Sob o céu invernal escuro do Alasca, o canto de um lobo soou claro e majestoso em meio à noite. O uivo se estendeu, algo de uma beleza pura e selvagem, que alcançou os pinheiros densos da floresta boreal e escalou as paredes rochosas denteadas e cobertas de neve que se erguiam ao longo da margem do rio Koyukuk. Quando o lobo emitiu seu grito de caçada novamente, ele foi recebido por um riso dissonante, seguido de uma voz embriagada que respondeu do lado oposto das chamas de uma pequena fogueira.
– Au-au-au-auuuuuu! Auuuuu!
Um dos três rapazes do grupo que se reunira para se divertir naquela extensão remota de terra levou as mãos enluvadas ao redor da boca e exclamou mais uma réplica aguda para o lobo, que já se calara ao longe.
– Ouviram isso? Estamos nos comunicando aqui.
Ele alcançou a garrafa de uísque que vinha se aproximando dele, passando de mão em mão no pequeno grupo.
– Já te contei que sou fluente na língua dos lobos, Annabeth?
Do outro lado da fogueira, uma risada suave soprou uma nuvem de vapor debaixo do capuz da parca da moça.
– Para mim, pareceu mais que você é fluente na língua dos porcos.
– Ai, meu amor, essa doeu. Doeu mesmo.
Ele tomou uma golada da garrafa e passou o Jack Daniels para o próximo.
– Talvez você queira que eu faça uma pequena demonstração das minhas habilidades orais um dia desses. Juro que sou extremamente talentoso.
– Você é um cretino e tanto, Chad Bishop.
Ela tinha razão, mas seu tom de voz deixou claro que não falava a sério. Riu novamente, um som feminino, com um toque sensual de flerte, que fez com que a virilha de Teddy Toms se retesasse. Ele mudou de posição na rocha que tinha feito de assento, tentando não deixar seu interesse muito evidente, quando Chad anunciou que tinha de esvaziar a bexiga, e Annabeth e a outra garota ao lado dela começaram a conversar.
Um cotovelo pontudo atingiu Teddy na lateral direita da caixa torácica.
– Vai ficar sentado aí babando a noite inteira? Levanta essa sua bunda covarde daí e vai falar com ela, pelo amor de Deus.
Teddy lançou um olhar para o rapaz alto e magro sentado ao seu lado na rocha e balançou a cabeça.
– Fala sério, deixa de ser covarde. Você sabe que quer ir lá. Ela não vai te morder. Bem, a menos que você queira, não é?
Fora Skeeter Arnold quem levara Teddy para lá. Também fora ele quem arranjara o uísque, algo que Teddy, mesmo aos dezenove anos, só experimentara uma vez na vida.
Bebidas alcoólicas eram proibidas na casa do seu pai – proibidas em todo o assentamento de seis pessoas onde ele vivia, na verdade. Naquela noite, Teddy levara a
garrafa aos lábios mais de dez vezes. E não via problemas nisso. De fato, ele meio que gostava do modo como ela o fazia se sentir, aquecido e relaxado por dentro.
Crescido, como um adulto.
Um homem que queria mais do que tudo se levantar e dizer a Annabeth Jablonsky como se sentia em relação a ela.
Skeeter entregou a Teddy a garrafa quase vazia e o observou tomar o último gole.
– Acho que eu tenho outra coisa de que você vai gostar, meu amigo.
Skeeter tirou as luvas e enfiou a mão no bolso da parca.
Teddy não tinha certeza do que o outro tinha, e não se importava muito com isso no momento. Estava fascinado por Annabeth, que abaixara o capuz para mostrar à amiga
alguns dos novos piercings que subiam por todo o contorno da orelha. O cabelo estava tingido de um loiro muito claro, quase branco, com a exceção de uma mecha cor-de-rosa,
mas Teddy se lembrava de ela ser naturalmente morena. Ele sabia disso porque na primavera anterior a vira dançar no clube de strip em Fairbanks, onde Annabeth Jablonsky
era mais conhecida como Amber Joy. O rosto de Teddy corou com a lembrança, e a excitação que ele vinha tentando ignorar agora se mostrava completa.
– Tome – disse Skeeter, dando-lhe algo mais em que pensar enquanto Annabeth e a amiga se levantavam de perto da fogueira e caminhavam até a margem congelada do rio.
– Dê uma tragada nisto, amigo.
Teddy tomou o pequeno cachimbo de metal e aproximou do nariz o bojo fumegante. Uma pedra pálida e calcária queimava, exalando um odor fétido e químico que abriu
caminho até suas narinas. Ele fez uma careta, lançando um olhar de esguelha para Skeeter.
– O q-que é isso?
Skeeter sorriu, os lábios finos se afastando dos dentes tortos.
– Apenas uma pequena dose de coragem. Vá em frente, experimente. Você vai gostar.
Teddy levou o cachimbo até a boca e tragou a fumaça acre. Tossiu um pouco, depois exalou e aspirou mais uma vez.
– É bom, não é? – Skeeter o observou fumar um pouco mais, depois esticou a mão para pegar o cachimbo. – Devagar aí, meu chapa, deixe um pouco pra gente. Sabe, posso
conseguir um pouco mais disso se você quiser – e bebida também. Por um preço, posso conseguir todo tipo de coisa que você desejar. Se precisar de um bagulho, sabe
onde procurar, certo?
Teddy assentiu. Mesmo nas partes mais remotas do interior, as pessoas costumavam saber o nome, e o ramo de negócios em geral, de Skeeter Arnold. O pai de Teddy o
detestava. Proibira Teddy de sair com ele, e caso soubesse que Teddy saíra escondido naquela noite – ainda mais quando estava aguardando uma entrega na manhã seguinte
–, ele chutaria o traseiro de Teddy dali até Barrow.
– Pegue isto – Skeeter voltou a falar, estendendo o cachimbo para Teddy. – Vai e oferece pras moças com os meus cumprimentos.
Teddy ficou de boca aberta.
– E-está q-querendo q-que eu leve isso para Annabeth?
– Não, idiota. Leve para a sua mãe.
Teddy, nervoso, riu por sua falta de jeito. O sorriso de Skeeter se alargou, fazendo seu rosto estreito de nariz pontudo se parecer ainda mais com o de um inseto
do que de costume.
– Nunca diga que não te fiz um favor – disse Skeeter, enquanto Teddy pegava o cachimbo e lançava um olhar para onde Annabeth e a amiga estavam paradas perto do rio
congelado.
Ele vinha procurando um modo de puxar papo com ela, não vinha? Aquela era uma oportunidade tão boa quanto qualquer outra. A melhor que ele poderia conseguir.
A risada baixa de Skeeter acompanhou Teddy quando ele começou a se encaminhar para as garotas. O chão parecia desigual sob seus pés. As pernas pareciam feitas de
borracha, não exatamente sob seu controle. Por dentro, porém, ele estava voando, sentindo o coração pulsando, o sangue correndo nas veias.
As duas moças perceberam sua aproximação com o esmagar do gelo e das pedras sob suas passadas. Viraram-se para encará-lo, e Teddy ficou maravilhado diante do objeto
de seu desejo, debatendo-se para encontrar a coisa certa a dizer para conquistá-la. Ele deve ter ficado parado ali um bom tempo, porque as duas começaram a rir.
– E aí? – disse Annabeth, com um olhar questionador. – Você é o Teddy, não é? Já te vi por aí algumas vezes, mas nunca tivemos a chance de conversar antes. Você
costuma ir ao bar Pete’s, em Harmony?
Desajeitado, ele meneou a cabeça, esforçando-se para assimilar a ideia de que ela já o notara antes daquela noite.
– Você deveria ir um dia desses, Teddy – acrescentou ela com animação. – Se eu estiver trabalhando, não vou cobrar a sua bebida.
O som da voz dela, o som do seu nome nos lábios dela, quase o fez gozar ali mesmo. Ela lhe sorriu, revelando os dois dentes da frente ligeiramente encavalados que
Teddy considerava simplesmente adoráveis.
– Hum, tome isto.
Ele estendeu o cachimbo e recuou um passo. Ele queria dizer algo legal. Queria dizer alguma coisa – qualquer coisa – que talvez a fizesse vê-lo como algo além de
simplesmente um garoto nascido no interior que não sabia absolutamente nada sobre o mundo real.
Ele sabia das coisas. Sabia bastante. Ele sabia que Annabeth era uma boa garota, sabia que, no fundo, ela era decente e gentil. Ele sabia disso em seu íntimo e seria
capaz de apostar a vida nisso. Ela era melhor que a sua reputação e melhor do que aquele bando de perdedores que o acompanhavam naquela noite. Provavelmente até
melhor do que ele próprio.
Ela era um anjo, um anjo puro e adorável, e só precisava de alguém que a lembrasse disso.
– Ah, legal, obrigada – respondeu ela, e deu uma rápida tragada no cachimbo. Passou-o à amiga, e as duas começaram a se afastar de Teddy, dispensando-o.
– Espere – Teddy disse num rompante. Respirou fundo quando ela parou e olhou para trás na sua direção. – Eu, hum… Eu quero que você saiba que eu… eu acho você linda.
A amiga reprimiu uma risada atrás da mão enluvada enquanto Teddy falava. Mas Annabeth não. Ela não estava rindo. Ela o encarou sem dizer nada, sem piscar. Algo de
suave refletiu em seu olhar – confusão talvez. A amiga já gargalhava àquela altura, mas Annabeth ainda o ouvia, sem caçoar dele.
– Eu a considero a garota mais maravilhosa que já conheci. Você é incrível. Estou falando sério. Incrível de todas as maneiras.
Droga, ele estava sendo repetitivo. Mas pouco importava. O som da própria voz, sem o gaguejar que o fazia odiar ter que falar, deixou-o chocado. Engoliu em seco
e respirou fundo para se fortalecer, preparando-se para revelar tudo – tudo o que pensava desde que a vira dançando no palco mal iluminado da cidade.
– Eu acho você perfeita, Annabeth. Você merece ser respeitada e… idolatrada, sabe? Você é especial. É um anjo, e merece ser honrada. Por um homem que possa cuidar
de você e proteger você… e amar você…
O ar ao redor de Teddy se movimentou, trazendo o fedor do uísque e o cheiro dominante do perfume de Chad Bishop.
– B-beije-me, Amber Joy. P-por favor! D-deixe-me tocar nos seus p-peitos p-perfeitos!
Teddy sentiu o sangue fugir da cabeça quando Chad caminhou na direção de Annabeth e passou os braços possessivos ao redor dos ombros dela. Sua humilhação aumentou
cem vezes ao testemunhar o beijo de língua molhado na boca de Annabeth – um beijo que ela não rejeitou, mesmo parecendo não acolhê-lo.
Quando por fim Chad a libertou, Annabeth relanceou para Teddy, depois deu um leve empurrão no peito de Chad.
– Você é retardado, sabia?
– E você é tão sexy que faz meu p-pinto…
– Cala a boca! – as palavras saíram da boca de Teddy antes que ele pudesse detê-las. – C-cale sua maldita boca. Não… não fale c-com ela a-assim.
Os olhos de Chad se estreitaram.
– Sei que você não pode estar falando comigo, idiota. Me d-d-d-diga que você não está aí, pedindo para eu ch-ch-chutar o seu pp-pobre t-t-t-traseiro, T-T-Teddy T-T-Toms.
Quando ele deu sinal de que avançaria, Annabeth se colocou à sua frente.
– Deixe o pobre garoto em paz. Ele não consegue evitar o modo como fala.
Teddy desejou poder desaparecer. Toda a confiança que sentira um minuto antes desaparecera com a gozação de Chad e a piedade daninha de Annabeth. Ali perto, ele
ouviu Skeeter e a amiga de Annabeth se juntando à gozação de Chad. Agora estavam rindo dele. Todos eles caçoando da sua gagueira, as vozes unidas, ecoando em seus
ouvidos.
Teddy se virou e correu. Subiu em sua motoneve e deu partida. No instante em que o velho motor reviveu, Teddy girou o afogador. Acelerou e saiu voando para longe
do grupo, cheio de tristeza e ódio.
Nunca deveria ter saído com Skeeter. Não deveria ter tomado uísque e fumado o bagulho do cachimbo dele. Deveria ter ficado em casa, deveria ter dado ouvidos ao pai.
Seu arrependimento aumentou conforme se distanciava e voltava para casa. Uns quinhentos metros antes do agrupamento de chalés feitos à mão em que grande parte da
sua família vivia há gerações, a raiva e a humilhação de Teddy cederam espaço ao puro medo.
O pai ainda estava acordado.
Havia uma lâmpada acesa na sala de estar, e a luz que atravessava a cortina rompia a escuridão ao redor em um facho de luz. Se o pai estava de pé, ele devia saber
que Teddy não estava em casa. E assim que entrasse em casa, o pai veria que ele esteve na farra. O que significava que Teddy estaria encrencado.
– Q-que m-merda – Teddy murmurou ao desligar a luz do farol, desviar da trilha principal e desligar o motor. Desceu da motoneve e ficou parado um minuto, fitando
a casa enquanto permitia que as pernas embriagadas o sustentassem de pé.
Nada do que dissesse iria livrá-lo de uma encrenca. Ainda assim, tentou pensar numa explicação razoável sobre onde estivera e o que estivera fazendo nas últimas
horas. Afinal, já era homem. Sim, claro que tinha responsabilidades para com o pai, ajudando-o no que pudesse, mas isso não significava que ele não poderia ter vida
própria fora do assentamento. Se o pai viesse reclamar disso, Teddy simplesmente teria de deixar algumas coisas bem claras.
No entanto, assim que se aproximou mais da casa, sua coragem começou a desertá-lo. Cada passo cauteloso que dava esmagava audivelmente a neve, o som amplificado
pelo mais absoluto silêncio que pairava no ar. O ar gélido desceu pela gola da sua parca, aumentou o frio que ele já sentia em sua coluna trêmula. Uma rajada de
vento surgiu em meio ao grupo de casas, e quando o ar gélido o acertou em cheio no rosto, Teddy sentiu um medo profundo que eriçou os pelos da sua nuca.
Ele parou e olhou ao redor. Não vendo nada além da neve iluminada pelo luar e a silhueta escura da floresta, Teddy ultrapassou o abrigo de lenha que servia para
aquecer a família e um punhado de outras pessoas espalhadas pela região. Espiou mais à frente, procurando determinar se haveria um modo de se esgueirar para dentro
da casa sem ser notado. Sua respiração cortava o ar, entrando e saindo dos pulmões, o único ruído que ele escutava.
Tudo parecia tão quieto. Uma quietude sem vida, sobrenatural.
Foi então que Teddy parou de andar e olhou para a neve sob os pés. A neve debaixo das suas botas já não era mais branca, mas escura – quase negra na luz do luar,
uma mancha imensa e terrível. Era sangue. Mais sangue derramado do que Teddy jamais vira.
Seguiu mais uns poucos metros à frente. Tanto sangue.
E logo ele viu o corpo.
À sua direita, deitado bem próximo da divisa das árvores. Ele conhecia aquele corpo grande. Conhecia o formato largo dos ombros sob a camiseta térmica, agora rasgada
e escura, encharcada com mais sangue.
– Pai!
Teddy correu até o pai e se ajoelhou para ajudá-lo. Não havia mais nada a ser feito. O pai estava morto, a garganta e o peito dilacerados.
– Não! Pai! Meu Deus, não!
Terror e dor o sufocaram. Teddy se levantou com dificuldade para ir procurar o tio e os dois primos. Como eles podiam não saber o que havia acontecido ali? Como
era possível que o pai tivesse sido atacado daquele modo e o tivessem deixado para sangrar na neve?
– Socorro! – Teddy gritou, sentindo a garganta seca. Correu até a porta mais próxima e bateu, chamando o tio para que acordasse. Nada além do silêncio o recebeu.
Silêncio em todo o agrupamento de chalés e construções externas instalados naquele pequeno pedaço de terra. – Alg-g-guém! S-s-socorro! Ajudem, p-p-por f-f-favor!
Cego pelas lágrimas, Teddy se ergueu para bater na porta seguinte, mas parou o gesto no meio ao ver a porta entreaberta. Bem perto da entrada jazia seu tio, com
o corpo tão dilacerado quanto o do seu pai. Teddy espiou dentro da escuridão e viu as formas alquebradas da tia e dos primos.
Eles não estavam se mexendo. Também foram mortos. Todos os seus conhecidos – os seus amados – se foram.
Que diabos tinha acontecido ali?
Quem – ou o quê – em nome de Deus poderia ter feito aquilo?
Ele vagou para o centro do assentamento, entorpecido e descrente. Aquilo não poderia estar acontecendo. Não podia ser real. Por uma fração de segundo, imaginou se
a droga que Skeeter lhe dera provocara-lhe alucinações. Talvez nada daquilo estivesse acontecendo. Talvez ele estivesse viajando, vendo coisas irreais.
Foi uma esperança desesperada e fugidia. O sangue era real. O seu fedor impregnava-lhe as narinas e o fundo da língua como óleo espesso, fazendo-o querer vomitar.
A morte que o circundava era real.
Teddy caiu de joelhos na neve. Soluçou, não conseguindo conter o choque e a dor. Ele gritou e esmurrou a terra congelada, o desespero engolfando-o.
Não ouviu a aproximação dos passos. Foram suaves demais, como os de um gato. Contudo, no instante seguinte, Teddy compreendeu que não estava sozinho.
E soube, antes mesmo de se virar e ver o brilho ardente nos olhos do predador voraz, que estava próximo de se unir à família na morte.
Teddy Toms gritou, mas o som não chegou a escapar da garganta.
Capítulo 1
Oitocentos e cinquenta metros abaixo das asas do monomotor de Havilland Beaver vermelho, a larga expansão de gelo do rio Koyukuk reluzia sob a luz da manhã como
uma fita feita de diamantes estilhaçados. Alexandra Maguire seguia o feixe longo de água cristalina cheia de gelo mais ao norte de Harmony, a traseira do avião carregada
com os suprimentos daquele dia de entrega para um punhado de moradores do interior.
Ao seu lado no banco de passageiros da cabina estava Luna, a melhor copiloto que ela já teve depois do seu pai, que lhe ensinara tudo o que ela sabia sobre pilotar
um avião. A malamute-do-alasca cinza e branca estivera substituindo Hank Maguire nos últimos anos, quando o Alzheimer passara a assumir o comando. Era difícil de
acreditar que já fazia seis meses que ele partira, ainda que Alex muitas vezes tivesse sentido como se o estivesse perdendo lentamente há muito mais tempo do que
isso. Pelo menos a doença que estivera corroendo sua mente e suas lembranças também pusera um fim à sua dor; por certo, um ato de misericórdia.
Agora eram somente Luna e ela morando na velha casa em Harmony e fazendo as entregas para a pequena clientela de Hank no interior. Luna estava sentada ereta ao lado
de Alex, as orelhas apontadas para a frente, os afiados olhos azuis mantendo-se vigilantes no terreno montanhoso de Brooks Range, com seu volume extenso preenchendo
o horizonte a noroeste. Ao cruzarem o Círculo Ártico, a cadela se remexeu no assento e emitiu um ganido rápido e ansioso.
– Não me diga que você consegue farejar a carne seca de alce de Pop Toms daqui de cima – comentou Alex, esticando a mão para afagar o pelo da cabeça dela enquanto
prosseguiam para o norte ao longo da forquilha do Koyukuk, passando pelos vilarejos de Bettles e Evansville. – Ainda faltam uns vinte minutos para o café da manhã,
garota. Talvez uns trinta, se aquelas nuvens negras de tempestade sobre o Anaktuvuk Pass resolverem soprar para estes lados.
Alex observou os sinais de tempestade que pairavam alguns quilômetros além do seu curso de voo. Havia mais previsão de neve; certamente algo nada incomum para o
mês de novembro no Alasca, mas não exatamente condições ideais para a sua rota de entregas do dia. Soltou uma imprecação quando os ventos vindos das montanhas aumentaram
e percorreram o vale do rio para aumentar a excitação de um voo já turbulento.
O pior já tinha passado quando o celular de Alex começou a tocar no bolso da sua parca. Ela desenterrou o aparelho e atendeu sem precisar saber quem estava do outro
lado da linha.
– Olá, Jenna.
Ao fundo, na casa da sua melhor amiga, Alex conseguia ouvir as notícias do rádio do Serviço Florestal alertando quanto às condições adversas do tempo e dos ventos.
– A tempestade está indo na sua direção daqui a algumas horas, Alex. Já aterrissou?
– Ainda não.
Ela atravessou mais um tanto de turbulência ao se aproximar da vila de Wiseman e direcionou o avião para a rota que a conduziria para a primeira parada em sua escala
de entrega.
– Devo estar a uns dez minutos da casa dos Toms agora. E depois, mais três paradas. Não devo levar mais do que uma hora no total, mesmo com esse vento que estou
enfrentando agora, contra mim. Acho que a tempestade só chega depois disso.
Era mais uma esperança do que cálculos qualificados, compreensão pela preocupação da amiga mais do que precaução com sua própria segurança. Alex era uma boa piloto,
e muito bem treinada por Hank Maguire para fazer algo completamente negligente, mas o simples fato era que a mercadoria que ela levava no avião já estava uma semana
atrasada por causa das más condições climáticas. Até parece que ela permitiria que alguns flocos de neve ou ventos tempestuosos a impedissem de entregar as mercadorias
para o pessoal encravado no interior, que contava com ela para ter combustível e alimentos.
– Está tudo bem por aqui, Jenna. Sabe que sou cuidadosa.
– Sei, sim – a outra concordou. – Mas acidentes acontecem, não é mesmo?
Alex poderia ter dito a Jenna que não se preocupasse, mas dizer isso de nada adiantaria. A amiga sabia melhor do que qualquer um – ou do que ninguém – que a crença
de um piloto do interior era mais ou menos a mesma de um oficial de polícia: Você tem que sair; não tem que voltar.
Jenna Tucker-Darrow, ex-policial pertencente a uma longa linhagem de policiais – e, além disso, viúva de um – se calou por um instante. Alex sabia que muito provavelmente
o fluxo de pensamento da amiga estava ficando sombrio, por isso se esforçou para preencher o silêncio com conversa mole.
– Olha, quando eu falei com Pop Toms ontem, ele me disse que acabara de defumar uma bela porção de carne de alce. Quer que eu o convença a me mandar de volta para
casa com um pouco para você?
Jenna riu, mas parecia que os pensamentos dela estavam muito distantes dali.
– Claro. Se você acha que Luna vai deixar você fazer isso, então quero, sim.
– Pode deixar. A única coisa melhor do que a carne seca do Pop são os biscoitos e o molho dele. Sorte que eu posso conseguir um pouco dos dois.
Café da manhã na casa de Pop Toms em troca de duas entregas mensais era uma tradição começada pelo pai de Alex. Era uma coisa que ela gostava de manter, embora o
preço do combustível superasse em muito o preço das refeições simples de Pop. Mas Alex gostava dele e da sua família. Era um pessoal simples e bom, vivendo de modo
autêntico com base na mesma terra que sustentara gerações de sua corajosa família.
A ideia de se sentar diante de um belo café da manhã feito em casa, quentinho, conversando sobre os acontecimentos da semana com Pop Toms, fazia cada solavanco e
mergulho do voo até aquela localização remota valer a pena. Enquanto Alex contornava o derradeiro cume e começava a descer em direção à improvisada pista de pouso
atrás da casa de Pop, imaginava o cheiro agridoce da carne defumada e os biscoitos amanteigados que já estariam assando no forno à lenha quando ela chegasse.
– Olha, preciso desligar – disse a Jenna. – Vou precisar das duas mãos para aterrissar esta coisa aqui e eu…
As palavras ficaram presas na garganta. Em terra, logo abaixo, algo estranho chamou a atenção de Alex. Na manhã escura de inverno, ela não conseguia identificar
o que era a forma volumosa coberta de neve bem no meio do assentamento, mas o que quer que fosse aquilo, fez com que os pelos da sua nuca se eriçassem.
– Alex?
Ela não conseguiu responder de pronto, todo o seu foco voltado para o estranho objeto abaixo. O medo subiu pela sua espinha, tão frio quanto o vento castigando o
para-brisa.
– Alex, você está ainda aí?
– Eu, hum… estou aqui, sim.
– O que está acontecendo?
– Não tenho certeza. Estou vendo a casa de Pop logo à frente, mas tem alguma coisa estranha aqui.
– O que quer dizer com isso?
– Não sei dizer ao certo… – Alex espiou pela janela da cabina ao aproximar o avião, preparando-se para aterrissar. – Tem alguma coisa na neve. Não está se mexendo.
Ai, meu Deus… Acho que é uma pessoa.
– Tem certeza?
– Não sei – Alex murmurou ao telefone, mas, pelo modo como sua pulsação estava acelerada, ela não tinha dúvidas de que estava olhando para um ser humano deitado
debaixo de uma camada fresca de neve.
Um ser humano morto, se tivesse permanecido ali deitado sem ser notado por mais do que algumas horas naquele frio medonho.
Mas como? Eram quase nove da manhã. Mesmo o dia ainda não clareando até perto do meio-dia no norte, Pop já estaria acordado há diversas horas àquela altura. As outras
pessoas no assentamento – a irmã dele com a família – teriam de estar cegas para não perceberem que um deles não só não estava por ali, mas também formava um monte
congelado logo do lado de fora de suas portas.
– Fale comigo, Alex – dizia Jenna, usando seu tom policial, aquele que exigia ser obedecido. – Conte-me o que está acontecendo.
Ao descer para aterrissar, Alex notou outra forma preocupante no terreno abaixo – essa esparramada entre a casa de Pop Toms e a divisa da floresta circundante. A
neve ao redor do corpo estava coberta de sangue, manchas negras ensopando o manto branco fresco com uma intensidade pavorosa.
– Ai, Jesus – sibilou entre os dentes. – Isto aqui está bem ruim, Jenna. Algo terrível aconteceu. Há mais de uma pessoa aqui… Elas foram… feridas de alguma forma.
