Capítulo 11
Era estranho estar de volta aos seus velhos aposentos no Refúgio do pai, como se ele tivesse de algum modo entrado num lar dos sonhos, distante e conservado na memória,
que já não parecia mais ser adequado a ele. No entanto, fiel à sua palavra, a mãe de Kade se certificou de que nada estivesse fora do lugar desde que ele partira
um ano antes. Depois da longa noite que teve em Harmony, ele conseguia apreciar o estofamento confortável de sua antiga poltrona reclinável de couro, perfeitamente
localizada diante da imensa lareira de pedras do rio, que crepitava com achas de madeira recém-dispostas.
Kade se recostou na poltrona e riu ao telefone enquanto Brock o deixava a par de tudo o que tinha perdido em Boston nas duas últimas noites.
– Estou falando, cara, se a gente não se cuidar, estas fêmeas daqui vão arrasar com a gente. O jeito com que estão cuidando das missões durante o dia está começando
a acabar com a nossa imagem.
Desde que ele ligara para o Q.G. da Ordem há alguns minutos, Brock o vinha presenteando com histórias sobre as Companheiras de Raça dos outros guerreiros e dos esforços
delas em ajudar no que, até pouco tempo, fora uma espécie de clube só de garotos. Agora as missões da Ordem se tornaram operações em que todos colocavam as mãos
– exclusivamente com o intuito de impedir que o maníaco da Raça ávido pelo poder chamado Dragos desencadeasse seu tipo pessoal de inferno tanto para a espécie humana
como para a Raça deles.
Os recursos de Dragos estavam de acordo com suas finanças e, ao que parecia, eram tão sombrios quanto seus planos. Seu ato mais hediondo fora a captura e o aprisionamento
de um sem-número de Companheiras de Raça ao longo das últimas décadas, usando-as para criar um exército de assassinos selvagens. Tendo o quartel-general de Dragos
sido atacado pela Ordem algumas semanas antes, suas operações foram interrompidas – desmontadas e desviadas, conforme as suspeitas da Ordem.
Encontrar Companheiras de Raça em cativeiro antes que ele pudesse causar mais mal era o objetivo primário da Ordem no momento. Visto que a rapidez na ação podia
representar a diferença entre a vida e a morte, Lucan concordara em utilizar toda arma do arsenal da Ordem, que incluía as fêmeas muito especiais e singularmente
dotadas que aceitaram alguns dos guerreiros como companheiros.
Havia a parceira de Rio, Dylan, que possuía a habilidade de ver os espíritos das outras Companheiras de Raça mortas e, quando tinha sorte, obter informações críticas
delas. Elise, unida a Tegan, possuía o talento de ouvir as intenções humanas sombrias e corruptas. Ela acompanhava Dylan em abrigos, lares e albergues, e sua habilidade
a ajudava a acessar as intenções das pessoas que conheciam ao longo do caminho.
A companheira de Gideon, Savannah, usava sua habilidade tátil para ler a história de um objeto, na esperança de encontrar elos para algumas das desaparecidas. A
de Nikolai, Renata, com seu poder de explodir a mente mesmo do mais forte dos vampiros, transformou-se numa aliada formidável em qualquer missão, fornecendo serviços
de guarda-costas para as outras Companheiras de Raça em suas missões diurnas.
Mesmo a companheira de Andreas Reichen, Claire, que apenas recentemente se recuperara do seu ordálio nas mãos de Dragos e dos seus associados, aparentemente estava
se envolvendo nos assuntos da Ordem. Utilizando-se do seu dom de andar pelos sonhos, ela vinha tentando fazer contato com algumas das Companheiras de Raça conhecidas
que foram dadas como desaparecidas ao longo dos anos.
– Sabe – acrescentou Brock com secura –, quando Niko me recrutou para esse trabalho no ano passado, eu esperava que fosse apenas uma bela desculpa para poder chutar
uns traseiros Renegados.
Kade sorriu, lembrando-se das primeiras patrulhas pelas ruas de Boston, que costumavam envolver apanhar os ferozes viciados em sangue da cidade e explodi-los.
– Isso o faz sentir saudades da simplicidade dos primeiros meses no trabalho, não é?
Brock grunhiu em concordância. Depois perguntou:
– Falando em Renegados, como estão as coisas aí nessa geladeira? Já faz dois dias. Ainda não cuidou do assunto?
– Estou seguindo algumas pistas, mas nada de concreto até agora. Provavelmente vou ficar aqui mais alguns dias, talvez uma semana.
Brock exalou uma imprecação que revelou a Kade o que ele achava dessa perspectiva.
– Antes você do que eu, cara. Antes você do que eu… – Houve uma pausa antes de ele perguntar: – Já conseguiu encontrar sua família?
– Bem… – Kade disse, inclinando a cabeça para trás para fitar a viga de madeira do teto. – A minha chegada em casa foi mais ou menos como antecipei.
– Tão bom assim, é?
– Digamos que me sinto mais acolhido quando saio na escuridão de vinte graus abaixo de zero.
– Dureza – disse Brock. – Lamento por isso, cara. De verdade.
Kade assentiu.
– Deixa pra lá. Não preciso falar sobre a minha recepção calorosa em casa. Eu só queria ligar para passar uma informação que Gideon pode achar interessante.
– Ok. Manda ver.
– Encontrei o cretino que postou o vídeo sobre o ataque aos humanos. Seu nome é Skeeter Arnold, um drogado local, provavelmente um traficante café com leite. Eu
o vi sair de um bar e entrar numa Hummer zerinho com motorista. Foi levado a algum tipo de escritório de uma mineradora na floresta. O nome no portão era Companhia
de Mineração Coldstream. Peça a Gideon que dê uma olhada quando tiver tempo. Estou curioso para saber que tipo de negócios esse perdedor tem com eles.
– Pode deixar – disse Brock. – Cuide-se. Não congele nada de que possa precisar depois.
Kade riu, apesar da inquietação que sentia só de pensar naquela missão.
– Entrarei em contato – disse ao terminar a ligação.
Assim que deixou o telefone na mesinha ao lado, uma batida forte soou do lado de fora da porta do chalé.
– Está aberta – disse, esperando ver o pai. Preparou-se para a desaprovação que se seguiria. – Pode entrar.
Mas foi Maksim quem entrou, provocando um alívio em Kade que ele mal conseguiu esconder. Levantou-se sorrindo e gesticulou para que o tio se juntasse a ele diante
da lareira.
– Não pensei que você fosse voltar – comentou Max. – Pelo menos não tão cedo. Ouvi que as coisas não correram bem entre você e meu irmão no outro dia. Bem que eu
gostaria que ele não fosse tão duro com você.
Kade deu de ombros.
– Nunca nos entendemos bem. Eu não tinha esperanças de que começássemos agora.
– Agora que você é um dos guerreiros da Ordem – disse Max, com os olhos cintilando numa conspiração ávida, e a voz grave com uma pontada de franca admiração. – Estou
orgulhoso de você, meu sobrinho. Orgulhoso do trabalho que vem fazendo. Há honra nele, assim como sempre houve em você.
Kade quis descartar o elogio como se fosse algo desnecessário, mas ouvi-lo – especialmente vindo de Max, que, apesar de ser algumas centenas de anos mais velho que
ele, sempre lhe pareceu mais com um irmão – fez com que se sentisse bem demais para fingir que não importava.
– Obrigado, Max. Isso significa muito para mim, vindo de você.
– Não há por que me agradecer. Estou dizendo a verdade. – Fitou Kade longamente, depois se inclinou para a frente, os cotovelos plantados nos joelhos afastados.
– Ficou fora por um ano. Deve estar fazendo coisas importantes para Lucan e para a Ordem.
Kade sorriu, percebendo as suas intenções. Como ele, Max ansiava por aventuras. Ao contrário dele, Max se comprometeu a servir como segundo homem para o pai de Kade,
o líder do Refúgio Secreto em Fairbanks. A lealdade de Max o acorrentara àquela prisão de quatro mil hectares, e ainda que ele jamais se esquivasse das suas obrigações
ou da sua promessa ao irmão duro e intransigente, Max apreciava os conceitos de risco e recompensa, de coragem e honra, tanto quanto Kade.
Por causa disso, e porque Kade entendia que a lealdade de Max se estendia a ele também, sabia que lhe confiar alguns detalhes das suas experiências na Ordem e da
missão atual não teria problema.
– Ouvi dizer que houve uma revolta na Agência lá no leste há alguns meses – comentou Max, observando Kade com curiosidade, à espera que ele elaborasse a questão.
– Houve, sim – ele admitiu, lembrando-se de uma das suas primeiras missões e do começo dos problemas da Ordem com o louco chamado Dragos. – O nosso departamento
de informações descobriu um diretor de alto escalão da Agência que não era o que aparentava ser. Esse cara vinha trabalhando com um nome falso e fomentando uma rebelião
secreta há várias décadas – mais até. Ainda estamos tentando determinar até onde chega essa corrupção, mas não tem sido fácil. Toda vez que nos aproximamos do bastardo,
ele se esconde ainda mais.
– E aí vocês o perseguem ainda mais – Max disse, falando como um dos guerreiros de Boston. – Vocês têm que continuar atingindo-o, cercando-o por todos os lados,
até ele ficar exausto demais para correr e não ter alternativa a não ser ficar e lutar. E então vocês o destruirão de uma vez por todas.
Kade assentiu com gravidade, percebendo a sabedoria do conselho de Max e desejando que a perseguição a Dragos fosse tão simples e direta assim.
O que Max não sabia – o que nem ele, nem qualquer outra pessoa, tinha permissão de saber – era que Dragos era apenas a ponta de um iceberg bem traiçoeiro. Dragos
tinha uma arma secreta, uma que ele detinha há séculos. Mais ou menos na mesma época em que Kade se unira à Ordem, eles descobriram a existência de uma criatura
que se pensava estar morta há muito tempo. Um Antigo. Um dos extraterrestres sedentos de sangue que deram vida à Raça de vampiros na Terra há milênios.
Dragos era neto daquela criatura e vinha formando seu exército de vampiros assassinos, incontroláveis e implacáveis, gerados a partir dele por mais tempo do que
qualquer pessoa gostaria de conceber.
Se essa novidade se espalhasse pelas comunidades da Raça nos Estados Unidos e no exterior, o pânico se propagaria.
Caso vazasse para a população humana que não só havia vampiros entre eles, mas que um megalomaníaco dentre eles pretendia assumir o poder e escravizar a todos?
Armagedom.
Kade teve que se sacudir mentalmente para se livrar desse cenário de pesadelos.
– Enquanto o restante da Ordem está fazendo exatamente o que você disse, eu acabei escolhendo o palitinho menor e vim parar no Alasca. Estou investigando um ataque
a humanos na floresta – uma família inteira dizimada, em apenas uma noite.
Max franziu o cenho.
– Renegados?
– É o nosso palpite. – E também a esperança de Kade, embora cada minuto daquela missão o levasse cada vez mais longe de um resultado favorável. – Não ficou sabendo
de nenhum problema nos Refúgios, ficou? Algum boato de alguém com propensões para a Sede de Sangue?
Max meneou a cabeça lentamente.
– Nada parecido. Houve um incidente no Refúgio em Anchorage uns nove meses atrás. Algum garoto idiota quase sangrou um humano até a morte numa festa, mas esse foi
o único problema na região nos últimos tempos.
Essa novidade por certo não fez Kade se sentir melhor. Porque se não havia Renegados à solta, então só restava um lugar sensato para se colocar a culpa.
– Fico imaginando se Seth não ouviu nada – murmurou, tentando esconder o medo e a fúria da voz. – Eu detestaria não vê-lo enquanto estou aqui.
– Ele também detestaria isso – Max disse, e Kade pôde ver que ele falava sério.
Ele não sabia a respeito de Seth. Como todos os outros, ele não fazia ideia.
Somente Kade sabia.
E o fardo desse conhecimento pesava cada vez mais.
Max se recostou na poltrona e pigarreou com suavidade.
– Há algo que eu gostaria de lhe contar, Kade. Algo que você precisa entender… A respeito da sua família, do seu pai.
– Continue – disse Kade, sem saber direito se gostaria de ouvir o quanto o pai adorava Seth e desejava que Kade fosse mais parecido com ele.
– Meu irmão, o seu pai, não tem facilidade para demonstrar afeição. Especialmente com você.
– Engraçado, eu não tinha percebido isso. – Kade sorriu com um humor que não sentia.
– A nossa família tem um segredo sombrio – Max disse, e Kade sentiu o corpo ficar entorpecido. – Kir e eu tínhamos um irmão mais novo. Estou certo de que você nunca
soube disso. Poucas pessoas sabem. Seu nome era Grigori. Kir o amava muito. Todos nós o amávamos. Grigori era um rapaz inteligente e charmoso. Mas também tinha um
lado selvagem. Mesmo em idade tenra, ele se revelava contra a autoridade e andava no fio da navalha em todas as situações sem medo algum.
Kade se viu sorrindo, pensando que talvez também gostaria de Grigori.
– Apesar dos seus defeitos, Kir o adorava. Mas, alguns anos mais tarde, quando ficamos sabendo que Grigori se tornara Renegado, que em sua Sede de Sangue ele tinha
matado, Kir o excluiu completamente. Simples assim – Max disse, estalando os dedos. – Nunca mais vimos Grigori. Desde então, Kir sequer o mencionou novamente. Dali
por diante, Kir se tornou outro homem.
Kade ouviu atentamente, relutante em admitir a pontada de empatia que sentia pelo pai e pela perda que ele sofrera.
– Talvez seu pai acredite que não suportaria esse tipo de dor novamente – Max sugeriu. – Talvez, às vezes, ele veja muito de Grigori em você.
E, pelo visto, resolvera excluir Kade antes, ao mesmo tempo em que depositava todas as esperanças paternais em Seth.
– Não tem importância – Kade murmurou, acreditando apenas parcialmente nisso. Estava envolvido demais com situações de vida e morte para se preocupar com a baixa
expectativa do pai para com ele. – Agradeço pela informação, Max. E pela sua opinião. Também agradeço por você ter vindo.
Max, perceptivo como sempre, captou a sutil sugestão e se levantou.
– Você tem coisas para fazer. Não devo prendê-lo.
Quando esticou a mão, Kade, em vez de aceitá-la, o puxou para um abraço.
– Você é um bom homem, Max. Um bom amigo. Obrigado.
– Qualquer coisa que você precisar, Kade, só precisa me pedir.
Foram juntos até a porta, e Kade a abriu no momento em que duas mulheres, embrulhadas em pesados casacos de inverno e carregando uma manta cada uma, passavam diante
do seu chalé. Uma delas levantou o olhar e estava prestes a desviá-lo quando voltou a olhar novamente.
– Ah… Kade? – perguntou ela, seu belo rosto se iluminando num sorriso. – Kade! Ouvi que você tinha voltado para o Alasca, mas não sabia que estava aqui.
– Olá, Patrice – disse ele, lançando um sorriso educado para a Companheira de Raça que seu irmão gêmeo mantinha à sua espera debaixo das asas nos últimos anos.
Ao seu lado, Max ficara absolutamente imóvel. Kade sentia o calor emanando do outro macho, enquanto Patrice continuava conversando com animação, gentil e bela, com
o cabelo ruivo brilhante e os vívidos olhos verde-escuros iluminados pela luz da lareira que vinha de dentro do chalé.
– Ruby e eu estávamos indo ver a aurora boreal de uma das rochas. Vocês gostariam de nos acompanhar?
Kade e Max recusaram ao mesmo tempo, mas foi a recusa de Max que diminuiu o sorriso de Patrice, embora ela tivesse tentado esconder isso com a ponta da manta que
carregava. Enquanto as Companheiras de Raça se afastavam, Kade notou que o macho mais velho não conseguia deixar de olhar para elas.
Ou melhor, para uma delas.
– Patrice? – Kade perguntou, surpreso pelo desejo muito bem contido que percebera nos dois.
Maksim desviou o olhar para ele.
– Ela se comprometeu com outro. Eu jamais interferiria nisso, não importando o quanto Seth demore em finalmente aceitar o presente precioso que recebeu. O bastardinho
arrogante e ignorante…
Kade viu o tio sair pela varanda e continuar pelo terreno coberto de neve até seus próprios aposentos.
Não sabia se ria ante a virulência da declaração de Max ou se amaldiçoava Seth por estar potencialmente arruinando mais duas vidas.
Capítulo 12
Alex despejou uma chaleira de água fervente na cafeteira antiga sobre o fogão. Conforme a cozinha se enchia com o aroma do café recém-coado pela segunda vez naquele
dia, ela se virou para a mesinha onde Jenna e ela estavam tomando café da manhã. Ou melhor, onde Alex estava tomando café da manhã. Jenna apenas beliscara as batatas
fritas caseiras e deixara os ovos mexidos praticamente intocados.
– Deus do céu, eu odeio o inverno – murmurou ela, recostando-se na cadeira de madeira que rangeu, desviando um olhar pensativo para a escuridão de fora às oito horas
da manhã. – Em determinados dias, parece que ele nunca vai acabar.
– Vai, sim – disse Alex, sentando-se diante da amiga e observando o olhar atormentado de Jenna se aprofundar.
Claro que não era nem a escuridão nem o frio que a entristeciam. Alex não tinha de olhar para o calendário na parede ao lado do telefone para compreender a crescente
tristeza de Jenna.
– Ei – disse Alex, forçando um tom alegre na voz. – Se o tempo continuar claro no final de semana, pensei que poderíamos voar até Anchorage. Que tal fazer compras
ou ir ao cinema? Topa um fim de semana só de garotas na cidade?
Jenna voltou a fitá-la e balançou a cabeça de leve.
– Acho que não.
– Ah, que é isso? Vai ser divertido. Sem falar que você está me devendo uma. Acabei o meu melhor café Red Goat com você. Preciso dar um pulo na Kiladi Brothers
para renovar o meu estoque.
Jenna sorriu de modo tristonho.
– Acabou seu amado Red Goat comigo? Uau, você deve estar mesmo preocupada comigo. Acha que estou mal, hein?
– E está? – Alex formulou a pergunta cautelosa, porém direta, que exigia uma resposta igualmente franca. Estendeu a mão por sobre a mesa e segurou a da amiga. Observou-a
com atenção, dando ouvidos aos seus instintos que sempre lhe diziam se estavam lhe contando a verdade ou uma mentira. – Você vai ficar bem desta vez?
Jenna sustentou seu olhar como se estivesse preso a ele e deu um suspiro baixo.
– Eu não sei, Alex. Sinto saudades deles. Eles me davam um motivo para levantar da cama de manhã, entende? Eu me sentia necessária, sentia que minha vida tinha um
propósito maior quando Mitch e Libby faziam parte dela. Não sei se um dia voltarei a sentir isso.
A verdade, então, por mais dolorosa que fosse. Alex recebeu a confissão da amiga com um aperto em sua mão. Ela piscou, libertando Jenna da ligação invisível do seu
olhar inquisidor.
– A sua vida tem um propósito, Jenna. Tem um significado. E você não está sozinha. Para início de conversa, você tem a Zach e a mim.
Jenna deu de ombros.
– Meu irmão e eu temos nos afastado nos últimos tempos e a minha melhor amiga tem falado umas besteiras sobre se mudar daqui.
– Eu falei sem pensar – disse Alex, sentindo uma pontada de culpa tanto pela covardia que a fazia cogitar a ideia de fugir novamente quanto pela meia-verdade que
dava a Jenna agora, na esperança de fazê-la se sentir melhor.
Levantou-se e levou as canecas de café até o fogão.
– A que horas você saiu do Pete’s ontem à noite? – Jenna perguntou enquanto Alex servia café fresco e o trazia de volta até a mesa.
– Saí pouco depois de você. Zach apareceu para me dar uma carona para casa.
Jenna sorveu um gole da sua caneca e a pousou no tampo da mesa.
– É mesmo?
– Foi só uma carona – explicou Alex. – Ele se ofereceu para tomar uma cerveja comigo no Pete’s, mas eu já estava a caminho de casa.
– Bem, conhecendo meu irmão, ele só devia estar querendo uma desculpa para tê-la na caminhonete dele. Ele tem uma queda por você desde que éramos adolescentes, você
sabe disso. Talvez, apesar dessa conversa de ele ser um cara durão, comprometido com o trabalho, ele ainda esteja de olho em você.
Alex não pensava assim. A única noite deles juntos fora prova suficiente para ambos de que o que quer que sentiam um pelo outro, isso jamais voltaria a ultrapassar
os limites da amizade. Ela conhecia Zach há mais de uma década, mas ele lhe parecia mais desconhecido do que Kade, que conhecera apenas um dia atrás.
Por mais incrível que pudesse parecer, apesar da maneira com que Kade mexia com as suas emoções, ela se sentia mais protegida fisicamente com ele do que com Zach,
um oficial condecorado.
Deus do céu. O que isso queria dizer a respeito do seu bom senso, Alex não saberia determinar.
Enquanto refletia tomando um belo gole de café, o telefone da cozinha começou a tocar. Alex se levantou e atendeu a linha comercial de modo automático.
– Entregas e Fretes Maguire.
– Oi.
Aquela única palavra – a voz profunda e agora intimamente familiar – entrou pelos seus ouvidos e desceu por sua espinha numa corrente de pura eletricidade.
– Hum, olá… Kade – respondeu, desejando não soar tão atordoada. E também tinha que parecer que havia perdido o fôlego? – Como conseguiu meu número?
Do outro lado da cozinha, Jenna ergueu as sobrancelhas num indício de surpresa. Alex girou sobre os calcanhares, desejando esconder parte do calor que lhe subia
pelas faces.
– Não existem muitos Maguires em Harmony – disse ele do outro lado da linha. – Nem tantos pilotos. Por isso, com um palpite calculado, telefonei para o único número
que aparecia listado que cobria os dois critérios – um Hank Maguire da Entregas e Fretes Maguire.
– Ah… – A boca de Alex se abriu num sorriso. – E como sabe que ele não é meu marido?
A risada baixa dele soava tão agradável como veludo.
– Você não beija como uma mulher casada…
As entranhas de Alex ficaram moles e aquecidas com esse lembrete, e estava bem difícil não se contorcer ao pensar nos lábios dele sobre os seus e na revisita mental
sensual que tinha feito sozinha no chuveiro na noite anterior.
– Hum, bem… por que telefonou? Você… está ligando a trabalho?
Que Deus a ajudasse, ela quase acrescentou “ou por prazer”, mas teve o bom senso de refrear as palavras antes de se envergonhar ao proferi-las. A última coisa de
que ela precisava era pensar em Kade e em prazer na mesma frase. Ela já tivera uma bela amostra disso. O bastante para saber que traria perigo e complicações; coisas
das quais ela já tinha o suficiente.
– Eu deveria me encontrar com Big Dave e alguns outros caras em Harmony hoje – disse Kade, casualmente lançando o melhor motivo de que ela necessitava para não querer
nada com ele.
– Ah, certo – disse Alex. – A grande caçada aos lobos.
E lá estava ela, permitindo que seus hormônios tresloucados a cegassem para o fato de que ela ainda não conhecia o jogo dele. A raiva surgiu com amargura em sua
garganta.
– Bem, divirta-se. Preciso desligar…
– Espere – disse ele, no momento em que ela estava prestes a colocar o aparelho no gancho. – Eu deveria me encontrar com Big Dave hoje, mas, na verdade, eu tinha
esperanças de conseguir um guia para me levar à casa de Henry Tulak.
– Henry Tulak – Alex repetiu lentamente. – O que você poderia querer no chalé dele?
– Eu só… Eu preciso mesmo saber como aquele homem morreu, Alex. Você pode me levar lá?
Ele parecia sincero e estranhamente resignado. Por isso parecer tão importante para ele, Alex se viu cedendo quando deveria estar afastando-o por completo.
– E quanto a Big Dave?
– Eu me desculpo quando o encontrar novamente – respondeu, parecendo qualquer coisa exceto preocupado quanto a enfrentar o valentão da cidade e os seus amigos. –
O que me diz, Alex?
– Sim, tudo bem. – Maldição, não deveria se sentir tão excitada com a perspectiva de passar um tempo ao lado dele. – O dia vai nascer lá pelo meio-dia, então por
que não se encontra comigo aqui em Harmony às onze? Teremos luz suficiente para viajar e algumas horas para verificar o lugar depois que chegarmos.
Kade resmungou, como se estivesse refletindo a respeito do outro lado da linha.
– Prefiro não esperar pela aurora para seguir para lá, se estiver tudo bem para você.
– Prefere viajar no escuro?
Ela conseguia perceber o sorriso se ampliar nas feições dele quando ele respondeu:
– Não tenho medo de um escurinho se você não tiver. Já estou a caminho, posso encontrá-la na sua casa em uma hora.
Bem, ele era direto, ela tinha que admitir. O homem colocava uma coisa na cabeça e não temia ir atrás dela.
– Daqui a uma hora está bom para você, Alex?
Ela relanceou para o relógio e perguntou se conseguiria tirar o pijama, tomar banho e dar um jeito no rosto e no cabelo nesse meio-tempo.
– Hum, sim, claro… Daqui a uma hora. Até lá.
Quando desligou, Alex sentiu a curiosidade do olhar de Jenna às suas costas.
– Era o Kade?
Ela se virou, com um sorriso bobo.
– É, ele mesmo.
Jenna se recostou na cadeira e cruzou os braços diante do peito, parecendo uma verdadeira policial, mesmo de blusa de moletom e jeans gastos, com os cabelos soltos
ao redor dos ombros.
– O mesmo Kade que estava no Pete’s ontem à noite, e o mesmo Kade que você viu na propriedade dos Toms ontem e com quem você disse que não quer ter nada? Esse Kade?
– O próprio – respondeu Alex. – E antes que você diga qualquer outra coisa, só vou levá-lo para o chalé do Tulak para que ele dê uma olhada.
– Ok.
– São só negócios – disse Alex, pegando os pratos do desjejum com pressa e colocando-os na pia. Pegou uma fatia de pão embebida em ovos e a jogou na direção da boca
esperançosa de Luna. – Na minha opinião, se eu conseguir afastar uma arma sequer da mira dos lobos, então estou mais do que contente em distrair Kade com um passeiozinho
no campo.
Quando se aproximou da mesa para limpá-la, Jenna a encarou.
Não era preciso ter o detector de mentiras de Alex, nem o olhar treinado de policial de Jenna, para entender que, sem sombra de dúvida, Alex estava entusiasmada.
Revirada de ponta-cabeça por um homem que conhecera há dois dias. Tentada a permitir que esse homem, que era de uma centena de tons de cinza, entrasse em seu mundo
certinho onde tudo era preto ou branco.
– Tome cuidado, Alex – disse Jenna. – Sou sua amiga e te amo, não quero que você se machuque.
– Eu sei – ela disse. – E não vou sair magoada.
Jenna riu baixinho e balançou a mão à sua frente, dispensando-a.
– Bem, por que está parada aí quando deveria estar se aprontando para esse não encontro? Vá em frente. Deixe que eu e Luna cuidemos da limpeza do café da manhã.
Alex sorriu.
– Obrigada, Jenna.
– Mas quando você voltar desse não encontro – Jenna lhe disse, enquanto ela avançava pelo corredor –, vou querer o nome completo dele e o número do seguro social.
E também seu histórico médico completo! Sabe que não estou brincando!
Alex sabia muito bem disso, mas estava rindo mesmo assim, levada pelas muito bem-vindas, talvez porque incomuns, sensações de excitação e esperança.
Capítulo 13
Kade não tinha percebido o quanto estava ansioso para ver Alex até enxergar sua silhueta atrás do vidro jateado da porta da casa dela quando ela foi abri-la. Alta
e magra, vestida num par de jeans escuros e uma malha verde-limão com uma camiseta de gola alta por baixo, o cabelo loiro preso em duas tranças que derramavam-se
em seus ombros, em pleno inverno, ela parecia fresca como a primavera. Ela lhe sorriu através dos cristais de gelo pensos nas janelas, o rosto naturalmente belo
enaltecido por um pouco de rímel e o rubor repentino que se fez em suas faces.
– Olá – disse ela, ao abrir a porta para que ele entrasse. – Você me encontrou.
Ele inclinou a cabeça uma vez num aceno.
– Eu te encontrei.
– Deixe-me adivinhar – disse ela, com o sorriso ainda estampado no rosto. – Você andou até aqui assim como fez no outro dia para ir até a floresta?
Ele lançou um sorriso malicioso e indicou a motoneve estacionada no jardim.
– Resolvi dirigir hoje.
– Sim, claro que sim. – Ela segurou a porta aberta para ele. – Entre. Só preciso calçar as botas e pegar o casaco, e podemos ir.
Quando ela desapareceu virando na sala de estar, Kade entrou na aconchegante cozinha e passou o olhar pela mobília simples e pela atmosfera convidativa e casual.
Ele sentia o perfume de Alex ali, sentia a presença dela nas linhas retas e regulares do sofá e das cadeiras, na madeira rústica das mesas e nos tons verdes, marrons
e cremes do tapete entrelaçado debaixo dos pés.
Ela voltou para a sala com um par de botas Sorel e uma parca pesada cor cáqui.
– Pronta, se você estiver. Deixe sua moto aqui. Vamos para os fundos pegar a minha para irmos até a pista.
Kade parou alguns passos atrás dela.
– Pista?
– É – afirmou ela. – Não há previsão de neve para os próximos dias, então para que perder tempo indo de motoneve quando podemos voar até lá?
– Eu não sabia que iríamos voando. – Ele sentiu uma pontada momentânea de incerteza, algo novo para ele. – Ainda está escuro.
– O meu avião não sabe a diferença entre dia ou noite – disse ela, com um brilho dançando nos olhos castanhos. – Vamos. Isto é, a menos que fique pouco à vontade
com um pouco de escuridão, Kade.
Ela caçoava dele, e ele adorou isso. Sorriu, pronto para enfrentar qualquer desafio que ela lhe lançasse.
– Mostre o caminho.
Com Alex encarregada e Kade muito satisfeito em ir na garupa, nem que fosse apenas pela desculpa de passar os braços ao seu redor, aceleraram pelas vias congeladas
da cidade até onde o avião monomotor estava estacionado na singela pista de pouso de Harmony. Além do hangar onde estavam temporariamente estocados os corpos da
família Toms, o aeroporto consistia de uma pista curta de neve compactada e luzes de orientação que mal se enxergava por cima dos montes de neve mais altos.
O Havilland Beaver de Alex tinha um vizinho por companhia, um pequeno Super Cub, equipado com pneus largos em vez dos esquis do veículo de Alex. Uma rajada de vento
atravessou a pista, erguendo uma nuvem de neve que subia como folhas ao vento.
– Lugar agitado, hein?
– Melhor do que nada. – Ela estacionou, e os dois desceram da motoneve. – Vá em frente e entre. Preciso checar o avião antes de decolarmos.
Kade poderia ter se recusado a acatar ordens de uma fêmea, caso não estivesse tão intrigado pela confiança de Alex naquilo que ela realizava. Kade entrou pela cabina
destrancada e fechou a porta. Mesmo o Beaver parecendo um burro de carga visto pelo interior, Kade se assustou com a sensação claustrofóbica da sua cabina. Tendo
mais de um e noventa de altura e pesando mais de cento e dez quilos sem armas e roupas, ele era considerado um macho grande segundo qualquer padrão, mas, ao se sentar
no banco do passageiro do monomotor, os painéis curvados e as janelas estreitas faziam aquilo se parecer com uma gaiola.
Alex apareceu pelo lado do piloto e se sentou no banco atrás do manche.
– Tudo pronto – anunciou com alegria. – Aperte os cintos, e estaremos voando em seguida.
No interior remoto do Alasca, não era de se admirar que não houvesse controle de tráfego aéreo, nenhuma torre de rádio para liberar a decolagem. Dependia somente
de Alex levantar voo e seguir na direção correta. Um minuto mais tarde, subiram na escuridão, cada vez mais alto no céu matutino desprovido de luzes a não ser pelo
manto distante de estrelas reluzentes.
– Bom trabalho – comentou Kade, lançando um olhar para Alex enquanto ela equilibrava a subida e os desviava de um trecho de solavancos provocados pelos ventos. –
Imagino que você já fez isso algumas vezes.
Ela sorriu de leve.
– Voo desde que tinha doze anos de idade. Mas tive que esperar até os dezoito para fazer o curso oficial e tirar o brevê.
– Você gosta de estar aqui em cima, perto das estrelas e das nuvens?
– Adoro – disse ela, concordando com um aceno pensativo, enquanto verificava alguns controles no painel. Depois voltou o olhar para a vastidão diante deles. – Meu
pai me ensinou a voar. Quando eu era menina, ele me dizia que o céu é um lugar mágico. Às vezes, quando eu ficava com medo ou acordava assustada com um pesadelo,
ele me trazia com ele, não importando que horas fossem. Subíamos bem alto no céu, onde nada de ruim podia nos alcançar.
Kade conseguiu detectar a afeição na voz dela quando falou do pai, e também percebeu a tristeza pela sua perda.
– Há quanto tempo seu pai morreu?
– Há seis meses… Alzheimer. Há quatro anos ele começou a se esquecer das coisas. Isso piorou bem rápido, e depois de um ano, quando a doença começou a afetar seus
reflexos no avião, ele finalmente me deixou levá-lo ao hospital em Galena. A doença progride de forma diferente nas pessoas, mas com papai, pareceu dominá-lo com
tanta rapidez… – Alex soltou um suspiro pensativo. – Acho que ele entregou os pontos assim que recebeu o diagnóstico. Não sei, talvez já tivesse desistido de viver
muito antes.
– Por que diz isso?
Aquela não fora uma pergunta invasiva, mas ela mordeu o lábio quando ele a fez, um ato reflexo que revelava que ela provavelmente sentia ter lhe contado mais do
que pretendia. Pelo olhar desconfiado e repentino que ela lhe lançou, ele percebeu que ela tentava avaliá-lo de algum modo, tentando decidir se seria seguro confiar
nele.
Quando ela por fim falou, sua voz saiu baixa, o olhar mirando o para-brisa, como se ela não pudesse falar com ele e olhá-lo ao mesmo tempo.
– Meu… hum… meu pai e eu nos mudamos para o Alasca quando eu tinha nove anos. Antes disso morávamos na Flórida, nas Everglades, onde meu pai pilotava um avião para
passeios turísticos sobre os pântanos e Keys.
Kade a avaliou na luz fraca da cabina.
– É um mundo totalmente diferente daqui.
– É. Pode apostar nisso.
Um barulho metálico repentino surgiu do nada no avião, e a cabina reverberou. Kade se segurou no banco, grato ao ver que Alex não entrara em pânico. A sua atenção
estava voltada para os instrumentos do painel, e ela aumentou a velocidade do avião. Os sacolejos e o barulho abrandaram, e o voo voltou a ficar suave.
– Não se preocupe – ela lhe disse, o tom tão sério quanto sua expressão. – Como meu pai costumava dizer, é um fato científico que alguns dos sons mais alarmantes
nos aviões só podem ser escutados à noite. Acho que estamos bem agora.
Kade riu pouco à vontade.
– Acho que vou ter que confiar em você.
Sobrevoaram um pico, depois fizeram uma leve curva, mudando de direção para voltarem a acompanhar o Koyukuk logo abaixo.
– Então, o que aconteceu na Flórida, Alex? – perguntou, voltando ao assunto que não pretendia deixar de lado. Seus instintos lhe diziam que estava perto de descobrir
os segredos que ela escondia, mas ele não estava querendo avançar nas suas investigações naquele momento. Estava, de fato, interessado nela – caramba, se fosse honesto
consigo mesmo, teria que admitir que começava a se preocupar de verdade – e desejava entender o que se passara com ela. Tendo captado a dor em sua voz, desejou poder
ajudá-la da maneira que pudesse. – Alguma coisa aconteceu com a sua família na Flórida?
Ela balançou a cabeça e lhe lançou mais um daqueles olhares perscrutadores.
– Não, não conosco… mas minha mãe e meu irmãozinho…
A voz se partiu, emocionada. Kade sentiu as sobrancelhas se unirem ao fitá-la.
– Como eles morreram, Alex?
Por um momento estonteante, seus olhos se prenderam aos dele, imóveis e carregados de um medo renovado, um pavor frio que começou a se formar em seu âmago. O pequeno
compartimento que partilhavam a mais de dois mil metros acima do solo se estreitou ainda mais, contraído pelo silêncio de Alex ao seu lado.
– Eles foram mortos – disse ela por fim. Palavras que só fizeram a pulsação de Kade acelerar quando ele considerou uma causa possível; uma causa terrível que faria
do seu envolvimento com Alex algo ainda mais impossível do que já era. Mas ela deu de ombros e voltou a olhar para a frente. Inspirou fundo e depois soltou o ar.
– Num acidente. Um motorista embriagado passou por um semáforo vermelho num cruzamento. Bateu no carro da minha mãe. Ela e meu irmão caçula morreram com o impacto.
A carranca de Kade se acentuou enquanto ela recitava os fatos depressa, como se não conseguisse dizê-los com a rapidez desejada. E recitar parecia uma descrição
correta, porque algo na explicação dela parecia ensaiado, muito bem treinado.
– Sinto muito, Alex – disse ele, sem conseguir despregar seu olhar interrogador dela. – Imagino que seja ao menos uma bênção o fato de eles não terem sofrido.
– É – respondeu ela automaticamente. – Pelo menos eles não sofreram.
Voaram por um tempo sem conversarem, observando a paisagem escura debaixo deles se alternando de faixas sem luz de floresta densa e montanhas elevadas, para o azul
elétrico da tundra coberta de neve e dos contrafortes das montanhas. No céu ao longe, Kade viu o brilho esverdeado misterioso das luzes do norte. Ele as indicou
para Alex e, apesar de ter visto a aurora boreal inúmeras vezes desde o seu nascimento há quase cem anos, ele nunca estivera no céu para presenciar as cores fantásticas
dançando no horizonte.
– Incrível, não? – Alex comentou, obviamente à vontade ao navegar num amplo arco para que pudessem ver as luzes por mais tempo.
Kade observava as luzes, mas seus pensamentos ainda estavam em Alex, tentando juntar as peças da ficção em que ela queria fazê-lo acreditar.
– O Alasca não poderia ser mais diferente da Flórida, não?
– É verdade – concordou ela. – Meu pai e eu queríamos recomeçar… Tivemos que fazer isso depois que mamãe e Ricky… – Inspirou fundo, fortalecendo-se antes de dizer
mais do que pretendia. – Depois que eles morreram, meu pai e eu voamos para Miami para comprar uma passagem para algum lugar a fim de recomeçarmos nossas vidas.
Havia um globo em uma das livrarias do terminal. Papai me mostrou onde estávamos e me pediu para escolher um lugar para irmos. Escolhi o Alasca. Quando chegamos
aqui, achamos que Harmony parecia uma cidade amigável na qual poderíamos criar nosso novo lar.
– E foi?
– Sim. – Sua voz soou um tanto saudosa. – Mas agora que ele se foi, está diferente para mim. Andei pensando se não está na hora de dar mais uma olhada no globo,
conhecer outra parte do país por um tempo.
Antes que Kade tivesse a chance de perguntar algo mais, o motor começou a fazer barulho e sacolejar com vingança renovada. Alex acelerou mais uma vez, mas o barulho
e o sacolejo persistiram.
– O que está acontecendo?
– Vou ter que aterrissar agora – disse ela. – Ali está o chalé do Tulak. Vou tentar chegar o mais próximo possível.
– Tudo bem. – Kade olhou pela janelinha para o chão que se aproximava mais rapidamente do que ele gostaria. – Só tente descer devagar. Não estou vendo nenhuma pista
aí embaixo.
Ele não precisava ter se preocupado. Alex baixou a aeronave sacolejante em seu par de esquis num deslize suave, conseguindo se desviar de alguns abetos antigos que
se materializaram do nada na escuridão ao pararem sobre a neve fofa. O chalé estava bem diante deles, mas Alex diminuiu a velocidade do Beaver e fez uma curva suave,
navegando com muita precisão para quem teve que aterrissar tão abruptamente.
– Nossa, essa passou perto – exclamou ele ao pararem de vez na neve.
– Acha mesmo? – A expressão de divertimento de Alex era imensa ao desligar o motor.
Ela desceu, e Kade a seguiu até o motor. Ela o olhou por dentro.
– Droga. Bem, pelo menos isso explica o problema. Alguns parafusos saíram da tampa do motor e caíram.
Kade sabia tanto de tampas de motores quanto de tricô. E ele não tinha problema em desejar que isso prendesse-os na floresta por algumas horas. Ou, melhor ainda,
por algumas noites.
– Então, o que você está me dizendo é que ficaremos presos aqui até alguém vir ajudar?
– Você está olhando para a ajuda – ela lhe disse, lançando-lhe um sorriso enquanto voltava para pegar uma caixa de ferramentas no compartimento de carga do avião.
Parte do motivo pelo qual Kade a levou até aquela localização remota era que queria, de uma vez por todas, chegar à raiz do que ela sabia quanto aos homicídios da
família Toms. Agora, depois das meias-verdades que ela lhe contara a respeito das mortes da mãe e do irmão, ele tinha outro motivo para questioná-la. E ele disse
a si mesmo que, no final das contas, se Alex soubesse de algo sobre a existência da Raça – ainda mais se esse conhecimento estivesse relacionado à perda dos familiares
na Flórida –, então, aliviá-la do fardo dessa lembrança seria um ato de bondade seu.
