nas folhas soltas. Estavam cheias
de números e anotações. Era ali que lorde Hayden fazia os estudos matemáticos pelos quais diziam que era apaixonado.

- Diga, lorde Hayden, o que todo mundo deduziria se soubesse do delito de Longworth e a irmã fosse encontrá-lo?

- Mas não é todo mundo que sabe.

- Vai saber. Um dia. É inevitável. Muita gente foi prejudicada e o fato não vai continuar em segredo.

A segurança dele assustou lorde Hayden.

- Todos foram ressarcidos, ora - argumentou, mas, olhando para Kyle, completou: - Menos você.

- Foram ressarcidos do dinheiro, mas não da ofensa. Você avaliou mal.

Lorde Hayden não gostou dessa hipótese. Um suspiro de frustração mostrou como era desgastante aquela conversa sobre Longworth.

- Se Roselyn estivesse com ele quando isso acontecesse, certamente seria considerada cúmplice.

- Concordo. Portanto, devo contar tudo a ela? Se contar, se ela souber do meu envolvimento, pode mudar de ideia quanto ao casamento. Pode correr para o irmão, seja
para salvá-lo, ajudá-lo, ou para fugir da própria vergonha. Ela sabe que esse segredo não vai durar muito, mesmo que você discorde.

Lorde Hayden olhou Kyle com atenção, um olhar parecido com o que Easterbrook lhe dedicara.

- Foi por isso que você recusou o dinheiro? Por orgulho, como os outros homens que citou?

- O delito não foi seu. Por que deveria pagar? E também pagou caro. Uma quantia enorme por algo de que não tinha culpa. Se eu aceitasse o seu dinheiro, seria ressarcido
às custas de outra vítima, nada mais.

- Uma vítima por opção, o que é diferente. Acho que, no fundo, foi orgulho.

A arrogância de lorde Hayden incomodou Kyle. Fez um gesto mostrando a sala.

- Nenhuma conspiração financeira foi elaborada aqui nos últimos tempos. Nenhuma associação de empresas se formou aqui. Você continua na mesma casa, que é modesta
para os padrões de Mayfair. Mesmo você sentiu o baque de pagar todo aquele dinheiro. Eu devia desfalcá-lo em mais 20 mil? Concordar com o suborno que você me propôs?

- Suborno? Maldição! O seu bolso não seria prejudicado pelo delito de Timothy, só isso.

- Você não restituiu o dinheiro para eles apenas, exigiu que esquecessem a trapaça. Silêncio em troca de dinheiro foi parte do acordo. Seria bom se cada pecador
tivesse um anjo como você para defendê-lo.

Ele esperou que houvesse uma contra-argumentação, até raivosa. Mas lorde Hayden passou a mão na testa e falou, resignado.

- E quando acontecer justamente o que espera, Bradwell? A Justiça vai exigir que ele pague com a vida. Se esse dia chegar, o que você vai dizer a ela?

- Esse sofrimento a espera, quer ela se case comigo ou não. Se esse dia chegar, vou protegê-la e consolá-la da melhor forma possível.

Lorde Hayden pensou nisso um bom tempo. Depois, foi até a escrivaninha e fez um gesto indicando que Kyle o acompanhasse.

- Vamos preparar os papéis para os advogados. Eu concordaria mais com esse casamento se você tivesse aceitado seu dinheiro de volta. Mas aquele lamentável episódio
já prejudicou as irmãs Longworth demais. Talvez depois do casamento isso pese menos sobre o futuro de Roselyn.

 

- Como está crescida, Srta. Irene - disse o Sr. Preston, com um sorriso. - As mulheres do vilarejo vão passar dias comentando seu gorro.

Irene sorriu enquanto o Sr. Preston contava o dinheiro de Rose e embrulhava os mantimentos que ela comprara.

Ela estava crescida mesmo, pensou Rose. Alexia tinha dado a ideia de apresentar Irene à sociedade na próxima temporada. Estava na hora, sem dúvida, levando em conta
a idade dela, mas talvez fosse cedo demais, considerando outras coisas. Nem seu casamento amenizaria o escândalo a tempo de Irene ser bem recebida na atual temporada.

A ideia de que Irene poderia ter um futuro melhor ajudava Rose a ficar mais calma em relação ao casamento que se aproximava. A ausência de Kyle na última semana
contribuíra para deixá-la agitada. Fora passar o Natal no norte, com os tios que o criaram.

A ausência dele significava que ela podia se concentrar nos preparativos, mas a cada dia tinha mais certeza de que não conhecia o homem com quem ia se casar.

- Estamos todos aguardando o grande dia, Srta. Longworth - disse o Sr. Preston com um sorriso largo. - Permita-me dizer que todos os que conheceram o Sr. Bradwell
no mês passado, quando esteve no vilarejo, exaltaram suas boas maneiras e sua simpatia.

- Obrigada. Espero que o senhor e sua esposa nos deem a honra de sua presença.

- Minha esposa não perderia a festa. Ela sempre diz que certas pessoas se precipitam em acreditar no pior. Ficou triste com a maneira como alguns...

Ele interrompeu a frase de repente e lançou um olhar expressivo na direção de Irene. Os olhos dele se desculpavam por se referir ao escândalo na frente da moça.

- Fico agradecida por sua esposa ter me defendido, Sr. Preston. Tenha um bom dia.

Ela e a irmã mais nova saíram da loja. Irene seguia bem perto dela, com seu marcante gorro de seda encorpada.

- Você acha que o vilarejo inteiro concorda com o Sr. Preston?

- É pouco provável que a Sra. Preston deixasse o marido ser tão simpático se todo o vilarejo discordasse.

- Então, parece estar acontecendo o que Alexia esperava.

- Aqui, sim. Mas Watlington é uma coisa e Londres será outra.

- Acho que em Londres não vai ser ruim. Easterbrook vem ao seu casamento. Quando os jornais publicarem isso, ninguém vai dar atenção às más línguas.

- Como as más línguas gostam muito de falar dele, não acredito que sua presença ajude tanto.

Realizar o casamento no interior tinha sido ideia de Kyle, não de Alexia. Lorde Hayden então oferecera a casa do irmão em Aylesbury Abbey, mas Kyle dissera que preferia
a dos Longworth. Iam se casar na paróquia da infância dela, entre pessoas que a conheciam desde menina.

Rose agora entendia a esperteza disso. Kyle conhecia os moradores de um vilarejo melhor do que um irmão de marquês poderia. O dinheiro que a família gastaria nos
preparativos e a festa aberta a todos os moradores ajudariam mais a criar uma visão favorável sobre aquele escândalo do que dez anos de vida honesta.

Rose e Irene seguiram pela estrada do vilarejo, cumprimentando vizinhos e parando para algumas moças poderem admirar o lindo gorro de Irene. Compraram algumas fitas
e tecidos antes de voltarem para casa.

Muita agitação as aguardava lá. Três carroças cheias de móveis enchiam a entrada da casa. Um exército de criados passava carregando coisas enquanto Alexia ficava
de sentinela na porta da frente, segurando uma grande folha de papel.

- Isso vai para a biblioteca - disse ela para dois homens que carregavam um grande tapete.

- O que você está fazendo? - perguntou Rose, afastando-se para o lado de forma que um guarda-roupa enorme pudesse passar.

- Para o quarto no lado sul - Alexia orientou os três homens que aguentavam o peso do guarda-roupa, depois se dirigiu a Rose: - Você não pode dar uma festa de casamento
numa casa que não tem cadeiras.

- O móvel que passou agora não era cadeira.

- Nem tente ser orgulhosa. Não ouse. Hayden disse que você não aceitaria isso, e não vou deixar que confirme que ele estava certo. Já estou bastante irritada por
ele ter me convencido a esperar tanto para fazer isso. Se viesse um mau tempo, você daria uma festa numa casa vazia na semana que vem.

Um homem passou carregando uma arca nas costas, com muito esforço. Ela deu uma batidinha com a folha de papel no ombro dele.

- Meu bom homem, da próxima vez, espere ajuda. Assim você nem enxerga para onde vai.

- Sou forte, madame. É preciso mais que isso para me derrubar.

- Com certeza, mas se virar para o lado errado, vai arrancar pedaços das paredes. Não temos tempo para refazer o reboco. Escute, Rose, o sótão da casa de Aylesbury
Abbey está cheio de móveis que jamais são usados. É um pecado esse desperdício. E não é presente de Hayden. A casa e tudo o que tem dentro não são dele.

Irene concordou com a cabeça.

- É verdade, Rose. É tudo de Easterbrook.

Uma fila de cadeiras passou por Rose.

- Alexia, o marquês a autorizou a esvaziar o sótão?

Alexia contou o número de cadeiras e consultou o papel.

- Só descobri a quantidade de coisas que havia lá nessa última visita. Mas, na última vez que o vi, conversamos sobre o seu casamento. Comentei que queria ajudar
nos preparativos e ele disse que eu podia usar os criados da casa de Aylesbury e tudo o mais que precisasse - explicou ela e sorriu. - Isso aqui é o "tudo o mais".

Rose imaginou o marquês na casa dela, sendo sarcástico quando não estivesse calado, ao ver aqueles móveis que pareciam bem conhecidos. Depois do casamento de Alexia,
Rose só encontrara o marquês duas vezes; achava-o enigmático e mal-humorado, alguém que poderia se beneficiar bastante do ar puro do campo.

- Bem, ele pode mudar de ideia sobre vir ao casamento - murmurou ela, desejando que não viesse, ainda que a presença dele pudesse contribuir para sua redenção.

Os moradores do vilarejo iam se ocupar tanto em bajulações e em tentar impressionar o marquês no dia do casamento que ninguém ia se divertir.

- Ah, ele virá - disse Alexia. - A tia, Henrietta, ficou dizendo que não viria e ele exigiu que o acompanhasse. Ele agora vai se arrastar de Londres até aqui nem
que seja só para aborrecer a tia.

Irene fez uma careta.

- Ela vem?

Rose seguiu pelo caminho dos carregadores.

- Gostaria de saber se ela algum dia olhou o que tinha naqueles sótãos.

- Suponho que Henrietta inventariou os bens de Easterbrook até o último travesseiro, desde que passou a morar com ele na primavera passada - disse Alexia.

- Então é possível que eu a veja na minha festa de casamento. A cada cadeira e mesa que ela vir, vai levantar as sobrancelhas até juntá-las com a linha dos cabelos.

Alexia e Irene se puseram ao lado dela e seguiram com o fluxo de móveis.

Deixaram os homens se ocuparem de colocar os móveis nos cômodos conforme os desenhos que Alexia tinha feito, e Rose levou a irmã e a prima para o andar de cima,
até o santuário de seu quarto.

A porta do sótão estava aberta. Ela deu uma olhada e viu móveis antigos da casa empilhados. Estranhou que algumas peças estivessem ali.

Em vez de ir para o próprio quarto, ela entrou no quarto sul. Era o maior de todos. Os móveis antigos tinham sido substituídos por outros, trazidos por Alexia. Uma
cama grande aguardava os lençóis e o guarda-roupa recém-chegado brilhava encostado a uma parede. Um toucador masculino estava pronto para receber escovas e objetos
pessoais.

Ela olhou para Alexia, cujo rosto refletia seu senso prático e sua firmeza.

- Está na hora, Rose. Ben já se foi há anos - disse Alexia. - Esta casa em breve terá outra vida e outro dono, e este quarto tem que ser dele.

Rose deu uma olhada no quarto, que estava diferente agora, com objetos estranhos que logo seriam de uma presença estranha. Seu coração se apertou com o aspecto decisivo
que a mudança feita por Alexia representava.

Irene mordeu o lábio inferior.

- Ela tem razão, Rose. Acho que em poucos dias você não vai mais se importar.

Rose pôs o braço no ombro de Irene.

- Não me importo, querida. Alexia está certa. É hora de seguir em frente.

Rose tirou Irene do quarto. Alexia olhou para a prima mais velha quando as duas passaram. O olhar que trocaram foi parecido com o do dia em que se viram na casa
de Phaedra.

Às vezes não havia mesmo escolha. Às vezes só havia uma decisão, uma única coisa possível a fazer, se você quisesse uma chance de ser feliz.

 

CAPÍTULO 10

Na manhã do casamento, Jordan insistiu em arrumar o patrão. Chamou os criados da hospedaria Knight's Lily, em Watlington, e deu ordens como um marechal de campo.
Mandou trazer o café da manhã, preparar o banho e pediu mais toalhas, mais água quente ainda e convocou um assistente enquanto manejava a navalha.

Kyle obedeceu e achou que os criados da pousada não se incomodaram com os mandos. Aquilo lhes dava a chance de participar do casamento que deixara o vilarejo inteiro
alvoroçado.

Enquanto isso, Jordan informava dos preparativos que tinha feito na casa em Londres da futura Sra. Bradwell.

Finalmente, ficou tudo pronto. Jordan ajeitou um colarinho, alisou uma manga de camisa e recuou para dar uma olhada.

- Pronto, e ainda falta uma hora. O colete foi uma ótima escolha, senhor. O leve toque de rosa-escuro no cinza está perfeito, com o azul suave da sobrecasaca.

- Já que você escolheu o colete, é bom que aprove. Ainda acho que um cinza mais claro seria melhor.

- É seu casamento, senhor. Um toque alegre no traje, um toque mínimo, devo dizer, é não só apropriado como esperado - argumentou e, tendo guardado o que restava
de seu arsenal, fez uma reverência para se retirar. - Permita-me dizer, senhor, que está numa elegância como nunca vi. É um privilégio servi-lo neste dia tão feliz
- arrematou.

Kyle olhou no espelho a ótima imagem que o tempo, a experiência e Jordan tinham conseguido formar. Sem dúvida, Kyle se sentia mais elegante, correto e apresentável
que em anos. Lembrou-se do dia em que a tia o arrumara com todo o capricho para ir a Kirtonlow Hall pela primeira vez, a pedido do conde de Cottington. Naquele dia,
ele também ficara pronto uma hora antes e tivera de ficar sozinho e quieto para não suar e estragar a roupa.

Olhou pela janela a rua do vilarejo. Viam-se poucas pessoas. Como ele, estavam todos se arrumando para uma cerimônia e uma festa mais grandiosas do que quaisquer
outras que tivessem visto em anos.

Naquele dia, quando criança, ele imaginara que, na melhor das hipóteses, o conde lhe daria uma bronca e, na pior, uma surra de chicote. Em vez disso, Cottington
tinha mudado a vida dele.

Mudado para melhor, claro. Só um idiota ou um ingrato não reconheceria. Então, ao olhar Watlington pela janela, sentiu uma inesperada falta de Teeslow, seu vilarejo.

Seria bom ter alguns rostos conhecidos no casamento, só que estavam todos longe, tanto no tempo quanto na distância. A generosidade de Cottington o tinha arrancado
daquele mundo, mas não encontrara outro onde colocá-lo.

Ele tinha criado uma espécie de círculo de amigos e sócios, mas não era a mesma coisa. Não pertencia mais a lugar algum, já fazia algum tempo. Sua vida parecia uma
videira com os ramos se distanciando cada vez mais das raízes.

Aquele casamento também não mudaria nada. Ele ficaria à margem do mundo de Roselyn, não dentro. Escolhera a esposa com toda a consciência disso. Sabia o que ganhava
e o que jamais teria, de uma forma que nem Rose entendia.

O olhar bateu na valise de viagem. Enfiada nela, estava uma carta que Jordan tinha trazido de Londres. Durante a visita de Kyle ao norte, o conde estivera muito
adoentado para recebê-lo, mas tinha conseguido mandar conselhos e cumprimentos pelo casamento e dito que recomendara ao advogado que lhe enviasse um presente.

O conde não estaria lá. Nem a tia Prudence e o tio Harold, que não conseguiram disfarçar o susto ao saberem da mulher que o sobrinho tomaria por esposa, quando ele
lhes contou na visita de Natal. Harold estava doente demais para viajar, mas os tios nunca fariam uma viagem assim no inverno. Os outros amigos que fizeram parte
de sua juventude também não iam festejar com ele e só uma pessoa de seu vago mundo atual estava em Watlington.

Kyle foi procurá-lo.

Entrou no quarto de Jean Pierre, que estava em frente ao espelho, colocando a gravata. Depois de Jean fazer algumas dobras e acertos no tecido, Kyle viu de perfil
o amigo assentir, satisfeito. Ele se virou e olhou para o noivo.

- Mon Dieu, por que os homens sempre parecem a caminho da guilhotina no dia do casamento? - falou, passando a mão numa garrafinha que estava no toucador e arremessando-a.
- Um gole, não mais. Seria grosseiro estar bêbado, embora fosse menos doloroso.

Kyle riu, mas tomou um gole mesmo assim.

Jean Pierre mexeu mais um pouco na gravata.

- Esse Easterbrook não me impressiona, mas, oui, de qualquer forma estou sendo um idiota. Tento me convencer de que meu cuidado com o traje não é por causa dele
e seu título importante. Os criados disseram que sua noiva é linda. É ela que quero impressionar, não ele.

- Por quê? Ela é minha noiva.

Um riso. Um suspiro.

- É bom que você se case. Você nunca achou graça nessa brincadeira. Algumas visões suas são... simplórias.

- Muito simplórias.

A voz dele soou mais perigosa do que ele pretendia. Muito perigosa.

- Espero que não se torne um daqueles sujeitos enfadonhos que ralham quando alguém elogia sua mulher. Ninguém colhe todas as flores que cheira.

- Elogie quanto quiser, mas sei muito bem o que você faz com as flores. Tenho certeza de que sabe que é melhor não brincar no meu jardim.

- Mon ami, você tem que aceitar que haverá flerte no ambiente que ela frequenta, e não ser idiota...

- Não preciso que me ensine nada. Sei de tudo isso. Estou apenas dizendo que você não vai arrancar, cheirar, nem mesmo passar por nenhuma cerca-viva.

- O nervosismo do dia já está afetando a sua cabeça. Ainda bem que estou aqui para ajudar. Acho que precisa de mais um gole dessa bebida. Depois jogaremos baralho
até a hora do casamento, assim você fica calmo e não fala feito um idiota.

- Estou bem tranquilo. Sereno como um lago num dia sem vento. Diabos, nunca estive tão calmo.

- Claro. Agora, mais um gole. Ah, bon.

 

- A carruagem de Aylesbury já passou.

A informação foi dada por um criado que ficara de sentinela na estrada. Alexia se levantou e sorriu ansiosa para Rose.

- Agora podemos ir.

Rose olhou para seu vestido. Não era novo. Tinha ficado escondido um ano, desde a época em que Tim vendera tudo o que encontrava. Irritada e de forma egoísta, ela
escondera alguns de seus melhores trajes, na esperança de ter motivo para usá-los de novo. Alexia a ajudara a reformar o vestido, assim não dava para perceber que
era usado.

Rose estava contente de, nesse dia, usar roupas que eram dela. Quase nada na casa era. Até a comida que estava sendo preparada na cozinha pelos criados de Aylesbury
não era dela. E Kyle tinha enviado os barris de cerveja e vinho. Ela se sentiria mais estranha ainda se usasse um dos vestidos de Alexia.

Saíram todos em direção às carruagens que os aguardavam. Lady Phaedra e lorde Elliot tinham vindo participar desse cortejo, em vez de seguirem com Easterbrook. Ela
ficou emocionada com o comparecimento de toda a família de lorde Hayden. Mostravam que a protegiam, graças ao amor que tinham por Alexia.

Alexia, Irene e lorde Hayden iam com ela numa pequena carruagem aberta. Ao chegarem ao vilarejo, não viram ninguém nas ruas. Todos estariam na igreja. Muitos se
aglomeravam do lado de fora porque na velha construção medieval de pedra não havia espaço para todos.

Quando Rose entrou na igreja, sentiu a mudança da luz e da temperatura. Ficou zonza. Tudo se tornou irreal, como imagens de um sonho.

Captava a cena ao redor ao ritmo do sangue que pulsava em sua cabeça. Sorrisos, murmúrios, mulheres apontando os trajes elegantes das damas, rostos que faziam parte
da vida inteira dela olhando... uma caminhada, longa e escura em direção ao altar.

Kyle a aguardava. A seu modo, estava lindo. O leve sorriso que ele dava para apoiá-la fazia o mundo voltar um pouco a seu lugar, mas não totalmente. Ela disse palavras
que pareceram muito distantes. Palavras sérias, votos e promessas, que a uniram irreversivelmente a alguém.

Sentiu-se tomada por uma súbita alegria quando percebeu que havia terminado. Teve a impressão de pairar no ar, impressionada com a própria coragem. Ao mesmo tempo,
temia que, a menos que surgissem anjos para segurá-la no voo, pudesse se esborrachar no chão do vale.

Viu-se de novo na carruagem aberta, agora ao lado de Kyle. Os moradores do vilarejo seguiam a pé ou em carruagens, todos para a casa.

Kyle segurou a mão dela. Aquele gesto a arrancou do devaneio. O sentido do que tinha acontecido se revelou de forma tão concreta que ela mal conseguiu acreditar.

Olhou o perfil do homem que agora era seu marido e senhor. Dele, conhecia apenas duas partes, a de salvador e pretendente. De resto, continuava sendo um estranho
em quase tudo.

 

Kyle observava a festa animada que lotava a casa de Rose. Os convidados mais importantes tinham se sentado para um café da manhã de núpcias, enquanto os moradores
do vilarejo andavam pela sala e a biblioteca e se espalhavam pelo jardim e o terreno. Agora todo mundo se misturava no aperto dizendo votos de felicidade para Rose,
que estava a poucos metros dali.

Kyle não olhava muito para ela. Não ousava. Quando olhou, viu detalhes que fez seu corpo se empertigar. A linha do pescoço, elegantemente debruçada numa conversa,
tinha fios de cabelo esparsos que pareciam seda. Os lábios, como um veludo para beijar, curvavam-se num sorriso sereno.

O vestido era de um tecido marfim macio que modelava o corpo de maneira que o fazia relembrar os seios que tinha acariciado. Pensou em como seria tirar aquele vestido
dali a pouco e no resto, a pele perfeita dela tocando seu corpo inteiro.

Ela percebeu o olhar dele. Deve ter concluído o que ele pensava, embora Kyle duvidasse que ela pudesse adivinhar os detalhes eróticos. Ela corou e voltou a conversar
com o convidado.

Ele se obrigou a prestar atenção na festa para se distrair. Observou Easterbrook chamando a atenção em frente à cornija da lareira. Os moradores do vilarejo se aproximaram
com deferência e receio, não só por ele ser um marquês.

O comportamento dele não incentivava aproximações. A aparência excêntrica tinha sido de certa maneira amenizada. Surpreendentemente, usava trajes conservadores e
os cabelos compridos tinham sido presos num rabo. Mas ele olhava de cima, satisfeito com os resultados de sua caprichosa intromissão.

Um riso de mulher desviou a atenção de Kyle. Perto, num canto da sala, Jean Pierre atraía Caroline, a jovem prima de Easterbrook. A linda moça enrubescia com a atenção
dele.

A mãe, lady Wallingford - tia Henrietta, para a família -, incentivava Jean Pierre a flertar mais um pouco. Pálida como a filha e enfeitada com um chapéu incrível
pelo excesso de plumas, a lady tinha um jeito alienado, com aquela expressão ausente, etérea. Segundo Rose, o rosto ingênuo escondia a sagacidade de uma mulher decidida
a ficar para sempre na casa de Easterbrook, depois de finalmente conseguir se acomodar nela no ano anterior. Os boatos diziam que o recluso marquês tinha cada vez
menos paciência para a intrusão da tia e da prima.

Dali a pouco, Jean Pierre pediu licença às duas damas e foi abrindo caminho até chegar onde Kyle estava.

- Jean Pierre, a respeito daquelas flores... lorde Hayden é o protetor de uma das que você cheirava há pouco. Olhe para ele. Quer ter esse homem como inimigo?

Jean Pierre procurou lorde Hayden com o olhar.

- Acho que ele não vai se incomodar.

- Ele não terá como não se incomodar. Ela é inocente.

- Eu não cheiro inocentes - garantiu ele, e olhou para Henrietta e Caroline. - A menina não me interessa. Lady Wallingford deve ter, no máximo, 30 e poucos anos.
Você vê uma matrona que usa chapéus horrorosos. Eu vejo uma mulher com uma beleza oculta e etérea que, meu nariz tem o prazer de informar, não se oporia a uma pequena
sedução.

Não adiantava tentar dissuadir Jean Pierre dessa conquista. Kyle imaginou que lorde Hayden não causaria um duelo em nome da virtude da tia.

De repente, a festa pareceu mudar. Acalmou-se. As pessoas se afastaram para formar um corredor. O marquês passou no meio, sorrindo de leve, afavelmente, para a direita
e a esquerda.

- Finalmente - resmungou Jean Pierre. - Agora é só esconda a cerveja e o vinho e todos os demais vão embora também.

Sim, finalmente.

Rose fez uma reverência quando Easterbrook se despediu dela. Kyle também fez uma reverência e torceu para que nada tirasse o homem de seu curso. Ninguém iria embora
antes dele.

A tia do marquês se sentiu na obrigação de acompanhá-lo. Em pouco tempo, os irmãos dele também se foram. A festa começava a acabar.

Kyle se imaginou colocando todos porta afora, os moradores do vilarejo e os criados, todo mundo. Teve de se esforçar para controlar a impaciência.

Uma coisa era desejar Rose antes. Mas desejá-la hoje, agora, quando sabia que poderia possuí-la, estava sendo uma tortura.

 

Fazia tanto tempo que Rose não tinha uma criada que ficou sem saber o que fazer com a mulher. Por sorte, a criada que Alexia arrumara não precisava de ordens. Com
gestos eficientes e de olhos baixos, preparou Rose para a noite de núpcias.

A casa agora estava quase vazia. Só ficaram o marido e a esposa, o criado pessoal de Kyle e a criada que arrumara Rose. Dali a pouco os dois últimos iriam desaparecer
em outros cômodos do andar superior.

As últimas horas tinham sido difíceis. A aproximação daquele momento tinha surtido efeito sobre cada minuto e cada segundo delas. Tanto Roselyn quanto Kyle não disseram
nada, nem mesmo na longa caminhada que fizeram enquanto os criados de Aylesbury limpavam a casa, tirando os pratos e os barris de vinho. A noite que estava para
chegar fora um manto invisível cobrindo cada instante e transformando cada olhar e cada toque.

Ela dispensou a criada e se empertigou. Não estava com medo. Nem um pouco. Estava nervosa, preocupada e curiosa, mas não com medo.

Passou a mão pelos cabelos, que tinham sido escovados e estavam soltos. Conferiu a camisola, quase recatada com suas mangas compridas e a gola alta franzida. Olhou
para a cama, que os aguardava com o lençol aberto. A vida inteira, ela vira a cama naquele mesmo lugar.

Não tinha certeza se queria que as coisas se passassem naquela cama. Não sabia nem se queria que fossem naquele quarto.

Ali ela havia sido uma criança feliz e uma garota cheia de esperanças. Ali chorara a morte dos pais e a de Benjamin; sofrera com a falência do irmão e a dela própria.
Aquele quarto continha toda a sua história, o bom e o ruim, e ainda guardava ecos de sonhos juvenis jamais realizados.

Se Kyle entrasse ali agora, ela não conseguiria voltar ao quarto sem que a presença dele influenciasse todas as lembranças.

Mudasse. Talvez até ofuscasse. A partir de agora, sua vida mudaria sob vários aspectos. Ela podia ao menos conservar aquele canto de seu antigo mundo.

Jogou um xale sobre os ombros. Pegou uma vela acesa e saiu de mansinho do quarto. Prestou atenção em sons vindos do quarto sul para saber se Jordan ainda estava
servindo o patrão.

Nenhuma voz, nenhum barulho. Entreabriu a porta e olhou.

Jordan não estava lá. Só Kyle. Ao lado da lareira, imerso em pensamentos que endureciam suas feições. Dava a impressão de que aquelas reflexões o tinham desviado
de seus preparativos. Ele estava nu da cintura para cima, mas ainda de calças.

Ao vê-lo assim, ela se assustou. O homem escondido por aquelas roupas elegantes agora estava exposto, de uma maneira não apenas física. Um cavalheiro podia praticar
boxe ou esgrima durante meses e não conseguir a força contida e autêntica que ele revelava. Não era tanto a altura e o corpo que ele tinha, embora a musculatura
firme e definida acentuasse o efeito. Era mais algo que vinha de dentro e não tinha explicação.

Ela teve noção de que estava vendo algo que ele não mostrava ao mundo. Escondia atrás da fala educada e das maneiras polidas, mas devia estar sempre nele. Rose havia
percebido desde o começo. Tinha sentido os efeitos tanto de formas sutis quanto fortes. Era essa força que a excitava e a fazia sentir-se ao mesmo tempo segura e
temerosa.

Ele se virou como se ouvisse o som vindo da porta, embora ela mal respirasse. Olhou-a por inteiro: o xale e a camisola, a vela e os cabelos.

- Eu já ia ao seu encontro - disse ele.

- Pensei em vir encontrá-lo. Você se importa?

- Claro que não.

Ela se aproximou e colocou a vela no toucador.

- Você estava tão absorto. No que pensava tanto?

- Em algo que aconteceu há muito tempo. Tinha até esquecido, só lembrei agora.

- Uma lembrança ruim?

- Sim.

- Então, ainda bem que entrei.

Ela ficou constrangida com o olhar dele. Talvez, vindo até ele ao invés de esperá-lo, tivesse criado uma expectativa de que faria algo mais.

- Ele machucou você?

A pergunta foi feita com tanta calma que ela levou um instante para entender. Ficou triste por ele falar em Norbury logo naquela noite.

- Pensei que jamais fosse falar...

- Ele machucou? Só pergunto por causa de agora e do que vamos desfrutar daqui a pouco. Veio à minha cabeça que talvez tivesse machucado. Que talvez eu o houvesse
considerado alguém melhor do que é, mesmo sabendo que é bem menos do que muita gente pensa.

Ela não entendeu direito a que ele se referia. Só que era a algo pior do que ela enfrentara. Embora, naquela derradeira noite, Norbury tivesse pedido algo que, parando
para pensar, poderia ser não só chocante, mas doloroso.

Olhou para o homem que, horas antes, tinha jurado protegê-la. A firmeza dele era perigosa e os olhos mostravam isso. Rose concluiu que ele não toleraria o que ela
acabara de se lembrar, ainda que ela lhe garantisse que não tinha chegado a acontecer.

- Não, ele não me machucou. Não da maneira que deve pensar.

- Fico contente.

Ele pareceu contente mesmo. Aliviado.

O leve sorriso ajudou a amenizar o clima e acabar com qualquer raiva causada pela lembrança do passado. O fantasma de Norbury ou de qualquer outro que tivesse entrado
naquele quarto sumiu como uma fumaça fina que esvaece pela janela.

Rose tinha certeza de que agora Kyle só pensava nela. E lhe dava toda a atenção. Isso a deixava nervosa e inquieta, ficar ali enquanto ele a olhava. Ela também olhava
o peito e os ombros banhados pelo brilho cálido da lareira. O corpo dela reagiu à expectativa que saturava o ar.

- Venha cá, Roselyn.

Claro que ela obedeceu. Fazia parte do que havia prometido naquele dia. Não era uma menina inocente e não ia mostrar quanto ainda se sentia como tal.

Ficou bem na frente do marido, com o peito nu dele a centímetros de seu nariz. Um peito atraente. Só a proximidade dos dois já era provocante e ela teve um impulso
de beijar o corpo que a atraía.

Ele a beijou primeiro. Pegou o rosto dela nas mãos e a beijou com mais carinho do que nunca. Era como se quisesse dar confiança a ela, o que Rose achou muito bom.
Só que ele já tinha feito isso na carruagem, no dia em que se encontraram no parque. Tinha consciência de que parte de seu dever de esposa podia ser desagradável,
mas agora também sabia que outra parte seria muito boa.

O corpo dela concordou. Reagiu ao beijo mais do que seria preciso. O nervosismo diminuiu e a excitação aumentou.

Kyle a levou para a cama. Sentou-se na beirada para não ficar tão mais alto que Rose. Assim podia beijá-la mais facilmente. Mais intimamente. Com menos cuidado.
Enquanto beijava, colocou a mão sobre o seio dela. As carícias a excitaram tão rápido que ela se assustou. Ela deixou o desejo fluir e notou que seu corpo latejava
lá embaixo, ansiando por ele.

Kyle observou a própria mão moldar o tecido da camisola ao redor do seio, exibindo sua forma. Ela ofegava toda vez que ele lhe roçava o mamilo, tão penetrante era
a sensação que causava.

- Você é muito bonita, Roselyn.

A beleza não tinha sido de muita utilidade em seu erro. Ainda assim, o elogio a agradava.

Ele a olhava com tanta intensidade que Rose teve medo de que ele se desapontasse com o que visse.

- Você já ouviu isso muitas vezes. Desde criança, imagino.

- Se você me achar linda esta noite, estarei feliz.

- Sempre achei. Eu a vi uma vez, há anos. Num teatro. Não sabia quem era, só que nunca tinha visto uma mulher tão encantadora. Depois, percebi seu irmão no mesmo
camarote e concluí que devia ser a bela Longworth que tantos elogiavam.

O toque leve causou tanta alegria, tanto prazer que ela quase o repreendeu por não ter ido procurá-la quando soube quem era. Conteve-se a tempo. Sabia o motivo.

Teria sido por isso que fizera a proposta de casamento? Ela mal conseguia pensar nisso, raciocinava de um jeito preguiçoso, indiferente. Ele não resistira à chance
de ter algo que o mundo proibira a um filho de mineiro?

Ela se entristeceu ao pensar nisso. E veio novamente o impulso de beijá-lo. Dessa vez ela obedeceu, beijou a curva do ombro dele.

Foi como se acendesse uma tocha, tal o efeito que causou, apesar de Kyle imediatamente tentar conter seu desejo. Mas os olhos dele se aprofundaram a ponto de ela
pensar que poderia se afogar neles se os mirasse por muito tempo.

Ele puxou as pontas do laço que prendia a camisola no pescoço. Rose olhou para a mão dele, enquanto as fitas acetinadas corriam e o nó se desatava. Pareceu levar
uma eternidade. Um ponto dentro de seu corpo latejou e se retesou, como se uma língua invisível estalasse em sua carne.

Percebeu que Kyle ia despi-la. Ali mesmo, despi-la inteira, com a vela acesa na mesinha lateral. Tinha certeza de que não era assim que se fazia. Só que ele podia
não saber. Mas...

Ela ainda estava surpresa por esses pensamentos quando a camisola escorregou pelos ombros. Kyle notou a surpresa, mas isso não o impediu de continuar. Desceu o tecido
até exibir os seios, túrgidos e com os mamilos escuros. Puxou a camisola mais para baixo, passando pela cintura e as pernas até Rose ficar nua sobre um lago de tecido
branco.

Rose ficou envergonhada. O quarto precisava estar escuro, ou quase, quando ela estivesse assim. E eles deviam ficar embaixo do lençol, quase anônimos nos gestos
por vir. Tentou se cobrir com os braços.

- Não.

Ele a segurou antes que conseguisse. Puxou-a mais para perto. Sua língua mal tocou a extremidade de um de seus mamilos.

Uma centelha de prazer percorreu seu corpo inteiro: intensa, direta, precisa. Depois, outra, e outra, sufocando seu constrangimento, fazendo-a querer apenas que
ele continuasse aquilo para sempre e que o prazer maravilhoso nunca cessasse.

Com a língua e a boca, ele a levava aos céus. Acariciou todo o corpo dela e ela então gostou de estar sem a camisola. O toque das mãos em sua pele, nas coxas e atrás,
nas costas, parecia certo, necessário e perfeito. Ela se virou, presa numa sensualidade e num desejo intensos, que pareciam aumentar cada vez mais, o prazer pedindo
mais prazer num crescendo infinito.

Ficou tão perdida nesse torpor que não percebeu que segurava o ombro de Kyle até ele soltar sua mão. Mal notou quando ele se levantou e a deitou na cama. Rose voltou
um pouco a si na pausa que se seguiu e o viu tirar a roupa à luz da vela que ainda queimava.

Ela esticou a mão e apagou a vela antes de ver o corpo inteiro dele como ele a vira. Kyle se transformou então numa silhueta, uma forma escura, indistinta e vaga.
Ele foi na direção dela na cama.

Um beijo, tão profundo e íntimo que ela jamais o esqueceria. Uma carícia, tão firme e possessiva que ela só podia render-se à sua maestria. Um toque, tão direto
e ciente de seu efeito que o corpo todo gritou com o prazer intenso.

Ele continuou. Ela manteve um grito ao mesmo tempo mudo e pleno de desejo, de sensação torturante. Rose perdera a consciência de seu corpo, exceto a tênue vontade
que exigia mais, qualquer coisa, tudo.

A voz dele, calma e profunda.

- Entregue-se. Vai entender o que quero dizer. Deixe acontecer. Solte-se.

Ela mal o ouviu. Não entendeu. Mas o corpo se soltou lentamente. O suficiente para que um tremor profundo surgisse e então aumentasse e subisse em ondas de prazer
cada vez mais altas, para no fim explodir em seu corpo e ofuscar sua mente, num momento etéreo de estupefação.

Kyle estava abraçado a ela, em cima dela. Sentiu-o entrar com cuidado. Com muito cuidado. Ela o deixou assim e ajeitou as coxas para que ele ficasse lá, para que
a penetrasse antes que aquela sensação maravilhosa tivesse fim.

A calma dele se foi. Veio a força. Ela não se importou. Não foi ruim, nem sequer desagradável. Ela se entregou a ele como se entregara ao próprio prazer, ainda flutuando
numa perfeição que as estocadas dele só fizeram prolongar.

 

Ele despertou perto da aurora e viu que Roselyn se fora. A certa altura da noite, talvez logo após ele adormecer, tinha voltado para seu quarto e sua cama.

Se ele tivesse ido até o quarto dela, Rose esperaria dele que saísse logo também. Era assim que se fazia com mulheres como ela. Elas não viviam em casebres, onde
marido e mulher compartilhavam a mesma cama a noite inteira, todas as noites.

Lembrou-se de, quando menino, ouvir murmúrios e risos íntimos no quarto ao lado. Aqueles sons pessoais davam vida à casa. Ele não tinha participação naquelas conversas,
mas os murmúrios traziam paz à noite.

Era estranho que a lembrança viesse naquele momento, tão vívida que, se ele fechasse os olhos, se sentiria na cama de sua infância outra vez. Esquisito que aquele
casamento tivesse aberto tantas portas para o passado. Só que ele olhava por essas portas como homem e via coisas que o menino jamais compreendera.

Uma das portas seria difícil de fechar. Se Roselyn não tivesse vindo na noite anterior, ele ficaria horas refletindo sobre o que vira de novo daquela soleira.

As imagens queriam invadir a cabeça dele. Ele as expulsou por ora. Quem sabe, de uma vez por todas. Assim como a honestidade absoluta, a pura verdade nem sempre
era benéfica.

Cochilou, depois acordou de novo, num sobressalto. Era tarde. Não tinha apenas cochilado.

A água para lavar o rosto estava à espera. As roupas tinham sido preparadas para que se vestisse. Jordan estivera lá, mas deixara o noivo dormir. Ele não chamou
o criado, mas se arrumou para mais um dia.

Desceu a escada e acompanhou o som das vozes na cozinha, nos fundos da casa. Rose estava lá com Jordan. Usava um vestido simples, cinza, que ficaria bem numa dona
de casa modesta. Continuava linda.

Não conseguia olhar para ela sem relembrar seu corpo à luz da vela, a timidez e os tremores de sua excitação. Apagar a vela tinha, sem dúvida, sido sensato, embora
ele tivesse vontade de olhar para a esposa a noite inteira. Na escuridão, ela conseguira se libertar um pouco e ele conseguira se controlar para não possuí-la com
voracidade.

O primeiro olhar que Rose lhe deu continha um agradecimento pela noite. Ela então abaixou os olhos.

Jordan serviu o café da manhã.

- Este lugar é simples, senhor, mas a vista do jardim e a luz são agradáveis. Posso servir o café na sala de jantar, se o senhor preferir.

- Assim está ótimo.

Ele se sentou à mesa onde havia almoçado com Rose no dia em que fizera o pedido de casamento. Com gestos eficientes, Jordan serviu um café da manhã bem tardio.

Quando Kyle terminou, Roselyn trouxe para a mesa o último prato a saborear.

- É torta de maçã - avisou ela. - Você disse que gosta tanto que às vezes come no café da manhã...

- Muito bem, Jordan.

- Não foi ele quem fez. Fui eu.

Ao fundo, Jordan terminou de secar uma jarra. Pegou seu casaco.

- Quero olhar um pouco o jardim, madame. Com sua permissão, posso sugerir algumas melhorias.

- Claro, Jordan.

Rose cortou uma grande fatia de torta e colocou num prato. Deu um passo atrás e esperou que o marido provasse.

Ele deu uma boa mordida.

A torta anterior estava ruim. Já esta estava horrível. Olhou para o armário e todos os mantimentos. Tinha presumido que a primeira torta ficara ruim por falta de
açúcar e sal. Pelo jeito, o problema não era esse. Roselyn é que fazia tortas horríveis.

Ela teve prazer de vê-lo comer. Por sua expressão facial e os sons que fazia, ele estava gostando.

- Deliciosa - falou ao engolir o último pedaço.

- Fico contente que tenha gostado. Jordan ficou estalando a língua enquanto eu assava, mas acho que só estava irritado por eu estar fazendo o trabalho dele.

Ele a segurou e a puxou para si.

- Você não precisa mais cozinhar. Não precisa fazer tortas.

- Eu sei. Só que esta manhã me lembrei de que servi torta a primeira vez que esteve aqui e que pareceu gostar. Então quis fazer outra.

Ele percebeu que tinha acabado de ser elogiado pela noite anterior.

Beijou-a e a soltou. Não estava com fome naquele momento, pelo menos de comida. Muito menos daquela torta.

Mesmo assim, cortou mais uma fatia.

 

CAPÍTULO 11

Kyle colocou os rolos de projetos numa grande sacola de lona.

O assunto não podia esperar mais. Muito já fora investido naquilo. Ele não tinha escolha senão encontrar Norbury, como estava marcado fazia tanto tempo.

Tentou ouvir algum som vindo do quarto de Roselyn. Ela costumava acordar cedo. Não tinha o hábito de ficar na cama até o meio-dia como certas damas. Nesse dia, entretanto,
o pavimento onde ficavam seus quartos continuava estranhamente silencioso. Como ele a mantivera acordada quase a noite inteira, não se surpreendeu.

Ela não parecera se importar em dormir pouco. A noite lhe despertara novos apetites. E, ao contrário do que ocorrera em Oxfordshire, onde ela sempre o procurava,
como se quisesse demonstrar que cumpria seus deveres conjugais, ali em Londres era o contrário: ele é que ia encontrá-la. Isso significava que, às vezes, como na
noite anterior, Kyle se demorava bastante por lá.

Ela não se importava, mas, ao mesmo tempo, preparava os rituais da noite de maneira a não ficar constrangida. Depois daquela primeira noite, sempre apagava as velas
mais cedo. Apesar da escuridão, Kyle conhecia o corpo da esposa melhor do que ela pensava. O toque revelava muito e a luz da lua, mais ainda. Ela podia preferir
as sombras, podia até esquecer o rosto do homem que a possuía, mas ele jamais esquecia que era Roselyn que ele acariciava.

Riu para si mesmo ao se lembrar da pequena batalha que seu corpo enfrentava todas as noites. Roselyn Longworth lhe provocava um desejo tão forte, tão arrasador,
que muitas vezes ele ficava agressivo. Mas, como se tratava de Roselyn, uma dama que ainda se intimidava e se espantava com a nudez, ele tinha de se controlar.

Isso não era um problema. O final era sempre bom. Os doces êxtases dela e os gozos fortes dele o encantavam. Depois de tudo, era com pesar que ele abria mão da satisfação
absoluta que encontrava nos braços dela. Às vezes, como na noite anterior, ele passava horas recusando-se a ir embora, o que significava ter relações mais de uma
vez.

Desceu a escada. Aquela casa ainda parecia nova e estranha para ele. Roselyn ficara muito contente quando ele a levara para lá. Ocupava-se agora de arrumá-la a seu
jeito e de fazer as primeiras reaparições na sociedade.

Ele cuidava dos negócios, como essa reunião agora. Foi a cavalo para a casa de Norbury, com a sacola de lona presa à sela. O dia estava melhor que o humor dele.
Não falava em Norbury com a esposa, mas sua fome insaciável da noite anterior, o desejo de possuí-la, estava ligada à desagradável expectativa do encontro que se
seguiria.

Na verdade, aquele homem agora entrava em sua cabeça com muita frequência. Não só por causa de Rose, apesar de ele ter de se esforçar para afastar as lembranças
daquele caso. Pensar nisso só lhe dava raiva e uma vontade enorme de bater no canalha.

Kyle continuava também com a lembrança que tivera na noite de núpcias, como se aquilo precisasse ser revisto. Era o rosto de uma mulher espancada e machucada. Os
olhos da mulher o assombravam. A humilhação que mostravam parecia o rosto de Rose na noite do leilão.

No dia em que encontrara a tia ferida ao se defender dos jovens ricos que se divertiam com ela, Kyle lutara como um possesso. Eram três contra um e ele tinha apenas
12 anos, mas seus inimigos não haviam passado quatro anos carregando carvão na mina.

Ele achara que a havia salvado. Só agora, que os detalhes começavam a ressurgir em sua cabeça, ele reavaliava o ocorrido. Talvez não tivesse chegado no início da
violência contra a tia, mas no final.

Pensar em Rose o fez lembrar-se de tudo isso na noite de núpcias. Enquanto ele avaliava como lidar com ela, como lhe mostrar os caminhos do prazer sem deixá-la assustada,
chegara a sombra do amante anterior. Com a lembrança, viera o pensamento inesperado de que o sexo trivial devia ser o menor motivo para Rose não gostar de contato
físico.

Parou o cavalo na frente da casa de Norbury. Olhou a fachada em perfeito estilo paladiano que dava tanta elegância à construção. Considerava-a uma das melhores moradias
de Londres, de uma excelência que para muitos passaria despercebida num mar de influências clássicas. Era um desperdício, pois Norbury tinha pouca sensibilidade
para essas coisas.

Não podia se distrair com a estética, como costumava ocorrer. A nova pergunta sobre aquela briga travada fazia tanto tempo afetava bem mais do que a infância dele.
Fazia com que imaginasse mais do que gostaria sobre o caso de Rose. Chegava a incomodá-lo no encontro de hoje, pois Norbury tinha sido um dos meninos em que ele
batera.

A tia garantira que ele havia chegado a tempo e ele acreditara. Mas aquelas conversas noturnas no casebre deles sumiram por muito tempo e o tio nunca aprovou a ajuda
dada por Cottington. Aceite o dinheiro, mas não seja um lacaio, Kyle, meu jovem. Use-os da mesma maneira que eles usam os outros, mas não se torne um deles.

O mordomo sorriu ao receber o cartão de visita de Kyle. A familiaridade não era desrespeitosa. Os criados daquela casa, como os de muitas outras elegantes residências
londrinas, logo se afeiçoavam ao menino pobre que se tornara um homem bem-sucedido, alguém que circulava pelos dois mundos que eles conheciam.

- Meu patrão está ocupado, mas poderá recebê-lo em menos de uma hora - informou o mordomo ao retornar.

Kyle o seguiu até a biblioteca, sabendo que "menos de uma hora" significava uma espera de pelo menos 59 minutos.

Assim que a porta da biblioteca foi fechada, Kyle a abriu de novo. Desceu a escada para a cozinha. Norbury não devia estar ocupado coisa nenhuma. O atraso era apenas
a maneira enfadonha de o visconde mostrar a própria importância. Mas o tempo que Norbury tinha dado seria útil.

A confeiteira se virou, surpresa, ao ouvir os passos dele na escada.

- Sr. Bradwell! Que honra. Nossa, como o senhor está bonito. Parece que o casamento lhe fez bem.

- Olá, Lizzy. Você também está bem. Com um pouco mais de farinha que o habitual.

Ela passou as mãos nos cabelos grisalhos, fazendo surgir uma nuvem branca. Lizzy era uma das muitas criadas da casa que tinha família em Teeslow. Quando moça, fora
trabalhar para Cottington, depois se mudara para Londres quando Norbury fora para a cidade.


O cozinheiro, um homem sério, cumprimentou Kyle com a cabeça e resmungou parabéns pelo casamento. Tirou uma panela grande da mesa e, com o pé, empurrou um banquinho
até o espaço recém-liberado. Depois voltou a ralhar com uma criada na copa. Kyle sentou no banquinho.

- Veio falar com o patrão, não é? - perguntou Lizzy, enquanto partia ao meio a massa de pão e pegava um pedaço grande. - Uma daquelas conversas sobre dinheiro que
ninguém entende?

- Sim.

- Tem gente que diz que é como um jogo.

- É parecido, só que sou eu quem decide onde fica a maioria das cartas.

- Ainda assim, uma cartada errada e...

- É, pode acontecer.

- Não é muito provável que aconteça com o senhor, eu diria. Sempre foi mais esperto que a maioria, deve saber dar as cartas.

Geralmente. Normalmente. Mas havia sempre um risco. O importante em qualquer jogo era não se importar muito em ganhar ou perder. Um homem nervoso ou desesperado
sempre joga mal.

O sucesso dele dependia da certeza de que, se tudo desse errado, sempre poderia se recuperar e que um revés de alguns anos não faria muita diferença em sua vida.

O casamento mudava tudo. Percebera isso ao fazer seus votos durante a cerimônia. A responsabilidade dele em relação a Rose significava que nunca mais poderia ser
absolutamente destemido, e os outros perceberiam isso, ainda que ele tentasse esconder a verdade.

Tinha sido por isso que, dois dias antes, fizera um fundo de investimento para a esposa.

Dois cheques tinham estado à espera de que eles retornassem a Londres. Um, enviado por Cottington, era presente de casamento. O outro, os 10 mil de Easterbrook,
era de uma quantia bem maior e viera sem uma carta, um bilhete que fosse.

Se Rose soubesse da existência daquele dinheiro, pensaria que alguém havia pagado para que ele se casasse, o que de certa maneira era verdade. Enquanto olhava o
cheque, ele concluíra que não queria que ela pensasse isso. Ela não ia enganar a si mesma e ter qualquer ilusão romântica sobre casamento, mas seria ruim que não
tivesse ilusão nenhuma.

Só o presente de Cottington já bastava para salvá-lo do desastre, então pegara o suficiente de Easterbrook para prover Rose no caso de se tornar viúva e deixara
o resto num fundo de investimento para ela. Sua esposa teria como se sustentar se, no futuro, as cartas do baralho não fossem distribuídas como ele gostaria.

- Tem recebido notícias de Teeslow, Lizzy?

Lizzy era chegada a fofocas, por isso Kyle gostava de conversar com ela. A criada sabia tudo sobre Teeslow pelas cartas da família, com muito mais detalhes do que
a tia contava a ele.

- Bom, a garota dos Hazletts está esperando um filho e ninguém sabe aonde o pai foi parar. Peter Jenkins morreu, mas foi um descanso, porque ele estava muito doente.
E há boatos de que aquele túnel na mina vai ser reaberto. Você sabe qual.

Ele sabia. Tinha ouvido o boato quando estivera lá, em dezembro. Pelo jeito, o boato continuava, portanto devia ser verdade.

- Como vai Cottington?

- Mal, infelizmente. Quando ele se for, a criadagem vai chorar rios, garanto. Muita coisa vai mudar com a morte dele.

- Não é só a criadagem que vai chorar. Todos vão lastimar que o herdeiro assuma o lugar dele.

Lizzy conferiu onde estava o cozinheiro, antes de fazer uma cara que mostrava que ela pensava o mesmo. Concentrou sua força em sovar a massa do pão.

- Imagino que o visconde não foi ao seu casamento.

- Não mesmo.

O olhar dela foi bem expressivo. Significava que Norbury não se daria ao trabalho de ir, mesmo se fosse convidado. E que, naturalmente, a noiva de Kyle não ia querer
o ex-amante no próprio casamento.

- Fez muito bem, Sr. Bradwell. A ajuda que o senhor deu para aquela pobre mulher e o que agora faz por ela. É o que todos dizem.

- Infelizmente, não pude bater nele como fiz naquela vez, embora quisesse.

Esperou a reação dela. Na época da surra, Lizzy trabalhava para Cottington. Numa casa assim, os criados costumavam saber de tudo.

Ela pareceu surpresa por ele tocar no assunto. Olhou bem para ele, depois se voltou de novo para a massa de pão. Sovou com força.

A reação dela era plausível com um assunto que fosse tão escandaloso que seus detalhes tivessem de ficar em segredo.

Um simples mau comportamento de alguns jovens ricos, a história que ele conhecia, não seria motivo para isso.

 

- Continuo achando que as casas não têm quartos de criados em quantidade suficiente - reclamou Norbury após examinar os projetos por dez minutos.

Até então, as coisas iam bem. Recebera Kyle com indiferença e os dois se ocuparam dos projetos. Norbury parecia se esforçar para ser cavalheiro, mas Kyle via que
o visconde tentava ocultar um lado bem menos civilizado.

- As casas serão compradas por famílias com renda de milhares de libras por ano. Cinco quartos de criados, mais os da estrebaria para o treinador e o cocheiro deveriam
ser mais que suficientes.

- Milhares de libras. É incrível como eles conseguem.

Era uma observação idiota feita por um idiota, com a intenção de enfatizar como ele estava acima de preocupações frívolas como milhares de libras a mais ou a menos.
Norbury inclinou mais um pouco a cabeça loura sobre os projetos.

- Meu advogado disse que papai pretende assinar os papéis do terreno - comentou Norbury, e seu lábio inferior tremeu. - Ele não está participando de nada e não viu
os projetos, mas decidiu de qualquer forma.

Ótimo, iremos em frente, mas quem decide é o velho, não eu. Vou lucrar bastante com o seu trabalho, mas não que eu tenha escolhido isso.

Para Kyle, era indiferente como as coisas se passariam. Agora lamentava que estivesse nesse projeto, que o obrigava a aceitar a presença de Norbury. Se o conde não
se recuperasse para retomar as rédeas dos negócios, essa seria sua última parceria com a família dele.

- Procurarei o seu advogado amanhã - disse Kyle, juntando os projetos. - O trabalho nas estradas vai começar logo; a madeira e os demais suprimentos estão encomendados.
As primeiras casas estarão prontas em meados do verão, creio.

O dono da casa acompanhou os preparativos da saída do visitante. Deu-lhe um olhar gelado.

- Preciso lhe dar os parabéns.

- Obrigado.

- Não fui convidado.

- Foi um casamento no vilarejo, não em Londres.

- Li que Easterbrook compareceu.

A informação o incomodara. Kyle não sabia se pelo fato de aquele lorde especificamente ter sido convidado ou porque a presença dele fizera a ausência de Norbury
ficar irrelevante.

- A casa de campo dele fica perto e minha esposa é parente. Indireta, digo.

Norbury riu.

- Você fez bem em se casar com a minha puta, Kyle.

Kyle se obrigou a continuar encarando os projetos e mal controlou a vontade de estrangular Norbury. Eram palavras assim que motivavam duelos. Homens idiotas diziam
coisas idiotas por orgulho ou ressentimento. Coisas que outro homem não poderia permitir.

- Repita isso ou algo parecido, para mim ou para qualquer pessoa, e acabo com você. Se eu souber que sequer mencionou o comportamento vergonhoso que teve com ela,
só vou parar de bater quando você não conseguir se mexer por duas semanas.

Norbury ficou tão vermelho que Kyle esperou que ele desse o primeiro soco. Queria muito que desse.

- Bata, maldito. Pratico boxe duas vezes por semana.

- Isso só ajuda se o seu opositor obedecer às regras do esporte. Você vai lutar com um filho de mineiro e suas mãos suaves e inúteis não são nada contra mim.

Kyle se encaminhou para a porta. As palavras ríspidas de Norbury o acompanharam.

- Meu advogado disse que papai mandou um presente de casamento para você.

- Mandou mesmo. Foi muito generoso.

- Generoso, quanto? Quanto foi que ele mandou?

Norbury exalava agressividade, como se a quantia fosse a única coisa que interessasse.

Talvez fosse. Talvez Norbury nunca tivesse engolido que o pai ajudasse Kyle financeiramente. Já era ruim ter levado aquela surra. Pior ainda era que, por isso, o
pai ficasse sabendo do comportamento desonroso do filho naquele dia, por pior que fosse.

- Quanto? Uma quantia incrível, faltou só 50 para completar mil libras.

Kyle se satisfez ao ver a expressão de Norbury quando saiu. O homem era burro, mas não tanto. Em poucos minutos, concluiria que o presente de Cottington fora tirado
da herança destinada ao filho.

O que significa que Norbury tinha indiretamente devolvido o dinheiro do leilão e que o pai tinha sabido do que acontecera.

 

Nesse dia, Henrietta parecia diferente. Roselyn se sentou na sala de visitas em Grosvenor Square e tentou identificar por quê.

Era preciso considerar o efeito do chapéu. Um gorro com carapuça de renda, o que parecia bem mais comportado e elegante do que os chapéus que ela costumava usar.
Rose notou também que os cabelos louros tinham sido arrumados de outro jeito, combinando melhor com o rosto delicado.

Mas o que tinha mudado acima de tudo era sua expressão. Naquela tarde, seu jeito aéreo fazia com que parecesse jovem, em vez de desligada. E seu rosto não estava
contorcido de forma desdenhosa. Em vez disso, surpreendentemente, parecia quase o de uma jovem.

Conversaram sobre moda, sociedade e fizeram previsões para a próxima temporada. Alexia estava com elas. Além de mais três damas, todas de boa posição social e bom
humor. Alexia tinha levado Rose em visitas àquelas damas na semana anterior, provavelmente com a permissão delas. Elas agora, por sua vez, visitavam Henrietta no
dia que Alexia tinha sugerido, de forma que Rose pudesse comparecer também.

Tudo fazia parte de uma pequena campanha da qual, maravilha das maravilhas, Henrietta aceitara participar. Se ela não estivesse fazendo sua parte tão bem, não estivesse
sendo tão simpática e solícita, Rose iria pensar que Alexia tinha achado um jeito de subornar a tia do marido.

As visitas não se demoraram muito, mas ficaram o bastante. Podia ser que jamais visitassem a própria Rose para nada, mas, quando foram embora, tinham dado mais um
largo passo no sentido de aceitá-la.

Ia ser uma caminhada em círculos. A proveniência do marido causaria desvios de rota e interdições na pista. O escândalo no qual ela se envolvera criaria outros transtornos.
Mas a campanha de Alexia parecia estar dando resultado mais rápido do que se podia esperar.

- A reunião foi boa - confidenciou Henrietta, quando as três ficaram a sós de novo. - Creio que a Sra. Vaughn logo vai convidar você, Roselyn, para ir ao teatro.
Foi o que pareceu quando comentou sobre peças preferidas e tal. Como a tia dela se casou com um importador, ela não deve fazer muitas restrições a um comerciante
e pode até receber seu marido também.

Rose mordeu a língua. Henrietta não pretendia fazer uma provocação com aquele comentário. Ao mesmo tempo, não havia por que se ofender com a verdade.

Mas ela se ofendeu. Muito mais do que esperava. Kyle aceitava as coisas do jeito que eram, mas ela se irritava cada vez mais.

Não entendia como alguém que o conhecesse, que conversasse com ele, pudesse não aceitá-lo em sua sala de visitas. O trabalho dele também não era banal, juntava finanças,
arte e investimento. Quando os irmãos dela viraram banqueiros, algumas portas se fecharam para eles, mas a maioria, não.

Claro, tudo estava ligado ao berço. À família e aos antepassados. À família que Kyle jamais renegaria. Tinha-a avisado sobre isso.

Enquanto iam para a biblioteca, Alexia explicou a nova fase de sua campanha bélica, que incluía um jantar na casa dela. Aquelas três damas seriam convidadas, além
de duas amigas delas. Ela esperava que as convidadas que tinham acabado de sair convencessem as outras a comparecer. As cinco tinham maridos tidos como dóceis. Se
alguns deles deixassem suas esposas ficarem amigas de Rose, havia mais possibilidade de outros fazerem o mesmo.

Enquanto elas discutiam estratégias, Easterbrook entrou na biblioteca. Desculpou-se pela intromissão e ficou perto das estantes, examinando as lombadas. A presença
dele chamou a atenção de Henrietta, que se rendeu à curiosidade.

- Pretende ir ao exterior, Easterbrook? Porque está olhando memórias de viagem e títulos assim.

Ele tirou um livro da prateleira e deu uma olhada no texto.

- Não vou a lugar nenhum. Estou pesquisando para minha jovem prima.

- Ah, céus, vai mandar Caroline fazer uma viagem pelo continente? Eu desejei tanto isso... Ela precisa ir a Paris, claro, e...

- Não, não é uma viagem pelo continente - resmungou ele. - Busco informação sobre lugares bem específicos, para onde as jovens vão às vezes, mas parece que nenhum
desses autores tem nada de especial sobre eles.

Henrietta franziu o cenho.

- Que tipo de lugar?

Ele colocou o livro na prateleira e tirou outro.

- Conventos.

- Conventos!

Rose achou que Henrietta ia precisar de sais. Alexia a acalmou e se dirigiu ao marquês.

- Tenho certeza de que está brincando. Por favor, diga à sua tia que está querendo irritá-la de novo.

- Gostaria de estar. Na verdade, gostaria que Hayden assumisse seu papel de responsável por isso, em vez de me deixar mexendo em assuntos que não entendo e não me
interessam.

- Viram? Ele ainda não a perdoou por aquele flerte com Suttonly no verão passado - disse Henrietta, alto. - Ela obedeceu a sua ordem, Easterbrook. Há semanas que
não pronuncia o nome dele.

- Henrietta, o verão passado já foi bastante ruim, mas lastimo dizer que estou às voltas com mais um daqueles desastres causados pelas jovens. Prever um duelo por
ano já bastava, obrigado. Mas ter de me preparar para dois é uma provação para a minha paciência.

Ele franziu o cenho para os livros e tirou mais um da estante.

- Vou me livrar logo desse dever maçante. Vou duelar com o sujeito, deixá-lo bem ferido, mandar Caroline para um convento e ficar sossegado por alguns anos, pelo
menos.

Henrietta chorou. Easterbrook continuou a mexer calmamente nos livros. Alexia tentou ser diplomática.

- Sua tia e eu não sabemos de nenhum admirador de Caroline no momento. Acho que está enganado.

Ele fechou o livro com força.

- Não se trata exatamente de um admirador. Trata-se de um sedutor. Não estou enganado, Alexia. Lastimo dizer que estou convencido de que Caroline já perdeu sua virtude.

Isso causou um susto. Henrietta se espantou tanto que ficou ofegante e boquiaberta. Depois chorou copiosamente.

- E quem é esse homem? - exigiu saber Alexia.

- Aquele químico francês. Amigo de Bradwell.

Henrietta parou de chorar. Arregalou os olhos. Olhou de esguelha para ver a que distância dela estava o marquês.

- Garanto que está enganado - disse Alexia.

- Vi-o esta manhã mesmo. Ao nascer do dia, eu estava olhando o jardim pela janela e o vi. Saindo desta casa.

Ele deu uma olhada preocupada para a tia.

- Agora tenho de ser babá também, tia Henrietta? Até eu me impressiono por se descuidar tanto dela. Eu, que não dou a menor importância a essas coisas.

Henrietta ficou imóvel. Easterbrook estava atrás dela, então não viu o que Rose e Alexia viram. O rosto da jovem senhora ficava cada vez mais vermelho.

Rose olhou para Alexia exatamente quando Alexia se voltava para ela. As duas encararam Henrietta.

- Easterbrook, continuo achando que está enganado - insistiu Alexia. - Se foi ao nascer do dia, não era possível ver direito o que era, ou quem. Talvez um dos jardineiros
estivesse andando por ali.

- Não, Alexia. Era ele.

O marquês desistiu de olhar os livros.

- Infelizmente, esses livros não trazem indicação de conventos. Vou pedir ao advogado que faça umas pesquisas discretas. Um convento na França, por exemplo, para
tia Henrietta poder visitá-la uma vez por ano.

Quando Easterbrook seguiu em direção à porta, Alexia se pôs no caminho dele.

- Mesmo se estiver certo e fosse ele no jardim, isso não prova que esteve na casa. Nem que procurou Caroline. Afinal, podia estar atrás de uma das criadas.

Ele a olhou com carinho, como sempre.

- Vi-o flertando com ela no casamento da sua prima. Fui descuidado em não avisar, mas Henrietta estava com eles e concluí...

Todos congelaram enquanto a cena pairava no ar. Rose quase conseguiu ouvir o marquês recapitulando, pensando, rejeitando... reconsiderando.

Easterbrook virou e olhou para a tia. Moveu a cabeça, observando-a. Ela estremeceu enquanto ele examinava o chapéu novo, o penteado diferente e o viço recém-adquirido.

- Alexia, seu valoroso bom senso me poupa de cumprir obrigações desagradáveis. Eu talvez tenha sido um pouco precipitado ao pensar o pior de Caroline. Talvez não
fosse monsieur Lacroix que estivesse no jardim.

Pediu licença. Da porta, antes de sair, ele voltou a falar.

- Contudo, caso tenha sido... Henrietta, por favor, fale com as criadas. Se uma delas está recebendo um homem, espero que os dois se divirtam. Mas é melhor que ele
saia quando ainda estiver escuro, de forma que não haja mais nenhum mal-entendido.

 

Rose atravessou a porta que ligava seu quarto de vestir aos aposentos de Kyle. Ele não iria procurá-la nessa noite. Suas regras haviam chegado. Encontrar uma maneira
delicada de dizer isso a ele exigira muita habilidade sua. Ele parecera achar graça das sutilezas que a esposa usara, mas a havia compreendido.

Ela ouviu a voz de Jordan e o som do marido despindo-se. Depois, ficou tudo em silêncio. Abriu a porta. Os quartos de vestir não eram opulentos e espaçosos: o quarto
dele ficava a poucos passos. A lamparina ainda não tinha se apagado e ela percebeu as silhuetas do toucador, as escovas e o espelho dele.

Prosseguiu, deu uma olhada. As cortinas do dossel não tinham sido fechadas. Ele estava deitado, com o camisolão aberto mostrando o peito forte.

Ficou olhando. Não o via despido desde a noite de núpcias. Ela sempre apagava as velas e lamparinas, mesmo quando o procurava em Oxfordshire. A escuridão fazia a
cama misteriosa e sobrenatural e evitava um grande embaraço. Tornava mais fácil que ela se entregasse.

Ele estava com a cabeça apoiada nos braços dobrados. Parecia compenetrado, como se tivesse percebido algo no teto que exigisse sua atenção. Mas estava tão imóvel
que talvez nem estivesse acordado.

- Kyle, está dormindo? - sussurrou ela.

Ele se sentou na cama. Olhou para a esposa e observou sua camisola e o penhoar, que não eram nem novos nem tão bonitos.

- Acordei você? - insistiu ela.

- Não. Estava pensando em alguns problemas que tive hoje.

- Sobre terras, associações de mineiros e coisas assim?

- É.

Ela entrou no quarto cautelosamente.

- Alexia combinou de algumas damas me visitarem. Bom, não a mim, mas a Henrietta. Porém elas sabiam que eu estaria junto e foram mesmo assim.

- Venha aqui me contar isso.

Ela subiu na cama e contou sua pequena vitória.

Ele pareceu muito interessado.

- Lady Alexia age rápido.

- Ela ainda acredita que Irene tem chance de ser apresentada nessa temporada, acho.

Irene não tinha saído da casa de Alexia. Todos achavam que sua única esperança era que a prima a apresentasse à sociedade.

- Quando ela der esse jantar, você deve usar um vestido novo - disse ele. - Vou mandá-la para lá tão bem-vestida que será a mulher mais elegante da mesa.

- Talvez você me acompanhe, em vez de apenas me mandar ao jantar.

- Pouco provável. Lady Alexia é esperta demais para lutar em duas frentes ao mesmo tempo.

- Então não sei se vou querer ir.

A expressão no rosto dele mudou um pouco, o suficiente para ficar indecifrável.

- Quer saber de uma fofoca? - perguntou ela. - É sobre alguém que você conhece.

- Todo mundo quer saber de uma fofoca, principalmente sobre alguém que se conhece.

- É fofoca das boas. Tudo indica que seu amigo, o Sr. Lacroix, está tendo um caso com... Henrietta!

- Quais são as provas?

- Ninguém menos que Easterbrook o viu saindo da casa. Você acredita?

- Que indiscrição de Jean Pierre. Devo avisá-lo?

- Desde que não seduza Caroline, acho que Easterbrook não se importa se ele ficar com todas as mulheres da casa. Quanto a Henrietta, o marquês pareceu encantado
e feliz por poder cutucá-la sobre isso nos próximos anos.

Eles riram. Foi bem agradável ficar ali de noite, conversando sobre fatos do cotidiano. Mas quando terminou a história, Rose sentiu que o marido estava se distraindo
outra vez. Os olhos dele ficaram insondáveis como quando ela havia chegado ao quarto.

- Bom, boa noite - disse ela, saindo da cama.

Ele pegou sua mão.

- Fique.

Talvez as palavras brandas que ela usara tivessem sido vagas demais.

- Eu... quero dizer, hoje eu... estou naquela semana em que...

- Fique, mesmo assim.

Rose sentiu algo diferente no coração quando, sem jeito, entrou embaixo dos lençóis. Kyle apagou a lamparina e a escuridão envolveu a casta intimidade dos dois.
Ele a abraçou.

Ela não dormiu logo. Ficou preocupada com a novidade daquele tipo diferente de afeto.

- Preciso ir ao norte outra vez - disse ele, e sua voz não a assustou, tão calma veio na noite. - Daqui a duas semanas, talvez. Não vou ficar mais de uma semana.

- Posso ir junto? Você disse que iríamos na primavera, mas, se vai agora, eu também gostaria de ir.

- A viagem vai ser no frio. E você tem aquele jantar.

- Alexia pode marcá-lo de acordo com a viagem. E não tenho medo de um pouco de frio.

Duas semanas antes, ela jamais pediria para ir. Mesmo alguns dias antes, ela poderia ter apenas deixado a informação passar. Mas agora queria muito ver como fora
a vida dele. O abraço nessa noite a emocionou, mas também deixou bem claro que, mesmo com tanto prazer, havia um vazio naquele casamento que ela não conseguia explicar.

Não sabia se um dia esse vazio seria preenchido. Talvez Kyle fosse sempre um pouco estranho. Talvez ele preferisse assim. Ela não tinha ao menos certeza se gostaria
do que seria preenchido, se isso ocorresse. Só sabia que o vazio parecia grande nesta noite, talvez porque uma nova emoção o destacasse. Sua alma quase doía por
desejar algo tão fora de alcance.

- Veremos - disse ele. - Amanhã vou para Kent e passarei uns dias lá. Você não pode ir, já que iniciarei algumas obras e só haverá operários, muita lama de inverno
e eu...

Algumas obras. Em Kent. Devia ter sido o trabalho que fora tratar com Norbury no dia do leilão.

Súbito, entendeu por que Kyle estava tão pensativo na hora em que ela entrou no quarto. Devia ter encontrado Norbury. Talvez naquele mesmo dia.

Ele jamais a deixaria saber se Norbury os insultara. Jamais contaria se pensava naquele caso. Mas Rose tinha certeza que sim. Talvez até naquele instante, enquanto
os pensamentos vagavam pela noite.

Ela podia saber mais sobre ele e começar a preencher aquele vazio. Eles podiam ter muitas noites como essa, em que conversavam como amigos e não como amantes.

Entretanto, não importava o que acontecesse, não importava quanto tempo ficassem casados, Norbury seria uma sombra entre eles, afetando tudo, mesmo as coisas boas,
ainda que nenhum dos dois jamais pronunciasse o nome dele.

Esse pensamento quase estragou aquela noite agradável. Norbury tinha entrado na cabeça dela. E quase dava para ouvi-lo falando na de Kyle. Sua influência malévola
ficou tão opressora que ela pensou em sair da cama.

Kyle virou de lado, dormindo. O braço ficou casualmente sobre ela. A mão estava sobre o seio, num gesto ao mesmo tempo confortador e possessivo. Ficou assim a noite
toda, impedindo-a de escapar.

 

CAPÍTULO 12

Kyle estava em Kent fazia dois dias quando Roselyn recebeu a carta. Tinha sido reenviada de Watlington. Reconheceu a letra na hora: Timothy tinha escrito outra vez,
embora a carta estivesse assinada como Sr. Goddard.

Dessa vez, não escrevera de Dijon, mas de uma cidade italiana chamada Prato.

 


Finalmente atravessei os Alpes. Estou morando aqui por ser menos dispendioso do que Florença. E também por haver menos possibilidade de eu ser reconhecido. A viagem
foi exaustiva e o clima, horrível. Tive medo de morrer. Passei mal quase todo o tempo. Agora vivo entre estranhos cuja língua ignoro e sofro de uma tristeza grande
demais para aguentar.

Pretendo ficar aqui até que venha ao meu encontro. Por favor, escreva logo, dizendo que vem. Só verei o sol na minha janela quando você chegar. Conte-me seus planos,
de forma que eu tenha algo por que esperar.

Rose, meu bolso se ressentiu da longa estada em Dijon e dos honorários dos médicos, que não serviram para nada, mas foram caros. Quero que venda a casa e o terreno
em Oxfordshire e traga o dinheiro. Esta carta a autoriza a fazer isso em meu nome. Leve-a a Yardley, nosso velho advogado. Ele reconhecerá minha letra e lhe dirá
o que fazer. Eu o autorizo a ser meu procurador na venda caso, por ser mulher, você não seja aceita. Se houver mais exigências, escreva-me imediatamente, de maneira
que possamos efetuar a venda o mais rápido possível.

Sei que ainda faltam meses, mas conto os dias na esperança de que ainda seja minha adorável irmã de sempre, um coração bondoso que me deu força por quase a vida
inteira. Prometo que tudo vai melhorar quando estivermos juntos outra vez.


Timothy

Ele ainda parecia perdido e só. A menção a uma doença não ajudava a melhorar as coisas. Rose não sabia se deveria torcer para que ele estivesse se referindo a passar
mal por excesso de bebida, já que esse era o grande fraco do irmão, ou por outro motivo.

E agora ela não podia ir encontrá-lo, por mais doente que ficasse. Ele jamais saberia que, por um curto espaço de tempo, quando passara algumas horas de grande felicidade
deitada numa colina, ela cogitara fazer isso.

Ela também não podia negar a verdade por trás da escolha que fizera. Ao aceitar o pedido de Kyle, deixara de lado as necessidades do irmão para tentar salvaguardar
a própria vida e a de Irene na Inglaterra - o que talvez se tornasse uma necessidade desesperada. Se não agora, um dia.

Ele afirmara estar ficando sem dinheiro. Isso despertara um pouco de raiva em Rose. Ela havia sobrevivido com quase nada esses meses todos. Ele deveria ser mais
controlado, em vez de gastar todo o dinheiro que roubara.

Deu um suspiro, tão fundo que o corpo todo estremeceu. Timothy estava sendo apenas Timothy. Sem a influência dela, continuaria sendo a pior versão de si mesmo. Ela
não podia salvá-lo. Não agora, depois de Kyle ter dito tão claramente que ela jamais iria ao encontro do irmão. Mas não podia abandoná-lo, como Kyle esperava.

Chamou a criada e trocou o vestido matinal por um conjunto para usar em carruagem. Tinha de encontrar Alexia na modista e encomendar alguns trajes novos. Mas antes
iria ao centro financeiro da cidade. Precisava saber se ainda podia ajudar o irmão.

 

Kyle observou o engenheiro perfurar a terra dura para conferir novamente o terreno antes de iniciar as fundações.

A uns 200 metros, outro homem marcava as árvores que seriam derrubadas e as que seriam poupadas quando a nova estrada fosse construída. Kyle imaginou a casa que
dali a pouco se ergueria ao lado daquele matagal.

Se tudo saísse conforme planejado, dentro de dois anos haveria famílias morando naqueles campos e carruagens passando por novas estradas. A propriedade de Cottington
seria valorizada e seus parceiros veriam os lucros.

Incluindo ele. Kyle ainda estava andando na corda bamba. Era bom e experiente em se equilibrar. Não chegava a perder o sono por causa dos riscos. Mas, como qualquer
homem, ele preferia ter os pés firmes no lado com dinheiro daquela corda.

O operário que marcava as árvores o chamou e fez um gesto apontando para o sul. Kyle olhou para a estrada naquela direção. Atrás da carroça que trazia as ferramentas
a serem usadas nesse dia, vinha uma carruagem.

Ele reconheceu o veículo. Foi até a estrada e chegou ao mesmo tempo que Norbury saltava.

- Espero que não tenha vindo da cidade só para ver o andamento da obra - disse Kyle. - Ainda não há muito o que conferir.

Sob a aba do chapéu de copa alta, Norbury olhou a elevação de terra.

- Estou oferecendo uma recepção na minha mansão. Resolvi vir aqui antes que os hóspedes chegassem.

Norbury olhou atentamente para Kyle, querendo avaliar sua reação. Kyle o deixou olhar à vontade. Não precisava que Norbury o lembrasse da última festa que tinha
dado. A imagem da humilhação de Rose vinha sempre à cabeça, sem que ninguém precisasse ajudar.


E ela chegou trazendo fúria e uma urgência de espancar o visconde. Kyle tinha controlado essa vontade na última vez em que se encontraram. Agora ela voltava e o
deixava tenso.

- Espero que essa festa seja mais discreta do que a última. Se espalharem o boato de que fazem orgias aqui perto, essas casas jamais serão compradas.

- Aposto que serão compradas mais rápido.

Norbury fez um gesto para que Kyle o acompanhasse.

- Vim falar de assuntos de interesse mútuo, além dessas casas. Recebi um recado de Kirtonlow Hall. Meu pai sofreu uma leve apoplexia. O médico disse que ele não
vai durar muito.

- Ele é mais forte do que a maioria. Pode durar mais do que os médicos imaginam.

Mais do que você espera. O filho era tão diferente do pai que nunca houvera muito afeto entre eles. De diversas maneiras, o conde deixara claro a seu herdeiro quanto
ele o decepcionava.

Não era apenas a capacidade intelectual de Cottington que não passara despercebida a Norbury. Algo fundamental faltava no filho, além de inteligência. Ele parecia
não ter a empatia natural que um ser humano sente pelos demais. Ou ter uma empatia deformada. Norbury não seguia os princípios morais que costumam guiar as pessoas
em assuntos grandiosos ou corriqueiros.

- Podemos desejar que ele viva para sempre, mas ninguém consegue - falou Norbury com uma sobriedade dramática. - Quanto ao outro assunto que eu queria tratar com
você, os vivos podem influenciar. Andei pensando no seu casamento.

Kyle apertou o passo, fazendo com que o outro o seguisse na estrada. Olhou para trás, para saber a distância que estavam dos operários. Será que veriam ou ouviriam
se ele quebrasse o queixo de Norbury com um soco?

- Pode parar de olhar para mim como um boxeador se preparando para uma luta - disse Norbury. - Sua decisão de se casar com uma mulher dessas é loucura. Estou mais
interessado no irmão dela e em como esse casamento muda nossos planos em relação a ele. Depois de me recuperar do choque de você se juntar a ela para sempre, vi
uma luz na escuridão.

- A única luz que existe é a da minha felicidade na escolha da minha esposa. Timothy Longworth foi embora. Nem ela nem eu temos ligações com ele.

- Ele não escreve para ela? É bem provável que sim.

- Não tem por quê.

- É irmã dele. Você precisa ver as cartas que ela recebe, assinada com o nome verdadeiro ou de Goddard. Veja qualquer carta enviada do continente, principalmente
da Itália.

- Não.

- Vai economizar muito tempo. Se ele escrever para ela, teremos...

- Não. Estou fora disso. Não quero participar e não vou ajudá-lo.

Um aperto no braço. Era a ordem de parar. Kyle olhou para Norbury, cujo rosto tinha perdido qualquer traço de gentileza.

- Céus, com que rapidez o cavaleiro puro foi seduzido e maculado. Esqueceu rápido seus lindos ideais sobre justiça, Kyle.

- Não vou espionar minha esposa.

- Não espione. Faça com que ela lhe conte.

- Ela não vai nos dar de bandeja a cabeça do irmão na nossa forca. Nem eu vou pedir.

- Porcaria nenhuma! Não há desonra nisso. Maldição, assim você vai até protegê-la.

A explosão de Norbury despertara seu pensamento. Seus olhos ficaram dissimulados.

- Na verdade, se não fizer isso, vai colocá-la em risco - concluiu.

Norbury podia ter um raciocínio lento, mas funcionava quando necessário. Kyle viu novas ideias surgindo, transformando seu rosto numa máscara de presunção.

- Ela decerto foi cúmplice desde o começo - disse Norbury.

- Claro que não.

- Maldição, eu devia ter percebido antes. Isso explica o reembolso feito por Rothwell. Não estava poupando um homem que já tinha escapado de nós, mas a cúmplice
que ficara para trás. Ela pode até estar com quase todo o dinheiro aqui, na Inglaterra. Aquela humildade era um disfarce para afastar suspeitas. Maldição, Longworth
nem era tão inteligente. Deve ter sido tudo ideia dela...

- Está falando bobagem.

- Até mesmo o que teve comigo. Pensei que eu a tivesse seduzido, mas vai ver ela quisesse ficar perto de mim para saber se as vítimas estavam prestes a descobri-la.
Seria irônico, não? Se ela estivesse o tempo todo...

- Continue insinuando isso e mato você.

- Está tão encantado pela beleza dela que é capaz de arriscar tudo? Duvido. Daqui a alguns meses não estará mais tão embevecido com seu grande prêmio. E verá o que
há por baixo da bela aparência. O irmão é ladrão e ela mesma mostrou ter caráter fraco e imoral.

Kyle agarrou Norbury pelo colarinho. Puxou-o e o levantou do chão.

- Eu avisei.

Norbury arregalou os olhos e inclinou a cabeça para trás.

- Ouse dar um soco e eu não vou me conter. Acho que um juiz gostaria de ouvir a questão e refletiria bastante antes de achar que estou errado. Meu ponto de vista
pode dar um bom processo. Com um pouco de esforço, talvez até se encontrem algumas provas.

A ameaça era óbvia. Justiça corrupta ainda era pior do que falta de justiça e um lorde tinha muitas formas de conseguir a primeira.

Kyle mal conteve a própria fúria. Soltou o colarinho de Norbury, que se ajeitou, alisando a roupa e ajustando a gravata. Endireitou-se e olhou com o deleite de um
homem que, de súbito, se descobria com um ás na mão.

- Descubra onde está o bastardo, Kyle - ordenou Norbury, já andando em direção à carruagem. - Com toda a honra que você acha que tem, não vai lhe fazer falta sacrificar
um pouco dela.

 

Assim que Kyle voltou de Kent, Rose percebeu que ele tinha encontrado Norbury novamente. Ele carregava uma nuvem pesada para dentro de casa. Sua expressão estava
diferente, mais dura que de hábito.

Naquela noite, quando se sentou para jantar, tratou-a como sempre. Até a ouviu pacientemente contar como foram os dias em que estiveram longe um do outro. Mas a
presença de Norbury na cabeça de Kyle era tão evidente que o outro bem podia estar à mesa com eles.

Quando o criado foi dispensado, ela se preparou. Era melhor desanuviar o ambiente e saber o que o estava preocupando. Isso não queria dizer que ela ficasse feliz
com uma possível discussão.

- Rose, quando ficou em Oxfordshire, recebeu alguma carta de seu irmão? Refiro-me a alguma além daquela da primeira vez em que fui visitá-la.

Ela não esperava essa pergunta, ou assunto. Não fosse pela intensidade com que o marido fizera a pergunta, ela podia ter contado tudo. Mas se conteve, tentando imaginar
por que ele perguntava e se a resposta tinha importância.

- Creio que ele escreveu pelo menos mais uma vez - acrescentou Kyle.

- Sim. Uma.

Era verdade, mas não toda ela. Rose havia recebido só mais uma carta quando estava em Oxfordshire.

- Então eu tinha razão: quando você falou em ir embora para sempre, era com ele.

Ela assentiu.

O fato de ter razão não alterou o humor dele.

- Não quero que tenha mais qualquer contato com ele, Rose. Se ele escrever de novo, queime as cartas sem ler. Não as guarde. Nem sequer veja de que cidade ele escreveu.

Ela ficou um bom tempo em estado de choque, sem conseguir pensar. Então o choque foi substituído pela raiva.

- Antes de nos casarmos, você disse que eu jamais poderia encontrá-lo, nem para visitas. Não disse que não podia escrever ou receber cartas dele.

- Eu disse. Mas, caso tenha entendido mal, estou repetindo agora.

- Eu disse que não o consideraria morto, mas agora você exige que eu aja como se estivesse.

- É.

O olhar dele era de ordem, mais do que a voz.

Ela se levantou e saiu da sala de jantar. Buscou um pouco de privacidade na biblioteca. Para sua surpresa, ele foi atrás.

- É melhor me deixar sozinha para aceitar o que você exige em relação a meu irmão - avisou.

- Preciso saber se aceita mesmo. Quero a sua palavra de honra.

- Minha palavra de honra? E o que me diz da sua? Se a minha puder mudar com a mesma rapidez, eu a dou com prazer. Naquele dia, você me convenceu de que tinha retirado
essa exigência.

Ela pensou que a culpa poderia amaciá-lo. Só que aumentou a raiva.

- Tenho um motivo para exigir isso. Gostaria que você acreditasse em mim, mas, se não acreditar, isso não muda nada. Você sabe como é o seu irmão. Você mesma disse
que ele é um perigo para você. Não pode ter contato com ele.

- Ele é meu irmão.

- Ele é um ladrão covarde. Um criminoso.

A firmeza de Kyle a surpreendeu. Ela o olhou atônita, surpreendida pela força que emanava dele, vendo-a e a sentindo sem controle.

Ele se acalmou, mas a tensão ficou no ar.

- Rose, você entende o que ele fez? Quantas pessoas ele roubou?

- Lorde Hayden...

- Lorde Hayden impediu que as vítimas ficassem na miséria total. Quanto você acha que ele pagou?

Ela se sentiu como uma criança na escola tentando adivinhar a resposta de uma conta.

- Muito dinheiro. No mínimo 20 mil.

A raiva chegou a dar expressão à risada curta e baixa que ele soltou.

- Essa quantia não faria a menor diferença para Rothwell. Pense na casa onde sua prima ainda mora. Ela lhe mostrou alguma joia nova? Ou trajes novos? Pense neles
e nos tecidos e enfeites que ela usa.

Rose sentiu o estômago embrulhar. Nunca tinha calculado a quantia, em parte porque sabia o suficiente para desconfiar que não gostaria da soma total.

- Quanto? - perguntou ela, num sussurro.

- Ao fim e ao cabo, no mínimo 100 mil libras. Talvez muito mais.

Ela arquejou. Quanto dinheiro!

Kyle se aproximou. Os olhos dele tinham um pequeno brilho solidário em meio a todos os de raiva.

- Seu irmão não sabia que Rothwell iria reembolsar nem uma libra. Presumiu que cada vítima simplesmente amargaria o próprio prejuízo. Assim como os clientes, quando
o banco faliu. Ele não roubou só dos ricos, mas de velhinhas, órfãos indefesos e pessoas que dependiam dessas reservas para viver.

- Tenho certeza de que ele não entendeu bem... Ele não podia... de propósito...

- Claro que ele entendeu. Tudo. Com toda a certeza, fez de propósito.

De novo, Kyle controlou a raiva. Foi visível seu esforço de se recompor.

- É tão estranho assim que eu queira que corte relações com um homem tão canalha?

Ela já não conseguia enxergar Kyle direito. Virou-se e tentou conter os soluços. Meu Deus, 100 mil libras! E Alexia e Hayden...

Enxugou os olhos e tomou fôlego.

- Você disse que conhece pessoas que perderam dinheiro. Quem são elas?

Por um instante, Rose pensou que ele não fosse responder.

- Meus tios.

Ela teve outro choque. Não eram amigos, mas pessoas da família.

- Porém foram ressarcidos, não?

- Sim, foram. É assim que você justifica, quando pensa no seu irmão? Pelo menos as vítimas foram ressarcidas. Pelo menos apenas uma vítima pagou caro em vez de dúzias
perderem tudo? É assim que você o desculpa?

- Eu não o desculpo.

- Acho que desculpa. Ele é seu irmão e você busca motivos para diminuir a culpa dele. Mas ele não é meu irmão, Rose.

Não, e Kyle não desculparia nada. Não se sentia nem um pouco solidário, nem tinha intenção de salvá-lo. Se Tim fosse preso, Kyle acharia justo que fosse para a forca.

Ela não tinha palavras para argumentar. Não tinha nada para contrapor, a não ser o amor por um irmão que tinha sido uma pessoa bem melhor quando criança do que adulto.

Ela pensava que Kyle fosse ao menos entender, se não aprovasse. Mas ele estava implacável, irredutível e disposto a fazer com que ela condenasse Tim como todo mundo.

- Você vai cortar qualquer contato com ele - repetiu. - Se tem cartas, queime-as. Se receber mais uma, destrua-a imediatamente.

Ele saiu da biblioteca. Não tinha pedido que ela prometesse, tinha ordenado. E ela deveria obedecer.

 

Naquela noite, Rose pensou em trancar a porta de seu quarto de vestir.

Nunca tinha feito isso. Não se importava que ele a procurasse todas as noites. Era a esposa, ele tinha esse direito e nunca saíra do quarto sem que ela tivesse alcançado
toda a liberdade que o prazer podia proporcionar.

Essa noite era diferente. Não tinha certeza se reagiria ao toque dele. Após a discussão, um silêncio duro como pedra caíra sobre a casa. E ainda afetava o ambiente
e ela.

Nessa noite, uma pequena parte de Kyle que ela ainda desconhecia se revelara. Ficara espantada com a força de vontade dele. Já a havia percebido antes, mas vê-la
dirigida a ela a assustara um pouco.

Devia ter suposto quanto ele era seguro. Em relação a si mesmo e às decisões que tomava. Sem isso, ele não teria sobrevivido no caminho que percorrera. Poucos homens
saíam de um vilarejo de mineiros de carvão para as salas de visitas de Londres em pouco mais de dez anos.

Poucos homens nascidos num vilarejo assim pediriam Roselyn Longworth em casamento, independentemente das condições em que estivessem suas finanças, sua reputação
ou o status de sua família.

Ela ficou na frente da porta, olhando a tranca. Não era a primeira vez que achava que, com esse homem, não devia agir guiando-se pelo capricho. Não que ele fosse
derrubar a porta se ela a trancasse. Acreditava que ele nem sequer se irritaria.

Em vez disso, imaginava que duas coisas poderiam ocorrer. Ou os dois teriam uma conversa igual à anterior, em que ele diria o que aceitava ou não que ela fizesse
ou haveria frieza e formalidade na cama na próxima vez que ele a procurasse, podendo se estender para as seguintes por bastante tempo. Talvez até para sempre.

Ela se afastou da porta e voltou para a cama. Apagou as lamparinas como fazia todas as noites e foi envolvida pela escuridão.

Talvez ele não viesse, embora já fizesse alguns dias que não se encontravam, por causa das regras dela e do tempo que ele passara em Kent. Sem dúvida, ele sentia
que a discussão ainda ecoava na casa. Tinha se retirado para o escritório e o trabalho, mas talvez as palavras ressoassem na cabeça dele como faziam na dela.

O coração dela ainda batia pesado ao lembrar como ele via a culpa de Tim. Cem mil libras. Ela às vezes pensava em reembolsar Alexia e Hayden, mas jamais poderia
ressarcir uma quantia dessas. Jamais. Por isso Alexia fora tão enfática ao desencorajá-la de encontrar Tim na Itália.

Só que agora ela estava casada com um homem que teria prazer em enforcar Tim com as próprias mãos. Não podia defender o irmão. Não podia dizer que Kyle estava errado.
Mas uma irmã não julga com base no certo e no errado, na justiça.

Cem mil libras. Como uma quantia dessas podia estar chegando ao fim? Tim dizia que precisava de mais dinheiro, e ela acreditava nele.

Um movimento sutil no quarto a tirou de seus pensamentos. Abriu os olhos na escuridão. Kyle estava ao lado da cama, não passava de uma silhueta negra no quarto sem
luz.

Tinha vindo, afinal. Isso a surpreendeu. E também a reação que teve: o coração bateu de alívio antes que ela conseguisse se controlar.

Kyle parecia estar à espera de algo ou decidindo alguma coisa. Ela não sabia o quê. Mexeu-se na cama e isso fez as cordas que sustentavam o colchão reclamarem.

Kyle também fez sons e movimentos quase imperceptíveis. Roupão caindo. Calor se aproximando. Braços se esticando e peles se tocando. Ela respirou e o sentiu inteiro
na cama, aquela presença total que transformava a noite.

Ele soltou o laço da camisola, fazendo-a escorregar pelos ombros e o corpo de Rose.

- Obrigado por não trancar a porta.

Será que ele a ouvira discutindo consigo mesma? Como era típico dele tocar no assunto, em vez de deixar que fosse uma escolha silenciosa. Rose esperava que não comentassem
também o motivo para ela pensar em trancar.

As carícias e o beijo mostraram que não comentaria.

- E se eu tivesse trancado?

Ela já nem estava muito interessada na resposta. As deliciosas palpitações da excitação a distraíam.

- Não sei. Ainda não havia decidido o que faria quando tentei abrir a porta.

Ela não pensou na resposta, apenas percebeu o perigo daquela incerteza. Mas o prazer já desviava sua atenção. Seduzia-a. Isso também era perigoso. O prazer embotava
os pensamentos e colocava tudo sob a melhor perspectiva.

Kyle se assegurava de que ela gostasse. Com suas carícias e beijos hábeis e firmes, levava-a à entrega que tinha se tornado tão habitual, tão atraente. O prazer
obrigava a uma espécie de abandono, concluiu ela. Abrir mão de ser racional e de si mesmo. Nunca chegara a compreender isso antes.

Dali a pouco, ela não entendia mais nada, nem mesmo a discussão. A névoa de sensações obscurecia tudo, menos o desejo de que ele lambesse seus seios e beijasse sua
barriga e tocasse a carne que ansiava por ser penetrada.

Kyle a tirou do colchão e a sentou em seu colo com as pernas afastadas. Puxou-a pelo quadril e a penetrou tão fundo que ela gemeu com a deliciosa sensação de completude.

Ele roçava os mamilos dela com as mãos e ela ganhava vida onde seus corpos se uniam. Diretamente. Maravilhosamente. A excitação desceu direto por seu corpo e se
instalou ao redor da completude que ele proporcionava.

- Venha aqui.

No escuro, Kyle a puxou para a frente até deixá-la apoiada sobre os braços. Seus seios pairavam acima dele. Ele então substituiu as mãos pela boca. O prazer aumentou
tanto que ela arfou. O jeito como a excitava era bom demais, urgente demais, irresistível demais para que ela conseguisse se controlar minimamente que fosse.

Ela se entregou à loucura, gritando e gemendo e se mexendo para senti-lo mais, melhor, mais firme. Ele a segurou pelas coxas e a penetrou com força para atingir
o ápice. Ela ficou completamente dominada.

Quando ele terminou, ela continuava excitada. Apesar das muitas ondas de prazer e entrega, o corpo dela ainda tinha fome. Ele percebeu. Colocou-a de costas e a acariciou
de novo, desta vez nas dobras da carne sensível e pulsante.

Ela quase desfaleceu. Agarrou-o com as unhas para fugir do prazer quase doloroso. Ouviu-o como naquela primeira noite, dizendo-lhe que se entregasse.

Dessa vez, foi o mais doce dos gozos. Primeiro a atingiu com força, depois se espalhou em turbilhões que deixaram seu corpo atônito. Ela se maravilhou nessa sensação
e prendeu o fôlego para que durasse para sempre.

Não durou, claro, ainda que seu corpo tenha demorado a entender isso.

Os acontecimentos anteriores da noite voltaram junto com a noção de espaço e tempo. Talvez tivessem saído dos pensamentos de Kyle também, banidos pelo delírio.

Ele não ficou por muito tempo depois que ela recobrou os sentidos. Naquele breve período tão saturado de paz, ela sentiu a sombra nele.

Desconfiou de que ele não esquecera aquela discussão, nem mesmo no momento do orgasmo. Tinha-a procurado nessa noite em parte por causa da briga. Havia deixado claro
que tais coisas jamais ficariam entre eles naquela que era a parte mais fundamental do casamento. Ele também se assegurara de que ela não se incomodaria com isso.

Esse frio cálculo não mudou a verdade de como ele a tratava. Se Kyle trouxera alguma raiva para aquela cama, não demonstrara. Como sempre, ele tivera consideração
e pedira pouco dela, além de que tivesse prazer.

Rose pensou uma coisa. Uma coisa incrível. Quem era ele e quem era ela, a forma como se encontraram, o escândalo e a redenção influenciavam tudo. Principalmente
o que acontecia naquela cama na melhor e na pior das noites.

 

CAPÍTULO 13

Kyle não havia mentido. No final de janeiro, a estrada para o norte era fria. Quando entraram no condado de Durham, o céu estava baixo, com nuvens de chuva.

Mais para o norte, a paisagem ficava montanhosa e cada vez mais deserta. Passaram por vilarejos pequenos e grandes. Rose identificou aqueles onde os mineiros viviam.
Os resíduos da mina, que os trabalhadores carregavam em seus corpos e roupas, deixavam marcas pelo caminho.

Quando se aproximaram de Teeslow, ela ficou nervosa. Kyle não tinha estimulado que ela fosse, mas concordara por insistência dela. Rose queria conhecer sua casa
e os tios, mas talvez não fosse bem-vinda.

- Você tem outros parentes além deles? - perguntou ela.

- Morreram. Meus tios tinham duas filhas mais jovens que eu. Morreram de cólera quando eu estava em Paris.

- Você sempre morou com eles?

A conversa parecia não incomodá-lo, mas tampouco lhe agradava.

- Meu pai morreu num acidente na mina, quando eu tinha 9 anos. Minha mãe tinha morrido alguns anos antes. O irmão dela ficou comigo.

Dali a pouco, a carruagem deles entrou no vilarejo. Rose olhou as poucas ruas e lojas, os amontoados de casas. Pó de carvão cobria as soleiras e batentes de algumas
casas, além do rosto e das roupas de algumas pessoas.

Kyle e Rose não pararam no vilarejo, continuaram em outra estrada que ia para o norte. No final dela, havia uma linda casa de pedra. Com dois andares, era parecida
com as casas menores encontradas no sul do país, geralmente destinadas a um administrador ou caseiro.

- Não esperava que fosse assim - disse ela.

- Pensou que seria uma casinha de cinco cômodos, no máximo? Eles moraram anos numa assim, lá no vilarejo. Há cinco anos, construí essa casa para eles.

Ele saltou da carruagem.

- Vou entrar, espere aqui. Eles não sabiam que eu vinha, e você vai ser uma surpresa total.

Foi até a porta, abriu-a e sumiu. Rose observou a casa. Viu o rosto de uma mulher, de relance, numa janela. Certamente, a tia olhava a surpresa total.

Ele estava sendo cuidadoso. Quando ela conhecesse seus parentes, os rostos disfarçariam o que pensavam, como ele também costumava fazer. Se não gostassem dela ou
achassem que não era uma boa esposa para o sobrinho, não demonstrariam isso num momento de surpresa.

Kyle voltou e estendeu a mão para ajudá-la a descer da carruagem. Uma mulher surgiu à porta, sorrindo para lhe dar boas-vindas.

- Rose, esta é minha tia, Prudence Miller.

Prudence tinha palavras amáveis e gestos afáveis.

- Ficamos muito contentes de você vir.

Esguia, de cabelos pretos e olhos brilhantes, Prudence tinha chegado à meia-idade com a beleza quase intacta. Rose a imaginou aos 20 ou 30 anos, de pele clara e
olhos escuros.

Como Prudence a recebeu sozinha, Rose concluiu que o tio de Kyle estivesse na mina. Assim que a levaram para a sala de visitas, viu que não era isso.

O tio Harold estava sentado perto da lareira. Tinha cabelos negros como os da esposa e era quase tão magro quanto ela. Apesar do rosto emaciado, Rose o achou parecido
com Kyle nos olhos azuis vívidos e nas feições de traços duros.

Ele a observou atentamente durante as apresentações. Rose notou sua palidez e o lençol que cobria suas pernas e o colo. Havia uma escarradeira numa mesa baixa perto
da perna direita dele. Tio Harold estava doente.

Os cumprimentos o fizeram tossir. Virou a cabeça e cuspiu na escarradeira.

- Você tem de fazer uma torta, Pru. Não podemos receber Kyle sem oferecer as tortas de que ele tanto gosta.

- Teremos uma no jantar - disse ela. - Esperem aqui um instante, vou ao andar de cima arejar um pouco o quarto.

Dava a entender que eles iam se hospedar lá. Kyle saiu e voltou com o cocheiro e as bagagens. A casa tinha um abrigo de carruagem e ele mandou o cocheiro para lá.

Carregou ele mesmo a bagagem para cima, seguindo a tia na escada. Rose sentou numa cadeira perto de Harold, que continuava a observá-la.

- É uma linda mulher, Sra. Bradwell. Agora entendo melhor este casamento.

- Espero que o senhor me trate por Rose.

Ele riu.

- Bom, vai ser uma experiência rara, tratar uma dama como a senhora com tal intimidade.

Tinha sido a imaginação dela ou havia um tom desaprovador na voz do tio? Considerando as circunstâncias do casamento, o "uma dama como a senhora" podia ter vários
sentidos.

Ela achava que o escândalo não podia ter chegado a Teeslow, mas talvez tivesse. Ou talvez Kyle houvesse explicado tudo em detalhes quando esteve lá, em dezembro.
Tenho a oportunidade de casar com uma dama porque ela está em tamanha ruína que nunca conseguirá algo melhor. A reputação dela vai me atingir, mas daqui a uma geração
ninguém vai lembrar muito disso.

Ela tentou manter uma conversa amistosa. Até o momento em que Harold começou a tossir. Ele estava com alguma doença muito grave. Rose se levantou para tentar ajudar,
sem saber como. Ele levantou a mão, impedindo-a. A tosse diminuiu e ele cuspiu de novo na escarradeira.

- Estou doente, como pode ver. É o mal dos mineiros. Achei que ainda teria uns bons dez anos de vida quando isso me atacou.

- Lamento.

Ele deu de ombros.

- Não se pode tirar o carvão sem levantar pó.

Kyle então voltou, poupando-a de encontrar o que dizer.

- Acho que vou roubá-la do senhor, tio. O quarto está pronto e Rose precisa descansar e se aquecer depois da viagem.

 

No quarto, Rose tirou o manto que usava em viagens e se aproximou da lareira.

- Seu tio está muito doente, não é?

- Está morrendo.

Ela assentiu, como se fosse óbvio.

- Ele disse que é o mal dos mineiros. Por causa do pó.

- Muitos adoecem dos pulmões. É de esperar, por isso levam uma vida tão controlada. Suas economias precisam ser suficientes para o sustento da família quando morrerem.

- É triste. Mas você fala sem emoção.

- A vida é assim, Rose. Essa doença é tão normal para esses homens como a gota é para os lordes. Um mineiro entra na mina sabendo disso, da mesma maneira que um
marinheiro embarca no navio sabendo que pode se afogar.

Kyle começou a desfazer sua mala. Nunca tinha levado Jordan lá, pelos mesmos motivos que ficara indeciso quanto a levar Rose. A casa não tinha nada de errado, mas
os tios não saberiam o que fazer tendo criados por perto.

Ele estava feliz de saber que Rose podia se virar sozinha. Do contrário, teria insistido em ficarem numa hospedaria, só que a mais próxima não seria conveniente.
Além disso, a tia ficaria ofendida se aquele casamento mudasse tão rapidamente os hábitos da família.

Mesmo assim...

- Você vai se sentir bem aqui? Se não for, pode me dizer.

Ela deu uma olhada no quarto, na cama sem dossel e nas cortinas de que tia Pru tinha tanto orgulho.

- É muito melhor que uma hospedaria. Vamos ficar juntos?

- Vamos.

Ela não pareceu se incomodar. Sentou na cama, depois se deitou.

- Acho que vou descansar um pouco. Nunca imaginei que viajar de carruagem vários dias pudesse ser tão cansativo.

 

Quando Roselyn acordou, Kyle tinha saído. Ela desceu a escada à procura dele.

Harold cochilava na cadeira ao lado da lareira acesa. Ela seguiu os sons que vinham da cozinha, nos fundos da casa.

Prudence estava lá trabalhando, sovando massa de torta. Sorriu e indicou o fogão com a cabeça.

- Aquele jarro em cima das pedras tem sidra e na mesa tem um copo, se quiser.

Rose se serviu e viu por uma janela dos fundos o pequeno pomar de árvores frutíferas novas, que estavam nuas agora, no frio do inverno. Havia um grande jardim no
lado oeste do pomar, à espera de ser cultivado na primavera.

- A casa é muito agradável - disse ela. - A vista de todas as janelas é linda.

- Kyle a construiu para nós. Quando voltou da França. Foi para Londres ganhar dinheiro, depois construiu. Harold não queria aceitar, claro, mas eu sabia que ele
estava adoecendo. Você vai ver que meu marido vai alfinetar Kyle por causa das roupas elegantes e das maneiras finas, mas se orgulha muito das conquistas do sobrinho.

Rose se aproximou para ver Prudence preparar a massa.

- Também faço tortas.

- É mesmo? Eu achava que as damas não sabiam cozinhar.

- A maioria não sabe. Mas eu gosto. Posso ajudar, se quiser.

Prudence separou algumas maçãs e uma tigela.

- Você pode descascar e depois cortar as maçãs aqui dentro.

Rose começou a trabalhar.

- Aonde Kyle foi?

- Foi andando até o vilarejo. Imagino que vá visitar o padre e depois tomar uma cerveja com os homens na taberna. Teria levado Harold na carruagem, mas ele estava
dormindo. Pode ser que amanhã leve. Harold sente falta da cerveja com os rapazes.

Rose imaginou Kyle andando quase um quilômetro até Teeslow. Voltando à antiga vida. Será que ele se livrara dos casacos antes de ir? Removera as camadas de gestos
educados e a mudança pela qual aceitara passar para ganhar dinheiro em Londres? Voltara a falar com o sotaque de Harold?

Nessa taverna, ele não seria o Kyle que ela conhecia. Seria o Kyle que continuava um estranho.

- Ele é amigo do padre?

Prudence riu.

- Bem, amigo não é bem a palavra. O conde encarregou o padre de ensinar Kyle a escrever e contar, além de latim e francês. Ele foi um professor exigente. De vez
em quando, esquentava o traseiro dos alunos com uma vara. Kyle não gostava das aulas, mas sabia que poderiam mudar a vida dele e continuou indo.

- O conde? Você quer dizer o conde de Cottington? Ele era o benfeitor de Kyle?

- Exatamente.

Ele nunca tinha dito. Pelo menos, não com todas as palavras. Ela concluíra que o benfeitor tinha sido... alguém. Não um conde. Não Cottington. Não o pai de Norbury.

Isso explicava muita coisa. A parceria naquelas novas construções. A presença de Kyle na festa de Norbury.

- Por que o conde fez isso?

Prudence estava atenta, raspando açúcar mascavo.

- O conde conheceu Kyle por acaso. Na mesma hora, viu que não era um menino comum, mas inteligente e corajoso. E que meu sobrinho seria desperdiçado na mina, embora
desde pequeno ele já pudesse fazer o trabalho de um homem. Por isso, o conde mandou o padre dar aulas a Kyle, de forma que, quando crescesse, pudesse ir a escolas
e tal.

Colocou o açúcar numa xícara.

- O conde é um homem bom e justo. Como poucos.

A pequena história trouxe dúvidas à cabeça de Rose. Tantas que não podia perguntar a Prudence sem parecer que a colocasse no banco dos réus.

Ela sabia pouco da vida do marido. Tinha muita curiosidade, mas nunca perguntara, apesar de ele ser a melhor fonte de informação.

Nunca perguntara, mas Kyle também nunca dissera. Não acreditava que fosse por vergonha do passado ou por não falar muito de si.

Os dois evitavam tudo aquilo porque falar no passado dele significava falar em Norbury.

A sombra daquele caso tinha influenciado até a maneira como os dois se conheciam.

 

- Vai dar problema. Não tem dúvida - assegurou Jon e bebeu um pouco de cerveja para enfatizar.

Kyle também bebeu, concordando. Jonathan era um mineiro quase da mesma idade que ele. Entraram na mina na mesma época, quando meninos, e carregaram os cestos de
carvão juntos, escada acima.

Agora Jon era um radical, o que o fazia imprudente ao falar com o amigo de roupas elegantes, que tinha morado lá fazia muito tempo.

Os demais mineiros foram simpáticos, até alegres. Brindaram quando Kyle entrou na taberna e o crivaram de perguntas sobre Londres. Mas não estavam dispostos a falar
sobre o que vinha acontecendo na própria cidade. Uma palavra errada poderia arruinar suas vidas.

- O comitê foi três vezes até os proprietários para se colocar contra a reabertura do túnel e explicar o perigo - disse Jon. - É mais barato perder alguns homens
do que fazer o que é preciso. Já vimos isso e veremos de novo.

Kyle, sem dúvida, tinha visto. Os ossos do pai ainda estavam naquele túnel fechado. Era perigoso demais retirar os mortos. A primeira tentativa servira apenas para
causar outro desmoronamento.

- Você falou com Cottington? - perguntou Kyle. - Ele vendeu quase toda a mina há bastante tempo, mas ainda tem certa influência. As terras ao redor ainda são dele.

- Dois dos nossos colegas tentaram. Ele está tão doente que não deixam ninguém chegar perto. Nem você pôde entrar na última vez em que esteve aqui. Quanto a falar
com o herdeiro... - a frase ficou no ar e a expressão de Jon mostrou a opinião que tinha sobre o tal herdeiro.

Ele olhou por cima do ombro. Passou a mão nos cachos louros, depois se inclinou sobre a mesa para confidenciar:

- Estamos nos organizando para irmos juntos. Não só aqui. Tivemos reuniões com grupos de outras cidades e com mineiros que têm outros patrões. Se ficarmos lado a
lado e falarmos juntos, seremos ouvidos.

- Cuidado, Jon.

- Cuidado, uma ova. A lei agora permite isso, finalmente. Temos o direito de nos unir. O que eles podem fazer? Me matar? Não podem matar todos nós. Não podem demitir
todos. Você mesmo falou isso há anos, antes de...

Jon desviou o olhar e bebeu mais cerveja.

Antes de ir embora e se tornar um deles.

- Quando se fica lado a lado, é preciso que todos estejam unidos. É preciso que todos aceitem passar fome. Haverá sempre os que vão abandonar o movimento.

- Se nós sairmos da mina, nenhum homem vai entrar. Vamos cuidar disso.

- Há sempre os que precisam trabalhar.

- Se as frentes se formarem na entrada das minas, isso não vai fazer diferença.

- Eles vão chamar a cavalaria. Vai ser um massacre.

Jon deu um soco na mesa.

- Pare de falar como minha mulher. Esqueceu o que acontece lá? Vá até aquela linda casa que você construiu para Harold e pegue as botas e as roupas dele. Venha comigo
amanhã, caso tenha esquecido por que o perigo não importa para gente como nós.

Aquele "gente como nós" não incluía Kyle. Ele era um deles, mas também não era mais. Ali era sua cidade natal, mas ele tinha ido tão longe, de tantas maneiras, que
cada vez que voltava, fazia menos parte daquele mundo.

Ele sentia isso, mas não conseguia evitar. Seus vínculos àquele lugar eram como tentar segurar areia: por mais forte que fechasse a mão, ela escorria entre os dedos.

Quanto tempo levaria até que poucos o reconhecessem quando andasse por aquelas estradas? Chegaria o dia em que ele entraria na taberna e as vozes se calariam e os
olhares examinariam o cavalheiro intruso.

- Vou a Kirtonlow enquanto estou aqui - disse ele. - Falarei com Cottington a respeito desse túnel.

O dar de ombros de Jon mostrou que não achava que isso fizesse alguma diferença. Pediu mais cerveja e deixou a conversa de lado junto com o copo vazio.

 

Kyle voltou para casa a tempo de jantar. Rose ajudou Prudence a servir. A conversa ia abarcando coisas corriqueiras, como costuma acontecer entre estranhos. Até
que Harold não aguentou. Queria saber as novidades que Kyle ouvira na taberna.

- Os rapazes não vêm muito aqui. É muito longe para andar depois de um dia de trabalho - explicou Harold.

Tia Pru sorriu de leve, como se pedisse desculpas pelo que parecia ingratidão pela casa que ganharam. Kyle não se importou. Harold sabia que não o visitariam muito,
ainda que ele continuasse morando no vilarejo. Um homem sem forças para ir à taberna era um homem isolado.

- Há boatos da reabertura do túnel - disse ele. - Ouvi isso em dezembro, mas parece que vai ocorrer mesmo.

- Aqueles idiotas. Idiotas gananciosos.

A notícia deixou Harold tão agitado que ele teve um ataque de tosse.

- Pelo menos pode ser que seu pai e os outros possam ter um enterro cristão - disse Pru, baixo.

Rose ergueu o olhar, surpresa. Seus olhos demonstraram algo que Kyle tinha visto várias vezes naquela noite. Curiosidade. Talvez reavaliação. Falar no túnel trouxera
à tona algo em que já vinha pensando.

Tia Pru trouxe uma de suas tortas. O cheiro bastou para melhorar o ânimo de todos. Pru era famosa por todos os tipos de tortas. Mesmo que precisasse usar frutas
que tinham passado todo o inverno estocadas num porão, ela conseguia que a receita ficasse deliciosa.

Kyle se sentiu menino outra vez, prevendo o gosto delicioso que só sentia em dias de pagamento, quando podiam comprar um pouco de açúcar.

Prudence cortou a torta em fatias.

- Rose me ajudou a fazer - contou.

- É mesmo?

- Nada como cozinhar junto para as mulheres se conhecerem - disse Harold. - Fico satisfeito que sua esposa goste de cozinhar, Kyle, meu rapaz. É bom saber que você
não vai passar fome lá em Londres.

- Rose faz ótimas tortas - disse ele.

Rose sorriu com o elogio. Kyle olhou a fatia de torta na frente dele.

- Então, tenho de agradecer a você por isso, querida?

- Não fiz muita coisa. Apenas cortei as maçãs.

Ele comeu. Não, ela não havia ajudado muito. A torta estava ótima.

Rose ficou observando-o comer cada fatia. Ela estava de novo com aquele olhar. Algo atiçara seu pensamento.

 

CAPÍTULO 14

Rose queria conversar com o marido. Ficou aborrecida quando ele não foi para o quarto com ela, deixando-a subir sozinha.

Assim que chegou ao quarto, Rose entendeu por que ele não a acompanhara. Dividindo aquele quarto, eles não teriam nenhuma privacidade. Os preparativos para dormir,
que costumavam ser feitos separadamente, teriam de acontecer na presença do outro.

Ela pensou nisso enquanto tirava o vestido e o espartilho, a camisa e o calção. Vestiu a camisola e sentou na cama para soltar os cabelos. Imaginou-o também ali,
despindo-se.

Olhou para a cama. Prudence e Harold dormiam há anos na mesma cama a noite inteira, todas as noites. Não se afastavam depois de cumprirem seus deveres conjugais.
Como seria viver totalmente ligada a outra pessoa?

Ela achou que devia ser muito bom, se houvesse amor. Horrível, se houvesse ódio. Invasivo, se houvesse indiferença.

Ouviu o som das botas dele na escada e concluiu que tinha mesmo se demorado por respeito a ela. Aquele casamento tinha muito disso.

Deixou a lamparina acesa e permaneceu onde estava. Não era uma cama muito grande. Aquela visita os forçaria a todo tipo de intimidade.

Kyle bateu na porta antes de entrar. Rose não acreditava que Harold alguma vez tivesse feito isso para ter certeza que Prudence o deixaria entrar.

Controlou o impulso de virar para o outro lado para que Kyle também tivesse sua privacidade. Mas ele não era uma flor delicada e ela queria conversar.

Ele tirou os casacos e os pendurou no guarda-roupa.

- Gostou da torta? - perguntou ela.

Ele sentou na cadeira e tirou as botas.

- Muito. Quase tão boa quanto as suas.

Ela ficou muda. O coração se encheu de uma sensação doce e pungente.

Na verdade, as tortas dela eram horríveis. Ninguém jamais a ensinou a cozinhar. Por necessidade, tentara quando era menina até conseguir algo que os irmãos achassem
mais ou menos comestível. O resultado não dava, de maneira alguma, para comparar com o toque mágico de Prudence.

Hoje ela havia assistido a Prudence fazer a torta e vira o que lhe faltara naqueles anos todos. E também sentira o gosto diferente.

Mas eis que Kyle mentia para ela não se sentir mal. Ele tinha a opção de não mencionar suas tortas. Como podia ter comido só um pedacinho da que ela fizera na manhã
seguinte ao casamento.

Naquele dia, cada garfada de torta devia ter entalado na garganta dele.

- Prudence disse que você hoje decerto visitaria o padre. E que ele ensinou as primeiras lições a você.

Não sabia se continuava a conversa. Eles podiam passar o restante da vida sem tocar nos assuntos que surgiram na cabeça dela nesse dia. Talvez fosse melhor assim.

Só que ela não ia dormir se não perguntasse. As respostas ajudariam não só no que sabia sobre o Kyle estranho, mas a entender o Kyle que conhecia.

- Ela disse que Cottington mandou o padre dar essas aulas. Que o conde era o seu benfeitor. Você nunca me disse isso.

Ele tirou a gravata.

- Você nunca perguntou.

- É verdade. Nunca perguntei. Estou perguntando agora. Quero saber.

- Quer saber pelas razões erradas.

O que aquilo queria dizer?

- Quero saber porque você é meu marido e esse fato extraordinário mudou a sua vida e o tornou o homem com quem me casei.

Ele se recostou na cadeira e olhou para ela.

- Certo. O conde reparou em mim quando eu tinha 12 anos. Achou que eu tinha talentos que deviam ser aprimorados. Combinou com o padre que me desse aulas, depois
pagou para um engenheiro em Durham ser meu professor durante dois anos. Conseguiu que eu fizesse provas para a Escola de Belas-Artes de Paris e me mandou para estudar
arquitetura lá. Quando voltei, ele me deu 100 libras e sua generosidade acabou aí, mas continuamos amigos e, às vezes, trabalhamos juntos.

E aquelas 100 libras tinham se transformado em mil, depois em mais e mais.

- É uma história surpreendente. Que seu progresso surpreende é fato, mas também achei a atitude do conde surpreendente. Por que fez tudo isso por você? Foi porque
seu pai morreu no túnel?

- Ele não sabia que meu pai era um dos mortos. O acidente tinha sido três anos antes.

Kyle desabotoou os punhos da camisa.

- Não sei por que fez isso. Acho que porque eu bati no filho dele. Talvez tenha admirado a minha audácia. Ou achou que o filho merecesse uma surra e gostou que outro
garoto tivesse coragem de dá-la por ele.

- Você bateu em Norbury? Que maravilha. Mas é lastimável que essa história esteja ligada a ele.

- Lastimável, mas inevitável, Rose. Não finja que, quando perguntou, não sabia aonde a história ia levar.

Ele tirou a camisa. Despejou água na bacia e começou a se lavar.

Ela não o via sem roupa desde a noite do casamento. Depois daquela noite, ele tinha sido apenas uma silhueta no escuro. Rose tinha sentido aqueles ombros e abraçado
aquela nudez, mas não tinha visto.

A luz fraca o favorecia, mas o vigor dele teria impressionado mesmo sob um sol de verão. Não havia um músculo flácido. Nenhuma gordura ameaçadora acumulada devido
a uma vida amena. Os músculos não pareciam volumosos, apenas proporcionais à altura dele. Como o rosto, o corpo parecia esculpido de maneira rústica e fazia supor
uma energia prestes a explodir. Ela ficou pensando se aquela tensão sumia em algum momento. Talvez, quando ele dormisse, ela ficasse escondida.

Rose prestou tanta atenção nele que quase se esqueceu da conversa. Kyle estranhou o silêncio e notou que estava sendo observado. Voltou a se lavar.

- Acho que eu sabia onde a história ia acabar - disse ela. - Sempre me surpreendi por você conhecer Norbury tão bem. Mas continuar a trabalhar com ele e a usar as
terras da família...

- Meu trabalho é com Cottington. Sempre foi. Norbury só tem participado agora porque o conde está muito doente.

A conversa se encaminhava para um terreno perigoso. Ela viu o espaço entre eles subitamente cheio de buracos e fendas. O tom da voz dele demonstrava que seria insensato
seguir adiante.

- Se o conde está tão doente, é provável que Norbury participe da sua vida por muito tempo - disse ela. - Pelo jeito, já participa. Está nas nossas vidas, Kyle.

Ele jogou a toalha no chão.

- Quando preciso falar com ele, eu falo. Depois, ele some da minha vista e da minha cabeça. Não faz parte de nossas vidas.

- Não? E como foi que nos conhecemos? Eu sinto a presença dele como se fosse um espectro. Acho que ele não sai da sua cabeça, no que me diz respeito. Acho que você
tenta esquecer o meu caso, mas...

- Sim, eu realmente me esforço para esquecer, maldição! É isso ou a vontade de matá-lo. Por causa da maneira vergonhosa como tratou você naquele jantar. Da maneira
como desconfio que tratou antes. Imagino-o com você e...

Ele abriu e fechou as mãos. Ficou tenso e, de um jeito sombrio, forçou-se a ficar calmo.

- Mas não penso nele quando estou com você. Não se reflete em você.

- Como não? Influi em tudo. Aquela noite afeta todas as coisas, até a maneira de você me tratar como esposa.

- Se você se refere à ordem que dei em relação ao seu irmão...

- Meu irmão? Céus, meu irmão é o problema nosso com o qual Norbury não tem nada a ver. Não gostei daquela nossa discussão, mas, pelo menos uma vez, falei com o homem
com quem me casei. Com ele por inteiro. O real. Não a invenção atenta e educada, que se veste tão bem, fala tão bem e me dá prazer tão corretamente e com tanto respeito.

Ela achou que jamais poderia vê-lo tão surpreso. Durou poucos segundos. Depois, ele fixou o olhar nela de tal forma que seu coração subiu para a garganta.

- Trato você com respeito, como uma dama, e você reclama?

- Não estou reclamando. Sei que tenho sorte de ter um amante tão atencioso. Só acho que você toma tanto cuidado por motivos que me entristecem.

Ele não gostou da crítica. Nenhum homem gostaria.

- Parece que você conhece a mim e aos meus motivos melhor do que eu, Rose.

Ela devia recuar, desculpar-se, ficar calada e grata. Mas, se fizesse isso, ele só ia se lembrar de uma ofensa que ela não tivera intenção de fazer.

- Talvez eu conheça mesmo, Kyle. Ou talvez o pouco que conheço de você me faça entender mal. Diga-me uma coisa: se não fosse aquela noite horrível, se não fosse
a minha situação, você precisaria ser tão cuidadosamente respeitoso? Se tivesse casado com uma moça ingênua daqui do vilarejo ou com uma mulher que nunca foi chamada
de puta, pensaria nisso o tempo todo? Se você não tivesse nascido neste vilarejo, mas numa grande mansão e me pedisse em casamento em outras circunstâncias, acharia
tão importante me tratar como uma dama?

Pelo menos a explosão dela não o deixou mais irritado. Ele ficou sério e contido, mas não furioso. O tempo passou tão lenta e silenciosamente que ela se arrependeu
do que disse.

- Desculpe. Eu não devia... - disse, puxando um fio solto do cobertor. - É que, quando estamos juntos, eu sinto... Você está quase sempre usando seus casacos de
corte impecável, Kyle, até na cama, quando está completamente nu.

Ela piorou uma situação que já estava ruim. Deitou-se e se cobriu bem para esconder os destroços do naufrágio que certamente fizera de seu casamento.

Desejou ser escritora ou poeta, para conseguir se explicar. Gostaria de ter palavras para expressar como a origem dela e a dele, a redenção dele e o escândalo dela,
o conhecimento que ele tinha de seu caso e a necessidade que ela tinha de não ser tratada como puta fizeram com que se erguessem aquelas barreiras de formalidade
entre os dois.

Era impossível explicar. Pouco provável que a situação mudasse. Ela devia aceitar. Devia se policiar para não ficar tentando alcançar algo que não sabia o que era,
daquele jeito doloroso e incessante. Ela devia...

- Os casacos não caem bem quando estou aqui, Rose. Apesar de todo o talento do alfaiate, ficam apertados demais quando venho para casa.

A voz baixa dele chegou a Rose através do silêncio tenso.

- Imagino que seja desconfortável.

- Muito.

- Ou os casacos estão apertados e você só nota quando vem para casa.

- Talvez você tenha razão.

Ela se sentou outra vez. Ele agora prestava atenção no fogo baixo da lareira e nos próprios pensamentos. Apoiava o braço na cornija enquanto olhava as chamas. Ficou
lindamente iluminado.

Ela se encantou com a cena. A luz da lareira parecia encher o quarto todo. O calor chegou até ela.

- Na verdade, desde que cheguei aqui, acho que minhas roupas também estão apertadas, Kyle. Talvez seja o ar do campo. Ou as tortas.

Ele sorriu.

- Então você devia parar de usá-las.

- Não estou acostumada a me livrar desses acessórios. Vivo apertada num espartilho desde o dia em que nasci.

Kyle a encarou. O coração dela perdeu o compasso, depois acelerou. Mesmo no dia em que a pedira em casamento, ele não demonstrara seu desejo com tanto despudor.

Ele se aproximou.

- Vou considerar isso um convite, Rose.

Abraçou-a com tanta força que a levantou da cama. Beijou-a de um jeito possessivo, firme, como quem não quer nada e quer tudo. Desta vez, não conteve seu desejo.
Puxou-a para um remoinho de força incontrolável.

Os beijos pediam, mandavam e a excitavam. Nem se quisesse, ela não podia fazer nada contra o domínio que ele tinha. Rose havia pedido isso e deixou que as próprias
reações selvagens se apossassem dela. Superaram o medo e a surpresa iniciais.

Beijos quentes. Fortes e profundos, mordendo e devorando. Braços de aço a impediram de reagir à fúria ardente em seu pescoço e na sua boca. Uma sequência de choques
maravilhosos atravessou seu corpo como flechas de fogo. Trouxe à tona o instinto primitivo dela até fazê-la gemer com o ataque glorioso e fazê-la perder qualquer
decoro.

Ele a apoiou de novo na beirada da cama. Acariciou suas pernas por baixo da camisola. Passou a mão no quadril e na bunda. Um toque furtivo e erótico no sexo. Os
dedos dele causaram um incrível formigamento.

Ela afastou uma perna para incentivá-lo a prosseguir naquela deliciosa tortura. Ele prosseguiu, mas interrompeu o longo beijo. Com a outra mão, ele levantou a camisola
dela até os ombros e a retirou por cima da cabeça. A camisola caiu ao chão, aos pés dele.

Ele olhou a nudez da esposa sério de tanto desejo. Suas carícias cobriam os seios enquanto a outra mão esfregava e provocava embaixo. A dupla sensação a deixou tremendo,
cambaleante, enfraquecida pelo prazer. Ela se inclinou para se apoiar nele até o rosto tocar suavemente em seu peito.

