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Kafka à Beira-Mar narra as aventuras (e desventuras) de duas estranhas personagens, cujas vidas, correndo lado a lado ao longo do romance, acabarão por revelar-se repletas de enigmas e carregadas de mistério. São elas Kafka Tamura, que foge de casa aos 15 anos, perseguido pela sombra da negra profecia que um dia lhe foi lançada pelo pai, e de Nakata, um homem já idoso que nunca recupera de um estranho acidente de que foi vítima quando jovem, que tem dedicado boa parte da sua vida a uma causa - procurar gatos desaparecidos.
Neste romance os gatos conversam com pessoas, do céu cai peixe, um chulo faz-se acompanhar de uma prostituta que cita Hegel e uma floresta abriga soldados que não sabem o que é envelhecer desde os dias da Segunda Guerra Mundial. Assiste-se, ainda, a uma morte brutal, só que tanto a Identidade da vítima como a do assassino permanecerão um mistério.
Trata-se, no caso, de uma clássica (e extravagante) história de demanda e, simultaneamente, de uma arrojada exploração de tabus, só possível graças ao enorme talento de um dos maiores contadores de historias do nosso tempo.
«Com que então estás safo em matéria de dinheiro, não é?», diz o rapaz chamado Corvo na voz monótona do costume. Aquele tipo de voz que se tem logo ao acordar, quando a boca ainda está seca e sabe a papel de música. Mas é bom de ver que ele está só a armar. A verdade é que não podia estar mais acordado, como de costume.
Digo que sim com a cabeça.
«Quanto?»
Faço mentalmente as contas.
«Quase quatrocentos mil ienes em dinheiro, isto sem contar com o dinheiro que conseguir levantar no multibanco. Bem sei que não é nenhuma fortuna, mas deve chegar. Por agora.»
«Nada mau», diz o rapaz chamado Corvo. «Por agora.»
Aceno outra vez a dizer que sim.
«Aposto que não é dinheiro dado pelo Pai Natal.»
«Podes crer que não», respondo eu.
O Corvo não disfarça um sorrisinho irónico e olha em volta.
«Palpita-me que começaste por esvaziar as gavetas. Acertei?»
Não lhe dou troco. Ele sabe perfeitamente de onde é que vem a guita, por isso não vale a pena perder tempo com perguntas de cha-cha. Está só a ver se me atrapalha.
«Para o caso tanto faz», diz o Corvo. «Precisas da massa. Isso é limpinho. E vais conseguir deitar-lhe a mão dê lá por onde der. Nem que tenhas de pedir, sacar ou roubar. O dinheiro é do teu pai, certo?
Que diferença é que faz? Agarra no que puderes e vê mas é se te safas. Por agora. Mas já pensaste no que é que vais fazer quando não sobrar nada? Olha que o dinheiro não é propriamente como os cogumelos, disso não há para aí aos pontapés, não sei se sabes. E tu precisas de te alimentar, de um sitia para dormir. Um dia a mina acaba por secar.
«Quando chegar a altura, logo vejo», digo eu.
«Quando chegar a altura logo veja», repete o Corvo, como se estivesse a pesar as palavras na palma das mãos.
Aceno com a cabeça.
«Sabes, ainda tens muito que aprender na vida. Ouve uma coisa – que hipóteses tem um miúdo de quinze anos de arranjar emprego num sitio que fica no cu de Judas e onde nunca tenha posto os pés? N« ainda nem sequer acabaste o secundário. Achas que alguém te ia dar emprego?
Começo a corar. Não é preciso muito para me fazer corar.
«Esquece», diz ele. «Afinal de contas estás a acordar para a vida e eu não devia estar para aqui a dar-te cabo da cabeça com esta conversa deprimente. Já tomaste uma decisão, agora só tens de levar a tua avante. No fim de constas, a vida é tua. Basicamente, tens de fazer o que achares melhor, o que te dita a consciência.»
É isso mesmo. Vendo bem, é da minha vida que se trata.
«Agora, deixa-me que te diga uma coisa. Vais ser obrigado a fazer as coisas de outra maneira, vais ter de ser mais duro, se queres ir com isto para a frente.
«Estou a fazer o melhor que posso», digo eu.
«Bem sei», replicou o Corvo. «Tornaste-te muito mais forte nestes últimos anos. Aí, sou obrigado a dar a mão à palmatória.»
Volto a acenar com a cabeça.
«Mas, falando sem papas na língua, a verdade é que só tens quinze anos», continua o Corvo. «A tua vida ainda agora começou e há uma montanha de coisas que desconheces. Coisas que nem sequer te passam pela cabeça.»
Como de costume, estamos sentados um ao lado do outro no velho sofá no escritório do meu pai. O Corvo adora o escritório e todos aqueles pequenos objetos espalhados por tudo quanto é sitio. Agora mesmo está entretido a brincar com um pesa-papéis de vidro que tem a forma de uma abelha. Se o meu pai estivesse em casa, podem crer que nunca na vida o Corvo lhe poria as mãos em cima.
«Só sei que tenho de me ir embora daqui», digo-lhe eu. «Não há outra saída.»
«Tem de ser.» o Corvo volta a colocar o pesa-papéis em cima da mesa e cruza as mãos atrás da cabeça. «Não que fugir de casa seja a solução para tudo. Não quero ser desmancha-prazeres nem nada que se pareça, mas, se fosse a ti, não me punha com grandes planos para me safar daqui. Mesmo que consigas is longe, a distancia pode não te servir de muito.
O rapaz chamado corvo deixa escapar um suspiro e coloca a ponta do dedo por cima das pálpebras. Depois continua a conversar interiormente consigo, na escuridão dos seus olhos fechados.
«E que tal se fossemos ao nosso jogo?», propõe ele.
«Pode ser», digo eu. Fecho os olhos e respiro fundo, lentamente.
«Okay, imagina uma terrível tempestade de areia», avança ele. «Não penses em mais nada.»
Faço como ele diz e liberto o espirito de tudo o mais. A ponto de esquecer quem sou. Fico num vazio total. Depois há coisas que começam a vir à superfície. Coisas que ambos conseguimos vislumbrar, como sempre acontece quando estamos os dois sentados no velho sofá de pele no escritório do meu pai.
«Por vezes o destino é como uma pequena tempestade de areia que não para de mudar de direção», diz o Corvo.
Por vezes o destino é como pequena tempestade de areia que não para de mudar de direção. Tu mudas de rumo, mas a tempestade de areia vai atrás de ti. Voltas a mudar de direção, mas a tempestade persegue-te, seguido no teu encalço. Isto acontece uma vez por outra e outra, como uma espécie de dança maldita com a morte ao amanhecer. Porquê? Porque esta tempestade não é uma coisa que tenha surgido do nada, sem nada que ver contigo. Esta tempestade és tu. Algo que está dentro de ti. Por isso, só te resta deixares-te levar, mergulhar na tempestade, fechando os olhos e tapando os ouvidos para não deixar entrar a areia e, passa a passo, atravessá-la de uma ponta a outra. Aqui não há lugar para o sol nem para a lua; a orientação e a noção de tempo são coisas que não fazem sentido. Existe apenas areia branca e fina, como ossos pulverizados, a rodopiar em direção ao céu. É uma tempestade de areia assim que deves imaginar.
E é exatamente isso mesmo que eu faço. Imagino uma espiral branca que se ergue, na vertical, em direção ao céu, como uma corda grossa. Fecho os olhos com força, tapo os ouvidos com as mãos, para não deixar que os finos grãos de areia penetrem no meu corpo. A tempestade de areia aproxima-se a passos largos. Consigo sentir a pressão do ar de encontro à minha pele. Aproxima-se e está prestes a engolir-me.
O rapaz chamado Corvo pousa a mão ao de leve sobre o meu ombro, e é então que a tempestade se afasta.
«A partir de agora, aconteça o que acontecer, tens de te tornar o rapaz de quinze anos mais forte do mundo. Só assim é que conseguirás sobreviver. Mas para isso é preciso que tenhas consciência do que ser forte implica. Estás a perceber?»
Não respondi, sempre de olhos fechados. Só me apetece continuar assim, com a mão dele no meu ombro, e mergulhar no sono. Oiço um leve bater de asas. «Vais ser o rapaz de quinze anos mais corajoso do mundo», sussurra-me o Corvo ao ouvido, enquanto eu faço os possíveis por me deixar adormecer. Mas as suas palavras são como uma inscrição azul tatuada no mais fundo do meu coração.
E não há maneira de escapar à violência da tempestade, a essa tempestade metafísica, simbólica. Não te iludas: por mais metafísica e simbólica que seja, rasgar-te-á a carne como mil navalhas de barba. O sangue de muita gente correrá, e o teu juntamente com ele. Um sangue vermelho, quente. Ficarás com as mãos cheias de sangue, do teu sangue e do sangue dos outros.
E quando a tempestade tiver passado, mal te lembrarás de ter conseguido atravessá-la, de ter conseguido sobreviver. Nem sequer terás a certeza de a tormenta ter realmente chegado ao fim. Mas uma coisa é certa. Quando saíres da tempestade já não serás a mesma pessoa. Só assim as tempestades fazem sentido.
No dia em que fizer quinze anos fujo de casa o sigo viagem até uma cidade distante e ficarei aí a viver, num canto de uma pequena biblioteca qualquer. Nem uma semana chegava para contar a história toda, de fio a pavio. Por isso fico-me pelo essencial.
No dia em que fizer quinze anos fujo de casa e sigo viagem até uma cidade distante, e ficarei aí a viver, num canto de uma pequena biblioteca qualquer.
Assim dito, quase parece o início de um conto de fadas. Mas não é de um conto de fadas que se trata, acreditem. Por mais voltas que se dê à imaginação.
Não é só dinheiro o que levo do escritório do meu pai ao sair de casa. Comigo trago também um pequeno isqueiro de ouro - gosto da forma que tem e de sentir aquele peso na mão - e um canivete com uma lâmina extremamente afiada. Serve para esfolar veados, só a lâmina mede doze centímetros, e pesa que se farta. Se calhar foi uma recordação de uma das suas viagens ao estrangeiro. Deito ainda a mão a uma robusta lanterna de bolso que está guardada numa gaveta. Mais uns óculos escuros Revo com lentes de um azul-metálico.
Ainda penso em trazer o Rolex Sea Oyster preferido do meu pai. Trata-se de um magnífico relógio, mas tudo o que seja ostensivamente caro só servirá para atrair as atenções. O meu Casio barato de plástico com despertador e cronómetro serve lindamente e se calhar até pode dar mais jeito. Depois de alguma hesitação, volto a guardar o Rolex na gaveta.
Do fundo de outra gaveta tiro uma fotografia em que estou eu e a minha irmã mais velha, tirada na praia quando éramos pequenos, os dois com uma expressão forçada na cara. A minha irmã está a olhar de lado, por isso tem metade da cara na sombra e o sorriso literalmente cortado ao meio. É como uma daquelas máscaras da tragédia grega que se veem nos livros da escola: metade exprime uma coisa, a outra metade exprime uma coisa diferente. Luz e sombra. Esperança e desespero. Alegria e tristeza. Confiança e solidão. Pela parte que me toca, estou a olhar descontraidamente em frente, para a máquina. Nao se vê mais ninguém na praia. A minha irmã e eu temos os fatos de banho vestidos - o dela, inteiro, é vermelho às flores, o meu, uns velhos calções azuis todos largueirões. Tenho qualquer coisa na mão que parece ser um tubo de plástico. A branca espuma das ondas banha os nossos pés.
Quem tirou esta fotografia, e quando e onde, não faço ideia. E por que carga de água estou com um ar tão feliz? E por que razão foi precisamente essa a única fotografia que o meu pai guardou? Mistério total.
Eu devia ter os meus três anos, e a minha irmã nove. Será que um dia fomos assim tão próximos? Não guardo a mais pequena lembrança de ter alguma vez ido à praia com a minha família. Mais, não tenho a mais pequena recordação de ter ido com eles a parte alguma. Para o caso tanto faz. Não faço tenções de deixar ficar a foto em casa do meu pai, por isso vamos mas é guardá-la na carteira. Da minha mãe não tenho fotografias. O meu pai deitou-as todas fora.
Depois de pensar duas vezes, decido levar o telemóvel. Assim que der pela falta dele, é provável que o meu pai dê ordem à companhia dos telefones para que seja desativado. Atiro com ele para dentro da mochila, juntamente com o carregador. Também não pesa muito, por isso pouca diferença faz. Quando deixar de trabalhar, deito-o fora e acabou-se.
Só preciso do essencial. O mais difícil é escolher a roupa para levar. Vou precisar de duas ou três camisolas e de roupa interior. Agora, quantos pares de calças e quantas camisas? Luvas, cachecóis, calções, um casaco? A lista nunca mais acaba. De uma coisa tenho a certeza. Não pensem que vou andar por aí com uma mochila enorme às costas a que só falta um letreiro a dizer: Olhem, ali vai o rapaz que anda fugido! Era meio caminho andado para ser apanhado pela polícia e mandado direitinho para casa. Isto se um gangue qualquer não me apanhasse primeiro.
Um sítio onde faça frio está fora de questão. Por isso, resta-me escolher o contrário, que é como quem diz, um sítio quente. Assim posso esquecer o casaco e as luvas, e levar só metade da roupa. Escolho a roupa mais leve que tenho, tudo coisas que sejam do tipo-lavar-e-secar, dobro-as cuidadosamente e meto-as dentro da mochila.
Guardo também um saco-cama para as Ires estações, que posso enrolar facilmente até ficar espalmado, artigos de higiene, um impermeável para a chuva, caderno de apontamentos e caneta, um discman e dez CD - sem a minha música é que não passo -, sem esquecer algumas pilhas recarregáveis. E pouco mais. Dispenso o fogão de campismo, que é muito pesado e ocupa demasiado espaço, uma vez que posso sempre comprar comida na loja mais próxima.
Demora um bocado, mas lá acabo por riscar uma data de coisas da minha lista. Acrescento outras coisas, risco-as. Depois junto mais coisas e volto a riscá-las outra vez.
O meu décimo quinto aniversário é o momento certo para fugir de casa. Antes teria sido demasiado cedo. Mais tarde, e arriscava-me a perder a oportunidade.
Durante os dois primeiros anos do secundário, nunca deixei de fazer exercício, preparando-me para este dia. Comecei a praticar judo nos dois primeiros anos do ensino básico e mesmo no secundário continuei a aparecer por lá volta e meia. Mas nunca fiz parte de nenhuma equipa na escola. Quando tinha tempo, costumava correr, nadar ou ir até ao ginásio local. Os professores novos não levavam nada por me explicar a melhor maneira de fazer exercícios de alongamento e até me ajudavam a usar os aparelhos de musculação. Ensinaram-me quais os músculos que eram usados no dia-a-dia e quais os que só com a ajuda das máquinas conseguiria exercitar, e até fiquei a saber utilizar corretamente o bank press. Neste ponto é preciso dizer que sou consideravelmente alto, e graças a todo este exercício desenvolvi a largura de ombros e os peitorais. As pessoas que não me conhecem costumam dar-me dezassete anos. Se eu fugisse de casa e parecesse ter a idade que tenho, imaginem os problemas que isso não causaria.
Tirando os professores no ginásio e a empregada que trabalha em nossa casa dia sim, dia não - e, claro, o mínimo de conversa indispensável para me safar na escola , não falo praticamente com ninguém. Durante muilo tempo o meu pai e eu mal nos cruzávamos. Vivemos debaixo do mesmo teto, mas temos um ritmo de vida completamente diferente. Ele passa a maior parte do tempo longe daqui, fechado no seu ateliê, e eu, pela parte que me toca, faço os possíveis por evitar a sua presença.
Ando numa escola particular do ensino secundário frequentada por jovens da classe alta, para não dizer que são ricos. A não ser que um aluno faça asneira da grossa, é aquele tipo de escola em que os anos letivos se fazem com uma perna às costas e que dá automaticamente acesso à universidade. Todos os estudantes andam sempre bem vestidos, têm dentes perfeitos e só sabem é manter conversas desinteressantes. Escusado será dizer que não fiz nem um amigo. À minha volta ergui uma barreira, atrás da qual me escondo e não deixo nunca entrar os outros. Quem poderia gostar de uma pessoa assim? Todos eles me observam de longe, à socapa. Se calhar detestam-me, ou então têm receio de se aproximar de mim. Tanto faz, desde que me deixem em paz. Porque a verdade é que eu tenho uma montanha de coisas para tratar, incluindo passar grande parte dos meus tempos livres a devorar livro atrás de livro na biblioteca da escola.
Apesar de tudo isso, nunca deixei de prestar atenção ao que era dito nas aulas, seguindo à letra os conselhos do rapaz chamado Corvo.
Os factos e a teoria ou lá o que vos ensinam na escola não vai servir de muito no mundo real, isso é limpinho. Podes ter a certeza de que os professores não passam quase todos de um punhado de débeis mentais. Mas uma coisa é certa: estás a preparar-te para fugir de casa. Se calhar nunca mais tens hipótese de ir às aulas, por isso, gostes ou não, o melhor que tens a fazer é aproveitar a oportunidade ao máximo. Faz de conta que és uma folha de papel mata-borrão e trata de absorver tudo o que puderes. Mais tarde logo decides o que é que te interessa reter e o que não te serve para nada.
Fiz como ele dizia. Neste ponto convém dizer que, regra geral, sigo os conselhos dele à risca. Apurei os sentidos e usei o meu cérebro como uma esponja, atento a cada palavra que era dita na sala de aulas e captando tudo, a fim de perceber o significado das coisas e de conservar tudo na memória. Graças a isso, consegui quase sempre as notas mais altas nos exames, e sem ter de queimar as pestanas.
Os meus músculos ficaram rijos como aço, ao mesmo tempo que eu me mostrava cada vez mais metido comigo mesmo. Esforcei--me por esconder as minhas emoções para que ninguém - nem colegas nem professores - ficasse com a mínima ideia do que me passava pela cabeça. Não tardaria a ser atirado às feras no mundo dos adultos, e sabia que teria de ser mais forte do que todos os outros, isto se queria sobreviver.
Os olhos que vejo refletidos no espelho são frios como os de um lagarto, e a minha expressão dura e impenetrável. Não me lembro da última vez que soltei uma gargalhada ou que lancei um sorriso de esguelha a outra pessoa qualquer. Nem sequer a mim próprio arranquei um sorriso.
Não estou a querer insinuar que esta fachada, feita de silêncio e solidão, seja para durar sempre. Por vezes, o muro que ergui em meu redor desmorona-se. Não acontece muitas vezes, mas volta e meia, inesperadamente, lá dou por mim exposto aos olhos do mundo, nu e completamente desnorteado. Nessas alturas, costumo ter um pressentimento que me atrai para as profundezas de um lago de águas negras e turvas.
Um lago de águas negras e turvas.
O mais provável é ter estado sempre ali, escondido algures. Mas, quando chega a hora, extravasa silenciosamente, gelando todas as células do corpo. Afogas-te nessa torrente cruel, lutando para respirar. Sobes até alcançar um respiradouro ao pé do teto, sem nunca deixares de te debater, mas o ar que chega até aos teus pulmões é quente e seco e queima-te a garganta. Água e sede, frio e quente - estes elementos, aparentemente opostos, combinam-se para te subjugar.
O mundo é um espaço imenso, mas não vislumbras o espaço que te está reservado, e que nem sequer precisa de ser muito grande, bastando qualquer cantinho. Procuras uma voz, e o que é que encontras? O mais profundo silêncio. Procuras o silêncio, mas só consegues ouvir a voz da profecia. E por vezes esta voz profética aciona um interruptor secreto bem escondido lá no fundo do teu cérebro.
O teu «oração é como um grande rio depois de uma forte chuvada que transborda, invadindo as margens. Todos os postes de sinalização que em tempos existiram no local desapareceram, inundados e arrastados pela corrente. E a chuva continua a cair desalmadamente sobre o leito do rio. De todas as vezes que observas nas notícias uma paisagem devastada pela força da corrente, como essa, repetes a ti próprio: É exatamente assim que o meu coração se sente.
Antes de fugir de casa, passo as mãos e a cara por água, aparo as unhas, lavo as orelhas e escovo os dentes. Demoro uma eternidade a lavar-me, até ficar com a certeza de ter o corpo todo bem esfregado. Andar bem limpo é muitas vezes o mais importante de tudo. Olho para a minha cara no espelho. Os genes que herdei do meu pai e da minha mãe - apesar de eu não me recordar minimamente dela -ajudaram a criar a este rosto. Posso fazer os possíveis para não deixar transparecer as minhas emoções, posso impedir os meus olhos de revelarem seja o que for, posso aumentar os músculos, mas pouco ou nada posso fazer para mudar de cara. Não me posso livrar das sobrancelhas longas e espessas, separadas por rugas profunda, iguaizinhas às do meu pai. Se quisesse, poderia matá-lo - com a força que tenho, não teria a mínima dificuldade - e apagar da memória a recordação da minha mãe. Mas não há forma de apagar o DNA que eles me transmitiram. Se quiser livrar-me dele, tenho de arranjar maneira de me ver livre de mim próprio.
Há nisto um presságio. Um mecanismo interior que serve para me programar.
Um mecanismo interior que serve para te programar.
Apago a luz e saio da casa de banho. Um silêncio pesado e opressivo reina por toda a casa. O rumor de pessoas que não vivem ali, o hálito dos que estão mortos. Fico ali parado, a olhar em volta, e respiro fundo. O relógio indica que pouco passa das três da tarde. Frios e distantes, os dois ponteiros parecem imparciais, mas a verdade é que não estão do meu lado. Está quase na hora de me despedir destas paragens. Pego na mochila e ponho-a aos ombros. Apesar de já estar mais do que habituado a carregar com ela, parece-me agora muito mais pesada.
O meu destino é Shikoku. É para aí que me proponho seguir viagem. Não que exista alguma razão especial para ter escolhido Shikoku. Mas ao estudar o mapa tive o palpite de que deveria seguir esse rumo. Quanto mais olho para o mapa - para dizer a verdade, de todas as vezes que me debruço sobre o mapa -, mais sinto que Shikoku chama por mim. Fica muito mais a sul do que Tóquio, separada do continente pelo mar, e possui um clima temperado. Nunca ali estive, não tenho amigos nem conheço lá ninguém. Por isso, no caso de andarem à minha procura, coisa que duvido que haja alguém que faça, Shikoku seria o último lugar que lhes passaria pela cabeça.
Vou ao balcão levantar o bilhete com lugar reservado e meto-me no autocarro da noite. É a maneira mais económica de chegar a Taka Matsu, custa pouco mais de dez mil ienes. Ninguém me liga nenhuma, pergunta que idade tenho ou olha para mim duas vezes. Por dever de ofício, o condutor do autocarro confere maquinalmente o meu bilhete.
Apenas um terço dos lugares estão ocupados. Tal como eu, também a maioria dos passageiros viajam sozinhos, e no autocarro reina um silêncio fora do normal. A viagem até Taka Matsu é bastante longa. A acreditar no horário, demora cerca de dez horas, pelo que devemos lá chegar de manhãzinha cedo. Mas a mim tanto me faz. Tenho muito tempo. O autocarro sai do terminal pouco depois das oito, e eu inclino o meu assento para trás. Mal acabo de me instalar, a minha consciência começa a apagar-se, como uma pilha que ficou sem carga, e adormeço.
A meio da noite começa a cair uma forte chuvada. Acordo de tempos a tempos, espreito por entre as cortinas de tecido grosseiro e fico a ver a autoestrada deslizar na noite. Pingos de chuva tamborilam no vidro, transformando numa mancha esborratada a luz dos candeeiros que ao longo do trajeto se perdem na distância a intervalos regulares como se tivessem sido alinhados com o propósito de medir a terra. Uma nova luz aproxima-se rapidamente e desaparece no instante seguinte. Olho para o relógio e vejo que passa da meia-noite. Empurrado automaticamente para a frente, anuncia-se o meu décimo quinto aniversário.
«Muitos parabéns», diz o rapaz chamado Corvo. «Obrigado», respondo eu.
Como uma sombra, a profecia persegue-me. Depois de me certificar de que a parede à minha volta continua no seu lugar, fecho a cortina e volto a adormecer.
O documento em anexo, classificado como «ultra-secreto» pelo Departamento de Defesa dos Estados Unidos, foi dado a conhecer ao público em 1986 através da Acta de Liberdade de Informação. O documento encontra-se no Arquivo Nacional, em Washington, D C, e aí pode ser consultado.
As investigações aqui registadas foram desenvolvidas sob a orientação do major James P. Warren, entre Março e Abril de 1946. A investigação terreno, no condado de (rasurado), Prefeitura de Yamanashi, foi conduzida pelo segundo-tenente Robert O'Connor e pelo sargento-mor Harold no Katayama. As entrevistas foram todas conduzidas pelo tenente O'Connor. O sargento Katayama teve a seu cargo a tradução do japonês e o soldado William Cohen foi responsável pela elaboração do relatório. As entrevistas foram conduzidas durante um período de doze dias na sala de reuniões da Câmara de (rasurado), na prefeitura de Yamanashi. Foram estas as testemunhas que responderam individualmente às questões colocadas pelo tenente O’Connor: uma professora da es< ola secundária do condado de (rasurado), da cidade de (rasurado), um médico residente na mesma cidade, dois polícias de serviço na esquadra local e seis crianças.
Os mapas da área em questão à escala 1:10 000 e 1:2000 foram fornecidos pelo Serviço de Cartografia do Ministério dos Negócios Estrangeiros.
Relatório dos Serviços de Informação do Exército dos Estados Unidos (MIS)
Data: 12 de Maio de 1946
Título: Relatório sobre o Incidente na Colina da Tigela de Arroz, 1944
Número do documento: PTYX-722-8936745-42216-WWN
Gravação da entrevista com Satsuko Okamochi (26), professora que tinha a seu cargo a turma B do quarto ano da escola secundária pública da cidade de (rasurado), no condado de (rasurado). O acesso a toda a informação adicional relativa à entrevista pode ser feito através do número PTYX-722-SQ-118.
Observações do entrevistador, tenente Robert 0'Connor: «Satsuko Okamochi é uma mulher elegante, de feições corretas. Inteligente e responsável, respondeu às perguntas com precisão e honestidade. Apesar disso, e na sequência do acidente, apresenta sinais de se encontrar ainda em estado de choque. Por vezes, ao recapitular os acontecimentos, deu mostras de grande nervosismo, revelando nessas ocasiões tendência para se exprimir com maior lentidão.»
Julgo que deve ter sido pouco depois das dez da manhã que avistei uma coisa prateada a brilhar no céu. Uma espécie de clarão brilhante com reflexos prateados. E isso mesmo, aquilo que vi foi sem sombra de dúvida um reflexo metálico. Esse clarão percorria o céu muito devagar e movimentava-se de leste para oeste. Pensámos todos que só podia ser um B-29. Encontrava-se mesmo por cima de nós, por isso bastava-nos olhar para cima para podermos vê-lo. O céu estava muito límpido e a luz era de tal maneira ofuscante que só conseguimos perceber que se tratava de um material prateado, parecido com duraluminio. Mas não conseguimos ver que forma tinha, uma vez que nos encontrávamos muito longe. Parti do princípio de que eles também não conseguiam ver-nos, por isso não receámos ser atacados nem ficámos à espera de ver cair de repente uma bomba em cima de nós. De resto, que sentido faria andar a largar bombas no meio das montanhas? Calculei que o avião se preparasse para bombardear uma grande cidade, ou então que estaria de regresso de alguma missão. Por isso, continuámos o nosso caminho. Só me lembro de pensar na estranha beleza que emanava daquela luz.
Segundo os registos militares, nenhum bombardeiro americano nem (ou) qualquer outro avião sobrevoaram aquela região na altura mencionada, ou seja, por volta das dez da manhã.
Mas eu vi-o claramente, o mesmo acontecendo com todas as dezasseis crianças que estavam comigo. E todos ficámos com a impressão de se tratar de um 6-29. Estávamos fartos de observar muitas formações de B-29, e sabíamos que um avião capaz de voar assim tão alto só podia ser um B-29. Havia uma pequena base aérea instalada na nossa prefeitura e já por mais de uma vez eu tinha observado os aviões japoneses no ar, mas eram todos mais pequenos e nunca poderiam voar tão alto como aquele que eu vi. Além disso, o duraluminio reflete a luz de forma diferente da que se vê nos outros tipos de metal, e os únicos aviões feitos disso são os B-29. No entanto, achei um tanto ou quanto estranho andar por ali um avião isolado a voar, sem fazer parte de nenhum esquadrão.
Nasceu aqui, nesta região?
Não. Nasci em Hiroxima. Casei-me em 1941, e só depois disso é que vim para cá. O meu marido era professor de música numa escola secundária desta prefeitura. Foi mobilizado em 1943 e morreu em combate em I u/on, cm junho de I94. Por aquilo que vim mais tarde a saber, ele estava de guarda a um depósito de munições à saída de Manila quando este foi bombardeado pelos americanos e explodiu, causando a sua morte. Não tínhamos filhos.
Por falar em crianças: quantas é que tinha a seu cargo nesse passeio?
Dezasseis ao todo, entre rapazes e raparigas. Tirando duas, que estavam doentes, tinha comigo a turma inteira. Cinco eram miúdos que tinham sido evacuados de Tóquio.
Deixámos a escola deviam ser umas nove da manhã. Era um passeio escolar igual aos outros e, como tal, toda a gente levava os termos e as lancheiras com o almoço. Não havia nenhum assunto em concreto que tivéssemos em mente investigar; tratava-se apenas de uma excursão pela montanha para apanhar cogumelos e plantas selvagens comestíveis. Vivíamos numa zona rural, povoada de quintas, por isso não se pode dizer que tivéssemos falta de alimentos, o que não é propriamente o mesmo que dizer que tínhamos comida em abundância. O sistema de racionamento, então em vigor, era extremamente rigoroso e a grande maioria dos habitantes passava fome muitas vezes.
Por isso, os mais novos eram encorajados a ir por ali fora à procura de tudo o que fosse bom para comer. Afinal de contas, o país estava em guerra, e a subsistência era mais importante do que os estudos. Toda a gente participava nestes passeios organizados pela escola - «aulas ao ar livre», como então lhes chamavam. Uma vez que a nossa escola estava rodeada de montanhas e bosques, havia muitos locais aprazíveis por onde escolher. Não se pode dizer que estivéssemos mal servidos nessa matéria. Isto porque, verdade seja dita, as pessoas que viviam nas cidades passavam fome. As rotas de abastecimento a partir de Taiwan e do continente tinham sido cortadas e as áreas urbanas estavam a sofrer horrores com a falta de alimentos e de combustível.
Referiu que cinco dos seus alunos tinham sido evacuados de Tóquio. E eles entendiam-se bem com as crianças locais?
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Na minha turma, pelo menos, davam-se bem. Claro está que existia uma grande diferença entre um grupo e outro, entre aqueles que tinham crescido no meio do campo e os que sempre haviam sido educados em plena cidade de Tóquio. Falavam de maneira diferente e até a maneira de vestir era outra. Enquanto a maior parte dos que ali residiam eram filhos de agricultores pobres, a maioria das crianças vindas de Tóquio tinham pais que trabalhavam em empresas ou que eram funcionários públicos. Por isso não posso dizer que se entendessem por ali além.
Sobretudo no princípio, verificou-se que existia uma certa tensão entre os dois grupos. Não quero com isto dizer que eles brigassem uns com os outros ou andassem à pancada, porque não era verdade que isso acontecesse. Estou a dizer que um grupo parecia não compreender o que ia na cabeça do outro grupo. Por isso, a tendência era ficarem cada um na sua, os miúdos que eram dali brincavam entre si e os que vinham de Tóquio faziam um grupinho à parte. Mas isto foi só durante os dois primeiros meses. Depois disso começaram a dar-se bem melhor. Sabe como são as coisas. Quando as crianças começam a brincar juntas e se entretém com o que estão a fazer, as barreiras quebram-se e deixam de ligar importância ao resto.
Gostaria agora que descrevesse, tão detalhadamente quanto possível, o local para onde levou as crianças naquele dia.
Ficava numa colina onde íamos muitas vezes em passeio. Tinha um cabeço redondo, que parecia uma tigela virada ao contrário. Costumávamos chamar-lhe a Colina da Tigela de Arroz. Ficava para oeste, não muito longe da escola, e como era pouco íngreme toda a gente podia subir facilmente até lá acima. Quando íamos com os miúdos levávamos cerca de duas horas a chegar ao topo. Pelo caminho eles metiam-se pelo meio do bosque à procura de cogumelos e quando chegava a hora do almoço comíamos qualquer coisa. Claro está que as crianças preferiam mil vezes essas excursões a terem de ficar fechadas na sala de aulas a estudar.
Por momentos, o avião reluzente que vimos passar lá em cima trouxe-nos à memória a guerra, mas essa impressão não tardou a desvanecer-se, e a boa disposição voltou a reinar. Não havia uma nuvem no céu, não soprava nem uma aragem, e à nossa volta reinava a tranquilidade, tudo o que ouvíamos eram os pássaros a chilrear nas árvores. Era como se a guerra fosse algo que estava a acontecer num país distante, nada tendo que ver connosco. Íamos cantando à medida que subíamos a encosta, por vezes imitando o canto dos pássaros que conseguíamos distinguir. Tirando o facto de ainda haver guerra, podíamos dizer que era uma manhã perfeita.
Foi pouco depois de ter avistado aquilo que lhe pareceu ser um avião que correu a esconder-se nos bosques, correto?
Sim. Julgo que ainda não deviam ter passado cinco minutos quando chegámos ao bosque. Saímos do trilho principal e seguimos ao longo de um carreiro de terra batida, por sinal mais íngreme, que levava até ao cimo do monte. Depois de dez minutos sempre a subir, chegámos a uma clareira, uma área lisa como o tampo de uma mesa. Assim que mergulhámos no bosque fez-se o mais absoluto silêncio e ficou mais fresco, visto que o sol ali não conseguia penetrar, mas depois, quando entrámos na clareira, sentimo-nos como se tivéssemos chegado a uma pequena praça em plena cidade, com o sol a brilhar lá no alto. A minha turma parava sempre naquele sítio quando subíamos a Colina da Tigela de Arroz. O lugar possuía uma espécie de efeito calmante e, vá lá saber-se porquê, transmitia-nos um sentimento de calma e de paz.
Uma vez chegados àquele «sítio», fizemos uma pausa para descansar, pousámos as mochilas e os miúdos organizaram-se em grupos de três ou quatro e meteram-se dentro da mata à procura de cogumelos. Eu insistia sempre na necessidade de eles nunca se perderem de vista. Antes de eles dispersarem, juntei-os todos e fiz questão de verificar se tinham entendido isso mesmo. Conhecíamos bem o sítio, mas não deixávamos de estar metidos no meio do bosque, e caso algum deles se separasse do grupo e ficasse perdido, depois ia ser uma carga de trabalhos para o encontrar. Contudo, é preciso não esquecer que estamos a falar de crianças. Entretidas a procurar cogumelos, o mais provável é esquecerem-se de uma regra desse género. Por isso é que eu faço sempre questão de os ter debaixo de olho quando andamos a apanhar cogumelos, isto para além de passar o tempo a contá-los, para ver se estão todos andávamos à procura de cogumelos há coisa de dez minutos quando as crianças começaram a perder os sentidos.
Assim que vi um grupo de três crianças desmaiadas no chão, pensei logo que elas tinham comido cogumelos venenosos. Naquelas bandas o que há mais são cogumelos altamente venenosos, e existe mesmo uma espécie que pode revelar-se fatal. As crianças da região sabem quais são os que podem ser apanhados, mas o certo é que algumas variedades mal se distinguem. Foi por isso que eu sempre avisei as crianças para nunca levarem diretamente os cogumelos à boca até chegarmos à escola e podermos examiná-los com a ajuda de quem saiba. Mas não podemos estar sempre à espera de que os mais novos nos dêem ouvidos, pois não?
Corri para o local e peguei, uma a uma, nas crianças caídas por terra. Tinham o corpo mole, pareciam feitas de borracha quando é deixada ao sol. Era como se estivéssemos a carregar conchas vazias - toda a energia parecia ter sido sugada. Mas continuavam a respirar normalmente. Verifiquei que o pulso também batia normalmente e nenhuma delas revelava ponta de febre. Estavam com um ar calmo, o que não aconteceria se sentissem dores. Vi logo que não tinham sido mordidas por abelhas nem por cobras. As crianças estavam pura e simplesmente inconscientes.
O mais estranho de tudo eram os olhos. Tinham o corpo tão frouxo como se estivessem em coma e, contudo, os olhos continuavam abertos, como se olhassem para alguma coisa. Volta e meia pestanejavam, por isso dava para ver que não estavam a dormir. E os olhos mexiam-se muito devagarinho para a esquerda e para a direita, como se eles observassem uma cena ao longe. Pelo menos o olhar deles dava a entender que tinham consciência do que se passava. Mas não estavam propriamente a olhar para algo de concreto, pelo menos que me parecesse. Por mais de uma vez abanei as mãos à frente deles, mas sem obter qualquer reação.
Peguei em cada uma das crianças, à vez, e todas elas estavam na mesma. Que é como quem diz, todas inconscientes, ao mesmo tempo que os olhos se moviam devagar de um lado para o outro. Foi a coisa mais estranha que alguma vez vi na minha vida.
Lembra-se de quem caiu primeiro?
Foi um grupo do raparigas, Iodas amigas umas das outras. Chamei-as alto pelo seu nome e bati-lhes na cara, e com bastante força, mas não reagiram. Pelos vistos não sentiam nada. Foi uma sensação estranha, como se estivesse a tocar no vazio.
A minha primeira reação foi mandar alguém a correr à escola a fim de pedir ajuda. Não havia qualquer hipótese de carregar sozinha as três crianças inconscientes. Por isso tratei de ver se encontrava um dos rapazes, que era o mais rápido da turma. Mas quando me levantei e olhei à minha volta, reparei que todas as crianças tinham desmaiado. Sem exceção, todos os dezasseis alunos estavam caídos no chão, sem sentidos. A única pessoa, ali, ainda consciente e de pé era eu. Parecia que estava... num campo de batalha.
Reparou em algo de inusitado no local? Algum cheiro esquisito, alguma luz estranha?
[Depois de refletir um bocado]. Não, como já disse, estava tudo muito calmo e sossegado. Não havia nada que se parecesse com sons ou luzes ou cheiros esquisitos. A única coisa estranha era o facto de todos os meus alunos terem perdido os sentidos e jazerem ali inconscientes. Senti-me terrivelmente sozinha, como se fosse a única pessoa viva no mundo. Nem consigo descrever esse sentimento da mais absoluta solidão. Só queria desaparecer, evaporar-me no ar, sem pensar em nada.
Mas claro que não podia fazer isso. Na qualidade de professora, tinha as minhas responsabilidades. Lá me consegui recompor e desci a encosta o mais depressa que as pernas me permitiram, até à escola, a fim de ir buscar ajuda.
Quando acordo já está quase a amanhecer. Afasto a cortina e dou uma espreitadela à paisagem. Deve ter parado há pouco de chover, visto que ainda está tudo molhado e a pingar. A leste, as nuvens recortam-se uma a uma contra o céu, emolduradas com nitidez por um caixilho de luz. O céu muda de cor num abrir e fechar de olhos. Num minuto mostra um aspeto ameaçador e no minuto seguinte parece convidativo.
O autocarro abre caminho através da auto-estrada a boa velocidade. Os meus ouvidos captam o ruído monótono dos pneus, que nunca aumenta nem abranda o ritmo. O mesmo acontece com o motor, cujo som monocórdico ressoa como um morteiro, pulverizando o tempo e a consciência das pessoas que seguem viagem. Todos os outros passageiros têm as cortinas fechadas e dormem, recostados nos assentos. O condutor e eu devemos ser os únicos acordados. Impassíveis e apáticos, aproximamo-nos do nosso destino quase sem darmos por isso.
Quando a sede aperta, tiro a garrafa de dentro da mochila e bebo um gole de água mineral morna. Da mesma bolsa tiro uma embalagem de bolachas de água e sal e como umas duas ou três, apreciando o gosto familiar e seco que fica na boca. Segundo o meu relógio de pulso, são quatro e vinte e três da manhã. Confirmo a data e o dia da semana, para que não restem dúvidas. Passaram treze horas desde que saí de casa, mas o tempo parece não ter andado nem para a frente nem para trás. Ainda faço anos. Ainda vou a meio do primeiro dia do resto da minha vida. Fecho os olhos e volto a abri-los, lomando a confirmar as horas e a data no meu relógio. Depois, acendo a lâmpada de leitura, tiro um livro de bolso da mochila e começo a ler.
Pouco depois das cinco, o autocarro sai de repente da autoestrada e para na esquina do parque de estacionamento de uma área de descanso. A porta pneumática da frente abre-se com um breve silvo, as luzes acendem-se no interior e o motorista faz um breve aviso. «Bom dia a todos, senhores passageiros. Espero que tenham conseguido descansar. Estamos a cumprir o nosso horário e daqui a cerca de uma hora chegaremos à estação de Taka Matsu. Mas antes vamos fazer aqui uma paragem de vinte minutos. A partida é às cinco e meia, por isso agradeço que estejam de volta ao autocarro a essa hora.»
O anúncio tem o condão de acordar a maioria dos passageiros, que se levantam trôpegos e, sem dizer palavra, saem ainda a bocejar. É aqui que as pessoas se tornam apresentáveis antes da chegada a Taka Matsu. Saio também, respiro fundo duas ou três vezes e faço meia dúzia de exercícios de alongamento ao ar fresco da manhã. Dirijo-me à casa de banho dos homens e passo a cara por água. Gostava de saber onde diabo estaremos nós. Vou até lá fora e olho à minha volta. Não vejo nada que desperte a minha atenção, apenas a paisagem típica que é costume encontrar na berma das autoestradas. Talvez eu esteja a imaginar coisas, mas a forma das montanhas e a cor das árvores parecem ser diferentes das que encontramos em Tóquio.
Estou dentro da cafetaria, a beber uma chávena de chá quente oferecida, quando aparece uma rapariga que vem sentar-se no assento de plástico ao lado do meu. Na mão direita tem um copo de papel cheio de café ainda a fumegar que comprou numa máquina de bebidas quentes. Na mão esquerda, segura uma caixinha com uma sanduíche lá dentro - pelos vistos, outro produto que fazia parte da oferta gastronómica disponibilizada pela máquina automática de bebidas e refeições ligeiras.
É gira, embora não se possa dizer que seja propriamente bonita. Tem a testa larga, o nariz pequeno e bem feito, as faces sardentas e as orelhas compridas e ligeiramente pontiagudas. No seu conjunto, uma cara com traços fortes e marcantes. Todavia, não se pode dizer que o todo não seja harmonioso.
Os seus brincos de metal brilham como alumínio. Tem o cabelo pintado de castanho-escuro, quase ruivo, pelos ombros, e veste uma camisa de mangas compridas e colarinho subido com riscas largas. Usa uma pequena mochila de pele ao ombro e uma camisola de malha fininha atada ao pescoço. Uma minissaia creme, sem meias, completa o conjunto. É óbvio que acabou de refrescar a cara, uma vez que tem ainda algumas madeixas de cabelo que se agarram à testa larga, como raízes finas de uma planta. Por estranho que pareça, essas madeixas soltas tornam-na simpática aos meus olhos.
-Vinhas no autocarro, não vinhas? - pergunta ela, numa voz meio rouca.
- Vinha.
Ela franze a testa ao mesmo tempo que bebe um gole de café.
Que idade tens?
Dezassete - minto.
Então estás a acabar o secundário. Faço sinal que sim com a cabeça.
Para onde vais?
Taka Matsu.
É como eu - replica ela. - Vais visitar alguém ou vives lá?
Vou de visita - respondo.
Eu também. Tenho lá uma grande amiga. E tu?
Pessoas de família.
Acena com a cabeça como quem diz «estou a perceber». Acabam-se as perguntas.
- Tenho um irmão mais novo mais ou menos da tua idade acrescenta ela de repente, como se tivesse acabado de se lembrar disso. - Mas aconteceu uma cena qualquer e não nos vemos há muito tempo... Sabes uma coisa? Pareces-te imenso com aquele tipo. Já alguma vez te disseram isso?
- Que tipo?
- Sabes, o tipo que canta naquela banda! Mal te pus os olhos, naquele autocarro, pensei logo que eras a cara chapada dele. Dei voltas à cabeça, mas não consigo atinar com o nome. Acontece, às vezes. Temos uma coisa na ponta da língua, mas não somos capazes de encontrar as palavras. Num a ninguém te disse que fazias lembrar alguém?
Abano a cabeça. Nunca encontrei ninguém que me dissesse isso. Ela continua a observar-me fixamente, com os olhos semicerrados.
Que tipo de pessoa? - pergunto.
Um tipo que aparece televisão.
Na televisão?
Exato - diz ela, pegando na sanduíche de presunto e dando uma dentadinha insípida ajudando o pão a ir para baixo com um gole de café. - Um tipo que canta numa banda qualquer. Bolas! Também não me consigo lembrar do nome da banda. É um tipo alto que canta com sotaque de Kansai. Não fazes ideia de quem estou a falar?
A mínima ideia. Não vejo televisão.
A rapariga franze o sobrolho e deita-me um olhar incrédulo.
- Não vês televisão nunca?
Sem dizer palavra, abano a cabeça. Espera aí - não será melhor fazer sinal com a cabeça? Faço que sim com a cabeça.
- Não se pode dizer que sejas lá muito falador, pois não? F quando abres a boca é para dizer uma frase de cada vez.
És sempre assim tão calado?
Coro. Para começar, sou pessoa de poucas falas, mas, em parte, a razão pela qual não quero dizer muita coisa prende-se
com o facto de a minha voz ainda não ter mudado completamente. Na maior parte das vezes tenho uma voz grave, mas,
de repente, prega-me uma partida e transforma-se num guincho. Por isso, esforço-me por falar o mais baixo e o menos
possível.
- Pronto - prossegue ela -, o que estou a tentar dizer é que tu és muito parecido com aquele cantor com o dialeto de
Kansai. Não que tu fales em dialeto de Kansai, nem nada que se pareça. O que acontece é que... não sei explicar bem,
mas tens qualquer coisa dele. E ele parece ser um tipo muito simpático, é só isso.
Por momentos o sorriso abandona o seu rosto, para depois regressar, e durante esse intervalo continuo a sentir-me vermelho como um tomate.
-Ainda ficavas mais parecido com ele se mudasses de penteado - diz ela. - Deixa-o crescer mais um bocado e põe gel para ficar mais espetado. Adorava experimentar. De certeza que te ficava a matar. Como já deves ter percebido, sou cabeleireira.
Aceno com a cabeça e dou um golinho no chá. Na cafetaria está tudo muito calmo. Não se ouve a habitual música de fundo, não se ouve mais voz nenhuma.
- Se calhar não gostas de falar? - pergunta ela, pousando a cabeça numa das mãos e lançando-me um olhar sério.
Abano a cabeça.
- Não, não é isso.
- Achas que é uma chatice ter de falar com as outras pessoas? Volto a fazer que não com a cabeça.
Ela pega na outra sanduíche com doce de morango em vez de presunto, depois franze a testa e olha para mim com uma expressão desconcertada.
- Não queres comer isto por mim? A coisa que mais detesto no mundo são sanduíches de doce de morango. Desde pequena.
Aceito a sanduíche, apesar de sanduíches de doce de morango não serem propriamente a minha refeição preferida.
Em vez disso, não digo nada e começo a comer.
Do outro lado da mesa ela observa-me até eu acabar de comer.
Tenho um favor a pedir-te - diz.
Um favor?
- Posso seguir viagem a teu lado até chegarmos a Taka Matsu? Não consigo descontrair-me quando vou sentada sem
ninguém ao pé. Imagino sempre que vai aparecer alguém esquisito que se senta ao meu lado e depois já não consigo
dormir. Quando comprei o bilhete disseram-me que eram tudo lugares separados, mas ao entrar no autocarro vi logo
que eram duplos. Preciso de passar pelas brasas antes de chegarmos, e tu pareces ser um tipo simpático. Pode ser?
- Não tem problema.
- Obrigada - diz ela. - «Em viagem, companhia, na vida, compaixão», como diz o ditado.
Aceno com a cabeça. Nada faço senão acenar com a cabeça. Por um lado custa-me, mas o que há para dizer?
Como é o resto? - quer ela saber.
Como é o resto?
- O que vem a seguir a «companhia»? Não me lembro. Nunca fui muito boa a japonês.
- Na vida, compaixão - digo eu.
- Em viagem, companhia; na vida, compaixão - repete ela, como que para ter a certeza. Se tivesse papel e lápis ali à mão, não me admirava que escrevesse. - O que é que quer realmente dizer? Trocado por miúdos.
Aquilo dá-me que pensar. Demoro um bocado a reunir os meus pensamentos, mas ela espera pacientemente.
- Penso que significa - afirmo eu - que são os encontros casuais que nos fazem andar para a frente. Isto trocado por miúdos.
Aquilo dá-lhe que pensar. Volta depois a colocar devagarinho as mãos em cima da mesa e deixa-as lá ficar.
- Penso que tens razão. Quer dizer, quando afirmas que os encontros casuais é que nos fazem andar para frente.
Dou uma olhadela ao relógio. Já são cinco e meia. -Talvez fosse melhor regressarmos.
- Sim, é melhor. Vamos embora - diz ela, não fazendo menção de se levantar.
- A propósito, onde estamos? - pergunto.
- Não faço ideia - é a resposta dela. Estica o pescoço e percorre o local com o olhar. Os brincos oscilam de um lado para o
outro como duas peças de fruta maduras prontas a serem colhidas. Pelo adiantado da hora diria que estamos próximo de Kurashiki, não que isso adiante alguma coisa. Uma área de descanso na autoestrada e apenas um sítio de passagem que fica
entre dois pontos. – Levanta o indicador direito e o indicador esquerdo. A distância entre eles é de doze centímetros, mais coisa menos coisa.
- Que importância tem o nome do local? - insiste. - Não falta nada. As casas de banho e a comida. As luzes fosforescentes e
as cadeiras de plástico. O café intragável. As sanduíches de doce de morango. Nada disso interessa - isto partindo do princípio
de que de que estás interessado em saber. O que conta é saber de onde viemos e para e para onde vamos, não te parece?
Quando regressamos, todos os outros passageiros se encontram sentados nos seus lugares e o autocarro está à nossa espera
para arrancar. O motorista é um rapaz novo com uma expressão grave que me faz lembrar um vigilante implacável.
Dispara um olhar desaprovador na nossa direção por causa do atraso, mas não diz nada. A rapariga lança-lhe um olhar ino-
cente que é uma espécie de pedido de desculpas. Ele puxa uma alavanca e a porta fecha-se atrás de nós com um silvo.
A rapariga vai buscar a sua malinha e senta-se a meu lado. Pelo aspeto, a mala deve ter sido comprada numa loja dos trezentos. Pego nela e arrumo-a na rede por cima de nós. É incrivelmente pesada para o seu tamanho. Ela agradece-me, depois inclina o assento para trás e deixa-se dormir. Como se mal pudesse esperar para seguir viagem, o autocarro começa a rolar na estrada no preciso instante em que acabamos de nos instalar. Pego no meu livrinho e retomo a leitura no ponto onde tinha ficado.
A rapariga não tarda a adormecer e, a cada curva que passa, a cabeça dela começa a deslizar até acabar por cair sobre o meu ombro. Respira tranquilamente pelo nariz, de boca fechada, e sinto a sua respiração regular no meu ombro. Se olhar para baixo, consigo ver um bocadinho da alça do sutiã através do colarinho da camisa, uma tira estreitinha de cor creme. Imagino o tecido delicado no fim da tira, os seios macios que ele esconde. Os mamilos rosados rijos sob o toque da minha mão. Não que eu queira imaginar tudo isto. Mas é mais forte do que eu. Como não podia deixar de ser, fico com uma ereção enorme. Tão forte que pergunto a mim mesmo como é que é possível uma parte do meu corpo ficar assim tão dura.
De repente sou assaltado por um pensamento. Se calhar - atenção, se calhar - esta rapariga é minha irmã. Deve andar mais ou menos pela idade dela. Os seus traços singulares não têm nada que ver com as da rapariga que aparece na fotografia, mas as fotos por vezes enganam. Às vezes as pessoas ficam com um aspeto completamente diferente, tudo depende das condições em que a fotografia foi tirada. Ela disse que tinha um irmão da minha idade que não via há séculos. Haverá alguma hipótese de esse irmão ser eu - pelo menos em teoria?
Olho para o peito dela. Com a respiração, os bicos redondos oscilam para cima e para baixo imitando o movimento das ondas, lembrando-me de certa forma a chuva a cair de mansinho numa vasta faixa do oceano. Eu sou o marinheiro solitário no convés, e ela, o mar. Ao longe, o céu é um manto plúmbeo que se confunde com o cinzento do horizonte. Torna-se difícil distinguir onde acaba o céu e começa o mar. Onde acaba o viajante e começa o mar. Onde acaba a realidade exterior e começam os movimentos do coração.
A rapariga usa dois anéis nos dedos. Nenhum deles é uma aliança nem um anel de noivado, têm aspecto de ser bijutaria barata, dessa que se encontra à venda nas lojas para gente nova. Apesar de compridos e magros, os seus dedos são fortes, com as unhas, pequenas c muito bem arranjadas, pintadas de rosa-pálido. As suas mãos repousam ligeiramente em cima dos joelhos postos a nu pela minissaia. Sinto--me tentado a tocar naquelas mãos, mas é claro que não o faço. P.irece uma criança, assim a dormir. Uma orelha pontiaguda espreita por entre as madeixas de cabelo, como um pequeno cogumelo, estranhamente frágil.
Fecho o livro e ponho-me a olhar durante um bocado para a paisagem que vejo desfilar pela janela. Mas não tarda muito, também cu acabo por me deixar dormir.
Relatório dos Serviços de Informação do Exército dos Estados Unidos (MIS)
Data: 12 de Maio de 1946
Título: Relatório sobre o Incidente na Colina da Tigela de Arroz, 1944
Número do documento: PTYX-722-8936745-42216-WWN
Entrevista gravada com o Dr. Juichi Nakazawa (53), responsável por uma clínica na cidade de (rasurado) na altura do incidente. Todo o material relativo às informações prestadas neste relatório pode ser consultado através do número PTYX-722-8936745-42216-WWN.
Observações do entrevistador, tenente Robert O'Connor: «O Dr. Nakazawa possui uma compleição tão robusta e uma pele tão escura que mais parece um capataz de uma herdade do que um médico. Tem uma maneira calma de se exprimir, mas, ao mesmo tempo, é bastante vivo e conciso e diz exatamente aquilo que lhe vai na cabeça. Por detrás dos óculos, os seus olhos denotam um espírito atento e sagaz, e pode-se confiar na sua memória.»
As coisas passaram-se do seguinte modo. As onze da manhã do dia 7 de Novembro de 1944, recebi uma chamada telefónica do director da escola básica local. Há muitos anos tinha exore ido funções de médico na escola, essa a razão de lerem entrado em contato comigo o diretor estava terrivelmente preocupado. Contou-me que no decorrer de um passeio pelos montes para apanhar cogumelos uma turma inteira tinha ficado sem dar acordo de si. Segundo ele, estavam totalmente inconscientes. Só a professora que tomava conta deles permanecera consciente, tendo na altura regressado à escola a correr para ir buscar ajuda. Ela estava tão fora de si que tive dificuldade em perceber exatamente o que se passava, mas havia um facto que não deixava dúvida alguma: ao todo, havia dezasseis crianças desmaiadas no bosque.
Os miúdos tinham ido apanhar cogumelos, por isso a primeira coisa que pensei foi que eles tivessem comido alguns que fossem venenosos e ficado paralisados. Se fosse o caso, teria sido muito grave. Cada variedade de cogumelos tem o seu grau específico de toxicidade, e o tratamento varia consoante os casos. Na altura, tudo o que podíamos fazer era uma lavagem ao estômago e pouco mais. No caso das variedades altamente tóxicas, o veneno consegue entrar no sangue muito rapidamente e podíamos já não ir a tempo. Por estas bandas, várias pessoas morrem por ano devido à ingestão de cogumelos venenosos.
Enfiei dentro da mala alguns medicamentos e primeiros socorros para fazer face ao sucedido numa primeira fase, peguei na bicicleta e dirigi-me à escola o mais rapidamente possível. Tinham chamado a polícia e já se encontravam no local dois agentes. Sabíamos que era preciso trazer as crianças inconscientes para a cidade, por isso organizámo-nos em grupo para as ir buscar. Quando digo nós, refiro--me a mim próprio, aos dois polícias, a um professor mais velho, ao diretor e vice-diretor da escola e ao porteiro. Isto sem esquecer a professora de turma que tinha a seu cargo os miúdos. Pegámos em Iodas as bicicletas que conseguimos encontrar, mas mesmo assim não chegaram, pelo que nalguns casos tiveram de ir dois montados numa bicicleta.
Quanto tempo demoraram a chegar ao local?
Faltavam cinco para o meio-dia. Sei a hora exata porque lembro me de consultar o relógio assim que chegámos ao local. Fomos de bicicleta até ao cimo da colina, o mais longe que pudemos, e depois fizemos o resto do caminho a pé.
Quando chegámos lá acima, havia várias crianças que já tinham recuperado os sentidos. Três ou quatro, se bem me lembro. Não se podia dizer que estivessem na plena posse dos seus sentidos, pois mal se aguentavam em pé. O resto continuava inconsciente. Passado um bocado, alguns desses miúdos começaram a voltar a si, rastejando pelo chão como se fossem vermes gigantes. Foi um espetáculo deveras bizarro. Curiosamente, as crianças estavam caídas num espaço aberto e plano em plena mata, como se todas as árvores tivessem sido abatidas, e com o radioso sol de Outono a incidir neles. E ali estavam eles, no meio daquele local ou nas imediações, dezasseis alunos da primária espalhados por terra, em diferentes posições, alguns começando a dar sinais de vida, outros completamente imóveis. Tudo aquilo me fez lembrar uma peça de teatro de vanguarda.
Durante um momento esqueci-me de que estava ali para tratar dos miúdos e, perante aquele cenário, limitei-me a ficar de pé, embasbacado. E não se julgue que fui só eu. Todas as pessoas que faziam parte da equipa de salvamento reagiram da mesma maneira, ficando petrificados com aquilo que estavam a ver. Bem sei que talvez possa parecer estranho o que a seguir vou dizer, mas era como se tivesse havido um erro qualquer que nos permitia ver aquilo que, regra geral, as pessoas nunca conseguem ver. Estávamos em guerra, e, na minha qualidade de médico, eu achava-me mentalmente preparado para todas as eventualidades, dada a remota possibilidade de algo terrível acontecer no país. Estava preparado, enquanto bom japonês, para cumprir o meu dever, caso fosse necessário. Mas, ao deparar-se-me aquela cena no bosque, devo confessar que fiquei literalmente sem pinga de sangue.
Não tardei, contudo, a recuperar o sangue-frio e a pegar numa das crianças. Era uma menina e estava completamente inerte, os braços e as pernas bamboleantes como os de uma boneca de trapos. Apesar de respirar normalmente, continuava sem dar acordo de si. Os olhos, porém, estavam abertos e mexiam-se de um lado para o outro, como se estivesse à procura de alguma coisa. Tirei uma lanterna pequena da minha maleta e fi-la incidir sobre as suas pupilas. Não obtive qualquer reação. Os olhos mexiam-se agitadamente nas órbitas, parecendo seguir alguma coisa, e, apesar disso, não reagiam à luz. Aproximei-me de várias outras crianças, examinei-as e posso afirmar que todas elas se encontravam no mesmo estado, que é como quem diz, sem dar acordo de si. A situação pareceu-me muito invulgar.
A seguir senti-lhes o pulso e tirei-lhes a febre. O pulso oscilava entre cinquenta e cinquenta e cinco batimentos e a temperatura do corpo era abaixo dos trinta e seis graus. Creio que tinham trinta e cinco e meio. Sim, é isso, nas crianças daquela idade esta pulsação pode considerar-se muito inferior aos valores normais, sendo a temperatura cerca de um grau abaixo da febre que é normal nos adultos. Verifiquei também o hálito, mas não detetei nenhum cheiro especial. Fiz o mesmo em relação à garganta e à língua, com idêntico resultado.
Depreendi de imediato que não existiam quaisquer sintomas de intoxicação alimentar. Ninguém tinha vomitado nem estava com diarreia, e nenhuma das crianças parecia ter dores. Se tivessem comido alguma coisa estragada, era de esperar que, passado todo aquele [empo, se fizesse sentir pelo menos um daqueles três sintomas. Suspirei do alívio ao verificar que não se tratava de um caso de envenenamento. Mas fiquei na mesma em relação à causa de tudo aquilo. A verdade é que continuávamos sem uma pista que apontasse para o que tinha acontecido.
Os sintomas eram os mesmos de uma insolação, um mal que no Verão afeta muitas vezes os mais novos. É como se fosse contagioso - um deles apanha sol a mais e depois todos os seus amigos, um por um, desatam a experimentar os mesmos sintomas. Mas é preciso ver que estávamos em Novembro, em pleno bosque e expostos ao ar fresco. Que um ou dois tivesse apanhado uma insolação, ainda vá, agora que de/asseis crianças sucumbissem de uma assentada sob o efeito do sol intenso, isso já me parecia extremamente improvável.
A seguir pensei que pudesse tratar-se de gás venenoso ou de gás nervoso, quer se tratasse de um fenómeno natural ou de um produto fabricado pelo homem. Mas por que carga de água o gás ia aparecer no meio do bosque, e logo num local tão remoto do país? Aos meus olhos tudo era um enigma. Mas o certo é que a explicação do gás venenoso faria sentido e serviria para justificar logicamente o que me foi dado ver naquele dia. Quereria dizer que todos tinham respirado o mesmo ar, perdendo logo aqui os sentidos. O facto de a professora responsável não ter desmaiado ficava a dever-se ao facto de a concentração de gás não ser suficientemente forte para afetar um adulto.
Mesmo assim, continuei sem saber o que fazer para tratar as crianças. Sou apenas um simples médico de província e, como tal, não possuo quaisquer conhecimentos aprofundados em matéria de gases venenosos. Decididamente, aquela não era a minha especialidade. Como, ainda por cima, nos encontrávamos longe de tudo e de todos, nem sequer podia pegar no telefone e ligar a um especialista. Verdade seja dita que algumas crianças estavam, ainda que muito lentamente, a melhorar, e parti do princípio de que, com o tempo, todas elas acabariam por recuperar os sentidos. Bem sei que a previsão pecou por excesso de otimismo, mas confesso que foi o que na altura me veio à cabeça. Por isso, sugeri que as deixássemos ali ficar sossegadas durante mais algum tempo para ver o que é que acontecia.
Notou alguma coisa de estranho no ar?
Também coloquei essa questão a mim próprio. Daí que tenha inalado várias vezes profundamente pelo nariz para ver se conseguia detetar algum odor estranho. Mas ali apenas se respirava o ar puro e revivificante das montanhas, a fragrância dos bosques. E tão-pouco se notava algo de anormal no que às plantas e flores diz respeito. Não havia nada que tivesse mudado de forma ou perdido a cor.
Um por um, examinei os cogumelos que as crianças tinham colhido. Não eram assim tantos quanto isso, o que me levou a concluir que elas haviam desmaiado pouco depois de terem começado à procura deles. Não passavam de cogumelos vulgares, perfeitamente comestíveis. Há já uns bons anos que sou médico aqui e estou familiarizado com as diferentes variedades que existem. Claro está que, jogando pelo seguro, recolhi amostras de todos eles e levei-as comigo para serem examinadas por um especialista. Mas tanto quanto me parecia todos eles eram cogumelos comestíveis, perfeitamente inofensivos.
Referiu que os olhos das crianças desmaiadas se mexiam de um lado para o outro. Para além disso, apercebeu-se da existência de qualquer outro sintoma ou reação fora do comum? Por exemplo, o tamanho das pupilas, a transparência da córnea, a frequência do movimento das pálpebras?
Não. Tirando o facto de os olhos se moverem da esquerda para a direita como holofotes, não me pareceu que houvesse mais alguma coisa fora do vulgar. Todas as outras funções estavam perfeitamente normais. As crianças olhavam para qualquer coisa. Para ser mais claro, não olhavam para algo que nós pudéssemos ver, mas sim para algo que não conseguíamos ver. Era como se elas estivessem a observar algo, em vez de se limitarem a olhar. Não se pode dizer que tivessem qualquer expressão, mas, de uma forma geral, pareciam i almas, sem aparentar medo nem dor de espécie alguma. Essa foi uma das razões pela qual decidi que o melhor seria deixá-las ali e ver de que modo a situação evoluía. Achei que, se elas não estavam a sofrer, o melhor era deixá-las ficar durante mais algum tempo e esperar para ver.
Alguém colocou a hipótese de as crianças terem sido vítimas de algum gás?
Sim. Mas, tal como eu, ninguém conseguiu explicar como é que isso podia ter acontecido. Quer dizer, nunca se viu alguém ir dar um passeio de bicicleta e acabar gaseado. Só houve uma pessoa creio que se tratou do vice-diretor - que aventou a hipótese de o gás, ler sido lançado pelos americanos. Devem ter largado uma bomba com gás tóxico, disse ele. A professora lembrava-se de ter visto aquilo que parecia ser um B-29 a sobrevoá-los, momentos antes de começarem a escalada. Todos foram da opinião de que se deveria ter tratado de uma bomba com um novo gás tóxico desenvolvido pelos americanos. Até mesmo àquela região já haviam chegado rumores acerca de uma nova espécie de bomba que estaria a ser desenvolvida pelos americanos. O que ninguém conseguia explicar era a razão que os levaria a lançarem sua mais recente bomba num local tão remoto, tão longe de ludo e de todos. Para isso não encontrámos qualquer explicação plausível. Mas a verdade é que nesta vida os erros acontecem, e quer-me bem parecer que ele há coisas que escapam à nossa capacidade de compreensão.
Depois de tudo isso, as crianças acabaram aos poucos por recupera, não é verdade?
Exatamente. Nem dá para explicar como fiquei aliviado. Primeiro começaram a contorcer-se todas, depois sentaram-se, ainda meio estonteadas. Nenhuma se queixou de dores durante todo esse processo. Aconteceu tudo de uma forma muito serena, como se estivessem a acordar de um sono profundo. E à medida que recuperaram consciência o movimento dos olhos ficou outra vez normal. Quando lhes apontei a lanterna às pupilas, tiveram uma reação normal à luz. Mas demoraram ainda algum tempo a recuperar a fala, como acontece quando se acorda estremunhado.
Perguntámos a cada uma das crianças o que acontecera, mas elas pareciam desorientadas, como se lhes estivéssemos a fazer perguntas sobre uma coisa que não tivesse nada que ver com elas. De ter subido o monte e começado a apanhar cogumelos, isso sim, lembravam-se. Tudo o resto era um vazio total. Não tinham noção da passagem do tempo. Começaram a apanhar cogumelos, depois caiu o pano, e para ali ficaram, deitadas por terra, com todos aqueles adultos à volta. As crianças não conseguiam perceber a razão de ser de toda a nossa inquietação, ali parados a olhar para elas com uma expressão angustiada. Quase parecia que era a nossa presença que lhes metia medo.
Infelizmente, houve uma criança que não recuperou os sentidos. Era uma das crianças evacuadas de Tóquio. Satoru Nakata, creio que era esse o nome dele. Um rapazinho pálido. Foi ele o único que não voltou a si. Ficou deitado no chão, com os olhos a moverem-se de um lado para o outro. Tivemos de carregar com ele às costas o caminho todo até lá abaixo. As outras crianças desceram pela encosta como se nada tivesse acontecido.
Para além desse rapaz, Nakata, nenhuma das outras crianças voltou mais tarde a manifestar quaisquer sintomas?
Pelo menos tanto quanto me foi dado ver, não, não manifestaram sintomas estranhos. Ninguém se queixou de dores nem de mal-estar. Assim que chegámos à escola, levei as crianças para a enfermaria e examinei-as uma por uma - tirei-lhes a temperatura, auscultei o coração com o estetoscópio, fiz-lhes um exame ocular. Tudo o que na altura podia ter feito, fiz. Pulos a resolver alguns problemas de aritmética de fácil resolução, mandei-os ficar apoiados num pé de olhos fechados, e coisas do género. Fisicamente, não detetei qualquer problema. Nem sequer pareciam cansados e mostravam bastante apetite. Uma vez que não tinham almoçado, todos eles afirmaram estar com fome. Devoraram as bolas de arroz que lhes servimos até à última migalha.
Alguns dias mais tarde voltei à escola para observar de novo as crianças. Chamei alguns deles à enfermaria e estive a fazer-lhes perguntas. Uma vez mais, parecia estar tudo bem. Quer do ponto de vista físico quer emocional, a estranha experiência por que tinham passado não deixara qualquer vestígio. Nem sequer se lembravam do que acontecera. O incidente não deixara marcas e as suas vidas regressaram ao mesmo de sempre. Continuavam a ir às suas aulas, a cantar as suas canções, a brincar lá fora durante o recreio, enfim, tudo o que os miúdos normalmente fazem. Com a professora, no entanto, a história foi outra. E, diga-se em abono da verdade, ela parecia ainda em estado de choque.
Quanto ao rapaz, o tal Nakata, continuou sem dar acordo de si, pelo que no dia seguinte teve de ser levado para o hospital universitário em Kofu. Depois disso foi transferido para um hospital militar e jamais regressou à nossa cidade. Nunca soube o que foi feito dele.
Este incidente não chegou às páginas dos jornais. O meu palpite e que as autoridades tomaram a decisão de proibir a sua divulgação, acreditando que a notícia só iria provocar o pânico. É preciso não esquecer que durante a guerra os militares tudo fizeram para calar os boatos postos a correr. A guerra não estava a correr de feição, com as tropas a recuarem na frente sul, ataques suicidas uns atrás dos outros, raides aéreos sobre as cidades cada vez mais intensos. O exercito temia que entre a população se assistisse a qualquer movimento antiguerra ou pacifista. Alguns dias depois do incidente, fomos visitados pela polícia e informados de que em circunstância alguma deveríamos lalai sobre o que tínhamos visto.
tudo não passou de uma estranha fatalidade e de uma triste história. Para falar com franqueza, ainda hoje acordo todos os dias com um peso na alma.
Quando o autocarro atravessa aquela enorme ponte sobre o Mar Interior, encontro-me a dormir profundamente Só conheço a ponte dos mapas e estou ansioso por vê-la com os meus próprios olhos. Alguém me toca ao de leve no ombro e acordo.
- Chegámos - anuncia a rapariga.
Espreguiço-me, esfrego os olhos com as costas da mão e olho através da janela. Na realidade, o autocarro está quase a parar junto àquilo que parece ser uma praça frente a um terminal. Os primeiros raios de luz da manhã iluminam a cena. Ofuscante mas, ao mesmo tempo, suave, a claridade é diferente daquela que estava habituado a ver em Tóquio. Consulto o relógio. São seis e trinta dois.
os, céus, que viagem esta - diz ela, num tom cansado. -Pensei que ia ficar sem rins. E tenho o pescoço todo dorido. Tão cedo não me apanham outra vez no autocarro que faz a viagem de noite. A partir de agora, só de avião, mesmo que saia mais caro. Quero lá saber que haja turbulência ou piratas do ar. Dêem-me um avião e aí vou eu.
Tiro a mala dela e a minha mochila da rede que está por cima das nossas cabeças.
- Como te chamas? - pergunto. - Como me chamo? - Sim. - Sakura - responde. - E tu? - Kafka Tamura - digo. - Kafka Tamura - repete ela. - Estranho nome. Mas fácil de lembrar. Concordo com a cabeça. Passar a ser uma pessoa diferente pode revelar-se difícil. Mas, em contrapartida, adotar outro nome é uma brincadeira de crianças. Ela sai do autocarro, pousa a mala no chão e senta-se pesadamente em cima. Saca um caderninho de notas de uma bolsa da mochila, escrevinha qualquer coisa, arranca a folha e entrega-ma. Pelos vistos, tem um número de telefone. - É o meu telemóvel - diz ela com uma expressão cúmplice. - Fico em casa do meu amigo durante algum tempo, mas se te apetecer ver alguém, dá-me uma apitadela. Podemos ir comer qualquer coisa ou assim. Estás à tua vontade. «Até mesmo os encontros fortuitos»... Como é o resto da frase? «São fruto do destino.» É isso mesmo. Mas o que é que isso significa? Que todas as coisas na vida são determinadas por uma vida interior. Que neste mundo não há coincidências e que até as coisas Riais insignificantes não acontecem por acaso. Sentada em cima da mala amarela, caderninho na mão, ela poe se a pensar naquilo. - Hmm... muito filosófico. Mas não me parece que seja uma maneira má de encarar a vida. Uma espécie de reencarnação, apesar de mui um bocado a coisa da New Age. Agora, toma atenção a isto, Kafikal Tamura. Não ando por aí a dar o meu número de telemóvel a qualquer um que me apareça pela frente. Estás a ver onde é que eu quero chegar?
Agradeço-lhe. Dobro a folhinha de papel e meto-a no bolso do meu impermeável. Pensando melhor, guardo-o antes dentro da carteira. - Quanto tempo ficas em Takamatsu? - pergunta Sakura. - Não sei ainda - respondo. - Depende da forma como as coisas correrem. Ela olha fixamente para mim, a cabeça inclinada para um lado, como quem diz «tudo bem». Entra para um táxi, faz-me um breve adeus com a mão e vai-se embora. Uma vez mais, volto a ficar sozinho. O nome da minha irmã não é Sakura, penso para comigo mesmo. Mas não é difícil mudar de nome. Especialmente quando se anda a tentar fugir de alguém. Tenho um quarto reservado num hotel de negócios em Takamatsu. A YMCA em Tóquio falou-me naquele sítio e através deles consegui uma tarifa com desconto. Mas isto só é válido durante os três primeiros dias, depois volta a ser cobrada a tarifa normal pelo quarto. Se não tivesse outro remédio, podia muito bem dormir num banco em frente da estação para poupar dinheiro. Ou então, como o tempo ainda está quente, podia passar a noite no meu saco-cama num parque qualquer. Mas depois arriscava-me a ter de mostrar o meu bilhete de identidade à Polícia, em caso de esta aparecer, e essa é a última coisa que eu quero. Foi por isso que preferi reservar um quarto no hotel, pelo menos durante três dias. Depois logo se vê. Na estação entro no primeiro café que me aparece à frente e devoro a minha dose de udon. Nascido e criado em Tóquio, nunca fui muito de comer udon. Mas agora encontro-me em Shikoku, que é como quem diz, na «capital do udon», onde existem mais do que muitas qualidades de udon. São nutritivas e saborosas, e a sopa cheira lindamente. E ainda por cima por tuta e meia. Sabe-me tão bem que peço uma segunda dose e, pela primeira vez desde há muito tempo, fico satisfeito e saciado como não me lembro de ter acontecido.
