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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


Midnight Breed
Midnight Breed

                                                                                                                                               

  

 

 

 

 

 

 

Capítulo 6

Em silêncio, Renata abriu a porta do quarto de Mira e espreitou a garotinha adormecida que descansava sobre a cama. Aquela era uma criança normal em seu pijama cor-de-rosa, com a bochecha macia apoiada contra o travesseiro fino, respirando calmamente pela delicada boca de querubim. Sobre a mesinha rústica próxima à cama estava o curto véu negro que cobria os notáveis olhos de Mira durante todos os momentos em que ela estava acordada.

- Bons sonhos, meu anjo - sussurrou Renata em voz baixa, de forma terna e esperançosa.

Nos últimos tempos, ela se preocupava cada vez mais com Mira. Não apenas por conta dos pesadelos que começaram depois do ataque que presenciara, mas pela saúde geral da garota. Embora Mira fosse forte e tivesse uma mente rápida e aguda, ela não estava completamente bem. Ela estava perdendo a visão rapidamente.

Cada vez que Mira era obrigada a exercitar o dom da premonição, um pouco de sua própria visão se deteriorava. E isso já estava acontecendo há meses quando Mira finalmente confidenciou a Renata seu estado. Ela tinha medo, como qualquer criança teria. Talvez até mais, já que Mira era mais sábia do que seus oito anos de idade indicavam. Ela compreendia que o interesse de Sergei Yakut por ela se evaporaria no momento em que ele a considerasse sem nenhuma utilidade. Ele a expulsaria, talvez até a mataria, se assim o desejasse.

Portanto, desde aquela noite, Renata e Mira mantinham um pacto: a condição de Mira seria um segredo entre elas e seria levado para o túmulo, se fosse necessário. Renata cumpria a promessa, jurando a Mira que a protegeria com sua própria vida. Jurou que nenhum dano aconteceria à garota, fosse ele causado por Yakut ou por qualquer outra pessoa, da Raça ou humano. Mira estaria a salvo da dor e da escuridão da vida de uma maneira que a própria Renata jamais esteve.

O fato de a garota ter sido usada naquela noite para entreter o hóspede não convidado de Sergei Yakut apenas aumentou a irritação de Renata. O pior de sua inquietação mental havia passado, mas uma dor de cabeça ainda persistia. O estômago não tinha parado de revirar, e pequenas ondas de náuseas retrocediam pouco a pouco.

Renata fechou a porta do quarto de Mira, estremecendo com outro pequeno tremor que lhe agitou o corpo. O longo banho que acabara de tomar tinha ajudado a aliviar um pouco o desconforto, mas até debaixo de suas calças folgadas de cor grafite e de seu pulôver macio de algodão branco, a pele continuava reclamando das correntes elétricas que lhe acometiam. Ela esfregou as palmas das mãos sobre as mangas da camisa, tentando dissipar a sensação ainda acesa que viajava por seus braços. Muito agitada para dormir, ficou no quarto apenas o tempo necessário para pegar algumas adagas no baú de armas. O treinamento sempre se mostrara bem-vindo nesses períodos de inquietação. Ela apreciava as horas do castigo físico que se infligia, feliz pelo treinamento rigoroso que a exauria.

Desde a terrível noite em que se encontrou imersa no perigoso mundo de Sergei Yakut, Renata havia aperfeiçoado ao máximo cada músculo de seu corpo, trabalhando metodicamente para se assegurar de que ela era tão letal quanto as armas que levava na caixinha de seda e veludo que agora carregava nas mãos.

Sobreviver.

Esse simples pensamento tinha sido seu farol desde que era apenas uma garota, mais jovem até do que Mira. E, mais que tudo, sozinha. Órfã abandonada na capela de um convento de Montreal, Renata não tinha nenhum passado, nenhuma família, nenhum futuro. Ela somente existia, e isso era tudo.

Para Renata, isso tinha sido o suficiente. Era o suficiente inclusive agora. Sobretudo agora que ela navegava pelo traiçoeiro mundo subterrâneo do reino de Sergei Yakut. Havia inimigos por todos os lados naquele lugar, tanto escondidos quanto visíveis. Inúmeros caminhos à espera de um passo em falso, de um equívoco; infinitas ocasiões para ela odiar o vampiro desumano que tinha a vida dela nas mãos. Mas ela não desistiria sem lutar.

Seu mantra dos dias de infância servia bem nesse momento: sobreviver um dia, e depois outro e outro.

Não havia espaço para brandura nessa equação. Piedade, vergonha ou amor não eram permitidos. Principalmente amor, de espécie alguma. Renata sabia que seu afeto por Mira - o impulso vital que lhe dava forças para fazer o caminho da menina mais suave e protegê-la como alguém de sua própria família - provavelmente lhe custaria muito caro no final.

Sergei Yakut tinha perdido pouco tempo explorando essa sua debilidade e Renata tinha as cicatrizes para comprovar.

Mas ela era forte. Não tinha encontrado coisa alguma nesta vida que não pudesse suportar, que não pudesse enfrentar - fisicamente ou de qualquer outra maneira. E tinha sobrevivido a tudo. Inteligente, forte... e letal quando tinha de ser.

Renata saiu do albergue e caminhou a passos largos pela escuridão rumo a um dos edifícios anexos que ficavam na parte de trás do local. O caçador que originalmente construíra a propriedade no bosque evidentemente adorava seus cães. Um velho canil de madeira fora erguido atrás da residência principal, disposto como um estábulo, com um amplo espaço dividido em dois e quatro baias de acesso alinhadas de ambos os lados. O teto de vigas devia ter uns quatro metros e meio de altura.

Embora pequeno, era um espaço aberto e bem ventilado. Na propriedade havia um celeiro maior e mais novo, que permitia movimentos mais fluidos, mas Renata geralmente o evitava.

Uma vez naquele lugar escuro e insalubre já tinha sido o suficiente. Se pudesse, ela já teria colocado fogo naquele maldito lugar.

Renata acendeu o interruptor ao lado da porta do canil e seu corpo se contraiu quando a lâmpada no teto derramou uma luz amarela e áspera no espaço. Entrou e caminhou pelo chão macio de terra batida. Passou por duas correias de couro largas e trançadas que se dependuravam na viga central da estrutura.

No extremo mais afastado do canil havia um poste alto de madeira que antes fora equipado com pequenos ganchos de ferro e laços para o armazenamento de correias e demais objetos. Renata havia se livrado dos arranjos alguns meses atrás e agora o poste funcionava como um alvo, cuja madeira escura já estava marcada de cortes profundos.

Renata colocou as lâminas sobre um fardo de palha que estava por perto e se agachou. Tirou os sapatos e caminhou descalça até o centro do canil. Alcançou o par de compridas correias de couro que havia ali e agarrou cada uma em uma mão. Enrolou o couro nos pulsos e, quando sentiu que estava cômodo, estendeu-se, flexionando os braços e levantando-se do chão de maneira tão leve que parecia ter asas.

Suspensa e livre da gravidade, Renata começou seu aquecimento. O couro rangia brandamente enquanto ela dava voltas e girava o corpo a vários metros do chão. Para ela, aquilo era a verdadeira paz, a sensação de seus membros ardendo, ganhando força e agilidade a cada movimento.

Renata deixou a mente se perder em uma meditação ligeira, mantendo os olhos fechados e todos os sentidos voltados para dentro de si, concentrados no ritmo cardíaco e na respiração, no movimento dos músculos enquanto ela se alongava. Assim foi até que girasse sobre o eixo e ficasse de cabeça para baixo, com os tornozelos agora presos às correias. Nesse momento, sentiu uma leve agitação no ar ao seu redor. Foi repentino e sutil, porém inconfundível. Tão inconfundível quanto o calor de uma respiração que agora lhe esquentava a bochecha.

Abriu os olhos de repente, lutando para compreender o espaço ao seu redor – todo invertido – e o intruso que estava de pé, abaixo dela. Era o guerreiro da Raça, Nikolai.

- Caramba! - ela disse, com sua falta de atenção fazendo-lhe oscilar um pouco no controle das correias. - Que diabos você acha que está fazendo?

- Relaxe - disse Nikolai. - Não estava querendo assustá-la – falou enquanto levantava as mãos para estabilizá-la.

- E não assustou – Renata respondeu com palavras pronunciadas com frieza. Com uma sutil flexão do corpo, afastou-se. – Importa-se? Você está atrapalhando meu treinamento.

- Ah! - as sobrancelhas loiras do macho da Raça arquearam enquanto seu olhar seguia a linha do corpo de Renata. - O que é exatamente esse treino? Está de olho em alguma vaga no Cirque du Soleil?

Ela não lhe deu o prazer de uma resposta. Não que ele esperasse uma. Nikolai virou-se e dirigiu-se para o poste que havia no outro extremo do canil. Estendeu a mão, percorrendo com os dedos as profundas marcas que havia na madeira. Então, encontrou as adagas e levantou o tecido que as protegia. O metal tilintou ao chocar-se brandamente dentro do quadrado dobrado de seda atado com a cinta de veludo.

- Não toque nisso - disse Renata, libertando-se das correias e voltando a colocar os pés no chão. - Eu disse para não tocar nisso. São minhas.

Niko não resistiu quando ela lhe tirou das mãos seus preciosos pertences; as únicas coisas de valor que ela podia reclamar como suas. O aumento em suas emoções o fez virar levemente a cabeça, certamente os efeitos secundários da força mental que ela esperava terem passado ainda persistiam. Ela deu um passo para trás e teve de se esforçar para manter a respiração estável.

- Você está bem?

Ela não gostou do olhar de preocupação refletido nos olhos azuis dele, pois era como se ele pudesse sentir sua debilidade, como se soubesse que ela não era tão forte quanto queria ser, quanto precisava aparentar.

- Estou bem.

Renata colocou as adagas em uma das baias do canil e as desembrulhou. Uma por uma, ela cuidadosamente colocou as quatro adagas esculpidas à mão sobre a madeira. Forçando um tom ligeiramente convencido, disse: - Eu é quem deveria fazer essa pergunta, não? Deixei você bem duro lá na cidade.

Ela escutou o grunhido baixo em algum lugar atrás de si, quase como um escárnio.

- Nunca se pode ser demasiado cauteloso quando se trata de estrangeiros - continuou ela. - Sobretudo agora. Estou segura de que você me entende.

Quando ela finalmente o percorreu com um olhar, encontrou-o olhando-a fixamente.

- Querida, a única razão pela qual você teve a possibilidade de me derrubar foi porque jogou sujo. Certificou-se de que eu a notasse no clube, fingindo ter alguma coisa escondida, sabendo que eu a seguiria diretamente para sua armadilhazinha.

Renata levantou os ombros, sem arrependimento.

- No amor e na guerra vale tudo.

Ele sorriu suavemente, formando um par de covinhas em seu rosto quadrado e masculino. – E isso é guerra, não é? – ele perguntou.

- Certamente não é amor – disse ela.

- Não - ele retrucou, tornando-se sério. - Nunca.

Bem, ao menos eles concordavam em alguma coisa.

- Há quanto tempo trabalha para Yakut?

Renata balançou a cabeça como se fosse incapaz de se recordar dessa informação, embora a noite em questão estivesse gravada em sua mente como se as memórias fossem ferro em brasa. Sangue. Horror. O começo de um fim.

- Não sei - disse ela. - Alguns anos, suponho. Por quê?

- Eu estava me perguntando como uma mulher, mesmo sendo uma Companheira de Raça com sua poderosa habilidade psíquica, foi parar nesse trabalho, especialmente para um Primeira Geração como ele. É estranho, é isso. Diabos, nunca ouvi falar de coisa semelhante. Então, diga-me: qual é sua ligação com Sergei Yakut?

Renata olhou fixamente o guerreiro: um forasteiro perigoso e ardiloso que, de repente, estava se intrometendo em seu mundo. Ela não estava segura de como responder. Certamente não estava disposta a lhe contar a verdade.

- Se você tem perguntas, talvez devesse fazê-las a ele.

- Sim - disse Niko, estudando-a mais estreitamente agora. - Talvez pergunte. E quanto à garota, Mira? Ela está aqui há tanto tempo quanto você?

- Não há tanto tempo. Apenas seis meses. - Renata tentou mostrar-se indiferente, mas um feroz instinto de proteção nasceu dentro de seu corpo diante da simples menção do nome de Mira nos lábios daquele guerreiro da Raça. - Ela passou por tanta coisa em tão pouco tempo. Coisas que nenhuma criança deveria testemunhar.

- Como o ataque a Yakut na semana passada?

E outras, mais sombrias ainda, Renata reconheceu interiormente.

- Mira tem pesadelos quase todas as noites. Ela praticamente não dorme já faz algum tempo.

Ele assentiu com a cabeça em um sóbrio reconhecimento.

- Este não é um bom lugar para uma garotinha. Alguns diriam que tampouco é lugar para uma mulher.

- É isso o que você diria, guerreiro?

O sorriso de Niko não confirmou nem negou a pergunta.

Renata o observou enquanto em sua mente surgiam perguntas e mais perguntas. Uma em particular.

- O que viu nos olhos de Mira esta noite?

Ele grunhiu algo ininteligível.

- Acredite, você não vai querer saber.

- Estou perguntando, não? O que ela lhe mostrou?

- Esqueça – enquanto ela o olhava, ele passou a mão pelos fios dourados de seu cabelo e exalou uma maldição, desviando o olhar em seguida. - De qualquer forma, isso não é possível. A garota definitivamente errou.

- Mira jamais erra. Ela nunca errou, pelo menos em todo o tempo em que a conheço.

- Mesmo? - o penetrante olhar azul do guerreiro voltou-se fixamente para Renata, percorrendo-lhe calorosamente o corpo em uma atitude lenta e avaliadora. - Alexei me disse que sua habilidade é imperfeita.

- Lex - Renata riu. – Faça-me um favor e não acredite em nada do que ele diz. Ele não diz e não faz nada sem um motivo oculto.

- Obrigado pelo conselho – disse, recostando-se contra o poste marcado pelas adagas. - Então, se é assim, não é verdade que, como ele disse, os olhos de Mira só refletem os acontecimentos que poderiam ocorrer no futuro, com base no agora?

- Lex pode ter suas próprias razões pessoais para desejar que não seja assim, mas Mira nunca erra. Tudo o que ela mostrou esta noite está destinado a acontecer.

- Destinado - disse ele, parecendo divertir-se com aquilo. - Bem, caramba... então acredito que estamos condenados.

Ele a olhou fixamente quando pronunciava essas palavras, desafiando-a a perguntar se ele deliberadamente a tinha incluído em sua observação. Dado que ele achara a ideia bastante divertida, ela não estava disposta a lhe dar a satisfação de perguntar o motivo. Renata agarrou uma de suas adagas e provou o peso do objeto com a palma aberta. Ela gostava de sentir o frio do aço contra a pele, algo sólido e familiar. Seus dedos estavam loucos para trabalhar. Seus músculos agora estavam aquecidos, preparados para mais uma ou duas horas de treino duro. Ela girou a lâmina e fez um sinal para o poste em que Nikolai estava apoiado.

- Importa-se? Não quero calcular mal e acidentalmente acertá-lo.

Ele percorreu o poste com o olhar e deu de ombros.

- Não seria mais interessante um treinamento de combate com um oponente real, que pudesse devolver o golpe? Ou será que você prefere alvos imobilizados?

Ela sabia que Niko estava jogando uma isca, mas o brilho de seus olhos era brincalhão. Ele realmente a estava paquerando? A natureza prática dele fez os pelos da nuca de Renata arrepiarem-se com cautela. Ela passou o polegar pela lâmina da adaga enquanto o olhava, insegura do que fazer.

- Prefiro trabalhar sozinha.

- Muito bem - ele disse inclinando a cabeça e afastando-se um pouco, quase que a desafiando com o olhar. – Como quiser.

Renata franziu a testa.

- Se você não se afastar, como pode estar seguro de que não vou acertá-lo?

Ele sorriu abertamente, completamente cheio de arrogância, com os musculosos braços cruzados sobre o peito.

- Mire onde quiser. Você nunca me acertaria.

Ela atirou a lâmina sem a mínima advertência.

O aço afiado cravou na madeira, causando uma fenda profunda, golpeando no lugar exato onde ela havia planejado. Mas Nikolai tinha desaparecido. Simples assim, sumido por completo.

Inferno.

Ele era da Raça, muito mais rápido do que qualquer ser humano, e tão ágil quanto um predador selvagem. Ela não era rival para ele, com armas ou com força física. E ela sabia disso mesmo antes de atirar a adaga. Entretanto, esperava, pelo menos, diminuir a arrogância e a presunção daquele filho da mãe.

Com os próprios reflexos afiados, Renata esticou o braço e alcançou outra adaga. Todavia, quando seus dedos se fecharam ao redor do punho lavrado, ela sentiu o ar mover-se atrás de si e percebeu o calor atravessar os fios de cabelo que estavam sobre o queixo.

O metal afiado subiu até sua mandíbula. Uma dura parede de músculos apertava-lhe a coluna vertebral.

- Não me acertou! Sentiu minha falta?

Ela engoliu cuidadosamente, pressionada pela lâmina que estava sob seu queixo. Tão brandamente quanto pode, relaxou os braços para os lados. Então, abaixou a mão que segurava a adaga, descansando-a entre as coxas separadas.

- Parece que encontrei você.

Como pôde, Renata o golpeou com uma pequena sacudida do poder de sua mente.

- Inferno - grunhiu Niko. E no instante em que relaxou o controle que tinha de Renata, a mulher saiu de seu alcance e virou-se para enfrentá-lo. Ela esperava a cólera dele, temia-a em certo sentido, mas ele apenas levantou a cabeça e deu de ombros. - Não se preocupe, querida. Só vou ter que brincar com você até que seja derrubada pelas reverberações de sua força psíquica.

Enquanto ela o contemplava, confusa e aflita, pensando como ele podia saber sobre a imperfeição de sua habilidade, ele disse:

- Lex me pôs a par de algumas coisas sobre você também. Ele me contou o que acontece cada vez que você dispara um desses mísseis psíquicos. Componente muito poderoso. Mas eu em seu lugar não o gastaria só porque sente necessidade de demonstrar força.

- Que o Lex vá pro inferno - murmurou Renata. - E que você vá pro inferno também. Não preciso de seus conselhos e certamente não preciso de nenhum de vocês falando porcarias a meu respeito pelas minhas costas. Essa conversa termina aqui.

Zangada como estava, ela, impulsivamente, flexionou o braço para trás e lançou a adaga na direção de Niko, sabendo que ele sairia facilmente do caminho como tinha feito antes. Dessa vez, porém, ele não se moveu. Com um estalo rápido como um relâmpago, ele estendeu a mão e capturou a lâmina no ar. E com um sorriso totalmente satisfeito, conseguiu que ela perdesse de vez as estribeiras.

Renata apanhou a última adaga no suporte do canil e a atirou contra ele. Como a outra, esta também foi pega no ar e agora ambas estavam nas mãos hábeis do guerreiro da Raça.

Ele a olhou, sem piscar, com um calor masculino que deveria deixá-la gelada, mas que, todavia, não a deixava.

- E agora o que vamos fazer para nos divertir, Renata?

Ela o fulminou com o olhar.

- Divirta-se sozinho. Vou embora daqui.

Ela deu meia-volta, pronta para sair do canil. Apenas tinha dado dois passos quando escutou um som agudo em ambos os lados de sua cabeça, tão perto que alguns fios errantes de seus cabelos voaram pelo rosto.

Então, diante dela, observou sobrevoar uma mancha imprecisa de aço, que estalou no outro extremo da parede.

Golpe seco.

As duas adagas que tinham voado ao lado de sua cabeça como objetos erráticos estavam agora cravadas na velha madeira, bem próximas de seus punhos. Renata virou-se, furiosa.

- Seu filho da mãe...

Ele se lançou sobre ela, seu enorme corpo obrigando-a a ir para trás, seus olhos azuis brilhando com algo mais profundo que a simples diversão ou a básica arrogância masculina. Renata deu um passo para trás, apenas o suficiente para que pudesse equilibrar seu peso sobre os calcanhares. Ela caminhou para trás e virou-se, elevando a outra perna em um chute giratório.

Dedos tão inflexíveis quanto barras de ferro fecharam-se ao redor de seu tornozelo, retorcendo-o.

Renata caiu no chão do canil, asperamente sobre as costas. Ele a seguiu, colocando-se sobre ela e encurralando-a enquanto ela lutava, agitando-se violentamente com os punhos e com as pernas. Mas Niko apenas precisou de um minuto para domá-la.

Renata ofegava pelo esforço excessivo, seu peito elevava-se pela velocidade de sua pulsação.

- Agora quem deseja demonstrar força, guerreiro? Você ganhou. Está feliz agora?

Ele fixou o olhar nela de forma estranha e silenciosa, não demonstrando prazer ou aborrecimento.

Seu olhar mantinha-se estável, tranquilo e íntimo. Ela podia sentir o coração martelando contra o peito. As coxas grossas dele escancaradas sobre ela, as duas mãos presas por cima de sua cabeça. Ele a sustentava com firmeza, com os dedos segurando-lhe os punhos em um suave apertão – suave e incrivelmente carinhoso. O olhar dele se desviou para onde a segurava, e um brilho de fogo crepitava em sua íris quando ele encontrou a pequena marca de nascimento carmesim com o desenho de uma lágrima que caía sobre uma meia-lua no pulso direito. Com o polegar, acariciou aquele precioso lugar, uma carícia fascinante e hipnótica que enviou um calor selvagem e erótico pelas veias de Renata.

- Ainda quer saber o que vi nos olhos de Mira?

Renata ignorou a pergunta, segura de que aquilo era a última coisa de que ela precisava saber naquele momento. Ela lutou com força debaixo dos músculos do corpo pesado do guerreiro, mas o maldito a dominava com o mínimo de esforço. Bastardo.

- Saia de cima de mim!

- Pergunte-me outra vez o que foi que vi, Renata.

- Já lhe disse para sair de cima de mim - grunhiu Renata, sentindo o pânico aumentar dentro do peito. Tentou respirar normalmente, sabendo que tinha que manter a calma e a situação sob controle. E tinha que ser rápida. A última coisa de que precisava era que Sergei Yakut saísse para procurá-la e a encontrasse impotente debaixo de outro macho. – Deixe-me sair agora.

- Do que tem medo?

- De nada, maldito!

Ela cometeu o erro de levantar o olhar em direção a ele. Um calor âmbar infiltrou-se no azul dos olhos do guerreiro: fogo devorando gelo. Suas pupilas começaram a estreitar-se rapidamente e atrás de seus lábios ela viu as pontas agudas das presas emergentes de Niko.

Se ele estava zangado, aquilo era apenas uma parte da causa física de sua transformação, já que, onde sua pélvis repousava ameaçadoramente sobre a dela, Renata sentia a ponta rija em sua virilha, a dilatação muito evidente do membro de Niko pressionando-se deliberadamente entre suas pernas.

Ela se moveu, tentando escapar daquele calor, da erótica posição dos corpos, mas aquilo apenas o deixou mais encaixado nela. O pulso acelerado de Renata se elevou, assumindo um ritmo urgente ao passo que um calor indesejado começou a florescer em seu sexo já completamente umedecido.

Ah, Deus! Isso não é bom. Isso não é nada bom.

- Por favor - ela gemeu, odiando-se pelo débil tremor que resvalou no momento de pronunciar a palavra. Odiando a ele também.

Queria fechar os olhos, recusando-se a ver o ardente e fixo olhar faminto. Ou a boca sensual e completamente selvagem tão perto da sua. Recusava-se a sentir o calor ilícito, a luxúria insana que ele causava nela - o perigo daquele inesperado desejo mortal. Mas seus olhos permaneciam fixos, incapazes de desviar, a resposta de seu corpo para aquele macho da Raça era mais forte que o ferro, mais intenso que sua vontade.

- Pergunte-me o que a menina me mostrou esta noite em seus olhos - exigiu ele, com voz tão baixa quanto um ronronar. Seus lábios estavam tão perto dos dela que lhe roçaram a pele suave. - Pergunte-me, Renata. Ou talvez prefira ver a verdade com seus próprios olhos.

O beijo passou através de seu sangue como fogo.

Os lábios pressionaram-se com paixão, o fôlego quente apressou-se, mesclando-se nos corpos ardentes dos dois. A língua do guerreiro explorou a boca de Renata, inundando-lhe, afogando seu grito mudo de prazer. Renata sentiu os dedos dele acariciando-lhe as bochechas, deslizando sobre os cabelos de sua têmpora para, então, passarem deliciosamente por sua nuca sensível. Ele a puxou para mais perto, afogando-a mais profundamente no beijo, que a estava tomando por completo, rompendo totalmente sua resistência.

Não. Ah, Deus! Não, não, não. Não posso fazer isto. Não posso sentir isto.

Renata separou-se da erótica tortura da boca do guerreiro e virou a cabeça para o lado. Ela estava tremendo, e suas emoções estavam chegando a um nível perigoso. Ela arriscara muito ali, com ele. Muito.

Por Deus! Ela tinha que apagar aquela chama que ele acendera em seu interior, aquela chama que a estava derretendo de forma mortal. E tinha de apagá-la rapidamente.

Dedos quentes tocaram-lhe o queixo, dirigindo seu olhar novamente à fonte de sua angústia.

- Você está bem?

Ela livrou-se daquelas mãos e separou-se do macho da Raça com um empurrão, ainda incapaz de falar.

Ele se afastou imediatamente. Segurou-lhe a mão, ajudando-a a ficar de pé. E embora Renata não quisesse ajuda alguma, ela estava muito afetada para rechaçar Niko naquele momento. Ficou de pé, incapaz de olhá-lo, tentando recompor-se.

Rezava para que não tivesse acabado de assinar sua própria sentença de morte.

- Renata?

Aquela voz atravessou-a de forma desesperadamente tranquila e fria.

- Aproxime-se de mim outra vez – ela disse - e eu juro que mato você.


Capítulo 7

Alexei estava esperando havia mais de dez minutos do lado de fora do quarto de seu pai, o que demonstrava que um pedido seu para uma audiência era considerado como o de qualquer um dos outros guardas de Yakut. A falta de respeito – a flagrante indiferença – não incomodava mais Lex como antes. Ele tinha superado esse passado amargo e inútil em favor de coisas mais produtivas.

Ah! No fundo do estômago de Lex ainda doía saber que seu pai - seu único parente vivo - pudesse pensar tão pouco nele, mas o calor da rejeição constante tinha, de alguma forma, se tornado menos doloroso. As coisas eram simplesmente assim. E Lex, de fato, era mais forte por isso. Era igual ao pai, de maneira que nem o maldito velho Primeira Geração poderia imaginar, que dirá admitir.

Mas Lex conhecia suas próprias capacidades. Conhecia suas próprias forças. Sabia sem dúvida alguma que podia ser muito mais do que era agora, e desejava a oportunidade de demonstrá-lo: a ele mesmo e, sim, ao filho da mãe que o criara também.

Quando a porta finalmente se abriu, o ruído seco da fechadura de metal fez os pés de Lex vacilarem.

- Bem a tempo - grunhiu ele ao guarda, que se afastou para deixá-lo entrar.

O lugar estava escuro, iluminado apenas pelo brilho das madeiras que ardiam na enorme lareira de pedra na parede oposta. Havia eletricidade na casa, mas ela raramente era utilizada – não eram necessárias luzes, pois Sergei Yakut e o resto da Raça tinham uma extraordinária visão, especialmente no escuro.

Os outros sentidos dos homens da Raça também eram bastante agudos, mas Lex suspeitava que até um humano se sentiria em apuros ao sentir os aromas de sangue e sexo que se fundiam com o aroma azedo da fumaça da lareira.

- Perdoe-me por interrompê-lo - murmurou Lex, enquanto seu pai saía de um cômodo anexo.

Yakut estava nu, com o pênis ainda parcialmente ereto e inclinando-se obscenamente com cada movimento. Enojado pela vista, Lex piscou e desviou o olhar. Rapidamente pensou melhor no ato e percebeu que aquele débil impulso seria usado contra ele. Em vez disso, observou o pai entrar no quarto, os olhos brilhando como carvões âmbar enfiados no fundo do crânio, com as pupilas reduzidas a estreitas e verticais frestas no centro do globo ocular. As presas em sua boca estavam enormes, completamente estendidas e afiadas como lâminas.

Uma camada de suor cobria-lhe o corpo e cada polegada da lívida cor latente de seus dermoglifos, as marcas únicas da Raça que se estendiam da garganta aos tornozelos do Primeira Geração. Sangue fresco – humano, sem dúvida, um aroma fraco que indicava pertencer a um Subordinado - manchava todo o torso e os flancos do vampiro ancião.

Lex não estava surpreso pela evidência da recente atividade de seu pai, nem pelo fato de que o trio de vozes fracas no outro quarto fosse as de seu atual grupo de escravas humanas. Criar e manter Subordinados, algo que só as estirpes mais puras e poderosas da Raça eram capazes de fazer, tinha sido durante muito tempo uma prática ilegal entre a educada sociedade da Raça. Entretanto, essa prática continuava, pelo menos entre os domínios de Sergei Yakut. Ele fazia suas próprias regras, executava sua própria justiça, e aqui, neste lugar remoto, deixava claro a todos que ele era o rei. Inclusive Lex podia desfrutar desse tipo de liberdade e poder. Diabos! Podia, de fato, saboreá-lo.

Yakut dirigiu-lhe um olhar desdenhoso do outro lado do quarto.

- Olho para você e vejo a morte diante de mim.

Lex franziu a testa.

- Senhor?

- Se não fosse pelas restrições do guerreiro e por minha intervenção nesta noite, estaria ao lado de Urien em cima daquele armazém na cidade, ambos esperando o amanhecer.

O desprezo inundava cada sílaba das palavras de Yakut enquanto ele pegava uma ferramenta de ferro do lado da chaminé e movia as brasas na lareira.

- Salvei sua vida esta noite, Alexei. O que mais espera por hoje?

Lex irritou-se ao se lembrar de sua recente humilhação, mas sabia que o ódio não o ajudaria, particularmente quando estivesse enfrentando o pai. Fez um movimento com a cabeça, tentando encontrar uma maldita resistência para manter o tom em sua voz.

- Sou seu fiel servo, pai. Não me deve nada. E não peço nada exceto a honra de sua contínua confiança em mim.

Yakut grunhiu.

- Você fala mais como um político do que como um soldado. Não preciso de políticos entre os meus, Alexei.

- Sou um soldado - respondeu rapidamente Lex, elevando a cabeça e olhando enquanto o pai continuava movendo a barra de ferro no fogo. As lenhas soltavam faíscas que golpeavam o silêncio letal que tomava conta do ambiente. - Sou um soldado - afirmou novamente. - Quero servi-lo da melhor maneira possível, pai.

Yakut girou a cabeça despenteada para olhar Lex por cima do ombro.

- Você me oferece palavras, garoto. Não confio em palavras. E ultimamente não o vejo me oferecendo nada além de palavras.

- Como espera que eu seja eficiente se não me mantém informado dos acontecimentos?

Quando os olhos matizados de âmbar estreitaram-se sobre ele, Lex apressou-se em acrescentar:

- Falei com o guerreiro no bosque. Ele me contou sobre os recentes assassinatos dos Primeira Geração. Disse que a Ordem havia pessoalmente entrado em contato com você para avisá-lo do perigo potencial. Deveria ter me contado isso, pai. Como capitão de sua guarda, mereço ser informado.

- Merece o quê? - a pergunta saiu dos lábios de Yakut. - Por favor, Alexei... diga-me o que você acha que merece.

Lex permaneceu em silêncio.

- Nada a acrescentar, filho? - Yakut moveu a cabeça em um ângulo exagerado, a boca mostrando um sorriso sarcástico. - Uma acusação semelhante me foi lançada há anos pelos lábios de uma mulher estúpida que pensava poder apelar para meu sentido de obrigação. Minha misericórdia, possivelmente – Yakut riu entre os dentes, voltando a atenção de novo ao fogo, para mover, de novo, as brasas. - Sem dúvida você se lembra do que aconteceu.

- Sim - respondeu com cuidado Lex, surpreso pela garganta seca enquanto falava.

As lembranças formaram redemoinhos com as ondulantes chamas da lareira.

Norte da Rússia, fim do inverno. Lex era um menino, mal tinha dez anos, mas era o homem de seu precário lar tanto quanto podia se lembrar. Sua mãe era tudo o que ele tinha. A única que sabia como ele era realmente, e a única que o queria bem.

Ele estava preocupado desde a noite em que ela lhe havia dito que o levaria para conhecer seu pai pela primeira vez. Disse-lhe que ele era um segredo que ela tinha mantido - seu pequeno tesouro. Mas o inverno fora duro, e eles eram pobres. Precisavam de refúgio, de alguém que os protegesse. O campo estava em batalha e era inseguro para uma mulher cuidando sozinha de um menino. Ela disse que o pai de Lex os ajudaria, que ele abriria os braços em boas-vindas uma vez que conhecesse o filho.

Mas Sergei Yakut os recebeu com uma cólera fria e um terrível e impensável ultimato.

Lex se lembrou da mãe rogando a Yakut para que os acolhesse... Lembrou-se da mulher sendo completamente ignorada. Lembrou-se da bela mulher ajoelhada diante de Yakut, implorando para que cuidasse de Alexei.

As palavras estavam gravadas nos ouvidos de Lex, inclusive agora: “Ele é seu filho! Isso não significa nada para você? Será que ele não merece algo mais?”.

Rapidamente a cena saiu do controle.

Facilmente, Sergei Yakut ergueu uma espada e deslizou a lâmina pelo pescoço da indefesa mãe de Lex.

Suas palavras brutais afirmavam que ele tinha apenas lugar para soldados em seu reino, e que Lex tinha uma escolha a fazer naquele momento: servir ao assassino de sua mãe ou morrer com ela.

A débil resposta de Lex tinha sido dita entre soluços. “Vou servi-lo”, disse. E sentiu que uma parte de sua alma o abandonava enquanto olhava com horror o corpo ensanguentado e mutilado da mãe. Vou servi-lo, pai.

O silêncio que se seguiu foi muito frio, tão frio quanto uma tumba.

- Sou seu servo - Lex disse alto, baixando a cabeça mais pelo peso das velhas lembranças do que por respeito ao tirano que o governava. - Minha lealdade sempre foi sua, pai. Apenas sirvo ao seu prazer.

Um repentino calor, tão intenso quanto chamas ardentes, veio sob o queixo de Lex. Sobressaltado, ele levantou a cabeça, estremecendo de dor com um grito afogado. Viu a fumaça sair diante de seus olhos, sentiu o cheiro adocicado de carne queimando.

Yakut Sergei estava diante dele segurando o atiçador de ferro nas mãos. A ponta brilhante da haste de metal queimava vermelha, exceto pelo resíduo de pele branca pendurada, que havia sido arrancada do rosto de Lex.

Yakut sorriu, mostrando as pontas de seus dentes.

- Sim, Alexei, você serve apenas para o meu prazer. Lembre-se disso. Só porque meu sangue corre em suas veias não significa que eu não possa matá-lo.

- Claro que não - Lex murmurou, seus dentes cerrados pela devastadora agonia da queimadura. O ódio fervilhava nele pelo insulto que tinha que engolir e por sua própria impotência quando viu o homem da Raça desafiando-o com a testa franzida, pronto para fazer um movimento contra ele novamente. Yakut acabou desistindo. O velho arrastou uma túnica de linho marrom de uma cadeira e deu de ombros para ele. Seus olhos ainda estavam brilhantes, com fome e sede de sangue. Deixou a língua deslizar em seus dentes e presas.

- Como você está tão ansioso para me agradar, traga-me Renata. Preciso dela agora.

Lex apertou os dentes.

Sem palavras, saiu do quarto com a mandíbula rígida, os próprios olhos cintilando com a luz âmbar de sua indignação. Não perdeu de vista o olhar confuso do guarda postado na porta, o rumo inquieto dos olhos dos outros vampiros enquanto disfarçava o aroma de carne queimada e o provável calor de sua ira.

A queimadura cicatrizaria - de fato, já estava cicatrizando -, seu acelerado metabolismo da Raça reparava a pele queimada enquanto seus pés o levavam à área principal do refúgio. Renata vinha de fora. Ela viu Lex e se deteve, virando como se quisesse evitá-lo.

Não mesmo.

- Ele quer você - gritou Lex, sem se preocupar com quantos outros guardas estivessem ouvindo. Todos sabiam que ela era a vadia de Yakut, assim, não havia razão para fingir outra coisa. – Mandou-me que a chamasse. Está a sua espera para que o sirva.

Os frios olhos verde-jade o demoliram.

- Estive treinando. Preciso me lavar.

- Ele disse agora, Renata.

Uma ordem curta que ele sabia que seria obedecida. Havia mais do que uma leve satisfação nesse pequeno e raro triunfo.

- Muito bem.

Ela deu de ombros, apoiada sobre seus pés descalços.

Sua insossa expressão enquanto se aproximava dizia que não se preocupava com o que pensavam dela, muito menos Lex, e essa indiferença à humilhação apenas o fazia querer degradá-la mais. Farejou em sua direção, mais pelo efeito que isso causava do que por qualquer outra coisa.

- Ele não se importará com sua imundície. Todos sabemos que as melhores vagabundas são as sujas.

Renata não fez mais do que piscar com o vulgar comentário. Ela podia reduzi-lo com uma rajada de seu poder mental se assim o decidisse - de fato, Lex quase esperava que ela o fizesse, simplesmente para provar que a havia ferido. Mas o rápido giro de seu olhar disse que ela não sentia que ele merecia tal esforço.

Ela passou junto dele com uma dignidade que ele não podia compreender. Ele a olhou – todos os guardas próximos a olharam - enquanto ela caminhava para o quarto de Sergei Yakut tão calma quanto uma rainha a caminho da forca.

Não precisou muito para Lex imaginasse o dia em que ele controlaria tudo, mandaria naquele lugar, inclusive na altiva Renata. É óbvio, a vadia não seria tão altiva se sua mente, vontade e corpo pertencessem completamente a ele. Uma Subordinada para servir cada um de seus caprichos e os dos outros homens sob seu comando.

Sim, Lex pensou sombriamente, seria muito bom ser rei.


Capítulo 8

Nikolai pegou uma das adagas de Renata no poste onde ela as havia atirado. Tinha de lhe dar crédito: se tivesse acertado o alvo, ele estaria morto. Se fosse simplesmente um humano com reflexos lentos, e não um macho da Raça, o treinamento dela certamente o teria transformado em espetinhos para assar.

Ele riu ao devolver a lâmina ao envoltório elegante com as outras três. As armas eram belas, lustrosas e perfeitamente equilibradas, obviamente feitas à mão. Niko deixou seu olhar vagar sobre o desenho esculpido nos punhos de prata esterlina da arma. O padrão parecia ser um jardim de videiras e flores, mas quando ele as olhou mais de perto, deu-se conta de que cada uma das quatro lâminas também tinha uma palavra gravada dentro do desenho: fé, coragem, honra e sacrifício.

Ele se perguntou se aquilo seria uma espécie de oração de um guerreiro ou os princípios da disciplina pessoal de Renata.

Nikolai pensou no beijo que tinham compartilhado. Bom, dizer que eles o tinham compartilhado era um tanto presunçoso, considerando como ele tinha descido sua boca com toda a delicadeza de um trem de carga. Ele não tivera a intenção de beijá-la. Certo, e a quem ele estava tentando enganar? Ele não poderia ter parado mesmo que tivesse tentado. Não que fosse uma desculpa. E não que Renata tivesse dado qualquer possibilidade de desculpas ou perdão.

Niko ainda podia ver o horror em seus olhos, a inesperada, porém óbvia repulsão pelo que ele tinha feito. Ainda podia sentir a sinceridade da ameaça que ela pronunciou antes de sair tempestuosamente do canil.

A parte destruída de seu ego tentava acalmá-lo com a possibilidade de que talvez ela realmente desprezasse todos os machos de modo geral. Ou que talvez ela fosse tão fria como Lex parecia pensar. Um soldado assexuado – frígida apesar de ter a cara de um anjo e o corpo que conduzia sua mente a todo tipo de pecado e luxúria. Muitos pecados, cada um mais tentador e atraente do que o anterior.

Nikolai tinha um encanto fácil quando se tratava de mulheres. Não era simples alarde, mas uma conclusão a que ele tinha chegado baseado nos anos de experiência. Quando se tratava de mulheres, desfrutava tranquilamente das conquistas sem complicações, quanto mais temporárias melhor. A perseguição e as lutas eram divertidas, mas o melhor reservava para o combate verdadeiro, em batalhas sangrentas, com vampiros Renegados e outros inimigos da Ordem. Esses eram os desafios de que ele mais desfrutava.

Então, por que estava lutando contra esse impulso perverso de ir atrás de Renata e descobrir se não podia descongelar parte do gelo que a cobria?

Porque ele era um idiota. Um idiota com uma fúria perigosa e com um aparente desejo mortal.

Hora de parar de pensar com a cabeça de baixo. Não importava o que seu corpo estivesse dizendo - não importava mais o que ele tinha visto no olhar de Mira. Ele tinha um trabalho a fazer, uma missão da Ordem, e esta era a única razão pela qual estava ali.

Niko cuidadosamente envolveu as adagas de Renata no estojo de seda e veludo, e colocou o pequeno embrulho no fardo de palha esperando que ela voltasse para buscá-los, assim como os sapatos deixados para trás.

Abandonou o canil e se dirigiu à escuridão para recolher informações sobre as terras da mansão. Uma meia-lua pendurava-se no alto do céu noturno, velada por um punhado de nuvens negras como carvão. A brisa da meia-noite era cálida, abatendo-se brandamente através dos pinheiros altos e dos carvalhos espinhosos dos bosques ao redor. Os aromas misturavam-se no ar úmido do verão: o sabor forte da resina de pinheiro, a marca mofada do chão protegido do sol, a nitidez de tantos minerais na água doce, na corrente que evidentemente atravessava a propriedade não longe de onde Niko estava.

Nada incomum. Nada fora do lugar.

Até que...

Nikolai levantou o queixo e inclinou a cabeça ligeiramente para o oeste. Algo inesperado atravessou os seus sentidos. Algo que não podia, não deveria, encontrar ali.

Era a morte o que ele estava sentindo.

Sutil, antiga... mas certa.

O guerreiro correu na direção que seu olfato o levava. Cada vez mais profundo no bosque. A cerca de cem metros da mansão, a mata adensou-se. Niko reduziu sua marcha quando chegou ao lugar onde suas fossas nasais começavam a arder com o fedor envelhecido da decomposição. Aos seus pés, o chão estava esparso com folhas, enredado por videiras que caíam longe pela ravina escarpada.

Nikolai olhou para baixo pela fenda, adoecendo, antes mesmo que seus olhos pousassem na carnificina.

- Inferno - murmurou ele, sob seu fôlego.

Uma fossa de morte se encontrava no fundo da ravina. Esqueletos humanos. Dúzias de corpos, sem enterrar, esquecidos, simplesmente jogados uns em cima dos outros, como se fossem lixo. Tantos que levaria muito tempo para contar todos eles. Adultos. Crianças pequenas. Um massacre que não mostrava nenhuma discriminação a suas vítimas, tampouco misericórdia. Um massacre que poderia ter levado anos para ter sido realizado.

A pilha de ossos brancos brilhava sob a escassa luz da lua, pernas e braços empilhados juntos onde quer que o mortos tivessem caído, crânios olhando para ele, com as bocas abertas em macabros gritos silenciosos. Nikolai tinha visto o suficiente. Recuou da beira da ravina enquanto lançava outra maldição na escuridão.

- Que tipo de porcaria andou acontecendo por aqui?

Em seu íntimo, ele sabia.

Jesus Cristo, não havia muita margem para dúvidas.

Um clube de sangue.

A fúria e a repugnância passaram através dele em uma onda negra. Ele teve, por instantes, o desejo entristecedor de rasgar os membros de cada vampiro comprometido em violar a lei assassinando todas aquelas pessoas. Não que ele tivesse esse direito, mesmo como um membro guerreiro da Ordem. Ele e seus irmãos não tinham muitos amigos entre os ramos governantes da Raça, e muito menos na Agência de Controle, que atuava tanto como policiais e como políticos, responsáveis pelas populações de vampiros em geral. Eles pensavam que a Ordem e todos os guerreiros que a serviam estavam acima da sociedade civilizada. Vigilantes e militantes. Cães selvagens que só desejavam uma desculpa para fazê-la cair.

Nikolai sabia que isso estava fora de seus limites de atuação, mas isso não fez que o desejo de prescindir sua própria marca de justiça ficasse menos tentador.

Embora ultrajado e indignado, Niko precisava acalmar-se. Sua fúria não ajudaria as vidas esparramadas lá embaixo. Era muito tarde para isso. Niko não podia fazer nada, exceto mostrar um pouco de respeito, algo que lhes tinha sido negado inclusive depois da morte.

Solenemente, embora só por um breve momento, Nikolai se ajoelhou na borda da profunda ravina. Ele estendeu amplamente seus braços longos, invocando o poder luminoso que estava dentro dele, um talento da Raça que se encontrava unicamente nele e que em sua linha de trabalho, em particular, era de pouca utilidade. Sentiu o poder arder em seu interior quando o invocou. O poder se voltou em energia e luz, propagando-se através de seus ombros e movendo-se para baixo, em direção a seus braços. Logo, em suas mãos, esferas gêmeas brilhavam sob a pele no centro das palmas.

Nikolai tocou com os dedos a terra ao seu lado.

Em resposta, as videiras e arbustos se agitaram ao seu redor, gravetos verdes e pequenas flores silvestres do bosque despertaram acima, fazendo movimentos. Esses movimentos aumentaram cada vez mais em acelerada velocidade. Niko enviou os brotos que estavam crescendo de novo para a ravina e, em seguida, ficou de pé para assistir aos mortos serem cobertos por um manto de suaves folhas novas e flores.

Não era um grande rito funerário, mas era tudo o que ele tinha a oferecer às almas dos corpos que foram deixados ali para apodrecer na intempérie.

- Descansem em paz - murmurou ele.

Quando o último osso foi coberto, ele se dirigiu para a mansão. O celeiro de armazenamento em que ele tinha farejado o sangue agora chamava-lhe a atenção.

Só para confirmar suas suspeitas, Niko inspecionou e moveu o ferrolho solto. Abriu a porta e olhou dentro da construção. O celeiro estava vazio, tal como Lex havia dito. Mas novamente, as jaulas de aço construídas no interior não tinham sido feitas para nenhum tipo de armazenamento permanente. Eram gruas altas, celas da prisão com ferrolhos desenhados para os prisioneiros humanos, com caráter de contenção temporária.

Brinquedos vivos para o esporte de caça ilegal no remoto bosque que Sergei Yakut dominava.

Com um grunhido, Nikolai saiu do celeiro e partiu para a casa principal.

- Onde está ele? - perguntou ao guarda armado que o percebeu assim que atravessou a porta. - Onde está ele? Diga agora!

Ele não esperou por uma resposta. Não quando os outros dois guardas, ambos do lado de fora de uma porta fechada no grande corredor, tomaram uma postura de batalha repentina. Atrás deles, estavam os aposentos privados de Yakut, obviamente.

Nikolai irrompeu e empurrou um dos guardas de seu caminho. O outro tinha um rifle e começou a apontar para o guerreiro. Niko bateu a arma na cara do guarda, e então lançou o vampiro tonto à parede mais próxima.

Deu um chute na porta, estilhaçando a madeira velha e arrancando as dobradiças de ferro. Caminhou a passos largos através dos escombros, ignorando os gritos dos homens de Yakut. Encontrou o Primeira Geração no centro do quarto, diante de um sofá de couro, inclinado possessivamente sobre a garganta nua de uma fêmea de cabelos escuros enjaulada pelos braços do vampiro.

Com a interrupção, Yakut levantou a cabeça de sua alimentação e olhou na direção do invasor. Também o fez sua Anfitriã de Sangue...

Renata.

Não mesmo.

Ela estava unida a ele com o laço de sangue? Seria ela a Companheira de Raça desse monstro?

Todas as acusações que Nikolai tinha preparado para lançar a Sergei Yakut morreram repentinamente em sua garganta. Ele ficou olhando fixamente, com seus sentidos da Raça turvados e trincados, mais acordados ao ver o sangue da fêmea que gotejava dos lábios e das enormes presas de Yakut. O aroma dela atravessou o quarto, atingindo com força o cérebro de Niko. Ele não esperava um contraste tão estranho ao de sua conduta fria, mas o aroma de seu sangue era uma mescla quente, embriagadora e intoxicante de sândalo e chuva fresca de primavera. Suave. Feminino. Excitante.

A fome apertou o estômago de Nikolai, uma reação visceral com a qual ele teve que lutar arduamente para conter-se. Disse para si que era simplesmente sua natureza da Raça sobressaindo-se. Havia poucos entre os de sua estirpe que podiam resistir ao canto das sereias de uma veia aberta, mas quando seus olhos encontraram o olhar fixo de Renata, um novo calor explodiu dentro dele. Mais forte, aliás, que a primitiva sede de alimentar-se.

Ele a desejava.

Mesmo enquanto estava deitada debaixo de outro macho, permitindo-lhe beber dela, Nikolai tinha fome dela com uma ferocidade que o sobressaltava. Unida pelo sangue a outro ou não, Niko queimava de desejo por Renata.

O que, até mesmo com seu flexível código de honra, o fazia se sentir quase próximo ao nível desprezível de Yakut.

Niko teve de sacudir-se mentalmente para desprender-se daquela visão perturbadora, voltando bruscamente sua atenção aos problemas que tinha à mão.

- Você tem um sério problema - disse ele ao vampiro Primeira Geração, sendo apenas capaz de conter seu desprezo. - Na verdade, suponho que você tem aproximadamente três dúzias deles apodrecendo em seu bosque.

Yakut permaneceu calado, seu olhar escuro assumiu a cor âmbar, indicando o desafio. Um grunhido ondulou antes que ele voltasse a cabeça para sua refeição interrompida. A língua de Yakut deslizou do meio de seus lábios para lamber as espetadas que tinha deixado no pescoço de Renata, selando as feridas e estancando o sangue.

Só então, quando a língua de Yakut percorreu a pele de Renata, ela afastou o olhar de Niko. Ele acreditou ver alguma tranquilidade, um pouco de resignação, passar através de seu rosto nos segundos antes de Yakut se levantar e a liberar. Uma vez livre, Renata se moveu para o canto do quarto, puxando a camisa de volta ao lugar.

Ela ainda estava vestida com a roupa de antes, ainda estava descalça.

Ela devia ter vindo diretamente para cá depois do que tinha se passado no canil.

Tinha procurado Yakut por proteção? Ou por simples comodidade?

Jesus.

Niko se sentiu um asno quando se lembrou da maneira como tentou beijá-la. Se ela estivesse unida por sangue a Sergei Yakut, essa união era sagrada, íntima... exclusiva. Não admirava que ela tivesse reagido como reagira. Os beijos de Nikolai teriam sido um insulto e a degradação para ambos. Mas agora ele não estava ali para pedir desculpas – não a Renata ou ao seu aparente companheiro.

Nikolai dirigiu um olhar duro para o vampiro.

- Há quanto tempo você caça seres humanos, Yakut?

O Primeira Geração apenas grunhiu, sorrindo.

- Encontrei os currais de detenção no celeiro. Encontrei os corpos. Homens, mulheres... crianças.

Nikolai grunhiu uma maldição, incapaz de conter sua repugnância e indignação.

- Você transformou esse lugar em um maldito clube de sangue. Pelo aspecto dos corpos, eu diria que faz isso há anos.

- E o que tem isso? - Yakut perguntou despreocupadamente, sem sequer tentar emitir uma respeitável negação.

E no canto do quarto, Renata permaneceu em silêncio, com os olhos fixos em Niko, mas sem mostrar surpresa alguma.

Ah, Cristo! Então ela também sabia.

- Maldito doente - ele disse, olhando de novo para Yakut. - Todos vocês estão doentes. Não poderá continuar com isso. Pare agora mesmo. Há leis...

O Primeira Geração riu, com a voz deformada pela transformação de seu lado mais selvagem.

- Eu sou a lei aqui, rapaz. Ninguém, nem os Refúgios e sua tão elogiada Agência, nem sequer a Ordem têm algo a ver com meus assuntos. Convido qualquer um para vir aqui e tentar me dizer o contrário.

A ameaça era clara. Apesar do fato de a honra e a justiça gritarem dentro de Nikolai para que ele acabasse com o maldito filho da mãe ali mesmo, ele não podia fazê-lo, pois Yakut não era um vampiro comum. Era um Primeira Geração. Não apenas dotado de força e poderes imensamente maiores que os do guerreiro ou de qualquer outro posterior da Raça, mas também membro de uma classe rara. Desses, só havia poucos, menos ainda agora, como resultado da eclosão dos recentes assassinatos.

Tão repugnante quanto a prática ilegal dos clubes de sangue entre a sociedade da Raça era a tentativa de matar um vampiro da Primeira Geração.

Nikolai não podia levantar a mão contra o filho da mãe, não importa quanto desejasse fazer isso.

E Yakut sabia. Ele limpou a boca com a túnica escura, esfregando ligeiramente a fragrância doce do sangue de Renata.

- A caçada está em nossa natureza, rapaz.

A voz de Yakut tinha uma serenidade mortal, completamente cheia de confiança, enquanto avançava para Nikolai.

- Você é jovem, nascido da Raça mais fraca de alguns de nós. Talvez seu sangue esteja tão diluído com o da humanidade que simplesmente não pode compreender a necessidade em sua forma mais pura. Se tivesse o gosto pela caçada, seria menos hipócrita com aqueles de nós que preferem viver como deve ser.

Niko sacudiu lentamente a cabeça.

- Os clubes de sangue não são só caçada. Eles são simplesmente uma matança. Você pode dizer suas asneiras, mas ainda assim você não passa de um monte de porcaria. É um animal. O que você realmente precisa é de uma focinheira e de uma coleira. Alguém tem que deter você.

- E pensa que você ou a Ordem fará essa tarefa?

- Você pensa que nós não faremos? - desafiou Niko, com uma parte de si esperando que o Primeira Geração lhe desse uma boa razão para sacar suas armas. Ele não se imaginava fugindo do confronto com o vampiro ancião, ele não desistiria sem uma maldita briga.

Em resposta, Yakut recuou, com seus olhos de cor âmbar brilhantes, as elípticas pupilas diminutas estilhaçadas de negro. Ergueu o queixo barbudo e virou a cabeça para um lado. Seus lábios se separaram com um selvagem sorriso que expôs suas presas. Daquela maneira não era difícil que todos observassem a parte alienígena dele - a parte que fazia dele e de todo o resto da Raça o que eram: predadores que bebem sangue e não pertencem totalmente a este mundo mortal, mas que apenas nasceram aqui.

- Eu lhe disse uma vez que você não era bem-vindo em meus domínios, guerreiro. Você ou sua proposta de aliança com a Ordem não me serve de nada. Minha paciência está chegando ao limite, assim como sua estadia aqui.

- Sim – concordou Niko. – Vou dar o fora deste lugar com muito prazer. Mas não pense que esta é a última vez que você vai ter notícias minhas.

Ele não pôde deixar de deslizar o olhar selvagem sobre o corpo de Renata quando disse essas palavras. Por mais raiva que estivesse sentindo de Yakut, não podia sentir o mesmo por ela. Ele esperava que ela dissesse que não sabia sobre os crimes que aconteciam naquele pedaço de terra embebido de sangue, desejava que ela dissesse algo para convencê-lo de que não fazia parte do jogo e das práticas doentias de Yakut.

Mas ela simplesmente recuou o olhar, com os braços cruzados sobre o peito. Uma mão se elevou ociosamente para tocar a ferida que estava se curando em seu pescoço, mas ela permaneceu em silêncio.

Todavia, ela não deixou de olhar o guerreiro quando ele saiu pela porta escancarada diante do aturdido guarda de Yakut.

- Devolvam os itens pessoais ao guerreiro e cuidem para que ele deixe a propriedade sem incidentes - Yakut ordenou a um par de homens armados que se encontravam fora de seu quarto.

Quando os dois saíram para atender a ordem, Renata começou a segui-los. Alguma parte desequilibrada dela desejava poder ser capaz de encontrar Nikolai sozinho e...

E o que?

Explicar a verdade e contar como eram as coisas para ela aqui? Tentar justificar as ações que ela tinha sido forçada a fazer?

Com que finalidade?

Nikolai estava partindo. Ele nunca teria que voltar para aquele lugar, enquanto ela estaria ali até seu último suspiro. Que bem poderia fazer explicar algo disso a ele, um desconhecido que provavelmente não a entenderia, e muito menos a protegeria?

Entretanto, os pés de Renata continuaram movendo-se.

Ela sequer chegou até a porta. A mão de Yakut se fechou fortemente sobre seu pulso, segurando-o em suas costas.

- Você não, Renata. Você fica.

Ela o olhou com uma expressão que esperava estar desprovida da ansiedade e das náuseas que estava tentado tão duramente disfarçar.

- Pensei que tínhamos terminado aqui. Que talvez devesse ir com os outros, só para assegurar que o guerreiro não decida fazer nada estúpido em seu caminho fora da propriedade.

- Você fica - o sorriso de Yakut congelou-lhe até os ossos. – Tenha cuidado, Renata. Eu não gostaria que você fizesse nada estúpido.

Ela tragou o repentino nó gelado de ansiedade de sua garganta.

- Desculpe-me?

- Tenha cuidado - respondeu ele, apertando-lhe hermeticamente o braço. - Suas emoções a traem, querida. Posso sentir o aumento de sua frequência cardíaca, o muro de adrenalina que atravessa seu corpo correndo por suas veias agora mesmo. Senti a mudança em você no momento que o guerreiro entrou no quarto. Senti antes também. Importa-se em me dizer por onde esteve esta noite?

- Treinando - respondeu ela, rapidamente, mas com firmeza. Para não dar razão alguma para duvidar dela, já que aquela era essencialmente a verdade. - Antes que você mandasse Lex procurar por mim, eu estava do lado de fora, fazendo meus exercícios de treinamento no antigo canil. Se você sentiu algo diferente em mim, deve ter sido por conta do excesso de treinamento.

Um silêncio longo se estendeu, enquanto o aperto rígido mantinha-se em seu pulso.

- Você sabe quanto valorizo a lealdade, não é, Renata? – disse Yakut enquanto Renata fez uma breve inclinação de cabeça. – Valorizo-a tanto quanto você valoriza a vida daquela menina que dorme no outro quarto - disse ele friamente. - Penso que essa dúvida poderia fazer com que ela terminasse no cemitério.

O sangue de Renata congelou em suas veias diante daquela ameaça. Ela olhou fixamente para cima, diretamente nos malignos olhos do monstro que agora sorria abertamente, com um prazer doentio.

- Como disse, querida Renata, tenha cuidado.


Capítulo 9

A cidade de Montreal, assim nomeada por causa do enorme monte que proporcionava uma vista magnífica do Rio Saint Lawrence e do vale abaixo, brilhava como um pote de pedras preciosas sob a lua crescente. Arranha-céus elegantes, torres de igrejas góticas, avenidas arborizadas e, à distância, uma brilhante linha de água que envolvia a cidade em um abraço protetor. Uma vista realmente espetacular.

Não havia dúvidas sobre a razão pela qual o líder do Refúgio de Montreal havia escolhido estabelecer sua comunidade perto do cume do Monte Real.

De pé no balcão do segundo andar da mansão em estilo barroco tinha-se a impressão de que a velha propriedade de caçadores fora da cidade parecia estar a mil quilômetros de distância. Mil anos longe daquela educada e civilizada maneira de viver. O que, obviamente, era verdade.

A espera para se encontrar com Edgar Fabien, o guerreiro da Raça que fiscalizava a população de vampiros de Montreal, parecia durar uma eternidade. Fabien era bem conhecido na cidade e havia rumores de que tinha bons contatos, tanto entre os Refúgios quanto no grupo de patrulha conhecido como a Agência. Ele era a escolha natural para uma situação delicada como aquela.

Mesmo assim, se o líder do Refúgio estivesse disposto a cooperar, essa era uma aposta que Lex tinha de arriscar. Aquela visita tardia e sem aviso fora um ato espontâneo e muito, muito arriscado.

O simples fato de ir ali já significava declarar-se inimigo de Sergei Yakut.

Mas Lex tinha visto o suficiente, tinha suportado o suficiente.

O príncipe estava de saco cheio de lamber as botas do pai. Era hora do rei tirano cair.

Lex girou ao som dos passos aproximando-se do interior da recepção. Fabien era um homem magro, alto e meticulosamente vestido, como se tivesse nascido em seus trajes feitos sob medida e com seus brilhantes mocassins de couro. Seu cabelo loiro acinzentado estava penteado para trás com algum tipo de gel perfumado, e quando ele sorriu para saudar Lex, seus magros lábios e estreitos traços faciais ficaram ainda mais severos.

- Alexei Yakut - disse, saindo para o balcão e oferecendo a mão para Lex. Não menos que três anéis cintilavam em seus longos dedos, ouro e diamantes que rivalizavam com o brilho da cidade lá fora. - Lamento que tenha esperado tanto. Temo que não estejamos acostumados a receber convidados inesperados em minha residência pessoal.

Lex assentiu, tenso, e soltou a mão de Fabien. A casa do líder do Refúgio não estava exatamente nos guias de turismo da cidade de Montreal, mas umas poucas perguntas feitas às pessoas certas tinham guiado Lex até ali sem maiores problemas.

- Venha, por favor - disse o homem da Raça, gesticulando para Lex e guiando-o para o interior da casa. Fabien se sentou em um luxuoso sofá, deixando espaço para Lex do outro lado.

- Devo admitir que fiquei surpreso quando minha secretária me disse quem queria me ver. Uma vergonha que não tenhamos tido a oportunidade de nos conhecer até agora.

Lex sentou-se junto ao líder do Refúgio, incapaz de evitar que seus olhos viajassem pelo interminável luxo de seus arredores.

- Mas você sabe quem sou eu? - perguntou Lex com cuidado. - Sabe também quem é o Primeira Geração, meu pai, Sergei Yakut?

Fabien assentiu com elegância.

- Só pelo nome, infelizmente. Fui negligente ao não ter feito as apresentações formais logo que vocês chegaram a minha cidade. Entretanto, os guarda-costas de seu pai deixaram claro que seu pai era uma espécie de eremita quando meu emissário pediu um encontro. Entendo que ele prefira uma vida tranquila e rural fora da cidade, em contato com a natureza ou algo do tipo.

Sobre os nódulos de seus dedos, o sorriso de Fabien não alcançou seus olhos.

- Suponho que viver com aquele tipo de... simplicidade signifique alguma coisa.

Lex grunhiu.

- Meu pai escolheu tal vida porque acredita estar acima da lei.

- Como?

- É por isso que estou aqui - disse Lex. - Tenho informações. Informações importantes que precisam ser averiguadas rapidamente. Secretamente.

Edgar Fabien inclinou-se contra as almofadas do sofá.

- Ocorreu algo... fora da casa?

- Vem ocorrendo há muito tempo - Lex admitiu, sentindo uma rara sensação de liberdade enquanto essas palavras saíam-lhe da boca.

Lex contou a Fabien tudo sobre as atividades ilegais de seu pai, desde o clube de sangue e do cemitério cheio dos restos de suas vítimas até o frequente assassinato de seus Subordinados humanos. Explicou, não sendo totalmente sincero, como fora corroído por esses segredo durante um longo tempo e como era seu próprio sentido de moralidade - seu sentido de honra e de respeito pela lei da Raça - que o obrigava a procurar ajuda para deter o reino particular de terror de Sergei Yakut.

Era o entusiasmo – a emoção no fundo de sua coragem - que fazia sua voz tremer, mas, se Fabien entendesse isso como lamento, melhor ainda.

Fabien o escutou com a expressão cuidadosamente séria e sóbria.

- Entendo, estou certo de que isso não é um assunto menor. O que você descreveu é... problemático. Perturbador. Mas haverá certos fatos que virão à tona nesse tipo de investigação. Seu pai é um Primeira Geração. Haverá perguntas que ele terá de responder, protocolos que precisarão ser observados.

- Investigação? Protocolos? - disse, indignado, Lex. Saltou sobre os pés, alagado de medo e ira. - Isso poderá levar dias ou até mesmo semanas. Um maldito mês!

Fabien assentiu, desculpando-se.

- De fato, poderá.

- Não há tempo para isso agora! Você não entende? Estou oferecendo meu pai de bandeja. Todas as provas que necessitará para uma detenção imediata estão ali em sua propriedade. Pelo amor de Deus, estou arriscando minha maldita vida só por estar aqui!

- Sinto muito - o líder do Refúgio dizia isso sustentando as mãos erguidas. - Se a situação não for segura para você, estaremos mais do que dispostos a oferecer-lhe proteção. A Agência poderia afastá-lo quando a investigação começar, levá-lo para algum lugar seguro.

A afiada risada de Lex o interrompeu.

- Enviar-me ao exílio? Estarei morto muito antes. Além disso, não estou interessado em fugir e me esconder como um cão. Quero o que mereço. Quero o que aquele bastardo filho da mãe me deve depois de todos esses anos de espera por esmolas – diante das palavras de Lex, era impossível mascarar os verdadeiros sentimentos. A ira preenchia-lhe o corpo por completo. - Quer saber o que realmente quero de Sergei Yakut? A morte.

O olhar de Fabien estreitou-se astutamente.

- Essa é uma afirmação muito perigosa.

- Não sou o único que pensa assim - respondeu Lex. - De fato, alguém teve coragem suficiente para tentar isso na semana passada.

Os ardilosos olhos de Fabien ficaram mais e mais estreitos.

- O que quer dizer?

- Ele foi atacado. Alguém entrou na casa e tentou cortar a cabeça do maldito, mas acabou falhando. Maldita sorte - Lex acrescentou baixinho. - A Ordem pensa que foi trabalho de um profissional.

- A Ordem - repetiu Fabien sem ar. - Como estão envolvidos nisso que está descrevendo?

- Eles enviaram um guerreiro ontem à noite para encontrar-se com meu pai. Aparentemente, estão tentando avisar os Primeira Geração sobre a recente caçada entre a população.

A boca de Fabien trabalhou um segundo sem formar palavras, como se não estivesse segura sobre o que articular primeiro. Ele limpou a garganta.

- Há um guerreiro aqui em Montreal? E o que é isso de caçada recente? Do que você está falando?

- Cinco Primeira Geração foram mortos, nos Estados Unidos e na Europa - disse Lex, recordando o que Nikolai lhe havia dito. - Alguém parece querer eliminar a primeira geração, um por um.

- Santo Deus – a expressão de Fabien era o vivo retrato da surpresa, mas algo nela preocupou Lex.

- Não sabia nada sobre os assassinatos?

Fabien levantou-se lentamente, agitando a cabeça.

- Estou aturdido, asseguro-lhe isso. Não tinha ideia. Que coisa terrível.

- Talvez sim, talvez não - respondeu Lex.

Enquanto olhava o líder do Refúgio, Lex se deu conta de que uma súbita tranquilidade abatia-se sobre o vampiro – uma tranquilidade tamanha que Lex se perguntava se ele ainda estava respirando. Havia um tênue, porém elevado, pânico nos olhos ambiciosos de Lex. Edgar Fabien sustentava o corpo com rígida precisão, mas seu olhar mutante encarava Lex como se quisesse sair correndo da sala.

Interessante.

- Sabe, eu esperava que você estivesse mais bem informado, Fabien. Sua reputação na cidade me levava a acreditar nisso. Com todos os seus amigos policiais, você está querendo me dizer que nenhum deles lhe disse algo sobre isso? Provavelmente eles não confiam em você, não? Provavelmente eles têm uma boa razão para isso.

Nesse momento, Fabien encontrou o olhar de Lex. Cintilações âmbar iluminaram-lhe a íris com um sinal revelador de um nervo comprimido.

- Que tipo de jogo está tentando fazer comigo?

- O seu - disse Lex, percebendo uma oportunidade e agarrando-a. - Você sabe sobre as caçadas aos Primeira Geração. A questão é: por que mente sobre isso?

- Não discuto publicamente assuntos policiais - Fabien cuspiu em resposta, inflando seu magro peito com indignação. - O que sei ou não sei é assunto meu.

- Sabia também sobre o ataque a meu pai antes que eu o mencionasse, não é mesmo? Foi você quem o atacou, não é? E quanto aos outros assassinados?

- Jesus Cristo, você está completamente louco.

- Queria estar - disse Lex. – Seja lá o maldito complô em que você está metido, Fabien, eu também quero fazer parte dele.

O líder bufou bruscamente, depois deu as costas a Lex enquanto caminhava para uma das altas estantes cravadas em uma parede prateada. Acariciou a madeira polida, rindo preguiçosamente.

- Embora nossa conversa tenha sido esclarecedora e divertida, Alexei, ela talvez deva terminar aqui. Acredito que é melhor que você vá e se acalme antes de dizer mais alguma tolice.

Lex avançou, decidido a convencer Fabien de que ele valia a pena.

- Se o quiser morto, estou disposto a ajudá-lo a conseguir isso.

- Insensato - foi a resposta que recebeu. - Posso estalar meus dedos e prendê-lo sob suspeita de tentativa de assassinato. Posso, mas nesse momento quero que vá embora e nenhum de nós dirá uma palavra sequer a respeito dessa conversa.

A porta da recepção se abriu e quatro homens entraram. Ao assentimento de Fabien, o grupo rodeou Lex. Sem escolha, ele saiu.

- Manterei contato - disse Lex, mostrando os dentes. – Pode contar com isso.

Fabien não respondeu, mas seu ardiloso olhar permaneceu fixo sobre Lex, com severo entendimento, enquanto o homem, tenso, atravessava a porta e a fechava.

Assim que Lex saiu para a rua, sozinho, sua mente começou a cogitar as opções disponíveis. Fabien era corrupto. Que surpreendente e útil informação. Com um pouco de sorte, não passaria muito tempo antes que as conexões de Fabien fossem também as suas. Não se preocupou particularmente em pensar como as conseguiria.

Levantou os olhos em direção à bela mansão do Refúgio e todo seu imaculado luxo. Era isso o que Lex queria: esse tipo de vida e não a imundície e a degradação que havia conhecido sob o jugo de seu pai. Isso era o que ele verdadeiramente merecia.

Mas, primeiro, ele precisaria sujar as mãos, mesmo que pela última vez.

Lex caminhou ao longo da estrada cheia de curvas ladeada por arvoredos e se dirigiu para a cidade com seus objetivos renovados.