– Feridas, como?
– Estão mortas – murmurou Alex, a boca ficando subitamente seca com a certeza do que estava vendo. – Ai, meu Deus, Jenna… Eu estou vendo sangue. Muito sangue.
– Merda – Jenna sussurrou. – Ok, preste atenção, Alex. Quero que fique comigo ao telefone. Dê meia-volta e venha para a cidade. Vou chamar Zach pelo rádio enquanto
fico no celular com você, tudo bem? O que quer que tenha acontecido, acho que devemos deixar Zach cuidar disso. Não se aproxime…
– Não posso deixá-los sozinhos – Alex exclamou. – Há pessoas feridas ali embaixo. Podem estar precisando de ajuda. Não posso simplesmente virar e voltar, deixando
todos eles para trás. Ai, meu Deus. Preciso descer e ver se posso fazer alguma coisa…
– Alex, mas que droga, não faça…
– Tenho que desligar – disse ela. – Já vou pousar.
Ignorando as ordens contínuas de Jenna para que deixasse a situação nas mãos de Zach Tucker, irmão dela e único policial num raio de cento e sessenta quilômetros,
Alex desligou o celular e desceu o avião sobre seus esquis na curta pista de pouso. Fez o Beaver parar abruptamente na neve fofa, não exatamente um pouso suave,
mas bom o bastante, considerando que cada terminação nervosa em seu corpo urrava num pânico crescente. Desligou o motor e, assim que abriu a porta da cabina, Luna
saltou por cima do seu colo, saindo em disparada do avião em direção ao aglomerado de casas.
– Luna!
A voz de Alex ecoou no estranho silêncio do lugar. A malamute já estava longe de sua vista. Alex desceu do avião e chamou Luna mais uma vez, mas apenas o silêncio
respondeu. Ninguém das casas ao redor apareceu para cumprimentá-la. Nenhum sinal vindo do abrigo de lenha de Pop Toms a poucos metros dali. Nenhum sinal de Teddy,
que, apesar da sua fachada indiferente de adolescente, adorava Luna tanto quanto a cadela o adorava. Tampouco havia sinal da irmã de Pop, Ruthanne, nem do marido
dela e dos filhos, que normalmente se levantavam muito antes do nascer do sol tardio de novembro para cuidar das tarefas do assentamento. O local estava inerte e
silencioso, completamente sem vida.
– Merda – Alex sussurrou com o coração batendo forte no peito.
Que diabos tinha acontecido ali? Em que tipo de situação perigosa ela podia ter entrado ao sair do avião?
Ao pegar o rifle carregado de dentro do compartimento de carga, a mente de Alex se agarrou à possibilidade mais repugnante. Era o meio do inverno em pleno interior,
já se ouvira falar de alguém enlouquecendo e atacando o vizinho ou infligindo ferimentos a si mesmo, talvez os dois num curto período. Não queria pensar nisso –
não conseguia visualizar ninguém daquele grupo unido surtando daquela maneira, nem mesmo o sorumbático Teddy, com quem Pop vinha se preocupando por ter recentemente
se misturado a um grupo perigoso.
Com o rifle pronto na mão, Alex saiu do avião e partiu na direção em que Luna correra. A cobertura de neve da noite anterior estava macia sob as suas botas, abafando
o som das suas passadas conforme ela se aproximava com cautela da loja de Pop. A porta dos fundos estava destrancada, entreaberta por quinze centímetros de neve
que entrara pela soleira, começando a se acumular. Ninguém entrara ali por pelos menos algumas horas.
Alex engoliu o nó de medo que aumentava em sua garganta. Ela mal ousava respirar ao continuar até o aglomerado de casas em frente. O latido de Luna a sobressaltou.
A malamute estava sentada alguns metros mais adiante. Aos seus pés estava uma das formas sem vida que Alex vira no ar. Luna latiu uma vez mais, depois cutucou o
corpo com o focinho como se tentasse movê-lo.
– Ai, Jesus… será possível? – Alex sussurrou, fitando mais uma vez o assentamento silencioso enquanto segurava a arma com mais firmeza. Seus pés pesavam como chumbo
enquanto ela caminhava até Luna e aquela forma inerte coberta de neve no chão. – Boa menina. Já cheguei. Deixe-me dar uma olhada.
Que Deus a ajudasse, ela não precisou se aproximar muito para ver que era Teddy quem estava ali. A camisa de flanela preta e vermelha preferida do adolescente estava
aparecendo por debaixo da pesada parca dilacerada e ensanguentada. O cabelo negro que repousava sobre a face e a testa estava coberto de gelo, a pele morena congelada
e encerada, tingida de azul onde não estava coberta do vermelho do sangue coagulado dos ferimentos abertos, onde a laringe costumava ficar.
Alex se apoiou sobre os calcanhares, aspirando fundo enquanto a realidade daquilo que estava presenciando a esmurrava. Teddy estava morto. Era apenas um garoto,
pelo amor de Deus, e alguém o matara e o deixara ali como um animal.
E ele não era o único a ter esse destino no assentamento remoto da sua família. Com o choque e o medo se agarrando a ela, Alex se afastou do corpo de Teddy e virou
o rosto para observar a área ao redor e as casas. Uma porta batia nas dobradiças do lado oposto. Outro montículo estava ao lado de um dos chalés. E mais outro, logo
abaixo da porta de uma caminhonete que estava estacionada ao lado de um velho galpão de estoque de lenha.
– Ai, meu Deus… não…
E também havia o corpo que tinha visto em sua aterrissagem no assentamento, aquele que se assemelhava a Pop Toms, morto e ensanguentado próximo ao limiar das árvores
da floresta atrás de sua casa.
Segurando o rifle com mais firmeza, mesmo duvidando que o assassino – ou assassinos, levando-se em conta a extensão da carnificina ali presente – tivesse se dado
ao trabalho de ficar por perto, Alex se viu caminhando na direção daquela extensão manchada de neve próxima às árvores, com Luna a seguindo.
O coração e o estômago de Alex se retorciam a cada passo dado. Ela não queria ver Pop daquela maneira, não queria ver ninguém de quem gostasse brutalizado e alquebrado
e coberto de sangue… nunca mais.
Ainda assim, não conseguiu deixar de se aproximar, assim como não conseguiu deixar de se ajoelhar ao lado do horrendo cadáver do homem que sempre a recebera com
um sorriso e um grande e forte abraço de urso. Alex apoiou a arma na neve avermelhada ao seu lado. Com um grito sem voz estrangulado na garganta, esticou a mão e,
com cuidado, rolou os ombros do corpulento homem. O rosto arruinado, sem vida, que a fitou fez o sangue de Alex gelar nas veias. A expressão dele era de terror,
congelada em suas feições antes joviais. Alex nem conseguia imaginar o horror que ele devia ter passado no instante antes de morrer.
Pensando bem…
A antiga lembrança retornou dos recônditos escuros e trancafiados do seu passado. Alex sentiu sua mordida aguda, ouviu os gritos que romperam a noite – e a sua vida
– para sempre.
Não.
Alex não queria reviver aquela dor. Não queria pensar a respeito daquela noite, muito menos nesse instante. Não enquanto estava circundada por tanta morte. Não enquanto
estivesse tão sozinha. Não suportaria desenterrar o passado que deixara há dezoito anos e milhares de quilômetros.
Porém, ele rastejou de volta em seus pensamentos como se tivesse sido apenas ontem. Como se estivesse acontecendo de novo, a sensação inabalável de que o mesmo horror
a que ela e o pai sobreviveram há tanto tempo na Flórida de algum modo viera visitar esta família inocente na floresta isolada do Alasca. Alex reprimiu um soluço
enojado, limpando as lágrimas que queimavam seu rosto quando congelaram em sua pele.
O grunhido de Luna ao seu lado invadiu seus pensamentos. A cadela agora cavava próxima ao corpo, o focinho enterrado na neve fofa. Ela avançou, farejando um cheiro
que levava até as árvores. Alex se levantou para ver o que Luna encontrara. Ela não enxergou de pronto, mas depois, quando o fez, o que viu não fez sentido em sua
mente.
Era uma marca de pisada, suja de sangue e parcialmente escondida pela neve recém-caída. Uma pegada humana que, pelos seus cálculos, caberia numa bota grande tamanho
quarenta e quatro. Mas o pé que a deixara estava descalço – naquele frio mortal, mais do que improvável, impossível.
– Mas que diabos?
Aterrorizada, Alex segurou Luna pela coleira e a manteve firme ao seu lado antes que a cadela conseguisse rastrear as pegadas. Ela observou onde elas pareciam mais
sutis e depois simplesmente desapareciam. Aquilo não fazia sentido.
Nada daquilo fazia sentido algum na realidade do mundo que ela queria enxergar.
Vindo da direção do avião, ela ouviu seu celular tocar, juntamente com a estática do rádio do Beaver, enquanto uma voz masculina agitada exigia que ela entrasse
em contato.
– Alex! Maldição! Você está ouvindo? Alex!
Feliz com a distração, Alex pegou o rifle e correu de volta para o avião, com Luna acompanhando seus passos, como boa guarda-costas que era.
– Alex! – Zach Tucker berrou seu nome novamente pelas ondas do rádio. – Se consegue me ouvir, responda agora! Alex!
Ela se inclinou sobre o assento e pegou o rádio.
– Estou aqui – disse, sem fôlego e trêmula. – Estou aqui, Zach, e eles estão todos mortos. Pop Toms. Teddy. Todo mundo.
Zach sussurrou uma imprecação.
– E quanto a você, você está bem?
– Sim… – ela murmurou. – Ah, meu Deus, Zach, como isso pôde ter acontecido?
– Vou cuidar disso – ele garantiu. – Mas agora eu preciso que você me conte o que consegue ver, ok? Você viu armas, alguma explicação para o que pode ter acontecido
aí?
Alex lançou um olhar desolado para a carnificina no assentamento. Para as vidas dizimadas tão violentamente. O sangue que ela conseguia sentir no vento frio.
– Alex? Você tem alguma ideia de como esse pessoal pode ter sido morto?
Ela fechou os olhos com força contra a torrente de lembranças que a assolaram – os gritos da mãe e do seu irmãozinho, os gritos angustiados do pai e a fuga com ela
no meio da noite, antes que os monstros tivessem a chance de matar a todos.
Alex balançou a cabeça, tentando desesperadamente expulsar aquela horrível recordação… e negar para si mesma que os assassinatos ali, da noite passada, estavam marcados
pelo mesmo tipo impensável de horror.
– Fale comigo – insistiu Zach. – Ajude-me a entender o que aconteceu se puder, Alex.
As palavras não saíam de sua boca. Continuavam presas na garganta, engolfadas pelo nó do terror gélido que se abrira no meio do seu peito.
– Eu não sei – respondeu, a voz soando distante e endurecida no silêncio da floresta gelada e deserta. – Não sei lhe dizer o que poderia ter feito isso. Não posso…
– Está tudo bem, Alex. Sei que deve estar transtornada. Apenas volte para casa agora. Já chamei Roger Bemis na pista de pouso. Ele vai me levar para aí dentro de
uma hora e nós vamos cuidar dos Toms, está bem?
– Está bem – ela sussurrou.
– Tudo vai acabar bem, eu prometo.
– Está bem – ela repetiu, sentindo mais uma lágrima escorrendo pela face gelada.
Seu pai dissera as mesmas palavras há tantos anos – uma promessa de que tudo ficaria bem. Ela não acreditara nele. Depois do que ela tinha visto ali, a sensação
de que havia algo maligno se aproximando dela mais uma vez, Alex se perguntou se qualquer coisa voltaria a ficar bem novamente.
Skeeter Arnold deu uma longa tragada num grosso baseado ao se recostar na desgastada poltrona reclinável azul-bebê, a melhor peça de mobília que ele possuía na porcaria
de apartamento que mantinha nos fundos da casa da mãe, em Harmony. Prendendo a fumaça nos pulmões, fechou os olhos e ficou ouvindo os ruídos do rádio de ondas curtas
sobre a bancada da cozinha. Em sua opinião, no tipo de negócios em que estava metido, era interessante ficar de olho não só na polícia, mas também nos caipiras locais
estúpidos demais para ficarem longe de encrenca.
E sim, talvez ele também gostasse de ouvir as mensagens porque obtinha uma significativa satisfação perversa em saber das desgraças das pessoas. Era bom ser de vez
em quando lembrado de que ele não era o maior perdedor do estado inteiro do Alasca, pouco importando o que a vaca da mãe dele lhe dizia rotineiramente. Skeeter baforou
lentamente, a fumaça fina se formando ao redor da imprecação que ele murmurou ao ouvir o rangido das tábuas velhas, conforme a eterna pedra em seu sapato vinha pisando
duro pelo corredor até seu quarto.
– Stanley, você não me ouviu chamando? Está querendo dormir o maldito dia inteiro? – ela bateu na porta com o punho, depois mexeu na maçaneta trancada, sem surtir
nenhum resultado. – Eu não tinha dito para você ir logo cedo comprar arroz e feijão em lata? Que diabos você está esperando, o degelo da primavera? Levante esse
traseiro preguiçoso e faz algo útil só para variar!
Skeeter nem se deu ao trabalho de responder. Nem mudou de posição na poltrona, sequer piscou enquanto a mãe bufava e socava a porta. Deu mais um trago demorado e
se deliciou com a sensação, sabendo que o aborrecimento do lado de fora logo se cansaria de ser ignorado por ele e voltaria para seu poleiro de harpia diante da
televisão, que era o seu devido lugar.
Para ajudar a abafá-la enquanto isso, Skeeter se aproximou do rádio e aumentou o volume. O único policial de Harmony, Zach Tucker, parecia estar muito atarefado
com algo importante naquele dia.
– Stanley Arnold, não pense que pode me ignorar, sua farsa miserável de filho! – a mãe bateu à porta novamente, depois se afastou, com sua bocarra ainda trabalhando
pelo corredor. – Você é igual ao seu pai. Nunca valeu nada e nem vai valer!
Skeeter se levantou da poltrona e se aproximou do rádio enquanto Tucker, reportando-se para os rapazes da força policial de Fairbanks, passava as coordenadas de
uma cena de crime aparentemente múltipla – provável homicídio, ele dissera – uns sessenta quilômetros para o interior. Tucker estava esperando o transporte aéreo
de um dos dois pilotos residentes. Ele dissera que fora Alex Maguire que encontrara os corpos em sua rota de entregas e, naquele instante, estava no caminho de volta
para a cidade.
Skeeter sentiu uma pontada de excitação ao escutar. Ele conhecia aquela área específica muito bem. Diabos, na noite anterior estivera por ali com Chad Bishop e algumas
outras pessoas. Eles beberam e se drogaram perto do rio… pouco antes de terem começado a atormentar Teddy Toms. Na verdade, pelo que lhe parecia, o assentamento
a que se referiam os policiais era o da família do rapaz.
– Não pode ser… – Skeeter sussurrou, perguntando-se se podia estar certo quanto àquilo. Só para ter certeza, anotou as coordenadas na palma da mão, depois vasculhou
em meio à pilha de contas vencidas e outros lixos até encontrar o mapa marcado de cerveja que ele vinha usando como apoio de copo nos últimos anos. Fez a triangulação
no mapa, e a descrença e um tipo doentio de surpresa tomaram conta dos seus sentidos.
– Puta merda – disse, dando mais uma longa tragada no baseado antes de apagá-lo na fórmica já gasta, para poupar o resto da droga para mais tarde. Estava excitado
demais para acabar com ela agora. Aceso demais pela curiosidade mórbida para não andar de um lado para o outro sobre o carpete duro.
Será que Pop Toms e o cunhado do velho tinham se pegado? Ou teria sido Teddy que finalmente se livrara da sua coleira? Será que o garoto voltara para casa e perdera
a cabeça depois que Skeeter e os outros o fizeram ir embora chorando na noite anterior à margem do rio?
Ele saberia de tudo sem demora, deduziu Skeeter. Sempre quisera ver uma pessoa morta assim, de perto. Talvez ele só fizesse um pequeno desvio a caminho da loja para
comprar o arroz e o feijão que sua mãe queria.
Bom, e talvez ele simplesmente ignorasse o maldito dever de garotinho e fosse direto fazer o que ele queria, só para variar.
Skeeter apanhou o celular – um novinho com memória para vídeo e capinha de caveira com ossos cruzados. Em seguida, apanhou as chaves de seu trenó Yamaha do meio
da bagunça da bancada. Não se importou em dizer à mãe para onde estava indo, simplesmente pegou as roupas de inverno e caminhou para o frio gélido do dia.
Capítulo 2
BOSTON, MASSACHUSETTS
O calor saía das ventoinhas do painel do Range Rover enquanto Brock aumentava a temperatura em mais alguns graus.
– Maldita noite fria.
O homenzarrão de Detroit levou as mãos diante da boca e soprou nas palmas.
– Eu odeio o inverno, cara. Isso aqui está mais parecendo a Sibéria.
– Nem chega perto disso – Kade respondeu detrás do volante do carro estacionado, o olhar fixo no decrépito prédio de tijolos aparentes que vinham vigiando nas últimas
horas. Mesmo na escuridão de depois da meia-noite, com uma camada fresca de neve disfarçando tudo com seu branco imaculado, o lugar parecia um antro do lado de fora.
Não que isso fosse relevante. O que quer que estivesse acontecendo no interior – drogas, sexo ou uma combinação de ambos –, atraía um fluxo constante de tráfego
humano pelas portas. Kade observou um trio de amigos de uma fraternidade usando uniformes coloridos de uma universidade e duas jovens bem-arrumadas saírem de um
Impala malconservado e entrarem no prédio.
– Se aqui fosse a Sibéria – Kade acrescentou, quando a rua ficou vazia novamente –, as nossas bolas estariam tilintando como guizos e estaríamos urinando cubos de
gelo. Boston é um piquenique no parque em novembro.
– E quem diz isso é o vampiro nascido nas geleiras glaciais do Alasca – replicou Brock, balançando a cabeça enquanto sustentava as mãos diante da saída de ar, tentando
se livrar do frio. – Quanto tempo mais você acha que precisamos esperar aqui antes que o nosso homem resolva mostrar sua cara feia? Preciso começar a me mexer antes
que meu traseiro congele neste banco.
Kade rosnou mais do que riu, tão impaciente quanto o seu parceiro na patrulha da cidade naquela noite. Não foram os humanos que trouxeram Brock e ele para aquele
endereço numa das áreas mais barra-pesada de Boston, mas o indivíduo supostamente por trás da atividade ilegal. E se suas informações se mostrassem verdadeiras –
que o vampiro que administrava o lugar também vinha negociando outra mercadoria proibida –, então a noite terminaria de um jeito muito desagradável, provavelmente
muito sangrento.
Kade mal conseguia esperar.
– Aqui está ele – disse, observando um par de faróis dobrar a esquina e uma Mercedes preta com para-choque e calotas douradas parar lentamente perto da guia.
– Você só pode estar de brincadeira – Brock disse, sorrindo zombeteiramente enquanto o espetáculo continuava.
A música reverberava dentro do sedã, o baixo rítmico e a letra contundente vibrando de uma maneira impossivelmente alta, enquanto o motorista saía e dava a volta
para abrir a porta de trás do passageiro. Um par de pit bulls brancos na coleira foram os primeiros a sair, seguidos por seu dono, um macho alto da Raça, tentando
com muito afinco parecer malvado mesmo estando envolvido num casaco longo de pele de raposa e tendo ultrapassado uns cinco quilos além do limite respeitável de joias
e lápis de olho para homens.
– Esqueça tudo o que Gideon descobriu a respeito desse cara – disse Kade. – Temos motivos para acabar com ele só por sair na rua vestido desse jeito.
Brock riu, revelando as pontas das suas presas.
– Se quer saber a minha opinião, acho que temos que acabar com ele só por termos congelado nossas bolas enquanto o esperávamos.
Na calçada, o vampiro deu um puxão forte na guia de couro dos cachorros quando eles ousaram se adiantar um passo. Chutou o que estava mais próximo quando se encaminhou
para a porta do edifício, rindo do ganido de dor do bicho. Quando ele e o motorista desapareceram dentro do prédio, Kade desligou o motor auxiliar do Rover e abriu
a porta.
– Vamos lá – disse. – Vamos achar uma entrada lá pelos fundos enquanto o camarada faz a sua entrada triunfal.
Foram para os fundos do prédio e encontraram uma janela baixa no térreo meio escondida pela neve e pelo lixo da rua. Agachando de cócoras, Kade afastou a sujeira
coberta de gelo, depois ergueu o painel de vidro e espiou o cômodo escuro do lado de dentro. Era um porão, tomado por alguns colchões velhos, preservativos e seringas
usados, e uma combinação fétida de urina, vômito e vários outros fluidos corporais que assaltou os sentidos acurados de Kade tal qual uma marreta em seu crânio.
– Jesus Cristo – sibilou ele, os lábios se curvando para trás sobre os dentes e as presas. – A empregada do camarada vai ser demitida.
Ele entrou sorrateiro, aterrissando sem emitir nenhum som no piso áspero de concreto. Brock o seguiu, com seus cento e trinta quilos de vampiro bem armado movendo-se
tão sorrateiramente quanto um gato ao seu lado. Kade passou da bagunça nojenta do piso para um canto escuro do cômodo, onde pendia uma corrente curta e um par de
algemas. Um pedaço prateado de fita adesiva fora descartado ali ao lado, com muitos fios longos de cabelo loiro ainda grudados nela.
Brock se deparou com o olhar inflexível de Kade no escuro. Sua voz foi mais um grunhido do que palavras.
– Tráfico de mulheres.
Kade assentiu com gravidade, enojado com as evidências de tudo o que acontecera naquele porão-prisão escuro e úmido. Ele já estava para subir as escadas e invadir
a festinha que acontecia logo acima quando uma imprecação de Brock o deteve.
– Não estamos sozinhos aqui, meu amigo – Brock indicou a porta escondida pelas sombras e pelo esqueleto de um velho colchão de molas que se apoiava com esmero demais
contra ela. – Humanos – disse ele. – Fêmeas, logo ali do outro lado da porta.
Ouvindo as respirações baixas e enfraquecidas, e sentindo o fluxo de dor e sofrimento que permeava o ar, Kade se moveu com Brock em direção ao canto escuro do porão.
Empurraram de lado o colchão, depois Kade suspendeu a pesada trava de metal que barrava a porta pelo lado de fora.
– Caramba – Brock sussurrou na escuridão. Ele deu um passo para dentro de um quartinho onde três jovens se sentavam agrupadas num dos cantos, tremendo aterrorizadas.
Quando uma delas deu mostra de que iria gritar, Brock se moveu mais rápido do que qualquer uma das humanas drogadas poderia acompanhar. Abaixando a mão, pousou-a
sobre a testa da mulher, silenciando-a num estado de transe com seu toque. – Está tudo bem. Você está a salvo agora. Não estamos aqui para machucá-las.
– Alguma delas está sangrando? – perguntou Kade, observando enquanto Brock levava as outras duas prisioneiras ao mesmo estado silencioso.
– Bateram nelas recentemente, por isso há hematomas. Mas não vejo nenhuma marca de mordida. Também não vejo nenhuma marca de Companheira de Raça – acrescentou, fazendo
uma rápida verificação das peles expostas e das extremidades das mulheres, à procura da marca de nascença em forma de gota e lua crescente que diferenciava as mulheres
humanas das suas irmãs geneticamente extraordinárias. Brock soltou suavemente o braço pálido que segurava e se levantou. – Pelo menos nenhuma delas é Companheira
de Raça.
Uma pequena bênção, mas uma que não exonerava o vampiro patife que se estabelecera no mundo dos negócios traficando mulheres para quem oferecesse o lance mais alto.
– Me dê um minuto para que eu possa apagar as lembranças daquilo que passaram e levá-las daqui para um lugar seguro – disse Brock. – Vou logo atrás de você.
Kade concordou com um breve aceno de cabeça e um lampejo das presas.
– Nesse meio-tempo, vou subindo para ter uma conversinha em particular com o camarada.
Com agressividade queimando como ácido nas veias, Kade subiu as escadas para o barulhento andar principal da construção, passando ao largo da orgia que acontecia
sob uma nuvem de fumaça narcótica, música industrial intoxicante e luzes estroboscópicas cintilantes.
Num escritório no fim do corredor, ele ouviu a voz áspera do patife que estava procurando.
– Vá lá pegar a fêmea que chegou com aqueles almofadinhas universitários – não, não a loira, a outra. Se ela for ruiva de verdade, vai valer o dobro para mim.
Kade ficou para trás, sorrindo quando o motorista corpulento do camarada saiu do escritório e o viu parado no meio do corredor. O macho era da Raça também, e a ameaça
cintilou quando o âmbar reluziu em suas íris ao ver o perigo diante de si.
– Shh… – Kade disse amigavelmente, uma adaga já na mão, pronta para ser lançada.
Ele a atirou no instante em que o motorista foi pegar a própria arma, atingindo o vampiro bem no meio da garganta. O corpanzil escorregou para o chão, e no momento
em que o baque surdo foi abafado pela música alta e os gemidos do salão, Kade pulou por sobre o corpo para preencher a soleira desocupada do escritório do camarada.
O par de pit bulls brancos avançou com mais rapidez do que o mestre deles em seu ridículo casaco de peles poderia reagir. Rosnando e escancarando as bocarras, avançaram
sobre Kade. Ele não reagiu; não havia necessidade. Prendeu seus olhos selvagens com um olhar de comando inquestionável, que os fez parar subitamente no piso acarpetado
diante das suas botas.
Todos da Raça nasciam com um dom particular – ou, em alguns casos, maldição – além da longevidade, força e sede de sangue características da espécie. O talento de
Kade era a habilidade de se conectar psicologicamente com animais predadores e dirigir suas ações com um simples pensamento. Era um poder que ele esmerou com precisão
letal desde a época em que era apenas um garoto nas florestas selvagens do Alasca, com animais muito mais perigosos do que aqueles.