Aquilo, porém, não dizia respeito somente à missão. Ele tentara se convencer de que era isso, mas a obrigação ficara em segundo plano no instante em que chegara
à casa de Alex. A maneira como a sua pulsação ficava mais rápida ao redor dessa fêmea por certo não fazia parte do plano. Seu coração ainda estava acelerado por
conta da repentina aterrissagem, mas assim que Alex voltou para junto dele, parecendo inteligente e capaz, e tão adorável, ao se aproximar do motor, as batidas do
seu coração passaram a ser uma palpitação.
– Importa-se de segurar essa lanterna para mim? – Ela a acendeu e a entregou a ele, depois tirou uma luva e apanhou alguns parafusos na caixa de ferramentas. – Alguns
desses devem servir até voltarmos para casa.
Kade a observou colocar cada parafuso no buraco, imaginando se os guerreiros em Boston sentiam o mesmo orgulho e prazer ao verem suas fêmeas fazerem aquilo que faziam
de melhor.
Mas o pensamento o irritou assim que entrou em sua mente… Desde quando ele era do tipo que pensava em ter uma companheira, quanto mais aproximar Alexandra Maguire
desse cenário? Na melhor das hipóteses, ela era um obstáculo temporário no cumprimento da sua missão para a Ordem. Na pior, ela representava um risco de segurança
para toda a nação da Raça – alguém que ele devia silenciar o quanto antes.
Mas nada disso importava para seu coração acelerado, nem para os estalidos de atenção que atravessavam todas as suas veias e células enquanto ela concluía seu trabalho
a poucos centímetros de distância. Atrás dela, ao longe, a luz verde da aurora boreal se unira a uma faixa avermelhada. A cor emoldurou Alex quando ela se virou
para olhá-lo, e ele se questionou se já vira algo tão belo quanto o rosto dela com o halo de magia congelada da selva do Alasca. Ela não disse nada, apenas sustentou
seu olhar com a mesma intensidade silenciosa que ele sentia atravessando-o.
Kade apagou a lanterna e a colocou sobre a tampa do motor agora fechado. Tirou as luvas e segurou a mão nua de Alex, aquecendo-lhe os dedos na pressão de suas palmas
quentes. Segurou-a de leve, dando-lhe a oportunidade de se afastar caso não desejasse seu toque. Mas ela não opôs resistência.
Ela entrelaçou os dedos nos dele, fitando-o nos olhos com uma intensidade voraz.
– O que quer de mim, Kade? Por favor, preciso saber. Preciso que me diga.
– Eu achei que sabia – disse ele, mas balançou a cabeça. – Achei que tinha tudo certo na cabeça. Deus, Alex… conhecer você mudou tudo.
Ele soltou uma mão para pousar na curva do maxilar dela, escorregando os dedos entre o capuz da parca e o calor aveludado do seu rosto.
– Não consigo entender você – ela disse, franzindo o cenho ao levantar o olhar para ele. – Eu me sinto desconfortável por não conseguir entendê-lo.
Ele tocou a ponta do nariz dela e lhe lançou um sorriso torto.
– Muito cinza no seu mundo em preto e branco?
A expressão dela permaneceu grave.
– Isso me assusta.
– Não se assuste.
– Você me assusta, Kade. Durante toda a minha vida, fugi das coisas que me assustavam, mas com você… – Ela emitiu um suspiro incerto e lento. – Com você, pareço
incapaz de me afastar.
Ele afagou o rosto dela, passou as pontas dos dedos sobre as rugas formadas na testa enquanto ela o fitava.
– Não há motivo para você ficar assustada quando está comigo – ele lhe disse, com toda a honestidade.
Mas, então, ele inclinou a cabeça e pressionou os lábios sobre os dela, e o beijo que deveria ter representado uma promessa carinhosa inflamou-se em algo mais selvagem
quando Alex o retribuiu tão abertamente, provocando a boca dele com a ponta da língua. Todo o calor que surgira entre eles na noite anterior no estacionamento do
Pete’s foi reavivado naquele instante, só que mais veloz, mais intenso, pelas horas em que Kade a desejara. Ele ardia por aquela fêmea, de uma maneira muito perigosa.
Beijá-la era um risco alto; o desejo já alongara as presas, a visão já se tornara aguçada com a luz âmbar que agora preenchia suas íris.
Seduzi-la ali não fora seu objetivo, não importando a missão da Ordem ou o quanto ele desejasse descobrir os segredos de Alex para satisfazer sua curiosidade pessoal.
Afastou-se, a cabeça baixa, o rosto virado para longe para esconder as mudanças que não poderia permitir que ela visse. Mudanças que a assustariam.
Mudanças que ele não seria capaz de explicar.
– O que foi? – perguntou ela, com a voz rouca devido ao beijo. – Algo errado?
– Não. – Ele meneou a cabeça, ainda escondendo o rosto até conseguir aplacar seu desejo. – Nada errado. Mas está frio demais para ficarmos parados aqui. Você deve
estar congelando.
– Não posso dizer que eu esteja sentindo frio no momento – replicou, fazendo-o sorrir a despeito da guerra que acontecia em seu interior.
– É melhor entrarmos. – Ele não aguardou uma resposta antes de dar a volta no avião. – Só preciso da minha mochila. Vá na frente. Vou logo atrás.
– Está bem. – Ela hesitou por um momento, depois se pôs a caminhar na direção do chalé, as botas esmagando a neve. – Traga lenha, já que está por aí. As pessoas
usam este lugar como abrigo agora, então você deve encontrar um pouco no galpão logo atrás.
Ele esperou até que ela tivesse entrado no chalé antes de tirar a mochila com armamento do avião e seguir para procurar o abrigo de madeira. O ar ártico o estapeou
conforme ele avançava pela neve imaculada. Ficou grato pelo castigo do tempo frio. Necessitava da lucidez do vento gélido.
E ainda assim ardia internamente por Alex.
Desejava-a demais, e seria preciso que uma geleira o engolisse para aplacar parte do calor que ela acendia nele.
Capítulo 14
Alex entrou no chalé de um único cômodo e fechou a porta atrás de si para lacrar o frio, com esperanças de conseguir um instante de privacidade para poder lidar
com o tumulto que acontecia dentro dela. Recostou-se contra a madeira gasta e exalou um suspiro trêmulo.
– Controle-se, Maguire.
Quis fingir que o beijo não significara nada, que o simples fato de Kade ter se afastado primeiro era indício de que até mesmo ele pensava que deixar as coisas esquentarem
entre eles seria má ideia. Só que as coisas já estavam quentes, e negar isso não faria o fato desaparecer. Não havia um lugar longe o bastante para que Alex deixasse
de sentir o desejo que sentia por Kade. E o engraçado era que ela não queria fugir daquela sensação. Pela primeira vez na vida, existia algo que a assustava sobremaneira,
mas que não lhe provocava ímpetos de sair correndo.
Não, ainda pior: seus sentimentos por Kade a impeliam a se aproximar dele.
Ainda mais assustador, ela sentiu que Kade poderia ser alguém forte o bastante em quem se apoiar, forte o bastante para que ela se abrisse – se abrisse de verdade
– a respeito de tudo o que mantinha represado dentro de si por tanto tempo. Uma parte sua queria acreditar que ele poderia ser o homem forte que ficaria ao seu lado
em qualquer tempestade, mesmo uma repleta de monstros, na qual a noite tinha dentes e o vento grunhia sedento de sangue.
Kade seria capaz de ficar ao seu lado.
Alex sabia disso do mesmo modo como sabia quando alguém lhe mentia. Ainda que não conseguisse lê-lo como fazia com as outras pessoas, esse mesmo sentido intenso
lhe dizia que isso acontecia porque Kade era diferente das outras pessoas de alguma maneira. Ele era diferente dos homens que já conhecera e que viria a conhecer.
Esse mesmo estranho e inabalável, instinto estivera no comando no voo, quando ela estivera perto de lhe contar a verdade – toda a verdade – sobre os motivos que
levaram o pai e ela a se mudarem da Flórida. A verdade a respeito do que, exatamente, matara sua mãe e seu irmão.
Fora difícil lutar contra esse instinto que desejava permitir a aproximação de Kade, e quando ela lançou a mentira ensaiada que usara com tantos outros sem nenhum
remorso, ser desonesta com Kade fez com que se sentisse terrível. Imagine só – ela escondera uma das verdades mais fundamentais sobre si mesma de todos em Harmony
que a conheciam desde que era uma criança; no entanto, após apenas alguns dias de flertes com um desconhecido, ela se via pronta a contar tudo.
Kade, contudo, já não era mais um estranho para ela. Ele não lhe pareceu um estranho nem mesmo na primeira noite no fundo da igreja, quando os olhos prateados se
encontraram com os seus do outro lado do salão.
E se tudo o que vinham fazendo desde então era apenas um flerte, por que seu coração batia forte contra o osso esterno toda vez que estava perto dele? Por que ela
sentia, contra toda lógica e sensatez, que seu lugar era ao lado desse homem?
Com o frio das lembranças remotas e a incerteza do futuro se aproximando, ela precisava de algo forte e quente no qual se segurar.
Não apenas de qualquer coisa ou de qualquer pessoa… mas dele.
Precisava do calor de Kade agora – da sua força –, mesmo que apenas por uns instantes.
O depósito de madeira atrás do chalé tinha um estoque decente de lenha cortada e seca, empilhada dentro da construção externa que tinha as iniciais de Henry Tulak
acima da porta. Era costume na floresta que os viajantes cuidassem uns dos outros, deixando combustível e alimentos para o próximo e respeitando a natureza a fim
de preservá-la tanto para si quanto para outrem.
Enquanto apanhava as achas de madeira que usariam, Kade pensava no que poderia deixar em troca da lenha que queimaria no chalé com Alex. Ajoelhou-se e abriu o zíper
da mochila. As únicas coisas que trazia que poderiam ser úteis ali eram suas armas, porém, as pistolas destinadas a matar Renegados que ele carregava eram valiosas
demais para serem deixadas para trás. Uma adaga, então. Ele tinha mais do que uma consigo.
Ao colocar a mão dentro da mochila à procura de uma faca que poderia deixar, o solado da bota se prendeu em algo branco e duro, preso entre as tábuas do abrigo.
– O que é isso?
Moveu-se para o lado para poder ver melhor o que havia debaixo da bota. Um dente de urso. A ponta de marfim longa e afiada estava encravada no espaço entre duas
tábuas como se tivesse sido afundada por inúmeras botas antes da sua. Não foi o dente, contudo, que fez o sangue de Kade gelar nas veias. Foi a tira fina de couro
entrelaçada presa a ele.
Exatamente do mesmo tipo que a pulseira presa a outro dente que vira recentemente.
Aquele que ele encontrara manchado de sangue humano seco, guardado no esconderijo de tesouros particulares de Seth. A coleção pervertida de souvenires mantida por
um assassino.
Seu irmão estivera ali.
Ah, não… seria possível que Seth tivesse matado o homem encontrado devorado por animais naquele mesmo lugar no ano anterior?
Kade quis negar a prova que tinha na mão fingindo ser uma mera coincidência, mas o gelo em seu peito lhe disse que seu irmão gêmeo estivera ali no inverno anterior,
quando Henry Tulak respirou pela última vez.
– Filho da mãe… – Kade sussurrou, enojado, ainda que tivesse procurado provas daquilo desde que chegara ao Alasca.
Agora que ela o encarava – a certeza de que somente um gêmeo idêntico pode ter a respeito da sua outra metade –, não havia mais como negar o que ele sabia em seu
coração há tanto tempo. Seu irmão era um assassino. Não melhor do que os Renegados que Kade sempre odiara e que agora perseguia como membro da Ordem. A fúria o atravessou,
ultraje não só em relação a Seth, mas a si mesmo, por querer acreditar que estivesse errado a respeito do irmão. Não havia mais incerteza em acusar Seth, ou a repugnância
em relação aos seus atos.
Kade soltou o dente de urso com a ponta da faca e o segurou diante de si, fitando, enojado, a prova que acabara de condenar o irmão. A mesma prova que impelia Kade
a fazer o que era justo e correto – fazer o que era seu dever, não só pela Ordem, mas como um macho cuja conduta pessoal de honra exigia justiça.
Precisava encontrar Seth e colocar um fim àquela matança.
Precisava sair dali naquele instante. Estava nervoso demais pela ira e pela determinação para voar de volta para Harmony com Alex; seguiria para lá a pé para iniciar
sua caçada pessoal, enquanto a aurora do meio-dia ainda demoraria algumas horas a chegar. Cobriria o maldito interior inteiro a pé se fosse necessário – chamaria
os lobos para ajudá-lo a encontrar Seth se não conseguisse rastreá-lo sozinho rápido o bastante.
Kade enfiou o pingente de dente de urso no bolso da frente dos jeans e deixou a faca sobre a pilha de lenha, uma oferenda, apesar de não ter mais uso para ela agora.
A única coisa de que precisava era sair logo dali e fazer o trabalho que o trouxera de volta ao lar, ao Alasca, de uma vez por todas.
Enquanto dava a volta no abrigo e subia até o chalé, ele era como um barril de dinamite numa combinação de raiva e intenção letal. Porém, ao abrir a porta do chalé,
pronto a oferecer alguma desculpa esfarrapada para Alex explicando por que teria que abandoná-la ali, ele foi recebido pelo ar quente e o brilho dourado de um fogo
crepitando no pequeno fogão a lenha no meio do chalé.
E pela própria Alex, sentada em meio a um ninho fofo de sacos de dormir e mantas de lã macias. O cabelo loiro fora libertado das tranças e caíam em ondas sobre os
ombros nus. Ombros despidos, assim como as pernas longas que se viam por debaixo da manta fina que mal a cobria.
Caramba… a linda e sensual Alex, nua à sua espera.
Kade pigarreou, subitamente sem palavras, e mais ainda sem as desculpas que pretendera dar para sair dali imediatamente.
– Eu… hum… eu encontrei um pouco de lenha e fósforos naquele balde ali – Alex disse. – Pensei em esquentar as coisas por aqui.
Esquentar? Se ela fosse mais quente, o corpo de Kade se incendiaria ali mesmo. O coração ainda batia descompassado por conta da descoberta desagradável no abrigo
de lenha, mas agora seu ritmo passou para uma batida mais profunda e mais urgente. Ele sentiu um músculo no maxilar dar um repuxão violento enquanto via a luz do
fogo dançar sobre a pele suave e macia.
– Alex…
Ele meneou a cabeça de leve, incapaz de pronunciar as palavras para rejeitá-la. As mais de uma dúzia de razões pelas quais aquilo era uma má ideia – ainda mais agora,
quando seu dever o impelia a deixar de lado suas necessidades egoístas para se concentrar plenamente na missão que o levara para lá – simplesmente despareceram da
sua mente lasciva. Uma avidez o assolou, o desejo substituiu a raiva que o consumia há menos de um minuto do lado de fora. Não sabia ao certo se levar as coisas
entre Alex e ele para um nível mais íntimo, dadas as circunstâncias, podia ou não ser mais do que uma péssima ideia.
Isto é, até ela se levantar e começar a andar na sua direção. A manta fina que mal envolvia sua silhueta, arrastando-se aos seus pés, agora se entreabria na frente
e lhe permitia um vislumbre desobstruído das pernas delgadas e infinitas a cada passo que ela dava. E conforme ela se aproximava, com o tecido fino se mexendo para
desnudar a pele macia do quadril esquerdo, Kade viu a minúscula marca de nascença carmesim, na forma de uma lágrima e de uma lua crescente, que transportou aquela
situação do reino das más ideias diretamente para uma zona de completo desastre.
Ela era uma Companheira de Raça.
E isso mudava tudo.
Pois Alexandra Maguire não era uma simples mortal, uma humana com quem poderia simplesmente se divertir, manipular em busca de informações, talvez transar por um
tempo, para no fim apagar sua mente e se esquecer dela. Ela era como um membro da família para os da sua espécie, uma fêmea para ser honrada e reverenciada, tão
preciosa quanto ouro.
Ela era algo raro e miraculoso, algo que ele certamente não merecia, e ela não fazia ideia disso.
– Ah, Cristo… – Apoiou a mochila no chão. Seus assuntos com Seth e com a Ordem teriam que esperar. – Alex, tem uma coisa… nós precisamos conversar.
Ela sorriu numa curva sensual dos lábios.
– A menos que precise me informar de alguma doença que tenha ou que, na verdade, seu interesse é por homens…
Ele a encarou, perguntando-se se existiram pistas ao longo do caminho. Mas, no começo, ele não olhara para Alex apenas como uma fonte de informações, uma testemunha
relutante que ele teria que fazer se abrir usando quaisquer meios necessários. Depois que falara com ela, começara a gostar dela. E depois que gostara dela, foi
difícil não desejá-la.
E agora?
Agora tinha a obrigação de proteger aquela fêmea a qualquer custo, e isso incluía impedi-la de cair nas mãos de um macho como ele. Ele a colocava em perigo só pelo
fato de estar com ela, arrastando-a em sua missão para a Ordem e aproximando-a, ainda mais depois de hoje, dos horrores dos joguinhos doentios do seu irmão. Se ele
era metade do guerreiro que jurara a si mesmo ser, levaria Alex para longe daquele lugar, a levaria para casa, para nunca mais procurá-la.
– Kade? – Ela inclinou a cabeça ao se aproximar, ainda à espera da sua resposta, o tom de voz suave. – Hum… não é isso o que tem a me dizer, é?
– Não. Não é.
– Que bom – ela disse, praticamente ronronando as palavras. – Porque eu não estou com vontade de conversar agora.
Kade inspirou fundo quando ela se aproximou, deixando pouco mais de alguns centímetros e uma fina manta de lã entre eles. E a sua fragrância… de pele aquecida, de
calor feminino e de um traço adocicado de algo mais esquivo que ele agora sabia que só podia ser o odor singular do sangue de uma Companheira de Raça.
Mesmo sem a maldita marca de nascença, inferno, apesar disso, Alexandra Maguire era uma combinação tóxica que o envolvia – por fora e por dentro – como a mais potente
das drogas.
Ela levantou o olhar para ele, os olhos cor de caramelo agora escurecidos como duas piscinas profundas em que ele poderia se afogar.
– Quero estar com você, Kade, aqui e agora. – Devagar, ela abriu a manta, expondo-se por completo para ele ao passar os braços ao seu redor, envolvendo ambos com
as dobras do tecido. O calor do corpo nu quase o queimou, entalhando-se em sua lembrança como um ferro em brasa. – Estou cansada de sentir frio o tempo todo. Estou
farta de me sentir sozinha. Só por agora, quero que me toque, Kade. Quero sentir as suas mãos em mim.
Ela não teve que pedir duas vezes. Ele sabia que ela precisara de coragem para admitir sua vulnerabilidade para ele, para se expor daquela maneira. Não poderia fingir
que não desejava aquilo tanto quanto ela. Ele a desejou desde o momento em que a viu pela primeira vez. Agora, todas as suas boas intenções, todos os seus pensamentos
de honra e de dever foram incinerados num instante.
Levantou uma palma até a linha delicada da coluna dela; a outra se ergueu para acariciar a curva graciosa do rosto e a pele sedosa da nuca. A pulsação dela vibrava
ao encontro do seu polegar conforme ele acariciava a pele macia sobre a carótida. Enquanto ele brincava com a faixa erótica de pele debaixo dos dedos, ela fechou
os olhos e inclinou a cabeça para trás, dando-lhe mais acesso do que seria sensato.
A pulsação de Kade também acelerou, cada um dos batimentos cardíacos dela, cada pequeno tremor do corpo junto ao seu estimulando suas necessidades mais primitivas.
Ele afundou a cabeça e aninhou o rosto na junção do pescoço e do ombro dela, ousando o mais suave dos beijos enquanto as presas rapidamente preenchiam sua boca,
a língua ávida por saboreá-la. Exalou seu desejo num grunhido baixo, tracejando a boca ao longo do pescoço, depois descendo, inclinando-se conforme apanhava um seio
perfeito na mão, erguendo o mamilo róseo até os lábios.
Sugou-a, atento para não arranhá-la com as pontas afiadas das presas, enquanto puxava o botão mais fundo em sua boca, envolvendo-o com a língua, deliciando-se com
os arquejos excitados de prazer dela. Desceu a mão livre, espalmando a nádega arredondada, brincando com a junção do corpo dela por trás. A sensação de tê-la nos
braços era tão boa, tão gostosa. Ele esmagou-a contra o seu corpo, deixando que os dedos se aprofundassem, chegando às dobras do sexo. Ela estava úmida e quente,
a pele um paraíso acolhedor quando seu toque se aprofundou.
– Ai, meu Deus… – ela arfou, arqueando-se em seu abraço. – Kade…
Num gemido, ele soltou o seio da mordida sensual e voltou aos lábios, capturando-lhe o suspiro num beijo profundo e faminto. Embora ela o acompanhasse, era ele quem
estabelecia o ritmo, mais urgente do que fora sua intenção, mas ele estava envolvido demais para desacelerar. Também estava mais do que ciente das mudanças que lhe
aconteciam – mudanças que exigiriam algum tipo de explicação, que também exigiriam um tipo de conversa, algo em que ela não se mostrara interessada e algo que ele
seria incapaz de realizar no momento.
Ainda beijando-a, pois se via incapaz de afastar a boca da dela, ele a guiou de volta ao ninho de cobertas perto do fogo. Juntos, eles o despiram, arrancando rapidamente
o casaco e a camisa, as botas e os jeans. Kade se despiu do resto das roupas enquanto Alex trilhava com a língua um caminho ao longo do pescoço dele. Kade estremeceu
ao sentir um disparo de desejo preenchendo suas veias, sentiu o sangue apressado até os membros e o pênis pulsante. A pele comichava com a transformação dos dermaglifos,
as marcas da Raça que lhe cobriam o peito, os braços e as coxas. Os glifos, normalmente um tom ou dois mais escuros que o de sua pele, por certo estariam saturados
de cor agora, escurecendo-se para refletir o desejo que sentia por Alex.
– Ah, caramba… – grunhiu, sibilando profundamente quando ela mordiscou a pele macia logo abaixo da sua mandíbula. Não sabia quanto mais aguentaria. Quando ela abaixou
a mão para afagá-lo em toda a sua extensão, ele não teve como segurar seu rosnar animal. Ela espalmou a cabeça do sexo, num toque tanto curioso quanto exigente ao
espalhar a umidade natural sobre a pele sensível.
– Deite-se comigo – pediu ele, com a voz rouca, a respiração ofegante.
Segurou-a nos braços e afundou com ela no piso coberto de mantas do chalé, beijando-a enquanto a pressionava com suavidade debaixo de si. Ela estava tão macia e
quente ao seu encontro, os braços envolvendo-o pelos ombros, as coxas afastadas onde os seus quadris se encaixaram. O pênis se aninhou ao encontro da fenda úmida
do seu sexo, louco de desejo de se afundar, mas Kade só brincou de penetrá-la, escorregando entre as pétalas aveludadas do seu corpo ao mesmo tempo em que brincava
com a boca ao longo da pulsação na lateral do pescoço. Segurou o sexo para se conter, esfregando sua rigidez na suavidade dela, usando a ponta larga do pênis para
acariciar seu clitóris. Ela gemeu, arqueando-se para acompanhar seu ritmo, alargando as pernas num convite. Ele resistiu à tentação, quase sem conseguir.
Ela lhe pedira que a aquecesse, e ela estava quente, mas ele quis deixá-la mais quente do que nunca. A necessidade repentina e incomensurável de marcá-la como sua
– de lhe dar prazer como ninguém antes dele – ressoou em seu sangue como um tambor. Atordoado com a sensação, ele se refreou. Mas Alex era tão gostosa, parecia tão
certa para ele, que antes que se lembrasse de que ela merecia algo melhor, ele passou a beijá-la corpo abaixo. Saboreou cada centímetro desde os montes dos seios
até a musculatura firme do abdômen e a maldita marca de nascença no quadril que tornava seu prazer e sua necessidade egoísta algo tão errado.
Mas, errado ou não, por mais egoísta que fosse ao ceder ao seu desejo por Alex, ele passara do ponto de resistir. A sensação de tê-la debaixo de si elevou a chama
em seu sangue levantando fervura. A fragrância dela o atraía como um ímã até a faixa de pelos claros e encaracolados entre as pernas. Beijou-a ali, usando os lábios
e a língua e os dentes até ela se contorcer contra sua boca. E mesmo assim ele não parou. Sugou-a e afagou-a, dando-lhe prazer até que ela se arqueasse debaixo dele
e gritasse durante o trepidante clímax.
E ainda assim ele não parou.
Continuou sugando, beijando e afagando-a, conduzindo-a até mais um pico e depois, só depois, ergueu-se para cobri-la com seu corpo, penetrando-a profundamente enquanto
as quentes paredes internas se contraíam ao redor do pênis pulsante. Penetrou-a percebendo que ele também precisava daquele calor, daquela sensação – mesmo que temporária
– de não estar sozinho. Precisara de Alex daquele modo, naquele instante, tanto quanto ela acreditava precisar dele.
O orgasmo de Kade se avolumava na base do pênis, intensificando-se a cada estocada fervorosa. Cada vez mais ardente, cada vez mais estreito, até que ele não conseguiu
segurar nem mais um segundo. Sentiu o corpo tenso com a força com que ele vinha e a penetrou o máximo que ela conseguia acomodá-lo, enterrando o rosto no ombro dela
e emitindo um grito rouco de alívio quando seu sêmen explodiu numa torrente líquida quente.
Ele não teria conseguido segurar mesmo que tivesse tentado, apesar de não existir a possibilidade de uma gravidez, contanto que não houvesse troca de sangue. Mas
isso também se mostrou mais tentador do que deveria. As presas de Kade alongaram-se das gengivas quando ele se perdeu no calor interno de Alex. Ele ouvia a pulsação
acelerada dela, sentia-a no eco enlouquecido das batidas do seu coração. E ele sentia o fluxo do sangue dela pulsando logo abaixo da superfície da pele delicada
onde a boca dele repousava numa careta retesada.
– Ah, caramba… Alex – sibilou, atormentado pelo fluxo de sensações que ela lhe provocava.
Tudo o que pertencia à Raça nele exigia que ele tornasse aquela sua fêmea, que clamasse seu sangue assim como clamara seu corpo.
Kade suprimiu essa necessidade, mas, maldição, não foi algo fácil. Rolou-a contra si, acomodando-a de costas para ajudar a esconder as mudanças que o acometeram
no ato de paixão.
– Você está bem? – ela perguntou, enquanto ele se esforçava para conter seus impulsos e obter um pouco de juízo.
– Sim – ele conseguiu dizer depois de um instante. – Melhor do que tenho o direito de estar.
– Eu também – disse ela, o sorriso evidente pelo torpor na voz que resvalou com suavidade no alto do seu braço. – Para o caso de estar se perguntando, os meus serviços
de piloto não costumam incluir ficar nua com meus clientes.
– Isso é bom – Kade disse quase num grunhido ao aproximá-la ainda mais do corpo ainda ardente. Ele não queria que ela ficasse nua com ninguém, percebeu num rompante.
Já não teria gostado dessa ideia antes, mas depois do que acontecera entre eles, ele não receberia isso nada bem.
– E quanto a você? – perguntou ela, enquanto ele os cobria com as mantas para esconder seus glifos do olhar dela.
– O que tem eu?
– Você faz isso… com frequência?
– Ficar nu com pilotos sensuais do interior do Alasca no meio de uma floresta gélida? – Fez uma pequena pausa, deixando-a pensar que estava levando a pergunta em
consideração. – Não. Foi a minha primeira vez.
Bem como a ferrenha sensação de posse que ainda corria em seu sangue ao pensar em Alex com outro macho. Perguntou a si mesmo se foi o fato de ela ser uma Companheira
de Raça que o atraiu logo de cara. Mas, assim que pensou nisso, percebeu que a marca de nascença que a ligava ao mundo sombrio que ele habitava como um ser da Raça
foi a menor das qualidades que o atraíram a Alexandra Maguire. A última coisa de que ele precisava naquele momento era um envolvimento emocional, ainda menos com
uma fêmea que trazia a marca da lágrima e da lua crescente.
Mas ele estava envolvido. Na verdade, acabara de atar mais alguns nós a uma situação já impossível.
Praguejando contra si mesmo, como um idiota de primeira classe que era, Kade a beijou no alto da cabeça e a abraçou, enquanto esperava que seus olhos voltassem à
aparência normal e as presas tivessem a oportunidade de se retraírem.
Levou um tempo para isso acontecer, e mesmo depois que o corpo voltou ao ritmo normal, o desejo que sentia pela mulher em seus braços permaneceu.
Capítulo 15
A luz do dia brilhou fraca e escondida pelas nuvens fora da boca da caverna na floresta. O predador buscara abrigo ali pouco antes, quando os primeiros raios começaram
a mostrar as garras em meio à escuridão do inverno. Poucas coisas existiam mais poderosas do que ele, ainda mais naquele mundo primitivo que era tão diferente do
distante mundo em que nascera muitos milênios atrás. No entanto, por mais avançada que fosse a forma de vida da sua espécie, a sua pele desprovida de pelos e coberta
de dermaglifos não processava a luz ultravioleta: apenas alguns minutos de exposição o matariam.
Das profundezas da sua segurança na caverna, ele descansou da perseguição da caça da noite anterior, impaciente para que a luz tênue se extinguisse e recuasse uma
vez mais. Logo precisaria se alimentar novamente. Ainda sentia fome, as células, os órgãos e os músculos demandavam rejuvenescimento extensivo depois do longo período
de privação e abuso que sofrera enquanto estivera em cativeiro. O instinto de sobrevivência se digladiava com o conhecimento de estar, absoluta e completamente,
sozinho naquele naco inóspito de entulho.
Não restava mais ninguém como ele já há muito tempo. Ele era o último dos oito exploradores que caíram neste planeta, um náufrago solitário sem chance de escapar.
Eles tinham nascido para conquistar, para serem reis. No entanto, um a um, seus irmãos abandonados morreram, quer pela crueldade do novo ambiente que os cercava,
quer pelas guerras com a prole meio-humana nos séculos que se seguiram. Através de uma traição e de um acordo secreto com seu filho, somente ele sobrevivera. Mas
fora a mesma traição e acordo secreto que o tornaram escravo do filho do seu filho, Dragos.
Agora que estava livre, a única coisa mais atraente do que pôr um fim em seu tempo naquele planeta abandonado era a ideia de poder levar seu herdeiro traidor consigo
para a morte.
Uivou ante a lembrança das longas décadas de dor e experiências a ele infligidas. Sua voz reverberou nas paredes da caverna, um rugido sinistro que saiu rasgando
dos pulmões, semelhante a um grito de guerra.
Um disparo respondeu de algum lugar não muito distante, em algum lugar na floresta lá fora.
Houve uma batida súbita nas folhagens do lado externo. Em seguida, ouviu passadas fugidias de animais – de muitos animais – correndo próximos à entrada da caverna.
Lobos.
A alcateia se dividiu, metade correndo pelo lado direito da entrada, metade disparando pela esquerda. E logo atrás deles, poucos segundos depois, o som de vozes
humanas, homens armados em perseguição.
– Por aqui – um deles gritou. – A maldita alcateia inteira subiu este cume, Dave!
– Vocês, peguem o lado oeste – uma voz retumbante comandou. – Lanny e eu vamos a pé pela colina. Há uma caverna logo adiante; é provável que um ou dois dos bastardos
tenham se escondido ali.
O barulho dos motores dando ré e o fedor do combustível queimado permearam o ar quando alguns dos homens saíram dali. Alguns minutos depois, do lado de fora da boca
da caverna, na luz do dia que barrava a única via de fuga, as silhuetas de duas pessoas segurando longos rifles tomaram forma. O homem da frente era grande, com
um peito amplo e ombros largos e uma barriga que outrora podia ter sido musculosa, mas que agora era somente flácida. O homem que o acompanhava devia ser uns trinta
centímetros mais baixo e muitos quilos mais magro, uma criatura tímida de voz trêmula.
– Acho que não tem nada aqui, Dave. E não sei se foi uma boa ideia nos separarmos dos outros.
Confinado às sombras, o único ocupante se encolheu na parede da caverna, mas não rápido o bastante.
– Ali! Acabei de ver um par de olhos cintilantes aqui dentro. O que eu disse, Lanny? Pegamos um dos bastardos bem aqui! – A voz do homem grande estava carregada
de agressão ao levantar a arma. – Acenda a lanterna e me deixe ver no que estou atirando, sim?
– Hum, tudo bem, Dave. – O companheiro nervoso se atrapalhou com a tarefa, ligando a luz e oscilando-a com gestos nervosos no chão e nas paredes da caverna. – Está
vendo alguma coisa? Eu não estou vendo nada por aqui.
Claro que não, pois o olhar cintilante que o homem vira apenas um instante antes já não estava no solo, mas fitando os humanos do alto, onde o predador agora se
segurava nas estalactites acima de suas cabeças, parado no escuro tal qual uma aranha.
O homem grande abaixou a arma.
– Mas que diabos! Onde o danado foi parar?
– Não devíamos estar aqui, Dave. Acho melhor a gente ir procurar os outros…
O homem grande avançou mais alguns passos para dentro da caverna.
– Não seja covarde. Me passe a lanterna.
Quando o baixinho esticou a mão para entregar-lhe a lanterna, a bota bateu numa pedra solta. Ele cambaleou, caiu de joelhos e deu um grito de surpresa e dor.
– Merda! Acho que me cortei.
A prova acobreada do sangramento se elevou numa súbita onda olfativa. O cheiro de sangue fresco perfurou as narinas do predador. Ele aspirou e sibilou em resposta
ao exalar o ar dos pulmões por entre os dentes e as presas.
Abaixo dele, no chão da caverna, o homenzinho nervoso levantou a cabeça. Seu rosto aflito se retesou com horror sob o olhar âmbar faminto do alienígena.
Ele berrou, sua voz tão aguda e horrorizada quanto a de uma garotinha.
Ao mesmo tempo, o homem grande se virou com o rifle.
A caverna explodiu com o estrondo do tiro e da luz ofuscante, enquanto o predador saltava das rochas de cima e se lançava sobre o par de humanos.
Alex não se lembrava da última vez em que dormira tão profundamente sem interrupções. Nem se lembrava de ter se sentido tão relaxada e saciada como depois de fazer
amor com Kade. Espreguiçou-se sob a pilha fofa de mantas e sacos de dormir no chão, depois se ergueu sobre um cotovelo para vê-lo colocando mais lenha na fogueira
no pequeno fogão do chalé.
Ele estava agachado, os músculos fortes das costas e dos braços se esticando e flexionando quando ele colocou mais uma acha no fogão a lenha, a pele suave brilhando
na luz quente da fogueira. O cabelo preto curto estava todo bagunçado numa confusão de espetos que lhe conferia um ar ainda mais selvagem do que de costume, principalmente
quando ele virou a cabeça para olhar em sua direção, e ela se sentiu atingida pelas linhas letais do rosto e mandíbula e pelo olhar prateado cercado por cílios escuros.
Ele estava lindo, de tirar o fôlego, cem vezes mais do que quando estava agachado nu diante dela, com o olhar intenso e íntimo, travado no seu. O corpo de Alex ainda
vibrava com a lembrança da paixão partilhada, a dor agradável entre as pernas pulsava um pouco mais forte agora com o modo com que ele a fitava, como se quisesse
devorá-la novamente.
– Dormimos enquanto era dia? – perguntou, subitamente sentindo necessidade de preencher aquele silêncio ardente.
Ele acenou com a cabeça.
– Já faz umas duas horas que o sol se pôs.
– Vejo que saiu – comentou, percebendo a pilha renovada de lenha ao lado dele.
– É. Acabei de chegar.
Ela sorriu, arqueando as sobrancelhas.
– Espero que não tenha saído assim. No escuro a temperatura não deve passar de zero.
Ele grunhiu, a boca sensual se curvando com bom humor.
– Não tenho problemas de encolhimento.
Não, aquele definitivamente era um homem sem a mínima insegurança quanto à sua masculinidade. Cada centímetro seu era feito de músculos esculpidos, rijos e delgados.
Com seus mais de um metro e noventa de altura, ele tinha a forma bruta mítica de um guerreiro, desde os ombros amplos e bíceps definidos até a superfície entalhada
do peito e do abdômen tanquinho, terminando nos perfeitos quadris estreitos. O restante dele era igualmente perfeito, e ela podia atestar que ele sabia o que fazer
com aquilo.
Deus do céu, ele era uma obra de arte viva, que só era enaltecida pelo desenho intricado, ainda que sutil, da tatuagem – e de que cor ela era mesmo? – sobre a pele
dourada do torso e membros, como um caminho traçado pela língua de uma amante. Alex acompanhou os desenhos estranhos com os olhos, imaginando se era apenas um truque
da luz do fogo que fazia a cor de henna das tatuagens parecer escurecer, enquanto o avaliava em franca admiração.
Sorrindo como se já estivesse acostumado a ter mulheres admirando-o, ele se levantou e andou com lentidão até onde ela estava deitada, sem nenhuma inibição com a
sua nudez.
Alex riu com suavidade e balançou a cabeça.
– Você nunca se cansa?
Ele ergueu uma sobrancelha ao se reclinar com negligência ao seu lado.
– Se eu me canso?
– De ter mulheres aos seus pés – disse ela, percebendo com uma ponta de surpresa que não gostava muito dessa ideia. Odiava, na verdade, e se perguntou de onde vinha
a dor do ciúme, levando em consideração que ele não era seu só porque partilharam algumas horas suadas – e, sim, espetaculares – nos braços um do outro.
Ele afagou uma mecha solta do cabelo dela e levantou o olhar dela para o seu.
– Só estou vendo uma mulher comigo agora. E posso garantir que não estou nem um pouco cansado.
Segurou-a pelo rosto e a deitou sobre as cobertas. Seu olhar a derreteu quando a fitou, e ela sentiu a pressão rígida da ereção cutucando-a na lateral do corpo quando
ele se esticou ao seu lado.
– Você é uma mulher especial, Alexandra. Mais especial do que pensa.
– Você não me conhece – protestou ela baixinho, precisando se lembrar disso mais do que a ele. Conheciam-se há… quanto tempo? Dois dias? Ela não era de permitir
que alguém entrasse em sua vida tão rapidamente, ou tão profundamente, ainda mais depois de tão pouco tempo. Então, por que ele? Por que agora, quando tudo em seu
mundo parecia estar empoleirado no alto de um penhasco? Um empurrão na direção errada, e ela desapareceria. – Você não sabe nada sobre mim… não de verdade.
– Então me conte.
Ela o fitou, surpresa com a sinceridade, com o pedido franco em sua voz.
– Contar…
– Conte-me o que aconteceu na Flórida, Alex.
O ar pareceu sair dos seus pulmões naquele instante.
– Mas já contei…
– Sim, mas tanto você quanto eu sabemos que não foi um motorista embriagado que arrancou sua mãe e seu irmão de você. Foi outra coisa que aconteceu com eles, não
foi? Algo que você manteve em segredo todos esses anos. – Ele falou com paciência, suavemente, coagindo a confiança dela. E que Deus a ajudasse, mas ela se sentia
pronta para ceder. Ela precisava partilhar aquilo com alguém, e no fundo do seu coração, ela sabia que esse alguém era Kade. – Está tudo bem, Alex. Você pode me
contar a verdade.
Ela fechou os olhos, sentindo as palavras horrendas – as lembranças terríveis – subindo como ácido pela garganta.
– Não consigo – murmurou. – Se eu disser, então tudo o que tentei deixar para trás… tudo pelo que me esforcei tanto a esquecer… tudo vai voltar a ser real.
– Não pode passar a vida se escondendo da verdade – disse ele, e ecos de coisas passadas surgiram em sua voz. Uma tristeza, uma resignação que garantiu a ela que
ele entendia parte do fardo que ela há tanto tempo carregava. – Negar a verdade não a faz desaparecer, Alex.
– Não, não faz – concordou ela bem baixinho. Em seu coração, ela sabia disso. Estava cansada de fugir e cansada de manter o horror do seu passado enterrado e esquecido.
Queria se livrar de tudo aquilo, e se isso significava enfrentar a verdade, não importando o quanto ela fosse horrível – não importando o quanto ela fosse inimaginável
–, então que fosse assim. Mas o medo era um inimigo poderoso. Talvez poderoso demais. – Eu tenho medo, Kade. Não sei se sou forte o bastante para enfrentar isso
sozinha.
– Você é. – Ele depositou um beijo rápido no ombro dela, depois a fez fitá-lo novamente. – Mas não está sozinha. Eu estou com você, Alex. Conte-me o que aconteceu.
Eu a ajudarei, se você permitir.
Ela sustentou o olhar suplicante dele e encontrou a coragem de que precisava na força de aço dos seus olhos.