 

 

CONTINUA

Capítulo 6

Em silêncio, Renata abriu a porta do quarto de Mira e espreitou a garotinha adormecida que descansava sobre a cama. Aquela era uma criança normal em seu pijama cor-de-rosa, com a bochecha macia apoiada contra o travesseiro fino, respirando calmamente pela delicada boca de querubim. Sobre a mesinha rústica próxima à cama estava o curto véu negro que cobria os notáveis olhos de Mira durante todos os momentos em que ela estava acordada.

- Bons sonhos, meu anjo - sussurrou Renata em voz baixa, de forma terna e esperançosa.

Nos últimos tempos, ela se preocupava cada vez mais com Mira. Não apenas por conta dos pesadelos que começaram depois do ataque que presenciara, mas pela saúde geral da garota. Embora Mira fosse forte e tivesse uma mente rápida e aguda, ela não estava completamente bem. Ela estava perdendo a visão rapidamente.

Cada vez que Mira era obrigada a exercitar o dom da premonição, um pouco de sua própria visão se deteriorava. E isso já estava acontecendo há meses quando Mira finalmente confidenciou a Renata seu estado. Ela tinha medo, como qualquer criança teria. Talvez até mais, já que Mira era mais sábia do que seus oito anos de idade indicavam. Ela compreendia que o interesse de Sergei Yakut por ela se evaporaria no momento em que ele a considerasse sem nenhuma utilidade. Ele a expulsaria, talvez até a mataria, se assim o desejasse.

Portanto, desde aquela noite, Renata e Mira mantinham um pacto: a condição de Mira seria um segredo entre elas e seria levado para o túmulo, se fosse necessário. Renata cumpria a promessa, jurando a Mira que a protegeria com sua própria vida. Jurou que nenhum dano aconteceria à garota, fosse ele causado por Yakut ou por qualquer outra pessoa, da Raça ou humano. Mira estaria a salvo da dor e da escuridão da vida de uma maneira que a própria Renata jamais esteve.

O fato de a garota ter sido usada naquela noite para entreter o hóspede não convidado de Sergei Yakut apenas aumentou a irritação de Renata. O pior de sua inquietação mental havia passado, mas uma dor de cabeça ainda persistia. O estômago não tinha parado de revirar, e pequenas ondas de náuseas retrocediam pouco a pouco.

Renata fechou a porta do quarto de Mira, estremecendo com outro pequeno tremor que lhe agitou o corpo. O longo banho que acabara de tomar tinha ajudado a aliviar um pouco o desconforto, mas até debaixo de suas calças folgadas de cor grafite e de seu pulôver macio de algodão branco, a pele continuava reclamando das correntes elétricas que lhe acometiam. Ela esfregou as palmas das mãos sobre as mangas da camisa, tentando dissipar a sensação ainda acesa que viajava por seus braços. Muito agitada para dormir, ficou no quarto apenas o tempo necessário para pegar algumas adagas no baú de armas. O treinamento sempre se mostrara bem-vindo nesses períodos de inquietação. Ela apreciava as horas do castigo físico que se infligia, feliz pelo treinamento rigoroso que a exauria.

Desde a terrível noite em que se encontrou imersa no perigoso mundo de Sergei Yakut, Renata havia aperfeiçoado ao máximo cada músculo de seu corpo, trabalhando metodicamente para se assegurar de que ela era tão letal quanto as armas que levava na caixinha de seda e veludo que agora carregava nas mãos.

Sobreviver.

Esse simples pensamento tinha sido seu farol desde que era apenas uma garota, mais jovem até do que Mira. E, mais que tudo, sozinha. Órfã abandonada na capela de um convento de Montreal, Renata não tinha nenhum passado, nenhuma família, nenhum futuro. Ela somente existia, e isso era tudo.

Para Renata, isso tinha sido o suficiente. Era o suficiente inclusive agora. Sobretudo agora que ela navegava pelo traiçoeiro mundo subterrâneo do reino de Sergei Yakut. Havia inimigos por todos os lados naquele lugar, tanto escondidos quanto visíveis. Inúmeros caminhos à espera de um passo em falso, de um equívoco; infinitas ocasiões para ela odiar o vampiro desumano que tinha a vida dela nas mãos. Mas ela não desistiria sem lutar.

Seu mantra dos dias de infância servia bem nesse momento: sobreviver um dia, e depois outro e outro.

Não havia espaço para brandura nessa equação. Piedade, vergonha ou amor não eram permitidos. Principalmente amor, de espécie alguma. Renata sabia que seu afeto por Mira - o impulso vital que lhe dava forças para fazer o caminho da menina mais suave e protegê-la como alguém de sua própria família - provavelmente lhe custaria muito caro no final.

Sergei Yakut tinha perdido pouco tempo explorando essa sua debilidade e Renata tinha as cicatrizes para comprovar.

Mas ela era forte. Não tinha encontrado coisa alguma nesta vida que não pudesse suportar, que não pudesse enfrentar - fisicamente ou de qualquer outra maneira. E tinha sobrevivido a tudo. Inteligente, forte... e letal quando tinha de ser.

Renata saiu do albergue e caminhou a passos largos pela escuridão rumo a um dos edifícios anexos que ficavam na parte de trás do local. O caçador que originalmente construíra a propriedade no bosque evidentemente adorava seus cães. Um velho canil de madeira fora erguido atrás da residência principal, disposto como um estábulo, com um amplo espaço dividido em dois e quatro baias de acesso alinhadas de ambos os lados. O teto de vigas devia ter uns quatro metros e meio de altura.

Embora pequeno, era um espaço aberto e bem ventilado. Na propriedade havia um celeiro maior e mais novo, que permitia movimentos mais fluidos, mas Renata geralmente o evitava.

Uma vez naquele lugar escuro e insalubre já tinha sido o suficiente. Se pudesse, ela já teria colocado fogo naquele maldito lugar.

Renata acendeu o interruptor ao lado da porta do canil e seu corpo se contraiu quando a lâmpada no teto derramou uma luz amarela e áspera no espaço. Entrou e caminhou pelo chão macio de terra batida. Passou por duas correias de couro largas e trançadas que se dependuravam na viga central da estrutura.

No extremo mais afastado do canil havia um poste alto de madeira que antes fora equipado com pequenos ganchos de ferro e laços para o armazenamento de correias e demais objetos. Renata havia se livrado dos arranjos alguns meses atrás e agora o poste funcionava como um alvo, cuja madeira escura já estava marcada de cortes profundos.

Renata colocou as lâminas sobre um fardo de palha que estava por perto e se agachou. Tirou os sapatos e caminhou descalça até o centro do canil. Alcançou o par de compridas correias de couro que havia ali e agarrou cada uma em uma mão. Enrolou o couro nos pulsos e, quando sentiu que estava cômodo, estendeu-se, flexionando os braços e levantando-se do chão de maneira tão leve que parecia ter asas.

Suspensa e livre da gravidade, Renata começou seu aquecimento. O couro rangia brandamente enquanto ela dava voltas e girava o corpo a vários metros do chão. Para ela, aquilo era a verdadeira paz, a sensação de seus membros ardendo, ganhando força e agilidade a cada movimento.

Renata deixou a mente se perder em uma meditação ligeira, mantendo os olhos fechados e todos os sentidos voltados para dentro de si, concentrados no ritmo cardíaco e na respiração, no movimento dos músculos enquanto ela se alongava. Assim foi até que girasse sobre o eixo e ficasse de cabeça para baixo, com os tornozelos agora presos às correias. Nesse momento, sentiu uma leve agitação no ar ao seu redor. Foi repentino e sutil, porém inconfundível. Tão inconfundível quanto o calor de uma respiração que agora lhe esquentava a bochecha.

Abriu os olhos de repente, lutando para compreender o espaço ao seu redor – todo invertido – e o intruso que estava de pé, abaixo dela. Era o guerreiro da Raça, Nikolai.

- Caramba! - ela disse, com sua falta de atenção fazendo-lhe oscilar um pouco no controle das correias. - Que diabos você acha que está fazendo?

- Relaxe - disse Nikolai. - Não estava querendo assustá-la – falou enquanto levantava as mãos para estabilizá-la.

- E não assustou – Renata respondeu com palavras pronunciadas com frieza. Com uma sutil flexão do corpo, afastou-se. – Importa-se? Você está atrapalhando meu treinamento.

- Ah! - as sobrancelhas loiras do macho da Raça arquearam enquanto seu olhar seguia a linha do corpo de Renata. - O que é exatamente esse treino? Está de olho em alguma vaga no Cirque du Soleil?

Ela não lhe deu o prazer de uma resposta. Não que ele esperasse uma. Nikolai virou-se e dirigiu-se para o poste que havia no outro extremo do canil. Estendeu a mão, percorrendo com os dedos as profundas marcas que havia na madeira. Então, encontrou as adagas e levantou o tecido que as protegia. O metal tilintou ao chocar-se brandamente dentro do quadrado dobrado de seda atado com a cinta de veludo.

- Não toque nisso - disse Renata, libertando-se das correias e voltando a colocar os pés no chão. - Eu disse para não tocar nisso. São minhas.

Niko não resistiu quando ela lhe tirou das mãos seus preciosos pertences; as únicas coisas de valor que ela podia reclamar como suas. O aumento em suas emoções o fez virar levemente a cabeça, certamente os efeitos secundários da força mental que ela esperava terem passado ainda persistiam. Ela deu um passo para trás e teve de se esforçar para manter a respiração estável.

- Você está bem?

Ela não gostou do olhar de preocupação refletido nos olhos azuis dele, pois era como se ele pudesse sentir sua debilidade, como se soubesse que ela não era tão forte quanto queria ser, quanto precisava aparentar.

- Estou bem.

Renata colocou as adagas em uma das baias do canil e as desembrulhou. Uma por uma, ela cuidadosamente colocou as quatro adagas esculpidas à mão sobre a madeira. Forçando um tom ligeiramente convencido, disse: - Eu é quem deveria fazer essa pergunta, não? Deixei você bem duro lá na cidade.

Ela escutou o grunhido baixo em algum lugar atrás de si, quase como um escárnio.

- Nunca se pode ser demasiado cauteloso quando se trata de estrangeiros - continuou ela. - Sobretudo agora. Estou segura de que você me entende.

Quando ela finalmente o percorreu com um olhar, encontrou-o olhando-a fixamente.

- Querida, a única razão pela qual você teve a possibilidade de me derrubar foi porque jogou sujo. Certificou-se de que eu a notasse no clube, fingindo ter alguma coisa escondida, sabendo que eu a seguiria diretamente para sua armadilhazinha.

Renata levantou os ombros, sem arrependimento.

- No amor e na guerra vale tudo.

Ele sorriu suavemente, formando um par de covinhas em seu rosto quadrado e masculino. – E isso é guerra, não é? – ele perguntou.

- Certamente não é amor – disse ela.

- Não - ele retrucou, tornando-se sério. - Nunca.

Bem, ao menos eles concordavam em alguma coisa.

- Há quanto tempo trabalha para Yakut?

Renata balançou a cabeça como se fosse incapaz de se recordar dessa informação, embora a noite em questão estivesse gravada em sua mente como se as memórias fossem ferro em brasa. Sangue. Horror. O começo de um fim.

- Não sei - disse ela. - Alguns anos, suponho. Por quê?

- Eu estava me perguntando como uma mulher, mesmo sendo uma Companheira de Raça com sua poderosa habilidade psíquica, foi parar nesse trabalho, especialmente para um Primeira Geração como ele. É estranho, é isso. Diabos, nunca ouvi falar de coisa semelhante. Então, diga-me: qual é sua ligação com Sergei Yakut?

Renata olhou fixamente o guerreiro: um forasteiro perigoso e ardiloso que, de repente, estava se intrometendo em seu mundo. Ela não estava segura de como responder. Certamente não estava disposta a lhe contar a verdade.

- Se você tem perguntas, talvez devesse fazê-las a ele.

- Sim - disse Niko, estudando-a mais estreitamente agora. - Talvez pergunte. E quanto à garota, Mira? Ela está aqui há tanto tempo quanto você?

- Não há tanto tempo. Apenas seis meses. - Renata tentou mostrar-se indiferente, mas um feroz instinto de proteção nasceu dentro de seu corpo diante da simples menção do nome de Mira nos lábios daquele guerreiro da Raça. - Ela passou por tanta coisa em tão pouco tempo. Coisas que nenhuma criança deveria testemunhar.

- Como o ataque a Yakut na semana passada?

E outras, mais sombrias ainda, Renata reconheceu interiormente.

- Mira tem pesadelos quase todas as noites. Ela praticamente não dorme já faz algum tempo.

Ele assentiu com a cabeça em um sóbrio reconhecimento.

- Este não é um bom lugar para uma garotinha. Alguns diriam que tampouco é lugar para uma mulher.

- É isso o que você diria, guerreiro?

O sorriso de Niko não confirmou nem negou a pergunta.

Renata o observou enquanto em sua mente surgiam perguntas e mais perguntas. Uma em particular.

- O que viu nos olhos de Mira esta noite?

Ele grunhiu algo ininteligível.

- Acredite, você não vai querer saber.

- Estou perguntando, não? O que ela lhe mostrou?

- Esqueça – enquanto ela o olhava, ele passou a mão pelos fios dourados de seu cabelo e exalou uma maldição, desviando o olhar em seguida. - De qualquer forma, isso não é possível. A garota definitivamente errou.

- Mira jamais erra. Ela nunca errou, pelo menos em todo o tempo em que a conheço.

- Mesmo? - o penetrante olhar azul do guerreiro voltou-se fixamente para Renata, percorrendo-lhe calorosamente o corpo em uma atitude lenta e avaliadora. - Alexei me disse que sua habilidade é imperfeita.

- Lex - Renata riu. – Faça-me um favor e não acredite em nada do que ele diz. Ele não diz e não faz nada sem um motivo oculto.

- Obrigado pelo conselho – disse, recostando-se contra o poste marcado pelas adagas. - Então, se é assim, não é verdade que, como ele disse, os olhos de Mira só refletem os acontecimentos que poderiam ocorrer no futuro, com base no agora?

- Lex pode ter suas próprias razões pessoais para desejar que não seja assim, mas Mira nunca erra. Tudo o que ela mostrou esta noite está destinado a acontecer.

- Destinado - disse ele, parecendo divertir-se com aquilo. - Bem, caramba... então acredito que estamos condenados.

Ele a olhou fixamente quando pronunciava essas palavras, desafiando-a a perguntar se ele deliberadamente a tinha incluído em sua observação. Dado que ele achara a ideia bastante divertida, ela não estava disposta a lhe dar a satisfação de perguntar o motivo. Renata agarrou uma de suas adagas e provou o peso do objeto com a palma aberta. Ela gostava de sentir o frio do aço contra a pele, algo sólido e familiar. Seus dedos estavam loucos para trabalhar. Seus músculos agora estavam aquecidos, preparados para mais uma ou duas horas de treino duro. Ela girou a lâmina e fez um sinal para o poste em que Nikolai estava apoiado.

- Importa-se? Não quero calcular mal e acidentalmente acertá-lo.

Ele percorreu o poste com o olhar e deu de ombros.

- Não seria mais interessante um treinamento de combate com um oponente real, que pudesse devolver o golpe? Ou será que você prefere alvos imobilizados?

Ela sabia que Niko estava jogando uma isca, mas o brilho de seus olhos era brincalhão. Ele realmente a estava paquerando? A natureza prática dele fez os pelos da nuca de Renata arrepiarem-se com cautela. Ela passou o polegar pela lâmina da adaga enquanto o olhava, insegura do que fazer.

- Prefiro trabalhar sozinha.

- Muito bem - ele disse inclinando a cabeça e afastando-se um pouco, quase que a desafiando com o olhar. – Como quiser.

Renata franziu a testa.

- Se você não se afastar, como pode estar seguro de que não vou acertá-lo?

Ele sorriu abertamente, completamente cheio de arrogância, com os musculosos braços cruzados sobre o peito.

- Mire onde quiser. Você nunca me acertaria.

Ela atirou a lâmina sem a mínima advertência.

O aço afiado cravou na madeira, causando uma fenda profunda, golpeando no lugar exato onde ela havia planejado. Mas Nikolai tinha desaparecido. Simples assim, sumido por completo.

Inferno.

Ele era da Raça, muito mais rápido do que qualquer ser humano, e tão ágil quanto um predador selvagem. Ela não era rival para ele, com armas ou com força física. E ela sabia disso mesmo antes de atirar a adaga. Entretanto, esperava, pelo menos, diminuir a arrogância e a presunção daquele filho da mãe.

Com os próprios reflexos afiados, Renata esticou o braço e alcançou outra adaga. Todavia, quando seus dedos se fecharam ao redor do punho lavrado, ela sentiu o ar mover-se atrás de si e percebeu o calor atravessar os fios de cabelo que estavam sobre o queixo.

O metal afiado subiu até sua mandíbula. Uma dura parede de músculos apertava-lhe a coluna vertebral.

- Não me acertou! Sentiu minha falta?

Ela engoliu cuidadosamente, pressionada pela lâmina que estava sob seu queixo. Tão brandamente quanto pode, relaxou os braços para os lados. Então, abaixou a mão que segurava a adaga, descansando-a entre as coxas separadas.

- Parece que encontrei você.

Como pôde, Renata o golpeou com uma pequena sacudida do poder de sua mente.

- Inferno - grunhiu Niko. E no instante em que relaxou o controle que tinha de Renata, a mulher saiu de seu alcance e virou-se para enfrentá-lo. Ela esperava a cólera dele, temia-a em certo sentido, mas ele apenas levantou a cabeça e deu de ombros. - Não se preocupe, querida. Só vou ter que brincar com você até que seja derrubada pelas reverberações de sua força psíquica.

Enquanto ela o contemplava, confusa e aflita, pensando como ele podia saber sobre a imperfeição de sua habilidade, ele disse:

- Lex me pôs a par de algumas coisas sobre você também. Ele me contou o que acontece cada vez que você dispara um desses mísseis psíquicos. Componente muito poderoso. Mas eu em seu lugar não o gastaria só porque sente necessidade de demonstrar força.

- Que o Lex vá pro inferno - murmurou Renata. - E que você vá pro inferno também. Não preciso de seus conselhos e certamente não preciso de nenhum de vocês falando porcarias a meu respeito pelas minhas costas. Essa conversa termina aqui.

Zangada como estava, ela, impulsivamente, flexionou o braço para trás e lançou a adaga na direção de Niko, sabendo que ele sairia facilmente do caminho como tinha feito antes. Dessa vez, porém, ele não se moveu. Com um estalo rápido como um relâmpago, ele estendeu a mão e capturou a lâmina no ar. E com um sorriso totalmente satisfeito, conseguiu que ela perdesse de vez as estribeiras.

Renata apanhou a última adaga no suporte do canil e a atirou contra ele. Como a outra, esta também foi pega no ar e agora ambas estavam nas mãos hábeis do guerreiro da Raça.

Ele a olhou, sem piscar, com um calor masculino que deveria deixá-la gelada, mas que, todavia, não a deixava.

- E agora o que vamos fazer para nos divertir, Renata?

Ela o fulminou com o olhar.

- Divirta-se sozinho. Vou embora daqui.

Ela deu meia-volta, pronta para sair do canil. Apenas tinha dado dois passos quando escutou um som agudo em ambos os lados de sua cabeça, tão perto que alguns fios errantes de seus cabelos voaram pelo rosto.

Então, diante dela, observou sobrevoar uma mancha imprecisa de aço, que estalou no outro extremo da parede.

Golpe seco.

As duas adagas que tinham voado ao lado de sua cabeça como objetos erráticos estavam agora cravadas na velha madeira, bem próximas de seus punhos. Renata virou-se, furiosa.

- Seu filho da mãe...

Ele se lançou sobre ela, seu enorme corpo obrigando-a a ir para trás, seus olhos azuis brilhando com algo mais profundo que a simples diversão ou a básica arrogância masculina. Renata deu um passo para trás, apenas o suficiente para que pudesse equilibrar seu peso sobre os calcanhares. Ela caminhou para trás e virou-se, elevando a outra perna em um chute giratório.

Dedos tão inflexíveis quanto barras de ferro fecharam-se ao redor de seu tornozelo, retorcendo-o.

Renata caiu no chão do canil, asperamente sobre as costas. Ele a seguiu, colocando-se sobre ela e encurralando-a enquanto ela lutava, agitando-se violentamente com os punhos e com as pernas. Mas Niko apenas precisou de um minuto para domá-la.

Renata ofegava pelo esforço excessivo, seu peito elevava-se pela velocidade de sua pulsação.

- Agora quem deseja demonstrar força, guerreiro? Você ganhou. Está feliz agora?

Ele fixou o olhar nela de forma estranha e silenciosa, não demonstrando prazer ou aborrecimento.

Seu olhar mantinha-se estável, tranquilo e íntimo. Ela podia sentir o coração martelando contra o peito. As coxas grossas dele escancaradas sobre ela, as duas mãos presas por cima de sua cabeça. Ele a sustentava com firmeza, com os dedos segurando-lhe os punhos em um suave apertão – suave e incrivelmente carinhoso. O olhar dele se desviou para onde a segurava, e um brilho de fogo crepitava em sua íris quando ele encontrou a pequena marca de nascimento carmesim com o desenho de uma lágrima que caía sobre uma meia-lua no pulso direito. Com o polegar, acariciou aquele precioso lugar, uma carícia fascinante e hipnótica que enviou um calor selvagem e erótico pelas veias de Renata.

- Ainda quer saber o que vi nos olhos de Mira?

Renata ignorou a pergunta, segura de que aquilo era a última coisa de que ela precisava saber naquele momento. Ela lutou com força debaixo dos músculos do corpo pesado do guerreiro, mas o maldito a dominava com o mínimo de esforço. Bastardo.

- Saia de cima de mim!

- Pergunte-me outra vez o que foi que vi, Renata.

- Já lhe disse para sair de cima de mim - grunhiu Renata, sentindo o pânico aumentar dentro do peito. Tentou respirar normalmente, sabendo que tinha que manter a calma e a situação sob controle. E tinha que ser rápida. A última coisa de que precisava era que Sergei Yakut saísse para procurá-la e a encontrasse impotente debaixo de outro macho. – Deixe-me sair agora.

- Do que tem medo?

- De nada, maldito!

Ela cometeu o erro de levantar o olhar em direção a ele. Um calor âmbar infiltrou-se no azul dos olhos do guerreiro: fogo devorando gelo. Suas pupilas começaram a estreitar-se rapidamente e atrás de seus lábios ela viu as pontas agudas das presas emergentes de Niko.

Se ele estava zangado, aquilo era apenas uma parte da causa física de sua transformação, já que, onde sua pélvis repousava ameaçadoramente sobre a dela, Renata sentia a ponta rija em sua virilha, a dilatação muito evidente do membro de Niko pressionando-se deliberadamente entre suas pernas.

Ela se moveu, tentando escapar daquele calor, da erótica posição dos corpos, mas aquilo apenas o deixou mais encaixado nela. O pulso acelerado de Renata se elevou, assumindo um ritmo urgente ao passo que um calor indesejado começou a florescer em seu sexo já completamente umedecido.

Ah, Deus! Isso não é bom. Isso não é nada bom.

- Por favor - ela gemeu, odiando-se pelo débil tremor que resvalou no momento de pronunciar a palavra. Odiando a ele também.

Queria fechar os olhos, recusando-se a ver o ardente e fixo olhar faminto. Ou a boca sensual e completamente selvagem tão perto da sua. Recusava-se a sentir o calor ilícito, a luxúria insana que ele causava nela - o perigo daquele inesperado desejo mortal. Mas seus olhos permaneciam fixos, incapazes de desviar, a resposta de seu corpo para aquele macho da Raça era mais forte que o ferro, mais intenso que sua vontade.

- Pergunte-me o que a menina me mostrou esta noite em seus olhos - exigiu ele, com voz tão baixa quanto um ronronar. Seus lábios estavam tão perto dos dela que lhe roçaram a pele suave. - Pergunte-me, Renata. Ou talvez prefira ver a verdade com seus próprios olhos.

O beijo passou através de seu sangue como fogo.

Os lábios pressionaram-se com paixão, o fôlego quente apressou-se, mesclando-se nos corpos ardentes dos dois. A língua do guerreiro explorou a boca de Renata, inundando-lhe, afogando seu grito mudo de prazer. Renata sentiu os dedos dele acariciando-lhe as bochechas, deslizando sobre os cabelos de sua têmpora para, então, passarem deliciosamente por sua nuca sensível. Ele a puxou para mais perto, afogando-a mais profundamente no beijo, que a estava tomando por completo, rompendo totalmente sua resistência.

Não. Ah, Deus! Não, não, não. Não posso fazer isto. Não posso sentir isto.

Renata separou-se da erótica tortura da boca do guerreiro e virou a cabeça para o lado. Ela estava tremendo, e suas emoções estavam chegando a um nível perigoso. Ela arriscara muito ali, com ele. Muito.

Por Deus! Ela tinha que apagar aquela chama que ele acendera em seu interior, aquela chama que a estava derretendo de forma mortal. E tinha de apagá-la rapidamente.

Dedos quentes tocaram-lhe o queixo, dirigindo seu olhar novamente à fonte de sua angústia.

- Você está bem?

Ela livrou-se daquelas mãos e separou-se do macho da Raça com um empurrão, ainda incapaz de falar.

Ele se afastou imediatamente. Segurou-lhe a mão, ajudando-a a ficar de pé. E embora Renata não quisesse ajuda alguma, ela estava muito afetada para rechaçar Niko naquele momento. Ficou de pé, incapaz de olhá-lo, tentando recompor-se.

Rezava para que não tivesse acabado de assinar sua própria sentença de morte.

- Renata?

Aquela voz atravessou-a de forma desesperadamente tranquila e fria.

- Aproxime-se de mim outra vez – ela disse - e eu juro que mato você.


Capítulo 7

Alexei estava esperando havia mais de dez minutos do lado de fora do quarto de seu pai, o que demonstrava que um pedido seu para uma audiência era considerado como o de qualquer um dos outros guardas de Yakut. A falta de respeito – a flagrante indiferença – não incomodava mais Lex como antes. Ele tinha superado esse passado amargo e inútil em favor de coisas mais produtivas.

Ah! No fundo do estômago de Lex ainda doía saber que seu pai - seu único parente vivo - pudesse pensar tão pouco nele, mas o calor da rejeição constante tinha, de alguma forma, se tornado menos doloroso. As coisas eram simplesmente assim. E Lex, de fato, era mais forte por isso. Era igual ao pai, de maneira que nem o maldito velho Primeira Geração poderia imaginar, que dirá admitir.

Mas Lex conhecia suas próprias capacidades. Conhecia suas próprias forças. Sabia sem dúvida alguma que podia ser muito mais do que era agora, e desejava a oportunidade de demonstrá-lo: a ele mesmo e, sim, ao filho da mãe que o criara também.

Quando a porta finalmente se abriu, o ruído seco da fechadura de metal fez os pés de Lex vacilarem.

- Bem a tempo - grunhiu ele ao guarda, que se afastou para deixá-lo entrar.

O lugar estava escuro, iluminado apenas pelo brilho das madeiras que ardiam na enorme lareira de pedra na parede oposta. Havia eletricidade na casa, mas ela raramente era utilizada – não eram necessárias luzes, pois Sergei Yakut e o resto da Raça tinham uma extraordinária visão, especialmente no escuro.

Os outros sentidos dos homens da Raça também eram bastante agudos, mas Lex suspeitava que até um humano se sentiria em apuros ao sentir os aromas de sangue e sexo que se fundiam com o aroma azedo da fumaça da lareira.

- Perdoe-me por interrompê-lo - murmurou Lex, enquanto seu pai saía de um cômodo anexo.

Yakut estava nu, com o pênis ainda parcialmente ereto e inclinando-se obscenamente com cada movimento. Enojado pela vista, Lex piscou e desviou o olhar. Rapidamente pensou melhor no ato e percebeu que aquele débil impulso seria usado contra ele. Em vez disso, observou o pai entrar no quarto, os olhos brilhando como carvões âmbar enfiados no fundo do crânio, com as pupilas reduzidas a estreitas e verticais frestas no centro do globo ocular. As presas em sua boca estavam enormes, completamente estendidas e afiadas como lâminas.

Uma camada de suor cobria-lhe o corpo e cada polegada da lívida cor latente de seus dermoglifos, as marcas únicas da Raça que se estendiam da garganta aos tornozelos do Primeira Geração. Sangue fresco – humano, sem dúvida, um aroma fraco que indicava pertencer a um Subordinado - manchava todo o torso e os flancos do vampiro ancião.

Lex não estava surpreso pela evidência da recente atividade de seu pai, nem pelo fato de que o trio de vozes fracas no outro quarto fosse as de seu atual grupo de escravas humanas. Criar e manter Subordinados, algo que só as estirpes mais puras e poderosas da Raça eram capazes de fazer, tinha sido durante muito tempo uma prática ilegal entre a educada sociedade da Raça. Entretanto, essa prática continuava, pelo menos entre os domínios de Sergei Yakut. Ele fazia suas próprias regras, executava sua própria justiça, e aqui, neste lugar remoto, deixava claro a todos que ele era o rei. Inclusive Lex podia desfrutar desse tipo de liberdade e poder. Diabos! Podia, de fato, saboreá-lo.

Yakut dirigiu-lhe um olhar desdenhoso do outro lado do quarto.

- Olho para você e vejo a morte diante de mim.

Lex franziu a testa.

- Senhor?

- Se não fosse pelas restrições do guerreiro e por minha intervenção nesta noite, estaria ao lado de Urien em cima daquele armazém na cidade, ambos esperando o amanhecer.

O desprezo inundava cada sílaba das palavras de Yakut enquanto ele pegava uma ferramenta de ferro do lado da chaminé e movia as brasas na lareira.

- Salvei sua vida esta noite, Alexei. O que mais espera por hoje?

Lex irritou-se ao se lembrar de sua recente humilhação, mas sabia que o ódio não o ajudaria, particularmente quando estivesse enfrentando o pai. Fez um movimento com a cabeça, tentando encontrar uma maldita resistência para manter o tom em sua voz.

- Sou seu fiel servo, pai. Não me deve nada. E não peço nada exceto a honra de sua contínua confiança em mim.

Yakut grunhiu.

- Você fala mais como um político do que como um soldado. Não preciso de políticos entre os meus, Alexei.

- Sou um soldado - respondeu rapidamente Lex, elevando a cabeça e olhando enquanto o pai continuava movendo a barra de ferro no fogo. As lenhas soltavam faíscas que golpeavam o silêncio letal que tomava conta do ambiente. - Sou um soldado - afirmou novamente. - Quero servi-lo da melhor maneira possível, pai.

Yakut girou a cabeça despenteada para olhar Lex por cima do ombro.

- Você me oferece palavras, garoto. Não confio em palavras. E ultimamente não o vejo me oferecendo nada além de palavras.

- Como espera que eu seja eficiente se não me mantém informado dos acontecimentos?

Quando os olhos matizados de âmbar estreitaram-se sobre ele, Lex apressou-se em acrescentar:

- Falei com o guerreiro no bosque. Ele me contou sobre os recentes assassinatos dos Primeira Geração. Disse que a Ordem havia pessoalmente entrado em contato com você para avisá-lo do perigo potencial. Deveria ter me contado isso, pai. Como capitão de sua guarda, mereço ser informado.

- Merece o quê? - a pergunta saiu dos lábios de Yakut. - Por favor, Alexei... diga-me o que você acha que merece.

Lex permaneceu em silêncio.

- Nada a acrescentar, filho? - Yakut moveu a cabeça em um ângulo exagerado, a boca mostrando um sorriso sarcástico. - Uma acusação semelhante me foi lançada há anos pelos lábios de uma mulher estúpida que pensava poder apelar para meu sentido de obrigação. Minha misericórdia, possivelmente – Yakut riu entre os dentes, voltando a atenção de novo ao fogo, para mover, de novo, as brasas. - Sem dúvida você se lembra do que aconteceu.

- Sim - respondeu com cuidado Lex, surpreso pela garganta seca enquanto falava.

As lembranças formaram redemoinhos com as ondulantes chamas da lareira.

Norte da Rússia, fim do inverno. Lex era um menino, mal tinha dez anos, mas era o homem de seu precário lar tanto quanto podia se lembrar. Sua mãe era tudo o que ele tinha. A única que sabia como ele era realmente, e a única que o queria bem.

Ele estava preocupado desde a noite em que ela lhe havia dito que o levaria para conhecer seu pai pela primeira vez. Disse-lhe que ele era um segredo que ela tinha mantido - seu pequeno tesouro. Mas o inverno fora duro, e eles eram pobres. Precisavam de refúgio, de alguém que os protegesse. O campo estava em batalha e era inseguro para uma mulher cuidando sozinha de um menino. Ela disse que o pai de Lex os ajudaria, que ele abriria os braços em boas-vindas uma vez que conhecesse o filho.

Mas Sergei Yakut os recebeu com uma cólera fria e um terrível e impensável ultimato.

Lex se lembrou da mãe rogando a Yakut para que os acolhesse... Lembrou-se da mulher sendo completamente ignorada. Lembrou-se da bela mulher ajoelhada diante de Yakut, implorando para que cuidasse de Alexei.

As palavras estavam gravadas nos ouvidos de Lex, inclusive agora: “Ele é seu filho! Isso não significa nada para você? Será que ele não merece algo mais?”.

Rapidamente a cena saiu do controle.

Facilmente, Sergei Yakut ergueu uma espada e deslizou a lâmina pelo pescoço da indefesa mãe de Lex.

Suas palavras brutais afirmavam que ele tinha apenas lugar para soldados em seu reino, e que Lex tinha uma escolha a fazer naquele momento: servir ao assassino de sua mãe ou morrer com ela.

A débil resposta de Lex tinha sido dita entre soluços. “Vou servi-lo”, disse. E sentiu que uma parte de sua alma o abandonava enquanto olhava com horror o corpo ensanguentado e mutilado da mãe. Vou servi-lo, pai.

O silêncio que se seguiu foi muito frio, tão frio quanto uma tumba.

- Sou seu servo - Lex disse alto, baixando a cabeça mais pelo peso das velhas lembranças do que por respeito ao tirano que o governava. - Minha lealdade sempre foi sua, pai. Apenas sirvo ao seu prazer.

Um repentino calor, tão intenso quanto chamas ardentes, veio sob o queixo de Lex. Sobressaltado, ele levantou a cabeça, estremecendo de dor com um grito afogado. Viu a fumaça sair diante de seus olhos, sentiu o cheiro adocicado de carne queimando.

Yakut Sergei estava diante dele segurando o atiçador de ferro nas mãos. A ponta brilhante da haste de metal queimava vermelha, exceto pelo resíduo de pele branca pendurada, que havia sido arrancada do rosto de Lex.

Yakut sorriu, mostrando as pontas de seus dentes.

- Sim, Alexei, você serve apenas para o meu prazer. Lembre-se disso. Só porque meu sangue corre em suas veias não significa que eu não possa matá-lo.

- Claro que não - Lex murmurou, seus dentes cerrados pela devastadora agonia da queimadura. O ódio fervilhava nele pelo insulto que tinha que engolir e por sua própria impotência quando viu o homem da Raça desafiando-o com a testa franzida, pronto para fazer um movimento contra ele novamente. Yakut acabou desistindo. O velho arrastou uma túnica de linho marrom de uma cadeira e deu de ombros para ele. Seus olhos ainda estavam brilhantes, com fome e sede de sangue. Deixou a língua deslizar em seus dentes e presas.

- Como você está tão ansioso para me agradar, traga-me Renata. Preciso dela agora.

Lex apertou os dentes.

Sem palavras, saiu do quarto com a mandíbula rígida, os próprios olhos cintilando com a luz âmbar de sua indignação. Não perdeu de vista o olhar confuso do guarda postado na porta, o rumo inquieto dos olhos dos outros vampiros enquanto disfarçava o aroma de carne queimada e o provável calor de sua ira.

A queimadura cicatrizaria - de fato, já estava cicatrizando -, seu acelerado metabolismo da Raça reparava a pele queimada enquanto seus pés o levavam à área principal do refúgio. Renata vinha de fora. Ela viu Lex e se deteve, virando como se quisesse evitá-lo.

Não mesmo.

- Ele quer você - gritou Lex, sem se preocupar com quantos outros guardas estivessem ouvindo. Todos sabiam que ela era a vadia de Yakut, assim, não havia razão para fingir outra coisa. – Mandou-me que a chamasse. Está a sua espera para que o sirva.

Os frios olhos verde-jade o demoliram.

- Estive treinando. Preciso me lavar.

- Ele disse agora, Renata.

Uma ordem curta que ele sabia que seria obedecida. Havia mais do que uma leve satisfação nesse pequeno e raro triunfo.

- Muito bem.

Ela deu de ombros, apoiada sobre seus pés descalços.

Sua insossa expressão enquanto se aproximava dizia que não se preocupava com o que pensavam dela, muito menos Lex, e essa indiferença à humilhação apenas o fazia querer degradá-la mais. Farejou em sua direção, mais pelo efeito que isso causava do que por qualquer outra coisa.

- Ele não se importará com sua imundície. Todos sabemos que as melhores vagabundas são as sujas.

Renata não fez mais do que piscar com o vulgar comentário. Ela podia reduzi-lo com uma rajada de seu poder mental se assim o decidisse - de fato, Lex quase esperava que ela o fizesse, simplesmente para provar que a havia ferido. Mas o rápido giro de seu olhar disse que ela não sentia que ele merecia tal esforço.

Ela passou junto dele com uma dignidade que ele não podia compreender. Ele a olhou – todos os guardas próximos a olharam - enquanto ela caminhava para o quarto de Sergei Yakut tão calma quanto uma rainha a caminho da forca.

Não precisou muito para Lex imaginasse o dia em que ele controlaria tudo, mandaria naquele lugar, inclusive na altiva Renata. É óbvio, a vadia não seria tão altiva se sua mente, vontade e corpo pertencessem completamente a ele. Uma Subordinada para servir cada um de seus caprichos e os dos outros homens sob seu comando.

Sim, Lex pensou sombriamente, seria muito bom ser rei.


Capítulo 8

Nikolai pegou uma das adagas de Renata no poste onde ela as havia atirado. Tinha de lhe dar crédito: se tivesse acertado o alvo, ele estaria morto. Se fosse simplesmente um humano com reflexos lentos, e não um macho da Raça, o treinamento dela certamente o teria transformado em espetinhos para assar.

Ele riu ao devolver a lâmina ao envoltório elegante com as outras três. As armas eram belas, lustrosas e perfeitamente equilibradas, obviamente feitas à mão. Niko deixou seu olhar vagar sobre o desenho esculpido nos punhos de prata esterlina da arma. O padrão parecia ser um jardim de videiras e flores, mas quando ele as olhou mais de perto, deu-se conta de que cada uma das quatro lâminas também tinha uma palavra gravada dentro do desenho: fé, coragem, honra e sacrifício.

Ele se perguntou se aquilo seria uma espécie de oração de um guerreiro ou os princípios da disciplina pessoal de Renata.

Nikolai pensou no beijo que tinham compartilhado. Bom, dizer que eles o tinham compartilhado era um tanto presunçoso, considerando como ele tinha descido sua boca com toda a delicadeza de um trem de carga. Ele não tivera a intenção de beijá-la. Certo, e a quem ele estava tentando enganar? Ele não poderia ter parado mesmo que tivesse tentado. Não que fosse uma desculpa. E não que Renata tivesse dado qualquer possibilidade de desculpas ou perdão.

Niko ainda podia ver o horror em seus olhos, a inesperada, porém óbvia repulsão pelo que ele tinha feito. Ainda podia sentir a sinceridade da ameaça que ela pronunciou antes de sair tempestuosamente do canil.

A parte destruída de seu ego tentava acalmá-lo com a possibilidade de que talvez ela realmente desprezasse todos os machos de modo geral. Ou que talvez ela fosse tão fria como Lex parecia pensar. Um soldado assexuado – frígida apesar de ter a cara de um anjo e o corpo que conduzia sua mente a todo tipo de pecado e luxúria. Muitos pecados, cada um mais tentador e atraente do que o anterior.

Nikolai tinha um encanto fácil quando se tratava de mulheres. Não era simples alarde, mas uma conclusão a que ele tinha chegado baseado nos anos de experiência. Quando se tratava de mulheres, desfrutava tranquilamente das conquistas sem complicações, quanto mais temporárias melhor. A perseguição e as lutas eram divertidas, mas o melhor reservava para o combate verdadeiro, em batalhas sangrentas, com vampiros Renegados e outros inimigos da Ordem. Esses eram os desafios de que ele mais desfrutava.

Então, por que estava lutando contra esse impulso perverso de ir atrás de Renata e descobrir se não podia descongelar parte do gelo que a cobria?

Porque ele era um idiota. Um idiota com uma fúria perigosa e com um aparente desejo mortal.

Hora de parar de pensar com a cabeça de baixo. Não importava o que seu corpo estivesse dizendo - não importava mais o que ele tinha visto no olhar de Mira. Ele tinha um trabalho a fazer, uma missão da Ordem, e esta era a única razão pela qual estava ali.

Niko cuidadosamente envolveu as adagas de Renata no estojo de seda e veludo, e colocou o pequeno embrulho no fardo de palha esperando que ela voltasse para buscá-los, assim como os sapatos deixados para trás.

Abandonou o canil e se dirigiu à escuridão para recolher informações sobre as terras da mansão. Uma meia-lua pendurava-se no alto do céu noturno, velada por um punhado de nuvens negras como carvão. A brisa da meia-noite era cálida, abatendo-se brandamente através dos pinheiros altos e dos carvalhos espinhosos dos bosques ao redor. Os aromas misturavam-se no ar úmido do verão: o sabor forte da resina de pinheiro, a marca mofada do chão protegido do sol, a nitidez de tantos minerais na água doce, na corrente que evidentemente atravessava a propriedade não longe de onde Niko estava.

Nada incomum. Nada fora do lugar.

Até que...

Nikolai levantou o queixo e inclinou a cabeça ligeiramente para o oeste. Algo inesperado atravessou os seus sentidos. Algo que não podia, não deveria, encontrar ali.

Era a morte o que ele estava sentindo.

Sutil, antiga... mas certa.

O guerreiro correu na direção que seu olfato o levava. Cada vez mais profundo no bosque. A cerca de cem metros da mansão, a mata adensou-se. Niko reduziu sua marcha quando chegou ao lugar onde suas fossas nasais começavam a arder com o fedor envelhecido da decomposição. Aos seus pés, o chão estava esparso com folhas, enredado por videiras que caíam longe pela ravina escarpada.

Nikolai olhou para baixo pela fenda, adoecendo, antes mesmo que seus olhos pousassem na carnificina.

- Inferno - murmurou ele, sob seu fôlego.

Uma fossa de morte se encontrava no fundo da ravina. Esqueletos humanos. Dúzias de corpos, sem enterrar, esquecidos, simplesmente jogados uns em cima dos outros, como se fossem lixo. Tantos que levaria muito tempo para contar todos eles. Adultos. Crianças pequenas. Um massacre que não mostrava nenhuma discriminação a suas vítimas, tampouco misericórdia. Um massacre que poderia ter levado anos para ter sido realizado.

A pilha de ossos brancos brilhava sob a escassa luz da lua, pernas e braços empilhados juntos onde quer que o mortos tivessem caído, crânios olhando para ele, com as bocas abertas em macabros gritos silenciosos. Nikolai tinha visto o suficiente. Recuou da beira da ravina enquanto lançava outra maldição na escuridão.

- Que tipo de porcaria andou acontecendo por aqui?

Em seu íntimo, ele sabia.

Jesus Cristo, não havia muita margem para dúvidas.

Um clube de sangue.

A fúria e a repugnância passaram através dele em uma onda negra. Ele teve, por instantes, o desejo entristecedor de rasgar os membros de cada vampiro comprometido em violar a lei assassinando todas aquelas pessoas. Não que ele tivesse esse direito, mesmo como um membro guerreiro da Ordem. Ele e seus irmãos não tinham muitos amigos entre os ramos governantes da Raça, e muito menos na Agência de Controle, que atuava tanto como policiais e como políticos, responsáveis pelas populações de vampiros em geral. Eles pensavam que a Ordem e todos os guerreiros que a serviam estavam acima da sociedade civilizada. Vigilantes e militantes. Cães selvagens que só desejavam uma desculpa para fazê-la cair.

Nikolai sabia que isso estava fora de seus limites de atuação, mas isso não fez que o desejo de prescindir sua própria marca de justiça ficasse menos tentador.

Embora ultrajado e indignado, Niko precisava acalmar-se. Sua fúria não ajudaria as vidas esparramadas lá embaixo. Era muito tarde para isso. Niko não podia fazer nada, exceto mostrar um pouco de respeito, algo que lhes tinha sido negado inclusive depois da morte.

Solenemente, embora só por um breve momento, Nikolai se ajoelhou na borda da profunda ravina. Ele estendeu amplamente seus braços longos, invocando o poder luminoso que estava dentro dele, um talento da Raça que se encontrava unicamente nele e que em sua linha de trabalho, em particular, era de pouca utilidade. Sentiu o poder arder em seu interior quando o invocou. O poder se voltou em energia e luz, propagando-se através de seus ombros e movendo-se para baixo, em direção a seus braços. Logo, em suas mãos, esferas gêmeas brilhavam sob a pele no centro das palmas.

Nikolai tocou com os dedos a terra ao seu lado.

Em resposta, as videiras e arbustos se agitaram ao seu redor, gravetos verdes e pequenas flores silvestres do bosque despertaram acima, fazendo movimentos. Esses movimentos aumentaram cada vez mais em acelerada velocidade. Niko enviou os brotos que estavam crescendo de novo para a ravina e, em seguida, ficou de pé para assistir aos mortos serem cobertos por um manto de suaves folhas novas e flores.

Não era um grande rito funerário, mas era tudo o que ele tinha a oferecer às almas dos corpos que foram deixados ali para apodrecer na intempérie.

- Descansem em paz - murmurou ele.

Quando o último osso foi coberto, ele se dirigiu para a mansão. O celeiro de armazenamento em que ele tinha farejado o sangue agora chamava-lhe a atenção.

Só para confirmar suas suspeitas, Niko inspecionou e moveu o ferrolho solto. Abriu a porta e olhou dentro da construção. O celeiro estava vazio, tal como Lex havia dito. Mas novamente, as jaulas de aço construídas no interior não tinham sido feitas para nenhum tipo de armazenamento permanente. Eram gruas altas, celas da prisão com ferrolhos desenhados para os prisioneiros humanos, com caráter de contenção temporária.

Brinquedos vivos para o esporte de caça ilegal no remoto bosque que Sergei Yakut dominava.

Com um grunhido, Nikolai saiu do celeiro e partiu para a casa principal.

- Onde está ele? - perguntou ao guarda armado que o percebeu assim que atravessou a porta. - Onde está ele? Diga agora!

Ele não esperou por uma resposta. Não quando os outros dois guardas, ambos do lado de fora de uma porta fechada no grande corredor, tomaram uma postura de batalha repentina. Atrás deles, estavam os aposentos privados de Yakut, obviamente.

Nikolai irrompeu e empurrou um dos guardas de seu caminho. O outro tinha um rifle e começou a apontar para o guerreiro. Niko bateu a arma na cara do guarda, e então lançou o vampiro tonto à parede mais próxima.

Deu um chute na porta, estilhaçando a madeira velha e arrancando as dobradiças de ferro. Caminhou a passos largos através dos escombros, ignorando os gritos dos homens de Yakut. Encontrou o Primeira Geração no centro do quarto, diante de um sofá de couro, inclinado possessivamente sobre a garganta nua de uma fêmea de cabelos escuros enjaulada pelos braços do vampiro.

Com a interrupção, Yakut levantou a cabeça de sua alimentação e olhou na direção do invasor. Também o fez sua Anfitriã de Sangue...

Renata.

Não mesmo.

Ela estava unida a ele com o laço de sangue? Seria ela a Companheira de Raça desse monstro?

Todas as acusações que Nikolai tinha preparado para lançar a Sergei Yakut morreram repentinamente em sua garganta. Ele ficou olhando fixamente, com seus sentidos da Raça turvados e trincados, mais acordados ao ver o sangue da fêmea que gotejava dos lábios e das enormes presas de Yakut. O aroma dela atravessou o quarto, atingindo com força o cérebro de Niko. Ele não esperava um contraste tão estranho ao de sua conduta fria, mas o aroma de seu sangue era uma mescla quente, embriagadora e intoxicante de sândalo e chuva fresca de primavera. Suave. Feminino. Excitante.

A fome apertou o estômago de Nikolai, uma reação visceral com a qual ele teve que lutar arduamente para conter-se. Disse para si que era simplesmente sua natureza da Raça sobressaindo-se. Havia poucos entre os de sua estirpe que podiam resistir ao canto das sereias de uma veia aberta, mas quando seus olhos encontraram o olhar fixo de Renata, um novo calor explodiu dentro dele. Mais forte, aliás, que a primitiva sede de alimentar-se.

Ele a desejava.

Mesmo enquanto estava deitada debaixo de outro macho, permitindo-lhe beber dela, Nikolai tinha fome dela com uma ferocidade que o sobressaltava. Unida pelo sangue a outro ou não, Niko queimava de desejo por Renata.

O que, até mesmo com seu flexível código de honra, o fazia se sentir quase próximo ao nível desprezível de Yakut.

Niko teve de sacudir-se mentalmente para desprender-se daquela visão perturbadora, voltando bruscamente sua atenção aos problemas que tinha à mão.

- Você tem um sério problema - disse ele ao vampiro Primeira Geração, sendo apenas capaz de conter seu desprezo. - Na verdade, suponho que você tem aproximadamente três dúzias deles apodrecendo em seu bosque.

Yakut permaneceu calado, seu olhar escuro assumiu a cor âmbar, indicando o desafio. Um grunhido ondulou antes que ele voltasse a cabeça para sua refeição interrompida. A língua de Yakut deslizou do meio de seus lábios para lamber as espetadas que tinha deixado no pescoço de Renata, selando as feridas e estancando o sangue.

Só então, quando a língua de Yakut percorreu a pele de Renata, ela afastou o olhar de Niko. Ele acreditou ver alguma tranquilidade, um pouco de resignação, passar através de seu rosto nos segundos antes de Yakut se levantar e a liberar. Uma vez livre, Renata se moveu para o canto do quarto, puxando a camisa de volta ao lugar.

Ela ainda estava vestida com a roupa de antes, ainda estava descalça.

Ela devia ter vindo diretamente para cá depois do que tinha se passado no canil.

Tinha procurado Yakut por proteção? Ou por simples comodidade?

Jesus.

Niko se sentiu um asno quando se lembrou da maneira como tentou beijá-la. Se ela estivesse unida por sangue a Sergei Yakut, essa união era sagrada, íntima... exclusiva. Não admirava que ela tivesse reagido como reagira. Os beijos de Nikolai teriam sido um insulto e a degradação para ambos. Mas agora ele não estava ali para pedir desculpas – não a Renata ou ao seu aparente companheiro.

Nikolai dirigiu um olhar duro para o vampiro.

- Há quanto tempo você caça seres humanos, Yakut?

O Primeira Geração apenas grunhiu, sorrindo.

- Encontrei os currais de detenção no celeiro. Encontrei os corpos. Homens, mulheres... crianças.

Nikolai grunhiu uma maldição, incapaz de conter sua repugnância e indignação.

- Você transformou esse lugar em um maldito clube de sangue. Pelo aspecto dos corpos, eu diria que faz isso há anos.

- E o que tem isso? - Yakut perguntou despreocupadamente, sem sequer tentar emitir uma respeitável negação.

E no canto do quarto, Renata permaneceu em silêncio, com os olhos fixos em Niko, mas sem mostrar surpresa alguma.

Ah, Cristo! Então ela também sabia.

- Maldito doente - ele disse, olhando de novo para Yakut. - Todos vocês estão doentes. Não poderá continuar com isso. Pare agora mesmo. Há leis...

O Primeira Geração riu, com a voz deformada pela transformação de seu lado mais selvagem.

- Eu sou a lei aqui, rapaz. Ninguém, nem os Refúgios e sua tão elogiada Agência, nem sequer a Ordem têm algo a ver com meus assuntos. Convido qualquer um para vir aqui e tentar me dizer o contrário.

A ameaça era clara. Apesar do fato de a honra e a justiça gritarem dentro de Nikolai para que ele acabasse com o maldito filho da mãe ali mesmo, ele não podia fazê-lo, pois Yakut não era um vampiro comum. Era um Primeira Geração. Não apenas dotado de força e poderes imensamente maiores que os do guerreiro ou de qualquer outro posterior da Raça, mas também membro de uma classe rara. Desses, só havia poucos, menos ainda agora, como resultado da eclosão dos recentes assassinatos.

Tão repugnante quanto a prática ilegal dos clubes de sangue entre a sociedade da Raça era a tentativa de matar um vampiro da Primeira Geração.

Nikolai não podia levantar a mão contra o filho da mãe, não importa quanto desejasse fazer isso.

E Yakut sabia. Ele limpou a boca com a túnica escura, esfregando ligeiramente a fragrância doce do sangue de Renata.

- A caçada está em nossa natureza, rapaz.

A voz de Yakut tinha uma serenidade mortal, completamente cheia de confiança, enquanto avançava para Nikolai.

- Você é jovem, nascido da Raça mais fraca de alguns de nós. Talvez seu sangue esteja tão diluído com o da humanidade que simplesmente não pode compreender a necessidade em sua forma mais pura. Se tivesse o gosto pela caçada, seria menos hipócrita com aqueles de nós que preferem viver como deve ser.

Niko sacudiu lentamente a cabeça.

- Os clubes de sangue não são só caçada. Eles são simplesmente uma matança. Você pode dizer suas asneiras, mas ainda assim você não passa de um monte de porcaria. É um animal. O que você realmente precisa é de uma focinheira e de uma coleira. Alguém tem que deter você.

- E pensa que você ou a Ordem fará essa tarefa?

- Você pensa que nós não faremos? - desafiou Niko, com uma parte de si esperando que o Primeira Geração lhe desse uma boa razão para sacar suas armas. Ele não se imaginava fugindo do confronto com o vampiro ancião, ele não desistiria sem uma maldita briga.

Em resposta, Yakut recuou, com seus olhos de cor âmbar brilhantes, as elípticas pupilas diminutas estilhaçadas de negro. Ergueu o queixo barbudo e virou a cabeça para um lado. Seus lábios se separaram com um selvagem sorriso que expôs suas presas. Daquela maneira não era difícil que todos observassem a parte alienígena dele - a parte que fazia dele e de todo o resto da Raça o que eram: predadores que bebem sangue e não pertencem totalmente a este mundo mortal, mas que apenas nasceram aqui.

- Eu lhe disse uma vez que você não era bem-vindo em meus domínios, guerreiro. Você ou sua proposta de aliança com a Ordem não me serve de nada. Minha paciência está chegando ao limite, assim como sua estadia aqui.

- Sim – concordou Niko. – Vou dar o fora deste lugar com muito prazer. Mas não pense que esta é a última vez que você vai ter notícias minhas.

Ele não pôde deixar de deslizar o olhar selvagem sobre o corpo de Renata quando disse essas palavras. Por mais raiva que estivesse sentindo de Yakut, não podia sentir o mesmo por ela. Ele esperava que ela dissesse que não sabia sobre os crimes que aconteciam naquele pedaço de terra embebido de sangue, desejava que ela dissesse algo para convencê-lo de que não fazia parte do jogo e das práticas doentias de Yakut.

Mas ela simplesmente recuou o olhar, com os braços cruzados sobre o peito. Uma mão se elevou ociosamente para tocar a ferida que estava se curando em seu pescoço, mas ela permaneceu em silêncio.

Todavia, ela não deixou de olhar o guerreiro quando ele saiu pela porta escancarada diante do aturdido guarda de Yakut.

- Devolvam os itens pessoais ao guerreiro e cuidem para que ele deixe a propriedade sem incidentes - Yakut ordenou a um par de homens armados que se encontravam fora de seu quarto.

Quando os dois saíram para atender a ordem, Renata começou a segui-los. Alguma parte desequilibrada dela desejava poder ser capaz de encontrar Nikolai sozinho e...

E o que?

Explicar a verdade e contar como eram as coisas para ela aqui? Tentar justificar as ações que ela tinha sido forçada a fazer?

Com que finalidade?

Nikolai estava partindo. Ele nunca teria que voltar para aquele lugar, enquanto ela estaria ali até seu último suspiro. Que bem poderia fazer explicar algo disso a ele, um desconhecido que provavelmente não a entenderia, e muito menos a protegeria?

Entretanto, os pés de Renata continuaram movendo-se.

Ela sequer chegou até a porta. A mão de Yakut se fechou fortemente sobre seu pulso, segurando-o em suas costas.

- Você não, Renata. Você fica.

Ela o olhou com uma expressão que esperava estar desprovida da ansiedade e das náuseas que estava tentado tão duramente disfarçar.

- Pensei que tínhamos terminado aqui. Que talvez devesse ir com os outros, só para assegurar que o guerreiro não decida fazer nada estúpido em seu caminho fora da propriedade.

- Você fica - o sorriso de Yakut congelou-lhe até os ossos. – Tenha cuidado, Renata. Eu não gostaria que você fizesse nada estúpido.

Ela tragou o repentino nó gelado de ansiedade de sua garganta.

- Desculpe-me?

- Tenha cuidado - respondeu ele, apertando-lhe hermeticamente o braço. - Suas emoções a traem, querida. Posso sentir o aumento de sua frequência cardíaca, o muro de adrenalina que atravessa seu corpo correndo por suas veias agora mesmo. Senti a mudança em você no momento que o guerreiro entrou no quarto. Senti antes também. Importa-se em me dizer por onde esteve esta noite?

- Treinando - respondeu ela, rapidamente, mas com firmeza. Para não dar razão alguma para duvidar dela, já que aquela era essencialmente a verdade. - Antes que você mandasse Lex procurar por mim, eu estava do lado de fora, fazendo meus exercícios de treinamento no antigo canil. Se você sentiu algo diferente em mim, deve ter sido por conta do excesso de treinamento.

Um silêncio longo se estendeu, enquanto o aperto rígido mantinha-se em seu pulso.

- Você sabe quanto valorizo a lealdade, não é, Renata? – disse Yakut enquanto Renata fez uma breve inclinação de cabeça. – Valorizo-a tanto quanto você valoriza a vida daquela menina que dorme no outro quarto - disse ele friamente. - Penso que essa dúvida poderia fazer com que ela terminasse no cemitério.

O sangue de Renata congelou em suas veias diante daquela ameaça. Ela olhou fixamente para cima, diretamente nos malignos olhos do monstro que agora sorria abertamente, com um prazer doentio.

- Como disse, querida Renata, tenha cuidado.


Capítulo 9

A cidade de Montreal, assim nomeada por causa do enorme monte que proporcionava uma vista magnífica do Rio Saint Lawrence e do vale abaixo, brilhava como um pote de pedras preciosas sob a lua crescente. Arranha-céus elegantes, torres de igrejas góticas, avenidas arborizadas e, à distância, uma brilhante linha de água que envolvia a cidade em um abraço protetor. Uma vista realmente espetacular.

Não havia dúvidas sobre a razão pela qual o líder do Refúgio de Montreal havia escolhido estabelecer sua comunidade perto do cume do Monte Real.

De pé no balcão do segundo andar da mansão em estilo barroco tinha-se a impressão de que a velha propriedade de caçadores fora da cidade parecia estar a mil quilômetros de distância. Mil anos longe daquela educada e civilizada maneira de viver. O que, obviamente, era verdade.

A espera para se encontrar com Edgar Fabien, o guerreiro da Raça que fiscalizava a população de vampiros de Montreal, parecia durar uma eternidade. Fabien era bem conhecido na cidade e havia rumores de que tinha bons contatos, tanto entre os Refúgios quanto no grupo de patrulha conhecido como a Agência. Ele era a escolha natural para uma situação delicada como aquela.

Mesmo assim, se o líder do Refúgio estivesse disposto a cooperar, essa era uma aposta que Lex tinha de arriscar. Aquela visita tardia e sem aviso fora um ato espontâneo e muito, muito arriscado.

O simples fato de ir ali já significava declarar-se inimigo de Sergei Yakut.

Mas Lex tinha visto o suficiente, tinha suportado o suficiente.

O príncipe estava de saco cheio de lamber as botas do pai. Era hora do rei tirano cair.

Lex girou ao som dos passos aproximando-se do interior da recepção. Fabien era um homem magro, alto e meticulosamente vestido, como se tivesse nascido em seus trajes feitos sob medida e com seus brilhantes mocassins de couro. Seu cabelo loiro acinzentado estava penteado para trás com algum tipo de gel perfumado, e quando ele sorriu para saudar Lex, seus magros lábios e estreitos traços faciais ficaram ainda mais severos.

- Alexei Yakut - disse, saindo para o balcão e oferecendo a mão para Lex. Não menos que três anéis cintilavam em seus longos dedos, ouro e diamantes que rivalizavam com o brilho da cidade lá fora. - Lamento que tenha esperado tanto. Temo que não estejamos acostumados a receber convidados inesperados em minha residência pessoal.

Lex assentiu, tenso, e soltou a mão de Fabien. A casa do líder do Refúgio não estava exatamente nos guias de turismo da cidade de Montreal, mas umas poucas perguntas feitas às pessoas certas tinham guiado Lex até ali sem maiores problemas.

- Venha, por favor - disse o homem da Raça, gesticulando para Lex e guiando-o para o interior da casa. Fabien se sentou em um luxuoso sofá, deixando espaço para Lex do outro lado.

- Devo admitir que fiquei surpreso quando minha secretária me disse quem queria me ver. Uma vergonha que não tenhamos tido a oportunidade de nos conhecer até agora.

Lex sentou-se junto ao líder do Refúgio, incapaz de evitar que seus olhos viajassem pelo interminável luxo de seus arredores.

- Mas você sabe quem sou eu? - perguntou Lex com cuidado. - Sabe também quem é o Primeira Geração, meu pai, Sergei Yakut?

Fabien assentiu com elegância.

- Só pelo nome, infelizmente. Fui negligente ao não ter feito as apresentações formais logo que vocês chegaram a minha cidade. Entretanto, os guarda-costas de seu pai deixaram claro que seu pai era uma espécie de eremita quando meu emissário pediu um encontro. Entendo que ele prefira uma vida tranquila e rural fora da cidade, em contato com a natureza ou algo do tipo.

Sobre os nódulos de seus dedos, o sorriso de Fabien não alcançou seus olhos.

- Suponho que viver com aquele tipo de... simplicidade signifique alguma coisa.

Lex grunhiu.

- Meu pai escolheu tal vida porque acredita estar acima da lei.

- Como?

- É por isso que estou aqui - disse Lex. - Tenho informações. Informações importantes que precisam ser averiguadas rapidamente. Secretamente.

Edgar Fabien inclinou-se contra as almofadas do sofá.

- Ocorreu algo... fora da casa?

- Vem ocorrendo há muito tempo - Lex admitiu, sentindo uma rara sensação de liberdade enquanto essas palavras saíam-lhe da boca.

Lex contou a Fabien tudo sobre as atividades ilegais de seu pai, desde o clube de sangue e do cemitério cheio dos restos de suas vítimas até o frequente assassinato de seus Subordinados humanos. Explicou, não sendo totalmente sincero, como fora corroído por esses segredo durante um longo tempo e como era seu próprio sentido de moralidade - seu sentido de honra e de respeito pela lei da Raça - que o obrigava a procurar ajuda para deter o reino particular de terror de Sergei Yakut.

Era o entusiasmo – a emoção no fundo de sua coragem - que fazia sua voz tremer, mas, se Fabien entendesse isso como lamento, melhor ainda.

Fabien o escutou com a expressão cuidadosamente séria e sóbria.

- Entendo, estou certo de que isso não é um assunto menor. O que você descreveu é... problemático. Perturbador. Mas haverá certos fatos que virão à tona nesse tipo de investigação. Seu pai é um Primeira Geração. Haverá perguntas que ele terá de responder, protocolos que precisarão ser observados.

- Investigação? Protocolos? - disse, indignado, Lex. Saltou sobre os pés, alagado de medo e ira. - Isso poderá levar dias ou até mesmo semanas. Um maldito mês!

Fabien assentiu, desculpando-se.

- De fato, poderá.

- Não há tempo para isso agora! Você não entende? Estou oferecendo meu pai de bandeja. Todas as provas que necessitará para uma detenção imediata estão ali em sua propriedade. Pelo amor de Deus, estou arriscando minha maldita vida só por estar aqui!

- Sinto muito - o líder do Refúgio dizia isso sustentando as mãos erguidas. - Se a situação não for segura para você, estaremos mais do que dispostos a oferecer-lhe proteção. A Agência poderia afastá-lo quando a investigação começar, levá-lo para algum lugar seguro.

A afiada risada de Lex o interrompeu.

- Enviar-me ao exílio? Estarei morto muito antes. Além disso, não estou interessado em fugir e me esconder como um cão. Quero o que mereço. Quero o que aquele bastardo filho da mãe me deve depois de todos esses anos de espera por esmolas – diante das palavras de Lex, era impossível mascarar os verdadeiros sentimentos. A ira preenchia-lhe o corpo por completo. - Quer saber o que realmente quero de Sergei Yakut? A morte.

O olhar de Fabien estreitou-se astutamente.

- Essa é uma afirmação muito perigosa.

- Não sou o único que pensa assim - respondeu Lex. - De fato, alguém teve coragem suficiente para tentar isso na semana passada.

Os ardilosos olhos de Fabien ficaram mais e mais estreitos.

- O que quer dizer?

- Ele foi atacado. Alguém entrou na casa e tentou cortar a cabeça do maldito, mas acabou falhando. Maldita sorte - Lex acrescentou baixinho. - A Ordem pensa que foi trabalho de um profissional.

- A Ordem - repetiu Fabien sem ar. - Como estão envolvidos nisso que está descrevendo?

- Eles enviaram um guerreiro ontem à noite para encontrar-se com meu pai. Aparentemente, estão tentando avisar os Primeira Geração sobre a recente caçada entre a população.

A boca de Fabien trabalhou um segundo sem formar palavras, como se não estivesse segura sobre o que articular primeiro. Ele limpou a garganta.

- Há um guerreiro aqui em Montreal? E o que é isso de caçada recente? Do que você está falando?

- Cinco Primeira Geração foram mortos, nos Estados Unidos e na Europa - disse Lex, recordando o que Nikolai lhe havia dito. - Alguém parece querer eliminar a primeira geração, um por um.

- Santo Deus – a expressão de Fabien era o vivo retrato da surpresa, mas algo nela preocupou Lex.

- Não sabia nada sobre os assassinatos?

Fabien levantou-se lentamente, agitando a cabeça.

- Estou aturdido, asseguro-lhe isso. Não tinha ideia. Que coisa terrível.

- Talvez sim, talvez não - respondeu Lex.

Enquanto olhava o líder do Refúgio, Lex se deu conta de que uma súbita tranquilidade abatia-se sobre o vampiro – uma tranquilidade tamanha que Lex se perguntava se ele ainda estava respirando. Havia um tênue, porém elevado, pânico nos olhos ambiciosos de Lex. Edgar Fabien sustentava o corpo com rígida precisão, mas seu olhar mutante encarava Lex como se quisesse sair correndo da sala.

Interessante.

- Sabe, eu esperava que você estivesse mais bem informado, Fabien. Sua reputação na cidade me levava a acreditar nisso. Com todos os seus amigos policiais, você está querendo me dizer que nenhum deles lhe disse algo sobre isso? Provavelmente eles não confiam em você, não? Provavelmente eles têm uma boa razão para isso.

Nesse momento, Fabien encontrou o olhar de Lex. Cintilações âmbar iluminaram-lhe a íris com um sinal revelador de um nervo comprimido.

- Que tipo de jogo está tentando fazer comigo?

- O seu - disse Lex, percebendo uma oportunidade e agarrando-a. - Você sabe sobre as caçadas aos Primeira Geração. A questão é: por que mente sobre isso?

- Não discuto publicamente assuntos policiais - Fabien cuspiu em resposta, inflando seu magro peito com indignação. - O que sei ou não sei é assunto meu.

- Sabia também sobre o ataque a meu pai antes que eu o mencionasse, não é mesmo? Foi você quem o atacou, não é? E quanto aos outros assassinados?

- Jesus Cristo, você está completamente louco.

- Queria estar - disse Lex. – Seja lá o maldito complô em que você está metido, Fabien, eu também quero fazer parte dele.

O líder bufou bruscamente, depois deu as costas a Lex enquanto caminhava para uma das altas estantes cravadas em uma parede prateada. Acariciou a madeira polida, rindo preguiçosamente.

- Embora nossa conversa tenha sido esclarecedora e divertida, Alexei, ela talvez deva terminar aqui. Acredito que é melhor que você vá e se acalme antes de dizer mais alguma tolice.

Lex avançou, decidido a convencer Fabien de que ele valia a pena.

- Se o quiser morto, estou disposto a ajudá-lo a conseguir isso.

- Insensato - foi a resposta que recebeu. - Posso estalar meus dedos e prendê-lo sob suspeita de tentativa de assassinato. Posso, mas nesse momento quero que vá embora e nenhum de nós dirá uma palavra sequer a respeito dessa conversa.

A porta da recepção se abriu e quatro homens entraram. Ao assentimento de Fabien, o grupo rodeou Lex. Sem escolha, ele saiu.

- Manterei contato - disse Lex, mostrando os dentes. – Pode contar com isso.

Fabien não respondeu, mas seu ardiloso olhar permaneceu fixo sobre Lex, com severo entendimento, enquanto o homem, tenso, atravessava a porta e a fechava.

Assim que Lex saiu para a rua, sozinho, sua mente começou a cogitar as opções disponíveis. Fabien era corrupto. Que surpreendente e útil informação. Com um pouco de sorte, não passaria muito tempo antes que as conexões de Fabien fossem também as suas. Não se preocupou particularmente em pensar como as conseguiria.

Levantou os olhos em direção à bela mansão do Refúgio e todo seu imaculado luxo. Era isso o que Lex queria: esse tipo de vida e não a imundície e a degradação que havia conhecido sob o jugo de seu pai. Isso era o que ele verdadeiramente merecia.

Mas, primeiro, ele precisaria sujar as mãos, mesmo que pela última vez.

Lex caminhou ao longo da estrada cheia de curvas ladeada por arvoredos e se dirigiu para a cidade com seus objetivos renovados.

