No cenário de um cavernoso e subterrâneo clube de jazz em Montreal, uma cantora com lábios vermelhos arrastava ao microfone palavras sobre a crueldade do amor. Embora a sedutora voz fosse muito encantadora e a letra falasse com clara sinceridade sobre sangue, dor e prazer, Nikolai não estava ouvindo. Ele se perguntava se a mulher sabia – se algum daqueles poucos humanos ali ao menos imaginava – que havia vampiros naquele espaço.
As duas jovens que tomavam Martíni Rosé no canto escuro do bar certamente não sabiam.
Estavam cercadas por quatro indivíduos, um grupo de homens alcoolizados vestidos de motoqueiros que conversavam e tentavam disfarçar, sem muito êxito, os olhos sedentos de sangue, permanentemente fixos na jugular das mulheres durante os últimos quinze minutos. Embora fosse claro que os vampiros estavam negociando insistentemente para que as humanas saíssem do clube com eles, não estavam obtendo muito progresso com suas respectivas Anfitriãs de Sangue em potencial.
Nikolai riu baixo.
Amadores.
Pagou pela cerveja que tinha deixado intacta e dirigiu-se para uma mesa no canto do bar. Enquanto se aproximava, olhou para as duas humanas, que saíam cambaleando do balcão. Foram rindo juntas para o banheiro, desaparecendo por um estreito corredor abarrotado de gente.
Nikolai sentou-se à mesa de forma descontraída.
– Boa noite, senhoritas.
Os quatro vampiros olharam-no fixamente em silêncio, instantaneamente reconhecendo-o como um de sua espécie. Niko elevou até o nariz uma das taças de martíni, manchada de batom, e farejou os sedimentos com aroma de fruta. Estremeceu, empurrando a asquerosa bebida de lado.
– Humanos – disse em voz baixa. – Como podem beber essa porcaria?
Um circunspecto silêncio caiu sobre a mesa enquanto o olhar de Nikolai viajava entre os obviamente jovens – e civis – da Raça. O maior dos quatro limpou a garganta enquanto olhava Niko; seus instintos não tiveram dúvida alguma de que ele não era dali. Tampouco havia dúvida de que não era um civil.
O jovem fez uma expressão que provavelmente pensou ser um olhar duro e moveu o queixo para o corredor onde ficavam os banheiros.
– Nós as vimos primeiro – murmurou ele. – As mulheres. Nós as vimos primeiro.
Ele limpou novamente a garganta enquanto esperava que seus amigos lhe dessem apoio. Entretanto, nenhum o fez.
– Nós chegamos aqui primeiro. Quando as mulheres voltarem para a mesa, elas irão embora conosco.
Nikolai riu diante da tentativa do jovem em reclamar seu território.
– Você acha mesmo que haveria alguma disputa se eu estivesse aqui para caçar? Relaxe, cara. Não estou interessado nisso. Estou procurando uma informação.
Ele já havia passado por uma situação similar duas vezes naquela noite em outros clubes, procurando os lugares onde os membros da Raça costumavam se reunir e caçar sangue – procurando por alguém que pudesse levá-lo a um vampiro mais velho chamado Sergei Yakut.
Não era fácil achar alguém que não queria ser encontrado, especialmente um homem reservado e peregrino como Yakut. Ele estava em Montreal, disso Nikolai tinha certeza. O guerreiro tinha falado por telefone com o vampiro recluso algumas semanas antes, quando o rastreara para informar-lhe a respeito de uma ameaça que parecia dirigida aos membros mais raros e mais poderosos da Raça – os vinte e poucos indivíduos ainda vivos que tinham nascido da Primeira Geração.
Alguém se concentrava na extinção dos integrantes da Primeira Geração. Vários haviam sido dados como mortos no mês anterior e, para Niko e seus irmãos da Raça em Boston – um pequeno grupo de guerreiros altamente preparados e altamente letais conhecidos como a Ordem –, a erradicação e a prisão dos assassinos dos Primeira Geração era uma missão crítica. Por isso, a Ordem decidira entrar em contato com todos os Primeira Geração conhecidos e conseguir sua cooperação.
Sergei Yakut fora o menos disposto a se comprometer. Ele não temia ninguém e tinha seu próprio clã para protegê-lo. Recusara o convite da Ordem para ir a Boston conversar, fazendo com que Nikolai fosse enviado a Montreal para persuadi-lo. Quando Yakut ficasse consciente do alcance da atual ameaça – a crua verdade contra a qual a Ordem e toda a Raça estavam lutando –, Nikolai estava seguro de que o Primeira Geração estaria disposto a ajudá-los.
Contudo, antes era preciso encontrar o ardiloso filho da puta.
Até aquele momento, as investigações na cidade não tinham dado em nada. Paciência não era exatamente o forte de Niko, mas ele tinha toda a noite, e continuaria procurando. Mais cedo ou mais tarde, alguém poderia lhe dar a resposta que buscava. E se seguisse atuando de forma dura, talvez perguntando bastante, Sergei Yakut viria procurá-lo.
– Preciso encontrar uma pessoa – disse Nikolai aos quatro jovens da Raça. – Um vampiro estrangeiro, da Rússia. Da Sibéria, para ser mais exato.
– Você também é de lá? – perguntou o líder do grupo. Ele havia evidentemente captado o ligeiro sotaque que Nikolai não tinha perdido durante os longos anos em que viveu nos Estados Unidos com a Ordem.
Niko deixou que seus olhos azuis glaciais falassem de suas próprias origens.
– Conhece esse homem?
– Não. Não o conheço.
Outras duas cabeças agitaram-se em imediata negativa, mas o último dos quatro, o antissocial que estava com os braços apoiados sobre o balcão, lançou um olhar ansioso para Nikolai do outro lado da mesa.
Niko captou aquele olhar e concentrou-se nele.
– E você? Alguma ideia do que estou falando?
A princípio, não achava que o vampiro fosse responder. Os olhos encobertos encararam os seus em silêncio até que o jovem finalmente se moveu e exalou uma maldição.
– Sergei Yakut – murmurou.
O nome foi quase inaudível, mas Nikolai o ouviu. E com o canto dos olhos, percebeu que uma mulher de cabelos cor de ébano sentada no bar perto deles também ouvira. O guerreiro podia perceber tudo sobre ela, desde a súbita rigidez descendo pela espinha, por baixo de sua blusa preta de mangas longas, até a maneira como sua cabeça inclinava-se levemente para o lado, graças ao poder daquele simples nome.
– Você o conhece? – perguntou Nikolai ao jovem da Raça, sem desviar os olhos um segundo sequer daquela morena no bar.
– Ouvi falar dele, isso é tudo. Ele não vive nos Refúgios – disse o jovem, referindo-se às comunidades seguras que recebiam a maioria das populações civilizadas da Raça por toda a América do Norte e Europa. – O cara é bem desagradável, pelo que ouvi.
E ele realmente era, Nikolai admitiu para si.
– Alguma ideia de onde eu poderia encontrá-lo?
– Não.
– Tem certeza? – perguntou Niko, observando a mulher no bar deslizar de sua banqueta, preparando-se para partir. Sua taça mal passara da metade, mas com a menção do nome de Yakut, ela, subitamente, pareceu ter pressa em sair daquele lugar.
O jovem da Raça agitou a cabeça.
– Não sei onde você pode encontrar esse cara. Não sei por que alguém estaria disposto a procurá-lo, a menos que queira morrer.
Nikolai olhou por cima de seu ombro; a mulher alta e morena começava a andar no meio da pequena multidão reunida perto do balcão. Por impulso, ela voltou-se para olhá-lo; então, os olhos verdes como jade apareceram por entre a franja do cabelo negro e o brilho de seu queixo magro e agitado. Havia uma nota de medo em seus olhos enquanto ela devolvia fixamente o olhar, um medo nu que ela sequer tentava ocultar.
– Estarei condenado – murmurou Niko.
Ela sabia algo sobre Sergei Yakut.
Algo além de um simples conhecimento passageiro, Niko supôs. Aquele olhar assustado e cheio de pânico, enquanto ela se virava e procurava uma saída, dizia tudo.
Nikolai foi atrás dela. Abriu caminho pela confusão de humanos que enchiam o clube, seus olhos seguiam o sedoso e negro cabelo de sua presa. A mulher era rápida e ágil como uma gazela, suas roupas e cabelos escuros permitiam-lhe praticamente desaparecer pelos arredores.
Mas Niko pertencia à Raça, e não existia humano que pudesse deixar para trás um de sua espécie. Ela evitou a porta do clube e fez um giro rápido para a rua. Nikolai a seguiu. Ela deve ter sentido a presença dele logo atrás, pois olhou ao redor para avaliar sua perseguição, os pálidos olhos verdes fechando-se sobre o seu perseguidor como lasers.
Ela corria mais rápido agora, dobrando a esquina no final da rua. Dois segundos mais tarde, Niko também estava ali. Sorriu enquanto avistava a moça apenas alguns metros à sua frente. O beco em que ela entrou, entre dois edifícios altos, era estreito e escuro, e a saída estava fechada por um contêiner de metal pontudo e uma cerca de uns três metros de altura.