– Nós tivemos um dia maravilhoso juntos, todos nós. Fizemos um piquenique ao lado do rio, e eu ensinara Richie a mergulhar de costas do píer. Ele só tinha seis
anos, mas era destemido, sempre querendo tentar tudo o que eu fazia. Foi um dia perfeito, repleto de riso e de amor.
Até a escuridão recair sobre o pântano, trazendo um terror profano consigo.
– Não sei por que escolheram a nossa família. Procurei por um motivo, mas nunca descobri por que eles apareceram à noite para nos atacar.
Kade a acariciou com cuidado, enquanto ela se debatia com as palavras seguintes.
– Às vezes não existe razão. Às vezes as coisas acontecem e não há nada que possamos fazer para entendê-las. A vida e a morte nem sempre são lógicas, claras.
Às vezes a morte salta da escuridão como um fantasma, como um monstro terrível demais para ser verdadeiro.
– Havia dois deles – murmurou Alex. – Nem sabíamos que eles estavam lá até ser tarde demais. Estava escuro, e estávamos todos sentados na varanda, relaxando depois
do jantar. Minha mãe estava no balanço da varanda com Richie, lendo uma história do Ursinho Pooh antes de nos levar para a cama, quando o primeiro apareceu do nada,
sem aviso, e se lançou sobre ela.
A mão de Kade ficou imóvel.
– Você não está falando de um homem.
Ela engoliu em seco.
– Não. Não era um homem. Não era nem… humano. Era outra coisa. Algo maligno. Ele a mordeu, Kade. E, então, o outro agarrou Richie com os dentes também.
– Dentes – repetiu ele, sem surpresa nem descrença na voz, apenas compreensão grave. – Você quer dizer presas, não quer, Alex? Os agressores tinham presas.
Ela fechou os olhos quando a impossibilidade da palavra se registrou.
– Sim. Eles tinham presas. E os olhos, eles… eles cintilavam no escuro como brasas ardentes, e no centro deles as pupilas eram longas e finas como as dos gatos.
Eles não podiam ser humanos. Eram monstros.
O toque de Kade no rosto e nos cabelos dela a acalmava, enquanto as lembranças daquela noite terrível ressurgiam em sua mente.
– Está tudo bem. Você está segura agora. Eu só queria ter estado lá para ajudar você e a sua família.
O sentimento era gentil, ainda que improvável, visto que ele não podia ter mais do que alguns poucos anos a mais do que ela. Mas pela sinceridade em sua voz, ela
soube que ele estava sendo sincero. Pouco importava a improbabilidade, ou a enormidade do mal que enfrentavam, Kade teria ficado ao seu lado contra o ataque. Ele
os teria mantido a salvo quando ninguém conseguiria.
– Meu pai tentou combatê-los – murmurou Alex –, mas tudo foi muito rápido. E eles eram tão mais fortes do que ele. Derrubaram-no como se ele não fosse nada. Àquela
altura, Richie já estava morto. Ele era tão pequeno que não teria a menor chance de escapar daquele tipo de violência. Minha mãe gritou para o meu pai fugir, para
me salvar se pudesse. “Não deixe minha filha morrer!” Essas foram as suas últimas palavras. Aquele que a segurava fincou a mandíbula no pescoço dela. Não a soltou,
ficou com a boca fechada sobre ela. Ele… ah, meu Deus, Kade. Isso vai parecer loucura, mas ele… ele bebeu o sangue dela.
Uma lágrima rolou pelo rosto, e Kade pressionou os lábios na sua testa, trazendo-a para junto de si e oferecendo-lhe o conforto tão necessário.
– Não me parece loucura, Alex. E eu sinto muito pelo que a sua família passou. Ninguém deveria passar por tamanha dor e perda.
Embora ela não quisesse reviver aquilo, as lembranças tinham sido ressuscitadas e, depois de mantê-las enterradas por tanto tempo, ela sentiu que não conseguiria
mais contê-las. Não enquanto Kade estivesse ali para fazê-la se sentir mais aquecida e segura do que em toda a sua vida.
– Pelo modo como atacaram minha mãe e Richie, pareciam animais. Mas nem mesmo animais fariam o que eles fizeram. Ah… meu Deus, e havia tanto sangue. Meu pai me pegou
no colo e começamos a correr. Mas não consegui desviar o olhar do que estava acontecendo atrás, na escuridão. Eu não queria ver mais, era tudo tão irreal. A minha
mente não conseguia processar aquilo. Já faz tanto tempo, e ainda não tenho certeza se posso explicar o que foi que nos atacou naquela noite. Eu só… Eu quero que
tudo faça sentido, mas não faz. Nunca vai fazer. – Inalou fundo, revivendo uma dor mais fresca, uma confusão mais recente. – Vi o mesmo tipo de ferimentos na família
Toms. Eles foram atacados, assim como nós fomos, pelo mesmo tipo de maldade. Isso está aqui no Alasca, Kade… e eu estou com medo.
Por um longo momento, Kade nada disse. Ela conseguia ver a mente dele repassando tudo o que ela lhe dissera, cada detalhe incrível que faria com que qualquer outra
pessoa escarnecesse em descrença ou lhe dissesse que ela deveria procurar ajuda profissional. Mas ele não. Ele aceitava a sua verdade pelo que era, sem traço de
dúvida em seus olhos ou em seu tom inflexível.
– Você não precisa mais fugir. Pode confiar em mim. Nada de ruim vai acontecer com você enquanto eu estiver por perto. Acredita em mim, Alex?
Ela assentiu, percebendo só então o quanto confiava nele. Confiava nele num nível além do instintivo, era visceral. O que sentia por ele desafiava o fato de que
ele entrara em sua vida ainda naquela semana, tampouco estava relacionado ao modo como ela o desejava fisicamente – com uma sofreguidão que ainda não estava pronta
para analisar.
Ela simplesmente fitou os olhos inabaláveis de Kade e soube, em sua alma, que ele era forte o bastante para carregar qualquer fardo que ela partilhasse com ele.
– Preciso que confie em mim – disse ele com gentileza. – Existem algumas coisas que você precisa saber, Alex, agora mais do que nunca. Coisas sobre si mesma, e
sobre o que você viu, tanto na Flórida quanto aqui. E também há coisas que você precisa saber sobre mim.
Ela se sentou, o coração batendo de modo estranho no peito, pesado com uma sensação de expectativa.
– O que quer dizer?
Ele desviou o olhar, passando a acompanhar a carícia ao longo do corpo nu, depois se deteve no osso do quadril. Com o polegar, ele traçou um círculo ao redor da
sua pequena marca de nascença.
– Você é diferente, Alexandra. Extraordinária. Eu deveria ter reconhecido isso de cara. Houve sinais, mas eu não os percebi. Eu estava concentrado em outras coisas
e eu… maldição.
Alex franziu o cenho, mais confusa do que nunca.
– O que você está tentando dizer?
– Você não é como as outras mulheres, Alex.
Quando ele voltou a encará-la, a confiança que normalmente cintilava em seu olhar não estava lá. Ele engoliu, o clique seco em sua garganta fazendo o sangue dela
gelar nas veias. O que quer que ele tivesse a dizer, era ele quem tinha medo agora, e ver o traço de incerteza nele aumentou a sua ansiedade.
– Você é muito diferente das outras mulheres, Alex – repetiu com hesitação. – E eu… você precisa saber que eu também não sou como os outros homens.
Ela piscou, vendo uma pressão invisível pesar no silêncio que se fez entre eles. O mesmo instinto que lhe dizia para exigir mais respostas implorava para que ela
recuasse e fingisse não querer saber – não precisava saber o que deixava Kade tão sem palavras e ansioso. Tudo o que ela conseguia fazer era observá-lo e esperar,
preocupando-se com a possibilidade de ele estar prestes a lançar seu mundo num redemoinho ainda maior.
O toque estridente do celular de Alex lhe deu um choque tal qual o de um fio de alta-tensão. Ele tocou novamente e ela mergulhou para pegá-lo, contente pela desculpa
para fugir da estranha e sombria mudança de humor de Kade.
– Alex falando – disse ela, reconhecendo o número de Zach ao abrir o aparelho e atender a chamada.
– Onde você está? – exigiu saber, nem mesmo perdendo tempo em dizer olá. – Acabei de passar pela sua casa e você não estava lá. Você está na casa de Jenna?
– Não – respondeu ela. – Jenna esteve na minha casa hoje cedo, antes de eu sair. Ela deve ter ido para casa.
– Bem, onde foi que você se meteu, então?
– Estou trabalhando – disse ela, irritada com o tom rude dele. – Estou com um cliente que agendou um voo hoje de manhã…
– Escuta aqui, temos um problema aqui em Harmony – Zach a interrompeu com rispidez. – Estou no meio de uma crise médica e preciso que você traga um ferido grave
da floresta.
Alex despertou do nevoeiro emocional em que estivera presa antes de atender ao telefonema.
– Quem está ferido, Zach? O que está acontecendo?
– Dave Grant. Não sei a história toda, mas ele e Lanny Ham e alguns outros homens da cidade saíram para caçar na parte oeste hoje. Depararam-se com uma situação
grave, muito grave. Lanny está morto e, pelo visto, as coisas não estão muito boas para Big Dave. Os homens estão com medo de transportá-lo na motoneve, temendo
não conseguir trazê-lo a tempo de salvá-lo.
– Ai, meu Deus. – Alex se sentou para trás, sobre as pernas dobradas, sentindo um frio se espalhar pela pele. – Os ferimentos, Zach… o que aconteceu?
– Alguma coisa os atacou, de acordo com os outros homens. Dave está delirando, falando coisas sem sentido sobre uma criatura espreitando numa das cavernas a oeste
de Harmony. O que os atacou é algo bem ruim, Alex. Ruim mesmo. Dilacerou-os de uma maneira horrível. A notícia se espalhou pela cidade e todos estão em pânico.
Ela fechou os olhos.
– Ai, meu Deus…
A mão de Kade pousou sobre seu ombro nu.
– O que houve, Alex?
Ela balançou a cabeça, incapaz de formar as palavras.
– Quem está com você? – Zach exigiu saber. – Puta que o pariu, Alex, você está com aquele homem do Pete’s da outra noite?
Alex não achava que precisava dizer a Zach Tucker com quem passava seu tempo, não enquanto havia um homem morto e a vida de outro pendia por um fio. Não enquanto
o horror do seu passado – o horror que ela temia ter visitado a família dos Toms há apenas alguns dias – estava novamente estraçalhando seu coração.
– Estou no chalé de Tulak, Zach. Posso sair agora mesmo, mas só devo chegar em quarenta e cinco minutos.
– Esqueça. Não podemos esperar por você. Vou localizar Roger Bemis.
Ele desligou, deixando Alex sentada ali, congelada pelo medo.
– O que aconteceu? – Kade perguntou. – Quem se feriu?
Por um momento, ela só conseguia se concentrar em inspirar e expirar. O coração batia com tristeza, a culpa a corroía.
– Eu deveria tê-los avisado. Eu deveria ter dito o que sabia em vez de acreditar que poderia negar isso.
– Alex? – A voz de Kade saiu cautelosa; os dedos, ao erguer seu rosto, foram firmes, ainda que gentis. – Me conte o que está acontecendo.
– Big Dave e Lanny Ham – murmurou. – Foram atacados hoje na floresta. Lanny está morto. Big Dave pode não sobreviver.
E se Kade tivesse ido com eles em vez de vir com ela? A ideia de que ele poderia estar perto desse tipo de perigo – ou pior, ser vítima dele – fez seu coração se
contorcer. Sentiu-se doente de tanto medo, mas foi na raiva que ela se apegou.
– Você tem razão, Kade. Não posso fugir do que sei. Não mais. Tenho que enfrentar o mal. Tenho que tomar partido agora, antes que mais alguém se machuque. – A fúria
a incentivava, enquanto o medo ameaçava segurá-la. – Preciso contar a verdade – para todos em Harmony. Para o maldito mundo inteiro, se for preciso. As pessoas precisam
saber o que está aí. Não podem destruir o mal se nem mesmo sabem que ele existe.
– Alex – ele contraiu os lábios, começou a balançar a cabeça como se tivesse a intenção de dissuadi-la. – Alex, não acho que isso seja sensato…
Ela sustentou o olhar dele, incrédula.
– É por sua causa que eu me sinto forte para fazer isto, Kade. Precisamos ficar juntos – todos juntos – para derrotar isso.
– Ah, Cristo… Alex…
A hesitação dele foi como um punhal frio lentamente entrando no seu esterno. Confusa ante a mudança de atitude, mas determinada a fazer o que era certo – fazer o
que tinha que ser feito – ela se afastou dele e começou a se vestir.
– Tenho que voltar para Harmony. Vou partir em cinco minutos. Você decide se vem comigo ou não.
Capítulo 16
Não conversaram durante todo o voo de volta para Harmony.
Kade ficou sentado ao lado de Alex num silêncio infeliz, dividido, querendo lhe explicar sobre a Raça e o lugar dela naquele mundo e temendo que, se ela soubesse
o que ele de fato era, ela o colocasse na mesma categoria do monstro que ela abominava e que agora estava tão determinada a expor para toda a cidade e para o resto
da humanidade.
O medo de que ela o odiasse manteve sua língua grudada ao céu da boca durante todos os quarenta e cinco minutos que foram necessários para levá-los de volta à pista
de voo de neve, compactada nos limites da cidade. Sabia ser um bastardo por negar-lhe toda a verdade. Provara ser algo ainda pior no chalé de Tulak, quando permitiu
que seu desejo por ela superasse seu dever – seu código de honra, por mais frágil que fosse –, que teria compelido um macho melhor a pôr todas as cartas na mesa
antes de tomá-la para si.
Mas, com Alex, não foi só sexo. Não era só desejo, ainda que ele a desejasse sobremaneira. As coisas estariam bem melhores agora se aquilo fosse algo meramente físico.
A verdade era que gostava dela. Preocupava-se com ela. Não queria vê-la sofrendo mais, muito menos pelas próprias ações. Queria protegê-la das coisas que a atingiram
no passado, e faria o que fosse possível para que nada de ruim voltasse a lhe acontecer.
Ah, sim, seus esforços até então estavam sendo bem-sucedidos…
Vinha fazendo um trabalho de primeira linha em tudo o que tocara desde que chegara ao Alasca.
Frente às provas que encontrara no chalé, o que deveria ter sido uma missão simples e secundária de aniquilar um Renegado no norte congelado do país agora se tornara
uma busca para localizar um assassino em sua própria família. E agora ele tinha pelo menos mais um morto para acrescentar à mistura, talvez dois, se o relato sobre
os ferimentos de Big Dave fosse acurado.
Outro ataque selvagem a respeito do qual Kade rezava para que todas as suspeitas não recaíssem sobre Seth.
Ele ainda ruminava esse temor quando Alex pousou o avião de maneira impecável. Maldição, mesmo perturbada como ela devia estar, Alex estava em total controle do
manche. Uma verdadeira profissional. Apenas mais um detalhe que o fazia apreciá-la ainda mais.
– Merda – sussurrou baixo ao olhar para fora da janela da cabina. Estava mesmo caído por aquela fêmea.
– Parece que metade da cidade está agrupada do lado de fora do posto de saúde – observou Alex. – Já que o avião de Roger Bemis está estacionado, acho que eles já
devem ter trazido Big Dave e Lanny da floresta.
Kade grunhiu, olhando para um quarteirão na direção do centro da cidade, para o que antes fora uma antiga casa de rancho, agora convertida em posto de saúde, no
qual algumas dúzias de pessoas estavam reunidas sob a luz do pátio, algumas de pé, outras sentadas à toa em motoneves.
Alex desligou o motor do avião e abriu a porta do piloto. Kade saiu junto com ela, andando pela frente da aeronave enquanto ela o prendia e trancava tudo. Seus movimentos
eram eficientes, as mãos enluvadas trabalhavam mais por hábito do que seguindo pensamentos conscientes. Quando, por fim, olhou para ele, Kade viu que o rosto dela
estava pálido, a expressão estava séria e preocupada. Mas o olhar estava afiado com determinação.
– Alex… vamos discutir isso antes que você vá lá e diga o que acha que tem que dizer para esse pessoal.
Ela franziu o cenho.
– Eles precisam saber. Eu tenho que contar.
– Alex. – Ele a segurou pelo braço, com mais firmeza do que pretendia. Ela olhou para os dedos que a prendiam, depois levantou o olhar. – Não posso permitir que
você faça isso.
Ela se desvencilhou e, por um segundo, ele considerou colocá-la em transe para mantê-la afastada da aglomeração logo adiante. Com um mínimo esforço mental e um resvalar
de sua palma na testa dela, ele poderia colocá-la num estado mais maleável de semiconsciência.
Poderia ganhar um tempo precioso. Impedi-la de colocar em risco sua missão para a Ordem ao alertar seus concidadãos da existência de vampiros vivendo entre eles,
à espreita na escuridão.
E ela o odiaria ainda mais – e com todo o direito – por continuar a manipulá-la.
Ela recuou um passo, as sobrancelhas ainda unidas mostrando sua confusão.
– O que deu em você? Eu tenho que ir.
Ele não a impediu quando ela girou e seguiu trotando na direção da pequena clínica da cidade. Com uma imprecação semicerrada, Kade foi atrás dela. Alcançou-a num
instante, depois abriu caminho ao seu lado entre as pessoas agrupadas que conversavam ansiosas.
– … terrível que algo assim tenha acontecido novamente – uma mulher de cabelos brancos murmurou para a pessoa ao seu lado.
– … ele perdeu tanto sangue – outra pessoa observou. – Ficaram dilacerados, foi o que ouvi. Não sobrou nada muito intacto em nenhum dos dois.
– Que coisa horrível – disse outra voz na multidão, carregada de pânico. – Primeiro os Toms, agora Big Dave e Lanny. Quero saber o que o oficial Tucker planeja fazer
a respeito!
Kade caminhou ao lado de Alex enquanto ela marchava na direção de Zach, que estava próximo à entrada da clínica, com o celular pressionado ao ouvido. Ele deu a entender
que notara sua aproximação com um aceno de cabeça, continuando a gritar ordens para alguém do outro lado da linha.
– Zach – disse ela –, preciso falar com você…
– Estou ocupado – ele ralhou.
– Mas, Zach…
– Agora não, mas que merda! Tenho um homem morto e outro sangrando ali dentro e toda a maldita cidade fica me atormentando!
Kade conseguiu conter o grunhido protetor que se formou na garganta ante a explosão do humano. Sua raiva escalou perigosamente, os músculos ficaram tensos e prontos
para uma briga para a qual ele percebeu estar mais do que pronto para começar. No entanto, sutilmente segurou Alex pelo braço e se colocou entre ela e o outro macho.
– Venha – ele lhe disse, guiando-a para longe do policial e também da sua fúria. – Vamos para outro lugar até as coisas se assentarem.
– Não – ela se opôs. – Não posso ir. Tenho que ver Big Dave. Preciso ter certeza…
Ela se soltou e subiu os degraus de concreto às pressas, sendo seguida de perto por Kade. O lugar estava muito silencioso, somente o zumbido das luzes fosforescentes
no teto, vindo da recepção deserta e seguindo por todo o corredor em direção às salas de exames. Vendo a aparência dispersa da clínica e a sua falta de equipamentos,
ela não lhe parecia pronta para tratar de algo muito maior do que um machucado ou uma aplicação de vacinas.
Alex caminhou pelo corredor com passos firmes e rápidos.
– Onde está Fran Littlejohn? Ela nunca deixa ficar tão frio aqui dentro – murmurou, mais ou menos na mesma hora em que Kade atentava para a temperatura.
Um frio ártico soprava pelo corredor vindo de uma das salas do fundo. A única com a porta fechada.
Alex pôs a mão na maçaneta. Ela não cedeu.
– Que estranho. Está trancada.
Os instintos de guerreiro de Kade se acenderam.
– Para trás.
Ele já se colocava diante dela, movendo-se com uma rapidez que os olhos dela não conseguiram acompanhar. Segurou a maçaneta e a girou com força. A tranca se abriu,
os mecanismos se desintegraram como pó num segundo.
Kade abriu a porta e se viu fitando os olhos frios de um Servo Humano.
– Skeeter? – A voz de Alex soou aguda de surpresa e carregada de suspeitas. – Que diabos está fazendo aqui?
O interesse do Servo estava bem claro para Kade. No chão ao lado da maca de Big Dave jazia uma mulher grande, de meia-idade, sem dúvida a funcionária do posto de
saúde. Estava inconsciente, mas ainda respirando, o que era melhor do que se podia dizer do seu paciente no leito.
– Fran! – Alex exclamou, apressando-se para junto da mulher, que não reagiu.
O foco de Kade era outro. O cômodo fedia com o cheiro sobrepujante de sangue humano. Se estivesse fresco, a reação física de Kade seria impossível de esconder, mas
o cheiro era de sangue envelhecido, as células já não viviam. Assim como Big Dave, que, deitado na maca, estava praticamente irreconhecível devido à gravidade dos
ferimentos. Kade só precisou aspirar uma vez o cheiro da hemoglobina coagulada para saber que o homem havia morrido há vários minutos.
– Meu Mestre ficou aborrecido ao saber do ataque de hoje – disse o Servo, com o rosto pálido e inexpressivo. Atrás dele havia uma janela aberta, obviamente sua via
de entrada. Na mão, ele trazia um par de tesouras cirúrgicas que tinham sido usadas para acelerar os efeitos dos ferimentos letais de Big Dave.
– Kade… do que ele está falando?
Skeeter sorriu para Alex, um sorriso estranho.
– Meu Mestre também não ficou nada satisfeito ao ouvir a seu respeito. Testemunhas costumam ser um problema, entende?
– Ai, meu Deus – Alex murmurou. – Skeeter, o que você está dizendo? O que você fez?!
– Filho da puta – Kade sibilou, lançando-se sobre o Servo. Derrubou Skeeter num ataque de esmagar os ossos. – Quem criou você? Responda!
Mas o escravo de sangue só o encarou e riu, apesar dos golpes que Kade desferia nele.
– Quem é o filho da puta do seu Mestre? – bateu novamente em Skeeter. E mais uma vez. – Fale, seu merdinha.
As respostas não lhe foram dadas. Uma parte irracional sua se prendeu ao nome de Seth, mas aquilo era impossível. Ainda que Kade e seu irmão gêmeo fossem da Raça,
a linhagem deles não era antiga o bastante ou pura o suficiente para qualquer um deles criar um Servo Humano. Somente as gerações mais antigas da raça vampírica
tinham o poder de sugar um humano até quase a morte, depois assumir o comando da sua mente.
– Quais são as suas ordens? – Socou o rosto sem alma e sorridente do Servo. – O que contou ao seu Mestre a respeito de Alex?
Atrás dele, a voz dela penetrou a violência que o acometia.
– Kade… por favor, pare. Você está me assustando. Pare com isso e deixe-o ir.
Mas ele não podia parar. Não poderia libertar o humano que um dia fora Skeeter Arnold, não mais. Não sabendo o que ele era agora. Não sabendo o que ele poderia fazer
com Alex se fosse libertado para obedecer às ordens do seu Mestre novamente.
– Kade, por favor…
Com um rugido gutural, ele segurou o pescoço do Servo nas mãos e girou com força. Houve um estalido de ossos e tendões se partindo, depois um baque quando ele deixou
o fardo inerte cair no chão.
Ouviu o arfar de Alex às suas costas. Ele pensou que ela fosse gritar, mas ela ficou completamente calada. Quando Kade se virou para ela, não foi difícil ver a confusão
– e o choque – nos olhos castanhos arregalados.
– Lamento que tenha visto isso – disse ele, baixinho. – Não havia como evitar.
– Você… o matou. Simplesmente o matou… com as próprias mãos.
– Ele já não estava mais vivo, Alex. Não passava de uma concha. Já não era mais humano. – Kade franziu o cenho, percebendo como aquilo devia ter soado para ela,
vendo seu olhar confuso. Lentamente ele se levantou, e ela recuou um passo, para longe do seu alcance.
– Não me toque.
– Ah, merda – ele murmurou, passando os dedos pela cabeça. Ela passara por muita violência, mais do que o seu quinhão; a última coisa de que ela precisava era participar
de mais por causa do seu envolvimento com ele. – Odeio o fato de você estar aqui agora, testemunhando isso. Mas eu posso explicar…
– Não. – Ela balançou a cabeça com vigor. – Não, tenho que procurar Zach. Tenho que buscar ajuda para Big Dave e tenho que…
– Alex. – Kade a segurou pelos braços de leve, mas sem permitir que ela se soltasse. – Não há nada que possa ser feito por nenhum desses homens agora. Envolver Zach
Tucker ou qualquer outra pessoa nisso só tornará a situação ainda mais perigosa – não só para eles, mas para você. Não posso correr esse risco.
Ela o encarou, os olhos perscrutando-o.
No silêncio que pareceu permear o ar, a funcionária da clínica que Skeeter nocauteara começava a recobrar a consciência. A mulher gemeu, murmurando algo incompreensível.
– Fran – disse Alex, virando-se para ajudar a outra mulher.
Kade bloqueou o seu caminho.
– Ela vai ficar bem.
Com Alex observando-o atentamente, ele foi para junto da mulher e pousou a mão sobre a testa dela com gentileza.
– Durma, Fran. Quando você acordar, não se lembrará de nada disso.
– O que está fazendo com ela? – Alex exigiu saber, a voz se elevando enquanto a funcionária relaxava ao toque dele.
– Será mais fácil para ela se ela se esquecer de que Skeeter esteve aqui – disse ele, certificando-se de que a mente dela apagara qualquer lembrança do ataque de
Skeeter e da presença dele e de Alex ali. – Também será mais seguro para ela assim.
– Do que está falando?
Kade virou a cabeça para encará-la.
– Há mais sobre os seus monstros do que você imagina, Alex. Muito mais.
Ela o encarou.
– O que está dizendo, Kade?
– Antes, quando estávamos no chalé, você disse que confiava em mim, certo?
Ela engoliu em seco e concordou sem dizer nada.
– Então, confie em mim, Alex. Ah, caramba… Não confie em ninguém mais a não ser em mim. – Relanceou para o corpo de Skeeter – o cadáver do Servo Humano que agora
ele teria que desovar em algum lugar, e rápido. – Preciso que volte lá para fora. Não pode mencionar nada a ninguém a respeito de Big Dave e de Skeeter ou do que
aconteceu aqui. Não conte a ninguém o que viu aqui, Alex. Preciso que saia, volte para casa e espere que eu a procure. Prometa.
– Mas ele… – a voz se partiu ao gesticular na direção do corpo alquebrado no chão.
– Cuidarei de tudo, Alex. Só preciso que me diga que confia em mim. Que acredita quando eu lhe digo que não há motivos para você ter medo. Não de mim. – Esticou
a mão para tocar no rosto frio e ficou aliviado quando ela não se retraiu ou se afastou. Estava pedindo muito dela – muito mais do que tinha direito. – Vá para casa
e espere por mim, Alex. Vou para lá assim que puder.
Ela piscou algumas vezes, depois retrocedeu alguns passos. Seus olhos estavam inexpressivos ao se aproximar da porta, e por um instante ele se perguntou se o medo
seria demais para ela agora.
– Está tudo bem – disse ele. – Eu também confio em você, Alex.
Ele se virou e ouviu quando ela se foi, deixando-o ali para se livrar daquela confusão sozinho.
CONTINUA
Capítulo 11
Era estranho estar de volta aos seus velhos aposentos no Refúgio do pai, como se ele tivesse de algum modo entrado num lar dos sonhos, distante e conservado na memória,
que já não parecia mais ser adequado a ele. No entanto, fiel à sua palavra, a mãe de Kade se certificou de que nada estivesse fora do lugar desde que ele partira
um ano antes. Depois da longa noite que teve em Harmony, ele conseguia apreciar o estofamento confortável de sua antiga poltrona reclinável de couro, perfeitamente
localizada diante da imensa lareira de pedras do rio, que crepitava com achas de madeira recém-dispostas.
Kade se recostou na poltrona e riu ao telefone enquanto Brock o deixava a par de tudo o que tinha perdido em Boston nas duas últimas noites.
– Estou falando, cara, se a gente não se cuidar, estas fêmeas daqui vão arrasar com a gente. O jeito com que estão cuidando das missões durante o dia está começando
a acabar com a nossa imagem.
Desde que ele ligara para o Q.G. da Ordem há alguns minutos, Brock o vinha presenteando com histórias sobre as Companheiras de Raça dos outros guerreiros e dos esforços
delas em ajudar no que, até pouco tempo, fora uma espécie de clube só de garotos. Agora as missões da Ordem se tornaram operações em que todos colocavam as mãos
– exclusivamente com o intuito de impedir que o maníaco da Raça ávido pelo poder chamado Dragos desencadeasse seu tipo pessoal de inferno tanto para a espécie humana
como para a Raça deles.
Os recursos de Dragos estavam de acordo com suas finanças e, ao que parecia, eram tão sombrios quanto seus planos. Seu ato mais hediondo fora a captura e o aprisionamento
de um sem-número de Companheiras de Raça ao longo das últimas décadas, usando-as para criar um exército de assassinos selvagens. Tendo o quartel-general de Dragos
sido atacado pela Ordem algumas semanas antes, suas operações foram interrompidas – desmontadas e desviadas, conforme as suspeitas da Ordem.
Encontrar Companheiras de Raça em cativeiro antes que ele pudesse causar mais mal era o objetivo primário da Ordem no momento. Visto que a rapidez na ação podia
representar a diferença entre a vida e a morte, Lucan concordara em utilizar toda arma do arsenal da Ordem, que incluía as fêmeas muito especiais e singularmente
dotadas que aceitaram alguns dos guerreiros como companheiros.
Havia a parceira de Rio, Dylan, que possuía a habilidade de ver os espíritos das outras Companheiras de Raça mortas e, quando tinha sorte, obter informações críticas
delas. Elise, unida a Tegan, possuía o talento de ouvir as intenções humanas sombrias e corruptas. Ela acompanhava Dylan em abrigos, lares e albergues, e sua habilidade
a ajudava a acessar as intenções das pessoas que conheciam ao longo do caminho.
A companheira de Gideon, Savannah, usava sua habilidade tátil para ler a história de um objeto, na esperança de encontrar elos para algumas das desaparecidas. A
de Nikolai, Renata, com seu poder de explodir a mente mesmo do mais forte dos vampiros, transformou-se numa aliada formidável em qualquer missão, fornecendo serviços
de guarda-costas para as outras Companheiras de Raça em suas missões diurnas.
Mesmo a companheira de Andreas Reichen, Claire, que apenas recentemente se recuperara do seu ordálio nas mãos de Dragos e dos seus associados, aparentemente estava
se envolvendo nos assuntos da Ordem. Utilizando-se do seu dom de andar pelos sonhos, ela vinha tentando fazer contato com algumas das Companheiras de Raça conhecidas
que foram dadas como desaparecidas ao longo dos anos.
– Sabe – acrescentou Brock com secura –, quando Niko me recrutou para esse trabalho no ano passado, eu esperava que fosse apenas uma bela desculpa para poder chutar
uns traseiros Renegados.
Kade sorriu, lembrando-se das primeiras patrulhas pelas ruas de Boston, que costumavam envolver apanhar os ferozes viciados em sangue da cidade e explodi-los.
– Isso o faz sentir saudades da simplicidade dos primeiros meses no trabalho, não é?
Brock grunhiu em concordância. Depois perguntou:
– Falando em Renegados, como estão as coisas aí nessa geladeira? Já faz dois dias. Ainda não cuidou do assunto?
– Estou seguindo algumas pistas, mas nada de concreto até agora. Provavelmente vou ficar aqui mais alguns dias, talvez uma semana.
Brock exalou uma imprecação que revelou a Kade o que ele achava dessa perspectiva.
– Antes você do que eu, cara. Antes você do que eu… – Houve uma pausa antes de ele perguntar: – Já conseguiu encontrar sua família?
– Bem… – Kade disse, inclinando a cabeça para trás para fitar a viga de madeira do teto. – A minha chegada em casa foi mais ou menos como antecipei.
– Tão bom assim, é?
– Digamos que me sinto mais acolhido quando saio na escuridão de vinte graus abaixo de zero.
– Dureza – disse Brock. – Lamento por isso, cara. De verdade.
Kade assentiu.
– Deixa pra lá. Não preciso falar sobre a minha recepção calorosa em casa. Eu só queria ligar para passar uma informação que Gideon pode achar interessante.
– Ok. Manda ver.
– Encontrei o cretino que postou o vídeo sobre o ataque aos humanos. Seu nome é Skeeter Arnold, um drogado local, provavelmente um traficante café com leite. Eu
o vi sair de um bar e entrar numa Hummer zerinho com motorista. Foi levado a algum tipo de escritório de uma mineradora na floresta. O nome no portão era Companhia
de Mineração Coldstream. Peça a Gideon que dê uma olhada quando tiver tempo. Estou curioso para saber que tipo de negócios esse perdedor tem com eles.
– Pode deixar – disse Brock. – Cuide-se. Não congele nada de que possa precisar depois.
Kade riu, apesar da inquietação que sentia só de pensar naquela missão.
– Entrarei em contato – disse ao terminar a ligação.
Assim que deixou o telefone na mesinha ao lado, uma batida forte soou do lado de fora da porta do chalé.
– Está aberta – disse, esperando ver o pai. Preparou-se para a desaprovação que se seguiria. – Pode entrar.
Mas foi Maksim quem entrou, provocando um alívio em Kade que ele mal conseguiu esconder. Levantou-se sorrindo e gesticulou para que o tio se juntasse a ele diante
da lareira.
– Não pensei que você fosse voltar – comentou Max. – Pelo menos não tão cedo. Ouvi que as coisas não correram bem entre você e meu irmão no outro dia. Bem que eu
gostaria que ele não fosse tão duro com você.
Kade deu de ombros.
– Nunca nos entendemos bem. Eu não tinha esperanças de que começássemos agora.
– Agora que você é um dos guerreiros da Ordem – disse Max, com os olhos cintilando numa conspiração ávida, e a voz grave com uma pontada de franca admiração. – Estou
orgulhoso de você, meu sobrinho. Orgulhoso do trabalho que vem fazendo. Há honra nele, assim como sempre houve em você.
Kade quis descartar o elogio como se fosse algo desnecessário, mas ouvi-lo – especialmente vindo de Max, que, apesar de ser algumas centenas de anos mais velho que
ele, sempre lhe pareceu mais com um irmão – fez com que se sentisse bem demais para fingir que não importava.
– Obrigado, Max. Isso significa muito para mim, vindo de você.
– Não há por que me agradecer. Estou dizendo a verdade. – Fitou Kade longamente, depois se inclinou para a frente, os cotovelos plantados nos joelhos afastados.
– Ficou fora por um ano. Deve estar fazendo coisas importantes para Lucan e para a Ordem.
Kade sorriu, percebendo as suas intenções. Como ele, Max ansiava por aventuras. Ao contrário dele, Max se comprometeu a servir como segundo homem para o pai de Kade,
o líder do Refúgio Secreto em Fairbanks. A lealdade de Max o acorrentara àquela prisão de quatro mil hectares, e ainda que ele jamais se esquivasse das suas obrigações
ou da sua promessa ao irmão duro e intransigente, Max apreciava os conceitos de risco e recompensa, de coragem e honra, tanto quanto Kade.
Por causa disso, e porque Kade entendia que a lealdade de Max se estendia a ele também, sabia que lhe confiar alguns detalhes das suas experiências na Ordem e da
missão atual não teria problema.
– Ouvi dizer que houve uma revolta na Agência lá no leste há alguns meses – comentou Max, observando Kade com curiosidade, à espera que ele elaborasse a questão.
– Houve, sim – ele admitiu, lembrando-se de uma das suas primeiras missões e do começo dos problemas da Ordem com o louco chamado Dragos. – O nosso departamento
de informações descobriu um diretor de alto escalão da Agência que não era o que aparentava ser. Esse cara vinha trabalhando com um nome falso e fomentando uma rebelião
secreta há várias décadas – mais até. Ainda estamos tentando determinar até onde chega essa corrupção, mas não tem sido fácil. Toda vez que nos aproximamos do bastardo,
ele se esconde ainda mais.
– E aí vocês o perseguem ainda mais – Max disse, falando como um dos guerreiros de Boston. – Vocês têm que continuar atingindo-o, cercando-o por todos os lados,
até ele ficar exausto demais para correr e não ter alternativa a não ser ficar e lutar. E então vocês o destruirão de uma vez por todas.
Kade assentiu com gravidade, percebendo a sabedoria do conselho de Max e desejando que a perseguição a Dragos fosse tão simples e direta assim.
O que Max não sabia – o que nem ele, nem qualquer outra pessoa, tinha permissão de saber – era que Dragos era apenas a ponta de um iceberg bem traiçoeiro. Dragos
tinha uma arma secreta, uma que ele detinha há séculos. Mais ou menos na mesma época em que Kade se unira à Ordem, eles descobriram a existência de uma criatura
que se pensava estar morta há muito tempo. Um Antigo. Um dos extraterrestres sedentos de sangue que deram vida à Raça de vampiros na Terra há milênios.
Dragos era neto daquela criatura e vinha formando seu exército de vampiros assassinos, incontroláveis e implacáveis, gerados a partir dele por mais tempo do que
qualquer pessoa gostaria de conceber.
Se essa novidade se espalhasse pelas comunidades da Raça nos Estados Unidos e no exterior, o pânico se propagaria.
Caso vazasse para a população humana que não só havia vampiros entre eles, mas que um megalomaníaco dentre eles pretendia assumir o poder e escravizar a todos?
Armagedom.
Kade teve que se sacudir mentalmente para se livrar desse cenário de pesadelos.
– Enquanto o restante da Ordem está fazendo exatamente o que você disse, eu acabei escolhendo o palitinho menor e vim parar no Alasca. Estou investigando um ataque
a humanos na floresta – uma família inteira dizimada, em apenas uma noite.
Max franziu o cenho.
– Renegados?
– É o nosso palpite. – E também a esperança de Kade, embora cada minuto daquela missão o levasse cada vez mais longe de um resultado favorável. – Não ficou sabendo
de nenhum problema nos Refúgios, ficou? Algum boato de alguém com propensões para a Sede de Sangue?
Max meneou a cabeça lentamente.
– Nada parecido. Houve um incidente no Refúgio em Anchorage uns nove meses atrás. Algum garoto idiota quase sangrou um humano até a morte numa festa, mas esse foi
o único problema na região nos últimos tempos.
Essa novidade por certo não fez Kade se sentir melhor. Porque se não havia Renegados à solta, então só restava um lugar sensato para se colocar a culpa.
– Fico imaginando se Seth não ouviu nada – murmurou, tentando esconder o medo e a fúria da voz. – Eu detestaria não vê-lo enquanto estou aqui.
– Ele também detestaria isso – Max disse, e Kade pôde ver que ele falava sério.
Ele não sabia a respeito de Seth. Como todos os outros, ele não fazia ideia.
Somente Kade sabia.
E o fardo desse conhecimento pesava cada vez mais.
Max se recostou na poltrona e pigarreou com suavidade.
– Há algo que eu gostaria de lhe contar, Kade. Algo que você precisa entender… A respeito da sua família, do seu pai.
– Continue – disse Kade, sem saber direito se gostaria de ouvir o quanto o pai adorava Seth e desejava que Kade fosse mais parecido com ele.
– Meu irmão, o seu pai, não tem facilidade para demonstrar afeição. Especialmente com você.
– Engraçado, eu não tinha percebido isso. – Kade sorriu com um humor que não sentia.
– A nossa família tem um segredo sombrio – Max disse, e Kade sentiu o corpo ficar entorpecido. – Kir e eu tínhamos um irmão mais novo. Estou certo de que você nunca
soube disso. Poucas pessoas sabem. Seu nome era Grigori. Kir o amava muito. Todos nós o amávamos. Grigori era um rapaz inteligente e charmoso. Mas também tinha um
lado selvagem. Mesmo em idade tenra, ele se revelava contra a autoridade e andava no fio da navalha em todas as situações sem medo algum.
Kade se viu sorrindo, pensando que talvez também gostaria de Grigori.
– Apesar dos seus defeitos, Kir o adorava. Mas, alguns anos mais tarde, quando ficamos sabendo que Grigori se tornara Renegado, que em sua Sede de Sangue ele tinha
matado, Kir o excluiu completamente. Simples assim – Max disse, estalando os dedos. – Nunca mais vimos Grigori. Desde então, Kir sequer o mencionou novamente. Dali
por diante, Kir se tornou outro homem.
Kade ouviu atentamente, relutante em admitir a pontada de empatia que sentia pelo pai e pela perda que ele sofrera.
– Talvez seu pai acredite que não suportaria esse tipo de dor novamente – Max sugeriu. – Talvez, às vezes, ele veja muito de Grigori em você.
E, pelo visto, resolvera excluir Kade antes, ao mesmo tempo em que depositava todas as esperanças paternais em Seth.
– Não tem importância – Kade murmurou, acreditando apenas parcialmente nisso. Estava envolvido demais com situações de vida e morte para se preocupar com a baixa
expectativa do pai para com ele. – Agradeço pela informação, Max. E pela sua opinião. Também agradeço por você ter vindo.
Max, perceptivo como sempre, captou a sutil sugestão e se levantou.