– Parados – disse ele calmamente para os cães. Depois, relanceou para o macho da Raça que o encarava atordoado do outro lado do cômodo. – Parado, você também.
– Mas que… Quem diabos é você? – o pânico e o ultraje se aprofundaram nas linhas ao redor da boca do vampiro quando ele avaliou a aparência de Kade, desde o uniforme
preto e os coturnos que combinavam com a cor escura dos cabelos espetados, até a impressionante coleção de adagas e armas semiautomáticas que ele trazia nos quadris
e em coldres presos às coxas. – Guerreiro – ele sussurrou, evidentemente não tão arrogante – ou idiota – a ponto de não reconher uma dose de medo causada por essa
visita inesperada. – O que a Ordem pode querer de mim?
– Informações – respondeu Kade, dando um passo para dentro da sala e fechando a porta atrás de si, fazendo uma pausa para afagar um dos agora dóceis pit bulls atrás
da orelha. – Ouvimos algumas coisas perturbadoras quanto ao negócio que você tem aqui. Precisamos saber mais.
O vampiro ergueu os ombros e fez uma tentativa de parecer confuso.
– O que há para dizer? Eu me envolvo numa série de empreendimentos.
– Sim, notei isso. Um empreendimento muito interessante o que você tem no porão desta espelunca. Há quanto tempo você vem traficando mulheres?
– Não sei do que você está falando.
– Veja bem, fazer com que eu me repita não é uma boa estratégia – Kade se agachou e gesticulou para que os pit bulls se aproximassem. Sentaram-se aos seus pés como
duas gárgulas, encarando o antigo dono e esperando obedientemente o comando de Kade, simplesmente porque era isso o que ele queria que eles fizessem. – Aposto que
se eu dissesse a estes dois cachorros para que dilacerassem a sua garganta, eu não teria de pedir isso duas vezes. O que acha? Vamos descobrir?
O camarada engoliu em seco.
– Eu não tenho feito isso há muito tempo. Uns poucos meses, menos que um ano, acho. Comecei com as drogas e com as prostitutas, depois passei a receber certos… pedidos
– ele remexeu num dos vários anéis de ouro em seus dedos. – Sabe, encomendas de serviços de uma natureza um pouco mais permanente.
– E os seus clientes? – Kade o pressionou, erguendo-se ameaçador em seu um e noventa e dois de altura. – Quem são eles?
– Humanos, principalmente. Não guardo registros.
– Mas você fornece esses serviços – ele sibilou a palavra entre as presas – para membros da Raça também.
Não era uma pergunta, e o camarada sabia bem disso. Ele deu de ombros mais uma vez, o colarinho do seu casaco de peles resvalando no brinco de diamante.
– Lido com eles na base do dinheiro, uma questão de demanda e oferta. Da Raça ou humanos, o dinheiro vale a mesma coisa.
– E os negócios vão bem – deduziu Kade.
– Estou sobrevivendo. Por que a Ordem está tão interessada no que ando fazendo, afinal? Estão querendo alguma participação? – ele sugeriu, o sorriso pouco mais do
que uma ligeira partição dos lábios. – Posso incluir o Lucan, se é disso que se trata. Afinal, eu sou um homem de negócios.
– Você é desprezível – declarou Kade, exasperado, porém não surpreso, que um velhaco como aquele pudesse pensar que ele ou qualquer um dos seus irmãos de armas estivesse
à venda. – E se eu contar ao Lucan que você disse isso, ele o rasga do pescoço até as bolas. Sabe o que mais? Foda-se. Vou poupar esse trabalho a ele…
– Espere! – o camarada ergueu as mãos. – Espere. Diga o que quer saber.
– Muito bem. Vamos começar assim: quantas das mulheres que você manteve em cativeiro no porão e que depois foram vendidas eram Companheiras de Raça?
Um silêncio doentio se estendeu enquanto o vampiro ponderava quanto à melhor maneira de responder. Mesmo aquele ser pútrido imprestável tinha de saber que aquelas
fêmeas raras que portavam a marca de nascença das Companheiras de Raça eram reverenciadas, preciosas para toda a espécie. Causar algum mal a uma Companheira de Raça
equivalia a fazer o mal a toda a espécie dos vampiros, pois não existiam outras fêmeas no planeta que poderiam carregar bebês da Raça em seus ventres. Lucrar conscientemente
com a dor de uma Companheira de Raça, ou se beneficiar de qualquer modo com a morte dela, era absolutamente a coisa mais hedionda que alguém da espécie de Kade poderia
fazer.
Ele observou o outro vampiro do mesmo modo que o faria com um inseto preso dentro de um copo de vidro e, na verdade, ele valorizava a vida desse macho da Raça ainda
menos do que isso.
– Quantas, seu patife maldito? Mais do que uma? Uma dúzia? Vinte? – ele teve que se esforçar para refrear um rosnado. – Você as vendeu inconscientemente, ou lucrou
ainda mais com a venda delas? Responda à maldita pergunta!
Com a explosão de Kade, os dois cães se levantaram, os músculos compactos retesados, ambos rosnando ameaçadoramente. Os cães estavam tão sintonizados com a raiva
de Kade quanto ele estava com os dois. Kade os conteve apenas com o mais tênue autocontrole, sabendo que se o vampiro acovardado adiante tinha qualquer informação
de valor, ele tinha o dever de arrancá-la.
Só depois poderia matá-lo com a consciência tranquila.
– Para quem você vem vendendo as Companheiras de Raça? Responda à maldita pergunta. Não vou esperar a noite toda até você cuspir a verdade.
– E-eu não sei – ele gaguejou. – Essa é a verdade. Eu não sei.
– Mas você admite que é isso o que você anda fazendo – Deus, como ele queria acabar com aquele merdinha. – Conte logo para quem você as tem traficado antes que eu
arranque sua cabeça fora.
– Juro… Eu não sei quem as queria!
Kade não estava disposto a deixar o assunto morrer assim.
– Mais de um indivíduo o procurou querendo as fêmeas? E quanto ao nome Dragos, te lembra alguma coisa?
Kade o observou com os olhos estreitos, esperando que o vampiro mordesse a isca. Mas o nome que Kade lhe lançara passou despercebido. Qualquer um que tivesse lidado
com o ancião da Raça conhecido como Dragos – um vilão cujas maldades apenas recentemente foram reveladas através dos esforços da Ordem – certamente demonstraria
algum tipo de reação ante a menção do seu nome.
O camarada, no entanto, estava impassível. Emitiu um suspiro e meneou levemente a cabeça.
– Eu só fiz negócios com um homem. Ele não era da Raça. Mas também não era humano. Pelo menos não quando o conheci.
– Um Servo Humano, então?
A novidade não deixou Kade particularmente à vontade. Ainda que a criação de um Servo Humano fosse contrária às leis da Raça, sem menção à moral mais básica, somente
o mais poderoso da Raça poderia criar escravos mentais humanos. Consumados praticamente a ponto de morrerem, os Servos eram leais somente aos seus Mestres. Dragos
era da segunda geração da Raça e se considerava acima de qualquer lei, da Raça ou de qualquer outra. A questão não era se Dragos mantinha servos, mas, sim, quantos
ele mantinha e qual era a profundidade do envolvimento deles na sociedade humana.
– Você reconheceria esse Servo se você o visse novamente?
A carcaça do animal ao redor do pescoço do vampiro se ergueu mais uma vez quando ele deu de ombros de novo.
– Eu não sei. Talvez. Faz tempo que ele não aparece. Faz uns três ou quatro meses que não negocio com ele. Por um tempo, ele foi um cliente assíduo, mas depois ele
não apareceu mais.
– Você deve ter ficado muito desapontado – Kade disse com uma fala arrastada. – Descreva-o para mim. Como era a aparência desse Servo?
– Para falar a verdade, nunca olhei de verdade para o cara. Nem mesmo procurei fazer isso. Dava para saber que era um Servo, e o cara pagava com notas grandes. Eu
não precisava saber mais nada a respeito dele.
As veias de Kade se contraíram com hostilidade e uma raiva mal contida ao ouvir a ambivalência das suas palavras. Já matara por ofensas menores – muito menores –
do que aquela, e seu ímpeto de partir ao meio aquele maldito macho era enorme.
– Então o que você está me dizendo é que vendeu repetidamente a ele mulheres drogadas demais para se defenderem, sem nenhum interesse pelo que ele fazia com elas
ou onde elas iam parar. Sem fazer nenhuma pergunta. É isso?
– Acho que se pode dizer que administro meus negócios na base de “não faça perguntas, não conte nada”.
– É, acho que se pode dizer isso, sim – Kade concordou. – Ou eu poderia dizer que você administra seus negócios como um puxa-saco covarde e que merece morrer de
maneira bem lenta e dolorosa.
A preocupação emanou um fedor acre enquanto o vampiro sustentava o olhar de Kade.
– Espere um minuto, sim? Deixe-me pensar um segundo, ok? Talvez eu consiga lembrar alguma coisa. Talvez exista um modo em que eu possa ajudar…
– Duvido – Kade examinou-o bem, vendo pela expressão carregada de pânico em seu rosto que não obteria nada mais de valor daquela conversa.
Além disso, já estava cansado de ficar olhando para aquele cretino.
Abaixou as mãos para segurar os queixos dos cachorros nas palmas, fixando o olhar nos intensos olhos castanhos de um, depois nos do outro. O comando silencioso foi
entendido por eles com uma ligeira contração de tendões. Os pit bulls saltaram sobre a mesa e se sentaram diante do antigo dono, sem piscar, as bocarras de dentes
afiados abertas, deixando cair a saliva.
– Bons garotos – Kade os elogiou. E girou para sair.
– Espere… então é só isso…? – o camarada perguntou hesitante entre as gárgulas escravizadas agora empoleiradas diante dele. – Quero ter certeza de que está tudo
bem daqui por diante. Quero dizer, eu já contei tudo o que sabia. É tudo o que quer de mim, certo?
– Não exatamente – Kade disse, sem olhar para o traficante. Pousou uma mão na maçaneta. – Eu quero só mais uma coisa.
Enquanto saía do escritório e fechava a porta, ele ouviu o par de pit bulls partir para o ataque. Kade fez uma pausa, fechando os olhos para se permitir saborear
a violência do momento por intermédio do seu talento visceral de conexão com os animais. Sentiu cada osso quebrado, cada rasgo na pele do traficante de mulheres,
enquanto os cachorros o partiam ao meio. Dentro da sala, o vampiro gritava e chorava, sua dor uma pontuação agradável para a música e os gemidos ainda em andamento
do outro lado da construção.
Brock vinha correndo pelo corredor enquanto Kade passava ao lado do cadáver do motorista.
– Cuidou das fêmeas? – perguntou, quando ele e seu parceiro de patrulhas se encontraram no meio do caminho.
– Apaguei as lembranças do tempo em que estiveram em cativeiro e as mandei para casa – explicou Brock. O macho corpulento dispensou apenas o mais breve relance
para o corpo antes de arquear a sobrancelha para Kade. – E quanto a você? Conseguiu arrancar alguma coisa do camarada?
– No fim das contas, parece que ele não era um amante de cachorros – Kade disse por cima dos gritos contínuos vindo da direção do escritório.
A boca de Brock se ergueu num canto.
– É o que parece. Mais alguma coisa?
– Sim, infelizmente. O cretino vinha traficando Companheiras de Raça, bem como as nossas informações indicavam. Seu cliente era um Servo, mas ele não sabia mais
nada além disso. Nunca viu o escravo da mente de perto e não conseguiu descrevê-lo nem minimamente.
– Merda – exclamou Brock, esfregando uma mão no alto da cabeça. – Então acho que o camarada era um beco sem saída, hein?
Kade inclinou a cabeça quando o último dos gritos morreu logo atrás dele.
– Agora é.
Brock deu uma risadinha pesarosa.
– Vamos limpar este lugar e fechá-lo. Acabei de receber uma mensagem do Gideon, pedindo que a gente vá lá assim que pudermos. Algum tipo de situação no norte.
– No norte? Do estado?
– Não, cara. Mais norte do que isso – Brock encontrou seu olhar e o prendeu por mais tempo do que o confortável. – Alguma coisa deu errado no Alasca. Ele não disse
exatamente o que, apenas disse que o Lucan quer que você se reporte ao Q.G. assim que possível.
Capítulo 3
Kade compreendeu, antes mesmo de ele e Brock chegarem ao complexo da Ordem, que as notícias que os receberiam não poderiam ser boas. Como fundador e líder dos guerreiros,
sem falar no fato de ser da Primeira Geração da Raça, com algo em torno de novecentos anos de idade, Lucan não fazia alarde à toa. Portanto, o fato de ele ter decidido
chamar Kade especificamente era uma pista bem grande de que, qualquer que fosse essa tal de situação no Alasca, devia ser algo seriamente ferrado.
A especulação revirava no âmago de Kade, um cenário mais perturbador do que o outro, coisas terríveis que lhe eram fáceis demais de imaginar e que ardiam como bile
no fundo da sua garganta. Guardou seus receios para si quando ele e Brock estacionaram o Rover na garagem da frota, atrás da propriedade muito bem guardada no piso
térreo, depois tomaram o elevador do hangar, descendo uns noventa metros no subterrâneo até o centro nervoso das operações da Ordem.
– Tudo bem, cara? – Brock perguntou assim que saíram do elevador e entraram no corredor de mármore branco que conectava o labirinto de diversas salas, como uma artéria
central. – Sabe que se fosse alguma coisa com a sua família, Lucan teria informado. Tenho certeza de que está tudo bem com eles, independentemente do que esteja
acontecendo lá. Não se preocupe, está bem?
– Claro. Nada de me preocupar – Kade respondeu, mas a boca estava no piloto automático.
Deixara o assentamento da família no Alasca há cerca de um ano para se juntar à Ordem em Boston. Fora uma partida abrupta, impelida pelo recebimento da súbita convocação
de Nikolai, um guerreiro da Ordem que Kade conhecera há décadas, quando suas viagens o levaram da tundra congelada do Alasca até o lar siberiano de Nikolai.
Havia coisas que Kade deixara inacabadas no Alasca. Coisas que ainda o atormentavam, pioradas por causa do tempo e da distância que o mantiveram longe todos aqueles
meses.
Se algo tivesse acontecido e ele não tivesse estado lá para impedir…
Kade afastou o pensamento da cabeça quando ele e Brock viraram em um dos corredores que os conduziria até o laboratório de tecnologia.
Lucan, o Primeira Geração de cabelos escuros, aguardava-os na sala de guerra envidraçada do complexo, juntamente com Gideon, o gênio residente loiro, de aparência
enganadoramente desarrumada, que cuidava do amplo arsenal de tecnologia da Ordem. Os dois estavam diante de um monitor de tela plana. Lucan esfregava os dedos no
seu maxilar rígido, enquanto as portas transparentes do laboratório deslizavam para permitir a entrada de Kade e Brock.
– As informações estavam corretas quanto a Roxbury? – perguntou ele, quando os dois guerreiros entraram na sala.
Kade fez um relatório curto do que descobriram a respeito do traficante de mulheres, o que não era muito. Mas enquanto falava, Kade não conseguiu desviar a atenção
do que acontecia no monitor atrás de Lucan. Quando o corpulento macho começou a andar de um lado para o outro, como sempre fazia quando estava irritado ou perdido
em pensamentos, Kade teve a sua primeira imagem desobstruída da tela do computador.
Não foi nada bonito.
Uma foto borrada – ou talvez uma imagem congelada de um vídeo – exibia vermelho berrante e branco em todo o monitor. Sangue e neve. Um homicídio brutal nas florestas
congeladas do Alasca. Kade entendeu instintivamente, e essa compreensão o perfurou tal qual a ponta de uma lâmina afiada.
– O que aconteceu? – perguntou, a voz tão dura que até pareceu apática, completamente imperturbável.
– Um vídeo repulsivo que apareceu na internet hoje – informou Lucan. – Pelo que sabemos, foi feito com a câmera de um celular e carregado em um ISP em Fairbanks,
num website visitado por pessoas que gostam de assistir a cenas de crimes e por outros idiotas doentios que se excitam em ver a morte.
Lançou um olhar para Gideon que, com um clique do mouse, deixou a imagem congelada voltar à vida. Em meio à respiração acelerada e aos passos esmagando a neve da
pessoa que segurava a câmera, Kade assistiu enquanto o vídeo caseiro mostrava a cena do que devia ter sido um homicídio muito brutal.
Um corpo ensanguentado jazia numa faixa de terreno manchada e coberta de neve. O foco da lente estava tremido, mas o operador conseguiu aumentar o zoom nos ferimentos
das vítimas. Roupas e pele dilaceradas. Uma série de rasgos inconfundíveis e perfurações que só poderiam ter sido provocados por dentes bem afiados.
Ou presas.
– Céus – Kade murmurou, chocado com a selvageria do assassinato em sua totalidade, enquanto o vídeo passava da marca dos quatro minutos e continuava para documentar
nada menos do que três outros mortos na neve e no gelo.
– Isso parece uma obra dos Renegados – disse Brock, a voz tão grave quanto a expressão em seu rosto.
Era um fato lamentável, porém inevitável, de que havia membros da Raça que não conseguiam – ou simplesmente não queriam – controlar sua sede de sangue. Enquanto
a grande maioria da nação vampírica seguia as leis e o justo bom senso, existiam outros que cediam à sua avidez sem pensarem nas consequências. Aqueles da Raça que
se alimentavam demais, ou em demasiada frequência, logo se viam viciados, perdidos na Sede de Sangue, a doença dos Renegados. Quando um vampiro chegava a tal ponto,
havia pouca esperança de recuperação.
A Sede de Sangue era praticamente uma passagem só de ida para a loucura… e a morte, que se não ordenada pela Ordem, chegava pela própria doença, transformava até
o mais cuidadoso dos machos da Raça em alguém descuidado. Um Renegado só reconhece sua sede, ele mata indiscriminadamente, corre qualquer risco na busca de aplacá-la.
Ele é capaz de dizimar um vilarejo inteiro se tiver a oportunidade.
– Quem quer que tenha feito isso precisa ser detido imediatamente – acrescentou Brock. – O maldito filho da puta tem que morrer.
Lucan assentiu em concordância.
– Quanto mais cedo, melhor. É por isso que o chamei, Kade. A situação lá em cima pode sair do controle bem rápido, não só se tivermos uma disputa com Renegados,
mas também porque a força policial humana está a par desses homicídios. Gideon rastreou um despacho da Polícia Estadual do Alasca para uma cidade interiorana chamada
Harmony. Felizmente, tem menos de cem habitantes, mas basta apenas uma boca histérica gritando a palavra “vampiro” para transformar essa situação num desastre.
– Merda – Kade murmurou. – Sabemos quem gravou o vídeo?
– Difícil determinar isso agora – respondeu Lucan. – Gideon está investigando. O que sabemos com certeza é que existe um policial na cidade – foi ele quem alertou
Fairbanks quanto aos homicídios. Por motivos óbvios, o tempo é uma questão crítica. Temos que saber quem é o responsável pelos assassinatos, e temos que nos certificar
de que ninguém de lá chegue perto da verdade sobre o que exatamente aconteceu naquela floresta.
Kade ouviu, com suas veias ainda alteradas pela brutalidade do que acabara de ver no monitor. Em sua visão periférica ainda estava a última cena, uma imagem borrada
de um humano jovem com o rosto coberto de sangue, os olhos sem vida encobertos pelo frio, cristais de gelo pendendo dos cílios escuros. Pelo amor de Deus, ele não
passava de um garoto… ainda adolescente.
Não era a primeira vez que Kade via as consequências de um homicídio sangrento no interior do Alasca. Quando saiu de casa meses atrás, desejou nunca mais ver esse
tipo de carnificina novamente.
– Estamos desfalcados devido às operações atuais, mas não podemos deixar de verificar essa situação no norte – Lucan disse. – Preciso enviar alguém que conheça o
terreno e as pessoas, e que tenha ligação com a população da Raça lá.
Kade sustentou o olhar de Lucan, sabendo que não poderia recusar a missão, mesmo o Alasca sendo o último lugar em que gostaria de estar. Quando saiu de lá para se
juntar à Ordem, ele o fizera na esperança de jamais ter que retornar.
Ele desejava esquecer o lugar em que nascera. O lugar selvagem que o chamava como uma amante possessiva e destruidora em todos os momentos desde que partira.
– O que me diz? – Lucan perguntou a Kade quando seu silêncio se estendeu.
Ele sabia que não tinha escolha. Devia isso a Lucan e à Ordem, cuidar dessa situação inesperada e indesejável. Não importando aonde aquilo o levaria.
Ainda que a busca por um vampiro com um desejo incontrolável de matar acabasse o levando para casa, para quatro mil hectares no interior do Alasca. Seu lar, o quintal
da sua família.
Pesaroso ante essa perspectiva, ele assentiu para o líder da Ordem.
– Quando parto?
Quarenta e cinco minutos mais tarde, Kade estava gastando o carpete de seus aposentos particulares, andando para lá e para cá, a mochila já arrumada aguardando ao
pé da cama. Um telefone via satélite estava ao lado da mala de couro preta, e pela terceira vez em dez minutos, Kade pegou o aparelho e digitou um número para o
qual não ligava desde que deixara o Alasca.
Daquela vez ele deixou tocar até o fim.
Foi um choque ouvir a voz forte do pai do outro lado da linha.
– Já faz tempo – Kade disse, à guisa de um cumprimento ao qual o pai apenas grunhiu.
Foi um lamentável esforço de contato, depois de um ano sem mandar notícias por vontade própria. Por outro lado, seu pai jamais o acusou de ser responsável ou confiável,
ou nada semelhante a isso.
A conversa foi desagradável, uma tentativa forçada de “oi, como vai” enquanto Kade criava coragem para perguntar como andavam as coisas em casa. O pai falou sobre
o inverno rigoroso, sendo o único benefício da estação, o fato de que ela mantinha o sol escondido o dia todo, exceto por três horas ao meio do dia. Kade recordou-se
da enorme escuridão que se estendia ao norte do país. Sua pulsação se acelerou com o pensamento de uma noite tão longa, de tantas horas de liberdade para correr.
Ficou evidente que o pai ainda não ficara sabendo dos homicídios recentes. Kade não os mencionou, nem falou da missão que o estava mandando para o norte. Em vez
disso, pigarreou e fez a pergunta que vinha queimando seu âmago desde o instante em que ficara sabendo que havia problemas no Alasca.
– Como está Seth? Está tudo bem com ele?
O sangue de Kade gelou um pouco no silêncio hesitante que precedeu a resposta do pai.
– Ele está bem. Por que pergunta?
Kade notou suspeita na voz do pai, a leve desaprovação que sempre encontrava um modo de entrar na voz do macho ancião toda vez que Kade ousava fazer uma pergunta
referente ao seu irmão.
– Só queria saber se ele estava por perto.
– Seu irmão tinha assuntos do Refúgio Secreto para cuidar para mim na cidade – veio a resposta, tensa. – Ele partiu há poucas semanas.
– Há poucas semanas – Kade ecoou. – Isso é bastante tempo para ele ficar afastado. Teve notícias dele recentemente?
– Recentemente, não. Por quê? – do outro lado da linha, o pai pareceu se calar com impaciência. – Do que isso se trata exatamente, Kade? Um ano sem dar notícias,
e agora você vem interrogando sobre as indas e vindas do seu irmão. O que você quer?
– Deixa pra lá – Kade disse, arrependendo-se instantaneamente de ter telefonado. – Apenas esqueça que telefonei. Preciso desligar.
Não esperou pela resposta do pai. Honestamente, não precisava ouvi-la.
Kade terminou o telefonema sem nenhuma outra palavra, seus pensamentos revirando-se com as imagens horrendas que vira no laboratório de tecnologia pouco antes e
o conhecimento de que o paradeiro do irmão era desconhecido provavelmente há várias semanas.
Seu irmão, que partilhava do seu mesmo talento sombrio.
A mesma selvageria sedutora e perigosa – o poder violento – que com tanta facilidade poderia escapar do controle. E que escapara pelo menos uma vez, Kade se lembrou
com pesar.
– Maldição, Seth.
Jogou o telefone sobre a cama. Depois, com um grunhido furioso, girou sobre os calcanhares e socou a parede mais próxima.
Capítulo 4
A tempestade do Ártico castigou o interior do Alasca por dois dias consecutivos, despejando quase um metro de neve na pequena cidade de Harmony e em seus vizinhos
distantes ao longo do curso do rio, fazendo as temperaturas despencarem para quinze graus abaixo de zero em toda a região. Costumeiramente, com um tempo como esse
as pessoas tendiam a fazer uma de duas coisas possíveis: ficarem trancafiadas em casa ou migrar para o Pete’s, o restaurante e bar local.
Naquele dia, apesar dos uivos do vento invernal e do frio pungente em que a terceira e última hora de luz solar desvanecia no crepúsculo do meio do dia, quase a
totalidade dos noventa e três moradores de Harmony lotava o salão da igreja Congregacional para uma improvisada reunião municipal. Alex estava sentada ao lado de
Jenna na segunda fileira de bancos, esforçando-se, assim como todos os outros, para entender a recente carnificina na floresta, que levou seis cadáveres brutalmente
barbarizados para a câmera frigorífica improvisada na pista de voo de Harmony e colocou toda a cidade num estado de aflitiva inquietação.
Alex sabia que Zach Tucker tentara abafar a notícia do ataque ao assentamento dos Toms, mas, apesar da vastidão do interior, as notícias corriam rápido – ainda mais
rápido naquele pedaço de terra de vinte e oito quilômetros quadrados que abraçava as margens do Koyukuk. Más notícias, especialmente do tipo que envolvia múltiplas
e inexplicáveis mortes de natureza violenta, tendiam a chegar aos ouvidos do povo como se tivessem vindo nas asas de um corvo.
