A mulher parecia completamente deslocada em sua virginal blusa branca e com sua calça social marfim de corte impecável. O cabelo escuro, cor de café, lhe caía como uma cascata sobre os ombros em densas ondas; nem uma mecha sequer se perturbava pela névoa úmida que pairava no ar da floresta. Usava elegantes sapatos de salto alto, que não pareciam tê-la impedido de subir o caminho em meio às árvores, o mesmo que tinha deixado os aventureiros ao seu redor bufando sob o úmido calor de julho.
No topo da íngreme colina, ela esperava à sombra de uma enorme formação rochosa coberta de musgo, enquanto observava, sem piscar, meia dúzia de turistas passarem por ela, alguns tirando fotos da paisagem. Eles não pareciam notá-la, pois a maioria das pessoas não pode enxergar os mortos.
Dylan Alexander também não queria vê-la.
Não havia encontrado uma mulher morta desde que tinha 12 anos. Ver uma agora, vinte anos depois, no meio da República Tcheca, era um pouco mais que assustador. Tentou ignorar a aparição, mas quando Dylan e seus três companheiros de viagem conseguiram subir o caminho, os sombrios olhos da mulher a encontraram e se cravaram nela.
Você pode me ver.
Dylan fingiu não ouvir o sussurro que saiu dos lábios imóveis da fantasma. Não queria admitir a conexão. Tinha passado tanto tempo sem um desses incômodos encontros que havia até se esquecido de como eram.
Dylan nunca havia compreendido seu estranho dom de ver os mortos. Nunca fora capaz de confiar nessa capacidade ou de controlá-la. Podia ficar parada no meio de um cemitério sem ver nada, e, de repente, encontrar-se bem próxima de um morto, como acontecia agora, ali nas montanhas, a quase uma hora de Praga.
Os fantasmas eram sempre mulheres jovens e vibrantes, como esta que a fitava naquele instante com um inconfundível desespero em seu exótico e profundo olhar castanho.
Precisa me ouvir.
A frase era marcada por um forte sotaque espanhol, em tom suplicante.
– Ei, Dylan. Venha aqui para eu tirar uma foto sua ao lado desta rocha.
O som de uma voz real e terrestre afastou a atenção de Dylan da bela mulher morta que estava parada sob um arco envelhecido de pedra arenosa. Janet, amiga da mãe de Dylan, Sharon, vasculhou sua mochila e tirou de lá uma câmera fotográfica. A viagem de verão pela Europa foi ideia de Sharon; teria sido sua última grande aventura, mas o câncer voltou em março e, desta vez, a quimioterapia não estava mostrando muito progresso. Sharon ainda estava no hospital e, diante de sua insistência, Dylan viajou em seu lugar.
– Pronto – disse Janet, tirando uma foto de Dylan e dos imponentes pilares rochosos sobre o vale de bosques logo abaixo. – Sua mãe certamente amaria este lugar, querida. Não é espetacular?
Dylan assentiu:
– Vamos enviar as fotos por e-mail para ela hoje à noite, quando voltarmos ao hotel.
Dylan guiou a turma para longe da rocha, ansiosa por deixar para trás aquela presença de outro mundo e seus sussurros. Desceram pela cordilheira inclinada, passando por um aglomerado de pinheiros de tronco fino que cresciam em uma formação cerrada. Folhas avermelhadas de coníferas caíam sobre o solo úmido debaixo de seus pés. Havia chovido naquela manhã, o que, somado ao calor abafado, mantinha muitos dos turistas longe dali.
A floresta estava tranquila, pacífica... exceto pela consciência de olhos fantasmagóricos que seguiam cada passo de Dylan mata adentro.
– Fiquei tão contente por seu chefe lhe dar folga para vir conosco – comentou uma das mulheres atrás de Dylan. – Sei como você trabalha duro naquele jornal, inventando todas as histórias...
– Ela não as inventa, Marie – reprimiu Janet gentilmente. – Deve haver alguma verdade nos artigos de Dylan, ou não os publicariam. Não é, querida?
Dylan zombou:
– Bem, considerando que normalmente há ao menos uma história de abdução alienígena ou possessão demoníaca na primeira página, não costumamos deixar os fatos no caminho de uma boa história. Publicamos textos de entretenimento, não jornalismo sério.
– Sua mãe diz que um dia você será uma repórter famosa – disse Marie. – Uma iminente Woodward ou Bernstein, é o que diz.
– É isso mesmo – interveio Janet. – Sabe, ela me mostrou um artigo que você escreveu em seu primeiro emprego no jornal, logo depois de sair da faculdade... estava cobrindo um caso horrendo de assassinato, no norte do estado. Lembra-se disso, não é, querida?
– Sim – respondeu Dylan, conduzindo-as em direção a outro agrupamento maciço de altivas torres de arenito que se erguiam além das árvores. – Eu me lembro. Mas isso foi há muito tempo.
– Bem, não importa o que faz, sei que sua mãe tem muito orgulho de você – disse Marie. – Você trouxe muita alegria para a vida dela.
Dylan assentiu, esforçando-se para recuperar a voz.
– Obrigada.
Tanto Janet como Marie trabalhavam com a mãe de Dylan no Centro das Mulheres no Brooklyn. Nancy, a outra integrante do grupo de viagem, era a melhor amiga de Sharon desde o ensino médio. As três mulheres haviam se tornado uma extensão da família de Dylan nos últimos meses. Três pares extras de braços para confortá-la, dos quais realmente precisaria se viesse a perder a mãe.
Em seu coração, sabia que não era uma questão de possibilidade, mas de tempo. A recaída tinha vindo rapidamente, e o câncer havia se mostrado ainda mais implacável do que da primeira vez.
Nancy se aproximou e lançou a Dylan um sorriso terno, embora triste.
– Significa muito para Sharon que você tenha vindo no lugar dela na viagem. Você está vivendo tudo isso por ela, sabe disso, não é?
– Sei. Não teria deixado de vir por nada.
Ela não havia contado às suas companheiras de viagem – nem à sua mãe – que tirar duas semanas de férias com um aviso tão curto provavelmente lhe custaria o emprego. Parte dela realmente não se importava. De qualquer modo, odiava trabalhar naquele tabloide sensacionalista. Havia tentado vender a seu chefe a ideia de que voltaria da Europa com algum material decente – talvez uma história boêmia sobre o Abominável Homem das Neves, ou algum testemunho de terem visto o Drácula fora da Romênia.
No entanto, repassar mentiras a um sujeito que as vendia para ganhar a vida não era uma tarefa fácil. Seu patrão havia sido muito claro sobre suas expectativas: se Dylan partisse em viagem, era melhor voltar com algo grande, ou nem precisava voltar.
– Uau, faz calor aqui em cima – exclamou Janet, afastando o boné dos cachos curtos e prateados e passando a palma da mão sobre a testa. – Sou a única fraca aqui, ou mais alguém gostaria de descansar um pouco?
– Por mim, um descanso seria ótimo – concordou Nancy, tirando a mochila das costas e colocando-a no chão, sob a sombra de um alto pinheiro. Marie uniu-se a elas, saindo do caminho e tomando um demorado gole de sua garrafa de água.
Dylan não estava nem um pouco cansada. Queria continuar andando.
As montanhas e formações rochosas mais impressionantes ainda estavam um pouco adiante. Elas haviam programado apenas um dia para essa parte da viagem, e Dylan queria explorar o máximo que pudesse.
E ainda havia a bela mulher morta que se encontrava agora parada diante delas no meio do caminho. Ela fitava Dylan fixamente, e sua energia variava visivelmente de intensidade.
Olhe para mim.
Dylan desviou o olhar. Janet, Marie e Nancy estavam sentadas no chão, beliscando barras de cereal e granola.
– Aceita? – perguntou Janet, oferecendo um saquinho com frutas secas, nozes e sementes.
Dylan negou com a cabeça.
– Estou inquieta demais para descansar ou comer agora. Se não se importam, acho que vou dar uma volta rápida, enquanto vocês descansam aqui. Não vou demorar.
– Claro, querida. Afinal de contas, suas pernas são mais jovens que as nossas. Só tome cuidado.
– Tomarei. Volto logo.
Dylan evitou o lugar logo adiante onde a imagem da mulher morta tremeluzia. Em vez disso, cortou a trilha demarcada e adentrou a encosta densamente arborizada. Caminhou por alguns minutos, simplesmente aproveitando a tranquilidade do lugar. Havia certo ar antigo, selvagem e misterioso naqueles picos sobressalentes de arenito e basalto.
Parou para tirar fotos, com a esperança de captar parte daquela beleza para que sua mãe também desfrutasse dela.
Escute-me.
A princípio, Dylan não viu a mulher, apenas ouviu o som entrecortado e estático de sua voz espectral. Mas, então, seus olhos vislumbraram um lampejo branco. A mulher se encontrava mais adiante na encosta, parada sobre o topo de uma pedra em meio aos penhascos escarpados.
Siga-me.
– Péssima ideia – murmurou Dylan, analisando o ardiloso despenhadeiro.
O declive era cruel, e o caminho, no mínimo, duvidoso. E, embora a vista de lá provavelmente fosse espetacular, ela realmente não tinha nenhuma vontade de se unir à sua nova amiga fantasmagórica no outro lado.
Por favor... Ajude-o.
Ajude-o?
– Ajudar quem? – perguntou, sabendo que o espírito não podia escutá-la.
Eles nunca podiam ouvi-la. A comunicação era sempre uma via de mão única. Os fantasmas simplesmente apareciam quando queriam e diziam o que tinham vontade – isso quando falavam. Então, quando se tornava muito difícil para eles manterem sua forma visível, apenas desvaneciam.
Ajude-o.
A mulher de branco começou a ficar transparente sobre a montanha. Dylan protegeu os olhos da luz turva que atravessava as árvores, tentando mantê-la à vista. Um tanto apreensiva, começou a subir com dificuldade, usando os grossos troncos dos pinheiros e faias para ajudá-la a escalar a parte mais íngreme do terreno.
Quando alcançou o topo onde a aparição tinha estado, a mulher havia desaparecido. Dylan andou cuidadosamente até a beirada da rocha e descobriu que era mais vasta do que parecia vista de baixo.
O arenito havia sido curtido pelas intempéries e estava escuro o bastante para que uma profunda fenda vertical na rocha passasse despercebida, até agora.
Vindo de dentro daquela estreita greta mal-iluminada, Dylan ouviu o distante sussurro fantasmagórico mais uma vez.
Salve-o.
Ela olhou ao redor e viu apenas mato e pedras. Não havia ninguém ali. Nem mesmo o rastro da figura etérea que a tinha atraído até o alto daquela montanha, sozinha.
Dylan voltou a cabeça para observar a escuridão na fenda rochosa.
Colocou a mão no espaço vazio e sentiu o ar frio e úmido deslizar por sua pele.
Dentro daquela profunda greta negra, tudo estava silencioso e tranquilo.
Tranquilo como uma tumba.
Se Dylan fosse do tipo que acredita em horripilantes monstros lendários, teria imaginado que um deles poderia viver ali, em um lugar escondido como aquele. Mas ela não acreditava em monstros, nunca tinha acreditado. Além de ver as esporádicas pessoas mortas, que nunca lhe causavam mal algum, Dylan era tão prática – até mesmo cínica – quanto podia ser.
Mas a repórter que havia nela despertava sua curiosidade em saber o que poderia realmente encontrar no interior da rocha. Presumindo que se pudesse confiar na palavra de uma mulher morta, quem seria a pessoa que precisava de ajuda? Haveria alguém ferido ali? Poderia alguma pessoa ter se perdido naquele penhasco íngreme?
Dylan pegou uma pequena lanterna do bolso externo da mochila. Acendeu-a, iluminando a abertura, e percebeu que havia leves marcas talhadas ao redor e dentro da fenda, como se alguém tivesse se esforçado para alargá-la. Porém, com base nas arestas desgastadas das marcas de ferramentas, os sinais não pareciam recentes.
– Olá? – gritou na escuridão. – Tem alguém aí?
Silêncio.
Dylan tirou a mochila e segurou-a em uma mão, carregando a fina lanterna na outra. Avançou, porém seu corpo mal cabia na abertura; qualquer pessoa maior teria de entrar de lado.
O estreitamento durou uma curta distância antes que o espaço ao redor se abrisse. De repente, ela se encontrava dentro da compacta montanha rochosa, e o feixe de luz refletia em paredes lisas e planas.
Era uma caverna vazia, exceto por alguns morcegos despertando do sono. A julgar por seu aspecto, o lugar havia sido, em sua maior parte, escavado por alguém. O teto se elevava a pelo menos seis metros acima da cabeça de Dylan. Havia símbolos interessantes pintados nas paredes da pequena caverna. Pareciam algum tipo estranho de hieróglifo: um cruzamento entre arrojadas marcas tribais e graciosos desenhos geométricos.