– Você tem coisas para fazer. Não devo prendê-lo.
Quando esticou a mão, Kade, em vez de aceitá-la, o puxou para um abraço.
– Você é um bom homem, Max. Um bom amigo. Obrigado.
– Qualquer coisa que você precisar, Kade, só precisa me pedir.
Foram juntos até a porta, e Kade a abriu no momento em que duas mulheres, embrulhadas em pesados casacos de inverno e carregando uma manta cada uma, passavam diante
do seu chalé. Uma delas levantou o olhar e estava prestes a desviá-lo quando voltou a olhar novamente.
– Ah… Kade? – perguntou ela, seu belo rosto se iluminando num sorriso. – Kade! Ouvi que você tinha voltado para o Alasca, mas não sabia que estava aqui.
– Olá, Patrice – disse ele, lançando um sorriso educado para a Companheira de Raça que seu irmão gêmeo mantinha à sua espera debaixo das asas nos últimos anos.
Ao seu lado, Max ficara absolutamente imóvel. Kade sentia o calor emanando do outro macho, enquanto Patrice continuava conversando com animação, gentil e bela, com
o cabelo ruivo brilhante e os vívidos olhos verde-escuros iluminados pela luz da lareira que vinha de dentro do chalé.
– Ruby e eu estávamos indo ver a aurora boreal de uma das rochas. Vocês gostariam de nos acompanhar?
Kade e Max recusaram ao mesmo tempo, mas foi a recusa de Max que diminuiu o sorriso de Patrice, embora ela tivesse tentado esconder isso com a ponta da manta que
carregava. Enquanto as Companheiras de Raça se afastavam, Kade notou que o macho mais velho não conseguia deixar de olhar para elas.
Ou melhor, para uma delas.
– Patrice? – Kade perguntou, surpreso pelo desejo muito bem contido que percebera nos dois.
Maksim desviou o olhar para ele.
– Ela se comprometeu com outro. Eu jamais interferiria nisso, não importando o quanto Seth demore em finalmente aceitar o presente precioso que recebeu. O bastardinho
arrogante e ignorante…
Kade viu o tio sair pela varanda e continuar pelo terreno coberto de neve até seus próprios aposentos.
Não sabia se ria ante a virulência da declaração de Max ou se amaldiçoava Seth por estar potencialmente arruinando mais duas vidas.
Capítulo 12
Alex despejou uma chaleira de água fervente na cafeteira antiga sobre o fogão. Conforme a cozinha se enchia com o aroma do café recém-coado pela segunda vez naquele
dia, ela se virou para a mesinha onde Jenna e ela estavam tomando café da manhã. Ou melhor, onde Alex estava tomando café da manhã. Jenna apenas beliscara as batatas
fritas caseiras e deixara os ovos mexidos praticamente intocados.
– Deus do céu, eu odeio o inverno – murmurou ela, recostando-se na cadeira de madeira que rangeu, desviando um olhar pensativo para a escuridão de fora às oito horas
da manhã. – Em determinados dias, parece que ele nunca vai acabar.
– Vai, sim – disse Alex, sentando-se diante da amiga e observando o olhar atormentado de Jenna se aprofundar.
Claro que não era nem a escuridão nem o frio que a entristeciam. Alex não tinha de olhar para o calendário na parede ao lado do telefone para compreender a crescente
tristeza de Jenna.
– Ei – disse Alex, forçando um tom alegre na voz. – Se o tempo continuar claro no final de semana, pensei que poderíamos voar até Anchorage. Que tal fazer compras
ou ir ao cinema? Topa um fim de semana só de garotas na cidade?
Jenna voltou a fitá-la e balançou a cabeça de leve.
– Acho que não.
– Ah, que é isso? Vai ser divertido. Sem falar que você está me devendo uma. Acabei o meu melhor café Red Goat com você. Preciso dar um pulo na Kiladi Brothers
para renovar o meu estoque.
Jenna sorriu de modo tristonho.
– Acabou seu amado Red Goat comigo? Uau, você deve estar mesmo preocupada comigo. Acha que estou mal, hein?
– E está? – Alex formulou a pergunta cautelosa, porém direta, que exigia uma resposta igualmente franca. Estendeu a mão por sobre a mesa e segurou a da amiga. Observou-a
com atenção, dando ouvidos aos seus instintos que sempre lhe diziam se estavam lhe contando a verdade ou uma mentira. – Você vai ficar bem desta vez?
Jenna sustentou seu olhar como se estivesse preso a ele e deu um suspiro baixo.
– Eu não sei, Alex. Sinto saudades deles. Eles me davam um motivo para levantar da cama de manhã, entende? Eu me sentia necessária, sentia que minha vida tinha um
propósito maior quando Mitch e Libby faziam parte dela. Não sei se um dia voltarei a sentir isso.
A verdade, então, por mais dolorosa que fosse. Alex recebeu a confissão da amiga com um aperto em sua mão. Ela piscou, libertando Jenna da ligação invisível do seu
olhar inquisidor.
– A sua vida tem um propósito, Jenna. Tem um significado. E você não está sozinha. Para início de conversa, você tem a Zach e a mim.
Jenna deu de ombros.
– Meu irmão e eu temos nos afastado nos últimos tempos e a minha melhor amiga tem falado umas besteiras sobre se mudar daqui.
– Eu falei sem pensar – disse Alex, sentindo uma pontada de culpa tanto pela covardia que a fazia cogitar a ideia de fugir novamente quanto pela meia-verdade que
dava a Jenna agora, na esperança de fazê-la se sentir melhor.
Levantou-se e levou as canecas de café até o fogão.
– A que horas você saiu do Pete’s ontem à noite? – Jenna perguntou enquanto Alex servia café fresco e o trazia de volta até a mesa.
– Saí pouco depois de você. Zach apareceu para me dar uma carona para casa.
Jenna sorveu um gole da sua caneca e a pousou no tampo da mesa.
– É mesmo?
– Foi só uma carona – explicou Alex. – Ele se ofereceu para tomar uma cerveja comigo no Pete’s, mas eu já estava a caminho de casa.
– Bem, conhecendo meu irmão, ele só devia estar querendo uma desculpa para tê-la na caminhonete dele. Ele tem uma queda por você desde que éramos adolescentes, você
sabe disso. Talvez, apesar dessa conversa de ele ser um cara durão, comprometido com o trabalho, ele ainda esteja de olho em você.
Alex não pensava assim. A única noite deles juntos fora prova suficiente para ambos de que o que quer que sentiam um pelo outro, isso jamais voltaria a ultrapassar
os limites da amizade. Ela conhecia Zach há mais de uma década, mas ele lhe parecia mais desconhecido do que Kade, que conhecera apenas um dia atrás.
Por mais incrível que pudesse parecer, apesar da maneira com que Kade mexia com as suas emoções, ela se sentia mais protegida fisicamente com ele do que com Zach,
um oficial condecorado.
Deus do céu. O que isso queria dizer a respeito do seu bom senso, Alex não saberia determinar.
Enquanto refletia tomando um belo gole de café, o telefone da cozinha começou a tocar. Alex se levantou e atendeu a linha comercial de modo automático.
– Entregas e Fretes Maguire.
– Oi.
Aquela única palavra – a voz profunda e agora intimamente familiar – entrou pelos seus ouvidos e desceu por sua espinha numa corrente de pura eletricidade.
– Hum, olá… Kade – respondeu, desejando não soar tão atordoada. E também tinha que parecer que havia perdido o fôlego? – Como conseguiu meu número?
Do outro lado da cozinha, Jenna ergueu as sobrancelhas num indício de surpresa. Alex girou sobre os calcanhares, desejando esconder parte do calor que lhe subia
pelas faces.
– Não existem muitos Maguires em Harmony – disse ele do outro lado da linha. – Nem tantos pilotos. Por isso, com um palpite calculado, telefonei para o único número
que aparecia listado que cobria os dois critérios – um Hank Maguire da Entregas e Fretes Maguire.
– Ah… – A boca de Alex se abriu num sorriso. – E como sabe que ele não é meu marido?
A risada baixa dele soava tão agradável como veludo.
– Você não beija como uma mulher casada…
As entranhas de Alex ficaram moles e aquecidas com esse lembrete, e estava bem difícil não se contorcer ao pensar nos lábios dele sobre os seus e na revisita mental
sensual que tinha feito sozinha no chuveiro na noite anterior.
– Hum, bem… por que telefonou? Você… está ligando a trabalho?
Que Deus a ajudasse, ela quase acrescentou “ou por prazer”, mas teve o bom senso de refrear as palavras antes de se envergonhar ao proferi-las. A última coisa de
que ela precisava era pensar em Kade e em prazer na mesma frase. Ela já tivera uma bela amostra disso. O bastante para saber que traria perigo e complicações; coisas
das quais ela já tinha o suficiente.
– Eu deveria me encontrar com Big Dave e alguns outros caras em Harmony hoje – disse Kade, casualmente lançando o melhor motivo de que ela necessitava para não querer
nada com ele.
– Ah, certo – disse Alex. – A grande caçada aos lobos.
E lá estava ela, permitindo que seus hormônios tresloucados a cegassem para o fato de que ela ainda não conhecia o jogo dele. A raiva surgiu com amargura em sua
garganta.
– Bem, divirta-se. Preciso desligar…
– Espere – disse ele, no momento em que ela estava prestes a colocar o aparelho no gancho. – Eu deveria me encontrar com Big Dave hoje, mas, na verdade, eu tinha
esperanças de conseguir um guia para me levar à casa de Henry Tulak.
– Henry Tulak – Alex repetiu lentamente. – O que você poderia querer no chalé dele?
– Eu só… Eu preciso mesmo saber como aquele homem morreu, Alex. Você pode me levar lá?
Ele parecia sincero e estranhamente resignado. Por isso parecer tão importante para ele, Alex se viu cedendo quando deveria estar afastando-o por completo.
– E quanto a Big Dave?
– Eu me desculpo quando o encontrar novamente – respondeu, parecendo qualquer coisa exceto preocupado quanto a enfrentar o valentão da cidade e os seus amigos. –
O que me diz, Alex?
– Sim, tudo bem. – Maldição, não deveria se sentir tão excitada com a perspectiva de passar um tempo ao lado dele. – O dia vai nascer lá pelo meio-dia, então por
que não se encontra comigo aqui em Harmony às onze? Teremos luz suficiente para viajar e algumas horas para verificar o lugar depois que chegarmos.
Kade resmungou, como se estivesse refletindo a respeito do outro lado da linha.
– Prefiro não esperar pela aurora para seguir para lá, se estiver tudo bem para você.
– Prefere viajar no escuro?
Ela conseguia perceber o sorriso se ampliar nas feições dele quando ele respondeu:
– Não tenho medo de um escurinho se você não tiver. Já estou a caminho, posso encontrá-la na sua casa em uma hora.
Bem, ele era direto, ela tinha que admitir. O homem colocava uma coisa na cabeça e não temia ir atrás dela.
– Daqui a uma hora está bom para você, Alex?
Ela relanceou para o relógio e perguntou se conseguiria tirar o pijama, tomar banho e dar um jeito no rosto e no cabelo nesse meio-tempo.
– Hum, sim, claro… Daqui a uma hora. Até lá.
Quando desligou, Alex sentiu a curiosidade do olhar de Jenna às suas costas.
– Era o Kade?
Ela se virou, com um sorriso bobo.
– É, ele mesmo.
Jenna se recostou na cadeira e cruzou os braços diante do peito, parecendo uma verdadeira policial, mesmo de blusa de moletom e jeans gastos, com os cabelos soltos
ao redor dos ombros.
– O mesmo Kade que estava no Pete’s ontem à noite, e o mesmo Kade que você viu na propriedade dos Toms ontem e com quem você disse que não quer ter nada? Esse Kade?
– O próprio – respondeu Alex. – E antes que você diga qualquer outra coisa, só vou levá-lo para o chalé do Tulak para que ele dê uma olhada.
– Ok.
– São só negócios – disse Alex, pegando os pratos do desjejum com pressa e colocando-os na pia. Pegou uma fatia de pão embebida em ovos e a jogou na direção da boca
esperançosa de Luna. – Na minha opinião, se eu conseguir afastar uma arma sequer da mira dos lobos, então estou mais do que contente em distrair Kade com um passeiozinho
no campo.
Quando se aproximou da mesa para limpá-la, Jenna a encarou.
Não era preciso ter o detector de mentiras de Alex, nem o olhar treinado de policial de Jenna, para entender que, sem sombra de dúvida, Alex estava entusiasmada.
Revirada de ponta-cabeça por um homem que conhecera há dois dias. Tentada a permitir que esse homem, que era de uma centena de tons de cinza, entrasse em seu mundo
certinho onde tudo era preto ou branco.
– Tome cuidado, Alex – disse Jenna. – Sou sua amiga e te amo, não quero que você se machuque.
– Eu sei – ela disse. – E não vou sair magoada.
Jenna riu baixinho e balançou a mão à sua frente, dispensando-a.
– Bem, por que está parada aí quando deveria estar se aprontando para esse não encontro? Vá em frente. Deixe que eu e Luna cuidemos da limpeza do café da manhã.
Alex sorriu.
– Obrigada, Jenna.
– Mas quando você voltar desse não encontro – Jenna lhe disse, enquanto ela avançava pelo corredor –, vou querer o nome completo dele e o número do seguro social.
E também seu histórico médico completo! Sabe que não estou brincando!
Alex sabia muito bem disso, mas estava rindo mesmo assim, levada pelas muito bem-vindas, talvez porque incomuns, sensações de excitação e esperança.
Capítulo 13
Kade não tinha percebido o quanto estava ansioso para ver Alex até enxergar sua silhueta atrás do vidro jateado da porta da casa dela quando ela foi abri-la. Alta
e magra, vestida num par de jeans escuros e uma malha verde-limão com uma camiseta de gola alta por baixo, o cabelo loiro preso em duas tranças que derramavam-se
em seus ombros, em pleno inverno, ela parecia fresca como a primavera. Ela lhe sorriu através dos cristais de gelo pensos nas janelas, o rosto naturalmente belo
enaltecido por um pouco de rímel e o rubor repentino que se fez em suas faces.
– Olá – disse ela, ao abrir a porta para que ele entrasse. – Você me encontrou.
Ele inclinou a cabeça uma vez num aceno.
– Eu te encontrei.
– Deixe-me adivinhar – disse ela, com o sorriso ainda estampado no rosto. – Você andou até aqui assim como fez no outro dia para ir até a floresta?
Ele lançou um sorriso malicioso e indicou a motoneve estacionada no jardim.
– Resolvi dirigir hoje.
– Sim, claro que sim. – Ela segurou a porta aberta para ele. – Entre. Só preciso calçar as botas e pegar o casaco, e podemos ir.
Quando ela desapareceu virando na sala de estar, Kade entrou na aconchegante cozinha e passou o olhar pela mobília simples e pela atmosfera convidativa e casual.
Ele sentia o perfume de Alex ali, sentia a presença dela nas linhas retas e regulares do sofá e das cadeiras, na madeira rústica das mesas e nos tons verdes, marrons
e cremes do tapete entrelaçado debaixo dos pés.
Ela voltou para a sala com um par de botas Sorel e uma parca pesada cor cáqui.
– Pronta, se você estiver. Deixe sua moto aqui. Vamos para os fundos pegar a minha para irmos até a pista.
Kade parou alguns passos atrás dela.
– Pista?
– É – afirmou ela. – Não há previsão de neve para os próximos dias, então para que perder tempo indo de motoneve quando podemos voar até lá?
– Eu não sabia que iríamos voando. – Ele sentiu uma pontada momentânea de incerteza, algo novo para ele. – Ainda está escuro.
– O meu avião não sabe a diferença entre dia ou noite – disse ela, com um brilho dançando nos olhos castanhos. – Vamos. Isto é, a menos que fique pouco à vontade
com um pouco de escuridão, Kade.
Ela caçoava dele, e ele adorou isso. Sorriu, pronto para enfrentar qualquer desafio que ela lhe lançasse.
– Mostre o caminho.
Com Alex encarregada e Kade muito satisfeito em ir na garupa, nem que fosse apenas pela desculpa de passar os braços ao seu redor, aceleraram pelas vias congeladas
da cidade até onde o avião monomotor estava estacionado na singela pista de pouso de Harmony. Além do hangar onde estavam temporariamente estocados os corpos da
família Toms, o aeroporto consistia de uma pista curta de neve compactada e luzes de orientação que mal se enxergava por cima dos montes de neve mais altos.
O Havilland Beaver de Alex tinha um vizinho por companhia, um pequeno Super Cub, equipado com pneus largos em vez dos esquis do veículo de Alex. Uma rajada de vento
atravessou a pista, erguendo uma nuvem de neve que subia como folhas ao vento.
– Lugar agitado, hein?
– Melhor do que nada. – Ela estacionou, e os dois desceram da motoneve. – Vá em frente e entre. Preciso checar o avião antes de decolarmos.
Kade poderia ter se recusado a acatar ordens de uma fêmea, caso não estivesse tão intrigado pela confiança de Alex naquilo que ela realizava. Kade entrou pela cabina
destrancada e fechou a porta. Mesmo o Beaver parecendo um burro de carga visto pelo interior, Kade se assustou com a sensação claustrofóbica da sua cabina. Tendo
mais de um e noventa de altura e pesando mais de cento e dez quilos sem armas e roupas, ele era considerado um macho grande segundo qualquer padrão, mas, ao se sentar
no banco do passageiro do monomotor, os painéis curvados e as janelas estreitas faziam aquilo se parecer com uma gaiola.
Alex apareceu pelo lado do piloto e se sentou no banco atrás do manche.
– Tudo pronto – anunciou com alegria. – Aperte os cintos, e estaremos voando em seguida.
No interior remoto do Alasca, não era de se admirar que não houvesse controle de tráfego aéreo, nenhuma torre de rádio para liberar a decolagem. Dependia somente
de Alex levantar voo e seguir na direção correta. Um minuto mais tarde, subiram na escuridão, cada vez mais alto no céu matutino desprovido de luzes a não ser pelo
manto distante de estrelas reluzentes.
– Bom trabalho – comentou Kade, lançando um olhar para Alex enquanto ela equilibrava a subida e os desviava de um trecho de solavancos provocados pelos ventos. –
Imagino que você já fez isso algumas vezes.
Ela sorriu de leve.
– Voo desde que tinha doze anos de idade. Mas tive que esperar até os dezoito para fazer o curso oficial e tirar o brevê.
– Você gosta de estar aqui em cima, perto das estrelas e das nuvens?
– Adoro – disse ela, concordando com um aceno pensativo, enquanto verificava alguns controles no painel. Depois voltou o olhar para a vastidão diante deles. – Meu
pai me ensinou a voar. Quando eu era menina, ele me dizia que o céu é um lugar mágico. Às vezes, quando eu ficava com medo ou acordava assustada com um pesadelo,
ele me trazia com ele, não importando que horas fossem. Subíamos bem alto no céu, onde nada de ruim podia nos alcançar.
Kade conseguiu detectar a afeição na voz dela quando falou do pai, e também percebeu a tristeza pela sua perda.
– Há quanto tempo seu pai morreu?
– Há seis meses… Alzheimer. Há quatro anos ele começou a se esquecer das coisas. Isso piorou bem rápido, e depois de um ano, quando a doença começou a afetar seus
reflexos no avião, ele finalmente me deixou levá-lo ao hospital em Galena. A doença progride de forma diferente nas pessoas, mas com papai, pareceu dominá-lo com
tanta rapidez… – Alex soltou um suspiro pensativo. – Acho que ele entregou os pontos assim que recebeu o diagnóstico. Não sei, talvez já tivesse desistido de viver
muito antes.
– Por que diz isso?
Aquela não fora uma pergunta invasiva, mas ela mordeu o lábio quando ele a fez, um ato reflexo que revelava que ela provavelmente sentia ter lhe contado mais do
que pretendia. Pelo olhar desconfiado e repentino que ela lhe lançou, ele percebeu que ela tentava avaliá-lo de algum modo, tentando decidir se seria seguro confiar
nele.
Quando ela por fim falou, sua voz saiu baixa, o olhar mirando o para-brisa, como se ela não pudesse falar com ele e olhá-lo ao mesmo tempo.
– Meu… hum… meu pai e eu nos mudamos para o Alasca quando eu tinha nove anos. Antes disso morávamos na Flórida, nas Everglades, onde meu pai pilotava um avião para
passeios turísticos sobre os pântanos e Keys.
Kade a avaliou na luz fraca da cabina.
– É um mundo totalmente diferente daqui.
– É. Pode apostar nisso.
Um barulho metálico repentino surgiu do nada no avião, e a cabina reverberou. Kade se segurou no banco, grato ao ver que Alex não entrara em pânico. A sua atenção
estava voltada para os instrumentos do painel, e ela aumentou a velocidade do avião. Os sacolejos e o barulho abrandaram, e o voo voltou a ficar suave.
– Não se preocupe – ela lhe disse, o tom tão sério quanto sua expressão. – Como meu pai costumava dizer, é um fato científico que alguns dos sons mais alarmantes
nos aviões só podem ser escutados à noite. Acho que estamos bem agora.
Kade riu pouco à vontade.
– Acho que vou ter que confiar em você.
Sobrevoaram um pico, depois fizeram uma leve curva, mudando de direção para voltarem a acompanhar o Koyukuk logo abaixo.
– Então, o que aconteceu na Flórida, Alex? – perguntou, voltando ao assunto que não pretendia deixar de lado. Seus instintos lhe diziam que estava perto de descobrir
os segredos que ela escondia, mas ele não estava querendo avançar nas suas investigações naquele momento. Estava, de fato, interessado nela – caramba, se fosse honesto
consigo mesmo, teria que admitir que começava a se preocupar de verdade – e desejava entender o que se passara com ela. Tendo captado a dor em sua voz, desejou poder
ajudá-la da maneira que pudesse. – Alguma coisa aconteceu com a sua família na Flórida?
Ela balançou a cabeça e lhe lançou mais um daqueles olhares perscrutadores.
– Não, não conosco… mas minha mãe e meu irmãozinho…
A voz se partiu, emocionada. Kade sentiu as sobrancelhas se unirem ao fitá-la.
– Como eles morreram, Alex?
Por um momento estonteante, seus olhos se prenderam aos dele, imóveis e carregados de um medo renovado, um pavor frio que começou a se formar em seu âmago. O pequeno
compartimento que partilhavam a mais de dois mil metros acima do solo se estreitou ainda mais, contraído pelo silêncio de Alex ao seu lado.
– Eles foram mortos – disse ela por fim. Palavras que só fizeram a pulsação de Kade acelerar quando ele considerou uma causa possível; uma causa terrível que faria
do seu envolvimento com Alex algo ainda mais impossível do que já era. Mas ela deu de ombros e voltou a olhar para a frente. Inspirou fundo e depois soltou o ar.
– Num acidente. Um motorista embriagado passou por um semáforo vermelho num cruzamento. Bateu no carro da minha mãe. Ela e meu irmão caçula morreram com o impacto.
A carranca de Kade se acentuou enquanto ela recitava os fatos depressa, como se não conseguisse dizê-los com a rapidez desejada. E recitar parecia uma descrição
correta, porque algo na explicação dela parecia ensaiado, muito bem treinado.
– Sinto muito, Alex – disse ele, sem conseguir despregar seu olhar interrogador dela. – Imagino que seja ao menos uma bênção o fato de eles não terem sofrido.
– É – respondeu ela automaticamente. – Pelo menos eles não sofreram.
Voaram por um tempo sem conversarem, observando a paisagem escura debaixo deles se alternando de faixas sem luz de floresta densa e montanhas elevadas, para o azul
elétrico da tundra coberta de neve e dos contrafortes das montanhas. No céu ao longe, Kade viu o brilho esverdeado misterioso das luzes do norte. Ele as indicou
para Alex e, apesar de ter visto a aurora boreal inúmeras vezes desde o seu nascimento há quase cem anos, ele nunca estivera no céu para presenciar as cores fantásticas
dançando no horizonte.
– Incrível, não? – Alex comentou, obviamente à vontade ao navegar num amplo arco para que pudessem ver as luzes por mais tempo.
Kade observava as luzes, mas seus pensamentos ainda estavam em Alex, tentando juntar as peças da ficção em que ela queria fazê-lo acreditar.
– O Alasca não poderia ser mais diferente da Flórida, não?
– É verdade – concordou ela. – Meu pai e eu queríamos recomeçar… Tivemos que fazer isso depois que mamãe e Ricky… – Inspirou fundo, fortalecendo-se antes de dizer
mais do que pretendia. – Depois que eles morreram, meu pai e eu voamos para Miami para comprar uma passagem para algum lugar a fim de recomeçarmos nossas vidas.
Havia um globo em uma das livrarias do terminal. Papai me mostrou onde estávamos e me pediu para escolher um lugar para irmos. Escolhi o Alasca. Quando chegamos
aqui, achamos que Harmony parecia uma cidade amigável na qual poderíamos criar nosso novo lar.
– E foi?
– Sim. – Sua voz soou um tanto saudosa. – Mas agora que ele se foi, está diferente para mim. Andei pensando se não está na hora de dar mais uma olhada no globo,
conhecer outra parte do país por um tempo.
Antes que Kade tivesse a chance de perguntar algo mais, o motor começou a fazer barulho e sacolejar com vingança renovada. Alex acelerou mais uma vez, mas o barulho
e o sacolejo persistiram.
– O que está acontecendo?
– Vou ter que aterrissar agora – disse ela. – Ali está o chalé do Tulak. Vou tentar chegar o mais próximo possível.
– Tudo bem. – Kade olhou pela janelinha para o chão que se aproximava mais rapidamente do que ele gostaria. – Só tente descer devagar. Não estou vendo nenhuma pista
aí embaixo.
Ele não precisava ter se preocupado. Alex baixou a aeronave sacolejante em seu par de esquis num deslize suave, conseguindo se desviar de alguns abetos antigos que
se materializaram do nada na escuridão ao pararem sobre a neve fofa. O chalé estava bem diante deles, mas Alex diminuiu a velocidade do Beaver e fez uma curva suave,
navegando com muita precisão para quem teve que aterrissar tão abruptamente.
– Nossa, essa passou perto – exclamou ele ao pararem de vez na neve.
– Acha mesmo? – A expressão de divertimento de Alex era imensa ao desligar o motor.
Ela desceu, e Kade a seguiu até o motor. Ela o olhou por dentro.
– Droga. Bem, pelo menos isso explica o problema. Alguns parafusos saíram da tampa do motor e caíram.
Kade sabia tanto de tampas de motores quanto de tricô. E ele não tinha problema em desejar que isso prendesse-os na floresta por algumas horas. Ou, melhor ainda,
por algumas noites.
– Então, o que você está me dizendo é que ficaremos presos aqui até alguém vir ajudar?
– Você está olhando para a ajuda – ela lhe disse, lançando-lhe um sorriso enquanto voltava para pegar uma caixa de ferramentas no compartimento de carga do avião.
Parte do motivo pelo qual Kade a levou até aquela localização remota era que queria, de uma vez por todas, chegar à raiz do que ela sabia quanto aos homicídios da
família Toms. Agora, depois das meias-verdades que ela lhe contara a respeito das mortes da mãe e do irmão, ele tinha outro motivo para questioná-la. E ele disse
a si mesmo que, no final das contas, se Alex soubesse de algo sobre a existência da Raça – ainda mais se esse conhecimento estivesse relacionado à perda dos familiares
na Flórida –, então, aliviá-la do fardo dessa lembrança seria um ato de bondade seu.
Aquilo, porém, não dizia respeito somente à missão. Ele tentara se convencer de que era isso, mas a obrigação ficara em segundo plano no instante em que chegara
à casa de Alex. A maneira como a sua pulsação ficava mais rápida ao redor dessa fêmea por certo não fazia parte do plano. Seu coração ainda estava acelerado por
conta da repentina aterrissagem, mas assim que Alex voltou para junto dele, parecendo inteligente e capaz, e tão adorável, ao se aproximar do motor, as batidas do
seu coração passaram a ser uma palpitação.
– Importa-se de segurar essa lanterna para mim? – Ela a acendeu e a entregou a ele, depois tirou uma luva e apanhou alguns parafusos na caixa de ferramentas. – Alguns
desses devem servir até voltarmos para casa.
Kade a observou colocar cada parafuso no buraco, imaginando se os guerreiros em Boston sentiam o mesmo orgulho e prazer ao verem suas fêmeas fazerem aquilo que faziam
de melhor.
Mas o pensamento o irritou assim que entrou em sua mente… Desde quando ele era do tipo que pensava em ter uma companheira, quanto mais aproximar Alexandra Maguire
desse cenário? Na melhor das hipóteses, ela era um obstáculo temporário no cumprimento da sua missão para a Ordem. Na pior, ela representava um risco de segurança
para toda a nação da Raça – alguém que ele devia silenciar o quanto antes.
Mas nada disso importava para seu coração acelerado, nem para os estalidos de atenção que atravessavam todas as suas veias e células enquanto ela concluía seu trabalho
a poucos centímetros de distância. Atrás dela, ao longe, a luz verde da aurora boreal se unira a uma faixa avermelhada. A cor emoldurou Alex quando ela se virou
para olhá-lo, e ele se questionou se já vira algo tão belo quanto o rosto dela com o halo de magia congelada da selva do Alasca. Ela não disse nada, apenas sustentou
seu olhar com a mesma intensidade silenciosa que ele sentia atravessando-o.
Kade apagou a lanterna e a colocou sobre a tampa do motor agora fechado. Tirou as luvas e segurou a mão nua de Alex, aquecendo-lhe os dedos na pressão de suas palmas
quentes. Segurou-a de leve, dando-lhe a oportunidade de se afastar caso não desejasse seu toque. Mas ela não opôs resistência.
Ela entrelaçou os dedos nos dele, fitando-o nos olhos com uma intensidade voraz.
– O que quer de mim, Kade? Por favor, preciso saber. Preciso que me diga.
– Eu achei que sabia – disse ele, mas balançou a cabeça. – Achei que tinha tudo certo na cabeça. Deus, Alex… conhecer você mudou tudo.
Ele soltou uma mão para pousar na curva do maxilar dela, escorregando os dedos entre o capuz da parca e o calor aveludado do seu rosto.
– Não consigo entender você – ela disse, franzindo o cenho ao levantar o olhar para ele. – Eu me sinto desconfortável por não conseguir entendê-lo.
Ele tocou a ponta do nariz dela e lhe lançou um sorriso torto.
– Muito cinza no seu mundo em preto e branco?
A expressão dela permaneceu grave.
– Isso me assusta.
– Não se assuste.
– Você me assusta, Kade. Durante toda a minha vida, fugi das coisas que me assustavam, mas com você… – Ela emitiu um suspiro incerto e lento. – Com você, pareço
incapaz de me afastar.
Ele afagou o rosto dela, passou as pontas dos dedos sobre as rugas formadas na testa enquanto ela o fitava.
– Não há motivo para você ficar assustada quando está comigo – ele lhe disse, com toda a honestidade.
Mas, então, ele inclinou a cabeça e pressionou os lábios sobre os dela, e o beijo que deveria ter representado uma promessa carinhosa inflamou-se em algo mais selvagem
quando Alex o retribuiu tão abertamente, provocando a boca dele com a ponta da língua. Todo o calor que surgira entre eles na noite anterior no estacionamento do
Pete’s foi reavivado naquele instante, só que mais veloz, mais intenso, pelas horas em que Kade a desejara. Ele ardia por aquela fêmea, de uma maneira muito perigosa.
Beijá-la era um risco alto; o desejo já alongara as presas, a visão já se tornara aguçada com a luz âmbar que agora preenchia suas íris.
Seduzi-la ali não fora seu objetivo, não importando a missão da Ordem ou o quanto ele desejasse descobrir os segredos de Alex para satisfazer sua curiosidade pessoal.
Afastou-se, a cabeça baixa, o rosto virado para longe para esconder as mudanças que não poderia permitir que ela visse. Mudanças que a assustariam.
Mudanças que ele não seria capaz de explicar.
– O que foi? – perguntou ela, com a voz rouca devido ao beijo. – Algo errado?
– Não. – Ele meneou a cabeça, ainda escondendo o rosto até conseguir aplacar seu desejo. – Nada errado. Mas está frio demais para ficarmos parados aqui. Você deve
estar congelando.
– Não posso dizer que eu esteja sentindo frio no momento – replicou, fazendo-o sorrir a despeito da guerra que acontecia em seu interior.
– É melhor entrarmos. – Ele não aguardou uma resposta antes de dar a volta no avião. – Só preciso da minha mochila. Vá na frente. Vou logo atrás.
– Está bem. – Ela hesitou por um momento, depois se pôs a caminhar na direção do chalé, as botas esmagando a neve. – Traga lenha, já que está por aí. As pessoas
usam este lugar como abrigo agora, então você deve encontrar um pouco no galpão logo atrás.
Ele esperou até que ela tivesse entrado no chalé antes de tirar a mochila com armamento do avião e seguir para procurar o abrigo de madeira. O ar ártico o estapeou
conforme ele avançava pela neve imaculada. Ficou grato pelo castigo do tempo frio. Necessitava da lucidez do vento gélido.
E ainda assim ardia internamente por Alex.
Desejava-a demais, e seria preciso que uma geleira o engolisse para aplacar parte do calor que ela acendia nele.
Capítulo 14
Alex entrou no chalé de um único cômodo e fechou a porta atrás de si para lacrar o frio, com esperanças de conseguir um instante de privacidade para poder lidar
com o tumulto que acontecia dentro dela. Recostou-se contra a madeira gasta e exalou um suspiro trêmulo.
– Controle-se, Maguire.
Quis fingir que o beijo não significara nada, que o simples fato de Kade ter se afastado primeiro era indício de que até mesmo ele pensava que deixar as coisas esquentarem
entre eles seria má ideia. Só que as coisas já estavam quentes, e negar isso não faria o fato desaparecer. Não havia um lugar longe o bastante para que Alex deixasse
de sentir o desejo que sentia por Kade. E o engraçado era que ela não queria fugir daquela sensação. Pela primeira vez na vida, existia algo que a assustava sobremaneira,
mas que não lhe provocava ímpetos de sair correndo.
Não, ainda pior: seus sentimentos por Kade a impeliam a se aproximar dele.
Ainda mais assustador, ela sentiu que Kade poderia ser alguém forte o bastante em quem se apoiar, forte o bastante para que ela se abrisse – se abrisse de verdade
– a respeito de tudo o que mantinha represado dentro de si por tanto tempo. Uma parte sua queria acreditar que ele poderia ser o homem forte que ficaria ao seu lado
em qualquer tempestade, mesmo uma repleta de monstros, na qual a noite tinha dentes e o vento grunhia sedento de sangue.
Kade seria capaz de ficar ao seu lado.
Alex sabia disso do mesmo modo como sabia quando alguém lhe mentia. Ainda que não conseguisse lê-lo como fazia com as outras pessoas, esse mesmo sentido intenso
lhe dizia que isso acontecia porque Kade era diferente das outras pessoas de alguma maneira. Ele era diferente dos homens que já conhecera e que viria a conhecer.
Esse mesmo estranho e inabalável, instinto estivera no comando no voo, quando ela estivera perto de lhe contar a verdade – toda a verdade – sobre os motivos que
levaram o pai e ela a se mudarem da Flórida. A verdade a respeito do que, exatamente, matara sua mãe e seu irmão.
Fora difícil lutar contra esse instinto que desejava permitir a aproximação de Kade, e quando ela lançou a mentira ensaiada que usara com tantos outros sem nenhum
remorso, ser desonesta com Kade fez com que se sentisse terrível. Imagine só – ela escondera uma das verdades mais fundamentais sobre si mesma de todos em Harmony
que a conheciam desde que era uma criança; no entanto, após apenas alguns dias de flertes com um desconhecido, ela se via pronta a contar tudo.
Kade, contudo, já não era mais um estranho para ela. Ele não lhe pareceu um estranho nem mesmo na primeira noite no fundo da igreja, quando os olhos prateados se
encontraram com os seus do outro lado do salão.
E se tudo o que vinham fazendo desde então era apenas um flerte, por que seu coração batia forte contra o osso esterno toda vez que estava perto dele? Por que ela
sentia, contra toda lógica e sensatez, que seu lugar era ao lado desse homem?
Com o frio das lembranças remotas e a incerteza do futuro se aproximando, ela precisava de algo forte e quente no qual se segurar.
Não apenas de qualquer coisa ou de qualquer pessoa… mas dele.
Precisava do calor de Kade agora – da sua força –, mesmo que apenas por uns instantes.
O depósito de madeira atrás do chalé tinha um estoque decente de lenha cortada e seca, empilhada dentro da construção externa que tinha as iniciais de Henry Tulak
acima da porta. Era costume na floresta que os viajantes cuidassem uns dos outros, deixando combustível e alimentos para o próximo e respeitando a natureza a fim
de preservá-la tanto para si quanto para outrem.
Enquanto apanhava as achas de madeira que usariam, Kade pensava no que poderia deixar em troca da lenha que queimaria no chalé com Alex. Ajoelhou-se e abriu o zíper
da mochila. As únicas coisas que trazia que poderiam ser úteis ali eram suas armas, porém, as pistolas destinadas a matar Renegados que ele carregava eram valiosas
demais para serem deixadas para trás. Uma adaga, então. Ele tinha mais do que uma consigo.
Ao colocar a mão dentro da mochila à procura de uma faca que poderia deixar, o solado da bota se prendeu em algo branco e duro, preso entre as tábuas do abrigo.
– O que é isso?
Moveu-se para o lado para poder ver melhor o que havia debaixo da bota. Um dente de urso. A ponta de marfim longa e afiada estava encravada no espaço entre duas
tábuas como se tivesse sido afundada por inúmeras botas antes da sua. Não foi o dente, contudo, que fez o sangue de Kade gelar nas veias. Foi a tira fina de couro
entrelaçada presa a ele.
Exatamente do mesmo tipo que a pulseira presa a outro dente que vira recentemente.
Aquele que ele encontrara manchado de sangue humano seco, guardado no esconderijo de tesouros particulares de Seth. A coleção pervertida de souvenires mantida por
um assassino.
Seu irmão estivera ali.
Ah, não… seria possível que Seth tivesse matado o homem encontrado devorado por animais naquele mesmo lugar no ano anterior?
Kade quis negar a prova que tinha na mão fingindo ser uma mera coincidência, mas o gelo em seu peito lhe disse que seu irmão gêmeo estivera ali no inverno anterior,
quando Henry Tulak respirou pela última vez.
– Filho da mãe… – Kade sussurrou, enojado, ainda que tivesse procurado provas daquilo desde que chegara ao Alasca.
Agora que ela o encarava – a certeza de que somente um gêmeo idêntico pode ter a respeito da sua outra metade –, não havia mais como negar o que ele sabia em seu
coração há tanto tempo. Seu irmão era um assassino. Não melhor do que os Renegados que Kade sempre odiara e que agora perseguia como membro da Ordem. A fúria o atravessou,
ultraje não só em relação a Seth, mas a si mesmo, por querer acreditar que estivesse errado a respeito do irmão. Não havia mais incerteza em acusar Seth, ou a repugnância
em relação aos seus atos.
Kade soltou o dente de urso com a ponta da faca e o segurou diante de si, fitando, enojado, a prova que acabara de condenar o irmão. A mesma prova que impelia Kade
a fazer o que era justo e correto – fazer o que era seu dever, não só pela Ordem, mas como um macho cuja conduta pessoal de honra exigia justiça.
Precisava encontrar Seth e colocar um fim àquela matança.
Precisava sair dali naquele instante. Estava nervoso demais pela ira e pela determinação para voar de volta para Harmony com Alex; seguiria para lá a pé para iniciar
sua caçada pessoal, enquanto a aurora do meio-dia ainda demoraria algumas horas a chegar. Cobriria o maldito interior inteiro a pé se fosse necessário – chamaria
os lobos para ajudá-lo a encontrar Seth se não conseguisse rastreá-lo sozinho rápido o bastante.
Kade enfiou o pingente de dente de urso no bolso da frente dos jeans e deixou a faca sobre a pilha de lenha, uma oferenda, apesar de não ter mais uso para ela agora.
A única coisa de que precisava era sair logo dali e fazer o trabalho que o trouxera de volta ao lar, ao Alasca, de uma vez por todas.
Enquanto dava a volta no abrigo e subia até o chalé, ele era como um barril de dinamite numa combinação de raiva e intenção letal. Porém, ao abrir a porta do chalé,
pronto a oferecer alguma desculpa esfarrapada para Alex explicando por que teria que abandoná-la ali, ele foi recebido pelo ar quente e o brilho dourado de um fogo
crepitando no pequeno fogão a lenha no meio do chalé.
E pela própria Alex, sentada em meio a um ninho fofo de sacos de dormir e mantas de lã macias. O cabelo loiro fora libertado das tranças e caíam em ondas sobre os
ombros nus. Ombros despidos, assim como as pernas longas que se viam por debaixo da manta fina que mal a cobria.
Caramba… a linda e sensual Alex, nua à sua espera.
Kade pigarreou, subitamente sem palavras, e mais ainda sem as desculpas que pretendera dar para sair dali imediatamente.