Nas quarenta e oito horas desde a descoberta de Alex sobre os homicídios, e desde a decisão de Zach de transportar os corpos da cena do crime para Harmony na espera
da melhora das condições climáticas, até que as autoridades de Fairbanks pudessem chegar e assumir o controle da investigação, o sentimento em toda a cidade passara
de choque e assombro para suspeita e uma perigosa e crescente histeria. Quarenta e oito horas foram tudo o que os cidadãos suportaram sem exigir algum tipo de resposta
a respeito de quem – ou o que – tinha atacado tão ferozmente Pop Toms e sua família.
– Não consigo entender – disse Millie Dunbar no banco atrás de Alex. A voz da senhora tremia, não tanto pelos seus oitenta e sete anos de idade, mas sim por tristeza
e preocupação. – Quem iria querer machucar Wilbur Toms e sua família? Eram pessoas tão boas e generosas. Ora, quando meu pai chegou aqui, ele fez negócios com o
avô de Wilbur por muitos anos. Ele jamais disse nada de ruim a respeito dos Toms. Eu simplesmente não consigo imaginar quem seria tão mau a ponto de fazer algo assim.
Um dos munícipes sentado num dos bancos do fundo disse:
– Se quer saber minha opinião, fico pensando no garoto, Teddy. Quieto demais, aquele lá. Eu o vi andando na cidade nos últimos tempos, mas nunca dizia nada quando
alguém falava com ele, se achando bom demais para responder. Isso me fez pensar no que ele andava metido e, talvez, tivesse alguma coisa pra esconder.
– Ah, por favor – Alex disse, sentindo-se no dever de defender Teddy, já que ele não podia fazer isso por si mesmo. Ela se virou no banco e lançou um olhar desaprovador
para o fundo, onde dúzias de expressões se endureceram de suspeita por conta da acusação infundada de Big Dave Grant. – Teddy era tímido perto das pessoas que não
conhecia bem, é só isso. Ele nunca foi de conversar muito por causa das gozações que recebia toda vez que gaguejava. E sugerir que ele pudesse estar envolvido de
alguma forma no assassinato de sua família quando ele mesmo está deitado naquela maca fria é simplesmente repulsivo. Se qualquer um de vocês tivesse visto as condições
em que eles foram deixados…
A mão de Jenna pousou com suavidade no pulso de Alex, mas o toque foi desnecessário. Alex não tinha intenção alguma de continuar aquele assunto. Já era ruim o bastante
que estivesse revivendo a descoberta horrenda repetidamente em sua mente desde que se deparara com Pop Toms, Teddy e o resto da família. Ela não pretendia ficar
ali sentada e narrar para todos a brutalidade dos homicídios. Como eles foram feridos de forma tão selvagem, a ponto de terem a carne descolada dos ossos e as gargantas
arregaçadas, como se alguma besta saída do inferno tivesse aparecido no meio da noite fria para se alimentar dos vivos.
Não, não uma besta.
Um ser saído de um pesadelo.
Um monstro.
Alex fechou os olhos contra a visão de sangue e morte que começou a se erguer dos recônditos das suas lembranças. Ela não queria voltar lá, nunca mais. Levara anos
e milhares de quilômetros, mas ela superara a realidade sombria. Sobrevivera a ela, mesmo ela tendo lhe roubado tanto nesse meio-tempo.
– É verdade que não foi encontrada nenhuma arma? – alguém perguntou do meio da congregação. – Se eles não foram alvejados nem esfaqueados, como exatamente foram
mortos? Ouvi dizer que havia sangue demais derramado por ali.
Da sua posição atrás do púlpito, Zach ergueu uma mão para acalmar a enxurrada de perguntas semelhantes vindas da multidão.
– Até que o destacamento da Polícia Estadual chegue de Fairbanks, tudo o que tenho a lhes dizer é que estamos tratando disso como homicídio múltiplo. Já que sou
um dos investigadores, não tenho a liberdade de discutir detalhes do caso com ninguém a essa altura, nem acredito que seja conveniente fazer especulações.
– Mas e quanto aos ferimentos, Zach? – Dessa vez foi Lanny Ham quem falou, sua voz aguda um pouco mais nervosa do que o normal. – Ouvi dizer que os corpos pareciam
ter sido atacados por animais. Animais grandes. É verdade?
– O que a Alex acha, já que foi ela quem encontrou os corpos? – alguém perguntou. – Um de vocês acha que podem ter sido animais que os mataram?
– Roger Bemis disse que viu uns dois lobos à espreita perto da propriedade dele no lado oeste da cidade no outro dia – interpelou Fran Littlejohn, que cuidava do
pequeno posto de saúde da cidade. Normalmente, ela era uma mulher sensata, mas agora se percebia um forte tom de preocupação em sua voz. – O inverno já está bem
rigoroso e mal começou. O que nos garante que não se trata de uma alcateia esfomeada que resolveu atacar o assentamento dos Toms?
– Muito bem colocado. E se forem lobos, o que nos garante que eles não vão começar a procurar por aqui, agora que saborearam presas humanas? – mais uma pergunta
paranoica foi feita.
– Esperem um pouco, todos vocês – interveio Zach, sua tentativa de permanecer calmo se perdendo quando todas as vozes se elevaram juntamente com o grau de histeria.
– Sabe de uma coisa, eu vi um lobo enorme antes do pôr do sol na semana passada. Um macho preto e grande, farejando a lixeira do lado de fora do Pete’s. Não parei
para pensar muito na hora, mas agora…
– E não se esqueçam de que faz poucos meses que uns lobos atacaram uns cães de trenós em Ruby. Os jornais disseram que não deixaram nada além de entranhas e um par
de guias de couro…
– Talvez o melhor a fazer seja agir – Big Dave disse de seu posto no fundo do salão. – Visto que estamos de mãos atadas esperando a chegada das autoridades até que
resolvam vir dar uma mão, talvez o que temos que fazer seja organizar um grupo de caça. Uma caça aos lobos.
– Não foram lobos – Alex murmurou, a mente voando sem querer para a trilha de pegadas ensanguentadas que vira na neve. Aquilo não fora deixado por um lobo, nem por
nenhum outro tipo de animal, disso ela tinha certeza. Mas uma vozinha lhe sussurrava que também não fora feita por um humano.
Então… por quem?
Ela balançou a cabeça, recusando-se a permitir que seus pensamentos se voltassem para a resposta que ela esperava – rezava – que não fosse verdade.
– Não foram lobos – repetiu, elevando a voz por sobre o rumor de paranoia que se alastrava como uma doença ao seu redor. Levantou-se e se virou para encarar a multidão
vingativa. – Nenhum lobo mata assim, não sozinho. Nem mesmo a mais audaz das alcateias faria isso.
– A senhorita Maguire está certa – disse Sidney Charles, um dos líderes nativos de Harmony e prefeito da cidade há muito tempo, mesmo tendo se oficializado como
detentor do posto apenas nos anos mais recentes. Ele acenou com a cabeça para Alex de seu lugar na fila da frente da igreja, o cabelo escuro em seu rabo de cavalo
manchado de cinza, o rosto bronzeado marcado por linhas profundas ao redor da boca e dos olhos, marcas ganhas por sua natureza jovial e alegre. Naquele dia, porém,
ele estava sério, o peso de toda aquela conversa sobre morte visível nos costumeiros ombros orgulhosos. – Os lobos respeitam os humanos, assim como nós devemos respeitá-los.
Já vivi muito, o bastante para garantir a vocês que eles não foram os responsáveis por este fato terrível. Ainda que eu viva mais cem anos, jamais acreditarei que
seriam eles.
– Bem, com todo o respeito, Sid, mas eu não gostaria de me arriscar – disse Big Dave, acompanhado pela rápida concordância de muitos outros homens de pé ali. – Até
onde sei, não existe nenhuma temporada para lidar com lobos problemáticos, estou certo, oficial Tucker?
– Não, não existe – Zach contemporizou. – Mas…
Big Dave prosseguiu.
– Amigos, se existem lobos ameaçando assentamentos humanos, então estamos no nosso direito de nos defender. Mas que inferno, esse é o nosso dever, oras. Eu garanto
que não quero ficar sentado esperando até que uma alcateia esfomeada resolva atacar de novo.
– Concordo com Big Dave – disse Lanny Ham, erguendo-se do banco como um foguete. Torceu as mãos diante do corpo, o olhar nervoso disparando ao redor do salão. –
Eu sugiro que a gente tome uma atitude antes que esse mesmo tipo de situação aconteça aqui em Harmony!
– Nenhum de vocês está prestando atenção? – Alex os desafiou, com a raiva crescente. – Eu já disse que os lobos não são os responsáveis pelo que aconteceu a Pop
Toms e sua família. Eles foram atacados por algo terrível, horrendo… mas não por um lobo. O que eu vi lá não pode ter sido causado por nenhum tipo de animal. Foi
outra coisa…
A voz de Alex ficou presa na garganta quando seu olhar passou pelo fundo da igreja e se deparou com um par de olhos cinzentos tão penetrantes que lhe tiraram o fôlego.
Ela não conhecia o homem de cabelos escuros que estava de pé nas sombras próximas à porta. Ele não era de Harmony, nem de nenhuma das cidades vizinhas. Alex tinha
certeza de que nunca vira aquela face delgada bem barbeada e de maxilar quadrado e forte, nem mesmo a surpreendente intensidade do seu olhar, em nenhum lugar de
todo o interior do Alasca. O rosto dele era difícil de ser esquecido.
O desconhecido nada disse, tampouco piscou os cílios negros quando ela subitamente emudeceu e perdeu o fio dos seus pensamentos. Ele simplesmente a encarou por sobre
as cabeças dos moradores da cidade como se ela fosse a única pessoa que ele visse, como se os dois fossem os únicos em todo o salão.
– O que você acha que foi, querida?
A voz trêmula de Millie Dunbar arrancou Alex da enervante conexão com o olhar do desconhecido. Ela engoliu em seco e se voltou para fitar a gentil senhora e as outras
pessoas que agora aguardavam em silêncio para ouvir o que ela acreditava ter visto no assentamento dos Toms.
– Eu… eu não tenho certeza – ela se restringiu a dizer, desejando jamais ter aberto a boca. Sentiu o calor dos olhos do desconhecido e subitamente se viu relutante
em afirmar o que estivera pensando naquele dia na floresta, e em todas as horas tortuosas que se passaram desde então.
– O que você viu, Alexandra? – Millie a pressionou, sua expressão um misto de esperança e medo. – Como pode ter tanta certeza de que não foram animais que mataram
aquelas pessoas?
Alex sacudiu de leve a cabeça. Maldição, entrara naquela por conta própria e agora, com quase cem pares de olhos cravados nela, esperando uma explicação, havia bem
pouco que ela podia fazer para recuar. Não sem fazer papel de idiota e condenando uma alcateia inocente de lobos locais ao excesso de zelo de Big Dave e dos seus
amigos, que pareciam estar à espera de uma permissão para acabar com eles sem motivo algum.
Merda.
Havia alguma alternativa a não ser a verdade?
– Eu vi… um rastro – admitiu baixinho.
– Um rastro? – Foi a vez de Zach falar, as sobrancelhas castanhas descendo próximas aos olhos enquanto ele a avaliava do púlpito à frente da congregação. – Você
não me disse nada a respeito de um rastro. Onde você o viu, Alex? De que tipo era?
– Era uma pegada… na neve.
O ar grave de Zach se aprofundou.
– Está se referindo à marca de uma bota?
Alex ficou ali em silêncio por um bom momento, incerta sobre como colocar em palavras o que estava para dizer em seguida. Sentiu o peso da atenção de todos, a expectativa
de toda a cidade cravada na loira alta que passara grande parte da vida em Harmony, mas ainda era vista como um tipo de intrusa, porque viera com o pai, vindo dos
pântanos úmidos da Flórida.
Era a lembrança daquelas terras encharcadas e de sol escaldante que preenchia os sentidos de Alex agora. Ela conseguia sentir o sal da água na língua, o cheiro doce
de ciprestes cobertos de musgo e a fragrância dos lírios permeando o ar. Ouvia as canções vibrantes das cigarras e o coaxar das rãs fazendo serenatas no escuro,
enquanto via a mãe ninar seu irmão mais novo até que ele dormisse na varanda do chalé protegida por tela, lendo numa voz gentil e suave, da qual Alex sentia muitas
saudades. Ela conseguia enxergar a lua dourada que lentamente se erguia na direção do mar cintilante de estrelas logo acima da terra.
E também conseguia sentir, ainda agora, o medo repentino que atravessou seu coração na noite em que fora violada pela violência quando os monstros vieram se alimentar.
Tudo ainda estava bem presente para ela.
Ainda devastadoramente real.
– Alex.
A voz de Zach a sobressaltou, sacudindo-a de volta para o aqui e o agora, em Harmony, Alasca, e para o terror que tomava conta dela quando pensava que o horror do
qual fugira na Flórida poderia, de alguma forma, tê-la reencontrado.
– Que diabos está acontecendo, Alex? – Havia impaciência na voz pausada de Zach. – Preciso saber o que você viu lá. Tudo o que você viu.
– Eu vi uma pegada – ela disse da maneira mais clara que conseguia. – Não de uma bota. Mas de um pé descalço. Um pé bem grande, muito parecido com o de um humano,
mas… não exatamente.
– Ah, pelo amor de Deus… – exclamou Big Dave com uma bufada zombeteira. – Não foram os lobos que os mataram, foi o Pé Grande! Isso já é demais.
– Do que você está falando, Alex? Isso é algum tipo de brincadeira?
– Não – insistiu, desviando do olhar descrente de Zach para o resto das pessoas. Todos a encaravam como se esperassem que ela explodisse numa gargalhada.
Todos exceto o desconhecido de cabelos escuros no fundo.
Seus olhos cinzentos a perfuravam como lanças de gelo, a não ser pelo fato de que a sensação que tinha quanto mais sustentava o seu olhar não era de frio, mas de
aquecer os ossos. E não havia zombaria em sua expressão. Ele a ouvia com uma intensidade que a fazia tremer por dentro.
Ele acreditava nela, quando todas as outras pessoas ali a rejeitavam com olhares confusos e educados – e alguns não tão educados assim.
– Não é nenhuma brincadeira – Alex disse aos moradores de Harmony. – Nunca falei mais sério, juro…
– Já ouvi o bastante – Big Dave anunciou, começando a se mover na direção da porta, sendo seguido por diversos outros homens rindo entre si.
– Sei que parece loucura, mas vocês têm que acreditar em mim – disse Alex, desesperada para que acreditassem nela, agora que contara a verdade a todos eles.
Parte da verdade, pelo menos. Se eles não acreditavam quando ela dizia que vira uma pegada na neve, jamais aceitariam a verdade ainda mais incrível – e aterradora
– daquilo que ela temia ser o culpado pelo assassinato de Pop Toms e sua família.
Mesmo Jenna a encarava como se ela tivesse enlouquecido.
– Ninguém conseguiria sobreviver naquele frio sem roupas adequadas, Alex. Não tem como você ter visto a marca de um pé descalço lá. Sabe disso, não?
– Eu sei o que eu vi.
Ao redor delas as pessoas começaram a debandar. Alex virou o pescoço para localizar o desconhecido, mas não o viu mais. Ele tinha ido embora. E ela não entendia
por que se sentia desapontada ao pensar nisso. Tampouco entendia porque se sentia compelida a procurá-lo. Sentia-se impaciente com aquela necessidade e desesperada
para sair dali.
– Ei, está tudo bem – Jenna se levantou, lançando-lhe um sorriso de empatia, ainda que confuso, enquanto a abraçava forte. – Você passou por muita coisa. Os dois
últimos dias foram difíceis para todos, mas tenho certeza de que especialmente para você.
Alex se afastou do abraço e balançou de leve a cabeça.
– Estou bem.
A porta da igreja se abriu e se fechou quando mais um grupo de pessoas saiu na noite fria. Será que ele também estaria lá fora? Ela tinha que saber.
– Você viu aquele homem no fundo da igreja? – perguntou a Jenna. – Cabelo preto, olhos cinza-claros. Ele estava sozinho de pé ao lado da porta.
Jenna balançou a cabeça.
– De quem você está falando? Não notei ninguém…
– Deixa pra lá. Olha só, acho que não vou ao Pete’s hoje à noite.
– Boa ideia – Jenna concordou quando Zach desceu da plataforma elevada do púlpito e andou na direção delas. – Vá para casa e veja se consegue dormir um pouco, ok?
Você está sempre se preocupando comigo, mas agora quem está precisando de cuidados é você. Além disso, já faz um tempinho desde que comi um hambúrguer e tomei uma
cervejinha com meu velho irmão, só nós dois. Ele tem me evitado ultimamente, me deixando curiosa pensando se ele tem alguma namorada secreta em algum lugar.
– Nada de namoradas – disse Zach. – Não tenho tempo para isso, pois sou casado com o meu trabalho. Você está bem, Alex? Aquilo foi muito estranho e nada a ver com
você. Se quiser conversar a respeito do que aconteceu, comigo ou com algum profissional…
– Estou bem – insistiu, irritando-se, mas grata pela raiva que a fazia deixar seu passado perturbador no fundo da gaveta, onde era o seu lugar. – Olha só, esqueçam
o que eu disse hoje. Não quis dizer nada com aquilo, eu só estava zombando do Dave.
– Bem, ele é um idiota e bem que mereceu – Jenna disse, parecendo mais do que aliviada por não ter que chamar os homens de jaleco branco no fim das contas.
Alex sorriu com uma leveza que não sentia.
– Vou nessa. Divirtam-se no Pete’s, pessoal.
Mal esperou eles darem tchau. Alex disparou em direção à porta, mas sua corrida foi impedida por um trio de senhoras da terceira idade conversando e andando muito
devagar, e sua pulsação estava acelerada quando finalmente conseguiu aspirar a primeira lufada do ar gelado de fora. Parou sob o beiral de madeira da igreja e relanceou
em todas as direções, procurando pelo rosto impressionante que ficara gravado em sua lembrança desde o instante em que o vira.
Ele não estava lá.
Quem quer que ele fosse, o que quer que o tivesse trazido para Harmony quando o resto da civilização estava bloqueado por conta do clima, ele simplesmente saíra
na escuridão e desaparecera no ar gélido.
Capítulo 5
Kade caminhou em meio à erma frigidez da floresta, deixando o vilarejo de Harmony uns sessenta quilômetros atrás dele. Havia poucas opções de viagem no inverno para
os humanos naquelas partes do interior: avião, trenó ou motoneve. Kade viajou a pé, a mochila e os equipamentos às costas, as raquetes de neve ajudando-o a andar
na superfície dos montes de neve, que poderiam engolir um homem até as orelhas. O vento cortante o castigava enquanto ele subia uma colina para logo descer outra,
com velocidade e resistência sobre-humanas, tudo graças à sua parte que era da Raça.
Eram o seu coração e sua alma do Alasca que se deliciavam com o frio e o terreno fustigantes, clamando a brutalidade que havia dentro dele – a brutalidade que rapidamente
ressurgia, agora que ele estava na conhecida tundra da sua terra natal.
Seguir o rio Koyukuk congelado para o norte, em direção à localização genérica do assentamento dos Toms, era bem fácil. Assim que se aproximasse da área em que os
homicídios ocorreram, seu olfato aguçado o conduziria pelo resto do caminho. A despeito da camada fresca de neve recém-caída nos últimos dias, para alguém da sua
espécie, a mácula do sangue derramado era levada pelo vento como um farol no caminho até o cenário da recente carnificina.
O que vira da imagem do vídeo postado na internet, que Gideon obtivera em Boston, preparara-o de certa maneira para aquela missão. Ele fora até a pista de pouso
de Harmony após sair da reunião do município para dar uma olhada nos mortos que eram mantidos no gelo no pátio do único hangar. Os ferimentos pareciam grotescos
no vídeo. Vê-los de perto certamente não melhorou nada.
Mas Kade estudara as lacerações – praticamente eviscerações – com a mente aberta e um olhar objetivo. Não encontrara nenhuma surpresa durante sua visita ao necrotério
improvisado. Não fora um animal nem um humano que matara a família Toms.
Outra coisa os brutalizara… exatamente como a bela jovem loira de olhos castanhos, chamada Alexandra Maguire, insistira na reunião na igreja da cidade.
Ela, sim, se revelara uma surpresa.
Alta e magra, com uma beleza simples que não precisava de nenhum adorno para enaltecê-la, a fêmea atordoara Kade quando se levantou e declarou ter visto algo estranho
na neve. Primeiro porque Kade não sabia que houvera testemunhas, a não ser pelo idiota que gravara o vídeo e tivera o mau gosto de publicá-lo on-line. Localizar
e silenciar esse problema específico eram as prioridades de Kade naquela missão para a Ordem, assim que identificasse o vampiro – ou vampiros – Renegado responsável
pelo ataque sangrento e providenciasse para que a justiça fosse feita por uma mão fria e rápida.
Mas agora havia uma complicação extra, na forma daquela fêmea, Alex.
Apenas mais um detalhe numa situação já repleta deles. O que quer que ela tivesse visto, o que quer que ela soubesse a respeito dos homicídios na floresta, ela era
um problema com o qual Kade teria que lidar antes que as coisas se complicassem ainda mais. Certamente ele conseguia pensar em coisas piores para fazer no cumprimento
do dever do que pressionar a atraente loira atrás de informações.
Uma dessas coisas pairava logo adiante na escuridão – o agrupamento obscuro de casas e construções externas que abarcava o assentamento da família Toms. As narinas
de Kade estremeceram com o cheiro do sangue soterrado debaixo da cobertura de neve que embranquecia o terreno. Daquela distância de uns cem metros, o cenário era
pitoresco, pacífico. Um posto fronteiriço tranquilo aninhado entre abetos e bétulas da floresta boreal que o cercava.
Contudo, o fedor da morte estava impregnado no local mesmo no frio, aumentando de intensidade conforme Kade avançava na direção da construção de madeira mais próxima
à trilha. Retirou as raquetes de neve e subiu os dois degraus até a varanda. A porta tosca estava fechada, mas não trancada; Kade virou o ferrolho e empurrou a porta
com o ombro, abrindo-a.
Uma poça grande de sangue congelado reluzia como ônix negro na luz fraca do luar que o cercava enquanto ele permanecia parado na soleira da casa. Sua reação corporal
ante a cena e o cheiro das células vermelhas cristalizadas foi como se uma marreta o atingisse no crânio. Embora o sangue estivesse derramado e velho, inútil para
Kade, cuja raça só se alimentava das veias de seres humanos vivos, suas presas se alongaram nas gengivas como resposta.
Ele sibilou uma imprecação baixa por entre as presas alongadas ao levantar a cabeça e perceber mais sangue – mais sinais de luta e de sofrimento – na trilha escura
e borrada que partia do cômodo principal até o corredor curto que o cortava no centro. Uma das vítimas tentara escapar do predador que viera matá-los. Kade abaixou
a mochila e as raquetes de neve, depois seguiu pelo corredor. O humano apenas selara seu destino ao fugir para o quarto dos fundos. Encurralado ali, os respingos
nojentos nas paredes e a cama desfeita contaram a Kade o suficiente a respeito da brutalidade da matança também.
Outras duas vidas foram ceifadas naquele local, e Kade não obteve nenhuma satisfação em juntar os pedaços dos horrendos cenários dos homicídios enquanto caminhava
pelo resto do assentamento e analisava o ataque. Já vira o bastante ali. Sabia com certeza que as mortes eram causadas pela Sede de Sangue. Quem quer que tivesse
matado os humanos ali o fizera com um fervor que excedia qualquer coisa que Kade já tivesse visto – mesmo daqueles Renegados mais selvagens e viciados.
– Filho da mãe – murmurou, o estômago contraído devido ao desgosto enquanto saía do assentamento fantasmagórico e cambaleava em direção à floresta circundante à
procura de ar fresco. Respirou fundo, tragando o sabor do inverno frio para dentro dos pulmões.
Não era o bastante. A fome e a raiva se uniam ao seu redor como correntes apertadas, sufocando-o dentro do calor da parca e das roupas. Kade tirou-as e ficou nu
na noite mordaz de novembro. A escuridão fria o acalmou, mas não muito.
Ele queria correr – precisava correr – e sentir os braços frios da selva do Alasca envolvendo-o. Ao longe, ouviu o uivo de um lobo. Sentiu o lamento ressoar no interior
de sua medula, sentiu-o cantando em suas veias.
Kade lançou a cabeça para trás e respondeu.
Outro lobo replicou, esse bem mais próximo que o primeiro. Em questão de minutos, a alcateia se aproximara, avançando centímetro a centímetro em meio ao agrupamento
de árvores. Kade relanceou de um par de olhos aguçados lupinos para outro. O macho alfa se adiantou das árvores, um animal grande e preto com a orelha direita rasgada.
O lobo avançou sozinho, movendo-se como uma sombra no branco imaculado da neve.
Kade se manteve firme enquanto primeiro o alfa, depois os outros, caminharam num círculo lento ao seu redor. Enfrentou seus olhares questionadores e enviou uma promessa
mental de que não pretendia machucá-los. Eles entenderam, exatamente como ele sabia que aconteceria.
E quando silenciosamente comandou que eles se afastassem, a alcateia recuou para a cortina espessa da floresta iluminada pelas estrelas.
Kade os seguiu e correu com os lobos como se pertencesse à alcateia também.
Em outro lugar na noite fria e escura, outro predador percorreu o terreno congelado e proibitivo.
Fazia horas que ele vinha andando, sozinho e a pé naquela vastidão vazia por mais noites do que conseguia contar. Tinha sede, mas a sua necessidade já não estava
tão forte como quando saíra para o frio. Seu corpo estava nutrido agora, os músculos, os ossos e as células plenos de poder do sangue que tomara recentemente. Na
verdade, sangue em demasia, mas seu sistema já estava equilibrando o excesso.
E agora que estava mais forte, o corpo reavivado, ele encontrava dificuldades para moderar a excitação da caçada.
Aquilo era o que ele era, afinal: a mais pura forma de caçador.