A mulher girou o corpo sobre os saltos de suas botas pretas, ofegando forte, seus olhos sobre Niko, observando cada um de seus movimentos.
Nikolai deu poucos passos para o mal iluminado beco, depois parou; suas mãos sustentavam-se benevolamente pelas laterais do corpo.
– Está tudo bem – ele disse. – Não precisa correr. Só quero conversar.
Ela olhou-o em silêncio.
– Quero perguntar sobre Sergei Yakut.
A mulher visivelmente engoliu em seco; seu doce estômago se contorcia.
– Você o conhece, não é mesmo?
O canto da boca da mulher arqueou-se levemente, mas o suficiente para dizer ao guerreiro da Raça que ele tinha razão – ela conhecia o Primeira Geração. Se poderia levá-lo até ele já era outro assunto. Mas, agora, aquela mulher era sua melhor – possivelmente única – esperança.
– Conte-me onde ele está. Preciso encontrá-lo.
Ela estava com as mãos apoiadas nos quadris, de punhos fechados. Os pés estavam ligeiramente separados, como se estivesse preparada para sair correndo. Niko viu a mulher sutilmente lançar o olhar para uma maltratada porta à esquerda.
Ela avançou rumo à porta.
Niko soltou uma maldição e voou atrás dela com toda a velocidade que tinha. No momento em que ela abriu a porta, sob os rangidos das dobradiças, ele já estava em sua frente, na soleira, bloqueando a passagem para a escuridão do outro lado. Ele riu com a facilidade do ato.
– Eu disse que não precisa correr – disse, dando de ombros ligeiramente enquanto ela retrocedia um passo, afastando-se. Ele deixou que a porta se fechasse enquanto seguia o lento retrocesso da mulher para o beco.
Jesus, ela era estonteante! Ele só tinha conseguido vislumbrá-la no clube, mas, agora, a poucos metros de distância, Niko se dava conta de que ela era absolutamente sensacional. Alta e magra, esbelta sob sua roupa negra, com uma irrepreensível pele branca como o leite e luminosos olhos de amêndoas selvagens. Seu rosto tinha a forma de um coração e era uma combinação cativante de fortaleza e suavidade, sua beleza igualava partes claras e obscuras. Nikolai sabia que estava ofegando. Que inferno! Não podia evitar.
–Diga-me... – disse ele. – Diga-me seu nome.
Ele estendeu o braço para a mulher, fazendo um movimento simples e nada ameaçador com a mão. Sentiu uma onda de adrenalina disparando em sua corrente sanguínea – na verdade, pôde perceber o penetrante aroma cítrico no ar – mas não viu o golpe chegando até que o afiado salto da bota o atingisse em cheio no peito.
Maldita!
Ele caiu para trás, mais surpreso que desacordado.
Era o tempo de que ela precisava. A mulher saltou pela porta de novo, desta vez conseguindo desaparecer no escuro edifício antes que Niko pudesse dar a volta e impedi-la. Ele a perseguiu, amaldiçoando-a.
O lugar estava vazio, muito cimento cru sob seus pés, tijolos à vista e vigas expostas ao redor. Um sentido fugaz de premonição ardeu-lhe pela nuca enquanto corria entrando mais na escuridão, mas toda sua atenção estava centrada na mulher que permanecia no centro do espaço vazio. Ela olhou-o com expectativa conforme ele se aproximava, cada músculo de seu magro corpo parecia tenso, preparado para atacar.
Nikolai sustentava um afiado olhar enquanto se colocava na frente dela.
– Não vou te fazer mal.
– Eu sei – ela sorriu, marcando uma ligeira curva em seus lábios. – Você não terá essa oportunidade.
Sua voz era brandamente aveludada, mas o brilho de seus olhos era de um matiz frio.
Inesperadamente, Niko sentiu uma súbita tensão que deixou sua cabeça em pedacinhos. Um som de alta frequência explodiu em suas orelhas, mais alto do que podia suportar. E, depois, ainda mais alto. Ele sentiu as pernas cederem. Caiu de joelhos, sua visão estava à deriva, enquanto a cabeça estava a ponto de explodir.
Registrou o som de botas a distância – vários pares, pertencentes a homens, todos vampiros. Vozes apagadas zumbiam sobre ele enquanto sofria um repentino e extenuante ataque.
Era uma armadilha.
A vadia o havia guiado até ali deliberadamente. Ela sabia que ele a seguiria.
– Bom trabalho, Renata – disse um dos membros da Raça que tinha entrado no local. – Pode soltá-lo agora.
A dor de cabeça de Nikolai diminuiu ao ouvir aquela ordem. Elevou os olhos a tempo de ver o belo rosto de sua atacante olhando para ele, próximo aos seus pés.
– Tirem-lhe as armas – disse ela aos companheiros. – Precisamos removê-lo daqui antes que recupere as forças.
Nikolai cuspiu várias outras maldições para a mulher, mas sua voz se afogou na garganta: ela já estava longe, as pontas magras de seus saltos ressoando pelo chão de concreto frio em que ele estava deitado.
Capítulo 2
Renata não pôde sair do armazém rápido o suficiente. Seu estômago se revolveu. Um suor frio escorria, umedecendo-lhe a testa e a parte de trás do pescoço. Ela ansiava pelo ar fresco da noite como seu último fôlego, mas manteve os passos constantes e intensos. Os punhos apertados sustentados rigidamente ao lado do corpo eram os únicos indícios de que ela não estava nada tranquila.
Para ela, sempre era assim – aquela era consequência de usar o poder paralisante de sua mente.
Agora, do lado de fora, sozinha no beco, rapidamente inspirou bastante ar. A pureza do oxigênio refrescou-lhe a garganta ardente, mas isso era tudo o que ela podia fazer para não ceder ao aumento da dor que lhe percorria o corpo todo como um rio de lava.
- Maldição! - murmurou no vazio do escuro, oscilando ligeiramente o corpo sobre os saltos. Inspirando profundamente algumas vezes mais, cravou os olhos na calçada escura sob seus pés e concentrou-se apenas em manter-se de pé.
Atrás dela, ouviu som de passos rápidos e pesados já fora do armazém. Virou a cabeça bruscamente, forçando um olhar de tranquilidade sobre a tensão ardente de seu rosto.
- Tomem cuidado com ele - disse ela, olhando para o grande vulto do homem que ela acabara de deixar inconsciente e que era transportado como um simples brinquedo pelos quatro guardas que trabalhavam com ela. - Onde estão as armas dele?
- Seguras.
Alexei, o líder designado para aquela noite, levou até ela uma mala de couro preta e a mulher não deixou de notar o sorriso satisfeito no rosto magro do homem quando ele atirou-lhe contra o peito o objeto repleto de metal. O impacto foi similar ao de milhares de pregos batendo em sua pele sensível, mas ela agarrou a bolsa e a pendurou no ombro sem um grunhido sequer.
Mas Lex sabia. Ele sabia de sua debilidade. Sabia e nunca a deixava esquecer.
Diferentemente dela, Alexei e seus companheiros eram vampiros da Raça, todos eles, assim como aquele que havia capturado. Renata não tinha nenhuma dúvida a esse respeito. Suspeitara disso quando o vira no clube, uma suspeita confirmada pelo simples fato de ter conseguido dominá-lo com a mente. Sua capacidade psíquica era formidável, mas não ilimitada: tinha influência sobre os homens da Raça, mas a explosão de alta frequência que conseguia projetar mentalmente em um momento de concentração era inofensiva às mais simples células dos cérebros humanos.
Ela era humana, ainda que tivesse nascido ligeiramente diferente dos Homo sapiens. Para Lex e sua espécie, todavia, era conhecida como uma Companheira de Raça, uma entre um diminuto número de mulheres humanas que nasciam com habilidades extrassensoriais únicas e com a ainda mais rara capacidade de se reproduzir com os homens da Raça. Mulheres como Renata ganhavam ainda mais forças com a ingestão de sangue da Raça. Força e longevidade. Uma Companheira de Raça podia viver durante séculos e mais séculos enquanto se alimentasse regularmente das veias de um vampiro.
Até dois anos atrás, Renata não fazia ideia do porquê era diferente de todos os outros que conhecia, ou de onde pertencia. Cruzar o caminho de Sergei Yakut a havia levado rapidamente a esse conhecimento. Ele era a razão de ela, Lex e todos os outros estarem de guarda naquela noite, rondando a cidade e procurando o indivíduo que andava perguntando pelo solitário Yakut nos arredores.
O macho da Raça que Renata encontrara no clube de jazz fora tão descuidado com sua investigação que ela se perguntava se ele não estava tentando provocar Sergei Yakut. Se fosse isso, ou o cara era um idiota ou um suicida - ou uma macabra combinação de ambos. De qualquer forma, ela teria a resposta a essa pergunta muito em breve.
Renata tirou o celular do bolso e ligou rapidamente para o primeiro número armazenado na agenda.
- Sujeito recuperado - anunciou quando a chamada se completou. Depois, forneceu sua localização, desligou e atirou o aparelho longe. Olhou para onde estavam Alexei e os outros guardas com o prisioneiro inconsciente e completou: - O carro está a caminho. Deve estar aqui em aproximadamente dois minutos.