A mão de Kyle puxou sua nuca para mais perto até o rosto encostar por completo na pele lisa.

- Posso tirar a camisola, Rose, mas as outras peças que a escondem você mesma precisa tirar.

Ela compreendeu. O incentivo a encorajou. Espalmou as mãos no peito dele, olhando e sentindo ao mesmo tempo. O simples toque fez com que ele ficasse ainda mais excitado
e que uma nova rigidez o percorresse.

Ela o acariciou com mais ênfase. Olhou as mãos passando pelo peito dele, escorregando e percorrendo os sulcos dos músculos e costelas rígidos. Ele a olhou também
e as carícias e toques no corpo dela copiavam as delas. A respiração cálida dos dois se encontrou e se fundiu em beijos cada vez mais vorazes enquanto a excitação
os levava à loucura.

Ele tirou a mão das pernas dela e desabotoou os calções. Antes que ela pudesse se conter, deu um gemido insolente, afastou as mãos dele e assumiu os botões. As mãos
dele voltaram a afagá-la embaixo, fazendo-a quase desfalecer.

Ela lutava com a roupa dele, desajeitada, enquanto ele a tocava mais deliberadamente. Inclinou a cabeça para aproximá-la do pescoço e do ouvido da esposa. O dedo
dele apalpava com cuidado.

- É assim que você quer, Rose?

Ela não podia responder. Não conseguia falar. Mal conseguia se manter ereta. Agarrou a roupa dele sem ver, sem jeito, empurrando-a pernas abaixo às cegas, enquanto
os leves toques no seio e entre suas pernas a faziam gemer.

- Ou assim?

A mão dele contornou a perna e a tocou pela frente. Uma estocada longa, lenta e incrível fez um tremor de prazer percorrer seu corpo.

Rose sabia que ele tinha noção de quanto a deixava indefesa. Agarrou-se aos ombros dele e se segurou em busca de apoio.

Ele soltou uma das mãos dela, beijou-a e a guiou para a parte inferior do próprio corpo. Uma leve noção de racionalidade voltou, o bastante para ela entender o que
ele estava fazendo, o que queria. Perdida demais para se importar, ou se constranger, deixou que ele colocasse a mão dela no pênis.

Ele a tocou diabolicamente mais uma vez, o que deixou tudo mais fácil. O prazer passou pelo corpo dela como uma onda revolta, e em resposta ela acariciou como era
acariciada.

Qualquer decoro que ele ainda tivesse se rompeu. Beijou-a com nova selvageria. Ela sentiu a tensão em todo o corpo, no beijo dele e até na maneira como a tocava.
Intencional, agora. Disposto a fazê-la entregar-se por inteiro.

O orgulho perdeu qualquer sentido. Mesmo de joelhos, ela se movia ritmadamente, curvando-se aos beijos dominadores, gemendo de tanto querê-lo.

Ele a mudou de posição, mas não como ela esperava. Virou-a de maneira a ficar de costas para ele e acariciou seus seios. Ela se inclinou na direção de Kyle. Os mamilos
se eriçaram, se intumesceram, endureceram, implorando mais, qualquer coisa, tudo.

Ele a mudou de posição novamente, curvando o corpo dela até deixá-la de joelhos na beirada da cama com as pernas dobradas sob o corpo. Um tremor incrivelmente erótico
estremeceu suas ancas.

Ele levantou o quadril dela. Ela esperou, ofegante, tão excitada que não conseguia aguentar. O corpo latejava na expectativa. Rose imaginou o que ele via, as nádegas
viradas para ele, mostrando aquela carne escondida. A imagem despudorada só a excitou mais.

Ele não a possuiu imediatamente. Deixou-a esperar, chegar à beira da loucura. Ficou acariciando as nádegas dela, roçando as curvas da pele, olhando para ela, com
certeza. Assistiu à submissa rendição e ao seu desespero.

Tocou-a de novo, ela gritou. Desta vez foi diferente. Rose estava exposta e aberta e sabia que ele olhava, sabia que via o corpo nu. Ela desceu mais as costas e
levantou mais as nádegas.

Dali a pouco, estava implorando. Implorando, gemendo e abafando os gritos nos lençóis. Finalmente, ele a penetrou numa estocada longa e lenta, proposital. Abaixo
de seu gemido de prazer, ela teve a impressão de ouvir o dele também.

Depois, ela se perdeu. Tudo o que sentia era o torturante prazer da necessidade de ser preenchida e a violenta intensidade da completude.

 

- Você veio aqui para ver Cottington antes que ele morra?

Rose estava nos braços de Kyle, sob os lençóis. Fazia algum tempo que ele tinha levantado o corpo lânguido dela e a colocado ali de maneira a ficar colada nele,
que estava sentado, com as costas apoiadas na cabeceira. A vela ainda iluminava a satisfação dos dois.

- Um dos motivos foi esse. Vou tentar vê-lo amanhã.

- Tentar? Ele não recebe você mais?

- Não sabe que eu o procurei. O secretário e o médico dele só avisam das visitas se quiserem. Agora é assim.

Ela achou que, provavelmente, tinha sido sempre assim. Era comum que condes tivessem empregados para evitar serem incomodados se não quisessem. Agora que Cottington
estava doente, eram outras pessoas que decidiam quando ele queria ou não. Só isso mudara.

- Se ele não puder recebê-lo agora, talvez receba na primavera, quando você planeja voltar.

- Acho que ele não estará vivo na primavera.

Ela concluiu que Kyle tinha ouvido falar que o conde estava à beira da morte. Por isso tinha ido ao norte agora.

- Vai ser muito triste não se despedir dele, depois de tudo o que fez por você. Certamente, o secretário dele sabe disso.

- Para o secretário, eu sou só o garoto de Teeslow - explicou Kyle, inclinando a cabeça e dando um beijo distraído nos cabelos dela. - Não é só me despedir. Quero
ver se ele ainda está consciente. Preciso pedir um último favor para os mineiros.

- É sobre a reabertura do túnel?

- Sim. Alguns homens querem impedir, só que de uma forma que só vai prejudicá-los.

- Poderia dar certo, se todos eles...

- Não serão todos. Há famílias que perderam parentes no desmoronamento e vão querer a reabertura para poderem enterrar seus mortos.

- Você disse que seu pai morreu num acidente. Foi nesse, não?

Ele concordou com a cabeça.

- Eu também gostaria de enterrá-lo. Mas aquele túnel jamais será seguro, a menos que as coisas sejam feitas de outra maneira. As paredes se movem.

- O túnel é de rocha. Rocha não se move.

- A terra é uma coisa viva, Rose. Antes de construir, preciso ver se o terreno é firme. A mina não está em terra firme e a parte daquele túnel é a pior. Sei disso
desde menino. Eu vi.

Ela sentou e se virou para ele. Ao olhá-lo, sentiu um eco dos tremores da noite. Não era possível a uma mulher deixar um homem fazer aquelas coisas sem depois ficar
em desvantagem com ele. Rose sentia que cedera o controle de outras formas também, que estavam entre os dois agora, incentivando aqueles tremores.

- Quanto tempo você trabalhou na mina, Kyle?

- Entrei pela primeira vez aos 8 anos. As crianças carregam o carvão em cestos. Geralmente, começam aos 9 ou 10 anos, mas eu era grande para a idade. Não tão grande
quanto um homem. Por isso, eu via o que eles não viam porque tinham de ficar abaixados. Havia fendas acima e quase no alto das paredes. Acompanhei a movimentação
delas durante meses. Avisei ao meu pai. Ele e os outros mineiros não acharam perigoso porque não viram e não notaram as mudanças. Até que um dia... caiu tudo. Dez
homens foram enterrados vivos do outro lado de uma parede nova.

- E ficaram simplesmente abandonados lá?

- Ninguém é abandonado, a menos que não haja opção. Começaram a cavar para retirá-los, mas isso fez mais pedras caírem, e outro mineiro morreu. Então ninguém mais
cavou. Fizeram uma cerimônia religiosa. Rezaram. E dois dias depois os homens voltaram à mina. Menos os parentes dos que estavam soterrados. Esses esperaram uma
semana. À essa altura, quem tinha ficado preso teria morrido. Por falta de ar e de água.

Ela imaginou Kyle de vigília com os tios. Viu o menino pensando no pai atrás daquela parede de rocha, talvez ainda vivo, mas sem poder ser socorrido.

- Eu disse aos homens que devíamos cavar por cima do túnel. Fazer um buraco para entrar ar até encontrarmos uma forma de tirá-los de lá. Ninguém dava ouvidos a uma
criança, muito menos os supervisores dos donos da mina. Hoje, sei que isso poderia dar certo. Um engenheiro podia fazer isso. Eu posso, se houver um desmoronamento
num túnel lateral.

Sim, provavelmente podia, mesmo se o terreno fosse desfavorável. Se preciso, ele cavaria com as próprias mãos, pensou ela. Se ele decidisse, não havia rocha nem
terra que o impedisse.

Ele contara sua história e respondera às perguntas de Rose. Ela sabia que agora ele pensava em outras coisas. Tinha deixado a vela acesa por um motivo.

Kyle a pegou pelo braço e a puxou em sua direção. Sentou-a de frente, com as pernas envolvendo as dele.

Ele olhou as mãos cobrirem os seios dela e os dedos roçarem os grandes mamilos escuros.

- Vi você muito bem no escuro ou, pelo menos, minha imaginação viu. Mas prefiro assim.

Em outras palavras, não queria mais que as lamparinas e velas fossem apagadas como se ela fosse uma dama. Ela não se importava. Assim também podia vê-lo. Mas ia
demorar um pouco para não ficar tímida quando o marido olhasse para o corpo dela como fazia agora.

Ele a ergueu e a posicionou sobre sua perna, lambendo e mordiscando os seios dela. A posição em que estavam permitia que ela também o acariciasse.

- Acho que você devia me levar quando for a Kirtonlow tentar falar com Cottington - sugeriu Rose.

Os dedos dele substituíram a boca, permitindo que respondesse.

- Não.

Ela imaginou se ele não queria que ela o visse sendo dispensado.

- Se eu for com você, o secretário não vai nos expulsar.

- Vai, sim, e não quero que você seja ofendida.

- É bem mais difícil dizer não a uma dama, Kyle. Diremos para ele não ousar fazer isso, pois o conde não vai gostar, se souber.

- Não.

Ela fez a mão deslizar para baixo no corpo dele, na tentativa de convencê-lo. Envolveu sua ereção e ficou roçando o polegar na cabeça do pênis.

- Você se casou comigo por causa da minha origem, Kyle. Devia me deixar abrir portas quando posso.

O sorriso dele não escondia a tempestade erótica que as carícias causavam.

- Rose, você está usando artifícios femininos para me deixar flexível?

Ela olhou o que sua mão estava fazendo.

- Parece que só estou conseguindo o efeito contrário. Não há nada flexível em você agora. A não ser um pouco, bem aqui. Ela apertou de leve a ponta.

Ele a segurou pela bunda e a ergueu de leve. Ela sabia o que fazer sem instruções, pois parecia natural e necessário. Mexeu-se e se colocou numa posição que permitia
guiá-lo para dentro dela.

O primeiro toque da penetração causou um choque de prazer em seu corpo todo. A sensação a deslumbrou e a fez perder o fôlego. Não se mexeu para ele penetrar mais.
Ficou assim, só um pouco encaixada, deixando os deliciosos tremores se prolongarem.

Ele permitiu, embora o desejo o dominasse tanto que ele cerrava os dentes. Ela se abaixou um pouco para senti-lo melhor.

- Você vai me matar, Rose - gemeu e segurou as pernas dela. - Pode me torturar durante horas outra noite, mas agora...

Puxou-a, descendo-a até seus corpos se aconchegarem.

Depois disso, ele a guiou, as mãos fortes facilitando o movimento das coxas num ritmo de absorção e soltura que ela ditava. Rose descobriu novos prazeres com mudanças
sutis e pressões no corpo. Fechou os olhos e o apertou dentro de si, mais e mais.

Ele então a penetrou mais, tão fundo que ela arfou. Abriu os olhos, o encarou e não conseguiu mais desviar o olhar. Não o via se mexer, mas sentia que era preenchida,
estocada e dominada enquanto seu olhar profundo a convidava a mergulhar em mares cor de safira. No final, ele a segurou forte pelas coxas. Presa, ela se rendeu à
invasão de seu corpo e de sua alma.

O orgasmo violento dela quase doeu de tão intenso. Ela desmoronou sobre ele, o rosto contra seu peito, ligada a ele num abraço forte enquanto o corpo aos poucos
abria mão das últimas palpitações do gozo.

- A que horas você vai amanhã a Kirtonlow Hall? - perguntou ela, depois que a respiração e o coração de ambos se acalmaram.

Um braço estendido. Um lençol ondulando. Ele puxou os lençóis e os prendeu em volta dela.

- Meio-dia, eu acho.

- Quero ir com você. Estarei pronta ao meio-dia.

Esperou o "não" dele. Não veio. Em vez disso, o abraço se ajustou nela, envolvendo-a, e a respiração de Kyle aqueceu sua testa com um beijo.

 

CAPÍTULO 15

As colinas desoladas sumiram a uns dez quilômetros de Kirtonlow Hall e a paisagem foi ficando mais luxuriante a cada momento. A casa surgiu alta e ampla, à beira
de um grande lago que refletia suas pedras cinzentas na água prateada.

Quando a carruagem deles percorreu o caminho de entrada, Rose deu uma olhada em sua roupa e na de Kyle. A gravata dele estava impecável. O casaco, com caimento perfeito
nos ombros. Até a corrente do relógio de colete dele brilhava, fazendo um arco indefectível. Uma gravura de moda não estaria mais correta.

Ela usava os melhores trajes que tinha trazido, um recém-adquirido conjunto lilás com manto bem-cortado e debruado forrado de pele de esquilo cinza. Fora selecionado
para sua bagagem devido à sua praticidade, mas o estilo e o luxo discreto tinham outra finalidade naquele dia. O obediente secretário do conde jamais saberia que
a pele tinha sido de um antigo traje, que ficara completamente fora de moda.

O criado levou o cartão de visitas de Kyle. Dali a pouco, ouviram-se passos de duas pessoas na escada. O criado vinha com um homem baixo e careca.

- Ora, ora. Pelo menos dessa vez o próprio Conway vai me dispensar - resmungou Kyle. - Você tem razão. Ele não ousa mandar uma dama embora sem dar uma explicação.

O Sr. Conway se aproximou com um sorriso simpático.

- Sr. Bradwell. Sra. Bradwell. Infelizmente, o conde está doente demais para receber visitas. Lastimo dizer que ele piorou desde que o senhor esteve aqui na última
vez. Mas, naturalmente, darei qualquer recado, embora não garanta que ele vá entender tudo.


- Meu recado é para o conde apenas, quer ele esteja em boas condições ou não - disse Kyle. - Já que está piorando, insisto em vê-lo.

O sorriso do Sr. Conway perdeu a força.

- Eu também tenho um recado para dar pessoalmente - disse Rose. - Lorde Easterbrook me encarregou de transmitir suas palavras exatas a lorde Cottington.

- Lorde Easterbrook!

- É meu parente indireto. Vou regularmente à casa dele em Londres e ele aceitou incluir meu marido e a mim em seu círculo pessoal.

O Sr. Conway franziu o cenho, preocupado, ao saber disso.

- Temo que Easterbrook fique muito zangado se eu voltar a Londres dizendo que não consegui. O senhor parece um criado eficiente e bastante zeloso quanto ao conforto
de seu patrão, mas acho que terei de citar seu nome na minha triste história. Como deve saber, Easterbrook é um tanto excêntrico. Nunca se sabe o que vai fazer,
seja para favorecer ou prejudicar alguém.

Conway piscou com força ao ouvir a ameaça implícita. Rose deu o sorriso mais doce que conseguiu. Kyle ficou parado, mas ela notou um brilho em seus olhos demonstrando
que achara o discurso incrível.

Conway mordeu o lábio enquanto ruminava as ideias.

- Madame, perdoe. Não sabia do seu parentesco com o marquês. Mas lorde Norbury insistiu para que não permitíssemos que o pai ficasse agitado por receber visitas.

- Agitado? A sua presença o deixa agitado, meu caro senhor?

- Claro que não. Ele me conhece tão bem que...

- Então o Sr. Bradwell também não vai agitá-lo. O conde conhece meu marido tão bem quanto conhece o senhor. Mais até, eu diria. Transmitirei os cumprimentos de Easterbrook
e os deixarei a sós, para evitar qualquer agitação. Quanto a lorde Norbury, como não está em casa, a menos que o senhor o avise, ele não precisa saber da visita,
e dessa forma jamais precisará desperdiçar seu tempo avaliando se somos visitas que causam agitação ao pai.

Rose deixou que sua expressão e postura mostrassem que presumia ser atendida. O Sr. Conway pareceu aliviado com as justificativas que ela arrumara.

- Sendo assim... sim, levarei os senhores até ele. Tratando-se de visitas como os senhores, não se pode falar em agitação. Por favor, sigam-me, senhora. Sir.

Eles foram atrás do Sr. Conway, que se encaminhou para a grande escadaria. Kyle deu o braço à esposa e aproximou o rosto do dela.

- Não sabia que você tinha um recado de Easterbrook - murmurou. - Devia ter me dito.

- Tenho certeza de que ele gostaria de enviar saudações ao colega e votos de pronto restabelecimento.

- Fazemos parte do círculo mais íntimo de Easterbrook, é?

- Ninguém sabe se ele tem algum círculo além da família. Eu de fato visito Henrietta. Ele gosta muito de Alexia. Não creio que eu tenha exatamente faltado à verdade.

- Você não faltou à verdade. Você foi magnífica.

- É justo que você receba algum benefício deste casamento. Meus relacionamentos são o único dote que posso oferecer.

Ele apertou a mão dela.

- Hoje de manhã, a última coisa em que pensei foi nas vantagens que obteria dos seus relacionamentos.

A insinuação a agradou. Ecos dos tremores da noite, capazes de agitar almas, se manifestaram de seu jeito calmo e devastador. Ela se concentrou nas costas do Sr.
Conway para manter a compostura, mas só o mistério masculino ao seu lado chamava sua atenção. Imagens passaram, lindas, impressionantes, das várias maneiras como
ele a fizera conhecer o erotismo da intimidade do casal.

Seus últimos passos rumo aos aposentos do conde foram inseguros. Súbito, o rosto do Sr. Conway apareceu na frente dela.

- Por favor, aguardem aqui. Preciso anunciá-los e confirmar se pode recebê-los. Se não puder, tentaremos amanhã.

Conway entrou no quarto e voltou logo. Abriu a porta branca almofadada e deu passagem.

O conde estava sentado numa grande poltrona verde ao lado da lareira acesa. Mantas cobriam as pernas e os pés, que descansavam num suporte. A idade e a doença tinham
reduzido qualquer semelhança com o filho, exceto talvez por certo orgulho.

Os cabelos grisalhos do conde tinham sido cuidadosamente penteados e o rosto, muito bem barbeado. Apesar da doença, seu criado pessoal o arrumara com gravata e um
colete de seda colorido. Rose esperava que a parte escondida pela manta também estivesse apresentável num dia em que ele não esperava sair daquela cadeira.

O casal foi examinado por olhos bem mais argutos que os de Norbury. Surgiu um sorriso no rosto pálido. Que foi só de um lado da boca. O resto ficou flácido, consequência
das apoplexias que o conde sofrera.

- Bem, aproxime-se, Bradwell. Traga sua esposa aqui para eu vê-la.

A doença não afetara o tom de comando, apesar de ter enrolado as palavras.

Kyle conduziu Rose e fez as apresentações formais. O conde a olhou dos pés à cabeça.

- Conway disse que tem um recado para mim, Sra. Bradwell. De Easterbrook.

- Tenho, sim. O marquês envia seus cumprimentos e sinceros votos por uma pronta recuperação.

- É mesmo? Não vejo Easterbrook há anos. Desde que voltou tão estranho e diferente daquela viagem para Deus sabe onde. Não fui muito a Londres. Que generoso ele
se lembrar de mim e enviar cumprimentos.

O tom era sarcástico e os olhos, bastante espertos. Rose procurou não corar ao ver que ele tinha percebido o ardil facilmente.

- Leve uma resposta ao marquês, Sra. Bradwell. Faria isso por um velho moribundo?

- Claro, Sir.

- Diga que ele foge vergonhosamente aos seus deveres. Que está na hora de parar de ser excêntrico e participar do mundo. Precisa casar, ter um herdeiro e assumir
seu posto no governo. Aquela família é muito inteligente para desperdiçar isso e a vida não é para ser levada como se quer. Essa é a maldita verdade.

- Prometo que transmitirei sua opinião.

- Opinião? Diabos! Palavra por palavra, é como vai transmitir, sem suavizar nada, como fazem as mulheres - exigiu ele, e um riso rouco escapuliu. - Mas espere até
eu morrer. Se ele não gostar, pode se vingar no meu filho.

- Se devo esperar até que o senhor morra, garanto que vou demorar a cumprir essa obrigação. Com sua licença, sairei para deixar que meu marido fale com o senhor
a sós.

 

Cottington observou Rose sair do quarto. Fez um gesto para seu secretário.

- Pode ir. Se eu precisar de você, o Sr. Bradwell o chamará.

Assim que Conway saiu, o conde deu outra ordem.

- Tem conhaque naquele armário lá, Kyle. Sirva um pouco para mim e para você, se quiser. Eles não me deixam beber nada. Acham que devo enfrentar a morte completamente
sóbrio.

Kyle achou o conhaque e os copos, serviu um dedo para cada um. O conde bebeu como se fosse um néctar.

- É infernal ser tratado como criança. Agora estou melhor que há quinze dias. Passei uma semana precisando dos criados até para os cuidados de higiene mais elementares.

- Parece então que está se recuperando.

- Morro até chegar o verão, se não antes. Não preciso que o médico me diga. Eu sei. É estranho, mas a pessoa sabe.

Descansou o copo e usou um lenço para enxugar o conhaque que tinha escorrido no lado paralisado da boca.

- Linda a sua esposa. O bastante para fazer com que o resto não tenha muita importância, imagino. O irmão, coisa e tal.

- Quanto ao coisa e tal, obrigado pelo presente de casamento.

O conde achou graça.

- Meu filho vai ficar furioso. Seria melhor se você não se tivesse se envolvido desta vez. Azar. Seria melhor que não tivesse sido você a forçá-lo pela segunda vez
a encarar o próprio comportamento desonroso.

Apesar do riso, os olhos do conde mostravam muita tristeza. Piscou para afastá-la. Norbury era apenas mais uma decepção numa vida que, como todas, tinha várias.

- Quer dizer que veio até aqui para se despedir, não? Gostei.

- Sim, mas também trago um pedido, que não sabia que faria até que cheguei a Teeslow.

- Não posso fazer mais nada por ninguém.

Kyle falou sobre a mina. O conde ouviu, sério.

- Era uma rica jazida - disse ele. - Quiseram voltar alguns anos depois, eu impedi. Já tinha vendido quase tudo, mas minha opinião ainda importava. Às vezes, ser
conde ajuda. Meu filho não vai agir como eu. Mesmo assim, vou escrever e usar a minha influência, mas quando eu morrer...

Quando ele morresse, o desejo de lucro pesaria mais numa avaliação em que a vida dos homens valia pouco.

- Mesmo se demorarem alguns meses, vai dar tempo de se acalmarem - disse Kyle. - Os mineiros estão com os ânimos exaltados. Se houver uma voz forte, um líder, haverá
problema.

O conde suspirou e fechou os olhos. Ficou assim tanto tempo que pareceu ter caído no sono. Kyle tinha resolvido sair sem fazer barulho, quando o conde voltou a falar.

- Não vamos nos ver mais, Sr. Bradwell. Se quer perguntar alguma coisa, tem que ser agora. - Os olhos se abriram e o encararam. - Tem perguntas, não?

Kyle tinha várias. A mais recente, entretanto, não podia ser feita. Embora ela permanecesse em sua mente. Não podia perguntar a um moribundo se seu único filho tinha
sido pior quando menino do que quando adulto.

- Tenho uma pergunta.

- Pois faça.

- Por quê?

- Por que o quê?

- Fez tudo por mim. Por quê?

- Ah. Essa pergunta - falou o conde e parou para pensar. - Fiz, em parte, por impulso. Em parte, por instinto.

De novo aquele sorriso pela metade.

- Primeiro, eu sabia que, se você ficasse em Teeslow, os mineiros teriam uma voz e um líder dali a poucos anos, quando você ficasse adulto.

Kyle o observou, avaliando se o conde falava sério. Durante todos os anos em que trocaram generosidade e gratidão, nunca lhe passara pela cabeça que o conde tivesse
motivos ocultos. Principalmente, porque Kyle não achava que a generosidade pudesse trazer alguma vantagem para um conde.

- Bom, não foi só por isso. Lá, você seria desperdiçado. Percebi logo. Vi em seus olhos e em sua determinação. Naquele dia, quando você chegou todo limpo e arrumado,
vi o homem que um dia poderia ser. Já tinha ouvido falar em você. Soube do menino que sugeriu que cavássemos de cima para chegar àquele túnel quando ele desmoronou.

- Teria dado certo.

- Não interessa se eu achava que ia ou não. O simples fato de que um menino pensasse isso e ousasse propor... Trouxeram você até mim no dia seguinte ao que bateu
em meu filho, e a lembrança do administrador rindo daquela audácia veio à minha cabeça não sei como. Eu sabia que aquele menino tinha sido você. Sabia, mas, de todo
jeito, conferi.

Enxugou a saliva que se formou no canto da boca.

- Depois, aquela questão com meu filho. Lá estava você outra vez, ousando o que muitos homens não ousariam. Portanto, em parte fiz aquilo para você não ser desperdiçado.
E, em parte, para não se tornar um líder deles.

O conde fez uma pausa, então voltou a falar.

- Admito que, em parte, fiz também para castigar meu filho, favorecendo o menino que bateu nele. Claro que isso não adiantou muito. Como você sabe mais que qualquer
um, ele até hoje se comporta de maneira vergonhosa com as mulheres.

Era isso. Kyle já sabia quase tudo. A generosidade não tivera motivações totalmente caridosas, mas poucos atos ou decisões humanos tinham.

O rosto inteiro do conde perdeu a firmeza. Como se o dano do lado ruim invadisse o lado bom.

- O senhor está cansado, precisa repousar. Vou embora. Obrigado por me receber.

Antes que Kyle pudesse se afastar, o conde esticou a mão para ele. Kyle a segurou e, pela primeira vez, sentiu o cumprimento daquele homem como o de um amigo.

- Você não é pior por isso, não importa o motivo - disse o conde, com voz enrolada. - Mas imagino que, de vez em quando, deseje que eu não houvesse interferido.

- Se pesarmos as perdas e os ganhos, veremos que lucrei muito. Mas, sejam quais foram os seus motivos, agradeço. Jamais o esquecerei. Nem meus filhos e os filhos
deles.

O aperto de mão ficou mais forte. Os olhos do velho pareceram cobertos por uma fina película. Fechou-os. A mão caiu, depois subiu num gesto derradeiro de bênção
e despedida.

 

Quando saiu do quarto de Cottington, Kyle parecia calmo. Rose o deixou com seus pensamentos enquanto desciam a escada e saíam no frio.

Ele não entrou logo na carruagem; deu uma volta e olhou o lago. Ela o seguiu e esperou. Não estava se despedindo apenas de um homem. Com a morte de Cottington, uma
fase inteira de sua vida terminaria.

- Você veio aqui muitas vezes? - perguntou ela.

- Não muitas. Mas, quando fui embora para estudar, o conde mandava me chamar sempre que eu vinha para casa entre os períodos de aula. Na primeira vez, metade do
vilarejo seguiu o mensageiro até a casinha do meu tio: queriam saber o que estava acontecendo.


- O conde recebia você regularmente, portanto.

- Sim. Talvez fizesse parte do aprendizado.

- É mais provável que quisesse saber do seu progresso. E você trazia notícias de Durham, mais tarde de Paris e Londres. Garanto que a sua conversa era mais interessante
do que a da maioria das pessoas aqui do condado.

- Talvez.

Ele deixou a carruagem esperar enquanto caminhava pela propriedade.

Rose o acompanhou.

- Falou com ele sobre a mina?

Kyle concordou com a cabeça.

- Ele vai fazer o possível, mas, no máximo, a obra será adiada. Isso pode dar tempo para verem o que é mais seguro. Há como fazer isso.

Ele não parecia acreditar que fossem fazer o mais seguro.

- Acho que você fez tudo o que podia.

- Fiz?

Eles viraram e voltaram para a carruagem.

- Você está calado, Kyle. O encontro não foi bom? Não pôde falar o que queria?

- O encontro foi muito bom. Ele estava aberto a perguntas e respondeu tudo o que, em sã consciência, eu podia perguntar.

- Tinha alguma coisa que você não podia perguntar?

- Só uma. Eu queria saber, pois ele é a única pessoa que responderia honestamente. Mas, ao vê-lo... achei que o assunto só lhe traria tristeza e era só para satisfazer
a minha curiosidade.

- Se só restou uma pergunta entre os dois, o encontro foi muito bom. Acho que poucas pessoas que se conhecem têm apenas uma pergunta não respondida.

Kyle encarou a esposa. De repente, não estavam mais falando de Cottington, mas de si mesmos.

- Ele está morrendo, Rose. Não tem mais nada a perder por dar respostas. Não haverá orgulho ferido nem consequências ruins. Nem para quem pergunta nem para quem
responde.

Chegaram à carruagem. Ele ficou menos calado na viagem de volta a Teeslow.

- Você também está pensativa, Rose. Tem alguma pergunta?

- Tenho várias, mas não é por isso que estou séria. Penso se sobreviverei ao encontro com Easterbrook quando fizer a reclamação de Cottington.

 

A carruagem estava quase passando de Teeslow, quando Kyle reparou no silêncio. Tinha ficado tão perdido em pensamentos que o silêncio incomum não chamara sua atenção.

Mandou a carruagem parar. Olhou pela janela.

Rose também olhou.

- O que foi? Acho que está tudo calmo.

- Calmo demais. A essa hora, a estrada devia ter mais movimento. As mulheres deviam estar aqui.

Ele apurou os ouvidos, atento. Olhou para os telhados das casas e chalés. Onde estariam todos? Na mina? Era cedo demais para terem agido. Sobravam apenas a taberna
ou a igreja.

Abriu a porta da carruagem e saltou. Rose segurou a saia e estendeu a mão.

- Não, Rose. A carruagem vai levar você até Pru. Eu volto logo.

- Acha que haverá agitação? Perigo?

- Não, mas eu...

- Se não há perigo, não precisa me mandar para casa. Tenho curiosidade por esse vilarejo. Se vai fazer uma visita, quero acompanhá-lo.

Ele colocou o braço no batente da carruagem, impedindo que ela descesse.

- Nos últimos dias, você anda muito curiosa.

- É da natureza feminina. E descobri que satisfazer a curiosidade pode ser prazeroso.

Ela se referia à noite anterior. O que o deixou excitado. Ele ficou cheio de lembranças, de gritos implorando, de toques tímidos mas firmes, das costas dela abaixando
e das nádegas subindo. Das pernas envolvendo-o, ele se perdendo em sua calidez e os dois girando num abraço de corpos e olhares grudados.

As lembranças lhe deram vontade de beijá-la e de possuí-la bem ali, na estrada. Fizeram com que esquecesse todos os motivos por que ela deveria voltar para a casa
dos tios.

Com um olhar atrevido, ela o transformara num idiota.

- Pensa em me mandar para casa, Kyle? Então, devo avisar que os maridos têm um número finito de ordens a dar às esposas e seria tolice desperdiçá-las em bobagens.

Onde estaria sua dócil esposa? A noite anterior tinha mudado mais do que o calor e a intensidade da paixão deles. A formalidade sutil daquele casamento estava sumindo
rápido.

O olhar dela mostrava um claro desafio.

- Pode vir comigo, Rose, mas só se sair assim que eu mandar. Creio que não haverá agitação, mas posso estar enganado. Seria melhor você voltar quando...

Ela olhou para baixo.

Diabos.

Ele disse ao cocheiro onde aguardar e ajudou Rose a descer.

 

O vilarejo estava reunido na igreja. Ouviu as vozes enquanto ele e Rose se aproximavam da velha construção de pedra, com sua torre na fachada. Séculos antes, a igreja
fazia parte de um convento nas terras cedidas por um antepassado de Cottington. Até descobrirem carvão nos arredores, Teeslow tinha sido um simples vilarejo de agricultores.

- Os homens não deviam estar na mina agora? - perguntou Rose.

- Sim, trabalhando com as crianças maiores e até com algumas mulheres.

Kyle abriu a antiga porta de madeira e o rugido de uma discussão caiu sobre os dois. Entraram e ficaram nos fundos da nave. Poucas pessoas notaram a chegada deles.
Todas as atenções se concentravam nos homens que estavam na frente do altar. Jon estava lá, com os cabelos louros revoltos, tentando fazer prevalecer sua vontade.

Isso parecia impossível. As vozes se cruzavam e se interrompiam. Os ânimos estavam exaltados e agressivos. Gritos de incentivo e de mofa competiam.

- Não consigo nem entender o que está sendo discutido - cochichou Rose.

- Os mineiros receberam ordem hoje de tirar aquela pedra que caiu. Em vez disso, eles foram embora. Estão tentando decidir o que fazer amanhã.

- Pensei que você tinha dito que o túnel desmoronou ainda mais na última vez em que tentaram.

- Os donos da mina enviaram um engenheiro, que garantiu que não haverá outro desmoronamento.

Jon fazia com que algumas vozes atendessem ao seu pedido de não entrar na mina. Mas não era o suficiente, o que significava que não ia resolver nada.

As vozes chegaram até Kyle. Identificou quase todas. Conhecia aqueles homens e brincara com alguns deles nas estradas, quando menino.

Percorreu com o olhar as famílias presentes e parou numa bonita ruiva de pele clara, que segurava duas crianças pelas mãos. Fora com ela que trocara o primeiro beijo,
aos 14 anos.

Uma mulher bem mais bonita estava ao lado dele agora. Ninguém a havia notado ainda, mas notariam logo. A roupa que tinha impressionado Conway parecia ainda mais
luxuosa ali, com seu debrum de pele e seus bordados caros. O gorro que ela usava contrastava com os lenços que as mulheres tinham na cabeça. A pouca luz da velha
igreja parecia se concentrar nela, fazendo sua beleza loura irradiar.

- Temos de ir embora - disse ele.

- Se eu não estivesse aqui, você iria?

Ele não sabia. Aquele não era mais o mundo dele. Não era a luta dele.

- Vou embora se a minha presença comprometer o que você disser, se para eles eu provo apenas que você percorreu um longo caminho, saindo desse vilarejo - disse ela.
- Mas se só sirvo para lembrar o que perderia se falasse, então mais uma pergunta foi respondida, e da maneira que eu não esperava.

Roselyn se virou para o marido.

- Você ainda não é um estranho para eles, mesmo se eles forem cada vez mais estranhos para você.

A compreensão o emocionou. O fato de tentar entender o tocou profundamente.

Ele saiu do lado dela e procurou Jon. Como a cabeça dele estava acima das outras na nave, a voz chegou lá.

- Jon, você sabe que não está pronto para isso. Você disse ombro a ombro, mas parece que há ombros aqui que não ficarão ao seu lado.

O barulho diminuiu. Jon o viu.

- Temos aqui um cavalheiro para nos aconselhar. Trouxe sua elegante esposa. Que sorte a nossa de termos o conselho dele.

Kyle não olhou para trás, mas soube pelos murmúrios e exclamações que notaram a presença de Rose.

- Trouxe minha esposa para conhecer meus velhos amigos, Jon. Imagine a minha surpresa ao encontrar uma reunião política nesta igreja. O que esperam ganhar se ficarem
parados, a não ser muitas mulheres e crianças com fome?

- Menos corpos para enterrar.

- Falei hoje com Cottington. Ele vai escrever para os sócios. O túnel não será aberto enquanto ele estiver vivo.

- Você nos conseguiu alguns dias, talvez algumas semanas, nada mais.

- Já basta para garantir que, quando o túnel for aberto, será seguro.

Jon fez pouco.

- Seguro! Disseram hoje para retirarmos aquela pedra. Encontraram um engenheiro que garante que o túnel já é seguro.

- Então você precisa achar alguém que discorde. Alguém que não receba salário dos donos e que tenha estudos para basear suas conclusões.

Kyle foi até a frente da nave.

- Alguém como eu.

Jon consultou os quatro homens que o rodeavam. A igreja ficou num silêncio tenso enquanto eles discutiam.

- Você vai entrar lá? - perguntou o mais velho dos homens, com leve zombaria.

Chamava-se Peter MacLaran e era o radical dos tempos anteriores, que agora passava a coroa para Jon.

- Vai sujar seus casacos elegantes, meu senhor. E pode levar alguns dias. Perderia aqueles jantares finos em Londres.

O sarcasmo de Peter recebeu algumas risadinhas.

- Entro agora mesmo. Não será a primeira vez. Os casacos podem ficar aqui. Arrume umas botas emprestadas para mim e cinco homens que me acompanhem, e começamos hoje.
Não sairei de Teeslow enquanto não souber o que preciso. Se o túnel for perigoso, vou dizer num relatório. Se puder ficar seguro, vou mostrar como. Se, mesmo assim,
eles prosseguirem e houver outro desmoronamento, o relatório vai enforcá-los.

- Eles não vão permitir.

- O nome de Cottington vai me ajudar. Ele ainda não morreu.

Não esperou que Jon e Peter concordassem. Os gritos em volta mostravam que Kyle tinha vencido a discussão.

Ele voltou para onde Rose estava.

- Você deve voltar para Pru agora. Vou levá-la até a carruagem.

- Posso ir sozinha. Faça o que precisa.

Ele desabotoou os casacos, tirou-os e os entregou à esposa. Surgiu um menino trazendo um par de botas. Kyle sentou e as calçou. Cinco mineiros dos mais experientes
esperavam na porta da igreja, com lamparinas.

Rose segurou os casacos e olhou os preparativos. Ficou tão interessada que parecia assistir a um ritual em alguma terra exótica.

- Avise a Pru que vou precisar de muita água quente quando chegar em casa - disse ele.

Ela se esticou para falar no ouvido dele.

- Espero que precise de um bom banho. Talvez esteja tão cansado que eu tenha de ajudar.

Ele ficou excitado na hora. Lembrar-se da noite anterior, das noites por vir, daquele banho, só fez piorar as coisas.

Ele trincou os dentes, olhou para o chão de pedra e se controlou.

- Rose. Querida. Vou ficar horas num poço escuro. Isso foi maldade sua.

Ela nem fingiu constrangimento. Quando ele foi embora, Rose parecia bem satisfeita consigo mesma.


CONTINUA

CAPÍTULO 9

No centro financeiro da cidade, um empregado conduziu Kyle para uma sala sóbria que fazia parte de uma série de cômodos bastante apropriados a alguém como um advogado.
Kyle imaginou que houvesse um quarto ao fundo, atrás da porta fechada e em frente à janela veneziana de vidraça em semicírculo no topo.

A carta que ele tinha enviado a lorde Hayden motivara o convite para ir até lá. Aqueles cômodos davam a impressão de que seu anfitrião os usava não apenas para negócios.
Para encontrar mulheres, talvez, quando ainda era solteiro. Para tratar de assuntos pessoais, como os que deviam estar escritos nas folhas empilhadas na escrivaninha
perto da janela.

Lorde Hayden o cumprimentou. Sentaram-se em duas poltronas forradas de vermelho-escuro, perto da lareira.

A lembrança de seu último encontro particular era uma sombra sobre eles. Lorde Hayden Rothwell tinha ido à casa de Kyle, após um convite como esse de agora ter sido
recusado.

- A Srta. Longworth me pediu para falar em nome dela - disse lorde Hayden. - Disse que foi você quem sugeriu esse arranjo.

- Ela foi pouco prática em não dar importância aos termos financeiros quando avaliou minha proposta de casamento.

Lorde Hayden se estirou na poltrona como se uma conversa amena fizesse parte do ritual do acordo.

- Não a conheci antes da falência do irmão. Ela me culpou por isso e, embora agora saiba a verdade, ainda há muita formalidade entre nós. Conheci bem o irmão mais
velho, mas não as irmãs.

- O irmão mais velho era Benjamin, que morreu há alguns anos.

Lorde Hayden ficou sério, assumindo a máscara que costumava exibir para o mundo.

- Minha esposa disse que a prima mudou muito há um ano. E que aquele caso com Norbury foi fruto da má avaliação de uma mulher em profunda melancolia. A negligência
em relação aos termos financeiros de seu pedido certamente também é um reflexo de seu estado de espírito.

- Então é melhor cuidarmos do assunto por ela. Seu estado de espírito pode estar mudado, mas não é melancólico. Não estou me aproveitando de uma mulher incapaz de
tomar decisões sensatas.

- Eu não quis dizer que estivesse. Mesmo se estivesse, essa chance que ela terá... Ficarei feliz por ela poder voltar a ter contato com minha esposa.

Para alguém que ficaria feliz com algo naquele casamento, lorde Hayden estava demorando a negociar os detalhes.

- Não esperava fazer agora o papel de pai em acertos de casamento, e não me sinto muito à vontade, Bradwell. Infelizmente, sei mais do que gostaria e sou forçado
a tratar de mais que meros trocados.

- Espero que acredite que minhas intenções são honradas.

- Não estou preocupado com isso e acho que você sabe.

Claro que Kyle sabia. Só não sabia qual papel lorde Hayden iria assumir.

- Ela comentou dos delitos cometidos por Timothy? Se não comentou, não a culpo - disse o lorde.

- Ela foi muito sincera e insistiu que eu ouvisse tudo.

- Corajosa.

- Acho que ela pensou que eu retiraria o pedido quando soubesse, portanto foi bastante corajosa.

Na verdade, ele achava que ela esperava que retirasse e a poupasse de tomar uma decisão. Ela não confiava mais na própria cabeça.

- Foi tão sincero quanto ela?

- Eu disse que sabia o que o irmão tinha feito e que conheço uma das vítimas dele.

- Diabos, você foi uma das vítimas, também teve prejuízo.

- Só porque assumi a dívida. Podia ter escolhido outras saídas.

Na verdade, Kyle só tinha uma. Aquela que estava conversando com ele no momento. Ou ele ressarcia o dinheiro tirando do próprio bolso ou deixava o fundo zerado.
E isso ele não podia fazer.

- Ela sabe que você não quis ser ressarcido?

- Não. Acha que devo contar?

- Não sei que diabos eu acho.

Lorde Hayden se levantou. Com os lábios apertados e o cenho franzido, andou pela sala com a mesma dúvida que atormentara Kyle várias vezes nas últimas semanas.

- Ela planejava encontrar o irmão - informou Kyle. - Recebeu outra carta dele, pedindo para encontrá-lo.

- Maldição - rosnou lorde Hayden e balançou a cabeça. - Mas, se você não a está enganando, não está sendo totalmente sincero.

Mais um pedido de honestidade total, como se isso fosse não só possível como normal.

Faria negócios com aquele homem no futuro. Não queria que lorde Hayden pensasse que ele era um mentiroso ou um canalha. Tentaria explicar, embora quase nunca se
explicasse a ninguém.

Levantou-se também e andou pela sala enquanto pensava o que dizer. Os passos o levaram para perto da escrivaninha. Deu uma olhada nas folhas soltas. Estavam cheias
de números e anotações. Era ali que lorde Hayden fazia os estudos matemáticos pelos quais diziam que era apaixonado.

- Diga, lorde Hayden, o que todo mundo deduziria se soubesse do delito de Longworth e a irmã fosse encontrá-lo?

- Mas não é todo mundo que sabe.

- Vai saber. Um dia. É inevitável. Muita gente foi prejudicada e o fato não vai continuar em segredo.

A segurança dele assustou lorde Hayden.

- Todos foram ressarcidos, ora - argumentou, mas, olhando para Kyle, completou: - Menos você.

- Foram ressarcidos do dinheiro, mas não da ofensa. Você avaliou mal.

Lorde Hayden não gostou dessa hipótese. Um suspiro de frustração mostrou como era desgastante aquela conversa sobre Longworth.

- Se Roselyn estivesse com ele quando isso acontecesse, certamente seria considerada cúmplice.

- Concordo. Portanto, devo contar tudo a ela? Se contar, se ela souber do meu envolvimento, pode mudar de ideia quanto ao casamento. Pode correr para o irmão, seja
para salvá-lo, ajudá-lo, ou para fugir da própria vergonha. Ela sabe que esse segredo não vai durar muito, mesmo que você discorde.

Lorde Hayden olhou Kyle com atenção, um olhar parecido com o que Easterbrook lhe dedicara.

- Foi por isso que você recusou o dinheiro? Por orgulho, como os outros homens que citou?

- O delito não foi seu. Por que deveria pagar? E também pagou caro. Uma quantia enorme por algo de que não tinha culpa. Se eu aceitasse o seu dinheiro, seria ressarcido
às custas de outra vítima, nada mais.

- Uma vítima por opção, o que é diferente. Acho que, no fundo, foi orgulho.

A arrogância de lorde Hayden incomodou Kyle. Fez um gesto mostrando a sala.

- Nenhuma conspiração financeira foi elaborada aqui nos últimos tempos. Nenhuma associação de empresas se formou aqui. Você continua na mesma casa, que é modesta
para os padrões de Mayfair. Mesmo você sentiu o baque de pagar todo aquele dinheiro. Eu devia desfalcá-lo em mais 20 mil? Concordar com o suborno que você me propôs?

- Suborno? Maldição! O seu bolso não seria prejudicado pelo delito de Timothy, só isso.

- Você não restituiu o dinheiro para eles apenas, exigiu que esquecessem a trapaça. Silêncio em troca de dinheiro foi parte do acordo. Seria bom se cada pecador
tivesse um anjo como você para defendê-lo.

Ele esperou que houvesse uma contra-argumentação, até raivosa. Mas lorde Hayden passou a mão na testa e falou, resignado.

- E quando acontecer justamente o que espera, Bradwell? A Justiça vai exigir que ele pague com a vida. Se esse dia chegar, o que você vai dizer a ela?

- Esse sofrimento a espera, quer ela se case comigo ou não. Se esse dia chegar, vou protegê-la e consolá-la da melhor forma possível.

Lorde Hayden pensou nisso um bom tempo. Depois, foi até a escrivaninha e fez um gesto indicando que Kyle o acompanhasse.

- Vamos preparar os papéis para os advogados. Eu concordaria mais com esse casamento se você tivesse aceitado seu dinheiro de volta. Mas aquele lamentável episódio
já prejudicou as irmãs Longworth demais. Talvez depois do casamento isso pese menos sobre o futuro de Roselyn.

 

- Como está crescida, Srta. Irene - disse o Sr. Preston, com um sorriso. - As mulheres do vilarejo vão passar dias comentando seu gorro.

Irene sorriu enquanto o Sr. Preston contava o dinheiro de Rose e embrulhava os mantimentos que ela comprara.

Ela estava crescida mesmo, pensou Rose. Alexia tinha dado a ideia de apresentar Irene à sociedade na próxima temporada. Estava na hora, sem dúvida, levando em conta
a idade dela, mas talvez fosse cedo demais, considerando outras coisas. Nem seu casamento amenizaria o escândalo a tempo de Irene ser bem recebida na atual temporada.

A ideia de que Irene poderia ter um futuro melhor ajudava Rose a ficar mais calma em relação ao casamento que se aproximava. A ausência de Kyle na última semana
contribuíra para deixá-la agitada. Fora passar o Natal no norte, com os tios que o criaram.

A ausência dele significava que ela podia se concentrar nos preparativos, mas a cada dia tinha mais certeza de que não conhecia o homem com quem ia se casar.

- Estamos todos aguardando o grande dia, Srta. Longworth - disse o Sr. Preston com um sorriso largo. - Permita-me dizer que todos os que conheceram o Sr. Bradwell
no mês passado, quando esteve no vilarejo, exaltaram suas boas maneiras e sua simpatia.

- Obrigada. Espero que o senhor e sua esposa nos deem a honra de sua presença.

- Minha esposa não perderia a festa. Ela sempre diz que certas pessoas se precipitam em acreditar no pior. Ficou triste com a maneira como alguns...

Ele interrompeu a frase de repente e lançou um olhar expressivo na direção de Irene. Os olhos dele se desculpavam por se referir ao escândalo na frente da moça.

- Fico agradecida por sua esposa ter me defendido, Sr. Preston. Tenha um bom dia.

Ela e a irmã mais nova saíram da loja. Irene seguia bem perto dela, com seu marcante gorro de seda encorpada.

- Você acha que o vilarejo inteiro concorda com o Sr. Preston?

- É pouco provável que a Sra. Preston deixasse o marido ser tão simpático se todo o vilarejo discordasse.

- Então, parece estar acontecendo o que Alexia esperava.

- Aqui, sim. Mas Watlington é uma coisa e Londres será outra.

- Acho que em Londres não vai ser ruim. Easterbrook vem ao seu casamento. Quando os jornais publicarem isso, ninguém vai dar atenção às más línguas.

- Como as más línguas gostam muito de falar dele, não acredito que sua presença ajude tanto.

Realizar o casamento no interior tinha sido ideia de Kyle, não de Alexia. Lorde Hayden então oferecera a casa do irmão em Aylesbury Abbey, mas Kyle dissera que preferia
a dos Longworth. Iam se casar na paróquia da infância dela, entre pessoas que a conheciam desde menina.

Rose agora entendia a esperteza disso. Kyle conhecia os moradores de um vilarejo melhor do que um irmão de marquês poderia. O dinheiro que a família gastaria nos
preparativos e a festa aberta a todos os moradores ajudariam mais a criar uma visão favorável sobre aquele escândalo do que dez anos de vida honesta.

Rose e Irene seguiram pela estrada do vilarejo, cumprimentando vizinhos e parando para algumas moças poderem admirar o lindo gorro de Irene. Compraram algumas fitas
e tecidos antes de voltarem para casa.

Muita agitação as aguardava lá. Três carroças cheias de móveis enchiam a entrada da casa. Um exército de criados passava carregando coisas enquanto Alexia ficava
de sentinela na porta da frente, segurando uma grande folha de papel.

- Isso vai para a biblioteca - disse ela para dois homens que carregavam um grande tapete.

- O que você está fazendo? - perguntou Rose, afastando-se para o lado de forma que um guarda-roupa enorme pudesse passar.

- Para o quarto no lado sul - Alexia orientou os três homens que aguentavam o peso do guarda-roupa, depois se dirigiu a Rose: - Você não pode dar uma festa de casamento
numa casa que não tem cadeiras.

- O móvel que passou agora não era cadeira.

- Nem tente ser orgulhosa. Não ouse. Hayden disse que você não aceitaria isso, e não vou deixar que confirme que ele estava certo. Já estou bastante irritada por
ele ter me convencido a esperar tanto para fazer isso. Se viesse um mau tempo, você daria uma festa numa casa vazia na semana que vem.

Um homem passou carregando uma arca nas costas, com muito esforço. Ela deu uma batidinha com a folha de papel no ombro dele.

- Meu bom homem, da próxima vez, espere ajuda. Assim você nem enxerga para onde vai.

- Sou forte, madame. É preciso mais que isso para me derrubar.

- Com certeza, mas se virar para o lado errado, vai arrancar pedaços das paredes. Não temos tempo para refazer o reboco. Escute, Rose, o sótão da casa de Aylesbury
Abbey está cheio de móveis que jamais são usados. É um pecado esse desperdício. E não é presente de Hayden. A casa e tudo o que tem dentro não são dele.

Irene concordou com a cabeça.

- É verdade, Rose. É tudo de Easterbrook.

Uma fila de cadeiras passou por Rose.

- Alexia, o marquês a autorizou a esvaziar o sótão?

Alexia contou o número de cadeiras e consultou o papel.

- Só descobri a quantidade de coisas que havia lá nessa última visita. Mas, na última vez que o vi, conversamos sobre o seu casamento. Comentei que queria ajudar
nos preparativos e ele disse que eu podia usar os criados da casa de Aylesbury e tudo o mais que precisasse - explicou ela e sorriu. - Isso aqui é o "tudo o mais".

Rose imaginou o marquês na casa dela, sendo sarcástico quando não estivesse calado, ao ver aqueles móveis que pareciam bem conhecidos. Depois do casamento de Alexia,
Rose só encontrara o marquês duas vezes; achava-o enigmático e mal-humorado, alguém que poderia se beneficiar bastante do ar puro do campo.

- Bem, ele pode mudar de ideia sobre vir ao casamento - murmurou ela, desejando que não viesse, ainda que a presença dele pudesse contribuir para sua redenção.

Os moradores do vilarejo iam se ocupar tanto em bajulações e em tentar impressionar o marquês no dia do casamento que ninguém ia se divertir.

- Ah, ele virá - disse Alexia. - A tia, Henrietta, ficou dizendo que não viria e ele exigiu que o acompanhasse. Ele agora vai se arrastar de Londres até aqui nem
que seja só para aborrecer a tia.

Irene fez uma careta.

- Ela vem?

Rose seguiu pelo caminho dos carregadores.

- Gostaria de saber se ela algum dia olhou o que tinha naqueles sótãos.

- Suponho que Henrietta inventariou os bens de Easterbrook até o último travesseiro, desde que passou a morar com ele na primavera passada - disse Alexia.

- Então é possível que eu a veja na minha festa de casamento. A cada cadeira e mesa que ela vir, vai levantar as sobrancelhas até juntá-las com a linha dos cabelos.

Alexia e Irene se puseram ao lado dela e seguiram com o fluxo de móveis.

Deixaram os homens se ocuparem de colocar os móveis nos cômodos conforme os desenhos que Alexia tinha feito, e Rose levou a irmã e a prima para o andar de cima,
até o santuário de seu quarto.

A porta do sótão estava aberta. Ela deu uma olhada e viu móveis antigos da casa empilhados. Estranhou que algumas peças estivessem ali.

Em vez de ir para o próprio quarto, ela entrou no quarto sul. Era o maior de todos. Os móveis antigos tinham sido substituídos por outros, trazidos por Alexia. Uma
cama grande aguardava os lençóis e o guarda-roupa recém-chegado brilhava encostado a uma parede. Um toucador masculino estava pronto para receber escovas e objetos
pessoais.

Ela olhou para Alexia, cujo rosto refletia seu senso prático e sua firmeza.

- Está na hora, Rose. Ben já se foi há anos - disse Alexia. - Esta casa em breve terá outra vida e outro dono, e este quarto tem que ser dele.

Rose deu uma olhada no quarto, que estava diferente agora, com objetos estranhos que logo seriam de uma presença estranha. Seu coração se apertou com o aspecto decisivo
que a mudança feita por Alexia representava.

Irene mordeu o lábio inferior.

- Ela tem razão, Rose. Acho que em poucos dias você não vai mais se importar.

Rose pôs o braço no ombro de Irene.

- Não me importo, querida. Alexia está certa. É hora de seguir em frente.

Rose tirou Irene do quarto. Alexia olhou para a prima mais velha quando as duas passaram. O olhar que trocaram foi parecido com o do dia em que se viram na casa
de Phaedra.

Às vezes não havia mesmo escolha. Às vezes só havia uma decisão, uma única coisa possível a fazer, se você quisesse uma chance de ser feliz.

 

CAPÍTULO 10

Na manhã do casamento, Jordan insistiu em arrumar o patrão. Chamou os criados da hospedaria Knight's Lily, em Watlington, e deu ordens como um marechal de campo.
Mandou trazer o café da manhã, preparar o banho e pediu mais toalhas, mais água quente ainda e convocou um assistente enquanto manejava a navalha.

Kyle obedeceu e achou que os criados da pousada não se incomodaram com os mandos. Aquilo lhes dava a chance de participar do casamento que deixara o vilarejo inteiro
alvoroçado.

Enquanto isso, Jordan informava dos preparativos que tinha feito na casa em Londres da futura Sra. Bradwell.

Finalmente, ficou tudo pronto. Jordan ajeitou um colarinho, alisou uma manga de camisa e recuou para dar uma olhada.

- Pronto, e ainda falta uma hora. O colete foi uma ótima escolha, senhor. O leve toque de rosa-escuro no cinza está perfeito, com o azul suave da sobrecasaca.

- Já que você escolheu o colete, é bom que aprove. Ainda acho que um cinza mais claro seria melhor.

- É seu casamento, senhor. Um toque alegre no traje, um toque mínimo, devo dizer, é não só apropriado como esperado - argumentou e, tendo guardado o que restava
de seu arsenal, fez uma reverência para se retirar. - Permita-me dizer, senhor, que está numa elegância como nunca vi. É um privilégio servi-lo neste dia tão feliz
- arrematou.

Kyle olhou no espelho a ótima imagem que o tempo, a experiência e Jordan tinham conseguido formar. Sem dúvida, Kyle se sentia mais elegante, correto e apresentável
que em anos. Lembrou-se do dia em que a tia o arrumara com todo o capricho para ir a Kirtonlow Hall pela primeira vez, a pedido do conde de Cottington. Naquele dia,
ele também ficara pronto uma hora antes e tivera de ficar sozinho e quieto para não suar e estragar a roupa.

Olhou pela janela a rua do vilarejo. Viam-se poucas pessoas. Como ele, estavam todos se arrumando para uma cerimônia e uma festa mais grandiosas do que quaisquer
outras que tivessem visto em anos.

Naquele dia, quando criança, ele imaginara que, na melhor das hipóteses, o conde lhe daria uma bronca e, na pior, uma surra de chicote. Em vez disso, Cottington
tinha mudado a vida dele.

Mudado para melhor, claro. Só um idiota ou um ingrato não reconheceria. Então, ao olhar Watlington pela janela, sentiu uma inesperada falta de Teeslow, seu vilarejo.

Seria bom ter alguns rostos conhecidos no casamento, só que estavam todos longe, tanto no tempo quanto na distância. A generosidade de Cottington o tinha arrancado
daquele mundo, mas não encontrara outro onde colocá-lo.

Ele tinha criado uma espécie de círculo de amigos e sócios, mas não era a mesma coisa. Não pertencia mais a lugar algum, já fazia algum tempo. Sua vida parecia uma
videira com os ramos se distanciando cada vez mais das raízes.

Aquele casamento também não mudaria nada. Ele ficaria à margem do mundo de Roselyn, não dentro. Escolhera a esposa com toda a consciência disso. Sabia o que ganhava
e o que jamais teria, de uma forma que nem Rose entendia.

O olhar bateu na valise de viagem. Enfiada nela, estava uma carta que Jordan tinha trazido de Londres. Durante a visita de Kyle ao norte, o conde estivera muito
adoentado para recebê-lo, mas tinha conseguido mandar conselhos e cumprimentos pelo casamento e dito que recomendara ao advogado que lhe enviasse um presente.

O conde não estaria lá. Nem a tia Prudence e o tio Harold, que não conseguiram disfarçar o susto ao saberem da mulher que o sobrinho tomaria por esposa, quando ele
lhes contou na visita de Natal. Harold estava doente demais para viajar, mas os tios nunca fariam uma viagem assim no inverno. Os outros amigos que fizeram parte
de sua juventude também não iam festejar com ele e só uma pessoa de seu vago mundo atual estava em Watlington.

Kyle foi procurá-lo.

Entrou no quarto de Jean Pierre, que estava em frente ao espelho, colocando a gravata. Depois de Jean fazer algumas dobras e acertos no tecido, Kyle viu de perfil
o amigo assentir, satisfeito. Ele se virou e olhou para o noivo.

- Mon Dieu, por que os homens sempre parecem a caminho da guilhotina no dia do casamento? - falou, passando a mão numa garrafinha que estava no toucador e arremessando-a.
- Um gole, não mais. Seria grosseiro estar bêbado, embora fosse menos doloroso.

Kyle riu, mas tomou um gole mesmo assim.

Jean Pierre mexeu mais um pouco na gravata.

- Esse Easterbrook não me impressiona, mas, oui, de qualquer forma estou sendo um idiota. Tento me convencer de que meu cuidado com o traje não é por causa dele
e seu título importante. Os criados disseram que sua noiva é linda. É ela que quero impressionar, não ele.

- Por quê? Ela é minha noiva.

Um riso. Um suspiro.

- É bom que você se case. Você nunca achou graça nessa brincadeira. Algumas visões suas são... simplórias.

- Muito simplórias.

A voz dele soou mais perigosa do que ele pretendia. Muito perigosa.

- Espero que não se torne um daqueles sujeitos enfadonhos que ralham quando alguém elogia sua mulher. Ninguém colhe todas as flores que cheira.

- Elogie quanto quiser, mas sei muito bem o que você faz com as flores. Tenho certeza de que sabe que é melhor não brincar no meu jardim.

- Mon ami, você tem que aceitar que haverá flerte no ambiente que ela frequenta, e não ser idiota...

- Não preciso que me ensine nada. Sei de tudo isso. Estou apenas dizendo que você não vai arrancar, cheirar, nem mesmo passar por nenhuma cerca-viva.

- O nervosismo do dia já está afetando a sua cabeça. Ainda bem que estou aqui para ajudar. Acho que precisa de mais um gole dessa bebida. Depois jogaremos baralho
até a hora do casamento, assim você fica calmo e não fala feito um idiota.

- Estou bem tranquilo. Sereno como um lago num dia sem vento. Diabos, nunca estive tão calmo.

- Claro. Agora, mais um gole. Ah, bon.

 

- A carruagem de Aylesbury já passou.

A informação foi dada por um criado que ficara de sentinela na estrada. Alexia se levantou e sorriu ansiosa para Rose.

- Agora podemos ir.

Rose olhou para seu vestido. Não era novo. Tinha ficado escondido um ano, desde a época em que Tim vendera tudo o que encontrava. Irritada e de forma egoísta, ela
escondera alguns de seus melhores trajes, na esperança de ter motivo para usá-los de novo. Alexia a ajudara a reformar o vestido, assim não dava para perceber que
era usado.

Rose estava contente de, nesse dia, usar roupas que eram dela. Quase nada na casa era. Até a comida que estava sendo preparada na cozinha pelos criados de Aylesbury
não era dela. E Kyle tinha enviado os barris de cerveja e vinho. Ela se sentiria mais estranha ainda se usasse um dos vestidos de Alexia.

Saíram todos em direção às carruagens que os aguardavam. Lady Phaedra e lorde Elliot tinham vindo participar desse cortejo, em vez de seguirem com Easterbrook. Ela
ficou emocionada com o comparecimento de toda a família de lorde Hayden. Mostravam que a protegiam, graças ao amor que tinham por Alexia.

Alexia, Irene e lorde Hayden iam com ela numa pequena carruagem aberta. Ao chegarem ao vilarejo, não viram ninguém nas ruas. Todos estariam na igreja. Muitos se
aglomeravam do lado de fora porque na velha construção medieval de pedra não havia espaço para todos.

Quando Rose entrou na igreja, sentiu a mudança da luz e da temperatura. Ficou zonza. Tudo se tornou irreal, como imagens de um sonho.

Captava a cena ao redor ao ritmo do sangue que pulsava em sua cabeça. Sorrisos, murmúrios, mulheres apontando os trajes elegantes das damas, rostos que faziam parte
da vida inteira dela olhando... uma caminhada, longa e escura em direção ao altar.

Kyle a aguardava. A seu modo, estava lindo. O leve sorriso que ele dava para apoiá-la fazia o mundo voltar um pouco a seu lugar, mas não totalmente. Ela disse palavras
que pareceram muito distantes. Palavras sérias, votos e promessas, que a uniram irreversivelmente a alguém.

Sentiu-se tomada por uma súbita alegria quando percebeu que havia terminado. Teve a impressão de pairar no ar, impressionada com a própria coragem. Ao mesmo tempo,
temia que, a menos que surgissem anjos para segurá-la no voo, pudesse se esborrachar no chão do vale.

Viu-se de novo na carruagem aberta, agora ao lado de Kyle. Os moradores do vilarejo seguiam a pé ou em carruagens, todos para a casa.

Kyle segurou a mão dela. Aquele gesto a arrancou do devaneio. O sentido do que tinha acontecido se revelou de forma tão concreta que ela mal conseguiu acreditar.

Olhou o perfil do homem que agora era seu marido e senhor. Dele, conhecia apenas duas partes, a de salvador e pretendente. De resto, continuava sendo um estranho
em quase tudo.

 

Kyle observava a festa animada que lotava a casa de Rose. Os convidados mais importantes tinham se sentado para um café da manhã de núpcias, enquanto os moradores
do vilarejo andavam pela sala e a biblioteca e se espalhavam pelo jardim e o terreno. Agora todo mundo se misturava no aperto dizendo votos de felicidade para Rose,
que estava a poucos metros dali.

Kyle não olhava muito para ela. Não ousava. Quando olhou, viu detalhes que fez seu corpo se empertigar. A linha do pescoço, elegantemente debruçada numa conversa,
tinha fios de cabelo esparsos que pareciam seda. Os lábios, como um veludo para beijar, curvavam-se num sorriso sereno.

O vestido era de um tecido marfim macio que modelava o corpo de maneira que o fazia relembrar os seios que tinha acariciado. Pensou em como seria tirar aquele vestido
dali a pouco e no resto, a pele perfeita dela tocando seu corpo inteiro.

Ela percebeu o olhar dele. Deve ter concluído o que ele pensava, embora Kyle duvidasse que ela pudesse adivinhar os detalhes eróticos. Ela corou e voltou a conversar
com o convidado.

Ele se obrigou a prestar atenção na festa para se distrair. Observou Easterbrook chamando a atenção em frente à cornija da lareira. Os moradores do vilarejo se aproximaram
com deferência e receio, não só por ele ser um marquês.

O comportamento dele não incentivava aproximações. A aparência excêntrica tinha sido de certa maneira amenizada. Surpreendentemente, usava trajes conservadores e
os cabelos compridos tinham sido presos num rabo. Mas ele olhava de cima, satisfeito com os resultados de sua caprichosa intromissão.

Um riso de mulher desviou a atenção de Kyle. Perto, num canto da sala, Jean Pierre atraía Caroline, a jovem prima de Easterbrook. A linda moça enrubescia com a atenção
dele.

A mãe, lady Wallingford - tia Henrietta, para a família -, incentivava Jean Pierre a flertar mais um pouco. Pálida como a filha e enfeitada com um chapéu incrível
pelo excesso de plumas, a lady tinha um jeito alienado, com aquela expressão ausente, etérea. Segundo Rose, o rosto ingênuo escondia a sagacidade de uma mulher decidida
a ficar para sempre na casa de Easterbrook, depois de finalmente conseguir se acomodar nela no ano anterior. Os boatos diziam que o recluso marquês tinha cada vez
menos paciência para a intrusão da tia e da prima.

Dali a pouco, Jean Pierre pediu licença às duas damas e foi abrindo caminho até chegar onde Kyle estava.

- Jean Pierre, a respeito daquelas flores... lorde Hayden é o protetor de uma das que você cheirava há pouco. Olhe para ele. Quer ter esse homem como inimigo?

Jean Pierre procurou lorde Hayden com o olhar.

- Acho que ele não vai se incomodar.

- Ele não terá como não se incomodar. Ela é inocente.

- Eu não cheiro inocentes - garantiu ele, e olhou para Henrietta e Caroline. - A menina não me interessa. Lady Wallingford deve ter, no máximo, 30 e poucos anos.
Você vê uma matrona que usa chapéus horrorosos. Eu vejo uma mulher com uma beleza oculta e etérea que, meu nariz tem o prazer de informar, não se oporia a uma pequena
sedução.

Não adiantava tentar dissuadir Jean Pierre dessa conquista. Kyle imaginou que lorde Hayden não causaria um duelo em nome da virtude da tia.

De repente, a festa pareceu mudar. Acalmou-se. As pessoas se afastaram para formar um corredor. O marquês passou no meio, sorrindo de leve, afavelmente, para a direita
e a esquerda.

- Finalmente - resmungou Jean Pierre. - Agora é só esconda a cerveja e o vinho e todos os demais vão embora também.

Sim, finalmente.

Rose fez uma reverência quando Easterbrook se despediu dela. Kyle também fez uma reverência e torceu para que nada tirasse o homem de seu curso. Ninguém iria embora
antes dele.

A tia do marquês se sentiu na obrigação de acompanhá-lo. Em pouco tempo, os irmãos dele também se foram. A festa começava a acabar.

Kyle se imaginou colocando todos porta afora, os moradores do vilarejo e os criados, todo mundo. Teve de se esforçar para controlar a impaciência.

Uma coisa era desejar Rose antes. Mas desejá-la hoje, agora, quando sabia que poderia possuí-la, estava sendo uma tortura.

 

Fazia tanto tempo que Rose não tinha uma criada que ficou sem saber o que fazer com a mulher. Por sorte, a criada que Alexia arrumara não precisava de ordens. Com
gestos eficientes e de olhos baixos, preparou Rose para a noite de núpcias.

A casa agora estava quase vazia. Só ficaram o marido e a esposa, o criado pessoal de Kyle e a criada que arrumara Rose. Dali a pouco os dois últimos iriam desaparecer
em outros cômodos do andar superior.

As últimas horas tinham sido difíceis. A aproximação daquele momento tinha surtido efeito sobre cada minuto e cada segundo delas. Tanto Roselyn quanto Kyle não disseram
nada, nem mesmo na longa caminhada que fizeram enquanto os criados de Aylesbury limpavam a casa, tirando os pratos e os barris de vinho. A noite que estava para
chegar fora um manto invisível cobrindo cada instante e transformando cada olhar e cada toque.

Ela dispensou a criada e se empertigou. Não estava com medo. Nem um pouco. Estava nervosa, preocupada e curiosa, mas não com medo.

Passou a mão pelos cabelos, que tinham sido escovados e estavam soltos. Conferiu a camisola, quase recatada com suas mangas compridas e a gola alta franzida. Olhou
para a cama, que os aguardava com o lençol aberto. A vida inteira, ela vira a cama naquele mesmo lugar.

Não tinha certeza se queria que as coisas se passassem naquela cama. Não sabia nem se queria que fossem naquele quarto.

Ali ela havia sido uma criança feliz e uma garota cheia de esperanças. Ali chorara a morte dos pais e a de Benjamin; sofrera com a falência do irmão e a dela própria.
Aquele quarto continha toda a sua história, o bom e o ruim, e ainda guardava ecos de sonhos juvenis jamais realizados.

Se Kyle entrasse ali agora, ela não conseguiria voltar ao quarto sem que a presença dele influenciasse todas as lembranças.

Mudasse. Talvez até ofuscasse. A partir de agora, sua vida mudaria sob vários aspectos. Ela podia ao menos conservar aquele canto de seu antigo mundo.

Jogou um xale sobre os ombros. Pegou uma vela acesa e saiu de mansinho do quarto. Prestou atenção em sons vindos do quarto sul para saber se Jordan ainda estava
servindo o patrão.

Nenhuma voz, nenhum barulho. Entreabriu a porta e olhou.

Jordan não estava lá. Só Kyle. Ao lado da lareira, imerso em pensamentos que endureciam suas feições. Dava a impressão de que aquelas reflexões o tinham desviado
de seus preparativos. Ele estava nu da cintura para cima, mas ainda de calças.

Ao vê-lo assim, ela se assustou. O homem escondido por aquelas roupas elegantes agora estava exposto, de uma maneira não apenas física. Um cavalheiro podia praticar
boxe ou esgrima durante meses e não conseguir a força contida e autêntica que ele revelava. Não era tanto a altura e o corpo que ele tinha, embora a musculatura
firme e definida acentuasse o efeito. Era mais algo que vinha de dentro e não tinha explicação.

Ela teve noção de que estava vendo algo que ele não mostrava ao mundo. Escondia atrás da fala educada e das maneiras polidas, mas devia estar sempre nele. Rose havia
percebido desde o começo. Tinha sentido os efeitos tanto de formas sutis quanto fortes. Era essa força que a excitava e a fazia sentir-se ao mesmo tempo segura e
temerosa.

Ele se virou como se ouvisse o som vindo da porta, embora ela mal respirasse. Olhou-a por inteiro: o xale e a camisola, a vela e os cabelos.

- Eu já ia ao seu encontro - disse ele.

- Pensei em vir encontrá-lo. Você se importa?

- Claro que não.

Ela se aproximou e colocou a vela no toucador.

- Você estava tão absorto. No que pensava tanto?

- Em algo que aconteceu há muito tempo. Tinha até esquecido, só lembrei agora.

- Uma lembrança ruim?

- Sim.

- Então, ainda bem que entrei.

Ela ficou constrangida com o olhar dele. Talvez, vindo até ele ao invés de esperá-lo, tivesse criado uma expectativa de que faria algo mais.

- Ele machucou você?

A pergunta foi feita com tanta calma que ela levou um instante para entender. Ficou triste por ele falar em Norbury logo naquela noite.

- Pensei que jamais fosse falar...

- Ele machucou? Só pergunto por causa de agora e do que vamos desfrutar daqui a pouco. Veio à minha cabeça que talvez tivesse machucado. Que talvez eu o houvesse
considerado alguém melhor do que é, mesmo sabendo que é bem menos do que muita gente pensa.

Ela não entendeu direito a que ele se referia. Só que era a algo pior do que ela enfrentara. Embora, naquela derradeira noite, Norbury tivesse pedido algo que, parando
para pensar, poderia ser não só chocante, mas doloroso.

Olhou para o homem que, horas antes, tinha jurado protegê-la. A firmeza dele era perigosa e os olhos mostravam isso. Rose concluiu que ele não toleraria o que ela
acabara de se lembrar, ainda que ela lhe garantisse que não tinha chegado a acontecer.

- Não, ele não me machucou. Não da maneira que deve pensar.

- Fico contente.

Ele pareceu contente mesmo. Aliviado.

O leve sorriso ajudou a amenizar o clima e acabar com qualquer raiva causada pela lembrança do passado. O fantasma de Norbury ou de qualquer outro que tivesse entrado
naquele quarto sumiu como uma fumaça fina que esvaece pela janela.

Rose tinha certeza de que agora Kyle só pensava nela. E lhe dava toda a atenção. Isso a deixava nervosa e inquieta, ficar ali enquanto ele a olhava. Ela também olhava
o peito e os ombros banhados pelo brilho cálido da lareira. O corpo dela reagiu à expectativa que saturava o ar.

- Venha cá, Roselyn.

Claro que ela obedeceu. Fazia parte do que havia prometido naquele dia. Não era uma menina inocente e não ia mostrar quanto ainda se sentia como tal.

Ficou bem na frente do marido, com o peito nu dele a centímetros de seu nariz. Um peito atraente. Só a proximidade dos dois já era provocante e ela teve um impulso
de beijar o corpo que a atraía.

Ele a beijou primeiro. Pegou o rosto dela nas mãos e a beijou com mais carinho do que nunca. Era como se quisesse dar confiança a ela, o que Rose achou muito bom.
Só que ele já tinha feito isso na carruagem, no dia em que se encontraram no parque. Tinha consciência de que parte de seu dever de esposa podia ser desagradável,
mas agora também sabia que outra parte seria muito boa.

O corpo dela concordou. Reagiu ao beijo mais do que seria preciso. O nervosismo diminuiu e a excitação aumentou.

Kyle a levou para a cama. Sentou-se na beirada para não ficar tão mais alto que Rose. Assim podia beijá-la mais facilmente. Mais intimamente. Com menos cuidado.
Enquanto beijava, colocou a mão sobre o seio dela. As carícias a excitaram tão rápido que ela se assustou. Ela deixou o desejo fluir e notou que seu corpo latejava
lá embaixo, ansiando por ele.

Kyle observou a própria mão moldar o tecido da camisola ao redor do seio, exibindo sua forma. Ela ofegava toda vez que ele lhe roçava o mamilo, tão penetrante era
a sensação que causava.

- Você é muito bonita, Roselyn.

A beleza não tinha sido de muita utilidade em seu erro. Ainda assim, o elogio a agradava.

Ele a olhava com tanta intensidade que Rose teve medo de que ele se desapontasse com o que visse.

- Você já ouviu isso muitas vezes. Desde criança, imagino.

- Se você me achar linda esta noite, estarei feliz.

- Sempre achei. Eu a vi uma vez, há anos. Num teatro. Não sabia quem era, só que nunca tinha visto uma mulher tão encantadora. Depois, percebi seu irmão no mesmo
camarote e concluí que devia ser a bela Longworth que tantos elogiavam.

O toque leve causou tanta alegria, tanto prazer que ela quase o repreendeu por não ter ido procurá-la quando soube quem era. Conteve-se a tempo. Sabia o motivo.

Teria sido por isso que fizera a proposta de casamento? Ela mal conseguia pensar nisso, raciocinava de um jeito preguiçoso, indiferente. Ele não resistira à chance
de ter algo que o mundo proibira a um filho de mineiro?

Ela se entristeceu ao pensar nisso. E veio novamente o impulso de beijá-lo. Dessa vez ela obedeceu, beijou a curva do ombro dele.

Foi como se acendesse uma tocha, tal o efeito que causou, apesar de Kyle imediatamente tentar conter seu desejo. Mas os olhos dele se aprofundaram a ponto de ela
pensar que poderia se afogar neles se os mirasse por muito tempo.

Ele puxou as pontas do laço que prendia a camisola no pescoço. Rose olhou para a mão dele, enquanto as fitas acetinadas corriam e o nó se desatava. Pareceu levar
uma eternidade. Um ponto dentro de seu corpo latejou e se retesou, como se uma língua invisível estalasse em sua carne.

Percebeu que Kyle ia despi-la. Ali mesmo, despi-la inteira, com a vela acesa na mesinha lateral. Tinha certeza de que não era assim que se fazia. Só que ele podia
não saber. Mas...

Ela ainda estava surpresa por esses pensamentos quando a camisola escorregou pelos ombros. Kyle notou a surpresa, mas isso não o impediu de continuar. Desceu o tecido
até exibir os seios, túrgidos e com os mamilos escuros. Puxou a camisola mais para baixo, passando pela cintura e as pernas até Rose ficar nua sobre um lago de tecido
branco.

Rose ficou envergonhada. O quarto precisava estar escuro, ou quase, quando ela estivesse assim. E eles deviam ficar embaixo do lençol, quase anônimos nos gestos
por vir. Tentou se cobrir com os braços.

- Não.

Ele a segurou antes que conseguisse. Puxou-a mais para perto. Sua língua mal tocou a extremidade de um de seus mamilos.

Uma centelha de prazer percorreu seu corpo inteiro: intensa, direta, precisa. Depois, outra, e outra, sufocando seu constrangimento, fazendo-a querer apenas que
ele continuasse aquilo para sempre e que o prazer maravilhoso nunca cessasse.

Com a língua e a boca, ele a levava aos céus. Acariciou todo o corpo dela e ela então gostou de estar sem a camisola. O toque das mãos em sua pele, nas coxas e atrás,
nas costas, parecia certo, necessário e perfeito. Ela se virou, presa numa sensualidade e num desejo intensos, que pareciam aumentar cada vez mais, o prazer pedindo
mais prazer num crescendo infinito.

Ficou tão perdida nesse torpor que não percebeu que segurava o ombro de Kyle até ele soltar sua mão. Mal notou quando ele se levantou e a deitou na cama. Rose voltou
um pouco a si na pausa que se seguiu e o viu tirar a roupa à luz da vela que ainda queimava.

Ela esticou a mão e apagou a vela antes de ver o corpo inteiro dele como ele a vira. Kyle se transformou então numa silhueta, uma forma escura, indistinta e vaga.
Ele foi na direção dela na cama.

Um beijo, tão profundo e íntimo que ela jamais o esqueceria. Uma carícia, tão firme e possessiva que ela só podia render-se à sua maestria. Um toque, tão direto
e ciente de seu efeito que o corpo todo gritou com o prazer intenso.

Ele continuou. Ela manteve um grito ao mesmo tempo mudo e pleno de desejo, de sensação torturante. Rose perdera a consciência de seu corpo, exceto a tênue vontade
que exigia mais, qualquer coisa, tudo.

A voz dele, calma e profunda.

- Entregue-se. Vai entender o que quero dizer. Deixe acontecer. Solte-se.

Ela mal o ouviu. Não entendeu. Mas o corpo se soltou lentamente. O suficiente para que um tremor profundo surgisse e então aumentasse e subisse em ondas de prazer
cada vez mais altas, para no fim explodir em seu corpo e ofuscar sua mente, num momento etéreo de estupefação.

Kyle estava abraçado a ela, em cima dela. Sentiu-o entrar com cuidado. Com muito cuidado. Ela o deixou assim e ajeitou as coxas para que ele ficasse lá, para que
a penetrasse antes que aquela sensação maravilhosa tivesse fim.

A calma dele se foi. Veio a força. Ela não se importou. Não foi ruim, nem sequer desagradável. Ela se entregou a ele como se entregara ao próprio prazer, ainda flutuando
numa perfeição que as estocadas dele só fizeram prolongar.

 

Ele despertou perto da aurora e viu que Roselyn se fora. A certa altura da noite, talvez logo após ele adormecer, tinha voltado para seu quarto e sua cama.

Se ele tivesse ido até o quarto dela, Rose esperaria dele que saísse logo também. Era assim que se fazia com mulheres como ela. Elas não viviam em casebres, onde
marido e mulher compartilhavam a mesma cama a noite inteira, todas as noites.

Lembrou-se de, quando menino, ouvir murmúrios e risos íntimos no quarto ao lado. Aqueles sons pessoais davam vida à casa. Ele não tinha participação naquelas conversas,
mas os murmúrios traziam paz à noite.

Era estranho que a lembrança viesse naquele momento, tão vívida que, se ele fechasse os olhos, se sentiria na cama de sua infância outra vez. Esquisito que aquele
casamento tivesse aberto tantas portas para o passado. Só que ele olhava por essas portas como homem e via coisas que o menino jamais compreendera.

Uma das portas seria difícil de fechar. Se Roselyn não tivesse vindo na noite anterior, ele ficaria horas refletindo sobre o que vira de novo daquela soleira.

As imagens queriam invadir a cabeça dele. Ele as expulsou por ora. Quem sabe, de uma vez por todas. Assim como a honestidade absoluta, a pura verdade nem sempre
era benéfica.

Cochilou, depois acordou de novo, num sobressalto. Era tarde. Não tinha apenas cochilado.

A água para lavar o rosto estava à espera. As roupas tinham sido preparadas para que se vestisse. Jordan estivera lá, mas deixara o noivo dormir. Ele não chamou
o criado, mas se arrumou para mais um dia.

Desceu a escada e acompanhou o som das vozes na cozinha, nos fundos da casa. Rose estava lá com Jordan. Usava um vestido simples, cinza, que ficaria bem numa dona
de casa modesta. Continuava linda.

Não conseguia olhar para ela sem relembrar seu corpo à luz da vela, a timidez e os tremores de sua excitação. Apagar a vela tinha, sem dúvida, sido sensato, embora
ele tivesse vontade de olhar para a esposa a noite inteira. Na escuridão, ela conseguira se libertar um pouco e ele conseguira se controlar para não possuí-la com
voracidade.

O primeiro olhar que Rose lhe deu continha um agradecimento pela noite. Ela então abaixou os olhos.

Jordan serviu o café da manhã.

- Este lugar é simples, senhor, mas a vista do jardim e a luz são agradáveis. Posso servir o café na sala de jantar, se o senhor preferir.

- Assim está ótimo.

Ele se sentou à mesa onde havia almoçado com Rose no dia em que fizera o pedido de casamento. Com gestos eficientes, Jordan serviu um café da manhã bem tardio.

Quando Kyle terminou, Roselyn trouxe para a mesa o último prato a saborear.

- É torta de maçã - avisou ela. - Você disse que gosta tanto que às vezes come no café da manhã...

- Muito bem, Jordan.

- Não foi ele quem fez. Fui eu.

Ao fundo, Jordan terminou de secar uma jarra. Pegou seu casaco.

- Quero olhar um pouco o jardim, madame. Com sua permissão, posso sugerir algumas melhorias.

- Claro, Jordan.

Rose cortou uma grande fatia de torta e colocou num prato. Deu um passo atrás e esperou que o marido provasse.

Ele deu uma boa mordida.

A torta anterior estava ruim. Já esta estava horrível. Olhou para o armário e todos os mantimentos. Tinha presumido que a primeira torta ficara ruim por falta de
açúcar e sal. Pelo jeito, o problema não era esse. Roselyn é que fazia tortas horríveis.

Ela teve prazer de vê-lo comer. Por sua expressão facial e os sons que fazia, ele estava gostando.

- Deliciosa - falou ao engolir o último pedaço.

- Fico contente que tenha gostado. Jordan ficou estalando a língua enquanto eu assava, mas acho que só estava irritado por eu estar fazendo o trabalho dele.

Ele a segurou e a puxou para si.

- Você não precisa mais cozinhar. Não precisa fazer tortas.

- Eu sei. Só que esta manhã me lembrei de que servi torta a primeira vez que esteve aqui e que pareceu gostar. Então quis fazer outra.

Ele percebeu que tinha acabado de ser elogiado pela noite anterior.

Beijou-a e a soltou. Não estava com fome naquele momento, pelo menos de comida. Muito menos daquela torta.

Mesmo assim, cortou mais uma fatia.

 

CAPÍTULO 11

Kyle colocou os rolos de projetos numa grande sacola de lona.

O assunto não podia esperar mais. Muito já fora investido naquilo. Ele não tinha escolha senão encontrar Norbury, como estava marcado fazia tanto tempo.

Tentou ouvir algum som vindo do quarto de Roselyn. Ela costumava acordar cedo. Não tinha o hábito de ficar na cama até o meio-dia como certas damas. Nesse dia, entretanto,
o pavimento onde ficavam seus quartos continuava estranhamente silencioso. Como ele a mantivera acordada quase a noite inteira, não se surpreendeu.

Ela não parecera se importar em dormir pouco. A noite lhe despertara novos apetites. E, ao contrário do que ocorrera em Oxfordshire, onde ela sempre o procurava,
como se quisesse demonstrar que cumpria seus deveres conjugais, ali em Londres era o contrário: ele é que ia encontrá-la. Isso significava que, às vezes, como na
noite anterior, Kyle se demorava bastante por lá.

Ela não se importava, mas, ao mesmo tempo, preparava os rituais da noite de maneira a não ficar constrangida. Depois daquela primeira noite, sempre apagava as velas
mais cedo. Apesar da escuridão, Kyle conhecia o corpo da esposa melhor do que ela pensava. O toque revelava muito e a luz da lua, mais ainda. Ela podia preferir
as sombras, podia até esquecer o rosto do homem que a possuía, mas ele jamais esquecia que era Roselyn que ele acariciava.

Riu para si mesmo ao se lembrar da pequena batalha que seu corpo enfrentava todas as noites. Roselyn Longworth lhe provocava um desejo tão forte, tão arrasador,
que muitas vezes ele ficava agressivo. Mas, como se tratava de Roselyn, uma dama que ainda se intimidava e se espantava com a nudez, ele tinha de se controlar.

Isso não era um problema. O final era sempre bom. Os doces êxtases dela e os gozos fortes dele o encantavam. Depois de tudo, era com pesar que ele abria mão da satisfação
absoluta que encontrava nos braços dela. Às vezes, como na noite anterior, ele passava horas recusando-se a ir embora, o que significava ter relações mais de uma
vez.

Desceu a escada. Aquela casa ainda parecia nova e estranha para ele. Roselyn ficara muito contente quando ele a levara para lá. Ocupava-se agora de arrumá-la a seu
jeito e de fazer as primeiras reaparições na sociedade.

Ele cuidava dos negócios, como essa reunião agora. Foi a cavalo para a casa de Norbury, com a sacola de lona presa à sela. O dia estava melhor que o humor dele.
Não falava em Norbury com a esposa, mas sua fome insaciável da noite anterior, o desejo de possuí-la, estava ligada à desagradável expectativa do encontro que se
seguiria.

Na verdade, aquele homem agora entrava em sua cabeça com muita frequência. Não só por causa de Rose, apesar de ele ter de se esforçar para afastar as lembranças
daquele caso. Pensar nisso só lhe dava raiva e uma vontade enorme de bater no canalha.

Kyle continuava também com a lembrança que tivera na noite de núpcias, como se aquilo precisasse ser revisto. Era o rosto de uma mulher espancada e machucada. Os
olhos da mulher o assombravam. A humilhação que mostravam parecia o rosto de Rose na noite do leilão.

No dia em que encontrara a tia ferida ao se defender dos jovens ricos que se divertiam com ela, Kyle lutara como um possesso. Eram três contra um e ele tinha apenas
12 anos, mas seus inimigos não haviam passado quatro anos carregando carvão na mina.

Ele achara que a havia salvado. Só agora, que os detalhes começavam a ressurgir em sua cabeça, ele reavaliava o ocorrido. Talvez não tivesse chegado no início da
violência contra a tia, mas no final.

Pensar em Rose o fez lembrar-se de tudo isso na noite de núpcias. Enquanto ele avaliava como lidar com ela, como lhe mostrar os caminhos do prazer sem deixá-la assustada,
chegara a sombra do amante anterior. Com a lembrança, viera o pensamento inesperado de que o sexo trivial devia ser o menor motivo para Rose não gostar de contato
físico.

Parou o cavalo na frente da casa de Norbury. Olhou a fachada em perfeito estilo paladiano que dava tanta elegância à construção. Considerava-a uma das melhores moradias
de Londres, de uma excelência que para muitos passaria despercebida num mar de influências clássicas. Era um desperdício, pois Norbury tinha pouca sensibilidade
para essas coisas.

Não podia se distrair com a estética, como costumava ocorrer. A nova pergunta sobre aquela briga travada fazia tanto tempo afetava bem mais do que a infância dele.
Fazia com que imaginasse mais do que gostaria sobre o caso de Rose. Chegava a incomodá-lo no encontro de hoje, pois Norbury tinha sido um dos meninos em que ele
batera.

A tia garantira que ele havia chegado a tempo e ele acreditara. Mas aquelas conversas noturnas no casebre deles sumiram por muito tempo e o tio nunca aprovou a ajuda
dada por Cottington. Aceite o dinheiro, mas não seja um lacaio, Kyle, meu jovem. Use-os da mesma maneira que eles usam os outros, mas não se torne um deles.

O mordomo sorriu ao receber o cartão de visita de Kyle. A familiaridade não era desrespeitosa. Os criados daquela casa, como os de muitas outras elegantes residências
londrinas, logo se afeiçoavam ao menino pobre que se tornara um homem bem-sucedido, alguém que circulava pelos dois mundos que eles conheciam.

- Meu patrão está ocupado, mas poderá recebê-lo em menos de uma hora - informou o mordomo ao retornar.

Kyle o seguiu até a biblioteca, sabendo que "menos de uma hora" significava uma espera de pelo menos 59 minutos.

Assim que a porta da biblioteca foi fechada, Kyle a abriu de novo. Desceu a escada para a cozinha. Norbury não devia estar ocupado coisa nenhuma. O atraso era apenas
a maneira enfadonha de o visconde mostrar a própria importância. Mas o tempo que Norbury tinha dado seria útil.

A confeiteira se virou, surpresa, ao ouvir os passos dele na escada.

- Sr. Bradwell! Que honra. Nossa, como o senhor está bonito. Parece que o casamento lhe fez bem.

- Olá, Lizzy. Você também está bem. Com um pouco mais de farinha que o habitual.

Ela passou as mãos nos cabelos grisalhos, fazendo surgir uma nuvem branca. Lizzy era uma das muitas criadas da casa que tinha família em Teeslow. Quando moça, fora
trabalhar para Cottington, depois se mudara para Londres quando Norbury fora para a cidade.


O cozinheiro, um homem sério, cumprimentou Kyle com a cabeça e resmungou parabéns pelo casamento. Tirou uma panela grande da mesa e, com o pé, empurrou um banquinho
até o espaço recém-liberado. Depois voltou a ralhar com uma criada na copa. Kyle sentou no banquinho.

- Veio falar com o patrão, não é? - perguntou Lizzy, enquanto partia ao meio a massa de pão e pegava um pedaço grande. - Uma daquelas conversas sobre dinheiro que
ninguém entende?

- Sim.

- Tem gente que diz que é como um jogo.

- É parecido, só que sou eu quem decide onde fica a maioria das cartas.

- Ainda assim, uma cartada errada e...

- É, pode acontecer.

- Não é muito provável que aconteça com o senhor, eu diria. Sempre foi mais esperto que a maioria, deve saber dar as cartas.

Geralmente. Normalmente. Mas havia sempre um risco. O importante em qualquer jogo era não se importar muito em ganhar ou perder. Um homem nervoso ou desesperado
sempre joga mal.

O sucesso dele dependia da certeza de que, se tudo desse errado, sempre poderia se recuperar e que um revés de alguns anos não faria muita diferença em sua vida.

O casamento mudava tudo. Percebera isso ao fazer seus votos durante a cerimônia. A responsabilidade dele em relação a Rose significava que nunca mais poderia ser
absolutamente destemido, e os outros perceberiam isso, ainda que ele tentasse esconder a verdade.

Tinha sido por isso que, dois dias antes, fizera um fundo de investimento para a esposa.

Dois cheques tinham estado à espera de que eles retornassem a Londres. Um, enviado por Cottington, era presente de casamento. O outro, os 10 mil de Easterbrook,
era de uma quantia bem maior e viera sem uma carta, um bilhete que fosse.

Se Rose soubesse da existência daquele dinheiro, pensaria que alguém havia pagado para que ele se casasse, o que de certa maneira era verdade. Enquanto olhava o
cheque, ele concluíra que não queria que ela pensasse isso. Ela não ia enganar a si mesma e ter qualquer ilusão romântica sobre casamento, mas seria ruim que não
tivesse ilusão nenhuma.

Só o presente de Cottington já bastava para salvá-lo do desastre, então pegara o suficiente de Easterbrook para prover Rose no caso de se tornar viúva e deixara
o resto num fundo de investimento para ela. Sua esposa teria como se sustentar se, no futuro, as cartas do baralho não fossem distribuídas como ele gostaria.

- Tem recebido notícias de Teeslow, Lizzy?

Lizzy era chegada a fofocas, por isso Kyle gostava de conversar com ela. A criada sabia tudo sobre Teeslow pelas cartas da família, com muito mais detalhes do que
a tia contava a ele.

- Bom, a garota dos Hazletts está esperando um filho e ninguém sabe aonde o pai foi parar. Peter Jenkins morreu, mas foi um descanso, porque ele estava muito doente.
E há boatos de que aquele túnel na mina vai ser reaberto. Você sabe qual.

Ele sabia. Tinha ouvido o boato quando estivera lá, em dezembro. Pelo jeito, o boato continuava, portanto devia ser verdade.

- Como vai Cottington?

- Mal, infelizmente. Quando ele se for, a criadagem vai chorar rios, garanto. Muita coisa vai mudar com a morte dele.

- Não é só a criadagem que vai chorar. Todos vão lastimar que o herdeiro assuma o lugar dele.

Lizzy conferiu onde estava o cozinheiro, antes de fazer uma cara que mostrava que ela pensava o mesmo. Concentrou sua força em sovar a massa do pão.

- Imagino que o visconde não foi ao seu casamento.

- Não mesmo.

O olhar dela foi bem expressivo. Significava que Norbury não se daria ao trabalho de ir, mesmo se fosse convidado. E que, naturalmente, a noiva de Kyle não ia querer
o ex-amante no próprio casamento.

- Fez muito bem, Sr. Bradwell. A ajuda que o senhor deu para aquela pobre mulher e o que agora faz por ela. É o que todos dizem.

- Infelizmente, não pude bater nele como fiz naquela vez, embora quisesse.

Esperou a reação dela. Na época da surra, Lizzy trabalhava para Cottington. Numa casa assim, os criados costumavam saber de tudo.

Ela pareceu surpresa por ele tocar no assunto. Olhou bem para ele, depois se voltou de novo para a massa de pão. Sovou com força.

A reação dela era plausível com um assunto que fosse tão escandaloso que seus detalhes tivessem de ficar em segredo.

Um simples mau comportamento de alguns jovens ricos, a história que ele conhecia, não seria motivo para isso.

 

- Continuo achando que as casas não têm quartos de criados em quantidade suficiente - reclamou Norbury após examinar os projetos por dez minutos.

Até então, as coisas iam bem. Recebera Kyle com indiferença e os dois se ocuparam dos projetos. Norbury parecia se esforçar para ser cavalheiro, mas Kyle via que
o visconde tentava ocultar um lado bem menos civilizado.

- As casas serão compradas por famílias com renda de milhares de libras por ano. Cinco quartos de criados, mais os da estrebaria para o treinador e o cocheiro deveriam
ser mais que suficientes.

- Milhares de libras. É incrível como eles conseguem.

Era uma observação idiota feita por um idiota, com a intenção de enfatizar como ele estava acima de preocupações frívolas como milhares de libras a mais ou a menos.
Norbury inclinou mais um pouco a cabeça loura sobre os projetos.

- Meu advogado disse que papai pretende assinar os papéis do terreno - comentou Norbury, e seu lábio inferior tremeu. - Ele não está participando de nada e não viu
os projetos, mas decidiu de qualquer forma.

Ótimo, iremos em frente, mas quem decide é o velho, não eu. Vou lucrar bastante com o seu trabalho, mas não que eu tenha escolhido isso.

Para Kyle, era indiferente como as coisas se passariam. Agora lamentava que estivesse nesse projeto, que o obrigava a aceitar a presença de Norbury. Se o conde não
se recuperasse para retomar as rédeas dos negócios, essa seria sua última parceria com a família dele.

- Procurarei o seu advogado amanhã - disse Kyle, juntando os projetos. - O trabalho nas estradas vai começar logo; a madeira e os demais suprimentos estão encomendados.
As primeiras casas estarão prontas em meados do verão, creio.

O dono da casa acompanhou os preparativos da saída do visitante. Deu-lhe um olhar gelado.

- Preciso lhe dar os parabéns.

- Obrigado.

- Não fui convidado.

- Foi um casamento no vilarejo, não em Londres.

- Li que Easterbrook compareceu.

A informação o incomodara. Kyle não sabia se pelo fato de aquele lorde especificamente ter sido convidado ou porque a presença dele fizera a ausência de Norbury
ficar irrelevante.

- A casa de campo dele fica perto e minha esposa é parente. Indireta, digo.

Norbury riu.

- Você fez bem em se casar com a minha puta, Kyle.

Kyle se obrigou a continuar encarando os projetos e mal controlou a vontade de estrangular Norbury. Eram palavras assim que motivavam duelos. Homens idiotas diziam
coisas idiotas por orgulho ou ressentimento. Coisas que outro homem não poderia permitir.

- Repita isso ou algo parecido, para mim ou para qualquer pessoa, e acabo com você. Se eu souber que sequer mencionou o comportamento vergonhoso que teve com ela,
só vou parar de bater quando você não conseguir se mexer por duas semanas.

Norbury ficou tão vermelho que Kyle esperou que ele desse o primeiro soco. Queria muito que desse.

- Bata, maldito. Pratico boxe duas vezes por semana.

- Isso só ajuda se o seu opositor obedecer às regras do esporte. Você vai lutar com um filho de mineiro e suas mãos suaves e inúteis não são nada contra mim.

Kyle se encaminhou para a porta. As palavras ríspidas de Norbury o acompanharam.

- Meu advogado disse que papai mandou um presente de casamento para você.

- Mandou mesmo. Foi muito generoso.

- Generoso, quanto? Quanto foi que ele mandou?

Norbury exalava agressividade, como se a quantia fosse a única coisa que interessasse.

Talvez fosse. Talvez Norbury nunca tivesse engolido que o pai ajudasse Kyle financeiramente. Já era ruim ter levado aquela surra. Pior ainda era que, por isso, o
pai ficasse sabendo do comportamento desonroso do filho naquele dia, por pior que fosse.

- Quanto? Uma quantia incrível, faltou só 50 para completar mil libras.

Kyle se satisfez ao ver a expressão de Norbury quando saiu. O homem era burro, mas não tanto. Em poucos minutos, concluiria que o presente de Cottington fora tirado
da herança destinada ao filho.

O que significa que Norbury tinha indiretamente devolvido o dinheiro do leilão e que o pai tinha sabido do que acontecera.

 

Nesse dia, Henrietta parecia diferente. Roselyn se sentou na sala de visitas em Grosvenor Square e tentou identificar por quê.

Era preciso considerar o efeito do chapéu. Um gorro com carapuça de renda, o que parecia bem mais comportado e elegante do que os chapéus que ela costumava usar.
Rose notou também que os cabelos louros tinham sido arrumados de outro jeito, combinando melhor com o rosto delicado.

Mas o que tinha mudado acima de tudo era sua expressão. Naquela tarde, seu jeito aéreo fazia com que parecesse jovem, em vez de desligada. E seu rosto não estava
contorcido de forma desdenhosa. Em vez disso, surpreendentemente, parecia quase o de uma jovem.

Conversaram sobre moda, sociedade e fizeram previsões para a próxima temporada. Alexia estava com elas. Além de mais três damas, todas de boa posição social e bom
humor. Alexia tinha levado Rose em visitas àquelas damas na semana anterior, provavelmente com a permissão delas. Elas agora, por sua vez, visitavam Henrietta no
dia que Alexia tinha sugerido, de forma que Rose pudesse comparecer também.

Tudo fazia parte de uma pequena campanha da qual, maravilha das maravilhas, Henrietta aceitara participar. Se ela não estivesse fazendo sua parte tão bem, não estivesse
sendo tão simpática e solícita, Rose iria pensar que Alexia tinha achado um jeito de subornar a tia do marido.

As visitas não se demoraram muito, mas ficaram o bastante. Podia ser que jamais visitassem a própria Rose para nada, mas, quando foram embora, tinham dado mais um
largo passo no sentido de aceitá-la.

Ia ser uma caminhada em círculos. A proveniência do marido causaria desvios de rota e interdições na pista. O escândalo no qual ela se envolvera criaria outros transtornos.
Mas a campanha de Alexia parecia estar dando resultado mais rápido do que se podia esperar.

- A reunião foi boa - confidenciou Henrietta, quando as três ficaram a sós de novo. - Creio que a Sra. Vaughn logo vai convidar você, Roselyn, para ir ao teatro.
Foi o que pareceu quando comentou sobre peças preferidas e tal. Como a tia dela se casou com um importador, ela não deve fazer muitas restrições a um comerciante
e pode até receber seu marido também.

Rose mordeu a língua. Henrietta não pretendia fazer uma provocação com aquele comentário. Ao mesmo tempo, não havia por que se ofender com a verdade.

Mas ela se ofendeu. Muito mais do que esperava. Kyle aceitava as coisas do jeito que eram, mas ela se irritava cada vez mais.

Não entendia como alguém que o conhecesse, que conversasse com ele, pudesse não aceitá-lo em sua sala de visitas. O trabalho dele também não era banal, juntava finanças,
arte e investimento. Quando os irmãos dela viraram banqueiros, algumas portas se fecharam para eles, mas a maioria, não.

Claro, tudo estava ligado ao berço. À família e aos antepassados. À família que Kyle jamais renegaria. Tinha-a avisado sobre isso.

Enquanto iam para a biblioteca, Alexia explicou a nova fase de sua campanha bélica, que incluía um jantar na casa dela. Aquelas três damas seriam convidadas, além
de duas amigas delas. Ela esperava que as convidadas que tinham acabado de sair convencessem as outras a comparecer. As cinco tinham maridos tidos como dóceis. Se
alguns deles deixassem suas esposas ficarem amigas de Rose, havia mais possibilidade de outros fazerem o mesmo.

Enquanto elas discutiam estratégias, Easterbrook entrou na biblioteca. Desculpou-se pela intromissão e ficou perto das estantes, examinando as lombadas. A presença
dele chamou a atenção de Henrietta, que se rendeu à curiosidade.

- Pretende ir ao exterior, Easterbrook? Porque está olhando memórias de viagem e títulos assim.

Ele tirou um livro da prateleira e deu uma olhada no texto.

- Não vou a lugar nenhum. Estou pesquisando para minha jovem prima.

- Ah, céus, vai mandar Caroline fazer uma viagem pelo continente? Eu desejei tanto isso... Ela precisa ir a Paris, claro, e...

- Não, não é uma viagem pelo continente - resmungou ele. - Busco informação sobre lugares bem específicos, para onde as jovens vão às vezes, mas parece que nenhum
desses autores tem nada de especial sobre eles.

Henrietta franziu o cenho.

- Que tipo de lugar?

Ele colocou o livro na prateleira e tirou outro.

- Conventos.

- Conventos!

Rose achou que Henrietta ia precisar de sais. Alexia a acalmou e se dirigiu ao marquês.

- Tenho certeza de que está brincando. Por favor, diga à sua tia que está querendo irritá-la de novo.

- Gostaria de estar. Na verdade, gostaria que Hayden assumisse seu papel de responsável por isso, em vez de me deixar mexendo em assuntos que não entendo e não me
interessam.

- Viram? Ele ainda não a perdoou por aquele flerte com Suttonly no verão passado - disse Henrietta, alto. - Ela obedeceu a sua ordem, Easterbrook. Há semanas que
não pronuncia o nome dele.

- Henrietta, o verão passado já foi bastante ruim, mas lastimo dizer que estou às voltas com mais um daqueles desastres causados pelas jovens. Prever um duelo por
ano já bastava, obrigado. Mas ter de me preparar para dois é uma provação para a minha paciência.

Ele franziu o cenho para os livros e tirou mais um da estante.

- Vou me livrar logo desse dever maçante. Vou duelar com o sujeito, deixá-lo bem ferido, mandar Caroline para um convento e ficar sossegado por alguns anos, pelo
menos.

Henrietta chorou. Easterbrook continuou a mexer calmamente nos livros. Alexia tentou ser diplomática.

- Sua tia e eu não sabemos de nenhum admirador de Caroline no momento. Acho que está enganado.

Ele fechou o livro com força.

- Não se trata exatamente de um admirador. Trata-se de um sedutor. Não estou enganado, Alexia. Lastimo dizer que estou convencido de que Caroline já perdeu sua virtude.

Isso causou um susto. Henrietta se espantou tanto que ficou ofegante e boquiaberta. Depois chorou copiosamente.

- E quem é esse homem? - exigiu saber Alexia.

- Aquele químico francês. Amigo de Bradwell.

Henrietta parou de chorar. Arregalou os olhos. Olhou de esguelha para ver a que distância dela estava o marquês.

- Garanto que está enganado - disse Alexia.

- Vi-o esta manhã mesmo. Ao nascer do dia, eu estava olhando o jardim pela janela e o vi. Saindo desta casa.

Ele deu uma olhada preocupada para a tia.

- Agora tenho de ser babá também, tia Henrietta? Até eu me impressiono por se descuidar tanto dela. Eu, que não dou a menor importância a essas coisas.

Henrietta ficou imóvel. Easterbrook estava atrás dela, então não viu o que Rose e Alexia viram. O rosto da jovem senhora ficava cada vez mais vermelho.

Rose olhou para Alexia exatamente quando Alexia se voltava para ela. As duas encararam Henrietta.

- Easterbrook, continuo achando que está enganado - insistiu Alexia. - Se foi ao nascer do dia, não era possível ver direito o que era, ou quem. Talvez um dos jardineiros
estivesse andando por ali.

- Não, Alexia. Era ele.

O marquês desistiu de olhar os livros.

- Infelizmente, esses livros não trazem indicação de conventos. Vou pedir ao advogado que faça umas pesquisas discretas. Um convento na França, por exemplo, para
tia Henrietta poder visitá-la uma vez por ano.

Quando Easterbrook seguiu em direção à porta, Alexia se pôs no caminho dele.

- Mesmo se estiver certo e fosse ele no jardim, isso não prova que esteve na casa. Nem que procurou Caroline. Afinal, podia estar atrás de uma das criadas.

Ele a olhou com carinho, como sempre.

- Vi-o flertando com ela no casamento da sua prima. Fui descuidado em não avisar, mas Henrietta estava com eles e concluí...

Todos congelaram enquanto a cena pairava no ar. Rose quase conseguiu ouvir o marquês recapitulando, pensando, rejeitando... reconsiderando.

Easterbrook virou e olhou para a tia. Moveu a cabeça, observando-a. Ela estremeceu enquanto ele examinava o chapéu novo, o penteado diferente e o viço recém-adquirido.

- Alexia, seu valoroso bom senso me poupa de cumprir obrigações desagradáveis. Eu talvez tenha sido um pouco precipitado ao pensar o pior de Caroline. Talvez não
fosse monsieur Lacroix que estivesse no jardim.

Pediu licença. Da porta, antes de sair, ele voltou a falar.

- Contudo, caso tenha sido... Henrietta, por favor, fale com as criadas. Se uma delas está recebendo um homem, espero que os dois se divirtam. Mas é melhor que ele
saia quando ainda estiver escuro, de forma que não haja mais nenhum mal-entendido.

 

Rose atravessou a porta que ligava seu quarto de vestir aos aposentos de Kyle. Ele não iria procurá-la nessa noite. Suas regras haviam chegado. Encontrar uma maneira
delicada de dizer isso a ele exigira muita habilidade sua. Ele parecera achar graça das sutilezas que a esposa usara, mas a havia compreendido.

Ela ouviu a voz de Jordan e o som do marido despindo-se. Depois, ficou tudo em silêncio. Abriu a porta. Os quartos de vestir não eram opulentos e espaçosos: o quarto
dele ficava a poucos passos. A lamparina ainda não tinha se apagado e ela percebeu as silhuetas do toucador, as escovas e o espelho dele.

Prosseguiu, deu uma olhada. As cortinas do dossel não tinham sido fechadas. Ele estava deitado, com o camisolão aberto mostrando o peito forte.

Ficou olhando. Não o via despido desde a noite de núpcias. Ela sempre apagava as velas e lamparinas, mesmo quando o procurava em Oxfordshire. A escuridão fazia a
cama misteriosa e sobrenatural e evitava um grande embaraço. Tornava mais fácil que ela se entregasse.

Ele estava com a cabeça apoiada nos braços dobrados. Parecia compenetrado, como se tivesse percebido algo no teto que exigisse sua atenção. Mas estava tão imóvel
que talvez nem estivesse acordado.

- Kyle, está dormindo? - sussurrou ela.

Ele se sentou na cama. Olhou para a esposa e observou sua camisola e o penhoar, que não eram nem novos nem tão bonitos.

- Acordei você? - insistiu ela.

- Não. Estava pensando em alguns problemas que tive hoje.

- Sobre terras, associações de mineiros e coisas assim?

- É.

Ela entrou no quarto cautelosamente.

- Alexia combinou de algumas damas me visitarem. Bom, não a mim, mas a Henrietta. Porém elas sabiam que eu estaria junto e foram mesmo assim.

- Venha aqui me contar isso.

Ela subiu na cama e contou sua pequena vitória.

Ele pareceu muito interessado.

- Lady Alexia age rápido.

- Ela ainda acredita que Irene tem chance de ser apresentada nessa temporada, acho.

Irene não tinha saído da casa de Alexia. Todos achavam que sua única esperança era que a prima a apresentasse à sociedade.

- Quando ela der esse jantar, você deve usar um vestido novo - disse ele. - Vou mandá-la para lá tão bem-vestida que será a mulher mais elegante da mesa.

- Talvez você me acompanhe, em vez de apenas me mandar ao jantar.

- Pouco provável. Lady Alexia é esperta demais para lutar em duas frentes ao mesmo tempo.

- Então não sei se vou querer ir.

A expressão no rosto dele mudou um pouco, o suficiente para ficar indecifrável.

- Quer saber de uma fofoca? - perguntou ela. - É sobre alguém que você conhece.

- Todo mundo quer saber de uma fofoca, principalmente sobre alguém que se conhece.

- É fofoca das boas. Tudo indica que seu amigo, o Sr. Lacroix, está tendo um caso com... Henrietta!

- Quais são as provas?

- Ninguém menos que Easterbrook o viu saindo da casa. Você acredita?

- Que indiscrição de Jean Pierre. Devo avisá-lo?

- Desde que não seduza Caroline, acho que Easterbrook não se importa se ele ficar com todas as mulheres da casa. Quanto a Henrietta, o marquês pareceu encantado
e feliz por poder cutucá-la sobre isso nos próximos anos.

Eles riram. Foi bem agradável ficar ali de noite, conversando sobre fatos do cotidiano. Mas quando terminou a história, Rose sentiu que o marido estava se distraindo
outra vez. Os olhos dele ficaram insondáveis como quando ela havia chegado ao quarto.

- Bom, boa noite - disse ela, saindo da cama.

Ele pegou sua mão.

- Fique.

Talvez as palavras brandas que ela usara tivessem sido vagas demais.

- Eu... quero dizer, hoje eu... estou naquela semana em que...

- Fique, mesmo assim.

Rose sentiu algo diferente no coração quando, sem jeito, entrou embaixo dos lençóis. Kyle apagou a lamparina e a escuridão envolveu a casta intimidade dos dois.
Ele a abraçou.

Ela não dormiu logo. Ficou preocupada com a novidade daquele tipo diferente de afeto.

- Preciso ir ao norte outra vez - disse ele, e sua voz não a assustou, tão calma veio na noite. - Daqui a duas semanas, talvez. Não vou ficar mais de uma semana.

- Posso ir junto? Você disse que iríamos na primavera, mas, se vai agora, eu também gostaria de ir.

- A viagem vai ser no frio. E você tem aquele jantar.

- Alexia pode marcá-lo de acordo com a viagem. E não tenho medo de um pouco de frio.

Duas semanas antes, ela jamais pediria para ir. Mesmo alguns dias antes, ela poderia ter apenas deixado a informação passar. Mas agora queria muito ver como fora
a vida dele. O abraço nessa noite a emocionou, mas também deixou bem claro que, mesmo com tanto prazer, havia um vazio naquele casamento que ela não conseguia explicar.

Não sabia se um dia esse vazio seria preenchido. Talvez Kyle fosse sempre um pouco estranho. Talvez ele preferisse assim. Ela não tinha ao menos certeza se gostaria
do que seria preenchido, se isso ocorresse. Só sabia que o vazio parecia grande nesta noite, talvez porque uma nova emoção o destacasse. Sua alma quase doía por
desejar algo tão fora de alcance.

- Veremos - disse ele. - Amanhã vou para Kent e passarei uns dias lá. Você não pode ir, já que iniciarei algumas obras e só haverá operários, muita lama de inverno
e eu...

Algumas obras. Em Kent. Devia ter sido o trabalho que fora tratar com Norbury no dia do leilão.

Súbito, entendeu por que Kyle estava tão pensativo na hora em que ela entrou no quarto. Devia ter encontrado Norbury. Talvez naquele mesmo dia.

Ele jamais a deixaria saber se Norbury os insultara. Jamais contaria se pensava naquele caso. Mas Rose tinha certeza que sim. Talvez até naquele instante, enquanto
os pensamentos vagavam pela noite.

Ela podia saber mais sobre ele e começar a preencher aquele vazio. Eles podiam ter muitas noites como essa, em que conversavam como amigos e não como amantes.

Entretanto, não importava o que acontecesse, não importava quanto tempo ficassem casados, Norbury seria uma sombra entre eles, afetando tudo, mesmo as coisas boas,
ainda que nenhum dos dois jamais pronunciasse o nome dele.

Esse pensamento quase estragou aquela noite agradável. Norbury tinha entrado na cabeça dela. E quase dava para ouvi-lo falando na de Kyle. Sua influência malévola
ficou tão opressora que ela pensou em sair da cama.

Kyle virou de lado, dormindo. O braço ficou casualmente sobre ela. A mão estava sobre o seio, num gesto ao mesmo tempo confortador e possessivo. Ficou assim a noite
toda, impedindo-a de escapar.

 

CAPÍTULO 12

Kyle estava em Kent fazia dois dias quando Roselyn recebeu a carta. Tinha sido reenviada de Watlington. Reconheceu a letra na hora: Timothy tinha escrito outra vez,
embora a carta estivesse assinada como Sr. Goddard.

Dessa vez, não escrevera de Dijon, mas de uma cidade italiana chamada Prato.

 


Finalmente atravessei os Alpes. Estou morando aqui por ser menos dispendioso do que Florença. E também por haver menos possibilidade de eu ser reconhecido. A viagem
foi exaustiva e o clima, horrível. Tive medo de morrer. Passei mal quase todo o tempo. Agora vivo entre estranhos cuja língua ignoro e sofro de uma tristeza grande
demais para aguentar.

Pretendo ficar aqui até que venha ao meu encontro. Por favor, escreva logo, dizendo que vem. Só verei o sol na minha janela quando você chegar. Conte-me seus planos,
de forma que eu tenha algo por que esperar.

Rose, meu bolso se ressentiu da longa estada em Dijon e dos honorários dos médicos, que não serviram para nada, mas foram caros. Quero que venda a casa e o terreno
em Oxfordshire e traga o dinheiro. Esta carta a autoriza a fazer isso em meu nome. Leve-a a Yardley, nosso velho advogado. Ele reconhecerá minha letra e lhe dirá
o que fazer. Eu o autorizo a ser meu procurador na venda caso, por ser mulher, você não seja aceita. Se houver mais exigências, escreva-me imediatamente, de maneira
que possamos efetuar a venda o mais rápido possível.

Sei que ainda faltam meses, mas conto os dias na esperança de que ainda seja minha adorável irmã de sempre, um coração bondoso que me deu força por quase a vida
inteira. Prometo que tudo vai melhorar quando estivermos juntos outra vez.


Timothy

Ele ainda parecia perdido e só. A menção a uma doença não ajudava a melhorar as coisas. Rose não sabia se deveria torcer para que ele estivesse se referindo a passar
mal por excesso de bebida, já que esse era o grande fraco do irmão, ou por outro motivo.

E agora ela não podia ir encontrá-lo, por mais doente que ficasse. Ele jamais saberia que, por um curto espaço de tempo, quando passara algumas horas de grande felicidade
deitada numa colina, ela cogitara fazer isso.

Ela também não podia negar a verdade por trás da escolha que fizera. Ao aceitar o pedido de Kyle, deixara de lado as necessidades do irmão para tentar salvaguardar
a própria vida e a de Irene na Inglaterra - o que talvez se tornasse uma necessidade desesperada. Se não agora, um dia.

Ele afirmara estar ficando sem dinheiro. Isso despertara um pouco de raiva em Rose. Ela havia sobrevivido com quase nada esses meses todos. Ele deveria ser mais
controlado, em vez de gastar todo o dinheiro que roubara.

Deu um suspiro, tão fundo que o corpo todo estremeceu. Timothy estava sendo apenas Timothy. Sem a influência dela, continuaria sendo a pior versão de si mesmo. Ela
não podia salvá-lo. Não agora, depois de Kyle ter dito tão claramente que ela jamais iria ao encontro do irmão. Mas não podia abandoná-lo, como Kyle esperava.

Chamou a criada e trocou o vestido matinal por um conjunto para usar em carruagem. Tinha de encontrar Alexia na modista e encomendar alguns trajes novos. Mas antes
iria ao centro financeiro da cidade. Precisava saber se ainda podia ajudar o irmão.

 

Kyle observou o engenheiro perfurar a terra dura para conferir novamente o terreno antes de iniciar as fundações.

A uns 200 metros, outro homem marcava as árvores que seriam derrubadas e as que seriam poupadas quando a nova estrada fosse construída. Kyle imaginou a casa que
dali a pouco se ergueria ao lado daquele matagal.

Se tudo saísse conforme planejado, dentro de dois anos haveria famílias morando naqueles campos e carruagens passando por novas estradas. A propriedade de Cottington
seria valorizada e seus parceiros veriam os lucros.

Incluindo ele. Kyle ainda estava andando na corda bamba. Era bom e experiente em se equilibrar. Não chegava a perder o sono por causa dos riscos. Mas, como qualquer
homem, ele preferia ter os pés firmes no lado com dinheiro daquela corda.

O operário que marcava as árvores o chamou e fez um gesto apontando para o sul. Kyle olhou para a estrada naquela direção. Atrás da carroça que trazia as ferramentas
a serem usadas nesse dia, vinha uma carruagem.

Ele reconheceu o veículo. Foi até a estrada e chegou ao mesmo tempo que Norbury saltava.

- Espero que não tenha vindo da cidade só para ver o andamento da obra - disse Kyle. - Ainda não há muito o que conferir.

Sob a aba do chapéu de copa alta, Norbury olhou a elevação de terra.

- Estou oferecendo uma recepção na minha mansão. Resolvi vir aqui antes que os hóspedes chegassem.

Norbury olhou atentamente para Kyle, querendo avaliar sua reação. Kyle o deixou olhar à vontade. Não precisava que Norbury o lembrasse da última festa que tinha
dado. A imagem da humilhação de Rose vinha sempre à cabeça, sem que ninguém precisasse ajudar.


E ela chegou trazendo fúria e uma urgência de espancar o visconde. Kyle tinha controlado essa vontade na última vez em que se encontraram. Agora ela voltava e o
deixava tenso.

- Espero que essa festa seja mais discreta do que a última. Se espalharem o boato de que fazem orgias aqui perto, essas casas jamais serão compradas.

- Aposto que serão compradas mais rápido.

Norbury fez um gesto para que Kyle o acompanhasse.

- Vim falar de assuntos de interesse mútuo, além dessas casas. Recebi um recado de Kirtonlow Hall. Meu pai sofreu uma leve apoplexia. O médico disse que ele não
vai durar muito.

- Ele é mais forte do que a maioria. Pode durar mais do que os médicos imaginam.

Mais do que você espera. O filho era tão diferente do pai que nunca houvera muito afeto entre eles. De diversas maneiras, o conde deixara claro a seu herdeiro quanto
ele o decepcionava.

Não era apenas a capacidade intelectual de Cottington que não passara despercebida a Norbury. Algo fundamental faltava no filho, além de inteligência. Ele parecia
não ter a empatia natural que um ser humano sente pelos demais. Ou ter uma empatia deformada. Norbury não seguia os princípios morais que costumam guiar as pessoas
em assuntos grandiosos ou corriqueiros.

- Podemos desejar que ele viva para sempre, mas ninguém consegue - falou Norbury com uma sobriedade dramática. - Quanto ao outro assunto que eu queria tratar com
você, os vivos podem influenciar. Andei pensando no seu casamento.

Kyle apertou o passo, fazendo com que o outro o seguisse na estrada. Olhou para trás, para saber a distância que estavam dos operários. Será que veriam ou ouviriam
se ele quebrasse o queixo de Norbury com um soco?

- Pode parar de olhar para mim como um boxeador se preparando para uma luta - disse Norbury. - Sua decisão de se casar com uma mulher dessas é loucura. Estou mais
interessado no irmão dela e em como esse casamento muda nossos planos em relação a ele. Depois de me recuperar do choque de você se juntar a ela para sempre, vi
uma luz na escuridão.

- A única luz que existe é a da minha felicidade na escolha da minha esposa. Timothy Longworth foi embora. Nem ela nem eu temos ligações com ele.

- Ele não escreve para ela? É bem provável que sim.

- Não tem por quê.

- É irmã dele. Você precisa ver as cartas que ela recebe, assinada com o nome verdadeiro ou de Goddard. Veja qualquer carta enviada do continente, principalmente
da Itália.

- Não.

- Vai economizar muito tempo. Se ele escrever para ela, teremos...

- Não. Estou fora disso. Não quero participar e não vou ajudá-lo.

Um aperto no braço. Era a ordem de parar. Kyle olhou para Norbury, cujo rosto tinha perdido qualquer traço de gentileza.

- Céus, com que rapidez o cavaleiro puro foi seduzido e maculado. Esqueceu rápido seus lindos ideais sobre justiça, Kyle.

- Não vou espionar minha esposa.

- Não espione. Faça com que ela lhe conte.

- Ela não vai nos dar de bandeja a cabeça do irmão na nossa forca. Nem eu vou pedir.

- Porcaria nenhuma! Não há desonra nisso. Maldição, assim você vai até protegê-la.

A explosão de Norbury despertara seu pensamento. Seus olhos ficaram dissimulados.

- Na verdade, se não fizer isso, vai colocá-la em risco - concluiu.

Norbury podia ter um raciocínio lento, mas funcionava quando necessário. Kyle viu novas ideias surgindo, transformando seu rosto numa máscara de presunção.

- Ela decerto foi cúmplice desde o começo - disse Norbury.

- Claro que não.

- Maldição, eu devia ter percebido antes. Isso explica o reembolso feito por Rothwell. Não estava poupando um homem que já tinha escapado de nós, mas a cúmplice
que ficara para trás. Ela pode até estar com quase todo o dinheiro aqui, na Inglaterra. Aquela humildade era um disfarce para afastar suspeitas. Maldição, Longworth
nem era tão inteligente. Deve ter sido tudo ideia dela...

- Está falando bobagem.

- Até mesmo o que teve comigo. Pensei que eu a tivesse seduzido, mas vai ver ela quisesse ficar perto de mim para saber se as vítimas estavam prestes a descobri-la.
Seria irônico, não? Se ela estivesse o tempo todo...

- Continue insinuando isso e mato você.

- Está tão encantado pela beleza dela que é capaz de arriscar tudo? Duvido. Daqui a alguns meses não estará mais tão embevecido com seu grande prêmio. E verá o que
há por baixo da bela aparência. O irmão é ladrão e ela mesma mostrou ter caráter fraco e imoral.

Kyle agarrou Norbury pelo colarinho. Puxou-o e o levantou do chão.

- Eu avisei.

Norbury arregalou os olhos e inclinou a cabeça para trás.

- Ouse dar um soco e eu não vou me conter. Acho que um juiz gostaria de ouvir a questão e refletiria bastante antes de achar que estou errado. Meu ponto de vista
pode dar um bom processo. Com um pouco de esforço, talvez até se encontrem algumas provas.

A ameaça era óbvia. Justiça corrupta ainda era pior do que falta de justiça e um lorde tinha muitas formas de conseguir a primeira.

Kyle mal conteve a própria fúria. Soltou o colarinho de Norbury, que se ajeitou, alisando a roupa e ajustando a gravata. Endireitou-se e olhou com o deleite de um
homem que, de súbito, se descobria com um ás na mão.

- Descubra onde está o bastardo, Kyle - ordenou Norbury, já andando em direção à carruagem. - Com toda a honra que você acha que tem, não vai lhe fazer falta sacrificar
um pouco dela.

 

Assim que Kyle voltou de Kent, Rose percebeu que ele tinha encontrado Norbury novamente. Ele carregava uma nuvem pesada para dentro de casa. Sua expressão estava
diferente, mais dura que de hábito.

Naquela noite, quando se sentou para jantar, tratou-a como sempre. Até a ouviu pacientemente contar como foram os dias em que estiveram longe um do outro. Mas a
presença de Norbury na cabeça de Kyle era tão evidente que o outro bem podia estar à mesa com eles.

Quando o criado foi dispensado, ela se preparou. Era melhor desanuviar o ambiente e saber o que o estava preocupando. Isso não queria dizer que ela ficasse feliz
com uma possível discussão.

- Rose, quando ficou em Oxfordshire, recebeu alguma carta de seu irmão? Refiro-me a alguma além daquela da primeira vez em que fui visitá-la.

Ela não esperava essa pergunta, ou assunto. Não fosse pela intensidade com que o marido fizera a pergunta, ela podia ter contado tudo. Mas se conteve, tentando imaginar
por que ele perguntava e se a resposta tinha importância.

- Creio que ele escreveu pelo menos mais uma vez - acrescentou Kyle.

- Sim. Uma.

Era verdade, mas não toda ela. Rose havia recebido só mais uma carta quando estava em Oxfordshire.

- Então eu tinha razão: quando você falou em ir embora para sempre, era com ele.

Ela assentiu.

O fato de ter razão não alterou o humor dele.