Eram esses instintos predadores que faziam a sua consciência formigar, enquanto a floresta silenciosa que ele penetrava era perturbada pelo andar rítmico de um invasor
de duas pernas. O cheiro de madeira queimada e de pele humana suja atacou suas narinas enquanto a figura escura de um homem envolvido numa parca pesada se materializava
não muito longe de onde o caçador observava e esperava na escuridão. A cada passo dado pelo humano um ruído metálico emanava das correntes de aço e dos grampos afiados
que ele segurava com a mão enluvada. A outra mão trazia um animal carregado pelas patas traseiras, uma espécie grande de roedor que tinha perdido suas vísceras ao
longo do caminho.
O humano caçador de animais caminhou penosamente até um pequeno abrigo de madeira mais acima da trilha.
O predador o observou passando, despercebido do olhar que o seguia com interesse voraz.
Por um momento, o caçador debateu consigo mesmo se valeria a pena encurralar a presa no confinamento do pequeno abrigo ou se exercitar um pouco entre as árvores
e montes de neve no lado fora.
Decidindo-se pela segunda opção, saiu de seu ponto de observação e emitiu um leve som da base da garganta – parte aviso, parte convite para que o agora assustado
humano começasse a correr.
O truque não falhou.
– Ah, meu Deus. O que é isso? – O medo empalideceu o rosto barbado e fez seu maxilar relaxar. Deixou cair seu prêmio irrisório na neve aos seus pés, depois tropeçou
numa corrida aterrorizada floresta adentro.
Os lábios do predador se curvaram mostrando as presas ante a antecipação da perseguição.
Ele permitiu que sua presa tomasse uma dianteira, depois se pôs atrás dela.
Capítulo 6
Alex carregou a motoneve e seguiu a trilha, com Luna a bordo na frente com ela, cerca de uma hora antes da aurora. Ainda estava perturbada com a reunião municipal
da noite anterior e mais que curiosa a respeito do desconhecido que aparentemente desaparecera em pleno ar, no meio da floresta, tão estranhamente quanto aparecera
no fundo da igrejinha de madeira de Harmony.
Quem era ele? O que ele queria na pequena e remota Harmony? De onde viera, já que a última tempestade de neve deixara boa parte do interior bloqueada de todos os
portos das redondezas?
E por que ele fora a única pessoa em toda a congregação da noite passada que ouvira seu relato da pegada deixada na neve na propriedade dos Toms sem fazê-la se sentir
como se tivesse perdido o juízo?
Não que isso importasse hoje. O senhor Alto, Moreno e Misterioso partira há muito de Harmony, e Alex tinha um trenó carregado com o máximo de mantimentos que conseguia
levar – necessidades básicas para algumas pessoas que ela negligenciara quando sua viagem de avião fora interrompida alguns dias atrás.
Agora ela tinha parcas três horas de luz solar e apenas o suficiente de combustível a bordo, dentro do gigantesco tanque da Polaris, para fazer o trajeto de cento
e sessenta quilômetros de ida e volta.
Ela não tinha nenhum motivo válido para fazer um desvio até a propriedade dos Toms depois de quase uma hora dirigindo. Nenhum a não ser a sua necessidade angustiante
de obter respostas. A esperança – fútil como ela temia que fosse – de que pudesse encontrar algum tipo de explicação para os assassinatos que não envolvesse pegadas
ensanguentadas na neve e todas as lembranças que elas traziam do fundo do seu inferno interior.
Enquanto desviava a motoneve para a trilha que levava até a propriedade de Pop Toms, Luna saltou para brincar na neve fofa e reluzente.
– Fique comigo – Alex avisou a malamute brincalhona, enquanto diminuía a velocidade ao se aproximar do agrupamento de estruturas de madeira.
Ver a ansiedade de Luna ao correr na frente lhe trouxe de volta um indesejável flashback daquele momento horrível três manhãs antes, a descoberta do corpo jovem
de Teddy.
E, igual àquele dia, Luna disparou, ignorando os chamados de Alex para que esperasse.
– Luna! – Alex gritou na tranquilidade do início da tarde. Desligou o motor e saltou, depois avançou o melhor que pôde por sobre os montes altos de neve que mal
retardaram a cadela. – Luna!
Alguns metros à frente, a malamute subiu os degraus da varanda da casa de Pop e desapareceu em seu interior. O que era aquilo? A porta estava aberta, embora Zach
tivesse se certificado de fechar tudo antes que os corpos de Pop e da família fossem levados embora. Seria possível que o vento tivesse empurrado a porta?
Ou teria sido algo mais perigoso do que a ventania do Ártico que varrera a região depois dos homicídios?
– Luna – repetiu Alex ao se aproximar da construção de madeira, odiando o tremor em sua voz. O coração começou a bater forte dentro do peito. Engoliu sua ansiedade
e tentou mais uma vez. – Luna. Saia daí, garota.
Ela ouviu um movimento no interior, depois um ranger e um estalido de uma tábua de madeira que protestou contra o frio e o peso de quem quer que fosse – ou do que
quer que fosse – que estava lá dentro com sua cadela.
Mais movimentação, passos se aproximando da abertura da porta. O medo subiu pelo pescoço de Alex. Levou a mão para a arma presa no coldre à cintura debaixo da parca.
Sacou a arma e segurou-a com as duas mãos diante do corpo, bem quando Luna voltou trotando com desinteresse para receber Alex no fim das escadas.
E, atrás dela, mais para o interior da casa de Pop, havia um homem – o desconhecido de cabelos escuros do fundo da igreja. Apesar do frio, ele vestia apenas um par
de jeans folgado, que ele fechava casualmente como se tivesse acabado de sair da cama.
Ele sustentou o olhar incrédulo de Alex com uma calma que ela não entendia, como se olhar para o cano de uma quarenta e cinco milímetros carregada fosse algo que
ele fizesse todos os dias.
– Você – murmurou Alex, a respiração evaporando diante de si. – Quem é você? Que diabos está fazendo aqui?
Ele continuou imóvel, imperturbável, dentro do cômodo principal da casa. Em vez de responder às suas perguntas, ele indicou a pistola com o queixo forte e quadrado.
– Importa-se de apontar isso para outro lugar?
– Acho que sim – respondeu ela, com a pulsação acelerada e não totalmente devido ao medo.
O homem era intimidador, com seus quase dois metros de altura, os ombros largos e musculosos e bíceps poderosos que pareciam capazes de erguer um alce adulto. Debaixo
do singular padrão de tatuagens que dançava de forma artística em torno do torso, peito e braços, parecendo algum tipo de intrincado padrão tribal, a pele dele era
suave, da cor dourada de um nativo. O cabelo parecia indicar a mesma linhagem, negro e liso, as pontas curtas e espetadas parecendo tão macias quanto as asas de
um corvo.
Somente os olhos o denunciavam como outra coisa que não um nativo do Alasca. Num tom prata-claro, penetrantes em contraste com os cílios espessos e escuros que os
contornavam, eles prendiam Alex num laço praticamente físico.
– Preciso pedir que venha para fora onde eu possa vê-lo – disse, nem um pouco à vontade com aquela situação ou com o desconcertante homem. Embora soubesse não ser
páreo para ele, com ou sem balas para protegê-la, ela se esforçou ao máximo para usar aquele tom policial de quem não aceita desaforo usado por Jenna. – Agora. Saia.
Ele inclinou a cabeça para um lado e relanceou além dela para o mormaço nublado da luz vespertina tênue do lado externo.
– Prefiro não fazer isso.
Ele prefere não fazer isso? Sério?
Alex flexionou os dedos para segurar melhor a pistola, e ele ergueu as mãos lentamente para demonstrar que não estava se rebelando.
– A temperatura aí fora deve estar uns dez graus abaixo de zero. Isso é capaz de congelar algo vital num homem – disse ele, com a audácia de curvar os lábios num
meio sorriso divertido. – As minhas roupas estão aqui dentro. Como pode ver, eu não estava vestido adequadamente para receber visitas. Ou para enfrentar um tiroteio
na tundra.
Seu humor fácil e pervertido murchou grande parte da agitação dela. Sem esperar por uma resposta – sem nenhuma preocupação com a pistola carregada ainda apontada
para o seu peito – ele se virou e entrou mais na casa de Pop.
Bom Deus, aquelas fascinantes tatuagens o envolviam nas costas também. Pareciam se mover com ele, acentuando os músculos duros e enxutos que se tensionavam e relaxavam
a cada passo.
– Você também não precisa ficar aí no frio – ele disse, a voz grave provocando algo insano na sua pulsação enquanto ele desaparecia de vista. – Guarde a arma e entre,
se quiser conversar.
– Merda – Alex sussurrou numa lufada.
Relaxou os braços, sem entender muito bem o que estava acontecendo ali. O cara era inacreditável. Seria arrogante ou simplesmente louco?
Chegou a pensar em disparar um tiro de alerta, só para que ele entendesse que ela estava falando sério, mas, no mesmo instante, Luna emitiu um ganido e voltou a
subir os degraus e a entrar na casa atrás dele. Cadela desleal.
Murmurando uma imprecação, Alex abaixou a pistola e, com cuidado, subiu até a varanda rumo à porta aberta do que quase fora um segundo lar para ela nos últimos anos.
Ao entrar na casa de Pop, ela não poderia lhe parecer mais estranha. Imprópria em todos os sentidos.
Sem a voz ressonante de Pop para recebê-la enquanto entrava, a casa parecia fria, mais escura e vazia do que nunca. Felizmente, não havia nenhum sangue derramado,
visto que ele e Teddy ou tinham corrido ou sido perseguidos do lado de fora antes que o assassino conseguisse apanhá-los. Tudo parecia estar como deveria caso eles
estivessem ali, mas a visão arrepiava Alex como algum tipo de realidade alternativa que se colidia com a que tinha conhecido.
Discordante com a sala abarrotada havia uma mochila de couro com o zíper aberto sobre o sofá laranja e marrom. Alex deu uma espiada em seu conteúdo, notando uma
muda de roupa e um punhal desembainhado sobre um par de calças pretas ao estilo militar.
Contudo, o punhal serrilhado que parecia capaz de escalpelar um urso com facilidade era apenas um aperitivo comparado ao restante da artilharia disposta na sala
de estar de Pop.
Um rifle de longa distância estava apoiado no canto mais próximo à porta. Ao lado, na mesinha de canto surrada que Pop Toms fizera com as próprias mãos, como presente
de casamento para a esposa há cerca de três décadas, havia um cinturão de balas, cujas pontas, grandes, pontudas e encapadas, eram do tipo de munição capaz de atravessar
pele e ossos num instante, sem nenhuma misericórdia na captura de prisioneiros. Outra arma, uma semiautomática nove milímetros que superava o seu revólver quarenta
e cinco com facilidade, repousava no coldre preto próximo à caixa de balas.
Tendo vivido na floresta grande parte da vida, Alex não se acovardava ao ver armas e equipamentos de caça, mas aquele arsenal pessoal – e a percepção de que o homem
que o possuía acabara de voltar para a sala – a surpreendeu.
Levantou o olhar e o flagrou vestindo uma camisa grossa de camurça cinza e arregaçando as mangas nos braços. O conjunto fascinante de tatuagens desapareceu quando
ele abotoou a frente. No confinamento da sala pequena, Alex captou o cheiro da atmosfera ártica com seus pinheiros, assim como de algo mais selvagem que parecia
preso a ele e clamava a atenção dos seus sentidos.
Céus, fazia tanto tempo assim que estava sem companhia masculina que seus instintos de preservação já não funcionavam? Ela achava que não, mas, pensando bem, ela
não era a única fêmea afetada pelo desconhecido que aparecera do nada na noite anterior. Luna estacionara seu traseiro traidor aos pés dele e o fitava com um olhar
de adoração, enquanto ele abaixava a mão para coçá-la atrás das orelhas. Normalmente, a malamute ficava atenta ao redor de estranhos, desconfiava de pessoas novas,
mas não com ele.
Se ela precisasse atestar a personalidade de uma pessoa, seria melhor não confiar nos instintos de Luna. Quanto a isso, Alex tinha seu detector interno para julgar
se podia ou não confiar em alguém, um tipo de detector de mentiras instintivo do qual ela tomara conhecimento ainda criança. Infelizmente, para que ele funcionasse,
ela precisava estar perto o bastante para tocar na pessoa – um simples resvalar de dedos era uma conexão suficiente para lhe dizer se estavam mentindo.
Por mais tentador que fosse pousar a mão na pele nua dele, isso também significaria abaixar a arma. Sinceramente, ela não achava que seria sensato ficarem tão amigos
assim ainda.
– Quem é você? – Alex exigiu saber, imaginando se dessa vez ele responderia. – O que estava fazendo na reunião municipal em Harmony e o que faz aqui? Está comprometendo
uma cena de crime, caso ainda não tenha notado.
– Notei. E o metro de neve recente que agora está cobrindo todo este lugar já a comprometeu muito antes de eu chegar aqui – disse ele sem se desculpar, ainda esfregando
a cabeça e o queixo de Luna, enquanto a cadela praticamente babava de contentamento.
Alex podia jurar que algo não dito se passava entre o homem e a cadela no instante antes de Luna se levantar e se aproximar de Alex para lambê-la na mão.
– Meu nome é Kade – disse ele, prendendo-a com o firme olhar prateado. Ele estendeu a mão, mas Alex ainda não decidira se já poderia confiar nele. Ele hesitou por
um momento, depois voltou a abaixar o braço. – Pelo que ouvi ontem à noite, imagino que você era próxima das vítimas. Lamento a sua perda, Alex.
O modo como ele pronunciou seu nome com tamanha familiaridade a enervou. Não gostou de como a voz e a compaixão inesperada e indesejável pareceram atingi-la no peito
e se enredar em seus sentidos. Ela não o conhecia e, definitivamente, não precisava da empatia dele.
– Você não é daqui – ela disse abruptamente, necessitando manter algum distanciamento, visto que as paredes pareciam se fechar ao seu redor quanto mais ficava na
presença dele. – Mas também não é de fora. É?
Ele balançou a cabeça de leve.
– Nasci no Alasca, fui criado ao norte de Fairbanks.
– Ah! Qual é a sua família? – perguntou, tentando parecer que estava mantendo uma conversa e não fazendo um interrogatório.
Ele piscou, apenas uma vez, bloqueando seus olhos magníficos lentamente.
– Você não deve conhecer a minha família.
– Você pode se surpreender. Conheço muitas pessoas – disse ela, pressionando-o para que ele não fosse evasivo. – Pode me testar.
Os lábios amplos se curvaram nos cantos.
– Isso é um convite, Alex?
Ela pigarreou, pega desprevenida pela insinuação, porém ainda mais pela aceleração da sua pulsação enquanto a pergunta pairava sobre eles. Ele se aproximou então,
com passadas largas e lentas, que o deixaram a apenas um braço de distância.
Meu Deus, ele era maravilhoso. Ainda mais assim de perto. O rosto magro tinha ângulos agudos e ossos fortes, as sobrancelhas pretas acentuando o tom invernal e a
inteligência aguçada dos olhos, que se erguiam bem leve nos cantos. Olhos de lobo. Olhos de caçador.
Alex se viu presa neles quando ele se aproximou ainda mais. Sentiu o calor da mão dele na sua, depois uma pressão gentil, porém firme, quando ele cautelosamente
tirou a pistola dos seus dedos.
Ele a ofereceu de volta sobre a palma aberta.
– Não vai precisar disso, eu prometo.
Quando ela aceitou a pistola calada e a guardou no coldre atrás das costas, ele foi para o sofá e embainhou o punhal que estava sobre a mochila.
– Você deve ter ficado bem abalada, já que foi a primeira a ver o que havia acontecido aqui.
– Não foi um bom dia – ela disse. – Os Toms eram pessoas decentes. Não mereciam morrer daquela forma. Ninguém merece.
– Não – ele concordou, com gravidade. – Ninguém merece esse tipo de morte. A não ser as bestas responsáveis pelo que aconteceu com seus amigos.
Alex o observou enquanto ele fechava e guardava a caixa de munição na mochila.
– Foi isso o que o trouxe aqui? Você e toda a sua artilharia? Alguém de Harmony o contratou para matar uma alcateia de lobos? Ou veio aqui por conta própria?
Ele inclinou a cabeça na direção dela.
– Ninguém me contratou. Sou um solucionador de problemas. Isso é tudo o que você precisa saber.
– Caçador de recompensas – ela murmurou, com mais veneno do que o que seria sensato. – O que houve aqui não tem nada a ver com lobos.
– Foi o que você disse ontem na reunião – ela nunca ouvira a voz dele mais equilibrada do que aquilo até então. E quando ele a fitou, foi com uma intensidade investigatória
que a fez recuar um passo. – Ninguém acreditou em você.
– E você?
Como se fosse possível, o olhar dele se aprofundou ainda mais. Como se pudesse enxergar através dela, até chegar às lembranças que ela não suportava reviver.
– Conte-me o que você sabe, Alex.
– Quer que eu lhe conte mais a respeito da pegada que encontrei lá fora?
Ele balançou a cabeça muito de leve.
– Estou me referindo ao resto. Como pode ter certeza de que esses homicídios não foram causados por animais? Você viu o ataque?
– Graças a Deus, não – respondeu ela rapidamente.
Talvez rápido demais, porque ele avançou um passo, com o cenho fechado. Avaliando-a.
– E quanto ao vídeo? Há mais dele em algum lugar? Algo além das imagens tiradas depois que as mortes ocorreram?
– O quê? – Alex não precisou fingir confusão. – Que vídeo? Não sei do que está falando.
– Três dias atrás, um vídeo filmado aqui por um celular foi parar num site ilegal na internet.
– Ah, meu Deus… – Aterrorizada, Alex levou a mão até a boca. – E você assistiu?
O tendão que se esticou no rosto dele foi confirmação suficiente.
– Se você souber algo mais a respeito dos homicídios que aconteceram aqui, preciso que me conte, Alex. É muito importante que eu tenha todas as informações que puder.
Se Alex se sentiu tentada a contar tudo na reunião da noite anterior, agora, sozinha diante daquele homem – daquele estranho que a confundia inexplicavelmente em
todos os níveis do seu ser –, as palavras ficaram presas na garganta. Ela não o conhecia. Não tinha tanta certeza de que podia confiar nele, mesmo que ela, de alguma
maneira, conseguisse a coragem de trazer à tona suas mais sombrias suspeitas.
– Por que você está aqui, de verdade? – ela perguntou com suavidade. – O que está procurando?
– Estou à procura de respostas, Alex. Acredito que esteja procurando o mesmo que você – a verdade. Talvez exista um modo de nos ajudarmos.
O toque agudo do celular de Alex rompeu o silêncio prolongado. Ele tocou mais uma vez, dando a Alex a desculpa de que ela precisava para se colocar a alguns passos
de distância do homem cuja presença parecia roubar o ar da sala. Alex lhe deu as costas e atendeu a ligação.
Era Jenna, telefonando para lembrá-la de que deveriam se encontrar para jantar no Pete’s naquela noite. Alex confirmou rapidamente, mas permaneceu no telefone mesmo
depois de Jenna ter se despedido e desligado.
– Sim, sem problemas – Alex disse para o telefone mudo. – Já estou a caminho. Estarei aí no máximo em vinte minutos. Ok. Tchau!
Colocou o aparelho no bolso da parca e se virou para encarar a nova pessoa favorita de Luna, sentada no sofá com ela deitada aos pés.
– Preciso ir. Tenho entregas para fazer antes que o sol se ponha, e vou me encontrar com uma amiga para jantar na cidade.
Estava ansiosa para ir embora, mas por que se sentia impelida a se explicar para aquele homem? Não era da conta dele o motivo de ela estar praticamente correndo
dali.
Alex sutilmente estalou os dedos e chamou Luna. A seu favor, Luna se aproximou sem parecer magoada demais por ser chamada para longe dele.
– Vou avisar o policial Tucker que você estará aqui estes dias – acrescentou, imaginando que não faria mal ele saber que ela era amiga da polícia.
– Faça isso, Alex. – Ele não se ergueu de sua posição largada no sofá. – Tome cuidado aí fora. Te vejo por aí.
Alex captou o sorriso preguiçoso dele ao pegar Luna e seguir para a porta. Embora não ousasse olhar para trás, ela sentia o olhar cinzento às suas costas, observando-a
enquanto ela montava na motoneve com Luna e acelerava. Havia se afastado alguns metros quando outro pensamento a atingiu.
Não havia notado nenhum outro veículo estacionado em parte alguma ali.
Então como foi que ele conseguiu vencer o trajeto de mais de sessenta quilômetros de Harmony até ali, no meio da floresta?
Capítulo 7
Kade esperou que as poucas horas de luz solar passassem no chalé da propriedade dos Toms. Assim que ficou seguro para a sua pele sensível ao sol se aventurar do
lado de fora, ele partiu a pé uma vez mais, desta vez em direção às terras que a família tinha ao norte de Fairbanks.
Imaginou como seria recebido no Refúgio Secreto do pai – ele, o filho pródigo, a ovelha negra indefensável que partira um ano antes sem desculpas nem explicações,
sem nunca olhar para trás. Sentia certa culpa por isso, mas imaginava que ninguém acreditaria se o dissesse.
Ficou imaginando se Seth estaria lá quando chegasse e, em caso positivo, o que o irmão diria a respeito dos assassinatos que trouxeram Kade de Boston de volta para
casa para investigar em nome da Ordem.
Contudo, mais do que tudo isso, Kade ficou pensando no que Alexandra Maguire estaria escondendo.
Kade tinha bastante experiência pessoal em guardar segredos para deduzir que a atraente piloto não estava sendo totalmente honesta quanto ao que sabia a respeito
das mortes recentes – não com o povo da cidade, nem com a força policial, tampouco com ele mesmo há pouco. Possivelmente, nem consigo própria.
Ele poderia tê-la pressionado quando se encontraram na casa de Toms, mas Alex não parecia do tipo que era forçada a fazer algo que não quisesse. Kade precisaria
conquistar a sua confiança a fim de obter as informações de que precisava.
Talvez até tivesse que seduzi-la, uma ideia que ele considerava interessante até demais. Isso mesmo. Seria uma dureza de trabalho se aproximar de Alexandra Maguire…
Cada missão deveria ter esse tipo de tarefa onerosa.
Pensamentos de como conduziria as coisas da próxima vez em que a visse fizeram com que as horas e os quilômetros ficassem para trás. Em pouco tempo, chegou ao pedaço
imenso de floresta virgem que pertencia à família há centenas de anos. Os cheiros conhecidos das árvores e da terra que jazia dormente debaixo da neve contraíram
seu peito. Por muito tempo aquele pedaço de terra fora seu lar, seu reino e seu domínio.
Quantas vezes ele e Seth correram e saltaram livres naquela mesma floresta, irmãos em armas, jovens senhores numa perseguição? Vezes demais para lembrar.
Mas Kade se lembrava da noite em que o idílio da infância partilhada chegou ao fim. Ele ainda sentia o peso daquele momento na mão fria do medo que segurava sua
nuca enquanto ele se aproximava do extenso assentamento de construções de madeira que abarcava o Refúgio Secreto da sua família.
Diferentemente da maioria das comunidades civis da Raça, aquele Refúgio Secreto não tinha um perímetro cercado ou câmeras de segurança de circuito fechado. Também
não havia guarda montada. Pensando bem, num lugar tão ermo, isso não seria necessário. A própria terra funcionava como sentinela das muitas residências e da população
que vivia nelas. Severa, remota e extensa.
Se os predadores de quatro patas não dissuadiam visitantes humanos inesperados de aparecerem de repente na propriedade, o pai de Kade e cerca de vinte outros machos
da Raça que viviam no Refúgio Secreto provavelmente ficariam mais do que contentes em cuidar deles.
Kade avançou penosamente pela trilha coberta de neve que levava até a casa principal. Bateu à porta, pouco à vontade para entrar sem ser anunciado.
O irmão mais novo do seu pai veio atender a porta.
– Seth, o que você está fazendo parado aí na neve…
– Tio Maksim – disse Kade, inclinando a cabeça num cumprimento quando a compreensão transpareceu na expressão iluminada do outro. – Como vai, Max?
Ele tinha quase trezentos anos, mas como todos os demais da Raça, parecia no auge da vida, com seu rosto sem rugas e espessos cabelos escuros.
– Estou bem – ele respondeu. – Esta é, sem dúvida, uma grande surpresa, Kade. Seu pai ficará imensamente feliz por você estar em casa.
Kade resistiu ao impulso de rir disso, mas só porque sabia que o tio dissera aquilo afavelmente.
– Ele está?
Maksim assentiu.
– No escritório. Meu Deus, é um alívio vê-lo novamente e saber que você está vivo e bem. Você ficou tanto tempo sem mandar notícias que temo que muitos de nós deduzimos
que o pior tivesse lhe acontecido.
– Pois é – Kade disse de modo estranho. – Já ouvi isso. Pode dizer ao meu pai que estou aqui?
O tio lhe deu um tapa no ombro.
– Vou fazer melhor do que isso. Venha comigo. Eu mesmo vou levá-lo até lá.
Kade seguiu o macho corpulento pela casa imensa até o escritório particular de seu pai, cuja vista se estendia pelo lado oeste da propriedade. Maksim bateu os nós
dos dedos na porta, depois apertou o ferrolho e a abriu.
– Kir. Veja quem voltou para casa, irmão.
O pai de Kade se virou do programa de computador aberto no monitor, girando a grande poltrona de couro para encará-los. Kade viu a expressão séria se obscurecer
passando da surpresa e alívio para confusão e desapontamento mal disfarçado quando percebeu que era o filho pródigo que aguardava na soleira, e não o favorito. A
expressão séria se acentuou.
– Kade.
– Pai – ele respondeu, sabendo que não haveria abraços emocionados e boas-vindas calorosas de seu pai, quando ele se levantou da poltrona e deu a volta até a frente
da longa escrivaninha.
Ele dispensou apenas um olhar para o irmão, que estava atrás de Kade próximo à porta.
– Deixe-nos, Maksim.
Kade sentiu, mais do que viu, a saída obediente e silenciosa do tio. Em vez disso, fitou o pai, enxergando a desaprovação no olhar sombrio que o penetrava do outro
lado do escritório. Kade baixou a mochila e a artilharia no chão e aguardou o desprazer do pai.