Dylan se aproximou de uma das paredes, fascinada pela beleza da curiosa obra de arte. Virou o estreito feixe de luz da lanterna para a direita e ficou sem ar ao descobrir que a complexa decoração continuava ao redor. Deu um passo em direção ao centro da caverna. A ponta de sua bota acertou algo no chão de terra. O que quer que fosse, fez um som oco ao rolar pelo chão. Dylan iluminou o chão com a lanterna e arfou. Ah, droga.
Era um crânio. O osso branco reluzia na escuridão, e a cabeça humana encarava-a com seus sulcos vazios e sombrios. Se este era o homem que a mulher morta queria que Dylan ajudasse, provavelmente tinha chegado uns cem anos atrasada. Dylan moveu a lanterna pela penumbra, sem saber o que procurava, mas fascinada demais para partir agora. O feixe de luz passou por outro amontoado de ossos – céus, mais restos humanos jogados sobre o chão da cova.
Um arrepio correu pelos seus braços, como uma brisa que parecia surgir do nada.
E foi então que ela o viu.
Um grande bloco retangular de pedra se encontrava do outro lado da escuridão. Mais marcas, como as que cobriam as paredes, estavam pintadas na superfície esculpida do objeto.
Dylan não precisou se aproximar para compreender que estava olhando para uma cripta. Uma pesada pedra havia sido posicionada sobre a tumba. Estava deslocada para o lado, levemente apartada da catacumba de pedra, como se tivesse sido empurrada por mãos incrivelmente fortes.
Haveria alguém – ou algo – repousando ali? Ela precisava saber.
Arrastou-se para frente, segurando firme a lanterna com os dedos que começavam a suar. Agora, Dylan estava a poucos passos de distância e, então, direcionou o feixe de luz à abertura da tumba.
Estava vazia.
E, por razões que não sabia explicar, tal pensamento a arrepiou ainda mais do que se tivesse encontrado lá dentro algum cadáver horripilante transformando-se em pó.
Acima da cabeça dela, os habitantes noturnos da caverna estavam ficando inquietos. Os morcegos rodopiavam e passavam por ela em movimentos apressados. Dylan se abaixou para deixá-los passar, imaginando que seria melhor dar logo o fora dali.
Quando se virou para procurar a saída da fenda, escutou outro ruído de movimento. Era mais intenso que o dos morcegos, um grunhido baixo acompanhado por uma perturbação nas pedras soltas em algum lugar da caverna. Ah, meu Deus.
Talvez ela não estivesse ali sozinha, afinal de contas.
Os pelos em sua nuca se ergueram, e antes que pudesse se lembrar de que não acreditava em monstros, seu coração começou a pulsar acelerado. Tateou em busca da saída da cova, escutando o próprio pulso vibrar nos ouvidos. Quando encontrou a luz do dia, estava sem fôlego.
Suas pernas estavam frouxas enquanto se arrastava penhasco acima, e logo correu para reencontrar suas amigas na segurança do reluzente sol do meio-dia.
Ele havia sonhado com Eva outra vez. Já não era o bastante que a mulher o tivesse traído em vida – agora, em sua morte, ela invadia seu sono enquanto dormia. Ainda bela, ainda traiçoeira, falava a ele de arrependimento e de como queria consertar as coisas.
Só mentiras.
O fantasma recorrente de Eva era apenas uma parte do profundo deslize de Rio em direção à loucura.
Sua companheira morta chorava em seus sonhos, implorando que ele a perdoasse pela traição que havia orquestrado um ano atrás. Ela estava arrependida. Ainda o amava, e sempre o amaria.
Não era real. Era somente uma ridícula lembrança de um passado que ficaria satisfeito em deixar para trás. Confiar naquela mulher havia lhe custado muito. Seu rosto tinha sido destruído na explosão do armazém. Seu corpo estava quebrado em certas partes, e ainda se recuperava de ferimentos que teriam matado qualquer homem normal.
E sua mente...?
A sanidade de Rio vinha se rompendo pouco a pouco e havia piorado no tempo em que estivera entocado sozinho naquela montanha boêmia. Podia dar um fim em tudo. Como integrante da Raça – uma espécie híbrida de humanos que carregavam genes vampirescos extraterrestres – podia se arrastar até a luz do sol e deixar que os raios ultravioleta o devorassem. Havia considerado fazer isso, mas ficaria para trás a tarefa de fechar a caverna e destruir as malditas evidências que continha.
Não sabia por quanto tempo tinha estado ali. Os dias e noites, semanas e meses, haviam em algum ponto se fundido em uma suspensão infinita de tempo. Não tinha certeza de como aquilo acontecera. Tinha chegado ali com seus irmãos da Ordem. Os guerreiros estavam em uma missão para localizar e destruir um antigo mal, oculto por séculos em meio às rochas.
Mas haviam chegado tarde demais.
A cripta estava vazia; o mal já havia sido libertado.
Foi Rio quem se voluntariou para ficar para trás e vedar a caverna enquanto os outros retornavam para casa em Boston. Ele não podia ir embora com eles. Não sabia qual era seu lugar. Pretendia encontrar seu próprio caminho – talvez voltar à Espanha, sua terra natal. Era o que havia dito aos guerreiros que por tanto tempo foram como irmãos para ele. Mas não levaram a cabo nenhum dos planos.
Agora, meses depois, escondia-se na escuridão da caverna tal como os morcegos que habitavam o espaço úmido com ele. Não caçava mais, não tinha mais vontade de se alimentar. Simplesmente existia, consciente de seu constante declínio em direção ao próprio inferno.
Para Rio, aquela decadência havia sido demais.
Ao seu lado, em uma encosta vazia de pedra a alguns metros do chão da cova, encontrava-se um detonador e uma pequena pilha de dinamites. Era explosivo suficiente para selar a cripta oculta para sempre. Rio pretendia dispará-lo essa noite... do interior.
Esta noite, daria um fim a tudo. Quando seus sentidos letárgicos o despertaram de um sono profundo para avisá-lo de um invasor, pensou que fosse apenas outro fantasma o atormentando. Mas captou a fragrância de uma humana – uma jovem mulher, a julgar pelo calor almiscarado de sua pele.
Os olhos dele se abriram na escuridão, e as narinas se alargaram para puxar mais daquele aroma para os pulmões.
Ela não era fruto de sua imaginação.
Era de carne e osso, a primeira humana a se aventurar nas proximidades da obscura boca da gruta durante todo o tempo em que estivera ali. A mulher acendeu uma luz brilhante na caverna, cegando-o temporariamente, mesmo estando ele escondido, logo acima da cabeça dela. Rio escutou seus passos se arrastarem pelo chão arenoso.
Ouviu o repentino suspiro quando ela se deparou com um dos restos esqueléticos deixados pelo ocupante original do lugar. Rio se moveu pelas saliências, testando seus membros em antecipação ao salto para o chão. A agitação do ar perturbava os morcegos no teto. Eles voavam, mas a mulher permanecia ali. Seu feixe de luz percorreu mais partes da cova e logo pousou sobre a tumba aberta.
Rio sentiu sua curiosidade se transformar em medo enquanto ela se aproximava da cripta. Até mesmo seus instintos humanos percebiam o mal que certa vez havia repousado naquele bloco de pedra.
Mas ela não devia estar ali.
Rio não podia deixar que ela visse mais do que já tinha visto. Ele ouviu o grunhido que emitiu enquanto avançava para a saliência rochosa logo acima. A mulher também o escutou e ficou tensa, em alerta. O feixe de luz de sua lanterna ricocheteou loucamente nas paredes enquanto buscava em pânico a saída da gruta.
Antes que Rio pudesse ordenar a seus membros que se movessem, ela já estava indo embora. Já havia partido. Ela tinha visto demais, mas logo isso não importaria. Assim que a noite caísse, não haveria mais rastro da cripta, da caverna, nem mesmo do próprio Rio.
Capítulo 2
“CRIPTA OCULTA REVELA SEGREDOS DE ANTIGA CIVILIZAÇÃO!”
Dylan franziu a testa e pressionou a tecla backspace de seu notebook. Ela precisava de um título diferente para o artigo que estava escrevendo – em outras palavras, algo um pouco mais atraente e menos National Geographic. Decidiu tentar novamente, procurando algo que chamasse a atenção nas bancas de jornal, enquanto a mais nova estrela de Hollywood em uma clínica de reabilitação estampava as primeiras páginas.
“ANTIGOS SACRIFÍCIOS DE HUMANOS DESCOBERTOS NO QUINTAL DO DRÁCULA!”
Sim, isso era bem melhor. A parte do Drácula era um exagero, já que a República Tcheca estava a várias centenas de quilômetros da Romênia, lar de Vlad Tepes, o vampiro sedento por sangue. No entanto, aquilo já era um começo. Dylan esticou as pernas sobre a cama de seu quarto no hotel, equilibrou o computador em seu colo e começou a digitar o primeiro rascunho da matéria.
Dois parágrafos depois, parou. Apertou a tecla backspace novamente até que a página ficasse outra vez em branco. As palavras simplesmente não surgiam. Ela não conseguia se concentrar. Embora a visita fantasmagórica que recebeu na montanha a tivesse deixado no limite da sanidade, foi o telefonema para sua mãe o que realmente lhe tirou a atenção por completo. Sharon tinha tentado soar alegre e forte e contava tudo sobre um cruzeiro que o abrigo estava organizando para arrecadar fundos e sobre como estava empolgada para participar.
Depois de ter perdido recentemente outra garota para as ruas – uma jovem fugitiva chamada Toni, que Sharon realmente acreditava que conseguiria salvar –, ela tinha ideias para um novo programa que queria montar com o fundador do abrigo, o senhor Fasso. Sharon aguardava uma reunião em particular com ele, um homem pelo qual ela tinha admitido, em mais de uma ocasião, sentir-se atraída – o que não era surpresa alguma, especialmente para sua filha.
Em comparação a sua mãe, que estava sempre preparada – e por que não dizer disposta? – a se apaixonar, a vida romântica de Dylan era completamente o oposto. Ela havia tido até então uma série de relacionamentos, mas nada realmente significativo, e nada que ela permitisse durar. Uma parte cínica de sua personalidade duvidava completamente do conceito de para sempre, apesar das tentativas maternas de convencê-la de que ela ainda encontraria alguém especial, quando menos esperasse.
Sharon era um espírito livre com um coração enorme e aberto, que tinha sido pisoteado muitas vezes por homens indignos e, agora, era pisoteado também pela injustiça do destino. Ainda assim, ela seguia sorrindo e tocando a vida. Tinha esbanjado sorrisos ao contar a Dylan que havia comprado um vestido novo para o cruzeiro, e que fizera sua escolha com base no corte, que favorecia seu corpo, e não na cor tão similar à cor dos olhos do senhor Fasso. Ao mesmo tempo em que Dylan brincava com a mãe sobre não flertar muito com o filantropo bonito e solteirão, seu coração estava partido.
Sharon estava tentando agir com seu otimismo costumeiro, mas Dylan conhecia muito bem sua mãe. Havia um tom exasperado em sua voz que não podia ser totalmente compreendido em uma ligação de longa distância da pequena e boêmia cidade de Jicín, onde Dylan e suas companheiras de viagem estavam passando a noite. Ela tinha falado com sua mãe por cerca de vinte minutos apenas, mas perto da hora de desligar, Sharon parecia bastante cansada.
Dylan exalou um suspiro enquanto fechava seu computador e o colocava ao seu lado, na estreita cama. Talvez ela devesse ter ido tomar umas cervejas e comer uma porção de salsicha no pub com Janet, Marie e Nancy em vez de continuar trabalhando. Dylan não tinha sentido muita vontade de socializar – e ainda não sentia vontade, por sinal –, mas quanto mais ficava sozinha em seu quarto minúsculo, mais consciente ela ficava de quão verdadeiramente sozinha estava. A tranquilidade tornava difícil pensar em alguma coisa que não fosse o pavoroso silêncio final que tomaria conta de sua vida uma vez que sua mãe... Ah, Deus...
Dylan não estava sequer preparada para permitir que a palavra tomasse forma em sua mente. Ela colocou as pernas para fora da cama e levantou-se. A janela do primeiro andar, que dava para a rua, estava entreaberta. Mesmo assim, sentia-se sufocada, asfixiando. Abriu o vidro da janela por completo, respirou fundo e observou os turistas e os moradores locais que por ali passavam.
E que ótimo seria se a mulher etérea de branco não estivesse também por ali, não é mesmo?