 

 

CONTINUA

Capítulo 6

Em silêncio, Renata abriu a porta do quarto de Mira e espreitou a garotinha adormecida que descansava sobre a cama. Aquela era uma criança normal em seu pijama cor-de-rosa, com a bochecha macia apoiada contra o travesseiro fino, respirando calmamente pela delicada boca de querubim. Sobre a mesinha rústica próxima à cama estava o curto véu negro que cobria os notáveis olhos de Mira durante todos os momentos em que ela estava acordada.

- Bons sonhos, meu anjo - sussurrou Renata em voz baixa, de forma terna e esperançosa.

Nos últimos tempos, ela se preocupava cada vez mais com Mira. Não apenas por conta dos pesadelos que começaram depois do ataque que presenciara, mas pela saúde geral da garota. Embora Mira fosse forte e tivesse uma mente rápida e aguda, ela não estava completamente bem. Ela estava perdendo a visão rapidamente.

Cada vez que Mira era obrigada a exercitar o dom da premonição, um pouco de sua própria visão se deteriorava. E isso já estava acontecendo há meses quando Mira finalmente confidenciou a Renata seu estado. Ela tinha medo, como qualquer criança teria. Talvez até mais, já que Mira era mais sábia do que seus oito anos de idade indicavam. Ela compreendia que o interesse de Sergei Yakut por ela se evaporaria no momento em que ele a considerasse sem nenhuma utilidade. Ele a expulsaria, talvez até a mataria, se assim o desejasse.

Portanto, desde aquela noite, Renata e Mira mantinham um pacto: a condição de Mira seria um segredo entre elas e seria levado para o túmulo, se fosse necessário. Renata cumpria a promessa, jurando a Mira que a protegeria com sua própria vida. Jurou que nenhum dano aconteceria à garota, fosse ele causado por Yakut ou por qualquer outra pessoa, da Raça ou humano. Mira estaria a salvo da dor e da escuridão da vida de uma maneira que a própria Renata jamais esteve.

O fato de a garota ter sido usada naquela noite para entreter o hóspede não convidado de Sergei Yakut apenas aumentou a irritação de Renata. O pior de sua inquietação mental havia passado, mas uma dor de cabeça ainda persistia. O estômago não tinha parado de revirar, e pequenas ondas de náuseas retrocediam pouco a pouco.

Renata fechou a porta do quarto de Mira, estremecendo com outro pequeno tremor que lhe agitou o corpo. O longo banho que acabara de tomar tinha ajudado a aliviar um pouco o desconforto, mas até debaixo de suas calças folgadas de cor grafite e de seu pulôver macio de algodão branco, a pele continuava reclamando das correntes elétricas que lhe acometiam. Ela esfregou as palmas das mãos sobre as mangas da camisa, tentando dissipar a sensação ainda acesa que viajava por seus braços. Muito agitada para dormir, ficou no quarto apenas o tempo necessário para pegar algumas adagas no baú de armas. O treinamento sempre se mostrara bem-vindo nesses períodos de inquietação. Ela apreciava as horas do castigo físico que se infligia, feliz pelo treinamento rigoroso que a exauria.

Desde a terrível noite em que se encontrou imersa no perigoso mundo de Sergei Yakut, Renata havia aperfeiçoado ao máximo cada músculo de seu corpo, trabalhando metodicamente para se assegurar de que ela era tão letal quanto as armas que levava na caixinha de seda e veludo que agora carregava nas mãos.

Sobreviver.

Esse simples pensamento tinha sido seu farol desde que era apenas uma garota, mais jovem até do que Mira. E, mais que tudo, sozinha. Órfã abandonada na capela de um convento de Montreal, Renata não tinha nenhum passado, nenhuma família, nenhum futuro. Ela somente existia, e isso era tudo.

Para Renata, isso tinha sido o suficiente. Era o suficiente inclusive agora. Sobretudo agora que ela navegava pelo traiçoeiro mundo subterrâneo do reino de Sergei Yakut. Havia inimigos por todos os lados naquele lugar, tanto escondidos quanto visíveis. Inúmeros caminhos à espera de um passo em falso, de um equívoco; infinitas ocasiões para ela odiar o vampiro desumano que tinha a vida dela nas mãos. Mas ela não desistiria sem lutar.

Seu mantra dos dias de infância servia bem nesse momento: sobreviver um dia, e depois outro e outro.

Não havia espaço para brandura nessa equação. Piedade, vergonha ou amor não eram permitidos. Principalmente amor, de espécie alguma. Renata sabia que seu afeto por Mira - o impulso vital que lhe dava forças para fazer o caminho da menina mais suave e protegê-la como alguém de sua própria família - provavelmente lhe custaria muito caro no final.

Sergei Yakut tinha perdido pouco tempo explorando essa sua debilidade e Renata tinha as cicatrizes para comprovar.

Mas ela era forte. Não tinha encontrado coisa alguma nesta vida que não pudesse suportar, que não pudesse enfrentar - fisicamente ou de qualquer outra maneira. E tinha sobrevivido a tudo. Inteligente, forte... e letal quando tinha de ser.

Renata saiu do albergue e caminhou a passos largos pela escuridão rumo a um dos edifícios anexos que ficavam na parte de trás do local. O caçador que originalmente construíra a propriedade no bosque evidentemente adorava seus cães. Um velho canil de madeira fora erguido atrás da residência principal, disposto como um estábulo, com um amplo espaço dividido em dois e quatro baias de acesso alinhadas de ambos os lados. O teto de vigas devia ter uns quatro metros e meio de altura.

Embora pequeno, era um espaço aberto e bem ventilado. Na propriedade havia um celeiro maior e mais novo, que permitia movimentos mais fluidos, mas Renata geralmente o evitava.

Uma vez naquele lugar escuro e insalubre já tinha sido o suficiente. Se pudesse, ela já teria colocado fogo naquele maldito lugar.

Renata acendeu o interruptor ao lado da porta do canil e seu corpo se contraiu quando a lâmpada no teto derramou uma luz amarela e áspera no espaço. Entrou e caminhou pelo chão macio de terra batida. Passou por duas correias de couro largas e trançadas que se dependuravam na viga central da estrutura.

No extremo mais afastado do canil havia um poste alto de madeira que antes fora equipado com pequenos ganchos de ferro e laços para o armazenamento de correias e demais objetos. Renata havia se livrado dos arranjos alguns meses atrás e agora o poste funcionava como um alvo, cuja madeira escura já estava marcada de cortes profundos.

Renata colocou as lâminas sobre um fardo de palha que estava por perto e se agachou. Tirou os sapatos e caminhou descalça até o centro do canil. Alcançou o par de compridas correias de couro que havia ali e agarrou cada uma em uma mão. Enrolou o couro nos pulsos e, quando sentiu que estava cômodo, estendeu-se, flexionando os braços e levantando-se do chão de maneira tão leve que parecia ter asas.

Suspensa e livre da gravidade, Renata começou seu aquecimento. O couro rangia brandamente enquanto ela dava voltas e girava o corpo a vários metros do chão. Para ela, aquilo era a verdadeira paz, a sensação de seus membros ardendo, ganhando força e agilidade a cada movimento.

Renata deixou a mente se perder em uma meditação ligeira, mantendo os olhos fechados e todos os sentidos voltados para dentro de si, concentrados no ritmo cardíaco e na respiração, no movimento dos músculos enquanto ela se alongava. Assim foi até que girasse sobre o eixo e ficasse de cabeça para baixo, com os tornozelos agora presos às correias. Nesse momento, sentiu uma leve agitação no ar ao seu redor. Foi repentino e sutil, porém inconfundível. Tão inconfundível quanto o calor de uma respiração que agora lhe esquentava a bochecha.

Abriu os olhos de repente, lutando para compreender o espaço ao seu redor – todo invertido – e o intruso que estava de pé, abaixo dela. Era o guerreiro da Raça, Nikolai.

- Caramba! - ela disse, com sua falta de atenção fazendo-lhe oscilar um pouco no controle das correias. - Que diabos você acha que está fazendo?

- Relaxe - disse Nikolai. - Não estava querendo assustá-la – falou enquanto levantava as mãos para estabilizá-la.

- E não assustou – Renata respondeu com palavras pronunciadas com frieza. Com uma sutil flexão do corpo, afastou-se. – Importa-se? Você está atrapalhando meu treinamento.

- Ah! - as sobrancelhas loiras do macho da Raça arquearam enquanto seu olhar seguia a linha do corpo de Renata. - O que é exatamente esse treino? Está de olho em alguma vaga no Cirque du Soleil?

Ela não lhe deu o prazer de uma resposta. Não que ele esperasse uma. Nikolai virou-se e dirigiu-se para o poste que havia no outro extremo do canil. Estendeu a mão, percorrendo com os dedos as profundas marcas que havia na madeira. Então, encontrou as adagas e levantou o tecido que as protegia. O metal tilintou ao chocar-se brandamente dentro do quadrado dobrado de seda atado com a cinta de veludo.

- Não toque nisso - disse Renata, libertando-se das correias e voltando a colocar os pés no chão. - Eu disse para não tocar nisso. São minhas.

Niko não resistiu quando ela lhe tirou das mãos seus preciosos pertences; as únicas coisas de valor que ela podia reclamar como suas. O aumento em suas emoções o fez virar levemente a cabeça, certamente os efeitos secundários da força mental que ela esperava terem passado ainda persistiam. Ela deu um passo para trás e teve de se esforçar para manter a respiração estável.

- Você está bem?

Ela não gostou do olhar de preocupação refletido nos olhos azuis dele, pois era como se ele pudesse sentir sua debilidade, como se soubesse que ela não era tão forte quanto queria ser, quanto precisava aparentar.

- Estou bem.

Renata colocou as adagas em uma das baias do canil e as desembrulhou. Uma por uma, ela cuidadosamente colocou as quatro adagas esculpidas à mão sobre a madeira. Forçando um tom ligeiramente convencido, disse: - Eu é quem deveria fazer essa pergunta, não? Deixei você bem duro lá na cidade.

Ela escutou o grunhido baixo em algum lugar atrás de si, quase como um escárnio.

- Nunca se pode ser demasiado cauteloso quando se trata de estrangeiros - continuou ela. - Sobretudo agora. Estou segura de que você me entende.

Quando ela finalmente o percorreu com um olhar, encontrou-o olhando-a fixamente.

- Querida, a única razão pela qual você teve a possibilidade de me derrubar foi porque jogou sujo. Certificou-se de que eu a notasse no clube, fingindo ter alguma coisa escondida, sabendo que eu a seguiria diretamente para sua armadilhazinha.

Renata levantou os ombros, sem arrependimento.

- No amor e na guerra vale tudo.

Ele sorriu suavemente, formando um par de covinhas em seu rosto quadrado e masculino. – E isso é guerra, não é? – ele perguntou.

- Certamente não é amor – disse ela.

- Não - ele retrucou, tornando-se sério. - Nunca.

Bem, ao menos eles concordavam em alguma coisa.

- Há quanto tempo trabalha para Yakut?

Renata balançou a cabeça como se fosse incapaz de se recordar dessa informação, embora a noite em questão estivesse gravada em sua mente como se as memórias fossem ferro em brasa. Sangue. Horror. O começo de um fim.

- Não sei - disse ela. - Alguns anos, suponho. Por quê?

- Eu estava me perguntando como uma mulher, mesmo sendo uma Companheira de Raça com sua poderosa habilidade psíquica, foi parar nesse trabalho, especialmente para um Primeira Geração como ele. É estranho, é isso. Diabos, nunca ouvi falar de coisa semelhante. Então, diga-me: qual é sua ligação com Sergei Yakut?

Renata olhou fixamente o guerreiro: um forasteiro perigoso e ardiloso que, de repente, estava se intrometendo em seu mundo. Ela não estava segura de como responder. Certamente não estava disposta a lhe contar a verdade.

- Se você tem perguntas, talvez devesse fazê-las a ele.

- Sim - disse Niko, estudando-a mais estreitamente agora. - Talvez pergunte. E quanto à garota, Mira? Ela está aqui há tanto tempo quanto você?

- Não há tanto tempo. Apenas seis meses. - Renata tentou mostrar-se indiferente, mas um feroz instinto de proteção nasceu dentro de seu corpo diante da simples menção do nome de Mira nos lábios daquele guerreiro da Raça. - Ela passou por tanta coisa em tão pouco tempo. Coisas que nenhuma criança deveria testemunhar.

- Como o ataque a Yakut na semana passada?

E outras, mais sombrias ainda, Renata reconheceu interiormente.

- Mira tem pesadelos quase todas as noites. Ela praticamente não dorme já faz algum tempo.

Ele assentiu com a cabeça em um sóbrio reconhecimento.

- Este não é um bom lugar para uma garotinha. Alguns diriam que tampouco é lugar para uma mulher.

- É isso o que você diria, guerreiro?

O sorriso de Niko não confirmou nem negou a pergunta.

Renata o observou enquanto em sua mente surgiam perguntas e mais perguntas. Uma em particular.

- O que viu nos olhos de Mira esta noite?

Ele grunhiu algo ininteligível.

- Acredite, você não vai querer saber.

- Estou perguntando, não? O que ela lhe mostrou?

- Esqueça – enquanto ela o olhava, ele passou a mão pelos fios dourados de seu cabelo e exalou uma maldição, desviando o olhar em seguida. - De qualquer forma, isso não é possível. A garota definitivamente errou.

- Mira jamais erra. Ela nunca errou, pelo menos em todo o tempo em que a conheço.

- Mesmo? - o penetrante olhar azul do guerreiro voltou-se fixamente para Renata, percorrendo-lhe calorosamente o corpo em uma atitude lenta e avaliadora. - Alexei me disse que sua habilidade é imperfeita.

- Lex - Renata riu. – Faça-me um favor e não acredite em nada do que ele diz. Ele não diz e não faz nada sem um motivo oculto.

- Obrigado pelo conselho – disse, recostando-se contra o poste marcado pelas adagas. - Então, se é assim, não é verdade que, como ele disse, os olhos de Mira só refletem os acontecimentos que poderiam ocorrer no futuro, com base no agora?

- Lex pode ter suas próprias razões pessoais para desejar que não seja assim, mas Mira nunca erra. Tudo o que ela mostrou esta noite está destinado a acontecer.

- Destinado - disse ele, parecendo divertir-se com aquilo. - Bem, caramba... então acredito que estamos condenados.

Ele a olhou fixamente quando pronunciava essas palavras, desafiando-a a perguntar se ele deliberadamente a tinha incluído em sua observação. Dado que ele achara a ideia bastante divertida, ela não estava disposta a lhe dar a satisfação de perguntar o motivo. Renata agarrou uma de suas adagas e provou o peso do objeto com a palma aberta. Ela gostava de sentir o frio do aço contra a pele, algo sólido e familiar. Seus dedos estavam loucos para trabalhar. Seus músculos agora estavam aquecidos, preparados para mais uma ou duas horas de treino duro. Ela girou a lâmina e fez um sinal para o poste em que Nikolai estava apoiado.

- Importa-se? Não quero calcular mal e acidentalmente acertá-lo.

Ele percorreu o poste com o olhar e deu de ombros.

- Não seria mais interessante um treinamento de combate com um oponente real, que pudesse devolver o golpe? Ou será que você prefere alvos imobilizados?

Ela sabia que Niko estava jogando uma isca, mas o brilho de seus olhos era brincalhão. Ele realmente a estava paquerando? A natureza prática dele fez os pelos da nuca de Renata arrepiarem-se com cautela. Ela passou o polegar pela lâmina da adaga enquanto o olhava, insegura do que fazer.

- Prefiro trabalhar sozinha.

- Muito bem - ele disse inclinando a cabeça e afastando-se um pouco, quase que a desafiando com o olhar. – Como quiser.

Renata franziu a testa.

- Se você não se afastar, como pode estar seguro de que não vou acertá-lo?

Ele sorriu abertamente, completamente cheio de arrogância, com os musculosos braços cruzados sobre o peito.

- Mire onde quiser. Você nunca me acertaria.

Ela atirou a lâmina sem a mínima advertência.

O aço afiado cravou na madeira, causando uma fenda profunda, golpeando no lugar exato onde ela havia planejado. Mas Nikolai tinha desaparecido. Simples assim, sumido por completo.

Inferno.

Ele era da Raça, muito mais rápido do que qualquer ser humano, e tão ágil quanto um predador selvagem. Ela não era rival para ele, com armas ou com força física. E ela sabia disso mesmo antes de atirar a adaga. Entretanto, esperava, pelo menos, diminuir a arrogância e a presunção daquele filho da mãe.

Com os próprios reflexos afiados, Renata esticou o braço e alcançou outra adaga. Todavia, quando seus dedos se fecharam ao redor do punho lavrado, ela sentiu o ar mover-se atrás de si e percebeu o calor atravessar os fios de cabelo que estavam sobre o queixo.

O metal afiado subiu até sua mandíbula. Uma dura parede de músculos apertava-lhe a coluna vertebral.

- Não me acertou! Sentiu minha falta?

Ela engoliu cuidadosamente, pressionada pela lâmina que estava sob seu queixo. Tão brandamente quanto pode, relaxou os braços para os lados. Então, abaixou a mão que segurava a adaga, descansando-a entre as coxas separadas.

- Parece que encontrei você.

Como pôde, Renata o golpeou com uma pequena sacudida do poder de sua mente.

- Inferno - grunhiu Niko. E no instante em que relaxou o controle que tinha de Renata, a mulher saiu de seu alcance e virou-se para enfrentá-lo. Ela esperava a cólera dele, temia-a em certo sentido, mas ele apenas levantou a cabeça e deu de ombros. - Não se preocupe, querida. Só vou ter que brincar com você até que seja derrubada pelas reverberações de sua força psíquica.

Enquanto ela o contemplava, confusa e aflita, pensando como ele podia saber sobre a imperfeição de sua habilidade, ele disse:

- Lex me pôs a par de algumas coisas sobre você também. Ele me contou o que acontece cada vez que você dispara um desses mísseis psíquicos. Componente muito poderoso. Mas eu em seu lugar não o gastaria só porque sente necessidade de demonstrar força.

- Que o Lex vá pro inferno - murmurou Renata. - E que você vá pro inferno também. Não preciso de seus conselhos e certamente não preciso de nenhum de vocês falando porcarias a meu respeito pelas minhas costas. Essa conversa termina aqui.

Zangada como estava, ela, impulsivamente, flexionou o braço para trás e lançou a adaga na direção de Niko, sabendo que ele sairia facilmente do caminho como tinha feito antes. Dessa vez, porém, ele não se moveu. Com um estalo rápido como um relâmpago, ele estendeu a mão e capturou a lâmina no ar. E com um sorriso totalmente satisfeito, conseguiu que ela perdesse de vez as estribeiras.

Renata apanhou a última adaga no suporte do canil e a atirou contra ele. Como a outra, esta também foi pega no ar e agora ambas estavam nas mãos hábeis do guerreiro da Raça.

Ele a olhou, sem piscar, com um calor masculino que deveria deixá-la gelada, mas que, todavia, não a deixava.

- E agora o que vamos fazer para nos divertir, Renata?

Ela o fulminou com o olhar.

- Divirta-se sozinho. Vou embora daqui.

Ela deu meia-volta, pronta para sair do canil. Apenas tinha dado dois passos quando escutou um som agudo em ambos os lados de sua cabeça, tão perto que alguns fios errantes de seus cabelos voaram pelo rosto.

Então, diante dela, observou sobrevoar uma mancha imprecisa de aço, que estalou no outro extremo da parede.

Golpe seco.

As duas adagas que tinham voado ao lado de sua cabeça como objetos erráticos estavam agora cravadas na velha madeira, bem próximas de seus punhos. Renata virou-se, furiosa.

- Seu filho da mãe...

Ele se lançou sobre ela, seu enorme corpo obrigando-a a ir para trás, seus olhos azuis brilhando com algo mais profundo que a simples diversão ou a básica arrogância masculina. Renata deu um passo para trás, apenas o suficiente para que pudesse equilibrar seu peso sobre os calcanhares. Ela caminhou para trás e virou-se, elevando a outra perna em um chute giratório.

Dedos tão inflexíveis quanto barras de ferro fecharam-se ao redor de seu tornozelo, retorcendo-o.

Renata caiu no chão do canil, asperamente sobre as costas. Ele a seguiu, colocando-se sobre ela e encurralando-a enquanto ela lutava, agitando-se violentamente com os punhos e com as pernas. Mas Niko apenas precisou de um minuto para domá-la.

Renata ofegava pelo esforço excessivo, seu peito elevava-se pela velocidade de sua pulsação.

- Agora quem deseja demonstrar força, guerreiro? Você ganhou. Está feliz agora?

Ele fixou o olhar nela de forma estranha e silenciosa, não demonstrando prazer ou aborrecimento.

Seu olhar mantinha-se estável, tranquilo e íntimo. Ela podia sentir o coração martelando contra o peito. As coxas grossas dele escancaradas sobre ela, as duas mãos presas por cima de sua cabeça. Ele a sustentava com firmeza, com os dedos segurando-lhe os punhos em um suave apertão – suave e incrivelmente carinhoso. O olhar dele se desviou para onde a segurava, e um brilho de fogo crepitava em sua íris quando ele encontrou a pequena marca de nascimento carmesim com o desenho de uma lágrima que caía sobre uma meia-lua no pulso direito. Com o polegar, acariciou aquele precioso lugar, uma carícia fascinante e hipnótica que enviou um calor selvagem e erótico pelas veias de Renata.

- Ainda quer saber o que vi nos olhos de Mira?

Renata ignorou a pergunta, segura de que aquilo era a última coisa de que ela precisava saber naquele momento. Ela lutou com força debaixo dos músculos do corpo pesado do guerreiro, mas o maldito a dominava com o mínimo de esforço. Bastardo.

- Saia de cima de mim!

- Pergunte-me outra vez o que foi que vi, Renata.

- Já lhe disse para sair de cima de mim - grunhiu Renata, sentindo o pânico aumentar dentro do peito. Tentou respirar normalmente, sabendo que tinha que manter a calma e a situação sob controle. E tinha que ser rápida. A última coisa de que precisava era que Sergei Yakut saísse para procurá-la e a encontrasse impotente debaixo de outro macho. – Deixe-me sair agora.

- Do que tem medo?

- De nada, maldito!

Ela cometeu o erro de levantar o olhar em direção a ele. Um calor âmbar infiltrou-se no azul dos olhos do guerreiro: fogo devorando gelo. Suas pupilas começaram a estreitar-se rapidamente e atrás de seus lábios ela viu as pontas agudas das presas emergentes de Niko.

Se ele estava zangado, aquilo era apenas uma parte da causa física de sua transformação, já que, onde sua pélvis repousava ameaçadoramente sobre a dela, Renata sentia a ponta rija em sua virilha, a dilatação muito evidente do membro de Niko pressionando-se deliberadamente entre suas pernas.

Ela se moveu, tentando escapar daquele calor, da erótica posição dos corpos, mas aquilo apenas o deixou mais encaixado nela. O pulso acelerado de Renata se elevou, assumindo um ritmo urgente ao passo que um calor indesejado começou a florescer em seu sexo já completamente umedecido.

Ah, Deus! Isso não é bom. Isso não é nada bom.

- Por favor - ela gemeu, odiando-se pelo débil tremor que resvalou no momento de pronunciar a palavra. Odiando a ele também.

Queria fechar os olhos, recusando-se a ver o ardente e fixo olhar faminto. Ou a boca sensual e completamente selvagem tão perto da sua. Recusava-se a sentir o calor ilícito, a luxúria insana que ele causava nela - o perigo daquele inesperado desejo mortal. Mas seus olhos permaneciam fixos, incapazes de desviar, a resposta de seu corpo para aquele macho da Raça era mais forte que o ferro, mais intenso que sua vontade.

- Pergunte-me o que a menina me mostrou esta noite em seus olhos - exigiu ele, com voz tão baixa quanto um ronronar. Seus lábios estavam tão perto dos dela que lhe roçaram a pele suave. - Pergunte-me, Renata. Ou talvez prefira ver a verdade com seus próprios olhos.

O beijo passou através de seu sangue como fogo.

Os lábios pressionaram-se com paixão, o fôlego quente apressou-se, mesclando-se nos corpos ardentes dos dois. A língua do guerreiro explorou a boca de Renata, inundando-lhe, afogando seu grito mudo de prazer. Renata sentiu os dedos dele acariciando-lhe as bochechas, deslizando sobre os cabelos de sua têmpora para, então, passarem deliciosamente por sua nuca sensível. Ele a puxou para mais perto, afogando-a mais profundamente no beijo, que a estava tomando por completo, rompendo totalmente sua resistência.

Não. Ah, Deus! Não, não, não. Não posso fazer isto. Não posso sentir isto.

Renata separou-se da erótica tortura da boca do guerreiro e virou a cabeça para o lado. Ela estava tremendo, e suas emoções estavam chegando a um nível perigoso. Ela arriscara muito ali, com ele. Muito.

Por Deus! Ela tinha que apagar aquela chama que ele acendera em seu interior, aquela chama que a estava derretendo de forma mortal. E tinha de apagá-la rapidamente.

Dedos quentes tocaram-lhe o queixo, dirigindo seu olhar novamente à fonte de sua angústia.

- Você está bem?

Ela livrou-se daquelas mãos e separou-se do macho da Raça com um empurrão, ainda incapaz de falar.

Ele se afastou imediatamente. Segurou-lhe a mão, ajudando-a a ficar de pé. E embora Renata não quisesse ajuda alguma, ela estava muito afetada para rechaçar Niko naquele momento. Ficou de pé, incapaz de olhá-lo, tentando recompor-se.

Rezava para que não tivesse acabado de assinar sua própria sentença de morte.

- Renata?

Aquela voz atravessou-a de forma desesperadamente tranquila e fria.

- Aproxime-se de mim outra vez – ela disse - e eu juro que mato você.


Capítulo 7

Alexei estava esperando havia mais de dez minutos do lado de fora do quarto de seu pai, o que demonstrava que um pedido seu para uma audiência era considerado como o de qualquer um dos outros guardas de Yakut. A falta de respeito – a flagrante indiferença – não incomodava mais Lex como antes. Ele tinha superado esse passado amargo e inútil em favor de coisas mais produtivas.

Ah! No fundo do estômago de Lex ainda doía saber que seu pai - seu único parente vivo - pudesse pensar tão pouco nele, mas o calor da rejeição constante tinha, de alguma forma, se tornado menos doloroso. As coisas eram simplesmente assim. E Lex, de fato, era mais forte por isso. Era igual ao pai, de maneira que nem o maldito velho Primeira Geração poderia imaginar, que dirá admitir.

Mas Lex conhecia suas próprias capacidades. Conhecia suas próprias forças. Sabia sem dúvida alguma que podia ser muito mais do que era agora, e desejava a oportunidade de demonstrá-lo: a ele mesmo e, sim, ao filho da mãe que o criara também.

Quando a porta finalmente se abriu, o ruído seco da fechadura de metal fez os pés de Lex vacilarem.

- Bem a tempo - grunhiu ele ao guarda, que se afastou para deixá-lo entrar.

O lugar estava escuro, iluminado apenas pelo brilho das madeiras que ardiam na enorme lareira de pedra na parede oposta. Havia eletricidade na casa, mas ela raramente era utilizada – não eram necessárias luzes, pois Sergei Yakut e o resto da Raça tinham uma extraordinária visão, especialmente no escuro.

Os outros sentidos dos homens da Raça também eram bastante agudos, mas Lex suspeitava que até um humano se sentiria em apuros ao sentir os aromas de sangue e sexo que se fundiam com o aroma azedo da fumaça da lareira.

- Perdoe-me por interrompê-lo - murmurou Lex, enquanto seu pai saía de um cômodo anexo.

Yakut estava nu, com o pênis ainda parcialmente ereto e inclinando-se obscenamente com cada movimento. Enojado pela vista, Lex piscou e desviou o olhar. Rapidamente pensou melhor no ato e percebeu que aquele débil impulso seria usado contra ele. Em vez disso, observou o pai entrar no quarto, os olhos brilhando como carvões âmbar enfiados no fundo do crânio, com as pupilas reduzidas a estreitas e verticais frestas no centro do globo ocular. As presas em sua boca estavam enormes, completamente estendidas e afiadas como lâminas.

Uma camada de suor cobria-lhe o corpo e cada polegada da lívida cor latente de seus dermoglifos, as marcas únicas da Raça que se estendiam da garganta aos tornozelos do Primeira Geração. Sangue fresco – humano, sem dúvida, um aroma fraco que indicava pertencer a um Subordinado - manchava todo o torso e os flancos do vampiro ancião.

Lex não estava surpreso pela evidência da recente atividade de seu pai, nem pelo fato de que o trio de vozes fracas no outro quarto fosse as de seu atual grupo de escravas humanas. Criar e manter Subordinados, algo que só as estirpes mais puras e poderosas da Raça eram capazes de fazer, tinha sido durante muito tempo uma prática ilegal entre a educada sociedade da Raça. Entretanto, essa prática continuava, pelo menos entre os domínios de Sergei Yakut. Ele fazia suas próprias regras, executava sua própria justiça, e aqui, neste lugar remoto, deixava claro a todos que ele era o rei. Inclusive Lex podia desfrutar desse tipo de liberdade e poder. Diabos! Podia, de fato, saboreá-lo.

Yakut dirigiu-lhe um olhar desdenhoso do outro lado do quarto.

- Olho para você e vejo a morte diante de mim.

Lex franziu a testa.

- Senhor?

- Se não fosse pelas restrições do guerreiro e por minha intervenção nesta noite, estaria ao lado de Urien em cima daquele armazém na cidade, ambos esperando o amanhecer.

O desprezo inundava cada sílaba das palavras de Yakut enquanto ele pegava uma ferramenta de ferro do lado da chaminé e movia as brasas na lareira.

- Salvei sua vida esta noite, Alexei. O que mais espera por hoje?

Lex irritou-se ao se lembrar de sua recente humilhação, mas sabia que o ódio não o ajudaria, particularmente quando estivesse enfrentando o pai. Fez um movimento com a cabeça, tentando encontrar uma maldita resistência para manter o tom em sua voz.

- Sou seu fiel servo, pai. Não me deve nada. E não peço nada exceto a honra de sua contínua confiança em mim.

Yakut grunhiu.

- Você fala mais como um político do que como um soldado. Não preciso de políticos entre os meus, Alexei.

- Sou um soldado - respondeu rapidamente Lex, elevando a cabeça e olhando enquanto o pai continuava movendo a barra de ferro no fogo. As lenhas soltavam faíscas que golpeavam o silêncio letal que tomava conta do ambiente. - Sou um soldado - afirmou novamente. - Quero servi-lo da melhor maneira possível, pai.

Yakut girou a cabeça despenteada para olhar Lex por cima do ombro.

- Você me oferece palavras, garoto. Não confio em palavras. E ultimamente não o vejo me oferecendo nada além de palavras.

- Como espera que eu seja eficiente se não me mantém informado dos acontecimentos?

Quando os olhos matizados de âmbar estreitaram-se sobre ele, Lex apressou-se em acrescentar:

- Falei com o guerreiro no bosque. Ele me contou sobre os recentes assassinatos dos Primeira Geração. Disse que a Ordem havia pessoalmente entrado em contato com você para avisá-lo do perigo potencial. Deveria ter me contado isso, pai. Como capitão de sua guarda, mereço ser informado.

- Merece o quê? - a pergunta saiu dos lábios de Yakut. - Por favor, Alexei... diga-me o que você acha que merece.

Lex permaneceu em silêncio.

- Nada a acrescentar, filho? - Yakut moveu a cabeça em um ângulo exagerado, a boca mostrando um sorriso sarcástico. - Uma acusação semelhante me foi lançada há anos pelos lábios de uma mulher estúpida que pensava poder apelar para meu sentido de obrigação. Minha misericórdia, possivelmente – Yakut riu entre os dentes, voltando a atenção de novo ao fogo, para mover, de novo, as brasas. - Sem dúvida você se lembra do que aconteceu.

- Sim - respondeu com cuidado Lex, surpreso pela garganta seca enquanto falava.

As lembranças formaram redemoinhos com as ondulantes chamas da lareira.

Norte da Rússia, fim do inverno. Lex era um menino, mal tinha dez anos, mas era o homem de seu precário lar tanto quanto podia se lembrar. Sua mãe era tudo o que ele tinha. A única que sabia como ele era realmente, e a única que o queria bem.

Ele estava preocupado desde a noite em que ela lhe havia dito que o levaria para conhecer seu pai pela primeira vez. Disse-lhe que ele era um segredo que ela tinha mantido - seu pequeno tesouro. Mas o inverno fora duro, e eles eram pobres. Precisavam de refúgio, de alguém que os protegesse. O campo estava em batalha e era inseguro para uma mulher cuidando sozinha de um menino. Ela disse que o pai de Lex os ajudaria, que ele abriria os braços em boas-vindas uma vez que conhecesse o filho.

Mas Sergei Yakut os recebeu com uma cólera fria e um terrível e impensável ultimato.

Lex se lembrou da mãe rogando a Yakut para que os acolhesse... Lembrou-se da mulher sendo completamente ignorada. Lembrou-se da bela mulher ajoelhada diante de Yakut, implorando para que cuidasse de Alexei.

As palavras estavam gravadas nos ouvidos de Lex, inclusive agora: “Ele é seu filho! Isso não significa nada para você? Será que ele não merece algo mais?”.

Rapidamente a cena saiu do controle.

Facilmente, Sergei Yakut ergueu uma espada e deslizou a lâmina pelo pescoço da indefesa mãe de Lex.

Suas palavras brutais afirmavam que ele tinha apenas lugar para soldados em seu reino, e que Lex tinha uma escolha a fazer naquele momento: servir ao assassino de sua mãe ou morrer com ela.

A débil resposta de Lex tinha sido dita entre soluços. “Vou servi-lo”, disse. E sentiu que uma parte de sua alma o abandonava enquanto olhava com horror o corpo ensanguentado e mutilado da mãe. Vou servi-lo, pai.

O silêncio que se seguiu foi muito frio, tão frio quanto uma tumba.

- Sou seu servo - Lex disse alto, baixando a cabeça mais pelo peso das velhas lembranças do que por respeito ao tirano que o governava. - Minha lealdade sempre foi sua, pai. Apenas sirvo ao seu prazer.

Um repentino calor, tão intenso quanto chamas ardentes, veio sob o queixo de Lex. Sobressaltado, ele levantou a cabeça, estremecendo de dor com um grito afogado. Viu a fumaça sair diante de seus olhos, sentiu o cheiro adocicado de carne queimando.

Yakut Sergei estava diante dele segurando o atiçador de ferro nas mãos. A ponta brilhante da haste de metal queimava vermelha, exceto pelo resíduo de pele branca pendurada, que havia sido arrancada do rosto de Lex.

Yakut sorriu, mostrando as pontas de seus dentes.

- Sim, Alexei, você serve apenas para o meu prazer. Lembre-se disso. Só porque meu sangue corre em suas veias não significa que eu não possa matá-lo.

- Claro que não - Lex murmurou, seus dentes cerrados pela devastadora agonia da queimadura. O ódio fervilhava nele pelo insulto que tinha que engolir e por sua própria impotência quando viu o homem da Raça desafiando-o com a testa franzida, pronto para fazer um movimento contra ele novamente. Yakut acabou desistindo. O velho arrastou uma túnica de linho marrom de uma cadeira e deu de ombros para ele. Seus olhos ainda estavam brilhantes, com fome e sede de sangue. Deixou a língua deslizar em seus dentes e presas.

- Como você está tão ansioso para me agradar, traga-me Renata. Preciso dela agora.

Lex apertou os dentes.

Sem palavras, saiu do quarto com a mandíbula rígida, os próprios olhos cintilando com a luz âmbar de sua indignação. Não perdeu de vista o olhar confuso do guarda postado na porta, o rumo inquieto dos olhos dos outros vampiros enquanto disfarçava o aroma de carne queimada e o provável calor de sua ira.

A queimadura cicatrizaria - de fato, já estava cicatrizando -, seu acelerado metabolismo da Raça reparava a pele queimada enquanto seus pés o levavam à área principal do refúgio. Renata vinha de fora. Ela viu Lex e se deteve, virando como se quisesse evitá-lo.

Não mesmo.

- Ele quer você - gritou Lex, sem se preocupar com quantos outros guardas estivessem ouvindo. Todos sabiam que ela era a vadia de Yakut, assim, não havia razão para fingir outra coisa. – Mandou-me que a chamasse. Está a sua espera para que o sirva.

Os frios olhos verde-jade o demoliram.

- Estive treinando. Preciso me lavar.

- Ele disse agora, Renata.

Uma ordem curta que ele sabia que seria obedecida. Havia mais do que uma leve satisfação nesse pequeno e raro triunfo.

- Muito bem.

Ela deu de ombros, apoiada sobre seus pés descalços.

Sua insossa expressão enquanto se aproximava dizia que não se preocupava com o que pensavam dela, muito menos Lex, e essa indiferença à humilhação apenas o fazia querer degradá-la mais. Farejou em sua direção, mais pelo efeito que isso causava do que por qualquer outra coisa.

- Ele não se importará com sua imundície. Todos sabemos que as melhores vagabundas são as sujas.

Renata não fez mais do que piscar com o vulgar comentário. Ela podia reduzi-lo com uma rajada de seu poder mental se assim o decidisse - de fato, Lex quase esperava que ela o fizesse, simplesmente para provar que a havia ferido. Mas o rápido giro de seu olhar disse que ela não sentia que ele merecia tal esforço.

Ela passou junto dele com uma dignidade que ele não podia compreender. Ele a olhou – todos os guardas próximos a olharam - enquanto ela caminhava para o quarto de Sergei Yakut tão calma quanto uma rainha a caminho da forca.

Não precisou muito para Lex imaginasse o dia em que ele controlaria tudo, mandaria naquele lugar, inclusive na altiva Renata. É óbvio, a vadia não seria tão altiva se sua mente, vontade e corpo pertencessem completamente a ele. Uma Subordinada para servir cada um de seus caprichos e os dos outros homens sob seu comando.

Sim, Lex pensou sombriamente, seria muito bom ser rei.


Capítulo 8

Nikolai pegou uma das adagas de Renata no poste onde ela as havia atirado. Tinha de lhe dar crédito: se tivesse acertado o alvo, ele estaria morto. Se fosse simplesmente um humano com reflexos lentos, e não um macho da Raça, o treinamento dela certamente o teria transformado em espetinhos para assar.

Ele riu ao devolver a lâmina ao envoltório elegante com as outras três. As armas eram belas, lustrosas e perfeitamente equilibradas, obviamente feitas à mão. Niko deixou seu olhar vagar sobre o desenho esculpido nos punhos de prata esterlina da arma. O padrão parecia ser um jardim de videiras e flores, mas quando ele as olhou mais de perto, deu-se conta de que cada uma das quatro lâminas também tinha uma palavra gravada dentro do desenho: fé, coragem, honra e sacrifício.

Ele se perguntou se aquilo seria uma espécie de oração de um guerreiro ou os princípios da disciplina pessoal de Renata.

Nikolai pensou no beijo que tinham compartilhado. Bom, dizer que eles o tinham compartilhado era um tanto presunçoso, considerando como ele tinha descido sua boca com toda a delicadeza de um trem de carga. Ele não tivera a intenção de beijá-la. Certo, e a quem ele estava tentando enganar? Ele não poderia ter parado mesmo que tivesse tentado. Não que fosse uma desculpa. E não que Renata tivesse dado qualquer possibilidade de desculpas ou perdão.

Niko ainda podia ver o horror em seus olhos, a inesperada, porém óbvia repulsão pelo que ele tinha feito. Ainda podia sentir a sinceridade da ameaça que ela pronunciou antes de sair tempestuosamente do canil.

A parte destruída de seu ego tentava acalmá-lo com a possibilidade de que talvez ela realmente desprezasse todos os machos de modo geral. Ou que talvez ela fosse tão fria como Lex parecia pensar. Um soldado assexuado – frígida apesar de ter a cara de um anjo e o corpo que conduzia sua mente a todo tipo de pecado e luxúria. Muitos pecados, cada um mais tentador e atraente do que o anterior.

Nikolai tinha um encanto fácil quando se tratava de mulheres. Não era simples alarde, mas uma conclusão a que ele tinha chegado baseado nos anos de experiência. Quando se tratava de mulheres, desfrutava tranquilamente das conquistas sem complicações, quanto mais temporárias melhor. A perseguição e as lutas eram divertidas, mas o melhor reservava para o combate verdadeiro, em batalhas sangrentas, com vampiros Renegados e outros inimigos da Ordem. Esses eram os desafios de que ele mais desfrutava.

Então, por que estava lutando contra esse impulso perverso de ir atrás de Renata e descobrir se não podia descongelar parte do gelo que a cobria?

Porque ele era um idiota. Um idiota com uma fúria perigosa e com um aparente desejo mortal.

Hora de parar de pensar com a cabeça de baixo. Não importava o que seu corpo estivesse dizendo - não importava mais o que ele tinha visto no olhar de Mira. Ele tinha um trabalho a fazer, uma missão da Ordem, e esta era a única razão pela qual estava ali.

Niko cuidadosamente envolveu as adagas de Renata no estojo de seda e veludo, e colocou o pequeno embrulho no fardo de palha esperando que ela voltasse para buscá-los, assim como os sapatos deixados para trás.

Abandonou o canil e se dirigiu à escuridão para recolher informações sobre as terras da mansão. Uma meia-lua pendurava-se no alto do céu noturno, velada por um punhado de nuvens negras como carvão. A brisa da meia-noite era cálida, abatendo-se brandamente através dos pinheiros altos e dos carvalhos espinhosos dos bosques ao redor. Os aromas misturavam-se no ar úmido do verão: o sabor forte da resina de pinheiro, a marca mofada do chão protegido do sol, a nitidez de tantos minerais na água doce, na corrente que evidentemente atravessava a propriedade não longe de onde Niko estava.

Nada incomum. Nada fora do lugar.

Até que...

Nikolai levantou o queixo e inclinou a cabeça ligeiramente para o oeste. Algo inesperado atravessou os seus sentidos. Algo que não podia, não deveria, encontrar ali.

Era a morte o que ele estava sentindo.

Sutil, antiga... mas certa.

O guerreiro correu na direção que seu olfato o levava. Cada vez mais profundo no bosque. A cerca de cem metros da mansão, a mata adensou-se. Niko reduziu sua marcha quando chegou ao lugar onde suas fossas nasais começavam a arder com o fedor envelhecido da decomposição. Aos seus pés, o chão estava esparso com folhas, enredado por videiras que caíam longe pela ravina escarpada.

Nikolai olhou para baixo pela fenda, adoecendo, antes mesmo que seus olhos pousassem na carnificina.

- Inferno - murmurou ele, sob seu fôlego.

Uma fossa de morte se encontrava no fundo da ravina. Esqueletos humanos. Dúzias de corpos, sem enterrar, esquecidos, simplesmente jogados uns em cima dos outros, como se fossem lixo. Tantos que levaria muito tempo para contar todos eles. Adultos. Crianças pequenas. Um massacre que não mostrava nenhuma discriminação a suas vítimas, tampouco misericórdia. Um massacre que poderia ter levado anos para ter sido realizado.

A pilha de ossos brancos brilhava sob a escassa luz da lua, pernas e braços empilhados juntos onde quer que o mortos tivessem caído, crânios olhando para ele, com as bocas abertas em macabros gritos silenciosos. Nikolai tinha visto o suficiente. Recuou da beira da ravina enquanto lançava outra maldição na escuridão.

- Que tipo de porcaria andou acontecendo por aqui?

Em seu íntimo, ele sabia.

Jesus Cristo, não havia muita margem para dúvidas.

Um clube de sangue.

A fúria e a repugnância passaram através dele em uma onda negra. Ele teve, por instantes, o desejo entristecedor de rasgar os membros de cada vampiro comprometido em violar a lei assassinando todas aquelas pessoas. Não que ele tivesse esse direito, mesmo como um membro guerreiro da Ordem. Ele e seus irmãos não tinham muitos amigos entre os ramos governantes da Raça, e muito menos na Agência de Controle, que atuava tanto como policiais e como políticos, responsáveis pelas populações de vampiros em geral. Eles pensavam que a Ordem e todos os guerreiros que a serviam estavam acima da sociedade civilizada. Vigilantes e militantes. Cães selvagens que só desejavam uma desculpa para fazê-la cair.

Nikolai sabia que isso estava fora de seus limites de atuação, mas isso não fez que o desejo de prescindir sua própria marca de justiça ficasse menos tentador.

Embora ultrajado e indignado, Niko precisava acalmar-se. Sua fúria não ajudaria as vidas esparramadas lá embaixo. Era muito tarde para isso. Niko não podia fazer nada, exceto mostrar um pouco de respeito, algo que lhes tinha sido negado inclusive depois da morte.

Solenemente, embora só por um breve momento, Nikolai se ajoelhou na borda da profunda ravina. Ele estendeu amplamente seus braços longos, invocando o poder luminoso que estava dentro dele, um talento da Raça que se encontrava unicamente nele e que em sua linha de trabalho, em particular, era de pouca utilidade. Sentiu o poder arder em seu interior quando o invocou. O poder se voltou em energia e luz, propagando-se através de seus ombros e movendo-se para baixo, em direção a seus braços. Logo, em suas mãos, esferas gêmeas brilhavam sob a pele no centro das palmas.

Nikolai tocou com os dedos a terra ao seu lado.

Em resposta, as videiras e arbustos se agitaram ao seu redor, gravetos verdes e pequenas flores silvestres do bosque despertaram acima, fazendo movimentos. Esses movimentos aumentaram cada vez mais em acelerada velocidade. Niko enviou os brotos que estavam crescendo de novo para a ravina e, em seguida, ficou de pé para assistir aos mortos serem cobertos por um manto de suaves folhas novas e flores.

Não era um grande rito funerário, mas era tudo o que ele tinha a oferecer às almas dos corpos que foram deixados ali para apodrecer na intempérie.

- Descansem em paz - murmurou ele.

Quando o último osso foi coberto, ele se dirigiu para a mansão. O celeiro de armazenamento em que ele tinha farejado o sangue agora chamava-lhe a atenção.

Só para confirmar suas suspeitas, Niko inspecionou e moveu o ferrolho solto. Abriu a porta e olhou dentro da construção. O celeiro estava vazio, tal como Lex havia dito. Mas novamente, as jaulas de aço construídas no interior não tinham sido feitas para nenhum tipo de armazenamento permanente. Eram gruas altas, celas da prisão com ferrolhos desenhados para os prisioneiros humanos, com caráter de contenção temporária.

Brinquedos vivos para o esporte de caça ilegal no remoto bosque que Sergei Yakut dominava.

Com um grunhido, Nikolai saiu do celeiro e partiu para a casa principal.

- Onde está ele? - perguntou ao guarda armado que o percebeu assim que atravessou a porta. - Onde está ele? Diga agora!

Ele não esperou por uma resposta. Não quando os outros dois guardas, ambos do lado de fora de uma porta fechada no grande corredor, tomaram uma postura de batalha repentina. Atrás deles, estavam os aposentos privados de Yakut, obviamente.

Nikolai irrompeu e empurrou um dos guardas de seu caminho. O outro tinha um rifle e começou a apontar para o guerreiro. Niko bateu a arma na cara do guarda, e então lançou o vampiro tonto à parede mais próxima.

Deu um chute na porta, estilhaçando a madeira velha e arrancando as dobradiças de ferro. Caminhou a passos largos através dos escombros, ignorando os gritos dos homens de Yakut. Encontrou o Primeira Geração no centro do quarto, diante de um sofá de couro, inclinado possessivamente sobre a garganta nua de uma fêmea de cabelos escuros enjaulada pelos braços do vampiro.

Com a interrupção, Yakut levantou a cabeça de sua alimentação e olhou na direção do invasor. Também o fez sua Anfitriã de Sangue...

Renata.

Não mesmo.

Ela estava unida a ele com o laço de sangue? Seria ela a Companheira de Raça desse monstro?

Todas as acusações que Nikolai tinha preparado para lançar a Sergei Yakut morreram repentinamente em sua garganta. Ele ficou olhando fixamente, com seus sentidos da Raça turvados e trincados, mais acordados ao ver o sangue da fêmea que gotejava dos lábios e das enormes presas de Yakut. O aroma dela atravessou o quarto, atingindo com força o cérebro de Niko. Ele não esperava um contraste tão estranho ao de sua conduta fria, mas o aroma de seu sangue era uma mescla quente, embriagadora e intoxicante de sândalo e chuva fresca de primavera. Suave. Feminino. Excitante.

A fome apertou o estômago de Nikolai, uma reação visceral com a qual ele teve que lutar arduamente para conter-se. Disse para si que era simplesmente sua natureza da Raça sobressaindo-se. Havia poucos entre os de sua estirpe que podiam resistir ao canto das sereias de uma veia aberta, mas quando seus olhos encontraram o olhar fixo de Renata, um novo calor explodiu dentro dele. Mais forte, aliás, que a primitiva sede de alimentar-se.

Ele a desejava.

Mesmo enquanto estava deitada debaixo de outro macho, permitindo-lhe beber dela, Nikolai tinha fome dela com uma ferocidade que o sobressaltava. Unida pelo sangue a outro ou não, Niko queimava de desejo por Renata.

O que, até mesmo com seu flexível código de honra, o fazia se sentir quase próximo ao nível desprezível de Yakut.

Niko teve de sacudir-se mentalmente para desprender-se daquela visão perturbadora, voltando bruscamente sua atenção aos problemas que tinha à mão.

- Você tem um sério problema - disse ele ao vampiro Primeira Geração, sendo apenas capaz de conter seu desprezo. - Na verdade, suponho que você tem aproximadamente três dúzias deles apodrecendo em seu bosque.

Yakut permaneceu calado, seu olhar escuro assumiu a cor âmbar, indicando o desafio. Um grunhido ondulou antes que ele voltasse a cabeça para sua refeição interrompida. A língua de Yakut deslizou do meio de seus lábios para lamber as espetadas que tinha deixado no pescoço de Renata, selando as feridas e estancando o sangue.

Só então, quando a língua de Yakut percorreu a pele de Renata, ela afastou o olhar de Niko. Ele acreditou ver alguma tranquilidade, um pouco de resignação, passar através de seu rosto nos segundos antes de Yakut se levantar e a liberar. Uma vez livre, Renata se moveu para o canto do quarto, puxando a camisa de volta ao lugar.

Ela ainda estava vestida com a roupa de antes, ainda estava descalça.

Ela devia ter vindo diretamente para cá depois do que tinha se passado no canil.

Tinha procurado Yakut por proteção? Ou por simples comodidade?

Jesus.

Niko se sentiu um asno quando se lembrou da maneira como tentou beijá-la. Se ela estivesse unida por sangue a Sergei Yakut, essa união era sagrada, íntima... exclusiva. Não admirava que ela tivesse reagido como reagira. Os beijos de Nikolai teriam sido um insulto e a degradação para ambos. Mas agora ele não estava ali para pedir desculpas – não a Renata ou ao seu aparente companheiro.

Nikolai dirigiu um olhar duro para o vampiro.

- Há quanto tempo você caça seres humanos, Yakut?

O Primeira Geração apenas grunhiu, sorrindo.

- Encontrei os currais de detenção no celeiro. Encontrei os corpos. Homens, mulheres... crianças.

Nikolai grunhiu uma maldição, incapaz de conter sua repugnância e indignação.

- Você transformou esse lugar em um maldito clube de sangue. Pelo aspecto dos corpos, eu diria que faz isso há anos.

- E o que tem isso? - Yakut perguntou despreocupadamente, sem sequer tentar emitir uma respeitável negação.

E no canto do quarto, Renata permaneceu em silêncio, com os olhos fixos em Niko, mas sem mostrar surpresa alguma.

Ah, Cristo! Então ela também sabia.

- Maldito doente - ele disse, olhando de novo para Yakut. - Todos vocês estão doentes. Não poderá continuar com isso. Pare agora mesmo. Há leis...

O Primeira Geração riu, com a voz deformada pela transformação de seu lado mais selvagem.

- Eu sou a lei aqui, rapaz. Ninguém, nem os Refúgios e sua tão elogiada Agência, nem sequer a Ordem têm algo a ver com meus assuntos. Convido qualquer um para vir aqui e tentar me dizer o contrário.

A ameaça era clara. Apesar do fato de a honra e a justiça gritarem dentro de Nikolai para que ele acabasse com o maldito filho da mãe ali mesmo, ele não podia fazê-lo, pois Yakut não era um vampiro comum. Era um Primeira Geração. Não apenas dotado de força e poderes imensamente maiores que os do guerreiro ou de qualquer outro posterior da Raça, mas também membro de uma classe rara. Desses, só havia poucos, menos ainda agora, como resultado da eclosão dos recentes assassinatos.

Tão repugnante quanto a prática ilegal dos clubes de sangue entre a sociedade da Raça era a tentativa de matar um vampiro da Primeira Geração.

Nikolai não podia levantar a mão contra o filho da mãe, não importa quanto desejasse fazer isso.

E Yakut sabia. Ele limpou a boca com a túnica escura, esfregando ligeiramente a fragrância doce do sangue de Renata.

- A caçada está em nossa natureza, rapaz.

A voz de Yakut tinha uma serenidade mortal, completamente cheia de confiança, enquanto avançava para Nikolai.

- Você é jovem, nascido da Raça mais fraca de alguns de nós. Talvez seu sangue esteja tão diluído com o da humanidade que simplesmente não pode compreender a necessidade em sua forma mais pura. Se tivesse o gosto pela caçada, seria menos hipócrita com aqueles de nós que preferem viver como deve ser.

Niko sacudiu lentamente a cabeça.

- Os clubes de sangue não são só caçada. Eles são simplesmente uma matança. Você pode dizer suas asneiras, mas ainda assim você não passa de um monte de porcaria. É um animal. O que você realmente precisa é de uma focinheira e de uma coleira. Alguém tem que deter você.

- E pensa que você ou a Ordem fará essa tarefa?

- Você pensa que nós não faremos? - desafiou Niko, com uma parte de si esperando que o Primeira Geração lhe desse uma boa razão para sacar suas armas. Ele não se imaginava fugindo do confronto com o vampiro ancião, ele não desistiria sem uma maldita briga.

Em resposta, Yakut recuou, com seus olhos de cor âmbar brilhantes, as elípticas pupilas diminutas estilhaçadas de negro. Ergueu o queixo barbudo e virou a cabeça para um lado. Seus lábios se separaram com um selvagem sorriso que expôs suas presas. Daquela maneira não era difícil que todos observassem a parte alienígena dele - a parte que fazia dele e de todo o resto da Raça o que eram: predadores que bebem sangue e não pertencem totalmente a este mundo mortal, mas que apenas nasceram aqui.

- Eu lhe disse uma vez que você não era bem-vindo em meus domínios, guerreiro. Você ou sua proposta de aliança com a Ordem não me serve de nada. Minha paciência está chegando ao limite, assim como sua estadia aqui.

- Sim – concordou Niko. – Vou dar o fora deste lugar com muito prazer. Mas não pense que esta é a última vez que você vai ter notícias minhas.

Ele não pôde deixar de deslizar o olhar selvagem sobre o corpo de Renata quando disse essas palavras. Por mais raiva que estivesse sentindo de Yakut, não podia sentir o mesmo por ela. Ele esperava que ela dissesse que não sabia sobre os crimes que aconteciam naquele pedaço de terra embebido de sangue, desejava que ela dissesse algo para convencê-lo de que não fazia parte do jogo e das práticas doentias de Yakut.

Mas ela simplesmente recuou o olhar, com os braços cruzados sobre o peito. Uma mão se elevou ociosamente para tocar a ferida que estava se curando em seu pescoço, mas ela permaneceu em silêncio.

Todavia, ela não deixou de olhar o guerreiro quando ele saiu pela porta escancarada diante do aturdido guarda de Yakut.

- Devolvam os itens pessoais ao guerreiro e cuidem para que ele deixe a propriedade sem incidentes - Yakut ordenou a um par de homens armados que se encontravam fora de seu quarto.

Quando os dois saíram para atender a ordem, Renata começou a segui-los. Alguma parte desequilibrada dela desejava poder ser capaz de encontrar Nikolai sozinho e...

E o que?

Explicar a verdade e contar como eram as coisas para ela aqui? Tentar justificar as ações que ela tinha sido forçada a fazer?

Com que finalidade?

Nikolai estava partindo. Ele nunca teria que voltar para aquele lugar, enquanto ela estaria ali até seu último suspiro. Que bem poderia fazer explicar algo disso a ele, um desconhecido que provavelmente não a entenderia, e muito menos a protegeria?

Entretanto, os pés de Renata continuaram movendo-se.

Ela sequer chegou até a porta. A mão de Yakut se fechou fortemente sobre seu pulso, segurando-o em suas costas.

- Você não, Renata. Você fica.

Ela o olhou com uma expressão que esperava estar desprovida da ansiedade e das náuseas que estava tentado tão duramente disfarçar.

- Pensei que tínhamos terminado aqui. Que talvez devesse ir com os outros, só para assegurar que o guerreiro não decida fazer nada estúpido em seu caminho fora da propriedade.

- Você fica - o sorriso de Yakut congelou-lhe até os ossos. – Tenha cuidado, Renata. Eu não gostaria que você fizesse nada estúpido.

Ela tragou o repentino nó gelado de ansiedade de sua garganta.

- Desculpe-me?

- Tenha cuidado - respondeu ele, apertando-lhe hermeticamente o braço. - Suas emoções a traem, querida. Posso sentir o aumento de sua frequência cardíaca, o muro de adrenalina que atravessa seu corpo correndo por suas veias agora mesmo. Senti a mudança em você no momento que o guerreiro entrou no quarto. Senti antes também. Importa-se em me dizer por onde esteve esta noite?

- Treinando - respondeu ela, rapidamente, mas com firmeza. Para não dar razão alguma para duvidar dela, já que aquela era essencialmente a verdade. - Antes que você mandasse Lex procurar por mim, eu estava do lado de fora, fazendo meus exercícios de treinamento no antigo canil. Se você sentiu algo diferente em mim, deve ter sido por conta do excesso de treinamento.

Um silêncio longo se estendeu, enquanto o aperto rígido mantinha-se em seu pulso.

- Você sabe quanto valorizo a lealdade, não é, Renata? – disse Yakut enquanto Renata fez uma breve inclinação de cabeça. – Valorizo-a tanto quanto você valoriza a vida daquela menina que dorme no outro quarto - disse ele friamente. - Penso que essa dúvida poderia fazer com que ela terminasse no cemitério.

O sangue de Renata congelou em suas veias diante daquela ameaça. Ela olhou fixamente para cima, diretamente nos malignos olhos do monstro que agora sorria abertamente, com um prazer doentio.

- Como disse, querida Renata, tenha cuidado.


Capítulo 9

A cidade de Montreal, assim nomeada por causa do enorme monte que proporcionava uma vista magnífica do Rio Saint Lawrence e do vale abaixo, brilhava como um pote de pedras preciosas sob a lua crescente. Arranha-céus elegantes, torres de igrejas góticas, avenidas arborizadas e, à distância, uma brilhante linha de água que envolvia a cidade em um abraço protetor. Uma vista realmente espetacular.

Não havia dúvidas sobre a razão pela qual o líder do Refúgio de Montreal havia escolhido estabelecer sua comunidade perto do cume do Monte Real.

De pé no balcão do segundo andar da mansão em estilo barroco tinha-se a impressão de que a velha propriedade de caçadores fora da cidade parecia estar a mil quilômetros de distância. Mil anos longe daquela educada e civilizada maneira de viver. O que, obviamente, era verdade.

A espera para se encontrar com Edgar Fabien, o guerreiro da Raça que fiscalizava a população de vampiros de Montreal, parecia durar uma eternidade. Fabien era bem conhecido na cidade e havia rumores de que tinha bons contatos, tanto entre os Refúgios quanto no grupo de patrulha conhecido como a Agência. Ele era a escolha natural para uma situação delicada como aquela.

Mesmo assim, se o líder do Refúgio estivesse disposto a cooperar, essa era uma aposta que Lex tinha de arriscar. Aquela visita tardia e sem aviso fora um ato espontâneo e muito, muito arriscado.

O simples fato de ir ali já significava declarar-se inimigo de Sergei Yakut.

Mas Lex tinha visto o suficiente, tinha suportado o suficiente.

O príncipe estava de saco cheio de lamber as botas do pai. Era hora do rei tirano cair.

Lex girou ao som dos passos aproximando-se do interior da recepção. Fabien era um homem magro, alto e meticulosamente vestido, como se tivesse nascido em seus trajes feitos sob medida e com seus brilhantes mocassins de couro. Seu cabelo loiro acinzentado estava penteado para trás com algum tipo de gel perfumado, e quando ele sorriu para saudar Lex, seus magros lábios e estreitos traços faciais ficaram ainda mais severos.

- Alexei Yakut - disse, saindo para o balcão e oferecendo a mão para Lex. Não menos que três anéis cintilavam em seus longos dedos, ouro e diamantes que rivalizavam com o brilho da cidade lá fora. - Lamento que tenha esperado tanto. Temo que não estejamos acostumados a receber convidados inesperados em minha residência pessoal.

Lex assentiu, tenso, e soltou a mão de Fabien. A casa do líder do Refúgio não estava exatamente nos guias de turismo da cidade de Montreal, mas umas poucas perguntas feitas às pessoas certas tinham guiado Lex até ali sem maiores problemas.

- Venha, por favor - disse o homem da Raça, gesticulando para Lex e guiando-o para o interior da casa. Fabien se sentou em um luxuoso sofá, deixando espaço para Lex do outro lado.

- Devo admitir que fiquei surpreso quando minha secretária me disse quem queria me ver. Uma vergonha que não tenhamos tido a oportunidade de nos conhecer até agora.

Lex sentou-se junto ao líder do Refúgio, incapaz de evitar que seus olhos viajassem pelo interminável luxo de seus arredores.

- Mas você sabe quem sou eu? - perguntou Lex com cuidado. - Sabe também quem é o Primeira Geração, meu pai, Sergei Yakut?

Fabien assentiu com elegância.

- Só pelo nome, infelizmente. Fui negligente ao não ter feito as apresentações formais logo que vocês chegaram a minha cidade. Entretanto, os guarda-costas de seu pai deixaram claro que seu pai era uma espécie de eremita quando meu emissário pediu um encontro. Entendo que ele prefira uma vida tranquila e rural fora da cidade, em contato com a natureza ou algo do tipo.

Sobre os nódulos de seus dedos, o sorriso de Fabien não alcançou seus olhos.

- Suponho que viver com aquele tipo de... simplicidade signifique alguma coisa.

Lex grunhiu.

- Meu pai escolheu tal vida porque acredita estar acima da lei.

- Como?

- É por isso que estou aqui - disse Lex. - Tenho informações. Informações importantes que precisam ser averiguadas rapidamente. Secretamente.

Edgar Fabien inclinou-se contra as almofadas do sofá.

- Ocorreu algo... fora da casa?

- Vem ocorrendo há muito tempo - Lex admitiu, sentindo uma rara sensação de liberdade enquanto essas palavras saíam-lhe da boca.

Lex contou a Fabien tudo sobre as atividades ilegais de seu pai, desde o clube de sangue e do cemitério cheio dos restos de suas vítimas até o frequente assassinato de seus Subordinados humanos. Explicou, não sendo totalmente sincero, como fora corroído por esses segredo durante um longo tempo e como era seu próprio sentido de moralidade - seu sentido de honra e de respeito pela lei da Raça - que o obrigava a procurar ajuda para deter o reino particular de terror de Sergei Yakut.

Era o entusiasmo – a emoção no fundo de sua coragem - que fazia sua voz tremer, mas, se Fabien entendesse isso como lamento, melhor ainda.

Fabien o escutou com a expressão cuidadosamente séria e sóbria.

- Entendo, estou certo de que isso não é um assunto menor. O que você descreveu é... problemático. Perturbador. Mas haverá certos fatos que virão à tona nesse tipo de investigação. Seu pai é um Primeira Geração. Haverá perguntas que ele terá de responder, protocolos que precisarão ser observados.

- Investigação? Protocolos? - disse, indignado, Lex. Saltou sobre os pés, alagado de medo e ira. - Isso poderá levar dias ou até mesmo semanas. Um maldito mês!

Fabien assentiu, desculpando-se.

- De fato, poderá.

- Não há tempo para isso agora! Você não entende? Estou oferecendo meu pai de bandeja. Todas as provas que necessitará para uma detenção imediata estão ali em sua propriedade. Pelo amor de Deus, estou arriscando minha maldita vida só por estar aqui!

- Sinto muito - o líder do Refúgio dizia isso sustentando as mãos erguidas. - Se a situação não for segura para você, estaremos mais do que dispostos a oferecer-lhe proteção. A Agência poderia afastá-lo quando a investigação começar, levá-lo para algum lugar seguro.

A afiada risada de Lex o interrompeu.

- Enviar-me ao exílio? Estarei morto muito antes. Além disso, não estou interessado em fugir e me esconder como um cão. Quero o que mereço. Quero o que aquele bastardo filho da mãe me deve depois de todos esses anos de espera por esmolas – diante das palavras de Lex, era impossível mascarar os verdadeiros sentimentos. A ira preenchia-lhe o corpo por completo. - Quer saber o que realmente quero de Sergei Yakut? A morte.

O olhar de Fabien estreitou-se astutamente.

- Essa é uma afirmação muito perigosa.

- Não sou o único que pensa assim - respondeu Lex. - De fato, alguém teve coragem suficiente para tentar isso na semana passada.

Os ardilosos olhos de Fabien ficaram mais e mais estreitos.

- O que quer dizer?

- Ele foi atacado. Alguém entrou na casa e tentou cortar a cabeça do maldito, mas acabou falhando. Maldita sorte - Lex acrescentou baixinho. - A Ordem pensa que foi trabalho de um profissional.

- A Ordem - repetiu Fabien sem ar. - Como estão envolvidos nisso que está descrevendo?

- Eles enviaram um guerreiro ontem à noite para encontrar-se com meu pai. Aparentemente, estão tentando avisar os Primeira Geração sobre a recente caçada entre a população.

A boca de Fabien trabalhou um segundo sem formar palavras, como se não estivesse segura sobre o que articular primeiro. Ele limpou a garganta.

- Há um guerreiro aqui em Montreal? E o que é isso de caçada recente? Do que você está falando?

- Cinco Primeira Geração foram mortos, nos Estados Unidos e na Europa - disse Lex, recordando o que Nikolai lhe havia dito. - Alguém parece querer eliminar a primeira geração, um por um.

- Santo Deus – a expressão de Fabien era o vivo retrato da surpresa, mas algo nela preocupou Lex.

- Não sabia nada sobre os assassinatos?

Fabien levantou-se lentamente, agitando a cabeça.

- Estou aturdido, asseguro-lhe isso. Não tinha ideia. Que coisa terrível.

- Talvez sim, talvez não - respondeu Lex.

Enquanto olhava o líder do Refúgio, Lex se deu conta de que uma súbita tranquilidade abatia-se sobre o vampiro – uma tranquilidade tamanha que Lex se perguntava se ele ainda estava respirando. Havia um tênue, porém elevado, pânico nos olhos ambiciosos de Lex. Edgar Fabien sustentava o corpo com rígida precisão, mas seu olhar mutante encarava Lex como se quisesse sair correndo da sala.

Interessante.

- Sabe, eu esperava que você estivesse mais bem informado, Fabien. Sua reputação na cidade me levava a acreditar nisso. Com todos os seus amigos policiais, você está querendo me dizer que nenhum deles lhe disse algo sobre isso? Provavelmente eles não confiam em você, não? Provavelmente eles têm uma boa razão para isso.

Nesse momento, Fabien encontrou o olhar de Lex. Cintilações âmbar iluminaram-lhe a íris com um sinal revelador de um nervo comprimido.

- Que tipo de jogo está tentando fazer comigo?

- O seu - disse Lex, percebendo uma oportunidade e agarrando-a. - Você sabe sobre as caçadas aos Primeira Geração. A questão é: por que mente sobre isso?

- Não discuto publicamente assuntos policiais - Fabien cuspiu em resposta, inflando seu magro peito com indignação. - O que sei ou não sei é assunto meu.

- Sabia também sobre o ataque a meu pai antes que eu o mencionasse, não é mesmo? Foi você quem o atacou, não é? E quanto aos outros assassinados?

- Jesus Cristo, você está completamente louco.

- Queria estar - disse Lex. – Seja lá o maldito complô em que você está metido, Fabien, eu também quero fazer parte dele.

O líder bufou bruscamente, depois deu as costas a Lex enquanto caminhava para uma das altas estantes cravadas em uma parede prateada. Acariciou a madeira polida, rindo preguiçosamente.

- Embora nossa conversa tenha sido esclarecedora e divertida, Alexei, ela talvez deva terminar aqui. Acredito que é melhor que você vá e se acalme antes de dizer mais alguma tolice.

Lex avançou, decidido a convencer Fabien de que ele valia a pena.

- Se o quiser morto, estou disposto a ajudá-lo a conseguir isso.

- Insensato - foi a resposta que recebeu. - Posso estalar meus dedos e prendê-lo sob suspeita de tentativa de assassinato. Posso, mas nesse momento quero que vá embora e nenhum de nós dirá uma palavra sequer a respeito dessa conversa.

A porta da recepção se abriu e quatro homens entraram. Ao assentimento de Fabien, o grupo rodeou Lex. Sem escolha, ele saiu.

- Manterei contato - disse Lex, mostrando os dentes. – Pode contar com isso.

Fabien não respondeu, mas seu ardiloso olhar permaneceu fixo sobre Lex, com severo entendimento, enquanto o homem, tenso, atravessava a porta e a fechava.

Assim que Lex saiu para a rua, sozinho, sua mente começou a cogitar as opções disponíveis. Fabien era corrupto. Que surpreendente e útil informação. Com um pouco de sorte, não passaria muito tempo antes que as conexões de Fabien fossem também as suas. Não se preocupou particularmente em pensar como as conseguiria.

Levantou os olhos em direção à bela mansão do Refúgio e todo seu imaculado luxo. Era isso o que Lex queria: esse tipo de vida e não a imundície e a degradação que havia conhecido sob o jugo de seu pai. Isso era o que ele verdadeiramente merecia.

Mas, primeiro, ele precisaria sujar as mãos, mesmo que pela última vez.

Lex caminhou ao longo da estrada cheia de curvas ladeada por arvoredos e se dirigiu para a cidade com seus objetivos renovados.