- Não quero que tenha mais qualquer contato com ele, Rose. Se ele escrever de novo, queime as cartas sem ler. Não as guarde. Nem sequer veja de que cidade ele escreveu.

Ela ficou um bom tempo em estado de choque, sem conseguir pensar. Então o choque foi substituído pela raiva.

- Antes de nos casarmos, você disse que eu jamais poderia encontrá-lo, nem para visitas. Não disse que não podia escrever ou receber cartas dele.

- Eu disse. Mas, caso tenha entendido mal, estou repetindo agora.

- Eu disse que não o consideraria morto, mas agora você exige que eu aja como se estivesse.

- É.

O olhar dele era de ordem, mais do que a voz.

Ela se levantou e saiu da sala de jantar. Buscou um pouco de privacidade na biblioteca. Para sua surpresa, ele foi atrás.

- É melhor me deixar sozinha para aceitar o que você exige em relação a meu irmão - avisou.

- Preciso saber se aceita mesmo. Quero a sua palavra de honra.

- Minha palavra de honra? E o que me diz da sua? Se a minha puder mudar com a mesma rapidez, eu a dou com prazer. Naquele dia, você me convenceu de que tinha retirado
essa exigência.

Ela pensou que a culpa poderia amaciá-lo. Só que aumentou a raiva.

- Tenho um motivo para exigir isso. Gostaria que você acreditasse em mim, mas, se não acreditar, isso não muda nada. Você sabe como é o seu irmão. Você mesma disse
que ele é um perigo para você. Não pode ter contato com ele.

- Ele é meu irmão.

- Ele é um ladrão covarde. Um criminoso.

A firmeza de Kyle a surpreendeu. Ela o olhou atônita, surpreendida pela força que emanava dele, vendo-a e a sentindo sem controle.

Ele se acalmou, mas a tensão ficou no ar.

- Rose, você entende o que ele fez? Quantas pessoas ele roubou?

- Lorde Hayden...

- Lorde Hayden impediu que as vítimas ficassem na miséria total. Quanto você acha que ele pagou?

Ela se sentiu como uma criança na escola tentando adivinhar a resposta de uma conta.

- Muito dinheiro. No mínimo 20 mil.

A raiva chegou a dar expressão à risada curta e baixa que ele soltou.

- Essa quantia não faria a menor diferença para Rothwell. Pense na casa onde sua prima ainda mora. Ela lhe mostrou alguma joia nova? Ou trajes novos? Pense neles
e nos tecidos e enfeites que ela usa.

Rose sentiu o estômago embrulhar. Nunca tinha calculado a quantia, em parte porque sabia o suficiente para desconfiar que não gostaria da soma total.

- Quanto? - perguntou ela, num sussurro.

- Ao fim e ao cabo, no mínimo 100 mil libras. Talvez muito mais.

Ela arquejou. Quanto dinheiro!

Kyle se aproximou. Os olhos dele tinham um pequeno brilho solidário em meio a todos os de raiva.

- Seu irmão não sabia que Rothwell iria reembolsar nem uma libra. Presumiu que cada vítima simplesmente amargaria o próprio prejuízo. Assim como os clientes, quando
o banco faliu. Ele não roubou só dos ricos, mas de velhinhas, órfãos indefesos e pessoas que dependiam dessas reservas para viver.

- Tenho certeza de que ele não entendeu bem... Ele não podia... de propósito...

- Claro que ele entendeu. Tudo. Com toda a certeza, fez de propósito.

De novo, Kyle controlou a raiva. Foi visível seu esforço de se recompor.

- É tão estranho assim que eu queira que corte relações com um homem tão canalha?

Ela já não conseguia enxergar Kyle direito. Virou-se e tentou conter os soluços. Meu Deus, 100 mil libras! E Alexia e Hayden...

Enxugou os olhos e tomou fôlego.

- Você disse que conhece pessoas que perderam dinheiro. Quem são elas?

Por um instante, Rose pensou que ele não fosse responder.

- Meus tios.

Ela teve outro choque. Não eram amigos, mas pessoas da família.

- Porém foram ressarcidos, não?

- Sim, foram. É assim que você justifica, quando pensa no seu irmão? Pelo menos as vítimas foram ressarcidas. Pelo menos apenas uma vítima pagou caro em vez de dúzias
perderem tudo? É assim que você o desculpa?

- Eu não o desculpo.

- Acho que desculpa. Ele é seu irmão e você busca motivos para diminuir a culpa dele. Mas ele não é meu irmão, Rose.

Não, e Kyle não desculparia nada. Não se sentia nem um pouco solidário, nem tinha intenção de salvá-lo. Se Tim fosse preso, Kyle acharia justo que fosse para a forca.

Ela não tinha palavras para argumentar. Não tinha nada para contrapor, a não ser o amor por um irmão que tinha sido uma pessoa bem melhor quando criança do que adulto.

Ela pensava que Kyle fosse ao menos entender, se não aprovasse. Mas ele estava implacável, irredutível e disposto a fazer com que ela condenasse Tim como todo mundo.

- Você vai cortar qualquer contato com ele - repetiu. - Se tem cartas, queime-as. Se receber mais uma, destrua-a imediatamente.

Ele saiu da biblioteca. Não tinha pedido que ela prometesse, tinha ordenado. E ela deveria obedecer.

 

Naquela noite, Rose pensou em trancar a porta de seu quarto de vestir.

Nunca tinha feito isso. Não se importava que ele a procurasse todas as noites. Era a esposa, ele tinha esse direito e nunca saíra do quarto sem que ela tivesse alcançado
toda a liberdade que o prazer podia proporcionar.

Essa noite era diferente. Não tinha certeza se reagiria ao toque dele. Após a discussão, um silêncio duro como pedra caíra sobre a casa. E ainda afetava o ambiente
e ela.

Nessa noite, uma pequena parte de Kyle que ela ainda desconhecia se revelara. Ficara espantada com a força de vontade dele. Já a havia percebido antes, mas vê-la
dirigida a ela a assustara um pouco.

Devia ter suposto quanto ele era seguro. Em relação a si mesmo e às decisões que tomava. Sem isso, ele não teria sobrevivido no caminho que percorrera. Poucos homens
saíam de um vilarejo de mineiros de carvão para as salas de visitas de Londres em pouco mais de dez anos.

Poucos homens nascidos num vilarejo assim pediriam Roselyn Longworth em casamento, independentemente das condições em que estivessem suas finanças, sua reputação
ou o status de sua família.

Ela ficou na frente da porta, olhando a tranca. Não era a primeira vez que achava que, com esse homem, não devia agir guiando-se pelo capricho. Não que ele fosse
derrubar a porta se ela a trancasse. Acreditava que ele nem sequer se irritaria.

Em vez disso, imaginava que duas coisas poderiam ocorrer. Ou os dois teriam uma conversa igual à anterior, em que ele diria o que aceitava ou não que ela fizesse
ou haveria frieza e formalidade na cama na próxima vez que ele a procurasse, podendo se estender para as seguintes por bastante tempo. Talvez até para sempre.

Ela se afastou da porta e voltou para a cama. Apagou as lamparinas como fazia todas as noites e foi envolvida pela escuridão.

Talvez ele não viesse, embora já fizesse alguns dias que não se encontravam, por causa das regras dela e do tempo que ele passara em Kent. Sem dúvida, ele sentia
que a discussão ainda ecoava na casa. Tinha se retirado para o escritório e o trabalho, mas talvez as palavras ressoassem na cabeça dele como faziam na dela.

O coração dela ainda batia pesado ao lembrar como ele via a culpa de Tim. Cem mil libras. Ela às vezes pensava em reembolsar Alexia e Hayden, mas jamais poderia
ressarcir uma quantia dessas. Jamais. Por isso Alexia fora tão enfática ao desencorajá-la de encontrar Tim na Itália.

Só que agora ela estava casada com um homem que teria prazer em enforcar Tim com as próprias mãos. Não podia defender o irmão. Não podia dizer que Kyle estava errado.
Mas uma irmã não julga com base no certo e no errado, na justiça.

Cem mil libras. Como uma quantia dessas podia estar chegando ao fim? Tim dizia que precisava de mais dinheiro, e ela acreditava nele.

Um movimento sutil no quarto a tirou de seus pensamentos. Abriu os olhos na escuridão. Kyle estava ao lado da cama, não passava de uma silhueta negra no quarto sem
luz.

Tinha vindo, afinal. Isso a surpreendeu. E também a reação que teve: o coração bateu de alívio antes que ela conseguisse se controlar.

Kyle parecia estar à espera de algo ou decidindo alguma coisa. Ela não sabia o quê. Mexeu-se na cama e isso fez as cordas que sustentavam o colchão reclamarem.

Kyle também fez sons e movimentos quase imperceptíveis. Roupão caindo. Calor se aproximando. Braços se esticando e peles se tocando. Ela respirou e o sentiu inteiro
na cama, aquela presença total que transformava a noite.

Ele soltou o laço da camisola, fazendo-a escorregar pelos ombros e o corpo de Rose.

- Obrigado por não trancar a porta.

Será que ele a ouvira discutindo consigo mesma? Como era típico dele tocar no assunto, em vez de deixar que fosse uma escolha silenciosa. Rose esperava que não comentassem
também o motivo para ela pensar em trancar.

As carícias e o beijo mostraram que não comentaria.

- E se eu tivesse trancado?

Ela já nem estava muito interessada na resposta. As deliciosas palpitações da excitação a distraíam.

- Não sei. Ainda não havia decidido o que faria quando tentei abrir a porta.

Ela não pensou na resposta, apenas percebeu o perigo daquela incerteza. Mas o prazer já desviava sua atenção. Seduzia-a. Isso também era perigoso. O prazer embotava
os pensamentos e colocava tudo sob a melhor perspectiva.

Kyle se assegurava de que ela gostasse. Com suas carícias e beijos hábeis e firmes, levava-a à entrega que tinha se tornado tão habitual, tão atraente. O prazer
obrigava a uma espécie de abandono, concluiu ela. Abrir mão de ser racional e de si mesmo. Nunca chegara a compreender isso antes.

Dali a pouco, ela não entendia mais nada, nem mesmo a discussão. A névoa de sensações obscurecia tudo, menos o desejo de que ele lambesse seus seios e beijasse sua
barriga e tocasse a carne que ansiava por ser penetrada.

Kyle a tirou do colchão e a sentou em seu colo com as pernas afastadas. Puxou-a pelo quadril e a penetrou tão fundo que ela gemeu com a deliciosa sensação de completude.

Ele roçava os mamilos dela com as mãos e ela ganhava vida onde seus corpos se uniam. Diretamente. Maravilhosamente. A excitação desceu direto por seu corpo e se
instalou ao redor da completude que ele proporcionava.

- Venha aqui.

No escuro, Kyle a puxou para a frente até deixá-la apoiada sobre os braços. Seus seios pairavam acima dele. Ele então substituiu as mãos pela boca. O prazer aumentou
tanto que ela arfou. O jeito como a excitava era bom demais, urgente demais, irresistível demais para que ela conseguisse se controlar minimamente que fosse.

Ela se entregou à loucura, gritando e gemendo e se mexendo para senti-lo mais, melhor, mais firme. Ele a segurou pelas coxas e a penetrou com força para atingir
o ápice. Ela ficou completamente dominada.

Quando ele terminou, ela continuava excitada. Apesar das muitas ondas de prazer e entrega, o corpo dela ainda tinha fome. Ele percebeu. Colocou-a de costas e a acariciou
de novo, desta vez nas dobras da carne sensível e pulsante.

Ela quase desfaleceu. Agarrou-o com as unhas para fugir do prazer quase doloroso. Ouviu-o como naquela primeira noite, dizendo-lhe que se entregasse.

Dessa vez, foi o mais doce dos gozos. Primeiro a atingiu com força, depois se espalhou em turbilhões que deixaram seu corpo atônito. Ela se maravilhou nessa sensação
e prendeu o fôlego para que durasse para sempre.

Não durou, claro, ainda que seu corpo tenha demorado a entender isso.

Os acontecimentos anteriores da noite voltaram junto com a noção de espaço e tempo. Talvez tivessem saído dos pensamentos de Kyle também, banidos pelo delírio.

Ele não ficou por muito tempo depois que ela recobrou os sentidos. Naquele breve período tão saturado de paz, ela sentiu a sombra nele.

Desconfiou de que ele não esquecera aquela discussão, nem mesmo no momento do orgasmo. Tinha-a procurado nessa noite em parte por causa da briga. Havia deixado claro
que tais coisas jamais ficariam entre eles naquela que era a parte mais fundamental do casamento. Ele também se assegurara de que ela não se incomodaria com isso.

Esse frio cálculo não mudou a verdade de como ele a tratava. Se Kyle trouxera alguma raiva para aquela cama, não demonstrara. Como sempre, ele tivera consideração
e pedira pouco dela, além de que tivesse prazer.

Rose pensou uma coisa. Uma coisa incrível. Quem era ele e quem era ela, a forma como se encontraram, o escândalo e a redenção influenciavam tudo. Principalmente
o que acontecia naquela cama na melhor e na pior das noites.

 

CAPÍTULO 13

Kyle não havia mentido. No final de janeiro, a estrada para o norte era fria. Quando entraram no condado de Durham, o céu estava baixo, com nuvens de chuva.

Mais para o norte, a paisagem ficava montanhosa e cada vez mais deserta. Passaram por vilarejos pequenos e grandes. Rose identificou aqueles onde os mineiros viviam.
Os resíduos da mina, que os trabalhadores carregavam em seus corpos e roupas, deixavam marcas pelo caminho.

Quando se aproximaram de Teeslow, ela ficou nervosa. Kyle não tinha estimulado que ela fosse, mas concordara por insistência dela. Rose queria conhecer sua casa
e os tios, mas talvez não fosse bem-vinda.

- Você tem outros parentes além deles? - perguntou ela.

- Morreram. Meus tios tinham duas filhas mais jovens que eu. Morreram de cólera quando eu estava em Paris.

- Você sempre morou com eles?

A conversa parecia não incomodá-lo, mas tampouco lhe agradava.

- Meu pai morreu num acidente na mina, quando eu tinha 9 anos. Minha mãe tinha morrido alguns anos antes. O irmão dela ficou comigo.

Dali a pouco, a carruagem deles entrou no vilarejo. Rose olhou as poucas ruas e lojas, os amontoados de casas. Pó de carvão cobria as soleiras e batentes de algumas
casas, além do rosto e das roupas de algumas pessoas.

Kyle e Rose não pararam no vilarejo, continuaram em outra estrada que ia para o norte. No final dela, havia uma linda casa de pedra. Com dois andares, era parecida
com as casas menores encontradas no sul do país, geralmente destinadas a um administrador ou caseiro.

- Não esperava que fosse assim - disse ela.

- Pensou que seria uma casinha de cinco cômodos, no máximo? Eles moraram anos numa assim, lá no vilarejo. Há cinco anos, construí essa casa para eles.

Ele saltou da carruagem.

- Vou entrar, espere aqui. Eles não sabiam que eu vinha, e você vai ser uma surpresa total.

Foi até a porta, abriu-a e sumiu. Rose observou a casa. Viu o rosto de uma mulher, de relance, numa janela. Certamente, a tia olhava a surpresa total.

Ele estava sendo cuidadoso. Quando ela conhecesse seus parentes, os rostos disfarçariam o que pensavam, como ele também costumava fazer. Se não gostassem dela ou
achassem que não era uma boa esposa para o sobrinho, não demonstrariam isso num momento de surpresa.

Kyle voltou e estendeu a mão para ajudá-la a descer da carruagem. Uma mulher surgiu à porta, sorrindo para lhe dar boas-vindas.

- Rose, esta é minha tia, Prudence Miller.

Prudence tinha palavras amáveis e gestos afáveis.

- Ficamos muito contentes de você vir.

Esguia, de cabelos pretos e olhos brilhantes, Prudence tinha chegado à meia-idade com a beleza quase intacta. Rose a imaginou aos 20 ou 30 anos, de pele clara e
olhos escuros.

Como Prudence a recebeu sozinha, Rose concluiu que o tio de Kyle estivesse na mina. Assim que a levaram para a sala de visitas, viu que não era isso.

O tio Harold estava sentado perto da lareira. Tinha cabelos negros como os da esposa e era quase tão magro quanto ela. Apesar do rosto emaciado, Rose o achou parecido
com Kyle nos olhos azuis vívidos e nas feições de traços duros.

Ele a observou atentamente durante as apresentações. Rose notou sua palidez e o lençol que cobria suas pernas e o colo. Havia uma escarradeira numa mesa baixa perto
da perna direita dele. Tio Harold estava doente.

Os cumprimentos o fizeram tossir. Virou a cabeça e cuspiu na escarradeira.

- Você tem de fazer uma torta, Pru. Não podemos receber Kyle sem oferecer as tortas de que ele tanto gosta.

- Teremos uma no jantar - disse ela. - Esperem aqui um instante, vou ao andar de cima arejar um pouco o quarto.

Dava a entender que eles iam se hospedar lá. Kyle saiu e voltou com o cocheiro e as bagagens. A casa tinha um abrigo de carruagem e ele mandou o cocheiro para lá.

Carregou ele mesmo a bagagem para cima, seguindo a tia na escada. Rose sentou numa cadeira perto de Harold, que continuava a observá-la.

- É uma linda mulher, Sra. Bradwell. Agora entendo melhor este casamento.

- Espero que o senhor me trate por Rose.

Ele riu.

- Bom, vai ser uma experiência rara, tratar uma dama como a senhora com tal intimidade.

Tinha sido a imaginação dela ou havia um tom desaprovador na voz do tio? Considerando as circunstâncias do casamento, o "uma dama como a senhora" podia ter vários
sentidos.

Ela achava que o escândalo não podia ter chegado a Teeslow, mas talvez tivesse. Ou talvez Kyle houvesse explicado tudo em detalhes quando esteve lá, em dezembro.
Tenho a oportunidade de casar com uma dama porque ela está em tamanha ruína que nunca conseguirá algo melhor. A reputação dela vai me atingir, mas daqui a uma geração
ninguém vai lembrar muito disso.

Ela tentou manter uma conversa amistosa. Até o momento em que Harold começou a tossir. Ele estava com alguma doença muito grave. Rose se levantou para tentar ajudar,
sem saber como. Ele levantou a mão, impedindo-a. A tosse diminuiu e ele cuspiu de novo na escarradeira.

- Estou doente, como pode ver. É o mal dos mineiros. Achei que ainda teria uns bons dez anos de vida quando isso me atacou.

- Lamento.

Ele deu de ombros.

- Não se pode tirar o carvão sem levantar pó.

Kyle então voltou, poupando-a de encontrar o que dizer.

- Acho que vou roubá-la do senhor, tio. O quarto está pronto e Rose precisa descansar e se aquecer depois da viagem.

 

No quarto, Rose tirou o manto que usava em viagens e se aproximou da lareira.

- Seu tio está muito doente, não é?

- Está morrendo.

Ela assentiu, como se fosse óbvio.

- Ele disse que é o mal dos mineiros. Por causa do pó.

- Muitos adoecem dos pulmões. É de esperar, por isso levam uma vida tão controlada. Suas economias precisam ser suficientes para o sustento da família quando morrerem.

- É triste. Mas você fala sem emoção.

- A vida é assim, Rose. Essa doença é tão normal para esses homens como a gota é para os lordes. Um mineiro entra na mina sabendo disso, da mesma maneira que um
marinheiro embarca no navio sabendo que pode se afogar.

Kyle começou a desfazer sua mala. Nunca tinha levado Jordan lá, pelos mesmos motivos que ficara indeciso quanto a levar Rose. A casa não tinha nada de errado, mas
os tios não saberiam o que fazer tendo criados por perto.

Ele estava feliz de saber que Rose podia se virar sozinha. Do contrário, teria insistido em ficarem numa hospedaria, só que a mais próxima não seria conveniente.
Além disso, a tia ficaria ofendida se aquele casamento mudasse tão rapidamente os hábitos da família.

Mesmo assim...

- Você vai se sentir bem aqui? Se não for, pode me dizer.

Ela deu uma olhada no quarto, na cama sem dossel e nas cortinas de que tia Pru tinha tanto orgulho.

- É muito melhor que uma hospedaria. Vamos ficar juntos?

- Vamos.

Ela não pareceu se incomodar. Sentou na cama, depois se deitou.

- Acho que vou descansar um pouco. Nunca imaginei que viajar de carruagem vários dias pudesse ser tão cansativo.

 

Quando Roselyn acordou, Kyle tinha saído. Ela desceu a escada à procura dele.

Harold cochilava na cadeira ao lado da lareira acesa. Ela seguiu os sons que vinham da cozinha, nos fundos da casa.

Prudence estava lá trabalhando, sovando massa de torta. Sorriu e indicou o fogão com a cabeça.

- Aquele jarro em cima das pedras tem sidra e na mesa tem um copo, se quiser.

Rose se serviu e viu por uma janela dos fundos o pequeno pomar de árvores frutíferas novas, que estavam nuas agora, no frio do inverno. Havia um grande jardim no
lado oeste do pomar, à espera de ser cultivado na primavera.

- A casa é muito agradável - disse ela. - A vista de todas as janelas é linda.

- Kyle a construiu para nós. Quando voltou da França. Foi para Londres ganhar dinheiro, depois construiu. Harold não queria aceitar, claro, mas eu sabia que ele
estava adoecendo. Você vai ver que meu marido vai alfinetar Kyle por causa das roupas elegantes e das maneiras finas, mas se orgulha muito das conquistas do sobrinho.

Rose se aproximou para ver Prudence preparar a massa.

- Também faço tortas.

- É mesmo? Eu achava que as damas não sabiam cozinhar.

- A maioria não sabe. Mas eu gosto. Posso ajudar, se quiser.

Prudence separou algumas maçãs e uma tigela.

- Você pode descascar e depois cortar as maçãs aqui dentro.

Rose começou a trabalhar.

- Aonde Kyle foi?

- Foi andando até o vilarejo. Imagino que vá visitar o padre e depois tomar uma cerveja com os homens na taberna. Teria levado Harold na carruagem, mas ele estava
dormindo. Pode ser que amanhã leve. Harold sente falta da cerveja com os rapazes.

Rose imaginou Kyle andando quase um quilômetro até Teeslow. Voltando à antiga vida. Será que ele se livrara dos casacos antes de ir? Removera as camadas de gestos
educados e a mudança pela qual aceitara passar para ganhar dinheiro em Londres? Voltara a falar com o sotaque de Harold?

Nessa taverna, ele não seria o Kyle que ela conhecia. Seria o Kyle que continuava um estranho.

- Ele é amigo do padre?

Prudence riu.

- Bem, amigo não é bem a palavra. O conde encarregou o padre de ensinar Kyle a escrever e contar, além de latim e francês. Ele foi um professor exigente. De vez
em quando, esquentava o traseiro dos alunos com uma vara. Kyle não gostava das aulas, mas sabia que poderiam mudar a vida dele e continuou indo.

- O conde? Você quer dizer o conde de Cottington? Ele era o benfeitor de Kyle?

- Exatamente.

Ele nunca tinha dito. Pelo menos, não com todas as palavras. Ela concluíra que o benfeitor tinha sido... alguém. Não um conde. Não Cottington. Não o pai de Norbury.

Isso explicava muita coisa. A parceria naquelas novas construções. A presença de Kyle na festa de Norbury.

- Por que o conde fez isso?

Prudence estava atenta, raspando açúcar mascavo.

- O conde conheceu Kyle por acaso. Na mesma hora, viu que não era um menino comum, mas inteligente e corajoso. E que meu sobrinho seria desperdiçado na mina, embora
desde pequeno ele já pudesse fazer o trabalho de um homem. Por isso, o conde mandou o padre dar aulas a Kyle, de forma que, quando crescesse, pudesse ir a escolas
e tal.

Colocou o açúcar numa xícara.

- O conde é um homem bom e justo. Como poucos.

A pequena história trouxe dúvidas à cabeça de Rose. Tantas que não podia perguntar a Prudence sem parecer que a colocasse no banco dos réus.

Ela sabia pouco da vida do marido. Tinha muita curiosidade, mas nunca perguntara, apesar de ele ser a melhor fonte de informação.

Nunca perguntara, mas Kyle também nunca dissera. Não acreditava que fosse por vergonha do passado ou por não falar muito de si.

Os dois evitavam tudo aquilo porque falar no passado dele significava falar em Norbury.

A sombra daquele caso tinha influenciado até a maneira como os dois se conheciam.

 

- Vai dar problema. Não tem dúvida - assegurou Jon e bebeu um pouco de cerveja para enfatizar.

Kyle também bebeu, concordando. Jonathan era um mineiro quase da mesma idade que ele. Entraram na mina na mesma época, quando meninos, e carregaram os cestos de
carvão juntos, escada acima.

Agora Jon era um radical, o que o fazia imprudente ao falar com o amigo de roupas elegantes, que tinha morado lá fazia muito tempo.

Os demais mineiros foram simpáticos, até alegres. Brindaram quando Kyle entrou na taberna e o crivaram de perguntas sobre Londres. Mas não estavam dispostos a falar
sobre o que vinha acontecendo na própria cidade. Uma palavra errada poderia arruinar suas vidas.

- O comitê foi três vezes até os proprietários para se colocar contra a reabertura do túnel e explicar o perigo - disse Jon. - É mais barato perder alguns homens
do que fazer o que é preciso. Já vimos isso e veremos de novo.

Kyle, sem dúvida, tinha visto. Os ossos do pai ainda estavam naquele túnel fechado. Era perigoso demais retirar os mortos. A primeira tentativa servira apenas para
causar outro desmoronamento.

- Você falou com Cottington? - perguntou Kyle. - Ele vendeu quase toda a mina há bastante tempo, mas ainda tem certa influência. As terras ao redor ainda são dele.

- Dois dos nossos colegas tentaram. Ele está tão doente que não deixam ninguém chegar perto. Nem você pôde entrar na última vez em que esteve aqui. Quanto a falar
com o herdeiro... - a frase ficou no ar e a expressão de Jon mostrou a opinião que tinha sobre o tal herdeiro.

Ele olhou por cima do ombro. Passou a mão nos cachos louros, depois se inclinou sobre a mesa para confidenciar:

- Estamos nos organizando para irmos juntos. Não só aqui. Tivemos reuniões com grupos de outras cidades e com mineiros que têm outros patrões. Se ficarmos lado a
lado e falarmos juntos, seremos ouvidos.

- Cuidado, Jon.

- Cuidado, uma ova. A lei agora permite isso, finalmente. Temos o direito de nos unir. O que eles podem fazer? Me matar? Não podem matar todos nós. Não podem demitir
todos. Você mesmo falou isso há anos, antes de...

Jon desviou o olhar e bebeu mais cerveja.

Antes de ir embora e se tornar um deles.

- Quando se fica lado a lado, é preciso que todos estejam unidos. É preciso que todos aceitem passar fome. Haverá sempre os que vão abandonar o movimento.

- Se nós sairmos da mina, nenhum homem vai entrar. Vamos cuidar disso.

- Há sempre os que precisam trabalhar.

- Se as frentes se formarem na entrada das minas, isso não vai fazer diferença.

- Eles vão chamar a cavalaria. Vai ser um massacre.

Jon deu um soco na mesa.

- Pare de falar como minha mulher. Esqueceu o que acontece lá? Vá até aquela linda casa que você construiu para Harold e pegue as botas e as roupas dele. Venha comigo
amanhã, caso tenha esquecido por que o perigo não importa para gente como nós.

Aquele "gente como nós" não incluía Kyle. Ele era um deles, mas também não era mais. Ali era sua cidade natal, mas ele tinha ido tão longe, de tantas maneiras, que
cada vez que voltava, fazia menos parte daquele mundo.

Ele sentia isso, mas não conseguia evitar. Seus vínculos àquele lugar eram como tentar segurar areia: por mais forte que fechasse a mão, ela escorria entre os dedos.

Quanto tempo levaria até que poucos o reconhecessem quando andasse por aquelas estradas? Chegaria o dia em que ele entraria na taberna e as vozes se calariam e os
olhares examinariam o cavalheiro intruso.

- Vou a Kirtonlow enquanto estou aqui - disse ele. - Falarei com Cottington a respeito desse túnel.

O dar de ombros de Jon mostrou que não achava que isso fizesse alguma diferença. Pediu mais cerveja e deixou a conversa de lado junto com o copo vazio.

 

Kyle voltou para casa a tempo de jantar. Rose ajudou Prudence a servir. A conversa ia abarcando coisas corriqueiras, como costuma acontecer entre estranhos. Até
que Harold não aguentou. Queria saber as novidades que Kyle ouvira na taberna.

- Os rapazes não vêm muito aqui. É muito longe para andar depois de um dia de trabalho - explicou Harold.

Tia Pru sorriu de leve, como se pedisse desculpas pelo que parecia ingratidão pela casa que ganharam. Kyle não se importou. Harold sabia que não o visitariam muito,
ainda que ele continuasse morando no vilarejo. Um homem sem forças para ir à taberna era um homem isolado.

- Há boatos da reabertura do túnel - disse ele. - Ouvi isso em dezembro, mas parece que vai ocorrer mesmo.

- Aqueles idiotas. Idiotas gananciosos.

A notícia deixou Harold tão agitado que ele teve um ataque de tosse.

- Pelo menos pode ser que seu pai e os outros possam ter um enterro cristão - disse Pru, baixo.

Rose ergueu o olhar, surpresa. Seus olhos demonstraram algo que Kyle tinha visto várias vezes naquela noite. Curiosidade. Talvez reavaliação. Falar no túnel trouxera
à tona algo em que já vinha pensando.

Tia Pru trouxe uma de suas tortas. O cheiro bastou para melhorar o ânimo de todos. Pru era famosa por todos os tipos de tortas. Mesmo que precisasse usar frutas
que tinham passado todo o inverno estocadas num porão, ela conseguia que a receita ficasse deliciosa.

Kyle se sentiu menino outra vez, prevendo o gosto delicioso que só sentia em dias de pagamento, quando podiam comprar um pouco de açúcar.

Prudence cortou a torta em fatias.

- Rose me ajudou a fazer - contou.

- É mesmo?

- Nada como cozinhar junto para as mulheres se conhecerem - disse Harold. - Fico satisfeito que sua esposa goste de cozinhar, Kyle, meu rapaz. É bom saber que você
não vai passar fome lá em Londres.

- Rose faz ótimas tortas - disse ele.

Rose sorriu com o elogio. Kyle olhou a fatia de torta na frente dele.

- Então, tenho de agradecer a você por isso, querida?

- Não fiz muita coisa. Apenas cortei as maçãs.

Ele comeu. Não, ela não havia ajudado muito. A torta estava ótima.

Rose ficou observando-o comer cada fatia. Ela estava de novo com aquele olhar. Algo atiçara seu pensamento.

 

CAPÍTULO 14

Rose queria conversar com o marido. Ficou aborrecida quando ele não foi para o quarto com ela, deixando-a subir sozinha.

Assim que chegou ao quarto, Rose entendeu por que ele não a acompanhara. Dividindo aquele quarto, eles não teriam nenhuma privacidade. Os preparativos para dormir,
que costumavam ser feitos separadamente, teriam de acontecer na presença do outro.

Ela pensou nisso enquanto tirava o vestido e o espartilho, a camisa e o calção. Vestiu a camisola e sentou na cama para soltar os cabelos. Imaginou-o também ali,
despindo-se.

Olhou para a cama. Prudence e Harold dormiam há anos na mesma cama a noite inteira, todas as noites. Não se afastavam depois de cumprirem seus deveres conjugais.
Como seria viver totalmente ligada a outra pessoa?

Ela achou que devia ser muito bom, se houvesse amor. Horrível, se houvesse ódio. Invasivo, se houvesse indiferença.

Ouviu o som das botas dele na escada e concluiu que tinha mesmo se demorado por respeito a ela. Aquele casamento tinha muito disso.

Deixou a lamparina acesa e permaneceu onde estava. Não era uma cama muito grande. Aquela visita os forçaria a todo tipo de intimidade.

Kyle bateu na porta antes de entrar. Rose não acreditava que Harold alguma vez tivesse feito isso para ter certeza que Prudence o deixaria entrar.

Controlou o impulso de virar para o outro lado para que Kyle também tivesse sua privacidade. Mas ele não era uma flor delicada e ela queria conversar.

Ele tirou os casacos e os pendurou no guarda-roupa.

- Gostou da torta? - perguntou ela.

Ele sentou na cadeira e tirou as botas.

- Muito. Quase tão boa quanto as suas.

Ela ficou muda. O coração se encheu de uma sensação doce e pungente.

Na verdade, as tortas dela eram horríveis. Ninguém jamais a ensinou a cozinhar. Por necessidade, tentara quando era menina até conseguir algo que os irmãos achassem
mais ou menos comestível. O resultado não dava, de maneira alguma, para comparar com o toque mágico de Prudence.

Hoje ela havia assistido a Prudence fazer a torta e vira o que lhe faltara naqueles anos todos. E também sentira o gosto diferente.

Mas eis que Kyle mentia para ela não se sentir mal. Ele tinha a opção de não mencionar suas tortas. Como podia ter comido só um pedacinho da que ela fizera na manhã
seguinte ao casamento.

Naquele dia, cada garfada de torta devia ter entalado na garganta dele.

- Prudence disse que você hoje decerto visitaria o padre. E que ele ensinou as primeiras lições a você.

Não sabia se continuava a conversa. Eles podiam passar o restante da vida sem tocar nos assuntos que surgiram na cabeça dela nesse dia. Talvez fosse melhor assim.

Só que ela não ia dormir se não perguntasse. As respostas ajudariam não só no que sabia sobre o Kyle estranho, mas a entender o Kyle que conhecia.

- Ela disse que Cottington mandou o padre dar essas aulas. Que o conde era o seu benfeitor. Você nunca me disse isso.

Ele tirou a gravata.

- Você nunca perguntou.

- É verdade. Nunca perguntei. Estou perguntando agora. Quero saber.

- Quer saber pelas razões erradas.

O que aquilo queria dizer?

- Quero saber porque você é meu marido e esse fato extraordinário mudou a sua vida e o tornou o homem com quem me casei.

Ele se recostou na cadeira e olhou para ela.

- Certo. O conde reparou em mim quando eu tinha 12 anos. Achou que eu tinha talentos que deviam ser aprimorados. Combinou com o padre que me desse aulas, depois
pagou para um engenheiro em Durham ser meu professor durante dois anos. Conseguiu que eu fizesse provas para a Escola de Belas-Artes de Paris e me mandou para estudar
arquitetura lá. Quando voltei, ele me deu 100 libras e sua generosidade acabou aí, mas continuamos amigos e, às vezes, trabalhamos juntos.

E aquelas 100 libras tinham se transformado em mil, depois em mais e mais.

- É uma história surpreendente. Que seu progresso surpreende é fato, mas também achei a atitude do conde surpreendente. Por que fez tudo isso por você? Foi porque
seu pai morreu no túnel?

- Ele não sabia que meu pai era um dos mortos. O acidente tinha sido três anos antes.

Kyle desabotoou os punhos da camisa.

- Não sei por que fez isso. Acho que porque eu bati no filho dele. Talvez tenha admirado a minha audácia. Ou achou que o filho merecesse uma surra e gostou que outro
garoto tivesse coragem de dá-la por ele.

- Você bateu em Norbury? Que maravilha. Mas é lastimável que essa história esteja ligada a ele.

- Lastimável, mas inevitável, Rose. Não finja que, quando perguntou, não sabia aonde a história ia levar.

Ele tirou a camisa. Despejou água na bacia e começou a se lavar.

Ela não o via sem roupa desde a noite do casamento. Depois daquela noite, ele tinha sido apenas uma silhueta no escuro. Rose tinha sentido aqueles ombros e abraçado
aquela nudez, mas não tinha visto.

A luz fraca o favorecia, mas o vigor dele teria impressionado mesmo sob um sol de verão. Não havia um músculo flácido. Nenhuma gordura ameaçadora acumulada devido
a uma vida amena. Os músculos não pareciam volumosos, apenas proporcionais à altura dele. Como o rosto, o corpo parecia esculpido de maneira rústica e fazia supor
uma energia prestes a explodir. Ela ficou pensando se aquela tensão sumia em algum momento. Talvez, quando ele dormisse, ela ficasse escondida.

Rose prestou tanta atenção nele que quase se esqueceu da conversa. Kyle estranhou o silêncio e notou que estava sendo observado. Voltou a se lavar.

- Acho que eu sabia onde a história ia acabar - disse ela. - Sempre me surpreendi por você conhecer Norbury tão bem. Mas continuar a trabalhar com ele e a usar as
terras da família...

- Meu trabalho é com Cottington. Sempre foi. Norbury só tem participado agora porque o conde está muito doente.

A conversa se encaminhava para um terreno perigoso. Ela viu o espaço entre eles subitamente cheio de buracos e fendas. O tom da voz dele demonstrava que seria insensato
seguir adiante.

- Se o conde está tão doente, é provável que Norbury participe da sua vida por muito tempo - disse ela. - Pelo jeito, já participa. Está nas nossas vidas, Kyle.

Ele jogou a toalha no chão.

- Quando preciso falar com ele, eu falo. Depois, ele some da minha vista e da minha cabeça. Não faz parte de nossas vidas.

- Não? E como foi que nos conhecemos? Eu sinto a presença dele como se fosse um espectro. Acho que ele não sai da sua cabeça, no que me diz respeito. Acho que você
tenta esquecer o meu caso, mas...

- Sim, eu realmente me esforço para esquecer, maldição! É isso ou a vontade de matá-lo. Por causa da maneira vergonhosa como tratou você naquele jantar. Da maneira
como desconfio que tratou antes. Imagino-o com você e...

Ele abriu e fechou as mãos. Ficou tenso e, de um jeito sombrio, forçou-se a ficar calmo.

- Mas não penso nele quando estou com você. Não se reflete em você.

- Como não? Influi em tudo. Aquela noite afeta todas as coisas, até a maneira de você me tratar como esposa.

- Se você se refere à ordem que dei em relação ao seu irmão...

- Meu irmão? Céus, meu irmão é o problema nosso com o qual Norbury não tem nada a ver. Não gostei daquela nossa discussão, mas, pelo menos uma vez, falei com o homem
com quem me casei. Com ele por inteiro. O real. Não a invenção atenta e educada, que se veste tão bem, fala tão bem e me dá prazer tão corretamente e com tanto respeito.

Ela achou que jamais poderia vê-lo tão surpreso. Durou poucos segundos. Depois, ele fixou o olhar nela de tal forma que seu coração subiu para a garganta.

- Trato você com respeito, como uma dama, e você reclama?

- Não estou reclamando. Sei que tenho sorte de ter um amante tão atencioso. Só acho que você toma tanto cuidado por motivos que me entristecem.

Ele não gostou da crítica. Nenhum homem gostaria.

- Parece que você conhece a mim e aos meus motivos melhor do que eu, Rose.

Ela devia recuar, desculpar-se, ficar calada e grata. Mas, se fizesse isso, ele só ia se lembrar de uma ofensa que ela não tivera intenção de fazer.

- Talvez eu conheça mesmo, Kyle. Ou talvez o pouco que conheço de você me faça entender mal. Diga-me uma coisa: se não fosse aquela noite horrível, se não fosse
a minha situação, você precisaria ser tão cuidadosamente respeitoso? Se tivesse casado com uma moça ingênua daqui do vilarejo ou com uma mulher que nunca foi chamada
de puta, pensaria nisso o tempo todo? Se você não tivesse nascido neste vilarejo, mas numa grande mansão e me pedisse em casamento em outras circunstâncias, acharia
tão importante me tratar como uma dama?

Pelo menos a explosão dela não o deixou mais irritado. Ele ficou sério e contido, mas não furioso. O tempo passou tão lenta e silenciosamente que ela se arrependeu
do que disse.

- Desculpe. Eu não devia... - disse, puxando um fio solto do cobertor. - É que, quando estamos juntos, eu sinto... Você está quase sempre usando seus casacos de
corte impecável, Kyle, até na cama, quando está completamente nu.

Ela piorou uma situação que já estava ruim. Deitou-se e se cobriu bem para esconder os destroços do naufrágio que certamente fizera de seu casamento.

Desejou ser escritora ou poeta, para conseguir se explicar. Gostaria de ter palavras para expressar como a origem dela e a dele, a redenção dele e o escândalo dela,
o conhecimento que ele tinha de seu caso e a necessidade que ela tinha de não ser tratada como puta fizeram com que se erguessem aquelas barreiras de formalidade
entre os dois.

Era impossível explicar. Pouco provável que a situação mudasse. Ela devia aceitar. Devia se policiar para não ficar tentando alcançar algo que não sabia o que era,
daquele jeito doloroso e incessante. Ela devia...

- Os casacos não caem bem quando estou aqui, Rose. Apesar de todo o talento do alfaiate, ficam apertados demais quando venho para casa.

A voz baixa dele chegou a Rose através do silêncio tenso.

- Imagino que seja desconfortável.

- Muito.

- Ou os casacos estão apertados e você só nota quando vem para casa.

- Talvez você tenha razão.

Ela se sentou outra vez. Ele agora prestava atenção no fogo baixo da lareira e nos próprios pensamentos. Apoiava o braço na cornija enquanto olhava as chamas. Ficou
lindamente iluminado.

Ela se encantou com a cena. A luz da lareira parecia encher o quarto todo. O calor chegou até ela.

- Na verdade, desde que cheguei aqui, acho que minhas roupas também estão apertadas, Kyle. Talvez seja o ar do campo. Ou as tortas.

Ele sorriu.

- Então você devia parar de usá-las.

- Não estou acostumada a me livrar desses acessórios. Vivo apertada num espartilho desde o dia em que nasci.

Kyle a encarou. O coração dela perdeu o compasso, depois acelerou. Mesmo no dia em que a pedira em casamento, ele não demonstrara seu desejo com tanto despudor.

Ele se aproximou.

- Vou considerar isso um convite, Rose.

Abraçou-a com tanta força que a levantou da cama. Beijou-a de um jeito possessivo, firme, como quem não quer nada e quer tudo. Desta vez, não conteve seu desejo.
Puxou-a para um remoinho de força incontrolável.

Os beijos pediam, mandavam e a excitavam. Nem se quisesse, ela não podia fazer nada contra o domínio que ele tinha. Rose havia pedido isso e deixou que as próprias
reações selvagens se apossassem dela. Superaram o medo e a surpresa iniciais.

Beijos quentes. Fortes e profundos, mordendo e devorando. Braços de aço a impediram de reagir à fúria ardente em seu pescoço e na sua boca. Uma sequência de choques
maravilhosos atravessou seu corpo como flechas de fogo. Trouxe à tona o instinto primitivo dela até fazê-la gemer com o ataque glorioso e fazê-la perder qualquer
decoro.

Ele a apoiou de novo na beirada da cama. Acariciou suas pernas por baixo da camisola. Passou a mão no quadril e na bunda. Um toque furtivo e erótico no sexo. Os
dedos dele causaram um incrível formigamento.

Ela afastou uma perna para incentivá-lo a prosseguir naquela deliciosa tortura. Ele prosseguiu, mas interrompeu o longo beijo. Com a outra mão, ele levantou a camisola
dela até os ombros e a retirou por cima da cabeça. A camisola caiu ao chão, aos pés dele.

Ele olhou a nudez da esposa sério de tanto desejo. Suas carícias cobriam os seios enquanto a outra mão esfregava e provocava embaixo. A dupla sensação a deixou tremendo,
cambaleante, enfraquecida pelo prazer. Ela se inclinou para se apoiar nele até o rosto tocar suavemente em seu peito.

A mão de Kyle puxou sua nuca para mais perto até o rosto encostar por completo na pele lisa.

- Posso tirar a camisola, Rose, mas as outras peças que a escondem você mesma precisa tirar.

Ela compreendeu. O incentivo a encorajou. Espalmou as mãos no peito dele, olhando e sentindo ao mesmo tempo. O simples toque fez com que ele ficasse ainda mais excitado
e que uma nova rigidez o percorresse.

Ela o acariciou com mais ênfase. Olhou as mãos passando pelo peito dele, escorregando e percorrendo os sulcos dos músculos e costelas rígidos. Ele a olhou também
e as carícias e toques no corpo dela copiavam as delas. A respiração cálida dos dois se encontrou e se fundiu em beijos cada vez mais vorazes enquanto a excitação
os levava à loucura.

Ele tirou a mão das pernas dela e desabotoou os calções. Antes que ela pudesse se conter, deu um gemido insolente, afastou as mãos dele e assumiu os botões. As mãos
dele voltaram a afagá-la embaixo, fazendo-a quase desfalecer.

Ela lutava com a roupa dele, desajeitada, enquanto ele a tocava mais deliberadamente. Inclinou a cabeça para aproximá-la do pescoço e do ouvido da esposa. O dedo
dele apalpava com cuidado.

- É assim que você quer, Rose?

Ela não podia responder. Não conseguia falar. Mal conseguia se manter ereta. Agarrou a roupa dele sem ver, sem jeito, empurrando-a pernas abaixo às cegas, enquanto
os leves toques no seio e entre suas pernas a faziam gemer.

- Ou assim?

A mão dele contornou a perna e a tocou pela frente. Uma estocada longa, lenta e incrível fez um tremor de prazer percorrer seu corpo.

Rose sabia que ele tinha noção de quanto a deixava indefesa. Agarrou-se aos ombros dele e se segurou em busca de apoio.

Ele soltou uma das mãos dela, beijou-a e a guiou para a parte inferior do próprio corpo. Uma leve noção de racionalidade voltou, o bastante para ela entender o que
ele estava fazendo, o que queria. Perdida demais para se importar, ou se constranger, deixou que ele colocasse a mão dela no pênis.

Ele a tocou diabolicamente mais uma vez, o que deixou tudo mais fácil. O prazer passou pelo corpo dela como uma onda revolta, e em resposta ela acariciou como era
acariciada.

Qualquer decoro que ele ainda tivesse se rompeu. Beijou-a com nova selvageria. Ela sentiu a tensão em todo o corpo, no beijo dele e até na maneira como a tocava.
Intencional, agora. Disposto a fazê-la entregar-se por inteiro.

O orgulho perdeu qualquer sentido. Mesmo de joelhos, ela se movia ritmadamente, curvando-se aos beijos dominadores, gemendo de tanto querê-lo.

Ele a mudou de posição, mas não como ela esperava. Virou-a de maneira a ficar de costas para ele e acariciou seus seios. Ela se inclinou na direção de Kyle. Os mamilos
se eriçaram, se intumesceram, endureceram, implorando mais, qualquer coisa, tudo.

Ele a mudou de posição novamente, curvando o corpo dela até deixá-la de joelhos na beirada da cama com as pernas dobradas sob o corpo. Um tremor incrivelmente erótico
estremeceu suas ancas.

Ele levantou o quadril dela. Ela esperou, ofegante, tão excitada que não conseguia aguentar. O corpo latejava na expectativa. Rose imaginou o que ele via, as nádegas
viradas para ele, mostrando aquela carne escondida. A imagem despudorada só a excitou mais.

Ele não a possuiu imediatamente. Deixou-a esperar, chegar à beira da loucura. Ficou acariciando as nádegas dela, roçando as curvas da pele, olhando para ela, com
certeza. Assistiu à submissa rendição e ao seu desespero.

Tocou-a de novo, ela gritou. Desta vez foi diferente. Rose estava exposta e aberta e sabia que ele olhava, sabia que via o corpo nu. Ela desceu mais as costas e
levantou mais as nádegas.

Dali a pouco, estava implorando. Implorando, gemendo e abafando os gritos nos lençóis. Finalmente, ele a penetrou numa estocada longa e lenta, proposital. Abaixo
de seu gemido de prazer, ela teve a impressão de ouvir o dele também.

Depois, ela se perdeu. Tudo o que sentia era o torturante prazer da necessidade de ser preenchida e a violenta intensidade da completude.

 

- Você veio aqui para ver Cottington antes que ele morra?

Rose estava nos braços de Kyle, sob os lençóis. Fazia algum tempo que ele tinha levantado o corpo lânguido dela e a colocado ali de maneira a ficar colada nele,
que estava sentado, com as costas apoiadas na cabeceira. A vela ainda iluminava a satisfação dos dois.

- Um dos motivos foi esse. Vou tentar vê-lo amanhã.

- Tentar? Ele não recebe você mais?

- Não sabe que eu o procurei. O secretário e o médico dele só avisam das visitas se quiserem. Agora é assim.

Ela achou que, provavelmente, tinha sido sempre assim. Era comum que condes tivessem empregados para evitar serem incomodados se não quisessem. Agora que Cottington
estava doente, eram outras pessoas que decidiam quando ele queria ou não. Só isso mudara.

- Se ele não puder recebê-lo agora, talvez receba na primavera, quando você planeja voltar.

- Acho que ele não estará vivo na primavera.

Ela concluiu que Kyle tinha ouvido falar que o conde estava à beira da morte. Por isso tinha ido ao norte agora.

- Vai ser muito triste não se despedir dele, depois de tudo o que fez por você. Certamente, o secretário dele sabe disso.

- Para o secretário, eu sou só o garoto de Teeslow - explicou Kyle, inclinando a cabeça e dando um beijo distraído nos cabelos dela. - Não é só me despedir. Quero
ver se ele ainda está consciente. Preciso pedir um último favor para os mineiros.

- É sobre a reabertura do túnel?

- Sim. Alguns homens querem impedir, só que de uma forma que só vai prejudicá-los.

- Poderia dar certo, se todos eles...

- Não serão todos. Há famílias que perderam parentes no desmoronamento e vão querer a reabertura para poderem enterrar seus mortos.

- Você disse que seu pai morreu num acidente. Foi nesse, não?

Ele concordou com a cabeça.

- Eu também gostaria de enterrá-lo. Mas aquele túnel jamais será seguro, a menos que as coisas sejam feitas de outra maneira. As paredes se movem.

- O túnel é de rocha. Rocha não se move.

- A terra é uma coisa viva, Rose. Antes de construir, preciso ver se o terreno é firme. A mina não está em terra firme e a parte daquele túnel é a pior. Sei disso
desde menino. Eu vi.

Ela sentou e se virou para ele. Ao olhá-lo, sentiu um eco dos tremores da noite. Não era possível a uma mulher deixar um homem fazer aquelas coisas sem depois ficar
em desvantagem com ele. Rose sentia que cedera o controle de outras formas também, que estavam entre os dois agora, incentivando aqueles tremores.

- Quanto tempo você trabalhou na mina, Kyle?

- Entrei pela primeira vez aos 8 anos. As crianças carregam o carvão em cestos. Geralmente, começam aos 9 ou 10 anos, mas eu era grande para a idade. Não tão grande
quanto um homem. Por isso, eu via o que eles não viam porque tinham de ficar abaixados. Havia fendas acima e quase no alto das paredes. Acompanhei a movimentação
delas durante meses. Avisei ao meu pai. Ele e os outros mineiros não acharam perigoso porque não viram e não notaram as mudanças. Até que um dia... caiu tudo. Dez
homens foram enterrados vivos do outro lado de uma parede nova.

- E ficaram simplesmente abandonados lá?

- Ninguém é abandonado, a menos que não haja opção. Começaram a cavar para retirá-los, mas isso fez mais pedras caírem, e outro mineiro morreu. Então ninguém mais
cavou. Fizeram uma cerimônia religiosa. Rezaram. E dois dias depois os homens voltaram à mina. Menos os parentes dos que estavam soterrados. Esses esperaram uma
semana. À essa altura, quem tinha ficado preso teria morrido. Por falta de ar e de água.

Ela imaginou Kyle de vigília com os tios. Viu o menino pensando no pai atrás daquela parede de rocha, talvez ainda vivo, mas sem poder ser socorrido.

- Eu disse aos homens que devíamos cavar por cima do túnel. Fazer um buraco para entrar ar até encontrarmos uma forma de tirá-los de lá. Ninguém dava ouvidos a uma
criança, muito menos os supervisores dos donos da mina. Hoje, sei que isso poderia dar certo. Um engenheiro podia fazer isso. Eu posso, se houver um desmoronamento
num túnel lateral.

Sim, provavelmente podia, mesmo se o terreno fosse desfavorável. Se preciso, ele cavaria com as próprias mãos, pensou ela. Se ele decidisse, não havia rocha nem
terra que o impedisse.

Ele contara sua história e respondera às perguntas de Rose. Ela sabia que agora ele pensava em outras coisas. Tinha deixado a vela acesa por um motivo.

Kyle a pegou pelo braço e a puxou em sua direção. Sentou-a de frente, com as pernas envolvendo as dele.

Ele olhou as mãos cobrirem os seios dela e os dedos roçarem os grandes mamilos escuros.

- Vi você muito bem no escuro ou, pelo menos, minha imaginação viu. Mas prefiro assim.

Em outras palavras, não queria mais que as lamparinas e velas fossem apagadas como se ela fosse uma dama. Ela não se importava. Assim também podia vê-lo. Mas ia
demorar um pouco para não ficar tímida quando o marido olhasse para o corpo dela como fazia agora.

Ele a ergueu e a posicionou sobre sua perna, lambendo e mordiscando os seios dela. A posição em que estavam permitia que ela também o acariciasse.

- Acho que você devia me levar quando for a Kirtonlow tentar falar com Cottington - sugeriu Rose.

Os dedos dele substituíram a boca, permitindo que respondesse.

- Não.

Ela imaginou se ele não queria que ela o visse sendo dispensado.

- Se eu for com você, o secretário não vai nos expulsar.

- Vai, sim, e não quero que você seja ofendida.

- É bem mais difícil dizer não a uma dama, Kyle. Diremos para ele não ousar fazer isso, pois o conde não vai gostar, se souber.

- Não.

Ela fez a mão deslizar para baixo no corpo dele, na tentativa de convencê-lo. Envolveu sua ereção e ficou roçando o polegar na cabeça do pênis.

- Você se casou comigo por causa da minha origem, Kyle. Devia me deixar abrir portas quando posso.

O sorriso dele não escondia a tempestade erótica que as carícias causavam.

- Rose, você está usando artifícios femininos para me deixar flexível?

Ela olhou o que sua mão estava fazendo.

- Parece que só estou conseguindo o efeito contrário. Não há nada flexível em você agora. A não ser um pouco, bem aqui. Ela apertou de leve a ponta.

Ele a segurou pela bunda e a ergueu de leve. Ela sabia o que fazer sem instruções, pois parecia natural e necessário. Mexeu-se e se colocou numa posição que permitia
guiá-lo para dentro dela.

O primeiro toque da penetração causou um choque de prazer em seu corpo todo. A sensação a deslumbrou e a fez perder o fôlego. Não se mexeu para ele penetrar mais.
Ficou assim, só um pouco encaixada, deixando os deliciosos tremores se prolongarem.

Ele permitiu, embora o desejo o dominasse tanto que ele cerrava os dentes. Ela se abaixou um pouco para senti-lo melhor.

- Você vai me matar, Rose - gemeu e segurou as pernas dela. - Pode me torturar durante horas outra noite, mas agora...

Puxou-a, descendo-a até seus corpos se aconchegarem.

Depois disso, ele a guiou, as mãos fortes facilitando o movimento das coxas num ritmo de absorção e soltura que ela ditava. Rose descobriu novos prazeres com mudanças
sutis e pressões no corpo. Fechou os olhos e o apertou dentro de si, mais e mais.

Ele então a penetrou mais, tão fundo que ela arfou. Abriu os olhos, o encarou e não conseguiu mais desviar o olhar. Não o via se mexer, mas sentia que era preenchida,
estocada e dominada enquanto seu olhar profundo a convidava a mergulhar em mares cor de safira. No final, ele a segurou forte pelas coxas. Presa, ela se rendeu à
invasão de seu corpo e de sua alma.

O orgasmo violento dela quase doeu de tão intenso. Ela desmoronou sobre ele, o rosto contra seu peito, ligada a ele num abraço forte enquanto o corpo aos poucos
abria mão das últimas palpitações do gozo.

- A que horas você vai amanhã a Kirtonlow Hall? - perguntou ela, depois que a respiração e o coração de ambos se acalmaram.

Um braço estendido. Um lençol ondulando. Ele puxou os lençóis e os prendeu em volta dela.

- Meio-dia, eu acho.

- Quero ir com você. Estarei pronta ao meio-dia.

Esperou o "não" dele. Não veio. Em vez disso, o abraço se ajustou nela, envolvendo-a, e a respiração de Kyle aqueceu sua testa com um beijo.

 

CAPÍTULO 15

As colinas desoladas sumiram a uns dez quilômetros de Kirtonlow Hall e a paisagem foi ficando mais luxuriante a cada momento. A casa surgiu alta e ampla, à beira
de um grande lago que refletia suas pedras cinzentas na água prateada.

Quando a carruagem deles percorreu o caminho de entrada, Rose deu uma olhada em sua roupa e na de Kyle. A gravata dele estava impecável. O casaco, com caimento perfeito
nos ombros. Até a corrente do relógio de colete dele brilhava, fazendo um arco indefectível. Uma gravura de moda não estaria mais correta.

Ela usava os melhores trajes que tinha trazido, um recém-adquirido conjunto lilás com manto bem-cortado e debruado forrado de pele de esquilo cinza. Fora selecionado
para sua bagagem devido à sua praticidade, mas o estilo e o luxo discreto tinham outra finalidade naquele dia. O obediente secretário do conde jamais saberia que
a pele tinha sido de um antigo traje, que ficara completamente fora de moda.

O criado levou o cartão de visitas de Kyle. Dali a pouco, ouviram-se passos de duas pessoas na escada. O criado vinha com um homem baixo e careca.

- Ora, ora. Pelo menos dessa vez o próprio Conway vai me dispensar - resmungou Kyle. - Você tem razão. Ele não ousa mandar uma dama embora sem dar uma explicação.

O Sr. Conway se aproximou com um sorriso simpático.

- Sr. Bradwell. Sra. Bradwell. Infelizmente, o conde está doente demais para receber visitas. Lastimo dizer que ele piorou desde que o senhor esteve aqui na última
vez. Mas, naturalmente, darei qualquer recado, embora não garanta que ele vá entender tudo.


- Meu recado é para o conde apenas, quer ele esteja em boas condições ou não - disse Kyle. - Já que está piorando, insisto em vê-lo.

O sorriso do Sr. Conway perdeu a força.

- Eu também tenho um recado para dar pessoalmente - disse Rose. - Lorde Easterbrook me encarregou de transmitir suas palavras exatas a lorde Cottington.

- Lorde Easterbrook!

- É meu parente indireto. Vou regularmente à casa dele em Londres e ele aceitou incluir meu marido e a mim em seu círculo pessoal.

O Sr. Conway franziu o cenho, preocupado, ao saber disso.

- Temo que Easterbrook fique muito zangado se eu voltar a Londres dizendo que não consegui. O senhor parece um criado eficiente e bastante zeloso quanto ao conforto
de seu patrão, mas acho que terei de citar seu nome na minha triste história. Como deve saber, Easterbrook é um tanto excêntrico. Nunca se sabe o que vai fazer,
seja para favorecer ou prejudicar alguém.

Conway piscou com força ao ouvir a ameaça implícita. Rose deu o sorriso mais doce que conseguiu. Kyle ficou parado, mas ela notou um brilho em seus olhos demonstrando
que achara o discurso incrível.

Conway mordeu o lábio enquanto ruminava as ideias.

- Madame, perdoe. Não sabia do seu parentesco com o marquês. Mas lorde Norbury insistiu para que não permitíssemos que o pai ficasse agitado por receber visitas.

- Agitado? A sua presença o deixa agitado, meu caro senhor?

- Claro que não. Ele me conhece tão bem que...

- Então o Sr. Bradwell também não vai agitá-lo. O conde conhece meu marido tão bem quanto conhece o senhor. Mais até, eu diria. Transmitirei os cumprimentos de Easterbrook
e os deixarei a sós, para evitar qualquer agitação. Quanto a lorde Norbury, como não está em casa, a menos que o senhor o avise, ele não precisa saber da visita,
e dessa forma jamais precisará desperdiçar seu tempo avaliando se somos visitas que causam agitação ao pai.

Rose deixou que sua expressão e postura mostrassem que presumia ser atendida. O Sr. Conway pareceu aliviado com as justificativas que ela arrumara.

- Sendo assim... sim, levarei os senhores até ele. Tratando-se de visitas como os senhores, não se pode falar em agitação. Por favor, sigam-me, senhora. Sir.

Eles foram atrás do Sr. Conway, que se encaminhou para a grande escadaria. Kyle deu o braço à esposa e aproximou o rosto do dela.

- Não sabia que você tinha um recado de Easterbrook - murmurou. - Devia ter me dito.

- Tenho certeza de que ele gostaria de enviar saudações ao colega e votos de pronto restabelecimento.

- Fazemos parte do círculo mais íntimo de Easterbrook, é?

- Ninguém sabe se ele tem algum círculo além da família. Eu de fato visito Henrietta. Ele gosta muito de Alexia. Não creio que eu tenha exatamente faltado à verdade.

- Você não faltou à verdade. Você foi magnífica.

- É justo que você receba algum benefício deste casamento. Meus relacionamentos são o único dote que posso oferecer.

Ele apertou a mão dela.

- Hoje de manhã, a última coisa em que pensei foi nas vantagens que obteria dos seus relacionamentos.

A insinuação a agradou. Ecos dos tremores da noite, capazes de agitar almas, se manifestaram de seu jeito calmo e devastador. Ela se concentrou nas costas do Sr.
Conway para manter a compostura, mas só o mistério masculino ao seu lado chamava sua atenção. Imagens passaram, lindas, impressionantes, das várias maneiras como
ele a fizera conhecer o erotismo da intimidade do casal.

Seus últimos passos rumo aos aposentos do conde foram inseguros. Súbito, o rosto do Sr. Conway apareceu na frente dela.

- Por favor, aguardem aqui. Preciso anunciá-los e confirmar se pode recebê-los. Se não puder, tentaremos amanhã.

Conway entrou no quarto e voltou logo. Abriu a porta branca almofadada e deu passagem.

O conde estava sentado numa grande poltrona verde ao lado da lareira acesa. Mantas cobriam as pernas e os pés, que descansavam num suporte. A idade e a doença tinham
reduzido qualquer semelhança com o filho, exceto talvez por certo orgulho.

Os cabelos grisalhos do conde tinham sido cuidadosamente penteados e o rosto, muito bem barbeado. Apesar da doença, seu criado pessoal o arrumara com gravata e um
colete de seda colorido. Rose esperava que a parte escondida pela manta também estivesse apresentável num dia em que ele não esperava sair daquela cadeira.

O casal foi examinado por olhos bem mais argutos que os de Norbury. Surgiu um sorriso no rosto pálido. Que foi só de um lado da boca. O resto ficou flácido, consequência
das apoplexias que o conde sofrera.

- Bem, aproxime-se, Bradwell. Traga sua esposa aqui para eu vê-la.

A doença não afetara o tom de comando, apesar de ter enrolado as palavras.

Kyle conduziu Rose e fez as apresentações formais. O conde a olhou dos pés à cabeça.

- Conway disse que tem um recado para mim, Sra. Bradwell. De Easterbrook.

- Tenho, sim. O marquês envia seus cumprimentos e sinceros votos por uma pronta recuperação.

- É mesmo? Não vejo Easterbrook há anos. Desde que voltou tão estranho e diferente daquela viagem para Deus sabe onde. Não fui muito a Londres. Que generoso ele
se lembrar de mim e enviar cumprimentos.

O tom era sarcástico e os olhos, bastante espertos. Rose procurou não corar ao ver que ele tinha percebido o ardil facilmente.

- Leve uma resposta ao marquês, Sra. Bradwell. Faria isso por um velho moribundo?

- Claro, Sir.

- Diga que ele foge vergonhosamente aos seus deveres. Que está na hora de parar de ser excêntrico e participar do mundo. Precisa casar, ter um herdeiro e assumir
seu posto no governo. Aquela família é muito inteligente para desperdiçar isso e a vida não é para ser levada como se quer. Essa é a maldita verdade.

- Prometo que transmitirei sua opinião.

- Opinião? Diabos! Palavra por palavra, é como vai transmitir, sem suavizar nada, como fazem as mulheres - exigiu ele, e um riso rouco escapuliu. - Mas espere até
eu morrer. Se ele não gostar, pode se vingar no meu filho.

- Se devo esperar até que o senhor morra, garanto que vou demorar a cumprir essa obrigação. Com sua licença, sairei para deixar que meu marido fale com o senhor
a sós.

 

Cottington observou Rose sair do quarto. Fez um gesto para seu secretário.

- Pode ir. Se eu precisar de você, o Sr. Bradwell o chamará.

Assim que Conway saiu, o conde deu outra ordem.

- Tem conhaque naquele armário lá, Kyle. Sirva um pouco para mim e para você, se quiser. Eles não me deixam beber nada. Acham que devo enfrentar a morte completamente
sóbrio.

Kyle achou o conhaque e os copos, serviu um dedo para cada um. O conde bebeu como se fosse um néctar.

- É infernal ser tratado como criança. Agora estou melhor que há quinze dias. Passei uma semana precisando dos criados até para os cuidados de higiene mais elementares.

- Parece então que está se recuperando.

- Morro até chegar o verão, se não antes. Não preciso que o médico me diga. Eu sei. É estranho, mas a pessoa sabe.

Descansou o copo e usou um lenço para enxugar o conhaque que tinha escorrido no lado paralisado da boca.

- Linda a sua esposa. O bastante para fazer com que o resto não tenha muita importância, imagino. O irmão, coisa e tal.

- Quanto ao coisa e tal, obrigado pelo presente de casamento.

O conde achou graça.

- Meu filho vai ficar furioso. Seria melhor se você não se tivesse se envolvido desta vez. Azar. Seria melhor que não tivesse sido você a forçá-lo pela segunda vez
a encarar o próprio comportamento desonroso.

Apesar do riso, os olhos do conde mostravam muita tristeza. Piscou para afastá-la. Norbury era apenas mais uma decepção numa vida que, como todas, tinha várias.

- Quer dizer que veio até aqui para se despedir, não? Gostei.

- Sim, mas também trago um pedido, que não sabia que faria até que cheguei a Teeslow.

- Não posso fazer mais nada por ninguém.

Kyle falou sobre a mina. O conde ouviu, sério.

- Era uma rica jazida - disse ele. - Quiseram voltar alguns anos depois, eu impedi. Já tinha vendido quase tudo, mas minha opinião ainda importava. Às vezes, ser
conde ajuda. Meu filho não vai agir como eu. Mesmo assim, vou escrever e usar a minha influência, mas quando eu morrer...

Quando ele morresse, o desejo de lucro pesaria mais numa avaliação em que a vida dos homens valia pouco.

- Mesmo se demorarem alguns meses, vai dar tempo de se acalmarem - disse Kyle. - Os mineiros estão com os ânimos exaltados. Se houver uma voz forte, um líder, haverá
problema.

O conde suspirou e fechou os olhos. Ficou assim tanto tempo que pareceu ter caído no sono. Kyle tinha resolvido sair sem fazer barulho, quando o conde voltou a falar.

- Não vamos nos ver mais, Sr. Bradwell. Se quer perguntar alguma coisa, tem que ser agora. - Os olhos se abriram e o encararam. - Tem perguntas, não?

Kyle tinha várias. A mais recente, entretanto, não podia ser feita. Embora ela permanecesse em sua mente. Não podia perguntar a um moribundo se seu único filho tinha
sido pior quando menino do que quando adulto.

- Tenho uma pergunta.

- Pois faça.

- Por quê?

- Por que o quê?

- Fez tudo por mim. Por quê?

- Ah. Essa pergunta - falou o conde e parou para pensar. - Fiz, em parte, por impulso. Em parte, por instinto.

De novo aquele sorriso pela metade.

- Primeiro, eu sabia que, se você ficasse em Teeslow, os mineiros teriam uma voz e um líder dali a poucos anos, quando você ficasse adulto.

Kyle o observou, avaliando se o conde falava sério. Durante todos os anos em que trocaram generosidade e gratidão, nunca lhe passara pela cabeça que o conde tivesse
motivos ocultos. Principalmente, porque Kyle não achava que a generosidade pudesse trazer alguma vantagem para um conde.

- Bom, não foi só por isso. Lá, você seria desperdiçado. Percebi logo. Vi em seus olhos e em sua determinação. Naquele dia, quando você chegou todo limpo e arrumado,
vi o homem que um dia poderia ser. Já tinha ouvido falar em você. Soube do menino que sugeriu que cavássemos de cima para chegar àquele túnel quando ele desmoronou.

- Teria dado certo.

- Não interessa se eu achava que ia ou não. O simples fato de que um menino pensasse isso e ousasse propor... Trouxeram você até mim no dia seguinte ao que bateu
em meu filho, e a lembrança do administrador rindo daquela audácia veio à minha cabeça não sei como. Eu sabia que aquele menino tinha sido você. Sabia, mas, de todo
jeito, conferi.

Enxugou a saliva que se formou no canto da boca.

- Depois, aquela questão com meu filho. Lá estava você outra vez, ousando o que muitos homens não ousariam. Portanto, em parte fiz aquilo para você não ser desperdiçado.
E, em parte, para não se tornar um líder deles.

O conde fez uma pausa, então voltou a falar.

- Admito que, em parte, fiz também para castigar meu filho, favorecendo o menino que bateu nele. Claro que isso não adiantou muito. Como você sabe mais que qualquer
um, ele até hoje se comporta de maneira vergonhosa com as mulheres.

Era isso. Kyle já sabia quase tudo. A generosidade não tivera motivações totalmente caridosas, mas poucos atos ou decisões humanos tinham.

O rosto inteiro do conde perdeu a firmeza. Como se o dano do lado ruim invadisse o lado bom.

- O senhor está cansado, precisa repousar. Vou embora. Obrigado por me receber.

Antes que Kyle pudesse se afastar, o conde esticou a mão para ele. Kyle a segurou e, pela primeira vez, sentiu o cumprimento daquele homem como o de um amigo.

- Você não é pior por isso, não importa o motivo - disse o conde, com voz enrolada. - Mas imagino que, de vez em quando, deseje que eu não houvesse interferido.

- Se pesarmos as perdas e os ganhos, veremos que lucrei muito. Mas, sejam quais foram os seus motivos, agradeço. Jamais o esquecerei. Nem meus filhos e os filhos
deles.

O aperto de mão ficou mais forte. Os olhos do velho pareceram cobertos por uma fina película. Fechou-os. A mão caiu, depois subiu num gesto derradeiro de bênção
e despedida.

 

Quando saiu do quarto de Cottington, Kyle parecia calmo. Rose o deixou com seus pensamentos enquanto desciam a escada e saíam no frio.

Ele não entrou logo na carruagem; deu uma volta e olhou o lago. Ela o seguiu e esperou. Não estava se despedindo apenas de um homem. Com a morte de Cottington, uma
fase inteira de sua vida terminaria.

- Você veio aqui muitas vezes? - perguntou ela.

- Não muitas. Mas, quando fui embora para estudar, o conde mandava me chamar sempre que eu vinha para casa entre os períodos de aula. Na primeira vez, metade do
vilarejo seguiu o mensageiro até a casinha do meu tio: queriam saber o que estava acontecendo.


- O conde recebia você regularmente, portanto.

- Sim. Talvez fizesse parte do aprendizado.

- É mais provável que quisesse saber do seu progresso. E você trazia notícias de Durham, mais tarde de Paris e Londres. Garanto que a sua conversa era mais interessante
do que a da maioria das pessoas aqui do condado.

- Talvez.

Ele deixou a carruagem esperar enquanto caminhava pela propriedade.

Rose o acompanhou.

- Falou com ele sobre a mina?

Kyle concordou com a cabeça.

- Ele vai fazer o possível, mas, no máximo, a obra será adiada. Isso pode dar tempo para verem o que é mais seguro. Há como fazer isso.

Ele não parecia acreditar que fossem fazer o mais seguro.

- Acho que você fez tudo o que podia.

- Fiz?

Eles viraram e voltaram para a carruagem.

- Você está calado, Kyle. O encontro não foi bom? Não pôde falar o que queria?

- O encontro foi muito bom. Ele estava aberto a perguntas e respondeu tudo o que, em sã consciência, eu podia perguntar.

- Tinha alguma coisa que você não podia perguntar?

- Só uma. Eu queria saber, pois ele é a única pessoa que responderia honestamente. Mas, ao vê-lo... achei que o assunto só lhe traria tristeza e era só para satisfazer
a minha curiosidade.

- Se só restou uma pergunta entre os dois, o encontro foi muito bom. Acho que poucas pessoas que se conhecem têm apenas uma pergunta não respondida.

Kyle encarou a esposa. De repente, não estavam mais falando de Cottington, mas de si mesmos.

- Ele está morrendo, Rose. Não tem mais nada a perder por dar respostas. Não haverá orgulho ferido nem consequências ruins. Nem para quem pergunta nem para quem
responde.

Chegaram à carruagem. Ele ficou menos calado na viagem de volta a Teeslow.

- Você também está pensativa, Rose. Tem alguma pergunta?

- Tenho várias, mas não é por isso que estou séria. Penso se sobreviverei ao encontro com Easterbrook quando fizer a reclamação de Cottington.

 

A carruagem estava quase passando de Teeslow, quando Kyle reparou no silêncio. Tinha ficado tão perdido em pensamentos que o silêncio incomum não chamara sua atenção.

Mandou a carruagem parar. Olhou pela janela.

Rose também olhou.

- O que foi? Acho que está tudo calmo.

- Calmo demais. A essa hora, a estrada devia ter mais movimento. As mulheres deviam estar aqui.

Ele apurou os ouvidos, atento. Olhou para os telhados das casas e chalés. Onde estariam todos? Na mina? Era cedo demais para terem agido. Sobravam apenas a taberna
ou a igreja.

Abriu a porta da carruagem e saltou. Rose segurou a saia e estendeu a mão.

- Não, Rose. A carruagem vai levar você até Pru. Eu volto logo.

- Acha que haverá agitação? Perigo?

- Não, mas eu...

- Se não há perigo, não precisa me mandar para casa. Tenho curiosidade por esse vilarejo. Se vai fazer uma visita, quero acompanhá-lo.

Ele colocou o braço no batente da carruagem, impedindo que ela descesse.

- Nos últimos dias, você anda muito curiosa.

- É da natureza feminina. E descobri que satisfazer a curiosidade pode ser prazeroso.

Ela se referia à noite anterior. O que o deixou excitado. Ele ficou cheio de lembranças, de gritos implorando, de toques tímidos mas firmes, das costas dela abaixando
e das nádegas subindo. Das pernas envolvendo-o, ele se perdendo em sua calidez e os dois girando num abraço de corpos e olhares grudados.

As lembranças lhe deram vontade de beijá-la e de possuí-la bem ali, na estrada. Fizeram com que esquecesse todos os motivos por que ela deveria voltar para a casa
dos tios.

Com um olhar atrevido, ela o transformara num idiota.

- Pensa em me mandar para casa, Kyle? Então, devo avisar que os maridos têm um número finito de ordens a dar às esposas e seria tolice desperdiçá-las em bobagens.

Onde estaria sua dócil esposa? A noite anterior tinha mudado mais do que o calor e a intensidade da paixão deles. A formalidade sutil daquele casamento estava sumindo
rápido.

O olhar dela mostrava um claro desafio.

- Pode vir comigo, Rose, mas só se sair assim que eu mandar. Creio que não haverá agitação, mas posso estar enganado. Seria melhor você voltar quando...

Ela olhou para baixo.

Diabos.

Ele disse ao cocheiro onde aguardar e ajudou Rose a descer.

 

O vilarejo estava reunido na igreja. Ouviu as vozes enquanto ele e Rose se aproximavam da velha construção de pedra, com sua torre na fachada. Séculos antes, a igreja
fazia parte de um convento nas terras cedidas por um antepassado de Cottington. Até descobrirem carvão nos arredores, Teeslow tinha sido um simples vilarejo de agricultores.

- Os homens não deviam estar na mina agora? - perguntou Rose.

- Sim, trabalhando com as crianças maiores e até com algumas mulheres.

Kyle abriu a antiga porta de madeira e o rugido de uma discussão caiu sobre os dois. Entraram e ficaram nos fundos da nave. Poucas pessoas notaram a chegada deles.
Todas as atenções se concentravam nos homens que estavam na frente do altar. Jon estava lá, com os cabelos louros revoltos, tentando fazer prevalecer sua vontade.

Isso parecia impossível. As vozes se cruzavam e se interrompiam. Os ânimos estavam exaltados e agressivos. Gritos de incentivo e de mofa competiam.

- Não consigo nem entender o que está sendo discutido - cochichou Rose.

- Os mineiros receberam ordem hoje de tirar aquela pedra que caiu. Em vez disso, eles foram embora. Estão tentando decidir o que fazer amanhã.

- Pensei que você tinha dito que o túnel desmoronou ainda mais na última vez em que tentaram.

- Os donos da mina enviaram um engenheiro, que garantiu que não haverá outro desmoronamento.

Jon fazia com que algumas vozes atendessem ao seu pedido de não entrar na mina. Mas não era o suficiente, o que significava que não ia resolver nada.

As vozes chegaram até Kyle. Identificou quase todas. Conhecia aqueles homens e brincara com alguns deles nas estradas, quando menino.

Percorreu com o olhar as famílias presentes e parou numa bonita ruiva de pele clara, que segurava duas crianças pelas mãos. Fora com ela que trocara o primeiro beijo,
aos 14 anos.

Uma mulher bem mais bonita estava ao lado dele agora. Ninguém a havia notado ainda, mas notariam logo. A roupa que tinha impressionado Conway parecia ainda mais
luxuosa ali, com seu debrum de pele e seus bordados caros. O gorro que ela usava contrastava com os lenços que as mulheres tinham na cabeça. A pouca luz da velha
igreja parecia se concentrar nela, fazendo sua beleza loura irradiar.

- Temos de ir embora - disse ele.

- Se eu não estivesse aqui, você iria?

Ele não sabia. Aquele não era mais o mundo dele. Não era a luta dele.

- Vou embora se a minha presença comprometer o que você disser, se para eles eu provo apenas que você percorreu um longo caminho, saindo desse vilarejo - disse ela.
- Mas se só sirvo para lembrar o que perderia se falasse, então mais uma pergunta foi respondida, e da maneira que eu não esperava.

Roselyn se virou para o marido.

- Você ainda não é um estranho para eles, mesmo se eles forem cada vez mais estranhos para você.

A compreensão o emocionou. O fato de tentar entender o tocou profundamente.

Ele saiu do lado dela e procurou Jon. Como a cabeça dele estava acima das outras na nave, a voz chegou lá.

- Jon, você sabe que não está pronto para isso. Você disse ombro a ombro, mas parece que há ombros aqui que não ficarão ao seu lado.

O barulho diminuiu. Jon o viu.

- Temos aqui um cavalheiro para nos aconselhar. Trouxe sua elegante esposa. Que sorte a nossa de termos o conselho dele.

Kyle não olhou para trás, mas soube pelos murmúrios e exclamações que notaram a presença de Rose.

- Trouxe minha esposa para conhecer meus velhos amigos, Jon. Imagine a minha surpresa ao encontrar uma reunião política nesta igreja. O que esperam ganhar se ficarem
parados, a não ser muitas mulheres e crianças com fome?

- Menos corpos para enterrar.

- Falei hoje com Cottington. Ele vai escrever para os sócios. O túnel não será aberto enquanto ele estiver vivo.

- Você nos conseguiu alguns dias, talvez algumas semanas, nada mais.

- Já basta para garantir que, quando o túnel for aberto, será seguro.

Jon fez pouco.

- Seguro! Disseram hoje para retirarmos aquela pedra. Encontraram um engenheiro que garante que o túnel já é seguro.

- Então você precisa achar alguém que discorde. Alguém que não receba salário dos donos e que tenha estudos para basear suas conclusões.

Kyle foi até a frente da nave.

- Alguém como eu.

Jon consultou os quatro homens que o rodeavam. A igreja ficou num silêncio tenso enquanto eles discutiam.

- Você vai entrar lá? - perguntou o mais velho dos homens, com leve zombaria.

Chamava-se Peter MacLaran e era o radical dos tempos anteriores, que agora passava a coroa para Jon.

- Vai sujar seus casacos elegantes, meu senhor. E pode levar alguns dias. Perderia aqueles jantares finos em Londres.

O sarcasmo de Peter recebeu algumas risadinhas.

- Entro agora mesmo. Não será a primeira vez. Os casacos podem ficar aqui. Arrume umas botas emprestadas para mim e cinco homens que me acompanhem, e começamos hoje.
Não sairei de Teeslow enquanto não souber o que preciso. Se o túnel for perigoso, vou dizer num relatório. Se puder ficar seguro, vou mostrar como. Se, mesmo assim,
eles prosseguirem e houver outro desmoronamento, o relatório vai enforcá-los.

- Eles não vão permitir.

- O nome de Cottington vai me ajudar. Ele ainda não morreu.

Não esperou que Jon e Peter concordassem. Os gritos em volta mostravam que Kyle tinha vencido a discussão.

Ele voltou para onde Rose estava.

- Você deve voltar para Pru agora. Vou levá-la até a carruagem.

- Posso ir sozinha. Faça o que precisa.

Ele desabotoou os casacos, tirou-os e os entregou à esposa. Surgiu um menino trazendo um par de botas. Kyle sentou e as calçou. Cinco mineiros dos mais experientes
esperavam na porta da igreja, com lamparinas.

Rose segurou os casacos e olhou os preparativos. Ficou tão interessada que parecia assistir a um ritual em alguma terra exótica.

- Avise a Pru que vou precisar de muita água quente quando chegar em casa - disse ele.

Ela se esticou para falar no ouvido dele.

- Espero que precise de um bom banho. Talvez esteja tão cansado que eu tenha de ajudar.

Ele ficou excitado na hora. Lembrar-se da noite anterior, das noites por vir, daquele banho, só fez piorar as coisas.

Ele trincou os dentes, olhou para o chão de pedra e se controlou.

- Rose. Querida. Vou ficar horas num poço escuro. Isso foi maldade sua.

Ela nem fingiu constrangimento. Quando ele foi embora, Rose parecia bem satisfeita consigo mesma.


CONTINUA

CAPÍTULO 9

No centro financeiro da cidade, um empregado conduziu Kyle para uma sala sóbria que fazia parte de uma série de cômodos bastante apropriados a alguém como um advogado.
Kyle imaginou que houvesse um quarto ao fundo, atrás da porta fechada e em frente à janela veneziana de vidraça em semicírculo no topo.

A carta que ele tinha enviado a lorde Hayden motivara o convite para ir até lá. Aqueles cômodos davam a impressão de que seu anfitrião os usava não apenas para negócios.
Para encontrar mulheres, talvez, quando ainda era solteiro. Para tratar de assuntos pessoais, como os que deviam estar escritos nas folhas empilhadas na escrivaninha
perto da janela.

Lorde Hayden o cumprimentou. Sentaram-se em duas poltronas forradas de vermelho-escuro, perto da lareira.

A lembrança de seu último encontro particular era uma sombra sobre eles. Lorde Hayden Rothwell tinha ido à casa de Kyle, após um convite como esse de agora ter sido
recusado.

- A Srta. Longworth me pediu para falar em nome dela - disse lorde Hayden. - Disse que foi você quem sugeriu esse arranjo.

- Ela foi pouco prática em não dar importância aos termos financeiros quando avaliou minha proposta de casamento.

Lorde Hayden se estirou na poltrona como se uma conversa amena fizesse parte do ritual do acordo.

- Não a conheci antes da falência do irmão. Ela me culpou por isso e, embora agora saiba a verdade, ainda há muita formalidade entre nós. Conheci bem o irmão mais
velho, mas não as irmãs.

- O irmão mais velho era Benjamin, que morreu há alguns anos.

Lorde Hayden ficou sério, assumindo a máscara que costumava exibir para o mundo.

- Minha esposa disse que a prima mudou muito há um ano. E que aquele caso com Norbury foi fruto da má avaliação de uma mulher em profunda melancolia. A negligência
em relação aos termos financeiros de seu pedido certamente também é um reflexo de seu estado de espírito.

- Então é melhor cuidarmos do assunto por ela. Seu estado de espírito pode estar mudado, mas não é melancólico. Não estou me aproveitando de uma mulher incapaz de
tomar decisões sensatas.

- Eu não quis dizer que estivesse. Mesmo se estivesse, essa chance que ela terá... Ficarei feliz por ela poder voltar a ter contato com minha esposa.

Para alguém que ficaria feliz com algo naquele casamento, lorde Hayden estava demorando a negociar os detalhes.

- Não esperava fazer agora o papel de pai em acertos de casamento, e não me sinto muito à vontade, Bradwell. Infelizmente, sei mais do que gostaria e sou forçado
a tratar de mais que meros trocados.

- Espero que acredite que minhas intenções são honradas.

- Não estou preocupado com isso e acho que você sabe.

Claro que Kyle sabia. Só não sabia qual papel lorde Hayden iria assumir.

- Ela comentou dos delitos cometidos por Timothy? Se não comentou, não a culpo - disse o lorde.

- Ela foi muito sincera e insistiu que eu ouvisse tudo.

- Corajosa.

- Acho que ela pensou que eu retiraria o pedido quando soubesse, portanto foi bastante corajosa.

Na verdade, ele achava que ela esperava que retirasse e a poupasse de tomar uma decisão. Ela não confiava mais na própria cabeça.

- Foi tão sincero quanto ela?

- Eu disse que sabia o que o irmão tinha feito e que conheço uma das vítimas dele.

- Diabos, você foi uma das vítimas, também teve prejuízo.

- Só porque assumi a dívida. Podia ter escolhido outras saídas.

Na verdade, Kyle só tinha uma. Aquela que estava conversando com ele no momento. Ou ele ressarcia o dinheiro tirando do próprio bolso ou deixava o fundo zerado.
E isso ele não podia fazer.

- Ela sabe que você não quis ser ressarcido?

- Não. Acha que devo contar?

- Não sei que diabos eu acho.

Lorde Hayden se levantou. Com os lábios apertados e o cenho franzido, andou pela sala com a mesma dúvida que atormentara Kyle várias vezes nas últimas semanas.

- Ela planejava encontrar o irmão - informou Kyle. - Recebeu outra carta dele, pedindo para encontrá-lo.

- Maldição - rosnou lorde Hayden e balançou a cabeça. - Mas, se você não a está enganando, não está sendo totalmente sincero.

Mais um pedido de honestidade total, como se isso fosse não só possível como normal.

Faria negócios com aquele homem no futuro. Não queria que lorde Hayden pensasse que ele era um mentiroso ou um canalha. Tentaria explicar, embora quase nunca se
explicasse a ninguém.

Levantou-se também e andou pela sala enquanto pensava o que dizer. Os passos o levaram para perto da escrivaninha. Deu uma olhada nas folhas soltas. Estavam cheias
de números e anotações. Era ali que lorde Hayden fazia os estudos matemáticos pelos quais diziam que era apaixonado.

- Diga, lorde Hayden, o que todo mundo deduziria se soubesse do delito de Longworth e a irmã fosse encontrá-lo?

- Mas não é todo mundo que sabe.

- Vai saber. Um dia. É inevitável. Muita gente foi prejudicada e o fato não vai continuar em segredo.

A segurança dele assustou lorde Hayden.

- Todos foram ressarcidos, ora - argumentou, mas, olhando para Kyle, completou: - Menos você.

- Foram ressarcidos do dinheiro, mas não da ofensa. Você avaliou mal.

Lorde Hayden não gostou dessa hipótese. Um suspiro de frustração mostrou como era desgastante aquela conversa sobre Longworth.

- Se Roselyn estivesse com ele quando isso acontecesse, certamente seria considerada cúmplice.

- Concordo. Portanto, devo contar tudo a ela? Se contar, se ela souber do meu envolvimento, pode mudar de ideia quanto ao casamento. Pode correr para o irmão, seja
para salvá-lo, ajudá-lo, ou para fugir da própria vergonha. Ela sabe que esse segredo não vai durar muito, mesmo que você discorde.

Lorde Hayden olhou Kyle com atenção, um olhar parecido com o que Easterbrook lhe dedicara.

- Foi por isso que você recusou o dinheiro? Por orgulho, como os outros homens que citou?

- O delito não foi seu. Por que deveria pagar? E também pagou caro. Uma quantia enorme por algo de que não tinha culpa. Se eu aceitasse o seu dinheiro, seria ressarcido
às custas de outra vítima, nada mais.

- Uma vítima por opção, o que é diferente. Acho que, no fundo, foi orgulho.

A arrogância de lorde Hayden incomodou Kyle. Fez um gesto mostrando a sala.

- Nenhuma conspiração financeira foi elaborada aqui nos últimos tempos. Nenhuma associação de empresas se formou aqui. Você continua na mesma casa, que é modesta
para os padrões de Mayfair. Mesmo você sentiu o baque de pagar todo aquele dinheiro. Eu devia desfalcá-lo em mais 20 mil? Concordar com o suborno que você me propôs?

- Suborno? Maldição! O seu bolso não seria prejudicado pelo delito de Timothy, só isso.

- Você não restituiu o dinheiro para eles apenas, exigiu que esquecessem a trapaça. Silêncio em troca de dinheiro foi parte do acordo. Seria bom se cada pecador
tivesse um anjo como você para defendê-lo.

Ele esperou que houvesse uma contra-argumentação, até raivosa. Mas lorde Hayden passou a mão na testa e falou, resignado.

- E quando acontecer justamente o que espera, Bradwell? A Justiça vai exigir que ele pague com a vida. Se esse dia chegar, o que você vai dizer a ela?

- Esse sofrimento a espera, quer ela se case comigo ou não. Se esse dia chegar, vou protegê-la e consolá-la da melhor forma possível.

Lorde Hayden pensou nisso um bom tempo. Depois, foi até a escrivaninha e fez um gesto indicando que Kyle o acompanhasse.

- Vamos preparar os papéis para os advogados. Eu concordaria mais com esse casamento se você tivesse aceitado seu dinheiro de volta. Mas aquele lamentável episódio
já prejudicou as irmãs Longworth demais. Talvez depois do casamento isso pese menos sobre o futuro de Roselyn.

 

- Como está crescida, Srta. Irene - disse o Sr. Preston, com um sorriso. - As mulheres do vilarejo vão passar dias comentando seu gorro.

Irene sorriu enquanto o Sr. Preston contava o dinheiro de Rose e embrulhava os mantimentos que ela comprara.

Ela estava crescida mesmo, pensou Rose. Alexia tinha dado a ideia de apresentar Irene à sociedade na próxima temporada. Estava na hora, sem dúvida, levando em conta
a idade dela, mas talvez fosse cedo demais, considerando outras coisas. Nem seu casamento amenizaria o escândalo a tempo de Irene ser bem recebida na atual temporada.

A ideia de que Irene poderia ter um futuro melhor ajudava Rose a ficar mais calma em relação ao casamento que se aproximava. A ausência de Kyle na última semana
contribuíra para deixá-la agitada. Fora passar o Natal no norte, com os tios que o criaram.

A ausência dele significava que ela podia se concentrar nos preparativos, mas a cada dia tinha mais certeza de que não conhecia o homem com quem ia se casar.

- Estamos todos aguardando o grande dia, Srta. Longworth - disse o Sr. Preston com um sorriso largo. - Permita-me dizer que todos os que conheceram o Sr. Bradwell
no mês passado, quando esteve no vilarejo, exaltaram suas boas maneiras e sua simpatia.

- Obrigada. Espero que o senhor e sua esposa nos deem a honra de sua presença.

- Minha esposa não perderia a festa. Ela sempre diz que certas pessoas se precipitam em acreditar no pior. Ficou triste com a maneira como alguns...

Ele interrompeu a frase de repente e lançou um olhar expressivo na direção de Irene. Os olhos dele se desculpavam por se referir ao escândalo na frente da moça.

- Fico agradecida por sua esposa ter me defendido, Sr. Preston. Tenha um bom dia.

Ela e a irmã mais nova saíram da loja. Irene seguia bem perto dela, com seu marcante gorro de seda encorpada.

- Você acha que o vilarejo inteiro concorda com o Sr. Preston?

- É pouco provável que a Sra. Preston deixasse o marido ser tão simpático se todo o vilarejo discordasse.

- Então, parece estar acontecendo o que Alexia esperava.

- Aqui, sim. Mas Watlington é uma coisa e Londres será outra.

- Acho que em Londres não vai ser ruim. Easterbrook vem ao seu casamento. Quando os jornais publicarem isso, ninguém vai dar atenção às más línguas.

- Como as más línguas gostam muito de falar dele, não acredito que sua presença ajude tanto.

Realizar o casamento no interior tinha sido ideia de Kyle, não de Alexia. Lorde Hayden então oferecera a casa do irmão em Aylesbury Abbey, mas Kyle dissera que preferia
a dos Longworth. Iam se casar na paróquia da infância dela, entre pessoas que a conheciam desde menina.

Rose agora entendia a esperteza disso. Kyle conhecia os moradores de um vilarejo melhor do que um irmão de marquês poderia. O dinheiro que a família gastaria nos
preparativos e a festa aberta a todos os moradores ajudariam mais a criar uma visão favorável sobre aquele escândalo do que dez anos de vida honesta.

Rose e Irene seguiram pela estrada do vilarejo, cumprimentando vizinhos e parando para algumas moças poderem admirar o lindo gorro de Irene. Compraram algumas fitas
e tecidos antes de voltarem para casa.

Muita agitação as aguardava lá. Três carroças cheias de móveis enchiam a entrada da casa. Um exército de criados passava carregando coisas enquanto Alexia ficava
de sentinela na porta da frente, segurando uma grande folha de papel.

- Isso vai para a biblioteca - disse ela para dois homens que carregavam um grande tapete.

- O que você está fazendo? - perguntou Rose, afastando-se para o lado de forma que um guarda-roupa enorme pudesse passar.

- Para o quarto no lado sul - Alexia orientou os três homens que aguentavam o peso do guarda-roupa, depois se dirigiu a Rose: - Você não pode dar uma festa de casamento
numa casa que não tem cadeiras.

- O móvel que passou agora não era cadeira.

- Nem tente ser orgulhosa. Não ouse. Hayden disse que você não aceitaria isso, e não vou deixar que confirme que ele estava certo. Já estou bastante irritada por
ele ter me convencido a esperar tanto para fazer isso. Se viesse um mau tempo, você daria uma festa numa casa vazia na semana que vem.

Um homem passou carregando uma arca nas costas, com muito esforço. Ela deu uma batidinha com a folha de papel no ombro dele.

- Meu bom homem, da próxima vez, espere ajuda. Assim você nem enxerga para onde vai.

- Sou forte, madame. É preciso mais que isso para me derrubar.

- Com certeza, mas se virar para o lado errado, vai arrancar pedaços das paredes. Não temos tempo para refazer o reboco. Escute, Rose, o sótão da casa de Aylesbury
Abbey está cheio de móveis que jamais são usados. É um pecado esse desperdício. E não é presente de Hayden. A casa e tudo o que tem dentro não são dele.

Irene concordou com a cabeça.

- É verdade, Rose. É tudo de Easterbrook.

Uma fila de cadeiras passou por Rose.

- Alexia, o marquês a autorizou a esvaziar o sótão?

Alexia contou o número de cadeiras e consultou o papel.

- Só descobri a quantidade de coisas que havia lá nessa última visita. Mas, na última vez que o vi, conversamos sobre o seu casamento. Comentei que queria ajudar
nos preparativos e ele disse que eu podia usar os criados da casa de Aylesbury e tudo o mais que precisasse - explicou ela e sorriu. - Isso aqui é o "tudo o mais".

Rose imaginou o marquês na casa dela, sendo sarcástico quando não estivesse calado, ao ver aqueles móveis que pareciam bem conhecidos. Depois do casamento de Alexia,
Rose só encontrara o marquês duas vezes; achava-o enigmático e mal-humorado, alguém que poderia se beneficiar bastante do ar puro do campo.

- Bem, ele pode mudar de ideia sobre vir ao casamento - murmurou ela, desejando que não viesse, ainda que a presença dele pudesse contribuir para sua redenção.

Os moradores do vilarejo iam se ocupar tanto em bajulações e em tentar impressionar o marquês no dia do casamento que ninguém ia se divertir.

- Ah, ele virá - disse Alexia. - A tia, Henrietta, ficou dizendo que não viria e ele exigiu que o acompanhasse. Ele agora vai se arrastar de Londres até aqui nem
que seja só para aborrecer a tia.

Irene fez uma careta.

- Ela vem?

Rose seguiu pelo caminho dos carregadores.

- Gostaria de saber se ela algum dia olhou o que tinha naqueles sótãos.

- Suponho que Henrietta inventariou os bens de Easterbrook até o último travesseiro, desde que passou a morar com ele na primavera passada - disse Alexia.

- Então é possível que eu a veja na minha festa de casamento. A cada cadeira e mesa que ela vir, vai levantar as sobrancelhas até juntá-las com a linha dos cabelos.

Alexia e Irene se puseram ao lado dela e seguiram com o fluxo de móveis.

Deixaram os homens se ocuparem de colocar os móveis nos cômodos conforme os desenhos que Alexia tinha feito, e Rose levou a irmã e a prima para o andar de cima,
até o santuário de seu quarto.

A porta do sótão estava aberta. Ela deu uma olhada e viu móveis antigos da casa empilhados. Estranhou que algumas peças estivessem ali.

Em vez de ir para o próprio quarto, ela entrou no quarto sul. Era o maior de todos. Os móveis antigos tinham sido substituídos por outros, trazidos por Alexia. Uma
cama grande aguardava os lençóis e o guarda-roupa recém-chegado brilhava encostado a uma parede. Um toucador masculino estava pronto para receber escovas e objetos
pessoais.

Ela olhou para Alexia, cujo rosto refletia seu senso prático e sua firmeza.

- Está na hora, Rose. Ben já se foi há anos - disse Alexia. - Esta casa em breve terá outra vida e outro dono, e este quarto tem que ser dele.

Rose deu uma olhada no quarto, que estava diferente agora, com objetos estranhos que logo seriam de uma presença estranha. Seu coração se apertou com o aspecto decisivo
que a mudança feita por Alexia representava.

Irene mordeu o lábio inferior.

- Ela tem razão, Rose. Acho que em poucos dias você não vai mais se importar.

Rose pôs o braço no ombro de Irene.

- Não me importo, querida. Alexia está certa. É hora de seguir em frente.

Rose tirou Irene do quarto. Alexia olhou para a prima mais velha quando as duas passaram. O olhar que trocaram foi parecido com o do dia em que se viram na casa
de Phaedra.

Às vezes não havia mesmo escolha. Às vezes só havia uma decisão, uma única coisa possível a fazer, se você quisesse uma chance de ser feliz.

 

CAPÍTULO 10

Na manhã do casamento, Jordan insistiu em arrumar o patrão. Chamou os criados da hospedaria Knight's Lily, em Watlington, e deu ordens como um marechal de campo.
Mandou trazer o café da manhã, preparar o banho e pediu mais toalhas, mais água quente ainda e convocou um assistente enquanto manejava a navalha.

Kyle obedeceu e achou que os criados da pousada não se incomodaram com os mandos. Aquilo lhes dava a chance de participar do casamento que deixara o vilarejo inteiro
alvoroçado.

Enquanto isso, Jordan informava dos preparativos que tinha feito na casa em Londres da futura Sra. Bradwell.

Finalmente, ficou tudo pronto. Jordan ajeitou um colarinho, alisou uma manga de camisa e recuou para dar uma olhada.

- Pronto, e ainda falta uma hora. O colete foi uma ótima escolha, senhor. O leve toque de rosa-escuro no cinza está perfeito, com o azul suave da sobrecasaca.

- Já que você escolheu o colete, é bom que aprove. Ainda acho que um cinza mais claro seria melhor.

- É seu casamento, senhor. Um toque alegre no traje, um toque mínimo, devo dizer, é não só apropriado como esperado - argumentou e, tendo guardado o que restava
de seu arsenal, fez uma reverência para se retirar. - Permita-me dizer, senhor, que está numa elegância como nunca vi. É um privilégio servi-lo neste dia tão feliz
- arrematou.

Kyle olhou no espelho a ótima imagem que o tempo, a experiência e Jordan tinham conseguido formar. Sem dúvida, Kyle se sentia mais elegante, correto e apresentável
que em anos. Lembrou-se do dia em que a tia o arrumara com todo o capricho para ir a Kirtonlow Hall pela primeira vez, a pedido do conde de Cottington. Naquele dia,
ele também ficara pronto uma hora antes e tivera de ficar sozinho e quieto para não suar e estragar a roupa.

Olhou pela janela a rua do vilarejo. Viam-se poucas pessoas. Como ele, estavam todos se arrumando para uma cerimônia e uma festa mais grandiosas do que quaisquer
outras que tivessem visto em anos.

Naquele dia, quando criança, ele imaginara que, na melhor das hipóteses, o conde lhe daria uma bronca e, na pior, uma surra de chicote. Em vez disso, Cottington
tinha mudado a vida dele.

Mudado para melhor, claro. Só um idiota ou um ingrato não reconheceria. Então, ao olhar Watlington pela janela, sentiu uma inesperada falta de Teeslow, seu vilarejo.

Seria bom ter alguns rostos conhecidos no casamento, só que estavam todos longe, tanto no tempo quanto na distância. A generosidade de Cottington o tinha arrancado
daquele mundo, mas não encontrara outro onde colocá-lo.

Ele tinha criado uma espécie de círculo de amigos e sócios, mas não era a mesma coisa. Não pertencia mais a lugar algum, já fazia algum tempo. Sua vida parecia uma
videira com os ramos se distanciando cada vez mais das raízes.

Aquele casamento também não mudaria nada. Ele ficaria à margem do mundo de Roselyn, não dentro. Escolhera a esposa com toda a consciência disso. Sabia o que ganhava
e o que jamais teria, de uma forma que nem Rose entendia.

O olhar bateu na valise de viagem. Enfiada nela, estava uma carta que Jordan tinha trazido de Londres. Durante a visita de Kyle ao norte, o conde estivera muito
adoentado para recebê-lo, mas tinha conseguido mandar conselhos e cumprimentos pelo casamento e dito que recomendara ao advogado que lhe enviasse um presente.

O conde não estaria lá. Nem a tia Prudence e o tio Harold, que não conseguiram disfarçar o susto ao saberem da mulher que o sobrinho tomaria por esposa, quando ele
lhes contou na visita de Natal. Harold estava doente demais para viajar, mas os tios nunca fariam uma viagem assim no inverno. Os outros amigos que fizeram parte
de sua juventude também não iam festejar com ele e só uma pessoa de seu vago mundo atual estava em Watlington.

Kyle foi procurá-lo.

Entrou no quarto de Jean Pierre, que estava em frente ao espelho, colocando a gravata. Depois de Jean fazer algumas dobras e acertos no tecido, Kyle viu de perfil
o amigo assentir, satisfeito. Ele se virou e olhou para o noivo.

- Mon Dieu, por que os homens sempre parecem a caminho da guilhotina no dia do casamento? - falou, passando a mão numa garrafinha que estava no toucador e arremessando-a.
- Um gole, não mais. Seria grosseiro estar bêbado, embora fosse menos doloroso.

Kyle riu, mas tomou um gole mesmo assim.

Jean Pierre mexeu mais um pouco na gravata.

- Esse Easterbrook não me impressiona, mas, oui, de qualquer forma estou sendo um idiota. Tento me convencer de que meu cuidado com o traje não é por causa dele
e seu título importante. Os criados disseram que sua noiva é linda. É ela que quero impressionar, não ele.

- Por quê? Ela é minha noiva.

Um riso. Um suspiro.

- É bom que você se case. Você nunca achou graça nessa brincadeira. Algumas visões suas são... simplórias.

- Muito simplórias.

A voz dele soou mais perigosa do que ele pretendia. Muito perigosa.

- Espero que não se torne um daqueles sujeitos enfadonhos que ralham quando alguém elogia sua mulher. Ninguém colhe todas as flores que cheira.

- Elogie quanto quiser, mas sei muito bem o que você faz com as flores. Tenho certeza de que sabe que é melhor não brincar no meu jardim.

- Mon ami, você tem que aceitar que haverá flerte no ambiente que ela frequenta, e não ser idiota...

- Não preciso que me ensine nada. Sei de tudo isso. Estou apenas dizendo que você não vai arrancar, cheirar, nem mesmo passar por nenhuma cerca-viva.

- O nervosismo do dia já está afetando a sua cabeça. Ainda bem que estou aqui para ajudar. Acho que precisa de mais um gole dessa bebida. Depois jogaremos baralho
até a hora do casamento, assim você fica calmo e não fala feito um idiota.

- Estou bem tranquilo. Sereno como um lago num dia sem vento. Diabos, nunca estive tão calmo.

- Claro. Agora, mais um gole. Ah, bon.

 

- A carruagem de Aylesbury já passou.

A informação foi dada por um criado que ficara de sentinela na estrada. Alexia se levantou e sorriu ansiosa para Rose.

- Agora podemos ir.

Rose olhou para seu vestido. Não era novo. Tinha ficado escondido um ano, desde a época em que Tim vendera tudo o que encontrava. Irritada e de forma egoísta, ela
escondera alguns de seus melhores trajes, na esperança de ter motivo para usá-los de novo. Alexia a ajudara a reformar o vestido, assim não dava para perceber que
era usado.

Rose estava contente de, nesse dia, usar roupas que eram dela. Quase nada na casa era. Até a comida que estava sendo preparada na cozinha pelos criados de Aylesbury
não era dela. E Kyle tinha enviado os barris de cerveja e vinho. Ela se sentiria mais estranha ainda se usasse um dos vestidos de Alexia.

Saíram todos em direção às carruagens que os aguardavam. Lady Phaedra e lorde Elliot tinham vindo participar desse cortejo, em vez de seguirem com Easterbrook. Ela
ficou emocionada com o comparecimento de toda a família de lorde Hayden. Mostravam que a protegiam, graças ao amor que tinham por Alexia.

Alexia, Irene e lorde Hayden iam com ela numa pequena carruagem aberta. Ao chegarem ao vilarejo, não viram ninguém nas ruas. Todos estariam na igreja. Muitos se
aglomeravam do lado de fora porque na velha construção medieval de pedra não havia espaço para todos.

Quando Rose entrou na igreja, sentiu a mudança da luz e da temperatura. Ficou zonza. Tudo se tornou irreal, como imagens de um sonho.

Captava a cena ao redor ao ritmo do sangue que pulsava em sua cabeça. Sorrisos, murmúrios, mulheres apontando os trajes elegantes das damas, rostos que faziam parte
da vida inteira dela olhando... uma caminhada, longa e escura em direção ao altar.

Kyle a aguardava. A seu modo, estava lindo. O leve sorriso que ele dava para apoiá-la fazia o mundo voltar um pouco a seu lugar, mas não totalmente. Ela disse palavras
que pareceram muito distantes. Palavras sérias, votos e promessas, que a uniram irreversivelmente a alguém.

Sentiu-se tomada por uma súbita alegria quando percebeu que havia terminado. Teve a impressão de pairar no ar, impressionada com a própria coragem. Ao mesmo tempo,
temia que, a menos que surgissem anjos para segurá-la no voo, pudesse se esborrachar no chão do vale.

Viu-se de novo na carruagem aberta, agora ao lado de Kyle. Os moradores do vilarejo seguiam a pé ou em carruagens, todos para a casa.

Kyle segurou a mão dela. Aquele gesto a arrancou do devaneio. O sentido do que tinha acontecido se revelou de forma tão concreta que ela mal conseguiu acreditar.

Olhou o perfil do homem que agora era seu marido e senhor. Dele, conhecia apenas duas partes, a de salvador e pretendente. De resto, continuava sendo um estranho
em quase tudo.

 

Kyle observava a festa animada que lotava a casa de Rose. Os convidados mais importantes tinham se sentado para um café da manhã de núpcias, enquanto os moradores
do vilarejo andavam pela sala e a biblioteca e se espalhavam pelo jardim e o terreno. Agora todo mundo se misturava no aperto dizendo votos de felicidade para Rose,
que estava a poucos metros dali.

Kyle não olhava muito para ela. Não ousava. Quando olhou, viu detalhes que fez seu corpo se empertigar. A linha do pescoço, elegantemente debruçada numa conversa,
tinha fios de cabelo esparsos que pareciam seda. Os lábios, como um veludo para beijar, curvavam-se num sorriso sereno.

O vestido era de um tecido marfim macio que modelava o corpo de maneira que o fazia relembrar os seios que tinha acariciado. Pensou em como seria tirar aquele vestido
dali a pouco e no resto, a pele perfeita dela tocando seu corpo inteiro.

Ela percebeu o olhar dele. Deve ter concluído o que ele pensava, embora Kyle duvidasse que ela pudesse adivinhar os detalhes eróticos. Ela corou e voltou a conversar
com o convidado.

Ele se obrigou a prestar atenção na festa para se distrair. Observou Easterbrook chamando a atenção em frente à cornija da lareira. Os moradores do vilarejo se aproximaram
com deferência e receio, não só por ele ser um marquês.

O comportamento dele não incentivava aproximações. A aparência excêntrica tinha sido de certa maneira amenizada. Surpreendentemente, usava trajes conservadores e
os cabelos compridos tinham sido presos num rabo. Mas ele olhava de cima, satisfeito com os resultados de sua caprichosa intromissão.

Um riso de mulher desviou a atenção de Kyle. Perto, num canto da sala, Jean Pierre atraía Caroline, a jovem prima de Easterbrook. A linda moça enrubescia com a atenção
dele.

A mãe, lady Wallingford - tia Henrietta, para a família -, incentivava Jean Pierre a flertar mais um pouco. Pálida como a filha e enfeitada com um chapéu incrível
pelo excesso de plumas, a lady tinha um jeito alienado, com aquela expressão ausente, etérea. Segundo Rose, o rosto ingênuo escondia a sagacidade de uma mulher decidida
a ficar para sempre na casa de Easterbrook, depois de finalmente conseguir se acomodar nela no ano anterior. Os boatos diziam que o recluso marquês tinha cada vez
menos paciência para a intrusão da tia e da prima.

Dali a pouco, Jean Pierre pediu licença às duas damas e foi abrindo caminho até chegar onde Kyle estava.

- Jean Pierre, a respeito daquelas flores... lorde Hayden é o protetor de uma das que você cheirava há pouco. Olhe para ele. Quer ter esse homem como inimigo?

Jean Pierre procurou lorde Hayden com o olhar.

- Acho que ele não vai se incomodar.

- Ele não terá como não se incomodar. Ela é inocente.

- Eu não cheiro inocentes - garantiu ele, e olhou para Henrietta e Caroline. - A menina não me interessa. Lady Wallingford deve ter, no máximo, 30 e poucos anos.
Você vê uma matrona que usa chapéus horrorosos. Eu vejo uma mulher com uma beleza oculta e etérea que, meu nariz tem o prazer de informar, não se oporia a uma pequena
sedução.

Não adiantava tentar dissuadir Jean Pierre dessa conquista. Kyle imaginou que lorde Hayden não causaria um duelo em nome da virtude da tia.

De repente, a festa pareceu mudar. Acalmou-se. As pessoas se afastaram para formar um corredor. O marquês passou no meio, sorrindo de leve, afavelmente, para a direita
e a esquerda.

- Finalmente - resmungou Jean Pierre. - Agora é só esconda a cerveja e o vinho e todos os demais vão embora também.

Sim, finalmente.

Rose fez uma reverência quando Easterbrook se despediu dela. Kyle também fez uma reverência e torceu para que nada tirasse o homem de seu curso. Ninguém iria embora
antes dele.

A tia do marquês se sentiu na obrigação de acompanhá-lo. Em pouco tempo, os irmãos dele também se foram. A festa começava a acabar.

Kyle se imaginou colocando todos porta afora, os moradores do vilarejo e os criados, todo mundo. Teve de se esforçar para controlar a impaciência.

Uma coisa era desejar Rose antes. Mas desejá-la hoje, agora, quando sabia que poderia possuí-la, estava sendo uma tortura.

 

Fazia tanto tempo que Rose não tinha uma criada que ficou sem saber o que fazer com a mulher. Por sorte, a criada que Alexia arrumara não precisava de ordens. Com
gestos eficientes e de olhos baixos, preparou Rose para a noite de núpcias.

A casa agora estava quase vazia. Só ficaram o marido e a esposa, o criado pessoal de Kyle e a criada que arrumara Rose. Dali a pouco os dois últimos iriam desaparecer
em outros cômodos do andar superior.

As últimas horas tinham sido difíceis. A aproximação daquele momento tinha surtido efeito sobre cada minuto e cada segundo delas. Tanto Roselyn quanto Kyle não disseram
nada, nem mesmo na longa caminhada que fizeram enquanto os criados de Aylesbury limpavam a casa, tirando os pratos e os barris de vinho. A noite que estava para
chegar fora um manto invisível cobrindo cada instante e transformando cada olhar e cada toque.

Ela dispensou a criada e se empertigou. Não estava com medo. Nem um pouco. Estava nervosa, preocupada e curiosa, mas não com medo.

Passou a mão pelos cabelos, que tinham sido escovados e estavam soltos. Conferiu a camisola, quase recatada com suas mangas compridas e a gola alta franzida. Olhou
para a cama, que os aguardava com o lençol aberto. A vida inteira, ela vira a cama naquele mesmo lugar.

Não tinha certeza se queria que as coisas se passassem naquela cama. Não sabia nem se queria que fossem naquele quarto.

Ali ela havia sido uma criança feliz e uma garota cheia de esperanças. Ali chorara a morte dos pais e a de Benjamin; sofrera com a falência do irmão e a dela própria.
Aquele quarto continha toda a sua história, o bom e o ruim, e ainda guardava ecos de sonhos juvenis jamais realizados.

Se Kyle entrasse ali agora, ela não conseguiria voltar ao quarto sem que a presença dele influenciasse todas as lembranças.

Mudasse. Talvez até ofuscasse. A partir de agora, sua vida mudaria sob vários aspectos. Ela podia ao menos conservar aquele canto de seu antigo mundo.

Jogou um xale sobre os ombros. Pegou uma vela acesa e saiu de mansinho do quarto. Prestou atenção em sons vindos do quarto sul para saber se Jordan ainda estava
servindo o patrão.

Nenhuma voz, nenhum barulho. Entreabriu a porta e olhou.

Jordan não estava lá. Só Kyle. Ao lado da lareira, imerso em pensamentos que endureciam suas feições. Dava a impressão de que aquelas reflexões o tinham desviado
de seus preparativos. Ele estava nu da cintura para cima, mas ainda de calças.

Ao vê-lo assim, ela se assustou. O homem escondido por aquelas roupas elegantes agora estava exposto, de uma maneira não apenas física. Um cavalheiro podia praticar
boxe ou esgrima durante meses e não conseguir a força contida e autêntica que ele revelava. Não era tanto a altura e o corpo que ele tinha, embora a musculatura
firme e definida acentuasse o efeito. Era mais algo que vinha de dentro e não tinha explicação.

Ela teve noção de que estava vendo algo que ele não mostrava ao mundo. Escondia atrás da fala educada e das maneiras polidas, mas devia estar sempre nele. Rose havia
percebido desde o começo. Tinha sentido os efeitos tanto de formas sutis quanto fortes. Era essa força que a excitava e a fazia sentir-se ao mesmo tempo segura e
temerosa.

Ele se virou como se ouvisse o som vindo da porta, embora ela mal respirasse. Olhou-a por inteiro: o xale e a camisola, a vela e os cabelos.

- Eu já ia ao seu encontro - disse ele.

- Pensei em vir encontrá-lo. Você se importa?

- Claro que não.

Ela se aproximou e colocou a vela no toucador.

- Você estava tão absorto. No que pensava tanto?

- Em algo que aconteceu há muito tempo. Tinha até esquecido, só lembrei agora.

- Uma lembrança ruim?

- Sim.

- Então, ainda bem que entrei.

Ela ficou constrangida com o olhar dele. Talvez, vindo até ele ao invés de esperá-lo, tivesse criado uma expectativa de que faria algo mais.

- Ele machucou você?

A pergunta foi feita com tanta calma que ela levou um instante para entender. Ficou triste por ele falar em Norbury logo naquela noite.

- Pensei que jamais fosse falar...

- Ele machucou? Só pergunto por causa de agora e do que vamos desfrutar daqui a pouco. Veio à minha cabeça que talvez tivesse machucado. Que talvez eu o houvesse
considerado alguém melhor do que é, mesmo sabendo que é bem menos do que muita gente pensa.

Ela não entendeu direito a que ele se referia. Só que era a algo pior do que ela enfrentara. Embora, naquela derradeira noite, Norbury tivesse pedido algo que, parando
para pensar, poderia ser não só chocante, mas doloroso.

Olhou para o homem que, horas antes, tinha jurado protegê-la. A firmeza dele era perigosa e os olhos mostravam isso. Rose concluiu que ele não toleraria o que ela
acabara de se lembrar, ainda que ela lhe garantisse que não tinha chegado a acontecer.

- Não, ele não me machucou. Não da maneira que deve pensar.

- Fico contente.

Ele pareceu contente mesmo. Aliviado.

O leve sorriso ajudou a amenizar o clima e acabar com qualquer raiva causada pela lembrança do passado. O fantasma de Norbury ou de qualquer outro que tivesse entrado
naquele quarto sumiu como uma fumaça fina que esvaece pela janela.

Rose tinha certeza de que agora Kyle só pensava nela. E lhe dava toda a atenção. Isso a deixava nervosa e inquieta, ficar ali enquanto ele a olhava. Ela também olhava
o peito e os ombros banhados pelo brilho cálido da lareira. O corpo dela reagiu à expectativa que saturava o ar.

- Venha cá, Roselyn.

Claro que ela obedeceu. Fazia parte do que havia prometido naquele dia. Não era uma menina inocente e não ia mostrar quanto ainda se sentia como tal.

Ficou bem na frente do marido, com o peito nu dele a centímetros de seu nariz. Um peito atraente. Só a proximidade dos dois já era provocante e ela teve um impulso
de beijar o corpo que a atraía.

Ele a beijou primeiro. Pegou o rosto dela nas mãos e a beijou com mais carinho do que nunca. Era como se quisesse dar confiança a ela, o que Rose achou muito bom.
Só que ele já tinha feito isso na carruagem, no dia em que se encontraram no parque. Tinha consciência de que parte de seu dever de esposa podia ser desagradável,
mas agora também sabia que outra parte seria muito boa.

O corpo dela concordou. Reagiu ao beijo mais do que seria preciso. O nervosismo diminuiu e a excitação aumentou.

Kyle a levou para a cama. Sentou-se na beirada para não ficar tão mais alto que Rose. Assim podia beijá-la mais facilmente. Mais intimamente. Com menos cuidado.
Enquanto beijava, colocou a mão sobre o seio dela. As carícias a excitaram tão rápido que ela se assustou. Ela deixou o desejo fluir e notou que seu corpo latejava
lá embaixo, ansiando por ele.

Kyle observou a própria mão moldar o tecido da camisola ao redor do seio, exibindo sua forma. Ela ofegava toda vez que ele lhe roçava o mamilo, tão penetrante era
a sensação que causava.

- Você é muito bonita, Roselyn.

A beleza não tinha sido de muita utilidade em seu erro. Ainda assim, o elogio a agradava.

Ele a olhava com tanta intensidade que Rose teve medo de que ele se desapontasse com o que visse.

- Você já ouviu isso muitas vezes. Desde criança, imagino.

- Se você me achar linda esta noite, estarei feliz.

- Sempre achei. Eu a vi uma vez, há anos. Num teatro. Não sabia quem era, só que nunca tinha visto uma mulher tão encantadora. Depois, percebi seu irmão no mesmo
camarote e concluí que devia ser a bela Longworth que tantos elogiavam.

O toque leve causou tanta alegria, tanto prazer que ela quase o repreendeu por não ter ido procurá-la quando soube quem era. Conteve-se a tempo. Sabia o motivo.

Teria sido por isso que fizera a proposta de casamento? Ela mal conseguia pensar nisso, raciocinava de um jeito preguiçoso, indiferente. Ele não resistira à chance
de ter algo que o mundo proibira a um filho de mineiro?

Ela se entristeceu ao pensar nisso. E veio novamente o impulso de beijá-lo. Dessa vez ela obedeceu, beijou a curva do ombro dele.

Foi como se acendesse uma tocha, tal o efeito que causou, apesar de Kyle imediatamente tentar conter seu desejo. Mas os olhos dele se aprofundaram a ponto de ela
pensar que poderia se afogar neles se os mirasse por muito tempo.

Ele puxou as pontas do laço que prendia a camisola no pescoço. Rose olhou para a mão dele, enquanto as fitas acetinadas corriam e o nó se desatava. Pareceu levar
uma eternidade. Um ponto dentro de seu corpo latejou e se retesou, como se uma língua invisível estalasse em sua carne.

Percebeu que Kyle ia despi-la. Ali mesmo, despi-la inteira, com a vela acesa na mesinha lateral. Tinha certeza de que não era assim que se fazia. Só que ele podia
não saber. Mas...

Ela ainda estava surpresa por esses pensamentos quando a camisola escorregou pelos ombros. Kyle notou a surpresa, mas isso não o impediu de continuar. Desceu o tecido
até exibir os seios, túrgidos e com os mamilos escuros. Puxou a camisola mais para baixo, passando pela cintura e as pernas até Rose ficar nua sobre um lago de tecido
branco.

Rose ficou envergonhada. O quarto precisava estar escuro, ou quase, quando ela estivesse assim. E eles deviam ficar embaixo do lençol, quase anônimos nos gestos
por vir. Tentou se cobrir com os braços.

- Não.

Ele a segurou antes que conseguisse. Puxou-a mais para perto. Sua língua mal tocou a extremidade de um de seus mamilos.

Uma centelha de prazer percorreu seu corpo inteiro: intensa, direta, precisa. Depois, outra, e outra, sufocando seu constrangimento, fazendo-a querer apenas que
ele continuasse aquilo para sempre e que o prazer maravilhoso nunca cessasse.

Com a língua e a boca, ele a levava aos céus. Acariciou todo o corpo dela e ela então gostou de estar sem a camisola. O toque das mãos em sua pele, nas coxas e atrás,
nas costas, parecia certo, necessário e perfeito. Ela se virou, presa numa sensualidade e num desejo intensos, que pareciam aumentar cada vez mais, o prazer pedindo
mais prazer num crescendo infinito.

Ficou tão perdida nesse torpor que não percebeu que segurava o ombro de Kyle até ele soltar sua mão. Mal notou quando ele se levantou e a deitou na cama. Rose voltou
um pouco a si na pausa que se seguiu e o viu tirar a roupa à luz da vela que ainda queimava.

Ela esticou a mão e apagou a vela antes de ver o corpo inteiro dele como ele a vira. Kyle se transformou então numa silhueta, uma forma escura, indistinta e vaga.
Ele foi na direção dela na cama.

Um beijo, tão profundo e íntimo que ela jamais o esqueceria. Uma carícia, tão firme e possessiva que ela só podia render-se à sua maestria. Um toque, tão direto
e ciente de seu efeito que o corpo todo gritou com o prazer intenso.

Ele continuou. Ela manteve um grito ao mesmo tempo mudo e pleno de desejo, de sensação torturante. Rose perdera a consciência de seu corpo, exceto a tênue vontade
que exigia mais, qualquer coisa, tudo.

A voz dele, calma e profunda.

- Entregue-se. Vai entender o que quero dizer. Deixe acontecer. Solte-se.

Ela mal o ouviu. Não entendeu. Mas o corpo se soltou lentamente. O suficiente para que um tremor profundo surgisse e então aumentasse e subisse em ondas de prazer
cada vez mais altas, para no fim explodir em seu corpo e ofuscar sua mente, num momento etéreo de estupefação.

Kyle estava abraçado a ela, em cima dela. Sentiu-o entrar com cuidado. Com muito cuidado. Ela o deixou assim e ajeitou as coxas para que ele ficasse lá, para que
a penetrasse antes que aquela sensação maravilhosa tivesse fim.

A calma dele se foi. Veio a força. Ela não se importou. Não foi ruim, nem sequer desagradável. Ela se entregou a ele como se entregara ao próprio prazer, ainda flutuando
numa perfeição que as estocadas dele só fizeram prolongar.

 

Ele despertou perto da aurora e viu que Roselyn se fora. A certa altura da noite, talvez logo após ele adormecer, tinha voltado para seu quarto e sua cama.

Se ele tivesse ido até o quarto dela, Rose esperaria dele que saísse logo também. Era assim que se fazia com mulheres como ela. Elas não viviam em casebres, onde
marido e mulher compartilhavam a mesma cama a noite inteira, todas as noites.

Lembrou-se de, quando menino, ouvir murmúrios e risos íntimos no quarto ao lado. Aqueles sons pessoais davam vida à casa. Ele não tinha participação naquelas conversas,
mas os murmúrios traziam paz à noite.

Era estranho que a lembrança viesse naquele momento, tão vívida que, se ele fechasse os olhos, se sentiria na cama de sua infância outra vez. Esquisito que aquele
casamento tivesse aberto tantas portas para o passado. Só que ele olhava por essas portas como homem e via coisas que o menino jamais compreendera.

Uma das portas seria difícil de fechar. Se Roselyn não tivesse vindo na noite anterior, ele ficaria horas refletindo sobre o que vira de novo daquela soleira.

As imagens queriam invadir a cabeça dele. Ele as expulsou por ora. Quem sabe, de uma vez por todas. Assim como a honestidade absoluta, a pura verdade nem sempre
era benéfica.

Cochilou, depois acordou de novo, num sobressalto. Era tarde. Não tinha apenas cochilado.

A água para lavar o rosto estava à espera. As roupas tinham sido preparadas para que se vestisse. Jordan estivera lá, mas deixara o noivo dormir. Ele não chamou
o criado, mas se arrumou para mais um dia.

Desceu a escada e acompanhou o som das vozes na cozinha, nos fundos da casa. Rose estava lá com Jordan. Usava um vestido simples, cinza, que ficaria bem numa dona
de casa modesta. Continuava linda.

Não conseguia olhar para ela sem relembrar seu corpo à luz da vela, a timidez e os tremores de sua excitação. Apagar a vela tinha, sem dúvida, sido sensato, embora
ele tivesse vontade de olhar para a esposa a noite inteira. Na escuridão, ela conseguira se libertar um pouco e ele conseguira se controlar para não possuí-la com
voracidade.

O primeiro olhar que Rose lhe deu continha um agradecimento pela noite. Ela então abaixou os olhos.

Jordan serviu o café da manhã.

- Este lugar é simples, senhor, mas a vista do jardim e a luz são agradáveis. Posso servir o café na sala de jantar, se o senhor preferir.

- Assim está ótimo.

Ele se sentou à mesa onde havia almoçado com Rose no dia em que fizera o pedido de casamento. Com gestos eficientes, Jordan serviu um café da manhã bem tardio.

Quando Kyle terminou, Roselyn trouxe para a mesa o último prato a saborear.

- É torta de maçã - avisou ela. - Você disse que gosta tanto que às vezes come no café da manhã...

- Muito bem, Jordan.

- Não foi ele quem fez. Fui eu.

Ao fundo, Jordan terminou de secar uma jarra. Pegou seu casaco.

- Quero olhar um pouco o jardim, madame. Com sua permissão, posso sugerir algumas melhorias.

- Claro, Jordan.

Rose cortou uma grande fatia de torta e colocou num prato. Deu um passo atrás e esperou que o marido provasse.

Ele deu uma boa mordida.

A torta anterior estava ruim. Já esta estava horrível. Olhou para o armário e todos os mantimentos. Tinha presumido que a primeira torta ficara ruim por falta de
açúcar e sal. Pelo jeito, o problema não era esse. Roselyn é que fazia tortas horríveis.