– Eu… hum… eu encontrei um pouco de lenha e fósforos naquele balde ali – Alex disse. – Pensei em esquentar as coisas por aqui.
Esquentar? Se ela fosse mais quente, o corpo de Kade se incendiaria ali mesmo. O coração ainda batia descompassado por conta da descoberta desagradável no abrigo
de lenha, mas agora seu ritmo passou para uma batida mais profunda e mais urgente. Ele sentiu um músculo no maxilar dar um repuxão violento enquanto via a luz do
fogo dançar sobre a pele suave e macia.
– Alex…
Ele meneou a cabeça de leve, incapaz de pronunciar as palavras para rejeitá-la. As mais de uma dúzia de razões pelas quais aquilo era uma má ideia – ainda mais agora,
quando seu dever o impelia a deixar de lado suas necessidades egoístas para se concentrar plenamente na missão que o levara para lá – simplesmente despareceram da
sua mente lasciva. Uma avidez o assolou, o desejo substituiu a raiva que o consumia há menos de um minuto do lado de fora. Não sabia ao certo se levar as coisas
entre Alex e ele para um nível mais íntimo, dadas as circunstâncias, podia ou não ser mais do que uma péssima ideia.
Isto é, até ela se levantar e começar a andar na sua direção. A manta fina que mal envolvia sua silhueta, arrastando-se aos seus pés, agora se entreabria na frente
e lhe permitia um vislumbre desobstruído das pernas delgadas e infinitas a cada passo que ela dava. E conforme ela se aproximava, com o tecido fino se mexendo para
desnudar a pele macia do quadril esquerdo, Kade viu a minúscula marca de nascença carmesim, na forma de uma lágrima e de uma lua crescente, que transportou aquela
situação do reino das más ideias diretamente para uma zona de completo desastre.
Ela era uma Companheira de Raça.
E isso mudava tudo.
Pois Alexandra Maguire não era uma simples mortal, uma humana com quem poderia simplesmente se divertir, manipular em busca de informações, talvez transar por um
tempo, para no fim apagar sua mente e se esquecer dela. Ela era como um membro da família para os da sua espécie, uma fêmea para ser honrada e reverenciada, tão
preciosa quanto ouro.
Ela era algo raro e miraculoso, algo que ele certamente não merecia, e ela não fazia ideia disso.
– Ah, Cristo… – Apoiou a mochila no chão. Seus assuntos com Seth e com a Ordem teriam que esperar. – Alex, tem uma coisa… nós precisamos conversar.
Ela sorriu numa curva sensual dos lábios.
– A menos que precise me informar de alguma doença que tenha ou que, na verdade, seu interesse é por homens…
Ele a encarou, perguntando-se se existiram pistas ao longo do caminho. Mas, no começo, ele não olhara para Alex apenas como uma fonte de informações, uma testemunha
relutante que ele teria que fazer se abrir usando quaisquer meios necessários. Depois que falara com ela, começara a gostar dela. E depois que gostara dela, foi
difícil não desejá-la.
E agora?
Agora tinha a obrigação de proteger aquela fêmea a qualquer custo, e isso incluía impedi-la de cair nas mãos de um macho como ele. Ele a colocava em perigo só pelo
fato de estar com ela, arrastando-a em sua missão para a Ordem e aproximando-a, ainda mais depois de hoje, dos horrores dos joguinhos doentios do seu irmão. Se ele
era metade do guerreiro que jurara a si mesmo ser, levaria Alex para longe daquele lugar, a levaria para casa, para nunca mais procurá-la.
– Kade? – Ela inclinou a cabeça ao se aproximar, ainda à espera da sua resposta, o tom de voz suave. – Hum… não é isso o que tem a me dizer, é?
– Não. Não é.
– Que bom – ela disse, praticamente ronronando as palavras. – Porque eu não estou com vontade de conversar agora.
Kade inspirou fundo quando ela se aproximou, deixando pouco mais de alguns centímetros e uma fina manta de lã entre eles. E a sua fragrância… de pele aquecida, de
calor feminino e de um traço adocicado de algo mais esquivo que ele agora sabia que só podia ser o odor singular do sangue de uma Companheira de Raça.
Mesmo sem a maldita marca de nascença, inferno, apesar disso, Alexandra Maguire era uma combinação tóxica que o envolvia – por fora e por dentro – como a mais potente
das drogas.
Ela levantou o olhar para ele, os olhos cor de caramelo agora escurecidos como duas piscinas profundas em que ele poderia se afogar.
– Quero estar com você, Kade, aqui e agora. – Devagar, ela abriu a manta, expondo-se por completo para ele ao passar os braços ao seu redor, envolvendo ambos com
as dobras do tecido. O calor do corpo nu quase o queimou, entalhando-se em sua lembrança como um ferro em brasa. – Estou cansada de sentir frio o tempo todo. Estou
farta de me sentir sozinha. Só por agora, quero que me toque, Kade. Quero sentir as suas mãos em mim.
Ela não teve que pedir duas vezes. Ele sabia que ela precisara de coragem para admitir sua vulnerabilidade para ele, para se expor daquela maneira. Não poderia fingir
que não desejava aquilo tanto quanto ela. Ele a desejou desde o momento em que a viu pela primeira vez. Agora, todas as suas boas intenções, todos os seus pensamentos
de honra e de dever foram incinerados num instante.
Levantou uma palma até a linha delicada da coluna dela; a outra se ergueu para acariciar a curva graciosa do rosto e a pele sedosa da nuca. A pulsação dela vibrava
ao encontro do seu polegar conforme ele acariciava a pele macia sobre a carótida. Enquanto ele brincava com a faixa erótica de pele debaixo dos dedos, ela fechou
os olhos e inclinou a cabeça para trás, dando-lhe mais acesso do que seria sensato.
A pulsação de Kade também acelerou, cada um dos batimentos cardíacos dela, cada pequeno tremor do corpo junto ao seu estimulando suas necessidades mais primitivas.
Ele afundou a cabeça e aninhou o rosto na junção do pescoço e do ombro dela, ousando o mais suave dos beijos enquanto as presas rapidamente preenchiam sua boca,
a língua ávida por saboreá-la. Exalou seu desejo num grunhido baixo, tracejando a boca ao longo do pescoço, depois descendo, inclinando-se conforme apanhava um seio
perfeito na mão, erguendo o mamilo róseo até os lábios.
Sugou-a, atento para não arranhá-la com as pontas afiadas das presas, enquanto puxava o botão mais fundo em sua boca, envolvendo-o com a língua, deliciando-se com
os arquejos excitados de prazer dela. Desceu a mão livre, espalmando a nádega arredondada, brincando com a junção do corpo dela por trás. A sensação de tê-la nos
braços era tão boa, tão gostosa. Ele esmagou-a contra o seu corpo, deixando que os dedos se aprofundassem, chegando às dobras do sexo. Ela estava úmida e quente,
a pele um paraíso acolhedor quando seu toque se aprofundou.
– Ai, meu Deus… – ela arfou, arqueando-se em seu abraço. – Kade…
Num gemido, ele soltou o seio da mordida sensual e voltou aos lábios, capturando-lhe o suspiro num beijo profundo e faminto. Embora ela o acompanhasse, era ele quem
estabelecia o ritmo, mais urgente do que fora sua intenção, mas ele estava envolvido demais para desacelerar. Também estava mais do que ciente das mudanças que lhe
aconteciam – mudanças que exigiriam algum tipo de explicação, que também exigiriam um tipo de conversa, algo em que ela não se mostrara interessada e algo que ele
seria incapaz de realizar no momento.
Ainda beijando-a, pois se via incapaz de afastar a boca da dela, ele a guiou de volta ao ninho de cobertas perto do fogo. Juntos, eles o despiram, arrancando rapidamente
o casaco e a camisa, as botas e os jeans. Kade se despiu do resto das roupas enquanto Alex trilhava com a língua um caminho ao longo do pescoço dele. Kade estremeceu
ao sentir um disparo de desejo preenchendo suas veias, sentiu o sangue apressado até os membros e o pênis pulsante. A pele comichava com a transformação dos dermaglifos,
as marcas da Raça que lhe cobriam o peito, os braços e as coxas. Os glifos, normalmente um tom ou dois mais escuros que o de sua pele, por certo estariam saturados
de cor agora, escurecendo-se para refletir o desejo que sentia por Alex.
– Ah, caramba… – grunhiu, sibilando profundamente quando ela mordiscou a pele macia logo abaixo da sua mandíbula. Não sabia quanto mais aguentaria. Quando ela abaixou
a mão para afagá-lo em toda a sua extensão, ele não teve como segurar seu rosnar animal. Ela espalmou a cabeça do sexo, num toque tanto curioso quanto exigente ao
espalhar a umidade natural sobre a pele sensível.
– Deite-se comigo – pediu ele, com a voz rouca, a respiração ofegante.
Segurou-a nos braços e afundou com ela no piso coberto de mantas do chalé, beijando-a enquanto a pressionava com suavidade debaixo de si. Ela estava tão macia e
quente ao seu encontro, os braços envolvendo-o pelos ombros, as coxas afastadas onde os seus quadris se encaixaram. O pênis se aninhou ao encontro da fenda úmida
do seu sexo, louco de desejo de se afundar, mas Kade só brincou de penetrá-la, escorregando entre as pétalas aveludadas do seu corpo ao mesmo tempo em que brincava
com a boca ao longo da pulsação na lateral do pescoço. Segurou o sexo para se conter, esfregando sua rigidez na suavidade dela, usando a ponta larga do pênis para
acariciar seu clitóris. Ela gemeu, arqueando-se para acompanhar seu ritmo, alargando as pernas num convite. Ele resistiu à tentação, quase sem conseguir.
Ela lhe pedira que a aquecesse, e ela estava quente, mas ele quis deixá-la mais quente do que nunca. A necessidade repentina e incomensurável de marcá-la como sua
– de lhe dar prazer como ninguém antes dele – ressoou em seu sangue como um tambor. Atordoado com a sensação, ele se refreou. Mas Alex era tão gostosa, parecia tão
certa para ele, que antes que se lembrasse de que ela merecia algo melhor, ele passou a beijá-la corpo abaixo. Saboreou cada centímetro desde os montes dos seios
até a musculatura firme do abdômen e a maldita marca de nascença no quadril que tornava seu prazer e sua necessidade egoísta algo tão errado.
Mas, errado ou não, por mais egoísta que fosse ao ceder ao seu desejo por Alex, ele passara do ponto de resistir. A sensação de tê-la debaixo de si elevou a chama
em seu sangue levantando fervura. A fragrância dela o atraía como um ímã até a faixa de pelos claros e encaracolados entre as pernas. Beijou-a ali, usando os lábios
e a língua e os dentes até ela se contorcer contra sua boca. E mesmo assim ele não parou. Sugou-a e afagou-a, dando-lhe prazer até que ela se arqueasse debaixo dele
e gritasse durante o trepidante clímax.
E ainda assim ele não parou.
Continuou sugando, beijando e afagando-a, conduzindo-a até mais um pico e depois, só depois, ergueu-se para cobri-la com seu corpo, penetrando-a profundamente enquanto
as quentes paredes internas se contraíam ao redor do pênis pulsante. Penetrou-a percebendo que ele também precisava daquele calor, daquela sensação – mesmo que temporária
– de não estar sozinho. Precisara de Alex daquele modo, naquele instante, tanto quanto ela acreditava precisar dele.
O orgasmo de Kade se avolumava na base do pênis, intensificando-se a cada estocada fervorosa. Cada vez mais ardente, cada vez mais estreito, até que ele não conseguiu
segurar nem mais um segundo. Sentiu o corpo tenso com a força com que ele vinha e a penetrou o máximo que ela conseguia acomodá-lo, enterrando o rosto no ombro dela
e emitindo um grito rouco de alívio quando seu sêmen explodiu numa torrente líquida quente.
Ele não teria conseguido segurar mesmo que tivesse tentado, apesar de não existir a possibilidade de uma gravidez, contanto que não houvesse troca de sangue. Mas
isso também se mostrou mais tentador do que deveria. As presas de Kade alongaram-se das gengivas quando ele se perdeu no calor interno de Alex. Ele ouvia a pulsação
acelerada dela, sentia-a no eco enlouquecido das batidas do seu coração. E ele sentia o fluxo do sangue dela pulsando logo abaixo da superfície da pele delicada
onde a boca dele repousava numa careta retesada.
– Ah, caramba… Alex – sibilou, atormentado pelo fluxo de sensações que ela lhe provocava.
Tudo o que pertencia à Raça nele exigia que ele tornasse aquela sua fêmea, que clamasse seu sangue assim como clamara seu corpo.
Kade suprimiu essa necessidade, mas, maldição, não foi algo fácil. Rolou-a contra si, acomodando-a de costas para ajudar a esconder as mudanças que o acometeram
no ato de paixão.
– Você está bem? – ela perguntou, enquanto ele se esforçava para conter seus impulsos e obter um pouco de juízo.
– Sim – ele conseguiu dizer depois de um instante. – Melhor do que tenho o direito de estar.
– Eu também – disse ela, o sorriso evidente pelo torpor na voz que resvalou com suavidade no alto do seu braço. – Para o caso de estar se perguntando, os meus serviços
de piloto não costumam incluir ficar nua com meus clientes.
– Isso é bom – Kade disse quase num grunhido ao aproximá-la ainda mais do corpo ainda ardente. Ele não queria que ela ficasse nua com ninguém, percebeu num rompante.
Já não teria gostado dessa ideia antes, mas depois do que acontecera entre eles, ele não receberia isso nada bem.
– E quanto a você? – perguntou ela, enquanto ele os cobria com as mantas para esconder seus glifos do olhar dela.
– O que tem eu?
– Você faz isso… com frequência?
– Ficar nu com pilotos sensuais do interior do Alasca no meio de uma floresta gélida? – Fez uma pequena pausa, deixando-a pensar que estava levando a pergunta em
consideração. – Não. Foi a minha primeira vez.
Bem como a ferrenha sensação de posse que ainda corria em seu sangue ao pensar em Alex com outro macho. Perguntou a si mesmo se foi o fato de ela ser uma Companheira
de Raça que o atraiu logo de cara. Mas, assim que pensou nisso, percebeu que a marca de nascença que a ligava ao mundo sombrio que ele habitava como um ser da Raça
foi a menor das qualidades que o atraíram a Alexandra Maguire. A última coisa de que ele precisava naquele momento era um envolvimento emocional, ainda menos com
uma fêmea que trazia a marca da lágrima e da lua crescente.
Mas ele estava envolvido. Na verdade, acabara de atar mais alguns nós a uma situação já impossível.
Praguejando contra si mesmo, como um idiota de primeira classe que era, Kade a beijou no alto da cabeça e a abraçou, enquanto esperava que seus olhos voltassem à
aparência normal e as presas tivessem a oportunidade de se retraírem.
Levou um tempo para isso acontecer, e mesmo depois que o corpo voltou ao ritmo normal, o desejo que sentia pela mulher em seus braços permaneceu.
Capítulo 15
A luz do dia brilhou fraca e escondida pelas nuvens fora da boca da caverna na floresta. O predador buscara abrigo ali pouco antes, quando os primeiros raios começaram
a mostrar as garras em meio à escuridão do inverno. Poucas coisas existiam mais poderosas do que ele, ainda mais naquele mundo primitivo que era tão diferente do
distante mundo em que nascera muitos milênios atrás. No entanto, por mais avançada que fosse a forma de vida da sua espécie, a sua pele desprovida de pelos e coberta
de dermaglifos não processava a luz ultravioleta: apenas alguns minutos de exposição o matariam.
Das profundezas da sua segurança na caverna, ele descansou da perseguição da caça da noite anterior, impaciente para que a luz tênue se extinguisse e recuasse uma
vez mais. Logo precisaria se alimentar novamente. Ainda sentia fome, as células, os órgãos e os músculos demandavam rejuvenescimento extensivo depois do longo período
de privação e abuso que sofrera enquanto estivera em cativeiro. O instinto de sobrevivência se digladiava com o conhecimento de estar, absoluta e completamente,
sozinho naquele naco inóspito de entulho.
Não restava mais ninguém como ele já há muito tempo. Ele era o último dos oito exploradores que caíram neste planeta, um náufrago solitário sem chance de escapar.
Eles tinham nascido para conquistar, para serem reis. No entanto, um a um, seus irmãos abandonados morreram, quer pela crueldade do novo ambiente que os cercava,
quer pelas guerras com a prole meio-humana nos séculos que se seguiram. Através de uma traição e de um acordo secreto com seu filho, somente ele sobrevivera. Mas
fora a mesma traição e acordo secreto que o tornaram escravo do filho do seu filho, Dragos.
Agora que estava livre, a única coisa mais atraente do que pôr um fim em seu tempo naquele planeta abandonado era a ideia de poder levar seu herdeiro traidor consigo
para a morte.
Uivou ante a lembrança das longas décadas de dor e experiências a ele infligidas. Sua voz reverberou nas paredes da caverna, um rugido sinistro que saiu rasgando
dos pulmões, semelhante a um grito de guerra.
Um disparo respondeu de algum lugar não muito distante, em algum lugar na floresta lá fora.
Houve uma batida súbita nas folhagens do lado externo. Em seguida, ouviu passadas fugidias de animais – de muitos animais – correndo próximos à entrada da caverna.
Lobos.
A alcateia se dividiu, metade correndo pelo lado direito da entrada, metade disparando pela esquerda. E logo atrás deles, poucos segundos depois, o som de vozes
humanas, homens armados em perseguição.
– Por aqui – um deles gritou. – A maldita alcateia inteira subiu este cume, Dave!
– Vocês, peguem o lado oeste – uma voz retumbante comandou. – Lanny e eu vamos a pé pela colina. Há uma caverna logo adiante; é provável que um ou dois dos bastardos
tenham se escondido ali.
O barulho dos motores dando ré e o fedor do combustível queimado permearam o ar quando alguns dos homens saíram dali. Alguns minutos depois, do lado de fora da boca
da caverna, na luz do dia que barrava a única via de fuga, as silhuetas de duas pessoas segurando longos rifles tomaram forma. O homem da frente era grande, com
um peito amplo e ombros largos e uma barriga que outrora podia ter sido musculosa, mas que agora era somente flácida. O homem que o acompanhava devia ser uns trinta
centímetros mais baixo e muitos quilos mais magro, uma criatura tímida de voz trêmula.
– Acho que não tem nada aqui, Dave. E não sei se foi uma boa ideia nos separarmos dos outros.
Confinado às sombras, o único ocupante se encolheu na parede da caverna, mas não rápido o bastante.
– Ali! Acabei de ver um par de olhos cintilantes aqui dentro. O que eu disse, Lanny? Pegamos um dos bastardos bem aqui! – A voz do homem grande estava carregada
de agressão ao levantar a arma. – Acenda a lanterna e me deixe ver no que estou atirando, sim?
– Hum, tudo bem, Dave. – O companheiro nervoso se atrapalhou com a tarefa, ligando a luz e oscilando-a com gestos nervosos no chão e nas paredes da caverna. – Está
vendo alguma coisa? Eu não estou vendo nada por aqui.
Claro que não, pois o olhar cintilante que o homem vira apenas um instante antes já não estava no solo, mas fitando os humanos do alto, onde o predador agora se
segurava nas estalactites acima de suas cabeças, parado no escuro tal qual uma aranha.
O homem grande abaixou a arma.
– Mas que diabos! Onde o danado foi parar?
– Não devíamos estar aqui, Dave. Acho melhor a gente ir procurar os outros…
O homem grande avançou mais alguns passos para dentro da caverna.
– Não seja covarde. Me passe a lanterna.
Quando o baixinho esticou a mão para entregar-lhe a lanterna, a bota bateu numa pedra solta. Ele cambaleou, caiu de joelhos e deu um grito de surpresa e dor.
– Merda! Acho que me cortei.
A prova acobreada do sangramento se elevou numa súbita onda olfativa. O cheiro de sangue fresco perfurou as narinas do predador. Ele aspirou e sibilou em resposta
ao exalar o ar dos pulmões por entre os dentes e as presas.
Abaixo dele, no chão da caverna, o homenzinho nervoso levantou a cabeça. Seu rosto aflito se retesou com horror sob o olhar âmbar faminto do alienígena.
Ele berrou, sua voz tão aguda e horrorizada quanto a de uma garotinha.
Ao mesmo tempo, o homem grande se virou com o rifle.
A caverna explodiu com o estrondo do tiro e da luz ofuscante, enquanto o predador saltava das rochas de cima e se lançava sobre o par de humanos.
Alex não se lembrava da última vez em que dormira tão profundamente sem interrupções. Nem se lembrava de ter se sentido tão relaxada e saciada como depois de fazer
amor com Kade. Espreguiçou-se sob a pilha fofa de mantas e sacos de dormir no chão, depois se ergueu sobre um cotovelo para vê-lo colocando mais lenha na fogueira
no pequeno fogão do chalé.
Ele estava agachado, os músculos fortes das costas e dos braços se esticando e flexionando quando ele colocou mais uma acha no fogão a lenha, a pele suave brilhando
na luz quente da fogueira. O cabelo preto curto estava todo bagunçado numa confusão de espetos que lhe conferia um ar ainda mais selvagem do que de costume, principalmente
quando ele virou a cabeça para olhar em sua direção, e ela se sentiu atingida pelas linhas letais do rosto e mandíbula e pelo olhar prateado cercado por cílios escuros.
Ele estava lindo, de tirar o fôlego, cem vezes mais do que quando estava agachado nu diante dela, com o olhar intenso e íntimo, travado no seu. O corpo de Alex ainda
vibrava com a lembrança da paixão partilhada, a dor agradável entre as pernas pulsava um pouco mais forte agora com o modo com que ele a fitava, como se quisesse
devorá-la novamente.
– Dormimos enquanto era dia? – perguntou, subitamente sentindo necessidade de preencher aquele silêncio ardente.
Ele acenou com a cabeça.
– Já faz umas duas horas que o sol se pôs.
– Vejo que saiu – comentou, percebendo a pilha renovada de lenha ao lado dele.
– É. Acabei de chegar.
Ela sorriu, arqueando as sobrancelhas.
– Espero que não tenha saído assim. No escuro a temperatura não deve passar de zero.
Ele grunhiu, a boca sensual se curvando com bom humor.
– Não tenho problemas de encolhimento.
Não, aquele definitivamente era um homem sem a mínima insegurança quanto à sua masculinidade. Cada centímetro seu era feito de músculos esculpidos, rijos e delgados.
Com seus mais de um metro e noventa de altura, ele tinha a forma bruta mítica de um guerreiro, desde os ombros amplos e bíceps definidos até a superfície entalhada
do peito e do abdômen tanquinho, terminando nos perfeitos quadris estreitos. O restante dele era igualmente perfeito, e ela podia atestar que ele sabia o que fazer
com aquilo.
Deus do céu, ele era uma obra de arte viva, que só era enaltecida pelo desenho intricado, ainda que sutil, da tatuagem – e de que cor ela era mesmo? – sobre a pele
dourada do torso e membros, como um caminho traçado pela língua de uma amante. Alex acompanhou os desenhos estranhos com os olhos, imaginando se era apenas um truque
da luz do fogo que fazia a cor de henna das tatuagens parecer escurecer, enquanto o avaliava em franca admiração.
Sorrindo como se já estivesse acostumado a ter mulheres admirando-o, ele se levantou e andou com lentidão até onde ela estava deitada, sem nenhuma inibição com a
sua nudez.
Alex riu com suavidade e balançou a cabeça.
– Você nunca se cansa?
Ele ergueu uma sobrancelha ao se reclinar com negligência ao seu lado.
– Se eu me canso?
– De ter mulheres aos seus pés – disse ela, percebendo com uma ponta de surpresa que não gostava muito dessa ideia. Odiava, na verdade, e se perguntou de onde vinha
a dor do ciúme, levando em consideração que ele não era seu só porque partilharam algumas horas suadas – e, sim, espetaculares – nos braços um do outro.
Ele afagou uma mecha solta do cabelo dela e levantou o olhar dela para o seu.
– Só estou vendo uma mulher comigo agora. E posso garantir que não estou nem um pouco cansado.
Segurou-a pelo rosto e a deitou sobre as cobertas. Seu olhar a derreteu quando a fitou, e ela sentiu a pressão rígida da ereção cutucando-a na lateral do corpo quando
ele se esticou ao seu lado.
– Você é uma mulher especial, Alexandra. Mais especial do que pensa.
– Você não me conhece – protestou ela baixinho, precisando se lembrar disso mais do que a ele. Conheciam-se há… quanto tempo? Dois dias? Ela não era de permitir
que alguém entrasse em sua vida tão rapidamente, ou tão profundamente, ainda mais depois de tão pouco tempo. Então, por que ele? Por que agora, quando tudo em seu
mundo parecia estar empoleirado no alto de um penhasco? Um empurrão na direção errada, e ela desapareceria. – Você não sabe nada sobre mim… não de verdade.
– Então me conte.
Ela o fitou, surpresa com a sinceridade, com o pedido franco em sua voz.
– Contar…
– Conte-me o que aconteceu na Flórida, Alex.
O ar pareceu sair dos seus pulmões naquele instante.
– Mas já contei…
– Sim, mas tanto você quanto eu sabemos que não foi um motorista embriagado que arrancou sua mãe e seu irmão de você. Foi outra coisa que aconteceu com eles, não
foi? Algo que você manteve em segredo todos esses anos. – Ele falou com paciência, suavemente, coagindo a confiança dela. E que Deus a ajudasse, mas ela se sentia
pronta para ceder. Ela precisava partilhar aquilo com alguém, e no fundo do seu coração, ela sabia que esse alguém era Kade. – Está tudo bem, Alex. Você pode me
contar a verdade.
Ela fechou os olhos, sentindo as palavras horrendas – as lembranças terríveis – subindo como ácido pela garganta.
– Não consigo – murmurou. – Se eu disser, então tudo o que tentei deixar para trás… tudo pelo que me esforcei tanto a esquecer… tudo vai voltar a ser real.
– Não pode passar a vida se escondendo da verdade – disse ele, e ecos de coisas passadas surgiram em sua voz. Uma tristeza, uma resignação que garantiu a ela que
ele entendia parte do fardo que ela há tanto tempo carregava. – Negar a verdade não a faz desaparecer, Alex.
– Não, não faz – concordou ela bem baixinho. Em seu coração, ela sabia disso. Estava cansada de fugir e cansada de manter o horror do seu passado enterrado e esquecido.
Queria se livrar de tudo aquilo, e se isso significava enfrentar a verdade, não importando o quanto ela fosse horrível – não importando o quanto ela fosse inimaginável
–, então que fosse assim. Mas o medo era um inimigo poderoso. Talvez poderoso demais. – Eu tenho medo, Kade. Não sei se sou forte o bastante para enfrentar isso
sozinha.
– Você é. – Ele depositou um beijo rápido no ombro dela, depois a fez fitá-lo novamente. – Mas não está sozinha. Eu estou com você, Alex. Conte-me o que aconteceu.
Eu a ajudarei, se você permitir.
Ela sustentou o olhar suplicante dele e encontrou a coragem de que precisava na força de aço dos seus olhos.
– Nós tivemos um dia maravilhoso juntos, todos nós. Fizemos um piquenique ao lado do rio, e eu ensinara Richie a mergulhar de costas do píer. Ele só tinha seis
anos, mas era destemido, sempre querendo tentar tudo o que eu fazia. Foi um dia perfeito, repleto de riso e de amor.
Até a escuridão recair sobre o pântano, trazendo um terror profano consigo.
– Não sei por que escolheram a nossa família. Procurei por um motivo, mas nunca descobri por que eles apareceram à noite para nos atacar.
Kade a acariciou com cuidado, enquanto ela se debatia com as palavras seguintes.
– Às vezes não existe razão. Às vezes as coisas acontecem e não há nada que possamos fazer para entendê-las. A vida e a morte nem sempre são lógicas, claras.
Às vezes a morte salta da escuridão como um fantasma, como um monstro terrível demais para ser verdadeiro.
– Havia dois deles – murmurou Alex. – Nem sabíamos que eles estavam lá até ser tarde demais. Estava escuro, e estávamos todos sentados na varanda, relaxando depois
do jantar. Minha mãe estava no balanço da varanda com Richie, lendo uma história do Ursinho Pooh antes de nos levar para a cama, quando o primeiro apareceu do nada,
sem aviso, e se lançou sobre ela.
A mão de Kade ficou imóvel.
– Você não está falando de um homem.
Ela engoliu em seco.
– Não. Não era um homem. Não era nem… humano. Era outra coisa. Algo maligno. Ele a mordeu, Kade. E, então, o outro agarrou Richie com os dentes também.
– Dentes – repetiu ele, sem surpresa nem descrença na voz, apenas compreensão grave. – Você quer dizer presas, não quer, Alex? Os agressores tinham presas.
Ela fechou os olhos quando a impossibilidade da palavra se registrou.
– Sim. Eles tinham presas. E os olhos, eles… eles cintilavam no escuro como brasas ardentes, e no centro deles as pupilas eram longas e finas como as dos gatos.
Eles não podiam ser humanos. Eram monstros.
O toque de Kade no rosto e nos cabelos dela a acalmava, enquanto as lembranças daquela noite terrível ressurgiam em sua mente.
– Está tudo bem. Você está segura agora. Eu só queria ter estado lá para ajudar você e a sua família.
O sentimento era gentil, ainda que improvável, visto que ele não podia ter mais do que alguns poucos anos a mais do que ela. Mas pela sinceridade em sua voz, ela
soube que ele estava sendo sincero. Pouco importava a improbabilidade, ou a enormidade do mal que enfrentavam, Kade teria ficado ao seu lado contra o ataque. Ele
os teria mantido a salvo quando ninguém conseguiria.
– Meu pai tentou combatê-los – murmurou Alex –, mas tudo foi muito rápido. E eles eram tão mais fortes do que ele. Derrubaram-no como se ele não fosse nada. Àquela
altura, Richie já estava morto. Ele era tão pequeno que não teria a menor chance de escapar daquele tipo de violência. Minha mãe gritou para o meu pai fugir, para
me salvar se pudesse. “Não deixe minha filha morrer!” Essas foram as suas últimas palavras. Aquele que a segurava fincou a mandíbula no pescoço dela. Não a soltou,
ficou com a boca fechada sobre ela. Ele… ah, meu Deus, Kade. Isso vai parecer loucura, mas ele… ele bebeu o sangue dela.
Uma lágrima rolou pelo rosto, e Kade pressionou os lábios na sua testa, trazendo-a para junto de si e oferecendo-lhe o conforto tão necessário.
– Não me parece loucura, Alex. E eu sinto muito pelo que a sua família passou. Ninguém deveria passar por tamanha dor e perda.
Embora ela não quisesse reviver aquilo, as lembranças tinham sido ressuscitadas e, depois de mantê-las enterradas por tanto tempo, ela sentiu que não conseguiria
mais contê-las. Não enquanto Kade estivesse ali para fazê-la se sentir mais aquecida e segura do que em toda a sua vida.
– Pelo modo como atacaram minha mãe e Richie, pareciam animais. Mas nem mesmo animais fariam o que eles fizeram. Ah… meu Deus, e havia tanto sangue. Meu pai me pegou
no colo e começamos a correr. Mas não consegui desviar o olhar do que estava acontecendo atrás, na escuridão. Eu não queria ver mais, era tudo tão irreal. A minha
mente não conseguia processar aquilo. Já faz tanto tempo, e ainda não tenho certeza se posso explicar o que foi que nos atacou naquela noite. Eu só… Eu quero que
tudo faça sentido, mas não faz. Nunca vai fazer. – Inalou fundo, revivendo uma dor mais fresca, uma confusão mais recente. – Vi o mesmo tipo de ferimentos na família
Toms. Eles foram atacados, assim como nós fomos, pelo mesmo tipo de maldade. Isso está aqui no Alasca, Kade… e eu estou com medo.
Por um longo momento, Kade nada disse. Ela conseguia ver a mente dele repassando tudo o que ela lhe dissera, cada detalhe incrível que faria com que qualquer outra
pessoa escarnecesse em descrença ou lhe dissesse que ela deveria procurar ajuda profissional. Mas ele não. Ele aceitava a sua verdade pelo que era, sem traço de
dúvida em seus olhos ou em seu tom inflexível.
– Você não precisa mais fugir. Pode confiar em mim. Nada de ruim vai acontecer com você enquanto eu estiver por perto. Acredita em mim, Alex?
Ela assentiu, percebendo só então o quanto confiava nele. Confiava nele num nível além do instintivo, era visceral. O que sentia por ele desafiava o fato de que
ele entrara em sua vida ainda naquela semana, tampouco estava relacionado ao modo como ela o desejava fisicamente – com uma sofreguidão que ainda não estava pronta
para analisar.
Ela simplesmente fitou os olhos inabaláveis de Kade e soube, em sua alma, que ele era forte o bastante para carregar qualquer fardo que ela partilhasse com ele.
– Preciso que confie em mim – disse ele com gentileza. – Existem algumas coisas que você precisa saber, Alex, agora mais do que nunca. Coisas sobre si mesma, e
sobre o que você viu, tanto na Flórida quanto aqui. E também há coisas que você precisa saber sobre mim.
Ela se sentou, o coração batendo de modo estranho no peito, pesado com uma sensação de expectativa.
– O que quer dizer?
Ele desviou o olhar, passando a acompanhar a carícia ao longo do corpo nu, depois se deteve no osso do quadril. Com o polegar, ele traçou um círculo ao redor da
sua pequena marca de nascença.
– Você é diferente, Alexandra. Extraordinária. Eu deveria ter reconhecido isso de cara. Houve sinais, mas eu não os percebi. Eu estava concentrado em outras coisas
e eu… maldição.
Alex franziu o cenho, mais confusa do que nunca.
– O que você está tentando dizer?
– Você não é como as outras mulheres, Alex.
Quando ele voltou a encará-la, a confiança que normalmente cintilava em seu olhar não estava lá. Ele engoliu, o clique seco em sua garganta fazendo o sangue dela
gelar nas veias. O que quer que ele tivesse a dizer, era ele quem tinha medo agora, e ver o traço de incerteza nele aumentou a sua ansiedade.
– Você é muito diferente das outras mulheres, Alex – repetiu com hesitação. – E eu… você precisa saber que eu também não sou como os outros homens.
Ela piscou, vendo uma pressão invisível pesar no silêncio que se fez entre eles. O mesmo instinto que lhe dizia para exigir mais respostas implorava para que ela
recuasse e fingisse não querer saber – não precisava saber o que deixava Kade tão sem palavras e ansioso. Tudo o que ela conseguia fazer era observá-lo e esperar,
preocupando-se com a possibilidade de ele estar prestes a lançar seu mundo num redemoinho ainda maior.
O toque estridente do celular de Alex lhe deu um choque tal qual o de um fio de alta-tensão. Ele tocou novamente e ela mergulhou para pegá-lo, contente pela desculpa
para fugir da estranha e sombria mudança de humor de Kade.
– Alex falando – disse ela, reconhecendo o número de Zach ao abrir o aparelho e atender a chamada.
– Onde você está? – exigiu saber, nem mesmo perdendo tempo em dizer olá. – Acabei de passar pela sua casa e você não estava lá. Você está na casa de Jenna?
– Não – respondeu ela. – Jenna esteve na minha casa hoje cedo, antes de eu sair. Ela deve ter ido para casa.
– Bem, onde foi que você se meteu, então?
– Estou trabalhando – disse ela, irritada com o tom rude dele. – Estou com um cliente que agendou um voo hoje de manhã…
– Escuta aqui, temos um problema aqui em Harmony – Zach a interrompeu com rispidez. – Estou no meio de uma crise médica e preciso que você traga um ferido grave
da floresta.
Alex despertou do nevoeiro emocional em que estivera presa antes de atender ao telefonema.
– Quem está ferido, Zach? O que está acontecendo?
– Dave Grant. Não sei a história toda, mas ele e Lanny Ham e alguns outros homens da cidade saíram para caçar na parte oeste hoje. Depararam-se com uma situação
grave, muito grave. Lanny está morto e, pelo visto, as coisas não estão muito boas para Big Dave. Os homens estão com medo de transportá-lo na motoneve, temendo
não conseguir trazê-lo a tempo de salvá-lo.
– Ai, meu Deus. – Alex se sentou para trás, sobre as pernas dobradas, sentindo um frio se espalhar pela pele. – Os ferimentos, Zach… o que aconteceu?
– Alguma coisa os atacou, de acordo com os outros homens. Dave está delirando, falando coisas sem sentido sobre uma criatura espreitando numa das cavernas a oeste
de Harmony. O que os atacou é algo bem ruim, Alex. Ruim mesmo. Dilacerou-os de uma maneira horrível. A notícia se espalhou pela cidade e todos estão em pânico.
Ela fechou os olhos.
– Ai, meu Deus…
A mão de Kade pousou sobre seu ombro nu.
– O que houve, Alex?
Ela balançou a cabeça, incapaz de formar as palavras.
– Quem está com você? – Zach exigiu saber. – Puta que o pariu, Alex, você está com aquele homem do Pete’s da outra noite?
Alex não achava que precisava dizer a Zach Tucker com quem passava seu tempo, não enquanto havia um homem morto e a vida de outro pendia por um fio. Não enquanto
o horror do seu passado – o horror que ela temia ter visitado a família dos Toms há apenas alguns dias – estava novamente estraçalhando seu coração.
– Estou no chalé de Tulak, Zach. Posso sair agora mesmo, mas só devo chegar em quarenta e cinco minutos.
– Esqueça. Não podemos esperar por você. Vou localizar Roger Bemis.
Ele desligou, deixando Alex sentada ali, congelada pelo medo.
– O que aconteceu? – Kade perguntou. – Quem se feriu?
Por um momento, ela só conseguia se concentrar em inspirar e expirar. O coração batia com tristeza, a culpa a corroía.
– Eu deveria tê-los avisado. Eu deveria ter dito o que sabia em vez de acreditar que poderia negar isso.
– Alex? – A voz de Kade saiu cautelosa; os dedos, ao erguer seu rosto, foram firmes, ainda que gentis. – Me conte o que está acontecendo.
– Big Dave e Lanny Ham – murmurou. – Foram atacados hoje na floresta. Lanny está morto. Big Dave pode não sobreviver.
E se Kade tivesse ido com eles em vez de vir com ela? A ideia de que ele poderia estar perto desse tipo de perigo – ou pior, ser vítima dele – fez seu coração se
contorcer. Sentiu-se doente de tanto medo, mas foi na raiva que ela se apegou.
– Você tem razão, Kade. Não posso fugir do que sei. Não mais. Tenho que enfrentar o mal. Tenho que tomar partido agora, antes que mais alguém se machuque. – A fúria
a incentivava, enquanto o medo ameaçava segurá-la. – Preciso contar a verdade – para todos em Harmony. Para o maldito mundo inteiro, se for preciso. As pessoas precisam
saber o que está aí. Não podem destruir o mal se nem mesmo sabem que ele existe.
– Alex – ele contraiu os lábios, começou a balançar a cabeça como se tivesse a intenção de dissuadi-la. – Alex, não acho que isso seja sensato…
Ela sustentou o olhar dele, incrédula.
– É por sua causa que eu me sinto forte para fazer isto, Kade. Precisamos ficar juntos – todos juntos – para derrotar isso.
– Ah, Cristo… Alex…
A hesitação dele foi como um punhal frio lentamente entrando no seu esterno. Confusa ante a mudança de atitude, mas determinada a fazer o que era certo – fazer o
que tinha que ser feito – ela se afastou dele e começou a se vestir.
– Tenho que voltar para Harmony. Vou partir em cinco minutos. Você decide se vem comigo ou não.
Capítulo 16
Não conversaram durante todo o voo de volta para Harmony.
Kade ficou sentado ao lado de Alex num silêncio infeliz, dividido, querendo lhe explicar sobre a Raça e o lugar dela naquele mundo e temendo que, se ela soubesse
o que ele de fato era, ela o colocasse na mesma categoria do monstro que ela abominava e que agora estava tão determinada a expor para toda a cidade e para o resto
da humanidade.
O medo de que ela o odiasse manteve sua língua grudada ao céu da boca durante todos os quarenta e cinco minutos que foram necessários para levá-los de volta à pista
de voo de neve, compactada nos limites da cidade. Sabia ser um bastardo por negar-lhe toda a verdade. Provara ser algo ainda pior no chalé de Tulak, quando permitiu
que seu desejo por ela superasse seu dever – seu código de honra, por mais frágil que fosse –, que teria compelido um macho melhor a pôr todas as cartas na mesa
antes de tomá-la para si.
Mas, com Alex, não foi só sexo. Não era só desejo, ainda que ele a desejasse sobremaneira. As coisas estariam bem melhores agora se aquilo fosse algo meramente físico.
A verdade era que gostava dela. Preocupava-se com ela. Não queria vê-la sofrendo mais, muito menos pelas próprias ações. Queria protegê-la das coisas que a atingiram
no passado, e faria o que fosse possível para que nada de ruim voltasse a lhe acontecer.
Ah, sim, seus esforços até então estavam sendo bem-sucedidos…
Vinha fazendo um trabalho de primeira linha em tudo o que tocara desde que chegara ao Alasca.