- Soltem este monte de nada - ordenou Lex a seus homens. Eles soltaram o homem da Raça, cujo corpo caiu no asfalto com um ruidoso golpe. Com as mãos nos quadris e os punhos emoldurando de um lado uma pistola embainhada e, do outro, uma adaga enfiada no cinto, Lex olhou para o rosto do vampiro inconsciente a seus pés. Soltou um suspiro grave de desaprovação e, em seguida, cuspiu, errando por pouco a bochecha barbeada do homem no chão. A saliva branca e espumosa aterrissou na calçada com um som molhado, não mais do que a uma polegada de distância da cabeça loira do homem.
Quando Alexei o olhou novamente, havia um brilho duro nos olhos escuros de Lex.
- Talvez devêssemos matá-lo.
Um dos guardas riu entre dentes, mas Renata sabia que Lex não estava brincando.
- Sergei disse para o levarmos.
Alexei zombou.
- E dar aos seus inimigos outra oportunidade para pegar sua cabeça?
- Não sabemos se este homem teve algo a ver com o ataque.
- Podemos ter certeza de que não? - Alexei voltou a olhar fixamente para Renata. - De agora em diante, não confio em ninguém. Pensei que você não gostaria de arriscar a segurança dele tanto quanto eu.
- Eu sigo as ordens - respondeu ela. - Sergei mandou que encontrássemos quem estava na cidade perguntando a respeito dele e o levássemos para interrogá-lo. E é isso que pretendo fazer.
Os olhos de Lex estreitaram-se como lâminas debaixo de suas sobrancelhas castanhas.
- Bem - ele disse, com voz calma. - Você tem razão, Renata. Temos nossas ordens. Vamos levá-lo, como você diz. Mas o que vamos fazer enquanto esperamos pelo carro?
Renata o encarou, perguntando-se onde ele queria chegar agora. Lex andou ao redor do macho da Raça que estava inconsciente e lhe deu um chute com a bota nas costelas desprotegidas. Não houve reação alguma, apenas a dilatação suave do peito do homem conforme ele respirava.
Alexei abriu os lábios em um sorriu sádico, movendo seu queixo para os outros homens.
- Minhas botas estão sujas. Talvez esta bagagem inútil limpe-as enquanto esperamos, que tal?
No calor das gargalhadas de seus companheiros, Lex levantou um dos pés e o deixou voar sobre o rosto inerte do prisioneiro.
- Lex - Renata disse, sabendo que ele não a ouviria se ela tentasse convencê-lo a parar. No entanto, foi nesse preciso momento que ela notou algo estranho no homem loiro caído no chão: sua respiração era estável e pouco profunda, seus membros estavam imóveis, mas seu rosto... ele estava se mantendo demasiado inerte, mesmo se estivesse realmente inconsciente. Mas não estava.
Em uma fração de segundo, Renata se deu conta disso e não restou a menor sombra de dúvida de que aquele homem estava bem acordado e consciente. Bastante consciente de tudo o que estava acontecendo.
Ah, Cristo!
Alexei começou a rir enquanto abaixava a perna e começava a passar a sola grossa da bota sobre o rosto do homem loiro.
- Lex, espere! Ele não está...
Nada do que ela dissesse teria mudado a explosão caótica que sucedeu.
Lex ainda estava em movimento quando o homem levantou as mãos e o agarrou pelo tornozelo. Segurou-o com força e atirou-o ao chão. Não passou nem um segundo e o homem já estava de pé, fluido e forte. Renata nunca tinha visto nada parecido antes em nenhum outro guerreiro.
Santo Deus! Ele estava com a pistola de Lex.
Renata deixou cair a mala e tentou alcançar sua própria arma, uma 45 mm oculta no coldre em suas costas. Seus dedos estavam ainda endurecidos por causa do esforço mental feito pouco antes, e um dos outros guardas respondeu antes que ela pudesse alcançar a arma. Ele disparou uma rajada precipitada, errando o alvo, que se encontrava a menos de um metro.
E mais rápido do que qualquer um deles pudesse supor, aquele que antes era um prisioneiro devolveu o fogo, enfiando uma bala diretamente no crânio do guarda precipitado; assim, um dos guarda-costas que por mais tempo servira Sergei Yakut caiu sem vida sobre a calçada.
Ah, Jesus, pensou Renata com uma preocupação que aumentava conforme ela percebia que a situação rapidamente saía do controle. Será que Alexei tinha razão? Será que aquele macho da Raça era o mesmo assassino que tentara atacá-la pouco antes?
- Quem é o próximo? - perguntou o homem loiro, com um pé plantado na coluna vertebral de Lex enquanto balançava com tranquilidade as pistolas dos outros dois guardas de Renata. - O quê? Não há nenhum interessado agora?
- Matem esse filho da mãe! - rugiu Lex, contorcendo-se como um inseto apanhado sob a sola da bota pesada que o aprisionava e dominava. Com a bochecha esmagada contra o chão e as presas salientes por causa do ódio, Lex lançou um olhar brilhante para Renata e seus homens. – Diabos! Arranquem a cabeça dele!
Antes que a ordem saísse completamente da boca de Alexei, ele foi colocado, à força, de pé. E ele gritou quando seu peso caiu sobre o tornozelo ferido, mas foi a presença repentina da própria pistola acariciando-lhe a parte de trás da orelha que realmente fez seus olhos cor âmbar serem tomados pelo pânico. Seu capturador, pelo contrário, estava tão tranquilo como era de esperar.
Santa mãe de Deus! Com que demônio eles estavam lidando?
- Vocês o escutaram - disse o homem loiro. Sua voz era baixa e tranquila, sem pressa, e seu olhar fixo penetrava a escuridão. Ele olhou fixamente Renata. - Venham aqui, se algum de vocês for homem o suficiente. Se vocês não querem ver o cérebro desse cara aqui salpicar toda a parede do prédio, então eu lhes sugiro que soltem suas armas e coloquem-nas no chão calmamente.
Ao seu lado, no beco, Renata registrou os grunhidos baixos e ofegantes dos machos da Raça transformados. Individualmente, nenhum dos vampiros era fisicamente muito mais forte do que ela; como um grupo, poderiam ser mais fortes que o capturador de Lex, embora nenhum deles parecesse disposto a verificar. Uma arma foi colocada com cuidado sobre a calçada, produzindo um suave estalo de metal. Isto deixava, então, apenas um guarda junto de Renata. Um segundo mais tarde, este também entregou sua arma. Ambos os vampiros deram alguns passos lentos, rendendo-se em cauteloso silêncio.
E agora Renata estava sozinha diante daquela ameaça inesperada.
O homem loiro lhe dedicou um meio sorriso, mostrando os dentes e as pontas das presas emergentes. Aquelas largas presas eram prova de que estava furioso, assim como a luz âmbar que começava a preencher-lhe os olhos conforme eles tomavam os traços característicos da Raça. O sorriso do homem se alargou, fazendo aparecer covinhas duplas debaixo das maçãs do rosto.
- Parece que agora é com você e comigo, querida. Não vou pedir outra vez. Coloque sua maldita arma no chão ou acabarei com ele.
Renata rapidamente considerou suas opções - as poucas que tinha naquele momento. Seu corpo ainda seguia tão paralisado quanto um nervo exposto e as respostas de seu esforço mental ainda estavam deixando-a fraca. Ela poderia tentar outro golpe com a mente, mas sabia que estaria atirando no escuro. Mesmo se o golpeasse com toda a força que tinha, não seria capaz de dominá-lo novamente, e uma vez que estivesse esgotada por essa tentativa, não seria de nenhuma utilidade para ninguém.
Sua outra opção representava um risco de igual magnitude. Normalmente, ela era uma águia disparando, com reflexos rápidos e precisos de um franco-atirador, mas não podia contar com nenhuma de suas habilidades quando precisava da maior parte de sua atenção apenas para mover os membros e ordenar que os dedos trabalhassem. Não importava o que ela fizesse, naquele momento as probabilidades de Alexei sair ileso eram escassas. Diabos, as chances de ela ou de alguém mais sair ileso dessa situação pareciam nulas.
Aquele macho da Raça tinha todas as cartas, e o olhar dele enquanto a observava, esperando que ela decidisse seu futuro, parecia dizer que ele estava muito cômodo em sua posição de poder. Ele tinha Renata, Lex e o resto deles exatamente onde queria.
Mas ela estaria condenada se se rendesse sem lutar.
Renata respirou fundo para reunir coragem e, então, puxou a arma e apontou para o peito dele. Seus braços gritaram pelo esforço realizado para fazer esse gesto e manterem-se estáveis, mas ela absorveu a dor, tentando colocá-la de lado. Pelo menos por enquanto.
Ela engatilhou a arma.
- Solte-o. Agora.
O cano da arma dele manteve-se no mesmo lugar, apertado atrás da orelha de Lex.
- Você não acredita de verdade que estamos negociando, não é? Solte sua arma.