Ela teve prazer de vê-lo comer. Por sua expressão facial e os sons que fazia, ele estava gostando.

- Deliciosa - falou ao engolir o último pedaço.

- Fico contente que tenha gostado. Jordan ficou estalando a língua enquanto eu assava, mas acho que só estava irritado por eu estar fazendo o trabalho dele.

Ele a segurou e a puxou para si.

- Você não precisa mais cozinhar. Não precisa fazer tortas.

- Eu sei. Só que esta manhã me lembrei de que servi torta a primeira vez que esteve aqui e que pareceu gostar. Então quis fazer outra.

Ele percebeu que tinha acabado de ser elogiado pela noite anterior.

Beijou-a e a soltou. Não estava com fome naquele momento, pelo menos de comida. Muito menos daquela torta.

Mesmo assim, cortou mais uma fatia.

 

CAPÍTULO 11

Kyle colocou os rolos de projetos numa grande sacola de lona.

O assunto não podia esperar mais. Muito já fora investido naquilo. Ele não tinha escolha senão encontrar Norbury, como estava marcado fazia tanto tempo.

Tentou ouvir algum som vindo do quarto de Roselyn. Ela costumava acordar cedo. Não tinha o hábito de ficar na cama até o meio-dia como certas damas. Nesse dia, entretanto,
o pavimento onde ficavam seus quartos continuava estranhamente silencioso. Como ele a mantivera acordada quase a noite inteira, não se surpreendeu.

Ela não parecera se importar em dormir pouco. A noite lhe despertara novos apetites. E, ao contrário do que ocorrera em Oxfordshire, onde ela sempre o procurava,
como se quisesse demonstrar que cumpria seus deveres conjugais, ali em Londres era o contrário: ele é que ia encontrá-la. Isso significava que, às vezes, como na
noite anterior, Kyle se demorava bastante por lá.

Ela não se importava, mas, ao mesmo tempo, preparava os rituais da noite de maneira a não ficar constrangida. Depois daquela primeira noite, sempre apagava as velas
mais cedo. Apesar da escuridão, Kyle conhecia o corpo da esposa melhor do que ela pensava. O toque revelava muito e a luz da lua, mais ainda. Ela podia preferir
as sombras, podia até esquecer o rosto do homem que a possuía, mas ele jamais esquecia que era Roselyn que ele acariciava.

Riu para si mesmo ao se lembrar da pequena batalha que seu corpo enfrentava todas as noites. Roselyn Longworth lhe provocava um desejo tão forte, tão arrasador,
que muitas vezes ele ficava agressivo. Mas, como se tratava de Roselyn, uma dama que ainda se intimidava e se espantava com a nudez, ele tinha de se controlar.

Isso não era um problema. O final era sempre bom. Os doces êxtases dela e os gozos fortes dele o encantavam. Depois de tudo, era com pesar que ele abria mão da satisfação
absoluta que encontrava nos braços dela. Às vezes, como na noite anterior, ele passava horas recusando-se a ir embora, o que significava ter relações mais de uma
vez.

Desceu a escada. Aquela casa ainda parecia nova e estranha para ele. Roselyn ficara muito contente quando ele a levara para lá. Ocupava-se agora de arrumá-la a seu
jeito e de fazer as primeiras reaparições na sociedade.

Ele cuidava dos negócios, como essa reunião agora. Foi a cavalo para a casa de Norbury, com a sacola de lona presa à sela. O dia estava melhor que o humor dele.
Não falava em Norbury com a esposa, mas sua fome insaciável da noite anterior, o desejo de possuí-la, estava ligada à desagradável expectativa do encontro que se
seguiria.

Na verdade, aquele homem agora entrava em sua cabeça com muita frequência. Não só por causa de Rose, apesar de ele ter de se esforçar para afastar as lembranças
daquele caso. Pensar nisso só lhe dava raiva e uma vontade enorme de bater no canalha.

Kyle continuava também com a lembrança que tivera na noite de núpcias, como se aquilo precisasse ser revisto. Era o rosto de uma mulher espancada e machucada. Os
olhos da mulher o assombravam. A humilhação que mostravam parecia o rosto de Rose na noite do leilão.

No dia em que encontrara a tia ferida ao se defender dos jovens ricos que se divertiam com ela, Kyle lutara como um possesso. Eram três contra um e ele tinha apenas
12 anos, mas seus inimigos não haviam passado quatro anos carregando carvão na mina.

Ele achara que a havia salvado. Só agora, que os detalhes começavam a ressurgir em sua cabeça, ele reavaliava o ocorrido. Talvez não tivesse chegado no início da
violência contra a tia, mas no final.

Pensar em Rose o fez lembrar-se de tudo isso na noite de núpcias. Enquanto ele avaliava como lidar com ela, como lhe mostrar os caminhos do prazer sem deixá-la assustada,
chegara a sombra do amante anterior. Com a lembrança, viera o pensamento inesperado de que o sexo trivial devia ser o menor motivo para Rose não gostar de contato
físico.

Parou o cavalo na frente da casa de Norbury. Olhou a fachada em perfeito estilo paladiano que dava tanta elegância à construção. Considerava-a uma das melhores moradias
de Londres, de uma excelência que para muitos passaria despercebida num mar de influências clássicas. Era um desperdício, pois Norbury tinha pouca sensibilidade
para essas coisas.

Não podia se distrair com a estética, como costumava ocorrer. A nova pergunta sobre aquela briga travada fazia tanto tempo afetava bem mais do que a infância dele.
Fazia com que imaginasse mais do que gostaria sobre o caso de Rose. Chegava a incomodá-lo no encontro de hoje, pois Norbury tinha sido um dos meninos em que ele
batera.

A tia garantira que ele havia chegado a tempo e ele acreditara. Mas aquelas conversas noturnas no casebre deles sumiram por muito tempo e o tio nunca aprovou a ajuda
dada por Cottington. Aceite o dinheiro, mas não seja um lacaio, Kyle, meu jovem. Use-os da mesma maneira que eles usam os outros, mas não se torne um deles.

O mordomo sorriu ao receber o cartão de visita de Kyle. A familiaridade não era desrespeitosa. Os criados daquela casa, como os de muitas outras elegantes residências
londrinas, logo se afeiçoavam ao menino pobre que se tornara um homem bem-sucedido, alguém que circulava pelos dois mundos que eles conheciam.

- Meu patrão está ocupado, mas poderá recebê-lo em menos de uma hora - informou o mordomo ao retornar.

Kyle o seguiu até a biblioteca, sabendo que "menos de uma hora" significava uma espera de pelo menos 59 minutos.

Assim que a porta da biblioteca foi fechada, Kyle a abriu de novo. Desceu a escada para a cozinha. Norbury não devia estar ocupado coisa nenhuma. O atraso era apenas
a maneira enfadonha de o visconde mostrar a própria importância. Mas o tempo que Norbury tinha dado seria útil.

A confeiteira se virou, surpresa, ao ouvir os passos dele na escada.

- Sr. Bradwell! Que honra. Nossa, como o senhor está bonito. Parece que o casamento lhe fez bem.

- Olá, Lizzy. Você também está bem. Com um pouco mais de farinha que o habitual.

Ela passou as mãos nos cabelos grisalhos, fazendo surgir uma nuvem branca. Lizzy era uma das muitas criadas da casa que tinha família em Teeslow. Quando moça, fora
trabalhar para Cottington, depois se mudara para Londres quando Norbury fora para a cidade.


O cozinheiro, um homem sério, cumprimentou Kyle com a cabeça e resmungou parabéns pelo casamento. Tirou uma panela grande da mesa e, com o pé, empurrou um banquinho
até o espaço recém-liberado. Depois voltou a ralhar com uma criada na copa. Kyle sentou no banquinho.

- Veio falar com o patrão, não é? - perguntou Lizzy, enquanto partia ao meio a massa de pão e pegava um pedaço grande. - Uma daquelas conversas sobre dinheiro que
ninguém entende?

- Sim.

- Tem gente que diz que é como um jogo.

- É parecido, só que sou eu quem decide onde fica a maioria das cartas.

- Ainda assim, uma cartada errada e...

- É, pode acontecer.

- Não é muito provável que aconteça com o senhor, eu diria. Sempre foi mais esperto que a maioria, deve saber dar as cartas.

Geralmente. Normalmente. Mas havia sempre um risco. O importante em qualquer jogo era não se importar muito em ganhar ou perder. Um homem nervoso ou desesperado
sempre joga mal.

O sucesso dele dependia da certeza de que, se tudo desse errado, sempre poderia se recuperar e que um revés de alguns anos não faria muita diferença em sua vida.

O casamento mudava tudo. Percebera isso ao fazer seus votos durante a cerimônia. A responsabilidade dele em relação a Rose significava que nunca mais poderia ser
absolutamente destemido, e os outros perceberiam isso, ainda que ele tentasse esconder a verdade.

Tinha sido por isso que, dois dias antes, fizera um fundo de investimento para a esposa.

Dois cheques tinham estado à espera de que eles retornassem a Londres. Um, enviado por Cottington, era presente de casamento. O outro, os 10 mil de Easterbrook,
era de uma quantia bem maior e viera sem uma carta, um bilhete que fosse.

Se Rose soubesse da existência daquele dinheiro, pensaria que alguém havia pagado para que ele se casasse, o que de certa maneira era verdade. Enquanto olhava o
cheque, ele concluíra que não queria que ela pensasse isso. Ela não ia enganar a si mesma e ter qualquer ilusão romântica sobre casamento, mas seria ruim que não
tivesse ilusão nenhuma.

Só o presente de Cottington já bastava para salvá-lo do desastre, então pegara o suficiente de Easterbrook para prover Rose no caso de se tornar viúva e deixara
o resto num fundo de investimento para ela. Sua esposa teria como se sustentar se, no futuro, as cartas do baralho não fossem distribuídas como ele gostaria.

- Tem recebido notícias de Teeslow, Lizzy?

Lizzy era chegada a fofocas, por isso Kyle gostava de conversar com ela. A criada sabia tudo sobre Teeslow pelas cartas da família, com muito mais detalhes do que
a tia contava a ele.

- Bom, a garota dos Hazletts está esperando um filho e ninguém sabe aonde o pai foi parar. Peter Jenkins morreu, mas foi um descanso, porque ele estava muito doente.
E há boatos de que aquele túnel na mina vai ser reaberto. Você sabe qual.

Ele sabia. Tinha ouvido o boato quando estivera lá, em dezembro. Pelo jeito, o boato continuava, portanto devia ser verdade.

- Como vai Cottington?

- Mal, infelizmente. Quando ele se for, a criadagem vai chorar rios, garanto. Muita coisa vai mudar com a morte dele.

- Não é só a criadagem que vai chorar. Todos vão lastimar que o herdeiro assuma o lugar dele.

Lizzy conferiu onde estava o cozinheiro, antes de fazer uma cara que mostrava que ela pensava o mesmo. Concentrou sua força em sovar a massa do pão.

- Imagino que o visconde não foi ao seu casamento.

- Não mesmo.

O olhar dela foi bem expressivo. Significava que Norbury não se daria ao trabalho de ir, mesmo se fosse convidado. E que, naturalmente, a noiva de Kyle não ia querer
o ex-amante no próprio casamento.

- Fez muito bem, Sr. Bradwell. A ajuda que o senhor deu para aquela pobre mulher e o que agora faz por ela. É o que todos dizem.

- Infelizmente, não pude bater nele como fiz naquela vez, embora quisesse.

Esperou a reação dela. Na época da surra, Lizzy trabalhava para Cottington. Numa casa assim, os criados costumavam saber de tudo.

Ela pareceu surpresa por ele tocar no assunto. Olhou bem para ele, depois se voltou de novo para a massa de pão. Sovou com força.

A reação dela era plausível com um assunto que fosse tão escandaloso que seus detalhes tivessem de ficar em segredo.

Um simples mau comportamento de alguns jovens ricos, a história que ele conhecia, não seria motivo para isso.

 

- Continuo achando que as casas não têm quartos de criados em quantidade suficiente - reclamou Norbury após examinar os projetos por dez minutos.

Até então, as coisas iam bem. Recebera Kyle com indiferença e os dois se ocuparam dos projetos. Norbury parecia se esforçar para ser cavalheiro, mas Kyle via que
o visconde tentava ocultar um lado bem menos civilizado.

- As casas serão compradas por famílias com renda de milhares de libras por ano. Cinco quartos de criados, mais os da estrebaria para o treinador e o cocheiro deveriam
ser mais que suficientes.

- Milhares de libras. É incrível como eles conseguem.

Era uma observação idiota feita por um idiota, com a intenção de enfatizar como ele estava acima de preocupações frívolas como milhares de libras a mais ou a menos.
Norbury inclinou mais um pouco a cabeça loura sobre os projetos.

- Meu advogado disse que papai pretende assinar os papéis do terreno - comentou Norbury, e seu lábio inferior tremeu. - Ele não está participando de nada e não viu
os projetos, mas decidiu de qualquer forma.

Ótimo, iremos em frente, mas quem decide é o velho, não eu. Vou lucrar bastante com o seu trabalho, mas não que eu tenha escolhido isso.

Para Kyle, era indiferente como as coisas se passariam. Agora lamentava que estivesse nesse projeto, que o obrigava a aceitar a presença de Norbury. Se o conde não
se recuperasse para retomar as rédeas dos negócios, essa seria sua última parceria com a família dele.

- Procurarei o seu advogado amanhã - disse Kyle, juntando os projetos. - O trabalho nas estradas vai começar logo; a madeira e os demais suprimentos estão encomendados.
As primeiras casas estarão prontas em meados do verão, creio.

O dono da casa acompanhou os preparativos da saída do visitante. Deu-lhe um olhar gelado.

- Preciso lhe dar os parabéns.

- Obrigado.

- Não fui convidado.

- Foi um casamento no vilarejo, não em Londres.

- Li que Easterbrook compareceu.

A informação o incomodara. Kyle não sabia se pelo fato de aquele lorde especificamente ter sido convidado ou porque a presença dele fizera a ausência de Norbury
ficar irrelevante.

- A casa de campo dele fica perto e minha esposa é parente. Indireta, digo.

Norbury riu.

- Você fez bem em se casar com a minha puta, Kyle.

Kyle se obrigou a continuar encarando os projetos e mal controlou a vontade de estrangular Norbury. Eram palavras assim que motivavam duelos. Homens idiotas diziam
coisas idiotas por orgulho ou ressentimento. Coisas que outro homem não poderia permitir.

- Repita isso ou algo parecido, para mim ou para qualquer pessoa, e acabo com você. Se eu souber que sequer mencionou o comportamento vergonhoso que teve com ela,
só vou parar de bater quando você não conseguir se mexer por duas semanas.

Norbury ficou tão vermelho que Kyle esperou que ele desse o primeiro soco. Queria muito que desse.

- Bata, maldito. Pratico boxe duas vezes por semana.

- Isso só ajuda se o seu opositor obedecer às regras do esporte. Você vai lutar com um filho de mineiro e suas mãos suaves e inúteis não são nada contra mim.

Kyle se encaminhou para a porta. As palavras ríspidas de Norbury o acompanharam.

- Meu advogado disse que papai mandou um presente de casamento para você.

- Mandou mesmo. Foi muito generoso.

- Generoso, quanto? Quanto foi que ele mandou?

Norbury exalava agressividade, como se a quantia fosse a única coisa que interessasse.

Talvez fosse. Talvez Norbury nunca tivesse engolido que o pai ajudasse Kyle financeiramente. Já era ruim ter levado aquela surra. Pior ainda era que, por isso, o
pai ficasse sabendo do comportamento desonroso do filho naquele dia, por pior que fosse.

- Quanto? Uma quantia incrível, faltou só 50 para completar mil libras.

Kyle se satisfez ao ver a expressão de Norbury quando saiu. O homem era burro, mas não tanto. Em poucos minutos, concluiria que o presente de Cottington fora tirado
da herança destinada ao filho.

O que significa que Norbury tinha indiretamente devolvido o dinheiro do leilão e que o pai tinha sabido do que acontecera.

 

Nesse dia, Henrietta parecia diferente. Roselyn se sentou na sala de visitas em Grosvenor Square e tentou identificar por quê.

Era preciso considerar o efeito do chapéu. Um gorro com carapuça de renda, o que parecia bem mais comportado e elegante do que os chapéus que ela costumava usar.
Rose notou também que os cabelos louros tinham sido arrumados de outro jeito, combinando melhor com o rosto delicado.

Mas o que tinha mudado acima de tudo era sua expressão. Naquela tarde, seu jeito aéreo fazia com que parecesse jovem, em vez de desligada. E seu rosto não estava
contorcido de forma desdenhosa. Em vez disso, surpreendentemente, parecia quase o de uma jovem.

Conversaram sobre moda, sociedade e fizeram previsões para a próxima temporada. Alexia estava com elas. Além de mais três damas, todas de boa posição social e bom
humor. Alexia tinha levado Rose em visitas àquelas damas na semana anterior, provavelmente com a permissão delas. Elas agora, por sua vez, visitavam Henrietta no
dia que Alexia tinha sugerido, de forma que Rose pudesse comparecer também.

Tudo fazia parte de uma pequena campanha da qual, maravilha das maravilhas, Henrietta aceitara participar. Se ela não estivesse fazendo sua parte tão bem, não estivesse
sendo tão simpática e solícita, Rose iria pensar que Alexia tinha achado um jeito de subornar a tia do marido.

As visitas não se demoraram muito, mas ficaram o bastante. Podia ser que jamais visitassem a própria Rose para nada, mas, quando foram embora, tinham dado mais um
largo passo no sentido de aceitá-la.

Ia ser uma caminhada em círculos. A proveniência do marido causaria desvios de rota e interdições na pista. O escândalo no qual ela se envolvera criaria outros transtornos.
Mas a campanha de Alexia parecia estar dando resultado mais rápido do que se podia esperar.

- A reunião foi boa - confidenciou Henrietta, quando as três ficaram a sós de novo. - Creio que a Sra. Vaughn logo vai convidar você, Roselyn, para ir ao teatro.
Foi o que pareceu quando comentou sobre peças preferidas e tal. Como a tia dela se casou com um importador, ela não deve fazer muitas restrições a um comerciante
e pode até receber seu marido também.

Rose mordeu a língua. Henrietta não pretendia fazer uma provocação com aquele comentário. Ao mesmo tempo, não havia por que se ofender com a verdade.

Mas ela se ofendeu. Muito mais do que esperava. Kyle aceitava as coisas do jeito que eram, mas ela se irritava cada vez mais.

Não entendia como alguém que o conhecesse, que conversasse com ele, pudesse não aceitá-lo em sua sala de visitas. O trabalho dele também não era banal, juntava finanças,
arte e investimento. Quando os irmãos dela viraram banqueiros, algumas portas se fecharam para eles, mas a maioria, não.

Claro, tudo estava ligado ao berço. À família e aos antepassados. À família que Kyle jamais renegaria. Tinha-a avisado sobre isso.

Enquanto iam para a biblioteca, Alexia explicou a nova fase de sua campanha bélica, que incluía um jantar na casa dela. Aquelas três damas seriam convidadas, além
de duas amigas delas. Ela esperava que as convidadas que tinham acabado de sair convencessem as outras a comparecer. As cinco tinham maridos tidos como dóceis. Se
alguns deles deixassem suas esposas ficarem amigas de Rose, havia mais possibilidade de outros fazerem o mesmo.

Enquanto elas discutiam estratégias, Easterbrook entrou na biblioteca. Desculpou-se pela intromissão e ficou perto das estantes, examinando as lombadas. A presença
dele chamou a atenção de Henrietta, que se rendeu à curiosidade.

- Pretende ir ao exterior, Easterbrook? Porque está olhando memórias de viagem e títulos assim.

Ele tirou um livro da prateleira e deu uma olhada no texto.

- Não vou a lugar nenhum. Estou pesquisando para minha jovem prima.

- Ah, céus, vai mandar Caroline fazer uma viagem pelo continente? Eu desejei tanto isso... Ela precisa ir a Paris, claro, e...

- Não, não é uma viagem pelo continente - resmungou ele. - Busco informação sobre lugares bem específicos, para onde as jovens vão às vezes, mas parece que nenhum
desses autores tem nada de especial sobre eles.

Henrietta franziu o cenho.

- Que tipo de lugar?

Ele colocou o livro na prateleira e tirou outro.

- Conventos.

- Conventos!

Rose achou que Henrietta ia precisar de sais. Alexia a acalmou e se dirigiu ao marquês.

- Tenho certeza de que está brincando. Por favor, diga à sua tia que está querendo irritá-la de novo.

- Gostaria de estar. Na verdade, gostaria que Hayden assumisse seu papel de responsável por isso, em vez de me deixar mexendo em assuntos que não entendo e não me
interessam.

- Viram? Ele ainda não a perdoou por aquele flerte com Suttonly no verão passado - disse Henrietta, alto. - Ela obedeceu a sua ordem, Easterbrook. Há semanas que
não pronuncia o nome dele.

- Henrietta, o verão passado já foi bastante ruim, mas lastimo dizer que estou às voltas com mais um daqueles desastres causados pelas jovens. Prever um duelo por
ano já bastava, obrigado. Mas ter de me preparar para dois é uma provação para a minha paciência.

Ele franziu o cenho para os livros e tirou mais um da estante.

- Vou me livrar logo desse dever maçante. Vou duelar com o sujeito, deixá-lo bem ferido, mandar Caroline para um convento e ficar sossegado por alguns anos, pelo
menos.

Henrietta chorou. Easterbrook continuou a mexer calmamente nos livros. Alexia tentou ser diplomática.

- Sua tia e eu não sabemos de nenhum admirador de Caroline no momento. Acho que está enganado.

Ele fechou o livro com força.

- Não se trata exatamente de um admirador. Trata-se de um sedutor. Não estou enganado, Alexia. Lastimo dizer que estou convencido de que Caroline já perdeu sua virtude.

Isso causou um susto. Henrietta se espantou tanto que ficou ofegante e boquiaberta. Depois chorou copiosamente.

- E quem é esse homem? - exigiu saber Alexia.

- Aquele químico francês. Amigo de Bradwell.

Henrietta parou de chorar. Arregalou os olhos. Olhou de esguelha para ver a que distância dela estava o marquês.

- Garanto que está enganado - disse Alexia.

- Vi-o esta manhã mesmo. Ao nascer do dia, eu estava olhando o jardim pela janela e o vi. Saindo desta casa.

Ele deu uma olhada preocupada para a tia.

- Agora tenho de ser babá também, tia Henrietta? Até eu me impressiono por se descuidar tanto dela. Eu, que não dou a menor importância a essas coisas.

Henrietta ficou imóvel. Easterbrook estava atrás dela, então não viu o que Rose e Alexia viram. O rosto da jovem senhora ficava cada vez mais vermelho.

Rose olhou para Alexia exatamente quando Alexia se voltava para ela. As duas encararam Henrietta.

- Easterbrook, continuo achando que está enganado - insistiu Alexia. - Se foi ao nascer do dia, não era possível ver direito o que era, ou quem. Talvez um dos jardineiros
estivesse andando por ali.

- Não, Alexia. Era ele.

O marquês desistiu de olhar os livros.

- Infelizmente, esses livros não trazem indicação de conventos. Vou pedir ao advogado que faça umas pesquisas discretas. Um convento na França, por exemplo, para
tia Henrietta poder visitá-la uma vez por ano.

Quando Easterbrook seguiu em direção à porta, Alexia se pôs no caminho dele.

- Mesmo se estiver certo e fosse ele no jardim, isso não prova que esteve na casa. Nem que procurou Caroline. Afinal, podia estar atrás de uma das criadas.

Ele a olhou com carinho, como sempre.

- Vi-o flertando com ela no casamento da sua prima. Fui descuidado em não avisar, mas Henrietta estava com eles e concluí...

Todos congelaram enquanto a cena pairava no ar. Rose quase conseguiu ouvir o marquês recapitulando, pensando, rejeitando... reconsiderando.

Easterbrook virou e olhou para a tia. Moveu a cabeça, observando-a. Ela estremeceu enquanto ele examinava o chapéu novo, o penteado diferente e o viço recém-adquirido.

- Alexia, seu valoroso bom senso me poupa de cumprir obrigações desagradáveis. Eu talvez tenha sido um pouco precipitado ao pensar o pior de Caroline. Talvez não
fosse monsieur Lacroix que estivesse no jardim.

Pediu licença. Da porta, antes de sair, ele voltou a falar.

- Contudo, caso tenha sido... Henrietta, por favor, fale com as criadas. Se uma delas está recebendo um homem, espero que os dois se divirtam. Mas é melhor que ele
saia quando ainda estiver escuro, de forma que não haja mais nenhum mal-entendido.

 

Rose atravessou a porta que ligava seu quarto de vestir aos aposentos de Kyle. Ele não iria procurá-la nessa noite. Suas regras haviam chegado. Encontrar uma maneira
delicada de dizer isso a ele exigira muita habilidade sua. Ele parecera achar graça das sutilezas que a esposa usara, mas a havia compreendido.

Ela ouviu a voz de Jordan e o som do marido despindo-se. Depois, ficou tudo em silêncio. Abriu a porta. Os quartos de vestir não eram opulentos e espaçosos: o quarto
dele ficava a poucos passos. A lamparina ainda não tinha se apagado e ela percebeu as silhuetas do toucador, as escovas e o espelho dele.

Prosseguiu, deu uma olhada. As cortinas do dossel não tinham sido fechadas. Ele estava deitado, com o camisolão aberto mostrando o peito forte.

Ficou olhando. Não o via despido desde a noite de núpcias. Ela sempre apagava as velas e lamparinas, mesmo quando o procurava em Oxfordshire. A escuridão fazia a
cama misteriosa e sobrenatural e evitava um grande embaraço. Tornava mais fácil que ela se entregasse.

Ele estava com a cabeça apoiada nos braços dobrados. Parecia compenetrado, como se tivesse percebido algo no teto que exigisse sua atenção. Mas estava tão imóvel
que talvez nem estivesse acordado.

- Kyle, está dormindo? - sussurrou ela.

Ele se sentou na cama. Olhou para a esposa e observou sua camisola e o penhoar, que não eram nem novos nem tão bonitos.

- Acordei você? - insistiu ela.

- Não. Estava pensando em alguns problemas que tive hoje.

- Sobre terras, associações de mineiros e coisas assim?

- É.

Ela entrou no quarto cautelosamente.

- Alexia combinou de algumas damas me visitarem. Bom, não a mim, mas a Henrietta. Porém elas sabiam que eu estaria junto e foram mesmo assim.

- Venha aqui me contar isso.

Ela subiu na cama e contou sua pequena vitória.

Ele pareceu muito interessado.

- Lady Alexia age rápido.

- Ela ainda acredita que Irene tem chance de ser apresentada nessa temporada, acho.

Irene não tinha saído da casa de Alexia. Todos achavam que sua única esperança era que a prima a apresentasse à sociedade.

- Quando ela der esse jantar, você deve usar um vestido novo - disse ele. - Vou mandá-la para lá tão bem-vestida que será a mulher mais elegante da mesa.

- Talvez você me acompanhe, em vez de apenas me mandar ao jantar.

- Pouco provável. Lady Alexia é esperta demais para lutar em duas frentes ao mesmo tempo.

- Então não sei se vou querer ir.

A expressão no rosto dele mudou um pouco, o suficiente para ficar indecifrável.

- Quer saber de uma fofoca? - perguntou ela. - É sobre alguém que você conhece.

- Todo mundo quer saber de uma fofoca, principalmente sobre alguém que se conhece.

- É fofoca das boas. Tudo indica que seu amigo, o Sr. Lacroix, está tendo um caso com... Henrietta!

- Quais são as provas?

- Ninguém menos que Easterbrook o viu saindo da casa. Você acredita?

- Que indiscrição de Jean Pierre. Devo avisá-lo?

- Desde que não seduza Caroline, acho que Easterbrook não se importa se ele ficar com todas as mulheres da casa. Quanto a Henrietta, o marquês pareceu encantado
e feliz por poder cutucá-la sobre isso nos próximos anos.

Eles riram. Foi bem agradável ficar ali de noite, conversando sobre fatos do cotidiano. Mas quando terminou a história, Rose sentiu que o marido estava se distraindo
outra vez. Os olhos dele ficaram insondáveis como quando ela havia chegado ao quarto.

- Bom, boa noite - disse ela, saindo da cama.

Ele pegou sua mão.

- Fique.

Talvez as palavras brandas que ela usara tivessem sido vagas demais.

- Eu... quero dizer, hoje eu... estou naquela semana em que...

- Fique, mesmo assim.

Rose sentiu algo diferente no coração quando, sem jeito, entrou embaixo dos lençóis. Kyle apagou a lamparina e a escuridão envolveu a casta intimidade dos dois.
Ele a abraçou.

Ela não dormiu logo. Ficou preocupada com a novidade daquele tipo diferente de afeto.

- Preciso ir ao norte outra vez - disse ele, e sua voz não a assustou, tão calma veio na noite. - Daqui a duas semanas, talvez. Não vou ficar mais de uma semana.

- Posso ir junto? Você disse que iríamos na primavera, mas, se vai agora, eu também gostaria de ir.

- A viagem vai ser no frio. E você tem aquele jantar.

- Alexia pode marcá-lo de acordo com a viagem. E não tenho medo de um pouco de frio.

Duas semanas antes, ela jamais pediria para ir. Mesmo alguns dias antes, ela poderia ter apenas deixado a informação passar. Mas agora queria muito ver como fora
a vida dele. O abraço nessa noite a emocionou, mas também deixou bem claro que, mesmo com tanto prazer, havia um vazio naquele casamento que ela não conseguia explicar.

Não sabia se um dia esse vazio seria preenchido. Talvez Kyle fosse sempre um pouco estranho. Talvez ele preferisse assim. Ela não tinha ao menos certeza se gostaria
do que seria preenchido, se isso ocorresse. Só sabia que o vazio parecia grande nesta noite, talvez porque uma nova emoção o destacasse. Sua alma quase doía por
desejar algo tão fora de alcance.

- Veremos - disse ele. - Amanhã vou para Kent e passarei uns dias lá. Você não pode ir, já que iniciarei algumas obras e só haverá operários, muita lama de inverno
e eu...

Algumas obras. Em Kent. Devia ter sido o trabalho que fora tratar com Norbury no dia do leilão.

Súbito, entendeu por que Kyle estava tão pensativo na hora em que ela entrou no quarto. Devia ter encontrado Norbury. Talvez naquele mesmo dia.

Ele jamais a deixaria saber se Norbury os insultara. Jamais contaria se pensava naquele caso. Mas Rose tinha certeza que sim. Talvez até naquele instante, enquanto
os pensamentos vagavam pela noite.

Ela podia saber mais sobre ele e começar a preencher aquele vazio. Eles podiam ter muitas noites como essa, em que conversavam como amigos e não como amantes.

Entretanto, não importava o que acontecesse, não importava quanto tempo ficassem casados, Norbury seria uma sombra entre eles, afetando tudo, mesmo as coisas boas,
ainda que nenhum dos dois jamais pronunciasse o nome dele.

Esse pensamento quase estragou aquela noite agradável. Norbury tinha entrado na cabeça dela. E quase dava para ouvi-lo falando na de Kyle. Sua influência malévola
ficou tão opressora que ela pensou em sair da cama.

Kyle virou de lado, dormindo. O braço ficou casualmente sobre ela. A mão estava sobre o seio, num gesto ao mesmo tempo confortador e possessivo. Ficou assim a noite
toda, impedindo-a de escapar.

 

CAPÍTULO 12

Kyle estava em Kent fazia dois dias quando Roselyn recebeu a carta. Tinha sido reenviada de Watlington. Reconheceu a letra na hora: Timothy tinha escrito outra vez,
embora a carta estivesse assinada como Sr. Goddard.

Dessa vez, não escrevera de Dijon, mas de uma cidade italiana chamada Prato.

 


Finalmente atravessei os Alpes. Estou morando aqui por ser menos dispendioso do que Florença. E também por haver menos possibilidade de eu ser reconhecido. A viagem
foi exaustiva e o clima, horrível. Tive medo de morrer. Passei mal quase todo o tempo. Agora vivo entre estranhos cuja língua ignoro e sofro de uma tristeza grande
demais para aguentar.

Pretendo ficar aqui até que venha ao meu encontro. Por favor, escreva logo, dizendo que vem. Só verei o sol na minha janela quando você chegar. Conte-me seus planos,
de forma que eu tenha algo por que esperar.

Rose, meu bolso se ressentiu da longa estada em Dijon e dos honorários dos médicos, que não serviram para nada, mas foram caros. Quero que venda a casa e o terreno
em Oxfordshire e traga o dinheiro. Esta carta a autoriza a fazer isso em meu nome. Leve-a a Yardley, nosso velho advogado. Ele reconhecerá minha letra e lhe dirá
o que fazer. Eu o autorizo a ser meu procurador na venda caso, por ser mulher, você não seja aceita. Se houver mais exigências, escreva-me imediatamente, de maneira
que possamos efetuar a venda o mais rápido possível.

Sei que ainda faltam meses, mas conto os dias na esperança de que ainda seja minha adorável irmã de sempre, um coração bondoso que me deu força por quase a vida
inteira. Prometo que tudo vai melhorar quando estivermos juntos outra vez.


Timothy

Ele ainda parecia perdido e só. A menção a uma doença não ajudava a melhorar as coisas. Rose não sabia se deveria torcer para que ele estivesse se referindo a passar
mal por excesso de bebida, já que esse era o grande fraco do irmão, ou por outro motivo.

E agora ela não podia ir encontrá-lo, por mais doente que ficasse. Ele jamais saberia que, por um curto espaço de tempo, quando passara algumas horas de grande felicidade
deitada numa colina, ela cogitara fazer isso.

Ela também não podia negar a verdade por trás da escolha que fizera. Ao aceitar o pedido de Kyle, deixara de lado as necessidades do irmão para tentar salvaguardar
a própria vida e a de Irene na Inglaterra - o que talvez se tornasse uma necessidade desesperada. Se não agora, um dia.

Ele afirmara estar ficando sem dinheiro. Isso despertara um pouco de raiva em Rose. Ela havia sobrevivido com quase nada esses meses todos. Ele deveria ser mais
controlado, em vez de gastar todo o dinheiro que roubara.

Deu um suspiro, tão fundo que o corpo todo estremeceu. Timothy estava sendo apenas Timothy. Sem a influência dela, continuaria sendo a pior versão de si mesmo. Ela
não podia salvá-lo. Não agora, depois de Kyle ter dito tão claramente que ela jamais iria ao encontro do irmão. Mas não podia abandoná-lo, como Kyle esperava.

Chamou a criada e trocou o vestido matinal por um conjunto para usar em carruagem. Tinha de encontrar Alexia na modista e encomendar alguns trajes novos. Mas antes
iria ao centro financeiro da cidade. Precisava saber se ainda podia ajudar o irmão.

 

Kyle observou o engenheiro perfurar a terra dura para conferir novamente o terreno antes de iniciar as fundações.

A uns 200 metros, outro homem marcava as árvores que seriam derrubadas e as que seriam poupadas quando a nova estrada fosse construída. Kyle imaginou a casa que
dali a pouco se ergueria ao lado daquele matagal.

Se tudo saísse conforme planejado, dentro de dois anos haveria famílias morando naqueles campos e carruagens passando por novas estradas. A propriedade de Cottington
seria valorizada e seus parceiros veriam os lucros.

Incluindo ele. Kyle ainda estava andando na corda bamba. Era bom e experiente em se equilibrar. Não chegava a perder o sono por causa dos riscos. Mas, como qualquer
homem, ele preferia ter os pés firmes no lado com dinheiro daquela corda.

O operário que marcava as árvores o chamou e fez um gesto apontando para o sul. Kyle olhou para a estrada naquela direção. Atrás da carroça que trazia as ferramentas
a serem usadas nesse dia, vinha uma carruagem.

Ele reconheceu o veículo. Foi até a estrada e chegou ao mesmo tempo que Norbury saltava.

- Espero que não tenha vindo da cidade só para ver o andamento da obra - disse Kyle. - Ainda não há muito o que conferir.

Sob a aba do chapéu de copa alta, Norbury olhou a elevação de terra.

- Estou oferecendo uma recepção na minha mansão. Resolvi vir aqui antes que os hóspedes chegassem.

Norbury olhou atentamente para Kyle, querendo avaliar sua reação. Kyle o deixou olhar à vontade. Não precisava que Norbury o lembrasse da última festa que tinha
dado. A imagem da humilhação de Rose vinha sempre à cabeça, sem que ninguém precisasse ajudar.


E ela chegou trazendo fúria e uma urgência de espancar o visconde. Kyle tinha controlado essa vontade na última vez em que se encontraram. Agora ela voltava e o
deixava tenso.

- Espero que essa festa seja mais discreta do que a última. Se espalharem o boato de que fazem orgias aqui perto, essas casas jamais serão compradas.

- Aposto que serão compradas mais rápido.

Norbury fez um gesto para que Kyle o acompanhasse.

- Vim falar de assuntos de interesse mútuo, além dessas casas. Recebi um recado de Kirtonlow Hall. Meu pai sofreu uma leve apoplexia. O médico disse que ele não
vai durar muito.

- Ele é mais forte do que a maioria. Pode durar mais do que os médicos imaginam.

Mais do que você espera. O filho era tão diferente do pai que nunca houvera muito afeto entre eles. De diversas maneiras, o conde deixara claro a seu herdeiro quanto
ele o decepcionava.

Não era apenas a capacidade intelectual de Cottington que não passara despercebida a Norbury. Algo fundamental faltava no filho, além de inteligência. Ele parecia
não ter a empatia natural que um ser humano sente pelos demais. Ou ter uma empatia deformada. Norbury não seguia os princípios morais que costumam guiar as pessoas
em assuntos grandiosos ou corriqueiros.

- Podemos desejar que ele viva para sempre, mas ninguém consegue - falou Norbury com uma sobriedade dramática. - Quanto ao outro assunto que eu queria tratar com
você, os vivos podem influenciar. Andei pensando no seu casamento.

Kyle apertou o passo, fazendo com que o outro o seguisse na estrada. Olhou para trás, para saber a distância que estavam dos operários. Será que veriam ou ouviriam
se ele quebrasse o queixo de Norbury com um soco?

- Pode parar de olhar para mim como um boxeador se preparando para uma luta - disse Norbury. - Sua decisão de se casar com uma mulher dessas é loucura. Estou mais
interessado no irmão dela e em como esse casamento muda nossos planos em relação a ele. Depois de me recuperar do choque de você se juntar a ela para sempre, vi
uma luz na escuridão.

- A única luz que existe é a da minha felicidade na escolha da minha esposa. Timothy Longworth foi embora. Nem ela nem eu temos ligações com ele.

- Ele não escreve para ela? É bem provável que sim.

- Não tem por quê.

- É irmã dele. Você precisa ver as cartas que ela recebe, assinada com o nome verdadeiro ou de Goddard. Veja qualquer carta enviada do continente, principalmente
da Itália.

- Não.

- Vai economizar muito tempo. Se ele escrever para ela, teremos...

- Não. Estou fora disso. Não quero participar e não vou ajudá-lo.

Um aperto no braço. Era a ordem de parar. Kyle olhou para Norbury, cujo rosto tinha perdido qualquer traço de gentileza.

- Céus, com que rapidez o cavaleiro puro foi seduzido e maculado. Esqueceu rápido seus lindos ideais sobre justiça, Kyle.

- Não vou espionar minha esposa.

- Não espione. Faça com que ela lhe conte.

- Ela não vai nos dar de bandeja a cabeça do irmão na nossa forca. Nem eu vou pedir.

- Porcaria nenhuma! Não há desonra nisso. Maldição, assim você vai até protegê-la.

A explosão de Norbury despertara seu pensamento. Seus olhos ficaram dissimulados.

- Na verdade, se não fizer isso, vai colocá-la em risco - concluiu.

Norbury podia ter um raciocínio lento, mas funcionava quando necessário. Kyle viu novas ideias surgindo, transformando seu rosto numa máscara de presunção.

- Ela decerto foi cúmplice desde o começo - disse Norbury.

- Claro que não.

- Maldição, eu devia ter percebido antes. Isso explica o reembolso feito por Rothwell. Não estava poupando um homem que já tinha escapado de nós, mas a cúmplice
que ficara para trás. Ela pode até estar com quase todo o dinheiro aqui, na Inglaterra. Aquela humildade era um disfarce para afastar suspeitas. Maldição, Longworth
nem era tão inteligente. Deve ter sido tudo ideia dela...

- Está falando bobagem.

- Até mesmo o que teve comigo. Pensei que eu a tivesse seduzido, mas vai ver ela quisesse ficar perto de mim para saber se as vítimas estavam prestes a descobri-la.
Seria irônico, não? Se ela estivesse o tempo todo...

- Continue insinuando isso e mato você.

- Está tão encantado pela beleza dela que é capaz de arriscar tudo? Duvido. Daqui a alguns meses não estará mais tão embevecido com seu grande prêmio. E verá o que
há por baixo da bela aparência. O irmão é ladrão e ela mesma mostrou ter caráter fraco e imoral.

Kyle agarrou Norbury pelo colarinho. Puxou-o e o levantou do chão.

- Eu avisei.

Norbury arregalou os olhos e inclinou a cabeça para trás.

- Ouse dar um soco e eu não vou me conter. Acho que um juiz gostaria de ouvir a questão e refletiria bastante antes de achar que estou errado. Meu ponto de vista
pode dar um bom processo. Com um pouco de esforço, talvez até se encontrem algumas provas.

A ameaça era óbvia. Justiça corrupta ainda era pior do que falta de justiça e um lorde tinha muitas formas de conseguir a primeira.

Kyle mal conteve a própria fúria. Soltou o colarinho de Norbury, que se ajeitou, alisando a roupa e ajustando a gravata. Endireitou-se e olhou com o deleite de um
homem que, de súbito, se descobria com um ás na mão.

- Descubra onde está o bastardo, Kyle - ordenou Norbury, já andando em direção à carruagem. - Com toda a honra que você acha que tem, não vai lhe fazer falta sacrificar
um pouco dela.

 

Assim que Kyle voltou de Kent, Rose percebeu que ele tinha encontrado Norbury novamente. Ele carregava uma nuvem pesada para dentro de casa. Sua expressão estava
diferente, mais dura que de hábito.

Naquela noite, quando se sentou para jantar, tratou-a como sempre. Até a ouviu pacientemente contar como foram os dias em que estiveram longe um do outro. Mas a
presença de Norbury na cabeça de Kyle era tão evidente que o outro bem podia estar à mesa com eles.

Quando o criado foi dispensado, ela se preparou. Era melhor desanuviar o ambiente e saber o que o estava preocupando. Isso não queria dizer que ela ficasse feliz
com uma possível discussão.

- Rose, quando ficou em Oxfordshire, recebeu alguma carta de seu irmão? Refiro-me a alguma além daquela da primeira vez em que fui visitá-la.

Ela não esperava essa pergunta, ou assunto. Não fosse pela intensidade com que o marido fizera a pergunta, ela podia ter contado tudo. Mas se conteve, tentando imaginar
por que ele perguntava e se a resposta tinha importância.

- Creio que ele escreveu pelo menos mais uma vez - acrescentou Kyle.

- Sim. Uma.

Era verdade, mas não toda ela. Rose havia recebido só mais uma carta quando estava em Oxfordshire.

- Então eu tinha razão: quando você falou em ir embora para sempre, era com ele.

Ela assentiu.

O fato de ter razão não alterou o humor dele.

- Não quero que tenha mais qualquer contato com ele, Rose. Se ele escrever de novo, queime as cartas sem ler. Não as guarde. Nem sequer veja de que cidade ele escreveu.

Ela ficou um bom tempo em estado de choque, sem conseguir pensar. Então o choque foi substituído pela raiva.

- Antes de nos casarmos, você disse que eu jamais poderia encontrá-lo, nem para visitas. Não disse que não podia escrever ou receber cartas dele.

- Eu disse. Mas, caso tenha entendido mal, estou repetindo agora.

- Eu disse que não o consideraria morto, mas agora você exige que eu aja como se estivesse.

- É.

O olhar dele era de ordem, mais do que a voz.

Ela se levantou e saiu da sala de jantar. Buscou um pouco de privacidade na biblioteca. Para sua surpresa, ele foi atrás.

- É melhor me deixar sozinha para aceitar o que você exige em relação a meu irmão - avisou.

- Preciso saber se aceita mesmo. Quero a sua palavra de honra.

- Minha palavra de honra? E o que me diz da sua? Se a minha puder mudar com a mesma rapidez, eu a dou com prazer. Naquele dia, você me convenceu de que tinha retirado
essa exigência.

Ela pensou que a culpa poderia amaciá-lo. Só que aumentou a raiva.

- Tenho um motivo para exigir isso. Gostaria que você acreditasse em mim, mas, se não acreditar, isso não muda nada. Você sabe como é o seu irmão. Você mesma disse
que ele é um perigo para você. Não pode ter contato com ele.

- Ele é meu irmão.

- Ele é um ladrão covarde. Um criminoso.

A firmeza de Kyle a surpreendeu. Ela o olhou atônita, surpreendida pela força que emanava dele, vendo-a e a sentindo sem controle.

Ele se acalmou, mas a tensão ficou no ar.

- Rose, você entende o que ele fez? Quantas pessoas ele roubou?

- Lorde Hayden...

- Lorde Hayden impediu que as vítimas ficassem na miséria total. Quanto você acha que ele pagou?

Ela se sentiu como uma criança na escola tentando adivinhar a resposta de uma conta.

- Muito dinheiro. No mínimo 20 mil.

A raiva chegou a dar expressão à risada curta e baixa que ele soltou.

- Essa quantia não faria a menor diferença para Rothwell. Pense na casa onde sua prima ainda mora. Ela lhe mostrou alguma joia nova? Ou trajes novos? Pense neles
e nos tecidos e enfeites que ela usa.

Rose sentiu o estômago embrulhar. Nunca tinha calculado a quantia, em parte porque sabia o suficiente para desconfiar que não gostaria da soma total.

- Quanto? - perguntou ela, num sussurro.

- Ao fim e ao cabo, no mínimo 100 mil libras. Talvez muito mais.

Ela arquejou. Quanto dinheiro!

Kyle se aproximou. Os olhos dele tinham um pequeno brilho solidário em meio a todos os de raiva.

- Seu irmão não sabia que Rothwell iria reembolsar nem uma libra. Presumiu que cada vítima simplesmente amargaria o próprio prejuízo. Assim como os clientes, quando
o banco faliu. Ele não roubou só dos ricos, mas de velhinhas, órfãos indefesos e pessoas que dependiam dessas reservas para viver.

- Tenho certeza de que ele não entendeu bem... Ele não podia... de propósito...

- Claro que ele entendeu. Tudo. Com toda a certeza, fez de propósito.

De novo, Kyle controlou a raiva. Foi visível seu esforço de se recompor.

- É tão estranho assim que eu queira que corte relações com um homem tão canalha?

Ela já não conseguia enxergar Kyle direito. Virou-se e tentou conter os soluços. Meu Deus, 100 mil libras! E Alexia e Hayden...

Enxugou os olhos e tomou fôlego.

- Você disse que conhece pessoas que perderam dinheiro. Quem são elas?

Por um instante, Rose pensou que ele não fosse responder.

- Meus tios.

Ela teve outro choque. Não eram amigos, mas pessoas da família.

- Porém foram ressarcidos, não?

- Sim, foram. É assim que você justifica, quando pensa no seu irmão? Pelo menos as vítimas foram ressarcidas. Pelo menos apenas uma vítima pagou caro em vez de dúzias
perderem tudo? É assim que você o desculpa?

- Eu não o desculpo.

- Acho que desculpa. Ele é seu irmão e você busca motivos para diminuir a culpa dele. Mas ele não é meu irmão, Rose.

Não, e Kyle não desculparia nada. Não se sentia nem um pouco solidário, nem tinha intenção de salvá-lo. Se Tim fosse preso, Kyle acharia justo que fosse para a forca.

Ela não tinha palavras para argumentar. Não tinha nada para contrapor, a não ser o amor por um irmão que tinha sido uma pessoa bem melhor quando criança do que adulto.

Ela pensava que Kyle fosse ao menos entender, se não aprovasse. Mas ele estava implacável, irredutível e disposto a fazer com que ela condenasse Tim como todo mundo.

- Você vai cortar qualquer contato com ele - repetiu. - Se tem cartas, queime-as. Se receber mais uma, destrua-a imediatamente.

Ele saiu da biblioteca. Não tinha pedido que ela prometesse, tinha ordenado. E ela deveria obedecer.

 

Naquela noite, Rose pensou em trancar a porta de seu quarto de vestir.

Nunca tinha feito isso. Não se importava que ele a procurasse todas as noites. Era a esposa, ele tinha esse direito e nunca saíra do quarto sem que ela tivesse alcançado
toda a liberdade que o prazer podia proporcionar.

Essa noite era diferente. Não tinha certeza se reagiria ao toque dele. Após a discussão, um silêncio duro como pedra caíra sobre a casa. E ainda afetava o ambiente
e ela.

Nessa noite, uma pequena parte de Kyle que ela ainda desconhecia se revelara. Ficara espantada com a força de vontade dele. Já a havia percebido antes, mas vê-la
dirigida a ela a assustara um pouco.

Devia ter suposto quanto ele era seguro. Em relação a si mesmo e às decisões que tomava. Sem isso, ele não teria sobrevivido no caminho que percorrera. Poucos homens
saíam de um vilarejo de mineiros de carvão para as salas de visitas de Londres em pouco mais de dez anos.

Poucos homens nascidos num vilarejo assim pediriam Roselyn Longworth em casamento, independentemente das condições em que estivessem suas finanças, sua reputação
ou o status de sua família.

Ela ficou na frente da porta, olhando a tranca. Não era a primeira vez que achava que, com esse homem, não devia agir guiando-se pelo capricho. Não que ele fosse
derrubar a porta se ela a trancasse. Acreditava que ele nem sequer se irritaria.

Em vez disso, imaginava que duas coisas poderiam ocorrer. Ou os dois teriam uma conversa igual à anterior, em que ele diria o que aceitava ou não que ela fizesse
ou haveria frieza e formalidade na cama na próxima vez que ele a procurasse, podendo se estender para as seguintes por bastante tempo. Talvez até para sempre.

Ela se afastou da porta e voltou para a cama. Apagou as lamparinas como fazia todas as noites e foi envolvida pela escuridão.

Talvez ele não viesse, embora já fizesse alguns dias que não se encontravam, por causa das regras dela e do tempo que ele passara em Kent. Sem dúvida, ele sentia
que a discussão ainda ecoava na casa. Tinha se retirado para o escritório e o trabalho, mas talvez as palavras ressoassem na cabeça dele como faziam na dela.

O coração dela ainda batia pesado ao lembrar como ele via a culpa de Tim. Cem mil libras. Ela às vezes pensava em reembolsar Alexia e Hayden, mas jamais poderia
ressarcir uma quantia dessas. Jamais. Por isso Alexia fora tão enfática ao desencorajá-la de encontrar Tim na Itália.

Só que agora ela estava casada com um homem que teria prazer em enforcar Tim com as próprias mãos. Não podia defender o irmão. Não podia dizer que Kyle estava errado.
Mas uma irmã não julga com base no certo e no errado, na justiça.

Cem mil libras. Como uma quantia dessas podia estar chegando ao fim? Tim dizia que precisava de mais dinheiro, e ela acreditava nele.

Um movimento sutil no quarto a tirou de seus pensamentos. Abriu os olhos na escuridão. Kyle estava ao lado da cama, não passava de uma silhueta negra no quarto sem
luz.

Tinha vindo, afinal. Isso a surpreendeu. E também a reação que teve: o coração bateu de alívio antes que ela conseguisse se controlar.

Kyle parecia estar à espera de algo ou decidindo alguma coisa. Ela não sabia o quê. Mexeu-se na cama e isso fez as cordas que sustentavam o colchão reclamarem.

Kyle também fez sons e movimentos quase imperceptíveis. Roupão caindo. Calor se aproximando. Braços se esticando e peles se tocando. Ela respirou e o sentiu inteiro
na cama, aquela presença total que transformava a noite.

Ele soltou o laço da camisola, fazendo-a escorregar pelos ombros e o corpo de Rose.

- Obrigado por não trancar a porta.

Será que ele a ouvira discutindo consigo mesma? Como era típico dele tocar no assunto, em vez de deixar que fosse uma escolha silenciosa. Rose esperava que não comentassem
também o motivo para ela pensar em trancar.

As carícias e o beijo mostraram que não comentaria.

- E se eu tivesse trancado?

Ela já nem estava muito interessada na resposta. As deliciosas palpitações da excitação a distraíam.

- Não sei. Ainda não havia decidido o que faria quando tentei abrir a porta.

Ela não pensou na resposta, apenas percebeu o perigo daquela incerteza. Mas o prazer já desviava sua atenção. Seduzia-a. Isso também era perigoso. O prazer embotava
os pensamentos e colocava tudo sob a melhor perspectiva.

Kyle se assegurava de que ela gostasse. Com suas carícias e beijos hábeis e firmes, levava-a à entrega que tinha se tornado tão habitual, tão atraente. O prazer
obrigava a uma espécie de abandono, concluiu ela. Abrir mão de ser racional e de si mesmo. Nunca chegara a compreender isso antes.

Dali a pouco, ela não entendia mais nada, nem mesmo a discussão. A névoa de sensações obscurecia tudo, menos o desejo de que ele lambesse seus seios e beijasse sua
barriga e tocasse a carne que ansiava por ser penetrada.

Kyle a tirou do colchão e a sentou em seu colo com as pernas afastadas. Puxou-a pelo quadril e a penetrou tão fundo que ela gemeu com a deliciosa sensação de completude.

Ele roçava os mamilos dela com as mãos e ela ganhava vida onde seus corpos se uniam. Diretamente. Maravilhosamente. A excitação desceu direto por seu corpo e se
instalou ao redor da completude que ele proporcionava.

- Venha aqui.

No escuro, Kyle a puxou para a frente até deixá-la apoiada sobre os braços. Seus seios pairavam acima dele. Ele então substituiu as mãos pela boca. O prazer aumentou
tanto que ela arfou. O jeito como a excitava era bom demais, urgente demais, irresistível demais para que ela conseguisse se controlar minimamente que fosse.

Ela se entregou à loucura, gritando e gemendo e se mexendo para senti-lo mais, melhor, mais firme. Ele a segurou pelas coxas e a penetrou com força para atingir
o ápice. Ela ficou completamente dominada.

Quando ele terminou, ela continuava excitada. Apesar das muitas ondas de prazer e entrega, o corpo dela ainda tinha fome. Ele percebeu. Colocou-a de costas e a acariciou
de novo, desta vez nas dobras da carne sensível e pulsante.

Ela quase desfaleceu. Agarrou-o com as unhas para fugir do prazer quase doloroso. Ouviu-o como naquela primeira noite, dizendo-lhe que se entregasse.

Dessa vez, foi o mais doce dos gozos. Primeiro a atingiu com força, depois se espalhou em turbilhões que deixaram seu corpo atônito. Ela se maravilhou nessa sensação
e prendeu o fôlego para que durasse para sempre.

Não durou, claro, ainda que seu corpo tenha demorado a entender isso.

Os acontecimentos anteriores da noite voltaram junto com a noção de espaço e tempo. Talvez tivessem saído dos pensamentos de Kyle também, banidos pelo delírio.

Ele não ficou por muito tempo depois que ela recobrou os sentidos. Naquele breve período tão saturado de paz, ela sentiu a sombra nele.

Desconfiou de que ele não esquecera aquela discussão, nem mesmo no momento do orgasmo. Tinha-a procurado nessa noite em parte por causa da briga. Havia deixado claro
que tais coisas jamais ficariam entre eles naquela que era a parte mais fundamental do casamento. Ele também se assegurara de que ela não se incomodaria com isso.

Esse frio cálculo não mudou a verdade de como ele a tratava. Se Kyle trouxera alguma raiva para aquela cama, não demonstrara. Como sempre, ele tivera consideração
e pedira pouco dela, além de que tivesse prazer.

Rose pensou uma coisa. Uma coisa incrível. Quem era ele e quem era ela, a forma como se encontraram, o escândalo e a redenção influenciavam tudo. Principalmente
o que acontecia naquela cama na melhor e na pior das noites.

 

CAPÍTULO 13

Kyle não havia mentido. No final de janeiro, a estrada para o norte era fria. Quando entraram no condado de Durham, o céu estava baixo, com nuvens de chuva.

Mais para o norte, a paisagem ficava montanhosa e cada vez mais deserta. Passaram por vilarejos pequenos e grandes. Rose identificou aqueles onde os mineiros viviam.
Os resíduos da mina, que os trabalhadores carregavam em seus corpos e roupas, deixavam marcas pelo caminho.

Quando se aproximaram de Teeslow, ela ficou nervosa. Kyle não tinha estimulado que ela fosse, mas concordara por insistência dela. Rose queria conhecer sua casa
e os tios, mas talvez não fosse bem-vinda.

- Você tem outros parentes além deles? - perguntou ela.

- Morreram. Meus tios tinham duas filhas mais jovens que eu. Morreram de cólera quando eu estava em Paris.

- Você sempre morou com eles?

A conversa parecia não incomodá-lo, mas tampouco lhe agradava.

- Meu pai morreu num acidente na mina, quando eu tinha 9 anos. Minha mãe tinha morrido alguns anos antes. O irmão dela ficou comigo.

Dali a pouco, a carruagem deles entrou no vilarejo. Rose olhou as poucas ruas e lojas, os amontoados de casas. Pó de carvão cobria as soleiras e batentes de algumas
casas, além do rosto e das roupas de algumas pessoas.

Kyle e Rose não pararam no vilarejo, continuaram em outra estrada que ia para o norte. No final dela, havia uma linda casa de pedra. Com dois andares, era parecida
com as casas menores encontradas no sul do país, geralmente destinadas a um administrador ou caseiro.

- Não esperava que fosse assim - disse ela.

- Pensou que seria uma casinha de cinco cômodos, no máximo? Eles moraram anos numa assim, lá no vilarejo. Há cinco anos, construí essa casa para eles.

Ele saltou da carruagem.

- Vou entrar, espere aqui. Eles não sabiam que eu vinha, e você vai ser uma surpresa total.

Foi até a porta, abriu-a e sumiu. Rose observou a casa. Viu o rosto de uma mulher, de relance, numa janela. Certamente, a tia olhava a surpresa total.

Ele estava sendo cuidadoso. Quando ela conhecesse seus parentes, os rostos disfarçariam o que pensavam, como ele também costumava fazer. Se não gostassem dela ou
achassem que não era uma boa esposa para o sobrinho, não demonstrariam isso num momento de surpresa.

Kyle voltou e estendeu a mão para ajudá-la a descer da carruagem. Uma mulher surgiu à porta, sorrindo para lhe dar boas-vindas.

- Rose, esta é minha tia, Prudence Miller.

Prudence tinha palavras amáveis e gestos afáveis.

- Ficamos muito contentes de você vir.

Esguia, de cabelos pretos e olhos brilhantes, Prudence tinha chegado à meia-idade com a beleza quase intacta. Rose a imaginou aos 20 ou 30 anos, de pele clara e
olhos escuros.

Como Prudence a recebeu sozinha, Rose concluiu que o tio de Kyle estivesse na mina. Assim que a levaram para a sala de visitas, viu que não era isso.

O tio Harold estava sentado perto da lareira. Tinha cabelos negros como os da esposa e era quase tão magro quanto ela. Apesar do rosto emaciado, Rose o achou parecido
com Kyle nos olhos azuis vívidos e nas feições de traços duros.

Ele a observou atentamente durante as apresentações. Rose notou sua palidez e o lençol que cobria suas pernas e o colo. Havia uma escarradeira numa mesa baixa perto
da perna direita dele. Tio Harold estava doente.

Os cumprimentos o fizeram tossir. Virou a cabeça e cuspiu na escarradeira.

- Você tem de fazer uma torta, Pru. Não podemos receber Kyle sem oferecer as tortas de que ele tanto gosta.

- Teremos uma no jantar - disse ela. - Esperem aqui um instante, vou ao andar de cima arejar um pouco o quarto.

Dava a entender que eles iam se hospedar lá. Kyle saiu e voltou com o cocheiro e as bagagens. A casa tinha um abrigo de carruagem e ele mandou o cocheiro para lá.

Carregou ele mesmo a bagagem para cima, seguindo a tia na escada. Rose sentou numa cadeira perto de Harold, que continuava a observá-la.

- É uma linda mulher, Sra. Bradwell. Agora entendo melhor este casamento.

- Espero que o senhor me trate por Rose.

Ele riu.

- Bom, vai ser uma experiência rara, tratar uma dama como a senhora com tal intimidade.

Tinha sido a imaginação dela ou havia um tom desaprovador na voz do tio? Considerando as circunstâncias do casamento, o "uma dama como a senhora" podia ter vários
sentidos.

Ela achava que o escândalo não podia ter chegado a Teeslow, mas talvez tivesse. Ou talvez Kyle houvesse explicado tudo em detalhes quando esteve lá, em dezembro.
Tenho a oportunidade de casar com uma dama porque ela está em tamanha ruína que nunca conseguirá algo melhor. A reputação dela vai me atingir, mas daqui a uma geração
ninguém vai lembrar muito disso.

Ela tentou manter uma conversa amistosa. Até o momento em que Harold começou a tossir. Ele estava com alguma doença muito grave. Rose se levantou para tentar ajudar,
sem saber como. Ele levantou a mão, impedindo-a. A tosse diminuiu e ele cuspiu de novo na escarradeira.

- Estou doente, como pode ver. É o mal dos mineiros. Achei que ainda teria uns bons dez anos de vida quando isso me atacou.

- Lamento.

Ele deu de ombros.

- Não se pode tirar o carvão sem levantar pó.

Kyle então voltou, poupando-a de encontrar o que dizer.

- Acho que vou roubá-la do senhor, tio. O quarto está pronto e Rose precisa descansar e se aquecer depois da viagem.

 

No quarto, Rose tirou o manto que usava em viagens e se aproximou da lareira.

- Seu tio está muito doente, não é?

- Está morrendo.

Ela assentiu, como se fosse óbvio.

- Ele disse que é o mal dos mineiros. Por causa do pó.

- Muitos adoecem dos pulmões. É de esperar, por isso levam uma vida tão controlada. Suas economias precisam ser suficientes para o sustento da família quando morrerem.

- É triste. Mas você fala sem emoção.

- A vida é assim, Rose. Essa doença é tão normal para esses homens como a gota é para os lordes. Um mineiro entra na mina sabendo disso, da mesma maneira que um
marinheiro embarca no navio sabendo que pode se afogar.

Kyle começou a desfazer sua mala. Nunca tinha levado Jordan lá, pelos mesmos motivos que ficara indeciso quanto a levar Rose. A casa não tinha nada de errado, mas
os tios não saberiam o que fazer tendo criados por perto.

Ele estava feliz de saber que Rose podia se virar sozinha. Do contrário, teria insistido em ficarem numa hospedaria, só que a mais próxima não seria conveniente.
Além disso, a tia ficaria ofendida se aquele casamento mudasse tão rapidamente os hábitos da família.

Mesmo assim...

- Você vai se sentir bem aqui? Se não for, pode me dizer.

Ela deu uma olhada no quarto, na cama sem dossel e nas cortinas de que tia Pru tinha tanto orgulho.

- É muito melhor que uma hospedaria. Vamos ficar juntos?

- Vamos.

Ela não pareceu se incomodar. Sentou na cama, depois se deitou.

- Acho que vou descansar um pouco. Nunca imaginei que viajar de carruagem vários dias pudesse ser tão cansativo.

 

Quando Roselyn acordou, Kyle tinha saído. Ela desceu a escada à procura dele.

Harold cochilava na cadeira ao lado da lareira acesa. Ela seguiu os sons que vinham da cozinha, nos fundos da casa.

Prudence estava lá trabalhando, sovando massa de torta. Sorriu e indicou o fogão com a cabeça.

- Aquele jarro em cima das pedras tem sidra e na mesa tem um copo, se quiser.

Rose se serviu e viu por uma janela dos fundos o pequeno pomar de árvores frutíferas novas, que estavam nuas agora, no frio do inverno. Havia um grande jardim no
lado oeste do pomar, à espera de ser cultivado na primavera.

- A casa é muito agradável - disse ela. - A vista de todas as janelas é linda.

- Kyle a construiu para nós. Quando voltou da França. Foi para Londres ganhar dinheiro, depois construiu. Harold não queria aceitar, claro, mas eu sabia que ele
estava adoecendo. Você vai ver que meu marido vai alfinetar Kyle por causa das roupas elegantes e das maneiras finas, mas se orgulha muito das conquistas do sobrinho.

Rose se aproximou para ver Prudence preparar a massa.

- Também faço tortas.

- É mesmo? Eu achava que as damas não sabiam cozinhar.

- A maioria não sabe. Mas eu gosto. Posso ajudar, se quiser.

Prudence separou algumas maçãs e uma tigela.

- Você pode descascar e depois cortar as maçãs aqui dentro.

Rose começou a trabalhar.

- Aonde Kyle foi?

- Foi andando até o vilarejo. Imagino que vá visitar o padre e depois tomar uma cerveja com os homens na taberna. Teria levado Harold na carruagem, mas ele estava
dormindo. Pode ser que amanhã leve. Harold sente falta da cerveja com os rapazes.

Rose imaginou Kyle andando quase um quilômetro até Teeslow. Voltando à antiga vida. Será que ele se livrara dos casacos antes de ir? Removera as camadas de gestos
educados e a mudança pela qual aceitara passar para ganhar dinheiro em Londres? Voltara a falar com o sotaque de Harold?

Nessa taverna, ele não seria o Kyle que ela conhecia. Seria o Kyle que continuava um estranho.

- Ele é amigo do padre?

Prudence riu.

- Bem, amigo não é bem a palavra. O conde encarregou o padre de ensinar Kyle a escrever e contar, além de latim e francês. Ele foi um professor exigente. De vez
em quando, esquentava o traseiro dos alunos com uma vara. Kyle não gostava das aulas, mas sabia que poderiam mudar a vida dele e continuou indo.

- O conde? Você quer dizer o conde de Cottington? Ele era o benfeitor de Kyle?

- Exatamente.

Ele nunca tinha dito. Pelo menos, não com todas as palavras. Ela concluíra que o benfeitor tinha sido... alguém. Não um conde. Não Cottington. Não o pai de Norbury.

Isso explicava muita coisa. A parceria naquelas novas construções. A presença de Kyle na festa de Norbury.

- Por que o conde fez isso?

Prudence estava atenta, raspando açúcar mascavo.

- O conde conheceu Kyle por acaso. Na mesma hora, viu que não era um menino comum, mas inteligente e corajoso. E que meu sobrinho seria desperdiçado na mina, embora
desde pequeno ele já pudesse fazer o trabalho de um homem. Por isso, o conde mandou o padre dar aulas a Kyle, de forma que, quando crescesse, pudesse ir a escolas
e tal.

Colocou o açúcar numa xícara.

- O conde é um homem bom e justo. Como poucos.

A pequena história trouxe dúvidas à cabeça de Rose. Tantas que não podia perguntar a Prudence sem parecer que a colocasse no banco dos réus.

Ela sabia pouco da vida do marido. Tinha muita curiosidade, mas nunca perguntara, apesar de ele ser a melhor fonte de informação.

Nunca perguntara, mas Kyle também nunca dissera. Não acreditava que fosse por vergonha do passado ou por não falar muito de si.

Os dois evitavam tudo aquilo porque falar no passado dele significava falar em Norbury.

A sombra daquele caso tinha influenciado até a maneira como os dois se conheciam.

 

- Vai dar problema. Não tem dúvida - assegurou Jon e bebeu um pouco de cerveja para enfatizar.

Kyle também bebeu, concordando. Jonathan era um mineiro quase da mesma idade que ele. Entraram na mina na mesma época, quando meninos, e carregaram os cestos de
carvão juntos, escada acima.

Agora Jon era um radical, o que o fazia imprudente ao falar com o amigo de roupas elegantes, que tinha morado lá fazia muito tempo.

Os demais mineiros foram simpáticos, até alegres. Brindaram quando Kyle entrou na taberna e o crivaram de perguntas sobre Londres. Mas não estavam dispostos a falar
sobre o que vinha acontecendo na própria cidade. Uma palavra errada poderia arruinar suas vidas.

- O comitê foi três vezes até os proprietários para se colocar contra a reabertura do túnel e explicar o perigo - disse Jon. - É mais barato perder alguns homens
do que fazer o que é preciso. Já vimos isso e veremos de novo.

Kyle, sem dúvida, tinha visto. Os ossos do pai ainda estavam naquele túnel fechado. Era perigoso demais retirar os mortos. A primeira tentativa servira apenas para
causar outro desmoronamento.

- Você falou com Cottington? - perguntou Kyle. - Ele vendeu quase toda a mina há bastante tempo, mas ainda tem certa influência. As terras ao redor ainda são dele.

- Dois dos nossos colegas tentaram. Ele está tão doente que não deixam ninguém chegar perto. Nem você pôde entrar na última vez em que esteve aqui. Quanto a falar
com o herdeiro... - a frase ficou no ar e a expressão de Jon mostrou a opinião que tinha sobre o tal herdeiro.

Ele olhou por cima do ombro. Passou a mão nos cachos louros, depois se inclinou sobre a mesa para confidenciar:

- Estamos nos organizando para irmos juntos. Não só aqui. Tivemos reuniões com grupos de outras cidades e com mineiros que têm outros patrões. Se ficarmos lado a
lado e falarmos juntos, seremos ouvidos.

- Cuidado, Jon.

- Cuidado, uma ova. A lei agora permite isso, finalmente. Temos o direito de nos unir. O que eles podem fazer? Me matar? Não podem matar todos nós. Não podem demitir
todos. Você mesmo falou isso há anos, antes de...

Jon desviou o olhar e bebeu mais cerveja.

Antes de ir embora e se tornar um deles.

- Quando se fica lado a lado, é preciso que todos estejam unidos. É preciso que todos aceitem passar fome. Haverá sempre os que vão abandonar o movimento.

- Se nós sairmos da mina, nenhum homem vai entrar. Vamos cuidar disso.

- Há sempre os que precisam trabalhar.

- Se as frentes se formarem na entrada das minas, isso não vai fazer diferença.

- Eles vão chamar a cavalaria. Vai ser um massacre.

Jon deu um soco na mesa.

- Pare de falar como minha mulher. Esqueceu o que acontece lá? Vá até aquela linda casa que você construiu para Harold e pegue as botas e as roupas dele. Venha comigo
amanhã, caso tenha esquecido por que o perigo não importa para gente como nós.

Aquele "gente como nós" não incluía Kyle. Ele era um deles, mas também não era mais. Ali era sua cidade natal, mas ele tinha ido tão longe, de tantas maneiras, que
cada vez que voltava, fazia menos parte daquele mundo.

Ele sentia isso, mas não conseguia evitar. Seus vínculos àquele lugar eram como tentar segurar areia: por mais forte que fechasse a mão, ela escorria entre os dedos.

Quanto tempo levaria até que poucos o reconhecessem quando andasse por aquelas estradas? Chegaria o dia em que ele entraria na taberna e as vozes se calariam e os
olhares examinariam o cavalheiro intruso.

- Vou a Kirtonlow enquanto estou aqui - disse ele. - Falarei com Cottington a respeito desse túnel.

O dar de ombros de Jon mostrou que não achava que isso fizesse alguma diferença. Pediu mais cerveja e deixou a conversa de lado junto com o copo vazio.

 

Kyle voltou para casa a tempo de jantar. Rose ajudou Prudence a servir. A conversa ia abarcando coisas corriqueiras, como costuma acontecer entre estranhos. Até
que Harold não aguentou. Queria saber as novidades que Kyle ouvira na taberna.

- Os rapazes não vêm muito aqui. É muito longe para andar depois de um dia de trabalho - explicou Harold.

Tia Pru sorriu de leve, como se pedisse desculpas pelo que parecia ingratidão pela casa que ganharam. Kyle não se importou. Harold sabia que não o visitariam muito,
ainda que ele continuasse morando no vilarejo. Um homem sem forças para ir à taberna era um homem isolado.

- Há boatos da reabertura do túnel - disse ele. - Ouvi isso em dezembro, mas parece que vai ocorrer mesmo.

- Aqueles idiotas. Idiotas gananciosos.

A notícia deixou Harold tão agitado que ele teve um ataque de tosse.

- Pelo menos pode ser que seu pai e os outros possam ter um enterro cristão - disse Pru, baixo.

Rose ergueu o olhar, surpresa. Seus olhos demonstraram algo que Kyle tinha visto várias vezes naquela noite. Curiosidade. Talvez reavaliação. Falar no túnel trouxera
à tona algo em que já vinha pensando.

Tia Pru trouxe uma de suas tortas. O cheiro bastou para melhorar o ânimo de todos. Pru era famosa por todos os tipos de tortas. Mesmo que precisasse usar frutas
que tinham passado todo o inverno estocadas num porão, ela conseguia que a receita ficasse deliciosa.

Kyle se sentiu menino outra vez, prevendo o gosto delicioso que só sentia em dias de pagamento, quando podiam comprar um pouco de açúcar.

Prudence cortou a torta em fatias.

- Rose me ajudou a fazer - contou.

- É mesmo?

- Nada como cozinhar junto para as mulheres se conhecerem - disse Harold. - Fico satisfeito que sua esposa goste de cozinhar, Kyle, meu rapaz. É bom saber que você
não vai passar fome lá em Londres.

- Rose faz ótimas tortas - disse ele.

Rose sorriu com o elogio. Kyle olhou a fatia de torta na frente dele.

- Então, tenho de agradecer a você por isso, querida?

- Não fiz muita coisa. Apenas cortei as maçãs.

Ele comeu. Não, ela não havia ajudado muito. A torta estava ótima.

Rose ficou observando-o comer cada fatia. Ela estava de novo com aquele olhar. Algo atiçara seu pensamento.

 

CAPÍTULO 14

Rose queria conversar com o marido. Ficou aborrecida quando ele não foi para o quarto com ela, deixando-a subir sozinha.

Assim que chegou ao quarto, Rose entendeu por que ele não a acompanhara. Dividindo aquele quarto, eles não teriam nenhuma privacidade. Os preparativos para dormir,
que costumavam ser feitos separadamente, teriam de acontecer na presença do outro.

Ela pensou nisso enquanto tirava o vestido e o espartilho, a camisa e o calção. Vestiu a camisola e sentou na cama para soltar os cabelos. Imaginou-o também ali,
despindo-se.

Olhou para a cama. Prudence e Harold dormiam há anos na mesma cama a noite inteira, todas as noites. Não se afastavam depois de cumprirem seus deveres conjugais.
Como seria viver totalmente ligada a outra pessoa?

Ela achou que devia ser muito bom, se houvesse amor. Horrível, se houvesse ódio. Invasivo, se houvesse indiferença.

Ouviu o som das botas dele na escada e concluiu que tinha mesmo se demorado por respeito a ela. Aquele casamento tinha muito disso.

Deixou a lamparina acesa e permaneceu onde estava. Não era uma cama muito grande. Aquela visita os forçaria a todo tipo de intimidade.

Kyle bateu na porta antes de entrar. Rose não acreditava que Harold alguma vez tivesse feito isso para ter certeza que Prudence o deixaria entrar.

Controlou o impulso de virar para o outro lado para que Kyle também tivesse sua privacidade. Mas ele não era uma flor delicada e ela queria conversar.

Ele tirou os casacos e os pendurou no guarda-roupa.

- Gostou da torta? - perguntou ela.

Ele sentou na cadeira e tirou as botas.

- Muito. Quase tão boa quanto as suas.

Ela ficou muda. O coração se encheu de uma sensação doce e pungente.

Na verdade, as tortas dela eram horríveis. Ninguém jamais a ensinou a cozinhar. Por necessidade, tentara quando era menina até conseguir algo que os irmãos achassem
mais ou menos comestível. O resultado não dava, de maneira alguma, para comparar com o toque mágico de Prudence.

Hoje ela havia assistido a Prudence fazer a torta e vira o que lhe faltara naqueles anos todos. E também sentira o gosto diferente.

Mas eis que Kyle mentia para ela não se sentir mal. Ele tinha a opção de não mencionar suas tortas. Como podia ter comido só um pedacinho da que ela fizera na manhã
seguinte ao casamento.

Naquele dia, cada garfada de torta devia ter entalado na garganta dele.

- Prudence disse que você hoje decerto visitaria o padre. E que ele ensinou as primeiras lições a você.

Não sabia se continuava a conversa. Eles podiam passar o restante da vida sem tocar nos assuntos que surgiram na cabeça dela nesse dia. Talvez fosse melhor assim.

Só que ela não ia dormir se não perguntasse. As respostas ajudariam não só no que sabia sobre o Kyle estranho, mas a entender o Kyle que conhecia.

- Ela disse que Cottington mandou o padre dar essas aulas. Que o conde era o seu benfeitor. Você nunca me disse isso.

Ele tirou a gravata.

- Você nunca perguntou.

- É verdade. Nunca perguntei. Estou perguntando agora. Quero saber.

- Quer saber pelas razões erradas.

O que aquilo queria dizer?

- Quero saber porque você é meu marido e esse fato extraordinário mudou a sua vida e o tornou o homem com quem me casei.

Ele se recostou na cadeira e olhou para ela.

- Certo. O conde reparou em mim quando eu tinha 12 anos. Achou que eu tinha talentos que deviam ser aprimorados. Combinou com o padre que me desse aulas, depois
pagou para um engenheiro em Durham ser meu professor durante dois anos. Conseguiu que eu fizesse provas para a Escola de Belas-Artes de Paris e me mandou para estudar
arquitetura lá. Quando voltei, ele me deu 100 libras e sua generosidade acabou aí, mas continuamos amigos e, às vezes, trabalhamos juntos.

E aquelas 100 libras tinham se transformado em mil, depois em mais e mais.

- É uma história surpreendente. Que seu progresso surpreende é fato, mas também achei a atitude do conde surpreendente. Por que fez tudo isso por você? Foi porque
seu pai morreu no túnel?

- Ele não sabia que meu pai era um dos mortos. O acidente tinha sido três anos antes.

Kyle desabotoou os punhos da camisa.

- Não sei por que fez isso. Acho que porque eu bati no filho dele. Talvez tenha admirado a minha audácia. Ou achou que o filho merecesse uma surra e gostou que outro
garoto tivesse coragem de dá-la por ele.

- Você bateu em Norbury? Que maravilha. Mas é lastimável que essa história esteja ligada a ele.

- Lastimável, mas inevitável, Rose. Não finja que, quando perguntou, não sabia aonde a história ia levar.

Ele tirou a camisa. Despejou água na bacia e começou a se lavar.

Ela não o via sem roupa desde a noite do casamento. Depois daquela noite, ele tinha sido apenas uma silhueta no escuro. Rose tinha sentido aqueles ombros e abraçado
aquela nudez, mas não tinha visto.

A luz fraca o favorecia, mas o vigor dele teria impressionado mesmo sob um sol de verão. Não havia um músculo flácido. Nenhuma gordura ameaçadora acumulada devido
a uma vida amena. Os músculos não pareciam volumosos, apenas proporcionais à altura dele. Como o rosto, o corpo parecia esculpido de maneira rústica e fazia supor
uma energia prestes a explodir. Ela ficou pensando se aquela tensão sumia em algum momento. Talvez, quando ele dormisse, ela ficasse escondida.

Rose prestou tanta atenção nele que quase se esqueceu da conversa. Kyle estranhou o silêncio e notou que estava sendo observado. Voltou a se lavar.

- Acho que eu sabia onde a história ia acabar - disse ela. - Sempre me surpreendi por você conhecer Norbury tão bem. Mas continuar a trabalhar com ele e a usar as
terras da família...

- Meu trabalho é com Cottington. Sempre foi. Norbury só tem participado agora porque o conde está muito doente.

A conversa se encaminhava para um terreno perigoso. Ela viu o espaço entre eles subitamente cheio de buracos e fendas. O tom da voz dele demonstrava que seria insensato
seguir adiante.

- Se o conde está tão doente, é provável que Norbury participe da sua vida por muito tempo - disse ela. - Pelo jeito, já participa. Está nas nossas vidas, Kyle.

Ele jogou a toalha no chão.

- Quando preciso falar com ele, eu falo. Depois, ele some da minha vista e da minha cabeça. Não faz parte de nossas vidas.

- Não? E como foi que nos conhecemos? Eu sinto a presença dele como se fosse um espectro. Acho que ele não sai da sua cabeça, no que me diz respeito. Acho que você
tenta esquecer o meu caso, mas...

- Sim, eu realmente me esforço para esquecer, maldição! É isso ou a vontade de matá-lo. Por causa da maneira vergonhosa como tratou você naquele jantar. Da maneira
como desconfio que tratou antes. Imagino-o com você e...

Ele abriu e fechou as mãos. Ficou tenso e, de um jeito sombrio, forçou-se a ficar calmo.

- Mas não penso nele quando estou com você. Não se reflete em você.

- Como não? Influi em tudo. Aquela noite afeta todas as coisas, até a maneira de você me tratar como esposa.

- Se você se refere à ordem que dei em relação ao seu irmão...

- Meu irmão? Céus, meu irmão é o problema nosso com o qual Norbury não tem nada a ver. Não gostei daquela nossa discussão, mas, pelo menos uma vez, falei com o homem
com quem me casei. Com ele por inteiro. O real. Não a invenção atenta e educada, que se veste tão bem, fala tão bem e me dá prazer tão corretamente e com tanto respeito.

Ela achou que jamais poderia vê-lo tão surpreso. Durou poucos segundos. Depois, ele fixou o olhar nela de tal forma que seu coração subiu para a garganta.

- Trato você com respeito, como uma dama, e você reclama?

- Não estou reclamando. Sei que tenho sorte de ter um amante tão atencioso. Só acho que você toma tanto cuidado por motivos que me entristecem.

Ele não gostou da crítica. Nenhum homem gostaria.

- Parece que você conhece a mim e aos meus motivos melhor do que eu, Rose.

Ela devia recuar, desculpar-se, ficar calada e grata. Mas, se fizesse isso, ele só ia se lembrar de uma ofensa que ela não tivera intenção de fazer.

- Talvez eu conheça mesmo, Kyle. Ou talvez o pouco que conheço de você me faça entender mal. Diga-me uma coisa: se não fosse aquela noite horrível, se não fosse
a minha situação, você precisaria ser tão cuidadosamente respeitoso? Se tivesse casado com uma moça ingênua daqui do vilarejo ou com uma mulher que nunca foi chamada
de puta, pensaria nisso o tempo todo? Se você não tivesse nascido neste vilarejo, mas numa grande mansão e me pedisse em casamento em outras circunstâncias, acharia
tão importante me tratar como uma dama?

Pelo menos a explosão dela não o deixou mais irritado. Ele ficou sério e contido, mas não furioso. O tempo passou tão lenta e silenciosamente que ela se arrependeu
do que disse.

- Desculpe. Eu não devia... - disse, puxando um fio solto do cobertor. - É que, quando estamos juntos, eu sinto... Você está quase sempre usando seus casacos de
corte impecável, Kyle, até na cama, quando está completamente nu.

Ela piorou uma situação que já estava ruim. Deitou-se e se cobriu bem para esconder os destroços do naufrágio que certamente fizera de seu casamento.

Desejou ser escritora ou poeta, para conseguir se explicar. Gostaria de ter palavras para expressar como a origem dela e a dele, a redenção dele e o escândalo dela,
o conhecimento que ele tinha de seu caso e a necessidade que ela tinha de não ser tratada como puta fizeram com que se erguessem aquelas barreiras de formalidade
entre os dois.

Era impossível explicar. Pouco provável que a situação mudasse. Ela devia aceitar. Devia se policiar para não ficar tentando alcançar algo que não sabia o que era,
daquele jeito doloroso e incessante. Ela devia...

- Os casacos não caem bem quando estou aqui, Rose. Apesar de todo o talento do alfaiate, ficam apertados demais quando venho para casa.

A voz baixa dele chegou a Rose através do silêncio tenso.

- Imagino que seja desconfortável.

- Muito.

- Ou os casacos estão apertados e você só nota quando vem para casa.

- Talvez você tenha razão.

Ela se sentou outra vez. Ele agora prestava atenção no fogo baixo da lareira e nos próprios pensamentos. Apoiava o braço na cornija enquanto olhava as chamas. Ficou
lindamente iluminado.

Ela se encantou com a cena. A luz da lareira parecia encher o quarto todo. O calor chegou até ela.

- Na verdade, desde que cheguei aqui, acho que minhas roupas também estão apertadas, Kyle. Talvez seja o ar do campo. Ou as tortas.

Ele sorriu.

- Então você devia parar de usá-las.

- Não estou acostumada a me livrar desses acessórios. Vivo apertada num espartilho desde o dia em que nasci.

Kyle a encarou. O coração dela perdeu o compasso, depois acelerou. Mesmo no dia em que a pedira em casamento, ele não demonstrara seu desejo com tanto despudor.

Ele se aproximou.

- Vou considerar isso um convite, Rose.

Abraçou-a com tanta força que a levantou da cama. Beijou-a de um jeito possessivo, firme, como quem não quer nada e quer tudo. Desta vez, não conteve seu desejo.
Puxou-a para um remoinho de força incontrolável.

Os beijos pediam, mandavam e a excitavam. Nem se quisesse, ela não podia fazer nada contra o domínio que ele tinha. Rose havia pedido isso e deixou que as próprias
reações selvagens se apossassem dela. Superaram o medo e a surpresa iniciais.

Beijos quentes. Fortes e profundos, mordendo e devorando. Braços de aço a impediram de reagir à fúria ardente em seu pescoço e na sua boca. Uma sequência de choques
maravilhosos atravessou seu corpo como flechas de fogo. Trouxe à tona o instinto primitivo dela até fazê-la gemer com o ataque glorioso e fazê-la perder qualquer
decoro.

Ele a apoiou de novo na beirada da cama. Acariciou suas pernas por baixo da camisola. Passou a mão no quadril e na bunda. Um toque furtivo e erótico no sexo. Os
dedos dele causaram um incrível formigamento.

Ela afastou uma perna para incentivá-lo a prosseguir naquela deliciosa tortura. Ele prosseguiu, mas interrompeu o longo beijo. Com a outra mão, ele levantou a camisola
dela até os ombros e a retirou por cima da cabeça. A camisola caiu ao chão, aos pés dele.

Ele olhou a nudez da esposa sério de tanto desejo. Suas carícias cobriam os seios enquanto a outra mão esfregava e provocava embaixo. A dupla sensação a deixou tremendo,
cambaleante, enfraquecida pelo prazer. Ela se inclinou para se apoiar nele até o rosto tocar suavemente em seu peito.

A mão de Kyle puxou sua nuca para mais perto até o rosto encostar por completo na pele lisa.

- Posso tirar a camisola, Rose, mas as outras peças que a escondem você mesma precisa tirar.

Ela compreendeu. O incentivo a encorajou. Espalmou as mãos no peito dele, olhando e sentindo ao mesmo tempo. O simples toque fez com que ele ficasse ainda mais excitado
e que uma nova rigidez o percorresse.

Ela o acariciou com mais ênfase. Olhou as mãos passando pelo peito dele, escorregando e percorrendo os sulcos dos músculos e costelas rígidos. Ele a olhou também
e as carícias e toques no corpo dela copiavam as delas. A respiração cálida dos dois se encontrou e se fundiu em beijos cada vez mais vorazes enquanto a excitação
os levava à loucura.

Ele tirou a mão das pernas dela e desabotoou os calções. Antes que ela pudesse se conter, deu um gemido insolente, afastou as mãos dele e assumiu os botões. As mãos
dele voltaram a afagá-la embaixo, fazendo-a quase desfalecer.

Ela lutava com a roupa dele, desajeitada, enquanto ele a tocava mais deliberadamente. Inclinou a cabeça para aproximá-la do pescoço e do ouvido da esposa. O dedo
dele apalpava com cuidado.

- É assim que você quer, Rose?

Ela não podia responder. Não conseguia falar. Mal conseguia se manter ereta. Agarrou a roupa dele sem ver, sem jeito, empurrando-a pernas abaixo às cegas, enquanto
os leves toques no seio e entre suas pernas a faziam gemer.

- Ou assim?

A mão dele contornou a perna e a tocou pela frente. Uma estocada longa, lenta e incrível fez um tremor de prazer percorrer seu corpo.

Rose sabia que ele tinha noção de quanto a deixava indefesa. Agarrou-se aos ombros dele e se segurou em busca de apoio.

Ele soltou uma das mãos dela, beijou-a e a guiou para a parte inferior do próprio corpo. Uma leve noção de racionalidade voltou, o bastante para ela entender o que
ele estava fazendo, o que queria. Perdida demais para se importar, ou se constranger, deixou que ele colocasse a mão dela no pênis.

Ele a tocou diabolicamente mais uma vez, o que deixou tudo mais fácil. O prazer passou pelo corpo dela como uma onda revolta, e em resposta ela acariciou como era
acariciada.

Qualquer decoro que ele ainda tivesse se rompeu. Beijou-a com nova selvageria. Ela sentiu a tensão em todo o corpo, no beijo dele e até na maneira como a tocava.
Intencional, agora. Disposto a fazê-la entregar-se por inteiro.

O orgulho perdeu qualquer sentido. Mesmo de joelhos, ela se movia ritmadamente, curvando-se aos beijos dominadores, gemendo de tanto querê-lo.

Ele a mudou de posição, mas não como ela esperava. Virou-a de maneira a ficar de costas para ele e acariciou seus seios. Ela se inclinou na direção de Kyle. Os mamilos
se eriçaram, se intumesceram, endureceram, implorando mais, qualquer coisa, tudo.

Ele a mudou de posição novamente, curvando o corpo dela até deixá-la de joelhos na beirada da cama com as pernas dobradas sob o corpo. Um tremor incrivelmente erótico
estremeceu suas ancas.

Ele levantou o quadril dela. Ela esperou, ofegante, tão excitada que não conseguia aguentar. O corpo latejava na expectativa. Rose imaginou o que ele via, as nádegas
viradas para ele, mostrando aquela carne escondida. A imagem despudorada só a excitou mais.

Ele não a possuiu imediatamente. Deixou-a esperar, chegar à beira da loucura. Ficou acariciando as nádegas dela, roçando as curvas da pele, olhando para ela, com
certeza. Assistiu à submissa rendição e ao seu desespero.

Tocou-a de novo, ela gritou. Desta vez foi diferente. Rose estava exposta e aberta e sabia que ele olhava, sabia que via o corpo nu. Ela desceu mais as costas e
levantou mais as nádegas.

Dali a pouco, estava implorando. Implorando, gemendo e abafando os gritos nos lençóis. Finalmente, ele a penetrou numa estocada longa e lenta, proposital. Abaixo
de seu gemido de prazer, ela teve a impressão de ouvir o dele também.

Depois, ela se perdeu. Tudo o que sentia era o torturante prazer da necessidade de ser preenchida e a violenta intensidade da completude.

 

- Você veio aqui para ver Cottington antes que ele morra?

Rose estava nos braços de Kyle, sob os lençóis. Fazia algum tempo que ele tinha levantado o corpo lânguido dela e a colocado ali de maneira a ficar colada nele,
que estava sentado, com as costas apoiadas na cabeceira. A vela ainda iluminava a satisfação dos dois.

- Um dos motivos foi esse. Vou tentar vê-lo amanhã.

- Tentar? Ele não recebe você mais?

- Não sabe que eu o procurei. O secretário e o médico dele só avisam das visitas se quiserem. Agora é assim.

Ela achou que, provavelmente, tinha sido sempre assim. Era comum que condes tivessem empregados para evitar serem incomodados se não quisessem. Agora que Cottington
estava doente, eram outras pessoas que decidiam quando ele queria ou não. Só isso mudara.

- Se ele não puder recebê-lo agora, talvez receba na primavera, quando você planeja voltar.

- Acho que ele não estará vivo na primavera.

Ela concluiu que Kyle tinha ouvido falar que o conde estava à beira da morte. Por isso tinha ido ao norte agora.

- Vai ser muito triste não se despedir dele, depois de tudo o que fez por você. Certamente, o secretário dele sabe disso.

- Para o secretário, eu sou só o garoto de Teeslow - explicou Kyle, inclinando a cabeça e dando um beijo distraído nos cabelos dela. - Não é só me despedir. Quero
ver se ele ainda está consciente. Preciso pedir um último favor para os mineiros.

- É sobre a reabertura do túnel?

- Sim. Alguns homens querem impedir, só que de uma forma que só vai prejudicá-los.

- Poderia dar certo, se todos eles...

- Não serão todos. Há famílias que perderam parentes no desmoronamento e vão querer a reabertura para poderem enterrar seus mortos.

- Você disse que seu pai morreu num acidente. Foi nesse, não?

Ele concordou com a cabeça.

- Eu também gostaria de enterrá-lo. Mas aquele túnel jamais será seguro, a menos que as coisas sejam feitas de outra maneira. As paredes se movem.

- O túnel é de rocha. Rocha não se move.

- A terra é uma coisa viva, Rose. Antes de construir, preciso ver se o terreno é firme. A mina não está em terra firme e a parte daquele túnel é a pior. Sei disso
desde menino. Eu vi.

Ela sentou e se virou para ele. Ao olhá-lo, sentiu um eco dos tremores da noite. Não era possível a uma mulher deixar um homem fazer aquelas coisas sem depois ficar
em desvantagem com ele. Rose sentia que cedera o controle de outras formas também, que estavam entre os dois agora, incentivando aqueles tremores.

- Quanto tempo você trabalhou na mina, Kyle?

- Entrei pela primeira vez aos 8 anos. As crianças carregam o carvão em cestos. Geralmente, começam aos 9 ou 10 anos, mas eu era grande para a idade. Não tão grande
quanto um homem. Por isso, eu via o que eles não viam porque tinham de ficar abaixados. Havia fendas acima e quase no alto das paredes. Acompanhei a movimentação
delas durante meses. Avisei ao meu pai. Ele e os outros mineiros não acharam perigoso porque não viram e não notaram as mudanças. Até que um dia... caiu tudo. Dez
homens foram enterrados vivos do outro lado de uma parede nova.

- E ficaram simplesmente abandonados lá?

- Ninguém é abandonado, a menos que não haja opção. Começaram a cavar para retirá-los, mas isso fez mais pedras caírem, e outro mineiro morreu. Então ninguém mais
cavou. Fizeram uma cerimônia religiosa. Rezaram. E dois dias depois os homens voltaram à mina. Menos os parentes dos que estavam soterrados. Esses esperaram uma
semana. À essa altura, quem tinha ficado preso teria morrido. Por falta de ar e de água.

Ela imaginou Kyle de vigília com os tios. Viu o menino pensando no pai atrás daquela parede de rocha, talvez ainda vivo, mas sem poder ser socorrido.

- Eu disse aos homens que devíamos cavar por cima do túnel. Fazer um buraco para entrar ar até encontrarmos uma forma de tirá-los de lá. Ninguém dava ouvidos a uma
criança, muito menos os supervisores dos donos da mina. Hoje, sei que isso poderia dar certo. Um engenheiro podia fazer isso. Eu posso, se houver um desmoronamento
num túnel lateral.

Sim, provavelmente podia, mesmo se o terreno fosse desfavorável. Se preciso, ele cavaria com as próprias mãos, pensou ela. Se ele decidisse, não havia rocha nem
terra que o impedisse.

Ele contara sua história e respondera às perguntas de Rose. Ela sabia que agora ele pensava em outras coisas. Tinha deixado a vela acesa por um motivo.

Kyle a pegou pelo braço e a puxou em sua direção. Sentou-a de frente, com as pernas envolvendo as dele.

Ele olhou as mãos cobrirem os seios dela e os dedos roçarem os grandes mamilos escuros.

- Vi você muito bem no escuro ou, pelo menos, minha imaginação viu. Mas prefiro assim.

Em outras palavras, não queria mais que as lamparinas e velas fossem apagadas como se ela fosse uma dama. Ela não se importava. Assim também podia vê-lo. Mas ia
demorar um pouco para não ficar tímida quando o marido olhasse para o corpo dela como fazia agora.

Ele a ergueu e a posicionou sobre sua perna, lambendo e mordiscando os seios dela. A posição em que estavam permitia que ela também o acariciasse.

- Acho que você devia me levar quando for a Kirtonlow tentar falar com Cottington - sugeriu Rose.

Os dedos dele substituíram a boca, permitindo que respondesse.

- Não.

Ela imaginou se ele não queria que ela o visse sendo dispensado.

- Se eu for com você, o secretário não vai nos expulsar.

- Vai, sim, e não quero que você seja ofendida.

- É bem mais difícil dizer não a uma dama, Kyle. Diremos para ele não ousar fazer isso, pois o conde não vai gostar, se souber.

- Não.

Ela fez a mão deslizar para baixo no corpo dele, na tentativa de convencê-lo. Envolveu sua ereção e ficou roçando o polegar na cabeça do pênis.

- Você se casou comigo por causa da minha origem, Kyle. Devia me deixar abrir portas quando posso.

O sorriso dele não escondia a tempestade erótica que as carícias causavam.

- Rose, você está usando artifícios femininos para me deixar flexível?

Ela olhou o que sua mão estava fazendo.

- Parece que só estou conseguindo o efeito contrário. Não há nada flexível em você agora. A não ser um pouco, bem aqui. Ela apertou de leve a ponta.

Ele a segurou pela bunda e a ergueu de leve. Ela sabia o que fazer sem instruções, pois parecia natural e necessário. Mexeu-se e se colocou numa posição que permitia
guiá-lo para dentro dela.

O primeiro toque da penetração causou um choque de prazer em seu corpo todo. A sensação a deslumbrou e a fez perder o fôlego. Não se mexeu para ele penetrar mais.
Ficou assim, só um pouco encaixada, deixando os deliciosos tremores se prolongarem.

Ele permitiu, embora o desejo o dominasse tanto que ele cerrava os dentes. Ela se abaixou um pouco para senti-lo melhor.

- Você vai me matar, Rose - gemeu e segurou as pernas dela. - Pode me torturar durante horas outra noite, mas agora...

Puxou-a, descendo-a até seus corpos se aconchegarem.

Depois disso, ele a guiou, as mãos fortes facilitando o movimento das coxas num ritmo de absorção e soltura que ela ditava. Rose descobriu novos prazeres com mudanças
sutis e pressões no corpo. Fechou os olhos e o apertou dentro de si, mais e mais.

Ele então a penetrou mais, tão fundo que ela arfou. Abriu os olhos, o encarou e não conseguiu mais desviar o olhar. Não o via se mexer, mas sentia que era preenchida,
estocada e dominada enquanto seu olhar profundo a convidava a mergulhar em mares cor de safira. No final, ele a segurou forte pelas coxas. Presa, ela se rendeu à
invasão de seu corpo e de sua alma.

O orgasmo violento dela quase doeu de tão intenso. Ela desmoronou sobre ele, o rosto contra seu peito, ligada a ele num abraço forte enquanto o corpo aos poucos
abria mão das últimas palpitações do gozo.

- A que horas você vai amanhã a Kirtonlow Hall? - perguntou ela, depois que a respiração e o coração de ambos se acalmaram.

Um braço estendido. Um lençol ondulando. Ele puxou os lençóis e os prendeu em volta dela.

- Meio-dia, eu acho.

- Quero ir com você. Estarei pronta ao meio-dia.

Esperou o "não" dele. Não veio. Em vez disso, o abraço se ajustou nela, envolvendo-a, e a respiração de Kyle aqueceu sua testa com um beijo.

 

CAPÍTULO 15

As colinas desoladas sumiram a uns dez quilômetros de Kirtonlow Hall e a paisagem foi ficando mais luxuriante a cada momento. A casa surgiu alta e ampla, à beira
de um grande lago que refletia suas pedras cinzentas na água prateada.

Quando a carruagem deles percorreu o caminho de entrada, Rose deu uma olhada em sua roupa e na de Kyle. A gravata dele estava impecável. O casaco, com caimento perfeito
nos ombros. Até a corrente do relógio de colete dele brilhava, fazendo um arco indefectível. Uma gravura de moda não estaria mais correta.

Ela usava os melhores trajes que tinha trazido, um recém-adquirido conjunto lilás com manto bem-cortado e debruado forrado de pele de esquilo cinza. Fora selecionado
para sua bagagem devido à sua praticidade, mas o estilo e o luxo discreto tinham outra finalidade naquele dia. O obediente secretário do conde jamais saberia que
a pele tinha sido de um antigo traje, que ficara completamente fora de moda.

O criado levou o cartão de visitas de Kyle. Dali a pouco, ouviram-se passos de duas pessoas na escada. O criado vinha com um homem baixo e careca.

- Ora, ora. Pelo menos dessa vez o próprio Conway vai me dispensar - resmungou Kyle. - Você tem razão. Ele não ousa mandar uma dama embora sem dar uma explicação.

O Sr. Conway se aproximou com um sorriso simpático.

- Sr. Bradwell. Sra. Bradwell. Infelizmente, o conde está doente demais para receber visitas. Lastimo dizer que ele piorou desde que o senhor esteve aqui na última
vez. Mas, naturalmente, darei qualquer recado, embora não garanta que ele vá entender tudo.


- Meu recado é para o conde apenas, quer ele esteja em boas condições ou não - disse Kyle. - Já que está piorando, insisto em vê-lo.

O sorriso do Sr. Conway perdeu a força.

- Eu também tenho um recado para dar pessoalmente - disse Rose. - Lorde Easterbrook me encarregou de transmitir suas palavras exatas a lorde Cottington.

- Lorde Easterbrook!

- É meu parente indireto. Vou regularmente à casa dele em Londres e ele aceitou incluir meu marido e a mim em seu círculo pessoal.

O Sr. Conway franziu o cenho, preocupado, ao saber disso.

- Temo que Easterbrook fique muito zangado se eu voltar a Londres dizendo que não consegui. O senhor parece um criado eficiente e bastante zeloso quanto ao conforto
de seu patrão, mas acho que terei de citar seu nome na minha triste história. Como deve saber, Easterbrook é um tanto excêntrico. Nunca se sabe o que vai fazer,
seja para favorecer ou prejudicar alguém.

Conway piscou com força ao ouvir a ameaça implícita. Rose deu o sorriso mais doce que conseguiu. Kyle ficou parado, mas ela notou um brilho em seus olhos demonstrando
que achara o discurso incrível.

Conway mordeu o lábio enquanto ruminava as ideias.

- Madame, perdoe. Não sabia do seu parentesco com o marquês. Mas lorde Norbury insistiu para que não permitíssemos que o pai ficasse agitado por receber visitas.

- Agitado? A sua presença o deixa agitado, meu caro senhor?

- Claro que não. Ele me conhece tão bem que...

- Então o Sr. Bradwell também não vai agitá-lo. O conde conhece meu marido tão bem quanto conhece o senhor. Mais até, eu diria. Transmitirei os cumprimentos de Easterbrook
e os deixarei a sós, para evitar qualquer agitação. Quanto a lorde Norbury, como não está em casa, a menos que o senhor o avise, ele não precisa saber da visita,
e dessa forma jamais precisará desperdiçar seu tempo avaliando se somos visitas que causam agitação ao pai.

Rose deixou que sua expressão e postura mostrassem que presumia ser atendida. O Sr. Conway pareceu aliviado com as justificativas que ela arrumara.

- Sendo assim... sim, levarei os senhores até ele. Tratando-se de visitas como os senhores, não se pode falar em agitação. Por favor, sigam-me, senhora. Sir.

Eles foram atrás do Sr. Conway, que se encaminhou para a grande escadaria. Kyle deu o braço à esposa e aproximou o rosto do dela.

- Não sabia que você tinha um recado de Easterbrook - murmurou. - Devia ter me dito.

- Tenho certeza de que ele gostaria de enviar saudações ao colega e votos de pronto restabelecimento.

- Fazemos parte do círculo mais íntimo de Easterbrook, é?

- Ninguém sabe se ele tem algum círculo além da família. Eu de fato visito Henrietta. Ele gosta muito de Alexia. Não creio que eu tenha exatamente faltado à verdade.

- Você não faltou à verdade. Você foi magnífica.

- É justo que você receba algum benefício deste casamento. Meus relacionamentos são o único dote que posso oferecer.

Ele apertou a mão dela.

- Hoje de manhã, a última coisa em que pensei foi nas vantagens que obteria dos seus relacionamentos.

A insinuação a agradou. Ecos dos tremores da noite, capazes de agitar almas, se manifestaram de seu jeito calmo e devastador. Ela se concentrou nas costas do Sr.
Conway para manter a compostura, mas só o mistério masculino ao seu lado chamava sua atenção. Imagens passaram, lindas, impressionantes, das várias maneiras como
ele a fizera conhecer o erotismo da intimidade do casal.

Seus últimos passos rumo aos aposentos do conde foram inseguros. Súbito, o rosto do Sr. Conway apareceu na frente dela.

- Por favor, aguardem aqui. Preciso anunciá-los e confirmar se pode recebê-los. Se não puder, tentaremos amanhã.

Conway entrou no quarto e voltou logo. Abriu a porta branca almofadada e deu passagem.

O conde estava sentado numa grande poltrona verde ao lado da lareira acesa. Mantas cobriam as pernas e os pés, que descansavam num suporte. A idade e a doença tinham
reduzido qualquer semelhança com o filho, exceto talvez por certo orgulho.

Os cabelos grisalhos do conde tinham sido cuidadosamente penteados e o rosto, muito bem barbeado. Apesar da doença, seu criado pessoal o arrumara com gravata e um
colete de seda colorido. Rose esperava que a parte escondida pela manta também estivesse apresentável num dia em que ele não esperava sair daquela cadeira.

O casal foi examinado por olhos bem mais argutos que os de Norbury. Surgiu um sorriso no rosto pálido. Que foi só de um lado da boca. O resto ficou flácido, consequência
das apoplexias que o conde sofrera.

- Bem, aproxime-se, Bradwell. Traga sua esposa aqui para eu vê-la.

A doença não afetara o tom de comando, apesar de ter enrolado as palavras.

Kyle conduziu Rose e fez as apresentações formais. O conde a olhou dos pés à cabeça.

- Conway disse que tem um recado para mim, Sra. Bradwell. De Easterbrook.

- Tenho, sim. O marquês envia seus cumprimentos e sinceros votos por uma pronta recuperação.

- É mesmo? Não vejo Easterbrook há anos. Desde que voltou tão estranho e diferente daquela viagem para Deus sabe onde. Não fui muito a Londres. Que generoso ele
se lembrar de mim e enviar cumprimentos.

O tom era sarcástico e os olhos, bastante espertos. Rose procurou não corar ao ver que ele tinha percebido o ardil facilmente.

- Leve uma resposta ao marquês, Sra. Bradwell. Faria isso por um velho moribundo?

- Claro, Sir.

- Diga que ele foge vergonhosamente aos seus deveres. Que está na hora de parar de ser excêntrico e participar do mundo. Precisa casar, ter um herdeiro e assumir
seu posto no governo. Aquela família é muito inteligente para desperdiçar isso e a vida não é para ser levada como se quer. Essa é a maldita verdade.

- Prometo que transmitirei sua opinião.

- Opinião? Diabos! Palavra por palavra, é como vai transmitir, sem suavizar nada, como fazem as mulheres - exigiu ele, e um riso rouco escapuliu. - Mas espere até
eu morrer. Se ele não gostar, pode se vingar no meu filho.

- Se devo esperar até que o senhor morra, garanto que vou demorar a cumprir essa obrigação. Com sua licença, sairei para deixar que meu marido fale com o senhor
a sós.

 

Cottington observou Rose sair do quarto. Fez um gesto para seu secretário.

- Pode ir. Se eu precisar de você, o Sr. Bradwell o chamará.

Assim que Conway saiu, o conde deu outra ordem.

- Tem conhaque naquele armário lá, Kyle. Sirva um pouco para mim e para você, se quiser. Eles não me deixam beber nada. Acham que devo enfrentar a morte completamente
sóbrio.

Kyle achou o conhaque e os copos, serviu um dedo para cada um. O conde bebeu como se fosse um néctar.

- É infernal ser tratado como criança. Agora estou melhor que há quinze dias. Passei uma semana precisando dos criados até para os cuidados de higiene mais elementares.

- Parece então que está se recuperando.

- Morro até chegar o verão, se não antes. Não preciso que o médico me diga. Eu sei. É estranho, mas a pessoa sabe.

Descansou o copo e usou um lenço para enxugar o conhaque que tinha escorrido no lado paralisado da boca.

- Linda a sua esposa. O bastante para fazer com que o resto não tenha muita importância, imagino. O irmão, coisa e tal.

- Quanto ao coisa e tal, obrigado pelo presente de casamento.

O conde achou graça.

- Meu filho vai ficar furioso. Seria melhor se você não se tivesse se envolvido desta vez. Azar. Seria melhor que não tivesse sido você a forçá-lo pela segunda vez
a encarar o próprio comportamento desonroso.

Apesar do riso, os olhos do conde mostravam muita tristeza. Piscou para afastá-la. Norbury era apenas mais uma decepção numa vida que, como todas, tinha várias.

- Quer dizer que veio até aqui para se despedir, não? Gostei.

- Sim, mas também trago um pedido, que não sabia que faria até que cheguei a Teeslow.

- Não posso fazer mais nada por ninguém.

Kyle falou sobre a mina. O conde ouviu, sério.

- Era uma rica jazida - disse ele. - Quiseram voltar alguns anos depois, eu impedi. Já tinha vendido quase tudo, mas minha opinião ainda importava. Às vezes, ser
conde ajuda. Meu filho não vai agir como eu. Mesmo assim, vou escrever e usar a minha influência, mas quando eu morrer...

Quando ele morresse, o desejo de lucro pesaria mais numa avaliação em que a vida dos homens valia pouco.

- Mesmo se demorarem alguns meses, vai dar tempo de se acalmarem - disse Kyle. - Os mineiros estão com os ânimos exaltados. Se houver uma voz forte, um líder, haverá
problema.

O conde suspirou e fechou os olhos. Ficou assim tanto tempo que pareceu ter caído no sono. Kyle tinha resolvido sair sem fazer barulho, quando o conde voltou a falar.

- Não vamos nos ver mais, Sr. Bradwell. Se quer perguntar alguma coisa, tem que ser agora. - Os olhos se abriram e o encararam. - Tem perguntas, não?

Kyle tinha várias. A mais recente, entretanto, não podia ser feita. Embora ela permanecesse em sua mente. Não podia perguntar a um moribundo se seu único filho tinha
sido pior quando menino do que quando adulto.

- Tenho uma pergunta.

- Pois faça.

- Por quê?

- Por que o quê?

- Fez tudo por mim. Por quê?

- Ah. Essa pergunta - falou o conde e parou para pensar. - Fiz, em parte, por impulso. Em parte, por instinto.

De novo aquele sorriso pela metade.

- Primeiro, eu sabia que, se você ficasse em Teeslow, os mineiros teriam uma voz e um líder dali a poucos anos, quando você ficasse adulto.

Kyle o observou, avaliando se o conde falava sério. Durante todos os anos em que trocaram generosidade e gratidão, nunca lhe passara pela cabeça que o conde tivesse
motivos ocultos. Principalmente, porque Kyle não achava que a generosidade pudesse trazer alguma vantagem para um conde.

- Bom, não foi só por isso. Lá, você seria desperdiçado. Percebi logo. Vi em seus olhos e em sua determinação. Naquele dia, quando você chegou todo limpo e arrumado,
vi o homem que um dia poderia ser. Já tinha ouvido falar em você. Soube do menino que sugeriu que cavássemos de cima para chegar àquele túnel quando ele desmoronou.

- Teria dado certo.

- Não interessa se eu achava que ia ou não. O simples fato de que um menino pensasse isso e ousasse propor... Trouxeram você até mim no dia seguinte ao que bateu
em meu filho, e a lembrança do administrador rindo daquela audácia veio à minha cabeça não sei como. Eu sabia que aquele menino tinha sido você. Sabia, mas, de todo
jeito, conferi.

Enxugou a saliva que se formou no canto da boca.

- Depois, aquela questão com meu filho. Lá estava você outra vez, ousando o que muitos homens não ousariam. Portanto, em parte fiz aquilo para você não ser desperdiçado.
E, em parte, para não se tornar um líder deles.

O conde fez uma pausa, então voltou a falar.

- Admito que, em parte, fiz também para castigar meu filho, favorecendo o menino que bateu nele. Claro que isso não adiantou muito. Como você sabe mais que qualquer
um, ele até hoje se comporta de maneira vergonhosa com as mulheres.

Era isso. Kyle já sabia quase tudo. A generosidade não tivera motivações totalmente caridosas, mas poucos atos ou decisões humanos tinham.

O rosto inteiro do conde perdeu a firmeza. Como se o dano do lado ruim invadisse o lado bom.

- O senhor está cansado, precisa repousar. Vou embora. Obrigado por me receber.

Antes que Kyle pudesse se afastar, o conde esticou a mão para ele. Kyle a segurou e, pela primeira vez, sentiu o cumprimento daquele homem como o de um amigo.

- Você não é pior por isso, não importa o motivo - disse o conde, com voz enrolada. - Mas imagino que, de vez em quando, deseje que eu não houvesse interferido.

- Se pesarmos as perdas e os ganhos, veremos que lucrei muito. Mas, sejam quais foram os seus motivos, agradeço. Jamais o esquecerei. Nem meus filhos e os filhos
deles.

O aperto de mão ficou mais forte. Os olhos do velho pareceram cobertos por uma fina película. Fechou-os. A mão caiu, depois subiu num gesto derradeiro de bênção
e despedida.

 

Quando saiu do quarto de Cottington, Kyle parecia calmo. Rose o deixou com seus pensamentos enquanto desciam a escada e saíam no frio.

Ele não entrou logo na carruagem; deu uma volta e olhou o lago. Ela o seguiu e esperou. Não estava se despedindo apenas de um homem. Com a morte de Cottington, uma
fase inteira de sua vida terminaria.

- Você veio aqui muitas vezes? - perguntou ela.

- Não muitas. Mas, quando fui embora para estudar, o conde mandava me chamar sempre que eu vinha para casa entre os períodos de aula. Na primeira vez, metade do
vilarejo seguiu o mensageiro até a casinha do meu tio: queriam saber o que estava acontecendo.


- O conde recebia você regularmente, portanto.

- Sim. Talvez fizesse parte do aprendizado.

- É mais provável que quisesse saber do seu progresso. E você trazia notícias de Durham, mais tarde de Paris e Londres. Garanto que a sua conversa era mais interessante
do que a da maioria das pessoas aqui do condado.

- Talvez.

Ele deixou a carruagem esperar enquanto caminhava pela propriedade.

Rose o acompanhou.

- Falou com ele sobre a mina?

Kyle concordou com a cabeça.

- Ele vai fazer o possível, mas, no máximo, a obra será adiada. Isso pode dar tempo para verem o que é mais seguro. Há como fazer isso.

Ele não parecia acreditar que fossem fazer o mais seguro.

- Acho que você fez tudo o que podia.

- Fiz?

Eles viraram e voltaram para a carruagem.

- Você está calado, Kyle. O encontro não foi bom? Não pôde falar o que queria?

- O encontro foi muito bom. Ele estava aberto a perguntas e respondeu tudo o que, em sã consciência, eu podia perguntar.

- Tinha alguma coisa que você não podia perguntar?

- Só uma. Eu queria saber, pois ele é a única pessoa que responderia honestamente. Mas, ao vê-lo... achei que o assunto só lhe traria tristeza e era só para satisfazer
a minha curiosidade.

- Se só restou uma pergunta entre os dois, o encontro foi muito bom. Acho que poucas pessoas que se conhecem têm apenas uma pergunta não respondida.

Kyle encarou a esposa. De repente, não estavam mais falando de Cottington, mas de si mesmos.

- Ele está morrendo, Rose. Não tem mais nada a perder por dar respostas. Não haverá orgulho ferido nem consequências ruins. Nem para quem pergunta nem para quem
responde.

Chegaram à carruagem. Ele ficou menos calado na viagem de volta a Teeslow.

- Você também está pensativa, Rose. Tem alguma pergunta?

- Tenho várias, mas não é por isso que estou séria. Penso se sobreviverei ao encontro com Easterbrook quando fizer a reclamação de Cottington.

 

A carruagem estava quase passando de Teeslow, quando Kyle reparou no silêncio. Tinha ficado tão perdido em pensamentos que o silêncio incomum não chamara sua atenção.

Mandou a carruagem parar. Olhou pela janela.

Rose também olhou.

- O que foi? Acho que está tudo calmo.

- Calmo demais. A essa hora, a estrada devia ter mais movimento. As mulheres deviam estar aqui.

Ele apurou os ouvidos, atento. Olhou para os telhados das casas e chalés. Onde estariam todos? Na mina? Era cedo demais para terem agido. Sobravam apenas a taberna
ou a igreja.

Abriu a porta da carruagem e saltou. Rose segurou a saia e estendeu a mão.

- Não, Rose. A carruagem vai levar você até Pru. Eu volto logo.

- Acha que haverá agitação? Perigo?

- Não, mas eu...

- Se não há perigo, não precisa me mandar para casa. Tenho curiosidade por esse vilarejo. Se vai fazer uma visita, quero acompanhá-lo.

Ele colocou o braço no batente da carruagem, impedindo que ela descesse.

- Nos últimos dias, você anda muito curiosa.

- É da natureza feminina. E descobri que satisfazer a curiosidade pode ser prazeroso.

Ela se referia à noite anterior. O que o deixou excitado. Ele ficou cheio de lembranças, de gritos implorando, de toques tímidos mas firmes, das costas dela abaixando
e das nádegas subindo. Das pernas envolvendo-o, ele se perdendo em sua calidez e os dois girando num abraço de corpos e olhares grudados.

As lembranças lhe deram vontade de beijá-la e de possuí-la bem ali, na estrada. Fizeram com que esquecesse todos os motivos por que ela deveria voltar para a casa
dos tios.

Com um olhar atrevido, ela o transformara num idiota.

- Pensa em me mandar para casa, Kyle? Então, devo avisar que os maridos têm um número finito de ordens a dar às esposas e seria tolice desperdiçá-las em bobagens.

Onde estaria sua dócil esposa? A noite anterior tinha mudado mais do que o calor e a intensidade da paixão deles. A formalidade sutil daquele casamento estava sumindo
rápido.

O olhar dela mostrava um claro desafio.

- Pode vir comigo, Rose, mas só se sair assim que eu mandar. Creio que não haverá agitação, mas posso estar enganado. Seria melhor você voltar quando...

Ela olhou para baixo.

Diabos.

Ele disse ao cocheiro onde aguardar e ajudou Rose a descer.

 

O vilarejo estava reunido na igreja. Ouviu as vozes enquanto ele e Rose se aproximavam da velha construção de pedra, com sua torre na fachada. Séculos antes, a igreja
fazia parte de um convento nas terras cedidas por um antepassado de Cottington. Até descobrirem carvão nos arredores, Teeslow tinha sido um simples vilarejo de agricultores.

- Os homens não deviam estar na mina agora? - perguntou Rose.

- Sim, trabalhando com as crianças maiores e até com algumas mulheres.

Kyle abriu a antiga porta de madeira e o rugido de uma discussão caiu sobre os dois. Entraram e ficaram nos fundos da nave. Poucas pessoas notaram a chegada deles.
Todas as atenções se concentravam nos homens que estavam na frente do altar. Jon estava lá, com os cabelos louros revoltos, tentando fazer prevalecer sua vontade.

Isso parecia impossível. As vozes se cruzavam e se interrompiam. Os ânimos estavam exaltados e agressivos. Gritos de incentivo e de mofa competiam.

- Não consigo nem entender o que está sendo discutido - cochichou Rose.

- Os mineiros receberam ordem hoje de tirar aquela pedra que caiu. Em vez disso, eles foram embora. Estão tentando decidir o que fazer amanhã.

- Pensei que você tinha dito que o túnel desmoronou ainda mais na última vez em que tentaram.

- Os donos da mina enviaram um engenheiro, que garantiu que não haverá outro desmoronamento.

Jon fazia com que algumas vozes atendessem ao seu pedido de não entrar na mina. Mas não era o suficiente, o que significava que não ia resolver nada.

As vozes chegaram até Kyle. Identificou quase todas. Conhecia aqueles homens e brincara com alguns deles nas estradas, quando menino.

Percorreu com o olhar as famílias presentes e parou numa bonita ruiva de pele clara, que segurava duas crianças pelas mãos. Fora com ela que trocara o primeiro beijo,
aos 14 anos.

Uma mulher bem mais bonita estava ao lado dele agora. Ninguém a havia notado ainda, mas notariam logo. A roupa que tinha impressionado Conway parecia ainda mais
luxuosa ali, com seu debrum de pele e seus bordados caros. O gorro que ela usava contrastava com os lenços que as mulheres tinham na cabeça. A pouca luz da velha
igreja parecia se concentrar nela, fazendo sua beleza loura irradiar.

- Temos de ir embora - disse ele.

- Se eu não estivesse aqui, você iria?

Ele não sabia. Aquele não era mais o mundo dele. Não era a luta dele.

- Vou embora se a minha presença comprometer o que você disser, se para eles eu provo apenas que você percorreu um longo caminho, saindo desse vilarejo - disse ela.
- Mas se só sirvo para lembrar o que perderia se falasse, então mais uma pergunta foi respondida, e da maneira que eu não esperava.

Roselyn se virou para o marido.

- Você ainda não é um estranho para eles, mesmo se eles forem cada vez mais estranhos para você.

A compreensão o emocionou. O fato de tentar entender o tocou profundamente.

Ele saiu do lado dela e procurou Jon. Como a cabeça dele estava acima das outras na nave, a voz chegou lá.

- Jon, você sabe que não está pronto para isso. Você disse ombro a ombro, mas parece que há ombros aqui que não ficarão ao seu lado.

O barulho diminuiu. Jon o viu.

- Temos aqui um cavalheiro para nos aconselhar. Trouxe sua elegante esposa. Que sorte a nossa de termos o conselho dele.

Kyle não olhou para trás, mas soube pelos murmúrios e exclamações que notaram a presença de Rose.

- Trouxe minha esposa para conhecer meus velhos amigos, Jon. Imagine a minha surpresa ao encontrar uma reunião política nesta igreja. O que esperam ganhar se ficarem
parados, a não ser muitas mulheres e crianças com fome?

- Menos corpos para enterrar.

- Falei hoje com Cottington. Ele vai escrever para os sócios. O túnel não será aberto enquanto ele estiver vivo.

- Você nos conseguiu alguns dias, talvez algumas semanas, nada mais.

- Já basta para garantir que, quando o túnel for aberto, será seguro.

Jon fez pouco.

- Seguro! Disseram hoje para retirarmos aquela pedra. Encontraram um engenheiro que garante que o túnel já é seguro.

- Então você precisa achar alguém que discorde. Alguém que não receba salário dos donos e que tenha estudos para basear suas conclusões.

Kyle foi até a frente da nave.

- Alguém como eu.

Jon consultou os quatro homens que o rodeavam. A igreja ficou num silêncio tenso enquanto eles discutiam.

- Você vai entrar lá? - perguntou o mais velho dos homens, com leve zombaria.

Chamava-se Peter MacLaran e era o radical dos tempos anteriores, que agora passava a coroa para Jon.

- Vai sujar seus casacos elegantes, meu senhor. E pode levar alguns dias. Perderia aqueles jantares finos em Londres.

O sarcasmo de Peter recebeu algumas risadinhas.

- Entro agora mesmo. Não será a primeira vez. Os casacos podem ficar aqui. Arrume umas botas emprestadas para mim e cinco homens que me acompanhem, e começamos hoje.
Não sairei de Teeslow enquanto não souber o que preciso. Se o túnel for perigoso, vou dizer num relatório. Se puder ficar seguro, vou mostrar como. Se, mesmo assim,
eles prosseguirem e houver outro desmoronamento, o relatório vai enforcá-los.

- Eles não vão permitir.

- O nome de Cottington vai me ajudar. Ele ainda não morreu.

Não esperou que Jon e Peter concordassem. Os gritos em volta mostravam que Kyle tinha vencido a discussão.

Ele voltou para onde Rose estava.

- Você deve voltar para Pru agora. Vou levá-la até a carruagem.

- Posso ir sozinha. Faça o que precisa.

Ele desabotoou os casacos, tirou-os e os entregou à esposa. Surgiu um menino trazendo um par de botas. Kyle sentou e as calçou. Cinco mineiros dos mais experientes
esperavam na porta da igreja, com lamparinas.

Rose segurou os casacos e olhou os preparativos. Ficou tão interessada que parecia assistir a um ritual em alguma terra exótica.

- Avise a Pru que vou precisar de muita água quente quando chegar em casa - disse ele.

Ela se esticou para falar no ouvido dele.

- Espero que precise de um bom banho. Talvez esteja tão cansado que eu tenha de ajudar.

Ele ficou excitado na hora. Lembrar-se da noite anterior, das noites por vir, daquele banho, só fez piorar as coisas.

Ele trincou os dentes, olhou para o chão de pedra e se controlou.

- Rose. Querida. Vou ficar horas num poço escuro. Isso foi maldade sua.

Ela nem fingiu constrangimento. Quando ele foi embora, Rose parecia bem satisfeita consigo mesma.


CONTINUA

CAPÍTULO 9

No centro financeiro da cidade, um empregado conduziu Kyle para uma sala sóbria que fazia parte de uma série de cômodos bastante apropriados a alguém como um advogado.
Kyle imaginou que houvesse um quarto ao fundo, atrás da porta fechada e em frente à janela veneziana de vidraça em semicírculo no topo.

A carta que ele tinha enviado a lorde Hayden motivara o convite para ir até lá. Aqueles cômodos davam a impressão de que seu anfitrião os usava não apenas para negócios.
Para encontrar mulheres, talvez, quando ainda era solteiro. Para tratar de assuntos pessoais, como os que deviam estar escritos nas folhas empilhadas na escrivaninha
perto da janela.

Lorde Hayden o cumprimentou. Sentaram-se em duas poltronas forradas de vermelho-escuro, perto da lareira.

A lembrança de seu último encontro particular era uma sombra sobre eles. Lorde Hayden Rothwell tinha ido à casa de Kyle, após um convite como esse de agora ter sido
recusado.

- A Srta. Longworth me pediu para falar em nome dela - disse lorde Hayden. - Disse que foi você quem sugeriu esse arranjo.

- Ela foi pouco prática em não dar importância aos termos financeiros quando avaliou minha proposta de casamento.

Lorde Hayden se estirou na poltrona como se uma conversa amena fizesse parte do ritual do acordo.

- Não a conheci antes da falência do irmão. Ela me culpou por isso e, embora agora saiba a verdade, ainda há muita formalidade entre nós. Conheci bem o irmão mais
velho, mas não as irmãs.

- O irmão mais velho era Benjamin, que morreu há alguns anos.

Lorde Hayden ficou sério, assumindo a máscara que costumava exibir para o mundo.

- Minha esposa disse que a prima mudou muito há um ano. E que aquele caso com Norbury foi fruto da má avaliação de uma mulher em profunda melancolia. A negligência
em relação aos termos financeiros de seu pedido certamente também é um reflexo de seu estado de espírito.

- Então é melhor cuidarmos do assunto por ela. Seu estado de espírito pode estar mudado, mas não é melancólico. Não estou me aproveitando de uma mulher incapaz de
tomar decisões sensatas.

- Eu não quis dizer que estivesse. Mesmo se estivesse, essa chance que ela terá... Ficarei feliz por ela poder voltar a ter contato com minha esposa.