 

 

CONTINUA

Capítulo 6

Em silêncio, Renata abriu a porta do quarto de Mira e espreitou a garotinha adormecida que descansava sobre a cama. Aquela era uma criança normal em seu pijama cor-de-rosa, com a bochecha macia apoiada contra o travesseiro fino, respirando calmamente pela delicada boca de querubim. Sobre a mesinha rústica próxima à cama estava o curto véu negro que cobria os notáveis olhos de Mira durante todos os momentos em que ela estava acordada.

- Bons sonhos, meu anjo - sussurrou Renata em voz baixa, de forma terna e esperançosa.

Nos últimos tempos, ela se preocupava cada vez mais com Mira. Não apenas por conta dos pesadelos que começaram depois do ataque que presenciara, mas pela saúde geral da garota. Embora Mira fosse forte e tivesse uma mente rápida e aguda, ela não estava completamente bem. Ela estava perdendo a visão rapidamente.

Cada vez que Mira era obrigada a exercitar o dom da premonição, um pouco de sua própria visão se deteriorava. E isso já estava acontecendo há meses quando Mira finalmente confidenciou a Renata seu estado. Ela tinha medo, como qualquer criança teria. Talvez até mais, já que Mira era mais sábia do que seus oito anos de idade indicavam. Ela compreendia que o interesse de Sergei Yakut por ela se evaporaria no momento em que ele a considerasse sem nenhuma utilidade. Ele a expulsaria, talvez até a mataria, se assim o desejasse.

Portanto, desde aquela noite, Renata e Mira mantinham um pacto: a condição de Mira seria um segredo entre elas e seria levado para o túmulo, se fosse necessário. Renata cumpria a promessa, jurando a Mira que a protegeria com sua própria vida. Jurou que nenhum dano aconteceria à garota, fosse ele causado por Yakut ou por qualquer outra pessoa, da Raça ou humano. Mira estaria a salvo da dor e da escuridão da vida de uma maneira que a própria Renata jamais esteve.

O fato de a garota ter sido usada naquela noite para entreter o hóspede não convidado de Sergei Yakut apenas aumentou a irritação de Renata. O pior de sua inquietação mental havia passado, mas uma dor de cabeça ainda persistia. O estômago não tinha parado de revirar, e pequenas ondas de náuseas retrocediam pouco a pouco.

Renata fechou a porta do quarto de Mira, estremecendo com outro pequeno tremor que lhe agitou o corpo. O longo banho que acabara de tomar tinha ajudado a aliviar um pouco o desconforto, mas até debaixo de suas calças folgadas de cor grafite e de seu pulôver macio de algodão branco, a pele continuava reclamando das correntes elétricas que lhe acometiam. Ela esfregou as palmas das mãos sobre as mangas da camisa, tentando dissipar a sensação ainda acesa que viajava por seus braços. Muito agitada para dormir, ficou no quarto apenas o tempo necessário para pegar algumas adagas no baú de armas. O treinamento sempre se mostrara bem-vindo nesses períodos de inquietação. Ela apreciava as horas do castigo físico que se infligia, feliz pelo treinamento rigoroso que a exauria.

Desde a terrível noite em que se encontrou imersa no perigoso mundo de Sergei Yakut, Renata havia aperfeiçoado ao máximo cada músculo de seu corpo, trabalhando metodicamente para se assegurar de que ela era tão letal quanto as armas que levava na caixinha de seda e veludo que agora carregava nas mãos.

Sobreviver.

Esse simples pensamento tinha sido seu farol desde que era apenas uma garota, mais jovem até do que Mira. E, mais que tudo, sozinha. Órfã abandonada na capela de um convento de Montreal, Renata não tinha nenhum passado, nenhuma família, nenhum futuro. Ela somente existia, e isso era tudo.

Para Renata, isso tinha sido o suficiente. Era o suficiente inclusive agora. Sobretudo agora que ela navegava pelo traiçoeiro mundo subterrâneo do reino de Sergei Yakut. Havia inimigos por todos os lados naquele lugar, tanto escondidos quanto visíveis. Inúmeros caminhos à espera de um passo em falso, de um equívoco; infinitas ocasiões para ela odiar o vampiro desumano que tinha a vida dela nas mãos. Mas ela não desistiria sem lutar.

Seu mantra dos dias de infância servia bem nesse momento: sobreviver um dia, e depois outro e outro.

Não havia espaço para brandura nessa equação. Piedade, vergonha ou amor não eram permitidos. Principalmente amor, de espécie alguma. Renata sabia que seu afeto por Mira - o impulso vital que lhe dava forças para fazer o caminho da menina mais suave e protegê-la como alguém de sua própria família - provavelmente lhe custaria muito caro no final.

Sergei Yakut tinha perdido pouco tempo explorando essa sua debilidade e Renata tinha as cicatrizes para comprovar.

Mas ela era forte. Não tinha encontrado coisa alguma nesta vida que não pudesse suportar, que não pudesse enfrentar - fisicamente ou de qualquer outra maneira. E tinha sobrevivido a tudo. Inteligente, forte... e letal quando tinha de ser.

Renata saiu do albergue e caminhou a passos largos pela escuridão rumo a um dos edifícios anexos que ficavam na parte de trás do local. O caçador que originalmente construíra a propriedade no bosque evidentemente adorava seus cães. Um velho canil de madeira fora erguido atrás da residência principal, disposto como um estábulo, com um amplo espaço dividido em dois e quatro baias de acesso alinhadas de ambos os lados. O teto de vigas devia ter uns quatro metros e meio de altura.

Embora pequeno, era um espaço aberto e bem ventilado. Na propriedade havia um celeiro maior e mais novo, que permitia movimentos mais fluidos, mas Renata geralmente o evitava.

Uma vez naquele lugar escuro e insalubre já tinha sido o suficiente. Se pudesse, ela já teria colocado fogo naquele maldito lugar.

Renata acendeu o interruptor ao lado da porta do canil e seu corpo se contraiu quando a lâmpada no teto derramou uma luz amarela e áspera no espaço. Entrou e caminhou pelo chão macio de terra batida. Passou por duas correias de couro largas e trançadas que se dependuravam na viga central da estrutura.

No extremo mais afastado do canil havia um poste alto de madeira que antes fora equipado com pequenos ganchos de ferro e laços para o armazenamento de correias e demais objetos. Renata havia se livrado dos arranjos alguns meses atrás e agora o poste funcionava como um alvo, cuja madeira escura já estava marcada de cortes profundos.

Renata colocou as lâminas sobre um fardo de palha que estava por perto e se agachou. Tirou os sapatos e caminhou descalça até o centro do canil. Alcançou o par de compridas correias de couro que havia ali e agarrou cada uma em uma mão. Enrolou o couro nos pulsos e, quando sentiu que estava cômodo, estendeu-se, flexionando os braços e levantando-se do chão de maneira tão leve que parecia ter asas.

Suspensa e livre da gravidade, Renata começou seu aquecimento. O couro rangia brandamente enquanto ela dava voltas e girava o corpo a vários metros do chão. Para ela, aquilo era a verdadeira paz, a sensação de seus membros ardendo, ganhando força e agilidade a cada movimento.

Renata deixou a mente se perder em uma meditação ligeira, mantendo os olhos fechados e todos os sentidos voltados para dentro de si, concentrados no ritmo cardíaco e na respiração, no movimento dos músculos enquanto ela se alongava. Assim foi até que girasse sobre o eixo e ficasse de cabeça para baixo, com os tornozelos agora presos às correias. Nesse momento, sentiu uma leve agitação no ar ao seu redor. Foi repentino e sutil, porém inconfundível. Tão inconfundível quanto o calor de uma respiração que agora lhe esquentava a bochecha.

Abriu os olhos de repente, lutando para compreender o espaço ao seu redor – todo invertido – e o intruso que estava de pé, abaixo dela. Era o guerreiro da Raça, Nikolai.

- Caramba! - ela disse, com sua falta de atenção fazendo-lhe oscilar um pouco no controle das correias. - Que diabos você acha que está fazendo?

- Relaxe - disse Nikolai. - Não estava querendo assustá-la – falou enquanto levantava as mãos para estabilizá-la.

- E não assustou – Renata respondeu com palavras pronunciadas com frieza. Com uma sutil flexão do corpo, afastou-se. – Importa-se? Você está atrapalhando meu treinamento.

- Ah! - as sobrancelhas loiras do macho da Raça arquearam enquanto seu olhar seguia a linha do corpo de Renata. - O que é exatamente esse treino? Está de olho em alguma vaga no Cirque du Soleil?

Ela não lhe deu o prazer de uma resposta. Não que ele esperasse uma. Nikolai virou-se e dirigiu-se para o poste que havia no outro extremo do canil. Estendeu a mão, percorrendo com os dedos as profundas marcas que havia na madeira. Então, encontrou as adagas e levantou o tecido que as protegia. O metal tilintou ao chocar-se brandamente dentro do quadrado dobrado de seda atado com a cinta de veludo.

- Não toque nisso - disse Renata, libertando-se das correias e voltando a colocar os pés no chão. - Eu disse para não tocar nisso. São minhas.

Niko não resistiu quando ela lhe tirou das mãos seus preciosos pertences; as únicas coisas de valor que ela podia reclamar como suas. O aumento em suas emoções o fez virar levemente a cabeça, certamente os efeitos secundários da força mental que ela esperava terem passado ainda persistiam. Ela deu um passo para trás e teve de se esforçar para manter a respiração estável.

- Você está bem?

Ela não gostou do olhar de preocupação refletido nos olhos azuis dele, pois era como se ele pudesse sentir sua debilidade, como se soubesse que ela não era tão forte quanto queria ser, quanto precisava aparentar.

- Estou bem.

Renata colocou as adagas em uma das baias do canil e as desembrulhou. Uma por uma, ela cuidadosamente colocou as quatro adagas esculpidas à mão sobre a madeira. Forçando um tom ligeiramente convencido, disse: - Eu é quem deveria fazer essa pergunta, não? Deixei você bem duro lá na cidade.

Ela escutou o grunhido baixo em algum lugar atrás de si, quase como um escárnio.

- Nunca se pode ser demasiado cauteloso quando se trata de estrangeiros - continuou ela. - Sobretudo agora. Estou segura de que você me entende.

Quando ela finalmente o percorreu com um olhar, encontrou-o olhando-a fixamente.

- Querida, a única razão pela qual você teve a possibilidade de me derrubar foi porque jogou sujo. Certificou-se de que eu a notasse no clube, fingindo ter alguma coisa escondida, sabendo que eu a seguiria diretamente para sua armadilhazinha.

Renata levantou os ombros, sem arrependimento.

- No amor e na guerra vale tudo.

Ele sorriu suavemente, formando um par de covinhas em seu rosto quadrado e masculino. – E isso é guerra, não é? – ele perguntou.

- Certamente não é amor – disse ela.

- Não - ele retrucou, tornando-se sério. - Nunca.

Bem, ao menos eles concordavam em alguma coisa.

- Há quanto tempo trabalha para Yakut?

Renata balançou a cabeça como se fosse incapaz de se recordar dessa informação, embora a noite em questão estivesse gravada em sua mente como se as memórias fossem ferro em brasa. Sangue. Horror. O começo de um fim.

- Não sei - disse ela. - Alguns anos, suponho. Por quê?

- Eu estava me perguntando como uma mulher, mesmo sendo uma Companheira de Raça com sua poderosa habilidade psíquica, foi parar nesse trabalho, especialmente para um Primeira Geração como ele. É estranho, é isso. Diabos, nunca ouvi falar de coisa semelhante. Então, diga-me: qual é sua ligação com Sergei Yakut?

Renata olhou fixamente o guerreiro: um forasteiro perigoso e ardiloso que, de repente, estava se intrometendo em seu mundo. Ela não estava segura de como responder. Certamente não estava disposta a lhe contar a verdade.

- Se você tem perguntas, talvez devesse fazê-las a ele.

- Sim - disse Niko, estudando-a mais estreitamente agora. - Talvez pergunte. E quanto à garota, Mira? Ela está aqui há tanto tempo quanto você?

- Não há tanto tempo. Apenas seis meses. - Renata tentou mostrar-se indiferente, mas um feroz instinto de proteção nasceu dentro de seu corpo diante da simples menção do nome de Mira nos lábios daquele guerreiro da Raça. - Ela passou por tanta coisa em tão pouco tempo. Coisas que nenhuma criança deveria testemunhar.

- Como o ataque a Yakut na semana passada?

E outras, mais sombrias ainda, Renata reconheceu interiormente.

- Mira tem pesadelos quase todas as noites. Ela praticamente não dorme já faz algum tempo.

Ele assentiu com a cabeça em um sóbrio reconhecimento.

- Este não é um bom lugar para uma garotinha. Alguns diriam que tampouco é lugar para uma mulher.

- É isso o que você diria, guerreiro?

O sorriso de Niko não confirmou nem negou a pergunta.

Renata o observou enquanto em sua mente surgiam perguntas e mais perguntas. Uma em particular.

- O que viu nos olhos de Mira esta noite?

Ele grunhiu algo ininteligível.

- Acredite, você não vai querer saber.

- Estou perguntando, não? O que ela lhe mostrou?

- Esqueça – enquanto ela o olhava, ele passou a mão pelos fios dourados de seu cabelo e exalou uma maldição, desviando o olhar em seguida. - De qualquer forma, isso não é possível. A garota definitivamente errou.

- Mira jamais erra. Ela nunca errou, pelo menos em todo o tempo em que a conheço.

- Mesmo? - o penetrante olhar azul do guerreiro voltou-se fixamente para Renata, percorrendo-lhe calorosamente o corpo em uma atitude lenta e avaliadora. - Alexei me disse que sua habilidade é imperfeita.

- Lex - Renata riu. – Faça-me um favor e não acredite em nada do que ele diz. Ele não diz e não faz nada sem um motivo oculto.

- Obrigado pelo conselho – disse, recostando-se contra o poste marcado pelas adagas. - Então, se é assim, não é verdade que, como ele disse, os olhos de Mira só refletem os acontecimentos que poderiam ocorrer no futuro, com base no agora?

- Lex pode ter suas próprias razões pessoais para desejar que não seja assim, mas Mira nunca erra. Tudo o que ela mostrou esta noite está destinado a acontecer.

- Destinado - disse ele, parecendo divertir-se com aquilo. - Bem, caramba... então acredito que estamos condenados.

Ele a olhou fixamente quando pronunciava essas palavras, desafiando-a a perguntar se ele deliberadamente a tinha incluído em sua observação. Dado que ele achara a ideia bastante divertida, ela não estava disposta a lhe dar a satisfação de perguntar o motivo. Renata agarrou uma de suas adagas e provou o peso do objeto com a palma aberta. Ela gostava de sentir o frio do aço contra a pele, algo sólido e familiar. Seus dedos estavam loucos para trabalhar. Seus músculos agora estavam aquecidos, preparados para mais uma ou duas horas de treino duro. Ela girou a lâmina e fez um sinal para o poste em que Nikolai estava apoiado.

- Importa-se? Não quero calcular mal e acidentalmente acertá-lo.

Ele percorreu o poste com o olhar e deu de ombros.

- Não seria mais interessante um treinamento de combate com um oponente real, que pudesse devolver o golpe? Ou será que você prefere alvos imobilizados?

Ela sabia que Niko estava jogando uma isca, mas o brilho de seus olhos era brincalhão. Ele realmente a estava paquerando? A natureza prática dele fez os pelos da nuca de Renata arrepiarem-se com cautela. Ela passou o polegar pela lâmina da adaga enquanto o olhava, insegura do que fazer.

- Prefiro trabalhar sozinha.

- Muito bem - ele disse inclinando a cabeça e afastando-se um pouco, quase que a desafiando com o olhar. – Como quiser.

Renata franziu a testa.

- Se você não se afastar, como pode estar seguro de que não vou acertá-lo?

Ele sorriu abertamente, completamente cheio de arrogância, com os musculosos braços cruzados sobre o peito.

- Mire onde quiser. Você nunca me acertaria.

Ela atirou a lâmina sem a mínima advertência.

O aço afiado cravou na madeira, causando uma fenda profunda, golpeando no lugar exato onde ela havia planejado. Mas Nikolai tinha desaparecido. Simples assim, sumido por completo.

Inferno.

Ele era da Raça, muito mais rápido do que qualquer ser humano, e tão ágil quanto um predador selvagem. Ela não era rival para ele, com armas ou com força física. E ela sabia disso mesmo antes de atirar a adaga. Entretanto, esperava, pelo menos, diminuir a arrogância e a presunção daquele filho da mãe.

Com os próprios reflexos afiados, Renata esticou o braço e alcançou outra adaga. Todavia, quando seus dedos se fecharam ao redor do punho lavrado, ela sentiu o ar mover-se atrás de si e percebeu o calor atravessar os fios de cabelo que estavam sobre o queixo.

O metal afiado subiu até sua mandíbula. Uma dura parede de músculos apertava-lhe a coluna vertebral.

- Não me acertou! Sentiu minha falta?

Ela engoliu cuidadosamente, pressionada pela lâmina que estava sob seu queixo. Tão brandamente quanto pode, relaxou os braços para os lados. Então, abaixou a mão que segurava a adaga, descansando-a entre as coxas separadas.

- Parece que encontrei você.

Como pôde, Renata o golpeou com uma pequena sacudida do poder de sua mente.

- Inferno - grunhiu Niko. E no instante em que relaxou o controle que tinha de Renata, a mulher saiu de seu alcance e virou-se para enfrentá-lo. Ela esperava a cólera dele, temia-a em certo sentido, mas ele apenas levantou a cabeça e deu de ombros. - Não se preocupe, querida. Só vou ter que brincar com você até que seja derrubada pelas reverberações de sua força psíquica.

Enquanto ela o contemplava, confusa e aflita, pensando como ele podia saber sobre a imperfeição de sua habilidade, ele disse:

- Lex me pôs a par de algumas coisas sobre você também. Ele me contou o que acontece cada vez que você dispara um desses mísseis psíquicos. Componente muito poderoso. Mas eu em seu lugar não o gastaria só porque sente necessidade de demonstrar força.

- Que o Lex vá pro inferno - murmurou Renata. - E que você vá pro inferno também. Não preciso de seus conselhos e certamente não preciso de nenhum de vocês falando porcarias a meu respeito pelas minhas costas. Essa conversa termina aqui.

Zangada como estava, ela, impulsivamente, flexionou o braço para trás e lançou a adaga na direção de Niko, sabendo que ele sairia facilmente do caminho como tinha feito antes. Dessa vez, porém, ele não se moveu. Com um estalo rápido como um relâmpago, ele estendeu a mão e capturou a lâmina no ar. E com um sorriso totalmente satisfeito, conseguiu que ela perdesse de vez as estribeiras.

Renata apanhou a última adaga no suporte do canil e a atirou contra ele. Como a outra, esta também foi pega no ar e agora ambas estavam nas mãos hábeis do guerreiro da Raça.

Ele a olhou, sem piscar, com um calor masculino que deveria deixá-la gelada, mas que, todavia, não a deixava.

- E agora o que vamos fazer para nos divertir, Renata?

Ela o fulminou com o olhar.

- Divirta-se sozinho. Vou embora daqui.

Ela deu meia-volta, pronta para sair do canil. Apenas tinha dado dois passos quando escutou um som agudo em ambos os lados de sua cabeça, tão perto que alguns fios errantes de seus cabelos voaram pelo rosto.

Então, diante dela, observou sobrevoar uma mancha imprecisa de aço, que estalou no outro extremo da parede.

Golpe seco.

As duas adagas que tinham voado ao lado de sua cabeça como objetos erráticos estavam agora cravadas na velha madeira, bem próximas de seus punhos. Renata virou-se, furiosa.

- Seu filho da mãe...

Ele se lançou sobre ela, seu enorme corpo obrigando-a a ir para trás, seus olhos azuis brilhando com algo mais profundo que a simples diversão ou a básica arrogância masculina. Renata deu um passo para trás, apenas o suficiente para que pudesse equilibrar seu peso sobre os calcanhares. Ela caminhou para trás e virou-se, elevando a outra perna em um chute giratório.

Dedos tão inflexíveis quanto barras de ferro fecharam-se ao redor de seu tornozelo, retorcendo-o.

Renata caiu no chão do canil, asperamente sobre as costas. Ele a seguiu, colocando-se sobre ela e encurralando-a enquanto ela lutava, agitando-se violentamente com os punhos e com as pernas. Mas Niko apenas precisou de um minuto para domá-la.

Renata ofegava pelo esforço excessivo, seu peito elevava-se pela velocidade de sua pulsação.

- Agora quem deseja demonstrar força, guerreiro? Você ganhou. Está feliz agora?

Ele fixou o olhar nela de forma estranha e silenciosa, não demonstrando prazer ou aborrecimento.

Seu olhar mantinha-se estável, tranquilo e íntimo. Ela podia sentir o coração martelando contra o peito. As coxas grossas dele escancaradas sobre ela, as duas mãos presas por cima de sua cabeça. Ele a sustentava com firmeza, com os dedos segurando-lhe os punhos em um suave apertão – suave e incrivelmente carinhoso. O olhar dele se desviou para onde a segurava, e um brilho de fogo crepitava em sua íris quando ele encontrou a pequena marca de nascimento carmesim com o desenho de uma lágrima que caía sobre uma meia-lua no pulso direito. Com o polegar, acariciou aquele precioso lugar, uma carícia fascinante e hipnótica que enviou um calor selvagem e erótico pelas veias de Renata.

- Ainda quer saber o que vi nos olhos de Mira?

Renata ignorou a pergunta, segura de que aquilo era a última coisa de que ela precisava saber naquele momento. Ela lutou com força debaixo dos músculos do corpo pesado do guerreiro, mas o maldito a dominava com o mínimo de esforço. Bastardo.

- Saia de cima de mim!

- Pergunte-me outra vez o que foi que vi, Renata.

- Já lhe disse para sair de cima de mim - grunhiu Renata, sentindo o pânico aumentar dentro do peito. Tentou respirar normalmente, sabendo que tinha que manter a calma e a situação sob controle. E tinha que ser rápida. A última coisa de que precisava era que Sergei Yakut saísse para procurá-la e a encontrasse impotente debaixo de outro macho. – Deixe-me sair agora.

- Do que tem medo?

- De nada, maldito!

Ela cometeu o erro de levantar o olhar em direção a ele. Um calor âmbar infiltrou-se no azul dos olhos do guerreiro: fogo devorando gelo. Suas pupilas começaram a estreitar-se rapidamente e atrás de seus lábios ela viu as pontas agudas das presas emergentes de Niko.

Se ele estava zangado, aquilo era apenas uma parte da causa física de sua transformação, já que, onde sua pélvis repousava ameaçadoramente sobre a dela, Renata sentia a ponta rija em sua virilha, a dilatação muito evidente do membro de Niko pressionando-se deliberadamente entre suas pernas.

Ela se moveu, tentando escapar daquele calor, da erótica posição dos corpos, mas aquilo apenas o deixou mais encaixado nela. O pulso acelerado de Renata se elevou, assumindo um ritmo urgente ao passo que um calor indesejado começou a florescer em seu sexo já completamente umedecido.

Ah, Deus! Isso não é bom. Isso não é nada bom.

- Por favor - ela gemeu, odiando-se pelo débil tremor que resvalou no momento de pronunciar a palavra. Odiando a ele também.

Queria fechar os olhos, recusando-se a ver o ardente e fixo olhar faminto. Ou a boca sensual e completamente selvagem tão perto da sua. Recusava-se a sentir o calor ilícito, a luxúria insana que ele causava nela - o perigo daquele inesperado desejo mortal. Mas seus olhos permaneciam fixos, incapazes de desviar, a resposta de seu corpo para aquele macho da Raça era mais forte que o ferro, mais intenso que sua vontade.

- Pergunte-me o que a menina me mostrou esta noite em seus olhos - exigiu ele, com voz tão baixa quanto um ronronar. Seus lábios estavam tão perto dos dela que lhe roçaram a pele suave. - Pergunte-me, Renata. Ou talvez prefira ver a verdade com seus próprios olhos.

O beijo passou através de seu sangue como fogo.

Os lábios pressionaram-se com paixão, o fôlego quente apressou-se, mesclando-se nos corpos ardentes dos dois. A língua do guerreiro explorou a boca de Renata, inundando-lhe, afogando seu grito mudo de prazer. Renata sentiu os dedos dele acariciando-lhe as bochechas, deslizando sobre os cabelos de sua têmpora para, então, passarem deliciosamente por sua nuca sensível. Ele a puxou para mais perto, afogando-a mais profundamente no beijo, que a estava tomando por completo, rompendo totalmente sua resistência.

Não. Ah, Deus! Não, não, não. Não posso fazer isto. Não posso sentir isto.

Renata separou-se da erótica tortura da boca do guerreiro e virou a cabeça para o lado. Ela estava tremendo, e suas emoções estavam chegando a um nível perigoso. Ela arriscara muito ali, com ele. Muito.

Por Deus! Ela tinha que apagar aquela chama que ele acendera em seu interior, aquela chama que a estava derretendo de forma mortal. E tinha de apagá-la rapidamente.

Dedos quentes tocaram-lhe o queixo, dirigindo seu olhar novamente à fonte de sua angústia.

- Você está bem?

Ela livrou-se daquelas mãos e separou-se do macho da Raça com um empurrão, ainda incapaz de falar.

Ele se afastou imediatamente. Segurou-lhe a mão, ajudando-a a ficar de pé. E embora Renata não quisesse ajuda alguma, ela estava muito afetada para rechaçar Niko naquele momento. Ficou de pé, incapaz de olhá-lo, tentando recompor-se.

Rezava para que não tivesse acabado de assinar sua própria sentença de morte.

- Renata?

Aquela voz atravessou-a de forma desesperadamente tranquila e fria.

- Aproxime-se de mim outra vez – ela disse - e eu juro que mato você.


Capítulo 7

Alexei estava esperando havia mais de dez minutos do lado de fora do quarto de seu pai, o que demonstrava que um pedido seu para uma audiência era considerado como o de qualquer um dos outros guardas de Yakut. A falta de respeito – a flagrante indiferença – não incomodava mais Lex como antes. Ele tinha superado esse passado amargo e inútil em favor de coisas mais produtivas.

Ah! No fundo do estômago de Lex ainda doía saber que seu pai - seu único parente vivo - pudesse pensar tão pouco nele, mas o calor da rejeição constante tinha, de alguma forma, se tornado menos doloroso. As coisas eram simplesmente assim. E Lex, de fato, era mais forte por isso. Era igual ao pai, de maneira que nem o maldito velho Primeira Geração poderia imaginar, que dirá admitir.

Mas Lex conhecia suas próprias capacidades. Conhecia suas próprias forças. Sabia sem dúvida alguma que podia ser muito mais do que era agora, e desejava a oportunidade de demonstrá-lo: a ele mesmo e, sim, ao filho da mãe que o criara também.

Quando a porta finalmente se abriu, o ruído seco da fechadura de metal fez os pés de Lex vacilarem.

- Bem a tempo - grunhiu ele ao guarda, que se afastou para deixá-lo entrar.

O lugar estava escuro, iluminado apenas pelo brilho das madeiras que ardiam na enorme lareira de pedra na parede oposta. Havia eletricidade na casa, mas ela raramente era utilizada – não eram necessárias luzes, pois Sergei Yakut e o resto da Raça tinham uma extraordinária visão, especialmente no escuro.

Os outros sentidos dos homens da Raça também eram bastante agudos, mas Lex suspeitava que até um humano se sentiria em apuros ao sentir os aromas de sangue e sexo que se fundiam com o aroma azedo da fumaça da lareira.

- Perdoe-me por interrompê-lo - murmurou Lex, enquanto seu pai saía de um cômodo anexo.

Yakut estava nu, com o pênis ainda parcialmente ereto e inclinando-se obscenamente com cada movimento. Enojado pela vista, Lex piscou e desviou o olhar. Rapidamente pensou melhor no ato e percebeu que aquele débil impulso seria usado contra ele. Em vez disso, observou o pai entrar no quarto, os olhos brilhando como carvões âmbar enfiados no fundo do crânio, com as pupilas reduzidas a estreitas e verticais frestas no centro do globo ocular. As presas em sua boca estavam enormes, completamente estendidas e afiadas como lâminas.

Uma camada de suor cobria-lhe o corpo e cada polegada da lívida cor latente de seus dermoglifos, as marcas únicas da Raça que se estendiam da garganta aos tornozelos do Primeira Geração. Sangue fresco – humano, sem dúvida, um aroma fraco que indicava pertencer a um Subordinado - manchava todo o torso e os flancos do vampiro ancião.

Lex não estava surpreso pela evidência da recente atividade de seu pai, nem pelo fato de que o trio de vozes fracas no outro quarto fosse as de seu atual grupo de escravas humanas. Criar e manter Subordinados, algo que só as estirpes mais puras e poderosas da Raça eram capazes de fazer, tinha sido durante muito tempo uma prática ilegal entre a educada sociedade da Raça. Entretanto, essa prática continuava, pelo menos entre os domínios de Sergei Yakut. Ele fazia suas próprias regras, executava sua própria justiça, e aqui, neste lugar remoto, deixava claro a todos que ele era o rei. Inclusive Lex podia desfrutar desse tipo de liberdade e poder. Diabos! Podia, de fato, saboreá-lo.

Yakut dirigiu-lhe um olhar desdenhoso do outro lado do quarto.

- Olho para você e vejo a morte diante de mim.

Lex franziu a testa.

- Senhor?

- Se não fosse pelas restrições do guerreiro e por minha intervenção nesta noite, estaria ao lado de Urien em cima daquele armazém na cidade, ambos esperando o amanhecer.

O desprezo inundava cada sílaba das palavras de Yakut enquanto ele pegava uma ferramenta de ferro do lado da chaminé e movia as brasas na lareira.

- Salvei sua vida esta noite, Alexei. O que mais espera por hoje?

Lex irritou-se ao se lembrar de sua recente humilhação, mas sabia que o ódio não o ajudaria, particularmente quando estivesse enfrentando o pai. Fez um movimento com a cabeça, tentando encontrar uma maldita resistência para manter o tom em sua voz.

- Sou seu fiel servo, pai. Não me deve nada. E não peço nada exceto a honra de sua contínua confiança em mim.

Yakut grunhiu.

- Você fala mais como um político do que como um soldado. Não preciso de políticos entre os meus, Alexei.

- Sou um soldado - respondeu rapidamente Lex, elevando a cabeça e olhando enquanto o pai continuava movendo a barra de ferro no fogo. As lenhas soltavam faíscas que golpeavam o silêncio letal que tomava conta do ambiente. - Sou um soldado - afirmou novamente. - Quero servi-lo da melhor maneira possível, pai.

Yakut girou a cabeça despenteada para olhar Lex por cima do ombro.

- Você me oferece palavras, garoto. Não confio em palavras. E ultimamente não o vejo me oferecendo nada além de palavras.

- Como espera que eu seja eficiente se não me mantém informado dos acontecimentos?

Quando os olhos matizados de âmbar estreitaram-se sobre ele, Lex apressou-se em acrescentar:

- Falei com o guerreiro no bosque. Ele me contou sobre os recentes assassinatos dos Primeira Geração. Disse que a Ordem havia pessoalmente entrado em contato com você para avisá-lo do perigo potencial. Deveria ter me contado isso, pai. Como capitão de sua guarda, mereço ser informado.

- Merece o quê? - a pergunta saiu dos lábios de Yakut. - Por favor, Alexei... diga-me o que você acha que merece.

Lex permaneceu em silêncio.

- Nada a acrescentar, filho? - Yakut moveu a cabeça em um ângulo exagerado, a boca mostrando um sorriso sarcástico. - Uma acusação semelhante me foi lançada há anos pelos lábios de uma mulher estúpida que pensava poder apelar para meu sentido de obrigação. Minha misericórdia, possivelmente – Yakut riu entre os dentes, voltando a atenção de novo ao fogo, para mover, de novo, as brasas. - Sem dúvida você se lembra do que aconteceu.

- Sim - respondeu com cuidado Lex, surpreso pela garganta seca enquanto falava.

As lembranças formaram redemoinhos com as ondulantes chamas da lareira.

Norte da Rússia, fim do inverno. Lex era um menino, mal tinha dez anos, mas era o homem de seu precário lar tanto quanto podia se lembrar. Sua mãe era tudo o que ele tinha. A única que sabia como ele era realmente, e a única que o queria bem.

Ele estava preocupado desde a noite em que ela lhe havia dito que o levaria para conhecer seu pai pela primeira vez. Disse-lhe que ele era um segredo que ela tinha mantido - seu pequeno tesouro. Mas o inverno fora duro, e eles eram pobres. Precisavam de refúgio, de alguém que os protegesse. O campo estava em batalha e era inseguro para uma mulher cuidando sozinha de um menino. Ela disse que o pai de Lex os ajudaria, que ele abriria os braços em boas-vindas uma vez que conhecesse o filho.

Mas Sergei Yakut os recebeu com uma cólera fria e um terrível e impensável ultimato.

Lex se lembrou da mãe rogando a Yakut para que os acolhesse... Lembrou-se da mulher sendo completamente ignorada. Lembrou-se da bela mulher ajoelhada diante de Yakut, implorando para que cuidasse de Alexei.

As palavras estavam gravadas nos ouvidos de Lex, inclusive agora: “Ele é seu filho! Isso não significa nada para você? Será que ele não merece algo mais?”.

Rapidamente a cena saiu do controle.

Facilmente, Sergei Yakut ergueu uma espada e deslizou a lâmina pelo pescoço da indefesa mãe de Lex.

Suas palavras brutais afirmavam que ele tinha apenas lugar para soldados em seu reino, e que Lex tinha uma escolha a fazer naquele momento: servir ao assassino de sua mãe ou morrer com ela.

A débil resposta de Lex tinha sido dita entre soluços. “Vou servi-lo”, disse. E sentiu que uma parte de sua alma o abandonava enquanto olhava com horror o corpo ensanguentado e mutilado da mãe. Vou servi-lo, pai.

O silêncio que se seguiu foi muito frio, tão frio quanto uma tumba.

- Sou seu servo - Lex disse alto, baixando a cabeça mais pelo peso das velhas lembranças do que por respeito ao tirano que o governava. - Minha lealdade sempre foi sua, pai. Apenas sirvo ao seu prazer.

Um repentino calor, tão intenso quanto chamas ardentes, veio sob o queixo de Lex. Sobressaltado, ele levantou a cabeça, estremecendo de dor com um grito afogado. Viu a fumaça sair diante de seus olhos, sentiu o cheiro adocicado de carne queimando.

Yakut Sergei estava diante dele segurando o atiçador de ferro nas mãos. A ponta brilhante da haste de metal queimava vermelha, exceto pelo resíduo de pele branca pendurada, que havia sido arrancada do rosto de Lex.

Yakut sorriu, mostrando as pontas de seus dentes.

- Sim, Alexei, você serve apenas para o meu prazer. Lembre-se disso. Só porque meu sangue corre em suas veias não significa que eu não possa matá-lo.

- Claro que não - Lex murmurou, seus dentes cerrados pela devastadora agonia da queimadura. O ódio fervilhava nele pelo insulto que tinha que engolir e por sua própria impotência quando viu o homem da Raça desafiando-o com a testa franzida, pronto para fazer um movimento contra ele novamente. Yakut acabou desistindo. O velho arrastou uma túnica de linho marrom de uma cadeira e deu de ombros para ele. Seus olhos ainda estavam brilhantes, com fome e sede de sangue. Deixou a língua deslizar em seus dentes e presas.

- Como você está tão ansioso para me agradar, traga-me Renata. Preciso dela agora.

Lex apertou os dentes.

Sem palavras, saiu do quarto com a mandíbula rígida, os próprios olhos cintilando com a luz âmbar de sua indignação. Não perdeu de vista o olhar confuso do guarda postado na porta, o rumo inquieto dos olhos dos outros vampiros enquanto disfarçava o aroma de carne queimada e o provável calor de sua ira.

A queimadura cicatrizaria - de fato, já estava cicatrizando -, seu acelerado metabolismo da Raça reparava a pele queimada enquanto seus pés o levavam à área principal do refúgio. Renata vinha de fora. Ela viu Lex e se deteve, virando como se quisesse evitá-lo.

Não mesmo.

- Ele quer você - gritou Lex, sem se preocupar com quantos outros guardas estivessem ouvindo. Todos sabiam que ela era a vadia de Yakut, assim, não havia razão para fingir outra coisa. – Mandou-me que a chamasse. Está a sua espera para que o sirva.

Os frios olhos verde-jade o demoliram.

- Estive treinando. Preciso me lavar.

- Ele disse agora, Renata.

Uma ordem curta que ele sabia que seria obedecida. Havia mais do que uma leve satisfação nesse pequeno e raro triunfo.

- Muito bem.

Ela deu de ombros, apoiada sobre seus pés descalços.

Sua insossa expressão enquanto se aproximava dizia que não se preocupava com o que pensavam dela, muito menos Lex, e essa indiferença à humilhação apenas o fazia querer degradá-la mais. Farejou em sua direção, mais pelo efeito que isso causava do que por qualquer outra coisa.

- Ele não se importará com sua imundície. Todos sabemos que as melhores vagabundas são as sujas.

Renata não fez mais do que piscar com o vulgar comentário. Ela podia reduzi-lo com uma rajada de seu poder mental se assim o decidisse - de fato, Lex quase esperava que ela o fizesse, simplesmente para provar que a havia ferido. Mas o rápido giro de seu olhar disse que ela não sentia que ele merecia tal esforço.

Ela passou junto dele com uma dignidade que ele não podia compreender. Ele a olhou – todos os guardas próximos a olharam - enquanto ela caminhava para o quarto de Sergei Yakut tão calma quanto uma rainha a caminho da forca.

Não precisou muito para Lex imaginasse o dia em que ele controlaria tudo, mandaria naquele lugar, inclusive na altiva Renata. É óbvio, a vadia não seria tão altiva se sua mente, vontade e corpo pertencessem completamente a ele. Uma Subordinada para servir cada um de seus caprichos e os dos outros homens sob seu comando.

Sim, Lex pensou sombriamente, seria muito bom ser rei.


Capítulo 8

Nikolai pegou uma das adagas de Renata no poste onde ela as havia atirado. Tinha de lhe dar crédito: se tivesse acertado o alvo, ele estaria morto. Se fosse simplesmente um humano com reflexos lentos, e não um macho da Raça, o treinamento dela certamente o teria transformado em espetinhos para assar.

Ele riu ao devolver a lâmina ao envoltório elegante com as outras três. As armas eram belas, lustrosas e perfeitamente equilibradas, obviamente feitas à mão. Niko deixou seu olhar vagar sobre o desenho esculpido nos punhos de prata esterlina da arma. O padrão parecia ser um jardim de videiras e flores, mas quando ele as olhou mais de perto, deu-se conta de que cada uma das quatro lâminas também tinha uma palavra gravada dentro do desenho: fé, coragem, honra e sacrifício.

Ele se perguntou se aquilo seria uma espécie de oração de um guerreiro ou os princípios da disciplina pessoal de Renata.

Nikolai pensou no beijo que tinham compartilhado. Bom, dizer que eles o tinham compartilhado era um tanto presunçoso, considerando como ele tinha descido sua boca com toda a delicadeza de um trem de carga. Ele não tivera a intenção de beijá-la. Certo, e a quem ele estava tentando enganar? Ele não poderia ter parado mesmo que tivesse tentado. Não que fosse uma desculpa. E não que Renata tivesse dado qualquer possibilidade de desculpas ou perdão.

Niko ainda podia ver o horror em seus olhos, a inesperada, porém óbvia repulsão pelo que ele tinha feito. Ainda podia sentir a sinceridade da ameaça que ela pronunciou antes de sair tempestuosamente do canil.

A parte destruída de seu ego tentava acalmá-lo com a possibilidade de que talvez ela realmente desprezasse todos os machos de modo geral. Ou que talvez ela fosse tão fria como Lex parecia pensar. Um soldado assexuado – frígida apesar de ter a cara de um anjo e o corpo que conduzia sua mente a todo tipo de pecado e luxúria. Muitos pecados, cada um mais tentador e atraente do que o anterior.

Nikolai tinha um encanto fácil quando se tratava de mulheres. Não era simples alarde, mas uma conclusão a que ele tinha chegado baseado nos anos de experiência. Quando se tratava de mulheres, desfrutava tranquilamente das conquistas sem complicações, quanto mais temporárias melhor. A perseguição e as lutas eram divertidas, mas o melhor reservava para o combate verdadeiro, em batalhas sangrentas, com vampiros Renegados e outros inimigos da Ordem. Esses eram os desafios de que ele mais desfrutava.

Então, por que estava lutando contra esse impulso perverso de ir atrás de Renata e descobrir se não podia descongelar parte do gelo que a cobria?

Porque ele era um idiota. Um idiota com uma fúria perigosa e com um aparente desejo mortal.

Hora de parar de pensar com a cabeça de baixo. Não importava o que seu corpo estivesse dizendo - não importava mais o que ele tinha visto no olhar de Mira. Ele tinha um trabalho a fazer, uma missão da Ordem, e esta era a única razão pela qual estava ali.

Niko cuidadosamente envolveu as adagas de Renata no estojo de seda e veludo, e colocou o pequeno embrulho no fardo de palha esperando que ela voltasse para buscá-los, assim como os sapatos deixados para trás.

Abandonou o canil e se dirigiu à escuridão para recolher informações sobre as terras da mansão. Uma meia-lua pendurava-se no alto do céu noturno, velada por um punhado de nuvens negras como carvão. A brisa da meia-noite era cálida, abatendo-se brandamente através dos pinheiros altos e dos carvalhos espinhosos dos bosques ao redor. Os aromas misturavam-se no ar úmido do verão: o sabor forte da resina de pinheiro, a marca mofada do chão protegido do sol, a nitidez de tantos minerais na água doce, na corrente que evidentemente atravessava a propriedade não longe de onde Niko estava.

Nada incomum. Nada fora do lugar.

Até que...

Nikolai levantou o queixo e inclinou a cabeça ligeiramente para o oeste. Algo inesperado atravessou os seus sentidos. Algo que não podia, não deveria, encontrar ali.

Era a morte o que ele estava sentindo.

Sutil, antiga... mas certa.

O guerreiro correu na direção que seu olfato o levava. Cada vez mais profundo no bosque. A cerca de cem metros da mansão, a mata adensou-se. Niko reduziu sua marcha quando chegou ao lugar onde suas fossas nasais começavam a arder com o fedor envelhecido da decomposição. Aos seus pés, o chão estava esparso com folhas, enredado por videiras que caíam longe pela ravina escarpada.

Nikolai olhou para baixo pela fenda, adoecendo, antes mesmo que seus olhos pousassem na carnificina.

- Inferno - murmurou ele, sob seu fôlego.

Uma fossa de morte se encontrava no fundo da ravina. Esqueletos humanos. Dúzias de corpos, sem enterrar, esquecidos, simplesmente jogados uns em cima dos outros, como se fossem lixo. Tantos que levaria muito tempo para contar todos eles. Adultos. Crianças pequenas. Um massacre que não mostrava nenhuma discriminação a suas vítimas, tampouco misericórdia. Um massacre que poderia ter levado anos para ter sido realizado.

A pilha de ossos brancos brilhava sob a escassa luz da lua, pernas e braços empilhados juntos onde quer que o mortos tivessem caído, crânios olhando para ele, com as bocas abertas em macabros gritos silenciosos. Nikolai tinha visto o suficiente. Recuou da beira da ravina enquanto lançava outra maldição na escuridão.

- Que tipo de porcaria andou acontecendo por aqui?

Em seu íntimo, ele sabia.

Jesus Cristo, não havia muita margem para dúvidas.

Um clube de sangue.

A fúria e a repugnância passaram através dele em uma onda negra. Ele teve, por instantes, o desejo entristecedor de rasgar os membros de cada vampiro comprometido em violar a lei assassinando todas aquelas pessoas. Não que ele tivesse esse direito, mesmo como um membro guerreiro da Ordem. Ele e seus irmãos não tinham muitos amigos entre os ramos governantes da Raça, e muito menos na Agência de Controle, que atuava tanto como policiais e como políticos, responsáveis pelas populações de vampiros em geral. Eles pensavam que a Ordem e todos os guerreiros que a serviam estavam acima da sociedade civilizada. Vigilantes e militantes. Cães selvagens que só desejavam uma desculpa para fazê-la cair.

Nikolai sabia que isso estava fora de seus limites de atuação, mas isso não fez que o desejo de prescindir sua própria marca de justiça ficasse menos tentador.

Embora ultrajado e indignado, Niko precisava acalmar-se. Sua fúria não ajudaria as vidas esparramadas lá embaixo. Era muito tarde para isso. Niko não podia fazer nada, exceto mostrar um pouco de respeito, algo que lhes tinha sido negado inclusive depois da morte.

Solenemente, embora só por um breve momento, Nikolai se ajoelhou na borda da profunda ravina. Ele estendeu amplamente seus braços longos, invocando o poder luminoso que estava dentro dele, um talento da Raça que se encontrava unicamente nele e que em sua linha de trabalho, em particular, era de pouca utilidade. Sentiu o poder arder em seu interior quando o invocou. O poder se voltou em energia e luz, propagando-se através de seus ombros e movendo-se para baixo, em direção a seus braços. Logo, em suas mãos, esferas gêmeas brilhavam sob a pele no centro das palmas.

Nikolai tocou com os dedos a terra ao seu lado.

Em resposta, as videiras e arbustos se agitaram ao seu redor, gravetos verdes e pequenas flores silvestres do bosque despertaram acima, fazendo movimentos. Esses movimentos aumentaram cada vez mais em acelerada velocidade. Niko enviou os brotos que estavam crescendo de novo para a ravina e, em seguida, ficou de pé para assistir aos mortos serem cobertos por um manto de suaves folhas novas e flores.

Não era um grande rito funerário, mas era tudo o que ele tinha a oferecer às almas dos corpos que foram deixados ali para apodrecer na intempérie.

- Descansem em paz - murmurou ele.

Quando o último osso foi coberto, ele se dirigiu para a mansão. O celeiro de armazenamento em que ele tinha farejado o sangue agora chamava-lhe a atenção.

Só para confirmar suas suspeitas, Niko inspecionou e moveu o ferrolho solto. Abriu a porta e olhou dentro da construção. O celeiro estava vazio, tal como Lex havia dito. Mas novamente, as jaulas de aço construídas no interior não tinham sido feitas para nenhum tipo de armazenamento permanente. Eram gruas altas, celas da prisão com ferrolhos desenhados para os prisioneiros humanos, com caráter de contenção temporária.

Brinquedos vivos para o esporte de caça ilegal no remoto bosque que Sergei Yakut dominava.

Com um grunhido, Nikolai saiu do celeiro e partiu para a casa principal.

- Onde está ele? - perguntou ao guarda armado que o percebeu assim que atravessou a porta. - Onde está ele? Diga agora!

Ele não esperou por uma resposta. Não quando os outros dois guardas, ambos do lado de fora de uma porta fechada no grande corredor, tomaram uma postura de batalha repentina. Atrás deles, estavam os aposentos privados de Yakut, obviamente.

Nikolai irrompeu e empurrou um dos guardas de seu caminho. O outro tinha um rifle e começou a apontar para o guerreiro. Niko bateu a arma na cara do guarda, e então lançou o vampiro tonto à parede mais próxima.

Deu um chute na porta, estilhaçando a madeira velha e arrancando as dobradiças de ferro. Caminhou a passos largos através dos escombros, ignorando os gritos dos homens de Yakut. Encontrou o Primeira Geração no centro do quarto, diante de um sofá de couro, inclinado possessivamente sobre a garganta nua de uma fêmea de cabelos escuros enjaulada pelos braços do vampiro.

Com a interrupção, Yakut levantou a cabeça de sua alimentação e olhou na direção do invasor. Também o fez sua Anfitriã de Sangue...

Renata.

Não mesmo.

Ela estava unida a ele com o laço de sangue? Seria ela a Companheira de Raça desse monstro?

Todas as acusações que Nikolai tinha preparado para lançar a Sergei Yakut morreram repentinamente em sua garganta. Ele ficou olhando fixamente, com seus sentidos da Raça turvados e trincados, mais acordados ao ver o sangue da fêmea que gotejava dos lábios e das enormes presas de Yakut. O aroma dela atravessou o quarto, atingindo com força o cérebro de Niko. Ele não esperava um contraste tão estranho ao de sua conduta fria, mas o aroma de seu sangue era uma mescla quente, embriagadora e intoxicante de sândalo e chuva fresca de primavera. Suave. Feminino. Excitante.

A fome apertou o estômago de Nikolai, uma reação visceral com a qual ele teve que lutar arduamente para conter-se. Disse para si que era simplesmente sua natureza da Raça sobressaindo-se. Havia poucos entre os de sua estirpe que podiam resistir ao canto das sereias de uma veia aberta, mas quando seus olhos encontraram o olhar fixo de Renata, um novo calor explodiu dentro dele. Mais forte, aliás, que a primitiva sede de alimentar-se.

Ele a desejava.

Mesmo enquanto estava deitada debaixo de outro macho, permitindo-lhe beber dela, Nikolai tinha fome dela com uma ferocidade que o sobressaltava. Unida pelo sangue a outro ou não, Niko queimava de desejo por Renata.

O que, até mesmo com seu flexível código de honra, o fazia se sentir quase próximo ao nível desprezível de Yakut.

Niko teve de sacudir-se mentalmente para desprender-se daquela visão perturbadora, voltando bruscamente sua atenção aos problemas que tinha à mão.

- Você tem um sério problema - disse ele ao vampiro Primeira Geração, sendo apenas capaz de conter seu desprezo. - Na verdade, suponho que você tem aproximadamente três dúzias deles apodrecendo em seu bosque.

Yakut permaneceu calado, seu olhar escuro assumiu a cor âmbar, indicando o desafio. Um grunhido ondulou antes que ele voltasse a cabeça para sua refeição interrompida. A língua de Yakut deslizou do meio de seus lábios para lamber as espetadas que tinha deixado no pescoço de Renata, selando as feridas e estancando o sangue.

Só então, quando a língua de Yakut percorreu a pele de Renata, ela afastou o olhar de Niko. Ele acreditou ver alguma tranquilidade, um pouco de resignação, passar através de seu rosto nos segundos antes de Yakut se levantar e a liberar. Uma vez livre, Renata se moveu para o canto do quarto, puxando a camisa de volta ao lugar.

Ela ainda estava vestida com a roupa de antes, ainda estava descalça.

Ela devia ter vindo diretamente para cá depois do que tinha se passado no canil.

Tinha procurado Yakut por proteção? Ou por simples comodidade?

Jesus.

Niko se sentiu um asno quando se lembrou da maneira como tentou beijá-la. Se ela estivesse unida por sangue a Sergei Yakut, essa união era sagrada, íntima... exclusiva. Não admirava que ela tivesse reagido como reagira. Os beijos de Nikolai teriam sido um insulto e a degradação para ambos. Mas agora ele não estava ali para pedir desculpas – não a Renata ou ao seu aparente companheiro.

Nikolai dirigiu um olhar duro para o vampiro.

- Há quanto tempo você caça seres humanos, Yakut?

O Primeira Geração apenas grunhiu, sorrindo.

- Encontrei os currais de detenção no celeiro. Encontrei os corpos. Homens, mulheres... crianças.

Nikolai grunhiu uma maldição, incapaz de conter sua repugnância e indignação.

- Você transformou esse lugar em um maldito clube de sangue. Pelo aspecto dos corpos, eu diria que faz isso há anos.

- E o que tem isso? - Yakut perguntou despreocupadamente, sem sequer tentar emitir uma respeitável negação.

E no canto do quarto, Renata permaneceu em silêncio, com os olhos fixos em Niko, mas sem mostrar surpresa alguma.

Ah, Cristo! Então ela também sabia.

- Maldito doente - ele disse, olhando de novo para Yakut. - Todos vocês estão doentes. Não poderá continuar com isso. Pare agora mesmo. Há leis...

O Primeira Geração riu, com a voz deformada pela transformação de seu lado mais selvagem.

- Eu sou a lei aqui, rapaz. Ninguém, nem os Refúgios e sua tão elogiada Agência, nem sequer a Ordem têm algo a ver com meus assuntos. Convido qualquer um para vir aqui e tentar me dizer o contrário.

A ameaça era clara. Apesar do fato de a honra e a justiça gritarem dentro de Nikolai para que ele acabasse com o maldito filho da mãe ali mesmo, ele não podia fazê-lo, pois Yakut não era um vampiro comum. Era um Primeira Geração. Não apenas dotado de força e poderes imensamente maiores que os do guerreiro ou de qualquer outro posterior da Raça, mas também membro de uma classe rara. Desses, só havia poucos, menos ainda agora, como resultado da eclosão dos recentes assassinatos.

Tão repugnante quanto a prática ilegal dos clubes de sangue entre a sociedade da Raça era a tentativa de matar um vampiro da Primeira Geração.

Nikolai não podia levantar a mão contra o filho da mãe, não importa quanto desejasse fazer isso.

E Yakut sabia. Ele limpou a boca com a túnica escura, esfregando ligeiramente a fragrância doce do sangue de Renata.

- A caçada está em nossa natureza, rapaz.

A voz de Yakut tinha uma serenidade mortal, completamente cheia de confiança, enquanto avançava para Nikolai.

- Você é jovem, nascido da Raça mais fraca de alguns de nós. Talvez seu sangue esteja tão diluído com o da humanidade que simplesmente não pode compreender a necessidade em sua forma mais pura. Se tivesse o gosto pela caçada, seria menos hipócrita com aqueles de nós que preferem viver como deve ser.

Niko sacudiu lentamente a cabeça.

- Os clubes de sangue não são só caçada. Eles são simplesmente uma matança. Você pode dizer suas asneiras, mas ainda assim você não passa de um monte de porcaria. É um animal. O que você realmente precisa é de uma focinheira e de uma coleira. Alguém tem que deter você.

- E pensa que você ou a Ordem fará essa tarefa?

- Você pensa que nós não faremos? - desafiou Niko, com uma parte de si esperando que o Primeira Geração lhe desse uma boa razão para sacar suas armas. Ele não se imaginava fugindo do confronto com o vampiro ancião, ele não desistiria sem uma maldita briga.

Em resposta, Yakut recuou, com seus olhos de cor âmbar brilhantes, as elípticas pupilas diminutas estilhaçadas de negro. Ergueu o queixo barbudo e virou a cabeça para um lado. Seus lábios se separaram com um selvagem sorriso que expôs suas presas. Daquela maneira não era difícil que todos observassem a parte alienígena dele - a parte que fazia dele e de todo o resto da Raça o que eram: predadores que bebem sangue e não pertencem totalmente a este mundo mortal, mas que apenas nasceram aqui.

- Eu lhe disse uma vez que você não era bem-vindo em meus domínios, guerreiro. Você ou sua proposta de aliança com a Ordem não me serve de nada. Minha paciência está chegando ao limite, assim como sua estadia aqui.

- Sim – concordou Niko. – Vou dar o fora deste lugar com muito prazer. Mas não pense que esta é a última vez que você vai ter notícias minhas.

Ele não pôde deixar de deslizar o olhar selvagem sobre o corpo de Renata quando disse essas palavras. Por mais raiva que estivesse sentindo de Yakut, não podia sentir o mesmo por ela. Ele esperava que ela dissesse que não sabia sobre os crimes que aconteciam naquele pedaço de terra embebido de sangue, desejava que ela dissesse algo para convencê-lo de que não fazia parte do jogo e das práticas doentias de Yakut.

Mas ela simplesmente recuou o olhar, com os braços cruzados sobre o peito. Uma mão se elevou ociosamente para tocar a ferida que estava se curando em seu pescoço, mas ela permaneceu em silêncio.

Todavia, ela não deixou de olhar o guerreiro quando ele saiu pela porta escancarada diante do aturdido guarda de Yakut.

- Devolvam os itens pessoais ao guerreiro e cuidem para que ele deixe a propriedade sem incidentes - Yakut ordenou a um par de homens armados que se encontravam fora de seu quarto.

Quando os dois saíram para atender a ordem, Renata começou a segui-los. Alguma parte desequilibrada dela desejava poder ser capaz de encontrar Nikolai sozinho e...

E o que?

Explicar a verdade e contar como eram as coisas para ela aqui? Tentar justificar as ações que ela tinha sido forçada a fazer?

Com que finalidade?

Nikolai estava partindo. Ele nunca teria que voltar para aquele lugar, enquanto ela estaria ali até seu último suspiro. Que bem poderia fazer explicar algo disso a ele, um desconhecido que provavelmente não a entenderia, e muito menos a protegeria?

Entretanto, os pés de Renata continuaram movendo-se.

Ela sequer chegou até a porta. A mão de Yakut se fechou fortemente sobre seu pulso, segurando-o em suas costas.

- Você não, Renata. Você fica.

Ela o olhou com uma expressão que esperava estar desprovida da ansiedade e das náuseas que estava tentado tão duramente disfarçar.

- Pensei que tínhamos terminado aqui. Que talvez devesse ir com os outros, só para assegurar que o guerreiro não decida fazer nada estúpido em seu caminho fora da propriedade.

- Você fica - o sorriso de Yakut congelou-lhe até os ossos. – Tenha cuidado, Renata. Eu não gostaria que você fizesse nada estúpido.

Ela tragou o repentino nó gelado de ansiedade de sua garganta.

- Desculpe-me?

- Tenha cuidado - respondeu ele, apertando-lhe hermeticamente o braço. - Suas emoções a traem, querida. Posso sentir o aumento de sua frequência cardíaca, o muro de adrenalina que atravessa seu corpo correndo por suas veias agora mesmo. Senti a mudança em você no momento que o guerreiro entrou no quarto. Senti antes também. Importa-se em me dizer por onde esteve esta noite?

- Treinando - respondeu ela, rapidamente, mas com firmeza. Para não dar razão alguma para duvidar dela, já que aquela era essencialmente a verdade. - Antes que você mandasse Lex procurar por mim, eu estava do lado de fora, fazendo meus exercícios de treinamento no antigo canil. Se você sentiu algo diferente em mim, deve ter sido por conta do excesso de treinamento.

Um silêncio longo se estendeu, enquanto o aperto rígido mantinha-se em seu pulso.

- Você sabe quanto valorizo a lealdade, não é, Renata? – disse Yakut enquanto Renata fez uma breve inclinação de cabeça. – Valorizo-a tanto quanto você valoriza a vida daquela menina que dorme no outro quarto - disse ele friamente. - Penso que essa dúvida poderia fazer com que ela terminasse no cemitério.

O sangue de Renata congelou em suas veias diante daquela ameaça. Ela olhou fixamente para cima, diretamente nos malignos olhos do monstro que agora sorria abertamente, com um prazer doentio.

- Como disse, querida Renata, tenha cuidado.


Capítulo 9

A cidade de Montreal, assim nomeada por causa do enorme monte que proporcionava uma vista magnífica do Rio Saint Lawrence e do vale abaixo, brilhava como um pote de pedras preciosas sob a lua crescente. Arranha-céus elegantes, torres de igrejas góticas, avenidas arborizadas e, à distância, uma brilhante linha de água que envolvia a cidade em um abraço protetor. Uma vista realmente espetacular.

Não havia dúvidas sobre a razão pela qual o líder do Refúgio de Montreal havia escolhido estabelecer sua comunidade perto do cume do Monte Real.

De pé no balcão do segundo andar da mansão em estilo barroco tinha-se a impressão de que a velha propriedade de caçadores fora da cidade parecia estar a mil quilômetros de distância. Mil anos longe daquela educada e civilizada maneira de viver. O que, obviamente, era verdade.

A espera para se encontrar com Edgar Fabien, o guerreiro da Raça que fiscalizava a população de vampiros de Montreal, parecia durar uma eternidade. Fabien era bem conhecido na cidade e havia rumores de que tinha bons contatos, tanto entre os Refúgios quanto no grupo de patrulha conhecido como a Agência. Ele era a escolha natural para uma situação delicada como aquela.

Mesmo assim, se o líder do Refúgio estivesse disposto a cooperar, essa era uma aposta que Lex tinha de arriscar. Aquela visita tardia e sem aviso fora um ato espontâneo e muito, muito arriscado.

O simples fato de ir ali já significava declarar-se inimigo de Sergei Yakut.

Mas Lex tinha visto o suficiente, tinha suportado o suficiente.

O príncipe estava de saco cheio de lamber as botas do pai. Era hora do rei tirano cair.

Lex girou ao som dos passos aproximando-se do interior da recepção. Fabien era um homem magro, alto e meticulosamente vestido, como se tivesse nascido em seus trajes feitos sob medida e com seus brilhantes mocassins de couro. Seu cabelo loiro acinzentado estava penteado para trás com algum tipo de gel perfumado, e quando ele sorriu para saudar Lex, seus magros lábios e estreitos traços faciais ficaram ainda mais severos.

- Alexei Yakut - disse, saindo para o balcão e oferecendo a mão para Lex. Não menos que três anéis cintilavam em seus longos dedos, ouro e diamantes que rivalizavam com o brilho da cidade lá fora. - Lamento que tenha esperado tanto. Temo que não estejamos acostumados a receber convidados inesperados em minha residência pessoal.

Lex assentiu, tenso, e soltou a mão de Fabien. A casa do líder do Refúgio não estava exatamente nos guias de turismo da cidade de Montreal, mas umas poucas perguntas feitas às pessoas certas tinham guiado Lex até ali sem maiores problemas.

- Venha, por favor - disse o homem da Raça, gesticulando para Lex e guiando-o para o interior da casa. Fabien se sentou em um luxuoso sofá, deixando espaço para Lex do outro lado.

- Devo admitir que fiquei surpreso quando minha secretária me disse quem queria me ver. Uma vergonha que não tenhamos tido a oportunidade de nos conhecer até agora.

Lex sentou-se junto ao líder do Refúgio, incapaz de evitar que seus olhos viajassem pelo interminável luxo de seus arredores.

- Mas você sabe quem sou eu? - perguntou Lex com cuidado. - Sabe também quem é o Primeira Geração, meu pai, Sergei Yakut?

Fabien assentiu com elegância.

- Só pelo nome, infelizmente. Fui negligente ao não ter feito as apresentações formais logo que vocês chegaram a minha cidade. Entretanto, os guarda-costas de seu pai deixaram claro que seu pai era uma espécie de eremita quando meu emissário pediu um encontro. Entendo que ele prefira uma vida tranquila e rural fora da cidade, em contato com a natureza ou algo do tipo.

Sobre os nódulos de seus dedos, o sorriso de Fabien não alcançou seus olhos.

- Suponho que viver com aquele tipo de... simplicidade signifique alguma coisa.

Lex grunhiu.

- Meu pai escolheu tal vida porque acredita estar acima da lei.

- Como?

- É por isso que estou aqui - disse Lex. - Tenho informações. Informações importantes que precisam ser averiguadas rapidamente. Secretamente.

Edgar Fabien inclinou-se contra as almofadas do sofá.

- Ocorreu algo... fora da casa?

- Vem ocorrendo há muito tempo - Lex admitiu, sentindo uma rara sensação de liberdade enquanto essas palavras saíam-lhe da boca.

Lex contou a Fabien tudo sobre as atividades ilegais de seu pai, desde o clube de sangue e do cemitério cheio dos restos de suas vítimas até o frequente assassinato de seus Subordinados humanos. Explicou, não sendo totalmente sincero, como fora corroído por esses segredo durante um longo tempo e como era seu próprio sentido de moralidade - seu sentido de honra e de respeito pela lei da Raça - que o obrigava a procurar ajuda para deter o reino particular de terror de Sergei Yakut.

Era o entusiasmo – a emoção no fundo de sua coragem - que fazia sua voz tremer, mas, se Fabien entendesse isso como lamento, melhor ainda.

Fabien o escutou com a expressão cuidadosamente séria e sóbria.

- Entendo, estou certo de que isso não é um assunto menor. O que você descreveu é... problemático. Perturbador. Mas haverá certos fatos que virão à tona nesse tipo de investigação. Seu pai é um Primeira Geração. Haverá perguntas que ele terá de responder, protocolos que precisarão ser observados.

- Investigação? Protocolos? - disse, indignado, Lex. Saltou sobre os pés, alagado de medo e ira. - Isso poderá levar dias ou até mesmo semanas. Um maldito mês!

Fabien assentiu, desculpando-se.

- De fato, poderá.

- Não há tempo para isso agora! Você não entende? Estou oferecendo meu pai de bandeja. Todas as provas que necessitará para uma detenção imediata estão ali em sua propriedade. Pelo amor de Deus, estou arriscando minha maldita vida só por estar aqui!

- Sinto muito - o líder do Refúgio dizia isso sustentando as mãos erguidas. - Se a situação não for segura para você, estaremos mais do que dispostos a oferecer-lhe proteção. A Agência poderia afastá-lo quando a investigação começar, levá-lo para algum lugar seguro.

A afiada risada de Lex o interrompeu.

- Enviar-me ao exílio? Estarei morto muito antes. Além disso, não estou interessado em fugir e me esconder como um cão. Quero o que mereço. Quero o que aquele bastardo filho da mãe me deve depois de todos esses anos de espera por esmolas – diante das palavras de Lex, era impossível mascarar os verdadeiros sentimentos. A ira preenchia-lhe o corpo por completo. - Quer saber o que realmente quero de Sergei Yakut? A morte.

O olhar de Fabien estreitou-se astutamente.

- Essa é uma afirmação muito perigosa.

- Não sou o único que pensa assim - respondeu Lex. - De fato, alguém teve coragem suficiente para tentar isso na semana passada.

Os ardilosos olhos de Fabien ficaram mais e mais estreitos.

- O que quer dizer?

- Ele foi atacado. Alguém entrou na casa e tentou cortar a cabeça do maldito, mas acabou falhando. Maldita sorte - Lex acrescentou baixinho. - A Ordem pensa que foi trabalho de um profissional.

- A Ordem - repetiu Fabien sem ar. - Como estão envolvidos nisso que está descrevendo?

- Eles enviaram um guerreiro ontem à noite para encontrar-se com meu pai. Aparentemente, estão tentando avisar os Primeira Geração sobre a recente caçada entre a população.

A boca de Fabien trabalhou um segundo sem formar palavras, como se não estivesse segura sobre o que articular primeiro. Ele limpou a garganta.

- Há um guerreiro aqui em Montreal? E o que é isso de caçada recente? Do que você está falando?

- Cinco Primeira Geração foram mortos, nos Estados Unidos e na Europa - disse Lex, recordando o que Nikolai lhe havia dito. - Alguém parece querer eliminar a primeira geração, um por um.

- Santo Deus – a expressão de Fabien era o vivo retrato da surpresa, mas algo nela preocupou Lex.

- Não sabia nada sobre os assassinatos?

Fabien levantou-se lentamente, agitando a cabeça.

- Estou aturdido, asseguro-lhe isso. Não tinha ideia. Que coisa terrível.

- Talvez sim, talvez não - respondeu Lex.

Enquanto olhava o líder do Refúgio, Lex se deu conta de que uma súbita tranquilidade abatia-se sobre o vampiro – uma tranquilidade tamanha que Lex se perguntava se ele ainda estava respirando. Havia um tênue, porém elevado, pânico nos olhos ambiciosos de Lex. Edgar Fabien sustentava o corpo com rígida precisão, mas seu olhar mutante encarava Lex como se quisesse sair correndo da sala.

Interessante.

- Sabe, eu esperava que você estivesse mais bem informado, Fabien. Sua reputação na cidade me levava a acreditar nisso. Com todos os seus amigos policiais, você está querendo me dizer que nenhum deles lhe disse algo sobre isso? Provavelmente eles não confiam em você, não? Provavelmente eles têm uma boa razão para isso.

Nesse momento, Fabien encontrou o olhar de Lex. Cintilações âmbar iluminaram-lhe a íris com um sinal revelador de um nervo comprimido.

- Que tipo de jogo está tentando fazer comigo?

- O seu - disse Lex, percebendo uma oportunidade e agarrando-a. - Você sabe sobre as caçadas aos Primeira Geração. A questão é: por que mente sobre isso?

- Não discuto publicamente assuntos policiais - Fabien cuspiu em resposta, inflando seu magro peito com indignação. - O que sei ou não sei é assunto meu.

- Sabia também sobre o ataque a meu pai antes que eu o mencionasse, não é mesmo? Foi você quem o atacou, não é? E quanto aos outros assassinados?

- Jesus Cristo, você está completamente louco.

- Queria estar - disse Lex. – Seja lá o maldito complô em que você está metido, Fabien, eu também quero fazer parte dele.

O líder bufou bruscamente, depois deu as costas a Lex enquanto caminhava para uma das altas estantes cravadas em uma parede prateada. Acariciou a madeira polida, rindo preguiçosamente.

- Embora nossa conversa tenha sido esclarecedora e divertida, Alexei, ela talvez deva terminar aqui. Acredito que é melhor que você vá e se acalme antes de dizer mais alguma tolice.

Lex avançou, decidido a convencer Fabien de que ele valia a pena.

- Se o quiser morto, estou disposto a ajudá-lo a conseguir isso.

- Insensato - foi a resposta que recebeu. - Posso estalar meus dedos e prendê-lo sob suspeita de tentativa de assassinato. Posso, mas nesse momento quero que vá embora e nenhum de nós dirá uma palavra sequer a respeito dessa conversa.

A porta da recepção se abriu e quatro homens entraram. Ao assentimento de Fabien, o grupo rodeou Lex. Sem escolha, ele saiu.

- Manterei contato - disse Lex, mostrando os dentes. – Pode contar com isso.

Fabien não respondeu, mas seu ardiloso olhar permaneceu fixo sobre Lex, com severo entendimento, enquanto o homem, tenso, atravessava a porta e a fechava.

Assim que Lex saiu para a rua, sozinho, sua mente começou a cogitar as opções disponíveis. Fabien era corrupto. Que surpreendente e útil informação. Com um pouco de sorte, não passaria muito tempo antes que as conexões de Fabien fossem também as suas. Não se preocupou particularmente em pensar como as conseguiria.

Levantou os olhos em direção à bela mansão do Refúgio e todo seu imaculado luxo. Era isso o que Lex queria: esse tipo de vida e não a imundície e a degradação que havia conhecido sob o jugo de seu pai. Isso era o que ele verdadeiramente merecia.

Mas, primeiro, ele precisaria sujar as mãos, mesmo que pela última vez.

Lex caminhou ao longo da estrada cheia de curvas ladeada por arvoredos e se dirigiu para a cidade com seus objetivos renovados.