Renata tinha um tiro, assim como o homem loiro. E ele ainda tinha a vantagem da velocidade sobre-humana, sendo capaz de se esquivar do disparo de Renata, já que facilmente o veria se aproximar. Havia uma fração de segundo de atraso entre as rodadas do carregador, mesmo no melhor momento. Isso significava uma grande oportunidade para ele abrir fogo, decidindo dar um tiro em Lex antes ou depois de ela atirar. Em outro segundo, todos eles podiam estar comendo bala. Aquele homem era da Raça. Com seu acelerado metabolismo e seu poder de cura, ele tinha uma considerável chance de sobreviver, mesmo sendo atingido pelos disparos, mas e ela? Ela certamente iria morrer.
- Você tem um problema comigo ou é ele quem você realmente quer ver morto esta noite? Talvez você apenas odeie alguém que tenha um pau. É isso?
Embora ele mantivesse seu alvo em foco, o tom era leve, como se estivesse jogando com ela. De forma alguma a estava levando a sério. Seu tom também era arrogante. Ela não lhe respondeu, simplesmente armou a pistola e apoiou ligeiramente o dedo indicador no gatilho.
- Solte-o. Não queremos nenhum problema com você.
- Muito tarde para isso, não acha? Tudo o que você tem agora é um problema.
Renata não se alterou. Ela nem sequer se atreveu a piscar por medo de que aquele homem pudesse tomar aquilo como uma debilidade e decidisse agir.
Lex tremia e o suor corria-lhe pelo rosto másculo.
- Renata - ele disse com voz entrecortada, e se com isso quis dizer para ela se render ou fazer seu melhor movimento, não havia sido claro. - Pelo amor de Deus, Renata... Diabos...
Ela mantinha a mira estável no captor de Alexei, os cotovelos completamente fechados, as mãos agarradas na arma. Uma brisa ligeira de verão começou a soprar e a rajada suave de ar passou por sua pele hipersensível como fragmentos irregulares de cristal. A distância, ela podia escutar a música pop e a explosão de fogos do final do festival que acontecia naquele fim de semana, silenciosas explosões que vibravam como trovões em seus ossos doloridos. O barulho do tráfego e as freadas na rua fora do beco, os motores dos veículos que lançavam uma repugnante mistura de gases dos escapamentos e borracha quente dos pneus.
- Por quanto tempo mais deseja prolongar isso, querida? Porque tenho que dizer: a paciência não é uma de minhas virtudes.
O tom daquele homem era casual, mas a ameaça não podia ter sido mais evidente. Ele engatilhou novamente a pistola, preparando-se para dar à noite seu final sangrento.
- Me dê uma boa razão para que eu não encha o cérebro desse idiota com chumbo.
- Porque ele é meu filho - a voz masculina mais baixa veio de trás do beco. As palavras eram desprovidas de emoção, mas sinistras em sua cadência e sotaque acentuados com a áspera frieza da pátria siberiana de Sergei Yakut.
Capítulo 3
Nikolai virou a cabeça e olhou Sergei Yakut aproximar-se no beco estreito. O vampiro da Primeira Geração passou diante dos dois ansiosos guarda-costas, e seu olhar direto e fixo moveu-se casualmente de Niko para o macho da Raça ainda sob a mira da arma. Com um assentimento, Niko desarmou a pistola e baixou-a lentamente. Logo que afrouxou o braço, o filho de Yakut lançou uma maldição e afastou-se.
- Bastardo insolente - grunhiu, cheio de cólera, agora que estava a uma distância segura. - Eu disse a Renata que este maldito era uma ameaça, mas ela não me escutou. Deixe-me matá-lo, pai. Deixe-me fazê-lo sentir dor.
Yakut ignorou tanto o pedido quanto a presença do filho e permaneceu em silêncio diante de Nikolai, que apenas esperava.
- Sergei Yakut - disse Niko, girando a pistola desarmada e oferecendo-a com um gesto pacífico. – Que maldita maneira de dar boas-vindas vocês têm aqui. Desculpe-me por ter matado um de seus homens. Ele não me deu escolha.
Yakut meramente grunhiu enquanto pegava a pistola e a estendia ao guarda mais próximo. Vestindo uma camisa de algodão e desgastadas calças de couro, que pareciam couro cru, e com o cabelo castanho claro e a barba selvagem e enorme, Sergei Yakut tinha o aspecto de um ardiloso guerreiro feudal, séculos fora de seu tempo.
Com o rosto sem rugas e o corpo alto e musculoso, o que lhe fazia parecer ter menos de quarenta anos, apenas os espessos dermoglifos de macho da Raça marcando seus braços nus indicavam que ele era um antigo membro da Raça. Como Primeira Geração, podia ter mil anos ou mais.
- Guerreiro - disse Yakut sombriamente, com o olhar forte como dois raios lasers que se fechavam no alvo. – Eu disse para não vir. Você e o resto da Ordem estão perdendo tempo.
Em sua visão periférica, Niko captou a troca de olhares de surpresa entre o filho de Yakut e os outros guardas. A mulher - Renata, chamava-se -, em especial, parecia completamente surpreendida ao ouvir que ele era um guerreiro, um guerreiro da Ordem. Tão rapidamente quanto apareceu em seu olhar, a surpresa desvaneceu-se, sumindo como se ela tivesse varrido toda a emoção de seu rosto. Renata estava placidamente calma agora, enquanto permanecia de pé, poucos metros atrás de Sergei Yakut, e o olhava, com a arma ainda na mão e a postura preparada para qualquer ordem.
- Precisamos de sua ajuda - disse Nikolai a Yakut. - E com base no que está acontecendo perto de nós, em Boston e em todos os lugares em que há população da Raça, você também vai precisar de nossa ajuda. O perigo é muito real. Muito letal. Sua vida está em perigo, inclusive agora.
- O que você sabe sobre isso? - grunhiu o filho de Yakut para Niko. – Por mil demônios! Como você pode saber algo sobre isso? Não dissemos nada a ninguém sobre o ataque da semana passada...
- Alexei - o som de seu nome nos lábios de Yakut, seu pai, sossegou o jovem como se uma mão tivesse abafado sua boca. - Não fale por mim, rapaz. Seja útil - disse, gesticulando para o vampiro que Nikolai tivera de matar. - Leve Urien para o terraço e deixe-o lá para que tome sol. Depois, livre este beco de quaisquer evidências.
Alexei encarou-o durante um segundo, como se a tarefa estivesse abaixo de sua capacidade, mas não teve coragem de dizer isso.
- Já ouviram meu pai - grunhiu aos outros guardas parados de pé ao seu lado. - O que estão esperando? Livrem-se desse monte de lixo.
Quando os guarda-costas começaram a se mover diante da ordem de Alexei, Yakut olhou para a mulher.
- Agora você, Renata. Pode me levar de volta para casa. Terminei aqui.
A mensagem para Niko era clara: ele não era convidado e não era bem-vindo nos domínios de Yakut. E, por enquanto, estava dispensado.
Provavelmente, a coisa mais inteligente a fazer seria entrar em contato com Lucan e com o resto da Ordem dizendo-lhes que havia tentado sua melhor aposta contra Sergei Yakut, mas que tudo tinha sido em vão. Depois, deixar Montreal antes que Yakut decidisse arrancar seus órgãos. O pavio curto daquele Primeira Geração tinha provocado coisas piores a outros - e por pecados menores.
Sim, recolher-se e partir eram, definitivamente, as ações mais sábias naquele momento. Exceto pelo fato de que Nikolai não estava acostumado a ficar sem uma resposta, e a situação que tanto a Ordem quanto a Raça enfrentavam, incluindo os humanos, sem dúvida não terminaria tão cedo. Pelo contrário, ficava mais volátil e mais catastrófica a cada segundo.
E então vinha Alexei com aquela atitude despreocupada a respeito de um ataque recente...
- O que aconteceu aqui semana passada? - perguntou Nikolai, uma vez que estava no beco apenas com Yakut e Renata. Ele sabia a resposta, mas fez a pergunta de qualquer forma. - Alguém tentou assassiná-lo... como avisei que aconteceria, não foi?
Sergei olhou com a sobrancelha franzida e com os ardilosos olhos brilhando para Niko, que sustentou o olhar desafiador para o idiota arrogante que acreditava estar fora do alcance da morte, mesmo que ela tivesse batido na sua porta há poucos dias.
- Houve uma tentativa, sim – os lábios de Yakut curvaram-se em uma ligeira careta, enquanto ele dava de ombros –, mas eu sobrevivi. Como deveria se supor. Vá para casa, guerreiro. Lute as batalhas da Ordem em Boston. Deixe que eu me ocupo com minhas coisas aqui.
Niko coçou o queixo, olhando para Renata, e a silenciosa ordem a colocou em movimento. Enquanto suas longas pernas a levavam para fora do alcance do que pudesse ser dito no beco, Yakut arrastou as palavras:
- Meus agradecimentos pelo aviso. Se este assassino for suficientemente idiota para atacar de novo, estarei preparado para ele.
- Ele atacará de novo - respondeu Niko, com total certeza. – Isso é pior do que suspeitamos no princípio. Mais dois Primeira Geração foram assassinados desde que nos falamos pela última vez. Isso eleva o número de mortos para cinco. Menos de vinte de sua geração ainda existem. Cinco dos mais antigos e poderosos membros da Raça morreram no intervalo de um mês. Cada um deles aparentemente localizado e eliminado por especialistas. Alguém quer todos vocês mortos, e já tem um plano em andamento para que isso ocorra.