Para alguém que ficaria feliz com algo naquele casamento, lorde Hayden estava demorando a negociar os detalhes.

- Não esperava fazer agora o papel de pai em acertos de casamento, e não me sinto muito à vontade, Bradwell. Infelizmente, sei mais do que gostaria e sou forçado
a tratar de mais que meros trocados.

- Espero que acredite que minhas intenções são honradas.

- Não estou preocupado com isso e acho que você sabe.

Claro que Kyle sabia. Só não sabia qual papel lorde Hayden iria assumir.

- Ela comentou dos delitos cometidos por Timothy? Se não comentou, não a culpo - disse o lorde.

- Ela foi muito sincera e insistiu que eu ouvisse tudo.

- Corajosa.

- Acho que ela pensou que eu retiraria o pedido quando soubesse, portanto foi bastante corajosa.

Na verdade, ele achava que ela esperava que retirasse e a poupasse de tomar uma decisão. Ela não confiava mais na própria cabeça.

- Foi tão sincero quanto ela?

- Eu disse que sabia o que o irmão tinha feito e que conheço uma das vítimas dele.

- Diabos, você foi uma das vítimas, também teve prejuízo.

- Só porque assumi a dívida. Podia ter escolhido outras saídas.

Na verdade, Kyle só tinha uma. Aquela que estava conversando com ele no momento. Ou ele ressarcia o dinheiro tirando do próprio bolso ou deixava o fundo zerado.
E isso ele não podia fazer.

- Ela sabe que você não quis ser ressarcido?

- Não. Acha que devo contar?

- Não sei que diabos eu acho.

Lorde Hayden se levantou. Com os lábios apertados e o cenho franzido, andou pela sala com a mesma dúvida que atormentara Kyle várias vezes nas últimas semanas.

- Ela planejava encontrar o irmão - informou Kyle. - Recebeu outra carta dele, pedindo para encontrá-lo.

- Maldição - rosnou lorde Hayden e balançou a cabeça. - Mas, se você não a está enganando, não está sendo totalmente sincero.

Mais um pedido de honestidade total, como se isso fosse não só possível como normal.

Faria negócios com aquele homem no futuro. Não queria que lorde Hayden pensasse que ele era um mentiroso ou um canalha. Tentaria explicar, embora quase nunca se
explicasse a ninguém.

Levantou-se também e andou pela sala enquanto pensava o que dizer. Os passos o levaram para perto da escrivaninha. Deu uma olhada nas folhas soltas. Estavam cheias
de números e anotações. Era ali que lorde Hayden fazia os estudos matemáticos pelos quais diziam que era apaixonado.

- Diga, lorde Hayden, o que todo mundo deduziria se soubesse do delito de Longworth e a irmã fosse encontrá-lo?

- Mas não é todo mundo que sabe.

- Vai saber. Um dia. É inevitável. Muita gente foi prejudicada e o fato não vai continuar em segredo.

A segurança dele assustou lorde Hayden.

- Todos foram ressarcidos, ora - argumentou, mas, olhando para Kyle, completou: - Menos você.

- Foram ressarcidos do dinheiro, mas não da ofensa. Você avaliou mal.

Lorde Hayden não gostou dessa hipótese. Um suspiro de frustração mostrou como era desgastante aquela conversa sobre Longworth.

- Se Roselyn estivesse com ele quando isso acontecesse, certamente seria considerada cúmplice.

- Concordo. Portanto, devo contar tudo a ela? Se contar, se ela souber do meu envolvimento, pode mudar de ideia quanto ao casamento. Pode correr para o irmão, seja
para salvá-lo, ajudá-lo, ou para fugir da própria vergonha. Ela sabe que esse segredo não vai durar muito, mesmo que você discorde.

Lorde Hayden olhou Kyle com atenção, um olhar parecido com o que Easterbrook lhe dedicara.

- Foi por isso que você recusou o dinheiro? Por orgulho, como os outros homens que citou?

- O delito não foi seu. Por que deveria pagar? E também pagou caro. Uma quantia enorme por algo de que não tinha culpa. Se eu aceitasse o seu dinheiro, seria ressarcido
às custas de outra vítima, nada mais.

- Uma vítima por opção, o que é diferente. Acho que, no fundo, foi orgulho.

A arrogância de lorde Hayden incomodou Kyle. Fez um gesto mostrando a sala.

- Nenhuma conspiração financeira foi elaborada aqui nos últimos tempos. Nenhuma associação de empresas se formou aqui. Você continua na mesma casa, que é modesta
para os padrões de Mayfair. Mesmo você sentiu o baque de pagar todo aquele dinheiro. Eu devia desfalcá-lo em mais 20 mil? Concordar com o suborno que você me propôs?

- Suborno? Maldição! O seu bolso não seria prejudicado pelo delito de Timothy, só isso.

- Você não restituiu o dinheiro para eles apenas, exigiu que esquecessem a trapaça. Silêncio em troca de dinheiro foi parte do acordo. Seria bom se cada pecador
tivesse um anjo como você para defendê-lo.

Ele esperou que houvesse uma contra-argumentação, até raivosa. Mas lorde Hayden passou a mão na testa e falou, resignado.

- E quando acontecer justamente o que espera, Bradwell? A Justiça vai exigir que ele pague com a vida. Se esse dia chegar, o que você vai dizer a ela?

- Esse sofrimento a espera, quer ela se case comigo ou não. Se esse dia chegar, vou protegê-la e consolá-la da melhor forma possível.

Lorde Hayden pensou nisso um bom tempo. Depois, foi até a escrivaninha e fez um gesto indicando que Kyle o acompanhasse.

- Vamos preparar os papéis para os advogados. Eu concordaria mais com esse casamento se você tivesse aceitado seu dinheiro de volta. Mas aquele lamentável episódio
já prejudicou as irmãs Longworth demais. Talvez depois do casamento isso pese menos sobre o futuro de Roselyn.

 

- Como está crescida, Srta. Irene - disse o Sr. Preston, com um sorriso. - As mulheres do vilarejo vão passar dias comentando seu gorro.

Irene sorriu enquanto o Sr. Preston contava o dinheiro de Rose e embrulhava os mantimentos que ela comprara.

Ela estava crescida mesmo, pensou Rose. Alexia tinha dado a ideia de apresentar Irene à sociedade na próxima temporada. Estava na hora, sem dúvida, levando em conta
a idade dela, mas talvez fosse cedo demais, considerando outras coisas. Nem seu casamento amenizaria o escândalo a tempo de Irene ser bem recebida na atual temporada.

A ideia de que Irene poderia ter um futuro melhor ajudava Rose a ficar mais calma em relação ao casamento que se aproximava. A ausência de Kyle na última semana
contribuíra para deixá-la agitada. Fora passar o Natal no norte, com os tios que o criaram.

A ausência dele significava que ela podia se concentrar nos preparativos, mas a cada dia tinha mais certeza de que não conhecia o homem com quem ia se casar.

- Estamos todos aguardando o grande dia, Srta. Longworth - disse o Sr. Preston com um sorriso largo. - Permita-me dizer que todos os que conheceram o Sr. Bradwell
no mês passado, quando esteve no vilarejo, exaltaram suas boas maneiras e sua simpatia.

- Obrigada. Espero que o senhor e sua esposa nos deem a honra de sua presença.

- Minha esposa não perderia a festa. Ela sempre diz que certas pessoas se precipitam em acreditar no pior. Ficou triste com a maneira como alguns...

Ele interrompeu a frase de repente e lançou um olhar expressivo na direção de Irene. Os olhos dele se desculpavam por se referir ao escândalo na frente da moça.

- Fico agradecida por sua esposa ter me defendido, Sr. Preston. Tenha um bom dia.

Ela e a irmã mais nova saíram da loja. Irene seguia bem perto dela, com seu marcante gorro de seda encorpada.

- Você acha que o vilarejo inteiro concorda com o Sr. Preston?

- É pouco provável que a Sra. Preston deixasse o marido ser tão simpático se todo o vilarejo discordasse.

- Então, parece estar acontecendo o que Alexia esperava.

- Aqui, sim. Mas Watlington é uma coisa e Londres será outra.

- Acho que em Londres não vai ser ruim. Easterbrook vem ao seu casamento. Quando os jornais publicarem isso, ninguém vai dar atenção às más línguas.

- Como as más línguas gostam muito de falar dele, não acredito que sua presença ajude tanto.

Realizar o casamento no interior tinha sido ideia de Kyle, não de Alexia. Lorde Hayden então oferecera a casa do irmão em Aylesbury Abbey, mas Kyle dissera que preferia
a dos Longworth. Iam se casar na paróquia da infância dela, entre pessoas que a conheciam desde menina.

Rose agora entendia a esperteza disso. Kyle conhecia os moradores de um vilarejo melhor do que um irmão de marquês poderia. O dinheiro que a família gastaria nos
preparativos e a festa aberta a todos os moradores ajudariam mais a criar uma visão favorável sobre aquele escândalo do que dez anos de vida honesta.

Rose e Irene seguiram pela estrada do vilarejo, cumprimentando vizinhos e parando para algumas moças poderem admirar o lindo gorro de Irene. Compraram algumas fitas
e tecidos antes de voltarem para casa.

Muita agitação as aguardava lá. Três carroças cheias de móveis enchiam a entrada da casa. Um exército de criados passava carregando coisas enquanto Alexia ficava
de sentinela na porta da frente, segurando uma grande folha de papel.

- Isso vai para a biblioteca - disse ela para dois homens que carregavam um grande tapete.

- O que você está fazendo? - perguntou Rose, afastando-se para o lado de forma que um guarda-roupa enorme pudesse passar.

- Para o quarto no lado sul - Alexia orientou os três homens que aguentavam o peso do guarda-roupa, depois se dirigiu a Rose: - Você não pode dar uma festa de casamento
numa casa que não tem cadeiras.

- O móvel que passou agora não era cadeira.

- Nem tente ser orgulhosa. Não ouse. Hayden disse que você não aceitaria isso, e não vou deixar que confirme que ele estava certo. Já estou bastante irritada por
ele ter me convencido a esperar tanto para fazer isso. Se viesse um mau tempo, você daria uma festa numa casa vazia na semana que vem.

Um homem passou carregando uma arca nas costas, com muito esforço. Ela deu uma batidinha com a folha de papel no ombro dele.

- Meu bom homem, da próxima vez, espere ajuda. Assim você nem enxerga para onde vai.

- Sou forte, madame. É preciso mais que isso para me derrubar.

- Com certeza, mas se virar para o lado errado, vai arrancar pedaços das paredes. Não temos tempo para refazer o reboco. Escute, Rose, o sótão da casa de Aylesbury
Abbey está cheio de móveis que jamais são usados. É um pecado esse desperdício. E não é presente de Hayden. A casa e tudo o que tem dentro não são dele.

Irene concordou com a cabeça.

- É verdade, Rose. É tudo de Easterbrook.

Uma fila de cadeiras passou por Rose.

- Alexia, o marquês a autorizou a esvaziar o sótão?

Alexia contou o número de cadeiras e consultou o papel.

- Só descobri a quantidade de coisas que havia lá nessa última visita. Mas, na última vez que o vi, conversamos sobre o seu casamento. Comentei que queria ajudar
nos preparativos e ele disse que eu podia usar os criados da casa de Aylesbury e tudo o mais que precisasse - explicou ela e sorriu. - Isso aqui é o "tudo o mais".

Rose imaginou o marquês na casa dela, sendo sarcástico quando não estivesse calado, ao ver aqueles móveis que pareciam bem conhecidos. Depois do casamento de Alexia,
Rose só encontrara o marquês duas vezes; achava-o enigmático e mal-humorado, alguém que poderia se beneficiar bastante do ar puro do campo.

- Bem, ele pode mudar de ideia sobre vir ao casamento - murmurou ela, desejando que não viesse, ainda que a presença dele pudesse contribuir para sua redenção.

Os moradores do vilarejo iam se ocupar tanto em bajulações e em tentar impressionar o marquês no dia do casamento que ninguém ia se divertir.

- Ah, ele virá - disse Alexia. - A tia, Henrietta, ficou dizendo que não viria e ele exigiu que o acompanhasse. Ele agora vai se arrastar de Londres até aqui nem
que seja só para aborrecer a tia.

Irene fez uma careta.

- Ela vem?

Rose seguiu pelo caminho dos carregadores.

- Gostaria de saber se ela algum dia olhou o que tinha naqueles sótãos.

- Suponho que Henrietta inventariou os bens de Easterbrook até o último travesseiro, desde que passou a morar com ele na primavera passada - disse Alexia.

- Então é possível que eu a veja na minha festa de casamento. A cada cadeira e mesa que ela vir, vai levantar as sobrancelhas até juntá-las com a linha dos cabelos.

Alexia e Irene se puseram ao lado dela e seguiram com o fluxo de móveis.

Deixaram os homens se ocuparem de colocar os móveis nos cômodos conforme os desenhos que Alexia tinha feito, e Rose levou a irmã e a prima para o andar de cima,
até o santuário de seu quarto.

A porta do sótão estava aberta. Ela deu uma olhada e viu móveis antigos da casa empilhados. Estranhou que algumas peças estivessem ali.

Em vez de ir para o próprio quarto, ela entrou no quarto sul. Era o maior de todos. Os móveis antigos tinham sido substituídos por outros, trazidos por Alexia. Uma
cama grande aguardava os lençóis e o guarda-roupa recém-chegado brilhava encostado a uma parede. Um toucador masculino estava pronto para receber escovas e objetos
pessoais.

Ela olhou para Alexia, cujo rosto refletia seu senso prático e sua firmeza.

- Está na hora, Rose. Ben já se foi há anos - disse Alexia. - Esta casa em breve terá outra vida e outro dono, e este quarto tem que ser dele.

Rose deu uma olhada no quarto, que estava diferente agora, com objetos estranhos que logo seriam de uma presença estranha. Seu coração se apertou com o aspecto decisivo
que a mudança feita por Alexia representava.

Irene mordeu o lábio inferior.

- Ela tem razão, Rose. Acho que em poucos dias você não vai mais se importar.

Rose pôs o braço no ombro de Irene.

- Não me importo, querida. Alexia está certa. É hora de seguir em frente.

Rose tirou Irene do quarto. Alexia olhou para a prima mais velha quando as duas passaram. O olhar que trocaram foi parecido com o do dia em que se viram na casa
de Phaedra.

Às vezes não havia mesmo escolha. Às vezes só havia uma decisão, uma única coisa possível a fazer, se você quisesse uma chance de ser feliz.

 

CAPÍTULO 10

Na manhã do casamento, Jordan insistiu em arrumar o patrão. Chamou os criados da hospedaria Knight's Lily, em Watlington, e deu ordens como um marechal de campo.
Mandou trazer o café da manhã, preparar o banho e pediu mais toalhas, mais água quente ainda e convocou um assistente enquanto manejava a navalha.

Kyle obedeceu e achou que os criados da pousada não se incomodaram com os mandos. Aquilo lhes dava a chance de participar do casamento que deixara o vilarejo inteiro
alvoroçado.

Enquanto isso, Jordan informava dos preparativos que tinha feito na casa em Londres da futura Sra. Bradwell.

Finalmente, ficou tudo pronto. Jordan ajeitou um colarinho, alisou uma manga de camisa e recuou para dar uma olhada.

- Pronto, e ainda falta uma hora. O colete foi uma ótima escolha, senhor. O leve toque de rosa-escuro no cinza está perfeito, com o azul suave da sobrecasaca.

- Já que você escolheu o colete, é bom que aprove. Ainda acho que um cinza mais claro seria melhor.

- É seu casamento, senhor. Um toque alegre no traje, um toque mínimo, devo dizer, é não só apropriado como esperado - argumentou e, tendo guardado o que restava
de seu arsenal, fez uma reverência para se retirar. - Permita-me dizer, senhor, que está numa elegância como nunca vi. É um privilégio servi-lo neste dia tão feliz
- arrematou.

Kyle olhou no espelho a ótima imagem que o tempo, a experiência e Jordan tinham conseguido formar. Sem dúvida, Kyle se sentia mais elegante, correto e apresentável
que em anos. Lembrou-se do dia em que a tia o arrumara com todo o capricho para ir a Kirtonlow Hall pela primeira vez, a pedido do conde de Cottington. Naquele dia,
ele também ficara pronto uma hora antes e tivera de ficar sozinho e quieto para não suar e estragar a roupa.

Olhou pela janela a rua do vilarejo. Viam-se poucas pessoas. Como ele, estavam todos se arrumando para uma cerimônia e uma festa mais grandiosas do que quaisquer
outras que tivessem visto em anos.

Naquele dia, quando criança, ele imaginara que, na melhor das hipóteses, o conde lhe daria uma bronca e, na pior, uma surra de chicote. Em vez disso, Cottington
tinha mudado a vida dele.

Mudado para melhor, claro. Só um idiota ou um ingrato não reconheceria. Então, ao olhar Watlington pela janela, sentiu uma inesperada falta de Teeslow, seu vilarejo.

Seria bom ter alguns rostos conhecidos no casamento, só que estavam todos longe, tanto no tempo quanto na distância. A generosidade de Cottington o tinha arrancado
daquele mundo, mas não encontrara outro onde colocá-lo.

Ele tinha criado uma espécie de círculo de amigos e sócios, mas não era a mesma coisa. Não pertencia mais a lugar algum, já fazia algum tempo. Sua vida parecia uma
videira com os ramos se distanciando cada vez mais das raízes.

Aquele casamento também não mudaria nada. Ele ficaria à margem do mundo de Roselyn, não dentro. Escolhera a esposa com toda a consciência disso. Sabia o que ganhava
e o que jamais teria, de uma forma que nem Rose entendia.

O olhar bateu na valise de viagem. Enfiada nela, estava uma carta que Jordan tinha trazido de Londres. Durante a visita de Kyle ao norte, o conde estivera muito
adoentado para recebê-lo, mas tinha conseguido mandar conselhos e cumprimentos pelo casamento e dito que recomendara ao advogado que lhe enviasse um presente.

O conde não estaria lá. Nem a tia Prudence e o tio Harold, que não conseguiram disfarçar o susto ao saberem da mulher que o sobrinho tomaria por esposa, quando ele
lhes contou na visita de Natal. Harold estava doente demais para viajar, mas os tios nunca fariam uma viagem assim no inverno. Os outros amigos que fizeram parte
de sua juventude também não iam festejar com ele e só uma pessoa de seu vago mundo atual estava em Watlington.

Kyle foi procurá-lo.

Entrou no quarto de Jean Pierre, que estava em frente ao espelho, colocando a gravata. Depois de Jean fazer algumas dobras e acertos no tecido, Kyle viu de perfil
o amigo assentir, satisfeito. Ele se virou e olhou para o noivo.

- Mon Dieu, por que os homens sempre parecem a caminho da guilhotina no dia do casamento? - falou, passando a mão numa garrafinha que estava no toucador e arremessando-a.
- Um gole, não mais. Seria grosseiro estar bêbado, embora fosse menos doloroso.

Kyle riu, mas tomou um gole mesmo assim.

Jean Pierre mexeu mais um pouco na gravata.

- Esse Easterbrook não me impressiona, mas, oui, de qualquer forma estou sendo um idiota. Tento me convencer de que meu cuidado com o traje não é por causa dele
e seu título importante. Os criados disseram que sua noiva é linda. É ela que quero impressionar, não ele.

- Por quê? Ela é minha noiva.

Um riso. Um suspiro.

- É bom que você se case. Você nunca achou graça nessa brincadeira. Algumas visões suas são... simplórias.

- Muito simplórias.

A voz dele soou mais perigosa do que ele pretendia. Muito perigosa.

- Espero que não se torne um daqueles sujeitos enfadonhos que ralham quando alguém elogia sua mulher. Ninguém colhe todas as flores que cheira.

- Elogie quanto quiser, mas sei muito bem o que você faz com as flores. Tenho certeza de que sabe que é melhor não brincar no meu jardim.

- Mon ami, você tem que aceitar que haverá flerte no ambiente que ela frequenta, e não ser idiota...

- Não preciso que me ensine nada. Sei de tudo isso. Estou apenas dizendo que você não vai arrancar, cheirar, nem mesmo passar por nenhuma cerca-viva.

- O nervosismo do dia já está afetando a sua cabeça. Ainda bem que estou aqui para ajudar. Acho que precisa de mais um gole dessa bebida. Depois jogaremos baralho
até a hora do casamento, assim você fica calmo e não fala feito um idiota.

- Estou bem tranquilo. Sereno como um lago num dia sem vento. Diabos, nunca estive tão calmo.

- Claro. Agora, mais um gole. Ah, bon.

 

- A carruagem de Aylesbury já passou.

A informação foi dada por um criado que ficara de sentinela na estrada. Alexia se levantou e sorriu ansiosa para Rose.

- Agora podemos ir.

Rose olhou para seu vestido. Não era novo. Tinha ficado escondido um ano, desde a época em que Tim vendera tudo o que encontrava. Irritada e de forma egoísta, ela
escondera alguns de seus melhores trajes, na esperança de ter motivo para usá-los de novo. Alexia a ajudara a reformar o vestido, assim não dava para perceber que
era usado.

Rose estava contente de, nesse dia, usar roupas que eram dela. Quase nada na casa era. Até a comida que estava sendo preparada na cozinha pelos criados de Aylesbury
não era dela. E Kyle tinha enviado os barris de cerveja e vinho. Ela se sentiria mais estranha ainda se usasse um dos vestidos de Alexia.

Saíram todos em direção às carruagens que os aguardavam. Lady Phaedra e lorde Elliot tinham vindo participar desse cortejo, em vez de seguirem com Easterbrook. Ela
ficou emocionada com o comparecimento de toda a família de lorde Hayden. Mostravam que a protegiam, graças ao amor que tinham por Alexia.

Alexia, Irene e lorde Hayden iam com ela numa pequena carruagem aberta. Ao chegarem ao vilarejo, não viram ninguém nas ruas. Todos estariam na igreja. Muitos se
aglomeravam do lado de fora porque na velha construção medieval de pedra não havia espaço para todos.

Quando Rose entrou na igreja, sentiu a mudança da luz e da temperatura. Ficou zonza. Tudo se tornou irreal, como imagens de um sonho.

Captava a cena ao redor ao ritmo do sangue que pulsava em sua cabeça. Sorrisos, murmúrios, mulheres apontando os trajes elegantes das damas, rostos que faziam parte
da vida inteira dela olhando... uma caminhada, longa e escura em direção ao altar.

Kyle a aguardava. A seu modo, estava lindo. O leve sorriso que ele dava para apoiá-la fazia o mundo voltar um pouco a seu lugar, mas não totalmente. Ela disse palavras
que pareceram muito distantes. Palavras sérias, votos e promessas, que a uniram irreversivelmente a alguém.

Sentiu-se tomada por uma súbita alegria quando percebeu que havia terminado. Teve a impressão de pairar no ar, impressionada com a própria coragem. Ao mesmo tempo,
temia que, a menos que surgissem anjos para segurá-la no voo, pudesse se esborrachar no chão do vale.

Viu-se de novo na carruagem aberta, agora ao lado de Kyle. Os moradores do vilarejo seguiam a pé ou em carruagens, todos para a casa.

Kyle segurou a mão dela. Aquele gesto a arrancou do devaneio. O sentido do que tinha acontecido se revelou de forma tão concreta que ela mal conseguiu acreditar.

Olhou o perfil do homem que agora era seu marido e senhor. Dele, conhecia apenas duas partes, a de salvador e pretendente. De resto, continuava sendo um estranho
em quase tudo.

 

Kyle observava a festa animada que lotava a casa de Rose. Os convidados mais importantes tinham se sentado para um café da manhã de núpcias, enquanto os moradores
do vilarejo andavam pela sala e a biblioteca e se espalhavam pelo jardim e o terreno. Agora todo mundo se misturava no aperto dizendo votos de felicidade para Rose,
que estava a poucos metros dali.

Kyle não olhava muito para ela. Não ousava. Quando olhou, viu detalhes que fez seu corpo se empertigar. A linha do pescoço, elegantemente debruçada numa conversa,
tinha fios de cabelo esparsos que pareciam seda. Os lábios, como um veludo para beijar, curvavam-se num sorriso sereno.

O vestido era de um tecido marfim macio que modelava o corpo de maneira que o fazia relembrar os seios que tinha acariciado. Pensou em como seria tirar aquele vestido
dali a pouco e no resto, a pele perfeita dela tocando seu corpo inteiro.

Ela percebeu o olhar dele. Deve ter concluído o que ele pensava, embora Kyle duvidasse que ela pudesse adivinhar os detalhes eróticos. Ela corou e voltou a conversar
com o convidado.

Ele se obrigou a prestar atenção na festa para se distrair. Observou Easterbrook chamando a atenção em frente à cornija da lareira. Os moradores do vilarejo se aproximaram
com deferência e receio, não só por ele ser um marquês.

O comportamento dele não incentivava aproximações. A aparência excêntrica tinha sido de certa maneira amenizada. Surpreendentemente, usava trajes conservadores e
os cabelos compridos tinham sido presos num rabo. Mas ele olhava de cima, satisfeito com os resultados de sua caprichosa intromissão.

Um riso de mulher desviou a atenção de Kyle. Perto, num canto da sala, Jean Pierre atraía Caroline, a jovem prima de Easterbrook. A linda moça enrubescia com a atenção
dele.

A mãe, lady Wallingford - tia Henrietta, para a família -, incentivava Jean Pierre a flertar mais um pouco. Pálida como a filha e enfeitada com um chapéu incrível
pelo excesso de plumas, a lady tinha um jeito alienado, com aquela expressão ausente, etérea. Segundo Rose, o rosto ingênuo escondia a sagacidade de uma mulher decidida
a ficar para sempre na casa de Easterbrook, depois de finalmente conseguir se acomodar nela no ano anterior. Os boatos diziam que o recluso marquês tinha cada vez
menos paciência para a intrusão da tia e da prima.

Dali a pouco, Jean Pierre pediu licença às duas damas e foi abrindo caminho até chegar onde Kyle estava.

- Jean Pierre, a respeito daquelas flores... lorde Hayden é o protetor de uma das que você cheirava há pouco. Olhe para ele. Quer ter esse homem como inimigo?

Jean Pierre procurou lorde Hayden com o olhar.

- Acho que ele não vai se incomodar.

- Ele não terá como não se incomodar. Ela é inocente.

- Eu não cheiro inocentes - garantiu ele, e olhou para Henrietta e Caroline. - A menina não me interessa. Lady Wallingford deve ter, no máximo, 30 e poucos anos.
Você vê uma matrona que usa chapéus horrorosos. Eu vejo uma mulher com uma beleza oculta e etérea que, meu nariz tem o prazer de informar, não se oporia a uma pequena
sedução.

Não adiantava tentar dissuadir Jean Pierre dessa conquista. Kyle imaginou que lorde Hayden não causaria um duelo em nome da virtude da tia.

De repente, a festa pareceu mudar. Acalmou-se. As pessoas se afastaram para formar um corredor. O marquês passou no meio, sorrindo de leve, afavelmente, para a direita
e a esquerda.

- Finalmente - resmungou Jean Pierre. - Agora é só esconda a cerveja e o vinho e todos os demais vão embora também.

Sim, finalmente.

Rose fez uma reverência quando Easterbrook se despediu dela. Kyle também fez uma reverência e torceu para que nada tirasse o homem de seu curso. Ninguém iria embora
antes dele.

A tia do marquês se sentiu na obrigação de acompanhá-lo. Em pouco tempo, os irmãos dele também se foram. A festa começava a acabar.

Kyle se imaginou colocando todos porta afora, os moradores do vilarejo e os criados, todo mundo. Teve de se esforçar para controlar a impaciência.

Uma coisa era desejar Rose antes. Mas desejá-la hoje, agora, quando sabia que poderia possuí-la, estava sendo uma tortura.

 

Fazia tanto tempo que Rose não tinha uma criada que ficou sem saber o que fazer com a mulher. Por sorte, a criada que Alexia arrumara não precisava de ordens. Com
gestos eficientes e de olhos baixos, preparou Rose para a noite de núpcias.

A casa agora estava quase vazia. Só ficaram o marido e a esposa, o criado pessoal de Kyle e a criada que arrumara Rose. Dali a pouco os dois últimos iriam desaparecer
em outros cômodos do andar superior.

As últimas horas tinham sido difíceis. A aproximação daquele momento tinha surtido efeito sobre cada minuto e cada segundo delas. Tanto Roselyn quanto Kyle não disseram
nada, nem mesmo na longa caminhada que fizeram enquanto os criados de Aylesbury limpavam a casa, tirando os pratos e os barris de vinho. A noite que estava para
chegar fora um manto invisível cobrindo cada instante e transformando cada olhar e cada toque.

Ela dispensou a criada e se empertigou. Não estava com medo. Nem um pouco. Estava nervosa, preocupada e curiosa, mas não com medo.

Passou a mão pelos cabelos, que tinham sido escovados e estavam soltos. Conferiu a camisola, quase recatada com suas mangas compridas e a gola alta franzida. Olhou
para a cama, que os aguardava com o lençol aberto. A vida inteira, ela vira a cama naquele mesmo lugar.

Não tinha certeza se queria que as coisas se passassem naquela cama. Não sabia nem se queria que fossem naquele quarto.

Ali ela havia sido uma criança feliz e uma garota cheia de esperanças. Ali chorara a morte dos pais e a de Benjamin; sofrera com a falência do irmão e a dela própria.
Aquele quarto continha toda a sua história, o bom e o ruim, e ainda guardava ecos de sonhos juvenis jamais realizados.

Se Kyle entrasse ali agora, ela não conseguiria voltar ao quarto sem que a presença dele influenciasse todas as lembranças.

Mudasse. Talvez até ofuscasse. A partir de agora, sua vida mudaria sob vários aspectos. Ela podia ao menos conservar aquele canto de seu antigo mundo.

Jogou um xale sobre os ombros. Pegou uma vela acesa e saiu de mansinho do quarto. Prestou atenção em sons vindos do quarto sul para saber se Jordan ainda estava
servindo o patrão.

Nenhuma voz, nenhum barulho. Entreabriu a porta e olhou.

Jordan não estava lá. Só Kyle. Ao lado da lareira, imerso em pensamentos que endureciam suas feições. Dava a impressão de que aquelas reflexões o tinham desviado
de seus preparativos. Ele estava nu da cintura para cima, mas ainda de calças.

Ao vê-lo assim, ela se assustou. O homem escondido por aquelas roupas elegantes agora estava exposto, de uma maneira não apenas física. Um cavalheiro podia praticar
boxe ou esgrima durante meses e não conseguir a força contida e autêntica que ele revelava. Não era tanto a altura e o corpo que ele tinha, embora a musculatura
firme e definida acentuasse o efeito. Era mais algo que vinha de dentro e não tinha explicação.

Ela teve noção de que estava vendo algo que ele não mostrava ao mundo. Escondia atrás da fala educada e das maneiras polidas, mas devia estar sempre nele. Rose havia
percebido desde o começo. Tinha sentido os efeitos tanto de formas sutis quanto fortes. Era essa força que a excitava e a fazia sentir-se ao mesmo tempo segura e
temerosa.

Ele se virou como se ouvisse o som vindo da porta, embora ela mal respirasse. Olhou-a por inteiro: o xale e a camisola, a vela e os cabelos.

- Eu já ia ao seu encontro - disse ele.

- Pensei em vir encontrá-lo. Você se importa?

- Claro que não.

Ela se aproximou e colocou a vela no toucador.

- Você estava tão absorto. No que pensava tanto?

- Em algo que aconteceu há muito tempo. Tinha até esquecido, só lembrei agora.

- Uma lembrança ruim?

- Sim.

- Então, ainda bem que entrei.

Ela ficou constrangida com o olhar dele. Talvez, vindo até ele ao invés de esperá-lo, tivesse criado uma expectativa de que faria algo mais.

- Ele machucou você?

A pergunta foi feita com tanta calma que ela levou um instante para entender. Ficou triste por ele falar em Norbury logo naquela noite.

- Pensei que jamais fosse falar...

- Ele machucou? Só pergunto por causa de agora e do que vamos desfrutar daqui a pouco. Veio à minha cabeça que talvez tivesse machucado. Que talvez eu o houvesse
considerado alguém melhor do que é, mesmo sabendo que é bem menos do que muita gente pensa.

Ela não entendeu direito a que ele se referia. Só que era a algo pior do que ela enfrentara. Embora, naquela derradeira noite, Norbury tivesse pedido algo que, parando
para pensar, poderia ser não só chocante, mas doloroso.

Olhou para o homem que, horas antes, tinha jurado protegê-la. A firmeza dele era perigosa e os olhos mostravam isso. Rose concluiu que ele não toleraria o que ela
acabara de se lembrar, ainda que ela lhe garantisse que não tinha chegado a acontecer.

- Não, ele não me machucou. Não da maneira que deve pensar.

- Fico contente.

Ele pareceu contente mesmo. Aliviado.

O leve sorriso ajudou a amenizar o clima e acabar com qualquer raiva causada pela lembrança do passado. O fantasma de Norbury ou de qualquer outro que tivesse entrado
naquele quarto sumiu como uma fumaça fina que esvaece pela janela.

Rose tinha certeza de que agora Kyle só pensava nela. E lhe dava toda a atenção. Isso a deixava nervosa e inquieta, ficar ali enquanto ele a olhava. Ela também olhava
o peito e os ombros banhados pelo brilho cálido da lareira. O corpo dela reagiu à expectativa que saturava o ar.

- Venha cá, Roselyn.

Claro que ela obedeceu. Fazia parte do que havia prometido naquele dia. Não era uma menina inocente e não ia mostrar quanto ainda se sentia como tal.

Ficou bem na frente do marido, com o peito nu dele a centímetros de seu nariz. Um peito atraente. Só a proximidade dos dois já era provocante e ela teve um impulso
de beijar o corpo que a atraía.

Ele a beijou primeiro. Pegou o rosto dela nas mãos e a beijou com mais carinho do que nunca. Era como se quisesse dar confiança a ela, o que Rose achou muito bom.
Só que ele já tinha feito isso na carruagem, no dia em que se encontraram no parque. Tinha consciência de que parte de seu dever de esposa podia ser desagradável,
mas agora também sabia que outra parte seria muito boa.

O corpo dela concordou. Reagiu ao beijo mais do que seria preciso. O nervosismo diminuiu e a excitação aumentou.

Kyle a levou para a cama. Sentou-se na beirada para não ficar tão mais alto que Rose. Assim podia beijá-la mais facilmente. Mais intimamente. Com menos cuidado.
Enquanto beijava, colocou a mão sobre o seio dela. As carícias a excitaram tão rápido que ela se assustou. Ela deixou o desejo fluir e notou que seu corpo latejava
lá embaixo, ansiando por ele.

Kyle observou a própria mão moldar o tecido da camisola ao redor do seio, exibindo sua forma. Ela ofegava toda vez que ele lhe roçava o mamilo, tão penetrante era
a sensação que causava.

- Você é muito bonita, Roselyn.

A beleza não tinha sido de muita utilidade em seu erro. Ainda assim, o elogio a agradava.

Ele a olhava com tanta intensidade que Rose teve medo de que ele se desapontasse com o que visse.

- Você já ouviu isso muitas vezes. Desde criança, imagino.

- Se você me achar linda esta noite, estarei feliz.

- Sempre achei. Eu a vi uma vez, há anos. Num teatro. Não sabia quem era, só que nunca tinha visto uma mulher tão encantadora. Depois, percebi seu irmão no mesmo
camarote e concluí que devia ser a bela Longworth que tantos elogiavam.

O toque leve causou tanta alegria, tanto prazer que ela quase o repreendeu por não ter ido procurá-la quando soube quem era. Conteve-se a tempo. Sabia o motivo.

Teria sido por isso que fizera a proposta de casamento? Ela mal conseguia pensar nisso, raciocinava de um jeito preguiçoso, indiferente. Ele não resistira à chance
de ter algo que o mundo proibira a um filho de mineiro?

Ela se entristeceu ao pensar nisso. E veio novamente o impulso de beijá-lo. Dessa vez ela obedeceu, beijou a curva do ombro dele.

Foi como se acendesse uma tocha, tal o efeito que causou, apesar de Kyle imediatamente tentar conter seu desejo. Mas os olhos dele se aprofundaram a ponto de ela
pensar que poderia se afogar neles se os mirasse por muito tempo.

Ele puxou as pontas do laço que prendia a camisola no pescoço. Rose olhou para a mão dele, enquanto as fitas acetinadas corriam e o nó se desatava. Pareceu levar
uma eternidade. Um ponto dentro de seu corpo latejou e se retesou, como se uma língua invisível estalasse em sua carne.

Percebeu que Kyle ia despi-la. Ali mesmo, despi-la inteira, com a vela acesa na mesinha lateral. Tinha certeza de que não era assim que se fazia. Só que ele podia
não saber. Mas...

Ela ainda estava surpresa por esses pensamentos quando a camisola escorregou pelos ombros. Kyle notou a surpresa, mas isso não o impediu de continuar. Desceu o tecido
até exibir os seios, túrgidos e com os mamilos escuros. Puxou a camisola mais para baixo, passando pela cintura e as pernas até Rose ficar nua sobre um lago de tecido
branco.

Rose ficou envergonhada. O quarto precisava estar escuro, ou quase, quando ela estivesse assim. E eles deviam ficar embaixo do lençol, quase anônimos nos gestos
por vir. Tentou se cobrir com os braços.

- Não.

Ele a segurou antes que conseguisse. Puxou-a mais para perto. Sua língua mal tocou a extremidade de um de seus mamilos.

Uma centelha de prazer percorreu seu corpo inteiro: intensa, direta, precisa. Depois, outra, e outra, sufocando seu constrangimento, fazendo-a querer apenas que
ele continuasse aquilo para sempre e que o prazer maravilhoso nunca cessasse.

Com a língua e a boca, ele a levava aos céus. Acariciou todo o corpo dela e ela então gostou de estar sem a camisola. O toque das mãos em sua pele, nas coxas e atrás,
nas costas, parecia certo, necessário e perfeito. Ela se virou, presa numa sensualidade e num desejo intensos, que pareciam aumentar cada vez mais, o prazer pedindo
mais prazer num crescendo infinito.

Ficou tão perdida nesse torpor que não percebeu que segurava o ombro de Kyle até ele soltar sua mão. Mal notou quando ele se levantou e a deitou na cama. Rose voltou
um pouco a si na pausa que se seguiu e o viu tirar a roupa à luz da vela que ainda queimava.

Ela esticou a mão e apagou a vela antes de ver o corpo inteiro dele como ele a vira. Kyle se transformou então numa silhueta, uma forma escura, indistinta e vaga.
Ele foi na direção dela na cama.

Um beijo, tão profundo e íntimo que ela jamais o esqueceria. Uma carícia, tão firme e possessiva que ela só podia render-se à sua maestria. Um toque, tão direto
e ciente de seu efeito que o corpo todo gritou com o prazer intenso.

Ele continuou. Ela manteve um grito ao mesmo tempo mudo e pleno de desejo, de sensação torturante. Rose perdera a consciência de seu corpo, exceto a tênue vontade
que exigia mais, qualquer coisa, tudo.

A voz dele, calma e profunda.

- Entregue-se. Vai entender o que quero dizer. Deixe acontecer. Solte-se.

Ela mal o ouviu. Não entendeu. Mas o corpo se soltou lentamente. O suficiente para que um tremor profundo surgisse e então aumentasse e subisse em ondas de prazer
cada vez mais altas, para no fim explodir em seu corpo e ofuscar sua mente, num momento etéreo de estupefação.

Kyle estava abraçado a ela, em cima dela. Sentiu-o entrar com cuidado. Com muito cuidado. Ela o deixou assim e ajeitou as coxas para que ele ficasse lá, para que
a penetrasse antes que aquela sensação maravilhosa tivesse fim.

A calma dele se foi. Veio a força. Ela não se importou. Não foi ruim, nem sequer desagradável. Ela se entregou a ele como se entregara ao próprio prazer, ainda flutuando
numa perfeição que as estocadas dele só fizeram prolongar.

 

Ele despertou perto da aurora e viu que Roselyn se fora. A certa altura da noite, talvez logo após ele adormecer, tinha voltado para seu quarto e sua cama.

Se ele tivesse ido até o quarto dela, Rose esperaria dele que saísse logo também. Era assim que se fazia com mulheres como ela. Elas não viviam em casebres, onde
marido e mulher compartilhavam a mesma cama a noite inteira, todas as noites.

Lembrou-se de, quando menino, ouvir murmúrios e risos íntimos no quarto ao lado. Aqueles sons pessoais davam vida à casa. Ele não tinha participação naquelas conversas,
mas os murmúrios traziam paz à noite.

Era estranho que a lembrança viesse naquele momento, tão vívida que, se ele fechasse os olhos, se sentiria na cama de sua infância outra vez. Esquisito que aquele
casamento tivesse aberto tantas portas para o passado. Só que ele olhava por essas portas como homem e via coisas que o menino jamais compreendera.

Uma das portas seria difícil de fechar. Se Roselyn não tivesse vindo na noite anterior, ele ficaria horas refletindo sobre o que vira de novo daquela soleira.

As imagens queriam invadir a cabeça dele. Ele as expulsou por ora. Quem sabe, de uma vez por todas. Assim como a honestidade absoluta, a pura verdade nem sempre
era benéfica.

Cochilou, depois acordou de novo, num sobressalto. Era tarde. Não tinha apenas cochilado.

A água para lavar o rosto estava à espera. As roupas tinham sido preparadas para que se vestisse. Jordan estivera lá, mas deixara o noivo dormir. Ele não chamou
o criado, mas se arrumou para mais um dia.

Desceu a escada e acompanhou o som das vozes na cozinha, nos fundos da casa. Rose estava lá com Jordan. Usava um vestido simples, cinza, que ficaria bem numa dona
de casa modesta. Continuava linda.

Não conseguia olhar para ela sem relembrar seu corpo à luz da vela, a timidez e os tremores de sua excitação. Apagar a vela tinha, sem dúvida, sido sensato, embora
ele tivesse vontade de olhar para a esposa a noite inteira. Na escuridão, ela conseguira se libertar um pouco e ele conseguira se controlar para não possuí-la com
voracidade.

O primeiro olhar que Rose lhe deu continha um agradecimento pela noite. Ela então abaixou os olhos.

Jordan serviu o café da manhã.

- Este lugar é simples, senhor, mas a vista do jardim e a luz são agradáveis. Posso servir o café na sala de jantar, se o senhor preferir.

- Assim está ótimo.

Ele se sentou à mesa onde havia almoçado com Rose no dia em que fizera o pedido de casamento. Com gestos eficientes, Jordan serviu um café da manhã bem tardio.

Quando Kyle terminou, Roselyn trouxe para a mesa o último prato a saborear.

- É torta de maçã - avisou ela. - Você disse que gosta tanto que às vezes come no café da manhã...

- Muito bem, Jordan.

- Não foi ele quem fez. Fui eu.

Ao fundo, Jordan terminou de secar uma jarra. Pegou seu casaco.

- Quero olhar um pouco o jardim, madame. Com sua permissão, posso sugerir algumas melhorias.

- Claro, Jordan.

Rose cortou uma grande fatia de torta e colocou num prato. Deu um passo atrás e esperou que o marido provasse.

Ele deu uma boa mordida.

A torta anterior estava ruim. Já esta estava horrível. Olhou para o armário e todos os mantimentos. Tinha presumido que a primeira torta ficara ruim por falta de
açúcar e sal. Pelo jeito, o problema não era esse. Roselyn é que fazia tortas horríveis.

Ela teve prazer de vê-lo comer. Por sua expressão facial e os sons que fazia, ele estava gostando.

- Deliciosa - falou ao engolir o último pedaço.

- Fico contente que tenha gostado. Jordan ficou estalando a língua enquanto eu assava, mas acho que só estava irritado por eu estar fazendo o trabalho dele.

Ele a segurou e a puxou para si.

- Você não precisa mais cozinhar. Não precisa fazer tortas.

- Eu sei. Só que esta manhã me lembrei de que servi torta a primeira vez que esteve aqui e que pareceu gostar. Então quis fazer outra.

Ele percebeu que tinha acabado de ser elogiado pela noite anterior.

Beijou-a e a soltou. Não estava com fome naquele momento, pelo menos de comida. Muito menos daquela torta.

Mesmo assim, cortou mais uma fatia.

 

CAPÍTULO 11

Kyle colocou os rolos de projetos numa grande sacola de lona.

O assunto não podia esperar mais. Muito já fora investido naquilo. Ele não tinha escolha senão encontrar Norbury, como estava marcado fazia tanto tempo.

Tentou ouvir algum som vindo do quarto de Roselyn. Ela costumava acordar cedo. Não tinha o hábito de ficar na cama até o meio-dia como certas damas. Nesse dia, entretanto,
o pavimento onde ficavam seus quartos continuava estranhamente silencioso. Como ele a mantivera acordada quase a noite inteira, não se surpreendeu.

Ela não parecera se importar em dormir pouco. A noite lhe despertara novos apetites. E, ao contrário do que ocorrera em Oxfordshire, onde ela sempre o procurava,
como se quisesse demonstrar que cumpria seus deveres conjugais, ali em Londres era o contrário: ele é que ia encontrá-la. Isso significava que, às vezes, como na
noite anterior, Kyle se demorava bastante por lá.

Ela não se importava, mas, ao mesmo tempo, preparava os rituais da noite de maneira a não ficar constrangida. Depois daquela primeira noite, sempre apagava as velas
mais cedo. Apesar da escuridão, Kyle conhecia o corpo da esposa melhor do que ela pensava. O toque revelava muito e a luz da lua, mais ainda. Ela podia preferir
as sombras, podia até esquecer o rosto do homem que a possuía, mas ele jamais esquecia que era Roselyn que ele acariciava.

Riu para si mesmo ao se lembrar da pequena batalha que seu corpo enfrentava todas as noites. Roselyn Longworth lhe provocava um desejo tão forte, tão arrasador,
que muitas vezes ele ficava agressivo. Mas, como se tratava de Roselyn, uma dama que ainda se intimidava e se espantava com a nudez, ele tinha de se controlar.

Isso não era um problema. O final era sempre bom. Os doces êxtases dela e os gozos fortes dele o encantavam. Depois de tudo, era com pesar que ele abria mão da satisfação
absoluta que encontrava nos braços dela. Às vezes, como na noite anterior, ele passava horas recusando-se a ir embora, o que significava ter relações mais de uma
vez.

Desceu a escada. Aquela casa ainda parecia nova e estranha para ele. Roselyn ficara muito contente quando ele a levara para lá. Ocupava-se agora de arrumá-la a seu
jeito e de fazer as primeiras reaparições na sociedade.

Ele cuidava dos negócios, como essa reunião agora. Foi a cavalo para a casa de Norbury, com a sacola de lona presa à sela. O dia estava melhor que o humor dele.
Não falava em Norbury com a esposa, mas sua fome insaciável da noite anterior, o desejo de possuí-la, estava ligada à desagradável expectativa do encontro que se
seguiria.

Na verdade, aquele homem agora entrava em sua cabeça com muita frequência. Não só por causa de Rose, apesar de ele ter de se esforçar para afastar as lembranças
daquele caso. Pensar nisso só lhe dava raiva e uma vontade enorme de bater no canalha.

Kyle continuava também com a lembrança que tivera na noite de núpcias, como se aquilo precisasse ser revisto. Era o rosto de uma mulher espancada e machucada. Os
olhos da mulher o assombravam. A humilhação que mostravam parecia o rosto de Rose na noite do leilão.

No dia em que encontrara a tia ferida ao se defender dos jovens ricos que se divertiam com ela, Kyle lutara como um possesso. Eram três contra um e ele tinha apenas
12 anos, mas seus inimigos não haviam passado quatro anos carregando carvão na mina.

Ele achara que a havia salvado. Só agora, que os detalhes começavam a ressurgir em sua cabeça, ele reavaliava o ocorrido. Talvez não tivesse chegado no início da
violência contra a tia, mas no final.

Pensar em Rose o fez lembrar-se de tudo isso na noite de núpcias. Enquanto ele avaliava como lidar com ela, como lhe mostrar os caminhos do prazer sem deixá-la assustada,
chegara a sombra do amante anterior. Com a lembrança, viera o pensamento inesperado de que o sexo trivial devia ser o menor motivo para Rose não gostar de contato
físico.

Parou o cavalo na frente da casa de Norbury. Olhou a fachada em perfeito estilo paladiano que dava tanta elegância à construção. Considerava-a uma das melhores moradias
de Londres, de uma excelência que para muitos passaria despercebida num mar de influências clássicas. Era um desperdício, pois Norbury tinha pouca sensibilidade
para essas coisas.

Não podia se distrair com a estética, como costumava ocorrer. A nova pergunta sobre aquela briga travada fazia tanto tempo afetava bem mais do que a infância dele.
Fazia com que imaginasse mais do que gostaria sobre o caso de Rose. Chegava a incomodá-lo no encontro de hoje, pois Norbury tinha sido um dos meninos em que ele
batera.

A tia garantira que ele havia chegado a tempo e ele acreditara. Mas aquelas conversas noturnas no casebre deles sumiram por muito tempo e o tio nunca aprovou a ajuda
dada por Cottington. Aceite o dinheiro, mas não seja um lacaio, Kyle, meu jovem. Use-os da mesma maneira que eles usam os outros, mas não se torne um deles.

O mordomo sorriu ao receber o cartão de visita de Kyle. A familiaridade não era desrespeitosa. Os criados daquela casa, como os de muitas outras elegantes residências
londrinas, logo se afeiçoavam ao menino pobre que se tornara um homem bem-sucedido, alguém que circulava pelos dois mundos que eles conheciam.

- Meu patrão está ocupado, mas poderá recebê-lo em menos de uma hora - informou o mordomo ao retornar.

Kyle o seguiu até a biblioteca, sabendo que "menos de uma hora" significava uma espera de pelo menos 59 minutos.

Assim que a porta da biblioteca foi fechada, Kyle a abriu de novo. Desceu a escada para a cozinha. Norbury não devia estar ocupado coisa nenhuma. O atraso era apenas
a maneira enfadonha de o visconde mostrar a própria importância. Mas o tempo que Norbury tinha dado seria útil.

A confeiteira se virou, surpresa, ao ouvir os passos dele na escada.

- Sr. Bradwell! Que honra. Nossa, como o senhor está bonito. Parece que o casamento lhe fez bem.

- Olá, Lizzy. Você também está bem. Com um pouco mais de farinha que o habitual.

Ela passou as mãos nos cabelos grisalhos, fazendo surgir uma nuvem branca. Lizzy era uma das muitas criadas da casa que tinha família em Teeslow. Quando moça, fora
trabalhar para Cottington, depois se mudara para Londres quando Norbury fora para a cidade.


O cozinheiro, um homem sério, cumprimentou Kyle com a cabeça e resmungou parabéns pelo casamento. Tirou uma panela grande da mesa e, com o pé, empurrou um banquinho
até o espaço recém-liberado. Depois voltou a ralhar com uma criada na copa. Kyle sentou no banquinho.

- Veio falar com o patrão, não é? - perguntou Lizzy, enquanto partia ao meio a massa de pão e pegava um pedaço grande. - Uma daquelas conversas sobre dinheiro que
ninguém entende?

- Sim.

- Tem gente que diz que é como um jogo.

- É parecido, só que sou eu quem decide onde fica a maioria das cartas.

- Ainda assim, uma cartada errada e...

- É, pode acontecer.

- Não é muito provável que aconteça com o senhor, eu diria. Sempre foi mais esperto que a maioria, deve saber dar as cartas.

Geralmente. Normalmente. Mas havia sempre um risco. O importante em qualquer jogo era não se importar muito em ganhar ou perder. Um homem nervoso ou desesperado
sempre joga mal.

O sucesso dele dependia da certeza de que, se tudo desse errado, sempre poderia se recuperar e que um revés de alguns anos não faria muita diferença em sua vida.

O casamento mudava tudo. Percebera isso ao fazer seus votos durante a cerimônia. A responsabilidade dele em relação a Rose significava que nunca mais poderia ser
absolutamente destemido, e os outros perceberiam isso, ainda que ele tentasse esconder a verdade.

Tinha sido por isso que, dois dias antes, fizera um fundo de investimento para a esposa.

Dois cheques tinham estado à espera de que eles retornassem a Londres. Um, enviado por Cottington, era presente de casamento. O outro, os 10 mil de Easterbrook,
era de uma quantia bem maior e viera sem uma carta, um bilhete que fosse.

Se Rose soubesse da existência daquele dinheiro, pensaria que alguém havia pagado para que ele se casasse, o que de certa maneira era verdade. Enquanto olhava o
cheque, ele concluíra que não queria que ela pensasse isso. Ela não ia enganar a si mesma e ter qualquer ilusão romântica sobre casamento, mas seria ruim que não
tivesse ilusão nenhuma.

Só o presente de Cottington já bastava para salvá-lo do desastre, então pegara o suficiente de Easterbrook para prover Rose no caso de se tornar viúva e deixara
o resto num fundo de investimento para ela. Sua esposa teria como se sustentar se, no futuro, as cartas do baralho não fossem distribuídas como ele gostaria.

- Tem recebido notícias de Teeslow, Lizzy?

Lizzy era chegada a fofocas, por isso Kyle gostava de conversar com ela. A criada sabia tudo sobre Teeslow pelas cartas da família, com muito mais detalhes do que
a tia contava a ele.

- Bom, a garota dos Hazletts está esperando um filho e ninguém sabe aonde o pai foi parar. Peter Jenkins morreu, mas foi um descanso, porque ele estava muito doente.
E há boatos de que aquele túnel na mina vai ser reaberto. Você sabe qual.

Ele sabia. Tinha ouvido o boato quando estivera lá, em dezembro. Pelo jeito, o boato continuava, portanto devia ser verdade.

- Como vai Cottington?

- Mal, infelizmente. Quando ele se for, a criadagem vai chorar rios, garanto. Muita coisa vai mudar com a morte dele.

- Não é só a criadagem que vai chorar. Todos vão lastimar que o herdeiro assuma o lugar dele.

Lizzy conferiu onde estava o cozinheiro, antes de fazer uma cara que mostrava que ela pensava o mesmo. Concentrou sua força em sovar a massa do pão.

- Imagino que o visconde não foi ao seu casamento.

- Não mesmo.

O olhar dela foi bem expressivo. Significava que Norbury não se daria ao trabalho de ir, mesmo se fosse convidado. E que, naturalmente, a noiva de Kyle não ia querer
o ex-amante no próprio casamento.

- Fez muito bem, Sr. Bradwell. A ajuda que o senhor deu para aquela pobre mulher e o que agora faz por ela. É o que todos dizem.

- Infelizmente, não pude bater nele como fiz naquela vez, embora quisesse.

Esperou a reação dela. Na época da surra, Lizzy trabalhava para Cottington. Numa casa assim, os criados costumavam saber de tudo.

Ela pareceu surpresa por ele tocar no assunto. Olhou bem para ele, depois se voltou de novo para a massa de pão. Sovou com força.

A reação dela era plausível com um assunto que fosse tão escandaloso que seus detalhes tivessem de ficar em segredo.

Um simples mau comportamento de alguns jovens ricos, a história que ele conhecia, não seria motivo para isso.

 

- Continuo achando que as casas não têm quartos de criados em quantidade suficiente - reclamou Norbury após examinar os projetos por dez minutos.

Até então, as coisas iam bem. Recebera Kyle com indiferença e os dois se ocuparam dos projetos. Norbury parecia se esforçar para ser cavalheiro, mas Kyle via que
o visconde tentava ocultar um lado bem menos civilizado.

- As casas serão compradas por famílias com renda de milhares de libras por ano. Cinco quartos de criados, mais os da estrebaria para o treinador e o cocheiro deveriam
ser mais que suficientes.

- Milhares de libras. É incrível como eles conseguem.

Era uma observação idiota feita por um idiota, com a intenção de enfatizar como ele estava acima de preocupações frívolas como milhares de libras a mais ou a menos.
Norbury inclinou mais um pouco a cabeça loura sobre os projetos.

- Meu advogado disse que papai pretende assinar os papéis do terreno - comentou Norbury, e seu lábio inferior tremeu. - Ele não está participando de nada e não viu
os projetos, mas decidiu de qualquer forma.

Ótimo, iremos em frente, mas quem decide é o velho, não eu. Vou lucrar bastante com o seu trabalho, mas não que eu tenha escolhido isso.

Para Kyle, era indiferente como as coisas se passariam. Agora lamentava que estivesse nesse projeto, que o obrigava a aceitar a presença de Norbury. Se o conde não
se recuperasse para retomar as rédeas dos negócios, essa seria sua última parceria com a família dele.

- Procurarei o seu advogado amanhã - disse Kyle, juntando os projetos. - O trabalho nas estradas vai começar logo; a madeira e os demais suprimentos estão encomendados.
As primeiras casas estarão prontas em meados do verão, creio.

O dono da casa acompanhou os preparativos da saída do visitante. Deu-lhe um olhar gelado.

- Preciso lhe dar os parabéns.

- Obrigado.

- Não fui convidado.

- Foi um casamento no vilarejo, não em Londres.

- Li que Easterbrook compareceu.

A informação o incomodara. Kyle não sabia se pelo fato de aquele lorde especificamente ter sido convidado ou porque a presença dele fizera a ausência de Norbury
ficar irrelevante.

- A casa de campo dele fica perto e minha esposa é parente. Indireta, digo.

Norbury riu.

- Você fez bem em se casar com a minha puta, Kyle.

Kyle se obrigou a continuar encarando os projetos e mal controlou a vontade de estrangular Norbury. Eram palavras assim que motivavam duelos. Homens idiotas diziam
coisas idiotas por orgulho ou ressentimento. Coisas que outro homem não poderia permitir.

- Repita isso ou algo parecido, para mim ou para qualquer pessoa, e acabo com você. Se eu souber que sequer mencionou o comportamento vergonhoso que teve com ela,
só vou parar de bater quando você não conseguir se mexer por duas semanas.

Norbury ficou tão vermelho que Kyle esperou que ele desse o primeiro soco. Queria muito que desse.

- Bata, maldito. Pratico boxe duas vezes por semana.

- Isso só ajuda se o seu opositor obedecer às regras do esporte. Você vai lutar com um filho de mineiro e suas mãos suaves e inúteis não são nada contra mim.

Kyle se encaminhou para a porta. As palavras ríspidas de Norbury o acompanharam.

- Meu advogado disse que papai mandou um presente de casamento para você.

- Mandou mesmo. Foi muito generoso.

- Generoso, quanto? Quanto foi que ele mandou?

Norbury exalava agressividade, como se a quantia fosse a única coisa que interessasse.

Talvez fosse. Talvez Norbury nunca tivesse engolido que o pai ajudasse Kyle financeiramente. Já era ruim ter levado aquela surra. Pior ainda era que, por isso, o
pai ficasse sabendo do comportamento desonroso do filho naquele dia, por pior que fosse.

- Quanto? Uma quantia incrível, faltou só 50 para completar mil libras.

Kyle se satisfez ao ver a expressão de Norbury quando saiu. O homem era burro, mas não tanto. Em poucos minutos, concluiria que o presente de Cottington fora tirado
da herança destinada ao filho.

O que significa que Norbury tinha indiretamente devolvido o dinheiro do leilão e que o pai tinha sabido do que acontecera.

 

Nesse dia, Henrietta parecia diferente. Roselyn se sentou na sala de visitas em Grosvenor Square e tentou identificar por quê.

Era preciso considerar o efeito do chapéu. Um gorro com carapuça de renda, o que parecia bem mais comportado e elegante do que os chapéus que ela costumava usar.
Rose notou também que os cabelos louros tinham sido arrumados de outro jeito, combinando melhor com o rosto delicado.

Mas o que tinha mudado acima de tudo era sua expressão. Naquela tarde, seu jeito aéreo fazia com que parecesse jovem, em vez de desligada. E seu rosto não estava
contorcido de forma desdenhosa. Em vez disso, surpreendentemente, parecia quase o de uma jovem.

Conversaram sobre moda, sociedade e fizeram previsões para a próxima temporada. Alexia estava com elas. Além de mais três damas, todas de boa posição social e bom
humor. Alexia tinha levado Rose em visitas àquelas damas na semana anterior, provavelmente com a permissão delas. Elas agora, por sua vez, visitavam Henrietta no
dia que Alexia tinha sugerido, de forma que Rose pudesse comparecer também.

Tudo fazia parte de uma pequena campanha da qual, maravilha das maravilhas, Henrietta aceitara participar. Se ela não estivesse fazendo sua parte tão bem, não estivesse
sendo tão simpática e solícita, Rose iria pensar que Alexia tinha achado um jeito de subornar a tia do marido.

As visitas não se demoraram muito, mas ficaram o bastante. Podia ser que jamais visitassem a própria Rose para nada, mas, quando foram embora, tinham dado mais um
largo passo no sentido de aceitá-la.

Ia ser uma caminhada em círculos. A proveniência do marido causaria desvios de rota e interdições na pista. O escândalo no qual ela se envolvera criaria outros transtornos.
Mas a campanha de Alexia parecia estar dando resultado mais rápido do que se podia esperar.

- A reunião foi boa - confidenciou Henrietta, quando as três ficaram a sós de novo. - Creio que a Sra. Vaughn logo vai convidar você, Roselyn, para ir ao teatro.
Foi o que pareceu quando comentou sobre peças preferidas e tal. Como a tia dela se casou com um importador, ela não deve fazer muitas restrições a um comerciante
e pode até receber seu marido também.

Rose mordeu a língua. Henrietta não pretendia fazer uma provocação com aquele comentário. Ao mesmo tempo, não havia por que se ofender com a verdade.

Mas ela se ofendeu. Muito mais do que esperava. Kyle aceitava as coisas do jeito que eram, mas ela se irritava cada vez mais.

Não entendia como alguém que o conhecesse, que conversasse com ele, pudesse não aceitá-lo em sua sala de visitas. O trabalho dele também não era banal, juntava finanças,
arte e investimento. Quando os irmãos dela viraram banqueiros, algumas portas se fecharam para eles, mas a maioria, não.

Claro, tudo estava ligado ao berço. À família e aos antepassados. À família que Kyle jamais renegaria. Tinha-a avisado sobre isso.

Enquanto iam para a biblioteca, Alexia explicou a nova fase de sua campanha bélica, que incluía um jantar na casa dela. Aquelas três damas seriam convidadas, além
de duas amigas delas. Ela esperava que as convidadas que tinham acabado de sair convencessem as outras a comparecer. As cinco tinham maridos tidos como dóceis. Se
alguns deles deixassem suas esposas ficarem amigas de Rose, havia mais possibilidade de outros fazerem o mesmo.

Enquanto elas discutiam estratégias, Easterbrook entrou na biblioteca. Desculpou-se pela intromissão e ficou perto das estantes, examinando as lombadas. A presença
dele chamou a atenção de Henrietta, que se rendeu à curiosidade.

- Pretende ir ao exterior, Easterbrook? Porque está olhando memórias de viagem e títulos assim.

Ele tirou um livro da prateleira e deu uma olhada no texto.

- Não vou a lugar nenhum. Estou pesquisando para minha jovem prima.

- Ah, céus, vai mandar Caroline fazer uma viagem pelo continente? Eu desejei tanto isso... Ela precisa ir a Paris, claro, e...

- Não, não é uma viagem pelo continente - resmungou ele. - Busco informação sobre lugares bem específicos, para onde as jovens vão às vezes, mas parece que nenhum
desses autores tem nada de especial sobre eles.

Henrietta franziu o cenho.

- Que tipo de lugar?

Ele colocou o livro na prateleira e tirou outro.

- Conventos.

- Conventos!

Rose achou que Henrietta ia precisar de sais. Alexia a acalmou e se dirigiu ao marquês.

- Tenho certeza de que está brincando. Por favor, diga à sua tia que está querendo irritá-la de novo.

- Gostaria de estar. Na verdade, gostaria que Hayden assumisse seu papel de responsável por isso, em vez de me deixar mexendo em assuntos que não entendo e não me
interessam.

- Viram? Ele ainda não a perdoou por aquele flerte com Suttonly no verão passado - disse Henrietta, alto. - Ela obedeceu a sua ordem, Easterbrook. Há semanas que
não pronuncia o nome dele.

- Henrietta, o verão passado já foi bastante ruim, mas lastimo dizer que estou às voltas com mais um daqueles desastres causados pelas jovens. Prever um duelo por
ano já bastava, obrigado. Mas ter de me preparar para dois é uma provação para a minha paciência.

Ele franziu o cenho para os livros e tirou mais um da estante.

- Vou me livrar logo desse dever maçante. Vou duelar com o sujeito, deixá-lo bem ferido, mandar Caroline para um convento e ficar sossegado por alguns anos, pelo
menos.

Henrietta chorou. Easterbrook continuou a mexer calmamente nos livros. Alexia tentou ser diplomática.

- Sua tia e eu não sabemos de nenhum admirador de Caroline no momento. Acho que está enganado.

Ele fechou o livro com força.

- Não se trata exatamente de um admirador. Trata-se de um sedutor. Não estou enganado, Alexia. Lastimo dizer que estou convencido de que Caroline já perdeu sua virtude.

Isso causou um susto. Henrietta se espantou tanto que ficou ofegante e boquiaberta. Depois chorou copiosamente.

- E quem é esse homem? - exigiu saber Alexia.

- Aquele químico francês. Amigo de Bradwell.

Henrietta parou de chorar. Arregalou os olhos. Olhou de esguelha para ver a que distância dela estava o marquês.

- Garanto que está enganado - disse Alexia.

- Vi-o esta manhã mesmo. Ao nascer do dia, eu estava olhando o jardim pela janela e o vi. Saindo desta casa.

Ele deu uma olhada preocupada para a tia.

- Agora tenho de ser babá também, tia Henrietta? Até eu me impressiono por se descuidar tanto dela. Eu, que não dou a menor importância a essas coisas.

Henrietta ficou imóvel. Easterbrook estava atrás dela, então não viu o que Rose e Alexia viram. O rosto da jovem senhora ficava cada vez mais vermelho.

Rose olhou para Alexia exatamente quando Alexia se voltava para ela. As duas encararam Henrietta.

- Easterbrook, continuo achando que está enganado - insistiu Alexia. - Se foi ao nascer do dia, não era possível ver direito o que era, ou quem. Talvez um dos jardineiros
estivesse andando por ali.

- Não, Alexia. Era ele.

O marquês desistiu de olhar os livros.

- Infelizmente, esses livros não trazem indicação de conventos. Vou pedir ao advogado que faça umas pesquisas discretas. Um convento na França, por exemplo, para
tia Henrietta poder visitá-la uma vez por ano.

Quando Easterbrook seguiu em direção à porta, Alexia se pôs no caminho dele.

- Mesmo se estiver certo e fosse ele no jardim, isso não prova que esteve na casa. Nem que procurou Caroline. Afinal, podia estar atrás de uma das criadas.

Ele a olhou com carinho, como sempre.

- Vi-o flertando com ela no casamento da sua prima. Fui descuidado em não avisar, mas Henrietta estava com eles e concluí...

Todos congelaram enquanto a cena pairava no ar. Rose quase conseguiu ouvir o marquês recapitulando, pensando, rejeitando... reconsiderando.

Easterbrook virou e olhou para a tia. Moveu a cabeça, observando-a. Ela estremeceu enquanto ele examinava o chapéu novo, o penteado diferente e o viço recém-adquirido.

- Alexia, seu valoroso bom senso me poupa de cumprir obrigações desagradáveis. Eu talvez tenha sido um pouco precipitado ao pensar o pior de Caroline. Talvez não
fosse monsieur Lacroix que estivesse no jardim.

Pediu licença. Da porta, antes de sair, ele voltou a falar.

- Contudo, caso tenha sido... Henrietta, por favor, fale com as criadas. Se uma delas está recebendo um homem, espero que os dois se divirtam. Mas é melhor que ele
saia quando ainda estiver escuro, de forma que não haja mais nenhum mal-entendido.

 

Rose atravessou a porta que ligava seu quarto de vestir aos aposentos de Kyle. Ele não iria procurá-la nessa noite. Suas regras haviam chegado. Encontrar uma maneira
delicada de dizer isso a ele exigira muita habilidade sua. Ele parecera achar graça das sutilezas que a esposa usara, mas a havia compreendido.

Ela ouviu a voz de Jordan e o som do marido despindo-se. Depois, ficou tudo em silêncio. Abriu a porta. Os quartos de vestir não eram opulentos e espaçosos: o quarto
dele ficava a poucos passos. A lamparina ainda não tinha se apagado e ela percebeu as silhuetas do toucador, as escovas e o espelho dele.

Prosseguiu, deu uma olhada. As cortinas do dossel não tinham sido fechadas. Ele estava deitado, com o camisolão aberto mostrando o peito forte.

Ficou olhando. Não o via despido desde a noite de núpcias. Ela sempre apagava as velas e lamparinas, mesmo quando o procurava em Oxfordshire. A escuridão fazia a
cama misteriosa e sobrenatural e evitava um grande embaraço. Tornava mais fácil que ela se entregasse.

Ele estava com a cabeça apoiada nos braços dobrados. Parecia compenetrado, como se tivesse percebido algo no teto que exigisse sua atenção. Mas estava tão imóvel
que talvez nem estivesse acordado.

- Kyle, está dormindo? - sussurrou ela.

Ele se sentou na cama. Olhou para a esposa e observou sua camisola e o penhoar, que não eram nem novos nem tão bonitos.

- Acordei você? - insistiu ela.

- Não. Estava pensando em alguns problemas que tive hoje.

- Sobre terras, associações de mineiros e coisas assim?

- É.

Ela entrou no quarto cautelosamente.

- Alexia combinou de algumas damas me visitarem. Bom, não a mim, mas a Henrietta. Porém elas sabiam que eu estaria junto e foram mesmo assim.

- Venha aqui me contar isso.

Ela subiu na cama e contou sua pequena vitória.

Ele pareceu muito interessado.

- Lady Alexia age rápido.

- Ela ainda acredita que Irene tem chance de ser apresentada nessa temporada, acho.

Irene não tinha saído da casa de Alexia. Todos achavam que sua única esperança era que a prima a apresentasse à sociedade.

- Quando ela der esse jantar, você deve usar um vestido novo - disse ele. - Vou mandá-la para lá tão bem-vestida que será a mulher mais elegante da mesa.

- Talvez você me acompanhe, em vez de apenas me mandar ao jantar.

- Pouco provável. Lady Alexia é esperta demais para lutar em duas frentes ao mesmo tempo.

- Então não sei se vou querer ir.

A expressão no rosto dele mudou um pouco, o suficiente para ficar indecifrável.

- Quer saber de uma fofoca? - perguntou ela. - É sobre alguém que você conhece.

- Todo mundo quer saber de uma fofoca, principalmente sobre alguém que se conhece.

- É fofoca das boas. Tudo indica que seu amigo, o Sr. Lacroix, está tendo um caso com... Henrietta!

- Quais são as provas?

- Ninguém menos que Easterbrook o viu saindo da casa. Você acredita?

- Que indiscrição de Jean Pierre. Devo avisá-lo?

- Desde que não seduza Caroline, acho que Easterbrook não se importa se ele ficar com todas as mulheres da casa. Quanto a Henrietta, o marquês pareceu encantado
e feliz por poder cutucá-la sobre isso nos próximos anos.

Eles riram. Foi bem agradável ficar ali de noite, conversando sobre fatos do cotidiano. Mas quando terminou a história, Rose sentiu que o marido estava se distraindo
outra vez. Os olhos dele ficaram insondáveis como quando ela havia chegado ao quarto.

- Bom, boa noite - disse ela, saindo da cama.

Ele pegou sua mão.

- Fique.

Talvez as palavras brandas que ela usara tivessem sido vagas demais.

- Eu... quero dizer, hoje eu... estou naquela semana em que...

- Fique, mesmo assim.

Rose sentiu algo diferente no coração quando, sem jeito, entrou embaixo dos lençóis. Kyle apagou a lamparina e a escuridão envolveu a casta intimidade dos dois.
Ele a abraçou.

Ela não dormiu logo. Ficou preocupada com a novidade daquele tipo diferente de afeto.

- Preciso ir ao norte outra vez - disse ele, e sua voz não a assustou, tão calma veio na noite. - Daqui a duas semanas, talvez. Não vou ficar mais de uma semana.

- Posso ir junto? Você disse que iríamos na primavera, mas, se vai agora, eu também gostaria de ir.

- A viagem vai ser no frio. E você tem aquele jantar.

- Alexia pode marcá-lo de acordo com a viagem. E não tenho medo de um pouco de frio.

Duas semanas antes, ela jamais pediria para ir. Mesmo alguns dias antes, ela poderia ter apenas deixado a informação passar. Mas agora queria muito ver como fora
a vida dele. O abraço nessa noite a emocionou, mas também deixou bem claro que, mesmo com tanto prazer, havia um vazio naquele casamento que ela não conseguia explicar.

Não sabia se um dia esse vazio seria preenchido. Talvez Kyle fosse sempre um pouco estranho. Talvez ele preferisse assim. Ela não tinha ao menos certeza se gostaria
do que seria preenchido, se isso ocorresse. Só sabia que o vazio parecia grande nesta noite, talvez porque uma nova emoção o destacasse. Sua alma quase doía por
desejar algo tão fora de alcance.

- Veremos - disse ele. - Amanhã vou para Kent e passarei uns dias lá. Você não pode ir, já que iniciarei algumas obras e só haverá operários, muita lama de inverno
e eu...

Algumas obras. Em Kent. Devia ter sido o trabalho que fora tratar com Norbury no dia do leilão.

Súbito, entendeu por que Kyle estava tão pensativo na hora em que ela entrou no quarto. Devia ter encontrado Norbury. Talvez naquele mesmo dia.

Ele jamais a deixaria saber se Norbury os insultara. Jamais contaria se pensava naquele caso. Mas Rose tinha certeza que sim. Talvez até naquele instante, enquanto
os pensamentos vagavam pela noite.

Ela podia saber mais sobre ele e começar a preencher aquele vazio. Eles podiam ter muitas noites como essa, em que conversavam como amigos e não como amantes.

Entretanto, não importava o que acontecesse, não importava quanto tempo ficassem casados, Norbury seria uma sombra entre eles, afetando tudo, mesmo as coisas boas,
ainda que nenhum dos dois jamais pronunciasse o nome dele.

Esse pensamento quase estragou aquela noite agradável. Norbury tinha entrado na cabeça dela. E quase dava para ouvi-lo falando na de Kyle. Sua influência malévola
ficou tão opressora que ela pensou em sair da cama.

Kyle virou de lado, dormindo. O braço ficou casualmente sobre ela. A mão estava sobre o seio, num gesto ao mesmo tempo confortador e possessivo. Ficou assim a noite
toda, impedindo-a de escapar.

 

CAPÍTULO 12

Kyle estava em Kent fazia dois dias quando Roselyn recebeu a carta. Tinha sido reenviada de Watlington. Reconheceu a letra na hora: Timothy tinha escrito outra vez,
embora a carta estivesse assinada como Sr. Goddard.

Dessa vez, não escrevera de Dijon, mas de uma cidade italiana chamada Prato.

 


Finalmente atravessei os Alpes. Estou morando aqui por ser menos dispendioso do que Florença. E também por haver menos possibilidade de eu ser reconhecido. A viagem
foi exaustiva e o clima, horrível. Tive medo de morrer. Passei mal quase todo o tempo. Agora vivo entre estranhos cuja língua ignoro e sofro de uma tristeza grande
demais para aguentar.

Pretendo ficar aqui até que venha ao meu encontro. Por favor, escreva logo, dizendo que vem. Só verei o sol na minha janela quando você chegar. Conte-me seus planos,
de forma que eu tenha algo por que esperar.

Rose, meu bolso se ressentiu da longa estada em Dijon e dos honorários dos médicos, que não serviram para nada, mas foram caros. Quero que venda a casa e o terreno
em Oxfordshire e traga o dinheiro. Esta carta a autoriza a fazer isso em meu nome. Leve-a a Yardley, nosso velho advogado. Ele reconhecerá minha letra e lhe dirá
o que fazer. Eu o autorizo a ser meu procurador na venda caso, por ser mulher, você não seja aceita. Se houver mais exigências, escreva-me imediatamente, de maneira
que possamos efetuar a venda o mais rápido possível.

Sei que ainda faltam meses, mas conto os dias na esperança de que ainda seja minha adorável irmã de sempre, um coração bondoso que me deu força por quase a vida
inteira. Prometo que tudo vai melhorar quando estivermos juntos outra vez.


Timothy

Ele ainda parecia perdido e só. A menção a uma doença não ajudava a melhorar as coisas. Rose não sabia se deveria torcer para que ele estivesse se referindo a passar
mal por excesso de bebida, já que esse era o grande fraco do irmão, ou por outro motivo.

E agora ela não podia ir encontrá-lo, por mais doente que ficasse. Ele jamais saberia que, por um curto espaço de tempo, quando passara algumas horas de grande felicidade
deitada numa colina, ela cogitara fazer isso.

Ela também não podia negar a verdade por trás da escolha que fizera. Ao aceitar o pedido de Kyle, deixara de lado as necessidades do irmão para tentar salvaguardar
a própria vida e a de Irene na Inglaterra - o que talvez se tornasse uma necessidade desesperada. Se não agora, um dia.

Ele afirmara estar ficando sem dinheiro. Isso despertara um pouco de raiva em Rose. Ela havia sobrevivido com quase nada esses meses todos. Ele deveria ser mais
controlado, em vez de gastar todo o dinheiro que roubara.

Deu um suspiro, tão fundo que o corpo todo estremeceu. Timothy estava sendo apenas Timothy. Sem a influência dela, continuaria sendo a pior versão de si mesmo. Ela
não podia salvá-lo. Não agora, depois de Kyle ter dito tão claramente que ela jamais iria ao encontro do irmão. Mas não podia abandoná-lo, como Kyle esperava.

Chamou a criada e trocou o vestido matinal por um conjunto para usar em carruagem. Tinha de encontrar Alexia na modista e encomendar alguns trajes novos. Mas antes
iria ao centro financeiro da cidade. Precisava saber se ainda podia ajudar o irmão.

 

Kyle observou o engenheiro perfurar a terra dura para conferir novamente o terreno antes de iniciar as fundações.

A uns 200 metros, outro homem marcava as árvores que seriam derrubadas e as que seriam poupadas quando a nova estrada fosse construída. Kyle imaginou a casa que
dali a pouco se ergueria ao lado daquele matagal.

Se tudo saísse conforme planejado, dentro de dois anos haveria famílias morando naqueles campos e carruagens passando por novas estradas. A propriedade de Cottington
seria valorizada e seus parceiros veriam os lucros.

Incluindo ele. Kyle ainda estava andando na corda bamba. Era bom e experiente em se equilibrar. Não chegava a perder o sono por causa dos riscos. Mas, como qualquer
homem, ele preferia ter os pés firmes no lado com dinheiro daquela corda.

O operário que marcava as árvores o chamou e fez um gesto apontando para o sul. Kyle olhou para a estrada naquela direção. Atrás da carroça que trazia as ferramentas
a serem usadas nesse dia, vinha uma carruagem.

Ele reconheceu o veículo. Foi até a estrada e chegou ao mesmo tempo que Norbury saltava.

- Espero que não tenha vindo da cidade só para ver o andamento da obra - disse Kyle. - Ainda não há muito o que conferir.

Sob a aba do chapéu de copa alta, Norbury olhou a elevação de terra.

- Estou oferecendo uma recepção na minha mansão. Resolvi vir aqui antes que os hóspedes chegassem.

Norbury olhou atentamente para Kyle, querendo avaliar sua reação. Kyle o deixou olhar à vontade. Não precisava que Norbury o lembrasse da última festa que tinha
dado. A imagem da humilhação de Rose vinha sempre à cabeça, sem que ninguém precisasse ajudar.


E ela chegou trazendo fúria e uma urgência de espancar o visconde. Kyle tinha controlado essa vontade na última vez em que se encontraram. Agora ela voltava e o
deixava tenso.

- Espero que essa festa seja mais discreta do que a última. Se espalharem o boato de que fazem orgias aqui perto, essas casas jamais serão compradas.

- Aposto que serão compradas mais rápido.

Norbury fez um gesto para que Kyle o acompanhasse.

- Vim falar de assuntos de interesse mútuo, além dessas casas. Recebi um recado de Kirtonlow Hall. Meu pai sofreu uma leve apoplexia. O médico disse que ele não
vai durar muito.

- Ele é mais forte do que a maioria. Pode durar mais do que os médicos imaginam.

Mais do que você espera. O filho era tão diferente do pai que nunca houvera muito afeto entre eles. De diversas maneiras, o conde deixara claro a seu herdeiro quanto
ele o decepcionava.

Não era apenas a capacidade intelectual de Cottington que não passara despercebida a Norbury. Algo fundamental faltava no filho, além de inteligência. Ele parecia
não ter a empatia natural que um ser humano sente pelos demais. Ou ter uma empatia deformada. Norbury não seguia os princípios morais que costumam guiar as pessoas
em assuntos grandiosos ou corriqueiros.

- Podemos desejar que ele viva para sempre, mas ninguém consegue - falou Norbury com uma sobriedade dramática. - Quanto ao outro assunto que eu queria tratar com
você, os vivos podem influenciar. Andei pensando no seu casamento.

Kyle apertou o passo, fazendo com que o outro o seguisse na estrada. Olhou para trás, para saber a distância que estavam dos operários. Será que veriam ou ouviriam
se ele quebrasse o queixo de Norbury com um soco?

- Pode parar de olhar para mim como um boxeador se preparando para uma luta - disse Norbury. - Sua decisão de se casar com uma mulher dessas é loucura. Estou mais
interessado no irmão dela e em como esse casamento muda nossos planos em relação a ele. Depois de me recuperar do choque de você se juntar a ela para sempre, vi
uma luz na escuridão.

- A única luz que existe é a da minha felicidade na escolha da minha esposa. Timothy Longworth foi embora. Nem ela nem eu temos ligações com ele.

- Ele não escreve para ela? É bem provável que sim.

- Não tem por quê.

- É irmã dele. Você precisa ver as cartas que ela recebe, assinada com o nome verdadeiro ou de Goddard. Veja qualquer carta enviada do continente, principalmente
da Itália.

- Não.

- Vai economizar muito tempo. Se ele escrever para ela, teremos...

- Não. Estou fora disso. Não quero participar e não vou ajudá-lo.

Um aperto no braço. Era a ordem de parar. Kyle olhou para Norbury, cujo rosto tinha perdido qualquer traço de gentileza.

- Céus, com que rapidez o cavaleiro puro foi seduzido e maculado. Esqueceu rápido seus lindos ideais sobre justiça, Kyle.

- Não vou espionar minha esposa.

- Não espione. Faça com que ela lhe conte.

- Ela não vai nos dar de bandeja a cabeça do irmão na nossa forca. Nem eu vou pedir.

- Porcaria nenhuma! Não há desonra nisso. Maldição, assim você vai até protegê-la.

A explosão de Norbury despertara seu pensamento. Seus olhos ficaram dissimulados.

- Na verdade, se não fizer isso, vai colocá-la em risco - concluiu.

Norbury podia ter um raciocínio lento, mas funcionava quando necessário. Kyle viu novas ideias surgindo, transformando seu rosto numa máscara de presunção.

- Ela decerto foi cúmplice desde o começo - disse Norbury.

- Claro que não.

- Maldição, eu devia ter percebido antes. Isso explica o reembolso feito por Rothwell. Não estava poupando um homem que já tinha escapado de nós, mas a cúmplice
que ficara para trás. Ela pode até estar com quase todo o dinheiro aqui, na Inglaterra. Aquela humildade era um disfarce para afastar suspeitas. Maldição, Longworth
nem era tão inteligente. Deve ter sido tudo ideia dela...

- Está falando bobagem.

- Até mesmo o que teve comigo. Pensei que eu a tivesse seduzido, mas vai ver ela quisesse ficar perto de mim para saber se as vítimas estavam prestes a descobri-la.
Seria irônico, não? Se ela estivesse o tempo todo...

- Continue insinuando isso e mato você.

- Está tão encantado pela beleza dela que é capaz de arriscar tudo? Duvido. Daqui a alguns meses não estará mais tão embevecido com seu grande prêmio. E verá o que
há por baixo da bela aparência. O irmão é ladrão e ela mesma mostrou ter caráter fraco e imoral.

Kyle agarrou Norbury pelo colarinho. Puxou-o e o levantou do chão.

- Eu avisei.

Norbury arregalou os olhos e inclinou a cabeça para trás.

- Ouse dar um soco e eu não vou me conter. Acho que um juiz gostaria de ouvir a questão e refletiria bastante antes de achar que estou errado. Meu ponto de vista
pode dar um bom processo. Com um pouco de esforço, talvez até se encontrem algumas provas.

A ameaça era óbvia. Justiça corrupta ainda era pior do que falta de justiça e um lorde tinha muitas formas de conseguir a primeira.

Kyle mal conteve a própria fúria. Soltou o colarinho de Norbury, que se ajeitou, alisando a roupa e ajustando a gravata. Endireitou-se e olhou com o deleite de um
homem que, de súbito, se descobria com um ás na mão.

- Descubra onde está o bastardo, Kyle - ordenou Norbury, já andando em direção à carruagem. - Com toda a honra que você acha que tem, não vai lhe fazer falta sacrificar
um pouco dela.

 

Assim que Kyle voltou de Kent, Rose percebeu que ele tinha encontrado Norbury novamente. Ele carregava uma nuvem pesada para dentro de casa. Sua expressão estava
diferente, mais dura que de hábito.

Naquela noite, quando se sentou para jantar, tratou-a como sempre. Até a ouviu pacientemente contar como foram os dias em que estiveram longe um do outro. Mas a
presença de Norbury na cabeça de Kyle era tão evidente que o outro bem podia estar à mesa com eles.

Quando o criado foi dispensado, ela se preparou. Era melhor desanuviar o ambiente e saber o que o estava preocupando. Isso não queria dizer que ela ficasse feliz
com uma possível discussão.

- Rose, quando ficou em Oxfordshire, recebeu alguma carta de seu irmão? Refiro-me a alguma além daquela da primeira vez em que fui visitá-la.

Ela não esperava essa pergunta, ou assunto. Não fosse pela intensidade com que o marido fizera a pergunta, ela podia ter contado tudo. Mas se conteve, tentando imaginar
por que ele perguntava e se a resposta tinha importância.

- Creio que ele escreveu pelo menos mais uma vez - acrescentou Kyle.

- Sim. Uma.

Era verdade, mas não toda ela. Rose havia recebido só mais uma carta quando estava em Oxfordshire.

- Então eu tinha razão: quando você falou em ir embora para sempre, era com ele.

Ela assentiu.

O fato de ter razão não alterou o humor dele.

- Não quero que tenha mais qualquer contato com ele, Rose. Se ele escrever de novo, queime as cartas sem ler. Não as guarde. Nem sequer veja de que cidade ele escreveu.

Ela ficou um bom tempo em estado de choque, sem conseguir pensar. Então o choque foi substituído pela raiva.

- Antes de nos casarmos, você disse que eu jamais poderia encontrá-lo, nem para visitas. Não disse que não podia escrever ou receber cartas dele.

- Eu disse. Mas, caso tenha entendido mal, estou repetindo agora.

- Eu disse que não o consideraria morto, mas agora você exige que eu aja como se estivesse.

- É.

O olhar dele era de ordem, mais do que a voz.

Ela se levantou e saiu da sala de jantar. Buscou um pouco de privacidade na biblioteca. Para sua surpresa, ele foi atrás.

- É melhor me deixar sozinha para aceitar o que você exige em relação a meu irmão - avisou.

- Preciso saber se aceita mesmo. Quero a sua palavra de honra.

- Minha palavra de honra? E o que me diz da sua? Se a minha puder mudar com a mesma rapidez, eu a dou com prazer. Naquele dia, você me convenceu de que tinha retirado
essa exigência.

Ela pensou que a culpa poderia amaciá-lo. Só que aumentou a raiva.

- Tenho um motivo para exigir isso. Gostaria que você acreditasse em mim, mas, se não acreditar, isso não muda nada. Você sabe como é o seu irmão. Você mesma disse
que ele é um perigo para você. Não pode ter contato com ele.

- Ele é meu irmão.

- Ele é um ladrão covarde. Um criminoso.

A firmeza de Kyle a surpreendeu. Ela o olhou atônita, surpreendida pela força que emanava dele, vendo-a e a sentindo sem controle.

Ele se acalmou, mas a tensão ficou no ar.

- Rose, você entende o que ele fez? Quantas pessoas ele roubou?

- Lorde Hayden...

- Lorde Hayden impediu que as vítimas ficassem na miséria total. Quanto você acha que ele pagou?

Ela se sentiu como uma criança na escola tentando adivinhar a resposta de uma conta.

- Muito dinheiro. No mínimo 20 mil.

A raiva chegou a dar expressão à risada curta e baixa que ele soltou.

- Essa quantia não faria a menor diferença para Rothwell. Pense na casa onde sua prima ainda mora. Ela lhe mostrou alguma joia nova? Ou trajes novos? Pense neles
e nos tecidos e enfeites que ela usa.

Rose sentiu o estômago embrulhar. Nunca tinha calculado a quantia, em parte porque sabia o suficiente para desconfiar que não gostaria da soma total.

- Quanto? - perguntou ela, num sussurro.

- Ao fim e ao cabo, no mínimo 100 mil libras. Talvez muito mais.

Ela arquejou. Quanto dinheiro!

Kyle se aproximou. Os olhos dele tinham um pequeno brilho solidário em meio a todos os de raiva.

- Seu irmão não sabia que Rothwell iria reembolsar nem uma libra. Presumiu que cada vítima simplesmente amargaria o próprio prejuízo. Assim como os clientes, quando
o banco faliu. Ele não roubou só dos ricos, mas de velhinhas, órfãos indefesos e pessoas que dependiam dessas reservas para viver.

- Tenho certeza de que ele não entendeu bem... Ele não podia... de propósito...

- Claro que ele entendeu. Tudo. Com toda a certeza, fez de propósito.

De novo, Kyle controlou a raiva. Foi visível seu esforço de se recompor.

- É tão estranho assim que eu queira que corte relações com um homem tão canalha?

Ela já não conseguia enxergar Kyle direito. Virou-se e tentou conter os soluços. Meu Deus, 100 mil libras! E Alexia e Hayden...

Enxugou os olhos e tomou fôlego.

- Você disse que conhece pessoas que perderam dinheiro. Quem são elas?

Por um instante, Rose pensou que ele não fosse responder.

- Meus tios.

Ela teve outro choque. Não eram amigos, mas pessoas da família.

- Porém foram ressarcidos, não?

- Sim, foram. É assim que você justifica, quando pensa no seu irmão? Pelo menos as vítimas foram ressarcidas. Pelo menos apenas uma vítima pagou caro em vez de dúzias
perderem tudo? É assim que você o desculpa?

- Eu não o desculpo.

- Acho que desculpa. Ele é seu irmão e você busca motivos para diminuir a culpa dele. Mas ele não é meu irmão, Rose.

Não, e Kyle não desculparia nada. Não se sentia nem um pouco solidário, nem tinha intenção de salvá-lo. Se Tim fosse preso, Kyle acharia justo que fosse para a forca.

Ela não tinha palavras para argumentar. Não tinha nada para contrapor, a não ser o amor por um irmão que tinha sido uma pessoa bem melhor quando criança do que adulto.

Ela pensava que Kyle fosse ao menos entender, se não aprovasse. Mas ele estava implacável, irredutível e disposto a fazer com que ela condenasse Tim como todo mundo.

- Você vai cortar qualquer contato com ele - repetiu. - Se tem cartas, queime-as. Se receber mais uma, destrua-a imediatamente.

Ele saiu da biblioteca. Não tinha pedido que ela prometesse, tinha ordenado. E ela deveria obedecer.

 

Naquela noite, Rose pensou em trancar a porta de seu quarto de vestir.

Nunca tinha feito isso. Não se importava que ele a procurasse todas as noites. Era a esposa, ele tinha esse direito e nunca saíra do quarto sem que ela tivesse alcançado
toda a liberdade que o prazer podia proporcionar.

Essa noite era diferente. Não tinha certeza se reagiria ao toque dele. Após a discussão, um silêncio duro como pedra caíra sobre a casa. E ainda afetava o ambiente
e ela.

Nessa noite, uma pequena parte de Kyle que ela ainda desconhecia se revelara. Ficara espantada com a força de vontade dele. Já a havia percebido antes, mas vê-la
dirigida a ela a assustara um pouco.

Devia ter suposto quanto ele era seguro. Em relação a si mesmo e às decisões que tomava. Sem isso, ele não teria sobrevivido no caminho que percorrera. Poucos homens
saíam de um vilarejo de mineiros de carvão para as salas de visitas de Londres em pouco mais de dez anos.

Poucos homens nascidos num vilarejo assim pediriam Roselyn Longworth em casamento, independentemente das condições em que estivessem suas finanças, sua reputação
ou o status de sua família.

Ela ficou na frente da porta, olhando a tranca. Não era a primeira vez que achava que, com esse homem, não devia agir guiando-se pelo capricho. Não que ele fosse
derrubar a porta se ela a trancasse. Acreditava que ele nem sequer se irritaria.

Em vez disso, imaginava que duas coisas poderiam ocorrer. Ou os dois teriam uma conversa igual à anterior, em que ele diria o que aceitava ou não que ela fizesse
ou haveria frieza e formalidade na cama na próxima vez que ele a procurasse, podendo se estender para as seguintes por bastante tempo. Talvez até para sempre.

Ela se afastou da porta e voltou para a cama. Apagou as lamparinas como fazia todas as noites e foi envolvida pela escuridão.

Talvez ele não viesse, embora já fizesse alguns dias que não se encontravam, por causa das regras dela e do tempo que ele passara em Kent. Sem dúvida, ele sentia
que a discussão ainda ecoava na casa. Tinha se retirado para o escritório e o trabalho, mas talvez as palavras ressoassem na cabeça dele como faziam na dela.

O coração dela ainda batia pesado ao lembrar como ele via a culpa de Tim. Cem mil libras. Ela às vezes pensava em reembolsar Alexia e Hayden, mas jamais poderia
ressarcir uma quantia dessas. Jamais. Por isso Alexia fora tão enfática ao desencorajá-la de encontrar Tim na Itália.

Só que agora ela estava casada com um homem que teria prazer em enforcar Tim com as próprias mãos. Não podia defender o irmão. Não podia dizer que Kyle estava errado.
Mas uma irmã não julga com base no certo e no errado, na justiça.

Cem mil libras. Como uma quantia dessas podia estar chegando ao fim? Tim dizia que precisava de mais dinheiro, e ela acreditava nele.

Um movimento sutil no quarto a tirou de seus pensamentos. Abriu os olhos na escuridão. Kyle estava ao lado da cama, não passava de uma silhueta negra no quarto sem
luz.

Tinha vindo, afinal. Isso a surpreendeu. E também a reação que teve: o coração bateu de alívio antes que ela conseguisse se controlar.

Kyle parecia estar à espera de algo ou decidindo alguma coisa. Ela não sabia o quê. Mexeu-se na cama e isso fez as cordas que sustentavam o colchão reclamarem.

Kyle também fez sons e movimentos quase imperceptíveis. Roupão caindo. Calor se aproximando. Braços se esticando e peles se tocando. Ela respirou e o sentiu inteiro
na cama, aquela presença total que transformava a noite.

Ele soltou o laço da camisola, fazendo-a escorregar pelos ombros e o corpo de Rose.

- Obrigado por não trancar a porta.

Será que ele a ouvira discutindo consigo mesma? Como era típico dele tocar no assunto, em vez de deixar que fosse uma escolha silenciosa. Rose esperava que não comentassem
também o motivo para ela pensar em trancar.

As carícias e o beijo mostraram que não comentaria.

- E se eu tivesse trancado?

Ela já nem estava muito interessada na resposta. As deliciosas palpitações da excitação a distraíam.

- Não sei. Ainda não havia decidido o que faria quando tentei abrir a porta.

Ela não pensou na resposta, apenas percebeu o perigo daquela incerteza. Mas o prazer já desviava sua atenção. Seduzia-a. Isso também era perigoso. O prazer embotava
os pensamentos e colocava tudo sob a melhor perspectiva.

Kyle se assegurava de que ela gostasse. Com suas carícias e beijos hábeis e firmes, levava-a à entrega que tinha se tornado tão habitual, tão atraente. O prazer
obrigava a uma espécie de abandono, concluiu ela. Abrir mão de ser racional e de si mesmo. Nunca chegara a compreender isso antes.

Dali a pouco, ela não entendia mais nada, nem mesmo a discussão. A névoa de sensações obscurecia tudo, menos o desejo de que ele lambesse seus seios e beijasse sua
barriga e tocasse a carne que ansiava por ser penetrada.

Kyle a tirou do colchão e a sentou em seu colo com as pernas afastadas. Puxou-a pelo quadril e a penetrou tão fundo que ela gemeu com a deliciosa sensação de completude.

Ele roçava os mamilos dela com as mãos e ela ganhava vida onde seus corpos se uniam. Diretamente. Maravilhosamente. A excitação desceu direto por seu corpo e se
instalou ao redor da completude que ele proporcionava.

- Venha aqui.

No escuro, Kyle a puxou para a frente até deixá-la apoiada sobre os braços. Seus seios pairavam acima dele. Ele então substituiu as mãos pela boca. O prazer aumentou
tanto que ela arfou. O jeito como a excitava era bom demais, urgente demais, irresistível demais para que ela conseguisse se controlar minimamente que fosse.

Ela se entregou à loucura, gritando e gemendo e se mexendo para senti-lo mais, melhor, mais firme. Ele a segurou pelas coxas e a penetrou com força para atingir
o ápice. Ela ficou completamente dominada.

Quando ele terminou, ela continuava excitada. Apesar das muitas ondas de prazer e entrega, o corpo dela ainda tinha fome. Ele percebeu. Colocou-a de costas e a acariciou
de novo, desta vez nas dobras da carne sensível e pulsante.

Ela quase desfaleceu. Agarrou-o com as unhas para fugir do prazer quase doloroso. Ouviu-o como naquela primeira noite, dizendo-lhe que se entregasse.

Dessa vez, foi o mais doce dos gozos. Primeiro a atingiu com força, depois se espalhou em turbilhões que deixaram seu corpo atônito. Ela se maravilhou nessa sensação
e prendeu o fôlego para que durasse para sempre.

Não durou, claro, ainda que seu corpo tenha demorado a entender isso.

Os acontecimentos anteriores da noite voltaram junto com a noção de espaço e tempo. Talvez tivessem saído dos pensamentos de Kyle também, banidos pelo delírio.

Ele não ficou por muito tempo depois que ela recobrou os sentidos. Naquele breve período tão saturado de paz, ela sentiu a sombra nele.

Desconfiou de que ele não esquecera aquela discussão, nem mesmo no momento do orgasmo. Tinha-a procurado nessa noite em parte por causa da briga. Havia deixado claro
que tais coisas jamais ficariam entre eles naquela que era a parte mais fundamental do casamento. Ele também se assegurara de que ela não se incomodaria com isso.

Esse frio cálculo não mudou a verdade de como ele a tratava. Se Kyle trouxera alguma raiva para aquela cama, não demonstrara. Como sempre, ele tivera consideração
e pedira pouco dela, além de que tivesse prazer.

Rose pensou uma coisa. Uma coisa incrível. Quem era ele e quem era ela, a forma como se encontraram, o escândalo e a redenção influenciavam tudo. Principalmente
o que acontecia naquela cama na melhor e na pior das noites.

 

CAPÍTULO 13

Kyle não havia mentido. No final de janeiro, a estrada para o norte era fria. Quando entraram no condado de Durham, o céu estava baixo, com nuvens de chuva.

Mais para o norte, a paisagem ficava montanhosa e cada vez mais deserta. Passaram por vilarejos pequenos e grandes. Rose identificou aqueles onde os mineiros viviam.
Os resíduos da mina, que os trabalhadores carregavam em seus corpos e roupas, deixavam marcas pelo caminho.

Quando se aproximaram de Teeslow, ela ficou nervosa. Kyle não tinha estimulado que ela fosse, mas concordara por insistência dela. Rose queria conhecer sua casa
e os tios, mas talvez não fosse bem-vinda.

- Você tem outros parentes além deles? - perguntou ela.

- Morreram. Meus tios tinham duas filhas mais jovens que eu. Morreram de cólera quando eu estava em Paris.

- Você sempre morou com eles?

A conversa parecia não incomodá-lo, mas tampouco lhe agradava.

- Meu pai morreu num acidente na mina, quando eu tinha 9 anos. Minha mãe tinha morrido alguns anos antes. O irmão dela ficou comigo.

Dali a pouco, a carruagem deles entrou no vilarejo. Rose olhou as poucas ruas e lojas, os amontoados de casas. Pó de carvão cobria as soleiras e batentes de algumas
casas, além do rosto e das roupas de algumas pessoas.

Kyle e Rose não pararam no vilarejo, continuaram em outra estrada que ia para o norte. No final dela, havia uma linda casa de pedra. Com dois andares, era parecida
com as casas menores encontradas no sul do país, geralmente destinadas a um administrador ou caseiro.

- Não esperava que fosse assim - disse ela.

- Pensou que seria uma casinha de cinco cômodos, no máximo? Eles moraram anos numa assim, lá no vilarejo. Há cinco anos, construí essa casa para eles.

Ele saltou da carruagem.

- Vou entrar, espere aqui. Eles não sabiam que eu vinha, e você vai ser uma surpresa total.

Foi até a porta, abriu-a e sumiu. Rose observou a casa. Viu o rosto de uma mulher, de relance, numa janela. Certamente, a tia olhava a surpresa total.

Ele estava sendo cuidadoso. Quando ela conhecesse seus parentes, os rostos disfarçariam o que pensavam, como ele também costumava fazer. Se não gostassem dela ou
achassem que não era uma boa esposa para o sobrinho, não demonstrariam isso num momento de surpresa.

Kyle voltou e estendeu a mão para ajudá-la a descer da carruagem. Uma mulher surgiu à porta, sorrindo para lhe dar boas-vindas.

- Rose, esta é minha tia, Prudence Miller.

Prudence tinha palavras amáveis e gestos afáveis.

- Ficamos muito contentes de você vir.

Esguia, de cabelos pretos e olhos brilhantes, Prudence tinha chegado à meia-idade com a beleza quase intacta. Rose a imaginou aos 20 ou 30 anos, de pele clara e
olhos escuros.

Como Prudence a recebeu sozinha, Rose concluiu que o tio de Kyle estivesse na mina. Assim que a levaram para a sala de visitas, viu que não era isso.

O tio Harold estava sentado perto da lareira. Tinha cabelos negros como os da esposa e era quase tão magro quanto ela. Apesar do rosto emaciado, Rose o achou parecido
com Kyle nos olhos azuis vívidos e nas feições de traços duros.

Ele a observou atentamente durante as apresentações. Rose notou sua palidez e o lençol que cobria suas pernas e o colo. Havia uma escarradeira numa mesa baixa perto
da perna direita dele. Tio Harold estava doente.

Os cumprimentos o fizeram tossir. Virou a cabeça e cuspiu na escarradeira.

- Você tem de fazer uma torta, Pru. Não podemos receber Kyle sem oferecer as tortas de que ele tanto gosta.

- Teremos uma no jantar - disse ela. - Esperem aqui um instante, vou ao andar de cima arejar um pouco o quarto.

Dava a entender que eles iam se hospedar lá. Kyle saiu e voltou com o cocheiro e as bagagens. A casa tinha um abrigo de carruagem e ele mandou o cocheiro para lá.

Carregou ele mesmo a bagagem para cima, seguindo a tia na escada. Rose sentou numa cadeira perto de Harold, que continuava a observá-la.

- É uma linda mulher, Sra. Bradwell. Agora entendo melhor este casamento.

- Espero que o senhor me trate por Rose.

Ele riu.

- Bom, vai ser uma experiência rara, tratar uma dama como a senhora com tal intimidade.

Tinha sido a imaginação dela ou havia um tom desaprovador na voz do tio? Considerando as circunstâncias do casamento, o "uma dama como a senhora" podia ter vários
sentidos.

Ela achava que o escândalo não podia ter chegado a Teeslow, mas talvez tivesse. Ou talvez Kyle houvesse explicado tudo em detalhes quando esteve lá, em dezembro.
Tenho a oportunidade de casar com uma dama porque ela está em tamanha ruína que nunca conseguirá algo melhor. A reputação dela vai me atingir, mas daqui a uma geração
ninguém vai lembrar muito disso.

Ela tentou manter uma conversa amistosa. Até o momento em que Harold começou a tossir. Ele estava com alguma doença muito grave. Rose se levantou para tentar ajudar,
sem saber como. Ele levantou a mão, impedindo-a. A tosse diminuiu e ele cuspiu de novo na escarradeira.

- Estou doente, como pode ver. É o mal dos mineiros. Achei que ainda teria uns bons dez anos de vida quando isso me atacou.

- Lamento.

Ele deu de ombros.

- Não se pode tirar o carvão sem levantar pó.

Kyle então voltou, poupando-a de encontrar o que dizer.

- Acho que vou roubá-la do senhor, tio. O quarto está pronto e Rose precisa descansar e se aquecer depois da viagem.

 

No quarto, Rose tirou o manto que usava em viagens e se aproximou da lareira.

- Seu tio está muito doente, não é?

- Está morrendo.

Ela assentiu, como se fosse óbvio.

- Ele disse que é o mal dos mineiros. Por causa do pó.

- Muitos adoecem dos pulmões. É de esperar, por isso levam uma vida tão controlada. Suas economias precisam ser suficientes para o sustento da família quando morrerem.

- É triste. Mas você fala sem emoção.

- A vida é assim, Rose. Essa doença é tão normal para esses homens como a gota é para os lordes. Um mineiro entra na mina sabendo disso, da mesma maneira que um
marinheiro embarca no navio sabendo que pode se afogar.

Kyle começou a desfazer sua mala. Nunca tinha levado Jordan lá, pelos mesmos motivos que ficara indeciso quanto a levar Rose. A casa não tinha nada de errado, mas
os tios não saberiam o que fazer tendo criados por perto.

Ele estava feliz de saber que Rose podia se virar sozinha. Do contrário, teria insistido em ficarem numa hospedaria, só que a mais próxima não seria conveniente.
Além disso, a tia ficaria ofendida se aquele casamento mudasse tão rapidamente os hábitos da família.

Mesmo assim...

- Você vai se sentir bem aqui? Se não for, pode me dizer.

Ela deu uma olhada no quarto, na cama sem dossel e nas cortinas de que tia Pru tinha tanto orgulho.

- É muito melhor que uma hospedaria. Vamos ficar juntos?

- Vamos.

Ela não pareceu se incomodar. Sentou na cama, depois se deitou.

- Acho que vou descansar um pouco. Nunca imaginei que viajar de carruagem vários dias pudesse ser tão cansativo.

 

Quando Roselyn acordou, Kyle tinha saído. Ela desceu a escada à procura dele.

Harold cochilava na cadeira ao lado da lareira acesa. Ela seguiu os sons que vinham da cozinha, nos fundos da casa.

Prudence estava lá trabalhando, sovando massa de torta. Sorriu e indicou o fogão com a cabeça.

- Aquele jarro em cima das pedras tem sidra e na mesa tem um copo, se quiser.

Rose se serviu e viu por uma janela dos fundos o pequeno pomar de árvores frutíferas novas, que estavam nuas agora, no frio do inverno. Havia um grande jardim no
lado oeste do pomar, à espera de ser cultivado na primavera.

- A casa é muito agradável - disse ela. - A vista de todas as janelas é linda.

- Kyle a construiu para nós. Quando voltou da França. Foi para Londres ganhar dinheiro, depois construiu. Harold não queria aceitar, claro, mas eu sabia que ele
estava adoecendo. Você vai ver que meu marido vai alfinetar Kyle por causa das roupas elegantes e das maneiras finas, mas se orgulha muito das conquistas do sobrinho.

Rose se aproximou para ver Prudence preparar a massa.

- Também faço tortas.

- É mesmo? Eu achava que as damas não sabiam cozinhar.

- A maioria não sabe. Mas eu gosto. Posso ajudar, se quiser.

Prudence separou algumas maçãs e uma tigela.

- Você pode descascar e depois cortar as maçãs aqui dentro.

Rose começou a trabalhar.

- Aonde Kyle foi?

- Foi andando até o vilarejo. Imagino que vá visitar o padre e depois tomar uma cerveja com os homens na taberna. Teria levado Harold na carruagem, mas ele estava
dormindo. Pode ser que amanhã leve. Harold sente falta da cerveja com os rapazes.

Rose imaginou Kyle andando quase um quilômetro até Teeslow. Voltando à antiga vida. Será que ele se livrara dos casacos antes de ir? Removera as camadas de gestos
educados e a mudança pela qual aceitara passar para ganhar dinheiro em Londres? Voltara a falar com o sotaque de Harold?

Nessa taverna, ele não seria o Kyle que ela conhecia. Seria o Kyle que continuava um estranho.

- Ele é amigo do padre?

Prudence riu.

- Bem, amigo não é bem a palavra. O conde encarregou o padre de ensinar Kyle a escrever e contar, além de latim e francês. Ele foi um professor exigente. De vez
em quando, esquentava o traseiro dos alunos com uma vara. Kyle não gostava das aulas, mas sabia que poderiam mudar a vida dele e continuou indo.

- O conde? Você quer dizer o conde de Cottington? Ele era o benfeitor de Kyle?

- Exatamente.

Ele nunca tinha dito. Pelo menos, não com todas as palavras. Ela concluíra que o benfeitor tinha sido... alguém. Não um conde. Não Cottington. Não o pai de Norbury.

Isso explicava muita coisa. A parceria naquelas novas construções. A presença de Kyle na festa de Norbury.

- Por que o conde fez isso?

Prudence estava atenta, raspando açúcar mascavo.

- O conde conheceu Kyle por acaso. Na mesma hora, viu que não era um menino comum, mas inteligente e corajoso. E que meu sobrinho seria desperdiçado na mina, embora
desde pequeno ele já pudesse fazer o trabalho de um homem. Por isso, o conde mandou o padre dar aulas a Kyle, de forma que, quando crescesse, pudesse ir a escolas
e tal.

Colocou o açúcar numa xícara.

- O conde é um homem bom e justo. Como poucos.

A pequena história trouxe dúvidas à cabeça de Rose. Tantas que não podia perguntar a Prudence sem parecer que a colocasse no banco dos réus.

Ela sabia pouco da vida do marido. Tinha muita curiosidade, mas nunca perguntara, apesar de ele ser a melhor fonte de informação.

Nunca perguntara, mas Kyle também nunca dissera. Não acreditava que fosse por vergonha do passado ou por não falar muito de si.

Os dois evitavam tudo aquilo porque falar no passado dele significava falar em Norbury.

A sombra daquele caso tinha influenciado até a maneira como os dois se conheciam.

 

- Vai dar problema. Não tem dúvida - assegurou Jon e bebeu um pouco de cerveja para enfatizar.

Kyle também bebeu, concordando. Jonathan era um mineiro quase da mesma idade que ele. Entraram na mina na mesma época, quando meninos, e carregaram os cestos de
carvão juntos, escada acima.

Agora Jon era um radical, o que o fazia imprudente ao falar com o amigo de roupas elegantes, que tinha morado lá fazia muito tempo.

Os demais mineiros foram simpáticos, até alegres. Brindaram quando Kyle entrou na taberna e o crivaram de perguntas sobre Londres. Mas não estavam dispostos a falar
sobre o que vinha acontecendo na própria cidade. Uma palavra errada poderia arruinar suas vidas.

- O comitê foi três vezes até os proprietários para se colocar contra a reabertura do túnel e explicar o perigo - disse Jon. - É mais barato perder alguns homens
do que fazer o que é preciso. Já vimos isso e veremos de novo.

Kyle, sem dúvida, tinha visto. Os ossos do pai ainda estavam naquele túnel fechado. Era perigoso demais retirar os mortos. A primeira tentativa servira apenas para
causar outro desmoronamento.

- Você falou com Cottington? - perguntou Kyle. - Ele vendeu quase toda a mina há bastante tempo, mas ainda tem certa influência. As terras ao redor ainda são dele.

- Dois dos nossos colegas tentaram. Ele está tão doente que não deixam ninguém chegar perto. Nem você pôde entrar na última vez em que esteve aqui. Quanto a falar
com o herdeiro... - a frase ficou no ar e a expressão de Jon mostrou a opinião que tinha sobre o tal herdeiro.

Ele olhou por cima do ombro. Passou a mão nos cachos louros, depois se inclinou sobre a mesa para confidenciar:

- Estamos nos organizando para irmos juntos. Não só aqui. Tivemos reuniões com grupos de outras cidades e com mineiros que têm outros patrões. Se ficarmos lado a
lado e falarmos juntos, seremos ouvidos.

- Cuidado, Jon.

- Cuidado, uma ova. A lei agora permite isso, finalmente. Temos o direito de nos unir. O que eles podem fazer? Me matar? Não podem matar todos nós. Não podem demitir
todos. Você mesmo falou isso há anos, antes de...

Jon desviou o olhar e bebeu mais cerveja.

Antes de ir embora e se tornar um deles.

- Quando se fica lado a lado, é preciso que todos estejam unidos. É preciso que todos aceitem passar fome. Haverá sempre os que vão abandonar o movimento.

- Se nós sairmos da mina, nenhum homem vai entrar. Vamos cuidar disso.

- Há sempre os que precisam trabalhar.

- Se as frentes se formarem na entrada das minas, isso não vai fazer diferença.

- Eles vão chamar a cavalaria. Vai ser um massacre.

Jon deu um soco na mesa.

- Pare de falar como minha mulher. Esqueceu o que acontece lá? Vá até aquela linda casa que você construiu para Harold e pegue as botas e as roupas dele. Venha comigo
amanhã, caso tenha esquecido por que o perigo não importa para gente como nós.

Aquele "gente como nós" não incluía Kyle. Ele era um deles, mas também não era mais. Ali era sua cidade natal, mas ele tinha ido tão longe, de tantas maneiras, que
cada vez que voltava, fazia menos parte daquele mundo.

Ele sentia isso, mas não conseguia evitar. Seus vínculos àquele lugar eram como tentar segurar areia: por mais forte que fechasse a mão, ela escorria entre os dedos.

Quanto tempo levaria até que poucos o reconhecessem quando andasse por aquelas estradas? Chegaria o dia em que ele entraria na taberna e as vozes se calariam e os
olhares examinariam o cavalheiro intruso.

- Vou a Kirtonlow enquanto estou aqui - disse ele. - Falarei com Cottington a respeito desse túnel.

O dar de ombros de Jon mostrou que não achava que isso fizesse alguma diferença. Pediu mais cerveja e deixou a conversa de lado junto com o copo vazio.

 

Kyle voltou para casa a tempo de jantar. Rose ajudou Prudence a servir. A conversa ia abarcando coisas corriqueiras, como costuma acontecer entre estranhos. Até
que Harold não aguentou. Queria saber as novidades que Kyle ouvira na taberna.

- Os rapazes não vêm muito aqui. É muito longe para andar depois de um dia de trabalho - explicou Harold.

Tia Pru sorriu de leve, como se pedisse desculpas pelo que parecia ingratidão pela casa que ganharam. Kyle não se importou. Harold sabia que não o visitariam muito,
ainda que ele continuasse morando no vilarejo. Um homem sem forças para ir à taberna era um homem isolado.

- Há boatos da reabertura do túnel - disse ele. - Ouvi isso em dezembro, mas parece que vai ocorrer mesmo.

- Aqueles idiotas. Idiotas gananciosos.

A notícia deixou Harold tão agitado que ele teve um ataque de tosse.

- Pelo menos pode ser que seu pai e os outros possam ter um enterro cristão - disse Pru, baixo.

Rose ergueu o olhar, surpresa. Seus olhos demonstraram algo que Kyle tinha visto várias vezes naquela noite. Curiosidade. Talvez reavaliação. Falar no túnel trouxera
à tona algo em que já vinha pensando.

Tia Pru trouxe uma de suas tortas. O cheiro bastou para melhorar o ânimo de todos. Pru era famosa por todos os tipos de tortas. Mesmo que precisasse usar frutas
que tinham passado todo o inverno estocadas num porão, ela conseguia que a receita ficasse deliciosa.

Kyle se sentiu menino outra vez, prevendo o gosto delicioso que só sentia em dias de pagamento, quando podiam comprar um pouco de açúcar.

Prudence cortou a torta em fatias.

- Rose me ajudou a fazer - contou.

- É mesmo?

- Nada como cozinhar junto para as mulheres se conhecerem - disse Harold. - Fico satisfeito que sua esposa goste de cozinhar, Kyle, meu rapaz. É bom saber que você
não vai passar fome lá em Londres.

- Rose faz ótimas tortas - disse ele.

Rose sorriu com o elogio. Kyle olhou a fatia de torta na frente dele.

- Então, tenho de agradecer a você por isso, querida?

- Não fiz muita coisa. Apenas cortei as maçãs.

Ele comeu. Não, ela não havia ajudado muito. A torta estava ótima.

Rose ficou observando-o comer cada fatia. Ela estava de novo com aquele olhar. Algo atiçara seu pensamento.

 

CAPÍTULO 14

Rose queria conversar com o marido. Ficou aborrecida quando ele não foi para o quarto com ela, deixando-a subir sozinha.

Assim que chegou ao quarto, Rose entendeu por que ele não a acompanhara. Dividindo aquele quarto, eles não teriam nenhuma privacidade. Os preparativos para dormir,
que costumavam ser feitos separadamente, teriam de acontecer na presença do outro.

Ela pensou nisso enquanto tirava o vestido e o espartilho, a camisa e o calção. Vestiu a camisola e sentou na cama para soltar os cabelos. Imaginou-o também ali,
despindo-se.

Olhou para a cama. Prudence e Harold dormiam há anos na mesma cama a noite inteira, todas as noites. Não se afastavam depois de cumprirem seus deveres conjugais.
Como seria viver totalmente ligada a outra pessoa?

Ela achou que devia ser muito bom, se houvesse amor. Horrível, se houvesse ódio. Invasivo, se houvesse indiferença.

Ouviu o som das botas dele na escada e concluiu que tinha mesmo se demorado por respeito a ela. Aquele casamento tinha muito disso.

Deixou a lamparina acesa e permaneceu onde estava. Não era uma cama muito grande. Aquela visita os forçaria a todo tipo de intimidade.

Kyle bateu na porta antes de entrar. Rose não acreditava que Harold alguma vez tivesse feito isso para ter certeza que Prudence o deixaria entrar.

Controlou o impulso de virar para o outro lado para que Kyle também tivesse sua privacidade. Mas ele não era uma flor delicada e ela queria conversar.

Ele tirou os casacos e os pendurou no guarda-roupa.

- Gostou da torta? - perguntou ela.

Ele sentou na cadeira e tirou as botas.

- Muito. Quase tão boa quanto as suas.

Ela ficou muda. O coração se encheu de uma sensação doce e pungente.

Na verdade, as tortas dela eram horríveis. Ninguém jamais a ensinou a cozinhar. Por necessidade, tentara quando era menina até conseguir algo que os irmãos achassem
mais ou menos comestível. O resultado não dava, de maneira alguma, para comparar com o toque mágico de Prudence.

Hoje ela havia assistido a Prudence fazer a torta e vira o que lhe faltara naqueles anos todos. E também sentira o gosto diferente.

Mas eis que Kyle mentia para ela não se sentir mal. Ele tinha a opção de não mencionar suas tortas. Como podia ter comido só um pedacinho da que ela fizera na manhã
seguinte ao casamento.

Naquele dia, cada garfada de torta devia ter entalado na garganta dele.

- Prudence disse que você hoje decerto visitaria o padre. E que ele ensinou as primeiras lições a você.

Não sabia se continuava a conversa. Eles podiam passar o restante da vida sem tocar nos assuntos que surgiram na cabeça dela nesse dia. Talvez fosse melhor assim.

Só que ela não ia dormir se não perguntasse. As respostas ajudariam não só no que sabia sobre o Kyle estranho, mas a entender o Kyle que conhecia.

- Ela disse que Cottington mandou o padre dar essas aulas. Que o conde era o seu benfeitor. Você nunca me disse isso.

Ele tirou a gravata.

- Você nunca perguntou.

- É verdade. Nunca perguntei. Estou perguntando agora. Quero saber.

- Quer saber pelas razões erradas.

O que aquilo queria dizer?

- Quero saber porque você é meu marido e esse fato extraordinário mudou a sua vida e o tornou o homem com quem me casei.

Ele se recostou na cadeira e olhou para ela.

- Certo. O conde reparou em mim quando eu tinha 12 anos. Achou que eu tinha talentos que deviam ser aprimorados. Combinou com o padre que me desse aulas, depois
pagou para um engenheiro em Durham ser meu professor durante dois anos. Conseguiu que eu fizesse provas para a Escola de Belas-Artes de Paris e me mandou para estudar
arquitetura lá. Quando voltei, ele me deu 100 libras e sua generosidade acabou aí, mas continuamos amigos e, às vezes, trabalhamos juntos.

E aquelas 100 libras tinham se transformado em mil, depois em mais e mais.

- É uma história surpreendente. Que seu progresso surpreende é fato, mas também achei a atitude do conde surpreendente. Por que fez tudo isso por você? Foi porque
seu pai morreu no túnel?

- Ele não sabia que meu pai era um dos mortos. O acidente tinha sido três anos antes.

Kyle desabotoou os punhos da camisa.

- Não sei por que fez isso. Acho que porque eu bati no filho dele. Talvez tenha admirado a minha audácia. Ou achou que o filho merecesse uma surra e gostou que outro
garoto tivesse coragem de dá-la por ele.

- Você bateu em Norbury? Que maravilha. Mas é lastimável que essa história esteja ligada a ele.

- Lastimável, mas inevitável, Rose. Não finja que, quando perguntou, não sabia aonde a história ia levar.

Ele tirou a camisa. Despejou água na bacia e começou a se lavar.

Ela não o via sem roupa desde a noite do casamento. Depois daquela noite, ele tinha sido apenas uma silhueta no escuro. Rose tinha sentido aqueles ombros e abraçado
aquela nudez, mas não tinha visto.

A luz fraca o favorecia, mas o vigor dele teria impressionado mesmo sob um sol de verão. Não havia um músculo flácido. Nenhuma gordura ameaçadora acumulada devido
a uma vida amena. Os músculos não pareciam volumosos, apenas proporcionais à altura dele. Como o rosto, o corpo parecia esculpido de maneira rústica e fazia supor
uma energia prestes a explodir. Ela ficou pensando se aquela tensão sumia em algum momento. Talvez, quando ele dormisse, ela ficasse escondida.

Rose prestou tanta atenção nele que quase se esqueceu da conversa. Kyle estranhou o silêncio e notou que estava sendo observado. Voltou a se lavar.

- Acho que eu sabia onde a história ia acabar - disse ela. - Sempre me surpreendi por você conhecer Norbury tão bem. Mas continuar a trabalhar com ele e a usar as
terras da família...

- Meu trabalho é com Cottington. Sempre foi. Norbury só tem participado agora porque o conde está muito doente.

A conversa se encaminhava para um terreno perigoso. Ela viu o espaço entre eles subitamente cheio de buracos e fendas. O tom da voz dele demonstrava que seria insensato
seguir adiante.

- Se o conde está tão doente, é provável que Norbury participe da sua vida por muito tempo - disse ela. - Pelo jeito, já participa. Está nas nossas vidas, Kyle.

Ele jogou a toalha no chão.

- Quando preciso falar com ele, eu falo. Depois, ele some da minha vista e da minha cabeça. Não faz parte de nossas vidas.

- Não? E como foi que nos conhecemos? Eu sinto a presença dele como se fosse um espectro. Acho que ele não sai da sua cabeça, no que me diz respeito. Acho que você
tenta esquecer o meu caso, mas...

- Sim, eu realmente me esforço para esquecer, maldição! É isso ou a vontade de matá-lo. Por causa da maneira vergonhosa como tratou você naquele jantar. Da maneira
como desconfio que tratou antes. Imagino-o com você e...

Ele abriu e fechou as mãos. Ficou tenso e, de um jeito sombrio, forçou-se a ficar calmo.

- Mas não penso nele quando estou com você. Não se reflete em você.

- Como não? Influi em tudo. Aquela noite afeta todas as coisas, até a maneira de você me tratar como esposa.

- Se você se refere à ordem que dei em relação ao seu irmão...

- Meu irmão? Céus, meu irmão é o problema nosso com o qual Norbury não tem nada a ver. Não gostei daquela nossa discussão, mas, pelo menos uma vez, falei com o homem
com quem me casei. Com ele por inteiro. O real. Não a invenção atenta e educada, que se veste tão bem, fala tão bem e me dá prazer tão corretamente e com tanto respeito.

Ela achou que jamais poderia vê-lo tão surpreso. Durou poucos segundos. Depois, ele fixou o olhar nela de tal forma que seu coração subiu para a garganta.

- Trato você com respeito, como uma dama, e você reclama?

- Não estou reclamando. Sei que tenho sorte de ter um amante tão atencioso. Só acho que você toma tanto cuidado por motivos que me entristecem.

Ele não gostou da crítica. Nenhum homem gostaria.

- Parece que você conhece a mim e aos meus motivos melhor do que eu, Rose.

Ela devia recuar, desculpar-se, ficar calada e grata. Mas, se fizesse isso, ele só ia se lembrar de uma ofensa que ela não tivera intenção de fazer.

- Talvez eu conheça mesmo, Kyle. Ou talvez o pouco que conheço de você me faça entender mal. Diga-me uma coisa: se não fosse aquela noite horrível, se não fosse
a minha situação, você precisaria ser tão cuidadosamente respeitoso? Se tivesse casado com uma moça ingênua daqui do vilarejo ou com uma mulher que nunca foi chamada
de puta, pensaria nisso o tempo todo? Se você não tivesse nascido neste vilarejo, mas numa grande mansão e me pedisse em casamento em outras circunstâncias, acharia
tão importante me tratar como uma dama?

Pelo menos a explosão dela não o deixou mais irritado. Ele ficou sério e contido, mas não furioso. O tempo passou tão lenta e silenciosamente que ela se arrependeu
do que disse.

- Desculpe. Eu não devia... - disse, puxando um fio solto do cobertor. - É que, quando estamos juntos, eu sinto... Você está quase sempre usando seus casacos de
corte impecável, Kyle, até na cama, quando está completamente nu.

Ela piorou uma situação que já estava ruim. Deitou-se e se cobriu bem para esconder os destroços do naufrágio que certamente fizera de seu casamento.

Desejou ser escritora ou poeta, para conseguir se explicar. Gostaria de ter palavras para expressar como a origem dela e a dele, a redenção dele e o escândalo dela,
o conhecimento que ele tinha de seu caso e a necessidade que ela tinha de não ser tratada como puta fizeram com que se erguessem aquelas barreiras de formalidade
entre os dois.

Era impossível explicar. Pouco provável que a situação mudasse. Ela devia aceitar. Devia se policiar para não ficar tentando alcançar algo que não sabia o que era,
daquele jeito doloroso e incessante. Ela devia...

- Os casacos não caem bem quando estou aqui, Rose. Apesar de todo o talento do alfaiate, ficam apertados demais quando venho para casa.

A voz baixa dele chegou a Rose através do silêncio tenso.

- Imagino que seja desconfortável.

- Muito.

- Ou os casacos estão apertados e você só nota quando vem para casa.

- Talvez você tenha razão.

Ela se sentou outra vez. Ele agora prestava atenção no fogo baixo da lareira e nos próprios pensamentos. Apoiava o braço na cornija enquanto olhava as chamas. Ficou
lindamente iluminado.