Mas ela estava, de pé, no meio da rua, inabalada pela pressa dos carros e pedestres que passavam em sua volta.
Sua imagem era translúcida na escuridão. Sua forma, menos definida do que tinha sido algumas horas antes, parecia se desfazer a cada segundo. Porém, seus olhos permaneciam fixos em Dylan. Dessa vez, o fantasma não disse nada, apenas olhou com uma resignação apática – fazendo doer o peito de Dylan.
– Vá embora – disse à aparição em voz baixa. – Não sei o que você quer de mim, e realmente não posso falar com você agora.
Parte de Dylan detestava dizer aquilo porque, como seu trabalho estava correndo risco, possivelmente ela não devesse se sentir tão propensa a afastar os visitantes do outro lado. Nada agradaria mais a seu chefe, Coleman Hogg, do que ter em sua equipe uma repórter realmente capaz de ver pessoas mortas. Caramba! O maldito oportunista provavelmente insistiria em dar início a uma publicação secundária com Dylan como atração principal.
Até parece. Isso não aconteceria. Não, mesmo!
Ela havia permitido que um homem explorasse o dom peculiar, se não duvidoso, com o qual ela tinha nascido – e veja só onde as coisas tinham ido parar! Dylan não via seu pai desde que tinha doze anos. As últimas palavras de Bobby Alexander à filha, enquanto ele saía da cidade e da vida dela para sempre, foram uma lista de profanidades carregadas por um desgosto declarado.
Aquele tinha sido um dos dias mais dolorosos da vida de Dylan, mas ao mesmo tempo a tinha ensinado uma boa e dura lição: há poucas pessoas preciosas em quem se pode confiar. Portanto, se você quiser sobreviver, será melhor procurar por alguém que realmente se importa, um porto seguro.
Era uma filosofia que tinha feito muito bem a ela. A única exceção surgia quando o assunto era sua mãe. Sharon Alexander era o porto seguro de Dylan, sua única confidente, e a única pessoa com a qual ela podia verdadeiramente contar. Ela conhecia os segredos de Dylan, todas as suas esperanças e todos os seus sonhos. Conhecia todos os seus problemas e medos também. Todos, exceto um.
Dylan continuava tentando ser forte por Sharon, temia deixar sua mãe perceber que ela tinha ficado petrificada quando descobriu o retorno do câncer. Não estava pronta para assumir aquele medo, e não queria fortalecê-lo ao falar sobre aquilo em voz alta.
– Droga! – sussurrou Dylan enquanto seus olhos começavam a arder com um aviso de que suas lágrimas estavam prestes a escorrer. Ela, todavia, esforçou-se para contê-las com o mesmo controle firme com que tinha praticado durante a maior parte de sua vida. Dylan Alexander não chorava. Não tinha chorado desde que era aquela garotinha traída e com o coração partido olhando o pai se distanciar a toda velocidade no meio da noite.
Não, mergulhar em autopiedade e dor nunca fazia bem. A ira era muito mais útil como método para enfrentar as situações – as difíceis e as nem tanto. E, quando a ira falhava, eram poucas as coisas que não podiam ser consertadas com uma boa dose de negação.
Distanciando-se da janela, deslizou os pés descalços em seu maravilhoso par de sapatos. Não se sentindo segura a ponto de deixar o computador no quarto, enfiou o fino notebook prateado em sua bolsa, pegou a carteira e saiu para se encontrar com Janet e suas colegas. Um pouco de companhia e bate-papo possivelmente não lhe fariam mal, afinal de contas.
No crepúsculo, a maioria dos humanos errantes pela floresta e pelos atalhos da montanha já tinha ido embora. Agora que a escuridão tomara conta do exterior da caverna, não havia uma alma ao redor para escutar a explosão que Rio estava preparando dentro do espaço escuro da rocha.
Ele tinha em mãos C-4 suficiente para fechar permanentemente a entrada da caverna, mas não tinha o bastante para demolir toda aquela maldita montanha. Nikolai tinha se assegurado disso antes de a Ordem deixar Rio ali para cuidar do lugar. Ele dera graças a Deus por isso, porque certamente não confiava em seu cérebro insano para lembrar-se de detalhes.
Ele xingou intensamente enquanto procurava um dos pequenos fios do detonador. Sua visão já estava começando a naufragar, deixando-o ainda mais irritado. O suor brotava em sua testa, umedecendo as longas mechas de cabelo que caiam diante de seus olhos. Com um grunhido, ele correu a mão pelo rosto e pelo couro cabeludo, encarando ferozmente o amontoado do material explosivo pálido diante de seus olhos.
Será que ele já havia enfiado as estreitas cargas dentro dos pequenos blocos de C-4?
Não conseguia se lembrar...
– Concentre-se, idiota – repreendeu-se, impaciente pela ideia de algo que deveria ser muito fácil para ele (e que, de fato, tinha sido antes de ele explodir naquele armazém em Boston) agora demorar horas para ser feito.
Acrescente a isso a indolência de seu corpo desde a privação de sangue humano. Ele estava realmente um lixo. Uma maldita perda de tempo, isso é o que ele era.
Enfrentando um ataque de ódio de si mesmo, Rio cravou um dedo em um dos blocos de C-4 e o abriu.
Ótimo. A carga estava ali dentro, conforme o esperado.
O fato de ele não se lembrar de ter colocado aquilo lá não importava. Tampouco importava o fato de, com base na aparência destroçada de um dos blocos, ele provavelmente ter feito aquele mesmo tira-teima pelo menos uma vez antes... Ele reuniu a carga de C-4 e a levou para a reduzida entrada da caverna. Colocou-as em espaços escavados no arenito, tal como Niko havia lhe instruído. Em seguida, retornou à caverna para buscar o detonador.
Maldição! Os fios estavam danificados.
Ele os tinha danificado. Como? E quando?
– Filho da mãe! – rugiu, olhando para o detonador, cegado por uma rápida e súbita ira. Sentiu-se enjoado pela ira, sua cabeça dava tantas voltas que fez seus joelhos bambearem. Ele caiu contra o duro chão como se seu corpo fosse feito de chumbo.
Rio ouviu o detonador escorregar na poeira, em algum lugar por ali, mas não tentou alcançá-lo. Seus braços estavam muito pesados e sua cabeça parecia leve como o ar. Sua consciência flutuava, desligada da realidade, como se sua mente quisesse se separar do resto do corpo e voar livre para longe daquilo tudo.
Uma forte náusea o acometeu, e Rio percebeu que, se não trabalhasse rápido para se salvar, acabaria desmaiando.
Tinha sido uma tolice deixar de caçar todas essas semanas. Ele era um vampiro da Raça, portanto necessitava de sangue humano para se fortalecer, para viver. Um pouco de sangue o ajudaria a afastar a dor e a loucura. Mas ele já não confiava em si. Não acreditava que poderia caçar sem matar. Ele tinha estado muito perto, muitas vezes, desde que havia chegado a esta enorme floresta cheia de penhascos.
Frequentemente, nessas vezes em que se arriscou a sair faminto, Rio tinha sido visto por humanos que viviam nas cidades e vilas da região. E, desde que sobrevivera à explosão em Boston, um ano atrás, seu rosto não seria facilmente esquecido, por assim dizer.
Maldecido.
A palavra chegou a ele vinda de algum lugar distante. Não da noite lá fora, mas de algum lugar profundo de seu passado, na língua do país de sua mãe.
Manos del diablo.
Comedor de la sangre.
Monstruo.
Embora houvesse aquela neblina em sua mente atormentada, ele reconheceu aqueles epítetos. Palavras que tinha ouvido muito cedo, em sua infância. Palavras que o assombravam, até mesmo agora.
Maldito.
Mãos do diabo.
Comedor de sangue.
Monstro.
E, mais do que nunca, ele agora era tudo isso. Irônico que sua vida começaria às escondidas, espreitando como um animal em meio às florestas e colinas escuras como a noite... somente para terminar de forma bastante parecida.
– Madre de Dios – ele sussurrou. Fraco como estava, tentou segurar o detonador, mas não conseguiu. – Por favor... Me ajude a colocar um ponto-final nisso.
Dylan mal tinha esvaziado seu copo de cerveja quando outro copo cheio foi colocado à sua frente. Era a terceira rodada desde que havia chegado ao bar e se reunido com suas companheiras de viagem. E essa última rodada fora servida com um sorriso extremamente largo do jovem que cuidava do bar.
– Esta é por minha conta, senhoritas – anunciou, com um inglês de sotaque carregado. Ele era um dos poucos moradores locais no povoado que falava algo além de tcheco ou alemão.
– Ah, meu Deus! Obrigada, Goran! – exclamou Janet, rindo enquanto trocava seu copo vazio por outro cheio de uma cerveja espumante. – Você é tão adorável! Além de nos contar tudo sobre sua encantadora cidade, agora também nos traz bebidas de graça! Você não precisa fazer isso, mesmo!
– É um prazer – ele murmurou.
Os olhos castanhos e amigáveis do rapaz repousaram mais demoradamente sobre Dylan; – algo que ela encararia como um elogio, não fosse o fato de todas as suas colegas poderem ser qualificadas praticamente como idosas. Dylan deveria ser algo entre cinco e dez anos mais velha do que o belo garçom, mas isso não a impediu de usar aquela óbvia atração a seu favor.
Não que ela estivesse a fim de bebidas de graça ou de encontros românticos. Eram as conversas de Goran sobre as montanhas nos arredores e o vasto conhecimento que ele demonstrava ter que a mantinham interessada. O jovem tcheco cresceu na região e tinha passado um bom tempo explorando todo o ambiente por onde Dylan havia andado naquela manhã.
– É tão bonito aqui – disse Nancy ao rapaz. – Aquele panfleto entregue aos turistas não mentia; este lugar é realmente um paraíso.
– É um local tão vasto e incomum – acrescentou Marie. – Acredito que precisaríamos de um mês inteiro para ver tudo o que há por aqui. É uma pena que tenhamos que voltar para Praga amanhã.
– Sim, é mesmo uma pena – concordou Goran, dirigindo o comentário a Dylan.
– O que você pode me dizer sobre as cavernas? – Ela estava tentando reunir informações para sua matéria ao mesmo tempo em que tentava não ser tão óbvia, ciente de que os moradores locais provavelmente não apreciariam o fato de ela ter se aventurado sozinha fora dos caminhos designados para as escaladas. – Vi poucas cavernas marcadas em nosso mapa, mas imagino que existam muitas outras por aí. Há algumas que ainda não tenham sido descobertas ou locais que não estejam abertos ao público?
O jovem assentiu:
– Ah, sim. Há possivelmente centenas de cavernas e vários abismos também. A maioria deles ainda está sendo documentado.
– Dylan viu um antigo caixão de pedra em uma das cavernas hoje – disse Janet inocentemente entre um gole e outro de cerveja.
Goran riu, adotando uma expressão duvidosa.
– Você viu o quê?
– Não tenho certeza do que vi. – Dylan encolheu os ombros despreocupadamente, sem querer revelar se tinha descoberto algo verdadeiramente importante. – Estava escuro como a garganta de um lobo lá dentro, e acredito que o calor estava criando miragens em minha mente.
– Dentro de qual caverna você esteve? – perguntou o jovem. – Talvez eu a conheça.
– Ah, eu não me lembro de onde estava exatamente. E, no fundo, isso não importa.
– Ela disse que sentiu uma presença – insistiu Janet. – Não foi assim que você descreveu, querida? Algo como uma... presença obscura despertando enquanto você estava na caverna. Acho que foi isso o que você disse.
– Não era nada, tenho certeza. – Dylan lançou uma carranca para o outro lado da mesa, em direção à mulher bem-intencionada, porém desagradável naquele momento. Acreditando estar fazendo o bem, Janet piscou um olho para Goran (agora inclinado ao lado de Dylan), como se fosse uma casamenteira.
– Sabe, costumavam dizer que havia demônios naquelas montanhas – disse ele, com uma voz baixa, quase em um tom confidencial, embora descontraído. – Muitas lendas antigas relatam demônios vivendo na floresta.
– É mesmo?! – disse ela, com ares de gracejo.
– Ah, sim! Bestas terríveis que pareciam humanos, mas que de forma alguma eram humanos. Os aldeãos estavam convencidos de que estavam vivendo em meio a monstros.
Dylan fechou uma leve carranca enquanto levantava seu copo:
– Eu não acredito em monstros.
– Nem eu, obviamente – esclareceu Goran. – Mas meu avô, sim. E o avô dele também. E todos os demais membros da minha família que viveram em fazendas nesta região centenas de anos atrás. Meu avô possuía a propriedade até o limite da floresta. Ele disse que viu uma dessas criaturas há alguns meses. E que a criatura atacou um de seus agricultores.