 

 

CONTINUA

Capítulo 6

Em silêncio, Renata abriu a porta do quarto de Mira e espreitou a garotinha adormecida que descansava sobre a cama. Aquela era uma criança normal em seu pijama cor-de-rosa, com a bochecha macia apoiada contra o travesseiro fino, respirando calmamente pela delicada boca de querubim. Sobre a mesinha rústica próxima à cama estava o curto véu negro que cobria os notáveis olhos de Mira durante todos os momentos em que ela estava acordada.

- Bons sonhos, meu anjo - sussurrou Renata em voz baixa, de forma terna e esperançosa.

Nos últimos tempos, ela se preocupava cada vez mais com Mira. Não apenas por conta dos pesadelos que começaram depois do ataque que presenciara, mas pela saúde geral da garota. Embora Mira fosse forte e tivesse uma mente rápida e aguda, ela não estava completamente bem. Ela estava perdendo a visão rapidamente.

Cada vez que Mira era obrigada a exercitar o dom da premonição, um pouco de sua própria visão se deteriorava. E isso já estava acontecendo há meses quando Mira finalmente confidenciou a Renata seu estado. Ela tinha medo, como qualquer criança teria. Talvez até mais, já que Mira era mais sábia do que seus oito anos de idade indicavam. Ela compreendia que o interesse de Sergei Yakut por ela se evaporaria no momento em que ele a considerasse sem nenhuma utilidade. Ele a expulsaria, talvez até a mataria, se assim o desejasse.

Portanto, desde aquela noite, Renata e Mira mantinham um pacto: a condição de Mira seria um segredo entre elas e seria levado para o túmulo, se fosse necessário. Renata cumpria a promessa, jurando a Mira que a protegeria com sua própria vida. Jurou que nenhum dano aconteceria à garota, fosse ele causado por Yakut ou por qualquer outra pessoa, da Raça ou humano. Mira estaria a salvo da dor e da escuridão da vida de uma maneira que a própria Renata jamais esteve.

O fato de a garota ter sido usada naquela noite para entreter o hóspede não convidado de Sergei Yakut apenas aumentou a irritação de Renata. O pior de sua inquietação mental havia passado, mas uma dor de cabeça ainda persistia. O estômago não tinha parado de revirar, e pequenas ondas de náuseas retrocediam pouco a pouco.

Renata fechou a porta do quarto de Mira, estremecendo com outro pequeno tremor que lhe agitou o corpo. O longo banho que acabara de tomar tinha ajudado a aliviar um pouco o desconforto, mas até debaixo de suas calças folgadas de cor grafite e de seu pulôver macio de algodão branco, a pele continuava reclamando das correntes elétricas que lhe acometiam. Ela esfregou as palmas das mãos sobre as mangas da camisa, tentando dissipar a sensação ainda acesa que viajava por seus braços. Muito agitada para dormir, ficou no quarto apenas o tempo necessário para pegar algumas adagas no baú de armas. O treinamento sempre se mostrara bem-vindo nesses períodos de inquietação. Ela apreciava as horas do castigo físico que se infligia, feliz pelo treinamento rigoroso que a exauria.

Desde a terrível noite em que se encontrou imersa no perigoso mundo de Sergei Yakut, Renata havia aperfeiçoado ao máximo cada músculo de seu corpo, trabalhando metodicamente para se assegurar de que ela era tão letal quanto as armas que levava na caixinha de seda e veludo que agora carregava nas mãos.

Sobreviver.

Esse simples pensamento tinha sido seu farol desde que era apenas uma garota, mais jovem até do que Mira. E, mais que tudo, sozinha. Órfã abandonada na capela de um convento de Montreal, Renata não tinha nenhum passado, nenhuma família, nenhum futuro. Ela somente existia, e isso era tudo.

Para Renata, isso tinha sido o suficiente. Era o suficiente inclusive agora. Sobretudo agora que ela navegava pelo traiçoeiro mundo subterrâneo do reino de Sergei Yakut. Havia inimigos por todos os lados naquele lugar, tanto escondidos quanto visíveis. Inúmeros caminhos à espera de um passo em falso, de um equívoco; infinitas ocasiões para ela odiar o vampiro desumano que tinha a vida dela nas mãos. Mas ela não desistiria sem lutar.

Seu mantra dos dias de infância servia bem nesse momento: sobreviver um dia, e depois outro e outro.

Não havia espaço para brandura nessa equação. Piedade, vergonha ou amor não eram permitidos. Principalmente amor, de espécie alguma. Renata sabia que seu afeto por Mira - o impulso vital que lhe dava forças para fazer o caminho da menina mais suave e protegê-la como alguém de sua própria família - provavelmente lhe custaria muito caro no final.

Sergei Yakut tinha perdido pouco tempo explorando essa sua debilidade e Renata tinha as cicatrizes para comprovar.

Mas ela era forte. Não tinha encontrado coisa alguma nesta vida que não pudesse suportar, que não pudesse enfrentar - fisicamente ou de qualquer outra maneira. E tinha sobrevivido a tudo. Inteligente, forte... e letal quando tinha de ser.

Renata saiu do albergue e caminhou a passos largos pela escuridão rumo a um dos edifícios anexos que ficavam na parte de trás do local. O caçador que originalmente construíra a propriedade no bosque evidentemente adorava seus cães. Um velho canil de madeira fora erguido atrás da residência principal, disposto como um estábulo, com um amplo espaço dividido em dois e quatro baias de acesso alinhadas de ambos os lados. O teto de vigas devia ter uns quatro metros e meio de altura.

Embora pequeno, era um espaço aberto e bem ventilado. Na propriedade havia um celeiro maior e mais novo, que permitia movimentos mais fluidos, mas Renata geralmente o evitava.

Uma vez naquele lugar escuro e insalubre já tinha sido o suficiente. Se pudesse, ela já teria colocado fogo naquele maldito lugar.

Renata acendeu o interruptor ao lado da porta do canil e seu corpo se contraiu quando a lâmpada no teto derramou uma luz amarela e áspera no espaço. Entrou e caminhou pelo chão macio de terra batida. Passou por duas correias de couro largas e trançadas que se dependuravam na viga central da estrutura.

No extremo mais afastado do canil havia um poste alto de madeira que antes fora equipado com pequenos ganchos de ferro e laços para o armazenamento de correias e demais objetos. Renata havia se livrado dos arranjos alguns meses atrás e agora o poste funcionava como um alvo, cuja madeira escura já estava marcada de cortes profundos.

Renata colocou as lâminas sobre um fardo de palha que estava por perto e se agachou. Tirou os sapatos e caminhou descalça até o centro do canil. Alcançou o par de compridas correias de couro que havia ali e agarrou cada uma em uma mão. Enrolou o couro nos pulsos e, quando sentiu que estava cômodo, estendeu-se, flexionando os braços e levantando-se do chão de maneira tão leve que parecia ter asas.

Suspensa e livre da gravidade, Renata começou seu aquecimento. O couro rangia brandamente enquanto ela dava voltas e girava o corpo a vários metros do chão. Para ela, aquilo era a verdadeira paz, a sensação de seus membros ardendo, ganhando força e agilidade a cada movimento.

Renata deixou a mente se perder em uma meditação ligeira, mantendo os olhos fechados e todos os sentidos voltados para dentro de si, concentrados no ritmo cardíaco e na respiração, no movimento dos músculos enquanto ela se alongava. Assim foi até que girasse sobre o eixo e ficasse de cabeça para baixo, com os tornozelos agora presos às correias. Nesse momento, sentiu uma leve agitação no ar ao seu redor. Foi repentino e sutil, porém inconfundível. Tão inconfundível quanto o calor de uma respiração que agora lhe esquentava a bochecha.

Abriu os olhos de repente, lutando para compreender o espaço ao seu redor – todo invertido – e o intruso que estava de pé, abaixo dela. Era o guerreiro da Raça, Nikolai.

- Caramba! - ela disse, com sua falta de atenção fazendo-lhe oscilar um pouco no controle das correias. - Que diabos você acha que está fazendo?

- Relaxe - disse Nikolai. - Não estava querendo assustá-la – falou enquanto levantava as mãos para estabilizá-la.

- E não assustou – Renata respondeu com palavras pronunciadas com frieza. Com uma sutil flexão do corpo, afastou-se. – Importa-se? Você está atrapalhando meu treinamento.

- Ah! - as sobrancelhas loiras do macho da Raça arquearam enquanto seu olhar seguia a linha do corpo de Renata. - O que é exatamente esse treino? Está de olho em alguma vaga no Cirque du Soleil?

Ela não lhe deu o prazer de uma resposta. Não que ele esperasse uma. Nikolai virou-se e dirigiu-se para o poste que havia no outro extremo do canil. Estendeu a mão, percorrendo com os dedos as profundas marcas que havia na madeira. Então, encontrou as adagas e levantou o tecido que as protegia. O metal tilintou ao chocar-se brandamente dentro do quadrado dobrado de seda atado com a cinta de veludo.

- Não toque nisso - disse Renata, libertando-se das correias e voltando a colocar os pés no chão. - Eu disse para não tocar nisso. São minhas.

Niko não resistiu quando ela lhe tirou das mãos seus preciosos pertences; as únicas coisas de valor que ela podia reclamar como suas. O aumento em suas emoções o fez virar levemente a cabeça, certamente os efeitos secundários da força mental que ela esperava terem passado ainda persistiam. Ela deu um passo para trás e teve de se esforçar para manter a respiração estável.

- Você está bem?

Ela não gostou do olhar de preocupação refletido nos olhos azuis dele, pois era como se ele pudesse sentir sua debilidade, como se soubesse que ela não era tão forte quanto queria ser, quanto precisava aparentar.

- Estou bem.

Renata colocou as adagas em uma das baias do canil e as desembrulhou. Uma por uma, ela cuidadosamente colocou as quatro adagas esculpidas à mão sobre a madeira. Forçando um tom ligeiramente convencido, disse: - Eu é quem deveria fazer essa pergunta, não? Deixei você bem duro lá na cidade.

Ela escutou o grunhido baixo em algum lugar atrás de si, quase como um escárnio.

- Nunca se pode ser demasiado cauteloso quando se trata de estrangeiros - continuou ela. - Sobretudo agora. Estou segura de que você me entende.

Quando ela finalmente o percorreu com um olhar, encontrou-o olhando-a fixamente.

- Querida, a única razão pela qual você teve a possibilidade de me derrubar foi porque jogou sujo. Certificou-se de que eu a notasse no clube, fingindo ter alguma coisa escondida, sabendo que eu a seguiria diretamente para sua armadilhazinha.

Renata levantou os ombros, sem arrependimento.

- No amor e na guerra vale tudo.

Ele sorriu suavemente, formando um par de covinhas em seu rosto quadrado e masculino. – E isso é guerra, não é? – ele perguntou.

- Certamente não é amor – disse ela.

- Não - ele retrucou, tornando-se sério. - Nunca.

Bem, ao menos eles concordavam em alguma coisa.

- Há quanto tempo trabalha para Yakut?

Renata balançou a cabeça como se fosse incapaz de se recordar dessa informação, embora a noite em questão estivesse gravada em sua mente como se as memórias fossem ferro em brasa. Sangue. Horror. O começo de um fim.

- Não sei - disse ela. - Alguns anos, suponho. Por quê?

- Eu estava me perguntando como uma mulher, mesmo sendo uma Companheira de Raça com sua poderosa habilidade psíquica, foi parar nesse trabalho, especialmente para um Primeira Geração como ele. É estranho, é isso. Diabos, nunca ouvi falar de coisa semelhante. Então, diga-me: qual é sua ligação com Sergei Yakut?

Renata olhou fixamente o guerreiro: um forasteiro perigoso e ardiloso que, de repente, estava se intrometendo em seu mundo. Ela não estava segura de como responder. Certamente não estava disposta a lhe contar a verdade.

- Se você tem perguntas, talvez devesse fazê-las a ele.

- Sim - disse Niko, estudando-a mais estreitamente agora. - Talvez pergunte. E quanto à garota, Mira? Ela está aqui há tanto tempo quanto você?

- Não há tanto tempo. Apenas seis meses. - Renata tentou mostrar-se indiferente, mas um feroz instinto de proteção nasceu dentro de seu corpo diante da simples menção do nome de Mira nos lábios daquele guerreiro da Raça. - Ela passou por tanta coisa em tão pouco tempo. Coisas que nenhuma criança deveria testemunhar.

- Como o ataque a Yakut na semana passada?

E outras, mais sombrias ainda, Renata reconheceu interiormente.

- Mira tem pesadelos quase todas as noites. Ela praticamente não dorme já faz algum tempo.

Ele assentiu com a cabeça em um sóbrio reconhecimento.

- Este não é um bom lugar para uma garotinha. Alguns diriam que tampouco é lugar para uma mulher.

- É isso o que você diria, guerreiro?

O sorriso de Niko não confirmou nem negou a pergunta.

Renata o observou enquanto em sua mente surgiam perguntas e mais perguntas. Uma em particular.

- O que viu nos olhos de Mira esta noite?

Ele grunhiu algo ininteligível.

- Acredite, você não vai querer saber.

- Estou perguntando, não? O que ela lhe mostrou?

- Esqueça – enquanto ela o olhava, ele passou a mão pelos fios dourados de seu cabelo e exalou uma maldição, desviando o olhar em seguida. - De qualquer forma, isso não é possível. A garota definitivamente errou.

- Mira jamais erra. Ela nunca errou, pelo menos em todo o tempo em que a conheço.

- Mesmo? - o penetrante olhar azul do guerreiro voltou-se fixamente para Renata, percorrendo-lhe calorosamente o corpo em uma atitude lenta e avaliadora. - Alexei me disse que sua habilidade é imperfeita.

- Lex - Renata riu. – Faça-me um favor e não acredite em nada do que ele diz. Ele não diz e não faz nada sem um motivo oculto.

- Obrigado pelo conselho – disse, recostando-se contra o poste marcado pelas adagas. - Então, se é assim, não é verdade que, como ele disse, os olhos de Mira só refletem os acontecimentos que poderiam ocorrer no futuro, com base no agora?

- Lex pode ter suas próprias razões pessoais para desejar que não seja assim, mas Mira nunca erra. Tudo o que ela mostrou esta noite está destinado a acontecer.

- Destinado - disse ele, parecendo divertir-se com aquilo. - Bem, caramba... então acredito que estamos condenados.

Ele a olhou fixamente quando pronunciava essas palavras, desafiando-a a perguntar se ele deliberadamente a tinha incluído em sua observação. Dado que ele achara a ideia bastante divertida, ela não estava disposta a lhe dar a satisfação de perguntar o motivo. Renata agarrou uma de suas adagas e provou o peso do objeto com a palma aberta. Ela gostava de sentir o frio do aço contra a pele, algo sólido e familiar. Seus dedos estavam loucos para trabalhar. Seus músculos agora estavam aquecidos, preparados para mais uma ou duas horas de treino duro. Ela girou a lâmina e fez um sinal para o poste em que Nikolai estava apoiado.

- Importa-se? Não quero calcular mal e acidentalmente acertá-lo.

Ele percorreu o poste com o olhar e deu de ombros.

- Não seria mais interessante um treinamento de combate com um oponente real, que pudesse devolver o golpe? Ou será que você prefere alvos imobilizados?

Ela sabia que Niko estava jogando uma isca, mas o brilho de seus olhos era brincalhão. Ele realmente a estava paquerando? A natureza prática dele fez os pelos da nuca de Renata arrepiarem-se com cautela. Ela passou o polegar pela lâmina da adaga enquanto o olhava, insegura do que fazer.

- Prefiro trabalhar sozinha.

- Muito bem - ele disse inclinando a cabeça e afastando-se um pouco, quase que a desafiando com o olhar. – Como quiser.

Renata franziu a testa.

- Se você não se afastar, como pode estar seguro de que não vou acertá-lo?

Ele sorriu abertamente, completamente cheio de arrogância, com os musculosos braços cruzados sobre o peito.

- Mire onde quiser. Você nunca me acertaria.

Ela atirou a lâmina sem a mínima advertência.

O aço afiado cravou na madeira, causando uma fenda profunda, golpeando no lugar exato onde ela havia planejado. Mas Nikolai tinha desaparecido. Simples assim, sumido por completo.

Inferno.

Ele era da Raça, muito mais rápido do que qualquer ser humano, e tão ágil quanto um predador selvagem. Ela não era rival para ele, com armas ou com força física. E ela sabia disso mesmo antes de atirar a adaga. Entretanto, esperava, pelo menos, diminuir a arrogância e a presunção daquele filho da mãe.

Com os próprios reflexos afiados, Renata esticou o braço e alcançou outra adaga. Todavia, quando seus dedos se fecharam ao redor do punho lavrado, ela sentiu o ar mover-se atrás de si e percebeu o calor atravessar os fios de cabelo que estavam sobre o queixo.

O metal afiado subiu até sua mandíbula. Uma dura parede de músculos apertava-lhe a coluna vertebral.

- Não me acertou! Sentiu minha falta?

Ela engoliu cuidadosamente, pressionada pela lâmina que estava sob seu queixo. Tão brandamente quanto pode, relaxou os braços para os lados. Então, abaixou a mão que segurava a adaga, descansando-a entre as coxas separadas.

- Parece que encontrei você.

Como pôde, Renata o golpeou com uma pequena sacudida do poder de sua mente.

- Inferno - grunhiu Niko. E no instante em que relaxou o controle que tinha de Renata, a mulher saiu de seu alcance e virou-se para enfrentá-lo. Ela esperava a cólera dele, temia-a em certo sentido, mas ele apenas levantou a cabeça e deu de ombros. - Não se preocupe, querida. Só vou ter que brincar com você até que seja derrubada pelas reverberações de sua força psíquica.

Enquanto ela o contemplava, confusa e aflita, pensando como ele podia saber sobre a imperfeição de sua habilidade, ele disse:

- Lex me pôs a par de algumas coisas sobre você também. Ele me contou o que acontece cada vez que você dispara um desses mísseis psíquicos. Componente muito poderoso. Mas eu em seu lugar não o gastaria só porque sente necessidade de demonstrar força.

- Que o Lex vá pro inferno - murmurou Renata. - E que você vá pro inferno também. Não preciso de seus conselhos e certamente não preciso de nenhum de vocês falando porcarias a meu respeito pelas minhas costas. Essa conversa termina aqui.

Zangada como estava, ela, impulsivamente, flexionou o braço para trás e lançou a adaga na direção de Niko, sabendo que ele sairia facilmente do caminho como tinha feito antes. Dessa vez, porém, ele não se moveu. Com um estalo rápido como um relâmpago, ele estendeu a mão e capturou a lâmina no ar. E com um sorriso totalmente satisfeito, conseguiu que ela perdesse de vez as estribeiras.

Renata apanhou a última adaga no suporte do canil e a atirou contra ele. Como a outra, esta também foi pega no ar e agora ambas estavam nas mãos hábeis do guerreiro da Raça.

Ele a olhou, sem piscar, com um calor masculino que deveria deixá-la gelada, mas que, todavia, não a deixava.

- E agora o que vamos fazer para nos divertir, Renata?

Ela o fulminou com o olhar.

- Divirta-se sozinho. Vou embora daqui.

Ela deu meia-volta, pronta para sair do canil. Apenas tinha dado dois passos quando escutou um som agudo em ambos os lados de sua cabeça, tão perto que alguns fios errantes de seus cabelos voaram pelo rosto.

Então, diante dela, observou sobrevoar uma mancha imprecisa de aço, que estalou no outro extremo da parede.

Golpe seco.

As duas adagas que tinham voado ao lado de sua cabeça como objetos erráticos estavam agora cravadas na velha madeira, bem próximas de seus punhos. Renata virou-se, furiosa.

- Seu filho da mãe...

Ele se lançou sobre ela, seu enorme corpo obrigando-a a ir para trás, seus olhos azuis brilhando com algo mais profundo que a simples diversão ou a básica arrogância masculina. Renata deu um passo para trás, apenas o suficiente para que pudesse equilibrar seu peso sobre os calcanhares. Ela caminhou para trás e virou-se, elevando a outra perna em um chute giratório.

Dedos tão inflexíveis quanto barras de ferro fecharam-se ao redor de seu tornozelo, retorcendo-o.

Renata caiu no chão do canil, asperamente sobre as costas. Ele a seguiu, colocando-se sobre ela e encurralando-a enquanto ela lutava, agitando-se violentamente com os punhos e com as pernas. Mas Niko apenas precisou de um minuto para domá-la.

Renata ofegava pelo esforço excessivo, seu peito elevava-se pela velocidade de sua pulsação.

- Agora quem deseja demonstrar força, guerreiro? Você ganhou. Está feliz agora?

Ele fixou o olhar nela de forma estranha e silenciosa, não demonstrando prazer ou aborrecimento.

Seu olhar mantinha-se estável, tranquilo e íntimo. Ela podia sentir o coração martelando contra o peito. As coxas grossas dele escancaradas sobre ela, as duas mãos presas por cima de sua cabeça. Ele a sustentava com firmeza, com os dedos segurando-lhe os punhos em um suave apertão – suave e incrivelmente carinhoso. O olhar dele se desviou para onde a segurava, e um brilho de fogo crepitava em sua íris quando ele encontrou a pequena marca de nascimento carmesim com o desenho de uma lágrima que caía sobre uma meia-lua no pulso direito. Com o polegar, acariciou aquele precioso lugar, uma carícia fascinante e hipnótica que enviou um calor selvagem e erótico pelas veias de Renata.

- Ainda quer saber o que vi nos olhos de Mira?

Renata ignorou a pergunta, segura de que aquilo era a última coisa de que ela precisava saber naquele momento. Ela lutou com força debaixo dos músculos do corpo pesado do guerreiro, mas o maldito a dominava com o mínimo de esforço. Bastardo.

- Saia de cima de mim!

- Pergunte-me outra vez o que foi que vi, Renata.

- Já lhe disse para sair de cima de mim - grunhiu Renata, sentindo o pânico aumentar dentro do peito. Tentou respirar normalmente, sabendo que tinha que manter a calma e a situação sob controle. E tinha que ser rápida. A última coisa de que precisava era que Sergei Yakut saísse para procurá-la e a encontrasse impotente debaixo de outro macho. – Deixe-me sair agora.

- Do que tem medo?

- De nada, maldito!

Ela cometeu o erro de levantar o olhar em direção a ele. Um calor âmbar infiltrou-se no azul dos olhos do guerreiro: fogo devorando gelo. Suas pupilas começaram a estreitar-se rapidamente e atrás de seus lábios ela viu as pontas agudas das presas emergentes de Niko.

Se ele estava zangado, aquilo era apenas uma parte da causa física de sua transformação, já que, onde sua pélvis repousava ameaçadoramente sobre a dela, Renata sentia a ponta rija em sua virilha, a dilatação muito evidente do membro de Niko pressionando-se deliberadamente entre suas pernas.

Ela se moveu, tentando escapar daquele calor, da erótica posição dos corpos, mas aquilo apenas o deixou mais encaixado nela. O pulso acelerado de Renata se elevou, assumindo um ritmo urgente ao passo que um calor indesejado começou a florescer em seu sexo já completamente umedecido.

Ah, Deus! Isso não é bom. Isso não é nada bom.

- Por favor - ela gemeu, odiando-se pelo débil tremor que resvalou no momento de pronunciar a palavra. Odiando a ele também.

Queria fechar os olhos, recusando-se a ver o ardente e fixo olhar faminto. Ou a boca sensual e completamente selvagem tão perto da sua. Recusava-se a sentir o calor ilícito, a luxúria insana que ele causava nela - o perigo daquele inesperado desejo mortal. Mas seus olhos permaneciam fixos, incapazes de desviar, a resposta de seu corpo para aquele macho da Raça era mais forte que o ferro, mais intenso que sua vontade.

- Pergunte-me o que a menina me mostrou esta noite em seus olhos - exigiu ele, com voz tão baixa quanto um ronronar. Seus lábios estavam tão perto dos dela que lhe roçaram a pele suave. - Pergunte-me, Renata. Ou talvez prefira ver a verdade com seus próprios olhos.

O beijo passou através de seu sangue como fogo.

Os lábios pressionaram-se com paixão, o fôlego quente apressou-se, mesclando-se nos corpos ardentes dos dois. A língua do guerreiro explorou a boca de Renata, inundando-lhe, afogando seu grito mudo de prazer. Renata sentiu os dedos dele acariciando-lhe as bochechas, deslizando sobre os cabelos de sua têmpora para, então, passarem deliciosamente por sua nuca sensível. Ele a puxou para mais perto, afogando-a mais profundamente no beijo, que a estava tomando por completo, rompendo totalmente sua resistência.

Não. Ah, Deus! Não, não, não. Não posso fazer isto. Não posso sentir isto.

Renata separou-se da erótica tortura da boca do guerreiro e virou a cabeça para o lado. Ela estava tremendo, e suas emoções estavam chegando a um nível perigoso. Ela arriscara muito ali, com ele. Muito.

Por Deus! Ela tinha que apagar aquela chama que ele acendera em seu interior, aquela chama que a estava derretendo de forma mortal. E tinha de apagá-la rapidamente.

Dedos quentes tocaram-lhe o queixo, dirigindo seu olhar novamente à fonte de sua angústia.

- Você está bem?

Ela livrou-se daquelas mãos e separou-se do macho da Raça com um empurrão, ainda incapaz de falar.

Ele se afastou imediatamente. Segurou-lhe a mão, ajudando-a a ficar de pé. E embora Renata não quisesse ajuda alguma, ela estava muito afetada para rechaçar Niko naquele momento. Ficou de pé, incapaz de olhá-lo, tentando recompor-se.

Rezava para que não tivesse acabado de assinar sua própria sentença de morte.

- Renata?

Aquela voz atravessou-a de forma desesperadamente tranquila e fria.

- Aproxime-se de mim outra vez – ela disse - e eu juro que mato você.


Capítulo 7

Alexei estava esperando havia mais de dez minutos do lado de fora do quarto de seu pai, o que demonstrava que um pedido seu para uma audiência era considerado como o de qualquer um dos outros guardas de Yakut. A falta de respeito – a flagrante indiferença – não incomodava mais Lex como antes. Ele tinha superado esse passado amargo e inútil em favor de coisas mais produtivas.

Ah! No fundo do estômago de Lex ainda doía saber que seu pai - seu único parente vivo - pudesse pensar tão pouco nele, mas o calor da rejeição constante tinha, de alguma forma, se tornado menos doloroso. As coisas eram simplesmente assim. E Lex, de fato, era mais forte por isso. Era igual ao pai, de maneira que nem o maldito velho Primeira Geração poderia imaginar, que dirá admitir.

Mas Lex conhecia suas próprias capacidades. Conhecia suas próprias forças. Sabia sem dúvida alguma que podia ser muito mais do que era agora, e desejava a oportunidade de demonstrá-lo: a ele mesmo e, sim, ao filho da mãe que o criara também.

Quando a porta finalmente se abriu, o ruído seco da fechadura de metal fez os pés de Lex vacilarem.

- Bem a tempo - grunhiu ele ao guarda, que se afastou para deixá-lo entrar.

O lugar estava escuro, iluminado apenas pelo brilho das madeiras que ardiam na enorme lareira de pedra na parede oposta. Havia eletricidade na casa, mas ela raramente era utilizada – não eram necessárias luzes, pois Sergei Yakut e o resto da Raça tinham uma extraordinária visão, especialmente no escuro.

Os outros sentidos dos homens da Raça também eram bastante agudos, mas Lex suspeitava que até um humano se sentiria em apuros ao sentir os aromas de sangue e sexo que se fundiam com o aroma azedo da fumaça da lareira.

- Perdoe-me por interrompê-lo - murmurou Lex, enquanto seu pai saía de um cômodo anexo.

Yakut estava nu, com o pênis ainda parcialmente ereto e inclinando-se obscenamente com cada movimento. Enojado pela vista, Lex piscou e desviou o olhar. Rapidamente pensou melhor no ato e percebeu que aquele débil impulso seria usado contra ele. Em vez disso, observou o pai entrar no quarto, os olhos brilhando como carvões âmbar enfiados no fundo do crânio, com as pupilas reduzidas a estreitas e verticais frestas no centro do globo ocular. As presas em sua boca estavam enormes, completamente estendidas e afiadas como lâminas.

Uma camada de suor cobria-lhe o corpo e cada polegada da lívida cor latente de seus dermoglifos, as marcas únicas da Raça que se estendiam da garganta aos tornozelos do Primeira Geração. Sangue fresco – humano, sem dúvida, um aroma fraco que indicava pertencer a um Subordinado - manchava todo o torso e os flancos do vampiro ancião.

Lex não estava surpreso pela evidência da recente atividade de seu pai, nem pelo fato de que o trio de vozes fracas no outro quarto fosse as de seu atual grupo de escravas humanas. Criar e manter Subordinados, algo que só as estirpes mais puras e poderosas da Raça eram capazes de fazer, tinha sido durante muito tempo uma prática ilegal entre a educada sociedade da Raça. Entretanto, essa prática continuava, pelo menos entre os domínios de Sergei Yakut. Ele fazia suas próprias regras, executava sua própria justiça, e aqui, neste lugar remoto, deixava claro a todos que ele era o rei. Inclusive Lex podia desfrutar desse tipo de liberdade e poder. Diabos! Podia, de fato, saboreá-lo.

Yakut dirigiu-lhe um olhar desdenhoso do outro lado do quarto.

- Olho para você e vejo a morte diante de mim.

Lex franziu a testa.

- Senhor?

- Se não fosse pelas restrições do guerreiro e por minha intervenção nesta noite, estaria ao lado de Urien em cima daquele armazém na cidade, ambos esperando o amanhecer.

O desprezo inundava cada sílaba das palavras de Yakut enquanto ele pegava uma ferramenta de ferro do lado da chaminé e movia as brasas na lareira.

- Salvei sua vida esta noite, Alexei. O que mais espera por hoje?

Lex irritou-se ao se lembrar de sua recente humilhação, mas sabia que o ódio não o ajudaria, particularmente quando estivesse enfrentando o pai. Fez um movimento com a cabeça, tentando encontrar uma maldita resistência para manter o tom em sua voz.

- Sou seu fiel servo, pai. Não me deve nada. E não peço nada exceto a honra de sua contínua confiança em mim.

Yakut grunhiu.

- Você fala mais como um político do que como um soldado. Não preciso de políticos entre os meus, Alexei.

- Sou um soldado - respondeu rapidamente Lex, elevando a cabeça e olhando enquanto o pai continuava movendo a barra de ferro no fogo. As lenhas soltavam faíscas que golpeavam o silêncio letal que tomava conta do ambiente. - Sou um soldado - afirmou novamente. - Quero servi-lo da melhor maneira possível, pai.

Yakut girou a cabeça despenteada para olhar Lex por cima do ombro.

- Você me oferece palavras, garoto. Não confio em palavras. E ultimamente não o vejo me oferecendo nada além de palavras.

- Como espera que eu seja eficiente se não me mantém informado dos acontecimentos?

Quando os olhos matizados de âmbar estreitaram-se sobre ele, Lex apressou-se em acrescentar:

- Falei com o guerreiro no bosque. Ele me contou sobre os recentes assassinatos dos Primeira Geração. Disse que a Ordem havia pessoalmente entrado em contato com você para avisá-lo do perigo potencial. Deveria ter me contado isso, pai. Como capitão de sua guarda, mereço ser informado.

- Merece o quê? - a pergunta saiu dos lábios de Yakut. - Por favor, Alexei... diga-me o que você acha que merece.

Lex permaneceu em silêncio.

- Nada a acrescentar, filho? - Yakut moveu a cabeça em um ângulo exagerado, a boca mostrando um sorriso sarcástico. - Uma acusação semelhante me foi lançada há anos pelos lábios de uma mulher estúpida que pensava poder apelar para meu sentido de obrigação. Minha misericórdia, possivelmente – Yakut riu entre os dentes, voltando a atenção de novo ao fogo, para mover, de novo, as brasas. - Sem dúvida você se lembra do que aconteceu.

- Sim - respondeu com cuidado Lex, surpreso pela garganta seca enquanto falava.

As lembranças formaram redemoinhos com as ondulantes chamas da lareira.

Norte da Rússia, fim do inverno. Lex era um menino, mal tinha dez anos, mas era o homem de seu precário lar tanto quanto podia se lembrar. Sua mãe era tudo o que ele tinha. A única que sabia como ele era realmente, e a única que o queria bem.

Ele estava preocupado desde a noite em que ela lhe havia dito que o levaria para conhecer seu pai pela primeira vez. Disse-lhe que ele era um segredo que ela tinha mantido - seu pequeno tesouro. Mas o inverno fora duro, e eles eram pobres. Precisavam de refúgio, de alguém que os protegesse. O campo estava em batalha e era inseguro para uma mulher cuidando sozinha de um menino. Ela disse que o pai de Lex os ajudaria, que ele abriria os braços em boas-vindas uma vez que conhecesse o filho.

Mas Sergei Yakut os recebeu com uma cólera fria e um terrível e impensável ultimato.

Lex se lembrou da mãe rogando a Yakut para que os acolhesse... Lembrou-se da mulher sendo completamente ignorada. Lembrou-se da bela mulher ajoelhada diante de Yakut, implorando para que cuidasse de Alexei.

As palavras estavam gravadas nos ouvidos de Lex, inclusive agora: “Ele é seu filho! Isso não significa nada para você? Será que ele não merece algo mais?”.

Rapidamente a cena saiu do controle.

Facilmente, Sergei Yakut ergueu uma espada e deslizou a lâmina pelo pescoço da indefesa mãe de Lex.

Suas palavras brutais afirmavam que ele tinha apenas lugar para soldados em seu reino, e que Lex tinha uma escolha a fazer naquele momento: servir ao assassino de sua mãe ou morrer com ela.

A débil resposta de Lex tinha sido dita entre soluços. “Vou servi-lo”, disse. E sentiu que uma parte de sua alma o abandonava enquanto olhava com horror o corpo ensanguentado e mutilado da mãe. Vou servi-lo, pai.

O silêncio que se seguiu foi muito frio, tão frio quanto uma tumba.

- Sou seu servo - Lex disse alto, baixando a cabeça mais pelo peso das velhas lembranças do que por respeito ao tirano que o governava. - Minha lealdade sempre foi sua, pai. Apenas sirvo ao seu prazer.

Um repentino calor, tão intenso quanto chamas ardentes, veio sob o queixo de Lex. Sobressaltado, ele levantou a cabeça, estremecendo de dor com um grito afogado. Viu a fumaça sair diante de seus olhos, sentiu o cheiro adocicado de carne queimando.

Yakut Sergei estava diante dele segurando o atiçador de ferro nas mãos. A ponta brilhante da haste de metal queimava vermelha, exceto pelo resíduo de pele branca pendurada, que havia sido arrancada do rosto de Lex.

Yakut sorriu, mostrando as pontas de seus dentes.

- Sim, Alexei, você serve apenas para o meu prazer. Lembre-se disso. Só porque meu sangue corre em suas veias não significa que eu não possa matá-lo.

- Claro que não - Lex murmurou, seus dentes cerrados pela devastadora agonia da queimadura. O ódio fervilhava nele pelo insulto que tinha que engolir e por sua própria impotência quando viu o homem da Raça desafiando-o com a testa franzida, pronto para fazer um movimento contra ele novamente. Yakut acabou desistindo. O velho arrastou uma túnica de linho marrom de uma cadeira e deu de ombros para ele. Seus olhos ainda estavam brilhantes, com fome e sede de sangue. Deixou a língua deslizar em seus dentes e presas.

- Como você está tão ansioso para me agradar, traga-me Renata. Preciso dela agora.

Lex apertou os dentes.

Sem palavras, saiu do quarto com a mandíbula rígida, os próprios olhos cintilando com a luz âmbar de sua indignação. Não perdeu de vista o olhar confuso do guarda postado na porta, o rumo inquieto dos olhos dos outros vampiros enquanto disfarçava o aroma de carne queimada e o provável calor de sua ira.

A queimadura cicatrizaria - de fato, já estava cicatrizando -, seu acelerado metabolismo da Raça reparava a pele queimada enquanto seus pés o levavam à área principal do refúgio. Renata vinha de fora. Ela viu Lex e se deteve, virando como se quisesse evitá-lo.

Não mesmo.

- Ele quer você - gritou Lex, sem se preocupar com quantos outros guardas estivessem ouvindo. Todos sabiam que ela era a vadia de Yakut, assim, não havia razão para fingir outra coisa. – Mandou-me que a chamasse. Está a sua espera para que o sirva.

Os frios olhos verde-jade o demoliram.

- Estive treinando. Preciso me lavar.

- Ele disse agora, Renata.

Uma ordem curta que ele sabia que seria obedecida. Havia mais do que uma leve satisfação nesse pequeno e raro triunfo.

- Muito bem.

Ela deu de ombros, apoiada sobre seus pés descalços.

Sua insossa expressão enquanto se aproximava dizia que não se preocupava com o que pensavam dela, muito menos Lex, e essa indiferença à humilhação apenas o fazia querer degradá-la mais. Farejou em sua direção, mais pelo efeito que isso causava do que por qualquer outra coisa.

- Ele não se importará com sua imundície. Todos sabemos que as melhores vagabundas são as sujas.

Renata não fez mais do que piscar com o vulgar comentário. Ela podia reduzi-lo com uma rajada de seu poder mental se assim o decidisse - de fato, Lex quase esperava que ela o fizesse, simplesmente para provar que a havia ferido. Mas o rápido giro de seu olhar disse que ela não sentia que ele merecia tal esforço.

Ela passou junto dele com uma dignidade que ele não podia compreender. Ele a olhou – todos os guardas próximos a olharam - enquanto ela caminhava para o quarto de Sergei Yakut tão calma quanto uma rainha a caminho da forca.

Não precisou muito para Lex imaginasse o dia em que ele controlaria tudo, mandaria naquele lugar, inclusive na altiva Renata. É óbvio, a vadia não seria tão altiva se sua mente, vontade e corpo pertencessem completamente a ele. Uma Subordinada para servir cada um de seus caprichos e os dos outros homens sob seu comando.

Sim, Lex pensou sombriamente, seria muito bom ser rei.


Capítulo 8

Nikolai pegou uma das adagas de Renata no poste onde ela as havia atirado. Tinha de lhe dar crédito: se tivesse acertado o alvo, ele estaria morto. Se fosse simplesmente um humano com reflexos lentos, e não um macho da Raça, o treinamento dela certamente o teria transformado em espetinhos para assar.

Ele riu ao devolver a lâmina ao envoltório elegante com as outras três. As armas eram belas, lustrosas e perfeitamente equilibradas, obviamente feitas à mão. Niko deixou seu olhar vagar sobre o desenho esculpido nos punhos de prata esterlina da arma. O padrão parecia ser um jardim de videiras e flores, mas quando ele as olhou mais de perto, deu-se conta de que cada uma das quatro lâminas também tinha uma palavra gravada dentro do desenho: fé, coragem, honra e sacrifício.

Ele se perguntou se aquilo seria uma espécie de oração de um guerreiro ou os princípios da disciplina pessoal de Renata.

Nikolai pensou no beijo que tinham compartilhado. Bom, dizer que eles o tinham compartilhado era um tanto presunçoso, considerando como ele tinha descido sua boca com toda a delicadeza de um trem de carga. Ele não tivera a intenção de beijá-la. Certo, e a quem ele estava tentando enganar? Ele não poderia ter parado mesmo que tivesse tentado. Não que fosse uma desculpa. E não que Renata tivesse dado qualquer possibilidade de desculpas ou perdão.

Niko ainda podia ver o horror em seus olhos, a inesperada, porém óbvia repulsão pelo que ele tinha feito. Ainda podia sentir a sinceridade da ameaça que ela pronunciou antes de sair tempestuosamente do canil.

A parte destruída de seu ego tentava acalmá-lo com a possibilidade de que talvez ela realmente desprezasse todos os machos de modo geral. Ou que talvez ela fosse tão fria como Lex parecia pensar. Um soldado assexuado – frígida apesar de ter a cara de um anjo e o corpo que conduzia sua mente a todo tipo de pecado e luxúria. Muitos pecados, cada um mais tentador e atraente do que o anterior.

Nikolai tinha um encanto fácil quando se tratava de mulheres. Não era simples alarde, mas uma conclusão a que ele tinha chegado baseado nos anos de experiência. Quando se tratava de mulheres, desfrutava tranquilamente das conquistas sem complicações, quanto mais temporárias melhor. A perseguição e as lutas eram divertidas, mas o melhor reservava para o combate verdadeiro, em batalhas sangrentas, com vampiros Renegados e outros inimigos da Ordem. Esses eram os desafios de que ele mais desfrutava.

Então, por que estava lutando contra esse impulso perverso de ir atrás de Renata e descobrir se não podia descongelar parte do gelo que a cobria?

Porque ele era um idiota. Um idiota com uma fúria perigosa e com um aparente desejo mortal.

Hora de parar de pensar com a cabeça de baixo. Não importava o que seu corpo estivesse dizendo - não importava mais o que ele tinha visto no olhar de Mira. Ele tinha um trabalho a fazer, uma missão da Ordem, e esta era a única razão pela qual estava ali.

Niko cuidadosamente envolveu as adagas de Renata no estojo de seda e veludo, e colocou o pequeno embrulho no fardo de palha esperando que ela voltasse para buscá-los, assim como os sapatos deixados para trás.

Abandonou o canil e se dirigiu à escuridão para recolher informações sobre as terras da mansão. Uma meia-lua pendurava-se no alto do céu noturno, velada por um punhado de nuvens negras como carvão. A brisa da meia-noite era cálida, abatendo-se brandamente através dos pinheiros altos e dos carvalhos espinhosos dos bosques ao redor. Os aromas misturavam-se no ar úmido do verão: o sabor forte da resina de pinheiro, a marca mofada do chão protegido do sol, a nitidez de tantos minerais na água doce, na corrente que evidentemente atravessava a propriedade não longe de onde Niko estava.

Nada incomum. Nada fora do lugar.

Até que...

Nikolai levantou o queixo e inclinou a cabeça ligeiramente para o oeste. Algo inesperado atravessou os seus sentidos. Algo que não podia, não deveria, encontrar ali.

Era a morte o que ele estava sentindo.

Sutil, antiga... mas certa.

O guerreiro correu na direção que seu olfato o levava. Cada vez mais profundo no bosque. A cerca de cem metros da mansão, a mata adensou-se. Niko reduziu sua marcha quando chegou ao lugar onde suas fossas nasais começavam a arder com o fedor envelhecido da decomposição. Aos seus pés, o chão estava esparso com folhas, enredado por videiras que caíam longe pela ravina escarpada.

Nikolai olhou para baixo pela fenda, adoecendo, antes mesmo que seus olhos pousassem na carnificina.

- Inferno - murmurou ele, sob seu fôlego.

Uma fossa de morte se encontrava no fundo da ravina. Esqueletos humanos. Dúzias de corpos, sem enterrar, esquecidos, simplesmente jogados uns em cima dos outros, como se fossem lixo. Tantos que levaria muito tempo para contar todos eles. Adultos. Crianças pequenas. Um massacre que não mostrava nenhuma discriminação a suas vítimas, tampouco misericórdia. Um massacre que poderia ter levado anos para ter sido realizado.

A pilha de ossos brancos brilhava sob a escassa luz da lua, pernas e braços empilhados juntos onde quer que o mortos tivessem caído, crânios olhando para ele, com as bocas abertas em macabros gritos silenciosos. Nikolai tinha visto o suficiente. Recuou da beira da ravina enquanto lançava outra maldição na escuridão.

- Que tipo de porcaria andou acontecendo por aqui?

Em seu íntimo, ele sabia.

Jesus Cristo, não havia muita margem para dúvidas.

Um clube de sangue.

A fúria e a repugnância passaram através dele em uma onda negra. Ele teve, por instantes, o desejo entristecedor de rasgar os membros de cada vampiro comprometido em violar a lei assassinando todas aquelas pessoas. Não que ele tivesse esse direito, mesmo como um membro guerreiro da Ordem. Ele e seus irmãos não tinham muitos amigos entre os ramos governantes da Raça, e muito menos na Agência de Controle, que atuava tanto como policiais e como políticos, responsáveis pelas populações de vampiros em geral. Eles pensavam que a Ordem e todos os guerreiros que a serviam estavam acima da sociedade civilizada. Vigilantes e militantes. Cães selvagens que só desejavam uma desculpa para fazê-la cair.

Nikolai sabia que isso estava fora de seus limites de atuação, mas isso não fez que o desejo de prescindir sua própria marca de justiça ficasse menos tentador.

Embora ultrajado e indignado, Niko precisava acalmar-se. Sua fúria não ajudaria as vidas esparramadas lá embaixo. Era muito tarde para isso. Niko não podia fazer nada, exceto mostrar um pouco de respeito, algo que lhes tinha sido negado inclusive depois da morte.

Solenemente, embora só por um breve momento, Nikolai se ajoelhou na borda da profunda ravina. Ele estendeu amplamente seus braços longos, invocando o poder luminoso que estava dentro dele, um talento da Raça que se encontrava unicamente nele e que em sua linha de trabalho, em particular, era de pouca utilidade. Sentiu o poder arder em seu interior quando o invocou. O poder se voltou em energia e luz, propagando-se através de seus ombros e movendo-se para baixo, em direção a seus braços. Logo, em suas mãos, esferas gêmeas brilhavam sob a pele no centro das palmas.

Nikolai tocou com os dedos a terra ao seu lado.

Em resposta, as videiras e arbustos se agitaram ao seu redor, gravetos verdes e pequenas flores silvestres do bosque despertaram acima, fazendo movimentos. Esses movimentos aumentaram cada vez mais em acelerada velocidade. Niko enviou os brotos que estavam crescendo de novo para a ravina e, em seguida, ficou de pé para assistir aos mortos serem cobertos por um manto de suaves folhas novas e flores.

Não era um grande rito funerário, mas era tudo o que ele tinha a oferecer às almas dos corpos que foram deixados ali para apodrecer na intempérie.

- Descansem em paz - murmurou ele.

Quando o último osso foi coberto, ele se dirigiu para a mansão. O celeiro de armazenamento em que ele tinha farejado o sangue agora chamava-lhe a atenção.

Só para confirmar suas suspeitas, Niko inspecionou e moveu o ferrolho solto. Abriu a porta e olhou dentro da construção. O celeiro estava vazio, tal como Lex havia dito. Mas novamente, as jaulas de aço construídas no interior não tinham sido feitas para nenhum tipo de armazenamento permanente. Eram gruas altas, celas da prisão com ferrolhos desenhados para os prisioneiros humanos, com caráter de contenção temporária.

Brinquedos vivos para o esporte de caça ilegal no remoto bosque que Sergei Yakut dominava.

Com um grunhido, Nikolai saiu do celeiro e partiu para a casa principal.

- Onde está ele? - perguntou ao guarda armado que o percebeu assim que atravessou a porta. - Onde está ele? Diga agora!

Ele não esperou por uma resposta. Não quando os outros dois guardas, ambos do lado de fora de uma porta fechada no grande corredor, tomaram uma postura de batalha repentina. Atrás deles, estavam os aposentos privados de Yakut, obviamente.

Nikolai irrompeu e empurrou um dos guardas de seu caminho. O outro tinha um rifle e começou a apontar para o guerreiro. Niko bateu a arma na cara do guarda, e então lançou o vampiro tonto à parede mais próxima.

Deu um chute na porta, estilhaçando a madeira velha e arrancando as dobradiças de ferro. Caminhou a passos largos através dos escombros, ignorando os gritos dos homens de Yakut. Encontrou o Primeira Geração no centro do quarto, diante de um sofá de couro, inclinado possessivamente sobre a garganta nua de uma fêmea de cabelos escuros enjaulada pelos braços do vampiro.

Com a interrupção, Yakut levantou a cabeça de sua alimentação e olhou na direção do invasor. Também o fez sua Anfitriã de Sangue...

Renata.

Não mesmo.

Ela estava unida a ele com o laço de sangue? Seria ela a Companheira de Raça desse monstro?

Todas as acusações que Nikolai tinha preparado para lançar a Sergei Yakut morreram repentinamente em sua garganta. Ele ficou olhando fixamente, com seus sentidos da Raça turvados e trincados, mais acordados ao ver o sangue da fêmea que gotejava dos lábios e das enormes presas de Yakut. O aroma dela atravessou o quarto, atingindo com força o cérebro de Niko. Ele não esperava um contraste tão estranho ao de sua conduta fria, mas o aroma de seu sangue era uma mescla quente, embriagadora e intoxicante de sândalo e chuva fresca de primavera. Suave. Feminino. Excitante.

A fome apertou o estômago de Nikolai, uma reação visceral com a qual ele teve que lutar arduamente para conter-se. Disse para si que era simplesmente sua natureza da Raça sobressaindo-se. Havia poucos entre os de sua estirpe que podiam resistir ao canto das sereias de uma veia aberta, mas quando seus olhos encontraram o olhar fixo de Renata, um novo calor explodiu dentro dele. Mais forte, aliás, que a primitiva sede de alimentar-se.

Ele a desejava.

Mesmo enquanto estava deitada debaixo de outro macho, permitindo-lhe beber dela, Nikolai tinha fome dela com uma ferocidade que o sobressaltava. Unida pelo sangue a outro ou não, Niko queimava de desejo por Renata.

O que, até mesmo com seu flexível código de honra, o fazia se sentir quase próximo ao nível desprezível de Yakut.

Niko teve de sacudir-se mentalmente para desprender-se daquela visão perturbadora, voltando bruscamente sua atenção aos problemas que tinha à mão.

- Você tem um sério problema - disse ele ao vampiro Primeira Geração, sendo apenas capaz de conter seu desprezo. - Na verdade, suponho que você tem aproximadamente três dúzias deles apodrecendo em seu bosque.

Yakut permaneceu calado, seu olhar escuro assumiu a cor âmbar, indicando o desafio. Um grunhido ondulou antes que ele voltasse a cabeça para sua refeição interrompida. A língua de Yakut deslizou do meio de seus lábios para lamber as espetadas que tinha deixado no pescoço de Renata, selando as feridas e estancando o sangue.

Só então, quando a língua de Yakut percorreu a pele de Renata, ela afastou o olhar de Niko. Ele acreditou ver alguma tranquilidade, um pouco de resignação, passar através de seu rosto nos segundos antes de Yakut se levantar e a liberar. Uma vez livre, Renata se moveu para o canto do quarto, puxando a camisa de volta ao lugar.

Ela ainda estava vestida com a roupa de antes, ainda estava descalça.

Ela devia ter vindo diretamente para cá depois do que tinha se passado no canil.

Tinha procurado Yakut por proteção? Ou por simples comodidade?

Jesus.

Niko se sentiu um asno quando se lembrou da maneira como tentou beijá-la. Se ela estivesse unida por sangue a Sergei Yakut, essa união era sagrada, íntima... exclusiva. Não admirava que ela tivesse reagido como reagira. Os beijos de Nikolai teriam sido um insulto e a degradação para ambos. Mas agora ele não estava ali para pedir desculpas – não a Renata ou ao seu aparente companheiro.

Nikolai dirigiu um olhar duro para o vampiro.

- Há quanto tempo você caça seres humanos, Yakut?

O Primeira Geração apenas grunhiu, sorrindo.

- Encontrei os currais de detenção no celeiro. Encontrei os corpos. Homens, mulheres... crianças.

Nikolai grunhiu uma maldição, incapaz de conter sua repugnância e indignação.

- Você transformou esse lugar em um maldito clube de sangue. Pelo aspecto dos corpos, eu diria que faz isso há anos.

- E o que tem isso? - Yakut perguntou despreocupadamente, sem sequer tentar emitir uma respeitável negação.

E no canto do quarto, Renata permaneceu em silêncio, com os olhos fixos em Niko, mas sem mostrar surpresa alguma.

Ah, Cristo! Então ela também sabia.

- Maldito doente - ele disse, olhando de novo para Yakut. - Todos vocês estão doentes. Não poderá continuar com isso. Pare agora mesmo. Há leis...

O Primeira Geração riu, com a voz deformada pela transformação de seu lado mais selvagem.

- Eu sou a lei aqui, rapaz. Ninguém, nem os Refúgios e sua tão elogiada Agência, nem sequer a Ordem têm algo a ver com meus assuntos. Convido qualquer um para vir aqui e tentar me dizer o contrário.

A ameaça era clara. Apesar do fato de a honra e a justiça gritarem dentro de Nikolai para que ele acabasse com o maldito filho da mãe ali mesmo, ele não podia fazê-lo, pois Yakut não era um vampiro comum. Era um Primeira Geração. Não apenas dotado de força e poderes imensamente maiores que os do guerreiro ou de qualquer outro posterior da Raça, mas também membro de uma classe rara. Desses, só havia poucos, menos ainda agora, como resultado da eclosão dos recentes assassinatos.

Tão repugnante quanto a prática ilegal dos clubes de sangue entre a sociedade da Raça era a tentativa de matar um vampiro da Primeira Geração.

Nikolai não podia levantar a mão contra o filho da mãe, não importa quanto desejasse fazer isso.

E Yakut sabia. Ele limpou a boca com a túnica escura, esfregando ligeiramente a fragrância doce do sangue de Renata.

- A caçada está em nossa natureza, rapaz.

A voz de Yakut tinha uma serenidade mortal, completamente cheia de confiança, enquanto avançava para Nikolai.

- Você é jovem, nascido da Raça mais fraca de alguns de nós. Talvez seu sangue esteja tão diluído com o da humanidade que simplesmente não pode compreender a necessidade em sua forma mais pura. Se tivesse o gosto pela caçada, seria menos hipócrita com aqueles de nós que preferem viver como deve ser.

Niko sacudiu lentamente a cabeça.

- Os clubes de sangue não são só caçada. Eles são simplesmente uma matança. Você pode dizer suas asneiras, mas ainda assim você não passa de um monte de porcaria. É um animal. O que você realmente precisa é de uma focinheira e de uma coleira. Alguém tem que deter você.

- E pensa que você ou a Ordem fará essa tarefa?

- Você pensa que nós não faremos? - desafiou Niko, com uma parte de si esperando que o Primeira Geração lhe desse uma boa razão para sacar suas armas. Ele não se imaginava fugindo do confronto com o vampiro ancião, ele não desistiria sem uma maldita briga.

Em resposta, Yakut recuou, com seus olhos de cor âmbar brilhantes, as elípticas pupilas diminutas estilhaçadas de negro. Ergueu o queixo barbudo e virou a cabeça para um lado. Seus lábios se separaram com um selvagem sorriso que expôs suas presas. Daquela maneira não era difícil que todos observassem a parte alienígena dele - a parte que fazia dele e de todo o resto da Raça o que eram: predadores que bebem sangue e não pertencem totalmente a este mundo mortal, mas que apenas nasceram aqui.

- Eu lhe disse uma vez que você não era bem-vindo em meus domínios, guerreiro. Você ou sua proposta de aliança com a Ordem não me serve de nada. Minha paciência está chegando ao limite, assim como sua estadia aqui.

- Sim – concordou Niko. – Vou dar o fora deste lugar com muito prazer. Mas não pense que esta é a última vez que você vai ter notícias minhas.

Ele não pôde deixar de deslizar o olhar selvagem sobre o corpo de Renata quando disse essas palavras. Por mais raiva que estivesse sentindo de Yakut, não podia sentir o mesmo por ela. Ele esperava que ela dissesse que não sabia sobre os crimes que aconteciam naquele pedaço de terra embebido de sangue, desejava que ela dissesse algo para convencê-lo de que não fazia parte do jogo e das práticas doentias de Yakut.

Mas ela simplesmente recuou o olhar, com os braços cruzados sobre o peito. Uma mão se elevou ociosamente para tocar a ferida que estava se curando em seu pescoço, mas ela permaneceu em silêncio.

Todavia, ela não deixou de olhar o guerreiro quando ele saiu pela porta escancarada diante do aturdido guarda de Yakut.

- Devolvam os itens pessoais ao guerreiro e cuidem para que ele deixe a propriedade sem incidentes - Yakut ordenou a um par de homens armados que se encontravam fora de seu quarto.

Quando os dois saíram para atender a ordem, Renata começou a segui-los. Alguma parte desequilibrada dela desejava poder ser capaz de encontrar Nikolai sozinho e...

E o que?

Explicar a verdade e contar como eram as coisas para ela aqui? Tentar justificar as ações que ela tinha sido forçada a fazer?

Com que finalidade?

Nikolai estava partindo. Ele nunca teria que voltar para aquele lugar, enquanto ela estaria ali até seu último suspiro. Que bem poderia fazer explicar algo disso a ele, um desconhecido que provavelmente não a entenderia, e muito menos a protegeria?

Entretanto, os pés de Renata continuaram movendo-se.

Ela sequer chegou até a porta. A mão de Yakut se fechou fortemente sobre seu pulso, segurando-o em suas costas.

- Você não, Renata. Você fica.

Ela o olhou com uma expressão que esperava estar desprovida da ansiedade e das náuseas que estava tentado tão duramente disfarçar.

- Pensei que tínhamos terminado aqui. Que talvez devesse ir com os outros, só para assegurar que o guerreiro não decida fazer nada estúpido em seu caminho fora da propriedade.

- Você fica - o sorriso de Yakut congelou-lhe até os ossos. – Tenha cuidado, Renata. Eu não gostaria que você fizesse nada estúpido.

Ela tragou o repentino nó gelado de ansiedade de sua garganta.

- Desculpe-me?

- Tenha cuidado - respondeu ele, apertando-lhe hermeticamente o braço. - Suas emoções a traem, querida. Posso sentir o aumento de sua frequência cardíaca, o muro de adrenalina que atravessa seu corpo correndo por suas veias agora mesmo. Senti a mudança em você no momento que o guerreiro entrou no quarto. Senti antes também. Importa-se em me dizer por onde esteve esta noite?

- Treinando - respondeu ela, rapidamente, mas com firmeza. Para não dar razão alguma para duvidar dela, já que aquela era essencialmente a verdade. - Antes que você mandasse Lex procurar por mim, eu estava do lado de fora, fazendo meus exercícios de treinamento no antigo canil. Se você sentiu algo diferente em mim, deve ter sido por conta do excesso de treinamento.

Um silêncio longo se estendeu, enquanto o aperto rígido mantinha-se em seu pulso.

- Você sabe quanto valorizo a lealdade, não é, Renata? – disse Yakut enquanto Renata fez uma breve inclinação de cabeça. – Valorizo-a tanto quanto você valoriza a vida daquela menina que dorme no outro quarto - disse ele friamente. - Penso que essa dúvida poderia fazer com que ela terminasse no cemitério.

O sangue de Renata congelou em suas veias diante daquela ameaça. Ela olhou fixamente para cima, diretamente nos malignos olhos do monstro que agora sorria abertamente, com um prazer doentio.

- Como disse, querida Renata, tenha cuidado.


Capítulo 9

A cidade de Montreal, assim nomeada por causa do enorme monte que proporcionava uma vista magnífica do Rio Saint Lawrence e do vale abaixo, brilhava como um pote de pedras preciosas sob a lua crescente. Arranha-céus elegantes, torres de igrejas góticas, avenidas arborizadas e, à distância, uma brilhante linha de água que envolvia a cidade em um abraço protetor. Uma vista realmente espetacular.

Não havia dúvidas sobre a razão pela qual o líder do Refúgio de Montreal havia escolhido estabelecer sua comunidade perto do cume do Monte Real.

De pé no balcão do segundo andar da mansão em estilo barroco tinha-se a impressão de que a velha propriedade de caçadores fora da cidade parecia estar a mil quilômetros de distância. Mil anos longe daquela educada e civilizada maneira de viver. O que, obviamente, era verdade.

A espera para se encontrar com Edgar Fabien, o guerreiro da Raça que fiscalizava a população de vampiros de Montreal, parecia durar uma eternidade. Fabien era bem conhecido na cidade e havia rumores de que tinha bons contatos, tanto entre os Refúgios quanto no grupo de patrulha conhecido como a Agência. Ele era a escolha natural para uma situação delicada como aquela.

Mesmo assim, se o líder do Refúgio estivesse disposto a cooperar, essa era uma aposta que Lex tinha de arriscar. Aquela visita tardia e sem aviso fora um ato espontâneo e muito, muito arriscado.

O simples fato de ir ali já significava declarar-se inimigo de Sergei Yakut.

Mas Lex tinha visto o suficiente, tinha suportado o suficiente.

O príncipe estava de saco cheio de lamber as botas do pai. Era hora do rei tirano cair.

Lex girou ao som dos passos aproximando-se do interior da recepção. Fabien era um homem magro, alto e meticulosamente vestido, como se tivesse nascido em seus trajes feitos sob medida e com seus brilhantes mocassins de couro. Seu cabelo loiro acinzentado estava penteado para trás com algum tipo de gel perfumado, e quando ele sorriu para saudar Lex, seus magros lábios e estreitos traços faciais ficaram ainda mais severos.

- Alexei Yakut - disse, saindo para o balcão e oferecendo a mão para Lex. Não menos que três anéis cintilavam em seus longos dedos, ouro e diamantes que rivalizavam com o brilho da cidade lá fora. - Lamento que tenha esperado tanto. Temo que não estejamos acostumados a receber convidados inesperados em minha residência pessoal.

Lex assentiu, tenso, e soltou a mão de Fabien. A casa do líder do Refúgio não estava exatamente nos guias de turismo da cidade de Montreal, mas umas poucas perguntas feitas às pessoas certas tinham guiado Lex até ali sem maiores problemas.

- Venha, por favor - disse o homem da Raça, gesticulando para Lex e guiando-o para o interior da casa. Fabien se sentou em um luxuoso sofá, deixando espaço para Lex do outro lado.

- Devo admitir que fiquei surpreso quando minha secretária me disse quem queria me ver. Uma vergonha que não tenhamos tido a oportunidade de nos conhecer até agora.

Lex sentou-se junto ao líder do Refúgio, incapaz de evitar que seus olhos viajassem pelo interminável luxo de seus arredores.

- Mas você sabe quem sou eu? - perguntou Lex com cuidado. - Sabe também quem é o Primeira Geração, meu pai, Sergei Yakut?

Fabien assentiu com elegância.

- Só pelo nome, infelizmente. Fui negligente ao não ter feito as apresentações formais logo que vocês chegaram a minha cidade. Entretanto, os guarda-costas de seu pai deixaram claro que seu pai era uma espécie de eremita quando meu emissário pediu um encontro. Entendo que ele prefira uma vida tranquila e rural fora da cidade, em contato com a natureza ou algo do tipo.

Sobre os nódulos de seus dedos, o sorriso de Fabien não alcançou seus olhos.

- Suponho que viver com aquele tipo de... simplicidade signifique alguma coisa.

Lex grunhiu.

- Meu pai escolheu tal vida porque acredita estar acima da lei.

- Como?

- É por isso que estou aqui - disse Lex. - Tenho informações. Informações importantes que precisam ser averiguadas rapidamente. Secretamente.

Edgar Fabien inclinou-se contra as almofadas do sofá.

- Ocorreu algo... fora da casa?

- Vem ocorrendo há muito tempo - Lex admitiu, sentindo uma rara sensação de liberdade enquanto essas palavras saíam-lhe da boca.

Lex contou a Fabien tudo sobre as atividades ilegais de seu pai, desde o clube de sangue e do cemitério cheio dos restos de suas vítimas até o frequente assassinato de seus Subordinados humanos. Explicou, não sendo totalmente sincero, como fora corroído por esses segredo durante um longo tempo e como era seu próprio sentido de moralidade - seu sentido de honra e de respeito pela lei da Raça - que o obrigava a procurar ajuda para deter o reino particular de terror de Sergei Yakut.

Era o entusiasmo – a emoção no fundo de sua coragem - que fazia sua voz tremer, mas, se Fabien entendesse isso como lamento, melhor ainda.

Fabien o escutou com a expressão cuidadosamente séria e sóbria.

- Entendo, estou certo de que isso não é um assunto menor. O que você descreveu é... problemático. Perturbador. Mas haverá certos fatos que virão à tona nesse tipo de investigação. Seu pai é um Primeira Geração. Haverá perguntas que ele terá de responder, protocolos que precisarão ser observados.

- Investigação? Protocolos? - disse, indignado, Lex. Saltou sobre os pés, alagado de medo e ira. - Isso poderá levar dias ou até mesmo semanas. Um maldito mês!

Fabien assentiu, desculpando-se.

- De fato, poderá.

- Não há tempo para isso agora! Você não entende? Estou oferecendo meu pai de bandeja. Todas as provas que necessitará para uma detenção imediata estão ali em sua propriedade. Pelo amor de Deus, estou arriscando minha maldita vida só por estar aqui!

- Sinto muito - o líder do Refúgio dizia isso sustentando as mãos erguidas. - Se a situação não for segura para você, estaremos mais do que dispostos a oferecer-lhe proteção. A Agência poderia afastá-lo quando a investigação começar, levá-lo para algum lugar seguro.

A afiada risada de Lex o interrompeu.

- Enviar-me ao exílio? Estarei morto muito antes. Além disso, não estou interessado em fugir e me esconder como um cão. Quero o que mereço. Quero o que aquele bastardo filho da mãe me deve depois de todos esses anos de espera por esmolas – diante das palavras de Lex, era impossível mascarar os verdadeiros sentimentos. A ira preenchia-lhe o corpo por completo. - Quer saber o que realmente quero de Sergei Yakut? A morte.

O olhar de Fabien estreitou-se astutamente.

- Essa é uma afirmação muito perigosa.

- Não sou o único que pensa assim - respondeu Lex. - De fato, alguém teve coragem suficiente para tentar isso na semana passada.

Os ardilosos olhos de Fabien ficaram mais e mais estreitos.

- O que quer dizer?

- Ele foi atacado. Alguém entrou na casa e tentou cortar a cabeça do maldito, mas acabou falhando. Maldita sorte - Lex acrescentou baixinho. - A Ordem pensa que foi trabalho de um profissional.

- A Ordem - repetiu Fabien sem ar. - Como estão envolvidos nisso que está descrevendo?

- Eles enviaram um guerreiro ontem à noite para encontrar-se com meu pai. Aparentemente, estão tentando avisar os Primeira Geração sobre a recente caçada entre a população.

A boca de Fabien trabalhou um segundo sem formar palavras, como se não estivesse segura sobre o que articular primeiro. Ele limpou a garganta.

- Há um guerreiro aqui em Montreal? E o que é isso de caçada recente? Do que você está falando?

- Cinco Primeira Geração foram mortos, nos Estados Unidos e na Europa - disse Lex, recordando o que Nikolai lhe havia dito. - Alguém parece querer eliminar a primeira geração, um por um.

- Santo Deus – a expressão de Fabien era o vivo retrato da surpresa, mas algo nela preocupou Lex.

- Não sabia nada sobre os assassinatos?

Fabien levantou-se lentamente, agitando a cabeça.

- Estou aturdido, asseguro-lhe isso. Não tinha ideia. Que coisa terrível.

- Talvez sim, talvez não - respondeu Lex.

Enquanto olhava o líder do Refúgio, Lex se deu conta de que uma súbita tranquilidade abatia-se sobre o vampiro – uma tranquilidade tamanha que Lex se perguntava se ele ainda estava respirando. Havia um tênue, porém elevado, pânico nos olhos ambiciosos de Lex. Edgar Fabien sustentava o corpo com rígida precisão, mas seu olhar mutante encarava Lex como se quisesse sair correndo da sala.

Interessante.

- Sabe, eu esperava que você estivesse mais bem informado, Fabien. Sua reputação na cidade me levava a acreditar nisso. Com todos os seus amigos policiais, você está querendo me dizer que nenhum deles lhe disse algo sobre isso? Provavelmente eles não confiam em você, não? Provavelmente eles têm uma boa razão para isso.

Nesse momento, Fabien encontrou o olhar de Lex. Cintilações âmbar iluminaram-lhe a íris com um sinal revelador de um nervo comprimido.

- Que tipo de jogo está tentando fazer comigo?

- O seu - disse Lex, percebendo uma oportunidade e agarrando-a. - Você sabe sobre as caçadas aos Primeira Geração. A questão é: por que mente sobre isso?

- Não discuto publicamente assuntos policiais - Fabien cuspiu em resposta, inflando seu magro peito com indignação. - O que sei ou não sei é assunto meu.

- Sabia também sobre o ataque a meu pai antes que eu o mencionasse, não é mesmo? Foi você quem o atacou, não é? E quanto aos outros assassinados?

- Jesus Cristo, você está completamente louco.

- Queria estar - disse Lex. – Seja lá o maldito complô em que você está metido, Fabien, eu também quero fazer parte dele.

O líder bufou bruscamente, depois deu as costas a Lex enquanto caminhava para uma das altas estantes cravadas em uma parede prateada. Acariciou a madeira polida, rindo preguiçosamente.

- Embora nossa conversa tenha sido esclarecedora e divertida, Alexei, ela talvez deva terminar aqui. Acredito que é melhor que você vá e se acalme antes de dizer mais alguma tolice.

Lex avançou, decidido a convencer Fabien de que ele valia a pena.

- Se o quiser morto, estou disposto a ajudá-lo a conseguir isso.

- Insensato - foi a resposta que recebeu. - Posso estalar meus dedos e prendê-lo sob suspeita de tentativa de assassinato. Posso, mas nesse momento quero que vá embora e nenhum de nós dirá uma palavra sequer a respeito dessa conversa.

A porta da recepção se abriu e quatro homens entraram. Ao assentimento de Fabien, o grupo rodeou Lex. Sem escolha, ele saiu.

- Manterei contato - disse Lex, mostrando os dentes. – Pode contar com isso.

Fabien não respondeu, mas seu ardiloso olhar permaneceu fixo sobre Lex, com severo entendimento, enquanto o homem, tenso, atravessava a porta e a fechava.

Assim que Lex saiu para a rua, sozinho, sua mente começou a cogitar as opções disponíveis. Fabien era corrupto. Que surpreendente e útil informação. Com um pouco de sorte, não passaria muito tempo antes que as conexões de Fabien fossem também as suas. Não se preocupou particularmente em pensar como as conseguiria.

Levantou os olhos em direção à bela mansão do Refúgio e todo seu imaculado luxo. Era isso o que Lex queria: esse tipo de vida e não a imundície e a degradação que havia conhecido sob o jugo de seu pai. Isso era o que ele verdadeiramente merecia.

Mas, primeiro, ele precisaria sujar as mãos, mesmo que pela última vez.

Lex caminhou ao longo da estrada cheia de curvas ladeada por arvoredos e se dirigiu para a cidade com seus objetivos renovados.

