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LADRÃO DE ALMAS / Alma Katsu
LADRÃO DE ALMAS / Alma Katsu

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

LADRÃO DE ALMAS

Primeira Parte

 

No turno da noite de um hospital no estado do Maine, o Dr. Luke Findley espera ter outra noite tranquila com lesões causadas pelo frio extremo e ocasionais brigas domésticas. Mas, no momento em que lanore McIlvrae — Lanny — entra no pronto-socorro, muda a vida dele para sempre. Uma mulher com passado e segredos misteriosos, Lanny não é como as outras pessoas que Luke conhceu. E Luke fica, inexplicavelmente, atraído por ela...mesmo sendo suspeita de assassinato. E conforme Lanny conta sua história, uma história de amor e uma traição consumada que ultrapassam tempo e mortalidade, Luke se vê totalmente seduzido. Seu relato apaixonado começa na virada do século 19 na mesma cidadezinha de St. Andrew, quando ainda era um templo puritano. Consumida, quando criança, pelo amor que sentia pelo filho do fundador da cidade, Jonathan, Lannyfará qualquer coisa para ficar com ele para sempre. Mas o preço que ela tem de pagar é alto — um laço imortal que a prende a um terrível destino por toda a eternidade. E agora, dois séculos depois, a chave para sua cura e salvação depende totalmente de seu passado. De um lado um romance histórico, de outro uma narrativa sobrenatural, Ladrão de Almas é uma história inesquecível sobre o poder do amor incondicional, não apenas para elevá-lo e sustentá-lo, mas também para cegar e destruir. E revela como cada um de nós é responsável por encontrar o próprio caminho para a redenção.

 

 

Maldito frio congelante. A respiração de Luke Findley paira no ar, quase sólida, na forma de um ninho de vespa congelado e destituído de oxigênio. Suas mãos estão pesadas sobre a direção; ele está grogue, acordou em cima da hora de fazer o percurso até o hospital para assumir o turno da noite. Os campos cobertos de neve dos dois lados da estrada são pinceladas fantasmagóricas de azul sob o luar; seus lábios azulados estão quase insensíveis pela hipotermia. A neve é tão espessa que encobre todos os vestígios de galhos espinhentos, que geralmente permeiam os campos e dão ao lugar uma falsa aparência de calma. Ele sempre se pergunta por que seus vizinhos continuam vivendo nesse ponto tão ao extremo norte do Maine; solitário e frígido, um lugar difícil para a agricultura. O inverno reina durante metade do ano, forma pilhas de neve nos parapeitos das janelas e solta lufadas de vento enregelantes sobre a plantação de batatas.

Vez ou outra alguém realmente congela e, como Luke é um dos poucos médicos da região, já presenciou a cena. Um bêbado (o que mais há em St. Andrew) pegou no sono sobre a neve e, pela manhã, havia se tornado um picolé humano. Um menino, patinando sobre o rio Allagash, caiu em um buraco que se abriu quando passou pela camada mais fina do gelo. Às vezes, o corpo é encontrado na metade do caminho para o Canadá, no encontro do rio Allagash com o rio St. John. Um caçador perde a visão por causa do reflexo da neve e não consegue sair da Floresta Great North; seu corpo é encontrado sentado, recostado em um tronco, a espingarda sobre o colo, sem uso.

— Aquilo não foi acidente, que nada! — Joe Duchesne, o xerife, disse a Luke, desgostoso, quando o corpo do caçador foi levado ao hospital. — O velho Ollie Ostergaard, ele queria mesmo morrer. Este foi o jeito dele de cometer suicídio. — Mas Luke suspeita que, caso fosse verdade, Ostergaard teria atirado na própria cabeça. Hipotermia é um processo lento de morte, dá tempo suficiente para reconsiderar qualquer decisão.

Luke estaciona a caminhonete em um lugar vazio do estacionamento do Hospital Municipal de Aroostook, desliga o motor e promete a si mesmo, mais uma vez, que se mudará de St. Andrew. Ele só tem que vender a fazenda de seus pais e, então, se mudará, ainda que não saiba exatamente para onde. Suspira, tira as chaves da ignição e se dirige à entrada da sala de emergência.

A enfermeira de plantão o cumprimenta com a cabeça enquanto Luke entra tirando as luvas. Ele pendura a parca no pequeno vestiário dos médicos e volta para a recepção. Judy diz:

— Joe ligou. Está trazendo um prisioneiro, quer que você dê uma olhada nele. Vai chegar a qualquer minuto.

— Motorista de caminhão?

Quando há problema, geralmente envolve um dos motoristas das empresas madeireiras. São famosos por ficar bêbados e provocar brigas no Blue Moon.

— Não. — Judy está absorta em algo que está fazendo no computador. A luz do monitor reflete em seus óculos bifocais.

Luke limpa a garganta querendo chamar a atenção dela.

— Quem é, então? Alguém daqui? — Luke está cansado de costurar seus vizinhos. Parece que só os desajustados, bêbados e briguentos conseguiam tolerar aquela cidade miserável. Judy tira os olhos do monitor, cotovelo plantado no quadril.

— Não. Uma mulher. E também não é daqui.

Isso é incomum. Mulheres raramente são trazidas pela polícia, exceto quando são as vítimas. De vez em quando, uma esposa da cidade é trazida após uma briga com o marido ou, no verão, uma turista pode perder o controle no Blue Moon. Mas, nessa época do ano, não há nem sinal de turistas. Algo diferente para se esperar esta noite. Ele pega uma prancheta.

— Ok. Que mais temos aqui? — Luke ouve mais ou menos enquanto Judy lista a atividade do turno anterior. Ele volta para o vestiário para esperar pelo xerife. Tinha sido uma noite bem movimentada, mas, agora, dez da noite, está tranquilo. Não consegue aguentar outro relatório sobre o casamento da filha de Judy, que está prestes a acontecer, um discurso interminável sobre o preço de vestidos de noiva, serviço de buffet e floristas.

— Diga a ela pra fugir com o noivo. — Luke disse uma vez para Judy, que o olhou como se ele tivesse declarado ser membro de uma organização terrorista.

— O casamento é o dia mais importante da vida de uma jovem — Judy respondeu em tom de zombaria. — Você não tem umvanuromântico no seu corpo. Não é à toa que Tricia se divorciou de você.

— Tricia não se divorciou de mim; eu me divorciei dela.

Ele parou de explicar, pois ninguém lhe dá atenção. Luke senta-se no sofá surrado do vestiário e tenta se distrair com um Sudoku. Mas não consegue e pensa no caminho para o hospital naquela noite, as casas pelas quais ele passara nas estradas desoladas, luzes solitárias queimando na noite. O que as pessoas fazem enfiadas em suas casas por tantas horas nas noites de inverno? Como médico da cidade, não há segredos que Luke não conheça. Ele sabe de todos os pecados: quem bate na esposa, quem tem a mão pesada com as crianças; quem bebe e termina batendo o caminhão num monte de neve; quem tem depressão crônica em razão de outro ano ruim na colheita, sem perspectiva no horizonte. As florestas de St. Andrew são escuras e cheias de segredos; lembram a Luke por que quer ir embora desta cidade: está cansado de saber os segredos dos outros e de que eles conheçam os seus.

Além disso, tem outra coisa, algo em que, ultimamente, ele pensa assim que pisa no hospital. Não faz muito tempo que sua mãe morreu e ele se lembra vividamente de quando a removeram para a chamada eufemisticamente de “ala de recuperação”, para pacientes cujo fim está tão próximo que não vale a pena removê-los para o centro de reabilitação em Fort Kent. A função cardía­ca caíra abaixo de 10% e ela lutava para respirar, a despeito da máscara de oxigênio. Ele sentou-se com ela aquela noite, sozinho, pois era tarde e os visitantes já tinham ido embora havia muito tempo. Quando ela tivera a última parada cardíaca, ele estava segurando a mão dela. Naquele momento, ela estava exausta e se mexeu só um pouquinho; então, o aperto de mão se afrouxou e ela se foi tão silenciosamente quanto um pôr do sol ao anoitecer. O alarme do monitor soou quase ao mesmo tempo em que a enfermeira de plantão entrava, mas Luke alcançou o botão do monitor e, sem pestanejar, fez sinal para a enfermeira sair. Tirou o estetoscópio do pescoço e verificou o pulso e a respiração. Ela havia partido.

A enfermeira de plantão perguntou se queria um minuto a sós e ele disse que sim. Passara a maior parte da semana na unidade de terapia intensiva com a mãe e parecia-lhe inconcebível simplesmente ir embora naquele momento. Então, sentou-se ao lado da cama e olhou para o nada, com certeza não olhou para o corpo, e tentou pensar nas providências a tomar. Ligar para os parentes; todos eram fazendeiros que viviam na parte sul do condado... Ligar para o padre Lymon na igreja católica que Luke não frequentava... Escolher um caixão... Precisava pensar em tantos detalhes... Ele sabia o que precisava ser feito, pois passara por tudo isso apenas sete meses antes, quando seu pai morrera. Mas a ideia de passar por tudo aquilo de novo era desanimadora. Era em momentos como esse que sentia mais falta de sua ex-mulher. Era muito bom poder ter Tricia, uma enfermeira, em ocasiões tão difíceis. Ela não era do tipo sentimental; era prática até mesmo diante do sofrimento.

Esse não era o momento de desejar que as coisas fossem diferentes. Agora estava sozinho e teria que administrar. Ruborizou de vergonha, sabendo que sua mãe queria que ele e Tricia ficassem juntos; quantas reprimendas ouviu por tê-la deixado ir embora. Olhou para a mulher morta, viu um reflexo de culpa.

Os olhos dela estavam abertos. Há um minuto, estavam fechados. Sentiu seu peito apertar com esperança, mesmo sabendo que isso não significava nada. Somente um impulso elétrico percorrendo os nervos no momento em que as sinapses paravam de acontecer, como um carro pipocando quando a última fumaça de gasolina passa pelo motor. Ele esticou as mãos e fechou as pálpebras dela.

Elas se abriram naturalmente uma segunda vez, como se a mãe dele estivesse acordando. Luke quase pulou para trás, mas conseguiu controlar o medo. Não, medo não, surpresa. Em vez disso, inclinou-se, colocou o estetoscópio e o pressionou sobre o peito dela. Silêncio, nenhum fluxo de sangue nas veias, nenhum vestígio de respiração. Tomou seu pulso. Sem pulso. Olhou para o relógio: já havia passado quinze minutos desde que declarara sua mãe morta. Abaixou a mão fria da mãe, incapaz de parar de observá-la. Jurava que ela estava olhando de volta, os olhos grudados nele.

E, então, a mão dela ergueu-se do lençol e o alcançou. Esticou-se em direção a ele, palma para cima, implorando para que ele a segurasse. Ele a segurou, chamou-a pelo nome, mas, assim que tocou sua mão, deixou-a cair. Estava fria e sem vida. Luke deu cinco passos para trás da cama, esfregando a mão na testa, imaginando se estava tendo alucinações. Quando se virou, os olhos dela estavam fechados e, o corpo, imóvel. Ele mal podia respirar, seu coração batia na garganta.

Levou três dias para ter coragem de falar sobre o que acontecera com outro médico. Escolhera o velho John Mueller, um clínico geral pragmático, conhecido por ajudar seu vizinho quando as vacas pariam os bezerros. Mueller olhou-o desconfiado, como se suspeitasse que Luke tivesse bebido.

— Mexer os dedos das mãos e dos pés, sim, isso acontece — ele dissera —, mas quinze minutos depois? Movimento muscoloesqueletal? — Mueller olhou para Luke novamente, como se o fato de estarem conversando sobre aquilo já fosse motivo de chacota. — Você acha que viu porque queria ver. Não queria que ela tivesse morrido.

Luke sabia que não era isso. Mas não tocaria nesse assunto de novo, pelo menos não entre médicos.

— Além disso — Mueller quisera saber —, que diferença faz? O corpo pode ter mexido um pouco; acha que ela estava tentando dizer alguma coisa a você? Acredita naquela coisa de vida após a morte?

Pensando nisso agora, quatros meses depois, Luke ainda sentia um leve calafrio percorrendo os braços de cima a baixo. Coloca o Sudoku na mesinha e passa os dedos pelos cabelos, tentando fazer a confusão ir embora com uma massagem. A porta que dá para o vestiário se abre numa fresta: é Judy.

— Joe está estacionando.

Luke sai sem a parca, para que o frio o acorde. Observa Duchesne estacionar perto do meio-fio em uma grande SUV pintada de branco e preto, uma insígnia do estado do Maine nas portas da frente e uma discreta barra luminosa grudada no teto. Luke conhece Duchesne desde garoto. Não estavam no mesmo ano escolar, mas o horário de algumas aulas coincidia na escola. Luke olhava para aquela cara parecida com um furão, de olhos pequenos e brilhantes e um nariz quase sinistro, por mais de vinte anos.

Com as mãos enfiadas debaixo das axilas, para aquecê-las, Luke observa Duchesne abrir a porta de trás e pegar o braço de uma prisioneira. Está curioso para ver a fora da lei. Talvez seja uma mulher grande, de modos masculinos, com o rosto vermelho e lábios cortados. Então, fica surpreso ao ver que a mulher é pequena e jovem. Poderia se passar por uma adolescente. Esguia e de feições infantis, com um lindo rosto e uma vasta cabeleira loura encaracolada, cabelos de querubim.

Olhando para a mulher (garota?), Luke sente uma estranha fisgada, um formigamento atrás dos olhos. Seu pulso acelera, parece que a conhece. Não sabe o nome, mas sente algo muito mais intenso. O que é? Luke dá uma olhada com olhos semicerrados, estudando-a mais de perto. Será que já a viu em algum lugar antes? Não, ele percebe que está equivocado.

Enquanto Duchesne puxa a mulher pelo braço, as mãos amarradas com algemas de plástico, uma segunda viatura de polícia estaciona e um agente, Clay Henderson, sai e acompanha a prisioneira para dentro da sala de emergência. Enquanto passam, Luke vê que a camisa da prisioneira está encharcada, manchada de preto e exala um odor conhecido de ferro e sal, o cheiro de sangue.

Duchesne anda em direção a Luke, apontando com a cabeça para o casal.

— Encontramos ela desse jeito, caminhando pela estrada em direção a Fort Kent.

— Sem casaco? Sem casaco nesse frio? Não pode estar vagando há muito tempo.

— Sim. Escute, preciso que você me diga se ela está machucada ou se posso levá-la de volta à delegacia e prendê-la.

Até onde conhecia os agentes da lei, Luke sempre suspeitara que Duchesne fosse mão pesada; já vira muitos bêbados serem trazidos com galos na cabeça ou escoriações no rosto. Essa garota, ela é só uma criança, o que poderia ter feito?

— Por que ela vai ser presa? Por não usar casaco com um frio desse?

Duchesne, desacostumado a ser motivo de piada, lança um olhar cortante a Luke.

— Esta garota é uma assassina. Ela nos disse que matou um homem a facadas e deixou o corpo na floresta.

Luke faz todos os procedimentos para examinar a prisioneira, mas mal consegue pensar por causa da estranha pulsação em sua cabeça. Acende uma pequena lanterna nos olhos dela (são do azul mais claro que já viu, como duas pedras de gelo) para ver se as pupilas estão dilatadas. Sua pele é viscosa, sua pul­sação, baixa, e a respiração, irregular.

— Ela está muito pálida — diz para Duschesne, enquanto se afastam da maca à qual a prisioneira fora amarrada pelos pulsos. — Isso significa que ela está cianótica. Está entrando em choque.

— Ela está machucada? — pergunta Duchesne, desconfiado.

— Não necessariamente. Ela pode estar em estado de trauma psicológico. Pode ser de uma briga. Talvez de lutar com esse homem que ela diz que matou. Como sabe que não foi autodefesa?

Duchesne, com as mãos na cintura, olha para a prisioneira na maca como se pudesse descobrir a verdade só de olhar para ela. Muda seu peso de um pé para o outro.

— Não sabemos de nada... ela não disse muita coisa. Pode me dizer se está ferida? Porque se ela não estiver, vou levá-la...

— Tenho que tirar a camisa, limpar o sangue...

— Ande logo. Não posso ficar aqui a noite toda. Deixei Boucher na floresta procurando pelo corpo.

Mesmo com a lua cheia, a floresta era escura e vasta, e Luke sabe que o agente Boucher tem poucas chances de encontrar, sozinho, um corpo. Luke pega na ponta de sua luva de látex.

— Então vá ajudar Boucher enquanto faço o exame...

— Não posso deixar a prisioneira aqui.

— Pelo amor de Deus! — Luke diz, balançando levemente a cabeça na direção da mulher. — Acho difícil ela me dominar e fugir. Se está tão preocupado assim, diga para o Henderson ficar. — Os dois deram uma olhada rápida para Henderson. O agente grandalhão está encostado no balcão, virando as páginas de uma antiga Sports Illustrated deixada na sala de espera, um copo de café de máquina na mão. Ele parece um urso de desenho animado e é um bonachão obtuso. — Ele não será uma grande ajuda para você na floresta... Não vai acontecer nada. — Luke disse, impaciente, dando as costas para o xerife como se o assunto já estivesse encerrado. Ele sente o olhar de Duchesne em suas costas, e este não sabe se deve argumentar com Luke. E, então, o xerife se afasta, caminhando em direção às portas de correr.

— Fique aqui com a prisioneira! — ele grita para Henderson enquanto enfia na cabeça o chapéu pesado e revestido de pele. — Vou voltar para ajudar o Boucher. O idiota não é capaz de achar o próprio traseiro nem com um mapa.

Luke e a enfermeira vão cuidar da mulher amarrada à maca. Ele levanta um par de tesouras.

— Vou precisar cortar sua camisa — avisou-a.

— Pode cortar. Está destruída — ela diz com uma voz suave e um sotaque que Luke não consegue definir de onde é. A camisa é obviamente cara, o tipo de roupa que se vê em revistas de moda e que nunca veria alguém usando em St. Andrew.

— Você não é daqui, é? — Luke pergunta, um quebra-gelo para ela relaxar.

Ela estuda seu rosto, avaliando se pode ou não confiar nele, ou pelo menos é o que Luke imagina.

— Eu nasci aqui, na verdade. Há muito tempo.

Luke dá uma fungada.

— Talvez bastante tempo para você. Se tivesse nascido aqui, eu saberia. Vivo nessa região quase minha vida toda. Qual é o seu nome?

Ela não cai na armadilha.

— Você não me conhece — diz ela, sem rodeios.

Por alguns instantes, há somente o som do tecido molhado sendo cortado com dificuldade, a pontinha da tesoura se movimentando preguiçosamente pelo material encharcado. Feito isso, Luke se afasta para deixar Judy limpar a garota com gaze embebida em água morna. As manchas vermelhas de sangue se diluem, revelando um torso pálido e magro sem nenhum arranhão. A enfermeira deixa cair ruidosamente a bacia de metal com as gazes e sai apressadamente da sala de exame, como se soubesse, desde o início, que não encontrariam nada; mais uma vez, Luke tinha provado sua incompetência.

Ele desvia os olhos enquanto coloca uma folha de papel sobre o torso nu da garota.

— Teria dito que não estava ferida se tivesse perguntado — ela disse a Luke num sussurro.

— Mas não disse nada ao xerife! — Luke falou, alcançando um banquinho.

— Não. Mas teria dito a você. — Acenou com a cabeça para o médico. — Tem um cigarro? Estou morrendo de vontade de fumar.

— Me desculpe, não tenho. Eu não fumo — Luke respondeu.

A garota olha para ele, aqueles olhos azuis mapeando seu rosto.

— Você parou um tempo atrás, mas começou de novo. Não tiro sua razão, dado tudo pelo que passou ultimamente. Mas tem dois cigarros no seu jaleco, se não estou enganada.

Ele enfia a mão no bolso, por instinto, e sente o toque de papel dos cigarros bem onde os havia deixado. Foi só um golpe de sorte ou ela realmente os viu em seu bolso?

E o que ela queria dizer com “tudo pelo que passou ultimamente”? Ela está fingindo ler a mente dele, tentando entrar em sua cabeça como faria uma garota esperta que está em apuros. A verdade é que seus problemas estavam estampados em sua cara ultimamente. Ele ainda não encontrara uma maneira de consertar sua vida; seus problemas estavam todos interligados. Não sabia nem por onde começar a resolvê-los.

— É proibido fumar no prédio e, caso tenha esquecido, você está amarrada numa maca. — Luke aperta a ponteira da caneta e pega uma prancheta. — Estamos com falta de pessoal hoje, então terei que pegar algumas informações sobre você para os arquivos do hospital. Nome?

Ela observa a prancheta, hesitante.

— Prefiro não dizer.

— Por quê? É uma fugitiva? É por isso que não quer me falar o seu nome? — Ele a estuda: ela está tensa, cautelosa, mas controlada. Ele já estivera com pacientes envolvidos em mortes acidentais e, geralmente, ficavam histéricos: chorando, tremendo, gritando. Essa jovem mulher está tremendo levemente embaixo da folha de papel e mexe as pernas nervosamente, mas, pelo seu rosto, Luke pode afirmar que ela está em choque.

Da mesma forma, ele sente que ela está baixando a guarda; sente uma química entre os dois, como se ela quisesse que ele perguntasse sobre o fato terrível que acontecera na floresta.

— Quer me contar o que aconteceu esta noite? — ele diz, rolando o banquinho para mais perto da maca. — Você estava viajando de carona? Talvez tenha pegado carona com alguém, o homem da floresta... Ele atacou você, você se defendeu?

Ela suspira e pressiona a cabeça no travesseiro, olhando para o teto.

— Não foi nada disso. Nós nos conhecíamos. Viemos juntos para a cidade. Ele — ela para, gaguejando —, ele me pediu para ajudá-lo a morrer.

— Eutanásia? Ele estava morrendo? Câncer? — Luke fica desconfiado. Quem quer se matar geralmente escolhe algo silencioso e certeiro: veneno, pílulas, um motor de carro ligado na garagem fechada ou gás escapando do forno. Não pede para ser esfaqueado até a morte. Se esse amigo realmente quisesse morrer, poderia simplesmente ter ficado sentado sob as estrelas a noite toda, até congelar. Ele olha para a mulher, tremendo debaixo da folha de papel.

— Deixe-me pegar um avental do hospital e um cobertor. Você deve estar com frio.

— Obrigada — ela responde, baixando o olhar.

Ele volta com um avental de flanela desbotado de tanto lavar, cor-de-rosa, e um cobertor azul de acrílico, cheio de bolinhas, azul-bebê. Cores de maternidade. Ele olha para as mãos dela, presas à maca com amarras de plástico.

— Venha, vamos fazer uma mão de cada vez — Luke diz, desfazendo a amarra da mão mais próxima ao aparador onde os instrumentos de exames são colocados: pinças médicas, tesouras sujas de sangue, bisturi.

Como um azougue, ela agarra o bisturi, sua mão fina se fechando em volta dele. Ela aponta o bisturi para ele, olhos arregalados, narinas vermelhas e abertas.

— Vá com calma — pede Luke, levantando-se do banquinho e indo para trás, para fora do alcance do braço dela. — Tem um agente bem ali no corredor. Se eu o chamar, está tudo terminado, entende? Você não pode atingir nós dois com essa faquinha. Então, por que não coloca de lado o bisturi...

— Não o chame — pediu, mas o braço continuava esticado. — Preciso que você me escute.

— Estou escutando. — A maca está entre Luke e a porta. Ela consegue liberar a outra mão enquanto ele atravessa a sala.

— Preciso de sua ajuda. Não posso deixar que ele me prenda. Você tem que me ajudar a fugir.

— Fugir? — De repente, Luke não está preocupado que a mulher com o bisturi possa machucá-lo. Está com vergonha por ter baixado a guarda, permitindo que ela controlasse a situação. — Você está maluca? Não vou ajudar você a fugir.

— Escute...

— Você matou alguém esta noite. Você mesma disse isso.

— Não foi assassinato. Ele queria morrer, já falei a você.

— E ele quis morrer em St. Andrew, pois ele também cresceu aqui?

— Sim — ela confirmou, um pouco aliviada.

— Então me diga quem ele é. Talvez eu o conheça...

Ela balança a cabeça.

— Já falei, você não nos conhece. Ninguém daqui nos conhece.

— Não tenha tanta certeza. Talvez alguns de seus parentes... — A obstinação de Luke vem à tona quando ele está zangado.

— Minha família não vive em St. Andrew há muito, muito tempo — ela soa cansada. Então, fala secamente: — Você acha que me conhece, não é? Ok, meu nome é McIlvrae. Conhece este nome? E o homem na floresta? O nome dele é St. Andrew.

— St. Andrew, como a cidade? — Luke pergunta.

— Exatamente, como a cidade — ela responde, quase irritada.

Luke sente um borbulhar esquisito atrás de seus olhos. Não exatamente um reconhecimento... onde ele já viu este nome “McIlvrae”? Sabe que já viu ou ouviu em algum lugar, mas não se lembra de jeito nenhum.

— Não existe um St. Andrew nesta cidade há, humm, pelo menos cem anos — diz Luke, trivialmente, atormentado por ser repreendido por uma garota fingindo ter nascido ali, mentindo sobre um fato sem a menor importância e que não lhe fará nenhum bem. — Desde a Guerra Civil. Ou, pelo menos, é isso que me disseram.

Ela aponta o bisturi para ele para chamar a atenção.

— Veja bem, não que eu seja perigosa, mas, se você me ajudar a fugir, não vou machucar mais ninguém. — Ela fala como se fosse ele quem não tivesse razão. — Deixa eu mostrar uma coisa para você.

Então, sem avisar, ela aponta o bisturi para si e faz um corte no peito. Uma linha larga e comprida, que vem do seio esquerdo e percorre toda a área da costela embaixo de seu seio direito. Luke fica petrificado enquanto uma linha vermelha surge em sua pele branca. O sangue jorra do corte, os tecidos carnudos avermelhados começam a sair pela abertura.

— Oh, meu Deus! — ele diz. “Que diabos há de errado com essa garota?! Será que ela é louca? Será que tem algum tipo de desejo de morte?” — Ele começa a caminhar em direção à maca.

— Fique longe! — ela grita, golpeando com o bisturi na direção dele novamente. — Só olhe. Preste atenção!

Ela empina o torso, braços abertos, como se quisesse oferecer-lhe uma visão melhor, mas Luke consegue enxergar bem, apenas não consegue acreditar no que está vendo. Os dois lados do corte estão deslizando um em direção ao outro, como o rebento de uma planta, juntando-se, entrelaçando-se. O corte para de sangrar e começa a cicatrizar. Durante todo o processo, a garota respirava com dificuldade, mas não demonstrava nenhum sinal de dor.

Luke não tem certeza se seus pés estão no chão. Está assistindo ao impossível, ao impossível! O que deve pensar? Tinha enlouquecido ou estava sonhando? Estava dormindo no sofá do vestiário dos médicos? O que quer que tenha visto, sua mente se recusa a aceitar e começa a bloquear.

— Que diabos... — ele diz quase num sussurro. Volta a respirar, ofegante, seu rosto vermelho. Sente que vai vomitar.

— Não chame o policial. Eu explicarei tudo a você, juro, só não grite para pedir ajuda, ok?

Enquanto Luke tenta se equilibrar sobre as pernas, percebe que a Emergência está totalmente quieta. Será que tem alguém para ouvi-lo caso decida gritar? Onde está Judy, onde está o agente? É como se a bruxa da Bela Adormecida tivesse entrado no pavilhão e jogado um feitiço, colocando todos para dormir. Do lado de fora da sala de exames está escuro, as luzes fracas, como de costume, para o turno da noite. Os barulhos habituais (a risada vinda de um programa de TV no fundo do corredor e o tilintar metálico de dentro da máquina de refrigerante) tinham sumido. Não há o zunido da enceradeira trabalhando sem parar pelos corredores vazios. É só Luke, sua paciente e o barulho abafado do vento batendo na lateral do hospital, tentando entrar.

— O que foi isso? Como fez isso? — perguntou Luke, incapaz de disfarçar o horror em sua voz. Ele desliza de novo sobre o banquinho para evitar despencar no chão. — O que você é?

A última pergunta parece atingi-la como um soco no estômago. Ela deixa a cabeça cair, os cachos enrolados e sedosos cobrindo o rosto.

— Isso, bem, isso é algo que não posso lhe contar. Não sei mais o que eu sou. Não faço ideia.

Isso é impossível! Coisas desse tipo não acontecem. Não há explicação... O que ela é: um mutante? Feita de material sintético? Um monstro?

E, ainda sim, ela parece normal, pensa o médico, à medida que seu batimento cardíaco se acelera novamente e o sangue lateja em seus ouvidos. O chão de linóleo começa a se mexer sob seus pés.

— Nós voltamos aqui, ele e eu, porque sentimos falta do lugar. Sabíamos que tudo estaria diferente, que todos já teriam morrido, mas tínhamos saudade do que tivemos antes — relatou a jovem com melancolia, olhando além do médico, falando para ninguém em particular.

A sensação que teve assim que a vira esta noite, o formigamento, o borbulho, arcos entre eles, finos e elétricos. Ele precisa saber.

— Ok — ele diz, tremendo, mãos sobre os joelhos. — Isso é loucura, mas vá em frente. Estou ouvindo.

Ela respira profundamente e fecha os olhos por um momento, como se estivesse se preparando para mergulhar. E, então, começa a falar.

 

                         TERRITÓRIO DO MAINE, 1809

Começarei pelo princípio de tudo, pois é a parte que faz sentido para mim e que gravei em minha memória, temerosa de perdê-la ao longo de minha jornada, no desenrolar infinito do tempo.

Minha primeira lembrança vívida e clara de Jonathan St. Andrew é numa ensolarada manhã de domingo na igreja. Ele sentava-se no fundo, nos lugares reservados à sua família, em frente do salão da congregação. Na época, tinha 14 anos e já era tão alto quanto qualquer outro homem na vila. Quase tão alto quanto seu pai, Charles, o homem que fundara nosso pequeno povoa­do. Charles St. Andrew fora um charmoso capitão do exército, ouvi dizer, mas, nessa época, já era de meia-idade e tinha a barriga mole dos aristocratas.

Jonathan não estava prestando atenção na cerimônia, mas provavelmente poucos de nós ali presentes estávamos. O culto de domingo podia durar quatro horas (até oito, se o pastor se considerasse um exímio orador), então, quem poderia honestamente dizer que ficava atento a cada palavra do pastor? Talvez a mãe de Jonathan, Ruth, que sentava ao lado dele. Ela vinha de uma linha de teólogos de Boston e daria um bom sermão no pastor Gilbert se sentisse que a pregação não tivesse sido suficientemente rigorosa. Almas estavam em perigo e, sem dúvida, ela achava que as almas nessa cidade isolada, que ficava no meio do nada, distante das influências civilizadas, estavam particularmente em risco. No entanto, Gilbert não era fanático e quatro horas era geralmente o seu limite; assim, sabíamos que logo seríamos dispensados para a glória de uma tarde maravilhosa.

Observar Jonathan era o passatempo favorito das garotas do povoado, mas, naquele domingo em particular, era Jonathan quem observava: ele não disfarçava seu olhar para Tenebraes Poirier. Seu olhar de contemplação não se desviou dela por bons dez minutos, os olhos marotos fixos no rosto encantador de Tenebraes e em seu pescoço de cisne, porém, principalmente em seus seios, que pressionavam o fino algodão de seu corpete cada vez que respirava. Aparentemente ele não se importava que Tenebraes fosse muitos anos mais velha do que ele e que estivesse prometida a Matthew Comstock desde que tinha 6 anos.

Aquilo era amor? Fiquei me perguntando enquanto o observava do alto da frisa, onde meu pai e eu sentávamos com as outras famílias pobres. Aquele domingo só éramos meu pai e eu, o restante da família estava na igreja católica do outro lado da cidade, praticando a fé de minha mãe, que veio de uma colônia acadiana a nordeste. Com minha bochecha encostada no antebraço, observei Jonathan intensamente, como só uma garota apaixonada poderia fazer. A certa altura, Jonathan parecia não se sentir bem, engolindo com dificuldade e finalmente virando as costas para Tenebraes, que não se dava conta do efeito que causava no filho favorito da cidade.

Se Jonathan estivesse apaixonado por Tenebraes, a solução seria me atirar do mezanino da congregação na frente de todos. Pois eu sabia, aos 12 anos, com absoluta clareza, que amava Jonathan com todo o meu coração e que, se não pudesse passar minha vida com ele, preferiria morrer. Sentei-me ao lado de meu pai até o final da cerimônia, o coração martelando em minha garganta, lágrimas se formando no fundo dos olhos, apesar de ter dito a mim mesma que era uma tola por me deixar levar por algo que não fazia sentido.

Quando a cerimônia terminou, meu pai, Kieran, pegou minha mão e me levou escada abaixo para nos reunirmos com nossos vizinhos no gramado comunitário. Este era o prêmio por ter ficado até o final da cerimônia: a oportunidade de conversar com nossos vizinhos, relaxar um pouco depois de seis dias de trabalho árduo e tedioso. Para alguns, era o único contato com pessoas fora da família em toda a semana, a única chance de ouvir as últimas novidades e falatórios. Fiquei atrás de meu pai enquanto ele conversava com dois de nossos vizinhos, espiando por trás dele e tentando encontrar Jonathan, torcendo para que ele não estivesse com Tenebraes. Ele estava em pé atrás de seus pais, sozinho, com o olhar fixo às costas deles. Claramente queria ir embora, mas era melhor ter desejado que nevasse em julho: a socialização depois do culto durava pelo menos uma hora, até mais se o tempo estivesse agradável como estava aquele dia, e os fiéis praticamente tinham que ser carregados. O pai dele tinha dupla incumbência, pois havia muitos homens que viam os domingos como uma oportunidade de falar com o proprietário das terras ou de aumentar sua fortuna de alguma forma. Pobre Charles St. Andrew! Não percebi, até muitos anos depois, o fardo que tinha que carregar.

Onde encontrei coragem para fazer o que fiz em seguida? Talvez fosse o desespero e a determinação de não perder Jonathan para Tenebraes que me levaram a me afastar de meu pai. Assim que tive certeza de que ele não notara minha ausência, atravessei o gramado apressadamente em direção a Jonathan, entrecortando os grupos de adultos que conversavam. Eu era miudinha naquela idade e as saias volumosas das senhoras facilmente me escondiam dos olhos dos pais, até que encontrei Jonathan.

— Jonathan. Jonathan St. Andrew — eu disse, mas a minha voz saiu como um grunhido.

Aqueles lindos olhos negros olharam para mim e só para mim pela primeira vez; meu coração teve um sobressalto.

— Sim? O que você quer?

O que eu queria? Agora que tinha a atenção dele, não fazia ideia do que dizer.

— Você é uma das McIlvrae, não é? — Jonathan perguntou, desconfiado. — Nevin é seu irmão.

Enrubesci quando me lembrei do incidente. Por que não pensei sobre isso antes de ir falar com ele? Na primavera anterior, Nevin tinha feito uma emboscada para Jonathan do lado de fora do armazém e tirara sangue do nariz dele antes que os adultos os separassem. Nevin tinha um ódio mortal de Jonathan por razões desconhecidas de todos, exceto do próprio Nevin. Meu pai pedira desculpas a Charles St. Andrew pelo que foi considerado nada além de uma briga de garotos, destituída de qualquer maldade. O que nenhum dos pais sabia era que Nevin, sem sombra de dúvida, mataria Jonathan se tivesse uma oportunidade.

— O que você quer? É um dos truques de Nevin?

Olhei para ele, atônita.

— Eu, eu gostaria de lhe perguntar uma coisa. — Mas não conseguia falar na presença de todos aqueles adultos. Era só uma questão de tempo para que os pais de Jonathan percebessem que havia uma garota no meio deles e se perguntariam que diabos a filha mais velha de Kieran McIlvrae estava fazendo e se, de fato, os filhos dos McIlvrae cultivavam alguma estranha obsessão em relação a seu filho.

Segurei a mão dele entre as minhas mãos.

— Venha comigo! — Eu o guiei pela multidão, de volta ao vestíbulo vazio da igreja e, por razões que nunca saberei, ele me obedeceu. Estranhamente, ninguém percebeu nossa saída, ninguém gritou para nos impedir de sairmos juntos, sozinhos. Ninguém saiu para nos acompanhar. Foi como se o destino também tivesse conspirado para que Jonathan e eu tivéssemos nosso primeiro momento juntos.

Fomos até a chapelaria, com seu piso de pedra frio e sua alcova escura. O som das vozes parecia longínquo, somente murmúrios e pedaços entrecortados de conversa vindos do gramado. Jonathan ficou incomodado, confuso.

— Então, o que gostaria de me dizer? — ele perguntou, com um toque de impaciência na voz.

Tinha intenção de lhe perguntar sobre Tenebraes. Queria perguntar sobre todas as garotas do vilarejo, aquelas que lhe interessavam e se tinha sido prometido para alguma delas. Mas não consegui; essas perguntas ficaram engasgadas na minha garganta e me levaram à beira das lágrimas.

Assim, em desespero, inclinei-me para a frente e pressionei meus lábios contra os dele. Podia notar que ele estava surpreso, pelo jeito que se esquivou, vagarosamente, antes de retomar o controle. E, então, fez algo inesperado: beijou de volta. Ele inclinou-se sobre mim, buscando meus lábios e respirando em minha boca. Foi um beijo forte, faminto e desajeitado, e muito mais do que eu esperava. Antes que eu tivesse a chance de ficar assustada, ele me encostou na parede, sua boca ainda sobre a minha, e se pressionou contra mim até eu tocar no lugar secreto escondido debaixo da parte da frente de suas calças e embaixo do tecido de sua jaqueta. Ele deixou escapar um gemido, a primeira vez que eu ouvi um gemido de prazer vindo de outra pessoa. Sem nenhuma palavra, ele pegou minha mão e trouxe para a frente de sua calça, e o senti estremecer enquanto soltava outro gemido.

Tirei minha mão, que formigava, ainda sentindo a excitação dele.

Ele ofegava, tentando recuperar o controle, confuso por eu ter me desvencilhado dele.

— Não era isso que você queria? — ele perguntou, estudando meu rosto, um pouco mais do que preocupado. — Foi você quem me beijou.

— Eu queria... — As palavras se atropelavam. — Queria perguntar... Tenebraes...

— Tenebraes? — Ele deu um passo para trás, alisando a frente do casaco. — O que tem Tenebraes? Que diferença... — Ele recapitulou e talvez tenha percebido que fora observado na igreja. Balançou a cabeça, como que colocando de lado a própria ideia de Tenebraes Poirier. — E qual é o seu nome? Qual das irmãs McIlvrae você é?

Não poderia culpá-lo por não ter certeza: nós éramos três irmãs.

— Lanore — respondi.

— Não é um nome muito bonito, é? — ele disse, sem perceber que cada palavrinha poderia ferir o coração de uma jovem. — Vou chamar você de Lanny, se não se importa. Então, Lanny, sabe que é uma garota muito travessa. — Havia um tom de brincadeira em sua voz, suficiente para saber que ele não estava seriamente zangado comigo. — Ninguém nunca lhe falou que não deveria provocar um garoto desse jeito, especialmente aqueles que você não conhece?

— Mas eu conheço você. Todo mundo conhece você — eu disse, um pouco preocupada que ele pudesse me achar frívola. Ele era o filho mais velho do homem mais rico da cidade, o proprietário da madeireira ao redor da qual o vilarejo inteiro vivia; obviamente todos sabiam quem ele era. — E... e acho que amo você. Um dia serei sua esposa.

Jonathan levantou uma sobrancelha cinicamente.

— Saber meu nome é uma coisa, mas como pode saber se me ama? Como pode entregar seu coração a mim? Você nem me conhece, Lanny, mas, ainda assim, já declarou ser minha. — Ele ajeitou a jaqueta mais uma vez. — Devíamos voltar lá para fora antes que alguém venha nos procurar. Seria melhor não sermos vistos juntos, você não acha? Você deve ir primeiro.

Fiquei lá parada por um segundo, chocada. Estava confusa, ainda possuída pelo rastro fantástico de seu desejo, seu beijo e a memória de sua excitação na palma de minha mão. De qualquer forma, ele entendera errado: não tinha me oferecido a ele. Tinha declarado que ele me pertencia.

— Está bem — eu disse, e a decepção deve ter sido evidente em minha voz, pois Jonathan me deu seu sorriso mais belo.

— Não se preocupe, Lanny! Tem o próximo domingo; nós nos veremos depois do culto, prometo. Quem sabe eu a convenço a me dar outro beijo?

 

Será que preciso lhe contar sobre Jonathan, o meu Jonathan, para que então compreenda como eu podia ter tanta certeza de minha devoção? Ele era o primogênito de Charles e Ruth St. Andrew, e eles estavam tão emocionados por ter um filho que lhe deram um nome assim que nasceu, batizaram-no em um mês e o adoraram de modo irresponsável numa época em que a maioria dos pais só dava nomes às crianças depois de elas terem vivido por algum tempo e provado que tinham chance de sobrevivência. O pai deu uma grande festa enquanto Ruth ainda se recuperava na cama: todas as pessoas da cidade vieram para o ponche de rum e chá com açúcar, bolo de ameixa e biscoitos de melaço. Contrataram um violonista acadiano, deram tantas risadas e tocaram tanta música tão perto do nascimento do garoto, que parecia que o pai estava provocando o demônio: “Tenta aparecer por aqui e levar o meu garoto! Tente e veja o que terá!”.

Era evidente, desde a mais tenra idade, que Jonathan era incomum: ele era excepcionalmente inteligente, excepcionalmente forte, excepcionalmente saudável e, acima de tudo, excepcionalmente belo. As mulheres sentavam embevecidas ao lado do berço, implorando para carregá-lo, e fingiam que aquele pacotinho bem-feito de cachinhos pretos e delicados era delas. Mesmo os homens e os lenhadores mais durões, que trabalhavam para St. Andrew na operação da madeireira, ficavam estranhamente dóceis quando estavam perto do bebê.

Quando Jonathan completou 12 anos, não havia como negar que havia alguma coisa sobrenatural nele, e parecia óbvio atribuir isso a sua beleza. Ele era uma maravilha; a perfeição. Não era algo que se pudesse dizer sobre muita gente naquela época, quando as pessoas eram desfiguradas por um número variado de causas: sarampo ou acidente; queimadura na fornalha; magreza por desnutrição; desdentadas aos 30 anos; tortas por causa de algum osso consertado de forma errada; com cicatrizes; paralíticas; sarnentas por falta de higiene; com partes do corpo amputadas por causa do frio da floresta. Mas não havia uma só marca de desfiguração em Jonathan. Ele se tornara alto, ereto e de ombros largos, tão majestoso quanto as árvores de sua propriedade. Sua pele tinha um tom creme; seus cabelos eram negros, lisos e tão brilhantes quanto as asas da graúna; seus olhos eram escuros e profundos, como os remotos recessos do Allagash. Ele era simplesmente lindo.

Seria uma bênção ou uma maldição ter um garoto como Jonathan vivendo entre nós? Pobre de nós, garotas, eu digo; pense no efeito que um garoto como Jonathan tem nas meninas de um pequeno vilarejo, em uma cidadezinha tão limitada que há poucas outras distrações e onde é impossível evitar o contato com ele. Ele era uma tentação constante. Sempre havia a chance de vê-lo saindo do armazém ou enquanto atravessava o campo aparentemente numa caminhada, mas, na verdade, ele era enviado pelo demônio para enfraquecer nossas forças. Ele nem precisava estar presente para dominar nosso pensamento: quando nos sentávamos com as irmãs ou amigas para bordar, pelo menos uma delas comentaria sobre um vislumbre de Jonathan e, então, ele se tornaria o assunto da reunião. Talvez tivéssemos culpa pelo próprio encantamento, por não conseguirmos controlar a obsessão por ele, nem em encontros ocasionais (“ele falou com você”, as garotas queriam saber: “o que ele disse?”) ou numa visão de relance pela cidade, quando até mesmo o detalhe mais insignificante, como a cor do casaco dele, era discutido. Mas, no fundo, o que todas nós realmente pensávamos era: “Bem que ele podia olhar para mim com um olhar impertinente ou levantar o canto da boca enquanto pensava...”; “Eu morreria para estar em seus braços pelo menos uma vez na vida”. E não eram só as moças que se sentiam assim em relação a ele; ele fazia os homens do vilarejo parecerem velhos, toscos, gordos ou magricelas e as esposas dedicadas olhavam Jonathan com outros olhos, com olhares febris, bochechas avermelhadas, lábios mordidos e, num rápido suspiro, a eterna esperança.

Também havia a atração de um leve perigo, de querer tocá-lo da maneira que uma voz ensandecida dentro da mente manda tocar um ferro quente. Você sabe que vai se machucar, mas não resiste. Tem que passar pela experiência. Ignora o que virá depois, a dor insuportável da carne ressequida, a fisgada brusca da queimadura toda vez que se toca na ferida. A cicatriz que irá carregar pelo resto da vida. A cicatriz que marcará seu coração, que, acostumado a amar, nunca mais será enganado da mesma maneira.

Com relação a isso, eu não só era invejada como ridicularizada: invejada por todo o tempo que passei na presença de Jonathan e ridicularizada porque deixei bem claro que não havia nenhum tipo de romance entre nós. Isso se confirmava aos olhos das outras garotas, que julgavam me faltar a necessária audácia feminina para conquistar o interesse de um homem. Mas eu não era diferente delas. Sabia que Jonathan tinha a capacidade de me afetar com sua atenção, como colocar fogo em papel. Uma garota poderia ser destruí­da num instante de amor divino. A questão era: valia a pena?

Poderia me perguntar se eu amava Jonathan por sua beleza e eu responderia: essa é uma pergunta irrelevante, pois sua grande e rara beleza era uma parte inseparável do todo. Conferia a ele uma confiança silenciosa, que alguns chamavam de arrogante superioridade, e um jeito fácil e sedutor com o sexo frágil. E, se a princípio sua beleza tomou conta de meus olhos, não me desculparei por isso; nem me desculparei pelo desejo de considerá-lo meu. Contemplar essa beleza é desejar possuí-la; é o desejo que move cada colecionador. E eu não estava sozinha. Quase toda pessoa que conheceu Jonathan tentou possuí-lo. Esta era sua maldição, e a maldição de todos aqueles que o amaram. No entanto, era como estar apaixonado pelo Sol: brilhante e inebriante quando perto, mas impossível de mantê-lo só para si. De nada adiantava amá-lo e, do mesmo modo, de nada adiantava não amá-lo.

Assim, fui enfeitiçada pela maldição de Jonathan, tomada por essa terrível atração, e ambos fomos destinados a sofrer por isso.

 

Cresceu uma grande amizade entre nós, Jonathan e eu, durante a infância. Nós nos encontrávamos depois das cerimônias aos domingos e em eventos sociais, como casamentos ou até funerais, ou quebrávamos totalmente as regras e caminhávamos para dentro da floresta para podermos concentrar nossa atenção um no outro. Cabeças balançavam em sinal de desaprovação e, sem dúvida, muitas línguas se rendiam às fofocas, mas nossas famílias nada fizeram para impedir nossa amizade ou, pelo menos, não fui informada disso.

Foi nessa época que percebi o quanto Jonathan era mais solitário do que eu imaginava. Os outros meninos procuravam a companhia dele muito menos do que eu pensava e, da parte de Jonathan, quando um grupo chegava perto de nós nos eventos sociais, ele os debandava. Lembro-me de em uma ocasião, numa reunião da igreja durante a primavera, que Jonathan se desviou quando viu um grupo de garotos vindo em nossa direção. Não tinha ideia do que aquilo significava e, após alguns minutos de ansiosa contemplação, resolvi perguntar.

— Por que preferiu caminhar por aqui? — perguntei. — É porque tem vergonha de ser visto comigo?

Emitiu um som, zombando de mim.

— Não seja estúpida, Lanny! Posso ser visto com você agora. Qualquer um pode nos ver caminhando juntos.

Isso era mesmo verdade, e um alívio. Mas não podia deixar de saber a razão.

— Então é por que você não gosta deles, daqueles garotos?

— Não é que não goste deles — ele respondeu irritado.

— Então por que...

Ele me cortou.

— Por que está me questionando? Acredite no que estou dizendo. É diferente para os meninos, Lanny, e isso é tudo.

Ele começou a andar mais rápido e eu tive que erguer um pouco as saias para alcançar o passo dele. Ele não havia me explicado a que o maldito “diferente” se referia: o que era diferente para os garotos? Tentei imaginar. Quase tudo, até onde conseguia enxergar. Os meninos podiam ir para a escola, se a família tivesse condições de pagar as taxas de seus tutores, enquanto a escolaridade das meninas não passava daquilo que as mães conseguiam lhes ensinar: as artes domésticas da costura, limpeza e cozinha, talvez um pouco da leitura da Bíblia. Os meninos podiam lutar entre eles só para se divertir, correr e brincar de pega-pega sem o desconforto das saias compridas, andar a cavalo. É verdade que eles tinham tarefas mais difíceis e que precisavam aprender todo tipo de coisa; uma vez, Jonathan me contou, seu pai o fez consertar a base do depósito de gelo, pedra e argamassa, só para que soubesse um pouco sobre marcenaria, mas, a meu ver, a vida de um garoto era muito mais livre. E aqui estava Jonathan reclamando disso.

— Queria ser um menino — murmurei, quase sem fôlego, tentando manter o ritmo dele.

— Não queria nada — respondeu sobre os ombros.

— Não vejo o que...

Ele virou-se para mim.

— E seu irmão, Nevin? Ele não gosta muito de mim, gosta? — Eu parei, atônita. Não, até onde me lembrava, Nevin não gostava, nem nunca gostou de Jonathan. Lembro-me da briga com Jonathan, de como Nevin voltou para casa manchado com uma casca de sangue seco em seu rosto, e do orgulho silencioso de meu pai.

— Por que acha que seu irmão me odeia? — ele quis saber.

— Não sei.

— Nunca dei motivo a ele, mas ele me odeia mesmo assim — Jonathan disse, esforçando-se para não trair a mágoa na voz. — É assim com todos os meninos. Eles me odeiam. Alguns adultos também. Sei disso, posso sentir. É por isso que tento evitá-los, Lanny. — Seu peito estava ofegante, cansado de explicar tudo para mim. — Pronto, agora você sabe — ele disse e se apressou, e fiquei olhando para ele, surpresa.

Pensei a semana toda sobre o que ele dissera. Poderia ter conversado com Nevin sobre seu ódio por Jonathan, mas fazer isso seria retomar uma antiga briga entre nós. Ele não suportava que eu fosse amiga de Jonathan, obviamente, e eu já conhecia muito bem as razões. Meu irmão achava que Jonathan era presunçoso e arrogante, que se gabava de sua riqueza e que esperava, e recebia, tratamento especial. Eu conhecia Jonathan mais do que qualquer outra pessoa fora de seu círculo familiar, talvez até mais do que a própria família, de forma que sabia que tudo isso era mentira, exceto pelo último motivo, mas não era culpa de Jonathan se as outras pessoas o tratavam de maneira diferente. E, ainda que Nevin nunca admitisse, eu via em seus olhos de ódio o desejo de estragar a beleza de Jonathan, de deixar sua marca naquele rosto maravilhoso e derrotar o filho favorito da cidade. A seu modo, Nevin queria desafiar Deus, para corrigir uma injustiça que Ele deliberadamente tinha lhe feito: ser obrigado a viver sob a sombra de Jonathan, em todos os sentidos.

Foi por isso que Jonathan se afastou apressadamente de mim na reunião da igreja, pois tinha sido forçado a compartilhar sua vergonha comigo e talvez pensara que, uma vez que eu soubesse seu segredo, eu o abandonaria. Quanto nos apegamos a nossos medos durante a infância! Como se existisse qualquer tipo de força na terra ou no céu que pudesse me impedir de amar Jonathan! De fato, isso me fez enxergar que ele também tinha seus inimigos e caluniadores; que ele também era julgado constantemente e que precisava de mim. Eu era a única amiga com quem ele era livre. E a recíproca era verdadeira: honestamente, Jonathan era a única pessoa que me tratava como se eu fosse importante. E ter a atenção do garoto mais desejado e mais importante do vilarejo não era pouca coisa para uma garota quase invisível entre seus pares. O que eu poderia fazer a não ser amá-lo, ainda que fosse só por isso?