– Esqueceu de comentar que pretendia vir para casa quando telefonou há poucos dias – como Kade não ofereceu nenhuma explicação, o pai exalou audivelmente: – Pensando
bem, isso não é surpresa alguma. Você tampouco se importou em dizer alguma coisa antes de partir um ano atrás. Apenas se foi sem pensar nas suas responsabilidades
para com a família.
– Era a minha hora de partir – Kade respondeu após um longo momento. – Eu precisava fazer algumas coisas.
A zombaria do pai soou carregada de animosidade.
– Espero que tenha valido a pena. Você partiu o coração da sua mãe, não percebe? Até telefonar subitamente no outro dia, ela estava certa de que você tinha sido
morto ao se juntar àquele grupo de vingadores em Boston. E ainda que Seth fosse a última pessoa a falar mal de você, posso garantir que você também partiu o coração
dele ao ir embora. O seu irmão mudou muito desde que você se foi.
E claro, a culpa disso e de todo o resto sempre recaía sobre os ombros de Kade. Ele balançou a cabeça, sabendo que de nada adiantaria ele tentar se defender ou defender
a Ordem. Lucan e os outros guerreiros não precisavam do apoio e da aprovação do seu pai. Para falar a verdade, nem ele.
Ele já sobrevivera sem isso por muito tempo e, desde então, desistira da necessidade de provar seu valor para aquele homem.
– Então, Seth está fora cuidando de negócios para o senhor?
O pai recebeu a pergunta com o olhar estreito.
– Ele deve voltar logo. Imagino que ele também vá se alimentar enquanto estiver afastado, motivo provável para o seu retardo.
– E quanto a Patrice?
– Ainda não se uniram – foi a resposta ríspida do pai.
Kade grunhiu em compreensão e desejou que pudesse se sentir mais surpreso ao ouvir a notícia. Por seis anos era sabido que Seth e Patrice, uma das Companheiras de
Raça que vivia no Refúgio Secreto desde criança, acabariam formando um casal unido pelo sangue. Naquela época, Patrice o escolheu a despeito de todos os outros da
região e, para deleite dos seus pais, Seth concordara em torná-la sua companheira. A questão era que ele sempre parecia encontrar uma boa desculpa atrás da outra
para postergar a união.
Sem uma Companheira de Raça para aplacar as necessidades de sangue de um vampiro, ele se via forçado a se alimentar da população mortal para se manter. A maioria
dos machos da Raça via com bons olhos o elo eterno e inquebrável que os libertaria da escravidão de sua sede de sangue e que forneceria uma fonte constante e amorosa
de força e paixão pela duração da vida do macho.
Todavia, existiam alguns que preferiam permanecer independentes, caçando quando bem quisessem, deleitando-se com a constante perseguição e conquista da presa humana.
Kade mesmo não tinha pressa alguma de se prender a uma Companheira de Raça, outro ponto de controvérsia com o pai e a mãe, que viviam unidos e felizes há mais de
um século. Em vez disso, depositaram suas esperanças em Seth. Ele era o estudioso, o cérebro, aquele que todos acreditavam que um dia tomaria as rédeas como líder
do Refúgio da família ou formaria o seu próprio.
Kade sempre fora o exato oposto do irmão. Fora esse traço temerário que provavelmente o condenara ante os olhos do pai, enquanto o cuidadoso controle externo de
Seth aparentemente lhe concedera liberdades ilimitadas.
– Bem – disse o pai após um silêncio prolongado –, visto que você voltou ao seu juízo e retornou para casa agora, imagino que isso signifique que você esteja pronto
para fazer parte da família mais uma vez. Como parece que você retornou com apenas a roupa do corpo, tomarei providências para transferir alguns fundos para a sua
conta.
– Não vim aqui atrás de dinheiro – Kade ralhou, a raiva surgindo diante da suposição do pai. – E quanto a ficar aqui, não tenho planos de…
– Onde está o meu filho? – as palavras de Kade foram interrompidas por um pequeno ciclone que escancarou as portas do escritório e entrou como uma brisa. – É você
mesmo! Ah, Kade!
Ela o puxou para um abraço apertado, o corpo vibrando de emoção. Sua mãe estava bela e vibrante como sempre – mais que vibrante, pois seu brilho era aumentado pelo
ventre distendido por debaixo das calças, e pelo largo suéter que ela vestia. Com cabelos escuros e olhos prateados e claros, iguais aos dos filhos Seth e Kade,
Victoria era uma mulher estonteante. Assim como seu parceiro, ela também não aparentava mais do que trinta anos de idade, seu envelhecimento detido pelo elo de sangue
que partilhava com Kir.
– Ah, meu amado menino! Estive tão preocupada com você! Graças a Deus você voltou e… veja, bem na hora. – Ela sorriu, absolutamente radiante. – Você terá dois novos
irmãos em menos de um mês. Gêmeos idênticos, como você e Seth.
Embora ela parecesse deliciada ante a perspectiva, Kade sentiu uma reviravolta doentia em seu íntimo. O talento que ele e Seth partilhavam, a habilidade de se comunicar
e comandar animais predadores, era um dom singular transmitido a eles geneticamente pela mãe Companheira de Raça, do mesmo modo como ele e Seth tinham a mesma pele
dourada, cabelos negros e olhos exóticos. Mas, diferentemente dela, em Kade e em Seth, com o sangue da Raça do pai correndo quente nas veias, esse talento tinha
um lado obscuro. Ele odiou pensar que o padrão poderia se repetir em mais um par de irmãos.
– A senhora me parece bem, mãe. Estou contente em vê-la tão feliz.
– Estou ainda mais feliz agora que você está aqui. Vai ver que mantive seus aposentos exatamente como os deixou. Nem um dia se passou sem que eu não tivesse esperança
e rezasse para ter meus dois amados filhos sãos e salvos, vivendo debaixo do nosso teto novamente como uma família.
Ela lançou os braços ao seu redor novamente, e Kade se sentiu ainda pior com o que tinha a dizer.
– Eu… eu não sei quanto tempo vou ficar. Não voltei para viver aqui, mãe. Estou aqui a trabalho, para a Ordem.
Ela se afastou, a expressão se entristecendo.
– Não vai ficar?
– Só até a minha missão acabar. Depois terei que voltar para Boston. Lamento se fiz vocês pensarem que…
– Você não pode ir – ela murmurou, as lágrimas se avolumando nos olhos. – Seu lugar é aqui, Kade. Este é o seu lar. Somos a sua família. A sua vida está aqui…
Ele gentilmente meneou a cabeça.
– A minha vida é com a Ordem agora. Eles precisam de mim, e eu tenho coisas importantes a fazer. Mãe, sinto muito desapontá-la.
Ela soluçou por trás da mão, e recuou alguns passos, cambaleando um pouco com o movimento, mas o pai de Kade logo se pôs ao seu lado, envolvendo-a protetoramente
com os braços. Ele falou suavemente com ela, carinhosamente, palavras particulares que pareceram acalmá-la de algum modo. Mas as lágrimas e os soluços não pararam
por completo.
O pai de Kade a acompanhou com cuidado até a porta, parando para levantar a cabeça e lançar um olhar firme para o filho. Seus olhos se encontraram e se digladiaram,
nenhum deles desejando recuar.
– Você e eu não terminamos, Kade. Espero que me aguarde aqui até que eu acabe de cuidar da sua mãe.
Ele esperou como ordenado, mas apenas por um minuto. O tempo afastado fez com que ele se esquecesse como era estar naquele lugar. Ele não conseguiria viver debaixo
do mesmo teto que o pai, assim como não conseguiria viver à sombra de Seth. Sentia-se morrer por causar sofrimento à mãe, mas se precisava de um lembrete de que
não pertencia àquele lugar, conseguira-o em alto e bom som com o olhar que o pai lhe lançara ao passar pela porta.
– Merda! – sibilou ao apanhar a mochila e sair do escritório.
Foi para fora, pensando que o ar gélido o ajudaria a clarear a mente. Em vez disso, seu olhar foi atraído pelo chalé do irmão. Sabia que não deveria entrar – na
verdade, não tinha direito algum –, mas a necessidade de respostas era mais poderosa que qualquer culpa por invadir a privacidade de Seth. Kade abriu a porta e entrou.
Não tinha certeza do que esperava ver. Algum tipo de caos e bagunça de uma mente perturbada? Mas os aposentos de Seth estavam mais arrumados do que nunca, não havia
absolutamente nada fora do lugar. Toda a mobília e seus pertences organizados e precisamente dispostos. Havia um livro de filosofia na mesinha ao lado do sofá, uma
coletânea de música clássica na disqueteira. Na mesa do computador de Seth, uma pasta contendo planilhas impressas de algo em que ele obviamente vinha trabalhando
para o pai, bem fechada debaixo de um peso de cristal. Seth, o filho perfeito.
Só que quanto mais Kade olhava ao redor, mais o chalé se parecia com um cenário montado do que com um lugar em que alguém morava. As coisas estavam arrumadas demais.
Muito organizadas, como se colocadas ali para o caso de alguém espiar à procura de algo estranho. Ou de algum sinal de fraude, que era o que Kade estava fazendo.
Mas Kade conhecia o irmão melhor do que qualquer outra pessoa. Ele era uma parte de Seth, como ninguém mais poderia ser, por causa do elo inquebrável com que nasceram
por serem gêmeos idênticos. Desde que eram garotos foram como duas partes de um inteiro, inseparáveis, com uma inenarrável compreensão mútua.
Kade acreditara que ele e Seth eram idênticos em todos os aspectos… até a primeira vez que vira o irmão comandar uma alcateia de lobos para perseguir e atacar um
urso.
Na época, não passavam de garotos, com uns catorze anos e ávidos em testar os limites tanto de suas forças como também de suas habilidades sobrenaturais. Seth estava
se gabando, contando que fizera amizade com uma alcateia da região e que conseguia comandar a mente de mais de um animal de cada vez. Kade nunca tentara isso – sequer
percebera que poderia fazê-lo –, o que fez Seth querer demonstrar.
Ele chamara a alcateia com um uivo e, antes que Kade percebesse o que estava acontecendo, ele e Seth estavam correndo com os lobos atrás de uma presa. Depararam-se
com um urso pardo apanhando salmão no rio. Seth dissera à alcateia que abatesse o urso. Para total assombro de Kade, eles obedeceram. Mas o mais chocante – e infinitamente
mais abominável – foi ver Seth participando do ataque.
Foi uma batalha longa e prolongada… e Seth se deliciou com ela. Sujo de sangue do animal, ele chamara Kade para que se juntasse a eles, mas Kade se mostrou aterrorizado.
Vomitara nas moitas, nunca tendo se sentido tão enojado e triste em toda a sua vida.
Nas semanas que se seguiram, Seth caçoara reservadamente de Kade. Vangloriara-se, agindo como um diabinho em seu ombro, desafiando-o a testar os limites do seu talento
para determinar qual deles era o gêmeo mais poderoso. Kade, de maneira estúpida, acabara cedendo. O orgulho fizera dele um tolo, por isso ele aceitara a luva de
pelica lançada por Seth.
Aperfeiçoara sua habilidade até que ela lhe surgisse tão naturalmente quanto respirar. Aprendera a amar a sensação da barbárie indomada em sua pele, inundando seus
sentidos, presa entre os dentes e as presas. Ele se tornara tão bom, tão viciado no poder do seu talento, que logo se tornou quase impossível controlá-lo.
Seth ficara furioso porque a habilidade de Kade excedera a sua. Ele era ciumento e inseguro, uma combinação perigosa. Até que um dia, subitamente, encontrou algo
mais para provar a Kade, e suas inclinações violentas assumiram um foco alarmante.
A certa altura, Seth silenciosamente avançara seu talento direcionando-o para outra presa.
Ele e sua alcateia mataram um humano.
Isso aconteceu poucos meses antes de Kade ser recrutado pela Ordem. Enojado e furioso, ele teve a intenção de arrastar Seth para diante do pai e o resto dos moradores
do Refúgio e expor a indesculpável infração à lei da Raça. Seth, porém, implorara para que não o fizesse. Jurara que aquilo não passara de um erro terrível – um
jogo que acabara saindo do controle. Implorara a Kade que não o denunciasse. Jurara que a morte fora acidental e que aquilo jamais voltaria a acontecer.
Kade duvidou dele já naquela época. Deveria ter exposto o segredo de Seth. Mas Seth era seu amado irmão – sua outra metade. Kade sabia o que a notícia do crime de
Seth causaria nos pais, especialmente na mãe. Por isso guardou o segredo, mesmo que mantê-lo o estivesse corroendo por dentro desde então.
Protegera Seth da verdade e impedira a dor dos pais, e quando Nikolai lhe telefonou de Boston, dizendo que a Ordem necessitava de novos recrutas, Kade agarrou a
oportunidade.
Agora os homicídios dos Toms trouxeram tudo à tona novamente. O que ele mais queria era que o irmão não fosse capaz de matar uma família inteira a sangue frio, mas
temia que a promessa feita por Seth um ano atrás tivesse sido difícil demais de manter.
Com esse medo lhe pesando na cabeça, Kade começou a caminhar para a porta. Até estar na metade do caminho, não percebeu que estava andando sobre a pele de um urso
pardo. A pele cobria o chão da sala de estar, e apesar de o urso morto por Seth e sua alcateia há tantos anos já ter desaparecido por conta da natureza, o rugido
congelado da boca daquele urso morto feito de tapete fez Kade parar. Voltou até perto da cabeça e se ajoelhou próximo à boca aberta do animal.
– Ah, Seth. Permita que eu esteja errado… – sussurrou ao enfiar a mão com cuidado na boca de dentes afiados.
Foi o mais fundo que conseguiu e praguejou quando os dedos resvalaram num tecido macio e agarraram um saquinho escondido na base da garganta do urso pardo.
Kade retirou um saquinho de amarrar, ouvindo o som metálico de algo se chocando quando o depositou na palma. Afrouxou a cordinha e despejou seu conteúdo. Diversos
anéis de ouro caíram em sua mão, junto com uma pulseira de couro trançado com um dente de urso pendurado e algumas mechas de cabelo de uma variedade de cabeças humanas.
Sangue coagulado sujava alguns dos itens.
Não havia como confundir aquilo com outra coisa…
Souvenires que Seth aparentemente vinha coletando. O esconderijo de recordações de um assassino, tiradas das suas vítimas.
– Filho da mãe… – Kade exclamou com rispidez. – Seu maldito e doentio filho da puta!
Raiva e tristeza colidiram em seu estômago. Não queria acreditar no que estava vendo. Queria arranjar desculpas, agarrar-se a qualquer possível explicação exceto
àquela ressoando como um sino de alerta em seu crânio.
Seu irmão era um assassino.
Teria ele atacado a família Toms de maneira tão hedionda, também?
Algo no íntimo de Kade simplesmente não conseguia aceitar a matança de uma família inteira.
A despeito do terror assentado como gelo em seu íntimo, ele precisava de mais respostas antes de querer condenar Seth como esse tipo de monstro. Precisava de provas.
Inferno, ele precisava encarar o irmão e exigir a verdade dele, de uma vez por todas.
E se no fim Seth fosse culpado, então Kade estaria preparado para fazer o que fosse necessário. O que ele deveria ter feito assim que teve provas do aparente desrespeito
de Seth pela vida humana.
Caçaria seu maldito irmão e o mataria.
Capítulo 8
Boa parte das pessoas reunidas no Pete’s naquela noite estava aglomerada na área na frente do bar, o barulho das conversas se misturando com o do jogo de hóquei
na TV a cabo e com uma antiga canção dos Eagles tocando no jukebox próximo ao banheiro unissex e à entrada da sala de jogos nos fundos. Alex e Jenna estavam sentadas
frente a frente em uma das mesas no centro. Haviam terminado de jantar já há um tempo e agora dividiam uma fatia de torta de maçã caseira do Pete’s, enquanto tomavam
o resto da cerveja, que já esquentara.
Na última hora, Jenna vinha bocejando e consultando o relógio de vez em quando, mas Alex sabia que a amiga era educada demais para deixá-la na mão. De maneira egoísta,
Alex queria prolongar aquele encontro. Insistira na torta de maçã e numa última cerveja e até colocara algumas moedas no jukebox para ter a desculpa de esperar pela
música selecionada antes de saírem.
Qualquer coisa para não ter que voltar para sua casa vazia.
Sentia saudades do pai, agora mais do que nunca. Por tanto tempo ele fora seu amigo mais próximo e confidente. Ele fora seu protetor forte, cheio de boa vontade
e capaz, quando o mundo ao redor fora virado de ponta-cabeça pela violência. Ele seria a única pessoa que entenderia os medos inomináveis que a cercavam agora. Ele
seria a única pessoa para quem ela poderia se voltar, o único que poderia lhe dizer que tudo ficaria bem e quase convencê-la de que acreditava nisso.
Agora, com exceção da cachorra, estava sozinha, e estava aterrorizada.
O desejo de levantar acampamento e fugir do que vira naquele dia terrível na propriedade dos Toms era quase opressor. Mas para onde? Se fugir da Flórida para o Alasca
não bastara para escapar dos monstros que se esgueiravam nas suas lembranças, para onde, então, ela poderia fugir em seguida?
– Vai ficar revirando esse garfo a noite toda ou vai comer um pouco dessa torta? – Jenna tomou o resto da cerveja e pousou a garrafa na mesa tosca num ligeiro baque.
– Você queria torta, mas está me fazendo comê-la sozinha.
– Desculpa – Alex murmurou ao abaixar o garfo. – Acho que não estava com tanta fome assim no fim das contas.
– Está tudo bem, Alex? Se quiser falar sobre o que aconteceu na noite da reunião ou sobre o que houve lá na casa dos Toms…
– Não, não quero falar sobre isso. O que há para se dizer? Merdas acontecem, certo? Coisas ruins acontecem com pessoas boas o tempo todo.
– É, acontecem – Jenna concordou baixinho, os olhos perdendo o brilho na luz da luminária sobre suas cabeças. – Olha só, eu passei lá no Zach hoje à tarde. Parece
que a Polícia Estadual do Alasca em Fairbanks está muito ocupada no momento, mas vai enviar uma unidade para cá em alguns dias. Nesse meio-tempo, eles descobriram
um vídeo com filmagens do crime na internet… Algum cretino deve ter ido até lá com um celular com câmera logo depois que você foi embora, depois postou o vídeo num
site ilegal, que supostamente paga cem dólares por materiais brutais reais.
Alex se sentou mais para a frente, sua atenção focada na confirmação daquilo que Kade lhe dissera na casa dos Toms.
– Sabem quem fez isso?
Jenna revirou os olhos e gesticulou na direção da sala de jogos, onde um grupinho de drogados locais lançava dardos.
– Skeeter Arnold – concluiu Alex, sem se surpreender que o eterno desempregado e preguiçoso, e ainda assim nunca sem uma bebida numa mão e um cigarro noutra, seria
o responsável pelo desrespeito aos mortos em troca de alguns dólares. – Cretino. E pensar que ele e Teddy Toms vinham saindo juntos nos últimos tempos, antes que…
Não conseguiu concluir a frase; a realidade ainda era muito cruel.
Jenna assentiu.
– Skeeter tem a habilidade de se juntar aos rapazes que consegue manipular. Ele é um drogado inútil. Já disse para Zach nesse último ano que tenho um palpite de
que o cara esteja vendendo drogas e álcool para a população nativa abstêmia. Infelizmente, a polícia precisa de uma coisa chata chamada provas antes de poderem prender
e julgar, e Zach fica me dizendo que o que eu tenho contra Skeeter não passa de suspeita.
Alex fitou a amiga, percebendo a tenacidade em seus olhos.
– Você sente falta? De ser policial, quero dizer.
– Não. – Jenna franziu a testa como se estivesse ponderando a respeito, depois balançou firme a cabeça. – Eu não poderia mais fazer esse tipo de trabalho. Não quero
ser responsável por limpar as tragédias e os passos em falso dos outros. Além disso, toda vez que eu fosse averiguar um acidente de trânsito, eu ficaria pensando
em qual coração eu dilaceraria quando entregasse meu relatório. Não tenho mais estômago para o trabalho policial.
Alex esticou a mão e deu um aperto leve e compreensivo na mão da amiga.
– Se é que serve de consolo, eu a considero uma excelente policial, e é porque você se importa. Aquilo nunca foi apenas um emprego para você, isso dava para perceber.
Precisamos de mais pessoas como você cuidando do resto de nós. Continuo pensando que um dia você vai voltar.
– Não – ela replicou e, pelo elo das suas mãos, o sentido interior de Alex lhe disse que Jenna estava falando sério. – Perdi a coragem quando perdi Mitch e Libby.
Sabe que vai fazer quatro anos nessa semana?
– Ah, Jen…
Alex se lembrava muito bem daquela noite de novembro que ceifou as vidas do marido policial de Jenna e da filhinha deles. A família estivera em Galena para um jantar
especial e, na volta para casa, quando começara a nevar e a pista ficara escorregadia, a Blazer deles patinou na direção do fluxo contrário de carros. O caminhão
de dezoito rodas completamente carregado atingiu-os em cheio – cinco toneladas de toras de madeira a caminho dos Estados Unidos Contíguos.
Era Mitch quem estava dirigindo a Blazer, e morreu no impacto. Libby permaneceu no hospital por dois dias, gravemente ferida, a vida dependendo de aparelhos, antes
que seu corpinho simplesmente desistisse de lutar. Jenna ficou em coma por um mês e meio, só para acordar e receber a terrível notícia das mortes de Mitch e Libby.
– Todos dizem que com o tempo não vou sofrer tanto. Passado o tempo, conseguirei me consolar com as lembranças felizes que tive em vez de ficar pensando só no que
perdi. – Jenna expirou fundo e desvencilhou a mão de Alex, passando a puxar o rótulo da garrafa de cerveja. – Já faz quatro anos, Alex. Eu já não deveria ter me
conformado?
– Conformar-se… – Alex escarneceu. – Sou a pessoa errada para você perguntar isso. Só faz seis meses que papai se foi, mas acho que nunca vou deixar de esperar vê-lo
aparecer na porta de casa de novo. Acho que em parte é por isso que estou pensando em…
Jenna a encarou quando as palavras ficaram suspensas no ar.
– Pensando em quê?
Alex deu de ombros.
– É que ultimamente eu venho pensando se não seria melhor para mim vender a casa e seguir em frente.
– Seguir em frente? Sair de Harmony, quer dizer?
– Sair do Alasca, Jen. – E, quem sabe, deixar para trás todas as mortes que pareciam persegui-la para onde quer que fosse. Antes que elas a alcançassem novamente.
– Só estou pensando que talvez eu precise de um recomeço em algum lugar…
Ela não conseguia decifrar a expressão de Jenna, que parecia um misto de tristeza e inveja. Antes que sua muito persuasiva amiga se lançasse numa discussão contraofensiva
dos motivos pelos quais Alex deveria ficar, um urro masculino bem alto de entusiasmo surgiu da área do bar.
– Do que se trata isso? – perguntou Alex, sem saber o que estava acontecendo por estar de costas para a algazarra. – O time de Big Dave ganhou ou algo assim?
– Não sei, mas ele e seus amigos correram todos juntos para o balcão do bar – Jenna voltou a olhar para ela e emitiu uma baixa imprecação. – Você é a minha melhor
amiga, Alex, e você sabe muito bem o quanto sou exigente em relação às amizades. Você não pode ficar aqui diante de um pedaço de torta pela metade em plena noite
do hóquei no Pete’s e simplesmente me jogar a bomba de que está pensando em se mudar. Desde quando? E por que não me disse nada disso antes? Pensei que amigos partilhassem
tudo.
Nem tudo, Alex admitiu silenciosamente. Havia algumas coisas que ela não tinha coragem de partilhar com ninguém. Coisas sobre si mesma e coisas que ela vira ou que
a rotulariam como mentalmente perturbada ou absolutamente insana. Jenna sequer sabia que a mãe e o irmão de Alex tinham sido assassinados, quanto mais como o foram.
Massacrados.
Atacados por criaturas saídas dos piores pesadelos.
Alex e o pai criaram uma história mais viável, quando tomaram o rumo do Alasca para recomeçarem a vida sem a outra metade faltante da família. Para quem perguntasse,
a mãe e o irmãozinho de Alex foram mortos por um motorista embriagado na Flórida. Morreram na hora, sem sentirem dor.
Nada poderia estar mais distante da verdade.
Alex sentira culpa por perpetuar a mentira, ainda mais para Jenna, mas se consolara ao pensar que estava protegendo a amiga. Ninguém haveria de saber o horror que
Alex e o pai testemunharam e do qual escaparam por um fio. Ninguém gostaria de pensar que um mal tão terrível – tão sedento de sangue e violento – poderia de fato
existir no mundo.
Ela dizia a si mesma que ainda estava poupando Jenna, protegendo a amiga, como o pai tentara protegê-la.
– Só comecei a pensar nisso agora – murmurou, depois tomou o último gole da cerveja morna.
Assim que pousou a garrafa, a garçonete de cabelos platinados se aproximou com mais duas. Alex notou, quando a moça pousou duas garrafas geladas na mesa, que a mecha
rosa no cabelo combinava com o batom vibrante.
Alex balançou a cabeça.
– Ei, espere, Annabeth. Já pagamos a conta e não pedimos essas aqui.
– Eu sei – ela disse, depois apontou o polegar para trás na direção do bar. – Alguém pagou uma rodada para todo mundo no bar.
Jenna gemeu.
– Se for Big Dave, eu passo.
– Não foi ele – explicou Annabeth, com um amplo sorriso e o rosto todo iluminado. – Nunca vi o cara antes – alto, cabelo escuro espetado, olhos incríveis, totalmente
sexy.
Foi a vez de Alex gemer. Sabia que só podia ser Kade mesmo antes de virar na cadeira e procurá-lo no meio da pequena multidão de homens formada ao redor do bar.
Ele se destacava dos demais, seus cabelos sedosos e negros no centro da aglomeração.