Yakut pareceu considerar as palavras do guerreiro loiro, mas apenas por um momento. Sem outra palavra, virou-se e começou a se afastar.
- Há mais - acrescentou severamente Niko. - Algo que não fui capaz de lhe dizer quando falamos por telefone há algumas semanas. Algo que a Ordem descobriu escondido em uma caverna nas montanhas da República Tcheca.
Enquanto o Antigo vampiro continuava lhe ignorando, Niko soltou uma maldição em voz baixa.
- Achamos uma câmara de hibernação, uma câmara muito antiga. Uma cripta onde um dos mais poderosos de nossa espécie foi guardado em segredo durante séculos. A câmara foi feita para proteger um Antigo.
Finalmente Niko conseguiu sua atenção.
Os passos de Yakut diminuíram, depois pararam.
- Os Antigos foram assassinados na grande guerra contra a Raça - disse ele, recitando a história que até muito recentemente era aceita por toda a Raça como fato irrefutável.
Nikolai conhecia a história da revolução tão bem quanto qualquer um de sua espécie. Dos oito selvagens de outro mundo que haviam fecundado a primeira geração da Raça vampira na Terra, nenhum sobrevivera à batalha com o pequeno grupo de guerreiros Primeira Geração que tinham declarado guerra contra os próprios pais, para proteger tanto a Raça quanto os humanos. Esses poucos e valorosos guerreiros tinham sido guiados por Lucan, que nesse dia tornou-se líder do que viria a ser a Ordem.
Yakut lentamente se virou para encarar Nikolai.
- Todos os Antigos foram assassinados há setecentos anos. Eu mesmo cravei uma espada em meu pai. Se ele e seus irmãos aliens tivessem sido poupados, eles teriam destruído toda a vida neste planeta com sua insaciável sede de sangue.
Niko assentiu com gravidade.
- Mas havia alguém que não concordava com o decreto que ordenava a destruição dos Antigos: Dragos. A Ordem descobriu provas que demonstram que, em vez de eliminar a criatura que o originou, Dragos a ajudou a se esconder. Ele construiu um santuário para essa criatura em uma zona remota das montanhas Boêmias.
- E a Ordem sabe se isso é verdade?
- Encontramos a câmara e vimos a cripta. Infelizmente, já estava vazia quando chegamos lá.
Yakut grunhiu, considerando aquilo que ouviu.
- E quanto a Dragos?
- Está morto, mas seus descendentes estão vivos. Assim como sua traição. Acreditamos que o filho de Dragos foi quem localizou a câmara antes de nós e libertou o Antigo de seu sono. Também suspeitamos que o filho de Dragos seja quem está por trás dos recentes assassinatos dos membros Primeira Geração da Raça.
- E o que ele ganha com isso? - perguntou Yakut, com os braços cruzados sobre o musculoso peito.
- Isso é o que queremos descobrir. Temos algumas unidades de inteligência em busca dele, mas não é o suficiente. Ele desapareceu do nada e vai ser muito difícil reencontrá-lo. Mas conseguiremos. Enquanto isso, não podemos permitir que ele avance com o plano que tem em mente. É por isso que a Ordem está atrás de você e dos outros Primeira Geração. Qualquer coisa que pudesse ter ouvido, qualquer coisa que tenha visto...
- Há uma testemunha - disse Yakut, interrompendo Niko abruptamente. - Uma jovem, um membro de minha equipe de serviço. Ela estava lá e viu o indivíduo que me atacou na semana passada. De fato, ela assustou o bastardo de forma que eu pudesse me livrar e fugir.
A cabeça de Nikolai estava dando voltas com aquelas inesperadas notícias. Ele duvidava muito que uma jovem pudesse assustar um hábil e experiente assassino, mas estava suficientemente interessado em escutar mais sobre aquilo.
- Preciso falar com essa garota.
Yakut assentiu vagamente, os lábios estavam apertados enquanto ele elevava os olhos para o céu escuro que lhe encobria a cabeça.
- Amanhecerá em poucas horas. Vamos para minha casa, você pode esperar que a luz do dia passe. Faça suas perguntas, faça seu trabalho para a Ordem. Então, amanhã à noite, você partirá.
Não, aquilo ainda não era o bastante. Mas era mais do que Niko obtivera poucos minutos antes do zangado vampiro Primeira Geração.
- Está bem - respondeu o guerreiro loiro, enquanto se aproximava de Sergei Yakut e caminhava com ele em direção ao sedan preto que lhes esperava parado no meio-fio.
Capítulo 4
Renata não tinha nem ideia do que o desconhecido loiro podia ter dito para persuadir Sergei Yakut a convidá-lo para ir até o refúgio dele, um local privado que ficava ao norte da cidade. Nos dois anos desde que Renata fora introduzida como membro da guarda pessoal de Yakut, ninguém fora do pequeno círculo de funcionários e guarda-costas vampiros podia entrar no refúgio isolado no bosque.
Suspeito e solitário por natureza, e cruel até o ponto da tirania, o mundo de Sergei Yakut era feito de controle e desconfiança. Que Deus ajudasse aquele que o desafiasse, pois o punho dele, quando enraivecido, tinha o peso de uma bigorna. Sergei Yakut tinha poucos amigos e ainda menos inimigos, nenhum parecia sobreviver à sua gélida sombra.
Renata conhecia muito bem o homem que protegia para saber que ele não era exatamente adepto de companhias não convidadas, mas o fato de que não tivesse assassinado esse intruso - esse guerreiro, como ele havia dito no beco – parecia indicar que o homem ao menos merecia um mínimo grau de respeito. Se não por ser guerreiro, então pelo grupo ao qual pertencia: a Ordem.
Enquanto guiava o Mercedes blindado até a entrada da casa principal, que ficava no final da longa passagem, Renata não resistiu a dar uma olhada pelo espelho retrovisor e ver os dois vampiros que se encontravam sentados, em silêncio, no banco traseiro do veículo.
Olhos azuis-claros encontraram-se com um olhar fixo no espelho. Ele não piscou, sequer quando seu olhar se estendeu além da curiosidade daquele simples desafio. Estava zangado, seu ego sem dúvida ainda estava golpeado pelo fato de que ela o tivesse enganado no beco e o conduzido para uma armadilha. Renata fingiu ignorá-lo quando interrompeu a conexão de olhares e conduziu o carro até a porta da casa.
Um dos machos da Raça que montava guarda na entrada desceu as escadas e abriu a porta traseira do veículo. Atrás dele, a alguns passos, havia outro guarda acompanhado de dois cães presos em coleiras. Os dentes dos animais imediatamente apareceram e eles emitiram fortes latidos e rosnaram como selvagens até o momento em que Sergei Yakut saiu do carro. Os animais eram tão bem treinados quanto os demais vampiros: bastou um olhar do Mestre para que se calassem automaticamente, mantendo-se em silêncio submisso, com suas grandes cabeças abaixadas enquanto Yakut e o guerreiro entravam na casa.
O guarda que estava de pé ao lado do carro fechou a porta traseira e disparou um olhar interrogativo para Renata através do cristal escuro da janela.
Quem diabos é esse? Essa era a pergunta evidente que seu rosto expressava, mas antes que ele pudesse pedir para Renata baixar a janela, a mulher ligou o carro, deixando para trás apenas um rastro de fumaça.
Conforme afastava o veículo do caminho de cascalho e o levava para a garagem, que ficava na parte de trás do terreno, a dor e a tensão que sentira antes recomeçaram a percorrer-lhe o corpo. Ela estava cansada por causa do confronto daquela noite, e seus membros e sua mente estavam igualmente entorpecidos e doloridos. Tudo o que desejava era sua cama e um longo e quente banho de banheira. E não fazia diferença qual dos dois viesse primeiro.
Renata tinha seu próprio quarto na casa, um luxo que Yakut não dava a nenhum dos machos que lhe serviam. Até mesmo Alexei dormia com os outros guardas em quartos comuns, em colchões de palha estendidos no chão, como se fossem uma tropa saída diretamente da Idade Média. O quarto de Renata era ligeiramente melhor que isso: um espaço estreito, porém suficientemente grande para a cama, um criado-mudo e um baú que continha suas poucas roupas. Um banheiro com uma banheira antiga encontrava-se no corredor e era compartilhado com a outra mulher que trabalhava para Sergei Yakut.
As acomodações eram rústicas, no melhor dos casos, como era o resto dos poucos e centenários membros da Raça. Isso para não mencionar os móveis de gosto duvidoso.
Apesar de Yakut ter comentado certa vez que ele e sua família só estavam vivendo ali há uma década, o antigo pavilhão de caça estava cheio do que parecia ser meio século de peles de animais e cabeças empalhadas. Renata presumiu que aquilo tudo pertencera ao proprietário anterior, e Yakut não parecia se importar em compartilhar sua casa com toda aquela tralha doentia. Aliás, parecia que ele desfrutava do caráter primitivo do lugar. Renata sabia que o vampiro siberiano era mais velho do que aparentava ser - muito, muito mais velho, como aqueles de sua Raça geralmente eram. Mas não era preciso ser gênio para imaginá-lo envolto em peles e armaduras de aço e ferro, espalhando sangue em indefesas aldeias das regiões remotas do norte da Rússia. O tempo não tinha suavizado seus talentos, e Renata já testemunhara a natureza letal de Yakut.