E foi exatamente o que disse a Jonathan no domingo seguinte, quando fui até ele e coloquei meu braço embaixo do dele enquanto caminhava no final do gramado.

— Meu irmão é um idiota — foi tudo o que eu disse, e continuamos a caminhar juntos sem trocar nenhuma palavra.

Uma coisa da qual eu não me arrependi de dizer durante nossa conversa na reunião da igreja foi que eu gostaria de ter nascido um menino. Ainda acreditava nisso. Foi enfiado na minha cabeça, pelas coisas que meus pais faziam e pelas próprias regras sob as quais vivíamos, que meninas não valiam tanto quanto meninos e que nossa vida estava fadada a ser bem menos importante. Por exemplo, Nevin herdaria a fazenda de meu pai, mas se ele não tivesse o temperamento ou a vocação para a criação de gado, ele poderia ser aprendiz de ferreiro ou ser mandado para trabalhar como lenhador para os St. Andrew; ele tinha opções, apesar de limitadas. Como mulher, eu tinha poucas escolhas: casar e formar a própria família; ficar em casa e cuidar de meus pais; trabalhar como serviçal na casa de alguém. Se, por algum motivo, Nevin recusasse a fazenda, meus pais, possivelmente, a dariam para o marido de uma das filhas, mas isso também dependeria da preferência dele. Um bom esposo levaria em consideração o desejo de sua esposa, mas nem todos o faziam.

A outra razão, a mais importante, em minha opinião, era que, se eu fosse um menino, seria muito mais fácil ser amigo de Jonathan. As coisas que poderíamos fazer juntos se eu não fosse uma garota! Poderíamos andar a cavalo e sair em busca de aventuras sem um acompanhante. Poderíamos passar muito tempo na companhia um do outro sem desagradar ninguém ou ser motivo de falatório. Nossa amizade seria tão comum que não seria alvo de investigação.

Em retrospecto, entendo agora que era uma época difícil para mim, ainda presa na adolescência, mas já tateando a maturidade. Havia coisas que queria de Jonathan, mas ainda não conseguia dar nomes a elas e tinha apenas o desajeitado modelo da infância como comparação. Eu era próxima a ele, mas queria ser ainda mais próxima, de uma maneira que não entendia. Via como ele olhava as meninas mais velhas e que ele se comportava de um modo diferente com elas, e pensei que fosse morrer de ciúme. Em parte, isso acontecia por causa da intensidade da atenção de Jonathan, seu grande charme. Quando ele estava com você, tinha um jeito de fazer você se sentir o centro do Universo. Seus olhos, aqueles olhos escuros sem-fim, olhavam para seu rosto e era como se ele estivesse lá para você e somente para você. Talvez isso fosse uma ilusão, talvez fosse somente a alegria de tê-lo junto de si. De qualquer maneira, o resultado era sempre o mesmo: quando Jonathan não dava mais atenção, era como se o Sol se escondesse atrás de uma nuvem e um vento frio e cortante batesse nas costas. Tudo o que queria era que Jonathan voltasse, para ter sua atenção de novo.

E ele mudava a cada ano. Quando estava desatento, via aspectos dele que nunca tinha visto (ou percebido) antes. Ele podia ser cruel, particularmente quando notava que era observado por uma mulher. Exibia o comportamento grosseiro dos lenhadores que trabalhavam para seu pai, falava de maneira vulgar sobre as mulheres como se já estivesse familiarizado com todos os níveis possíveis de intimidade entre os sexos. Mais tarde soube que, aos 16 anos, ele fora seduzido e seguiu seduzindo outras mulheres; tornou-se um participante (comparativamente cedo na vida dele) dessa valsa secreta de amantes ilícitos existente em St. Andrew, um mundo escondido quando não se sabe onde procurar. Mas estes eram segredos que ele não tinha coragem de dividir comigo.

Tudo o que sei é que meu desejo por Jonathan crescia e, às vezes, tinha a sensação de que estava quase além de meu controle. Havia algo em seus olhos negros, ou em seu meio sorriso, ou no modo como acariciava propositadamente a manga de seda de uma jovem quando pensava que ninguém o estava observando, que me fazia querer que ele me olhasse e me acariciasse da mesma forma. Ou, quando pensava nas coisas indecorosas que o tinha ouvido dizer, queria que fosse indecoroso comigo também. Compreendo agora que eu era uma jovenzinha solitária e confusa que implorava por intimidade e paixão física (apesar de isso ser um mistério para mim); sei disso agora, mas minha ignorância foi o caminho para minha desgraça. Estava louca para ser amada. Não posso colocar a culpa toda em Jonathan. Quantas vezes causamos nossa própria derrocada!

 

                 HOSPITAL DO CONDADO DE AROOSTOOK, HOJE

A fumaça rodopiava em dois pontos de luz dentro do consultório. Agora, as amarras dos pulsos estão soltas e a prisioneira senta-se com a maca ajustada na posição vertical, como uma cadeira, um cigarro queimando entre os dedos. Duas bitucas, queimadas até o filtro, estão amassadas no fundo de uma comadre sobre a maca entre eles. Luke se recosta na cadeira e tosse, a garganta raspando por causa da fumaça e a cabeça um tanto zonza, como se tivesse usado drogass a noite toda.

Ouve-se uma batida na porta e Luke fica em pé mais depressa do que um esquilo consegue subir numa árvore, pois sabe que essa é a batida obrigatória e de praxe que um funcionário do hospital dá antes de entrar. Ele bloqueia a porta com o corpo, deixando-a apenas entreaberta.

O olhar frio de Judy, distorcido pelas lentes dos óculos, analisa-o de cima a baixo.

— O necrotério ligou. O corpo acabou de chegar. Joe quer que você ligue para o médico-legista.

— Está tarde. Diga a Joe que não há necessidade de ligar para o legista agora. Certamente dá para esperar até amanhã.

A enfermeira cruza os braços.

— Ele também pediu para perguntar sobre a prisioneira. Ela está pronta para ir ou não?

Isso é um teste, ele percebe. Ele sempre se viu como uma pessoa honesta, mas ainda não está pronto para deixá-la ir.

— Não, ele ainda não pode levá-la.

Judy lhe lança um olhar tão duro, que parece atravessá-lo.

— Por que não? Ela não tem um arranhão sequer.

Rapidamente uma mentira lhe vem à cabeça.

— Ela ficou agitada. Tive que sedá-la. Preciso ter certeza de que não terá reações adversas ao sedativo. — A enfermeira suspira profundamente, como se já soubesse (não suspeita, mas sabe) que ele está fazendo alguma coisa horrorosa com o corpo inconsciente da garota. — Me deixe sozinho, Judy. Diga a Joe que ligarei para ele quando ela estabilizar. — Ele fecha a porta na cara dela.

Lanny empurra a cinza em volta da comadre com seu cigarro aceso, sem fazer contato visual com ele.

— Jonathan está aqui. Agora não precisa acreditar nas minhas palavras — ela diz, batendo a cinza dentro da comadre e indicando a porta com a cabeça. — Desça até o necrotério. Veja com seus próprios olhos.

Luke se mexe desconfortavelmente no banquinho.

— Então, há um homem morto no necrotério, o que prova que você realmente matou um homem esta noite.

— Não, há mais uma coisa. Deixa eu mostrar para você — ela diz, erguendo a manga do avental do hospital e revelando as linhas de um desenho pequeno na parte branca, do lado de dentro de seu antebraço. Ele se inclina para olhar mais de perto e vê que é uma tatuagem grosseira, feita em tinta preta: o contorno de um escudo heráldico com a figura de um réptil dentro. — Verá no braço de Jonathan, neste lugar...

— A mesma tatuagem?

— Não — ela responde, passando o dedo sobre a tatuagem. — Mas é do mesmo tamanho e foi feita pela mesma pessoa, então é parecida, como se tivesse sido feita com alfinetes mergulhados em tinta, e realmente foi. A dele são dois cometas circundando um em volta do outro, com as caudas estendidas.

— O que significam? Os cometas? — Luke pergunta.

— Gostaria muito de saber — ela responde, arrumando o avental e a roupa de cama. — Vá lá e olhe para Jonathan, e então me diga que não acredita em mim.

Depois de amarrá-la novamente de forma muito ineficaz, com amarras raramente usadas em pacientes rebeldes, Luke Findley se levanta do banquinho. Passa pelas portas de vaivém, olhando para todos os lados para se assegurar de que ninguém o veja sair. O hospital ainda está escuro e silencioso, somente com algum movimento nos distantes pontos de luz sobre o balcão das enfermeiras no fundo do corredor. Seus sapatos rangem no limpo piso de linóleo enquanto ele se apressa pela escadaria, em direção ao norte, pelo corredor do subsolo que leva até o necrotério.

Durante o percurso, seus nervos estão à flor da pele. Se alguém o intercepta e lhe pergunta o que está fazendo fora da sala de emergência, por que está indo ao necrotério, ele simplesmente dirá... Luke nunca foi um bom mentiroso. Ele vê a si mesmo como uma pessoa fundamentalmente honesta, seja lá o bem que isso lhe faça. Apesar de sua honestidade e do medo de ser pego, ele concordou com a estranha sugestão da prisioneira, porque está curioso para saber se o morto é o homem mais belo já colocado sobre esse planeta e qual é a aparência desse tal homem mais belo de todos.

Ele empurra a pesada porta do necrotério. Luke ouve música (o funcionário noturno do necrotério, um jovem chamado Marcus, gosta de ter o rádio sempre ligado), mas não vê ninguém. A escrivaninha mostra que há gente ali (a luminária acesa, papéis espalhados, papel de chiclete, uma caneta sem tampa), mas nem sinal de Marcus.

O necrotério é pequeno, de acordo com as modestas necessidades da cidade. Há uma sala refrigerada para exames mais ao fundo, mas os corpos são guardados em quatro câmaras frias na parede próxima da entrada. Luke respira fundo e alcança um dos trincos, grande e pesado como os trincos dos caminhões antigos de comida congelada.

Na primeira câmara ele encontra o corpo de uma velha senhora, desconhecida para ele, o que significa que ela provavelmente veio de uma das cidades um pouco mais afastadas do condado. O corpo pequeno e compacto e os cabelos brancos o fazem pensar em sua mãe e, por um momento, ele é levado de volta à última conversa lúcida que tiveram. Ele havia se sentado ao lado de sua cama, na unidade de terapia intensiva, enquanto os olhos perdidos dela buscavam o filho, e suas mãos buscavam as dele, para se confortar.

— Sinto muito por fazê-lo voltar para casa para tomar conta de nós — ela lhe disse; sua mãe nunca se desculpava porque não se permitia fazer nada pelo que precisasse se desculpar. — Talvez tenhamos ficado na fazenda tempo demais. Mas seu pai, ele não desistia... — Ela se obrigou a parar, incapaz de ser desleal ao velho homem, tão teimoso a ponto de ter andado pesadamente até o estábulo para tirar leite das vacas na manhã do dia em que morreu. — Sinto muito pelo que isso causou à sua família... — Luke lembra-se de tentar explicar que o casamento deles já estava desmoronando muito antes de retornar com a família para St. Andrew, mas sua mãe não queria saber de ouvir nada daquilo. — Você nunca quis ficar em St. Andrew, desde quando era pequeno. Não pode estar feliz aqui agora. Depois que eu morrer, não fique enfiado aqui. Vá embora e comece uma vida nova. — Ela começou a chorar e continuou segurando as mãos dele, ficando inconsciente poucas horas depois.

Leva um tempo para Luke reparar que a câmara ainda está aberta e que ele estava em pé havia tanto tempo que seu peito ficara gelado. É como se pudesse ouvir a voz da mãe em sua mente. Ele sente um arrepio e escorrega a bandeja para dentro da câmara; então, fica parado mais um minuto até lembrar por que tinha vindo ao necrotério.

Encontra um saco para cadáveres preto na segunda câmara e, com um grunhido de esforço, puxa a bandeja para fora. Abre o zíper até embaixo, emitindo o som de algo se rasgando, como o desgrudar de um velcro.

Luke afasta o saco e olha fixamente o corpo. Ele já viu muitas pessoas mortas ao longo dos anos, e a morte não faz nada para melhorar sua aparência. Dependendo da maneira como morreram, os mortos podem ficar inchados. Podem ter escoriações e descoloração, ou ficar pálidos e azulados. E há sempre a incontestável falta de vivacidade no semblante. O rosto deste homem está quase branco, como as manchas nas folhas escuras e molhadas; o cabelo negro está emplastrado na testa, os olhos, fechados. Não faz diferença. Luke poderia ficar olhando para ele a noite toda. É maravilhoso, mesmo na morte. Ele é de tirar o fôlego, lindíssimo!

Luke está a prestes a empurrar a bandeja de volta quando se lembra da tatuagem. Primeiro olha por sobre o ombro, caso Marcus tenha voltado, e então se apressa, abrindo mais o zíper do saco e mexendo na roupa para conseguir ver o antebraço do morto. E lá está ela, exatamente como Lanny disse que seria: duas esferas interligadas com as caudas se cruzando em direções opostas, e os pontos se parecem em tamanho, na qualidade do trabalho manual e até no traço tremido da linha.

Refazendo seus passos pelos corredores vazios até a ala de emergência, Luke se debate com a confusão de seus pensamentos que são, na maior parte, perguntas. São como matéria e antimatéria, um anulando o outro, duas verdades que não podem coexistir. Ele sabe o que presenciou na sala de emergência quando viu a garota se cortar; seria impossível, mas aconteceu. Ele tocara no torso dela, antes e depois do corte, então sabe que não foi um truque. Mas o que viu não poderia ter acontecido, não da maneira como ele viu.

A não ser que ela esteja falando a verdade. E agora tem um homem lindo no necrotério, e as tatuagens... Ele tem a sensação de que precisa ouvi-la e deixar-se levar, para variar. Mas ele é teimoso, afinal é um homem da ciência; não está a ponto de jogar para o alto tudo o que sabe ser fato. De qualquer forma, está curioso para saber mais.

O médico passa correndo pela porta do consultório da sala de emergência, a energia e o nervosismo dentro do peito como vaga-lumes dentro de uma garrafa, para encontrar a prisioneira acomodada na maca, sob o brilho da fresta de luz e das partículas rodopiantes de fumaça. “Ela poderia ser um anjo excomungado”, Luke pensa, “as asas cortadas”.

Lanny olha avidamente para ele.

— Então, você o viu? Ele não era tudo o que eu disse que seria?

Luke concorda. Uma beleza assim é o próprio droga. Ele passa a mão pelo rosto, respira fundo.

— Então agora você compreende — Lanny disse solenemente. — E, se acredita em mim, Luke, me ajude. Me desamarre — ela pediu, curvando as costas e mostrando as amarras, seu rosto meigo e infantil virado para ele. — Preciso que você me ajude a fugir.

 

  1. ANDREW, 1811

Talvez tivesse sido melhor, tanto para mim quanto para Jonathan, se eu tivesse nascido homem. Preferia ter deixado nossa amizade continuar e, assim, sempre ter Jonathan. Teríamos passado nossa vida toda dentro dos limites de nosso pequeno vilarejo; nunca teria passado pelas dificuldades que passei, nunca teria sofrido esta provação colocada para nós dois.

Mas eu era uma menina e, por mais que desejasse, nada mudaria isso. À minha frente surgia a misteriosa transição de menina para mulher, tão assustadora quanto mágica. Quais exemplos deveria seguir? Minha mãe, Theresa, não conseguira me dar os tipos de conselho que eu buscava; ela era recatada e quieta demais para meu gosto; eu não queria ser como ela, queria mais. Queria casar com Jonathan, por exemplo, e não parecia que minha mãe pudesse me ensinar a ser o tipo de mulher que conquistaria Jonathan.

Parecia haver segredos que nem todas as mulheres podiam saber. Por sorte, havia uma mulher na cidade que os conhecia, uma mulher de quem todos falavam coisas, cujo nome trazia um sorriso ao rosto dos homens (se suas mulheres não estivessem por perto). Era uma mulher diferente de todas no vilarejo e eu tinha que achar um jeito de fazê-la compartilhar esses segredos comigo.

Numa trilha da floresta, escondida à sombra da oficina do ferreiro, havia uma casinha. Se alguém conseguisse notá-la, acharia que era uma extensão da oficina ou um depósito de ferramentas do ferreiro, um lugar para guardar ferro-gusa. Era muito desmantelada e pequena para ser uma casa, mesmo assim, não parecia abandonada e o caminho até a porta da frente ficava cada vez mais batido. Com certeza não dava para mais de uma pessoa morar ali, e a lei vigente contra morar sozinho ainda prevalecia no apagar das luzes do século XIX, em nosso gélido vilarejo puritano (porque éramos puritanos, não tenha dúvida disso; os fundadores da cidade haviam crescido nos territórios de Massachusetts e estavam acostumados a misturar religião e governo). No entanto, neste ponto do extremo norte, que depois viria a ser o Maine, a única razão para a ordem de não viver sozinho era a necessidade: era impensável que uma pessoa sozinha conseguisse desempenhar todas as tarefas necessárias e sobrevivesse nesse ambiente hostil. No entanto, em uma cidade rigorosamente puritana, ninguém podia viver sozinho porque na solidão se pode pecar, fazer coisas que não são de Deus. A ordem contra viver sozinho permitia a vigilância dos vizinhos, mas os cidadãos de St. Andrew valorizavam a independência e resguardavam sua privacidade com unhas e dentes.

De fato, morava alguém naquela casinha, uma mulher que já passara da época de ter filhos, ainda bela, embora envelhecida. Ela raramente saía, mas quando se aventurava nas ruas durante o dia, os moradores da cidade a olhavam com cautela. Os homens fingiam estar fazendo algo para que os olhos deles não se encontrassem com os dela, e as mulheres puxavam suas longas saias de lado. Alguns a encaravam diretamente.

Mas, à noite, era outra história. Na escuridão da noite, ela tinha visitantes regulares. Homens, um de cada vez, e, mais raramente, um casal, atravessavam rapidamente o caminho e batiam educadamente em sua porta. Se ninguém atendesse, o visitante sabia que tinha que se sentar no degrau e esperar, de costas para porta, fingindo não ouvir qualquer som que saísse de lá de dentro. Vez ou outra, os sons da casinha se tornavam conversas murmurantes, depois silêncio e, dentro de poucos minutos, a porta da frente se abria para o visitante que estava esperando.

Aqueles que sabiam de sua existência a chamavam de Magdalena. Era o nome que dera a si mesma quando chegara à cidade sete anos antes. Na época, ninguém questionou aquele nome estranho. Ela chegou com um pequeno grupo de viajantes do território franco-canadense e, quando eles seguiram viagem, ela ficou. Disse que era viúva e resolveu se mudar para o clima mais ameno do sul, isto é, se os moradores de St. Andrew permitissem que ela ficasse.

O ferreiro se ofereceu para transformar seu velho depósito em uma pequena casa e as boas mulheres do vilarejo a ajudaram a se acomodar, trazendo-lhe todas as coisas das quais pudessem dispor: um banquinho bambo, um pouco de chá, um cobertor velho. Mandavam os maridos com lenha e gravetos para acender o fogo. Perguntavam o que faria para se manter: bordado, fiação, tear? Era parteira, treinada para curar e amamentar? E ela simplesmente sorria discretamente e abaixava o rosto, como se dissesse: “Eu? Que tipo de habilidades teria? Meu marido me tratava como uma boneca de porcelana. Como uma pobre viúva que não sabe fazer nada conseguirá sobreviver no mundo?”. As boas mulheres iam embora confusas, cacarejando e balançando a cabeça, sem saber o que dizer, exceto que Deus era o provedor de todos os seus filhos, inclusive desta mulher inocente que parecia acreditar que encontraria a caridade sem limites nesta cidade rude e solitária.

Como o futuro provou, ela realmente não precisou depender da caridade. Misteriosamente, o sustento aparecia em sua porta, espontaneamente. Uma barra de manteiga, um saco de batatas, um jarro de leite. A lenha se amontoava do lado de fora da porta dos fundos. E dinheiro. Ela era uma das poucas pessoas na cidade que tinha dinheiro vivo e contava-o no armazém quando comprava mantimentos. E que mantimentos curiosos: garrafas de gim, tabaco! Através da única janela da casinha, os vizinhos notavam uma lamparina acesa até tarde da noite. Será que ela ficava acordada a noite toda fumando tabaco e bebendo gim?

No final, foram os lenhadores que revelaram o segredo dela, os madeireiros que trabalhavam para Charles St. Andrew ano após ano e viviam longe de suas esposas. Homens desse tipo conseguiam sentir o cheiro de mulheres como Magdalena do outro lado da cidade, até mesmo através do vale, se o vento certo soprasse e eles estivessem muito desesperados. Primeiro um, depois outro, até que cada um deles achava o caminho até a escadaria da casa de Magdalena assim que o sol se punha. Não que os lenhadores fossem os únicos clientes dela: afinal, eles pagavam em moedas, não com ovos nem presunto defumado. Mas, por causa dos lenhadores, sua reputação se espalhou pela cidade e a fúria se instalou entre as esposas virtuosas. Ainda assim, Magdalena não dizia nada. Não enquanto o sol brilhava. Nem mesmo quando foi humilhada pessoalmente por uma esposa indignada.

As esposas, junto com o pastor, organizaram um grupo para expulsá-la da cidade. A presença dela era o primeiro sinal de vida pecaminosa na cidade de St. Andrew, o tipo de coisa que os cidadãos queriam evitar. O pastor Gilbert foi até Charles St. Andrew, já que ele era o patrão dos lenhadores, os clientes que reclamariam abertamente.

Por mais que simpatizasse com o pedido do pastor, Charles observou que havia outro lado nos serviços prestados por Magdalena, ao qual a população não estava prestando atenção. Os lenhadores agiam de acordo com suas necessidades naturais, com as quais o pastor concordou rancorosamente, já que estavam separados de suas cônjuges legais por muitas milhas de distância. Sem os serviços de Magdalena, o que os lenhadores poderiam aprontar? A presença dela tornava a cidade mais segura para as esposas e as filhas.

Assim, houve um armistício entre a prostituta e as cidadãs virtuosas, que durou longos sete anos. Em épocas difíceis e de doenças, ela contribuía como podia, quer gostassem ou não: cuidava dos doentes e dos moribundos, alimentava os viajantes necessitados, colocava moedas na caixa de doação da igreja quando ninguém estava por perto para vê-la entrar. Eu não conseguia parar de pensar que ela sentia um pouco de falta de uma companhia feminina, apesar de ela sempre se manter respeitosamente distante e nunca puxar conversa com as mulheres da cidade.

A situação de Magdalena era um mistério para muitas crianças. Nós víamos que nossas mães evitavam aquela figura enigmática. A maioria das crianças mais novas acreditava que ela fosse uma bruxa ou algum tipo de criatura sobrenatural. Lembro-me dos gritos zombeteiros, das pedras que às vezes atiravam na direção dela. Não eu, pois desde a mais tenra idade sempre achei que havia algo irresistível nela. A bem da verdade, nunca deveria tê-la conhecido. Minha mãe não era do tipo que julgava, mas mulheres como ela não se relacionavam com prostitutas, muito menos suas filhas. E, mesmo assim, eu quis conhecê-la.

Aconteceu durante um longo sermão de domingo. Pedi licença e fui discretamente ao banheiro. Mas, em vez de voltar rapidamente para o mezanino e para o lado de meu pai, fiquei vadiando do lado de fora, no calor de um lindo dia de início de verão. Perambulei até o celeiro do Tinky Talbot para dar uma olhada na nova cria de leitões, cor-de-rosa manchados de preto, enrolados em pelo áspero e fino. Fiz carinho em seus focinhos curiosos e escutei os roncos suaves.

Então, olhei de lado para a estradinha (era o mais perto que já ficara da misteriosa casinha) e vi Magdalena sentada em uma cadeira, perto da estreita jardineira da varanda, com um cachimbo comprido e escuro entre os dentes. Ela também estava aproveitando o sol, enrolada num cobertor, os cabelos escandalosamente soltos sobre os ombros. As partes dela que não estavam cobertas pelo cobertor eram magras e delicadas, os ossos de sua clavícula, finos como os de um passarinho, visíveis sobre a pele alva como papel. Não usava pó no rosto, somente um traço de carvão esfumaçado no canto dos olhos, um pouco de pintura nos lábios.

Não era como nenhuma outra mulher na cidade. Podia dizer isso por sua atitude: sentada sozinha sob a luz do sol, apreciando a própria companhia e sem remorsos por estar à toa. Fui imediatamente atraída por ela, apesar de estar com medo. Havia algo de pecaminoso nela. Afinal, ela não frequentava os cultos religiosos; aqui estava ela apreciando o domingo, enquanto todo mundo na cidade estava dentro da igreja ou no salão da congregação. Ergueu as mãos sobre os olhos para se proteger do brilho do sol.

— Olá, quem está aí?

Tomei minha decisão naquele momento. Poderia ter corrido de volta à igreja, mas, em vez disso, dei alguns passos tímidos em direção a ela.

— Você não me conhece, senhora. Meu nome é Lanore McIlvrae.

— McIlvrae — ela pensou por um momento, satisfazendo-se por não conhecer o nome e, por consequência, não ter meu pai entre seus clientes. — Não, minha cara, acho que não tive o prazer de conhecê-la — ela sorriu e eu a cumprimentei com uma mesura.

— Meu nome é Magdalena, apesar de suspeitar que já saiba disso, não é? Pode me chamar de Magda. — De perto, ela era muito bonita. Ficou em pé para ajeitar o cobertor e revelou que ainda estava com sua combinação e uma camisola de linho transparente, um pouco decotada no peito, com uma fitinha rosa. Numa casa prática como a nossa, minha mãe não tinha nenhuma peça de roupa tão feminina quanto a camisola usada de Magda. Estava embevecida pela combinação de sua beleza com esta linda peça de roupa; era a primeira vez que realmente tinha sentido inveja de outra pessoa. Ela reparou no meu olhar fixo em sua combinação e um sorriso de reconhecimento abriu-se em seu rosto.

— Espere aqui um minuto — ela disse e entrou na casa. Quando saiu, segurava uma fita de veludo cor-de-rosa e a deu para mim. Não pôde imaginar que tipo de tesouro ela havia me oferecido; artigos manufaturados eram raros em nossa cidade de gente pobre; frivolidades como fitas eram ainda mais raras. Era o tecido mais macio que já havia tocado e o segurei suavemente, como um filhotinho de coelho.

— Não poderia aceitar um presente como este — disse, ainda que honestamente não desejasse dizê-lo.

— Bobagem! — Ela riu. — É só um pedaço do acabamento de um vestido. O que eu faria com isso? — ela mentiu e me observou acariciar a fita, apreciando meu prazer. — Fique com ela. Eu insisto.

— Mas meus pais me perguntarão onde a consegui...

— Pode dizer que a achou — ela sugeriu, apesar de ambas sabermos que eu não poderia fazer isso. Era uma história improvável. E, ainda assim, não conseguia devolver a fita para Magda. Ela ficou satisfeita ao me ver apertar a mão em volta do presente e sorriu, não em triunfo, mas em solidariedade.

— É muito generosa, dona Magda! — agradeci, fazendo outra mesura. — Tenho que voltar para o culto ou meu pai vai achar que aconteceu alguma coisa comigo.

Ela levantou o queixo para poder olhar sobre o nariz fino na direção do salão da congregação.

— Ah, você está certa! Não deve deixar seus pais preocupados. Espero que venha me visitar novamente, senhorita McIlvrae.

— Eu virei, prometo.

— Ótimo. Então, vá logo.

Caminhei pela estradinha, erguendo minhas saias para evitar as partes enlameadas. Antes de virar a esquina, olhei para trás, para a casinha, e vi que Magda havia sentado novamente na cadeira e se balançava, satisfeita, olhando fixamente para a floresta.

Mal podia esperar pelo domingo seguinte, para fugir do culto e visitar Magda de novo. Escondi a fita no bolso, na minha segunda camada de roupas de baixo, onde de vez em quando podia enfiar a mão para, secretamente, acariciar o veludo. A fita lembrava a própria Magda: ela era tão diferente de minha mãe e das outras mulheres do vilarejo! E isso já era motivo para que eu a admirasse.

Algo que admirava nela, mas não entendia exatamente por que, era que ela não tinha um homem. Nenhuma mulher no vilarejo vivia sem um homem e o homem era sempre o chefe da casa. Magda era a única mulher no vilarejo que falava por si mesma, apesar de, até onde eu soubesse, ela fazia muito pouco nesse sentido. Duvidava que fosse às assembleias da cidade. E, mesmo assim, continuava a viver de acordo com as próprias regras e parecia ser bem-sucedida. Para uma jovem, isso realmente era uma coisa admirável.

Assim, no domingo seguinte, arranjei um jeito de pedir licença do culto novamente (apesar dos olhares reprovadores de meu pai) e corri até a casa de Magda. E lá estava ela, dessa vez em pé, na varanda. Não tinha mais seu ar informal. Usava uma linda saia listrada e uma bem-cortada jaqueta roxa de lã, uma cor incomum. O efeito foi calculado para chamar atenção, como se a intenção dela fosse me impressionar. Fiquei lisonjeada.

— Bom dia, dona Magda — disse enquanto corria até ela, quase sem fôlego.

— Bem, bom Sabbath para você, senhorita McIlvrae.

Seus olhos verdes brilhavam. Conversamos um pouco; ela perguntou sobre minha família, eu apontei em direção à nossa fazenda. No momento em que estava pensando em voltar para o culto, ela me disse timidamente:

— Convidaria você para conhecer minha casa, mas suponho que seus pais não aprovariam isso. Sendo quem eu sou, não seria adequado.

Ela deveria saber que eu estava curiosa para ver o interior da casa. Sua própria casa, o lugar de sua independência! Senti que tinha que voltar para a igreja, para meu pai que me esperava... mas como poderia deixar passar a oportunidade?

— Tenho só um minuto... — eu disse, enquanto a seguia pelos degraus e atravessava a porta.

Pareceu-me como o interior de uma caixa de joias, mas, na verdade, era tudo velho e adaptado. O pequeno quarto era dominado por uma cama estreita, coberta com uma colcha lindamente bordada em amarelo e vermelho. Garrafas de vidro forravam o parapeito da única janela, emitindo raios de luz verdes e marrons pelo chão. Dentro de uma tigela de cerâmica, pintada com delicadas rosas cor-de-rosa, havia algumas joias. Suas roupas estavam penduradas em puxadores na porta dos fundos, uma grande variedade de saias rodadas e coloridas, faixas compridas e espartilhos com babadinhos. Não um, mas dois pares de delicadas botas femininas estavam enfileirados ao lado da porta. Minha única decepção era que o quarto era abafado, o ar pesado, com um perfume almiscarado que eu não reconhecia.

— Adoraria viver em um lugar como este! — eu disse, fazendo-a rir.

— Já vivi em lugares melhores, mas este está bom — respondeu ela, enquanto se jogava numa cadeira.

Antes de eu sair, Magda me deu dois conselhos, de mulher para mulher.

O primeiro era que uma mulher sempre tinha que guardar um pouco de dinheiro para si.

— O dinheiro é muito importante — ela me disse, me mostrando onde guardava uma bolsa cheia de moedas. — O dinheiro é a única forma de uma mulher ter controle da própria vida.

O segundo conselho foi que uma mulher nunca deve trair outra por causa de um homem.

— Acontece sempre — ela disse, parecendo triste. — E é compreensível, já que é dado aos homens todo o valor do mundo. Querem que acreditemos que o único valor da mulher está no homem que faz parte de sua vida, mas isso não é verdade. De qualquer forma, nós, mulheres, temos que nos apoiar, pois depender de um homem é besteira. Ele sempre irá decepcioná-la. — Ela abaixou a cabeça, mas podia jurar que vi lágrimas em seus olhos.

Estava me levantando do chão para sair quando bateram à porta. Um homem musculoso entrou, antes que Magda pudesse responder; eu o reconheci como um dos lenhadores de St. Andrew.

— Olá, Magda, achei que estivesse sozinha e quisesse companhia, já que todo mundo está na igreja agora de manhã... Quem é essa? — Ele parou de repente, quando me viu, e um sorriso desagradável se espalhou em seu rosto queimado pelo vento. — Tem uma garota nova, Magda? Uma aprendiz? — Ele colocou a mão em meu braço, como se eu fosse uma posse, não uma pessoa.

Magda deu um passo para a frente, ficou entre nós e me levou rapidamente em direção à porta dos fundos.

— Ela é uma amiga, Lars Holmstrom, e você não tem nada com isso. Mantenha suas mãos bobas longe dela. Agora, vá! — ela disse para mim, enquanto me empurrava pela porta. — Quem sabe eu a vejo na semana que vem?

E, antes que pudesse perceber, eu estava em pé sobre um monte de folhas mortas, troncos caídos estalando sob meus pés, a porta de madeira fechada bem na minha cara, enquanto Magda prosseguia com seus negócios, o preço de sua independência. Saí correndo por entre os arbustos e entrei na estradinha, apressando-me para voltar ao salão da congregação, enquanto os paroquianos saíam para a luz do sol. Dessa vez seria um inferno com meu pai, mas calculei que valeria a pena. Magda era a guardiã dos mistérios da vida e senti que, o que quer que fosse necessário para que eu continuasse a aprender com ela, valeria a pena.

 

Numa tarde de verão de meu décimo quinto ano, a cidade inteira se reuniu no pasto dos McDougal para ouvir um pastor itinerante falar. Ainda consigo ver meus vizinhos fazendo o percurso para o campo dourado, a grama alta faiscando ao sol, nuvens de poeira subindo pela estrada sinuosa. A pé, no lombo do cavalo ou sobre uma charrete, praticamente todos em St. Andrew foram até os McDougal naquele dia, ainda que não fosse por excesso de devoção, posso lhe garantir. Até mesmo pastores itinerantes eram uma raridade no nosso pedaço de floresta; aproveitaríamos qualquer tipo de entretenimento que pudéssemos ter para preencher a monotonia de um longo dia de verão naquele lugar desolado.

Esse pastor, em particular, aparentemente tinha vindo do nada e, em poucos anos, havia conquistado seguidores, além de uma reputação por seus discursos exaltados e conversa rebelde. Havia rumores de que ele teria dividido os frequentadores da igreja da cidade mais próxima, Fort Kent, num dia de viagem para o norte, colocando congregacionalistas tradicionais contra uma nova onda de reformistas. Também havia uma conversa sobre o Maine tornar-se um estado e se libertar do domínio de Massachusetts, de modo que havia certo frisson no ar, religioso e político, apontando uma possível revolta contra a religião que os colonizadores trouxeram com eles de Massachusetts.

Foi minha mãe quem convenceu meu pai a ir, apesar de ela não tolerar a ideia de se converter: só queria uma tarde longe da cozinha. Ela estendeu um cobertor no chão e esperou pelo início do discurso. Meu pai sentou-se ao lado dela, meneando a cabeça com um ar desconfiado, olhando de um lado para o outro para ver quem mais estaria ali. Minhas irmãs permaneceram sentadas perto de minha mãe, enfiando rigorosamente suas saias embaixo das pernas, enquanto Nevin desapareceu quase tão logo a charrete parou, ansioso para encontrar os meninos que moravam nas fazendas vizinhas às nossas.

Eu fiquei em pé, protegendo meus olhos da forte luz do sol com a mão, mapeando a multidão. Todo mundo da cidade estava lá, alguns com cobertores, como minha mãe, alguns com o jantar arrumado em cestas. Eu estava procurando Jonathan, como sempre, mas parecia que ele não estava lá. Sua ausência não era uma surpresa; a mãe dele era uma das mais fervorosas congregacionistas da cidade, e a família de Ruth Bennet St. Andrew não participaria dessa bobagem reformista.

Então, vi algo escondido entre as árvores; sim, era Jonathan, contornando a ponta do pasto em seu distinto garanhão. Não fui a única a vê-lo; uma onda quase palpável percorreu parte da multidão. Qual a sensação de saber que dezenas de pessoas o observam em êxtase, os olhos seguindo a linha de sua longa perna pressionando o flanco do cavalo, suas mãos fortes segurando as rédeas. Tanto desejo contido queimando no seio de muitas mulheres no campo seco naquele dia! É uma surpresa que a grama não tenha se incendiado.

Ele trotou até mim e, soltando os estribos, apeou da sela. Ele cheirava a couro e terra queimada de sol, e senti muita vontade de tocá-lo.

— O que está acontecendo? — perguntou, tirando seu chapéu e passando a manga da camisa sobre a testa.

— Você não sabe? Um pastor está visitando a cidade. Você não veio para ouvi-lo?

Jonathan olhou sobre minha cabeça, estudando a multidão.

— Não. Estava inspecionando o próximo pedaço de terra em que iremos fazer a colheita. O velho Charles não confia no novo inspetor. Acha que ele bebe muito. — Ele deu uma olhada em volta, aproveitando para ver quais garotas estavam olhando para ele. — Minha família está aqui?

— Não, e eu também duvido que sua mãe aprovaria sua presença aqui.

O pastor tem uma reputação horrível. Poderia ir para o inferno só de ouvi-lo.

Jonathan forçou um sorriso para mim.

— É por isso que está aqui? Você quer ir para o inferno? Sabe que há caminhos muito mais prazerosos para a condenação do que ouvir o discurso de pastores diabólicos.

Havia uma mensagem no brilho de seus profundos olhos castanhos, mas eu não consegui interpretá-la. Antes que pudesse pedir a ele que explicasse, ele riu e disse:

— Todas as almas dessa cidade parecem estar aqui. Isso me dá mais pena por não ficar, mas, como você disse, será um inferno se minha mãe souber. — Ele ajeitou o estribo e subiu na sela, mas, então, inclinou-se na minha direção, de forma protetora. — E você, Lanny? Você nunca foi muito de sermões. Por que está aqui? Espera encontrar alguém, algum garoto especial? Algum jovenzinho chamou sua atenção?

Aquilo foi uma completa surpresa: o tom recatado, o olhar investigativo. Ele nunca havia dado a menor indicação de que se importasse se eu estivesse interessada em outro.

— Não — eu disse, sem fôlego, quase sem forças para dar uma resposta.

Ele pegou as rédeas devagar, pesando-as como se estivesse pesando as próprias palavras.

— Sei que virá um dia quando eu a verei com outro garoto, minha Lanny com outro garoto, e eu não gostarei. Mas é justo.

Antes que eu pudesse me recuperar do choque e dizer a ele que estava ao alcance dele evitar que isso acontecesse (e ele sabia!), ele virou o cavalo e galopou para dentro da floresta, me deixando a olhar para ele, confusa, mais uma vez. Ele era um enigma. Geralmente me tratava como sua melhor amiga, com uma atitude platônica, mas havia vezes em que eu pensava ver um convite na maneira que me olhava ou uma faísca de (ouso ter esperanças?) desejo em sua inquietude. Agora que ele tinha ido embora, não poderia ficar pensando naquilo ou eu enlouqueceria.

Encostei-me em uma árvore e vi o pastor caminhar até o centro de uma pequena clareira em frente à multidão. Ele era mais novo do que eu esperava (Gilbert era o único pastor que conhecia e já chegara a St. Andrew de cabelos grisalhos) e caminhou ereto como uma vara, certo de que tanto Deus quanto a retidão estavam a seu lado. Ele era bonito de uma forma inesperada e até desconfortável para um pastor, e as mulheres sentadas mais próximas a ele gorjeavam como pássaros, quando ele lhes deu um sorriso branco e largo. Ainda assim, observando enquanto ele olhava para a multidão, preparando-se para começar (tão confiante como se ele fosse o dono), senti um calafrio, como se algo ruim pairasse no horizonte.

Ele começou a falar com uma voz clara e alta, recordando suas visitas pelo território do Maine e descrevendo o que tinha visto. O território estava se tornando uma cópia de Massachusetts, com seus modos elitistas. Alguns poucos homens ricos controlavam o destino de seus vizinhos. E o que isso trazia para o homem comum? Tempos difíceis. Pessoas comuns sem ter como pagar suas contas. Homens honestos, pais e esposos, aprisionados, e a terra tomada de suas esposas e filhos. Fiquei surpresa ao ver cabeças concordando na multidão.

O que o povo queria, o que os americanos querem, ele enfatizou, abanando a Bíblia no ar, era liberdade. Não tínhamos lutado contra os britânicos só para ter outros donos tomando o lugar do rei. Os proprietários de terra em Boston e os comerciantes que vendiam mercadorias para os colonos não passavam de ladrões, exigindo taxas de empréstimos absurdas, e a lei estava a serviço deles. Seus olhos brilhavam enquanto analisava a multidão, encorajado pelos murmúrios de consentimento, e ele andava de um lado para o outro dentro do círculo de grama pisoteado. Não estava acostumada a ouvir dissidentes falarem em voz alta, em público, e me senti vagamente preocupada pelo sucesso do pastor.

De repente, Nevin estava a meu lado, estudando o rosto erguido de nossos vizinhos.

— Olhe só para eles, cretinos boquiabertos... — ele disse, zombeteiro. Não havia dúvidas de que ele tinha o temperamento crítico de nosso pai. Cruzou os braços sobre o peito e deu uma fungada.

— Parecem bem interessados no que ele tem a dizer — observei.

— Você tem a menor ideia do que ele está falando? — Nevin semicerrou os olhos para mim. — Não tem, não é? Claro que não, você é só uma menina burra. Você não entende nada.

Olhei-o com desdém, mas não respondi, pois Nevin tinha razão a respeito de uma coisa: eu não fazia ideia sobre o que o homem estava falando. Era ignorante com relação ao que acontecia no mundo de forma geral. Ele apontou para um grupo de homens em pé, ao lado do pasto lotado.

— Vê aqueles homens? — perguntou, indicando Tobey Ostergaard, Daniel Daughtery e Olaf Olmstrom. Os três estavam entre os homens mais pobres da cidade, apesar de os menos caridosos poderem dizer que eles também estavam entre os mais preguiçosos. — Estão criando confusão — Nevin disse. — Sabe o que é um índio branco?

Até mesmo a menina mais burra da cidade teria dito que conhecia o termo: meses antes, houve notícias de uma rebelião em Fairfax, quando cidadãos vestidos de índios dominaram um funcionário municipal quando ele tentava cumprir uma ordem judicial de um fazendeiro que não pagou suas dívidas.

— A mesma coisa está acontecendo aqui — Nevin disse, balançando a cabeça. — Ouvi dizer que Olmstrom e Daughtery, e alguns outros, conversaram com o pai sobre isso. Reclamando sobre os Watford cobrarem muito e injustamente... — Os detalhes estavam além da compreensão de Nevin; ninguém explicava para as crianças sobre contas e cobranças no armazém. — Daughtery diz que é uma conspiração contra o homem comum — Nevin recitou, soando como se não tivesse certeza de que Daughtery não estivesse falando a verdade.

— E daí? Por que me importaria se Daughtery não paga a dívida que tem com os Watford? — funguei, fingindo que não me importava. Por dentro, de qualquer forma, estava chocada por pensar que alguém pudesse não pagar uma dívida intencionalmente, tendo sido ensinada por nosso pai que tal comportamento era desonroso e algo que somente uma pessoa sem respeito próprio consideraria fazer.

— Pode ser problema para o seu garoto, Jonathan — Nevin sorriu com desdém, deliciado por ter a oportunidade de fazer piadas sobre Jonathan comigo. — Não são só os Waldorfs que serão prejudicados se as coisas forem mal. O capitão tem os papéis das propriedades... O que aconteceria se eles se recusassem a pagar os aluguéis? Aqueles homens lutaram por três dias em Fairfax. Ouvi dizer que arrancaram a roupa do funcionário, bateram nele com varas e o fizeram voltar para casa a pé e nu como veio ao mundo.

— Nem temos um funcionário do governo em St. Andrew — eu disse, assustada com a história de meu irmão.

— É muito provável que o capitão mande seus mais fortes e maiores lenhadores até o Daughtery e exija que ele pague a dívida. — Havia um tom de medo na voz de Nevin; seu respeito pela autoridade e o desejo de ver a justiça prevalecer, traços de nosso pai, certamente, eram superados por seu desejo de ver Jonathan sofrer algum tipo de má sorte.

Daughtery e Olmstrom... o capitão e Jonathan... até mesmo a afetada srta. Watford e seu irmão igualmente arrogante... eu estava envergonhada pela minha ignorância e senti um respeito invejoso por meu irmão conseguir ver o mundo em toda sua complexidade. Fiquei imaginando o que mais acontecia que eu não sabia.

— Acha que o pai vai se juntar a eles? Ele será preso? — sussurrei preocupada.

— O capitão não tem os papéis de nossa terra — Nevin me informou, um pouco desgostoso por eu ainda não saber disso. — O pai é o dono mesmo. Mas acho que ele concorda com o companheiro ali. — Ele balançou a cabeça em direção ao pastor. — O pai veio para este território como todo mundo, pensando que seria livre, mas as coisas não funcionaram assim. Alguns estão passando por maus pedaços enquanto os St. Andrew estão enriquecendo. Como eu disse — ele chutou a terra, levantando uma nuvem de poeira —, seu garoto poderá ficar em maus lençóis.

— Ele não é meu garoto — respondi rapidamente.

— Você quer que ele seja seu garoto — meu irmão disse, todo zombeteiro. — Mas só Deus sabe o porquê. Deve ter alguma coisa do avesso, Lanore, para ser apaixonada por esse cretino.

— Você está com inveja, é por isso que não gosta dele.

— Com inveja? — Nevin bravejou. — Daquele pavão? — disse isso e foi embora, sem querer admitir que eu tinha razão.

Aproximadamente trinta pessoas seguiram o pastor até a casa dos Dale, do outro lado das montanhas, onde continuaria falando para todos os que estivessem interessados. Os Dale tinham uma casa de bom tamanho, mesmo assim ainda ficamos amontoados, querendo ouvir mais coisas daquele orador cativante. A sra. Dale acendeu o fogo na grande lareira da cozinha, pois, mesmo no verão, fazia um pouco de frio à noite. Lá fora, o céu escurecia em um azul-escuro, com uma faixa de rosa no horizonte.

Como Nevin devia estar bravo comigo! Implorei a meus pais para que me deixassem ouvir o pastor, o que significava que precisaria de um acompanhante, então, meu pai disse a Nevin para me acompanhar. Meu irmão soltou fogo pelas ventas e ficou com o rosto vermelho, mas não podia recusar nada a meu pai, então, pisou duro atrás de mim durante todo o caminho até a casa dos Dale. Mas Nevin, apesar de sua tradicional sensibilidade, tinha um lado rebelde e eu acreditava que ele, secretamente, estava gostando de presenciar o restante da reunião.

O pastor ficou em pé, perto do fogo na cozinha, e analisou todos com um riso forçado no rosto. Assim, de tão perto, vi que ele parecia ser menos religioso do que aparentava ao ar livre. Ele preenchia a sala com sua presença, tornava o ar pesado e rarefeito, como no topo de uma montanha. Começou nos agradecendo por permanecermos com ele, pois tinha guardado o maior segredo de todos para dividir conosco naquele momento, para aqueles que demonstraram estar buscando a verdade. E aquela verdade era que a igreja, qualquer que fosse a fé que professasse — que, naquele território, era, na maioria, congregacionalista — era o maior problema de todos, a instituição mais elitista, e só servia para reforçar o statu quo. Sua última fala gerara uma reação de desprezo e concordância em Nevin, que se orgulhava de ir às missas católicas com nossa mãe aos domingos e de não ficar junto com os patriarcas da cidade e famílias mais privilegiadas no salão da igreja.

Disse que o que deveríamos fazer era acabar com os preceitos da igreja, de novo com aquele brilho ardente nos olhos, um brilho que, de perto, parecia menos pacífico, e adotar os novos preceitos que estavam mais de acordo com as necessidades do homem comum. Para ele, em primeiro lugar e a mais importante entre todas essas convenções ultrapassadas, estava a instituição do casamento.

Na sala fechada, com trinta corpos amontoados, bem juntos, podia-se ouvir um alfinete cair. Diante de nós, o pastor circulava de um lado para outro como se fosse um lobo. Não tinha objeção quanto à afeição natural entre homens e mulheres, ele assegurou ao grupo. Não; eram as restrições legais do casamento, as amarras do casamento, era contra isso que ele lutava. Era contra a natureza humana, ele protestou, ganhando confiança, já que ninguém havia tentado interrompê-lo. Fomos feitos para expressar nossos sentimentos àqueles pelos quais sentíamos uma afinidade natural. Como filhos de Deus, deveríamos praticar o “casamento espiritual”, ele insistiu: escolher parceiros com quem temos vínculos espirituais.

— Parceiros? — perguntou uma jovem, erguendo a mão. — Mais de um esposo ou esposa?

Os olhos do pastor dançavam. Sim, tínhamos ouvido corretamente: parceiros; pois um homem deveria ter esposas com as quais tivesse vínculos espirituais, do mesmo modo que deveria ser possível a uma mulher ter mais de um marido. Ele mesmo tinha duas esposas, afirmou, e encontrara esposas espirituais em todas as cidades que havia visitado. Um riso contido tomou conta do grupo e o ambiente tornou-se carregado de desejo reprimido.

Ele colocou seus polegares sob a lapela do casaco; não esperava que os esclarecidos, aqui em St. Andrew, assumissem de pronto o casamento espiritual, somente levando em consideração os seus conselhos. Não, ele esperava que refletíssemos sobre a ideia, pensássemos sobre até que ponto nós deixávamos a lei ditar nossas vidas. Saberíamos, em nosso coração, se ele dizia a verdade.

Então, bateu palmas, tirou a expressão séria do rosto e seu comportamento mudou totalmente quando sorriu: “Mas chega desta conversa!”. Tínhamos passado a tarde toda o escutando e era hora de um pouco de diversão! Cantemos alguns hinos, bem alegres, e vamos nos levantar e dançar! Esta era uma mudança revolucionária em comparação com nossos cultos comuns: cantar em alegria? Dançar? O conceito já era uma heresia. Após um momento de hesitação, várias pessoas se levantaram e começaram a bater palmas, e, em pouco tempo, começaram a cantar uma música que mais parecia um canção de marinheiro do que um hino religioso.

Cutuquei meu irmão.

— Me leve para casa, Nevin.

— Já ouviu o suficiente, não é? — ele disse, batendo os calcanhares. — Eu também. Estou cansado de ficar ouvindo as insanidades desse homem. Espere aqui enquanto vou pedir fogo aos Dale; a estrada com certeza estará escura.

Fiquei parada na porta, desejando que Nevin se apressasse. As palavras do pastor ainda ressoavam dentro de mim. Vi os olhares das mulheres no grupo quando ele colocou seu olhar poderoso sobre elas, o sorriso que iluminou o rosto delas. Elas se imaginavam com ele ou, talvez, com outro homem da cidade com quem sentiam um vínculo espiritual... e só podiam esperar que esse desejo se tornasse realidade. O pastor professara o conceito mais estranho que se podia imaginar: depravação; mas ele era um homem da Bíblia, um pastor. Ele já pregara em algumas das igrejas mais santas da costa, de acordo com a conversa que havia chegado à cidade antes dele. Com certeza, aquilo lhe dava algum tipo de autoridade.

Debaixo de minhas roupas, senti-me incandescente, com fogo e vergonha, pois, honestamente, também gostaria de ter liberdade para compartilhar minha afeição com o homem que desejava. Obviamente, naquele momento, o único homem que eu desejava era Jonathan, mas quem poderia dizer se outro não atravessaria o meu caminho um dia? Talvez alguém tão charmoso e atraente quanto o próprio pastor, por exemplo? Podia ver como uma mulher o achava intrigante; quantas esposas espirituais o pastor já tinha encontrado? Fiquei imaginando.

Enquanto estava perdida em meus pensamentos, encostada na porta, observando os vizinhos dançando uma dança de origem escocesa (era só minha imaginação ou os homens e mulheres trocavam olhares cheios de desejo enquanto rodopiavam no salão?), percebi a presença do pastor bem na minha frente. Com seus olhos penetrantes e feições marcantes, era sedutor e parecia ter consciência dessa vantagem, e sorria forçado para que eu pudesse ver seus dentes incisivos, afiados e brancos.