Ela se encantou com a cena. A luz da lareira parecia encher o quarto todo. O calor chegou até ela.

- Na verdade, desde que cheguei aqui, acho que minhas roupas também estão apertadas, Kyle. Talvez seja o ar do campo. Ou as tortas.

Ele sorriu.

- Então você devia parar de usá-las.

- Não estou acostumada a me livrar desses acessórios. Vivo apertada num espartilho desde o dia em que nasci.

Kyle a encarou. O coração dela perdeu o compasso, depois acelerou. Mesmo no dia em que a pedira em casamento, ele não demonstrara seu desejo com tanto despudor.

Ele se aproximou.

- Vou considerar isso um convite, Rose.

Abraçou-a com tanta força que a levantou da cama. Beijou-a de um jeito possessivo, firme, como quem não quer nada e quer tudo. Desta vez, não conteve seu desejo.
Puxou-a para um remoinho de força incontrolável.

Os beijos pediam, mandavam e a excitavam. Nem se quisesse, ela não podia fazer nada contra o domínio que ele tinha. Rose havia pedido isso e deixou que as próprias
reações selvagens se apossassem dela. Superaram o medo e a surpresa iniciais.

Beijos quentes. Fortes e profundos, mordendo e devorando. Braços de aço a impediram de reagir à fúria ardente em seu pescoço e na sua boca. Uma sequência de choques
maravilhosos atravessou seu corpo como flechas de fogo. Trouxe à tona o instinto primitivo dela até fazê-la gemer com o ataque glorioso e fazê-la perder qualquer
decoro.

Ele a apoiou de novo na beirada da cama. Acariciou suas pernas por baixo da camisola. Passou a mão no quadril e na bunda. Um toque furtivo e erótico no sexo. Os
dedos dele causaram um incrível formigamento.

Ela afastou uma perna para incentivá-lo a prosseguir naquela deliciosa tortura. Ele prosseguiu, mas interrompeu o longo beijo. Com a outra mão, ele levantou a camisola
dela até os ombros e a retirou por cima da cabeça. A camisola caiu ao chão, aos pés dele.

Ele olhou a nudez da esposa sério de tanto desejo. Suas carícias cobriam os seios enquanto a outra mão esfregava e provocava embaixo. A dupla sensação a deixou tremendo,
cambaleante, enfraquecida pelo prazer. Ela se inclinou para se apoiar nele até o rosto tocar suavemente em seu peito.

A mão de Kyle puxou sua nuca para mais perto até o rosto encostar por completo na pele lisa.

- Posso tirar a camisola, Rose, mas as outras peças que a escondem você mesma precisa tirar.

Ela compreendeu. O incentivo a encorajou. Espalmou as mãos no peito dele, olhando e sentindo ao mesmo tempo. O simples toque fez com que ele ficasse ainda mais excitado
e que uma nova rigidez o percorresse.

Ela o acariciou com mais ênfase. Olhou as mãos passando pelo peito dele, escorregando e percorrendo os sulcos dos músculos e costelas rígidos. Ele a olhou também
e as carícias e toques no corpo dela copiavam as delas. A respiração cálida dos dois se encontrou e se fundiu em beijos cada vez mais vorazes enquanto a excitação
os levava à loucura.

Ele tirou a mão das pernas dela e desabotoou os calções. Antes que ela pudesse se conter, deu um gemido insolente, afastou as mãos dele e assumiu os botões. As mãos
dele voltaram a afagá-la embaixo, fazendo-a quase desfalecer.

Ela lutava com a roupa dele, desajeitada, enquanto ele a tocava mais deliberadamente. Inclinou a cabeça para aproximá-la do pescoço e do ouvido da esposa. O dedo
dele apalpava com cuidado.

- É assim que você quer, Rose?

Ela não podia responder. Não conseguia falar. Mal conseguia se manter ereta. Agarrou a roupa dele sem ver, sem jeito, empurrando-a pernas abaixo às cegas, enquanto
os leves toques no seio e entre suas pernas a faziam gemer.

- Ou assim?

A mão dele contornou a perna e a tocou pela frente. Uma estocada longa, lenta e incrível fez um tremor de prazer percorrer seu corpo.

Rose sabia que ele tinha noção de quanto a deixava indefesa. Agarrou-se aos ombros dele e se segurou em busca de apoio.

Ele soltou uma das mãos dela, beijou-a e a guiou para a parte inferior do próprio corpo. Uma leve noção de racionalidade voltou, o bastante para ela entender o que
ele estava fazendo, o que queria. Perdida demais para se importar, ou se constranger, deixou que ele colocasse a mão dela no pênis.

Ele a tocou diabolicamente mais uma vez, o que deixou tudo mais fácil. O prazer passou pelo corpo dela como uma onda revolta, e em resposta ela acariciou como era
acariciada.

Qualquer decoro que ele ainda tivesse se rompeu. Beijou-a com nova selvageria. Ela sentiu a tensão em todo o corpo, no beijo dele e até na maneira como a tocava.
Intencional, agora. Disposto a fazê-la entregar-se por inteiro.

O orgulho perdeu qualquer sentido. Mesmo de joelhos, ela se movia ritmadamente, curvando-se aos beijos dominadores, gemendo de tanto querê-lo.

Ele a mudou de posição, mas não como ela esperava. Virou-a de maneira a ficar de costas para ele e acariciou seus seios. Ela se inclinou na direção de Kyle. Os mamilos
se eriçaram, se intumesceram, endureceram, implorando mais, qualquer coisa, tudo.

Ele a mudou de posição novamente, curvando o corpo dela até deixá-la de joelhos na beirada da cama com as pernas dobradas sob o corpo. Um tremor incrivelmente erótico
estremeceu suas ancas.

Ele levantou o quadril dela. Ela esperou, ofegante, tão excitada que não conseguia aguentar. O corpo latejava na expectativa. Rose imaginou o que ele via, as nádegas
viradas para ele, mostrando aquela carne escondida. A imagem despudorada só a excitou mais.

Ele não a possuiu imediatamente. Deixou-a esperar, chegar à beira da loucura. Ficou acariciando as nádegas dela, roçando as curvas da pele, olhando para ela, com
certeza. Assistiu à submissa rendição e ao seu desespero.

Tocou-a de novo, ela gritou. Desta vez foi diferente. Rose estava exposta e aberta e sabia que ele olhava, sabia que via o corpo nu. Ela desceu mais as costas e
levantou mais as nádegas.

Dali a pouco, estava implorando. Implorando, gemendo e abafando os gritos nos lençóis. Finalmente, ele a penetrou numa estocada longa e lenta, proposital. Abaixo
de seu gemido de prazer, ela teve a impressão de ouvir o dele também.

Depois, ela se perdeu. Tudo o que sentia era o torturante prazer da necessidade de ser preenchida e a violenta intensidade da completude.

 

- Você veio aqui para ver Cottington antes que ele morra?

Rose estava nos braços de Kyle, sob os lençóis. Fazia algum tempo que ele tinha levantado o corpo lânguido dela e a colocado ali de maneira a ficar colada nele,
que estava sentado, com as costas apoiadas na cabeceira. A vela ainda iluminava a satisfação dos dois.

- Um dos motivos foi esse. Vou tentar vê-lo amanhã.

- Tentar? Ele não recebe você mais?

- Não sabe que eu o procurei. O secretário e o médico dele só avisam das visitas se quiserem. Agora é assim.

Ela achou que, provavelmente, tinha sido sempre assim. Era comum que condes tivessem empregados para evitar serem incomodados se não quisessem. Agora que Cottington
estava doente, eram outras pessoas que decidiam quando ele queria ou não. Só isso mudara.

- Se ele não puder recebê-lo agora, talvez receba na primavera, quando você planeja voltar.

- Acho que ele não estará vivo na primavera.

Ela concluiu que Kyle tinha ouvido falar que o conde estava à beira da morte. Por isso tinha ido ao norte agora.

- Vai ser muito triste não se despedir dele, depois de tudo o que fez por você. Certamente, o secretário dele sabe disso.

- Para o secretário, eu sou só o garoto de Teeslow - explicou Kyle, inclinando a cabeça e dando um beijo distraído nos cabelos dela. - Não é só me despedir. Quero
ver se ele ainda está consciente. Preciso pedir um último favor para os mineiros.

- É sobre a reabertura do túnel?

- Sim. Alguns homens querem impedir, só que de uma forma que só vai prejudicá-los.

- Poderia dar certo, se todos eles...

- Não serão todos. Há famílias que perderam parentes no desmoronamento e vão querer a reabertura para poderem enterrar seus mortos.

- Você disse que seu pai morreu num acidente. Foi nesse, não?

Ele concordou com a cabeça.

- Eu também gostaria de enterrá-lo. Mas aquele túnel jamais será seguro, a menos que as coisas sejam feitas de outra maneira. As paredes se movem.

- O túnel é de rocha. Rocha não se move.

- A terra é uma coisa viva, Rose. Antes de construir, preciso ver se o terreno é firme. A mina não está em terra firme e a parte daquele túnel é a pior. Sei disso
desde menino. Eu vi.

Ela sentou e se virou para ele. Ao olhá-lo, sentiu um eco dos tremores da noite. Não era possível a uma mulher deixar um homem fazer aquelas coisas sem depois ficar
em desvantagem com ele. Rose sentia que cedera o controle de outras formas também, que estavam entre os dois agora, incentivando aqueles tremores.

- Quanto tempo você trabalhou na mina, Kyle?

- Entrei pela primeira vez aos 8 anos. As crianças carregam o carvão em cestos. Geralmente, começam aos 9 ou 10 anos, mas eu era grande para a idade. Não tão grande
quanto um homem. Por isso, eu via o que eles não viam porque tinham de ficar abaixados. Havia fendas acima e quase no alto das paredes. Acompanhei a movimentação
delas durante meses. Avisei ao meu pai. Ele e os outros mineiros não acharam perigoso porque não viram e não notaram as mudanças. Até que um dia... caiu tudo. Dez
homens foram enterrados vivos do outro lado de uma parede nova.

- E ficaram simplesmente abandonados lá?

- Ninguém é abandonado, a menos que não haja opção. Começaram a cavar para retirá-los, mas isso fez mais pedras caírem, e outro mineiro morreu. Então ninguém mais
cavou. Fizeram uma cerimônia religiosa. Rezaram. E dois dias depois os homens voltaram à mina. Menos os parentes dos que estavam soterrados. Esses esperaram uma
semana. À essa altura, quem tinha ficado preso teria morrido. Por falta de ar e de água.

Ela imaginou Kyle de vigília com os tios. Viu o menino pensando no pai atrás daquela parede de rocha, talvez ainda vivo, mas sem poder ser socorrido.

- Eu disse aos homens que devíamos cavar por cima do túnel. Fazer um buraco para entrar ar até encontrarmos uma forma de tirá-los de lá. Ninguém dava ouvidos a uma
criança, muito menos os supervisores dos donos da mina. Hoje, sei que isso poderia dar certo. Um engenheiro podia fazer isso. Eu posso, se houver um desmoronamento
num túnel lateral.

Sim, provavelmente podia, mesmo se o terreno fosse desfavorável. Se preciso, ele cavaria com as próprias mãos, pensou ela. Se ele decidisse, não havia rocha nem
terra que o impedisse.

Ele contara sua história e respondera às perguntas de Rose. Ela sabia que agora ele pensava em outras coisas. Tinha deixado a vela acesa por um motivo.

Kyle a pegou pelo braço e a puxou em sua direção. Sentou-a de frente, com as pernas envolvendo as dele.

Ele olhou as mãos cobrirem os seios dela e os dedos roçarem os grandes mamilos escuros.

- Vi você muito bem no escuro ou, pelo menos, minha imaginação viu. Mas prefiro assim.

Em outras palavras, não queria mais que as lamparinas e velas fossem apagadas como se ela fosse uma dama. Ela não se importava. Assim também podia vê-lo. Mas ia
demorar um pouco para não ficar tímida quando o marido olhasse para o corpo dela como fazia agora.

Ele a ergueu e a posicionou sobre sua perna, lambendo e mordiscando os seios dela. A posição em que estavam permitia que ela também o acariciasse.

- Acho que você devia me levar quando for a Kirtonlow tentar falar com Cottington - sugeriu Rose.

Os dedos dele substituíram a boca, permitindo que respondesse.

- Não.

Ela imaginou se ele não queria que ela o visse sendo dispensado.

- Se eu for com você, o secretário não vai nos expulsar.

- Vai, sim, e não quero que você seja ofendida.

- É bem mais difícil dizer não a uma dama, Kyle. Diremos para ele não ousar fazer isso, pois o conde não vai gostar, se souber.

- Não.

Ela fez a mão deslizar para baixo no corpo dele, na tentativa de convencê-lo. Envolveu sua ereção e ficou roçando o polegar na cabeça do pênis.

- Você se casou comigo por causa da minha origem, Kyle. Devia me deixar abrir portas quando posso.

O sorriso dele não escondia a tempestade erótica que as carícias causavam.

- Rose, você está usando artifícios femininos para me deixar flexível?

Ela olhou o que sua mão estava fazendo.

- Parece que só estou conseguindo o efeito contrário. Não há nada flexível em você agora. A não ser um pouco, bem aqui. Ela apertou de leve a ponta.

Ele a segurou pela bunda e a ergueu de leve. Ela sabia o que fazer sem instruções, pois parecia natural e necessário. Mexeu-se e se colocou numa posição que permitia
guiá-lo para dentro dela.

O primeiro toque da penetração causou um choque de prazer em seu corpo todo. A sensação a deslumbrou e a fez perder o fôlego. Não se mexeu para ele penetrar mais.
Ficou assim, só um pouco encaixada, deixando os deliciosos tremores se prolongarem.

Ele permitiu, embora o desejo o dominasse tanto que ele cerrava os dentes. Ela se abaixou um pouco para senti-lo melhor.

- Você vai me matar, Rose - gemeu e segurou as pernas dela. - Pode me torturar durante horas outra noite, mas agora...

Puxou-a, descendo-a até seus corpos se aconchegarem.

Depois disso, ele a guiou, as mãos fortes facilitando o movimento das coxas num ritmo de absorção e soltura que ela ditava. Rose descobriu novos prazeres com mudanças
sutis e pressões no corpo. Fechou os olhos e o apertou dentro de si, mais e mais.

Ele então a penetrou mais, tão fundo que ela arfou. Abriu os olhos, o encarou e não conseguiu mais desviar o olhar. Não o via se mexer, mas sentia que era preenchida,
estocada e dominada enquanto seu olhar profundo a convidava a mergulhar em mares cor de safira. No final, ele a segurou forte pelas coxas. Presa, ela se rendeu à
invasão de seu corpo e de sua alma.

O orgasmo violento dela quase doeu de tão intenso. Ela desmoronou sobre ele, o rosto contra seu peito, ligada a ele num abraço forte enquanto o corpo aos poucos
abria mão das últimas palpitações do gozo.

- A que horas você vai amanhã a Kirtonlow Hall? - perguntou ela, depois que a respiração e o coração de ambos se acalmaram.

Um braço estendido. Um lençol ondulando. Ele puxou os lençóis e os prendeu em volta dela.

- Meio-dia, eu acho.

- Quero ir com você. Estarei pronta ao meio-dia.

Esperou o "não" dele. Não veio. Em vez disso, o abraço se ajustou nela, envolvendo-a, e a respiração de Kyle aqueceu sua testa com um beijo.

 

CAPÍTULO 15

As colinas desoladas sumiram a uns dez quilômetros de Kirtonlow Hall e a paisagem foi ficando mais luxuriante a cada momento. A casa surgiu alta e ampla, à beira
de um grande lago que refletia suas pedras cinzentas na água prateada.

Quando a carruagem deles percorreu o caminho de entrada, Rose deu uma olhada em sua roupa e na de Kyle. A gravata dele estava impecável. O casaco, com caimento perfeito
nos ombros. Até a corrente do relógio de colete dele brilhava, fazendo um arco indefectível. Uma gravura de moda não estaria mais correta.

Ela usava os melhores trajes que tinha trazido, um recém-adquirido conjunto lilás com manto bem-cortado e debruado forrado de pele de esquilo cinza. Fora selecionado
para sua bagagem devido à sua praticidade, mas o estilo e o luxo discreto tinham outra finalidade naquele dia. O obediente secretário do conde jamais saberia que
a pele tinha sido de um antigo traje, que ficara completamente fora de moda.

O criado levou o cartão de visitas de Kyle. Dali a pouco, ouviram-se passos de duas pessoas na escada. O criado vinha com um homem baixo e careca.

- Ora, ora. Pelo menos dessa vez o próprio Conway vai me dispensar - resmungou Kyle. - Você tem razão. Ele não ousa mandar uma dama embora sem dar uma explicação.

O Sr. Conway se aproximou com um sorriso simpático.

- Sr. Bradwell. Sra. Bradwell. Infelizmente, o conde está doente demais para receber visitas. Lastimo dizer que ele piorou desde que o senhor esteve aqui na última
vez. Mas, naturalmente, darei qualquer recado, embora não garanta que ele vá entender tudo.


- Meu recado é para o conde apenas, quer ele esteja em boas condições ou não - disse Kyle. - Já que está piorando, insisto em vê-lo.

O sorriso do Sr. Conway perdeu a força.

- Eu também tenho um recado para dar pessoalmente - disse Rose. - Lorde Easterbrook me encarregou de transmitir suas palavras exatas a lorde Cottington.

- Lorde Easterbrook!

- É meu parente indireto. Vou regularmente à casa dele em Londres e ele aceitou incluir meu marido e a mim em seu círculo pessoal.

O Sr. Conway franziu o cenho, preocupado, ao saber disso.

- Temo que Easterbrook fique muito zangado se eu voltar a Londres dizendo que não consegui. O senhor parece um criado eficiente e bastante zeloso quanto ao conforto
de seu patrão, mas acho que terei de citar seu nome na minha triste história. Como deve saber, Easterbrook é um tanto excêntrico. Nunca se sabe o que vai fazer,
seja para favorecer ou prejudicar alguém.

Conway piscou com força ao ouvir a ameaça implícita. Rose deu o sorriso mais doce que conseguiu. Kyle ficou parado, mas ela notou um brilho em seus olhos demonstrando
que achara o discurso incrível.

Conway mordeu o lábio enquanto ruminava as ideias.

- Madame, perdoe. Não sabia do seu parentesco com o marquês. Mas lorde Norbury insistiu para que não permitíssemos que o pai ficasse agitado por receber visitas.

- Agitado? A sua presença o deixa agitado, meu caro senhor?

- Claro que não. Ele me conhece tão bem que...

- Então o Sr. Bradwell também não vai agitá-lo. O conde conhece meu marido tão bem quanto conhece o senhor. Mais até, eu diria. Transmitirei os cumprimentos de Easterbrook
e os deixarei a sós, para evitar qualquer agitação. Quanto a lorde Norbury, como não está em casa, a menos que o senhor o avise, ele não precisa saber da visita,
e dessa forma jamais precisará desperdiçar seu tempo avaliando se somos visitas que causam agitação ao pai.

Rose deixou que sua expressão e postura mostrassem que presumia ser atendida. O Sr. Conway pareceu aliviado com as justificativas que ela arrumara.

- Sendo assim... sim, levarei os senhores até ele. Tratando-se de visitas como os senhores, não se pode falar em agitação. Por favor, sigam-me, senhora. Sir.

Eles foram atrás do Sr. Conway, que se encaminhou para a grande escadaria. Kyle deu o braço à esposa e aproximou o rosto do dela.

- Não sabia que você tinha um recado de Easterbrook - murmurou. - Devia ter me dito.

- Tenho certeza de que ele gostaria de enviar saudações ao colega e votos de pronto restabelecimento.

- Fazemos parte do círculo mais íntimo de Easterbrook, é?

- Ninguém sabe se ele tem algum círculo além da família. Eu de fato visito Henrietta. Ele gosta muito de Alexia. Não creio que eu tenha exatamente faltado à verdade.

- Você não faltou à verdade. Você foi magnífica.

- É justo que você receba algum benefício deste casamento. Meus relacionamentos são o único dote que posso oferecer.

Ele apertou a mão dela.

- Hoje de manhã, a última coisa em que pensei foi nas vantagens que obteria dos seus relacionamentos.

A insinuação a agradou. Ecos dos tremores da noite, capazes de agitar almas, se manifestaram de seu jeito calmo e devastador. Ela se concentrou nas costas do Sr.
Conway para manter a compostura, mas só o mistério masculino ao seu lado chamava sua atenção. Imagens passaram, lindas, impressionantes, das várias maneiras como
ele a fizera conhecer o erotismo da intimidade do casal.

Seus últimos passos rumo aos aposentos do conde foram inseguros. Súbito, o rosto do Sr. Conway apareceu na frente dela.

- Por favor, aguardem aqui. Preciso anunciá-los e confirmar se pode recebê-los. Se não puder, tentaremos amanhã.

Conway entrou no quarto e voltou logo. Abriu a porta branca almofadada e deu passagem.

O conde estava sentado numa grande poltrona verde ao lado da lareira acesa. Mantas cobriam as pernas e os pés, que descansavam num suporte. A idade e a doença tinham
reduzido qualquer semelhança com o filho, exceto talvez por certo orgulho.

Os cabelos grisalhos do conde tinham sido cuidadosamente penteados e o rosto, muito bem barbeado. Apesar da doença, seu criado pessoal o arrumara com gravata e um
colete de seda colorido. Rose esperava que a parte escondida pela manta também estivesse apresentável num dia em que ele não esperava sair daquela cadeira.

O casal foi examinado por olhos bem mais argutos que os de Norbury. Surgiu um sorriso no rosto pálido. Que foi só de um lado da boca. O resto ficou flácido, consequência
das apoplexias que o conde sofrera.

- Bem, aproxime-se, Bradwell. Traga sua esposa aqui para eu vê-la.

A doença não afetara o tom de comando, apesar de ter enrolado as palavras.

Kyle conduziu Rose e fez as apresentações formais. O conde a olhou dos pés à cabeça.

- Conway disse que tem um recado para mim, Sra. Bradwell. De Easterbrook.

- Tenho, sim. O marquês envia seus cumprimentos e sinceros votos por uma pronta recuperação.

- É mesmo? Não vejo Easterbrook há anos. Desde que voltou tão estranho e diferente daquela viagem para Deus sabe onde. Não fui muito a Londres. Que generoso ele
se lembrar de mim e enviar cumprimentos.

O tom era sarcástico e os olhos, bastante espertos. Rose procurou não corar ao ver que ele tinha percebido o ardil facilmente.

- Leve uma resposta ao marquês, Sra. Bradwell. Faria isso por um velho moribundo?

- Claro, Sir.

- Diga que ele foge vergonhosamente aos seus deveres. Que está na hora de parar de ser excêntrico e participar do mundo. Precisa casar, ter um herdeiro e assumir
seu posto no governo. Aquela família é muito inteligente para desperdiçar isso e a vida não é para ser levada como se quer. Essa é a maldita verdade.

- Prometo que transmitirei sua opinião.

- Opinião? Diabos! Palavra por palavra, é como vai transmitir, sem suavizar nada, como fazem as mulheres - exigiu ele, e um riso rouco escapuliu. - Mas espere até
eu morrer. Se ele não gostar, pode se vingar no meu filho.

- Se devo esperar até que o senhor morra, garanto que vou demorar a cumprir essa obrigação. Com sua licença, sairei para deixar que meu marido fale com o senhor
a sós.

 

Cottington observou Rose sair do quarto. Fez um gesto para seu secretário.

- Pode ir. Se eu precisar de você, o Sr. Bradwell o chamará.

Assim que Conway saiu, o conde deu outra ordem.

- Tem conhaque naquele armário lá, Kyle. Sirva um pouco para mim e para você, se quiser. Eles não me deixam beber nada. Acham que devo enfrentar a morte completamente
sóbrio.

Kyle achou o conhaque e os copos, serviu um dedo para cada um. O conde bebeu como se fosse um néctar.

- É infernal ser tratado como criança. Agora estou melhor que há quinze dias. Passei uma semana precisando dos criados até para os cuidados de higiene mais elementares.

- Parece então que está se recuperando.

- Morro até chegar o verão, se não antes. Não preciso que o médico me diga. Eu sei. É estranho, mas a pessoa sabe.

Descansou o copo e usou um lenço para enxugar o conhaque que tinha escorrido no lado paralisado da boca.

- Linda a sua esposa. O bastante para fazer com que o resto não tenha muita importância, imagino. O irmão, coisa e tal.

- Quanto ao coisa e tal, obrigado pelo presente de casamento.

O conde achou graça.

- Meu filho vai ficar furioso. Seria melhor se você não se tivesse se envolvido desta vez. Azar. Seria melhor que não tivesse sido você a forçá-lo pela segunda vez
a encarar o próprio comportamento desonroso.

Apesar do riso, os olhos do conde mostravam muita tristeza. Piscou para afastá-la. Norbury era apenas mais uma decepção numa vida que, como todas, tinha várias.

- Quer dizer que veio até aqui para se despedir, não? Gostei.

- Sim, mas também trago um pedido, que não sabia que faria até que cheguei a Teeslow.

- Não posso fazer mais nada por ninguém.

Kyle falou sobre a mina. O conde ouviu, sério.

- Era uma rica jazida - disse ele. - Quiseram voltar alguns anos depois, eu impedi. Já tinha vendido quase tudo, mas minha opinião ainda importava. Às vezes, ser
conde ajuda. Meu filho não vai agir como eu. Mesmo assim, vou escrever e usar a minha influência, mas quando eu morrer...

Quando ele morresse, o desejo de lucro pesaria mais numa avaliação em que a vida dos homens valia pouco.

- Mesmo se demorarem alguns meses, vai dar tempo de se acalmarem - disse Kyle. - Os mineiros estão com os ânimos exaltados. Se houver uma voz forte, um líder, haverá
problema.

O conde suspirou e fechou os olhos. Ficou assim tanto tempo que pareceu ter caído no sono. Kyle tinha resolvido sair sem fazer barulho, quando o conde voltou a falar.

- Não vamos nos ver mais, Sr. Bradwell. Se quer perguntar alguma coisa, tem que ser agora. - Os olhos se abriram e o encararam. - Tem perguntas, não?

Kyle tinha várias. A mais recente, entretanto, não podia ser feita. Embora ela permanecesse em sua mente. Não podia perguntar a um moribundo se seu único filho tinha
sido pior quando menino do que quando adulto.

- Tenho uma pergunta.

- Pois faça.

- Por quê?

- Por que o quê?

- Fez tudo por mim. Por quê?

- Ah. Essa pergunta - falou o conde e parou para pensar. - Fiz, em parte, por impulso. Em parte, por instinto.

De novo aquele sorriso pela metade.

- Primeiro, eu sabia que, se você ficasse em Teeslow, os mineiros teriam uma voz e um líder dali a poucos anos, quando você ficasse adulto.

Kyle o observou, avaliando se o conde falava sério. Durante todos os anos em que trocaram generosidade e gratidão, nunca lhe passara pela cabeça que o conde tivesse
motivos ocultos. Principalmente, porque Kyle não achava que a generosidade pudesse trazer alguma vantagem para um conde.

- Bom, não foi só por isso. Lá, você seria desperdiçado. Percebi logo. Vi em seus olhos e em sua determinação. Naquele dia, quando você chegou todo limpo e arrumado,
vi o homem que um dia poderia ser. Já tinha ouvido falar em você. Soube do menino que sugeriu que cavássemos de cima para chegar àquele túnel quando ele desmoronou.

- Teria dado certo.

- Não interessa se eu achava que ia ou não. O simples fato de que um menino pensasse isso e ousasse propor... Trouxeram você até mim no dia seguinte ao que bateu
em meu filho, e a lembrança do administrador rindo daquela audácia veio à minha cabeça não sei como. Eu sabia que aquele menino tinha sido você. Sabia, mas, de todo
jeito, conferi.

Enxugou a saliva que se formou no canto da boca.

- Depois, aquela questão com meu filho. Lá estava você outra vez, ousando o que muitos homens não ousariam. Portanto, em parte fiz aquilo para você não ser desperdiçado.
E, em parte, para não se tornar um líder deles.

O conde fez uma pausa, então voltou a falar.

- Admito que, em parte, fiz também para castigar meu filho, favorecendo o menino que bateu nele. Claro que isso não adiantou muito. Como você sabe mais que qualquer
um, ele até hoje se comporta de maneira vergonhosa com as mulheres.

Era isso. Kyle já sabia quase tudo. A generosidade não tivera motivações totalmente caridosas, mas poucos atos ou decisões humanos tinham.

O rosto inteiro do conde perdeu a firmeza. Como se o dano do lado ruim invadisse o lado bom.

- O senhor está cansado, precisa repousar. Vou embora. Obrigado por me receber.

Antes que Kyle pudesse se afastar, o conde esticou a mão para ele. Kyle a segurou e, pela primeira vez, sentiu o cumprimento daquele homem como o de um amigo.

- Você não é pior por isso, não importa o motivo - disse o conde, com voz enrolada. - Mas imagino que, de vez em quando, deseje que eu não houvesse interferido.

- Se pesarmos as perdas e os ganhos, veremos que lucrei muito. Mas, sejam quais foram os seus motivos, agradeço. Jamais o esquecerei. Nem meus filhos e os filhos
deles.

O aperto de mão ficou mais forte. Os olhos do velho pareceram cobertos por uma fina película. Fechou-os. A mão caiu, depois subiu num gesto derradeiro de bênção
e despedida.

 

Quando saiu do quarto de Cottington, Kyle parecia calmo. Rose o deixou com seus pensamentos enquanto desciam a escada e saíam no frio.

Ele não entrou logo na carruagem; deu uma volta e olhou o lago. Ela o seguiu e esperou. Não estava se despedindo apenas de um homem. Com a morte de Cottington, uma
fase inteira de sua vida terminaria.

- Você veio aqui muitas vezes? - perguntou ela.

- Não muitas. Mas, quando fui embora para estudar, o conde mandava me chamar sempre que eu vinha para casa entre os períodos de aula. Na primeira vez, metade do
vilarejo seguiu o mensageiro até a casinha do meu tio: queriam saber o que estava acontecendo.


- O conde recebia você regularmente, portanto.

- Sim. Talvez fizesse parte do aprendizado.

- É mais provável que quisesse saber do seu progresso. E você trazia notícias de Durham, mais tarde de Paris e Londres. Garanto que a sua conversa era mais interessante
do que a da maioria das pessoas aqui do condado.

- Talvez.

Ele deixou a carruagem esperar enquanto caminhava pela propriedade.

Rose o acompanhou.

- Falou com ele sobre a mina?

Kyle concordou com a cabeça.

- Ele vai fazer o possível, mas, no máximo, a obra será adiada. Isso pode dar tempo para verem o que é mais seguro. Há como fazer isso.

Ele não parecia acreditar que fossem fazer o mais seguro.

- Acho que você fez tudo o que podia.

- Fiz?

Eles viraram e voltaram para a carruagem.

- Você está calado, Kyle. O encontro não foi bom? Não pôde falar o que queria?

- O encontro foi muito bom. Ele estava aberto a perguntas e respondeu tudo o que, em sã consciência, eu podia perguntar.

- Tinha alguma coisa que você não podia perguntar?

- Só uma. Eu queria saber, pois ele é a única pessoa que responderia honestamente. Mas, ao vê-lo... achei que o assunto só lhe traria tristeza e era só para satisfazer
a minha curiosidade.

- Se só restou uma pergunta entre os dois, o encontro foi muito bom. Acho que poucas pessoas que se conhecem têm apenas uma pergunta não respondida.

Kyle encarou a esposa. De repente, não estavam mais falando de Cottington, mas de si mesmos.

- Ele está morrendo, Rose. Não tem mais nada a perder por dar respostas. Não haverá orgulho ferido nem consequências ruins. Nem para quem pergunta nem para quem
responde.

Chegaram à carruagem. Ele ficou menos calado na viagem de volta a Teeslow.

- Você também está pensativa, Rose. Tem alguma pergunta?

- Tenho várias, mas não é por isso que estou séria. Penso se sobreviverei ao encontro com Easterbrook quando fizer a reclamação de Cottington.

 

A carruagem estava quase passando de Teeslow, quando Kyle reparou no silêncio. Tinha ficado tão perdido em pensamentos que o silêncio incomum não chamara sua atenção.

Mandou a carruagem parar. Olhou pela janela.

Rose também olhou.

- O que foi? Acho que está tudo calmo.

- Calmo demais. A essa hora, a estrada devia ter mais movimento. As mulheres deviam estar aqui.

Ele apurou os ouvidos, atento. Olhou para os telhados das casas e chalés. Onde estariam todos? Na mina? Era cedo demais para terem agido. Sobravam apenas a taberna
ou a igreja.

Abriu a porta da carruagem e saltou. Rose segurou a saia e estendeu a mão.

- Não, Rose. A carruagem vai levar você até Pru. Eu volto logo.

- Acha que haverá agitação? Perigo?

- Não, mas eu...

- Se não há perigo, não precisa me mandar para casa. Tenho curiosidade por esse vilarejo. Se vai fazer uma visita, quero acompanhá-lo.

Ele colocou o braço no batente da carruagem, impedindo que ela descesse.

- Nos últimos dias, você anda muito curiosa.

- É da natureza feminina. E descobri que satisfazer a curiosidade pode ser prazeroso.

Ela se referia à noite anterior. O que o deixou excitado. Ele ficou cheio de lembranças, de gritos implorando, de toques tímidos mas firmes, das costas dela abaixando
e das nádegas subindo. Das pernas envolvendo-o, ele se perdendo em sua calidez e os dois girando num abraço de corpos e olhares grudados.

As lembranças lhe deram vontade de beijá-la e de possuí-la bem ali, na estrada. Fizeram com que esquecesse todos os motivos por que ela deveria voltar para a casa
dos tios.

Com um olhar atrevido, ela o transformara num idiota.

- Pensa em me mandar para casa, Kyle? Então, devo avisar que os maridos têm um número finito de ordens a dar às esposas e seria tolice desperdiçá-las em bobagens.

Onde estaria sua dócil esposa? A noite anterior tinha mudado mais do que o calor e a intensidade da paixão deles. A formalidade sutil daquele casamento estava sumindo
rápido.

O olhar dela mostrava um claro desafio.

- Pode vir comigo, Rose, mas só se sair assim que eu mandar. Creio que não haverá agitação, mas posso estar enganado. Seria melhor você voltar quando...

Ela olhou para baixo.

Diabos.

Ele disse ao cocheiro onde aguardar e ajudou Rose a descer.

 

O vilarejo estava reunido na igreja. Ouviu as vozes enquanto ele e Rose se aproximavam da velha construção de pedra, com sua torre na fachada. Séculos antes, a igreja
fazia parte de um convento nas terras cedidas por um antepassado de Cottington. Até descobrirem carvão nos arredores, Teeslow tinha sido um simples vilarejo de agricultores.

- Os homens não deviam estar na mina agora? - perguntou Rose.

- Sim, trabalhando com as crianças maiores e até com algumas mulheres.

Kyle abriu a antiga porta de madeira e o rugido de uma discussão caiu sobre os dois. Entraram e ficaram nos fundos da nave. Poucas pessoas notaram a chegada deles.
Todas as atenções se concentravam nos homens que estavam na frente do altar. Jon estava lá, com os cabelos louros revoltos, tentando fazer prevalecer sua vontade.

Isso parecia impossível. As vozes se cruzavam e se interrompiam. Os ânimos estavam exaltados e agressivos. Gritos de incentivo e de mofa competiam.

- Não consigo nem entender o que está sendo discutido - cochichou Rose.

- Os mineiros receberam ordem hoje de tirar aquela pedra que caiu. Em vez disso, eles foram embora. Estão tentando decidir o que fazer amanhã.

- Pensei que você tinha dito que o túnel desmoronou ainda mais na última vez em que tentaram.

- Os donos da mina enviaram um engenheiro, que garantiu que não haverá outro desmoronamento.

Jon fazia com que algumas vozes atendessem ao seu pedido de não entrar na mina. Mas não era o suficiente, o que significava que não ia resolver nada.

As vozes chegaram até Kyle. Identificou quase todas. Conhecia aqueles homens e brincara com alguns deles nas estradas, quando menino.

Percorreu com o olhar as famílias presentes e parou numa bonita ruiva de pele clara, que segurava duas crianças pelas mãos. Fora com ela que trocara o primeiro beijo,
aos 14 anos.

Uma mulher bem mais bonita estava ao lado dele agora. Ninguém a havia notado ainda, mas notariam logo. A roupa que tinha impressionado Conway parecia ainda mais
luxuosa ali, com seu debrum de pele e seus bordados caros. O gorro que ela usava contrastava com os lenços que as mulheres tinham na cabeça. A pouca luz da velha
igreja parecia se concentrar nela, fazendo sua beleza loura irradiar.

- Temos de ir embora - disse ele.

- Se eu não estivesse aqui, você iria?

Ele não sabia. Aquele não era mais o mundo dele. Não era a luta dele.

- Vou embora se a minha presença comprometer o que você disser, se para eles eu provo apenas que você percorreu um longo caminho, saindo desse vilarejo - disse ela.
- Mas se só sirvo para lembrar o que perderia se falasse, então mais uma pergunta foi respondida, e da maneira que eu não esperava.

Roselyn se virou para o marido.

- Você ainda não é um estranho para eles, mesmo se eles forem cada vez mais estranhos para você.

A compreensão o emocionou. O fato de tentar entender o tocou profundamente.

Ele saiu do lado dela e procurou Jon. Como a cabeça dele estava acima das outras na nave, a voz chegou lá.

- Jon, você sabe que não está pronto para isso. Você disse ombro a ombro, mas parece que há ombros aqui que não ficarão ao seu lado.

O barulho diminuiu. Jon o viu.

- Temos aqui um cavalheiro para nos aconselhar. Trouxe sua elegante esposa. Que sorte a nossa de termos o conselho dele.

Kyle não olhou para trás, mas soube pelos murmúrios e exclamações que notaram a presença de Rose.

- Trouxe minha esposa para conhecer meus velhos amigos, Jon. Imagine a minha surpresa ao encontrar uma reunião política nesta igreja. O que esperam ganhar se ficarem
parados, a não ser muitas mulheres e crianças com fome?

- Menos corpos para enterrar.

- Falei hoje com Cottington. Ele vai escrever para os sócios. O túnel não será aberto enquanto ele estiver vivo.

- Você nos conseguiu alguns dias, talvez algumas semanas, nada mais.

- Já basta para garantir que, quando o túnel for aberto, será seguro.

Jon fez pouco.

- Seguro! Disseram hoje para retirarmos aquela pedra. Encontraram um engenheiro que garante que o túnel já é seguro.

- Então você precisa achar alguém que discorde. Alguém que não receba salário dos donos e que tenha estudos para basear suas conclusões.

Kyle foi até a frente da nave.

- Alguém como eu.

Jon consultou os quatro homens que o rodeavam. A igreja ficou num silêncio tenso enquanto eles discutiam.

- Você vai entrar lá? - perguntou o mais velho dos homens, com leve zombaria.

Chamava-se Peter MacLaran e era o radical dos tempos anteriores, que agora passava a coroa para Jon.

- Vai sujar seus casacos elegantes, meu senhor. E pode levar alguns dias. Perderia aqueles jantares finos em Londres.

O sarcasmo de Peter recebeu algumas risadinhas.

- Entro agora mesmo. Não será a primeira vez. Os casacos podem ficar aqui. Arrume umas botas emprestadas para mim e cinco homens que me acompanhem, e começamos hoje.
Não sairei de Teeslow enquanto não souber o que preciso. Se o túnel for perigoso, vou dizer num relatório. Se puder ficar seguro, vou mostrar como. Se, mesmo assim,
eles prosseguirem e houver outro desmoronamento, o relatório vai enforcá-los.

- Eles não vão permitir.

- O nome de Cottington vai me ajudar. Ele ainda não morreu.

Não esperou que Jon e Peter concordassem. Os gritos em volta mostravam que Kyle tinha vencido a discussão.

Ele voltou para onde Rose estava.

- Você deve voltar para Pru agora. Vou levá-la até a carruagem.

- Posso ir sozinha. Faça o que precisa.

Ele desabotoou os casacos, tirou-os e os entregou à esposa. Surgiu um menino trazendo um par de botas. Kyle sentou e as calçou. Cinco mineiros dos mais experientes
esperavam na porta da igreja, com lamparinas.

Rose segurou os casacos e olhou os preparativos. Ficou tão interessada que parecia assistir a um ritual em alguma terra exótica.

- Avise a Pru que vou precisar de muita água quente quando chegar em casa - disse ele.

Ela se esticou para falar no ouvido dele.

- Espero que precise de um bom banho. Talvez esteja tão cansado que eu tenha de ajudar.

Ele ficou excitado na hora. Lembrar-se da noite anterior, das noites por vir, daquele banho, só fez piorar as coisas.

Ele trincou os dentes, olhou para o chão de pedra e se controlou.

- Rose. Querida. Vou ficar horas num poço escuro. Isso foi maldade sua.

Ela nem fingiu constrangimento. Quando ele foi embora, Rose parecia bem satisfeita consigo mesma.


CONTINUA

CAPÍTULO 9

No centro financeiro da cidade, um empregado conduziu Kyle para uma sala sóbria que fazia parte de uma série de cômodos bastante apropriados a alguém como um advogado.
Kyle imaginou que houvesse um quarto ao fundo, atrás da porta fechada e em frente à janela veneziana de vidraça em semicírculo no topo.

A carta que ele tinha enviado a lorde Hayden motivara o convite para ir até lá. Aqueles cômodos davam a impressão de que seu anfitrião os usava não apenas para negócios.
Para encontrar mulheres, talvez, quando ainda era solteiro. Para tratar de assuntos pessoais, como os que deviam estar escritos nas folhas empilhadas na escrivaninha
perto da janela.

Lorde Hayden o cumprimentou. Sentaram-se em duas poltronas forradas de vermelho-escuro, perto da lareira.

A lembrança de seu último encontro particular era uma sombra sobre eles. Lorde Hayden Rothwell tinha ido à casa de Kyle, após um convite como esse de agora ter sido
recusado.

- A Srta. Longworth me pediu para falar em nome dela - disse lorde Hayden. - Disse que foi você quem sugeriu esse arranjo.

- Ela foi pouco prática em não dar importância aos termos financeiros quando avaliou minha proposta de casamento.

Lorde Hayden se estirou na poltrona como se uma conversa amena fizesse parte do ritual do acordo.

- Não a conheci antes da falência do irmão. Ela me culpou por isso e, embora agora saiba a verdade, ainda há muita formalidade entre nós. Conheci bem o irmão mais
velho, mas não as irmãs.

- O irmão mais velho era Benjamin, que morreu há alguns anos.

Lorde Hayden ficou sério, assumindo a máscara que costumava exibir para o mundo.

- Minha esposa disse que a prima mudou muito há um ano. E que aquele caso com Norbury foi fruto da má avaliação de uma mulher em profunda melancolia. A negligência
em relação aos termos financeiros de seu pedido certamente também é um reflexo de seu estado de espírito.

- Então é melhor cuidarmos do assunto por ela. Seu estado de espírito pode estar mudado, mas não é melancólico. Não estou me aproveitando de uma mulher incapaz de
tomar decisões sensatas.

- Eu não quis dizer que estivesse. Mesmo se estivesse, essa chance que ela terá... Ficarei feliz por ela poder voltar a ter contato com minha esposa.

Para alguém que ficaria feliz com algo naquele casamento, lorde Hayden estava demorando a negociar os detalhes.

- Não esperava fazer agora o papel de pai em acertos de casamento, e não me sinto muito à vontade, Bradwell. Infelizmente, sei mais do que gostaria e sou forçado
a tratar de mais que meros trocados.

- Espero que acredite que minhas intenções são honradas.

- Não estou preocupado com isso e acho que você sabe.

Claro que Kyle sabia. Só não sabia qual papel lorde Hayden iria assumir.

- Ela comentou dos delitos cometidos por Timothy? Se não comentou, não a culpo - disse o lorde.

- Ela foi muito sincera e insistiu que eu ouvisse tudo.

- Corajosa.

- Acho que ela pensou que eu retiraria o pedido quando soubesse, portanto foi bastante corajosa.

Na verdade, ele achava que ela esperava que retirasse e a poupasse de tomar uma decisão. Ela não confiava mais na própria cabeça.

- Foi tão sincero quanto ela?

- Eu disse que sabia o que o irmão tinha feito e que conheço uma das vítimas dele.

- Diabos, você foi uma das vítimas, também teve prejuízo.

- Só porque assumi a dívida. Podia ter escolhido outras saídas.

Na verdade, Kyle só tinha uma. Aquela que estava conversando com ele no momento. Ou ele ressarcia o dinheiro tirando do próprio bolso ou deixava o fundo zerado.
E isso ele não podia fazer.

- Ela sabe que você não quis ser ressarcido?

- Não. Acha que devo contar?

- Não sei que diabos eu acho.

Lorde Hayden se levantou. Com os lábios apertados e o cenho franzido, andou pela sala com a mesma dúvida que atormentara Kyle várias vezes nas últimas semanas.

- Ela planejava encontrar o irmão - informou Kyle. - Recebeu outra carta dele, pedindo para encontrá-lo.

- Maldição - rosnou lorde Hayden e balançou a cabeça. - Mas, se você não a está enganando, não está sendo totalmente sincero.

Mais um pedido de honestidade total, como se isso fosse não só possível como normal.

Faria negócios com aquele homem no futuro. Não queria que lorde Hayden pensasse que ele era um mentiroso ou um canalha. Tentaria explicar, embora quase nunca se
explicasse a ninguém.

Levantou-se também e andou pela sala enquanto pensava o que dizer. Os passos o levaram para perto da escrivaninha. Deu uma olhada nas folhas soltas. Estavam cheias
de números e anotações. Era ali que lorde Hayden fazia os estudos matemáticos pelos quais diziam que era apaixonado.

- Diga, lorde Hayden, o que todo mundo deduziria se soubesse do delito de Longworth e a irmã fosse encontrá-lo?

- Mas não é todo mundo que sabe.

- Vai saber. Um dia. É inevitável. Muita gente foi prejudicada e o fato não vai continuar em segredo.

A segurança dele assustou lorde Hayden.

- Todos foram ressarcidos, ora - argumentou, mas, olhando para Kyle, completou: - Menos você.

- Foram ressarcidos do dinheiro, mas não da ofensa. Você avaliou mal.

Lorde Hayden não gostou dessa hipótese. Um suspiro de frustração mostrou como era desgastante aquela conversa sobre Longworth.

- Se Roselyn estivesse com ele quando isso acontecesse, certamente seria considerada cúmplice.

- Concordo. Portanto, devo contar tudo a ela? Se contar, se ela souber do meu envolvimento, pode mudar de ideia quanto ao casamento. Pode correr para o irmão, seja
para salvá-lo, ajudá-lo, ou para fugir da própria vergonha. Ela sabe que esse segredo não vai durar muito, mesmo que você discorde.

Lorde Hayden olhou Kyle com atenção, um olhar parecido com o que Easterbrook lhe dedicara.

- Foi por isso que você recusou o dinheiro? Por orgulho, como os outros homens que citou?

- O delito não foi seu. Por que deveria pagar? E também pagou caro. Uma quantia enorme por algo de que não tinha culpa. Se eu aceitasse o seu dinheiro, seria ressarcido
às custas de outra vítima, nada mais.

- Uma vítima por opção, o que é diferente. Acho que, no fundo, foi orgulho.

A arrogância de lorde Hayden incomodou Kyle. Fez um gesto mostrando a sala.

- Nenhuma conspiração financeira foi elaborada aqui nos últimos tempos. Nenhuma associação de empresas se formou aqui. Você continua na mesma casa, que é modesta
para os padrões de Mayfair. Mesmo você sentiu o baque de pagar todo aquele dinheiro. Eu devia desfalcá-lo em mais 20 mil? Concordar com o suborno que você me propôs?

- Suborno? Maldição! O seu bolso não seria prejudicado pelo delito de Timothy, só isso.

- Você não restituiu o dinheiro para eles apenas, exigiu que esquecessem a trapaça. Silêncio em troca de dinheiro foi parte do acordo. Seria bom se cada pecador
tivesse um anjo como você para defendê-lo.

Ele esperou que houvesse uma contra-argumentação, até raivosa. Mas lorde Hayden passou a mão na testa e falou, resignado.

- E quando acontecer justamente o que espera, Bradwell? A Justiça vai exigir que ele pague com a vida. Se esse dia chegar, o que você vai dizer a ela?

- Esse sofrimento a espera, quer ela se case comigo ou não. Se esse dia chegar, vou protegê-la e consolá-la da melhor forma possível.

Lorde Hayden pensou nisso um bom tempo. Depois, foi até a escrivaninha e fez um gesto indicando que Kyle o acompanhasse.

- Vamos preparar os papéis para os advogados. Eu concordaria mais com esse casamento se você tivesse aceitado seu dinheiro de volta. Mas aquele lamentável episódio
já prejudicou as irmãs Longworth demais. Talvez depois do casamento isso pese menos sobre o futuro de Roselyn.

 

- Como está crescida, Srta. Irene - disse o Sr. Preston, com um sorriso. - As mulheres do vilarejo vão passar dias comentando seu gorro.

Irene sorriu enquanto o Sr. Preston contava o dinheiro de Rose e embrulhava os mantimentos que ela comprara.

Ela estava crescida mesmo, pensou Rose. Alexia tinha dado a ideia de apresentar Irene à sociedade na próxima temporada. Estava na hora, sem dúvida, levando em conta
a idade dela, mas talvez fosse cedo demais, considerando outras coisas. Nem seu casamento amenizaria o escândalo a tempo de Irene ser bem recebida na atual temporada.

A ideia de que Irene poderia ter um futuro melhor ajudava Rose a ficar mais calma em relação ao casamento que se aproximava. A ausência de Kyle na última semana
contribuíra para deixá-la agitada. Fora passar o Natal no norte, com os tios que o criaram.

A ausência dele significava que ela podia se concentrar nos preparativos, mas a cada dia tinha mais certeza de que não conhecia o homem com quem ia se casar.

- Estamos todos aguardando o grande dia, Srta. Longworth - disse o Sr. Preston com um sorriso largo. - Permita-me dizer que todos os que conheceram o Sr. Bradwell
no mês passado, quando esteve no vilarejo, exaltaram suas boas maneiras e sua simpatia.

- Obrigada. Espero que o senhor e sua esposa nos deem a honra de sua presença.

- Minha esposa não perderia a festa. Ela sempre diz que certas pessoas se precipitam em acreditar no pior. Ficou triste com a maneira como alguns...

Ele interrompeu a frase de repente e lançou um olhar expressivo na direção de Irene. Os olhos dele se desculpavam por se referir ao escândalo na frente da moça.

- Fico agradecida por sua esposa ter me defendido, Sr. Preston. Tenha um bom dia.

Ela e a irmã mais nova saíram da loja. Irene seguia bem perto dela, com seu marcante gorro de seda encorpada.

- Você acha que o vilarejo inteiro concorda com o Sr. Preston?

- É pouco provável que a Sra. Preston deixasse o marido ser tão simpático se todo o vilarejo discordasse.

- Então, parece estar acontecendo o que Alexia esperava.

- Aqui, sim. Mas Watlington é uma coisa e Londres será outra.

- Acho que em Londres não vai ser ruim. Easterbrook vem ao seu casamento. Quando os jornais publicarem isso, ninguém vai dar atenção às más línguas.

- Como as más línguas gostam muito de falar dele, não acredito que sua presença ajude tanto.

Realizar o casamento no interior tinha sido ideia de Kyle, não de Alexia. Lorde Hayden então oferecera a casa do irmão em Aylesbury Abbey, mas Kyle dissera que preferia
a dos Longworth. Iam se casar na paróquia da infância dela, entre pessoas que a conheciam desde menina.

Rose agora entendia a esperteza disso. Kyle conhecia os moradores de um vilarejo melhor do que um irmão de marquês poderia. O dinheiro que a família gastaria nos
preparativos e a festa aberta a todos os moradores ajudariam mais a criar uma visão favorável sobre aquele escândalo do que dez anos de vida honesta.

Rose e Irene seguiram pela estrada do vilarejo, cumprimentando vizinhos e parando para algumas moças poderem admirar o lindo gorro de Irene. Compraram algumas fitas
e tecidos antes de voltarem para casa.

Muita agitação as aguardava lá. Três carroças cheias de móveis enchiam a entrada da casa. Um exército de criados passava carregando coisas enquanto Alexia ficava
de sentinela na porta da frente, segurando uma grande folha de papel.

- Isso vai para a biblioteca - disse ela para dois homens que carregavam um grande tapete.

- O que você está fazendo? - perguntou Rose, afastando-se para o lado de forma que um guarda-roupa enorme pudesse passar.

- Para o quarto no lado sul - Alexia orientou os três homens que aguentavam o peso do guarda-roupa, depois se dirigiu a Rose: - Você não pode dar uma festa de casamento
numa casa que não tem cadeiras.

- O móvel que passou agora não era cadeira.

- Nem tente ser orgulhosa. Não ouse. Hayden disse que você não aceitaria isso, e não vou deixar que confirme que ele estava certo. Já estou bastante irritada por
ele ter me convencido a esperar tanto para fazer isso. Se viesse um mau tempo, você daria uma festa numa casa vazia na semana que vem.

Um homem passou carregando uma arca nas costas, com muito esforço. Ela deu uma batidinha com a folha de papel no ombro dele.

- Meu bom homem, da próxima vez, espere ajuda. Assim você nem enxerga para onde vai.

- Sou forte, madame. É preciso mais que isso para me derrubar.

- Com certeza, mas se virar para o lado errado, vai arrancar pedaços das paredes. Não temos tempo para refazer o reboco. Escute, Rose, o sótão da casa de Aylesbury
Abbey está cheio de móveis que jamais são usados. É um pecado esse desperdício. E não é presente de Hayden. A casa e tudo o que tem dentro não são dele.

Irene concordou com a cabeça.

- É verdade, Rose. É tudo de Easterbrook.

Uma fila de cadeiras passou por Rose.

- Alexia, o marquês a autorizou a esvaziar o sótão?

Alexia contou o número de cadeiras e consultou o papel.

- Só descobri a quantidade de coisas que havia lá nessa última visita. Mas, na última vez que o vi, conversamos sobre o seu casamento. Comentei que queria ajudar
nos preparativos e ele disse que eu podia usar os criados da casa de Aylesbury e tudo o mais que precisasse - explicou ela e sorriu. - Isso aqui é o "tudo o mais".

Rose imaginou o marquês na casa dela, sendo sarcástico quando não estivesse calado, ao ver aqueles móveis que pareciam bem conhecidos. Depois do casamento de Alexia,
Rose só encontrara o marquês duas vezes; achava-o enigmático e mal-humorado, alguém que poderia se beneficiar bastante do ar puro do campo.

- Bem, ele pode mudar de ideia sobre vir ao casamento - murmurou ela, desejando que não viesse, ainda que a presença dele pudesse contribuir para sua redenção.

Os moradores do vilarejo iam se ocupar tanto em bajulações e em tentar impressionar o marquês no dia do casamento que ninguém ia se divertir.

- Ah, ele virá - disse Alexia. - A tia, Henrietta, ficou dizendo que não viria e ele exigiu que o acompanhasse. Ele agora vai se arrastar de Londres até aqui nem
que seja só para aborrecer a tia.

Irene fez uma careta.

- Ela vem?

Rose seguiu pelo caminho dos carregadores.

- Gostaria de saber se ela algum dia olhou o que tinha naqueles sótãos.

- Suponho que Henrietta inventariou os bens de Easterbrook até o último travesseiro, desde que passou a morar com ele na primavera passada - disse Alexia.

- Então é possível que eu a veja na minha festa de casamento. A cada cadeira e mesa que ela vir, vai levantar as sobrancelhas até juntá-las com a linha dos cabelos.

Alexia e Irene se puseram ao lado dela e seguiram com o fluxo de móveis.

Deixaram os homens se ocuparem de colocar os móveis nos cômodos conforme os desenhos que Alexia tinha feito, e Rose levou a irmã e a prima para o andar de cima,
até o santuário de seu quarto.

A porta do sótão estava aberta. Ela deu uma olhada e viu móveis antigos da casa empilhados. Estranhou que algumas peças estivessem ali.

Em vez de ir para o próprio quarto, ela entrou no quarto sul. Era o maior de todos. Os móveis antigos tinham sido substituídos por outros, trazidos por Alexia. Uma
cama grande aguardava os lençóis e o guarda-roupa recém-chegado brilhava encostado a uma parede. Um toucador masculino estava pronto para receber escovas e objetos
pessoais.

Ela olhou para Alexia, cujo rosto refletia seu senso prático e sua firmeza.

- Está na hora, Rose. Ben já se foi há anos - disse Alexia. - Esta casa em breve terá outra vida e outro dono, e este quarto tem que ser dele.

Rose deu uma olhada no quarto, que estava diferente agora, com objetos estranhos que logo seriam de uma presença estranha. Seu coração se apertou com o aspecto decisivo
que a mudança feita por Alexia representava.

Irene mordeu o lábio inferior.

- Ela tem razão, Rose. Acho que em poucos dias você não vai mais se importar.

Rose pôs o braço no ombro de Irene.

- Não me importo, querida. Alexia está certa. É hora de seguir em frente.

Rose tirou Irene do quarto. Alexia olhou para a prima mais velha quando as duas passaram. O olhar que trocaram foi parecido com o do dia em que se viram na casa
de Phaedra.

Às vezes não havia mesmo escolha. Às vezes só havia uma decisão, uma única coisa possível a fazer, se você quisesse uma chance de ser feliz.

 

CAPÍTULO 10

Na manhã do casamento, Jordan insistiu em arrumar o patrão. Chamou os criados da hospedaria Knight's Lily, em Watlington, e deu ordens como um marechal de campo.
Mandou trazer o café da manhã, preparar o banho e pediu mais toalhas, mais água quente ainda e convocou um assistente enquanto manejava a navalha.

Kyle obedeceu e achou que os criados da pousada não se incomodaram com os mandos. Aquilo lhes dava a chance de participar do casamento que deixara o vilarejo inteiro
alvoroçado.

Enquanto isso, Jordan informava dos preparativos que tinha feito na casa em Londres da futura Sra. Bradwell.

Finalmente, ficou tudo pronto. Jordan ajeitou um colarinho, alisou uma manga de camisa e recuou para dar uma olhada.

- Pronto, e ainda falta uma hora. O colete foi uma ótima escolha, senhor. O leve toque de rosa-escuro no cinza está perfeito, com o azul suave da sobrecasaca.

- Já que você escolheu o colete, é bom que aprove. Ainda acho que um cinza mais claro seria melhor.

- É seu casamento, senhor. Um toque alegre no traje, um toque mínimo, devo dizer, é não só apropriado como esperado - argumentou e, tendo guardado o que restava
de seu arsenal, fez uma reverência para se retirar. - Permita-me dizer, senhor, que está numa elegância como nunca vi. É um privilégio servi-lo neste dia tão feliz
- arrematou.

Kyle olhou no espelho a ótima imagem que o tempo, a experiência e Jordan tinham conseguido formar. Sem dúvida, Kyle se sentia mais elegante, correto e apresentável
que em anos. Lembrou-se do dia em que a tia o arrumara com todo o capricho para ir a Kirtonlow Hall pela primeira vez, a pedido do conde de Cottington. Naquele dia,
ele também ficara pronto uma hora antes e tivera de ficar sozinho e quieto para não suar e estragar a roupa.

Olhou pela janela a rua do vilarejo. Viam-se poucas pessoas. Como ele, estavam todos se arrumando para uma cerimônia e uma festa mais grandiosas do que quaisquer
outras que tivessem visto em anos.

Naquele dia, quando criança, ele imaginara que, na melhor das hipóteses, o conde lhe daria uma bronca e, na pior, uma surra de chicote. Em vez disso, Cottington
tinha mudado a vida dele.

Mudado para melhor, claro. Só um idiota ou um ingrato não reconheceria. Então, ao olhar Watlington pela janela, sentiu uma inesperada falta de Teeslow, seu vilarejo.

Seria bom ter alguns rostos conhecidos no casamento, só que estavam todos longe, tanto no tempo quanto na distância. A generosidade de Cottington o tinha arrancado
daquele mundo, mas não encontrara outro onde colocá-lo.

Ele tinha criado uma espécie de círculo de amigos e sócios, mas não era a mesma coisa. Não pertencia mais a lugar algum, já fazia algum tempo. Sua vida parecia uma
videira com os ramos se distanciando cada vez mais das raízes.

Aquele casamento também não mudaria nada. Ele ficaria à margem do mundo de Roselyn, não dentro. Escolhera a esposa com toda a consciência disso. Sabia o que ganhava
e o que jamais teria, de uma forma que nem Rose entendia.

O olhar bateu na valise de viagem. Enfiada nela, estava uma carta que Jordan tinha trazido de Londres. Durante a visita de Kyle ao norte, o conde estivera muito
adoentado para recebê-lo, mas tinha conseguido mandar conselhos e cumprimentos pelo casamento e dito que recomendara ao advogado que lhe enviasse um presente.

O conde não estaria lá. Nem a tia Prudence e o tio Harold, que não conseguiram disfarçar o susto ao saberem da mulher que o sobrinho tomaria por esposa, quando ele
lhes contou na visita de Natal. Harold estava doente demais para viajar, mas os tios nunca fariam uma viagem assim no inverno. Os outros amigos que fizeram parte
de sua juventude também não iam festejar com ele e só uma pessoa de seu vago mundo atual estava em Watlington.

Kyle foi procurá-lo.

Entrou no quarto de Jean Pierre, que estava em frente ao espelho, colocando a gravata. Depois de Jean fazer algumas dobras e acertos no tecido, Kyle viu de perfil
o amigo assentir, satisfeito. Ele se virou e olhou para o noivo.

- Mon Dieu, por que os homens sempre parecem a caminho da guilhotina no dia do casamento? - falou, passando a mão numa garrafinha que estava no toucador e arremessando-a.
- Um gole, não mais. Seria grosseiro estar bêbado, embora fosse menos doloroso.

Kyle riu, mas tomou um gole mesmo assim.

Jean Pierre mexeu mais um pouco na gravata.

- Esse Easterbrook não me impressiona, mas, oui, de qualquer forma estou sendo um idiota. Tento me convencer de que meu cuidado com o traje não é por causa dele
e seu título importante. Os criados disseram que sua noiva é linda. É ela que quero impressionar, não ele.

- Por quê? Ela é minha noiva.

Um riso. Um suspiro.

- É bom que você se case. Você nunca achou graça nessa brincadeira. Algumas visões suas são... simplórias.

- Muito simplórias.

A voz dele soou mais perigosa do que ele pretendia. Muito perigosa.

- Espero que não se torne um daqueles sujeitos enfadonhos que ralham quando alguém elogia sua mulher. Ninguém colhe todas as flores que cheira.

- Elogie quanto quiser, mas sei muito bem o que você faz com as flores. Tenho certeza de que sabe que é melhor não brincar no meu jardim.

- Mon ami, você tem que aceitar que haverá flerte no ambiente que ela frequenta, e não ser idiota...

- Não preciso que me ensine nada. Sei de tudo isso. Estou apenas dizendo que você não vai arrancar, cheirar, nem mesmo passar por nenhuma cerca-viva.

- O nervosismo do dia já está afetando a sua cabeça. Ainda bem que estou aqui para ajudar. Acho que precisa de mais um gole dessa bebida. Depois jogaremos baralho
até a hora do casamento, assim você fica calmo e não fala feito um idiota.

- Estou bem tranquilo. Sereno como um lago num dia sem vento. Diabos, nunca estive tão calmo.

- Claro. Agora, mais um gole. Ah, bon.

 

- A carruagem de Aylesbury já passou.

A informação foi dada por um criado que ficara de sentinela na estrada. Alexia se levantou e sorriu ansiosa para Rose.

- Agora podemos ir.

Rose olhou para seu vestido. Não era novo. Tinha ficado escondido um ano, desde a época em que Tim vendera tudo o que encontrava. Irritada e de forma egoísta, ela
escondera alguns de seus melhores trajes, na esperança de ter motivo para usá-los de novo. Alexia a ajudara a reformar o vestido, assim não dava para perceber que
era usado.

Rose estava contente de, nesse dia, usar roupas que eram dela. Quase nada na casa era. Até a comida que estava sendo preparada na cozinha pelos criados de Aylesbury
não era dela. E Kyle tinha enviado os barris de cerveja e vinho. Ela se sentiria mais estranha ainda se usasse um dos vestidos de Alexia.

Saíram todos em direção às carruagens que os aguardavam. Lady Phaedra e lorde Elliot tinham vindo participar desse cortejo, em vez de seguirem com Easterbrook. Ela
ficou emocionada com o comparecimento de toda a família de lorde Hayden. Mostravam que a protegiam, graças ao amor que tinham por Alexia.

Alexia, Irene e lorde Hayden iam com ela numa pequena carruagem aberta. Ao chegarem ao vilarejo, não viram ninguém nas ruas. Todos estariam na igreja. Muitos se
aglomeravam do lado de fora porque na velha construção medieval de pedra não havia espaço para todos.

Quando Rose entrou na igreja, sentiu a mudança da luz e da temperatura. Ficou zonza. Tudo se tornou irreal, como imagens de um sonho.

Captava a cena ao redor ao ritmo do sangue que pulsava em sua cabeça. Sorrisos, murmúrios, mulheres apontando os trajes elegantes das damas, rostos que faziam parte
da vida inteira dela olhando... uma caminhada, longa e escura em direção ao altar.

Kyle a aguardava. A seu modo, estava lindo. O leve sorriso que ele dava para apoiá-la fazia o mundo voltar um pouco a seu lugar, mas não totalmente. Ela disse palavras
que pareceram muito distantes. Palavras sérias, votos e promessas, que a uniram irreversivelmente a alguém.

Sentiu-se tomada por uma súbita alegria quando percebeu que havia terminado. Teve a impressão de pairar no ar, impressionada com a própria coragem. Ao mesmo tempo,
temia que, a menos que surgissem anjos para segurá-la no voo, pudesse se esborrachar no chão do vale.

Viu-se de novo na carruagem aberta, agora ao lado de Kyle. Os moradores do vilarejo seguiam a pé ou em carruagens, todos para a casa.

Kyle segurou a mão dela. Aquele gesto a arrancou do devaneio. O sentido do que tinha acontecido se revelou de forma tão concreta que ela mal conseguiu acreditar.

Olhou o perfil do homem que agora era seu marido e senhor. Dele, conhecia apenas duas partes, a de salvador e pretendente. De resto, continuava sendo um estranho
em quase tudo.

 

Kyle observava a festa animada que lotava a casa de Rose. Os convidados mais importantes tinham se sentado para um café da manhã de núpcias, enquanto os moradores
do vilarejo andavam pela sala e a biblioteca e se espalhavam pelo jardim e o terreno. Agora todo mundo se misturava no aperto dizendo votos de felicidade para Rose,
que estava a poucos metros dali.

Kyle não olhava muito para ela. Não ousava. Quando olhou, viu detalhes que fez seu corpo se empertigar. A linha do pescoço, elegantemente debruçada numa conversa,
tinha fios de cabelo esparsos que pareciam seda. Os lábios, como um veludo para beijar, curvavam-se num sorriso sereno.

O vestido era de um tecido marfim macio que modelava o corpo de maneira que o fazia relembrar os seios que tinha acariciado. Pensou em como seria tirar aquele vestido
dali a pouco e no resto, a pele perfeita dela tocando seu corpo inteiro.

Ela percebeu o olhar dele. Deve ter concluído o que ele pensava, embora Kyle duvidasse que ela pudesse adivinhar os detalhes eróticos. Ela corou e voltou a conversar
com o convidado.

Ele se obrigou a prestar atenção na festa para se distrair. Observou Easterbrook chamando a atenção em frente à cornija da lareira. Os moradores do vilarejo se aproximaram
com deferência e receio, não só por ele ser um marquês.

O comportamento dele não incentivava aproximações. A aparência excêntrica tinha sido de certa maneira amenizada. Surpreendentemente, usava trajes conservadores e
os cabelos compridos tinham sido presos num rabo. Mas ele olhava de cima, satisfeito com os resultados de sua caprichosa intromissão.

Um riso de mulher desviou a atenção de Kyle. Perto, num canto da sala, Jean Pierre atraía Caroline, a jovem prima de Easterbrook. A linda moça enrubescia com a atenção
dele.

A mãe, lady Wallingford - tia Henrietta, para a família -, incentivava Jean Pierre a flertar mais um pouco. Pálida como a filha e enfeitada com um chapéu incrível
pelo excesso de plumas, a lady tinha um jeito alienado, com aquela expressão ausente, etérea. Segundo Rose, o rosto ingênuo escondia a sagacidade de uma mulher decidida
a ficar para sempre na casa de Easterbrook, depois de finalmente conseguir se acomodar nela no ano anterior. Os boatos diziam que o recluso marquês tinha cada vez
menos paciência para a intrusão da tia e da prima.

Dali a pouco, Jean Pierre pediu licença às duas damas e foi abrindo caminho até chegar onde Kyle estava.

- Jean Pierre, a respeito daquelas flores... lorde Hayden é o protetor de uma das que você cheirava há pouco. Olhe para ele. Quer ter esse homem como inimigo?

Jean Pierre procurou lorde Hayden com o olhar.

- Acho que ele não vai se incomodar.

- Ele não terá como não se incomodar. Ela é inocente.

- Eu não cheiro inocentes - garantiu ele, e olhou para Henrietta e Caroline. - A menina não me interessa. Lady Wallingford deve ter, no máximo, 30 e poucos anos.
Você vê uma matrona que usa chapéus horrorosos. Eu vejo uma mulher com uma beleza oculta e etérea que, meu nariz tem o prazer de informar, não se oporia a uma pequena
sedução.

Não adiantava tentar dissuadir Jean Pierre dessa conquista. Kyle imaginou que lorde Hayden não causaria um duelo em nome da virtude da tia.

De repente, a festa pareceu mudar. Acalmou-se. As pessoas se afastaram para formar um corredor. O marquês passou no meio, sorrindo de leve, afavelmente, para a direita
e a esquerda.

- Finalmente - resmungou Jean Pierre. - Agora é só esconda a cerveja e o vinho e todos os demais vão embora também.

Sim, finalmente.

Rose fez uma reverência quando Easterbrook se despediu dela. Kyle também fez uma reverência e torceu para que nada tirasse o homem de seu curso. Ninguém iria embora
antes dele.

A tia do marquês se sentiu na obrigação de acompanhá-lo. Em pouco tempo, os irmãos dele também se foram. A festa começava a acabar.

Kyle se imaginou colocando todos porta afora, os moradores do vilarejo e os criados, todo mundo. Teve de se esforçar para controlar a impaciência.

Uma coisa era desejar Rose antes. Mas desejá-la hoje, agora, quando sabia que poderia possuí-la, estava sendo uma tortura.

 

Fazia tanto tempo que Rose não tinha uma criada que ficou sem saber o que fazer com a mulher. Por sorte, a criada que Alexia arrumara não precisava de ordens. Com
gestos eficientes e de olhos baixos, preparou Rose para a noite de núpcias.

A casa agora estava quase vazia. Só ficaram o marido e a esposa, o criado pessoal de Kyle e a criada que arrumara Rose. Dali a pouco os dois últimos iriam desaparecer
em outros cômodos do andar superior.

As últimas horas tinham sido difíceis. A aproximação daquele momento tinha surtido efeito sobre cada minuto e cada segundo delas. Tanto Roselyn quanto Kyle não disseram
nada, nem mesmo na longa caminhada que fizeram enquanto os criados de Aylesbury limpavam a casa, tirando os pratos e os barris de vinho. A noite que estava para
chegar fora um manto invisível cobrindo cada instante e transformando cada olhar e cada toque.

Ela dispensou a criada e se empertigou. Não estava com medo. Nem um pouco. Estava nervosa, preocupada e curiosa, mas não com medo.

Passou a mão pelos cabelos, que tinham sido escovados e estavam soltos. Conferiu a camisola, quase recatada com suas mangas compridas e a gola alta franzida. Olhou
para a cama, que os aguardava com o lençol aberto. A vida inteira, ela vira a cama naquele mesmo lugar.

Não tinha certeza se queria que as coisas se passassem naquela cama. Não sabia nem se queria que fossem naquele quarto.

Ali ela havia sido uma criança feliz e uma garota cheia de esperanças. Ali chorara a morte dos pais e a de Benjamin; sofrera com a falência do irmão e a dela própria.
Aquele quarto continha toda a sua história, o bom e o ruim, e ainda guardava ecos de sonhos juvenis jamais realizados.

Se Kyle entrasse ali agora, ela não conseguiria voltar ao quarto sem que a presença dele influenciasse todas as lembranças.

Mudasse. Talvez até ofuscasse. A partir de agora, sua vida mudaria sob vários aspectos. Ela podia ao menos conservar aquele canto de seu antigo mundo.

Jogou um xale sobre os ombros. Pegou uma vela acesa e saiu de mansinho do quarto. Prestou atenção em sons vindos do quarto sul para saber se Jordan ainda estava
servindo o patrão.

Nenhuma voz, nenhum barulho. Entreabriu a porta e olhou.

Jordan não estava lá. Só Kyle. Ao lado da lareira, imerso em pensamentos que endureciam suas feições. Dava a impressão de que aquelas reflexões o tinham desviado
de seus preparativos. Ele estava nu da cintura para cima, mas ainda de calças.

Ao vê-lo assim, ela se assustou. O homem escondido por aquelas roupas elegantes agora estava exposto, de uma maneira não apenas física. Um cavalheiro podia praticar
boxe ou esgrima durante meses e não conseguir a força contida e autêntica que ele revelava. Não era tanto a altura e o corpo que ele tinha, embora a musculatura
firme e definida acentuasse o efeito. Era mais algo que vinha de dentro e não tinha explicação.

Ela teve noção de que estava vendo algo que ele não mostrava ao mundo. Escondia atrás da fala educada e das maneiras polidas, mas devia estar sempre nele. Rose havia
percebido desde o começo. Tinha sentido os efeitos tanto de formas sutis quanto fortes. Era essa força que a excitava e a fazia sentir-se ao mesmo tempo segura e
temerosa.

Ele se virou como se ouvisse o som vindo da porta, embora ela mal respirasse. Olhou-a por inteiro: o xale e a camisola, a vela e os cabelos.

- Eu já ia ao seu encontro - disse ele.

- Pensei em vir encontrá-lo. Você se importa?

- Claro que não.

Ela se aproximou e colocou a vela no toucador.

- Você estava tão absorto. No que pensava tanto?

- Em algo que aconteceu há muito tempo. Tinha até esquecido, só lembrei agora.

- Uma lembrança ruim?

- Sim.

- Então, ainda bem que entrei.

Ela ficou constrangida com o olhar dele. Talvez, vindo até ele ao invés de esperá-lo, tivesse criado uma expectativa de que faria algo mais.

- Ele machucou você?

A pergunta foi feita com tanta calma que ela levou um instante para entender. Ficou triste por ele falar em Norbury logo naquela noite.

- Pensei que jamais fosse falar...

- Ele machucou? Só pergunto por causa de agora e do que vamos desfrutar daqui a pouco. Veio à minha cabeça que talvez tivesse machucado. Que talvez eu o houvesse
considerado alguém melhor do que é, mesmo sabendo que é bem menos do que muita gente pensa.

Ela não entendeu direito a que ele se referia. Só que era a algo pior do que ela enfrentara. Embora, naquela derradeira noite, Norbury tivesse pedido algo que, parando
para pensar, poderia ser não só chocante, mas doloroso.

Olhou para o homem que, horas antes, tinha jurado protegê-la. A firmeza dele era perigosa e os olhos mostravam isso. Rose concluiu que ele não toleraria o que ela
acabara de se lembrar, ainda que ela lhe garantisse que não tinha chegado a acontecer.

- Não, ele não me machucou. Não da maneira que deve pensar.

- Fico contente.

Ele pareceu contente mesmo. Aliviado.

O leve sorriso ajudou a amenizar o clima e acabar com qualquer raiva causada pela lembrança do passado. O fantasma de Norbury ou de qualquer outro que tivesse entrado
naquele quarto sumiu como uma fumaça fina que esvaece pela janela.

Rose tinha certeza de que agora Kyle só pensava nela. E lhe dava toda a atenção. Isso a deixava nervosa e inquieta, ficar ali enquanto ele a olhava. Ela também olhava
o peito e os ombros banhados pelo brilho cálido da lareira. O corpo dela reagiu à expectativa que saturava o ar.

- Venha cá, Roselyn.

Claro que ela obedeceu. Fazia parte do que havia prometido naquele dia. Não era uma menina inocente e não ia mostrar quanto ainda se sentia como tal.

Ficou bem na frente do marido, com o peito nu dele a centímetros de seu nariz. Um peito atraente. Só a proximidade dos dois já era provocante e ela teve um impulso
de beijar o corpo que a atraía.

Ele a beijou primeiro. Pegou o rosto dela nas mãos e a beijou com mais carinho do que nunca. Era como se quisesse dar confiança a ela, o que Rose achou muito bom.
Só que ele já tinha feito isso na carruagem, no dia em que se encontraram no parque. Tinha consciência de que parte de seu dever de esposa podia ser desagradável,
mas agora também sabia que outra parte seria muito boa.

O corpo dela concordou. Reagiu ao beijo mais do que seria preciso. O nervosismo diminuiu e a excitação aumentou.

Kyle a levou para a cama. Sentou-se na beirada para não ficar tão mais alto que Rose. Assim podia beijá-la mais facilmente. Mais intimamente. Com menos cuidado.
Enquanto beijava, colocou a mão sobre o seio dela. As carícias a excitaram tão rápido que ela se assustou. Ela deixou o desejo fluir e notou que seu corpo latejava
lá embaixo, ansiando por ele.

Kyle observou a própria mão moldar o tecido da camisola ao redor do seio, exibindo sua forma. Ela ofegava toda vez que ele lhe roçava o mamilo, tão penetrante era
a sensação que causava.

- Você é muito bonita, Roselyn.

A beleza não tinha sido de muita utilidade em seu erro. Ainda assim, o elogio a agradava.

Ele a olhava com tanta intensidade que Rose teve medo de que ele se desapontasse com o que visse.

- Você já ouviu isso muitas vezes. Desde criança, imagino.

- Se você me achar linda esta noite, estarei feliz.

- Sempre achei. Eu a vi uma vez, há anos. Num teatro. Não sabia quem era, só que nunca tinha visto uma mulher tão encantadora. Depois, percebi seu irmão no mesmo
camarote e concluí que devia ser a bela Longworth que tantos elogiavam.

O toque leve causou tanta alegria, tanto prazer que ela quase o repreendeu por não ter ido procurá-la quando soube quem era. Conteve-se a tempo. Sabia o motivo.

Teria sido por isso que fizera a proposta de casamento? Ela mal conseguia pensar nisso, raciocinava de um jeito preguiçoso, indiferente. Ele não resistira à chance
de ter algo que o mundo proibira a um filho de mineiro?

Ela se entristeceu ao pensar nisso. E veio novamente o impulso de beijá-lo. Dessa vez ela obedeceu, beijou a curva do ombro dele.

Foi como se acendesse uma tocha, tal o efeito que causou, apesar de Kyle imediatamente tentar conter seu desejo. Mas os olhos dele se aprofundaram a ponto de ela
pensar que poderia se afogar neles se os mirasse por muito tempo.

Ele puxou as pontas do laço que prendia a camisola no pescoço. Rose olhou para a mão dele, enquanto as fitas acetinadas corriam e o nó se desatava. Pareceu levar
uma eternidade. Um ponto dentro de seu corpo latejou e se retesou, como se uma língua invisível estalasse em sua carne.

Percebeu que Kyle ia despi-la. Ali mesmo, despi-la inteira, com a vela acesa na mesinha lateral. Tinha certeza de que não era assim que se fazia. Só que ele podia
não saber. Mas...

Ela ainda estava surpresa por esses pensamentos quando a camisola escorregou pelos ombros. Kyle notou a surpresa, mas isso não o impediu de continuar. Desceu o tecido
até exibir os seios, túrgidos e com os mamilos escuros. Puxou a camisola mais para baixo, passando pela cintura e as pernas até Rose ficar nua sobre um lago de tecido
branco.

Rose ficou envergonhada. O quarto precisava estar escuro, ou quase, quando ela estivesse assim. E eles deviam ficar embaixo do lençol, quase anônimos nos gestos
por vir. Tentou se cobrir com os braços.

- Não.

Ele a segurou antes que conseguisse. Puxou-a mais para perto. Sua língua mal tocou a extremidade de um de seus mamilos.

Uma centelha de prazer percorreu seu corpo inteiro: intensa, direta, precisa. Depois, outra, e outra, sufocando seu constrangimento, fazendo-a querer apenas que
ele continuasse aquilo para sempre e que o prazer maravilhoso nunca cessasse.

Com a língua e a boca, ele a levava aos céus. Acariciou todo o corpo dela e ela então gostou de estar sem a camisola. O toque das mãos em sua pele, nas coxas e atrás,
nas costas, parecia certo, necessário e perfeito. Ela se virou, presa numa sensualidade e num desejo intensos, que pareciam aumentar cada vez mais, o prazer pedindo
mais prazer num crescendo infinito.

Ficou tão perdida nesse torpor que não percebeu que segurava o ombro de Kyle até ele soltar sua mão. Mal notou quando ele se levantou e a deitou na cama. Rose voltou
um pouco a si na pausa que se seguiu e o viu tirar a roupa à luz da vela que ainda queimava.

Ela esticou a mão e apagou a vela antes de ver o corpo inteiro dele como ele a vira. Kyle se transformou então numa silhueta, uma forma escura, indistinta e vaga.
Ele foi na direção dela na cama.

Um beijo, tão profundo e íntimo que ela jamais o esqueceria. Uma carícia, tão firme e possessiva que ela só podia render-se à sua maestria. Um toque, tão direto
e ciente de seu efeito que o corpo todo gritou com o prazer intenso.

Ele continuou. Ela manteve um grito ao mesmo tempo mudo e pleno de desejo, de sensação torturante. Rose perdera a consciência de seu corpo, exceto a tênue vontade
que exigia mais, qualquer coisa, tudo.

A voz dele, calma e profunda.

- Entregue-se. Vai entender o que quero dizer. Deixe acontecer. Solte-se.

Ela mal o ouviu. Não entendeu. Mas o corpo se soltou lentamente. O suficiente para que um tremor profundo surgisse e então aumentasse e subisse em ondas de prazer
cada vez mais altas, para no fim explodir em seu corpo e ofuscar sua mente, num momento etéreo de estupefação.

Kyle estava abraçado a ela, em cima dela. Sentiu-o entrar com cuidado. Com muito cuidado. Ela o deixou assim e ajeitou as coxas para que ele ficasse lá, para que
a penetrasse antes que aquela sensação maravilhosa tivesse fim.

A calma dele se foi. Veio a força. Ela não se importou. Não foi ruim, nem sequer desagradável. Ela se entregou a ele como se entregara ao próprio prazer, ainda flutuando
numa perfeição que as estocadas dele só fizeram prolongar.

 

Ele despertou perto da aurora e viu que Roselyn se fora. A certa altura da noite, talvez logo após ele adormecer, tinha voltado para seu quarto e sua cama.

Se ele tivesse ido até o quarto dela, Rose esperaria dele que saísse logo também. Era assim que se fazia com mulheres como ela. Elas não viviam em casebres, onde
marido e mulher compartilhavam a mesma cama a noite inteira, todas as noites.

Lembrou-se de, quando menino, ouvir murmúrios e risos íntimos no quarto ao lado. Aqueles sons pessoais davam vida à casa. Ele não tinha participação naquelas conversas,
mas os murmúrios traziam paz à noite.

Era estranho que a lembrança viesse naquele momento, tão vívida que, se ele fechasse os olhos, se sentiria na cama de sua infância outra vez. Esquisito que aquele
casamento tivesse aberto tantas portas para o passado. Só que ele olhava por essas portas como homem e via coisas que o menino jamais compreendera.

Uma das portas seria difícil de fechar. Se Roselyn não tivesse vindo na noite anterior, ele ficaria horas refletindo sobre o que vira de novo daquela soleira.

As imagens queriam invadir a cabeça dele. Ele as expulsou por ora. Quem sabe, de uma vez por todas. Assim como a honestidade absoluta, a pura verdade nem sempre
era benéfica.

Cochilou, depois acordou de novo, num sobressalto. Era tarde. Não tinha apenas cochilado.

A água para lavar o rosto estava à espera. As roupas tinham sido preparadas para que se vestisse. Jordan estivera lá, mas deixara o noivo dormir. Ele não chamou
o criado, mas se arrumou para mais um dia.

Desceu a escada e acompanhou o som das vozes na cozinha, nos fundos da casa. Rose estava lá com Jordan. Usava um vestido simples, cinza, que ficaria bem numa dona
de casa modesta. Continuava linda.

Não conseguia olhar para ela sem relembrar seu corpo à luz da vela, a timidez e os tremores de sua excitação. Apagar a vela tinha, sem dúvida, sido sensato, embora
ele tivesse vontade de olhar para a esposa a noite inteira. Na escuridão, ela conseguira se libertar um pouco e ele conseguira se controlar para não possuí-la com
voracidade.

O primeiro olhar que Rose lhe deu continha um agradecimento pela noite. Ela então abaixou os olhos.

Jordan serviu o café da manhã.

- Este lugar é simples, senhor, mas a vista do jardim e a luz são agradáveis. Posso servir o café na sala de jantar, se o senhor preferir.

- Assim está ótimo.

Ele se sentou à mesa onde havia almoçado com Rose no dia em que fizera o pedido de casamento. Com gestos eficientes, Jordan serviu um café da manhã bem tardio.

Quando Kyle terminou, Roselyn trouxe para a mesa o último prato a saborear.

- É torta de maçã - avisou ela. - Você disse que gosta tanto que às vezes come no café da manhã...

- Muito bem, Jordan.

- Não foi ele quem fez. Fui eu.

Ao fundo, Jordan terminou de secar uma jarra. Pegou seu casaco.

- Quero olhar um pouco o jardim, madame. Com sua permissão, posso sugerir algumas melhorias.

- Claro, Jordan.

Rose cortou uma grande fatia de torta e colocou num prato. Deu um passo atrás e esperou que o marido provasse.

Ele deu uma boa mordida.

A torta anterior estava ruim. Já esta estava horrível. Olhou para o armário e todos os mantimentos. Tinha presumido que a primeira torta ficara ruim por falta de
açúcar e sal. Pelo jeito, o problema não era esse. Roselyn é que fazia tortas horríveis.

Ela teve prazer de vê-lo comer. Por sua expressão facial e os sons que fazia, ele estava gostando.

- Deliciosa - falou ao engolir o último pedaço.

- Fico contente que tenha gostado. Jordan ficou estalando a língua enquanto eu assava, mas acho que só estava irritado por eu estar fazendo o trabalho dele.

Ele a segurou e a puxou para si.

- Você não precisa mais cozinhar. Não precisa fazer tortas.

- Eu sei. Só que esta manhã me lembrei de que servi torta a primeira vez que esteve aqui e que pareceu gostar. Então quis fazer outra.

Ele percebeu que tinha acabado de ser elogiado pela noite anterior.

Beijou-a e a soltou. Não estava com fome naquele momento, pelo menos de comida. Muito menos daquela torta.

Mesmo assim, cortou mais uma fatia.

 

CAPÍTULO 11

Kyle colocou os rolos de projetos numa grande sacola de lona.

O assunto não podia esperar mais. Muito já fora investido naquilo. Ele não tinha escolha senão encontrar Norbury, como estava marcado fazia tanto tempo.

Tentou ouvir algum som vindo do quarto de Roselyn. Ela costumava acordar cedo. Não tinha o hábito de ficar na cama até o meio-dia como certas damas. Nesse dia, entretanto,
o pavimento onde ficavam seus quartos continuava estranhamente silencioso. Como ele a mantivera acordada quase a noite inteira, não se surpreendeu.

Ela não parecera se importar em dormir pouco. A noite lhe despertara novos apetites. E, ao contrário do que ocorrera em Oxfordshire, onde ela sempre o procurava,
como se quisesse demonstrar que cumpria seus deveres conjugais, ali em Londres era o contrário: ele é que ia encontrá-la. Isso significava que, às vezes, como na
noite anterior, Kyle se demorava bastante por lá.

Ela não se importava, mas, ao mesmo tempo, preparava os rituais da noite de maneira a não ficar constrangida. Depois daquela primeira noite, sempre apagava as velas
mais cedo. Apesar da escuridão, Kyle conhecia o corpo da esposa melhor do que ela pensava. O toque revelava muito e a luz da lua, mais ainda. Ela podia preferir
as sombras, podia até esquecer o rosto do homem que a possuía, mas ele jamais esquecia que era Roselyn que ele acariciava.

Riu para si mesmo ao se lembrar da pequena batalha que seu corpo enfrentava todas as noites. Roselyn Longworth lhe provocava um desejo tão forte, tão arrasador,
que muitas vezes ele ficava agressivo. Mas, como se tratava de Roselyn, uma dama que ainda se intimidava e se espantava com a nudez, ele tinha de se controlar.

Isso não era um problema. O final era sempre bom. Os doces êxtases dela e os gozos fortes dele o encantavam. Depois de tudo, era com pesar que ele abria mão da satisfação
absoluta que encontrava nos braços dela. Às vezes, como na noite anterior, ele passava horas recusando-se a ir embora, o que significava ter relações mais de uma
vez.

Desceu a escada. Aquela casa ainda parecia nova e estranha para ele. Roselyn ficara muito contente quando ele a levara para lá. Ocupava-se agora de arrumá-la a seu
jeito e de fazer as primeiras reaparições na sociedade.

Ele cuidava dos negócios, como essa reunião agora. Foi a cavalo para a casa de Norbury, com a sacola de lona presa à sela. O dia estava melhor que o humor dele.
Não falava em Norbury com a esposa, mas sua fome insaciável da noite anterior, o desejo de possuí-la, estava ligada à desagradável expectativa do encontro que se
seguiria.

Na verdade, aquele homem agora entrava em sua cabeça com muita frequência. Não só por causa de Rose, apesar de ele ter de se esforçar para afastar as lembranças
daquele caso. Pensar nisso só lhe dava raiva e uma vontade enorme de bater no canalha.

Kyle continuava também com a lembrança que tivera na noite de núpcias, como se aquilo precisasse ser revisto. Era o rosto de uma mulher espancada e machucada. Os
olhos da mulher o assombravam. A humilhação que mostravam parecia o rosto de Rose na noite do leilão.

No dia em que encontrara a tia ferida ao se defender dos jovens ricos que se divertiam com ela, Kyle lutara como um possesso. Eram três contra um e ele tinha apenas
12 anos, mas seus inimigos não haviam passado quatro anos carregando carvão na mina.

Ele achara que a havia salvado. Só agora, que os detalhes começavam a ressurgir em sua cabeça, ele reavaliava o ocorrido. Talvez não tivesse chegado no início da
violência contra a tia, mas no final.

Pensar em Rose o fez lembrar-se de tudo isso na noite de núpcias. Enquanto ele avaliava como lidar com ela, como lhe mostrar os caminhos do prazer sem deixá-la assustada,
chegara a sombra do amante anterior. Com a lembrança, viera o pensamento inesperado de que o sexo trivial devia ser o menor motivo para Rose não gostar de contato
físico.

Parou o cavalo na frente da casa de Norbury. Olhou a fachada em perfeito estilo paladiano que dava tanta elegância à construção. Considerava-a uma das melhores moradias
de Londres, de uma excelência que para muitos passaria despercebida num mar de influências clássicas. Era um desperdício, pois Norbury tinha pouca sensibilidade
para essas coisas.

Não podia se distrair com a estética, como costumava ocorrer. A nova pergunta sobre aquela briga travada fazia tanto tempo afetava bem mais do que a infância dele.
Fazia com que imaginasse mais do que gostaria sobre o caso de Rose. Chegava a incomodá-lo no encontro de hoje, pois Norbury tinha sido um dos meninos em que ele
batera.

A tia garantira que ele havia chegado a tempo e ele acreditara. Mas aquelas conversas noturnas no casebre deles sumiram por muito tempo e o tio nunca aprovou a ajuda
dada por Cottington. Aceite o dinheiro, mas não seja um lacaio, Kyle, meu jovem. Use-os da mesma maneira que eles usam os outros, mas não se torne um deles.

O mordomo sorriu ao receber o cartão de visita de Kyle. A familiaridade não era desrespeitosa. Os criados daquela casa, como os de muitas outras elegantes residências
londrinas, logo se afeiçoavam ao menino pobre que se tornara um homem bem-sucedido, alguém que circulava pelos dois mundos que eles conheciam.

- Meu patrão está ocupado, mas poderá recebê-lo em menos de uma hora - informou o mordomo ao retornar.

Kyle o seguiu até a biblioteca, sabendo que "menos de uma hora" significava uma espera de pelo menos 59 minutos.

Assim que a porta da biblioteca foi fechada, Kyle a abriu de novo. Desceu a escada para a cozinha. Norbury não devia estar ocupado coisa nenhuma. O atraso era apenas
a maneira enfadonha de o visconde mostrar a própria importância. Mas o tempo que Norbury tinha dado seria útil.

A confeiteira se virou, surpresa, ao ouvir os passos dele na escada.

- Sr. Bradwell! Que honra. Nossa, como o senhor está bonito. Parece que o casamento lhe fez bem.

- Olá, Lizzy. Você também está bem. Com um pouco mais de farinha que o habitual.

Ela passou as mãos nos cabelos grisalhos, fazendo surgir uma nuvem branca. Lizzy era uma das muitas criadas da casa que tinha família em Teeslow. Quando moça, fora
trabalhar para Cottington, depois se mudara para Londres quando Norbury fora para a cidade.


O cozinheiro, um homem sério, cumprimentou Kyle com a cabeça e resmungou parabéns pelo casamento. Tirou uma panela grande da mesa e, com o pé, empurrou um banquinho
até o espaço recém-liberado. Depois voltou a ralhar com uma criada na copa. Kyle sentou no banquinho.

- Veio falar com o patrão, não é? - perguntou Lizzy, enquanto partia ao meio a massa de pão e pegava um pedaço grande. - Uma daquelas conversas sobre dinheiro que
ninguém entende?

- Sim.

- Tem gente que diz que é como um jogo.

- É parecido, só que sou eu quem decide onde fica a maioria das cartas.

- Ainda assim, uma cartada errada e...

- É, pode acontecer.

- Não é muito provável que aconteça com o senhor, eu diria. Sempre foi mais esperto que a maioria, deve saber dar as cartas.

Geralmente. Normalmente. Mas havia sempre um risco. O importante em qualquer jogo era não se importar muito em ganhar ou perder. Um homem nervoso ou desesperado
sempre joga mal.

O sucesso dele dependia da certeza de que, se tudo desse errado, sempre poderia se recuperar e que um revés de alguns anos não faria muita diferença em sua vida.

O casamento mudava tudo. Percebera isso ao fazer seus votos durante a cerimônia. A responsabilidade dele em relação a Rose significava que nunca mais poderia ser
absolutamente destemido, e os outros perceberiam isso, ainda que ele tentasse esconder a verdade.

Tinha sido por isso que, dois dias antes, fizera um fundo de investimento para a esposa.

Dois cheques tinham estado à espera de que eles retornassem a Londres. Um, enviado por Cottington, era presente de casamento. O outro, os 10 mil de Easterbrook,
era de uma quantia bem maior e viera sem uma carta, um bilhete que fosse.

Se Rose soubesse da existência daquele dinheiro, pensaria que alguém havia pagado para que ele se casasse, o que de certa maneira era verdade. Enquanto olhava o
cheque, ele concluíra que não queria que ela pensasse isso. Ela não ia enganar a si mesma e ter qualquer ilusão romântica sobre casamento, mas seria ruim que não
tivesse ilusão nenhuma.

Só o presente de Cottington já bastava para salvá-lo do desastre, então pegara o suficiente de Easterbrook para prover Rose no caso de se tornar viúva e deixara
o resto num fundo de investimento para ela. Sua esposa teria como se sustentar se, no futuro, as cartas do baralho não fossem distribuídas como ele gostaria.

- Tem recebido notícias de Teeslow, Lizzy?

Lizzy era chegada a fofocas, por isso Kyle gostava de conversar com ela. A criada sabia tudo sobre Teeslow pelas cartas da família, com muito mais detalhes do que
a tia contava a ele.

- Bom, a garota dos Hazletts está esperando um filho e ninguém sabe aonde o pai foi parar. Peter Jenkins morreu, mas foi um descanso, porque ele estava muito doente.
E há boatos de que aquele túnel na mina vai ser reaberto. Você sabe qual.

Ele sabia. Tinha ouvido o boato quando estivera lá, em dezembro. Pelo jeito, o boato continuava, portanto devia ser verdade.

- Como vai Cottington?

- Mal, infelizmente. Quando ele se for, a criadagem vai chorar rios, garanto. Muita coisa vai mudar com a morte dele.

- Não é só a criadagem que vai chorar. Todos vão lastimar que o herdeiro assuma o lugar dele.

Lizzy conferiu onde estava o cozinheiro, antes de fazer uma cara que mostrava que ela pensava o mesmo. Concentrou sua força em sovar a massa do pão.

- Imagino que o visconde não foi ao seu casamento.

- Não mesmo.

O olhar dela foi bem expressivo. Significava que Norbury não se daria ao trabalho de ir, mesmo se fosse convidado. E que, naturalmente, a noiva de Kyle não ia querer
o ex-amante no próprio casamento.

- Fez muito bem, Sr. Bradwell. A ajuda que o senhor deu para aquela pobre mulher e o que agora faz por ela. É o que todos dizem.

- Infelizmente, não pude bater nele como fiz naquela vez, embora quisesse.

Esperou a reação dela. Na época da surra, Lizzy trabalhava para Cottington. Numa casa assim, os criados costumavam saber de tudo.

Ela pareceu surpresa por ele tocar no assunto. Olhou bem para ele, depois se voltou de novo para a massa de pão. Sovou com força.

A reação dela era plausível com um assunto que fosse tão escandaloso que seus detalhes tivessem de ficar em segredo.

Um simples mau comportamento de alguns jovens ricos, a história que ele conhecia, não seria motivo para isso.

 

- Continuo achando que as casas não têm quartos de criados em quantidade suficiente - reclamou Norbury após examinar os projetos por dez minutos.

Até então, as coisas iam bem. Recebera Kyle com indiferença e os dois se ocuparam dos projetos. Norbury parecia se esforçar para ser cavalheiro, mas Kyle via que
o visconde tentava ocultar um lado bem menos civilizado.

- As casas serão compradas por famílias com renda de milhares de libras por ano. Cinco quartos de criados, mais os da estrebaria para o treinador e o cocheiro deveriam
ser mais que suficientes.

- Milhares de libras. É incrível como eles conseguem.

Era uma observação idiota feita por um idiota, com a intenção de enfatizar como ele estava acima de preocupações frívolas como milhares de libras a mais ou a menos.
Norbury inclinou mais um pouco a cabeça loura sobre os projetos.

- Meu advogado disse que papai pretende assinar os papéis do terreno - comentou Norbury, e seu lábio inferior tremeu. - Ele não está participando de nada e não viu
os projetos, mas decidiu de qualquer forma.

Ótimo, iremos em frente, mas quem decide é o velho, não eu. Vou lucrar bastante com o seu trabalho, mas não que eu tenha escolhido isso.

Para Kyle, era indiferente como as coisas se passariam. Agora lamentava que estivesse nesse projeto, que o obrigava a aceitar a presença de Norbury. Se o conde não
se recuperasse para retomar as rédeas dos negócios, essa seria sua última parceria com a família dele.

- Procurarei o seu advogado amanhã - disse Kyle, juntando os projetos. - O trabalho nas estradas vai começar logo; a madeira e os demais suprimentos estão encomendados.
As primeiras casas estarão prontas em meados do verão, creio.

O dono da casa acompanhou os preparativos da saída do visitante. Deu-lhe um olhar gelado.

- Preciso lhe dar os parabéns.

- Obrigado.

- Não fui convidado.

- Foi um casamento no vilarejo, não em Londres.

- Li que Easterbrook compareceu.

A informação o incomodara. Kyle não sabia se pelo fato de aquele lorde especificamente ter sido convidado ou porque a presença dele fizera a ausência de Norbury
ficar irrelevante.

- A casa de campo dele fica perto e minha esposa é parente. Indireta, digo.

Norbury riu.

- Você fez bem em se casar com a minha puta, Kyle.

Kyle se obrigou a continuar encarando os projetos e mal controlou a vontade de estrangular Norbury. Eram palavras assim que motivavam duelos. Homens idiotas diziam
coisas idiotas por orgulho ou ressentimento. Coisas que outro homem não poderia permitir.

- Repita isso ou algo parecido, para mim ou para qualquer pessoa, e acabo com você. Se eu souber que sequer mencionou o comportamento vergonhoso que teve com ela,
só vou parar de bater quando você não conseguir se mexer por duas semanas.

Norbury ficou tão vermelho que Kyle esperou que ele desse o primeiro soco. Queria muito que desse.

- Bata, maldito. Pratico boxe duas vezes por semana.

- Isso só ajuda se o seu opositor obedecer às regras do esporte. Você vai lutar com um filho de mineiro e suas mãos suaves e inúteis não são nada contra mim.

Kyle se encaminhou para a porta. As palavras ríspidas de Norbury o acompanharam.

- Meu advogado disse que papai mandou um presente de casamento para você.

- Mandou mesmo. Foi muito generoso.

- Generoso, quanto? Quanto foi que ele mandou?

Norbury exalava agressividade, como se a quantia fosse a única coisa que interessasse.

Talvez fosse. Talvez Norbury nunca tivesse engolido que o pai ajudasse Kyle financeiramente. Já era ruim ter levado aquela surra. Pior ainda era que, por isso, o
pai ficasse sabendo do comportamento desonroso do filho naquele dia, por pior que fosse.

- Quanto? Uma quantia incrível, faltou só 50 para completar mil libras.

Kyle se satisfez ao ver a expressão de Norbury quando saiu. O homem era burro, mas não tanto. Em poucos minutos, concluiria que o presente de Cottington fora tirado
da herança destinada ao filho.

O que significa que Norbury tinha indiretamente devolvido o dinheiro do leilão e que o pai tinha sabido do que acontecera.

 

Nesse dia, Henrietta parecia diferente. Roselyn se sentou na sala de visitas em Grosvenor Square e tentou identificar por quê.

Era preciso considerar o efeito do chapéu. Um gorro com carapuça de renda, o que parecia bem mais comportado e elegante do que os chapéus que ela costumava usar.
Rose notou também que os cabelos louros tinham sido arrumados de outro jeito, combinando melhor com o rosto delicado.

Mas o que tinha mudado acima de tudo era sua expressão. Naquela tarde, seu jeito aéreo fazia com que parecesse jovem, em vez de desligada. E seu rosto não estava
contorcido de forma desdenhosa. Em vez disso, surpreendentemente, parecia quase o de uma jovem.

Conversaram sobre moda, sociedade e fizeram previsões para a próxima temporada. Alexia estava com elas. Além de mais três damas, todas de boa posição social e bom
humor. Alexia tinha levado Rose em visitas àquelas damas na semana anterior, provavelmente com a permissão delas. Elas agora, por sua vez, visitavam Henrietta no
dia que Alexia tinha sugerido, de forma que Rose pudesse comparecer também.

Tudo fazia parte de uma pequena campanha da qual, maravilha das maravilhas, Henrietta aceitara participar. Se ela não estivesse fazendo sua parte tão bem, não estivesse
sendo tão simpática e solícita, Rose iria pensar que Alexia tinha achado um jeito de subornar a tia do marido.

As visitas não se demoraram muito, mas ficaram o bastante. Podia ser que jamais visitassem a própria Rose para nada, mas, quando foram embora, tinham dado mais um
largo passo no sentido de aceitá-la.

Ia ser uma caminhada em círculos. A proveniência do marido causaria desvios de rota e interdições na pista. O escândalo no qual ela se envolvera criaria outros transtornos.
Mas a campanha de Alexia parecia estar dando resultado mais rápido do que se podia esperar.

- A reunião foi boa - confidenciou Henrietta, quando as três ficaram a sós de novo. - Creio que a Sra. Vaughn logo vai convidar você, Roselyn, para ir ao teatro.
Foi o que pareceu quando comentou sobre peças preferidas e tal. Como a tia dela se casou com um importador, ela não deve fazer muitas restrições a um comerciante
e pode até receber seu marido também.

Rose mordeu a língua. Henrietta não pretendia fazer uma provocação com aquele comentário. Ao mesmo tempo, não havia por que se ofender com a verdade.

Mas ela se ofendeu. Muito mais do que esperava. Kyle aceitava as coisas do jeito que eram, mas ela se irritava cada vez mais.

Não entendia como alguém que o conhecesse, que conversasse com ele, pudesse não aceitá-lo em sua sala de visitas. O trabalho dele também não era banal, juntava finanças,
arte e investimento. Quando os irmãos dela viraram banqueiros, algumas portas se fecharam para eles, mas a maioria, não.

Claro, tudo estava ligado ao berço. À família e aos antepassados. À família que Kyle jamais renegaria. Tinha-a avisado sobre isso.

Enquanto iam para a biblioteca, Alexia explicou a nova fase de sua campanha bélica, que incluía um jantar na casa dela. Aquelas três damas seriam convidadas, além
de duas amigas delas. Ela esperava que as convidadas que tinham acabado de sair convencessem as outras a comparecer. As cinco tinham maridos tidos como dóceis. Se
alguns deles deixassem suas esposas ficarem amigas de Rose, havia mais possibilidade de outros fazerem o mesmo.

Enquanto elas discutiam estratégias, Easterbrook entrou na biblioteca. Desculpou-se pela intromissão e ficou perto das estantes, examinando as lombadas. A presença
dele chamou a atenção de Henrietta, que se rendeu à curiosidade.

- Pretende ir ao exterior, Easterbrook? Porque está olhando memórias de viagem e títulos assim.

Ele tirou um livro da prateleira e deu uma olhada no texto.

- Não vou a lugar nenhum. Estou pesquisando para minha jovem prima.

- Ah, céus, vai mandar Caroline fazer uma viagem pelo continente? Eu desejei tanto isso... Ela precisa ir a Paris, claro, e...

- Não, não é uma viagem pelo continente - resmungou ele. - Busco informação sobre lugares bem específicos, para onde as jovens vão às vezes, mas parece que nenhum
desses autores tem nada de especial sobre eles.

Henrietta franziu o cenho.

- Que tipo de lugar?

Ele colocou o livro na prateleira e tirou outro.

- Conventos.

- Conventos!

Rose achou que Henrietta ia precisar de sais. Alexia a acalmou e se dirigiu ao marquês.

- Tenho certeza de que está brincando. Por favor, diga à sua tia que está querendo irritá-la de novo.

- Gostaria de estar. Na verdade, gostaria que Hayden assumisse seu papel de responsável por isso, em vez de me deixar mexendo em assuntos que não entendo e não me
interessam.

- Viram? Ele ainda não a perdoou por aquele flerte com Suttonly no verão passado - disse Henrietta, alto. - Ela obedeceu a sua ordem, Easterbrook. Há semanas que
não pronuncia o nome dele.

- Henrietta, o verão passado já foi bastante ruim, mas lastimo dizer que estou às voltas com mais um daqueles desastres causados pelas jovens. Prever um duelo por
ano já bastava, obrigado. Mas ter de me preparar para dois é uma provação para a minha paciência.

Ele franziu o cenho para os livros e tirou mais um da estante.

- Vou me livrar logo desse dever maçante. Vou duelar com o sujeito, deixá-lo bem ferido, mandar Caroline para um convento e ficar sossegado por alguns anos, pelo
menos.

Henrietta chorou. Easterbrook continuou a mexer calmamente nos livros. Alexia tentou ser diplomática.

- Sua tia e eu não sabemos de nenhum admirador de Caroline no momento. Acho que está enganado.

Ele fechou o livro com força.

- Não se trata exatamente de um admirador. Trata-se de um sedutor. Não estou enganado, Alexia. Lastimo dizer que estou convencido de que Caroline já perdeu sua virtude.

Isso causou um susto. Henrietta se espantou tanto que ficou ofegante e boquiaberta. Depois chorou copiosamente.

- E quem é esse homem? - exigiu saber Alexia.

- Aquele químico francês. Amigo de Bradwell.

Henrietta parou de chorar. Arregalou os olhos. Olhou de esguelha para ver a que distância dela estava o marquês.

- Garanto que está enganado - disse Alexia.

- Vi-o esta manhã mesmo. Ao nascer do dia, eu estava olhando o jardim pela janela e o vi. Saindo desta casa.

Ele deu uma olhada preocupada para a tia.

- Agora tenho de ser babá também, tia Henrietta? Até eu me impressiono por se descuidar tanto dela. Eu, que não dou a menor importância a essas coisas.

Henrietta ficou imóvel. Easterbrook estava atrás dela, então não viu o que Rose e Alexia viram. O rosto da jovem senhora ficava cada vez mais vermelho.

Rose olhou para Alexia exatamente quando Alexia se voltava para ela. As duas encararam Henrietta.

- Easterbrook, continuo achando que está enganado - insistiu Alexia. - Se foi ao nascer do dia, não era possível ver direito o que era, ou quem. Talvez um dos jardineiros
estivesse andando por ali.

- Não, Alexia. Era ele.

O marquês desistiu de olhar os livros.

- Infelizmente, esses livros não trazem indicação de conventos. Vou pedir ao advogado que faça umas pesquisas discretas. Um convento na França, por exemplo, para
tia Henrietta poder visitá-la uma vez por ano.

Quando Easterbrook seguiu em direção à porta, Alexia se pôs no caminho dele.

- Mesmo se estiver certo e fosse ele no jardim, isso não prova que esteve na casa. Nem que procurou Caroline. Afinal, podia estar atrás de uma das criadas.

Ele a olhou com carinho, como sempre.

- Vi-o flertando com ela no casamento da sua prima. Fui descuidado em não avisar, mas Henrietta estava com eles e concluí...

Todos congelaram enquanto a cena pairava no ar. Rose quase conseguiu ouvir o marquês recapitulando, pensando, rejeitando... reconsiderando.

Easterbrook virou e olhou para a tia. Moveu a cabeça, observando-a. Ela estremeceu enquanto ele examinava o chapéu novo, o penteado diferente e o viço recém-adquirido.

- Alexia, seu valoroso bom senso me poupa de cumprir obrigações desagradáveis. Eu talvez tenha sido um pouco precipitado ao pensar o pior de Caroline. Talvez não
fosse monsieur Lacroix que estivesse no jardim.

Pediu licença. Da porta, antes de sair, ele voltou a falar.

- Contudo, caso tenha sido... Henrietta, por favor, fale com as criadas. Se uma delas está recebendo um homem, espero que os dois se divirtam. Mas é melhor que ele
saia quando ainda estiver escuro, de forma que não haja mais nenhum mal-entendido.

 

Rose atravessou a porta que ligava seu quarto de vestir aos aposentos de Kyle. Ele não iria procurá-la nessa noite. Suas regras haviam chegado. Encontrar uma maneira
delicada de dizer isso a ele exigira muita habilidade sua. Ele parecera achar graça das sutilezas que a esposa usara, mas a havia compreendido.

Ela ouviu a voz de Jordan e o som do marido despindo-se. Depois, ficou tudo em silêncio. Abriu a porta. Os quartos de vestir não eram opulentos e espaçosos: o quarto
dele ficava a poucos passos. A lamparina ainda não tinha se apagado e ela percebeu as silhuetas do toucador, as escovas e o espelho dele.

Prosseguiu, deu uma olhada. As cortinas do dossel não tinham sido fechadas. Ele estava deitado, com o camisolão aberto mostrando o peito forte.

Ficou olhando. Não o via despido desde a noite de núpcias. Ela sempre apagava as velas e lamparinas, mesmo quando o procurava em Oxfordshire. A escuridão fazia a
cama misteriosa e sobrenatural e evitava um grande embaraço. Tornava mais fácil que ela se entregasse.

Ele estava com a cabeça apoiada nos braços dobrados. Parecia compenetrado, como se tivesse percebido algo no teto que exigisse sua atenção. Mas estava tão imóvel
que talvez nem estivesse acordado.

- Kyle, está dormindo? - sussurrou ela.

Ele se sentou na cama. Olhou para a esposa e observou sua camisola e o penhoar, que não eram nem novos nem tão bonitos.

- Acordei você? - insistiu ela.

- Não. Estava pensando em alguns problemas que tive hoje.

- Sobre terras, associações de mineiros e coisas assim?

- É.

Ela entrou no quarto cautelosamente.

- Alexia combinou de algumas damas me visitarem. Bom, não a mim, mas a Henrietta. Porém elas sabiam que eu estaria junto e foram mesmo assim.

- Venha aqui me contar isso.

Ela subiu na cama e contou sua pequena vitória.

Ele pareceu muito interessado.

- Lady Alexia age rápido.

- Ela ainda acredita que Irene tem chance de ser apresentada nessa temporada, acho.

Irene não tinha saído da casa de Alexia. Todos achavam que sua única esperança era que a prima a apresentasse à sociedade.

- Quando ela der esse jantar, você deve usar um vestido novo - disse ele. - Vou mandá-la para lá tão bem-vestida que será a mulher mais elegante da mesa.

- Talvez você me acompanhe, em vez de apenas me mandar ao jantar.

- Pouco provável. Lady Alexia é esperta demais para lutar em duas frentes ao mesmo tempo.

- Então não sei se vou querer ir.

A expressão no rosto dele mudou um pouco, o suficiente para ficar indecifrável.

- Quer saber de uma fofoca? - perguntou ela. - É sobre alguém que você conhece.

- Todo mundo quer saber de uma fofoca, principalmente sobre alguém que se conhece.

- É fofoca das boas. Tudo indica que seu amigo, o Sr. Lacroix, está tendo um caso com... Henrietta!

- Quais são as provas?

- Ninguém menos que Easterbrook o viu saindo da casa. Você acredita?

- Que indiscrição de Jean Pierre. Devo avisá-lo?

- Desde que não seduza Caroline, acho que Easterbrook não se importa se ele ficar com todas as mulheres da casa. Quanto a Henrietta, o marquês pareceu encantado
e feliz por poder cutucá-la sobre isso nos próximos anos.

Eles riram. Foi bem agradável ficar ali de noite, conversando sobre fatos do cotidiano. Mas quando terminou a história, Rose sentiu que o marido estava se distraindo
outra vez. Os olhos dele ficaram insondáveis como quando ela havia chegado ao quarto.

- Bom, boa noite - disse ela, saindo da cama.

Ele pegou sua mão.

- Fique.

Talvez as palavras brandas que ela usara tivessem sido vagas demais.

- Eu... quero dizer, hoje eu... estou naquela semana em que...

- Fique, mesmo assim.

Rose sentiu algo diferente no coração quando, sem jeito, entrou embaixo dos lençóis. Kyle apagou a lamparina e a escuridão envolveu a casta intimidade dos dois.
Ele a abraçou.

Ela não dormiu logo. Ficou preocupada com a novidade daquele tipo diferente de afeto.

- Preciso ir ao norte outra vez - disse ele, e sua voz não a assustou, tão calma veio na noite. - Daqui a duas semanas, talvez. Não vou ficar mais de uma semana.

- Posso ir junto? Você disse que iríamos na primavera, mas, se vai agora, eu também gostaria de ir.

- A viagem vai ser no frio. E você tem aquele jantar.

- Alexia pode marcá-lo de acordo com a viagem. E não tenho medo de um pouco de frio.

Duas semanas antes, ela jamais pediria para ir. Mesmo alguns dias antes, ela poderia ter apenas deixado a informação passar. Mas agora queria muito ver como fora
a vida dele. O abraço nessa noite a emocionou, mas também deixou bem claro que, mesmo com tanto prazer, havia um vazio naquele casamento que ela não conseguia explicar.

Não sabia se um dia esse vazio seria preenchido. Talvez Kyle fosse sempre um pouco estranho. Talvez ele preferisse assim. Ela não tinha ao menos certeza se gostaria
do que seria preenchido, se isso ocorresse. Só sabia que o vazio parecia grande nesta noite, talvez porque uma nova emoção o destacasse. Sua alma quase doía por
desejar algo tão fora de alcance.

- Veremos - disse ele. - Amanhã vou para Kent e passarei uns dias lá. Você não pode ir, já que iniciarei algumas obras e só haverá operários, muita lama de inverno
e eu...

Algumas obras. Em Kent. Devia ter sido o trabalho que fora tratar com Norbury no dia do leilão.

Súbito, entendeu por que Kyle estava tão pensativo na hora em que ela entrou no quarto. Devia ter encontrado Norbury. Talvez naquele mesmo dia.

Ele jamais a deixaria saber se Norbury os insultara. Jamais contaria se pensava naquele caso. Mas Rose tinha certeza que sim. Talvez até naquele instante, enquanto
os pensamentos vagavam pela noite.

Ela podia saber mais sobre ele e começar a preencher aquele vazio. Eles podiam ter muitas noites como essa, em que conversavam como amigos e não como amantes.

Entretanto, não importava o que acontecesse, não importava quanto tempo ficassem casados, Norbury seria uma sombra entre eles, afetando tudo, mesmo as coisas boas,
ainda que nenhum dos dois jamais pronunciasse o nome dele.

Esse pensamento quase estragou aquela noite agradável. Norbury tinha entrado na cabeça dela. E quase dava para ouvi-lo falando na de Kyle. Sua influência malévola
ficou tão opressora que ela pensou em sair da cama.

Kyle virou de lado, dormindo. O braço ficou casualmente sobre ela. A mão estava sobre o seio, num gesto ao mesmo tempo confortador e possessivo. Ficou assim a noite
toda, impedindo-a de escapar.

 

CAPÍTULO 12

Kyle estava em Kent fazia dois dias quando Roselyn recebeu a carta. Tinha sido reenviada de Watlington. Reconheceu a letra na hora: Timothy tinha escrito outra vez,
embora a carta estivesse assinada como Sr. Goddard.

Dessa vez, não escrevera de Dijon, mas de uma cidade italiana chamada Prato.

 


Finalmente atravessei os Alpes. Estou morando aqui por ser menos dispendioso do que Florença. E também por haver menos possibilidade de eu ser reconhecido. A viagem
foi exaustiva e o clima, horrível. Tive medo de morrer. Passei mal quase todo o tempo. Agora vivo entre estranhos cuja língua ignoro e sofro de uma tristeza grande
demais para aguentar.

Pretendo ficar aqui até que venha ao meu encontro. Por favor, escreva logo, dizendo que vem. Só verei o sol na minha janela quando você chegar. Conte-me seus planos,
de forma que eu tenha algo por que esperar.

Rose, meu bolso se ressentiu da longa estada em Dijon e dos honorários dos médicos, que não serviram para nada, mas foram caros. Quero que venda a casa e o terreno
em Oxfordshire e traga o dinheiro. Esta carta a autoriza a fazer isso em meu nome. Leve-a a Yardley, nosso velho advogado. Ele reconhecerá minha letra e lhe dirá
o que fazer. Eu o autorizo a ser meu procurador na venda caso, por ser mulher, você não seja aceita. Se houver mais exigências, escreva-me imediatamente, de maneira
que possamos efetuar a venda o mais rápido possível.

Sei que ainda faltam meses, mas conto os dias na esperança de que ainda seja minha adorável irmã de sempre, um coração bondoso que me deu força por quase a vida
inteira. Prometo que tudo vai melhorar quando estivermos juntos outra vez.


Timothy

Ele ainda parecia perdido e só. A menção a uma doença não ajudava a melhorar as coisas. Rose não sabia se deveria torcer para que ele estivesse se referindo a passar
mal por excesso de bebida, já que esse era o grande fraco do irmão, ou por outro motivo.

E agora ela não podia ir encontrá-lo, por mais doente que ficasse. Ele jamais saberia que, por um curto espaço de tempo, quando passara algumas horas de grande felicidade
deitada numa colina, ela cogitara fazer isso.

Ela também não podia negar a verdade por trás da escolha que fizera. Ao aceitar o pedido de Kyle, deixara de lado as necessidades do irmão para tentar salvaguardar
a própria vida e a de Irene na Inglaterra - o que talvez se tornasse uma necessidade desesperada. Se não agora, um dia.

Ele afirmara estar ficando sem dinheiro. Isso despertara um pouco de raiva em Rose. Ela havia sobrevivido com quase nada esses meses todos. Ele deveria ser mais
controlado, em vez de gastar todo o dinheiro que roubara.

Deu um suspiro, tão fundo que o corpo todo estremeceu. Timothy estava sendo apenas Timothy. Sem a influência dela, continuaria sendo a pior versão de si mesmo. Ela
não podia salvá-lo. Não agora, depois de Kyle ter dito tão claramente que ela jamais iria ao encontro do irmão. Mas não podia abandoná-lo, como Kyle esperava.

Chamou a criada e trocou o vestido matinal por um conjunto para usar em carruagem. Tinha de encontrar Alexia na modista e encomendar alguns trajes novos. Mas antes
iria ao centro financeiro da cidade. Precisava saber se ainda podia ajudar o irmão.

 

Kyle observou o engenheiro perfurar a terra dura para conferir novamente o terreno antes de iniciar as fundações.

A uns 200 metros, outro homem marcava as árvores que seriam derrubadas e as que seriam poupadas quando a nova estrada fosse construída. Kyle imaginou a casa que
dali a pouco se ergueria ao lado daquele matagal.

Se tudo saísse conforme planejado, dentro de dois anos haveria famílias morando naqueles campos e carruagens passando por novas estradas. A propriedade de Cottington
seria valorizada e seus parceiros veriam os lucros.

Incluindo ele. Kyle ainda estava andando na corda bamba. Era bom e experiente em se equilibrar. Não chegava a perder o sono por causa dos riscos. Mas, como qualquer
homem, ele preferia ter os pés firmes no lado com dinheiro daquela corda.

O operário que marcava as árvores o chamou e fez um gesto apontando para o sul. Kyle olhou para a estrada naquela direção. Atrás da carroça que trazia as ferramentas
a serem usadas nesse dia, vinha uma carruagem.

Ele reconheceu o veículo. Foi até a estrada e chegou ao mesmo tempo que Norbury saltava.

- Espero que não tenha vindo da cidade só para ver o andamento da obra - disse Kyle. - Ainda não há muito o que conferir.

Sob a aba do chapéu de copa alta, Norbury olhou a elevação de terra.

- Estou oferecendo uma recepção na minha mansão. Resolvi vir aqui antes que os hóspedes chegassem.

Norbury olhou atentamente para Kyle, querendo avaliar sua reação. Kyle o deixou olhar à vontade. Não precisava que Norbury o lembrasse da última festa que tinha
dado. A imagem da humilhação de Rose vinha sempre à cabeça, sem que ninguém precisasse ajudar.


E ela chegou trazendo fúria e uma urgência de espancar o visconde. Kyle tinha controlado essa vontade na última vez em que se encontraram. Agora ela voltava e o
deixava tenso.

- Espero que essa festa seja mais discreta do que a última. Se espalharem o boato de que fazem orgias aqui perto, essas casas jamais serão compradas.

- Aposto que serão compradas mais rápido.

Norbury fez um gesto para que Kyle o acompanhasse.

- Vim falar de assuntos de interesse mútuo, além dessas casas. Recebi um recado de Kirtonlow Hall. Meu pai sofreu uma leve apoplexia. O médico disse que ele não
vai durar muito.

- Ele é mais forte do que a maioria. Pode durar mais do que os médicos imaginam.

Mais do que você espera. O filho era tão diferente do pai que nunca houvera muito afeto entre eles. De diversas maneiras, o conde deixara claro a seu herdeiro quanto
ele o decepcionava.

Não era apenas a capacidade intelectual de Cottington que não passara despercebida a Norbury. Algo fundamental faltava no filho, além de inteligência. Ele parecia
não ter a empatia natural que um ser humano sente pelos demais. Ou ter uma empatia deformada. Norbury não seguia os princípios morais que costumam guiar as pessoas
em assuntos grandiosos ou corriqueiros.

- Podemos desejar que ele viva para sempre, mas ninguém consegue - falou Norbury com uma sobriedade dramática. - Quanto ao outro assunto que eu queria tratar com
você, os vivos podem influenciar. Andei pensando no seu casamento.

Kyle apertou o passo, fazendo com que o outro o seguisse na estrada. Olhou para trás, para saber a distância que estavam dos operários. Será que veriam ou ouviriam
se ele quebrasse o queixo de Norbury com um soco?

- Pode parar de olhar para mim como um boxeador se preparando para uma luta - disse Norbury. - Sua decisão de se casar com uma mulher dessas é loucura. Estou mais
interessado no irmão dela e em como esse casamento muda nossos planos em relação a ele. Depois de me recuperar do choque de você se juntar a ela para sempre, vi
uma luz na escuridão.

- A única luz que existe é a da minha felicidade na escolha da minha esposa. Timothy Longworth foi embora. Nem ela nem eu temos ligações com ele.

- Ele não escreve para ela? É bem provável que sim.

- Não tem por quê.

- É irmã dele. Você precisa ver as cartas que ela recebe, assinada com o nome verdadeiro ou de Goddard. Veja qualquer carta enviada do continente, principalmente
da Itália.

- Não.

- Vai economizar muito tempo. Se ele escrever para ela, teremos...

- Não. Estou fora disso. Não quero participar e não vou ajudá-lo.

Um aperto no braço. Era a ordem de parar. Kyle olhou para Norbury, cujo rosto tinha perdido qualquer traço de gentileza.

- Céus, com que rapidez o cavaleiro puro foi seduzido e maculado. Esqueceu rápido seus lindos ideais sobre justiça, Kyle.

- Não vou espionar minha esposa.

- Não espione. Faça com que ela lhe conte.

- Ela não vai nos dar de bandeja a cabeça do irmão na nossa forca. Nem eu vou pedir.

- Porcaria nenhuma! Não há desonra nisso. Maldição, assim você vai até protegê-la.

A explosão de Norbury despertara seu pensamento. Seus olhos ficaram dissimulados.

- Na verdade, se não fizer isso, vai colocá-la em risco - concluiu.

Norbury podia ter um raciocínio lento, mas funcionava quando necessário. Kyle viu novas ideias surgindo, transformando seu rosto numa máscara de presunção.

- Ela decerto foi cúmplice desde o começo - disse Norbury.

- Claro que não.

- Maldição, eu devia ter percebido antes. Isso explica o reembolso feito por Rothwell. Não estava poupando um homem que já tinha escapado de nós, mas a cúmplice
que ficara para trás. Ela pode até estar com quase todo o dinheiro aqui, na Inglaterra. Aquela humildade era um disfarce para afastar suspeitas. Maldição, Longworth
nem era tão inteligente. Deve ter sido tudo ideia dela...

- Está falando bobagem.

- Até mesmo o que teve comigo. Pensei que eu a tivesse seduzido, mas vai ver ela quisesse ficar perto de mim para saber se as vítimas estavam prestes a descobri-la.
Seria irônico, não? Se ela estivesse o tempo todo...

- Continue insinuando isso e mato você.

- Está tão encantado pela beleza dela que é capaz de arriscar tudo? Duvido. Daqui a alguns meses não estará mais tão embevecido com seu grande prêmio. E verá o que
há por baixo da bela aparência. O irmão é ladrão e ela mesma mostrou ter caráter fraco e imoral.

Kyle agarrou Norbury pelo colarinho. Puxou-o e o levantou do chão.