– Inacreditável – murmurou quando a garçonete se afastou da mesa.
– Você o conhece? – Jenna perguntou.
– É o cara que eu vi no fundo da igreja ontem à noite. O nome dele é Kade. Eu o vi hoje de novo na propriedade dos Toms enquanto eu fazia a minha rota de entregas.
Jenna franziu o cenho.
– Que diabos ele estava fazendo lá?
– Não tenho muita certeza. Eu o encontrei no chalé de Pop Toms, parecendo ter acabado de sair da cama no meio da tarde. E estava muito bem armado – estou me referindo
a rifle de longo alcance, punhal, pistola e artilharia destinada a uma presa bem grande. Deduzo que esteja pensando em ajudar no suposto problema com os lobos.
– Não é de admirar que Big Dave pareça gostar tanto dele – Jenna observou com brusquidão. – Bem, não tenho como tomar outra cerveja, mesmo sendo de graça. Estou
exausta. Preciso parar no Zach para entregar uns arquivos que ele me pediu, e depois vou direto para casa.
Alex assentiu, tentando não pensar no fato de que Kade estava no mesmo lugar que ela, ou na maneira desconcertante como sua pulsação parecia se acelerar com a ideia.
Jenna se levantou e pegou o casaco do gancho na parede.
– E você? Quer que eu te dê uma carona até em casa?
– Não – mesmo sendo tarde e o Pete’s estando abarrotado, aquilo ainda era melhor do que o que a esperava em casa. – Vá em frente, não se preocupe comigo. Vou acabar
com essa torta e quem sabe tomar um café para acompanhar. Além disso, prefiro andar os dois quarteirões até em casa. O ar fresco vai me fazer bem.
– Tudo bem, se você tem certeza – quando ela assentiu, Jenna lhe deu um rápido abraço. – E chega desse papo de se mudar, hein? Não sem me consultar antes. Entendido?
Alex sorriu, mas foi um esforço.
– Entendido.
Viu a amiga atravessar a taverna, a policial dentro de Jenna incapaz de resistir ao impulso de lançar um olhar de esguelha para o estranho no ninho. Acima do barulho
do lugar, Alex ouviu o tilintar do sino na porta assim que Jenna a fechou atrás de si.
Alex cortou um pedaço da torta com o garfo, mas parou antes de enfiá-lo na boca. O que estava fazendo? Não tinha o menor apetite e a última coisa de que precisava
era tomar o café extraforte do Pete’s, para deixá-la acordada a noite toda quando finalmente criasse coragem para voltar para casa.
Céus, estava sendo ridícula. O que de fato precisava era voltar para casa, alimentar Luna antes que a cadela destruísse a casa em retaliação por ter sido abandonada
a noite inteira e depois tentar ter uma boa noite de sono para variar. Poderia pensar em todo o resto na manhã seguinte, quando a cabeça estivesse mais fresca. As
coisas, então, fariam muito mais sentido. Pelo menos era o que ela esperava, porque não conseguia pensar no que mais poderia acontecer para desequilibrá-la ainda
mais.
Assim que se levantou e vestiu a parca, Alex sentiu as duas garrafas de cerveja descerem imediatamente para a bexiga. Perfeito. Usar o banheiro do Pete’s significava
ter que passar pelo bar – e por Kade. Considerou ignorar a pressão urgente na bexiga, mas os dois quarteirões da taverna até sua casa, no ar gélido, seriam uma tortura.
Talvez até um desastre.
E daí se Kade visse que ela estava lá? Claro que ela não queria falar com ele. Sequer precisava olhar para ele.
Sim, um plano brilhante. Pena que fracassou assim que ela se afastou dois passos da mesa.
Sentiu os olhos de mercúrio penetrantes perfurando-a em meio à multidão como se fossem raios laser. Seu olhar atingiu cada uma das suas terminações nervosas de um
modo basicamente semelhante: elétrico e sensual. Alex tentou ignorar o efeito que ele tinha nela, o que foi mais fácil quando ela distinguiu a voz áspera de Big
Dave das demais e o ouviu se gabar das suas caçadas recentes, enquanto Kade sorria e assentia como se estivesse se divertindo com seus melhores amigos.
Vinte e quatro horas e ele já era um dos garotos. Que legal para ele.
Desgostosa, Alex passou pelo jukebox e chegou ao banheiro. Emitindo um suspiro de alívio por ele estar desocupado, entrou e fez o que tinha que fazer, revirando
os olhos enquanto as risadas prosseguiam do outro lado da porta trancada. Foi só quando estava à pia, lavando as mãos, que acabou se olhando no espelho e viu o reflexo
cansado e desarrumado olhando-a de volta.
– Ai, meu Deus… – sussurrou, desejando que ao menos tivesse se dado ao trabalho de passar um rímel antes de sair de casa. E talvez uma escova nesses cabelos emaranhados
ao redor da sua cabeça, como se tivessem sido açoitados pelo vento.
Fez uma tentativa inútil de ajeitar algumas das mechas loiras, mas não havia muito a fazer. Não era de admirar que Kade a tivesse encarado daquele jeito. Ela parecia
uma Medusa ambulante sem uma noite de sono decente há uma semana – o que de fato era verdade, pensando bem.
Será que ela já estava com a aparência tão ruim quando se viram antes, naquele mesmo dia? Esperava que não. Desejou que ele não tivesse pensado que…
– Pelo amor de Deus. Por que tem que se importar com o que ele pensa, hein? – disse para o rosto incorrigível no espelho. – Aquele homem lá fora é a última pessoa
que você tem que impressionar.
Alex assentiu ante seu próprio conselho, ao mesmo tempo pensando se tudo o que acontecera nos últimos tempos a empurrara para além de uma linha invisível, onde subitamente
era aceitável conversar com o próprio reflexo. Já era ruim o bastante que ela conversasse com Luna como se a malamute conseguisse entender todas as suas palavras;
aquilo era levar as coisas longe demais.
Inspirando fundo, Alex prendeu os cabelos desregrados atrás das orelhas, depois destrancou a porta e saiu.
– Tudo bem aí dentro?
Kade. Ah, Deus.
Ele estava recostado no jukebox, que agora, ela notou, finalmente tocava a música que ela havia escolhido cerca de uma hora antes. Ele sorria para ela, com o bom
humor revelado nos cantos da boca larga e no brilho do olhar. Será que ele a ouvira se admoestando por sobre a ironia de Sheryl Crow cantando seu erro predileto?
– Vejo que já está fazendo amizades em Harmony.
Ele grunhiu, lançando um olhar casual para o grupo de homens ainda tomando cerveja antes de voltar toda a sua atenção para ela.
– Big Dave e alguns dos outros vão atrás da alcateia de lobos que foi vista pelas redondezas recentemente. Pediram que eu me juntasse à caçada.
Alex escarneceu.
– Parabéns. Tenho certeza de que vão se divertir juntos.
Quando ela tentou passar por ele, Kade disse:
– Hoje também ouvi a respeito de uma morte no inverno passado que pareceu suspeita. Um nativo que morava sozinho uns quinze quilômetros a noroeste de Harmony. Big
Dave parece pensar que os lobos foram responsáveis por essa morte também.
Alex se virou, balançando a cabeça.
– Está se referindo a Henry Tulak? Ele era um bêbado e meio louco. Muito provavelmente fez alguma idiotice e morreu por exposição ao frio.
Kade levantou um ombro.
– Big Dave e os outros disseram que nada pôde ser provado porque o corpo de Tulak só foi encontrado no degelo da primavera. Nada mais restava a não ser os ossos.
– E se você tivesse morado no interior por algum tempo – como diz ter morado – saberia que nada dura na floresta. Se o ambiente não o absorve, os animais o devoram.
Isso não significa que os lobos o tenham matado.
– Talvez não – concordou Kade. – Só que há boatos de que a última vez em que alguém viu Tulak vivo, ele mencionara uma alcateia rodeando a casa dele. Disse que sentia
como se eles o estivessem espreitando, à espera do momento certo para atacar.
A frustração de Alex se acentuou ao ouvir aquele tipo de asneira se perpetuando, ainda mais por Kade, que ela pensava que fosse mais inteligente do que Big Dave
e seu bando de cabeças ocas.
– Big Dave é capaz de dizer qualquer coisa para incitar as pessoas. Essa é a natureza dele. Se eu fosse você, não apostaria muito no que ele diz.
– Estou aqui para obter informações, Alex. E nesse momento, Big Dave parece ser o mais acessível. Tudo o que estou conseguindo dos outros nesta cidade são evasões
e meias-verdades, e nenhuma dessas duas coisas me interessa.
Muito bem, aquilo a ofendeu. Seu barômetro interno disparou da frustração para a fúria.
– Por que mesmo você está aqui? Evasões e meias-verdades! Olhe para si mesmo. Aparece aqui, ninguém te conhece, ninguém sabe de onde você vem…
– Já te disse, do norte de Fairbanks. Vindo de Boston, se é que estamos começando a ser francos um com o outro agora.
Então ele não era exatamente do Alasca, mas viera de outro estado. Ela não poderia estar menos surpresa. Com o máximo de casualidade possível, pôs a mão em seu antebraço
e se inclinou para perto, como se fosse uma policial interrogando uma testemunha que não queria cooperar.
– Como chegou a Harmony, já que todo mundo ficou isolado por conta do mau tempo dos últimos dias? Pensando bem, como foi à propriedade dos Toms depois que saiu daqui
ontem à noite?
– Andei. Com raquetes de neve, claro.
– Você andou mais de sessenta quilômetros no meio da noite. – Alex riu, mas sem humor algum. Prestou atenção aos seus instintos enquanto mantinha a mão no braço
dele, à espera que seus sentidos lhe dissessem se ele era confiável. Nada foi percebido. Ele era transparente como o vidro, ilegível. Ainda assim, isso não alterava
a lorota que ele estava tentando lhe passar. – Que papo furado. Você fica aí, me acusando de mentir, mas não me contou nada, apenas que seu nome é Kade e que é um
caçador de recompensas querendo dinheiro para matar uma alcateia de lobos inocentes.
Ele balançou a cabeça de leve.
– Eu nunca disse que vim caçar lobos, atrás de uma recompensa ou não. Você deduziu isso. E está errada.
– Está certo, desisto então. O que está fazendo aqui e porque está armado até os dentes? O que exatamente você quer, Kade, o não caçador de lobos do norte de Fairbanks
que veio de Boston?
– Eu lhe disse isso quando nos encontramos antes. Quero respostas. Preciso saber a verdade – toda a verdade – a respeito do que aconteceu com os seus amigos. E acho
que você pode me ajudar com isso, Alex. Acho que você é a única pessoa que pode.
Ele baixou o olhar para onde a mão dela ainda estava apoiada em seu braço. Alex abruptamente a afastou, com a voz grave dele vibrando em seu interior, suas palavras
fazendo-a sentir que talvez ela pudesse confiar nele, quer seus instintos pudessem confirmar isso ou não.
Não queria se afeiçoar a ele, maldição. Não queria depositar sua confiança em nada que ele dissesse, pensou, enquanto seu coração acelerava e tudo dentro dela gritava
para que saísse em disparada. Correr, antes que ela cometesse o erro de deixar aquele homem entrar em seu inferno particular quando ela nada sabia a seu respeito.
– O que está tentando armar? – disse ela suavemente, desejando ter forças para simplesmente se afastar e deixá-lo ali parado em vez de ceder à curiosidade que a
fazia querer saber mais. – Que tipo de jogo está fazendo aqui?
– Não sei sobre o que você está falando – disse ele, apesar da firmeza do seu olhar, que afirmava que não havia muita coisa que escapasse do seu intelecto afiado.
– Que jogo acha que estou fazendo?
Alex o encarou, forçando-se a tentar interpretar em seu olhar as coisas que ele provavelmente não lhe diria.
– Você me diz que não é um caçador, mas permite que Big Dave e os outros acreditem que você seja. Você me diz que quer informações minhas, mas não está disposto
a dar nada em troca. Ou você é um mocinho ou bandido. Então, qual dos dois você é, Kade?
Algo cintilou na expressão dele.
– Você enxerga as coisas como sendo só certas ou erradas, pretas ou brancas? A seu ver, as pessoas só são boas ou más?
– Sim, são. – Ela nunca pensara no assunto naqueles termos, mas tinha que admitir que se confortava com tal clareza. O certo era certo e o errado era errado. Na
sua vivência, havia bem pouca distinção entre o bem e o mal.
E Kade ainda não respondera à sua pergunta.
Para sua surpresa, ele ergueu a mão e a tocou na face, onde uma mecha de cabelo caíra sobre o rosto. Sabia que deveria recuar do toque indesejado, mas o calor da
carícia – por mais tênue que fosse – era bom demais para ser negado.
– Pode ser sincera comigo, Alex. Pode confiar que, seja o que disser, eu não lhe farei mal.
Que Deus a ajudasse, mas sentia-se tentada a contar tudo ali mesmo.
Ela não o conhecia de fato, no entanto, quando o fitava nos olhos, ainda sentindo o calor dos dedos em sua pele, ela queria crer que poderia mesmo acreditar nele.
Num cantinho assustado do seu coração de menina, ela verdadeiramente esperava que ele pudesse ser capaz de banir alguns dos demônios que a atormentaram quase a vida
inteira.
Ela sentia, inexplicavelmente, que se lhe contasse a respeito das bestas que mataram sua mãe e seu irmão – as mesmas bestas que ela tinha certeza de que tinham matado
a família Toms –, Kade entenderia. Que ele, dentre todas as pessoas, seria seu aliado mais forte.
– Você pode me contar – disse ele, sua voz grave muito gentil e incitante. – Conte-me a respeito da trilha na neve. Você sabe o que deixou aquela pegada, não sabe?
Conte-me, Alex. Quero ajudá-la, mas preciso que você me ajude primeiro.
– Eu… – Alex engoliu em seco, descobrindo que era preciso mais esforço do que imaginava para juntar coragem. – O que eu vi… é difícil colocar em palavras…
– Eu sei. Mas está tudo bem, eu prometo. Você está a salvo comigo.
Ela respirou um tanto nervosa e sentiu o cheiro de fumaça acre e o fedor de roupa suja de algum lugar próximo. Assim que registrou o mau cheiro, ela viu Skeeter
Arnold e dois dos seus amigos drogados saindo do bar em direção à sala de jogos. Um celular com capinha de caveira e ossos cruzados numa mão, uma cerveja na outra,
Skeeter inclinou a garrafa na direção de Kade.
– Obrigada pela bebida, meu chapa. Muito generoso da sua parte.
Kade mal dispensou um relance para Skeeter, mas Alex não conseguiu disfarçar seu nojo. E ficou grata por isso, porque o nojo que sentiu por Skeeter Arnold aplacou
parte da insanidade temporária que a fez pensar que poderia confiar num estranho que a manipulava como a um instrumento feito por ele próprio.
– Imagino que você não goste do cara – Kade disse, enquanto Alex internamente estremecia de repugnância.
Ela grunhiu.
– Sabe aquele vídeo que você mencionou, o da filmagem da família Toms que apareceu na internet? Bem, foi esse cretino que filmou.
O olhar de Kade se estreitou quando ele encarou Skeeter do outro lado do salão. Seu olhar era mais que intenso – era letal. E enquanto Alex o fitava, ela notou que
a tatuagem nos braços dele, apenas a parte visível nas mangas enroladas, não era da cor de henna de que ela se lembrava, mas de um matiz de azul-escuro quase negro.
Bem, aquilo era realmente estranho.
Talvez ela tivesse tomado uma cerveja além da conta, já que via a cor da tatuagem dele mudar. Ou talvez apenas tivesse se lembrado errado. Ficara tão atordoada ao
vê-lo na casa de Toms mais cedo, sem falar no fato de que o corpo incrível dele estava quase despido, que era completamente plausível que tivesse confundido a cor
da tatuagem dele. Só que ela nunca antes vira um trabalho tão elaborado quanto o dele, e a imagem dele parado lá, abotoando o jeans como se ela o tivesse tirado
da cama, estaria eternamente gravada em sua mente.
Depois de um longo minuto chamuscando Skeeter Arnold com seu olhar, Kade finalmente voltou a olhar para ela.
– Lidarei com ele mais tarde. O que você tem a me dizer é mais importante.
Alex recuou um passo, pressentindo o perigo no homem mesmo com ele ainda falando com ela no mesmo tom gentil de antes. Mas algo estava diferente. Havia um ar de
ameaça nele que a deixou nervosa.
E ainda restava o fato de que quando ela lhe perguntara se ele era bom ou mau, ele não lhe respondera.
– Acho melhor eu ir embora agora – murmurou, recuando mais um passo antes de se desviar rapidamente dele.
– Alex – ela o ouviu chamar logo atrás.
Continuou andando, porém, passando por entre a multidão de pessoas no bar, desesperada por um pouco de ar frio – e pela libertação da sua visceral e problemática
reação a Kade.
Capítulo 9
Kade emitiu um grunhido baixo ao ver Alex abrir caminho na taverna e praticamente correr para a saída.
Pressionara-a um pouco demais, uma tática que ele deveria saber que teria fracassado só pelo pouco tempo que passara com ela, avaliando o modo como ela se portava.
Quanto mais era pressionada, maior ficava a obstinação de Alexandra Maguire.
E, além disso, ele piorara as coisas ao ir contra o bom senso e tocá-la.
Ele não conseguira resistir, e uma parte sua reconheceu, mesmo enquanto aquilo estava acontecendo, que ela parecia à vontade com o contato. Até o instante em que
o moleque folgado e seboso, com olhar injetado e nariz em forma de bico, se aproximou e os atrapalhou. Só por isso Kade sentiu ímpetos de socá-lo, sem falar no fato
de que o drogado também fora o responsável pela transmissão da prova visual de um ataque de vampiro na World Wide Web.
Com relação a Alex, Kade vira o medo em seus olhos quando a pressionou para obter respostas. Ela ficara aterrorizada ante a ideia de pôr as palavras para fora, mas
ele tinha certeza de que estivera bem perto de fazê-la se abrir por completo sobre o que exatamente sabia. A sensação fria como o gelo em seu âmago lhe dizia que
ela sabia muito mais do recente ataque e assassinato da família na floresta.
Será que ela sabia da existência da Raça?
Será que ela já vira um deles antes?
Céus, e se ela tivesse descoberto mais do que uma simples pegada na propriedade dos Toms?
Se ela tinha informações que poderiam implicar Seth nos crimes – ou inocentá-lo, por mais tênue que fosse essa esperança –, Kade tinha que saber. E tinha que saber
logo.
E se ela tivesse de fato conhecimento sobre a Raça, Kade concluiu que seria muito mais fácil apagar a memória dela nas sombras do estacionamento mal iluminado do
que no meio do bar e restaurante lotado.
Seguiu-a até o estacionamento coberto de neve. Ela já estava na metade do caminho limpo da tundra, caminhando a passos rápidos para além de duas picapes e algumas
motoneves estacionadas do lado de fora do Pete’s. Sequer diminuiu os passos ao ouvir o som do sino na porta, quando Kade saiu debaixo da varanda coberta para ir
atrás dela rapidamente.
– Você sempre foge quando fica com medo?
Isso a fez parar. Ela se virou com uma expressão estranha no rosto, como se o comentário dele tivesse atingido perto do alvo. Mas logo ela piscou e essa expressão
se foi, sendo substituída por um olhar estreito e pela elevação orgulhosa da cabeça.
– Você nunca desiste, mesmo quando sabe que não vai ganhar?
– Nunca – replicou, sem nenhuma hesitação.
Ela murmurou uma imprecação bem audível e continuou andando, partindo na direção da rua. Kade a alcançou em poucos passos.
– Você ia me contar algo lá na taverna, Alex. Algo importante que eu preciso mesmo saber. O que era?
– Deus! – Ela se virou para ele, com raiva faiscando dos olhos castanhos. – Você é impossível, sabia disso?
– E você é linda.
Ele não sabia por que disse aquilo, a não ser pelo fato de achar muito difícil manter o foco com ela parada ali parecendo selvagem, com o rosto corado pelo beijo
frio do Ártico, e os cabelos loiros emoldurando a face em ondas bagunçadas debaixo do rufo de pelos do capuz da parca.
Se Brock ou qualquer um dos guerreiros de Boston o ouvisse agora, eles pensariam que ele estava manipulando aquela fêmea, dobrando-a com elogios para conseguir o
que queria. O próprio Kade queria acreditar que essa fosse a causa da sua repentina confissão. Mas ao olhar para Alexandra Maguire, a sua beleza simples iluminada
pelo luar tênue logo acima e pelo brilho multicolorido das luzes de neon do bar atrás dele, Kade entendeu que não estava fazendo nenhum jogo. Sentia-se atraído por
ela – muito atraído – e queria que ela entendesse que ele não era o inimigo.
Não exatamente, de qualquer maneira.
O ultraje dela diminuiu, transformando-se em confusão conforme ela recuava um passo.
– Preciso mesmo ir agora.
Kade levantou uma mão, mas parou antes de segurá-la fisicamente.
– Alex, qualquer que seja o segredo que esteja guardando, você pode me contar. Deixe-me partilhar desse fardo. Deixe-me protegê-la do que quer que a tenha amedrontado
tanto.
Ela balançou a cabeça, as sobrancelhas castanhas se unindo.
– Não preciso de você. Eu nem mesmo te conheço. E se eu sentisse a necessidade de partilhar alguma coisa, tenho amigos com quem falar.
– Mas você não contou nada para eles, contou? – Não era, na verdade, uma pergunta, e ela sabia disso tanto quanto ele. – Não existe ninguém em sua vida que saiba
o que você mantém preso dentro de si. Contradiga-me se eu estiver errado.
– Cala a boca – ela murmurou, a respiração saindo em forma de vapor no ar frio, a voz um tanto entrecortada. – Apenas… cala a boca. Deixe-me em paz. Você não sabe
nada a meu respeito.
– Será que alguém sabe, Alex?
Ela ficou calada e parada, e Kade teve a certeza de ter cruzado outro limite que a afastaria ainda mais dele. Mas ela não se virou, nem o deixou para trás. Não o
xingou, nem o estapeou, tampouco gritou para que alguém do Pete’s o fizesse por ela. Ela ficou parada, perdida nos olhos dele num silêncio desolado, ferido.
Seu dever de guerreiro, de coletar informações vitais e de apagar qualquer risco de segurança para a Ordem, colidiu com a súbita urgência de oferecer conforto e
proteção para aquela fêmea que professava tão ferrenhamente não ter necessidade de nenhum dos dois.
Kade se aproximou e então a tocou novamente. Apenas um leve toque da ponta dos dedos sobre uma mecha dourada de cabelo solto pela brisa invernal. Ela não se moveu.
Sua respiração parou de evaporar e, de perto, Kade conseguia ouvir a corrente sanguínea pulsando pelas veias dela quando o coração passou a bater mais rápido.
– Você me perguntou no bar se eu era um mocinho ou um bandido – ele a lembrou, com a voz baixa e rouca ao perceber o calor dela se fundindo ao seu quando ele se
aproximou ainda mais. Balançou a cabeça lentamente. – Não sou eu que decido isso, Alex. Talvez você descubra que sou um pouco dos dois. Do modo como eu enxergo o
mundo, tudo é de uma escala diferente de cinza.
– Não… eu não posso viver assim – ela disse, o tom de voz revelava sua sinceridade. – Assim tudo seria mais complicado, difícil saber o que é verdade ou não. Difícil
demais saber o que é real.
– Eu sou real – Kade disse, sustentando seu olhar ao passar os dedos pela curva do seu maxilar. – E você também me parece bem real.
Ela inspirou de leve ante o toque dele, e quando seus lábios se entreabriram, Kade tomou sua boca num beijo impulsivo e imediatamente elétrico.
Ele segurou seu rosto com carinho na palma da mão, enquanto lhe resvalava os lábios e saboreava o calor úmido e suave da sua boca. O beijo de Alex era doce e convidativo…
incrivelmente gostoso. A sensação causada pelo contato com o corpo dela lançou um raio de fogo que o atravessou, cauterizando cada terminação nervosa com o selo
das suas curvas esguias e a fragrância ardente das matas que era só dela.
Ele não estava pensando em obter informações, nem em encontrar um lugar mais tranquilo para apagar a memória dela depois que conseguisse as informações de que necessitava.
O que ele sentia agora também não tinha nada a ver com conforto e proteção.
Tudo o que ele sentia era um desejo por aquela mulher, um desejo surpreendentemente intenso.
E uma avidez que se tornava mais ardente quanto mais Alex ficasse em seus braços.
Com um beijo simples e não impetuoso, ela o afogou numa onda de desejo e sede de sangue. Ele não se alimentara desde que chegara ao Alasca, um descuido de suas necessidades,
que agora fincavam as garras nele exigindo ser satisfeitas com a mesma urgência que o pulsar rígido entre suas pernas.
De algum lugar em sua mente enevoada e sedenta, Kade ouviu um veículo se aproximando no estacionamento. Quis ignorar o ronco baixo do motor, mas logo uma voz chamou
das sombras:
– Alex? Está tudo bem aí?
– Droga… – ela sibilou, recuando. – Isso foi um erro.
Kade nada disse quando ela recuou vários passos, mas, pensando bem, falar seria complicado, já que suas presas agora preenchiam a boca. Ela não olhou para ele, o
que foi bom, uma vez que um vislumbre dos seus olhos agora – transformados do cinza prateado de sempre para o brilho âmbar claro que o traía como sendo alguém da
Raça – teria transformado o imponderado beijo impulsivo numa catástrofe de grandes proporções.
– Eu não deveria ter deixado que você fizesse isso – ela sussurrou, depois deu a volta por ele.
Kade relanceou por sobre o ombro com cautela, vendo a Blazer com as cores da Polícia Estadual do Alasca parada e Alex se aproximando dela.
– Oi, Zach. O que foi? Pensei que Jenna estivesse na sua casa.
– Ela acabou de sair. Disse que você estava aqui no Pete’s, então pensei em vir tomar uma cerveja com você. – A voz de Tucker foi carregada pelo vento. – Que diabos
está fazendo aqui fora? Está com alguém?