O fato de ela ter de servir alguém como ele fazia seu estômago se contorcer com pesar. Mas ela se comprometeu a protegê-lo, jurou-lhe lealdade, tanto em pensamento como na prática, e isso a fazia se sentir como uma estranha em sua própria pele. Sim, ela tinha suas razões para permanecer ali - sobretudo agora –, mais ainda havia muito que desejava poder mudar. Muito pelo que ainda podia lamentar...
Ela afastou esses pensamentos - era muito perigoso dar-lhes forma, mesmo que somente em sua mente. Se Sergei Yakut pudesse sentir a mínima debilidade em sua lealdade para com ele, haveria repercussões rápidas e consequências graves.
Renata entrou no quarto e fechou a porta. Tirou os coldres de suas armas e colocou as pistolas e as adagas cuidadosamente sobre o antigo baú que havia no pé da cama. Tinha dores pelo corpo, seus músculos e ossos estavam gritando por causa do esforço anterior de sua mente. Seu pescoço estava tenso e cheio de nós e ela não pôde evitar a careta de dor quando tentou se massagear.
Deus, ela precisava de um pouco de alívio para essa dor.
Um suave ruído de arranhões ecoou do outro lado da parede. Aquele chiado em seus ouvidos parecia resultado de unhas raspando um quadro negro, e sua cabeça estava tão sensível quanto um sino de cristal.
- Rê? - a voz infantil de Mira era suave, apenas um pequeno sussurro manso chegando através dos espaços da madeira. – Rê... é você?
- Sim, ratinho - respondeu Renata, indo até a cabeceira e apoiando a bochecha contra a madeira lisa da parede. - Sou eu. O que ainda está fazendo acordada?
- Não sei. Não conseguia dormir.
- Mais pesadelos?
- Aham. Continuo... vendo-o. Aquele homem malvado.
Renata suspirou ao ouvir a vacilação contida naquela admissão tímida. Ela pensava no banho quente que estava a apenas poucos minutos de seu alcance; uma solidão bem-vinda de que ela necessitava mais do que tudo em momentos como esse, quando as consequências de sua capacidade psíquica - a mesma coisa que lhe tinha salvado a vida dois anos antes nesse lugar remoto - pareciam decididas a lhe derrubar.
- Rê? – disse novamente a voz tranquila de Mira. – Você está aí?
- Estou aqui.
Ela imaginou o rosto inocente através da parede de madeira e não precisava ver a garota para saber que Mira provavelmente estivera sentada ali na escuridão todo esse tempo, esperando para ouvir quando Renata voltasse e, assim, não se sentir tão sozinha. Aquela garota tinha sofrido bastante nos últimos dias – o que era compreensível, levando em conta o que havia testemunhado.
Ah! Esqueça o maldito banho, pensou Renata severamente. Engolindo a dor que lhe correu a pele quando ficou em pé, aproximou-se e tirou um livro do Harry Potter da gaveta de seu criado-mudo.
- Ei, ratinho? Eu também não estou conseguindo dormir. Que tal eu ir aí visitá-la e ler um pouco para você?
O grito alegre de Mira soou abafado, como se ela tivesse coberto a boca com o travesseiro para não alarmar a casa toda com sua felicidade.
Apesar da dor e do cansaço, Renata sorriu.
- Vou entender isso como um sim.
Sergei Yakut levou Nikolai para uma sala grande e aberta que poderia ter sido uma sala para banquetes quando o antigo pavilhão de caça estava em seu apogeu. Agora não havia registros de mesas ou bancos, apenas algumas poltronas de couro colocadas em frente a uma imponente lareira de pedra no outro extremo da área e uma escrivaninha de madeira maciça.
As peles de ursos, lobos e outros predadores mais exóticos estendiam-se como tapetes no piso de tábuas de madeira. Colocada sobre a pedra da lareira havia a cabeça de um alce com um enorme chifre branco e escuros olhos de cristal fixos em um ponto longínquo na vasta amplidão da sala. Pensando na desejada liberdade?, pensou Niko ironicamente, seguindo Yakut até as poltronas de couro junto à lareira e, depois do convite do Primeira Geração, sentando-se.
Nikolai olhou indolentemente ao seu redor, adivinhando que o lugar tinha pelo menos um século e fora construído, a princípio, para moradores humanos, embora as escassas janelas estivessem atualmente cobertas por venezianas essenciais para bloquear os raios ultravioletas. Não era o tipo de lugar em que se pudesse esperar que um vampiro estabelecesse sua morada. A Raça tendia a preferir lugares mais modernos, em locais mais luxuosos, nos quais viviam com familiares ou comunidades - os chamados Refúgios, muitos deles equipados com alarmes e cercas de segurança.
Em comparação com os domicílios civis da Raça, o acampamento rústico de Yakut, embora suficientemente distante para garantir uma boa privacidade contra os seres humanos curiosos, era tudo, menos... típico. Mas, de qualquer forma, o próprio Sergei Yakut tampouco era... típico.
- Há quanto tempo está em Montreal? - perguntou Nikolai.
- Não muito - Yakut deu de ombros, apoiando os cotovelos nos braços da poltrona em que estava sentado e deixando os ombros caídos. Sua postura poderia parecer relaxada, mas seus olhos não tinham deixado de estudar Niko - de avaliá-lo – desde o momento em que eles se sentaram. – Pareceu-me vantajoso manter-me em movimento e não me acomodar demais em qualquer lugar. Os problemas sempre nos encontram quando ficamos mais tempo que o necessário em um mesmo lugar.
Nikolai considerou o comentário, perguntando-se se Yakut falava de uma experiência pessoal ou se aquilo era uma espécie de advertência ao seu convidado inesperado.
- Conte-me sobre o ataque contra você - ele disse, imperturbável, fosse pelo olhar fixo ou pela evidente suspeita do Primeira Geração. - E terei que falar com essa testemunha também.
- Obviamente - Yakut fez gestos a um de seus guardas da Raça. - Busquem a menina - o macho alto assentiu com a cabeça e logo se voltou para cumprir a ordem.
Yakut inclinou-se para frente.
- O ataque ocorreu aqui nesta sala. Eu estava sentado nesta mesma cadeira, revisando algumas de minhas contas no momento em que o guarda que vigiava a entrada escutou um ruído vindo do lado de fora da casa. Ele foi averiguar e voltou me dizendo que se tratava apenas de guaxinins que se esconderam em um dos abrigos dos fundos - Yakut deu de ombros. - Isso não é incomum, portanto o mandei retirar os animais de lá. Quando vários minutos se passaram e ele não voltou, eu soube que havia problemas. Àquela altura, sem dúvida, o guarda já estava morto.
Nikolai assentiu com a cabeça.
- E o intruso já estava dentro da casa.
- Sim, estava.
- E quanto à menina, a testemunha?
- Ela tinha terminado o jantar e estava descansando aqui comigo. Estava dormindo no chão perto do fogo, mas despertou bem a tempo para ver meu agressor de pé, bem atrás de mim. Eu sequer pude ouvir o bastardo se mover, ele foi tão sigiloso e rápido...
- Ele era da Raça - sugeriu Niko.
Yakut assentiu com a cabeça, concordando.
- Sem dúvida ele era da Raça. Estava vestido como um ladrão, todo de preto, com a cabeça e o rosto cobertos com uma máscara de nylon que deixava apenas os olhos visíveis. Mesmo assim, sem dúvida ele era da Raça. Se eu tivesse que apostar, diria que ele poderia ser até mesmo um Primeira Geração, dada sua força e velocidade. Se não fosse pela menina, que arregalou os olhos e gritou, advertindo-me, ele teria arrancado a minha cabeça em um instante. Ele segurava um arame enrolado e estava atrás da minha poltrona. O grito de Mira chamou sua atenção no momento crucial e eu fui capaz de levantar a mão e bloquear o arame antes que ele cortasse minha garganta. Virei-me, mas antes que eu pudesse pular sobre ele ou chamar os guardas, ele escapou.
- Simples assim? Ele deu meia-volta e fugiu? - perguntou Nikolai.
- Simples assim - respondeu Yakut, com um lento sorriso zombador no canto da boca. – O covarde lançou um olhar para Mira e, em seguida, fugiu.
Niko praguejou em voz baixa.
- Você tem muita sorte - disse, achando difícil entender como o simples olhar de uma garota pudesse causar tal distração em um assassino altamente adestrado. Simplesmente não fazia sentido.
Antes que ele pudesse ressaltar esse ponto a Yakut, eles escutaram o ruído de passos aproximando-se do outro lado da sala. Caminhando na frente do guarda que Yakut tinha enviado estava Renata e uma delicada menina desamparada. Renata havia deixado suas armas em algum lugar, mas andava junto à menina de forma protetora, com o olhar fixo, frio e cauteloso enquanto levava Mira sala adentro.