— Agradeço por se juntar a mim e a seus vizinhos esta noite — ele disse, fazendo uma reverência com a cabeça. — Presumo que esteja em busca espiritual, procurando uma luz maior, senhorita...

— McIlvrae — respondi, dando um passo para trás. — Lanore.

— Reverendo Judah Van der Meer. — Alcançou minha mão e apertou a ponta de meus dedos. — O que achou do meu sermão, senhorita McIlvrae? Espero que não tenha ficado chocada — seus olhos dançaram novamente, como se estivesse zombando de mim — com a franqueza com a qual apresentei minhas opiniões.

— Chocada? — Eu mal conseguia pronunciar uma palavra. — Com o quê, senhor?

— Com a ideia de casamento espiritual. Tenho certeza de que uma jovem como você consegue simpatizar com o princípio que há por trás disso, a ideia de ser fiel às paixões, pois, se não estou enganado, você me parece uma mulher de uma grande e imensa paixão.

Ele falou com mais veemência, seus olhos (e não acredito que tenha imaginado isso) percorrendo meu corpo como se estivesse usando as próprias mãos.

— Me diga, senhorita Lanore, parece que tem idade para se casar. Sua família já a entregou à escravidão do casamento? Seria uma pena, para uma jovem mulher tão bonita quanto você, passar o resto da vida no leito nupcial com um homem por quem não sente a mínima atração. Que desperdício passar a vida toda sem sentir a verdadeira paixão física — seus olhos brilharam de novo, como se estivesse a ponto de avançar —, que é um presente de Deus a seus filhos!

Meu coração estava a ponto de explodir dentro do peito e eu me sentia como um coelho diante dos olhos do lobo. Então, ele riu, colocou a mão no meu braço, mandando um arrepio direto à minha cabeça, e me puxou mais para perto, perto o suficiente para que pudesse sentir seu hálito em meu rosto e para que um cacho de seu cabelo pudesse encostar em minha bochecha.

— Ora, ora, parece que vai desmaiar! Acho que precisa de um pouco de ar fresco. Poderia vir aqui fora comigo? — Ele já estava segurando meu braço e, sem esperar resposta, me fisgou para a varanda. O ar noturno estava muito mais fresco do que o ambiente abafado da casa e eu respirei profundamente, até não poder mais.

— Melhor? — Quando concordei, ele continuou. — Devo dizer, senhorita McIlvrae, fiquei muito feliz por ter se juntado a nós nesse ambiente mais íntimo. Esperava que viesse. Observei-a no pasto esta tarde e sabia, imediatamente, que teria de conhecê-la. Senti uma conexão imediata, você também? — Antes que tivesse a oportunidade de responder, ele pegou minha mão. — Passei a maior parte da minha vida viajando pelo mundo. Tenho sede de conhecer pessoas. De vez em quando, encontro pessoas extraordinárias, alguém cuja singularidade pode ser vista, mesmo em um pasto cheio de gente. Alguém como você.

Ele tinha o olhar brilhante, o olhar selvagem de alguém buscando um pensamento, mas sem conseguir se concentrar. Comecei a ficar com medo. Por que ele havia me escolhido? Ou talvez eu não tenha sido escolhida; talvez isso fosse um jogo de sedução que ele fazia para qualquer garota impressionável a ponto de considerar sua oferta de casamento espiritual. Ele se aproximou de mim de maneira íntima demais para ser educada, parecendo apreciar meu nervosismo.

— Extraordinária? Senhor, o senhor não me conhece. — Tentei empurrá-lo para o lado, mas ele continuou em pé, na minha frente. — Não há nada de extraordinário em mim.

— Ah, mas claro que há; posso sentir. Você deve sentir, também. Você tem uma sensibilidade especial, uma natureza notavelmente primitiva. Consigo ver isso em seu rosto lindo e delicado. — Sua mão subiu até meu pescoço, como se fosse me tocar, e estava prestes a fazer isso. — Você é cheia de querer, Lanore; é uma criatura sensual. Você queima de vontade de conhecer esse vínculo entre homem e mulher... Só pensa nisso. Tem fome disso. Talvez haja algum homem em particular...

Claro que havia — Jonathan —, mas achei que o pastor estivesse me encurralando para ver se me sentia atraída por ele.

— Esta conversa não é apropriada, senhor. — Dei alguns passos para o lado e comecei a me afastar dele. — É melhor eu entrar...

Ele colocou uma mão sobre meu braço novamente.

— Não quis deixá-la constrangida. Peço desculpas. Não falarei mais disso, mas, por favor, me dê o prazer de sua presença por mais um minuto. Tenho uma pergunta que gostaria de lhe fazer, Lanore. Quando cheguei ao campo esta tarde e vi você, notei que estava falando com um jovem a cavalo. Um sujeito excepcionalmente belo.

— Jonathan.

— Sim, me falaram o nome dele. Jonathan. — O pastor lambeu os lábios. — Seus vizinhos me disseram que esse jovem poderia ser a favor de minha filosofia. Acha que conseguiria um encontro meu com ele?

Senti um arrepio atrás do pescoço.

— Por que quer se encontrar com Jonathan?

Ele riu nervosamente.

— Bem, como falei, me disseram que ele parece ser um discípulo natural, o tipo de homem que pode valorizar a verdade que eu prego. Poderia abraçar a causa e, talvez, ser um representante de minha igreja aqui na floresta.

Olhei em seus olhos e, pela primeira vez, vi uma verdadeira perversidade neles, o amor pelo caos e pela desordem. Ele queria plantar essa maldade em Jonathan também, como tentara plantá-la em toda a cidade. Como tentou plantá-la em mim.

— Meus vizinhos estão se divertindo às suas custas, senhor, já que não conhecem Jonathan tão bem quanto eu. Duvido que ele tenha interesse no que o senhor tem a dizer. — Por que senti que tinha que proteger Jonathan desse homem, eu não sei. Mas havia algo nefasto em seu interesse.

O pastor não gostou da resposta. Talvez achasse que eu estivesse mentindo ou não gostasse de ser desafiado. Ele me olhou de forma longa e intimidante, como se estivesse pensando no que fazer para conseguir o que queria e senti, pela primeira vez em sua presença, o verdadeiro perigo, uma sensação de que aquele homem seria capaz de qualquer coisa. Nesse momento, Nevin apareceu diante de nós com uma tocha acesa na mão e, pelo menos uma vez na vida, fiquei feliz em vê-lo.

— Lanore! Estava procurando você. Estou pronto. Vamos! — ele gritou com impaciência.

— Boa noite — eu disse, desvencilhando-me do pastor, esperando nunca mais vê-lo. Podia sentir seu olhar ferino cravado em minhas costas enquanto Nevin e eu íamos embora.

— Satisfeita com seu passeio? — Nevin resmungou, enquanto íamos em direção à estrada.

— Não foi o que eu esperava.

— Tenho certeza disso. O homem é um louco, provavelmente por causa das doenças que ele sem dúvida tem — Nevin falou, querendo dizer sífilis. — Mas ouvi dizer que tinha seguidores em Saco. Fico imaginando o que faz aqui, tão longe...

Não passou pela cabeça de Nevin que o homem poderia ter sido enxotado pelas autoridades, que estivesse fugindo; que, em sua loucura, poderia ter visões e pressentimentos esplêndidos, colocando ideias na cabeça de jovens garotas inocentes e ameaçando os menos inclinados a agir de acordo com seus desejos. Apertei meu xale com força em volta dos ombros.

— Agradeceria se você não dissesse ao pai o que o pastor falou...

Nevin riu com maldade.

— Claro que não! Mal consigo me lembrar daquelas blasfêmias, imagine repeti-las ao pai! Várias esposas! Casamento espiritual! Não sei o que o pai faria: acho que me encheria de chibatadas e trancaria você no celeiro até completar 21 anos, só por termos ouvido aquelas palavras pagãs. — Ele balançava a cabeça enquanto caminhávamos. — Vou dizer uma coisa: os ensinamentos daquele pastor com certeza cairiam bem para seu garoto, Jonathan. Ele já fez casamentos espirituais com pelo menos metade das garotas da cidade.

— Chega de falar de Jonathan — retruquei, mantendo em segredo o interesse do pastor por Jonathan, como se para não confirmar a opinião ruim de Nevin. — Não vamos mais falar sobre isso.

Ficamos quietos durante o restante da longa jornada até nossa casa. Apesar do ar frio da noite, ainda latejava ao me lembrar do olhar misterioso no rosto do pastor e da rápida passada por dentro de sua verdadeira natureza. Não sabia o que pensar sobre seu interesse por Jonathan nem sobre o que ele quis dizer a respeito da minha “sensibilidade especial”. Minha vontade de experimentar o que acontecia entre um homem e uma mulher era assim tão evidente? Com certeza esse mistério era o ápice da experiência humana. Poderia ser anormal ou especialmente diabólico para uma jovem mulher ficar curiosa sobre isso? O pastor Gilbert e meus pais provavelmente pensariam que sim.

Caminhei pela estrada solitária, agitada internamente e excitada com toda aquela conversa aberta sobre desejo. A ideia de conhecer Jonathan, de conhecer outros homens no vilarejo do jeito que Magda conhecia, deixou-me quente por dentro. Esta noite eu tinha conhecido minha verdadeira natureza; apesar de ser muito inexperiente para entendê-la, muito inocente para realizá-la, deveria ficar atenta à facilidade com que o desejo se acendia em mim. Deveria ter lutado contra ele com mais determinação, mas talvez fosse em vão, já que a verdadeira natureza sempre vence.

 

Os anos passaram como sempre: o seguinte parecendo igual ao anterior. No entanto, algumas pequenas diferenças eram evidentes: eu queria cada vez menos seguir as regras de meus pais, ansiava por um pouco de independência e estava cansada de meus vizinhos preconceituosos. O pastor carismático foi julgado e aprisionado em Saco, então escapou e desapareceu misteriosamente, mas sua ausência de cena ajudou muito pouco a acalmar a efervescência escondida sob a superfície. Havia uma influência oculta de rebeldia no ar, até mesmo em uma cidade tão isolada como St. Andrew; havia conversas sobre se tornar independente de Massachusetts e formar um estado. Se os proprietários de terras, como Charles St. Andrew, estavam preocupados que suas fortunas seriam afetadas, nada demonstravam e guardavam as preocupações para si.

Meu interesse por esses assuntos cresceu, apesar de ainda ter poucas oportunidades para exercer minha curiosidade. Parecia que os únicos tópicos adequados ao interesse de uma jovem eram de domínio doméstico: como fazer um bolo de melaço macio ou tirar pacientemente o leite de uma vaca velha; o quão bem se pode costurar ou a melhor maneira de curar a febre de uma criança. Testes para provar nossa adequabilidade como esposas, mas eu tinha pouco interesse em competições desse tipo. Só havia um homem a quem eu queria como marido e ele não se importava com a maciez de um pedaço de bolo.

Uma das tarefas domésticas de que eu menos gostava era lavar roupa. Roupas leves podiam ser levadas para o riacho para ser enxaguadas e torcidas. Mas, muitas vezes por ano, tínhamos que fazer uma lavagem completa, o que significava colocar um enorme caldeirão no fogo, no quintal, para passar um dia inteiro de fervura, esfregação e secagem. Era um trabalho miserável; os braços enfiados na água fervente com uma solução alcalina, torcendo roupas de lã volumosas, espalhando-as para secar sobre os arbustos e galhos de árvores. O dia da lavagem de roupas tinha que ser escolhido com cuidado, pois era necessário um longo dia de tempo bom, quando nenhuma outra tarefa doméstica trabalhosa fosse necessária.

Lembro-me de um desses dias, no início do outono do meu vigésimo ano. Estranhamente, minha mãe havia mandado Maeve e Glynnis para ajudar meu pai com o feno, insistindo que ela e eu, sozinhas, daríamos conta da lavagem. Ela também estava particularmente quieta aquela manhã. Enquanto esperávamos a água ferver, remexia nas coisas para lavar: o desinfetante, a lavanda seca, os pedaços de pau que usávamos para empurrar a roupa dentro do caldeirão.

— Chegou a hora de termos uma conversa séria — minha mãe finalmente disse, no momento em que estávamos em pé ao lado do caldeirão, observando as bolhas subirem até a superfície da água. — É hora de pensar em você começar a própria vida, Lanore. Você não é mais uma criança. Já está na idade de casar...

Verdade seja dita, eu já estava passando da idade de casar e comecei a imaginar como meus pais pretendiam lidar com essa situação. Eles não haviam prometido nenhum dos filhos em casamento.

— E devemos conversar sobre o que fazer quanto ao mestre St. Andrew. — Ela segurou a respiração e piscou os olhos para mim.

Meu coração disparou com as palavras dela. Que outra razão ela teria para trazer o nome de Jonathan ao contexto do casamento se ela e meu pai não tivessem a intenção de arranjar as coisas para mim? Fiquei sem fala de tanta alegria e surpresa, a última, por saber que meu pai não desaprovava a família St. Andrew, não mais. Muitas coisas haviam mudado desde que as famílias seguiram para o norte com Charles St. Andrew. Seu relacionamento com o restante da cidade, com os homens que haviam confiado nele, estava estremecido. Minha mãe olhou para mim com sinceridade.

— Digo isso como a mãe que ama você, Lanore: deve terminar sua amizade com mestre Jonathan. Vocês dois não são mais crianças. Continuar nessa situação não lhe fará bem.

Não senti os respingos de água fervente queimarem minha pele ou o calor do caldeirão molhar meu rosto. Olhei fixamente para ela. Ela se apressou para encobrir meu silêncio tomado de horror.

— Deve entender, Lanore. Que outro jovem irá querer você quando está obviamente apaixonada por Jonathan?

— Não estou apaixonada por Jonathan. Somos só amigos! — reclamei.

Ela riu suavemente, mas, de qualquer forma, apunhalou meu coração.

— Não pode negar seu amor por Jonathan. É muito óbvio, minha querida, assim como é óbvio que ele não sente a mesma coisa em relação a você.

— Não há nada para ele demonstrar — protestei. — Somos só amigos, posso lhe garantir isso.

— Os casos dele são o falatório da cidade...

Esfreguei minha mão na testa suada.

— Eu sei, ele me conta tudo.

— Ouça, Lanore — ela implorou, virando-se para mim mesmo quando lhe dei as costas. — É muito fácil se apaixonar por um homem tão bonito ou tão rico quanto Jonathan, mas deve resistir. Jonathan não faz parte de seu destino.

— Como pode dizer isso? — O protesto saiu de meus lábios ainda que não quisesse dizer nada daquilo. — Você não sabe o que acontecerá comigo ou com Jonathan.

— Ah, menina tola, não me diga que entregou seu coração a ele! — Ela me pegou pelos ombros e me chacoalhou. — Não pode esperar que se case com o menino do capitão. A família de Jonathan nunca permitiria, nunca, nem seu pai concordaria com isso. Sinto muito por ser eu a lhe dizer esta verdade tão terrível...

Ela não precisava dizer. Eu sabia que nossas famílias não eram do mesmo nível e sabia que a mãe de Jonathan tinha grandes expectativas com relação ao casamento de seus filhos. Mas os sonhos de uma garota são quase impossíveis de morrer, e eu cultivava esse desde sempre; parecia que havia nascido com o desejo de estar com Jonathan. Sempre acreditei, secretamente, que um amor tão profundo e verdadeiro quanto o meu seria premiado no final, e agora estava sendo forçada a aceitar a amarga verdade. Minha mãe retornou ao trabalho, pegando o longo pedaço de pau para mexer a roupa na água fervente.

— Seu pai quer começar a procurar um companheiro para você; por isso, tente entender por que tem de terminar essa amizade. Precisamos encontrar um companheiro para você antes de encontrarmos para suas irmãs — ela continuou —, você entende a importância disso, não entende, Lanore? Não gostaria que suas irmãs ficassem solteiras para o resto da vida, gostaria?

— Não, mãe — respondi, arrasada. Ainda estava de costas para ela, com o olhar distante, tentando não chorar, quando notei um movimento na floresta atrás de nossa casa. Poderia ser qualquer coisa, boa ou perigosa, meu pai e minhas irmãs voltando do campo de feno, alguém viajando entre as fazendas, um veado andando pelo mato. Meus olhos seguiram a figura até que consegui distingui-la, grande e escura, um negrume brilhante e gracioso. Não era um urso. Um cavalo e um cavaleiro. Havia só um verdadeiro cavalo negro no vilarejo e pertencia a Jonathan. Por que Jonathan estaria cavalgando por esses lados se não para me ver? Mas ele passou para além de nossa casa e seguiu na direção de nossos vizinhos, os recém-casados Jeremias e Sophia Jacobs. Não conseguia pensar em nenhuma razão para Jonathan visitar Jeremias, absolutamente nenhuma. Levantei a mão para enfiar uns cachos soltos dentro de meu chapéu.

— Mãe, a senhora não disse que Jeremias Jacobs não estaria em casa nesta semana? Ele já partiu?

— Sim, já partiu — ela respondeu distraída, mexendo o caldeirão. — Foi para Fort Kent procurar um par de cavalos de tropa e disse a seu pai que voltaria na semana que vem.

— E deixou Sophia sozinha, não deixou? — A figura brilhante passou pelos meus olhos e desapareceu na escuridão da floresta. Minha mãe concordou com um murmúrio.

— Sim, mas sabe que não tem com o que se preocupar. Estará segura, sozinha durante uma semana. — Ela tirou a peça de roupa molhada do caldeirão com o pedaço de pau, uma massa de onde saía vapor e escorria água. Tomei a massa de roupa das mãos dela e levei para debaixo da árvore, onde pendurávamos todas as roupas de lã juntas. — Prometa que vai desistir de Jonathan e não procurar mais a companhia dele — foi a última coisa que ela disse sobre o assunto. Mas minha cabeça estava no pequeno sobrado de madeira de nossos vizinhos, o cavalo de Jonathan esperando impacientemente do lado de fora.

— Prometo — respondi à minha mãe, mentindo descaradamente, como se não quisesse dizer absolutamente mais nada.

À medida que o outono se aprofundava e as folhas tomavam tons de marrom, vermelho e dourado, o caso de amor entre Jonathan e Sophia Jacobs não arrefeceu. Durante aquelas semanas, meus encontros com Jonathan eram cada vez mais raros e dolorosamente curtos. Ainda que a culpa não fosse toda dela, cada um de nós tinha as próprias preocupações naquela época, eu colocava toda a culpa em Sophia. Que direito ela tinha de ter a atenção dele? Até onde conseguia entender, ela não merecia a companhia dele. O pior pecado era ela ser casada e, na busca desse relacionamento, estava forçando Jonathan a comprometer sua moral cristã. Ela o estava condenando ao inferno junto consigo mesma.

Mas as razões pelas quais ela não o merecia não paravam por aí. Sophia não chegava a ser a garota mais bonita do vilarejo; pelas minhas contas, havia pelo menos umas vinte garotas, comparáveis em idade, que eram mais bonitas do que ela, mesmo me excluindo deste grupo por questão de modéstia. Além disso, ela não tinha nem a posição social nem a riqueza que a tornaria adequada para a companhia de um homem com o status de Jonathan. Faltavam-lhe dotes domésticos: sua costura era passável e as tortas que trazia às festas da igreja eram massudas e assadas de maneira desigual. Sophia era inteligente, sem dúvida, mas se alguém fosse obrigado a escolher uma garota inteligente na cidade, o nome dela não estaria entre aquelas que vêm primeiro à mente. Assim, qual era exatamente a base de seu relacionamento com Jonathan, que deveria ter só o melhor?

Enrolei o linho do final do verão, refletindo sobre esse estranho relacionamento, amaldiçoando-o por ser inconstante. Afinal, aquele dia, no campo dos McDougal, ele tinha dito que ficaria com ciúme se eu me afeiçoasse por outro menino no vilarejo; e agora aqui estava ele, cortejando Sophia Jacobs. Uma jovem de coração mais fraco poderia ter tirado conclusões sobre seu comportamento, mas eu não faria isso, preferia acreditar que Jonathan me escolheria se soubesse de meus sentimentos. Eu caminhava de um lado para o outro após os cultos da igreja aos domingos, jogando olhares não correspondidos na direção de Jonathan, querendo dizer o quanto o queria. Percorri os trilhos que levavam até a casa dos St. Andrew e fiquei imaginando o que Jonathan estaria fazendo naquele momento; sonhando acordada, tentei imaginar como seria sentir as mãos de Jonathan em meu corpo, como seria ser pressionada embaixo dele, tomada por seus beijos. Fico vermelha ao pensar no quanto minha visão do amor era inocente naquela época! Tinha uma concepção de amor de uma virgem, tão casto quanto nobre.

Sem Jonathan, eu estava sozinha. Essa era uma prévia do que seria minha vida quando Jonathan estivesse casado e assumisse os negócios da família, e eu estivesse casada com outro. Seríamos cada vez mais levados às nossas próprias órbitas, caminhos destinados a nunca se cruzarem. Mas esse dia ainda não havia chegado e Sophia Jacobs não era a legítima esposa de Jonathan. Ela era uma intrusa que queria roubar seu coração.

Um dia, logo após a primeira geada, Jonathan veio me ver. Ele estava tão diferente, parecia que havia envelhecido anos. Ou talvez fosse só aquela alegria em seu rosto que tivesse ido embora; ele parecia sério e bem adulto. Ele me encontrou no campo de feno, com minhas irmãs, colhendo o que ainda restava do feno para secar ao sol de verão e colocando no celeiro, onde guardávamos a alfafa que alimentaria o gado durante o longo inverno.

— Deixe-me ajudar você — ele disse, apeando do cavalo. Minhas irmãs, vestidas como eu, com roupas velhas e lenços amarrados na cabeça para manter o cabelo afastado, olharam desconfiadas para ele e deram gargalhadas.

— Não seja ridículo! — exclamei, olhando para seu elegante casaco de lã e calças de pele de corça. Recolher o feno era uma tarefa horrível e cansativa. De qualquer forma, eu ainda estava ressentida por seu abandono e disse a mim mesma que não queria nada dele. — Só me diga o que o traz aqui — falei.

— Creio que minhas palavras sejam só para seus ouvidos. Podemos pelo menos caminhar um pouco sozinhos? — perguntou, cumprimentando minhas irmãs com a cabeça para mostrar que não queria ser desrespeitoso. Joguei meu forcado no chão, tirei as luvas e comecei a caminhar em direção à floresta.

Ele seguiu a pé a meu lado, trazendo seu cavalo com a rédea frouxa.

— Bem, não nos vemos faz tempo, não é? — ele começou a falar de um modo não muito convincente.

— Não tenho tempo para delicadezas — respondi a ele. — Tenho trabalho a fazer.

Ele desistiu das desculpas de uma vez por todas.

— Ah, Lanny! Nunca consegui enganar você. Senti sua falta, mas não é por isso que vim até aqui hoje. Preciso de seu conselho. Não sou muito bom em julgar meus próprios problemas e você sempre vê as coisas com clareza, independentemente de qual seja o problema.

— Pode parar de me lisonjear — eu disse, passando a testa na manga suja da camisa. — Não sou o rei Salomão. Há muitas outras pessoas mais inteligentes nesta cidade a quem você pode recorrer, então, o fato de ter vindo até mim significa que está metido em algum tipo de problema que não ousa dividir com mais ninguém. Vamos lá, desembucha: o que você fez?

— Tem razão. Não há ninguém em quem eu possa confiar, exceto em você. — Jonathan virou seu rosto lindo, constrangido. — É Sophia, acho que você já adivinhou essa parte, tenho certeza, e acho que o nome dela é o último que queria ouvir...

— Você não faz ideia — sussurrei, enfiando uma dobra da saia na cintura para levantar a barra do chão.

— Tem sido uma união suficientemente feliz entre nós, Lanny. Nunca imaginaria. Somos tão diferentes, mas, ainda assim, gostava muito da companhia dela. Ela tem uma mente independente e não tem medo de dizer o que pensa — ele falava sem perceber que eu estava petrificada, parada no meio do caminho, boquiaberta. Eu já não tinha falado a ele o que penso? Bem, talvez não tivesse dito claramente, mas não tínhamos conversado como iguais, amigos? Era enlouquecedor que ele achasse o humor de Sophia tão singular e admirável! — É ainda mais extraordinário, considerando sua família. Ela conta histórias sobre o pai, que ele é um bêbado e um jogador, e que bate na esposa e nas filhas.

— Tobey Ostergaard — eu disse. Surpreendia-me que Jonathan não conhecesse a má reputação de Tobey, mas isso só servia para demonstrar o quanto era isolado do restante do vilarejo. Os problemas de Ostergaard eram bem conhecidos; ninguém o tinha em alta estima como pai ou provedor. Fazendeiro pobre, Tobey cavava covas nos fins de semana para ganhar dinheiro extra, que quase sempre era desperdiçado em bebida. — O irmão dela fugiu no ano passado — contei a Jonathan. — Ele brigou com o pai e Tobey o acertou no rosto com a pá de coveiro.

Jonathan parecia realmente aterrorizado.

— Esta criação difícil endureceu Sophia, mas, mesmo assim, ela não ficou insensível ou amarga, nem mesmo depois de seu casamento doloroso. Ela se arrepende muito de ter concordado com a proposta, especialmente agora que... — Ele foi saindo de mansinho.

— Agora que o quê? — incitei, o medo subindo por minha garganta.

— Ela diz que está grávida — Jonathan desabafou, virando as costas para mim. — Ela jura que o bebê é meu. Não sei o que fazer.

A expressão dele era uma máscara de terror e, claro, de medo de precisar contar isso para mim. Teria lhe dado um tapa se não fosse tão óbvio que ele realmente não queria me magoar. Ainda assim, queria jogar de volta na cara dele: deixou-se levar por essa mulher durante semanas e o que esperava? Tivera sorte por não ter acontecido antes.

— O que você vai fazer? — perguntei.

— O desejo de Sophia é simples: ela quer que nos casemos e criemos o bebê, juntos.

Uma risada amarga saiu de meus lábios.

— Ela deve estar louca. Sua família nunca permitiria isso. — Ele me deu uma olhada rápida e zangada, que me fez me arrepender de minha reação. — O que — continuei em um tom mais conciliatório — você gostaria de fazer?

Jonathan balançou a cabeça.

— Vou dizer, Lanny, não sei o que pensar sobre esse assunto.

Não sabia se acreditava nele. Havia uma hesitação em sua voz, como se tivesse pensamentos que não ousasse dizer. Havia pouco do Jonathan que eu conhecera, o patife que planejava permanecer sem algemas o máximo possível. Se ele soubesse o quanto seu dilema me preocupava! Por um lado, ele parecia tão miserável e perdido com relação a que caminho seguir, que fiquei com pena. Por outro, meu orgulho doía feito pele recém-esfolada. Andei ao redor dele, com o indicador pressionando meus lábios.

— Bem, vamos analisar a situação. Você sabe tão bem quanto eu que há remédios para esse tipo de ocorrência. Ela precisa fazer uma visita à parteira... — Pensei em Magda: com certeza ela saberia como lidar com aquela calamidade, uma eventualidade em seu tipo de trabalho. — Uma mistura de ervas ou algum procedimento, me disseram, pode resolver o problema.

Com o rosto enrubescido, Jonathan balançou a cabeça.

— Ela não irá; quer, realmente, ter o bebê.

— Mas ela não pode! Seria loucura exibir seu mau comportamento dessa maneira.

— Se esse tipo de comportamento for loucura, então acho que ela não está em seu melhor estado mental.

— E... seu pai? Já pensou em ir até ele para pedir um conselho? — A sugestão não era completamente ridícula: Charles St. Andrew era conhecido por perseguir suas empregadas e provavelmente já estivera na posição de Jonathan uma ou duas vezes na vida. Jonathan resfolegou feito um cavalo assustado.

— Acho que terei que contar para o velho Charles, apesar de não ter grandes expectativas. Ele saberá como lidar com Sophia, mas temo como isso tudo terminará.

Isso queria dizer, achei, que Charles St. Andrew faria seu filho cortar quaisquer laços com Sophia e, com ou sem bebê, eles nunca mais se veriam novamente. Ou, pior, ele poderia insistir que Jeremias soubesse, e Jeremias poderia exigir o divórcio de sua esposa adúltera e processar Jonathan. Ou poderia extorquir dinheiro dos St. Andrew, concordando em criar a criança como seu filho se pagassem por seu silêncio. O que poderia acontecer quando St. Andrew tomasse parte disso era pura especulação.

— Meu querido Jonathan — murmurei, minha mente em busca de um conselho que pudesse lhe dar —, sinto muito por seu infortúnio. Mas, antes de falar com seu pai, me dê um dia para pensar sobre isso. Talvez apareça uma solução.

Olhou por cima do ombro para minhas irmãs, que estavam escondidas de nós atrás de uma pilha de fenos.

— Como sempre, você é minha salvação.

Antes que eu pudesse saber o que estava acontecendo, ele me pegou pelos ombros e me puxou para junto dele; a força de seu beijo foi um alerta de que ele poderia invocar meu desejo quando bem quisesse, que eu era dele. Segurou-me com força, mas ele também tremeu; estávamos os dois ofegantes quando me soltou.

— Você é um anjo — ele suspirou roucamente em meu ouvido. — Sem você, estaria perdido.

Ele sabia o que estava fazendo, dizendo essas coisas para alguém que estava desesperadamente apaixonada por ele? Fiquei pensando se ele tinha vindo para que eu o ajudasse a sair daquela situação imoral ou se tinha vindo meramente para se assegurar dos votos de confiança da garota que o amava independentemente do que fizesse. Gostava de pensar que parte dele me amava de verdade e que sentia muito por me decepcionar. Não consigo dizer honestamente que sabia das verdadeiras intenções de Jonathan naquela época; duvido que ele mesmo soubesse, afinal, era um jovem envolvido num problema muito sério pela primeira vez na vida. Talvez Jonathan quisesse acreditar que, se Deus perdoasse seu erro, ele mudaria e se satisfaria com uma única garota que o amasse completamente.

Ele montou de novo na sela, cumprimentou minhas irmãs com educação e virou seu cavalo na direção de sua casa. E, antes que tivesse cavalgado até a ponta do campo e desaparecido de vista, um pensamento me veio à cabeça, pois eu era uma garota inteligente e mais concentrada do que nunca quando a situação envolvia Jonathan.

Resolvi visitar Sophia no dia seguinte e falar com ela em particular. Esperei até ter recolhido as galinhas ao galinheiro, para minha ausência não ser notada, antes de partir em direção à fazenda dos Jacobs. A propriedade deles era bem mais silenciosa do que a nossa, principalmente porque eles tinham menos gado e não havia crianças para ajudar com todas as tarefas. Entrei sorrateiramente no estábulo, esperando não dar de cara com Jeremias, e encontrei Sophia fechando as três velhas vacas maltratadas em uma baia.

— Lanore! — Ela pulou de surpresa, as mãos subindo para cobrir o coração. Vestia roupas leves demais para quem estava do lado de fora, somente um xale de lã fina sobre os ombros, em vez de uma capa para espantar o frio. Sophia, com certeza, sabia de minha amizade com Jonathan e Deus sabe o que mais ele teria dito a ela sobre mim (ou talvez eu fosse tola demais para acreditar que ele pensasse em mim quando eu não estivesse por perto). Ela me olhou friamente, sem dúvida preocupada com o motivo da visita. Para ela, eu deveria ser uma criança, por ainda não estar casada e viver sob o teto de meus pais, apesar de eu ser poucos anos mais nova do que ela.

— Me perdoe por vir sem avisar, mas tinha que falar com você sozinha — eu disse, olhando sobre meu ombro para ter certeza de que o marido dela não estava por perto. — Vou direto ao assunto, já que não temos tempo para animosidades. Acho que você sabe por que vim falar com você. Jonathan me contou...

Ela cruzou os braços e me olhou furiosamente.

— Ele contou a você, não é mesmo? Ele tinha que dar a boa notícia de que me deixou de barriga?

— Nada disso! Se acha que ele está feliz porque você vai ter um bebê...

— O bebê dele — ela insistiu. — E sei que ele não está feliz.

Era disso que eu precisava. Fiquei pensando no que diria a Sophia desde o momento em que Jonathan partira no dia anterior. Ele tinha vindo até mim porque precisava de alguém que pudesse ser duro com Sophia no lugar dele. Alguém que pudesse deixar bem claro para ela a fragilidade da posição em que se encontrava. Sophia saberia que eu entendia o que enfrentava; haveria menos espaço para conversa e menos apelo à emoção. Não estava fazendo isso porque odiava Sophia, assegurei a mim mesma, nem porque me ressentia por ela ter roubado meu lugar na vida de Jonathan. Não, eu sabia como Sophia era e estava evitando que Jonathan caísse numa armadilha.

— Com todo respeito, tenho que perguntar: qual é a prova que você tem para dizer que o bebê é de Jonathan? Temos só sua palavra e... — Caminhei um pouco, deixando minha afirmação pairar no ar.

— Você é o quê? A advogada de Jonathan? — O rosto dela enrubesceu quando eu não fisguei a isca. — Sim, tem razão, poderia ser tanto de Jeremias quanto de Jonathan, mas eu sei que é de Jonathan. Eu sei. — As mãos delas se entrelaçaram sobre a barriga, apesar de ela ainda não mostrar sinais de gravidez.

— Espera que Jonathan arruíne a vida dele baseado em suas afirmações?

— Arruinar a vida dele? — ela gritou num som agudo. — E a minha vida?

— Sim, e a sua vida? — eu disse, falando o mais alto que conseguia. — Já pensou no que acontecerá se você acusar Jonathan publicamente de ser o pai de seu bebê? Tudo o que vai conseguir é fazer com que toda a cidade pense que você é uma mulher perdida... — Sophia bufou, girando nos saltos para longe de mim, como se não suportasse ouvir mais nenhuma palavra. — ... e ele negará o caso. E quem acreditará em você, Sophia? Quem acreditaria que Jonathan St. Andrew escolheria vadiar com você quando pode escolher qualquer outra mulher no vilarejo?

— Jonathan vai me renegar? — ela perguntou, incrédula. — Não desperdice seu fôlego, Lanore. Não me convencerá de que meu Jonathan me renegaria.

Meu Jonathan, ela tinha dito. Minhas bochechas enrubesceram, meu coração disparou. Não sei onde encontrei coragem para dizer as coisas horríveis que disse para Sophia. Foi como se outra pessoa se escondesse dentro de mim, alguém com qualidades que nunca imaginei ter, e essa pessoa secreta tinha saído de dentro de mim tão facilmente quanto um gênio é invocado para fora de uma lâmpada. Estava cega de ódio; tudo o que sabia era que Sophia estava ameaçando Jonathan, ameaçando arruinar seu futuro e eu nunca deixaria que ninguém o machucasse. Ele não era o Jonathan dela, ele era meu. Já tinha tomado posse dele havia anos, no vestíbulo da igreja, e, tão tolo quanto possa parecer, senti essa possessão tomar conta de mim, feroz e primitiva.

— Vai ser motivo de riso, a mulher mais feia de St. Andrew dizendo que o homem mais requisitado da cidade é o pai de seu filho, não o palerma do marido. O palerma a quem ela despreza.

— Mas é mesmo filho dele — ela disse, desafiadora. — Jonathan sabe disso. Ele não se importa com o que aconteceria com a carne de sua carne e o sangue de seu sangue?

Isso me fez parar; senti uma ponta de culpa.

— Faça um favor a você mesma, Sophia, e esqueça seu plano mirabolante. Você tem um marido, diga que o filho é dele. Ele ficará feliz com a notícia; tenho certeza de que Jeremias gostaria de ter filhos.

— Sim, gostaria, de filhos dele — ela sibilou. — Não posso mentir a Jeremias sobre a linhagem da criança.

— Por que não? Você, sem dúvida nenhuma, mentiu a ele sobre sua fidelidade — eu disse, sem piedade. Naquele momento, o ódio dela era tão palpável que pensei que fosse me dar um bote, como uma cobra. Chegara a hora de enfiar a adaga em seu coração. Olhei para ela de cima a baixo, com os olhos contraídos.

— Sabe, a punição para adultério de uma mulher, se ela for casada, é a morte. Essa ainda é a posição da igreja. Leve isso em consideração, se insiste em manter seu plano. Selará sua própria sorte.

Era uma ameaça sem fundamento: nenhuma mulher seria condenada à morte por ser adúltera, nem em St. Andrew nem em nenhuma outra cidade vizinha, onde as mulheres com idade para ter filhos eram escassas. A punição de Jonathan, se a população da cidade resolvesse, por um motivo impensável, que ele era culpado, seria pagar o imposto de bastardia e, talvez, ser banido por alguns membros mais devotos durante um tempo. Sem dúvida, Sophia levaria a maior parte da culpa. Ela andava em círculos, como se procurasse torturadores escondidos.

— Jonathan! — ela gritou, mas não alto o suficiente para que seu marido conseguisse ouvi-la. — Como pode me tratar assim? Esperei que fosse se comportar honradamente... Em vez disso, manda essa víbora — ela me lançou um olhar venenoso, com os olhos cheios e lacrimejantes — para fazer o trabalho sujo em seu lugar. Não pense que não sei por que está fazendo isso — ela sibilou, apontando o indicador para mim. — Todo mundo na cidade sabe que é apaixonada por ele, mas ele não a quer. É ciúme, eu sei. Jonathan nunca teria mandado você para tratar comigo dessa maneira.

Havia me preparado para permanecer calma. Dei alguns passos para trás, como se ela estivesse louca ou fosse perigosa.

— Claro que ele me pediu para ver você, caso contrário, como eu saberia que você está de barriga? Ele desistiu de tentar colocar alguma razão nessa sua cabeça e me pediu para conversar com você, como mulher. E, como mulher, eu digo: sei o que está aprontando. Está usando esse infortúnio para melhorar sua vida, para trocar seu marido por alguém com mais condições. Talvez nem haja um bebê; você me parece a mesma de sempre. No que se refere a meu relacionamento com Jonathan, nós temos uma amizade especial, pura e casta, e mais forte do que a de um irmão e irmã, mas não espero que você entenda isso — disse, com desdém. — Você não compreenderia o relacionamento com um homem que não envolvesse levantar suas saias. Pense muito nisso, Sophia Jacobs. É um problema seu e a solução está em suas mãos. Escolha o caminho mais fácil, dê um filho a Jeremias. E não se aproxime de Jonathan de novo: ele não quer ver você — eu disse com firmeza e, então, saí do estábulo. No caminho para casa, tremia de medo e triunfo, os nervos à flor da pele, apesar do ar gelado. Tinha invocado toda a minha coragem para defender Jonathan e tinha feito isso com uma determinação que desconhecia possuir. Poucas vezes erguera a voz e nunca impusera minha opinião de forma tão veemente a alguém. Descobrir que tinha essa força interior era assustador e, ao mesmo tempo, fantástico. Caminhei de volta para casa pela floresta, despreocupada e enrubescida, confiante de que podia fazer qualquer coisa.

Foi o barulho que me acordou na manhã seguinte, o disparo de um mosquete, bala e pólvora. Um mosquete disparado àquela hora significava problema: um incêndio na casa de um vizinho, uma invasão, um acidente terrível. O tiro veio da direção da fazenda dos Jacobs; eu sabia assim que ouvi o disparo.

Puxei o cobertor sobre a cabeça, fingindo dormir, ouvindo os sussurros vindos da cama de meus pais. Ouvi meu pai se levantar, vestir-se e sair pela porta. Minha mãe também se levantou, provavelmente enrolando uma colcha de retalhos em volta dos ombros, enquanto fazia as tarefas domésticas que costumava fazer todas as manhãs, acendendo o fogo e colocando um caldeirão de água para ferver. Virei-me de um lado para o outro antes de me sentar, relutante em colocar as solas dos pés no assoalho frio e começar um dia que se anunciava estranho e de má sorte.

Meu pai entrou de volta com uma expressão sombria.

— Vista-se, Nevin. Precisa vir comigo — ele disse à massa resmunguenta na cama do andar de baixo.

— Preciso? — Ouvi meu irmão perguntar com a voz pesada de sono. — Não precisamos alimentar o gado...

— Eu irei com você, pai — chamei do andar de cima, vestindo-me apressadamente. Meu coração já estava batendo tão rápido que seria impossível ficar em casa e esperar notícias do que acontecera. Tinha que ir com meu pai.

Havia nevado durante a noite, a primeira neve da estação, e tentei clarear minha mente enquanto caminhava atrás de meu pai, concentrando-me somente em pisar nas pegadas que ele fazia na neve recém-caída. Minha respiração pairava no ar seco e uma gota escorria da ponta de meu nariz.

Bem no meio do nada, diante de nós, estava a fazenda dos Jacobs, um sobradinho marrom sobre a vastidão de neve. As pessoas começavam a chegar, pequenas formas negras e distantes contrastando com a neve, e outras mais vinham até a fazenda de todas as direções, a pé ou a cavalo. A visão fez meu coração disparar mais uma vez.

— Nós vamos até os Jacobs? — perguntei atrás de meu pai.

— Sim, Lanore. — Uma resposta taciturna, com sua habitual economia de palavras. Eu mal conseguia conter minha ansiedade. — O que acha que aconteceu?

— Espero descobrir — ele disse pacientemente.

Havia um representante de cada família, exceto dos St. Andrew, mas eles moravam na ponta mais longínqua da cidade e não conseguiriam ouvir o tiro, todos vestidos com partes de roupas que não combinavam: roupões, barras de camisolas malfeitas aparecendo debaixo do casaco, cabelos despenteados. Segui meu pai através da pequena multidão, abrindo caminho a cotoveladas até chegarmos à porta, onde Jeremias estava ajoelhado na neve enlameada e despedaçada. Era óbvio que havia se enfiado nas calças apressadamente, botas sem amarrar nos pés e um cobertor enrolado sobre os ombros. Seu velho bacamarte, a arma que usara para dar o alarme, estava encostado ao lado, na parede de tábua. Seu rosto grande contorcia-se em agonia, olhos vermelhos, lábios rachados e sangrando. Por ele ser um homem desprovido de emoções, a visão era enervante. O pastor Gilbert abriu caminho até ele, então ficou de cócoras para conseguir falar suavemente ao ouvido de Jeremias.

— O que foi, Jeremias? Por que disparou o alarme?

— Ela partiu, pastor...

— Partiu?

— Sophia, pastor. Ela se foi.

A quietude em sua voz criou uma onda de murmúrios pela multidão, todos cochichando uns com os outros, exceto eu e meu pai.

— Se foi? — Gilbert colocou as mãos nas faces de Jeremias, segurando o rosto dele. — Como assim, ela se foi?

— Ela foi embora ou alguém a levou. Quando acordei, ela não estava em casa. Nem no curral nem no estábulo. Sua capa sumiu, mas as outras coisas ainda estão aqui.

Ouvir que Sophia (zangada, talvez se sentindo destruída) não revelara minha visita a Jeremias aliviou o aperto em meu peito, de que até então não me apercebera. Naquele momento, que Deus meu perdoe, não estava tão preocupada com uma mulher perambulando sem nada pela floresta, mas sim com minha própria ruína. Gilbert balançou a cabeça branca.

— Jeremias, com certeza ela só saiu um pouco, talvez para uma caminhada. Voltará logo para casa e se desculpará por ter deixado o marido tão preocupado. — Mas, apesar das palavras dele, todos sabíamos que estava enganado. Ninguém saía para passear em um tempo tão frio, muito menos nas primeiras horas da manhã. — Acalme-se, Jeremias! Vamos para dentro e aqueça-se um pouco antes que congele os ossos... Fique aqui com a sra. Gilbert e a srta. Hibbins; elas cuidarão de você enquanto o resto de nós vai procurar Sophia, não é mesmo, vizinhos? — Gilbert disse com um falso entusiasmo, enquanto ajudava o homenzarrão a se levantar, e virou-se para nós.

A especulação passava nos olhares rápidos dos maridos para as esposas, vizinho para vizinho (a recém-casada havia abandonado o marido?), mas ninguém tinha coragem de fazer nada a não ser seguir a sugestão do pastor. As duas mulheres acompanharam Jeremias, trôpego e confuso, para dentro de casa enquanto o restante de nós se dividia em grupos. Procuramos por um rastro na neve, esperando que o caminho de Sophia não tivesse sido pisoteado por quem havia respondido ao tiro de Jeremias.

Meu pai encontrou um rastro de pequenos pés que poderiam ser os de Sophia e nós dois começamos a segui-lo. Com meus olhos treinados na neve, minha mente acelerava, imaginando o que teria feito Sophia sair de casa. Talvez tivesse pensado em minhas palavras a noite toda e acordara decidida a conversar com Jonathan. Como nossa discussão poderia não estar relacionada ao desaparecimento dela? Meu coração batia disparado enquanto seguíamos as pegadas, que eu temia que chegassem à casa dos St. Andrew, até que a neve desapareceu dentro da floresta mais fechada e, com ela, a pista de Sophia.

Agora meu pai e eu seguíamos um rastro indistinto no chão da floresta coberto por uma mistura de terra dura e escorregadia, com algumas finas camadas de neve e folhas mortas. Não sabia se meu pai estava procurando pelo rastro escondido de Sophia ou se continuava por pura obrigação. Caminhamos paralelamente ao rio, o som do Allagash à minha esquerda. Geralmente eu achava relaxante o som da água batendo nas pedras, mas hoje, não.

Sophia deve ter sido movida por algo muito forte para se aventurar na floresta sozinha. Somente os moradores mais fortes do vilarejo iam sozinhos à floresta, pois era fácil se perder lá dentro. Acres e acres de floresta aberta numa repetição de vidoeiros, abetos e pinheiros, e a regularidade das pedras que cobriam o chão, todas cobertas com musgos extravagantes ou entremeadas por líquenes cinza-esverdeados.

Talvez devesse ter falado com meu pai antes, dizer a ele que esse sacrifício da comunidade era desnecessário e que era muito provável que Sophia tivesse saído para ir ver um homem, um homem cuja companhia ela não deveria manter. Ela poderia estar salva e aquecida em um quarto com esse homem enquanto nós andávamos a esmo pelo frio e pela lama. Imaginava Sophia correndo pela estrada, apaixonada e confusa, fugindo de seu lar infeliz até Jonathan, que, sem dúvida, a acolheria. Meu estômago revirava com a ideia dela enfiada na cama de Jonathan, a ideia de que ela havia vencido e eu, perdido, e que Jonathan agora era dela.

Depois de um tempo, viramos em direção ao rio e caminhamos seguindo a corrente e seus contornos. Meu pai parou num ponto, furando um buraco em uma fina camada de gelo, enfiando as mãos para pegar um pouco de água para beber. Entre um gole e outro, ele me olhou, curioso.

— Não sei quanto tempo mais vamos continuar procurando. Pode ir para casa, Lanore. Aqui não é lugar para uma jovem. Deve estar congelando de frio.

Balancei a cabeça.

— Não, não, meu pai, gostaria de ficar mais um pouco... — Seria impossível esperar as notícias em casa. Ficaria louca ou sairia da propriedade e correria até a casa de Jonathan e confrontaria Sophia. Conseguia vê-la, orgulhosa, triunfante. Naquele momento, acho que nunca odiara tanto alguém quanto a odiava.

Foi meu pai quem a viu primeiro. Estava mapeando o caminho à frente enquanto eu mantinha meus olhos treinados sobre o chão escorregadio debaixo dos pés. Encontrou o corpo congelado enroscado num redemoinho formado por uma árvore caída, quase escondida em um emaranhado de junco e trepadeira. Ela boiava de barriga para baixo, presa em um monte de plantas, o corpo delicado esticado, as camadas da saia e o longo cabelo espalhados pela superfície da água. Sua capa estava na beira do rio, cuidadosamente dobrada.

— Olhe para lá, garota! — Meu pai disse enquanto tentava me virar para o outro lado. Eu não conseguia tirar os olhos dela.

Meu pai soou o alarme enquanto eu olhava em silêncio para o corpo dela. Outras pessoas atravessaram a floresta, seguindo a voz de meu pai. Dois homens caminharam pela água gelada para desvencilhar o corpo do abraço do mato congelado e da fina camada de gelo que começava a tomar conta dele. Abrimos a capa no chão e colocamos o corpo sobre ela, o tecido encharcado grudando nas pernas e no torso; a pele estava toda azul e seus olhos, graças a Deus, estavam fechados.

Os homens a embrulharam na capa e fizeram turnos para segurar as pontas, usando-a como uma rede para carregar o corpo de Sophia de volta para casa, enquanto eu caminhava atrás deles. Meus dentes rangiam e meu pai se aproximou para esfregar meus braços numa tentativa de me aquecer, mas não adiantou, pois eu tremia de medo, não de frio. Cruzei os braços com força sobre o estômago, com medo de vomitar na frente de meu pai. Minha presença esfriou a discussão entre os homens e eles se abstiveram de especular sobre como Sophia teria tirado a própria vida. No entanto, todos concordaram que o pastor Gilbert não seria informado sobre a capa deixada ao lado de propósito. Ele não saberia que ela havia se suicidado.

Quando meu pai e eu chegamos em casa, corri para a lareira e fiquei tão perto que o fogo queimou meu rosto, mas mesmo esse calor não conseguia me fazer parar de tremer.

— Não fique tão perto! — mandou minha mãe, enquanto me ajudava a tirar a capa, sem dúvida com medo de que ela encostasse em alguma brasa. Eu teria achado bom: merecia queimar como uma bruxa pelo que tinha feito. Algumas horas depois, minha mãe veio até mim, levantou os ombros e disse:

— Vou até os Gilbert para ajudar com a preparação de Sophia. Acho que deveria vir comigo. Já é hora de ocupar o lugar entre as mulheres da cidade e aprender algumas de suas obrigações.

Já havia me trocado e agora vestia uma camisola grossa, estava perto do fogo e bebia uma caneca quente de cidra com rum. A bebida ajudava a me deixar dormente, a acalmar a vontade de chorar e confessar, mas eu sabia que estaria arruinada se tivesse que encarar o corpo de Sophia, mesmo na presença de outras mulheres da cidade. Levantei-me apoiando um cotovelo.

— Não poderia... Não me sinto bem. Ainda estou com frio...

Minha mãe pressionou as costas das mãos em minha testa, depois em minha garganta.

— Para todos os efeitos, direi que está queimando de febre... — Ela me olhou com cautela, desconfiada, então levantou-se do chão, colocando a capa sobre os ombros. — Está bem, só dessa vez, levando em consideração tudo o que passou mais cedo... — As palavras dela sumiram aos poucos. Ela me olhou de cima a baixo mais uma vez, de uma forma que não consegui decifrar, e então saiu pela porta.

Mais tarde, ela me contou o que aconteceu na casa do pastor, como as mulheres prepararam o corpo de Sophia para o enterro. Primeiro, colocaram o corpo perto do fogo para descongelar; depois, tiraram o lodo do nariz e da boca, e pentearam o cabelo suavemente. Minha mãe descreveu como a pele dela havia ficado depois de tanto tempo dentro do rio e como tinha pequenos arranhões vermelhos por ter sido carregada pela corrente e arrastada sobre as rochas submersas. Vestiram-na com seu melhor vestido, um amarelo tão pálido que quase parecia marfim, enfeitado com bordados que ela mesma havia feito e ajustado ao seu corpo esguio com alfinetes. Não houve menção ao corpo de Sophia, não falaram em anormalidades ou comentaram sobre o leve inchaço no abdômen da jovem morta. Se alguém notou alguma coisa, foi atribuído ao inchaço, sem dúvida, à água que a pobre jovem engoliu quando se afogara. E, então, colocaram um xale de linho dentro do caixão simples. Dois homens, que esperavam enquanto as mulheres acabavam o trabalho, carregaram o caixão para dentro de uma charrete e o levaram até a casa de Jeremias, onde ficaria à espera do funeral.

Enquanto minha mãe descrevia o estado do corpo de Sophia, senti como se unhas estivessem me rasgando, exortando para que confessasse minha maldade. Mas, com dificuldade, mantive o bom senso e chorei enquanto minha mãe falava, escondendo meus olhos com as mãos. Minha mãe esfregou minhas costas como se eu fosse uma criança de novo.