Acabo por me ir sentar num banco, na praça ao pé da estação, e deixo-me ficar ali a olhar para o céu azul. Sinto-me livre, não me canso de repetir. Como as nuvens que deslizam pelo céu, aqui estou eu, entregue ao meu destino e totalmente livre. Decido matar o tempo que falta até ser noite e ir ler para uma biblioteca. Desde pequeno que adoro passar horas e mais horas nas salas de leitura das bibliotecas, por isso, antes de vir para Takamatsu, tratei de reunir toda a informação acerca das bibliotecas que é possível encontrar no centro e à volta da cidade. Vendo bem, não existem muitos sítios por aí além onde um jovem que ande fora de casa possa parar. Tirando os cafés e os cinemas, só existem as bibliotecas municipais. Um local perfeito, diga-se de passagem - para além de não se pagar nada, ninguém estranha nem faz barulho ao ver aparecer ali um miúdo. Puxamos uma cadeira, sentamo-nos e pomo-nos a ler o que nos apetecer. Costumo ir sempre à biblioteca pública depois das aulas. Mesmo nas férias, é aí que me encontram. Devoro tudo e mais alguma coisa - romances, biografias, livros sobre história, numa palavra, o que estiver à mão de semear. Depois de ter passado em revista todos os livros infantis, mudei para a secção seguinte, que é com o quem diz, às estantes de novidades e livros para adultos. Podia não entender muita coisa que lá aparece escrita, mas lia-os sempre até à última página. Quando já não me apetecia ler mais, fechava-me numa daquelas cabinas que têm auscultadores I ouvir música. Como pouco ou nada sabia de música, costumava correr os discos todos que lá havia, de fio a pavio, e ouvia-os um a um. Foi assim que fiquei a conhecer Duke Ellington, os Beatles e I ed Zeppelin.
A biblioteca era a minha segunda casa. Ou, se calhar, até a minha verdadeira casa. Uma vez que passava lá a vida, fiquei a conhecer bem algumas bibliotecárias que ali trabalhavam. Todas elas me conheciam pelo nome e cumprimentavam-me sempre. Porém, eu era horrivelmente tímido e nem uma nem duas. Antes de vir para Takamatsu, fiquei a saber que um homem muito rico oriundo de uma família antiga e abastada que vivia nos subúrbios havia convertido a sua biblioteca pessoal numa biblioteca privada aberta ao público, que tinha uma coleção de livros raros, e tinha ouvido dizer que o próprio edifício e os jardins circundantes mereciam bem uma visita. Vi uma vez uma fotografia da biblioteca na revista taiyo. Trata-se de uma mansão enorme em estilo japonês, com uma sala de leitura muito elegante que mais parece uma sala de visitas e onde as pessoas se sentam em confortáveis sofás a ler os seus livros. Por qualquer razão fiquei sempre com essa imagem gravada na cabeça e prometi a mim próprio que um dia, se a oportunidade se proporcionasse, tudo faria para ver a biblioteca com os meus próprios olhos. A Biblioteca Comemorativa Komura, era assim que se chamava.
Dirijo-me ao balcão de informações turísticas que existe na estação e pergunto qual é o caminho até lá. Uma senhora de meia--idade, muito simpática, assinala o local num mapa turístico e diz--me qual o comboio que devo apanhar. Fico a saber que a viagem não demora mais de vinte minutos. Agradeço-lhe e consulto o horário afixado no átrio da estação. Há comboios de vinte em vinte minutos. Como ainda tenho tempo antes do próximo, compro qualquer coisa para almoçar numa loja de refeições embaladas que há na estação.
O comboio não passa de duas carruagens atreladas. A via férrea atravessa uma zona comercial movimentada e depois deixa ficar para trás uma série de lojinhas e casas de habitação, fábricas e armazéns. A seguir, com o rosto colado à janela do comboio, e fascinado pela paisagem desconhecida, vejo surgir no horizonte um parque e um prédio de apartamentos em construção. Praticamente nunca tinha posto um pé fora de Tóquio, de maneira que é tudo novo aos meus olhos. O comboio que me leva para fora da cidade está quase vazio a esta hora da manhã, mas as plataformas do outro lado estão apinhadas de jovens do secundário nos seus uniformes de Verão e com a pastinha atrás. Vão todos a caminho da escola. Ao contrário de mim, que viajo sozinho na direção contrária. Seguimos caminhos diferentes em mais de um sentido. Subitamente o ar torna-se mais leve e algo começa a fazer pressão no meu peito. Estarei realmente a proceder como devo? Pensar nisso faz-me sentir desamparado, solitário. Viro-me de costas para os estudantes e procuro não olhar mais para eles.
O comboio corre junto ao mar durante algum tempo, depois afasta-se em direção ao interior. Passamos por campos de milho crescido e vinhedos, tangerineiras que crescem nas vertentes cavadas cm socalco. Volta e meia a luz da manhã reflete o brilho dos reservatórios de água. As águas de um rio que serpenteia através da planície têm um aspeto fresco e convidativo, vê-se um terreno baldio coberto de ervas de Verão. A certa altura passamos por um cão que está parado ao lado dos carris, a seguir fixamente com os olhos o comboio em andamento. À vista deste cenário, um sentimento de calor e paz invade-me de novo o coração. Tudo se vai resolver, tranquilizo-me, respirando fundo. Há que seguir em frente e partir para outra.
Na estação, oriento-me pelo mapa e sigo em direção ao norte, deixando para trás um quarteirão de casas e lojas na parte velha da cidade. De ambos os lados da rua vêem-se casas tradicionais cercadas de muros. Nunca tinha visto tantos e tão diferentes - vedações negras de madeira, muros brancos, muros de granito e muros baixos de pedra coroados de sebes. Está tudo em silêncio e não se vê ninguém na rua. Não há praticamente carros a passar. O vento traz o cheiro do mar, que deve estar próximo. Ponho-me à escuta, mas não oiço o barulho das ondas. Ao longe, contudo, talvez de alguma obra, chega-me um som que se confunde com o zumbido ténue de uma serra elétrica. A partir da estação, pequenos letreiros com setas assinalam o caminho para a biblioteca, por isso não corro o risco de me perder.
Mesmo em frente do imponente portão que dá acesso à Biblioteca Comemorativa Komura destacam-se duas bonitas ameixoeiras. Passo 0 portão e sigo por um carreiro de gravilha, por entre árvores e arbustos pinheiros e magnólias, giestas e azáleas -, tudo magnificamente trabalhado, sem uma única folha caída à vista. Duas lanternas de pedra espreitam por entre as árvores, vislumbrando-se ainda um pequeno lago. Por fim alcanço a entrada, que dá mostras de ter sido arquitetada com o mais requintado gosto. Dou por mim diante da porta aberta, indeciso, sem saber se hei-de entrar. Este lugar não se parece com nenhuma outra biblioteca onde eu tenha estado. Mas, agora que aqui cheguei, seria estúpido da minha parte não entrar. Mesmo ao lado da porta, por trás de um balcão de atendimento onde se deixa ficar a bagagem, está sentado um homem ainda novo. Entrego-lhe a mochila e só depois é que tiro os óculos e o boné.
- É a primeira vez que aqui vem? - pergunta ele numa voz calma e baixa. Fala num tom, como é que hei-de dizer, ligeiramente alto, mas que é ao mesmo tempo suave e tranquilizante.
Aceno com a cabeça, mas as palavras não me saem. A pergunta apanha-me de surpresa e deixa-me um bocado embaraçado.
Com um lápis comprido e acabado de afiar entre os dedos, o homem, ainda novo, demora algum tempo a estudar a minha cara. O lápis é amarelo, com uma borrachinha na ponta. O homem tem um rosto de traços finos e delicados. Bonito, mais do que bem--parecido, é a palavra que melhor o define. Veste uma camisa branca de algodão de manga comprida, abotoada de cima a baixo, e calças caqui verde-azeitona, ambas impecáveis e sem um vinco para amostra. Quando baixa a cabeça, o cabelo, bastante comprido, cai-lhe sobre a testa, e ao dar conta disso ele volta a penteá-lo com os dedos para trás. Tem as mangas da camisa arregaçadas até aos cotovelos, deixando entrever os pulsos brancos e delgados. Os óculos, com umas armações finas que lhe assentam bem, completam o conjunto. Na pequena placa identificadora de plástico ao peito tem escrito «Oshima». Não se pode dizer que seja exatamente o género de bibliotecário que estou habituado a encontrar.
-Vasculhe à sua vontade - diz-me ele. - Pode levar os livros que quiser para a sala de leitura. Os livros raros têm um selo, e para esses precisa de preencher uma ficha de consulta. Ali à direita fica a sala de consulta. Tem um ficheiro e um computador que pode consultar à vontade para procurar material nos catálogos on-line. Os livros não podem sair das instalações. Não temos nem jornais nem revistas. Não são permitidas máquinas fotográficas. Também não se pode fotocopiar nada. Tudo o que seja comida e bebida deve ser consumido de fora, nos bancos. E fechamos às cinco da tarde. - Depois de pousar o lápis em cima da secretária, acrescenta: - Frequenta o ensino secundário? Respiro fundo e só depois respondo que sim.
- Esta biblioteca é um tudo-nada diferente daquelas a que provavelmente está habituado - afirma ele. - Especializámo-nos num determinado género de livros, acima de tudo obras antigas de poetas tanka e haiku. Claro está que também possuímos uma seleção de Ioda a espécie de livros, mas a maior parte dos nossos leitores, que apanham o comboio e vêm de longe, fazem pesquisa nessas áreas da literatura. Ninguém se dá ao trabalho de vir até cá só para ler o último romance de Stephen King. De vez em quando, recebemos a visita de um licenciado, mas é raro aparecer por cá alguém da sua idade. Anda a estudar a literatura tanka ou haiku?
Não - respondo eu.
Também não me pareceu.
- Mesmo assim posso usar a biblioteca? - pergunto timidamente, esforçando-me por não fazer voz de cana rachada.
- Claro. - Ele sorri e pousa ambas as mãos em cima do balcão. - Isto aqui é uma biblioteca, e todos os que gostam de ler são bem-vindos. Este pode ficar a ser o nosso pequeno segredo, mas não se pode dizer que eu próprio seja grande apreciador de tanka ou haiku.
- E um edifício verdadeiramente impressionante - digo.
Ele concorda com a cabeça.
- Desde o período Edo8 que a família é um dos maiores produtores de saque - conta - e o último Komura era um verdadeiro bibliófilo, conhecido no Japão inteiro por correr o país em busca de livros. O pai dele era um poeta tanka, e havia muitos escritores que pilham por hábito instalar-se nesta casa sempre que vinham até Shikoku. Wakayama Bokusui, por exemplo, ou Ishikawa Takuboku e Shiga Nayoa. Alguns deles devem ter-se sentido tão bem que aqui ficaram
durante muito tempo. Afinal de contas, a família é conhecida por sempre ter aberto os cordões à bolsa e pelas generosas contribuições às artes e à literatura. Muitas vezes, nestas famílias, é costume o herdeiro desbaratar a fortuna, mas felizmente os Komura conseguiram escapar a essa triste sina. Em vez disso, eles souberam tirar partido da situação e transformaram um passatempo num lucrativo negócio de família.
Isso quer dizer que ficaram ricos - digo eu, referindo o que era óbvio.
Muito. - Ele franze ligeiramente os lábios. - Agora já não são tão ricos como eram antes da guerra, mas ainda estão muito bem na vida. Por isso é que podem dar-se ao luxo de manter esta magnífica biblioteca. É óbvio que o facto de terem criado uma fundação serve para reduzir nos impostos, mas essa é outra história. Mas, se está realmente interessado em conhecer melhor o edifício, sugiro que fique para uma pequena visita às instalações por volta das duas da tarde. É só uma vez por semana, sempre às terças, o que é o caso de hoje. Temos uma coleção única de quadros e desenhos no primeiro andar, além de que o edifício também é, em si mesmo, do ponto de vista arquitetónico, extremamente interessante. Seria uma pena perder esta oportunidade.
Agradeço a atenção.
- De nada - diz ele com um sorriso. Torna a pegar no lápis e começa a tamborilar com a ponta de borracha em cima do balcão, como se fosse sua intenção encorajar-me.
- É o senhor quem conduz a visita?
Oshima sorri.
- Não, eu sou apenas um funcionário. Quem está à frente disto é a Senhora Saeki, a minha chefe. Ainda pertence à família Komura e é ela a responsável pela visita guiada. É uma excelente pessoa.
Vou até junto das prateleiras que sobem até ao teto e deambulo por entre as estantes, à procura de um livro que desperte o meu interesse. Um conjunto de impressionantes traves grossas percorrem o teto da sala a todo o comprimento, e os primeiros raios de uma típica manhã de Verão penetram através da janela, deixando entrar o canto dos pássaros. Nas prateleiras diante de mim encontro, tal como disse Oshima, sobretudo livros de poesia japonesa. Poesia tanki e haiku, ensaios sobre poesia, biografias de vários poetas. Existe também uma quantidade de livros acerca da história local. Numa estante lá mais atrás estão as obras que se debruçam sobre as humanidades em geral - coleções de literatura japonesa, literatura mundial, e escritores individuais, clássicos, filosofia, teatro, história de arte, sociologia, história, biografias, geografia... Ao folheá-los, desprende-se das páginas de quase todos eles o perfume de um tempo passado - um perfume feito de saber e emoções que durante tempos infindos tem estado posto em sossego, a repousar no interior das capas. Aspirando profundamente esse odor, passo os olhos por algumas páginas antes de devolver cada livro ao sítio que lhe cabe na estante.
Acabo por me decidir pela tradução que Burton fez de As Mil e Uma Noites, uma obra magnífica em vários volumes. Pego num e levo-o comigo para a sala de leitura. Há imenso tempo que ando para ler este livro. Uma vez que a biblioteca acabou de abrir as suas portas, não se vê mais ninguém e tenho a elegante sala de leitura só para mim. É igualzinha à fotografia da revista - espaçosa e confortável, com os tetos altos. Volta e meia entra pela janela uma brisa suave, que agita suavemente as cortinas brancas, ao mesmo tempo que o vento deixa ficar no ar o cheiro da maresia. O sofá não podia ser mais confortável. A um canto encontra-se um velho piano de cauda, lenho a sensação de estar em casa de gente amiga.
A medida que me descontraio no sofá e passeio o olhar pela salinha, descubro que é aquele o lugar que tenho passado a vida à procura. Um esconderijo algures num canto perdido do mundo. Sempre pensei que este lugar secreto não passasse de uma fantasia minha e mal posso acreditar que ele na realidade exista. Fecho os olhos e respiro profundamente, e sou transportado, como uma nuvem leve, poi um sentimento maravilhoso. Passo a mão ao de leve pela cobertura u cor creme do sofá, depois levanto-me e vou até ao piano, levanto a lampa e coloco os dedos todos nas teclas amareladas. Fecho a tampa, peroiro a velha carpete com um padrão de cachos de uvas desbotado e experimento o puxador antigo que serve para abrir e fechar a janela. Acendo e apago o candeeiro de pé, antes de passar revista a todos os quadros pendurados nas paredes. Finalmente, volto a recostar-me no sofá e perco-me na leitura de As Mil e Uma Noites.
Por volta do meio-dia, levo a garrafa de água mineral e a comida que trouxe comigo até à varanda que dá para o jardim e sento-me a almoçar. Andam por ali várias espécies de pássaros, rodopiando de árvore em árvore ou voando até ao lago para beber água ou fazerem a sua higiene. Há alguns que eu nunca tinha visto. Quando um grande gato castanho faz a sua aparição, é a debandada geral, isto apesar de o gato ter todo o aspeto de não lhes ligar a mínima atenção. Tudo o que ele parece querer é espreguiçar-se nas pedras e ali ficar, de papo para o ar, a apanhar banhos de sol.
A escola está fechada hoje? - pergunta Oshima quando lhe entrego a minha mochila antes de voltar para a sala de leitura.
Não - respondo eu, escolhendo as palavras cuidadosamente.
O que acontece é que decidi tirar um dia.
Com que então, a fazer gazeta - diz ele.
Provavelmente.
Oshima lança-me um olhar interessado.
Provavelmente?
Não se pode dizer que me recuse a ir. O que decidi foi não ir.
Nas calmas, como quem não quer a coisa, deixou de ir às aulas?
Limito-me a acenar com a cabeça. Não faço ideia do que lhe hei-de responder.
Em O Banquete, de Platão, segundo Aristófanes, existiam três espécies de pessoas no mundo antigo da mitologia - afirma Oshima.
Conhece a história?
Não.
Antigamente as pessoas não se limitavam a ser homens e mulheres, mas um dos três tipos: macho/macho, macho/fêmea ou fêmea/fêmea. Por outras palavras, cada pessoa continha em si os componentes das duas partes. Toda a gente vivia satisfeita com este estado de coisas e nem sequer pensavam muito nisso. Foi então que os deuses pegaram numa faca e cortaram cada um em dois. E assim, depois disso, o mundo ficou dividido em machos e fêmeas, e as pessoas passaram o resto da vida à procura da sua própria metade.
O que levou os deuses a isso?
Cortar as pessoas em duas? Agora é que fui apanhado. Confesso que também não sei. Os desígnios de Deus são insondáveis. Existe toda essa conversa acerca da ira de Deus, todo esse excessivo idealismo e sei lá que mais. Talvez seja o castigo por alguma coisa. Como vem na Bíblia. Adão e Eva e a tentação e o diabo a sete.
O pecado original? - digo eu.
Isso mesmo, o pecado original. - Oshima agarra no lápis entre o indicador e o dedo do meio, fazendo-o rolar muito devagarinho, como se estivesse a tentar mantê-lo em equilíbrio. - De qualquer maneira, onde quero chegar é que é extremamente difícil uma pessoa conseguir viver sozinha.
De volta à sala de leitura, mergulho outra vez na História de Abu-EI-Hasan, mas o meu espírito anda longe do livro e não me consigo concentrar. Macho/macho, macho/fêmea ou fêmea/fêmea?
Às duas da tarde ponho o livro de lado, levanto-me do sofá e preparo-me para visitar o edifício. A Sr.a Saeki, que conduz a visita, é uma mulher magra dos seus quarenta e tal anos. É relativamente alta para uma mulher da sua geração. Aparece de vestido azul de meia manga e um casaquinho de malha creme. A sua postura é distinta, tem o cabelo comprido apanhado na nuca, feições delicadas e um olhar inteligente. Sem esquecer uns olhos lindíssimos e, a pairar-lhe lios lábios, um sorriso indefinido que transmite uma indescritível sensação de plenitude. Não consigo descrever bem, mas faz-me lembrar um lugarzinho aconchegado onde chega a mais remota nesga de sol que é possível encontrar num lugar secreto, escondido dos olhos de toda a gente. No jardim da minha casa de Tóquio existe um lugar exatamente assim, onde bate o sol, e desde que me lembro sempre adorei esse sítio.
Ela causa-me uma forte impressão mas, ao mesmo tempo, faz-me sentir melancólico e nostálgico. Não seria fantástico se ela fosse minha mãe? Mas, verdade seja dita, isso é o que eu penso sempre que em olho pela frente uma senhora simpática que tenha idade para isso. Vendo bem, as hipóteses de a Sr.'' Saeki ser, de fado, minha mãe São praticamente nulas. Se bem que, uma vez que não lenho ideia do aspeito dela nem sequei do seu nome, essa possibilidade teoricamente exista, não é verdade? Que é como quem diz, não há razão para que eia não possa ser minha mãe.
As únicas outras pessoas que estão a fazer a visita guiada são um casal de meia-idade de Osaka. A mulher é baixa e rechonchuda com óculos de lentes tão grossas como uma garrafa de Coca-Cola. O marido é um sujeito magrinho e tem o cabelo tão espetado que quase aposto que precisa de uma escova de pelo de arame para o conseguir pentear. Com os olhos estreitos e a testa larga, faz-me lembrar uma estátua numa ilha dos mares do Sul, daquelas que perscrutam fixamente o horizonte. A mulher faz as honras da conversa, enquanto o marido vai dando sinal de vida e responde com um monossílabo incompreensível de vez em quando. Fora isso, limita-se a fazer um ou outro aceno de cabeça para mostrar que está visivelmente impressionado, ou então murmura um comentário mastigado que não consigo apanhar. Estão ambos vestidos mais para escalar montanhas do que para visitar uma biblioteca, cada um de colete de tecido impermeável, sem mangas e com mil e um bolsos, resistentes botas de atacadores e chapéu de alpinista. Se calhar é assim que vestem sempre que andam em viagem, quem sabe? Parecem boas pessoas - não que eu gostasse de os ter como pais - e fico aliviado por não ser o único a fazer a visita guiada.
A Sr.a Saeki começa por evocar a história da biblioteca e que é, mais palavra menos palavra, a mesma que Oshima me contou. Como eles decidiram expor ao público os livros e quadros colecionados ao longo de gerações, contribuindo dessa forma para o desenvolvimento cultural da região. Com base na fortuna dos Komura foi criada uma fundação, que agora administrava a biblioteca e patrocinava ocasionalmente palestras, concertos de música de câmara e espetáculos do género. A mansão data dos primórdios do período Meiji altura em que fora construída com a dupla função de albergar a biblioteca de família e a casa de hóspedes. No decorrer do período Taisho, foi completamente remodelada e transformada num edifício de dois andares, com o acréscimo de confortáveis quartos de hóspedes para os escritores e artistas que por aqui tenham passado entre o período Taisho e o inicio do período Showa. Como muitos foram os artistas que visitaram os Komura, deixando atrás de si um rasto de recordações, entre poemas, esboços e quadros, em jeito de agradecimento por ali terem podido pernoitar.
-Vão poder ver algumas peças escolhidas dessa valiosa coleção em exposição no primeiro andar da galeria - acrescenta a Sr.a Saeki. - Antes da Segunda Guerra Mundial assistiu-se a um vibrante movimento cultural, desencadeado não tanto por mérito do poder local, mas graças à paixão e ao empenho demonstrados por colecionadores ricos, como era o caso da família Komura. No fundo, eram eles os verdadeiros patronos das artes. A Prefeitura de Kawaga produziu um número bastante apreciável de talentosos poetas tanka e haiku e isso ficou em grande parte a dever-se ao papel desempenhado pela família Komura na criação e apoio do meio artístico local. Muitos foram os livros, ensaios e memórias que se publicaram acerca da história desses fascinantes círculos culturais, todos eles à vossa disposição na nossa lala de leitura. Espero que aproveitem a oportunidade para passar os olhos por esse material.
«Ao longo dos anos, os descendentes da família Komura têm-se revelado extremamente versados no campo das artes, dando mostras de um apurado sentido estético e de uma queda natural para separar o trigo do joio e premiar acima de tudo a excelência. Pode dizer-se que isso lhes corre no sangue. Procurando manter sempre elevado o nível da coleção, foram patronos das artes e deram todo o seu apoio a artistas que, por seu turno, produziram obras notáveis. Mas, como decerto é do vosso conhecimento, em arte não existe aquilo a que se chama olho perfeito. Infelizmente, alguns artistas de excecional craveira não lograram conquistar as benesses dos membros do clã nem tiveram da parte deles a receção que mereciam. Um deles foi o poeta haiku Taneda Santoka. De acordo com o livro de registos, Santoka esteve aqui hospedado por diversas ocasiões, deixando sempre para Irás poemas e desenhos. Contudo, na altura o dono da casa, apelidou-o de "pedinte e fanfarrão", não o levou a serio e o certo é que deitou fora a maior parte desses trabalhos.
Que desperdício terrível - exclamou a mulherzinha de Osaka, mostrando-se sinceramente desgostada com o que acabara de ouvir. - Hoje em dia, as obras de Santoka valem uma fortuna.
Tem razão - acrescenta a Sr.a Saeki, sorrindo abertamente. - Na altura, porém, era um perfeito desconhecido, por isso o gesto tem desculpa. Acontece muitas vezes, só depois é que conseguimos ver as coisas com clareza.
Aí está uma grande verdade - acrescentou o marido, metendo a sua colherada.
A Sr.a Saeki conduz-nos em seguida numa visita ao rés-do-chão, mostrando-nos a biblioteca propriamente dita, a sala de leitura, a coleção de livros raros.
Quando esta biblioteca foi construída, o representante da família decidiu não seguir o que era considerado simples e elegante pelos artistas em Quioto, adotando em vez disso um estilo mais rústico. Mesmo assim, como podem ver, e em contraste com a fachada imponente, tanto o recheio da casa como as molduras das portas são fruto de um trabalho bastante elaborado e sumptuoso. O elegante entalhe desses painéis de madeira, só para dar um exemplo, é um trabalho único. Para os fazer foram chamados os melhores artífices que havia em Shikoku.
A seguir o grupinho sobe a alta escadaria encimada por um teto em abóbada e encaminha-se para o andar de cima. O corrimão de madeira, talhado em ébano, está de tal maneira polido que dá a impressão de que ficaria marca se lhe tocasse com um dedo. No vitral da janela que fica junto ao patamar, vê-se a imagem de um veado a esticar o pescoço para mordiscar umas uvas. No primeiro andar existem dois quartos de hóspedes, bem como um espaçoso salão que em tempos deve ter estado forrado com tatami para banquetes e receções. Agora o soalho é de madeira e as paredes foram cobertas de quadros com caligrafia, rolos de pergaminhos e pintura japonesa.
No meio da divisão, uma vitrina de vidro exibe várias recordações com apontamentos acerca da respetiva história por trás de cada uma delas. Um quarto de hóspedes é em estilo japonês, o outro europeu. O quarto à moda ocidental, com uma enorme escrivaninha e uma Cadeira giratória, tem todo o aspeto de estar a ser utilizado. Vê-se unia quantidade de pinhas do lado de fora da janela que fica atrás da secretária, e, ao fundo, uma nesga da paisagem para além das árvores.
O casal de Osaka dá a volta ao quarto, inspecionando todos os objetos, lendo as explicações que vêm descritas na brochura, t .ida vez que a mulher faz um comentário, o marido resmunga um monossílabo destinado a reforçar a opinião dela. Um casal feliz, que está sempre de acordo em tudo. Os objetos expostos não me dizem muito, por isso entretenho-me a estudar os pormenores de construção do edifício. Enquanto deambulo pelos cantos a bisbilhotar o quarto ocidental, a Sr.a Saeki aparece, vem até ao pé de mim e diz:
Se quiser, pode sentar-se naquela cadeira. Shiga Naoya eTanizaki chegaram a sentar-se ali. Claro que na altura a cadeira era outra.
Sento-me na cadeira giratória e pouso descontraidamente as mãos em cima da secretária.
Que tal? Sente vontade de escrever qualquer coisa?
Fico um nadinha corado e abano a cabeça. A Sr.a Saeki ri-se e volta para junto do casal. Sentado na cadeira vejo-a afastar-se e sigo-a com os olhos, observo cada um dos seus movimentos, de uma elegância natural. Não sei explicar bem, mas há decididamente algo de especial naquele seu jeito, como se ela estivesse a dizer-me sem palavras alguma coisa que não consegue transmitir quando está face a face. Agora o que aquilo quer dizer, confesso que não sei. Tens de encarar a realidade, digo para comigo mesmo. Pode ser este mundo e o outro.
Deixando-me ficar sentado, volto a passar os olhos pelo quarto. Na parede está um quadro a óleo com uma paisagem à beira-mar que parece ser de uma praia local. Está pintado num estilo antiquado, mas as pinceladas são vigorosas e as cores vívidas. Em cima da escrivaninha vê-se um cinzeiro enorme e um candeeiro de mesa com um abajur de vidro verde. Mal carrego no interruptor, a luz acende-se logo, como seria de esperar. Pendurado na parede está um relógio preto. Uma antiguidade, ao que tudo indica, apesar de os ponteiros indicarem a hora certa. Notam-se que certos pontos do soalho estão mais gastos do que outros, e o chão range ligeiramente quando o pisamos.
No final da visita o casal de Osaka agradece à Sr.a Saeki e vai-se embora. Parece que são ambos membros do círculo tanka na região de Kansai. Tenho curiosidade de saber que género de poemas escreverão, sobretudo o homem. Não é com grunhidos e acenos de cabeça que se fazem poemas. Mas pode acontecer que o facto de escrever poesia desperte nele algum talento oculto.
Regresso à sala e retomo a leitura do livro no ponto em que a deixei. Durante a tarde vão chegando outros leitores. A maioria exibe aqueles óculos de leitura que usam as pessoas de uma certa idade e que fazem toda a gente ficar parecida. O tempo demora a passar. Ninguém diz uma palavra, está toda a gente calmamente entretida a ler. Há alguém sentado a uma mesa a tomar notas, mas o resto das pessoas estão todas sentadas em silêncio, quase sem se mexerem, totalmente absorvidas. O mesmo acontece comigo.
Às cinco da tarde fecho o livro e volto a pô-lo na estante. À saída, pergunto no balcão de atendimento:
A que horas abrem de manhã?
Às onze - responde Oshima. - Está a pensar vir outra vez amanhã?
Se não for uma grande maçada.
Oshima olha para mim com os olhos semicerrados.
Claro que não. Uma biblioteca serve para isso mesmo, é o lugar para as pessoas que querem ler. Pela parte que me toca, gostaria muito de o ver outra vez por cá. Não me leve a mal a pergunta, mas anda sempre com a casa às costas? A mochila tem todo o aspeto de estar muito pesada. O que é que guarda lá dentro? Alguma coleção de Krugerrands
Fico vermelho.
Não ligue. Estou a brincar, não estou realmente interessado em saber. - Oshima esfrega a testa do lado direito com a borracha na ponta do lápis. - Bom, nesse caso até amanhã.
Até à vista - digo eu. Em vez da mão, ele diz adeus com o lápis.
Apanho outra vez o comboio para Takamatsu. Paro para jantar Hum restaurantezinho barato próximo da estação e peço asas de frango c unia salada. Mando vir uma segunda dose de arroz e, para acabar a refeição, bebo um copo de leite quente. Para o caso de ficar com huno durante a noite, compro uma garrafa de água mineral e dois bolinho, de arroz numa mercearia de bairro, e depois trato de ir à procura do hotel. Não vou nem muito depressa nem muito devagar, antes cami-nho normalmente, como vejo fazer toda a gente à minha volta, de 11H ido que ninguém dá por mim. O hotel é bastante grande, um típico hotel de negócios de segunda categoria. Preencho o registo na receção, escrevo Kafka em vez do meu verdadeiro nome, uma morada e uma idade falsas, e pago uma noite adiantado. Sinto-me um bocado nervoso, mas nenhum dos empregados parece desconfiar de nada. Ninguém grita: «Ei, atenção, não penses que nos levas à certa com o leu estratagema. Sabemos muito bem que tens quinze anos e que andas fugido!» Corre tudo sobre rodas e como mandam as regras.
O elevador sobe até ao quinto andar sempre a fazer um barulho alarmante. O quarto é mais pequeno do que sei lá o quê e compõe-se de uma cama rija, uma almofada mais dura do que uma pedra, uma secretária minúscula, uma televisão pequena, cortinas desbotadas pelo sol. O quarto de banho é praticamente do tamanho de um armário e não tem nem um frasquinho de champô ou de amaciador de cabelo para amostra. A janela dá para a parede do edifício ao lado. Porém, não me posso queixar, visto que tenho pelo menos um teto sobre a cabeça e água quente corrente a jorrar da torneira. Deixo cair a mochila pesadamente no chão, sento-me na cadeira e procuro ambientar-me.
Sou livre. Fecho os olhos e penso com toda a minha força na minha nova condição, ainda que não esteja bem certo do que significa. Tudo o que sei é que estou completamente sozinho. Desterrado numa terra desconhecida, como um explorador solitário sem bússola nem mapa. Será isto a liberdade? Não sei, confesso, e às tantas desisto de pensar nisso.
Tomo um longo banho e lavo muito bem os dentes debruçado sobre a bacia. Enfio-me na cama e leio, e quando fico cansado de ler vejo as notícias no pequeno ecrã. No entanto, em comparação com tudo aquilo que hoje me aconteceu, as notícias parecem-me corriqueiras e ultrapassadas. Apago a televisão e meto-me debaixo da roupa. Já passa das dez da noite e não consigo adormecer. Um novo dia num mundo novo. E logo o dia dos meus quinze anos, passado em grande parte numa simpática e invulgar biblioteca. Travei conhecimento com várias pessoas. Sakura. Oshima. A Sr.a Saeki. Nenhuma delas se revelou ameaçadora. Nada a temer. Talvez seja um bom presságio.
Penso na minha casa de Nogata, em Tóquio, e no meu pai. Como é que ele se terá sentido ao dar pela minha ausência? Aliviado, quem sabe? Confuso? E daí, talvez não tenha sentido rigorosamente nada. Quase aposto que nem sequer deu pela minha falta.
De repente, lembro-me do telemóvel do meu pai e vou à mochila buscá-lo. Ligo-o e marco o número de casa. Começa a tocar. A setecentos quilómetros de distância, o som é tão nítido como se eu estivesse a ligar para o quarto ao lado. Fico tão assustado que desligo, ao fim de dois toques. Tenho o coração aos saltos. O telemóvel ainda funciona, o que significa que o meu pai não mandou cancelar a assinatura. Se calhar ainda não reparou que o telefone desapareceu de cima da sua secretária. Volto a guardá-lo dentro da mochila, apago a luz e fecho os olhos. Durmo um sono sem sonhos. Agora que penso nisso, há muito que não sonho com nada.
- Ora viva! - cumprimentou o velhote.
O gato, um macho preto, grande e idoso, levantou ligeiramente a cabeça e, contrariado, devolveu a saudação muito baixinho.
- Isto é que hoje está um belo dia.
Hmm - fez o gato.
Não há nem uma nuvem no céu.
...por enquanto.
Está a querer dizer que o tempo vai piorar?
Parece que vamos ter nuvens lá mais para a tarde - avançou o gato preto, esticando vagarosamente uma pata e semicerrando os olhos, antes de lançar ao velhote um longo olhar penetrante.
Com um sorriso de satisfação estampado no rosto, o homem devolveu-lhe o olhar. Meio aparvalhado, o gato ainda hesitou um bocado, mas depois lá disse:
Com que então, sabe falar?
Pois é - afirmou o homem, um tanto ou quanto envergonhado. Em sinal de respeito, tirou o velho gorro de algodão que usava na cabeça. - Não que Nakata seja capaz de meter conversa com lodos os gatos que encontra pela frente, mas, na melhor das hipóteses, a verdade é que até consegue. Como agora.
Interessante - limitou-se o gato a dizer.
Importa-se que fique aqui sentado? Nakata está um bocado cansado de tanto andar.
O gato preto, de longos bigodes retorcidos, ergueu se languidamente sobre as patas e espreguiçou-se de tal maneira que quase deslocou as mandíbulas.
Por mim, tudo bem, é livre de se sentar onde quiser. Ninguém o pode impedir.
Obrigado pela atenção - disse o homem, sentando-se ao lado do gato. - Céus, Nakata está a pé desde as seis da manhã.
Hmm... Parto do princípio de que estou a falar com o senhor Nakata?
Isso mesmo. Nakata é o nome. E o senhor gato, como se chama?
Já não me lembro - disse o gato. - Sei que em tempos respondia por um nome, mas depois, com o andar da carruagem, deixou de ser preciso. E acabei por me esquecer dele.
Bem sei. Esquecemos facilmente aquilo que não nos faz falta. Com Nakata acontece precisamente a mesma coisa - retorquiu o homem, coçando a cabeça. - Quer então dizer, senhor gato, que tem família algures, não é verdade?
Já lá vai o tempo que isso era verdade. Mas agora as coisas não são assim. Algumas famílias da vizinhança dão-me que comer e isso tudo, mas não se pode dizer que tenha dono.
Nakata acenou com a cabeça e deixou-se ficar um tempo calado.
Nesse caso, importa-se que lhe chame Otsuka? - perguntou por fim.
Otsuka? - repetiu o gato, olhando para ele meio abananado - O que está para aí a dizer? Porque carga de água é que me hei-de chamar Otsuka?
Por nenhuma razão especial. Foi um nome que veio à cabeça de Nakata, mais nada. Torna-se tudo mais fácil se puder dar-lhe nome. Assim, uma pessoa como Nakata, que não é lá muito brilhante, sempre pode organizar melhor as coisas. Por exemplo, pode dizer: «No dia tal e tal deste mês esteve à conversa com o gato preto Otsuka num terreno baldio nos arredores do sítio tal.» Sempre ajuda a lembrar.
Curioso - afirmou o gato. - Embora não possa dizer que tenha percebido tudo. Os gatos passam muito bem sem nomes. Orientamo--nos pelo cheiro, pela forma, enfim, coisas deste género. E até à data temo-nos safado bem assim.
Nakata compreonde perfeitamente. Mas sabe, Senhor Otsuka, com as pessoas não é bem assim. Nós precisamos de datas e de nomes para nos lembrarmos de tudo e mais alguma coisa.
O gato bufou.
- Deve dar cá uma trabalheira!
- Tem toda a razão. É uma verdadeira carga de trabalhos, com tanta coisa de que não nos podemos esquecer. Quem dera a Nakata não ter de saber o nome do governador nem o número do autocarro, i ni m, não se importa que lhe chame Otsuka? Ou isso ofende-o?
- Bom, já que fala nisso, não se pode dizer que seja uma coisa lá muito do meu agrado, mas ofendido, ofendido, também não fico. Pode chamar-me Otsuka à vontade, se é isso que quer. O que não impede que eu fique com a sensação de não ser a mim que está a chamar de cada vez que me chama isso.
Nakata fica muito contente por ouvi-lo dizer isso. Muito e muito obrigado, Senhor Otsuka.
Devo confessar, porém, que, para um humano, o senhor tem Uma maneira muito esquisita de falar - comentou Otsuka.
Sim, toda a gente diz o mesmo. Mas Nakata só sabe falar assim. Procura falar normalmente, mas é isto que acontece. Porque Nakala não é lá muito brilhante, sabe? Dantes não era assim, mas em criança teve um acidente e desde então ficou um bocadinho fraco de cabeça. Sem saber escrever. Sem conseguir 1er um livro ou os jornais.
Não é para me gabar nem nada disso, mas eu também não lei escrever - disse o gato, lambendo a parte interior da pata direita. - Mas sou normal de cabeça, por isso não me faz grande mossa.
- No mundo dos gatos é normal que assim seja - afirmou Nakata. - Mas no mundo dos homens, quem não sabe 1er nem escrever passa por ser tolo. O pai de Nakata - já morreu há muito tempo -era um conhecido professor universitário. Era especialista numa coisa chamada fina fiança. Nakata tem dois irmãos mais novos que são muito inteligentes. Um deles trabalha numa empresa e é chefe de um de parte e mente. O outro irmão trabalha num sítio chamado mistério da indústria e turismo. Vivem os dois em grandes casas e comem enguias. Só Nakata é que não é lá muito esperto.
Mas sabe falar a língua dos gatos.
Isso é verdade.
- Nesse caso não pode ser assim tão burro.
- Sim. Não...Isto é, Nakata não sabe, mas como as pessoas passaram a vida a dizer, desde pequenino, «tu és burro, tu és burro», Nakata pensa que ele é mesmo burro. Não sabe ler os nomes das estações, por isso não pode comprar bilhete e andar de comboio. Mas quando mostra o passo de deficiente, deixam-no andar de autocarro.
Curioso...- disse Otsuka sem grande convicção.
Quem não sabe ler nem escrever não arranja emprego.
Nesse caso, como é que ganha a vida?
Nakata recebe um subsítio.
Subsítio?
- O dinheiro que é dado pelo governador. Nakata mora num quartinho que fica num prédio de apartamentos em Nogata2. E come três vezes ao dia.
- Não é uma vida má de todo. Também não me importava. -Tem razão. É uma bela vida. Ao abrigo do vento e da chuva, sem passar necessidades. E, às vezes, como agora acontece, há pessoas que pedem a Nakata que as ajude a encontrar os seus gatos, e que depois lhe dão qualquer coisinha em troca. Mas o governador não pode saber, Nakata tem de manter esta história em segredo, por isso não diga nada a ninguém. Eles podiam acabar com o subsítio se soubessem que Nakata recebe um dinheirinho extra. Não é muito, mas graças a ele pode comer enguia uma vez por outra. E Nakata é doido por enguias.
-Também gosto de enguias. Apesar de só ter provado uma vez, há muito tempo, e de já não me lembrar bem do sabor que tem.
- As enguias são um verdadeiro pitéu. Têm qualquer coisa de especial, comparado com os outros petiscos. Há muitas outras coisas boas, mas, para o meu gosto, nada se compara às enguias.
Na rua em frente do baldio passou um jovem com um grande Labrador preso por uma coleira vermelha. O cão deitou uma olhadela a Otsuka mas continuou o seu caminho. O velho e o gato calam-se e deixam-se estar sentados, à espera de que o cão e o seu dono se afastem.
- Disse que anda à cata de gatos? - pergunta Otsuka.
- Isso mesmo. À procura de gatos que ninguém sabe onde se nu hi.iin. Como Nakata conhece um bocadinho da língua dos gatos, finda por aqui e por ali a vasculhar, à procura dos gatos que levaram mímico. As pessoas ouviram dizer que Nakata tem jeito para isso, de maneira que vêm ter com ele para encontrar os gatos que andam desaparecidos. Nos últimos tempos, Nakata passa os dias quase todos à procura de gatos. Como não gosta de se afastar muito, nunca vai além de Nakano. Senão ainda acabava por se perder e depois tinham de andar à procura dele.
- E neste momento anda à procura de um gato que desapareceu?
- Sim, exatamente. Nakata anda à procura de uma gatinha malhada com um ano chamada Goma. Aqui tem uma fotografia. -Nakata puxou de uma foto a cores que tinha dentro do saco de lona que trazia a tiracolo e mostrou-a a Otsuka. - Anda com uma coleira castanha antipulgas.
Otsuka esticou-se todo para olhar para a fotografia e depois abanou a cabeça.
- Ná, nunca lhe pus a vista em cima. Conheço praticamente lodos os gatos que andam por estas bandas, mas este não. Não vi nem ouvi nada...
A sério?
Anda atrás da gatinha há muito tempo?
- Bem, hoje é, deixa lá ver... um, dois, três... o terceiro dia. Otsuka continuou sentado durante largo tempo, a pensar.
- Como deve saber, os gatos são criaturas de hábitos. Normalmente fazem a mesma vida todos os dias e, a não ser que aconteça alguma coisa fora do vulgar, procuram não fugir à sua rotina. Só o cio ou um acidente, uma destas duas coisas, é que podem interferir neste esquema.
-Nakata também pensa o mesmo.
- É uma questão de esperar que a época do cio chegue ao fim, se for esse o caso, que depois ela volta a aparecer. Sabe do que eu estou a falar?
Sim, Nakata não tem experiência disso, mas acha que do que se trata. Tem que ver com o coiso, não é?
- É isso mesmo. Tem tudo que ver com o coiso. - Otsuka acenou com a cabeça, pondo um ar sério. - Mas se estivermos a falar de um acidente, nesse caso a gata pode não voltar nunca mais.
- Tem razão.
- Por outro lado, também pode acontecer um gato com cio afastar-se demasiado e depois já não conseguir encontrar o caminho de volta.
- Se Nakata se afastasse de Nakano, teria grande dificuldade em voltar para casa.
Já me aconteceu, por mais de uma vez. Claro que tudo isso foi já há uma quantidade de tempo, quando era muito novo - contou Otsuka, semicerrando os olhos à medida que vasculhava a memória. - Quando não se sabe o caminho para casa, entra-se em pânico. Fica--se num desespero total, sem saber o que fazer. Detesto quando isso acontece. Encarado dessa maneira, o cio pode ser um verdadeiro tormento, porque quando temos vontade, não se consegue pensar em mais nada. Nada mais importa a não ser o cio. Então e essa gata que anda perdida, afinal qual é o nome dela?
Está a referir-se a Goma?
É isso mesmo, Goma. Teria muito gosto em o ajudar a encontrar Goma. Uma gatinha assim malhada, habituada a viver protegida no seio de uma família simpática, não sabe nada do mundo lá fora. De certeza que não se sabe defender nem tratar dela, pobrezinha. Infelizmente, não se pode dizer que alguma vez lhe tenha posto a vista em cima. Se quer a minha opinião, acho que o melhor a fazer é ir à procura dela para outras bandas.
- Pois bem, Nakata vai seguir o seu conselho e começar à procura dela noutro sítio. Desculpe ter vindo interromper a sua sesta. O mais certo é voltar a passar por aqui, por isso, se entretanto puser os olhos em cima de Goma, agradeço que avise. Nakata terá muito gosto em recompensá-lo pela ajuda.
- Não é preciso. Gostei muito desta nossa conversa. Apareça sempre que quiser. Quando o tempo está bom, ando por aqui. Quando chove, é só descer aquelas escadas que estou sempre naquele santuário.
- Bom, agradeço-lhe uma vez mais. Nakata também gostou muito de conversar consigo, Senhor Otsuka. Não é todos os dias que se encontra um com quem se pode falar. Por vezes há gatos que estão de pé atrás e tratam logo de fugir com o rabo entre as pernas quando Nakata lhes dirige a palavra. Quando tudo o que ele queria era dar os «bons-dias»…
- Pois é. Tal como acontece com as pessoas, também há gatos para todos os gostos.
Pode crer. Nakata também é dessa opinião. O mundo é feito de toda a espécie de pessoas, e de gatos também.
Otsuka espreguiçou-se e olhou para o céu. Os raios de sol Inundavam de luz o terreno baldio, mas pairava no ar uma ameaça de chuva, coisa que Otsuka era capaz de pressentir.
Disse que teve um acidente quando era pequeno, e que por isso perdeu um bocado o juízo, não foi? Ou percebi mal?
Sim, isso mesmo. Na altura do acidente, Nakata tinha nove anos.
Um acidente de que género?
Nakata não consegue lembrar-se bem. Não souberam explicar porquê, mas parece que Nakata teve febres altas durante três semanas, sem dar acordo de si. Esteve todo o tempo de cama, alimentado a sono. E quando finalmente acordou, não se lembrava de nada. Não tinha ideia da cara do pai ou da mãe, não sabia 1er, contar, nem qual era a morada. Até mesmo o seu nome, Nakata havia esquecido. Tinha a cabeça completamente vazia, como uma banheira depois de alguém lei puxado a válvula para deixar sair a água. Dizem que antes do incidente Nakata obtinha sempre boas notas. Mas depois foi-se abaixo e quando acordou já não era aquele rapaz tão brilhante. A mãe morreu havia muito tempo, mas fartava-se de chorar por causa disso. Por causa de Nakata ter ficado burro. O pai, esse nunca chorou, mas andava sempre zangado. -Quer então dizer que, em vez de ganhar esperteza, o senhor ficou a saber falar a linguagem dos gatos. Isso mesmo. Curioso... Além disso, Nakata é são como um pero e nunca mais esteve doente. Não tem os dentes estragados nem precisa de usar óculos. Por aquilo que me é dado ver, parece uma pessoa bastante inteligente.
A sério? - perguntou Nakata, inclinando a cabeça. Nakata já tem sessenta e muitos anos, Senhor Olsuka. E, chegado a esta idade, já está habituado a que toda a gente o considere estúpido e não queira ter nada que ver com ele. Uma pessoa consegue viver sem andai de comboio. O pai morreu, por isso já não pode bater. A mãe também morreu, por isso já não chora. Por isso, quando aparece alguém a dizer que Nakata é bastante inteligente, não deixa de ser um bocadinho complicado. Não sei se está a ver, mas se Nakata não for burro, o governador deixa de lhe dar o subsítio, e acaba-se o passo para andar de autocarro. Se o governador disser: «Afinal não és burro de todo», Nakata fica sem saber o que responder. Por isso o melhor é continuar a ser burro.
- O que estou a tentar dizer é que o seu problema não é ser burro - afirmou Otsuka, com um ar sério.
- Ai sim?
O seu problema, da maneira que eu o vejo, é que a sua sombra é um bocadinho, como é que hei-de dizer?, ténue. Foi isso que pensei da primeira vez que lhe pus a vista em cima. Que a sombra que o meu amigo projeta no chão não tem nem metade da densidade que tem a das pessoas normais.
Nakata está a ver...
Já uma vez encontrei outra pessoa assim.
Com a boca ligeiramente aberta, Nakata não tirava os olhos de Otsuka.
Quer dizer, já encontrou alguém como Nakata?
Sim, encontrei. É por isso que não me mostrei assim tão surpreendido quando começou a falar comigo.
E isso foi quando?
Há muito tempo, quando era muito novo. Mas não me lembro bem dos pormenores - da cara da pessoa, do nome, ou do local e da altura em que se deu o encontro. Tal como já lhe disse, os gatos não têm memória para esse género de coisas
Nakata está a perceber.
- Era como se essa pessoa tivesse ficado sem metade da sombra, de tão débil que era. Como a sua, de resto. Nakata está a perceber.
Isto é o que eu penso: em vez de andar à procura de gatos, ceve começar antes a ver se encontra a outra metade da sua sombra.
Nakata passou várias vezes a mão pela aba do gorro.
- Para dizer a verdade, Nakata já tinha ficado com essa sensação. Quer dizer, que a sombra dele era apagada. As outras pessoas podem não ter reparado, mas Nakata sabe isso.
- Ainda bem que assim é - disse o gato.
Mas Nakata está velho e pode não viver muito mais. A mãe já morreu. O pai já morreu. Quer uma pessoa seja esperta ou burra, saiba 1er ou não, tenha ou não uma sombra, quando chega a hora, todos morrem. Uma pessoa morre e é cremada. Transforma-se em cinzas e é enterrada num sítio chamado Karasuyama. Karasuyama fica ao pé de Setagaya. Assim que uma pessoa é enterrada, não se preocupa com mais nada. E se não se pode pensar, também não se fica confuso. É o que acontece com Nakata. Enquanto for vivo, o que Nakata tem a fazer é ficar em Nakano. Quando morrer, então lá irá parar a Karasuyama. Não há outra solução.
É evidente que tem todo o direito de pensar o que quiser -afirmou Otsuka, começando outra vez a lamber as patas. - Mas também devia olhar para a questão na perspetiva da sombra. Se calhar sente--se pequena, quer dizer, na sua qualidade de sombra. Se eu fosse uma sombra, não me parece que gostasse nada de ficar reduzida a metade do meu tamanho.
Nakata está a ver - disse Nakata. - Se calhar tem razão. Nakata nunca pensou nisso antes. Quando chegar a casa vai pensar melhor.
- Excelente ideia.
Os dois permaneceram calados durante algum tempo, até que Nakata se levantou, sacudindo cuidadosamente algumas ervas soltas que se tinham agarrado às calças, e voltou a pôr o gorro na cabeça. Ajustou-o umas quantas vezes, até acertar com o ângulo. Depois colocou o saco de lona ao ombro e disse:
- Agradeço a sua amabilidade. Pode crer que Nakata tem em grande consideração as suas opiniões. Espero que fique bem e de saúde.
-Faço minhas as suas palavras.
Depois de Nakata se ter ido embora, Otsuka voltou a deitar-se na relva e fechou os olhos. Antes de as nuvens se aproximarem e ,i chuva começar a cair, ainda havia tempo. Com a mente vazia, dormiu uma soneca.
Às sete e um quarto da manhã tomo o pequeno-almoço no restaurante que fica no átrio - torradas, leite quente, ovos com presunto. Mas este pequeno-almoço do hotel, incluído no preço do quarto, não me enche o estômago. Devoro a comida enquanto o diabo esfrega uni olho e continuo com uma sensação de fome. Olho instintivamente i minha volta, mas palpita-me que não tenho sorte nenhuma e que dali não há hipótese de mais uma torrada que seja. Solto um suspiro enorme.
«Bom, e agora o que vais fazer?», pergunta o rapaz chamado Corvo.
Só agora reparo que está sentado diante de mim.
«Não sei se já reparaste que isto não é bem a tua casa, onde podes comer tudo o que te der na gana - diz ele. - Afinal de contas, fugiste de casa, não foi? Vê se metes isso na tua cabeça. Estás habituado a saltar cedo da cama e a encher o bandulho, mas onde é que isso |,i lá vai, meu amigo. Agora tens de te contentar com aquilo em que possas ferrar o dente. Sabes o que dizem para aí, a propósito de o tamanho do estômago se ajustar à quantidade de comida que metes lá para dentro? Pois bem, prepara-te para descobrir até que ponto essa é uma grande verdade. O teu estômago vai encolher, mesmo que ainda demore algum tempo. Achas que aguentas?
«Claro que aguento», respondo.
«Ainda bem», replica o Corvo. «Não te podes esquecer de que és o rapaz mais forte do mundo.»
Faço sinal que sim tom a cabeça.
«Nesse caso, que tal deixares de olhar estático para o prato vazio? Põe-te mas é a mexer daqui para fora.»
Obediente, levanto-me e vou até à receção a fim de negociai o preço do quarto. Explico que ando a estudar numa escola secundária pública em Tóquio e que vim até cá para escrever o meu trabalho final. (O que não é completamente mentira, uma vez que a escola secundária oficial com ligações à minha tem um acordo do género.) Acrescento que estou a reunir material para esse trabalho na Biblioteca Komura. E que tenho pela frente mais trabalho de pesquisa do quej imaginei, pelo que terei de ficar pelo menos uma semana em Takamatsu. Ora, tendo eu os tostões contados, não seria possível alargar a tarifa com desconto não apenas aos três dias mas ao resto do tempo que aqui passar? Ofereço-me para pagar a diária à cabeça e prometo não arranjar sarilhos.
Esforçando-me por pôr uma cara de jovem simpático e bem--educado que se encontra numa situação de aperto, dirijo-me à rapariga que está de serviço na receção. Não tenho o cabelo às cores nem uso piercings. Visto um polo branco Ralph Lauren, calças caqui e um par de sapatos Topsider novinhos. Os meus dentes estão brancos e cheiro a sabonete e a champô. Sei falar com bons modos. Quando estou para aí virado, tenho muito jeito para causar boa impressão nas pessoas mais velhas.
A rapariga ouve o que tenho para dizer em silêncio, acenando com a cabeça, com um sorrisinho nos lábios. Parece uma bonequinha, veste um casaco de uniforme verde em cima de uma blusa branca. Tem um ar ligeiramente ensonado, mas vê-se que é eficiente a despachar serviço. Deve ter mais ou menos a idade da minha irmã.
- Compreendo o seu problema - diz ela -, mas não posso fazer nada sem falar primeiro com o gerente. À hora do almoço já devemos ter uma resposta para lhe dar. - O tom de voz não podia ser mais profissional, mas percebo perfeitamente que caí nas suas boas graças. Toma nota do meu nome e do número do quarto. Não faço a mínima ideia se irei conseguir alguma coisa com estas negociações. A questão é que pode muito bem virar-se o feitiço contra o feiticeiro, caso o gerente peça para ver o meu cartão de estudante, por exemplo, ou tente contactar os meus pais. (Claro está que escrevi um número de telefone falso quando assinei o livro de registo.) Mas, tendo em conta o orçamento reduzido que possuo, calculo que o risco valha a pena.
Consulto as Páginas Amarelas e telefono para um ginásio local a fim de saber quanto custa frequentar a sala de fitness. Têm mais aparelhos do que aquilo que estou habituado a usar e só custa quinhentos ienes por dia. Indicam-me o caminho a seguir para quem sai lia estação de comboio, agradeço a informação e desligo.
Volto ao quarto para ir buscar a mochila e ponho-me a caminho. Podia muito bem deixar a tralha no quarto, ou guardar o dinheiro no cofre do hotel, mas sinto-me melhor se andar com tudo o que é meu atrás. É como se fosse uma parte de mim que não posso largar de mão.
Na paragem da estação de comboio apanho o autocarro para o ginásio. Sinto os músculos da cara todos arrepanhados, tal é o meu estado de nervos. Vendo bem, um rapaz da minha idade que anda na rua, sozinho, a caminho do ginásio em pleno dia de semana pode levantar suspeitas. Não conheço a cidade e não faço ideia do que vai na cabeça das pessoas. Mas ninguém olha duas vezes para mim. Pelo contrário, é caso para dizer que começo mesmo a sentir-me o Homem Invisível ou assim. No ginásio ninguém me faz perguntas. Pago a entrada e recebo em troca a chave do cacifo. Mudo de roupa, visto uns calções e uma T-shirt, e faço alguns exercícios de alongamento. À medida que os meus músculos descontraem, o mesmo acontece comigo. Sinto-me em segurança dentro deste invólucro que sou eu. Com um pequeno estalido, os contornos deste ser - eu - ajustam-se perfeitamente ao interior e ficam bem trancados. Tal como eu gosto.
Estou onde devo estar.
Dou início ao meu programa de treino. Com Prince no discman a cantar alto e bom som aos ouvidos, faço uma boa hora de exercício enquanto percorro os sete aparelhos da praxe. Confesso que num ginásio de uma cidadezinha como esta só estava à espera de encontrar máquinas do tempo da outra senhora, mas, para meu grande espanto, tenho pela frente aparelhagem do mais moderno que há, tudo modelos ainda com o cheiro metálico do aço novo. A primeira ronda, faço-a só com pesos ligeiros, depois aumento o peso para o segundo circuito. Sei exatamente os que posso usar e quantos exercícios de alongamentos devo fazer. Não tarda muito estou a suar em bica. Volta e meia faço uma paragem para beber uma golada diretamente da garrafa e morder um pedaço do limão que comprei no caminho.
Quando acabo os exercícios, pego no sabonete e no champô que trouxe comigo e tomo um duche quente. Lavo muito bem o pénll que ainda não saiu do prepúcio há muitos anos, as axilas, os testículos e o traseiro. Ponho-me em cima da balança e faço meia dúzia de flexões de braços à frente de um espelho. Por fim, passo os calções suados e a T-shirt por água no lavatório, torço bem a roupa e guardo--a num saco de plástico.
Apanho o autocarro para a estação e abanco diante de uma tigela fumegante de udon no mesmo café da véspera. Sem pressas deixo-me ficar ali a olhar pela janela enquanto engulo a comida. A estação está abarrotar de pessoas que entram e saem aos magotes, enfiadas dentro das suas fatiotas, de malinha e pasta na mão, cada uma com mais pressa do que a outra para ir tratar de algum assunto que não pode esperar. Sigo fixamente com os olhos aquela turba apressada em permanente vaivém e ponho-me a imaginar como serão as coisas, daqui a cem anos.
Daqui a cem anos toda esta gente - eu incluído - terá desaparecido da face da Terra, reduzida a pó e cinzas. Não deixa de ser um pensamento bizarro, mas é como se tudo à minha frente adquirisse contornos irreais e ameaçasse desaparecer à primeira rajada de vento.
Abro as mãos e olho bem para elas. Porque me sinto sempre tão ansioso? O que é que me leva a lutar tão desesperadamente para sobreviver? Abano a cabeça, afasto-me da janela, desisto de pensar no que poderá acontecer daí a cem anos. Procuro antes pensar no presente. Nos livros que estão à minha espera nas estantes das bibliotecas, das máquinas que estão no ginásio aguardando que eu as utilize. Pensar em tudo o mais não me leva a parte alguma.
«Isso mesmo», diz-me o Corvo. «Lembra-te de que és o rapaz de quinze anos mais forte do planeta.»
Tal como no dia anterior, compro comida feita na estação e apanho o comboio, chegando a Komura às onze e meia. E, como seria de esperar, encontro Oshima no seu posto. Hoje tem vestida uma camisa azul de riscas, abotoada até ao pescoço, calças de ganga brancas e ténis brancos. Está sentado ao balcão de atendimento, absorvido na leitura de um calhamaço, com o mesmo lápis amarelo (imagino eu) ao lado. A franja cai-lhe sobre a cara. Quando me vê entrar, levanta a cabeça, sorri e recebe a minha mochila.
- Estou a ver que continuas sem ir às aulas.
- Não faço tenção de lá voltar a pôr os pés - respondo com convicção.
- Nesse caso, uma biblioteca é uma boa alternativa - diz ele. Volta-se para ver as horas no relógio atrás de si e depois recomeça a ler.
Encaminho-me para a sala de leitura e volto a mergulhar " As Mil e uma Noites. Como sempre acontece, assim que me sento e começo a folhear um livro não consigo parar. A edição de Burton contém todos os contos que me lembro de ter lido em miúdo, mas são mais compridos, recheados de coloridos episódios e reviravoltas na história de tal forma empolgantes que tenho a impressão de estar a 1er tudo aquilo pela primeira vez. O livro está cheio de cenas obscenas, violentas, vincadamente sexuais. Tal como o génio da garrafa, lambem elas libertam uma irreprimível vontade de viver que o saber feito de senso comum e ideias preconcebidas não consegue manter aprisionado, exercendo sobre mim um tal poder encantatório que não consigo parar de 1er. Comparado com a massa anónima de pessoas que se cruzam sem se conhecer na movimentada estação de comboio, estas estórias escritas há milhares de anos são, pelo menos aos meus olhos, muito mais reais. Como é possível que assim seja, nem eu próprio sei explicar. Mas não deixa de ser muito estranho.
À uma da tarde saio para o jardim, sento-me na varanda e como o almoço que trouxe numa caixa[1]. Vou a meio quando Oshima aparece junto de mim e diz que tenho uma chamada.
- Uma chamada? - pergunto, espantado. - Para mim?
- Se o teu nome for Kafka Tamura.
Todo vermelho, ponho-me de pé e pego no telefone sem fios que ele me estende.
É a rapariga que trabalha na receção do hotel, muito provavelmente apostada em confirmar que eu estou de facto a fazer trabalho de pesquisa na biblioteca. Parece ficar aliviada ao descobrir que eu não contara mentira nenhuma. Diz-me que já falou com o gerente e que, apesar de ser a primeira vez que tal coisa sucede, tendo em conta a minha idade e as condições especiais ele está disposto a abrir uma exceção e a deixar-me ficar no hotel pagando apenas a tarifa com desconto. Pelos vistos, parece que o hotel de momento não está cheio e que, pela parte que lhe toca, as normas podem ser menos rígidas. O gerente acrescenta ainda que a biblioteca é um local muito conceituado, pelo que faz votos que eu possa dedicar-me a fundo e sem pressas à minha investigação.
Respiro de alívio e agradeço-lhe. Sinto-me mal por ter mentido, mas não havia outra saída. Não tenho outro remédio senão contornar algumas regras, se quiser sobreviver. Desligo e devolvo o aparelho a Oshima.
- Como não vem aqui mais nenhum aluno do secundário, pensei logo que só podia tratar-se de ti - diz ele. - Disse-lhe que passavas os dias aqui, com o nariz metido nos livros. O que não é mentira nenhuma.
Obrigado - digo eu.
Kafka Ta mura?
E o meu nome.
Estranho nome.
Mas é como me chamo.
- Parto do princípio de que leste alguma coisa de Franz Kafka.
Faço sinal que sim com a cabeça.
O Castelo e O Processo, e também Metamorfose, mais aquela história bizarra acerca de uma máquina de tortura e extermínio.
A Colónia Penal - diz Oshima. - Adoro essa história. Só podia ter sido escrita por Kafka.
- Dele, é o meu preferido.
A serio?
Confirmo com a cabeça.
E então porquê?
Demoro algum tempo para responder.
- Penso que nessa história Kafka fornece uma descrição puramente mecânica dessa complexa máquina, que funciona como explicação para o estado de coisas em que vivemos. Aquilo que quero dizer é que... - Tenho de refletir mais sobre isto. - Quer dizer, é essa a maneira que ele encontra para explicar a vida que levamos. Não ao falar concretamente da nossa situação, mas referindo-se em pormenor ao mecanismo do aparelho.
- Estou a ver - afirma Oshima, pondo-me a mão no ombro num gesto que interpreto como natural e amigável. - Quer-me parecer que Franz Kafka estaria de acordo contigo.
Oshima pega no telefone sem fios e desaparece dentro do edifício. Fico mais um bocado na varanda, enquanto acabo de almoçar, a beber a minha água mineral e a observar os pássaros no jardim. Tanto quanto sei, são os mesmos do dia anterior. O céu está coberto de nuvens, não se vê nem uma nesga de azul.
Pelos vistos, a minha interpretação do conto de Kafka parece ter convencido Oshima, pelo menos em parte, mas a verdade é que não consegui transmitir aquilo que pretendia realmente. Não me limitei a debitar uma teoria geral qualquer sobre a ficção de Kafka, estava a referir-me a algo de muito concreto. O complexo e misterioso aparelho de execução engendrado por Kafka não funciona como uma metáfora nem uma alegoria - existe, de facto, na realidade que me cerca. Mas não creio que alguém consiga compreender isso. Nem Oshima, nem ninguém.
Regresso à sala de leitura. Afundo-me no sofá e mergulho no mundo de As Mil e Uma Noites. Lentamente, como no fade-out de um filme, o mundo real desaparece e eu fico sozinho dentro do universo da história. O meu sentimento preferido.
Quando são quase cinco da tarde e me preparo para abandonar a biblioteca, Oshima continua atrás do balcão, ainda a ler o mesmo livro, a camisa sem um único vinco. Para não variar, tem o cabelo caído sobre os olhos. Os ponteiros do relógio elétrico de parede atrás dele continuam a avançar sem fazer barulho. Tudo à sua volta
respira silêncio e asseio. Duvido de que o tipo saiba o que é suai bica ou ter um soluço. Olha para mim e passa-me a mochila para a mão. Percebe-se, pela cara que faz, que deve ser demasiado pesada para ele.
- Apanhas o comboio na cidade para vir até cá?
Aceno com a cabeça.
Se vais passar a vir todos os dias, deves andar com isto. -Entrega-me uma folha de papel, o horário dos comboios, segundo parece, entre o terminal de Takamatsu e a estação que fica mais perto da biblioteca. - Costumam andar a horas.
Obrigado - digo, ao mesmo tempo que guardo a folhinha dentro da mochila.
Ouve uma coisa Kafka, não faço ideia de onde é que vens ou quais são os teus planos, mas não podes ficar instalado num hotel eternamente, pois não? - avança ele, escolhendo cuidadosamente cada palavra, ao mesmo tempo que verifica com os dedos da mão esquerda a ponta do lápis. Não que isso seja preciso, visto que não podiam estar mais afiados.
Pela parte que me toca, remeto-me ao silêncio.
- Não estou a querer meter-me na tua vida, acredita. Achei que era melhor perguntar. Um rapaz da tua idade, sozinho num local desconhecido, não me parece que as coisas estejam a ser fáceis.
Volto a acenar com a cabeça.
Já tens para onde ir quando te fores embora? Ou planeias ficar por cá durante mais algum tempo?
Ainda não decidi, mas acho que vou ficar aqui mais algum tempo. Não tenho para onde ir - reconheço.
Talvez devesse contar a Oshima a história toda. Tenho a certeza de que ele não iria deitar-me abaixo, fazer-me um sermão ou tentar inculcar-me uma série de ideias feitas. Mas por enquanto acho melhor só contar o que tiver de ser. Além do mais, não estou habituado a partilhar os meus estados de espírito com as outras pessoas.
- Achas então que por enquanto estás safo? - pergunta Oshima.
Acenei rapidamente, sim.
- Nesse caso, boa sorte - diz ele.
À parte uns quantos pormenores insignificantes, passo o resto semana da mesma maneira. (Tirando segunda-feira, claro está, em que a biblioteca está encerrada e eu passo então o dia na grande biblioteca, publica). O despertador acorda-me todas as manhãs às seis meia, altura em que tomo aquela pseudo-refeição a que o hotel chama pequeno-almoço). Quando a rapariga de cabelo castanho está de serviço na receção, cumprimento-a sempre levantando a mão. Pela parte que lhe toca, ela acena-me com a cabeça e responde com um sorriso nos lábios. Acho que gosta de mim. E para dizer a verdade, eu também gosto dela. Será que ela é a minha irmã? Confesso que o pensamento já me passou pela cabeça.
Todas as manhãs faço meia dúzia de exercícios de alongamento no quarto e quando chega a altura vou até ao ginásio e cumpro o esquema de exercícios do costume. Sempre a mesma quantidade de pesos, sempre o mesmo número de flexões. Nem mais nem menos. Tomo duche e lavo-me muito bem. Subo para a balança para ter a certeza de que continuo com o mesmo peso. Antes do meio-dia apanho o comboio para a Biblioteca Komura. Troco algumas palavras com Oshima no momento de lhe dar e receber a mochila. Como o almoço que trouxe na varanda. E leio. Quando acabo As Mil e Uma Noites percorro a obra completa de Natsume Soseki, uma vez que existem dois ou três romances que ainda não li. As cinco abandono a biblioteca. Quer isso dizer que passo os meus dias no ginásio ou na biblioteca.
Desde que eu esteja num desses dois lugares, não constituo motivo de preocupação para ninguém. Vendo bem, é pouco provável que um miúdo que ande a fazer gazeta passe aí a vida. Janto no restaurantezinho que fica em frente da estação. Procuro comer o máximo de vegetais e de vez em quando compro uma peça de fruta numa banca e descasco-a, fazendo uso da faca que tirei da secretária do meu pai. Compro pepinos e aipo, passo-os por água no lavatório do hotel e como-os com maionese. Volta e meia trago uma embalagem de leite da mercearia e preparo uma taça de cereais.
À noite, no quarto, aponto no meu diário tudo o que fiz durante o dia, oiço os Radiohead no meu discman, leio mais um bocado e apago a luz quando são onze. As vezes masturbo-me antes de adormecer. Penso na rapariga da recepção, afastando momentaneamente do espírito toda e qualquer ideia que se prenda com a eventualidade de ser minha irmã. Mal vejo televisão e não leio jornais.
Ao chegar, porém, a noite do oitavo dia - como, de resto mais cedo ou mais tarde teria de acontecer -, esta rotina simples e centrada em si própria ficou feita em estilhaços.
Relatório dos Serviços de Informação do Exército dos estado Unidos (MIS)
Data: 12 de Maio de 1946
Título: Relatório sobre o Incidente na Colina da Tigela de Arroz, 1994
Número do documento: PTYX-722-8936745-42216-WWN
Segue-se uma entrevista gravada com o Dr. Shigenori Tsukayama (52), professor catedrático do Departamento de Psiquiatria na Faculdade de Medicina da Universidade Imperial de Tóquio, conduzida ao longo de três horas, no quartel-general, pelo comandante supremo das Forças Aliadas. O protocolo número PTYX-722-SQ-267 até 291 permite o acesso a toda a documentação. (Nota: os documentos 271 e 278 estão em falta.)
Observações do entrevistador, tenente Robert O'Connor: «O professor Tsukayama manteve-se sempre bastante calmo e descontraído no decorrer da entrevista, como de resto seria de esperar de um homem do seu calibre. Trata-se de um dos mais proeminentes psiquiatras japoneses, contando no seu currículo com várias obras assinaláveis publicadas sobre a matéria. Ao contrário do que acontece com a maioria dos japoneses, evita perder-se em depoimentos vagos e mostra-se capaz de traçar uma fronteira nítida entre factos e conjeturas. Antes da guerra era investigador convidado em Stanford, razão pela qual domina fluentemente o inglês. Trata-se, sem dúvida alguma, de uma pessoa merecedora de todo o respeito e simpatia entre os seus pares.»
Em meados do mês de Novembro de 1944, foi-nos ordenado pelos militares que procedêssemos a um detalhado exame das crianças em questão. Era muito pouco frequente recebermos pedidos ou ordens deles. Como seria de esperar, os militares possuíam a sua própria infra-estrutura médica montada e, tratando-se, como era o caso, de uma entidade com capacidade para resolver os seus problemas, para mais privilegiando um clima de secretismo, o habitual era serem eles próprios a solucionar as suas questões internamente. Exceção feita às raras vezes em que se viram obrigados a recorrer aos conhecimentos e às técnicas que só os investigadores e médicos têm acesso, os civis quase nunca foram chamados a participar no processo.
Assim sendo, quando vieram ter connosco com esta história, suspeitámos logo de que se tratasse de um caso fora do vulgar. Para ser sincero, não me agradava trabalhar sob a alçada deles. Na sua maior parte, eram movidos por objetivos estritamente militares, não evidenciando qualquer interesse em perseguir a verdade. Isto para dizer que, num sentido puramente académico, apenas lhes interessava chegar a conclusões que confirmassem as suas opiniões. Regra geral, o seu modo de pensar não se desviava um milímetro do estabelecido, muito menos para se meter pelos caminhos da fantasia. Mas estávamos em tempo de guerra e, como tal, não podíamos recusar. Não tínhamos outro remédio senão ficar calados e fazer o que nos mandavam.
Pese embora a maioria dos cientistas nossos colegas e dos estudantes universitários terem sido recrutados, e apesar dos ataques aéreos norte-americanos, tínhamos prosseguido com as nossas pesquisas. Infelizmente, os estudantes de psiquiatria não estavam isentos do recrutamento. Quando chegou a ordem das chefias militares, largámos tudo o que tínhamos em mãos e apanhámos o comboio para (rasurado), na Prefeitura de Yamanashi. Éramos três - eu e um colega meu do Departamento de Psiquiatria, bem como um físico do Departamento de Neurocirurgia com quem estávamos a laborar de momento num projeto de investigação.
Mal lá chegámos, fomos de imediato informados de que aquilo que se aprestavam a revelar era segredo militar e, como tal, não podia ser por nós divulgado. A seguir, falaram-nos do incidente ocorrido no princípio do mês. Contaram-nos que dezasseis crianças tinham perdido os sentidos na montanha, sendo que quinze delas haviam mais tarde recuperado a consciência, ainda que não se recordassem de nada. Foi-nos ainda dito que um rapaz não tinha dado acordo de si, encontrando-se ainda internado num hospital militar de Tóquio.
O médico militar que examinou as crianças logo a seguir ao incidente, um especialista de medicina interna, forneceu-nos uma detalhada explicação clínica acerca do sucedido. Chamava-se Toyama o era major. Muitos médicos militares comportam-se como funcionários mais preocupados com a sua carreira do que com o exercício da medicina, mas felizmente o major Toyama não fazia parte desse grupo. Era um homem honesto e íntegro e indiscutivelmente um médico consciencioso. Nunca se mostrou prepotente nem procurou esconder alguma coisa de nós pelo facto de sermos civis, como outros poderiam ter feito. Forneceu-nos toda a informação detalhada de que precisávamos, de uma maneira altamente profissional, e deu-nos conhecimento de toda a documentação que existia sobre as crianças. Mostrava-se tão apostado em chegar ao fundo da questão como qualquer um de nós. Devo dizer que ficámos muito bem impressionados com ele.
De entre o material fornecido pelos militares, o facto que mais chamou a nossa atenção foi que, de um ponto de vista estritamente médico, o incidente não deixara sequelas nas crianças. Tanto os exames como os testes feitos logo após a ocorrência e até hoje nunca apontaram para quaisquer anomalias, quer do ponto de vista externo quer interno. As crianças continuaram a levar uma vida tão saudável como a que tinham antes do incidente. Alguns exames físicos mais detalhados revelaram que nalgumas se encontraram parasitas, mas, fora isso, não apresentavam quaisquer outros sintomas - dores de cabeça, náuseas, dores, perda de apetite, insónia, fraqueza, diarreia, pesadelos. Nada de nada.
A única coisa de extraordinário era o facto de aquelas duas horas em que as crianças tinham estado inconscientes se terem apagado da sua memória. Como se essa parte lhes tivesse sido extraída na totalidade. Mais do que um fenómeno de perda de memória, era antes de ausência de memória que se tratava. Não são termos médicos, e confesso que recorro a eles apenas por uma questão de conveniência, mas existe uma diferença considerável entre perda e ausência. Bom, é melhor explicar com a ajuda de um exemplo. Imaginando um comboio de mercadorias a deslizar pelos carris, sem travões. A carga caiu de um dos vagões. Um que fique vazio, isso é uma situação de perda. Quando todo o vagão tiver desaparecido, podemos falar em ausência.
Discutimos entre nós a possibilidade de as crianças terem respirado gás venenoso. O major Toyama disse que, naturalmente, também eles tinham aventado essa hipótese. «Foi por isso que os militares foram chamados a intervir», afirmou, «ainda que não passasse de uma possibilidade muito remota.» Mais. «Trata-se de um segredo militar, por isso não podem contar a ninguém. O exército encontra--se de facto a desenvolver venenos, assim como armas químicas e biológicas, mas esse trabalho está a ser levado a cabo por uma unidade especial que se encontra a trabalhar na China, e não em território japonês, uma vez que saltam à vista os perigos de se conduzir experiências desse género num país tão densamente povoado como é o caso do Japão. Se existem, ou não, armas desse tipo no país, isso já não vos posso dizer. Agora, posso assegurar-vos de que tal não se verifica na Prefeitura de Yamanashi.»