Nikolai não pôde deixar de contemplar o estranho traje da menina. O pijama cor-de-rosa e as pantufas de coelhinho eram inesperados, mas foi o véu negro e curto que cobria a parte superior de seu rosto o que lhe pareceu mais destoante.
- Renata estava lendo uma história para mim - disse Mira com uma voz suave e um tom de inocência que parecia completamente divergente no domínio seco de Yakut.
- E a história é boa? - o Primeira Geração perguntou, uma pergunta lenta que parecia dirigida mais à Renata do que à menina. - Aproxime-se, Mira. Há alguém que quer conhecer você.
O guarda deu um passo para trás uma vez que Mira estava diante de Yakut, mas as botas de Renata mantiveram-se ao lado da garota. À primeira vista, Niko perguntou-se se a garota seria cega, mas ela se movia sem titubear em direção ao lugar onde Yakut e ele estavam.
A pequena cabeça se voltou para Nikolai sem engano. Ela definitivamente o estava vendo.
- Olá - disse ela, inclinando educadamente a cabeça.
- Olá - respondeu Nikolai. - Ouvi o que ocorreu na outra noite. Você deve ser muito valente.
Ela deu de ombros, mas era impossível ler sua expressão quando apenas uma pequena parte de seu nariz e de sua boca era visível debaixo da dobra do véu. Nikolai observou a jovem garota - uma menina de um metro de altura que, de alguma maneira, tinha assustado um vampiro da Raça em meio a uma missão para matar um dos membros mais formidáveis da Raça. Devia ser brincadeira. Será que Yakut estava gozando dele de algum jeito? O que essa menina poderia ter feito para impedir o ataque?
Nikolai olhou para Yakut, preparado para enfrentá-lo pelo que tinha de ser uma pura estupidez. De jeito nenhum aquele ataque podia ter acontecido da forma como havia sido descrito.
- Tire o véu - instruiu Yakut, como se lesse os pensamentos de Niko.
As mãos da garota alcançaram a pequena tira negra de gaze e ela afastou o véu, cuidando em manter os olhos abaixados. Renata estava quieta ao lado da menina, sua expressão plácida mesmo enquanto os dedos apertavam-se ao lado do corpo. Ela parecia estar prendendo a respiração, esperando com um ar de antecipação cautelosa.
- Levante os olhos, Mira - ordenou Yakut à menina com a boca curvada em um sorriso. – Olhe nosso convidado e lhe mostre o que ele deseja saber.
Aos poucos, a franja de pestanas castanhas se elevou. A menina levantou o queixo e inclinou a cabeça para cima, encontrando o olhar fixo de Niko.
- Jesus Cristo! - ele disse entre dentes, quase consciente de que falava em voz alta, quando vislumbrou os olhos de Mira.
Eles eram extraordinários. As íris eram tão brancas que pareciam líquidos e indecifráveis, como uma piscina de água pura. Ou melhor, como um espelho, ele se corrigiu, olhando mais profundo neles já que não podia evitar, aproximando-se, mais e mais atraído pela alarmante e insólita beleza do olhar fixo da garota.
Ele não sabia quanto tempo ficou olhando fixamente - não podia ter sido mais do que alguns segundos, mas agora as pupilas dela estavam ficando menores, encolhendo-se debaixo dos pequenos furos negros dentro do círculo infinito de cor prateada e brilhante, ondeando como se uma brisa tivesse tocado a superfície tranquila.
Incrível. Ele nunca tinha visto algo igual. Olhou atentamente, mais e mais profundamente, incapaz de resistir ao jogo estranho da luz naqueles olhos.
Quando eles se limparam, Nikolai viu-se refletido ali. Viu a si e a alguém mais... uma mulher. Eles estavam nus, seus corpos pressionados juntos, banhados em suor. Ele a estava beijando calorosamente, enterrando suas mãos nos fios sedosos de seus cabelos escuros. Empurrando-a debaixo dele enquanto afundava-se em seu interior. Viu-se expondo suas presas, baixando a cabeça e colocando a boca na curva sensível e sensual do pescoço feminino, saboreando a doçura do sangue quente enquanto perfurava a pele macia debaixo da qual a veia pulsante que bebia latejava eroticamente.
- Santo Deus - ele saiu do transe, arrancando seu olhar da alarmante aparição real. A voz dele estava áspera, a língua grossa atrás da repentina aparição das presas. Seu coração estava acelerado e, mais abaixo, seu pênis estava duro como uma pedra. – O que aconteceu?
Todos olhavam para ele. Todos, menos Renata, que parecia mais interessada em ajudar Mira a recolocar o véu. Ela sussurrou algo no ouvido da menina; o tom suave com que falava dava a impressão de que dizia palavras de consolo. O riso baixo de Sergei Yakut foi retumbado pelas alegres risadas de satisfação dos outros homens.
- O que ela fez comigo? - perguntou Niko, sem achar graça alguma. - Que diabos foi isso?
Yakut recostou-se na poltrona e sorriu abertamente como um czar que faz uma brincadeira pública com um de seus opositores.
- Diga-me o que viu.
- A mim - disse Nikolai, ainda tratando de encontrar algum sentido naquilo. A visão era tão real, como se tudo aquilo realmente estivesse acontecendo naquele momento, não como uma miragem. Deus sabia que seu corpo estava convencido de que tudo era real.
- O que mais você viu? - perguntou Yakut alegremente.–Diga-me, por favor.
Inferno. Niko silenciosamente negou com a cabeça. Ele estaria condenado se fosse comentar a experiência completamente luxuriosa a cada um dos que estavam na sala.
- Vi a mim... minha imagem refletida nos olhos da menina.
- O que você viu foi um vislumbre do seu futuro - informou-lhe Yakut. Ele fez uns gestos para que a garota viesse para seu lado, então, passou o braço ao redor dos ombros magros dela, puxando-a para perto de si, como se ela fosse um bem muito valioso. - Um olhar nos olhos de Mira e você tem uma visão dos acontecimentos que estão destinados a vir em sua vida.
Não demorou e nem precisou muito esforço para Niko evocar a imagem de novo em sua cabeça. Ah, diabos, não, não, mesmo. Aquela imagem era boa o suficiente para ficar permanentemente gravada em sua memória e em todos os seus sentidos. Nikolai tratou de se conter. Forçou-se a recuperar o controle.
- O que Mira mostrou ao seu agressor na semana passada? - ele perguntou, desesperado para tirar a atenção de si.
Yakut deu de ombros.
- Só ele pode saber. A menina não tem nenhum conhecimento do que seus olhos refletem.
Graças a Deus por isso. Niko odiava pensar na educação que ela poderia ter obtido se conseguisse ver o que ele viu.
- Seja o que for o que o maldito tenha visto - adicionou Yakut - foi suficiente para fazê-lo vacilar e me dar uma oportunidade para escapar da morte - o Primeira Geração sorriu com satisfação. - O futuro pode ser alarmante, especialmente quando não o espera, não é?
- Sim - murmurou Nikolai. - Suponho que sim.
Ele acabava de conseguir uma boa dose daquele conhecimento de primeira mão. Sobretudo porque a mulher que ele tinha visto envolta em seus braços, nua e contorcendo-se de prazer debaixo de seu corpo não era outra senão a fria e bela Renata.
Capítulo 5
Durante as horas seguintes, aquelas imagens carnais tão reais perseguiram Nikolai enquanto ele vagava pelas áreas arborizadas do local à procura de quaisquer evidências que pudessem ter restado do ataque frustrado a Sergei Yakut. O guerreiro verificou o perímetro da casa principal, mas não encontrou nada, sequer uma única pegada no chão enlameado.
Se o intruso tivesse deixado alguma pista, ela já havia desaparecido. De qualquer forma, não era difícil supor como o agressor conseguira se aproximar de seu alvo. Naquele lugar embrenhado na floresta, sem cercas de segurança, câmeras ou detectores de movimento para alertar sobre a presença de intrusos na propriedade, o agressor de Yakut poderia ter se escondido no bosque a maior parte da noite e esperado a melhor oportunidade para atacar. Ou poderia ter escolhido um local mais óbvio, pensou Nikolai, enquanto observava um pequeno celeiro que ficava a poucos metros da parte de trás da construção principal.
O guerreiro dirigiu-se para o local, imaginando que a fachada talvez fosse uma adição recente à propriedade. A madeira era escura, não por causa da ação natural do tempo, como o resto do lugar, mas em virtude de uma tintura que a fazia misturar-se aos arredores. Não havia janelas em lado algum e a ampla porta de painéis da frente estava reforçada com um Z que perfilava uma grande fechadura de aço.
Misturado ao fétido odor de óleo da madeira envernizada, Nikolai podia jurar ter sentido um vago cheiro acobreado.
Sangue humano?
Ele inspirou novamente, filtrando o odor através de seus dentes, fazendo-o dançar sobre as sensíveis glândulas da língua. Era definitivamente sangue, e, com certeza, humano. Não era grande a quantidade derramada do outro lado da porta, e, pelo débil comichão em suas narinas, Niko julgou que o líquido estava seco e envelhecido havia vários meses. Mas ele não podia ter certeza a menos que desse uma olhada dentro do lugar.