— O que é, Lanore, querida? Por que está tão perturbada por causa de Sophia? É uma coisa terrível e ela era nossa vizinha, sim, mas acho que você nem a conhecia tão bem assim... — Ela me mandou para cima com uma bolsa de couro de cabra cheia de água quente e ralhou com meu pai por ter me levado com ele para a floresta. Deitei com a bolsa sobre a barriga, apesar de ela não me trazer conforto. Fiquei acordada, ouvindo todos os sons da noite (o vento, o balançar das árvores, as brasas quase apagadas) sussurrarem o nome de Sophia.

Como seu casamento, o funeral de Sophia Jacobs foi um evento simples, assistido por seu marido, sua mãe, alguns de seus irmãos e outras poucas pessoas. O dia estava frio e encoberto, com a neve se preparando para cair do céu, assim como tinham sido todos os dias desde que Sophia havia se matado.

Em pé, Jonathan e eu assistimos de um morro que dava para o cemitério. Vimos os enlutados se aglomerarem em volta da vala escura e profunda. De alguma forma conseguiram cavar uma sepultura, apesar de o chão já estar começando a congelar, e eu não conseguia parar de pensar se teria sido o pai, Tobey, que a cavara. Os enlutados, manchas de preto contra o campo branco distante, ficavam para lá e para cá, enquanto o pastor Gilbert proferia as palavras sobre a morta. Meu rosto estava tenso, inchado pelos dias de choro, mas, agora, na presença de Jonathan, as lágrimas desapareceram. Parecia surreal espiar o funeral de Sophia. Sobretudo eu, que deveria estar de joelhos, implorando pelo perdão de Jeremias, pois era a responsável pela morte de sua esposa; era como se eu mesma a tivesse empurrado para dentro do rio.

A meu lado, Jonathan permanecia em silêncio. A neve finalmente começou a cair, como que liberando a tensão de longa data, pequenos flocos ziguezagueando no ar frio antes de pousar sobre o casaco marrom-escuro e os cabelos dele.

— Não acredito que ela se foi — ele disse pela vigésima vez naquela manhã. — Não consigo acreditar que ela tirou a própria vida.

Engasguei em minhas próprias palavras. Qualquer coisa que dissesse seria muito fraco, muito paliativo e totalmente falso.

— É minha culpa — ele grasnou, levantando a mão sobre o rosto.

— Não deve se culpar por causa disso. — Apressei-me em confortá-lo com as palavras que havia dito a mim mesma muitas e muitas vezes nos últimos dias, enquanto me escondia na cama ardendo de febre e culpa. — Você sabia que a vida dela havia sido miserável, desde quando era criança. Quem sabe quais pensamentos infelizes ela carregava e desde quando? Ela finalmente deu cabo deles. Não é sua culpa, de forma alguma.

Ele deu dois passos à frente, como se quisesse estar lá embaixo no cemitério.

— Não acredito que ela estivesse carregando pensamentos de autoflagelo, Lanny. Ela estava feliz comigo. É inconcebível que a Sophia que conheci estivesse lutando contra o desejo de se suicidar.

— Nunca se sabe. Talvez ela tenha brigado com Jeremias. Talvez depois da última vez que você a viu...

Ele fechou os olhos, apertando-os com força.

— Se alguma coisa a incomodou, foi minha reação quando ela me contou sobre o bebê. É por isso que estou me culpando, Lanny, por minha reação insensível. Você disse — Jonathan ergueu a cabeça, de repente, olhando em minha direção — que pensaria numa maneira de dissuadi-la a não ficar com o bebê. Lanny, rezo para que você não tenha se aproximado de Sophia com esse tipo de plano...

Surpresa, dei um passo para trás. Nos últimos dias, enquanto lutava com a culpa, pensei em contar tudo para ele. Tinha que falar para alguém, não era o tipo de segredo que o corpo podia manter sem causar nenhum tipo de dano à alma, e, se alguém poderia entender isso, seria Jonathan. Afinal, tinha feito isso por ele. Ele veio me pedir ajuda e eu fiz o que era necessário fazer. Agora precisava ser absolvida pelo que tinha feito; ele me devia essa absolvição, não devia? Mas, enquanto me observava com aqueles olhos negros e determinados, percebi que não podia contar a ele. Não agora, não enquanto ainda estivesse com a tristeza à flor da pele e capaz de ser levado pelas emoções. Ele não entenderia.

— O quê? Não, não tinha plano nenhum. Além disso, por que abordaria Sophia sozinha? — menti. Não tinha intenção de mentir para Jonathan, mas ele me surpreendeu, sua dúvida me atingiu como uma flecha atirada com estranha precisão. Decidi que contaria a ele um dia, mas não naquele momento. Jonathan virou seu chapéu de três pontas nas mãos.

— Acha que devo contar a verdade a Jeremias?

Corri para perto de Jonathan e o chacoalhei pelos ombros.

— Isso seria uma coisa terrível a se fazer, tanto para você quanto para a pobre Sophia. Que bem faria contar a Jeremias agora, exceto apaziguar sua consciência? Tudo que conseguiria seria destruir a imagem que Jeremias tem dela. Deixe-o enterrar Sophia como uma boa esposa, que o honrou.

Ele olhou para minhas mãos pequenas apertando seus ombros, era incomum nos tocarmos agora que já não éramos mais crianças, e então olhou em meus olhos com tanta tristeza que não consegui me controlar. Joguei-me em seu peito e o puxei para mim, pensando somente que ele precisava do conforto de uma mulher naquele momento, mesmo que não fosse Sophia. Não vou mentir e dizer que não encontrei conforto no toque de seu corpo forte e quente contra o meu, apesar de não ter direito a me confortar. Quase chorei de felicidade ao tocá-lo. Segurando seu corpo contra o meu, podia fingir que ele havia me perdoado pelo terrível pecado que tinha cometido contra Sophia, ainda que, obviamente, ele não soubesse de nada.

Mantive minha face em seu peito, ouvindo o bater de seu coração embaixo das camadas de lã e linho e inalando seu cheiro. Não queria soltá-lo, mas o percebi olhando para baixo, para mim, e então também olhei para ele, pronta para ouvi-lo falar novamente de seu amor por Sophia. E, se ele fizesse isso, se dissesse o nome dela, decidi, contaria a ele o que tinha feito. Mas ele não disse; em vez disso, sua boca pousou sobre a minha por um instante antes de me beijar.

O momento pelo qual sempre esperei passou rapidamente. Nós nos enfiamos na proteção da floresta, a alguns passos de distância. Lembro-me do calor maravilhoso de sua boca na minha, de seu desejo e sua força. Lembro-me de suas mãos puxando a fita que fechava minha blusa sobre meus seios. Ele pressionou minhas costas contra uma árvore e mordeu meu pescoço enquanto se debatia com as calças caídas. Ergui minhas saias para que pudesse me possuir, suas mãos em meus quadris. Arrependo-me por não ter dado uma olhada em seu membro por causa de todas as roupas entre nós, casacos e capas, saias e roupas de baixo. Mas eu o senti dentro de mim, de repente, um calor firme e grande enfiado dentro de mim, e ele me possuindo com força, esfregando minha pele no tronco da árvore. E, no final, seu gemido em meu ouvido me fez tremer toda, pois isso queria dizer que ele havia encontrado prazer em mim; eu nunca tinha sido tão feliz e temia que nunca fosse tão feliz novamente.

Cavalgamos juntos em seu cavalo pela floresta, eu segurava firme em volta de sua cintura, como fazíamos quando éramos crianças. Fomos pelas estradas menos percorridas, com medo de sermos vistos juntos sem um acompanhante. Não trocamos nenhuma palavra e mantive meu rosto quente enfiado em seu casaco, ainda tentando entender o que tínhamos feito. Sabia que muitas outras jovens da cidade já tinham se entregado a homens antes do casamento (Jonathan era frequentemente o recebedor) e eu as tinha desprezado. Agora era uma delas. Parte de mim sentia que havia me desgraçado, mas outra parte acreditava que eu não teria outra chance: aquela poderia ter sido minha única oportunidade de capturar o coração de Jonathan e provar que estávamos destinados a ficar juntos. Não poderia deixar passar.

Escorreguei do lombo do cavalo e, depois que ele apertou minha mão, caminhei rapidamente até a cabana de minha família. Todavia, enquanto caminhava, surgiram dúvidas com relação ao que nosso encontro clandestino tinha significado para ele. Ele copulava com as garotas sem pensar nas consequências: por que imaginava que dessa vez ele as mediria? E os sentimentos dele por Sophia, ou minha culpa de tê-la levado a tirar a própria vida? Eu também a havia matado e estava fornicando com seu amante. Com certeza não existia uma alma mais perversa.

Levei alguns minutos antes de continuar meu caminho para casa, para me recompor. Não podia chegar aos pedaços em frente de minha família. Não tinha ninguém com quem conversar sobre isso; teria de manter esse segredo até me acalmar o bastante para poder pensar racionalmente. Escondi tudo: a culpa, a vergonha, o ódio. Mas, mesmo assim, estava repleta de uma trêmula euforia, pois, apesar de não merecer, tinha conseguido o que sempre quis. Expirei, tirei a neve fresca da frente de minha capa, ergui os ombros e caminhei com firmeza o restante do caminho até a casa de meus pais.

 

                   HOSPITAL DO CONDADO DE ARROSTOK, HOJE

Ouvem-se sons no corredor.

Luke olha para o relógio de pulso: 4 horas da manhã. Logo o hospital acordaria. As manhãs são tomadas por ferimentos comuns à vida na fazenda: uma costela esmagada por um coice de uma vaca leiteira, um escorregão num pedaço de gelo durante o carregamento de um fardo de feno, seguidos por uma mudança de turno às 6 horas.

A jovem olha para ele do jeito que um cachorro olha para um dono em quem não confia.

— Vai me ajudar? Ou vai deixar aquele xerife me levar para a delegacia?

— O que mais posso fazer?

O rosto dela se ilumina.

— Você pode me deixar ir embora. Feche os olhos enquanto eu fujo. Ninguém vai colocar a culpa em você. Pode dizer a eles que desceu até o laboratório, me deixou sozinha por um segundo e que eu tinha ido embora quando voltou.

— Joe diz que ela é uma assassina — Luke pensa. — Posso deixar uma assassina fugir?

Lanny pega as mãos dele.

— Já esteve tão apaixonado por alguém a ponto de fazer qualquer coisa por essa pessoa? Que, não interessa o que você queira, o que mais quer nesse mundo é a felicidade dela?

Luke está feliz por ela não poder ver dentro de seu coração, pois nunca fora tão altruísta. Ele era cumpridor de seus deveres, mas nunca fora capaz de se doar sem uma pontada de ressentimento e não gosta de como isso o faz se sentir.

— Não sou uma ameaça a ninguém. Eu disse a você porque eu... fiz o que fiz com Jonathan.

Luke olha dentro daqueles límpidos olhos azuis enchendo-se de lágrimas e sente um arrepio da cabeça aos pés. A dor da perda toma conta dele rapidamente, já que está lá desde a morte de seus pais. Ele sabe que ela está sentindo a mesma tristeza que ele e, por um momento, estão juntos nesse sofrimento. E ele está tão cansado de estar aprisionado ao sofrimento (a perda de seus pais, seu casamento, sua vida inteira) que sabe que deve fazer alguma coisa para se libertar disso, agora ou nunca mais. Não tem certeza por que fará o que está prestes a fazer, mas sabe que não pode pensar senão acabará não o fazendo.

— Espere aqui. Volto logo.

Luke caminha sorrateiramente pelo estreito corredor até a sala de armários dos médicos. Dentro de seu armário cinza amassado, há um par de jalecos, surrados e esquecidos. Ele dá uma busca em outros dois armários e encontra um casaco branco de laboratório, um quepe cirúrgico e, no armário de um pediatra, um par de tênis de corrida tão velhos que chegam a virar para cima nas pontas. Luke leva tudo para a sala de exames.

— Aqui! Vista isso.

Eles fazem o caminho mais curto até o fundo do hospital, enfiando-se pelas passagens dos lixeiros até as docas de embarque na área de serviço. Um enfermeiro, que acaba de chegar para trabalhar, acena para eles quando atravessam o estacionamento, mas, quando Luke acena de volta, sente seus braços duros de ansiedade. Só quando chegam ao estacionamento e param ao lado de sua caminhonete é que Luke se lembra de que deixou as chaves dentro de sua parca na sala dos médicos.

— Droga, tenho que voltar! Não tenho as chaves. Esconda-se no bosque. Já volto.

Lanny balança a cabeça sem dizer nada, arqueada contra o frio que atravessa seu avental de algodão.

A caminhada do estacionamento até a entrada de emergência é a mais longa da vida dele. Luke se apressa por causa do frio e do nervosismo. Judy e Clay já devem ter notado sua ausência. E, se Clay ainda estiver dormindo no sofá, Luke poderá acordá-lo quando entrar na sala para pegar as chaves e, então, será pego. Cada passo fica mais difícil, até que se sente como um esquiador aquático que foi puxado para baixo da superfície após algo terrível ter acontecido com o cabo de reboque.

Ele empurra a pesada porta de vidro, tão nervoso que seus ombros estão quase na altura de seus ouvidos. Judy, no balcão das enfermeiras, franze as sobrancelhas para o computador e nem olha para cima quando Luke passa por perto.

— Onde esteve?

— Fumando.

Agora Judy está prestando atenção, olhando fixamente para Luke com seus olhos de corvo.

— Desde quando voltou a fumar?

Luke sente-se como se tivesse fumado dois pacotes a noite anterior, então o que responde a Judy não lhe parece mentira. Ele decide ignorá-la.

— Clay já acordou?

— Não o vi. A porta da sala continua fechada. Talvez deva acordá-lo; não pode dormir aqui o dia todo. A esposa vai ficar imaginando o que pode ter acontecido com ele.

Luke congela; quer contar uma piada para Judy, para agir como se tudo estivesse normal. No entanto, obviamente Luke nunca contou uma piada para Judy e isso, por si só, seria anormal. Sua incapacidade de mentir e cobrir seus rastros só o deixa ainda mais constrangido. Sente-se como se tivesse caído num lago congelado e Judy o olhasse sem ter nenhuma reação.

— Preciso de café — Luke resmunga, enquanto sai.

A porta da sala está a dois passos de distância. Ele imediatamente vê que ela está entreaberta e a sala está escura. Dá um empurrãozinho e vê claramente o espaço vazio no sofá onde o policial deveria estar.

O sangue sobe até os ouvidos, as glândulas da garganta expandem quatro vezes seu tamanho normal. Não consegue respirar. É pior do que afogamento: ele sente que está sendo estrangulado.

A parca está pendurada à direita, no gancho da parede, esperando para que ele enfie a mão no bolso. O tilintar indica que as chaves estão exatamente onde deveriam estar.

No caminho de volta, sua jornada é direta e objetiva. Com a cabeça para baixo, as mãos enfiadas bem fundo no bolso de seu jaleco, ele decide não seguir pelo corredor de serviço: é muito indireto. Então marcha em direção à entrada de emergência. A cabeça de Judy se levanta quando Luke passa pela estação.

— Pensei que fosse buscar café.

— Esqueci minha carteira no carro — fala sobre o ombro. Está quase na porta.

— Acordou Clay?

— Ele já estava acordado — Luke responde, virando as costas para abrir a porta. E, no final do corredor, lá está o delegado, parecendo ter se materializado com a menção de seu nome. Ele vê Luke de volta e levanta o braço como se tivesse fazendo sinal para o ônibus parar. Clay quer falar com ele e começa a correr pelo corredor em sua direção, acenando com a mão...

— Pare, Luke!

Mas Luke não para. Jogando todo seu peso num golpe dos quadris, Luke fecha a porta de volta. O frio bate em seu rosto quando ele sai do outro lado da porta, voltando à superfície da vida real: “O que estou fazendo? Este é: o hospital onde eu trabalho. Conheço cada tijolo, cadeira de plástico, e cada maca, tanto quanto conheço minha própria casa. O que estou fazendo, jogando minha vida fora para ajudar uma suspeita de assassinato a fugir?”. Mas ele continua, tomado por um estranho borbulhar no sangue, que ricocheteia em suas veias como bolinhas de fliperama, fazendo-o seguir em frente. Ele caminha rápido pelo estacionamento, frenético e desajeitado, como uma pessoa tentando manter-se ereta enquanto desce uma montanha íngreme, sabendo que parece um doido.

Luke dá uma olhada para sua caminhonete, ansioso, mas a garota sumiu, nem um único vestígio do intrigante avental verde-água do hospital. A princípio, ele fica em pânico; como podia ter sido tão estúpido, deixando-a do lado de fora sem ninguém para vigiá-la? Mas uma chama de esperança enche seu peito quando percebe que, se a prisioneira se foi, também se foram suas preocupações.

No minuto seguinte, lá está ela, esguia, etérea, um anjo vestido em roupas de hospital... e seu coração se sobressalta ao vê-la.

Luke se enrola com a ignição enquanto Lanny se abaixa, tentando não olhar e piorar ainda mais o nervosismo do médico. Finalmente o motor pega e a caminhonete deixa o estacionamento, saindo imprudentemente estrada afora.

A passageira olha fixamente para a frente, como se a concentração dela, sozinha, pudesse fazê-los não serem descobertos.

— Estou na hospedaria Dunratty. Sabe onde é?

Luke acha aquilo um absurdo.

— Acha que é sensato irmos até lá? Imagino que a polícia já tenha descoberto onde estava hospedada. Não recebemos muitos turistas nessa época do ano.

— Por favor, só dê uma passada por lá. Se parecer suspeito, seguimos em frente, mas todas as minhas coisas estão lá. Meu passaporte, dinheiro, minhas roupas. Aposto que não tem nada que me sirva.

Ela é menor que Trici.

— Você ganharia a aposta — ele confirma. — Passaporte?

— Vim da França, onde moro. — Ela se curva na ponta do assento como um gato tentando manter o calor do corpo. De repente, sobre o volante, as mãos de Luke parecem estranhamente imensas e trêmulas. Ele está tendo uma experiência fora do corpo, por causa do estresse, e tem que se concentrar para não desmaiar e fazê-los capotar na estrada.

— Devia ver minha casa em Paris. É como um museu, cheia de um monte de coisas que colecionei ao longo de muitos e muitos anos. Quer ir até lá? — Seu tom é tão agradável e acalentador quanto um licor e o convite, fascinante. Ele imagina se ela está falando sério. Quem não desejaria ir a Paris, ficar hospedado numa casa mágica? Luke sente sua tensão diminuir, sua coluna e seu pescoço começam a relaxar.

Há hospedarias de caçadores, como a Dunratty, espalhadas por toda a floresta. Luke nunca se hospedou numa delas, mas se lembra de ter visto o interior de umas duas, quando era criança, no entanto, por algum motivo, não se lembrava agora de quais eram.

Cabanas baratas dos anos 1950, construídas com madeira compensada, cheias de mobília de lojas populares, mofo, linóleo de terceira e cocô de rato. A garota direciona Luke até a última cabana no estacionamento de cascalho do Dunratty; as janelas são escuras e vazias. Ela estende a mão para Luke:

— Me dê um de seus cartões de crédito para ver se consigo abrir a fechadura.

Já do lado de dentro, eles baixam as cortinas e Lanny acende a luz de cabeceira. Há um frio em tudo o que tocam. Os pertences pessoais estão espalhados por todos os lados, abandonados, como se os hóspedes tivessem sido forçados a fugir durante a noite. Há duas camas, mas só uma está desarrumada, os lençóis amassados e os travesseiros marcados, devassos e incriminadores. Um laptop, com uma câmera digital anexada a ele por um fio, encontra-se sobre uma mesa bamba que algum dia já fizera parte de um jogo de cozinha. Garrafas vazias de vinho jogadas na mesa de cabeceira, duas taças com marcas de dedos e lábios.

Duas malas, abertas, estão no chão. Lanny fica de cócoras perto de uma delas, enfiando coisas a esmo dentro dela, incluindo o laptop e a câmera.

Luke balança as chaves, nervoso e impaciente.

A garota fecha o zíper da mala, fica de pé, então se volta para a segunda mala. Ela pega um item de roupa masculino e o segura perto do nariz, inspirando profundamente.

— Ok. Vamos!

Enquanto passam pelo caminho em frente da recepção (com certeza fechada àquela hora da manhã, Dunratty Junior dorme no andar de cima), Luke acha que vê as cortinas vermelhas se mexerem, como se alguém os observasse. Ele imagina Dunratty vestido em seu roupão de banho, caneca de café na mão, ouvindo o som de rodas sobre o cascalho e indo ver quem está passando; será que reconhece minha caminhonete? Luke fica imaginando. “Deixe para lá, não é nada, só um gato na janela ou algo do gênero”, Luke diz a si mesmo. “Não há razão para procurar pelo em ovo.”

Luke fica um pouco nervoso quando a garota troca de roupa enquanto ele dirige, até que se lembra de que já a viu nua. Ela coloca um jeans azul e um suéter de cashmere mais exuberante do que qualquer outra coisa que sua esposa jamais vestira. Ela deixa o avental do hospital cair no chão do carro.

— Você tem um passaporte? — pergunta a Luke.

— Em casa, claro.

— Vamos pegá-lo.

— O quê? Vamos voar para Paris, assim, do nada?

— E por que não? Eu compro as passagens, pago tudo. Dinheiro não é problema.

— Acho que devíamos levá-la até o Canadá, agora, antes que a polícia faça um boletim de ocorrência. Estamos a quinze minutos da fronteira.

— Você precisa do passaporte para atravessar a fronteira? Eles mudaram a lei, não mudaram? — a garota pergunta, com um toque de pânico na voz.

Luke aperta a mão no volante.

— Não sei... não atravesso a fronteira há algum tempo... oh, ok, vamos até minha casa. Só vai levar um minuto.

A casa da fazenda localiza-se no meio de um campo aberto, como uma criança muito estúpida que sabe que deve entrar para sair do frio. Sua caminhonete sobe e bate violentamente na lama remexida, agora congelada em pontas como a cobertura de um bolo.

Pela porta de trás, entram numa cozinha desgastada, que não mudou nos últimos cinquenta anos. Luke acende a luz e percebe que não fez muita diferença na luminosidade do cômodo. Sobre a mesa de jantar, canecas de café usadas e, no chão, migalhas. Ele está absolutamente envergonhado da bagunça.

— Esta era a casa de meus pais. Vivo aqui desde que eles morreram — ele explica. — Não gostei da ideia da fazenda ir parar nas mãos de estranhos, mas não consigo cuidar dela do jeito que eles faziam. Vendi o gado poucos meses atrás. Já tenho uma pessoa para alugar os campos, para plantar na próxima primavera. Parece desperdício deixá-los desocupados.

Lanny se movimenta pela cozinha, passando o dedo sobre o balcão de fórmica lascado e pelo encosto de vinil de uma cadeira de cozinha. Ela para em frente de um desenho pendurado por um ímã na geladeira, feito por uma das filhas dele quando ela ainda estava na pré-escola. Uma princesa em um pônei; o pônei é reconhecível como algum tipo de criatura equina, mas a princesa é uma aproximação, com o cabelo louro enrolado e olhos azuis, usando um vestido cor-de-rosa para cavalgar. Exceto pelo vestido longo, poderia ser Lanny.

— Quem desenhou isso? Tem crianças em casa?

— Não mais.

— Elas foram embora com sua esposa? — ela adivinha. — Ninguém para tomar conta do lugar para você?

Ele dá de ombros.

— Não tem razão nenhuma para ficar — ela diz, afirmando um fato.

— Ainda tenho obrigações — ele responde, porque essa é a maneira como costumava pensar em sua vida: uma fazenda que não conseguirá vender na atual situação da economia, seu consultório e velhos para cuidar, já que seus filhos e netos se mudaram da cidade. Assim, seus pacientes diminuem a cada mês.

Luke sobe as escadas e vai até o quarto. Acha o passaporte na gaveta do criado-mudo. Ele mudou-se para o antigo quarto dos pais depois que sua esposa o deixou: o quarto de sua infância também foi o quarto de seu casamento e ele não queria ter mais nenhuma lembrança relacionada a isso.

Ele abre o passaporte. Nunca o usou. Nunca teve tempo para viajar desde sua residência e só viajara pelos Estados Unidos. Nunca estivera em nenhum dos lugares distantes com os quais sonhava conhecer quando ainda era adolescente e gastava muitas horas sobre o trator, seu horário de sonhar acordado. Seu passaporte vazio o faz sentir-se um pouco envergonhado em frente de alguém que já esteve em todos esses lugares exóticos. Era para a vida dele ter sido diferente.

Ele vai ao encontro de Lanny, na sala de jantar, e ela inspeciona as fotos de família colocadas numa prateleira de livros baixa. Sua mãe tinha essas fotos desde quando conseguia se lembrar, e Luke não tinha coragem de guardá-las, mas a mãe dele era a única que sabia quem eram aquelas pessoas e de que forma se relacionavam com ele. Fotografias em preto e branco, com escandinavos carrancudos, e já mortos havia muito tempo, olhando fixamente, estranhos uns aos outros. Há uma foto colorida, com uma grossa borda de madeira, a foto de uma mulher e suas duas filhas aconchegadas entre os parentes como se fizessem parte deles.

Luke apaga as luzes e ajusta o termostato na temperatura mínima, o suficiente para manter os canos descongelados. Ele verifica as fechaduras das portas, apesar de não saber por que está sendo tão cuidadoso. Planeja voltar assim que deixar a jovem do outro lado da fronteira, mas o toque de sua mão no interruptor de luz fez um nó surgir em sua garganta. É como se estivesse dizendo adeus, o que espera fazer algum dia, do jeito que planejou e imaginou em seus momentos mais conscientes; talvez na primavera, quando consegue pensar com mais clareza, mas agora ele só está ajudando uma jovem em apuros, uma garota sem ninguém a quem possa pedir ajuda. No que diz respeito a hoje, ele volta logo.

— Pronta? — Luke pergunta, balançando as chaves novamente, mas Lanny alcança a prateleira de livros e puxa um pequeno livro, só um pouco maior que a mão dela. Está faltando a contracapa e as capas duras estão gastas nas pontas, de forma que o papel está visível, como um broto dentro do tecido amarelo e desfiado. Leva um minuto para Luke reconhecer o livro: foi seu favorito quando menino e sua mãe deve tê-lo guardado todos esses anos. O templo de Jade, uma clássica lenda infantil, parecido com Kipling, mas não era Kipling: a história de um expatriado britânico, que se passa num local muito distante, com um príncipe chinês e uma princesa europeia, ou uma garota caucasiana, ou qualquer coisa assim, descrita com ilustrações feitas com caneta-tinteiro pelo próprio autor. Lanny folheia as páginas do livro.

— Conhece o livro? — ele pergunta. — Eu o adorava... Bem, dá para perceber pelo uso. A capa quase já era. Acho que não estão mais publicando.

Ela está segurando o livro aberto para ele, apontando para uma das ilustrações. E, pelos diabos, se aquela não era ela! Ela está com um vestido de época e o cabelo está preso num coque, como o das garotas de Gibson, mas aquele é seu rosto ovalado e aqueles são seus olhos levemente arrogantes e distraídos.

— Conheci Oliver, o autor, quando ambos morávamos em Hong Kong. Ele era um mero funcionário civil britânico, na época, e tinha fama de bêbado, implorava para que as esposas dos oficiais posassem para seu “pequeno projeto”, como o chamava. Eu fui a única que concordei em fazê-lo; todo mundo achava que aquilo era escandaloso ou algum tipo de truque, só uma desculpa para levar uma de nós sozinha para o apartamento dele.

Houve uma reviravolta em seu diafragma. Ele sente o coração bater descontroladamente. A garota da ilustração está parada na frente dele em carne e osso e é uma mágica muito estranha ver algo abstrato de repente se manifestar em realidade diante dele. Por um momento, sente medo de desmaiar. Num instante ela está a seu lado, apressando-o na porta.

— Estou pronta. Vamos.

  1. ANDREW, 1816

Consegui o único desejo de meu coração: que Jonathan me tomasse como mulher e como amante, mas nada além disso. Vivia em um estado de incerteza porque não tinha conseguido me comunicar com ele desde aquela tarde nervosa e assustadora.

O inverno tinha interferido.

Não podemos ignorar o inverno em nossa parte do Maine. Atravessávamos nevasca após nevasca, pilha de neve até a cintura durante um ou dois dias, o que inviabilizava qualquer possibilidade de viagem. Toda atenção e energia eram direcionadas a nos mantermos quentes e alimentados, e a cuidar da criação de animais. Qualquer tarefa comum ao ar livre exigia um grande esforço para atravessar a neve, era uma perspectiva exaustiva. Quando conseguíamos limpar um caminho até o estábulo e o pasto, ou aparecia alguma abertura sobre a superfície congelada do rio tanto para os animais quanto para o uso doméstico, e o gado já se acostumava a desviar dos montes de neves levados pelo vento, e tínhamos a impressão de que a vida poderia voltar ao normal (ou, pelo menos, à rotina), outra tempestade de neve caía sobre o vale.

Eu me sentei perto da janela e fiquei olhando para a trilha da charrete, a neve imaculada com quase três metros de profundidade. Rezei fervorosamente para a neve parar e ficar sólida o suficiente para conseguirmos andar sobre ela, assim poderia ir ao culto no domingo, minha única oportunidade de ver Jonathan. Precisava que ele aliviasse meus medos, que não tinha me possuído só porque não podia ter Sophia, mas porque me desejava. Talvez até porque me amasse.

Finalmente, depois de ficar confinada em casa durante dias, a neve derreteu até uma altura passável e meu pai disse que iríamos à cidade no domingo. Enquanto em outras épocas do ano uma notícia como aquela seria encarada com tolerância, talvez indiferença, dessa vez parecia que papai havia nos contado que iríamos a um baile. Maeve, Ghynnis e eu passamos dias em frenesi, decidindo o que usar, como limpar uma mancha de uma camisa adorada e qual de nós arrumaria o cabelo da outra. Até Nevin parecia ansioso pela chegada do domingo, para poder escapar de nossa cabana minúscula.

Meu pai e eu deixamos minhas irmãs, irmão e minha mãe na igreja católica e então nos dirigimos até o corredor da congregação. Meu pai sabia por que ia ao culto com ele, então devia ter uma vaga ideia da razão pela qual eu estava mais ansiosa do que o normal, conforme nos aproximávamos do corredor. E, após o culto, como a neve ainda estava muito alta no jardim público destinado à socialização, a congregação permaneceu do lado de dentro, enchendo os corredores, o saguão de entrada e as escadarias. O ar estava barulhento pela conversa animada das pessoas que estiveram confinadas com suas famílias por muito tempo e ansiavam por falar com pessoas diferentes.

Eu me espremi entre a multidão, procurando Jonathan. Meus ouvidos captavam pedaços de conversas dos vizinhos: quão deprimente e tedioso havia sido o inverno, o quanto todos estavam cansados de comer ervilhas secas no melaço e carne de porco salgada. Por uma janela estreita, consegui enxergar o quintal da igreja e o túmulo de Sophia. A terra havia se acomodado e afundado, e a neve sobre o túmulo nivelou-se alguns centímetros mais abaixo do restante da cobertura, deixando uma irregularidade na paisagem.

Finalmente eu vi Jonathan, também se contorcendo por entre a multidão, parecendo estar procurando por mim. Nós nos encontramos ao pé da escadaria que dava para a frisa, apertados ombro a ombro com nossos vizinhos, cientes de que não podíamos conversar livremente. Alguém poderia ouvir.

— Está encantadora hoje, Lanny. — Jonathan disse, educadamente. Uma colocação sem maldade, podia pensar um abelhudo comum, mas o Jonathan de minha infância nunca havia feito qualquer tipo de comentário sobre minha aparência. Não consegui agradecer o elogio, só fiquei vermelha. Ele se inclinou e cochichou em meu ouvido.

— As últimas três semanas foram insuportáveis. Vá até seu estábulo uma hora antes do pôr do sol esta noite e eu darei um jeito de me encontrar com você lá.

Claro que, nessas circunstâncias, eu não poderia fazer perguntas nem buscar afirmações para as incertezas de meu coração. E, para ser sincera, nada que ele tivesse dito me faria ficar longe dele. Eu ardia de vontade de estar com ele.

Naquela tarde, meus medos foram amainados. Durante uma hora, senti-me o epicentro do mundo dele, tudo o que podia desejar. Seu ser inteiro estava em todos os toques: a maneira como tateava as fitas e os nós que fechavam minha roupa, seus dedos puxando suavemente meu cabelo, até seus beijos em meus ombros nus e arrepiados. Mais tarde, nos aconchegamos um ao outro enquanto voltávamos a nossos corpos e era a glória estar rodeada pelos braços dele, sentir sua pressão em meu corpo, como se ele também não quisesse que nada nos separasse. Nenhuma felicidade se compara à felicidade de se conseguir o que sempre se almejou. Eu estava exatamente onde queria estar, mas agora tinha consciência do passar de cada segundo e como minha família estaria me procurando. Relutante, afastei as mãos dele da minha cintura.

— Não posso ficar. Tenho que voltar... às vezes gostaria que houvesse outro lugar... um lugar para ir que não fosse minha casa.

Tive a intenção de dizer que só queria não ter que deixar o doce refúgio de sua companhia, mas a verdade escapou, uma verdade que mantinha sufocada dentro de mim. Pareceu algo do que me envergonhar, um medo secreto que não queria admitir, mas as palavras haviam escapado e não havia como tomá-las de volta. Jonathan olhou para mim, confuso:

— Por que, Lanny?

— Bem, às vezes sinto que não tenho espaço na minha família. — Eu me senti uma tola tendo que explicar isso a Jonathan, talvez a única pessoa no vilarejo que nunca tinha sofrido de desamor ou jamais se tenha imaginado não merecedor da felicidade. — Nevin é o único filho, então tem um valor inestimável para meus pais e um dia herdará a fazenda. E tem minhas irmãs... bem, elas são tão lindas, todo mundo na cidade as admira pela beleza. As perspectivas para elas são boas. Mas eu... — Não podia dizer, nem mesmo para Jonathan, o motivo de meu medo secreto: que minha felicidade não importava a ninguém, que ninguém se importava comigo, nem mesmo meus pais.

Ele me puxou para perto dele, no feno, e me segurou apertado em seus braços enquanto eu tentava me desvencilhar, não dele, mas de minha vergonha.

— Não aguento ouvir você dizendo essas coisas, Lanny. Bem, você é quem eu escolhi para ficar, não é? A única com quem me sinto confortável, a única pessoa para quem eu me revelo. Passaria a vida toda em sua companhia, se pudesse. Meu pai, minha mãe, minhas irmãs, Benjamin... Eu os deixaria, todos eles, só para estar com você, só nós dois, juntos para sempre.

Claro que acreditei em cada palavra de sua linda homenagem; elas atravessaram minha vergonha e subiram direto até minha cabeça, como um forte gole de uísque. Não se engane com o que digo: na época, ele acreditava me amar e eu tinha certeza da sinceridade dele. Mas agora, com a sabedoria conquistada a duras penas, entendo quão tolos fomos ao proclamar palavras tão perigosas um ao outro! Éramos arrogantes e ingênuos, pensando que o que sentíamos, então, era amor. O amor pode ser uma emoção barata, facilmente oferecida, apesar de que não me parecesse assim naquela época. Em retrospecto, sei que só estávamos tapando os buracos de nossas almas, do jeito que uma onda carrega areia para encher os orifícios de uma praia cheia de pedras. Nós, ou talvez fosse só eu, saciávamos nossas necessidades com o que declarávamos ser amor. Mas, no final, a onda sempre leva de volta aquilo que trouxe.

Para Jonathan, era impossível me dar aquilo que ele dizia ser o seu desejo; ele não poderia abrir mão de sua família ou de suas responsabilidades. Ele não precisava me dizer que seus pais nunca permitiriam que ele me escolhesse como esposa. Mas, naquele início de noite, naquele estábulo frio, eu possuía o amor de Jonathan e, por tê-lo, ficava ainda mais feroz para mantê-lo. Ele declarou seu amor por mim, eu tinha certeza de meu amor por ele, prova de que éramos feitos um para o outro e que, de todas as almas no universo de Deus, estávamos unidos no amor.

Nós nos encontramos dessa maneira só mais duas vezes ao longo dos outros dois meses, um resultado triste para amantes. Em cada ocasião, falamos muito pouco (exceto para ele confessar que tinha sentido minha falta), nos apressando para fazer amor, nossa pressa proveniente do medo de sermos descobertos e também do frio. Despíamos um ao outro o máximo que podíamos e aguentávamos, e usávamos bocas e mãos para apertar, acariciar e beijar. A cada vez, copulávamos como se fosse a última para cada um de nós; talvez intuíssemos um futuro infeliz, hesitante, contando os segundos até sermos envolvidos num abraço de medo. Ambas as vezes também partimos com pressa, o odor dele exalando da parte de baixo de minhas roupas, a umidade entre as minhas pernas e uma queimação em minhas bochechas, que eu esperava ser confundida pela minha família como uma queimadura do frio.

Cada vez que partíamos, no entanto, a dúvida começava a martelar na minha mente. Eu tinha o amor de Jonathan, por ora, mas o que isso significava? Conhecia o passado de Jonathan melhor do que ninguém. Ele também não tinha amado Sophia? Mas eu o fiz esquecer-se dela, ou assim parecia. Podia fingir que ele seria sincero e fiel a mim, escolher ser cega, como muitas mulheres fazem, e esperar que, com o tempo, tudo passasse. Minha cegueira contava com a ajuda de minha teimosa convicção de que um elo de amor era algo vindo de Deus e que não importava quão desagradável, quão improvável ou doloroso, não poderia ser alterado pelo homem. Tinha que ter fé que meu amor triunfaria sobre qualquer imperfeição do amor de Jonathan por mim; o amor, afinal, é fé, e toda fé um dia será testada.

Agora compreendo que somente um tolo busca garantias no amor. O amor demanda tanto de nós que, em troca, tentamos garantir que ele dure. Nós queremos eternidade, mas quem consegue fazer tais promessas? Deveria ter sido feliz com o amor companheiro, constante, que Jonathan teve por mim desde a infância. Aquele amor era eterno. Em vez disso, tentei transformar o sentimento dele por mim em algo que não existia e, nessa tentativa, destruí a única coisa linda e eterna que eu tinha.

Às vezes, as piores marés vêm como calmarias. Um amigo que não aparece no horário de costume e que, logo em seguida, afasta-se da amizade. Uma carta esperada que não chega, seguida, depois de um tempo, por notícias de uma morte precoce. E, no meu caso, naquele inverno, o cessar de meu ciclo menstrual. O primeiro mês; depois, o segundo.

Rezei para que o motivo fosse outro. Amaldiçoei o espírito de Sophia; com certeza ela estava me dando o troco. No entanto, uma vez liberado, o espírito de Sophia não era fácil de ser contido.

Sophia começou a me visitar em meus sonhos. Em alguns deles, o rosto dela aparecia vagamente no meio da multidão, contrariado e acusatório, e então desaparecia. Num sonho recorrente, eu estava com Jonathan e ele me deixava abruptamente, fugindo de mim como se obedecesse a uma ordem silenciosa, ignorando minhas súplicas para ficar. Então, reaparecia com Sophia, os dois caminhando de mãos dadas a distância, Jonathan sem nem se lembrar de mim. Sempre acordava desses sonhos me sentindo ferida e abandonada.

Meu pior sonho me acordava como se estivesse caindo de um cavalo empinado e tinha que sufocar meus gritos ou arriscava acordar minhas irmãs. Os outros sonhos deviam ser minha culpa fazendo truques, mas esse não podia ser nada além de uma mensagem da própria jovem morta. Nesse sonho, eu caminho pelo vilarejo vazio, o vento açoitando minhas costas enquanto percorro a estrada principal. Não há ninguém, nem voz ou som de vida, não há o corte da madeira ou o barulho estridente da bigorna do ferreiro. Logo estou no meio da floresta, branca com a neve, seguindo o Allagash metade congelado. Paro em uma passagem estreita no rio e vejo Sophia em pé, do outro lado. Ela é a Sophia que cometeu suicídio, azulada, o cabelo congelado em tufos, a roupa molhada pesando sobre ela. Ela é a amante esquecida, mofando no túmulo, à custa de quem eu conquistei minha felicidade. Seus olhos mortos pousam em mim e então ela aponta para a água. Nenhuma palavra é dita, mas eu sei o que ela está me dizendo: pule na água do rio e acabe com sua vida e a vida de seu filho.

Não ousava falar sobre minha condição com ninguém de minha família, nem com minhas irmãs, a quem eu era normalmente muito próxima. Minha mãe comentou uma ou duas vezes que eu parecia mal-humorada e preocupada, mas ela zombava que, a julgar pelo meu comportamento, eu deveria estar sofrendo muito com minhas maldições mensais. Se eu tivesse falado com ela sobre minha situação... mas, ai de mim, minha lealdade era a Jonathan. Não podia revelar nosso relacionamento a meus pais sem consultá-lo antes.

Esperava encontrar Jonathan nos cultos de domingo, quando, novamente, a natureza interviu. Muitas semanas já haviam passado antes que os caminhos para a cidade ficassem transitáveis novamente. Até que isso acontecesse, sentia a pressão do tempo sobre mim: se fosse forçada a esperar por muito mais tempo, não poderia manter o segredo. Enquanto estava acordada, rezava a Deus para que me desse a oportunidade de falar com Jonathan logo.

O Senhor deve ter ouvido minhas preces, pois, finalmente, o sol de inverno apareceu em sua plenitude por vários dias seguidos, derretendo uma boa parte da última nevasca. Finalmente, naquele domingo pudemos selar o cavalo, nos cobrir com capas, cachecóis, luvas e cobertores, e nos ajeitar, bem apertados, na parte de trás da charrete para nossa viagem até a cidade.

No vestíbulo da congregação, senti como se as pessoas estivessem me olhando. Deus sabia de minha condição, obviamente, mas eu imaginava que todos na cidade também soubessem. Tinha medo que meu abdômen estivesse começando a crescer e que todos estivessem vendo a protuberância escondida embaixo de minha saia, ainda que fosse muito cedo para isso e, em todo caso, duvidava que alguém fosse notar alguma coisa diferente, com tantas camadas de roupa de inverno. Encostei-me em meu pai e me escondi atrás de uma pilastra durante todo o culto, desejando ser invisível, esperando pela oportunidade de falar com Jonathan no final.

Assim que o pastor Gilbert nos dispensou, saí correndo escada abaixo, sem esperar meu pai. Fiquei em pé no último degrau, esperando Jonathan. Ele logo apareceu e atravessou a multidão em minha direção. Sem dizer uma palavra, peguei firme na mão dele e o levei para trás da escadaria onde podíamos ter mais privacidade. O movimento brusco deixou-o nervoso e ele olhou sobre o ombro para ver se ninguém havia notado que tínhamos nos escondido.

— Pelo bom Deus, Lanny, se está achando que eu poderia lhe beijar aqui...

— Escute, estou esperando um filho.

Ele soltou minha mão e seu lindo rosto passou por várias expressões: choque, surpresa e a palidez trazida pela consciência da realidade. Apesar de não esperar que Jonathan ficasse feliz com as notícias, o silêncio dele me deixou assustada.

— Jonathan, fale comigo. Não sei o que fazer. — Puxei o braço dele. Ele me olhou de lado e, então, limpou a garganta.

— Minha cara Lanny, estou tão perplexo que não sei o que dizer...

— Isso não é o que uma garota quer ouvir numa hora como essa. — As lágrimas enchiam meus olhos. — Diga-me que não estou sozinha, diga-me que não vai me abandonar; diga-me que vai me ajudar a resolver o que fazer daqui para frente.

Ele continuou me olhando, com relutância, e disse secamente:

— Você não está sozinha.

— Não faz ideia do quanto estive assustada, confinada com esse segredo em casa, sem poder falar sobe isso com ninguém. Sabia que tinha que falar com você primeiro, Jonathan. Devia isso a você. — “Fale, fale, era o meu desejo, diga que irá confessar sua parte da culpa a seus pais e que será correto comigo. Diga que ainda me ama, que irá se casar comigo.” Segurei a respiração, lágrimas escorriam pelo rosto, estava quase desmaiando para que ele dissesse essas palavras.

Mas Jonathan não conseguia mais olhar para mim; olhava para o chão.

— Lanny, tem algo que devo lhe falar, mas acredite quando digo que preferiria morrer a ter que compartilhar essa notícia com você agora.

Senti minha cabeça girar e um arrepio de medo percorreu-me como suor.

— O que pode ser mais importante do que eu acabei de lhe contar?

— Fiquei noivo; foi arranjado esta semana. Meu pai está no vestíbulo fazendo o anúncio agora mesmo, mas eu tinha que encontrar você e lhe dizer pessoalmente. Não queria que soubesse por mais ninguém... — As palavras dele foram se perdendo à medida que percebia o pouco que a cortesia significava para mim naquele momento.

Enquanto crescíamos, às vezes trazíamos à tona o fato de que Jonathan não havia sido prometido em casamento. Este negócio de arranjo matrimonial era difícil em uma cidade tão pequena quanto St. Andrew; os melhores pretendentes a noivas e esposos eram fisgados logo cedo, casamentos arranjados para crianças desde 6 anos de idade. Assim, se a família não agisse rápido, poderia não haver boas opções. É de se imaginar que um jovem com toda a riqueza e posição social de Jonathan fosse um candidato atraente para qualquer uma das famílias da cidade que tivessem filhas. E realmente era, mas nunca fora feito um arranjo, nem para ele nem para suas irmãs. Jonathan dizia que era por causa das aspirações sociais de sua mãe: ela achava que nenhuma das famílias da cidade fosse vantajosa o suficiente para seus filhos. Eles com certeza poderiam se sair melhor com os sócios dos negócios do pai dele ou através da rede de contatos da família dela em Boston. Ao longo dos anos, houve enxurradas de propostas, algumas mais sólidas do que outras, mas todas pareciam se extinguir e Jonathan chegara a seus 20 anos sem uma noiva à vista. Senti como se meu estômago estivesse sendo cortado com uma faca de açougueiro.

— Está noivo de quem?

Ele balançou a cabeça.

— Agora não é uma boa hora para falarmos sobre essas coisas. Deveríamos estar falando sobre seu estado...

— Quem é? Eu quero saber! — gritei.

Houve uma hesitação nos olhos dele.

— É uma das garotas McDougal: Evangeline.

Mesmo com minhas irmãs sendo próximas às garotas McDougal, tive dificuldade para me lembrar qual delas era Evangeline, pois havia muitas delas. Os McDougal tinham, ao todo, sete filhas, um bando de pintinhas, todas muito lindas à maneira robusta escocesa, altas e fortes, com cabelo vermelho em cachos soltos e a pele toda coberta de sardas, como as trutas no verão. Também conseguia imaginar a sra. McDougal, prática e de bom temperamento, com seus olhos astutos; talvez mais capaz de que seu marido, um eminente fazendeiro, mas todos sabiam que era a sra. McDougal quem fazia a fazenda dar lucro e quem tinha elevado a reputação deles na cidade. Tentei imaginar Jonathan com uma mulher como a sra. McDougal a seu lado, e quis me jogar a seus pés.

— E você vai prosseguir com o noivado? — perguntei.

— Lanny, não sei o que dizer... Eu sei que eu não posso... — Ele pegou minha mão e me puxou mais para o fundo, num canto empoeirado. — O contrato com os McDougal já foi assinado, o anúncio já foi feito. Não sei o que meus pais pensariam de nossa... situação.

Podia argumentar com ele, mas sabia ser inútil. Casamento era um negócio arranjado, com o intuito de aumentar a prosperidade de ambas as famílias. Uma oportunidade de fidelidade a uma família como a dos St. Andrew não seria jogada fora, pelo menos não por algo tão comum como uma gravidez fora do casamento.

— Dói dizer isso, mas haveria muitas objeções a nosso casamento — Jonathan disse o mais gentilmente possível. Balancei minha cabeça, cansada; ele não precisava me dizer isso. Meu pai podia ser respeitado pelos seus vizinhos por seu bom senso discreto, mas os McIlvraes não tinham nada que nos indicassem como boas pretendentes a esposas, a família sendo pobre e metade, católica praticante. Um pouco depois, perguntei com a voz rouca:

— E Evangeline, ela é a que vem depois de Maureen?

— Ela é a mais nova — Jonathan respondeu. Então, depois de hesitar, completou: — Ela tem 14 anos.

A mais nova, só conseguia pensar naquela menininha que veio nos visitar em casa e fazer amostras de ponto-cruz com Maeve e Glynnis. Ela era uma pequena coisinha branca e cor-de-rosa, uma linda boneca com cachos de cabelo fino e dourado e com uma infeliz inclinação ao choro.

— Então o arranjo está feito, mas a data do casamento, se ela tem só 14 anos, ainda deve estar longe...

Jonathan chacoalhou a cabeça.

— O velho Charles quer que nos casemos no outono, se possível. Até o final do ano, sem falta.

Eu dei voz ao óbvio.

— Ele está desesperado para que você perpetue o nome da família.

Jonathan passou os braços em volta de meus ombros, me segurando, e desejei poder me ancorar em sua força e calor para sempre.

— Diga, Lanny, o que você gostaria que fizéssemos? Diga e farei o que puder. Quer que conte a meus pais e peça a eles para me tirarem do contrato de casamento?

Uma tristeza fria tomou conta de mim. Ele disse o que eu queria ouvir, mas podia ver que estava com medo da resposta. Apesar de não querer se casar com Evangeline, agora que o inevitável fora arranjado, ele tinha se conformado com isso. Ele não queria que eu aceitasse sua proposta. E, com toda certeza, seria um fracasso de qualquer maneira: eu não era aceita. Seu pai podia querer um herdeiro, mas a mãe dele insistira em um herdeiro concebido dentro do casamento, um garoto nascido livre e fora de um escândalo. Os pais de Jonathan insistiriam para que ele se casasse com Evangeline McDougal e, uma vez que a notícia de minha gravidez se espalhasse, eu estaria arruinada.

Havia outro jeito. Já não havia dito a Sophia a mesma coisa, meses antes? Apertei a mão de Jonathan.

— Posso ir até a parteira.

Um olhar de gratidão alegrou seu rosto.

— Se é isso o que quer.

— Vou arranjar um modo de visitá-la assim que puder.

— Posso ajudar com as despesas — ele disse, remexendo no bolso. Colocou uma grande moeda em minha mão. Fiquei enojada e resisti à vontade de estapeá-lo no rosto, mas sabia que era só raiva. Depois de olhar para a moeda por um momento, puxei-a para dentro de minha luva.

— Sinto muito — ele murmurou, beijando-me na testa.

Estavam chamando Jonathan, seu nome ecoando no cavernoso vestíbulo da congregação. Ele saiu para atender aos chamados antes que nos descobrissem juntos e eu subi as escadas, arrastando-me até o andar de cima, para ver o que estava acontecendo.

A família de Jonathan estava em pé no corredor, ao lado do recinto especial, o mais próximo do púlpito, como lugar de honra. Charles St. Andrew estava na ponta do corredor, braços levantados enquanto fazia o anúncio, mas parecia mais abatido do que o normal. Ele estava desse jeito desde o último outono, disseram que era exaustão ou muito vinho (no mínimo poderia ser uma combinação de muito vinho e muita vadiagem com as criadas). Mas era como se, de um dia para o outro, ele tivesse ficado mais velho, mais grisalho e enrugado. Ele se cansava com facilidade, caindo no sono na congregação assim que o pastor abria a Bíblia. Já não se importava mais em frequentar as reuniões do conselho da cidade e mandava Jonathan em seu lugar. Na época, nenhum de nós podia adivinhar que ele estava morrendo. Ele tinha criado a cidade com as próprias mãos; era indestrutível, o corajoso desbravador das fronteiras, o visionário homem de negócios. Olhando para trás, foi provavelmente por essa razão que ele pressionou Jonathan a se casar e começar a produzir herdeiros: Charles St. Andrew sentia que seu tempo estava acabando.