Quer isso dizer que ele afirmou categoricamente que não existiam quaisquer armas especiais armazenadas, incluindo gás venenoso, naquela prefeitura?
Correto. Quanto a isso, ele mostrou-se muito claro e inequívoco. No fundo, pode dizer-se que não tivemos outro remédio senão acreditar nas suas palavras, e ele parecia falar verdade. Mas também não deixa de ser inquestionável que a nossa investigação deu como provado que era altamente improvável que o tal gás venenoso tivesse sido largado por um B-29. Se os americanos tivessem de facto desenvolvido essa arma e decidissem usá-la, tê-la-iam largado sobre uma grande cidade onde os efeitos da destruição maciça pudessem revelar-se devastadores. Deixar cair uma ou duas bombas sobre um local perdido e sem vivalma não lhes permitiria ficar a saber qual o alcance da arma. Além disso, partindo do princípio de que havia sido lançado gás venenoso, o fato e que um gás capaz de deixar as crianças inconscientes durante duas horas sem produzir outros efeitos mais permanentes pouco ou nenhum valor militar poderia ter.
Por todas as razões, sabíamos que nenhum gás venenoso, fosse ele produzido pelo homem ou produto da natureza, atuaria desta maneira, sem deixar qualquer espécie de efeitos secundários. Sobretudo tratando-se de crianças, que são mais sensíveis e possuem um sistema imunitário mais delicado do que os adultos, nesse caso ter-se-iam certamente verificado efeitos secundários, em especial no que toca à zona dos olhos ou das membranas mucosas. Foi por essa mesma razão que riscámos da lista o envenenamento alimentar.
Só nos restava considerar os problemas psíquicos ou os problemas do foro neurológico. Num caso como aquele, recorrer à metodologia tradicional da medicina não serviria para ajudar a isolar a causa. Os efeitos permaneceriam invisíveis, algo impossível de quantificar. Só então percebemos a razão que levara os militares a requisitarem a nossa presença aqui.
Entrevistámos todas as crianças envolvidas no incidente, bem como a professora responsável e o médico de serviço. O major Toyama foi também chamado a participar nessas conversas. Contudo, não se pode dizer que essas entrevistas tenham trazido algo de novo - serviram, quando muito, para confirmar aquilo que já nos fora dito pelo major. A saber, que as crianças não se recordavam rigorosamente de nada. Viram aquilo que parecia ser o brilho de um avião a voar bem alto no céu, subiram a Colina da Tigela de Arroz e começaram à procura de cogumelos. Depois regista-se como que uma paragem no tempo e só se lembram de estarem deitadas no chão, rodeadas de um grupo de professores e polícias com a preocupação estampada no rosto. As crianças sentiam-se lindamente, sem quaisquer sinais de dor, desconforto ou enjoo. Queixaram-se apenas de sentir a cabeça um tanto ou quanto vazia, como é costume acontecer quando uma pessoa acorda de manhã. Mais nada. Todas deram exatamente as mesmas respostas.
Uma vez concluídas as entrevistas, chegámos à conclusão de que se tratava de um caso de hipnotismo coletivo. Com base nos sintomas que a professora responsável e o médico da escola observaram no local, esta anunciava-se como a hipótese mais plausível. O movimento pendular dos olhos, a diminuição ligeira da respiração, dos batimentos cardíacos e da temperatura, a falta de memória -encaixava tudo na perfeição. Quanto ao facto de a professora ter sido a única pessoa a não perder o conhecimento, era provável que o que quer que fosse que tivesse originado este hipnotismo coletivo não afetasse os adultos.
Porém, não fomos capazes de definir exatamente a causa. De uma forma geral, pode dizer-se que o hipnotismo coletivo depende de dois fatores. Primeiro, o grupo tem de ser coeso e homogéneo, e de estar sujeito a circunstâncias restritas. Segundo, a reação tem de ser desencadeada por qualquer coisa que atue simultaneamente sobre todos os membros do grupo. Neste caso pode ter sido o reflexo daquele avião que eles viram passar. Atenção - isto é só uma hipótese. É preciso não esquecer que não conseguimos encontrar outras soluções, e a verdade é que pode ter havido algo mais que tenha dado origem a tudo isto. Debati com o major Toyama a hipótese de se tratar de um caso de hipnotismo coletivo, deixando bem claro que não passava de uma conjetura. Os meus dois colegas mostraram-se de acordo comigo no essencial. Por coincidência, acontece que isto estava, ainda que indiretamente, relacionado com o tema da nossa investigação.
«Parece que isso só vem confirmar a tese», afirmou o major Toyama, depois de refletir sobre a matéria. «Não é propriamente a minha área, mas parece tratar-se da explicação mais provável. Só há uma coisa que me escapa - o que é que os terá feito sair desse hipnotismo coletivo? Deve ter havido qualquer coisa que funcionou como um mecanismo desencadeador ao contrário.»
Tenho de admitir que não sabia ao certo. Tudo o que podia fazer era especular. A minha teoria era a seguinte: existia um mecanismo qualquer a funcionar que, passado um certo tempo, quebrou automaticamente o hipnotismo. O nosso corpo possui fortes sistemas de defesa e pode dar-se o caso de um sistema externo tomar temporariamente o controlo e depois, passado certo tempo, é como se o alarme de um relógio disparasse, ativando um sistema de emergência que serve para atuar sobre este objeto estranho que está a bloquear as nossas defesas - neste caso concreto os efeitos do hipnotismo coletivo - a fim de o desprogramar e eliminar.
Como não tenho diante de mim o material, infelizmente não posso avançar os números exatos, mas, tal como disse ao major Toyama, têm vindo a lume relatórios de vários incidentes semelhantes ocorridos no estrangeiro, todos eles considerados mistérios sem explicação lógica. Várias crianças perdem os sentidos ao mesmo tempo e acordam, horas mais tarde, sem memória do que aconteceu.
Dito de outro modo, apesar de sobremaneira invulgar, não se pode dizer que este incidente não conheça precedentes. Uma estranha ocorrência verificou-se por volta de 1930, nos arredores de uma cidadezinha no Devonshire, em Inglaterra. Sem razão aparente, um grupo de trinta alunos do liceu que desciam por uma vereda caíram redondos no chão, uns atrás dos outros, e perderam consciência. Horas mais tarde, contudo, recuperaram os sentidos, como se nada tivesse acontecido, e regressaram a pé para a escola pelo seu próprio pé. Foram de imediato examinados por um médico, que constatou nada haver de errado com eles do ponto de vista clínico. Nenhuma das crianças conseguiu lembrar-se do que tinha acontecido.
No final do século passado, aconteceu um episódio parecido na Austrália. Nas imediações de Adelaide, quinze adolescentes do sexo feminino que andavam a estudar no ensino particular encontravam-se a dar um passeio quando perderam a consciência, tendo acordado todas ao mesmo tempo, pouco depois. Uma vez mais, ninguém ficou ferido nem se registaram quaisquer efeitos secundários. O caso acabou por ser arquivado como tratando-se de uma insolação, mas todas elas tinham perdido e, depois, recuperado os sentidos praticamente ao mesmo tempo, e nenhuma mostrava sinais de insolação, por isso a verdadeira causa continua envolta em mistério. Além do mais, o dia nem sequer estava particularmente quente. À falta de outra, decidiram então que seria aquela a melhor explicação.
Podemos dizer que estes casos apresentam vários denominadores comuns: têm por intervenientes um grupo de rapazes ou raparigas que se encontram a uma certa distância da escola, todos eles perdendo consciência mais ou menos em simultâneo e, mais tarde, voltando a si quase ao mesmo tempo, sem que nenhum deles apresente sinais de efeitos secundários. Constatou-se que alguns dos adultos que acompanhavam as crianças também perderam os sentidos, muito embora isso nem sempre se tenha verificado. Nesse particular, cada caso é um caso.
São conhecidos outros incidentes semelhantes, mas estes dois são os mais bem documentados e, como tal, mais representativos no que diz respeito à literatura existente sobre o fenómeno. O nosso incidente ocorrido na Prefeitura de Yamanashi, todavia, contém um elemento que o diferencia dos restantes. A saber, que houve um rapazinho que não recuperou a consciência. Esta criança é a chave que nos permitiu chegar à verdade. Depois das entrevistas levadas a efeito em Yamanashi, regressámos a Tóquio e fomos direitos ao hospital militar onde o rapaz permanecia em observação.
Quer então dizer que o exército só estava interessado neste incidente por suspeitar de que pudesse ter sido causado por gás venenoso?
Pelo menos é essa a leitura que eu faço. Mas o major Toyama deve saber mais acerca disso, por isso sugiro que fale diretamente com ele.
O major Toyama morreu em Março de 1945, no cumprimento do dever, durante um ataque aéreo à cidade de Tóquio.
Tenho muita pena que isso tenha acontecido. Muitas pessoas de valor perderam a vida na guerra.
Por fim, o exército lá acabou por aceitar que o incidente não havia sido causado por nenhuma arma química. Ainda que não se mostrassem capazes de determinar a causa, acabaram por chegar à conclusão de que o incidente nada tinha que ver com a guerra. Não é verdade?
Sim, creio que assim foi. Neste momento deram a investigação por encerrada. O rapaz, Nakata, recebeu autorização para permanecer no hospital, uma vez que o major Toyama estava pessoalmente interessado no caso e tinha ali os seus contactos. Assim, foi-nos permitido ir ao hospital todos os dias e fazermos turnos durante a noite para continuar a investigar o caso do rapaz inconsciente de todos os ângulos possíveis e imaginários.
Ainda que inconsciente, as funções do seu corpo continuavam normais. Estava a ser alimentado por via intravenosa e urinava a intervalos regulares. Quando a noite chegava e apagavam as luzes, fechava os olhos e adormecia. Apesar de inconsciente, parecia de boa saúde. Estava em coma, mas aparentemente não linha sonhos. Quando as pessoas sonham, têm movimentos dos olhos e expressões faciais característicos. O número de batidas do coração aumenta quando se reage a experiências que os sonhos recordam. Mas no caso de Nakata não se registou nenhum desses sinais. O ritmo cardíaco, a respiração e a temperatura estavam ligeiramente abaixo do normal, mas ainda assim surpreendentemente estáveis.
Sei que pode parecer estranho pôr a questão nestes termos, mas parecia que o verdadeiro Nakata se tinha ausentado, deixando momentaneamente para trás o invólucro físico que, na sua ausência, manteria a funcionar toda as funções do corpo, ainda que reduzidas ao mínimo. Vem-nos à memória o termo «projeção do espírito». Isto diz-lhe alguma coisa? Os contos tradicionais japoneses estão cheios de situações destas, histórias em que a alma abandona temporariamente o corpo e parte em peregrinação para um lugar longínquo a fim de resolver uma questão vital, regressando depois mais tarde para se reunir ao corpo. Tem que ver com o género de espíritos vingativos que povoa O Conto de Cenji. A noção da alma que não se limita a abandonar o corpo no momento da morte, mas que, a partir do momento em que existe um querer suficientemente forte, também se mostra capaz de se separar do corpo dos vivos, é porventura uma ideia profundamente enraizada no Japão desde tempos imemoriais. Escusado será dizer que não existem provas científicas da projeção da alma, e devo mesmo confessar que não é sem hesitação que essa hipótese é por mim avançada.
Do ponto de vista prático, a grande questão que se nos deparava era como tirar o rapaz do coma e fazê-lo recuperar a consciência. Lutando desesperadamente, tentámos tudo e mais alguma coisa para encontrar o tal «mecanismo desencadeador ao contrário» capaz de inverter a hipnose. Mandámos vir os seus pais e pedimos-lhes que o chamassem em voz alta pelo nome dele. Tentámos isso durante dias a fio, mas sem obtermos qualquer reação. Em matéria de hipnose e regressão da memória, não houve preceito básico nem técnica de sugestão que não tivéssemos experimentado. Fartámo-nos de bater palmas mesmo à frente da cara dele. Pusemos a tocar música que ele costumava ouvir, lemos em voz alta os livros da escola, demos-lhe a cheirar à frente do nariz os seus pratos prediletos. Chegámos mesmo a trazer o gato de casa, um de quem ele gostava particularmente. Usámos todos os métodos ao nosso alcance para o trazer de volta à realidade, mas nada pareceu dar resultado.
Depois de andarmos nisto duas semanas, contudo, numa fase em que, para além de derreados e desanimados, já começávamos a perder a esperança, o rapaz deu acordo de si. Assim, sem mais nem menos. Voltou a si, sem que fizéssemos alguma coisa para isso. Sem aviso prévio, como se tivesse chegado a altura, voltou a si.
Aconteceu alguma coisa de extraordinário nesse dia?
Nada digno de nota. Foi um dia igual aos outros. Às dez da manhã, apareceu a enfermeira para tirar uma amostra de sangue. Depois disso, ele engasgou-se um bocadinho e os lençóis ficaram sujos de sangue. Foi uma coisa de nada, e a roupa da cama foi imediatamente mudada. De resto, não aconteceu mais nada nesse dia que possa ser considerado fora do vulgar. O rapaz acordou cerca de meia hora depois. De repente, como se não fosse nada com ele, sentou-se na cama, endireitou-se e pôs-se a olhar em volta. Recuperara a consciência e encontrava-se perfeitamente do ponto de vista médico. Mas não tardou a aperceber-se de que tinha perdido a memória. Nem sequer do seu próprio nome se lembrava. O local onde nascera, a escola onde estudara, o rosto dos pais - não se recordava de nada. Também não sabia ler. Não sabia que o Japão fazia parte do mundo. Nem sequer fazia ideia do que era o Japão, quanto mais o resto do mundo. Ao regressar ao seu mundo, dera conta que a sua mente estava vazia. Como uma folha em branco.
Quando dou por mim, estou mergulhado nas profundezas de um bosque, como um cepo em solo húmido. A escuridão é tanta que não vejo nada à minha frente.
Com a cabeça metida num emaranhado de espinhos, respiro fundo e aspiro o aroma das plantas, o cheiro da terra, à mistura com o leve odor de caca de cão. Vejo a noite através dos ramos das árvores. Mesmo sem lua nem estrelas, o céu mostra-se espantosamente brilhante. Como um ecrã, as nuvens refletem a luz que vem de baixo. Ao longe, ouve-se a sirene de uma ambulância que se aproxima antes de tornar a afastar-se. Apuro o ouvido e consigo escutar o barulho dos pneus no asfalto. Percebo então que ainda me devo encontrar
algures na cidade.
Tento recuperar o sangue-frio e reunir num todo as peças espalhadas do quebra-cabeças que dá forma ao meu eu. E a primeira vez que me acontece algo do género, penso. Ou não será? Já tive esta sensação antes. A questão é saber quando. Vasculho a minha memória, mas os ténues fios rompem-se. Fecho os olhos durante um tempo.
Tomado de pânico lembro-me da mochila que trazia comigo. Onde é que a terei deixado? Não posso dar-me ao luxo de a perder - lá dentro está tudo o que possuo. Mas como é que vou dar com ela no escuro? Tento pôr-me de pé, mas faltam-me as forças.
Esforço-me por levantar o braço esquerdo - porque é que me custa tanto? - e aproximo o relógio de pulso da cara, a fim de ver as horas. Os números digitais dizem-me que são onze horas e vinte e
93 seis minutos. 28 de Maio. Passo mentalmente as folhas do meu diário. 28 de Maio... Ótimo, não perdi nenhum dia. Não fiquei para aqui deitado, ao relento, dias a fio. Quando muito, perdi a consciência durante umas quantas horas. Para aí umas quatro, no máximo.
28 de Maio. Um dia como outro qualquer, a mesma rotina de sempre. Não aconteceu nada de diferente. Fui até ao ginásio, antes de ir para a biblioteca. Fiz os exercícios do costume nas máquinas, sentei-me no mesmo sofá a ler as obras de Soseki. Jantei perto da estação. O menu de peixe, se bem me lembro. Salmão, com uma dose reforçada de arroz, sopa de e salada. Depois disso...depois disso não me lembro rigorosamente de nada.
Tenho o braço esquerdo a doer ligeiramente. À medida que recupero a calma, volto a sentir dores. Devo ter ido contra alguma coisa. Esfrego aquele sítio com a mão direita. Não fiquei com nenhuma ferida nem sinto nenhum alto. E se fui atropelado por um carro? Mas não tenho a roupa rasgada e a única parte do corpo que me dói é o ombro esquerdo. É possível que não passe de uma nódoa negra.
Apalpo o caminho no meio dos arbustos, mas pela frente só encontro um emaranhado de ramos, torcidos como corações de animaizinhos torturados. Da mochila, nem sombra. Vasculho os bolsos das calças. A carteira ainda está comigo, felizmente. Com algum dinheiro lá dentro, o cartão-chave do hotel, um cartão de telefone. Fora isso, tenho ainda um porta-moedas, um lenço, uma esferográfica. Tanto quanto me é dado ver no meio do escuro, não falta nada. Visto umas calças de sarja de cor creme, uma T-shirt branca de decote em V debaixo de uma camisa axadrezada de manga comprida. Sem esquecer um par de Topsiders azul-marinho. Desapareceu o meu boné, um boné de basebol dos New York Yankees. Estou certo de que o trazia quando saí do hotel, mas agora não o tenho. Devo tê-lo deixado cair, ou então ficou esquecido em qualquer lado. Não faz mal, bonés daqueles compram-se por tuta e meia ao virar da esquina. Acabo por encontrar a mochila, encostada ao tronco de um pinheiro. Porque raio é que a terei deixado ali ficar, antes de me embrenhar neste matagal, onde acabei por dar por mim, deitado por terra. Que diabo, onde é que estou, afinal de contas? A minha memória apagou-se. De qualquer modo, o importante é ter encontrado a mochila. Tiro a pequena lanterna da bolsa lateral e confiro o que lá está dentro. Parece não faltar nada. Ainda bem que o saco com o dinheiro está no seu lugar.
Ponho a mochila ao ombro e começo a afastar os ramos à medida que abro caminho por entre os arbustos, até chegar a uma pequena clareira. Vislumbro um carreiro estreito e sigo o feixe da lanterna até que vejo luz, ao chegar a um santuário xintoísta. Tinha perdido os sentidos numa pequena mata por trás do templo principal do santuário.
Uma lanterna de mercúrio colocada num poste alto ilumina o vasto espaço em volta, lançando uma luz fria sobre o interior do santuário, a caixa das oferendas, as placas votivas. A minha sombra projetada no cascalho parece estranhamente grande. Descubro o nome do santuário numa placa indicativa e tomo mentalmente nota. Não está ninguém à vista. Ao dar com uma casa de banho, entro e reparo que está impecavelmente limpa. Tiro a mochila e lavo a cara. Depois olho para o meu reflexo no espelho baço por cima do lavatório. Preparo-me para o pior e não fico desapontado - estou com um aspeto pavoroso. Devolve-me o olhar uma face pálida com os olhos encovados, tenho o pescoço coberto de lama e tufos de cabelo espetado.
Reparo numa coisa escura na parte da frente da minha T-shirt que tem a forma de uma borboleta enorme com as asas abertas. Tento sacudi-la com a mão, mas não sai. Toco naquilo e fico com as mãos todas peganhentas. Preciso de me acalmar. Para ganhar tempo, dispo a camisa e tiro a T-shirt pela cabeça. Sob a trémula luz fosforescente apercebo-me de que se trata de sangue vermelho-escuro empapado no tecido. O sangue, em grande quantidade, ainda está fresco e húmido.
Aproximo a T-shirt da cara, mas não cheira a nada. Tenho a camisa de xadrez igualmente salpicada de sangue, mas pouco, e o tecido azul-escuro ajuda a disfarçar. O mesmo já não se pode dizer da T-shirt branca. Contra o fundo branco, o sangue salta aos olhos.
Passo a T-shirt por água no lavatório. O sangue mistura-se com a água, tingindo a porcelana branca de vermelho. Por mais que eu esfregue, a mancha não sai. Sinto-me quase tentado a deitá-la no caixote do lixo, mas depois arrependo-me. Se tiver de me livrar dela, o melhor é fazê-lo noutro sítio. Torço-a e enfio-a no saco de plástico juntamente com a outra roupa para lavar, e enfio tudo dentro da mochila. Molho o cabelo para melhor o pentear. Em seguida tiro o sabonete de dentro do estojo de higiene e lavo as mãos. Ainda tremem um bocadinho, mas demoro o tempo que é preciso, esfregando escrupulosamente entre os dedos e por baixo das unhas. Com uma toalha húmida limpo o sangue que passou da T-shirt para o meu peito nu. Depois torno a vestir a camisa de xadrez, aperto-a até cima e enfio-a por dentro das calças. Se não quero que as pessoas comecem a olhar para mim, tenho de ficar com um aspecto minimamente decente.
Mas, verdade seja dita, tenho medo e os meus dentes batem uns nos outros. Por mais que eu queira, não consigo parar com aquilo. Ao estender as mãos, verifico que também elas estão a tremer ligeiramente. É como se fossem as mãos de outra pessoa qualquer e não as minhas. Parece que estou a olhar para dois animaizinhos com vida própria. As palmas queimam, como tivesse acabado de agarrar uma barra de metal incandescente.
Pouso as mãos no lavatório e inclino-me para a frente, até ficar com a cabeça encostada ao espelho. Só me apetece chorar. Mas as lágrimas não serviriam de nada nem trariam ninguém em meu socorro. Ninguém...
Céus, meu! De onde é que apareceu todo esse sangue? Onde é que tinhas a cabeça? Pois, não te lembras de nada. Pelo menos não estás ferido, o que já é um alívio. E também não tens dores, tirando esse latejar no ombro esquerdo. Agora, não sendo teu, de algum lado deve ter vindo. Deve ser o sangue de outra pessoa qualquer. Em todo o caso, não podes ficar aqui eternamente. Se uma patrulha de Polícia te vê nesse estado, coberto de sangue, estás feito, meu amigo.
Se fosse a ti, não tinha pressa de regressar ao hotel. Nunca se sabe quem é que pode estar ali à esquina à tua espera, pronto para te saltar em cima. Todo o cuidado é pouco. Mais parece que estiveste envolvido num crime e lavaste daí as tuas mãos. Se calhar és tu o mau da fita. Quem sabe?
Ainda bem que andas com a casa atrás. Tiveste sempre a preocupação de arrastar atrás de ti todas as tuas coisas nessa pesada mochila. Fizeste bem. Não te preocupes, era o melhor que tinhas a fazer. Tudo se há-de resolver. Não tens razões para ter medo - afinal de contas, és ou não és o rapaz de quinze anos mais corajoso do planeta? Vá lá, tem confiança em ti e vê se recuperas o sangue-frio. Respira fundo e trata mas é de usar a cabecinha. As coisas hão-de acabar por se resolver. Mas tens de ser muito cuidadoso. Estamos a falar de sangue verdadeiro, do sangue de outra pessoa. E não estamos ^propriamente a falar de meia dúzia de gotas mas de sangue à fartazana. Nós aqui à conversa e, quase aposto, o mais provável é andar alguém atrás de ti.
O melhor que tens a fazer é pores-te a mexer. Só tens uma coisa a fazer, um único sítio para onde ir. E tu bem sabes qual é.
Respiro fundo para me acalmar, depois pego na mochila e abandono a casa de banho. Oiço o ruído do cascalho sob os meus pés, a luz da lanterna de mercúrio a bater-me em cheio na cara. A medida que caminho, tento pôr a cabeça a funcionar. Ligo o interruptor, rodo o manipulo, dou à manivela, que é como quem diz, esforço-me por repetir o velho processo e acionar a corrente do pensamento. Mas a coisa não funciona - pelos vistos a bateria está fraca e o motor não pega. Preciso de encontrar um lugar quente e seguro, que possa servir de refúgio até eu retemperar as forças. Mas onde? O único lugar que me vem à cabeça é a biblioteca. Mas a Biblioteca Komura está fechada até amanhã às onze e eu preciso de um sítio onde ficar até lá.
Só estou a ver uma alternativa. Sento-me onde ninguém me veja e tiro o telemóvel da mochila. Verifico se ainda tem ligação e depois saco o número de telefone de Sakura de dentro da carteira e faço a ligação. Os meus dedos ainda não me obedecem e demoro algum tempo até conseguir digitar o número certo do princípio ao fim. Felizmente não vou parar à caixa de mensagens. Doze toques mais tarde, Sakura atende. Digo o meu nome.
Kafka Tamura - repete ela, não se mostrando especialmente entusiasmada. - Fazes ideias das horas que são? Amanhã de manhã tenho de me levantar cedo.
Bem sei, desculpa estar a ligar tão tarde - desculpo-me eu, notando que a minha voz soa extremamente tensa. - Mas não tive outra saída. Estou metido em maus lençóis e não tenho mais ninguém a quem recorrer.
Do outro lado não há resposta. E como se ela estivesse mentalmente a conferir o meu tom de voz, a sopesar as minhas palavras.
- É alguma coisa séria? - acaba ela por perguntar.
- Ainda não sei bem, mas acho que sim. Tens de me ajudar. Só desta vez. Prometo que é a última vez que te chateio.
Ela fica a pensar durante um bocadinho. Não me parece que esteja confusa ou assim; está a pensar, mais nada.
Onde estás agora? Digo-lhe o nome do santuário.
Aquele que fica em Takamatsu?
Não tenho bem a certeza, mas acho que sim.
- Quer dizer que nem sequer sabes onde estás? - pergunta ela, abismada.
- É uma longa história. Ela suspira.
- Apanha um táxi e vem ter comigo à loja de conveniência Lawson, que fica na esquina da minha rua. Tem um letreiro enorme, não há que enganar. - Dá-me a morada. - Tens dinheiro para o táxi?
Tenho.
Tudo bem - afirma ela, antes de desligar.
Abandono o santuário através do to/7/[2] e caminho até chegar a uma rua principal onde possa apanhar um táxi. É rápido.
Pergunto ao motorista se conhece a tal loja de conveniência Lawson que faz esquina e ele diz que sim. Quando lhe pergunto se fica muito longe, diz que não. A corrida fica-me em pouco mais de mil ienes.
O táxi para à porta da Lawson e ao pagar ao motorista ainda tenho as mãos a tremer. Pego na mochila e entro na loja. Consegui pôr-me lá em tão pouco tempo que Sakura ainda não chegou. Compro leite numa embalagem de cartão, aqueço-o no microndas e bebo-o devagarinho. O leite quente desliza pela garganta e sempre acalma o estômago um bocadinho. Quando me viu entrar, o empregado, habituado a desconfiar dos ladrões, olhou de relance para a minha mochila, mas, fora isso, ninguém parece reparar em mim. Paro junto da zona das revistas e faço de conta que estou a escolher uma, ao mesmo tempo que vejo o meu reflexo no vidro. Apesar de o cabelo (ainda estar um bocado despenteado, mal dá para ver o sangue na camisa de xadrez. Mesmo que alguém reparasse na mancha, pensaria que era apenas uma nódoa. Agora só preciso de deixar de tremer.
Dez minutos mais tarde Sakura aparece. É quase uma da manhã. Traz uma camisola toda cinzenta e umas calças de ganga desbotadas. Tem o cabelo preso num rabo-de-cavalo e um boné azul-marinho com os dizeres New Balance. Assim que a vejo os meus dentes deixam finalmente de bater. Ela aproxima-se de mim e percorre-me com o olhar, como se estivesse a examinar os dentes de um cão antes de o comprar. Depois solta um suspiro em que se misturam algumas palavras pelo meio, antes de me bater duas vezes no ombro.
- Anda - diz ela.
O seu apartamento fica a dois quarteirões da Lawson, num prédio modesto de dois andares. Ela sobe a escada, tira as chaves do bolso e abre a porta verde com painéis. A casa tem dois quartos, cozinha e casa de banho. As paredes são finas, o soalho range e possivelmente só apanha luz natural quando o Sol se põe. Ouve-se o barulho do autoclismo numa casa ao lado, uma porta de armário algures a bater. O sítio não deixa de ser manhoso, mas pelo menos
tem-se a sensação de que é habitado por pessoas reais com vidas reais. Vêem-se pilhas de pratos no lava-loiça da cozinha, garrafas de plástico vazias, revistas abertas pelo chão, tulipas meio murchas num vaso, uma lista de compras presa ao frigorífico, collants pendurados nas costas de uma cadeira, um jornal em cima da mesa, aberto na página dos programas de televisão, um cinzeiro, uma embalagem de Virginia Slims. Por qualquer razão que me escapa, este cenário ajuda--me a acalmar.
- Esta é a casa da minha amiga - explica. - Trabalhávamos as duas num cabeleireiro em Tóquio, mas no ano passado, por qualquer razão, ela viu-se obrigada a regressar à sua terra natal, Takamatsu. Mas entretanto resolveu ir de viagem até à India durante um mês e pediu-me que tomasse conta do apartamento. Além disso, fiquei a substitui-la, visto que ela
também é cabeleireira. Acho que a mudança de ares só lhe pode fazer bem. É uma dessas seguidoras da New Age, vamos lá ver como é que ela vem depois de passar um mês na índia.
Manda-me sentar à mesa e vai ao frigorífico buscar-me uma lata de Pepsi. Sem gelo. Não tenho por hábito beber colas. São demasiado doces e, além disso, fazem mal aos dentes. Mas como estou a morrer de sede emborco a lata inteira.
- Queres comer alguma coisa? Só tenho massas instantâneas, mas se te apetecer...
Digo-lhe que não sinto fome.
Estás com um aspecto horrível. Tens consciência disso? Aceno afirmativamente com a cabeça.
O que foi que aconteceu?
Bem gostava de saber.
Não fazes ideia do que aconteceu. Nem sequer sabias onde estavas. E dizes que é uma longa história - diz ela, resumindo os factos. - Dê por onde der, estás metido em sarilhos, certo?
E isso mesmo - respondo, dando-me conta do aperto em que me encontro.
Silêncio. Durante todo esse tempo, ela não deixa de olhar para mim com uma expressão carregada.
-Não tens familiares nenhuns em Takamatsu, pois não? Fugiste mas foi de casa.
Volto a acenar com a cabeça.
Uma vez, tinha eu a tua idade, fugi de casa. Acho que compreendo aquilo por que estás a passar. Foi por isso que te dei o número do meu telemóvel. Pensei que poderias vir a precisar dele.
Agradeço-te imenso - digo eu.
Eu vivia em Ichikawa, na Prefeitura de Chiba. Nunca me dei bem com os meus pais e detestava a escola, por isso roubei dinheiro aos meus pais e saí de casa, para ver se me afastava daquilo tudo. Tinha dezasseis anos. Abashiri foi o mais longe que cheguei; fica ao pé de Hokkaido. Parei numa quinta que encontrei pelo caminho e perguntei se me podiam dar trabalho. Disse-lhes que estava disposta a fazer todo o género de tarefas e a trabalhar no duro. Que podiam não me pagar em dinheiro, desde que tivesse um teto por cima e comida no prato. A senhora que me atendeu foi muito simpática, convidou-me a sentar e ofereceu-me um chá. Pediu-me que esperasse ^ali. Quando dei por mim tinha um carro-patrulha à porta e estava a ser reconduzida a casa pela Polícia. Parece que já não era a primeira vez que a dita senhora passava por uma situação daquelas. Só nessa altura é que percebi que, para arranjar trabalho onde quer que fosse, tinha mesmo de aprender um ofício. Por isso abandonei a secundária, fui para uma escola profissional e tornei-me cabeleireira. - Pairou--Ihe nos lábios um suave sorriso. - Uma bela maneira de resolver as coisas, não te parece?
Só posso estar de acordo com o que ela diz.
- Não me queres contar tudo, desde o princípio? - pergunta ela, tirando um cigarro e acendendo-o. - Não me parece que esta noite vá conseguir dormir, por isso bem posso ouvir a história toda.
Explico-lhe tudo, tintim por tintim, desde a hora em que saí de casa, mas deixo de fora a parte do pressentimento. Não é propriamente uma coisa que possa contar a qualquer pessoa.
- Então está combinado? Nakata pode chamar-lhe Kawamura? - Ele voltou a repetir a pergunta ao gato com listas castanhas, pronunciando vagarosamente as palavras, de modo a fazer-se compreender o melhor possível.
Este gato, muito concretamente, tinha ideia de já se ter cruzado com Goma - a tal gatinha malhada, com um ano, que andava perdida - por aquelas bandas. Mas, no entender de Nakata, tinha uma maneira muito estranha de se expressar. O mesmo podia dizer o gato, que também parecia ter a sua dificuldade em perceber o que Nakata dizia. O resultado era uma conversa de surdos. Quando um falava em alhos, os outros respondia em bugalhos.
- Tenho muita pena, mas a cabeça ao alto.
- Perdão, mas Nakata não percebe patavina do que está para aí a dizer. Mil desculpas, mas, bem vê, Nakata não é lá grande inteligência.
É atum até à última espinha.
Quer isso dizer que gostaria de comer atum?
Não, estou de mãos atadas.
Nakata nunca partia para as suas conversas com os gatos convencido de que ia tudo correr sem acidentes de percurso. Não é difícil imaginar que uma conversa entre gatos e homens possa conhecer as suas dificuldades. Além de que havia ainda outro fator a ter em conta: o próprio Nakata tinha problemas de comunicação - não apenas com gatos, mas também com as pessoas. A conversa tu-cá-tu-lá com Otsuka na semana anterior era a exceção que confirmava a regra. Porque o certo é que fazer passar a mensagem mais simples implicava sempre um grande esforço. Nos piores casos, era como se duas pessoas estivessem em margens diferentes de um canal aos gritos uma com a outra, num dia de vento. Calhava ser um daqueles dias.
Ele não sabia explicar bem porquê, mas era-lhe sempre mais difícil chegar à fala com os gatos vadios. Parecia que estavam num outro comprimento de onda. Com os gatos pretos, regra geral, corria tudo bem. Os siameses eram os mais fáceis de abordar, mas, infelizmente, não andavam por ali muitos siameses vadios ao pontapé, por isso nem sempre a oportunidade se proporcionava. Nas mais das vezes, os siameses eram mantidos dentro de casa e tratados com todos os mimos. E, vá lá saber-se porquê, então gatos castanhos tigrados que andavam perdidos eram a dar com um pau.
Mesmo sabendo aquilo com que contava, Nakata viu-se em palpos de aranha para decifrar o que Kawamura dizia. Ele tinha grande dificuldade em alinhavar o seu discurso e Nakata mal conseguia apanhar uma única palavrinha, quanto mais o sentido geral da frase. Aquilo que saía da boca do gato soava mais a enigmas do que a frases com princípio, meio e fim. Nakata, porém, era dono e senhor de grande dose de paciência, para além de ter todo o tempo do mundo. Lá ia repetindo a mesma pergunta, uma e outra vez, levando o gato a repetir, também ele, cada resposta que dava. Estavam os dois sentados num pequeno muro que delimitava um parque infantil em plena área residencial. Andavam há mais de uma hora às voltas com as palavras, mas a conversa ainda não os levara a parte alguma.
- Kawamura não passa do nome que Nakata lhe dá. Não quer dizer nada. Nakata dá nomes a todos os gatos para se lembrar melhor deles. Não tenha medo que não lhe vai dar maçada nenhuma, palavra de honra. É apenas o nome que Nakata gostava de lhe chamar, isto se não lhe fizer diferença.
Em jeito de resposta, Kawamura lá tartamudeou algo de incompreensível, e como, pelos vistos, a coisa estava emperrada, sem andar para a frente nem para trás, Nakata acabou por interrompê-lo e, na tentativa de avançar para a fase seguinte, tratou de mostrar outra vez a Kawamura a fotografia de Goma.
- Senhor Kawamura, esta é Goma, a tal gata de que Nakata anda à procura. Uma gatinha malhada com um ano de idade. Vivia para os lados do 3-Nogata, em casa da família Koizumi, que lhe perdeu o rasto há algum tempo. A Senhora Koizumi abriu a janela e a gata não fez mais nada, deu um salto e fugiu. Por isso, Nakata quer saber outra vez se por acaso não a viu?
Kawamura tornou a olhar para a fotografia e abanou a cabeça.
-Se for atum, Kwa'mura de mãos atadas. Primeiro atar, depois papar.
-Desculpe, mas, como lhe disse há pouco, Nakata não é lá muito esperto e não percebe o que isso quer dizer. Importa-se de repetir?
Se for atum, Kawamura atado. Tentar procurar e papar.
Quando fala em atum, refere-se ao peixe?
Tenta o atum, atado, Kawamura.
Nakata pôs-se a coçar o cabelo sal-e-pimenta cortado rente enquanto puxava pela cabeça. Como é que havia de fazer para resolver aquela charada, que metia atum pelo meio, e safar-se de vez daquele beco sem saída? Contudo, por mais voltas que desse ao miolo, continuava sem ter nenhuma pista. Encontrar soluções lógicas para os quebra-cabeças não era bem o seu forte. Imperturbável e completamente longe de toda aquela história, Kawamura levantou a pata esquerda e desatou a coçar a zona por baixo do queixo.
Foi nessa altura que Nakata julgou ter ouvido uma risadinha atrás de si. Virou-se e viu, a olhar para ele com os olhos cerrados, sentado num muro baixinho de betão ao pé de uma casa, um bonito e distinto gato siamês.
Desculpe, mas por acaso não é o senhor Nakata? - ronronou o gatinho.
Sim, Nakata é o meu nome. Muito gosto em conhecê-lo.
Faço minhas as suas palavras - replicou o siamês.
Tem estado coberto desde manhã, mas não deve chover nos tempos mais próximos - afirmou Nakata.
Espero bem que o tempo se aguente assim.
O siamês era uma fêmea, a caminho da meia-idade. Mantinha orgulhosamente a cauda erguida e tinha uma coleira com o nome inscrito numa placa. Possuía belos traços e nem um grama de gordura a mais no corpo.
Por favor, chame-me Mimi. Como a Mimi de La Bohème. Até existe uma ária sobre ela: «Mi chiamano Mimi.»
Ai sim - retorquiu Nakata, sem pescar nada do assunto.
Uma ópera de Puccini, não sei se está a ver. Acontece que o meu dono é um grande melómano e adora ópera - esclareceu Mimi, com um sorriso amável. - Teria muito gosto em interpretá-la para si, mas infelizmente não canto lá muito bem.
Nakata está encantado em conhecê-la pessoalmente, menina
Mimi.
O prazer é todo meu, senhor Nakata. - Mora aqui perto?
Sim, naquela casa de dois andares que fica já ali adiante. Em casa dos Tanabe. Está a vê-la, não está? E aquela que tem o BMW creme estacionado à porta.
-Ai sim - repetiu Nakata. Não fazia ideia do que era um BMW, mas estava a ver um carro de cor creme. Devia ser aquilo.
-Senhor Nakata - disse Mimi -, sou por natureza muito independente ou, se preferir, uma gata muito reservada, e não tenho por hábito andar a meter o nariz nos assuntos dos outros. Mas, verdade seja, esse bichano - que, segundo percebi, responde pelo nome de Kawamura - não é propriamente aquilo a que se possa chamar o gato mais esperto da ninhada. Quando era pequeno, foi atropelado por uma criança que estava a andar de bicicleta, coitadinho, e bateu com a cabeça no cimento. Desde então passou a nunca mais dizer coisa com coisa. Por isso não me parece que ganhe nada em continuar a falar com ele, mesmo usando de toda a paciência de que tem dado mostras. Há já algum tempo que estou a observá-lo e não podia continuar tranquilamente sentada nas minhas patas. Bem sei que pode parecer pouco delicado da minha parte, mas senti-me na obrigação de intervir.
- Não, não, por favor, não pense nisso. Ainda bem que o fez. Temo bem que Nakata seja tão fraco de cabeça como Kawamura e que não consiga passar sem a ajuda de terceiros, recebendo todos os meses um subsítio do governador. Por isso, Nakata agradece muito a sua informação.
-Parece-me bem que anda à procura de um gato - afirmou Mimi. - Não que eu estivesse de ouvido à escuta, atenção, mas acontece que por acaso ouvi-o falar nisso quando estava a fazer a minha sesta. Goma, creio, foi esse o nome que disse?
Sim, está correto.
E confirma que Kawamura viu Goma?
Pelo menos foi o que ele contou. Mas Nakata não conseguiu perceber nada do que ele disse a seguir.
Não se importa, senhor Nakata, que eu me intrometa na conversa e tente chegar à fala com ele? É mais fácil para dois gatos comunicarem entre si, além de que eu estou mais do que habituada à maneira arrevesada que ele tem de se expressar. Quem, melhor do que eu, para lhe soltar a língua e traduzir-lhe depois tudo por miúdos?
Isso seria por certo uma grande ajuda para Nakata.
A gata siamesa acenou ligeiramente com a cabeça e, como uma dançarina de ballet, saltou com agilidade do muro para o chão de cimento. A cauda preta em riste como o mastro de uma bandeira, passeou languidamente a sua elegância e foi sentar-se ao lado de Kawamura. Ele começou de imediato a cheirar o traseiro de Mimi, mas a siamesa deu-lhe uma patada no focinho e o gatinho recuou logo. Sem lhe dar tréguas, Mimi desferiu novo ataque, acertando-lhe desta vez no nariz.
-Vê se percebes isto, desmiolado! Seu parasita malcheiroso! -atirou Mimi, soltando um silvo antes de se virar para Nakata. - Tem de se lhe mostrar logo à partida quem manda aqui ou nunca se conseguirá nada. Se não nos pomos a pau, ele ganha confiança e começa a dizer cada vez mais disparates. Não tem culpa de estar assim, neste estado, e eu até tenho pena dele, mas o que se há-de fazer?
- Estou a ver - disse Nakata, se bem que não estivesse a pescar nadinha...
Os dois gatos começaram a conversar, mas talavam Ião baixinho e Ião depressa que Nakata não conseguia perceber nada cio que diziam. Mimi questionava Kawamura num tom cortante, e o gato mais novinho parecia responder, ainda que intimidado. Sem apelo nem agravo, a mais pequena hesitação dava azo a outra palmada no focinho. A gata siamesa era esperta que se fartava. E culta, para não dizer instruída. Nakata já se tinha cruzado com toda a espécie de gatos no seu caminho, mas nunca lhe acontecera dar com um que ouvisse ópera e conhecesse os modelos de carros. Impressionado, não tirava os olhos de Mimi enquanto ela, toda despachada, ia levando a água ao seu moinho.
Assim que Mimi ficou a saber tudo o que queria, tratou de despachar o gato a grande velocidade.
- Por mim já está, podes ir à tua vida! - exclamou ela, com rispidez, e ele não teve outro remédio senão esgueirar-se dali para fora, com ar abatido.
Mimi saltou para o colo de Nakata.
Acho que já sei tudo o que há para saber.
Muito agradecido - retorquiu Nakata.
- Aquele gato, que é como quem diz, Kawamura, diz que viu Goma por mais de uma vez numa zona coberta de vegetação ao fim desta rua. É um terreno baldio destinado à construção. Um investidor imobiliário comprou um armazém de peças sobressalentes para veículos e deitou-o abaixo, com a ideia de ali fazer erguer uma urbanização de luxo. Mas houve um movimento de cidadãos que se opôs ao projecto, a empresa enfrentou uma batalha legal e o assunto chegou mesmo, a tribunal, o que levou ao adiamento da obra. O tipo de coisa que passa a vida a acontecer nos tempos que correm. O lote de terreno encheu-se entretanto de ervas daninhas e as pessoas quase nunca passam por ali, por isso tornou-se o poiso perfeito para todos os gatos vadios aqui do bairro, com os quais não tenho por hábito misturar--me. Além do mais, não quero apanhar pulgas, por isso evito ir para aqueles lados. Como deve saber, as pulgas são como os maus hábitos - quando se apanham, torna-se muito difícil livrarmo-nos delas.
- Pois é.
- Ele contou-me que a gata é igualzinha à da fotografia - um bonita gatinha todo malhada com uma coleira antipulgas, que deve ser muito tímida e não parece ser de muitas falas. Está escrito na cara que se trata de um animal doméstico, sem experiência de vida, que anda perdido e não consegue encontrar o caminho de volta para casa.
- E quando é que isso aconteceu?
- A última vez que ele viu a gata parece ter sido há coisa de dois ou três dias. Como é um bocadinho para o burro, nem sequer tem a certeza do dia certo. Mas mencionou o dia a seguir a ter chovido muito. Pelas minhas contas, deve ter sido na segunda-feira. Lembro--me que caiu uma grande chuvada no domingo.
Nakata não sabe lá muito bem os dias da semana, mas pensa que deve ter chovido por essa altura. E ele não tornou a vê-la?
Aquela foi a última vez. Os outros gatos também não voltaram a vê-la, segundo ele diz. Não passa de um desmiolado de um gato, mas eu fiz-lhe perguntas bastante concretas de maneira a não lhe dar muita trela.
Nakata está-lhe muito agradecido.
Ora essa, não me custou nada. Tive muito gosto nisso. Na maior parte do tempo não tenho mais ninguém com quem conversar a não ser este bando de gatos inúteis, e nem sequer se pode dizer que nos pautemos pela mesma batuta. Fico extremamente irritada só de pensar nisso. Não imagina a lufada de ar fresco que para mim representa poder estar assim à conversa com um ser humano sensível como o senhor.
Ai sim? - exclamou Nakata. - Há uma coisa que Nakata ainda não percebeu. O senhor Kawamura está sempre a falar em atum e gostaria de saber se ele está a referir-se ao peixe?
Mimi levantou agilmente a pata esquerda dianteira para inspecionar a carne rosada e soltou uma risadinha.
Receio bem que o miúdo não tenha um vocabulário lá muito extenso.
Vocabulário?
O que eu quero dizer é que número de palavras que ele conhece é limitado. Por isso, chama atum a tudo o que é bom para comer. Para ele, em matéria de comida, atum é o mais belo petisco. Nem sequer sabe que existem coisas como o sargo, o alabote ou o pargo.
Nakata pigarreou.
- Por sinal, Nakata gosta muito de atum. E de enguias também, claro está.
- Também eu gosto muito de enguias. Apesar de não ser o género de coisa que se possa comer todos os dias.
- Essa é uma grande verdade. Não se pode comer todos os dias.
Durante um bocado mergulharam os dois num silêncio povoado pela imagem das enguias.
- Seja como for, onde o gato queria chegar era aqui - continuou Mimi, como se aquilo tivesse acabado de lhe ocorrer. - Não muito depois de os gatos do bairro terem começado a vadiar pelo terreno baldio, apareceu por lá a rondar um sujeito tenebroso que andava à caça de gatos. Os outros gatos acham que pode ter sido ele quem raptou a pequena Goma. Parece que o homem os atrai com um petisco e depois toca de enfiá-los para dentro de um saco. Não há dúvida de que o indivíduo tem bastante habilidade para apanhar gatos, e uma gatinha inocente e esfomeada como Goma facilmente cairia na armadilha. Até mesmo os gatos vadios desta zona que andam por aí aos caídos, qual deles o mais matreiro, já perderam dois ou três dos seus às mãos deste homem. É uma história absolutamente sinistra uma vez que para um gato não há nada pior do que ficar fechado dentro de um saco.
-Ai sim? - E, dizendo isto, Nakata voltou a afagar com a palma da mão o cabelo sal-e-pimenta. - Mas o que faz esse homem com os gatos a partir do momento em que os apanha?
- Isso já não sei. Antigamente havia quem da pele dos gatos fizesse shamise, mas agora já não há muita gente que saiba tocar shamisen. E, além do mais, ouvi dizer que agora são feitos de plástico. Nalgumas partes do mundo as pessoas comem carne de gato, mas felizmente isso não acontece no Japão. Por isso, quer-me parecer que podemos excluir essas duas possibilidades. Só falta, deixa-me ver... as pessoas que os utilizam em experiências científicas. Os gatos são muito usados para fazer experiências. Tive um amigo, de resto, que foi usado numa experiência na Universidade de Tóquio. Uma coisa terrível, mas é uma longa história e não vou pôr-me agora para aqui a desbobiná-la. Temos ainda os indivíduos perversos, e já foram mais, atenção, que têm prazer em torturar os gatos. Em deitar a mão a um e cortar-lhe a cauda, por exemplo.
- E depois de terem cortado a cauda, o que fazem?
- Nada. Só querem fazer mal aos gatos e atormentá-los. Por qualquer razão, é uma coisa que lhes dá gozo. Com grande pena minha, a verdade é que existem pessoas assim retorcidas neste mundo.
Nakata ficou um bocado a matutar naquilo. Como é que o ato de cortar a cauda de um gato podia alguma vez na vida dar prazer a alguém?
- O que está a dizer é que talvez esse sujeito tenebroso possa ter levado Goma? - perguntou.
Mimi franziu o cenho e ficou com os seus longos bigodes brancos todos espetados.
Quem me dera não pensar nisso e nem sequer aventar semelhante hipótese, mas é uma possibilidade a considerar. Senhor Nakata, ao longo dos meus escassos anos de vida assisti a coisas terríveis que vão para lá do que é possível imaginar. A maioria das pessoas olha para os gatos e pensa que bela vida que levam - e que não fazemos mais nada senão passar a vida ao sol, de papo para o ar, sem ter de levantar um dedo. Mas a vida de um gato não é assim tão idílica, nem de perto nem de longe. Os gatos são criaturas fracas e indefesas que facilmente se magoam. Não temos uma carapaça como as tartarugas, nem asas como os pássaros. Não podemos fazer uma cova na terra e desaparecer por ali dentro como as toupeiras nem mudar de cor como o camaleão. O mundo não faz ideia da quantidade de gatos que todos os dias são torturados, muitos deles acabando por conhecer um fim trágico. Pela parte que me toca, tenho a sorte de viver com os Tanabe no seio de uma família amorosa. As crianças tratam-me bem e tenho tudo o que preciso. Mas isso não quer dizer que até eu não tenha os meus pequenos problemas. Por isso sei muito bem que a vida dos gatos vadios está recheada de perigos.
É uma menina muito esperta, Mimi - disse Nakata, impressionado com a eloquência da siamesa.
Olhe que não - respondeu Mimi, baixando os olhos em sinal de vergonha. - O que acontece é que passo muito tempo em frente do televisor e fico com a cabeça cheia de factos destes, que nada significam. Costuma ver televisão, senhor Nakata?
Não, Nakata não vê televisão. As pessoas lá falam demasiado depressa e Nakata não consegue acompanhá-las. Como Nakata é burro, não sabe ler, e para quem não sabe ler a televisão não faz muito sentido. Às vezes, Nakata ouve rádio, mas também se cansa com a velocidade a que as palavras são ditas. O que dá gosto é fazer isto - andar por aí, a céu aberto, a meter conversa com os gatos que se encontram pelo caminho.
Estou a ver - retorquiu Mimi.
É assim mesmo - replicou Nakata.
Só espero que não aconteça nada à pequena Goma.
Nakata vai dar uma olhadela a esse terreno baldio.
Segundo diz o gatinho, este homem é muito alto, usa um estranho chapéu alto na cabeça e botas altas de couro. E anda depressa. Por causa do aspeto fora do vulgar que tem, facilmente dá nas vistas. Mal os gatos que andam nas imediações do terreno para construção se apercebem da presença dele, fogem dali a sete pés. Mas um recém--chegado que não esteja bem informado...
Nakata registou todas estas informações na sua cabeça, guardando tudo muito direitinho na gaveta destinada às coisas que não podiam cair no esquecimento. Homem muito alto, um estranho chapéu alto na cabeça, botas altas de couro
- Espero ter ajudado - disse Mimi.
- Nakata está grato pela sua ajuda. Se não tivesse tido a amabilidade de dizer alguma coisa, Nakata ainda a esta hora andava às voltas com o atum, sem pescar nada da história. Muito agradecido.
- Se quer a minha opinião - continuou Mimi, olhando para Nakata com o cenho franzido -, esse homem é um profundo poço de perigos. Representa um perigo maior do que pode imaginar. Se fosse a si, não punha os pés naquele aquele terreno. Mas, vendo bem, o senhor é humano e é essa a sua função. Só espero que tome cuidado consigo.
- Muito obrigado. Nakata vai ser o mais cuidadoso possível.
- Senhor Nakata, este mundo é um lugar terrivelmente violento. E ninguém escapa à violência. Não se esqueça disso. Todo o cuidado é pouco. E olhe que esta verdade tanto se aplica a gatos como a seres humanos.
- Sim, senhor. Nakata vai fazer os possíveis por se lembrar disso.
Mas a verdade é que ele não fazia ideia até que ponto e de que maneira o mundo podia ser violento. O mundo estava cheio de coisas que Nakata não compreendia, incluindo-se nessa categoria a maior parte das que se prendiam com a violência.
Depois de se ter despedido de Mimi, Nakata pôs-se a caminho do terreno baldio, que tinha o tamanho de um pequeno parque infantil. A área estava circunscrita por uma alta cerca de contraplacado e por um letreiro que dizia «terreno para futura construção - proibida a entrada» (e que Nakata, naturalmente, não podia ler). Uma pesada corrente impedia a entrada, mas dando a volta pelas traseiras havia uma abertura na cerca e foi por aí que ele lá conseguiu passar. Alguém devia ter forçado a entrada.
Todos os armazéns originalmente construídos haviam sido deitados abaixo, mas ainda não se procedera à terraplanagem e o terreno estava coberto de vegetação rasteira. A erva virgáurea tinha o tamanho de uma criança, viam-se borboletas a esvoaçar aqui e ali. Com a chuva os montículos de terra tinham ficado duros e sítios havia em que pareciam pequenos cabeços arredondados. Um lugar perfeito para gatos. O acesso estava vedado a pessoas, existia toda a espécie de criaturinhas à mão de semear e montes de lugares para servirem de esconderijo.
De Kawamura nem sinal. Andavam por ali dois gatos trinca-espinhas com pelo áspero, mas quando Nakata lhes atirou uma cordial saudação eles lançaram-lhe em troca um olhar frio e desapareceram por entre a vegetação. O que, diga-se de passagem, fazia todo o sentido - nenhum deles, em seu perfeito juízo, estava disposto a ser apanhado e ficar com a cauda cortada. O próprio Nakata decerto também não gostaria que isso lhe acontecesse, ainda que não tivesse cauda, como é bom de ver. Não admirava que os gatos se mostrassem desconfiados.
Nakata subiu a um sítio mais elevado e olhou em redor. Não se via vivalma. Só as borboletas rodopiavam em torno da vegetação, como se estivessem à procura de alguma coisa. Ele encontrou um sítio bom para se sentar, largou o saco de lona que carregava ao ombro, tirou de lá de dentro dois pãezinhos com sementes e comeu o seu almoço do costume. Acompanhou a refeição com chá quente que linha num termo, fechando ligeiramente os olhos à medida que saboreava a bebida. Mais uma tarde tranquila. Reinava a harmonia. Estava tudo calmo e em paz. Nakata sentia dificuldade em acreditar que pudesse haver alguém ali escondido, à cata de gatos, com o fito de os atormentar e torturar.
Friccionou o couro cabeludo enquanto mastigava. Se ali estivesse mais alguém com ele, poderia ter explicado, visto que Nakata não era lá muito esperto, mas, infelizmente, estava sozinho. Tudo o que podia fazer era acenar com a cabeça para si mesmo e continuar a mastigar. Quando acabou os pãezinhos, dobrou em quatro o papel de celofane onde tinham vindo embrulhados e guardou-o no saco. Voltou a enroscar a tampa da garrafa-termo e meteu-a também no saco. O céu estava coberto por uma camada de nuvens, mas bastava-lhe olhar para a cor para saber que o Sol se encontrava mesmo por cima.
O homem é muito alto, usa um estranho chapéu alto na cabeça e botas altas de couro.
Nakata tentou imaginar o homem, mas não fazia ideia de qual seria o aspecto que um estranho chapéu alto e botas altas de couro pudessem ter. Em toda a sua vida nunca vira um cómico chapéu alto de abas e botas altas de couro. Kawamura dissera a Mimi que se dava logo pelo homem mal se lhe pusesse a vista em cima. A ser esse o caso, Nakata só tinha de esperar até encontrar o homem pela frente. Sim, decidiu ele, isso seria o melhor a fazer. Levantou-se e aliviou--se em cima da relva - uma longa e salutar mija -, antes de procurar refúgio junto de um emaranhado de ervas daninhas num canto do terreno baldio que lhe permitia ficar escondido, e passou o resto da tarde ali sentado, sempre à espera de que o tal sujeito bizarro aparecesse.
Esperar era uma seca que só visto. Ele não fazia ideia de quando é que o homem poderia voltar a aparecer. No dia seguinte? Algures no decorrer da próxima semana? Ou talvez nunca mais aparecesse -ainda existia essa possibilidade. Todavia, Nakata estava habituado a esperar indefinidamente e a estar sozinho, sem fazer nada. Esperar não representava maçada por aí além.
Para ele, o tempo não era o mais importante. Nem sequer se dava ao luxo de ter relógio. Funcionava segundo a sua própria noção do tempo. De manhã havia luz, à noite o Sol punha-se e ficava escuro.
Quando escurecia ele dirigia-se até aos balneários públicos mais próximos e, depois de ter tomado o seu banho, ia logo dormir. Havia certos dias em que os balneários públicos estavam fechados e, quando isso acontecia, voltava para trás. O estômago dizia-lhe quando era chegada a hora de comer, e sempre que estava na altura de ir receber o subsítio (havia sempre uma alma caridosa que tinha a bondade de lhe fazer saber isso) ficava a saber que passara mais um mês. No dia a seguir tratava logo de passar pelo barbeiro da esquina para cortar o cabelo. Sempre que chegava o Verão aparecia um membro qualquer da autarquia com uma oferta de enguias, e pelo Ano Novo costumavam levar-lhe bolinhos de arroz. Nakata relaxou o corpo e libertou a mente, deixando fluir a energia. Fazer isto era para ele natural, fazia-o desde criança, sem sequer pensar duas vezes. Em menos de nada sentiu o espírito, na fronteira da consciência, começar a tremular, como as asas de uma borboleta. De tempos a tempos, a sua consciência atravessava essa fronteira e ficava a pairar sobre uma fenda escura, vertiginosa. Mas Nakata não tinha medo da escuridão nem dos abismos. E por que razão haveria de ter? Aquele mundo de trevas infindas, onde reinavam o silêncio opressivo e o caos, eram velhos conhecidos, faziam parte de si. Nakata sabia isso perfeitamente. Naquele mundo não existia escrita, nem dias da semana, nem governador sinistro, nem ópera, nem viaturas da marca BMW. Nem tesouras e chapéus altos. Em contrapartida, enguias deliciosas e saborosos pãezinhos doces era coisa que também não havia. Existe o todo, mas não as partes. Uma vez que não existem partes, torna-se desnecessário substituir uma coisa por outra. Não é preciso suprimir nada nem acrescentar algo mais. Não é preciso matar a cabeça, basta uma pessoa deixar--se levar pela corrente. Para Nakata, não havia nada de melhor.
De vez em quando, deixava-se dormir. No entanto, mesmo a dormir, os seus sentidos, sempre alerta, nunca deixavam de vigiar o terreno baldio. Se acontecesse alguma coisa, se aparecesse alguém, estava preparado para acordar logo e fazer o que tinha de ser feito. O céu estava coberto por um manto liso de nuvens cinzentas, mas pelo menos não ameaçava chuva. Todos os gatos sabiam isso. E o mesmo acontecia com Nakata.
Quando acabo a minha história, já é muito tarde. Sakura escuta atentamente o tempo todo, com a cabeça deitada sobre as mãos em cima da mesa da cozinha. Conto-lhe que afinal só tenho quinze anos, ando no secundário, que roubei o dinheiro do meu pai e fugi da minha casa no bairro de Nakano, em Tóquio. Que estou a viver num hotel em Takamatsu e passo os meus dias numa biblioteca, a ler. Que de repente, sem saber como nem porquê, dei por mim nas imediações de um santuário, caído por terra e coberto de sangue. Conto-lhe tudo. Bom, quase tudo. Sobre as coisas importantes não consigo falar.
-Com que então a tua mãe saiu de casa com a tua irmã mais velha quando tinhas apenas quatro anos. Abandonando-te a ti e ao teu pai.
Tiro da carteira a fotografia em que estou eu e a minha irmã (estamos) na praia e mostro-lha.
- Esta é a minha irmã - digo. Sakura fica a olhar para a foto durante um bocado, depois devolve-ma sem dizer nada.
- Nunca mais voltei a vê-la - acrescento. - E à minha mãe também não. Ela nunca tornou a entrar em contacto connosco, e nem sei onde é que anda. Não me lembro sequer como ela é. Não fiquei com nenhuma fotografia dela. Lembro-me do seu cheiro, do toque das suas mãos, mas não do seu rosto.
Hmm - murmura Sakura. Sempre com a cabeça nas mãos, semicerra os olhos e lança-me um olhar perscrutador. - Deve ter sido duro para ti.
- Se calhar...
Continua a olhar para mim em silêncio.
-Com que então, não te entendeste com o teu pai? - pergunta ela, passado um bocado.
Não me entendi? Como é que hei-de responder a isso? Não digo nada, limitando-me a abanar a cabeça.
-Uma pergunta parva, claro que não te entendeste bem com ele, ou não terias fugido de casa - afirma Sakura. - E agora estás aqui. E hoje, de repente, perdeste os sentidos ou a memória ou uma coisa parecida.
Isso mesmo.
Alguma vez te tinha acontecido?
- Volta e meia - confesso. - Quando perco as estribeiras, é como se rebentasse um fusível. Como se alguém me ligasse um interruptor na cabeça e o meu corpo desatasse a mexer antes de o meu cérebro dar ordem. E como se eu estivesse aqui, mas, de certa maneira, não fosse eu.
Perdes o controlo e ages de forma violenta, é isso?
Já não foi a primeira vez, é um facto.
Fizeste mal a alguém? Digo que sim com a cabeça.
Por duas vezes. Mas nada de grave. Ela fica a pensar naquilo que lhe disse.
Foi o mesmo que aconteceu desta vez? Faço que não com a cabeça.
- Nunca correu assim para o torto. Desta vez... não sei como é que tudo começou, e a verdade é que nem sequer me lembro de nada do que sucedeu. Dá ideia que passaram um pano sobre a minha memória.
Ela pega na T-shirt que eu tiro da mochila e inspeciona minuciosamente a mancha de sangue que não consegui tirar.
- Quer então dizer que a última coisa de que te lembras é de teres jantado? Num restaurante ao pé da estação?
Aceno que sim com a cabeça.
- E a partir daí estás completamente em branco. Só te lembras de dar por ti deitado no meio dos arbustos, nas traseiras do santuário. Isto passado quatro horas. Com a camisa ensopada de sangue e o ombro esquerdo a doer?
Volto a acenar com a cabeça. Ela vai buscar o mapa da cidade e verifica a distância entre a estação e o santuário.
- Não se pode dizer que seja muito longe, mas a pé ainda é um bocado. Mas porque raio é que te lembraste de ir até lá? Fica na direção contrária do hotel. Alguma vez lá tinhas estado?
Respondo que não com a cabeça.
- Nunca.
-Tira a camisa por um minuto - pede ela.
Dispo-me da cintura para cima e ela dá a volta por trás de mim e passa a mão pelo meu ombro esquerdo. Os seus dedos enterram--se na carne e não consigo deixar de gemer em voz alta. Decididamente, esta miúda tem força.
- Dói?
- Podes crer que dói, e muito.
- Foste contra alguma coisa com violência. Ou então alguma coisa foi de encontro a ti.
- Não tenho ideia nenhuma.
- Pelo menos não tens nada partido - diz ela, e começa a tocar à volta da zona magoada.
- Tirando a dor, o toque dos seus dedos sabe--me estranhamente bem. Quando lhe digo isso, sorri.
- Sempre fui boa a fazer massagens. Dá muito jeito a uma cabeleireira, saber fazer massagens.
Continua a massajar-me o ombro.
- Não me parece que seja grave. Nada que uma boa noite de sono não cure.
Ela pega na minha T-shirt, mete-a dentro de um saco de plástico e enfia-a dentro do balde do lixo. Passa revista à minha camisa de xadrez e atira-a para dentro da máquina de lavar. Põe-se a vasculhar a cómoda e tira de lá uma T-shirt que me entrega, completamente nova, alusiva a um passeio para observação de baleias na ilha de Maui, com o dorso de uma baleia a sair da água.
- É o tamanho maior que consegui arranjar. Não é minha, mas não faz mal. É uma recordação de outra pessoa. Se calhar não é bem o teu género, mas experimenta.
Enfio pela cabeça a T-shirt, que me serve perfeitamente.
- Se quiseres, podes ficar com ela.
Agradeço-lhe.
- Então nunca tiveste antes uma perda de memória total? - pergunta-me.
Faço que não com a cabeça, depois fecho os olhos, sinto a nova T-shirt, aspiro o cheiro dela.
- Sabes, Sakura, estou verdadeiramente assustado - confesso--Ihe. - Não sei para onde me virar. Não tenho ideia de ter feito mal a alguém. Tudo o que sei é que dei por mim coberto de sangue, mas não me recordo de mais nada. Se é verdade que cometi um crime, continuo a ser legalmente responsável por ele, não é? Quer dizer, independentemente de me lembrar ou não...
-Talvez não tenha passado de uma hemorragia nasal. Se calhar alguém que vinha a descer a rua chocou com poste telefónico e ficou com o nariz a sangrar. E tu, a única coisa que fizeste foi ajudá-lo. Compreendo a tua preocupação, mas vamos lá ver se não começamos logo a imaginar o pior, está bem? Pelo menos esta noite. De manhã podemos ver se saiu alguma coisa nos jornais e ver as notícias na televisão. Se tiver acontecido algo de grave, ficaremos logo a saber. E nessa altura logo vemos quais as opções que temos. Existem muitas razões pelas quais uma pessoa pode ficar cheia de sangue, e muitas vezes o caso não é tão grave quanto parece. Sendo mulher, estou habituada a ver sangue, pelo menos uma vez por mês. Percebes onde quero chegar?
Aceno com a cabeça e sinto-me corar ligeiramente. Ela deita uma pequena quantidade de Nescafé para dentro de uma grande chávena e trata de aquecer água numa pequena cafeteira. Enquanto espera que a água ferva, fuma um cigarro. Dá uma ou duas passas antes de o apagar debaixo da água da torneira. No ar fica o cheiro a fumo e a mentol.
Não quero parecer intrometida, mas há uma coisa que gostaria de te perguntar. Importas-te?
Não - respondo.
A tua irmã mais velha foi adoptada. Os teus pais trataram de tudo antes de tu nasceres, tenho razão ou não?
Tens razão. Não sei bem porquê, mas os meus pais adotaram-na. Depois, nasci eu. Não me parece que estivesse nos planos deles.
Nesse caso és decididamente filho dos teus pais.
Tanto quanto sei - digo-lhe eu.
Mas quando a tua mãe saiu de casa não foi a ti que levou, mas sim a tua irmã, com quem não tinha laços de sangue - argumenta Sakura. - Normalmente uma mulher não faria uma coisa dessas.
Não digo nada.
O que a terá levado a fazer isso?
Abano a cabeça.
Não faço ideia - digo. - Fiz essa pergunta a mim mesmo milhões de vezes.
Deves ter ficado muito magoado.
Fiquei?
Não sei. Mas, se um dia me casar, não quero filhos. Não saberia o que fazer com eles.
O meu caso não foi tão complicado - conta ela -, mas durante muito tempo não me dava com os meus pais e isso levou-me a fazer uma data de disparates. Por isso sei como te sentes. E também sei que não é boa ideia tomar uma decisão a correr. Nesta vida nada é definitivo.
Sakura está de pé em frente do fogão e bebe o café fumegante de uma grande chávena. A chávena tem a figura de Mooming estampada. Fica calada, e eu também não digo mais nada.
Tens alguém de família ou alguma pessoa conhecida, que te possa ajudar? - pergunta ela, passado algum tempo.
Não - digo eu. - Os pais do meu pai já morreram há muito tempo, e ele não tem irmãos nem irmãs, nem tios ou tias. Ninguém. Pelo menos que eu conheça. Mas uma coisa sei: ele nunca manteve contacto com a família. E nunca ouvi falar em parentes do lado da minha mãe. Se nem sequer sei o seu nome, como posso saber algo sobre a família dela?
Falas como se o teu pai fosse um extraterrestre que aterrou aqui na terra ou uma coisa do género - afirma Sakura. - Dito assim até parece que ele veio de um planeta completamente diferente, adotou a forma de um humano, raptou uma terráquea e depois nasceste tu, ficando assim provado que ele podia ter mais descendentes.
A tua mãe descobriu tudo, ficou assustada e desapareceu de cena. Como numa fita de ficção científica em tom de film noir. Não faço ideia do que ela está a falar.
- Fora de brincadeira - continua, sorrindo abertamente para mostrar que tudo não passara de uma piada. - O que quero dizer é isto: não tens mais ninguém no mundo inteiro com quem contar, a não ser tu próprio.
- Podes dizê-lo.
Ela deixa-se ficar ali, encostada ao lava-loiça, a beber o café.
-Vou ver se durmo alguma coisa - diz, como se tivesse acabado de se lembrar disso. Passa das três. - Tenho de estar a pé às sete e meia, já não falta muito. Mas sempre é melhor umas horitas de sono do que nada. Detesto ir trabalhar sem ter ido à cama. E tu, o que tencionas fazer?
-Tenho aqui o meu saco-cama - respondo -, por isso, se não der muita maçada, enrosco-me para aí num canto e pronto. - Tiro o saco-cama, cuidadosamente enrolado, da mochila, estendo-o e acamo-o.
Ela segue todos os meus gestos, nitidamente impressionada. Um verdadeiro escuteiro - diz.
Depois de ela ter apagado a luz e ido para a cama, enfio-me dentro do saco-cama, fecho os olhos e faço por dormir. Mas não consigo tirar do pensamento a imagem da minha T-shirt branca ensopada de sangue. Aquela sensação continua a queimar-me a palma da mão. Abro os olhos e cravo os olhos no tecto. Lá em cima, algures, o soalho range. Alguém abre uma torneira. E oiço uma vez mais a sirene de uma ambulância na noite, ao longe, atravessando de forma lancinante as trevas.
Não consegues dormir? - sussurra ela no escuro.
Não - digo eu.
- Eu também não. Não devia ter bebido café. Foi uma estupidez. - Liga o candeeiro da mesinha-de-cabeceira, vê as horas, depois apaga a luz. - Não sonhes - diz -, mas, se quiseres, podes vir para ao pé de mim. Também não consigo dormir.
Abro o saco-cama e vou ter com ela à cama. Estou de boxers e T-shirt. Ela veste um pijama cor-de-rosa fininho.
-Tenho um namorado fixo em Tóquio - confidencia-me. - Não é nada do outro mundo, mas é o meu homem. Portanto, não faço sexo com mais ninguém. Pode não parecer, mas, no que toca a sexo, sou bastante puritana. Podes chamar-me antiquada. Nem sempre fui assim - costumava até ser bastante ousada -, mas agora já me deixei disso. Por isso, não te ponhas com ideias. Pensa em nós como sendo irmão e irmã. Percebido?
- Percebido.
Põe o braço à minha volta, envolve-me num abraço forte e encosta a face à minha testa.
- Coitado de ti - diz ela.
Escusado será dizer que fico logo com uma ereção monumental. Uma coisa do outro mundo. E não consigo evitar que roce na coxa de Sakura.
- Oh, céus - exclama ela.
- Não é por mal - digo eu. - É mais forte do que eu.
- Deixa estar - diz ela. - Imagino que deva ser uma coisa inconveniente. Não há nada que possas fazer para o evitar.
Abano a cabeça no escuro.
Ela hesita por um momento, depois puxa as minhas boxers para baixo, tira-me para fora o sexo duro que nem uma rocha e embala--o suavemente na mão. Como se estivesse a verificar alguma coisa. Como um médico a medir o pulso, roça a sua mão macia em mim e, fugaz como um pensamento errante, sinto qualquer coisa irromper do escroto.
- Que idade teria agora a tua irmã?
Vinte e um - respondo. - É seis anos mais velha do que eu. Ela fica a pensar naquilo durante um bocado.
Gostarias de a ver?
Se calhar - digo.
Se calhar? - A mão dela agarra o meu pénis com mais força. - O que é que queres dizer com isso, se calhar? Que afinal de contas não estás assim com tanta vontade de a ver?
Não saberia o que lhe dizer, além de que ela poderia não me querer ver. E em relação à minha mãe, a mesma coisa. Podia muito bem acontecer que nenhuma delas ficasse contente por me ver. Não anda ninguém à minha procura. Vendo bem, elas é que saíram de casa. Sem mim.
Ela não diz nada. O movimento da sua mão no meu sexo abranda, depois aumenta. Acompanhando o ritmo, o pénis relaxa, depois fica ainda mais duro.
Queres vir-te? - pergunta.
Pode ser - digo eu.
Pode ser?
Sim, muito - emendo eu.
Ela solta um ligeiro suspiro e começa lentamente a mexer a mão. Aquilo dá-me um prazer louco. Não apenas o movimento para cima e para baixo. A sensação provocada pelo massajar prolongado estende--se ao corpo todo. Os seus dedos tocam e apertam ternamente o pénis e os testículos. Fecho os olhos e deixo escapar um grande suspiro.
Não me podes tocar. E avisa-me quando estiveres quase a vir-te para não sujares os lençóis.
Tudo bem - digo eu.
O que é que achas? Estou a fazer bem?
Lindamente.
Como te estava a dizer, sou muito boa com as mãos. Mas isto não tem nada que ver com sexo. Como é que hei-de dizer? Estou só a ajudar-te a descontrair, é isso. Tiveste um dia difícil, estás extremamente tenso e não ias conseguir dormir bem se não tratássemos do assunto. Está percebido?
Percebido - respondo. - Só gostava de te pedir mais uma coisa.
O que é?
Não te importas que te imagine nua?
Sakura interrompe o que estava a fazer com as mãos e olha--me nos olhos.
Queres imaginar o meu corpo nu enquanto eu te faço isto?
Sim. Tenho estado a tentar evitar que isso aconteça, mas não consigo.
A sério?
Não é coisa que se desligue propriamente como se desliga a televisão.
Ela ri-se.
Não percebo. Devias ter guardado isso só para ti! Podes imaginar o que te apetecer. Não precisas da minha autorização para isso. Como é que posso saber o que te vai na cabeça?
É mais forte do que eu. Acho que o ato de imaginar é qualquer coisa de extremamente importante, por isso achei melhor dizer-te. Não tem nada que ver com o facto de saberes ou não.
Que rapazinho tão bem educado que tu me saíste - exclama ela, impressionada. - É querido da tua parte, dares-me conhecimento disso. Tudo bem, tens a minha autorização. Podes imaginar-me nua à vontade.
Obrigado - digo eu.
Agora conta-me. Tenho um corpo bonito?
Espantoso.
Uma sensação lânguida espalha-se pelo meu baixo-ventre, como um líquido que irrompe à superfície em toda a sua pujança. Quando lhe faço saber, ela agarra em meia dúzia de lenços de papel que estão na mesa-de-cabeceira e eu começo a vir-me, uma vez e outra, sem parar... Pouco depois ela vai até à cozinha, deita fora os lenços e passa as mãos por água.
Desculpa - digo eu.
Não faz mal - diz ela, voltando a enfiar-se na cama. - Não precisas de te desculpar. É apenas uma parte do corpo. Então, como é que sentes? Mais aliviado?
Sem dúvida.
Fico contente. - Por momentos, mostra-se pensativa. Depois diz: - Estava a pensar como seria bom se fosse tua irmã a sério.
Também acho - digo.
Ela toca suavemente no meu cabelo.