- Eu avisei.

Norbury arregalou os olhos e inclinou a cabeça para trás.

- Ouse dar um soco e eu não vou me conter. Acho que um juiz gostaria de ouvir a questão e refletiria bastante antes de achar que estou errado. Meu ponto de vista
pode dar um bom processo. Com um pouco de esforço, talvez até se encontrem algumas provas.

A ameaça era óbvia. Justiça corrupta ainda era pior do que falta de justiça e um lorde tinha muitas formas de conseguir a primeira.

Kyle mal conteve a própria fúria. Soltou o colarinho de Norbury, que se ajeitou, alisando a roupa e ajustando a gravata. Endireitou-se e olhou com o deleite de um
homem que, de súbito, se descobria com um ás na mão.

- Descubra onde está o bastardo, Kyle - ordenou Norbury, já andando em direção à carruagem. - Com toda a honra que você acha que tem, não vai lhe fazer falta sacrificar
um pouco dela.

 

Assim que Kyle voltou de Kent, Rose percebeu que ele tinha encontrado Norbury novamente. Ele carregava uma nuvem pesada para dentro de casa. Sua expressão estava
diferente, mais dura que de hábito.

Naquela noite, quando se sentou para jantar, tratou-a como sempre. Até a ouviu pacientemente contar como foram os dias em que estiveram longe um do outro. Mas a
presença de Norbury na cabeça de Kyle era tão evidente que o outro bem podia estar à mesa com eles.

Quando o criado foi dispensado, ela se preparou. Era melhor desanuviar o ambiente e saber o que o estava preocupando. Isso não queria dizer que ela ficasse feliz
com uma possível discussão.

- Rose, quando ficou em Oxfordshire, recebeu alguma carta de seu irmão? Refiro-me a alguma além daquela da primeira vez em que fui visitá-la.

Ela não esperava essa pergunta, ou assunto. Não fosse pela intensidade com que o marido fizera a pergunta, ela podia ter contado tudo. Mas se conteve, tentando imaginar
por que ele perguntava e se a resposta tinha importância.

- Creio que ele escreveu pelo menos mais uma vez - acrescentou Kyle.

- Sim. Uma.

Era verdade, mas não toda ela. Rose havia recebido só mais uma carta quando estava em Oxfordshire.

- Então eu tinha razão: quando você falou em ir embora para sempre, era com ele.

Ela assentiu.

O fato de ter razão não alterou o humor dele.

- Não quero que tenha mais qualquer contato com ele, Rose. Se ele escrever de novo, queime as cartas sem ler. Não as guarde. Nem sequer veja de que cidade ele escreveu.

Ela ficou um bom tempo em estado de choque, sem conseguir pensar. Então o choque foi substituído pela raiva.

- Antes de nos casarmos, você disse que eu jamais poderia encontrá-lo, nem para visitas. Não disse que não podia escrever ou receber cartas dele.

- Eu disse. Mas, caso tenha entendido mal, estou repetindo agora.

- Eu disse que não o consideraria morto, mas agora você exige que eu aja como se estivesse.

- É.

O olhar dele era de ordem, mais do que a voz.

Ela se levantou e saiu da sala de jantar. Buscou um pouco de privacidade na biblioteca. Para sua surpresa, ele foi atrás.

- É melhor me deixar sozinha para aceitar o que você exige em relação a meu irmão - avisou.

- Preciso saber se aceita mesmo. Quero a sua palavra de honra.

- Minha palavra de honra? E o que me diz da sua? Se a minha puder mudar com a mesma rapidez, eu a dou com prazer. Naquele dia, você me convenceu de que tinha retirado
essa exigência.

Ela pensou que a culpa poderia amaciá-lo. Só que aumentou a raiva.

- Tenho um motivo para exigir isso. Gostaria que você acreditasse em mim, mas, se não acreditar, isso não muda nada. Você sabe como é o seu irmão. Você mesma disse
que ele é um perigo para você. Não pode ter contato com ele.

- Ele é meu irmão.

- Ele é um ladrão covarde. Um criminoso.

A firmeza de Kyle a surpreendeu. Ela o olhou atônita, surpreendida pela força que emanava dele, vendo-a e a sentindo sem controle.

Ele se acalmou, mas a tensão ficou no ar.

- Rose, você entende o que ele fez? Quantas pessoas ele roubou?

- Lorde Hayden...

- Lorde Hayden impediu que as vítimas ficassem na miséria total. Quanto você acha que ele pagou?

Ela se sentiu como uma criança na escola tentando adivinhar a resposta de uma conta.

- Muito dinheiro. No mínimo 20 mil.

A raiva chegou a dar expressão à risada curta e baixa que ele soltou.

- Essa quantia não faria a menor diferença para Rothwell. Pense na casa onde sua prima ainda mora. Ela lhe mostrou alguma joia nova? Ou trajes novos? Pense neles
e nos tecidos e enfeites que ela usa.

Rose sentiu o estômago embrulhar. Nunca tinha calculado a quantia, em parte porque sabia o suficiente para desconfiar que não gostaria da soma total.

- Quanto? - perguntou ela, num sussurro.

- Ao fim e ao cabo, no mínimo 100 mil libras. Talvez muito mais.

Ela arquejou. Quanto dinheiro!

Kyle se aproximou. Os olhos dele tinham um pequeno brilho solidário em meio a todos os de raiva.

- Seu irmão não sabia que Rothwell iria reembolsar nem uma libra. Presumiu que cada vítima simplesmente amargaria o próprio prejuízo. Assim como os clientes, quando
o banco faliu. Ele não roubou só dos ricos, mas de velhinhas, órfãos indefesos e pessoas que dependiam dessas reservas para viver.

- Tenho certeza de que ele não entendeu bem... Ele não podia... de propósito...

- Claro que ele entendeu. Tudo. Com toda a certeza, fez de propósito.

De novo, Kyle controlou a raiva. Foi visível seu esforço de se recompor.

- É tão estranho assim que eu queira que corte relações com um homem tão canalha?

Ela já não conseguia enxergar Kyle direito. Virou-se e tentou conter os soluços. Meu Deus, 100 mil libras! E Alexia e Hayden...

Enxugou os olhos e tomou fôlego.

- Você disse que conhece pessoas que perderam dinheiro. Quem são elas?

Por um instante, Rose pensou que ele não fosse responder.

- Meus tios.

Ela teve outro choque. Não eram amigos, mas pessoas da família.

- Porém foram ressarcidos, não?

- Sim, foram. É assim que você justifica, quando pensa no seu irmão? Pelo menos as vítimas foram ressarcidas. Pelo menos apenas uma vítima pagou caro em vez de dúzias
perderem tudo? É assim que você o desculpa?

- Eu não o desculpo.

- Acho que desculpa. Ele é seu irmão e você busca motivos para diminuir a culpa dele. Mas ele não é meu irmão, Rose.

Não, e Kyle não desculparia nada. Não se sentia nem um pouco solidário, nem tinha intenção de salvá-lo. Se Tim fosse preso, Kyle acharia justo que fosse para a forca.

Ela não tinha palavras para argumentar. Não tinha nada para contrapor, a não ser o amor por um irmão que tinha sido uma pessoa bem melhor quando criança do que adulto.

Ela pensava que Kyle fosse ao menos entender, se não aprovasse. Mas ele estava implacável, irredutível e disposto a fazer com que ela condenasse Tim como todo mundo.

- Você vai cortar qualquer contato com ele - repetiu. - Se tem cartas, queime-as. Se receber mais uma, destrua-a imediatamente.

Ele saiu da biblioteca. Não tinha pedido que ela prometesse, tinha ordenado. E ela deveria obedecer.

 

Naquela noite, Rose pensou em trancar a porta de seu quarto de vestir.

Nunca tinha feito isso. Não se importava que ele a procurasse todas as noites. Era a esposa, ele tinha esse direito e nunca saíra do quarto sem que ela tivesse alcançado
toda a liberdade que o prazer podia proporcionar.

Essa noite era diferente. Não tinha certeza se reagiria ao toque dele. Após a discussão, um silêncio duro como pedra caíra sobre a casa. E ainda afetava o ambiente
e ela.

Nessa noite, uma pequena parte de Kyle que ela ainda desconhecia se revelara. Ficara espantada com a força de vontade dele. Já a havia percebido antes, mas vê-la
dirigida a ela a assustara um pouco.

Devia ter suposto quanto ele era seguro. Em relação a si mesmo e às decisões que tomava. Sem isso, ele não teria sobrevivido no caminho que percorrera. Poucos homens
saíam de um vilarejo de mineiros de carvão para as salas de visitas de Londres em pouco mais de dez anos.

Poucos homens nascidos num vilarejo assim pediriam Roselyn Longworth em casamento, independentemente das condições em que estivessem suas finanças, sua reputação
ou o status de sua família.

Ela ficou na frente da porta, olhando a tranca. Não era a primeira vez que achava que, com esse homem, não devia agir guiando-se pelo capricho. Não que ele fosse
derrubar a porta se ela a trancasse. Acreditava que ele nem sequer se irritaria.

Em vez disso, imaginava que duas coisas poderiam ocorrer. Ou os dois teriam uma conversa igual à anterior, em que ele diria o que aceitava ou não que ela fizesse
ou haveria frieza e formalidade na cama na próxima vez que ele a procurasse, podendo se estender para as seguintes por bastante tempo. Talvez até para sempre.

Ela se afastou da porta e voltou para a cama. Apagou as lamparinas como fazia todas as noites e foi envolvida pela escuridão.

Talvez ele não viesse, embora já fizesse alguns dias que não se encontravam, por causa das regras dela e do tempo que ele passara em Kent. Sem dúvida, ele sentia
que a discussão ainda ecoava na casa. Tinha se retirado para o escritório e o trabalho, mas talvez as palavras ressoassem na cabeça dele como faziam na dela.

O coração dela ainda batia pesado ao lembrar como ele via a culpa de Tim. Cem mil libras. Ela às vezes pensava em reembolsar Alexia e Hayden, mas jamais poderia
ressarcir uma quantia dessas. Jamais. Por isso Alexia fora tão enfática ao desencorajá-la de encontrar Tim na Itália.

Só que agora ela estava casada com um homem que teria prazer em enforcar Tim com as próprias mãos. Não podia defender o irmão. Não podia dizer que Kyle estava errado.
Mas uma irmã não julga com base no certo e no errado, na justiça.

Cem mil libras. Como uma quantia dessas podia estar chegando ao fim? Tim dizia que precisava de mais dinheiro, e ela acreditava nele.

Um movimento sutil no quarto a tirou de seus pensamentos. Abriu os olhos na escuridão. Kyle estava ao lado da cama, não passava de uma silhueta negra no quarto sem
luz.

Tinha vindo, afinal. Isso a surpreendeu. E também a reação que teve: o coração bateu de alívio antes que ela conseguisse se controlar.

Kyle parecia estar à espera de algo ou decidindo alguma coisa. Ela não sabia o quê. Mexeu-se na cama e isso fez as cordas que sustentavam o colchão reclamarem.

Kyle também fez sons e movimentos quase imperceptíveis. Roupão caindo. Calor se aproximando. Braços se esticando e peles se tocando. Ela respirou e o sentiu inteiro
na cama, aquela presença total que transformava a noite.

Ele soltou o laço da camisola, fazendo-a escorregar pelos ombros e o corpo de Rose.

- Obrigado por não trancar a porta.

Será que ele a ouvira discutindo consigo mesma? Como era típico dele tocar no assunto, em vez de deixar que fosse uma escolha silenciosa. Rose esperava que não comentassem
também o motivo para ela pensar em trancar.

As carícias e o beijo mostraram que não comentaria.

- E se eu tivesse trancado?

Ela já nem estava muito interessada na resposta. As deliciosas palpitações da excitação a distraíam.

- Não sei. Ainda não havia decidido o que faria quando tentei abrir a porta.

Ela não pensou na resposta, apenas percebeu o perigo daquela incerteza. Mas o prazer já desviava sua atenção. Seduzia-a. Isso também era perigoso. O prazer embotava
os pensamentos e colocava tudo sob a melhor perspectiva.

Kyle se assegurava de que ela gostasse. Com suas carícias e beijos hábeis e firmes, levava-a à entrega que tinha se tornado tão habitual, tão atraente. O prazer
obrigava a uma espécie de abandono, concluiu ela. Abrir mão de ser racional e de si mesmo. Nunca chegara a compreender isso antes.

Dali a pouco, ela não entendia mais nada, nem mesmo a discussão. A névoa de sensações obscurecia tudo, menos o desejo de que ele lambesse seus seios e beijasse sua
barriga e tocasse a carne que ansiava por ser penetrada.

Kyle a tirou do colchão e a sentou em seu colo com as pernas afastadas. Puxou-a pelo quadril e a penetrou tão fundo que ela gemeu com a deliciosa sensação de completude.

Ele roçava os mamilos dela com as mãos e ela ganhava vida onde seus corpos se uniam. Diretamente. Maravilhosamente. A excitação desceu direto por seu corpo e se
instalou ao redor da completude que ele proporcionava.

- Venha aqui.

No escuro, Kyle a puxou para a frente até deixá-la apoiada sobre os braços. Seus seios pairavam acima dele. Ele então substituiu as mãos pela boca. O prazer aumentou
tanto que ela arfou. O jeito como a excitava era bom demais, urgente demais, irresistível demais para que ela conseguisse se controlar minimamente que fosse.

Ela se entregou à loucura, gritando e gemendo e se mexendo para senti-lo mais, melhor, mais firme. Ele a segurou pelas coxas e a penetrou com força para atingir
o ápice. Ela ficou completamente dominada.

Quando ele terminou, ela continuava excitada. Apesar das muitas ondas de prazer e entrega, o corpo dela ainda tinha fome. Ele percebeu. Colocou-a de costas e a acariciou
de novo, desta vez nas dobras da carne sensível e pulsante.

Ela quase desfaleceu. Agarrou-o com as unhas para fugir do prazer quase doloroso. Ouviu-o como naquela primeira noite, dizendo-lhe que se entregasse.

Dessa vez, foi o mais doce dos gozos. Primeiro a atingiu com força, depois se espalhou em turbilhões que deixaram seu corpo atônito. Ela se maravilhou nessa sensação
e prendeu o fôlego para que durasse para sempre.

Não durou, claro, ainda que seu corpo tenha demorado a entender isso.

Os acontecimentos anteriores da noite voltaram junto com a noção de espaço e tempo. Talvez tivessem saído dos pensamentos de Kyle também, banidos pelo delírio.

Ele não ficou por muito tempo depois que ela recobrou os sentidos. Naquele breve período tão saturado de paz, ela sentiu a sombra nele.

Desconfiou de que ele não esquecera aquela discussão, nem mesmo no momento do orgasmo. Tinha-a procurado nessa noite em parte por causa da briga. Havia deixado claro
que tais coisas jamais ficariam entre eles naquela que era a parte mais fundamental do casamento. Ele também se assegurara de que ela não se incomodaria com isso.

Esse frio cálculo não mudou a verdade de como ele a tratava. Se Kyle trouxera alguma raiva para aquela cama, não demonstrara. Como sempre, ele tivera consideração
e pedira pouco dela, além de que tivesse prazer.

Rose pensou uma coisa. Uma coisa incrível. Quem era ele e quem era ela, a forma como se encontraram, o escândalo e a redenção influenciavam tudo. Principalmente
o que acontecia naquela cama na melhor e na pior das noites.

 

CAPÍTULO 13

Kyle não havia mentido. No final de janeiro, a estrada para o norte era fria. Quando entraram no condado de Durham, o céu estava baixo, com nuvens de chuva.

Mais para o norte, a paisagem ficava montanhosa e cada vez mais deserta. Passaram por vilarejos pequenos e grandes. Rose identificou aqueles onde os mineiros viviam.
Os resíduos da mina, que os trabalhadores carregavam em seus corpos e roupas, deixavam marcas pelo caminho.

Quando se aproximaram de Teeslow, ela ficou nervosa. Kyle não tinha estimulado que ela fosse, mas concordara por insistência dela. Rose queria conhecer sua casa
e os tios, mas talvez não fosse bem-vinda.

- Você tem outros parentes além deles? - perguntou ela.

- Morreram. Meus tios tinham duas filhas mais jovens que eu. Morreram de cólera quando eu estava em Paris.

- Você sempre morou com eles?

A conversa parecia não incomodá-lo, mas tampouco lhe agradava.

- Meu pai morreu num acidente na mina, quando eu tinha 9 anos. Minha mãe tinha morrido alguns anos antes. O irmão dela ficou comigo.

Dali a pouco, a carruagem deles entrou no vilarejo. Rose olhou as poucas ruas e lojas, os amontoados de casas. Pó de carvão cobria as soleiras e batentes de algumas
casas, além do rosto e das roupas de algumas pessoas.

Kyle e Rose não pararam no vilarejo, continuaram em outra estrada que ia para o norte. No final dela, havia uma linda casa de pedra. Com dois andares, era parecida
com as casas menores encontradas no sul do país, geralmente destinadas a um administrador ou caseiro.

- Não esperava que fosse assim - disse ela.

- Pensou que seria uma casinha de cinco cômodos, no máximo? Eles moraram anos numa assim, lá no vilarejo. Há cinco anos, construí essa casa para eles.

Ele saltou da carruagem.

- Vou entrar, espere aqui. Eles não sabiam que eu vinha, e você vai ser uma surpresa total.

Foi até a porta, abriu-a e sumiu. Rose observou a casa. Viu o rosto de uma mulher, de relance, numa janela. Certamente, a tia olhava a surpresa total.

Ele estava sendo cuidadoso. Quando ela conhecesse seus parentes, os rostos disfarçariam o que pensavam, como ele também costumava fazer. Se não gostassem dela ou
achassem que não era uma boa esposa para o sobrinho, não demonstrariam isso num momento de surpresa.

Kyle voltou e estendeu a mão para ajudá-la a descer da carruagem. Uma mulher surgiu à porta, sorrindo para lhe dar boas-vindas.

- Rose, esta é minha tia, Prudence Miller.

Prudence tinha palavras amáveis e gestos afáveis.

- Ficamos muito contentes de você vir.

Esguia, de cabelos pretos e olhos brilhantes, Prudence tinha chegado à meia-idade com a beleza quase intacta. Rose a imaginou aos 20 ou 30 anos, de pele clara e
olhos escuros.

Como Prudence a recebeu sozinha, Rose concluiu que o tio de Kyle estivesse na mina. Assim que a levaram para a sala de visitas, viu que não era isso.

O tio Harold estava sentado perto da lareira. Tinha cabelos negros como os da esposa e era quase tão magro quanto ela. Apesar do rosto emaciado, Rose o achou parecido
com Kyle nos olhos azuis vívidos e nas feições de traços duros.

Ele a observou atentamente durante as apresentações. Rose notou sua palidez e o lençol que cobria suas pernas e o colo. Havia uma escarradeira numa mesa baixa perto
da perna direita dele. Tio Harold estava doente.

Os cumprimentos o fizeram tossir. Virou a cabeça e cuspiu na escarradeira.

- Você tem de fazer uma torta, Pru. Não podemos receber Kyle sem oferecer as tortas de que ele tanto gosta.

- Teremos uma no jantar - disse ela. - Esperem aqui um instante, vou ao andar de cima arejar um pouco o quarto.

Dava a entender que eles iam se hospedar lá. Kyle saiu e voltou com o cocheiro e as bagagens. A casa tinha um abrigo de carruagem e ele mandou o cocheiro para lá.

Carregou ele mesmo a bagagem para cima, seguindo a tia na escada. Rose sentou numa cadeira perto de Harold, que continuava a observá-la.

- É uma linda mulher, Sra. Bradwell. Agora entendo melhor este casamento.

- Espero que o senhor me trate por Rose.

Ele riu.

- Bom, vai ser uma experiência rara, tratar uma dama como a senhora com tal intimidade.

Tinha sido a imaginação dela ou havia um tom desaprovador na voz do tio? Considerando as circunstâncias do casamento, o "uma dama como a senhora" podia ter vários
sentidos.

Ela achava que o escândalo não podia ter chegado a Teeslow, mas talvez tivesse. Ou talvez Kyle houvesse explicado tudo em detalhes quando esteve lá, em dezembro.
Tenho a oportunidade de casar com uma dama porque ela está em tamanha ruína que nunca conseguirá algo melhor. A reputação dela vai me atingir, mas daqui a uma geração
ninguém vai lembrar muito disso.

Ela tentou manter uma conversa amistosa. Até o momento em que Harold começou a tossir. Ele estava com alguma doença muito grave. Rose se levantou para tentar ajudar,
sem saber como. Ele levantou a mão, impedindo-a. A tosse diminuiu e ele cuspiu de novo na escarradeira.

- Estou doente, como pode ver. É o mal dos mineiros. Achei que ainda teria uns bons dez anos de vida quando isso me atacou.

- Lamento.

Ele deu de ombros.

- Não se pode tirar o carvão sem levantar pó.

Kyle então voltou, poupando-a de encontrar o que dizer.

- Acho que vou roubá-la do senhor, tio. O quarto está pronto e Rose precisa descansar e se aquecer depois da viagem.

 

No quarto, Rose tirou o manto que usava em viagens e se aproximou da lareira.

- Seu tio está muito doente, não é?

- Está morrendo.

Ela assentiu, como se fosse óbvio.

- Ele disse que é o mal dos mineiros. Por causa do pó.

- Muitos adoecem dos pulmões. É de esperar, por isso levam uma vida tão controlada. Suas economias precisam ser suficientes para o sustento da família quando morrerem.

- É triste. Mas você fala sem emoção.

- A vida é assim, Rose. Essa doença é tão normal para esses homens como a gota é para os lordes. Um mineiro entra na mina sabendo disso, da mesma maneira que um
marinheiro embarca no navio sabendo que pode se afogar.

Kyle começou a desfazer sua mala. Nunca tinha levado Jordan lá, pelos mesmos motivos que ficara indeciso quanto a levar Rose. A casa não tinha nada de errado, mas
os tios não saberiam o que fazer tendo criados por perto.

Ele estava feliz de saber que Rose podia se virar sozinha. Do contrário, teria insistido em ficarem numa hospedaria, só que a mais próxima não seria conveniente.
Além disso, a tia ficaria ofendida se aquele casamento mudasse tão rapidamente os hábitos da família.

Mesmo assim...

- Você vai se sentir bem aqui? Se não for, pode me dizer.

Ela deu uma olhada no quarto, na cama sem dossel e nas cortinas de que tia Pru tinha tanto orgulho.

- É muito melhor que uma hospedaria. Vamos ficar juntos?

- Vamos.

Ela não pareceu se incomodar. Sentou na cama, depois se deitou.

- Acho que vou descansar um pouco. Nunca imaginei que viajar de carruagem vários dias pudesse ser tão cansativo.

 

Quando Roselyn acordou, Kyle tinha saído. Ela desceu a escada à procura dele.

Harold cochilava na cadeira ao lado da lareira acesa. Ela seguiu os sons que vinham da cozinha, nos fundos da casa.

Prudence estava lá trabalhando, sovando massa de torta. Sorriu e indicou o fogão com a cabeça.

- Aquele jarro em cima das pedras tem sidra e na mesa tem um copo, se quiser.

Rose se serviu e viu por uma janela dos fundos o pequeno pomar de árvores frutíferas novas, que estavam nuas agora, no frio do inverno. Havia um grande jardim no
lado oeste do pomar, à espera de ser cultivado na primavera.

- A casa é muito agradável - disse ela. - A vista de todas as janelas é linda.

- Kyle a construiu para nós. Quando voltou da França. Foi para Londres ganhar dinheiro, depois construiu. Harold não queria aceitar, claro, mas eu sabia que ele
estava adoecendo. Você vai ver que meu marido vai alfinetar Kyle por causa das roupas elegantes e das maneiras finas, mas se orgulha muito das conquistas do sobrinho.

Rose se aproximou para ver Prudence preparar a massa.

- Também faço tortas.

- É mesmo? Eu achava que as damas não sabiam cozinhar.

- A maioria não sabe. Mas eu gosto. Posso ajudar, se quiser.

Prudence separou algumas maçãs e uma tigela.

- Você pode descascar e depois cortar as maçãs aqui dentro.

Rose começou a trabalhar.

- Aonde Kyle foi?

- Foi andando até o vilarejo. Imagino que vá visitar o padre e depois tomar uma cerveja com os homens na taberna. Teria levado Harold na carruagem, mas ele estava
dormindo. Pode ser que amanhã leve. Harold sente falta da cerveja com os rapazes.

Rose imaginou Kyle andando quase um quilômetro até Teeslow. Voltando à antiga vida. Será que ele se livrara dos casacos antes de ir? Removera as camadas de gestos
educados e a mudança pela qual aceitara passar para ganhar dinheiro em Londres? Voltara a falar com o sotaque de Harold?

Nessa taverna, ele não seria o Kyle que ela conhecia. Seria o Kyle que continuava um estranho.

- Ele é amigo do padre?

Prudence riu.

- Bem, amigo não é bem a palavra. O conde encarregou o padre de ensinar Kyle a escrever e contar, além de latim e francês. Ele foi um professor exigente. De vez
em quando, esquentava o traseiro dos alunos com uma vara. Kyle não gostava das aulas, mas sabia que poderiam mudar a vida dele e continuou indo.

- O conde? Você quer dizer o conde de Cottington? Ele era o benfeitor de Kyle?

- Exatamente.

Ele nunca tinha dito. Pelo menos, não com todas as palavras. Ela concluíra que o benfeitor tinha sido... alguém. Não um conde. Não Cottington. Não o pai de Norbury.

Isso explicava muita coisa. A parceria naquelas novas construções. A presença de Kyle na festa de Norbury.

- Por que o conde fez isso?

Prudence estava atenta, raspando açúcar mascavo.

- O conde conheceu Kyle por acaso. Na mesma hora, viu que não era um menino comum, mas inteligente e corajoso. E que meu sobrinho seria desperdiçado na mina, embora
desde pequeno ele já pudesse fazer o trabalho de um homem. Por isso, o conde mandou o padre dar aulas a Kyle, de forma que, quando crescesse, pudesse ir a escolas
e tal.

Colocou o açúcar numa xícara.

- O conde é um homem bom e justo. Como poucos.

A pequena história trouxe dúvidas à cabeça de Rose. Tantas que não podia perguntar a Prudence sem parecer que a colocasse no banco dos réus.

Ela sabia pouco da vida do marido. Tinha muita curiosidade, mas nunca perguntara, apesar de ele ser a melhor fonte de informação.

Nunca perguntara, mas Kyle também nunca dissera. Não acreditava que fosse por vergonha do passado ou por não falar muito de si.

Os dois evitavam tudo aquilo porque falar no passado dele significava falar em Norbury.

A sombra daquele caso tinha influenciado até a maneira como os dois se conheciam.

 

- Vai dar problema. Não tem dúvida - assegurou Jon e bebeu um pouco de cerveja para enfatizar.

Kyle também bebeu, concordando. Jonathan era um mineiro quase da mesma idade que ele. Entraram na mina na mesma época, quando meninos, e carregaram os cestos de
carvão juntos, escada acima.

Agora Jon era um radical, o que o fazia imprudente ao falar com o amigo de roupas elegantes, que tinha morado lá fazia muito tempo.

Os demais mineiros foram simpáticos, até alegres. Brindaram quando Kyle entrou na taberna e o crivaram de perguntas sobre Londres. Mas não estavam dispostos a falar
sobre o que vinha acontecendo na própria cidade. Uma palavra errada poderia arruinar suas vidas.

- O comitê foi três vezes até os proprietários para se colocar contra a reabertura do túnel e explicar o perigo - disse Jon. - É mais barato perder alguns homens
do que fazer o que é preciso. Já vimos isso e veremos de novo.

Kyle, sem dúvida, tinha visto. Os ossos do pai ainda estavam naquele túnel fechado. Era perigoso demais retirar os mortos. A primeira tentativa servira apenas para
causar outro desmoronamento.

- Você falou com Cottington? - perguntou Kyle. - Ele vendeu quase toda a mina há bastante tempo, mas ainda tem certa influência. As terras ao redor ainda são dele.

- Dois dos nossos colegas tentaram. Ele está tão doente que não deixam ninguém chegar perto. Nem você pôde entrar na última vez em que esteve aqui. Quanto a falar
com o herdeiro... - a frase ficou no ar e a expressão de Jon mostrou a opinião que tinha sobre o tal herdeiro.

Ele olhou por cima do ombro. Passou a mão nos cachos louros, depois se inclinou sobre a mesa para confidenciar:

- Estamos nos organizando para irmos juntos. Não só aqui. Tivemos reuniões com grupos de outras cidades e com mineiros que têm outros patrões. Se ficarmos lado a
lado e falarmos juntos, seremos ouvidos.

- Cuidado, Jon.

- Cuidado, uma ova. A lei agora permite isso, finalmente. Temos o direito de nos unir. O que eles podem fazer? Me matar? Não podem matar todos nós. Não podem demitir
todos. Você mesmo falou isso há anos, antes de...

Jon desviou o olhar e bebeu mais cerveja.

Antes de ir embora e se tornar um deles.

- Quando se fica lado a lado, é preciso que todos estejam unidos. É preciso que todos aceitem passar fome. Haverá sempre os que vão abandonar o movimento.

- Se nós sairmos da mina, nenhum homem vai entrar. Vamos cuidar disso.

- Há sempre os que precisam trabalhar.

- Se as frentes se formarem na entrada das minas, isso não vai fazer diferença.

- Eles vão chamar a cavalaria. Vai ser um massacre.

Jon deu um soco na mesa.

- Pare de falar como minha mulher. Esqueceu o que acontece lá? Vá até aquela linda casa que você construiu para Harold e pegue as botas e as roupas dele. Venha comigo
amanhã, caso tenha esquecido por que o perigo não importa para gente como nós.

Aquele "gente como nós" não incluía Kyle. Ele era um deles, mas também não era mais. Ali era sua cidade natal, mas ele tinha ido tão longe, de tantas maneiras, que
cada vez que voltava, fazia menos parte daquele mundo.

Ele sentia isso, mas não conseguia evitar. Seus vínculos àquele lugar eram como tentar segurar areia: por mais forte que fechasse a mão, ela escorria entre os dedos.

Quanto tempo levaria até que poucos o reconhecessem quando andasse por aquelas estradas? Chegaria o dia em que ele entraria na taberna e as vozes se calariam e os
olhares examinariam o cavalheiro intruso.

- Vou a Kirtonlow enquanto estou aqui - disse ele. - Falarei com Cottington a respeito desse túnel.

O dar de ombros de Jon mostrou que não achava que isso fizesse alguma diferença. Pediu mais cerveja e deixou a conversa de lado junto com o copo vazio.

 

Kyle voltou para casa a tempo de jantar. Rose ajudou Prudence a servir. A conversa ia abarcando coisas corriqueiras, como costuma acontecer entre estranhos. Até
que Harold não aguentou. Queria saber as novidades que Kyle ouvira na taberna.

- Os rapazes não vêm muito aqui. É muito longe para andar depois de um dia de trabalho - explicou Harold.

Tia Pru sorriu de leve, como se pedisse desculpas pelo que parecia ingratidão pela casa que ganharam. Kyle não se importou. Harold sabia que não o visitariam muito,
ainda que ele continuasse morando no vilarejo. Um homem sem forças para ir à taberna era um homem isolado.

- Há boatos da reabertura do túnel - disse ele. - Ouvi isso em dezembro, mas parece que vai ocorrer mesmo.

- Aqueles idiotas. Idiotas gananciosos.

A notícia deixou Harold tão agitado que ele teve um ataque de tosse.

- Pelo menos pode ser que seu pai e os outros possam ter um enterro cristão - disse Pru, baixo.

Rose ergueu o olhar, surpresa. Seus olhos demonstraram algo que Kyle tinha visto várias vezes naquela noite. Curiosidade. Talvez reavaliação. Falar no túnel trouxera
à tona algo em que já vinha pensando.

Tia Pru trouxe uma de suas tortas. O cheiro bastou para melhorar o ânimo de todos. Pru era famosa por todos os tipos de tortas. Mesmo que precisasse usar frutas
que tinham passado todo o inverno estocadas num porão, ela conseguia que a receita ficasse deliciosa.

Kyle se sentiu menino outra vez, prevendo o gosto delicioso que só sentia em dias de pagamento, quando podiam comprar um pouco de açúcar.

Prudence cortou a torta em fatias.

- Rose me ajudou a fazer - contou.

- É mesmo?

- Nada como cozinhar junto para as mulheres se conhecerem - disse Harold. - Fico satisfeito que sua esposa goste de cozinhar, Kyle, meu rapaz. É bom saber que você
não vai passar fome lá em Londres.

- Rose faz ótimas tortas - disse ele.

Rose sorriu com o elogio. Kyle olhou a fatia de torta na frente dele.

- Então, tenho de agradecer a você por isso, querida?

- Não fiz muita coisa. Apenas cortei as maçãs.

Ele comeu. Não, ela não havia ajudado muito. A torta estava ótima.

Rose ficou observando-o comer cada fatia. Ela estava de novo com aquele olhar. Algo atiçara seu pensamento.

 

CAPÍTULO 14

Rose queria conversar com o marido. Ficou aborrecida quando ele não foi para o quarto com ela, deixando-a subir sozinha.

Assim que chegou ao quarto, Rose entendeu por que ele não a acompanhara. Dividindo aquele quarto, eles não teriam nenhuma privacidade. Os preparativos para dormir,
que costumavam ser feitos separadamente, teriam de acontecer na presença do outro.

Ela pensou nisso enquanto tirava o vestido e o espartilho, a camisa e o calção. Vestiu a camisola e sentou na cama para soltar os cabelos. Imaginou-o também ali,
despindo-se.

Olhou para a cama. Prudence e Harold dormiam há anos na mesma cama a noite inteira, todas as noites. Não se afastavam depois de cumprirem seus deveres conjugais.
Como seria viver totalmente ligada a outra pessoa?

Ela achou que devia ser muito bom, se houvesse amor. Horrível, se houvesse ódio. Invasivo, se houvesse indiferença.

Ouviu o som das botas dele na escada e concluiu que tinha mesmo se demorado por respeito a ela. Aquele casamento tinha muito disso.

Deixou a lamparina acesa e permaneceu onde estava. Não era uma cama muito grande. Aquela visita os forçaria a todo tipo de intimidade.

Kyle bateu na porta antes de entrar. Rose não acreditava que Harold alguma vez tivesse feito isso para ter certeza que Prudence o deixaria entrar.

Controlou o impulso de virar para o outro lado para que Kyle também tivesse sua privacidade. Mas ele não era uma flor delicada e ela queria conversar.

Ele tirou os casacos e os pendurou no guarda-roupa.

- Gostou da torta? - perguntou ela.

Ele sentou na cadeira e tirou as botas.

- Muito. Quase tão boa quanto as suas.

Ela ficou muda. O coração se encheu de uma sensação doce e pungente.

Na verdade, as tortas dela eram horríveis. Ninguém jamais a ensinou a cozinhar. Por necessidade, tentara quando era menina até conseguir algo que os irmãos achassem
mais ou menos comestível. O resultado não dava, de maneira alguma, para comparar com o toque mágico de Prudence.

Hoje ela havia assistido a Prudence fazer a torta e vira o que lhe faltara naqueles anos todos. E também sentira o gosto diferente.

Mas eis que Kyle mentia para ela não se sentir mal. Ele tinha a opção de não mencionar suas tortas. Como podia ter comido só um pedacinho da que ela fizera na manhã
seguinte ao casamento.

Naquele dia, cada garfada de torta devia ter entalado na garganta dele.

- Prudence disse que você hoje decerto visitaria o padre. E que ele ensinou as primeiras lições a você.

Não sabia se continuava a conversa. Eles podiam passar o restante da vida sem tocar nos assuntos que surgiram na cabeça dela nesse dia. Talvez fosse melhor assim.

Só que ela não ia dormir se não perguntasse. As respostas ajudariam não só no que sabia sobre o Kyle estranho, mas a entender o Kyle que conhecia.

- Ela disse que Cottington mandou o padre dar essas aulas. Que o conde era o seu benfeitor. Você nunca me disse isso.

Ele tirou a gravata.

- Você nunca perguntou.

- É verdade. Nunca perguntei. Estou perguntando agora. Quero saber.

- Quer saber pelas razões erradas.

O que aquilo queria dizer?

- Quero saber porque você é meu marido e esse fato extraordinário mudou a sua vida e o tornou o homem com quem me casei.

Ele se recostou na cadeira e olhou para ela.

- Certo. O conde reparou em mim quando eu tinha 12 anos. Achou que eu tinha talentos que deviam ser aprimorados. Combinou com o padre que me desse aulas, depois
pagou para um engenheiro em Durham ser meu professor durante dois anos. Conseguiu que eu fizesse provas para a Escola de Belas-Artes de Paris e me mandou para estudar
arquitetura lá. Quando voltei, ele me deu 100 libras e sua generosidade acabou aí, mas continuamos amigos e, às vezes, trabalhamos juntos.

E aquelas 100 libras tinham se transformado em mil, depois em mais e mais.

- É uma história surpreendente. Que seu progresso surpreende é fato, mas também achei a atitude do conde surpreendente. Por que fez tudo isso por você? Foi porque
seu pai morreu no túnel?

- Ele não sabia que meu pai era um dos mortos. O acidente tinha sido três anos antes.

Kyle desabotoou os punhos da camisa.

- Não sei por que fez isso. Acho que porque eu bati no filho dele. Talvez tenha admirado a minha audácia. Ou achou que o filho merecesse uma surra e gostou que outro
garoto tivesse coragem de dá-la por ele.

- Você bateu em Norbury? Que maravilha. Mas é lastimável que essa história esteja ligada a ele.

- Lastimável, mas inevitável, Rose. Não finja que, quando perguntou, não sabia aonde a história ia levar.

Ele tirou a camisa. Despejou água na bacia e começou a se lavar.

Ela não o via sem roupa desde a noite do casamento. Depois daquela noite, ele tinha sido apenas uma silhueta no escuro. Rose tinha sentido aqueles ombros e abraçado
aquela nudez, mas não tinha visto.

A luz fraca o favorecia, mas o vigor dele teria impressionado mesmo sob um sol de verão. Não havia um músculo flácido. Nenhuma gordura ameaçadora acumulada devido
a uma vida amena. Os músculos não pareciam volumosos, apenas proporcionais à altura dele. Como o rosto, o corpo parecia esculpido de maneira rústica e fazia supor
uma energia prestes a explodir. Ela ficou pensando se aquela tensão sumia em algum momento. Talvez, quando ele dormisse, ela ficasse escondida.

Rose prestou tanta atenção nele que quase se esqueceu da conversa. Kyle estranhou o silêncio e notou que estava sendo observado. Voltou a se lavar.

- Acho que eu sabia onde a história ia acabar - disse ela. - Sempre me surpreendi por você conhecer Norbury tão bem. Mas continuar a trabalhar com ele e a usar as
terras da família...

- Meu trabalho é com Cottington. Sempre foi. Norbury só tem participado agora porque o conde está muito doente.

A conversa se encaminhava para um terreno perigoso. Ela viu o espaço entre eles subitamente cheio de buracos e fendas. O tom da voz dele demonstrava que seria insensato
seguir adiante.

- Se o conde está tão doente, é provável que Norbury participe da sua vida por muito tempo - disse ela. - Pelo jeito, já participa. Está nas nossas vidas, Kyle.

Ele jogou a toalha no chão.

- Quando preciso falar com ele, eu falo. Depois, ele some da minha vista e da minha cabeça. Não faz parte de nossas vidas.

- Não? E como foi que nos conhecemos? Eu sinto a presença dele como se fosse um espectro. Acho que ele não sai da sua cabeça, no que me diz respeito. Acho que você
tenta esquecer o meu caso, mas...

- Sim, eu realmente me esforço para esquecer, maldição! É isso ou a vontade de matá-lo. Por causa da maneira vergonhosa como tratou você naquele jantar. Da maneira
como desconfio que tratou antes. Imagino-o com você e...

Ele abriu e fechou as mãos. Ficou tenso e, de um jeito sombrio, forçou-se a ficar calmo.

- Mas não penso nele quando estou com você. Não se reflete em você.

- Como não? Influi em tudo. Aquela noite afeta todas as coisas, até a maneira de você me tratar como esposa.

- Se você se refere à ordem que dei em relação ao seu irmão...

- Meu irmão? Céus, meu irmão é o problema nosso com o qual Norbury não tem nada a ver. Não gostei daquela nossa discussão, mas, pelo menos uma vez, falei com o homem
com quem me casei. Com ele por inteiro. O real. Não a invenção atenta e educada, que se veste tão bem, fala tão bem e me dá prazer tão corretamente e com tanto respeito.

Ela achou que jamais poderia vê-lo tão surpreso. Durou poucos segundos. Depois, ele fixou o olhar nela de tal forma que seu coração subiu para a garganta.

- Trato você com respeito, como uma dama, e você reclama?

- Não estou reclamando. Sei que tenho sorte de ter um amante tão atencioso. Só acho que você toma tanto cuidado por motivos que me entristecem.

Ele não gostou da crítica. Nenhum homem gostaria.

- Parece que você conhece a mim e aos meus motivos melhor do que eu, Rose.

Ela devia recuar, desculpar-se, ficar calada e grata. Mas, se fizesse isso, ele só ia se lembrar de uma ofensa que ela não tivera intenção de fazer.

- Talvez eu conheça mesmo, Kyle. Ou talvez o pouco que conheço de você me faça entender mal. Diga-me uma coisa: se não fosse aquela noite horrível, se não fosse
a minha situação, você precisaria ser tão cuidadosamente respeitoso? Se tivesse casado com uma moça ingênua daqui do vilarejo ou com uma mulher que nunca foi chamada
de puta, pensaria nisso o tempo todo? Se você não tivesse nascido neste vilarejo, mas numa grande mansão e me pedisse em casamento em outras circunstâncias, acharia
tão importante me tratar como uma dama?

Pelo menos a explosão dela não o deixou mais irritado. Ele ficou sério e contido, mas não furioso. O tempo passou tão lenta e silenciosamente que ela se arrependeu
do que disse.

- Desculpe. Eu não devia... - disse, puxando um fio solto do cobertor. - É que, quando estamos juntos, eu sinto... Você está quase sempre usando seus casacos de
corte impecável, Kyle, até na cama, quando está completamente nu.

Ela piorou uma situação que já estava ruim. Deitou-se e se cobriu bem para esconder os destroços do naufrágio que certamente fizera de seu casamento.

Desejou ser escritora ou poeta, para conseguir se explicar. Gostaria de ter palavras para expressar como a origem dela e a dele, a redenção dele e o escândalo dela,
o conhecimento que ele tinha de seu caso e a necessidade que ela tinha de não ser tratada como puta fizeram com que se erguessem aquelas barreiras de formalidade
entre os dois.

Era impossível explicar. Pouco provável que a situação mudasse. Ela devia aceitar. Devia se policiar para não ficar tentando alcançar algo que não sabia o que era,
daquele jeito doloroso e incessante. Ela devia...

- Os casacos não caem bem quando estou aqui, Rose. Apesar de todo o talento do alfaiate, ficam apertados demais quando venho para casa.

A voz baixa dele chegou a Rose através do silêncio tenso.

- Imagino que seja desconfortável.

- Muito.

- Ou os casacos estão apertados e você só nota quando vem para casa.

- Talvez você tenha razão.

Ela se sentou outra vez. Ele agora prestava atenção no fogo baixo da lareira e nos próprios pensamentos. Apoiava o braço na cornija enquanto olhava as chamas. Ficou
lindamente iluminado.

Ela se encantou com a cena. A luz da lareira parecia encher o quarto todo. O calor chegou até ela.

- Na verdade, desde que cheguei aqui, acho que minhas roupas também estão apertadas, Kyle. Talvez seja o ar do campo. Ou as tortas.

Ele sorriu.

- Então você devia parar de usá-las.

- Não estou acostumada a me livrar desses acessórios. Vivo apertada num espartilho desde o dia em que nasci.

Kyle a encarou. O coração dela perdeu o compasso, depois acelerou. Mesmo no dia em que a pedira em casamento, ele não demonstrara seu desejo com tanto despudor.

Ele se aproximou.

- Vou considerar isso um convite, Rose.

Abraçou-a com tanta força que a levantou da cama. Beijou-a de um jeito possessivo, firme, como quem não quer nada e quer tudo. Desta vez, não conteve seu desejo.
Puxou-a para um remoinho de força incontrolável.

Os beijos pediam, mandavam e a excitavam. Nem se quisesse, ela não podia fazer nada contra o domínio que ele tinha. Rose havia pedido isso e deixou que as próprias
reações selvagens se apossassem dela. Superaram o medo e a surpresa iniciais.

Beijos quentes. Fortes e profundos, mordendo e devorando. Braços de aço a impediram de reagir à fúria ardente em seu pescoço e na sua boca. Uma sequência de choques
maravilhosos atravessou seu corpo como flechas de fogo. Trouxe à tona o instinto primitivo dela até fazê-la gemer com o ataque glorioso e fazê-la perder qualquer
decoro.

Ele a apoiou de novo na beirada da cama. Acariciou suas pernas por baixo da camisola. Passou a mão no quadril e na bunda. Um toque furtivo e erótico no sexo. Os
dedos dele causaram um incrível formigamento.

Ela afastou uma perna para incentivá-lo a prosseguir naquela deliciosa tortura. Ele prosseguiu, mas interrompeu o longo beijo. Com a outra mão, ele levantou a camisola
dela até os ombros e a retirou por cima da cabeça. A camisola caiu ao chão, aos pés dele.

Ele olhou a nudez da esposa sério de tanto desejo. Suas carícias cobriam os seios enquanto a outra mão esfregava e provocava embaixo. A dupla sensação a deixou tremendo,
cambaleante, enfraquecida pelo prazer. Ela se inclinou para se apoiar nele até o rosto tocar suavemente em seu peito.

A mão de Kyle puxou sua nuca para mais perto até o rosto encostar por completo na pele lisa.

- Posso tirar a camisola, Rose, mas as outras peças que a escondem você mesma precisa tirar.

Ela compreendeu. O incentivo a encorajou. Espalmou as mãos no peito dele, olhando e sentindo ao mesmo tempo. O simples toque fez com que ele ficasse ainda mais excitado
e que uma nova rigidez o percorresse.

Ela o acariciou com mais ênfase. Olhou as mãos passando pelo peito dele, escorregando e percorrendo os sulcos dos músculos e costelas rígidos. Ele a olhou também
e as carícias e toques no corpo dela copiavam as delas. A respiração cálida dos dois se encontrou e se fundiu em beijos cada vez mais vorazes enquanto a excitação
os levava à loucura.

Ele tirou a mão das pernas dela e desabotoou os calções. Antes que ela pudesse se conter, deu um gemido insolente, afastou as mãos dele e assumiu os botões. As mãos
dele voltaram a afagá-la embaixo, fazendo-a quase desfalecer.

Ela lutava com a roupa dele, desajeitada, enquanto ele a tocava mais deliberadamente. Inclinou a cabeça para aproximá-la do pescoço e do ouvido da esposa. O dedo
dele apalpava com cuidado.

- É assim que você quer, Rose?

Ela não podia responder. Não conseguia falar. Mal conseguia se manter ereta. Agarrou a roupa dele sem ver, sem jeito, empurrando-a pernas abaixo às cegas, enquanto
os leves toques no seio e entre suas pernas a faziam gemer.

- Ou assim?

A mão dele contornou a perna e a tocou pela frente. Uma estocada longa, lenta e incrível fez um tremor de prazer percorrer seu corpo.

Rose sabia que ele tinha noção de quanto a deixava indefesa. Agarrou-se aos ombros dele e se segurou em busca de apoio.

Ele soltou uma das mãos dela, beijou-a e a guiou para a parte inferior do próprio corpo. Uma leve noção de racionalidade voltou, o bastante para ela entender o que
ele estava fazendo, o que queria. Perdida demais para se importar, ou se constranger, deixou que ele colocasse a mão dela no pênis.

Ele a tocou diabolicamente mais uma vez, o que deixou tudo mais fácil. O prazer passou pelo corpo dela como uma onda revolta, e em resposta ela acariciou como era
acariciada.

Qualquer decoro que ele ainda tivesse se rompeu. Beijou-a com nova selvageria. Ela sentiu a tensão em todo o corpo, no beijo dele e até na maneira como a tocava.
Intencional, agora. Disposto a fazê-la entregar-se por inteiro.

O orgulho perdeu qualquer sentido. Mesmo de joelhos, ela se movia ritmadamente, curvando-se aos beijos dominadores, gemendo de tanto querê-lo.

Ele a mudou de posição, mas não como ela esperava. Virou-a de maneira a ficar de costas para ele e acariciou seus seios. Ela se inclinou na direção de Kyle. Os mamilos
se eriçaram, se intumesceram, endureceram, implorando mais, qualquer coisa, tudo.

Ele a mudou de posição novamente, curvando o corpo dela até deixá-la de joelhos na beirada da cama com as pernas dobradas sob o corpo. Um tremor incrivelmente erótico
estremeceu suas ancas.

Ele levantou o quadril dela. Ela esperou, ofegante, tão excitada que não conseguia aguentar. O corpo latejava na expectativa. Rose imaginou o que ele via, as nádegas
viradas para ele, mostrando aquela carne escondida. A imagem despudorada só a excitou mais.

Ele não a possuiu imediatamente. Deixou-a esperar, chegar à beira da loucura. Ficou acariciando as nádegas dela, roçando as curvas da pele, olhando para ela, com
certeza. Assistiu à submissa rendição e ao seu desespero.

Tocou-a de novo, ela gritou. Desta vez foi diferente. Rose estava exposta e aberta e sabia que ele olhava, sabia que via o corpo nu. Ela desceu mais as costas e
levantou mais as nádegas.

Dali a pouco, estava implorando. Implorando, gemendo e abafando os gritos nos lençóis. Finalmente, ele a penetrou numa estocada longa e lenta, proposital. Abaixo
de seu gemido de prazer, ela teve a impressão de ouvir o dele também.

Depois, ela se perdeu. Tudo o que sentia era o torturante prazer da necessidade de ser preenchida e a violenta intensidade da completude.

 

- Você veio aqui para ver Cottington antes que ele morra?

Rose estava nos braços de Kyle, sob os lençóis. Fazia algum tempo que ele tinha levantado o corpo lânguido dela e a colocado ali de maneira a ficar colada nele,
que estava sentado, com as costas apoiadas na cabeceira. A vela ainda iluminava a satisfação dos dois.

- Um dos motivos foi esse. Vou tentar vê-lo amanhã.

- Tentar? Ele não recebe você mais?

- Não sabe que eu o procurei. O secretário e o médico dele só avisam das visitas se quiserem. Agora é assim.

Ela achou que, provavelmente, tinha sido sempre assim. Era comum que condes tivessem empregados para evitar serem incomodados se não quisessem. Agora que Cottington
estava doente, eram outras pessoas que decidiam quando ele queria ou não. Só isso mudara.

- Se ele não puder recebê-lo agora, talvez receba na primavera, quando você planeja voltar.

- Acho que ele não estará vivo na primavera.

Ela concluiu que Kyle tinha ouvido falar que o conde estava à beira da morte. Por isso tinha ido ao norte agora.

- Vai ser muito triste não se despedir dele, depois de tudo o que fez por você. Certamente, o secretário dele sabe disso.

- Para o secretário, eu sou só o garoto de Teeslow - explicou Kyle, inclinando a cabeça e dando um beijo distraído nos cabelos dela. - Não é só me despedir. Quero
ver se ele ainda está consciente. Preciso pedir um último favor para os mineiros.

- É sobre a reabertura do túnel?

- Sim. Alguns homens querem impedir, só que de uma forma que só vai prejudicá-los.

- Poderia dar certo, se todos eles...

- Não serão todos. Há famílias que perderam parentes no desmoronamento e vão querer a reabertura para poderem enterrar seus mortos.

- Você disse que seu pai morreu num acidente. Foi nesse, não?

Ele concordou com a cabeça.

- Eu também gostaria de enterrá-lo. Mas aquele túnel jamais será seguro, a menos que as coisas sejam feitas de outra maneira. As paredes se movem.

- O túnel é de rocha. Rocha não se move.

- A terra é uma coisa viva, Rose. Antes de construir, preciso ver se o terreno é firme. A mina não está em terra firme e a parte daquele túnel é a pior. Sei disso
desde menino. Eu vi.

Ela sentou e se virou para ele. Ao olhá-lo, sentiu um eco dos tremores da noite. Não era possível a uma mulher deixar um homem fazer aquelas coisas sem depois ficar
em desvantagem com ele. Rose sentia que cedera o controle de outras formas também, que estavam entre os dois agora, incentivando aqueles tremores.

- Quanto tempo você trabalhou na mina, Kyle?

- Entrei pela primeira vez aos 8 anos. As crianças carregam o carvão em cestos. Geralmente, começam aos 9 ou 10 anos, mas eu era grande para a idade. Não tão grande
quanto um homem. Por isso, eu via o que eles não viam porque tinham de ficar abaixados. Havia fendas acima e quase no alto das paredes. Acompanhei a movimentação
delas durante meses. Avisei ao meu pai. Ele e os outros mineiros não acharam perigoso porque não viram e não notaram as mudanças. Até que um dia... caiu tudo. Dez
homens foram enterrados vivos do outro lado de uma parede nova.

- E ficaram simplesmente abandonados lá?

- Ninguém é abandonado, a menos que não haja opção. Começaram a cavar para retirá-los, mas isso fez mais pedras caírem, e outro mineiro morreu. Então ninguém mais
cavou. Fizeram uma cerimônia religiosa. Rezaram. E dois dias depois os homens voltaram à mina. Menos os parentes dos que estavam soterrados. Esses esperaram uma
semana. À essa altura, quem tinha ficado preso teria morrido. Por falta de ar e de água.

Ela imaginou Kyle de vigília com os tios. Viu o menino pensando no pai atrás daquela parede de rocha, talvez ainda vivo, mas sem poder ser socorrido.

- Eu disse aos homens que devíamos cavar por cima do túnel. Fazer um buraco para entrar ar até encontrarmos uma forma de tirá-los de lá. Ninguém dava ouvidos a uma
criança, muito menos os supervisores dos donos da mina. Hoje, sei que isso poderia dar certo. Um engenheiro podia fazer isso. Eu posso, se houver um desmoronamento
num túnel lateral.

Sim, provavelmente podia, mesmo se o terreno fosse desfavorável. Se preciso, ele cavaria com as próprias mãos, pensou ela. Se ele decidisse, não havia rocha nem
terra que o impedisse.

Ele contara sua história e respondera às perguntas de Rose. Ela sabia que agora ele pensava em outras coisas. Tinha deixado a vela acesa por um motivo.

Kyle a pegou pelo braço e a puxou em sua direção. Sentou-a de frente, com as pernas envolvendo as dele.

Ele olhou as mãos cobrirem os seios dela e os dedos roçarem os grandes mamilos escuros.

- Vi você muito bem no escuro ou, pelo menos, minha imaginação viu. Mas prefiro assim.

Em outras palavras, não queria mais que as lamparinas e velas fossem apagadas como se ela fosse uma dama. Ela não se importava. Assim também podia vê-lo. Mas ia
demorar um pouco para não ficar tímida quando o marido olhasse para o corpo dela como fazia agora.

Ele a ergueu e a posicionou sobre sua perna, lambendo e mordiscando os seios dela. A posição em que estavam permitia que ela também o acariciasse.

- Acho que você devia me levar quando for a Kirtonlow tentar falar com Cottington - sugeriu Rose.

Os dedos dele substituíram a boca, permitindo que respondesse.

- Não.

Ela imaginou se ele não queria que ela o visse sendo dispensado.

- Se eu for com você, o secretário não vai nos expulsar.

- Vai, sim, e não quero que você seja ofendida.

- É bem mais difícil dizer não a uma dama, Kyle. Diremos para ele não ousar fazer isso, pois o conde não vai gostar, se souber.

- Não.

Ela fez a mão deslizar para baixo no corpo dele, na tentativa de convencê-lo. Envolveu sua ereção e ficou roçando o polegar na cabeça do pênis.

- Você se casou comigo por causa da minha origem, Kyle. Devia me deixar abrir portas quando posso.

O sorriso dele não escondia a tempestade erótica que as carícias causavam.

- Rose, você está usando artifícios femininos para me deixar flexível?

Ela olhou o que sua mão estava fazendo.

- Parece que só estou conseguindo o efeito contrário. Não há nada flexível em você agora. A não ser um pouco, bem aqui. Ela apertou de leve a ponta.

Ele a segurou pela bunda e a ergueu de leve. Ela sabia o que fazer sem instruções, pois parecia natural e necessário. Mexeu-se e se colocou numa posição que permitia
guiá-lo para dentro dela.

O primeiro toque da penetração causou um choque de prazer em seu corpo todo. A sensação a deslumbrou e a fez perder o fôlego. Não se mexeu para ele penetrar mais.
Ficou assim, só um pouco encaixada, deixando os deliciosos tremores se prolongarem.

Ele permitiu, embora o desejo o dominasse tanto que ele cerrava os dentes. Ela se abaixou um pouco para senti-lo melhor.

- Você vai me matar, Rose - gemeu e segurou as pernas dela. - Pode me torturar durante horas outra noite, mas agora...

Puxou-a, descendo-a até seus corpos se aconchegarem.

Depois disso, ele a guiou, as mãos fortes facilitando o movimento das coxas num ritmo de absorção e soltura que ela ditava. Rose descobriu novos prazeres com mudanças
sutis e pressões no corpo. Fechou os olhos e o apertou dentro de si, mais e mais.

Ele então a penetrou mais, tão fundo que ela arfou. Abriu os olhos, o encarou e não conseguiu mais desviar o olhar. Não o via se mexer, mas sentia que era preenchida,
estocada e dominada enquanto seu olhar profundo a convidava a mergulhar em mares cor de safira. No final, ele a segurou forte pelas coxas. Presa, ela se rendeu à
invasão de seu corpo e de sua alma.

O orgasmo violento dela quase doeu de tão intenso. Ela desmoronou sobre ele, o rosto contra seu peito, ligada a ele num abraço forte enquanto o corpo aos poucos
abria mão das últimas palpitações do gozo.

- A que horas você vai amanhã a Kirtonlow Hall? - perguntou ela, depois que a respiração e o coração de ambos se acalmaram.

Um braço estendido. Um lençol ondulando. Ele puxou os lençóis e os prendeu em volta dela.

- Meio-dia, eu acho.

- Quero ir com você. Estarei pronta ao meio-dia.

Esperou o "não" dele. Não veio. Em vez disso, o abraço se ajustou nela, envolvendo-a, e a respiração de Kyle aqueceu sua testa com um beijo.

 

CAPÍTULO 15

As colinas desoladas sumiram a uns dez quilômetros de Kirtonlow Hall e a paisagem foi ficando mais luxuriante a cada momento. A casa surgiu alta e ampla, à beira
de um grande lago que refletia suas pedras cinzentas na água prateada.

Quando a carruagem deles percorreu o caminho de entrada, Rose deu uma olhada em sua roupa e na de Kyle. A gravata dele estava impecável. O casaco, com caimento perfeito
nos ombros. Até a corrente do relógio de colete dele brilhava, fazendo um arco indefectível. Uma gravura de moda não estaria mais correta.

Ela usava os melhores trajes que tinha trazido, um recém-adquirido conjunto lilás com manto bem-cortado e debruado forrado de pele de esquilo cinza. Fora selecionado
para sua bagagem devido à sua praticidade, mas o estilo e o luxo discreto tinham outra finalidade naquele dia. O obediente secretário do conde jamais saberia que
a pele tinha sido de um antigo traje, que ficara completamente fora de moda.

O criado levou o cartão de visitas de Kyle. Dali a pouco, ouviram-se passos de duas pessoas na escada. O criado vinha com um homem baixo e careca.

- Ora, ora. Pelo menos dessa vez o próprio Conway vai me dispensar - resmungou Kyle. - Você tem razão. Ele não ousa mandar uma dama embora sem dar uma explicação.

O Sr. Conway se aproximou com um sorriso simpático.

- Sr. Bradwell. Sra. Bradwell. Infelizmente, o conde está doente demais para receber visitas. Lastimo dizer que ele piorou desde que o senhor esteve aqui na última
vez. Mas, naturalmente, darei qualquer recado, embora não garanta que ele vá entender tudo.


- Meu recado é para o conde apenas, quer ele esteja em boas condições ou não - disse Kyle. - Já que está piorando, insisto em vê-lo.

O sorriso do Sr. Conway perdeu a força.

- Eu também tenho um recado para dar pessoalmente - disse Rose. - Lorde Easterbrook me encarregou de transmitir suas palavras exatas a lorde Cottington.

- Lorde Easterbrook!

- É meu parente indireto. Vou regularmente à casa dele em Londres e ele aceitou incluir meu marido e a mim em seu círculo pessoal.

O Sr. Conway franziu o cenho, preocupado, ao saber disso.

- Temo que Easterbrook fique muito zangado se eu voltar a Londres dizendo que não consegui. O senhor parece um criado eficiente e bastante zeloso quanto ao conforto
de seu patrão, mas acho que terei de citar seu nome na minha triste história. Como deve saber, Easterbrook é um tanto excêntrico. Nunca se sabe o que vai fazer,
seja para favorecer ou prejudicar alguém.

Conway piscou com força ao ouvir a ameaça implícita. Rose deu o sorriso mais doce que conseguiu. Kyle ficou parado, mas ela notou um brilho em seus olhos demonstrando
que achara o discurso incrível.

Conway mordeu o lábio enquanto ruminava as ideias.

- Madame, perdoe. Não sabia do seu parentesco com o marquês. Mas lorde Norbury insistiu para que não permitíssemos que o pai ficasse agitado por receber visitas.

- Agitado? A sua presença o deixa agitado, meu caro senhor?

- Claro que não. Ele me conhece tão bem que...

- Então o Sr. Bradwell também não vai agitá-lo. O conde conhece meu marido tão bem quanto conhece o senhor. Mais até, eu diria. Transmitirei os cumprimentos de Easterbrook
e os deixarei a sós, para evitar qualquer agitação. Quanto a lorde Norbury, como não está em casa, a menos que o senhor o avise, ele não precisa saber da visita,
e dessa forma jamais precisará desperdiçar seu tempo avaliando se somos visitas que causam agitação ao pai.

Rose deixou que sua expressão e postura mostrassem que presumia ser atendida. O Sr. Conway pareceu aliviado com as justificativas que ela arrumara.

- Sendo assim... sim, levarei os senhores até ele. Tratando-se de visitas como os senhores, não se pode falar em agitação. Por favor, sigam-me, senhora. Sir.

Eles foram atrás do Sr. Conway, que se encaminhou para a grande escadaria. Kyle deu o braço à esposa e aproximou o rosto do dela.

- Não sabia que você tinha um recado de Easterbrook - murmurou. - Devia ter me dito.

- Tenho certeza de que ele gostaria de enviar saudações ao colega e votos de pronto restabelecimento.

- Fazemos parte do círculo mais íntimo de Easterbrook, é?

- Ninguém sabe se ele tem algum círculo além da família. Eu de fato visito Henrietta. Ele gosta muito de Alexia. Não creio que eu tenha exatamente faltado à verdade.

- Você não faltou à verdade. Você foi magnífica.

- É justo que você receba algum benefício deste casamento. Meus relacionamentos são o único dote que posso oferecer.

Ele apertou a mão dela.

- Hoje de manhã, a última coisa em que pensei foi nas vantagens que obteria dos seus relacionamentos.

A insinuação a agradou. Ecos dos tremores da noite, capazes de agitar almas, se manifestaram de seu jeito calmo e devastador. Ela se concentrou nas costas do Sr.
Conway para manter a compostura, mas só o mistério masculino ao seu lado chamava sua atenção. Imagens passaram, lindas, impressionantes, das várias maneiras como
ele a fizera conhecer o erotismo da intimidade do casal.

Seus últimos passos rumo aos aposentos do conde foram inseguros. Súbito, o rosto do Sr. Conway apareceu na frente dela.

- Por favor, aguardem aqui. Preciso anunciá-los e confirmar se pode recebê-los. Se não puder, tentaremos amanhã.

Conway entrou no quarto e voltou logo. Abriu a porta branca almofadada e deu passagem.

O conde estava sentado numa grande poltrona verde ao lado da lareira acesa. Mantas cobriam as pernas e os pés, que descansavam num suporte. A idade e a doença tinham
reduzido qualquer semelhança com o filho, exceto talvez por certo orgulho.

Os cabelos grisalhos do conde tinham sido cuidadosamente penteados e o rosto, muito bem barbeado. Apesar da doença, seu criado pessoal o arrumara com gravata e um
colete de seda colorido. Rose esperava que a parte escondida pela manta também estivesse apresentável num dia em que ele não esperava sair daquela cadeira.

O casal foi examinado por olhos bem mais argutos que os de Norbury. Surgiu um sorriso no rosto pálido. Que foi só de um lado da boca. O resto ficou flácido, consequência
das apoplexias que o conde sofrera.

- Bem, aproxime-se, Bradwell. Traga sua esposa aqui para eu vê-la.

A doença não afetara o tom de comando, apesar de ter enrolado as palavras.

Kyle conduziu Rose e fez as apresentações formais. O conde a olhou dos pés à cabeça.

- Conway disse que tem um recado para mim, Sra. Bradwell. De Easterbrook.

- Tenho, sim. O marquês envia seus cumprimentos e sinceros votos por uma pronta recuperação.

- É mesmo? Não vejo Easterbrook há anos. Desde que voltou tão estranho e diferente daquela viagem para Deus sabe onde. Não fui muito a Londres. Que generoso ele
se lembrar de mim e enviar cumprimentos.

O tom era sarcástico e os olhos, bastante espertos. Rose procurou não corar ao ver que ele tinha percebido o ardil facilmente.

- Leve uma resposta ao marquês, Sra. Bradwell. Faria isso por um velho moribundo?

- Claro, Sir.

- Diga que ele foge vergonhosamente aos seus deveres. Que está na hora de parar de ser excêntrico e participar do mundo. Precisa casar, ter um herdeiro e assumir
seu posto no governo. Aquela família é muito inteligente para desperdiçar isso e a vida não é para ser levada como se quer. Essa é a maldita verdade.

- Prometo que transmitirei sua opinião.

- Opinião? Diabos! Palavra por palavra, é como vai transmitir, sem suavizar nada, como fazem as mulheres - exigiu ele, e um riso rouco escapuliu. - Mas espere até
eu morrer. Se ele não gostar, pode se vingar no meu filho.

- Se devo esperar até que o senhor morra, garanto que vou demorar a cumprir essa obrigação. Com sua licença, sairei para deixar que meu marido fale com o senhor
a sós.

 

Cottington observou Rose sair do quarto. Fez um gesto para seu secretário.

- Pode ir. Se eu precisar de você, o Sr. Bradwell o chamará.

Assim que Conway saiu, o conde deu outra ordem.

- Tem conhaque naquele armário lá, Kyle. Sirva um pouco para mim e para você, se quiser. Eles não me deixam beber nada. Acham que devo enfrentar a morte completamente
sóbrio.

Kyle achou o conhaque e os copos, serviu um dedo para cada um. O conde bebeu como se fosse um néctar.

- É infernal ser tratado como criança. Agora estou melhor que há quinze dias. Passei uma semana precisando dos criados até para os cuidados de higiene mais elementares.

- Parece então que está se recuperando.

- Morro até chegar o verão, se não antes. Não preciso que o médico me diga. Eu sei. É estranho, mas a pessoa sabe.

Descansou o copo e usou um lenço para enxugar o conhaque que tinha escorrido no lado paralisado da boca.

- Linda a sua esposa. O bastante para fazer com que o resto não tenha muita importância, imagino. O irmão, coisa e tal.

- Quanto ao coisa e tal, obrigado pelo presente de casamento.

O conde achou graça.

- Meu filho vai ficar furioso. Seria melhor se você não se tivesse se envolvido desta vez. Azar. Seria melhor que não tivesse sido você a forçá-lo pela segunda vez
a encarar o próprio comportamento desonroso.

Apesar do riso, os olhos do conde mostravam muita tristeza. Piscou para afastá-la. Norbury era apenas mais uma decepção numa vida que, como todas, tinha várias.

- Quer dizer que veio até aqui para se despedir, não? Gostei.

- Sim, mas também trago um pedido, que não sabia que faria até que cheguei a Teeslow.

- Não posso fazer mais nada por ninguém.

Kyle falou sobre a mina. O conde ouviu, sério.

- Era uma rica jazida - disse ele. - Quiseram voltar alguns anos depois, eu impedi. Já tinha vendido quase tudo, mas minha opinião ainda importava. Às vezes, ser
conde ajuda. Meu filho não vai agir como eu. Mesmo assim, vou escrever e usar a minha influência, mas quando eu morrer...

Quando ele morresse, o desejo de lucro pesaria mais numa avaliação em que a vida dos homens valia pouco.

- Mesmo se demorarem alguns meses, vai dar tempo de se acalmarem - disse Kyle. - Os mineiros estão com os ânimos exaltados. Se houver uma voz forte, um líder, haverá
problema.

O conde suspirou e fechou os olhos. Ficou assim tanto tempo que pareceu ter caído no sono. Kyle tinha resolvido sair sem fazer barulho, quando o conde voltou a falar.

- Não vamos nos ver mais, Sr. Bradwell. Se quer perguntar alguma coisa, tem que ser agora. - Os olhos se abriram e o encararam. - Tem perguntas, não?

Kyle tinha várias. A mais recente, entretanto, não podia ser feita. Embora ela permanecesse em sua mente. Não podia perguntar a um moribundo se seu único filho tinha
sido pior quando menino do que quando adulto.

- Tenho uma pergunta.

- Pois faça.

- Por quê?

- Por que o quê?

- Fez tudo por mim. Por quê?

- Ah. Essa pergunta - falou o conde e parou para pensar. - Fiz, em parte, por impulso. Em parte, por instinto.

De novo aquele sorriso pela metade.

- Primeiro, eu sabia que, se você ficasse em Teeslow, os mineiros teriam uma voz e um líder dali a poucos anos, quando você ficasse adulto.

Kyle o observou, avaliando se o conde falava sério. Durante todos os anos em que trocaram generosidade e gratidão, nunca lhe passara pela cabeça que o conde tivesse
motivos ocultos. Principalmente, porque Kyle não achava que a generosidade pudesse trazer alguma vantagem para um conde.

- Bom, não foi só por isso. Lá, você seria desperdiçado. Percebi logo. Vi em seus olhos e em sua determinação. Naquele dia, quando você chegou todo limpo e arrumado,
vi o homem que um dia poderia ser. Já tinha ouvido falar em você. Soube do menino que sugeriu que cavássemos de cima para chegar àquele túnel quando ele desmoronou.

- Teria dado certo.

- Não interessa se eu achava que ia ou não. O simples fato de que um menino pensasse isso e ousasse propor... Trouxeram você até mim no dia seguinte ao que bateu
em meu filho, e a lembrança do administrador rindo daquela audácia veio à minha cabeça não sei como. Eu sabia que aquele menino tinha sido você. Sabia, mas, de todo
jeito, conferi.

Enxugou a saliva que se formou no canto da boca.

- Depois, aquela questão com meu filho. Lá estava você outra vez, ousando o que muitos homens não ousariam. Portanto, em parte fiz aquilo para você não ser desperdiçado.
E, em parte, para não se tornar um líder deles.

O conde fez uma pausa, então voltou a falar.

- Admito que, em parte, fiz também para castigar meu filho, favorecendo o menino que bateu nele. Claro que isso não adiantou muito. Como você sabe mais que qualquer
um, ele até hoje se comporta de maneira vergonhosa com as mulheres.

Era isso. Kyle já sabia quase tudo. A generosidade não tivera motivações totalmente caridosas, mas poucos atos ou decisões humanos tinham.

O rosto inteiro do conde perdeu a firmeza. Como se o dano do lado ruim invadisse o lado bom.

- O senhor está cansado, precisa repousar. Vou embora. Obrigado por me receber.

Antes que Kyle pudesse se afastar, o conde esticou a mão para ele. Kyle a segurou e, pela primeira vez, sentiu o cumprimento daquele homem como o de um amigo.

- Você não é pior por isso, não importa o motivo - disse o conde, com voz enrolada. - Mas imagino que, de vez em quando, deseje que eu não houvesse interferido.

- Se pesarmos as perdas e os ganhos, veremos que lucrei muito. Mas, sejam quais foram os seus motivos, agradeço. Jamais o esquecerei. Nem meus filhos e os filhos
deles.

O aperto de mão ficou mais forte. Os olhos do velho pareceram cobertos por uma fina película. Fechou-os. A mão caiu, depois subiu num gesto derradeiro de bênção
e despedida.

 

Quando saiu do quarto de Cottington, Kyle parecia calmo. Rose o deixou com seus pensamentos enquanto desciam a escada e saíam no frio.

Ele não entrou logo na carruagem; deu uma volta e olhou o lago. Ela o seguiu e esperou. Não estava se despedindo apenas de um homem. Com a morte de Cottington, uma
fase inteira de sua vida terminaria.

- Você veio aqui muitas vezes? - perguntou ela.

- Não muitas. Mas, quando fui embora para estudar, o conde mandava me chamar sempre que eu vinha para casa entre os períodos de aula. Na primeira vez, metade do
vilarejo seguiu o mensageiro até a casinha do meu tio: queriam saber o que estava acontecendo.


- O conde recebia você regularmente, portanto.

- Sim. Talvez fizesse parte do aprendizado.

- É mais provável que quisesse saber do seu progresso. E você trazia notícias de Durham, mais tarde de Paris e Londres. Garanto que a sua conversa era mais interessante
do que a da maioria das pessoas aqui do condado.

- Talvez.

Ele deixou a carruagem esperar enquanto caminhava pela propriedade.

Rose o acompanhou.

- Falou com ele sobre a mina?

Kyle concordou com a cabeça.

- Ele vai fazer o possível, mas, no máximo, a obra será adiada. Isso pode dar tempo para verem o que é mais seguro. Há como fazer isso.

Ele não parecia acreditar que fossem fazer o mais seguro.

- Acho que você fez tudo o que podia.

- Fiz?

Eles viraram e voltaram para a carruagem.

- Você está calado, Kyle. O encontro não foi bom? Não pôde falar o que queria?

- O encontro foi muito bom. Ele estava aberto a perguntas e respondeu tudo o que, em sã consciência, eu podia perguntar.

- Tinha alguma coisa que você não podia perguntar?

- Só uma. Eu queria saber, pois ele é a única pessoa que responderia honestamente. Mas, ao vê-lo... achei que o assunto só lhe traria tristeza e era só para satisfazer
a minha curiosidade.

- Se só restou uma pergunta entre os dois, o encontro foi muito bom. Acho que poucas pessoas que se conhecem têm apenas uma pergunta não respondida.

Kyle encarou a esposa. De repente, não estavam mais falando de Cottington, mas de si mesmos.

- Ele está morrendo, Rose. Não tem mais nada a perder por dar respostas. Não haverá orgulho ferido nem consequências ruins. Nem para quem pergunta nem para quem
responde.

Chegaram à carruagem. Ele ficou menos calado na viagem de volta a Teeslow.

- Você também está pensativa, Rose. Tem alguma pergunta?

- Tenho várias, mas não é por isso que estou séria. Penso se sobreviverei ao encontro com Easterbrook quando fizer a reclamação de Cottington.

 

A carruagem estava quase passando de Teeslow, quando Kyle reparou no silêncio. Tinha ficado tão perdido em pensamentos que o silêncio incomum não chamara sua atenção.

Mandou a carruagem parar. Olhou pela janela.

Rose também olhou.

- O que foi? Acho que está tudo calmo.

- Calmo demais. A essa hora, a estrada devia ter mais movimento. As mulheres deviam estar aqui.

Ele apurou os ouvidos, atento. Olhou para os telhados das casas e chalés. Onde estariam todos? Na mina? Era cedo demais para terem agido. Sobravam apenas a taberna
ou a igreja.

Abriu a porta da carruagem e saltou. Rose segurou a saia e estendeu a mão.

- Não, Rose. A carruagem vai levar você até Pru. Eu volto logo.

- Acha que haverá agitação? Perigo?

- Não, mas eu...

- Se não há perigo, não precisa me mandar para casa. Tenho curiosidade por esse vilarejo. Se vai fazer uma visita, quero acompanhá-lo.

Ele colocou o braço no batente da carruagem, impedindo que ela descesse.

- Nos últimos dias, você anda muito curiosa.

- É da natureza feminina. E descobri que satisfazer a curiosidade pode ser prazeroso.

Ela se referia à noite anterior. O que o deixou excitado. Ele ficou cheio de lembranças, de gritos implorando, de toques tímidos mas firmes, das costas dela abaixando
e das nádegas subindo. Das pernas envolvendo-o, ele se perdendo em sua calidez e os dois girando num abraço de corpos e olhares grudados.

As lembranças lhe deram vontade de beijá-la e de possuí-la bem ali, na estrada. Fizeram com que esquecesse todos os motivos por que ela deveria voltar para a casa
dos tios.

Com um olhar atrevido, ela o transformara num idiota.

- Pensa em me mandar para casa, Kyle? Então, devo avisar que os maridos têm um número finito de ordens a dar às esposas e seria tolice desperdiçá-las em bobagens.

Onde estaria sua dócil esposa? A noite anterior tinha mudado mais do que o calor e a intensidade da paixão deles. A formalidade sutil daquele casamento estava sumindo
rápido.

O olhar dela mostrava um claro desafio.

- Pode vir comigo, Rose, mas só se sair assim que eu mandar. Creio que não haverá agitação, mas posso estar enganado. Seria melhor você voltar quando...

Ela olhou para baixo.

Diabos.

Ele disse ao cocheiro onde aguardar e ajudou Rose a descer.

 

O vilarejo estava reunido na igreja. Ouviu as vozes enquanto ele e Rose se aproximavam da velha construção de pedra, com sua torre na fachada. Séculos antes, a igreja
fazia parte de um convento nas terras cedidas por um antepassado de Cottington. Até descobrirem carvão nos arredores, Teeslow tinha sido um simples vilarejo de agricultores.

- Os homens não deviam estar na mina agora? - perguntou Rose.

- Sim, trabalhando com as crianças maiores e até com algumas mulheres.

Kyle abriu a antiga porta de madeira e o rugido de uma discussão caiu sobre os dois. Entraram e ficaram nos fundos da nave. Poucas pessoas notaram a chegada deles.
Todas as atenções se concentravam nos homens que estavam na frente do altar. Jon estava lá, com os cabelos louros revoltos, tentando fazer prevalecer sua vontade.

Isso parecia impossível. As vozes se cruzavam e se interrompiam. Os ânimos estavam exaltados e agressivos. Gritos de incentivo e de mofa competiam.

- Não consigo nem entender o que está sendo discutido - cochichou Rose.

- Os mineiros receberam ordem hoje de tirar aquela pedra que caiu. Em vez disso, eles foram embora. Estão tentando decidir o que fazer amanhã.

- Pensei que você tinha dito que o túnel desmoronou ainda mais na última vez em que tentaram.

- Os donos da mina enviaram um engenheiro, que garantiu que não haverá outro desmoronamento.

Jon fazia com que algumas vozes atendessem ao seu pedido de não entrar na mina. Mas não era o suficiente, o que significava que não ia resolver nada.

As vozes chegaram até Kyle. Identificou quase todas. Conhecia aqueles homens e brincara com alguns deles nas estradas, quando menino.

Percorreu com o olhar as famílias presentes e parou numa bonita ruiva de pele clara, que segurava duas crianças pelas mãos. Fora com ela que trocara o primeiro beijo,
aos 14 anos.

Uma mulher bem mais bonita estava ao lado dele agora. Ninguém a havia notado ainda, mas notariam logo. A roupa que tinha impressionado Conway parecia ainda mais
luxuosa ali, com seu debrum de pele e seus bordados caros. O gorro que ela usava contrastava com os lenços que as mulheres tinham na cabeça. A pouca luz da velha
igreja parecia se concentrar nela, fazendo sua beleza loura irradiar.

- Temos de ir embora - disse ele.

- Se eu não estivesse aqui, você iria?

Ele não sabia. Aquele não era mais o mundo dele. Não era a luta dele.

- Vou embora se a minha presença comprometer o que você disser, se para eles eu provo apenas que você percorreu um longo caminho, saindo desse vilarejo - disse ela.
- Mas se só sirvo para lembrar o que perderia se falasse, então mais uma pergunta foi respondida, e da maneira que eu não esperava.

Roselyn se virou para o marido.

- Você ainda não é um estranho para eles, mesmo se eles forem cada vez mais estranhos para você.

A compreensão o emocionou. O fato de tentar entender o tocou profundamente.

Ele saiu do lado dela e procurou Jon. Como a cabeça dele estava acima das outras na nave, a voz chegou lá.

- Jon, você sabe que não está pronto para isso. Você disse ombro a ombro, mas parece que há ombros aqui que não ficarão ao seu lado.

O barulho diminuiu. Jon o viu.

- Temos aqui um cavalheiro para nos aconselhar. Trouxe sua elegante esposa. Que sorte a nossa de termos o conselho dele.

Kyle não olhou para trás, mas soube pelos murmúrios e exclamações que notaram a presença de Rose.

- Trouxe minha esposa para conhecer meus velhos amigos, Jon. Imagine a minha surpresa ao encontrar uma reunião política nesta igreja. O que esperam ganhar se ficarem
parados, a não ser muitas mulheres e crianças com fome?

- Menos corpos para enterrar.

- Falei hoje com Cottington. Ele vai escrever para os sócios. O túnel não será aberto enquanto ele estiver vivo.

- Você nos conseguiu alguns dias, talvez algumas semanas, nada mais.

- Já basta para garantir que, quando o túnel for aberto, será seguro.

Jon fez pouco.

- Seguro! Disseram hoje para retirarmos aquela pedra. Encontraram um engenheiro que garante que o túnel já é seguro.

- Então você precisa achar alguém que discorde. Alguém que não receba salário dos donos e que tenha estudos para basear suas conclusões.

Kyle foi até a frente da nave.

- Alguém como eu.

Jon consultou os quatro homens que o rodeavam. A igreja ficou num silêncio tenso enquanto eles discutiam.

- Você vai entrar lá? - perguntou o mais velho dos homens, com leve zombaria.

Chamava-se Peter MacLaran e era o radical dos tempos anteriores, que agora passava a coroa para Jon.

- Vai sujar seus casacos elegantes, meu senhor. E pode levar alguns dias. Perderia aqueles jantares finos em Londres.

O sarcasmo de Peter recebeu algumas risadinhas.

- Entro agora mesmo. Não será a primeira vez. Os casacos podem ficar aqui. Arrume umas botas emprestadas para mim e cinco homens que me acompanhem, e começamos hoje.
Não sairei de Teeslow enquanto não souber o que preciso. Se o túnel for perigoso, vou dizer num relatório. Se puder ficar seguro, vou mostrar como. Se, mesmo assim,
eles prosseguirem e houver outro desmoronamento, o relatório vai enforcá-los.

- Eles não vão permitir.

- O nome de Cottington vai me ajudar. Ele ainda não morreu.

Não esperou que Jon e Peter concordassem. Os gritos em volta mostravam que Kyle tinha vencido a discussão.

Ele voltou para onde Rose estava.

- Você deve voltar para Pru agora. Vou levá-la até a carruagem.

- Posso ir sozinha. Faça o que precisa.

Ele desabotoou os casacos, tirou-os e os entregou à esposa. Surgiu um menino trazendo um par de botas. Kyle sentou e as calçou. Cinco mineiros dos mais experientes
esperavam na porta da igreja, com lamparinas.

Rose segurou os casacos e olhou os preparativos. Ficou tão interessada que parecia assistir a um ritual em alguma terra exótica.

- Avise a Pru que vou precisar de muita água quente quando chegar em casa - disse ele.

Ela se esticou para falar no ouvido dele.

- Espero que precise de um bom banho. Talvez esteja tão cansado que eu tenha de ajudar.

Ele ficou excitado na hora. Lembrar-se da noite anterior, das noites por vir, daquele banho, só fez piorar as coisas.

Ele trincou os dentes, olhou para o chão de pedra e se controlou.

- Rose. Querida. Vou ficar horas num poço escuro. Isso foi maldade sua.

Ela nem fingiu constrangimento. Quando ele foi embora, Rose parecia bem satisfeita consigo mesma.


CONTINUA

CAPÍTULO 9

No centro financeiro da cidade, um empregado conduziu Kyle para uma sala sóbria que fazia parte de uma série de cômodos bastante apropriados a alguém como um advogado.
Kyle imaginou que houvesse um quarto ao fundo, atrás da porta fechada e em frente à janela veneziana de vidraça em semicírculo no topo.

A carta que ele tinha enviado a lorde Hayden motivara o convite para ir até lá. Aqueles cômodos davam a impressão de que seu anfitrião os usava não apenas para negócios.
Para encontrar mulheres, talvez, quando ainda era solteiro. Para tratar de assuntos pessoais, como os que deviam estar escritos nas folhas empilhadas na escrivaninha
perto da janela.

Lorde Hayden o cumprimentou. Sentaram-se em duas poltronas forradas de vermelho-escuro, perto da lareira.

A lembrança de seu último encontro particular era uma sombra sobre eles. Lorde Hayden Rothwell tinha ido à casa de Kyle, após um convite como esse de agora ter sido
recusado.

- A Srta. Longworth me pediu para falar em nome dela - disse lorde Hayden. - Disse que foi você quem sugeriu esse arranjo.

- Ela foi pouco prática em não dar importância aos termos financeiros quando avaliou minha proposta de casamento.

Lorde Hayden se estirou na poltrona como se uma conversa amena fizesse parte do ritual do acordo.

- Não a conheci antes da falência do irmão. Ela me culpou por isso e, embora agora saiba a verdade, ainda há muita formalidade entre nós. Conheci bem o irmão mais
velho, mas não as irmãs.

- O irmão mais velho era Benjamin, que morreu há alguns anos.

Lorde Hayden ficou sério, assumindo a máscara que costumava exibir para o mundo.

- Minha esposa disse que a prima mudou muito há um ano. E que aquele caso com Norbury foi fruto da má avaliação de uma mulher em profunda melancolia. A negligência
em relação aos termos financeiros de seu pedido certamente também é um reflexo de seu estado de espírito.

- Então é melhor cuidarmos do assunto por ela. Seu estado de espírito pode estar mudado, mas não é melancólico. Não estou me aproveitando de uma mulher incapaz de
tomar decisões sensatas.

- Eu não quis dizer que estivesse. Mesmo se estivesse, essa chance que ela terá... Ficarei feliz por ela poder voltar a ter contato com minha esposa.

Para alguém que ficaria feliz com algo naquele casamento, lorde Hayden estava demorando a negociar os detalhes.

- Não esperava fazer agora o papel de pai em acertos de casamento, e não me sinto muito à vontade, Bradwell. Infelizmente, sei mais do que gostaria e sou forçado
a tratar de mais que meros trocados.

- Espero que acredite que minhas intenções são honradas.

- Não estou preocupado com isso e acho que você sabe.

Claro que Kyle sabia. Só não sabia qual papel lorde Hayden iria assumir.

- Ela comentou dos delitos cometidos por Timothy? Se não comentou, não a culpo - disse o lorde.

- Ela foi muito sincera e insistiu que eu ouvisse tudo.

- Corajosa.

- Acho que ela pensou que eu retiraria o pedido quando soubesse, portanto foi bastante corajosa.

Na verdade, ele achava que ela esperava que retirasse e a poupasse de tomar uma decisão. Ela não confiava mais na própria cabeça.

- Foi tão sincero quanto ela?

- Eu disse que sabia o que o irmão tinha feito e que conheço uma das vítimas dele.

- Diabos, você foi uma das vítimas, também teve prejuízo.

- Só porque assumi a dívida. Podia ter escolhido outras saídas.

Na verdade, Kyle só tinha uma. Aquela que estava conversando com ele no momento. Ou ele ressarcia o dinheiro tirando do próprio bolso ou deixava o fundo zerado.
E isso ele não podia fazer.

- Ela sabe que você não quis ser ressarcido?

- Não. Acha que devo contar?

- Não sei que diabos eu acho.

Lorde Hayden se levantou. Com os lábios apertados e o cenho franzido, andou pela sala com a mesma dúvida que atormentara Kyle várias vezes nas últimas semanas.

- Ela planejava encontrar o irmão - informou Kyle. - Recebeu outra carta dele, pedindo para encontrá-lo.

- Maldição - rosnou lorde Hayden e balançou a cabeça. - Mas, se você não a está enganando, não está sendo totalmente sincero.

Mais um pedido de honestidade total, como se isso fosse não só possível como normal.

Faria negócios com aquele homem no futuro. Não queria que lorde Hayden pensasse que ele era um mentiroso ou um canalha. Tentaria explicar, embora quase nunca se
explicasse a ninguém.

Levantou-se também e andou pela sala enquanto pensava o que dizer. Os passos o levaram para perto da escrivaninha. Deu uma olhada nas folhas soltas. Estavam cheias
de números e anotações. Era ali que lorde Hayden fazia os estudos matemáticos pelos quais diziam que era apaixonado.

- Diga, lorde Hayden, o que todo mundo deduziria se soubesse do delito de Longworth e a irmã fosse encontrá-lo?

- Mas não é todo mundo que sabe.

- Vai saber. Um dia. É inevitável. Muita gente foi prejudicada e o fato não vai continuar em segredo.

A segurança dele assustou lorde Hayden.

- Todos foram ressarcidos, ora - argumentou, mas, olhando para Kyle, completou: - Menos você.

- Foram ressarcidos do dinheiro, mas não da ofensa. Você avaliou mal.

Lorde Hayden não gostou dessa hipótese. Um suspiro de frustração mostrou como era desgastante aquela conversa sobre Longworth.

- Se Roselyn estivesse com ele quando isso acontecesse, certamente seria considerada cúmplice.

- Concordo. Portanto, devo contar tudo a ela? Se contar, se ela souber do meu envolvimento, pode mudar de ideia quanto ao casamento. Pode correr para o irmão, seja
para salvá-lo, ajudá-lo, ou para fugir da própria vergonha. Ela sabe que esse segredo não vai durar muito, mesmo que você discorde.

Lorde Hayden olhou Kyle com atenção, um olhar parecido com o que Easterbrook lhe dedicara.

- Foi por isso que você recusou o dinheiro? Por orgulho, como os outros homens que citou?

- O delito não foi seu. Por que deveria pagar? E também pagou caro. Uma quantia enorme por algo de que não tinha culpa. Se eu aceitasse o seu dinheiro, seria ressarcido
às custas de outra vítima, nada mais.

- Uma vítima por opção, o que é diferente. Acho que, no fundo, foi orgulho.

A arrogância de lorde Hayden incomodou Kyle. Fez um gesto mostrando a sala.

- Nenhuma conspiração financeira foi elaborada aqui nos últimos tempos. Nenhuma associação de empresas se formou aqui. Você continua na mesma casa, que é modesta
para os padrões de Mayfair. Mesmo você sentiu o baque de pagar todo aquele dinheiro. Eu devia desfalcá-lo em mais 20 mil? Concordar com o suborno que você me propôs?

- Suborno? Maldição! O seu bolso não seria prejudicado pelo delito de Timothy, só isso.

- Você não restituiu o dinheiro para eles apenas, exigiu que esquecessem a trapaça. Silêncio em troca de dinheiro foi parte do acordo. Seria bom se cada pecador
tivesse um anjo como você para defendê-lo.

Ele esperou que houvesse uma contra-argumentação, até raivosa. Mas lorde Hayden passou a mão na testa e falou, resignado.

- E quando acontecer justamente o que espera, Bradwell? A Justiça vai exigir que ele pague com a vida. Se esse dia chegar, o que você vai dizer a ela?

- Esse sofrimento a espera, quer ela se case comigo ou não. Se esse dia chegar, vou protegê-la e consolá-la da melhor forma possível.

Lorde Hayden pensou nisso um bom tempo. Depois, foi até a escrivaninha e fez um gesto indicando que Kyle o acompanhasse.

- Vamos preparar os papéis para os advogados. Eu concordaria mais com esse casamento se você tivesse aceitado seu dinheiro de volta. Mas aquele lamentável episódio
já prejudicou as irmãs Longworth demais. Talvez depois do casamento isso pese menos sobre o futuro de Roselyn.

 

- Como está crescida, Srta. Irene - disse o Sr. Preston, com um sorriso. - As mulheres do vilarejo vão passar dias comentando seu gorro.

Irene sorriu enquanto o Sr. Preston contava o dinheiro de Rose e embrulhava os mantimentos que ela comprara.

Ela estava crescida mesmo, pensou Rose. Alexia tinha dado a ideia de apresentar Irene à sociedade na próxima temporada. Estava na hora, sem dúvida, levando em conta
a idade dela, mas talvez fosse cedo demais, considerando outras coisas. Nem seu casamento amenizaria o escândalo a tempo de Irene ser bem recebida na atual temporada.

A ideia de que Irene poderia ter um futuro melhor ajudava Rose a ficar mais calma em relação ao casamento que se aproximava. A ausência de Kyle na última semana
contribuíra para deixá-la agitada. Fora passar o Natal no norte, com os tios que o criaram.

A ausência dele significava que ela podia se concentrar nos preparativos, mas a cada dia tinha mais certeza de que não conhecia o homem com quem ia se casar.

- Estamos todos aguardando o grande dia, Srta. Longworth - disse o Sr. Preston com um sorriso largo. - Permita-me dizer que todos os que conheceram o Sr. Bradwell
no mês passado, quando esteve no vilarejo, exaltaram suas boas maneiras e sua simpatia.

- Obrigada. Espero que o senhor e sua esposa nos deem a honra de sua presença.

- Minha esposa não perderia a festa. Ela sempre diz que certas pessoas se precipitam em acreditar no pior. Ficou triste com a maneira como alguns...

Ele interrompeu a frase de repente e lançou um olhar expressivo na direção de Irene. Os olhos dele se desculpavam por se referir ao escândalo na frente da moça.

- Fico agradecida por sua esposa ter me defendido, Sr. Preston. Tenha um bom dia.

Ela e a irmã mais nova saíram da loja. Irene seguia bem perto dela, com seu marcante gorro de seda encorpada.

- Você acha que o vilarejo inteiro concorda com o Sr. Preston?

- É pouco provável que a Sra. Preston deixasse o marido ser tão simpático se todo o vilarejo discordasse.

- Então, parece estar acontecendo o que Alexia esperava.

- Aqui, sim. Mas Watlington é uma coisa e Londres será outra.

- Acho que em Londres não vai ser ruim. Easterbrook vem ao seu casamento. Quando os jornais publicarem isso, ninguém vai dar atenção às más línguas.

- Como as más línguas gostam muito de falar dele, não acredito que sua presença ajude tanto.

Realizar o casamento no interior tinha sido ideia de Kyle, não de Alexia. Lorde Hayden então oferecera a casa do irmão em Aylesbury Abbey, mas Kyle dissera que preferia
a dos Longworth. Iam se casar na paróquia da infância dela, entre pessoas que a conheciam desde menina.

Rose agora entendia a esperteza disso. Kyle conhecia os moradores de um vilarejo melhor do que um irmão de marquês poderia. O dinheiro que a família gastaria nos
preparativos e a festa aberta a todos os moradores ajudariam mais a criar uma visão favorável sobre aquele escândalo do que dez anos de vida honesta.

Rose e Irene seguiram pela estrada do vilarejo, cumprimentando vizinhos e parando para algumas moças poderem admirar o lindo gorro de Irene. Compraram algumas fitas
e tecidos antes de voltarem para casa.

Muita agitação as aguardava lá. Três carroças cheias de móveis enchiam a entrada da casa. Um exército de criados passava carregando coisas enquanto Alexia ficava
de sentinela na porta da frente, segurando uma grande folha de papel.

- Isso vai para a biblioteca - disse ela para dois homens que carregavam um grande tapete.

- O que você está fazendo? - perguntou Rose, afastando-se para o lado de forma que um guarda-roupa enorme pudesse passar.

- Para o quarto no lado sul - Alexia orientou os três homens que aguentavam o peso do guarda-roupa, depois se dirigiu a Rose: - Você não pode dar uma festa de casamento
numa casa que não tem cadeiras.

- O móvel que passou agora não era cadeira.

- Nem tente ser orgulhosa. Não ouse. Hayden disse que você não aceitaria isso, e não vou deixar que confirme que ele estava certo. Já estou bastante irritada por
ele ter me convencido a esperar tanto para fazer isso. Se viesse um mau tempo, você daria uma festa numa casa vazia na semana que vem.

Um homem passou carregando uma arca nas costas, com muito esforço. Ela deu uma batidinha com a folha de papel no ombro dele.

- Meu bom homem, da próxima vez, espere ajuda. Assim você nem enxerga para onde vai.

- Sou forte, madame. É preciso mais que isso para me derrubar.

- Com certeza, mas se virar para o lado errado, vai arrancar pedaços das paredes. Não temos tempo para refazer o reboco. Escute, Rose, o sótão da casa de Aylesbury
Abbey está cheio de móveis que jamais são usados. É um pecado esse desperdício. E não é presente de Hayden. A casa e tudo o que tem dentro não são dele.

Irene concordou com a cabeça.

- É verdade, Rose. É tudo de Easterbrook.

Uma fila de cadeiras passou por Rose.

- Alexia, o marquês a autorizou a esvaziar o sótão?

Alexia contou o número de cadeiras e consultou o papel.

- Só descobri a quantidade de coisas que havia lá nessa última visita. Mas, na última vez que o vi, conversamos sobre o seu casamento. Comentei que queria ajudar
nos preparativos e ele disse que eu podia usar os criados da casa de Aylesbury e tudo o mais que precisasse - explicou ela e sorriu. - Isso aqui é o "tudo o mais".

Rose imaginou o marquês na casa dela, sendo sarcástico quando não estivesse calado, ao ver aqueles móveis que pareciam bem conhecidos. Depois do casamento de Alexia,
Rose só encontrara o marquês duas vezes; achava-o enigmático e mal-humorado, alguém que poderia se beneficiar bastante do ar puro do campo.

- Bem, ele pode mudar de ideia sobre vir ao casamento - murmurou ela, desejando que não viesse, ainda que a presença dele pudesse contribuir para sua redenção.

Os moradores do vilarejo iam se ocupar tanto em bajulações e em tentar impressionar o marquês no dia do casamento que ninguém ia se divertir.

- Ah, ele virá - disse Alexia. - A tia, Henrietta, ficou dizendo que não viria e ele exigiu que o acompanhasse. Ele agora vai se arrastar de Londres até aqui nem
que seja só para aborrecer a tia.

Irene fez uma careta.

- Ela vem?

Rose seguiu pelo caminho dos carregadores.

- Gostaria de saber se ela algum dia olhou o que tinha naqueles sótãos.

- Suponho que Henrietta inventariou os bens de Easterbrook até o último travesseiro, desde que passou a morar com ele na primavera passada - disse Alexia.

- Então é possível que eu a veja na minha festa de casamento. A cada cadeira e mesa que ela vir, vai levantar as sobrancelhas até juntá-las com a linha dos cabelos.

Alexia e Irene se puseram ao lado dela e seguiram com o fluxo de móveis.

Deixaram os homens se ocuparem de colocar os móveis nos cômodos conforme os desenhos que Alexia tinha feito, e Rose levou a irmã e a prima para o andar de cima,
até o santuário de seu quarto.

A porta do sótão estava aberta. Ela deu uma olhada e viu móveis antigos da casa empilhados. Estranhou que algumas peças estivessem ali.

Em vez de ir para o próprio quarto, ela entrou no quarto sul. Era o maior de todos. Os móveis antigos tinham sido substituídos por outros, trazidos por Alexia. Uma
cama grande aguardava os lençóis e o guarda-roupa recém-chegado brilhava encostado a uma parede. Um toucador masculino estava pronto para receber escovas e objetos
pessoais.

Ela olhou para Alexia, cujo rosto refletia seu senso prático e sua firmeza.

- Está na hora, Rose. Ben já se foi há anos - disse Alexia. - Esta casa em breve terá outra vida e outro dono, e este quarto tem que ser dele.

Rose deu uma olhada no quarto, que estava diferente agora, com objetos estranhos que logo seriam de uma presença estranha. Seu coração se apertou com o aspecto decisivo
que a mudança feita por Alexia representava.

Irene mordeu o lábio inferior.

- Ela tem razão, Rose. Acho que em poucos dias você não vai mais se importar.

Rose pôs o braço no ombro de Irene.

- Não me importo, querida. Alexia está certa. É hora de seguir em frente.

Rose tirou Irene do quarto. Alexia olhou para a prima mais velha quando as duas passaram. O olhar que trocaram foi parecido com o do dia em que se viram na casa
de Phaedra.

Às vezes não havia mesmo escolha. Às vezes só havia uma decisão, uma única coisa possível a fazer, se você quisesse uma chance de ser feliz.

 

CAPÍTULO 10

Na manhã do casamento, Jordan insistiu em arrumar o patrão. Chamou os criados da hospedaria Knight's Lily, em Watlington, e deu ordens como um marechal de campo.
Mandou trazer o café da manhã, preparar o banho e pediu mais toalhas, mais água quente ainda e convocou um assistente enquanto manejava a navalha.

Kyle obedeceu e achou que os criados da pousada não se incomodaram com os mandos. Aquilo lhes dava a chance de participar do casamento que deixara o vilarejo inteiro
alvoroçado.

Enquanto isso, Jordan informava dos preparativos que tinha feito na casa em Londres da futura Sra. Bradwell.

Finalmente, ficou tudo pronto. Jordan ajeitou um colarinho, alisou uma manga de camisa e recuou para dar uma olhada.

- Pronto, e ainda falta uma hora. O colete foi uma ótima escolha, senhor. O leve toque de rosa-escuro no cinza está perfeito, com o azul suave da sobrecasaca.

- Já que você escolheu o colete, é bom que aprove. Ainda acho que um cinza mais claro seria melhor.

- É seu casamento, senhor. Um toque alegre no traje, um toque mínimo, devo dizer, é não só apropriado como esperado - argumentou e, tendo guardado o que restava
de seu arsenal, fez uma reverência para se retirar. - Permita-me dizer, senhor, que está numa elegância como nunca vi. É um privilégio servi-lo neste dia tão feliz
- arrematou.

Kyle olhou no espelho a ótima imagem que o tempo, a experiência e Jordan tinham conseguido formar. Sem dúvida, Kyle se sentia mais elegante, correto e apresentável
que em anos. Lembrou-se do dia em que a tia o arrumara com todo o capricho para ir a Kirtonlow Hall pela primeira vez, a pedido do conde de Cottington. Naquele dia,
ele também ficara pronto uma hora antes e tivera de ficar sozinho e quieto para não suar e estragar a roupa.

Olhou pela janela a rua do vilarejo. Viam-se poucas pessoas. Como ele, estavam todos se arrumando para uma cerimônia e uma festa mais grandiosas do que quaisquer
outras que tivessem visto em anos.

Naquele dia, quando criança, ele imaginara que, na melhor das hipóteses, o conde lhe daria uma bronca e, na pior, uma surra de chicote. Em vez disso, Cottington
tinha mudado a vida dele.

Mudado para melhor, claro. Só um idiota ou um ingrato não reconheceria. Então, ao olhar Watlington pela janela, sentiu uma inesperada falta de Teeslow, seu vilarejo.

Seria bom ter alguns rostos conhecidos no casamento, só que estavam todos longe, tanto no tempo quanto na distância. A generosidade de Cottington o tinha arrancado
daquele mundo, mas não encontrara outro onde colocá-lo.

Ele tinha criado uma espécie de círculo de amigos e sócios, mas não era a mesma coisa. Não pertencia mais a lugar algum, já fazia algum tempo. Sua vida parecia uma
videira com os ramos se distanciando cada vez mais das raízes.

Aquele casamento também não mudaria nada. Ele ficaria à margem do mundo de Roselyn, não dentro. Escolhera a esposa com toda a consciência disso. Sabia o que ganhava
e o que jamais teria, de uma forma que nem Rose entendia.

O olhar bateu na valise de viagem. Enfiada nela, estava uma carta que Jordan tinha trazido de Londres. Durante a visita de Kyle ao norte, o conde estivera muito
adoentado para recebê-lo, mas tinha conseguido mandar conselhos e cumprimentos pelo casamento e dito que recomendara ao advogado que lhe enviasse um presente.

O conde não estaria lá. Nem a tia Prudence e o tio Harold, que não conseguiram disfarçar o susto ao saberem da mulher que o sobrinho tomaria por esposa, quando ele
lhes contou na visita de Natal. Harold estava doente demais para viajar, mas os tios nunca fariam uma viagem assim no inverno. Os outros amigos que fizeram parte
de sua juventude também não iam festejar com ele e só uma pessoa de seu vago mundo atual estava em Watlington.

Kyle foi procurá-lo.

Entrou no quarto de Jean Pierre, que estava em frente ao espelho, colocando a gravata. Depois de Jean fazer algumas dobras e acertos no tecido, Kyle viu de perfil
o amigo assentir, satisfeito. Ele se virou e olhou para o noivo.

- Mon Dieu, por que os homens sempre parecem a caminho da guilhotina no dia do casamento? - falou, passando a mão numa garrafinha que estava no toucador e arremessando-a.
- Um gole, não mais. Seria grosseiro estar bêbado, embora fosse menos doloroso.

Kyle riu, mas tomou um gole mesmo assim.

Jean Pierre mexeu mais um pouco na gravata.

- Esse Easterbrook não me impressiona, mas, oui, de qualquer forma estou sendo um idiota. Tento me convencer de que meu cuidado com o traje não é por causa dele
e seu título importante. Os criados disseram que sua noiva é linda. É ela que quero impressionar, não ele.

- Por quê? Ela é minha noiva.

Um riso. Um suspiro.

- É bom que você se case. Você nunca achou graça nessa brincadeira. Algumas visões suas são... simplórias.

- Muito simplórias.

A voz dele soou mais perigosa do que ele pretendia. Muito perigosa.

- Espero que não se torne um daqueles sujeitos enfadonhos que ralham quando alguém elogia sua mulher. Ninguém colhe todas as flores que cheira.

- Elogie quanto quiser, mas sei muito bem o que você faz com as flores. Tenho certeza de que sabe que é melhor não brincar no meu jardim.

- Mon ami, você tem que aceitar que haverá flerte no ambiente que ela frequenta, e não ser idiota...

- Não preciso que me ensine nada. Sei de tudo isso. Estou apenas dizendo que você não vai arrancar, cheirar, nem mesmo passar por nenhuma cerca-viva.

- O nervosismo do dia já está afetando a sua cabeça. Ainda bem que estou aqui para ajudar. Acho que precisa de mais um gole dessa bebida. Depois jogaremos baralho
até a hora do casamento, assim você fica calmo e não fala feito um idiota.

- Estou bem tranquilo. Sereno como um lago num dia sem vento. Diabos, nunca estive tão calmo.

- Claro. Agora, mais um gole. Ah, bon.

 

- A carruagem de Aylesbury já passou.

A informação foi dada por um criado que ficara de sentinela na estrada. Alexia se levantou e sorriu ansiosa para Rose.

- Agora podemos ir.

Rose olhou para seu vestido. Não era novo. Tinha ficado escondido um ano, desde a época em que Tim vendera tudo o que encontrava. Irritada e de forma egoísta, ela
escondera alguns de seus melhores trajes, na esperança de ter motivo para usá-los de novo. Alexia a ajudara a reformar o vestido, assim não dava para perceber que
era usado.

Rose estava contente de, nesse dia, usar roupas que eram dela. Quase nada na casa era. Até a comida que estava sendo preparada na cozinha pelos criados de Aylesbury
não era dela. E Kyle tinha enviado os barris de cerveja e vinho. Ela se sentiria mais estranha ainda se usasse um dos vestidos de Alexia.

Saíram todos em direção às carruagens que os aguardavam. Lady Phaedra e lorde Elliot tinham vindo participar desse cortejo, em vez de seguirem com Easterbrook. Ela
ficou emocionada com o comparecimento de toda a família de lorde Hayden. Mostravam que a protegiam, graças ao amor que tinham por Alexia.

Alexia, Irene e lorde Hayden iam com ela numa pequena carruagem aberta. Ao chegarem ao vilarejo, não viram ninguém nas ruas. Todos estariam na igreja. Muitos se
aglomeravam do lado de fora porque na velha construção medieval de pedra não havia espaço para todos.

Quando Rose entrou na igreja, sentiu a mudança da luz e da temperatura. Ficou zonza. Tudo se tornou irreal, como imagens de um sonho.

Captava a cena ao redor ao ritmo do sangue que pulsava em sua cabeça. Sorrisos, murmúrios, mulheres apontando os trajes elegantes das damas, rostos que faziam parte
da vida inteira dela olhando... uma caminhada, longa e escura em direção ao altar.

Kyle a aguardava. A seu modo, estava lindo. O leve sorriso que ele dava para apoiá-la fazia o mundo voltar um pouco a seu lugar, mas não totalmente. Ela disse palavras
que pareceram muito distantes. Palavras sérias, votos e promessas, que a uniram irreversivelmente a alguém.

Sentiu-se tomada por uma súbita alegria quando percebeu que havia terminado. Teve a impressão de pairar no ar, impressionada com a própria coragem. Ao mesmo tempo,
temia que, a menos que surgissem anjos para segurá-la no voo, pudesse se esborrachar no chão do vale.

Viu-se de novo na carruagem aberta, agora ao lado de Kyle. Os moradores do vilarejo seguiam a pé ou em carruagens, todos para a casa.

Kyle segurou a mão dela. Aquele gesto a arrancou do devaneio. O sentido do que tinha acontecido se revelou de forma tão concreta que ela mal conseguiu acreditar.

Olhou o perfil do homem que agora era seu marido e senhor. Dele, conhecia apenas duas partes, a de salvador e pretendente. De resto, continuava sendo um estranho
em quase tudo.

 

Kyle observava a festa animada que lotava a casa de Rose. Os convidados mais importantes tinham se sentado para um café da manhã de núpcias, enquanto os moradores
do vilarejo andavam pela sala e a biblioteca e se espalhavam pelo jardim e o terreno. Agora todo mundo se misturava no aperto dizendo votos de felicidade para Rose,
que estava a poucos metros dali.

Kyle não olhava muito para ela. Não ousava. Quando olhou, viu detalhes que fez seu corpo se empertigar. A linha do pescoço, elegantemente debruçada numa conversa,
tinha fios de cabelo esparsos que pareciam seda. Os lábios, como um veludo para beijar, curvavam-se num sorriso sereno.

O vestido era de um tecido marfim macio que modelava o corpo de maneira que o fazia relembrar os seios que tinha acariciado. Pensou em como seria tirar aquele vestido
dali a pouco e no resto, a pele perfeita dela tocando seu corpo inteiro.

Ela percebeu o olhar dele. Deve ter concluído o que ele pensava, embora Kyle duvidasse que ela pudesse adivinhar os detalhes eróticos. Ela corou e voltou a conversar
com o convidado.

Ele se obrigou a prestar atenção na festa para se distrair. Observou Easterbrook chamando a atenção em frente à cornija da lareira. Os moradores do vilarejo se aproximaram
com deferência e receio, não só por ele ser um marquês.

O comportamento dele não incentivava aproximações. A aparência excêntrica tinha sido de certa maneira amenizada. Surpreendentemente, usava trajes conservadores e
os cabelos compridos tinham sido presos num rabo. Mas ele olhava de cima, satisfeito com os resultados de sua caprichosa intromissão.

Um riso de mulher desviou a atenção de Kyle. Perto, num canto da sala, Jean Pierre atraía Caroline, a jovem prima de Easterbrook. A linda moça enrubescia com a atenção
dele.

A mãe, lady Wallingford - tia Henrietta, para a família -, incentivava Jean Pierre a flertar mais um pouco. Pálida como a filha e enfeitada com um chapéu incrível
pelo excesso de plumas, a lady tinha um jeito alienado, com aquela expressão ausente, etérea. Segundo Rose, o rosto ingênuo escondia a sagacidade de uma mulher decidida
a ficar para sempre na casa de Easterbrook, depois de finalmente conseguir se acomodar nela no ano anterior. Os boatos diziam que o recluso marquês tinha cada vez
menos paciência para a intrusão da tia e da prima.

Dali a pouco, Jean Pierre pediu licença às duas damas e foi abrindo caminho até chegar onde Kyle estava.

- Jean Pierre, a respeito daquelas flores... lorde Hayden é o protetor de uma das que você cheirava há pouco. Olhe para ele. Quer ter esse homem como inimigo?

Jean Pierre procurou lorde Hayden com o olhar.

- Acho que ele não vai se incomodar.

- Ele não terá como não se incomodar. Ela é inocente.

- Eu não cheiro inocentes - garantiu ele, e olhou para Henrietta e Caroline. - A menina não me interessa. Lady Wallingford deve ter, no máximo, 30 e poucos anos.
Você vê uma matrona que usa chapéus horrorosos. Eu vejo uma mulher com uma beleza oculta e etérea que, meu nariz tem o prazer de informar, não se oporia a uma pequena
sedução.

Não adiantava tentar dissuadir Jean Pierre dessa conquista. Kyle imaginou que lorde Hayden não causaria um duelo em nome da virtude da tia.

De repente, a festa pareceu mudar. Acalmou-se. As pessoas se afastaram para formar um corredor. O marquês passou no meio, sorrindo de leve, afavelmente, para a direita
e a esquerda.

- Finalmente - resmungou Jean Pierre. - Agora é só esconda a cerveja e o vinho e todos os demais vão embora também.

Sim, finalmente.

Rose fez uma reverência quando Easterbrook se despediu dela. Kyle também fez uma reverência e torceu para que nada tirasse o homem de seu curso. Ninguém iria embora
antes dele.

A tia do marquês se sentiu na obrigação de acompanhá-lo. Em pouco tempo, os irmãos dele também se foram. A festa começava a acabar.

Kyle se imaginou colocando todos porta afora, os moradores do vilarejo e os criados, todo mundo. Teve de se esforçar para controlar a impaciência.

Uma coisa era desejar Rose antes. Mas desejá-la hoje, agora, quando sabia que poderia possuí-la, estava sendo uma tortura.

 

Fazia tanto tempo que Rose não tinha uma criada que ficou sem saber o que fazer com a mulher. Por sorte, a criada que Alexia arrumara não precisava de ordens. Com
gestos eficientes e de olhos baixos, preparou Rose para a noite de núpcias.

A casa agora estava quase vazia. Só ficaram o marido e a esposa, o criado pessoal de Kyle e a criada que arrumara Rose. Dali a pouco os dois últimos iriam desaparecer
em outros cômodos do andar superior.

As últimas horas tinham sido difíceis. A aproximação daquele momento tinha surtido efeito sobre cada minuto e cada segundo delas. Tanto Roselyn quanto Kyle não disseram
nada, nem mesmo na longa caminhada que fizeram enquanto os criados de Aylesbury limpavam a casa, tirando os pratos e os barris de vinho. A noite que estava para
chegar fora um manto invisível cobrindo cada instante e transformando cada olhar e cada toque.

Ela dispensou a criada e se empertigou. Não estava com medo. Nem um pouco. Estava nervosa, preocupada e curiosa, mas não com medo.

Passou a mão pelos cabelos, que tinham sido escovados e estavam soltos. Conferiu a camisola, quase recatada com suas mangas compridas e a gola alta franzida. Olhou
para a cama, que os aguardava com o lençol aberto. A vida inteira, ela vira a cama naquele mesmo lugar.

Não tinha certeza se queria que as coisas se passassem naquela cama. Não sabia nem se queria que fossem naquele quarto.

Ali ela havia sido uma criança feliz e uma garota cheia de esperanças. Ali chorara a morte dos pais e a de Benjamin; sofrera com a falência do irmão e a dela própria.
Aquele quarto continha toda a sua história, o bom e o ruim, e ainda guardava ecos de sonhos juvenis jamais realizados.

Se Kyle entrasse ali agora, ela não conseguiria voltar ao quarto sem que a presença dele influenciasse todas as lembranças.

Mudasse. Talvez até ofuscasse. A partir de agora, sua vida mudaria sob vários aspectos. Ela podia ao menos conservar aquele canto de seu antigo mundo.

Jogou um xale sobre os ombros. Pegou uma vela acesa e saiu de mansinho do quarto. Prestou atenção em sons vindos do quarto sul para saber se Jordan ainda estava
servindo o patrão.

Nenhuma voz, nenhum barulho. Entreabriu a porta e olhou.

Jordan não estava lá. Só Kyle. Ao lado da lareira, imerso em pensamentos que endureciam suas feições. Dava a impressão de que aquelas reflexões o tinham desviado
de seus preparativos. Ele estava nu da cintura para cima, mas ainda de calças.

Ao vê-lo assim, ela se assustou. O homem escondido por aquelas roupas elegantes agora estava exposto, de uma maneira não apenas física. Um cavalheiro podia praticar
boxe ou esgrima durante meses e não conseguir a força contida e autêntica que ele revelava. Não era tanto a altura e o corpo que ele tinha, embora a musculatura
firme e definida acentuasse o efeito. Era mais algo que vinha de dentro e não tinha explicação.

Ela teve noção de que estava vendo algo que ele não mostrava ao mundo. Escondia atrás da fala educada e das maneiras polidas, mas devia estar sempre nele. Rose havia
percebido desde o começo. Tinha sentido os efeitos tanto de formas sutis quanto fortes. Era essa força que a excitava e a fazia sentir-se ao mesmo tempo segura e
temerosa.

Ele se virou como se ouvisse o som vindo da porta, embora ela mal respirasse. Olhou-a por inteiro: o xale e a camisola, a vela e os cabelos.

- Eu já ia ao seu encontro - disse ele.

- Pensei em vir encontrá-lo. Você se importa?

- Claro que não.

Ela se aproximou e colocou a vela no toucador.

- Você estava tão absorto. No que pensava tanto?

- Em algo que aconteceu há muito tempo. Tinha até esquecido, só lembrei agora.

- Uma lembrança ruim?

- Sim.

- Então, ainda bem que entrei.

Ela ficou constrangida com o olhar dele. Talvez, vindo até ele ao invés de esperá-lo, tivesse criado uma expectativa de que faria algo mais.

- Ele machucou você?

A pergunta foi feita com tanta calma que ela levou um instante para entender. Ficou triste por ele falar em Norbury logo naquela noite.

- Pensei que jamais fosse falar...

- Ele machucou? Só pergunto por causa de agora e do que vamos desfrutar daqui a pouco. Veio à minha cabeça que talvez tivesse machucado. Que talvez eu o houvesse
considerado alguém melhor do que é, mesmo sabendo que é bem menos do que muita gente pensa.

Ela não entendeu direito a que ele se referia. Só que era a algo pior do que ela enfrentara. Embora, naquela derradeira noite, Norbury tivesse pedido algo que, parando
para pensar, poderia ser não só chocante, mas doloroso.

Olhou para o homem que, horas antes, tinha jurado protegê-la. A firmeza dele era perigosa e os olhos mostravam isso. Rose concluiu que ele não toleraria o que ela
acabara de se lembrar, ainda que ela lhe garantisse que não tinha chegado a acontecer.

- Não, ele não me machucou. Não da maneira que deve pensar.

- Fico contente.

Ele pareceu contente mesmo. Aliviado.

O leve sorriso ajudou a amenizar o clima e acabar com qualquer raiva causada pela lembrança do passado. O fantasma de Norbury ou de qualquer outro que tivesse entrado
naquele quarto sumiu como uma fumaça fina que esvaece pela janela.

Rose tinha certeza de que agora Kyle só pensava nela. E lhe dava toda a atenção. Isso a deixava nervosa e inquieta, ficar ali enquanto ele a olhava. Ela também olhava
o peito e os ombros banhados pelo brilho cálido da lareira. O corpo dela reagiu à expectativa que saturava o ar.

- Venha cá, Roselyn.

Claro que ela obedeceu. Fazia parte do que havia prometido naquele dia. Não era uma menina inocente e não ia mostrar quanto ainda se sentia como tal.

Ficou bem na frente do marido, com o peito nu dele a centímetros de seu nariz. Um peito atraente. Só a proximidade dos dois já era provocante e ela teve um impulso
de beijar o corpo que a atraía.

Ele a beijou primeiro. Pegou o rosto dela nas mãos e a beijou com mais carinho do que nunca. Era como se quisesse dar confiança a ela, o que Rose achou muito bom.
Só que ele já tinha feito isso na carruagem, no dia em que se encontraram no parque. Tinha consciência de que parte de seu dever de esposa podia ser desagradável,
mas agora também sabia que outra parte seria muito boa.

O corpo dela concordou. Reagiu ao beijo mais do que seria preciso. O nervosismo diminuiu e a excitação aumentou.

Kyle a levou para a cama. Sentou-se na beirada para não ficar tão mais alto que Rose. Assim podia beijá-la mais facilmente. Mais intimamente. Com menos cuidado.
Enquanto beijava, colocou a mão sobre o seio dela. As carícias a excitaram tão rápido que ela se assustou. Ela deixou o desejo fluir e notou que seu corpo latejava
lá embaixo, ansiando por ele.

Kyle observou a própria mão moldar o tecido da camisola ao redor do seio, exibindo sua forma. Ela ofegava toda vez que ele lhe roçava o mamilo, tão penetrante era
a sensação que causava.

- Você é muito bonita, Roselyn.

A beleza não tinha sido de muita utilidade em seu erro. Ainda assim, o elogio a agradava.

Ele a olhava com tanta intensidade que Rose teve medo de que ele se desapontasse com o que visse.

- Você já ouviu isso muitas vezes. Desde criança, imagino.

- Se você me achar linda esta noite, estarei feliz.

- Sempre achei. Eu a vi uma vez, há anos. Num teatro. Não sabia quem era, só que nunca tinha visto uma mulher tão encantadora. Depois, percebi seu irmão no mesmo
camarote e concluí que devia ser a bela Longworth que tantos elogiavam.

O toque leve causou tanta alegria, tanto prazer que ela quase o repreendeu por não ter ido procurá-la quando soube quem era. Conteve-se a tempo. Sabia o motivo.

Teria sido por isso que fizera a proposta de casamento? Ela mal conseguia pensar nisso, raciocinava de um jeito preguiçoso, indiferente. Ele não resistira à chance
de ter algo que o mundo proibira a um filho de mineiro?

Ela se entristeceu ao pensar nisso. E veio novamente o impulso de beijá-lo. Dessa vez ela obedeceu, beijou a curva do ombro dele.

Foi como se acendesse uma tocha, tal o efeito que causou, apesar de Kyle imediatamente tentar conter seu desejo. Mas os olhos dele se aprofundaram a ponto de ela
pensar que poderia se afogar neles se os mirasse por muito tempo.

Ele puxou as pontas do laço que prendia a camisola no pescoço. Rose olhou para a mão dele, enquanto as fitas acetinadas corriam e o nó se desatava. Pareceu levar
uma eternidade. Um ponto dentro de seu corpo latejou e se retesou, como se uma língua invisível estalasse em sua carne.

Percebeu que Kyle ia despi-la. Ali mesmo, despi-la inteira, com a vela acesa na mesinha lateral. Tinha certeza de que não era assim que se fazia. Só que ele podia
não saber. Mas...

Ela ainda estava surpresa por esses pensamentos quando a camisola escorregou pelos ombros. Kyle notou a surpresa, mas isso não o impediu de continuar. Desceu o tecido
até exibir os seios, túrgidos e com os mamilos escuros. Puxou a camisola mais para baixo, passando pela cintura e as pernas até Rose ficar nua sobre um lago de tecido
branco.

Rose ficou envergonhada. O quarto precisava estar escuro, ou quase, quando ela estivesse assim. E eles deviam ficar embaixo do lençol, quase anônimos nos gestos
por vir. Tentou se cobrir com os braços.

- Não.

Ele a segurou antes que conseguisse. Puxou-a mais para perto. Sua língua mal tocou a extremidade de um de seus mamilos.

Uma centelha de prazer percorreu seu corpo inteiro: intensa, direta, precisa. Depois, outra, e outra, sufocando seu constrangimento, fazendo-a querer apenas que
ele continuasse aquilo para sempre e que o prazer maravilhoso nunca cessasse.

Com a língua e a boca, ele a levava aos céus. Acariciou todo o corpo dela e ela então gostou de estar sem a camisola. O toque das mãos em sua pele, nas coxas e atrás,
nas costas, parecia certo, necessário e perfeito. Ela se virou, presa numa sensualidade e num desejo intensos, que pareciam aumentar cada vez mais, o prazer pedindo
mais prazer num crescendo infinito.

Ficou tão perdida nesse torpor que não percebeu que segurava o ombro de Kyle até ele soltar sua mão. Mal notou quando ele se levantou e a deitou na cama. Rose voltou
um pouco a si na pausa que se seguiu e o viu tirar a roupa à luz da vela que ainda queimava.

Ela esticou a mão e apagou a vela antes de ver o corpo inteiro dele como ele a vira. Kyle se transformou então numa silhueta, uma forma escura, indistinta e vaga.
Ele foi na direção dela na cama.

Um beijo, tão profundo e íntimo que ela jamais o esqueceria. Uma carícia, tão firme e possessiva que ela só podia render-se à sua maestria. Um toque, tão direto
e ciente de seu efeito que o corpo todo gritou com o prazer intenso.

Ele continuou. Ela manteve um grito ao mesmo tempo mudo e pleno de desejo, de sensação torturante. Rose perdera a consciência de seu corpo, exceto a tênue vontade
que exigia mais, qualquer coisa, tudo.

A voz dele, calma e profunda.

- Entregue-se. Vai entender o que quero dizer. Deixe acontecer. Solte-se.

Ela mal o ouviu. Não entendeu. Mas o corpo se soltou lentamente. O suficiente para que um tremor profundo surgisse e então aumentasse e subisse em ondas de prazer
cada vez mais altas, para no fim explodir em seu corpo e ofuscar sua mente, num momento etéreo de estupefação.

Kyle estava abraçado a ela, em cima dela. Sentiu-o entrar com cuidado. Com muito cuidado. Ela o deixou assim e ajeitou as coxas para que ele ficasse lá, para que
a penetrasse antes que aquela sensação maravilhosa tivesse fim.

A calma dele se foi. Veio a força. Ela não se importou. Não foi ruim, nem sequer desagradável. Ela se entregou a ele como se entregara ao próprio prazer, ainda flutuando
numa perfeição que as estocadas dele só fizeram prolongar.

 

Ele despertou perto da aurora e viu que Roselyn se fora. A certa altura da noite, talvez logo após ele adormecer, tinha voltado para seu quarto e sua cama.

Se ele tivesse ido até o quarto dela, Rose esperaria dele que saísse logo também. Era assim que se fazia com mulheres como ela. Elas não viviam em casebres, onde
marido e mulher compartilhavam a mesma cama a noite inteira, todas as noites.

Lembrou-se de, quando menino, ouvir murmúrios e risos íntimos no quarto ao lado. Aqueles sons pessoais davam vida à casa. Ele não tinha participação naquelas conversas,
mas os murmúrios traziam paz à noite.

Era estranho que a lembrança viesse naquele momento, tão vívida que, se ele fechasse os olhos, se sentiria na cama de sua infância outra vez. Esquisito que aquele
casamento tivesse aberto tantas portas para o passado. Só que ele olhava por essas portas como homem e via coisas que o menino jamais compreendera.

Uma das portas seria difícil de fechar. Se Roselyn não tivesse vindo na noite anterior, ele ficaria horas refletindo sobre o que vira de novo daquela soleira.

As imagens queriam invadir a cabeça dele. Ele as expulsou por ora. Quem sabe, de uma vez por todas. Assim como a honestidade absoluta, a pura verdade nem sempre
era benéfica.