– É mesmo? – Dylan olhou para o garçom, esperando por um tom de piada que acabou não aparecendo.
– Segundo o meu avô, foi logo depois do crepúsculo. Ele e Matej estavam trazendo alguns equipamentos para o celeiro à noite. Foi quando meu avô ouviu um barulho estranho vindo do campo. Ele foi olhar, e viu Matej no chão. Outro homem estava debruçado sobre ele, segurando o pescoço de Matej em sua boca, sugando o sangue da garganta dele.
– Meu Deus! – exclamou Janet, ofegante. – E o pobre homem sobreviveu?
– Sim, sobreviveu. Meu avô disse que, quando correu para dentro do estábulo para encontrar algo que pudesse usar como arma contra a criatura, Matej já estava ali, deitado, sozinho. Não havia marcas nele, exceto um pouco de sangue em sua camiseta, e ele não tinha lembrança alguma do ataque. O homem, ou o demônio, se quisermos acreditar na versão de meu avô, que atacou Matej nunca mais foi visto.
Janet estalou sua língua.
– E foi tarde! Porque isso parece uma daquelas cenas tiradas de um filme de terror, não?
Nancy e Marie pareciam igualmente horrorizadas, as três mulheres evidentemente tinham acreditado na história de Goran. Dylan permanecia cética, por assim dizer. Mas, em sua mente, ela se perguntava se sua história sobre uma cripta repleta de restos humanos poderia se tornar ainda melhor com um relato em primeira mão de uma espécie de ataque de um vampiro demoníaco... Não importava que a suposta vítima não pudesse corroborar com evidências físicas ou mentais. Seu chefe não hesitaria em imprimir as palavras de um idoso supersticioso, provavelmente com problemas de visão e que vivia sozinho perto de uma floresta. Afinal, eles já tinham enviado matérias muito menos interessantes para a gráfica antes.
– Será que eu poderia conversar com seu avô sobre o que ele viu?
– Dylan é jornalista. – A sempre útil Janet, para surpresa de ninguém, sentia-se obrigada a explicar. – Ela vive em Nova York. Você já esteve em Nova York, Goran?
– Nunca estive lá, mas gostaria de visitar um dia – respondeu, olhando novamente para Dylan. – Você é jornalista de verdade?
– Não, na verdade, não. Possivelmente serei algum dia. Por enquanto, as coisas que escrevo são... suponho que possamos chamá-las de matérias de interesse geral. – Ela sorriu para o garçom. – Então, você acha que seu avô estaria disposto a conversar comigo?
– Ele está morto, lamento dizê-lo. Meu avô sofreu um derrame letal no mês passado, enquanto dormia.
– Ah... – O coração de Dylan se apertou com um remorso sincero. Sua fome por conteúdo para escrever uma matéria agora ficava em segundo plano. – Sinto muito por sua perda, Goran.
Ele assentiu duramente com a cabeça.
– Era um homem de sorte. Se todos nós vivêssemos até os 92 anos, como ele, né?
– É... – disse Dylan, sentindo os olhares das amigas de sua mãe fixados nela com compaixão. – Antes fosse...
– Tem clientes chegando – anunciou Goran enquanto um pequeno grupo de pessoas entrava no bar. – Preciso ir agora. Quando eu voltar, possivelmente, Dylan me contará sobre Nova Iorque.
Enquanto ele se distanciava, e antes que Janet pudesse se entusiasmar com a grande ideia de Dylan convidar o adorável Goran para visitar os Estados Unidos, casar-se com ela e ser pai de seus filhos, Dylan simulou um demorado bocejo.
– Uau, acho que já tomei ar fresco demais por hoje. Estou realmente cansada. Vou voltar para o hotel. Ainda preciso trabalhar um pouco hoje e verificar alguns e-mails antes de cair na cama.
– Tem certeza, querida?
Dylan deu a Janet um leve aceno de cabeça.
– Sim. Foi um longo dia. – Ela se levantou e agarrou a bolsa que estava no encosto de seu assento. Dylan tirou coroas tchecas suficientes para pagar sua parte da conta e deixar uma boa gorjeta ao anfitrião, e então colocou o dinheiro sobre a mesa. – A gente se vê no quarto.
Enquanto Dylan passava pelo curto caminho entre o bar e o hotel no final da rua, seus dedos pareciam coçar, desejando o teclado do computador. Ela se fechou dentro do quarto, ligou o notebook e tentou manter-se disposta enquanto sua matéria parecia escorrer para aquelas páginas antes em branco. Sorriu enquanto a história tomava forma. Já não era mais simplesmente um relatório de uma antiga tumba na caverna e alguns esqueletos empoeirados, mas um relato sangrento de um demônio vivo que poderia muito bem ainda estar vagando pelo enorme terreno selvagem acima de uma tranquila cidadezinha europeia.
Ela tinha as palavras.
Agora, só precisava de algumas fotografias do esconderijo do demônio na montanha.
Capítulo 3
Era madrugada na região da montanha, muito cedo para que a maior parte dos grupos de turistas e de pessoas fazendo trilha estivesse por ali. Mesmo assim, Dylan evitou a entrada principal e se aventurou sozinha por ali. Uma leve chuva começou logo que ela entrou na floresta. Era uma corrente de água suave que caía das nuvens metálicas. Os sapatos de Dylan se arrastavam nas folhas de pinheiro molhadas sob seus pés enquanto ela apressava o passo para encontrar o caminho que tinha tomado no dia anterior para chegar à montanha.
Hoje não havia sinal algum da mulher de cabelos escuros e roupas brancas. No entanto, não precisava da ajuda daquela aparição para encontrar seu caminho até a caverna. Guiada por sua própria memória e pela palpitação cada vez mais intensa em suas veias, ela avançou pela subida íngreme até a borda de arenito no exterior da caverna escondida.
Em meio à intensa neblina, a estreita abertura parecia ainda mais escura do que no dia anterior. O arenito exalava um cheiro terroso, de lugar antigo. Dylan baixou a mochila e tirou sua lanterna de um dos bolsos externos. Apertou o pequeno botão metálico e enviou um feixe de luz para frente, na direção da passagem escura que dava para a caverna.
Entrar, tirar algumas fotos da cripta e daquela incrível arte que decorava as paredes e, em seguida, dar o fora – esse era o plano.
Não que ela estivesse com medo. Por que deveria estar? Aquele era apenas o túmulo há muito tempo abandonado de algum... de algo ou alguém. Não havia absolutamente nada a temer.
E não era exatamente isso que aquelas mocinhas de filmes de terror diziam antes de se tornarem um banquete sangrento nas telonas?
Dylan caçoou mentalmente de si. Afinal, aquilo era a vida real, não é mesmo? As chances de um lunático armado com uma motosserra ou de um zumbi faminto por carne humana estar à espreita na escuridão daquela caverna eram mais ou menos as mesmas de ela dar de cara com o monstro sugador de sangue que o avô de Goran afirmara ter visto. Em outras palavras: menores do que zero.
A chuva começou a pingar suavemente em suas costas quando colocou os pés entre as estreitas paredes de rocha e cuidadosamente caminhou até o interior da caverna, sempre usando o feixe de luz de sua lanterna para se guiar. Alguns metros para dentro, a passagem se abriu, transformando-se em mais escuridão. Dylan correu a luz pelo perímetro da caverna, tão impressionada com as marcas elaboradas nas paredes e com as placas de pedra no centro daquele espaço quanto no dia anterior.
Ela não viu o homem deitado no chão até estar quase em cima dele.
– Jesus!
Assustada, inspirou um pouco de ar e correu para trás, deixando o feixe de luz ricochetear loucamente durante o segundo necessário para que ela deixasse o choque para trás. Então, apontou novamente a luz para o ponto onde ele estava deitado... E não encontrou nada.
No entanto, ele tinha estado bem ali. Em sua mente, ela ainda conseguia ver os cabelos castanho-escuros desgrenhados e as roupas negras empoeiradas e esfarrapadas. Um andarilho, certamente. Não devia ser incomum ver alguns sem-teto da região procurar abrigo naquela área.
– Olá? – disse ela, lançando a luz por todo o chão da caverna. Alguns crânios deteriorados e outros ossos se espalhavam em um desarranjo mórbido. E nada além disso. Nenhum sinal de algo vivo. “Nenhum sinal de algo que tenha vivido nos últimos cem anos” – pensou Dylan. “Para onde ele teria ido?” – ela lançou um rápido olhar para a cripta, poucos metros adiante.
– Escute, eu sei que você está aí. Tudo bem. Eu não queria assustar você – ela continuou, muito embora parecesse absurdo o fato de ela estar tentando acalmá-lo. O cara devia ter mais de um metro e oitenta e, mesmo tendo conseguido apenas vislumbrá-lo, ela percebeu que seus braços eram longos e que suas pernas eram musculosas. No entanto, deitado no chão da caverna como estava, ele emanava dor e desespero. – Você está ferido? Precisa de ajuda? Qual é o seu nome?
Nenhuma resposta. Nenhum som, de nenhum tipo.
– Dobrý den – ela gritou, tentando se comunicar com ele, embora seu conhecimento em tcheco fosse extremamente limitado. – Mluvite anglicky?
Nenhuma resposta.
– Sprechen Sie Deutsch?1
Nada.
– Desculpe, mas isso é tudo que sei. A não ser que você queria que eu me arrisque com o espanhol que aprendi no ginásio, o que me deixaria constrangida. – Ela girou a lanterna, apontando-a para cima enquanto analisava as altas paredes da caverna. – Por algum motivo, não acho que um ¿Comó está usted? vai nos levar muito longe disso. Você acha?
Conforme ela se virava lentamente, a luz alcançou uma saliência sobre sua cabeça. Aproximadamente três metros acima, havia um belo arco de arenito. Mas era impossível alguém subir ali. Ou não...
Antes mesmo de completar seu pensamento, o estreito feixe de luz começou a ceder, algo começou a se apagar, lenta, lentamente, até ir-se por completo.
– Droga! – xingou Dylan em voz baixa. Ela bateu a lanterna contra sua mão algumas vezes antes de tentar freneticamente fazê-la funcionar outra vez. Apesar de as pilhas serem novas e terem sido colocadas antes de ela deixar os Estados Unidos, a luz não acendia. – Droga, droga, droga!
Envolvida pela total escuridão, Dylan sentiu a primeira pontada de desconforto.
Quando ouviu o crepitar na rocha logo acima, todos os nervos de seu corpo ficaram imediatamente tensos. Um longo silêncio se instalou, seguido pelo bater de pés calçados com botas enquanto alguém – ou alguma coisa – que estava escondido na escuridão lá em cima se lançava ao solo da caverna, ao lado dela.
Ela cheira a pinho e mel misturados com a chuva morna de verão. Porém, debaixo de todos aqueles odores havia uma pontada cítrica de adrenalina, que ele sentia agora que tinha se aproximado. Rio caminhou em volta da mulher em meio ao escuro da caverna, enxergando-a perfeitamente enquanto ela tropeçava por conta da falta repentina de luz. Os pés de Dylan a fizeram recuar... mas isso só a levou a bater as costas contra uma muralha de pedra.
– Que droga!
Ela engoliu em seco, girando para tentar outra saída, e então xingou novamente enquanto a lanterna caía de sua mão, tinindo no chão duro da caverna. Rio tinha gastado uma quantidade preciosa de energia ao usar a mente para se livrar daquele objeto. Manipular objetos pelo pensamento era uma habilidade simples para os membros da Raça, mas, no estado de fraqueza em que ele estava agora, não sabia por quanto tempo conseguiria suportar aquilo.
– Hum, é provável que você não esteja a fim de companhia – disse Dylan. Seus olhos estavam arregalados na escuridão e correndo da direita para a esquerda, tentando encontrá-lo. – Então eu já vou embora, está bem? Vou simplesmente... andar até sair daqui. – Um gemido nervoso ficou preso em sua garganta. – Meu Deus, por favor, onde é a maldita saída deste lugar?
Dylan deu um passo para a direita, movendo-se encostada na parede da caverna. Embora estivesse se afastando da saída, Rio não via propósito em lhe dizer isso agora. Ele continuou se movendo, acompanhando-a cada vez mais para dentro da caverna, tentando pensar no que fazer com a intrusa que tinha retornado ao local. Quando acordou, assustado por descobrir que ainda estava vivo e que não estava sozinho, reagiu por instinto – uma besta vulnerável fugindo em direção à segurança das sombras.
Mas aí ela começou a conversar com ele.
Insistindo para que ele saísse, mesmo sem poder saber quão perigoso isso realmente era. Rio estava furioso e parcialmente louco – o que, por si só, já era uma combinação suficientemente letal. Todavia, estar ao lado daquela mulher o lembrava de que, muito embora estivesse destruído, ele ainda era um homem. Ainda era da Raça, até os ossos.