Agora quero dormir. Não te importas de voltar para o teu saco-cama? Só durmo bem quando estou sozinha- Além de que não quero correr o risco de ter a tua coisa dura a roçar por mim durante a noite. Pode ser?
Volto para dentro do saco-cama e fecho os olhos. Agora, sim, posso adormecer. Caio num sono profundo. Porventura o mais profundo desde que fugi de casa. Sinto-me como se estivesse num gigantesco elevador que me transporta, lentamente, em silêncio, até às profundezas da terra. Por fim, as luzes desaparecem todas e os sons desvanecem--se de vez.
Quando acordo, Sakura já saiu para o trabalho. São nove da manhã. O ombro quase já não me dói. Tal como ela disse. Em cima da mesa da cozinha encontro um jornal da manhã, um recado e uma chave.
O recado diz:
Vi as notícias das sete na televisão e li o jornal de uma ponta à outra, mas não se registou nenhum incidente sangrento nas redondezas. Por isso não me parece que o sangue tenha algum significado. Boas notícias, não te parece? No frigorífico não há nada de jeito, mas tira o que quiseres. E serve-te à vontade do que houver em casa. Podes ficar aqui o tempo que quiseres. Quando saíres, deixa a chave debaixo do tapete.
Vou ao frigorífico buscar uma embalagem de leite, verifico a data de validade e deito o leite em cima dos flocos de cereais. Depois ponho água a ferver e preparo uma chávena de chá Darjeeling. Faço duas torradas e como-as com margarina sem gordura. A seguir abro o jornal e passo os olhos pelas «gordas». Tal como ela disse, não há sinal de crimes violentos nas principais notícias. Deixo escapar um suspiro de alívio, fecho o jornal e volto a pô-lo onde estava. Pelo menos não serei obrigado a correr a cidade com a polícia à perna. Mesmo assim, decido que o melhor é não voltar ao hotel, não vá o diabo tecê-las. Continuo sem me lembrar do que aconteceu durante aquelas quatro horas.
Telefono para o hotel. Atende-me um homem cuja voz não reconheço. Digo-lhe que houve um imprevisto e que tenho de deixar o hotel. Esforço-me por fazer voz de adulto. Uma vez que paguei antecipadamente, não deve haver problema. Digo-lhe ainda que deixei no quarto alguns objetos pessoais, mas que não me fazem falta. Ele verifica no computador que a conta está paga. «Está tudo em ordem, Senhor Tamura», diz ele. «A sua conta está paga.» A chave é um cartão de plástico, por isso não é preciso devolvê-la. Digo obrigado e desligo.
Meto-me debaixo do chuveiro. A roupa interior e as meias de Sakura estão penduradas a secar na casa de banho. Desvio o olhar e trato de me lavar da cabeça aos pés. E faço os possíveis por não pensar na noite passada. Lavo os dentes e visto roupa interior lavada, enrolo o saco cama o enfio-o dentro da mochila, antes de pôr a roupa suja na máquina a lavar. Como não há secador, tiro-as para fora ainda húmidas, dobro-as e guardo-as na mochila dentro de um saco de plástico. Posso sempre pô-las a secar na lavandaria, mais tarde.
Lavo todos os pratos que se acumulam no lava-loiça, deixo-os escorrer, seco-os e volto a guardá-los na prateleira. A seguir arrumo o que está dentro do frigorífico e deito fora todos os produtos fora de prazo. Há ali comida que deita um cheiro horrível - os brócolos estão estragados, existe um pepino que mais parece borracha, a embalagem de tofu tem uma data há muito expirada. Pego no que ainda se pode comer e transfiro tudo para dentro de novas caixas e limpo o molho que se entornou. Esvazio os cinzeiros, apanho os jornais velhos que estão espalhados por tudo o que é sítio e faço com eles uma bela pilha. Aspiro a casa toda. Sakura pode ter muito jeito para fazer massagens, mas como dona de casa é um desastre completo. Dou um jeito com o ferro nas camisas por passar que ela tem em cima da cómoda e começo a pensar em ir à rua comprar qualquer coisa para fazer o jantar. Em minha casa era quase sempre eu que me ocupava das tarefas domésticas, por isso estou mais do que habituado a este trabalho. Mesmo assim, pensando melhor, talvez fazer o jantar seja ir longe de mais.
Quando está tudo pronto, sento-me à mesa da cozinha e passeio o olhar pelo apartamento. Bem sei que não posso ficar aqui eternamente. Arriscava-me a passar metade do tempo com uma erecção e toda a espécie de fantasias na cabeça. Não consigo deixar de olhar para aquelas cuequinhas pretas penduradas na casa de banho, não posso passar a vida a pedir-lhe licença para dar livre rédea à minha imaginação. Mas, acima de tudo, não consigo tirar da cabeça o que ela me fez a noite passada.
Deixo ficar um bilhete a Sakura, aproveitando o lápis gasto e o bloco de notas ao lado do telefone. Obrigado. Salvaste-me a sério. Desculpa ter-te tirado da cama a meio da noite. Mas a verdade é que não tenho mais nenhuma pessoa com quem possa contar. Paro para pensar no que hei-de escrever a seguir, e aproveito para passar revista ao quarto. Obrigado por me teres deixado cá dormir. E também pelo convite para ficar por aqui durante mais algum tempo. Era bom que isso pudesse acontecer, mas acho que não te devo sobrecarregar. Por toda a espécie de razões que agora não vêm ao caso. Isto para dizer que tenho de me desenvencilhar sozinho. Espero que continues a pensar bem de mim da próxima vez que me vir num aperto e precisar de ti.
Neste ponto volto a parar. Alguém numa casa ao lado tem a televisão com o volume no máximo, num daqueles programas da manhã destinados às donas de casa. As pessoas em estúdio gritam umas com as outras, e os anúncios, horrorosos, chegam até mim igualmente em altos berros. Estou sentado à mesa, fazendo rolar o lápis gasto na entre os meus dedos, esforçando-me por conciliar os meus pensamentos. Mas, para ser franco, não creio ser merecedor da tua bondade. Estou a fazer os possíveis por me tornar uma pessoa melhor, mas a verdade é que as coisas não estão a correr lá muito bem. Espero que seja diferente da próxima vez que nos encontrarmos. Se o vou ou não conseguir, logo se verá. Obrigado pela noite passada. Foi maravilhosa.
Deixo ficar o bilhete debaixo da caneca, ponho a mochila às costas e abandono o apartamento, deixando ficar a chave debaixo do tapete, tal como ela me disse. No meio da escada está um gato malhado preto e branco, a fazer a sesta. Deve estar habituado às pessoas porque não faz menção de se mexer ao ver-me descer as escadas. Sento-me ao pé dele e entretenho-me a fazer festas no gatarrão. O contacto com o seu pêlo traz-me recordações. O gato semicerra os olhos e começa a ronronar. Ficamos ali sentados nas escadas um grande bocado, cada um dando sinais de estar a apreciar à sua maneira aquela sensação de bem-estar. Às tantas, despeço-me dele e saio para a rua. Começou a cair uma chuva miudinha.
Tirando o hotel e a casa de Sakura, que pertencem ao passado, não sei de mais nenhum lugar para passar a noite. Até ao fim do dia tenho de encontrar um tecto, um local seguro onde possa dormir. Não sei bem por onde começar, mas para já vou apanhar o comboio e ir até à Biblioteca Komura. Quando lá chegar, logo há-de aparecer alguma coisa. Não sei porquê, mas palpita-me que é isso que vai acontecer.
O destino parece estar a levar-me por caminhos cada vez mais estranhos.
19 de Outubro de 1972
Excelentíssimo Senhor Professor
Por certo não deixará de ficar surpreendido ao receber esta minha carta, assim de um dia para o outro. Peço-lhe de antemão que desculpe esta minha ousadia. O mais provável é o Senhor Professor já não se lembrar sequer do meu nome, mas fui em tempos professora numa pequena escola do ensino básico na Prefeitura de Yamanashi. Quando ler isto, pode ser que se recorde de alguma coisa a meu respeito. Era eu a professora que tinha a meu cargo um grupo de crianças no decorrer de uma visita de estudo, crianças essas que se viram envolvidas num incidente em que perderam, todas elas, a consciência. Depois disso, como deve estar lembrado, tive por mais de uma vez oportunidade de falar com o senhor e com os seus colegas da Universidade de Tóquio, quando das visitas efectuadas à nossa cidade na companhia de alguns militares a fim de proceder a uma investigação sobre o assunto.
Desde então, habituei-me a ver muitas vezes o nome do Senhor Professor referido em artigos de jornais e revistas, e confesso que acompanhei a sua carreira e o êxito dos seus trabalhos com a mais profunda admiração. Ao mesmo tempo, guardo excelentes recordações dos nossos encontros, especialmente da maneira eficiente e solícita como sempre deu andamento ao caso. Acresce ainda que tive a sorte de ler várias das suas obras. Confesso que a sua profunda capacidade intelectual sempre me impressionou favoravelmente, e admiro sobremaneira a visão do mundo que atravessa de forma particularmente eloquente toda a sua obra publicada - nomeadamente no que diz respeito ao facto de cada um de nós, enquanto indivíduo, ser um caso isolado, não deixando, ao mesmo tempo, de estarmos todos ligados por uma memória prototípica. Ao longo da minha existência, não raras vezes eu própria me dei conta deste facto. Desde já, deixo expresso os meus votos de renovado êxito nas suas pesquisas sobre a matéria.
Mas passo agora ao assunto em questão. Depois do referido incidente, continuei a dar aulas naquela escola básica. Acontece, porém, que, de alguns anos a esta parte, adoeci gravemente e estive hospitalizada durante muito tempo no Hospital Municipal de Kofu, tendo-me posteriormente visto obrigada a pedir a reforma. Andei sempre dentro e fora do hospital durante todo esse ano, mas, com o tempo, acabei por recuperar, recebi alta e abri um pequeno centro de explicações na nossa cidadezinha, passando a ter como alunos os filhos dos meus antigos alunos. Correndo o risco de parecer banal, o povo diz, e com razão, que o tempo passa a correr. Também para mim os meses e os anos passaram a voar.
Durante a guerra, perdi marido e pai e, passado não muito tempo, também a minha mãe faleceu, naquele período confuso do pós-guerra que se seguiu à rendição. Atendendo ao facto de o meu marido ter partido para a guerra pouco depois de nos termos casado, nunca tivemos filhos, por isso fiquei sozinha no mundo. Não direi que a minha vida tenha sido feliz, mas considero uma benesse ter podido dedicar-me ao ensino durante tantos anos e ter tido a possibilidade de conviver com tantas crianças ao longo de todo este tempo. Agradeço aos céus a oportunidade que me deu. Se não fosse o meu trabalho como professora, talvez não tivesse conseguido sobreviver.
Ao fim de todos estes anos, arranjei finalmente coragem para me dirigir a si. A verdade é que nunca consegui apagar da memória aquele incidente ocorrido em pleno bosque no Outono de 1944. Passaram vinte e oito anos, mas os acontecimentos permanecem vivos na minha memória, como se tivesse sido ontem. Essas recordações nunca me largam e acompanham todos os meus dias como uma sombra. Perdi a conta às noites que passei acordada, a ponderar em tudo isto, e até nos meus sonhos continuei a ser perseguida pela lembrança desse dia.
Às vezes quer-me parecer que as reminiscências desse incidente têm o poder de afetar todo e qualquer aspeto da minha vida. Só para lhe dar um exemplo. Sempre que encontro uma das crianças envolvidas no incidente (andam agora na casa dos trinta e metade delas continua a morar aqui na cidade), nem por uma única vez deixo de me interrogar sobre as repercussões que tudo aquilo teve, tanto no caso delas como no meu. Sim, porque uma coisa tão traumática deverá, a longo prazo, ter forçosamente causado algum impacto, tanto do ponto de vista físico como psicológico, em todos nós. Não acredito que assim não seja. Mas quando se trata de enumerar muito concretamente o tipo de efeitos e a verdadeira dimensão desse impacto, sinto-me perdida.
Como o Senhor Professor bem sabe, por ordem dos militares as notícias sobre este incidente nunca chegaram ao conhecimento do grande público. Durante a ocupação, o exército norte-americano conduziu a sua própria investigação à porta fechada. Os militares são iguais em toda a parte, seja no lapão ou nos Estados Unidos. Mesmo quando, com o fim da ocupação norte-americana, a censura foi levantada, nunca apareceu nenhum artigo de jornal ou revista acerca do incidente. O que me parece, de certa forma, compreensível, uma vez que tudo acontecera há alguns anos e não tendo daí resultado qualquer morte.
Por tudo isto, a maioria das pessoas não tem qualquer conhecimento da ocorrência de semelhante incidente. Durante a guerra, incidentes trágicos foi coisa que não faltou, sem contar que milhões de indivíduos perderam a vida, por isso não creio que as pessoas se mostrassem muito chocadas pelo que aconteceu na nossa cidadezinha. Mesmo aqui, são muitos os que já se não recordam do sucedido, e aqueles que disso guardam memória não parecem ter vontade de tocar no assunto.
Com o tempo, as coisas acabam por cair no esquecimento. Até mesmo a própria guerra, o combate de vida e de morte travado pelos homens pertence agora ao passado. Estamos tão ocupados com a nossa vida do dia-a-dia que, tal como acontece com as antigas estrelas que há muito tempo se extinguiram, também os acontecimentos do passado já não pairam no nosso espírito. A verdade é que todos temos mil e uma coisas em que pensar todos os dias, mil e uma coisas novas que aprender. Novos hábitos, novas informações, novas tecnologias, novas terminologias... Ainda assim, por mais que o tempo passe, aconteça o que acontecer nesse ínterim, existem coisas que nunca nos poderemos dar ao luxo de esquecer, memórias que nunca se apagam. Isso ficará para sempre connosco, como um marco que assinala a nossa passagem por este mundo. E, no meu caso, o que aconteceu naquele dia em pleno bosque foi absolutamente determinante.
Tenho consciência de que é já demasiado tarde para fazer alguma coisa, e pode crer que compreendo perfeitamente que fique admirado por me ver trazer a lume toda esta história numa altura destas. Mas, enquanto tiver um sopro de vida, sinto absoluta necessidade de me abrir consigo e tirar do peito algo que há muito me aflige.
Durante a guerra, como não podia deixar de ser, vivemos sujeitos a uma severa censura e coisas havia de que não podíamos falar abertamente. Quando travei conhecimento com o Senhor Professor, estávamos rodeados de militares e vi-me obrigada a calar as minhas reservas. Além do mais, na altura ainda não o conhecia, nem a si nem ao seu trabalho, por isso não me pareceu que fosse de bom tom, na qualidade de uma jovem mulher que se dirige a um homem acabado de conhecer, entrar em grandes confidências acerca de um assunto do foro privado. Assim sendo, acabei por guardar para mim alguns dos factos. Por outras palavras, no decorrer da investigação oficial, mudei intencionalmente a minha versão oficial dos factos relativos ao incidente. E quando, uma vez terminada a guerra, fui entrevistada pelo exército americano, mantive-me fiel à história. Movida, porventura, pelo medo e a fim de manter as aparências, fui levada a repetir as mesmíssimas mentiras anteriormente relatadas. Ora, isto só veio contribuir para dificultar ainda mais a investigação do incidente e suponho que pode muito bem ter falseado as respetivas conclusões. Não, não suponho, sei que assim aconteceu. Há muito que este assunto atormenta a minha consciência, e confesso que me envergonho de ter feito o que fiz.
Posto isto, espero que compreenda agora as razões que me levaram a escrever-lhe esta longa carta. Sei perfeitamente que é um homem muito ocupado e que pode não ter tempo de se ocupar de um assunto destes. Se assim for, peço-lhe que não tenha qualquer pejo em considerar isto como o desabafo de uma mulher de idade e deitar fora esta carta, mal acabe de a ler. Pela parte que me toca, confesso que sinto necessidade, enquanto ainda posso, de confessar tudo o que realmente aconteceu na altura, passá-lo para o papel e dá-lo a ler a alguém que saiba o que fazer com essa informação. Recuperei em parte dos males que me atormentavam, mas nunca se sabe quando poderei ter uma recaída. Peço-lhe que leve isto em consideração.
Na noite que antecedeu a excursão à montanha com as crianças, tive um sonho com o meu marido, pouco antes do alvorecer. Sonhei que ele havia sido recrutado e partido para a guerra. O sonho não podia ser mais realista e estava cheio de imagens sexualmente sugestivas, tão vívidas que se tornava difícil distinguir entre sonho e realidade.
No sonho estávamos deitados em cima de uma grande pedra rasa e fazíamos amor. A pedra era cinzento-clara e ficava quase no cimo de uma montanha Na sua superfície, lisa e húmida, só cabiam dois tatami. O tempo estava encoberto e, apesar de não haver vento, tudo indicava que vinha aí uma tempestade. O dia estava prestes a findar e os passarinhos apressavam-se a recolher ao ninho. Debaixo daquele céu plúmbeo amávamo-nos em silêncio. Por esta altura ainda não estávamos casados há muito, e já a guerra era motivo de separação. O meu corpo ardia de desejo pelo meu marido.
Senti um prazer indescritível. Experimentámos todo o tipo de posições e atingi sempre o orgasmo de todas as vezes que fizemos amor. É estranho, agora que penso nisso, porque na vida real éramos ambos pessoas de temperamento calmo, diria mesmo algo tímidas. Nunca antes nos entregáramos assim à paixão ou tínhamos experimentado um prazer tão intenso. No sonho, porém, e pela primeira vez na nossa vida, ousáramos libertar-nos de todos os preconceitos e mais parecíamos animais com cio.
Quando abri os olhos ainda estava escuro lá fora e sentia-me deveras estranha. O corpo pesava-me, e parecia-me ter ainda o sexo do meu marido bem no fundo de mim. Sentia o coração a bater com força e mal conseguia respirar. A minha vagina estava molhada, como se tivesse acabado de ter relações. Parecia que acabara de fazer amor e não sonhado apenas com isso. Envergonho-me desta confissão, mas na altura masturbei-me. Ardia de desejo e precisava de fazer alguma coisa para acalmar os sentidos.
Mais tarde, como de costume, regressei à escola de bicicleta e parti com as crianças para a visita de estudo à Colina da Tigela de Arroz. Enquanto subíamos a pé pelo carreiro montanhoso, ainda sentia resquícios dos efeitos do sexo. Bastava-me fechar os olhos e podia sentir o meu marido a vir-se dentro de mim, o seu sémen a disparar contra a parede do meu útero. Pela parte que me tocava, agarrava--me desesperadamente a ele, as pernas escancaradas, os tornozelos entrelaçados nas pernas dele. Para ser franca, encontrava-me perfeitamente desorientada enquanto conduzia as crianças pela montanha acima. Sentia-me como se estivesse ainda no meio daquele sonho erótico de contornos tão realistas.
Quando chegámos ao local escolhido, numa altura em que os miúdos se preparavam para começar a apanhar cogumelos, apareceu--me de repente o período. Devo dizer que não estava na altura. A última menstruação tinha acabado dez dias antes, e os meus ciclos sempre haviam sido regulares. Talvez o sonho erótico tivesse mexido com qualquer coisa dentro de mim e desencadeado o período. Como seria de esperar, não tinha vindo preparada, e é bom de ver que nos encontrávamos no meio da mata, longe da cidade.
Mandei as crianças fazerem um intervalo, após o que me embrenhei sozinha no bosque e tratei de me remediar o melhor que podia com a ajuda de duas toalhas que tinha trazido comigo. O fluxo de sangue era abundante e estava encharcada, mas esforcei-me por remediar a situação até chegarmos outra vez à escola. Tinha a cabeça completamente vazia e não conseguia pensar em nada. Acho que estava refém da má consciência por causa daquele sonho desinibido, por me ter masturbado e também por me ter abandonado a fantasias sexuais em frente das crianças. Por norma, eu era o género de pessoa que conseguia esconder este tipo de pensamentos.
Mandei as crianças irem apanhar cogumelos, com a ideia de encurtar o passeio e regressar à base quanto antes. Assim que voltasse à escola, poderia então refrescar-me e limpar-me melhor. Sentei-me e entretive-me a ver os miúdos que andavam por ali à procura de cogumelos, sempre a fazer mentalmente a contagem e sem nunca perder nenhum de vista.
Contudo, passado um bocado, apareceu ao pé de mim um rapazinho com qualquer coisa na mão. Era o menino chamado Nakata - o mesmo que nunca recuperou a consciência e passou muito tempo hospitalizado. Transportava nas mãos as toalhas ensopadas de sangue que eu usara. Soltei uma exclamação de surpresa, não querendo acreditar no que os meus olhos viam. Tinha-as escondido num local distante e longe da vista, onde as crianças não pudessem dar com elas. Não sei até que ponto o senhor percebe, mas estamos a falar de uma coisa extremamente embaraçosa para uma mulher, em que ninguém deveria pôr a vista em cima. Como é que ele arranjou maneira de desencantar aquilo, continua a ser para mim um mistério.
Sem querer, dei por mim a esbofetear o pequeno Nakata. Agarrei-o pelos ombros e desatei a bater-lhe nas faces. É possível que também tenha gritado qualquer coisa, mas não me lembro. Estava fora de mim e perdera por completo o controlo sobre os meus atos. Julgo que a vergonha deve ter sido tão grande que fiquei em estado de choque. Nunca, mas nunca tinha levantado a mão para um aluno meu. Mas aquela não era eu.
Só nessa altura reparei nas crianças todas, ali paradas, a olharem para mim. Algumas estavam de pé, outras, sentadas, mas todas de olhos postos em mim. Assistiram a tudo - viram a minha figura, pálida, debruçada sobre Nakata, que caíra por terra depois de eu lhe ter batido, as toalhas ensanguentadas. Durante alguns momentos permanecemos todos como que petrificados. Ninguém fez um gesto, ninguém pronunciou uma palavra. Sem expressão, os rostos das crianças pareciam máscaras de bronze. Sobre o bosque abateu-se um profundo silêncio. Só se ouvia o chilrear dos pássaros. Essa cena ficou para sempre gravada na minha memória.
Quanto terá durado ao certo, não sei dizer. Pode até não ter sido muito. A mim, pareceu-me uma eternidade. Durante esse tempo senti-me arrastada para o limiar do mundo. Às tantas, lá me consegui libertar, e vi que a natureza voltara a ter as cores do mundo à minha volta. Escondi as toalhas sujas de sangue atrás das costas e ajudei Nakata a levantar-se do chão. Apertei-o contra mim e pedi-lhe encarecidamente que me desculpasse. Eu não tinha procedido bem, por favor, por favor, desculpa-me, pedi-lhe por tudo. Também ele parecia ainda em estado de choque. Tinha o olhar vazio, e não creio que estivesse em condições de ouvir as minhas palavras. Ainda com ele nos braços, virei-me para as outras crianças e disse-lhes que continuassem a apanhar cogumelos. Era pouco provável que elas pudessem compreender o que acabara de acontecer. Tudo aquilo era demasiado repentino, demasiado estranho.
Deixei-me ficar ali durante algum tempo, com Nakata nos braços. Só me apetecia era morrer, ou então desaparecer do mapa. O mundo continuava envolvido numa guerra violenta e brutal, à minha beira havia cada vez mais pessoas a morrer. Já não sabia o que estava certo e o que estava errado. Até que ponto o mundo que via diante dos meus olhos seria real? Seria real o som dos pássaros que me chegava aos ouvidos? Dei por mim ali sozinha, em pleno bosque, extremamente confusa, com o sangue a correr em abundância do meu útero. Sentia--me irritada, temerosa, embaraçada - tudo isto ao mesmo tempo. Lembro-me de ter chorado em silêncio.
E foi então que a criança perdeu os sentidos.
Não era minha intenção contar aos militares o que tinha realmente acontecido. Estávamos em guerra e, como tal, era imperioso fazer assentar a nossa existência em fortes princípios morais. Por isso deixei de fora do meu relato o facto de me ter aparecido o período, de Nakata ter encontrado as toalhas e de eu lhe ter batido. Receio bem que isso teria complicado ainda mais a sua investigação. Não imagina o alívio que sinto ao tirar finalmente este peso do meu peito.
Por mais estranho que possa parecer, nenhuma das crianças guardou memória do sucedido. Ninguém se lembrava das toalhas cheias de sangue ou de me ver esbofetear Nakata. Nos seus espíritos, estas recordações tinham-se por completo desvanecido. Mais tarde, pouco depois do incidente, tive oportunidade de sondar pessoalmente cada uma das crianças e confirmar que assim de facto acontecia. Talvez por esta altura a perda coletiva de conhecimento já então se tivesse manifestado.
Gostaria de acrescentar algumas coisas sobre o jovem Nakata, na qualidade de sua professora. Não sei ao certo aquilo que lhe aconteceu depois do incidente. Quando, no final da guerra, fui entrevistada, o oficial americano disse-me que ele havia sido levado para um hospital em Tóquio e que acabara por recuperar a consciência, mas sem entrar em mais pormenores. Provavelmente o senhor estará mais bem informado acerca disto do que eu, Professor.
Nakata foi uma das cinco crianças evacuadas para a nossa cidade, por sinal a mais inteligente de todas e a que obtinha melhores notas. Tinha feições muito agradáveis e estava sempre impecavelmente arranjado. Era um rapazinho dócil e nunca metia o nariz onde não era chamado. Nas aulas, nunca me lembro de o ver levantar a mão para responder primeiro, mas tinha sempre a resposta certa na ponta da língua e, quando eu lhe perguntava a opinião sobre um determinado assunto, as suas observações mostravam que não era parvo nenhum. Apanhava logo a matéria, fosse qual fosse a disciplina. Em quase todas as turmas existe um aluno assim, daqueles que aprendem quase sozinhos e que mal precisam de estudar. Daqueles que já se sabe de antemão que um dia vão entrar para uma das melhores universidades e arranjar um bom emprego na sociedade. Enfim, um miúdo com uma capacidade inata.
Devo, no entanto, confessar que, enquanto sua professora, havia uma ou duas coisas nele que me incomodavam. De vez em quando, detectava nele uma certa apatia. Mesmo quando se saía bem nas tarefas mais difíceis, nunca parecia ficar contente com o resultado obtido. Nunca batalhava para vencer, nunca parecia experimentar o sofrimento de quem vai à luta. Nunca suspirava e nunca soltava uma gargalhada. Só fazia o que se esperava dele. Executava de forma eficiente os seus deveres, como um operário numa linha de montagem, de chave de parafusos em punho, a apertar toda e qualquer porca que lhe vinha ter às mãos.
Nunca conheci os seus pais, por isso não falo com conhecimento de causa, mas o mais certo era ter problemas em casa. No decorrer da minha acividade profissional como professora não foi a primeira vez que se me deparou um caso destes. Os adultos passam a vida a elevar a fasquia no que toca às crianças inteligentes, sabendo de antemão que elas estão perfeitamente à altura. As crianças ficam de tal maneira assoberbadas pelas tarefas que lhes são distribuídas que, aos poucos, acabam por perder toda a espécie de espontaneidade e sentimento de dever cumprido que à partida naturalmente possuíam. Nessas circunstâncias, as crianças tendem a meter-se dentro da sua concha e a guardar tudo para si, sendo preciso muito tempo e um considerável esforço para que se voltem a abrir ao mundo. Os seus corações são frágeis e maleáveis, mas, a partir do momento em que se tornam duros e empedernidos, é difícil, se não mesmo impossível, fazê-los regressar ao que eram. Contudo, vendo bem, quem sou eu para estar para aqui a dar a minha opinião sobre assuntos desta natureza? Afinal, estamos a falar de coisas que pertencem à sua área de especialidade.
Adiante. Devo confessar que também identifiquei sinais de violência no passado do rapaz. Por vezes, notava-se um lampejo de medo nos olhos dele que mais parecia uma reação espontânea a uma exposição continuada à violência. Agora avaliar que nível de violência, isso era coisa que eu não tinha maneira de saber. Nakata era uma criança muito autodisciplinada, habituada a esconder os seus medos. Mas de quando em quando deixava escapar um trejeito involuntário que não conseguia controlar. E eu tinha quase a certeza de que a violência passara por sua casa e deixara marcas. Quando se passa muito tempo com crianças, uma pessoa aprende a identificar esses sinais.
No campo, a vida em família pode revelar-se bastante violenta. Os pais, na sua grande maioria, são agricultores e levam uma vida dura. Exaustos, trabalham a terra de sol a sol, e quando bebem uma pinga a mais perdem as estribeiras e não hesitam em levantar a mão para bater. Não é segredo nenhum que isto acontece. Na maior parte das vezes, os filhos de lavradores passam por isso e resistem, incólumes, sem dar mostras de cicatrizes aparentes. Mas o pai de Nakata era professor universitário e a mãe, segundo consegui apurar pelas cartas que me enviava, uma mulher instruída. Por outras palavras, uma família urbana da classe média alta. A confirmarem-se atos de violência numa família assim, então o caso seria mais complicado e mais sério do que se ocorresse com os miúdos do campo. O tipo de violência que uma criança tende a guardar no mais fundo do seu coração.
Por isso lamentei, e muito, tê-lo esbofeteado na montanha, naquele dia, quer o tenha feito ou não sem querer. Nunca me deveria ter comportado daquela maneira, e não passou um dia desde então que não me sentisse culpada e envergonhada. Tanto mais que Nakata - depois de ter sido separado dos pais e colocado numa família de acolhimento - estava finalmente à beira de se abrir comigo quando ocorreu o incidente.
O tipo de violência de que dei mostras naquela altura pode muito bem ter representado um golpe fatal nos sentimentos que ele pudesse eventualmente albergar dentro dele. Sempre esperei vir a ter uma oportunidade para reparar o mal causado, mas as circunstâncias não o permitiram. Ainda inconsciente, Nakata foi levado para o hospital, em Tóquio, e nunca mais o voltei a ver. Ainda hoje sinto remorsos. Não consigo esquecer a expressão no rosto dele quando lhe bati. O profundo medo e a resignação que ele sentiu na altura ainda estão presentes na minha memória.
Receio bem ter-me alongado demasiado. Não era minha intenção escrever uma carta tão grande, mas gostaria, ainda assim, de referir só mais uma coisa. Para dizer a verdade, quando o meu marido morreu nas filipinas, mesmo antes do final da guerra, confesso que não foi um choque assim tão grande. Não fiquei à beira do desespero ou da raiva - apenas experimentei um profundo sentimento de desamparo. Não verti uma lágrima. Já sabia que o meu marido acabaria por perder a vida, algures, num campo de batalha distante. Havia mais de um ano, desde a altura em que todas aquelas coisas tinham acontecido - o sonho erótico, o período menstrual a aparecer antes de tempo, o facto de ter batido em Nakata, o menino a cair num misterioso estado de coma -, que aceitara a perda do meu marido como um golpe do destino. Por isso, a notícia da sua morte mais não veio do que confirmar aquilo que eu já sabia. Nunca houve nenhum outro acontecimento da minha vida que se comparasse com essa experiência. Foi como se uma parte da minha alma tivesse ficado para sempre naquele bosque.
E por aqui me fico, não sem antes desejar o melhor para as suas pesquisas. Espero que continue tudo a correr de vento em popa.
Passa do meio-dia e encontro-me a almoçar e a olhar para o jardim quando Oshima aparece e vem sentar-se ao pé de mim. Hoje tenho praticamente a biblioteca toda para mim. Para não variar, o meu almoço consiste na ementa fixa mais barata que encontrei na loja que vende refeições na estação. Conversamos durante um bocado, e Oshima obriga-me a comer metade das sanduíches dele.
Hoje preparei uma a mais, só para ti - insiste. - Não me leves a mal, mas quem olha para ti fica a pensar que não te alimentas como deve ser.
Estou a tentar ficar com o estômago mais pequeno - explico.
De propósito? - pergunta ele. Faço que sim com a cabeça.
Andas a ver se consegues poupar dinheiro? Volto a acenar com a cabeça.
Até percebo, mas na tua idade tens de encher a barriga com tudo aquilo a que deitares a mão. Precisas de te alimentar como deve ser.
A sanduíche que ele me está a oferecer tem um aspeto delicioso. Agradeço-lhe e dou uma dentada. Salmão fumado, alface e agrião em pão branco. A crosta é fresca e estaladiça, e o pão, barrado com manteiga e pasta de rábano bravo.
Foste tu que a fizeste? - pergunto eu.
Não tenho ninguém que a faça por mim - diz ele.
Deita café preto do termo para dentro de uma caneca, enquanto eu bebo o meu leite da pequena embalagem de cartão.
O que andas agora a ler?
As obras completas de Natsume Soseki - respondo. - Há ainda alguns romances que não li, e uma vez que tenho oportunidade, aproveito.
Gostas assim tanto dele, a ponto de quereres ler tudo o que escreveu? - quis saber Oshima.
Aceno com a cabeça.
Por cima da chávena que Oshima tem na mão eleva-se uma nuvem de vapor. Lá fora o dia está escuro e carregado, mas pelo menos deixou de chover.
O que é que já leste, desde que estás aqui?
Acabei O Mineiro e agora comecei a ler Papoilas.
Com que então, O Mineiro? - diz Oshima, como se estivesse a vasculhar a memória, vagamente à procura do título. - É a história de um estudante da Universidade de Tóquio que trabalha durante um período da sua vida numa mina, não é? E que vive no corpo e sente na pele esses tempos difíceis partilhados com os outros mineiros, antes de regressar ao mundo exterior? Um romance nem muito pequeno nem muito grande, se bem me lembro. Li-o uma vez, em tempos. O enredo não é exatamente aquilo que se esperaria de um escritor como Soseki, e o estilo também me pareceu um tanto ou quanto cru. Decididamente, não é um dos melhores romances de Soseki. Posso saber o que é que te agradou nele?
Esforço-me por traduzir em palavras a impressão provocada pelo romance, mas vejo-me obrigado a recorrer à ajuda do Corvo. Para tal, é preciso que ele saia de onde está, abra por completo as suas asas e encontre as palavras que me faltam.
A personagem principal provém de uma família abastada -digo -, mas o negócio dá para o torto e ele entra em depressão e foge de casa. No meio das suas deambulações, aparece-lhe pela frente uma personagem suspeita, que o desafia a ir trabalhar para uma mina, e ele limita-se a seguir o homem e dá por si a trabalhar numa mina de cobre em Ashio. Passa os dias debaixo de terra e vive todo o tipo de experiências que nunca lhe teriam passado pela cabeça. E é assim que este jovem algo ingénuo e bem instalado na vida desce ao ponto de se ver misturado com a escória da sociedade.
Vou bebendo o leite à medida que procuro organizar o meu discurso. O Corvo demora o seu tempo a dar um ar da sua graça, mas Oshima mostra-se paciente.
Pode dizer-se que a passagem pelas minas o levará a uma experiência de vida e de morte. Às tantas, lá consegue sair e volta outra vez à sua antiga vida. Mas no romance não há nada que nos diga que a vida dele mudou, que o herói foi levado a pensar muito acerca do significado da vida ou que começou a pôr em causa a sociedade ou coisa do género. Assim como também não ficamos a saber se ele cresceu, enquanto homem. O leitor fica com uma sensação estranha, quando o livro acaba. Sem saber ao certo aquilo que Soseki pretendia dizer. É como se a história de ele não saber para onde vai ficasse a fazer parte de nós, quando o livro chega ao fim. Não consigo explicar lá muito bem.
Nesse caso, estás a querer dizer que O Mineiro está construído de forma muito diferente de, por exemplo, Sanshiro, que é outro romance de Soseki, esse sim um moderno exemplar do chamado Bildungsroman?
Aceno com a cabeça.
Não sou um entendido na matéria, mas pode ser que tenha razão. Nota-se que Sanshiro evolui à medida que a história avança. Encontra obstáculos pelo caminho, pondera os prós e os contras, ultrapassa dificuldades, estou certo? Mas o herói de O Mineiro é um caso diferente. Limita-se a ver as coisas que acontecem à volta dele e contenta-se com isso. Isto é, de vez em quando dá a sua opinião e diz o que lhe vai na cabeça, mas nada de muito profundo. Em vez disso, passa a vida a lamentar os seus males de amor. Sai da mina praticamente igual ao que era quando lá entrou. Não tem noção de que foi algo que ele próprio quis fazer, nem de que para tal teve de tomar uma decisão. É... totalmente passivo. Mas a verdade é que isso também acontece na vida real. Não é assim tão fácil, uma pessoa pensar pela sua própria cabeça e conseguir fazer as suas escolhas sem a ajuda de terceiros.
Identificas-te até certo ponto com o herói de O Mineiro? Abano a cabeça.
Não, nunca pensei nisso dessa maneira.
Mas as pessoas têm de se agarrar a qualquer coisa - afirma Oshima. - Tem mesmo de ser. É o que tu também fazes, sem dares por isso. Como Goethe disse, o mundo inteiro é uma metáfora.
Fico ali um bocado a matutar naquilo. Oshima bebe um gole de café.
Seja como for, acho que se trata de uma leitura interessante de O Mineiro. Sobretudo porque se dá o caso de tanto tu como ele estarem ambos em fuga. Fico com vontade de ler o romance outra vez.
Acabo a sanduíche, espalmo a embalagem de leite, agora vazia, e atiro-a para dentro do caixote de lixo.
Senhor Oshima - digo eu, ganhando coragem para abordar o assunto -, estou metido numa alhada e não tenho mais ninguém a quem pedir conselho.
Ele abre as duas mãos, num gesto largo, como quem diz para eu continuar.
É uma longa história, mas não tenho sítio onde ficar esta noite. Trago um saco-cama comigo, por isso não preciso de divã nem de cama nem de nada. Apenas um teto por cima da cabeça. Sabe de algum sítio por aqui perto onde eu possa ficar?
Parto do princípio de que não estás a pensar num hotel ou numa estalagem?
Faço sinal que não com a cabeça.
Por razões económicas, mas também porque não convém ficar demasiado exposto.
Aos olhos da polícia correcional, aposto.
Isso mesmo.
Oshima fica pensativo, a analisar a questão.
Bom, podias dormir aqui - disse ele, passado um instante.
Na biblioteca?
Exato. Telhado existe, para não falar de espaço, que também não é coisa que falte. À noite não fica cá ninguém.
Será que não faz diferença?
Claro que antes temos de fazer alguns ajustes. Mas parece--me que é possível. Melhor dizendo, não é impossível. De certeza que alguma coisa se há-de arranjar.
Como?
Gostas de ler bons livros, de pensar pela tua cabeça. Tens todo o aspecto de estar em boa forma física e vê-se que te safas bem sozinho. Gostas de levar uma vida regular e determinação não te falta. Pois se até te propões reduzir o estômago! Vou falar com a Senhora Saeki sobre a possibilidade de trabalhares como meu assistente e de ficares no quarto vago que temos aqui na biblioteca.
Quer que eu trabalhe como seu assistente?
Não terás muito que fazer - afirma Oshima. - Podes dar-me uma ajuda a abrir e a fechar a biblioteca. Temos pessoal contratado para fazer as limpezas mais pesadas e para inserir material no computador. Para além disso, pouco mais há para fazer. Podes ler o que te apetecer. Nada mau, pois não?
Claro que não é mau... - apresso-me a concordar, mas sem saber bem o que dizer. - Mas não acredito que a senhora Saeki vá na cantiga. Só tenho quinze anos e, para ela, não devo passar de um adolescente que anda fugido de casa, sobre o qual ela nada sabe.
Pois, mas a senhora Saeki é... como hei-de eu dizer? - começa Oshima, antes de se interromper de uma forma algo insólita, à procura da palavra certa. - Um tanto ou quanto invulgar.
Diferente?
Sim, digamos que ela não se enquadra nas categorias convencionais.
Aceno com a cabeça. Não se enquadra nas categorias convencionais? O que será que isso quer dizer?
Está a querer dizer que ela é uma pessoa diferente? Oshima abana a cabeça.
Não, não diria isso. Se vamos falar de diferença, onde é que eu encaixaria? Diferente sou eu. Digamos que ela lida com as coisas de maneira diversa da das outras pessoas.
Ainda estou a tentar perceber a distinção entre diferente e invulgar, mas algo me diz que chegou a hora de acabar com as perguntas. Por agora.
Depois de uma pausa, Oshima diz:
Contudo, não me parece que seja uma boa ideia dormires aqui já esta noite. Por isso, vais comigo para um sítio que conheço, onde poderás ficar por dois ou três dias até termos tudo organizado. Não te importas, pois não? Fica um bocadinho longe.
Digo-lhe que não há qualquer problema.
biblioteca fecha às cinco - prossegue Oshima - e eu tenho de deixar as coisas todas arrumadas, por isso saímos por volta das cinco e meia. Levo-te no meu carro. Não vive lá ninguém presentemente. E não te preocupes, terás um teto por cima da cabeça.
Muito obrigado.
O melhor é agradeceres-me só depois de lá chegarmos. Pode não ser bem o que imaginas.
Regresso à sala de leitura e continuo embrenhado em Papoilas. Devo confessar que nunca fui de ler muito depressa. Gosto de me debruçar sobre cada frase, pelo prazer de apreciar o estilo. Quando a escrita não me diz nada, interrompo a leitura. Acabei o romance antes das cinco, voltei a guardar o livro na estante, depois sentei-me no sofá, fechei os olhos e pus-me a pensar no que acontecera na noite anterior. E em Sakura. E no quarto dela. E no que ela fizera por mim. Em todas as voltas e reviravoltas que os acontecimentos tinham conhecido.
Às cinco e meia espero por Oshima à porta da biblioteca. Sigo--o até ao parque de estacionamento e entramos os dois para o carro de desporto verde que ele tem. Um Mazda Miata com a capota para baixo. A minha mochila é demasiado grande para caber no habitáculo, por isso tratamos de a prender com uma corda à tampa do porta-bagagem traseiro.
Como a viagem é longa, paramos no caminho para jantar -anuncia Oshima. Ele roda a chave na ignição e liga o motor.
Para onde é que vamos?
Para Kochi - responde ele. Abano a cabeça.
Fica muito longe?
Vamos demorar cerca de duas horas e meia para chegar ao nosso destino. Passando as montanhas, é sempre em frente, para sul.
Não lhe faz transtorno ter de se afastar tanto?
Não. É sempre a andar, e ainda é dia. Além de que tenho o depósito cheio.
Atravessamos as ruas da cidade à luz do crepúsculo e depois entramos na autoestrada, em direção a oeste. Oshima muda suavemente de faixa, manobrando sem sobressaltos entre os outros carros, metendo as mudanças de velocidade nas calmas. De cada vez que isso acontece ouve-se ligeiramente o ronronar do motor. Quando ele mete o pé a fundo no acelerador, já o carrinho vai embalado a mais de cento e quarenta quilómetros por hora.
Este carro foi submetido a uma afinação especial, por isso dá mais. Nada que se compare com o Miata que anda para aí na estrada. Percebes alguma coisa de automóveis?
Abano a cabeça. Não percebo rigorosamente nada de carros.
Gosta de conduzir, senhor Oshima?
O médico proibiu-me todo e qualquer desporto perigoso. Em vez disso, conduzo. É a lei da compensação.
Está doente?
A minha doença tem um nome muito comprido. Digamos que se trata de um tipo de hemofilia - responde Oshima, como quem não quer a coisa. - Sabes o que é?
Acho que sim - digo. Aprendi qualquer coisa acerca disso nas aulas de biologia. - Quando uma pessoa começa a sangrar, nunca mais consegue estancar o sangue. E genético, o sangue não coagula.
E isso mesmo. Existem variadíssimos tipos de hemofilia, e o meu é bastante raro. Não é uma doença má nem nada que se pareça, mas preciso de ter cuidado para não me ferir. Mal começo a sangrar, tenho de ir logo a correr para o hospital. Além disso, nos tempos que correm há problemas com as reservas de sangue que existem nos hospitais. E apanhar sida e ter uma morte lenta não faz parte dos meus planos. Por isso não tive outro remédio senão mexer os cordelinhos e arranjar quem, em Takamatsu, me arranje sangue que não esteja infetado, para o que der e vier. Por causa da doença, quase nunca saio da cidade. Exceto para me deslocar ao hospital universitário de Hiroxima, para o meu exame médico habitual. Não é assim tão mau como parece - para ser franco nunca fui dado a grandes viagens nem a desportos. Na cozinha é que sou uma desgraça. Como não posso usar facas, acabaram-se os cozinhados.
Conduzir já é desporto perigoso quanto baste - digo-lhe eu.
É uma categoria de risco diferente. Quando pego no volante, procuro guiar o mais depressa possível. Se tiver um acidente por excesso de velocidade, não me safo com um corte no dedo. Quando se perde muito sangue, deixa de haver diferença entre um hemofílico e outra pessoa qualquer. De certa maneira, até equilibra as coisas, uma vez que as hipóteses de sobreviver são as mesmas, num caso e no outro. Deixamos de ter de nos preocupar com a coagulação do sangue e coisas do género, e podemos até morrer sem preocupações.
Estou a ver.
Não te preocupes - diz Oshima, a rir. - Não vou ter nenhum acidente. Sou um condutor cauteloso e não tenho por hábito exagerar ao volante. Além disso, mantenho sempre o carro nas melhores condições. E faço questão de morrer sozinho e em paz.
Nesse caso, não está nos seus planos levar alguém consigo, quando for desta para melhor?
Podes crer.
Paramos num restaurante à beira de uma zona de serviço para jantar. Mando vir frango e uma salada, ele pede caril de frutos do mar, também com salada. Qualquer coisa que dê para encher o estômago e mais nada. Oshima paga a conta e voltamos para o carro. Já está escuro. Ele põe o pé no acelerador e o e o ponteiro do velocímetro vai às alturas.
Importas-te que ponha música? - pergunta Oshima.
Claro que não - respondo.
Ele toca no botão que põe a funcionar o leitor de CD e começa a ouvir-se música clássica para piano. Deixo tocar durante um bocado enquanto procuro situar a peça. Sei que Beethoven não é, e Schumann também não. Provavelmente algum compositor da mesma altura.
Schubert? - indago.
Acertaste - replica ele. Sempre com as mãos às dez para as duas no volante, olha de esguelha na minha direção. - Gostas de Schubert?
Não especialmente - confesso.
Quando estou a conduzir gosto de ouvir as sonatas para piano de Schubert com o volume no máximo. Sabes rquê?
Não faço ideia.
Porque tocar uma sonata para piano de Schubert é das coisas mais difíceis. Sobretudo esta Sonata em Ré Maior. É uma peça de grande dificuldade. Alguns pianistas conseguem executar de um modo perfeito um, dois movimentos, mas, na minha opinião, se escutares com atenção os quatro andamentos, verás que nunca ninguém logrou arrancar das teclas a tonalidade certa que a sonata, na sua totalidade, exige. Muitos foram os pianistas famosos que se esmeraram, na tentativa de provar que estavam à altura do desafio, mas é como se faltasse sempre qualquer coisa. Até à data não existe uma única interpretação que te leve a dizer È isso mesmo! Ele conseguiu! Sabes porquê?
Não.
Porque esta sonata é, em si própria, imperfeita. Robert Schumann, que conhecia bem as sonatas de Schubert, classificou-a de «divinamente longa».
Se a composição é imperfeita, como se explica que existam tantos pianistas apostados em tocá-la na perfeição?
Boa pergunta - diz Oshima. Deixa passar algum tempo, enquanto a música enche o silêncio. - Não tenho nenhuma explicação capaz para isso, mas há uma coisa que sei: as obras que contêm em si uma certa imperfeição tornam-se interessantes por essa mesma razão - ou, pelo menos, tornam-se interessantes por isso mesmo aos olhos de um certo tipo de pessoas. Tal como aconteceu contigo, que foste atraído por O Mineiro. Esse livro diz-te qualquer coisa, diz-te mais do que outros romances sobejamente conseguidos, como é o caso de Kokoro ou Sanshiro. Nessa obra foste ao encontro de algo que mexeu com os teus sentimentos. Ou talvez deva antes dizer que a obra foi ao teu encontro. Com a Sonata em Ré Maior de Schubert passa-se a mesma coisa.
Voltando à primeira pergunta - indago eu -, porque ouve as sonatas de Schubert? Sobretudo quando vai a conduzir?
As sonatas de Schubert, especialmente esta, deixam de ser arte se te limitares a ouvi-las vezes sem conta. Como Schumann apontou, esta é demasiado longa e demasiado idílica, e, de um ponto de vista técnico, demasiado despretensiosa. Quando tocada de um modo convencional, torna-se desinteressante, insignificante e sem estilo, como uma antiguidade cheia de pó. E é por isso que todos os pianistas que a interpretam acrescentam qualquer coisa de si próprios, uma coisa nova. Como acontece com esta gravação - ouves como ele articula isto aqui? Acrescenta rubato, que é como quem diz, altera o tempo, a modulação, o que for. E quando isso não acontece, tocam quase sem fazer uma pausa. Mas, se não estiverem com atenção, todos esses estratagemas novos correm o risco de destruir a dignidade da peça. E nesse caso deixa de ser música de Schubert. Não há um pianista, sem exceção, que tenha interpretado esta Sonata em Ré Maior e que não se tenha debatido com estas contradições.
Oshima deixa-se ficar durante algum tempo a ouvir a música, a trautear baixinho a melodia. Depois prossegue.
É por isso que eu gosto de ouvir Schubert quando viajo de carro. Precisamente pelo facto de a imperfeição por detrás de cada interpretação espreitar a cada curva. Essa profunda imperfeição artística estimula a nossa consciência, desperta os nossos sentidos. Se eu escutar uma interpretação absolutamente perfeita de uma peça absolutamente perfeita enquanto vou a conduzir, posso cair na tentação de fechar os olhos e querer morrer, ali mesmo. Mas ao escutar a Sonata em Ré maior apercebo-me das limitações próprias da capacidade humana e torna-se claro para mim que, até certo ponto, a perfeição só pode ser atingida através de uma série de imperfeições. Além de que, pessoalmente, acho isso inspirador. Estás a compreender o meu ponto de vista?
Mais ou menos...
Desculpa lá - diz Oshima. - Este é um daqueles temas que me tocam profundamente.
Mas deve existir toda a espécie de graus de imperfeição, ou não? - pergunto.
Claro que sim.
Comparativamente falando, qual é no seu entender a melhor sonata em Ré maior?
Essa é das difíceis. - Oshima fica a pensar durante um bocado. Reduz a velocidade, passa para a faixa exterior, ultrapassa na mecha um enorme camião-frigorífico, mete a mudança seguinte e regressa à nossa faixa. - Não te quero assustar, mas é muito difícil distinguir um Miata verde de noite na autoestrada. Passa quase despercebido, além de que o verde tende a confundir-se com a escuridão em volta. É particularmente difícil aos camionistas distingui-lo, lá de cima das suas cabinas. Pode tornar-se muito perigoso, sobretudo no interior de um túnel. A verdade é que os carros de desporto deviam ser todos vermelhos. Só assim é que se distinguem. É por isso que existem tantos Ferraris vermelhos. Mas acontece que eu gosto de verde, por mais perigoso que isso torne as coisas. Verde é a cor da floresta. Vermelho é a cor do sangue.
Deitou uma olhadela ao relógio de pulso e continuou a acompanhar a música. - De uma forma genérica, diria que as interpretações de Brendel e Ashkenazy são as melhores, apesar de, pessoalmente, não me comoverem sobremaneira. A música de Schubert desafia os sentidos e faz estilhaçar as convenções. É a essência do romantismo, a quinta-essência do movimento romântico.
Continuo a ouvir a sonata.
Qual é a tua opinião? Achas maçadora, esta música?
Um bocado.
ais ver que, com o tempo, aprendes a gostar de ouvir Schubert. Passou-se o mesmo comigo. Quando o ouvi pela primeira vez, senti um tédio de morte. É perfeitamente natural, quando se tem a tua idade. Com o tempo, também tu acabarás por apreciar a música de Schubert. As pessoas fartam-se depressa de tudo o que lhes provoca excitação mas não do que é monótono. É assim em tudo. No meu caso, posso dar-me ao luxo de ficar enfastiado, mas nunca corro o risco de me fartar de uma coisa. A maioria das pessoas não distingue entre uma coisa e outra.
O senhor mesmo disse que era uma pessoa diferente. Estava a referir-se à hemofilia?
Em parte - responde ele a sorrir. Há qualquer coisa de diabólico naquele sorriso. - Mas não só.
Quando a «divinamente» longa sonata de Schubert chega ao fim, acaba-se a música. Permanecemos ambos em silêncio, cada um de nós perdido nos seus pensamentos. Absorto, vejo passar os letreiros indicativos que ficam pelo caminho. No cruzamento viramos para sul e seguimos pela estrada que vai dar às montanhas, atravessando um longo túnel a seguir ao outro. Oshima concentra toda a sua atenção nas ultrapassagens, atento aos numerosos camiões que percorrem em marcha lenta este troço do caminho. De cada vez que passamos por um, ouvimos o ar assobiar numa espécie de lamento, como se a alma de uma pessoa estivesse a ser sugada. De tempos a tempos viro-me e olho para trás, a fim de ter a certeza de que a minha mochila ainda lá está.
O sítio para onde vamos fica mesmo no meio da montanha e não se pode dizer que seja propriamente o lugar mais acolhedor do mundo - avisa Oshima. - Duvido de que ponhas a vista em cima de alguém enquanto lá estiveres. Rádio, televisão e telefone é coisa que não há. De certeza que não te faz diferença?
Respondo que não.
Estás habituado a estar sozinho - acrescenta Oshima. Confirmo com a cabeça.
Olha que existem muitos tipos de solidão. A verdade é que podes não estar a contar com aquilo que te espera.
De que maneira?
Oshima empurra os óculos para cima com o dedo.
Isso já não te sei dizer. Pode variar, depende de ti. Deixamos a auto-estrada e metemos por uma estradinha. Uns
quilómetros mais adiante, pouco depois da saída, chegamos a uma povoação. Oshima para o carro junto a uma pequena loja e compra tantos artigos de mercearia que quase não cabem no carro - legumes e fruta, bolachas, leite e água mineral, conservas, pão, comida pré-confecionada, quase tudo coisas que não deem muito trabalho a fazer. Puxo da carteira mas Oshima abana a cabeça e paga ele a conta.
Regressamos ao descapotável e metemo-nos de novo à estrada. Transporto no colo os sacos que não couberam na mala do carro. Assim que abandonamos aquele lugar damos por nós no meio da mais completa escuridão. Não se veem casas nenhumas e quase não passam carros. A estrada é tão estreitinha que mal dá para dois carros se cruzarem. Oshima liga os máximos e segue em frente, travando, acelerando, sempre em segunda e terceira. Conduz com uma expressão concentrada, os lábios apertados, os olhos fixos num ponto acima da linha de escuridão. Tem a mão direita enclavinhada no volante, enquanto a esquerda repousa em cima da alavanca das velocidades, pronta para entrar em ação.
À esquerda aparece uma garganta escarpada. Um riacho parece correr até lá abaixo. As curvas tornam-se cada vez mais apertadas, a estrada mais traiçoeira, e por mais de uma vez a traseira do carro derrapa, mas decido não me preocupar com isso. Tudo leva a crer que ter um acidente aqui «não faz parte dos planos» de Oshima.
O meu relógio marca nove e pouco. Experimento abrir ligeiramente a janela para deixar entrar o ar fresco. Aqui todos os ruídos são diferentes. Estamos a penetrar no coração da montanha, cada vez mais fundo. Suspiro de alívio quando a estrada finalmente se afasta das escarpas para entrar na floresta. As árvores criam uma atmosfera de magia por cima das nossas cabeças. Os faróis do carro derramam luz sobre os troncos de árvores, parecendo lambê-los um por um. Há muito que deixámos para trás a estrada alcatroada e os pneus esmagam o cascalho lançando uma chuva de pedrinhas, que faz ricochete na traseira do carro. A suspensão dança loucamente sobre o terreno duro. Não há lua nem estrelas no céu. Volta e meia uma chuva fina bate contra o pára-brisas.
Vem até cá muitas vezes? - pergunto.
Dantes vinha. Agora, por causa do emprego e de tudo o resto, já não posso vir tantas vezes. O meu irmão mais velho é surfista e vive perto da costa, em Kochi. Tem uma loja para surfistas e fabrica pranchas de surf. Às vezes aparece por cá. Praticas surf?
Nunca experimentei - faço-lhe saber.
Se alguma vez tiveres oportunidade, pede ao meu irmão que te ensine. Ele é muito bom - afirma Oshima. - Caso o venhas a conhecer, vais ver que é muito diferente de mim. É alto, queimado do sol, calado, não muito sociável. É adepto da cerveja. E não saberia distinguir Schubert de Wagner. Mas damo-nos lindamente.
Continuamos sempre a descer, mergulhando cada vez mais no bosque cerrado, até que finalmente chegamos. Oshima pára o carro e, deixando o motor a trabalhar, dá uma corrida e abre a tranca de uma espécie de vedação de arame farpado. Depois regressa e seguimos viagem, descendo agora sempre às curvas por um caminho de terra batida em mau estado até irmos ter a uma clareira onde a estrada acaba. Oshima para o carro, solta um suspiro enorme e afasta o cabelo da cara com ambas as mãos antes de desligar o motor e puxar o travão de mão.
A ventoinha do motor sobreaquecido continua a fazer-se ouvir, libertando uma nuvem de vapor em contacto com o ar frio. Mas assim que o motor se cala abate-se sobre nós um profundo silêncio. Chega--me aos ouvidos o suave sussurro de um pequeno riacho que deve correr ali por perto. Por cima de nós ouve-se o misterioso murmúrio do vento. Abro a porta e saio do carro. Sinto o ar fresco envolver-me. Corro o fecho do impermeável, que tenho vestido por cima da T-shirt, até cima.
Diante de nós encontra-se uma pequena construção que tem todo o aspeto de ser uma cabana feita de troncos de madeira, apesar de não se conseguir ver muito bem no escuro. Distingue-se apenas uma linha recortada contra o fundo negro da floresta. Ainda com os faróis acesos, Oshima aproxima-se vagarosamente da cabana com uma lanterna em punho, sobe os degraus que dão acesso ao alpendre, tira uma chave e abre a porta. Entra na casa, risca um fósforo e acende uma lamparina. Depois volta a aparecer no alpendre, de candeeiro na mão, e anuncia: «Bem-vindo à minha casa.» Parece uma imagem tirada de um velho livro de histórias.
Subo os degraus e entro em casa. Oshima acende um candeeiro maior suspenso do teto. A cabana compõe-se de uma única e grande divisão, em forma de caixa. Num dos cantos fica uma pequena cama. O meu olhar recai ainda sobre uma mesa de jantar e duas cadeiras de madeira, um sofá que já viu melhores dias, um tapete irremediavelmente no fio. Para ali atirados, mais parecem trastes que ninguém quer. Reparo numa estante feita de tijolos e pranchas de madeiras. Está cheia de livros que, de tanto terem sido lidos, apresentam as capas todas gastas. Para arrumar a roupa há ainda uma velha cómoda. E uma pequena cozinha com uma bancada, um pequeno fogão a gás e um lava-loiça sem água canalizada. Em vez disso, existe um jarro de alumínio que deve servir para transportar água. Numa prateleira na parede vê-se uma caçarola e uma chaleira, ao lado de uma frigideira. E no meio do quartinho destaca-se um fogão a lenha, preto.
Pode dizer-se que o meu irmão construiu esta cabana praticamente sozinho. Chegou aqui, pegou na madeira que havia e meteu mãos à obra. Ele tem muito jeito para este tipo de trabalhos. Na altura eu ainda era miúdo e dei uma ajuda, desde que não corresse perigo de me cortar ou uma coisa do género. Isto por aqui é bastante primitivo. Não há eletricidade. Não há água corrente. Não há casa de banho. O único sinal de conforto moderno é o gás propano.
«Esta montanha era originalmente propriedade do meu avô. Ele era um homem rico de Kochi, dono e senhor de muitas terras e grande fortuna. Morreu há coisa de dez anos, e o meu irmão e eu herdámos a montanha praticamente toda. Nenhum dos outros parentes queria ficar com isto. Fica demasiado longe de tudo e de todos e pouco ou nenhum valor tem. Quem quiser tirar partido das árvores, vê-se obrigado a contratar uma caterva de trabalhadores braçais e isso custa muito dinheiro.
Afasto ligeiramente a cortina. Mas da janela tudo o que se vê é um muro de escuridão.
Quando tinha mais ou menos a tua idade - conta Oshima, mergulhando dois pacotes de chá de camomila num bule-, costumava vir até cá muitas vezes e ficar aqui por minha conta. Sem ver ninguém, sem falar com ninguém. Era quase sempre o meu irmão que a isso me obrigava. Normalmente, tratando-se de uma pessoa com uma doença como a minha, isso não aconteceria, por ser demasiado perigoso ficar sozinho num local isolado. Mas o meu irmão não queria saber disso para nada. - Encostado à bancada, Oshima espera que a água ferva. - Não me parece que fosse intenção dele disciplinar-me nem nada do género, estava apenas a fazer o que achava que devia ser feito. Agora que olho para trás, vejo que se tratou de uma experiência positiva, que me fazia falta. Fartava-me de ler, tinha tempo para pensar em tudo e mais alguma coisa. Para te dizer a verdade, depois de uma primeira fase quase nunca fui à escola. Entre mim e a escola existia uma relação de amor-ódio, por eu ser diferente de todos os outros alunos. Tiveram pena de mim e deixaram-me acabar o primeiro ciclo do secundário, mas depois fiquei entregue à minha sorte, por assim dizer. Tal como aconteceu contigo. Já alguma vez te tinha contado esta história?
Digo que não com a cabeça.
É isso que o leva a ser tão simpático em relação a mim?
Também - responde ele e faz uma pequena pausa. - Mas não só.
Oshima estende-me uma chávena de chá e bebe um golinho da dele. Estou numa pilha de nervos depois de tão longa viagem e a camomila ajuda-me a ficar calmo.
Oshima consulta o relógio.
Tenho de ir andando, por isso deixa-me explicar-te tudo. Ali mais abaixo há um ribeiro. É água da nascente, por isso podes usada à vontade, até para beber. Sempre é melhor do que a água mineral engarrafada. Tens lenha cortada e empilhada nas traseiras da casa, para o caso de quereres acender o fogão. Por estas bandas costuma fazer muito frio. Algumas vezes cheguei a ter de o usar em pleno Agosto. Podes utilizá-lo só para cozinhar. Se vires que precisas de alguma ferramenta ou isso, procura lá atrás no alpendre. E podes pôr as roupas que o meu irmão já não veste que encontrares na gaveta da cómoda. Ele não se importa que usem as coisas dele.
Com as mãos nas ancas, Oshima lança um derradeiro olhar à cabana.
Como vês, não se trata propriamente de um esconderijo romântico. Mas serve perfeitamente para quem estiver interessado em levar uma vida simples. Há, no entanto, um aviso que não posso deixar de te fazer. Não te afastes muito daqui. A floresta é muito densa e não existe nenhum caminho para lá chegar. Nunca percas de vista a cabana. Se te afastares muito, corres o risco de te perderes, e depois torna-se difícil encontrar o caminho de volta. Uma vez passei por essa horrível experiência. Encontrava-me a escassas centenas de metros da cabana, mas passei quase um dia inteiro a dar voltas, em círculos. Se calhar pensas que num país tão pequeno como o Japão ninguém corre o risco de se perder na floresta. Mas, acredita no que te digo, se uma pessoa se embrenha nestes bosques, está perdida. Gravo o episódio na memória para futura referência.
E, a não ser que se trate de uma emergência, também não me arriscaria a descer a montanha. A próxima povoação fica muito longe. É preferível ficares aqui à espera, que eu venho buscar-te daqui a dois ou três dias. Até lá não precisas de te preocupar com a comida. A propósito, tens telemóvel?
Tenho - digo, apontando para a mochila. Ele faz uma careta.
Podes deixá-lo lá ficar. Aqui os telemóveis não funcionam, por falta de rede. E o mesmo acontece com o rádio, escusado será dizer. O que significa que estás isolado do mundo. Podes ler até te fartares.
De repente vem-me à ideia uma questão de ordem prática.
Se não há casa de banho, como é que faço? Oshima abre os braços.
Tens a floresta toda para ti. É só escolher.
Nakata visitou o terreno abandonado durante vários dias. Só houve uma vez em que ficou em casa, fechado no quarto a trabalhar em madeira, num dia em que choveu de manhã à noite. Mas, tirando isso, passou o tempo todo sentado na relva, à espera de que a gata malhada, entretanto desaparecida, desse um ar da sua graça, ou então de pôr a vista em cima do homem com o estranho chapéu. Sem sorte nenhuma.
No final de cada dia, Nakata passava pela casa das pessoas que o tinham contratado e fazia-lhes o ponto da situação - por onde andara, que tipo de informações conseguira recolher. O dono da gata dava-lhe uma recompensa de três mil ienes, que eram os seus honorários. Essa quantia não fora oficialmente estipulada por ninguém, mas, desde que pelo bairro se espalhara o rumor de que Nakata era especialista em apanhar gatos, passara a ser essa a sua tabela oficial. As pessoas davam-lhe sempre mais qualquer coisa para além do dinheiro; tanto podia ser comida como roupa. Para além de um bónus de dez mil ienes, caso ele encontrasse o gatinho que andava perdido.
Como nem sempre recebia pedidos para andar à procura de gatos, não se podia dizer que Nakata recebesse muito por mês. O mais velho dos seus irmãos mais novos pagava as despesas dele com o dinheiro da herança deixada pelos pais de Nakata - que não era, de resto, nenhuma fortuna - e ele vivia dos seus parcos recursos e da pensão mensal de velhice e invalide/ atribuída pelo Estado. Só a pensão chegava e sobrava para as suas despesas, por isso o dinheiro que ele fazia pelo facto de andar à cata de gatos era para gastar como lhe desse na gana. E, aos olhos de Nakata, tratava-se de uma quantia substancial. Por vezes chegava mesmo a não saber onde gastar o dinheiro, a não ser em enguias grelhadas, o seu petisco favorito. Ir ao banco ou abrir uma conta nos Correios implicava preencher formulários, por isso limitava-se a esconder o dinheirinho no seu quarto, muito bem guardado debaixo do tatami.
Ser capaz de chegar à fala com gatos, esse era o segredo de Nakata. Só ele e os gatos é que sabiam. As pessoas iriam pensar que ele estava maluco, caso viessem a saber disso, por isso nunca contou nada a ninguém. Toda a gente sabia que ele não devia muito à esperteza, mas uma coisa era ser tolo e outra, totalmente diferente, ser louco.
Já tinha acontecido as pessoas passarem por ele quando estava entretido a conversar com um gato, mas nunca ninguém parecera ligar importância. Afinal de contas, não era assim tão fora do vulgar ver pessoas de idade a falar com animais como se estes fossem pessoas. Mas se por acaso calhava alguém fazer algum comentário acerca do jeito que tinha para lidar com gatos e dizer qualquer coisa como: «Senhor Nakata, como é que conhece assim bem tão os hábitos dos gatos? Parece mesmo que está a conversar com eles», Nakata limitava--se a sorrir e nada dizia. Por ser um homem sério e bem-educado, sempre com um sorriso afável, as donas de casa das redondezas tinham Nakata em boa conta. A sua aparência irrepreensível também ajudava. Ainda que não fosse rico, Nakata dava-se ao luxo de tomar banho e andar sempre limpo. Além disso, as roupas praticamente novas que lhe eram oferecidas pelos seus clientes faziam com que aparecesse sempre de ponto em branco. Algumas dessas roupas, como acontecia com uma camisa de golfe de cor salmão da marca fack Nicklaus, nem sempre lhe assentavam lá muito bem, mas Nakata não se ralava desde que estivessem em bom estado e limpas.
Nakata estava especado na porta de entrada, a dar conta do seu trabalho à Sr.a Koizumi, a tal cliente que andava à procura da sua gatinha.
Nakata conseguiu finalmente uma pista acerca do paradeiro de doma começou ele, Dm tal Kawamura disse ler avistado um gato parecido com Goma num terreno abandonado, aquele com um grande muro a toda a volta, ali para os lados do 2-chome. Fica a dois quarteirões daqui, e ele disse que a idade, a cor do pêlo e a coleira pareciam iguaizinhos aos de Goma. Nakata decidiu assentar arraiais naquele sítio, por isso leva o seu almoço e passa lá todos os dias, de manhã à noite. Não, minha senhora, não fique preocupada, tempo livre é coisa que não falta a Nakata, por isso, só se estiver a chover muito é que há problema. Mas veja lá, se a senhora achar que não faz sentido continuar, só tem que dizer e Nakata abandona logo o que anda a fazer.
O que ele não lhe disse foi que este tal Sr. Kawamura não era uma pessoa, mas sim um gato malhado castanho. Isso, pensou ele com os seus botões, só serviria para complicar as coisas.
A Sr.a Koizumi agradeceu-lhe. As suas duas filhas pequenas haviam ficado inconsoláveis com o desaparecimento do seu querido animal de estimação, a ponto de terem perdido o apetite. E a mãe não tinha coragem de lhes dizer que os gatos de vez em quando costumavam desaparecer. Por outro lado, apesar de ter consciência do desgosto das filhas, a verdade é que a senhora não dispunha de tempo para andar a correr a cidade à procura da gatinha. Daí que ainda mais contente tenha ficado ao saber da existência de uma pessoa como Nakata que, por apenas três mil ienes por dia, se encarregaria na hora de ir procurar Goma. Nakata era um velho estranho e tinha uma maneira de falar esquisita, mas as pessoas diziam que ele era um perfeito génio a investigar o desaparecimento de gatos. Ela bem sabia que não devia pensar assim, mas o velhote não aparentava ter esperteza suficiente para desiludir alguém. Entregou-lhe o pagamento num sobrescrito, juntamente com uma caixinha Tupperware que continua arroz de legumes e batatas taro' que ela tinha acabado de cozinhar.
Nakata pegou no Tupperware ao mesmo tempo que fazia uma vénia, cheirou a comida e agradeceu-lhe.
Muito obrigado. Nakata gosta muito de batatas taro.
Espero que lhe faça bom proveito - respondeu a Sr. Koizumi.
Havia decorrido uma semana desde que assentara arraiais no terreno baldio, e durante todo esse tempo Nakata vira passar uma quantidade de gatos de um lado para o outro. Kawamura, o tal gato malhado castanho, aparecia todos os dias só para meter dois dedos de conversa. Nakata cumprimentava-o e ficavam ali os dois a falar acerca do tempo e do seu subsítio. Nakata continuava sem perceber patavina do que o gato dizia.
De rastos no passeio, Kawara metido em trabalhos - dizia Kawamura. Parecia a Nakata que ele lhe estava a tentar passar uma mensagem, mas o velhote não havia meio de perceber o quê e fez questão de lho dizer.
O gato ficou espantado com isso e voltou a repetir a mesma coisa, que é como quem diz, provavelmente a mesma coisa, mas por outras palavras.
Grito de Kawara preso na telha - Nakata ficou ainda mais perdido.
Pena que Mimi não estivesse ali para dar uma mãozinha, pensou ele. Mimi teria dado um par de bofetadas no gato, obrigando-o a falar direito. Uma gata esperta, aquela Mimi. Mas a verdade é que ela evitava andar por aquelas bandas com medo de apanhar pulgas dos outros gatos.
Quanto a Kawamura, depois de ter despejado toda a sua algaraviada sem que Nakata tivesse percebido nada, foi-se embora dali, feliz da vida.
Estavam sempre a aparecer outros gatos. A princípio punham--se em guarda quando viam que se tratava de Nakata, preferindo manter as distâncias e olhar para ele de longe. Mas depois de terem percebido que ele se limitava a ficar ali sentado, sem fazer nada de mal, até se esqueciam da sua presença. Com o talento que tinha para fazer amigos, Nakata esforçava-se por meter conversa. Dava os bons-dias e apresentava-se, mas a maioria dos gatos fazia-lhe orelhas moucas, fingindo que não davam por ele, e não lhe passavam cartão. Por aquelas bandas, os gatos faziam gala em exibir a sua indiferença. Nakata foi levado a pensar que eles deviam ter tido experiências terríveis com os humanos. Não se encontrava em posição de lhes exigir nada, e nem sequer lhes podia levar a mal a postura sobranceira. Sabia que no mundo dos gatos seria sempre um intruso.
Com que então, arranhas a nossa língua? - perguntou, como quem não quer a coisa, o gato às listas pretas e brancas com as orelhas rasgadas, sem nunca deixar de olhar em redor. O gato expressava-se de um modo brusco, mas não tinha ar de ser antipático de todo.
Sim, qualquer coisinha - retorquiu Nakata.
Não é nada mau - observou o malhadinho.
Nakata é o nome - disse Nakata, apresentando-se. - E o seu nome, qual é?
É coisa que não tenho - respondeu o gato malhado bruscamente.
Que tal Okawa? Importa-se que lhe chame assim?
Tanto faz.
Ora então, senhor Okawa - quis saber Nakata -, que tal comemorarmos o facto de nos termos conhecido com umas sardinhas de conserva?
Parece-me bem. Sardinhas enlatadas são um dos meus petiscos predilectos.
Nakata tirou do seu saco uma sardinha envolvida em papel celofane e ofereceu-a a Okawa. Nakata andava sempre com umas quantas sardinhas atrás, para o que desse e viesse. Deliciado, Okawa engoliu a sardinha sem deixar sequer a cabeça, depois tratou de se limpar.
Isto é que me soube bem! Muito obrigado. Terei muito gosto em lambê-lo, se quiser.
Não, não é preciso. Nakata agradece na mesma a oferta, mas de momento não está a precisar de ser lambido. Mas há uma coisa que Nakata precisa, que é de encontrar uma gata que anda perdida. Uma gata malhada chamada Goma. - Nakata tirou a fotografia a cores de Goma de dentro do saco e mostrou-a a Okawa. - Alguém contou a Nakata que a gata tinha sido avistada neste terreno abandonado. Por isso Nakata já cá está há vários dias, sempre aqui sentado, à espera de que Goma apareça. Por acaso não se terá cruzado com ela?
Okawa deu uma olhadela à fotografia e fez uma expressão de pesar. Franziu a testa e piscou os olhos várias vezes em sinal de consternação.
Estou muito agradecido pela sardinha e não quero que me leve a mal. Mas não devo falar acerca disso. Caso contrário, podia meter-me em assados.
Nakala estava siderado.
Metia-se em assados se falasse disso?
Seria perigoso. Estaria a correr um grande risco, quem sabe se até mesmo de morte. Penso que o melhor que tem a fazer é riscar esse gato da sua lista. E, se souber o que é melhor para si, mantenha-se mas é afastado deste local. Não gostaria que lhe acontecesse nada de mal. Lamento muito não poder ajudá-lo mais, mas peço-lhe que considere este aviso como a minha maneira de lhe agradecer o petisco. - Com isto, Okawa levantou-se, olhou em redor e desapareceu no meio dos arbustos.
Nakata suspirou, tirou o termo para fora e bebeu uns golinhos de chá. Okawa tinha dito que era perigoso estar ali, mas Nakata não conseguia imaginar porquê. Vendo bem, mais não fazia do que andar à procura de uma gatinha perdida. O que poderia isso ter de perigoso? Talvez o perigo residisse naquele caçador de gatos com o chapéu esquisito de que Kawamura lhe falara. Mas Nakata era uma pessoa, e não um gato. Por que carga de água é que um homem como ele deveria ter medo de um apanhador de gatos?
Mas havia tanta coisa no mundo para além do que Nakata podia imaginar (o mundo estava cheio de mil e uma coisas que não tinha possibilidades de abarcar), que ele desistiu de pensar nisso. Com um cérebro como o dele, o único resultado de pensar de mais só podia ser uma valente dor de cabeça. Nakata bebeu a última gota de chá, enroscou a tampa da garrafa-termo e voltou a guardá-la no saco.