Cochilou, depois acordou de novo, num sobressalto. Era tarde. Não tinha apenas cochilado.

A água para lavar o rosto estava à espera. As roupas tinham sido preparadas para que se vestisse. Jordan estivera lá, mas deixara o noivo dormir. Ele não chamou
o criado, mas se arrumou para mais um dia.

Desceu a escada e acompanhou o som das vozes na cozinha, nos fundos da casa. Rose estava lá com Jordan. Usava um vestido simples, cinza, que ficaria bem numa dona
de casa modesta. Continuava linda.

Não conseguia olhar para ela sem relembrar seu corpo à luz da vela, a timidez e os tremores de sua excitação. Apagar a vela tinha, sem dúvida, sido sensato, embora
ele tivesse vontade de olhar para a esposa a noite inteira. Na escuridão, ela conseguira se libertar um pouco e ele conseguira se controlar para não possuí-la com
voracidade.

O primeiro olhar que Rose lhe deu continha um agradecimento pela noite. Ela então abaixou os olhos.

Jordan serviu o café da manhã.

- Este lugar é simples, senhor, mas a vista do jardim e a luz são agradáveis. Posso servir o café na sala de jantar, se o senhor preferir.

- Assim está ótimo.

Ele se sentou à mesa onde havia almoçado com Rose no dia em que fizera o pedido de casamento. Com gestos eficientes, Jordan serviu um café da manhã bem tardio.

Quando Kyle terminou, Roselyn trouxe para a mesa o último prato a saborear.

- É torta de maçã - avisou ela. - Você disse que gosta tanto que às vezes come no café da manhã...

- Muito bem, Jordan.

- Não foi ele quem fez. Fui eu.

Ao fundo, Jordan terminou de secar uma jarra. Pegou seu casaco.

- Quero olhar um pouco o jardim, madame. Com sua permissão, posso sugerir algumas melhorias.

- Claro, Jordan.

Rose cortou uma grande fatia de torta e colocou num prato. Deu um passo atrás e esperou que o marido provasse.

Ele deu uma boa mordida.

A torta anterior estava ruim. Já esta estava horrível. Olhou para o armário e todos os mantimentos. Tinha presumido que a primeira torta ficara ruim por falta de
açúcar e sal. Pelo jeito, o problema não era esse. Roselyn é que fazia tortas horríveis.

Ela teve prazer de vê-lo comer. Por sua expressão facial e os sons que fazia, ele estava gostando.

- Deliciosa - falou ao engolir o último pedaço.

- Fico contente que tenha gostado. Jordan ficou estalando a língua enquanto eu assava, mas acho que só estava irritado por eu estar fazendo o trabalho dele.

Ele a segurou e a puxou para si.

- Você não precisa mais cozinhar. Não precisa fazer tortas.

- Eu sei. Só que esta manhã me lembrei de que servi torta a primeira vez que esteve aqui e que pareceu gostar. Então quis fazer outra.

Ele percebeu que tinha acabado de ser elogiado pela noite anterior.

Beijou-a e a soltou. Não estava com fome naquele momento, pelo menos de comida. Muito menos daquela torta.

Mesmo assim, cortou mais uma fatia.

 

CAPÍTULO 11

Kyle colocou os rolos de projetos numa grande sacola de lona.

O assunto não podia esperar mais. Muito já fora investido naquilo. Ele não tinha escolha senão encontrar Norbury, como estava marcado fazia tanto tempo.

Tentou ouvir algum som vindo do quarto de Roselyn. Ela costumava acordar cedo. Não tinha o hábito de ficar na cama até o meio-dia como certas damas. Nesse dia, entretanto,
o pavimento onde ficavam seus quartos continuava estranhamente silencioso. Como ele a mantivera acordada quase a noite inteira, não se surpreendeu.

Ela não parecera se importar em dormir pouco. A noite lhe despertara novos apetites. E, ao contrário do que ocorrera em Oxfordshire, onde ela sempre o procurava,
como se quisesse demonstrar que cumpria seus deveres conjugais, ali em Londres era o contrário: ele é que ia encontrá-la. Isso significava que, às vezes, como na
noite anterior, Kyle se demorava bastante por lá.

Ela não se importava, mas, ao mesmo tempo, preparava os rituais da noite de maneira a não ficar constrangida. Depois daquela primeira noite, sempre apagava as velas
mais cedo. Apesar da escuridão, Kyle conhecia o corpo da esposa melhor do que ela pensava. O toque revelava muito e a luz da lua, mais ainda. Ela podia preferir
as sombras, podia até esquecer o rosto do homem que a possuía, mas ele jamais esquecia que era Roselyn que ele acariciava.

Riu para si mesmo ao se lembrar da pequena batalha que seu corpo enfrentava todas as noites. Roselyn Longworth lhe provocava um desejo tão forte, tão arrasador,
que muitas vezes ele ficava agressivo. Mas, como se tratava de Roselyn, uma dama que ainda se intimidava e se espantava com a nudez, ele tinha de se controlar.

Isso não era um problema. O final era sempre bom. Os doces êxtases dela e os gozos fortes dele o encantavam. Depois de tudo, era com pesar que ele abria mão da satisfação
absoluta que encontrava nos braços dela. Às vezes, como na noite anterior, ele passava horas recusando-se a ir embora, o que significava ter relações mais de uma
vez.

Desceu a escada. Aquela casa ainda parecia nova e estranha para ele. Roselyn ficara muito contente quando ele a levara para lá. Ocupava-se agora de arrumá-la a seu
jeito e de fazer as primeiras reaparições na sociedade.

Ele cuidava dos negócios, como essa reunião agora. Foi a cavalo para a casa de Norbury, com a sacola de lona presa à sela. O dia estava melhor que o humor dele.
Não falava em Norbury com a esposa, mas sua fome insaciável da noite anterior, o desejo de possuí-la, estava ligada à desagradável expectativa do encontro que se
seguiria.

Na verdade, aquele homem agora entrava em sua cabeça com muita frequência. Não só por causa de Rose, apesar de ele ter de se esforçar para afastar as lembranças
daquele caso. Pensar nisso só lhe dava raiva e uma vontade enorme de bater no canalha.

Kyle continuava também com a lembrança que tivera na noite de núpcias, como se aquilo precisasse ser revisto. Era o rosto de uma mulher espancada e machucada. Os
olhos da mulher o assombravam. A humilhação que mostravam parecia o rosto de Rose na noite do leilão.

No dia em que encontrara a tia ferida ao se defender dos jovens ricos que se divertiam com ela, Kyle lutara como um possesso. Eram três contra um e ele tinha apenas
12 anos, mas seus inimigos não haviam passado quatro anos carregando carvão na mina.

Ele achara que a havia salvado. Só agora, que os detalhes começavam a ressurgir em sua cabeça, ele reavaliava o ocorrido. Talvez não tivesse chegado no início da
violência contra a tia, mas no final.

Pensar em Rose o fez lembrar-se de tudo isso na noite de núpcias. Enquanto ele avaliava como lidar com ela, como lhe mostrar os caminhos do prazer sem deixá-la assustada,
chegara a sombra do amante anterior. Com a lembrança, viera o pensamento inesperado de que o sexo trivial devia ser o menor motivo para Rose não gostar de contato
físico.

Parou o cavalo na frente da casa de Norbury. Olhou a fachada em perfeito estilo paladiano que dava tanta elegância à construção. Considerava-a uma das melhores moradias
de Londres, de uma excelência que para muitos passaria despercebida num mar de influências clássicas. Era um desperdício, pois Norbury tinha pouca sensibilidade
para essas coisas.

Não podia se distrair com a estética, como costumava ocorrer. A nova pergunta sobre aquela briga travada fazia tanto tempo afetava bem mais do que a infância dele.
Fazia com que imaginasse mais do que gostaria sobre o caso de Rose. Chegava a incomodá-lo no encontro de hoje, pois Norbury tinha sido um dos meninos em que ele
batera.

A tia garantira que ele havia chegado a tempo e ele acreditara. Mas aquelas conversas noturnas no casebre deles sumiram por muito tempo e o tio nunca aprovou a ajuda
dada por Cottington. Aceite o dinheiro, mas não seja um lacaio, Kyle, meu jovem. Use-os da mesma maneira que eles usam os outros, mas não se torne um deles.

O mordomo sorriu ao receber o cartão de visita de Kyle. A familiaridade não era desrespeitosa. Os criados daquela casa, como os de muitas outras elegantes residências
londrinas, logo se afeiçoavam ao menino pobre que se tornara um homem bem-sucedido, alguém que circulava pelos dois mundos que eles conheciam.

- Meu patrão está ocupado, mas poderá recebê-lo em menos de uma hora - informou o mordomo ao retornar.

Kyle o seguiu até a biblioteca, sabendo que "menos de uma hora" significava uma espera de pelo menos 59 minutos.

Assim que a porta da biblioteca foi fechada, Kyle a abriu de novo. Desceu a escada para a cozinha. Norbury não devia estar ocupado coisa nenhuma. O atraso era apenas
a maneira enfadonha de o visconde mostrar a própria importância. Mas o tempo que Norbury tinha dado seria útil.

A confeiteira se virou, surpresa, ao ouvir os passos dele na escada.

- Sr. Bradwell! Que honra. Nossa, como o senhor está bonito. Parece que o casamento lhe fez bem.

- Olá, Lizzy. Você também está bem. Com um pouco mais de farinha que o habitual.

Ela passou as mãos nos cabelos grisalhos, fazendo surgir uma nuvem branca. Lizzy era uma das muitas criadas da casa que tinha família em Teeslow. Quando moça, fora
trabalhar para Cottington, depois se mudara para Londres quando Norbury fora para a cidade.


O cozinheiro, um homem sério, cumprimentou Kyle com a cabeça e resmungou parabéns pelo casamento. Tirou uma panela grande da mesa e, com o pé, empurrou um banquinho
até o espaço recém-liberado. Depois voltou a ralhar com uma criada na copa. Kyle sentou no banquinho.

- Veio falar com o patrão, não é? - perguntou Lizzy, enquanto partia ao meio a massa de pão e pegava um pedaço grande. - Uma daquelas conversas sobre dinheiro que
ninguém entende?

- Sim.

- Tem gente que diz que é como um jogo.

- É parecido, só que sou eu quem decide onde fica a maioria das cartas.

- Ainda assim, uma cartada errada e...

- É, pode acontecer.

- Não é muito provável que aconteça com o senhor, eu diria. Sempre foi mais esperto que a maioria, deve saber dar as cartas.

Geralmente. Normalmente. Mas havia sempre um risco. O importante em qualquer jogo era não se importar muito em ganhar ou perder. Um homem nervoso ou desesperado
sempre joga mal.

O sucesso dele dependia da certeza de que, se tudo desse errado, sempre poderia se recuperar e que um revés de alguns anos não faria muita diferença em sua vida.

O casamento mudava tudo. Percebera isso ao fazer seus votos durante a cerimônia. A responsabilidade dele em relação a Rose significava que nunca mais poderia ser
absolutamente destemido, e os outros perceberiam isso, ainda que ele tentasse esconder a verdade.

Tinha sido por isso que, dois dias antes, fizera um fundo de investimento para a esposa.

Dois cheques tinham estado à espera de que eles retornassem a Londres. Um, enviado por Cottington, era presente de casamento. O outro, os 10 mil de Easterbrook,
era de uma quantia bem maior e viera sem uma carta, um bilhete que fosse.

Se Rose soubesse da existência daquele dinheiro, pensaria que alguém havia pagado para que ele se casasse, o que de certa maneira era verdade. Enquanto olhava o
cheque, ele concluíra que não queria que ela pensasse isso. Ela não ia enganar a si mesma e ter qualquer ilusão romântica sobre casamento, mas seria ruim que não
tivesse ilusão nenhuma.

Só o presente de Cottington já bastava para salvá-lo do desastre, então pegara o suficiente de Easterbrook para prover Rose no caso de se tornar viúva e deixara
o resto num fundo de investimento para ela. Sua esposa teria como se sustentar se, no futuro, as cartas do baralho não fossem distribuídas como ele gostaria.

- Tem recebido notícias de Teeslow, Lizzy?

Lizzy era chegada a fofocas, por isso Kyle gostava de conversar com ela. A criada sabia tudo sobre Teeslow pelas cartas da família, com muito mais detalhes do que
a tia contava a ele.

- Bom, a garota dos Hazletts está esperando um filho e ninguém sabe aonde o pai foi parar. Peter Jenkins morreu, mas foi um descanso, porque ele estava muito doente.
E há boatos de que aquele túnel na mina vai ser reaberto. Você sabe qual.

Ele sabia. Tinha ouvido o boato quando estivera lá, em dezembro. Pelo jeito, o boato continuava, portanto devia ser verdade.

- Como vai Cottington?

- Mal, infelizmente. Quando ele se for, a criadagem vai chorar rios, garanto. Muita coisa vai mudar com a morte dele.

- Não é só a criadagem que vai chorar. Todos vão lastimar que o herdeiro assuma o lugar dele.

Lizzy conferiu onde estava o cozinheiro, antes de fazer uma cara que mostrava que ela pensava o mesmo. Concentrou sua força em sovar a massa do pão.

- Imagino que o visconde não foi ao seu casamento.

- Não mesmo.

O olhar dela foi bem expressivo. Significava que Norbury não se daria ao trabalho de ir, mesmo se fosse convidado. E que, naturalmente, a noiva de Kyle não ia querer
o ex-amante no próprio casamento.

- Fez muito bem, Sr. Bradwell. A ajuda que o senhor deu para aquela pobre mulher e o que agora faz por ela. É o que todos dizem.

- Infelizmente, não pude bater nele como fiz naquela vez, embora quisesse.

Esperou a reação dela. Na época da surra, Lizzy trabalhava para Cottington. Numa casa assim, os criados costumavam saber de tudo.

Ela pareceu surpresa por ele tocar no assunto. Olhou bem para ele, depois se voltou de novo para a massa de pão. Sovou com força.

A reação dela era plausível com um assunto que fosse tão escandaloso que seus detalhes tivessem de ficar em segredo.

Um simples mau comportamento de alguns jovens ricos, a história que ele conhecia, não seria motivo para isso.

 

- Continuo achando que as casas não têm quartos de criados em quantidade suficiente - reclamou Norbury após examinar os projetos por dez minutos.

Até então, as coisas iam bem. Recebera Kyle com indiferença e os dois se ocuparam dos projetos. Norbury parecia se esforçar para ser cavalheiro, mas Kyle via que
o visconde tentava ocultar um lado bem menos civilizado.

- As casas serão compradas por famílias com renda de milhares de libras por ano. Cinco quartos de criados, mais os da estrebaria para o treinador e o cocheiro deveriam
ser mais que suficientes.

- Milhares de libras. É incrível como eles conseguem.

Era uma observação idiota feita por um idiota, com a intenção de enfatizar como ele estava acima de preocupações frívolas como milhares de libras a mais ou a menos.
Norbury inclinou mais um pouco a cabeça loura sobre os projetos.

- Meu advogado disse que papai pretende assinar os papéis do terreno - comentou Norbury, e seu lábio inferior tremeu. - Ele não está participando de nada e não viu
os projetos, mas decidiu de qualquer forma.

Ótimo, iremos em frente, mas quem decide é o velho, não eu. Vou lucrar bastante com o seu trabalho, mas não que eu tenha escolhido isso.

Para Kyle, era indiferente como as coisas se passariam. Agora lamentava que estivesse nesse projeto, que o obrigava a aceitar a presença de Norbury. Se o conde não
se recuperasse para retomar as rédeas dos negócios, essa seria sua última parceria com a família dele.

- Procurarei o seu advogado amanhã - disse Kyle, juntando os projetos. - O trabalho nas estradas vai começar logo; a madeira e os demais suprimentos estão encomendados.
As primeiras casas estarão prontas em meados do verão, creio.

O dono da casa acompanhou os preparativos da saída do visitante. Deu-lhe um olhar gelado.

- Preciso lhe dar os parabéns.

- Obrigado.

- Não fui convidado.

- Foi um casamento no vilarejo, não em Londres.

- Li que Easterbrook compareceu.

A informação o incomodara. Kyle não sabia se pelo fato de aquele lorde especificamente ter sido convidado ou porque a presença dele fizera a ausência de Norbury
ficar irrelevante.

- A casa de campo dele fica perto e minha esposa é parente. Indireta, digo.

Norbury riu.

- Você fez bem em se casar com a minha puta, Kyle.

Kyle se obrigou a continuar encarando os projetos e mal controlou a vontade de estrangular Norbury. Eram palavras assim que motivavam duelos. Homens idiotas diziam
coisas idiotas por orgulho ou ressentimento. Coisas que outro homem não poderia permitir.

- Repita isso ou algo parecido, para mim ou para qualquer pessoa, e acabo com você. Se eu souber que sequer mencionou o comportamento vergonhoso que teve com ela,
só vou parar de bater quando você não conseguir se mexer por duas semanas.

Norbury ficou tão vermelho que Kyle esperou que ele desse o primeiro soco. Queria muito que desse.

- Bata, maldito. Pratico boxe duas vezes por semana.

- Isso só ajuda se o seu opositor obedecer às regras do esporte. Você vai lutar com um filho de mineiro e suas mãos suaves e inúteis não são nada contra mim.

Kyle se encaminhou para a porta. As palavras ríspidas de Norbury o acompanharam.

- Meu advogado disse que papai mandou um presente de casamento para você.

- Mandou mesmo. Foi muito generoso.

- Generoso, quanto? Quanto foi que ele mandou?

Norbury exalava agressividade, como se a quantia fosse a única coisa que interessasse.

Talvez fosse. Talvez Norbury nunca tivesse engolido que o pai ajudasse Kyle financeiramente. Já era ruim ter levado aquela surra. Pior ainda era que, por isso, o
pai ficasse sabendo do comportamento desonroso do filho naquele dia, por pior que fosse.

- Quanto? Uma quantia incrível, faltou só 50 para completar mil libras.

Kyle se satisfez ao ver a expressão de Norbury quando saiu. O homem era burro, mas não tanto. Em poucos minutos, concluiria que o presente de Cottington fora tirado
da herança destinada ao filho.

O que significa que Norbury tinha indiretamente devolvido o dinheiro do leilão e que o pai tinha sabido do que acontecera.

 

Nesse dia, Henrietta parecia diferente. Roselyn se sentou na sala de visitas em Grosvenor Square e tentou identificar por quê.

Era preciso considerar o efeito do chapéu. Um gorro com carapuça de renda, o que parecia bem mais comportado e elegante do que os chapéus que ela costumava usar.
Rose notou também que os cabelos louros tinham sido arrumados de outro jeito, combinando melhor com o rosto delicado.

Mas o que tinha mudado acima de tudo era sua expressão. Naquela tarde, seu jeito aéreo fazia com que parecesse jovem, em vez de desligada. E seu rosto não estava
contorcido de forma desdenhosa. Em vez disso, surpreendentemente, parecia quase o de uma jovem.

Conversaram sobre moda, sociedade e fizeram previsões para a próxima temporada. Alexia estava com elas. Além de mais três damas, todas de boa posição social e bom
humor. Alexia tinha levado Rose em visitas àquelas damas na semana anterior, provavelmente com a permissão delas. Elas agora, por sua vez, visitavam Henrietta no
dia que Alexia tinha sugerido, de forma que Rose pudesse comparecer também.

Tudo fazia parte de uma pequena campanha da qual, maravilha das maravilhas, Henrietta aceitara participar. Se ela não estivesse fazendo sua parte tão bem, não estivesse
sendo tão simpática e solícita, Rose iria pensar que Alexia tinha achado um jeito de subornar a tia do marido.

As visitas não se demoraram muito, mas ficaram o bastante. Podia ser que jamais visitassem a própria Rose para nada, mas, quando foram embora, tinham dado mais um
largo passo no sentido de aceitá-la.

Ia ser uma caminhada em círculos. A proveniência do marido causaria desvios de rota e interdições na pista. O escândalo no qual ela se envolvera criaria outros transtornos.
Mas a campanha de Alexia parecia estar dando resultado mais rápido do que se podia esperar.

- A reunião foi boa - confidenciou Henrietta, quando as três ficaram a sós de novo. - Creio que a Sra. Vaughn logo vai convidar você, Roselyn, para ir ao teatro.
Foi o que pareceu quando comentou sobre peças preferidas e tal. Como a tia dela se casou com um importador, ela não deve fazer muitas restrições a um comerciante
e pode até receber seu marido também.

Rose mordeu a língua. Henrietta não pretendia fazer uma provocação com aquele comentário. Ao mesmo tempo, não havia por que se ofender com a verdade.

Mas ela se ofendeu. Muito mais do que esperava. Kyle aceitava as coisas do jeito que eram, mas ela se irritava cada vez mais.

Não entendia como alguém que o conhecesse, que conversasse com ele, pudesse não aceitá-lo em sua sala de visitas. O trabalho dele também não era banal, juntava finanças,
arte e investimento. Quando os irmãos dela viraram banqueiros, algumas portas se fecharam para eles, mas a maioria, não.

Claro, tudo estava ligado ao berço. À família e aos antepassados. À família que Kyle jamais renegaria. Tinha-a avisado sobre isso.

Enquanto iam para a biblioteca, Alexia explicou a nova fase de sua campanha bélica, que incluía um jantar na casa dela. Aquelas três damas seriam convidadas, além
de duas amigas delas. Ela esperava que as convidadas que tinham acabado de sair convencessem as outras a comparecer. As cinco tinham maridos tidos como dóceis. Se
alguns deles deixassem suas esposas ficarem amigas de Rose, havia mais possibilidade de outros fazerem o mesmo.

Enquanto elas discutiam estratégias, Easterbrook entrou na biblioteca. Desculpou-se pela intromissão e ficou perto das estantes, examinando as lombadas. A presença
dele chamou a atenção de Henrietta, que se rendeu à curiosidade.

- Pretende ir ao exterior, Easterbrook? Porque está olhando memórias de viagem e títulos assim.

Ele tirou um livro da prateleira e deu uma olhada no texto.

- Não vou a lugar nenhum. Estou pesquisando para minha jovem prima.

- Ah, céus, vai mandar Caroline fazer uma viagem pelo continente? Eu desejei tanto isso... Ela precisa ir a Paris, claro, e...

- Não, não é uma viagem pelo continente - resmungou ele. - Busco informação sobre lugares bem específicos, para onde as jovens vão às vezes, mas parece que nenhum
desses autores tem nada de especial sobre eles.

Henrietta franziu o cenho.

- Que tipo de lugar?

Ele colocou o livro na prateleira e tirou outro.

- Conventos.

- Conventos!

Rose achou que Henrietta ia precisar de sais. Alexia a acalmou e se dirigiu ao marquês.

- Tenho certeza de que está brincando. Por favor, diga à sua tia que está querendo irritá-la de novo.

- Gostaria de estar. Na verdade, gostaria que Hayden assumisse seu papel de responsável por isso, em vez de me deixar mexendo em assuntos que não entendo e não me
interessam.

- Viram? Ele ainda não a perdoou por aquele flerte com Suttonly no verão passado - disse Henrietta, alto. - Ela obedeceu a sua ordem, Easterbrook. Há semanas que
não pronuncia o nome dele.

- Henrietta, o verão passado já foi bastante ruim, mas lastimo dizer que estou às voltas com mais um daqueles desastres causados pelas jovens. Prever um duelo por
ano já bastava, obrigado. Mas ter de me preparar para dois é uma provação para a minha paciência.

Ele franziu o cenho para os livros e tirou mais um da estante.

- Vou me livrar logo desse dever maçante. Vou duelar com o sujeito, deixá-lo bem ferido, mandar Caroline para um convento e ficar sossegado por alguns anos, pelo
menos.

Henrietta chorou. Easterbrook continuou a mexer calmamente nos livros. Alexia tentou ser diplomática.

- Sua tia e eu não sabemos de nenhum admirador de Caroline no momento. Acho que está enganado.

Ele fechou o livro com força.

- Não se trata exatamente de um admirador. Trata-se de um sedutor. Não estou enganado, Alexia. Lastimo dizer que estou convencido de que Caroline já perdeu sua virtude.

Isso causou um susto. Henrietta se espantou tanto que ficou ofegante e boquiaberta. Depois chorou copiosamente.

- E quem é esse homem? - exigiu saber Alexia.

- Aquele químico francês. Amigo de Bradwell.

Henrietta parou de chorar. Arregalou os olhos. Olhou de esguelha para ver a que distância dela estava o marquês.

- Garanto que está enganado - disse Alexia.

- Vi-o esta manhã mesmo. Ao nascer do dia, eu estava olhando o jardim pela janela e o vi. Saindo desta casa.

Ele deu uma olhada preocupada para a tia.

- Agora tenho de ser babá também, tia Henrietta? Até eu me impressiono por se descuidar tanto dela. Eu, que não dou a menor importância a essas coisas.

Henrietta ficou imóvel. Easterbrook estava atrás dela, então não viu o que Rose e Alexia viram. O rosto da jovem senhora ficava cada vez mais vermelho.

Rose olhou para Alexia exatamente quando Alexia se voltava para ela. As duas encararam Henrietta.

- Easterbrook, continuo achando que está enganado - insistiu Alexia. - Se foi ao nascer do dia, não era possível ver direito o que era, ou quem. Talvez um dos jardineiros
estivesse andando por ali.

- Não, Alexia. Era ele.

O marquês desistiu de olhar os livros.

- Infelizmente, esses livros não trazem indicação de conventos. Vou pedir ao advogado que faça umas pesquisas discretas. Um convento na França, por exemplo, para
tia Henrietta poder visitá-la uma vez por ano.

Quando Easterbrook seguiu em direção à porta, Alexia se pôs no caminho dele.

- Mesmo se estiver certo e fosse ele no jardim, isso não prova que esteve na casa. Nem que procurou Caroline. Afinal, podia estar atrás de uma das criadas.

Ele a olhou com carinho, como sempre.

- Vi-o flertando com ela no casamento da sua prima. Fui descuidado em não avisar, mas Henrietta estava com eles e concluí...

Todos congelaram enquanto a cena pairava no ar. Rose quase conseguiu ouvir o marquês recapitulando, pensando, rejeitando... reconsiderando.

Easterbrook virou e olhou para a tia. Moveu a cabeça, observando-a. Ela estremeceu enquanto ele examinava o chapéu novo, o penteado diferente e o viço recém-adquirido.

- Alexia, seu valoroso bom senso me poupa de cumprir obrigações desagradáveis. Eu talvez tenha sido um pouco precipitado ao pensar o pior de Caroline. Talvez não
fosse monsieur Lacroix que estivesse no jardim.

Pediu licença. Da porta, antes de sair, ele voltou a falar.

- Contudo, caso tenha sido... Henrietta, por favor, fale com as criadas. Se uma delas está recebendo um homem, espero que os dois se divirtam. Mas é melhor que ele
saia quando ainda estiver escuro, de forma que não haja mais nenhum mal-entendido.

 

Rose atravessou a porta que ligava seu quarto de vestir aos aposentos de Kyle. Ele não iria procurá-la nessa noite. Suas regras haviam chegado. Encontrar uma maneira
delicada de dizer isso a ele exigira muita habilidade sua. Ele parecera achar graça das sutilezas que a esposa usara, mas a havia compreendido.

Ela ouviu a voz de Jordan e o som do marido despindo-se. Depois, ficou tudo em silêncio. Abriu a porta. Os quartos de vestir não eram opulentos e espaçosos: o quarto
dele ficava a poucos passos. A lamparina ainda não tinha se apagado e ela percebeu as silhuetas do toucador, as escovas e o espelho dele.

Prosseguiu, deu uma olhada. As cortinas do dossel não tinham sido fechadas. Ele estava deitado, com o camisolão aberto mostrando o peito forte.

Ficou olhando. Não o via despido desde a noite de núpcias. Ela sempre apagava as velas e lamparinas, mesmo quando o procurava em Oxfordshire. A escuridão fazia a
cama misteriosa e sobrenatural e evitava um grande embaraço. Tornava mais fácil que ela se entregasse.

Ele estava com a cabeça apoiada nos braços dobrados. Parecia compenetrado, como se tivesse percebido algo no teto que exigisse sua atenção. Mas estava tão imóvel
que talvez nem estivesse acordado.

- Kyle, está dormindo? - sussurrou ela.

Ele se sentou na cama. Olhou para a esposa e observou sua camisola e o penhoar, que não eram nem novos nem tão bonitos.

- Acordei você? - insistiu ela.

- Não. Estava pensando em alguns problemas que tive hoje.

- Sobre terras, associações de mineiros e coisas assim?

- É.

Ela entrou no quarto cautelosamente.

- Alexia combinou de algumas damas me visitarem. Bom, não a mim, mas a Henrietta. Porém elas sabiam que eu estaria junto e foram mesmo assim.

- Venha aqui me contar isso.

Ela subiu na cama e contou sua pequena vitória.

Ele pareceu muito interessado.

- Lady Alexia age rápido.

- Ela ainda acredita que Irene tem chance de ser apresentada nessa temporada, acho.

Irene não tinha saído da casa de Alexia. Todos achavam que sua única esperança era que a prima a apresentasse à sociedade.

- Quando ela der esse jantar, você deve usar um vestido novo - disse ele. - Vou mandá-la para lá tão bem-vestida que será a mulher mais elegante da mesa.

- Talvez você me acompanhe, em vez de apenas me mandar ao jantar.

- Pouco provável. Lady Alexia é esperta demais para lutar em duas frentes ao mesmo tempo.

- Então não sei se vou querer ir.

A expressão no rosto dele mudou um pouco, o suficiente para ficar indecifrável.

- Quer saber de uma fofoca? - perguntou ela. - É sobre alguém que você conhece.

- Todo mundo quer saber de uma fofoca, principalmente sobre alguém que se conhece.

- É fofoca das boas. Tudo indica que seu amigo, o Sr. Lacroix, está tendo um caso com... Henrietta!

- Quais são as provas?

- Ninguém menos que Easterbrook o viu saindo da casa. Você acredita?

- Que indiscrição de Jean Pierre. Devo avisá-lo?

- Desde que não seduza Caroline, acho que Easterbrook não se importa se ele ficar com todas as mulheres da casa. Quanto a Henrietta, o marquês pareceu encantado
e feliz por poder cutucá-la sobre isso nos próximos anos.

Eles riram. Foi bem agradável ficar ali de noite, conversando sobre fatos do cotidiano. Mas quando terminou a história, Rose sentiu que o marido estava se distraindo
outra vez. Os olhos dele ficaram insondáveis como quando ela havia chegado ao quarto.

- Bom, boa noite - disse ela, saindo da cama.

Ele pegou sua mão.

- Fique.

Talvez as palavras brandas que ela usara tivessem sido vagas demais.

- Eu... quero dizer, hoje eu... estou naquela semana em que...

- Fique, mesmo assim.

Rose sentiu algo diferente no coração quando, sem jeito, entrou embaixo dos lençóis. Kyle apagou a lamparina e a escuridão envolveu a casta intimidade dos dois.
Ele a abraçou.

Ela não dormiu logo. Ficou preocupada com a novidade daquele tipo diferente de afeto.

- Preciso ir ao norte outra vez - disse ele, e sua voz não a assustou, tão calma veio na noite. - Daqui a duas semanas, talvez. Não vou ficar mais de uma semana.

- Posso ir junto? Você disse que iríamos na primavera, mas, se vai agora, eu também gostaria de ir.

- A viagem vai ser no frio. E você tem aquele jantar.

- Alexia pode marcá-lo de acordo com a viagem. E não tenho medo de um pouco de frio.

Duas semanas antes, ela jamais pediria para ir. Mesmo alguns dias antes, ela poderia ter apenas deixado a informação passar. Mas agora queria muito ver como fora
a vida dele. O abraço nessa noite a emocionou, mas também deixou bem claro que, mesmo com tanto prazer, havia um vazio naquele casamento que ela não conseguia explicar.

Não sabia se um dia esse vazio seria preenchido. Talvez Kyle fosse sempre um pouco estranho. Talvez ele preferisse assim. Ela não tinha ao menos certeza se gostaria
do que seria preenchido, se isso ocorresse. Só sabia que o vazio parecia grande nesta noite, talvez porque uma nova emoção o destacasse. Sua alma quase doía por
desejar algo tão fora de alcance.

- Veremos - disse ele. - Amanhã vou para Kent e passarei uns dias lá. Você não pode ir, já que iniciarei algumas obras e só haverá operários, muita lama de inverno
e eu...

Algumas obras. Em Kent. Devia ter sido o trabalho que fora tratar com Norbury no dia do leilão.

Súbito, entendeu por que Kyle estava tão pensativo na hora em que ela entrou no quarto. Devia ter encontrado Norbury. Talvez naquele mesmo dia.

Ele jamais a deixaria saber se Norbury os insultara. Jamais contaria se pensava naquele caso. Mas Rose tinha certeza que sim. Talvez até naquele instante, enquanto
os pensamentos vagavam pela noite.

Ela podia saber mais sobre ele e começar a preencher aquele vazio. Eles podiam ter muitas noites como essa, em que conversavam como amigos e não como amantes.

Entretanto, não importava o que acontecesse, não importava quanto tempo ficassem casados, Norbury seria uma sombra entre eles, afetando tudo, mesmo as coisas boas,
ainda que nenhum dos dois jamais pronunciasse o nome dele.

Esse pensamento quase estragou aquela noite agradável. Norbury tinha entrado na cabeça dela. E quase dava para ouvi-lo falando na de Kyle. Sua influência malévola
ficou tão opressora que ela pensou em sair da cama.

Kyle virou de lado, dormindo. O braço ficou casualmente sobre ela. A mão estava sobre o seio, num gesto ao mesmo tempo confortador e possessivo. Ficou assim a noite
toda, impedindo-a de escapar.

 

CAPÍTULO 12

Kyle estava em Kent fazia dois dias quando Roselyn recebeu a carta. Tinha sido reenviada de Watlington. Reconheceu a letra na hora: Timothy tinha escrito outra vez,
embora a carta estivesse assinada como Sr. Goddard.

Dessa vez, não escrevera de Dijon, mas de uma cidade italiana chamada Prato.

 


Finalmente atravessei os Alpes. Estou morando aqui por ser menos dispendioso do que Florença. E também por haver menos possibilidade de eu ser reconhecido. A viagem
foi exaustiva e o clima, horrível. Tive medo de morrer. Passei mal quase todo o tempo. Agora vivo entre estranhos cuja língua ignoro e sofro de uma tristeza grande
demais para aguentar.

Pretendo ficar aqui até que venha ao meu encontro. Por favor, escreva logo, dizendo que vem. Só verei o sol na minha janela quando você chegar. Conte-me seus planos,
de forma que eu tenha algo por que esperar.

Rose, meu bolso se ressentiu da longa estada em Dijon e dos honorários dos médicos, que não serviram para nada, mas foram caros. Quero que venda a casa e o terreno
em Oxfordshire e traga o dinheiro. Esta carta a autoriza a fazer isso em meu nome. Leve-a a Yardley, nosso velho advogado. Ele reconhecerá minha letra e lhe dirá
o que fazer. Eu o autorizo a ser meu procurador na venda caso, por ser mulher, você não seja aceita. Se houver mais exigências, escreva-me imediatamente, de maneira
que possamos efetuar a venda o mais rápido possível.

Sei que ainda faltam meses, mas conto os dias na esperança de que ainda seja minha adorável irmã de sempre, um coração bondoso que me deu força por quase a vida
inteira. Prometo que tudo vai melhorar quando estivermos juntos outra vez.


Timothy

Ele ainda parecia perdido e só. A menção a uma doença não ajudava a melhorar as coisas. Rose não sabia se deveria torcer para que ele estivesse se referindo a passar
mal por excesso de bebida, já que esse era o grande fraco do irmão, ou por outro motivo.

E agora ela não podia ir encontrá-lo, por mais doente que ficasse. Ele jamais saberia que, por um curto espaço de tempo, quando passara algumas horas de grande felicidade
deitada numa colina, ela cogitara fazer isso.

Ela também não podia negar a verdade por trás da escolha que fizera. Ao aceitar o pedido de Kyle, deixara de lado as necessidades do irmão para tentar salvaguardar
a própria vida e a de Irene na Inglaterra - o que talvez se tornasse uma necessidade desesperada. Se não agora, um dia.

Ele afirmara estar ficando sem dinheiro. Isso despertara um pouco de raiva em Rose. Ela havia sobrevivido com quase nada esses meses todos. Ele deveria ser mais
controlado, em vez de gastar todo o dinheiro que roubara.

Deu um suspiro, tão fundo que o corpo todo estremeceu. Timothy estava sendo apenas Timothy. Sem a influência dela, continuaria sendo a pior versão de si mesmo. Ela
não podia salvá-lo. Não agora, depois de Kyle ter dito tão claramente que ela jamais iria ao encontro do irmão. Mas não podia abandoná-lo, como Kyle esperava.

Chamou a criada e trocou o vestido matinal por um conjunto para usar em carruagem. Tinha de encontrar Alexia na modista e encomendar alguns trajes novos. Mas antes
iria ao centro financeiro da cidade. Precisava saber se ainda podia ajudar o irmão.

 

Kyle observou o engenheiro perfurar a terra dura para conferir novamente o terreno antes de iniciar as fundações.

A uns 200 metros, outro homem marcava as árvores que seriam derrubadas e as que seriam poupadas quando a nova estrada fosse construída. Kyle imaginou a casa que
dali a pouco se ergueria ao lado daquele matagal.

Se tudo saísse conforme planejado, dentro de dois anos haveria famílias morando naqueles campos e carruagens passando por novas estradas. A propriedade de Cottington
seria valorizada e seus parceiros veriam os lucros.

Incluindo ele. Kyle ainda estava andando na corda bamba. Era bom e experiente em se equilibrar. Não chegava a perder o sono por causa dos riscos. Mas, como qualquer
homem, ele preferia ter os pés firmes no lado com dinheiro daquela corda.

O operário que marcava as árvores o chamou e fez um gesto apontando para o sul. Kyle olhou para a estrada naquela direção. Atrás da carroça que trazia as ferramentas
a serem usadas nesse dia, vinha uma carruagem.

Ele reconheceu o veículo. Foi até a estrada e chegou ao mesmo tempo que Norbury saltava.

- Espero que não tenha vindo da cidade só para ver o andamento da obra - disse Kyle. - Ainda não há muito o que conferir.

Sob a aba do chapéu de copa alta, Norbury olhou a elevação de terra.

- Estou oferecendo uma recepção na minha mansão. Resolvi vir aqui antes que os hóspedes chegassem.

Norbury olhou atentamente para Kyle, querendo avaliar sua reação. Kyle o deixou olhar à vontade. Não precisava que Norbury o lembrasse da última festa que tinha
dado. A imagem da humilhação de Rose vinha sempre à cabeça, sem que ninguém precisasse ajudar.


E ela chegou trazendo fúria e uma urgência de espancar o visconde. Kyle tinha controlado essa vontade na última vez em que se encontraram. Agora ela voltava e o
deixava tenso.

- Espero que essa festa seja mais discreta do que a última. Se espalharem o boato de que fazem orgias aqui perto, essas casas jamais serão compradas.

- Aposto que serão compradas mais rápido.

Norbury fez um gesto para que Kyle o acompanhasse.

- Vim falar de assuntos de interesse mútuo, além dessas casas. Recebi um recado de Kirtonlow Hall. Meu pai sofreu uma leve apoplexia. O médico disse que ele não
vai durar muito.

- Ele é mais forte do que a maioria. Pode durar mais do que os médicos imaginam.

Mais do que você espera. O filho era tão diferente do pai que nunca houvera muito afeto entre eles. De diversas maneiras, o conde deixara claro a seu herdeiro quanto
ele o decepcionava.

Não era apenas a capacidade intelectual de Cottington que não passara despercebida a Norbury. Algo fundamental faltava no filho, além de inteligência. Ele parecia
não ter a empatia natural que um ser humano sente pelos demais. Ou ter uma empatia deformada. Norbury não seguia os princípios morais que costumam guiar as pessoas
em assuntos grandiosos ou corriqueiros.

- Podemos desejar que ele viva para sempre, mas ninguém consegue - falou Norbury com uma sobriedade dramática. - Quanto ao outro assunto que eu queria tratar com
você, os vivos podem influenciar. Andei pensando no seu casamento.

Kyle apertou o passo, fazendo com que o outro o seguisse na estrada. Olhou para trás, para saber a distância que estavam dos operários. Será que veriam ou ouviriam
se ele quebrasse o queixo de Norbury com um soco?

- Pode parar de olhar para mim como um boxeador se preparando para uma luta - disse Norbury. - Sua decisão de se casar com uma mulher dessas é loucura. Estou mais
interessado no irmão dela e em como esse casamento muda nossos planos em relação a ele. Depois de me recuperar do choque de você se juntar a ela para sempre, vi
uma luz na escuridão.

- A única luz que existe é a da minha felicidade na escolha da minha esposa. Timothy Longworth foi embora. Nem ela nem eu temos ligações com ele.

- Ele não escreve para ela? É bem provável que sim.

- Não tem por quê.

- É irmã dele. Você precisa ver as cartas que ela recebe, assinada com o nome verdadeiro ou de Goddard. Veja qualquer carta enviada do continente, principalmente
da Itália.

- Não.

- Vai economizar muito tempo. Se ele escrever para ela, teremos...

- Não. Estou fora disso. Não quero participar e não vou ajudá-lo.

Um aperto no braço. Era a ordem de parar. Kyle olhou para Norbury, cujo rosto tinha perdido qualquer traço de gentileza.

- Céus, com que rapidez o cavaleiro puro foi seduzido e maculado. Esqueceu rápido seus lindos ideais sobre justiça, Kyle.

- Não vou espionar minha esposa.

- Não espione. Faça com que ela lhe conte.

- Ela não vai nos dar de bandeja a cabeça do irmão na nossa forca. Nem eu vou pedir.

- Porcaria nenhuma! Não há desonra nisso. Maldição, assim você vai até protegê-la.

A explosão de Norbury despertara seu pensamento. Seus olhos ficaram dissimulados.

- Na verdade, se não fizer isso, vai colocá-la em risco - concluiu.

Norbury podia ter um raciocínio lento, mas funcionava quando necessário. Kyle viu novas ideias surgindo, transformando seu rosto numa máscara de presunção.

- Ela decerto foi cúmplice desde o começo - disse Norbury.

- Claro que não.

- Maldição, eu devia ter percebido antes. Isso explica o reembolso feito por Rothwell. Não estava poupando um homem que já tinha escapado de nós, mas a cúmplice
que ficara para trás. Ela pode até estar com quase todo o dinheiro aqui, na Inglaterra. Aquela humildade era um disfarce para afastar suspeitas. Maldição, Longworth
nem era tão inteligente. Deve ter sido tudo ideia dela...

- Está falando bobagem.

- Até mesmo o que teve comigo. Pensei que eu a tivesse seduzido, mas vai ver ela quisesse ficar perto de mim para saber se as vítimas estavam prestes a descobri-la.
Seria irônico, não? Se ela estivesse o tempo todo...

- Continue insinuando isso e mato você.

- Está tão encantado pela beleza dela que é capaz de arriscar tudo? Duvido. Daqui a alguns meses não estará mais tão embevecido com seu grande prêmio. E verá o que
há por baixo da bela aparência. O irmão é ladrão e ela mesma mostrou ter caráter fraco e imoral.

Kyle agarrou Norbury pelo colarinho. Puxou-o e o levantou do chão.

- Eu avisei.

Norbury arregalou os olhos e inclinou a cabeça para trás.

- Ouse dar um soco e eu não vou me conter. Acho que um juiz gostaria de ouvir a questão e refletiria bastante antes de achar que estou errado. Meu ponto de vista
pode dar um bom processo. Com um pouco de esforço, talvez até se encontrem algumas provas.

A ameaça era óbvia. Justiça corrupta ainda era pior do que falta de justiça e um lorde tinha muitas formas de conseguir a primeira.

Kyle mal conteve a própria fúria. Soltou o colarinho de Norbury, que se ajeitou, alisando a roupa e ajustando a gravata. Endireitou-se e olhou com o deleite de um
homem que, de súbito, se descobria com um ás na mão.

- Descubra onde está o bastardo, Kyle - ordenou Norbury, já andando em direção à carruagem. - Com toda a honra que você acha que tem, não vai lhe fazer falta sacrificar
um pouco dela.

 

Assim que Kyle voltou de Kent, Rose percebeu que ele tinha encontrado Norbury novamente. Ele carregava uma nuvem pesada para dentro de casa. Sua expressão estava
diferente, mais dura que de hábito.

Naquela noite, quando se sentou para jantar, tratou-a como sempre. Até a ouviu pacientemente contar como foram os dias em que estiveram longe um do outro. Mas a
presença de Norbury na cabeça de Kyle era tão evidente que o outro bem podia estar à mesa com eles.

Quando o criado foi dispensado, ela se preparou. Era melhor desanuviar o ambiente e saber o que o estava preocupando. Isso não queria dizer que ela ficasse feliz
com uma possível discussão.

- Rose, quando ficou em Oxfordshire, recebeu alguma carta de seu irmão? Refiro-me a alguma além daquela da primeira vez em que fui visitá-la.

Ela não esperava essa pergunta, ou assunto. Não fosse pela intensidade com que o marido fizera a pergunta, ela podia ter contado tudo. Mas se conteve, tentando imaginar
por que ele perguntava e se a resposta tinha importância.

- Creio que ele escreveu pelo menos mais uma vez - acrescentou Kyle.

- Sim. Uma.

Era verdade, mas não toda ela. Rose havia recebido só mais uma carta quando estava em Oxfordshire.

- Então eu tinha razão: quando você falou em ir embora para sempre, era com ele.

Ela assentiu.

O fato de ter razão não alterou o humor dele.

- Não quero que tenha mais qualquer contato com ele, Rose. Se ele escrever de novo, queime as cartas sem ler. Não as guarde. Nem sequer veja de que cidade ele escreveu.

Ela ficou um bom tempo em estado de choque, sem conseguir pensar. Então o choque foi substituído pela raiva.

- Antes de nos casarmos, você disse que eu jamais poderia encontrá-lo, nem para visitas. Não disse que não podia escrever ou receber cartas dele.

- Eu disse. Mas, caso tenha entendido mal, estou repetindo agora.

- Eu disse que não o consideraria morto, mas agora você exige que eu aja como se estivesse.

- É.

O olhar dele era de ordem, mais do que a voz.

Ela se levantou e saiu da sala de jantar. Buscou um pouco de privacidade na biblioteca. Para sua surpresa, ele foi atrás.

- É melhor me deixar sozinha para aceitar o que você exige em relação a meu irmão - avisou.

- Preciso saber se aceita mesmo. Quero a sua palavra de honra.

- Minha palavra de honra? E o que me diz da sua? Se a minha puder mudar com a mesma rapidez, eu a dou com prazer. Naquele dia, você me convenceu de que tinha retirado
essa exigência.

Ela pensou que a culpa poderia amaciá-lo. Só que aumentou a raiva.

- Tenho um motivo para exigir isso. Gostaria que você acreditasse em mim, mas, se não acreditar, isso não muda nada. Você sabe como é o seu irmão. Você mesma disse
que ele é um perigo para você. Não pode ter contato com ele.

- Ele é meu irmão.

- Ele é um ladrão covarde. Um criminoso.

A firmeza de Kyle a surpreendeu. Ela o olhou atônita, surpreendida pela força que emanava dele, vendo-a e a sentindo sem controle.

Ele se acalmou, mas a tensão ficou no ar.

- Rose, você entende o que ele fez? Quantas pessoas ele roubou?

- Lorde Hayden...

- Lorde Hayden impediu que as vítimas ficassem na miséria total. Quanto você acha que ele pagou?

Ela se sentiu como uma criança na escola tentando adivinhar a resposta de uma conta.

- Muito dinheiro. No mínimo 20 mil.

A raiva chegou a dar expressão à risada curta e baixa que ele soltou.

- Essa quantia não faria a menor diferença para Rothwell. Pense na casa onde sua prima ainda mora. Ela lhe mostrou alguma joia nova? Ou trajes novos? Pense neles
e nos tecidos e enfeites que ela usa.

Rose sentiu o estômago embrulhar. Nunca tinha calculado a quantia, em parte porque sabia o suficiente para desconfiar que não gostaria da soma total.

- Quanto? - perguntou ela, num sussurro.

- Ao fim e ao cabo, no mínimo 100 mil libras. Talvez muito mais.

Ela arquejou. Quanto dinheiro!

Kyle se aproximou. Os olhos dele tinham um pequeno brilho solidário em meio a todos os de raiva.

- Seu irmão não sabia que Rothwell iria reembolsar nem uma libra. Presumiu que cada vítima simplesmente amargaria o próprio prejuízo. Assim como os clientes, quando
o banco faliu. Ele não roubou só dos ricos, mas de velhinhas, órfãos indefesos e pessoas que dependiam dessas reservas para viver.

- Tenho certeza de que ele não entendeu bem... Ele não podia... de propósito...

- Claro que ele entendeu. Tudo. Com toda a certeza, fez de propósito.

De novo, Kyle controlou a raiva. Foi visível seu esforço de se recompor.

- É tão estranho assim que eu queira que corte relações com um homem tão canalha?

Ela já não conseguia enxergar Kyle direito. Virou-se e tentou conter os soluços. Meu Deus, 100 mil libras! E Alexia e Hayden...

Enxugou os olhos e tomou fôlego.

- Você disse que conhece pessoas que perderam dinheiro. Quem são elas?

Por um instante, Rose pensou que ele não fosse responder.

- Meus tios.

Ela teve outro choque. Não eram amigos, mas pessoas da família.

- Porém foram ressarcidos, não?

- Sim, foram. É assim que você justifica, quando pensa no seu irmão? Pelo menos as vítimas foram ressarcidas. Pelo menos apenas uma vítima pagou caro em vez de dúzias
perderem tudo? É assim que você o desculpa?

- Eu não o desculpo.

- Acho que desculpa. Ele é seu irmão e você busca motivos para diminuir a culpa dele. Mas ele não é meu irmão, Rose.

Não, e Kyle não desculparia nada. Não se sentia nem um pouco solidário, nem tinha intenção de salvá-lo. Se Tim fosse preso, Kyle acharia justo que fosse para a forca.

Ela não tinha palavras para argumentar. Não tinha nada para contrapor, a não ser o amor por um irmão que tinha sido uma pessoa bem melhor quando criança do que adulto.

Ela pensava que Kyle fosse ao menos entender, se não aprovasse. Mas ele estava implacável, irredutível e disposto a fazer com que ela condenasse Tim como todo mundo.

- Você vai cortar qualquer contato com ele - repetiu. - Se tem cartas, queime-as. Se receber mais uma, destrua-a imediatamente.

Ele saiu da biblioteca. Não tinha pedido que ela prometesse, tinha ordenado. E ela deveria obedecer.

 

Naquela noite, Rose pensou em trancar a porta de seu quarto de vestir.

Nunca tinha feito isso. Não se importava que ele a procurasse todas as noites. Era a esposa, ele tinha esse direito e nunca saíra do quarto sem que ela tivesse alcançado
toda a liberdade que o prazer podia proporcionar.

Essa noite era diferente. Não tinha certeza se reagiria ao toque dele. Após a discussão, um silêncio duro como pedra caíra sobre a casa. E ainda afetava o ambiente
e ela.

Nessa noite, uma pequena parte de Kyle que ela ainda desconhecia se revelara. Ficara espantada com a força de vontade dele. Já a havia percebido antes, mas vê-la
dirigida a ela a assustara um pouco.

Devia ter suposto quanto ele era seguro. Em relação a si mesmo e às decisões que tomava. Sem isso, ele não teria sobrevivido no caminho que percorrera. Poucos homens
saíam de um vilarejo de mineiros de carvão para as salas de visitas de Londres em pouco mais de dez anos.

Poucos homens nascidos num vilarejo assim pediriam Roselyn Longworth em casamento, independentemente das condições em que estivessem suas finanças, sua reputação
ou o status de sua família.

Ela ficou na frente da porta, olhando a tranca. Não era a primeira vez que achava que, com esse homem, não devia agir guiando-se pelo capricho. Não que ele fosse
derrubar a porta se ela a trancasse. Acreditava que ele nem sequer se irritaria.

Em vez disso, imaginava que duas coisas poderiam ocorrer. Ou os dois teriam uma conversa igual à anterior, em que ele diria o que aceitava ou não que ela fizesse
ou haveria frieza e formalidade na cama na próxima vez que ele a procurasse, podendo se estender para as seguintes por bastante tempo. Talvez até para sempre.

Ela se afastou da porta e voltou para a cama. Apagou as lamparinas como fazia todas as noites e foi envolvida pela escuridão.

Talvez ele não viesse, embora já fizesse alguns dias que não se encontravam, por causa das regras dela e do tempo que ele passara em Kent. Sem dúvida, ele sentia
que a discussão ainda ecoava na casa. Tinha se retirado para o escritório e o trabalho, mas talvez as palavras ressoassem na cabeça dele como faziam na dela.

O coração dela ainda batia pesado ao lembrar como ele via a culpa de Tim. Cem mil libras. Ela às vezes pensava em reembolsar Alexia e Hayden, mas jamais poderia
ressarcir uma quantia dessas. Jamais. Por isso Alexia fora tão enfática ao desencorajá-la de encontrar Tim na Itália.

Só que agora ela estava casada com um homem que teria prazer em enforcar Tim com as próprias mãos. Não podia defender o irmão. Não podia dizer que Kyle estava errado.
Mas uma irmã não julga com base no certo e no errado, na justiça.

Cem mil libras. Como uma quantia dessas podia estar chegando ao fim? Tim dizia que precisava de mais dinheiro, e ela acreditava nele.

Um movimento sutil no quarto a tirou de seus pensamentos. Abriu os olhos na escuridão. Kyle estava ao lado da cama, não passava de uma silhueta negra no quarto sem
luz.

Tinha vindo, afinal. Isso a surpreendeu. E também a reação que teve: o coração bateu de alívio antes que ela conseguisse se controlar.

Kyle parecia estar à espera de algo ou decidindo alguma coisa. Ela não sabia o quê. Mexeu-se na cama e isso fez as cordas que sustentavam o colchão reclamarem.

Kyle também fez sons e movimentos quase imperceptíveis. Roupão caindo. Calor se aproximando. Braços se esticando e peles se tocando. Ela respirou e o sentiu inteiro
na cama, aquela presença total que transformava a noite.

Ele soltou o laço da camisola, fazendo-a escorregar pelos ombros e o corpo de Rose.

- Obrigado por não trancar a porta.

Será que ele a ouvira discutindo consigo mesma? Como era típico dele tocar no assunto, em vez de deixar que fosse uma escolha silenciosa. Rose esperava que não comentassem
também o motivo para ela pensar em trancar.

As carícias e o beijo mostraram que não comentaria.

- E se eu tivesse trancado?

Ela já nem estava muito interessada na resposta. As deliciosas palpitações da excitação a distraíam.

- Não sei. Ainda não havia decidido o que faria quando tentei abrir a porta.

Ela não pensou na resposta, apenas percebeu o perigo daquela incerteza. Mas o prazer já desviava sua atenção. Seduzia-a. Isso também era perigoso. O prazer embotava
os pensamentos e colocava tudo sob a melhor perspectiva.

Kyle se assegurava de que ela gostasse. Com suas carícias e beijos hábeis e firmes, levava-a à entrega que tinha se tornado tão habitual, tão atraente. O prazer
obrigava a uma espécie de abandono, concluiu ela. Abrir mão de ser racional e de si mesmo. Nunca chegara a compreender isso antes.

Dali a pouco, ela não entendia mais nada, nem mesmo a discussão. A névoa de sensações obscurecia tudo, menos o desejo de que ele lambesse seus seios e beijasse sua
barriga e tocasse a carne que ansiava por ser penetrada.

Kyle a tirou do colchão e a sentou em seu colo com as pernas afastadas. Puxou-a pelo quadril e a penetrou tão fundo que ela gemeu com a deliciosa sensação de completude.

Ele roçava os mamilos dela com as mãos e ela ganhava vida onde seus corpos se uniam. Diretamente. Maravilhosamente. A excitação desceu direto por seu corpo e se
instalou ao redor da completude que ele proporcionava.

- Venha aqui.

No escuro, Kyle a puxou para a frente até deixá-la apoiada sobre os braços. Seus seios pairavam acima dele. Ele então substituiu as mãos pela boca. O prazer aumentou
tanto que ela arfou. O jeito como a excitava era bom demais, urgente demais, irresistível demais para que ela conseguisse se controlar minimamente que fosse.

Ela se entregou à loucura, gritando e gemendo e se mexendo para senti-lo mais, melhor, mais firme. Ele a segurou pelas coxas e a penetrou com força para atingir
o ápice. Ela ficou completamente dominada.

Quando ele terminou, ela continuava excitada. Apesar das muitas ondas de prazer e entrega, o corpo dela ainda tinha fome. Ele percebeu. Colocou-a de costas e a acariciou
de novo, desta vez nas dobras da carne sensível e pulsante.

Ela quase desfaleceu. Agarrou-o com as unhas para fugir do prazer quase doloroso. Ouviu-o como naquela primeira noite, dizendo-lhe que se entregasse.

Dessa vez, foi o mais doce dos gozos. Primeiro a atingiu com força, depois se espalhou em turbilhões que deixaram seu corpo atônito. Ela se maravilhou nessa sensação
e prendeu o fôlego para que durasse para sempre.

Não durou, claro, ainda que seu corpo tenha demorado a entender isso.

Os acontecimentos anteriores da noite voltaram junto com a noção de espaço e tempo. Talvez tivessem saído dos pensamentos de Kyle também, banidos pelo delírio.

Ele não ficou por muito tempo depois que ela recobrou os sentidos. Naquele breve período tão saturado de paz, ela sentiu a sombra nele.

Desconfiou de que ele não esquecera aquela discussão, nem mesmo no momento do orgasmo. Tinha-a procurado nessa noite em parte por causa da briga. Havia deixado claro
que tais coisas jamais ficariam entre eles naquela que era a parte mais fundamental do casamento. Ele também se assegurara de que ela não se incomodaria com isso.

Esse frio cálculo não mudou a verdade de como ele a tratava. Se Kyle trouxera alguma raiva para aquela cama, não demonstrara. Como sempre, ele tivera consideração
e pedira pouco dela, além de que tivesse prazer.

Rose pensou uma coisa. Uma coisa incrível. Quem era ele e quem era ela, a forma como se encontraram, o escândalo e a redenção influenciavam tudo. Principalmente
o que acontecia naquela cama na melhor e na pior das noites.

 

CAPÍTULO 13

Kyle não havia mentido. No final de janeiro, a estrada para o norte era fria. Quando entraram no condado de Durham, o céu estava baixo, com nuvens de chuva.

Mais para o norte, a paisagem ficava montanhosa e cada vez mais deserta. Passaram por vilarejos pequenos e grandes. Rose identificou aqueles onde os mineiros viviam.
Os resíduos da mina, que os trabalhadores carregavam em seus corpos e roupas, deixavam marcas pelo caminho.

Quando se aproximaram de Teeslow, ela ficou nervosa. Kyle não tinha estimulado que ela fosse, mas concordara por insistência dela. Rose queria conhecer sua casa
e os tios, mas talvez não fosse bem-vinda.

- Você tem outros parentes além deles? - perguntou ela.

- Morreram. Meus tios tinham duas filhas mais jovens que eu. Morreram de cólera quando eu estava em Paris.

- Você sempre morou com eles?

A conversa parecia não incomodá-lo, mas tampouco lhe agradava.

- Meu pai morreu num acidente na mina, quando eu tinha 9 anos. Minha mãe tinha morrido alguns anos antes. O irmão dela ficou comigo.

Dali a pouco, a carruagem deles entrou no vilarejo. Rose olhou as poucas ruas e lojas, os amontoados de casas. Pó de carvão cobria as soleiras e batentes de algumas
casas, além do rosto e das roupas de algumas pessoas.

Kyle e Rose não pararam no vilarejo, continuaram em outra estrada que ia para o norte. No final dela, havia uma linda casa de pedra. Com dois andares, era parecida
com as casas menores encontradas no sul do país, geralmente destinadas a um administrador ou caseiro.

- Não esperava que fosse assim - disse ela.

- Pensou que seria uma casinha de cinco cômodos, no máximo? Eles moraram anos numa assim, lá no vilarejo. Há cinco anos, construí essa casa para eles.

Ele saltou da carruagem.

- Vou entrar, espere aqui. Eles não sabiam que eu vinha, e você vai ser uma surpresa total.

Foi até a porta, abriu-a e sumiu. Rose observou a casa. Viu o rosto de uma mulher, de relance, numa janela. Certamente, a tia olhava a surpresa total.

Ele estava sendo cuidadoso. Quando ela conhecesse seus parentes, os rostos disfarçariam o que pensavam, como ele também costumava fazer. Se não gostassem dela ou
achassem que não era uma boa esposa para o sobrinho, não demonstrariam isso num momento de surpresa.

Kyle voltou e estendeu a mão para ajudá-la a descer da carruagem. Uma mulher surgiu à porta, sorrindo para lhe dar boas-vindas.

- Rose, esta é minha tia, Prudence Miller.

Prudence tinha palavras amáveis e gestos afáveis.

- Ficamos muito contentes de você vir.

Esguia, de cabelos pretos e olhos brilhantes, Prudence tinha chegado à meia-idade com a beleza quase intacta. Rose a imaginou aos 20 ou 30 anos, de pele clara e
olhos escuros.

Como Prudence a recebeu sozinha, Rose concluiu que o tio de Kyle estivesse na mina. Assim que a levaram para a sala de visitas, viu que não era isso.

O tio Harold estava sentado perto da lareira. Tinha cabelos negros como os da esposa e era quase tão magro quanto ela. Apesar do rosto emaciado, Rose o achou parecido
com Kyle nos olhos azuis vívidos e nas feições de traços duros.

Ele a observou atentamente durante as apresentações. Rose notou sua palidez e o lençol que cobria suas pernas e o colo. Havia uma escarradeira numa mesa baixa perto
da perna direita dele. Tio Harold estava doente.

Os cumprimentos o fizeram tossir. Virou a cabeça e cuspiu na escarradeira.

- Você tem de fazer uma torta, Pru. Não podemos receber Kyle sem oferecer as tortas de que ele tanto gosta.

- Teremos uma no jantar - disse ela. - Esperem aqui um instante, vou ao andar de cima arejar um pouco o quarto.

Dava a entender que eles iam se hospedar lá. Kyle saiu e voltou com o cocheiro e as bagagens. A casa tinha um abrigo de carruagem e ele mandou o cocheiro para lá.

Carregou ele mesmo a bagagem para cima, seguindo a tia na escada. Rose sentou numa cadeira perto de Harold, que continuava a observá-la.

- É uma linda mulher, Sra. Bradwell. Agora entendo melhor este casamento.

- Espero que o senhor me trate por Rose.

Ele riu.

- Bom, vai ser uma experiência rara, tratar uma dama como a senhora com tal intimidade.

Tinha sido a imaginação dela ou havia um tom desaprovador na voz do tio? Considerando as circunstâncias do casamento, o "uma dama como a senhora" podia ter vários
sentidos.

Ela achava que o escândalo não podia ter chegado a Teeslow, mas talvez tivesse. Ou talvez Kyle houvesse explicado tudo em detalhes quando esteve lá, em dezembro.
Tenho a oportunidade de casar com uma dama porque ela está em tamanha ruína que nunca conseguirá algo melhor. A reputação dela vai me atingir, mas daqui a uma geração
ninguém vai lembrar muito disso.

Ela tentou manter uma conversa amistosa. Até o momento em que Harold começou a tossir. Ele estava com alguma doença muito grave. Rose se levantou para tentar ajudar,
sem saber como. Ele levantou a mão, impedindo-a. A tosse diminuiu e ele cuspiu de novo na escarradeira.

- Estou doente, como pode ver. É o mal dos mineiros. Achei que ainda teria uns bons dez anos de vida quando isso me atacou.

- Lamento.

Ele deu de ombros.

- Não se pode tirar o carvão sem levantar pó.

Kyle então voltou, poupando-a de encontrar o que dizer.

- Acho que vou roubá-la do senhor, tio. O quarto está pronto e Rose precisa descansar e se aquecer depois da viagem.

 

No quarto, Rose tirou o manto que usava em viagens e se aproximou da lareira.

- Seu tio está muito doente, não é?

- Está morrendo.

Ela assentiu, como se fosse óbvio.

- Ele disse que é o mal dos mineiros. Por causa do pó.

- Muitos adoecem dos pulmões. É de esperar, por isso levam uma vida tão controlada. Suas economias precisam ser suficientes para o sustento da família quando morrerem.

- É triste. Mas você fala sem emoção.

- A vida é assim, Rose. Essa doença é tão normal para esses homens como a gota é para os lordes. Um mineiro entra na mina sabendo disso, da mesma maneira que um
marinheiro embarca no navio sabendo que pode se afogar.

Kyle começou a desfazer sua mala. Nunca tinha levado Jordan lá, pelos mesmos motivos que ficara indeciso quanto a levar Rose. A casa não tinha nada de errado, mas
os tios não saberiam o que fazer tendo criados por perto.

Ele estava feliz de saber que Rose podia se virar sozinha. Do contrário, teria insistido em ficarem numa hospedaria, só que a mais próxima não seria conveniente.
Além disso, a tia ficaria ofendida se aquele casamento mudasse tão rapidamente os hábitos da família.

Mesmo assim...

- Você vai se sentir bem aqui? Se não for, pode me dizer.

Ela deu uma olhada no quarto, na cama sem dossel e nas cortinas de que tia Pru tinha tanto orgulho.

- É muito melhor que uma hospedaria. Vamos ficar juntos?

- Vamos.

Ela não pareceu se incomodar. Sentou na cama, depois se deitou.

- Acho que vou descansar um pouco. Nunca imaginei que viajar de carruagem vários dias pudesse ser tão cansativo.

 

Quando Roselyn acordou, Kyle tinha saído. Ela desceu a escada à procura dele.

Harold cochilava na cadeira ao lado da lareira acesa. Ela seguiu os sons que vinham da cozinha, nos fundos da casa.

Prudence estava lá trabalhando, sovando massa de torta. Sorriu e indicou o fogão com a cabeça.

- Aquele jarro em cima das pedras tem sidra e na mesa tem um copo, se quiser.

Rose se serviu e viu por uma janela dos fundos o pequeno pomar de árvores frutíferas novas, que estavam nuas agora, no frio do inverno. Havia um grande jardim no
lado oeste do pomar, à espera de ser cultivado na primavera.

- A casa é muito agradável - disse ela. - A vista de todas as janelas é linda.

- Kyle a construiu para nós. Quando voltou da França. Foi para Londres ganhar dinheiro, depois construiu. Harold não queria aceitar, claro, mas eu sabia que ele
estava adoecendo. Você vai ver que meu marido vai alfinetar Kyle por causa das roupas elegantes e das maneiras finas, mas se orgulha muito das conquistas do sobrinho.

Rose se aproximou para ver Prudence preparar a massa.

- Também faço tortas.

- É mesmo? Eu achava que as damas não sabiam cozinhar.

- A maioria não sabe. Mas eu gosto. Posso ajudar, se quiser.

Prudence separou algumas maçãs e uma tigela.

- Você pode descascar e depois cortar as maçãs aqui dentro.

Rose começou a trabalhar.

- Aonde Kyle foi?

- Foi andando até o vilarejo. Imagino que vá visitar o padre e depois tomar uma cerveja com os homens na taberna. Teria levado Harold na carruagem, mas ele estava
dormindo. Pode ser que amanhã leve. Harold sente falta da cerveja com os rapazes.

Rose imaginou Kyle andando quase um quilômetro até Teeslow. Voltando à antiga vida. Será que ele se livrara dos casacos antes de ir? Removera as camadas de gestos
educados e a mudança pela qual aceitara passar para ganhar dinheiro em Londres? Voltara a falar com o sotaque de Harold?

Nessa taverna, ele não seria o Kyle que ela conhecia. Seria o Kyle que continuava um estranho.

- Ele é amigo do padre?

Prudence riu.

- Bem, amigo não é bem a palavra. O conde encarregou o padre de ensinar Kyle a escrever e contar, além de latim e francês. Ele foi um professor exigente. De vez
em quando, esquentava o traseiro dos alunos com uma vara. Kyle não gostava das aulas, mas sabia que poderiam mudar a vida dele e continuou indo.

- O conde? Você quer dizer o conde de Cottington? Ele era o benfeitor de Kyle?

- Exatamente.

Ele nunca tinha dito. Pelo menos, não com todas as palavras. Ela concluíra que o benfeitor tinha sido... alguém. Não um conde. Não Cottington. Não o pai de Norbury.

Isso explicava muita coisa. A parceria naquelas novas construções. A presença de Kyle na festa de Norbury.

- Por que o conde fez isso?

Prudence estava atenta, raspando açúcar mascavo.

- O conde conheceu Kyle por acaso. Na mesma hora, viu que não era um menino comum, mas inteligente e corajoso. E que meu sobrinho seria desperdiçado na mina, embora
desde pequeno ele já pudesse fazer o trabalho de um homem. Por isso, o conde mandou o padre dar aulas a Kyle, de forma que, quando crescesse, pudesse ir a escolas
e tal.

Colocou o açúcar numa xícara.

- O conde é um homem bom e justo. Como poucos.

A pequena história trouxe dúvidas à cabeça de Rose. Tantas que não podia perguntar a Prudence sem parecer que a colocasse no banco dos réus.

Ela sabia pouco da vida do marido. Tinha muita curiosidade, mas nunca perguntara, apesar de ele ser a melhor fonte de informação.

Nunca perguntara, mas Kyle também nunca dissera. Não acreditava que fosse por vergonha do passado ou por não falar muito de si.

Os dois evitavam tudo aquilo porque falar no passado dele significava falar em Norbury.

A sombra daquele caso tinha influenciado até a maneira como os dois se conheciam.

 

- Vai dar problema. Não tem dúvida - assegurou Jon e bebeu um pouco de cerveja para enfatizar.

Kyle também bebeu, concordando. Jonathan era um mineiro quase da mesma idade que ele. Entraram na mina na mesma época, quando meninos, e carregaram os cestos de
carvão juntos, escada acima.

Agora Jon era um radical, o que o fazia imprudente ao falar com o amigo de roupas elegantes, que tinha morado lá fazia muito tempo.

Os demais mineiros foram simpáticos, até alegres. Brindaram quando Kyle entrou na taberna e o crivaram de perguntas sobre Londres. Mas não estavam dispostos a falar
sobre o que vinha acontecendo na própria cidade. Uma palavra errada poderia arruinar suas vidas.

- O comitê foi três vezes até os proprietários para se colocar contra a reabertura do túnel e explicar o perigo - disse Jon. - É mais barato perder alguns homens
do que fazer o que é preciso. Já vimos isso e veremos de novo.

Kyle, sem dúvida, tinha visto. Os ossos do pai ainda estavam naquele túnel fechado. Era perigoso demais retirar os mortos. A primeira tentativa servira apenas para
causar outro desmoronamento.

- Você falou com Cottington? - perguntou Kyle. - Ele vendeu quase toda a mina há bastante tempo, mas ainda tem certa influência. As terras ao redor ainda são dele.

- Dois dos nossos colegas tentaram. Ele está tão doente que não deixam ninguém chegar perto. Nem você pôde entrar na última vez em que esteve aqui. Quanto a falar
com o herdeiro... - a frase ficou no ar e a expressão de Jon mostrou a opinião que tinha sobre o tal herdeiro.

Ele olhou por cima do ombro. Passou a mão nos cachos louros, depois se inclinou sobre a mesa para confidenciar:

- Estamos nos organizando para irmos juntos. Não só aqui. Tivemos reuniões com grupos de outras cidades e com mineiros que têm outros patrões. Se ficarmos lado a
lado e falarmos juntos, seremos ouvidos.

- Cuidado, Jon.

- Cuidado, uma ova. A lei agora permite isso, finalmente. Temos o direito de nos unir. O que eles podem fazer? Me matar? Não podem matar todos nós. Não podem demitir
todos. Você mesmo falou isso há anos, antes de...

Jon desviou o olhar e bebeu mais cerveja.

Antes de ir embora e se tornar um deles.

- Quando se fica lado a lado, é preciso que todos estejam unidos. É preciso que todos aceitem passar fome. Haverá sempre os que vão abandonar o movimento.

- Se nós sairmos da mina, nenhum homem vai entrar. Vamos cuidar disso.

- Há sempre os que precisam trabalhar.

- Se as frentes se formarem na entrada das minas, isso não vai fazer diferença.

- Eles vão chamar a cavalaria. Vai ser um massacre.

Jon deu um soco na mesa.

- Pare de falar como minha mulher. Esqueceu o que acontece lá? Vá até aquela linda casa que você construiu para Harold e pegue as botas e as roupas dele. Venha comigo
amanhã, caso tenha esquecido por que o perigo não importa para gente como nós.

Aquele "gente como nós" não incluía Kyle. Ele era um deles, mas também não era mais. Ali era sua cidade natal, mas ele tinha ido tão longe, de tantas maneiras, que
cada vez que voltava, fazia menos parte daquele mundo.

Ele sentia isso, mas não conseguia evitar. Seus vínculos àquele lugar eram como tentar segurar areia: por mais forte que fechasse a mão, ela escorria entre os dedos.

Quanto tempo levaria até que poucos o reconhecessem quando andasse por aquelas estradas? Chegaria o dia em que ele entraria na taberna e as vozes se calariam e os
olhares examinariam o cavalheiro intruso.

- Vou a Kirtonlow enquanto estou aqui - disse ele. - Falarei com Cottington a respeito desse túnel.

O dar de ombros de Jon mostrou que não achava que isso fizesse alguma diferença. Pediu mais cerveja e deixou a conversa de lado junto com o copo vazio.

 

Kyle voltou para casa a tempo de jantar. Rose ajudou Prudence a servir. A conversa ia abarcando coisas corriqueiras, como costuma acontecer entre estranhos. Até
que Harold não aguentou. Queria saber as novidades que Kyle ouvira na taberna.

- Os rapazes não vêm muito aqui. É muito longe para andar depois de um dia de trabalho - explicou Harold.

Tia Pru sorriu de leve, como se pedisse desculpas pelo que parecia ingratidão pela casa que ganharam. Kyle não se importou. Harold sabia que não o visitariam muito,
ainda que ele continuasse morando no vilarejo. Um homem sem forças para ir à taberna era um homem isolado.

- Há boatos da reabertura do túnel - disse ele. - Ouvi isso em dezembro, mas parece que vai ocorrer mesmo.

- Aqueles idiotas. Idiotas gananciosos.

A notícia deixou Harold tão agitado que ele teve um ataque de tosse.

- Pelo menos pode ser que seu pai e os outros possam ter um enterro cristão - disse Pru, baixo.

Rose ergueu o olhar, surpresa. Seus olhos demonstraram algo que Kyle tinha visto várias vezes naquela noite. Curiosidade. Talvez reavaliação. Falar no túnel trouxera
à tona algo em que já vinha pensando.

Tia Pru trouxe uma de suas tortas. O cheiro bastou para melhorar o ânimo de todos. Pru era famosa por todos os tipos de tortas. Mesmo que precisasse usar frutas
que tinham passado todo o inverno estocadas num porão, ela conseguia que a receita ficasse deliciosa.

Kyle se sentiu menino outra vez, prevendo o gosto delicioso que só sentia em dias de pagamento, quando podiam comprar um pouco de açúcar.

Prudence cortou a torta em fatias.

- Rose me ajudou a fazer - contou.

- É mesmo?

- Nada como cozinhar junto para as mulheres se conhecerem - disse Harold. - Fico satisfeito que sua esposa goste de cozinhar, Kyle, meu rapaz. É bom saber que você
não vai passar fome lá em Londres.

- Rose faz ótimas tortas - disse ele.

Rose sorriu com o elogio. Kyle olhou a fatia de torta na frente dele.

- Então, tenho de agradecer a você por isso, querida?

- Não fiz muita coisa. Apenas cortei as maçãs.

Ele comeu. Não, ela não havia ajudado muito. A torta estava ótima.

Rose ficou observando-o comer cada fatia. Ela estava de novo com aquele olhar. Algo atiçara seu pensamento.

 

CAPÍTULO 14

Rose queria conversar com o marido. Ficou aborrecida quando ele não foi para o quarto com ela, deixando-a subir sozinha.

Assim que chegou ao quarto, Rose entendeu por que ele não a acompanhara. Dividindo aquele quarto, eles não teriam nenhuma privacidade. Os preparativos para dormir,
que costumavam ser feitos separadamente, teriam de acontecer na presença do outro.

Ela pensou nisso enquanto tirava o vestido e o espartilho, a camisa e o calção. Vestiu a camisola e sentou na cama para soltar os cabelos. Imaginou-o também ali,
despindo-se.

Olhou para a cama. Prudence e Harold dormiam há anos na mesma cama a noite inteira, todas as noites. Não se afastavam depois de cumprirem seus deveres conjugais.
Como seria viver totalmente ligada a outra pessoa?

Ela achou que devia ser muito bom, se houvesse amor. Horrível, se houvesse ódio. Invasivo, se houvesse indiferença.

Ouviu o som das botas dele na escada e concluiu que tinha mesmo se demorado por respeito a ela. Aquele casamento tinha muito disso.

Deixou a lamparina acesa e permaneceu onde estava. Não era uma cama muito grande. Aquela visita os forçaria a todo tipo de intimidade.

Kyle bateu na porta antes de entrar. Rose não acreditava que Harold alguma vez tivesse feito isso para ter certeza que Prudence o deixaria entrar.

Controlou o impulso de virar para o outro lado para que Kyle também tivesse sua privacidade. Mas ele não era uma flor delicada e ela queria conversar.

Ele tirou os casacos e os pendurou no guarda-roupa.

- Gostou da torta? - perguntou ela.

Ele sentou na cadeira e tirou as botas.

- Muito. Quase tão boa quanto as suas.

Ela ficou muda. O coração se encheu de uma sensação doce e pungente.

Na verdade, as tortas dela eram horríveis. Ninguém jamais a ensinou a cozinhar. Por necessidade, tentara quando era menina até conseguir algo que os irmãos achassem
mais ou menos comestível. O resultado não dava, de maneira alguma, para comparar com o toque mágico de Prudence.

Hoje ela havia assistido a Prudence fazer a torta e vira o que lhe faltara naqueles anos todos. E também sentira o gosto diferente.

Mas eis que Kyle mentia para ela não se sentir mal. Ele tinha a opção de não mencionar suas tortas. Como podia ter comido só um pedacinho da que ela fizera na manhã
seguinte ao casamento.

Naquele dia, cada garfada de torta devia ter entalado na garganta dele.

- Prudence disse que você hoje decerto visitaria o padre. E que ele ensinou as primeiras lições a você.

Não sabia se continuava a conversa. Eles podiam passar o restante da vida sem tocar nos assuntos que surgiram na cabeça dela nesse dia. Talvez fosse melhor assim.

Só que ela não ia dormir se não perguntasse. As respostas ajudariam não só no que sabia sobre o Kyle estranho, mas a entender o Kyle que conhecia.

- Ela disse que Cottington mandou o padre dar essas aulas. Que o conde era o seu benfeitor. Você nunca me disse isso.

Ele tirou a gravata.

- Você nunca perguntou.

- É verdade. Nunca perguntei. Estou perguntando agora. Quero saber.

- Quer saber pelas razões erradas.

O que aquilo queria dizer?

- Quero saber porque você é meu marido e esse fato extraordinário mudou a sua vida e o tornou o homem com quem me casei.

Ele se recostou na cadeira e olhou para ela.

- Certo. O conde reparou em mim quando eu tinha 12 anos. Achou que eu tinha talentos que deviam ser aprimorados. Combinou com o padre que me desse aulas, depois
pagou para um engenheiro em Durham ser meu professor durante dois anos. Conseguiu que eu fizesse provas para a Escola de Belas-Artes de Paris e me mandou para estudar
arquitetura lá. Quando voltei, ele me deu 100 libras e sua generosidade acabou aí, mas continuamos amigos e, às vezes, trabalhamos juntos.

E aquelas 100 libras tinham se transformado em mil, depois em mais e mais.

- É uma história surpreendente. Que seu progresso surpreende é fato, mas também achei a atitude do conde surpreendente. Por que fez tudo isso por você? Foi porque
seu pai morreu no túnel?

- Ele não sabia que meu pai era um dos mortos. O acidente tinha sido três anos antes.

Kyle desabotoou os punhos da camisa.

- Não sei por que fez isso. Acho que porque eu bati no filho dele. Talvez tenha admirado a minha audácia. Ou achou que o filho merecesse uma surra e gostou que outro
garoto tivesse coragem de dá-la por ele.

- Você bateu em Norbury? Que maravilha. Mas é lastimável que essa história esteja ligada a ele.

- Lastimável, mas inevitável, Rose. Não finja que, quando perguntou, não sabia aonde a história ia levar.

Ele tirou a camisa. Despejou água na bacia e começou a se lavar.

Ela não o via sem roupa desde a noite do casamento. Depois daquela noite, ele tinha sido apenas uma silhueta no escuro. Rose tinha sentido aqueles ombros e abraçado
aquela nudez, mas não tinha visto.

A luz fraca o favorecia, mas o vigor dele teria impressionado mesmo sob um sol de verão. Não havia um músculo flácido. Nenhuma gordura ameaçadora acumulada devido
a uma vida amena. Os músculos não pareciam volumosos, apenas proporcionais à altura dele. Como o rosto, o corpo parecia esculpido de maneira rústica e fazia supor
uma energia prestes a explodir. Ela ficou pensando se aquela tensão sumia em algum momento. Talvez, quando ele dormisse, ela ficasse escondida.

Rose prestou tanta atenção nele que quase se esqueceu da conversa. Kyle estranhou o silêncio e notou que estava sendo observado. Voltou a se lavar.

- Acho que eu sabia onde a história ia acabar - disse ela. - Sempre me surpreendi por você conhecer Norbury tão bem. Mas continuar a trabalhar com ele e a usar as
terras da família...

- Meu trabalho é com Cottington. Sempre foi. Norbury só tem participado agora porque o conde está muito doente.

A conversa se encaminhava para um terreno perigoso. Ela viu o espaço entre eles subitamente cheio de buracos e fendas. O tom da voz dele demonstrava que seria insensato
seguir adiante.

- Se o conde está tão doente, é provável que Norbury participe da sua vida por muito tempo - disse ela. - Pelo jeito, já participa. Está nas nossas vidas, Kyle.

Ele jogou a toalha no chão.

- Quando preciso falar com ele, eu falo. Depois, ele some da minha vista e da minha cabeça. Não faz parte de nossas vidas.

- Não? E como foi que nos conhecemos? Eu sinto a presença dele como se fosse um espectro. Acho que ele não sai da sua cabeça, no que me diz respeito. Acho que você
tenta esquecer o meu caso, mas...

- Sim, eu realmente me esforço para esquecer, maldição! É isso ou a vontade de matá-lo. Por causa da maneira vergonhosa como tratou você naquele jantar. Da maneira
como desconfio que tratou antes. Imagino-o com você e...

Ele abriu e fechou as mãos. Ficou tenso e, de um jeito sombrio, forçou-se a ficar calmo.

- Mas não penso nele quando estou com você. Não se reflete em você.

- Como não? Influi em tudo. Aquela noite afeta todas as coisas, até a maneira de você me tratar como esposa.

- Se você se refere à ordem que dei em relação ao seu irmão...

- Meu irmão? Céus, meu irmão é o problema nosso com o qual Norbury não tem nada a ver. Não gostei daquela nossa discussão, mas, pelo menos uma vez, falei com o homem
com quem me casei. Com ele por inteiro. O real. Não a invenção atenta e educada, que se veste tão bem, fala tão bem e me dá prazer tão corretamente e com tanto respeito.

Ela achou que jamais poderia vê-lo tão surpreso. Durou poucos segundos. Depois, ele fixou o olhar nela de tal forma que seu coração subiu para a garganta.

- Trato você com respeito, como uma dama, e você reclama?

- Não estou reclamando. Sei que tenho sorte de ter um amante tão atencioso. Só acho que você toma tanto cuidado por motivos que me entristecem.

Ele não gostou da crítica. Nenhum homem gostaria.

- Parece que você conhece a mim e aos meus motivos melhor do que eu, Rose.

Ela devia recuar, desculpar-se, ficar calada e grata. Mas, se fizesse isso, ele só ia se lembrar de uma ofensa que ela não tivera intenção de fazer.

- Talvez eu conheça mesmo, Kyle. Ou talvez o pouco que conheço de você me faça entender mal. Diga-me uma coisa: se não fosse aquela noite horrível, se não fosse
a minha situação, você precisaria ser tão cuidadosamente respeitoso? Se tivesse casado com uma moça ingênua daqui do vilarejo ou com uma mulher que nunca foi chamada
de puta, pensaria nisso o tempo todo? Se você não tivesse nascido neste vilarejo, mas numa grande mansão e me pedisse em casamento em outras circunstâncias, acharia
tão importante me tratar como uma dama?

Pelo menos a explosão dela não o deixou mais irritado. Ele ficou sério e contido, mas não furioso. O tempo passou tão lenta e silenciosamente que ela se arrependeu
do que disse.

- Desculpe. Eu não devia... - disse, puxando um fio solto do cobertor. - É que, quando estamos juntos, eu sinto... Você está quase sempre usando seus casacos de
corte impecável, Kyle, até na cama, quando está completamente nu.

Ela piorou uma situação que já estava ruim. Deitou-se e se cobriu bem para esconder os destroços do naufrágio que certamente fizera de seu casamento.

Desejou ser escritora ou poeta, para conseguir se explicar. Gostaria de ter palavras para expressar como a origem dela e a dele, a redenção dele e o escândalo dela,
o conhecimento que ele tinha de seu caso e a necessidade que ela tinha de não ser tratada como puta fizeram com que se erguessem aquelas barreiras de formalidade
entre os dois.

Era impossível explicar. Pouco provável que a situação mudasse. Ela devia aceitar. Devia se policiar para não ficar tentando alcançar algo que não sabia o que era,
daquele jeito doloroso e incessante. Ela devia...

- Os casacos não caem bem quando estou aqui, Rose. Apesar de todo o talento do alfaiate, ficam apertados demais quando venho para casa.

A voz baixa dele chegou a Rose através do silêncio tenso.

- Imagino que seja desconfortável.

- Muito.

- Ou os casacos estão apertados e você só nota quando vem para casa.

- Talvez você tenha razão.

Ela se sentou outra vez. Ele agora prestava atenção no fogo baixo da lareira e nos próprios pensamentos. Apoiava o braço na cornija enquanto olhava as chamas. Ficou
lindamente iluminado.

Ela se encantou com a cena. A luz da lareira parecia encher o quarto todo. O calor chegou até ela.

- Na verdade, desde que cheguei aqui, acho que minhas roupas também estão apertadas, Kyle. Talvez seja o ar do campo. Ou as tortas.

Ele sorriu.

- Então você devia parar de usá-las.

- Não estou acostumada a me livrar desses acessórios. Vivo apertada num espartilho desde o dia em que nasci.

Kyle a encarou. O coração dela perdeu o compasso, depois acelerou. Mesmo no dia em que a pedira em casamento, ele não demonstrara seu desejo com tanto despudor.

Ele se aproximou.

- Vou considerar isso um convite, Rose.

Abraçou-a com tanta força que a levantou da cama. Beijou-a de um jeito possessivo, firme, como quem não quer nada e quer tudo. Desta vez, não conteve seu desejo.
Puxou-a para um remoinho de força incontrolável.

Os beijos pediam, mandavam e a excitavam. Nem se quisesse, ela não podia fazer nada contra o domínio que ele tinha. Rose havia pedido isso e deixou que as próprias
reações selvagens se apossassem dela. Superaram o medo e a surpresa iniciais.

Beijos quentes. Fortes e profundos, mordendo e devorando. Braços de aço a impediram de reagir à fúria ardente em seu pescoço e na sua boca. Uma sequência de choques
maravilhosos atravessou seu corpo como flechas de fogo. Trouxe à tona o instinto primitivo dela até fazê-la gemer com o ataque glorioso e fazê-la perder qualquer
decoro.

Ele a apoiou de novo na beirada da cama. Acariciou suas pernas por baixo da camisola. Passou a mão no quadril e na bunda. Um toque furtivo e erótico no sexo. Os
dedos dele causaram um incrível formigamento.

Ela afastou uma perna para incentivá-lo a prosseguir naquela deliciosa tortura. Ele prosseguiu, mas interrompeu o longo beijo. Com a outra mão, ele levantou a camisola
dela até os ombros e a retirou por cima da cabeça. A camisola caiu ao chão, aos pés dele.

Ele olhou a nudez da esposa sério de tanto desejo. Suas carícias cobriam os seios enquanto a outra mão esfregava e provocava embaixo. A dupla sensação a deixou tremendo,
cambaleante, enfraquecida pelo prazer. Ela se inclinou para se apoiar nele até o rosto tocar suavemente em seu peito.

A mão de Kyle puxou sua nuca para mais perto até o rosto encostar por completo na pele lisa.

- Posso tirar a camisola, Rose, mas as outras peças que a escondem você mesma precisa tirar.

Ela compreendeu. O incentivo a encorajou. Espalmou as mãos no peito dele, olhando e sentindo ao mesmo tempo. O simples toque fez com que ele ficasse ainda mais excitado
e que uma nova rigidez o percorresse.

Ela o acariciou com mais ênfase. Olhou as mãos passando pelo peito dele, escorregando e percorrendo os sulcos dos músculos e costelas rígidos. Ele a olhou também
e as carícias e toques no corpo dela copiavam as delas. A respiração cálida dos dois se encontrou e se fundiu em beijos cada vez mais vorazes enquanto a excitação
os levava à loucura.

Ele tirou a mão das pernas dela e desabotoou os calções. Antes que ela pudesse se conter, deu um gemido insolente, afastou as mãos dele e assumiu os botões. As mãos
dele voltaram a afagá-la embaixo, fazendo-a quase desfalecer.

Ela lutava com a roupa dele, desajeitada, enquanto ele a tocava mais deliberadamente. Inclinou a cabeça para aproximá-la do pescoço e do ouvido da esposa. O dedo
dele apalpava com cuidado.

- É assim que você quer, Rose?

Ela não podia responder. Não conseguia falar. Mal conseguia se manter ereta. Agarrou a roupa dele sem ver, sem jeito, empurrando-a pernas abaixo às cegas, enquanto
os leves toques no seio e entre suas pernas a faziam gemer.

- Ou assim?

A mão dele contornou a perna e a tocou pela frente. Uma estocada longa, lenta e incrível fez um tremor de prazer percorrer seu corpo.

Rose sabia que ele tinha noção de quanto a deixava indefesa. Agarrou-se aos ombros dele e se segurou em busca de apoio.

Ele soltou uma das mãos dela, beijou-a e a guiou para a parte inferior do próprio corpo. Uma leve noção de racionalidade voltou, o bastante para ela entender o que
ele estava fazendo, o que queria. Perdida demais para se importar, ou se constranger, deixou que ele colocasse a mão dela no pênis.

Ele a tocou diabolicamente mais uma vez, o que deixou tudo mais fácil. O prazer passou pelo corpo dela como uma onda revolta, e em resposta ela acariciou como era
acariciada.

Qualquer decoro que ele ainda tivesse se rompeu. Beijou-a com nova selvageria. Ela sentiu a tensão em todo o corpo, no beijo dele e até na maneira como a tocava.
Intencional, agora. Disposto a fazê-la entregar-se por inteiro.

O orgulho perdeu qualquer sentido. Mesmo de joelhos, ela se movia ritmadamente, curvando-se aos beijos dominadores, gemendo de tanto querê-lo.

Ele a mudou de posição, mas não como ela esperava. Virou-a de maneira a ficar de costas para ele e acariciou seus seios. Ela se inclinou na direção de Kyle. Os mamilos
se eriçaram, se intumesceram, endureceram, implorando mais, qualquer coisa, tudo.

Ele a mudou de posição novamente, curvando o corpo dela até deixá-la de joelhos na beirada da cama com as pernas dobradas sob o corpo. Um tremor incrivelmente erótico
estremeceu suas ancas.

Ele levantou o quadril dela. Ela esperou, ofegante, tão excitada que não conseguia aguentar. O corpo latejava na expectativa. Rose imaginou o que ele via, as nádegas
viradas para ele, mostrando aquela carne escondida. A imagem despudorada só a excitou mais.

Ele não a possuiu imediatamente. Deixou-a esperar, chegar à beira da loucura. Ficou acariciando as nádegas dela, roçando as curvas da pele, olhando para ela, com
certeza. Assistiu à submissa rendição e ao seu desespero.

Tocou-a de novo, ela gritou. Desta vez foi diferente. Rose estava exposta e aberta e sabia que ele olhava, sabia que via o corpo nu. Ela desceu mais as costas e
levantou mais as nádegas.

Dali a pouco, estava implorando. Implorando, gemendo e abafando os gritos nos lençóis. Finalmente, ele a penetrou numa estocada longa e lenta, proposital. Abaixo
de seu gemido de prazer, ela teve a impressão de ouvir o dele também.

Depois, ela se perdeu. Tudo o que sentia era o torturante prazer da necessidade de ser preenchida e a violenta intensidade da completude.

 

- Você veio aqui para ver Cottington antes que ele morra?

Rose estava nos braços de Kyle, sob os lençóis. Fazia algum tempo que ele tinha levantado o corpo lânguido dela e a colocado ali de maneira a ficar colada nele,
que estava sentado, com as costas apoiadas na cabeceira. A vela ainda iluminava a satisfação dos dois.

- Um dos motivos foi esse. Vou tentar vê-lo amanhã.

- Tentar? Ele não recebe você mais?

- Não sabe que eu o procurei. O secretário e o médico dele só avisam das visitas se quiserem. Agora é assim.

Ela achou que, provavelmente, tinha sido sempre assim. Era comum que condes tivessem empregados para evitar serem incomodados se não quisessem. Agora que Cottington
estava doente, eram outras pessoas que decidiam quando ele queria ou não. Só isso mudara.

- Se ele não puder recebê-lo agora, talvez receba na primavera, quando você planeja voltar.

- Acho que ele não estará vivo na primavera.

Ela concluiu que Kyle tinha ouvido falar que o conde estava à beira da morte. Por isso tinha ido ao norte agora.

- Vai ser muito triste não se despedir dele, depois de tudo o que fez por você. Certamente, o secretário dele sabe disso.

- Para o secretário, eu sou só o garoto de Teeslow - explicou Kyle, inclinando a cabeça e dando um beijo distraído nos cabelos dela. - Não é só me despedir. Quero
ver se ele ainda está consciente. Preciso pedir um último favor para os mineiros.

- É sobre a reabertura do túnel?

- Sim. Alguns homens querem impedir, só que de uma forma que só vai prejudicá-los.

- Poderia dar certo, se todos eles...

- Não serão todos. Há famílias que perderam parentes no desmoronamento e vão querer a reabertura para poderem enterrar seus mortos.

- Você disse que seu pai morreu num acidente. Foi nesse, não?

Ele concordou com a cabeça.

- Eu também gostaria de enterrá-lo. Mas aquele túnel jamais será seguro, a menos que as coisas sejam feitas de outra maneira. As paredes se movem.

- O túnel é de rocha. Rocha não se move.

- A terra é uma coisa viva, Rose. Antes de construir, preciso ver se o terreno é firme. A mina não está em terra firme e a parte daquele túnel é a pior. Sei disso
desde menino. Eu vi.

Ela sentou e se virou para ele. Ao olhá-lo, sentiu um eco dos tremores da noite. Não era possível a uma mulher deixar um homem fazer aquelas coisas sem depois ficar
em desvantagem com ele. Rose sentia que cedera o controle de outras formas também, que estavam entre os dois agora, incentivando aqueles tremores.

- Quanto tempo você trabalhou na mina, Kyle?

- Entrei pela primeira vez aos 8 anos. As crianças carregam o carvão em cestos. Geralmente, começam aos 9 ou 10 anos, mas eu era grande para a idade. Não tão grande
quanto um homem. Por isso, eu via o que eles não viam porque tinham de ficar abaixados. Havia fendas acima e quase no alto das paredes. Acompanhei a movimentação
delas durante meses. Avisei ao meu pai. Ele e os outros mineiros não acharam perigoso porque não viram e não notaram as mudanças. Até que um dia... caiu tudo. Dez
homens foram enterrados vivos do outro lado de uma parede nova.

- E ficaram simplesmente abandonados lá?

- Ninguém é abandonado, a menos que não haja opção. Começaram a cavar para retirá-los, mas isso fez mais pedras caírem, e outro mineiro morreu. Então ninguém mais
cavou. Fizeram uma cerimônia religiosa. Rezaram. E dois dias depois os homens voltaram à mina. Menos os parentes dos que estavam soterrados. Esses esperaram uma
semana. À essa altura, quem tinha ficado preso teria morrido. Por falta de ar e de água.

Ela imaginou Kyle de vigília com os tios. Viu o menino pensando no pai atrás daquela parede de rocha, talvez ainda vivo, mas sem poder ser socorrido.

- Eu disse aos homens que devíamos cavar por cima do túnel. Fazer um buraco para entrar ar até encontrarmos uma forma de tirá-los de lá. Ninguém dava ouvidos a uma
criança, muito menos os supervisores dos donos da mina. Hoje, sei que isso poderia dar certo. Um engenheiro podia fazer isso. Eu posso, se houver um desmoronamento
num túnel lateral.

Sim, provavelmente podia, mesmo se o terreno fosse desfavorável. Se preciso, ele cavaria com as próprias mãos, pensou ela. Se ele decidisse, não havia rocha nem
terra que o impedisse.

Ele contara sua história e respondera às perguntas de Rose. Ela sabia que agora ele pensava em outras coisas. Tinha deixado a vela acesa por um motivo.

Kyle a pegou pelo braço e a puxou em sua direção. Sentou-a de frente, com as pernas envolvendo as dele.

Ele olhou as mãos cobrirem os seios dela e os dedos roçarem os grandes mamilos escuros.

- Vi você muito bem no escuro ou, pelo menos, minha imaginação viu. Mas prefiro assim.

Em outras palavras, não queria mais que as lamparinas e velas fossem apagadas como se ela fosse uma dama. Ela não se importava. Assim também podia vê-lo. Mas ia
demorar um pouco para não ficar tímida quando o marido olhasse para o corpo dela como fazia agora.

Ele a ergueu e a posicionou sobre sua perna, lambendo e mordiscando os seios dela. A posição em que estavam permitia que ela também o acariciasse.

- Acho que você devia me levar quando for a Kirtonlow tentar falar com Cottington - sugeriu Rose.

Os dedos dele substituíram a boca, permitindo que respondesse.

- Não.

Ela imaginou se ele não queria que ela o visse sendo dispensado.

- Se eu for com você, o secretário não vai nos expulsar.

- Vai, sim, e não quero que você seja ofendida.

- É bem mais difícil dizer não a uma dama, Kyle. Diremos para ele não ousar fazer isso, pois o conde não vai gostar, se souber.

- Não.

Ela fez a mão deslizar para baixo no corpo dele, na tentativa de convencê-lo. Envolveu sua ereção e ficou roçando o polegar na cabeça do pênis.

- Você se casou comigo por causa da minha origem, Kyle. Devia me deixar abrir portas quando posso.

O sorriso dele não escondia a tempestade erótica que as carícias causavam.

- Rose, você está usando artifícios femininos para me deixar flexível?

Ela olhou o que sua mão estava fazendo.

- Parece que só estou conseguindo o efeito contrário. Não há nada flexível em você agora. A não ser um pouco, bem aqui. Ela apertou de leve a ponta.

Ele a segurou pela bunda e a ergueu de leve. Ela sabia o que fazer sem instruções, pois parecia natural e necessário. Mexeu-se e se colocou numa posição que permitia
guiá-lo para dentro dela.

O primeiro toque da penetração causou um choque de prazer em seu corpo todo. A sensação a deslumbrou e a fez perder o fôlego. Não se mexeu para ele penetrar mais.
Ficou assim, só um pouco encaixada, deixando os deliciosos tremores se prolongarem.

Ele permitiu, embora o desejo o dominasse tanto que ele cerrava os dentes. Ela se abaixou um pouco para senti-lo melhor.

- Você vai me matar, Rose - gemeu e segurou as pernas dela. - Pode me torturar durante horas outra noite, mas agora...

Puxou-a, descendo-a até seus corpos se aconchegarem.

Depois disso, ele a guiou, as mãos fortes facilitando o movimento das coxas num ritmo de absorção e soltura que ela ditava. Rose descobriu novos prazeres com mudanças
sutis e pressões no corpo. Fechou os olhos e o apertou dentro de si, mais e mais.

Ele então a penetrou mais, tão fundo que ela arfou. Abriu os olhos, o encarou e não conseguiu mais desviar o olhar. Não o via se mexer, mas sentia que era preenchida,
estocada e dominada enquanto seu olhar profundo a convidava a mergulhar em mares cor de safira. No final, ele a segurou forte pelas coxas. Presa, ela se rendeu à
invasão de seu corpo e de sua alma.

O orgasmo violento dela quase doeu de tão intenso. Ela desmoronou sobre ele, o rosto contra seu peito, ligada a ele num abraço forte enquanto o corpo aos poucos
abria mão das últimas palpitações do gozo.

- A que horas você vai amanhã a Kirtonlow Hall? - perguntou ela, depois que a respiração e o coração de ambos se acalmaram.

Um braço estendido. Um lençol ondulando. Ele puxou os lençóis e os prendeu em volta dela.

- Meio-dia, eu acho.

- Quero ir com você. Estarei pronta ao meio-dia.

Esperou o "não" dele. Não veio. Em vez disso, o abraço se ajustou nela, envolvendo-a, e a respiração de Kyle aqueceu sua testa com um beijo.

 

CAPÍTULO 15

As colinas desoladas sumiram a uns dez quilômetros de Kirtonlow Hall e a paisagem foi ficando mais luxuriante a cada momento. A casa surgiu alta e ampla, à beira
de um grande lago que refletia suas pedras cinzentas na água prateada.

Quando a carruagem deles percorreu o caminho de entrada, Rose deu uma olhada em sua roupa e na de Kyle. A gravata dele estava impecável. O casaco, com caimento perfeito
nos ombros. Até a corrente do relógio de colete dele brilhava, fazendo um arco indefectível. Uma gravura de moda não estaria mais correta.

Ela usava os melhores trajes que tinha trazido, um recém-adquirido conjunto lilás com manto bem-cortado e debruado forrado de pele de esquilo cinza. Fora selecionado
para sua bagagem devido à sua praticidade, mas o estilo e o luxo discreto tinham outra finalidade naquele dia. O obediente secretário do conde jamais saberia que
a pele tinha sido de um antigo traje, que ficara completamente fora de moda.

O criado levou o cartão de visitas de Kyle. Dali a pouco, ouviram-se passos de duas pessoas na escada. O criado vinha com um homem baixo e careca.

- Ora, ora. Pelo menos dessa vez o próprio Conway vai me dispensar - resmungou Kyle. - Você tem razão. Ele não ousa mandar uma dama embora sem dar uma explicação.

O Sr. Conway se aproximou com um sorriso simpático.

- Sr. Bradwell. Sra. Bradwell. Infelizmente, o conde está doente demais para receber visitas. Lastimo dizer que ele piorou desde que o senhor esteve aqui na última
vez. Mas, naturalmente, darei qualquer recado, embora não garanta que ele vá entender tudo.


- Meu recado é para o conde apenas, quer ele esteja em boas condições ou não - disse Kyle. - Já que está piorando, insisto em vê-lo.

O sorriso do Sr. Conway perdeu a força.

- Eu também tenho um recado para dar pessoalmente - disse Rose. - Lorde Easterbrook me encarregou de transmitir suas palavras exatas a lorde Cottington.

- Lorde Easterbrook!

- É meu parente indireto. Vou regularmente à casa dele em Londres e ele aceitou incluir meu marido e a mim em seu círculo pessoal.

O Sr. Conway franziu o cenho, preocupado, ao saber disso.

- Temo que Easterbrook fique muito zangado se eu voltar a Londres dizendo que não consegui. O senhor parece um criado eficiente e bastante zeloso quanto ao conforto
de seu patrão, mas acho que terei de citar seu nome na minha triste história. Como deve saber, Easterbrook é um tanto excêntrico. Nunca se sabe o que vai fazer,
seja para favorecer ou prejudicar alguém.

Conway piscou com força ao ouvir a ameaça implícita. Rose deu o sorriso mais doce que conseguiu. Kyle ficou parado, mas ela notou um brilho em seus olhos demonstrando
que achara o discurso incrível.

Conway mordeu o lábio enquanto ruminava as ideias.

- Madame, perdoe. Não sabia do seu parentesco com o marquês. Mas lorde Norbury insistiu para que não permitíssemos que o pai ficasse agitado por receber visitas.

- Agitado? A sua presença o deixa agitado, meu caro senhor?

- Claro que não. Ele me conhece tão bem que...

- Então o Sr. Bradwell também não vai agitá-lo. O conde conhece meu marido tão bem quanto conhece o senhor. Mais até, eu diria. Transmitirei os cumprimentos de Easterbrook
e os deixarei a sós, para evitar qualquer agitação. Quanto a lorde Norbury, como não está em casa, a menos que o senhor o avise, ele não precisa saber da visita,
e dessa forma jamais precisará desperdiçar seu tempo avaliando se somos visitas que causam agitação ao pai.

Rose deixou que sua expressão e postura mostrassem que presumia ser atendida. O Sr. Conway pareceu aliviado com as justificativas que ela arrumara.

- Sendo assim... sim, levarei os senhores até ele. Tratando-se de visitas como os senhores, não se pode falar em agitação. Por favor, sigam-me, senhora. Sir.

Eles foram atrás do Sr. Conway, que se encaminhou para a grande escadaria. Kyle deu o braço à esposa e aproximou o rosto do dela.

- Não sabia que você tinha um recado de Easterbrook - murmurou. - Devia ter me dito.

- Tenho certeza de que ele gostaria de enviar saudações ao colega e votos de pronto restabelecimento.

- Fazemos parte do círculo mais íntimo de Easterbrook, é?

- Ninguém sabe se ele tem algum círculo além da família. Eu de fato visito Henrietta. Ele gosta muito de Alexia. Não creio que eu tenha exatamente faltado à verdade.

- Você não faltou à verdade. Você foi magnífica.

- É justo que você receba algum benefício deste casamento. Meus relacionamentos são o único dote que posso oferecer.

Ele apertou a mão dela.

- Hoje de manhã, a última coisa em que pensei foi nas vantagens que obteria dos seus relacionamentos.

A insinuação a agradou. Ecos dos tremores da noite, capazes de agitar almas, se manifestaram de seu jeito calmo e devastador. Ela se concentrou nas costas do Sr.
Conway para manter a compostura, mas só o mistério masculino ao seu lado chamava sua atenção. Imagens passaram, lindas, impressionantes, das várias maneiras como
ele a fizera conhecer o erotismo da intimidade do casal.

Seus últimos passos rumo aos aposentos do conde foram inseguros. Súbito, o rosto do Sr. Conway apareceu na frente dela.

- Por favor, aguardem aqui. Preciso anunciá-los e confirmar se pode recebê-los. Se não puder, tentaremos amanhã.

Conway entrou no quarto e voltou logo. Abriu a porta branca almofadada e deu passagem.

O conde estava sentado numa grande poltrona verde ao lado da lareira acesa. Mantas cobriam as pernas e os pés, que descansavam num suporte. A idade e a doença tinham
reduzido qualquer semelhança com o filho, exceto talvez por certo orgulho.

Os cabelos grisalhos do conde tinham sido cuidadosamente penteados e o rosto, muito bem barbeado. Apesar da doença, seu criado pessoal o arrumara com gravata e um
colete de seda colorido. Rose esperava que a parte escondida pela manta também estivesse apresentável num dia em que ele não esperava sair daquela cadeira.

O casal foi examinado por olhos bem mais argutos que os de Norbury. Surgiu um sorriso no rosto pálido. Que foi só de um lado da boca. O resto ficou flácido, consequência
das apoplexias que o conde sofrera.

- Bem, aproxime-se, Bradwell. Traga sua esposa aqui para eu vê-la.

A doença não afetara o tom de comando, apesar de ter enrolado as palavras.

Kyle conduziu Rose e fez as apresentações formais. O conde a olhou dos pés à cabeça.

- Conway disse que tem um recado para mim, Sra. Bradwell. De Easterbrook.

- Tenho, sim. O marquês envia seus cumprimentos e sinceros votos por uma pronta recuperação.

- É mesmo? Não vejo Easterbrook há anos. Desde que voltou tão estranho e diferente daquela viagem para Deus sabe onde. Não fui muito a Londres. Que generoso ele
se lembrar de mim e enviar cumprimentos.

O tom era sarcástico e os olhos, bastante espertos. Rose procurou não corar ao ver que ele tinha percebido o ardil facilmente.

- Leve uma resposta ao marquês, Sra. Bradwell. Faria isso por um velho moribundo?

- Claro, Sir.

- Diga que ele foge vergonhosamente aos seus deveres. Que está na hora de parar de ser excêntrico e participar do mundo. Precisa casar, ter um herdeiro e assumir
seu posto no governo. Aquela família é muito inteligente para desperdiçar isso e a vida não é para ser levada como se quer. Essa é a maldita verdade.

- Prometo que transmitirei sua opinião.

- Opinião? Diabos! Palavra por palavra, é como vai transmitir, sem suavizar nada, como fazem as mulheres - exigiu ele, e um riso rouco escapuliu. - Mas espere até
eu morrer. Se ele não gostar, pode se vingar no meu filho.

- Se devo esperar até que o senhor morra, garanto que vou demorar a cumprir essa obrigação. Com sua licença, sairei para deixar que meu marido fale com o senhor
a sós.

 

Cottington observou Rose sair do quarto. Fez um gesto para seu secretário.

- Pode ir. Se eu precisar de você, o Sr. Bradwell o chamará.

Assim que Conway saiu, o conde deu outra ordem.

- Tem conhaque naquele armário lá, Kyle. Sirva um pouco para mim e para você, se quiser. Eles não me deixam beber nada. Acham que devo enfrentar a morte completamente
sóbrio.

Kyle achou o conhaque e os copos, serviu um dedo para cada um. O conde bebeu como se fosse um néctar.

- É infernal ser tratado como criança. Agora estou melhor que há quinze dias. Passei uma semana precisando dos criados até para os cuidados de higiene mais elementares.

- Parece então que está se recuperando.

- Morro até chegar o verão, se não antes. Não preciso que o médico me diga. Eu sei. É estranho, mas a pessoa sabe.

Descansou o copo e usou um lenço para enxugar o conhaque que tinha escorrido no lado paralisado da boca.

- Linda a sua esposa. O bastante para fazer com que o resto não tenha muita importância, imagino. O irmão, coisa e tal.

- Quanto ao coisa e tal, obrigado pelo presente de casamento.

O conde achou graça.

- Meu filho vai ficar furioso. Seria melhor se você não se tivesse se envolvido desta vez. Azar. Seria melhor que não tivesse sido você a forçá-lo pela segunda vez
a encarar o próprio comportamento desonroso.

Apesar do riso, os olhos do conde mostravam muita tristeza. Piscou para afastá-la. Norbury era apenas mais uma decepção numa vida que, como todas, tinha várias.

- Quer dizer que veio até aqui para se despedir, não? Gostei.

- Sim, mas também trago um pedido, que não sabia que faria até que cheguei a Teeslow.

- Não posso fazer mais nada por ninguém.

Kyle falou sobre a mina. O conde ouviu, sério.

- Era uma rica jazida - disse ele. - Quiseram voltar alguns anos depois, eu impedi. Já tinha vendido quase tudo, mas minha opinião ainda importava. Às vezes, ser
conde ajuda. Meu filho não vai agir como eu. Mesmo assim, vou escrever e usar a minha influência, mas quando eu morrer...

Quando ele morresse, o desejo de lucro pesaria mais numa avaliação em que a vida dos homens valia pouco.

- Mesmo se demorarem alguns meses, vai dar tempo de se acalmarem - disse Kyle. - Os mineiros estão com os ânimos exaltados. Se houver uma voz forte, um líder, haverá
problema.

O conde suspirou e fechou os olhos. Ficou assim tanto tempo que pareceu ter caído no sono. Kyle tinha resolvido sair sem fazer barulho, quando o conde voltou a falar.

- Não vamos nos ver mais, Sr. Bradwell. Se quer perguntar alguma coisa, tem que ser agora. - Os olhos se abriram e o encararam. - Tem perguntas, não?

Kyle tinha várias. A mais recente, entretanto, não podia ser feita. Embora ela permanecesse em sua mente. Não podia perguntar a um moribundo se seu único filho tinha
sido pior quando menino do que quando adulto.

- Tenho uma pergunta.

- Pois faça.

- Por quê?

- Por que o quê?

- Fez tudo por mim. Por quê?

- Ah. Essa pergunta - falou o conde e parou para pensar. - Fiz, em parte, por impulso. Em parte, por instinto.

De novo aquele sorriso pela metade.

- Primeiro, eu sabia que, se você ficasse em Teeslow, os mineiros teriam uma voz e um líder dali a poucos anos, quando você ficasse adulto.

Kyle o observou, avaliando se o conde falava sério. Durante todos os anos em que trocaram generosidade e gratidão, nunca lhe passara pela cabeça que o conde tivesse
motivos ocultos. Principalmente, porque Kyle não achava que a generosidade pudesse trazer alguma vantagem para um conde.

- Bom, não foi só por isso. Lá, você seria desperdiçado. Percebi logo. Vi em seus olhos e em sua determinação. Naquele dia, quando você chegou todo limpo e arrumado,
vi o homem que um dia poderia ser. Já tinha ouvido falar em você. Soube do menino que sugeriu que cavássemos de cima para chegar àquele túnel quando ele desmoronou.

- Teria dado certo.

- Não interessa se eu achava que ia ou não. O simples fato de que um menino pensasse isso e ousasse propor... Trouxeram você até mim no dia seguinte ao que bateu
em meu filho, e a lembrança do administrador rindo daquela audácia veio à minha cabeça não sei como. Eu sabia que aquele menino tinha sido você. Sabia, mas, de todo
jeito, conferi.

Enxugou a saliva que se formou no canto da boca.

- Depois, aquela questão com meu filho. Lá estava você outra vez, ousando o que muitos homens não ousariam. Portanto, em parte fiz aquilo para você não ser desperdiçado.
E, em parte, para não se tornar um líder deles.

O conde fez uma pausa, então voltou a falar.

- Admito que, em parte, fiz também para castigar meu filho, favorecendo o menino que bateu nele. Claro que isso não adiantou muito. Como você sabe mais que qualquer
um, ele até hoje se comporta de maneira vergonhosa com as mulheres.

Era isso. Kyle já sabia quase tudo. A generosidade não tivera motivações totalmente caridosas, mas poucos atos ou decisões humanos tinham.

O rosto inteiro do conde perdeu a firmeza. Como se o dano do lado ruim invadisse o lado bom.

- O senhor está cansado, precisa repousar. Vou embora. Obrigado por me receber.

Antes que Kyle pudesse se afastar, o conde esticou a mão para ele. Kyle a segurou e, pela primeira vez, sentiu o cumprimento daquele homem como o de um amigo.

- Você não é pior por isso, não importa o motivo - disse o conde, com voz enrolada. - Mas imagino que, de vez em quando, deseje que eu não houvesse interferido.

- Se pesarmos as perdas e os ganhos, veremos que lucrei muito. Mas, sejam quais foram os seus motivos, agradeço. Jamais o esquecerei. Nem meus filhos e os filhos
deles.

O aperto de mão ficou mais forte. Os olhos do velho pareceram cobertos por uma fina película. Fechou-os. A mão caiu, depois subiu num gesto derradeiro de bênção
e despedida.

 

Quando saiu do quarto de Cottington, Kyle parecia calmo. Rose o deixou com seus pensamentos enquanto desciam a escada e saíam no frio.

Ele não entrou logo na carruagem; deu uma volta e olhou o lago. Ela o seguiu e esperou. Não estava se despedindo apenas de um homem. Com a morte de Cottington, uma
fase inteira de sua vida terminaria.

- Você veio aqui muitas vezes? - perguntou ela.

- Não muitas. Mas, quando fui embora para estudar, o conde mandava me chamar sempre que eu vinha para casa entre os períodos de aula. Na primeira vez, metade do
vilarejo seguiu o mensageiro até a casinha do meu tio: queriam saber o que estava acontecendo.


- O conde recebia você regularmente, portanto.

- Sim. Talvez fizesse parte do aprendizado.

- É mais provável que quisesse saber do seu progresso. E você trazia notícias de Durham, mais tarde de Paris e Londres. Garanto que a sua conversa era mais interessante
do que a da maioria das pessoas aqui do condado.

- Talvez.

Ele deixou a carruagem esperar enquanto caminhava pela propriedade.

Rose o acompanhou.

- Falou com ele sobre a mina?

Kyle concordou com a cabeça.

- Ele vai fazer o possível, mas, no máximo, a obra será adiada. Isso pode dar tempo para verem o que é mais seguro. Há como fazer isso.

Ele não parecia acreditar que fossem fazer o mais seguro.

- Acho que você fez tudo o que podia.

- Fiz?

Eles viraram e voltaram para a carruagem.

- Você está calado, Kyle. O encontro não foi bom? Não pôde falar o que queria?

- O encontro foi muito bom. Ele estava aberto a perguntas e respondeu tudo o que, em sã consciência, eu podia perguntar.

- Tinha alguma coisa que você não podia perguntar?

- Só uma. Eu queria saber, pois ele é a única pessoa que responderia honestamente. Mas, ao vê-lo... achei que o assunto só lhe traria tristeza e era só para satisfazer
a minha curiosidade.

- Se só restou uma pergunta entre os dois, o encontro foi muito bom. Acho que poucas pessoas que se conhecem têm apenas uma pergunta não respondida.

Kyle encarou a esposa. De repente, não estavam mais falando de Cottington, mas de si mesmos.

- Ele está morrendo, Rose. Não tem mais nada a perder por dar respostas. Não haverá orgulho ferido nem consequências ruins. Nem para quem pergunta nem para quem
responde.

Chegaram à carruagem. Ele ficou menos calado na viagem de volta a Teeslow.

- Você também está pensativa, Rose. Tem alguma pergunta?

- Tenho várias, mas não é por isso que estou séria. Penso se sobreviverei ao encontro com Easterbrook quando fizer a reclamação de Cottington.

 

A carruagem estava quase passando de Teeslow, quando Kyle reparou no silêncio. Tinha ficado tão perdido em pensamentos que o silêncio incomum não chamara sua atenção.

Mandou a carruagem parar. Olhou pela janela.

Rose também olhou.

- O que foi? Acho que está tudo calmo.

- Calmo demais. A essa hora, a estrada devia ter mais movimento. As mulheres deviam estar aqui.

Ele apurou os ouvidos, atento. Olhou para os telhados das casas e chalés. Onde estariam todos? Na mina? Era cedo demais para terem agido. Sobravam apenas a taberna
ou a igreja.

Abriu a porta da carruagem e saltou. Rose segurou a saia e estendeu a mão.

- Não, Rose. A carruagem vai levar você até Pru. Eu volto logo.

- Acha que haverá agitação? Perigo?

- Não, mas eu...

- Se não há perigo, não precisa me mandar para casa. Tenho curiosidade por esse vilarejo. Se vai fazer uma visita, quero acompanhá-lo.

Ele colocou o braço no batente da carruagem, impedindo que ela descesse.

- Nos últimos dias, você anda muito curiosa.

- É da natureza feminina. E descobri que satisfazer a curiosidade pode ser prazeroso.

Ela se referia à noite anterior. O que o deixou excitado. Ele ficou cheio de lembranças, de gritos implorando, de toques tímidos mas firmes, das costas dela abaixando
e das nádegas subindo. Das pernas envolvendo-o, ele se perdendo em sua calidez e os dois girando num abraço de corpos e olhares grudados.

As lembranças lhe deram vontade de beijá-la e de possuí-la bem ali, na estrada. Fizeram com que esquecesse todos os motivos por que ela deveria voltar para a casa
dos tios.

Com um olhar atrevido, ela o transformara num idiota.

- Pensa em me mandar para casa, Kyle? Então, devo avisar que os maridos têm um número finito de ordens a dar às esposas e seria tolice desperdiçá-las em bobagens.

Onde estaria sua dócil esposa? A noite anterior tinha mudado mais do que o calor e a intensidade da paixão deles. A formalidade sutil daquele casamento estava sumindo
rápido.

O olhar dela mostrava um claro desafio.

- Pode vir comigo, Rose, mas só se sair assim que eu mandar. Creio que não haverá agitação, mas posso estar enganado. Seria melhor você voltar quando...

Ela olhou para baixo.

Diabos.

Ele disse ao cocheiro onde aguardar e ajudou Rose a descer.

 

O vilarejo estava reunido na igreja. Ouviu as vozes enquanto ele e Rose se aproximavam da velha construção de pedra, com sua torre na fachada. Séculos antes, a igreja
fazia parte de um convento nas terras cedidas por um antepassado de Cottington. Até descobrirem carvão nos arredores, Teeslow tinha sido um simples vilarejo de agricultores.

- Os homens não deviam estar na mina agora? - perguntou Rose.

- Sim, trabalhando com as crianças maiores e até com algumas mulheres.

Kyle abriu a antiga porta de madeira e o rugido de uma discussão caiu sobre os dois. Entraram e ficaram nos fundos da nave. Poucas pessoas notaram a chegada deles.
Todas as atenções se concentravam nos homens que estavam na frente do altar. Jon estava lá, com os cabelos louros revoltos, tentando fazer prevalecer sua vontade.

Isso parecia impossível. As vozes se cruzavam e se interrompiam. Os ânimos estavam exaltados e agressivos. Gritos de incentivo e de mofa competiam.

- Não consigo nem entender o que está sendo discutido - cochichou Rose.

- Os mineiros receberam ordem hoje de tirar aquela pedra que caiu. Em vez disso, eles foram embora. Estão tentando decidir o que fazer amanhã.

- Pensei que você tinha dito que o túnel desmoronou ainda mais na última vez em que tentaram.

- Os donos da mina enviaram um engenheiro, que garantiu que não haverá outro desmoronamento.

Jon fazia com que algumas vozes atendessem ao seu pedido de não entrar na mina. Mas não era o suficiente, o que significava que não ia resolver nada.

As vozes chegaram até Kyle. Identificou quase todas. Conhecia aqueles homens e brincara com alguns deles nas estradas, quando menino.

Percorreu com o olhar as famílias presentes e parou numa bonita ruiva de pele clara, que segurava duas crianças pelas mãos. Fora com ela que trocara o primeiro beijo,
aos 14 anos.

Uma mulher bem mais bonita estava ao lado dele agora. Ninguém a havia notado ainda, mas notariam logo. A roupa que tinha impressionado Conway parecia ainda mais
luxuosa ali, com seu debrum de pele e seus bordados caros. O gorro que ela usava contrastava com os lenços que as mulheres tinham na cabeça. A pouca luz da velha
igreja parecia se concentrar nela, fazendo sua beleza loura irradiar.

- Temos de ir embora - disse ele.

- Se eu não estivesse aqui, você iria?

Ele não sabia. Aquele não era mais o mundo dele. Não era a luta dele.

- Vou embora se a minha presença comprometer o que você disser, se para eles eu provo apenas que você percorreu um longo caminho, saindo desse vilarejo - disse ela.
- Mas se só sirvo para lembrar o que perderia se falasse, então mais uma pergunta foi respondida, e da maneira que eu não esperava.

Roselyn se virou para o marido.

- Você ainda não é um estranho para eles, mesmo se eles forem cada vez mais estranhos para você.

A compreensão o emocionou. O fato de tentar entender o tocou profundamente.

Ele saiu do lado dela e procurou Jon. Como a cabeça dele estava acima das outras na nave, a voz chegou lá.

- Jon, você sabe que não está pronto para isso. Você disse ombro a ombro, mas parece que há ombros aqui que não ficarão ao seu lado.

O barulho diminuiu. Jon o viu.

- Temos aqui um cavalheiro para nos aconselhar. Trouxe sua elegante esposa. Que sorte a nossa de termos o conselho dele.

Kyle não olhou para trás, mas soube pelos murmúrios e exclamações que notaram a presença de Rose.

- Trouxe minha esposa para conhecer meus velhos amigos, Jon. Imagine a minha surpresa ao encontrar uma reunião política nesta igreja. O que esperam ganhar se ficarem
parados, a não ser muitas mulheres e crianças com fome?

- Menos corpos para enterrar.

- Falei hoje com Cottington. Ele vai escrever para os sócios. O túnel não será aberto enquanto ele estiver vivo.

- Você nos conseguiu alguns dias, talvez algumas semanas, nada mais.

- Já basta para garantir que, quando o túnel for aberto, será seguro.

Jon fez pouco.

- Seguro! Disseram hoje para retirarmos aquela pedra. Encontraram um engenheiro que garante que o túnel já é seguro.

- Então você precisa achar alguém que discorde. Alguém que não receba salário dos donos e que tenha estudos para basear suas conclusões.

Kyle foi até a frente da nave.

- Alguém como eu.

Jon consultou os quatro homens que o rodeavam. A igreja ficou num silêncio tenso enquanto eles discutiam.

- Você vai entrar lá? - perguntou o mais velho dos homens, com leve zombaria.

Chamava-se Peter MacLaran e era o radical dos tempos anteriores, que agora passava a coroa para Jon.

- Vai sujar seus casacos elegantes, meu senhor. E pode levar alguns dias. Perderia aqueles jantares finos em Londres.

O sarcasmo de Peter recebeu algumas risadinhas.

- Entro agora mesmo. Não será a primeira vez. Os casacos podem ficar aqui. Arrume umas botas emprestadas para mim e cinco homens que me acompanhem, e começamos hoje.
Não sairei de Teeslow enquanto não souber o que preciso. Se o túnel for perigoso, vou dizer num relatório. Se puder ficar seguro, vou mostrar como. Se, mesmo assim,
eles prosseguirem e houver outro desmoronamento, o relatório vai enforcá-los.

- Eles não vão permitir.

- O nome de Cottington vai me ajudar. Ele ainda não morreu.

Não esperou que Jon e Peter concordassem. Os gritos em volta mostravam que Kyle tinha vencido a discussão.

Ele voltou para onde Rose estava.

- Você deve voltar para Pru agora. Vou levá-la até a carruagem.

- Posso ir sozinha. Faça o que precisa.

Ele desabotoou os casacos, tirou-os e os entregou à esposa. Surgiu um menino trazendo um par de botas. Kyle sentou e as calçou. Cinco mineiros dos mais experientes
esperavam na porta da igreja, com lamparinas.

Rose segurou os casacos e olhou os preparativos. Ficou tão interessada que parecia assistir a um ritual em alguma terra exótica.

- Avise a Pru que vou precisar de muita água quente quando chegar em casa - disse ele.

Ela se esticou para falar no ouvido dele.

- Espero que precise de um bom banho. Talvez esteja tão cansado que eu tenha de ajudar.

Ele ficou excitado na hora. Lembrar-se da noite anterior, das noites por vir, daquele banho, só fez piorar as coisas.

Ele trincou os dentes, olhou para o chão de pedra e se controlou.

- Rose. Querida. Vou ficar horas num poço escuro. Isso foi maldade sua.

Ela nem fingiu constrangimento. Quando ele foi embora, Rose parecia bem satisfeita consigo mesma.

 

 


CONTINUA