Rio inspirou ainda mais o cheiro daquela mulher e agora estava enfrentando dificuldades para conseguir resistir a tocar aquela pele pálida e molhada pela chuva. A fome tomou conta dele – uma fome que ele não sentia há muito tempo. Suas presas saíram da gengiva, as pontas afiadas batendo contra a carne suave de sua língua. Rio foi cuidadoso o suficiente para manter suas pálpebras abaixadas sobre os olhos, ciente de que suas íris cor de topázio logo seriam inundadas pelo brilho feroz do âmbar. Suas pupilas se afinavam, transformando-se em fendas verticais conforme a sede por sangue aumentava.
O fato de ela ser jovem e bela só aumentava o desejo que Rio sentia. Ele queria tocá-la... Fechou as mãos e, em seguida, bateu-as contra a lateral do corpo.
Manos del diablo.
Ele podia feri-la com aquelas mãos. A força que ele recebera em seus genes de vampiros era imensa, mas era a outra habilidade de Rio – o terrível talento com o qual tinha nascido – que representava mais perigo agora. Com o pensamento concentrado e um simples toque, ele podia acabar com a vida de um humano em um instante. Quando compreendeu seu poder, começou a administrá-lo com um controle rígido, sagaz. Agora, no entanto, a fúria controla seu dom mortal e os blecautes que ele vinha sofrendo desde a explosão no armazém o impossibilitavam de confiar em si, impediam-no de confiar que não faria mal.
Isso era parte do motivo pelo qual ele tinha deixado a Ordem, e parte da razão pela qual ele decidiu parar de caçar sangue. A Raça raramente, se não nunca, matava seus Anfitriões humanos enquanto se alimentava; isso era o que os distinguia dos vampiros da pior espécie, os Renegados. Eram os Renegados, viciados em sangue, que faziam isso por ignorância e falta de autocontrole.
Enquanto Rio encarava com olhos ferozes e famintos a mulher que havia entrado em sua propriedade infernal, o medo de perder o controle com ela era o que o fazia se sentir péssimo.
Isso e o simples fato de ela ter sido gentil com ele. Ela era destemida, já que não conseguia ver o demônio que ele realmente era.
Dylan tinha desistido de guiar-se pela parede e, então, moveu-se para o centro da pequena caverna. Agora, Rio estava bem atrás dela, tão próximo que as pontas onduladas dos cabelos – vermelhos como chamas – da mulher se esfregavam contra a blusa esfarrapada dele. Aquela mecha encaracolada e sedosa o provocava dolorosamente, mas Rio manteve suas mãos ao lado do corpo. Fechou os olhos, desejando ter ficado na saliência lá em cima. Então, talvez ela ainda estivesse conversando com ele, e não tensa, trêmula e com uma ansiedade cada vez maior percorrendo seu belo corpo.
– Você não devia estar aqui – ele finalmente disse, com uma voz que se assemelhava a um rugido grosseiro em meio à escuridão.
Ela inspirou rapidamente e deu meia-volta assim que seus ouvidos perceberam onde ele estava. Dylan recuou, afastando-se novamente dele. Rio devia ter se sentido contente por isso.
– Então você fala inglês – disse ela após um longo instante. – Mas o seu sotaque... Você não é americano, é?
Ele não via motivo algum para contrariá-la.
– Você é, evidentemente.
– Que lugar é esse? E o que você está fazendo aqui?
– Você precisa ir embora agora – ele disse a Dylan. As palavras soavam pesadas, difíceis de passarem por sua boca, pela obstrução de suas presas expostas. – Você não está segura aqui.
O silêncio pesava entre eles enquanto ela analisava o aviso.
– Deixe-me ver seu rosto.
Rio fez uma carranca para o lindo rosto, coberto por uma pele sardenta e macia como pêssego, que procurava uma forma de enxergá-lo. Ela estendeu a mão como se quisesse encontrá-lo por meio do tato. Ele conseguiu se esquivar daquele braço, mas foi por pouco.
– Você sabe o que dizem nesta cidade? – ela perguntou, agora com um tom de desafio permeando sua voz. – Dizem que existe um demônio vivendo aqui nas montanhas.
– E talvez exista.
– Eu não acredito em demônios.
– Talvez devesse acreditar, então. – Rio a encarou através de seus cabelos desgrenhados, compridos demais, esperando que aquelas longas mechas pudessem esconder o brilho de seus olhos. – Você precisa ir embora. Agora.
Ela lentamente levantou a mochila que carregava e a segurou na frente do corpo, como se fosse um escudo.
– Você sabe alguma coisa sobre esta cripta? É isso que aquilo ali é, certo? Uma espécie de cripta antiga, uma câmara de sacrifícios? E quanto aos símbolos nas paredes deste lugar... O que eles são, algum tipo de escrita antiga?
Rio ficou paralisado, completamente em silêncio. Se ele tinha achado que poderia deixá-la simplesmente ir embora, bem, ela tinha mostrado que estava errado. Já era suficientemente ruim ela ter visto a caverna uma vez, mas agora ela tinha retornado e estava fazendo suposições que estavam muito próximas da verdade. Ele não poderia deixá-la simplesmente sair – não levando consigo memórias intactas sobre o lugar, ou sobre ele.
– Me dê sua mão – disse ele, do modo mais gentil que pôde. – Vou mostrar o caminho para você sair.
Ela não se moveu. Não que ele esperasse que ela fosse obedecer...
– Há quanto tempo você mora nesta montanha? E por que se esconde aqui? Por que não me deixa ver seu rosto?
Dylan lançava uma pergunta após a outra, com uma curiosidade que beirava um interrogatório. Rio ouviu um zíper se movimentar na mochila dela.
Ah, caramba! Se ela pegasse outra lanterna, ele não teria força mental para se controlar – não quando ele precisava reunir toda sua concentração para simplesmente apagar aquela memória dela.
– Venha – insistiu Rio, agora um pouco mais impaciente. – Eu não vou ferir você.
Ele tentaria se desdobrar para não feri-la, mas a simples tarefa de ficar em pé já estava lhe consumindo. Rio precisava conservar toda a energia possível para explodir a caverna e para não ter outro blecaute antes de conseguir realizar essa tarefa. Naquele momento, todavia, ele tinha de lidar com o problema mais imediato: o que estava bem diante dele.
Rio começou a caminhar na direção de Dylan enquanto ela permanecia imóvel. Estendeu a mão na direção dela, tentando pegar a mochila e empurrar a mulher para fora. No entanto, antes que seus dedos pudessem se fechar em volta da bolsa, ela sacou algo de um dos bolsos e levou na direção de seus olhos.
– Está bem, eu vou. Só... Tem uma coisa que eu preciso fazer antes.
Rio fez uma careta em meio à escuridão.
– O que você está...
Um leve clique e, em seguida, uma enorme explosão de luz.
Rio berrou e se afastou instintivamente. Mais explosões de luz foram disparadas em uma rápida sucessão.
A lógica dizia a Rio que aquilo que estava lhe cegando era o flash de uma câmera digital, mas, em um instante assustador, ele se viu voltando no tempo; de volta ao armazém em Boston, embaixo de uma bomba que era detonada.
Ele ouviu o estouro súbito da explosão, sentiu a vibração em seus ossos e ficou sem ar. Sentiu a chuva de calor em seu rosto, a espessura sufocante da nuvem de cinzas que o engolia como uma onda. Sentiu a mordida dos estilhaços que rasgavam seu corpo.
Era a agonia, e ele estava ali, vivendo-a, sentindo-a novamente.
– Nããão! – ele gritou. Sua voz já não era humana, mas havia se transformado em outra coisa, assim como ele havia se transformado, com a fúria que corria, causticante, por seu corpo.
Suas pernas cederam e ele se afundou no chão. Sua visão agora era cegada pelas luzes reverberantes e pelas memórias implacáveis.
Rio ouviu passos apressados atrás dele e, em meio ao falso fedor de fumaça, metal e carne chamuscada, sentiu uma vez mais as notas fracas e efêmeras de pinho, mel e chuva.
1 Dobrý den: Bom dia, olá; Mluvite anglicky?: Você fala inglês? [em tcheco]. Sprechen Sie Deutsch?: Você fala alemão? [em alemão]. (N. T.)
Capítulo 4
Mais tarde, naquela manhã, o coração de Dylan ainda estava acelerado, depois que ela e suas companheiras de viagem tinham embarcado no trem que as levaria de Jicín até Praga. Parecia ridículo ela se permitir afetar-se tanto por um andarilho que tinha ido parar naquela caverna, mesmo ele parecendo um pouco louco por viver lá como se fosse uma espécie de homem da selva. Afinal de contas, ele não tinha lhe ferido.
A julgar pelo bizarro ataque de fúria que ele teve quando ela tentou tirar algumas fotografias na caverna – antes de ele poder colocá-la para fora –, ela provavelmente tinha lhe assustado mais do que ele a assustava.
Agora, Dylan estava em seu assento no trem, com o computador aberto sobre o colo. Imagens em miniatura de sua câmera digital surgiam na tela conforme eram transferidas para o computador por meio de um cabo fino que ligava os dois aparelhos. A maioria delas era dos dias de viagem, mas as que mais interessavam a Dylan eram aquelas últimas fotografias que ela tinha tirado.
Ela deu dois cliques em uma das imagens escuras da caverna, a primeira da sequência. A foto se expandiu, preenchendo a pequena tela do laptop. Dylan observou o rosto que estava tudo menos escondido por cabelos excessivamente longos e desgrenhados. As ondas sem brilho, castanhas como café, dependuravam-se vacilantes sobre maçãs do rosto afinadas e olhos ferozes que refletiam para a lente um tom estranhíssimo de âmbar – uma cor que Dylan nunca tinha visto. O maxilar parecia tão duro quanto ferro. Os lábios, empurrados como se o homem rosnasse ferozmente, atrás de uma mão enorme que tentava, mas não conseguia, esconder o rosto.
Meu Deus! Não seria necessário muito Photoshop para fazer aquele homem ficar com cara de demoníaco. Mais da metade do trabalho já estava feita.
– Como ficaram suas fotos, querida? – Os cabelos encaracolados e grisalhos de Janet logo estavam ao lado de Dylan no assento almofadado. – Jesus Cristo! O que é isso?
Dylan encolheu os ombros, sem conseguir tirar os olhos da fotografia.
– É só um louco que eu encontrei na caverna hoje de manhã. Ele ainda não sabe, mas vai ser a grande estrela da minha próxima matéria para o jornal. O que você acha? Olhe para esse rosto e me diga: você não vê um sugador de sangue que fica à espreita naquela montanha, esperando pela próxima vítima infeliz?
Janet estremeceu e voltou a atenção às suas palavras cruzadas.
– Você vai acabar tendo pesadelos e sonhando com essas coisas.
Dylan riu enquanto clicava para ampliar a próxima imagem na tela:
– Eu não. Nunca tive um pesadelo. Aliás, eu simplesmente não sonho. Meu sono é uma folha em branco, todas as noites.
– Bem, considere-se uma pessoa de sorte – disse a senhora. – Eu sempre tenho sonhos muito intensos. Quando era jovem, costumava ter um sonho recorrente com um poodle branco de unhas pintadas que gostava de cantar e dançar na beirada da minha cama. Eu implorava para ele me deixar dormir, mas ele continuava cantando. Você consegue imaginar? Ele cantava canções de musicais na maior parte do tempo, essas eram suas preferidas. Eu sempre gostei de peças de musicais também...
Dylan ouvia a voz de Janet ao seu lado, mas, enquanto observava as outras fotos da caverna em seu computador, conseguia prestar atenção, na melhor das hipóteses, a metade do que a mulher dizia. Em meio ao frenesi que sentiu no lugar, ela conseguiu uma imagem decente da cripta de pedra e algumas outras do trabalho nas paredes. Os desenhos eram ainda mais impressionantes agora que ela tinha a oportunidade de estudá-los com mais atenção.
Arcos se entrelaçando e linhas graciosas e arredondadas se espalhavam por toda a parede da caverna, pintados com uma tinta castanho-avermelhada bastante escura. As imagens pareciam ao mesmo tempo semitribais e estranhamente futurísticas – diferente de qualquer coisa que ela tinha visto antes. Outros símbolos e linhas interligadas decoravam a lateral da cripta, mas uma imagem em particular fez os pelos na nuca de Dylan se enriçarem. Ela deu zoom naquele desenho estranho.
“Mas que diabos?”