Depois de Okawa se ter esgueirado pelo meio dos arbustos, passou muito tempo sem aparecer por ali mais nenhum gato. Só as borboletas esvoaçavam silenciosamente por cima das ervas daninhas. Passou a voar um bando de pardais, dispersou-se em várias direcções, reagrupou-se e tornou a partir. Nakata cabeceou algumas vezes, acordando sempre em sobressalto. Sabia que horas eram graças à posição do Sol.
Era quase noite quando o cão foi ter com ele.
Um enorme cão preto, debruçado sobre ele, a contemplá-lo em silêncio. Do sítio onde Nakata estava sentado, a besta mais parecia um bezerro do que um cão. Tinha patas compridas e pêlo curto. Os músculos, protuberantes, pareciam feitos de aço. As orelhas, afiadas como a ponta de uma faca, e sem coleira. Nakata não sabia grande coisa grade, coisa das raças de cães, mas bastou lhe um relance de olhos para ver que estava diante de um bicho sanhudo ou, pelo menos, de um animal que não hesitaria em tornar-se agressivo, caso lhe dessem rédea solta. O típico cão de guerra.
Os olhos do cão não tinham expressão e a pele à volta dos beiços deixava ver as presas afiadas, de aspecto ameaçador. Os dentes tinham resquícios de sangue e pequenos bocados de carne estavam agarrados à volta da bocarra. A sua língua, de um vermelho-vivo, rutilava entre os dentes como uma labareda. O cão tinha os olhos cravados em Nakata e durante muito tempo não saiu dali, sempre sem se mexer, sem um som. Pela sua parte, também Nakata permaneceu calado. Com cães não conseguia falar, só com gatos. Os olhos do cão, frios e sem vida, pareciam contas de vidro afundadas em águas pantanosas.
Nakata inspirou calma e pausadamente, mas sem dar mostras de medo. Tinha a perfeita noção de estar diante de um animal hostil e agressivo. Porquê, não fazia a menor ideia. Mas tratou de afastar a sensação de perigo iminente. A ideia de morte situava-se para lá dos limites da sua imaginação. E no que tocava a dor, só sabia o que era quando a sentia na pele. Enquanto conceito abstracto, a dor nada significava para ele. Em resultado disso, não conhecia o medo, nem sequer quando apanhava pela frente um cão monstruoso que não tirava os olhos dele. Quando muito, sentia-se um nadinha constrangido.
-Levanta-te - disse o cão.
Nakata engoliu em seco. O cão falava! Não era bem falar, visto que a boca não se mexia - mas a verdade é que conseguia comunicar através de outros meios que não a fala.
Levanta-te e segue-me! - ordenou o cão.
Nakata obedeceu às ordens e pôs-se de pé. Ainda pensou duas vezes se havia de cumprimentar o cão, mas achou melhor não o fazer. Mesmo que conseguissem chegar à fala, não lhe parecia que a conversa fosse adiantar muito. Além do mais, não estava com vontade nenhuma de falar com ele, e muito menos de lhe atribuir um nome[3]. Por nada deste mundo este cão se tornaria seu amigo.
Um pensamento atravessou o espírito de Nakata: podia ser que o cão tivesse alguma coisa que ver com o governador. Se calhar, este ficara a saber que ele, Nakata, recebia dinheiro para andar à procura de gatos, e agora queria tirar-lhe o subsítio. Não me admirava nada, pensou ele, que o governador tivesse um daqueles cães de combate. E, se for esse o caso, pensou ele, estou metido numa camisa de onze varas!
Mal Nakata se pôs de pé, o cão começou lentamente a afastar--se. Nakata pôs o saco ao ombro e seguiu-o. O cão tinha a cauda curta e, no fim do traseiro, viam-se dois volumosos testículos pendurados.
O cão cortou a direito pelo meio do terreno e meteu-se por uma fenda na vedação de madeira. Nakata foi atrás dele. Apesar de o cão nem uma única vez ter olhado para trás, parecia saber pelo barulho dos passos que Nakata ia no seu encalço. À medida que se aproximaram da zona comercial, as ruas iam-se enchendo de gente, na sua maior parte donas de casa que andavam às compras. Mantendo a cabeça levantada e os olhos fixos no caminho, o cão seguia em frente, sempre com ar superior. Quando as pessoas davam pela presença daquele animal enorme de aspecto ameaçador, desviavam-se dele. Houve mesmo um ou outro ciclista que desceu da bicicleta e atravessou a rua a fim de o evitar.
Ao seguir na peugada deste monstruoso cão, Nakata apercebeu--se de que as pessoas se estavam a desviar dele. Talvez pensassem que ele andava a passear o cão sem trela. E, verdade seja dita, houve mesmo quem lhe tivesse lançado um olhar reprovador. Isso fê-lo sentir--se mal consigo mesmo. Como gostaria de lhes ter podido explicar que não estava fazer aquilo de sua livre vontade, que se limitava a ir atrás do cão. Que Nakata não era uma pessoa forte, mas, sim, fraca.
Seguiu-o a uma distância razoável. Passaram por uma série de cruzamentos e depois abandonaram a zona comercial. O cão não ligou nenhuma aos sinais para peões. Como as ruas não eram muito largas e os carros não andavam depressa, deixara de ser assim tão perigoso atravessar com o vermelho. Os condutores eram obrigados a pôr o pé no travão ao verem aquele animal enorme aparecer à frente deles. O cão, esse, limitava-se a mostrar os dentes, olhava fixamente para os automobilistas com ar de desafio e atravessava a rua sem pressas. O cão conhecia perfeitamente o significado dos sinais, essa era a Nakata não fazia ideia do sítio onde se encontravam. A dada altura sensação que Nakata tinha, mas ignorava-os de propósito. Decididamente, tratava-se de um cão que estava habituado a levar a sua avante.
passaram por uma área residencial no bairro de Nakano, que ele conhecia como a palma das suas mãos, mas depois de virarem a esquina deixou de estar em território familiar. Nakata sentia-se inquieto. Que faria no caso de se perder e de não ser capaz de encontrar o caminho de volta? Tanto quanto sabia, podiam até já não estar em Nakano. Esticou o pescoço, esforçando-se por descobrir qualquer ponto de referência que lhe permitisse saber onde andava, mas sem sorte nenhuma. Nunca tinha posto os pés naquela parte da cidade.
Impassível, o cão continuou sempre a andar, impondo um andamento que sabia que Nakata não conseguiria acompanhar. Com a cabeça erguida, orelhas espetadas, os testículos a baloiçarem como um pêndulo.
-Diga-me uma coisa, isto aqui ainda é Nakano? - quis saber Nakata.
O cão não se dignou responder nem olhar para trás. -Trabalha para o governador? Ficou mais uma vez sem resposta.
-Nakata só anda à procura de um gato perdido. Uma gatinha malhada chamada Coma.
Nada.
Nakata desistiu, percebendo que assim não ia a lado nenhum.
Encontravam-se agora em plena área residencial. Viam-se imponentes casas, mas nem sinal de transeuntes. Chegando à casa da esquina rodeada por um muro antigo, o cão empurrou as duas partes do portão e entrou por ali dentro sem pedir licença. No caminho de acesso estava um carro estacionado. Um carro grande, preto e lustroso, tal como o cão. A porta da frente estava aberta. O cão avançou sem hesitações. Antes de entrar, Nakata descalçou os seus velhos ténis, deixando-os ficar muito arrumadinhos à entrada, enfiou o seu gorro dentro do saco e sacudiu as folhas que estavam agarradas às calças. O cão ficou à espera de que Nakala acabasse de se arranjar.
Depois conduziu-o através de um corredor assoalhado e encerado que os levou até uma espécie de uma sala de espera ou biblioteca.
A sala estava às escuras. Já quase não havia sol e os pesados reposteiros da janela que dava para o jardim encontravam-se abertos. As luzes continuavam por acender. Ao fundo da divisão via-se uma grande secretária, ao lado da qual parecia encontrar-se alguém. Para saber ao certo, Nakata teria de esperar até os seus olhos se habituarem à escuridão. Um vulto escuro de contornos indefinidos recortava-se nas trevas. Quando Nakata entrou na sala o vulto mudou ligeiramente de posição. Quem quer que fosse, estava sentado numa cadeira giratória e virou-se para o enfrentar. Cumprida a sua missão, o cão parou, atirou-se para o chão e fechou os olhos.
-Viva! - cumprimentou Nakata na direção do vulto tenebroso.
O outro não se dignou responder.
-Desculpe incomodá-lo. Quero que saiba que Nakata não é nenhum intruso.
Nada.
Este cão disse para Nakata vir atrás dele. Nakata obedeceu, seguiu-o e aqui está, com sua licença. Mas agora, se não se importa, Nakata gostaria de se ir embora...
-Senta-te aí - disse o homem com suavidade mas num tom firme.
-Está bem - disse Nakata, deixando-se cair num sofá que ali estava. A seu lado, o cão continuava imóvel, como uma estátua.
O senhor é... o governador?
Uma coisa do género - disse uma voz vinda da escuridão.
Bom, se isso te ajuda a compreenderes quem sou, estás à vontade. A mim tanto me faz.
O homem virou-se e puxou uma corrente para acender um candeeiro de mesa. Espalhou-se uma luz amarelada, como já não se usava, rudimentar mas suficiente para alumiar a sala.
O homem que tinha diante de si era alto, magro e na cabeça trazia um chapéu de seda preto. Continuava sentado na cadeira giratória de pele, com as pernas cruzadas à frente. Envergava um fraque vermelho completo, um colete preto e botas altas pretas. As calças eram alvas como a neve e serviam lhe na perfeição. Mostrava a mão direita levantada à altura da aba do chapéu, educadamente, como se fizesse menção de cumprimentar uma senhora. A mão esquerda empunhava o castão redondo e dourado de uma bengala preta. Ao reparar no pormenor do chapéu, Nakata deu por si a pensar: Este deve ser o tal caçador de gatosl
As feições do homem não eram tão invulgares quanto as suas vestimentas. Não era nem muito novo nem muito velho, nem bonito nem feio. Tinha as sobrancelhas espessas e cerradas, e as bochechas com uma cor saudável. A pele do rosto era espantosamente lisa, sem barba ou bigode. Os olhos eram duas fendas, e nos seus lábios recortava-se um sorriso frio. O tipo de cara difícil de reter na memória. Ao invés, a sua estranha forma de vestir entrava pelos olhos dentro. Outra roupagem, e ninguém teria dado pelo homem.
Sabes quem eu sou, não é verdade?
Não - retorquiu Nakata.
O homem pareceu um tanto desapontado.
Tens a certeza?
Sim. Não sei se sabe, mas Nakata não é lá muito esperto.
-Nunca me puseste a vista em cima? - perguntou o homem, levantando-se da cadeira. Posto isto, deu dois passos largos e colocou--se ao lado de Nakata, sempre com uma perna levantada no ar, como se estivesse a caminhar.
E agora? Isto também não te diz nada?
Não, desculpe mas Nakata não sabe quem o senhor é.
-Bom, estou a ver que não és apreciador de uísque - disse o homem.
-Assim é, de facto. Nakata não bebe nem fuma. É pobre e até recebe um subsítio do Estado, por isso não se pode dar a esse luxo.
O homem recostou-se na cadeira e cruzou as pernas. Pegou num copo que estava em cima da secretária e deu um gole no uísque, fazendo tilintar os cubos de gelo.
Mas não te importas que eu beba?
Não, Nakata não se importa. Beba à sua vontade.
Obrigado - disse o homem, observando minuciosamente Nakata. - Quer então dizer que não sabes mesmo quem eu sou?
-Com muita pena, mas não.
O homem apertou ligeiramente os lábios. Por um breve momento, desenhou-se no seu rosto um sorriso frio, como uma pequena onda distorcida à superfície da água, que se desvaneceu, voltando depois a formar-se.
Um apreciador de uísque ter-me-ia reconhecido logo, mas não tem importância. O meu nome é Johnnie Walker. Johnnie Walker. A maioria das pessoas sabe quem eu sou. Não é para me gabar, mas a minha fama corre mundo. Sou uma espécie de ícone, por assim dizer. Mas atenção, nada de confusões, não sou o verdadeiro Johnnie Walker. Não tenho nada que ver com a empresa de destilação que existe na Escócia. Limitei-me a tirar partido da figura e do nome. Uma pessoa precisa de ter um nome e uma imagem, não te parece?
O silêncio abateu-se sobre a sala. Nakata não fazia ideia do que o homem estava a falar. Só tinha percebido que ele se chamava Johnnie Walker.
Quer dizer que Johnnie Walker é estrangeiro? Johnnie Walker inclinou a cabeça.
Bem, se isso te ajuda a situar-me, por mim estás à vontade. Acredita no que quiseres. Tanto é verdade uma coisa como a outra.
Nakata não percebia patavina. Era o mesmo que estar a falar com Kawamura, o gato.
Quer dizer que o senhor é estrangeiro, mas, ao mesmo tempo, não é estrangeiro. E isso?
Assim é.
Nakata achou por bem não ir mais longe.
E foi o senhor Johnnie Walker que mandou este cão buscar Nakata e trazê-lo até aqui?
Exatamente - limitou-se Johnnie Walker a dizer.
O que quer dizer que... o senhor tem qualquer coisa para perguntar a Nakata?
Diz antes que tu é que tens qualquer coisa para me perguntar - respondeu Johnnie Walker, voltando a beber mais um trago do seu uísque. - Segundo julgo saber, tens passado os dias naquele terreno baldio à espera de que eu apareça.
Realmente, que cabeça! Nakata não é lá muito esperto e esquece-se das coisas por tudo e por nada. É como disse. Nakata tem passado os dias à sua espera no terreno baldio para lhe fazer perguntas acerca de um galo que anda desaparecido.
Com uma bengala preta que linha na mão, Johnnie Walker deu uma pancadinha nipida de lado nas botas pretas e o estalido soco ecoou na sala. As orelhas negras do cão estremeceram.
O dia está a chegar ao fim, a maré a vazar. Que tal irmos direitos ao assunto? - inquiriu Johnnie Walker. - Querias fazer-me perguntas acerca desse gato, não é verdade?
Sim, exatamente. Há coisa de dez dias ou mais que Nakata anda à procura de Goma, a pedido da senhora Koizumi. Por acaso o senhor Johnnie Walker sabe quem é a gata?
Conheço-a muito bem.
E também sabe onde ela poderá estar?
Também.
Nakata olhou fixamente para o chapéu de seda, com a boca ligeiramente entreaberta, depois baixou o olhar para a cara. Os lábios finos de Johnnie Walker estavam firmemente apertados, numa pose que ostentava confiança.
Encontra-se aqui perto?
Johnnie Walker acenou com a cabeça repetidas vezes.
Sim, mais perto não podia estar.
Nakata passou os olhos pela divisão, mas não havia nenhum gato à vista. Apenas a secretária, a cadeira giratória com o homem lá sentado em cima, o sofá onde ele próprio se encontrava, mais duas cadeiras, o candeeiro de pé, a mesinha de café e um cão.
Nesse caso, Nakata pode levar Goma para casa?
Isso depende de ti.
De Nakata?
- Exato. Tudo depende de Nakata - afirmou Johnnie Walker, erguendo ligeiramente uma sobrancelha. - Está nas tuas mãos levares Goma para casa. E fazer assim a alegria da senhora Koizumi e das suas filhas. Ou então podes nunca a levar de volta e desapontá-las. Mas tu não queres que isso aconteça, pois não?
Não, Nakata não as quer ver desapontadas.
Pela minha parte, também não as quero desapontar.
O que é que é preciso fazer? Johnnie Walker fez girar a bengala no ar.
Quero que me faças uma coisa (um favor).
E é alguma coisa que Nakata pode fazer?
-Nunca peço o impossível. É uma tremenda perda de tempo, não te parece?
Nakata ficou a matutar naquilo.
Pode ser.
-O que só quer dizer que me pareces ser capaz de fazer aquilo que te vou pedir.
Nakata matutou durante mais um bocado.
-Pode ser que sim.
-Regra geral, todas as teorias partem de uma hipótese sujeita a confirmação.
-Como foi que disse? - perguntou Nakata.
-Para todas as teorias tem de existir uma confirmação, caso contrário não haveria progressos na ciência - explicou Johnnie Walker, batendo com a bengala nas botas em sinal de desafio. As orelhas do cão voltaram a dar sinal. - Não tem nada que saber.
Nakata permaneceu em silêncio.
-Verdade seja dita, há muito que ando há procura de alguém como tu - continuou Johnnie Walker. - Mas não foi fácil encontrar a pessoa certa. No outro dia, por mero acaso, vi-te a falar com um gato e então, de repente... é isso mesmo, encontrei a pessoa de que tenho andado à procura. Foi por isso que te obriguei a vir até aqui. O que não quer dizer que não lamente o facto de te ter causado tamanha maçada.
-Maçada nenhuma! Nakata tem tempo de sobra.
-Tenho umas quantas teorias acerca da tua pessoa - precisou Johnnie Walker. - E, como não podia deixar de ser, várias confirmações a fazer. Pensa nisto como sendo um jogo. Um jogo que eu faço comigo próprio, na minha cabeça. Mas, como todos os jogos, também este precisa de um vencedor e de um vencido. Neste caso, vencer e perder implica determinar se uma determinada teoria é ou não correta. Mas imagino que não estejas a perceber nada do que estou para aqui a dizer.
Em silêncio, Nakata abanou a cabeça.
Johnnie Walker voltou a bater duas vezes com a bengala nas botas. Como que respondendo a um sinal, o cão levantou-se.
Oshima entra no seu Miata e arranca a toda a velocidade. Quando carrega no acelerador, as pedras do cascalho voam, disparadas, vindo embater na traseira do carro. Ele faz marcha atrás, vira-o e volta pelo mesmo caminho. Diz adeus com a mão, em jeito de despedida, e eu faço o mesmo. As luzes dos travões são engolidas pela escuridão, o barulho do motor vai deixando de se ouvir, até se calar de vez. Depois, fica apenas o silêncio da floresta.
Regresso à cabana e tranco a porta por dentro. Mal fico sozinho, o silêncio envolve-me por completo, como se estivesse à espera daquele momento para o fazer. Para uma noite de início de Verão, custa a crer que o ar esteja tão fresco, mas é demasiado tarde para acender o fogão. Por hoje só penso em enfiar-me dentro do saco-cama e deitar-me a dormir. Sinto a cabeça vazia devido a ter dormido pouco e doem-me os músculos do corpo todo por ter passado tantas horas enfiado no carro. Apago a luz do candeeiro. Fica escuro, e as sombras que povoam os cantos do quarto tornam-se mais profundas. Como dá muito trabalho mudar de roupa, meto-me dentro do saco-cama de calças de ganga e anoraque vestido.
Fecho os olhos mas não consigo dormir. O meu corpo pede descanso, ao passo que a mente não podia estar mais desperta. Volta e meia o grito de um pássaro quebra o silêncio da noite. Há ainda outros sons que se ouvem e que eu não consigo identificar. O ruído de alguém ou algo a pisar folhas caídas. O som de um gemido profundo. O chão do alpendre que range de uma forma inquetante. Todos esses rumores parecem provir de ali perto, e tenho a sensação de estar cercado por um exército de criaturas invisíveis que habitam as trevas.
Mais, sinto que alguém me observa. A sensação de uns olhos cravados em mim queima-me a pele. O meu coração bate com um som oco. Percorro com os olhos semicerrados o espaço fracamente iluminado para me certificar de que não anda ali ninguém. A porta da frente está fechada com uma pesada tranca de madeira, e as cortinas espessas estão totalmente corridas. Está tudo em ordem, digo para comigo mesmo. Estou sozinho na cabana e lá de fora ninguém me pode ver.
Mas nem assim consigo iludir a sensação de estar a ser observado. Tenho a garganta seca e sinto dificuldade em respirar. Preciso de beber água, mas, se o fizer, terei de urinar e isso implica ir lá fora. Não tenho outro remédio senão aguentar até de manhã. Enroscado no meu saco-cama, abano ligeiramente a cabeça.
Estás a gozar comigo?! Rareces mesmo uma criancinha assustada, com medo do silêncio e do escuro. Não vais começar agora a roer a corda, pois não? Tens a mania que és forte, mas quando chega a hora da verdade ficas logo quase a chorar. Olha bem para a tua figura. Não tarda nada estás a molhar a cama, quase aposto - molhar a cama, quase aposto!
Fazendo por ignorá-lo, fecho os olhos com força, corro o fecho do saco-cama até ao nariz e expulso todos os pensamentos da minha cabeça. Não abro os olhos nem por nada - nem quando oiço o pio de um mocho, nem quando oiço qualquer coisa cair com um estrondo por terra, lá fora. Nem mesmo quando me parece ouvir algo a mexer dentro de casa. Estou a ser posto à prova, digo para comigo mesmo. Oshima também ficou aqui alguns dias sozinho, quando tinha mais ou menos a minha idade. Tal como eu, também ele deve ter experimentado uma sensação de medo. Deve ter sido isso que ele tinha em mente ao dizer que existem muitos tipos de solidão. Oshima sabe perfeitamente como me deve custar ficar aqui sozinho à noite, porque ele passou pela experiência. Este pensamento ajuda-me a encontrar um poui o mais de tranquilidade. Sinto-me capaz de distinguir os contornos das sombras que me rodeiam e imaginar me como fazendo parte delas. Respiro fundo e adormeço enquanto o diabo esfrega um olho.
Acordo por volta das seis da manhã. O ar enche-se com uma explosão de gritos de aves. Os pássaros esvoaçam de árvore em árvore e chamam uns pelos outros numa chilreada infernal. O tom das mensagens trocadas não transmite nem o eco profundo nem a fatalidade anunciada da noite anterior. Quando afasto as cortinas, todos os resquícios da escuridão da noite anterior desapareceram. Tudo reluz com um renovado brilho dourado. Ligo o fogão e ponho água mineral a ferver para fazer chá de camomila. Depois abro um pacote de bolachas de água e sal e como duas ou três com um bocadinho de queijo. A seguir lavo os dentes e a cara no lava-loiça.
Visto uma capa corta-vento por cima do anoraque e vou até lá fora. A luz da manhã derrama-se por entre as árvores enormes e projeta a sua sombra no terreno até à entrada da cabana, tecendo um manto feito de raios de sol e névoa matinal que flutua no ar como almas acabadas de nascer. Cada vez que inspiro, sinto o ar puro e fresco penetrar nos meus pulmões. Sento-me num degrau do alpendre e observo os pássaros que esvoaçam de árvore em árvore, ficando ali a ouvir o seu chamamento. Voam quase todos aos pares, num piar contínuo, sem nunca deixarem de manter o parceiro do lado debaixo de olho.
Sigo o sussurro da água e vou ter direitinho ao riacho que existe ali por perto. As rochas formam uma espécie de charco onde a água corre, rodopiando num interminável labirinto de redemoinhos antes de seguir o seu curso natural. A água é límpida e bela. Faço uma concha com as mãos e bebo. Está fresca e sabe-me deliciosamente bem. Depois mergulho as mãos na água, ao sabor da corrente.
De regresso à cabana preparo uns ovos com presunto na frigideira, faço torradas usando uma grelha de metal e aqueço leite numa pequena caçarola para ajudar a comida a ir para baixo. A seguir pego numa cadeira e sento-me no alpendre, ponho as pernas em cima do parapeito e passo a manhã inteira a ler. Oshima tem uma estante cheia de livros. Romances, há poucos, apenas alguns clássicos bem conhecidos. São quase lodos livros do filosofia, sociologia, história, geografia, ciências naturais e economia. Um grande número de assuntos dispersos por uma variedade de áreas. Oshima confessou as suas lacunas em matéria de educação escolar, por isso deve ter sido assim que ele aumentou os seus conhecimentos.
Escolho um livro que se debruça sobre o julgamento de Adolf Eichmann. Sei vagamente que ele foi um criminoso de guerra nazi, mas não é tema que me interesse por aí além. Calhou o livro chamar--me a atenção, mais nada. Começo a ler e fico a saber como este homem, tenente-coronel nas SS, com falta de cabelo e os seus óculos de armações metálicas, foi desde o princípio encarregado pelos dirigentes nazis de pôr em prática a solução final da questão dos judeus - que é como quem diz, o extermínio -, e ainda como ele delineou a melhor maneira de a levar até às suas últimas consequências. A questão de saber se o programa posto em marcha estava certo ou errado nem sequer lhe passou pela cabeça. Tudo o que lhe interessava era encontrar a melhor maneira de erradicar os judeus, isto no mais curto espaço de tempo e pelo custo mais baixo possível. E é bom não esquecer que estamos a falar dos cerca de onze milhões de judeus que, no seu entender, tinham de desaparecer da face da Europa.
Eichmann fez as contas ao número de judeus que podiam ser metidos numa carruagem de comboio, qual a percentagem que morreria de «causas naturais» durante o transporte, o número mínimo de pessoas necessárias para levar por diante a operação, o método mais económico para se livrar dos cadáveres - quer enterrando-os, queimando-os ou dissolvendo-os. Sentado à sua secretária, dotado de um espírito eminentemente «pragmático», Eichmann debruçou-se sobre todos esses números. A partir do momento em que a operação foi desencadeada, os seus planos foram praticamente seguidos à risca. No final da guerra, seis milhões de judeus tinham sido eliminados. Por estranho que pareça, o sujeito nunca experimentou o mínimo remorso. Sentado no banco dos réus, em Telavive, por detrás do vidro à prova de bala, Eichmann tinha todo o aspeto de não entender a razão de sor alvo de tão importante julgamento, nem tão-só o motivo de ter os olhos do mundo pousados nele. Não passava de um técnico, insistia elo, que lograra encontrar a solução mais eficaz para o problema que lhe fora apresentado. Acaso não teriam todos os burocratas dignos desse nome feito o mesmo?
Sentado no meio daquele bosque tranquilo, embalado polo (auto dos pássaros, leio uma história deste tipo dotado de um espírito tão «pragmático». Na última página do livro, Oshima escreveu qualquer coisa a lápis. A sua caligrafia é muito fácil de reconhecer.
e tudo uma questão de imaginação. a nossa responsabilidade começa na capacidade de imaginar. tal como yeats disse: «nos sonhos começa a responsabilidade.» vira isto às avessas e podes dizer que onde não há capacidade de imaginação, não pode haver responsabilidade. como se vê pelo exemplo de eichmann.
Tento imaginar Oshima sentado nesta cadeira, com o lápis bem afiado do costume na mão, a reflectir nas palavras deste livro e a dar conta das suas impressões. Nos sonhos começa a responsabilidade. As palavras encontram eco no meu coração.
Fecho o livro, pouso-o no colo e penso nas minhas próprias responsabilidades. É mais forte do que eu. A minha T-shirt branca estava ensopada de sangue fresco. Com estas mãos esforcei-me por tirar as manchas de sangue, e o sangue era tanto que tingiu de vermelho o lavatório. Tenho a sensação de ser responsável por todo aquele sangue. Tento imaginar-me a ser julgado em tribunal. Os meus acusadores mostram-se encarniçadamente apostados em fazer a culpa recair sobre mim, apontando-me com o dedo e lançando-me olhares ferozes, enquanto eu, pela parte que me toca, defendo que uma pessoa não pode ser considerada responsável por uma coisa de que não tem memória. Confesso que não me recordo do que aconteceu. Mas eles não se dão por vencidos e contra-argumentam: «Não interessa a quem o sonho possa pertencer, tu fazes parte desse mesmo sonho. Por isso, és responsável por tudo o que no sonho possa acontecer. Esse sonho logrou apoderar-se de ti e alojar-se nos negros labirintos da tua alma.»
Tal como Adolf Eichmann, apanhado - quer ele quisesse quer não - nos sonhos monstruosos de um homem chamado Hitler.
Ponho o livro de parte, levanto-me e resolvo sair para esticar as pernas. Fiquei muito tempo sentado a ler e sinto necessidade de me levantar e andar um bocado. Trago o jarro de alumínio que está ao lado do lava-loiça e vou até ao ribeiro enchê-lo. A soguii pego numa braçada de lenha e empilho-a junto ao fogão.
A um canto do alpendre está uma corda de náilon toda esfiapada para pendurar roupa. Vou à mochila buscar as roupas húmidas, aliso--as com as mãos e ponho-as a secar. Despejo o resto das coisas em cima da cama. Depois sento-me à secretária e anoto no meu diário os acontecimentos dos últimos dias. Uso uma caneta de ponta fina e descrevo em letra miudinha tudo o que me aconteceu. Não sei durante quanto mais tempo conseguirei recordar os pormenores, por isso o melhor a fazer é passar tudo para o papel quanto antes. Vasculho a memória. Lembro-me de que perdi os sentidos e dei por mim no meio da mata, nas traseiras de um santuário. Estava escuro e tinha a camisa cheia de sangue. Telefonei a Sakura, ela deixou-me passar a noite em casa dela. Lembro-me que ficámos à conversa. E foi então que ela me fez aquilo.
Que não entendia, foi o que ela disse. Que eu não precisava de lhe contar aquilo. Perguntou-me porque não ganhava eu coragem e dava livre curso à minha imaginação? Como podia ela adivinhar o que me ia dentro da cabeça?
Mas as coisas não são bem assim. Aquilo que eu imagino pode vir a revelar-se muito importante. Para o mundo inteiro.
Nessa tarde decido ir dar um passeio pelo bosque. Oshima alertou para o perigo de me aventurar demasiado na floresta. «Nunca percas de vista a cabana», avisou ele. Mas como o mais provável é eu ficar por aqui durante alguns dias, sinto-me na necessidade de apurar mais qualquer coisa em relação a esta muralha maciça de árvores que me rodeia. Parto do princípio que mais vale saber alguma coisa do que ficar na ignorância. De mãos a abanar, deixo para trás a face da colina batida pelo sol e mergulho no misterioso mar de árvores.
Existe uma espécie de trilho marcado que vai dar à floresta, acompanhando quase sempre o relevo natural do terreno, mas deixando ver a intervalos regulares algumas pedras lisas com todo o aspeto de ali lerem sirio postas para facilitar o acesso. Os locais propícios à erosão foram alapelados com pranchas do madeira, por isso torna-se logo a seguir caminho mesmo nos lugares invadidos pelas ervas daninhas, talvez aos poucos o irmão de Oshima se tenha tido ao trabalho de ir arranjando o caminho, sempre que ficava aqui a viver. Sigo o carreiro até ao bosque. Primeiro sobe, depois desce e contorna um pedregulho alto antes de começar de novo a subir. O caminho é quase todo a subir, mas ainda assim faz-se bem. Árvores altas erguem-se de ambos os lados, com troncos de cor escura e ramos grossos que se estendem em todas as direções, encimados por copas de densa folhagem. O terreno apresenta-se coberto de arbustos e fetos que absorvem o máximo de luz fraca que podem. Nos sítios onde o sol não chega, espessas e escuras camadas de musgo cobrem a superfície das pedras.
Como alguém a quem vão faltando as palavras para contar uma história, também o carreiro se vai estreitando à medida que avanço, cercado de vegetação por todos os lados. Para lá de um certo ponto, torna-se difícil dizer se existe na realidade ou se não passa de um arremedo de caminho. Às tantas, os seus vagos contornos ficam por completo submersos num mar de fetos. Pode muito bem acontecer que siga em frente, mas, uma vez ali chegado, prefiro deixar a exploração para a próxima vez. Não estou vestido com roupas próprias nem venho preparado para tal.
Paro e dou meia volta. Não há nada na paisagem com que me identifique, não vejo nada a que me possa agarrar. Um emaranhado de troncos de árvore com aspeto ameaçador tapa-me a vista. Reina a obscuridade, o ar está impregnado de clorofila e os pássaros deixaram de se ouvir.
De súbito, fico cheio de pele-de-galinha, mas digo para comigo mesmo que não há nada a temer. O carreiro está mesmo ali à minha frente. Desde que não o perca de vista, poderei sempre voltar à luz. Sem despregar os olhos do chão, regresso pelo mesmo caminho, passo por passo. Demoro o dobro do tempo ou mais para voltar à cabana. A clareira encheu-se da claridade própria do princípio de Verão, e o canto cristalino das aves à procura de alimento ecoa no ar. Está tudo exactamente na mesma. Ou, pelo menos, penso que está. A cadeira onde me sentei continua no alpendre. O livro que comecei a ler está virado para baixo, exatamente como o deixei.
Agora sei até que ponto a floresta pode ser perigosa. E espero bem nunca o esquecer. Tem razão, o Corvo: o mundo está cheio de coisas que desconheço. Todas estas plantas e todas estas árvores, por exemplo. Nunca imaginei que as árvores pudessem ser Ião estranhas e perturbantes. Vendo bem, as únicas plantas que até agora me lembro de ver ou de tocar eram tudo árvores bem tratadas e arbustos bem aparados. Mas as que aqui existem - as que aqui vivem - são totalmente diferentes. Possuem como que uma força, roçando com o seu sopro qualquer humano que por ali se aventure, assestando o olhar sobre o intruso como se tivessem vislumbrado a sua presa. Como se possuíssem desde tempos imemoriais algum ancestral e obscuro poder mágico. Como as criaturas do fundo do mar dominam os oceanos, também as árvores são donas e senhoras das florestas. Caso fosse essa a sua vontade, a floresta poderia facilmente rejeitar-me, ou então engolir-te. Quer-me parecer que pode não ser má ideia adotar uma atitude onde se misturem, de uma forma sábia, o medo e respeito.
De regresso à cabana, tiro a bússola da mochila e verifico se a agulha aponta para o norte. Enfio-a no bolso. Quem sabe se não virei a precisar dela. Depois sento-me no alpendre, a olhar o bosque e a ouvir os Cream e Duke Ellington no meu discman. Tudo temas que gravei de uma coletânea que havia na secção de CD de uma biblioteca. Ponho a tocar Crossroads mais de uma vez, oiço e torno a ouvir o tema. A música ajuda-me a descontrair, mas é sol de pouca dura. Aqui não há eletricidade e não tenho maneira de recarregar a bateria, por isso, quando as pilhas que tinha a mais perdem a carga, acaba-se a música.
Faço um bocado de exercício antes do jantar. Elevações, abdominais, exercícios de agachamento, diferentes tipos de alongamento - uma rotina que ajuda a manter a forma sem recorrer a máquinas nem de outro equipamento. Os exercícios têm tanto de fácil como de monótono, mas tenho de reconhecer que até dão resultado. Aprendi com um professor que tive. «Os prisioneiros na solitária gostam mais assim», explicou-me ele, chamando-lhe os «exercícios mais solitários do mundo». Concentro-me no que estou a fazer e completo umas quantas séries de exercícios, até ficar com a camisola encharcada em suor.
Depois de comer uma refeição ligeira, saio para o alpendre e fico ali a olhar a miríade de estrelas cintilantes sobre a minha cabeça. I ih nenhum planetário se conseguiria ver assim tantas estrelas. Algumas são espantosamente grandes e distinguem-se a olho nu, dando a impressão de que se encontram quase ao alcance da mão. Todo o cenário e de cortar a respiração.
Mas não e só a beleza. Não, as estrelas vivem o respiram, como as árvores na floresta vêem me. Sabem ludo, o que fiz até agora e o que vou fazer a seguir. Nada escapa aos seus olhos vigilantes. Ali sentado, debaixo do brilhante céu noturno, sou assaltado por um medo violento. O coração começa a bater desalmadamente e mal consigo respirar. Todos aqueles milhões de estrelas ali, de olhos postos em mim, e eu que nunca antes me dignei sequer reparar nelas.
Mas não são só as estrelas. Quantas mais coisas me escaparam neste mundo, coisas sobre as quais nada sei? De repente sinto-me isolado de tudo e de todos e profundamente impotente. E tenho a sensação de que nunca serei capaz de ultrapassar este terrível sentimento.
Dentro da cabana, empilho cuidadosamente a lenha no fogão, faço umas bolas de papel a partir de um jornal velho, deito-lhe fogo e fico à espera que pegue. No primeiros anos do secundário fui enviado para um acampamento e aprendi como se faz uma fogueira. Detestei o acampamento mas, do mal o menos, sempre aprendi qualquer coisa de útil. Abro o tubo da chaminé para deixar sair o fumo. Ao princípio a coisa não funciona bem, mas assim que uma acha começa a arder, as chamas não tardam a alastrar aos outros pedaços de lenha. Fecho a porta do fogão, puxo uma cadeira e sento-me na frente dele, aproximo o candeeiro e retomo a leitura no ponto em que ficara. Mal o fogo pega, coloco lá em cima a chaleira com água, que não tarda muito começa a apitar com um agradável barulhinho.
Voltando a Eichmann. Como não podia deixar de ser, os seus planos nem sempre tiveram êxito quando postos em prática. As condições existentes nos vários campos fizeram as coisas andar para trás. Quando isso aconteceu, Eichmann revelou uma faceta humana - pelo menos em parte. Ficou revoltado. Mostrou-se irritado com esses tais elementos de instabilidade que ousavam cortar as pernas à solução por si engendrada, apurada com tanto cuidado no recato do seu gabinete. Havia atrasos nos comboios. Impedimentos burocráticos. As pessoas nos postos-chave eram substituídas, e o relacionamento com os seus sucessores nem sempre funcionava da melhor maneira. Depois do colapso na frente russa, os guardas dos campos de concentração foram enviados para o combate. Registaram-se violentas tempestades de neve. Falhas de energia. Não havia gás venenoso em quantidade suficiente. As linhas férreas foram bombardeadas. Eichmann detestava a guerra em si - esse elemento de insegurança e incerteza que dera cabo dos seus planos.
Durante o julgamento, ele descreveu tudo isto ao pormenor, sem dar mostras de emoção. A evocação dos acontecimentos foi espantosa. Dir-se-ia que a sua vida girava à volta desses pormenores.
Às dez ponho o livro de lado, lavo os dentes e a cara. O fogo banha o quarto com um brilho alaranjado, e o calor agradável acalma os meus anseios e os meus medos. Arrasto-me para dentro do saco-cama de T-shirt e boxers. Ao contrário da noite anterior, não tenho dificuldade em fechar os olhos. Imagens de Sakura povoam os meus pensamentos.
«Estava a pensar como seria bom se fosse tua irmã a sério», dissera ela.
Mas esta noite acabou-se, não quero pensar mais nisso. Tenho de ver se durmo. Uma acha resvala pelo fogão. Lá fora um mocho pia. E eu resvalo num turbilhão de sonhos.
No dia seguinte, a mesma coisa. Sou acordado pelos pássaros pouco passa das seis. Aqueço água, preparo uma chávena de chá e tomo o pequeno-almoço. Fico a ler no alpendre, oiço música e vou até ao riacho buscar água. E percorro o caminho que vai ter ao bosque. Desta vez levo comigo a bússola e volta e meia dou-lhe uma olhadela para ficar com uma ideia do sítio onde está a cabana. Encontrei um machado no barracão e utilizo-o para fazer cortes simples nas árvores. À medida que vou avançando, aproveito para limpar o terreno de algumas ervas daninhas a fim de se tornar mais fácil dar com o caminho.
Tal como na véspera dou por mim na floresta profunda e escura. De ambos os lados, as árvores altaneiras formam uma espécie de muralha maciça. Existe algo na floresta que ali se esconde, nas trevas, por entre as árvores, como a imagem de um animal em três dimensões, atento a todos os meus movimentos. Mas o medo, aquele sentimento de pânico que me pôs a tremer dos pés à cabeça, desapareceu. Criei as minhas próprias regras, e sei que, se as seguir, não corro o risco de me perder. Pelo menos, assim o espero.
Estou no sítio onde vim ter no dia anterior e continuo sempre em frente, mergulhando no mar de fetos. Mais adiante o trilho volta a emergir, e eu torno a ficar cercado por uma muralha de árvores cujos trocos continuo a assinalar a medida que avanço. Algures por
cima de mim, um pássaro enorme bate as asas, mas quando olho na direcção dos ramos não o consigo descobrir. Tenho a boca seca.
Continuo sempre a andar até chegar a uma clareira no meio da floresta. Rodeada de árvores altas, parece o fundo de um poço gigante. Os raios de sol penetram através dos ramos como cones de luz, iluminando a terra a meus pés. De certa maneira, é como se este sítio fosse especial. Sento-me ao sol e deixo-me envolver pelo calor ténue, enquanto tiro do bolso uma barra de chocolate e sinto o doce sabor a derreter-se na minha boca. Uma vez mais, dou-me conta da importância do Sol na vida de todos nós, seres vivos. Aprecio cada segundo daquela preciosa luz. A profunda solidão e o sentimento de impotência que se apoderou de mim a noite passada, sob todos aqueles milhões de estrelas, tudo isso desapareceu. Contudo, à medida que o tempo passa, o Sol muda de posição e a luz desaparece. Ponho-me de pé e torno a percorrer o caminho que me leva de volta à cabana.
Durante a tarde, nuvens carregadas conferem de repente ao céu uma cor misteriosa e a chuva começa a cair com força sobre o telhado e as janelas da cabana. Dispo-me e corro todo nu lá para fora. Uso o sabonete para lavar a cara e esfregar-me da cabeça aos pés. É uma sensação fantástica. Na minha alegria, fecho os olhos e grito palavras sem nexo, enquanto, ao mesmo tempo as gotas, grossas e pesadas, me vão batendo nas faces, nas pálpebras, no peito, na barriga, no pénis, nas costas, nas pernas e no rabo. Recebo a dor fina e penetrante como se fizesse parte de uma iniciação religiosa ou coisa que o valha. A dor traz consigo um sentimento de confiança, como se, por uma vez sem exemplo, o mundo estivesse finalmente a fazer--me justiça. Sinto-me nas nuvens, como se conhecesse finalmente o sabor da liberdade. Estendo os braços para o céu com as mãos bem abertas, abro a boca e bebo a água da chuva.
Dentro da cabana, seco-me com uma toalha, sento-me na cama e ponho-me a olhar para o pénis - o pénis de um jovem, de cor clara e com aspeto saudável. Ainda me dói um bocado por causa da chuva.
Durante um bom bocado fico ali a olhar fixamente para este estranho órgão que, na maior parte das vezes, mostra ter vontade própria e pensar pela sua cabeça.
Interrogo-me. Será que Oshima, quando tinha a minha idade e ficou aqui sozinho, se debateu com o desejo sexual? O mais certo é isso ter acontecido, mas não consigo imagina-lo a tratar do assunto pelas suas próprias mãos. Aos meus olhos é demasiado desprendido para tal, superior a essas coisas.
«O diferente sou eu.» Não sei o que quis ele dizer com isso, mas não o vejo a falar só por falar. Assim como também não me parece que tenha dito isso só para dar um ar de mistério à coisa.
Ainda ponho a hipótese de me masturbar rapidamente, mas depois penso duas vezes. O facto de ter sido tão duramente fustigado pela chuva faz-me sentir estranhamente purificado, e quero ficar com essa sensação por mais tempo. Visto as boxers, respiro fundo várias vezes e desato a fazer flexões. As cem seguem-se cem abdominais. Concentro-me num grupo de músculos de cada vez. Assim que termino o meu programa de exercícios, fico com a cabeça arejada e o espírito liberto. A chuva parou, o Sol começa a aparecer através das nuvens e os pássaros voltaram a cantar.
Sabes perfeitamente que essa calma não vai durar muito. Assim como sabes que as feras insaciáveis não te dão tréguas, perseguindo-te estejas tu onde estiveres. Saem-te ao caminho no meio das profundezas da floresta. São cruéis, implacáveis, impiedosas, e nunca, mas nunca, vão desistir dos seus intentos. Neste momento podes até julgar que te sabes dominar e escolher não te masturbares, mas elas acabarão por te apanhar. Por te visitar em noites de um sonho molhado. Pode acontecer que sonhes que estás a violar a tua irmã ou a tua mãe. Está acima das tuas forças, fora do teu alcance. E não tens outro remédio senão aceitar isso.
Tens medo da tua imaginação. E ainda mais dos teus sonhos. Medo da responsabilidade que começa nos sonhos. Mas precisas de dormir, e com o sono vêm os sonhos. Quando estás acordado, sempre podes suprimir a imaginação. Mas não podes eliminar os sonhos.
Ponho os auscultadores e fico deitado na cama, a ouvir Prince, concentrado na música estranha e
paralisante. As pilhas acabam no meio de Little Red Corvette, e a música interrompe-se como se tivesse sido engolida por areias movediças. Tiro os auscultadores e ponho-me à escuta. Aprendo a escutar o silêncio.
O cão preto levantou-se e conduziu Nakata para fora do estúdio, pelo corredor sombrio que ia ter à cozinha. Quase não havia janelas e reinava a escuridão. Apesar de estar tudo limpo e asseado, o ambiente asséptico fazia lembrar o laboratório de ciências de uma escola. Parou em frente das portas de um frigorífico gigante, deu meia volta e fulminou Nakata com um olhar frio.
-Abre a porta da esquerda - disse ele baixinho. Nakata sabia que não era o cão a falar. Quem assim falava era Johnnie Walker, que comunicava com Nakata através do cão, que o via através dos olhos do cão.
Nakata fez o que lhe mandaram. O frigorífico verde-abacate era mais alto do que ele, e quando abriu a porta o termostato produziu um clique surdo, o motor a dar sinal de vida. De lá de dentro saiu uma nuvem de vapor branco que parecia nevoeiro. Daquele lado ficava o congelador, regulado para uma temperatura muito baixa.
Lá dentro, todas muito bem alinhadas, via-se aquilo que à primeira vista dava a ideia de ser fruta. Para aí umas vinte peças. Tirando isso, o frigorífico estava vazio. Nakata inclinou-se e olhou com mais atenção. Quando o vapor se dissipou, viu que estava a olhar, não para peças de fruta, mas sim para cabeças de gatos. Cabeças de gatos cortadas, de todas as formas e feitios, dispostas em três prateleiras como se fossem laranjas num lugar da fruta. Os focinhos congelados dos gatos estavam todos virados para a frente. Nakata engoliu em seco.
-Olha bem - ordenou o cão. - Verifica com os teus próprios olhos se Coma aí está.
Foi isso que Nakata fez, tratando de examinar as cabeças uma a uma. Não sentia qualquer receio, o seu pensamento estava única e exclusivamente concentrado em encontrar o gatinho desaparecido. Nakata examinou cuidadosamente todas as cabeças, obtendo a confirmação de que Goma não fazia parte do grupo. Disso não restavam dúvidas - não havia um único gato malhado entre os demais. Separados do corpo, os focinhos dos gatos possuíam uma expressão estranhamente vazia. Nenhum deles parecia ter
sofrido, o que levou Nakata a respirar de alívio. Alguns dos gatos estavam com os olhos fechados, mas a maior parte olhava sem expressão para um ponto perdido no espaço.
-Não estou a ver Goma aqui - disse Nakata numa voz sem expressão, limpando a garganta e fechando a porta do frigorífico.
tens a certeza absoluta?
-Sim, tenho a certeza.
O cão levantou-se e conduziu Nakata outra vez ao estúdio, onde Johnnie Walker esperava por ele, sentado na cadeira giratória. Quando Nakata entrou, ele deu um toque na aba do chapéu de seda em jeito de saudação e sorriu com amabilidade. Depois bateu as palmas duas vezes, com força, e o cão abandonou a sala.
-Todas aquelas cabeças de gatos foram cortadas por mim -disse ele. Levantou o copo de uísque e bebeu um gole. - Faço coleção.
-Então é o senhor que tem andado a deitar a mão aos gatos naquele terreno abandonado e a matá-los.
-Isso mesmo. Johnnie Walker, o famoso assassino de gatos, ao seu serviço.
-Nakata ainda não percebeu lá muito bem. Não se importa de responder a uma pergunta?
-Estás à vontade - disse Johnnie Walker, erguendo o copo. -Pergunta o que quiseres. Mas, a fim de poupar tempo, tomo a liberdade de antecipar a primeira pergunta. A saber, qual a razão que me leva a matar todos estes gatos e porque é que coleciono as cabeças. Estou certo?
-Sim. É isso mesmo que Nakata gostaria de saber.
Johnnie Walker pousou o copo em cima da secretária e encarou Nakata de frente, olho, nos olhos.
-Trata-se de um importante segredo que eu normalmente não contaria a mais ninguém. Mas no teu caso vou abrir uma exceção, meu caro Nakata. Só te peço que não contes nada a ninguém. Embora não me pareça que alguém fosse acreditar no que tu dissesses - Johnnie Walker não pôde conter um riso abafado. - Quero que saibas uma coisa. Não ando por aí a matar gatos só porque me dá na gana. Não sou uma pessoa assim tão perturbada a ponto de achar graça a isso - continuou ele. - Não sou propriamente um diletante, com tempo para dar e vender. Apanhar e matar gatos é uma coisa que custa muito tempo e dá trabalho. Se ando a matar gatos é porque coleciono as suas almas, que depois utilizo para criar uma flauta especial. Para então tocar essa flauta e poder deitar a mão a almas ainda maiores. Para depois, graças a essas grandes almas, poder construir uma flauta ainda maior. E assim por diante, até conseguir dar forma a uma flauta maior, sem igual no universo inteiro. Mas primeiro vêm os gatos. O primeiro passo em todo este projeto consiste em angariar as suas almas. Como em tudo na vida, há uma ordem que tem de ser seguida. É sinal de respeito fazer as coisas pela ordem correcta. Quando se lida com as almas dos outros, tem de ser assim. Não estou propriamente a lidar com ananases nem com melões. Não te parece?
Sim - replicou Nakata. Mas a verdade é que não estava a perceber patavina. Mas uma flauta? Estaria o homem a referir-se a uma flauta vertical japonesa? Ou a uma flauta de amolador? Que tipo de
som produziria? E que coisa quereria ele dizer com almas dos gatos? Tudo isto ia para além da sua limitada capacidade de compreensão. Uma coisa, porém, Nakata sabia: tinha de encontrar Goma e levá-la dali para fora.
O que queres é levar Goma para casa - afirmou Johnnie Walker, como se conseguisse ler os pensamentos de Nakata.
-Isso mesmo. Nakata quer levar Goma com ele para casa.
-É essa a tua missão - retorquiu Johnnie Walker. - Todos nós temos a nossa missão na vida. É natural que assim seja. O mais certo é nunca teres ouvido falar de uma flauta feita de almas de gatos, pois não?
-Não.
-Evidentemente que não. Não é coisa que nos entre pelos ouvidos.
-Uma flauta que não se ouve?
Exatamente. Claro está que eu consigo ouvi-la. - disse Johnnie Walker. - Se não conseguisse nada disto faria sentido. Mas estamos a falar de um som que as pessoas normais não são capazes de captar. E mesmo que tal aconteça, não se dão conta disso. Pode até muito bem acontecer que já tenham ouvido aquela sonoridade algures, mas não têm consciência disso. Estamos a falar de uma flauta muito estranha, como é bom de ver. Pode até acontecer que talvez - e digo talvez - tu sejas capaz de a ouvir. Se tivesse uma flauta agora aqui comigo, podíamos fazer a experiência, mas infelizmente não tenho. - Depois levantou o dedo, como se tivesse acabado de se lembrar de uma coisa. - Na verdade, estava a preparar-me para cortar a cabeça aos gatos que arrebanhei. Está na hora da colheita. Apanhei todos os que havia para apanhar naquele terreno baldio, e chegou a altura de passar a outra freguesia. Goma, a tal gata que procuras, faz parte da colheita. Claro que, se eu lhe cortar a cabeça, já não podes levá-la contigo para casa dos Koizumi, não te parece?
Pois não - disse Nakata. Não podia aparecer em casa dos Koizumi com a cabeça de Goma cortada. Se as duas meninas vissem isso, se calhar nunca mais seriam capazes de comer o que quer que fosse.
Pela parte que me toca, faço tenção de cortar a cabeça a Goma. Mas tu não queres que isso aconteça. As nossas tarefas e os nossos interesses estão em rota de colisão. Coisa que neste mundo passa a vida a acontecer. Por isso, vamos fazer uma coisa. Vamos negociar. A minha proposta é a seguinte - se fizeres uma certa coisa por mim, retribuo-te o favor e devolvo-te Goma sã e salva.
Nakata ergueu a mão e esfregou vigorosamente o seu cabelo sal-e-pimenta, num gesto que era muito seu sempre que alguma coisa lhe dava que pensar.
E é alguma coisa que Nakata possa fazer?
Pensava que esse assunto já estava mais do que tratado -afirmou Johnnie Walker com um sorriso desagradável.
Tem razão - disse Nakata, lembrando-se. - Exato. Tudo Iralado. Peço desculpa.
Nao temos muito tempo, por isso, se estiveres de acordo, o melhor é eu ir direito ao assunto. Quero que me mates. Por outras palavras, que dês cabo de mim.
Com a mão pousada na cabeça, Nakata deixou-se ficar a olhar para Johnnie Walker durante muito tempo. - O senhor Johnnie Walker quer que Nakata o mate?
Sem tirar nem pôr - disse Johnnie Walker. - Para ser franco, estou farto desta vida. Já vivi muito, mesmo muito. Nem sequer me lembro dos anos que tenho em cima. E não sinto vontade de continuar a viver muito mais. Estou doente e cansado de andar a matar gatos, mas a verdade é que, enquanto for vivo, estou condenado a isso - a matar gatos e a ceifar as suas almas. Ordená-las de um a dez e, em chegando à dezena, voltar ao princípio. Isto repetido vezes sem conta. Acho que chegou a hora de dizer basta! O meu trabalho não é respeitado nem torna ninguém feliz. Mas, como se trata de uma incumbência, não posso chegar aqui e dizer: «desisto», e deixar de fazer o que tenho a fazer. O suicídio está fora de questão. Até isso já está determinado. E cláusulas como esta é coisa que não falta. Se quiser morrer, tenho de arranjar quem me mate. É aí que tu entras. Quero que sintas medo de mim, que me odeies com todas as tuas forças - ao ponto de me riscares do mapa. Primeiro deves temer-me. Depois, odiar-me. E, por fim, acabas comigo.
Mas porquê Nakata? Logo ele, que nunca na vida matou ninguém. Não é o género de coisa que Nakata esteja habituado a fazer.
Bem sei. Nunca mataste ninguém, nem sequer estás minimamente para aí virado. Ouve lá, na vida há alturas em que desculpas desse género não fazem sentido. Situações em que uma pessoa tem de fazer o que for preciso, independentemente da sua vontade. Mas tens de perceber isso. Por exemplo, em tempo de guerra. Fazes ideia do que é a guerra?
Sim, de ouvir dizer. Estava a decorrer uma grande guerra quando Nakata nasceu.
Quando há guerra, assiste-se a uma mobilização geral. As pessoas são obrigadas a pegar em armas e a ir para a frente de batalha e não têm outro remédio senão matar os soldados inimigos. O maior número possível. Ninguém quer saber se uma pessoa tem ou não estômago para matar gente. Faz-se o que tem de ser feito. Senão corre-se o risco de sermos nós a morrer. Johnnie Walker apontou o indicador ao peito de Nakata. Bangl disse ele. A história do homem repete se.
-O governador vai fazer de Nakata um soldado e obrigá-lo a matar pessoas?
-Sim, é isso o que o governador fará: dizer-te que mates alguém. Nakata ficou a matutar naquilo, mas no fundo sem compreender lá muito bem. Por que carga de água iria o governador fazer semelhante coisa?
-Tens de ver a questão desta maneira: guerra é guerra. Tu és um soldado e, como tal, tens de ser capaz de tomar decisões. Ou mato eu os gatos, ou tu me matas, a mim. É uma coisa ou outra. Tens de escolher, aqui e agora. Pode parecer-te uma escolha injusta, mas não serão a maior parte das escolhas que fazemos nesta vida igualmente injustas? - Johnnie Walker deu uma pancadinha no chapéu de seda, como que para se certificar de que ainda estava no sítio. - No teu caso, a única consolação, se é que precisas disso, é o facto de eu querer morrer. Fui eu que te pedi para me matares, por isso não podes deixar-te atormentar pela má consciência. Estás apenas a levar até às últimas consequências aquilo que é meu desejo. Não é a mesma coisa que matares uma pessoa que não quer morrer. O que acontece é que estás, isso sim, a fazer uma boa ação.
Nakata limpou as bagas de suor que se haviam formado junto à linha de cabelo.
Mas não há forma de Nakata alguma vez conseguir fazer isso. Por mais que o senhor diga a Nakata que o mate, ele nunca será capaz de o fazer.
Estou a ver - constatou Johnnie Walker, não sem admiração. - Como nunca mataste ninguém antes, não sabes o que tens de fazer. Muito bem. Vamos lá então, passo a explicar o meu método. O truque para matar alguém, Senhor Nakata, está em não hesitar. Uma pessoa tem de apontar e disparar logo - é nisso que reside a arte de matar. Vou mostrar-te um excelente exemplo. Não envolve pessoas, mas sempre dá para ficar com uma ideia.
Johnnie Walker levantou-se, contornou a secretária e tirou do escuro uma maleta de pele. Colocou-a em cima da cadeira onde estivera sentado e abriu-a, assobiando uma melodia alegre. Como um mágico que executa o seu número, tirou lá de dentro um gato tigrado cinzento, todo às listas, ainda novo, que Nakata nunca vira. O gato tinha as patas, quebradas, mas os olhos estavam abertos, e
ele parecia consciente, ainda que em mau estado. Sem nunca deixar de assobiar a alegre melodia - Heigh-Ho, a cantiga que um dos sete anões assobiava no filme da Disney Branca de Neve -, Johnnie Walker empunhou o gato com as duas mãos, como se estivesse a mostrar um peixe acabado de pescar.
-Tenho cinco gatos dentro desta mala, todos apanhados naquele terreno baldio. Uma nova fornada. Acabadinhos de chegar, diretamente do produtor, por assim dizer. Levaram todos eles uma injeção que os deixou paralisados. Atenção, não se trata de nenhuma anestesia. Eles não estão a dormir e conseguem sentir a dor. Mas como têm os músculos paralisados não podem mexer os membros nem a cabeça, isto para impedir que andem por aí aos caixotes. O que vou fazer é abrir-lhes o peito com uma faca, tirar cá para fora o coração ainda a bater e, a seguir, cortar-lhes a cabeça. Mesmo diante dos teus olhos. Prepara-te. Vai correr muito sangue e a dor será excruciante. Imagina a dor que sentirias se alguém te cortasse o peito para arrancar o teu coração! Com os gatos passa-se a mesma coisa - também eles experimentam uma dor extrema. Tenho pena dos pobres animaizinhos. Não sou nenhum sádico cruel, que só quer é sangue. Mas nada há que eu possa fazer para remediar esse estado de coisas. Tem de haver dor. É essa a norma. Rege tudo o que existe à nossa volta. - Dito isto, piscou o olho a Nakata. - Mas trabalho é trabalho, conhaque é conhaque. Tens de levar a tua missão por diante. Pela minha parte, vou tratar de despachar os gatos um a um, deixando ficar Goma para o fim. Assim, sempre tens algum tempo para decidir o que deves fazer. Mas lembra-te - ou eu mato os gatos, ou tu matas-me a mim. Das duas, uma.
Johnnie Walker pousou o gato paralisado em cima da secretária, abriu uma gaveta e, usando ambas as mãos, tirou de lá de dentro um grande pacote preto. Desembrulhou-o e espalhou o conteúdo sobre o tampo da mesa. Uma pequena serra elétrica. Bisturis de vários tamanhos e um facalhão enorme, todos reluzentes, como se tivessem acabado de ser afiados. Johnnie Walker começou então a experimentar quase com ternura, uma por uma, todas as lâminas, à medida que as alinhava em cima da secretária. A seguir, tirou de outra gaveta vários tabuleiros de metal e dispô-los, por sua vez, sobre a mesa. Por último abriu ainda uma outra gaveta e tirou do lá um enorme saco do plástico prelo. Isto sem nunca deixar do assobiar o lema Heigh-Ho.
-Tal como disse, meu caro Nakata, em tudo na vida há uma ordem que precisa de ser seguida - disse Johnnie Walker. - Não deves pôr a carroça à frente dos bois. Se o fizeres, o mais certo é perderes o norte e corres o risco de ficar pelo caminho. Não quero com isto dizer que só devas ver o que tens à frente do nariz, atenção, longe disso. Tens de ser capaz de olhar mais longe, senão ainda vais contra alguma coisa. Tens de aprender a viver de acordo com a ordem vigente e, ao mesmo tempo, não ter vistas curtas. Isso é crucial, qualquer que seja a situação.
Johnnie Walker semicerrou os olhos e afagou carinhosamente a cabeça do gato. Percorreu com a ponta do indicador a barriga do gato, para cima e para baixo, antes de pegar num bisturi com a mão direita e, sem hesitação nem aviso prévio, fazer uma incisão em pleno estômago. Aconteceu tudo enquanto o diabo esfregava um olho. Abriu a barriga de cima a baixo e as vísceras vermelhas ficaram à mostra. O gato ainda tentou gritar, mas não saiu nenhum som. Vendo bem, tinha a língua dormente e mal conseguia abrir a boca. Mas os olhos deixavam transparecer sinais evidentes de uma agonia atroz. Nakata imaginou até que ponto o sofrimento era terrível. Ato contínuo, o sangue jorrou da ferida, encharcando as mãos de Johnnie Walker e escorrendo pela sua casaca. Mas ele não pareceu dar-se conta disso. Ainda e sempre ao som de Heigh-Ho, mergulhou a mão nas entranhas do gato e, empunhando um pequeno bisturi, cortou o coraçãozinhonho com um pequeno bisturi e tirou-o para fora.
Colocou o coração ensanguentado na palma da sua mão e mostrou-o bem a Nakata.
-Dá uma olhadela. Vê, como ainda bate.
Então, como se fosse a coisa mais natural do mundo, meteu o coração à boca e começou a mastigar sem fazer barulho, dando a sensação de estar calmamente a saborear o gosto. Os seus olhos brilhavam como os de uma criança que estivesse a deliciar-se com uma gulodice acabada de sair do forno. Por fim, limpou o sangue da boca com as costas da mão e passou a língua pelos lábios num gesto delicado.
-Quente e fresco. Batia ainda quando o levei à boca. Nakata observou a cena em silêncio, sem conseguir desviar os olhos. O odor do sangue fresco enchia a sala.
Sempre a assobiar a alegre melodia, Johnnie Walker serrou a cabeça do gato. Sem contemplações, os dentes da serra rasgaram através do osso com um rangido. Ele parecia saber exatamente o que estava a fazer. O osso do pescoço não era muito grosso, por isso a operação acabou rapidamente. O som, porém, acrescentou um peso sombrio à cena. Com todo o cuidado, Johnnie Walker colocou a cabeça cortada num tabuleiro de metal. Apreciativamente, recuou um passo e, com ar crítico, semicerrando os olhos, deteve-se a fixar a sua obra de arte. Por momentos deixou de assobiar, tirou qualquer coisa que tinha entre os dentes com a unha, meteu-a na boca e, depois de saborear calmamente, fez estalar os lábios de satisfação e engoliu-a. A seguir abriu o saco de plástico preto e, como quem não quer a coisa, atirou lá para dentro o corpo inerte do gato. Como se não passasse de um invólucro vazio.
- Um já cá canta - exclamou Johnnie Walker, estendendo as mãos cheias de sangue na direção de Nakata. - Um trabalho e peras, não achas? É certo que um coração ainda a palpitar pode ser uma delícia, mas vê bem a quantidade de sangue que isto faz. «Não; será antes esta mão que tingirá os mares infinitos, tornando vermelho o que era verde.» Um verso de Macbeth. Isto não é assim tão mau como em Macbeth, mas não imaginas o dinheiro que gasto em lavandaria. Afinal de contas, este não é um traje qualquer. Devia usar uma touca cirúrgica e luvas, mas não me dá jeito. Ora aí tens outra regra.
Nakata não pronunciou palavra, mas a sua mente começava a dar sinais de agitação. A sala tresandava a sangue e, nos seus ouvidos, ecoava ainda a melodia de Heigh-Ho.
Johnnie Walker tirou outro gato do saco, uma fêmea branca já não muito nova, com a ponta da cauda ligeiramente dobrada. Tal como acontecera antes, afagou-lhe a cabeça durante algum tempo e depois, sem pressas, traçou uma linha invisível até ao estômago. Pegou no bisturi e tornou a fazer um golpe rápido a fim de abrir a barriga. O resto foi igual. O grito silencioso, o corpo em convulsão, as tripas de fora. Tirar o coração ainda a palpitar, pô-lo à frente do nariz de Nakata, metê-lo na boca e mastigar lentamente. O sorriso de satisfação. O gesto de limpar o sangue com as costas da mão. Isto sempre com Heigh-Ho a servir de pano de fundo sonoro.
Nakata deixou-se cair na cadeira e fechou os olhos. Segurava a cabeça entre as mãos e, com as pontas dos dedos, la/ia força nas têmporas. Não havia dúvida de que sentia qualquer coisa a crescer dentro dele, uma terrível agitação que ameaçava transformar o seu próprio ser. A sua respiração estava extremamente acelerada e uma dor forte concentrava-se na nuca. A sua visão parecia ter-se alargado de uma forma drástica.
-Ora, Nakata - exclamou Johnnie Walker, alto e bom som -, assim não vale! Agora é que o espetáculo vai começar. Isto não passou de uma espécie de ato de abertura, um mero exercício de aquecimento. Está na hora de entrar em cena um velho amigo teu, não sei se sabes. Por isso, aconselho-te a manteres esses olhos bem abertos. Esta é a melhor parte! Espero que atribuas o devido valor ao trabalho que me deu montar todo este número só para ti.
Sempre a assobiar a mesma cantiga, tratou de empunhar mais outro gato. Enterrado na cadeira, Nakata abriu os olhos e olhou para a vítima seguinte. Não conseguia pensar, de tal maneira tinha a mente vazia. Mal se conseguia ter de pé.
-Creio que já se conhecem - disse então Johnnie Walker -, mas em todo o caso aproveito para fazer as apresentações como deve ser. Nakata, este é o senhor Kawamura. Senhor Kawamura, aqui tem Nakata. - Johnnie Walker tirou o chapéu com um gesto teatral, primeiro a Nakata, depois ao gato, que estava paralisado. - Agora que já foram formalmente apresentados, lamento ter de informar que passamos de imediato às despedidas. Olá, adeus. Como flores ao vento, também a vida de um homem é uma longa despedida, como é costume dizer--se - continuou ele, fazendo uma pequena festa na barriga de Kawamura. - Agora chegou a altura de entrares em cena, Nakata, isto se quiseres travar-me. O tempo está a contar, e eu não sou homem de escrúpulos. No dicionário de Johnnie Walker, infame assassino de gatos, escrúpulo é palavra que não existe.
E foi assim, sem mais cerimónias, que ele cortou ao meio Kawamura. Desta vez o grito fez-se ouvir. Talvez a língua do gato não estivesse totalmente paralisada, ou talvez se tratasse de um grito diferente que só Nakata conseguia ouvir. Um grito horripilante, de fazer gelar o sangue. Nakata fechou os olhos e agarrou a cabeça com ambas as mãos.
-Es obrigado a olhar! - ordenou Johnnie Walker. - Essa é outra das regras. Fechar os olhos não muda nada. As coisas não desaparecem pelo simples facto de não as estares a ver. Pelo contrário. Da próxima vez que abrires os olhos, revelar-se-ão ainda piores. É esse o mundo em que vivemos, meu caro Nakata. Aconselho te a manteres os olhos bem abertos. Só os cobardes vivem de olhos fechados. Fechá-los e tapar os ouvidos não faz parar o tempo.
Nakata fez o que ele dizia e abriu os olhos.
Mal se apercebeu disso, Johnnie Walker pôs-se a devorar o coração de Kawamura com ar teatral, demorando-se propositadamente a tomar-lhe o gosto.
-Quente e mole, até parece fígado de enguias frescas - comentou ele. Meteu o dedo indicador cheio de sangue na boca e chupou-o. - Quando se apanha o gosto, nunca mais se quer outra coisa. Então no que toca à consistência pegajosa do sangue, nem se fala.
Limpou o bisturi, sempre a assobiar alegremente, e serrou a cabeça de Kawamura. Os dentes finos da serra cortaram através do osso e o sangue espirrou por tudo quanto era sítio.
-Por favor, senhor Walker, Nakata já não aguenta mais!
Johnnie Walker deixou de assobiar. Interrompeu o que estava a fazer e coçou o lóbulo da orelha.
-Isso é uma desculpa que não vai dar, meu caro Nakata. Tenho muita pena que se sinta incomodado, a sério que tenho, mas não posso dizer «tudo bem, percebo o seu ponto vista» e pura e simplesmente desistir. Como já disse: estamos em guerra. É muito difícil suster uma guerra que já começou. A partir do momento em que a espada foi desembainhada, o sangue tem de correr. E isto não é uma questão de teoria nem de lógica, nem sequer se prende com o meu ego. Trata-se apenas de uma regra, tão simples quanto isso. Se o meu amigo não quiser que mais gatos sejam mortos, tem de me matar. Vá. Levanta-te daí, assume o teu ódio e dispara a matar. E tem que ser agora mesmo. Faz isso e vais ver que acaba tudo. Fim da história.
Johnnie Walker começou outra vez a assobiar. Acabou de cortar a cabeça de Kawamura e despejou o corpo decapitado para dentro do saco do lixo. Agora havia três cabeças em fila na bandeja de metal. Apesar de terem suportado tamanha agonia, a expressão dos seus focinhos era tão vazia como a dos gatos alinhados na prateleira do frigorífico.
-O próximo a marchar é o siamês. - Ao dizer isto, Johnnie Walker tirou uma gatinha siamesa entorpecida do saco. Estava-se mesmo a ver que se tratava de Mimi. - E assim chegámos à pequena «Mi chiamano Mimi». Da ópera do Puccini. Verdade seja dita que esta gata o um exemplo do elegância o garridice, não te parece?
Também eu sou grande admirador de Puecini. A música dele encontra-se um tanto ou quanto, como direi?, na contracorrente do espírito do tempo. Mero entretenimento para as massas, poderás tu contrapor, mas a verdade é que nunca envelhece. Um feito artístico memorável.
Johnnie Walker pôs-se a assobiar uma passagem de «Mi chiamano Mimi».
-Mas deixa-me que te diga uma coisa, caro Nakata, deitar as unhas à Mimi deu-me muito trabalhinho. Estamos na presença de uma gata cautelosa e inteligente, de raciocínio muito rápido. Não é do género de se deixar apanhar por dá cá aquela palha. Uma cliente difícil. Mas ainda está para nascer o bichano que consiga enganar Johnnie Walker, o imparável assassino de gatos. Não é para me gabar, nem nada disso. Estou apenas a constatar até que ponto foi difícil deitar-lhe a unha... De qualquer maneira, voilàl Aqui está ela, a tua boa amiga Mimi! Os siameses são, sem sombra de dúvida, os meus preferidos. Talvez não saibas, mas o coração de um gato siamês é uma verdadeira iguaria. Sabe que nem trufas! Está tudo bem, Mimi. Não tenhas medo - o Johnnie Walker está aqui! Pronto para degustar 0 leu quente e delicioso coraçãozinho. Oh, pobrezinha, estás toda a tremer!
-Johnnie Walker - do mais fundo de si mesmo Nakata obrigou-•se a dizer as palavras em voz baixa. - Por favor, acabe com isso. Se continua, Nakata dá em doido. Nakata tem a sensação de já não ser Nakata.
Johnnie Walker pousou Mimi em cima da secretária e, mais por habito do que por vontade própria, deixou os seus dedos passearem paulatinamente pelo lombo dela.
-Com que então deixaste de ser tu próprio - disse ele baixinho, as palavras saindo vagarosamente da sua boca. - Isso é muito importante, meu caro Nakata. Quero dizer, quando um ser humano deixa de ser um ser humano. - Pegou num bisturi que ainda não utilizara e com a ponta do dedo verificou se estava afiado. Depois, à cautela, experimentou fazer um corte nas costas da mão. O sangue |orrou imediatamente, caindo em gotas sobre a mesa e o corpo de Mimi. Johnnie Walker abafou uma risadinha. - Uma pessoa deixou ile ser ela própria repeliu ele. Doixaslo de ser quem oras. F osso o preço a pagar, Nakala. Ixcclonlo! O mais importante de tudo.
«Oh, querida esposa, a minha alma é um ninho de escorpiões!» Outra vez Macbeth.
Sem uma palavra, Nakata pôs-se de pé. Ninguém, nem mesmo o Nakata ele próprio, poderia tê-lo impedido. Deu um grande passo em frente até à secretária e deitou mão a uma faca. Tinha aspeto de ser um facalhão de cozinha, mais concretamente uma faca de carne. Pegando sem escrúpulos no cabo de madeira, enterrou a lâmina bem fundo no estômago de Johnnie Walker, rasgando a casaca preta, e depois tornou a repetir o gesto, desta vez no peito. Aos ouvidos chegou-lhe um som alto e, a princípio, não soube o que poderia ser. Mas depois percebeu: era Johnnie Walker a rir-se. Com a faca espetada no peito e com o sangue a jorrar em profusão, ria-se que nem um perdido.
-Assim é que é! - gritou ele. - Não hesitaste. Excelente!
Ria-se como se fosse a coisa mais engraçada que ouvira na vida. Mas o riso não tardou a transformar-se numa espécie de soluço. O sangue a gorgolejar na garganta parecia um cano de esgoto entupido.
Uma terrível convulsão sacudiu-lhe o corpo e o sangue saiu em golfadas da sua boca, juntamente com grandes bocados de uma massa escura, viscosa - os corações dos gatos que ele acabara de tragar. O sangue vomitado jorrou por cima da secretária e atingiu a camisa de Nakata. Ambos ficaram empapados de sangue. Também Mimi, ali deitada sobre a mesa, estava ensopada em sangue.
Johnnie Walker caiu redondo aos pés de Nakata. Jazia de lado, enrolado sobre si próprio como uma criança numa noite fria, e estava morto, disso não restavam dúvidas. Com a mão esquerda agarrava a garganta, enquanto a sua mão direita, esticada, fazia menção de agarrar algo. As convulsões haviam parado e, como não podia deixar de ser, também o riso morrera. Nos seus lábios pairava ainda a sombra de um sorrisinho de escárnio. O sangue espalhara-se pelo soalho e o chapéu de seda fora a rolar até um canto. O cabelo da nuca de Johnnie Walker era ralo, deixava ver a pele por baixo. Sem o chapéu parecia muito mais velho e quase ridículo.
Nakata deixou cair a faca. O metal fez barulho ao bater no chão, um som parecido com o da roda dentada de uma grande máquina a trabalhar ao longe. Nakata deixou-se ficar ali ao pé do corpo, sem se mexer, durante muito tempo. Na sala reinava um silêncio de morte.
Só o sangue continuava a correr, silenciosamente, formando uma poça que não parava de aumentar.
Por fim, Nakata recuperou o sangue-frio e resgatou Mimi da secretária. Sentia o corpo quente e hirto em contacto com as suas mãos. A gata estava coberta de sangue, mas aparentemente sã e salva. Mimi olhou para ele como se lhe quisesse dizer alguma coisa, mas o efeito da droga não a deixava falar.
Nakata foi então dar com Goma dentro da maleta e tirou-a de lá. Só vira fotografias dela, mas nem por isso deixou de se sentir invadido por uma onda de nostalgia, como se tivesse acabado de reencontrar uma velha amiga que há muito não via.
- Goma, minha bichaninha... - murmurou ele. Pegando em ambos os gatos, Nakata sentou-se no sofá. - Vamos para casa - disse-lhes, mas no fundo sem coragem para se levantar.
O cão preto aparecera vindo não se sabe de onde e estava sentado junto à cabeça do dono. Era possível que tivesse lambido o sangue que formava um charco no chão, mas isso Nakata não saberia dizer ao certo. Sentia a cabeça pesada e zonza. Respirou fundo e fechou os olhos. A consciência começou a abandoná-lo e caiu na escuridão sem fim.