– Não, ninguém – ela disse. Kade sentiu, mais do que viu, o rápido olhar que ela lançou para as sombras onde ele estava. – Eu já estava de saída. Me dá uma carona
para casa?
– Claro. Entra aí – Zach Tucker disse, e Alex abriu a porta e entrou.
Kade travou os molares, refreando o desejo que ainda o percorria enquanto a via fechar a porta e sair com o macho humano. Detectara o cheiro da mentira casual no
tom do policial e deduziu que Zach Tucker não era o único homem em Harmony que ficava feliz em inventar qualquer desculpa para ficar na companhia – e cair nas boas
graças – da sensual Alexandra Maguire. Kade sentiu um impulso muito forte de ir atrás dela, quer ela tivesse se mostrado contente de escapar dele ou não.
Mas se precisava de algo para distraí-lo dessa ideia, ele conseguiu quando a porta da taverna se abriu e Skeeter Arnold e três dos seus amigos chapados saíram.
Kade observou o grupo de vinte e poucos anos, sorrindo com satisfação quando o bando se dissipou e Skeeter ficou sozinho, enquanto os amigos saíam numa barulhenta
e velha F150. Quando Skeeter começou a andar para os fundos do estacionamento, Kade saiu das sombras para segui-lo e trocar umas palavras a respeito dos perigos
de se irritar um bando de vampiros.
Antes, porém, que desse dois passos na direção do cretino, Kade viu faróis entrarem no estacionamento e uma Hummer preta ficar atrás de Skeeter Arnold. O veículo
reluziu debaixo das luzes do estacionamento e, comparado com os demais parados no estacionamento do Pete’s, Kade seria capaz de apostar sua bola esquerda que o motorista
não era da região. Quando o carro diminuiu propositadamente para acompanhar o passo de Skeeter, que parou para enfiar a cabeça dentro da janela aberta do passageiro,
os cabelos da nuca de Kade se eriçaram de desconfiança.
O que alguém com uma Hummer haveria de querer com um perdedor do calibre de Skeeter Arnold? Algo foi dito para o rapaz num tom baixo antes que ele risse e assentisse.
– Sim, claro. Pelo preço certo eu posso me interessar em ouvir um pouco mais a respeito – ele respondeu, depois abriu a porta e entrou.
– Que merda você está aprontando? – Kade murmurou quando o carro acelerou, levantando grumos de neve pelo caminho.
Ele teve a sensação de que qualquer que fosse a transação acontecendo entre Skeeter e seu mais novo associado, seria algo muito maior do que o costumeiro montante
do traficantezinho.
Uma onda de calor sibilante e baixo e uma antiga canção sentimental country emanavam do painel do carro cedido pelo governo a Zach, enquanto Alex relanceava pelo
espelho retrovisor, vendo o estacionamento do Pete’s sumir aos poucos na escuridão atrás deles.
– Obrigada pela carona, Zach.
– De nada. Eu tenho que comprar ovos e molho de pimenta de qualquer modo. Café da manhã dos campeões, sabe? E de policiais de trinta e cinco anos, solteiros, sem
nenhuma noção nutricional.
Alex lhe lançou um sorriso educado enquanto percorriam o trajeto curto de dois quarteirões até a casa dela. Sentia-se tanto aliviada quanto tola por ter fugido de
Kade daquele modo, mas, na verdade, estava contente pelo resgate. Só Deus sabe o quanto ela precisava de um, antes que se sentisse tentada a fazer mais qualquer
coisa com ele ali no espaço aberto, entre as picapes e as motoneves.
O que estava pensando ao deixar um completo desconhecido avançar daquele modo? Ela não era do tipo que deixava um cara tirar vantagem com elogios vazios nem com
mãos ousadas – e, sendo uma jovem solteira vivendo no interior do Alasca, ela conhecia muitos homens que tentaram.
Só que naquela noite, com Kade, aquilo não se parecera com algum tipo de jogo, por mais que a arte da sedução parecesse natural para ele. E ainda que ela sequer
tivesse visto o rosto dele antes que ele aparecesse na noite anterior, ela tinha que admitir – pelo menos para si própria – que ele não se parecia em nada com um
estranho para ela.
Kade parecia conhecê-la – e entendê-la – num nível que a atordoava.
Ele parecia capaz de enxergar seu íntimo, nos lugares sombrios que nem ela mesma era corajosa o suficiente para olhar, e era isso o que mais a assustava em relação
e ele.
Foi essa irritante sensação de conhecimento que a deixou tão desesperada para escapar dele naquela noite.
– Lar, doce lar – Zach disse, invadindo seus pensamentos ao parar ao lado da antiga casa de fachada de madeira. – Jenna já deve ter lhe dito, mas recebi notícias
de que um destacamento de Fairbanks da Polícia Estadual do Alasca chegará aqui até o fim da semana – ante o aceno de Alex, ele apoiou o braço direito no encosto
do banco dela e se inclinou um pouco mais para perto. – Sei que não deve estar sendo fácil para você. Caramba, não está sendo nem para mim. Eu conhecia Wilbur Toms
e a família há muitos anos. Não entendo como uma coisa horrível dessas foi acontecer com eles. Mas a verdade virá à tona, Alex. Tenho certeza.
O rosto de Zach, parcialmente iluminado pelas luzes fracas do painel, parecia sério, cauteloso. E depois do que ela tinha dito na reunião municipal, ela não ficaria
surpresa se os instintos de policial dele lhe dissessem que ela estava escondendo algo.
– Se houver algo mais de que se lembre sobre a cena do crime, Alex, eu preciso que me conte, está bem? Qualquer coisa. Eu ficaria feliz de saber que estamos do mesmo
lado quando o destacamento de Fairbanks chegar disparando perguntas pela cidade.
– Claro – ela murmurou. – Sim, Zach. Se eu me lembrar de mais alguma coisa, conto para você.
Enquanto dizia isso, ela sabia que não mencionaria mais as pegadas na neve ou o medo que tinha de que algo horrendo estivesse à solta na floresta gélida não muito
longe de onde eles estavam agora. A coisa que ela temia era muito pior do que qualquer tipo de perigo imposto por homens ou animais. Era monstruosa. E não seria
detida por Zack Tucker ou um bando de policiais estaduais, e Alex tentaria se esquecer disso com todas as forças.
Ela também tentaria se esquecer de tudo o que acontecera nos pântanos da Flórida há tantos e tantos anos. O melhor seria esquecer-se, enterrar bem fundo e seguir
em frente.
Ou se mudar.
Fugir.
– Durma bem – Zach disse quando ela saiu da Blazer e fechou a porta do passageiro. – Ligue quando quiser, está bem?
Ela assentiu.
– Obrigada, Zach. E obrigada mais uma vez pela carona.
Ele lançou um sorriso tão rápido que sumiu do seu rosto antes mesmo de ele passar a marcha no câmbio e sair dali. Enquanto Alex caminhava até a porta da frente da
antiga casa que dividira com o pai desde que era uma garotinha assustada, arrancada de seu mundo – de sua realidade –, a vontade de fugir dali só aumentava. Recomeçar
em algum lugar novo seria o melhor modo para ela se livrar dos medos que a perseguiam, que voltaram ainda mais sombrios agora, mais assustadores do que nunca.
Ela não podia enfrentar esse tipo de horror novamente.
Tampouco podia se deixar envolver por um estado de falsa confiança de que alguém – mesmo um homem como Kade – pudesse enfrentar um mal como o que ela sabia que existia.
Ter qualquer tipo de envolvimento com ele era a última coisa de que ela precisava. Todavia, isso não a impedia de imaginar o que ele pensava dela, ou de desejar
que tivesse se desculpado antes de largá-lo no frio.
Tentou não pensar no modo como a boca dele se encaixava tão bem, e com tanta sensualidade, na sua. Tentou não pensar no modo como o seu coração ainda estava acelerado,
o estômago ainda retesado com o nó de excitação só de pensar em estar nos braços dele. Tentou não imaginar o que poderia ter acontecido caso Zach não tivesse aparecido
naquela hora, mas imaginar-se com Kade – talvez nus na sua cama, talvez se despindo apressadamente, descontrolados no meio do estacionamento do Pete’s se não conseguissem
chegar tão longe – era perturbadoramente fácil demais.
– Ah, isso não é nada bom – murmurou baixo ao abrir a porta e entrar para ser recebida por entusiasmadas lambidas caninas e um rabo muito sacolejante. – Eu sei,
Luna, eu sei… estou atrasada. Desculpe, querida. Também foi um dia bem longo para mim. Vamos lá, agora vou cuidar de você.
Alex se ocupou deixando a cadela sair para fazer xixi no jardim enquanto preparava um pote de comida e outro de água fresca. Depois que Luna voltou e engolia a comida,
Alex tirou a parca e as roupas ao passar pelo corredor, a caminho do banheiro para uma banho tardio, porém muito longo e quente.
O jato quente que atingiu a pele nua não aplacou em nada o calor remanescente causado pelo beijo de Kade. Ela se ensaboou, tentando se lembrar há quanto tempo não
deixava um homem passar as mãos em demorada apreciação em seu corpo despido. Há quanto tempo não tinha intimidades – de verdade – com alguém? O momento de fraqueza
com Zach poucas semanas após o falecimento do pai não contava. Aquela foi apenas uma noite, na verdade umas duas horas. Estivera emocionalmente ferida e imaginava
que só precisava de alguém para fazê-la se esquecer de tudo aquilo, ainda que por pouco tempo.
Estaria fazendo o mesmo com Kade? Estaria se agarrando a ele, fabricando algo entre eles que de fato não existia – não poderia existir –, por causa do novo trauma
pelo qual estava passando?
Talvez fosse só isso mesmo, uma sensação temporária de estar sendo levada à deriva em busca de um porto seguro. Naquela noite Kade lhe dissera que ela estaria a
salvo com ele. Enquanto uma parte sua acreditava nisso – uma parte primitiva e instintiva –, ela também sabia que o fogo que ele atiçara dentro dela com apenas um
beijo não parecia nada seguro. Ela não conseguia deixar de pensar que se aproximar dele poderia ser o maior risco que assumiria. Ele enxergava coisas demais nela,
sabia demais. E naquela noite ele a fez sentir demais.
Alex gemeu ao se inclinar para a frente no chuveiro, recostando o braço nos azulejos e apoiando a cabeça no braço enquanto a água quente escorria pelo seu corpo.
Fechou os olhos e lá estava Kade. O admirável rosto cinzelado. Os intensos olhos claros e penetrantes. O calor dentro dela ainda estava lá, calor esse que a fez
sussurrar o nome dele enquanto abaixava a mão livre para se tocar onde ardia de desejo de ser tocada por ele.
Relaxou num estado de resignação contente, deixando que a água quente, o vapor e os pensamentos sobre ele derretessem todo o resto.
Capítulo 10
Kade ficou escondido nas sombras, observando em meio à mata fechada de abetos e pinheiros, a uns quatrocentos e cinquenta metros de distância de onde a carona chique
de Skeeter Arnold o levara. A trinta quilômetros de Harmony, localizado próximo à base de uma pequena montanha e de um afluente estreito do rio Koyukuk, a propriedade
de quatro hectares e construções baixas brancas ficava protegida por grades de aço de quatro metros e meio de altura e arame farpado. Câmeras e luzes de segurança
estavam espalhadas por todo o lugar, e um par de guardas uniformizados tentava se manter aquecido na guarita da frente, onde portavam rifles militares.
Kade teria suposto que aquele lugarzinho amigável se tratava de uma prisão de segurança máxima, não fosse pela placa de metal gasta pelo tempo presa ao portão, com
letras pretas lascadas, na qual se lia: COMPANHIA DE MINERAÇÃO COLDSTREAM.
Do lado de fora, no pátio, um grupo de trabalhadores estava ocupado descarregando caixotes selados de vários tamanhos de dois contêineres grandes estacionados próximos
ao que parecia ser um depósito. Alguns dos caixotes eram levados para o tal depósito, enquanto outros eram levados para a entrada guardada da mina.
Cada vez mais interessante, Kade pensou, imaginando que nas mais de duas horas em que Skeeter estava dentro do escritório central da construção, ele não devia estar
sendo entrevistado para um emprego.
Kade estava mais do que ansioso para interrogar o humano quanto aos seus assuntos ali – além de todos os seus outros empreendimentos –, mas se os novos amigos de
Skeeter não o soltassem nos próximos minutos, esse interrogatório teria que ser deixado para uma próxima vez. O mais importante era entrar em contato com a Ordem
para informá-los sobre o que descobrira até ali. E ele também tinha que entender o que se passava em sua cabeça em relação a Alexandra Maguire.
Para sua total irritação, sua libido se acendeu à mera sugestão de que voltasse a Harmony para encontrá-la novamente. Não que ele estivesse surpreso ao perceber
que pensamentos sobre ela ferviam logo abaixo da superfície do seu consciente. Aquele beijo ainda o fazia queimar por dentro – chamas abafadas cujas brasas só necessitavam
de um mínimo de combustível para se acenderem.
E isso não era nada bom.
Desejar aquela fêmea era muito ruim, especialmente quando a sua missão dependia de mantê-la calada. Desviar as suspeitas dela a qualquer custo. Erradicar o risco
que ela representava para a sua missão, para os objetivos da Ordem e para a segurança da nação da Raça como um todo.
O que quer que Alexandra Maguire soubesse a respeito dos homicídios na floresta – o que quer que ela soubesse quanto à espécie de Kade de maneira geral – teria de
ser abafado, e com presteza.
Fora só naquele mesmo dia que ele considerara seduzi-la para obter a verdade, caso necessário? Agora aquele plano tinha uma falha, porque se o beijo deles lhe revelara
alguma coisa era que se aproximar de Alex – mesmo em nome do trabalho – não seria fácil. Ela já o afetava sem querer, desde a fachada de independência que ela cuidadosamente
vestia como uma máscara até a tênue indicação de vulnerabilidade que ele vislumbrara nela naquela noite.
Não, voltar para a cidade à procura de Alex não era uma opção. Além do que, ele duvidava de que ela o receberia favoravelmente depois do modo com que se afastara
dele no Pete’s. Inferno, até onde podia saber, Zach Tucker ainda podia estar com ela. Ficou claro que eram amigos e, sem dúvida, o policial certinho se encaixava
na sua necessidade, que ela mesma alegou, de categorizar tudo em compartimentos bem claros. Com o maldito chapéu e o uniforme meticulosamente passado, até as pontas
das botas bem amarradas, o policial Tucker projetava uma imagem de mocinho em preto e branco.
Só que algo naquele homem incomodava Kade. Em parte a aparente descontração em seu relacionamento com Alex, embora Kade não costumasse ceder ao ciúme com frequência.
Isso não o impedia de cerrar os dentes só de pensar no cara e de pensar em dar uma passadinha em Harmony para dar uma checada em Alex no fim das contas. Retomar
as coisas do ponto em que foram deixadas no estacionamento do Pete’s era opcional. Mas muito tentador.
Antes que a ideia se enraizasse ainda mais, Kade a dispensou com uma imprecação murmurada.
Aquela missão estava se mostrando um tormento, isso sim.
Com tal pensamento acompanhando-o, Kade saiu sorrateiro de seu ponto de observação de Skeeter Arnold e dos seguranças bem armados e partiu na direção do Refúgio
Secreto do pai para algumas horas de caminhada. Ele poderia esperar as horas claras do dia lá, entrar em contato com o Q.G. em Boston para contar seus achados até
então e ver se Gideon conseguiria descobrir algo a respeito da Companhia de Mineração Coldstream.
Skeeter Arnold perdera a noção do tempo. Estava no banco de trás do Hummer, surpreso ao ver que o relógio no painel do luxuoso automóvel mostrava seis horas da manhã.
Ficara fora a noite toda?
Parecia que havia saído do Pete’s há poucos minutos e lá estava ele de volta. Só que tudo estava diferente.
Ele estava diferente.
Ele sentia isso na maneira como o corpo se mantinha ereto no assento de couro, os ombros erguidos em vez de estarem caídos como sempre. Sentia-se poderoso de algum
modo e sabia que a fonte desse poder estava sentada ao seu lado: imóvel, silencioso, emanando uma ameaça sombria e um controle letal e impassível.
Skeeter não sabia o nome dele. Não se lembrava se lhe disseram.
Isso não era relevante.
– Não contará a ninguém o que se sucedeu esta noite – disse a voz, parecendo sugar todo o ar para dentro da parca de pele preta e capuz amplo. – Você irá imediatamente
para casa e destruirá todas as cópias do vídeo dos assassinatos.
Skeeter assentiu com obediência, desejoso em agradar.
– Sim, Mestre.
Lembrava-se de ter pensado, quando o motorista do Hummer o abordara mencionando a partilha de informação para uma fonte particular, que a transação por certo envolveria
uma grande soma em dinheiro passando para os seus bolsos.
Errara quanto a isso.
E quando o levaram até a velha companhia de mineração para se encontrar com a tal fonte particular, ele errara ao pensar que o homem alto de terno caro e camisa
branca imaculada fosse de fato um homem. Ele era algo totalmente diverso.
Algo… diferente.
Skeeter sentira um pouco de medo ao ser conduzido por guardas armados do veículo até o prédio central, entrando numa área de segurança que se assemelhava a uma instalação
de pesquisas, repleta de mesas de exame de aço inoxidável e, por baixo, equipamentos de computação que valiam alguns milhões de dólares. Tudo era muito estranho,
mas o mais curioso fora o cilindro vertical amplo que parecia ser algum tipo de gaiola com correntes metálicas e algemas presas ao piso.
Enquanto ele tentava entender o sentido de tudo aquilo, o indivíduo com quem se encontraria – o mesmo indivíduo agora sentado ao seu lado – entrou na sala para interrogá-lo
sobre muitas coisas. Respondeu quanto ao telefone usado para filmar o vídeo na propriedade dos Toms. Respondeu o que sabia quanto aos homicídios, se vira a criatura
que atacara os humanos.
Skeeter lembrou-se da sua confusão ante a maneira estranha como eram feitas as perguntas, e se preocupou em ter entrado numa situação muito mais perigosa do que
parecia. Mas não houvera como recuar. Entrara em algo potencialmente letal. Soubera disso, mesmo naquele instante.
Perguntaram-lhe a respeito de Alexandra Maguire e dos boatos sobre os assassinatos que percorriam a cidade. Quando ele informou sobre o estranho, o cara grande e
musculoso de cabelos negros e olhos lupinos que aparecera em Harmony duas noites antes fazendo o mesmo tipo de perguntas ao povo local, o ar na sala pareceu se adensar
como num nevoeiro.
Skeeter se lembrou do medo que sentiu quando o homem alto de terno caro sacou o telefone via satélite de uma mesinha e saiu da sala por alguns minutos.
Lembrava-se de ter se sentido ansioso, de ter precisado se distrair de qualquer que fosse o desastre que o aguardava do outro lado daquele telefonema. Perguntara
aos funcionários do laboratório para que a gaiola era usada, observando três deles em macacões brancos testando alguns ajustes e apertando controles de computador
que operavam diferentes funções da coisa.
Em voz alta, Skeeter opinou que não deveria ser usada em humanos. A dimensão da cela, o tamanho da mesa dentro dela e as amarras fortes afixadas a ela pareciam ter
sido projetadas para algo muito maior do que um homem. Um urso pardo, talvez, Skeeter dissera, sem receber nenhuma explicação dos funcionários nem dos guardas armados.
Mas alguém lhe respondera, por mais impossível que parecesse.
– Foi construída para alguém da minha espécie – dissera o homem alto de terno caro ao voltar para a sala.
Ele lhe pareceu diferente. Ainda rico e importante, ainda possuidor do mesmo ar de poder letal, mas seu rosto parecia mais tenso, as feições mais retesadas, mais
pronunciadas.
Skeeter se lembrou de ter visto uma repentina centelha âmbar no olhar estreito que o impedia de se contorcer, embora todas as células do seu corpo berrassem para
que ele saísse dali correndo. Lembrou-se de ter captado um vislumbre de dentes brancos pontudos, lembrou-se de ter pensado que estava a segundos de morrer… depois
sentiu no corpo o golpe que o suspendeu.
Skeeter não se lembrava de muito mais depois daquele instante de puro terror.
Tudo desacelerou, sumiu.
Mas ele não morrera.
Acordara há pouco tempo e toda a sua confusão – junto com seu medo – tinha desaparecido.
Agora ele pertencia àquele indivíduo poderoso sentado ao seu lado, o vampiro que o transformara em algo mais do que um simples humano. A lealdade de Skeeter estava
garantida pelo sangue, sua vida ligada à do seu Mestre.
– Você se reportará a mim com toda e qualquer informação que obtiver – disse a voz que o comandava em relação a tudo agora.
– Sim, Mestre – respondeu Skeeter, e quando recebeu um aceno para sair ele desceu do Hummer e esperou até que o veículo se afastasse do acostamento da estrada e
fosse embora.
Quando ele sumiu, Skeeter andou pelo estacionamento do Pete’s até a única motoneve que ainda estava estacionada. Subiu nela e virou a chave. Nada aconteceu. Tentou
novamente com o mesmo resultado, depois praguejou baixinho quando percebeu que havia se esquecido de abastecer na noite anterior.
– Bom dia – uma voz conhecida o cumprimentou quando os pneus com correia de neve esmagaram a estrada congelada. – Precisa de uma mão?
Skeeter balançou a cabeça sem olhar para Zach Tucker. Uma tremenda falta de sorte, ele se deparar com o único policial da cidade.
Tucker não aceitou sua recusa. A Blazer parou ao lado da motoneve de Skeeter e ficou ali enquanto o policial saía e dava a volta até a parte de trás para pegar um
galão vermelho de gasolina do porta-malas.
– Longa noite, hein? – ele comentou ao se aproximar para abrir a tampa do reservatório de combustível da Yamaha. – Parece um pouco acabado hoje, Skeeter. Você deve
ter ficado na farra com novos amigos de fora da cidade ou algo assim. A propósito, bela Hummer…
Skeeter não ofereceu nenhuma explicação ao ver o galão se esvaziar na sua motoneve.
– Não vou cobrar nada desta vez – Tucker disse ao terminar. Mas quando Skeeter pensou que o policial iria se afastar, ele acabou se aproximando ainda mais e sussurrou.
– Pensei ter lhe dito para pegar leve por uns tempos – deixar de farrear e traficar até solucionarmos esse maldito assunto. E, para sua informação, postar aquele
maldito vídeo do celular foi certamente a coisa mais estúpida que você poderia ter feito. Agora estou com aqueles idiotas de Fairbanks enchendo o meu saco quanto
a ter perdido o controle de uma cena de crime!
Tucker estava furioso, e isso costumava preocupar Skeeter.
Não naquele dia.
– Preciso lhe lembar de que a nossa pequena operação tem boas chances de acabar estourando na nossa frente? Vou receber policiais estaduais no fim da semana para
esmiuçar essa investigação. Não preciso que você lhes dê mais motivos para ficar e ver o que mais há aqui. Entendeu?
Skeeter o ignorou, dando a volta nele para se sentar na motoneve.
– Você é um idiota – Tucker escarneceu – ou só está chapado?
– Nunca estive mais limpo na minha vida – Skeeter respondeu.
– Quero saber onde você esteve ontem à noite. Aonde foi? Céus, você não foi idiota o bastante para contar a ninguém a meu respeito e sobre o nosso acordo, foi?
– Nada disso lhe diz respeito. O que você quer não importa mais. Eu tenho outras prioridades agora.
Quando Skeeter deu partida, a mão de Tucker desceu sobre o seu ombro.
– Se você me ferrar nessa, não pense que não serei capaz de jogá-lo debaixo de um ônibus. Você vai estar ferrado antes que consiga dizer as palavras porte e tráfico
de drogas. Atravesse o meu caminho agora e eu juro por Deus que vou enterrar você.
Skeeter sustentou o olhar empedernido do seu último sócio de negócios.
– Isso não seria sensato, policial Tucker. – Ele viu a centelha momentânea de surpresa nos olhos do policial e se sentiu triunfante por tê-la colocado lá. – Mas
obrigado pelo combustível.
Skeeter acelerou e partiu, saindo voando do estacionamento. Quando chegou à casa da mãe no fim do quarteirão, estava tomado por essa nova sensação de poder, e ansioso
para dar continuidade às ordens do Mestre. Estacionou a motoneve e correu até a porta dos fundos da casa, ciente, mas sem se preocupar com isso, de que suas botas
pesadas ressoavam no piso de tábuas corridas do corredor.
Depois de menos de um minuto dentro do seu apartamento, a mãe começou a se mover no andar de cima, as reclamações abafadas ecoando até ele em seu quarto. Ele sabia
que ela viria apressada para baixo para atormentá-lo, e não se surpreendeu quando ela o fez.
– Stanley Elmer Arnold! – ela gritou, batendo à sua porta. – Faz ideia de que horas são? Seu vagabundo! Como se atreve a ficar fora a noite toda, me deixando preocupada,
só para arrastar seu traseiro para casa a esta hora e me acordar! Você não passa de um perdedor e um…
Skeeter foi para a porta e saiu no corredor, segurando a mãe pelo pescoço, interrompendo-a antes que ela tivesse a oportunidade de abrir a boca.
– Cala a boca, sua vaca – ele lhe disse com rispidez. – Estou trabalhando aqui.
Caso ela tivesse dito qualquer sílaba quando a mão se soltou dela, Skeeter a teria matado ali, naquele mesmo instante. E, por Deus, ela entendera isso. Entendera
que as coisas seriam diferentes dali por diante.
Sem dizer mais nada, ela se afastou dele, cambaleando um pouco nos chinelos puídos e roupão manchado. Com cautela, deu a costas e caminhou de volta pelo corredor
pelo qual viera.
Skeeter Arnold inclinou a cabeça ao ver sua silhueta larga recuar, depois sorriu ao retornar para os assuntos mais importantes que o aguardavam no apartamento de
merda que ele chamava de casa.