 

 

CONTINUA

Capítulo 6

Em silêncio, Renata abriu a porta do quarto de Mira e espreitou a garotinha adormecida que descansava sobre a cama. Aquela era uma criança normal em seu pijama cor-de-rosa, com a bochecha macia apoiada contra o travesseiro fino, respirando calmamente pela delicada boca de querubim. Sobre a mesinha rústica próxima à cama estava o curto véu negro que cobria os notáveis olhos de Mira durante todos os momentos em que ela estava acordada.

- Bons sonhos, meu anjo - sussurrou Renata em voz baixa, de forma terna e esperançosa.

Nos últimos tempos, ela se preocupava cada vez mais com Mira. Não apenas por conta dos pesadelos que começaram depois do ataque que presenciara, mas pela saúde geral da garota. Embora Mira fosse forte e tivesse uma mente rápida e aguda, ela não estava completamente bem. Ela estava perdendo a visão rapidamente.

Cada vez que Mira era obrigada a exercitar o dom da premonição, um pouco de sua própria visão se deteriorava. E isso já estava acontecendo há meses quando Mira finalmente confidenciou a Renata seu estado. Ela tinha medo, como qualquer criança teria. Talvez até mais, já que Mira era mais sábia do que seus oito anos de idade indicavam. Ela compreendia que o interesse de Sergei Yakut por ela se evaporaria no momento em que ele a considerasse sem nenhuma utilidade. Ele a expulsaria, talvez até a mataria, se assim o desejasse.

Portanto, desde aquela noite, Renata e Mira mantinham um pacto: a condição de Mira seria um segredo entre elas e seria levado para o túmulo, se fosse necessário. Renata cumpria a promessa, jurando a Mira que a protegeria com sua própria vida. Jurou que nenhum dano aconteceria à garota, fosse ele causado por Yakut ou por qualquer outra pessoa, da Raça ou humano. Mira estaria a salvo da dor e da escuridão da vida de uma maneira que a própria Renata jamais esteve.

O fato de a garota ter sido usada naquela noite para entreter o hóspede não convidado de Sergei Yakut apenas aumentou a irritação de Renata. O pior de sua inquietação mental havia passado, mas uma dor de cabeça ainda persistia. O estômago não tinha parado de revirar, e pequenas ondas de náuseas retrocediam pouco a pouco.

Renata fechou a porta do quarto de Mira, estremecendo com outro pequeno tremor que lhe agitou o corpo. O longo banho que acabara de tomar tinha ajudado a aliviar um pouco o desconforto, mas até debaixo de suas calças folgadas de cor grafite e de seu pulôver macio de algodão branco, a pele continuava reclamando das correntes elétricas que lhe acometiam. Ela esfregou as palmas das mãos sobre as mangas da camisa, tentando dissipar a sensação ainda acesa que viajava por seus braços. Muito agitada para dormir, ficou no quarto apenas o tempo necessário para pegar algumas adagas no baú de armas. O treinamento sempre se mostrara bem-vindo nesses períodos de inquietação. Ela apreciava as horas do castigo físico que se infligia, feliz pelo treinamento rigoroso que a exauria.

Desde a terrível noite em que se encontrou imersa no perigoso mundo de Sergei Yakut, Renata havia aperfeiçoado ao máximo cada músculo de seu corpo, trabalhando metodicamente para se assegurar de que ela era tão letal quanto as armas que levava na caixinha de seda e veludo que agora carregava nas mãos.

Sobreviver.

Esse simples pensamento tinha sido seu farol desde que era apenas uma garota, mais jovem até do que Mira. E, mais que tudo, sozinha. Órfã abandonada na capela de um convento de Montreal, Renata não tinha nenhum passado, nenhuma família, nenhum futuro. Ela somente existia, e isso era tudo.

Para Renata, isso tinha sido o suficiente. Era o suficiente inclusive agora. Sobretudo agora que ela navegava pelo traiçoeiro mundo subterrâneo do reino de Sergei Yakut. Havia inimigos por todos os lados naquele lugar, tanto escondidos quanto visíveis. Inúmeros caminhos à espera de um passo em falso, de um equívoco; infinitas ocasiões para ela odiar o vampiro desumano que tinha a vida dela nas mãos. Mas ela não desistiria sem lutar.

Seu mantra dos dias de infância servia bem nesse momento: sobreviver um dia, e depois outro e outro.

Não havia espaço para brandura nessa equação. Piedade, vergonha ou amor não eram permitidos. Principalmente amor, de espécie alguma. Renata sabia que seu afeto por Mira - o impulso vital que lhe dava forças para fazer o caminho da menina mais suave e protegê-la como alguém de sua própria família - provavelmente lhe custaria muito caro no final.

Sergei Yakut tinha perdido pouco tempo explorando essa sua debilidade e Renata tinha as cicatrizes para comprovar.

Mas ela era forte. Não tinha encontrado coisa alguma nesta vida que não pudesse suportar, que não pudesse enfrentar - fisicamente ou de qualquer outra maneira. E tinha sobrevivido a tudo. Inteligente, forte... e letal quando tinha de ser.

Renata saiu do albergue e caminhou a passos largos pela escuridão rumo a um dos edifícios anexos que ficavam na parte de trás do local. O caçador que originalmente construíra a propriedade no bosque evidentemente adorava seus cães. Um velho canil de madeira fora erguido atrás da residência principal, disposto como um estábulo, com um amplo espaço dividido em dois e quatro baias de acesso alinhadas de ambos os lados. O teto de vigas devia ter uns quatro metros e meio de altura.

Embora pequeno, era um espaço aberto e bem ventilado. Na propriedade havia um celeiro maior e mais novo, que permitia movimentos mais fluidos, mas Renata geralmente o evitava.

Uma vez naquele lugar escuro e insalubre já tinha sido o suficiente. Se pudesse, ela já teria colocado fogo naquele maldito lugar.

Renata acendeu o interruptor ao lado da porta do canil e seu corpo se contraiu quando a lâmpada no teto derramou uma luz amarela e áspera no espaço. Entrou e caminhou pelo chão macio de terra batida. Passou por duas correias de couro largas e trançadas que se dependuravam na viga central da estrutura.

No extremo mais afastado do canil havia um poste alto de madeira que antes fora equipado com pequenos ganchos de ferro e laços para o armazenamento de correias e demais objetos. Renata havia se livrado dos arranjos alguns meses atrás e agora o poste funcionava como um alvo, cuja madeira escura já estava marcada de cortes profundos.

Renata colocou as lâminas sobre um fardo de palha que estava por perto e se agachou. Tirou os sapatos e caminhou descalça até o centro do canil. Alcançou o par de compridas correias de couro que havia ali e agarrou cada uma em uma mão. Enrolou o couro nos pulsos e, quando sentiu que estava cômodo, estendeu-se, flexionando os braços e levantando-se do chão de maneira tão leve que parecia ter asas.

Suspensa e livre da gravidade, Renata começou seu aquecimento. O couro rangia brandamente enquanto ela dava voltas e girava o corpo a vários metros do chão. Para ela, aquilo era a verdadeira paz, a sensação de seus membros ardendo, ganhando força e agilidade a cada movimento.

Renata deixou a mente se perder em uma meditação ligeira, mantendo os olhos fechados e todos os sentidos voltados para dentro de si, concentrados no ritmo cardíaco e na respiração, no movimento dos músculos enquanto ela se alongava. Assim foi até que girasse sobre o eixo e ficasse de cabeça para baixo, com os tornozelos agora presos às correias. Nesse momento, sentiu uma leve agitação no ar ao seu redor. Foi repentino e sutil, porém inconfundível. Tão inconfundível quanto o calor de uma respiração que agora lhe esquentava a bochecha.

Abriu os olhos de repente, lutando para compreender o espaço ao seu redor – todo invertido – e o intruso que estava de pé, abaixo dela. Era o guerreiro da Raça, Nikolai.

- Caramba! - ela disse, com sua falta de atenção fazendo-lhe oscilar um pouco no controle das correias. - Que diabos você acha que está fazendo?

- Relaxe - disse Nikolai. - Não estava querendo assustá-la – falou enquanto levantava as mãos para estabilizá-la.

- E não assustou – Renata respondeu com palavras pronunciadas com frieza. Com uma sutil flexão do corpo, afastou-se. – Importa-se? Você está atrapalhando meu treinamento.

- Ah! - as sobrancelhas loiras do macho da Raça arquearam enquanto seu olhar seguia a linha do corpo de Renata. - O que é exatamente esse treino? Está de olho em alguma vaga no Cirque du Soleil?

Ela não lhe deu o prazer de uma resposta. Não que ele esperasse uma. Nikolai virou-se e dirigiu-se para o poste que havia no outro extremo do canil. Estendeu a mão, percorrendo com os dedos as profundas marcas que havia na madeira. Então, encontrou as adagas e levantou o tecido que as protegia. O metal tilintou ao chocar-se brandamente dentro do quadrado dobrado de seda atado com a cinta de veludo.

- Não toque nisso - disse Renata, libertando-se das correias e voltando a colocar os pés no chão. - Eu disse para não tocar nisso. São minhas.

Niko não resistiu quando ela lhe tirou das mãos seus preciosos pertences; as únicas coisas de valor que ela podia reclamar como suas. O aumento em suas emoções o fez virar levemente a cabeça, certamente os efeitos secundários da força mental que ela esperava terem passado ainda persistiam. Ela deu um passo para trás e teve de se esforçar para manter a respiração estável.

- Você está bem?

Ela não gostou do olhar de preocupação refletido nos olhos azuis dele, pois era como se ele pudesse sentir sua debilidade, como se soubesse que ela não era tão forte quanto queria ser, quanto precisava aparentar.

- Estou bem.

Renata colocou as adagas em uma das baias do canil e as desembrulhou. Uma por uma, ela cuidadosamente colocou as quatro adagas esculpidas à mão sobre a madeira. Forçando um tom ligeiramente convencido, disse: - Eu é quem deveria fazer essa pergunta, não? Deixei você bem duro lá na cidade.

Ela escutou o grunhido baixo em algum lugar atrás de si, quase como um escárnio.

- Nunca se pode ser demasiado cauteloso quando se trata de estrangeiros - continuou ela. - Sobretudo agora. Estou segura de que você me entende.

Quando ela finalmente o percorreu com um olhar, encontrou-o olhando-a fixamente.

- Querida, a única razão pela qual você teve a possibilidade de me derrubar foi porque jogou sujo. Certificou-se de que eu a notasse no clube, fingindo ter alguma coisa escondida, sabendo que eu a seguiria diretamente para sua armadilhazinha.

Renata levantou os ombros, sem arrependimento.

- No amor e na guerra vale tudo.

Ele sorriu suavemente, formando um par de covinhas em seu rosto quadrado e masculino. – E isso é guerra, não é? – ele perguntou.

- Certamente não é amor – disse ela.

- Não - ele retrucou, tornando-se sério. - Nunca.

Bem, ao menos eles concordavam em alguma coisa.

- Há quanto tempo trabalha para Yakut?

Renata balançou a cabeça como se fosse incapaz de se recordar dessa informação, embora a noite em questão estivesse gravada em sua mente como se as memórias fossem ferro em brasa. Sangue. Horror. O começo de um fim.

- Não sei - disse ela. - Alguns anos, suponho. Por quê?

- Eu estava me perguntando como uma mulher, mesmo sendo uma Companheira de Raça com sua poderosa habilidade psíquica, foi parar nesse trabalho, especialmente para um Primeira Geração como ele. É estranho, é isso. Diabos, nunca ouvi falar de coisa semelhante. Então, diga-me: qual é sua ligação com Sergei Yakut?

Renata olhou fixamente o guerreiro: um forasteiro perigoso e ardiloso que, de repente, estava se intrometendo em seu mundo. Ela não estava segura de como responder. Certamente não estava disposta a lhe contar a verdade.

- Se você tem perguntas, talvez devesse fazê-las a ele.

- Sim - disse Niko, estudando-a mais estreitamente agora. - Talvez pergunte. E quanto à garota, Mira? Ela está aqui há tanto tempo quanto você?

- Não há tanto tempo. Apenas seis meses. - Renata tentou mostrar-se indiferente, mas um feroz instinto de proteção nasceu dentro de seu corpo diante da simples menção do nome de Mira nos lábios daquele guerreiro da Raça. - Ela passou por tanta coisa em tão pouco tempo. Coisas que nenhuma criança deveria testemunhar.

- Como o ataque a Yakut na semana passada?

E outras, mais sombrias ainda, Renata reconheceu interiormente.

- Mira tem pesadelos quase todas as noites. Ela praticamente não dorme já faz algum tempo.

Ele assentiu com a cabeça em um sóbrio reconhecimento.

- Este não é um bom lugar para uma garotinha. Alguns diriam que tampouco é lugar para uma mulher.

- É isso o que você diria, guerreiro?

O sorriso de Niko não confirmou nem negou a pergunta.

Renata o observou enquanto em sua mente surgiam perguntas e mais perguntas. Uma em particular.

- O que viu nos olhos de Mira esta noite?

Ele grunhiu algo ininteligível.

- Acredite, você não vai querer saber.

- Estou perguntando, não? O que ela lhe mostrou?

- Esqueça – enquanto ela o olhava, ele passou a mão pelos fios dourados de seu cabelo e exalou uma maldição, desviando o olhar em seguida. - De qualquer forma, isso não é possível. A garota definitivamente errou.

- Mira jamais erra. Ela nunca errou, pelo menos em todo o tempo em que a conheço.

- Mesmo? - o penetrante olhar azul do guerreiro voltou-se fixamente para Renata, percorrendo-lhe calorosamente o corpo em uma atitude lenta e avaliadora. - Alexei me disse que sua habilidade é imperfeita.

- Lex - Renata riu. – Faça-me um favor e não acredite em nada do que ele diz. Ele não diz e não faz nada sem um motivo oculto.

- Obrigado pelo conselho – disse, recostando-se contra o poste marcado pelas adagas. - Então, se é assim, não é verdade que, como ele disse, os olhos de Mira só refletem os acontecimentos que poderiam ocorrer no futuro, com base no agora?

- Lex pode ter suas próprias razões pessoais para desejar que não seja assim, mas Mira nunca erra. Tudo o que ela mostrou esta noite está destinado a acontecer.

- Destinado - disse ele, parecendo divertir-se com aquilo. - Bem, caramba... então acredito que estamos condenados.

Ele a olhou fixamente quando pronunciava essas palavras, desafiando-a a perguntar se ele deliberadamente a tinha incluído em sua observação. Dado que ele achara a ideia bastante divertida, ela não estava disposta a lhe dar a satisfação de perguntar o motivo. Renata agarrou uma de suas adagas e provou o peso do objeto com a palma aberta. Ela gostava de sentir o frio do aço contra a pele, algo sólido e familiar. Seus dedos estavam loucos para trabalhar. Seus músculos agora estavam aquecidos, preparados para mais uma ou duas horas de treino duro. Ela girou a lâmina e fez um sinal para o poste em que Nikolai estava apoiado.

- Importa-se? Não quero calcular mal e acidentalmente acertá-lo.

Ele percorreu o poste com o olhar e deu de ombros.

- Não seria mais interessante um treinamento de combate com um oponente real, que pudesse devolver o golpe? Ou será que você prefere alvos imobilizados?

Ela sabia que Niko estava jogando uma isca, mas o brilho de seus olhos era brincalhão. Ele realmente a estava paquerando? A natureza prática dele fez os pelos da nuca de Renata arrepiarem-se com cautela. Ela passou o polegar pela lâmina da adaga enquanto o olhava, insegura do que fazer.

- Prefiro trabalhar sozinha.

- Muito bem - ele disse inclinando a cabeça e afastando-se um pouco, quase que a desafiando com o olhar. – Como quiser.

Renata franziu a testa.

- Se você não se afastar, como pode estar seguro de que não vou acertá-lo?

Ele sorriu abertamente, completamente cheio de arrogância, com os musculosos braços cruzados sobre o peito.

- Mire onde quiser. Você nunca me acertaria.

Ela atirou a lâmina sem a mínima advertência.

O aço afiado cravou na madeira, causando uma fenda profunda, golpeando no lugar exato onde ela havia planejado. Mas Nikolai tinha desaparecido. Simples assim, sumido por completo.

Inferno.

Ele era da Raça, muito mais rápido do que qualquer ser humano, e tão ágil quanto um predador selvagem. Ela não era rival para ele, com armas ou com força física. E ela sabia disso mesmo antes de atirar a adaga. Entretanto, esperava, pelo menos, diminuir a arrogância e a presunção daquele filho da mãe.

Com os próprios reflexos afiados, Renata esticou o braço e alcançou outra adaga. Todavia, quando seus dedos se fecharam ao redor do punho lavrado, ela sentiu o ar mover-se atrás de si e percebeu o calor atravessar os fios de cabelo que estavam sobre o queixo.

O metal afiado subiu até sua mandíbula. Uma dura parede de músculos apertava-lhe a coluna vertebral.

- Não me acertou! Sentiu minha falta?

Ela engoliu cuidadosamente, pressionada pela lâmina que estava sob seu queixo. Tão brandamente quanto pode, relaxou os braços para os lados. Então, abaixou a mão que segurava a adaga, descansando-a entre as coxas separadas.

- Parece que encontrei você.

Como pôde, Renata o golpeou com uma pequena sacudida do poder de sua mente.

- Inferno - grunhiu Niko. E no instante em que relaxou o controle que tinha de Renata, a mulher saiu de seu alcance e virou-se para enfrentá-lo. Ela esperava a cólera dele, temia-a em certo sentido, mas ele apenas levantou a cabeça e deu de ombros. - Não se preocupe, querida. Só vou ter que brincar com você até que seja derrubada pelas reverberações de sua força psíquica.

Enquanto ela o contemplava, confusa e aflita, pensando como ele podia saber sobre a imperfeição de sua habilidade, ele disse:

- Lex me pôs a par de algumas coisas sobre você também. Ele me contou o que acontece cada vez que você dispara um desses mísseis psíquicos. Componente muito poderoso. Mas eu em seu lugar não o gastaria só porque sente necessidade de demonstrar força.

- Que o Lex vá pro inferno - murmurou Renata. - E que você vá pro inferno também. Não preciso de seus conselhos e certamente não preciso de nenhum de vocês falando porcarias a meu respeito pelas minhas costas. Essa conversa termina aqui.

Zangada como estava, ela, impulsivamente, flexionou o braço para trás e lançou a adaga na direção de Niko, sabendo que ele sairia facilmente do caminho como tinha feito antes. Dessa vez, porém, ele não se moveu. Com um estalo rápido como um relâmpago, ele estendeu a mão e capturou a lâmina no ar. E com um sorriso totalmente satisfeito, conseguiu que ela perdesse de vez as estribeiras.

Renata apanhou a última adaga no suporte do canil e a atirou contra ele. Como a outra, esta também foi pega no ar e agora ambas estavam nas mãos hábeis do guerreiro da Raça.

Ele a olhou, sem piscar, com um calor masculino que deveria deixá-la gelada, mas que, todavia, não a deixava.

- E agora o que vamos fazer para nos divertir, Renata?

Ela o fulminou com o olhar.

- Divirta-se sozinho. Vou embora daqui.

Ela deu meia-volta, pronta para sair do canil. Apenas tinha dado dois passos quando escutou um som agudo em ambos os lados de sua cabeça, tão perto que alguns fios errantes de seus cabelos voaram pelo rosto.

Então, diante dela, observou sobrevoar uma mancha imprecisa de aço, que estalou no outro extremo da parede.

Golpe seco.

As duas adagas que tinham voado ao lado de sua cabeça como objetos erráticos estavam agora cravadas na velha madeira, bem próximas de seus punhos. Renata virou-se, furiosa.

- Seu filho da mãe...

Ele se lançou sobre ela, seu enorme corpo obrigando-a a ir para trás, seus olhos azuis brilhando com algo mais profundo que a simples diversão ou a básica arrogância masculina. Renata deu um passo para trás, apenas o suficiente para que pudesse equilibrar seu peso sobre os calcanhares. Ela caminhou para trás e virou-se, elevando a outra perna em um chute giratório.

Dedos tão inflexíveis quanto barras de ferro fecharam-se ao redor de seu tornozelo, retorcendo-o.

Renata caiu no chão do canil, asperamente sobre as costas. Ele a seguiu, colocando-se sobre ela e encurralando-a enquanto ela lutava, agitando-se violentamente com os punhos e com as pernas. Mas Niko apenas precisou de um minuto para domá-la.

Renata ofegava pelo esforço excessivo, seu peito elevava-se pela velocidade de sua pulsação.

- Agora quem deseja demonstrar força, guerreiro? Você ganhou. Está feliz agora?

Ele fixou o olhar nela de forma estranha e silenciosa, não demonstrando prazer ou aborrecimento.

Seu olhar mantinha-se estável, tranquilo e íntimo. Ela podia sentir o coração martelando contra o peito. As coxas grossas dele escancaradas sobre ela, as duas mãos presas por cima de sua cabeça. Ele a sustentava com firmeza, com os dedos segurando-lhe os punhos em um suave apertão – suave e incrivelmente carinhoso. O olhar dele se desviou para onde a segurava, e um brilho de fogo crepitava em sua íris quando ele encontrou a pequena marca de nascimento carmesim com o desenho de uma lágrima que caía sobre uma meia-lua no pulso direito. Com o polegar, acariciou aquele precioso lugar, uma carícia fascinante e hipnótica que enviou um calor selvagem e erótico pelas veias de Renata.

- Ainda quer saber o que vi nos olhos de Mira?

Renata ignorou a pergunta, segura de que aquilo era a última coisa de que ela precisava saber naquele momento. Ela lutou com força debaixo dos músculos do corpo pesado do guerreiro, mas o maldito a dominava com o mínimo de esforço. Bastardo.

- Saia de cima de mim!

- Pergunte-me outra vez o que foi que vi, Renata.

- Já lhe disse para sair de cima de mim - grunhiu Renata, sentindo o pânico aumentar dentro do peito. Tentou respirar normalmente, sabendo que tinha que manter a calma e a situação sob controle. E tinha que ser rápida. A última coisa de que precisava era que Sergei Yakut saísse para procurá-la e a encontrasse impotente debaixo de outro macho. – Deixe-me sair agora.

- Do que tem medo?

- De nada, maldito!

Ela cometeu o erro de levantar o olhar em direção a ele. Um calor âmbar infiltrou-se no azul dos olhos do guerreiro: fogo devorando gelo. Suas pupilas começaram a estreitar-se rapidamente e atrás de seus lábios ela viu as pontas agudas das presas emergentes de Niko.

Se ele estava zangado, aquilo era apenas uma parte da causa física de sua transformação, já que, onde sua pélvis repousava ameaçadoramente sobre a dela, Renata sentia a ponta rija em sua virilha, a dilatação muito evidente do membro de Niko pressionando-se deliberadamente entre suas pernas.

Ela se moveu, tentando escapar daquele calor, da erótica posição dos corpos, mas aquilo apenas o deixou mais encaixado nela. O pulso acelerado de Renata se elevou, assumindo um ritmo urgente ao passo que um calor indesejado começou a florescer em seu sexo já completamente umedecido.

Ah, Deus! Isso não é bom. Isso não é nada bom.

- Por favor - ela gemeu, odiando-se pelo débil tremor que resvalou no momento de pronunciar a palavra. Odiando a ele também.

Queria fechar os olhos, recusando-se a ver o ardente e fixo olhar faminto. Ou a boca sensual e completamente selvagem tão perto da sua. Recusava-se a sentir o calor ilícito, a luxúria insana que ele causava nela - o perigo daquele inesperado desejo mortal. Mas seus olhos permaneciam fixos, incapazes de desviar, a resposta de seu corpo para aquele macho da Raça era mais forte que o ferro, mais intenso que sua vontade.

- Pergunte-me o que a menina me mostrou esta noite em seus olhos - exigiu ele, com voz tão baixa quanto um ronronar. Seus lábios estavam tão perto dos dela que lhe roçaram a pele suave. - Pergunte-me, Renata. Ou talvez prefira ver a verdade com seus próprios olhos.

O beijo passou através de seu sangue como fogo.

Os lábios pressionaram-se com paixão, o fôlego quente apressou-se, mesclando-se nos corpos ardentes dos dois. A língua do guerreiro explorou a boca de Renata, inundando-lhe, afogando seu grito mudo de prazer. Renata sentiu os dedos dele acariciando-lhe as bochechas, deslizando sobre os cabelos de sua têmpora para, então, passarem deliciosamente por sua nuca sensível. Ele a puxou para mais perto, afogando-a mais profundamente no beijo, que a estava tomando por completo, rompendo totalmente sua resistência.

Não. Ah, Deus! Não, não, não. Não posso fazer isto. Não posso sentir isto.

Renata separou-se da erótica tortura da boca do guerreiro e virou a cabeça para o lado. Ela estava tremendo, e suas emoções estavam chegando a um nível perigoso. Ela arriscara muito ali, com ele. Muito.

Por Deus! Ela tinha que apagar aquela chama que ele acendera em seu interior, aquela chama que a estava derretendo de forma mortal. E tinha de apagá-la rapidamente.

Dedos quentes tocaram-lhe o queixo, dirigindo seu olhar novamente à fonte de sua angústia.

- Você está bem?

Ela livrou-se daquelas mãos e separou-se do macho da Raça com um empurrão, ainda incapaz de falar.

Ele se afastou imediatamente. Segurou-lhe a mão, ajudando-a a ficar de pé. E embora Renata não quisesse ajuda alguma, ela estava muito afetada para rechaçar Niko naquele momento. Ficou de pé, incapaz de olhá-lo, tentando recompor-se.

Rezava para que não tivesse acabado de assinar sua própria sentença de morte.

- Renata?

Aquela voz atravessou-a de forma desesperadamente tranquila e fria.

- Aproxime-se de mim outra vez – ela disse - e eu juro que mato você.


Capítulo 7

Alexei estava esperando havia mais de dez minutos do lado de fora do quarto de seu pai, o que demonstrava que um pedido seu para uma audiência era considerado como o de qualquer um dos outros guardas de Yakut. A falta de respeito – a flagrante indiferença – não incomodava mais Lex como antes. Ele tinha superado esse passado amargo e inútil em favor de coisas mais produtivas.

Ah! No fundo do estômago de Lex ainda doía saber que seu pai - seu único parente vivo - pudesse pensar tão pouco nele, mas o calor da rejeição constante tinha, de alguma forma, se tornado menos doloroso. As coisas eram simplesmente assim. E Lex, de fato, era mais forte por isso. Era igual ao pai, de maneira que nem o maldito velho Primeira Geração poderia imaginar, que dirá admitir.

Mas Lex conhecia suas próprias capacidades. Conhecia suas próprias forças. Sabia sem dúvida alguma que podia ser muito mais do que era agora, e desejava a oportunidade de demonstrá-lo: a ele mesmo e, sim, ao filho da mãe que o criara também.

Quando a porta finalmente se abriu, o ruído seco da fechadura de metal fez os pés de Lex vacilarem.

- Bem a tempo - grunhiu ele ao guarda, que se afastou para deixá-lo entrar.

O lugar estava escuro, iluminado apenas pelo brilho das madeiras que ardiam na enorme lareira de pedra na parede oposta. Havia eletricidade na casa, mas ela raramente era utilizada – não eram necessárias luzes, pois Sergei Yakut e o resto da Raça tinham uma extraordinária visão, especialmente no escuro.

Os outros sentidos dos homens da Raça também eram bastante agudos, mas Lex suspeitava que até um humano se sentiria em apuros ao sentir os aromas de sangue e sexo que se fundiam com o aroma azedo da fumaça da lareira.

- Perdoe-me por interrompê-lo - murmurou Lex, enquanto seu pai saía de um cômodo anexo.

Yakut estava nu, com o pênis ainda parcialmente ereto e inclinando-se obscenamente com cada movimento. Enojado pela vista, Lex piscou e desviou o olhar. Rapidamente pensou melhor no ato e percebeu que aquele débil impulso seria usado contra ele. Em vez disso, observou o pai entrar no quarto, os olhos brilhando como carvões âmbar enfiados no fundo do crânio, com as pupilas reduzidas a estreitas e verticais frestas no centro do globo ocular. As presas em sua boca estavam enormes, completamente estendidas e afiadas como lâminas.

Uma camada de suor cobria-lhe o corpo e cada polegada da lívida cor latente de seus dermoglifos, as marcas únicas da Raça que se estendiam da garganta aos tornozelos do Primeira Geração. Sangue fresco – humano, sem dúvida, um aroma fraco que indicava pertencer a um Subordinado - manchava todo o torso e os flancos do vampiro ancião.

Lex não estava surpreso pela evidência da recente atividade de seu pai, nem pelo fato de que o trio de vozes fracas no outro quarto fosse as de seu atual grupo de escravas humanas. Criar e manter Subordinados, algo que só as estirpes mais puras e poderosas da Raça eram capazes de fazer, tinha sido durante muito tempo uma prática ilegal entre a educada sociedade da Raça. Entretanto, essa prática continuava, pelo menos entre os domínios de Sergei Yakut. Ele fazia suas próprias regras, executava sua própria justiça, e aqui, neste lugar remoto, deixava claro a todos que ele era o rei. Inclusive Lex podia desfrutar desse tipo de liberdade e poder. Diabos! Podia, de fato, saboreá-lo.

Yakut dirigiu-lhe um olhar desdenhoso do outro lado do quarto.

- Olho para você e vejo a morte diante de mim.

Lex franziu a testa.

- Senhor?

- Se não fosse pelas restrições do guerreiro e por minha intervenção nesta noite, estaria ao lado de Urien em cima daquele armazém na cidade, ambos esperando o amanhecer.

O desprezo inundava cada sílaba das palavras de Yakut enquanto ele pegava uma ferramenta de ferro do lado da chaminé e movia as brasas na lareira.

- Salvei sua vida esta noite, Alexei. O que mais espera por hoje?

Lex irritou-se ao se lembrar de sua recente humilhação, mas sabia que o ódio não o ajudaria, particularmente quando estivesse enfrentando o pai. Fez um movimento com a cabeça, tentando encontrar uma maldita resistência para manter o tom em sua voz.

- Sou seu fiel servo, pai. Não me deve nada. E não peço nada exceto a honra de sua contínua confiança em mim.

Yakut grunhiu.

- Você fala mais como um político do que como um soldado. Não preciso de políticos entre os meus, Alexei.

- Sou um soldado - respondeu rapidamente Lex, elevando a cabeça e olhando enquanto o pai continuava movendo a barra de ferro no fogo. As lenhas soltavam faíscas que golpeavam o silêncio letal que tomava conta do ambiente. - Sou um soldado - afirmou novamente. - Quero servi-lo da melhor maneira possível, pai.

Yakut girou a cabeça despenteada para olhar Lex por cima do ombro.

- Você me oferece palavras, garoto. Não confio em palavras. E ultimamente não o vejo me oferecendo nada além de palavras.

- Como espera que eu seja eficiente se não me mantém informado dos acontecimentos?

Quando os olhos matizados de âmbar estreitaram-se sobre ele, Lex apressou-se em acrescentar:

- Falei com o guerreiro no bosque. Ele me contou sobre os recentes assassinatos dos Primeira Geração. Disse que a Ordem havia pessoalmente entrado em contato com você para avisá-lo do perigo potencial. Deveria ter me contado isso, pai. Como capitão de sua guarda, mereço ser informado.

- Merece o quê? - a pergunta saiu dos lábios de Yakut. - Por favor, Alexei... diga-me o que você acha que merece.

Lex permaneceu em silêncio.

- Nada a acrescentar, filho? - Yakut moveu a cabeça em um ângulo exagerado, a boca mostrando um sorriso sarcástico. - Uma acusação semelhante me foi lançada há anos pelos lábios de uma mulher estúpida que pensava poder apelar para meu sentido de obrigação. Minha misericórdia, possivelmente – Yakut riu entre os dentes, voltando a atenção de novo ao fogo, para mover, de novo, as brasas. - Sem dúvida você se lembra do que aconteceu.

- Sim - respondeu com cuidado Lex, surpreso pela garganta seca enquanto falava.

As lembranças formaram redemoinhos com as ondulantes chamas da lareira.

Norte da Rússia, fim do inverno. Lex era um menino, mal tinha dez anos, mas era o homem de seu precário lar tanto quanto podia se lembrar. Sua mãe era tudo o que ele tinha. A única que sabia como ele era realmente, e a única que o queria bem.

Ele estava preocupado desde a noite em que ela lhe havia dito que o levaria para conhecer seu pai pela primeira vez. Disse-lhe que ele era um segredo que ela tinha mantido - seu pequeno tesouro. Mas o inverno fora duro, e eles eram pobres. Precisavam de refúgio, de alguém que os protegesse. O campo estava em batalha e era inseguro para uma mulher cuidando sozinha de um menino. Ela disse que o pai de Lex os ajudaria, que ele abriria os braços em boas-vindas uma vez que conhecesse o filho.

Mas Sergei Yakut os recebeu com uma cólera fria e um terrível e impensável ultimato.

Lex se lembrou da mãe rogando a Yakut para que os acolhesse... Lembrou-se da mulher sendo completamente ignorada. Lembrou-se da bela mulher ajoelhada diante de Yakut, implorando para que cuidasse de Alexei.

As palavras estavam gravadas nos ouvidos de Lex, inclusive agora: “Ele é seu filho! Isso não significa nada para você? Será que ele não merece algo mais?”.

Rapidamente a cena saiu do controle.

Facilmente, Sergei Yakut ergueu uma espada e deslizou a lâmina pelo pescoço da indefesa mãe de Lex.

Suas palavras brutais afirmavam que ele tinha apenas lugar para soldados em seu reino, e que Lex tinha uma escolha a fazer naquele momento: servir ao assassino de sua mãe ou morrer com ela.

A débil resposta de Lex tinha sido dita entre soluços. “Vou servi-lo”, disse. E sentiu que uma parte de sua alma o abandonava enquanto olhava com horror o corpo ensanguentado e mutilado da mãe. Vou servi-lo, pai.

O silêncio que se seguiu foi muito frio, tão frio quanto uma tumba.

- Sou seu servo - Lex disse alto, baixando a cabeça mais pelo peso das velhas lembranças do que por respeito ao tirano que o governava. - Minha lealdade sempre foi sua, pai. Apenas sirvo ao seu prazer.

Um repentino calor, tão intenso quanto chamas ardentes, veio sob o queixo de Lex. Sobressaltado, ele levantou a cabeça, estremecendo de dor com um grito afogado. Viu a fumaça sair diante de seus olhos, sentiu o cheiro adocicado de carne queimando.

Yakut Sergei estava diante dele segurando o atiçador de ferro nas mãos. A ponta brilhante da haste de metal queimava vermelha, exceto pelo resíduo de pele branca pendurada, que havia sido arrancada do rosto de Lex.

Yakut sorriu, mostrando as pontas de seus dentes.

- Sim, Alexei, você serve apenas para o meu prazer. Lembre-se disso. Só porque meu sangue corre em suas veias não significa que eu não possa matá-lo.

- Claro que não - Lex murmurou, seus dentes cerrados pela devastadora agonia da queimadura. O ódio fervilhava nele pelo insulto que tinha que engolir e por sua própria impotência quando viu o homem da Raça desafiando-o com a testa franzida, pronto para fazer um movimento contra ele novamente. Yakut acabou desistindo. O velho arrastou uma túnica de linho marrom de uma cadeira e deu de ombros para ele. Seus olhos ainda estavam brilhantes, com fome e sede de sangue. Deixou a língua deslizar em seus dentes e presas.

- Como você está tão ansioso para me agradar, traga-me Renata. Preciso dela agora.

Lex apertou os dentes.

Sem palavras, saiu do quarto com a mandíbula rígida, os próprios olhos cintilando com a luz âmbar de sua indignação. Não perdeu de vista o olhar confuso do guarda postado na porta, o rumo inquieto dos olhos dos outros vampiros enquanto disfarçava o aroma de carne queimada e o provável calor de sua ira.

A queimadura cicatrizaria - de fato, já estava cicatrizando -, seu acelerado metabolismo da Raça reparava a pele queimada enquanto seus pés o levavam à área principal do refúgio. Renata vinha de fora. Ela viu Lex e se deteve, virando como se quisesse evitá-lo.

Não mesmo.

- Ele quer você - gritou Lex, sem se preocupar com quantos outros guardas estivessem ouvindo. Todos sabiam que ela era a vadia de Yakut, assim, não havia razão para fingir outra coisa. – Mandou-me que a chamasse. Está a sua espera para que o sirva.

Os frios olhos verde-jade o demoliram.

- Estive treinando. Preciso me lavar.

- Ele disse agora, Renata.

Uma ordem curta que ele sabia que seria obedecida. Havia mais do que uma leve satisfação nesse pequeno e raro triunfo.

- Muito bem.

Ela deu de ombros, apoiada sobre seus pés descalços.

Sua insossa expressão enquanto se aproximava dizia que não se preocupava com o que pensavam dela, muito menos Lex, e essa indiferença à humilhação apenas o fazia querer degradá-la mais. Farejou em sua direção, mais pelo efeito que isso causava do que por qualquer outra coisa.

- Ele não se importará com sua imundície. Todos sabemos que as melhores vagabundas são as sujas.

Renata não fez mais do que piscar com o vulgar comentário. Ela podia reduzi-lo com uma rajada de seu poder mental se assim o decidisse - de fato, Lex quase esperava que ela o fizesse, simplesmente para provar que a havia ferido. Mas o rápido giro de seu olhar disse que ela não sentia que ele merecia tal esforço.

Ela passou junto dele com uma dignidade que ele não podia compreender. Ele a olhou – todos os guardas próximos a olharam - enquanto ela caminhava para o quarto de Sergei Yakut tão calma quanto uma rainha a caminho da forca.

Não precisou muito para Lex imaginasse o dia em que ele controlaria tudo, mandaria naquele lugar, inclusive na altiva Renata. É óbvio, a vadia não seria tão altiva se sua mente, vontade e corpo pertencessem completamente a ele. Uma Subordinada para servir cada um de seus caprichos e os dos outros homens sob seu comando.

Sim, Lex pensou sombriamente, seria muito bom ser rei.


Capítulo 8

Nikolai pegou uma das adagas de Renata no poste onde ela as havia atirado. Tinha de lhe dar crédito: se tivesse acertado o alvo, ele estaria morto. Se fosse simplesmente um humano com reflexos lentos, e não um macho da Raça, o treinamento dela certamente o teria transformado em espetinhos para assar.

Ele riu ao devolver a lâmina ao envoltório elegante com as outras três. As armas eram belas, lustrosas e perfeitamente equilibradas, obviamente feitas à mão. Niko deixou seu olhar vagar sobre o desenho esculpido nos punhos de prata esterlina da arma. O padrão parecia ser um jardim de videiras e flores, mas quando ele as olhou mais de perto, deu-se conta de que cada uma das quatro lâminas também tinha uma palavra gravada dentro do desenho: fé, coragem, honra e sacrifício.

Ele se perguntou se aquilo seria uma espécie de oração de um guerreiro ou os princípios da disciplina pessoal de Renata.

Nikolai pensou no beijo que tinham compartilhado. Bom, dizer que eles o tinham compartilhado era um tanto presunçoso, considerando como ele tinha descido sua boca com toda a delicadeza de um trem de carga. Ele não tivera a intenção de beijá-la. Certo, e a quem ele estava tentando enganar? Ele não poderia ter parado mesmo que tivesse tentado. Não que fosse uma desculpa. E não que Renata tivesse dado qualquer possibilidade de desculpas ou perdão.

Niko ainda podia ver o horror em seus olhos, a inesperada, porém óbvia repulsão pelo que ele tinha feito. Ainda podia sentir a sinceridade da ameaça que ela pronunciou antes de sair tempestuosamente do canil.

A parte destruída de seu ego tentava acalmá-lo com a possibilidade de que talvez ela realmente desprezasse todos os machos de modo geral. Ou que talvez ela fosse tão fria como Lex parecia pensar. Um soldado assexuado – frígida apesar de ter a cara de um anjo e o corpo que conduzia sua mente a todo tipo de pecado e luxúria. Muitos pecados, cada um mais tentador e atraente do que o anterior.

Nikolai tinha um encanto fácil quando se tratava de mulheres. Não era simples alarde, mas uma conclusão a que ele tinha chegado baseado nos anos de experiência. Quando se tratava de mulheres, desfrutava tranquilamente das conquistas sem complicações, quanto mais temporárias melhor. A perseguição e as lutas eram divertidas, mas o melhor reservava para o combate verdadeiro, em batalhas sangrentas, com vampiros Renegados e outros inimigos da Ordem. Esses eram os desafios de que ele mais desfrutava.

Então, por que estava lutando contra esse impulso perverso de ir atrás de Renata e descobrir se não podia descongelar parte do gelo que a cobria?

Porque ele era um idiota. Um idiota com uma fúria perigosa e com um aparente desejo mortal.

Hora de parar de pensar com a cabeça de baixo. Não importava o que seu corpo estivesse dizendo - não importava mais o que ele tinha visto no olhar de Mira. Ele tinha um trabalho a fazer, uma missão da Ordem, e esta era a única razão pela qual estava ali.

Niko cuidadosamente envolveu as adagas de Renata no estojo de seda e veludo, e colocou o pequeno embrulho no fardo de palha esperando que ela voltasse para buscá-los, assim como os sapatos deixados para trás.

Abandonou o canil e se dirigiu à escuridão para recolher informações sobre as terras da mansão. Uma meia-lua pendurava-se no alto do céu noturno, velada por um punhado de nuvens negras como carvão. A brisa da meia-noite era cálida, abatendo-se brandamente através dos pinheiros altos e dos carvalhos espinhosos dos bosques ao redor. Os aromas misturavam-se no ar úmido do verão: o sabor forte da resina de pinheiro, a marca mofada do chão protegido do sol, a nitidez de tantos minerais na água doce, na corrente que evidentemente atravessava a propriedade não longe de onde Niko estava.

Nada incomum. Nada fora do lugar.

Até que...

Nikolai levantou o queixo e inclinou a cabeça ligeiramente para o oeste. Algo inesperado atravessou os seus sentidos. Algo que não podia, não deveria, encontrar ali.

Era a morte o que ele estava sentindo.

Sutil, antiga... mas certa.

O guerreiro correu na direção que seu olfato o levava. Cada vez mais profundo no bosque. A cerca de cem metros da mansão, a mata adensou-se. Niko reduziu sua marcha quando chegou ao lugar onde suas fossas nasais começavam a arder com o fedor envelhecido da decomposição. Aos seus pés, o chão estava esparso com folhas, enredado por videiras que caíam longe pela ravina escarpada.

Nikolai olhou para baixo pela fenda, adoecendo, antes mesmo que seus olhos pousassem na carnificina.

- Inferno - murmurou ele, sob seu fôlego.

Uma fossa de morte se encontrava no fundo da ravina. Esqueletos humanos. Dúzias de corpos, sem enterrar, esquecidos, simplesmente jogados uns em cima dos outros, como se fossem lixo. Tantos que levaria muito tempo para contar todos eles. Adultos. Crianças pequenas. Um massacre que não mostrava nenhuma discriminação a suas vítimas, tampouco misericórdia. Um massacre que poderia ter levado anos para ter sido realizado.

A pilha de ossos brancos brilhava sob a escassa luz da lua, pernas e braços empilhados juntos onde quer que o mortos tivessem caído, crânios olhando para ele, com as bocas abertas em macabros gritos silenciosos. Nikolai tinha visto o suficiente. Recuou da beira da ravina enquanto lançava outra maldição na escuridão.

- Que tipo de porcaria andou acontecendo por aqui?

Em seu íntimo, ele sabia.

Jesus Cristo, não havia muita margem para dúvidas.

Um clube de sangue.

A fúria e a repugnância passaram através dele em uma onda negra. Ele teve, por instantes, o desejo entristecedor de rasgar os membros de cada vampiro comprometido em violar a lei assassinando todas aquelas pessoas. Não que ele tivesse esse direito, mesmo como um membro guerreiro da Ordem. Ele e seus irmãos não tinham muitos amigos entre os ramos governantes da Raça, e muito menos na Agência de Controle, que atuava tanto como policiais e como políticos, responsáveis pelas populações de vampiros em geral. Eles pensavam que a Ordem e todos os guerreiros que a serviam estavam acima da sociedade civilizada. Vigilantes e militantes. Cães selvagens que só desejavam uma desculpa para fazê-la cair.

Nikolai sabia que isso estava fora de seus limites de atuação, mas isso não fez que o desejo de prescindir sua própria marca de justiça ficasse menos tentador.

Embora ultrajado e indignado, Niko precisava acalmar-se. Sua fúria não ajudaria as vidas esparramadas lá embaixo. Era muito tarde para isso. Niko não podia fazer nada, exceto mostrar um pouco de respeito, algo que lhes tinha sido negado inclusive depois da morte.

Solenemente, embora só por um breve momento, Nikolai se ajoelhou na borda da profunda ravina. Ele estendeu amplamente seus braços longos, invocando o poder luminoso que estava dentro dele, um talento da Raça que se encontrava unicamente nele e que em sua linha de trabalho, em particular, era de pouca utilidade. Sentiu o poder arder em seu interior quando o invocou. O poder se voltou em energia e luz, propagando-se através de seus ombros e movendo-se para baixo, em direção a seus braços. Logo, em suas mãos, esferas gêmeas brilhavam sob a pele no centro das palmas.

Nikolai tocou com os dedos a terra ao seu lado.

Em resposta, as videiras e arbustos se agitaram ao seu redor, gravetos verdes e pequenas flores silvestres do bosque despertaram acima, fazendo movimentos. Esses movimentos aumentaram cada vez mais em acelerada velocidade. Niko enviou os brotos que estavam crescendo de novo para a ravina e, em seguida, ficou de pé para assistir aos mortos serem cobertos por um manto de suaves folhas novas e flores.

Não era um grande rito funerário, mas era tudo o que ele tinha a oferecer às almas dos corpos que foram deixados ali para apodrecer na intempérie.

- Descansem em paz - murmurou ele.

Quando o último osso foi coberto, ele se dirigiu para a mansão. O celeiro de armazenamento em que ele tinha farejado o sangue agora chamava-lhe a atenção.

Só para confirmar suas suspeitas, Niko inspecionou e moveu o ferrolho solto. Abriu a porta e olhou dentro da construção. O celeiro estava vazio, tal como Lex havia dito. Mas novamente, as jaulas de aço construídas no interior não tinham sido feitas para nenhum tipo de armazenamento permanente. Eram gruas altas, celas da prisão com ferrolhos desenhados para os prisioneiros humanos, com caráter de contenção temporária.

Brinquedos vivos para o esporte de caça ilegal no remoto bosque que Sergei Yakut dominava.

Com um grunhido, Nikolai saiu do celeiro e partiu para a casa principal.

- Onde está ele? - perguntou ao guarda armado que o percebeu assim que atravessou a porta. - Onde está ele? Diga agora!

Ele não esperou por uma resposta. Não quando os outros dois guardas, ambos do lado de fora de uma porta fechada no grande corredor, tomaram uma postura de batalha repentina. Atrás deles, estavam os aposentos privados de Yakut, obviamente.

Nikolai irrompeu e empurrou um dos guardas de seu caminho. O outro tinha um rifle e começou a apontar para o guerreiro. Niko bateu a arma na cara do guarda, e então lançou o vampiro tonto à parede mais próxima.

Deu um chute na porta, estilhaçando a madeira velha e arrancando as dobradiças de ferro. Caminhou a passos largos através dos escombros, ignorando os gritos dos homens de Yakut. Encontrou o Primeira Geração no centro do quarto, diante de um sofá de couro, inclinado possessivamente sobre a garganta nua de uma fêmea de cabelos escuros enjaulada pelos braços do vampiro.

Com a interrupção, Yakut levantou a cabeça de sua alimentação e olhou na direção do invasor. Também o fez sua Anfitriã de Sangue...

Renata.

Não mesmo.

Ela estava unida a ele com o laço de sangue? Seria ela a Companheira de Raça desse monstro?

Todas as acusações que Nikolai tinha preparado para lançar a Sergei Yakut morreram repentinamente em sua garganta. Ele ficou olhando fixamente, com seus sentidos da Raça turvados e trincados, mais acordados ao ver o sangue da fêmea que gotejava dos lábios e das enormes presas de Yakut. O aroma dela atravessou o quarto, atingindo com força o cérebro de Niko. Ele não esperava um contraste tão estranho ao de sua conduta fria, mas o aroma de seu sangue era uma mescla quente, embriagadora e intoxicante de sândalo e chuva fresca de primavera. Suave. Feminino. Excitante.

A fome apertou o estômago de Nikolai, uma reação visceral com a qual ele teve que lutar arduamente para conter-se. Disse para si que era simplesmente sua natureza da Raça sobressaindo-se. Havia poucos entre os de sua estirpe que podiam resistir ao canto das sereias de uma veia aberta, mas quando seus olhos encontraram o olhar fixo de Renata, um novo calor explodiu dentro dele. Mais forte, aliás, que a primitiva sede de alimentar-se.

Ele a desejava.

Mesmo enquanto estava deitada debaixo de outro macho, permitindo-lhe beber dela, Nikolai tinha fome dela com uma ferocidade que o sobressaltava. Unida pelo sangue a outro ou não, Niko queimava de desejo por Renata.

O que, até mesmo com seu flexível código de honra, o fazia se sentir quase próximo ao nível desprezível de Yakut.

Niko teve de sacudir-se mentalmente para desprender-se daquela visão perturbadora, voltando bruscamente sua atenção aos problemas que tinha à mão.

- Você tem um sério problema - disse ele ao vampiro Primeira Geração, sendo apenas capaz de conter seu desprezo. - Na verdade, suponho que você tem aproximadamente três dúzias deles apodrecendo em seu bosque.

Yakut permaneceu calado, seu olhar escuro assumiu a cor âmbar, indicando o desafio. Um grunhido ondulou antes que ele voltasse a cabeça para sua refeição interrompida. A língua de Yakut deslizou do meio de seus lábios para lamber as espetadas que tinha deixado no pescoço de Renata, selando as feridas e estancando o sangue.

Só então, quando a língua de Yakut percorreu a pele de Renata, ela afastou o olhar de Niko. Ele acreditou ver alguma tranquilidade, um pouco de resignação, passar através de seu rosto nos segundos antes de Yakut se levantar e a liberar. Uma vez livre, Renata se moveu para o canto do quarto, puxando a camisa de volta ao lugar.

Ela ainda estava vestida com a roupa de antes, ainda estava descalça.

Ela devia ter vindo diretamente para cá depois do que tinha se passado no canil.

Tinha procurado Yakut por proteção? Ou por simples comodidade?

Jesus.

Niko se sentiu um asno quando se lembrou da maneira como tentou beijá-la. Se ela estivesse unida por sangue a Sergei Yakut, essa união era sagrada, íntima... exclusiva. Não admirava que ela tivesse reagido como reagira. Os beijos de Nikolai teriam sido um insulto e a degradação para ambos. Mas agora ele não estava ali para pedir desculpas – não a Renata ou ao seu aparente companheiro.

Nikolai dirigiu um olhar duro para o vampiro.

- Há quanto tempo você caça seres humanos, Yakut?

O Primeira Geração apenas grunhiu, sorrindo.

- Encontrei os currais de detenção no celeiro. Encontrei os corpos. Homens, mulheres... crianças.

Nikolai grunhiu uma maldição, incapaz de conter sua repugnância e indignação.

- Você transformou esse lugar em um maldito clube de sangue. Pelo aspecto dos corpos, eu diria que faz isso há anos.

- E o que tem isso? - Yakut perguntou despreocupadamente, sem sequer tentar emitir uma respeitável negação.

E no canto do quarto, Renata permaneceu em silêncio, com os olhos fixos em Niko, mas sem mostrar surpresa alguma.

Ah, Cristo! Então ela também sabia.

- Maldito doente - ele disse, olhando de novo para Yakut. - Todos vocês estão doentes. Não poderá continuar com isso. Pare agora mesmo. Há leis...

O Primeira Geração riu, com a voz deformada pela transformação de seu lado mais selvagem.

- Eu sou a lei aqui, rapaz. Ninguém, nem os Refúgios e sua tão elogiada Agência, nem sequer a Ordem têm algo a ver com meus assuntos. Convido qualquer um para vir aqui e tentar me dizer o contrário.

A ameaça era clara. Apesar do fato de a honra e a justiça gritarem dentro de Nikolai para que ele acabasse com o maldito filho da mãe ali mesmo, ele não podia fazê-lo, pois Yakut não era um vampiro comum. Era um Primeira Geração. Não apenas dotado de força e poderes imensamente maiores que os do guerreiro ou de qualquer outro posterior da Raça, mas também membro de uma classe rara. Desses, só havia poucos, menos ainda agora, como resultado da eclosão dos recentes assassinatos.

Tão repugnante quanto a prática ilegal dos clubes de sangue entre a sociedade da Raça era a tentativa de matar um vampiro da Primeira Geração.

Nikolai não podia levantar a mão contra o filho da mãe, não importa quanto desejasse fazer isso.

E Yakut sabia. Ele limpou a boca com a túnica escura, esfregando ligeiramente a fragrância doce do sangue de Renata.

- A caçada está em nossa natureza, rapaz.

A voz de Yakut tinha uma serenidade mortal, completamente cheia de confiança, enquanto avançava para Nikolai.

- Você é jovem, nascido da Raça mais fraca de alguns de nós. Talvez seu sangue esteja tão diluído com o da humanidade que simplesmente não pode compreender a necessidade em sua forma mais pura. Se tivesse o gosto pela caçada, seria menos hipócrita com aqueles de nós que preferem viver como deve ser.

Niko sacudiu lentamente a cabeça.

- Os clubes de sangue não são só caçada. Eles são simplesmente uma matança. Você pode dizer suas asneiras, mas ainda assim você não passa de um monte de porcaria. É um animal. O que você realmente precisa é de uma focinheira e de uma coleira. Alguém tem que deter você.

- E pensa que você ou a Ordem fará essa tarefa?

- Você pensa que nós não faremos? - desafiou Niko, com uma parte de si esperando que o Primeira Geração lhe desse uma boa razão para sacar suas armas. Ele não se imaginava fugindo do confronto com o vampiro ancião, ele não desistiria sem uma maldita briga.

Em resposta, Yakut recuou, com seus olhos de cor âmbar brilhantes, as elípticas pupilas diminutas estilhaçadas de negro. Ergueu o queixo barbudo e virou a cabeça para um lado. Seus lábios se separaram com um selvagem sorriso que expôs suas presas. Daquela maneira não era difícil que todos observassem a parte alienígena dele - a parte que fazia dele e de todo o resto da Raça o que eram: predadores que bebem sangue e não pertencem totalmente a este mundo mortal, mas que apenas nasceram aqui.

- Eu lhe disse uma vez que você não era bem-vindo em meus domínios, guerreiro. Você ou sua proposta de aliança com a Ordem não me serve de nada. Minha paciência está chegando ao limite, assim como sua estadia aqui.

- Sim – concordou Niko. – Vou dar o fora deste lugar com muito prazer. Mas não pense que esta é a última vez que você vai ter notícias minhas.

Ele não pôde deixar de deslizar o olhar selvagem sobre o corpo de Renata quando disse essas palavras. Por mais raiva que estivesse sentindo de Yakut, não podia sentir o mesmo por ela. Ele esperava que ela dissesse que não sabia sobre os crimes que aconteciam naquele pedaço de terra embebido de sangue, desejava que ela dissesse algo para convencê-lo de que não fazia parte do jogo e das práticas doentias de Yakut.

Mas ela simplesmente recuou o olhar, com os braços cruzados sobre o peito. Uma mão se elevou ociosamente para tocar a ferida que estava se curando em seu pescoço, mas ela permaneceu em silêncio.

Todavia, ela não deixou de olhar o guerreiro quando ele saiu pela porta escancarada diante do aturdido guarda de Yakut.

- Devolvam os itens pessoais ao guerreiro e cuidem para que ele deixe a propriedade sem incidentes - Yakut ordenou a um par de homens armados que se encontravam fora de seu quarto.

Quando os dois saíram para atender a ordem, Renata começou a segui-los. Alguma parte desequilibrada dela desejava poder ser capaz de encontrar Nikolai sozinho e...

E o que?

Explicar a verdade e contar como eram as coisas para ela aqui? Tentar justificar as ações que ela tinha sido forçada a fazer?

Com que finalidade?

Nikolai estava partindo. Ele nunca teria que voltar para aquele lugar, enquanto ela estaria ali até seu último suspiro. Que bem poderia fazer explicar algo disso a ele, um desconhecido que provavelmente não a entenderia, e muito menos a protegeria?

Entretanto, os pés de Renata continuaram movendo-se.

Ela sequer chegou até a porta. A mão de Yakut se fechou fortemente sobre seu pulso, segurando-o em suas costas.

- Você não, Renata. Você fica.

Ela o olhou com uma expressão que esperava estar desprovida da ansiedade e das náuseas que estava tentado tão duramente disfarçar.

- Pensei que tínhamos terminado aqui. Que talvez devesse ir com os outros, só para assegurar que o guerreiro não decida fazer nada estúpido em seu caminho fora da propriedade.

- Você fica - o sorriso de Yakut congelou-lhe até os ossos. – Tenha cuidado, Renata. Eu não gostaria que você fizesse nada estúpido.

Ela tragou o repentino nó gelado de ansiedade de sua garganta.

- Desculpe-me?

- Tenha cuidado - respondeu ele, apertando-lhe hermeticamente o braço. - Suas emoções a traem, querida. Posso sentir o aumento de sua frequência cardíaca, o muro de adrenalina que atravessa seu corpo correndo por suas veias agora mesmo. Senti a mudança em você no momento que o guerreiro entrou no quarto. Senti antes também. Importa-se em me dizer por onde esteve esta noite?

- Treinando - respondeu ela, rapidamente, mas com firmeza. Para não dar razão alguma para duvidar dela, já que aquela era essencialmente a verdade. - Antes que você mandasse Lex procurar por mim, eu estava do lado de fora, fazendo meus exercícios de treinamento no antigo canil. Se você sentiu algo diferente em mim, deve ter sido por conta do excesso de treinamento.

Um silêncio longo se estendeu, enquanto o aperto rígido mantinha-se em seu pulso.

- Você sabe quanto valorizo a lealdade, não é, Renata? – disse Yakut enquanto Renata fez uma breve inclinação de cabeça. – Valorizo-a tanto quanto você valoriza a vida daquela menina que dorme no outro quarto - disse ele friamente. - Penso que essa dúvida poderia fazer com que ela terminasse no cemitério.

O sangue de Renata congelou em suas veias diante daquela ameaça. Ela olhou fixamente para cima, diretamente nos malignos olhos do monstro que agora sorria abertamente, com um prazer doentio.

- Como disse, querida Renata, tenha cuidado.


Capítulo 9

A cidade de Montreal, assim nomeada por causa do enorme monte que proporcionava uma vista magnífica do Rio Saint Lawrence e do vale abaixo, brilhava como um pote de pedras preciosas sob a lua crescente. Arranha-céus elegantes, torres de igrejas góticas, avenidas arborizadas e, à distância, uma brilhante linha de água que envolvia a cidade em um abraço protetor. Uma vista realmente espetacular.

Não havia dúvidas sobre a razão pela qual o líder do Refúgio de Montreal havia escolhido estabelecer sua comunidade perto do cume do Monte Real.

De pé no balcão do segundo andar da mansão em estilo barroco tinha-se a impressão de que a velha propriedade de caçadores fora da cidade parecia estar a mil quilômetros de distância. Mil anos longe daquela educada e civilizada maneira de viver. O que, obviamente, era verdade.

A espera para se encontrar com Edgar Fabien, o guerreiro da Raça que fiscalizava a população de vampiros de Montreal, parecia durar uma eternidade. Fabien era bem conhecido na cidade e havia rumores de que tinha bons contatos, tanto entre os Refúgios quanto no grupo de patrulha conhecido como a Agência. Ele era a escolha natural para uma situação delicada como aquela.

Mesmo assim, se o líder do Refúgio estivesse disposto a cooperar, essa era uma aposta que Lex tinha de arriscar. Aquela visita tardia e sem aviso fora um ato espontâneo e muito, muito arriscado.

O simples fato de ir ali já significava declarar-se inimigo de Sergei Yakut.

Mas Lex tinha visto o suficiente, tinha suportado o suficiente.

O príncipe estava de saco cheio de lamber as botas do pai. Era hora do rei tirano cair.

Lex girou ao som dos passos aproximando-se do interior da recepção. Fabien era um homem magro, alto e meticulosamente vestido, como se tivesse nascido em seus trajes feitos sob medida e com seus brilhantes mocassins de couro. Seu cabelo loiro acinzentado estava penteado para trás com algum tipo de gel perfumado, e quando ele sorriu para saudar Lex, seus magros lábios e estreitos traços faciais ficaram ainda mais severos.

- Alexei Yakut - disse, saindo para o balcão e oferecendo a mão para Lex. Não menos que três anéis cintilavam em seus longos dedos, ouro e diamantes que rivalizavam com o brilho da cidade lá fora. - Lamento que tenha esperado tanto. Temo que não estejamos acostumados a receber convidados inesperados em minha residência pessoal.

Lex assentiu, tenso, e soltou a mão de Fabien. A casa do líder do Refúgio não estava exatamente nos guias de turismo da cidade de Montreal, mas umas poucas perguntas feitas às pessoas certas tinham guiado Lex até ali sem maiores problemas.

- Venha, por favor - disse o homem da Raça, gesticulando para Lex e guiando-o para o interior da casa. Fabien se sentou em um luxuoso sofá, deixando espaço para Lex do outro lado.

- Devo admitir que fiquei surpreso quando minha secretária me disse quem queria me ver. Uma vergonha que não tenhamos tido a oportunidade de nos conhecer até agora.

Lex sentou-se junto ao líder do Refúgio, incapaz de evitar que seus olhos viajassem pelo interminável luxo de seus arredores.

- Mas você sabe quem sou eu? - perguntou Lex com cuidado. - Sabe também quem é o Primeira Geração, meu pai, Sergei Yakut?

Fabien assentiu com elegância.

- Só pelo nome, infelizmente. Fui negligente ao não ter feito as apresentações formais logo que vocês chegaram a minha cidade. Entretanto, os guarda-costas de seu pai deixaram claro que seu pai era uma espécie de eremita quando meu emissário pediu um encontro. Entendo que ele prefira uma vida tranquila e rural fora da cidade, em contato com a natureza ou algo do tipo.

Sobre os nódulos de seus dedos, o sorriso de Fabien não alcançou seus olhos.

- Suponho que viver com aquele tipo de... simplicidade signifique alguma coisa.

Lex grunhiu.

- Meu pai escolheu tal vida porque acredita estar acima da lei.

- Como?

- É por isso que estou aqui - disse Lex. - Tenho informações. Informações importantes que precisam ser averiguadas rapidamente. Secretamente.

Edgar Fabien inclinou-se contra as almofadas do sofá.

- Ocorreu algo... fora da casa?

- Vem ocorrendo há muito tempo - Lex admitiu, sentindo uma rara sensação de liberdade enquanto essas palavras saíam-lhe da boca.

Lex contou a Fabien tudo sobre as atividades ilegais de seu pai, desde o clube de sangue e do cemitério cheio dos restos de suas vítimas até o frequente assassinato de seus Subordinados humanos. Explicou, não sendo totalmente sincero, como fora corroído por esses segredo durante um longo tempo e como era seu próprio sentido de moralidade - seu sentido de honra e de respeito pela lei da Raça - que o obrigava a procurar ajuda para deter o reino particular de terror de Sergei Yakut.

Era o entusiasmo – a emoção no fundo de sua coragem - que fazia sua voz tremer, mas, se Fabien entendesse isso como lamento, melhor ainda.

Fabien o escutou com a expressão cuidadosamente séria e sóbria.

- Entendo, estou certo de que isso não é um assunto menor. O que você descreveu é... problemático. Perturbador. Mas haverá certos fatos que virão à tona nesse tipo de investigação. Seu pai é um Primeira Geração. Haverá perguntas que ele terá de responder, protocolos que precisarão ser observados.

- Investigação? Protocolos? - disse, indignado, Lex. Saltou sobre os pés, alagado de medo e ira. - Isso poderá levar dias ou até mesmo semanas. Um maldito mês!

Fabien assentiu, desculpando-se.

- De fato, poderá.

- Não há tempo para isso agora! Você não entende? Estou oferecendo meu pai de bandeja. Todas as provas que necessitará para uma detenção imediata estão ali em sua propriedade. Pelo amor de Deus, estou arriscando minha maldita vida só por estar aqui!

- Sinto muito - o líder do Refúgio dizia isso sustentando as mãos erguidas. - Se a situação não for segura para você, estaremos mais do que dispostos a oferecer-lhe proteção. A Agência poderia afastá-lo quando a investigação começar, levá-lo para algum lugar seguro.

A afiada risada de Lex o interrompeu.

- Enviar-me ao exílio? Estarei morto muito antes. Além disso, não estou interessado em fugir e me esconder como um cão. Quero o que mereço. Quero o que aquele bastardo filho da mãe me deve depois de todos esses anos de espera por esmolas – diante das palavras de Lex, era impossível mascarar os verdadeiros sentimentos. A ira preenchia-lhe o corpo por completo. - Quer saber o que realmente quero de Sergei Yakut? A morte.

O olhar de Fabien estreitou-se astutamente.

- Essa é uma afirmação muito perigosa.

- Não sou o único que pensa assim - respondeu Lex. - De fato, alguém teve coragem suficiente para tentar isso na semana passada.

Os ardilosos olhos de Fabien ficaram mais e mais estreitos.

- O que quer dizer?

- Ele foi atacado. Alguém entrou na casa e tentou cortar a cabeça do maldito, mas acabou falhando. Maldita sorte - Lex acrescentou baixinho. - A Ordem pensa que foi trabalho de um profissional.

- A Ordem - repetiu Fabien sem ar. - Como estão envolvidos nisso que está descrevendo?

- Eles enviaram um guerreiro ontem à noite para encontrar-se com meu pai. Aparentemente, estão tentando avisar os Primeira Geração sobre a recente caçada entre a população.

A boca de Fabien trabalhou um segundo sem formar palavras, como se não estivesse segura sobre o que articular primeiro. Ele limpou a garganta.

- Há um guerreiro aqui em Montreal? E o que é isso de caçada recente? Do que você está falando?

- Cinco Primeira Geração foram mortos, nos Estados Unidos e na Europa - disse Lex, recordando o que Nikolai lhe havia dito. - Alguém parece querer eliminar a primeira geração, um por um.

- Santo Deus – a expressão de Fabien era o vivo retrato da surpresa, mas algo nela preocupou Lex.

- Não sabia nada sobre os assassinatos?

Fabien levantou-se lentamente, agitando a cabeça.

- Estou aturdido, asseguro-lhe isso. Não tinha ideia. Que coisa terrível.

- Talvez sim, talvez não - respondeu Lex.

Enquanto olhava o líder do Refúgio, Lex se deu conta de que uma súbita tranquilidade abatia-se sobre o vampiro – uma tranquilidade tamanha que Lex se perguntava se ele ainda estava respirando. Havia um tênue, porém elevado, pânico nos olhos ambiciosos de Lex. Edgar Fabien sustentava o corpo com rígida precisão, mas seu olhar mutante encarava Lex como se quisesse sair correndo da sala.

Interessante.

- Sabe, eu esperava que você estivesse mais bem informado, Fabien. Sua reputação na cidade me levava a acreditar nisso. Com todos os seus amigos policiais, você está querendo me dizer que nenhum deles lhe disse algo sobre isso? Provavelmente eles não confiam em você, não? Provavelmente eles têm uma boa razão para isso.

Nesse momento, Fabien encontrou o olhar de Lex. Cintilações âmbar iluminaram-lhe a íris com um sinal revelador de um nervo comprimido.

- Que tipo de jogo está tentando fazer comigo?

- O seu - disse Lex, percebendo uma oportunidade e agarrando-a. - Você sabe sobre as caçadas aos Primeira Geração. A questão é: por que mente sobre isso?

- Não discuto publicamente assuntos policiais - Fabien cuspiu em resposta, inflando seu magro peito com indignação. - O que sei ou não sei é assunto meu.

- Sabia também sobre o ataque a meu pai antes que eu o mencionasse, não é mesmo? Foi você quem o atacou, não é? E quanto aos outros assassinados?

- Jesus Cristo, você está completamente louco.

- Queria estar - disse Lex. – Seja lá o maldito complô em que você está metido, Fabien, eu também quero fazer parte dele.

O líder bufou bruscamente, depois deu as costas a Lex enquanto caminhava para uma das altas estantes cravadas em uma parede prateada. Acariciou a madeira polida, rindo preguiçosamente.

- Embora nossa conversa tenha sido esclarecedora e divertida, Alexei, ela talvez deva terminar aqui. Acredito que é melhor que você vá e se acalme antes de dizer mais alguma tolice.

Lex avançou, decidido a convencer Fabien de que ele valia a pena.

- Se o quiser morto, estou disposto a ajudá-lo a conseguir isso.

- Insensato - foi a resposta que recebeu. - Posso estalar meus dedos e prendê-lo sob suspeita de tentativa de assassinato. Posso, mas nesse momento quero que vá embora e nenhum de nós dirá uma palavra sequer a respeito dessa conversa.

A porta da recepção se abriu e quatro homens entraram. Ao assentimento de Fabien, o grupo rodeou Lex. Sem escolha, ele saiu.

- Manterei contato - disse Lex, mostrando os dentes. – Pode contar com isso.

Fabien não respondeu, mas seu ardiloso olhar permaneceu fixo sobre Lex, com severo entendimento, enquanto o homem, tenso, atravessava a porta e a fechava.

Assim que Lex saiu para a rua, sozinho, sua mente começou a cogitar as opções disponíveis. Fabien era corrupto. Que surpreendente e útil informação. Com um pouco de sorte, não passaria muito tempo antes que as conexões de Fabien fossem também as suas. Não se preocupou particularmente em pensar como as conseguiria.

Levantou os olhos em direção à bela mansão do Refúgio e todo seu imaculado luxo. Era isso o que Lex queria: esse tipo de vida e não a imundície e a degradação que havia conhecido sob o jugo de seu pai. Isso era o que ele verdadeiramente merecia.

Mas, primeiro, ele precisaria sujar as mãos, mesmo que pela última vez.

Lex caminhou ao longo da estrada cheia de curvas ladeada por arvoredos e se dirigiu para a cidade com seus objetivos renovados.