Frente às provas que encontrara no chalé, o que deveria ter sido uma missão simples e secundária de aniquilar um Renegado no norte congelado do país agora se tornara
uma busca para localizar um assassino em sua própria família. E agora ele tinha pelo menos mais um morto para acrescentar à mistura, talvez dois, se o relato sobre
os ferimentos de Big Dave fosse acurado.
Outro ataque selvagem a respeito do qual Kade rezava para que todas as suspeitas não recaíssem sobre Seth.
Ele ainda ruminava esse temor quando Alex pousou o avião de maneira impecável. Maldição, mesmo perturbada como ela devia estar, Alex estava em total controle do
manche. Uma verdadeira profissional. Apenas mais um detalhe que o fazia apreciá-la ainda mais.
– Merda – sussurrou baixo ao olhar para fora da janela da cabina. Estava mesmo caído por aquela fêmea.
– Parece que metade da cidade está agrupada do lado de fora do posto de saúde – observou Alex. – Já que o avião de Roger Bemis está estacionado, acho que eles já
devem ter trazido Big Dave e Lanny da floresta.
Kade grunhiu, olhando para um quarteirão na direção do centro da cidade, para o que antes fora uma antiga casa de rancho, agora convertida em posto de saúde, no
qual algumas dúzias de pessoas estavam reunidas sob a luz do pátio, algumas de pé, outras sentadas à toa em motoneves.
Alex desligou o motor do avião e abriu a porta do piloto. Kade saiu junto com ela, andando pela frente da aeronave enquanto ela o prendia e trancava tudo. Seus movimentos
eram eficientes, as mãos enluvadas trabalhavam mais por hábito do que seguindo pensamentos conscientes. Quando, por fim, olhou para ele, Kade viu que o rosto dela
estava pálido, a expressão estava séria e preocupada. Mas o olhar estava afiado com determinação.
– Alex… vamos discutir isso antes que você vá lá e diga o que acha que tem que dizer para esse pessoal.
Ela franziu o cenho.
– Eles precisam saber. Eu tenho que contar.
– Alex. – Ele a segurou pelo braço, com mais firmeza do que pretendia. Ela olhou para os dedos que a prendiam, depois levantou o olhar. – Não posso permitir que
você faça isso.
Ela se desvencilhou e, por um segundo, ele considerou colocá-la em transe para mantê-la afastada da aglomeração logo adiante. Com um mínimo esforço mental e um resvalar
de sua palma na testa dela, ele poderia colocá-la num estado mais maleável de semiconsciência.
Poderia ganhar um tempo precioso. Impedi-la de colocar em risco sua missão para a Ordem ao alertar seus concidadãos da existência de vampiros vivendo entre eles,
à espreita na escuridão.
E ela o odiaria ainda mais – e com todo o direito – por continuar a manipulá-la.
Ela recuou um passo, as sobrancelhas ainda unidas mostrando sua confusão.
– O que deu em você? Eu tenho que ir.
Ele não a impediu quando ela girou e seguiu trotando na direção da pequena clínica da cidade. Com uma imprecação semicerrada, Kade foi atrás dela. Alcançou-a num
instante, depois abriu caminho ao seu lado entre as pessoas agrupadas que conversavam ansiosas.
– … terrível que algo assim tenha acontecido novamente – uma mulher de cabelos brancos murmurou para a pessoa ao seu lado.
– … ele perdeu tanto sangue – outra pessoa observou. – Ficaram dilacerados, foi o que ouvi. Não sobrou nada muito intacto em nenhum dos dois.
– Que coisa horrível – disse outra voz na multidão, carregada de pânico. – Primeiro os Toms, agora Big Dave e Lanny. Quero saber o que o oficial Tucker planeja fazer
a respeito!
Kade caminhou ao lado de Alex enquanto ela marchava na direção de Zach, que estava próximo à entrada da clínica, com o celular pressionado ao ouvido. Ele deu a entender
que notara sua aproximação com um aceno de cabeça, continuando a gritar ordens para alguém do outro lado da linha.
– Zach – disse ela –, preciso falar com você…
– Estou ocupado – ele ralhou.
– Mas, Zach…
– Agora não, mas que merda! Tenho um homem morto e outro sangrando ali dentro e toda a maldita cidade fica me atormentando!
Kade conseguiu conter o grunhido protetor que se formou na garganta ante a explosão do humano. Sua raiva escalou perigosamente, os músculos ficaram tensos e prontos
para uma briga para a qual ele percebeu estar mais do que pronto para começar. No entanto, sutilmente segurou Alex pelo braço e se colocou entre ela e o outro macho.
– Venha – ele lhe disse, guiando-a para longe do policial e também da sua fúria. – Vamos para outro lugar até as coisas se assentarem.
– Não – ela se opôs. – Não posso ir. Tenho que ver Big Dave. Preciso ter certeza…
Ela se soltou e subiu os degraus de concreto às pressas, sendo seguida de perto por Kade. O lugar estava muito silencioso, somente o zumbido das luzes fosforescentes
no teto, vindo da recepção deserta e seguindo por todo o corredor em direção às salas de exames. Vendo a aparência dispersa da clínica e a sua falta de equipamentos,
ela não lhe parecia pronta para tratar de algo muito maior do que um machucado ou uma aplicação de vacinas.
Alex caminhou pelo corredor com passos firmes e rápidos.
– Onde está Fran Littlejohn? Ela nunca deixa ficar tão frio aqui dentro – murmurou, mais ou menos na mesma hora em que Kade atentava para a temperatura.
Um frio ártico soprava pelo corredor vindo de uma das salas do fundo. A única com a porta fechada.
Alex pôs a mão na maçaneta. Ela não cedeu.
– Que estranho. Está trancada.
Os instintos de guerreiro de Kade se acenderam.
– Para trás.
Ele já se colocava diante dela, movendo-se com uma rapidez que os olhos dela não conseguiram acompanhar. Segurou a maçaneta e a girou com força. A tranca se abriu,
os mecanismos se desintegraram como pó num segundo.
Kade abriu a porta e se viu fitando os olhos frios de um Servo Humano.
– Skeeter? – A voz de Alex soou aguda de surpresa e carregada de suspeitas. – Que diabos está fazendo aqui?
O interesse do Servo estava bem claro para Kade. No chão ao lado da maca de Big Dave jazia uma mulher grande, de meia-idade, sem dúvida a funcionária do posto de
saúde. Estava inconsciente, mas ainda respirando, o que era melhor do que se podia dizer do seu paciente no leito.
– Fran! – Alex exclamou, apressando-se para junto da mulher, que não reagiu.
O foco de Kade era outro. O cômodo fedia com o cheiro sobrepujante de sangue humano. Se estivesse fresco, a reação física de Kade seria impossível de esconder, mas
o cheiro era de sangue envelhecido, as células já não viviam. Assim como Big Dave, que, deitado na maca, estava praticamente irreconhecível devido à gravidade dos
ferimentos. Kade só precisou aspirar uma vez o cheiro da hemoglobina coagulada para saber que o homem havia morrido há vários minutos.
– Meu Mestre ficou aborrecido ao saber do ataque de hoje – disse o Servo, com o rosto pálido e inexpressivo. Atrás dele havia uma janela aberta, obviamente sua via
de entrada. Na mão, ele trazia um par de tesouras cirúrgicas que tinham sido usadas para acelerar os efeitos dos ferimentos letais de Big Dave.
– Kade… do que ele está falando?
Skeeter sorriu para Alex, um sorriso estranho.
– Meu Mestre também não ficou nada satisfeito ao ouvir a seu respeito. Testemunhas costumam ser um problema, entende?
– Ai, meu Deus – Alex murmurou. – Skeeter, o que você está dizendo? O que você fez?!
– Filho da puta – Kade sibilou, lançando-se sobre o Servo. Derrubou Skeeter num ataque de esmagar os ossos. – Quem criou você? Responda!
Mas o escravo de sangue só o encarou e riu, apesar dos golpes que Kade desferia nele.
– Quem é o filho da puta do seu Mestre? – bateu novamente em Skeeter. E mais uma vez. – Fale, seu merdinha.
As respostas não lhe foram dadas. Uma parte irracional sua se prendeu ao nome de Seth, mas aquilo era impossível. Ainda que Kade e seu irmão gêmeo fossem da Raça,
a linhagem deles não era antiga o bastante ou pura o suficiente para qualquer um deles criar um Servo Humano. Somente as gerações mais antigas da raça vampírica
tinham o poder de sugar um humano até quase a morte, depois assumir o comando da sua mente.
– Quais são as suas ordens? – Socou o rosto sem alma e sorridente do Servo. – O que contou ao seu Mestre a respeito de Alex?
Atrás dele, a voz dela penetrou a violência que o acometia.
– Kade… por favor, pare. Você está me assustando. Pare com isso e deixe-o ir.
Mas ele não podia parar. Não poderia libertar o humano que um dia fora Skeeter Arnold, não mais. Não sabendo o que ele era agora. Não sabendo o que ele poderia fazer
com Alex se fosse libertado para obedecer às ordens do seu Mestre novamente.
– Kade, por favor…
Com um rugido gutural, ele segurou o pescoço do Servo nas mãos e girou com força. Houve um estalido de ossos e tendões se partindo, depois um baque quando ele deixou
o fardo inerte cair no chão.
Ouviu o arfar de Alex às suas costas. Ele pensou que ela fosse gritar, mas ela ficou completamente calada. Quando Kade se virou para ela, não foi difícil ver a confusão
– e o choque – nos olhos castanhos arregalados.
– Lamento que tenha visto isso – disse ele, baixinho. – Não havia como evitar.
– Você… o matou. Simplesmente o matou… com as próprias mãos.
– Ele já não estava mais vivo, Alex. Não passava de uma concha. Já não era mais humano. – Kade franziu o cenho, percebendo como aquilo devia ter soado para ela,
vendo seu olhar confuso. Lentamente ele se levantou, e ela recuou um passo, para longe do seu alcance.
– Não me toque.
– Ah, merda – ele murmurou, passando os dedos pela cabeça. Ela passara por muita violência, mais do que o seu quinhão; a última coisa de que ela precisava era participar
de mais por causa do seu envolvimento com ele. – Odeio o fato de você estar aqui agora, testemunhando isso. Mas eu posso explicar…
– Não. – Ela balançou a cabeça com vigor. – Não, tenho que procurar Zach. Tenho que buscar ajuda para Big Dave e tenho que…
– Alex. – Kade a segurou pelos braços de leve, mas sem permitir que ela se soltasse. – Não há nada que possa ser feito por nenhum desses homens agora. Envolver Zach
Tucker ou qualquer outra pessoa nisso só tornará a situação ainda mais perigosa – não só para eles, mas para você. Não posso correr esse risco.
Ela o encarou, os olhos perscrutando-o.
No silêncio que pareceu permear o ar, a funcionária da clínica que Skeeter nocauteara começava a recobrar a consciência. A mulher gemeu, murmurando algo incompreensível.
– Fran – disse Alex, virando-se para ajudar a outra mulher.
Kade bloqueou o seu caminho.
– Ela vai ficar bem.
Com Alex observando-o atentamente, ele foi para junto da mulher e pousou a mão sobre a testa dela com gentileza.
– Durma, Fran. Quando você acordar, não se lembrará de nada disso.
– O que está fazendo com ela? – Alex exigiu saber, a voz se elevando enquanto a funcionária relaxava ao toque dele.
– Será mais fácil para ela se ela se esquecer de que Skeeter esteve aqui – disse ele, certificando-se de que a mente dela apagara qualquer lembrança do ataque de
Skeeter e da presença dele e de Alex ali. – Também será mais seguro para ela assim.
– Do que está falando?
Kade virou a cabeça para encará-la.
– Há mais sobre os seus monstros do que você imagina, Alex. Muito mais.
Ela o encarou.
– O que está dizendo, Kade?
– Antes, quando estávamos no chalé, você disse que confiava em mim, certo?
Ela engoliu em seco e concordou sem dizer nada.
– Então, confie em mim, Alex. Ah, caramba… Não confie em ninguém mais a não ser em mim. – Relanceou para o corpo de Skeeter – o cadáver do Servo Humano que agora
ele teria que desovar em algum lugar, e rápido. – Preciso que volte lá para fora. Não pode mencionar nada a ninguém a respeito de Big Dave e de Skeeter ou do que
aconteceu aqui. Não conte a ninguém o que viu aqui, Alex. Preciso que saia, volte para casa e espere que eu a procure. Prometa.
– Mas ele… – a voz se partiu ao gesticular na direção do corpo alquebrado no chão.
– Cuidarei de tudo, Alex. Só preciso que me diga que confia em mim. Que acredita quando eu lhe digo que não há motivos para você ter medo. Não de mim. – Esticou
a mão para tocar no rosto frio e ficou aliviado quando ela não se retraiu ou se afastou. Estava pedindo muito dela – muito mais do que tinha direito. – Vá para casa
e espere por mim, Alex. Vou para lá assim que puder.
Ela piscou algumas vezes, depois retrocedeu alguns passos. Seus olhos estavam inexpressivos ao se aproximar da porta, e por um instante ele se perguntou se o medo
seria demais para ela agora.
– Está tudo bem – disse ele. – Eu também confio em você, Alex.
Ele se virou e ouviu quando ela se foi, deixando-o ali para se livrar daquela confusão sozinho.
CONTINUA
Capítulo 11
Era estranho estar de volta aos seus velhos aposentos no Refúgio do pai, como se ele tivesse de algum modo entrado num lar dos sonhos, distante e conservado na memória,
que já não parecia mais ser adequado a ele. No entanto, fiel à sua palavra, a mãe de Kade se certificou de que nada estivesse fora do lugar desde que ele partira
um ano antes. Depois da longa noite que teve em Harmony, ele conseguia apreciar o estofamento confortável de sua antiga poltrona reclinável de couro, perfeitamente
localizada diante da imensa lareira de pedras do rio, que crepitava com achas de madeira recém-dispostas.
Kade se recostou na poltrona e riu ao telefone enquanto Brock o deixava a par de tudo o que tinha perdido em Boston nas duas últimas noites.
– Estou falando, cara, se a gente não se cuidar, estas fêmeas daqui vão arrasar com a gente. O jeito com que estão cuidando das missões durante o dia está começando
a acabar com a nossa imagem.
Desde que ele ligara para o Q.G. da Ordem há alguns minutos, Brock o vinha presenteando com histórias sobre as Companheiras de Raça dos outros guerreiros e dos esforços
delas em ajudar no que, até pouco tempo, fora uma espécie de clube só de garotos. Agora as missões da Ordem se tornaram operações em que todos colocavam as mãos
– exclusivamente com o intuito de impedir que o maníaco da Raça ávido pelo poder chamado Dragos desencadeasse seu tipo pessoal de inferno tanto para a espécie humana
como para a Raça deles.
Os recursos de Dragos estavam de acordo com suas finanças e, ao que parecia, eram tão sombrios quanto seus planos. Seu ato mais hediondo fora a captura e o aprisionamento
de um sem-número de Companheiras de Raça ao longo das últimas décadas, usando-as para criar um exército de assassinos selvagens. Tendo o quartel-general de Dragos
sido atacado pela Ordem algumas semanas antes, suas operações foram interrompidas – desmontadas e desviadas, conforme as suspeitas da Ordem.
Encontrar Companheiras de Raça em cativeiro antes que ele pudesse causar mais mal era o objetivo primário da Ordem no momento. Visto que a rapidez na ação podia
representar a diferença entre a vida e a morte, Lucan concordara em utilizar toda arma do arsenal da Ordem, que incluía as fêmeas muito especiais e singularmente
dotadas que aceitaram alguns dos guerreiros como companheiros.
Havia a parceira de Rio, Dylan, que possuía a habilidade de ver os espíritos das outras Companheiras de Raça mortas e, quando tinha sorte, obter informações críticas
delas. Elise, unida a Tegan, possuía o talento de ouvir as intenções humanas sombrias e corruptas. Ela acompanhava Dylan em abrigos, lares e albergues, e sua habilidade
a ajudava a acessar as intenções das pessoas que conheciam ao longo do caminho.
A companheira de Gideon, Savannah, usava sua habilidade tátil para ler a história de um objeto, na esperança de encontrar elos para algumas das desaparecidas. A
de Nikolai, Renata, com seu poder de explodir a mente mesmo do mais forte dos vampiros, transformou-se numa aliada formidável em qualquer missão, fornecendo serviços
de guarda-costas para as outras Companheiras de Raça em suas missões diurnas.
Mesmo a companheira de Andreas Reichen, Claire, que apenas recentemente se recuperara do seu ordálio nas mãos de Dragos e dos seus associados, aparentemente estava
se envolvendo nos assuntos da Ordem. Utilizando-se do seu dom de andar pelos sonhos, ela vinha tentando fazer contato com algumas das Companheiras de Raça conhecidas
que foram dadas como desaparecidas ao longo dos anos.
– Sabe – acrescentou Brock com secura –, quando Niko me recrutou para esse trabalho no ano passado, eu esperava que fosse apenas uma bela desculpa para poder chutar
uns traseiros Renegados.
Kade sorriu, lembrando-se das primeiras patrulhas pelas ruas de Boston, que costumavam envolver apanhar os ferozes viciados em sangue da cidade e explodi-los.
– Isso o faz sentir saudades da simplicidade dos primeiros meses no trabalho, não é?
Brock grunhiu em concordância. Depois perguntou:
– Falando em Renegados, como estão as coisas aí nessa geladeira? Já faz dois dias. Ainda não cuidou do assunto?
– Estou seguindo algumas pistas, mas nada de concreto até agora. Provavelmente vou ficar aqui mais alguns dias, talvez uma semana.
Brock exalou uma imprecação que revelou a Kade o que ele achava dessa perspectiva.
– Antes você do que eu, cara. Antes você do que eu… – Houve uma pausa antes de ele perguntar: – Já conseguiu encontrar sua família?
– Bem… – Kade disse, inclinando a cabeça para trás para fitar a viga de madeira do teto. – A minha chegada em casa foi mais ou menos como antecipei.
– Tão bom assim, é?
– Digamos que me sinto mais acolhido quando saio na escuridão de vinte graus abaixo de zero.
– Dureza – disse Brock. – Lamento por isso, cara. De verdade.
Kade assentiu.
– Deixa pra lá. Não preciso falar sobre a minha recepção calorosa em casa. Eu só queria ligar para passar uma informação que Gideon pode achar interessante.
– Ok. Manda ver.
– Encontrei o cretino que postou o vídeo sobre o ataque aos humanos. Seu nome é Skeeter Arnold, um drogado local, provavelmente um traficante café com leite. Eu
o vi sair de um bar e entrar numa Hummer zerinho com motorista. Foi levado a algum tipo de escritório de uma mineradora na floresta. O nome no portão era Companhia
de Mineração Coldstream. Peça a Gideon que dê uma olhada quando tiver tempo. Estou curioso para saber que tipo de negócios esse perdedor tem com eles.
– Pode deixar – disse Brock. – Cuide-se. Não congele nada de que possa precisar depois.
Kade riu, apesar da inquietação que sentia só de pensar naquela missão.
– Entrarei em contato – disse ao terminar a ligação.
Assim que deixou o telefone na mesinha ao lado, uma batida forte soou do lado de fora da porta do chalé.
– Está aberta – disse, esperando ver o pai. Preparou-se para a desaprovação que se seguiria. – Pode entrar.
Mas foi Maksim quem entrou, provocando um alívio em Kade que ele mal conseguiu esconder. Levantou-se sorrindo e gesticulou para que o tio se juntasse a ele diante
da lareira.
– Não pensei que você fosse voltar – comentou Max. – Pelo menos não tão cedo. Ouvi que as coisas não correram bem entre você e meu irmão no outro dia. Bem que eu
gostaria que ele não fosse tão duro com você.
Kade deu de ombros.
– Nunca nos entendemos bem. Eu não tinha esperanças de que começássemos agora.
– Agora que você é um dos guerreiros da Ordem – disse Max, com os olhos cintilando numa conspiração ávida, e a voz grave com uma pontada de franca admiração. – Estou
orgulhoso de você, meu sobrinho. Orgulhoso do trabalho que vem fazendo. Há honra nele, assim como sempre houve em você.
Kade quis descartar o elogio como se fosse algo desnecessário, mas ouvi-lo – especialmente vindo de Max, que, apesar de ser algumas centenas de anos mais velho que
ele, sempre lhe pareceu mais com um irmão – fez com que se sentisse bem demais para fingir que não importava.
– Obrigado, Max. Isso significa muito para mim, vindo de você.
– Não há por que me agradecer. Estou dizendo a verdade. – Fitou Kade longamente, depois se inclinou para a frente, os cotovelos plantados nos joelhos afastados.
– Ficou fora por um ano. Deve estar fazendo coisas importantes para Lucan e para a Ordem.
Kade sorriu, percebendo as suas intenções. Como ele, Max ansiava por aventuras. Ao contrário dele, Max se comprometeu a servir como segundo homem para o pai de Kade,
o líder do Refúgio Secreto em Fairbanks. A lealdade de Max o acorrentara àquela prisão de quatro mil hectares, e ainda que ele jamais se esquivasse das suas obrigações
ou da sua promessa ao irmão duro e intransigente, Max apreciava os conceitos de risco e recompensa, de coragem e honra, tanto quanto Kade.
Por causa disso, e porque Kade entendia que a lealdade de Max se estendia a ele também, sabia que lhe confiar alguns detalhes das suas experiências na Ordem e da
missão atual não teria problema.
– Ouvi dizer que houve uma revolta na Agência lá no leste há alguns meses – comentou Max, observando Kade com curiosidade, à espera que ele elaborasse a questão.
– Houve, sim – ele admitiu, lembrando-se de uma das suas primeiras missões e do começo dos problemas da Ordem com o louco chamado Dragos. – O nosso departamento
de informações descobriu um diretor de alto escalão da Agência que não era o que aparentava ser. Esse cara vinha trabalhando com um nome falso e fomentando uma rebelião
secreta há várias décadas – mais até. Ainda estamos tentando determinar até onde chega essa corrupção, mas não tem sido fácil. Toda vez que nos aproximamos do bastardo,
ele se esconde ainda mais.
– E aí vocês o perseguem ainda mais – Max disse, falando como um dos guerreiros de Boston. – Vocês têm que continuar atingindo-o, cercando-o por todos os lados,
até ele ficar exausto demais para correr e não ter alternativa a não ser ficar e lutar. E então vocês o destruirão de uma vez por todas.
Kade assentiu com gravidade, percebendo a sabedoria do conselho de Max e desejando que a perseguição a Dragos fosse tão simples e direta assim.
O que Max não sabia – o que nem ele, nem qualquer outra pessoa, tinha permissão de saber – era que Dragos era apenas a ponta de um iceberg bem traiçoeiro. Dragos
tinha uma arma secreta, uma que ele detinha há séculos. Mais ou menos na mesma época em que Kade se unira à Ordem, eles descobriram a existência de uma criatura
que se pensava estar morta há muito tempo. Um Antigo. Um dos extraterrestres sedentos de sangue que deram vida à Raça de vampiros na Terra há milênios.
Dragos era neto daquela criatura e vinha formando seu exército de vampiros assassinos, incontroláveis e implacáveis, gerados a partir dele por mais tempo do que
qualquer pessoa gostaria de conceber.
Se essa novidade se espalhasse pelas comunidades da Raça nos Estados Unidos e no exterior, o pânico se propagaria.
Caso vazasse para a população humana que não só havia vampiros entre eles, mas que um megalomaníaco dentre eles pretendia assumir o poder e escravizar a todos?
Armagedom.
Kade teve que se sacudir mentalmente para se livrar desse cenário de pesadelos.
– Enquanto o restante da Ordem está fazendo exatamente o que você disse, eu acabei escolhendo o palitinho menor e vim parar no Alasca. Estou investigando um ataque
a humanos na floresta – uma família inteira dizimada, em apenas uma noite.
Max franziu o cenho.
– Renegados?
– É o nosso palpite. – E também a esperança de Kade, embora cada minuto daquela missão o levasse cada vez mais longe de um resultado favorável. – Não ficou sabendo
de nenhum problema nos Refúgios, ficou? Algum boato de alguém com propensões para a Sede de Sangue?
Max meneou a cabeça lentamente.
– Nada parecido. Houve um incidente no Refúgio em Anchorage uns nove meses atrás. Algum garoto idiota quase sangrou um humano até a morte numa festa, mas esse foi
o único problema na região nos últimos tempos.
Essa novidade por certo não fez Kade se sentir melhor. Porque se não havia Renegados à solta, então só restava um lugar sensato para se colocar a culpa.
– Fico imaginando se Seth não ouviu nada – murmurou, tentando esconder o medo e a fúria da voz. – Eu detestaria não vê-lo enquanto estou aqui.
– Ele também detestaria isso – Max disse, e Kade pôde ver que ele falava sério.
Ele não sabia a respeito de Seth. Como todos os outros, ele não fazia ideia.
Somente Kade sabia.
E o fardo desse conhecimento pesava cada vez mais.
Max se recostou na poltrona e pigarreou com suavidade.
– Há algo que eu gostaria de lhe contar, Kade. Algo que você precisa entender… A respeito da sua família, do seu pai.
– Continue – disse Kade, sem saber direito se gostaria de ouvir o quanto o pai adorava Seth e desejava que Kade fosse mais parecido com ele.
– Meu irmão, o seu pai, não tem facilidade para demonstrar afeição. Especialmente com você.
– Engraçado, eu não tinha percebido isso. – Kade sorriu com um humor que não sentia.
– A nossa família tem um segredo sombrio – Max disse, e Kade sentiu o corpo ficar entorpecido. – Kir e eu tínhamos um irmão mais novo. Estou certo de que você nunca
soube disso. Poucas pessoas sabem. Seu nome era Grigori. Kir o amava muito. Todos nós o amávamos. Grigori era um rapaz inteligente e charmoso. Mas também tinha um
lado selvagem. Mesmo em idade tenra, ele se revelava contra a autoridade e andava no fio da navalha em todas as situações sem medo algum.
Kade se viu sorrindo, pensando que talvez também gostaria de Grigori.
– Apesar dos seus defeitos, Kir o adorava. Mas, alguns anos mais tarde, quando ficamos sabendo que Grigori se tornara Renegado, que em sua Sede de Sangue ele tinha
matado, Kir o excluiu completamente. Simples assim – Max disse, estalando os dedos. – Nunca mais vimos Grigori. Desde então, Kir sequer o mencionou novamente. Dali
por diante, Kir se tornou outro homem.
Kade ouviu atentamente, relutante em admitir a pontada de empatia que sentia pelo pai e pela perda que ele sofrera.
– Talvez seu pai acredite que não suportaria esse tipo de dor novamente – Max sugeriu. – Talvez, às vezes, ele veja muito de Grigori em você.
E, pelo visto, resolvera excluir Kade antes, ao mesmo tempo em que depositava todas as esperanças paternais em Seth.
– Não tem importância – Kade murmurou, acreditando apenas parcialmente nisso. Estava envolvido demais com situações de vida e morte para se preocupar com a baixa
expectativa do pai para com ele. – Agradeço pela informação, Max. E pela sua opinião. Também agradeço por você ter vindo.
Max, perceptivo como sempre, captou a sutil sugestão e se levantou.
– Você tem coisas para fazer. Não devo prendê-lo.
Quando esticou a mão, Kade, em vez de aceitá-la, o puxou para um abraço.
– Você é um bom homem, Max. Um bom amigo. Obrigado.
– Qualquer coisa que você precisar, Kade, só precisa me pedir.
Foram juntos até a porta, e Kade a abriu no momento em que duas mulheres, embrulhadas em pesados casacos de inverno e carregando uma manta cada uma, passavam diante
do seu chalé. Uma delas levantou o olhar e estava prestes a desviá-lo quando voltou a olhar novamente.
– Ah… Kade? – perguntou ela, seu belo rosto se iluminando num sorriso. – Kade! Ouvi que você tinha voltado para o Alasca, mas não sabia que estava aqui.
– Olá, Patrice – disse ele, lançando um sorriso educado para a Companheira de Raça que seu irmão gêmeo mantinha à sua espera debaixo das asas nos últimos anos.
Ao seu lado, Max ficara absolutamente imóvel. Kade sentia o calor emanando do outro macho, enquanto Patrice continuava conversando com animação, gentil e bela, com
o cabelo ruivo brilhante e os vívidos olhos verde-escuros iluminados pela luz da lareira que vinha de dentro do chalé.
– Ruby e eu estávamos indo ver a aurora boreal de uma das rochas. Vocês gostariam de nos acompanhar?
Kade e Max recusaram ao mesmo tempo, mas foi a recusa de Max que diminuiu o sorriso de Patrice, embora ela tivesse tentado esconder isso com a ponta da manta que
carregava. Enquanto as Companheiras de Raça se afastavam, Kade notou que o macho mais velho não conseguia deixar de olhar para elas.
Ou melhor, para uma delas.
– Patrice? – Kade perguntou, surpreso pelo desejo muito bem contido que percebera nos dois.
Maksim desviou o olhar para ele.
– Ela se comprometeu com outro. Eu jamais interferiria nisso, não importando o quanto Seth demore em finalmente aceitar o presente precioso que recebeu. O bastardinho
arrogante e ignorante…
Kade viu o tio sair pela varanda e continuar pelo terreno coberto de neve até seus próprios aposentos.
Não sabia se ria ante a virulência da declaração de Max ou se amaldiçoava Seth por estar potencialmente arruinando mais duas vidas.
Capítulo 12
Alex despejou uma chaleira de água fervente na cafeteira antiga sobre o fogão. Conforme a cozinha se enchia com o aroma do café recém-coado pela segunda vez naquele
dia, ela se virou para a mesinha onde Jenna e ela estavam tomando café da manhã. Ou melhor, onde Alex estava tomando café da manhã. Jenna apenas beliscara as batatas
fritas caseiras e deixara os ovos mexidos praticamente intocados.
– Deus do céu, eu odeio o inverno – murmurou ela, recostando-se na cadeira de madeira que rangeu, desviando um olhar pensativo para a escuridão de fora às oito horas
da manhã. – Em determinados dias, parece que ele nunca vai acabar.
– Vai, sim – disse Alex, sentando-se diante da amiga e observando o olhar atormentado de Jenna se aprofundar.
Claro que não era nem a escuridão nem o frio que a entristeciam. Alex não tinha de olhar para o calendário na parede ao lado do telefone para compreender a crescente
tristeza de Jenna.
– Ei – disse Alex, forçando um tom alegre na voz. – Se o tempo continuar claro no final de semana, pensei que poderíamos voar até Anchorage. Que tal fazer compras
ou ir ao cinema? Topa um fim de semana só de garotas na cidade?
Jenna voltou a fitá-la e balançou a cabeça de leve.
– Acho que não.
– Ah, que é isso? Vai ser divertido. Sem falar que você está me devendo uma. Acabei o meu melhor café Red Goat com você. Preciso dar um pulo na Kiladi Brothers
para renovar o meu estoque.
Jenna sorriu de modo tristonho.
– Acabou seu amado Red Goat comigo? Uau, você deve estar mesmo preocupada comigo. Acha que estou mal, hein?
– E está? – Alex formulou a pergunta cautelosa, porém direta, que exigia uma resposta igualmente franca. Estendeu a mão por sobre a mesa e segurou a da amiga. Observou-a
com atenção, dando ouvidos aos seus instintos que sempre lhe diziam se estavam lhe contando a verdade ou uma mentira. – Você vai ficar bem desta vez?
Jenna sustentou seu olhar como se estivesse preso a ele e deu um suspiro baixo.
– Eu não sei, Alex. Sinto saudades deles. Eles me davam um motivo para levantar da cama de manhã, entende? Eu me sentia necessária, sentia que minha vida tinha um
propósito maior quando Mitch e Libby faziam parte dela. Não sei se um dia voltarei a sentir isso.
A verdade, então, por mais dolorosa que fosse. Alex recebeu a confissão da amiga com um aperto em sua mão. Ela piscou, libertando Jenna da ligação invisível do seu
olhar inquisidor.
– A sua vida tem um propósito, Jenna. Tem um significado. E você não está sozinha. Para início de conversa, você tem a Zach e a mim.
Jenna deu de ombros.
– Meu irmão e eu temos nos afastado nos últimos tempos e a minha melhor amiga tem falado umas besteiras sobre se mudar daqui.
– Eu falei sem pensar – disse Alex, sentindo uma pontada de culpa tanto pela covardia que a fazia cogitar a ideia de fugir novamente quanto pela meia-verdade que
dava a Jenna agora, na esperança de fazê-la se sentir melhor.
Levantou-se e levou as canecas de café até o fogão.
– A que horas você saiu do Pete’s ontem à noite? – Jenna perguntou enquanto Alex servia café fresco e o trazia de volta até a mesa.
– Saí pouco depois de você. Zach apareceu para me dar uma carona para casa.
Jenna sorveu um gole da sua caneca e a pousou no tampo da mesa.
– É mesmo?
– Foi só uma carona – explicou Alex. – Ele se ofereceu para tomar uma cerveja comigo no Pete’s, mas eu já estava a caminho de casa.
– Bem, conhecendo meu irmão, ele só devia estar querendo uma desculpa para tê-la na caminhonete dele. Ele tem uma queda por você desde que éramos adolescentes, você
sabe disso. Talvez, apesar dessa conversa de ele ser um cara durão, comprometido com o trabalho, ele ainda esteja de olho em você.
Alex não pensava assim. A única noite deles juntos fora prova suficiente para ambos de que o que quer que sentiam um pelo outro, isso jamais voltaria a ultrapassar
os limites da amizade. Ela conhecia Zach há mais de uma década, mas ele lhe parecia mais desconhecido do que Kade, que conhecera apenas um dia atrás.
Por mais incrível que pudesse parecer, apesar da maneira com que Kade mexia com as suas emoções, ela se sentia mais protegida fisicamente com ele do que com Zach,
um oficial condecorado.
Deus do céu. O que isso queria dizer a respeito do seu bom senso, Alex não saberia determinar.
Enquanto refletia tomando um belo gole de café, o telefone da cozinha começou a tocar. Alex se levantou e atendeu a linha comercial de modo automático.
– Entregas e Fretes Maguire.
– Oi.
Aquela única palavra – a voz profunda e agora intimamente familiar – entrou pelos seus ouvidos e desceu por sua espinha numa corrente de pura eletricidade.
– Hum, olá… Kade – respondeu, desejando não soar tão atordoada. E também tinha que parecer que havia perdido o fôlego? – Como conseguiu meu número?
Do outro lado da cozinha, Jenna ergueu as sobrancelhas num indício de surpresa. Alex girou sobre os calcanhares, desejando esconder parte do calor que lhe subia
pelas faces.
– Não existem muitos Maguires em Harmony – disse ele do outro lado da linha. – Nem tantos pilotos. Por isso, com um palpite calculado, telefonei para o único número
que aparecia listado que cobria os dois critérios – um Hank Maguire da Entregas e Fretes Maguire.
– Ah… – A boca de Alex se abriu num sorriso. – E como sabe que ele não é meu marido?
A risada baixa dele soava tão agradável como veludo.
– Você não beija como uma mulher casada…
As entranhas de Alex ficaram moles e aquecidas com esse lembrete, e estava bem difícil não se contorcer ao pensar nos lábios dele sobre os seus e na revisita mental
sensual que tinha feito sozinha no chuveiro na noite anterior.
– Hum, bem… por que telefonou? Você… está ligando a trabalho?
Que Deus a ajudasse, ela quase acrescentou “ou por prazer”, mas teve o bom senso de refrear as palavras antes de se envergonhar ao proferi-las. A última coisa de
que ela precisava era pensar em Kade e em prazer na mesma frase. Ela já tivera uma bela amostra disso. O bastante para saber que traria perigo e complicações; coisas
das quais ela já tinha o suficiente.
– Eu deveria me encontrar com Big Dave e alguns outros caras em Harmony hoje – disse Kade, casualmente lançando o melhor motivo de que ela necessitava para não querer
nada com ele.
– Ah, certo – disse Alex. – A grande caçada aos lobos.
E lá estava ela, permitindo que seus hormônios tresloucados a cegassem para o fato de que ela ainda não conhecia o jogo dele. A raiva surgiu com amargura em sua
garganta.
– Bem, divirta-se. Preciso desligar…
– Espere – disse ele, no momento em que ela estava prestes a colocar o aparelho no gancho. – Eu deveria me encontrar com Big Dave hoje, mas, na verdade, eu tinha
esperanças de conseguir um guia para me levar à casa de Henry Tulak.
– Henry Tulak – Alex repetiu lentamente. – O que você poderia querer no chalé dele?
– Eu só… Eu preciso mesmo saber como aquele homem morreu, Alex. Você pode me levar lá?
Ele parecia sincero e estranhamente resignado. Por isso parecer tão importante para ele, Alex se viu cedendo quando deveria estar afastando-o por completo.
– E quanto a Big Dave?
– Eu me desculpo quando o encontrar novamente – respondeu, parecendo qualquer coisa exceto preocupado quanto a enfrentar o valentão da cidade e os seus amigos. –
O que me diz, Alex?
– Sim, tudo bem. – Maldição, não deveria se sentir tão excitada com a perspectiva de passar um tempo ao lado dele. – O dia vai nascer lá pelo meio-dia, então por
que não se encontra comigo aqui em Harmony às onze? Teremos luz suficiente para viajar e algumas horas para verificar o lugar depois que chegarmos.
Kade resmungou, como se estivesse refletindo a respeito do outro lado da linha.
– Prefiro não esperar pela aurora para seguir para lá, se estiver tudo bem para você.
– Prefere viajar no escuro?
Ela conseguia perceber o sorriso se ampliar nas feições dele quando ele respondeu:
– Não tenho medo de um escurinho se você não tiver. Já estou a caminho, posso encontrá-la na sua casa em uma hora.
Bem, ele era direto, ela tinha que admitir. O homem colocava uma coisa na cabeça e não temia ir atrás dela.
– Daqui a uma hora está bom para você, Alex?
Ela relanceou para o relógio e perguntou se conseguiria tirar o pijama, tomar banho e dar um jeito no rosto e no cabelo nesse meio-tempo.
– Hum, sim, claro… Daqui a uma hora. Até lá.
Quando desligou, Alex sentiu a curiosidade do olhar de Jenna às suas costas.
– Era o Kade?
Ela se virou, com um sorriso bobo.
– É, ele mesmo.
Jenna se recostou na cadeira e cruzou os braços diante do peito, parecendo uma verdadeira policial, mesmo de blusa de moletom e jeans gastos, com os cabelos soltos
ao redor dos ombros.
– O mesmo Kade que estava no Pete’s ontem à noite, e o mesmo Kade que você viu na propriedade dos Toms ontem e com quem você disse que não quer ter nada? Esse Kade?
– O próprio – respondeu Alex. – E antes que você diga qualquer outra coisa, só vou levá-lo para o chalé do Tulak para que ele dê uma olhada.
– Ok.
– São só negócios – disse Alex, pegando os pratos do desjejum com pressa e colocando-os na pia. Pegou uma fatia de pão embebida em ovos e a jogou na direção da boca
esperançosa de Luna. – Na minha opinião, se eu conseguir afastar uma arma sequer da mira dos lobos, então estou mais do que contente em distrair Kade com um passeiozinho
no campo.
Quando se aproximou da mesa para limpá-la, Jenna a encarou.
Não era preciso ter o detector de mentiras de Alex, nem o olhar treinado de policial de Jenna, para entender que, sem sombra de dúvida, Alex estava entusiasmada.
Revirada de ponta-cabeça por um homem que conhecera há dois dias. Tentada a permitir que esse homem, que era de uma centena de tons de cinza, entrasse em seu mundo
certinho onde tudo era preto ou branco.
– Tome cuidado, Alex – disse Jenna. – Sou sua amiga e te amo, não quero que você se machuque.
– Eu sei – ela disse. – E não vou sair magoada.
Jenna riu baixinho e balançou a mão à sua frente, dispensando-a.
– Bem, por que está parada aí quando deveria estar se aprontando para esse não encontro? Vá em frente. Deixe que eu e Luna cuidemos da limpeza do café da manhã.
Alex sorriu.
– Obrigada, Jenna.
– Mas quando você voltar desse não encontro – Jenna lhe disse, enquanto ela avançava pelo corredor –, vou querer o nome completo dele e o número do seguro social.
E também seu histórico médico completo! Sabe que não estou brincando!
Alex sabia muito bem disso, mas estava rindo mesmo assim, levada pelas muito bem-vindas, talvez porque incomuns, sensações de excitação e esperança.
Capítulo 13
Kade não tinha percebido o quanto estava ansioso para ver Alex até enxergar sua silhueta atrás do vidro jateado da porta da casa dela quando ela foi abri-la. Alta
e magra, vestida num par de jeans escuros e uma malha verde-limão com uma camiseta de gola alta por baixo, o cabelo loiro preso em duas tranças que derramavam-se
em seus ombros, em pleno inverno, ela parecia fresca como a primavera. Ela lhe sorriu através dos cristais de gelo pensos nas janelas, o rosto naturalmente belo
enaltecido por um pouco de rímel e o rubor repentino que se fez em suas faces.