Os McDougal vinham apressados pelo corredor para se juntarem a ele no anúncio oficial; sr. e sra. McDougal, como um casal de patos nervosos seguidos pelas suas patinhas, em fila, mais ou menos em idade descendente. Sete garotas, algumas devidamente arrumadas e com laços, outras com os cabelos soltos e desgrenhados, com uma barra de renda aparecendo de seus vestidos.

E, bem atrás, o bebê da família, Evangeline. Ao vê-la, um nó se formou em minha garganta: ela era tão linda! Ao contrário de uma garota abrutalhada de fazenda, Evangeline estava começando a atravessar a fronteira entre a criança e a mulher. Era graciosa e esguia, com os seios e quadril brotando modestamente, e lábios de querubim. Seu cabelo continuava dourado e caía nas costas em longos cachos. Era evidente porque a mãe de Jonathan escolhera Evangeline: ela era um anjo enviado à Terra, uma figura celeste que merecia as atenções de seu filho mais velho.

Poderia ter caído no choro lá na igreja. Em vez disso, mordi meu lábio e assisti quando ela passou por Jonathan, dando-lhe seu cumprimento mais tímido, olhando rapidamente para ele por debaixo da boina. E ele, pálido, cumprimentou-a de volta. A congregação inteira acompanhou essa troca instantânea e compreendeu o que havia sido trocado entre os dois jovens num piscar de olhos.

— Já era hora de acharem uma esposa pra ele — alguém atrás de mim murmurou. — Talvez agora ele pare de correr atrás das moças como um cão no cio.

— Um escândalo, eu acho! A menina não passa de uma criança...

— Fique quieta, a diferença entre eles não passa de seis anos, e muitos maridos são mais velhos que as mulheres muitos anos mais do que isso...

— É verdade, em alguns anos não fará diferença, quando ela tiver 18 ou 20. Mas 14! Pense em sua filha, Sarabeth, gostaria de vê-la casada com esse garoto St. Andrew?

— Não, pelo amor de Deus!

Embaixo, o restante das garotas McDougal formava uma corrente solta ao redor de Jonathan e seus pais, enquanto Evangeline permanecia em pé, tímida, um passo atrás de seu pai. “Agora não é hora de ser recatada”, pensei na época, tentando ouvir o que estava sendo dito embaixo. “Você é aquela com quem ele se casará. Esse homem maravilhoso será seu marido, a levará para a cama todas as noites. É difícil dar seu coração a um homem como esse, mas deve provar que está à altura do desafio. Vá e fique ao lado dele.” Algum tempo depois, após muita insistência de seus pais, ela saiu desajeitadamente de trás do pai, como um potro recém-nascido tentando usar as pernas pela primeira vez. Foi quando ficaram lado a lado que me dei conta: ela ainda era uma criança. Ele parecia uma torre, tão maior do que ela. Imaginei os dois deitados juntos na cama, parecia que ele podia esmagá-la. Ela era pequena e tremia como vara verde cada vez que ele lhe dava atenção.

Ele pegou-lhe a mão e se aproximou dela. Havia algo galanteador nesse gesto, quase protetor. Mas, então, Jonathan inclinou-se e a beijou. Não era um beijo comum, aquele que eu já guardava em minha memória, aquele tão forte a ponto de sentir até a ponta dos dedos dos pés. Entretanto, ele havia dado o sinal de que aceitara o contrato de casamento beijando-a na frente das famílias e da congregação. E na minha frente.

Então, entendi a mensagem de Sophia no sonho: ela não tentava me encorajar a me matar em troca do que eu lhe fizera. Ela estava me dizendo que teria uma vida de decepções diante de mim se continuasse a amar Jonathan como eu amava, do jeito que ela amou. Um amor muito forte pode transformar-se em veneno e trazer muita infelicidade. Mas qual o remédio? Alguém pode desfazer o desejo de um coração? É possível deixar de amar alguém? “Mais fácil se afogar”, era o que Sophia parecia me dizer; melhor me matar por amor.

Tudo isso reverberava em minha mente enquanto assistia à cena, do balcão, lágrimas nos olhos, meus dedos apertando a madeira do corrimão. Eu estava no andar de cima da congregação, alto o suficiente para dar o salto do amante. Mas não fiz nada; até mesmo nessa hora tinha consciência do bebê dentro de mim. Em vez disso, dei as costas e corri escada abaixo, para me afastar daquela cena desoladora.

 

Voltei da igreja para casa em silêncio, na charrete com meu pai. Ele me olhava, enrolada em minha capa e cachecol, mas ainda tremendo e batendo os dentes apesar de o sol de inverno ter saído e nos banhar de luz. Ele não disse nada, sem dúvida atribuindo minha aparência doentia e reticência às notícias do acordo de casamento de Jonathan. Paramos na dilapidada igreja católica e encontramos minha mãe, irmãs e Nevin esperando na neve, com os lábios azuis e reclamando por estarmos atrasados enquanto subiam na charrete.

— Fiquem quietos, temos uma boa razão para o atraso — meu pai disse a eles em um tom que significava que ele não toleraria bobagem. — O arranjo de casamento de Jonathan foi anunciado hoje depois do culto. — Em consideração, não houve comemoração entre eles, somente olhares de minhas irmãs e uma piada: “Tenha piedade da garota, quem quer que seja”, vinda do meu irmão.

Quando chegamos à fazenda, Nevin desarreou o cavalo, meu pai foi verificar o gado e minhas irmãs aproveitaram o dia ensolarado para cuidar das galinhas. Segui minha mãe, sem rumo, para dentro de casa. Ela ia de um lado para o outro na cozinha, preparando-se para fazer a refeição da noite, enquanto eu me sentei numa cadeira em frente da janela, ainda com a capa. Minha mãe não era tola.

— Quer uma caneca de chá, Lanore? — ela perguntou da lareira.

— Tanto faz — eu disse com cuidado, para esconder o tom de tristeza de minha voz. De costas para ela, ouvia o tilintar das panelas pesadas penduradas no gancho sobre o fogo e o jorrar da água que caía do balde de água recolhida.

— Posso ver que está chateada, Lanore. Mas você sabia que esse dia chegaria — ela disse de uma vez, firme, mas gentilmente. — Sabia que um dia o mestre Jonathan se casaria, assim como você. Nós lhe avisamos que uma amizade tão forte com um garoto não era aconselhável. Agora consegue entender por quê.

Deixei uma lágrima cair, já que ela não podia me ver. Senti-me fraca, como se tivesse sido atropelada e pisoteada por um dos touros no pasto. Precisava da ajuda de alguém; naquele momento, sentada ali, sabia que morreria se tivesse que carregar esse segredo comigo por mais tempo. A questão era: poderia confiar em minha família?

Minha mãe sempre fora boa para nós, seus filhos, nos defendendo quando a rigidez de meu pai resultava numa dura punição. Ela era uma mulher e tinha estado grávida seis vezes, com dois bebês enterrados no cemitério da igreja; com certeza entenderia como eu me sentia e me protegeria.

— Mãe, tenho algo que devo lhe dizer, mas estou com muito medo de como vão reagir, a senhora e meu pai. Por favor, prometa-me que vão continuar me amando depois que disser o que tenho a dizer — eu disse com a voz trêmula.

Ouvi um grito abafado escapar de minha mãe, seguido pelo som de uma colher caindo no chão, e sabia que não precisava dizer mais nada. Apesar de todos os seus conselhos, de todas as suas súplicas e críticas incessantes, seu pior medo tinha se tornado realidade.

 

Pediram a Nevin que arreasse o cavalo à charrete novamente e que fosse com minhas irmãs até a casa de Dale, do outro lado do vale, e que ficassem lá até que meu pai viesse buscá-los. Fiquei sozinha com meus pais em casa, sentada num banquinho no meio da sala enquanto minha mãe chorava suavemente para si, perto do fogo, e meu pai andava pesadamente a meu redor.

Nunca vira meu pai tão enfurecido. Seu rosto estava vermelho e inchado, suas mãos, brancas de tanto apertar os pulsos. A única coisa que não permitia que ele me desse um soco eram as lágrimas que escorriam pelo meu rosto.

— Como pôde fazer isso? — meu pai esbravejava. — Como pôde ter se entregado ao garoto St. Andrew? Você não é melhor do que uma vagabunda qualquer? O que deu em você?

— Ele me ama, pai.

Minhas palavras eram provocação demais para meu pai; ele deu um golpe e me acertou com força no meio da face. Até mesmo minha mãe segurou a respiração, surpresa. A dor espalhou-se rapidamente pela mandíbula, mas foi a crueza de sua raiva que me deixou estupefata.

— Foi isso o que ele lhe disse? E você foi suficientemente estúpida para acreditar nele, Lanore?

— Está enganado. Ele realmente me ama...

Ele puxou o braço para me acertar pela segunda vez, mas parou.

— Não acha que ele disse a mesma coisa para que todas as garotas se entregassem ao desejo dele? Se os sentimentos dele são verdadeiros, por que prometeu casamento à garota McDougal?

— Não sei — engasguei, limpando as lágrimas do rosto.

— Kieran — minha mãe disse, firme —, não seja cruel!

— É lição difícil — meu pai respondeu a ela, olhando sobre o ombro. — Tenho pena dos McDougal e da pequena Evangeline, mas não teria um St. Andrew como genro.

— Jonathan não é um homem mau — protestei.

— Ouça o que está dizendo! Defendendo o homem que deixou você grávida e não tem a decência de estar aqui a seu lado, dando a notícia à sua família — meu pai urrou. — Aposto que o canalha sabe de seu estado...

— Sabe.

— E o capitão? Acha que ele teve coragem de contar ao pai?

— Eu... não sei.

— Duvido — afirmou meu pai, voltando a andar, seus saltos tilintando alto no chão de tábua de pinho. — E é melhor assim. Eu não quero ter parte naquela família. Está me ouvindo? Não quero! Já tomei minha decisão, Lanore: vou mandá-la embora para ter o bebê. Para bem longe. — Ele olhou fixamente para a frente, nem um piscar de olhos em minha direção. — Vamos mandá-la para Boston em algumas semanas, quando já pudermos passar pela estrada, para um lugar onde poderá ter seu bebê. Um convento. — Ele olhou para minha mãe, que olhava para as mãos dela enquanto assentia com a cabeça. — As irmãs encontrarão um lar para ele, um bom lar católico, para apaziguar o coração de sua mãe.

— Vão tirar meu filho de mim? — Comecei a me levantar do banquinho, mas meu pai me empurrou de volta.

— Claro que sim. Não pode trazer sua vergonha de volta com você para St. Andrew. Não vou permitir que meus vizinhos saibam que você é mais uma das conquistas de St. Andrew.

Comecei a chorar de novo, copiosamente. O bebê seria tudo o que eu teria de Jonathan; como poderia abrir mão dele? Minha mãe caminhou até mim e tomou minhas mãos nas dela.

— Deve pensar em sua família, Lanore. Pense em suas irmãs. Pense na vergonha se a notícia se espalhar pela cidade. Quem iria querer que seus filhos se casassem com suas irmãs depois de uma desgraça como essa?

— Acho que meus fracassos não deveriam refletir em minhas irmãs — disse, roucamente, mas sabia da verdade. Os cidadãos honrados fariam minhas irmãs e meus pais sofrerem por minhas falhas. Ergui a cabeça. — Então, não vai contar ao capitão sobre meu estado?

Meu pai parou de andar e virou o rosto para mim.

— Não darei ao velho canalha a satisfação de saber que minha filha não resistiu ao filho dele. — Ele chacoalhou a cabeça. — Pode pensar o pior de mim, Lanore. Rezo para estar fazendo a coisa certa por você. A única coisa que sei é que devo tentar salvá-la da própria ruína.

Não senti nenhuma gratidão. Egoísta como era, meu primeiro pensamento não foi para minha família nem para sua dor, mas para Jonathan. Seria forçada a deixar minha casa e nunca veria Jonathan de novo. A ideia me perfurava como uma lâmina em meu coração.

— Tenho mesmo que ir? — perguntei, a miséria aquebrantando minha voz. — Por que não posso procurar uma parteira? Poderia ficar; ninguém saberia de nada.

O olhar frio de meu pai feriu-me mais profundamente do que se tivesse sido esbofeteada de novo.

— Eu saberia, Lanore. Eu saberia e sua mãe saberia. Algumas famílias podem concordar, mas... nós não podemos deixá-la fazer isso. Seria um pecado monstruoso, ainda pior do que o que você já cometeu.

Assim, eu não era só uma filha má e um brinquedinho dos desejos de Jonathan, mas, em meu coração, também era uma assassina impiedosa. Naquele momento, queria morrer, mas só a vergonha não era suficiente para isso.

— Entendo — disse, limpando a umidade fria de meu rosto, determinada a não chorar mais na frente de meu pai.

Ah, que vergonha e que medo senti aquela noite! Hoje, em retrospecto, parece ridículo ter me sentido tão culpada, tão amedrontada. Mas, naquele tempo, eu era só mais uma vítima da propriedade, tremendo e chorando na casa de meus pais, esmagada pelo peso de suas ordens. Uma pobre alma prestes a ser exilada num mundo cruel. Levou muitos anos até que eu me perdoasse. Na época, pensei que minha vida tinha terminado; meu pai me considerava uma prostituta e um monstro, e estava me mandando embora do único lugar com que me importava. Não conseguia imaginar como minha vida prosseguiria.

 

O pior do inverno passara; os dias curtos e escuros diminuíam e o céu, quase sempre encoberto, da cor de pano de chão velho, começava a se iluminar. Imaginava se eu também estava mudando visivelmente, com um bebê dentro de mim, ou se as mudanças em meu corpo estariam todas na minha mente. Afinal, sempre fora magra e, no meu martírio, perdi todo o apetite. Minhas roupas não me serviam, como eu esperava, mas talvez essa fosse a única culpa pairando em minha imaginação. Em alguns momentos, também imaginava se Jonathan pensava em mim, se sabia que eu ia ser mandada embora e sentia-se mal por ter me abandonado. Talvez ele tenha assumido que eu fizera o que havia prometido, ido à parteira e me limpado; talvez tivesse se distraído com a aproximação do casamento. Eu não tinha como saber: não podia mais ir aos cultos de domingo, tiraram-me a única possibilidade de ver Jonathan.

Os dias passaram em entristecida mesmice. Meu pai me mantinha ocupada o tempo todo, do momento em que levantávamos na semiescuridão do novo dia até encostar minha cabeça no travesseiro à noite. O sono não trazia trégua, pois frequentemente sonhava com Sophia levantando-se do Allagash congelado; em pé, como uma nuvem de fumaça no túmulo; rondando minha casa na escuridão, como um fantasma desassossegado. Talvez seu fantasma se confortasse com meu sofrimento.

Ajoelhei-me ao lado da cama, preparando-me para dormir, e imaginei se seria blasfêmia pedir a Deus para retirar de mim aquele pecado. Se ser banida era minha punição pelos meus abomináveis pecados, não deveria aceitar meu fardo em vez de pedir clemência a Deus?

À medida que o inverno amainava e o dia de minha partida se aproximava, minhas irmãs ficavam cada vez mais tristes. Passavam o máximo de tempo que podiam comigo, não falando sobre a minha partida, mas sentando-se comigo, me abraçando, pressionando a testa na minha. Trabalharam avidamente com minha mãe para remendar meu guarda-roupa, para eu não parecer tão rústica, e até me fizeram uma nova capa com a lã que sobrara da primavera anterior.

O inevitável não seria postergado para sempre e, uma noite, quando a neve derretida já tinha realmente se assentado no vale, meu pai me disse que as providências já haviam sido tomadas. Eu partiria no domingo seguinte, na charrete do dono do armazém, acompanhada pelo tutor da cidade, Titus Abercrombie. Da Ilha Presque, iríamos viajar em uma charrete até Camden e, de lá, embarcaríamos num navio até Boston. O único baú da família foi arrumado com meus pertences e deixado ao lado da porta, um papel com o nome de todos os meus contatos (capitão do navio, madre superiora do convento) costurado dentro do forro de minha roupa de baixo, junto com todo o dinheiro de que minha família dispunha. Minhas irmãs passaram aquela noite em nossa cama larga, enroscadas comigo; não queriam que eu partisse.

— Não entendo por que nosso pai está mandando você embora.

— Ele não quis me ouvir, por mais que eu implorasse.

— Sentiremos sua falta.

— Algum dia a veremos de novo? Virá para o nosso casamento? Ficará a nosso lado no batismo de nossos bebês? — Essas perguntas também me trouxeram lágrimas aos olhos. E eu as beijei gentilmente na testa e as abracei bem forte.

— Claro que me verão de novo. Ficarei fora só por um tempinho. Chega de lágrimas, hein? Tanta coisa acontecerá enquanto eu estiver fora que vocês nem sentirão minha falta. — Elas gritaram em negativa e prometeram pensar em mim todos os dias. Eu deixei que chorassem até a exaustão e fiquei acordada o restante da noite, tentando encontrar paz nas últimas horas antes do amanhecer.

Quando chegamos, os condutores estavam arreando os cavalos e amarrando-os às charretes, agora vazias, já que, um dia antes, haviam entregado montes de mercadorias secas (farinha, rolos de tecido, agulhas, chá) na loja dos Waldorf. Três grandes charretes e os seis homens parrudos fizeram os últimos ajustes nos arreios e observavam, encabulados, minha família se reunir a meu redor. Abracei minhas irmãs e minha mãe com força, lágrimas escorrendo pelo meu rosto. Meu pai e Nevin ficaram de lado, emburrados e insensíveis. Um dos condutores tossiu, relutante em me chamar, mas ansioso para sair no horário.

— Hora de partir — meu pai disse. — Meninas, para dentro da charrete. — Ele esperou que minha mãe me abraçasse uma última vez, enquanto Nevin ajudava o condutor a colocar o baú dentro da carroceria. Meu pai virou-se para mim e disse:

— Esta é sua oportunidade de se redimir, Lanore. Deus achou por bem lhe dar outra chance, então, não seja estúpida para com a beneficência dele. Sua mãe e eu iremos rezar para parir seu filho com segurança, mas nem pense em recusar a ajuda das freiras que levarão a criança para outra família. Eu ordeno que não fique com a criança e, se resolver não cumprir minhas ordens, melhor nem voltar para St. Andrew. Se não se transformar em uma cristã digna e temente a Deus, não quero nunca mais ouvir falar de você.

Estupefata, fui até a charrete; Titus esperava por mim. Com uma dignidade cavalheiresca, ele me ajudou a subir até o banco ao lado dele.

— Minha querida, será um prazer acompanhá-la até Camden — ele disse num tom rígido e formal, mas amigável, um tom do qual Jonathan fazia piada. Eu não conhecia Titus muito bem, já que nunca tivera aulas com ele, e só tinha as histórias de Jonathan como referência para julgá-lo. Ele era um cavalheiro mais velho, mais para delicado, com a constituição de um professor: braços e pernas curvados, uma barriguinha protuberante que crescera com o passar dos anos, já perdera a maioria dos cabelos e, os que sobraram, estavam grisalhos, deixando sua cabeça calva com uma franja fina, no estilo de Benjamin Franklin. Ele era um dos poucos homens na cidade que usava óculos, uma fina armação de metal que fazia seus pálidos olhos cinza parecerem ainda menores e mais lacrimejantes. Titus passava os meses de verão em Camden ensinando, em latim, os filhos de seus primos, em troca de seu sustento, já que todos os seus alunos de St. Andrew trabalhavam nas fazendas da família até a escola recomeçar, no outono.

Quando a charrete pôs-se a andar, chorei copiosamente, respondendo, entre lágrimas, aos acenos frenéticos de minha mãe e de minhas irmãs.

À medida que a cidade ia ficando para trás, a dor em minha garganta e em meu coração se intensificava; observava o único lugar que conhecera desaparecer na distância e dizia adeus a todos e a ele, o único que sempre amaria.

                     ESTRADA DE FORT KENT, HOJE

O cruzamento da fronteira não está muito longe. Apesar de Luke, há anos, não dirigir por ali, desde que levara a família para umas férias desastrosas pela trilha dos Montes Apalaches, tem certeza de que ainda consegue encontrá-la sem consultar o mapa. Ele passa por algumas estradas secundárias, mais lentas e demoradas, mas imagina que assim terão menor possibilidade de se encontrar com soldados da Cavalaria ou outros policiais; há poucos deles para patrulhar rotas secundárias ou se preocupar com cidadezinhas. A estrada, é aí que mora o problema, com os carros em alta velocidade, os caminhões com excesso de peso e o dinheiro que vem das infrações, é que traz lucro para o governo.

Ele coloca em ponto morto, aperta o volante e dirige com uma mão só. A passageira olha fixa e aleatoriamente para a estrada diante deles, mordendo o lábio inferior. Ela parece ainda mais uma adolescente, escondendo a preocupação embaixo de um véu de impaciência.

— Então — ele diz, tentando quebrar o gelo entre eles. — Se importa se eu fizer algumas perguntas?

— Fique à vontade.

— Pode me dizer como se sente sendo o que você é?

— Não sinto nada de especial.

— Verdade?

Ela se encosta no banco e coloca o cotovelo no apoio de braço.

— Não me sinto diferente, pelo menos não que eu consiga me lembrar. Não percebo mudanças no dia a dia, não da maneira que faça diferença. Não é que eu tenha superpoderes ou coisas do tipo. Não sou um personagem de uma história em quadrinhos. — Ela olha para ele para mostrar que não achou a pergunta idiota.

— Aquilo que você fez na sala de emergência, se cortar... doeu?

— Na verdade, não. A dor é pequena, fica só um pouco dormente, talvez como numa cirurgia depois de uma pequena dose de anestesia. Só a pessoa que fez você assim pode machucá-lo, realmente fazê-lo sentir dor. Já faz tanto tempo que quase me esqueci de como é sentir dor.

— Uma pessoa fez isso com você? — Luke pergunta, incrédulo. — Como aconteceu?

— Vou chegar lá — ela responde ainda sorrindo. — Seja paciente.

A revelação de que este milagre tenha sido feito por um homem quase deixa Luke tonto, como se de repente olhasse uma paisagem de uma perspectiva diferente. Parece ainda mais impossível, uma chance ainda maior de ser uma mentira de uma mulher bela e manipuladora.

— Bem — ela continua —, sou praticamente a mesma coisa que era, exceto que não fico cansada. Não me canso fisicamente, só emocionalmente.

— Depressão?

— Sim, provavelmente é isso e existem muitos motivos para sê-lo, eu acho. Em geral, só acontece de vez em quando, principalmente quando penso na futilidade de minha vida, de não ter outra alternativa a não ser viver um dia após o outro. E me pergunto qual é a razão de enfrentar tudo isso sozinha, senão me fazer sofrer, ser lembrada pelas coisas ruins que fiz ou pela maneira que devo ter tratado as pessoas. Não que eu possa fazer alguma coisa sobre o assunto. Não posso voltar no tempo e desfazer os erros que cometi.

Essa não era a resposta que ele esperava. Ele muda a posição da mão no volante enquanto passam por cima de um trecho de macadame.

— Quer que eu receite alguma coisa a você?

Ela ri.

— Antidepressivos? Não acho que fariam efeito em mim.

— Os remédios não fazem efeito em você?

— Vamos dizer que tenho uma tolerância bastante alta. — Ela se vira e passa a olhar pela janela. — Às vezes, a obliteração é a única forma de esquecimento.

— Obliteração, quer dizer, álcool? Drogas?

— Podemos parar de falar sobre isso? — A voz dela estremece no final.

— Claro. Está com fome? Provavelmente já faz tempo que você comeu. Quer parar para comer uma coisinha? Tem um lugar que faz sonhos perto de Fort Kent...

Ela balança a cabeça em desacordo.

— Não sinto mais fome; posso passar semanas sem pensar em comer ou beber, na verdade.

— E dormir? Sente vontade de dormir?

— Também não durmo muito. Simplesmente me esqueço disso. Afinal, a melhor parte de dormir é ter alguém a seu lado, não é? Um corpo quente, um peso contra seu corpo. É muito reconfortante, não acha? Como a respiração entra no ritmo, se sincroniza. É o paraíso.

“Isso queria dizer que não havia um homem em sua cama nos últimos tempos?”, Luke se pergunta. Então, o que significava o homem morto no necrotério, os lençóis amassados no quarto? Ou talvez ela o estivesse enganando, escondendo o que realmente era.

— Você sente falta de ter sua esposa na cama com você? — ela pergunta depois de um momento, provocando-o.

Claro que ele sentia, apesar de sua ex-esposa ter o sono leve, dormir pouco e, frequentemente, acordá-lo aos solavancos quando tentava se acomodar na cama ou quando estava sonhando. Ele adorara vê-la adormecida na cama quando chegava em casa depois de uma longa noite no hospital, seu corpo esguio e elegante enrolado nas cobertas, as curvas suaves se delineando para cima e para baixo, os cabelos dourados emaranhados em sua cabeça, a boca ligeiramente aberta; havia algo mágico em observá-la sem que soubesse. A memória dessas cenas íntimas fizeram crescer um nó na garganta dele.

— Quanto tempo faz que ela foi embora? — Lanny pergunta.

Ele dá de ombros.

— Quase um ano, agora. Ela vai se casar com o namorado de infância; voltou para Michigan, levou nossas duas filhas.

— Isso é... terrível. Sinto muito!

— Não desperdice sua simpatia comigo. Parece que você está passando por algo muito, muito pior. — Ele tem a mesma sensação de novo, a mesma que sentiu fora do necrotério, uma sensação de desorientação diante do confronto da história dela com o mundo que conhece. Como ela poderia estar falando a verdade?

Enquanto faz uma curva para a direita, ele pensa ter visto a luz de um carro de patrulha preto e branco no espelho retrovisor. Será que os tinham seguido o tempo todo, Luke se pergunta, e ele não percebera? Será que a polícia estava atrás deles? A ideia causa um desconforto diferente para um homem que nunca teve nenhum tipo de problema com a lei.

— O que é? — Lanny pergunta de repente, ajeitando-se. — Aconteceu alguma coisa, posso ver na expressão de seu rosto.

Luke mantém o olhar no espelho retrovisor.

— Fique calma. Não quero que se assuste, mas acho que estamos sendo seguidos.

                                             BOSTON, 1817

A viagem para o sul, na charrete do comerciante, durou duas semanas. Foi beirando a ponta leste da Floresta Great North, longe o bastante do Monte Katahdin para nos impedir de ver os picos cobertos de neve, até chegarmos ao rio Kennebec, que seguimos até Camden. Fora uma viagem solitária; se essa parte do estado já não é muito povoada hoje, era praticamente vazia naquela época. Passamos por caçadores e às vezes acampávamos com eles durante a noite, os condutores das charretes ansiosos para ter com quem dividir uma garrafa de uísque.

Os caçadores que encontrávamos eram geralmente franco-canadenses e quase sempre estoicos ou estranhos, o ofício cabendo àqueles que eram ou ermitões, ou independentes fervorosos. Alguns deles me pareciam meio loucos, balbuciando para si mesmos de um modo esquisito enquanto limpavam e lubrificavam as ferramentas antes de começarem a trabalhar na caça que haviam pegado. Animais congelados eram colocados ao lado das fogueiras até descongelarem e ficarem maleáveis o suficiente; então, os caçadores sacavam suas facas de lâminas finas e começavam a arrancar a pele. Olhar os homens arrancarem a pele revelando-se os corpos molhados e vermelhos me deixava enjoada e desconfortável. Sem vontade de me sentar com eles, eu escapava de volta para a charrete com Titus e deixava os condutores dividirem a bebida com os caçadores no abraço morno da fogueira.

Embora estivesse infeliz com meu exílio, sempre quis conhecer um pouco do mundo fora do vilarejo. St. Andrew podia não ser sofisticada, mas eu a considerava civilizada em comparação com outros lugares do território, que eram, na maioria, despovoados. Com exceção dos caçadores, vimos poucas pessoas durante nossa jornada a Camden. Os índios, que eram nativos da área, já tinham se mudado anos antes, apesar de alguns continuarem vivendo nos assentamentos brancos ou trabalharem para os caçadores. Havia lendas sobre colonizadores que haviam se transformado em nativos, deixando suas cidades para montar acampamentos como os índios, mas eram poucos e geralmente desistiam durante o primeiro inverno.

A viagem pela Floresta Great North prometia ser escura e misteriosa. O pastor Gilbert nos avisara sobre espíritos malignos que ficavam à espreita, esperando os viajantes. Os lenhadores diziam ter visto trolls e duendes, o que era esperado, pois a maioria deles vinha de terras escandinavas onde essas figuras folclóricas são comuns. A Floresta Great North representava o selvagem, a parte da terra que resistia à influência dos homens. Entrar nela era se arriscar a ser devorado, voltar às origens do homem selvagem que ainda vivia em cada um de nós. Em público, a maioria das pessoas de St. Andrew não dava muita atenção a essa conversa, mas era raro ver uma alma entrar na floresta, sozinha, durante a noite.

Alguns dos condutores gostavam de assustar uns aos outros contando histórias ao redor da fogueira, histórias de fantasmas vistos nos cemitérios ou demônios encontrados na floresta enquanto faziam alguma viagem. Eu tentava evitá-los nessas horas, mas não havia muito como fugir, pois só tínhamos uma fogueira queimando e todos os homens estavam ávidos por entretenimento. A julgar pelas histórias dos condutores, acho que eram ou muito corajosos ou grandes mentirosos, pois, apesar das lendas de fantasmas perambulantes, do demônio feminino da morte e coisas do gênero, eles continuavam conduzindo pelos caminhos solitários da floresta.

A maioria das histórias era sobre fantasmas e, enquanto ouvia, percebi que todos pareciam ter uma característica comum: eles assombravam os vivos porque tinham negócios pendentes nesta vida. A despeito de terem sido assassinados ou de terem se suicidado, os fantasmas se recusavam a passar para a outra vida por sentirem que pertenciam a este mundo e não ao outro. Por quererem se vingar da pessoa responsável pela morte deles ou por não conseguirem deixar a pessoa amada, os fantasmas permaneciam perto das pessoas com quem passaram seus últimos dias. Obviamente eu me lembrei de Sophia. Se alguém tinha o direito de voltar como fantasma, era ela. Será que Sophia ficaria zangada quando voltasse e soubesse que a maior responsável por seu suicídio tinha ido embora da cidade? Será que me seguiria? Talvez ela tenha me jogado uma praga do túmulo e fosse responsável por minha atual situação de infelicidade. Ouvir as histórias dos condutores somente reforçava minha crença de que eu havia sido amaldiçoada por causa de minha maldade.

E, então, me senti mais feliz e aliviada quando começamos a passar por pequenos assentamentos com mais frequência: significava que estávamos nos aproximando da parte mais povoada ao sul do território e que não estaríamos à mercê dos condutores de charrete por muito mais tempo. Realmente, depois de termos encontrado o rio Kennebec, em poucos dias chegamos a Camden, uma grande cidade na costa. Foi a primeira vez que vi o mar.

A charrete nos deixou no porto, conforme acordado com meu pai. Corri pelo píer mais longo e fiquei olhando para toda aquela água por muito tempo. Que cheiro peculiar, o cheiro do mar, salgado, sujo e rústico! O vento estava muito frio e intenso, tão forte que era quase impossível respirar. Batia em meu rosto e emaranhava meus cabelos, como se me desafiasse. Além disso, fui tomada pela grandeza do oceano; sim, já tinha visto bastante água, mas somente a do rio Allagash. Por mais largo que fosse, dava para ver a margem oposta, sabia que tinha limites. No entanto, com esse horizonte infinito, a expansão plana do oceano parecia o próprio fim do mundo.

— Sabe, os primeiros exploradores a viajar para a América achavam que fossem cair na ponta do mundo. — Titus disse, lembrando-me de que estava a meu lado.

Achei a maré revolta assustadora e fascinante ao mesmo tempo, e não conseguia deixar de olhar para aquele mar; quase congelei até os ossos.

O tutor me acompanhou até o escritório do mestre do porto, onde encontramos um homem velho, com uma pele assustadora que parecia couro. Ele apontou na direção de um pequeno navio que me levaria até Boston, mas avisou que não partiria antes da meia-noite, quando a maré teria baixado, e que eu só seria bem-vinda a bordo um pouco antes de zarparem. Ele sugeriu que passasse um tempo numa taberna, pedisse alguma coisa para comer e, talvez, convencesse o dono a me deixar passar as horas cochilando numa cama que não estivesse sendo usada. Ele até me mostrou o caminho para uma taberna perto do porto, ficou com dó de mim, suspeito, pois eu mal podia me fazer entender, nervosa, com a língua presa, e eu era tão rude! Se Camden era tão grande e intimidadora assim, como eu conseguiria sobreviver em Boston?

— Senhorita McIlvrae, eu devo protestar. Não deve ficar desacompanhada numa taberna, nem andar sozinha pelas ruas de Camden, à meia-noite, procurando por seu navio — Titus disse. — Mas estão esperando por mim na casa de meu primo e eu realmente não tenho como passar o resto do dia com a senhorita.

— Que outra opção eu tenho? — perguntei. — Se for lhe tirar o peso da consciência, leve-me até a taberna e veja com seus próprios olhos se é um lugar respeitável. Então, faça como sua consciência mandar. Assim, não se sentirá traindo o compromisso com meu pai.

A única taberna que eu conhecia era a Daughtery’s, um lugarzinho caseiro em St. Andrew, e essa taberna em Camden a reduzia a nada, com dois atendentes e duas mesas longas com bancos e comida quente para comprar. A cerveja também era consideravelmente mais saborosa e eu percebi, com uma dor súbita, o quanto as pessoas da minha cidade eram privadas de tantas coisas. A injustiça da situação se abateu sobre mim, apesar de não me sentir privilegiada por ter sido apresentada a isso só agora. Na verdade, sentia falta de casa e pena de mim mesma, mas escondi isso de Titus, que, ansioso para ir embora, concordou que aquele não parecia ser um lugar de má reputação e me deixou aos cuidados do dono da taberna.

Depois de ter comido e observado admiradamente os estranhos que entravam no lugar, aceitei o convite do dono da taberna para cochilar numa cama no depósito de mantimentos até que meu navio estivesse pronto para partir. Aparentemente, era comum que os passageiros passassem o tempo nessa taberna em particular e o dono estava acostumado a fornecer esse tipo de serviço. Ele prometeu me acordar depois do pôr do sol, a tempo de chegar ao porto.

Deitei-me na cama, no depósito de mantimentos sem janela, e me dei conta de minha situação. Foi então, enrolada no escuro com os braços apertados em meu peito, que percebi o quanto estava sozinha. Tinha crescido numa cidade em que conhecia todos e não havia dúvida sobre quem tomaria conta de mim. Ninguém aqui ou em Boston me conhecia ou queria saber quem eu era. Lágrimas pesadas escorreram por minha face em autopiedade; na época, imaginava que meu pai não poderia ter me dado uma punição mais brutal do que essa. Acordei na escuridão, com o dono da taberna batendo à porta.

— Está na hora de se levantar — ele chamou do outro lado da porta — ou perderá seu navio.

Paguei com algumas poucas moedas que tirei do forro de minha capa, aceitei a oferta dele para me acompanhar até o escritório do mestre do porto e caminhei de volta até a praia em frente do porto.

A noite havia caído rapidamente, assim como a temperatura, e uma névoa, vinda do oceano, instalava-se. Havia poucas pessoas na rua e elas se apressavam de volta para casa, para fugir do frio e da névoa. O efeito conjunto era sombrio, como se eu estivesse andando por uma cidade de fantasmas. O dono da taberna foi muito amigável e seguimos o marulhar das ondas até o porto.

Vi o navio que me levaria a Boston através da névoa. O deque estava todo pontilhado de lanternas que iluminavam a preparação para a partida: os marujos escalavam os mastros, desenrolando algumas das velas; barris eram carregados rampa acima para o depósito no porão; o navio boiava gentilmente de um lado para o outro.

Sei, agora, que era um navio de carga comum, mas, na época, era tão exótico quanto um navio de guerra britânico ou um baghlah árabe, o primeiro navio de verdade que eu já vira tão de perto. Medo e entusiasmo subiram pela minha garganta (eles seriam minha companhia constante para o resto da vida: medo do desconhecido e desejo irrepreensível por aventura) enquanto eu subia a rampa até o navio, outro passo ainda para mais longe de tudo o que eu conhecia e amava, e outro passo para mais perto de minha nova vida misteriosa.

 

Vários dias depois, o navio aproximou-se do porto de Boston. À tarde, já tínhamos chegado ao cais, mas eu esperei até o anoitecer para sair ao deque do navio. Estava tudo quieto agora: os outros passageiros haviam desembarcado assim que o navio ancorou e a maior parte da carga, aparentemente, havia sido descarregada. Os tripulantes do navio, pelo menos aqueles de cujo rosto eu me lembrava, não podiam ser vistos em lugar nenhum, provavelmente estavam lá fora, descobrindo os benefícios de se estar em terra visitando uma das tabernas que davam de frente para o porto. A julgar pelo número de tais estabelecimentos na rua, as tabernas eram parte importante dos negócios da navegação, mais importantes do que madeira ou lona.

Tínhamos ancorado muito antes do previsto, graças aos bons ventos, mas foi uma questão de tempo para que o convento fosse avisado e mandasse alguém me buscar. De fato, o capitão havia me olhado curiosamente uma ou duas vezes enquanto eu permanecia no deque inferior, imaginando por que eu ainda não havia saído, e até se ofereceu para procurar transporte para me levar até meu destino, caso eu não soubesse o caminho.

Eu não queria ir para o convento. Em minha mente, tinha imaginado que seria parecido com um reformatório ou uma prisão. Era para ser minha punição, um lugar destinado a me corrigir mediante todos os meios possíveis, a curar minha paixão por Jonathan. Tirariam o bebê de mim, minha última e única conexão com meu amado. Como poderia permitir uma coisa dessas?

Por outro lado, estava com muito medo de sair sozinha. As incertezas que tinha encontrado em Camden seriam cem vezes piores em Boston, que parecia uma cidade grande e fervilhante. Como saberia para onde ir? A quem pediria ajuda, um lugar para ficar, particularmente em minha condição? De repente, senti cada pedacinho da jovem simplória e desinformada da floresta completamente fora de seu ambiente.

Covardia e indecisão me impediram de fugir do navio imediatamente, mas, no final, foi a ideia de perder meu filho que me fez decidir ir embora. Preferia dormir numa viela imunda e ganhar a vida esfregando o chão a deixar alguém tirar o bebê de mim. Com os detalhes se transformando em delírio, saí pelas ruas de Boston somente com minha bolsa no ombro, deixando o baú no escritório do mestre do porto. Com sorte o encontraria novamente quando tivesse achado um lugar para morar; isto é, se o pessoal do convento não o confiscasse em meu nome quando descobrisse que eu havia sumido.

Mesmo tendo esperado até o anoitecer para escapar furtivamente do navio, fiquei surpresa e assustada com a quantidade de atividades que ainda acontecia na cidade. As pessoas saíam das tabernas e iam para as ruas, lotavam as calçadas ou passeavam em carruagens. Charretes lotadas com barris e caixas tão grandes quanto caixões passavam pelas ruas movimentadas. Caminhei com passos firmes por uma rua e desci a outra, me desviando de outros pedestres, me esquivando das charretes, incapaz de entender o desenho das ruas de uma forma que fizesse sentido, incapaz de dizer, após quinze minutos de caminhada, qual era a direção do porto. Comecei a achar Boston um lugar difícil e triste: centenas de pessoas tinham passado por mim aquela noite, mas ninguém reparou em minha expressão de temor, em meu olhar perdido, em meu andar sem rumo. Ninguém perguntou se eu precisava de ajuda.

O anoitecer deu lugar à escuridão. As luzes da rua foram acesas. O tráfego começou a rarear, as pessoas iam para casa com pressa, para a noite, enquanto os donos de lojas abaixavam as cortinas e trancavam as portas. E a próxima noite, e a noite depois, como seria? Não, eu disse a mim mesma, não devo pensar muito adiante ou ficarei desesperada. Passar por esta noite era preocupação o suficiente; precisava de um bom plano ou começaria a pensar que sucumbiria ao convento.

A resposta era uma taberna ou uma hospedaria. O que fosse mais barato, pensei, passando os dedos pelas moedas que ainda me restavam. A vizinhança onde tinha ido parar parecia residencial e tive dificuldade em lembrar quando tinha sido a última vez em que passara por uma taberna. Teria sido mais perto das docas? Provavelmente, mas, ainda assim, hesitei em fazer o caminho de volta, pensando que isso somente confirmaria que eu não sabia o que estava fazendo e que tinha me colocado na pior situação possível. De qualquer forma, não tinha certeza de qual direção viera. Psicologicamente, era melhor continuar seguindo em direção ao novo território.

Estava tão exaurida, que fiquei parada no meio da rua pensando no que faria depois, desatenta ao tráfego em que, numa parte mais movimentada da cidade, quase fui atropelada. Imersa totalmente em meu problema, levei um minuto para perceber que uma carruagem tinha parado a meu lado e que alguém me cumprimentava.

— Senhorita! Olá, senhorita! — uma voz chamou de dentro da carruagem. E era uma carruagem linda, mil vezes mais elegante do que qualquer charrete rústica do campo que eu jamais vira. A madeira escura reluzia e todos os equipamentos eram extremamente delicados e benfeitos. Era puxada por um par de cavalos baios robustos, tão bem cuidados e paramentados quanto cavalos de circo, mas amarrados com arreios negros como uma carruagem de velório.

— Você não fala inglês? — um homem apareceu na janela da carruagem, vestindo um chapéu de três pontas extraordinariamente pomposo, arrematado com plumas cor de vinho. Ele era pálido e louro, com um rosto longo e aristocrático, mas tinha uma expressão de escárnio na boca, como se estivesse eternamente descontente. Olhei para ele, surpresa por um estranho tão elegante estar falando comigo.

— Ah, me deixe tentar — uma mulher disse, de dentro da carruagem. O ho­mem de chapéu saiu da janela e a mulher tomou o lugar dele. Se o primeiro homem era pálido, ela era ainda mais, sua pele era da cor da neve. Ela usava um vestido muito escuro de tafetá marrom moiré, o que talvez desse à sua pele um tom sem sangue. Ela era adorável, mas assustadora, com dentes pontudos escondidos atrás dos lábios abertos, num sorriso cerrado e falso. Os olhos dela eram de um azul tão pálido que pareciam lavanda. E, do que podia ver de seu cabelo — pois ela também usava um chapéu ornamentado, colocado bem alto em sua cabeça, num ângulo ousado —, ele era amarelado, muito arrumado e penteado rente ao crânio.

— Não fique assustada! — ela disse, antes que eu percebesse que realmente estava um pouco amedrontada. Dei um passo para trás quando ela abriu a porta da carruagem e desceu à rua, farfalhando, enquanto se movia, devido à textura do tecido e ao tamanho de sua saia. O vestido dela era o traje mais maravilhoso que eu já havia visto, enfeitado com babadinhos e laços, apertado ao redor de sua fina cintura de vespa. Ela usava luvas pretas e esticou a mão vagarosamente em minha direção, como se estivesse com medo de assustar um cãozinho medroso. Ao homem de chapéu, juntou-se um segundo homem, que tomou o lugar dela na carruagem.

— Você está bem? Enquanto passávamos, meus amigos e eu não pudemos deixar de notar que você parecia um pouco perdida. — O sorriso dela ficou um pouco mais caloroso.

— Eu... bem, isso é... — gaguejei, constrangida por alguém ter me descoberto, ao mesmo tempo desesperada por qualquer ajuda e um toque de bondade humana.

— Você acabou de chegar a Boston? — o segundo homem na carruagem perguntou de seu assento. Ele parecia infinitamente mais agradável do que o primeiro, com traços duros, olhos extraordinariamente bondosos e uma suavidade que convidada à confiança. Eu assenti com a cabeça.

— E tem lugar para ficar? Perdoe-me por minha presunção, mas há algo de órfã em você. Sem teto, sem amigos? — A mulher acariciou meu braço enquanto ele dizia isso.

— Agradeço pela preocupação. Talvez vocês possam me indicar o caminho para a taberna mais próxima — comecei, trocando a sacola de mão. Assim que terminei a frase, o homem alto e arrogante descera da carruagem também e tomou a bolsa de mim.

— Faremos melhor do que isso; nós lhe daremos um lugar para ficar. Por esta noite.

A mulher me pegou pelo braço e me levou em direção à carruagem.

— Vamos para uma festa. Você gosta de festas, não gosta?

— Eu... não sei — respondi secamente, meus sentidos se aguçando em alerta. Como três pessoas de posse poderiam surgir do nada para me ajudar? Parecia natural, até mesmo prudente, ser cética.

— Não diga bobagem. Como você não sabe se gosta de festas? Todo mundo gosta de festas. Haverá comida, muita bebida e diversão. E, no final, haverá uma cama aconchegante para você. — O homem arrogante jogou minha bolsa para dentro da carruagem. — Além disso, tem uma oferta melhor? Prefere dormir na rua? Acho que não.

Ele estava certo e, intuição à parte, eu não tinha escolha a não ser obedecê-los. Até convenci a mim mesma de que esse encontro do acaso era um sinal de boa fortuna. Minhas necessidades tinham sido atendidas, pelo menos até o momento. Eles estavam muito bem-vestidos e, para todos os efeitos, eram ricos; nem de longe pareciam estar planejando me roubar. Nem pareciam assassinos. Todavia, por que estavam tão ansiosos para levar uma estranha a uma festa com eles era um mistério completo, mas pareceu-me muito arriscado questionar minha boa sorte de forma tão rígida.

Cavalgamos num silêncio tenso durante alguns minutos. Eu me sentei entre a mulher e o homem simpático de cabelos escuros, e tentei não olhar quando o homem louro me media de cima a baixo. Quando não pude mais conter minha curiosidade, perguntei:

— Me desculpem, mas, por que, exatamente, querem minha presença nessa festa? O dono da festa não se incomodará em receber um convidado inesperado?

A mulher e o homem arrogante bufaram, como se eu tivesse contado uma piada.

— Oh, não se preocupe com isso! Veja bem, o dono da festa é nosso amigo e sabemos com certeza que ele aprecia entreter mulheres jovens e belas — o homem louro disse com outra bufada. A mulher bateu seu leque nas costas das mãos dele.

— Não se incomode com esses dois — disse o homem de cabelos escuros. — Eles estão se divertindo às suas custas. Tem minha palavra que você será totalmente bem-vinda. Como disse, você precisa de um lugar para passar a noite e, suspeito, para colocar seus problemas de lado por uma noite. Talvez lá encontre algo mais de que precise — ele disse, e tinha um modo tão suave que eu me acalmei. Havia muitas coisas de que eu precisava, mas, mais do que tudo, queria confiar nele. Acreditar que ele soubesse o que era o melhor para mim quando eu mesma não sabia.

Trotamos para cima e para baixo pelas ruas na carruagem negra. Eu olhava para fora da janela e tentava memorizar o caminho, uma criança dentro de um conto de fadas, que, talvez, precisasse voltar para casa. Perda de tempo; não tinha esperança de conseguir refazer minha jornada, não no estado em que me encontrava. Mais tarde, a carruagem parou em frente de uma mansão de tijolos e pedras, toda iluminada para a festa, tão grandiosa que me tirou o fôlego. Aparentemente, a festa ainda não começara; não havia nem sinal de atividade, nem homens e mulheres em roupas de noite, nem nenhuma outra carruagem tentando estacionar.

Lacaios abriram as portas da mansão e a mulher tomou a frente como se fosse a senhora da casa, tirando as luvas dedo por dedo.

— Onde está ele? — ela perguntou rispidamente ao mordomo. Os olhos dele rolaram brevemente para cima.

— Lá em cima, madame.

Conforme subimos as escadas, me senti cada vez mais autoconsciente. Aqui estava eu, com um vestido maltrapilho e artesanal; cheirava a navio e maresia, e meu cabelo estava todo embaraçado e sujo de sal. Olhei para meus pés, para ver meus sapatos simples e rústicos com pedaços de lama da rua grudados, as pontas viradas para cima de tanto uso. Toquei o braço da mulher.

— Não deveria estar aqui. Não estou em estado digno de um evento tão elegante quanto este; não sou adequada nem para ser a ajudante de cozinha dessa casa tão fina. Vou me retirar...

— Você ficará até lhe darmos permissão para ir embora. — Ela virou-se e enfiou as unhas em meu braço, fazendo-me arfar de dor. — Pare de ser tola e venha. Garanto que se divertirá esta noite. — O tom de voz dela me dizia que meu divertimento era a última coisa com a qual ela se preocupava.

Nós quatro entramos por um conjunto de portas num quarto gigantesco, tão grande quanto minha casa toda em St. Andrew. A mulher nos levou direto ao quarto de vestir, onde um homem estava em pé, de costas. Ele era obviamente o dono da casa, um criado estava a seu lado. O mestre vestia calças de veludo azul brilhante, meias de seda brancas e sapatos enfeitados. Usava uma camisa com as bordas de renda e um colete que combinava com as calças. Ele não estava vestido com seu casaco, de forma que eu podia ver sua verdadeira forma sem os truques dos alfaiates para melhorar a compleição física. Ele não era alto e atlético como Jonathan, meu padrão de ideal masculino, mas, mesmo assim, tinha um físico magnífico. Costas e ombros largos saíam de seus quadris estreitos; devia ser extremamente forte, a julgar por aqueles ombros, como alguns dos lenhadores em St. Andrew, robustos e vigorosos. E, então, ele se virou e tentei não demonstrar minha surpresa.

Ele era muito mais novo do que eu esperava, diria que na casa dos 20 anos, só um pouco mais velho do que eu. E era bonito de uma maneira diferente, vagamente selvagem. Tinha a pele morena, um tom que eu nunca vira antes em nosso vilarejo de escoceses e escandinavos. Seu bigode e barba escuros rareavam por sua mandíbula quadrada, como se estivesse crescendo havia pouco tempo. Mas sua característica mais marcante eram os olhos, verdes-oliva e manchados de cinza e dourado. Eram belos feito joias e seu olhar era lupino e fascinante.

— Trouxemos outra atração para sua festa — anunciou a mulher.

Seu olhar de avaliação era tão áspero e, após apenas um olhar seu, senti que não tinha segredos com ele. Minha garganta secou e meus joelhos amoleceram.

— Este é nosso anfitrião — a voz da mulher desapareceu lentamente sobre meu ombro. — Faça uma mesura, sua idiota! Está na presença da realeza. Este é o conde cel Rau.

— Meu nome é Adair. — Ele esticou a mão em minha direção, como se quisesse me impedir de fazer uma mesura. — Estamos na América, Tilde. Sei que os americanos não têm realeza no país e, assim, não farão mesura a ninguém. Não podemos esperar que os americanos façam mesura para nós.

— Você acabou de chegar à América? — De alguma forma, tomei coragem para falar com ele.

— Há duas semanas. — Ele soltou minha mão e virou-se para o lacaio.

— Da Hungria — o homem baixo e escuro acrescentou. — Sabe onde fica?

Minha cabeça girou.

— Não, infelizmente não. — Mais esfolegadas de risadas soaram atrás de minhas costas.

— Isso não é importante — Adair, o mestre da casa, respondeu bruscamente para seus subordinados. — Não podemos esperar que as pessoas conheçam o lugar de onde viemos. Nosso lar é muito mais longe do que as milhas de terra e mar que deixamos para trás. É uma terra diferente desse lugar; é por isso que vim até aqui, porque é outro mundo. — Ele fez um gesto em minha direção. — Você... tem um nome?

— Lanore.

— Você é daqui?

— De Boston? Não, cheguei hoje. Minha família... — engasguei com um nó na garganta — ... vive no território do Maine, ao norte. Já ouviu falar de lá?

— Não — ele respondeu.

— Então estamos quites. — Não sei onde encontrei coragem para fazer piada com ele.

— Talvez sim. — Ele deixou o lacaio arrumar sua gravata, olhando curiosamente antes de se dirigir ao trio. — Não fiquem parados aí — ele disse. — Aprontem-na para a festa.