O símbolo, uma lágrima com uma lua crescente, era inconfundível, mesmo cercado por uma série de linhas curvas e formas geométricas. Dylan observou aquilo impressionada, mas nem um pouco confusa. Aquela marca definitivamente lhe era familiar. Ela a tinha visto incontáveis vezes antes. Não em uma fotografia, mas em seu próprio corpo. Como aquilo era possível?
Dylan levou sua mão à nuca, aturdida com o que estava vendo. Seus dedos percorreram a pele suave no topo de sua coluna, onde ela sabia que carregava uma marca de nascença vermelha... Idêntica àquela que estava na tela de seu computador.
Com um olhar frio e firme em direção à entrada da caverna, Rio apertou o botão no detonador do C-4 e ouviu um ruído discreto conforme o equipamento remoto entrava em ação – uma pausa de meio segundo antes do explosivo plástico colocado na rocha ser detonado. O estouro foi alto e profundo, um tremor que retumbou como um temporal na floresta escura ao redor. Poeira amarela pesada e arenito pulverizado se espalharam pela passagem, afunilando-se conforme as paredes da entrada da caverna se aproximavam, selando a câmara e seus segredos.
Rio observou tudo abaixo da caverna, ciente de que devia estar lá dentro – e estaria, não fosse por sua própria fraqueza e pelo surgimento daquela mulher, mais cedo, naquele mesmo dia.
Sair da montanha conforme o crepúsculo caía tinha consumido uma quantidade considerável de sua força. A determinação o tinha empurrado durante a maior parte do caminho; uma fúria autodirecionada o manteve concentrado e lúcido ao mesmo tempo em que tomava sua posição abaixo da caverna e acionava o detonador.
Enquanto a fumaça e os detritos se dissipavam na brisa, Rio inclinou a cabeça. Sua audição aguçada percebeu um movimento na floresta. Não se tratava de um animal, mas de um humano – o caminhar rápido das duas pernas de um esportista sozinho na escuridão.
As presas de Rio se alongaram como se aquela fosse uma presa fácil. Sua visão se tornou instintivamente mais aguçada; suas pupilas se estreitaram enquanto ele se virava para analisar a região.
Ali, descendo de um cume um pouco ao sul de onde Rio estava, um homem magro com uma mochila de acampamento em suas costas caminhava despretensiosamente. Seus cabelos, curtos e loiros, brilhavam como um farol, contrastando com a escuridão. Rio observou o esportista alternar entre caminhadas e corridas eventuais enquanto descia por um caminho arborizado. Em mais alguns minutos, ele estaria passando exatamente por ali, onde Rio estava. Mesmo estando esgotado demais para caçar, o vampiro permanecia totalmente alerta, pronto e esperando pela chance de atacar e se alimentar, algo de que ele precisava desesperadamente.
O humano se aproximou sem saber do predador que o observava, escondido em meio às arvores. E ele não percebeu o ataque que estava próximo, não até Rio se lançar para fora de seu esconderijo com um movimento brusco. Então, o humano gritou – um som de puro terror. E se debateu, tentando reagir – tudo isso para nada.
Rio trabalhou rapidamente, jogando o jovem contra o chão e prendendo-o de bruços sob o peso de sua mochila. O vampiro mordeu a nuca nua do humano e encheu sua boca com o derramamento daquele sangue quente. A nutrição foi imediata, enviando uma força renovada para músculos, ossos e mente.
Rio bebeu o que precisava de seu Anfitrião e nada mais. Uma passada de língua curou o ferimento e um movimento de sua mão sobre a testa suada do humano apagou por completo a memória do ataque.
– Vá embora! – ordenou Rio.
O homem se levantou, e logo seus cabelos loiros e sua pesada mochila desapareceram em meio à noite.
Rio olhou para cima, observou a lua crescente e sentiu o forte palpitar de seu pulso enquanto seu corpo absorvia a dádiva do sangue daquele humano.
Ele precisava daquela força, pois a caçada da noite havia apenas começado.
Rio deixou sua cabeça cair para trás e puxou o ar noturno através de seus dentes e de suas presas, enchendo os pulmões. Seus sentidos da Raça se tornaram mais aguçados e passaram a buscar o cheiro de sua verdadeira vítima. A bela dos cabelos vermelhos como chamas que não tinha ideia do segredo que havia encontrado naquela caverna – nem da fera que tinha despertado enquanto fazia isso.
Os lábios de Rio se curvaram formando um sorriso enquanto ele vasculhava as combinações olfativas oferecidas pelo ar da floresta. Por fim, encontrou o cheiro que procurava. Inspirou aquela fragrância, o vestígio daquela mulher. Um vestígio que já estava ali havia horas e que desaparecia rapidamente no vento úmido da noite. Rio a reconheceria em qualquer lugar. Ele a encontraria. Independentemente do quão rápido ela pudesse correr.
Capítulo 5
Para finalizar um dia que tinha começado esquisito e se tornado mais estranho a cada minuto, Dylan não devia ter se surpreendido ao encontrar um e-mail de Coleman Hogg lhe esperando quando ligou o computador, depois do jantar, naquela noite em Praga. Ela havia enviado sua matéria e algumas fotografias da caverna para seu chefe quando chegou ao hotel, por volta do meio-dia, mas não esperava encontrar uma resposta dele antes de chegar em casa, dentro de alguns dias.
No entanto, Coleman estava interessado no que ela tinha encontrado na montanha, nos arredores de Jicín – tão interessado, aliás, que se responsabilizou por contratar um fotógrafo freelance em Praga para voltar ao local com Dylan e tirar mais algumas fotografias para a matéria.
– Você só pode estar brincando – resmungou Dylan, enquanto corria os olhos pela mensagem de seu chefe.
– É melhor você começar a arrumar sua mala, querida. Não queremos perder o trem. – Janet colocou uma porção de embalagens de produtos de higiene em uma sacola plástica e a fechou. – Gostaria de ficar com a loção para mãos que o hotel colocou no banheiro... Posso ficar com ela? Também tem um sabonete para as mãos que ainda não foi aberto...
Dylan ignorou a conversa fiada de suas companheiras de viagem, enquanto continuavam arrumando suas coisas para deixar Praga naquela noite.
– Droga!
– O que foi? – perguntou Nancy enquanto fechava o zíper de sua pequena mala e colocava-a sobre uma cama queen size no quarto compartilhado.
– Meu chefe não deve ter entendido que, quando eu disse que deixaria Praga hoje à noite, isso significava que eu deixaria Praga hoje à noite!
Ou melhor: ele entendeu, mas não se importava. De acordo com o e-mail que Dylan recebeu, ela deveria se encontrar com um fotógrafo tcheco no dia seguinte para que eles voltassem a Jicín.
Mary se aproximou e olhou para o computador:
– É sobre a sua matéria?
Dylan assentiu:
– Coleman acha que ela ficaria interessante com mais algumas fotos. E quer que eu me encontre com alguém para resolver isso amanhã de manhã. Ele já agendou esse compromisso para mim.
– Mas nós temos que estar na estação de trem em menos de uma hora – lembrou Janet.
– Eu sei – respondeu Dylan enquanto começava a digitar uma resposta para seu chefe, explicando justamente isso.
Dylan descrevia que ela e suas colegas pegariam um trem para Viena naquela noite – a última parada no passeio antes de voltarem para os Estados Unidos. Completava dizendo que não seria capaz de se encontrar com o fotógrafo porque, por volta de dez da noite, ela já não estaria na cidade.
Ela terminou de escrever a resposta, mas, conforme movia o cursor até o botão Enviar, hesitou. Ela já tinha seu lugar reservado na lista negra de Coleman Hogg. Caso se recusasse a ir a esse encontro – por qualquer motivo –, sabia que estaria dando adeus a seu emprego.
E, por mais tentador que esse pensamento realmente fosse, ser demitida era um luxo ao qual ela não podia se dar naquele momento.
– Que saco – ela murmurou, deslizando o mouse para o botão Excluir. – É tarde demais para cancelar esse encontro. E eu também não devo fazer isso. Vocês vão ter de seguir para Viena sem mim. Terei de ficar para cuidar dessa matéria.
Rio desembarcou em Praga, saindo de um trem cheio de humanos. Graças ao sangue que tinha consumido e à fúria que chegava a cada terminação nervosa de seu corpo, seus instintos da Raça estavam em total alerta quando pisou na plataforma da movimentada estação. E, aparentemente, sua caça havia fugido para Praga depois do confronto entre eles, ocorrido mais cedo, naquele mesmo dia. Ele tinha conseguido seguir o cheiro dela desde a montanha em Jicín. De lá, com um pouco de persuasão mental, o recepcionista do pequeno hotel da cidade tinha sido suficientemente cooperativo para guiá-lo até Praga, onde a americana e suas companheiras tinham mencionado que estavam indo passar os últimos dias de sua viagem.
O humano em transe também tinha sido persuadido a encontrar para Rio uma capa de chuva nos achados e perdidos do hotel. Embora a peça estivesse fora de moda e fosse bem menor do que o seu tamanho, ela fez um bom trabalho em esconder os trapos podres e sujos de sangue que o vampiro usava. Ele não se importava com seu estilo ou com sua aparência. De certa forma, também não dava a mínima para o fato de estar fedendo. Porém, Rio não precisava atrair atenções andando em um lugar público como uma espécie de aberração saída de um show de horrores.
Rio tentou mascarar seu tronco musculoso e sua altura fingindo uma curvatura e até mesmo uma corcunda que, de fato, ele não tinha. Ninguém lançava para ele nada além de um olhar vazio; os humanos inconscientemente o enxergavam como um dos vários infelizes sem-teto que ficavam perto das plataformas ou dormiam nos cantos da estação enquanto os trens corriam e rugiam pelos terminais.
Com a cabeça abaixada para esconder o lado esquerdo de seu rosto, marcado por cicatrizes, e com seus olhos intensos atrás de seus cabelos desgrenhados, Rio buscou a saída que o colocaria no caminho direto para o coração da cidade, onde continuaria sua caça pela mulher e por aquelas malditas fotografias.
A fúria o mantinha focado, mesmo quando sua cabeça começava a girar na caverna barulhenta e friamente iluminada que era aquela estação. Ele ignorou as sensações de tontura e confusão para que, assim, pudesse retomar seu curso.
Forçando sua visão a ficar mais nítida, Rio se moveu pelos nós apertados de jovens que subitamente começaram a discutir no terminal. A disputa verbal se transformou em luta física no momento em que ele passava por ali. Um garoto magro, integrante do grupo, foi empurrado contra um turista inglês bem-vestido que tagarelava em seu celular enquanto se apressava para pegar o trem. O rapaz estrangeiro lançou uma carranca, tentando se recuperar de um choque bastante deliberado, e seguiu seu caminho, sem saber que tinha acabado de perder a carteira para uma gangue de trombadinhas. Os ladrões seguiram com seu prêmio, dispersando-se na multidão onde provavelmente realizariam a mesma façanha mais algumas vezes antes de a noite chegar ao fim. Em outro momento, em outro lugar, Rio teria ido atrás dos delinquentes juvenis, só para dar um jeitinho neles. Para mostrar-lhes que a noite tinha olhos... E dentes, se fossem arrogantes demais para aceitarem aquela dica.
Porém, ele estava cansado de fazer o papel de anjo negro para os humanos que viviam ao lado de sua espécie. Deixe que eles se traiam e se matem. Ele francamente não se importava. Nos últimos tempos, não havia muito com o que se importasse – exceto por aquele juramento de honra feio aos seus irmãos da Ordem. E que ótimo trabalho ele tinha feito para sustentar tal juramento...
Vários meses atrás, Rio os decepcionara ao não fechar a cripta na montanha como seus irmãos confiaram que ele faria. Agora, aquela falha tinha se agravado, havia uma testemunha, havia fotografias.
É... Realmente ele fizera um trabalho maravilhoso até então... Naquele momento, a situação estava tão ruim quanto ele mesmo.
Rio caminhou duramente até a saída da estação, inalando os incontáveis cheiros que preenchiam o ar à sua volta e processando-os com uma concentração implacável e determinada.
Seus pés pararam de se mover ao primeiro sinal de pinho e mel.
Ele virou a cabeça, seguindo as cócegas em seu nariz como um cão atrás de uma presa. O cheiro da mulher que ele procurava era fresco – fresco demais para não estar por perto.
Madre de Dios.
A mulher que ele caçava estava na estação.
– Tem certeza de que você vai ficar bem sozinha, querida? Eu não me sinto bem deixando você para trás assim.
– Eu vou ficar bem.
Dylan deu rápidos abraços em Janet e nas outras mulheres quando o grupo já estava dentro da estação central de Praga. O local estava lotado, mesmo naquela hora da noite – a construção em estilo art déco estava cheia de viajantes, pedintes e muitas pessoas que não tinham outro lugar para dormir.