– Olá – disse ela, ao abrir a porta para que ele entrasse. – Você me encontrou.
Ele inclinou a cabeça uma vez num aceno.
– Eu te encontrei.
– Deixe-me adivinhar – disse ela, com o sorriso ainda estampado no rosto. – Você andou até aqui assim como fez no outro dia para ir até a floresta?
Ele lançou um sorriso malicioso e indicou a motoneve estacionada no jardim.
– Resolvi dirigir hoje.
– Sim, claro que sim. – Ela segurou a porta aberta para ele. – Entre. Só preciso calçar as botas e pegar o casaco, e podemos ir.
Quando ela desapareceu virando na sala de estar, Kade entrou na aconchegante cozinha e passou o olhar pela mobília simples e pela atmosfera convidativa e casual.
Ele sentia o perfume de Alex ali, sentia a presença dela nas linhas retas e regulares do sofá e das cadeiras, na madeira rústica das mesas e nos tons verdes, marrons
e cremes do tapete entrelaçado debaixo dos pés.
Ela voltou para a sala com um par de botas Sorel e uma parca pesada cor cáqui.
– Pronta, se você estiver. Deixe sua moto aqui. Vamos para os fundos pegar a minha para irmos até a pista.
Kade parou alguns passos atrás dela.
– Pista?
– É – afirmou ela. – Não há previsão de neve para os próximos dias, então para que perder tempo indo de motoneve quando podemos voar até lá?
– Eu não sabia que iríamos voando. – Ele sentiu uma pontada momentânea de incerteza, algo novo para ele. – Ainda está escuro.
– O meu avião não sabe a diferença entre dia ou noite – disse ela, com um brilho dançando nos olhos castanhos. – Vamos. Isto é, a menos que fique pouco à vontade
com um pouco de escuridão, Kade.
Ela caçoava dele, e ele adorou isso. Sorriu, pronto para enfrentar qualquer desafio que ela lhe lançasse.
– Mostre o caminho.
Com Alex encarregada e Kade muito satisfeito em ir na garupa, nem que fosse apenas pela desculpa de passar os braços ao seu redor, aceleraram pelas vias congeladas
da cidade até onde o avião monomotor estava estacionado na singela pista de pouso de Harmony. Além do hangar onde estavam temporariamente estocados os corpos da
família Toms, o aeroporto consistia de uma pista curta de neve compactada e luzes de orientação que mal se enxergava por cima dos montes de neve mais altos.
O Havilland Beaver de Alex tinha um vizinho por companhia, um pequeno Super Cub, equipado com pneus largos em vez dos esquis do veículo de Alex. Uma rajada de vento
atravessou a pista, erguendo uma nuvem de neve que subia como folhas ao vento.
– Lugar agitado, hein?
– Melhor do que nada. – Ela estacionou, e os dois desceram da motoneve. – Vá em frente e entre. Preciso checar o avião antes de decolarmos.
Kade poderia ter se recusado a acatar ordens de uma fêmea, caso não estivesse tão intrigado pela confiança de Alex naquilo que ela realizava. Kade entrou pela cabina
destrancada e fechou a porta. Mesmo o Beaver parecendo um burro de carga visto pelo interior, Kade se assustou com a sensação claustrofóbica da sua cabina. Tendo
mais de um e noventa de altura e pesando mais de cento e dez quilos sem armas e roupas, ele era considerado um macho grande segundo qualquer padrão, mas, ao se sentar
no banco do passageiro do monomotor, os painéis curvados e as janelas estreitas faziam aquilo se parecer com uma gaiola.
Alex apareceu pelo lado do piloto e se sentou no banco atrás do manche.
– Tudo pronto – anunciou com alegria. – Aperte os cintos, e estaremos voando em seguida.
No interior remoto do Alasca, não era de se admirar que não houvesse controle de tráfego aéreo, nenhuma torre de rádio para liberar a decolagem. Dependia somente
de Alex levantar voo e seguir na direção correta. Um minuto mais tarde, subiram na escuridão, cada vez mais alto no céu matutino desprovido de luzes a não ser pelo
manto distante de estrelas reluzentes.
– Bom trabalho – comentou Kade, lançando um olhar para Alex enquanto ela equilibrava a subida e os desviava de um trecho de solavancos provocados pelos ventos. –
Imagino que você já fez isso algumas vezes.
Ela sorriu de leve.
– Voo desde que tinha doze anos de idade. Mas tive que esperar até os dezoito para fazer o curso oficial e tirar o brevê.
– Você gosta de estar aqui em cima, perto das estrelas e das nuvens?
– Adoro – disse ela, concordando com um aceno pensativo, enquanto verificava alguns controles no painel. Depois voltou o olhar para a vastidão diante deles. – Meu
pai me ensinou a voar. Quando eu era menina, ele me dizia que o céu é um lugar mágico. Às vezes, quando eu ficava com medo ou acordava assustada com um pesadelo,
ele me trazia com ele, não importando que horas fossem. Subíamos bem alto no céu, onde nada de ruim podia nos alcançar.
Kade conseguiu detectar a afeição na voz dela quando falou do pai, e também percebeu a tristeza pela sua perda.
– Há quanto tempo seu pai morreu?
– Há seis meses… Alzheimer. Há quatro anos ele começou a se esquecer das coisas. Isso piorou bem rápido, e depois de um ano, quando a doença começou a afetar seus
reflexos no avião, ele finalmente me deixou levá-lo ao hospital em Galena. A doença progride de forma diferente nas pessoas, mas com papai, pareceu dominá-lo com
tanta rapidez… – Alex soltou um suspiro pensativo. – Acho que ele entregou os pontos assim que recebeu o diagnóstico. Não sei, talvez já tivesse desistido de viver
muito antes.
– Por que diz isso?
Aquela não fora uma pergunta invasiva, mas ela mordeu o lábio quando ele a fez, um ato reflexo que revelava que ela provavelmente sentia ter lhe contado mais do
que pretendia. Pelo olhar desconfiado e repentino que ela lhe lançou, ele percebeu que ela tentava avaliá-lo de algum modo, tentando decidir se seria seguro confiar
nele.
Quando ela por fim falou, sua voz saiu baixa, o olhar mirando o para-brisa, como se ela não pudesse falar com ele e olhá-lo ao mesmo tempo.
– Meu… hum… meu pai e eu nos mudamos para o Alasca quando eu tinha nove anos. Antes disso morávamos na Flórida, nas Everglades, onde meu pai pilotava um avião para
passeios turísticos sobre os pântanos e Keys.
Kade a avaliou na luz fraca da cabina.
– É um mundo totalmente diferente daqui.
– É. Pode apostar nisso.
Um barulho metálico repentino surgiu do nada no avião, e a cabina reverberou. Kade se segurou no banco, grato ao ver que Alex não entrara em pânico. A sua atenção
estava voltada para os instrumentos do painel, e ela aumentou a velocidade do avião. Os sacolejos e o barulho abrandaram, e o voo voltou a ficar suave.
– Não se preocupe – ela lhe disse, o tom tão sério quanto sua expressão. – Como meu pai costumava dizer, é um fato científico que alguns dos sons mais alarmantes
nos aviões só podem ser escutados à noite. Acho que estamos bem agora.
Kade riu pouco à vontade.
– Acho que vou ter que confiar em você.
Sobrevoaram um pico, depois fizeram uma leve curva, mudando de direção para voltarem a acompanhar o Koyukuk logo abaixo.
– Então, o que aconteceu na Flórida, Alex? – perguntou, voltando ao assunto que não pretendia deixar de lado. Seus instintos lhe diziam que estava perto de descobrir
os segredos que ela escondia, mas ele não estava querendo avançar nas suas investigações naquele momento. Estava, de fato, interessado nela – caramba, se fosse honesto
consigo mesmo, teria que admitir que começava a se preocupar de verdade – e desejava entender o que se passara com ela. Tendo captado a dor em sua voz, desejou poder
ajudá-la da maneira que pudesse. – Alguma coisa aconteceu com a sua família na Flórida?
Ela balançou a cabeça e lhe lançou mais um daqueles olhares perscrutadores.
– Não, não conosco… mas minha mãe e meu irmãozinho…
A voz se partiu, emocionada. Kade sentiu as sobrancelhas se unirem ao fitá-la.
– Como eles morreram, Alex?
Por um momento estonteante, seus olhos se prenderam aos dele, imóveis e carregados de um medo renovado, um pavor frio que começou a se formar em seu âmago. O pequeno
compartimento que partilhavam a mais de dois mil metros acima do solo se estreitou ainda mais, contraído pelo silêncio de Alex ao seu lado.
– Eles foram mortos – disse ela por fim. Palavras que só fizeram a pulsação de Kade acelerar quando ele considerou uma causa possível; uma causa terrível que faria
do seu envolvimento com Alex algo ainda mais impossível do que já era. Mas ela deu de ombros e voltou a olhar para a frente. Inspirou fundo e depois soltou o ar.
– Num acidente. Um motorista embriagado passou por um semáforo vermelho num cruzamento. Bateu no carro da minha mãe. Ela e meu irmão caçula morreram com o impacto.
A carranca de Kade se acentuou enquanto ela recitava os fatos depressa, como se não conseguisse dizê-los com a rapidez desejada. E recitar parecia uma descrição
correta, porque algo na explicação dela parecia ensaiado, muito bem treinado.
– Sinto muito, Alex – disse ele, sem conseguir despregar seu olhar interrogador dela. – Imagino que seja ao menos uma bênção o fato de eles não terem sofrido.
– É – respondeu ela automaticamente. – Pelo menos eles não sofreram.
Voaram por um tempo sem conversarem, observando a paisagem escura debaixo deles se alternando de faixas sem luz de floresta densa e montanhas elevadas, para o azul
elétrico da tundra coberta de neve e dos contrafortes das montanhas. No céu ao longe, Kade viu o brilho esverdeado misterioso das luzes do norte. Ele as indicou
para Alex e, apesar de ter visto a aurora boreal inúmeras vezes desde o seu nascimento há quase cem anos, ele nunca estivera no céu para presenciar as cores fantásticas
dançando no horizonte.
– Incrível, não? – Alex comentou, obviamente à vontade ao navegar num amplo arco para que pudessem ver as luzes por mais tempo.
Kade observava as luzes, mas seus pensamentos ainda estavam em Alex, tentando juntar as peças da ficção em que ela queria fazê-lo acreditar.
– O Alasca não poderia ser mais diferente da Flórida, não?
– É verdade – concordou ela. – Meu pai e eu queríamos recomeçar… Tivemos que fazer isso depois que mamãe e Ricky… – Inspirou fundo, fortalecendo-se antes de dizer
mais do que pretendia. – Depois que eles morreram, meu pai e eu voamos para Miami para comprar uma passagem para algum lugar a fim de recomeçarmos nossas vidas.
Havia um globo em uma das livrarias do terminal. Papai me mostrou onde estávamos e me pediu para escolher um lugar para irmos. Escolhi o Alasca. Quando chegamos
aqui, achamos que Harmony parecia uma cidade amigável na qual poderíamos criar nosso novo lar.
– E foi?
– Sim. – Sua voz soou um tanto saudosa. – Mas agora que ele se foi, está diferente para mim. Andei pensando se não está na hora de dar mais uma olhada no globo,
conhecer outra parte do país por um tempo.
Antes que Kade tivesse a chance de perguntar algo mais, o motor começou a fazer barulho e sacolejar com vingança renovada. Alex acelerou mais uma vez, mas o barulho
e o sacolejo persistiram.
– O que está acontecendo?
– Vou ter que aterrissar agora – disse ela. – Ali está o chalé do Tulak. Vou tentar chegar o mais próximo possível.
– Tudo bem. – Kade olhou pela janelinha para o chão que se aproximava mais rapidamente do que ele gostaria. – Só tente descer devagar. Não estou vendo nenhuma pista
aí embaixo.
Ele não precisava ter se preocupado. Alex baixou a aeronave sacolejante em seu par de esquis num deslize suave, conseguindo se desviar de alguns abetos antigos que
se materializaram do nada na escuridão ao pararem sobre a neve fofa. O chalé estava bem diante deles, mas Alex diminuiu a velocidade do Beaver e fez uma curva suave,
navegando com muita precisão para quem teve que aterrissar tão abruptamente.
– Nossa, essa passou perto – exclamou ele ao pararem de vez na neve.
– Acha mesmo? – A expressão de divertimento de Alex era imensa ao desligar o motor.
Ela desceu, e Kade a seguiu até o motor. Ela o olhou por dentro.
– Droga. Bem, pelo menos isso explica o problema. Alguns parafusos saíram da tampa do motor e caíram.
Kade sabia tanto de tampas de motores quanto de tricô. E ele não tinha problema em desejar que isso prendesse-os na floresta por algumas horas. Ou, melhor ainda,
por algumas noites.
– Então, o que você está me dizendo é que ficaremos presos aqui até alguém vir ajudar?
– Você está olhando para a ajuda – ela lhe disse, lançando-lhe um sorriso enquanto voltava para pegar uma caixa de ferramentas no compartimento de carga do avião.
Parte do motivo pelo qual Kade a levou até aquela localização remota era que queria, de uma vez por todas, chegar à raiz do que ela sabia quanto aos homicídios da
família Toms. Agora, depois das meias-verdades que ela lhe contara a respeito das mortes da mãe e do irmão, ele tinha outro motivo para questioná-la. E ele disse
a si mesmo que, no final das contas, se Alex soubesse de algo sobre a existência da Raça – ainda mais se esse conhecimento estivesse relacionado à perda dos familiares
na Flórida –, então, aliviá-la do fardo dessa lembrança seria um ato de bondade seu.
Aquilo, porém, não dizia respeito somente à missão. Ele tentara se convencer de que era isso, mas a obrigação ficara em segundo plano no instante em que chegara
à casa de Alex. A maneira como a sua pulsação ficava mais rápida ao redor dessa fêmea por certo não fazia parte do plano. Seu coração ainda estava acelerado por
conta da repentina aterrissagem, mas assim que Alex voltou para junto dele, parecendo inteligente e capaz, e tão adorável, ao se aproximar do motor, as batidas do
seu coração passaram a ser uma palpitação.
– Importa-se de segurar essa lanterna para mim? – Ela a acendeu e a entregou a ele, depois tirou uma luva e apanhou alguns parafusos na caixa de ferramentas. – Alguns
desses devem servir até voltarmos para casa.
Kade a observou colocar cada parafuso no buraco, imaginando se os guerreiros em Boston sentiam o mesmo orgulho e prazer ao verem suas fêmeas fazerem aquilo que faziam
de melhor.
Mas o pensamento o irritou assim que entrou em sua mente… Desde quando ele era do tipo que pensava em ter uma companheira, quanto mais aproximar Alexandra Maguire
desse cenário? Na melhor das hipóteses, ela era um obstáculo temporário no cumprimento da sua missão para a Ordem. Na pior, ela representava um risco de segurança
para toda a nação da Raça – alguém que ele devia silenciar o quanto antes.
Mas nada disso importava para seu coração acelerado, nem para os estalidos de atenção que atravessavam todas as suas veias e células enquanto ela concluía seu trabalho
a poucos centímetros de distância. Atrás dela, ao longe, a luz verde da aurora boreal se unira a uma faixa avermelhada. A cor emoldurou Alex quando ela se virou
para olhá-lo, e ele se questionou se já vira algo tão belo quanto o rosto dela com o halo de magia congelada da selva do Alasca. Ela não disse nada, apenas sustentou
seu olhar com a mesma intensidade silenciosa que ele sentia atravessando-o.
Kade apagou a lanterna e a colocou sobre a tampa do motor agora fechado. Tirou as luvas e segurou a mão nua de Alex, aquecendo-lhe os dedos na pressão de suas palmas
quentes. Segurou-a de leve, dando-lhe a oportunidade de se afastar caso não desejasse seu toque. Mas ela não opôs resistência.
Ela entrelaçou os dedos nos dele, fitando-o nos olhos com uma intensidade voraz.
– O que quer de mim, Kade? Por favor, preciso saber. Preciso que me diga.
– Eu achei que sabia – disse ele, mas balançou a cabeça. – Achei que tinha tudo certo na cabeça. Deus, Alex… conhecer você mudou tudo.
Ele soltou uma mão para pousar na curva do maxilar dela, escorregando os dedos entre o capuz da parca e o calor aveludado do seu rosto.
– Não consigo entender você – ela disse, franzindo o cenho ao levantar o olhar para ele. – Eu me sinto desconfortável por não conseguir entendê-lo.
Ele tocou a ponta do nariz dela e lhe lançou um sorriso torto.
– Muito cinza no seu mundo em preto e branco?
A expressão dela permaneceu grave.
– Isso me assusta.
– Não se assuste.
– Você me assusta, Kade. Durante toda a minha vida, fugi das coisas que me assustavam, mas com você… – Ela emitiu um suspiro incerto e lento. – Com você, pareço
incapaz de me afastar.
Ele afagou o rosto dela, passou as pontas dos dedos sobre as rugas formadas na testa enquanto ela o fitava.
– Não há motivo para você ficar assustada quando está comigo – ele lhe disse, com toda a honestidade.
Mas, então, ele inclinou a cabeça e pressionou os lábios sobre os dela, e o beijo que deveria ter representado uma promessa carinhosa inflamou-se em algo mais selvagem
quando Alex o retribuiu tão abertamente, provocando a boca dele com a ponta da língua. Todo o calor que surgira entre eles na noite anterior no estacionamento do
Pete’s foi reavivado naquele instante, só que mais veloz, mais intenso, pelas horas em que Kade a desejara. Ele ardia por aquela fêmea, de uma maneira muito perigosa.
Beijá-la era um risco alto; o desejo já alongara as presas, a visão já se tornara aguçada com a luz âmbar que agora preenchia suas íris.
Seduzi-la ali não fora seu objetivo, não importando a missão da Ordem ou o quanto ele desejasse descobrir os segredos de Alex para satisfazer sua curiosidade pessoal.
Afastou-se, a cabeça baixa, o rosto virado para longe para esconder as mudanças que não poderia permitir que ela visse. Mudanças que a assustariam.
Mudanças que ele não seria capaz de explicar.
– O que foi? – perguntou ela, com a voz rouca devido ao beijo. – Algo errado?
– Não. – Ele meneou a cabeça, ainda escondendo o rosto até conseguir aplacar seu desejo. – Nada errado. Mas está frio demais para ficarmos parados aqui. Você deve
estar congelando.
– Não posso dizer que eu esteja sentindo frio no momento – replicou, fazendo-o sorrir a despeito da guerra que acontecia em seu interior.
– É melhor entrarmos. – Ele não aguardou uma resposta antes de dar a volta no avião. – Só preciso da minha mochila. Vá na frente. Vou logo atrás.
– Está bem. – Ela hesitou por um momento, depois se pôs a caminhar na direção do chalé, as botas esmagando a neve. – Traga lenha, já que está por aí. As pessoas
usam este lugar como abrigo agora, então você deve encontrar um pouco no galpão logo atrás.
Ele esperou até que ela tivesse entrado no chalé antes de tirar a mochila com armamento do avião e seguir para procurar o abrigo de madeira. O ar ártico o estapeou
conforme ele avançava pela neve imaculada. Ficou grato pelo castigo do tempo frio. Necessitava da lucidez do vento gélido.
E ainda assim ardia internamente por Alex.
Desejava-a demais, e seria preciso que uma geleira o engolisse para aplacar parte do calor que ela acendia nele.
Capítulo 14
Alex entrou no chalé de um único cômodo e fechou a porta atrás de si para lacrar o frio, com esperanças de conseguir um instante de privacidade para poder lidar
com o tumulto que acontecia dentro dela. Recostou-se contra a madeira gasta e exalou um suspiro trêmulo.
– Controle-se, Maguire.
Quis fingir que o beijo não significara nada, que o simples fato de Kade ter se afastado primeiro era indício de que até mesmo ele pensava que deixar as coisas esquentarem
entre eles seria má ideia. Só que as coisas já estavam quentes, e negar isso não faria o fato desaparecer. Não havia um lugar longe o bastante para que Alex deixasse
de sentir o desejo que sentia por Kade. E o engraçado era que ela não queria fugir daquela sensação. Pela primeira vez na vida, existia algo que a assustava sobremaneira,
mas que não lhe provocava ímpetos de sair correndo.
Não, ainda pior: seus sentimentos por Kade a impeliam a se aproximar dele.
Ainda mais assustador, ela sentiu que Kade poderia ser alguém forte o bastante em quem se apoiar, forte o bastante para que ela se abrisse – se abrisse de verdade
– a respeito de tudo o que mantinha represado dentro de si por tanto tempo. Uma parte sua queria acreditar que ele poderia ser o homem forte que ficaria ao seu lado
em qualquer tempestade, mesmo uma repleta de monstros, na qual a noite tinha dentes e o vento grunhia sedento de sangue.
Kade seria capaz de ficar ao seu lado.
Alex sabia disso do mesmo modo como sabia quando alguém lhe mentia. Ainda que não conseguisse lê-lo como fazia com as outras pessoas, esse mesmo sentido intenso
lhe dizia que isso acontecia porque Kade era diferente das outras pessoas de alguma maneira. Ele era diferente dos homens que já conhecera e que viria a conhecer.
Esse mesmo estranho e inabalável, instinto estivera no comando no voo, quando ela estivera perto de lhe contar a verdade – toda a verdade – sobre os motivos que
levaram o pai e ela a se mudarem da Flórida. A verdade a respeito do que, exatamente, matara sua mãe e seu irmão.
Fora difícil lutar contra esse instinto que desejava permitir a aproximação de Kade, e quando ela lançou a mentira ensaiada que usara com tantos outros sem nenhum
remorso, ser desonesta com Kade fez com que se sentisse terrível. Imagine só – ela escondera uma das verdades mais fundamentais sobre si mesma de todos em Harmony
que a conheciam desde que era uma criança; no entanto, após apenas alguns dias de flertes com um desconhecido, ela se via pronta a contar tudo.
Kade, contudo, já não era mais um estranho para ela. Ele não lhe pareceu um estranho nem mesmo na primeira noite no fundo da igreja, quando os olhos prateados se
encontraram com os seus do outro lado do salão.
E se tudo o que vinham fazendo desde então era apenas um flerte, por que seu coração batia forte contra o osso esterno toda vez que estava perto dele? Por que ela
sentia, contra toda lógica e sensatez, que seu lugar era ao lado desse homem?
Com o frio das lembranças remotas e a incerteza do futuro se aproximando, ela precisava de algo forte e quente no qual se segurar.
Não apenas de qualquer coisa ou de qualquer pessoa… mas dele.
Precisava do calor de Kade agora – da sua força –, mesmo que apenas por uns instantes.
O depósito de madeira atrás do chalé tinha um estoque decente de lenha cortada e seca, empilhada dentro da construção externa que tinha as iniciais de Henry Tulak
acima da porta. Era costume na floresta que os viajantes cuidassem uns dos outros, deixando combustível e alimentos para o próximo e respeitando a natureza a fim
de preservá-la tanto para si quanto para outrem.
Enquanto apanhava as achas de madeira que usariam, Kade pensava no que poderia deixar em troca da lenha que queimaria no chalé com Alex. Ajoelhou-se e abriu o zíper
da mochila. As únicas coisas que trazia que poderiam ser úteis ali eram suas armas, porém, as pistolas destinadas a matar Renegados que ele carregava eram valiosas
demais para serem deixadas para trás. Uma adaga, então. Ele tinha mais do que uma consigo.
Ao colocar a mão dentro da mochila à procura de uma faca que poderia deixar, o solado da bota se prendeu em algo branco e duro, preso entre as tábuas do abrigo.
– O que é isso?
Moveu-se para o lado para poder ver melhor o que havia debaixo da bota. Um dente de urso. A ponta de marfim longa e afiada estava encravada no espaço entre duas
tábuas como se tivesse sido afundada por inúmeras botas antes da sua. Não foi o dente, contudo, que fez o sangue de Kade gelar nas veias. Foi a tira fina de couro
entrelaçada presa a ele.
Exatamente do mesmo tipo que a pulseira presa a outro dente que vira recentemente.
Aquele que ele encontrara manchado de sangue humano seco, guardado no esconderijo de tesouros particulares de Seth. A coleção pervertida de souvenires mantida por
um assassino.
Seu irmão estivera ali.
Ah, não… seria possível que Seth tivesse matado o homem encontrado devorado por animais naquele mesmo lugar no ano anterior?
Kade quis negar a prova que tinha na mão fingindo ser uma mera coincidência, mas o gelo em seu peito lhe disse que seu irmão gêmeo estivera ali no inverno anterior,
quando Henry Tulak respirou pela última vez.
– Filho da mãe… – Kade sussurrou, enojado, ainda que tivesse procurado provas daquilo desde que chegara ao Alasca.
Agora que ela o encarava – a certeza de que somente um gêmeo idêntico pode ter a respeito da sua outra metade –, não havia mais como negar o que ele sabia em seu
coração há tanto tempo. Seu irmão era um assassino. Não melhor do que os Renegados que Kade sempre odiara e que agora perseguia como membro da Ordem. A fúria o atravessou,
ultraje não só em relação a Seth, mas a si mesmo, por querer acreditar que estivesse errado a respeito do irmão. Não havia mais incerteza em acusar Seth, ou a repugnância
em relação aos seus atos.
Kade soltou o dente de urso com a ponta da faca e o segurou diante de si, fitando, enojado, a prova que acabara de condenar o irmão. A mesma prova que impelia Kade
a fazer o que era justo e correto – fazer o que era seu dever, não só pela Ordem, mas como um macho cuja conduta pessoal de honra exigia justiça.
Precisava encontrar Seth e colocar um fim àquela matança.
Precisava sair dali naquele instante. Estava nervoso demais pela ira e pela determinação para voar de volta para Harmony com Alex; seguiria para lá a pé para iniciar
sua caçada pessoal, enquanto a aurora do meio-dia ainda demoraria algumas horas a chegar. Cobriria o maldito interior inteiro a pé se fosse necessário – chamaria
os lobos para ajudá-lo a encontrar Seth se não conseguisse rastreá-lo sozinho rápido o bastante.
Kade enfiou o pingente de dente de urso no bolso da frente dos jeans e deixou a faca sobre a pilha de lenha, uma oferenda, apesar de não ter mais uso para ela agora.
A única coisa de que precisava era sair logo dali e fazer o trabalho que o trouxera de volta ao lar, ao Alasca, de uma vez por todas.
Enquanto dava a volta no abrigo e subia até o chalé, ele era como um barril de dinamite numa combinação de raiva e intenção letal. Porém, ao abrir a porta do chalé,
pronto a oferecer alguma desculpa esfarrapada para Alex explicando por que teria que abandoná-la ali, ele foi recebido pelo ar quente e o brilho dourado de um fogo
crepitando no pequeno fogão a lenha no meio do chalé.
E pela própria Alex, sentada em meio a um ninho fofo de sacos de dormir e mantas de lã macias. O cabelo loiro fora libertado das tranças e caíam em ondas sobre os
ombros nus. Ombros despidos, assim como as pernas longas que se viam por debaixo da manta fina que mal a cobria.
Caramba… a linda e sensual Alex, nua à sua espera.
Kade pigarreou, subitamente sem palavras, e mais ainda sem as desculpas que pretendera dar para sair dali imediatamente.
– Eu… hum… eu encontrei um pouco de lenha e fósforos naquele balde ali – Alex disse. – Pensei em esquentar as coisas por aqui.
Esquentar? Se ela fosse mais quente, o corpo de Kade se incendiaria ali mesmo. O coração ainda batia descompassado por conta da descoberta desagradável no abrigo
de lenha, mas agora seu ritmo passou para uma batida mais profunda e mais urgente. Ele sentiu um músculo no maxilar dar um repuxão violento enquanto via a luz do
fogo dançar sobre a pele suave e macia.
– Alex…
Ele meneou a cabeça de leve, incapaz de pronunciar as palavras para rejeitá-la. As mais de uma dúzia de razões pelas quais aquilo era uma má ideia – ainda mais agora,
quando seu dever o impelia a deixar de lado suas necessidades egoístas para se concentrar plenamente na missão que o levara para lá – simplesmente despareceram da
sua mente lasciva. Uma avidez o assolou, o desejo substituiu a raiva que o consumia há menos de um minuto do lado de fora. Não sabia ao certo se levar as coisas
entre Alex e ele para um nível mais íntimo, dadas as circunstâncias, podia ou não ser mais do que uma péssima ideia.
Isto é, até ela se levantar e começar a andar na sua direção. A manta fina que mal envolvia sua silhueta, arrastando-se aos seus pés, agora se entreabria na frente
e lhe permitia um vislumbre desobstruído das pernas delgadas e infinitas a cada passo que ela dava. E conforme ela se aproximava, com o tecido fino se mexendo para
desnudar a pele macia do quadril esquerdo, Kade viu a minúscula marca de nascença carmesim, na forma de uma lágrima e de uma lua crescente, que transportou aquela
situação do reino das más ideias diretamente para uma zona de completo desastre.
Ela era uma Companheira de Raça.
E isso mudava tudo.
Pois Alexandra Maguire não era uma simples mortal, uma humana com quem poderia simplesmente se divertir, manipular em busca de informações, talvez transar por um
tempo, para no fim apagar sua mente e se esquecer dela. Ela era como um membro da família para os da sua espécie, uma fêmea para ser honrada e reverenciada, tão
preciosa quanto ouro.
Ela era algo raro e miraculoso, algo que ele certamente não merecia, e ela não fazia ideia disso.
– Ah, Cristo… – Apoiou a mochila no chão. Seus assuntos com Seth e com a Ordem teriam que esperar. – Alex, tem uma coisa… nós precisamos conversar.
Ela sorriu numa curva sensual dos lábios.
– A menos que precise me informar de alguma doença que tenha ou que, na verdade, seu interesse é por homens…
Ele a encarou, perguntando-se se existiram pistas ao longo do caminho. Mas, no começo, ele não olhara para Alex apenas como uma fonte de informações, uma testemunha
relutante que ele teria que fazer se abrir usando quaisquer meios necessários. Depois que falara com ela, começara a gostar dela. E depois que gostara dela, foi
difícil não desejá-la.
E agora?
Agora tinha a obrigação de proteger aquela fêmea a qualquer custo, e isso incluía impedi-la de cair nas mãos de um macho como ele. Ele a colocava em perigo só pelo
fato de estar com ela, arrastando-a em sua missão para a Ordem e aproximando-a, ainda mais depois de hoje, dos horrores dos joguinhos doentios do seu irmão. Se ele
era metade do guerreiro que jurara a si mesmo ser, levaria Alex para longe daquele lugar, a levaria para casa, para nunca mais procurá-la.
– Kade? – Ela inclinou a cabeça ao se aproximar, ainda à espera da sua resposta, o tom de voz suave. – Hum… não é isso o que tem a me dizer, é?
– Não. Não é.
– Que bom – ela disse, praticamente ronronando as palavras. – Porque eu não estou com vontade de conversar agora.
Kade inspirou fundo quando ela se aproximou, deixando pouco mais de alguns centímetros e uma fina manta de lã entre eles. E a sua fragrância… de pele aquecida, de
calor feminino e de um traço adocicado de algo mais esquivo que ele agora sabia que só podia ser o odor singular do sangue de uma Companheira de Raça.
Mesmo sem a maldita marca de nascença, inferno, apesar disso, Alexandra Maguire era uma combinação tóxica que o envolvia – por fora e por dentro – como a mais potente
das drogas.
Ela levantou o olhar para ele, os olhos cor de caramelo agora escurecidos como duas piscinas profundas em que ele poderia se afogar.
– Quero estar com você, Kade, aqui e agora. – Devagar, ela abriu a manta, expondo-se por completo para ele ao passar os braços ao seu redor, envolvendo ambos com
as dobras do tecido. O calor do corpo nu quase o queimou, entalhando-se em sua lembrança como um ferro em brasa. – Estou cansada de sentir frio o tempo todo. Estou
farta de me sentir sozinha. Só por agora, quero que me toque, Kade. Quero sentir as suas mãos em mim.
Ela não teve que pedir duas vezes. Ele sabia que ela precisara de coragem para admitir sua vulnerabilidade para ele, para se expor daquela maneira. Não poderia fingir
que não desejava aquilo tanto quanto ela. Ele a desejou desde o momento em que a viu pela primeira vez. Agora, todas as suas boas intenções, todos os seus pensamentos
de honra e de dever foram incinerados num instante.
Levantou uma palma até a linha delicada da coluna dela; a outra se ergueu para acariciar a curva graciosa do rosto e a pele sedosa da nuca. A pulsação dela vibrava
ao encontro do seu polegar conforme ele acariciava a pele macia sobre a carótida. Enquanto ele brincava com a faixa erótica de pele debaixo dos dedos, ela fechou
os olhos e inclinou a cabeça para trás, dando-lhe mais acesso do que seria sensato.
A pulsação de Kade também acelerou, cada um dos batimentos cardíacos dela, cada pequeno tremor do corpo junto ao seu estimulando suas necessidades mais primitivas.
Ele afundou a cabeça e aninhou o rosto na junção do pescoço e do ombro dela, ousando o mais suave dos beijos enquanto as presas rapidamente preenchiam sua boca,
a língua ávida por saboreá-la. Exalou seu desejo num grunhido baixo, tracejando a boca ao longo do pescoço, depois descendo, inclinando-se conforme apanhava um seio
perfeito na mão, erguendo o mamilo róseo até os lábios.
Sugou-a, atento para não arranhá-la com as pontas afiadas das presas, enquanto puxava o botão mais fundo em sua boca, envolvendo-o com a língua, deliciando-se com
os arquejos excitados de prazer dela. Desceu a mão livre, espalmando a nádega arredondada, brincando com a junção do corpo dela por trás. A sensação de tê-la nos
braços era tão boa, tão gostosa. Ele esmagou-a contra o seu corpo, deixando que os dedos se aprofundassem, chegando às dobras do sexo. Ela estava úmida e quente,
a pele um paraíso acolhedor quando seu toque se aprofundou.
– Ai, meu Deus… – ela arfou, arqueando-se em seu abraço. – Kade…
Num gemido, ele soltou o seio da mordida sensual e voltou aos lábios, capturando-lhe o suspiro num beijo profundo e faminto. Embora ela o acompanhasse, era ele quem
estabelecia o ritmo, mais urgente do que fora sua intenção, mas ele estava envolvido demais para desacelerar. Também estava mais do que ciente das mudanças que lhe
aconteciam – mudanças que exigiriam algum tipo de explicação, que também exigiriam um tipo de conversa, algo em que ela não se mostrara interessada e algo que ele
seria incapaz de realizar no momento.
Ainda beijando-a, pois se via incapaz de afastar a boca da dela, ele a guiou de volta ao ninho de cobertas perto do fogo. Juntos, eles o despiram, arrancando rapidamente
o casaco e a camisa, as botas e os jeans. Kade se despiu do resto das roupas enquanto Alex trilhava com a língua um caminho ao longo do pescoço dele. Kade estremeceu
ao sentir um disparo de desejo preenchendo suas veias, sentiu o sangue apressado até os membros e o pênis pulsante. A pele comichava com a transformação dos dermaglifos,
as marcas da Raça que lhe cobriam o peito, os braços e as coxas. Os glifos, normalmente um tom ou dois mais escuros que o de sua pele, por certo estariam saturados
de cor agora, escurecendo-se para refletir o desejo que sentia por Alex.
– Ah, caramba… – grunhiu, sibilando profundamente quando ela mordiscou a pele macia logo abaixo da sua mandíbula. Não sabia quanto mais aguentaria. Quando ela abaixou
a mão para afagá-lo em toda a sua extensão, ele não teve como segurar seu rosnar animal. Ela espalmou a cabeça do sexo, num toque tanto curioso quanto exigente ao
espalhar a umidade natural sobre a pele sensível.
– Deite-se comigo – pediu ele, com a voz rouca, a respiração ofegante.
Segurou-a nos braços e afundou com ela no piso coberto de mantas do chalé, beijando-a enquanto a pressionava com suavidade debaixo de si. Ela estava tão macia e
quente ao seu encontro, os braços envolvendo-o pelos ombros, as coxas afastadas onde os seus quadris se encaixaram. O pênis se aninhou ao encontro da fenda úmida
do seu sexo, louco de desejo de se afundar, mas Kade só brincou de penetrá-la, escorregando entre as pétalas aveludadas do seu corpo ao mesmo tempo em que brincava
com a boca ao longo da pulsação na lateral do pescoço. Segurou o sexo para se conter, esfregando sua rigidez na suavidade dela, usando a ponta larga do pênis para
acariciar seu clitóris. Ela gemeu, arqueando-se para acompanhar seu ritmo, alargando as pernas num convite. Ele resistiu à tentação, quase sem conseguir.
Ela lhe pedira que a aquecesse, e ela estava quente, mas ele quis deixá-la mais quente do que nunca. A necessidade repentina e incomensurável de marcá-la como sua
– de lhe dar prazer como ninguém antes dele – ressoou em seu sangue como um tambor. Atordoado com a sensação, ele se refreou. Mas Alex era tão gostosa, parecia tão
certa para ele, que antes que se lembrasse de que ela merecia algo melhor, ele passou a beijá-la corpo abaixo. Saboreou cada centímetro desde os montes dos seios
até a musculatura firme do abdômen e a maldita marca de nascença no quadril que tornava seu prazer e sua necessidade egoísta algo tão errado.
Mas, errado ou não, por mais egoísta que fosse ao ceder ao seu desejo por Alex, ele passara do ponto de resistir. A sensação de tê-la debaixo de si elevou a chama
em seu sangue levantando fervura. A fragrância dela o atraía como um ímã até a faixa de pelos claros e encaracolados entre as pernas. Beijou-a ali, usando os lábios
e a língua e os dentes até ela se contorcer contra sua boca. E mesmo assim ele não parou. Sugou-a e afagou-a, dando-lhe prazer até que ela se arqueasse debaixo dele
e gritasse durante o trepidante clímax.
E ainda assim ele não parou.
Continuou sugando, beijando e afagando-a, conduzindo-a até mais um pico e depois, só depois, ergueu-se para cobri-la com seu corpo, penetrando-a profundamente enquanto
as quentes paredes internas se contraíam ao redor do pênis pulsante. Penetrou-a percebendo que ele também precisava daquele calor, daquela sensação – mesmo que temporária
– de não estar sozinho. Precisara de Alex daquele modo, naquele instante, tanto quanto ela acreditava precisar dele.
O orgasmo de Kade se avolumava na base do pênis, intensificando-se a cada estocada fervorosa. Cada vez mais ardente, cada vez mais estreito, até que ele não conseguiu
segurar nem mais um segundo. Sentiu o corpo tenso com a força com que ele vinha e a penetrou o máximo que ela conseguia acomodá-lo, enterrando o rosto no ombro dela
e emitindo um grito rouco de alívio quando seu sêmen explodiu numa torrente líquida quente.
Ele não teria conseguido segurar mesmo que tivesse tentado, apesar de não existir a possibilidade de uma gravidez, contanto que não houvesse troca de sangue. Mas
isso também se mostrou mais tentador do que deveria. As presas de Kade alongaram-se das gengivas quando ele se perdeu no calor interno de Alex. Ele ouvia a pulsação
acelerada dela, sentia-a no eco enlouquecido das batidas do seu coração. E ele sentia o fluxo do sangue dela pulsando logo abaixo da superfície da pele delicada
onde a boca dele repousava numa careta retesada.
– Ah, caramba… Alex – sibilou, atormentado pelo fluxo de sensações que ela lhe provocava.
Tudo o que pertencia à Raça nele exigia que ele tornasse aquela sua fêmea, que clamasse seu sangue assim como clamara seu corpo.
Kade suprimiu essa necessidade, mas, maldição, não foi algo fácil. Rolou-a contra si, acomodando-a de costas para ajudar a esconder as mudanças que o acometeram
no ato de paixão.
– Você está bem? – ela perguntou, enquanto ele se esforçava para conter seus impulsos e obter um pouco de juízo.
– Sim – ele conseguiu dizer depois de um instante. – Melhor do que tenho o direito de estar.
– Eu também – disse ela, o sorriso evidente pelo torpor na voz que resvalou com suavidade no alto do seu braço. – Para o caso de estar se perguntando, os meus serviços
de piloto não costumam incluir ficar nua com meus clientes.
– Isso é bom – Kade disse quase num grunhido ao aproximá-la ainda mais do corpo ainda ardente. Ele não queria que ela ficasse nua com ninguém, percebeu num rompante.
Já não teria gostado dessa ideia antes, mas depois do que acontecera entre eles, ele não receberia isso nada bem.
– E quanto a você? – perguntou ela, enquanto ele os cobria com as mantas para esconder seus glifos do olhar dela.
– O que tem eu?
– Você faz isso… com frequência?
– Ficar nu com pilotos sensuais do interior do Alasca no meio de uma floresta gélida? – Fez uma pequena pausa, deixando-a pensar que estava levando a pergunta em
consideração. – Não. Foi a minha primeira vez.