Tomado pela curiosidade, ele colocou a mão na grande fechadura e estava a ponto de girá-la quando o rangido de uma folha logo atrás dele chamou-lhe a atenção. Enquanto se virava para verificar o ruído, estendeu a mão para alcançar uma de suas pistolas - e amaldiçoou ao se lembrar de que todas as armas dele ainda estavam com Yakut.
Levantou o olhar e encontrou Alexei de pé, olhando-o no canto do celeiro. A julgar pelo desprezo brilhante nos olhos do outro homem, parecia que seu orgulho ferido ainda não tinha se recuperado do confronto na cidade. Não que Niko se preocupasse com isso. Ele tinha pouca paciência para civis idiotas se exibindo, especialmente aqueles com egos delicados.
- Você tem a chave? – perguntou Niko com a mão ainda curvada ao redor do aço reforçado. Se quisesse, como guerreiro da Raça, ele poderia arrebentar aquilo com um simples golpe. Melhor ainda, poderia abrir a fechadura com uma ordem mental. Mas, naquele momento, era mais interessante chatear Alexei:
- Importa-se em abrir a porta, ou será que precisa pedir permissão ao seu pai primeiro?
Alexei grunhiu, mantendo os braços cruzados sobre o peito musculoso.
- Por que deveria abri-la para você? Não há nada de interessante aí dentro. É somente um celeiro. Vazio, aliás.
- É mesmo? - Niko soltou a fechadura e o metal golpeou pesadamente contra os painéis de madeira. – O cheiro é como se vocês estivessem armazenando humanos aí dentro. Ensanguentados. Senti o fedor da hemoglobina cada vez mais forte conforme me aproximava - um exagero, mas ele queria ver a reação de Alexei.
O jovem vampiro franziu a testa e lançou um olhar cauteloso para a porta trancada. Lentamente, agitou sua cabeça.
- Você não sabe o que está falando. Os únicos humanos que puseram o pé neste celeiro foram os carpinteiros que o construíram há alguns anos.
- Então você não vai se importar se eu der uma olhada - observou Nikolai.
Alexei riu sarcasticamente.
- O que você realmente está fazendo aqui, guerreiro?
- Procurando descobrir quem tentou matar seu pai. Quero saber como o intruso pôde ter se aproximado o suficiente para atacar e por onde poderia ter fugido depois.
- Desculpe minha surpresa - disse Alexei, sem remorso em seu tom. - Mas acho difícil acreditar que um ataque frustrado, mesmo que a um ancião da Raça, como meu pai, seja motivo suficiente para mandar um membro da Ordem a uma visita pessoal.
- Seu pai teve sorte. Outros cinco Primeira Geração não podem dizer o mesmo.
O olhar de presunção de Alexei se apagou, sendo substituído por uma sombria gravidade.
- Houve outros ataques? Outros assassinatos?
Nikolai assentiu, sério.
- Dois na Europa e os outros nos Estados Unidos. Muitos para ser coincidência. E muito exímios para não serem trabalho de um profissional. E isso não parece ser um esforço particular. Durante as últimas semanas, depois que soubemos dos primeiros assassinatos, a Ordem vem contatando todos os Primeira Geração conhecidos para lhes avisar do ocorrido. Eles precisam entender o potencial perigo para poder tomar as medidas de segurança apropriadas. Seu pai não lhe disse isso?
A testa franzida de Alexei sulcou sua sobrancelha escura e masculina.
- Ele não falou a respeito disso. Maldição! Eu o teria protegido pessoalmente.
De acordo com o que o jovem vampiro estava dizendo, Sergei Yakut não havia informado ao filho do recente contato de Niko ou mesmo da atual caça aos Primeira Geração. Não importava quanto Alexei tentasse colocar-se ao lado do pai, Yakut evidentemente o mantinha a distância quando o assunto era confiança. O que de forma alguma era surpreendente, dada a natureza de Yakut. Evidentemente, essa desconfiança também se estendia à própria família de sangue.
Alexei amaldiçoou.
- Ele deveria ter me contado. Eu teria me assegurado de que ele tivesse proteção apropriada o tempo todo. Mas o bastardo que o atacou ainda está livre. Como podemos estar seguros de que não voltará a tentar novamente?
- Não podemos. De fato, será melhor continuar com a hipótese de que haverá outro ataque. Minha aposta é que será mais cedo do que imaginamos.
- Você precisa me manter informado - disse Alexei em um tom que voltava a ser irritante. - Espero ser alertado imediatamente de tudo o que descobrir. E de tudo o que você ou a Ordem souberem sobre esses ataques. Tudo. Entendeu?
Nikolai deixou que um sorriso irônico se desenhasse lentamente sobre seu rosto.
- Tentarei me lembrar.
- Como você vê, meu pai acredita que é intocável. Ele tem os guardas treinados por ele, e leais a ele. E tem os conselhos de um oráculo pessoal também.
Niko assentiu, concordando.
- A menina, Mira.
- Você a viu? - o olhar de Alexei se estreitou, e Niko não sabia se aquilo era sinal de desconfiança ou de pura e simples curiosidade. – Então ele deixou que você conhecesse a garota – continuou o filho de Yakut, - deixou que você olhasse nos olhos mágicos dela?
- Sim.
A mandíbula de Niko permaneceu firme, mas Alexei, todavia, sorriu. Sua voz carregava sarcasmo.
- Agradável a visão que ela lhe deu de seu destino, não, guerreiro?
Uma repetição instantânea da visão calorosa moveu-se na mente de Niko como uma chama que lhe queimava o interior.
- Já vi coisas piores.
Alexei riu.
- Bem, não me preocuparia se fosse você. O talento da pequena monstrinha está longe de ser perfeito. Ela não pode mostrar todo o seu futuro, apenas imagens breves do que pode vir, baseando-se no agora. E ela não pode ajudá-lo a contextualizar o que você vê. Pessoalmente, não acho aquela pirralha tão divertida como meu pai parece achar - ele grunhiu, erguendo o ombro e o canto da boca. - O mesmo poderia ser dito da outra mulher que ele insiste em manter protegida, apesar das minhas dúvidas.
A única dúvida que não havia era sobre quem o filho de Yakut falava.
- Não é fã de Renata, é isso?
- Fã dela? - murmurou Alexei, cruzando os braços sobre o enorme peito. - Ela é uma arrogante. Acha que está acima de todos os outros porque conseguiu impressionar meu pai uma ou duas vezes com sua destreza mental. Desde a noite em que ela chegou aqui, ela tem sido muito boa para seu próprio bem. Não tem um homem que trabalha para meu pai que não gostaria de colocar aquela vadia presunçosa em seu lugar, entende? Talvez você sinta o mesmo, depois do que ela lhe fez esta noite na cidade.
Nikolai deu de ombros. Ele estaria mentindo se dissesse quão irritante foi ter sido golpeado pelo ataque mental de uma mulher. Obviamente, ela era uma Companheira, já que a natureza dificilmente esbanjava poderes extrassensoriais em simples Homo sapiens.
- Nunca vi alguém como ela - admitiu a Alexei. - Nunca ouvi sobre uma Companheira de Raça com esse nível de habilidade. Posso compreender por que seu pai dormiria melhor sabendo que ela está por perto.
Alexei franziu o cenho.
- Não fique muito impressionado com ela, guerreiro. A habilidade de Renata tem seus méritos, concordo. Mas ela é muito fraca para controlá-la.
- Como assim?
- Ela pode enviar uma onda mental, mas esse poder volta para ela, como um eco. Uma vez que a reverberação a golpeia, ela fica completamente inútil até que os efeitos passem.
Nikolai recordou a rajada de energia mental que Renata lhe enviara dentro do armazém. Ele era um guerreiro da Raça - seus genes alienígenas facilmente davam-lhe a força e a resistência de dez homens humanos – e, mesmo assim, ele tinha sido incapaz de enfrentar a dor daquele incrível golpe. E Renata sentia aquela mesma angústia cada vez que usava sua habilidade?
- Jesus Cristo - disse Niko. - Deve ser uma tortura para ela.
- Sim - concordou Alexei, sem se preocupar em dissimular seu tom sarcástico. – Tenho certeza que sim.
Nikolai não deixou de notar o sorriso no jovem rosto do vampiro.
- Você gosta de vê-la sofrer?
Alexei grunhiu.
- Não poderia me preocupar menos. Renata é inadequada para a posição em que meu pai a colocou. Ela é ineficaz como guarda-costas; um risco que, temo, possa matá-lo um dia. Se eu estivesse em seu lugar, não hesitaria em chutar aquele traseiro arrogante.
- Mas você não está no lugar de seu pai - Niko lembrou, talvez pelo simples fato de Alexei parecer muito entusiasmado em seu devaneio.
O vampiro olhou o guerreiro em silêncio durante um longo e incômodo momento. Depois, limpou a garganta e cuspiu no chão.
- Termine sua investigação, guerreiro. Se encontrar algo interessante, quero ser imediatamente informado.
Nikolai simplesmente olhou o filho de Yakut, sem palavras diante da ordem do civil. Alexei não o pressionou, apenas virou-se lentamente e partiu em direção à casa.