Fui levada para outro quarto, repleto de baús. Eles abriam as tampas, procurando diligentemente até encontrar uma roupa que coubesse em mim, um belo vestido de algodão vermelho e um par de sapatilhas de cetim. Não era uma roupa que combinasse comigo, mas era muito mais elegante do que qualquer outra que já havia vestido. Haviam mandado um criado preparar um banho rápido e fui instruída para me esfregar com cuidado, porém, rapidamente.

— Vamos queimar isso — o homem louro disse, balançando a cabeça para minhas roupas feitas em casa, agora jogadas no chão. Antes de me deixarem sozinha para me lavar, a assustadora mulher loura colocou uma taça em minha mão com um bom vinho, mexendo lá dentro.

— Beba — ela disse. — Deve estar com sede. — Sequei a taça em dois goles.

Percebi que colocaram droga dentro do vinho quando saí da sala de banho. O chão e as paredes pareciam girar e precisei me concentrar muito para chegar ao salão. Os convidados já começavam a chegar, em sua maioria bem-vestidos, homens com perucas e máscaras cobrindo o rosto. O trio desaparecera e eu fui deixada sozinha. Em meu estado de torpor, fui de sala em sala tentando entender o que estava acontecendo, o bacanal estridente se espalhando a meu redor. Lembro-me de ver jogos de cartas numa grande sala, quatro ou cinco homens sentados ao redor de uma mesa, em meio a surtos de risadas e fúria enquanto as moedas brilhavam quando eram jogadas para dentro do pote. Continuei a perambular, indo de uma sala a outra, sem destino. Quando batia nas paredes, um estranho me tomava pela mão, mas eu soltava e corria o mais rápido que conseguia, dado o meu estado de torpor. Havia homens e mulheres jovens, atarantados, sendo levados pelos convidados em todas as direções.

Comecei a alucinar. Estava convencida de estar sonhando e sonhava que estava num labirinto. Não conseguia me fazer entender; as palavras saíam confusas e, de qualquer forma, ninguém parecia inclinado a me ouvir. Aparentemente, não havia saída dessa festa infernal, nenhuma saída para a segurança relativa da rua. Nesse momento, senti uma mão pousar sobre meu cotovelo e, então, desmaiei.

Quando acordei, estava deitada numa cama, quase sufocada por um homem deitado sobre mim. O rosto dele estava grotescamente perto do meu, sua respiração quente varrendo meu rosto. Estremeci sob o peso e sob os insistentes golpes de seu corpo contra o meu, e me ouvia lamentar e chorar de dor, mas a dor estava desconectada, aliviada momentaneamente pela droga. Eu sabia, por instinto, que mais tarde tudo voltaria à tona. Tentei gritar para pedir ajuda e uma mão suada cobriu minha mão, dedos salgados passaram pelos meus lábios.

— Fique quieta, meu bichinho — o homem em cima de mim grunhiu, com olhos semicerrados.

Sobre seus ombros, vi que estávamos sendo observados. Homens mascarados sentavam-se em cadeiras colocadas ao pé da cama, taças na mão, rindo e instigando o homem. Sentado no meio do grupo, com as pernas cruzadas, estava o anfitrião. O conde. Adair.

 

Acordei com um sobressalto. Estava deitada numa cama enorme, num quarto escuro e silencioso. Só o ato de acordar enviou faíscas de dor por todo meu corpo; eu me sentia como se tivessem me revirado do avesso, esticada, dolorida e rígida, anestesiada da cintura para baixo. Meu estômago estava revirado, um mar de bílis. Meu rosto estava inchado, minha boca também, com lábios secos e cortados. Sabia o que tinha acontecido comigo na noite anterior, minha dor era toda a prova de que eu precisava. O que eu precisava agora era sobreviver.

Então, o vi deitado a meu lado, na cama. Adair. Seu rosto era quase beatífico enquanto dormia. Do que podia ver, ele estava nu, mas coberto pelos lençóis da cintura para baixo. Suas costas estavam expostas para mim, matizadas de antigas cicatrizes, sugerindo surras horríveis no passado.

Eu me inclinei sobre a beirada da cama e, agarrando-me ao colchão, vomitei no chão. Meu movimento acordou o anfitrião. Ele lamentou sobre a ressaca, ou assim eu pensei, e ergueu a mão até a testa. Seus olhos verdes-dourados piscaram incertos.

— Meu bom Deus, você ainda está aqui — ele disse para mim.

Eu avancei nele com raiva, erguendo o braço para acertá-lo com um soco, mas ele me jogou de lado com um braço forte e preguiçoso.

— Não se comporte estupidamente — avisou-me — ou quebrarei você ao meio como um graveto.

Pensei nos outros homens e nas mulheres que tinha visto na noite anterior.

— Onde eles estão? Os outros? — quis saber.

— Foram pagos e foram embora, assim espero. — Adair murmurou, passando a mão pelo cabelo embaraçado. Ele torceu o nariz quando sentiu o cheiro de meu vômito. — Chame alguém aqui para limpar isso — disse, enquanto se inclinava para o lado para sair da cama.

— Não sou sua serviçal. E não sou uma... — busquei uma palavra que eu sabia não existir.

— Não é uma puta? — Ele puxou o cobertor da cama e o enrolou em volta do corpo. — Tampouco é uma virgem.

— Isso não quer dizer que eu queira ser drogada e atacada por um bando de homens.

Adair não disse nada. Segurou o cobertor amarrado no quadril, caminhou até a porta e, aos berros, chamou um serviçal. Depois, virou seu rosto para mim.

— Então, acha que fiz mal a você? O que vai fazer sobre o assunto? Poderia contar a história ao policial e ele a prenderia por ser uma prostituta. Assim, sugiro que receba seu pagamento e faça uma refeição antes de ir embora. — Então, meneou a cabeça enquanto me olhava uma segunda vez. — Você é aquela que Tilde encontrou na rua, sem lugar para ir. Bem... nunca poderão dizer que não sou um homem generoso. Pode ficar conosco por uns dias. Descanse e se recomponha, se quiser.

— E devo cantar a mesma música de ontem? — perguntei com sarcasmo.

— Você é impertinente, não é, para falar dessa maneira comigo? Completamente sozinha nesse mundo, ninguém aqui sabe quem você é, eu poderia comê-la como um coelho, um coelho ensopado. Isso não a assusta nem um pouco? — Ele me lançou um sorriso sarcástico, mas com um ar de aprovação. — Vamos ver o que me vem à cabeça. — Ele se jogou sobre o sofá, enrolando-se no cobertor. Para um aristocrata, tinha modos de um rufião.

Tentei me levantar e procurar minhas roupas, mas minha cabeça ficou tonta e o quarto todo rodou. Caí de volta na cama enquanto um serviçal entrou com trapos e um balde. Ele não prestou atenção em mim quando se ajoelhou para cuidar de minha poça de vômito. Só então é que senti uma dor latejante nas vísceras, uma sensação perdida num oceano de dor. Eu estava coberta, da cabeça aos pés, com arranhões, manchas rochas e escoriações. A dor interna, sem dúvida, veio do mesmo modo que a dor externa: pelas mãos de uma criatura bestial.

Pretendia fugir da mansão nem que tivesse que sair rastejando. Mas não cheguei nem ao pé da cama; desmoronei de uma vez, vencida pela exaustão.

Meses se passaram até que eu fosse embora da casa.

 

                             CONDADO DE AROOSTOK, HOJE

A madrugada dessa época do ano tem um tom característico: a poeira cinza-amarelada como o lado de fora da gema de um ovo cozido. Luke podia jurar que pairava sobre a terra como a maldição de um fantasma, mas sabe que provavelmente não passe de mais um truque de luz brincando com as moléculas de orvalho da manhã. Nuvens de luz ou antiga maldição, o fato é que traz às manhãs uma aparência peculiar: o céu amarelado, um teto baixo de nuvens de sombras ameaçadoras contra o qual se erguem árvores cinza e marrons praticamente nuas.

Depois de ver o carro da polícia pelo retrovisor, Luke resolveu que não podiam continuar a viagem até a fronteira do Canadá em sua caminhonete. É muito fácil de ser reconhecida, pois tem as placas especiais de médico e o adesivo no vidro da antiga escola de Jolene, proclamando que o filho do motorista pertencia ao quadro de honra da Escola de Ensino Fundamental Rio Allagash (desde quando, Luke tinha se perguntado quando Tricia insistiu para que colocasse o adesivo em sua caminhonete, havia quadros de honra em escolas de Ensino Fundamental?). Assim, passaram a última meia hora fazendo o caminho de volta até St. Andrew, por estradas de uma via só, para chegarem até a casa de alguém em que ele acredita poder confiar. Ligou primeiro do celular para saber se podia emprestar um carro, mas, principalmente, ele queria saber se a polícia estivera perguntando por ele.

Ele para em frente a uma casa de fazenda, reformada, fora de St. Andrew.

A casa é uma beleza, uma das maiores e mais bem conservadas, com toques de guirlandas de amentilho decorando a varanda em volta e lanternas solares no caminho da entrada. A casa pertence a um novo médico do hospital, um anestesista chamado Peter, que mudou da cidade para poder criar seus filhos no campo, onde acredita não haver crimes nem drogas. Ele é um cara patologicamente agradável, até mesmo para Luke, que, cheio de mágoa e ainda sofrendo com todos os problemas recentes, afastara-se de todos nos últimos meses.

Quando Luke bate à porta da frente, Peter atende vestindo um roupão e chinelos, uma expressão de desagrado no rosto. Ele parece ter sido arrancado da cama pelo telefonema de Luke, que fica profundamente envergonhado. Peter coloca a mão no braço de Luke enquanto estão parados na porta de entrada.

— Está tudo bem?

— Me desculpe por lhe pedir isso; é um pedido estranho, eu sei — Luke diz, mudando o peso de um pé para o outro, com a cabeça baixa. Ele praticou a mentira em sua cabeça durante os últimos dez minutos. — É que... a filha de minha prima passou uns dias comigo e eu prometi à mãe dela que a levaria para casa a tempo de pegar o ônibus para um passeio da escola. O problema é que minha caminhonete está falhando e estou com medo de não conseguir chegar até lá e voltar... — O tom de Luke mistura a quantidade certa de incoerência e desculpas por estar incomodando um amigo, dando a impressão de um coitado bem-intencionado e confuso, que só um ogro rejeitaria.

Peter olha sobre o ombro de Luke, para a caminhonete estacionada no final da longa entrada. Luke sabe que ele verá Lanny em pé, ao lado do veículo, com a mala a seus pés. Ela está muito longe para que Peter consiga vê-la direito, caso a polícia faça perguntas mais tarde. Ela acena para Peter.

— Você não acabou de sair do plantão? — Peter olha de volta para Luke, tão perto como se estivesse procurando pulgas. — Não está cansado?

— Sim, mas estou bem. Foi uma noite tranquila. Dormi um pouco — ele mente. — Tomarei cuidado.

Peter tira as chaves do bolso e as coloca nas mãos de Luke. Quando Luke tenta dar as chaves da caminhonete em troca, Peter hesita.

— Não precisa deixar as chaves comigo... não vai demorar muito, vai?

Luke dá de ombros, tentando parecer indiferente.

— Caso você tenha que mudá-la de lugar ou algo do tipo. A gente nunca sabe.

O portão para a garagem de três vagas levanta-se lentamente e Luke verifica o chaveiro, descobrindo que Peter está confiando a ele uma SUV nova e luxuosa, cinza-chumbo brilhante, com assentos de couro aquecidos e um aparelho de DVD na fileira de trás para manter as crianças entretidas durante as viagens longas. Luke se lembra como as pessoas o amolaram no primeiro dia em que chegou ao hospital, com um carro tão incomum para a região, a cobertura brilhante com grandes chances de ser corroída pelo sal da estrada ao final do terceiro inverno.

Luke dá marcha a ré no carro para tirá-lo da garagem e espera na boca da entrada para Lanny se acomodar no banco do passageiro.

— Que carro bonito! — ela diz enquanto puxa o cinto de segurança. — Você sabe negociar, não é?

Ela cantarola para si mesma, enquanto Luke dirige em direção à estação fronteiriça do Canadá, mas, dessa vez, parcialmente escondido atrás dos vidros escurecidos. Sente-se culpado pelo que fez. Ele não sabe exatamente por que, mas suspeita que não fará meia-volta depois de ter cruzado a fronteira, e por isso deixou as chaves da sua velha picape amassada com o amigo. Não que Peter precise da caminhonete; ele obviamente tem outros carros caso necessite ir a algum lugar. Ainda assim, deixar as chaves fez Luke sentir-se melhor, como se tivesse estabelecido um certificado de dívida ou deixado um amuleto da sorte, pois sabe que, em pouco tempo, Peter irá desprezá-lo. Lanny olha nos olhos de Luke quando passam por um cruzamento vazio.

— Obrigada! — ela diz com profunda gratidão. — Você me parece o tipo de homem que não gosta de pedir favores, então... quero que saiba que realmente agradeço e aprecio o que está fazendo por mim.

Luke assente com a cabeça, perguntando-se até que ponto e a que custo ele a ajudará a fugir.

 

                                BOSTON, 1817

Acordei numa cama diferente, num quarto diferente, o homem de cabelos negros da carruagem sentado a meu lado na cama, com uma tigela de água e uma compressa fria para minha testa.

— Ah, de volta ao mundo dos vivos! — ele disse quando abri os olhos. Suspendeu a compressa de minha testa e a colocou dentro da água para ensopar.

Podia ver uma luz fria pela janela atrás dele, então sabia que era dia, mas qual dia? Verifiquei embaixo da colcha e percebi que estava vestida só com uma camisola. Deram-me um quarto que claramente deveria pertencer a algum membro mais importante dos criados da casa, pequeno e com mobília simples.

— Por que ainda estou aqui? — perguntei, ainda grogue. Ele ignorou minha pergunta.

— Como se sente?

A dor veio devagar, pungente e quente no meu abdômen.

— Como se tivesse sido esfaqueada com uma lâmina enferrujada.

Ele franziu o cenho ligeiramente, então alcançou uma tigela de sopa colocada no chão.

— A melhor coisa para você é descanso, descanso completo. Você provavelmente teve uma perfuração em algum lugar aí dentro — ele apontou indiretamente para minha barriga — e precisa sarar o mais rápido possível, antes que tenha uma infecção. Já vi isso antes. Pode se tornar uma coisa séria.

O bebê. Eu me sentei.

— Quero um médico. Ou uma parteira.

Ele colocou uma colher no caldo claro, o metal batendo na porcelana.

— Muito cedo para isso. Vamos observar por um tempo, para ver se piora.

Entre compressas e colheradas de caldo, ele respondeu às minhas perguntas. Primeiro, me falou sobre ele. Seu nome era Alejandro e era o mais novo de uma elegante família espanhola, de Toledo. Sendo o filho mais novo, não tinha esperanças de herdar a propriedade da família. O segundo mais velho havia se alistado nas Forças Armadas e era capitão de um navio poderoso. O terceiro mais velho serviu na corte do rei da Espanha e foi rapidamente enviado como emissário para uma terra estrangeira. Assim, a família tinha cumprido todas as obrigações de praxe para com o rei e seu país; Alejandro era livre para decidir seu destino no mundo e, devido a vários incidentes e mudanças de rumo, no final, acabou ficando com Adair.

Adair, ele explicou, era um membro da realeza genuína do Velho Mundo, tão rico quanto alguns príncipes menores, já que conseguira manter as propriedades da família durante séculos. Cansado do velho continente, ele veio para Boston pela novidade, para experimentar o Novo Mundo. Alejandro e os outros dois da carruagem, Tilde, a mulher, e Donatello, o homem louro, eram os cortesãos de Adair.

— Todo membro da realeza tem sua corte — Alejandro afirmou, o primeiro de muitos argumentos circulares. — Ele precisa estar cercado de pessoas de boa estirpe, que possam garantir que suas necessidades sejam atendidas. Somos o filtro entre ele e o mundo.

Donatello, explicou, viera da Itália, onde fora assistente e fonte de inspiração de um grande artista de cujo nome eu nunca ouvira falar. E Tilde, o passado dela era misterioso, Alejandro confessou. A única coisa que sabia sobre ela é que viera de uma terra do norte, tão cheia de neve e tão fria quanto a minha. Tilde já estava com Adair quando Alejandro se uniu à corte.

— Ela conta tudo a ele e seu temperamento pode ser terrível; então, tenha sempre muito cuidado com ela — ele me avisou, mergulhando a colher para pegar mais caldo.

— Mas eu não vou ficar aqui nem um minuto a mais do que o necessário — eu disse, abrindo minha boca para alcançar a colher. — Irei embora assim que estiver me sentindo melhor. — Alejandro não fez nenhum comentário, parecendo concentrado em fazer chegar até minha boca outra colher de caldo.

— Há outro membro da corte de Adair — ele disse, e se apressou em explicar —, mas provavelmente você nunca irá conhecê-la. Ela é... reclusa. Porém, não fique surpresa se achar que vê um fantasma passando por aí.

— Um fantasma? — Os cabelos de trás do meu pescoço se levantaram, memórias das histórias de fantasmas dos condutores da charrete voltando depressa à minha mente, tristes mortos procurando seus entes queridos.

— Não um fantasma de verdade — ele brincou. — Apesar de que ela poderia ser um. Ela é reservada e a única maneira de vê-la é se trombar com ela, como se topasse com um veado no meio da floresta. Não falará nem lhe dará atenção se tentar conversar com ela. Se chama Uzra.

Por mais que estivesse grata por Alejandro me contar tudo o que sabia, todas aquelas informações caíam sobre mim de forma desconfortável, pois evidenciavam cada vez mais minha ignorância e minha criação isolada. Nunca me falaram sobre essas terras distantes, eu não conhecia o nome do artista famoso. O que mais me incomodava era essa tal de Uzra; eu não queria conhecer uma mulher que tinha se transformado num fantasma. E o que Adair havia feito para evitar que ela falasse? Havia cortado a língua dela? Não duvidava que ele fosse cruel a esse ponto.

— Não sei por que se dá ao trabalho de me contar essas coisas — eu disse. — Não ficarei aqui.

Alejandro me observou com um lindo sorriso de coroinha e olhos brilhantes.

— Ah, é só um jeito de passar o tempo! Devo trazer mais caldo?

Aquela noite, quando ouvi Adair e seus subordinados perambulando pelo corredor, preparando-se para sair, rastejei para fora da cama para observá-los. Que lindos eles estavam, enrolados em veludos e brocados, cobertos de pó de arroz, com os cabelos penteados pelos criados, que passaram horas arrumando-os! Tilde, com joias pinçadas nos cabelos amarelos, os lábios pintados de vermelho; Dona, com um paletó branco impecável até a altura de sua mandíbula, acentuando o pescoço aristocrático e o queixo pontudo; Alejandro, com um casaco preto comprido e seu olhar eternamente triste; todos falando sem parar uns com os outros, de maneira venenosa, e pomposos como emplumados pássaros reais.

Mais do que tudo, eu observava fixamente Adair, pois ele era encantador. Um selvagem vestido com roupas de cavalheiro. Então, me dei conta: ele era um lobo em pele de cordeiro, indo à caça com sua matilha para dizimar as vítimas. Eles caçavam por diversão, como tinham me caçado. Ele era o lobo e eu, a lebre de pescoço macio e suculento, presa fácil para aquelas mandíbulas cruéis. O lacaio colocou a capa sobre os ombros de Adair e, quando se virou para sair, olhou para mim, como se soubesse que eu estivera lá o tempo todo; deu-me uma olhada e um leve sorriso, que me fizeram cambalear para trás. Eu deveria ter medo dele, eu tinha medo dele, e, ainda assim, estava fascinada. Parte de mim queria participar de seu grupo, queria estar nos braços de Adair quando ele e seus acompanhantes saíam para se divertir e ser bajulados por admiradores.

Aquela noite, fui acordada pelo grupo voltando para casa e não fiquei surpresa quando Adair entrou em meu quarto e me carregou até a cama dele. Apesar de estar doente, ele me possuiu aquela noite e eu me deixei levar, inebriada pelo movimento de seu peso sobre mim, seu membro grosso dentro de mim e o toque de seus lábios na minha pele. Ele sussurrava em meu ouvido enquanto copulávamos, mais gemidos do que palavras, e não conseguia entender o que ele dizia, além de “não pode me negar” e “minha”, como se estivesse tomando posse de mim naquela noite. Depois de tudo, deitei-me ao lado dele, tremendo, enquanto a sensação de escravidão me percorria.

 

Na manhã seguinte, quando acordei em meu pequeno quarto silencioso, a dor em meu baixo ventre estava muito maior. Tentei caminhar, mas cada passo era marcado por uma pontada brusca, e escorriam sangue e fezes. Não conseguia nem imaginar alcançar a porta da frente, muito menos encontrar alguém para me ajudar. À noite, fui consumida pela febre; nos dias que se seguiram, dormia e acordava, cada vez mais fraca do que antes. Minha pele estava cada vez mais pálida e sensível; meus olhos, vermelhos. As escoriações e os arranhões estavam sarando muito lentamente. Alejandro, a única pessoa que veio até minha cama, deu seu prognóstico, balançando a cabeça.

— Uma perfuração no intestino.

— Com certeza uma doença insignificante? — perguntei, esperançosa.

— Não, se virar uma infecção.

Ignorante como era sobre as complexidades da anatomia, se a dor era uma indicação da severidade do problema, o bebê devia estar em perigo.

— Um médico — implorei, apertando a mão dele.

— Falarei com Adair — ele prometeu.

Algumas horas depois, Adair entrou bruscamente no quarto. Não vi nem sombra de reconhecimento do prazer que tínhamos compartilhando na noite anterior. Ele puxou um banquinho ao lado da cama e começou a me examinar, apertando os dedos na minha testa e bochechas para medir a temperatura.

— Alejandro me disse que não melhorou.

— Por favor, chame um médico. Eu lhe pagarei de volta um dia, assim que conseguir...

Ele estalou a língua como para dizer que o custo não importava. Ergueu minhas pálpebras, então sentiu as bolsas de pele embaixo de minha mandíbula. Ao terminar, levantou-se do banquinho.

— Voltarei em um minuto — disse e saiu apressadamente do quarto.

Estava cochilando quando ele voltou com uma caneca velha e furada nas mãos. Colocou-me sentada, antes de me passar a caneca; o conteúdo cheirava a poeira e ervas misturadas num líquido quente, parecendo água suja de pântano.

— Beba — ele disse.

— O que é isso?

— Vai ajudá-la a se sentir melhor.

— Você é médico?

Adair me olhou com um leve desgosto.

— Não, o que você consideraria um médico, não. Pode-se dizer que já estudei minha dose de medicina tradicional. Se isso aí tivesse fervido mais um pouco, seria muito mais palatável, mas não temos tempo — ele acrescentou, como se não quisesse que eu fizesse mau juízo de sua poção por causa do sabor.

— Então, quer dizer que é como uma parteira? — Não precisaria dizer que as parteiras, apesar de geralmente serem as únicas praticantes de medicina em qualquer vilarejo, não tinham nenhum treinamento, já que as mulheres não podiam frequentar as escolas. As mulheres que se tornavam parteiras aprendiam a fazer partos e a mexer com ervas e grãos, sendo aprendizes de suas mães ou outros parentes.

— Não — ele respondeu mal-humorado, aparentemente não acreditando em parteiras tanto quanto não acreditava em médicos. — Ande, beba logo!

Fiz como ele pediu, achando que não concordaria em chamar um médico caso ficasse chateado comigo por não experimentar o remédio dele. Pensei que fosse vomitar tudo; a mistura era muito oleosa e amarga, com pedacinhos que não conseguia engolir.

— Agora descanse mais um pouco e veremos amanhã como está indo — ele disse, alcançando a caneca.

Coloquei minha mão em seu punho.

— Me diga, Adair... — mas estava confusa.

— Dizer o quê?

— Não sei o que pensar de seu comportamento comigo ontem à noite.

Ele retorceu sua linda boca num sorriso cruel.

— É tão difícil assim de entender? — Ele me ajudou a me apoiar de volta nos travesseiros e então puxou o cobertor até meu queixo; ajeitou o cobertor sobre meu peito e tocou meu cabelo, muito carinhosamente. Sua expressão de escárnio se abrandou e, por um momento, tudo que eu conseguia ver era seu rosto infantil e um traço de bondade em seus olhos verdes. — Você acha que me afeiçoei um pouco a você, Lanore? Você me surpreendeu; não é apenas uma maltrapilha que Tilde tirou da rua. Tem alguma coisa em você... Temos afinidades de alma que ainda não desvendei... Mas entenderei um dia. Primeiro, tem que melhorar. Vejamos se esse elixir lhe fará bem. Tente descansar agora. Alguém virá ver você mais tarde.

Fiquei surpresa com a revelação dele. A julgar por aquela única noite, o que existia entre nós era atração mútua. Desejo, para falar honestamente. De um lado, passou pela minha cabeça que um nobre, um homem com riqueza e poder, pudesse ficar interessado em mim; mas, de outro, ele também era um sádico e egoísta. Apesar dos sinais de alerta, aceitei a afeição de Adair, mesmo que fosse só para substituir aquilo que eu desejava de outro homem.

Meu estômago havia melhorado; o gosto amargo do elixir, desaparecido. Havia outro enigma para resolver. Minha curiosidade não era páreo para o elixir curativo de Adair e, em pouco tempo, tinha caído calmamente no sono.

Outra noite e outro dia se passaram, mas nenhum médico veio me ver e comecei a pensar qual seria o jogo que Adair estava fazendo. Ele não apareceu mais desde a confissão de seu interesse por mim; mandou serviçais a meu quarto com mais doses do elixir, mas nenhum médico se materializou em minha porta. Depois de 36 horas, fiquei novamente desconfiada de seus motivos.

Precisava sair daquela casa. Se ficasse, morreria naquela cama e o bebê morreria comigo. Tinha que tentar encontrar o médico ou alguém que pudesse restituir minha saúde ou, no mínimo, que me mantivesse viva até o nascimento do bebê. Essa criança seria a única prova do amor de Jonathan por mim e eu estava determinada que ela vivesse mesmo depois de minha morte.

Fui procurar minha sacola, mas, quando me apoiei no estrado da cama e no armário, percebi a fria umidade de minhas roupas de baixo, grudadas em minhas pernas. Tinham-nas tirado e me enrolado num pedaço de tecido, para que ele segurasse o fluido malcheiroso que saía de dentro de mim. O tecido estava sujo e com cheiro podre; não havia como andar pelas ruas daquele jeito sem ser confundida com uma louca e ser levada a um hospício. Precisava de roupas, da minha capa, mas tinham levado tudo embora.

Mas eu sabia onde podia encontrar algo para vestir: o quarto cheio de baús, aonde tinham me levado na fatídica primeira noite.

Do lado de fora do quarto, tudo estava quieto, somente um murmúrio de conversa entre dois serviçais subia pela escadaria. O corredor estava vazio. Olhei atônita para os degraus, mas estava tão fraca e febril que tive que recorrer às minhas mãos e aos joelhos para subir até o andar de cima. Uma vez lá, encostei-me na parede para recuperar o fôlego e o controle. Qual o corredor que levava até o quarto com os baús? Os corredores eram todos parecidos e havia tantas portas... Não tinha força nem tempo para tentar todas elas. E, enquanto estava lá em pé, a ponto de chorar de frustração e dor, lutando para me manter resoluta em minha decisão de fuga, eu a vi. Eu vi a fantasma.

Percebi um movimento pelo canto do olho. Achei que fosse uma criada da cozinha a caminho dos aposentos dos criados, na parte mais alta do sótão, mas a figura que estava à minha frente não era uma serviçal comum.

Ela era muito pequena. Se não fossem pelos seios fartos e pelo corpo curvilíneo, podia se passar por uma criança. Sua figura feminina estava envolta num traje exótico feito de seda finíssima, pantalonas esvoaçantes e uma túnica sem manga, pequena demais para cobrir seus seios. E que seios maravilhosos eram, perfeitamente redondos, firmes e altos! Ao olhar para eles, podia-se imaginar o quão pesados seriam quando apalpados, o tipo de seios que atrai qualquer homem.

Além de sua forma sedutora, ela era esteticamente linda. Seus olhos amendoados pareciam ainda maiores com o contorno preto. Os cabelos eram uma variedade de tons de cobre, castanho e dourado, e caíam em cachos despenteados até a cintura. Alejandro descrevera perfeitamente a cor da pele dela: canela, levemente manchada de mica para fazê-la brilhar, como se ela fosse feita de algum tipo de pedra preciosa. Lembro-me de tudo isso agora com a vantagem de tê-la visto muitas vezes depois desse episódio e sabendo que era feita de carne e osso; mas, na época, ela poderia ter sido uma visão, invocada pela mente masculina como a perfeita fantasia sexual. Ela era fascinante e de tirar o fôlego. Tinha medo de me mexer e ela ir embora. Ela me olhou de volta, cautelosa, enquanto eu olhava fixamente para ela.

— Por favor, não vá! Preciso de sua ajuda. — Cansada de ficar em pé, me escorei no corrimão. Ela deu um passo para trás, seus pés descalços sobre o tapete. — Não, não, por favor, não me deixe! Estou doente e preciso sair dessa casa. Por favor, preciso de sua ajuda para continuar viva. Seu nome é Uzra, não é? — Ao ouvir seu nome, ela deu mais alguns passos para trás, virou-se e desapareceu na escuridão, no topo da escada para o sótão. Naquele momento, não sei se minhas forças se esvaíram ou se minha determinação vacilou enquanto ela fugia de mim, mas escorreguei e caí. O teto rodava acima de minha cabeça, como uma lanterna girando livremente enrolada numa corda: primeiro girando numa direção, depois, na outra. De repente, tudo ficou escuro. Então, murmúrios e o toque de dedos.

— O que ela está fazendo fora do quarto? — Era a voz de Adair, irritada e baixa. — Você disse que ela não conseguiria sair da cama.

— Aparentemente ela é mais forte do que parece — Alejandro murmurou. Alguém me levantou e me senti leve, flutuando.

— Coloque-a de volta lá dentro e dessa vez tranque a porta. Ela não pode sair dessa casa. — A voz de Adair começou a se afastar. — Ela vai morrer?

— Pelo inferno, como posso saber? — Alejandro resmungou num suspiro e então gritou, bem alto, para que Adair pudesse ouvir. — Acho que isso vai depender de você.

Depender dele? Como poderia depender dele se eu viveria ou morreria? No entanto, não tinha mais tempo para ficar contemplando essa conversa perturbadora, já que mergulhava novamente no vácuo escuro e silencioso do esquecimento.

 

— Ela está morrendo; não conseguirá chegar até à noite.

Era a voz de Alejandro, dizendo coisas que eu não deveria ouvir. Minhas pálpebras se abriam e fechavam. Ele estava em pé, ao lado de Adair, ao pé da cama. Os dois tinham os braços cruzados no peito, resignados, com uma expressão grave no rosto.

Aproximava-se o fim absoluto e eu ainda não fazia ideia do que fariam comigo, por que Adair havia se incomodado em demonstrar sua afeição por mim ou se ocupado em me oferecer poções homeopáticas, ao mesmo tempo que me recusava um médico. Àquela altura, seu comportamento estranho não fazia a menor diferença: eu estava à beira da morte. Se era o meu corpo que eles queriam para dissecação médica, ou experiências ou rituais satânicos, não havia nada para impedi-los. Afinal, o que eu era além de uma vagabunda sem dinheiro e sem amigos? Não era nem uma criada; era menos do que isso, uma mulher que deixava estranhos fazerem o que bem entendessem com ela em troca de abrigo e comida. Teria chorado por aquilo que me tornara, mas a febre havia me deixado sem lágrimas.

Não dava para discordar da conclusão de Alejandro: eu estava morrendo. Um corpo não podia se sentir tão mal e estar vivo; eu fervia por dentro, cada músculo queimava. Tudo doía. A cada respiração, minhas costelas estalavam como um fole enferrujado. Se não sentisse tanta culpa por carregar o bebê de Jonathan e tivesse tanto medo do peso de todos os pecados pelos quais seria julgada, teria rezado a Deus para me perdoar e me deixar morrer.

Tinha somente um arrependimento, que era nunca mais ver Jonathan de novo. Eu acreditava tão piamente que estávamos destinados a ficar juntos, que parecia inconcebível que pudéssemos estar separados, que eu morreria sem poder tocar em seu rosto, que ele não estaria segurando minha mão nesse último suspiro. A gravidade da situação tornou-se real para mim naquele momento: meu fim estava aqui, não havia nada a ser feito, nenhuma súplica a Deus mudaria isso. E tudo o que eu mais queria era ver Jonathan.

— A decisão é sua — Alejandro disse a Adair, que até então não havia dito uma só palavra. — Se ela lhe agrada. Dona e Tilde já se posicionaram...

— Não é uma votação — ele respondeu, irritado. — Nenhum de vocês diz quem vai fazer parte de nossa família. Vocês todos continuam a existir porque eu quero... — Tinha ouvido direito? Achei que não; suas palavras confusas retumbavam em minha mente... — Vocês continuam à minha disposição. — Adair deu um passo para o meu lado e passou a mão em minha testa suada. — Vê a expressão no rosto dela, Alejandro? Ela sabe que está morrendo e, mesmo assim, está lutando. Vi essa mesma expressão no seu rosto, no de Tilde. É sempre a mesma coisa. — Ele pegou meu rosto com as duas mãos. — Me ouça, Lanore. Estou prestes a dar a você um presente raro. Você compreen­de? Se eu não intervier, você morrerá. Então, esta será nossa troca... Estou pronto para resgatá-la quando morrer e trazer sua alma de volta para este mundo. Mas isso significa que você pertencerá inteiramente a mim, não apenas seu corpo. Ser dono do seu corpo é fácil, posso fazer isso agora mesmo. Quero mais de você; quero sua alma ardente. Você concorda com isso? — ele perguntou, procurando uma reação em meus olhos. — Prepare-se! — ele me disse. Não tinha ideia sobre o quê ele estava falando.

Ele inclinou-se mais perto, como um pastor prestes a ouvir minha confissão. Segurou um frasco de prata, tão fino quanto o bico de um beija-flor, e tirou a tampa, mais uma agulha do que uma tampa.

— Abra a boca — ele ordenou, mas eu estava petrificada de medo. — Abra sua maldita boca — ele repetiu — ou vou quebrar sua mandíbula ao meio.

Em meu estado de confusão, achei que ele estivesse oferecendo os sacramentos (para todos os efeitos, eu vinha de uma família católica) e queria a absolvição de meus pecados. Então, abri a boca e fechei os olhos, esperando.

Ele passou a tampa pela minha língua. Não senti nada, o instrumento era minúsculo, mas minha língua imediatamente amorteceu e foi tomada por um sabor odioso. Minha boca encheu de água e comecei a convulsionar; ele fechou minha boca e a segurou, me prendendo na cama enquanto eu era tomada por convulsões. Minha boca se enchia de sangue e ficava mais amarga e ácida por causa da poção que ele colocara em minha língua. Será que ele me envenenara para acelerar minha morte? Estava afogada em meu próprio sangue e não sentia nada. No fundo de minha mente, ouvia Adair murmurar palavras que não faziam sentido. Mas o pânico tinha tomado o lugar de tudo, principalmente o da lógica. Não me importava com o que ele estava dizendo ou por que ele estava fazendo aquilo. Eu estava completamente em choque.

Meu peito se apertava, a dor e o pânico eram agonizantes. Meus pulmões não funcionavam mais, não conseguia respirar. Meu cérebro parou. Estava morrendo, mas não morreria sozinha. Minhas mãos foram instintivamente para minha barriga, acariciando a pequena protuberância que agora se tornara inegavelmente evidente.

Adair ficou petrificado, a percepção de uma nova descoberta em seu rosto.

— Meu Deus, ela está grávida! Ninguém sabia que ela estava carregando uma criança? — ele rugiu enquanto virava-se, mexendo os braços violentamente, com Alejandro atrás dele. Meu corpo começou a parar, pouco a pouco, e minha alma, aterrorizada, buscava um lugar para ir.

Então, a vida cessou.

 

Acordei.

Obviamente, a primeira coisa que pensei foi que aquele incidente terrível havia sido um sonho e que eu tinha ultrapassado o limite de minha doença e estava me recuperando. Encontrei um conforto momentâneo nessas explicações, mas não podia negar que algo terrível e irremediável havia acontecido comigo. Quando me concentrava muito, tinha umas visões confusas de estar presa no colchão, de alguém carregando uma bacia de cobre cheia de sangue grosso e malcheiroso.

Acordei em minha cama pobre, dentro do quartinho, mas o quarto estava gelado, o fogo havia muito tempo já tinha se apagado. As cortinas sobre a única janela estavam fechadas, mas era possível enxergar um pedacinho do céu nublado onde os painéis se encontravam. O céu tinha aquela cobertura cinza do outono da Nova Inglaterra, mas mesmo esses pequenos feixes de luz eram muito brilhantes e claros, difíceis de olhar.

Minha garganta queimava como se tivesse sido forçada a beber ácido. Resolvi sair para procurar uma jarra de água, mas, quando me sentei, fui jogada imediatamente para trás, enquanto o quarto girava, rodava. A luz, meu equilíbrio... Sentia-me absolutamente sensível, como um inválido que fora transformado por uma prolongada doença.

Exceto por minha garganta e minha cabeça fervendo, o restante de mim estava frio. Meus músculos já não ardiam em febre. Eu me mexia com letargia, como se tivesse sido deixada flutuando na água fria por dias. Uma coisa importante havia mudado e não tinha ninguém para me dizer o que era: já não carregava mais o bebê comigo; ele se fora.

Levei quase meia hora para sair do quarto, acostumando-me aos poucos a ficar em pé e, então, a caminhar. Enquanto percorria vagarosamente o corredor até a ala dos quartos, ouvia os barulhos cotidianos da casa com muita clareza, com a precisão dos animais: conversas sussurradas entre os amantes na cama; o ronco do mordomo-chefe cochilando na rouparia; o som de água sendo retirada de um caldeirão gigante, talvez para o banho de alguém.

Parei em frente do quarto de Alejandro, com os pés bambos, me controlando para entrar e pedir para que ele explicasse o que havia acontecido comigo e com meu filho. Levantei a mão para bater à porta, mas parei. O que quer que houvesse acontecido comigo era sério e irrevogável. Sabia quem tinha as respostas e resolvi ir diretamente à fonte: aquele que tinha colocado o veneno em minha língua, dito palavras mágicas em meu ouvido e provocado todas as mudanças. Aquele que, com toda certeza, havia tirado meu filho de mim. Em nome de meu filho perdido, precisava ser forte.

Virei e caminhei suavemente até o final do corredor. Levantei a mão para bater e, de novo, pensei melhor sobre o assunto. Não viria até Adair como uma criada, pedindo permissão para falar com ele.

As portas se abriram com um empurrão. Eu conhecia os aposentos e os hábitos do ocupante, então fui diretamente ao local cheio de travesseiros onde Adair dormia. Ele estava deitado sob um cobertor de zibelina, imóvel como um cadáver, os olhos arregalados, olhando para o teto.

— Você está conosco de novo — era mais uma declaração do que uma observação. — Está de volta ao mundo dos vivos.

Estava com medo dele. Não podia explicar as coisas que tinha feito comigo e por que não tinha fugido do convite de Tilde na carruagem, nem por que tinha deixado tudo isso acontecer. Mas chegara o momento de confrontá-lo.

— O que você fez comigo? E o que aconteceu com meu bebê?

Os olhos dele moveram-se, fixando-se em mim, tão sinistros quanto os de um lobo.

— Você estava morrendo de uma infecção e eu resolvi não deixá-la partir. E você não queria morrer, vi em seus olhos. Quanto ao bebê, não sabíamos que carregava uma criança. Depois que lhe demos a unção, não havia nada a fazer com relação a ele.

Meus olhos se encheram de lágrimas. Mesmo depois de tudo, do exílio de St. Andrew, de sobreviver àquela infecção infernal, meu bebê havia sido arrancado de mim sem a menor consideração.

— O que você fez... como você me livrou da morte? Você disse que não era médico...

Ele levantou-se da cama e vestiu um robe de seda. Agarrou meu punho e, antes que eu soubesse o que estava acontecendo, me puxou para fora do quarto, escada abaixo.

— O que aconteceu a você não pode ser explicado. Só pode ser... demonstrado.

Ele me levou até os aposentos comuns na parte de trás da casa. Quando passamos por Dona no corredor, Adair estalou os dedos para ele e disse:

— Venha conosco. — Ele me levou para o quarto atrás da cozinha onde eram mantidos os caldeirões gigantes, usados para cozinhar para multidões, além de outros artigos de despensa: grelhas de peixe com formato de um aparelho de tortura medieval, canecas e formas de bolo, e metade de um barril de água da cisterna para uso da casa. A água brilhava, escura e gélida, dentro do barril.

Adair me jogou nos braços de Dona e apontou para o barril com um movimento de cabeça. Dona rolou os olhos enquanto levantava a manga da camisa de seu braço direito e, então, tão suave quanto uma dona de casa agarra a galinha que servirá no jantar, ele me agarrou pela nuca e mergulhou minha cabeça na água. Não tive tempo de me preparar e engoli uma golfada de água, imediatamente. Pela força de seu braço, era possível perceber que ele não me deixaria escapar. Tudo que eu podia fazer era espernear e lutar na esperança de virar o barril ou ele, por compaixão, me deixaria escapar. Por que Adair tinha me salvado da infecção e da febre para me afogar agora?

Ele gritava para mim; eu ouvia a voz dele através do borbulhar da água, porém não conseguia entender o que dizia. Um tempo enorme pareceu passar, mas eu sabia que era ilusão. Diz-se que aqueles que estão para morrer, no pânico, vivem cada um de seus últimos segundos clara e distintamente. Mas eu já não tinha mais ar nos meus pulmões e, certamente, a morte viria a qualquer momento. Estava amortecida pelo frio e terror, esperando pelo fim. Queria me juntar a meu filho perdido, queria, depois de tudo o que acontecera comigo, desistir de tudo. Ficar em paz.

Dona arrancou minha cabeça para fora do barril e a água escorreu pelo meu cabelo, rosto e ombros, esparramando-se por todo o chão. Ele me segurou, fiquei em pé.

— Então, o que acha? — Adair perguntou.

— Você acabou de tentar me matar!

— Mas você não se afogou, não é? — Ele passou uma toalha para Dona e ele a usou para limpar seu braço molhado, com desdém. — Dona a segurou lá embaixo por uns bons cinco minutos e aqui está você, viva. A água não a matou. E por que acha que isso aconteceu?

Eu pisquei, tirando a água gelada dos olhos.

— Eu... não sei.

Seu olhar era como o de um esqueleto, vazio.

— Você é imortal. Nunca mais vai morrer.

 

Encolhi-me ao lado da lareira no quarto de Adair. Ele me deu uma taça e uma garrafa de brandy, e deitou-se na cama enquanto eu olhava fixamente para as chamas e evitava a hospitalidade de sua bebida. Não queria acreditar nem queria nada do que ele pudesse me dar. Se não podia matá-lo por tirar meu filho de mim, então queria fugir dele e daquela casa. Mais uma vez, o medo não permitiu que eu pensasse claramente e meus últimos fios de bom senso me aconselhavam a não ir embora e ouvi-lo.

Ao lado da cama havia um aparato curioso, com tubos e compartimentos feitos de metal e vidro. Agora sei que é um narguilé, mas, na época, era somente um aparelho exótico de onde se tragava uma fumaça adocicada. Adair tragou-o e exalou uma longa fumaça em direção ao teto, até seus olhos ficarem vidrados e seus membros, lânguidos.

— Você compreende agora? — ele perguntou. — Você não é mais mortal; está acima da vida e da morte. Não pode morrer. — Ele ofereceu o narguilé para mim e o puxou de volta quando eu não aceitei. — Não importa de que forma tentem matá-la; nem flecha nem rifle, nem faca ou veneno, nem fogo ou água, nem terra, nem doença, nem fome.

— Como isso pode ser verdade?

Ele deu outra longa baforada, segurando a fumaça narcótica por um momento antes de exalar uma nuvem espessa.

— Como isso começou, eu não sei dizer. Já pensei, rezei e sonhei com isso usando todo tipo de drogas. Nenhuma resposta veio até mim. Não posso explicar e parei de procurar respostas.

— Está dizendo que você não morre?

— Estou dizendo que estou vivo há centenas de anos.

— Quem, no reino de Deus, é imortal? — perguntei a mim mesma. — Os anjos são imortais.

Adair bufou.

— Sempre os anjos, sempre Deus. Por que quando ouvem uma voz, sempre acham que é a voz de Deus?

— Você está dizendo que é obra do demônio?

Ele coçou a barriga bem torneada.

— Estou dizendo que tenho buscado respostas e que nenhuma voz falou comigo até hoje. Nem Deus nem Satã se deram ao trabalho de me explicar como este “milagre” se encaixa nos planos deles. Ninguém me pediu para ser submisso a ele. A partir daí, só posso deduzir que não sou servo de nenhum dos dois. Não tenho mestre. Somos todos imortais: Alejandro, Uzra e os demais. Eu transformei todos vocês, você compreende? — Outra longa baforada no narguilé, um gole de água e sua voz retumbante baixou. — Você transcendeu a morte.

— Pare de dizer isso, por favor! Está me assustando.

— Irá se acostumar e, logo, logo, não sentirá mais medo. Não haverá nada com o que se assustar. Agora, há somente uma regra a seguir, uma pessoa a quem deve obedecer e essa pessoa sou eu. Tenho sua alma, Lanore. Sua alma e sua vida.

— Agora tenho que obedecer a você? Isso significa que você é Deus? — bufei também, insolente, quando senti que podia ser assim com ele.

— O Deus com o qual foi criada desistiu de você. Lembra-se do que eu lhe disse antes de receber o presente? Você é minha posse agora e para sempre. Eu sou seu deus e, se não acreditar e quiser testar o que digo, eu a convido para um confronto.

Com isso, deixei que me levasse até a cama e não protestei quando ele se deitou a meu lado. Ele me deu a ponta do narguilé e acariciou meus cabelos úmidos enquanto eu sugava a fumaça espessa. O droga tomou conta de mim, me embalou, e meu medo desabou feito uma criança exaurida. Agora que eu estava cansada e com sono, Adair parecia quase carinhoso.

— Não lhe devo explicações, Lanore, mas existe uma história. Eu lhe contarei essa história, a minha história. Eu lhe direi como me tornei imortal e, talvez assim, você compreenda tudo.

                     TERRITÓRIO DA HUNGRIA, 1349 d.C.

Assim que Adair vira o estranho, sabia, pela clareza do arrepio premonitório, que o velho homem tinha vindo atrás dele.

O final do dia era o momento em que eles celebravam, os trabalhadores nômades com quem a família de Adair viajava. Conforme a noite caía, eles montavam enormes fogueiras para apreciar a parte do dia que consideravam ser deles. As longas horas de trabalho nos campos terminavam e, então, eles se reuniam para dividir a comida e a bebida, e para se divertir. Seu tio, sem ainda estar bêbado, tocaria canções folclóricas em seu violino de camponês, acompanhando a mãe de Adair e as outras mulheres enquanto cantavam. Um traria um tamborim; outro, uma balalaica. Adair sentava-se com a família toda, seus cinco irmãos e duas irmãs, além das esposas dos irmãos mais velhos. Naquela noite, a felicidade dele era completa até o momento em que viu, do outro lado do fogo trepidante, Katarina se aproximar com a família dela.

Ele e sua família eram nômades, assim como a família de Katarina e todos da caravana. Muito tempo antes, eles foram servos de lorde Magyar, mas ele os havia abandonado, deixando-os à mercê dos bandidos. Eles fugiram dos vilarejos em charretes e viviam nas charretes a partir de então, seguindo as colheitas como trabalhadores itinerantes, perfurando valas, cuidando dos campos, fazendo qualquer trabalho que pudessem encontrar. Os reinos de Magyar e Romênia estavam em guerra, e havia poucos nobres magiares no campo para proteger os vagabundos, caso se sentissem inclinados a protegê-los.

Ainda assim, fazia tanto tempo que tinham sido forçados a abandonar suas casas, que Adair já não se lembrava do que era dormir dentro de uma casa, de ter um pouco de segurança. Seus irmãos Istvan e Radu eram bebês e não se recordavam daquela época feliz de antes. Adair sentia-se mal por seus irmãos mais novos nunca terem conhecido os confortos daquele tempo, mas, de qualquer forma, à maneira deles, pareciam ser mais felizes do que o restante da família e ficavam perplexos pela melancolia que tomava conta de seus pais e irmãos.

Naquela noite, o estranho apareceu de repente, do lado de fora do grupo. A primeira coisa que Adair notou era que ele era muito velho, praticamente um corpo encolhido se apoiando sobre um cajado, e, quando chegou mais perto, parecia ainda mais velho. A pele dele era fina como papel, enrugada e pintada de manchas senis; seus olhos eram cobertos por uma fina camada esbranquiçada, mas, mesmo assim, havia uma estranha sagacidade neles. Tinha cabelos grossos e brancos, tão longos que caíam em suas costas numa trança. Porém, o mais notável de tudo, eram suas roupas de corte romeno e tecidos caros. Quem quer que ele fosse, era rico e, apesar de ser um homem velho, não tinha medo de entrar num acampamento cigano sozinho e à noite.

Ele abriu caminho pelo grupo de pessoas e ficou em pé no meio do círculo, perto da fogueira. Enquanto seu olhar vasculhava as pessoas na multidão, o sangue de Adair disparava nas veias. Adair não era diferente dos outros garotos no acampamento: sem instrução, sem banho e sem comida. Ele sabia que não havia razão para o velho homem o escolher, mas seu mau pressentimento era tão forte que, não fosse por seu orgulho juvenil, ele poderia ter dado um salto e fugido do círculo. Ele não tinha feito nada para aquele velho homem, então, por que deveria fugir?

Depois de uma busca silenciosa em meio aos rostos iluminados pelo brilho das labaredas, o velho homem sorriu sarcasticamente, ergueu a mão e apontou diretamente para Adair. Então, olhou para o grupo dos mais velhos. Agora, toda a atividade já tinha cessado: a música, as gargalhadas. Todos os olhares recaíram sobre o estranho e, dele, para Adair.

Seu pai quebrou o silêncio. Ele abriu caminho pelos irmãos e irmãs de Adair e agarrou-o pelo braço, praticamente o arrancando de seu lugar.

— O que você fez, menino? — ele sibilou através do buraco entre os dentes. — Não fique aí sentado, venha comigo! — Ele fez o filho ficar em pé. — O resto de vocês, o que estão olhando? Voltem para sua contação de histórias e sua cantoria tola! — Enquanto ele arrastava Adair para longe. Adair podia sentir, nas costas, os olhares de sua família e de Katarina.

Os dois foram até um lugar escuro embaixo de uma árvore, fora do alcance dos ouvidos das pessoas ao redor da fogueira, seguidos pelo estranho.

Adair tentou se desvencilhar do problema que tinha chegado até ele.

— Quem quer que esteja procurando, juro que não sou eu. Está me confundindo com outra pessoa.

O pai lhe estapeou.

— O que você fez? Roubou uma galinha? Tirou algumas batatas e cebolas do campo?

— Eu juro — Adair bravejou cuspindo, colocando a mão sobre a bochecha quente e apontando para o velho. — Eu não o conheço.

— Não deixe que sua imaginação culpada tome conta de você. Não estou acusando o garoto de qualquer crime — o velho homem disse ao pai de Adair. Ele contemplou Adair e seu pai com desdém, como se fossem pedintes ou ladrões. — Escolhi seu filho para trabalhar para mim.

Por sorte, o pai de Adair desconfiou da oferta.

— Como ele lhe poderia ser útil? Ele não tem nenhuma habilidade especial. Tem a mão para trabalhar no campo.

— Preciso de um criado. Um garoto com as costas fortes e pernas firmes.

Adair viu sua vida sofrer uma reviravolta brusca e indesejada.

— Nunca fui um criado de casa. Não saberia o que fazer...

Um segundo tapa do pai fez Adair parar.

— Não se mostre mais inútil do que já é — seu pai falou com raiva. — Você pode aprender, mesmo que a aprendizagem não seja seu ponto mais forte.