É a minha terceira noite na cabana. À medida que os dias passam vou-me habituando ao silêncio e à escuridão impenetrável. Deixei de ter medo da noite - ou, pelo menos, assim tanto medo. Coloco mais lenha no fogão, puxo a cadeira e fico a ler diante do lume. Quando não me apetece ler mais, ponho-me a olhar para as chamas. Nunca me canso de as olhar. Têm as mais variadas formas e cores, e movem-se como se tivessem vida. Nascem, misturam-se, afastam-se e morrem.
Quando não há nuvens vou até lá fora e fico a olhar para o céu. As estrelas já não me causam aquela sensação de medo, e começo a sentir-me mais próximo delas. Cada uma brilha de maneira diferente. Identifico algumas dessas estrelas e observo a maneira como reluzem na noite. Por vezes, há uma ou outra que por um breve momento cintila com mais intensidade. A Lua mostra-se pálida e brilhante, e se eu olhar com atenção quase consigo descortinar uma ou outra cratera na sua superfície. Nessas alturas, não penso em nada de concreto, limito-me a olhar, como que enfeitiçado, para o céu.
O facto de não ter música não me causa tanta mossa como pensei. Barulhos é coisa que não falta - o chilrear dos pássaros, os gritos de toda a espécie de insectos, o gorgolejar do riacho, o rumorejar das folhas. Quando a chuva cai em tropel sobre o telhado da cabana, parece-me ouvir sons fantásticos que não consigo descrever em palavras. Não fazia ideia de que a natureza pudesse produzir tantos e tão belos sons na lona. Em Ioda a minha vida, num a dei poi eles, mas agora é diferente. Fico sentado horas a fio no alpendre com os olhos fechados, esforçando-me por me confundir com a paisagem e por captar todos os sons em volta.
Também a floresta deixou de me meter tanto medo. Confesso alé que comecei a sentir por ela como que uma espécie de proximidade e de respeito. O que não me impede de não me afastar muito da (abana e de não me desviar do carreiro. O importante é seguir as regras. Desde que as siga, não corro qualquer perigo. Mais, a floresta aceita-me tal como sou, tacitamente, partilhando comigo a beleza e a paz que dela emanam. Mas, em passando do limite, espreitam as bestas selvagens, prontas a deitarem-me a mão com as suas garras, ifiadas como lâminas.
Tenho por hábito deitar-me na pequena clareira e deixar que a luz do Sol envolva cada centímetro do meu corpo. De olhos bem lechados, entrego-me a essa sensação, de ouvido atento ao vento que ipi.i a raves da copa das árvores. Envolvido peia doce fragrância da floresta, chega até mim o rumor das asas dos pássaros, o sussurro dos fotos. Liberto das leis da gravidade, sinto-me flutuar - levemente -ai ima do chão, a pairar no ar. Claro que não posso ficar assim para sempre. Trata-se de uma sensação momentânea - abro os olhos e já lá não está. Mesmo assim, uma experiência avassaladora. Ser capaz de flutuar no ar.
Volta e meia cai uma grande chuvada, mas nunca dura muito leinpo, e de cada vez que isso acontece corro lá para fora, nu como vim ao mundo, e aproveito para lavar o corpo. Quando fico todo Miado depois de fazer os meus exercícios, desembaraço-me das roupas e apanho banhos de sol no alpendre. Passo a vida a beber água e mergulhado na leitura, sentado no alpendre ou ao pé ao fogao. E ivros de história, ciência, etnologia, mitologia, psicologia, as obras completas de Shakespeare, tudo e mais alguma coisa. Leio com todo o vagar do mundo, volto atrás e releio partes que me parecem as mais importantes até as compreender bem, a fim de ficar a saber qualquer coisa que se veja. Até ficar com a impressão de que todos aqueles fragmentos de conhecimento se encaixam e arrumam, uns ao lado dos outros, na minha cabeça. Penso como seri maravilhoso se pudesse aqui ficar o tempo que me apetecesse. Á iitante está cheia de livros que gostaria de ler, e comida é coisa que não falia. Mas sei que eslou apenas de passagem e que em breve terei de partir. Este lugar é demasiado calmo, demasiado natural - demasiado perfeito. E eu não mereço estar aqui. Pelo menos, ainda não.
No quarto dia, ao fim da manhã, estou eu no alpendre, nuzi-nho em pêlo, esparramado na cadeira a dormitar ao sol, quando Oshima aparece. Não o oiço aproximar-se. Não oiço o ruído do motor do seu carro. De mochila às costas, veio até aqui a pé desde a estrada. Sem fazer barulho, sobe os degraus do alpendre, estica o braço e com a mão faz-me uma festa na cabeça. Sobressaltado, ponho-me de pé num salto e desato à procura de uma toalha. Não há nem uma a que possa deitar a mão.
-Não te preocupes com isso - diz Oshima. - Quando cá estava sozinho passava a vida nu a apanhar banhos de sol. Sabe lindamente, sobretudo naquelas parte do corpo que nunca apanham sol.
Assim despido à frente dele, sinto-me desprotegido e vulnerável. Os meus pêlos púbicos, o meu pénis, os meus testículos, tudo exposto ali à vista. Fico sem saber o que fazer. Já não vou a tempo de me tapar.
Viva! - digo eu, esforçando-me por parecer descontraído. - Com que então fez o caminho todo a pé?
Só podia ser, com um dia assim tão bonito - explica ele. -Deixei o carro junto ao portão. - Pega numa toalha que estava a secar no parapeito e passa-ma para a mão. Enrolo-a à volta da cintura e consigo finalmente relaxar.
Sempre a trautear baixinho uma canção, ele trata de pôr água ao lume, depois tira da mochila farinha, ovos e leite, vai buscar uma frigideira e prepara umas panquecas. Por cima deita-lhes manteiga e xarope. A seguir pega numa alface, em dois ou três tomates e numa cebola. Tem muito cuidado com a faca de cozinha enquanto corta tudo para fazer uma salada. É o nosso almoço.
-Conta-me lá como foram estes três dias - pede Oshima, cortando a sua panqueca.
Falo-lhe do tempo maravilhoso que ali passei, mas guardo para mim a parte de me ter aventurado na floresta. Sabe-se lá porquê, sinto que é melhor não tocar no assunto.
Ainda bem - diz Oshima. - Bem me queria parecer que ias gostar disto aqui.
Mas agora vamos voltar para a cidade, não é?
Exacto. Está na hora de regressar.
Damos um jeito na cabana para que não fique tudo às três pancadas e preparamo-nos para sair rapidamente dali. Os pratos ficam lavados e arrumados na prateleira, o fogão limpo. O balde é despejado e a válvula da bilha de gás fechada. A comida que não se estraga fica guardada no armário; o resto vai para o lixo. O chão é varrido, passa--se um pano pelo tampo da mesa e das cadeiras. Cava-se um buraco lá fora para enterrar o lixo.
Na hora em que Oshima está a trancar a cabana, viro-me para olhar pela última vez. O que até há um minuto parecia tão real, parece agora imaginário. Meia dúzia de passos é quanto basta para que tudo o que lhe está associado perca o sentido de realidade. Até eu - a pessoa que até há momentos ali se encontrava -, também eu pareço imaginário. Demoramos meia hora a pé até chegarmos ao sítio onde Oshima deixou ficar o carro, e quase não trocamos palavra no caminho até lá abaixo. Oshima fecha a cancela - para desencorajar os intrusos -, dá duas voltas à corrente e tranca o cadeado. Tal como antes, torno a prender a minha mochila na traseira do carro. Desta vez com a parte da frente para baixo.
-De volta à cidade - anuncia Oshima. Aceno com a cabeça.
-Tenho a certeza de que apreciaste devidamente estes dias sozinho no meio da natureza, mas não é fácil viver assim durante muito tempo - diz Oshima. Põe os óculos de sol e aperta o cinto.
Sento-me no carro ao lado dele e ponho o cinto.
-Em teoria não é impossível viver assim, e é óbvio que há quem o faça. Mas a natureza é, de certa maneira, perversa. E a paz de espírito pode constituir uma ameaça. Viver com essa contradição requer preparação e experiência. Daí que estejamos agora mesmo a vollar para a cidade. De regresso à civilização.
Oshima põe o motor a trabalhar e começamos a descer a montanha. Desta vez não há pressa e ele conduz nas calmas, dando-se ao luxo de apreciar a paisagem e sentir o vento que lhe despenteia o i abolo. A estrada de terra batida chega ao fim e entramos numa outra, estreita mas asfaltada. Vimos passar aldeias e campos.
-Por falar em contradições - lança Oshima de repente. Quando te vi pela primeira vez, tive a sensação de que havia qualquer coisa de contraditório em ti. Andas à procura de alguma coisa, ao mesmo tempo que fogos desesperadamente de qualquer outra.
-E ânodo à procura de quê?
Oshima abana a cabeça. Lança uma olhadela pelo espelho retrovisor e franze a testa.
-Não faço a ideia. Só estou a dizer que fiquei com essa impressão.
Continuo calado.
-Pela minha experiencia, quando alguém se esforça muito para obter uma coisa, por norma não a consegue. E quanto mais se foge de uma coisa, mais depressa ela vem ter connosco. Claro que estou a falar em traços gerais.
-E, falando em traços gerais, como é que vê o meu futuro? Uma vez que ando à procura e a fugir ao mesmo tempo.
-Essa é das difíceis… - diz Oshima, a sorrir. Deixa passar um momento antes de prosseguir. – Se tivesse algo a dizer, sentia isto: seja do que for que andes à procura, quando o encontrares não será da forma que esperas.
-Uma profecia um tanto ou quanto funesta.
-Como a história de Cassandra.
-Cassandra? – estranho eu.
-A tragedia grega. Cassandra era a princesa de troia que fazia profecias. Tornou-se sacerdotisa do templo e Apolo concedeu-lhe o dom da profecia. Em troca, tentou obriga-la a dormir com ele, mas ela roeu a corda e ele lançou-lhe uma maldição. Os deuses gregos são figuras que têm mais mitológico do que religioso. Com isto quero dizer que eles cometem os mesmos erros, possuem os mesmos pontos fracos que nós, humanos. Sabem o que é perder as estribeiras, mostram-se inquietos, ciumentos, esquecidos. Tudo e mais alguma coisa.
Tira uma caixinha de rebuçados de limão de dentro do compartimento das luvas e pôe um na boca. Faz-me sinal para eu me servir, e tiro um.
-Uma maldição de que tipo?
-A maldição sobre Cassandra?
Faço que sim com a cabeça.
-A maldição que foi lançada por Apolo dizia que todas as suas profecias se tornariam realidade, mas que ninguém acreditaria nelas. Como se não bastasse, seriam todas profecias infelizes, prenuncio de traições, de mortes, de países em ruina. Coisas desse género. As pessoas não só acreditariam nela, como começariam a despreza-la. Se ainda não leste, recomendo-te as peças de Eurípides ou Esquilo. Abordam uma quantidade de questões essenciais com que ainda hoje nos debatemos. Em khoros. - Khoros? O que é isso.
-Era como se chamava o coro utilizado nas tragédias gregas. Os seus elementos ficam ao fundo do palco e têm por função expressar a uma só voz a situação ou o que as personagens pensam e sentem no seu íntimo. Por vezes, chegam mesmo a tentar influenciar as personagens. É um estratagema muito prático. Quem me dera, às vozes, poder contar com o meu próprio coro atrás de mim.
-Tem o dom da profecia, senhor Oshima?
Não tenho essa sorte. - Oshima sorri. - Felizmente ou infelizmente, não tenho esse tipo de poder. Se dou a ideia de que passo a vida a preconizar só desgraças, é porque sou pragmático por natureza. Utilizo o raciocínio dedutivo para generalizar, e creio que isso acaba de certa maneira por se confundir com um vaticínio negativo.
Sabes porquê? Porque a realidade não passa da soma das profecias negalivas que se cumpriram. Experimenta abrir o jornal e fazer a conta às boas e as más notícias. Vais ver o que eu quero dizer.
A cada curva Oshima muda suavemente de velocidade. Fá-lo com um grande domínio do carro, de maneira a quase nem se notar. Apenas sê dá por isso por causa do barulho do motor.
-Apesar de tudo, tenho uma boa notícia - anuncia ele. - Decidimos contratar-te. Vais passar a fazer parte da equipa da Biblioteca Comemorativa Komura. Tarefa para a qual, de resto, me pareces qualificado.
Olho instintivamente para ele.
Quer dizer que vou passar a trabalhar na biblioteca?
Mais precisamente, vais passar a fazer parte da biblioteca, Vais passar a estar lá, a viver lá. Vais abrir as portas quando forem horas de a biblioteca abrir e a fechá-las quando chegar a altura cie fichar, Tal como disse, tens todo o aspeto de ser uma pessoa muito indisciplinada, para além de seres forte, por isso não me parece que osso trabalho represente um desafio demasiado difícil. Tanto para mim como para a senhora Saeki, que não somos fisicamente muito fortes, a tua presença vai sor uma grande ajuda. Para além disso, sempre poderás dar uma mão nas coisas do dia-a-dia. Nada de especial, é certo. Por exemplo, preparar me uma chávena do seu delicioso café.
Ir ás compras… Mandámos arranjar um quarto que fica mesmo ao lado da biblioteca. Começou por ser um quarto de hóspedes, mas como não temos hospedes nunca foi utilizado. É aí que vais viver. Tem casa de banho e tudo. A melhor parte é que ficas instalado na biblioteca, o que significa que podes ler tudo o que te apetecer.
-Maqs porque é… - comecei eu a dizer, mas faltaram-me as palavras.
-Porque estamos a fazer isto? Por uma razão muito simples. Eu compreendo-te, e a senhora Saeki compreende-me. Eu aceito-te, e ela aceita-me. Por isso, o fato de tu só teres quinze anos e andares longe de casa não constitui aos nossos olhos qualquer problema. Então, que me dizes?
Fico a pensar naquilo.
-Só queria ter um trto sobre a cabeça e um lugar onde dormir. Nada mais. Não sei bem o que implica fazer parte da biblioteca, mas, se isso quer dizer que posso ficar lá a viver, nesse caso fico muito agradecido. Pelo menos deixo de andar para trás e para a frente de comboio.
-Entao está combinado – diz Oshima. – Vais comigo para a biblioteca. E, assim, tornas-te parte dela.
Entramos na estrada principal e passamos por uma serie de cidades, um letreiro gigante que faz propaganda a uma linha de crédito, uma bomba de gasolina com uma decoração de péssimo gosto, um restaurante envidraçado, um hotel para encontros amorosos à imagem e semelhança de um castelo europeu, uma loja de vídeo abandonada, da qual só resta uma tabuleta partida, um salao de pachinko, com muitos lugares para estacionar à fente, um McDonald’s, uma loja de conveniência americana 7-Eleven, um Yoshinova, um Denny’s…
A realidade povoada de ruinas ameça cercar-nos. Estamos rodeados de enormes camiões de carga que travam, buzinam, cospem fumo do escape. Tudo o que até há momentos me era familiar – o lume no fogao, o brilho das estrelas, a quietude da floresta – se desvaneceu. São tudo coisas que tenho mesmo dificuldade em imaginar.
-Há duas ou três coisas que deves ficar a saber acerca da senhora Saeki – diz Oshima. – Em pequena, andava na escola com a minha mae e as duas eram grandes amigas. Ela conta que a senhora Saeki era muito inteligente em criança. Tinha excelentes notas, era boa a fazer redações e em todos os desportos, e ainda por cima sabia tocar bem piano. Era sempre a melhor em tudo. Já para não falar na beleza. É evidente que ela ainda continua a ser uma beldade.
Concordo com a cabeça.
-Desde a escola primária que ela tinha um namorado, o filho mais velho do casal Komora, que por acaso ainda era familiar afastado.
Tinham ambos a mesma idade e faziam um bonito casal uns dignos herdeiros de Romeu e Julieta. Viviam perto um do outro e andavam sempre juntos. Quando cresceram, apaixonaram-se. Eram um só coraçao e uma só alma, segundo a minha mae.
Estamos parados num sinal vermelho e Oshima olha para o céu. Quando o sinal fica verde, acelera a fundo e ultrapassa um camião-cisterna. – Lembras-te do que te disse na biblioteca? De as pessoas passarem a vida à procura da sua outra metade?
-Aquela historia dos três sexos?
-Exatamente. O que disse Aristófanes. Que nós estamos condenados a errar eternamente por este mundo em busca da nossa outra metade. A senhora Saeki e o tal jovem nunca tiveram de passar por isso. Encontraram a sua outra metade logo à nascença.
-Tiveram sorte.
Oshima acena com a cabeça.
-Uma sorte incrível. Até certo ponto.
Passa a palma da mao pelo queixo, como que para se certificar de ter feito bem a barba. Não se veem sinais de cortes de lâmina - tem a pele lisa como porcelana.
-Quando o rapaz fez dezoito anos foi para a universidade, em Tóquio. Era bom estudante e gostava do curso que estava a tirar. Além disso, também queria ficar a conhecer a grande cidade. Quanto a ela, inscreveu-se numa escola superior de música e estudou piano. É bom
não esquecer que estamos a falar de uma região conservadora e que ela era oriunda de uma família com os seus pergaminhos. Filha única, os pais não queriam deixá-la ir para Tóquio. E foi assim que os dois se viram separados, pela primeira vez na vida. Pura e simplesmente como se os deuses os tivessem separado com uma faca.
«Como seria de esperar, correspondiam-se todos os dias. "Tentarmos viver assim separados até pode ser bom para nós", escreveu-Ihe ele, "pois só assim poderemos realmente ter a certeza do muito que gostamos e precisamos um do outro." Mas ela não acreditou na história. Sabia que os laços que os uniam eram verdadeiros e que não precisavam de se afastar para os pôr à prova. Estavam unidos pelo destino, a relação que tinham era uma num milhão e nunca poderia ser quebrada. Disso tinha ela a certeza. Mas ele não. Ou talvez tivesse, mas não estivesse disposto a aceitar isso sem mais nem porquê. E foi assim que ele levou a sua avante e partiu para Tóquio, acreditando que, uma vez posto à prova, o amor que sentiam um pelo outro sairia reforçado. Por vezes, os homens pensam assim.
«Quando tinha dezanove anos a senhora Saeki escreveu um poema, musicou-o e deu-lhe voz ao piano. Era uma melodia melancólica, inocente, que possuía uma beleza pura. A letra, por seu turno, era simbólica e contemplativa, com um toque esotérico. Desse contraste nasceu uma canção caracterizada, a um tempo, por um tom urgente e simbólico. Claro está que tanto o texto como a música mais não eram do que a maneira por ela encontrada para lançar um grito de desespero, uma espécie de pedido de ajuda enviado ao namorado, que estava longe. Ela chegou a interpretar a canção em público umas quantas vezes. Era extraordinariamente tímida, mas adorava cantar e na faculdade chegara mesmo a fazer parte de uma banda de música popular. Houve quem tivesse ficado muito impressionado com a canção, fizesse uma demo tape e a enviasse a um amigo que era director de uma empresa discográfica. Essa pessoa amiga adorou a canção e convenceu-a a gravá-la no estúdio que possuíam em Tóquio.
«Era a primeira vez que ela visitava Tóquio, onde teve possibilidade de se encontrar com o namorado. No meio das sessões de gravação, os dois arranjaram tempo para se amarem como dantes. Tinham relações sexuais desde os catorze anos, segundo a minha mãe me contou. Eram ambos bastante precoces e, como muitos jovens igualmente precoces, tinham dificuldade em crescer. Ira como se continuassem sempre a ter catorze ou quinze anos. Passavam o tempo lodo agarrados um ao outro e voltaram a experimentar na pele a urgência do amor. Nenhum deles se sentira alguma vez atraído por outra pessoa qualquer. Mesmo separados, ninguém poderia nunca interpor-se entre eles. Desculpa lá, se calhar estou a aborrecer-te com uma história deste romance de conto de fadas?
Abanei a cabeça.
Tenho a impressão de que a história está quase a chegar a um ponto de viragem.
E não andas longe da verdade - diz Oshima. - A história está prestes a mudar de rumo e a conhecer uma reviravolta inesperada. A felicidade só tem um rosto, mas o infortúnio dá-se a conhecer ao homem de todas as formas e feitios. E como Tolstoi disse: a felicidade é uma alegoria; a infelicidade uma saga. Seja como for, o disco foi posto no mercado e transformou-se num verdadeiro êxito, vendendo qualquer coisa como um ou dois milhões de cópias, não sei ao certo. O que quero dizer é que se tornou um número recorde para a época. Aparecia uma fotografia dela na capa do disco, sentada ao piano no estúdio, a sorrir para a câmara.
Como aquela era a única canção da sua autoria, o lado B do disco apresentava uma versão instrumental do mesmo tema. Para piano e orquestra, com ela ao piano. Uma interpretação belíssima. Isto por volta de 1970. A canção era tocada em todas as estações de rádio, conta minha mãe. Nessa altura, eu ainda não era nascido. Na qualidade de autora profissional, a carreira dela começou e acabou com essa a ançao. Não chegou a lançar nenhum LP, nem mesmo um segundo single.
Não tenho a certeza de alguma vez ter ouvido essa canção.
Costumas ouvir rádio muitas vezes?
Faço que não com a cabeça. Quase nunca oiço rádio.
Nesse caso, é pouco provável que a tenhas ouvido. A não ser nalguma emissão dedicada aos velhos êxitos, quase nunca passa na i.iilio Mas é uma canção lindíssima. Tenho-a gravada em CD e oiço-a de vez em quando. Quando a senhora Saeki não está por perto, escusado será dizer. Ela não gosta nada que se fale na história da canção. Para dizer a verdade, detesta toda e qualquer alusão ao passado.
Qual é o nome da canção?
Kafka à Beira Mar - responde Oshima.
-Kafka à Beira-Mar?
-Exactamente, meu caro Kafka Tamura. O mesmo nome que tu. Uma estranha coincidência, não te parece?
-Mas Kafka não é o meu verdadeiro nome. Tamura é que é.
-E não o escolheste?
Respondo que sim com a cabeça. Há muito que cheguei à conclusão de que este era o nome certo para mim.
-A meu ver, isso é que é importante - replica Oshima.
O namorado da Sr.a Saeki morreu quando ela tinha vinte anos, continua Oshima a contar. Precisamente na altura em que Kafka à Beira-Mar se transformou num êxito enorme. A universidade onde ele andava entrou em greve durante o período de agitação juvenil e foi encerrada. Ele foi levar mantimentos a um amigo que marcava presença nas barricadas, ainda não eram dez da noite. Os estudantes que ocupavam o edifício tomaram-no por um líder da facção oposta - com quem ele era, de facto, muito parecido - e deitaram-lhe a mão, amarraram-no a uma cadeira e interrogaram-no como se de um espião se tratasse. Ele ainda tentou explicar que se tratava de um equívoco, mas, de cada vez que tentava chamar a atenção para o erro que estava a ser cometido, era agredido com um tubo de ferro ou com um bastão. Com ele por terra, os estudantes pontapearam-no com as botas. De manhã estava morto. Apresentava fractura de crânio, as costelas partidas, um pulmão perfurado. Atiraram o corpo dele para o meio da rua, como um cão morto. Dois dias mais tarde os estudantes chegaram a acordo com as forças da ordem, e o bloqueio durou apenas mais umas horas, no decorrer das quais vários elementos das massas estudantis foram presos e acusados de assassínio. Os estudantes confessaram o crime e foram levados a julgamento, mas, tendo-se provado que não houvera premeditação, dois deles foram acusados de homicídio involuntário e condenados a reduzidas penas de prisão. Uma morte completamente sem sentido.
A Sr.a Saeki nunca mais voltou a cantar. Fechou-se no quarto, sem falar com ninguém nem sequer atender chamadas. Não foi ao funeral dele e abandonou a escola de música. Passados vários meses, as pessoas vieram a saber que ela saíra entretanto da ciciado. Ninguém sabia para onde linha ido nem o que ora foilo dela. Os pais recusavam-se a abordar o assunto. Se calhar nem eles sabiam onde é que ela se encontrava. Foi como se se tivesse esfumado no ar. Até mesmo a sua melhor amiga, a mãe de Oshima, não fazia ideia do seu paradeiro. Correram rumores de que tinha sido internada num hospital psiquiátrico, na sequência de uma tentativa falhada de suicídio nas densas florestas que rodeavam o monte Fuji. Outros diziam que um amigo de um amigo a tinha visto por mero acaso numa rua de Tóquio. Segundo essa pessoa conhecida, ela encontrava-se empregada em lóquio a trabalhar como escritora ou qualquer coisa do género. Corria tambem o boato de que entretanto se casara e tivera uma criança. Mas nunca se veio a provar nenhuma destas histórias. E assim se passaram vinte anos.
Independentemente do sítio onde se encontrava ou do que oslivosse a fazer, uma coisa era certa: dinheiro não faltava à Sr.a Saeki. Os direitos de autor que Kafka à Beira-Mar lhe rendia eram depositados numa conta bancária, e mesmo depois de deduzidos todos os impostos ainda perfaziam uma quantia substancial. Ela tinha direito aos royalties do cada vez que a canção passava na rádio ou aparecia incluída numa coletânea de velhos êxitos. Daí que não tivesse dificuldade em manter-se afastada, longe das luzes da ribalta. Além disso, a família tinha fortuna e era filha única.
Passados vinte e cinco anos, porém, a Sr.a Saeki regressou subitamete a Takamatsu. O pretexto para o seu regresso foi a morte da mãe. (O pai morrera cinco anos antes, mas ela não chegara a aparecer no funeral.) Realizou-se um discreto serviço fúnebre e, depois de as coisas lerem acalmado, ela vendeu a casa onde crescera. Mudou-se então para um apartamento que havia comprado numa zona tranquila da cidade e deu mostras de querer assentar. Passado algum tempo entrou em negociações com os Komura. (Depois da morte do filho mais. velho, o chefe da família era o seu irmão mais novo, que tinha menos três anos. A conversa decorreu apenas entre eles os dois, e ninguém soube nunca, ao certo, o que ali foi falado.) Em resultado disso, a Sr.ª Saeki assumiu a direcção da Biblioteca Komura.
Ela foi sempre magra e bonita e manteve o mesmo ar simpático e sofisticado que so pode ver na capa de Kafka à Beira-Mar. Apenas lhe l.ill.i uma coisa: aquele sorriso aborto e franco. Ainda sorri de vez em quando, e tem um um bonito sorriso, por sinal, mas não passa de um brevissimo sorriso, que só dura enquanto dura. Existe como que uma parede, alta e invisível, que a rodeia, mantendo toda a gente à distância. Todas as manhãs ela vai no seu Volkswagen Golf cinzento até à biblioteca e regressa a casa à tardinha.
Com os antigos amigos e familiares que ainda encontra nas ruas da sua cidade natal já ela pouco ou nada tem que ver. Quando por acaso se cruzam, troca algumas palavras com eles, mantém uma conversa de circunstância, mas quase nunca vai além de meia dúzia de banalidades. Se calha vir à baila o passado - sobretudo pela parte que lhe toca -, muda de assunto rapidamente e, como quem não quer a coisa, passa adiante. Tem sempre uma palavra amável e gentil, mas nota-se que falta ali uma afectividade sincera e um interesse genuíno. Os seus verdadeiros sentimentos - partindo do princípio de que os tem - permanecem ocultos. Salvo quando é preciso tomar uma decisão prática, nunca faz saber a sua opinião pessoal acerca de nada. Raramente fala de si própria, deixando que sejam os outros a fazer as honras da conversa, acenando com a cabeça e dando a entender efusivamente a sua opinião sobre o assunto. O que é certo é que a maioria das pessoas, mal chegam à fala com ela, começam a dar sinais de uma certa insegurança, como se receassem estar a roubar-lhe o seu tempo, a intrometer-se no seu mundo privado, limpo e puro. De uma forma geral essa impressão é correcta.
Por tudo isto, permaneceu sempre um enigma, mesmo depois de ter voltado a instalar-se naquela que era a sua terra. Uma mulher distinta envolta num refinado mistério. Havia qualquer coisa nela que tornava difícil o contacto. Mesmo os empregados que com ela privavam, os elementos da família Komura, mantinham a distância.
Veio o tempo em que Oshima começou a trabalhar como seu assistente na biblioteca. Nessa altura, Oshima não fazia ainda nada nem andava a estudar, ficava em casa entretido a ler e a ouvir música. Tirando as poucas pessoas com quem trocava e-mails, quase não tinha amigos. Por causa da hemofilia, passava a vida a caminho do hospital a fim de consultar o médico especialista, atravessando a cidade no seu Mazda Miata, e, fora as consultas habituais no hospital universitário de Hiroxima e uma ou outra estada na cabana das montanhas Kochi, era raro abandonar a cidade. Isso não quer forçosamente dizer que ele fosse infeliz com a vida que levava. Um dia, por mero acaso, a mãe de Oshima apresentou o filho à Sr.ª Saeki, que simpalizou imediatamente com ele. O sentimento foi recíproco, com ele a mostrar-se interessado no funcionamento da biblioteca. Não tardou muito que Oshima fosse a única pessoa com que a Sr.a Saeki mantinha diariamente contacto e com quem falava.
- Depreendo pelas suas palavras que a senhor Saeki voltou para dirigir a biblioteca – disse eu.
-É possível que sim. Também sou dessa opinião. O funeral da mãe não passou de um pretexto. Só precisava de uma desculpa para regressar à sua cidade natal, que tantas recordações contraditórias lhe trazia.
-Como explica que a biblioteca fosse importante para ela?
-O namorado costumava morar num edifício que faz agora parle da biblioteca. Sendo o filho mais velho dos Komura, corria-lhe no sangue o amor aos livros. Gostava de estar sozinho - outro traço ria lamília. Por isso, quando começou a frequentar o segundo ciclo, decidiu que não queria ficar a viver com o resto da família. Os pais dram o seu consentimento e foi então que lhe arranjaram um quarto pulo, no anexo da biblioteca. Numa família de amantes de livros, Ioda a gente compreendeu as suas razões. Se o filho queria viver rodeado de livros, por eles não havia problema - e essa conversa toda. Assim sendo, ficou a morar no anexo, onde ninguém o incomodava, aparecendo na casa principal só à hora das refeições.
A sehora Saeki ia ter com ele quase todos os dias. Estudavam juntos, ouviam música e passavam horas a conversar. E o mais provável era que dormissem juntos. A biblioteca passou a ser o paraíso dos dois.
Com ambas as mãos pousadas no volante, Oshima olha de frente para mim.
-E aí que vais passar a viver, Kafka. Nesse mesmo quarto.
Como te disse, fizeram obras na biblioteca, mas no quarto ninguém mexeu e está tudo na mesma.
Silêncio da minha parte.
Na verdade, pode dizer-se que a vida da senhora Saeki acabou into anos, quando o seu amado morreu. Não, aos vinte talvez não, talvez muito antes... Não estou a par dos pormenores todos, mas é uma coisa que tu precisas de ficar a saber. Na alma dela, os ponteiros do os ponteiros do relógio estào parados desde então. Cá fora, como é evidente, o tempo flui normalmente, mas isso não parece afectá-la. Esse tempo pouco ou nenhum significado tem aos olhos dela.
-Nada significa?
Oshima acena com a cabeça.
-É como se não existisse.
-Quer então dizer que a senhora Saeki vive num tempo que parou?
-Exacto. Não estou com isto a querer dizer que ela seja uma espécie de cadáver ambulante, longe de mim essa intenção. Quando a conheceres melhor, logo verás.
Oshima estende a mão e pousa-a no meu joelho, num gesto perfeitamente natural.
-Meu caro Kafka, a maioria das pessoas chega a um ponto na vida em que já não se pode voltar atrás. E, em raríssimos casos, a um ponto em que já não é possível avançar. E quando se chega a esse ponto, não temos outro remédio senão aceitar calmamente o facto consumado. Só assim é que se sobrevive.
Estamos quase a chegar à auto-estrada. Antes, porém, Oshima pára o carro, levanta a capota e põe a tocar no leitor de CD uma sonata de Schubert.
-É preciso que entendas uma coisa - continua ele a dizer. -A senhora Saeki tem o coração ferido. Em certa medida, isso aplicare a toda a gente. Sem excepção. Mas, no caso da senhora Saeki, a dor vai para além dos limites, torna-se expressão de um sofrimento pessoal. A alma dela é insondável. Não quero com isto dizer que ela seja instável - não me interpretes mal. Não há dúvida de que dá mostras de grande profissionalismo e competência nas situações do dia-a-dia, provavelmente até mais do que qualquer outra pessoa que eu conheça. É encantadora, profunda e inteligente. Só quero que te lembres disso quando notares algo de estranho no comportamento dela.
-Estranho? - não resisto a perguntar.
Oshima abana a cabeça.
-Gosto imenso da senhora Saeki, e tenho respeito por ela. Tenho a certeza de que também tu acabarás por partilhar destes sentimentos em relação a ela.
Não se pode dizer que isso responda à minha pergunta, mas Oshima fica-se por ali. Com uma noção perfeita do tempo, muda de velocidade, acelera e ultrapassa uma carrinha mesmo antes de entrarmos no túnel.
Nakata deu por si deitado de costas com a cara enterrada na relva. Acordou aos poucos e abriu os olhos lentamente. Era de noite, mas ele não conseguia ver nem as estrelas nem a Lua. Apesar disso, ainda se notava uma ligeira claridade no céu. Cheirava intensamente a ervas de Verão. Ele ouvia o zumbido dos insectos à sua volta. Sem saber porquê, encontrava-se outra vez no meio do terreno baldio onde estivera de sentinela durante dias a fio. Sentindo uma coisa áspera e quente roçar-lhe a cara, virou-se e viu que dois gatos lhe lambiam avidamente ambas as faces com as suas pequenas línguas. Reconheceu Goma e Mimi. Nakata sentou-se devagarinho e estendeu a mão para lhes fazer festas.
Nakata estava a dormir? - perguntou ele.
Os gatos miaram como se estivessem a lamuriar-se, mas Nakata não conseguiu atinar com as palavras. Não fazia a mínima ideia do que eles tentavam dizer-lhe. Eram apenas dois gatos a miar.
Tenho muita pena, mas não há meio de Nakata perceber o que estão para aí a dizer.
Levantou se e apalpou o corpo, para ter a certeza de que tudo se encontrava em ordem. Dores, não sentia. Podia mexer os braços nem as pernas. Os seus olhos demoraram algum tempo a habituar-se à escuridao, até conseguir ver que não havia sinais de sangue nas mãos nem nas roupas. A roupa que vestia não estava amarrotada nem desalinhada, tinha precisamente o mesmo aspecto que ao sair de casa. O saco de lona com o almoço e o lermo achavam se mesmo ao seu lado, e o gorro enfiado no bolso das calças, que era o sítio dele. Tudo em ordem. Nakata não pescava nada daquilo.
Apunhalara Johnnie Walker - o assassino de gatos - até à morte, a fim de salvar os dois gatos. Disso lembrava-se ele perfeitamente. Até parecia que ainda estava a sentir a faca nas mãos. Não fora um sonho - o sangue tinha jorrado do corpo de Johnnie Walker e ele caíra por terra, enrolara-se sobre si próprio e morrera. Depois, Nakata deixara-se cair no sofá e perdera os sentidos. A seguir, só se lembrava de estar deitado na relva, no terreno abandonado. Mas como teria ido lá parar, se nem sequer sabia o caminho? Além de que as suas roupas não tinham nem uma gota de sangue para amostra. A prova de que ele não sonhara eram Mimi e Goma. Mas, por qualquer razão misteriosa, o certo é que não entendia patavina do que os gatos diziam.
Nakata suspirou. Não conseguia pensar direito. Paciência - com isso teria de se haver mais tarde. Pôs a mochila ao ombro e abandonou o terreno baldio com os dois gatos nos braços. Mal se viu fora da vedação, Mimi desatou a miar, como que a pedir que a pusessem no chão.
Nakata fez-lhe a vontade.
-Acho que a partir daqui já podes ir sozinha para casa, Mimi. Fica mesmo ali adiante.
Mimi abanou a cauda, em sinal de concordância.
-Nakata não compreende o que aconteceu, mas por qualquer razão deixou de ser capaz de comunicar com a menina Mimi. Mas lá conseguiu encontrar Goma, e o melhor a fazer é levá-la de volta para casa dos Koizumi. Está toda a gente à espera dela. Muito obrigada por tudo, Mimi.
Mimi soltou um miado e abanou a cauda. Depois deu uma corrida e desapareceu ao virar da esquina. Também ela não apresentava sinais de sangue. Nakata achou por bem ter isso em mente.
Em casa dos Koizumi foi grande o contentamento pelo regresso de Goma. Passava das dez da noite, mas as crianças ainda se encontravam a pé, a escovar os dentes antes de irem para a cama. Os pais estavam a beber chá e a ver as notícias na televisão, e receberam Nakata efusivamente. As duas meninas, já de pijama veslido, andaram à bulha para ver qual delas é que pegava primeiro na sua preciosa mascote. A seguir foram buscar leite e ração para dar a Goma, e ficaram a vê-la regalar-se.
-Desculpem Nakata aparecer tão tarde, mas não foi possível vir antes.
-Não faz mal - declarou a Sr.a Koizumi. - Não se preocupe com isso.
-As horas não têm importância - afirmou o marido. - Esta gata é como se fosse membro da nossa família. Nem sabe a alegria que me dá saber que a encontrou. Não quer entrar para tomar uma chávena de chá?
-Não, obrigado. Nakata tem de se ir embora. Só queria devolver Goma quanto antes.
A Sr.a Koizumi saiu da sala e regressou trazendo na mão um sobrescrito com o dinheiro da recompensa, que o marido entregou a Nakata.
Não é muito, mas gostaríamos que aceitasse esta lembrança como prova do nosso agradecimento por tudo o que fez. Estamos muito gratos.
-Muito obrigado. Nakata é que agradece - respondeu Nakata, fazendo uma pequena vénia.
-Admira-me como conseguiu dar com ela, mesmo estando tão escuro.
-Sim, é uma longa história. Nakata demoraria muito tempo a i ontar. Ele não é lá muito brilhante nem muito bom a dar explicações.
Não faz mal. Nós é que não sabemos como é que havemos ile lhe agradecer, senhor Nakata - acrescentou a Sr.a Koizumi. - Peço desculpa pela insignificância, mas gostaríamos que nos deixasse oferecer-lhe umas beringelas grelhadas e uns pepinos avinagrados que sobraram do jantar.
Com muito gosto. Beringela grelhada e pepinos avinagrados são dois dos petiscos preferidos de Nakata.
Nakata guardou a caixinha Tupperware e o sobrescrito no saco e despediu-se. Pôs-se rapidamente a caminho, dirigindo-se ao posto de Polícia mais perto da baixa da cidade. À secretária estava um agente, embrenhado a tomar notas nuns papéis. Tinha o boné em cima da secretária.
Nakata empurrou a porta de vidro e entrou.
-Boa noite. Desculpe incomodar.
-Boa noite - respondeu o polícia. Levantou os olhos da papelada e passou revista a Nakata. O seu olho clínico permitiu-lhe concluir que estava diante de um velhote simpático e inofensivo. Provavelmente andava à procura de alguma morada.
Parado na entrada, Nakata tirou o gorro e enfiou-o no bolso. A seguir, tirou um lenço do outro bolso e assoou o nariz. Depois voltou a dobrar o lenço e a guardá-lo.
-Posso ajudá-lo? - perguntou o polícia.
-Sim, pode. Nakata - e apontou para si mesmo - acabou de matar uma pessoa.
O polícia deixou cair a caneta na secretária e ficou de boca aberta a olhar para o ancião. Durante um momento faltaram-lhe as palavras.
-Espere aí... Não se quer sentar? - perguntou ele, apontando a cadeira à sua frente. Ao mesmo tempo, apalpou o cinto, para se certificar de que tinha a pistola, o cassetete e as algemas com ele.
-Obrigado - respondeu Nakata, sentando-se. De costas direitas, as mãos em cima dos joelhos, olhou de frente para o agente.
-Com que então, o senhor... está a dizer-me que matou alguém?
Sim. Nakata matou uma pessoa com uma faca. Mesmo há bocado - admitiu Nakata sem hesitação.
O jovem polícia pegou num formulário, deitou uma olhadela ao relógio de parede, pegou na esferográfica e tomou nota da hora e do depoimento relativo a uma morte por esfaqueamento.
-Vou precisar do nome e morada.
-O nome é Satoru Nakata, e a morada é...
-Um momento. Com que caracteres se escreve o seu nome?[4]
-Nakata não sabe nada acerca de caracteres nenhuns. Desculpe, mas Nakata não sabe escrever. E ler também não.
O polícia franziu a testa.
-Está a querer dizer-me que não sabe escrever? Nem sequer o seu nome?
-Exacto. Até aos nove anos Nakata sabia ler e escrever, mas depois teve um acidente e nunca mais foi capaz. A cabeça de Nakata não é lá grande coisa.
O agente suspirou e pousou a caneta.
- Não posso tomar conta da ocorrência se não souber como é que se escreve o seu nome.
-Desculpe.
-Tem família?
-Nakata está por sua conta. Não tem família. Nem emprego. Vive de um subsítio do governador.
-Atendendo ao adiantado da hora, o melhor que tem a fazer é ir-se embora. Vá para casa e veja se tem uma noite descansada. Se amanhã ainda se lembrar de alguma coisa, apareça por cá outra vez, que nessa altura logo voltamos a falar.
O polícia estava quase a terminar o seu turno e queria ver se acabava de preencher a papelada toda antes de deixar o serviço. Prometera encontrar-se com um colega para tomarem juntos uma bebida no bar da esquina quando estivesse despachado, por isso a ultima coisa que lhe apetecia era perder o seu rico tempo com um velhote que não regulava bem da cabeça.
Mas Nakata lançou-lhe um olhar severo e abanou a cabeça.
-Não, senhor, Nakata faz questão de contar tudo enquanto ainda está fresco na lembrança. Se esperar até amanhã pode esquecer-se de qualquer coisa importante. A pedido da família Koizumi, Nakala andava pelo terreno abandonado que fica no 2-chome à Ipocura de uma gatinha chamada Goma. Foi então que, vindo não sabe de onde, apareceu um enorme cão preto que conduziu Nakala até uma casa. Uma grande casa com um grande portão e Bpm um carro preto estacionado à frente. Nakata não sabe dizer qual é a morada. Nunca tinha estado naquela parte da cidade. Mas talvez ficasse em Nakano. Dentro da casa encontrava-se um homem chamado Johnnie Walker, que usa um chapéu esquisito na cabeça, um chapéu muito alto. Dentro do frigorífico que havia na cozinha havia na cozinha estavam várias cabeças de gato, todas em fila. Para aí umas vinte, ou isso. O homem colecciona gatos, corta-lhes a cabeça com uma serra o come o coração dos, animais. As almas dos gatos servem lhe para fazer uma flauta mágica. Era com essa flauta que ele queria capturar as almas das pessoas. Foi mesmo ali, diante do nariz de Nakata, que Johnnie Walker puxou da faca e matou o senhor Kawa-mura. E vários outros gatos. Abriu-lhes o estômago com uma faca. E preparava-se para matar Goma e Mimi, também. Foi quando Nakata pegou na faca para matar Johnnie Walker.
Johnnie Walker disse que queria que Nakata acabasse com ele. Mas Nakata não queria matá-lo. Nunca matou ninguém na vida. Só queria fazer com que Johnnie Walker parasse de matar gatos. Mas o corpo de Nakata não obedeceu, fez o que lhe deu na gana. Pegou numa das facas que estavam à mão e deu duas facadas em Johnnie Walker. O senhor Walker caiu redondo no chão, coberto de sangue, e ficou-se. Também cheio de sangue, Nakata sentou-se no sofá e deve ter passado pelas brasas. Quando acordou já era de noite e foi então que regressou ao terreno abandonado. Mimi e Goma foram com ele. Isto aconteceu ainda não há muito tempo. Nakata foi a casa dos Koizumi entregar Goma, e foi aí que a Sr.a Koizumi lhe ofereceu beringelas grelhadas e pepinos avinagrados. Depois veio directamente para aqui. Pensou que o melhor era informar logo o senhor governador.
Nakata, que estivera sentado muito direito e fizera o relato quase de um fôlego só, soltou um profundo suspiro. Nunca em toda a sua vida falara assim durante tanto tempo com alguém. Sentia a cabeça estranhamente vazia.
-Por isso, queira ter a bondade de transmitir isto ao governador - acrescentou ele.
O jovem polícia ouvira a história toda com uma expressão parada. Mas, no fundo, não percebera grande parte do que o velhote estivera para ali a relatar. Goma? Johnnie Walker?
-Estou a perceber - replicou ele. - Tratarei de fazer chegar a mensagem ao governador.
-Só espero que ele não corte o subsítio a Nakata.
Com uma cara de poucos amigos, o polícia fez de conta que estava a preencher um formulário.
Estou a ver. Escrevo qualquer coisa do género: A pessoa em questão deseja continuar a receber o seu subsídio. Serve?
Sim, serve lindamente. Muito agradecido. Desculpe ter tomado tanto do seu tempo. E não se esqueça de apresentar cumprimentos meus ao governador.
Okay, farei isso. Não se preocupe e vá com calma, está bem? - disse ó polícia, não resistindo a acrescentar uma nota pessoal. -Sabe, para quem acabou de matar alguém e ficou todo ensanguentado, as suas roupas estão com muito bom aspecto. Não se vê nem uma gota de sangue.
-Pois é, tem toda a razão. Para dizer a verdade, Nakata também já pensou nisso. Há aqui qualquer coisa que não faz sentido. Primeiro Nakata estava cheio de sangue, depois olhou e o sangue desaparecera. I: muito estranho.
Lá isso é - retorquiu o polícia, a voz impregnada do cansaço equivalente a um dia de trabalho.
Nakata puxou a porta para si e preparava-se para sair, quando de súbito parou e deu meia volta.
-O senhor desculpe, mas amanhã à noite vai estar por aqui? -Vou, sim - respondeu o polícia, desconfiado. - Amanhã à noite estou de serviço. Porque pergunta?
-Pelo sim, pelo não, mesmo que esteja céu limpo, aconselho-o a trazer o chapéu-de-chuva.
O polícia acenou com a cabeça. Virou-se e olhou para o relógio. Devia estar a receber uma chamada do seu colega a todo o momento.
-Tudo bem. Não me esquecerei do guarda-chuva.
-Do céu vai cair uma chuva de peixes. Muitos peixes. Quase indo sardinhas. Com uma ou outra cavala à mistura.
-Com que então, sardinhas e cavalas? - O polícia riu-se. -Nesse caso é melhor virar o chapéu de pernas para o ar e apanhar uns quantos. Com vinagre, dão um belo pitéu.
-Cavalas de escabeche são um dos petiscos favoritos de Nakata afirmou Nakata com ar sério. - Mas, amanhã por esta hora, Nakata já deve estar longe.
No dia seguinte, quando - acreditem ou não - desatou a chover prdlnha e cavala numa zona do bairro de Nakano, o jovem polícia ficou branco como um lençol. Sem qualquer aviso prévio, caíram das nuvens sobre a Terra qualquer coisa como duzentas sardinhas e cavalas. O grosso dos peixes ficou esmagado e feito numa papa ao embaterem no chão, mas alguns sobreviveram, aos saltos e a estrebuchar pelas mas, em plena Baixa. O peixe linha lodo o ar de ser fresco e ainda cheirava a mar. Os peixes atingiram pessoas, carros e telhados, mas, segundo tudo leva a crer, não caíram de muito alto, e vai daí não causaram grande mossa. Foi mais o choque psicológico do que qualquer outra coisa. Uma quantidade enorme de peixes a caírem do céu como se fosse granizo - ora aí estava uma cena verdadeiramente apocalíptica.
A Polícia investigou o caso mas não logrou encontrar qualquer razão plausível para a ocorrência. Nenhum mercado de peixe ou barco de pesca comunicou o desaparecimento de sardinhas e cavalas em tamanha quantidade. Na altura não se encontravam aviões nem helicópteros a sobrevoar aquela parte da cidade. Também não houve qualquer registo de tornados. As pessoas afastaram a possibilidade de se tratar de uma partida de mau gosto - quem se lembraria de uma coisa tão estapafúrdia como aquela? A pedido da Polícia, o departamento de saúde de Nakano recolheu amostras do peixe e procedeu ao seu exame, mas sem encontrar nada de anormal. Não passavam de vulgares sardinhas e cavalas. Frescas e apetitosas, a julgar pelo aspecto. Apesar disso, e receando que o peixe pudesse conter alguma substância perigosa, a Polícia fez circular por todo o bairro um carro com altifalante a fim de alertar as pessoas para o perigo de ingerir peixe de origem duvidosa.
Escusado será dizer que as câmaras de televisão se agarraram que nem lapas a uma história deste género, que se transformou assim, enquanto o diabo esfrega um olho, num verdadeiro acontecimento televisivo. Os jornalistas acorreram ao local sem perda de tempo, enxameando toda a zona comercial por excelência, e fizeram chegar as suas reportagens sobre tão bizarra ocorrência aos quatro cantos do país. Para melhor ilustrar o que tinha acontecido, mostraram o peixe a ser retirado às pazadas. Entrevistaram ainda uma dona de casa que apanhara com uma das cavalas na cabeça e a quem a barbatana dorsal fizera um golpe na face. «Ainda bem que não foi um atum», afirmou ela, enquanto apertava um lenço contra o rosto. A coisa até fazia sentido, mas não deixou de produzir um inevitável efeito hilariante, susceptível de fazer rir os telespectadores. Um dos jornalistas presentes, mais dado à informação-espectáculo do que os seus colegas, pôs-se a grelhar peixe ali mesmo. «Delicioso», afirmou ele perante as câmaras, com ar de apreciador. «Muito fresco, nem muito gordo nem muito magro. Pena é não ter aqui à mão uns rabanetes ralados e um prato quente de arroz para acompanhar.»
O polícia ficara siderado. Aquele velho excêntrico - qual seria o nome dele, que já não se lembrava? - tinha previsto que do céu iriam chover peixes. Sardinhas e cavalas, tal como anunciado... Mas ele rira-se do velhote e nem lhe passara pela cabeça tomar nota do seu nome e morada. E agora, deveria relatar ao chefe a ocorrência? Se calhar era melhor. Mas, agora, de que serviria? O importante é que ninguém se tinha magoado, além de que não havia prova de ter sido cometido um crime. Tudo não passara de uma tempestade de peixes caídos do céu.
Além disso, continuou o homem a falar com os seus botões, quem é que me diz que o meu chefe ia acreditar em mim? Vamos partir do princípio de que ele lhe contava a história toda - que no dia anterior calhara um homem de idade passar pelo posto da Polícia e anunciar que ia chover peixe. Iam pensar que ele não tinha os parafusos lodos. Além de que o mais certo era a história começar a circular pela esquadra, a cheirar pior de cada vez que fosse contada, até ele acabar por se tornar alvo de troça entre os seus companheiros de farda.
E ainda havia mais uma coisa, cogitou o polícia. O ancião aparecera ali a fim de participar que tinha matado alguém. Que é como quem diz, para se entregar. E ele não o levara a sério. Nem sequer se dera ao trabalho de tomar nota da ocorrência. O que era definitivamente contra todos os regulamentos, podendo ele vir a ser alvo de medidas disciplinares. Mas a história do velhote não tinha nem cabeça. Nenhum agente de serviço a teria levado a sério. |a basta o posto de Polícia ser quase um verdadeiro manicômio, com papelada por preencher até ao tecto. O mundo está cheio de pessoas com um parafuso a menos e, às vezes, mais parece que meio mundo combinou entre si e decidiu ir até à esquadra só para dar conta do mais rematado disparate. Se se for a levar a sério cada um desses casos excêntricos, é de uma pessoa dar em doida!
E, todavia, a previsão segundo a qual choveria peixe - já de si uma perfeita loucura - tornou-se realidade, por isso talvez, mas só lalvez, aquela história de esfaquear uma pessoa até à morte - johnnie Walker, foi o nome que ele lhe chamou - não fosse fruto da imaginação do homem. Partindo do princípio de que era tudo verdade, isso podia ievelar-se um caso sério, uma vez que ele, o polícia de serviço, tinha mandado embora alguém que confessara ser autor de um crime, e nem se dignara lomar nola de ocorrência.
Por fim, apareceu um carro de lavagem e limpou os restos de peixe que se acumulavam nas ruas. O polícia dirigia o trânsito, impedindo a entrada aos carros no coração da zona comercial. As escamas de peixe agarravam-se ao passeio em frente das lojas e não saíam nem por nada, por mais mangueiradas que os homens da limpeza lhes lançassem. Os passeios ficaram escorregadios durante algum tempo, fazendo com que algumas donas de casa que se deslocavam de bicicleta escorregassem e caíssem. O local ficou a tresandar a peixe durante dias a fio, deixando os gatos da vizinhança em grande excitação. O polícia andou entretido com as limpezas e não teve sequer tempo para pensar mais no estranho velho.
Porém, no dia a seguir a ter caído uma chuva de peixes, a descoberta num quarteirão próximo do corpo de um homem, golpeado até à morte, deixou o polícia quase sem respirar. O homem morto era um escultor famoso, e o corpo foi descoberto pela empregada da limpeza que ia lá a casa dia sim, dia não. O corpo estava nu e jazia numa poça de sangue. Calculava-se que a morte tivesse ocorrido duas noites antes, e a arma do crime usada fora uma faca da cozinha. Para sua grande consternação, o jovem polícia percebeu finalmente que o velho tinha contado a verdade. Meu Deus, pensou ele, como é que me fui meter nesta maldita alhada! Devia ter dito ao velhote que aguardasse na esquadra. Ele confessou o crime, e o que eu devia ter feito era pegar no homem, entregá-lo aos meus superiores hierárquicos e deixá-/os decidir se ele era ou maluco ou não. Mas, não o fazendo, fugi às minhas responsabilidades. Agora que a situação chegou a este ponto, decidiu o jovem polícia, a única coisa a fazer é manter o bico calado e fingir que nada aconteceu.
Por esta altura, já Nakata abandonara a cidade.
É segunda-feira e a biblioteca está fechada. Trata-se de um sítio i almo por natureza, mas em dia de descanso transforma-se num mundo esquecido pelo tempo. Ou então num local que sustém a respiração, com a esperança de que o tempo não dê por ele.
Para quem desce pelo corredor vindo da sala de leitura, passando uma tabuleta que diz «Só para pessoal autorizado», chega-se a uma ona onde se pode fazer café ou chá e ainda aquecer comida no inicrondas. A seguir fica a porta que dá acesso ao quarto de hóspedes, equipado com casa de banho e roupeiro. Ao lado da cama individual existe uma mesa-de-cabeceira com um candeeiro de leitura e um relógio despertador. Há ainda uma secretária com um candeeiro em i ima. Mais um jogo de cadeiras antigas, forradas de branco, para rei eber visitas, e uma cómoda para guardar roupa. Por cima de um pequeno frigorífico vê-se uma prateleira com meia dúzia de pratos. Se uma pessoa quiser preparar uma refeição simples, tem a zona da i o/inha mesmo em frente. O quarto de banho tem chuveiro, sabonete e champô, secador de cabelo e toalhas. Tudo o que é preciso para nina pessoa ali passar uns dias confortáveis. A janela, virada a poente, leni vista para as árvores do jardim. A noite começa a cair, e o Sol aliinda-se no ocaso por detrás dos ramos dos cedros.
-Cheguei a ficar aqui quando não me dava jeito ir para casa de Oshirna. Mas, de resto, mais ninguém usa o quarto. Nem sequer a senhora Saeki, tanto quanto sei. Quero com isto dizer que, pelo fato de ficares aqui instalado, não liras o lugar a ninguém.
Pouso a mochila no chão e olho em redor do quarto.
-Tens lençóis lavados e comida em quantidade suficiente no frigorífico para as primeiras necessidades. Leite, fruta, legumes, manteiga, presunto, queijo... Não chega para uma refeição decente, mas já dá para uma sanduíche ou uma salada. Se precisares de mais alguma coisa, podes sempre mandar vir comida ou ir ao restaurante. Quanto a lavar a roupa, tens de te remediar com a casa de banho. Ora vamos lá ver, será que me esqueci de alguma coisa?
-Onde é que a senhora Saeki costuma normalmente trabalhar? Oshima aponta com o dedo para cima.
-Lembras-te daquele gabinete, no primeiro andar, que viste durante a visita guiada? Ela passa lá a vida, a escrever. Às vezes, quando tenho de sair durante um bocado, ela então desce e substitui-me na recepção. Mas, a não ser que tenha coisas para fazer no andar de baixo, é aí que a encontras.
Aceno com a cabeça.
-Amanhã chego cá antes das dez para te explicar em que consistem as tuas novas funções. Até lá, vê se descansas e se aproveitas.
-Obrigado por tudo - digo-lhe eu.
-My pleasure - replica ele.
Depois de ele sair, despejo a mochila. Guardo a pouca roupa que tenho nas gavetas da cómoda, penduro as camisas e o casaco, alinho o meu caderno de notas e as canetas em cima da secretária, levo os artigos de higiene para a casa de banho e, por fim, arrumo a mochila dentro do roupeiro.
A decoração do quarto está reduzida ao mínimo, tirando um pequeno quadro, o retrato realista de um rapaz à beira da praia. Não é mau de todo, quer-me parecer - será que foi pintado por algum artista conhecido? O rapaz parece ter os seus doze anos ou assim, tem um panamá branco e está sentado numa pequena cadeira de repouso. Tem um cotovelo em cima de um dos braços da cadeira e o queixo apoiado na mão. Dá a impressão de estar um nadinha melancólico, mas, ao mesmo tempo, orgulhoso. A seu lado, tem um pastor alemão preto que parece estar a tomar conta dele. Em jeito de pano de fundo vê-se o mar. Vislumbra-se a silhueta de umas quantas pessoas, mas estão demasiado afastadas para se distinguir as feições. Avista-se uma pequena ilha o um punhado de nuvens pairam sobre a água. Sem sombra de dúvida, uma típica cena de Verão. Sento-me à secretária e fico ali a olhar para o quadro. Tenho a sensação de poder escutar o marulhar das ondas, de poder cheirar o sal do mar.
O rapaz no quadro pode muito bem ser o que costumava viver neste quarto, o jovem que a Sr.a Saeki tanto amava. O tal que foi apanhado entre duas facções opostas de estudantes e estúpida e violentamente espancado até à morte. Não tenho maneira de saber ao certo, mas quase aposto que é ele. Para começar, o cenário é muito parecido com o que se vê por estas paragens. Se for esse o caso, então deve ter sido pintado há coisa de quarenta anos - uma eternidade para alguém como eu. Procuro imaginar-me daqui a quarenta anos, mas é a mesma coisa que tentar adivinhar o que existe para além do universo.
Na manhã seguinte, a primeira coisa que Oshima faz ao chegar e mostrar-me o que é preciso fazer para a biblioteca ficar patente ao publico. Primeiro, tenho de abrir as janelas para arejar a sala, dar Uma aspiradela ao chão, limpar o pó das mesas, mudar as flores nas jarras, acender as luzes, regar volta e meia o jardim, para a poeira niío levantar, e, quando está na hora, abrir as portas. Ao fim do dia a mesma coisa, mas ao contrário - fechá-las, voltar a limpar as mesas, desligar as luzes e cerrar a porta de entrada.
- Aqui não há nada que valha a pena roubar, por isso não prei isamos de ter a preocupação de trancar sempre as portas - diz-nie Oshima -, mas tanto a senhora Saeki como eu não gostamos das i oisas às três pancadas. Por isso, esforçamo-nos por fazer tudo como uidam as regras. Esta é a nossa casa, por isso tratamo-la com todo o cuidado, e gostaria que tu fizesses o mesmo.
Aceno afirmativamente com a cabeça.
A seguir mostra-me o que é preciso fazer no balcão de atendimento, para ajudar os leitores que pretendam utilizar os serviços da biblioteca
Por enquanto o melhor é ficares sentado ao pé de mim para ver como eu faço e aprender a rotina. Não tem dificuldade nenhuma. Quando houver algum problema que não sejas capaz de resolver, vais lá acima e chamas a senhora Saeki. Ela logo trata do assunto.
Ainda não são onze quando a Sr.a Saeki chega. O seu Volkswagen Golf faz um barulho de motor característico ao estacionar e sei sempre quando é ela. Arruma o carro, entra pela porta das traseiras e cumprimenta-nos aos dois. «B'dia», diz ela. «Bom dia», respondemos nós. A conversa fica por aí. A Sr.a Saeki tem um vestido de manga curta azul-marinho, traz um casaquinho de algodão no braço e a mala a tiracolo. Nenhum adereço para amostra nem sombra de maquilhagem. Mesmo assim, desprende-se dela algo de deslumbrante. Vê-me sentado ao lado de Oshima e, por um momento, parece tentada a dizer qualquer coisa, mas acaba por não o fazer. Limita-se a dirigir-me um breve sorriso e sobe as escadas que vão dar ao escritório, no primeiro andar.
- Não te preocupes - tranquiliza-me Oshima. - Não há qualquer problema com a tua presença aqui. Ela não é pessoa de grandes conversas, só isso.
Às onze Oshima e eu abrimos a porta principal, mas durante algum tempo não aparece ninguém. Entretanto, ele ensina-me a utilizar o computador para fazer a pesquisa de livros. São típicos PC de escritório, daqueles que estou habituado a encontrar nas bibliotecas. A seguir explica-me como devo elaborar as fichas catalográficas. Todos os dias a biblioteca recebe exemplares de livros acabados de publicar, e uma das tarefas consiste em dar entrada dessas obras e acrescentar esses títulos à mão.
Por volta das onze aparecem duas mulheres, com calças de ganga parecidas. A mais baixa usa o cabelo curto como uma nadadora, ao passo que a mais alta tem o cabelo penteado para trás. Trazem ambas ténis, uma da Nike, a outra da Asics. A mais velha parece ter à volta dos seus quarenta anos, usa óculos e uma camisa de xadrez. Trazem ambas mochilas e expressam um ar carregado, a condizer com o céu enevoado. Nenhuma parece ser pessoa de muitas falas. Oshima pede-lhes as mochilas à entrada, e as duas mulheres, fazendo cara de poucos amigos, tiram lá de dentro blocos de notas e canetas antes de as entregarem.
As mulheres atravessam a biblioteca, examinando as estantes uma a uma, consultando o ficheiro e tomando notas de vez em quando. Não pegam em livro algum e tão-pouco se sentam. Mais parecem inspetores das finanças a verificarem a contabilidade da empresa do que pessoas habituadas a frequentar bibliotecas. Oshima e eu não conseguimos perceber de que género de pessoas se trata nem o que poderá ter levado até ali. Às tantas, ele lança-me um olhar cheio de segundas intenções e encolhe os ombros. Não, decididamente não estou com um bom pressentimento, e isto é dizer pouco.
Por volta do meio-dia, enquanto Oshima almoça no jardim, fll o a substituí-lo na receção.
-Desculpe-me, mas tenho uma pergunta que gostaria de lhe fazer - diz uma das mulheres, aproximando-se, a mais alta. O seu tom de voz é duro e inflexível e faz-me pensar numa fatia de pão
que alguém deixou caída atrás de uma estante.
-Sim, diga. Em que a posso ajudar? la franze o sobrolho e deita-me um olhar de través como se estivesse a ver um quadro torto na parede.
-Anda a estudar?
Ando. Estou aqui a fazer um estágio - respondo. Posso falar com algum dos responsáveis? Vou ao jardim chamar Oshima. Sem pressas, ele bebe um gole de café para ajudar a comida que ainda tem na boca a ir para baixo, sacode as migalhas caídas no colo e volta comigo lá para dentro.
Posso ajudá-la nalguma coisa? - pergunta-lhe Oshima cordialmente.
-Basta que me dê algumas informações. Estamos a investigar as condições de utilização e de igualdade de acesso, do ponto de vista das mulheres, nas instituições culturais públicas espalhadas pelo país inteiro, bem como outras questões do género - elucida ela. - A nossa organização encontra-se a fazer um trabalho de campo ao longo deste ano com o objetivo de tornar públicas as conclusões. São muitas as mulheres envolvidas neste projeto, e esta região ficou a cargo de nós as duas.
- Não se importa - pede Oshima - de me dizer o nome da organização para a qual trabalham?
A mulher tira um cartão-de-visita e entrega-lho.
Sem mudar de expressão, Oshima lê com atenção o que lá está escrito, coloca-o em cima do balcão e depois levanta os olhos com um sorriso intenso dirigido intencionalmente à mulher. Um sorriso de primeira apanha, destinado a fazer corar qualquer mulher com sangue nas veias.
Mas esta mulher, por estranho que pareça, não reage nem pestaneja.
-Infelizmente, chegámos à conclusão de que esta biblioteca revela várias insuficiências que precisam de ser corrigidas.
-Isso do ponto de vista das mulheres, é o que está a querer dizer, não é verdade? - comenta Oshima.
-Correto, do ponto de vista das mulheres - responde ela, aclarando a voz. - E gostaríamos de abordar esse assunto com a vossa administração e de ouvir o que têm para nos dizer a esse respeito. Acha que será possível?
Não temos propriamente aquilo a que se chama, em tom solene, uma administração, mas terei muito gosto em escutar o que tem para dizer e fornecer-lhe todas as informações que deseja.
Bom, para começar não tem uma casa de banho só para senhoras, pois não
De facto assim é. Nesta biblioteca não existe casa de banho de senhoras. Temos apenas uma, para homens e mulheres.
Mesmo tratando-se de uma instituição privada, e uma vez que tem as portas abertas ao público, não lhe parece que, em princípio, deveria colocar à disposição casas de banho separadas?
Em princípio? - repete, em tom interrogativo, Oshima.
Precisamente. O facto de homens e mulheres serem obrigados a partilhar as instalações sanitárias dá origem a toda a espécie de assédio. De acordo com o nosso estudo, a maioria das mulheres tem relutância em usar sanitários mistos. Estamos perante um caso evidente de discriminação por parte dos responsáveis pela biblioteca.
Discriminação... - repete Oshima, com cara de quem tinha acabado de engolir uma coisa amarga sem querer. Fico com a impressão de que o som da palavra não lhe agrada lá muito ao ouvido.
Um descuido intencional.
Descuido intencional - repete ele e fica como que a reflectir sobre a desabrida expressão.
O que se lhe oferece dizer sobre isso? - pergunta a mulher, mal conseguindo esconder a sua irritação.
Como pode ver - diz Oshima -, somos uma biblioteca muito pequena. E infelizmente não temos espaço para casas de banho diferentes para ambos os sexos. Claro está que seria melhor se pudéssemos ler instalações separadas, mas até à data nenhuma das nossas utentes se queixou. Felizmente - ou, melhor dizendo, infelizmente -, a nossa biblioteca não é muito frequentada. Se quiser levar por diante a questão das casas de banho diferenciadas, sugiro que se dirija aos escritórios da Boeing, em Seattle, e trate de abordar junto deles a problemática das casas de banho nos Jumbos 747. Um 747 é muito maior do que a nossa pequena biblioteca, e tem muito mais gente. Tanto quanto sei, todas as casas de banho a bordo dos aviões de passageiros são partilhadas por homens e mulheres.
A mulher mais alta encara Oshima com ar ríspido, as maçãs do rosto salientes e os olhos muito juntos. Depois empurra os óculos ligeiramente para cima.
Nao estamos a investigar aviões. Os Jumbos não vêm ao caso.
Mas não acha que tanto nos aviões a jacto como na nossa biblioteca as casas de banho, em princípio, dão azo ao mesmo tipo de problema?
Estamos a investigar as instalações sanitárias públicas caso a caso. Não estamos aqui para discutir acerca de questões de princípio.
Oshima nunca tira o sorriso complacente do rosto durante esta troca de palavras.
A sério? Estava convencido de que a nossa conversa girava precisaqmente em torno de uma questão de princípios.
A mulher percebe que deitou tudo a perder. Cora ligeiramente, mas não tem nada que ver com o magnetismo pessoal de Oshima. A seguir tenta nova cartada.
De qualquer maneira, os aviões Jumbos não são para aqui chamados. E não tente desviar-se do tema.
Entendido. Acabaram-se os aviões - promete Oshima. - Vamos Lá abordar a questão num plano mais terra a terra.
A mulher olha para Oshima com ar feroz. Depois de uma pausa, volta ao ataque.
Oulra coisa que gostava de saber é por que razão os autores em catálogo estão separados por sexo.
Sim, tem razão. A pessoa responsável que aqui trabalhava antes de nos por qualquer razão dividiu os autores em homens e mulheres. Estamos a pensar procedera nova catalogação, mas lutamos com poucos meios o até ao momento isso ainda não foi possível.
Nao estamos a criticá-lo por isso - afirma ela.
Osihma inclina ligeiramente a cabeça.
A questão é que em todas as categorias os autores masculinos aparecem antes das autoras femininas - diz. - Na nossa maneira de ver, isto representa uma violação do princípio da igualdade sexual, já para não falar na profunda injustiça que representa.
Oshima volta a pegar no cartão-de-visita dela, passa os olhos pelo que está escrito e torna a pousá-lo em cima do balcão de acolhimento.
Menina Soga - começa ele a dizer -, quando procediam à chamada na escola, o nome Soga devia estar antes deTanaka e depois de Sekine. Porventura apresentou queixa contra isso? Alguma vez protestou, pedindo a quem de direito que a ordem fosse alterada? Será que o G fica zangado por aparecer a seguir ao F no alfabeto? Ou que a página sessenta e oito do livro desencadeia uma revolução só porque vem depois da página sessenta e sete?
Não é isso que está em causa - diz ela, agastada. - O senhor está desde o princípio a deturpar propositadamente o sentido das minhas palavras.
Ao ouvir isto, a mulher mais baixa, que até aí ficara especada encostada a uma estante a tomar notas, aproxima-se rapidamente.
A deturpar propositadamente o sentido das suas palavras? - repete Oshima, como se quisesse acentuar as palavras da mulher.
Nega?
Isso é um red herring - replica Oshima.
A mulher que dá pelo nome de Soga continua ali especada, de boca aberta, sem dizer palavra.
Os Ingleses usam muito a expressão «arenque defumado». Uma coisa muito interessante, mas que é introduzida na conversa para desviar a pessoa do cerne da questão e levá-la a chegar a uma conclusão diferente. Agora porque usam essa expressão, tenho muita pena mas não sei.
Arenques ou cavalas, o que sei é que o senhor está a fugir à questão.
De fato, aquilo que eu estou a fazer é a proceder à transposição da analogia - afirma Oshima. - Um dos métodos mais eficazes na arte da argumentação, segundo Aristóteles. Os cidadãos da Grécia antiga revelaram-se muito hábeis na forma como punham em prática este tipo de estratagema intelectual. Isto apesar de lamentavelmente na altura o conceito de «cidadão» não abranger as mulheres...
Está gozar connosco
Oshima abana a cabeça.
Veja se c onstígue perceber o que lhe vou dizer. Tenho a certeza de que existem outras maneiras, mais eficazes, de garantir que os direitos das mulheres japonesas sejam respeitados, para além de andar a rondar uma pequena biblioteca numa cidadezinha de província e a tomar nota de queixas que se prendem com as instalações sanitárias e a insuficiência no que toca aos catálogos. Estamos a fazer o melhor que sabemos e podemos para que esta nossa modesta biblioteca ajude a comunidade. Orgulhamo-nos de ter reunido uma colecção notável destinada a todos aqueles que gostam de livros. E esforçamo-nos ao máximo por conferir um rosto humano à biblioteca, através do serviço que prestamos ao público. Talvez não saiba, mas o espólio desta biblioteca, abarca tudo o que diz respeito à poesia, desde 1910 até ao meio do período Showa, é altamente reconhecido a nível nacional. É evidente que há coisas que podem ser melhoradas, tal como existem limites para aquilo que é possível fazer. Mas pode ter a certeza de que fazemos tudo o que está ao nosso alcance. Creio que seria bem melhor se não se preocupassem tanto com aquilo que somos incapazes de fazer, e mais com aquilo que fazemos bem feito. Não lhe parece justo?
A mulher mais alta troca um olhar com a mais baixa e esta olha também para a outra e abre pela primeira vez a boca.
Em última análise, aquilo que diz não passa de um punhado de argumentos vazios, na tentativa de escapar às suas responsabilidades – lança ela com voz estridente. - Na realidade, a fim de usar com propriedade o termo, aquilo que está a fazer é procurar argumentos que lhe permitam fáceis que lhe permitam autojuslificar-se e deixar tudo na mesma. O senhor é um triste exemplo histórico do poder falocêntrico, e não é preciso ir mais longe.
Triste exemplo histórico - repete Oshima, nitidamente impressionado. Pelo tom de voz dir-se-ia que lhe agrada o som da frase.
Por outras palavras, não passa de um típico macho, patriarcal e sexista - atira a mais alta, sem esconder a sua irritação.
Um macho patriarcal - torna Oshima a repetir. A mais baixa ignora-o e passa adiante.
Foi buscar o status quo e está a recorrer à lógica falocêntrica mais reles a fim de reduzir todas as representantes do género feminino a cidadãos de segunda classe e limitar e espoliar as mulheres dos direitos que lhes são reconhecidos. Se calhar fá-lo de uma forma inconsciente e não deliberadamente, mas isso só o torna ainda mais culpado. Está proteger interesses machistas, ainda que camuflados, tornando-se insensível à dor dos outros. Será que não vê o mal que a sua cegueira causa, tanto às mulheres como à sociedade? Bem sei que problemas com casas de banho e catálogos não passam de pormenores insignificantes, mas, se não começarmos pelas pequenas coisas, nunca seremos capazes de nos libertar do manto de injustiça que cobre a nossa sociedade. E esse é o princípio que nos move.
Aí tem o que sente qualquer mulher sensível - acrescenta a mais alta, inexpressiva.
«Como poderia uma mulher de espírito generoso comportar--se de outra forma, se pensarmos nos tormentos que enfrento?» - diz Oshima.
As duas mulheres permanecem de pé, rígidas como um bloco de gelo.
Electra, de Sófocles. Uma peça maravilhosa. E, a propósito, o termo «género» começou por ser utilizado para designar o género gramatical. Na minha opinião, a palavra «sexo» é mais precisa quando se trata de indicar a diferença sexual física e biológica. Neste contexto, a palavra «género» não encaixa. Isto para acabar em beleza com a questão linguística.
Fez-se um silêncio gelado.
A questão é que tudo o que aqui tem vindo a ser dito por si está substancialmente errado - diz Oshima, com toda a calma mas sem papas na língua. - Se há coisa que eu não sou é um triste exemplo de um típico macho, patriarcal e sexista.
Nesse caso, talvez não se importe de me explicar o que há de errado em tudo aquilo que dissemos.
De preferência sem cair na tentação de recorrer a sofismas nem de alardear a sua erudição - acrescentou a mais alta.
Muito bem. Se é isso que querem, passo a explicar tudo o mais direta e honestamente que posso, sem sofismas nem manifestações de saber - afirma Oshima.
Estamos à espera - diz a mais alta, enquanto a mais baixa se limita a fazer um breve aceno com a cabeça.
Primeiro que tudo, não sou macho nenhum – proclama Oshima.
Ficaram lodos sem palavras. Eu engulo em seco e deito um olhar rápido a Oshima.
Sou uma mulher - diz ele.
Seria bom que se deixasse de piadas - diz a mais baixa, não sem antes ter respirado fundo. Mas diz aquilo só por dizer. Sem convicção. Mais como se achasse que alguém tinha de dizer alguma coisa.
Oshima tira a carteira do bolso das calças, saca da carta deconduçao e passa-a para as mãos da mulher. Ela lê o que lá vem escrito, franze a testa e entrega o documento à companheira mais alta, que por, seu turno, lê o que lá está e, após um momento de hesitação, o devolve a Oshima com uma expressão infeliz.