 

 

CONTINUA

Capítulo 6

Em silêncio, Renata abriu a porta do quarto de Mira e espreitou a garotinha adormecida que descansava sobre a cama. Aquela era uma criança normal em seu pijama cor-de-rosa, com a bochecha macia apoiada contra o travesseiro fino, respirando calmamente pela delicada boca de querubim. Sobre a mesinha rústica próxima à cama estava o curto véu negro que cobria os notáveis olhos de Mira durante todos os momentos em que ela estava acordada.

- Bons sonhos, meu anjo - sussurrou Renata em voz baixa, de forma terna e esperançosa.

Nos últimos tempos, ela se preocupava cada vez mais com Mira. Não apenas por conta dos pesadelos que começaram depois do ataque que presenciara, mas pela saúde geral da garota. Embora Mira fosse forte e tivesse uma mente rápida e aguda, ela não estava completamente bem. Ela estava perdendo a visão rapidamente.

Cada vez que Mira era obrigada a exercitar o dom da premonição, um pouco de sua própria visão se deteriorava. E isso já estava acontecendo há meses quando Mira finalmente confidenciou a Renata seu estado. Ela tinha medo, como qualquer criança teria. Talvez até mais, já que Mira era mais sábia do que seus oito anos de idade indicavam. Ela compreendia que o interesse de Sergei Yakut por ela se evaporaria no momento em que ele a considerasse sem nenhuma utilidade. Ele a expulsaria, talvez até a mataria, se assim o desejasse.

Portanto, desde aquela noite, Renata e Mira mantinham um pacto: a condição de Mira seria um segredo entre elas e seria levado para o túmulo, se fosse necessário. Renata cumpria a promessa, jurando a Mira que a protegeria com sua própria vida. Jurou que nenhum dano aconteceria à garota, fosse ele causado por Yakut ou por qualquer outra pessoa, da Raça ou humano. Mira estaria a salvo da dor e da escuridão da vida de uma maneira que a própria Renata jamais esteve.

O fato de a garota ter sido usada naquela noite para entreter o hóspede não convidado de Sergei Yakut apenas aumentou a irritação de Renata. O pior de sua inquietação mental havia passado, mas uma dor de cabeça ainda persistia. O estômago não tinha parado de revirar, e pequenas ondas de náuseas retrocediam pouco a pouco.

Renata fechou a porta do quarto de Mira, estremecendo com outro pequeno tremor que lhe agitou o corpo. O longo banho que acabara de tomar tinha ajudado a aliviar um pouco o desconforto, mas até debaixo de suas calças folgadas de cor grafite e de seu pulôver macio de algodão branco, a pele continuava reclamando das correntes elétricas que lhe acometiam. Ela esfregou as palmas das mãos sobre as mangas da camisa, tentando dissipar a sensação ainda acesa que viajava por seus braços. Muito agitada para dormir, ficou no quarto apenas o tempo necessário para pegar algumas adagas no baú de armas. O treinamento sempre se mostrara bem-vindo nesses períodos de inquietação. Ela apreciava as horas do castigo físico que se infligia, feliz pelo treinamento rigoroso que a exauria.

Desde a terrível noite em que se encontrou imersa no perigoso mundo de Sergei Yakut, Renata havia aperfeiçoado ao máximo cada músculo de seu corpo, trabalhando metodicamente para se assegurar de que ela era tão letal quanto as armas que levava na caixinha de seda e veludo que agora carregava nas mãos.

Sobreviver.

Esse simples pensamento tinha sido seu farol desde que era apenas uma garota, mais jovem até do que Mira. E, mais que tudo, sozinha. Órfã abandonada na capela de um convento de Montreal, Renata não tinha nenhum passado, nenhuma família, nenhum futuro. Ela somente existia, e isso era tudo.

Para Renata, isso tinha sido o suficiente. Era o suficiente inclusive agora. Sobretudo agora que ela navegava pelo traiçoeiro mundo subterrâneo do reino de Sergei Yakut. Havia inimigos por todos os lados naquele lugar, tanto escondidos quanto visíveis. Inúmeros caminhos à espera de um passo em falso, de um equívoco; infinitas ocasiões para ela odiar o vampiro desumano que tinha a vida dela nas mãos. Mas ela não desistiria sem lutar.

Seu mantra dos dias de infância servia bem nesse momento: sobreviver um dia, e depois outro e outro.

Não havia espaço para brandura nessa equação. Piedade, vergonha ou amor não eram permitidos. Principalmente amor, de espécie alguma. Renata sabia que seu afeto por Mira - o impulso vital que lhe dava forças para fazer o caminho da menina mais suave e protegê-la como alguém de sua própria família - provavelmente lhe custaria muito caro no final.

Sergei Yakut tinha perdido pouco tempo explorando essa sua debilidade e Renata tinha as cicatrizes para comprovar.

Mas ela era forte. Não tinha encontrado coisa alguma nesta vida que não pudesse suportar, que não pudesse enfrentar - fisicamente ou de qualquer outra maneira. E tinha sobrevivido a tudo. Inteligente, forte... e letal quando tinha de ser.

Renata saiu do albergue e caminhou a passos largos pela escuridão rumo a um dos edifícios anexos que ficavam na parte de trás do local. O caçador que originalmente construíra a propriedade no bosque evidentemente adorava seus cães. Um velho canil de madeira fora erguido atrás da residência principal, disposto como um estábulo, com um amplo espaço dividido em dois e quatro baias de acesso alinhadas de ambos os lados. O teto de vigas devia ter uns quatro metros e meio de altura.

Embora pequeno, era um espaço aberto e bem ventilado. Na propriedade havia um celeiro maior e mais novo, que permitia movimentos mais fluidos, mas Renata geralmente o evitava.

Uma vez naquele lugar escuro e insalubre já tinha sido o suficiente. Se pudesse, ela já teria colocado fogo naquele maldito lugar.

Renata acendeu o interruptor ao lado da porta do canil e seu corpo se contraiu quando a lâmpada no teto derramou uma luz amarela e áspera no espaço. Entrou e caminhou pelo chão macio de terra batida. Passou por duas correias de couro largas e trançadas que se dependuravam na viga central da estrutura.

No extremo mais afastado do canil havia um poste alto de madeira que antes fora equipado com pequenos ganchos de ferro e laços para o armazenamento de correias e demais objetos. Renata havia se livrado dos arranjos alguns meses atrás e agora o poste funcionava como um alvo, cuja madeira escura já estava marcada de cortes profundos.

Renata colocou as lâminas sobre um fardo de palha que estava por perto e se agachou. Tirou os sapatos e caminhou descalça até o centro do canil. Alcançou o par de compridas correias de couro que havia ali e agarrou cada uma em uma mão. Enrolou o couro nos pulsos e, quando sentiu que estava cômodo, estendeu-se, flexionando os braços e levantando-se do chão de maneira tão leve que parecia ter asas.

Suspensa e livre da gravidade, Renata começou seu aquecimento. O couro rangia brandamente enquanto ela dava voltas e girava o corpo a vários metros do chão. Para ela, aquilo era a verdadeira paz, a sensação de seus membros ardendo, ganhando força e agilidade a cada movimento.

Renata deixou a mente se perder em uma meditação ligeira, mantendo os olhos fechados e todos os sentidos voltados para dentro de si, concentrados no ritmo cardíaco e na respiração, no movimento dos músculos enquanto ela se alongava. Assim foi até que girasse sobre o eixo e ficasse de cabeça para baixo, com os tornozelos agora presos às correias. Nesse momento, sentiu uma leve agitação no ar ao seu redor. Foi repentino e sutil, porém inconfundível. Tão inconfundível quanto o calor de uma respiração que agora lhe esquentava a bochecha.

Abriu os olhos de repente, lutando para compreender o espaço ao seu redor – todo invertido – e o intruso que estava de pé, abaixo dela. Era o guerreiro da Raça, Nikolai.

- Caramba! - ela disse, com sua falta de atenção fazendo-lhe oscilar um pouco no controle das correias. - Que diabos você acha que está fazendo?

- Relaxe - disse Nikolai. - Não estava querendo assustá-la – falou enquanto levantava as mãos para estabilizá-la.

- E não assustou – Renata respondeu com palavras pronunciadas com frieza. Com uma sutil flexão do corpo, afastou-se. – Importa-se? Você está atrapalhando meu treinamento.

- Ah! - as sobrancelhas loiras do macho da Raça arquearam enquanto seu olhar seguia a linha do corpo de Renata. - O que é exatamente esse treino? Está de olho em alguma vaga no Cirque du Soleil?

Ela não lhe deu o prazer de uma resposta. Não que ele esperasse uma. Nikolai virou-se e dirigiu-se para o poste que havia no outro extremo do canil. Estendeu a mão, percorrendo com os dedos as profundas marcas que havia na madeira. Então, encontrou as adagas e levantou o tecido que as protegia. O metal tilintou ao chocar-se brandamente dentro do quadrado dobrado de seda atado com a cinta de veludo.

- Não toque nisso - disse Renata, libertando-se das correias e voltando a colocar os pés no chão. - Eu disse para não tocar nisso. São minhas.

Niko não resistiu quando ela lhe tirou das mãos seus preciosos pertences; as únicas coisas de valor que ela podia reclamar como suas. O aumento em suas emoções o fez virar levemente a cabeça, certamente os efeitos secundários da força mental que ela esperava terem passado ainda persistiam. Ela deu um passo para trás e teve de se esforçar para manter a respiração estável.

- Você está bem?

Ela não gostou do olhar de preocupação refletido nos olhos azuis dele, pois era como se ele pudesse sentir sua debilidade, como se soubesse que ela não era tão forte quanto queria ser, quanto precisava aparentar.

- Estou bem.

Renata colocou as adagas em uma das baias do canil e as desembrulhou. Uma por uma, ela cuidadosamente colocou as quatro adagas esculpidas à mão sobre a madeira. Forçando um tom ligeiramente convencido, disse: - Eu é quem deveria fazer essa pergunta, não? Deixei você bem duro lá na cidade.

Ela escutou o grunhido baixo em algum lugar atrás de si, quase como um escárnio.

- Nunca se pode ser demasiado cauteloso quando se trata de estrangeiros - continuou ela. - Sobretudo agora. Estou segura de que você me entende.

Quando ela finalmente o percorreu com um olhar, encontrou-o olhando-a fixamente.

- Querida, a única razão pela qual você teve a possibilidade de me derrubar foi porque jogou sujo. Certificou-se de que eu a notasse no clube, fingindo ter alguma coisa escondida, sabendo que eu a seguiria diretamente para sua armadilhazinha.

Renata levantou os ombros, sem arrependimento.

- No amor e na guerra vale tudo.

Ele sorriu suavemente, formando um par de covinhas em seu rosto quadrado e masculino. – E isso é guerra, não é? – ele perguntou.

- Certamente não é amor – disse ela.

- Não - ele retrucou, tornando-se sério. - Nunca.

Bem, ao menos eles concordavam em alguma coisa.

- Há quanto tempo trabalha para Yakut?

Renata balançou a cabeça como se fosse incapaz de se recordar dessa informação, embora a noite em questão estivesse gravada em sua mente como se as memórias fossem ferro em brasa. Sangue. Horror. O começo de um fim.

- Não sei - disse ela. - Alguns anos, suponho. Por quê?

- Eu estava me perguntando como uma mulher, mesmo sendo uma Companheira de Raça com sua poderosa habilidade psíquica, foi parar nesse trabalho, especialmente para um Primeira Geração como ele. É estranho, é isso. Diabos, nunca ouvi falar de coisa semelhante. Então, diga-me: qual é sua ligação com Sergei Yakut?

Renata olhou fixamente o guerreiro: um forasteiro perigoso e ardiloso que, de repente, estava se intrometendo em seu mundo. Ela não estava segura de como responder. Certamente não estava disposta a lhe contar a verdade.

- Se você tem perguntas, talvez devesse fazê-las a ele.

- Sim - disse Niko, estudando-a mais estreitamente agora. - Talvez pergunte. E quanto à garota, Mira? Ela está aqui há tanto tempo quanto você?

- Não há tanto tempo. Apenas seis meses. - Renata tentou mostrar-se indiferente, mas um feroz instinto de proteção nasceu dentro de seu corpo diante da simples menção do nome de Mira nos lábios daquele guerreiro da Raça. - Ela passou por tanta coisa em tão pouco tempo. Coisas que nenhuma criança deveria testemunhar.

- Como o ataque a Yakut na semana passada?

E outras, mais sombrias ainda, Renata reconheceu interiormente.

- Mira tem pesadelos quase todas as noites. Ela praticamente não dorme já faz algum tempo.

Ele assentiu com a cabeça em um sóbrio reconhecimento.

- Este não é um bom lugar para uma garotinha. Alguns diriam que tampouco é lugar para uma mulher.

- É isso o que você diria, guerreiro?

O sorriso de Niko não confirmou nem negou a pergunta.

Renata o observou enquanto em sua mente surgiam perguntas e mais perguntas. Uma em particular.

- O que viu nos olhos de Mira esta noite?

Ele grunhiu algo ininteligível.

- Acredite, você não vai querer saber.

- Estou perguntando, não? O que ela lhe mostrou?

- Esqueça – enquanto ela o olhava, ele passou a mão pelos fios dourados de seu cabelo e exalou uma maldição, desviando o olhar em seguida. - De qualquer forma, isso não é possível. A garota definitivamente errou.

- Mira jamais erra. Ela nunca errou, pelo menos em todo o tempo em que a conheço.

- Mesmo? - o penetrante olhar azul do guerreiro voltou-se fixamente para Renata, percorrendo-lhe calorosamente o corpo em uma atitude lenta e avaliadora. - Alexei me disse que sua habilidade é imperfeita.

- Lex - Renata riu. – Faça-me um favor e não acredite em nada do que ele diz. Ele não diz e não faz nada sem um motivo oculto.

- Obrigado pelo conselho – disse, recostando-se contra o poste marcado pelas adagas. - Então, se é assim, não é verdade que, como ele disse, os olhos de Mira só refletem os acontecimentos que poderiam ocorrer no futuro, com base no agora?

- Lex pode ter suas próprias razões pessoais para desejar que não seja assim, mas Mira nunca erra. Tudo o que ela mostrou esta noite está destinado a acontecer.

- Destinado - disse ele, parecendo divertir-se com aquilo. - Bem, caramba... então acredito que estamos condenados.

Ele a olhou fixamente quando pronunciava essas palavras, desafiando-a a perguntar se ele deliberadamente a tinha incluído em sua observação. Dado que ele achara a ideia bastante divertida, ela não estava disposta a lhe dar a satisfação de perguntar o motivo. Renata agarrou uma de suas adagas e provou o peso do objeto com a palma aberta. Ela gostava de sentir o frio do aço contra a pele, algo sólido e familiar. Seus dedos estavam loucos para trabalhar. Seus músculos agora estavam aquecidos, preparados para mais uma ou duas horas de treino duro. Ela girou a lâmina e fez um sinal para o poste em que Nikolai estava apoiado.

- Importa-se? Não quero calcular mal e acidentalmente acertá-lo.

Ele percorreu o poste com o olhar e deu de ombros.

- Não seria mais interessante um treinamento de combate com um oponente real, que pudesse devolver o golpe? Ou será que você prefere alvos imobilizados?

Ela sabia que Niko estava jogando uma isca, mas o brilho de seus olhos era brincalhão. Ele realmente a estava paquerando? A natureza prática dele fez os pelos da nuca de Renata arrepiarem-se com cautela. Ela passou o polegar pela lâmina da adaga enquanto o olhava, insegura do que fazer.

- Prefiro trabalhar sozinha.

- Muito bem - ele disse inclinando a cabeça e afastando-se um pouco, quase que a desafiando com o olhar. – Como quiser.

Renata franziu a testa.

- Se você não se afastar, como pode estar seguro de que não vou acertá-lo?

Ele sorriu abertamente, completamente cheio de arrogância, com os musculosos braços cruzados sobre o peito.

- Mire onde quiser. Você nunca me acertaria.

Ela atirou a lâmina sem a mínima advertência.

O aço afiado cravou na madeira, causando uma fenda profunda, golpeando no lugar exato onde ela havia planejado. Mas Nikolai tinha desaparecido. Simples assim, sumido por completo.

Inferno.

Ele era da Raça, muito mais rápido do que qualquer ser humano, e tão ágil quanto um predador selvagem. Ela não era rival para ele, com armas ou com força física. E ela sabia disso mesmo antes de atirar a adaga. Entretanto, esperava, pelo menos, diminuir a arrogância e a presunção daquele filho da mãe.

Com os próprios reflexos afiados, Renata esticou o braço e alcançou outra adaga. Todavia, quando seus dedos se fecharam ao redor do punho lavrado, ela sentiu o ar mover-se atrás de si e percebeu o calor atravessar os fios de cabelo que estavam sobre o queixo.

O metal afiado subiu até sua mandíbula. Uma dura parede de músculos apertava-lhe a coluna vertebral.

- Não me acertou! Sentiu minha falta?

Ela engoliu cuidadosamente, pressionada pela lâmina que estava sob seu queixo. Tão brandamente quanto pode, relaxou os braços para os lados. Então, abaixou a mão que segurava a adaga, descansando-a entre as coxas separadas.

- Parece que encontrei você.

Como pôde, Renata o golpeou com uma pequena sacudida do poder de sua mente.

- Inferno - grunhiu Niko. E no instante em que relaxou o controle que tinha de Renata, a mulher saiu de seu alcance e virou-se para enfrentá-lo. Ela esperava a cólera dele, temia-a em certo sentido, mas ele apenas levantou a cabeça e deu de ombros. - Não se preocupe, querida. Só vou ter que brincar com você até que seja derrubada pelas reverberações de sua força psíquica.

Enquanto ela o contemplava, confusa e aflita, pensando como ele podia saber sobre a imperfeição de sua habilidade, ele disse:

- Lex me pôs a par de algumas coisas sobre você também. Ele me contou o que acontece cada vez que você dispara um desses mísseis psíquicos. Componente muito poderoso. Mas eu em seu lugar não o gastaria só porque sente necessidade de demonstrar força.

- Que o Lex vá pro inferno - murmurou Renata. - E que você vá pro inferno também. Não preciso de seus conselhos e certamente não preciso de nenhum de vocês falando porcarias a meu respeito pelas minhas costas. Essa conversa termina aqui.

Zangada como estava, ela, impulsivamente, flexionou o braço para trás e lançou a adaga na direção de Niko, sabendo que ele sairia facilmente do caminho como tinha feito antes. Dessa vez, porém, ele não se moveu. Com um estalo rápido como um relâmpago, ele estendeu a mão e capturou a lâmina no ar. E com um sorriso totalmente satisfeito, conseguiu que ela perdesse de vez as estribeiras.

Renata apanhou a última adaga no suporte do canil e a atirou contra ele. Como a outra, esta também foi pega no ar e agora ambas estavam nas mãos hábeis do guerreiro da Raça.

Ele a olhou, sem piscar, com um calor masculino que deveria deixá-la gelada, mas que, todavia, não a deixava.

- E agora o que vamos fazer para nos divertir, Renata?

Ela o fulminou com o olhar.

- Divirta-se sozinho. Vou embora daqui.

Ela deu meia-volta, pronta para sair do canil. Apenas tinha dado dois passos quando escutou um som agudo em ambos os lados de sua cabeça, tão perto que alguns fios errantes de seus cabelos voaram pelo rosto.

Então, diante dela, observou sobrevoar uma mancha imprecisa de aço, que estalou no outro extremo da parede.

Golpe seco.

As duas adagas que tinham voado ao lado de sua cabeça como objetos erráticos estavam agora cravadas na velha madeira, bem próximas de seus punhos. Renata virou-se, furiosa.

- Seu filho da mãe...

Ele se lançou sobre ela, seu enorme corpo obrigando-a a ir para trás, seus olhos azuis brilhando com algo mais profundo que a simples diversão ou a básica arrogância masculina. Renata deu um passo para trás, apenas o suficiente para que pudesse equilibrar seu peso sobre os calcanhares. Ela caminhou para trás e virou-se, elevando a outra perna em um chute giratório.

Dedos tão inflexíveis quanto barras de ferro fecharam-se ao redor de seu tornozelo, retorcendo-o.

Renata caiu no chão do canil, asperamente sobre as costas. Ele a seguiu, colocando-se sobre ela e encurralando-a enquanto ela lutava, agitando-se violentamente com os punhos e com as pernas. Mas Niko apenas precisou de um minuto para domá-la.

Renata ofegava pelo esforço excessivo, seu peito elevava-se pela velocidade de sua pulsação.

- Agora quem deseja demonstrar força, guerreiro? Você ganhou. Está feliz agora?

Ele fixou o olhar nela de forma estranha e silenciosa, não demonstrando prazer ou aborrecimento.

Seu olhar mantinha-se estável, tranquilo e íntimo. Ela podia sentir o coração martelando contra o peito. As coxas grossas dele escancaradas sobre ela, as duas mãos presas por cima de sua cabeça. Ele a sustentava com firmeza, com os dedos segurando-lhe os punhos em um suave apertão – suave e incrivelmente carinhoso. O olhar dele se desviou para onde a segurava, e um brilho de fogo crepitava em sua íris quando ele encontrou a pequena marca de nascimento carmesim com o desenho de uma lágrima que caía sobre uma meia-lua no pulso direito. Com o polegar, acariciou aquele precioso lugar, uma carícia fascinante e hipnótica que enviou um calor selvagem e erótico pelas veias de Renata.

- Ainda quer saber o que vi nos olhos de Mira?

Renata ignorou a pergunta, segura de que aquilo era a última coisa de que ela precisava saber naquele momento. Ela lutou com força debaixo dos músculos do corpo pesado do guerreiro, mas o maldito a dominava com o mínimo de esforço. Bastardo.

- Saia de cima de mim!

- Pergunte-me outra vez o que foi que vi, Renata.

- Já lhe disse para sair de cima de mim - grunhiu Renata, sentindo o pânico aumentar dentro do peito. Tentou respirar normalmente, sabendo que tinha que manter a calma e a situação sob controle. E tinha que ser rápida. A última coisa de que precisava era que Sergei Yakut saísse para procurá-la e a encontrasse impotente debaixo de outro macho. – Deixe-me sair agora.

- Do que tem medo?

- De nada, maldito!

Ela cometeu o erro de levantar o olhar em direção a ele. Um calor âmbar infiltrou-se no azul dos olhos do guerreiro: fogo devorando gelo. Suas pupilas começaram a estreitar-se rapidamente e atrás de seus lábios ela viu as pontas agudas das presas emergentes de Niko.

Se ele estava zangado, aquilo era apenas uma parte da causa física de sua transformação, já que, onde sua pélvis repousava ameaçadoramente sobre a dela, Renata sentia a ponta rija em sua virilha, a dilatação muito evidente do membro de Niko pressionando-se deliberadamente entre suas pernas.

Ela se moveu, tentando escapar daquele calor, da erótica posição dos corpos, mas aquilo apenas o deixou mais encaixado nela. O pulso acelerado de Renata se elevou, assumindo um ritmo urgente ao passo que um calor indesejado começou a florescer em seu sexo já completamente umedecido.

Ah, Deus! Isso não é bom. Isso não é nada bom.

- Por favor - ela gemeu, odiando-se pelo débil tremor que resvalou no momento de pronunciar a palavra. Odiando a ele também.

Queria fechar os olhos, recusando-se a ver o ardente e fixo olhar faminto. Ou a boca sensual e completamente selvagem tão perto da sua. Recusava-se a sentir o calor ilícito, a luxúria insana que ele causava nela - o perigo daquele inesperado desejo mortal. Mas seus olhos permaneciam fixos, incapazes de desviar, a resposta de seu corpo para aquele macho da Raça era mais forte que o ferro, mais intenso que sua vontade.

- Pergunte-me o que a menina me mostrou esta noite em seus olhos - exigiu ele, com voz tão baixa quanto um ronronar. Seus lábios estavam tão perto dos dela que lhe roçaram a pele suave. - Pergunte-me, Renata. Ou talvez prefira ver a verdade com seus próprios olhos.

O beijo passou através de seu sangue como fogo.

Os lábios pressionaram-se com paixão, o fôlego quente apressou-se, mesclando-se nos corpos ardentes dos dois. A língua do guerreiro explorou a boca de Renata, inundando-lhe, afogando seu grito mudo de prazer. Renata sentiu os dedos dele acariciando-lhe as bochechas, deslizando sobre os cabelos de sua têmpora para, então, passarem deliciosamente por sua nuca sensível. Ele a puxou para mais perto, afogando-a mais profundamente no beijo, que a estava tomando por completo, rompendo totalmente sua resistência.

Não. Ah, Deus! Não, não, não. Não posso fazer isto. Não posso sentir isto.

Renata separou-se da erótica tortura da boca do guerreiro e virou a cabeça para o lado. Ela estava tremendo, e suas emoções estavam chegando a um nível perigoso. Ela arriscara muito ali, com ele. Muito.

Por Deus! Ela tinha que apagar aquela chama que ele acendera em seu interior, aquela chama que a estava derretendo de forma mortal. E tinha de apagá-la rapidamente.

Dedos quentes tocaram-lhe o queixo, dirigindo seu olhar novamente à fonte de sua angústia.

- Você está bem?

Ela livrou-se daquelas mãos e separou-se do macho da Raça com um empurrão, ainda incapaz de falar.

Ele se afastou imediatamente. Segurou-lhe a mão, ajudando-a a ficar de pé. E embora Renata não quisesse ajuda alguma, ela estava muito afetada para rechaçar Niko naquele momento. Ficou de pé, incapaz de olhá-lo, tentando recompor-se.

Rezava para que não tivesse acabado de assinar sua própria sentença de morte.

- Renata?

Aquela voz atravessou-a de forma desesperadamente tranquila e fria.

- Aproxime-se de mim outra vez – ela disse - e eu juro que mato você.


Capítulo 7

Alexei estava esperando havia mais de dez minutos do lado de fora do quarto de seu pai, o que demonstrava que um pedido seu para uma audiência era considerado como o de qualquer um dos outros guardas de Yakut. A falta de respeito – a flagrante indiferença – não incomodava mais Lex como antes. Ele tinha superado esse passado amargo e inútil em favor de coisas mais produtivas.

Ah! No fundo do estômago de Lex ainda doía saber que seu pai - seu único parente vivo - pudesse pensar tão pouco nele, mas o calor da rejeição constante tinha, de alguma forma, se tornado menos doloroso. As coisas eram simplesmente assim. E Lex, de fato, era mais forte por isso. Era igual ao pai, de maneira que nem o maldito velho Primeira Geração poderia imaginar, que dirá admitir.

Mas Lex conhecia suas próprias capacidades. Conhecia suas próprias forças. Sabia sem dúvida alguma que podia ser muito mais do que era agora, e desejava a oportunidade de demonstrá-lo: a ele mesmo e, sim, ao filho da mãe que o criara também.

Quando a porta finalmente se abriu, o ruído seco da fechadura de metal fez os pés de Lex vacilarem.

- Bem a tempo - grunhiu ele ao guarda, que se afastou para deixá-lo entrar.

O lugar estava escuro, iluminado apenas pelo brilho das madeiras que ardiam na enorme lareira de pedra na parede oposta. Havia eletricidade na casa, mas ela raramente era utilizada – não eram necessárias luzes, pois Sergei Yakut e o resto da Raça tinham uma extraordinária visão, especialmente no escuro.

Os outros sentidos dos homens da Raça também eram bastante agudos, mas Lex suspeitava que até um humano se sentiria em apuros ao sentir os aromas de sangue e sexo que se fundiam com o aroma azedo da fumaça da lareira.

- Perdoe-me por interrompê-lo - murmurou Lex, enquanto seu pai saía de um cômodo anexo.

Yakut estava nu, com o pênis ainda parcialmente ereto e inclinando-se obscenamente com cada movimento. Enojado pela vista, Lex piscou e desviou o olhar. Rapidamente pensou melhor no ato e percebeu que aquele débil impulso seria usado contra ele. Em vez disso, observou o pai entrar no quarto, os olhos brilhando como carvões âmbar enfiados no fundo do crânio, com as pupilas reduzidas a estreitas e verticais frestas no centro do globo ocular. As presas em sua boca estavam enormes, completamente estendidas e afiadas como lâminas.

Uma camada de suor cobria-lhe o corpo e cada polegada da lívida cor latente de seus dermoglifos, as marcas únicas da Raça que se estendiam da garganta aos tornozelos do Primeira Geração. Sangue fresco – humano, sem dúvida, um aroma fraco que indicava pertencer a um Subordinado - manchava todo o torso e os flancos do vampiro ancião.

Lex não estava surpreso pela evidência da recente atividade de seu pai, nem pelo fato de que o trio de vozes fracas no outro quarto fosse as de seu atual grupo de escravas humanas. Criar e manter Subordinados, algo que só as estirpes mais puras e poderosas da Raça eram capazes de fazer, tinha sido durante muito tempo uma prática ilegal entre a educada sociedade da Raça. Entretanto, essa prática continuava, pelo menos entre os domínios de Sergei Yakut. Ele fazia suas próprias regras, executava sua própria justiça, e aqui, neste lugar remoto, deixava claro a todos que ele era o rei. Inclusive Lex podia desfrutar desse tipo de liberdade e poder. Diabos! Podia, de fato, saboreá-lo.

Yakut dirigiu-lhe um olhar desdenhoso do outro lado do quarto.

- Olho para você e vejo a morte diante de mim.

Lex franziu a testa.

- Senhor?

- Se não fosse pelas restrições do guerreiro e por minha intervenção nesta noite, estaria ao lado de Urien em cima daquele armazém na cidade, ambos esperando o amanhecer.

O desprezo inundava cada sílaba das palavras de Yakut enquanto ele pegava uma ferramenta de ferro do lado da chaminé e movia as brasas na lareira.

- Salvei sua vida esta noite, Alexei. O que mais espera por hoje?

Lex irritou-se ao se lembrar de sua recente humilhação, mas sabia que o ódio não o ajudaria, particularmente quando estivesse enfrentando o pai. Fez um movimento com a cabeça, tentando encontrar uma maldita resistência para manter o tom em sua voz.

- Sou seu fiel servo, pai. Não me deve nada. E não peço nada exceto a honra de sua contínua confiança em mim.

Yakut grunhiu.

- Você fala mais como um político do que como um soldado. Não preciso de políticos entre os meus, Alexei.

- Sou um soldado - respondeu rapidamente Lex, elevando a cabeça e olhando enquanto o pai continuava movendo a barra de ferro no fogo. As lenhas soltavam faíscas que golpeavam o silêncio letal que tomava conta do ambiente. - Sou um soldado - afirmou novamente. - Quero servi-lo da melhor maneira possível, pai.

Yakut girou a cabeça despenteada para olhar Lex por cima do ombro.

- Você me oferece palavras, garoto. Não confio em palavras. E ultimamente não o vejo me oferecendo nada além de palavras.

- Como espera que eu seja eficiente se não me mantém informado dos acontecimentos?

Quando os olhos matizados de âmbar estreitaram-se sobre ele, Lex apressou-se em acrescentar:

- Falei com o guerreiro no bosque. Ele me contou sobre os recentes assassinatos dos Primeira Geração. Disse que a Ordem havia pessoalmente entrado em contato com você para avisá-lo do perigo potencial. Deveria ter me contado isso, pai. Como capitão de sua guarda, mereço ser informado.

- Merece o quê? - a pergunta saiu dos lábios de Yakut. - Por favor, Alexei... diga-me o que você acha que merece.

Lex permaneceu em silêncio.

- Nada a acrescentar, filho? - Yakut moveu a cabeça em um ângulo exagerado, a boca mostrando um sorriso sarcástico. - Uma acusação semelhante me foi lançada há anos pelos lábios de uma mulher estúpida que pensava poder apelar para meu sentido de obrigação. Minha misericórdia, possivelmente – Yakut riu entre os dentes, voltando a atenção de novo ao fogo, para mover, de novo, as brasas. - Sem dúvida você se lembra do que aconteceu.

- Sim - respondeu com cuidado Lex, surpreso pela garganta seca enquanto falava.

As lembranças formaram redemoinhos com as ondulantes chamas da lareira.

Norte da Rússia, fim do inverno. Lex era um menino, mal tinha dez anos, mas era o homem de seu precário lar tanto quanto podia se lembrar. Sua mãe era tudo o que ele tinha. A única que sabia como ele era realmente, e a única que o queria bem.

Ele estava preocupado desde a noite em que ela lhe havia dito que o levaria para conhecer seu pai pela primeira vez. Disse-lhe que ele era um segredo que ela tinha mantido - seu pequeno tesouro. Mas o inverno fora duro, e eles eram pobres. Precisavam de refúgio, de alguém que os protegesse. O campo estava em batalha e era inseguro para uma mulher cuidando sozinha de um menino. Ela disse que o pai de Lex os ajudaria, que ele abriria os braços em boas-vindas uma vez que conhecesse o filho.

Mas Sergei Yakut os recebeu com uma cólera fria e um terrível e impensável ultimato.

Lex se lembrou da mãe rogando a Yakut para que os acolhesse... Lembrou-se da mulher sendo completamente ignorada. Lembrou-se da bela mulher ajoelhada diante de Yakut, implorando para que cuidasse de Alexei.

As palavras estavam gravadas nos ouvidos de Lex, inclusive agora: “Ele é seu filho! Isso não significa nada para você? Será que ele não merece algo mais?”.

Rapidamente a cena saiu do controle.

Facilmente, Sergei Yakut ergueu uma espada e deslizou a lâmina pelo pescoço da indefesa mãe de Lex.

Suas palavras brutais afirmavam que ele tinha apenas lugar para soldados em seu reino, e que Lex tinha uma escolha a fazer naquele momento: servir ao assassino de sua mãe ou morrer com ela.

A débil resposta de Lex tinha sido dita entre soluços. “Vou servi-lo”, disse. E sentiu que uma parte de sua alma o abandonava enquanto olhava com horror o corpo ensanguentado e mutilado da mãe. Vou servi-lo, pai.

O silêncio que se seguiu foi muito frio, tão frio quanto uma tumba.

- Sou seu servo - Lex disse alto, baixando a cabeça mais pelo peso das velhas lembranças do que por respeito ao tirano que o governava. - Minha lealdade sempre foi sua, pai. Apenas sirvo ao seu prazer.

Um repentino calor, tão intenso quanto chamas ardentes, veio sob o queixo de Lex. Sobressaltado, ele levantou a cabeça, estremecendo de dor com um grito afogado. Viu a fumaça sair diante de seus olhos, sentiu o cheiro adocicado de carne queimando.

Yakut Sergei estava diante dele segurando o atiçador de ferro nas mãos. A ponta brilhante da haste de metal queimava vermelha, exceto pelo resíduo de pele branca pendurada, que havia sido arrancada do rosto de Lex.

Yakut sorriu, mostrando as pontas de seus dentes.

- Sim, Alexei, você serve apenas para o meu prazer. Lembre-se disso. Só porque meu sangue corre em suas veias não significa que eu não possa matá-lo.

- Claro que não - Lex murmurou, seus dentes cerrados pela devastadora agonia da queimadura. O ódio fervilhava nele pelo insulto que tinha que engolir e por sua própria impotência quando viu o homem da Raça desafiando-o com a testa franzida, pronto para fazer um movimento contra ele novamente. Yakut acabou desistindo. O velho arrastou uma túnica de linho marrom de uma cadeira e deu de ombros para ele. Seus olhos ainda estavam brilhantes, com fome e sede de sangue. Deixou a língua deslizar em seus dentes e presas.

- Como você está tão ansioso para me agradar, traga-me Renata. Preciso dela agora.

Lex apertou os dentes.

Sem palavras, saiu do quarto com a mandíbula rígida, os próprios olhos cintilando com a luz âmbar de sua indignação. Não perdeu de vista o olhar confuso do guarda postado na porta, o rumo inquieto dos olhos dos outros vampiros enquanto disfarçava o aroma de carne queimada e o provável calor de sua ira.

A queimadura cicatrizaria - de fato, já estava cicatrizando -, seu acelerado metabolismo da Raça reparava a pele queimada enquanto seus pés o levavam à área principal do refúgio. Renata vinha de fora. Ela viu Lex e se deteve, virando como se quisesse evitá-lo.

Não mesmo.

- Ele quer você - gritou Lex, sem se preocupar com quantos outros guardas estivessem ouvindo. Todos sabiam que ela era a vadia de Yakut, assim, não havia razão para fingir outra coisa. – Mandou-me que a chamasse. Está a sua espera para que o sirva.

Os frios olhos verde-jade o demoliram.

- Estive treinando. Preciso me lavar.

- Ele disse agora, Renata.

Uma ordem curta que ele sabia que seria obedecida. Havia mais do que uma leve satisfação nesse pequeno e raro triunfo.

- Muito bem.

Ela deu de ombros, apoiada sobre seus pés descalços.

Sua insossa expressão enquanto se aproximava dizia que não se preocupava com o que pensavam dela, muito menos Lex, e essa indiferença à humilhação apenas o fazia querer degradá-la mais. Farejou em sua direção, mais pelo efeito que isso causava do que por qualquer outra coisa.

- Ele não se importará com sua imundície. Todos sabemos que as melhores vagabundas são as sujas.

Renata não fez mais do que piscar com o vulgar comentário. Ela podia reduzi-lo com uma rajada de seu poder mental se assim o decidisse - de fato, Lex quase esperava que ela o fizesse, simplesmente para provar que a havia ferido. Mas o rápido giro de seu olhar disse que ela não sentia que ele merecia tal esforço.

Ela passou junto dele com uma dignidade que ele não podia compreender. Ele a olhou – todos os guardas próximos a olharam - enquanto ela caminhava para o quarto de Sergei Yakut tão calma quanto uma rainha a caminho da forca.

Não precisou muito para Lex imaginasse o dia em que ele controlaria tudo, mandaria naquele lugar, inclusive na altiva Renata. É óbvio, a vadia não seria tão altiva se sua mente, vontade e corpo pertencessem completamente a ele. Uma Subordinada para servir cada um de seus caprichos e os dos outros homens sob seu comando.

Sim, Lex pensou sombriamente, seria muito bom ser rei.


Capítulo 8

Nikolai pegou uma das adagas de Renata no poste onde ela as havia atirado. Tinha de lhe dar crédito: se tivesse acertado o alvo, ele estaria morto. Se fosse simplesmente um humano com reflexos lentos, e não um macho da Raça, o treinamento dela certamente o teria transformado em espetinhos para assar.

Ele riu ao devolver a lâmina ao envoltório elegante com as outras três. As armas eram belas, lustrosas e perfeitamente equilibradas, obviamente feitas à mão. Niko deixou seu olhar vagar sobre o desenho esculpido nos punhos de prata esterlina da arma. O padrão parecia ser um jardim de videiras e flores, mas quando ele as olhou mais de perto, deu-se conta de que cada uma das quatro lâminas também tinha uma palavra gravada dentro do desenho: fé, coragem, honra e sacrifício.

Ele se perguntou se aquilo seria uma espécie de oração de um guerreiro ou os princípios da disciplina pessoal de Renata.

Nikolai pensou no beijo que tinham compartilhado. Bom, dizer que eles o tinham compartilhado era um tanto presunçoso, considerando como ele tinha descido sua boca com toda a delicadeza de um trem de carga. Ele não tivera a intenção de beijá-la. Certo, e a quem ele estava tentando enganar? Ele não poderia ter parado mesmo que tivesse tentado. Não que fosse uma desculpa. E não que Renata tivesse dado qualquer possibilidade de desculpas ou perdão.

Niko ainda podia ver o horror em seus olhos, a inesperada, porém óbvia repulsão pelo que ele tinha feito. Ainda podia sentir a sinceridade da ameaça que ela pronunciou antes de sair tempestuosamente do canil.

A parte destruída de seu ego tentava acalmá-lo com a possibilidade de que talvez ela realmente desprezasse todos os machos de modo geral. Ou que talvez ela fosse tão fria como Lex parecia pensar. Um soldado assexuado – frígida apesar de ter a cara de um anjo e o corpo que conduzia sua mente a todo tipo de pecado e luxúria. Muitos pecados, cada um mais tentador e atraente do que o anterior.

Nikolai tinha um encanto fácil quando se tratava de mulheres. Não era simples alarde, mas uma conclusão a que ele tinha chegado baseado nos anos de experiência. Quando se tratava de mulheres, desfrutava tranquilamente das conquistas sem complicações, quanto mais temporárias melhor. A perseguição e as lutas eram divertidas, mas o melhor reservava para o combate verdadeiro, em batalhas sangrentas, com vampiros Renegados e outros inimigos da Ordem. Esses eram os desafios de que ele mais desfrutava.

Então, por que estava lutando contra esse impulso perverso de ir atrás de Renata e descobrir se não podia descongelar parte do gelo que a cobria?

Porque ele era um idiota. Um idiota com uma fúria perigosa e com um aparente desejo mortal.

Hora de parar de pensar com a cabeça de baixo. Não importava o que seu corpo estivesse dizendo - não importava mais o que ele tinha visto no olhar de Mira. Ele tinha um trabalho a fazer, uma missão da Ordem, e esta era a única razão pela qual estava ali.

Niko cuidadosamente envolveu as adagas de Renata no estojo de seda e veludo, e colocou o pequeno embrulho no fardo de palha esperando que ela voltasse para buscá-los, assim como os sapatos deixados para trás.

Abandonou o canil e se dirigiu à escuridão para recolher informações sobre as terras da mansão. Uma meia-lua pendurava-se no alto do céu noturno, velada por um punhado de nuvens negras como carvão. A brisa da meia-noite era cálida, abatendo-se brandamente através dos pinheiros altos e dos carvalhos espinhosos dos bosques ao redor. Os aromas misturavam-se no ar úmido do verão: o sabor forte da resina de pinheiro, a marca mofada do chão protegido do sol, a nitidez de tantos minerais na água doce, na corrente que evidentemente atravessava a propriedade não longe de onde Niko estava.

Nada incomum. Nada fora do lugar.

Até que...

Nikolai levantou o queixo e inclinou a cabeça ligeiramente para o oeste. Algo inesperado atravessou os seus sentidos. Algo que não podia, não deveria, encontrar ali.

Era a morte o que ele estava sentindo.

Sutil, antiga... mas certa.

O guerreiro correu na direção que seu olfato o levava. Cada vez mais profundo no bosque. A cerca de cem metros da mansão, a mata adensou-se. Niko reduziu sua marcha quando chegou ao lugar onde suas fossas nasais começavam a arder com o fedor envelhecido da decomposição. Aos seus pés, o chão estava esparso com folhas, enredado por videiras que caíam longe pela ravina escarpada.

Nikolai olhou para baixo pela fenda, adoecendo, antes mesmo que seus olhos pousassem na carnificina.

- Inferno - murmurou ele, sob seu fôlego.

Uma fossa de morte se encontrava no fundo da ravina. Esqueletos humanos. Dúzias de corpos, sem enterrar, esquecidos, simplesmente jogados uns em cima dos outros, como se fossem lixo. Tantos que levaria muito tempo para contar todos eles. Adultos. Crianças pequenas. Um massacre que não mostrava nenhuma discriminação a suas vítimas, tampouco misericórdia. Um massacre que poderia ter levado anos para ter sido realizado.

A pilha de ossos brancos brilhava sob a escassa luz da lua, pernas e braços empilhados juntos onde quer que o mortos tivessem caído, crânios olhando para ele, com as bocas abertas em macabros gritos silenciosos. Nikolai tinha visto o suficiente. Recuou da beira da ravina enquanto lançava outra maldição na escuridão.

- Que tipo de porcaria andou acontecendo por aqui?

Em seu íntimo, ele sabia.

Jesus Cristo, não havia muita margem para dúvidas.

Um clube de sangue.

A fúria e a repugnância passaram através dele em uma onda negra. Ele teve, por instantes, o desejo entristecedor de rasgar os membros de cada vampiro comprometido em violar a lei assassinando todas aquelas pessoas. Não que ele tivesse esse direito, mesmo como um membro guerreiro da Ordem. Ele e seus irmãos não tinham muitos amigos entre os ramos governantes da Raça, e muito menos na Agência de Controle, que atuava tanto como policiais e como políticos, responsáveis pelas populações de vampiros em geral. Eles pensavam que a Ordem e todos os guerreiros que a serviam estavam acima da sociedade civilizada. Vigilantes e militantes. Cães selvagens que só desejavam uma desculpa para fazê-la cair.

Nikolai sabia que isso estava fora de seus limites de atuação, mas isso não fez que o desejo de prescindir sua própria marca de justiça ficasse menos tentador.

Embora ultrajado e indignado, Niko precisava acalmar-se. Sua fúria não ajudaria as vidas esparramadas lá embaixo. Era muito tarde para isso. Niko não podia fazer nada, exceto mostrar um pouco de respeito, algo que lhes tinha sido negado inclusive depois da morte.

Solenemente, embora só por um breve momento, Nikolai se ajoelhou na borda da profunda ravina. Ele estendeu amplamente seus braços longos, invocando o poder luminoso que estava dentro dele, um talento da Raça que se encontrava unicamente nele e que em sua linha de trabalho, em particular, era de pouca utilidade. Sentiu o poder arder em seu interior quando o invocou. O poder se voltou em energia e luz, propagando-se através de seus ombros e movendo-se para baixo, em direção a seus braços. Logo, em suas mãos, esferas gêmeas brilhavam sob a pele no centro das palmas.

Nikolai tocou com os dedos a terra ao seu lado.

Em resposta, as videiras e arbustos se agitaram ao seu redor, gravetos verdes e pequenas flores silvestres do bosque despertaram acima, fazendo movimentos. Esses movimentos aumentaram cada vez mais em acelerada velocidade. Niko enviou os brotos que estavam crescendo de novo para a ravina e, em seguida, ficou de pé para assistir aos mortos serem cobertos por um manto de suaves folhas novas e flores.

Não era um grande rito funerário, mas era tudo o que ele tinha a oferecer às almas dos corpos que foram deixados ali para apodrecer na intempérie.

- Descansem em paz - murmurou ele.

Quando o último osso foi coberto, ele se dirigiu para a mansão. O celeiro de armazenamento em que ele tinha farejado o sangue agora chamava-lhe a atenção.

Só para confirmar suas suspeitas, Niko inspecionou e moveu o ferrolho solto. Abriu a porta e olhou dentro da construção. O celeiro estava vazio, tal como Lex havia dito. Mas novamente, as jaulas de aço construídas no interior não tinham sido feitas para nenhum tipo de armazenamento permanente. Eram gruas altas, celas da prisão com ferrolhos desenhados para os prisioneiros humanos, com caráter de contenção temporária.

Brinquedos vivos para o esporte de caça ilegal no remoto bosque que Sergei Yakut dominava.

Com um grunhido, Nikolai saiu do celeiro e partiu para a casa principal.

- Onde está ele? - perguntou ao guarda armado que o percebeu assim que atravessou a porta. - Onde está ele? Diga agora!

Ele não esperou por uma resposta. Não quando os outros dois guardas, ambos do lado de fora de uma porta fechada no grande corredor, tomaram uma postura de batalha repentina. Atrás deles, estavam os aposentos privados de Yakut, obviamente.

Nikolai irrompeu e empurrou um dos guardas de seu caminho. O outro tinha um rifle e começou a apontar para o guerreiro. Niko bateu a arma na cara do guarda, e então lançou o vampiro tonto à parede mais próxima.

Deu um chute na porta, estilhaçando a madeira velha e arrancando as dobradiças de ferro. Caminhou a passos largos através dos escombros, ignorando os gritos dos homens de Yakut. Encontrou o Primeira Geração no centro do quarto, diante de um sofá de couro, inclinado possessivamente sobre a garganta nua de uma fêmea de cabelos escuros enjaulada pelos braços do vampiro.

Com a interrupção, Yakut levantou a cabeça de sua alimentação e olhou na direção do invasor. Também o fez sua Anfitriã de Sangue...

Renata.

Não mesmo.

Ela estava unida a ele com o laço de sangue? Seria ela a Companheira de Raça desse monstro?

Todas as acusações que Nikolai tinha preparado para lançar a Sergei Yakut morreram repentinamente em sua garganta. Ele ficou olhando fixamente, com seus sentidos da Raça turvados e trincados, mais acordados ao ver o sangue da fêmea que gotejava dos lábios e das enormes presas de Yakut. O aroma dela atravessou o quarto, atingindo com força o cérebro de Niko. Ele não esperava um contraste tão estranho ao de sua conduta fria, mas o aroma de seu sangue era uma mescla quente, embriagadora e intoxicante de sândalo e chuva fresca de primavera. Suave. Feminino. Excitante.

A fome apertou o estômago de Nikolai, uma reação visceral com a qual ele teve que lutar arduamente para conter-se. Disse para si que era simplesmente sua natureza da Raça sobressaindo-se. Havia poucos entre os de sua estirpe que podiam resistir ao canto das sereias de uma veia aberta, mas quando seus olhos encontraram o olhar fixo de Renata, um novo calor explodiu dentro dele. Mais forte, aliás, que a primitiva sede de alimentar-se.

Ele a desejava.

Mesmo enquanto estava deitada debaixo de outro macho, permitindo-lhe beber dela, Nikolai tinha fome dela com uma ferocidade que o sobressaltava. Unida pelo sangue a outro ou não, Niko queimava de desejo por Renata.

O que, até mesmo com seu flexível código de honra, o fazia se sentir quase próximo ao nível desprezível de Yakut.

Niko teve de sacudir-se mentalmente para desprender-se daquela visão perturbadora, voltando bruscamente sua atenção aos problemas que tinha à mão.

- Você tem um sério problema - disse ele ao vampiro Primeira Geração, sendo apenas capaz de conter seu desprezo. - Na verdade, suponho que você tem aproximadamente três dúzias deles apodrecendo em seu bosque.

Yakut permaneceu calado, seu olhar escuro assumiu a cor âmbar, indicando o desafio. Um grunhido ondulou antes que ele voltasse a cabeça para sua refeição interrompida. A língua de Yakut deslizou do meio de seus lábios para lamber as espetadas que tinha deixado no pescoço de Renata, selando as feridas e estancando o sangue.

Só então, quando a língua de Yakut percorreu a pele de Renata, ela afastou o olhar de Niko. Ele acreditou ver alguma tranquilidade, um pouco de resignação, passar através de seu rosto nos segundos antes de Yakut se levantar e a liberar. Uma vez livre, Renata se moveu para o canto do quarto, puxando a camisa de volta ao lugar.

Ela ainda estava vestida com a roupa de antes, ainda estava descalça.

Ela devia ter vindo diretamente para cá depois do que tinha se passado no canil.

Tinha procurado Yakut por proteção? Ou por simples comodidade?

Jesus.

Niko se sentiu um asno quando se lembrou da maneira como tentou beijá-la. Se ela estivesse unida por sangue a Sergei Yakut, essa união era sagrada, íntima... exclusiva. Não admirava que ela tivesse reagido como reagira. Os beijos de Nikolai teriam sido um insulto e a degradação para ambos. Mas agora ele não estava ali para pedir desculpas – não a Renata ou ao seu aparente companheiro.

Nikolai dirigiu um olhar duro para o vampiro.

- Há quanto tempo você caça seres humanos, Yakut?

O Primeira Geração apenas grunhiu, sorrindo.

- Encontrei os currais de detenção no celeiro. Encontrei os corpos. Homens, mulheres... crianças.

Nikolai grunhiu uma maldição, incapaz de conter sua repugnância e indignação.

- Você transformou esse lugar em um maldito clube de sangue. Pelo aspecto dos corpos, eu diria que faz isso há anos.

- E o que tem isso? - Yakut perguntou despreocupadamente, sem sequer tentar emitir uma respeitável negação.

E no canto do quarto, Renata permaneceu em silêncio, com os olhos fixos em Niko, mas sem mostrar surpresa alguma.

Ah, Cristo! Então ela também sabia.

- Maldito doente - ele disse, olhando de novo para Yakut. - Todos vocês estão doentes. Não poderá continuar com isso. Pare agora mesmo. Há leis...

O Primeira Geração riu, com a voz deformada pela transformação de seu lado mais selvagem.

- Eu sou a lei aqui, rapaz. Ninguém, nem os Refúgios e sua tão elogiada Agência, nem sequer a Ordem têm algo a ver com meus assuntos. Convido qualquer um para vir aqui e tentar me dizer o contrário.

A ameaça era clara. Apesar do fato de a honra e a justiça gritarem dentro de Nikolai para que ele acabasse com o maldito filho da mãe ali mesmo, ele não podia fazê-lo, pois Yakut não era um vampiro comum. Era um Primeira Geração. Não apenas dotado de força e poderes imensamente maiores que os do guerreiro ou de qualquer outro posterior da Raça, mas também membro de uma classe rara. Desses, só havia poucos, menos ainda agora, como resultado da eclosão dos recentes assassinatos.

Tão repugnante quanto a prática ilegal dos clubes de sangue entre a sociedade da Raça era a tentativa de matar um vampiro da Primeira Geração.

Nikolai não podia levantar a mão contra o filho da mãe, não importa quanto desejasse fazer isso.

E Yakut sabia. Ele limpou a boca com a túnica escura, esfregando ligeiramente a fragrância doce do sangue de Renata.

- A caçada está em nossa natureza, rapaz.

A voz de Yakut tinha uma serenidade mortal, completamente cheia de confiança, enquanto avançava para Nikolai.

- Você é jovem, nascido da Raça mais fraca de alguns de nós. Talvez seu sangue esteja tão diluído com o da humanidade que simplesmente não pode compreender a necessidade em sua forma mais pura. Se tivesse o gosto pela caçada, seria menos hipócrita com aqueles de nós que preferem viver como deve ser.

Niko sacudiu lentamente a cabeça.

- Os clubes de sangue não são só caçada. Eles são simplesmente uma matança. Você pode dizer suas asneiras, mas ainda assim você não passa de um monte de porcaria. É um animal. O que você realmente precisa é de uma focinheira e de uma coleira. Alguém tem que deter você.

- E pensa que você ou a Ordem fará essa tarefa?

- Você pensa que nós não faremos? - desafiou Niko, com uma parte de si esperando que o Primeira Geração lhe desse uma boa razão para sacar suas armas. Ele não se imaginava fugindo do confronto com o vampiro ancião, ele não desistiria sem uma maldita briga.

Em resposta, Yakut recuou, com seus olhos de cor âmbar brilhantes, as elípticas pupilas diminutas estilhaçadas de negro. Ergueu o queixo barbudo e virou a cabeça para um lado. Seus lábios se separaram com um selvagem sorriso que expôs suas presas. Daquela maneira não era difícil que todos observassem a parte alienígena dele - a parte que fazia dele e de todo o resto da Raça o que eram: predadores que bebem sangue e não pertencem totalmente a este mundo mortal, mas que apenas nasceram aqui.

- Eu lhe disse uma vez que você não era bem-vindo em meus domínios, guerreiro. Você ou sua proposta de aliança com a Ordem não me serve de nada. Minha paciência está chegando ao limite, assim como sua estadia aqui.

- Sim – concordou Niko. – Vou dar o fora deste lugar com muito prazer. Mas não pense que esta é a última vez que você vai ter notícias minhas.

Ele não pôde deixar de deslizar o olhar selvagem sobre o corpo de Renata quando disse essas palavras. Por mais raiva que estivesse sentindo de Yakut, não podia sentir o mesmo por ela. Ele esperava que ela dissesse que não sabia sobre os crimes que aconteciam naquele pedaço de terra embebido de sangue, desejava que ela dissesse algo para convencê-lo de que não fazia parte do jogo e das práticas doentias de Yakut.

Mas ela simplesmente recuou o olhar, com os braços cruzados sobre o peito. Uma mão se elevou ociosamente para tocar a ferida que estava se curando em seu pescoço, mas ela permaneceu em silêncio.

Todavia, ela não deixou de olhar o guerreiro quando ele saiu pela porta escancarada diante do aturdido guarda de Yakut.

- Devolvam os itens pessoais ao guerreiro e cuidem para que ele deixe a propriedade sem incidentes - Yakut ordenou a um par de homens armados que se encontravam fora de seu quarto.

Quando os dois saíram para atender a ordem, Renata começou a segui-los. Alguma parte desequilibrada dela desejava poder ser capaz de encontrar Nikolai sozinho e...

E o que?

Explicar a verdade e contar como eram as coisas para ela aqui? Tentar justificar as ações que ela tinha sido forçada a fazer?

Com que finalidade?

Nikolai estava partindo. Ele nunca teria que voltar para aquele lugar, enquanto ela estaria ali até seu último suspiro. Que bem poderia fazer explicar algo disso a ele, um desconhecido que provavelmente não a entenderia, e muito menos a protegeria?

Entretanto, os pés de Renata continuaram movendo-se.

Ela sequer chegou até a porta. A mão de Yakut se fechou fortemente sobre seu pulso, segurando-o em suas costas.

- Você não, Renata. Você fica.

Ela o olhou com uma expressão que esperava estar desprovida da ansiedade e das náuseas que estava tentado tão duramente disfarçar.

- Pensei que tínhamos terminado aqui. Que talvez devesse ir com os outros, só para assegurar que o guerreiro não decida fazer nada estúpido em seu caminho fora da propriedade.

- Você fica - o sorriso de Yakut congelou-lhe até os ossos. – Tenha cuidado, Renata. Eu não gostaria que você fizesse nada estúpido.

Ela tragou o repentino nó gelado de ansiedade de sua garganta.

- Desculpe-me?

- Tenha cuidado - respondeu ele, apertando-lhe hermeticamente o braço. - Suas emoções a traem, querida. Posso sentir o aumento de sua frequência cardíaca, o muro de adrenalina que atravessa seu corpo correndo por suas veias agora mesmo. Senti a mudança em você no momento que o guerreiro entrou no quarto. Senti antes também. Importa-se em me dizer por onde esteve esta noite?

- Treinando - respondeu ela, rapidamente, mas com firmeza. Para não dar razão alguma para duvidar dela, já que aquela era essencialmente a verdade. - Antes que você mandasse Lex procurar por mim, eu estava do lado de fora, fazendo meus exercícios de treinamento no antigo canil. Se você sentiu algo diferente em mim, deve ter sido por conta do excesso de treinamento.

Um silêncio longo se estendeu, enquanto o aperto rígido mantinha-se em seu pulso.

- Você sabe quanto valorizo a lealdade, não é, Renata? – disse Yakut enquanto Renata fez uma breve inclinação de cabeça. – Valorizo-a tanto quanto você valoriza a vida daquela menina que dorme no outro quarto - disse ele friamente. - Penso que essa dúvida poderia fazer com que ela terminasse no cemitério.

O sangue de Renata congelou em suas veias diante daquela ameaça. Ela olhou fixamente para cima, diretamente nos malignos olhos do monstro que agora sorria abertamente, com um prazer doentio.

- Como disse, querida Renata, tenha cuidado.


Capítulo 9

A cidade de Montreal, assim nomeada por causa do enorme monte que proporcionava uma vista magnífica do Rio Saint Lawrence e do vale abaixo, brilhava como um pote de pedras preciosas sob a lua crescente. Arranha-céus elegantes, torres de igrejas góticas, avenidas arborizadas e, à distância, uma brilhante linha de água que envolvia a cidade em um abraço protetor. Uma vista realmente espetacular.

Não havia dúvidas sobre a razão pela qual o líder do Refúgio de Montreal havia escolhido estabelecer sua comunidade perto do cume do Monte Real.

De pé no balcão do segundo andar da mansão em estilo barroco tinha-se a impressão de que a velha propriedade de caçadores fora da cidade parecia estar a mil quilômetros de distância. Mil anos longe daquela educada e civilizada maneira de viver. O que, obviamente, era verdade.

A espera para se encontrar com Edgar Fabien, o guerreiro da Raça que fiscalizava a população de vampiros de Montreal, parecia durar uma eternidade. Fabien era bem conhecido na cidade e havia rumores de que tinha bons contatos, tanto entre os Refúgios quanto no grupo de patrulha conhecido como a Agência. Ele era a escolha natural para uma situação delicada como aquela.

Mesmo assim, se o líder do Refúgio estivesse disposto a cooperar, essa era uma aposta que Lex tinha de arriscar. Aquela visita tardia e sem aviso fora um ato espontâneo e muito, muito arriscado.

O simples fato de ir ali já significava declarar-se inimigo de Sergei Yakut.

Mas Lex tinha visto o suficiente, tinha suportado o suficiente.

O príncipe estava de saco cheio de lamber as botas do pai. Era hora do rei tirano cair.

Lex girou ao som dos passos aproximando-se do interior da recepção. Fabien era um homem magro, alto e meticulosamente vestido, como se tivesse nascido em seus trajes feitos sob medida e com seus brilhantes mocassins de couro. Seu cabelo loiro acinzentado estava penteado para trás com algum tipo de gel perfumado, e quando ele sorriu para saudar Lex, seus magros lábios e estreitos traços faciais ficaram ainda mais severos.

- Alexei Yakut - disse, saindo para o balcão e oferecendo a mão para Lex. Não menos que três anéis cintilavam em seus longos dedos, ouro e diamantes que rivalizavam com o brilho da cidade lá fora. - Lamento que tenha esperado tanto. Temo que não estejamos acostumados a receber convidados inesperados em minha residência pessoal.

Lex assentiu, tenso, e soltou a mão de Fabien. A casa do líder do Refúgio não estava exatamente nos guias de turismo da cidade de Montreal, mas umas poucas perguntas feitas às pessoas certas tinham guiado Lex até ali sem maiores problemas.

- Venha, por favor - disse o homem da Raça, gesticulando para Lex e guiando-o para o interior da casa. Fabien se sentou em um luxuoso sofá, deixando espaço para Lex do outro lado.

- Devo admitir que fiquei surpreso quando minha secretária me disse quem queria me ver. Uma vergonha que não tenhamos tido a oportunidade de nos conhecer até agora.

Lex sentou-se junto ao líder do Refúgio, incapaz de evitar que seus olhos viajassem pelo interminável luxo de seus arredores.

- Mas você sabe quem sou eu? - perguntou Lex com cuidado. - Sabe também quem é o Primeira Geração, meu pai, Sergei Yakut?

Fabien assentiu com elegância.

- Só pelo nome, infelizmente. Fui negligente ao não ter feito as apresentações formais logo que vocês chegaram a minha cidade. Entretanto, os guarda-costas de seu pai deixaram claro que seu pai era uma espécie de eremita quando meu emissário pediu um encontro. Entendo que ele prefira uma vida tranquila e rural fora da cidade, em contato com a natureza ou algo do tipo.

Sobre os nódulos de seus dedos, o sorriso de Fabien não alcançou seus olhos.

- Suponho que viver com aquele tipo de... simplicidade signifique alguma coisa.

Lex grunhiu.

- Meu pai escolheu tal vida porque acredita estar acima da lei.

- Como?

- É por isso que estou aqui - disse Lex. - Tenho informações. Informações importantes que precisam ser averiguadas rapidamente. Secretamente.

Edgar Fabien inclinou-se contra as almofadas do sofá.

- Ocorreu algo... fora da casa?

- Vem ocorrendo há muito tempo - Lex admitiu, sentindo uma rara sensação de liberdade enquanto essas palavras saíam-lhe da boca.

Lex contou a Fabien tudo sobre as atividades ilegais de seu pai, desde o clube de sangue e do cemitério cheio dos restos de suas vítimas até o frequente assassinato de seus Subordinados humanos. Explicou, não sendo totalmente sincero, como fora corroído por esses segredo durante um longo tempo e como era seu próprio sentido de moralidade - seu sentido de honra e de respeito pela lei da Raça - que o obrigava a procurar ajuda para deter o reino particular de terror de Sergei Yakut.

Era o entusiasmo – a emoção no fundo de sua coragem - que fazia sua voz tremer, mas, se Fabien entendesse isso como lamento, melhor ainda.

Fabien o escutou com a expressão cuidadosamente séria e sóbria.

- Entendo, estou certo de que isso não é um assunto menor. O que você descreveu é... problemático. Perturbador. Mas haverá certos fatos que virão à tona nesse tipo de investigação. Seu pai é um Primeira Geração. Haverá perguntas que ele terá de responder, protocolos que precisarão ser observados.

- Investigação? Protocolos? - disse, indignado, Lex. Saltou sobre os pés, alagado de medo e ira. - Isso poderá levar dias ou até mesmo semanas. Um maldito mês!

Fabien assentiu, desculpando-se.

- De fato, poderá.

- Não há tempo para isso agora! Você não entende? Estou oferecendo meu pai de bandeja. Todas as provas que necessitará para uma detenção imediata estão ali em sua propriedade. Pelo amor de Deus, estou arriscando minha maldita vida só por estar aqui!

- Sinto muito - o líder do Refúgio dizia isso sustentando as mãos erguidas. - Se a situação não for segura para você, estaremos mais do que dispostos a oferecer-lhe proteção. A Agência poderia afastá-lo quando a investigação começar, levá-lo para algum lugar seguro.

A afiada risada de Lex o interrompeu.

- Enviar-me ao exílio? Estarei morto muito antes. Além disso, não estou interessado em fugir e me esconder como um cão. Quero o que mereço. Quero o que aquele bastardo filho da mãe me deve depois de todos esses anos de espera por esmolas – diante das palavras de Lex, era impossível mascarar os verdadeiros sentimentos. A ira preenchia-lhe o corpo por completo. - Quer saber o que realmente quero de Sergei Yakut? A morte.

O olhar de Fabien estreitou-se astutamente.

- Essa é uma afirmação muito perigosa.

- Não sou o único que pensa assim - respondeu Lex. - De fato, alguém teve coragem suficiente para tentar isso na semana passada.

Os ardilosos olhos de Fabien ficaram mais e mais estreitos.

- O que quer dizer?

- Ele foi atacado. Alguém entrou na casa e tentou cortar a cabeça do maldito, mas acabou falhando. Maldita sorte - Lex acrescentou baixinho. - A Ordem pensa que foi trabalho de um profissional.

- A Ordem - repetiu Fabien sem ar. - Como estão envolvidos nisso que está descrevendo?

- Eles enviaram um guerreiro ontem à noite para encontrar-se com meu pai. Aparentemente, estão tentando avisar os Primeira Geração sobre a recente caçada entre a população.

A boca de Fabien trabalhou um segundo sem formar palavras, como se não estivesse segura sobre o que articular primeiro. Ele limpou a garganta.

- Há um guerreiro aqui em Montreal? E o que é isso de caçada recente? Do que você está falando?

- Cinco Primeira Geração foram mortos, nos Estados Unidos e na Europa - disse Lex, recordando o que Nikolai lhe havia dito. - Alguém parece querer eliminar a primeira geração, um por um.

- Santo Deus – a expressão de Fabien era o vivo retrato da surpresa, mas algo nela preocupou Lex.

- Não sabia nada sobre os assassinatos?

Fabien levantou-se lentamente, agitando a cabeça.

- Estou aturdido, asseguro-lhe isso. Não tinha ideia. Que coisa terrível.

- Talvez sim, talvez não - respondeu Lex.

Enquanto olhava o líder do Refúgio, Lex se deu conta de que uma súbita tranquilidade abatia-se sobre o vampiro – uma tranquilidade tamanha que Lex se perguntava se ele ainda estava respirando. Havia um tênue, porém elevado, pânico nos olhos ambiciosos de Lex. Edgar Fabien sustentava o corpo com rígida precisão, mas seu olhar mutante encarava Lex como se quisesse sair correndo da sala.

Interessante.

- Sabe, eu esperava que você estivesse mais bem informado, Fabien. Sua reputação na cidade me levava a acreditar nisso. Com todos os seus amigos policiais, você está querendo me dizer que nenhum deles lhe disse algo sobre isso? Provavelmente eles não confiam em você, não? Provavelmente eles têm uma boa razão para isso.

Nesse momento, Fabien encontrou o olhar de Lex. Cintilações âmbar iluminaram-lhe a íris com um sinal revelador de um nervo comprimido.

- Que tipo de jogo está tentando fazer comigo?

- O seu - disse Lex, percebendo uma oportunidade e agarrando-a. - Você sabe sobre as caçadas aos Primeira Geração. A questão é: por que mente sobre isso?

- Não discuto publicamente assuntos policiais - Fabien cuspiu em resposta, inflando seu magro peito com indignação. - O que sei ou não sei é assunto meu.

- Sabia também sobre o ataque a meu pai antes que eu o mencionasse, não é mesmo? Foi você quem o atacou, não é? E quanto aos outros assassinados?

- Jesus Cristo, você está completamente louco.

- Queria estar - disse Lex. – Seja lá o maldito complô em que você está metido, Fabien, eu também quero fazer parte dele.

O líder bufou bruscamente, depois deu as costas a Lex enquanto caminhava para uma das altas estantes cravadas em uma parede prateada. Acariciou a madeira polida, rindo preguiçosamente.

- Embora nossa conversa tenha sido esclarecedora e divertida, Alexei, ela talvez deva terminar aqui. Acredito que é melhor que você vá e se acalme antes de dizer mais alguma tolice.

Lex avançou, decidido a convencer Fabien de que ele valia a pena.

- Se o quiser morto, estou disposto a ajudá-lo a conseguir isso.

- Insensato - foi a resposta que recebeu. - Posso estalar meus dedos e prendê-lo sob suspeita de tentativa de assassinato. Posso, mas nesse momento quero que vá embora e nenhum de nós dirá uma palavra sequer a respeito dessa conversa.

A porta da recepção se abriu e quatro homens entraram. Ao assentimento de Fabien, o grupo rodeou Lex. Sem escolha, ele saiu.

- Manterei contato - disse Lex, mostrando os dentes. – Pode contar com isso.

Fabien não respondeu, mas seu ardiloso olhar permaneceu fixo sobre Lex, com severo entendimento, enquanto o homem, tenso, atravessava a porta e a fechava.

Assim que Lex saiu para a rua, sozinho, sua mente começou a cogitar as opções disponíveis. Fabien era corrupto. Que surpreendente e útil informação. Com um pouco de sorte, não passaria muito tempo antes que as conexões de Fabien fossem também as suas. Não se preocupou particularmente em pensar como as conseguiria.

Levantou os olhos em direção à bela mansão do Refúgio e todo seu imaculado luxo. Era isso o que Lex queria: esse tipo de vida e não a imundície e a degradação que havia conhecido sob o jugo de seu pai. Isso era o que ele verdadeiramente merecia.

Mas, primeiro, ele precisaria sujar as mãos, mesmo que pela última vez.

Lex caminhou ao longo da estrada cheia de curvas ladeada por arvoredos e se dirigiu para a cidade com seus objetivos renovados.