— Ele aprenderá, tenho certeza. — O estranho caminhou ao redor de Adair, avaliando-o como um cavalo à venda no mercado de ladrões. Enquanto caminhava, deixava um rastro de cheiro seco e esfumaçado, como incenso. — Não preciso de alguém com uma mente forte, só de alguém para ajudar um velho homem frágil com as demandas da vida. Mas... — Nesse momento, seus olhos semicerraram e seu semblante tornou-se cruel novamente. — Moro muito longe e não farei essa viagem novamente. Se seu filho quiser o trabalho, deverá ir embora comigo esta noite.

— Esta noite? — A garganta de Adair se fechou.

— Estou preparado para pagar pela perda da contribuição de seu filho à família — o estranho disse ao pai de Adair. Com essas palavras, Adair percebeu que estava perdido, pois seu pai não recusaria o dinheiro. Sua mãe estava se aproximando, embaixo das sombras das árvores, levantando as saias. Ela ficou com Adair, enquanto o pai e o estranho negociavam o preço. Assim que a quantia foi determinada e o velho homem saiu para preparar o cavalo, a mãe de Adair correu até o marido.

— O que está fazendo? — ela gritou, mesmo sabendo que o marido não mudaria de ideia. Não haveria discussão com ele.

Havia muita coisa em risco para Adair, mas seu pai não tinha nada a perder, então, virou-se para ele.

— O que está fazendo comigo? Um estranho entra no acampamento e você vende um de seus filhos para ele? O que sabe sobre ele?

— Como ousa me questionar? — ele respondeu, dando-lhe um soco que jogou Adair no chão. O restante da família havia vindo da fogueira e estava além do alcance do pai. Não havia nada de novo em ver um irmão apanhar, mas, ainda assim, era muito desconcertante. — Você é muito estúpido para enxergar uma oportunidade quando ela aparece. Obviamente, este homem é muito rico. Será o criado de um homem rico. Irá viver numa casa, não numa charrete, e não terá que trabalhar nos campos. Se achasse que o homem fosse concordar, pediria para levar um dos outros também. Talvez Radu, ele não é tão cego a ponto de não perceber quando algo bom cai em seu colo.

Adair se levantou do chão, envergonhado. Seu pai bateu de novo na parte de trás de sua cabeça, em sinal de repreensão.

— Vá, arrume suas coisas e se despeça! Não deixe o homem esperando por você.

Sua mãe procurou o rosto do marido.

— Ferenc, o que sabe desse homem para colocar nosso filho nas mãos dele? O que ele lhe contou de si próprio?

— O suficiente. Ele é o físico de um conde. Mora numa casa na propriedade do conde. Adair será seu servo durante sete anos. Ao final de sete anos, ele pode escolher ir embora ou continuar a trabalhar com o físico.

Adair fez o cálculo: em sete anos, estaria com 21 anos, metade de sua vida. De fato, ele estava chegando à idade de se casar e não tinha paciência para seguir o exemplo de seus irmãos mais velhos e escolher uma noiva, começar uma família, ser aceito como um homem. Como servo de uma casa, não poderia casar ou ter filhos; sua vida ficaria suspensa durante esta época importante. Quando fosse livre, estaria velho. Que mulher o aceitaria?

E sua família? Onde estaria daqui a sete anos? Eram itinerantes, se mudavam para encontrar trabalho, abrigo, para fugir do tempo ruim. Nenhum deles sabia ler ou escrever. Nunca conseguiria encontrá-los novamente. Quando ele deixasse o emprego com o estranho, como sobreviveria sem eles?

— Quer dizer que somos um fardo para você? — Radu lamentou. Dois anos mais novo do que Adair, Radu era o sensível da família. Ele correu para Adair e passou os braços finos em volta da cintura dele, enxugando as lágrimas na camisa rasgada do irmão.

— Adair já é um homem e tem que encontrar seu caminho no mundo — o pai disse a Radu, depois a todos eles. — Agora chega de histeria. Adair tem que arrumar as coisas.

 

Adair viajou a noite toda cavalgando atrás do estranho, conforme fora instruído. Ficou surpreso ao saber que o velho homem tinha um cavalo magnífico, o tipo de cavalo que um cavaleiro teria, pesado o bastante para que seu trote fizesse o chão tremer. Adair conseguia ver que estavam indo para o oeste, mais para dentro do território romeno.

Pela manhã, passaram pelo castelo do conde para quem o físico trabalhava. Não havia nada de poético nele. Era uma fortaleza (baixa e sólida, quadrada, cercada por um punhado de casinhas e redis de carneiros e gado). Campos cultivados estendiam-se em todas as direções. Os dois cavalgaram durante mais vinte minutos por uma densa floresta, antes de chegar a uma pequena construção de pedra, quase escondida pelas árvores. A construção parecia úmida, coberta pelo musgo que crescia sem a luz do sol para controlá-lo. Para Adair, a construção parecia mais uma masmorra do que uma casa, aparentemente sem nem mesmo uma porta cortada em sua fachada assustadora.

O velho homem desceu do cavalo e instruiu Adair a cuidar dos cavalos antes de se juntar a ele dentro da casa. Adair permaneceu com o equino o máximo que pôde, tirando a sela e o estribo, buscando água para ele, coçando-lhe as costas com um galho seco. Quando se entediou, pegou a sela e entrou na casa.

Dentro, a fumaça era tanta que mal dava para ver, havia uma lareira pequena acesa e somente uma janela estreita para deixar a fumaça sair. Olhando ao redor, Adair viu que a casa era um aposento grande e circular. Uma mulher dormia perto da porta numa cama de palha. Ela era facilmente dez anos mais velha do que ele, como uma matrona, com mãos grandes avermelhadas e feições quase assexuadas. Dormia cercada pelas ferramentas ligadas a seu gênero: tigelas, colheres de pau, potes e baldes; uma placa de madeira que servia de mesa, usada e engordurada; pilhas de suportes de madeira que serviam como pratos; jarros de vinho e cerveja. Guirlandas de pimenta e alho penduravam-se dos ganchos nas paredes de pedra, junto a cordões de salsicha e uma fileira de pedaços de pão de centeio.

Do outro lado do aposento, havia uma escrivaninha coberta de garrafas e jarros, maços de papel, tinteiro e penas, e uma novidade sobre a qual Adair nunca havia colocado os olhos: livros com capas de madeira. Cestas contendo artefatos estranhos da floresta estavam prontas atrás da mesa: raízes secas empoeiradas, pinhas, maços de urtiga, galhos de ervas daninhas. Atrás da escrivaninha, Adair podia ver uma escadaria que levava para baixo, provavelmente para um porão gelado.

De repente, o velho estava ao lado de Adair, espreitando o jovem ignorante.

— Suponho que queira saber meu nome. Sou Ivor cel Rau, mas deve se dirigir a mim como “mestre”. — Enquanto tirava sua capa pesada e aquecia as mãos no fogo, o físico explicou que vinha de uma linhagem de nobres romenos proprietários de terras, o último dos homens da família. Apesar de saber que um dia herdaria o castelo e a propriedade da família, quando jovem decidiu buscar uma profissão e fora a Veneza estudar medicina. Em suas décadas como físico, havia servido a vários condes e até mesmo a reis. Agora ele estava no final de uma longa carreira, a serviço do Conde cel Batrin, o nobre romeno dono do castelo pelo qual haviam passado. O físico explicou que não havia contratado Adair para ensiná-lo as artes da cura, mas esperava que ele o ajudasse buscando ervas e outros ingredientes para unguentos e elixires, além de executar tarefas diárias e ajudar a governanta, Marguerite.

O velho homem fuçou dentro do baú aberto até encontrar um velho cobertor de lã, surrado e áspero.

— Monte sua cama de palha perto do fogo. Quando Marguerite acordar, ela lhe dará comida e as ordens para o dia. Também tente descansar, pois quero que esteja pronto hoje à noite quando eu acordar. Ah, e não fique surpreso se Marguerite não prestar atenção nem falar com você, ela é surda-muda desde que nasceu. — E, assim, o velho homem pegou uma vela, que já estava acesa na mesa da cozinha esperando por ele, e caminhou mancando em direção à escadaria escura. Adair seguiu suas ordens e se encolheu perto do fogo, caindo no sono antes que a luz da vela se apagasse no andar de baixo.

 

Ele acordou com o movimento da governanta. Ela parou o que estava fazendo para olhar descaradamente para Adair quando ele se levantava do chão. Adair ficou mais decepcionado do que quando ela estava dormindo: ela era pior do que comum; era feia, com um rosto masculinizado e o corpo largo de um trabalhador do campo. Ela deu a Adair uma refeição de mingau gelado e água e, quando ele terminou, levou-o até o poço e lhe deu um balde, gesticulando as instruções. Ela o fez cortar lenha para o fogo, além de carregar água para a cozinha e os animais. Mais tarde, quando ela foi esfregar roupa num grande tonel de madeira, Adair tentou cochilar, lembrando-se da admoestação do velho.

Quando deu por si, Marguerite o estava sacudindo pelo ombro e apontando para a escadaria. A noite havia caído e o velho estava acordando nos seus aposentos no andar de baixo. A governanta começou a acender as velas no cômodo principal, e, nesse momento, o velho subiu as escadas, carregando a mesma vela curta e grossa das primeiras horas da manhã.

— Você está de pé; bom — disse o físico enquanto arrastava os pés. Ele foi diretamente para sua escrivaninha e folheou as páginas de uma escrita indecifrável. — Acenda o fogo — ele mandou — e pegue um caldeirão. Essa noite preciso fazer uma poção e você me ajudará.

Ignorando o novo serviçal, o físico começou a mexer nas fileiras de jarros, cada um coberto com um pano e um cordão, virando cada um deles para o fogo para ler os rótulos, colocando alguns de lado. Depois que o caldeirão estava pendurado e quente sobre as chamas, Adair ajudou o velho homem a carregar os jarros até a lareira. Sentado ao lado dele, observou o físico medir os ingredientes em suas mãos enrugadas e, então, jogá-los dentro do pote. Adair reconheceu algumas plantas e ervas agora secas a ponto de cinza, mas outras eram mais misteriosas. Uma garra de morcego ou a pata de um rato? A crista de um galo? Três penas pretas, mas de qual pássaro? De um jarro com a tampa bem apertada, o físico derramou algumas gotas de um xarope escuro que exalou um cheiro podre assim que foi exposto ao ar. Por último, adicionou um jarro de água e, então, virou-se para Adair.

— Observe com atenção: espere até ferver completamente, depois apague o fogo e cuide para que o unguento não grude. Deve ser grosso, como piche. Entende?

Adair concordou.

— Posso perguntar para que serve essa poção?

— Não, não pode perguntar — ele respondeu, mas então pareceu pensar melhor sobre o assunto. — Com o tempo, aprenderá, quando adquirir esse tipo de sabedoria. Bem, agora vou sair. Cuide do pote conforme eu o instruí. Não saia da casa e não pegue no sono. — Adair ficou olhando enquanto o velho pegou sua capa de um gancho e saiu sorrateiramente.

Ele fez o que lhe foi mandado, ficou sentado perto o suficiente para inspirar a fumaça malcheirosa que saía da água fervente. A casa estava quieta, exceto pelo ronco de Marguerite, e Adair a observou por um tempo; o subir e descer da barriga dela sob o cobertor, a palha estalando conforme ela virava durante o sono. Quando se cansou de seu entretenimento mesquinho, foi até a escrivaninha do físico e estudou as páginas escritas à mão, desejando poder lê-las. Ele pensou em convencer o velho homem a ensiná-lo a ler; com certeza o físico acharia útil que seu servo tivesse essa habilidade.

De vez em quando, Adair mexia o conteúdo do caldeirão com uma colher de pau, avaliando a consistência e, quando parecia estar certa, ele pegava a pá de ferro e tirava a lenha que estava queimando, colocando-a no canto da lareira, deixando só brasas embaixo do caldeirão. Nesse ponto, Adair sentiu que poderia relaxar em segurança, então se enrolou no cobertor esfiapado e encostou-se na parede. O sono lhe mordiscava as orelhas por causa de uma cerveja deliciosa de que havia tomado um gole, mas sabia que não poderia beber mais. Fez de tudo para se manter acordado: andou de um lado para o outro, tomou água gelada, fez parada de mãos. Depois de uma hora, estava mais exausto do que nunca e à beira de cair no chão em estupor quando, de repente, a porta se abriu e o velho entrou. Ele parecia revigorado, seus olhos turvos quase brilhantes. Espreitou dentro do caldeirão.

— Muito bem! O unguento parece bom. Tire o caldeirão do gancho e coloque-o no chão, para esfriar. Pela manhã, derramará o unguento na urna e a cobrirá com papel. Agora pode ir descansar; o dia está quase amanhecendo.

Passaram-se muitas semanas como essa. Adair estava feliz pela rotina manter sua mente longe da perda de sua família e de sua amada Katarina. Durante as manhãs, ele ajudava Marguerite e, à tarde, descansava. As noites eram usadas para o preparo de poções e unguentos, ou para que o velho lhe ensinasse a reconhecer e juntar os ingredientes. Ele levava Adair até a floresta para procurar plantas específicas ou sementes, à luz da lua. Outras noites, Adair juntava retalhos e os pendurava no teto, perto do buraco do fogo. Quase todas as noites o físico desaparecia por algumas horas e sempre voltava ao amanhecer. Em seguida, se retirava para seu aposento no andar de baixo.

Após um ou dois meses, o físico começou a mandar Adair até o vilarejo que cercava os muros do castelo para trocar um pote de unguento por mercadorias, tecido, utensílios de ferro ou cerâmica. Depois desse tempo todo, Adair estava desesperado pela companhia de outras pessoas, até mesmo para poder ouvir a própria voz. Mas os moradores do vilarejo mantinham distância assim que descobriam que ele trabalhava para o físico. Se percebiam que Adair estava sozinho e desesperado por companhia e algumas palavras gentis, não se sensibilizavam e mantinham as transações breves e hostis.

Nessa mesma época, ocorreu uma mudança no relacionamento entre Adair e Marguerite, por culpa dele. Uma tarde, quando ele acordara de um cochilo e começara a se vestir, ela veio até a cama e colocou as mãos sobre ele. Sem esperar por estímulo, ela o empurrou de costas na palha, sentindo seu peito por baixo da túnica, e então foi até as calças e procurou pelo membro de Adair. Quando este estava bem envolvido em suas mãos, ela levantou as saias empoeiradas e se agachou sobre ele. Não havia carinho nos movimentos dela, nem nos de Adair, sem a pretensão de que aquilo nada mais era do que uma liberação física dos dois. Enquanto apertava a carne dela, Adair pensou em Katarina, mas não havia jeito de fingir que essa mulher, grande feito um urso, era seu amor delicado e de olhos negros. Ao final, Marguerite emitiu um som gutural enquanto rolava para longe de Adair, abaixou a saia e continuou com suas tarefas.

Ele continuou deitado na cama de palha, olhando para o teto e imaginando se o físico os teria ouvido e, se sim, o que ele faria. Talvez ele próprio satisfizesse seus desejos com Marguerite; não, isso não parecia possível e Adair imaginou que o velho visitasse uma prostituta no vilarejo para satisfazer aquela coceira durante suas rondas noturnas. Talvez com o tempo ele pudesse fazer o mesmo. Por hora, parecia ter adquirido um estilo de vida estranho, mesmo assim, não era tão difícil quanto trabalhar nos campos e havia a promessa de melhora, talvez se ele conseguisse persuadir o velho a ensiná-lo sobre as artes da cura. Apesar de Adair ainda sentir uma terrível falta de sua família, confortava-se com esses fatos e resolveu ficar um pouco mais e ver o que o destino guardava para ele.

 

Após meses de trabalho com o físico e o mínimo de contato com qualquer outra pessoa, exceto o velho homem e Marguerite, veio a noite da primeira visita de Adair ao castelo. Não que Adair quisesse ir à fortaleza de um nobre romeno; ele não sentia nada além de ódio pelos demônios que haviam atacado os vilarejos Magyar, destruído suas casas e confiscado suas terras. No entanto, ele mal podia esconder sua curiosidade; Adair nunca havia estado na residência de um homem rico, nem do lado de dentro dos muros do castelo. Só havia trabalhado nos campos. Ele imaginou que poderia aguentar se fingisse que o proprietário do castelo era um magiar, não um romeno. Assim, poderia se maravilhar com os grandes aposentos e a riqueza.

Naquela noite, seu trabalho era carregar um enorme jarro de uma poção na qual tinham trabalhado na noite anterior. Como sempre, o objetivo da poção era mantido em segredo. Adair esperou do lado de fora da porta enquanto o físico se debatia com sua aparência, finalmente escolhendo vestir uma túnica elegante, bordada com fios de ouro e ornamentada com cabochões coloridos, o que significava que a ocasião era muito especial. O físico foi em seu cavalo de guerra e Adair seguiu atrás com dificuldade, equilibrando a urna nas costas como uma velha senhora que não pode mais andar ereta. A ponte levadiça sobre o fosso foi rebaixada e eles foram acompanhados até o grande salão por um pelotão de soldados do conde; guardas se espalhavam pelos muros.

Havia uma festa acontecendo no grande salão. O físico juntou-se ao conde à cabeceira da mesa e Adair agachou-se no fundo da sala, encostado na parede, ainda segurando o jarro. Ele reconheceu alguns dos emblemas nos brasões que decoravam as paredes; eram de propriedades onde ele já trabalhara. O dialeto do conde soava familiar, mas Adair não conseguia entender o que eles falavam porque a conversa estava temperada por romeno. Até mesmo um garoto simples feito Adair entendia o que essa combinação de fatores significava: o conde era originalmente magiar, mas se aliara aos opressores romenos para salvar a própria pele e preservar sua fortuna. Devia ser por isso que os moradores do vilarejo o evitavam: achavam que Adair também fosse um simpatizante romeno.

Acabara de chegar a essa conclusão quando o velho o chamou para levar a urna. Dispensado com um aceno de mão do físico, Adair voltou a seu lugar à parede. O físico removeu a cobertura de tecido oleoso para que o conde pudesse inspecionar o conteúdo. O nobre fechou os olhos e inspirou profundamente, como se o cheiro daquela coisa fosse tão doce quanto um campo cheio de flores selvagens. Os cortesãos do conde riam com antecipação, como se já soubessem que algo fantástico estivesse prestes a acontecer. Adair segurava a respiração na esperança de saber qual o propósito de pelo menos uma das poções místicas do físico, quando o olhar cortante do velho caiu sobre ele.

— Acho que aqui não é lugar para um garoto — ele disse, fazendo movimento para um guarda. — Talvez possa encontrar algo para ocupar o tempo dele, ensinar-lhe uma coisa ou outra sobre a vida de um soldado. Talvez ele tenha que defender esse castelo um dia ou, no mínimo, salvar minha cabeça velha e imprestável.

Adair foi levado, em meio a risadas de escárnio dos convidados, a um pátio onde alguns poucos soldados gazeteavam. Estes não eram cavaleiros nem mesmo soldados profissionais; eram simples guardas, apesar de muito mais experientes com a espada ou a lança do que Adair. Sob o pretexto de treinamento, e com um prazer brutal, eles abusaram da inexperiência de Adair enquanto ele tentava se defender dessas armas incomuns. Quando lhe foi permitido retornar ao grande salão, seus braços doíam de tanto balançar uma espada de lâmina larga e cega, a mais pesada que os guardas conseguiram encontrar, e ele tinha cortes e ferimentos.

A cena no grande salão não foi o que esperava. O conde e seus vassalos pareciam estar num estado de intoxicação, recostados em seus assentos ou caídos no chão, olhos fechados, sorriso bobo no rosto, músculos relaxados. Deram pouca atenção quando o físico se despediu, guiando Adair até o pátio. No cinza de antes da aurora, tomaram o caminho sobre a ponte levadiça e através da floresta. Adair seguia com dificuldade atrás do cavalo do velho e, exausto como estava, agradecia por não ter que carregar a urna.

 

O mistério do estilo de vida do físico aos poucos começou a fazer sentido na mente de Adair. Por um lado, Adair era grato por ter um lugar quente e seco para dormir, e não ter que trabalhar diariamente até a exaustão e a morte prematura como um trabalhador do campo. Diferentemente de sua família, ele fazia três refeições por dia, comia praticamente tudo o que se podia comer: guisado, ovos, um pedaço de carne assada de vez em quando. Tinha companhia sexual, de forma que não precisava ficar louco de insatisfação. Por outro lado, Adair via tudo isso como se tivesse feito um pacto com o diabo, ainda que tenha sido selado contra sua vontade: havia um preço a ser pago por uma vida relativamente fácil e ele sentia que, um dia, teria de pagar a conta.

Ele recebeu a primeira pista da dívida a ser paga uma noite, quando o físico levou Adair e Marguerite para dentro da floresta. Eles caminharam durante um bom tempo e, já que não estavam fazendo nada além de colocar um pé na frente do outro, Adair viu a oportunidade para fazer algumas perguntas ao velho.

— Posso perguntar, mestre, por que faz todo o seu trabalho à noite? — ele falou com cuidado, para parecer o mais tímido e ingênuo possível.

A princípio o velho limpou a garganta, como se a pergunta não fosse digna de uma resposta. Mas, após alguns minutos, já que ele não gostava de falar dele mesmo, não importa quão triviais sejam as perguntas, ele limpou a garganta para responder.

— É um hábito, suponho... É o tipo de trabalho que é melhor ser feito longe dos olhos curiosos dos outros. — O físico respirou pesadamente, quando subiram um leve aclive, e só continuou depois que alcançaram um lugar nivelado. — A verdade, Adair, é que este trabalho é melhor se feito à noite, pois há poder na escuridão, sabe. É da escuridão que essas poções tiram sua força — o velho disse isso com tanta certeza que Adair sentiu que pedir ao homem para que lhe explicasse somente revelaria sua ignorância e, então, voltou a ficar em silêncio.

Mais tarde, chegaram a um lugar tão selvagem e coberto de vegetação que parecia nunca ter sido visto por olhos humanos. Ao redor das raízes de choupos e lariços, proliferava uma planta estranha, as folhas largas e em forma de leque sobre troncos de arbustos bem acima do chão, acenando para o trio de visitantes.

O físico indicou para que Marguerite o seguisse. Ele a levou a uma das plantas, ao redor da qual colocou as mãos dela e fez um sinal para que esperasse. Então, afastou-se dela, chamando Adair para vir com ele. Eles caminharam até que a criada tivesse quase se perdido na escuridão, o avental branco brilhando sob o luar.

— Tampe os ouvidos, fique atento, ou o pior acontecerá — ele instruiu Adair. Então, gesticulou para Marguerite puxar, o que ela fez, jogando todo o peso no movimento de solavanco. Apesar de ter as mãos sobre os ouvidos, Adair jurou ter ouvido um barulho abafado vindo da planta, enquanto estava sendo arrancada do chão. Adair olhou para o físico e abaixou as mãos, desconfiado.

Marguerite trotou como um cachorro seguindo seu mestre, carregando a planta nas mãos. O físico pegou a planta das mãos dela, tirando a terra pendurada nos fios da raiz.

— Sabe o que é isso? — ele perguntou a Adair enquanto inspecionava o torrão grosso de cinco pontas, maior do que a palma da mão de um homem. — Isso é a raiz da mandrágora. Percebem como tem a forma de um homem? Aqui estão os braços, as pernas, a cabeça. Vocês a ouviram gritar, enquanto a arrancávamos do chão? O som pode matar qualquer homem que o escute. — O físico chacoalhou a raiz diante de Adair; parecia mesmo um homem grosseiro e deformado. — Isso é o que precisam fazer para pegar mais mandrágoras, e lembrem-se bem disso quando eu mandar colhê-las. Alguns físicos usam um cachorro preto para arrancar a raiz, mas o cachorro morrerá se ouvir o grito, assim como qualquer outro homem. Não temos que nos preocupar em matar cachorros quando temos Marguerite, não é?

Adair não gostou de o físico tê-lo incluído no comentário sobre Marguerite. Ele se perguntou, envergonhado, se o velho sabia dos encontros deles e se tinha objeções ao tratamento informal que Adair dava a ela. Na verdade, o físico deveria compará-lo ao próprio tratamento brusco que dava à criada, usando-a feito um boi para puxar um tronco caído do meio do campo e, apesar de ela ser surda e muda, ele claramente tinha tão pouca consideração pela vida humana que não fazia diferença para ele se ela vivesse ou morresse tentando arrancar a raiz. Claro que seria possível que a mandrágora não a matasse nem mesmo se ela pudesse ouvir e que o velho apenas contara a história a Adair para assustá-lo. Mas Adair guardou na memória essa informação sobre a mandrágora, junto com outros conhecimentos que o físico compartilhara com ele, que deveriam ser usados depois.

O pouco prazer que Adair sentiu com sua nova vida começou a desaparecer à medida que ele ficava cada vez mais infeliz com a rotina solitária. O tédio deu lugar à curiosidade. Ele fez uma inspeção detalhada nas garrafas e nos jarros no laboratório do físico, então inventariou o quarto maior, até que conheceu cada pedaço do andar de cima da casa. Mas ele tinha bom senso para não se aventurar no porão.

Sem pedir permissão ao físico, Adair começou a pegar o cavalo para pas­sear pelos campos durante as tardes. Ele achou que fosse bom para o cavalo ser exercitado entre as cavalgadas esporádicas do físico. Mas, às vezes, quando estava a muitas milhas de distância da casa, uma voz o tentava para que fugisse, para que continuasse cavalgando e nunca retornasse. Afinal, como aquele velho homem encontraria Adair sem um cavalo para levá-lo? De qualquer forma, Adair sabia que, com o tempo que passara desde quando chegara à casa, já não conseguiria encontrar sua família e, sem família para a qual retornar, não fazia sentido ir embora. Aqui ele tinha comida e abrigo. Se fugisse, não teria nada e ainda seria um fugitivo pelo tempo que ainda devia ao físico. Depois de um longo momento zanzando pelas estradas que o levariam para longe de sua prisão, ele virava o cavalo e, relutantemente, cavalgava de volta para a casa.

Com o passar do tempo, Adair achou que o físico estava começando a se afeiçoar dele. À noite, enquanto trabalhavam numa poção, surpreendia o velho olhando para ele de maneira menos dura do que o normal. O físico começou a contar a Adair um pouco sobre as coisas que havia nos jarros enquanto ele esmagava sementes secas ou separava as ervas para guardar, como os nomes de plantas mais obscuras e como elas poderiam ser usadas. Haveria uma segunda visita ao castelo, sobre a qual o velho estava praticamente efusivo, esfregando as mãos enquanto andava de um lado para o outro na casa.

— Temos um novo pedido do conde, para o qual começaremos os preparativos hoje à noite — ele gargalhou, enquanto Adair pendurava a capa do velho no gancho ao lado da porta.

— Começar o quê, mestre? — Adair perguntou.

— Um pedido especial do conde; uma tarefa muito difícil, mas que eu já fiz antes. — Ele movia-se apressadamente de um lado para o outro no piso de madeira, juntando jarros de ingredientes sobre a mesa de trabalho. — Pegue o caldeirão grande e acenda o fogo, já está quase apagando.

Da lareira, Adair o observava: primeiro, o físico selecionou uma folha de suas receitas escritas à mão e a leu rapidamente, antes de apoiá-la num jarro, para consultá-la. Ele olhava para o papel de vez em quando, media os ingredientes e os colocava no caldeirão ao fogo. Pegou coisas das prateleiras em que Adair nunca havia mexido antes: pedaços misteriosos de animais, como focinhos, pedaços de pele, essências de carne mumificada. Pós, cristais com brilhos brancos e acobreados. Derramou a mesma quantidade de água e então Adair tirou o pote pesado do assador. Quando a água começou a ferver, o físico encheu a mão com o pó amarelo de um frasco e o jogou no fogo: a chama, com uma baforada de fumaça, emitiu o cheiro inquestionável de enxofre.

— Nunca vi essa mistura antes, já vi, mestre? — Adair perguntou.

— Não, nunca viu. — Ele parou. — É uma poção que deixa invisível todo aquele que a bebe. — Ele olhou para Adair esperando uma reação. — O que acha disso, garoto? Acha que pode realmente acontecer?

— Nunca ouvi uma coisa dessas. — Ele sabia que era melhor não discordar do velho.

— Talvez possa ver com os próprios olhos. O conde fará alguns de seus melhores homens beberem esta poção, e eles ficarão invisíveis por uma noite. Pode imaginar o que um exército consegue fazer se não for possível vê-lo?

— Sim, mestre — Adair respondeu e, a partir daquele momento, passou a pensar nas mágicas e poções do físico de uma maneira diferente.

— Agora, precisa prestar atenção neste caldeirão e deixar a poção ferver, como já fez antes. Quando ferver, deve tirá-lo do fogo para que ela esfrie. Quando tiver terminado tudo, pode ir dormir. Mas só quando tiver terminado. Esses ingredientes são raros e é o último de alguns deles aqui, por isso não podemos nos dar ao luxo de estragar essa receita. Tome conta do caldeirão, com muito cuidado! — ele disse por sobre o ombro, enquanto descia a escadaria. — Verei como se saiu hoje, ao anoitecer.

Adair não teve dificuldade de ficar acordado aquela noite. Ele recostou-se ereto contra a parede de pedra, percebendo que o velho havia mentido para ele e seu pai. O velho homem não era um físico, mas um alquimista, talvez um mago. Não era à toa que as pessoas no vilarejo o evitavam. Não era só por causa do nobre vira-casaca. Eles tinham medo dele e por uma boa razão: ele certamente estava em comum acordo com o demônio. Só Deus sabe o que eles suspeitavam sobre Adair!

Essa poção não era como as outras e demorou muito para ferver. A madrugada chegaria antes que uma parte considerável da poção tivesse evaporado. Mas, durante as últimas horas da noite, enquanto observava um vapor vagaroso subir das profundezas do caldeirão, o olhar de Adair ia e voltava para a pilha de papéis sobre a mesa. Com certeza havia fórmulas mais intrigantes, e mais lucrativas, do que aquela capaz de tornar um homem invisível por uma noite. O velho provavelmente sabia como fazer poções de amor eterno e talismãs para trazer riqueza e poder ao proprietário. E certamente todo alquimista sabia transformar metal comum em ouro. Ainda que não pudesse ler as receitas, não tinha dúvida de que poderia encontrar alguém que as lesse em troca de uma parte dos lucros.

Quanto mais pensava nisso, mais inquieto ficava. Poderia esconder os papéis na manga de sua túnica e passar sorrateiramente por Marguerite, que acordaria a qualquer minuto. Então, caminharia o dia todo e iria o mais longe possível da casa. Ele pensou rapidamente em levar o cavalo, mas sua coragem falhou. Roubar uma propriedade tão valiosa quanto um cavalo era ofensa de morte. O velho homem poderia tirar a vida de Adair, com motivos. Mas as receitas... ainda que o velho pudesse seguir seu servo, ele provavelmente não ousaria levar Adair até o conde. O físico não ia querer que os moradores do vilarejo soubessem o quão poderoso ele realmente era, ou que seu conhecimento místico estava escrito em lugar que podia ser roubado ou destruído.

O coração de Adair batia com força, até que não pôde mais ignorar sua exortação selvagem. Foi quase um alívio render-se a seu desejo.

Adair enrolou apertadamente o máximo de papéis que ousou pegar de uma só vez e os enfiou na manga de sua túnica antes de Marguerite se levantar. Antes de sair, tirou o caldeirão do assador e deixou-o esfriando na lareira. Do lado de fora, escolheu um caminho que conhecia, um que o levaria para o território húngaro, para uma fortaleza onde os simpatizantes romenos hesitariam em ir. Caminhou durante horas, maldizendo sua impetuosidade, pois não havia trazido provisões. Quando começou a sentir tontura e o sol começou a se pôr no horizonte, Adair imaginou que tivesse longe o suficiente e refugiou-se num celeiro no meio de um campo de feno. Era um lugar desolado, sem nada ao redor, nem gado, de forma que Adair sentiu que havia percorrido uma longa distância e que ninguém o procuraria ali. Sobre o feno, ele adormeceu como um homem livre.

Foi acordado de repente por uma mão em sua garganta, sacudindo-o para que ficasse em pé e, então, inexplicavelmente, estava acima do chão. A princípio Adair não conseguia ver quem o pegara, o ar espesso da noite, mas quando seus olhos se ajustaram, ele se recusou a acreditar no que via. A figura que o segurava era frágil... enrugada... mas, em menos de um minuto, Adair reconheceu o velho pelo cheiro, o fedor de enxofre e podridão.

— Ladrão! É assim que você agradece meu apoio e minha confiança? — O fí­sico rugia com ódio e jogou Adair no chão com tanta força que ele escorregou até a parte de trás do celeiro. Antes que pudesse recuperar a respiração, o velho estava sobre ele novamente, agarrando-o pelos ombros e levantando-o novamente do chão. Adair fervia de dor e confusão: o físico era senil, como um homem velho poderia levantá-lo tão facilmente? Adair teve só um minuto para pensar sobre isso antes que o velho o arremessasse ao chão pela segunda vez e começasse a esmurrá-lo e a chutá-lo. As pancadas eram muito fortes; a cabeça de Adair latejava de dor e ele tinha certeza de que ia desmaiar. Ele percebeu que estava sendo carregado, sentia o movimento do vento a seu redor. Eles viajaram em grande velocidade, a cavalo, mas parecia impossível que o velho cavalo de guerra conseguisse correr tão rápido. Com certeza era tudo uma ilusão, disse a si mesmo, produzida por algum tipo de elixir que o velho o forçara a beber enquanto dormia. Era muito mágico e assustador para ser real.

Ainda em estado de estupor, Adair sentiu o ar entrando em seus pulmões, o corpo novamente com peso humano. Então, os cheiros chegaram até ele: a umidade mofada da casa, o resíduo de ervas queimando e o enxofre pairando no ar. Sentiu-se coalhado de medo. Caindo no chão, abriu um pouco os olhos e ficou devastado ao ver que estava de volta à casa, que tinha voltado a sua prisão.

O velho caminhou em sua direção. Ele havia mudado: talvez fosse um truque do ângulo e percepção, mas ele parecia mais alto e orgulhoso, nenhum sinal do velho físico. A mão dele deslizou até a ferramenta da lareira e então ele se inclinou para fisgar o cobertor esfarrapado da cama de palha de Adair. Devagar e deliberadamente, enrolou o cobertor na ferramenta enquanto avançava em Adair.

Adair viu o braço se levantar, mas evitou o olhar dele quando a ferramenta desceu. O cobertor protegeu a pancada, evitou que o ferro quebrasse os ossos do jovem de uma vez. Mas as pancadas não pareciam em nada com o que já sentira antes: os socos e tapas que recebera do pai, as cordas ou as correias de couro. A barra de ferro comprimia os músculos, amassava a carne até entrar em contato com os ossos. Desceu várias vezes nas costas, nos ombros e na espinha. Ele rolava para escapar das pancadas, mas a arma o acertava da mesma forma, atingindo as costelas, o estômago, as pernas. Logo Adair havia ultrapassado o limite da dor e não conseguia mais se mover, sequer se encolher de medo, enquanto a barra de ferro continuava a descer sobre ele. Doía respirar; labaredas incandescentes apertavam suas costelas a cada respiração, suas entranhas estavam inundadas por um líquido escorregadio e quente. Estava morrendo. O velho iria espancá-lo até a morte.

— Podia lhe cortar a mão, sabe, esta é a punição para ladrões. Mas, então, de que uso você seria, com uma mão só? — O físico ficou parado, ereto e firme, e arremessou a barra de ferro ao chão. — Talvez lhe corte a mão quando seu tempo de serviço terminar, assim todos saberão o que você é. Ou, talvez, eu não o libere, quando seus sete anos se completarem. Talvez tenha que cumprir mais sete anos, como punição pelo seu crime. Como pôde pensar que fugiria de mim e roubaria o que é meu?

As palavras dele não fizeram nenhuma diferença. “O velho está louco”, Adair pensou, “em achar que seu servo sobreviveria”. Ele não veria o nascer do sol, quanto mais sete anos. Um líquido quente permeava seus intestinos e órgãos, e subia pela garganta de Adair. O sangue derramava-se de seus lábios, caindo no piso de madeira, escorrendo em direção aos pés do velho num fio escuro e gotejante. O sangue esvaía de todos os orifícios do corpo de Adair.

Os olhos de Adair abriam e fechavam. O velho parara de falar e olhava para ele novamente, daquele jeito intenso. Ele começou a se arrastar pelo chão em direção ao garoto, como uma cobra ou um lagarto, até chegar bem perto de Adair, a boca aberta, a língua para a frente, esticada. Levantou o dedo longo e ossudo e mergulhou-o no fio de sangue que gotejava da boca de Adair. Um fio longo e vermelho escorreu pelo dedo enquanto o trazia até seu rosto e o lambia. Ele enrolou a língua para dentro da boca e um débil suspiro de excitação pairou sobre seus lábios. Nesse momento, Adair desmaiou e ficou aliviado por isso. Mas a última coisa que conseguiu discernir, quando achou que a consciência o tivesse abandonado pela última vez, foram os dedos do velho roçando seu rosto e passando por seus cabelos ensopados de suor.

Pela manhã, Marguerite encontrou Adair num estado lamentável. Durante a noite, seu corpo tinha se preparado para a morte: seus intestinos evacuaram, sua roupa empapada de sangue grudara no chão tão teimosamente que a governanta teve que esfregar o lugar com panos embebidos em água quente para poder desgrudá-la do chão.

Ele ficou deitado na cama de palha, inconsciente por muitos dias e, quando acordou, viu-se coberto de grandes manchas pretas e roxas, com as bordas verdes e amareladas, a pele quente e sensível ao toque. Mas, de algum modo, Marguerite limpara todas as marcas externas de sangue e o vestira com uma camisola de linho limpa.

A consciência de Adair ia e vinha, seus pensamentos incoerentes dançando na mente. Num dos piores momentos do crepúsculo, ele imaginara que alguém o estava tocando, pontas de dedos escorregando por seu rosto e lábios. Outra vez imaginou estar sendo colocado de bruços e sentiu mexerem em suas roupas. O último episódio poderia ser explicado se Marguerite o estivesse limpando, já que ele não conseguia se mexer com coordenação suficiente para usar o urinol. Incapaz, ele não conseguia se mover ou resistir, não podia fazer nada além de aceitar sua violação, real ou imaginária.

O olfato foi o primeiro sentido a voltar e, depois, o paladar, o gosto amargo e ferroso de sangue, e a maciez da gordura de carne. Quando abriu os olhos, levou alguns minutos para sua visão focar e ele ter a certeza de que não havia perdido a visão, o ambiente tornou-se real de novo e a sensação de dor voltou. Suas costelas doíam, seu intestino estava instável e solto, e cada respiração perfurava suas costelas quebradas. Junto com a dor, voltou a voz e ele se debatia com o cobertor, tentando, inutilmente, se levantar.

Marguerite correu para o lado dele, sentiu a testa de Adair e dobrou os joelhos e as mãos, procurando sinais de desconforto provenientes de ossos quebrados, tentando ver quais partes ele conseguia mexer sozinho e quais estavam machucadas. Afinal, qual é a utilidade de um trabalhador que não pode usar as mãos e as pernas?

Ela pegou um pouco de caldo e, então, ignorou Adair pelo restante do dia enquanto ia de um lado para o outro fazendo as tarefas domésticas. Ele não tinha outra alternativa a não ser ficar olhando para o teto e deixar o tempo passar, enquanto um facho de luz do sol iluminava a parede, contando as horas até o anoitecer quando o velho acordaria. Adair esperava com medo: pensou que seria melhor ter morrido naquela noite do que acordar preso num corpo destruído. Quanto tempo levaria para se recuperar, pensou; será que ficaria inteiro novamente quando seus ossos colassem? As partes do corpo se grudariam corretamente? Será que ficaria manco ou corcunda? Pelo menos seu rosto parecia estar livre de cicatrizes e desfigurações: o velho havia tomado cuidado com sua cabeça; ele havia batido com uma barra de ferro, podia ter quebrado a cabeça de Adair ao meio.

Quando a luz se foi, sinalizando o final do dia, Adair sabia que seu tempo tinha terminado. Resolveu fingir que estava dormindo. Marguerite também pressentiu que o confronto se aproximava e tentou se apressar para arrumar a cama enquanto o velho subia as escadas, mas o físico a interrompeu, pegando-a e apontando inquisitivamente em direção à cama de Adair. Mas ela vira Adair fechar os olhos e ficar numa posição de inconsciência, então, ela somente balançou a cabeça e retirou-se para a cama, puxando o cobertor sobre a cabeça.

O velho foi até a cama de Adair e se agachou. Adair tentou manter a respiração equilibrada e calma, e controlar seu tremor, esperando para ver o que o velho faria. Não precisou esperar muito: a mão fria e ossuda do velho tocou as faces do jovem, depois seu pomo de Adão e então escorregou pelo peito rapidamente até parar sobre a barriga lisa de Adair. Ele mal tocou nas feridas e, mesmo assim, foi o suficiente para fazer Adair querer se encolher de tanta dor.

A mão não parou e, em vez disso, continuou escorregando: para o abdômen, então um pouco mais para baixo e o choque quase fez Adair gritar. De algum modo, ele continuou estoicamente deitado, enquanto os dedos do velho encontraram o que estava procurando, acariciando o pedaço irregular de carne, massageando, apertando, seduzindo. No entanto, antes que a virilidade de Adair pudesse reagir, os dedos se retiraram e, sem olhar para trás, o velho virou-se e saiu pela porta noite adentro.

O pânico foi tamanho que Adair quase pulou da cama, apesar de seu estado. Foi tomado pela necessidade de fugir, mas não podia: tinha pouco controle dos braços e suas pernas não lhe respondiam. O velho era consideravelmente mais forte do que parecia; quando saudável, Adair já não podia se defender dele, quanto mais em seu estado atual. Ele não podia nem mesmo rastejar pela sala e tentar encontrar uma arma que pudesse usar para se defender. Amargurado pelo desespero, Adair percebeu que não havia nada que pudesse fazer, não naquele momento. Tudo o que lhe restava era aguentar o que o físico lhe impusesse.

Passou os dias pensando no trabalho que fizera para o físico, nos elixires e unguentos que preparara, imaginando se haveria algo que pudesse usar em sua defesa. Tais pensamentos eram inúteis; apesar de servirem para aguçar sua memória sobre os ingredientes utilizados nessas poções poderosas, assim como as proporções, os cheiros e as texturas, ele ainda ignorava a utilidade deles, exceto daquele que dava poderes de invisibilidade.

 

Ele conseguiu manter as aparências por mais dois dias antes que o físico percebesse que já recuperara a consciência. Testou seus membros e articulações da mesma maneira que Marguerite havia feito e preparou um elixir que derramou para dentro da garganta do jovem. Era a poção que fazia Adair se entregar, pois ela queimava e ferroava, e ele não podia fazer nada além de engasgar.

— Espero que pelo menos tenha aprendido a lição! — o físico rosnava enquanto caminhava ao redor de sua escrivaninha. — E essa lição é que você nunca poderá fugir de mim. Posso encontrá-lo onde quer que esteja. Nenhuma jornada será tão longínqua, nenhum esconderijo tão profundo a ponto de me enganar. Na próxima vez que tentar me trapacear pelo serviço que paguei ou roubar qualquer coisa minha, esse pequeno episódio vai parecer a mais leve das punições. Se eu apenas sentir que está sendo desleal, acorrentarei você às paredes dessa casa e nunca mais verá a luz do dia, entendeu? — O velho não se incomodou nem um pouco com o olhar de ódio de Adair.

Em poucas semanas, Adair conseguiu se levantar da cama e cambalear pela sala com a ajuda de uma bengala. Como suas costelas estalavam de dor cada vez que levantava os braços, ele ainda era inútil para Marguerite, mas já podia ajudar o físico à noite. No entanto, toda a conversa entre eles cessou: o velho bradava as ordens e Adair sumia de vista assim que as cumpria.

Após alguns meses, com doses regulares do elixir ardente, Adair havia se recuperado consideravelmente, a ponto de poder buscar água e cortar lenha. Conseguia correr, não por muito tempo, e tinha certeza de que poderia cavalgar, caso tivesse a chance. Às vezes, quando colhia ervas na floresta e caminhava até o cume da colina, olhava para o vale e pensava em tentar fugir de novo. Ele desejava, profundamente, ficar livre do velho e, ainda... Um sentimento doentio tomava conta de Adair ao pensar na perspectiva da punição e, com pensamentos quase suicidas, ele se virava e voltava para a casa.

 

— Amanhã você irá até o vilarejo para achar uma jovenzinha. Ela tem que ser virgem. Não deve perguntar nada nem chamar a atenção de ninguém. Apenas encontre essa jovenzinha, volte e me diga onde ela vive.

O pânico subiu pela garganta de Adair.

— Como posso saber se a jovem ainda não foi deflorada? Devo examinar...

— Obviamente deve encontrar uma que seja bem nova. Quanto ao exame, deixe isso para mim — ele disse friamente.

O velho não deu explicação nenhuma e, depois de tanto tempo, Adair não precisava de explicações. Sabia que qualquer ordem do físico certamente seria um pedido diabólico, mas, mesmo assim, Adair não estava em posição de desobedecê-lo. Geralmente via as idas até o vilarejo como um raro prazer, quando podia apreciar o burburinho da vida em família, ainda que não fosse a sua, mas esse passeio não trazia bons presságios. No vilarejo, Adair permaneceu sorrateiro perto das casas, espiando os moradores, mas o vilarejo era pequeno e ele não era desconhecido das pessoas. Toda vez que encontrava algumas crianças brincando ou fazendo tarefas domésticas, os pais as espantavam ou ameaçavam Adair com olhares ferinos.

Com medo da reação do físico, caso falhasse, pegou um caminho desconhecido de volta à casa, esperando que isso lhe trouxesse sorte. A estradinha o levou até uma clareira onde, para sua surpresa, estavam algumas charretes não muito diferentes das que seus pais viviam. Uma trupe de romenos tinha chegado ao vilarejo e o coração de Adair encheu-se com a esperança de que seus pais estivessem procurando por ele. Enquanto passava os olhos pelos trabalhadores itinerantes, logo percebeu que não reconhecia nenhum dos membros do grupo. Todavia, havia crianças de todas as idades: garotos de bochechas vermelhas e garotas de rostos meigos. E, porque tinha a mesma ascendência, podia caminhar livremente entre eles, apesar de ser obviamente desconhecido.

Poderia fazer algo tão horrível?, ele se perguntou, o coração disparado enquanto escolhia a vítima, olhando de rosto em rosto. Estava a ponto de sair correndo, tomado de ódio de si mesmo (como poderia escolher quem seria entregue às mãos de um monstro?), quando se deparou abruptamente com uma criança, uma garotinha que lembrava muito sua Katarina. A mesma pele branca e sedosa, os mesmos olhos negros inebriantes, o mesmo sorriso cativante. Foi como se o destino tivesse tomado a decisão por ele.

O físico ficou extasiado com a notícia e instruiu Adair a ir até o acampamento dos romenos naquela noite, quando todos estivessem dormindo, e trazer a criança para ele.

— Está de acordo, não está? — o velho gargalhou, talvez achando que Adair se sentiria melhor pelo que estava prestes a fazer. — Seu povo o expulsou, deram você sem pensar duas vezes. Agora é sua chance de vingança.

Em vez de convencer Adair de que tinha o direito de roubar a criança, isso só o deixou ainda mais enfurecido.

— Por que quer essa menina? O que fará com ela?

— Não está em posição de pensar, só de obedecer — o velho resmungou. — Você acabou de se recuperar, não é? Seria uma pena quebrar todos os seus ossos de novo.

Adair pensou em implorar pela intervenção divina, mas, neste momento, as preces eram inúteis. Adair tinha todos os motivos para acreditar que ele e aquela menina estavam amaldiçoados e que nada salvaria nenhum dos dois. Assim, mais tarde naquela noite, voltou ao acampamento. Foi de charrete em charrete, espiando pelas janelas ou pela abertura de cima das portas holandesas, até encontrá-la, encolhida como um gato sobre um cobertor. Prendendo o fôlego, ele empurrou a porta e deu uma olhada na criança adormecida, torcendo para que ela chorasse e alertasse a mãe e o pai, mesmo que isso significasse que ele seria pego. Mas a criança dormiu em seus braços como se estivesse enfeitiçada.

Adair não ouviu nada atrás de si enquanto fugia: não havia passos nem nenhum tipo de mexerico vindo da charrete dos pais, nenhum grito de invasão do acampamento. A criança começou a se agitar e a se mexer, e Adair não sabia o que fazer, exceto segurá-la cada vez mais perto de seu coração disparado, na esperança de fazê-la se acalmar. Quanto mais desejava ter coragem para desobedecer às ordens maléficas do velho, mais se embrenhava pela floresta, chorando durante todo o caminho.

No entanto, quando se aproximou da casa, uma coragem desesperadora veio à tona. Ele simplesmente não podia sucumbir aos desejos do físico, independentemente do quanto poria em risco sua própria segurança. Quando chegou aos arredores da clareira, a menina estava acordada e respirava ofegante, mas em silêncio. Ele a colocou em pé e ajoelhou-se ao lado dela.

— Volte para seus pais e diga a eles para saírem desse vilarejo imediatamente. Há um grande mal aqui e haverá uma tragédia se eles não ouvirem esse conselho — ele disse para a garota.

A garota alcançou seu rosto e tocou-lhe as lágrimas.

— Quem eu devo dizer que mandou essa mensagem a eles?

— Meu nome não é importante — ele respondeu, sabendo que mesmo que os romenos tivessem seu nome e viessem atrás dele, tentando puni-lo por invadir o acampamento e sequestrar uma criança, não faria diferença. Ele já estaria morto.

Adair continuou ajoelhado na grama enquanto a observava correr em direção às charretes. Desejou poder correr também, correr em direção à floresta e continuar correndo, mas sabia que isso de nada serviria. Era melhor retornar à casa e aceitar sua punição.

Quando Adair empurrou a porta da casa, o velho estava sentado na escrivaninha. A leve expressão de entusiasmo em seu rosto rapidamente transformou-se na conhecida expressão de escárnio e desprezo ao ver Adair sozinho. O físico levantou-se, repentinamente muito alto, como uma árvore frondosa.

— Vejo que você me decepcionou. E não posso dizer que esteja surpreso por isso.

— Posso ser seu escravo, mas não pode me transformar num assassino. Não farei isso!

— Você ainda está fraco, fatalmente fraco, covardemente fraco. Preciso que fique mais forte. Se achasse que você não fosse capaz de fazer isso, mataria você esta noite. Mas ainda não estou convencido, ainda não... assim, não o matarei esta noite, só o castigarei. — O físico esbofeteou o servo com tanta força que ele caiu no chão e desmaiou. Quando Adair voltou a si, percebeu que o velho levantava sua cabeça e enfiava uma taça em sua boca. — Beba isto.

— O que é, veneno? É assim que pretende me matar?

— Eu disse que não o mataria esta noite. Isso não significa que eu não tenha outros planos. Beba isto — ele ordenou, os olhos brilhando impiedosamente —, beba e não sentirá mais dor.

Naquele ponto, Adair teria dado as boas-vindas ao veneno, então engoliu o conteúdo que o físico depositava dentro de sua boca. Um sentimento estranho se apoderou de Adair rapidamente, parecido com o estupor inebriante dos elixires de cura do velho. Começou com um formigamento dos membros e depois tomou conta de seu corpo. Sem conseguir controlar os músculos, Adair despencou, as pálpebras pesadas como as de uma vítima de paralisia, a respiração lenta. Quando o formigamento chegou à nuca, uma sensação de adormecimento trouxe o mau presságio de que algo sobrenatural estava prestes a acontecer.

O velho ficou em pé em frente do servo, analisando-o de maneira fria e desconcertante. Adair se sentiu levantado e carregado, percebia seu peso a cada passo. Foi levado para o porão, onde jamais estivera antes, para os aposentos do velho. Essa percepção lhe trouxe um pânico gelado. O quarto era úmido e abafado, uma verdadeira masmorra, e nojento. Baratas e outros bichos escalavam os cantos das paredes. O velho derrubou o jovem sobre a cama, num colchão de pena mofado e fedorento. Adair queria rastejar e fugir, mas estava preso num corpo que não lhe respondia. Insensível, o velho subiu na cama e começou a despir seu prisioneiro, puxando a túnica sobre a cabeça, soltando-a acima da cintura.