Não queres ver também? - pergunta-me Oshima. Quando que faço que não com a cabeça, ele torna a enfiar a carta de condução na carteira e a guardar a carteira no bolso das calças. - Como podem ver, no ponto de vista biológico e legal sou, indiscutivelmente, uma mulher. O que quer dizer que tudo aquilo que na realidade têm estado a perolar sobre mim se encontra errado. Não tenho qualquer hipótese de encaixar na definição de um típico macho, patriarcal e sexista. Sim, mas... - começa a mais alta a dizer, e depois pára.a mais baixa, de lábios franzidos, brinca com a gola da blusa.
O meu corpo é o de uma mulher, mas a minha mente é completamente masculina - prossegue Oshima. - Vivo as emoções como um homem. Nesse aspecto aquela sua ideia de que eu sou «um exemlo típico» até bate certo. E sabe-se lá se não serei um sexista desgraçado? Mas não sou lésbica, apesar de me vestir desta maneira. Tenho preferência sexual por homens. Por outras palavras, sou mulher, mas não sou homossexual. Pratico sexo anal, e nunca usei a vagina para fazer sexo. O meu clitóris é sensível, mas isso não acontece com os meus seios. Não tenho período. Sendo assim, sou acusado de discriminar quem ou o quê? Será quo alguém mo explica?
Nós os três não conseguimos falar, tal é o espanto. Uma das mulheres aclara a garganta, e aquele ruído desagradável toma conta da sala. No relógio de parede ouvem-se os segundos a passar, alto e bom som.
Tenho muita pena - diz Oshima, meio divertido -, mas estou a almoçar, la a meio do meu wrap de atum com espinafres quando vieram ter comigo. Se deixar a comida lá fora, os gatos da vizinhança chamam-lhe um figo. As pessoas têm o hábito de se desembaraçar dos gatos que já não querem na mata junto à praia, por isso esta zona tem gatos a dar com um pau. Se não se importam, gostaria de continuar a almoçar. Mas não se incomodem comigo e deixem-se ficar na biblioteca o tempo que quiserem. A nossa está aberta a toda a gente. Desde que cumpram as regras da casa e não incomodem os outros frequentadores, estejam à vontade e façam o que quiserem. Vasculhem o que quiserem. Escrevam o que quiserem nos vossos relatórios. Por nós, está tudo bem. Não somos subsidiados por nenhuma instituição e estamos habituados a fazer as coisas à nossa maneira. É assim que as coisas são e hão-de continuar a ser, no futuro.
Depois de Oshima abandonar a sala as duas mulheres trocam um olhar mudo e depois olham na minha direção. Talvez vejam em mim o amante de Oshima ou isso. Pela parte que me toca, não digo nada e começo a arrumar as fichas catalográficas. As duas sussurram qualquer coisa uma à outra junto às estantes e preparam-se para se irem embora. Com uma expressão perplexa estampada na cara, nem sequer agradecem quando lhes passo as mochilas para as mãos.
Passado um bocado, Oshima acaba de almoçar e vem para dentro. Guardou-me dois crepes de atum e espinafres enrolados dentro de uma espécie de tortilha verde com um molho branco em cima. E o meu almoço. Ponho água a ferver e faço uma chávena de chá Earl Grey para acompanhar.
Tudo o que disse há pouco era verdade - confidencia-me Oshima quando regressa do almoço.
Era isso que me queria dizer, quando me confidenciou que era diferente?
Não estava a tentar armar-me em importante nem nada – afirma ele -, mas espero que percebas agora que eu não estava a exagerar.
Faço sinal que sim com a cabeça.
Oshima sorri.
Em termos de sexo, sou mulher de corpo inteiro, apesar de os meus seios não serem muito desenvolvidos e de nunca ter sido menstruada. Mas não tenho pénis nem testículos nem barba. Resumindo, não tenho nada disso. O que às tantas me dá uma sensação de alívio e de grande liberdade, se quisermos ver as coisas pela positiva. Isto apesar de eu não acreditar que tu saibas o que isso é.
Provavelmente não - digo eu.
Às vezes nem eu próprio sei. E interrogo-me, sabes? Que raio, interrogo-me sobre o porquê e o como de ser assim. A sério, o que sou eu?
Abano a cabeça.
Bom, se quer que lhe diga, também não sei o que eu sou.
É a chamada típica crise de identidade.
Concordo com a cabeça. Mas pelo menos tu tens um ponto de referência. Ao contrário de mim.
Não me importa o que o senhor Oshima é. Independentemente do que for, a verdade é que gosto de si - digo-lhe eu. É a primeira vez na minha vida que digo isto a alguém, e as palavras fazem-me corar.
As tuas palavra tocam-me - diz Oshima, pousando suavemente mao em cima do meu ombro. - Sei que sou um bocadinho diferente de toda a gente, mas não deixo por isso de ser um ser humano. Quero que saibas isso. Sou uma pessoa normal, não sou nenhum monstro. Sinto o mesmo que os outros sentem, faço o mesmo que os outros fazem. Contudo, há alturas em que essa pequena diferença se transforma num abismo, e confesso que não vejo maneira de ultrapassar isso. – Tira um lápis grande e afiado de cima do balcão e crava os olhos nele, como se estivesse a olhar para um prolongamento de si mesmo. – Quis que ficasses a saber isso o mais cedo possível, da minha boca, em vez de ouvir dizer a terceiros. E hoje proporcionou-se, apesar de não podermos dizer que tenha sido propriamente uma experiência feliz, não achas? Abano a cabeça.
Já senti na pele todos os tipos de discriminação - diz Oshima. - Só as pessoas que alguma vez foram vítimas dela é que sabem de facto como isso dói. Cada um sente a dor de maneira diferente, cada um tem as suas próprias feridas. Por isso, preocupo-me tanto com a igualdade e a justiça como qualquer outra pessoa. Mas aquilo que mais me desgosta são as que não têm ponta de imaginação. Aqueles a quem T. S. Eliot chama «homens vazios».3 As almas que preenchem sem piedade a falta de imaginação com pedaços de palha seca, sem terem sequer consciência do que estão a fazer. Pessoas insensíveis que te lançam à cara palavras vazias de sentido, tentado obrigar-te a fazer o que não queres. Como aquelas duas que acabámos de conhecer.
Oshima suspira ao mesmo tempo que faz girar o lápis comprido e fino na mão.
Maricas, lésbicas, heterossexuais, feministas, porcos fascistas, comunistas, seguidores de Hare Krishna - esses não me preocupam. Cada um com a sua bandeira, é-me indiferente. Mas o que não suporto são pessoas ocas. A simples presença delas torna-se insuportável, e acabo sempre por dizer o que não queria. Como aconteceu no caso daquelas mulheres - devia ter sabido parar a tempo, ou então chamado a senhora Saeki e deixá-la resolver o assunto. Com um sorriso, de certeza que ela teria sabido levá-las a bem. Mas eu não sou capaz. Ponho-me a dizer coisas que não devia, a fazer coisas que não devia. Não me consigo controlar. É um dos meus pontos fracos. E sabes porquê?
Porque, se levar a sério todas as pessoas sem imaginação que se atravessarem no seu caminho, o cortejo nunca mais acaba? - arrisco eu.
Exato - responde Oshima, batendo com a ponta de borracha do lápis na testa. - Mas tens de te lembrar de uma coisa, Kafka. Foram precisamente essas pessoas que causaram a morte ao namorado da juventude da senhora Saeki. Mentes limitadas, desprovidas de imaginação. Intolerância, teorias desfasadas da realidade, terminologia barata, ideias dogmáticas, sistemas rígidos, essas é que são as coisas que realmente me assustam. É isso que eu mais temo e mais detesto nesta vida. Claro que a questão de saber o que está certo e o que está errado é muito importante. Todos nós cometemos erros de julgamento que podem eventualmente ser corrigidos. Desde que lenhamos coragem para reconhecer que errámos, as coisas podem compor-se. Agora, espíritos tacanhos e intolerantes, sem imaginação, são como parasitas que transformam o hospedeiro, mudam de forma, sobrevivem e vingam. São uma causa perdida, e eu não quero vê-los aqui por perto.
Oshima aponta com o lápis para as estantes. Naturalmente que se está a referir à biblioteca inteira.
Quem me dera ser capaz de achar graça a pessoas desse género, mas a verdade é que não sou.
Já passava das oito da noite quando o camião-frigorífico saiu da auto-estrada de Tomei e deixou ficar Nakata no parque de estacionamento da área de serviço de Fujigawa. De saco de lona e guarda-chuva na mão, ele desceu do banco do pendura para o asfalto.
Espero que consiga arranjar alguém que o leve - disse o condutor, metendo a cabeça fora da janela. Se perguntar por aí, de certeza que arranja quem lhe dê boleia.
Muito obrigado. Foi uma grande ajuda.
Passe bem - disse o motorista, antes de fazer um breve aceno e regressar à auto-estrada.
«Fu-ji-ga-wa», tinha dito o condutor. Nakata não fazia a mínima ideia onde era Fu-ji-ga-wa, mas uma coisa sabia: deixara Tóquio para trás e estava a dirigir-se para oeste. Não precisava de bússola nem de mapa, sabia-o mesmo sem o saber. Agora, só precisava de arranjar boleia junto de um camião que seguisse nessa direcção.
Como estava com fome, decidiu comer uma tigela de namen1 no restaurante da área de serviço. As bolas de arroz e o chocolate que trazia no saco, preferia guardá-los para uma emergência. Visto que
não sabia ler, demorou o seu tempo até conseguir perceber como é que funcionava o sistema que lhe possibilitava adquirir uma refeição.
Antes de entrar na sala do restaurante era preciso comprar senhas de refeição numa máquina, e para isso Nakata teve de arranjar quem lhe dissesse para que servia cada botão. «Os meus olhos já não são o que eram e não consigo ver muito bem», disse ele a uma senhora de meia-idade, e ela pôs a moeda por ele, apertou o botão certo e devolveu-lhe o troco. Ensinara-lhe a experiência que era melhor não contar a ninguém que não sabia ler. Já lhe acontecera as pessoas íicarem a olhar para ele como se fosse algum monstro.
Depois da refeição, Nakata pegou no guarda-chuva, pôs o saco ao ombro e começou a fazer a ronda pelo meio dos camiões estacionados no parque para ver se arranjava então boleia. Explicava que eslava a caminho do oeste e perguntava se alguém não se importaria de o transportar. Mas todos os condutores, sem excepção, olharam para ele de alto a baixo e abanaram a cabeça. Não era costume verse um homem de idade à boleia, e qualquer coisa fora do vulgar era o bastante para despertar a desconfiança. Tinham muita pena, diziam eles, mas estavam proibidos pela empresa de dar boleias.
Nakata demorara muito a chegar da região de Nakano até à Éfltrada da auto-estrada para Tomei. Nunca saíra de Nakano e não fazia ideia de onde se apanhava a via rápida. Tinha um passe especial que lhe permitia andar de autocarro dentro da cidade, mas nunca se aventurara a apanhar sozinho o metro nem o comboio, uma vez que lllo implicava ter de comprar bilhete.
Faltava pouco para as dez da manhã quando ele tratara de enfiar uma muda de roupa, os artigos de higiene e algumas provisões no saco, guardara religiosamente o dinheiro, escondido debaixo do tatami, num cinto próprio, pegara no seu grande guarda-chuva e saíra de casa. Quando perguntara ao condutor do autocarro como é que havia de fazer para chegar à auto-estrada para Tomi, o homem rira-se.
Este autocarro só vai até à estação de Shinjuku. Os autocarros da cidade não fazem o percurso da auto-estrada. Para isso tem de apanhar o expresso.
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E onde se apanha o expresso para a auto-estrada de Tomei?
-Na estação de Tóquio - explicou o condutor. - Vai neste autocarro até à estação de hinjuku, depois apanha o comboio para a estação de Tóquio, onde pode comprar um bilhete com lugar marcado. Depois ali tem autocarros que o levam até à auto-estrada de Tomei.
Apesar de não perceber muito bem o que o homem estava para ali a dizer, Nakata apanhou o autocarro que fazia ligação com o terminal de Shinjuku. Mas ao chegar sentiu-se esmagado. A gigantesca estação era um mar de gente, e ele só com muita dificuldade abriu caminho por entre a multidão. Além do mais, eram tantas as linhas de comboio que ele não conseguia atinar com aquela que partia dali para a estação de Tóquio. Uma vez que não conseguia perceber o que estava escrito nos letreiros, pediu informações a outros passageiros, mas as explicações que lhe foram dadas eram demasiado rápidas e complicadas, repletas de nomes de lugares que ele não conhecia. Era o mesmo que estar a falar com Kawamura, pensou Nakata para consigo mesmo. Podia sempre pedir ajuda no posto de Polícia, mas tinha medo de que o tomassem por algum velho senil e o metessem atrás das grades, como de resto já acontecera. De tanto dar voltas à estação, o fumo dos tubos de escape e todo aquele barulho fizeram-no sentir--se maldisposto. Para evitar as zonas mais concorridas, procurou um pequeno parque entre dois edifícios muito altos e sentou-se num banco.
Sentia-se completamente perdido. Deixou-se ficar ali sentado, falando de vez quando com os seus botões e passando a mão pelo cabelo cortado à escovinha. No parque não se via nem um gato. Em compensação, os corvos voavam baixo, em bando, soltando grasnidos e vasculhando as latas do lixo. Nakata olhou para o céu por mais de uma vez e calculou as horas que eram pela altura do Sol. Devido ao efeito de todo aquele fumo dos escapes, o céu tingia-se de uma cor esquisita.
Ao meio-dia, apareceram os empregados de escritório que trabalhavam nos prédios ali à volta para comerem o seu almoço no parque. Nakata almoçou os pãezinhos com sementes que tinha trazido e bebeu o chá quente da garrafa-termo. A seu lado no banco sentaram-se duas mulheres novas. Nakata meteu conversa com elas. Perguntou-lhes se sabiam como é que ele havia de fazer para chegar à auto-estrada de Tomei. Elas disseram-lhe o mesmo que o condutor do autocarro. Para ele apanhar a Linha Chuo até à estação de Tóquio e, a partir daí, o expresso.
Nakata bem tentou, mas não conseguiu - confessou ele. -Nakata nunca saiu de Nakano, por isso não sabe andar de comboio. Só de autocarro. Como não sabe ler, não pode comprar bilhete. Até aqui veio de autocarro, mas não consegue sair daqui.
Não sabe ler? - espantaram-se elas. Parecia um homem de idade tão inofensivo. Cordial e bem-apessoado. Andar de chapéu-de-chuva atrás num dia tão bonito não deixava de ser um bocadinho estranho, mas o aspecto não era o de um sem-abrigo. Tinha uma cara simpática, sobretudo os olhos, extremamente brilhantes.
A sério que nunca saiu de Nakano? - perguntou a rapariga de cabelo preto.
Nunca, nem uma única vez. No caso de Nakata se perder, quem é que depois ia à procura dele?
E também não sabe ler? - insistiu a outra rapariga, a que tinha o cabelo pintado de castanho.
Isso mesmo. Não sabe ler. Números simples, ainda vá que pilo vá, mas para contas Nakata não tem cabeça.
Humm. Assim torna-se de facto mais difícil apanhar o comboio.
Sim, é muito difícil. Não dá para comprar bilhete.
Se tivéssemos mais tempo podíamos acompanhá-lo à estação e ajudá-lo a meter-se no comboio, mas não tarda nada precisamos de regressar ao trabalho. Temos muita pena.
Não têm nada que se desculpar. Nakata cá se arranjará.
Já sei! - exclamou a rapariga com o cabelo preto, virándose para a outra. - Togeguchi, aquele rapaz que trabalha no depar-lainenlo comercial, não disse que tinha de ir hoje a locoama?
Acho que sim, agora que falas nisso. Podemos perguntar-lhe. He é um tanto ou quanto metido consigo mesmo, mas não é mau rapaz - concordou a rapariga de cabelo castanho.
-Visto que não sabe ler, talvez fosse melhor ir à boleia – sugeriu a rapariga de cabelo preto.
Boleia?
Pedir a quem anda na estrada que o leve. Quase sempre ¡ti abam por sor os motoristas de longo curso a dar boleia. Os carros geralmente nunca param.
Nakata não está a ver lá muito bem o que são motoristas de longo curso.Quando chegar logo fica a saber. Uma vez viajei à boleia, quando andava na universidade. Os condutores de camiões são todos boas pessoas.
Até onde é que quer ir, quando apanhar a auto-estrada?
Nakata não sabe.
Não sabe?
Nakata logo fica a saber quando lá chegar. Para já, começa por seguir viagem em direcção a oeste, apanhando a auto-estrada de Tomei. Depois logo se vê. De qualquer maneira, é para oeste que Nakata tem de seguir.
As duas raparigas ainda olharam uma para a outra, mas Nakata falava com tamanha convicção que deram por elas a achar o velhote irresistivelmente simpático. Acabaram de almoçar, deitaram as latas vazias dentro do caixote de lixo e levantaram-se.
Venha connosco, senhor Nakata? - disse a rapariga de cabelo preto. - Havemos de arranjar uma saída.
Nakata seguiu-as até um edifício que ficava ali perto. Nunca entrara num prédio tão grande. As duas raparigas disseram-lhe que se sentasse num banco junto da recepção, depois foram falar com o recepcionista e pediram a Nakata que ficasse ali à espera um bocado, antes de desaparecerem num dos elevadores que havia no átrio. Enquanto Nakata ali permaneceu sentado, sem largar o guarda-chuva nem o saco, os empregados de escritório não pararam de entrar, vindos da sua hora de almoço. Aí estava outra cena que Nakata nunca vira antes. Como se estivessem combinados, vinham todos muito bem vestidos - os homens de gravata e pasta e as mulheres de saltos altos, uns e outros caminhando apressadamente na mesma direcção. Por nada deste mundo Nakata seria capaz de entender o que fazia andar toda aquela gente assim.
Passado algum tempo, as duas raparigas estavam de volta, acompanhadas do tal colega, um jovem alto que vestia camisa branca e gravata às riscas.
Este é o senhor Togeguchi - disse a rapariga com cabelo castanho. -Vai ter de seguir viagem até locoama. E diz que o leva com ele. Pode deixá-lo ficar no parque de estacionamento do terminal de Tomei e, com sorte, pode ser que apanhe aí outra pessoa que lhe dê boleia. Vá dizendo sempre que quer seguir em direcção a oeste, e quando alguém lhe der boleia, convide essa pessoa para uma refeição quando fizerem uma paragem. Está a perceber?
Tem dinheiro para isso? - quis saber a rapariga de cabelo preto.
Sim, Nakata tem dinheiro que chegue.
O senhor Nakata é um amigo nosso, por isso trate-o bem -disse a de cabelo castanho.
Se forem simpáticas para mim... - retorquiu o jovem com alguma timidez.
Pode ser que tenha sorte...- replicou a de cabelo comprido. À despedida, as raparigas disseram,
Aqui tem. Para quando a fome apertar. - Deram-lhe de presente uma embalagem com bolas de arroz e uma tablete de chocolate que haviam comprado na loja de conveniência.
Não sei como lhes agradecer por tudo o que fizeram - disse Nakata. - Oxalá um dia possa retribuir.
O melhor agradecimento é saber que correu tudo bem - disse a rapariga com cabelo castanho, enquanto a sua companheira dava uma risadinha.
O jovem, de seu nome Togeguchi, convidou Nakata a sentar-se no banco do passageiro da frente da carrinha Hi-Ace, arrancou e banhou a via rápida que ia dar à auto-estrada para Tomei. O trânsito estava congestionado, o que lhes deu tempo para conversarem acerca de ludo e de mais alguma coisa. Togeguchi era tímido por natureza e, a princípio, não disse grande coisa, mas depois de se ter habituado à presença de Nakata desatou a falar pelos cotovelos, chegando a um ponto em que a conversa mais parecia um monólogo. Tinha muito que que contar e às tantas deu por si a pensar em Nakata, que provavelmente nunca mais iria encontrar na vida, como um confidente à altura dos seus desabafos. Explicou que acabara tudo com a namorada há coisa de meses. Que durante todo esse tempo ela tinha outro com quem costumava encontrar-se às escondidas. Que não se dava por aí além
Com o chefe lá no trabalho e que estava a pensar em vir-se embora.
Os pais linham-se divorciado ainda ele andava na escola, e a mãe tornara a casar-se com um tipo qualquer que não prestava para nada.
Contou-lhe que emprestara parte das suas poupanças a um amigo e não fazia ideia quando é que ia recuperar esse dinheiro todo. E o estudante universitário que vivia no apartamento do lado punha a música a tocar tão alto que ele não conseguia pregar olho durante a noite.
Nakata escutou atentamente, metendo volta e meia a sua colherada e dando a conhecer a sua opinião sobre este e aquele assunto. Quando a carrinha chegou ao parque de estacionamento de Kohoku, Nakata sabia praticamente tudo e mais alguma coisa que havia para saber acerca do rapaz. Havia muita coisa que ele não entendia, mas dava para apreender o quadro geral no que à existência de Togeguchi dizia respeito. A saber, que ele no fundo não passava de um desgraçado a tentar fazer pela vida, tão novo e já com uma montanha de problemas às costas.
Nakata não sabe com agradecer. Muito e muito obrigado por tê-lo trazido até aqui.
O gosto foi todo meu. Obrigado, senhor Nakata. Sinto-me extremamente aliviado. Não me lembro de ter alguma vez desabafado assim com alguém. Ainda bem que teve a pachorra de me ouvir. Só espero não lhe ter moído a paciência com os meus problemas.
Não foi maçada nenhuma. Foi um prazer conversar consigo. Nakata tem a certeza de que a sorte lhe irá sorrir daqui em diante, senhor Togeguchi.
O jovem tirou um cartão de telefone da carteira e deu-o a Nakata.
Quero que fique com este cartão. É a minha empresa que os fabrica. Considere-o uma espécie de presente de despedida. Só gostava de lhe poder oferecer uma coisa melhor.
Muito obrigado - disse Nakata pegando no cartão e guardando--o cuidadosamente na carteira. Não tinha ninguém a quem telefonar, e nem sequer sabia utilizar o cartão, mas pareceu-lhe que seria de bom tom aceitar a oferta. Com isto tudo já eram três da tarde.
Passou mais uma hora até encontrar alguém disposto a levá-lo até Fujigawa. O condutor guiava um camião-frigorífico cheio de peixe fresco. Era um homem que devia andar pelos seus quarenta anos, gordalhufo, com uns braços que mais pareciam cepos e uma barriga proeminente.
Espero que o cheiro a peixe não te faça diferença - disse o motorista.
Se há coisa de que Nakata gosta é de peixe - respondeu Nakata.
O motorista riu-se.
Estou a ver que aqui o camarada é um pândego.
Já me disseram isso muitas vezes.
Pois eu gosto de pessoas diferentes - retorquiu o motorista. Aqueles que têm um ar muito certinho e levam uma vidinha normal,
c com esses que convém estar de pé atrás.
A sério?
Vai por mim. Pelo menos é essa a minha opinião.
Nakata não tem muitas opiniões. O que sabe é que gosta de enguias.
Bom, ora aí tens uma opinião. Quer dizer, o facto de gostar de enguias.
As enguias contam como uma opinião?
Claro que sim, se disseste que gostas de enguias estás a dar a lua opinião.
E, sempre nesta toada, foi assim que os dois percorreram a dis-lítncia que os separava de Fujigawa. O motorista disse que o seu nome era I lagita.
Meu velho Nakata, o que se te oferece dizer sobre as coisas que se passam no mundo? - perguntou ele.
Infelizmente Nakata não é lá muito brilhante, por isso não ao lhe oferece dizer nada sobre isso - respondeu Nakata.
Uma coisa é ter opinião própria e outra não dever muito à esperteza. Não tem nada que ver o cu com as calças.
Mas, senhor Hagita, pelo facto de uma pessoa não dever muito à inteligência, isso significa que não pensa nas coisas.
Mas sabes que gostas de enguias. Estou certo?
Sim, enguias é uma das coisas de que Nakata mais gosta.
Ora aí tens uma ligação, estás a ver?
Hum.
Costas de galinha e de arroz com ovo?
Sim, é outro dos pratos preferidos de Nakata.
Bom, aqui lambem há uma relação - disse Hagita. - Se pensares nessas afinidades o somares isso tudo, vais ver que passam a fazer sentido enquanto o diabo esfrega um olho. Quanto mais ligações, mais profundo se torna o sentido. Não interessa se estamos a falar de enguias ou de tigelas de arroz ou de peixe grelhado, isso tanto faz. Estás a topar?
Não, ainda não. Isso tem que ver com a comida?
Não apenas com a comida. O mesmo acontece em relação aos eléctricos, ao imperador, mais o diabo a sete.
Mas Nakata não anda de eléctrico.
Tudo bem. Olha, o que me interessa é chegar a este ponto. Independentemente de quem ou daquilo que tens pela frente, o certo é que as pessoas estabelecem pontos de contacto entre elas próprias e as coisas à sua volta. O importante é que isso aconteça de uma maneira natural. Ser burro ou ser brilhante não vem ao caso. O que importa é que saibas ver o mundo pelos teus próprios olhos.
O senhor é muito inteligente, senhor Hagita. Hagita soltou uma sonora gargalhada.
Ora, meu amigo, a inteligência não é para aqui chamada. Não sou assim tão inteligente como isso. Tenho é a minha própria maneira de ver as coisas, o que provoca amargos de boca a muito boa gente. Essas pessoas acusam-me de passar a vida a trazer à baila assuntos que é melhor deixar quietos. E o que acontece a quem, como eu, pensa pela sua própria cabeça e diz a verdade, mesmo quando é desagradável - regra geral, só arranja inimigos.
Nakata continua sem perceber nada. Está a querer dizer que há uma ligação entre gostar de enguias e gostar de galinha e arroz com ovo?
Se quiseres, podes colocar a questão nesses termos. Vendo bem, existirá sempre uma relação entre si, senhor Nakata, e as coisas que lhe dizem respeito. Tal como existe uma associação entre enguias e malgas de arroz. E à medida que a teia formada por essas relações se alarga, também a relação entre ti, Nakata, e os capitalistas e entre ti e o proletariado naturalmente se adensa.
Pro-/e-quê?
Proletariado - repetiu o Sr. Hagita, tirando as mãos do volante e fazendo um gesto largo. Aos olhos de Nakata, as mãos dele pareciam enormes, como luvas de basebol.
As pessoas que trabalham no duro, que ganham o pão com o suor do seu rosto, são o proletariado. Do outro lado da barricada, estão os tipos que passam a vida de rabo sentado, sem fazer a ponta de um corno, a dar ordens aos outros e a ganhar quatro vezes mais do que eu. São os capitalistas.
Capitalistas é coisa que Nakata não conhece. Nakata não passa de um pobre homem e não conhece pessoas assim tão importantes. A pessoa mais importante que conhece é o governador de Tóquio. Ele também é capitalista?
Bom, só pode ser. Muito embora cá para mim os governadores sejam mais os cãezinhos de colo dos capitalistas.
O senhor governador é um cão? - Veio à memória de Nakata aquele enorme cão preto que o levara até à casa de Johnnie Walker, e no seu espírito estabeleceu-se a relação entre a tenebrosa figura do governador.
O que não falta neste mundo são cães desse género. Testas-de-ferro dos capitalistas.
Testas-de-ferro?
Sim. Rastejam ali como vermes.
E também há gatos capitalistas? - quis saber Nakata. Hagita desatou às gargalhadas.
Nakata, és mesmo um caso à parte, sim senhor! Mas, repara, gosto do teu estilo. Gatos capitalistas! Essa é boa. Ora aí está uma opinião única.
Senhor Hagita?
Sim?
Nakata é pobre e recebe todos os meses um subsítio do senhor governador. Acha que está errado?
Quanto é que recebes por mês?
Nakata disse-lhe quanto era.
Hagita abanou a cabeça em sinal de indignação.
Deve ser extremamente difícil aguentares-te com tão pouco, não?
Não é bem assim. Nakata contenta-se com pouco. E, além do subsítio, as pessoas dão-lhe dinheiro para ele as ajudar a encon-liar os gatos perdidos.
A sério? Um apanhador de gatos profissional? - espantou-se Hagita, impressionado. -Tenho de reconhecer que és um sujeito espantoso.
Para ser franco, Nakata consegue falar com gatos - afirmou Nakata.,- Nakata entende a linguagem dos galos. Isso ajuda-o a encontrar todos os que andam perdidos.
Hagita acenou com a cabeça.
Estou a ver. Não me admiro nada que sejas capaz disso.
Mas ainda há pouco tempo Nakata descobriu que já não sabia falar com os gatos. Como é que isso pode ser?
As coisas mudam de dia para dia, meu velho Nakata. Todos os dias é uma nova manhã, mas o mundo não é o mesmo. E também tu deixaste de ser quem eras. Estás a ver onde quero chegar?
Sim.
E as ligações também mudam. Quem é capitalista e quem é do proletariado. Quem é de direita e quem é de esquerda. A revolução da informação, as acções da bolsa, os activos circulantes, a reestruturação do mercado de trabalho, as empresas multinacionais - tudo o que é bom e o que é mau. As fronteiras entre as coisas tornam-se cada vez mais ténues, menos rígidas. Se calhar é por isso que já não consegue falar com os seus gatos.
A diferença entre direita e esquerda, essa Nakata entende. Aqui fica a direita, e esta é a esquerda. Correcto?
Acertaste em cheio - confirmou Hagita. - É tudo o que precisas de saber.
A última coisa que fizeram juntos foi partilhar uma refeição no restaurante da área de serviço. Hagita mandou vir enguias para dois, e quando Nakata fez questão de ser ele a pagar, como forma de lhe agradecer a boleia, o motorista abanou a cabeça e disse-lhe redondamente que não.
Nem pensar nisso - afirmou ele. - Não sou propriamente rico, mas seria incapaz de comer à custa da miséria que o governador te dá à laia de subsídio.
Nesse caso, muito obrigado pelo convite - disse Nakata, demonstrando aceitar o gesto de boa vontade.
Nakata passou uma hora na área de serviço de Fujigawa a interpelar os motoristas, mas não encontrou ninguém que estivesse disposto a dar-lhe uma boleia. Apesar disso, não entrou em pânico nem perdeu as esperanças. Na sua cabeça, o tempo passava muito devagar. Ou quase não passava.Para mudar de ares foi até lá fora esticar as pernas. Não havia nuvens no céu, e a face da Lua estava perfeitamente visível. Nakata deu uma volta pelo parque de estacionamento a abarrotar de camiões do carga que aos seus olhos mais pareciam bestas gigantes alinhadas ombro a ombro, em posição de descanso. Alguns dos camiões tinham no mínimo vinte pneus gigantes, cada um mais alto do que uma pessoa. Tantos camiões, e todos eles a andarem na estrada a altas horas da noite - o que será que teriam lá dentro? Nakata não conseguia imaginar. E se fosse capaz de ler o que estava escrito de lado nos contentores, perguntava ele a si próprio, será que ficaria a saber?
Cerca de uma hora depois deu pela presença de uns dez ou mais motociclistas, todos alinhados ao lado uns dos outros num canto do parque de estacionamento onde não se viam carros. Dois ou três desses jovens formavam um círculo e estavam a olhar para qualquer loisa e a gritar. Nakata aproximou-se. Teriam descoberto alguma coisa de interessante?
Ao aproximar-se viu que formavam um círculo e que no meio [âzla por terra uma pessoa a quem os outros maltratavam, distribuindo murros e pontapés a torto e a direito. A maioria dos homens estavam desarmados, apesar de um deles exibir uma corrente na mão. Outro In.índia um cacete preto com todo o aspecto de ser um bastão de polícia. Uns usavam camisas de manga curta, abertas, outros T-shirts, Outros ainda vestiam camisolas de desporto. Quase todos tinham o i abelo pintado de loiro ou de castanho, alguns exibindo tatuagens nos braços. O jovem que estava a ser agredido por eles vestia-se da mesma maneira.
Quando deram pela presença de Nakata, que se aproximou a bater com a ponta do chapéu-de-chuva no asfalto, dois ou três viraram-«|@ e deitaram-lhe um olhar feroz. Mal viram que se tratava de um velhote inofensivo, contudo, perderam a postura agressiva.
Porque não desapareces, avozinho? - grunhiu um deles. Imperturbável, Nakata aproximou-se mais. O homem caído parecia estar a sangrar da boca.
Tem sangue - exclamou Nakata. - Pode morrer. Apanhados de surpresa, os jovens não reagiram logo.
Talvez devêssemos acabar com ele, uma vez que estamos com a mão na massa - disse o que empunhava a correia. - Matar um ou malar dois é igual ao litro.
Não se mata ninguém à toa insistiu Nakata.
Não se mata ninguém à toa - macaqueou um deles, fazendo rir os companheiros.
Temos as nossas razões, pá - disse outro. - E se damos ou não cabo dele, não me parece que isso seja da tua conta. Por isso trata mas é de pegar no teu estúpido guarda-chuva e faz-te à estrada, antes que chova.
O homem deitado no chão começou a querer rastejar, e um deles, com a cabeça rapada, chegou-se à frente e deu-lhe um pontapé nas costelas com as pesadas botas de trabalho.
Nakata fechou os olhos. Sentia qualquer coisa a crescer dentro de si, algo que não conseguia controlar, além de uma ligeira náusea. A imagem de si mesmo a apunhalar Johnnie Walker veio-Ihe de repente à memória. Voltou a sentir na mão a faca que utilizara para espetar no peito do outro. Ligação. Seria esta uma das ligações a que o Sr. Hagita se referia? Enguia = faca = Johnnie Walker. As vozes dos homens soavam abafadas e distantes, ao ponto de ele não ser capaz de as distinguir umas das outras. Misturadas com o constante ruído dos pneus na auto-estrada, produziam um som estranho. Nakata sentiu o coração palpitar, acelerado, levando o sangue através do seu corpo para todas as suas células, à medida que a noite o envolvia.
Nakata olhou para o céu, depois abriu o chapéu-de-chuva devagarinho e ergueu-o por cima da cabeça. Recuou alguns passos, cautelosamente, criando um espaço entre ele e o gangue. Olhou em volta, antes de dar mais dois passos atrás.
Os jovens riram-se ao ver aquilo.
O velho é fresco! - disse um deles. - Sabe usar o guarda--chuva e tudo!
Mas tamanha animação foi sol de pouca dura. De repente, do céu começou a cair uma chuva de estranhos objectos viscosos que produziam um som esquisito ao bater no chão. Os jovens pararam de pontapear a vítima e levantaram todos a cabeça. Não havia nuvens, mas algures lá de cima, uma a uma, havia coisas a cair. Ao princípio a conta-gotas, depois cada vez em maior número. E enquanto o diabo esfregava um olho começaram a cair em catadupa. Os objectos que choviam do céu eram pretos e tinham cerca de três centímetros. A luz do parque de estacionamento faziam lembrar a espessa chuva negra. Caíam em cima dos ombros, dos braços e do pescoço dos homens, ficavam agarrados ao corpo. Eles bem tentavam desesperadamente livrar-se dos objectos, mas não o conseguiam.
Sanguessugasl - gritou alguém.
Como que respondendo a uma palavra de ordem, os jovens começaram todos a gritar e desataram a correr na direcção das casas de banho. Um deles, que tinha o cabelo loiro, atravessou-se à frente de um carro e foi atirado ao chão. Levantou-se de um salto, deu um murro no capo do veículo e desatou a mandar vir com o condutor. Mas a coisa não passou daí, e ele dirigiu-se, sempre a coxear, até às instalações sanitárias.
As sanguessugas continuaram a cair em força durante algum tempo, até que o aguaceiro começou a abrandar e parou de vez. Nakata fechou o guarda-chuva, sacudiu as sanguessugas e foi ver em que estado se encontrava o ferido. Amontoadas por tudo quanto era sítio, as escorregadias criaturas contorciam-se, por isso ele não podia aproximar-se muito, além de que o homem deitado por terra estava parcialmente enterrado no meio delas. Olhando mais de perto, Nakata pôde ver que ele deitava sangue de um golpe na pálpebra, e que tinha alguns dentes partidos. Consciente de pouco ou nada poder fazer, Nakata apressou-se a regressar ao restaurante e disse a um dos empregados que estava um homem caído por terra no parque de estacionamento, ferido.
É melhor chamar a Polícia, senão o homem pode morrer -alvitrou ele.
Não demorou muito até Nakata encontrar um motorista de pesados disposto a dar-lhe boleia até Kobe. O homem, na casa dos vinte, não era muito alto, tinha um ar ensonado e viajava sozinho, t Isava rabo-de-cavalo, tinha uma orelha furada e um boné de basebol düS "hunichi Dragons4. Estava sentado no restaurante, a fumar e a folhear um livro de banda desenhada. Uma espampanante camisa havaiana e uns sapatões da Nike completavam o guarda-roupa.
O homem sacudiu a cinza do cigarro para dentro da tigela com restos de ramen, olhou fixamente para Nakata e acabou por concordar com a cabeça, ainda que vagamente contrariado.
Venha lá então. O senhor faz-me lembrar o meu avô. Há qualquer coisa no seu aspecto, ou talvez seja a maneira como fala, a modos que um nadinha excêntrica. Para o fim, já estava senil, o meu avô, e acabou por morrer. Isto há uns anitos...
Sempre a falar, explicou que tinha de estar em Kobe de manhãzinha. Fazia o transporte de mobiliário para um armazém que lá havia. Ao saírem do parque de estacionamento, passaram pelo local de um acidente de automóvel. Os carros-patrulha já estavam no local, com as sirenes vermelhas a piscar, e via-se um polícia a orientar o trânsito com um bastão de luz. O acidente não parecia grave. Alguns carros haviam chocado. Uma carrinha tinha a parte de lado metida para dentro e um carro ficara com o farolim traseiro partido.
O motorista do camião meteu a cabeça fora da janela e trocou meia dúzia de palavras com um polícia, antes de voltar a fechar a janela.
Diz ele que do céu caiu uma batelada de sanguessugas -contou ele, impávido e sereno. - Morreram esmagadas debaixo dos carros, a estrada ficou escorregadia e houve condutores que perderam o controlo das suas viaturas. Recomendou-me que fosse prudente e seguisse devagar. Para além disso, parece que um gangue de motociclistas deu uma tareia em alguém. Sanguessugas e motoqueiros - que combinação mais bizarra. Bom, do mal o menos. Isto sempre mantém a bófia ocupada.
A caminho da saída, e apesar de todo o cuidado, o camião derrapou duas ou três vezes, e o motorista endireitou-o com um ligeiro toque de volante.
Eh pá, parece mesmo que caiu o Carmo e a Trindade, a estrada está bestialmente escorregadia. Agora, atenção, as sanguessugas são uma coisa nojenta. Alguma vez teve uma sanguessuga agarrada a si?
Não, tanto quanto Nakata se lembra, isso nunca aconteceu - respondeu Nakata.
Fui criado lá em cima, nas montanhas de Gifu, e apanhei com elas montes de vezes. Andava a passear no bosque o parece que caíam das árvores. Punha-me a atravessar o riacho e elas grudavam--se-me às pernas. Por isso, acredite em mim, se há quem perceba de sanguessugas sou eu! Uma vez agarradas a nós, nunca mais se consegue lirá-las de lá. Se uma pessoa puxa com força por elas, a pele vem alrás e fica cicatriz. O melhor que há a fazer é chegar-lhes lume. Malditas coisas, sugam o sangue cá de uma maneira. E depois, quando eslão bem alimentadas, ficam todas cheias e moles. Uma coisa nojenta, não lhe parece?
Sim, lá isso tem razão - concordou Nakata.
Agora o que não é suposto é as sanguessugas caírem do céu em pleno parque de estacionamento de uma área de serviço. Nunca n,i minha vida ouvi falar de coisa mais estapafúrdia. Para estas bandas a malta não sabe nada acerca de sanguessugas, mas não caem do céu aos trambolhões, essa agora!
Nakata deixou-se ficar calado.
Há uns anos apareceu na Prefeitura de Yamanashi uma praga de piolhos-de-cobra e havia carros a patinar por tudo quanto era sítio, lai como agora acontece, também a estrada ficou toda escorregadia e foi um nunca mais acabar de acidentes. Espalharam-se pela via lérrea e até os comboios deixaram de poder andar. Mas não se pode di/er que piolhos-de-cobra tenham caído propriamente do céu, vieram a rastejar algures das redondezas. Toda a gente sabe isso
Nakata também já viveu em Yamanashi, há muito tempo. Durante a guerra.
A sério? - espantou-se o motorista. - E que guerra foi essa?
ESCULTOR KOICHI TAMURA ESFAQUEADO ATÉ À MORTE
ENCONTRADO NO SEU ESTÚDIO NUM MAR DE SANGUE
O escultor Koichi Tamura, conhecido em todo o mundo pela sua obra, foi encontrado morto na tarde do passado dia 30, no seu estúdio, em sua casa, em Nogata, no bairro de Nakano. Descoberto pela mulher-a-dias, Koichi Tamura estava de barriga para baixo, completamente nu e coberto de sangue. Havia sinais de luta e tudo indica que a morte do escultor tenha sido de origem criminosa. A arma usada, uma faca de cozinha, foi encontrada junto do corpo.
A Polícia considera que a morte terá ocorrido na tarde do dia 28 e, uma vez que Koichi Tamura estava sozinho, o seu corpo só dois dias mais tarde foi encontrado. O escultor foi esfaqueado várias vezes no peito com uma afiada faca de cozinha, e pensa-se que terá tido morte instantânea devido a perda de sangue causada pelos ferimentos no coração e nos pulmões. Além disso, o corpo de Tamura apresentava várias costelas partidas, presumivelmente devido à força brutal com que os golpes terão sido desferidos. A Polícia não deu a conhecer a existência de impressões digitais ou de outras pistas detectadas no local do crime. Tudo indica que o crime não foi presenciado por testemunhas.
O facto de a casa não ter sido assaltada e de na cena do crime terem sido encontrados objectos de valor e uma carteira levam a Polícia a classificar a ocorrência como tratando-se de um acto de vingança pessoal. A casa de Koichi Tamura situa-se numa área residencial sossegada, mas os vizinhos não ouviram barulho no momento do crime e mostraram-se chocados com a notícia. Tamura não tinha grande contato com a vizinhança e vivia de forma recatada, não havendo indicação de alguém ter presenciado alguma coisa fora do vulgar na altura a que se crê que o incidente terá ocorrido.
Koichi Tamura vivia apenas na companhia do filho (quinze anos), mas, segundo a empregada de limpeza, o rapaz não era visto há mais de dez dias. O filho do escultor também deixara de frequentar as aulas e a Polícia encontra-se a tentar descobrir o seu paradeiro.
Para além da sua residência, Tamura possuía um escritório e um estúdio em Musaschino City, onde, de acordo com o depoimento da tua secretária, estivera a trabalhar até à véspera da morte, numa nova peça de escultura. No dia do incidente, terá tentado entrar em contacto com ele por motivos de trabalho, mas sempre que ligou para casa o telefonema foi parar ao gravador de chamadas.
Koichi Tamura nasceu há quarenta anos em Kokubunji, em loquio. Entrou para o Departamento de Escultura da Universidade de Belas-Artes de Tóquio e, ainda enquanto estudante, criou uma série de peças inovadoras que deram nas vistas e chamaram a atenção do mundo das artes. O tema recorrente da sua obra é o inconsciente humano, e as suas esculturas, marcadas por um estilo único que desafia o convencional, foram internacionalmente elogiadas. A sua obra mais conhecida era a série de grandes proporções Labirinto, que explorava, através da expressão sem limites do recurso à imaginação, toda a beleza e inspiração que se escondem nas formas sinuosas dos labirintos. Na altura da morte, era professor convidado junto de um instituto de arte. Há dois anos, numa exposição da sua obra no Museu de Arte Mixlema de Nova Iorque (MOMA)...
Interrompi a leitura naquele ponto. Vê-se uma fotografia do portão de entrada da nossa casa, e outra do meu pai quando era novo, I dlr-se-ia que uma e outra conferem à página do jornal um tom funesto. Dobro o jornal ao meio e pouso-o em cima da mesa. I ia minha boca não sai nada. Sentado na cama, limito-me a esfregar r. pálpebras com a ponta dos dedos. Um som monótono, repetido sempre na mesma frequência, ressoa nos meus ouvidos. Experimento sacudir a cabeça para ver se me vejo livre dele, mas continua lá.
Estou no meu quarto. São sete da tarde. Oshima e eu acabámos de fechar a biblioteca, e a Sr.a Saeki já se foi embora no seu Volkswagen Golf. Na biblioteca ficámos só nós, Oshima e eu. E este irritante pulsar nos meus ouvidos que teima em não desaparecer.
Este jornal já tem alguns dias, é da altura em que ainda estavas na montanha. Quando o li pensei que talvez este Koichi Tamura pudesse ser o teu pai. Há uma quantidade de aspectos que encaixam. Era para to ter mostrado ontem, mas achei melhor esperar até estares instalado.
Aceno afirmativamente com a cabeça, sem deixar de fazer pressão sobre os olhos. Oshima não diz mais nada.
Não o matei.
Bem sei - diz Oshima. - No dia em que ele foi morto ficaste aqui na biblioteca, a ler até tarde. Não terias tido tempo de ir até Tóquio, matar o teu pai e regressar outra vez aTakamatsu. É impossível.
Mas eu não tenho assim tanta certeza. Ponho-me a fazer contas e descubro que ele foi assassinado na mesma noite em que acordei com a camisola cheia de sangue.
Mas o jornal diz que a Polícia anda à tua procura. Na qualidade de testemunha privilegiada.
Aceno com a cabeça.
Tudo seria fácil se fosses à Polícia e provasses que tens um álibi perfeito. É preferível do que andar a evitá-los. Escusado será dizer que podes contar comigo para te apoiar em tudo.
Mas, se eu fizer isso, sou obrigado a voltar com eles para Tóquio.
É o mais provável. Quer dizer, ainda te falta acabar o secundário - é o que diz a lei. Na tua idade não podes andar por onde te apetece. A lei diz que precisas de um tutor.
Abano a cabeça.
Não quero ter de explicar nada a ninguém. E não quero voltar para a nossa casa em Tóquio nem regressar à escola.
Calado, Oshima fica durante algum tempo a olhar para mim, muito sério.
Isso é uma coisa que tens de ser tu a decidir - diz ele por fim com toda a calma. - Pessoalmente, acho que tens o direito de viver onde te apetecer. Se tens quinze anos ou cinquenta e um anos, o que interessa isso? Infelizmente, não é assim que a sociedade pensa. Por isso, vamos partir do princípio de que decides não dar explicações a ninguém. Vais andar fugido da polícia e da sociedade toda a vida. A tua vida tornar-se-á um inferno. Só tens quinze anos, tens a vida à lua írente. Isso não te dá que pensar?
Fico calado.
Oshima pega no jornal e volta a passar os olhos pelo artigo.
Diz aqui que o teu pai não tinha mais família.
Tenho mãe e uma irmã mais velha - explico -, mas saíram de casa há muito tempo, e não faço ideia onde é que poderão estar. E mesmo que soubesse, duvido seriamente, de que aparecessem no funeral.
Bom, mas nesse caso quem é que vai tratar de tudo? Quero di/or, do funeral, das questões burocráticas e assim.
Como o jornal diz, ele tinha uma secretária que tratava desses lisuntos. Ela está par de tudo, por isso tenho a certeza de que se (» upará do que for preciso. Não quero nada que tenha pertencido ao meu pai. A casa, os bens e o diabo a sete - pela parte que me li» a, podem ficar com tudo. A única coisa que o meu pai me deixou li nain os genes.
Corrige-me se eu estiver enganado - pergunta Oshima -, mas N.m pareces muito impressionado pelo facto de o teu pai ter sido morto.
Isso não é verdade. Fiquei triste. Afinal de contas, estamos a lalai do meu pai. Mas só lamento que ele não tenha morrido mais cedo. Bem sei que é uma coisa horrível para se dizer... Oshima abana a cabeça. Comigo não tens problema. Agora, mais do que nunca, tens iodo o direito de dizer o que pensas.
Bom, nesse caso... - A minha voz sai fraca, mal se ouve. Sem leiem um rumo definido, as minhas palavras são sugadas pelo vazio,e não conseguem atingir o seu destino.
Oshima aproxima-se senta-se ao pé de mim.
Está tudo a acontecer-me ao mesmo tempo - começo por dizer. - Algumas coisas sucederam porque fui eu que as quis, outras não. já não consigo distinguir umas das outras. Para todos os efeitos, sinto-me como se tudo já oslivosso decidido à partida sinto que estou a seguir um caminho traçado por alguém antes de mim. Por mais que tente, por mais planos que eu faça, vai tudo dar ao mesmo. De facto, quanto mais me esforço, menos me encontro. E como se a minha identidade estivesse no ponto mais afastado da sua órbita. E isso deixa marcas e magoa-me. Mas pior do que isso, assusta-me. Só de pensar nisso, até fico todo encolhido.
Oshima estende a mão e toca-me no ombro. Consigo sentir o calor através da palma da sua mão.
Vamos partir do princípio de que todas as tuas escolhas e que todos os teus esforços foram em vão, isto só no campo das hipóteses. Ainda assim, continuas a ser quem és e mais ninguém. Além de que estás a andar para a frente, na tua pele. Por isso tem calma, não fiques angustiado.
Levanto a cabeça e olho para ele. As suas palavras transmitem uma tremenda confiança.
O que o leva a dizer isso?
A ironia.
Ironia?
Oshima olha-me nos olhos.
Ouve, Kafka. Aquilo por que estás a passar agora é tema de muitas tragédias gregas. Não é o homem que escolhe o seu destino, mas sim o destino que escolhe o homem. É nessa visão do mundo que o teatro grego assenta. E o significado da tragédia - assim o define Aristóteles - provém, por mais paradoxal que pareça, não dos pontos fracos do protagonista mas dos seus méritos. Estás a perceber o que eu quero dizer? As pessoas são empurradas para a tragédia não pelos seus defeitos, mas pelas suas virtudes. Édipo Rei, de Sófocles, é um exemplo significativo. Édipo é atraído para a tragédia não por uma questão de preguiça ou de estupidez, mas devido à sua coragem e honestidade. Ora aí está! É essa a suprema ironia.
Mas é uma situação desesperada.
Depende - diz Oshima. - Nem sempre. Mas a ironia é o que nos dá profundidade, ajuda-nos a crescer enquanto pessoas. É a porta de entrada para a salvação num plano mais elevado e, como tal, para um lugar onde é possível encontrar a esperança universal. Por isso é que as tragédias gregas ainda são lidas por tanta gente e são consideradas os clássicos por excelência. Estou a repetir-me, mas tudo é uma metáfora. As pessoas não passam a vida a matar o pai nem a dormir com a mãe, não é verdade? Por outras palavras, aceitamos a ironia através desse mecanismo de linguagem chamado metáfora.
E assim crescemos e nos tornamos seres humanos mais completos.
Embrenhado nos meus pensamentos, deixo-me ficar calado. Quantas pessoas sabem que estás em Takamatsu?
Abano a cabeça.
Fui eu que tive a ideia de vir até cá, por isso não me parece que mais alguém esteja a par disso.
Em todo o caso acho melhor não dares muito nas vistas. Fica nu quarto durante algum tempo e não apareças na zona da receção. Não creio que a Polícia consiga descobrir o teu paradeiro, se as coisas aquecerem, podes sempre procurar refúgio na cabana. Olho para Oshima. Se não fosses tu, não sei como me teria safado. Estou sozi-nliii nesla cidade e não tenho mais ninguém que me ajude.
Oshima sorri. Tira a mão de cima do meu ombro e põe-se a olhar para a palma da mão.
Isso não é verdade. Se não me tivesses conhecido, estou certo lli que lerias encontrado outro caminho a seguir. Não me perguntes como, mas tenho a certeza. É isso que penso e sinto em relação a ti. i Kliiina levanta-se e vai buscar outro jornal que está em cima da secretaria. - A propósito, veio este artigo no jornal do dia anterior. Apesar de curta, chamou-me a atenção por se tratar de uma notícia fora do vulgar. Pode não passar de uma coincidência, mas fala de uma coisa que aconteceu perto da tua casa.
CHUVA DE PEIXES DUAS MIL SARDINHAS E CAVALAS CAEM DO CÉU NA ZONA COMERCIAL DE NAKANO
Na tarde do dia 29, por volta das dezoito horas, os residentes no distritode Nakano não couberam em si de espanto ao serem confrontados com cerca de duas mil sardinhas e cavalas caídas do céu. Duas donas de casa que andavam a fazer compras no supermercado do bairro foram atingidas em cheio e ficaram com ligeiras escoriações no rosto, mas não houve mais feridos a lamentar. Na altura do incidente,o ceu apresentava-se limpo, sem nuvens, e não se registava vento forte. Muitos dos peixes estavam vivos e a saltar no pavimento da rua...
Acabo de ler o artigo e devolvo o jornal a Oshima. O repórter especulava sobre as várias causas possíveis do incidente, ainda que nenhuma fosse muito convincente. A Polícia investiga a possibilidade de roubo ou de se ter tratado de uma partida. Os serviços meteorológicos informaram que as condições atmosféricas existentes não tinham sido responsáveis pela chuva de peixes. Contactado o porta-voz do Ministério da Agricultura e Pescas, continua a não haver reacção oficial. Coisas desse género.
Tens alguma ideia do que é que pode ter acontecido? - pergunta-me Oshima.
Abano a cabeça. Não tenho nenhuma pista.
No dia a seguir a o teu pai ter sido assassinado, perto do local, duas mil sardinhas e cavalas caíram do céu. Será uma coincidência?
Acho que sim.
O jornal também diz que na área de serviço de Fujigawa, na auto-estrada de Tomei, mais tarde, nessa mesma noite, caiu do céu uma quantidade enorme de sanguessugas. E todas no mesmo sítio. Daí resultaram várias colisões ligeiras, dizem eles. Parece que as sanguessugas tinham um tamanho muito razoável. Ninguém sabe explicar por que carga de água é que as sanguessugas desataram a cair do céu. A noite estava limpa e sem nuvens, e quase não havia vento. Também não fazes ideia do que poderá ter acontecido?
Volto a fazer sinal que não com a cabeça.
Oshima dobra o jornal e diz:
O que só quer dizer que nesta vida acontecem as coisas mais estranhas do mundo. Se calhar não passa tudo de uma série de coincidências, mas isso não quer dizer que não seja motivo de preocupação. Há aqui qualquer ligação que me escapa.
Talvez seja uma metáfora - aventuro eu.
Talvez... Mas sardinhas e cavalas e sanguessugas que caem do céu? Que raio de metáfora é essa?
No silêncio que se instala tento traduzir por palavras algo que calei durante muito tempo.
Sabes uma coisa? Há muitos anos o meu pai fez uma profecia acerca de mim.
Uma profecia?
Nunca contei isto a ninguém. Para ser franco, sempre pensei que nunca iriam acreditar em mim.
Oshima não diz nada, mas o seu silêncio dá-me coragem.
Mais uma maldição do que uma profecia, verdade seja dita. O meu pai passava a vida a falar disto. Como se fizesse questão de deixar cada palavrinha bem vincada no meu espírito.
Respiro fundo e volto a recapitular aquilo que tenho para dizer. Nau que tenha de recapitular coisa alguma - aquilo está sempre ali, prtnanentemente, a martelar-me na cabeça. Mas sinto necessidade de pesar as palavras uma vez mais. E o que sai da minha boca reza assim:
Um dia matarás o teu pai com as tuas próprias mãos e ficarás com a tua mãe.
Mal acabei de dizer isto, de traduzir este pensamento em palavras concretas, apodera-se de mim um sentimento de vazio. E, dentro desse vazio, o meu coração pulsa a um ritmo incerto, metálico.
Sem mudar de expressão, Oshima deixa-se ficar a olhar fixamente para mim durante muito tempo.
Então ele disse que um dia matarias o teu pai com as tuas próprias mãos e que ficarias com a tua mãe?
Aceno afirmativamente repetidas vezes. A mesma profecia feita a Édipo. Mas isso já tu deves estar farto de saber.
Faço que sim com a cabeça.
Mas a história não acaba aí. É bom não esquecer o ougrediente que dá um toque especial à mistura. Tenho uma irmã que é seis anos mais velha, e o meu pai disse que eu também estaria com via.
O teu pai fez-te mesmo esta profecia?
Fez. Na altura ainda andava no ensino básico e não sabia o que queria dizer «ficar com». Ainda tive de esperar mais uns anitos paia lá chegar.
Oshima não diz nada. O meu pai disse-me que não havia nada que eu pudesse fazer para escapar ao meu destino. Esta profecia funciona como uma espécie de detonador dentro do meu corpo, ligado aos meus genes, e nada posso fazer para alterar esse estado de coisas. Matarei o meu pai e dormirei com a minha mae e a minha irmã.
Oshima volta a mergulhar num longo silêncio. É como se estivesse a analisar todas as minhas palavras, uma a uma, à procura de pistas que lhe permitam identificar um ponto de referência.
O que terá levado o teu pai a dizer-te uma coisa tão terrível?
Não faço ideia. Ele nunca se deu ao trabalho de perder tempo com grandes explicações - digo eu, abanando a cabeça. - Podia ser que quisesse vingar-se da mulher e da filha, que o tinham abandonado. Se calhar, queria castigá-las, usando-me a mim.
Mesmo que isso implicasse magoar-te? Aceno com a cabeça.
Aos olhos do meu pai provavelmente eu não valia mais do que uma das suas esculturas. Algo que ele podia fazer e desfazer a seu bel-prazer.
A ser verdade, essa maneira de pensar é fruto de uma mente distorcida - diz Oshima.
Lá em casa era tudo distorcido. E quando não há nada que não seja distorcido, até o que é normal acaba por parecer também tortuoso. Isso foi uma coisa que eu aprendi desde muito cedo. Mas nessa altura não passava ainda de uma criança. Se saísse dali, para onde iria?
Conheço o trabalho do teu pai e já vi esculturas dele - refere Oshima. - É um excelente escultor. As suas peças são originais, estimulantes, poderosas. Reveladoras de uma arte descomprometida, diria mesmo. O que ele faz tem, sem sombra de dúvida, o cunho da autenticidade.
Pode ser que sim. Mas o que fica, depois de tudo, é o veneno que o meu pai deixou espalhado em seu redor. O meu pai conspurcou e estragou tudo em que tocou. Só não sei se com intenção ou não. Se calhar tinha de o fazer. Talvez não passasse de uma máscara. Seja como for, palpita-me que transportava com ele algo de muito estranho. Percebes o que quero dizer?
Creio que sim - afirma Oshima. - Algo que está para além do bem e do mal. Chama-se a isso fonte de poder.
E metade dessa herança genética é minha. Se calhar foi por isso que a minha mãe me abandonou. Talvez quisesse ver-se livre de mim pelo facto de eu ter nascido de origem tão obscura. Por eu estar manchado.
Oshima pressiona ligeiramente as têmporas com a ponta dos dedos enquanto reflecte sobre as minhas palavras. Depois olha para mim com ar pensativo.
Há alguma hipótese de ele não ser o teu pai biológico? Abano a cabeça.
Essa questão ficou resolvida há alguns anos. Fomos os dois ao hospital, tirámos sangue e fizemos o teste ao DNA. Não há dúvida alguma biologicamente falando, somos pai e filho a cem por cento. Vi os resultados do teste com estes olhos.
Muito sensato da parte dele.
Palpita-me que ele queria provar-me que eu era mais uma das, suas obras de arte. Algo que ele criara e que tinha a sua assinatura.
Os dedos de Oshima continuam a fazer pressão contra as temporas.
Mas a profecia do teu pai não se concretizou, pois não? Não o mataste. Nessa altura estavas aqui em Takamatsu. Ele foi morto por outra pessoa qualquer em Tóquio. Não foi?
Sem dizer nada, abro as minhas mãos e fico a olhar para elas. ti mos que, na escuridão das trevas, ficaram cobertas de sangue.
Para dizer a verdade, não estou assim tão certo disso.
E começo a desfiar a história. Conto-lhe como naquela noite, de regresso ao hotel, perdi a consciência durante umas horas. Como acordei no meio da mata por detrás do santuário, a minha T-shirt ensopada do sangue de outra pessoa. Como tratei de lavar o sangue no lavatório da casa de banho. Como perdi a noção de tempo e fiquei sem me lembrar do que aconteceu durante várias horas. A fim de não ih. alongar, deixo de fora a noite passada em casa de Sakura. Oshima ifaz uma ou outra pergunta, preenche os espaços vazios e armazena os pormenores todos na sua cabeça. Mas guarda a sua opinião para si.
Não faço ideia de como é que todo aquele sangue apareceu espalhado pelo meu corpo, nem de quem possa ser - conto-lhe.
Mas talvez eu tivesse matado o meu pai com as minhas próprias mãos, e não estou a falar metaforicamente. Tenho a impressão de que o fiz. Como tu próprio disseste, eu estava em Takamatsu nesse dia – de certeza que não podia ter ido a Tóquio. Mas «nos sonhos começa a poiisabilidade», não é?
O poema de Yeats - lança Oshima, concordando com a cabeça.
Por isso se calhar matei-o através do meu sonho - digo. - Se calhar mergulhei num poço único de sonhos ou assim e matei-o.
Isso é o que tu pensas. E aos teus olhos pode muito bem acontecer que, num certo sentido, até seja verdade. Mas ninguém vai andar atrás de ti por razões que se prendam com a tua responsabilidade poética. E muito menos a Polícia. Ninguém pode estar em dois lugares ao mesmo tempo. E um dado científico - Einstein e essa conversa toda - e a lei aceita esse princípio.
Mas eu não estou a falar disso. A lei e a ciência não são para aqui chamadas.
-Tudo aquilo que tu estás a dizer, meu caro Kafka, não passa de especulação. Trata-se de uma teoria arriscada, é certo, mas de contornos quase surrealistas, que ficaria melhor num romance de ficção científica.
Claro que não passa de uma teoria! Sei disso perfeitamente. Não me parece que mais ninguém acredite numa história tão absurda. Mas o meu pai costumava dizer que sem uma refutação para rebater uma teoria, a ciência não avançaria nunca. «Uma teoria é um campo de batalha mental», dizia ele, era essa a sua frase preferida. E neste momento não consigo encontrar nenhuma prova que contrarie a minha hipótese.
Oshima fica calado. E eu não me lembro de mais nada para dizer.
Com que então - alvitra Oshima por fim - foi por isso que fugiste de Shikoku. Para escapar à maldição do teu pai.
Faço que sim com a cabeça, indicando o jornal dobrado.
Pelos vistos, não há fuga possível.
A distância não resolve nada, diz o rapaz chamado Corvo.
Bem, não há dúvida de que precisas de um esconderijo -afirma Oshima. - Para além disso, não sei o que te hei-de dizer mais.
Subitamente dou-me conta do cansaço que se apoderou de mim. Encosto-me a Oshima, e ele põe o braço à minha volta. Aproximo a minha cara do seu peito liso.
Oshima, não quero que isso aconteça - não quero malar o meu pai, nem dormir com a minha mãe o a minha irmã.
Claro que não - atalha ele, passando os seus dedos pelo meu abclo curto. - Isso não vai acontecer.
Só em sonhos.
Ou em metáforas - acrescenta Oshima. - Enquanto alegoria r analogia. - Faz uma pausa e depois diz: - Se quiseres, fico contigo esta noite. Posso dormir na poltrona.
Mas é melhor não. Prefiro ficar sozinho, e digo-lhe isso mesmo. Oshima afasta com a mão o cabelo que lhe cai sobre a testa. E depois de hesitar um bocado diz:
Bem sei que não passo de uma mulher homossexual e doentia que não tem remédio e se é isso que te está a apoquentar...
Não - respondo eu -, não tem nada que ver com isso. Preciso ilr eslar um tempo sozinho, é só isso.
Oshima escreve um número de telefone num bloco de notas. A meio da noite, se te apetecer
desabafar com alguém, liga para aqui. Não hesites! De qualquer forma, tenho o sono leve.Agradeço-lhe.
Foi essa a noite em que vi um fantasma.
O camião que transportava Nakata chegou a Kobe pouco passava das cinco da manhã. As luzes da cidade estavam acesas, mas o armazém ainda se encontrava fechado, e a mercadoria não pôde ser descarregada. Estacionaram numa avenida larga nas imediações do porto e passaram pelas brasas dentro do camião. O jovem motorista estendeu-se ao comprido no assento de trás - o lugar onde tinha por hábito dormir a sesta - e não tardou estava nas suas sete quintas, a ressonar. Volta e meia Nakata acordava do seu sono com os roncos do outro, mas depois tornava a cair nos braços de Morfeu. Insónia era uma coisa que Nakata nunca conhecera na vida.
Um pouco antes das oito, o jovem condutor sentou-se direito e bocejou alto.
Então, avozinho, que me diz? Está com apetite? - perguntou ele, enquanto fazia a barba com uma máquina eléctrica, usando o espelho retrovisor.
Agora que fala nisso, sim. Nakata já comia qualquer coisa. Desde que haviam saído de Fujigawa e até à chegada a Kobe, Nakata passara grande parte da viagem a dormir. O jovem motorista mal abrira a boca, limitando-se a guiar, entretido a ouvir a emissão da noite numa rádio local. De vez em quando, trauteava uma canção que Nakata nunca ouvira antes. Ele perguntava-se mesmo se as cantigas seriam em japonês, visto que não conseguia perceber quase nada das letras, só apanhando uma ou outra palavrinha pelo meio. Da sua sacola tirou o chocolate e as bolas de arroz que em Shinjuku as duas empregadas de escritório lhe tinham dado, e ofereceu metade ao motorista.
O condutor do camião tinha passado o tempo todo agarrado ao cigarro, dizendo que o ajudava a manter-se acordado. Não era de lltranhar que, ao chegar a Kobe, Nakata constatasse que tinha a roupa a tresandar a tabaco.
De saco e guarda-chuva na mão, Nakata desceu do veículo.
Podes deixar tudo cá dentro - disse o condutor. - Não nos vamos afastar muito, e assim que comermos alguma coisa voltamos logo para aqui.
Sim, tem razão, mas Nakata sente-se mais descansado se tiver as suas coisas com ele.
O jovem enrugou a testa.
Tudo bem. Não sou eu que vou ter de andar com essa tralha toda atrás. Faz como achares melhor.
Muito agradecido.
A propósito, o meu nome é Hoshino. Pronuncia-se como o nome do antigo treinador dos Chunichi Dragons. Isto apesar de não sermos da mesma família nem nada que se pareça.
Senhor Hoshino, não é? Muito gosto em conhecê-lo. Nakata, o nome é Nakata.
Ora, isso já eu estou farto de saber - exclamou Hoshino.
O rapaz orientava-se bem na zona e meteu por uma rua a grandes
passadas, obrigando Nakata a seguir atrás dele a toque de caixa para não o perder de vista. Acabaram por ir ter a um cafezinho numa rua de trás, onde se viram rodeados de camionistas e estivadores das docas.
Não se via nem uma pessoa de gravata para amostra. Todos calados e de cara fechada, a enfarda o pequeno-almoço, mais parecia que estavam a encher o depósito de gasolina. No local só se ouvia o barulho dos pratos, a empregada a gritar ordens, as primeiras notícias ldo dia transmitidas pela NHK no televisor colocado a um canto da sala. Hoshino apontou para a ementa afixada na parede.
Peça o que lhe apetecer, avozinho. Aqui come-se barato e bem.
Sim senhor - disse Nakata. E, como era bem mandado, pôs--se a olhar fixamente para a ementa até se lembrar de que não sabia ler. - Nakata tem muita pena, senhor Hoshino, mas a verdade é que não é lá muito esperto e não sabe ler.
Ai não? - admirou-se Hoshino, incrédulo. - Não sabes ler? Isso é coisa rara, nos dias que correm. Tudo bem. Vou mandar vir peixe grelhado e uma omeleta japonesa. Queres que peça a mesma coisa para ti?
Pode ser. Peixe grelhado e omeleta são dois dos pratos favoritos de Nakata.
Ainda bem que me dizes.
Nakata também gosta muito de enguias.
Ai sim? Também não desgosto. Mas não é propriamente uma coisa para se comer logo pela manhã, não achas?
Exacto. E Nakata já comeu enguias ontem à noite, quando o senhor Hagita fez o favor de o convidar para jantar.
Ainda bem que me dizes - repetiu Hoshino. - Duas doses de peixe grelhado com omeleta - gritou ele para a empregada. -E uma dose reforçada de arroz a acompanhar, pode ser?
Saem dois peixes grelhados e duas omeletas! Mais uma dose extra de arroz! - berrou por seu turno a empregada na direcção da cozinha.
Deve ser chato, uma pessoa não saber ler... - comentou Hoshino.
Sim, por vezes pode ser complicado. Mas, desde que fique por Tóquio e não saia do bairro de Nakano, não é assim tão mau. O problema é sair da cidade, como agora. Então é que são elas...
Estou a ver. Para mais, ficando Kobe fica tão longe de Nakano.
Nakata não consegue distinguir os pontos cardeais. Só sabe o que é a esquerda e a direita. Por isso, às vezes perde o norte, e depois, ainda por cima, não é capaz de comprar bilhetes
Custa a crer que tenhas conseguido chegar até aqui.
Houve muita gente que fez o favor de ajudar. E o senhor foi uma dessas pessoas, senhor Hoshino. Nakata nem sabe como lhe há-de agradecer.
Pois, não saber ler deve ser realmente uma chatice. O meu avô já estava completamente senil, mas ao menos ainda conseguia ler.
Nakata é especialmente burro.
Há mais alguém assim na família?
Não, mais ninguém. Nakata tem um irmão que é chefe de um i/e parte e mente, ao passo que o outro irmão trabalha num escritório chamado Éme-ai-ti.
Uau! - exclamou Hoshino, espantado. - Pessoal da alta. Com que enlão, és tu o único que fugiu à regra, hem?
Sim, Nakata foi o único que teve um acidente e ficou tontinho. Por isso é que as pessoas passam a vida a dizer para ele não se afastar muito e para não dar preocupações nem aos irmãos, nem às sobrinhas e sobrinhos.
Pois é, percebo que a maioria das pessoas fique sem saber o que se ficar quando apanha com uma pessoa assim pela frente.
Nakata não entende as coisas que são difíceis, mas sabe que se ficar pelo bairro de Nakano não corre o risco de se perder. O governador dá uma ajuda, e Nakata entende-se bem com os gatos, Uma vez por mês corta o cabelo no barbeiro e de vez em quando come enguias. Mas, por culpa de Johnnie Walker, Nakata não podia continuar em Nakano.
Johnnie Walker?
Esse mesmo. Um homem com botas pretas e chapéu alto. Veste casaca preta e usa bengala. Apanha gatos para lhes roubar a alma.
Não me digas... - murmura Hoshino. - Não tenho grande paciencia para histórias que nunca mais acabam. Voltando à vaca fria, aconteceu uma coisa e vieste-te embora de Nakano, foi isso?
Isso mesmo. Vim-me embora de Nakano.
E para onde queres ir?
Nakata não sabe bem. Mas uma vez aqui chegado, sabe que ainda tem de atravessar uma ponte. Uma grande ponte que fica aqui perto.
Ah, nesse caso quer dizer que vais para Shikoku.
Desculpe, senhor Hoshino, mas a geografia não é o forte de Nakata. Shikoku fica a seguir à ponte?
Exacto. Se estás a referir-te a uma grande ponte que existe para estas bandas, só pode ser a ponte de Shikoku. Melhor dizendo, as pontes de Shikoku, uma vez que estamos a falar de três. Uma que liga Kobe à ilha de Awaji, na direcção de Tokushima. Outra que atravessa Kurashiki e vai até Sakaide. E uma terceira que faz a ligação entre Onomichi e Imabari. Uma ponte teria sido mais do que suficiente, mas os políticos meteram o nariz no assunto e foi limpinho, acabámos com três... - Hoshino despejou uma pequena quantidade de água no tampo da mesa e desenhou um mapa rudimentar do Japão com o dedo, indicando as três pontes que ligavam Honshu a Shikoku.
Essas pontes são mesmo grandes? - quis saber Nakata.
Enormes.
A sério?
Seja como for, Nakata tem de atravessar uma delas. Pode ser a que fica mais perto. Depois logo se vê.
Se bem entendo, não tens amigos nem alguém da família no sítio para onde vais?
Não, Nakata não conhece ninguém para esses lados.
Quer então dizer que atravessas a ponte para Shikoku e depois continuas sempre até chegares a algures.
Isso mesmo.
E não fazes ideia onde é que fica esse algures?
Ideia nenhuma. Mas Nakata vai saber quando lá chegar.
Desisto... - Com este comentário, Hoshino afastou o cabelo da cara, ajeitou o rabo-de-cavalo e tornou a enfiar na cabeça o seu boné dos Chunichi Dragons.
Trouxeram os pedidos para a mesa e eles atacaram a comida.
Bela omeleta, hã? - perguntou Hoshino.
Sim, muito paladosa. Tem um sabor diferente das omeletas que Nakata comia sempre em Nakano.
Isso é porque é feita à moda de Kansai. Nada que se compare com essa bodega achatada e sensaborona que servem em Tóquio.
Os dois apreciaram em silêncio a refeição, composta de omeleta, cavalas grelhadas com sal, sopa de com amêijoas, nabos em conserva, espinafres frescos e algas. Comeram o arroz todo, até ao último grão. Nakata fez questão de mastigar cada garfada trinta e duas vezes, por isso demorou mais tempo a acabar.
Ficaste satisfeito?
Sim, muito. E o senhor também ficou bem?
Podes dizê-lo. Comi que nem uma besta. Um pequeno-almoço destes dá vida à alma.
Assim é, de facto.
E agora? Está na hora de fazer uma cagada?
Agora que fala nisso, parece que Nakata ficou com vontade.
Então vai lá. A casa de banho fica mesmo ali.
E o senhor Hoshino, não vai?
Mais logo. Comigo essas coisas demoram o seu tempo.
Obrigado. Com a sua licença, Nakata vai então obrar.
Olha lá, não precisas de falar tão alto. Há gente ainda a comer.
Desculpe. Nakata não é lá muito esperto. Não tem importância. Vai-te lá embora. Importa-se que Nakata também lave os dentes?
Não, estás à vontade. Temos tempo de sobra. Faz o que te fier na gana. Só uma coisa: não me parece que vás precisar do chapéu-de-chuva. Só vais à casa de banho, não é assim?
Tudo bem. Nakata deixa ficar o guarda-chuva.
Quando Nakata regressou da casa de banho Hoshino já tinha pago a conta.
Mas, senhor Hoshino, Nakata tem dinheiro e gostaria de ser ele a oferecer o pequeno-almoço. Hoshino abanou a cabeça.
Tudo em ordem! Esta é por conta do meu avô, que passou a vida a aturar-me. Se bem me lembro, eu não era nenhum menino de coro.
Pois, mas Nakata não é o seu avô...
Deixa lá isso, é muita areia para a tua camioneta. E nada de ilusoes.
Passado um momento, Nakata achou por bem aceitar a |ii neiosidade do jovem.
Nesse caso, muito obrigado. Foi uma refeição e peras.
Ora, não passou de um peixito grelhado e de uns ovos numa espelunca à beira de estrada. Não precisas de fazer uma vénia por tao pouco!
Mas sabe uma coisa, senhor Hoshino? Desde que saímos de Nakano as pessoas têm sido tão simpáticas que nem deixam Nakata pagar nada.
Boa - exclamou Hoshino, impressionado.
Nakata pediu à empregada que lhe enchesse o termo com chá quente, antes de o guardar no saco com todo o cuidado. No regresso para o local onde o camião estava estacionado, Hoshino disse:
Tenho estado cá a pensar nesta coisa de Shikoku...