– E se acontecer alguma coisa com você? – perguntou Janet. – Sua mãe jamais nos perdoaria, e eu também não me perdoaria, se você se ferir, se perder ou for roubada.
– Se 32 anos em Nova York não me mataram, tenho certeza de que posso sobreviver um dia sozinha aqui.
Marie franziu a testa.
– E quanto ao seu voo de volta para casa?
– Já cuidei disso. Mudei as datas pela internet, enquanto ainda estávamos no hotel. Vou tomar um voo direto de Praga depois de amanhã.
– Nós podemos esperá-la, Dylan. – Nancy levantou a mochila e colocou-a sobre o ombro. – Talvez devêssemos deixar Viena pra lá e também reagendar nossos voos. Assim poderíamos ir para casa todas juntas.
– É – concordou Marie. – Talvez devêssemos fazer isso.
Dylan sacudiu a cabeça.
– De jeito nenhum. Não vou pedir para vocês passarem o último dia da viagem fazendo papel de minhas babás quando isso realmente não é necessário. Já sou bem crescidinha. Nada vai acontecer. Sigam viagem, eu vou ficar perfeitamente bem.
– Tem certeza, querida? – perguntou Janet.
– Positivo. Divirtam-se em Viena. Vejo vocês nos Estados Unidos em alguns dias.
Foi necessário mais uma rodada de insistências e negações antes de as três mulheres finalmente seguirem para a plataforma de embarque. Dylan as acompanhou e esperou que elas embarcassem. Observou o trem deixar a estação e, então, virou-se para sair com as outras pessoas que tinham visto seus entes queridos partirem naquela noite.
Enquanto caminhava em direção à saída, não pôde ignorar a sensação de estar sendo observada. Paranoia, sem dúvida, criada pela preocupação excessiva de Janet. Mas, mesmo assim...
Dylan olhou ao seu redor, observando casualmente o local, tentando não parecer ansiosa ou perdida – sinais claros para o tipo de pessoa que gosta de se aproveitar de turistas idiotas. Ela segurava a bolsa na frente do corpo, prendendo-a com um braço. Dylan sabia que as áreas de transporte público eram os alvos preferidos de ladrões, exatamente como nos Estados Unidos, e não deixou de notar que grupos de adolescentes parados próximos a telefones públicos perto das saídas lançavam olhares atentos para a multidão conforme ela se dissipava. Batedores de carteira, muito provavelmente. Ela tinha ouvido dizer que eles costumavam andar em grupos nesses lugares.
Para manter-se segura, ela manteve distância e os evitou, seguindo para a porta que estava mais distante deles. Dylan estava se sentindo bastante descolada para andar nas ruas quando percebeu que um segurança à paisana aproximou-se de um desses grupos e lhes mostrou a porta. Eles saíram, e Dylan empurrou a porta de vidro bem à sua frente.
No reflexo do vidro, viu um rosto familiar – um rosto que fez seu coração se acelerar.
Atrás dela, quase próximo o suficiente para tocá-la, estava um homem enorme. Ele corria em sua direção, vindo de perto das plataformas de trem. Olhos ferozes pareciam queimar como carvão por trás daqueles cabelos escuros. E aquela boca...
Meu Deus, ela nunca tinha visto um sorriso tão aterrorizante em sua vida. Uma fileira de dentes perfeitamente presa atrás de lábios repuxados como se o homem rosnasse ferozmente, empurrando os músculos do rosto magro, fazendo-o parecer uma marca cruel e mortal.
Era ele... O homem que ela tinha visto na montanha nos arredores de Jicín.
Ele a tinha seguido até aqui? Sim, evidentemente. Quando o viu pela primeira vez, Dylan achou que ele fosse louco. Agora, tinha certeza. A forma como ele a encarava... Aquele homem devia ser um perfeito psicopata.
E ele olhava para ela como se quisesse rasgá-la usando apenas as mãos.
Dylan estremeceu. Ela não conseguiu segurar um suspiro duro de medo. Então, desviou da saída, virando-se bruscamente para a esquerda e começando a correr esperançosamente para fora do caminho dele. Um olhar de relance para trás fez seu coração bater mais acelerado.
– Meu Deus – murmurou Dylan enquanto o medo tomava conta de seu corpo. Não podia ser ele. Ele não poderia estar ali, procurando por ela.
Mas era ele. E, sim, estava procurando por ela.
Além disso, a julgar pelo nó de terror que se alojava em sua garganta, ela não estava disposta a abordá-lo e perguntar o que ele queria.
Dylan correu até o segurança da estação e agarrou-lhe pelo braço.
– Ajude-me! Por favor! Tem alguém atrás de mim. – Ela lançou um olhar para trás, apontando na direção em que o homem estava. – Ele está ali... Capa de chuva, tem cabelos escuros e compridos. Por favor, você precisa me ajudar!
O tcheco uniformizado franziu a testa, mas devia tê-la entendido, pois olhou para onde ela tinha apontado em meio ao pânico, estreitando os olhos e analisando a área.
– Onde? – ele perguntou com um inglês carregado de sotaque. – Mostre-me esse homem. Quem está perturbando você?
– Eu não sei quem ele é, mas ele estava bem atrás de mim. É impossível confundi-lo... Tem mais de um metro e oitenta, ombros largos, cabelos sujos e escuros caindo sobre o rosto...
Sentindo-se mais segura, ela deu meia-volta, pronta para confrontar o lunático e esperançosamente assisti-lo sendo carregado para algum hospício daquela cidade.
Entretanto, ele não estava lá. Dylan varreu a multidão com os olhos, buscando aquele homem enorme que certamente chamaria a atenção como se fosse um lobo furioso rosnando no meio de um rebanho. Não havia sinal algum dele. As pessoas passavam calmamente por ali, nada fora de ordem, nenhum sinal de anormalidade.
Era como se ele tivesse simplesmente evaporado.
– Ele deve estar em algum lugar por aqui – murmurou Dylan, muito embora não conseguisse encontrá-lo... Não em meio à multidão que entrava e saía do terminal, nem no meio da população de sem tetos que ali estava. – Ele estava bem aqui, eu juro. Estava vindo atrás de mim!
Dylan se sentiu uma idiota com o olhar que o segurança lançou sobre ela. Em seguida, ele deu um sorriso educado:
– Não está mais. Você está mais calma agora?
– Sim, é claro. Estou mais calma, eu acho – disse Dylan, sentindo qualquer coisa, exceto tranquilidade.
Ela cuidadosamente seguiu para a entrada frontal da estação. Embora aquela fosse uma bela noite de verão, com o céu limpo e muitas pessoas andando nos parques e nas ruas que levavam a todos os cantos da cidade, Dylan chamou um táxi para levá-la por alguns poucos quarteirões até o hotel.
Ela disse para si mesma várias vezes que devia estar imaginando coisas, que não poderia ter visto o homem da montanha seguindo-a pela estação de trem. Ainda assim, enquanto saía do táxi e se apressava até o refinado lobby do hotel, ela ainda sentia um arrepio de ansiedade na nuca. E a sensação continuou enquanto permanecia do lado de fora de seu quarto, tateando para encontrar o cartão eletrônico que abria a porta.
Quando finalmente abriu a porta, um ruído a suas costas a fez parar. Dylan olhou em volta, mas não viu nada. Sentiu apenas uma apreensão paranoica ao seu redor. Então, apressou-se para entrar, como se sua vida dependesse daquilo, e sentiu um golpe de frio envolver-lhe na escuridão do quarto.
– Ar-condicionado idiota – murmurou, enquanto tentava alcançar o interruptor e acender a luz. Dylan só pôde rir de sua própria paranoia, mesmo fechando rapidamente todos os trincos que encontrava.
Ela não o viu até dar um passo adiante no quarto pouco iluminado.
O homem da caverna na montanha, o lunático da estação de trem estava, de alguma forma – impossível, mas não – de pé a menos de dois metros dela.
Dylan ficou boquiaberta.
Chocada.
E, em seguida, gritou.
Capítulo 6
Rio colocou a mão sobre a boca da mulher assim que a primeira nota aguda de terror se espalhou pelo quarto. Ele tinha se movimentado rápido demais para que o olho humano de Dylan o acompanhasse – era a mesma habilidade da Raça que tinha usado para seguir o táxi desde a estação e, depois, seguir Dylan até o quarto no hotel. Ela provavelmente o sentira passar por perto quando ele entrou pela porta antes dela – percebendo-o apenas como um golpe súbito de ar frio –, mas Rio conseguia perceber que a mente de Dylan estava lutando até agora para compreender o que seus olhos estavam vendo.
Ela virou a cabeça, tentando se livrar daquela pegada inflexível. Outro grito se formou no fundo de sua garganta e bateu aquecido contra a palma da mão de Rio, mas o esforço era inútil. A dura mordaça formada pelos dedos do vampiro deixava tudo passar – tudo menos o menor grito de terror.
– Silêncio. – Ele a conteve rapidamente e a encarou com um olhar que demandava obediência. – Nem mais um ruído, entendeu? Eu não vou feri-la.
Embora aquilo fosse verdade – pelo menos por enquanto –, Rio não estava tão convencido de suas próprias palavras. Dylan tremia intensamente, todo seu corpo estava retesado e rígido. O medo pulsava em seu corpo em ondas perceptíveis. Pouco acima da mão dele, os olhos verdes dela estavam arregalados e ferozes. Suas narinas finas se inchavam a cada respiração rasa e carregada de pânico.
– Faça o que eu digo e você não vai sair ferida – ele insistiu, sustentando um olhar tenso e atento. Muito lentamente, Rio começou a diminuir a pressão sobre a boca de Dylan. O calor úmido dos lábios da mulher, assim como sua respiração cerrada, batia contra a palma dele enquanto ela se ajustava à pequena liberdade que ele lhe concedia. – Agora vou tirar a mão. Preciso que você fique quieta. Estamos de acordo?
Ela piscou os olhos lentamente. E ofereceu um assentir de cabeça trêmulo e discreto.
– Está bem – disse Rio, começando a levantar a mão. – Está bem assim.
A mulher não gritou.
Ela o mordeu.
Assim que Rio relaxou sua mão, ele sentiu a força brusca e repentina dos dentes de Dylan entrando na pele entre seu polegar e seu indicador. Ele cuspiu xingamentos ferozes, mais irritado por não ter previsto o ataque do que pela dor que a mordida lhe causava.
Ela se afastou com a mesma agilidade com que a atacou, e conseguiu se livrar dele. Dylan tentou correr na direção da porta trancada, mas não conseguiu dar um passo sequer. Rio a segurou por trás, envolvendo-a com braços que mais pareciam barras de ferro.
– Ah, meu Deus! Não! – ela gritou enquanto caía pesadamente sobre seus joelhos, rápido demais para ele conseguir amortecer a queda. Dylan caiu desajeitadamente, com o rosto no chão. Rio ouviu a respiração da mulher estremecer por conta do impacto abrupto e sabia que os pulmões dela deviam estar gritando desesperadamente – embora isso não diminuísse a determinação de Dylan. Caramba! Ela era realmente obstinada.
Ela ainda tentou um último e desesperado movimento para se livrar dele, tentando se arrastar no chão coberto por carpete. No entanto, certamente não teria chance, não contra alguém da espécie dele.
Rio subiu sobre a mulher, prendendo-a com o peso de seu corpo. Ela tremia quando ele a virou de costas e montou sobre ela. Dylan estremeceu, ainda lutando com todas as suas forças, mas sem conseguir chegar a lugar algum. Usando suas coxas musculosas, Rio a tinha prendido sob ele, segurando os braços dela na lateral do corpo.
Naquele momento, ela estava completamente à mercê dele e, considerando o olhar que ela ostentava quando olhou para Rio, Dylan não esperava que ele tivesse muito a oferecer.
Rio podia imaginar a aparência dele – Jesus, e também o seu cheiro. Tão próximo assim, ele não podia esperar que suas cicatrizes fossem escondidas por seus cabelos sem corte. Ele viu o olhar aterrorizado de Dylan apontar para a lateral esquerda de seu rosto, onde, um ano atrás, chamas e estilhaços tinham deixado suas marcas. O pedaço avermelhado de pele destruída parecia especialmente horrendo sob toda aquela sujeira. Ele parecia ser alguma espécie de monstro insano. E era isso o que era.
E ele subitamente se deu conta da mulher suave e aquecida que estava presa sob ele. Enquanto Rio usava roupas grossas, rasgadas e que mal serviriam de pano de chão, Dylan vestia uma blusa justa com uma gola em “V” prazerosamente decotada e calças cargo creme que encobriam delicadamente seus quadris. E tinha um cheiro agradável e fresco, infinitamente feminino. E ela era linda. Meu Deus, como era linda.