— Esta noite, você atravessará a última fronteira de suas reservas. A partir desta noite, não haverá nada que eu não possa obrigá-lo a fazer. — Ele puxou as calças do jovem para baixo e alcançou o fino linho que cobria a virilha. Mais uma vez, Adair fechou os olhos enquanto o físico tateava, enroscando os dedos nos pelos pubianos. Adair lutou para não ter uma ereção enquanto o velho manipulava seu pênis. Depois do que pareceu ser um longo tempo, o velho soltou seu brinquedo, mas deixou que suas mãos passassem sobre o rosto de Adair. Apertou os dedos no rosto do jovem, depois no sulco abaixo de seus olhos. Em seu estado droga, o jovem lutou o máximo que pôde contra esse abuso horripilante.

— Ouça bem, seu garoto estúpido, eu o estrangularei caso não me obedeça. Precisa respirar, não precisa? — Ele fechou a mão sobre o nariz de Adair, cortando-lhe o ar. Adair segurou o máximo que pôde, imaginando, nesse estado de desorientação, se ele morreria ou só desmaiaria... Mas, ao final, o instinto veio à tona e ele buscou o ar. Quando abriu a boca, o velho forçou-se sobre o jovem e penetrou seu membro dentro das mandíbulas abertas. Piedosamente, a droga trouxera a sombra da incoerência para encobrir o horror e a humilhação de Adair, e a última coisa de que se lembrava era do velho dizendo que sabia de seus encontros com Marguerite e que eles cessariam. Ele não queria Adair gastando sua energia e desperdiçando sua semente com outra pessoa.

 

Pela manhã, Adair acordou no andar de cima, em sua miserável cama de palha, suas roupas desarrumadas. Atormentado pela náusea e pelos traços da droga, ele se lembrava das ameaças do velho, mas não tinha ideia se outras liberdades tinham sido tomadas. Teve vontade de correr escada abaixo e esfaquear o velho até a morte, na cama, a ideia latejando em sua mente por um segundo. Todavia, sabia que alguma coisa misteriosa e sobrenatural estava acontecendo; a força e os poderes do velho estavam acima de qualquer perspectiva razoável e ele seria poderoso o suficiente para não se deixar ser morto no próprio covil.

Passou o dia tentando juntar coragem para fugir. Mas o medo de sempre acorrentou Adair onde estava; a dor gélida em seus ossos remendados era um aviso sobre o preço da desobediência. Assim, quando o sol cruzou o céu e a escuridão começou a tomar conta, Adair sentou-se num canto, o olhar fixo no topo da escadaria.

O velho não se surpreendeu ao ver que seu servo ainda estava lá. Um sorriso sarcástico atravessou seu rosto, mas ele não se aproximou de Adair. Continuou seus afazeres como sempre fazia, retirando a capa do gancho na parede.

— Irei ao castelo hoje à noite, para uma função especial. Se sabe o que é bom para você, é melhor estar aqui quando eu voltar. — Quando saiu, Adair desmoronou ao lado do fogo, desejando ter coragem para se jogar nele.

A vida continuou assim durante muitos meses. As surras tornaram-se rotineiras, apesar de o velho nunca mais ter usado a barra de ferro. Adair percebeu rapidamente que não havia motivos para as surras; ele era tão obediente que não havia razões para isso. As surras serviam para mantê-lo assim e, por isso, nunca terminariam. O assédio sexual continuou, de forma irregular. O fí­sico fazia Marguerite drogar a comida ou a bebida de Adair para facilitar essas sessões, até que o jovem percebeu a tática e se recusou a comer. O velho então o surrava e o forçava a engolir drogas debilitadoras até ficar num estado deplorável.

A decadência do físico se acelerava. Talvez ele tivesse aberto algum tipo de portal: agora que se satisfazia com esses atos imorais, nada o impedia. Ou talvez os homens velhos fossem sempre assim. Adair imaginou se o velho teria matado seu último servo e tinha procurado Adair para começar tudo novamente. De vez em quando, o conde mandava uma criada para servir o velho, alguma jovem desafortunada, capturada pelos homens do conde durante as invasões aos campos húngaros. A jovem era levada para o aposento do velho e acorrentada à cama. Durante o dia, os gritos da criada chegavam até o andar de cima, assombrando Adair, que se culpava por não descer até o covil do físico para ajudá-la a escapar.

Às vezes, depois que o velho saía para suas caminhadas noturnas, Marguerite mandava Adair descer com comida para a pobre prisioneira. Ele se lembrava da primeira vez, arrastando-se, relutante, para dentro do quarto para ver a pobre mulher, nua sob os lençóis, tremendo, de choque e medo, e incapaz de perceber sua presença. Essa primeira não implorou ao jovem para soltá-la. Paralisada de medo, ela também não se moveu em direção à comida. Adair sentiu-se envergonhado por perceber que tinha uma ereção, olhando para sua forma feminina debaixo do cobertor, sua barriga lisa subindo e descendo a cada respiração, aterrorizada. A simpatia pelo suplício dela e as lembranças horríveis do que tinha acontecido com ele próprio, nessa mesma cama, eram suficientes para afastá-lo do desejo sexual. Ele não ousou tomá-la à força, já que era propriedade do velho e, assim, tremendo de desejo, deixou-a intocada e voltou para o andar de cima.

As criadas geralmente morriam depois de três dias e o velho fazia Adair se livrar de seus corpos, retirando-os da cama e carregando-os para a floresta. Elas ficavam deitadas no chão, como estátuas tombadas, enquanto ele cavava o túmulo, pulverizava-as com cal e as cobria com terra escura. A morte da primeira criada o encheu de vergonha, ódio e desespero, a ponto de não poder olhar para ela enquanto cavava a vala.

Mas, depois da primeira, da terceira, da quarta, Adair sentiu que algo havia mudado dentro dele e seu desejo, que ele reconhecia ser abominável, ultrapassou o medo de cruzar a fronteira do profano. Suas mãos tremiam quando sucumbia ao desejo de tocar seus seios, agora endurecidos e inumanos, ou percorrer as mãos por seus corpos arqueados. Cada vez que colocava uma delas no chão, ele roçava seu torso nelas e vibrava com o endurecimento em seu corpo. Mesmo assim, nunca foi além, nunca cometeu um ato que achava mais repulsivo do que fascinante e, dessa forma, os corpos foram poupados de ser ainda mais molestados.

 

Muitos anos se passaram dessa maneira. As surras e os estupros diminuíram, talvez porque Adair tivesse crescido e ficado mais forte. Ou, talvez, por não ser mais um garoto, seu corpo já não agradasse mais ao físico.

Depois de um inverno particularmente brutal, o velho anunciou que eles viajariam para a Romênia para visitar sua propriedade. Uma mensagem foi enviada com antecedência para o vassalo que cuidava da propriedade, para que as contas fossem colocadas em ordem e tudo estivesse pronto para ser inspecionado pelo físico. A segurança da viagem seria garantida pelo conde e um segundo cavalo foi comprado para Adair, para que pudesse fazer a jornada. Quando chegou a hora de ir, só arrumaram algumas provisões, poucas roupas e dois baús pequenos e trancados. Partiram depois do pôr do sol, cavalgando para leste noite adentro.

Ao final de sete noites de viagem, estavam bem no meio de território romeno, tendo atravessado uma passagem aos pés dos Montes Cárpatos para chegar até a propriedade do velho.

— Nossa jornada terminou — o físico disse a Adair, balançando a cabeça em direção a uma luz que brilhava sofregamente de um castelo a distância. O castelo tinha torres altas em cada canto, a forma ameaçadora claramente visível à luz da lua. O último trecho os levou por campos férteis, vinhedos pendurados nas encostas das montanhas, gado dormindo nos pastos. Os imensos portões foram abertos quando ambos se aproximaram e um grupo de servos aguardava no pátio, segurando tochas acesas acima da cabeça. Um homem mais velho encontrava-se à frente do grupo, segurando um robe de pele, que colocou sobre os ombros do físico assim que ele desmontou do cavalo.

— Espero que vossa senhoria tenha feito boa jornada — ele disse com a solicitude de um pastor, seguindo o físico pelos largos degraus de pedra.

— Estou aqui, não estou? — o velho respondeu, ruidosamente.

Adair absorvia os detalhes da propriedade enquanto adentravam. O castelo era sólido, velho, mas bem-cuidado. Adair viu que os servos tinham o mesmo olhar de terror que ele imaginava ter. Um criado pegou-o pelo braço e o levou até a cozinha, onde Adair recebeu uma refeição de carnes assadas e galinha, e em seguida foi levado para um pequeno quarto. Naquela noite, afundou-se num verdadeiro colchão de penas e se aconchegou sob um cobertor com bordas de pele.

Adair adorou esse tempo fora, vivendo mais luxuosamente do que alguém pudesse imaginar, sobretudo um camponês. Livre do regime de vida da casa, ele passou a maior parte dos dias perambulando pelo castelo, enquanto o físico estava imerso na administração da propriedade e não tinha interesse nas andanças de Adair.

O administrador, Lactu, simpatizou-se com Adair. Ele era um homem bom e parecia reconhecer o peso silencioso que o servo do físico carregava. Por Lactu falar húngaro, Adair conseguiu ter uma conversa de verdade depois de todo aquele tempo em que estivera trabalhando para o físico. Lactu vinha de uma linhagem de servos que trabalhavam para o físico havia gerações. Ele explicou que não achava estranho que o físico ficasse longe a maior parte do tempo: os senhores dessa propriedade têm sido proprietários ausentes durante gerações, escolhendo, em vez disso, servir o rei da Romênia. Na experiência de Lactu, o físico retornava somente a cada sete anos, para tomar conta de assuntos importantes.

Através do administrador, Adair teve acesso a todos os aposentos do castelo. Ele pôde ver o quarto onde ficavam os robes cerimoniais do velho, guardados em baús, e a despensa, repleta de todos os tipos de comida e guarnições feitas na propriedade. No entanto, o aposento que mais lhe encheu os olhos foi o quarto dos tesouros, repleto de lembranças das conquistas da família de cel Rau: coroas e cetros, adornos encravados de pedras preciosas, moedas de cunhos estranhos. A visão de tantos bens e de tantas posses fez Adair pensar sobre as receitas alquímicas: um castelo enorme numa terra distante era tanto desperdício! Era um crime ter um tesouro como aquele e não desfrutá-lo!

Passaram-se semanas sem que Adair visse o físico, até que, uma noite, o velho mandou uma mensagem para o jovem participar de uma cerimônia no grande salão. O jovem observava enquanto o físico assinava declarações cujos efeitos recairiam em todos aqueles que viviam na propriedade. Ao lado da mão direita do velho, estava um selo pesado. Lactu trazia cada declaração, a lia em voz alta e então colocava a folha na frente do físico, para que ele a assinasse. Depois, o administrador pingava cera vermelha embaixo do rabisco do físico, e o velho pressionava o selo com o símbolo de sua família, um dragão que empunhava uma espada. Mais tarde, Lactu explicou a Adair que aquele era o selo que garantia o domínio da lei de cel Rau, pois os lordes frequentemente morriam longe de sua propriedade e, sem que seus herdeiros fossem apresentados de forma apropriada às autoridades romenas e ao administrador, as assinaturas não significavam nada. Quem quer que possuísse o selo, seria reconhecido como senhor da terra.

Semanas se tornaram meses. Adair ficaria feliz se não tivesse que retornar à Hungria. Ele gostava do duplo benefício de ser tratado como um filho favorecido, ao mesmo tempo em que podia escapar das atenções do físico. Em seu tempo livre, praticava esgrima com os guardas ou passeava pelo vilarejo. Falava sobre o que tinha visto com o administrador, aprofundando os conhecimentos sobre a propriedade em seus muitos aspectos, como o cultivo das lavouras, a produção de vinho, os cuidados com os animais. Adair passou a acreditar que Lactu confiava nele, mas o jovem não ousava compartilhar qualquer detalhe da vida na casa. Ele retribuía a afeição de Lactu multiplicada por dez, mas tinha muito medo do que o administrador pudesse pensar dele se soubesse o que tinha sofrido ou que ele ajudava o velho a praticar magia negra. Sentia muita vontade de contar a Lactu sobre a natureza diabólica do mestre, mas não imaginava uma maneira de fazê-lo sem se envolver, e ele estava relutante de perder a afeição do administrador.

Uma noite, já no fim da estação, Adair foi acordado por uma presença em seu quarto. Enquanto acendia a vela, sabia que não estava sozinho, mas mesmo assim ficou assustado ao ver o físico em pé, ao pé de sua cama. Seu coração disparou à memória dos horrores dos quais aquele homem era capaz.

— Mestre, o senhor me surpreendeu. Está precisando de meus serviços?

— Não vejo você há muito tempo, Adair. Queria olhá-lo, mas juro que quase não o reconheci — ele disse com uma delicada aspereza. — A vida aqui lhe fez bem. Você cresceu. Está mais alto... e mais forte. — Havia um olhar, um brilho da velha tentação nos olhos do físico, que Adair não queria ver.

— Aprendi muito durante este tempo aqui — Adair disse, querendo mostrar ao físico que não havia ficado ocioso durante o período que ficara longe dos olhares do velho. — Sua propriedade é magnífica. Não entendo como suporta viver longe daqui.

— A vida aqui é muito parada para o meu gosto. Acho que também concordaria com isso, com o tempo. Mas é por isso que vim esta noite, para avisá-lo que não ficaremos por muito mais tempo. O verão está se aproximando e preciso voltar para a Hungria.

As palavras do velho alarmaram Adair. Sabia que essa situação teria um fim, mas de algum modo havia se iludido que ficaria ali para sempre. Adair tentou dissimular o pânico. Enquanto isso, o velho deslizava para o lado da cama do servo, tateando as feições de seu rosto. Ele esticou a mão e puxou o cobertor, expondo o abdômen e o peito de Adair. Adair ficou esperando pelo toque, mas não houve toque nenhum. Em vez disso, o velho ficou olhando para o jovem, com um desejo palpável, mas ele pareceu satisfeito só de olhar para o corpo do rapaz. Ou talvez a maturidade de Adair o tenha feito parar, pois, após um longo minuto, ele virou-se e saiu do quarto.

 

Após voltarem para a casa do físico, Adair esperava que a vida continuasse como antes, mas isso se provou impossível. Muita coisa tinha acontecido com ele. Estava obcecado com uma ideia que não conseguia tirar da cabeça, especialmente durante o dia, quando o físico não estava por perto para controlar seus pensamentos. Adair não conseguia se esquecer do que vira na propriedade do velho: o castelo, os campos abundantes, o tesouro, os serviçais, os servos... A única coisa que faltava era um senhor feudal, e o que estava em seu caminho eram apenas duas coisas simples: o selo, agora escondido em algum lugar da casa, e a morte do velho.

O selo poderia ser encontrado com um pouco de persistência. Matar o velho era outra questão. Adair já havia pensando nisso muitas vezes durante seus anos de aprisionamento, havia planejado cada detalhe, mas, ao final, considerava tudo uma loucura. Todas as vezes que o velho colocara as mãos nele, por ódio ou por desejo, o serviçal sufocava sua humilhação jurando que um dia faria o físico pagar por tudo. Mas era a lembrança daquele ataque brutal com a barra de ferro e dos meses agonizantes de recuperação que faziam Adair não tomar uma atitude.

No entanto, muitos anos haviam se passado desde aquela surra e Adair havia crescido consideravelmente. O físico não era mais tão rápido para levantar a mão e, ainda que continuasse a olhar para Adair com desejo, suas aproximações eram poucas e calculadas. E o ódio de Adair pelo velho o acompanhava por tanto tempo, que já se tornara tão natural quanto respirar. Seus pensamentos estavam mais precisos, a necessidade de vingança, mais aguçada e irrefutável. Ele não percebera o quanto tinha mudado até uma noite, quando enterrava outra garota morta. Olhou para seu lindo corpo e percebeu que este último tabu havia caído. Ele podia facilmente atacar essa forma vazia, mas o que realmente queria era violentar aquele corpo sem vida antes de enterrá-lo no chão molhado. E, mais ainda, ficaria satisfeito por fazê-lo. Ele não sentia medo nem repulsa; havia abandonado o último fragmento de humanidade. Todas as reservas foram extirpadas, camada por camada, como um animal cuja pele é retirada pelo caçador. Havia se tornado páreo para o velho e essa ideia fez Adair sentir-se feliz pela primeira vez durante anos.

 

O primeiro passo era garantir que teria ajuda. Adair precisava de aliados, moradores do vilarejo que já odiavam o físico, pois este apoiava o opressor romeno. Adair tinha que encontrar esses moradores que guardavam rancor contra seu soberano e quisessem descontar essa fúria no físico, um alvo mais fácil do que o conde. Se ele pudesse provar que o físico cometera crimes contra os moradores, crimes os quais o conde não poderia defender, então, o conde seria forçado a olhar para o outro lado se a vingança deles tomasse a forma de assassinato. Era uma questão de encontrar as pessoas certas, escolher a ofensa adequada e produzir as provas necessárias.

Certo dia, Adair foi até o vilarejo procurar as autoridades religiosas, pois pareciam uma escolha correta para seu objetivo. Na abadia, ele encontrou um monge, poupado dos rigores do campo e rosado de cima a baixo, como um recém-nascido. O clérigo pareceu surpreso por encontrar o servo do maldito físico parado em frente da sua porta, mas quando Adair caiu a seus pés, implorando por seus conselhos, o jovem monge não pôde recusar. Sentaram-se juntos na solidão da abadia e ele ouviu Adair derramar seu remorso por ser o criado do opressor do vilarejo. Adair explicou que fora forçado a servi-lo. Sem discorrer muito sobre as circunstâncias, continuou a expressar sua repulsa por servir a um déspota tão malvado e impenitente. Quando o monge começou a acalmá-lo (hesitante, a princípio, mas, depois, as palavras saíam mais livremente), Adair sabia que havia encontrado o aliado que estava procurando. Para fechar com chave de ouro, ele sugeriu alguns pecados tenebrosos que o físico e o conde haviam cometido. O monge garantiu a Adair que ele podia voltar, a qualquer hora, para continuar a se redimir.

E assim Adair o fez. Na segunda vez em que foi ver o monge, descreveu como fora enviado para sequestrar uma criança. O rosto do monge ficou pálido e ele recuou como se tivesse sido confrontado por uma víbora, quando Adair descreveu a localização das charretes ciganas; o monge confirmou que os ciganos haviam desaparecido sem nenhuma explicação.

— Imagino que ele tinha a intenção de usar a criança para uma de suas poções satânicas, mas para que efeito e para qual causa, não posso dizer. Deve ser trabalho do demônio, exigir um sacrifício humano, não deve? — Adair perguntou com voz incrédula, fazendo-se soar tão arrependido e inocente quanto podia.

Naquele ponto, o monge pediu para que ele parasse de falar, sem querer acreditar no que acabara de ouvir.

— Juro que é verdade! — Adair disse, caindo de joelhos. — Posso provar. O pergaminho em que os feitiços estão escritos seria prova suficiente? — O monge, impressionado, só conseguia concordar com a cabeça.

Adair sabia que seria um truque bem simples tirar os papéis da casa durante o dia, enquanto o físico dormia, mas, no dia seguinte, quando tentava juntar as evidências, suas mãos tremiam ao alcançá-las. “Não seja tolo”, castigava-se, “já faz anos! Você é um homem ou um garoto assustado?” Cansado de ser assombrado pelo medo e pela humilhação, agarrou os papéis com certa rudeza, enrolando-os bem apertado antes de enfiá-los na manga de sua túnica. Sem dizer uma única palavra para Marguerite, saiu em direção à abadia.

Os olhos do monge se iluminaram ao ler as palavras apagadas do pergaminho. Enquanto devolvia os papéis, ele pediu desculpas a Adair por duvidar dele e o instruiu a devolvê-los rapidamente, além de avisá-lo caso o físico começasse a planejar outro crime sanguinário. No entanto, ele precisava de tempo para trabalhar num plano para capturar o herético, que era, afinal de contas, um aliado do senhor feudal. Adair protestou: o físico era um aliado do demônio e não merecia nem mais um dia de liberdade. Mas o monge titubeou; ele obviamente tinha dificuldades em pôr em prática um ato tão ousado contra o conde. Para dar apoio à resolução do monge, Adair prometeu voltar com mais provas de bruxaria.

Naquela noite, a companhia do físico foi agonizante. Adair pulava toda vez que o homem lhe dava o menor olhar descrente, certo de que o físico podia sentir que ele havia tocado em seus preciosos pergaminhos. Enquanto o velho folheava os papéis procurando pelo feitiço de que precisava, Adair se inquietava achando que o físico encontraria alguma coisa diferente: uma ponta dobrada, uma mancha, o cheiro de lavanda e incenso da abadia. Mas o velho continuou seu trabalho calmamente.

Um pouco depois da meia-noite, o velho o olhou da mesa de trabalho e disse:

— Você ainda gostaria de aprender a ler? — perguntou de maneira bastante agradável. Parecia estranho que o velho trouxesse isso à tona tão repentinamente. Ainda assim, se Adair desse qualquer outra resposta, o velho acharia que algo estava errado.

— Sim, claro.

— Suponho que esta noite seja tão boa quanto qualquer outra para começarmos. Venha aqui e eu lhe ensinarei algumas das letras desta página. — O físico curvou um dedo para ele. Com o peito apertado, Adair levantou-se do chão e andou em direção ao velho. O físico olhou o pequeno espaço entre eles. — Mais perto, garoto, não conseguirá enxergar o papel daí. — Ele apontou para o lugar próximo dele, no chão. O suor escorria da testa de Adair conforme ele se aproximava. No momento em que deslizou para perto do velho e abaixou a cabeça em direção ao papel, o velho o alcançou e o agarrou pela garganta com punho de ferro. Ele não conseguia respirar, uma vez que o punho estava cerrado em volta de sua traqueia.

— Esta noite será muito importante para você, Adair, meu bom garoto. Muito importante — ele repetiu, levantando-se de seu assento, erguendo o jovem no ar pela garganta. — Não achei que fosse mantê-lo empregado por tanto tempo; planejava matá-lo antes. Mas, apesar de sua séria ofensa, passei a gostar de você. Você sempre teve uma beleza selvagem e também tem sido mais leal do que eu pensei ser possível. Sim, você se saiu melhor do que eu esperava desde a primeira noite em que o vi. Assim, resolvi mantê-lo como meu criado, para sempre. — Ele arremessou Adair na parede de pedra como se fosse uma boneca de pano, a cabeça de Adair rachando contra as pedras. A força desapareceu de seu corpo. O velho o levantou, carregando-o de novo escada abaixo, para a privacidade de sua câmara subterrânea. Deitado na cama, a consciência de Adair ia e vinha, e sentia as mãos do velho em seu rosto.

— Tenho um presente precioso para dar a você, meu tolinho rebelde. Você achou que eu não conseguiria ver em seus olhos, mas claro que eu conseguiria... — Adair entrou em pânico com as palavras do velho, preocupado que o físico pudesse ler sua mente e soubesse do pacto com o monge. — Mas, assim que receber este presente, você nunca mais conseguirá recusar nada a mim de novo. Este presente nos unirá, você verá...

O velho chegou bem perto e estudou seu criado de um modo aterrorizante. Foi então que Adair notou um amuleto pendurado num cordão de couro amarrado no pescoço do físico. O velho fechou a mão em volta do amuleto e puxou o cordão com força, protegendo-o com as duas mãos da visão de Adair. Mas Adair conseguira ter um vislumbre dele através da fraca luz da vela: era um pequeno frasco de prata, adornado com relevos diminutos e uma tampa minúscula.

De alguma forma, com a ponta dos dedos murchos, o físico conseguiu tirar a tampa, revelando uma longa agulha que servia como uma rolha bem fina. Um fluido viscoso e acobreado estava grudado na agulha e formava uma gota gorda na ponta.

— Abra a sua maldita boca! — o físico mandou, segurando a rolha sobre os lábios de Adair. — Está prestes a receber um dom precioso. A maioria dos homens mataria ou pagaria muito dinheiro por ele. E aqui estou eu a ponto de desperdiçá-lo com um idiota feito você! Faça o que eu disse, seu cachorro mal-agradecido, antes que eu mude de ideia. — Ele nem precisava ter brigado: a agulha era fina o suficiente para atravessar os lábios de Adair, e ele a enfiou na língua do rapaz.

Foi mais o choque do que a dor que fez Adair se atirar para cima do físico, o choque do estranho amortecimento tomando conta de seu corpo. O coração do jovem congelou de terror, com a sensação instantânea de que estava no limiar de algo demoníaco. Conforme a pressão de seu corpo caía, seu coração começou a bater cada vez mais rápido, desesperado para mandar o que ainda restava de sangue para os membros famintos, o cérebro, o coração. Enquanto isso, o velho o segurava firme, murmurando a ininteligível e, certamente, a língua do diabo, enquanto executava outra função sobre ele, dessa vez com agulhas e tinta. Adair tentou empurrar o velho, mas não conseguia removê-lo do lugar e, em poucos minutos, não tinha mais forças para tentar. Convulsionando, engasgando, enrolando-se nos lençóis nos espasmos da morte e ficando azul de frio... Adair sentia como se estivesse sendo enterrado vivo, preso num corpo que caía em espiral.

Dentro de Adair, um desejo feroz o fazia resistir à morte. Se ele morresse, o velho nunca seria punido e, mais do que tudo, Adair queria ver este dia. O físico analisou o rosto de Adair em seus espasmos de morte.

— Tão forte! Você tem um senso de sobrevivência muito forte, isso é bom. Fique cego de ódio de mim, isso é o que eu espero de você, Adair. Seu corpo passará pelos últimos estágios da morte e isso irá mantê-lo ocupado por um tempo. Fique quieto.

Quando o corpo de Adair já não podia mais se salvar, começou a endurecer, aprisionando a mente de Adair dentro dele. Enquanto permanecia deitado ali, o físico falou de como ele tinha sido levado à alquimia (ele não esperava que Adair, um camponês, entendesse a magia da ciência), de como seu treinamento como físico lhe abrira as portas. Mas, acima da alquimia, ele havia se aliado, aos poucos, aos mais astutos, àqueles que transitavam acima dos segredos do mundo natural para o mundo sobrenatural. Transformar metais comuns em ouro era uma alegoria, Adair conseguia entender? Os verdadeiros videntes não buscavam transformar materiais terrenos em coisas mais preciosas, mas sim transformar a própria natureza do homem! Mediante a purificação mental e a dedicação total ao conhecimento da alquimia, o físico havia passado para o nível dos maiores conhecedores, dos homens mais poderosos na Terra.

— Eu comando água, fogo, terra e vento. Você já viu, sabe que é verdade — gabou-se. — Posso tornar os homens invisíveis; tenho a força da minha juventude. Isso lhe surpreendeu, não foi? Na verdade, sou mais forte do que costumava ser; às vezes me sinto tão forte quanto vinte homens juntos! E também tenho poder sobre o tempo. O presente que lhe dei — o rosto dele transformou-se em uma máscara odiosa de superioridade e autossatisfação — é a imortalidade. Você, meu servo quase perfeito, nunca deixará de me servir. Nunca me decepcionará. Nunca morrerá.

Adair ouviu as palavras enquanto estava morrendo e desejou que tivesse entendido errado. Servir ao físico para sempre! Ele implorou para que a morte o levasse. Em pânico, bloqueou o restante do que o físico estava lhe dizendo, mas não tinha importância.

Ainda ouviu mais um pouco antes que a escuridão o engolisse. O físico estava lhe contando que só havia uma forma de escapar da eternidade, só uma maneira de ser morto: pelas mãos daquele que o tinha transformado. Pelo seu feitor, o físico.

 

Quando Adair acordou, viu que ainda estava na cama do físico, o velho deitado perto dele, parecendo um morto. Adair sentou-se; sentia-se estranho. Era como se tudo tivesse mudado enquanto dormia, mas não sabia dizer exatamente o quê. Algumas mudanças eram evidentes: a visão, por exemplo. Ele conseguia enxergar no escuro. Viu ratos correndo pelos cantos do quarto, subindo um em cima do outro enquanto percorriam a largura da parede. Podia ouvir cada som como se estivesse bem ao lado da fonte do barulho, cada som separado e distinto. O olfato era o mais predominante de todos; os odores lhe chamavam a atenção, principalmente os doces e encorpados, com uma pitada de cobre no ar. Não conseguia identificá-lo, por mais que mexesse com ele.

Em alguns minutos, o físico se moveu e, então, levantou-se. Notou o estado de estupor de Adair e riu.

— Parte do dom, veja você. Maravilhoso, não é? Você tem os sentidos de um animal.

— Que cheiro é esse? Sinto-o por toda parte. — Adair olhou para suas mãos, para a roupa de cama.

— É sangue. Os ratos estão gordos de tanto sangue e estão todos em nossa volta. Marguerite, dormindo no andar de cima. Também consegue sentir o cheiro dos minerais nas rochas, nas paredes a seu redor. A poeira doce, a água limpa; tudo é melhor, mais limpo. É o dom: coloca você acima dos outros homens.

Adair caiu de joelhos no chão.

— E você? Também é como eu? É por isso que tem seus poderes? Também consegue ver tudo?

O velho sorriu misteriosamente.

— Se sou o mesmo que você? Não, Adair, não passei pela transformação pela qual você acabou de passar.

— Por que não? Não quer viver para sempre?

Ele balançou a cabeça como se estivesse falando com um idiota.

— Não é tão simples como realizar um desejo. Pode estar além de sua compreensão. De qualquer forma, sou um velho e sofro os insultos da idade. Não gostaria de viver eternamente desse jeito.

— Se este é o caso, como acha que vai me manter aqui, velho? Agora que me tornou forte, não haverá mais surras. E Deus sabe que não haverá mais assédio sexual. Como espera me manter em sua companhia?

O velho caminhou em direção à escadaria, olhando astuciosamente sobre os ombros.

— Nada mudou entre nós, Adair. Acha que lhe daria algum tipo de poder que o libertasse? Eu ainda sou mais forte. Posso extinguir sua vida como a chama de uma vela. Eu sou o único que pode desfazer o que foi feito. Lembre-se disso — e o físico desapareceu na escuridão.

Adair continuou ajoelhado, tremendo, sem saber, naquele momento, se acreditava no que o velho tinha lhe dito ou na estranha força que vinha de dentro de suas entranhas. Olhou para o lugar de seu braço onde vira o físico trabalhando com agulhas e tinta, achando que estava sonhando, mas, não, havia um desenho curioso lá, de dois círculos dançando, um ao redor do outro. O desenho tinha algo familiar, mas não conseguia se lembrar onde já o tinha visto.

Talvez o físico estivesse certo: talvez Adair fosse muito estúpido para entender algo tão complexo. Mas a vida eterna era a última coisa com a qual se importava naquele momento. Não fazia diferença viver ou morrer. Tudo o que queria era convencer o monge a prosseguir com o plano, e não tinha importância se ele morresse na barganha.

Adair encontrou o monge rezando na capela. Em pé na porta, pensou se sua condição aparentemente sobrenatural o impediria de entrar num lugar santificado. Se tentasse atravessar a passagem, seria arremessado de volta pelos anjos e proibido de entrar? Após respirar fundo, deslizou pela porta de carvalho, sem efeitos colaterais. Aparentemente, Deus não tinha domínio sobre o que ele se tornara. O monge viu Adair e se apressou, pegando-o pelo braço e levando-o para um canto escuro.

— Saia da porta, podem nos ver juntos — ele disse. — Qual é o problema? Parece agitado.

— E estou mesmo. Tomei conhecimento de algo ainda mais aterrorizante do que já lhe contei, algo sobre o físico que eu não sabia até a noite passada. — Adair pensou se estava brincando com fogo. Ainda assim, estava convencido de que era esperto o suficiente para derrotar o físico sem ser incriminado.

— Pior do que ser um adorador de Satã?

— Ele... não é humano; é uma das criaturas de Satã. Ele se revelou para mim, em toda sua maldade. O senhor foi treinado pela Igreja, sabe das coisas do outro mundo, criaturas maléficas atiradas sobre pobres mortais para a diversão de Satã e nosso tormento. Qual é a pior coisa que pode imaginar, monge?

Para seu alívio, Adair não viu ceticismo no rosto redondo do monge. O clérigo ficou pálido e prendeu a respiração, com medo, talvez relembrando todas as histórias terríveis que ouvira ao longo dos anos, as mortes inexplicadas, as crianças desaparecidas.

— Ele se transformou em um demônio, monge. Não consegue imaginar como é ter uma criatura tão maléfica como esta tão perto, em sua garganta, o fedor do inferno em seu hálito. A força de Lúcifer nas mãos dele.

— Um demônio! Já ouvi falar de demônios que caminham entre os homens, que eles têm muitas formas. Mas nunca, nunca ninguém se encontrou com um e viveu para contar. — Os olhos do monge saltavam em seu rosto pálido e ele se afastou de Adair. — Mas você está aqui, vivo. Qual é o milagre?

— Ele disse que não estava pronto para me levar; disse que ainda precisava de mim como servo, o mesmo com Marguerite. Ele me avisou para não fugir, que haveria punições severas caso eu tentasse escapar, agora que eu já sei... — Adair não precisou fingir estar com medo.

— O demônio!

— Sim. Ele pode ser o próprio demônio!

— Devemos tirar você e Marguerite daquela casa agora mesmo! Suas almas estão em risco, sem falar em suas vidas.

— Não podemos nos arriscar; não sem antes termos um plano. Marguerite está a salvo. Nunca o vi levantar a mão para ela. Quanto a mim, há muito pouca coisa a fazer comigo além do que ele já fez até agora.

O monge suspirou.

— Meu filho, ele pode lhe tirar a vida.

— Eu seria mais um entre tantos.

— Arriscaria sua vida para livrar o vilarejo desse demônio?

Adair ruborizou com ódio.

— Com todo o prazer.

Os olhos do clérigo se encheram de lágrimas.

— Muito bem, então, meu filho, nós prosseguiremos. Falarei com os moradores do vilarejo discretamente, pode ter certeza, e verei com quem podemos contar para nossa marcha contra o físico. — Ele se levantou para acompanhar Adair até a porta. — Fique de olho neste prédio. Quando estivermos prontos para agir, amarrarei um pano branco ao poste da lanterna. Até lá, tenha paciência e seja forte.

Passou uma semana, depois duas. Às vezes, Adair imaginava se o monge teria perdido a coragem e fugido do vilarejo, muito covarde para confrontar o físico. Adair passava a maior parte do tempo procurando pelo selo que o velho usara para autenticar os documentos em sua propriedade. Depois da cerimônia no castelo do físico, aparentemente o selo sumira, apesar de Adair saber que o físico não arriscaria guardá-lo onde ele não pudesse lhe pôr as mãos quando precisasse. À noite, depois que Marguerite dormia e o velho saía em suas excursões noturnas, Adair procurava em cada caixa, cesto e baú, mas não encontrou o pesado selo de ouro.

Quando Adair estava com medo de não conseguir mais controlar sua impaciência, veio a noite em que o pano branco balançava ao vento no poste da lamparina da igreja.

O clérigo estava em pé em frente da entrada da abadia. Ele sofrera desde a última vez que Adair o vira e não parecia mais um fraco. Suas bochechas, antes cheias como as de um esquilo, agora estavam murchas. Seus olhos, brilhantes e claros da primeira vez que ele e Adair se encontraram, estavam opacos e tristes devido ao conhecimento que agora ele possuía.

— Falei com os homens do vilarejo e eles estão conosco — o clérigo disse, enquanto pegava Adair pelo braço, com um ar conspirador, e o levava para as sombras do vestíbulo. Adair tentou esconder sua alegria.

— Qual é o plano?

— Nos reuniremos amanhã à meia-noite e marcharemos até a casa.

— Não, não, à meia-noite não — Adair interrompeu, colocando a mão sobre o braço do clérigo. — Para surpreenderem o físico, seria melhor virem no pico do meio-dia. Como qualquer demônio, o físico é ativo à noite e dorme durante o dia. Aproximem-se da casa à luz do dia para terem maior chance. A patrulha nunca vem até a casa. A não ser que soem o alarme, não precisa ter medo dos guardas do conde. — Isso não era exatamente verdade. Os guardas já haviam visitado o velho muitas vezes durante o dia, mas só por uma razão: para entregar uma prostituta para ele. No entanto, essas entregas agora eram menos frequentes. Havia tempos o conde não mandava uma serviçal, então a chance era maior, mas... Adair achou que não era hora, mas pensou que não valia a pena mencionar o risco ou o monge poderia usá-lo como uma desculpa para não prosseguir com o plano.

— Sim, sim... — o monge concordou, olhos vidrados. “Ele está escapando de mim”, Adair pensou.

— E o que propõem fazer com o velho quando o capturarem?

O clérigo parecia ter levado um golpe.

— Não cabe a mim decidir o futuro de um homem...

— Claro, padre, seria sua responsabilidade como representante de Deus. Lembre-se do que o Senhor diz sobre bruxas: não pode deixá-las viver. — Ele apertou o braço do homem com firmeza enquanto falava, como se puxasse sua coragem pelas veias. Após um longo momento, o clérigo baixou os olhos.

— A multidão... Não posso garantir que serei capaz de controlar a fúria da multidão. Afinal, eles têm muito ódio do físico... — ele disse, com voz firme e resignada.

— Isso mesmo! — Adair concordou pacientemente. — Não pode ser o responsável pelo que acontecer. É o desejo de Deus. — Ele precisou esconder a risada selvagem que borbulhava dentro dele. O velho odioso finalmente teria o que merecia! Poderia estar além da força de Adair, sozinho, vencer um homem com o demônio a seu lado, mas certamente o físico não conseguiria se defender de metade do vilarejo.

— Precisarei de mais um dia para informar a mudança de planos aos homens — o clérigo disse. Adair assentiu. — Depois de amanhã, então, ao meio-dia — o clérigo engoliu em seco e fez o sinal da cruz.

Um dia. Adair tinha um dia para encontrar o selo ou arriscar que os moradores do vilarejo o encontrassem. Ele voltou para a casa, dissimulando o pânico. Onde o objeto poderia estar? Adair tinha procurado em todas as prateleiras, gavetas, revirado todas as peças de roupa do físico, tinha até mesmo esquadrinhado cada baú para ter certeza de que o selo não fora escondido entre eles. O fracasso da busca só servia para aumentar o desespero de Adair, e ele viu seus planos desmoronarem, como um castelo de cartas: nunca conseguiria fugir do físico, nunca viveria no castelo distante, nunca veria sua família nem sua amada Katarina. Preferia estar morto, pensou. Sua frustração era tão grande que teria pedido ao velho que pusesse fim à sua existência, por compaixão, se seu ódio pelo físico não fosse maior. O velho estava em sua escrivaninha, quando Adair voltou de seu encontro secreto, e olhou para cima quando o servo adentrou a sala.

— Precisarei voltar à vila amanhã para buscar comida para os cavalos — Adair disse para o velho e, um segundo depois, um pensamento, uma possibilidade surgiu em sua mente. O velho batia os dedos sobre a mesa.

— Sua missão terá que esperar um dia. Farei um emplastro curativo para levar, para trocar por aveia com o fornecedor de provisões...

— Minhas desculpas, mas, devido à minha falta de atenção, o depósito de grãos está vazio. Já não há comida há vários dias e a grama está muito escassa para satisfazer os cavalos por muito mais tempo. Não posso esperar. Com sua permissão, comprarei só uma pequena quantidade, o suficiente para os cavalos passarem essa semana, e me encontrarei com o fornecedor de provisões na semana que vem, quando o senhor já tiver tido tempo de fazer o emplastro.

Adair prendeu a respiração, esperando para ver o que o velho diria, pois, caso recusasse, seria difícil inventar outra desculpa, em tão pouco tempo, para fazê-lo revelar onde escondia seu dinheiro e seus pertences valiosos. O velho balançou a cabeça diante da incompetência do servo, então se levantou e desceu as escadas. Adair queria segui-lo, mas ouviu com a atenção de um cão de caça, pegando cada som, cada pista. Apesar do grosso assoalho de madeira, ouviu o movimento de escavação e, em seguida, o som de algo pesado sendo tirado do lugar. O tilintar de uma moeda, então o som do movimento de novo. Finalmente, o velho subiu os degraus de volta e jogou uma bolsinha de pele de veado sobre a mesa.

— Apenas o suficiente para uma semana. Tente conseguir uma boa barganha — alertou, resmungando.

À noite, quando o velho saiu, Adair voou para o porão. O chão nojento parecia não ter sido mexido e foi só depois de uma busca cuidadosa que Adair encontrou o lugar onde o velho estivera trabalhando, rente à parede, num lugar úmido e mofado, cheio de fezes de ratos.

A terra havia sido retirada de uma das pedras. Adair ajoelhou-se e segurou o canto das pedras pela ponta dos dedos, retirando-a da parede. Num pequeno recôndito, só conseguia discernir uma trouxa de tecido grosseiro, que ele retirou e desenrolou. Havia uma bolsa gorda de dinheiro e, envolto num quadrado de veludo, o selo do reino de seus sonhos.

Adair pegou tudo e empurrou a pedra de volta no lugar. Ajoelhado na terra, estava empolgado com o sucesso, feliz por ter encontrado o selo, feliz por ter tido uma vitória sobre seu opressor depois de tantas injustiças que recaíram sobre ele.

Adair deveria ter matado seu pai em vez de tê-lo deixado bater em sua mãe e irmãos.

Não deveria ter se deixado vender como escravo.

Deveria ter aproveitado cada chance para escapar e nunca desistir de tentar.

Deveria ter matado o maldito conde. Ele merecia a morte por ser inimigo do povo magiar e um bárbaro em conluio com um emissário de Satã.

Deveria ajudar Marguerite a fugir, levá-la até uma boa família ou a um convento, encontrar alguém para tomar conta dela.

A maneira que Adair via a situação não era uma questão de roubo. O físico devia seu reino a Adair. Ou ele o dava a Adair ou morreria.

 

No dia marcado, Adair observava o sol a pino, tão cobiçosa e atentamente quanto os olhos de uma águia olham para um rato no campo. O clérigo e sua multidão chegariam à casa em uma hora ou duas. A questão era se ele deveria ficar e testemunhar a ruína do físico.

Era tentador ver os moradores arrastarem o velho de sua cama nojenta e trazê-lo à luz do sol, o rosto dele contorcido pelo medo e pela surpresa. Ouvir seus gritos enquanto eles o espancavam no chão, golpeando-o com porretes, cortando-o aos pedaços com foices. Encorajá-los enquanto saqueavam a casa, pilhavam os baús, jogavam as garrafas e os jarros de ingredientes preciosos no chão, os esmagavam e, então, queimavam a maldita fortaleza.

Ainda que estivesse em posse do selo, Adair não poderia sair cavalgando sem ter certeza de que o físico não viria atrás dele. Mas havia uma boa razão para desaparecer antes que a multidão chegasse: e se o velho, por algum motivo, escapasse da morte? Se a coragem da multidão falhasse ou se o velho também tivesse poderes de imortalidade (uma possibilidade, o físico nunca dissera que não tinha, não com todas as letras), ele poderia pensar que Adair estava envolvido no ataque. Não haveria como negar isso ao físico, se sua aliança fosse descoberta. Seria mais prudente preservar a sombra da dúvida.

Ele foi até Marguerite, que estava esfregando batatas num balde de água, tirou as batatas da mão dela e começou a acompanhá-la até a porta. Ela resistiu, alma boa que era, mas a vontade de Adair prevaleceu e ele a fez esperar ao lado dele enquanto selava o cavalo do velho. Ele levaria Marguerite para a segurança da cidade, para não presenciar a confusão. Assim seria melhor. Ele só voltaria para ver o resultado.

O sol estava se pondo quando Adair refez o caminho de volta à casa. Ele não teve pressa, deixou o cavalo vaguear com a rédea solta por caminhos desconhecidos pela floresta. Ele não estava ansioso para se encontrar com o grupo de moradores do vilarejo em seu caminho de volta, cheios de animação e sede de sangue.

Adair notou uma nuvem de fumaça negra no horizonte, mas, quando chegou mais perto da casa, ela já tinha se transformado numa nuvem de fumaça. Apressou o cavalo, até chegar a uma clareira familiar antes da casa de pedra.

A porta estava sem a tranca e o chão em frente estalava assustadoramente. O curral fora destruído e o segundo cavalo havia desaparecido. Adair deslizou do lombo do cavalo e se aproximou cuidadosamente da porta aberta, preta e sinistra como um crânio sem o olho.

Do lado de dentro, linhas de ferrugem subiam pelas paredes como se se agarrassem para fugir. A destruição foi como imaginara: pedaços de vidro e cerâmica no chão, por todo lado; caldeirões, potes e baldes revirados, a escrivaninha em pedaços. Todas as receitas haviam desaparecido, junto com os vestígios do velho. A não ser que... o sangue de Adair congelou imediatamente ao pensar que a coragem da multidão realmente tivesse falhado. Começou a fuçar pelos destroços, erguendo móveis, procurando por roupas espalhadas pelo chão e os poucos itens que sobraram dos baús saqueados. Mas não encontrou nada do velho, nem mesmo uma orelha. Com certeza haveria restos, um pedaço de osso, um crânio queimado, se os aldeões tivessem sido bem-sucedidos em lhe trazer a ruína.

Outras alternativas ainda mais assustadoras vieram à mente de Adair: talvez o físico tivesse conseguido escapar para a floresta ou se escondido em algum lugar da casa. Afinal, se havia um pequeno cofre atrás de uma pedra na parede, quem poderia dizer que não havia um quarto maior escondido? Ou talvez, e ainda mais perigoso, tivesse se entregado por meio de feitiços ou fora poupado pelo próprio mestre da escuridão, que interveio em nome de um servo fiel.

Com o pânico subindo pela garganta, Adair desceu as escadas para os aposentos do velho. A cena abaixo era ainda mais horrenda do que no andar de cima. O ar estava espesso com fumaça negra, aparentemente o fogo principal havia sido feito aqui, e o quarto estava completamente vazio, exceto pela cama de cinzas ardentes.

Mas Adair conseguia cheirar a morte escondida e profunda dentro da fumaça; então, foi até o monte preto de cinzas, agachou-se e passou os dedos pelos restos. Encontrou pedaços de osso, lascas e pepitas ainda quentes ao toque. E, finalmente, a maior parte de um crânio, com um pedaço de carne queimada e o cabelo fino e comprido ainda no lugar.

Adair ficou em pé e limpou as cinzas das mãos o melhor que pôde. Não teve pressa para sair da casa, olhou pela última vez o lugar de seus cinco anos de sofrimento. Era uma pena que as paredes de pedra não pudessem ser queimadas também. Ele não manteve nada além das roupas do corpo e, claro, o selo e a bolsa de moedas. Saiu vagarosamente pela porta aberta, juntou as rédeas do cavalo e seguiu em direção ao leste, para a Romênia.

 

Adair conseguiu viver na propriedade do físico por muitos anos, apesar de o direito à propriedade não ter lhe sido passado diretamente como ele esperava. Quando chegou às terras sozinho, sem o físico, Adair apresentou-se ao administrador, Lactu, e disse a ele que o velho havia morrido. A esposa e o filho haviam sido inventados, Adair explicou, uma história para dar ao físico a privacidade para a verdadeira razão de sua solteirice: suas tendências peculiares. Sem herdeiro, o físico havia deixado a propriedade para seu fiel servo e companheiro, Adair explicou, e mostrou o selo ao administrador.

As dúvidas do administrador eram óbvias em seu rosto e ele esclareceu que o pedido da posse da terra deveria ser feito ao rei da Romênia. Se Adair não era um descendente de sangue do físico, o rei tinha o direito de decidir sobre o destino da propriedade. A decisão do rei levou anos, mas, no final, não foi tomada a favor de Adair: ele teve permissão para continuar na propriedade e manter o título da família, mas o rei se apropriou das terras.

Chegou o dia em que Adair não podia mais permanecer ali. Lactu e todos os outros tinham murchado e envelhecido com o passar dos anos, enquanto Adair era o mesmo desde o dia em que chegara ao castelo. Assim, para não levantar suspeitas, era o momento de Adair desaparecer por uns tempos, ficar quieto e, talvez, voltar em algumas décadas, fingindo ser seu próprio filho, com o selo de ouro na mão.

Ele resolveu ir para a Hungria, seguindo seu coração, para procurar sua família. Adair queria muito vê-los; não o pai, claro, pois, depois do físico, era quem ele mais odiava. Sua mãe já deveria estar velha e vivendo com o filho mais velho, Petu. Os outros estariam crescidos, com filhos. Ele ansiava vê-los e saber o que tinha acontecido com eles.

Levou dois anos até Adair encontrar sua família. Ele começou pela propriedade de onde havia sido levado e reconstruiu a rota, dolorosamente, baseando-se em pistas e informações de ex-vizinhos e soberanos. Finalmente, quando o segundo inverno estava chegando, parou no lago Balaton e cavalgou pelo vilarejo, procurando por rostos parecidos com o seu.

Assim que chegou perto de um grupo de cabanas nos arredores do vilarejo, teve um pressentimento de que alguém que conhecia estava muito próximo. Adair desmontou do cavalo, caminhou pela escuridão em direção às cabanas e bisbilhotou pelas janelas. Enfiando o olho pelo buraco das cortinas, onde a luz da vela era quase imperceptível, ele viu alguns rostos conhecidos.

Apesar de terem mudado com o tempo, ficado mais redondos, enrugados e cansados, ele os reconheceu. Seus irmãos estavam reunidos em volta da fogueira, bebendo vinho e tocando o violino e a balalaica. Com eles havia mulheres que Adair não reconhecia, suas esposas, ele supôs, mas não havia sinal de sua mãe. Finalmente viu Radu, crescido, peito musculoso, alto... Ah, como Adair queria correr para dentro da cabana, abraçar Radu e agradecer a Deus por ele estar vivo, por ter sido poupado de todo o inferno e tormenta pelos quais Adair havia passado. Então, percebeu que Radu parecia bem mais velho do que ele, que todos os seus irmãos já mostravam o sinal do tempo. Viu uma mulher ir até Radu e sorrir, e este deslizou o braço em volta dos ombros dela e a apertou. Era Katarina, agora mulher e linda, e apaixonada por Radu, o irmão que era exatamente como Adair. Só que mais velho.

Enquanto permanecia em pé no escuro e no frio, ainda queimando com o desejo de ver sua família, de abraçá-los e conversar com eles, de lhes contar que não havia morrido nas mãos do físico, a terrível verdade se abateu sobre ele. Esta seria a última vez que os veria. Como poderia explicar o que havia acontecido com ele e o que ainda tinha pela frente? Porque ele nunca envelheceria; não era mortal como eles: havia se transformado em algo que não conseguia explicar.

Adair foi até a frente da cabana e tirou uma sacola de moedas do bolso, deixando-a em frente da porta. Era dinheiro suficiente para que parassem de perambular pelo mundo. Seria difícil confiarem totalmente naquele milagre, mas, com o tempo, aceitariam a boa sorte e agradeceriam a Deus por sua generosidade e compaixão. Até lá, Adair já estaria muitos dias ao norte, perdendo-se entre as multidões de Buda e Szentendre, aprendendo a lidar com seu destino.

Ao final da história, tinha me desvencilhado dos braços de Adair, o efeito da fumaça já desaparecido. Não sabia se deveria ter respeito ou medo dele.

— Por que me contou isso tudo? — perguntei, fugindo de seu toque.

— Considere uma lenda de advertência — ele respondeu misteriosamente.

 

                       FRONTEIRA DO MAINE, HOJE

Luke vira para sair da via expressa e pega uma estrada velha e empoeirada, deixando o ponto morto levar a SUV pelos buracos. Quando chega a um cotovelo, estaciona ao lado da via de acesso, mas mantém o motor funcionando. A visão deles é clara graças à nudez das árvores de inverno e ambos...

 

                                                                                CONTINUA  

 

                      

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