Sim? - ripostou Nakata.
O que te leva a querer ir para Shikoku?
Nakata não sabe bem.
Não sabes por que diabo vais, nem concretamente para onde vais. Tudo o que sabes é que tens forçosamente de ir até Shikoku?
É isso mesmo. Nakata tem de atravessar a grande ponte. -Acreditas que, uma vez do outro lado, ficará tudo mais claro?
Pode ser que sim. Nakata só vai saber isso depois de passar para o lado de lá.
Hmm... Quer então dizer que é muito importante que atravesses a tal ponte.
Sim, mais importante do que tudo o resto
É muita areia para a minha camioneta - afirmou Hoshino, coçando a cabeça.
Como tinha de levar o camião até ao armazém para aí descarregar a mercadoria, o jovem motorista pediu a Nakata que esperasse por ele num pequeno parque que havia junto ao porto.
Não saias daqui, estás a ouvir? - advertiu Hoshino. - Há ali uma casa de banho e um bebedouro. Tens à mão tudo o que precisas. Não te ponhas para aí a vaguear, senão o mais certo é perderes-te.
Até aí Nakata já entendeu. Aqui não estamos em Nakano.
Exactamente. Isto não é Nakano. Por isso, deixa-te ficar aí sossegado e vais ver que não demoro nada.
Está bem. Nakata fica sossegado.
Isso. Volto assim que tiver despachado as coisas. Obediente, Nakata deixou-se ficar sentado e não arredou pé dali, nem sequer para ir à casa de banho. Na sua maneira de ver, permanecer num sítio durante muito tempo não era propriamente uma dificuldade. Ficar sentado e quieto era, por assim dizer, a sua especialidade.
Do sítio onde estava sentado podia alcançar o mar. Ora ali eslava uma coisa que ele há muito, muito tempo não via. Quando era pequeno, costumava ir muitas vezes à praia com a família. Lembrava-se de andar à beira-mar, de calções de banho, a chapinhar na agua. Quando estava maré baixa apanhava conchinhas. Mas as imagens desse tempo que lhe acudiam à memória não eram muito nítidas. Era como se fossem cenas que tivessem acontecido num outro mundo. Desde aquela altura, não se lembrava de ter voltado a ver o mar uma Única vez.
Depois do estranho incidente nas colinas deYamanashi, Nakata voltara a frequentar a escola em Tóquio. Recuperara a consciência e, do ponto de vista físico, encontrava-se perfeitamente bem, mas, para além de ter perdido a capacidade para ler e escrever, era como se tivessem passado uma esponja sobre a sua memória. Que é como quem diz, não conseguia acompanhar a matéria que vinha nos manuais escolares e não era capaz de fazer os exercícios escritos. Sem apelo liem agravo, o saber acumulado ao longo da vida apagara-se, bem como, em larga medida, a capacidade de pensar em termos abstractos. Mesmo assim, dera para passar de ano. Não conseguia seguir a matéria que estava a ser ensinada, pelo que se deixava ficar sossegado a um canto da sala de aula. Quando a professora lhe pedia que fizesse alguma coisa, seguia as instruções dela à letra. Como não incomodava ninguém, acontecia que os professores acabavam até por se esquecer da sua presença. É caso para dizer que mais parecia um convidado do i |ue um peso morto.
Até à data do acidente, fora sempre um excelente aluno. Até e aspecto, porém, não tardou a cair no esquecimento. Daí em diante, as actividades escolares desenrolaram-se sem que ele fosse ndo nem achado. Nunca mais fez novos amigos, mas não deixou que Isso lhe quebrasse o ânimo. Estar entregue a si próprio significava que podia dar-se ao luxo de se perder à vontade no seu próprio mundo. Na escola, em contrapartida, mostrava-se empenhado em tomar conta dos coelhos e das cabras que ali eram criadas, em cuidar dos canteiros de Mores e em manter as salas de aula limpas. Era vê-lo, sempre com um sorriso estampado no rosto, nunca dando mostras de estar cansado de semelhantes tarefas.
Não é exagero nenhum dizer-se que também em casa mal davam pela sua existência. Assim que foram informados de que o seu filho mais velho desaprendera a ler e não reunia condições para continuar a ter aulas, os pais de Nakata - preocupados até dizer chega com a educação dos filhos - começaram a não lhe ligar importância e a concentrar as suas atenções nos irmãos mais novos. Sem possibilidade de continuar a estudar e entrar para o secundário, acabou o ensino básico e foi mandado para casa de familiares da parte materna que viviam na Prefeitura de Nagano. Ali, frequentou a escola agrícola. Visto que não sabia ler, teve dificuldade em aprender a matéria e em fazer os deveres, mas, em contrapartida, adorava trabalhar no campo. Poderia até ter-se tornado agricultor, caso os companheiros de escola não lhe tivessem feito a vida negra. Aos olhos deles, não passava de um forasteiro e, verdade seja dita, nunca perdiam uma oportunidade para desancar forte e feio naquele menino da cidade. As marcas da violência tornaram-se tão evidentes (incluindo uma orelha arrancada) que os avós não tiveram outro remédio senão tirá-lo da escola e ficar com ele para dar uma mãozinha em casa. Nakata era uma criança sossegada e obediente, e os avós gostavam muito dele.
Foi mais ou menos por essa altura que descobriu que tinha o dom de comunicar com gatos. Em casa dos avós havia vários, que não tardaram a tornar-se grandes amigos de Nakata. A princípio só falava o indispensável com eles, mas depois empenhou-se de tal maneira na arte de dominar uma língua estranha que passado pouco tempo já conseguia manter com os bichanos seus amigos longas conversas. Sempre que tinha tempo, gostava de se sentar no alpendre, a conversar com os gatos. Pela parte que lhes tocava, os gatos ensinaram-lhe as mais variadas coisas no que dizia respeito à natureza e ao mundo à sua volta. De facto, pode dizer-se que praticamente todo o conhecimento básico que Nakata possuía do universo e do seu funcionamento aprendera-o com os seus amigos felinos.
Aos quinze anos tinha sido mandado para uma empresa de mobiliário a fim de aprender a trabalhar a madeira. Não se tratava propriamente de uma fábrica, mas sim de uma pequena loja de móveis que se dedicava a fazer mobiliário tradicional de madeira trabalhada. Cadeiras, mesas e cómodas, todas as peças fabricadas eram depois enviadas para Tóquio. Nakata aprendeu a gostar daquele ofício. Por seu turno, também o patrão começou a afeiçoar- se a ele, pois Nakata revelou-se não só muito talentoso com as mãos, como alento aos mais ínfimos pormenores - isto para além de ser rapaz de poucas falas e nenhumas queixa?- Claro que saber interpretar um desenho e fazer contas não eram o seu forte, mas, tirando isso, saía-se bem em tudo a que metia mãos. A partir do momento em que aprendeu o seu ofício, tornou-se incansável e mestre na arte de repetir iiienialmente os passos a dar, vezez sem conta. Depois de um período de aprendizagem que durou dois anos, ficou a trabalhar na loja a tempo inteiro.
Nakata continuou ali até depois dos cinquenta, não sabendo o que era um acidente e nunca tendo metido baixa por doença. Não bebia nem fumava, deitava-se cedo e comia frugalmente. Nunca via televisão, e só ligava o rádio para ouvir o programa de ginástica da manhã. Dia após dia, trabalhava a madeira e fazia móveis. Com o plissar do tempo os avós acabarão Por morrer. Depois, foi a vez de morrerem os pais. Toda a gente gostava dele, apesar de não se poder dizer que tivesse um grande amigo - Talvez não estivesse escrito. Para dizer a verdade, bastavam dez minutos à conversa com Nakata para a maioria das pessoas ficar sem nada para dizer.
Em todo o caso, nem por um momento ele se sentiu sozinho ou infeliz. Da mesma forma, nunca soube o que era ter desejo sexual nem sentia vontade de ficar com alguém. O que não o impedia de ter a noção de que era diferente das outras pessoas. Apesar de mais ninguém ter dado por isso, reparou que a sua sombra, reflectida no chão, era mais ténue e mais pálida do que a das outras pessoas. Só os gatos o compreendiam verdadeiramente. Nos dias de folga, costumava sentar-se num banco do parque e passar o dia inteirinho à conversa com eles. Por estranho que pareça, na presença de gatos nunca se dava o caso de ficar sem assunto.
O dono da empresa de móveis morreu tinha Nakata cinquenta e dois anos, e a loja artesanal não tardou a fechar. Aquele género de mobiliário tradicional, escuro e pesado, já não se vendia como dantes. Os artífices já eram todos pessoas de uma certa idade e os mais novos não mostravam interesse em aprender o mister. A própria loja, que em tempos ficava num descampado, mostrava-se agora rodeada de predios acabados de construir, e não tardaram a chover protestos de inquilinos queixando-se do barulho e da fumarada provocados pela madeira queimada. O filho do proprietário, que trabalhava na cidade para uma firma de contabilidade, não manifestou qualquer interesse em ficar com o negócio, apressando-se a vender o terreno a um promotor imobiliário ainda mal o caixão do pai descera à terra. Por seu turno, o construtor deitou a oficina abaixo, mandou aplanar o terreno e vendeu-o a um construtor civil, que tratou logo de edificar um prédio de seis andares naquele mesmo sítio. Todos os apartamentos foram adquiridos no próprio dia em que ficaram à venda.
E foi assim que Nakata se viu sem trabalho. A empresa foi obrigada a pagar algumas indemnizações em atraso, daí que ele tenha recebido uma quantia, ainda que irrisória, à laia de compensação monetária. Depois nunca mais conseguiu arranjar emprego. Quem é que ia dar trabalho a um homem na casa dos cinquenta, analfabeto, cujo único talento era saber fabricar móveis antigos?
Tendo laborado durante trinta e sete anos de sol a sol na marcenaria, sem faltar um único dia, Nakata conseguira amealhar bom dinheiro na conta-poupança nos Correios locais. Como não gastava quase nada consigo, o dinheiro a render permitia-lhe viver confortavelmente os anos que lhe restavam mesmo que não encontrasse outro emprego. Uma vez que não sabia ler nem escrever, era um primo seu, que trabalhava como funcionário público, a pessoa que lhe geria a conta. Acontece que este primo, não sendo má pessoa de todo, estava longe de possuir, como se costuma dizer, faro para o negócio. E foi assim que se viu metido em altas cavalarias, acabando por ficar profundamente endividado depois de ter investido o que tinha e não tinha numa estância de turismo de Inverno e de ter sido enganado por um agente imobiliário sem escrúpulos. Quase na mesma altura em que Nakata perdeu o emprego calhou este tal primo desaparecer com a família inteira do mapa a fim de escapar aos seus credores. Segundo consta, parece que havia alguns tubarões tipo yakuza atrás dele. Ninguém conhecia o paradeiro da família, nem tão-pouco se ele ainda estava vivo.
Quando Nakata arranjou quem fosse com ele aos Correios para verificar o saldo da sua conta, descobriu que só ficara com dez mil ienes. Até o dinheiro da reforma depositado directamente na conta linha levado sumiço. O mínimo que se pode dizer é que Nakata teve um azar dos diabos, ao perder o emprego e todo o dinheiro que possuía, assim de uma assentada. Os seus familiares mostraram-se muito simpáticos, mas também eles tinham caído no erro de investir dinheiro no negócio do primo e ficaram sem nada. Assim sendo, não havia quem estivesse em condições de ajudar Nakata naquele aperto.
Por fim, o mais velho dos dois irmãos de Nakata, que viviam em Tóquio, chamou a si a tarefa de tomar conta dele naquela hora difícil. Era dono de um pequeno prédio de apartamentos, em Nakano, que alugava a homens solteiros - parte da herança deixada pelos pais, e convidou Nakata a ficar instalado num deles. Tomou igualmente a seu cargo a gestão da soma de dinheiro que os pais tinham legado a Nakata - e que não era nenhuma fortuna - e arranjou as coisas de forma a ele receber um subsídio atribuído pelo governo metropolitano de Tóquio5 às pessoas com deficiências mentais. Nakata ficou assim I cargo do irmão. Ainda que não soubesse ler nem escrever, era per-leilamente capaz de olhar por si e de atender sozinho às suas necessidades diárias e, desde que tivesse a renda em dia, conseguia desenvencilhar-se sem ajuda de terceiros.
Os seus dois irmãos pouco ou nenhum contacto tinham com ele.
A princípio, quando ele se mudou para Tóquio, ainda o viram meia dúzia de vezes, se tanto, mas depois a coisa ficou por aí. Vendo bem, haviam vivido separados durante mais de trinta anos, e a diferença ile estilos de vida era abissal. Nenhum dos irmãos sentia por ele uma afeição especial e, em todo o caso, estavam ambos demasiado ocupados com as respectivas carreiras para poderem tomar conta de um irmão mais velho com uma deficiência mental.
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Não se pode dizer que Nakata tenha levado demasiado a peito o tratamento frio dispensado pela família. Estava acostumado a viver sozinho e, verdade seja dita, até ficava nervoso quando alguém se desviava do seu caminho para lhe dar atenção e ser simpático com ele. Também não ficara zangado pelo facto de o primo ter malbaratado as economias de uma vida inteira. E evidente que percebia que aquilo que acontecera tinha sido «uma coisa má», mas, no fundo, não se pode dizer que ficasse a remoer amargamente no assunto. Nakata não fazia ideia do que seria um complexo turístico, ou sequer do que significava «investir», da mesma forma que não abarcava as implicações de contrair um empréstimo. Vivia num mundo circunscrito a um vocabulário muito limitado.
Para Nakata, cinco mil ienes era a quantia mais elevada que se podia imaginar. Tudo o que fosse para além disso - cem mil ienes, um milhão ou mil milhões de ienes - era igual ao litro. Era muito dinheiro, mais nada. Até podia ter dinheiro a render no banco e tudo, mas nunca lhe pusera a vista em cima. As pessoas diziam-lhe, «tens isto tudo na tua conta» e apontavam para uma quantia que, aos seus olhos, não passava de um número abstracto. Por isso, ao receber a notícia de que ficara sem nada não teve nunca a noção de quanto perdera.
E era assim que Nakata levava uma vida regalada no pequeno apartamento que o seu irmão lhe arranjara, recebendo o seu subsídio todos os meses, utilizando o seu passe especial, indo até ao parque para trocar dois dedos de conversa com os gatos. Aquele cantinho de Nakano tornara-se o seu novo mundo. Tal como os cães e os gatos, também ele demarcava o seu território, traçando uma linha imaginária para além da qual nunca se aventurava, a não ser em circunstâncias extraordinárias. Enquanto ali permanecesse, dentro daqueles limites, sentia-se seguro e confiante. Não sabia o que era a insatisfação nem conhecera nunca o despertar da fúria contra o que quer que fosse. Nada de sentimentos de solidão e de ansiedade quanto ao futuro, nada de preocupações com as dificuldades da vida real. Dia após dia, durante mais de dez anos, foi esta a sua existência, apreciando o que a vida tinha para lhe oferecer.
Isto até ao dia em que Johnnie Walker entrou em cena.
Há anos que Nakata não sabia o que era ver o mar, uma vez que não havia mar em Nakano. Agora, pela primeira vez, dava-se conta das muitas saudades que tinha. Durante todos aqueles anos não pensara sequer nisso. Como que a confirmar esse mesmo facto, acenou afirmativamente com a cabeça para si próprio, várias vezes. Tirou o gorro da cabeça, esfregou o pouco cabelo que tinha, voltou a enfiar o gorro e deixou-se ficar ali durante muito tempo, sem tirar os olhos do mar. Tudo o que sabia acerca do mar confirmava aquilo que os seus olhos abarcavam: estendia-se a perder de vista, a água sabia a sal e era lá que os peixes viviam.
Ficou sentado no banco, a respirar o ar do mar, vendo as gaivotas a voarem em círculos por cima da sua cabeça, observando os barcos ancorados ao largo. Olhava e olhava e não se cansava do que via. Volta e meia uma gaivota branca pairava sobre as verdes ervas de Verão e pousava no parque. O contraste do branco com o verde dava um belo quadro. Nakata tentou chamar uma gaivota que andava por ali a passear na relva, mas ela não lhe deu resposta, limitando-se a lançar um olhar impessoal. Não se via nenhum gato. Os únicos animais no parque eram as gaivotas e os pardais. Enquanto Nakata bebia pequenos goles de chá do seu termo, começou a pingar, e ele abriu o seu precioso chapéu-de-chuva.
Quando Hoshino regressou ao parque, poucos minutos antes do meio-dia, já tinha parado de chover. Nakata continuava sentado no banco na mesma posição, com o guarda-chuva fechado e os olhos poslos no mar. Hoshino deixara o camião estacionado algures e viera de táxi.
Viva! Desculpa lá ter demorado tanto - disse ele. Ao ombro Ira/la um saco de viagem a imitar pele. Pensei que me despachava mais cedo, mas não houve nada que não tivesse acontecido. Calha-me sempre a mim apanhar com o empregado mais chato e picuinhas que é possível imaginar!
Não tem importância. Nakata ficou aqui sentado o tempo todo, a olhar para o mar.
Hmm - murmurou Hoshino, olhando também ele na mesma direi ção, Mas ludo o que viu foi um molhe a cair de podre e uma camada de óleo espalhada à superfície da água.
Há muito que Nakata não sabia o que era ver o mar.
Ai sim?
Da última vez ainda andava na escola. Na praia de Enoshima.
Aposto que isso já foi há muito tempo.
Na altura, o Japão estava ocupado pelos americanos. A praia de Enoshima estava cheia de soldados americanos.
Deves estar a brincar.
Nada disso.
Não gozes comigo - disse Hoshino. - O Japão nunca foi ocupado pela América.
Nakata não conhece bem os pormenores, mas os americanos tinham uns aviões que eram os B-29. Deixaram cair uma quantidade de bombas sobre Tóquio, e foi por isso que Nakata teve de ir para a Prefeitura de Yamanashi. Foi aí que ele ficou doente.
A sério? Bom, para o caso não interessa... Como te disse, não sou fã de histórias longas. Assim como assim, está na hora de seguir viagem. A coisa demorou mais do que pensava, e não tarda nada faz-se noite.
Para onde vamos?
Shikoku, claro está. Passando a ponte. Não eras tu que querias ir até Shikoku?
Era. Mas e o seu trabalho, senhor Hoshino?
Não te preocupes agora com isso. Ainda há-de estar no mesmo sítio quando eu voltar. Tenho uma data de horas extraordinárias a mais e estava a pensar tirar uns diazitos. Para ser franco, não conheço Shikoku. Já agora, aproveito a boleia. Além do mais, não sabes ler, pois não? Vai ser muito mais fácil se puderes contar com a minha ajuda para comprar os bilhetes, meu amigo. Ou preferes que eu não vá?
Nem pensar. Nakata gostaria muito que o senhor também viess
Então está decidido. Já confirmei o horário das camionetas e tudo. Shikoku: aí vamos nós!
Não sei se fantasma é a palavra correcta, mas a verdade é que nau se trata de uma coisa deste mundo - isso torna-se claro a um primeiro olhar.
Tenho como que um pressentimento, acordo de repente e vejo-o ali. Estamos no meio da noite, mas, estranhamente, o quarto encon-tia se iluminado. O luar espreita pela janela. Tenho a certeza de que fechei as cortinas antes de me deitar, mas agora estão todas abertas. A silhueta da rapariga recorta-se, perfeitamente delineada à luz translúcida da Lua.
Deve ter mais ou menos a minha idade, quinze ou dezasseis duos. Entre ter quinze e ter dezasseis anos há uma grande diferença. I pequena e elegante, mas está muito direita e não aparenta ser frágil. Tem o cabelo pelos ombros, com franja a cobrir-lhe a testa. Enverga um vestido azul com uma bainha de folhos com o comprimento per-leilo. Não usa sapatos nem meias. Os botões nos punhos do vestido estão bem abotoados. O vestido tem um grande decote redondo que permite ver o seu pescoço bem torneado.
Está sentada à escrivaninha, com o queixo apoiado nas mãos, de olhos postos na parede e a pensar em alguma coisa. Nada de muito cumplicado, quer-me parecer. Dir-se-ia que está mergulhada nos nos seus pensamentos, numa vaga e doce recordação de um tempo que passou. Vi ília e meia paira-lhe nos lábios o arremedo de um sorriso. Mas as siiinbras projectadas pelo luar impedem-me de vislumbrar a sua delicada expressão ao pormenor. Como não quero interromper o que quer que ela esteja a fazer, finjo que estou a dormir, retenho a respiração e tento fazer-me pequenino.
Só pode ser um fantasma. Antes do mais, é de uma beleza assombrosa. As suas feições são lindíssimas, mas não só. É tão perfeita que eu sei que ela não pode ser real. É como se fosse uma pessoa acabada de sair de um sonho. A nitidez da sua beleza desperta em mim um sentimento próximo da tristeza - um sentimento muito natural, mas que apenas poderia ter sido provocado por algo de extraordinário.
Fico deitado, debaixo da roupa, quase sem respirar. Ela continua ali sentada à secretária, com o queixo apoiado nas mãos, mal se mexendo. De vez em quando mexe, ligeiramente o queixo, o que faz com que o ângulo da cabeça se altere ligeiramente. É o único movimento que se regista no quarto. Consigo avistar o grande corniso[5] em botão do lado de fora da janela, brilhando ao luar. Não há vento e não se ouve nem um som. Tenho a impressão de estar morto sem ter dado por isso. Morri e ao morrer mergulho com esta rapariga nas profundezas de uma cratera que abriga um lago.
De repente, ela tira as mãos do queixo e pousa-as no colo. Adivinham-se os seus joelhos, pequenos e pálidos, por baixo da bainha. Ela desvia os olhos da parede e vira-se para mim. Leva a mão ao cabelo que lhe cai sobre a testa - os seus dedos esguios, de menina, demoram-se durante algum tempo na testa, como se ela estivesse a querer lembrar-se de alguma coisa. Está a olhar para mim. O meu coração começa a bater mais forte, mas, estranhamente, ela parece não me ver. Talvez não esteja a olhar para mim, mas para além de mim.
Nas profundezas da cratera vulcânica, o silêncio é total. O vulcão encontra-se extinto há séculos. Camada após camada, a solidão incrustou-se como ondas de lama empapada. A escassa luz que atravessa a superfície da água e chega ao fundo alumia o espaço em volta como o reflexo de uma recordação distante. A tão grande profundidade, não existe sinal de vida. Não sei durante quanto tempo ela fica a olhar para mim - ou, se não para mim, para o lugar em que me encontro. Perdi por completo a noção do tempo. O tempo expande-se e depois contrai-se, de harmonia com os batimentos do coração.
E então que, de um momento para o outro, a rapariga se levanta e caminha na direcção da porta, num passo vagaroso e leve. A porta está fechada, mas ela desaparece sem fazer barulho.
Deixo-me ficar onde estou, deitado na cama. Abro os olhos um bocadinho de nada e não mexo um músculo. Tanto quando sei, ela pode muito bem voltar, penso para comigo. Melhor dizendo, só desejo que volte. Mas por mais que espere ela não volta a aparecer. Levanto a cabeça e olho de relance para os números fosforescentes no despertador que está na mesinha-de-cabeceira. Três e vinte e cinco. Saio da cama, vou até à cadeira onde ela esteve sentada e toco nela. Nao está quente nem nada. Vasculho o tampo da escrivaninha, na esperança de descobrir alguma coisa que ela possa ter deixado ficar - um simples cabelo, quem sabe? Mas não encontro nada. Sento-me u.i cadeira, esfrego a cara com a palma das mãos e solto um longo suspiro.
Puxo as cortinas e volto para vale de lençóis, mas não há maneira de conseguir adormecer. Só consigo pensar naquela misteriosa rapariga. Uma força estranha e poderosa, como nunca senti antes, cresce no meu coração, ganhando raízes, avolumando-se. O meu coração quente bate, selvagem, contra as costelas, independentemente do meu querer. Expande-se e contrai-se. Expande-se e contrai-se.
Acendo a luz e fico à espera de que a manhã chegue, sentado na (ama. Não consigo ler, não consigo ouvir música. Não consigo fazer nada a não ser ficar aqui sentado, à espera da manhã. À medida que o céu começa a clarear, consigo passar pelo sono. Quando acordo, estou na almofada fria e molhada de lágrimas. Lágrimas por que motivo? Não íaço ideia.
Por volta das nove, oiço Oshima chegar no seu Miata. Preparamos as coisas para a abertura da biblioteca e, uma vez tudo pronto, arranjo lhe um café. Ele ensinou-me a preparar um café que se beba. Moemos os grãos na altura, fervemos água num recipiente de gargalo estreito, deixamos a água repousar um bocado, depois, devagarinho - e quando digo devagarinho é devagarinho -, deitamos a água através do filtro de papel. Quando o café fica pronto Oshima põe-lhe um nadinha de açúcar, só por graça, e bebe-o sem leite. É assim que se deve beber o café, insiste ele. Para mim, faço uma chávena de Earl Grey.
Oshima veste uma camisa brilhante de manga curta, castanha, e calças brancas. Limpa os óculos com um lenço acabado de passar a ferro que tira do bolso e dirige-se a mim.
Estás com cara de quem passou a noite em claro.
Há uma coisa que me podias fazer - digo eu.
Diz.
Gostava de ouvir Kafka à Beira-Mar. Consegues arranjar-me o disco?
Não queres antes o CD?
Se possível, preferia em vinil, gostava de ouvir como soava originalmente a canção. Claro que para isso seria preciso um gira-discos.
Oshima põe um dedo na testa e pensa.
Acho que é capaz de haver um velho gira-discos na arrecadação. Não sei é se ainda funciona.
A arrecadação fica numa linha mesmo à frente do parque de estacionamento. Não tem janelas, apenas uma clarabóia no cimo. Objectos de toda a espécie e feitios e das mais variadas épocas encontram-se amontoados ao deus-dará - móveis, pratos, revistas, roupa e quadros. Algumas das coisas são obviamente valiosas, mas outras - de facto, a maior parte - têm aspecto de não valer nada.
Um dia destes havemos de deitar fora esta tralha - comenta Oshima -, mas até à data ainda ninguém teve coragem de lançar mãos à obra.
No meio daquele espaço onde se acumulam os despojos do tempo encontramos um velho aparelho estereofónico Sansui. Coberto de uma fina camada de pó esbranquiçado, o gira-discos em questão parece estar inteiro, apesar de ter todo o aspecto de já não se fabricar daquilo há mais de vinte e cinco anos. O conjunto é formado por um prato para discos de vinil, contador de amperes, amplificador e colunas. Encontramos também uma colecção de velhos LP, quase tudo êxitos da música pop dos anos sessenta - Beatles, Stones, Beach Boys, Simon e Garfunkel, Stevie Wonder. Devem ser para aí uns trinta álbuns.
Tiro alguns de dentro das capas. Quem costumasse ouvi-los tratava bem deles, porque não têm vestígios de bolor nem um risco para amostra.
Na arrecadação também existe uma guitarra, ainda com as cordas todas. Mais uma pilha de revistas antigas de que nunca ouvi lalar, e uma velha raqueta de ténis toda desconjuntada. Tudo com o aspecto de ruínas de um passado não muito distante.
Imagino que tudo isto tenha pertencido ao namorado da lenhora Saeki - refere Oshima. - Como te disse, ele costumava viver nesta casa, e devem ter deixado ficar as coisas dele aqui. Só o gira-discos é que me parece mais recente.
Pegamos no gira-discos e nos discos e acartamos tudo para o meu quarto. Depois de limparmos o pó, metemos a ficha na tomada, ligamos o prato e o amplificador e carregamos no botão. Já está! A luzinha verde do amplificador acende-se e o prato começa a rodar. Verifico o braço do gira-discos e vejo que a agulha ainda está em bom estado, depois tiro o LP Sargeant Pepper's Lonely Hearts Club liand e ponho-o a tocar. Ouve-se a inesquecível introdução de guitarra. O som é muito mais limpo do que seria de esperar.
O Japão tem os seus problemas - diz Oshima, a sorrir -, mas se há coisa que sabemos fazer é um sistema de som. Repara, há seculos que esta coisa não é usada, mas ainda tem um som fantástico.
Ficamos ali a escutar o álbum dos Beatles durante um bocado. Comparado com a versão em CD, parece outra música.
Bom, já temos com que nos entreter - conclui Oshima -, agora encontrar o single de Kafka a Beira-Mar pode ser um bico-de-oIh.i. Estamos a falar de uma raridade, nos dias que correm. Vamos fazer uma coisa. Deixa-me perguntar à minha mãe. Pode ser que ela lenha uma cópia lá em casa, guardada em qualquer parte. Se não, pode ser que conheça alguém que tenha.
Concordo com a cabeça.
Oshima levanta um dedo, como um professor a advertir um aluno.
Só há uma coisa. Acho até que já te tinha dito isto. Nunca, mas num a, ponhas o disco a locar quando a senhora Saeki cá estiver. Em circunstância alguma. Percebido?
Volto a fazer que sim com a cabeça.
Como em Casablanca - diz ele, e trauteia o princípio de As Time Coes by. - Nunca, mas nunca mesmo, toques essa canção. Percebeste?
Oshima, tenho uma coisa para te perguntar. Costuma aparecer por aqui alguma rapariga da minha idade?
Quando dizes aqui estás a referir-te à biblioteca? Aceno afirmativamente.
Oshima inclina levemente a cabeça e fica a matutar naquilo.
Que eu saiba, não - responde, olhando fixamente para mim como se estivesse a espreitar para o quarto através de uma janela. -É curioso que faças essa pergunta.
Tenho a impressão de a ter visto há pouco tempo - digo.
Quando é que foi isso?
A noite passada.
A noite passada viste uma rapariga de quinze anos aqui?
Sim.
Que género de rapariga? Sinto-me corar.
Uma rapariga normal. De cabelo a dar-lhe pelo ombro. Com um vestido azul-claro.
Bonita?
Digo que sim com a cabeça.
Pode ser uma fantasia sexual - diz Oshima, fazendo uma careta. - Ele há coisas estranhas nesta vida. Mas no caso de um rapaz heterossexual da tua idade, ter fantasias desse género não é nada do outro mundo.
Ao lembrar-me de que Oshima me viu completamente nu na cabana, coro ainda mais.
Durante o nosso intervalo para almoço Oshima passa-me para a mão uma capa amarela com o single de Kafka à Beira-Mar lá dentro.
Afinal a minha mãe sempre tinha o disco. Cinco cópias. Dá para acreditar? Não há dúvida que ela guarda tudo. Uma mania um bocado infeliz, mas desta vez não nos podemos queixar.
Obrigado - digo-lhe eu.
Regresso ao meu quarto e tiro o quarenta e cinco rotações de dentro da capa. O disco tem aspecto de nunca ter sido tocado. Na fotografia da capa, a Sr.a Saeki - devia ter dezanove anos, segundo Ishima me contou - está sentada ao piano num estúdio de gravação. Virada para a câmara, descansa o queixo nas mãos, tem um braço apoiado na estante de música, a cabeça ligeiramente descaída para um lado e no rosto um sorriso natural com um toque de timidez. Os lábios estão delicadamente cerrados, e nos cantos da boca forma-se um leque de pequenas linhas adoráveis. Não parece estar pintada. 1 c-Mi o cabelo apanhado atrás com um travessão de plástico para impedir que lhe caia sobre a testa, e vê-se parte da orelha direita através das madeixas. Traz um vestido azul-claro, curto e solto, e usa i orno único enfeite uma pulseira de prata no pulso esquerdo. Ao lado do banco do piano vê-se um elegante par de sandálias. Os seus bonitos pés estão nus.
Mais parece um símbolo de qualquer coisa. De um certo tempo, de um certo lugar. De um certo estado de espírito. É como se ela fodde uma sílfide despertada por um feliz acaso. Uma aura etérea de inocência, inabalável, flutua em torno dela como esporos quando chega a Primavera. Nesta fotografia o tempo ficou parado. Estava-se em 1969 - muito antes de eu ter nascido.
Soube desde o princípio que a rapariguinha que aparecera no meu quarto na noite passada era a Saeki-san. Nunca duvidei disso um segundo que fosse. Só queria ficar com a certeza.
Em relação à fotografia em que tinha quinze anos, aos dezanove Saeki-san está mais crescida, com um ar mais maduro. Se tivesse de ( omparar as duas, diria que os contornos das suas feições parecem mais definidos, mais acentuados. À mais velha das duas, falta-lhe uma insegurança. Mas, tirando isso, pode dizer-se que a rapariga com dezanove anos é igualzinha à rapariga com quinze. O sorriso para a fotograíia é o mesmo que eu ontem vislumbrei. A maneira que ela tem de pousar o queixo nas mãos e inclinar a cabeça - é a mesma. E na Sr.ª Saeki de agora, na actual Sr.a Saeki, consigo descortinar as mesmas expressões e os mesmos gestos. Fico contente ao ver que essas características, bem como o seu sentido do maravilhoso, não mudaram nem um bocadinho. Até a postura dela é praticamente a mesma.
E, contudo, há qualquer coisa nesta fotografia da rapariga de dezanove anos que a mulher de meia-idade que eu conheço perdeu para sempre. Poderíamos chamar-lhe uma perda de fulgor. Nada que se veja a olho nu, é mais um certo apagamento, transparente e incolor como a água fresca que escorre sem se ver por entre as rochas - uma espécie de apelo natural e puro que vai direito ao coração de toda a gente. Essa energia emite um brilho que irradia de todo o seu ser, ali sentada ao piano. Basta olhar para aquele sorriso de felicidade desenhado nos seus lábios para traçar o caminho aprazível que um coração satisfeito deve seguir. Tão seguro como a luz de um pirilampo que continua a brilhar, muito depois de ele ter desaparecido no escuro.
Deixo-me estar sentado durante muito tempo na cama, com a capa do disco na mão, deixando apenas o tempo escoar-se, sem pensar em nada. Abro os olhos, vou até à janela e aspiro profundamente o ar fresco. Na brisa, que atravessa o pinhal, sente-se o cheiro do mar. A pessoa que vi neste mesmo quarto na noite anterior era sem sombra de dúvida a Saeki-san quando tinha quinze anos. A verdadeira Sr.a Saeki, como não podia deixar de ser, ainda está viva. E uma mulher na casa dos cinquenta, que tem uma existência real neste mundo real. Neste preciso momento encontra-se lá em cima, no seu escritório, sentada à secretária a trabalhar. Para a ver, só preciso de sair deste quarto e subir as escadas, e lá está ela. Posso ficar na companhia dela, falar com ela - mas nada disso muda o facto de aquilo que eu vi ter sido o seu fantasma. Uma pessoa não pode estar em dois sítios ao mesmo tempo, afirmou Oshima, mas eu estou convencido de que isso pode acontecer. De facto, tenho a certeza disso. Que uma pessoa pode transformar-se em espírito ainda em vida.
E há ainda outro facto importante a ter em consideração: sinto-me atraído por esse espírito, atraído por ela. Não pela Sr.a Saeki tal como ela é agora, mas pela Saeki-san que já não é. Muito atraído mesmo, movido por um sentimento tão forte que é impossível descrever. E pouco importa o que possam dizer, isto é real. Pode muito em acontecer que ela não exista, mas só de pensar nela o meu coração - o meu coração verdadeiro a minha carne e o meu sangue - desata a bater com força no meu peito. Estes sentimentos são tão
verdadeiros como o sangue incrustado no meu peito naquela noite pavorosa.
Perto da hora de fecho a Sr.a Saeki desce as escadas, os saltos dos sapatos a fazerem barulho nos degraus. Ao dar pela sua presença, os músculos do meu corpo contraem-se e consigo ouvir o meu coração a pulsar. Quando olho para ela, vejo a rapariguinha de quinze anos. como um animalzinho que dorme o sono da hibernação, está toda enroscada sobre si mesma dentro da Sr.a Saeki, sem dar sinal de vida.
A Sr.a Saeki está a perguntar-me qualquer coisa, mas não consigo lesponder. Nem sequer sei qual foi pergunta. É óbvio que estou a ouvi-la - as suas palavras vibram nos meus tímpanos e enviam ao cérebro uma mensagem que se transforma em linguagem -, mas é como se existisse uma desarticulação entre as palavras e o seu significado. Desorientado, coro e balbucio qualquer coisa sem sentido, Oshima entra em cena e responde à pergunta no meu lugar. Aceno com a cabeça, em sinal de concordância. A Sr.a Saeki sorri, despede-se de nós e vai-se embora para casa. Ouve-se o motor do seu Golf a arrancar. O som afasta-se até desaparecer por completo.
Oshima fica mais um bocado e ajuda-me a fechar a biblioteca.
Por acaso não estarás apaixonado nem nada? - quer ele saber. Digo isto porque pareces estar ausente.
Como não sei o que lhe hei-de dizer, não respondo. Em vez disso, faço-lhe eu uma pergunta.
Oshima, bem sei que isto pode parecer-te estranho, mas será possível uma pessoa, ainda em vida, transformar-se num fantasma?
Oshima pára de arrumar as coisas no balcão e olha para mim.
Ora aí está uma pergunta muito interessante. A pergunta refere-se à alma humana num sentido literário, que é como quem diz, inelaíórico? Ou estás a referir-te à realidade?
Talvez esteja a falar mais no concreto - digo.
Queres tu dizer, partindo do princípio de que os fantasmas ixistem?
Exacto.
Oshima tira os óculos, limpa-os com o lenço e volta a pô-los.
É aquilo a que se chama um «espírito vivo». Não sei como as coisas se passam lá fora, nos outros países, mas esse género de coisas aparece muito na literatura japonesa. O Conto de Genj, por exemplo, está cheio de espíritos vivos. No período Heian, ou pelo menos no mundo espiritual de quem viveu nesse período, acontecia as pessoas transformarem-se em espíritos vivos e viajarem no espaço a fim de concretizarem os seus desejos. Alguma vez leste O Conto de Genj
Respondo que não com a cabeça.
A nossa biblioteca tem uma ou duas traduções modernas, talvez fosse boa ideia leres uma delas. Seja como for, um exemplo disso é quando a dama Rokujo - que é uma das amantes do príncipe Genji - consumida pelos ciúmes da esposa oficial do príncipe, Lady Aoi, se converte num espírito maléfico, que se apodera dela. Noite após noite, vai ter com a dama Aoi à cama e desfere os seus ataques acabando por matá-la. A dama Aoi estava grávida de um filho de Genji, e foi essa notícia que instigou o ódio da dama Rokujo. Genji manda chamar padres para exorcizarem o espírito maléfico, mas o ódio de Rokujo é tão violento que a tarefa de derrotar o espírito se torna impossível.
«Mas a parte mais interessante desta história é o facto de a dama Rokujo não ter nunca a percepção de se haver tornado um espírito vivo. Tinha pesadelos e certa noite, ao acordar, notou que o seu cabelo cheirava a fumo. Não fazendo a mínima ideia do que estava a acontecer, sentiu-se totalmente perdida. Na realidade, o fumo provinha do incenso que os padres acenderam enquanto rezavam por Aoi. Sem o saber, ela andara a vogar no espaço e atravessara o túnel do seu inconsciente a fim de alcançar o quarto de Aoi. É um dos episódios mais perturbantes e impressionantes do livro. Depois de ficar a saber tudo aquilo que, sem ter consciência, fizera, arrepende-se dos pecados cometidos, rapa o cabelo e renuncia ao mundo, entrando para um convento.
«Este mundo misterioso representa a escuridão dentro de nós. Muito antes de Freud e Jung lançarem alguma luz, através da psicanálise, sobre os meandros do inconsciente, a correlação entre essas duas formas de escuridão que são as trevas e o nosso inconsciente era uma realidade aos olhos do mundo. Nem sequer se pode dizer que se tratava de uma metáfora. E se recuarmos ainda mais, nem sequer era vista como uma correlação. Até Edison ter inventado a luz eléctrica, o mundo permanecia, praticamente na sua totalidade, mergulhado na escuridão. A escuridão física, exterior, e a escuridão interior da alma estavam interligadas, sem que houvesse uma fronteira a separá-las. Estavam intimamente relacionadas. Assim, e Oshima põe as mãos muito juntinhas. «No tempo de Murasaki Shikibu, os espíritos vivos eram, a um tempo, um fenómeno misterioso e uma condição natural da alma humana. Naquela altura, não passava pela cabeça das pessoas que esses dois tipos de trevas pudessem ser realidades à parte. Hoje em dia, porém, as coisas são diferentes. A escuridão no mundo que nos cerca desvaneceu-se, mas a que enche os nossos corações permanece viilualmente inalterada. Como um icebergue, aquilo a que chamamos o eu ou a consciência encontra-se, em grande parte, mergulhado na na escuridão. E é esse alheamento que por vezes nos conduz interiormente a uma profunda contradição ou confusão. À volta da tua cabana, na montanha, a escuridão é um facto. - Precisamente - admite Oshima. - Ainda reina ali a verdadeira escuridão. Chego a ir até lá só para experimentar na pele o que isso representa. O que será que leva as pessoas a tornarem-se espíritos vivos? É uma coisa sempre negativa? Não sou propriamente um especialista na matéria, mas, tanto que julgo saber, esses espíritos vivos resultam das emoções negativas. Os centimentos mais violentos do homem provêm quase sempre de experiências muito pessoais e muito negativas. E esses espíritos vivos de geração em de geração espontânea. É triste dizê-lo, mas não se conhecem mais de espíritos vivos que tenham aparecido fruto de uma premissa logica ou apostados em trazer paz ao mundo. É fruto do amor? Oshima senta-se, pensativo. Essa é das difíceis. A única coisa que te posso dizer é que não conheço nenhum exemplo concreto. A não ser aquele conto, Encontro pelos Crizântemos em Contos da Chuvae da Lua. Leste alguma vez? Respondo que não.
Contos da Chuva e da Lua foi escrito no final do período Edo por um homem chamado Ueda Akinari3. Contudo, a história passava-se no período anterior à Guerra dos Estados, o que confere à abordagem de Ueda um tom vagamente nostálgico. «Seja como for, neste conto dois guerreiros tornam-se muito amigos e fazem um pacto de sangue. Aos olhos dos guerreiros, isto é uma coisa extremamente importante. Ao tornarem-se irmãos de sangue, isso significa que entregam a vida nas mãos um do outro. Os dois vivem em lugares afastados e servem senhores diferentes. «Ao despedirem-se, um deles diz que, aconteça o que acontecer, irá visitá-lo quando os crisântemos estiverem em flor. Mas antes que o primeiro consiga pôr-se em campo para cumprir a sua promessa, vê-se envolvido numa disputa entre clãs no seu terreno e acaba por ficar detido sem que lhe seja permitido escrever sequer uma carta. O Verão chega ao fim e vem o Outono, tempo dos crisântemos. O guerreiro vê-se impossibilitado de honrar a promessa que fez ao amigo. Para um guerreiro, nada é mais importante do que uma promessa. A honra é mais importante do que a própria vida. É assim que este guerreiro pratica haraquiri, transformando-se num espírito e empreendendo uma viagem para ir ter com o seu amigo. Sentam--se então os dois no meio dos crisântemos e dizem o que lhes vai na alma, e é assim que o espírito desaparece da face da Terra. É um conto maravilhoso. Mas ele teve de se sacrificar a fim de se transformar num espírito. Sim, de facto assim foi - acrescenta Oshima. - Tudo indica que as pessoas não podem tornar-se espíritos em nome da honra, do amor ou da amizade. Para que isso aconteça têm de morrer. As pessoas sacrificam a sua vida pela honra, pelo amor ou pela amizade, e só então se transformam em espíritos. Mas, se estivermos a falar de espíritos vivos, nesse caso a história já é diferente. A verdade é que eles parecem sempre impelidos pelo mal. Fico a matutar naquilo.
Mas, tal como tu disseste, talvez haja exemplos - continua Oshima - de pessoas que se convertem em espíritos vivos graças aos bons sentimento do amor. Confesso que nunca me debrucei profundamente sobre esse aspecto. Pode ser que tal aconteça. O amor pode mudar o mundo, não é o que dizem? Tudo vale a pena quando rima não é pequena. - Alguma vez estiveste apaixonado? - pergunto eu. Ele olha para mim, apanhado de surpresa. O que pensas? Não sou uma estrela-do-mar nem uma pimen-Iníi.i bastarda. Sou um ser humano, uma pessoa de carne e osso. Claro que já estive apaixonado. Não era isso que eu queria dizer - acrescento, corando. Bem sei - replica ele, ao mesmo tempo que sorri docemente paramim. Depois de Oshima se ter ido embora, regresso ao meu quarto, ligo a aparelhagem, baixo a agulha e oiço Kafka à Beira-Mar, seguindo a letra que aparece reproduzida na capa.
Ouando te vejo à margem do mundo,
Estou na cratera de um vulcão extinto.
Como palavras sem letras
|
Na sombra de uma porta.
O luar cai sobre um lagarto adormecido,
Chovem pequenos peixes do céu.
Da janela vêem-se soldados,
Oue se preparam para morrer.
(Refrão)
Sentado à beira-mar numa cadeira de praia,
Kafka pensa no pêndulo que faz girar o mundo.
Quando fechas a porta do teu coração,
A sombra da impenetrável esfinge
Transforma-se numa faca que rasga os sonhos.
Os dedos da rapariga à beira de se afogar
Procuram a pedra da entrada, e vão mais longe.
Ela levanta a bainha do seu vestido azul-celeste,
E segue com o olhar Kafka à beira-mar.
Ponho o disco a tocar três vezes seguidas. Primeiro, gostaria que alguém me dissesse como é que uma canção com uma letra destas pode ter vendido mais de um milhão de cópias. Não estou a dizer que as palavras sejam arrevesadas nem nada, mas que têm uma nota de simbolismo e surrealismo, lá isso têm. Não se pode dizer que seja propriamente uma letra que fique no ouvido. Mas também é bom que se diga que, escutando a canção umas quantas vezes, as palavras começam a soar de forma mais familiar. Uma a uma, as palavrinhas vão direitas ao meu coração e ficam lá cravadas. É uma sensação estranha. Imagens, que vão para além do seu significado, destacam-se como figuras esculpidas e tornam-se independentes, como acontece no sono mais profundo.
A música é lindíssima, simples, diferente, mas de forma alguma banal. E a voz da Saeki-san cola-se a ela e acompanha com grande naturalidade a melodia. Falta-lhe volume, é certo - não é aquilo a que se poderia chamar uma cantora profissional -, mas trata-se de uma voz que ajuda a desanuviar o espírito, num efeito semelhante a um aguaceiro que na Primavera cai sobre as pedras que formam um caminho no meio de um jardim. Ela acompanha-se a ela própria ao piano. A pequena secção de cordas e o oboé devem ter sido acrescentados depois. Provavelmente o orçamento obrigou a um arranjo simples, mas, vendo bem, é a simplicidade que confere à canção todo o seu encanto.
O refrão tem dois acordes invulgares. Os outros não são nada do outro mundo, mas estes dois soam de maneira diferente, nada que se consiga trautear sem ouvir a canção pelo menos umas duas ou três vezes. A princípio, fazem-me confusão. Exagerando um bocadinho, diria que me senti enganado. A completa estranheza provocada pelo som lançou-me numa certa inquietação, como acontece quando somos atingidos subitamente por uma rajada de vento frio que sopra por uma fresta. Porém, assim que o refrão chega ao fim, retoma-se a bela melodia que nos transporta para aquele mundo original onde se respira harmonia e confiança. Acabou-se o vento gélido. Quando o piano faz soar a sua última nota e as cordas mantêm vibrante o acorde final, é o som suspenso do oboé que conduz a canção ao seu fim.
Ao ouvir Kafka à Beira-Mar várias vezes de seguida, começo a perceber como é que a canção tocou as cordas sensíveis do coração de muito boa gente. Expressão viva de um espírito afectuoso, a canção é ao mesmo tempo produto de um talento natural desprendido, numa combinação que nos dá a sensação de estarmos perante um milagre. Uma rapariguinha de dezanove anos, vinda da província, escreve uma letra dedicada ao seu namorado que está longe, senta-se ao piano, compõe uma canção e canta-a sem qualquer pretensão. Ela não escreveu a canção para ser ouvida por mais ninguém, mas sim para si mesma, para ver se aquecia o seu coração, nem que fosse só um bocadinho. E essa sua preocupação consigo mesma foi precisamente o que tocou fundo no coração dos homens.
Para o meu jantar preparo uma refeição ligeira com as coisas que tenho no frigorífico. Depois, volto a pôr Kafka à Beira-Mar a tocar no gira-discos. De olhos fechados, deixo-me ficar sentado na cadeira e tento imaginar Saeki-san aos dezanove anos no estúdio, a tocar plano e a cantar. Penso no amor que ela deve ter sentido enquanto cantava. Penso na violência insana que condenou para sempre esse amor.
O disco chega ao fim, a agulha levanta-se e o braço do gira-discos regressa ao princípio.
A Saeki-san pode muito bem ter escrito a letra de Kafka à Beira-Mar neste mesmo quarto. Quanto mais oiço o disco, mais me convenço de que este Kafka na praia é o jovem do quadro que está na parede. Sento-me à secretária e, como aconteceu com ela a noite passada, Ipnlo o queixo nas mãos e ponho-me a olhar fixamente para o qua-dro que tenho à minha frente. O ângulo é o mesmo. Sem sombra de dúvida, lenho a certeza de que foi neste quarto que ela compôs a canção. Vejo-a a olhar para o quadro, a evocar o rapazinho, a escrever o poema que depois musicou. Provavelmente a altas horas, quando já era noite cerrada.
levanto-me, vou até junto do quadro e examino-o mais de perlo, O jovem está a olhar para longe e o alheamento confere aos seus olhos uma misteriosa profundidade. No céu, a um canto, recortam-se com impressionante nitidez, algumas nuvens, e a maior de todas leni a forma de uma imensa esfinge deitada.
Vasculho a minha memória. A Esfinge era o inimigo que Édipo levou de vencida ao decifrar o enigma. Confrontada com a derrota, lançou-se de um penhasco e pôs fim à vida. Foi assim que Édipo se tornou rei de Tebas e casou com a rainha, que não era outra senão a sua própria mãe. E, depois, o nome de Kafka. Suspeito bem de que Saeki-san o tenha escolhido pelo facto de, na sua cabeça, a misteriosa solidão do rapaz no quadro se confundir com o universo ficcional de Kafka. Isso explicaria o título: uma alma solitária vagueando à beira--mar numa praia absurda.
Mas há mais versos que coincidem com coisas que aconteceram na minha vida. Aquela parte que se refere à «chuva de peixes que caiu do céu» - não foi isso mesmo que aconteceu naquela zona comercial de Nakano, quando centenas de sardinhas e cavalas desataram a cair do céu? A parte que fala de como a sombra «se transforma numa faca que trespassa os sonhos» podia muito bem referir-se ao esfaqueamento do meu pai. Um a um, passo todos os versos da letra para o meu caderninho de notas e volto a lê-los, sublinhando as partes que mais chamam a minha atenção. Mas no fim acho tudo aquilo muito vago e fico sem saber o que pensar.
Como palavras sem letras
Na sombra de uma porta...
Os dedos da rapariga à beira de se afogar...
Procuram a pedra da entrada, e vão mais longe...
Da janela vêem-se soldados,
Que se preparam para morrer...
O que será que esses versos querem dizer? Não passará tudo de uma série de coincidências? Aproximo-me da janela e fico a olhar para o jardim. Lá fora a escuridão cai sobre o mundo. Vou até à sala de leitura e abro O Conto de Genji na tradução de Tanizaki. Às dez meto-me na cama, apago a luz da mesa-de-cabeceira e fecho os olhos, na esperança que a Saeki-san dos quinze anos resolva aparecer neste quarto para dar um ar da sua graça.
Já passava das oito da noite quando o autocarro que partira de Kobe chegou em frente à estação de Tokushima.
Bem, meu caro Nakata, aqui estamos. Aí tens Shikoku.
Que ponte fantástica. Nakata nunca tinha visto nenhuma assim tão grande.
Os dois desceram do autocarro, sentaram-se num banco em lirnic do estacão e ficaram ali a observar o ambiente que os rodeava.
E agora? Recebeste alguma mensagem do oráculo ou coisa que o valha? - perguntou Hoshino. A dizer qual é o nosso destino? O que devemos fazer?
Não. Nakata não faz ideia.
Porreiro...
Com ar de quem sabia o que estava a fazer, Nakata esfregou durante um bom bocado a cabeça com a palma da mão, como se tivesse a ponderar muito bem um assunto de grande importância.
Senhor Hoshino? - disse ele por fim.
O que é?
Nakata tem muita pena, mas precisa de dormir. Está tão I wnsado que até dormia aqui mesmo.
Espera aí, não podes agora pôr-te a dormir no primeiro sítio que aparece - atalhou Hoshino, desorientado. - Olha, vamos fazer assim. Vou tratar de encontrar um sítio onde possas abancar. Pode ser? Aguentas acordado mais um bocado?
Está bem. Nakata vai fazer os possíveis para não adormecer.
Boa. Tens fome?
Não. Sono, só isso.
Hoshino não demorou a dar com o posto de turismo, descobriu uma pensão barata com pequeno-almoço incluído e telefonou a marcar quarto. Como ainda ficava longe da estação, apanharam um táxi até lá. Assim que chegaram, Hoshino pediu à empregada para estender os futons.
Nakata deitou-se logo, sem sequer se despir nem tomar banho, e passado um minuto já ressonava profundamente.
É provável que Nakata fique a dormir durante muito tempo - avisou ele antes de cair no sono.
Olha, pela parte que me toca, podes ficar descansado. Podes dormir até fartar. - Mas ainda Hoshino não acabara a frase e já Nakata caíra nos braços de Morfeu.
Hoshino deu-se ao luxo de tomar um prolongado banho e depois foi dar uma volta para ficar a conhecer a cidade. Vagueou durante algum tempo sem destino certo, acabando por entrar num restaurante de sushi para comer qualquer coisa e beber uma cerveja. Como não era grande bebedor, uma garrafa normal de cerveja chegou e sobrou para lhe pôr a cara vermelha e a cabeça a andar à roda. A seguir ao jantar foi jogar pachinko e perdeu três mil ienes só numa hora. O seu boné dos Chuchini Dragons deu nas vistas e foi alvo de alguns olhares insistentes por parte das pessoas que se cruzavam no seu caminho. «Devo ser a única pessoa em Tokushima com um destes», disse ele com os seus botões.
De regresso à pensão, foi encontrar Nakata tal como o deixara, que é como quem diz, a dormir que nem uma pedra. A luz estava acesa, mas isso não parecia perturbar o sono do outro. «Mas que pândego que este sujeito me saiu», pensou ele. Tirou o boné, despiu a camisa havaiana e as calças de ganga, meteu-se na cama e apagou a luz. Mas, talvez por se sentir estafado e, ao mesmo tempo, num local estranho, não conseguiu adormecer. Céus, pensou ele, se calhar devia mas era ter ido para a cama com uma prostituta. Mas no escuro, a ouvir a respiração, tranquila e regular, de Nakata, só de pensar em lexo sentiu-se envergonhado, ainda que não soubesse explicar lá muito bem porquê.
Ali às escuras, de olhos postos no tecto, deitado naquela pensão barata numa cidade que não conhecia e ao lado de um estranho elhote do qual pouco ou nada sabia, começou a duvidar de si mesmo. A esta hora da noite, deveria estar a caminho de Tóquio, provavelmente it atravessar a região de Nagoya. Não tinha nada contra o seu trabalho, o em Tóquio havia uma rapariga que arranjava sempre tempo paia ele, caso ele quisesse estar com ela. Mas, vá lá saber-se porquê, asim que acabara de descarregar a mercadoria em Kobe, entrara em contacto com um colega que trabalhava na cidade e pedira-lhe que fl substituísse e levasse a carga de volta para Tóquio. Depois, telefonou paia a empresa e com muita dificuldade lá conseguiu que lhe dessem três dias de férias, ficando assim disponível para seguir viagem para ihlkoku na companhia de Nakata. Tudo o que tinha consigo era um pequeno saco com o estojo da barba e uma muda de roupa.
A princípio, Hoshino ficara espantado com a parecença entre ancião e o seu falecido avô, mas depois essa impressão desvanecera-se e agora era sobretudo o próprio Nakata que lhe despertava a curiosidade. As coisas que o velho dizia, e até como ele falava, tudo riquilo era realmente bizarro, mas bizarro de uma maneira que merecia lodo o seu interesse e respeito. Tinha de descobrir qual era o destino do velhote e o que é que ele ia fazer uma vez lá chegado.
Hoshino nascera numa família de agricultores, o terceiro de cinco filhos. Até ao segundo ciclo do secundário tinha andado sempre nos eixos, mas depois de começar a frequentar o ensino profissional i omei,ara a andar em más companhia e a arranjar sarilhos. Por mais de uma vez a Polícia meteu-se ao barulho e ele foi dentro. A muito custo lá acabou a escola, mas não conseguiu arranjar um emprego decente - e o facto de se meter em trabalhos com uma rapariga só eiviu para lhe complicar mais a vida -, por isso decidiu ingressar nas forças de Autodefesa. Estava esperançado em tornar-se condutor de tanques, mas falhou nos testes de aptidão e passou a recruta toda a conduzir grandes viaturas de transporte. Depois de passar três anos nas forças armadas, fora desmobilizado e arranjara emprego numa empresa de camionagem. Os últimos seis anos passara-os na estrada, ao volante de um camião de carga.
Aquela vida agradava-lhe, diga-se de passagem. Sempre gostara de lidar com máquinas, e quando se apanhava lá em cima, sentado na cabina, com as mãos no volante, tinha a sensação de estar a conduzir os destinos do seu pequeno reino. Eram muitas horas passadas na estrada, e o trabalho bastante duro e cansativo, mas ele sabia de antemão que não gostaria de ficar sentado atrás de uma secretária, obrigado a apresentar-se todos os dias de manhã num escritório sem janela e a aturar um chefe apostado em vigiar todos os seus movimentos como um falcão.
Hoshino fora sempre um rapaz do tipo buliçoso, danado para se meter em brigas. Era magrinho e a puxar para o baixo, não tinha nada aspecto belicoso, mas no seu caso o aspecto não queria dizer nada. Verdade seja dita, era enganadoramente forte e, uma vez picado por alguém, não havia quem o parasse. Passara a vida metido em rixas, no exército e enquanto camionista, e só recentemente começara a perceber que, ganhando ou perdendo, aquela mania de andar sempre ao murro não o levaria muito longe. Isto apesar de nunca se ter aleijado gravemente. Do mal o menos, pensava ele com indisfarçado orgulho.
Durante os seus dias de juventude inquieta, costumava ser o avô quem aparecia na esquadra local para o resgatar. O ancião curvava--se respeitosamente perante os agentes da lei e da ordem, como que a pedir desculpa, e eles lá o libertavam sob custódia. A seguir costumavam parar sempre num restaurante que ficava a caminho de casa e o avô deixava-o comer uma guloseima à sua escolha. Nunca pregara um sermão a Hoshino, nem mesmo nessas ocasiões. Os seus pais não apareceram para o vir buscar uma única vez. Andavam a fazer pela vida e não tinham tempo nem energia para gastar com o seu terceiro filho, que trilhava maus caminhos. Hoshino às vezes perguntava a si mesmo o que teria sido feito dele caso o avô não aparecesse para o tirar da prisão. O velhote parecia ser o único a saber que ele estava vivo e a preocupar-se com ele.
E ele que nunca, nem uma vez, mostrara ao avô a gratidão que sentia. A verdade é que não sabia o que dizer, além de que se sentia demasiado preocupado a tentar fazer pela vida. O avô morrera de cancro pouco depois de Hoshino ter entrado para as forças armadas, começara a ficar senil e para o fim já nem sequer o reconhecia. Hoshino nunca mais regressara a casa dos pais.
Quando Hoshino acordou, no dia seguinte, eram oito da manhã, Nakala continuava a dormir o sono dos justos e dava a impressão de nau se ter mexido um centímetro durante a noite. O barulho e o ritmo da sua respiração ainda eram os mesmos.
Hoshino desceu à sala e tomou o pequeno-almoço na companhia dos outros hóspedes. Uma refeição modesta, diga-se de passagem, mas ao menos sempre podia comer a quantidade de m/so e arroz que - apetecesse.
O outro senhor também vai querer o pequeno-almoço? – na companhia da a empregada.
Esse ainda dorme a sono solto. Não me parece que o pequeno-almoço lhe faça falta. Não se importava de só fazer a cama mais tarde?
Ao meio-dia, com Nakata ainda a dormir profundamente, Hoshino tratou de reservar o quarto por mais uma noite. Depois saiu e foi até um sobaya comer galinha com arroz e ovo por cima. A seguir deu uma volta pelas imediações e acabou por ir beber um café a um sítio onde puxou do seu cigarro e folheou alguns livros de banda desenhada.
De regresso à pensão, perto das duas da tarde, verificou que Nakala ainda não acordara. Inquieto, pôs a mão na testa do homem, mas não parecia ter ponta de febre. A respiração era calma e regular, o ale tinha boa cor e tudo. Parecia perfeitamente bem. Acontecia apenas que dormia profundamente, sem mudar sequer de posição.
Faz-lhe bem, dormir assim tanto? - perguntou a empregada, quando se cruzou com ele. - Se calhar está doente.
Estava exausto - explicou Hoshino. - Vamos deixá-lo dormir tudo o que ele tem para dormir.
Por mim... Mas deixe-me que ihe diga que não me lembro de alguma vez ter visto alguém dormir tanto.
Chegou a hora do jantar e a maratona de sono continuava. Hoshino foi até um restaurante que servia caril e mandou vir uma dose reforçada de caril de vaca com salada. Depois disso foi à procura de um salão de pachinko, tal como acontecera na noite anterior, e entreteve-se a jogar durante uma hora. Desta vez, contudo, a sorte dele mudou e, sem chegar a desembolsar mil ienes, ganhou dois pacotes de Marlboro. Eram nove e meia quando regressou à estalagem com o produto dos seus ganhos na mão. Para grande espanto seu, Nakata continuava a dormir.
Hoshino fez as contas. O velhote estava a dormir há bem mais de vinte e quatro horas. Tudo bem, ele avisara que ia ficar a dormir durante muito tempo, mas assim tanto era ridículo! Hoshino sentiu-se perplexo como poucas vezes em toda a sua vida. E se Nakata nunca mais acordasse? O que é que havia de fazer?
«Desisto», disse ele, abanando a cabeça.
No dia seguinte, às sete da manhã, porém, quando Hoshino acordou já Nakata estava a pé, a olhar pela janela.
Ora viva, avozinho! Com que então isso é que foi dormir, hem? - atirou-lhe Hoshino, aliviado.
Sim, Nakata acordou agora mesmo. Não sabe quanto tempo terá dormido, mas de certeza que deve ter sido muito. Nakata sente-se um homem novo.
Dizer que dormiu muito é curto! Estiveste ferrado desde as nove da noite, isto de anteontem, por isso dormiste qualquer coisa como trinta e quatro horas. És uma verdadeira Branca de Neve.
Nakata já comia qualquer coisa.
Não me admira nada. Há dois dias que não ferras o dente. Os dois foram para baixo e tomaram o pequeno-almoço na sala de jantar. Nakata deixou a empregada espantada com a quantidade de arroz que se mostrou capaz de devorar.
Ainda é mais comilão do que dorminhoco! - exclamou ela. - caso para dizer que come por dois dias...
Sim, Nakata precisa de se alimentar como deve ser. -Vê-se que o senhor é mesmo uma pessoa de alimento...
Assim é. Nakata não lê, mas não sabe o que é um dente lurado e não precisa de óculos para nada. E também nunca foi ao módico. Nunca sentiu o pescoço rígido e todas as manhãs faz o que Icm a fazer na casa de banho.
Impressionante, sim, senhora - reconheceu a empregada. -I para hoje, qual é o programa?
Vamos em direcção a oeste - declarou Nakata.
Sim, senhora, com que então para oeste - mastigou ela. -Isso quer dizer que seguem em direcção a Takamatsu.
Nakata não é lá muito brilhante e não se orienta bem pela Hei igrafia.
Vendo bem, avozinho, porque não vamos até Takamatsu? -rtlalhou Hoshino. - Uma vez lá, logo vemos qual é o programa das nas.
Devo dizer que é uma maneira original de viajar - comentou a empregada, não resistindo a meter a sua colherada.
Agora é que disse uma grande verdade - rematou Hoshino.
De volta ao quarto, Nakata foi à casa de banho, enquanto Hoshino, ainda com o seu yukata vestido, se deitou em cima do i,i/.i/ii/ c ficou a ver televisão. Não havia grandes notícias. A Polícia iniilinuava sem ter pistas acerca do homicídio do famoso escultor, mn Nakano. Não havia nem pistas, nem testemunhas, sabendo-se ipenas que os polícias andavam à procura do seu filho de quinze «nos, que deixara de ser visto pouco antes do crime.
Céus! Um rapaz de quinze anos, deu por si Hoshino a pensar. I'oi que será que, nos dias que correm, são sempre os adolescentes de quinze anos que andam metidos em tudo o que sejam cenas violentas? É bom de ver que, quando ele próprio tinha quinze anos, roubara a moto num parque de estacionamento e fora dar uma volta - isto, claro está, sem ter sequer carta -, por isso não tinha nada que estar agora para ali a criticar. Não que se possa comparar quem leva uma moto sem pedir licença com quem mata o pai à facada. Vendo bem, só por sorte é que se calhar não puxara da faca e não matara o seu velho, continuou ele a pensar para si mesmo. Não se podia dizer que não se tivesse fartado de levar a sua carga de pancada.
O noticiário estava quase a chegar ao fim quando Nakata saiu da casa de banho.
Senhor Hoshino, posso fazer-lhe uma pergunta?
Diz lá.
Não tem dores nas costas?
Podes crer. É o mal de andar nesta vida, acho eu. Não há nenhum camionista que se preze que não tenha dores nas costas, tal como todos lançadores têm problemas nos ombros. Porque é que perguntas isso?
Quando olhei para as suas costas achei que poderia ter problemas.
Hmm...
Importa-se que Nakata experimente pôr-lhe as mãos nas costas?
A vontadinha.
Hoshino virou-se de barriga para baixo e Nakata sentou-se em cima das costas dele, pôs as mãos mesmo por cima da coluna vertebral e deixou-as lá ficar. Enquanto isso, Hoshino pôs-se a ver um programa de entretenimento com as bisbilhotices mais recentes das celebridades. Uma atriz famosa acabara de ficar noiva de um jovem--escritor-não-tão-famoso-quanto-isso. Hoshino não ligava peva a isso, mas não havia mais nada para ver na televisão. Segundo parecia, os rendimentos da actriz eram dez vezes superiores aos do romancista, que não era particularmente bonito nem tinha aspecto de ser lá muito inteligente.
Hoshino achou tudo aquilo um bocado suspeito.
O casamento não vai durar muito, não te esqueças do que te digo. Ali deve haver coisa...
Senhor Hoshino, os seus ossos estão um bocadinho fora do sítio.
Não é de admirar, com esta vida fora dos eixos que eu levo. Dito isto, Hoshino bocejou.
Vai arranjar toda a espécie de problemas se não fizer nada para tentar remediar o mal.
Achas?
Vai ficar com enxaquecas, lumbago e não conseguirá cagar à vontade.
Isso não pode ser coisa boa.
Vai doer um bocadinho. Importa-se?
Não, anda lá com isso.
Para dizer a verdade, vai doer-lhe, e muito.
Olha uma coisa, avozinho. Toda a minha vida apanhei porrada, cm tasa, na escola, na tropa, mas sobrevivi sempre. Não é para me gabar, mas contam-se pelos dedos das mãos os dias em que não levei um enxerto de pancada. Por isso, não é agora isso que me vai magoar a sério. Com meiguice ou a doer, venham de lá essas mãos mágicas.
Os olhos de Nakata estreitaram-se até se reduzirem a uma fenda, num nítido esforço para se concentrar, e certificou-se de que tinha os dor, polegares onde os queria. Assim que sentiu que atingira o ponto direito começou aos poucos a aumentar a intensidade, auscultando a reação de Hoshino. Depois inspirou profundamente, soltou um grito curto e rouco, que mais parecia o grasnido de uma ave de Inverno, e pressionou com toda a força na zona entre a espinha e o músculo. A dor que Hoshino sentiu naquele momento foi terrível, e apoderou-se irracionalmente
dos seus sentidos. Foi atingido na cabeça por um lampejo violento e começou a ver tudo branco. Deixou de respirar. Parecia-lhe que alguém lhe dera uma pancada e que tinha sido atirado do alto de uma torre para as profundezas do inferno. Nem força para soltar um grito tinha, de tão brutal que era a dor. Todos os seus pensamentos haviam sido como que fulminados e aniquilados. Era como se o seu corpo tivesse ficado em estilhaços. Nem mesmo a morte poderia ser tão atroz. Tentou abriros olhos mas não conseguiu. Limitou-se a ficar ali deitado, impotente, com a cara encostada ao tatami, sentindo a baba a sair-lhe da boca e as lágrimas a escorrem-lhe pela cara abaixo. Isto deve ter durado uns trinta segundos ou assim.
Às lautas recuperou o fôlego e, sempre a cambalear, lá se pôs de pe. Debaixo dele o tatami agitava-se como o mar em dias de tempestade.
Fez-lhe doer muito, não foi?
Hoshino abanou a cabeça devagar várias vezes, como se quisesse ter a certeza de que aindaestava vivo.
Doer é dizer pouco. E como se tivesse sido esfolado vivo, enfiado num espeto, moído num almofariz, isto antes de ser esmagado por uma manada de búfalos enfurecidos. Que raio de cosa é que tu me fizeste?
Voltei a pôr as costas direitas. Agora já deve estar tudo no sítio. As costas vão deixar de lhe doer. E vai poder ir à casa de banho sem problemas.
Conforme o velhote dissera, mal a dor abrandou, o jovem começou a sentir as costas menos rígidas, e pôde respirar melhor. E, verdade seja dita, dera-lhe vontade de ir à casa de banho.
De facto, tudo indica que me sinto melhor.
Os problemas estavam todos na espinha.
Mas essa merda doeu a valer - queixou-se Hoshino, com um suspiro de alívio.
Na estação de Tokushima apanharam os dois o comboio expresso para Takamatsu. Nakata insistiu em ser ele a pagar tudo com o seu dinheiro, tanto a estalagem como o bilhete de comboio, mas Hoshino não deixou.
Desta vez pago eu, da próxima pagas tu. Homens adultos como nós não devem discutir por questões de dinheiro, não te parece?
Nesse caso está bem. Nakata não percebe nada de dinheiros. Por isso, fica tudo nas suas mãos.
Deixa-me que te diga uma coisa. Sinto-me lindamente, graças à massagem shiatsu que me deste. Por isso, o mínimo que posso fazer é pagar a despesa, em jeito de agradecimento. Há muito que não me sentia tão bem. Pareço um homem novo.
Isso é uma bênção. Nakata não compreende lá muito bem o que é isso da massagem shiatsu, mas sabe que as costas são muito importantes.
Chama-lhe como quiseres, massagem shiatsu, pôr os ossos deslocados no seu lugar ou tratamento quiropático, por mim tanto faz. Mas uma coisa é certa: tu és realmente bom nisso. Podias ganhar bom dinheiro. Podias fazer uma pipa de massa só a fazeres isso a todos os camionistas que eu conheço.
Bastou Nakata olhar para as suas costas para ver logo que tinha os ossos todos fora do sítio. Quando Nakata vê coisas que estejam desalinhadas, gosta de as endireitar. Durante muitos anos fiz móveis com as minhas mãos e sempre que alguma coisa estava retorcida (ratava de a pôr direita. Nakata é assim.
Mas ossos, foi a primeira vez que endireitou.
Palpita-me que deves ser um talento natural - afirmou Hoshino, impressionado.
Antigamente Nakata costumava ser capaz de falar com gatos.
Estás a gozar?
Mas há coisa de pouco tempo isso deixou de ser possível. Deve ter sido por causa de Johnnie Walker.
Estou a ver.
Nakata é burro, não entende dessas coisas complicadas. Mas têm acontecido tantas coisas difíceis de
explicar nos últimos tempos. Por exemplo, os peixes e as sanguessugas que caíram do céu aos trambolhões.
Palavra de honra?
Mas Nakata fica contente por ter posto as suas costas boas.
Também eu, não podia estar mais contente.
Isso é bom.
Agora que falas na história das sanguessugas...
Sim, Nakata lembra-se muito bem disso.
Tiveste alguma coisa que ver com isso? Nakata, coisa rara, ficou a matutar naquilo.
Para dizer a verdade, Nakata não sabe. Aquilo que Nakata libe foi que abriu o guarda-chuva e começaram a chover sanguessugas
Quem diria...
O pior é matar pessoas - disse Nakata e acenou veementemente com a cabeça.
Toda a razão. Matar pessoas é uma coisa má, disso não haja dúvida.
Isso mesmo - tornou Nakata, voltando a acenar vigorosamente com a cabeça.
Os olhos de Nakata estreitaram-se até se reduzirem a uma fenda, num nítido esforço para se concentrar, e certificou-se de que tinha os dois, polegares onde os queria. Assim que sentiu que atingira o ponto certo, começou aos poucos a aumentar a intensidade, auscultando a reação de Hoshino. Depois inspirou profundamente, soltou um grito curto e rouco, que mais parecia o grasnido de uma ave de Inverno, e pressionou com toda a força na zona entre a espinha e o músculo. A dor que Hoshino sentiu naquele momento foi terrível, e apoderou-se irracionalmente dos seus sentidos. Foi atingido na cabeça por um lampejo violento e começou a ver tudo branco. Deixou de respirar. Parecia-lhe que alguém lhe dera uma pancada e que tinha sido atirado do alto de uma torre para as profundezas do inferno. Nem força para Millar um grito tinha, de tão brutal que era a dor. Todos os seus pensamentos haviam sido como que fulminados e aniquilados. Era como se o seu corpo tivesse ficado em estilhaços. Nem mesmo a morte poderia ser tão atroz. Tentou abriros olhos mas não conseguiu. Limitou-se a ficar ali deitado, impotente, com a cara encostada ao tatami, sentindo a baba a sair-lhe da boca e as lágrimas a escorrem-lhe pela cara a baixo. Isto deve ter durado uns trinta segundos ou assim.
Às lautas recuperou o fôlego e, sempre a cambalear, lá se pôs de pé Debaixo dele o tatami agitava-se como o mar em dias de tempestade.
Fez-lhe doer muito, não foi?
Hoshino abanou a cabeça devagar várias vezes, como se quisesse ter a certeza de que ainda estava vivo.
Doer é dizer pouco. E como se tivesse sido esfolado vivo, enfiado num espeto, moído num almofariz, isto antes de ser esmagado por uma manada de búfalos enfurecidos. Que raio de coisa é que tu me fizeste?
Voltei a pôr as costas direitas. Agora já deve estar tudo no sítio. As costas vão deixar de lhe doer. E vai poder ir à casa de banho sem problemas.
Conforme o velhote dissera, mal a dor abrandou, o jovem começou a sentir as costas menos rígidas, e pôde respirar melhor. E, verdade seja dita, dera-lhe vontade de ir à casa de banho.
De facto, tudo indica que me sinto melhor.
Os problemas estavam todos na espinha.
Mas essa merda doeu a valer - queixou-se Hoshino, com um suspiro de alívio.
Na estação de Tokushima apanharam os dois o comboio expresso para Takamatsu. Nakata insistiu em ser ele a pagar tudo com o seu dinheiro, tanto a estalagem como o bilhete de comboio, mas Hoshino não deixou.
Desta vez pago eu, da próxima pagas tu. Homens adultos como nós não devem discutir por...
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