Rio nunca tinha visto olhos daquela cor, um verde rico, com marcas de um dourado pálido. Uma franja de cílios castanho-escuros emolduravam aqueles olhos inteligentes e hipnotizantes que o encaravam com um tom de incerteza cuidadosa. As maçãs do rosto eram delicadas e ressaltadas, acentuando a graciosa linha do maxilar. Ela tinha o tipo de beleza que a fazia parecer inocente e sábia ao mesmo tempo. No entanto, eram as sombras existentes naqueles olhos incríveis que deixaram Rio realmente instigado.
Aquela mulher tinha passado por dor e decepção em sua vida. Talvez tivesse até mesmo sido traída. Já havia sido ferida, certamente, e ali estava ele, adicionando um pouco mais de terror à vida dela. Sobretudo, ela o tinha deixado excitado.
Não apenas o pensamento de tê-la presa entre suas coxas, mas a visão daquela linda boca, que agora estava manchada com um traço do sangue dele, de quando ela o mordera. Todo o lado masculino de Rio estava em alerta com a sensação de tê-la debaixo dele. Todo o seu lado da Raça estava atento àquela mancha escarlate naqueles lábios tentadores... e ao martelar do pulso de Dylan, que batia acelerado na base daquele pescoço macio.
Ele a queria.
Depois dos meses de exílio naquela maldita caverna, depois da decepção causada por Eva, que o fazia se sentir morto de muitas formas, Rio olhou para aquela mulher e se sentiu... vivo.
Ele se sentiu voraz, e ela aparentemente sentiu essa voracidade através do leve gemido que ele simplesmente não conseguiu suprimir. Ele sentiu sua visão se tornar mais aguçada à medida que suas pupilas se estreitavam, fruto do seu interesse. Suas gengivas doíam conforme suas presas começaram a se alongar atrás da linha tênue formada por seus lábios.
E seu pênis estava subitamente, dolorosamente, ereto. Era impossível esconder esse fato, mesmo enquanto ele mudava sua prisioneira de posição.
– Por favor... Não faça isso! – ela implorou enquanto uma lágrima deslizava por suas bochechas e umedecia seus cabelos sedosos e vermelhos. – Seja lá o que você estiver pensando, apenas... me solte. Se é de dinheiro que você precisa, pegue dinheiro. Minha bolsa está bem ali.
– Eu não quero o seu dinheiro – disse Rio com os dentes apertados. Ele saiu de cima dela, furioso consigo por causa das duas reações físicas – as presas e a ereção – que estava tendo dificuldades para controlar. – Vamos, levante-se. Eu só quero a sua câmera.
Dylan levantou-se lentamente.
– Minha... o quê?
– A câmera que você levou para a caverna e que usou para tirar fotos minhas. Eu preciso dela.
– Você quer as fotos? Eu não estou entendendo...
– E não precisa entender. Apenas me dê as fotos. – Quando percebeu que ela não estava se movendo para obedecer, Rio lançou um olhar penetrante para ela. – Pegue as fotos. Agora!
– Es-está bem – ela gaguejou, apressando-se na direção de uma grande mochila colocada em um canto do quarto. Dylan enfiou a mão lá dentro e tirou a pequena câmera digital. Quando ela começou a abrir o equipamento para retirar o cartão de memória, Rio disse:
– Pode deixar que eu faço isso. Me dê a câmera.
Ela passou a máquina fotográfica para ele com dedos trêmulos:
– Você me seguiu até Praga para isso? O que há de tão importante nessas fotos? E como você me encontrou?
Rio ignorou as perguntas. Em alguns minutos, nada daquilo importaria. Ele teria as fotos e, em seguida, apagaria todos os eventos da memória daquela mulher.
– Estão todas aqui? – ele perguntou enquanto ligava a câmera e conferia o conteúdo do cartão de memória. – Você as transferiu para algum outro equipamento?
– É isso – ela se apressou em responder. – Isso é tudo, eu juro.
Ele observou a coleção de imagens da caverna, as fotografias que o mostravam em transformação parcial e aquelas que mostravam a antiga câmera de hibernação e as gravuras pintadas com sangue humano nas paredes.
– Você mostrou essas fotos para alguém?
Ela engoliu em seco. Em seguida, negou com a cabeça.
– Eu ainda não estou entendendo aonde você quer chegar.
– E é assim que deixaremos as coisas – respondeu Rio.
Ele caminhou na direção de Dylan, posicionando-se a apenas três passos dela. Ela se afastou, mas logo estava contra a janela na parede oposta do quarto.
– Ah, meu Deus! Você disse que não ia me ferir...
– Fique calma – ele instruiu. – Tudo isso vai acabar logo.
– Ah, droga! – Um gemido se formou no fundo da garganta dela. – Meu Deus, você vai mesmo me matar...
– Não – disse Rio sombriamente. – Mas preciso do seu silêncio.
Ele estendeu a mão em sua direção. Só seria necessário um toque na testa para apagar da mente de Dylan tudo o que ela sabia sobre a caverna na montanha e sobre ele.
No entanto, no momento em que Rio descia sua mão na direção de Dylan, ela segurou o ar que havia inspirado, soltando-o em uma sequência de palavras que o fez congelar.
– Eu não sou a única que sabe! – Ela tremia de medo. As palavras saíam apressadas de sua boca. – Outras pessoas sabem onde eu estou. Sabem por onde estive e o que estive fazendo. Então, independentemente do que você acredite que essas fotos são, provocar a minha morte não vai protegê-lo. Eu não fui a única que viu essas imagens.
Ela havia mentido para ele. Com tal decepção, a fúria de Rio se tornou ainda mais forte.
– Você disse que ninguém mais sabia.
– E você disse que não ia me ferir.
– Meu Deus! – Rio viu pouco propósito em discutir com ela ou em defender suas intenções. – Você precisa me dizer para quem mostrou as fotos. Preciso saber os nomes dessas pessoas e preciso saber onde elas estão.
Dylan fez uma careta. Um pouco ousada demais.
– Por quê? Para você ir atrás delas também?
A mente de Rio entrou em modo de reconhecimento imediato. Ele lançou um olhar para os pertences de Dylan e logo avistou uma mochila lateral pendurada na cadeira do hotel. A bolsa parecia guardar um computador. Rio caminhou até ela e puxou um notebook prateado. Abriu o aparelho e o ligou. E isso deve ter dado a Dylan a ideia de que poderia correr novamente na direção da porta. Ela tentou, mas Rio foi mais rápido. E, antes que pudesse imaginar a liberdade, ele já estava na frente dela, de costas para a pesada porta.
– Que droga – ela sussurrou, piscando os olhos em meio à sua descrença. – Como você conseguiu...? Você atravessou o quarto todo...
– Sim, atravessei. E agora estou aqui.
Rio deu um passo para a frente, distanciando-se da porta, forçando-a a recuar. Ela recuou enquanto ele continuava avançando. E Dylan não sabia o que fazer com ele.
– Sente-se – ele ordenou. – Quanto mais você cooperar, mais cedo acabaremos com tudo isso.
Dylan se sentou na beira da cama, observando-o enquanto ele voltava sua atenção ao computador e entrava na internet. A caixa de entrada do e-mail de Dylan foi uma revelação. Além de toda a porcaria usual e da recente alteração das passagens aéreas, Rio encontrou várias imagens nos Itens enviados. Havia, ali, mensagens que foram enviadas para alguma espécie de organização de notícias. E, em algumas dessas mensagens, fotografias anexadas. Ele abriu uma dessas mensagens e rapidamente correu os olhos pelo conteúdo.
– Ah, Jesus Cristo! Você só pode estar brincando comigo – ele murmurou, lançando um olhar sobre o ombro, na direção dela. – Você é uma maldita jornalista?
Dylan não respondeu, apenas ficou ali, parada, mordendo o lábio e incerta sobre se responder sim causaria sua morte mais rapidamente do que responder não.
Rio deixou o notebook e começou a andar com passos duros.
Ele pensou que a situação era ruim antes? Bem, agora ele estava diante de um desastre com proporções nucleares. Uma jornalista. Uma jornalista com uma câmera, um computador e conexão com a internet. Nem toda a lobotomia do mundo daria jeito nisso.
Ele precisava de ajuda com aquilo, e tinha de ser logo.
Rio pegou o computador de Dylan e iniciou um programa de mensagens instantâneas. Digitou um nome de usuário falso que o levava até o laboratório de tecnologia da Ordem, no complexo em Boston. O endereço era monitorado 24 horas por dia, 7 dias por semana, por Gideon, o gênio da computação residente dos guerreiros. Rio digitou uma mensagem criptografada usando um código que o identificava, além de identificar também sua localização e o motivo do contato.
A resposta de Gideon veio quase imediatamente. Fosse lá do que Rio precisasse, a Ordem ofereceria. Gideon estava à espera de detalhes.
– Você tem um celular? – ele perguntou à repórter que estava calada, sentada ao seu lado. Quando ela negou com a cabeça, Rio procurou na mesa e digitou o telefone fixo do hotel. – Qual é o número deste quarto? O número do quarto, caramba!
– Ah... É 310 – ela respondeu. – Por quê? Com quem você está falando? Por favor, me diga o que está acontecendo!
– Controle de problemas – ele respondeu, cerca de um segundo antes de o telefone tocar.
Rio atendeu, sabendo que era Gideon antes mesmo de ouvir o leve sotaque inglês do outro lado da linha.
– Estou ligando de um sinal codificado, Rio, então pode falar livremente. O que está acontecendo? E, mais importante, por onde você andou todo esse tempo, caramba!? Pelo amor de Deus, faz cinco meses que você desapareceu. Não escreve, não telefona... Esqueceu dos amigos?
Meu Deus, era bom ouvir uma voz conhecida. Rio poderia ter sorrido ao pensar aquilo, mas as coisas estavam problemáticas demais para ele.
– Estou em uma situação aqui... Uma situação nada boa, meu amigo.
O humor na voz de Gideon desapareceu. Agora, o guerreiro era todo negócios.
– Diga.
– Estou em Praga. Tem uma jornalista aqui comigo... uma mulher. Americana. Ela tirou fotos da montanha, Gideon. Fotos da câmara de hibernação e dos glifos nas paredes.
– Jesus Cristo! Como ela conseguiu entrar lá para tirar as fotos? E quando? A caverna está fechada desde que vocês foram para lá em fevereiro.
Ah, caramba! Não havia como fugir agora. Rio teria de dizer a verdade.
– A caverna não estava fechada. Ocorreram alguns atrasos... Eu não cuidei disso até hoje. Droga!
Gideon xingou.
– Está bem. Suponho que você tenha apagado a memória dela. Mas e quanto às fotos? Você está com elas?
– Sim, estou com elas, mas é aí que as coisas ficam piores, Gid. Ela não foi a única que as viu. As fotos já foram enviadas por e-mail para o jornal em que ela trabalha e para várias outras pessoas. Se eu pudesse resolver o problema apagando a mente dela, eu teria feito isso. Mas, infelizmente, o problema é maior do que isso, meu amigo.
Gideon permaneceu quieto por um longo instante, certamente calculando as infinitas complicações do erro de Rio, embora fosse diplomata demais para listá-las.
– A primeira coisa que precisamos fazer é tirar você daí e levá-lo para um lugar seguro. E a mulher também. Você acha que consegue segurá-la até eu arrumar alguém para ir buscá-los?
– Como você quiser. Isso foi um erro meu, tenha certeza de que eu farei tudo o que for necessário para corrigi-lo.
Rio ouviu vagamente o barulho de um teclado no fundo da ligação.
– Estou entrando em contato com Andreas Reichen, em Berlim. – Uma pausa se instalou por alguns segundos. Em seguida, Gideon começou a falar em outra linha de telefone, dessa vez com Boston. Em um instante, já estava falando com Rio novamente. – Tenho alguém para ir buscá-los e levá-los para o Refúgio de Reicher, mas pode ser que leve até uma hora para o contato dele chegar até vocês.
– Sem problemas.
– Confirmando – respondeu Gideon, resolvendo os problemas de logística, como se arrastar Rio para fora daquele mar de lama fosse simples. – Está bem. Estejam prontos. Telefonarei novamente quando o transporte estiver aí.
– Vou estar pronto. E, Gideon... Obrigado.
– Sem problemas. É bom tê-lo de volta, Rio. Nós precisamos de você, cara. As coisas não pareciam certas por aqui sem você.
– Enviarei notícias de Berlim – disse Rio, pensando que aquela provavelmente não fosse uma boa hora para contar a Gideon que ele não voltaria a fazer parte daquele grupo.
Seu encontro com a morte havia sido adiado. No entanto, assim que conseguisse colocar essa situação sob controle, Rio sairia de cena. Para sempre.