 

 

CONTINUA

Capítulo 6

Em silêncio, Renata abriu a porta do quarto de Mira e espreitou a garotinha adormecida que descansava sobre a cama. Aquela era uma criança normal em seu pijama cor-de-rosa, com a bochecha macia apoiada contra o travesseiro fino, respirando calmamente pela delicada boca de querubim. Sobre a mesinha rústica próxima à cama estava o curto véu negro que cobria os notáveis olhos de Mira durante todos os momentos em que ela estava acordada.

- Bons sonhos, meu anjo - sussurrou Renata em voz baixa, de forma terna e esperançosa.

Nos últimos tempos, ela se preocupava cada vez mais com Mira. Não apenas por conta dos pesadelos que começaram depois do ataque que presenciara, mas pela saúde geral da garota. Embora Mira fosse forte e tivesse uma mente rápida e aguda, ela não estava completamente bem. Ela estava perdendo a visão rapidamente.

Cada vez que Mira era obrigada a exercitar o dom da premonição, um pouco de sua própria visão se deteriorava. E isso já estava acontecendo há meses quando Mira finalmente confidenciou a Renata seu estado. Ela tinha medo, como qualquer criança teria. Talvez até mais, já que Mira era mais sábia do que seus oito anos de idade indicavam. Ela compreendia que o interesse de Sergei Yakut por ela se evaporaria no momento em que ele a considerasse sem nenhuma utilidade. Ele a expulsaria, talvez até a mataria, se assim o desejasse.

Portanto, desde aquela noite, Renata e Mira mantinham um pacto: a condição de Mira seria um segredo entre elas e seria levado para o túmulo, se fosse necessário. Renata cumpria a promessa, jurando a Mira que a protegeria com sua própria vida. Jurou que nenhum dano aconteceria à garota, fosse ele causado por Yakut ou por qualquer outra pessoa, da Raça ou humano. Mira estaria a salvo da dor e da escuridão da vida de uma maneira que a própria Renata jamais esteve.

O fato de a garota ter sido usada naquela noite para entreter o hóspede não convidado de Sergei Yakut apenas aumentou a irritação de Renata. O pior de sua inquietação mental havia passado, mas uma dor de cabeça ainda persistia. O estômago não tinha parado de revirar, e pequenas ondas de náuseas retrocediam pouco a pouco.

Renata fechou a porta do quarto de Mira, estremecendo com outro pequeno tremor que lhe agitou o corpo. O longo banho que acabara de tomar tinha ajudado a aliviar um pouco o desconforto, mas até debaixo de suas calças folgadas de cor grafite e de seu pulôver macio de algodão branco, a pele continuava reclamando das correntes elétricas que lhe acometiam. Ela esfregou as palmas das mãos sobre as mangas da camisa, tentando dissipar a sensação ainda acesa que viajava por seus braços. Muito agitada para dormir, ficou no quarto apenas o tempo necessário para pegar algumas adagas no baú de armas. O treinamento sempre se mostrara bem-vindo nesses períodos de inquietação. Ela apreciava as horas do castigo físico que se infligia, feliz pelo treinamento rigoroso que a exauria.

Desde a terrível noite em que se encontrou imersa no perigoso mundo de Sergei Yakut, Renata havia aperfeiçoado ao máximo cada músculo de seu corpo, trabalhando metodicamente para se assegurar de que ela era tão letal quanto as armas que levava na caixinha de seda e veludo que agora carregava nas mãos.

Sobreviver.

Esse simples pensamento tinha sido seu farol desde que era apenas uma garota, mais jovem até do que Mira. E, mais que tudo, sozinha. Órfã abandonada na capela de um convento de Montreal, Renata não tinha nenhum passado, nenhuma família, nenhum futuro. Ela somente existia, e isso era tudo.

Para Renata, isso tinha sido o suficiente. Era o suficiente inclusive agora. Sobretudo agora que ela navegava pelo traiçoeiro mundo subterrâneo do reino de Sergei Yakut. Havia inimigos por todos os lados naquele lugar, tanto escondidos quanto visíveis. Inúmeros caminhos à espera de um passo em falso, de um equívoco; infinitas ocasiões para ela odiar o vampiro desumano que tinha a vida dela nas mãos. Mas ela não desistiria sem lutar.

Seu mantra dos dias de infância servia bem nesse momento: sobreviver um dia, e depois outro e outro.

Não havia espaço para brandura nessa equação. Piedade, vergonha ou amor não eram permitidos. Principalmente amor, de espécie alguma. Renata sabia que seu afeto por Mira - o impulso vital que lhe dava forças para fazer o caminho da menina mais suave e protegê-la como alguém de sua própria família - provavelmente lhe custaria muito caro no final.

Sergei Yakut tinha perdido pouco tempo explorando essa sua debilidade e Renata tinha as cicatrizes para comprovar.

Mas ela era forte. Não tinha encontrado coisa alguma nesta vida que não pudesse suportar, que não pudesse enfrentar - fisicamente ou de qualquer outra maneira. E tinha sobrevivido a tudo. Inteligente, forte... e letal quando tinha de ser.

Renata saiu do albergue e caminhou a passos largos pela escuridão rumo a um dos edifícios anexos que ficavam na parte de trás do local. O caçador que originalmente construíra a propriedade no bosque evidentemente adorava seus cães. Um velho canil de madeira fora erguido atrás da residência principal, disposto como um estábulo, com um amplo espaço dividido em dois e quatro baias de acesso alinhadas de ambos os lados. O teto de vigas devia ter uns quatro metros e meio de altura.

Embora pequeno, era um espaço aberto e bem ventilado. Na propriedade havia um celeiro maior e mais novo, que permitia movimentos mais fluidos, mas Renata geralmente o evitava.

Uma vez naquele lugar escuro e insalubre já tinha sido o suficiente. Se pudesse, ela já teria colocado fogo naquele maldito lugar.

Renata acendeu o interruptor ao lado da porta do canil e seu corpo se contraiu quando a lâmpada no teto derramou uma luz amarela e áspera no espaço. Entrou e caminhou pelo chão macio de terra batida. Passou por duas correias de couro largas e trançadas que se dependuravam na viga central da estrutura.

No extremo mais afastado do canil havia um poste alto de madeira que antes fora equipado com pequenos ganchos de ferro e laços para o armazenamento de correias e demais objetos. Renata havia se livrado dos arranjos alguns meses atrás e agora o poste funcionava como um alvo, cuja madeira escura já estava marcada de cortes profundos.

Renata colocou as lâminas sobre um fardo de palha que estava por perto e se agachou. Tirou os sapatos e caminhou descalça até o centro do canil. Alcançou o par de compridas correias de couro que havia ali e agarrou cada uma em uma mão. Enrolou o couro nos pulsos e, quando sentiu que estava cômodo, estendeu-se, flexionando os braços e levantando-se do chão de maneira tão leve que parecia ter asas.

Suspensa e livre da gravidade, Renata começou seu aquecimento. O couro rangia brandamente enquanto ela dava voltas e girava o corpo a vários metros do chão. Para ela, aquilo era a verdadeira paz, a sensação de seus membros ardendo, ganhando força e agilidade a cada movimento.

Renata deixou a mente se perder em uma meditação ligeira, mantendo os olhos fechados e todos os sentidos voltados para dentro de si, concentrados no ritmo cardíaco e na respiração, no movimento dos músculos enquanto ela se alongava. Assim foi até que girasse sobre o eixo e ficasse de cabeça para baixo, com os tornozelos agora presos às correias. Nesse momento, sentiu uma leve agitação no ar ao seu redor. Foi repentino e sutil, porém inconfundível. Tão inconfundível quanto o calor de uma respiração que agora lhe esquentava a bochecha.

Abriu os olhos de repente, lutando para compreender o espaço ao seu redor – todo invertido – e o intruso que estava de pé, abaixo dela. Era o guerreiro da Raça, Nikolai.

- Caramba! - ela disse, com sua falta de atenção fazendo-lhe oscilar um pouco no controle das correias. - Que diabos você acha que está fazendo?

- Relaxe - disse Nikolai. - Não estava querendo assustá-la – falou enquanto levantava as mãos para estabilizá-la.

- E não assustou – Renata respondeu com palavras pronunciadas com frieza. Com uma sutil flexão do corpo, afastou-se. – Importa-se? Você está atrapalhando meu treinamento.

- Ah! - as sobrancelhas loiras do macho da Raça arquearam enquanto seu olhar seguia a linha do corpo de Renata. - O que é exatamente esse treino? Está de olho em alguma vaga no Cirque du Soleil?

Ela não lhe deu o prazer de uma resposta. Não que ele esperasse uma. Nikolai virou-se e dirigiu-se para o poste que havia no outro extremo do canil. Estendeu a mão, percorrendo com os dedos as profundas marcas que havia na madeira. Então, encontrou as adagas e levantou o tecido que as protegia. O metal tilintou ao chocar-se brandamente dentro do quadrado dobrado de seda atado com a cinta de veludo.

- Não toque nisso - disse Renata, libertando-se das correias e voltando a colocar os pés no chão. - Eu disse para não tocar nisso. São minhas.

Niko não resistiu quando ela lhe tirou das mãos seus preciosos pertences; as únicas coisas de valor que ela podia reclamar como suas. O aumento em suas emoções o fez virar levemente a cabeça, certamente os efeitos secundários da força mental que ela esperava terem passado ainda persistiam. Ela deu um passo para trás e teve de se esforçar para manter a respiração estável.

- Você está bem?

Ela não gostou do olhar de preocupação refletido nos olhos azuis dele, pois era como se ele pudesse sentir sua debilidade, como se soubesse que ela não era tão forte quanto queria ser, quanto precisava aparentar.

- Estou bem.

Renata colocou as adagas em uma das baias do canil e as desembrulhou. Uma por uma, ela cuidadosamente colocou as quatro adagas esculpidas à mão sobre a madeira. Forçando um tom ligeiramente convencido, disse: - Eu é quem deveria fazer essa pergunta, não? Deixei você bem duro lá na cidade.

Ela escutou o grunhido baixo em algum lugar atrás de si, quase como um escárnio.

- Nunca se pode ser demasiado cauteloso quando se trata de estrangeiros - continuou ela. - Sobretudo agora. Estou segura de que você me entende.

Quando ela finalmente o percorreu com um olhar, encontrou-o olhando-a fixamente.

- Querida, a única razão pela qual você teve a possibilidade de me derrubar foi porque jogou sujo. Certificou-se de que eu a notasse no clube, fingindo ter alguma coisa escondida, sabendo que eu a seguiria diretamente para sua armadilhazinha.

Renata levantou os ombros, sem arrependimento.

- No amor e na guerra vale tudo.

Ele sorriu suavemente, formando um par de covinhas em seu rosto quadrado e masculino. – E isso é guerra, não é? – ele perguntou.

- Certamente não é amor – disse ela.

- Não - ele retrucou, tornando-se sério. - Nunca.

Bem, ao menos eles concordavam em alguma coisa.

- Há quanto tempo trabalha para Yakut?

Renata balançou a cabeça como se fosse incapaz de se recordar dessa informação, embora a noite em questão estivesse gravada em sua mente como se as memórias fossem ferro em brasa. Sangue. Horror. O começo de um fim.

- Não sei - disse ela. - Alguns anos, suponho. Por quê?

- Eu estava me perguntando como uma mulher, mesmo sendo uma Companheira de Raça com sua poderosa habilidade psíquica, foi parar nesse trabalho, especialmente para um Primeira Geração como ele. É estranho, é isso. Diabos, nunca ouvi falar de coisa semelhante. Então, diga-me: qual é sua ligação com Sergei Yakut?

Renata olhou fixamente o guerreiro: um forasteiro perigoso e ardiloso que, de repente, estava se intrometendo em seu mundo. Ela não estava segura de como responder. Certamente não estava disposta a lhe contar a verdade.

- Se você tem perguntas, talvez devesse fazê-las a ele.

- Sim - disse Niko, estudando-a mais estreitamente agora. - Talvez pergunte. E quanto à garota, Mira? Ela está aqui há tanto tempo quanto você?

- Não há tanto tempo. Apenas seis meses. - Renata tentou mostrar-se indiferente, mas um feroz instinto de proteção nasceu dentro de seu corpo diante da simples menção do nome de Mira nos lábios daquele guerreiro da Raça. - Ela passou por tanta coisa em tão pouco tempo. Coisas que nenhuma criança deveria testemunhar.

- Como o ataque a Yakut na semana passada?

E outras, mais sombrias ainda, Renata reconheceu interiormente.

- Mira tem pesadelos quase todas as noites. Ela praticamente não dorme já faz algum tempo.

Ele assentiu com a cabeça em um sóbrio reconhecimento.

- Este não é um bom lugar para uma garotinha. Alguns diriam que tampouco é lugar para uma mulher.

- É isso o que você diria, guerreiro?

O sorriso de Niko não confirmou nem negou a pergunta.

Renata o observou enquanto em sua mente surgiam perguntas e mais perguntas. Uma em particular.

- O que viu nos olhos de Mira esta noite?

Ele grunhiu algo ininteligível.

- Acredite, você não vai querer saber.

- Estou perguntando, não? O que ela lhe mostrou?

- Esqueça – enquanto ela o olhava, ele passou a mão pelos fios dourados de seu cabelo e exalou uma maldição, desviando o olhar em seguida. - De qualquer forma, isso não é possível. A garota definitivamente errou.

- Mira jamais erra. Ela nunca errou, pelo menos em todo o tempo em que a conheço.

- Mesmo? - o penetrante olhar azul do guerreiro voltou-se fixamente para Renata, percorrendo-lhe calorosamente o corpo em uma atitude lenta e avaliadora. - Alexei me disse que sua habilidade é imperfeita.

- Lex - Renata riu. – Faça-me um favor e não acredite em nada do que ele diz. Ele não diz e não faz nada sem um motivo oculto.

- Obrigado pelo conselho – disse, recostando-se contra o poste marcado pelas adagas. - Então, se é assim, não é verdade que, como ele disse, os olhos de Mira só refletem os acontecimentos que poderiam ocorrer no futuro, com base no agora?

- Lex pode ter suas próprias razões pessoais para desejar que não seja assim, mas Mira nunca erra. Tudo o que ela mostrou esta noite está destinado a acontecer.

- Destinado - disse ele, parecendo divertir-se com aquilo. - Bem, caramba... então acredito que estamos condenados.

Ele a olhou fixamente quando pronunciava essas palavras, desafiando-a a perguntar se ele deliberadamente a tinha incluído em sua observação. Dado que ele achara a ideia bastante divertida, ela não estava disposta a lhe dar a satisfação de perguntar o motivo. Renata agarrou uma de suas adagas e provou o peso do objeto com a palma aberta. Ela gostava de sentir o frio do aço contra a pele, algo sólido e familiar. Seus dedos estavam loucos para trabalhar. Seus músculos agora estavam aquecidos, preparados para mais uma ou duas horas de treino duro. Ela girou a lâmina e fez um sinal para o poste em que Nikolai estava apoiado.

- Importa-se? Não quero calcular mal e acidentalmente acertá-lo.

Ele percorreu o poste com o olhar e deu de ombros.

- Não seria mais interessante um treinamento de combate com um oponente real, que pudesse devolver o golpe? Ou será que você prefere alvos imobilizados?

Ela sabia que Niko estava jogando uma isca, mas o brilho de seus olhos era brincalhão. Ele realmente a estava paquerando? A natureza prática dele fez os pelos da nuca de Renata arrepiarem-se com cautela. Ela passou o polegar pela lâmina da adaga enquanto o olhava, insegura do que fazer.

- Prefiro trabalhar sozinha.

- Muito bem - ele disse inclinando a cabeça e afastando-se um pouco, quase que a desafiando com o olhar. – Como quiser.

Renata franziu a testa.

- Se você não se afastar, como pode estar seguro de que não vou acertá-lo?

Ele sorriu abertamente, completamente cheio de arrogância, com os musculosos braços cruzados sobre o peito.

- Mire onde quiser. Você nunca me acertaria.

Ela atirou a lâmina sem a mínima advertência.

O aço afiado cravou na madeira, causando uma fenda profunda, golpeando no lugar exato onde ela havia planejado. Mas Nikolai tinha desaparecido. Simples assim, sumido por completo.

Inferno.

Ele era da Raça, muito mais rápido do que qualquer ser humano, e tão ágil quanto um predador selvagem. Ela não era rival para ele, com armas ou com força física. E ela sabia disso mesmo antes de atirar a adaga. Entretanto, esperava, pelo menos, diminuir a arrogância e a presunção daquele filho da mãe.

Com os próprios reflexos afiados, Renata esticou o braço e alcançou outra adaga. Todavia, quando seus dedos se fecharam ao redor do punho lavrado, ela sentiu o ar mover-se atrás de si e percebeu o calor atravessar os fios de cabelo que estavam sobre o queixo.

O metal afiado subiu até sua mandíbula. Uma dura parede de músculos apertava-lhe a coluna vertebral.

- Não me acertou! Sentiu minha falta?

Ela engoliu cuidadosamente, pressionada pela lâmina que estava sob seu queixo. Tão brandamente quanto pode, relaxou os braços para os lados. Então, abaixou a mão que segurava a adaga, descansando-a entre as coxas separadas.

- Parece que encontrei você.

Como pôde, Renata o golpeou com uma pequena sacudida do poder de sua mente.

- Inferno - grunhiu Niko. E no instante em que relaxou o controle que tinha de Renata, a mulher saiu de seu alcance e virou-se para enfrentá-lo. Ela esperava a cólera dele, temia-a em certo sentido, mas ele apenas levantou a cabeça e deu de ombros. - Não se preocupe, querida. Só vou ter que brincar com você até que seja derrubada pelas reverberações de sua força psíquica.

Enquanto ela o contemplava, confusa e aflita, pensando como ele podia saber sobre a imperfeição de sua habilidade, ele disse:

- Lex me pôs a par de algumas coisas sobre você também. Ele me contou o que acontece cada vez que você dispara um desses mísseis psíquicos. Componente muito poderoso. Mas eu em seu lugar não o gastaria só porque sente necessidade de demonstrar força.

- Que o Lex vá pro inferno - murmurou Renata. - E que você vá pro inferno também. Não preciso de seus conselhos e certamente não preciso de nenhum de vocês falando porcarias a meu respeito pelas minhas costas. Essa conversa termina aqui.

Zangada como estava, ela, impulsivamente, flexionou o braço para trás e lançou a adaga na direção de Niko, sabendo que ele sairia facilmente do caminho como tinha feito antes. Dessa vez, porém, ele não se moveu. Com um estalo rápido como um relâmpago, ele estendeu a mão e capturou a lâmina no ar. E com um sorriso totalmente satisfeito, conseguiu que ela perdesse de vez as estribeiras.

Renata apanhou a última adaga no suporte do canil e a atirou contra ele. Como a outra, esta também foi pega no ar e agora ambas estavam nas mãos hábeis do guerreiro da Raça.

Ele a olhou, sem piscar, com um calor masculino que deveria deixá-la gelada, mas que, todavia, não a deixava.

- E agora o que vamos fazer para nos divertir, Renata?

Ela o fulminou com o olhar.

- Divirta-se sozinho. Vou embora daqui.

Ela deu meia-volta, pronta para sair do canil. Apenas tinha dado dois passos quando escutou um som agudo em ambos os lados de sua cabeça, tão perto que alguns fios errantes de seus cabelos voaram pelo rosto.

Então, diante dela, observou sobrevoar uma mancha imprecisa de aço, que estalou no outro extremo da parede.

Golpe seco.

As duas adagas que tinham voado ao lado de sua cabeça como objetos erráticos estavam agora cravadas na velha madeira, bem próximas de seus punhos. Renata virou-se, furiosa.

- Seu filho da mãe...

Ele se lançou sobre ela, seu enorme corpo obrigando-a a ir para trás, seus olhos azuis brilhando com algo mais profundo que a simples diversão ou a básica arrogância masculina. Renata deu um passo para trás, apenas o suficiente para que pudesse equilibrar seu peso sobre os calcanhares. Ela caminhou para trás e virou-se, elevando a outra perna em um chute giratório.

Dedos tão inflexíveis quanto barras de ferro fecharam-se ao redor de seu tornozelo, retorcendo-o.

Renata caiu no chão do canil, asperamente sobre as costas. Ele a seguiu, colocando-se sobre ela e encurralando-a enquanto ela lutava, agitando-se violentamente com os punhos e com as pernas. Mas Niko apenas precisou de um minuto para domá-la.

Renata ofegava pelo esforço excessivo, seu peito elevava-se pela velocidade de sua pulsação.

- Agora quem deseja demonstrar força, guerreiro? Você ganhou. Está feliz agora?

Ele fixou o olhar nela de forma estranha e silenciosa, não demonstrando prazer ou aborrecimento.

Seu olhar mantinha-se estável, tranquilo e íntimo. Ela podia sentir o coração martelando contra o peito. As coxas grossas dele escancaradas sobre ela, as duas mãos presas por cima de sua cabeça. Ele a sustentava com firmeza, com os dedos segurando-lhe os punhos em um suave apertão – suave e incrivelmente carinhoso. O olhar dele se desviou para onde a segurava, e um brilho de fogo crepitava em sua íris quando ele encontrou a pequena marca de nascimento carmesim com o desenho de uma lágrima que caía sobre uma meia-lua no pulso direito. Com o polegar, acariciou aquele precioso lugar, uma carícia fascinante e hipnótica que enviou um calor selvagem e erótico pelas veias de Renata.

- Ainda quer saber o que vi nos olhos de Mira?

Renata ignorou a pergunta, segura de que aquilo era a última coisa de que ela precisava saber naquele momento. Ela lutou com força debaixo dos músculos do corpo pesado do guerreiro, mas o maldito a dominava com o mínimo de esforço. Bastardo.

- Saia de cima de mim!

- Pergunte-me outra vez o que foi que vi, Renata.

- Já lhe disse para sair de cima de mim - grunhiu Renata, sentindo o pânico aumentar dentro do peito. Tentou respirar normalmente, sabendo que tinha que manter a calma e a situação sob controle. E tinha que ser rápida. A última coisa de que precisava era que Sergei Yakut saísse para procurá-la e a encontrasse impotente debaixo de outro macho. – Deixe-me sair agora.

- Do que tem medo?

- De nada, maldito!

Ela cometeu o erro de levantar o olhar em direção a ele. Um calor âmbar infiltrou-se no azul dos olhos do guerreiro: fogo devorando gelo. Suas pupilas começaram a estreitar-se rapidamente e atrás de seus lábios ela viu as pontas agudas das presas emergentes de Niko.

Se ele estava zangado, aquilo era apenas uma parte da causa física de sua transformação, já que, onde sua pélvis repousava ameaçadoramente sobre a dela, Renata sentia a ponta rija em sua virilha, a dilatação muito evidente do membro de Niko pressionando-se deliberadamente entre suas pernas.

Ela se moveu, tentando escapar daquele calor, da erótica posição dos corpos, mas aquilo apenas o deixou mais encaixado nela. O pulso acelerado de Renata se elevou, assumindo um ritmo urgente ao passo que um calor indesejado começou a florescer em seu sexo já completamente umedecido.

Ah, Deus! Isso não é bom. Isso não é nada bom.

- Por favor - ela gemeu, odiando-se pelo débil tremor que resvalou no momento de pronunciar a palavra. Odiando a ele também.

Queria fechar os olhos, recusando-se a ver o ardente e fixo olhar faminto. Ou a boca sensual e completamente selvagem tão perto da sua. Recusava-se a sentir o calor ilícito, a luxúria insana que ele causava nela - o perigo daquele inesperado desejo mortal. Mas seus olhos permaneciam fixos, incapazes de desviar, a resposta de seu corpo para aquele macho da Raça era mais forte que o ferro, mais intenso que sua vontade.

- Pergunte-me o que a menina me mostrou esta noite em seus olhos - exigiu ele, com voz tão baixa quanto um ronronar. Seus lábios estavam tão perto dos dela que lhe roçaram a pele suave. - Pergunte-me, Renata. Ou talvez prefira ver a verdade com seus próprios olhos.

O beijo passou através de seu sangue como fogo.

Os lábios pressionaram-se com paixão, o fôlego quente apressou-se, mesclando-se nos corpos ardentes dos dois. A língua do guerreiro explorou a boca de Renata, inundando-lhe, afogando seu grito mudo de prazer. Renata sentiu os dedos dele acariciando-lhe as bochechas, deslizando sobre os cabelos de sua têmpora para, então, passarem deliciosamente por sua nuca sensível. Ele a puxou para mais perto, afogando-a mais profundamente no beijo, que a estava tomando por completo, rompendo totalmente sua resistência.

Não. Ah, Deus! Não, não, não. Não posso fazer isto. Não posso sentir isto.

Renata separou-se da erótica tortura da boca do guerreiro e virou a cabeça para o lado. Ela estava tremendo, e suas emoções estavam chegando a um nível perigoso. Ela arriscara muito ali, com ele. Muito.

Por Deus! Ela tinha que apagar aquela chama que ele acendera em seu interior, aquela chama que a estava derretendo de forma mortal. E tinha de apagá-la rapidamente.

Dedos quentes tocaram-lhe o queixo, dirigindo seu olhar novamente à fonte de sua angústia.

- Você está bem?

Ela livrou-se daquelas mãos e separou-se do macho da Raça com um empurrão, ainda incapaz de falar.

Ele se afastou imediatamente. Segurou-lhe a mão, ajudando-a a ficar de pé. E embora Renata não quisesse ajuda alguma, ela estava muito afetada para rechaçar Niko naquele momento. Ficou de pé, incapaz de olhá-lo, tentando recompor-se.

Rezava para que não tivesse acabado de assinar sua própria sentença de morte.

- Renata?

Aquela voz atravessou-a de forma desesperadamente tranquila e fria.

- Aproxime-se de mim outra vez – ela disse - e eu juro que mato você.


Capítulo 7

Alexei estava esperando havia mais de dez minutos do lado de fora do quarto de seu pai, o que demonstrava que um pedido seu para uma audiência era considerado como o de qualquer um dos outros guardas de Yakut. A falta de respeito – a flagrante indiferença – não incomodava mais Lex como antes. Ele tinha superado esse passado amargo e inútil em favor de coisas mais produtivas.

Ah! No fundo do estômago de Lex ainda doía saber que seu pai - seu único parente vivo - pudesse pensar tão pouco nele, mas o calor da rejeição constante tinha, de alguma forma, se tornado menos doloroso. As coisas eram simplesmente assim. E Lex, de fato, era mais forte por isso. Era igual ao pai, de maneira que nem o maldito velho Primeira Geração poderia imaginar, que dirá admitir.

Mas Lex conhecia suas próprias capacidades. Conhecia suas próprias forças. Sabia sem dúvida alguma que podia ser muito mais do que era agora, e desejava a oportunidade de demonstrá-lo: a ele mesmo e, sim, ao filho da mãe que o criara também.

Quando a porta finalmente se abriu, o ruído seco da fechadura de metal fez os pés de Lex vacilarem.

- Bem a tempo - grunhiu ele ao guarda, que se afastou para deixá-lo entrar.

O lugar estava escuro, iluminado apenas pelo brilho das madeiras que ardiam na enorme lareira de pedra na parede oposta. Havia eletricidade na casa, mas ela raramente era utilizada – não eram necessárias luzes, pois Sergei Yakut e o resto da Raça tinham uma extraordinária visão, especialmente no escuro.

Os outros sentidos dos homens da Raça também eram bastante agudos, mas Lex suspeitava que até um humano se sentiria em apuros ao sentir os aromas de sangue e sexo que se fundiam com o aroma azedo da fumaça da lareira.

- Perdoe-me por interrompê-lo - murmurou Lex, enquanto seu pai saía de um cômodo anexo.

Yakut estava nu, com o pênis ainda parcialmente ereto e inclinando-se obscenamente com cada movimento. Enojado pela vista, Lex piscou e desviou o olhar. Rapidamente pensou melhor no ato e percebeu que aquele débil impulso seria usado contra ele. Em vez disso, observou o pai entrar no quarto, os olhos brilhando como carvões âmbar enfiados no fundo do crânio, com as pupilas reduzidas a estreitas e verticais frestas no centro do globo ocular. As presas em sua boca estavam enormes, completamente estendidas e afiadas como lâminas.

Uma camada de suor cobria-lhe o corpo e cada polegada da lívida cor latente de seus dermoglifos, as marcas únicas da Raça que se estendiam da garganta aos tornozelos do Primeira Geração. Sangue fresco – humano, sem dúvida, um aroma fraco que indicava pertencer a um Subordinado - manchava todo o torso e os flancos do vampiro ancião.

Lex não estava surpreso pela evidência da recente atividade de seu pai, nem pelo fato de que o trio de vozes fracas no outro quarto fosse as de seu atual grupo de escravas humanas. Criar e manter Subordinados, algo que só as estirpes mais puras e poderosas da Raça eram capazes de fazer, tinha sido durante muito tempo uma prática ilegal entre a educada sociedade da Raça. Entretanto, essa prática continuava, pelo menos entre os domínios de Sergei Yakut. Ele fazia suas próprias regras, executava sua própria justiça, e aqui, neste lugar remoto, deixava claro a todos que ele era o rei. Inclusive Lex podia desfrutar desse tipo de liberdade e poder. Diabos! Podia, de fato, saboreá-lo.

Yakut dirigiu-lhe um olhar desdenhoso do outro lado do quarto.

- Olho para você e vejo a morte diante de mim.

Lex franziu a testa.

- Senhor?

- Se não fosse pelas restrições do guerreiro e por minha intervenção nesta noite, estaria ao lado de Urien em cima daquele armazém na cidade, ambos esperando o amanhecer.

O desprezo inundava cada sílaba das palavras de Yakut enquanto ele pegava uma ferramenta de ferro do lado da chaminé e movia as brasas na lareira.

- Salvei sua vida esta noite, Alexei. O que mais espera por hoje?

Lex irritou-se ao se lembrar de sua recente humilhação, mas sabia que o ódio não o ajudaria, particularmente quando estivesse enfrentando o pai. Fez um movimento com a cabeça, tentando encontrar uma maldita resistência para manter o tom em sua voz.

- Sou seu fiel servo, pai. Não me deve nada. E não peço nada exceto a honra de sua contínua confiança em mim.

Yakut grunhiu.

- Você fala mais como um político do que como um soldado. Não preciso de políticos entre os meus, Alexei.

- Sou um soldado - respondeu rapidamente Lex, elevando a cabeça e olhando enquanto o pai continuava movendo a barra de ferro no fogo. As lenhas soltavam faíscas que golpeavam o silêncio letal que tomava conta do ambiente. - Sou um soldado - afirmou novamente. - Quero servi-lo da melhor maneira possível, pai.

Yakut girou a cabeça despenteada para olhar Lex por cima do ombro.

- Você me oferece palavras, garoto. Não confio em palavras. E ultimamente não o vejo me oferecendo nada além de palavras.

- Como espera que eu seja eficiente se não me mantém informado dos acontecimentos?

Quando os olhos matizados de âmbar estreitaram-se sobre ele, Lex apressou-se em acrescentar:

- Falei com o guerreiro no bosque. Ele me contou sobre os recentes assassinatos dos Primeira Geração. Disse que a Ordem havia pessoalmente entrado em contato com você para avisá-lo do perigo potencial. Deveria ter me contado isso, pai. Como capitão de sua guarda, mereço ser informado.

- Merece o quê? - a pergunta saiu dos lábios de Yakut. - Por favor, Alexei... diga-me o que você acha que merece.

Lex permaneceu em silêncio.

- Nada a acrescentar, filho? - Yakut moveu a cabeça em um ângulo exagerado, a boca mostrando um sorriso sarcástico. - Uma acusação semelhante me foi lançada há anos pelos lábios de uma mulher estúpida que pensava poder apelar para meu sentido de obrigação. Minha misericórdia, possivelmente – Yakut riu entre os dentes, voltando a atenção de novo ao fogo, para mover, de novo, as brasas. - Sem dúvida você se lembra do que aconteceu.

- Sim - respondeu com cuidado Lex, surpreso pela garganta seca enquanto falava.

As lembranças formaram redemoinhos com as ondulantes chamas da lareira.

Norte da Rússia, fim do inverno. Lex era um menino, mal tinha dez anos, mas era o homem de seu precário lar tanto quanto podia se lembrar. Sua mãe era tudo o que ele tinha. A única que sabia como ele era realmente, e a única que o queria bem.

Ele estava preocupado desde a noite em que ela lhe havia dito que o levaria para conhecer seu pai pela primeira vez. Disse-lhe que ele era um segredo que ela tinha mantido - seu pequeno tesouro. Mas o inverno fora duro, e eles eram pobres. Precisavam de refúgio, de alguém que os protegesse. O campo estava em batalha e era inseguro para uma mulher cuidando sozinha de um menino. Ela disse que o pai de Lex os ajudaria, que ele abriria os braços em boas-vindas uma vez que conhecesse o filho.

Mas Sergei Yakut os recebeu com uma cólera fria e um terrível e impensável ultimato.

Lex se lembrou da mãe rogando a Yakut para que os acolhesse... Lembrou-se da mulher sendo completamente ignorada. Lembrou-se da bela mulher ajoelhada diante de Yakut, implorando para que cuidasse de Alexei.

As palavras estavam gravadas nos ouvidos de Lex, inclusive agora: “Ele é seu filho! Isso não significa nada para você? Será que ele não merece algo mais?”.

Rapidamente a cena saiu do controle.

Facilmente, Sergei Yakut ergueu uma espada e deslizou a lâmina pelo pescoço da indefesa mãe de Lex.

Suas palavras brutais afirmavam que ele tinha apenas lugar para soldados em seu reino, e que Lex tinha uma escolha a fazer naquele momento: servir ao assassino de sua mãe ou morrer com ela.

A débil resposta de Lex tinha sido dita entre soluços. “Vou servi-lo”, disse. E sentiu que uma parte de sua alma o abandonava enquanto olhava com horror o corpo ensanguentado e mutilado da mãe. Vou servi-lo, pai.

O silêncio que se seguiu foi muito frio, tão frio quanto uma tumba.

- Sou seu servo - Lex disse alto, baixando a cabeça mais pelo peso das velhas lembranças do que por respeito ao tirano que o governava. - Minha lealdade sempre foi sua, pai. Apenas sirvo ao seu prazer.

Um repentino calor, tão intenso quanto chamas ardentes, veio sob o queixo de Lex. Sobressaltado, ele levantou a cabeça, estremecendo de dor com um grito afogado. Viu a fumaça sair diante de seus olhos, sentiu o cheiro adocicado de carne queimando.

Yakut Sergei estava diante dele segurando o atiçador de ferro nas mãos. A ponta brilhante da haste de metal queimava vermelha, exceto pelo resíduo de pele branca pendurada, que havia sido arrancada do rosto de Lex.

Yakut sorriu, mostrando as pontas de seus dentes.

- Sim, Alexei, você serve apenas para o meu prazer. Lembre-se disso. Só porque meu sangue corre em suas veias não significa que eu não possa matá-lo.

- Claro que não - Lex murmurou, seus dentes cerrados pela devastadora agonia da queimadura. O ódio fervilhava nele pelo insulto que tinha que engolir e por sua própria impotência quando viu o homem da Raça desafiando-o com a testa franzida, pronto para fazer um movimento contra ele novamente. Yakut acabou desistindo. O velho arrastou uma túnica de linho marrom de uma cadeira e deu de ombros para ele. Seus olhos ainda estavam brilhantes, com fome e sede de sangue. Deixou a língua deslizar em seus dentes e presas.

- Como você está tão ansioso para me agradar, traga-me Renata. Preciso dela agora.

Lex apertou os dentes.

Sem palavras, saiu do quarto com a mandíbula rígida, os próprios olhos cintilando com a luz âmbar de sua indignação. Não perdeu de vista o olhar confuso do guarda postado na porta, o rumo inquieto dos olhos dos outros vampiros enquanto disfarçava o aroma de carne queimada e o provável calor de sua ira.

A queimadura cicatrizaria - de fato, já estava cicatrizando -, seu acelerado metabolismo da Raça reparava a pele queimada enquanto seus pés o levavam à área principal do refúgio. Renata vinha de fora. Ela viu Lex e se deteve, virando como se quisesse evitá-lo.

Não mesmo.

- Ele quer você - gritou Lex, sem se preocupar com quantos outros guardas estivessem ouvindo. Todos sabiam que ela era a vadia de Yakut, assim, não havia razão para fingir outra coisa. – Mandou-me que a chamasse. Está a sua espera para que o sirva.

Os frios olhos verde-jade o demoliram.

- Estive treinando. Preciso me lavar.

- Ele disse agora, Renata.

Uma ordem curta que ele sabia que seria obedecida. Havia mais do que uma leve satisfação nesse pequeno e raro triunfo.

- Muito bem.

Ela deu de ombros, apoiada sobre seus pés descalços.

Sua insossa expressão enquanto se aproximava dizia que não se preocupava com o que pensavam dela, muito menos Lex, e essa indiferença à humilhação apenas o fazia querer degradá-la mais. Farejou em sua direção, mais pelo efeito que isso causava do que por qualquer outra coisa.

- Ele não se importará com sua imundície. Todos sabemos que as melhores vagabundas são as sujas.

Renata não fez mais do que piscar com o vulgar comentário. Ela podia reduzi-lo com uma rajada de seu poder mental se assim o decidisse - de fato, Lex quase esperava que ela o fizesse, simplesmente para provar que a havia ferido. Mas o rápido giro de seu olhar disse que ela não sentia que ele merecia tal esforço.

Ela passou junto dele com uma dignidade que ele não podia compreender. Ele a olhou – todos os guardas próximos a olharam - enquanto ela caminhava para o quarto de Sergei Yakut tão calma quanto uma rainha a caminho da forca.

Não precisou muito para Lex imaginasse o dia em que ele controlaria tudo, mandaria naquele lugar, inclusive na altiva Renata. É óbvio, a vadia não seria tão altiva se sua mente, vontade e corpo pertencessem completamente a ele. Uma Subordinada para servir cada um de seus caprichos e os dos outros homens sob seu comando.

Sim, Lex pensou sombriamente, seria muito bom ser rei.


Capítulo 8

Nikolai pegou uma das adagas de Renata no poste onde ela as havia atirado. Tinha de lhe dar crédito: se tivesse acertado o alvo, ele estaria morto. Se fosse simplesmente um humano com reflexos lentos, e não um macho da Raça, o treinamento dela certamente o teria transformado em espetinhos para assar.

Ele riu ao devolver a lâmina ao envoltório elegante com as outras três. As armas eram belas, lustrosas e perfeitamente equilibradas, obviamente feitas à mão. Niko deixou seu olhar vagar sobre o desenho esculpido nos punhos de prata esterlina da arma. O padrão parecia ser um jardim de videiras e flores, mas quando ele as olhou mais de perto, deu-se conta de que cada uma das quatro lâminas também tinha uma palavra gravada dentro do desenho: fé, coragem, honra e sacrifício.

Ele se perguntou se aquilo seria uma espécie de oração de um guerreiro ou os princípios da disciplina pessoal de Renata.

Nikolai pensou no beijo que tinham compartilhado. Bom, dizer que eles o tinham compartilhado era um tanto presunçoso, considerando como ele tinha descido sua boca com toda a delicadeza de um trem de carga. Ele não tivera a intenção de beijá-la. Certo, e a quem ele estava tentando enganar? Ele não poderia ter parado mesmo que tivesse tentado. Não que fosse uma desculpa. E não que Renata tivesse dado qualquer possibilidade de desculpas ou perdão.

Niko ainda podia ver o horror em seus olhos, a inesperada, porém óbvia repulsão pelo que ele tinha feito. Ainda podia sentir a sinceridade da ameaça que ela pronunciou antes de sair tempestuosamente do canil.

A parte destruída de seu ego tentava acalmá-lo com a possibilidade de que talvez ela realmente desprezasse todos os machos de modo geral. Ou que talvez ela fosse tão fria como Lex parecia pensar. Um soldado assexuado – frígida apesar de ter a cara de um anjo e o corpo que conduzia sua mente a todo tipo de pecado e luxúria. Muitos pecados, cada um mais tentador e atraente do que o anterior.

Nikolai tinha um encanto fácil quando se tratava de mulheres. Não era simples alarde, mas uma conclusão a que ele tinha chegado baseado nos anos de experiência. Quando se tratava de mulheres, desfrutava tranquilamente das conquistas sem complicações, quanto mais temporárias melhor. A perseguição e as lutas eram divertidas, mas o melhor reservava para o combate verdadeiro, em batalhas sangrentas, com vampiros Renegados e outros inimigos da Ordem. Esses eram os desafios de que ele mais desfrutava.

Então, por que estava lutando contra esse impulso perverso de ir atrás de Renata e descobrir se não podia descongelar parte do gelo que a cobria?

Porque ele era um idiota. Um idiota com uma fúria perigosa e com um aparente desejo mortal.

Hora de parar de pensar com a cabeça de baixo. Não importava o que seu corpo estivesse dizendo - não importava mais o que ele tinha visto no olhar de Mira. Ele tinha um trabalho a fazer, uma missão da Ordem, e esta era a única razão pela qual estava ali.

Niko cuidadosamente envolveu as adagas de Renata no estojo de seda e veludo, e colocou o pequeno embrulho no fardo de palha esperando que ela voltasse para buscá-los, assim como os sapatos deixados para trás.

Abandonou o canil e se dirigiu à escuridão para recolher informações sobre as terras da mansão. Uma meia-lua pendurava-se no alto do céu noturno, velada por um punhado de nuvens negras como carvão. A brisa da meia-noite era cálida, abatendo-se brandamente através dos pinheiros altos e dos carvalhos espinhosos dos bosques ao redor. Os aromas misturavam-se no ar úmido do verão: o sabor forte da resina de pinheiro, a marca mofada do chão protegido do sol, a nitidez de tantos minerais na água doce, na corrente que evidentemente atravessava a propriedade não longe de onde Niko estava.

Nada incomum. Nada fora do lugar.

Até que...

Nikolai levantou o queixo e inclinou a cabeça ligeiramente para o oeste. Algo inesperado atravessou os seus sentidos. Algo que não podia, não deveria, encontrar ali.

Era a morte o que ele estava sentindo.

Sutil, antiga... mas certa.

O guerreiro correu na direção que seu olfato o levava. Cada vez mais profundo no bosque. A cerca de cem metros da mansão, a mata adensou-se. Niko reduziu sua marcha quando chegou ao lugar onde suas fossas nasais começavam a arder com o fedor envelhecido da decomposição. Aos seus pés, o chão estava esparso com folhas, enredado por videiras que caíam longe pela ravina escarpada.

Nikolai olhou para baixo pela fenda, adoecendo, antes mesmo que seus olhos pousassem na carnificina.

- Inferno - murmurou ele, sob seu fôlego.

Uma fossa de morte se encontrava no fundo da ravina. Esqueletos humanos. Dúzias de corpos, sem enterrar, esquecidos, simplesmente jogados uns em cima dos outros, como se fossem lixo. Tantos que levaria muito tempo para contar todos eles. Adultos. Crianças pequenas. Um massacre que não mostrava nenhuma discriminação a suas vítimas, tampouco misericórdia. Um massacre que poderia ter levado anos para ter sido realizado.

A pilha de ossos brancos brilhava sob a escassa luz da lua, pernas e braços empilhados juntos onde quer que o mortos tivessem caído, crânios olhando para ele, com as bocas abertas em macabros gritos silenciosos. Nikolai tinha visto o suficiente. Recuou da beira da ravina enquanto lançava outra maldição na escuridão.

- Que tipo de porcaria andou acontecendo por aqui?

Em seu íntimo, ele sabia.

Jesus Cristo, não havia muita margem para dúvidas.

Um clube de sangue.

A fúria e a repugnância passaram através dele em uma onda negra. Ele teve, por instantes, o desejo entristecedor de rasgar os membros de cada vampiro comprometido em violar a lei assassinando todas aquelas pessoas. Não que ele tivesse esse direito, mesmo como um membro guerreiro da Ordem. Ele e seus irmãos não tinham muitos amigos entre os ramos governantes da Raça, e muito menos na Agência de Controle, que atuava tanto como policiais e como políticos, responsáveis pelas populações de vampiros em geral. Eles pensavam que a Ordem e todos os guerreiros que a serviam estavam acima da sociedade civilizada. Vigilantes e militantes. Cães selvagens que só desejavam uma desculpa para fazê-la cair.

Nikolai sabia que isso estava fora de seus limites de atuação, mas isso não fez que o desejo de prescindir sua própria marca de justiça ficasse menos tentador.

Embora ultrajado e indignado, Niko precisava acalmar-se. Sua fúria não ajudaria as vidas esparramadas lá embaixo. Era muito tarde para isso. Niko não podia fazer nada, exceto mostrar um pouco de respeito, algo que lhes tinha sido negado inclusive depois da morte.

Solenemente, embora só por um breve momento, Nikolai se ajoelhou na borda da profunda ravina. Ele estendeu amplamente seus braços longos, invocando o poder luminoso que estava dentro dele, um talento da Raça que se encontrava unicamente nele e que em sua linha de trabalho, em particular, era de pouca utilidade. Sentiu o poder arder em seu interior quando o invocou. O poder se voltou em energia e luz, propagando-se através de seus ombros e movendo-se para baixo, em direção a seus braços. Logo, em suas mãos, esferas gêmeas brilhavam sob a pele no centro das palmas.

Nikolai tocou com os dedos a terra ao seu lado.

Em resposta, as videiras e arbustos se agitaram ao seu redor, gravetos verdes e pequenas flores silvestres do bosque despertaram acima, fazendo movimentos. Esses movimentos aumentaram cada vez mais em acelerada velocidade. Niko enviou os brotos que estavam crescendo de novo para a ravina e, em seguida, ficou de pé para assistir aos mortos serem cobertos por um manto de suaves folhas novas e flores.

Não era um grande rito funerário, mas era tudo o que ele tinha a oferecer às almas dos corpos que foram deixados ali para apodrecer na intempérie.

- Descansem em paz - murmurou ele.

Quando o último osso foi coberto, ele se dirigiu para a mansão. O celeiro de armazenamento em que ele tinha farejado o sangue agora chamava-lhe a atenção.

Só para confirmar suas suspeitas, Niko inspecionou e moveu o ferrolho solto. Abriu a porta e olhou dentro da construção. O celeiro estava vazio, tal como Lex havia dito. Mas novamente, as jaulas de aço construídas no interior não tinham sido feitas para nenhum tipo de armazenamento permanente. Eram gruas altas, celas da prisão com ferrolhos desenhados para os prisioneiros humanos, com caráter de contenção temporária.

Brinquedos vivos para o esporte de caça ilegal no remoto bosque que Sergei Yakut dominava.

Com um grunhido, Nikolai saiu do celeiro e partiu para a casa principal.

- Onde está ele? - perguntou ao guarda armado que o percebeu assim que atravessou a porta. - Onde está ele? Diga agora!

Ele não esperou por uma resposta. Não quando os outros dois guardas, ambos do lado de fora de uma porta fechada no grande corredor, tomaram uma postura de batalha repentina. Atrás deles, estavam os aposentos privados de Yakut, obviamente.

Nikolai irrompeu e empurrou um dos guardas de seu caminho. O outro tinha um rifle e começou a apontar para o guerreiro. Niko bateu a arma na cara do guarda, e então lançou o vampiro tonto à parede mais próxima.

Deu um chute na porta, estilhaçando a madeira velha e arrancando as dobradiças de ferro. Caminhou a passos largos através dos escombros, ignorando os gritos dos homens de Yakut. Encontrou o Primeira Geração no centro do quarto, diante de um sofá de couro, inclinado possessivamente sobre a garganta nua de uma fêmea de cabelos escuros enjaulada pelos braços do vampiro.

Com a interrupção, Yakut levantou a cabeça de sua alimentação e olhou na direção do invasor. Também o fez sua Anfitriã de Sangue...

Renata.

Não mesmo.

Ela estava unida a ele com o laço de sangue? Seria ela a Companheira de Raça desse monstro?

Todas as acusações que Nikolai tinha preparado para lançar a Sergei Yakut morreram repentinamente em sua garganta. Ele ficou olhando fixamente, com seus sentidos da Raça turvados e trincados, mais acordados ao ver o sangue da fêmea que gotejava dos lábios e das enormes presas de Yakut. O aroma dela atravessou o quarto, atingindo com força o cérebro de Niko. Ele não esperava um contraste tão estranho ao de sua conduta fria, mas o aroma de seu sangue era uma mescla quente, embriagadora e intoxicante de sândalo e chuva fresca de primavera. Suave. Feminino. Excitante.

A fome apertou o estômago de Nikolai, uma reação visceral com a qual ele teve que lutar arduamente para conter-se. Disse para si que era simplesmente sua natureza da Raça sobressaindo-se. Havia poucos entre os de sua estirpe que podiam resistir ao canto das sereias de uma veia aberta, mas quando seus olhos encontraram o olhar fixo de Renata, um novo calor explodiu dentro dele. Mais forte, aliás, que a primitiva sede de alimentar-se.

Ele a desejava.

Mesmo enquanto estava deitada debaixo de outro macho, permitindo-lhe beber dela, Nikolai tinha fome dela com uma ferocidade que o sobressaltava. Unida pelo sangue a outro ou não, Niko queimava de desejo por Renata.

O que, até mesmo com seu flexível código de honra, o fazia se sentir quase próximo ao nível desprezível de Yakut.

Niko teve de sacudir-se mentalmente para desprender-se daquela visão perturbadora, voltando bruscamente sua atenção aos problemas que tinha à mão.

- Você tem um sério problema - disse ele ao vampiro Primeira Geração, sendo apenas capaz de conter seu desprezo. - Na verdade, suponho que você tem aproximadamente três dúzias deles apodrecendo em seu bosque.

Yakut permaneceu calado, seu olhar escuro assumiu a cor âmbar, indicando o desafio. Um grunhido ondulou antes que ele voltasse a cabeça para sua refeição interrompida. A língua de Yakut deslizou do meio de seus lábios para lamber as espetadas que tinha deixado no pescoço de Renata, selando as feridas e estancando o sangue.

Só então, quando a língua de Yakut percorreu a pele de Renata, ela afastou o olhar de Niko. Ele acreditou ver alguma tranquilidade, um pouco de resignação, passar através de seu rosto nos segundos antes de Yakut se levantar e a liberar. Uma vez livre, Renata se moveu para o canto do quarto, puxando a camisa de volta ao lugar.

Ela ainda estava vestida com a roupa de antes, ainda estava descalça.

Ela devia ter vindo diretamente para cá depois do que tinha se passado no canil.

Tinha procurado Yakut por proteção? Ou por simples comodidade?

Jesus.

Niko se sentiu um asno quando se lembrou da maneira como tentou beijá-la. Se ela estivesse unida por sangue a Sergei Yakut, essa união era sagrada, íntima... exclusiva. Não admirava que ela tivesse reagido como reagira. Os beijos de Nikolai teriam sido um insulto e a degradação para ambos. Mas agora ele não estava ali para pedir desculpas – não a Renata ou ao seu aparente companheiro.

Nikolai dirigiu um olhar duro para o vampiro.

- Há quanto tempo você caça seres humanos, Yakut?

O Primeira Geração apenas grunhiu, sorrindo.

- Encontrei os currais de detenção no celeiro. Encontrei os corpos. Homens, mulheres... crianças.

Nikolai grunhiu uma maldição, incapaz de conter sua repugnância e indignação.

- Você transformou esse lugar em um maldito clube de sangue. Pelo aspecto dos corpos, eu diria que faz isso há anos.

- E o que tem isso? - Yakut perguntou despreocupadamente, sem sequer tentar emitir uma respeitável negação.

E no canto do quarto, Renata permaneceu em silêncio, com os olhos fixos em Niko, mas sem mostrar surpresa alguma.

Ah, Cristo! Então ela também sabia.

- Maldito doente - ele disse, olhando de novo para Yakut. - Todos vocês estão doentes. Não poderá continuar com isso. Pare agora mesmo. Há leis...

O Primeira Geração riu, com a voz deformada pela transformação de seu lado mais selvagem.

- Eu sou a lei aqui, rapaz. Ninguém, nem os Refúgios e sua tão elogiada Agência, nem sequer a Ordem têm algo a ver com meus assuntos. Convido qualquer um para vir aqui e tentar me dizer o contrário.

A ameaça era clara. Apesar do fato de a honra e a justiça gritarem dentro de Nikolai para que ele acabasse com o maldito filho da mãe ali mesmo, ele não podia fazê-lo, pois Yakut não era um vampiro comum. Era um Primeira Geração. Não apenas dotado de força e poderes imensamente maiores que os do guerreiro ou de qualquer outro posterior da Raça, mas também membro de uma classe rara. Desses, só havia poucos, menos ainda agora, como resultado da eclosão dos recentes assassinatos.

Tão repugnante quanto a prática ilegal dos clubes de sangue entre a sociedade da Raça era a tentativa de matar um vampiro da Primeira Geração.

Nikolai não podia levantar a mão contra o filho da mãe, não importa quanto desejasse fazer isso.

E Yakut sabia. Ele limpou a boca com a túnica escura, esfregando ligeiramente a fragrância doce do sangue de Renata.

- A caçada está em nossa natureza, rapaz.

A voz de Yakut tinha uma serenidade mortal, completamente cheia de confiança, enquanto avançava para Nikolai.

- Você é jovem, nascido da Raça mais fraca de alguns de nós. Talvez seu sangue esteja tão diluído com o da humanidade que simplesmente não pode compreender a necessidade em sua forma mais pura. Se tivesse o gosto pela caçada, seria menos hipócrita com aqueles de nós que preferem viver como deve ser.

Niko sacudiu lentamente a cabeça.

- Os clubes de sangue não são só caçada. Eles são simplesmente uma matança. Você pode dizer suas asneiras, mas ainda assim você não passa de um monte de porcaria. É um animal. O que você realmente precisa é de uma focinheira e de uma coleira. Alguém tem que deter você.

- E pensa que você ou a Ordem fará essa tarefa?

- Você pensa que nós não faremos? - desafiou Niko, com uma parte de si esperando que o Primeira Geração lhe desse uma boa razão para sacar suas armas. Ele não se imaginava fugindo do confronto com o vampiro ancião, ele não desistiria sem uma maldita briga.

Em resposta, Yakut recuou, com seus olhos de cor âmbar brilhantes, as elípticas pupilas diminutas estilhaçadas de negro. Ergueu o queixo barbudo e virou a cabeça para um lado. Seus lábios se separaram com um selvagem sorriso que expôs suas presas. Daquela maneira não era difícil que todos observassem a parte alienígena dele - a parte que fazia dele e de todo o resto da Raça o que eram: predadores que bebem sangue e não pertencem totalmente a este mundo mortal, mas que apenas nasceram aqui.

- Eu lhe disse uma vez que você não era bem-vindo em meus domínios, guerreiro. Você ou sua proposta de aliança com a Ordem não me serve de nada. Minha paciência está chegando ao limite, assim como sua estadia aqui.

- Sim – concordou Niko. – Vou dar o fora deste lugar com muito prazer. Mas não pense que esta é a última vez que você vai ter notícias minhas.

Ele não pôde deixar de deslizar o olhar selvagem sobre o corpo de Renata quando disse essas palavras. Por mais raiva que estivesse sentindo de Yakut, não podia sentir o mesmo por ela. Ele esperava que ela dissesse que não sabia sobre os crimes que aconteciam naquele pedaço de terra embebido de sangue, desejava que ela dissesse algo para convencê-lo de que não fazia parte do jogo e das práticas doentias de Yakut.

Mas ela simplesmente recuou o olhar, com os braços cruzados sobre o peito. Uma mão se elevou ociosamente para tocar a ferida que estava se curando em seu pescoço, mas ela permaneceu em silêncio.

Todavia, ela não deixou de olhar o guerreiro quando ele saiu pela porta escancarada diante do aturdido guarda de Yakut.

- Devolvam os itens pessoais ao guerreiro e cuidem para que ele deixe a propriedade sem incidentes - Yakut ordenou a um par de homens armados que se encontravam fora de seu quarto.

Quando os dois saíram para atender a ordem, Renata começou a segui-los. Alguma parte desequilibrada dela desejava poder ser capaz de encontrar Nikolai sozinho e...

E o que?

Explicar a verdade e contar como eram as coisas para ela aqui? Tentar justificar as ações que ela tinha sido forçada a fazer?

Com que finalidade?

Nikolai estava partindo. Ele nunca teria que voltar para aquele lugar, enquanto ela estaria ali até seu último suspiro. Que bem poderia fazer explicar algo disso a ele, um desconhecido que provavelmente não a entenderia, e muito menos a protegeria?

Entretanto, os pés de Renata continuaram movendo-se.

Ela sequer chegou até a porta. A mão de Yakut se fechou fortemente sobre seu pulso, segurando-o em suas costas.

- Você não, Renata. Você fica.

Ela o olhou com uma expressão que esperava estar desprovida da ansiedade e das náuseas que estava tentado tão duramente disfarçar.

- Pensei que tínhamos terminado aqui. Que talvez devesse ir com os outros, só para assegurar que o guerreiro não decida fazer nada estúpido em seu caminho fora da propriedade.

- Você fica - o sorriso de Yakut congelou-lhe até os ossos. – Tenha cuidado, Renata. Eu não gostaria que você fizesse nada estúpido.

Ela tragou o repentino nó gelado de ansiedade de sua garganta.

- Desculpe-me?

- Tenha cuidado - respondeu ele, apertando-lhe hermeticamente o braço. - Suas emoções a traem, querida. Posso sentir o aumento de sua frequência cardíaca, o muro de adrenalina que atravessa seu corpo correndo por suas veias agora mesmo. Senti a mudança em você no momento que o guerreiro entrou no quarto. Senti antes também. Importa-se em me dizer por onde esteve esta noite?

- Treinando - respondeu ela, rapidamente, mas com firmeza. Para não dar razão alguma para duvidar dela, já que aquela era essencialmente a verdade. - Antes que você mandasse Lex procurar por mim, eu estava do lado de fora, fazendo meus exercícios de treinamento no antigo canil. Se você sentiu algo diferente em mim, deve ter sido por conta do excesso de treinamento.

Um silêncio longo se estendeu, enquanto o aperto rígido mantinha-se em seu pulso.

- Você sabe quanto valorizo a lealdade, não é, Renata? – disse Yakut enquanto Renata fez uma breve inclinação de cabeça. – Valorizo-a tanto quanto você valoriza a vida daquela menina que dorme no outro quarto - disse ele friamente. - Penso que essa dúvida poderia fazer com que ela terminasse no cemitério.

O sangue de Renata congelou em suas veias diante daquela ameaça. Ela olhou fixamente para cima, diretamente nos malignos olhos do monstro que agora sorria abertamente, com um prazer doentio.

- Como disse, querida Renata, tenha cuidado.


Capítulo 9

A cidade de Montreal, assim nomeada por causa do enorme monte que proporcionava uma vista magnífica do Rio Saint Lawrence e do vale abaixo, brilhava como um pote de pedras preciosas sob a lua crescente. Arranha-céus elegantes, torres de igrejas góticas, avenidas arborizadas e, à distância, uma brilhante linha de água que envolvia a cidade em um abraço protetor. Uma vista realmente espetacular.

Não havia dúvidas sobre a razão pela qual o líder do Refúgio de Montreal havia escolhido estabelecer sua comunidade perto do cume do Monte Real.

De pé no balcão do segundo andar da mansão em estilo barroco tinha-se a impressão de que a velha propriedade de caçadores fora da cidade parecia estar a mil quilômetros de distância. Mil anos longe daquela educada e civilizada maneira de viver. O que, obviamente, era verdade.

A espera para se encontrar com Edgar Fabien, o guerreiro da Raça que fiscalizava a população de vampiros de Montreal, parecia durar uma eternidade. Fabien era bem conhecido na cidade e havia rumores de que tinha bons contatos, tanto entre os Refúgios quanto no grupo de patrulha conhecido como a Agência. Ele era a escolha natural para uma situação delicada como aquela.

Mesmo assim, se o líder do Refúgio estivesse disposto a cooperar, essa era uma aposta que Lex tinha de arriscar. Aquela visita tardia e sem aviso fora um ato espontâneo e muito, muito arriscado.

O simples fato de ir ali já significava declarar-se inimigo de Sergei Yakut.

Mas Lex tinha visto o suficiente, tinha suportado o suficiente.

O príncipe estava de saco cheio de lamber as botas do pai. Era hora do rei tirano cair.

Lex girou ao som dos passos aproximando-se do interior da recepção. Fabien era um homem magro, alto e meticulosamente vestido, como se tivesse nascido em seus trajes feitos sob medida e com seus brilhantes mocassins de couro. Seu cabelo loiro acinzentado estava penteado para trás com algum tipo de gel perfumado, e quando ele sorriu para saudar Lex, seus magros lábios e estreitos traços faciais ficaram ainda mais severos.

- Alexei Yakut - disse, saindo para o balcão e oferecendo a mão para Lex. Não menos que três anéis cintilavam em seus longos dedos, ouro e diamantes que rivalizavam com o brilho da cidade lá fora. - Lamento que tenha esperado tanto. Temo que não estejamos acostumados a receber convidados inesperados em minha residência pessoal.

Lex assentiu, tenso, e soltou a mão de Fabien. A casa do líder do Refúgio não estava exatamente nos guias de turismo da cidade de Montreal, mas umas poucas perguntas feitas às pessoas certas tinham guiado Lex até ali sem maiores problemas.

- Venha, por favor - disse o homem da Raça, gesticulando para Lex e guiando-o para o interior da casa. Fabien se sentou em um luxuoso sofá, deixando espaço para Lex do outro lado.

- Devo admitir que fiquei surpreso quando minha secretária me disse quem queria me ver. Uma vergonha que não tenhamos tido a oportunidade de nos conhecer até agora.

Lex sentou-se junto ao líder do Refúgio, incapaz de evitar que seus olhos viajassem pelo interminável luxo de seus arredores.

- Mas você sabe quem sou eu? - perguntou Lex com cuidado. - Sabe também quem é o Primeira Geração, meu pai, Sergei Yakut?

Fabien assentiu com elegância.

- Só pelo nome, infelizmente. Fui negligente ao não ter feito as apresentações formais logo que vocês chegaram a minha cidade. Entretanto, os guarda-costas de seu pai deixaram claro que seu pai era uma espécie de eremita quando meu emissário pediu um encontro. Entendo que ele prefira uma vida tranquila e rural fora da cidade, em contato com a natureza ou algo do tipo.

Sobre os nódulos de seus dedos, o sorriso de Fabien não alcançou seus olhos.

- Suponho que viver com aquele tipo de... simplicidade signifique alguma coisa.

Lex grunhiu.

- Meu pai escolheu tal vida porque acredita estar acima da lei.

- Como?

- É por isso que estou aqui - disse Lex. - Tenho informações. Informações importantes que precisam ser averiguadas rapidamente. Secretamente.

Edgar Fabien inclinou-se contra as almofadas do sofá.

- Ocorreu algo... fora da casa?

- Vem ocorrendo há muito tempo - Lex admitiu, sentindo uma rara sensação de liberdade enquanto essas palavras saíam-lhe da boca.

Lex contou a Fabien tudo sobre as atividades ilegais de seu pai, desde o clube de sangue e do cemitério cheio dos restos de suas vítimas até o frequente assassinato de seus Subordinados humanos. Explicou, não sendo totalmente sincero, como fora corroído por esses segredo durante um longo tempo e como era seu próprio sentido de moralidade - seu sentido de honra e de respeito pela lei da Raça - que o obrigava a procurar ajuda para deter o reino particular de terror de Sergei Yakut.

Era o entusiasmo – a emoção no fundo de sua coragem - que fazia sua voz tremer, mas, se Fabien entendesse isso como lamento, melhor ainda.

Fabien o escutou com a expressão cuidadosamente séria e sóbria.

- Entendo, estou certo de que isso não é um assunto menor. O que você descreveu é... problemático. Perturbador. Mas haverá certos fatos que virão à tona nesse tipo de investigação. Seu pai é um Primeira Geração. Haverá perguntas que ele terá de responder, protocolos que precisarão ser observados.

- Investigação? Protocolos? - disse, indignado, Lex. Saltou sobre os pés, alagado de medo e ira. - Isso poderá levar dias ou até mesmo semanas. Um maldito mês!

Fabien assentiu, desculpando-se.

- De fato, poderá.

- Não há tempo para isso agora! Você não entende? Estou oferecendo meu pai de bandeja. Todas as provas que necessitará para uma detenção imediata estão ali em sua propriedade. Pelo amor de Deus, estou arriscando minha maldita vida só por estar aqui!

- Sinto muito - o líder do Refúgio dizia isso sustentando as mãos erguidas. - Se a situação não for segura para você, estaremos mais do que dispostos a oferecer-lhe proteção. A Agência poderia afastá-lo quando a investigação começar, levá-lo para algum lugar seguro.

A afiada risada de Lex o interrompeu.

- Enviar-me ao exílio? Estarei morto muito antes. Além disso, não estou interessado em fugir e me esconder como um cão. Quero o que mereço. Quero o que aquele bastardo filho da mãe me deve depois de todos esses anos de espera por esmolas – diante das palavras de Lex, era impossível mascarar os verdadeiros sentimentos. A ira preenchia-lhe o corpo por completo. - Quer saber o que realmente quero de Sergei Yakut? A morte.

O olhar de Fabien estreitou-se astutamente.

- Essa é uma afirmação muito perigosa.

- Não sou o único que pensa assim - respondeu Lex. - De fato, alguém teve coragem suficiente para tentar isso na semana passada.

Os ardilosos olhos de Fabien ficaram mais e mais estreitos.

- O que quer dizer?

- Ele foi atacado. Alguém entrou na casa e tentou cortar a cabeça do maldito, mas acabou falhando. Maldita sorte - Lex acrescentou baixinho. - A Ordem pensa que foi trabalho de um profissional.

- A Ordem - repetiu Fabien sem ar. - Como estão envolvidos nisso que está descrevendo?

- Eles enviaram um guerreiro ontem à noite para encontrar-se com meu pai. Aparentemente, estão tentando avisar os Primeira Geração sobre a recente caçada entre a população.

A boca de Fabien trabalhou um segundo sem formar palavras, como se não estivesse segura sobre o que articular primeiro. Ele limpou a garganta.

- Há um guerreiro aqui em Montreal? E o que é isso de caçada recente? Do que você está falando?

- Cinco Primeira Geração foram mortos, nos Estados Unidos e na Europa - disse Lex, recordando o que Nikolai lhe havia dito. - Alguém parece querer eliminar a primeira geração, um por um.

- Santo Deus – a expressão de Fabien era o vivo retrato da surpresa, mas algo nela preocupou Lex.

- Não sabia nada sobre os assassinatos?

Fabien levantou-se lentamente, agitando a cabeça.

- Estou aturdido, asseguro-lhe isso. Não tinha ideia. Que coisa terrível.

- Talvez sim, talvez não - respondeu Lex.

Enquanto olhava o líder do Refúgio, Lex se deu conta de que uma súbita tranquilidade abatia-se sobre o vampiro – uma tranquilidade tamanha que Lex se perguntava se ele ainda estava respirando. Havia um tênue, porém elevado, pânico nos olhos ambiciosos de Lex. Edgar Fabien sustentava o corpo com rígida precisão, mas seu olhar mutante encarava Lex como se quisesse sair correndo da sala.

Interessante.

- Sabe, eu esperava que você estivesse mais bem informado, Fabien. Sua reputação na cidade me levava a acreditar nisso. Com todos os seus amigos policiais, você está querendo me dizer que nenhum deles lhe disse algo sobre isso? Provavelmente eles não confiam em você, não? Provavelmente eles têm uma boa razão para isso.

Nesse momento, Fabien encontrou o olhar de Lex. Cintilações âmbar iluminaram-lhe a íris com um sinal revelador de um nervo comprimido.

- Que tipo de jogo está tentando fazer comigo?

- O seu - disse Lex, percebendo uma oportunidade e agarrando-a. - Você sabe sobre as caçadas aos Primeira Geração. A questão é: por que mente sobre isso?

- Não discuto publicamente assuntos policiais - Fabien cuspiu em resposta, inflando seu magro peito com indignação. - O que sei ou não sei é assunto meu.

- Sabia também sobre o ataque a meu pai antes que eu o mencionasse, não é mesmo? Foi você quem o atacou, não é? E quanto aos outros assassinados?

- Jesus Cristo, você está completamente louco.

- Queria estar - disse Lex. – Seja lá o maldito complô em que você está metido, Fabien, eu também quero fazer parte dele.

O líder bufou bruscamente, depois deu as costas a Lex enquanto caminhava para uma das altas estantes cravadas em uma parede prateada. Acariciou a madeira polida, rindo preguiçosamente.

- Embora nossa conversa tenha sido esclarecedora e divertida, Alexei, ela talvez deva terminar aqui. Acredito que é melhor que você vá e se acalme antes de dizer mais alguma tolice.

Lex avançou, decidido a convencer Fabien de que ele valia a pena.

- Se o quiser morto, estou disposto a ajudá-lo a conseguir isso.

- Insensato - foi a resposta que recebeu. - Posso estalar meus dedos e prendê-lo sob suspeita de tentativa de assassinato. Posso, mas nesse momento quero que vá embora e nenhum de nós dirá uma palavra sequer a respeito dessa conversa.

A porta da recepção se abriu e quatro homens entraram. Ao assentimento de Fabien, o grupo rodeou Lex. Sem escolha, ele saiu.

- Manterei contato - disse Lex, mostrando os dentes. – Pode contar com isso.

Fabien não respondeu, mas seu ardiloso olhar permaneceu fixo sobre Lex, com severo entendimento, enquanto o homem, tenso, atravessava a porta e a fechava.

Assim que Lex saiu para a rua, sozinho, sua mente começou a cogitar as opções disponíveis. Fabien era corrupto. Que surpreendente e útil informação. Com um pouco de sorte, não passaria muito tempo antes que as conexões de Fabien fossem também as suas. Não se preocupou particularmente em pensar como as conseguiria.

Levantou os olhos em direção à bela mansão do Refúgio e todo seu imaculado luxo. Era isso o que Lex queria: esse tipo de vida e não a imundície e a degradação que havia conhecido sob o jugo de seu pai. Isso era o que ele verdadeiramente merecia.

Mas, primeiro, ele precisaria sujar as mãos, mesmo que pela última vez.

Lex caminhou ao longo da estrada cheia de curvas ladeada por arvoredos e se dirigiu para a cidade com seus objetivos renovados.

 

 

                                              CONTINUA