Bem como a ferrenha sensação de posse que ainda corria em seu sangue ao pensar em Alex com outro macho. Perguntou a si mesmo se foi o fato de ela ser uma Companheira
de Raça que o atraiu logo de cara. Mas, assim que pensou nisso, percebeu que a marca de nascença que a ligava ao mundo sombrio que ele habitava como um ser da Raça
foi a menor das qualidades que o atraíram a Alexandra Maguire. A última coisa de que ele precisava naquele momento era um envolvimento emocional, ainda menos com
uma fêmea que trazia a marca da lágrima e da lua crescente.
Mas ele estava envolvido. Na verdade, acabara de atar mais alguns nós a uma situação já impossível.
Praguejando contra si mesmo, como um idiota de primeira classe que era, Kade a beijou no alto da cabeça e a abraçou, enquanto esperava que seus olhos voltassem à
aparência normal e as presas tivessem a oportunidade de se retraírem.
Levou um tempo para isso acontecer, e mesmo depois que o corpo voltou ao ritmo normal, o desejo que sentia pela mulher em seus braços permaneceu.
Capítulo 15
A luz do dia brilhou fraca e escondida pelas nuvens fora da boca da caverna na floresta. O predador buscara abrigo ali pouco antes, quando os primeiros raios começaram
a mostrar as garras em meio à escuridão do inverno. Poucas coisas existiam mais poderosas do que ele, ainda mais naquele mundo primitivo que era tão diferente do
distante mundo em que nascera muitos milênios atrás. No entanto, por mais avançada que fosse a forma de vida da sua espécie, a sua pele desprovida de pelos e coberta
de dermaglifos não processava a luz ultravioleta: apenas alguns minutos de exposição o matariam.
Das profundezas da sua segurança na caverna, ele descansou da perseguição da caça da noite anterior, impaciente para que a luz tênue se extinguisse e recuasse uma
vez mais. Logo precisaria se alimentar novamente. Ainda sentia fome, as células, os órgãos e os músculos demandavam rejuvenescimento extensivo depois do longo período
de privação e abuso que sofrera enquanto estivera em cativeiro. O instinto de sobrevivência se digladiava com o conhecimento de estar, absoluta e completamente,
sozinho naquele naco inóspito de entulho.
Não restava mais ninguém como ele já há muito tempo. Ele era o último dos oito exploradores que caíram neste planeta, um náufrago solitário sem chance de escapar.
Eles tinham nascido para conquistar, para serem reis. No entanto, um a um, seus irmãos abandonados morreram, quer pela crueldade do novo ambiente que os cercava,
quer pelas guerras com a prole meio-humana nos séculos que se seguiram. Através de uma traição e de um acordo secreto com seu filho, somente ele sobrevivera. Mas
fora a mesma traição e acordo secreto que o tornaram escravo do filho do seu filho, Dragos.
Agora que estava livre, a única coisa mais atraente do que pôr um fim em seu tempo naquele planeta abandonado era a ideia de poder levar seu herdeiro traidor consigo
para a morte.
Uivou ante a lembrança das longas décadas de dor e experiências a ele infligidas. Sua voz reverberou nas paredes da caverna, um rugido sinistro que saiu rasgando
dos pulmões, semelhante a um grito de guerra.
Um disparo respondeu de algum lugar não muito distante, em algum lugar na floresta lá fora.
Houve uma batida súbita nas folhagens do lado externo. Em seguida, ouviu passadas fugidias de animais – de muitos animais – correndo próximos à entrada da caverna.
Lobos.
A alcateia se dividiu, metade correndo pelo lado direito da entrada, metade disparando pela esquerda. E logo atrás deles, poucos segundos depois, o som de vozes
humanas, homens armados em perseguição.
– Por aqui – um deles gritou. – A maldita alcateia inteira subiu este cume, Dave!
– Vocês, peguem o lado oeste – uma voz retumbante comandou. – Lanny e eu vamos a pé pela colina. Há uma caverna logo adiante; é provável que um ou dois dos bastardos
tenham se escondido ali.
O barulho dos motores dando ré e o fedor do combustível queimado permearam o ar quando alguns dos homens saíram dali. Alguns minutos depois, do lado de fora da boca
da caverna, na luz do dia que barrava a única via de fuga, as silhuetas de duas pessoas segurando longos rifles tomaram forma. O homem da frente era grande, com
um peito amplo e ombros largos e uma barriga que outrora podia ter sido musculosa, mas que agora era somente flácida. O homem que o acompanhava devia ser uns trinta
centímetros mais baixo e muitos quilos mais magro, uma criatura tímida de voz trêmula.
– Acho que não tem nada aqui, Dave. E não sei se foi uma boa ideia nos separarmos dos outros.
Confinado às sombras, o único ocupante se encolheu na parede da caverna, mas não rápido o bastante.
– Ali! Acabei de ver um par de olhos cintilantes aqui dentro. O que eu disse, Lanny? Pegamos um dos bastardos bem aqui! – A voz do homem grande estava carregada
de agressão ao levantar a arma. – Acenda a lanterna e me deixe ver no que estou atirando, sim?
– Hum, tudo bem, Dave. – O companheiro nervoso se atrapalhou com a tarefa, ligando a luz e oscilando-a com gestos nervosos no chão e nas paredes da caverna. – Está
vendo alguma coisa? Eu não estou vendo nada por aqui.
Claro que não, pois o olhar cintilante que o homem vira apenas um instante antes já não estava no solo, mas fitando os humanos do alto, onde o predador agora se
segurava nas estalactites acima de suas cabeças, parado no escuro tal qual uma aranha.
O homem grande abaixou a arma.
– Mas que diabos! Onde o danado foi parar?
– Não devíamos estar aqui, Dave. Acho melhor a gente ir procurar os outros…
O homem grande avançou mais alguns passos para dentro da caverna.
– Não seja covarde. Me passe a lanterna.
Quando o baixinho esticou a mão para entregar-lhe a lanterna, a bota bateu numa pedra solta. Ele cambaleou, caiu de joelhos e deu um grito de surpresa e dor.
– Merda! Acho que me cortei.
A prova acobreada do sangramento se elevou numa súbita onda olfativa. O cheiro de sangue fresco perfurou as narinas do predador. Ele aspirou e sibilou em resposta
ao exalar o ar dos pulmões por entre os dentes e as presas.
Abaixo dele, no chão da caverna, o homenzinho nervoso levantou a cabeça. Seu rosto aflito se retesou com horror sob o olhar âmbar faminto do alienígena.
Ele berrou, sua voz tão aguda e horrorizada quanto a de uma garotinha.
Ao mesmo tempo, o homem grande se virou com o rifle.
A caverna explodiu com o estrondo do tiro e da luz ofuscante, enquanto o predador saltava das rochas de cima e se lançava sobre o par de humanos.
Alex não se lembrava da última vez em que dormira tão profundamente sem interrupções. Nem se lembrava de ter se sentido tão relaxada e saciada como depois de fazer
amor com Kade. Espreguiçou-se sob a pilha fofa de mantas e sacos de dormir no chão, depois se ergueu sobre um cotovelo para vê-lo colocando mais lenha na fogueira
no pequeno fogão do chalé.
Ele estava agachado, os músculos fortes das costas e dos braços se esticando e flexionando quando ele colocou mais uma acha no fogão a lenha, a pele suave brilhando
na luz quente da fogueira. O cabelo preto curto estava todo bagunçado numa confusão de espetos que lhe conferia um ar ainda mais selvagem do que de costume, principalmente
quando ele virou a cabeça para olhar em sua direção, e ela se sentiu atingida pelas linhas letais do rosto e mandíbula e pelo olhar prateado cercado por cílios escuros.
Ele estava lindo, de tirar o fôlego, cem vezes mais do que quando estava agachado nu diante dela, com o olhar intenso e íntimo, travado no seu. O corpo de Alex ainda
vibrava com a lembrança da paixão partilhada, a dor agradável entre as pernas pulsava um pouco mais forte agora com o modo com que ele a fitava, como se quisesse
devorá-la novamente.
– Dormimos enquanto era dia? – perguntou, subitamente sentindo necessidade de preencher aquele silêncio ardente.
Ele acenou com a cabeça.
– Já faz umas duas horas que o sol se pôs.
– Vejo que saiu – comentou, percebendo a pilha renovada de lenha ao lado dele.
– É. Acabei de chegar.
Ela sorriu, arqueando as sobrancelhas.
– Espero que não tenha saído assim. No escuro a temperatura não deve passar de zero.
Ele grunhiu, a boca sensual se curvando com bom humor.
– Não tenho problemas de encolhimento.
Não, aquele definitivamente era um homem sem a mínima insegurança quanto à sua masculinidade. Cada centímetro seu era feito de músculos esculpidos, rijos e delgados.
Com seus mais de um metro e noventa de altura, ele tinha a forma bruta mítica de um guerreiro, desde os ombros amplos e bíceps definidos até a superfície entalhada
do peito e do abdômen tanquinho, terminando nos perfeitos quadris estreitos. O restante dele era igualmente perfeito, e ela podia atestar que ele sabia o que fazer
com aquilo.
Deus do céu, ele era uma obra de arte viva, que só era enaltecida pelo desenho intricado, ainda que sutil, da tatuagem – e de que cor ela era mesmo? – sobre a pele
dourada do torso e membros, como um caminho traçado pela língua de uma amante. Alex acompanhou os desenhos estranhos com os olhos, imaginando se era apenas um truque
da luz do fogo que fazia a cor de henna das tatuagens parecer escurecer, enquanto o avaliava em franca admiração.
Sorrindo como se já estivesse acostumado a ter mulheres admirando-o, ele se levantou e andou com lentidão até onde ela estava deitada, sem nenhuma inibição com a
sua nudez.
Alex riu com suavidade e balançou a cabeça.
– Você nunca se cansa?
Ele ergueu uma sobrancelha ao se reclinar com negligência ao seu lado.
– Se eu me canso?
– De ter mulheres aos seus pés – disse ela, percebendo com uma ponta de surpresa que não gostava muito dessa ideia. Odiava, na verdade, e se perguntou de onde vinha
a dor do ciúme, levando em consideração que ele não era seu só porque partilharam algumas horas suadas – e, sim, espetaculares – nos braços um do outro.
Ele afagou uma mecha solta do cabelo dela e levantou o olhar dela para o seu.
– Só estou vendo uma mulher comigo agora. E posso garantir que não estou nem um pouco cansado.
Segurou-a pelo rosto e a deitou sobre as cobertas. Seu olhar a derreteu quando a fitou, e ela sentiu a pressão rígida da ereção cutucando-a na lateral do corpo quando
ele se esticou ao seu lado.
– Você é uma mulher especial, Alexandra. Mais especial do que pensa.
– Você não me conhece – protestou ela baixinho, precisando se lembrar disso mais do que a ele. Conheciam-se há… quanto tempo? Dois dias? Ela não era de permitir
que alguém entrasse em sua vida tão rapidamente, ou tão profundamente, ainda mais depois de tão pouco tempo. Então, por que ele? Por que agora, quando tudo em seu
mundo parecia estar empoleirado no alto de um penhasco? Um empurrão na direção errada, e ela desapareceria. – Você não sabe nada sobre mim… não de verdade.
– Então me conte.
Ela o fitou, surpresa com a sinceridade, com o pedido franco em sua voz.
– Contar…
– Conte-me o que aconteceu na Flórida, Alex.
O ar pareceu sair dos seus pulmões naquele instante.
– Mas já contei…
– Sim, mas tanto você quanto eu sabemos que não foi um motorista embriagado que arrancou sua mãe e seu irmão de você. Foi outra coisa que aconteceu com eles, não
foi? Algo que você manteve em segredo todos esses anos. – Ele falou com paciência, suavemente, coagindo a confiança dela. E que Deus a ajudasse, mas ela se sentia
pronta para ceder. Ela precisava partilhar aquilo com alguém, e no fundo do seu coração, ela sabia que esse alguém era Kade. – Está tudo bem, Alex. Você pode me
contar a verdade.
Ela fechou os olhos, sentindo as palavras horrendas – as lembranças terríveis – subindo como ácido pela garganta.
– Não consigo – murmurou. – Se eu disser, então tudo o que tentei deixar para trás… tudo pelo que me esforcei tanto a esquecer… tudo vai voltar a ser real.
– Não pode passar a vida se escondendo da verdade – disse ele, e ecos de coisas passadas surgiram em sua voz. Uma tristeza, uma resignação que garantiu a ela que
ele entendia parte do fardo que ela há tanto tempo carregava. – Negar a verdade não a faz desaparecer, Alex.
– Não, não faz – concordou ela bem baixinho. Em seu coração, ela sabia disso. Estava cansada de fugir e cansada de manter o horror do seu passado enterrado e esquecido.
Queria se livrar de tudo aquilo, e se isso significava enfrentar a verdade, não importando o quanto ela fosse horrível – não importando o quanto ela fosse inimaginável
–, então que fosse assim. Mas o medo era um inimigo poderoso. Talvez poderoso demais. – Eu tenho medo, Kade. Não sei se sou forte o bastante para enfrentar isso
sozinha.
– Você é. – Ele depositou um beijo rápido no ombro dela, depois a fez fitá-lo novamente. – Mas não está sozinha. Eu estou com você, Alex. Conte-me o que aconteceu.
Eu a ajudarei, se você permitir.
Ela sustentou o olhar suplicante dele e encontrou a coragem de que precisava na força de aço dos seus olhos.
– Nós tivemos um dia maravilhoso juntos, todos nós. Fizemos um piquenique ao lado do rio, e eu ensinara Richie a mergulhar de costas do píer. Ele só tinha seis
anos, mas era destemido, sempre querendo tentar tudo o que eu fazia. Foi um dia perfeito, repleto de riso e de amor.
Até a escuridão recair sobre o pântano, trazendo um terror profano consigo.
– Não sei por que escolheram a nossa família. Procurei por um motivo, mas nunca descobri por que eles apareceram à noite para nos atacar.
Kade a acariciou com cuidado, enquanto ela se debatia com as palavras seguintes.
– Às vezes não existe razão. Às vezes as coisas acontecem e não há nada que possamos fazer para entendê-las. A vida e a morte nem sempre são lógicas, claras.
Às vezes a morte salta da escuridão como um fantasma, como um monstro terrível demais para ser verdadeiro.
– Havia dois deles – murmurou Alex. – Nem sabíamos que eles estavam lá até ser tarde demais. Estava escuro, e estávamos todos sentados na varanda, relaxando depois
do jantar. Minha mãe estava no balanço da varanda com Richie, lendo uma história do Ursinho Pooh antes de nos levar para a cama, quando o primeiro apareceu do nada,
sem aviso, e se lançou sobre ela.
A mão de Kade ficou imóvel.
– Você não está falando de um homem.
Ela engoliu em seco.
– Não. Não era um homem. Não era nem… humano. Era outra coisa. Algo maligno. Ele a mordeu, Kade. E, então, o outro agarrou Richie com os dentes também.
– Dentes – repetiu ele, sem surpresa nem descrença na voz, apenas compreensão grave. – Você quer dizer presas, não quer, Alex? Os agressores tinham presas.
Ela fechou os olhos quando a impossibilidade da palavra se registrou.
– Sim. Eles tinham presas. E os olhos, eles… eles cintilavam no escuro como brasas ardentes, e no centro deles as pupilas eram longas e finas como as dos gatos.
Eles não podiam ser humanos. Eram monstros.
O toque de Kade no rosto e nos cabelos dela a acalmava, enquanto as lembranças daquela noite terrível ressurgiam em sua mente.
– Está tudo bem. Você está segura agora. Eu só queria ter estado lá para ajudar você e a sua família.
O sentimento era gentil, ainda que improvável, visto que ele não podia ter mais do que alguns poucos anos a mais do que ela. Mas pela sinceridade em sua voz, ela
soube que ele estava sendo sincero. Pouco importava a improbabilidade, ou a enormidade do mal que enfrentavam, Kade teria ficado ao seu lado contra o ataque. Ele
os teria mantido a salvo quando ninguém conseguiria.
– Meu pai tentou combatê-los – murmurou Alex –, mas tudo foi muito rápido. E eles eram tão mais fortes do que ele. Derrubaram-no como se ele não fosse nada. Àquela
altura, Richie já estava morto. Ele era tão pequeno que não teria a menor chance de escapar daquele tipo de violência. Minha mãe gritou para o meu pai fugir, para
me salvar se pudesse. “Não deixe minha filha morrer!” Essas foram as suas últimas palavras. Aquele que a segurava fincou a mandíbula no pescoço dela. Não a soltou,
ficou com a boca fechada sobre ela. Ele… ah, meu Deus, Kade. Isso vai parecer loucura, mas ele… ele bebeu o sangue dela.
Uma lágrima rolou pelo rosto, e Kade pressionou os lábios na sua testa, trazendo-a para junto de si e oferecendo-lhe o conforto tão necessário.
– Não me parece loucura, Alex. E eu sinto muito pelo que a sua família passou. Ninguém deveria passar por tamanha dor e perda.
Embora ela não quisesse reviver aquilo, as lembranças tinham sido ressuscitadas e, depois de mantê-las enterradas por tanto tempo, ela sentiu que não conseguiria
mais contê-las. Não enquanto Kade estivesse ali para fazê-la se sentir mais aquecida e segura do que em toda a sua vida.
– Pelo modo como atacaram minha mãe e Richie, pareciam animais. Mas nem mesmo animais fariam o que eles fizeram. Ah… meu Deus, e havia tanto sangue. Meu pai me pegou
no colo e começamos a correr. Mas não consegui desviar o olhar do que estava acontecendo atrás, na escuridão. Eu não queria ver mais, era tudo tão irreal. A minha
mente não conseguia processar aquilo. Já faz tanto tempo, e ainda não tenho certeza se posso explicar o que foi que nos atacou naquela noite. Eu só… Eu quero que
tudo faça sentido, mas não faz. Nunca vai fazer. – Inalou fundo, revivendo uma dor mais fresca, uma confusão mais recente. – Vi o mesmo tipo de ferimentos na família
Toms. Eles foram atacados, assim como nós fomos, pelo mesmo tipo de maldade. Isso está aqui no Alasca, Kade… e eu estou com medo.
Por um longo momento, Kade nada disse. Ela conseguia ver a mente dele repassando tudo o que ela lhe dissera, cada detalhe incrível que faria com que qualquer outra
pessoa escarnecesse em descrença ou lhe dissesse que ela deveria procurar ajuda profissional. Mas ele não. Ele aceitava a sua verdade pelo que era, sem traço de
dúvida em seus olhos ou em seu tom inflexível.
– Você não precisa mais fugir. Pode confiar em mim. Nada de ruim vai acontecer com você enquanto eu estiver por perto. Acredita em mim, Alex?
Ela assentiu, percebendo só então o quanto confiava nele. Confiava nele num nível além do instintivo, era visceral. O que sentia por ele desafiava o fato de que
ele entrara em sua vida ainda naquela semana, tampouco estava relacionado ao modo como ela o desejava fisicamente – com uma sofreguidão que ainda não estava pronta
para analisar.
Ela simplesmente fitou os olhos inabaláveis de Kade e soube, em sua alma, que ele era forte o bastante para carregar qualquer fardo que ela partilhasse com ele.
– Preciso que confie em mim – disse ele com gentileza. – Existem algumas coisas que você precisa saber, Alex, agora mais do que nunca. Coisas sobre si mesma, e
sobre o que você viu, tanto na Flórida quanto aqui. E também há coisas que você precisa saber sobre mim.
Ela se sentou, o coração batendo de modo estranho no peito, pesado com uma sensação de expectativa.
– O que quer dizer?
Ele desviou o olhar, passando a acompanhar a carícia ao longo do corpo nu, depois se deteve no osso do quadril. Com o polegar, ele traçou um círculo ao redor da
sua pequena marca de nascença.
– Você é diferente, Alexandra. Extraordinária. Eu deveria ter reconhecido isso de cara. Houve sinais, mas eu não os percebi. Eu estava concentrado em outras coisas
e eu… maldição.
Alex franziu o cenho, mais confusa do que nunca.
– O que você está tentando dizer?
– Você não é como as outras mulheres, Alex.
Quando ele voltou a encará-la, a confiança que normalmente cintilava em seu olhar não estava lá. Ele engoliu, o clique seco em sua garganta fazendo o sangue dela
gelar nas veias. O que quer que ele tivesse a dizer, era ele quem tinha medo agora, e ver o traço de incerteza nele aumentou a sua ansiedade.
– Você é muito diferente das outras mulheres, Alex – repetiu com hesitação. – E eu… você precisa saber que eu também não sou como os outros homens.
Ela piscou, vendo uma pressão invisível pesar no silêncio que se fez entre eles. O mesmo instinto que lhe dizia para exigir mais respostas implorava para que ela
recuasse e fingisse não querer saber – não precisava saber o que deixava Kade tão sem palavras e ansioso. Tudo o que ela conseguia fazer era observá-lo e esperar,
preocupando-se com a possibilidade de ele estar prestes a lançar seu mundo num redemoinho ainda maior.
O toque estridente do celular de Alex lhe deu um choque tal qual o de um fio de alta-tensão. Ele tocou novamente e ela mergulhou para pegá-lo, contente pela desculpa
para fugir da estranha e sombria mudança de humor de Kade.
– Alex falando – disse ela, reconhecendo o número de Zach ao abrir o aparelho e atender a chamada.
– Onde você está? – exigiu saber, nem mesmo perdendo tempo em dizer olá. – Acabei de passar pela sua casa e você não estava lá. Você está na casa de Jenna?
– Não – respondeu ela. – Jenna esteve na minha casa hoje cedo, antes de eu sair. Ela deve ter ido para casa.
– Bem, onde foi que você se meteu, então?
– Estou trabalhando – disse ela, irritada com o tom rude dele. – Estou com um cliente que agendou um voo hoje de manhã…
– Escuta aqui, temos um problema aqui em Harmony – Zach a interrompeu com rispidez. – Estou no meio de uma crise médica e preciso que você traga um ferido grave
da floresta.
Alex despertou do nevoeiro emocional em que estivera presa antes de atender ao telefonema.
– Quem está ferido, Zach? O que está acontecendo?
– Dave Grant. Não sei a história toda, mas ele e Lanny Ham e alguns outros homens da cidade saíram para caçar na parte oeste hoje. Depararam-se com uma situação
grave, muito grave. Lanny está morto e, pelo visto, as coisas não estão muito boas para Big Dave. Os homens estão com medo de transportá-lo na motoneve, temendo
não conseguir trazê-lo a tempo de salvá-lo.
– Ai, meu Deus. – Alex se sentou para trás, sobre as pernas dobradas, sentindo um frio se espalhar pela pele. – Os ferimentos, Zach… o que aconteceu?
– Alguma coisa os atacou, de acordo com os outros homens. Dave está delirando, falando coisas sem sentido sobre uma criatura espreitando numa das cavernas a oeste
de Harmony. O que os atacou é algo bem ruim, Alex. Ruim mesmo. Dilacerou-os de uma maneira horrível. A notícia se espalhou pela cidade e todos estão em pânico.
Ela fechou os olhos.
– Ai, meu Deus…
A mão de Kade pousou sobre seu ombro nu.
– O que houve, Alex?
Ela balançou a cabeça, incapaz de formar as palavras.
– Quem está com você? – Zach exigiu saber. – Puta que o pariu, Alex, você está com aquele homem do Pete’s da outra noite?
Alex não achava que precisava dizer a Zach Tucker com quem passava seu tempo, não enquanto havia um homem morto e a vida de outro pendia por um fio. Não enquanto
o horror do seu passado – o horror que ela temia ter visitado a família dos Toms há apenas alguns dias – estava novamente estraçalhando seu coração.
– Estou no chalé de Tulak, Zach. Posso sair agora mesmo, mas só devo chegar em quarenta e cinco minutos.
– Esqueça. Não podemos esperar por você. Vou localizar Roger Bemis.
Ele desligou, deixando Alex sentada ali, congelada pelo medo.
– O que aconteceu? – Kade perguntou. – Quem se feriu?
Por um momento, ela só conseguia se concentrar em inspirar e expirar. O coração batia com tristeza, a culpa a corroía.
– Eu deveria tê-los avisado. Eu deveria ter dito o que sabia em vez de acreditar que poderia negar isso.
– Alex? – A voz de Kade saiu cautelosa; os dedos, ao erguer seu rosto, foram firmes, ainda que gentis. – Me conte o que está acontecendo.
– Big Dave e Lanny Ham – murmurou. – Foram atacados hoje na floresta. Lanny está morto. Big Dave pode não sobreviver.
E se Kade tivesse ido com eles em vez de vir com ela? A ideia de que ele poderia estar perto desse tipo de perigo – ou pior, ser vítima dele – fez seu coração se
contorcer. Sentiu-se doente de tanto medo, mas foi na raiva que ela se apegou.
– Você tem razão, Kade. Não posso fugir do que sei. Não mais. Tenho que enfrentar o mal. Tenho que tomar partido agora, antes que mais alguém se machuque. – A fúria
a incentivava, enquanto o medo ameaçava segurá-la. – Preciso contar a verdade – para todos em Harmony. Para o maldito mundo inteiro, se for preciso. As pessoas precisam
saber o que está aí. Não podem destruir o mal se nem mesmo sabem que ele existe.
– Alex – ele contraiu os lábios, começou a balançar a cabeça como se tivesse a intenção de dissuadi-la. – Alex, não acho que isso seja sensato…
Ela sustentou o olhar dele, incrédula.
– É por sua causa que eu me sinto forte para fazer isto, Kade. Precisamos ficar juntos – todos juntos – para derrotar isso.
– Ah, Cristo… Alex…
A hesitação dele foi como um punhal frio lentamente entrando no seu esterno. Confusa ante a mudança de atitude, mas determinada a fazer o que era certo – fazer o
que tinha que ser feito – ela se afastou dele e começou a se vestir.
– Tenho que voltar para Harmony. Vou partir em cinco minutos. Você decide se vem comigo ou não.
Capítulo 16
Não conversaram durante todo o voo de volta para Harmony.
Kade ficou sentado ao lado de Alex num silêncio infeliz, dividido, querendo lhe explicar sobre a Raça e o lugar dela naquele mundo e temendo que, se ela soubesse
o que ele de fato era, ela o colocasse na mesma categoria do monstro que ela abominava e que agora estava tão determinada a expor para toda a cidade e para o resto
da humanidade.
O medo de que ela o odiasse manteve sua língua grudada ao céu da boca durante todos os quarenta e cinco minutos que foram necessários para levá-los de volta à pista
de voo de neve, compactada nos limites da cidade. Sabia ser um bastardo por negar-lhe toda a verdade. Provara ser algo ainda pior no chalé de Tulak, quando permitiu
que seu desejo por ela superasse seu dever – seu código de honra, por mais frágil que fosse –, que teria compelido um macho melhor a pôr todas as cartas na mesa
antes de tomá-la para si.
Mas, com Alex, não foi só sexo. Não era só desejo, ainda que ele a desejasse sobremaneira. As coisas estariam bem melhores agora se aquilo fosse algo meramente físico.
A verdade era que gostava dela. Preocupava-se com ela. Não queria vê-la sofrendo mais, muito menos pelas próprias ações. Queria protegê-la das coisas que a atingiram
no passado, e faria o que fosse possível para que nada de ruim voltasse a lhe acontecer.
Ah, sim, seus esforços até então estavam sendo bem-sucedidos…
Vinha fazendo um trabalho de primeira linha em tudo o que tocara desde que chegara ao Alasca.
Frente às provas que encontrara no chalé, o que deveria ter sido uma missão simples e secundária de aniquilar um Renegado no norte congelado do país agora se tornara
uma busca para localizar um assassino em sua própria família. E agora ele tinha pelo menos mais um morto para acrescentar à mistura, talvez dois, se o relato sobre
os ferimentos de Big Dave fosse acurado.
Outro ataque selvagem a respeito do qual Kade rezava para que todas as suspeitas não recaíssem sobre Seth.
Ele ainda ruminava esse temor quando Alex pousou o avião de maneira impecável. Maldição, mesmo perturbada como ela devia estar, Alex estava em total controle do
manche. Uma verdadeira profissional. Apenas mais um detalhe que o fazia apreciá-la ainda mais.
– Merda – sussurrou baixo ao olhar para fora da janela da cabina. Estava mesmo caído por aquela fêmea.
– Parece que metade da cidade está agrupada do lado de fora do posto de saúde – observou Alex. – Já que o avião de Roger Bemis está estacionado, acho que eles já
devem ter trazido Big Dave e Lanny da floresta.
Kade grunhiu, olhando para um quarteirão na direção do centro da cidade, para o que antes fora uma antiga casa de rancho, agora convertida em posto de saúde, no
qual algumas dúzias de pessoas estavam reunidas sob a luz do pátio, algumas de pé, outras sentadas à toa em motoneves.
Alex desligou o motor do avião e abriu a porta do piloto. Kade saiu junto com ela, andando pela frente da aeronave enquanto ela o prendia e trancava tudo. Seus movimentos
eram eficientes, as mãos enluvadas trabalhavam mais por hábito do que seguindo pensamentos conscientes. Quando, por fim, olhou para ele, Kade viu que o rosto dela
estava pálido, a expressão estava séria e preocupada. Mas o olhar estava afiado com determinação.
– Alex… vamos discutir isso antes que você vá lá e diga o que acha que tem que dizer para esse pessoal.
Ela franziu o cenho.
– Eles precisam saber. Eu tenho que contar.
– Alex. – Ele a segurou pelo braço, com mais firmeza do que pretendia. Ela olhou para os dedos que a prendiam, depois levantou o olhar. – Não posso permitir que
você faça isso.
Ela se desvencilhou e, por um segundo, ele considerou colocá-la em transe para mantê-la afastada da aglomeração logo adiante. Com um mínimo esforço mental e um resvalar
de sua palma na testa dela, ele poderia colocá-la num estado mais maleável de semiconsciência.
Poderia ganhar um tempo precioso. Impedi-la de colocar em risco sua missão para a Ordem ao alertar seus concidadãos da existência de vampiros vivendo entre eles,
à espreita na escuridão.
E ela o odiaria ainda mais – e com todo o direito – por continuar a manipulá-la.
Ela recuou um passo, as sobrancelhas ainda unidas mostrando sua confusão.
– O que deu em você? Eu tenho que ir.
Ele não a impediu quando ela girou e seguiu trotando na direção da pequena clínica da cidade. Com uma imprecação semicerrada, Kade foi atrás dela. Alcançou-a num
instante, depois abriu caminho ao seu lado entre as pessoas agrupadas que conversavam ansiosas.
– … terrível que algo assim tenha acontecido novamente – uma mulher de cabelos brancos murmurou para a pessoa ao seu lado.
– … ele perdeu tanto sangue – outra pessoa observou. – Ficaram dilacerados, foi o que ouvi. Não sobrou nada muito intacto em nenhum dos dois.
– Que coisa horrível – disse outra voz na multidão, carregada de pânico. – Primeiro os Toms, agora Big Dave e Lanny. Quero saber o que o oficial Tucker planeja fazer
a respeito!
Kade caminhou ao lado de Alex enquanto ela marchava na direção de Zach, que estava próximo à entrada da clínica, com o celular pressionado ao ouvido. Ele deu a entender
que notara sua aproximação com um aceno de cabeça, continuando a gritar ordens para alguém do outro lado da linha.
– Zach – disse ela –, preciso falar com você…
– Estou ocupado – ele ralhou.
– Mas, Zach…
– Agora não, mas que merda! Tenho um homem morto e outro sangrando ali dentro e toda a maldita cidade fica me atormentando!
Kade conseguiu conter o grunhido protetor que se formou na garganta ante a explosão do humano. Sua raiva escalou perigosamente, os músculos ficaram tensos e prontos
para uma briga para a qual ele percebeu estar mais do que pronto para começar. No entanto, sutilmente segurou Alex pelo braço e se colocou entre ela e o outro macho.
– Venha – ele lhe disse, guiando-a para longe do policial e também da sua fúria. – Vamos para outro lugar até as coisas se assentarem.
– Não – ela se opôs. – Não posso ir. Tenho que ver Big Dave. Preciso ter certeza…
Ela se soltou e subiu os degraus de concreto às pressas, sendo seguida de perto por Kade. O lugar estava muito silencioso, somente o zumbido das luzes fosforescentes
no teto, vindo da recepção deserta e seguindo por todo o corredor em direção às salas de exames. Vendo a aparência dispersa da clínica e a sua falta de equipamentos,
ela não lhe parecia pronta para tratar de algo muito maior do que um machucado ou uma aplicação de vacinas.
Alex caminhou pelo corredor com passos firmes e rápidos.
– Onde está Fran Littlejohn? Ela nunca deixa ficar tão frio aqui dentro – murmurou, mais ou menos na mesma hora em que Kade atentava para a temperatura.
Um frio ártico soprava pelo corredor vindo de uma das salas do fundo. A única com a porta fechada.
Alex pôs a mão na maçaneta. Ela não cedeu.
– Que estranho. Está trancada.
Os instintos de guerreiro de Kade se acenderam.
– Para trás.
Ele já se colocava diante dela, movendo-se com uma rapidez que os olhos dela não conseguiram acompanhar. Segurou a maçaneta e a girou com força. A tranca se abriu,
os mecanismos se desintegraram como pó num segundo.
Kade abriu a porta e se viu fitando os olhos frios de um Servo Humano.
– Skeeter? – A voz de Alex soou aguda de surpresa e carregada de suspeitas. – Que diabos está fazendo aqui?
O interesse do Servo estava bem claro para Kade. No chão ao lado da maca de Big Dave jazia uma mulher grande, de meia-idade, sem dúvida a funcionária do posto de
saúde. Estava inconsciente, mas ainda respirando, o que era melhor do que se podia dizer do seu paciente no leito.
– Fran! – Alex exclamou, apressando-se para junto da mulher, que não reagiu.
O foco de Kade era outro. O cômodo fedia com o cheiro sobrepujante de sangue humano. Se estivesse fresco, a reação física de Kade seria impossível de esconder, mas
o cheiro era de sangue envelhecido, as células já não viviam. Assim como Big Dave, que, deitado na maca, estava praticamente irreconhecível devido à gravidade dos
ferimentos. Kade só precisou aspirar uma vez o cheiro da hemoglobina coagulada para saber que o homem havia morrido há vários minutos.
– Meu Mestre ficou aborrecido ao saber do ataque de hoje – disse o Servo, com o rosto pálido e inexpressivo. Atrás dele havia uma janela aberta, obviamente sua via
de entrada. Na mão, ele trazia um par de tesouras cirúrgicas que tinham sido usadas para acelerar os efeitos dos ferimentos letais de Big Dave.
– Kade… do que ele está falando?
Skeeter sorriu para Alex, um sorriso estranho.
– Meu Mestre também não ficou nada satisfeito ao ouvir a seu respeito. Testemunhas costumam ser um problema, entende?
– Ai, meu Deus – Alex murmurou. – Skeeter, o que você está dizendo? O que você fez?!
– Filho da puta – Kade sibilou, lançando-se sobre o Servo. Derrubou Skeeter num ataque de esmagar os ossos. – Quem criou você? Responda!
Mas o escravo de sangue só o encarou e riu, apesar dos golpes que Kade desferia nele.
– Quem é o filho da puta do seu Mestre? – bateu novamente em Skeeter. E mais uma vez. – Fale, seu merdinha.
As respostas não lhe foram dadas. Uma parte irracional sua se prendeu ao nome de Seth, mas aquilo era impossível. Ainda que Kade e seu irmão gêmeo fossem da Raça,
a linhagem deles não era antiga o bastante ou pura o suficiente para qualquer um deles criar um Servo Humano. Somente as gerações mais antigas da raça vampírica
tinham o poder de sugar um humano até quase a morte, depois assumir o comando da sua mente.
– Quais são as suas ordens? – Socou o rosto sem alma e sorridente do Servo. – O que contou ao seu Mestre a respeito de Alex?
Atrás dele, a voz dela penetrou a violência que o acometia.
– Kade… por favor, pare. Você está me assustando. Pare com isso e deixe-o ir.
Mas ele não podia parar. Não poderia libertar o humano que um dia fora Skeeter Arnold, não mais. Não sabendo o que ele era agora. Não sabendo o que ele poderia fazer
com Alex se fosse libertado para obedecer às ordens do seu Mestre novamente.
– Kade, por favor…
Com um rugido gutural, ele segurou o pescoço do Servo nas mãos e girou com força. Houve um estalido de ossos e tendões se partindo, depois um baque quando ele deixou
o fardo inerte cair no chão.
Ouviu o arfar de Alex às suas costas. Ele pensou que ela fosse gritar, mas ela ficou completamente calada. Quando Kade se virou para ela, não foi difícil ver a confusão
– e o choque – nos olhos castanhos arregalados.
– Lamento que tenha visto isso – disse ele, baixinho. – Não havia como evitar.
– Você… o matou. Simplesmente o matou… com as próprias mãos.
– Ele já não estava mais vivo, Alex. Não passava de uma concha. Já não era mais humano. – Kade franziu o cenho, percebendo como aquilo devia ter soado para ela,
vendo seu olhar confuso. Lentamente ele se levantou, e ela recuou um passo, para longe do seu alcance.
– Não me toque.
– Ah, merda – ele murmurou, passando os dedos pela cabeça. Ela passara por muita violência, mais do que o seu quinhão; a última coisa de que ela precisava era participar
de mais por causa do seu envolvimento com ele. – Odeio o fato de você estar aqui agora, testemunhando isso. Mas eu posso explicar…
– Não. – Ela balançou a cabeça com vigor. – Não, tenho que procurar Zach. Tenho que buscar ajuda para Big Dave e tenho que…
– Alex. – Kade a segurou pelos braços de leve, mas sem permitir que ela se soltasse. – Não há nada que possa ser feito por nenhum desses homens agora. Envolver Zach
Tucker ou qualquer outra pessoa nisso só tornará a situação ainda mais perigosa – não só para eles, mas para você. Não posso correr esse risco.
Ela o encarou, os olhos perscrutando-o.
No silêncio que pareceu permear o ar, a funcionária da clínica que Skeeter nocauteara começava a recobrar a consciência. A mulher gemeu, murmurando algo incompreensível.
– Fran – disse Alex, virando-se para ajudar a outra mulher.
Kade bloqueou o seu caminho.
– Ela vai ficar bem.
Com Alex observando-o atentamente, ele foi para junto da mulher e pousou a mão sobre a testa dela com gentileza.
– Durma, Fran. Quando você acordar, não se lembrará de nada disso.
– O que está fazendo com ela? – Alex exigiu saber, a voz se elevando enquanto a funcionária relaxava ao toque dele.
– Será mais fácil para ela se ela se esquecer de que Skeeter esteve aqui – disse ele, certificando-se de que a mente dela apagara qualquer lembrança do ataque de
Skeeter e da presença dele e de Alex ali. – Também será mais seguro para ela assim.
– Do que está falando?
Kade virou a cabeça para encará-la.
– Há mais sobre os seus monstros do que você imagina, Alex. Muito mais.
Ela o encarou.
– O que está dizendo, Kade?
– Antes, quando estávamos no chalé, você disse que confiava em mim, certo?
Ela engoliu em seco e concordou sem dizer nada.
– Então, confie em mim, Alex. Ah, caramba… Não confie em ninguém mais a não ser em mim. – Relanceou para o corpo de Skeeter – o cadáver do Servo Humano que agora
ele teria que desovar em algum lugar, e rápido. – Preciso que volte lá para fora. Não pode mencionar nada a ninguém a respeito de Big Dave e de Skeeter ou do que
aconteceu aqui. Não conte a ninguém o que viu aqui, Alex. Preciso que saia, volte para casa e espere que eu a procure. Prometa.
– Mas ele… – a voz se partiu ao gesticular na direção do corpo alquebrado no chão.
– Cuidarei de tudo, Alex. Só preciso que me diga que confia em mim. Que acredita quando eu lhe digo que não há motivos para você ter medo. Não de mim. – Esticou
a mão para tocar no rosto frio e ficou aliviado quando ela não se retraiu ou se afastou. Estava pedindo muito dela – muito mais do que tinha direito. – Vá para casa
e espere por mim, Alex. Vou para lá assim que puder.
Ela piscou algumas vezes, depois retrocedeu alguns passos. Seus olhos estavam inexpressivos ao se aproximar da porta, e por um instante ele se perguntou se o medo
seria demais para ela agora.
– Está tudo bem – disse ele. – Eu também confio em você, Alex.
Ele se virou e ouviu quando ela se foi, deixando-o ali para se livrar daquela confusão sozinho.
CONTINUA
Capítulo 11
Era estranho estar de volta aos seus velhos aposentos no Refúgio do pai, como se ele tivesse de algum modo entrado num lar dos sonhos, distante e conservado na memória,
que já não parecia mais ser adequado a ele. No entanto, fiel à sua palavra, a mãe de Kade se certificou de que nada estivesse fora do lugar desde que ele partira
um ano antes. Depois da longa noite que teve em Harmony, ele conseguia apreciar o estofamento confortável de sua antiga poltrona reclinável de couro, perfeitamente
localizada diante da imensa lareira de pedras do rio, que crepitava com achas de madeira recém-dispostas.
Kade se recostou na poltrona e riu ao telefone enquanto Brock o deixava a par de tudo o que tinha perdido em Boston nas duas últimas noites.
– Estou falando, cara, se a gente não se cuidar, estas fêmeas daqui vão arrasar com a gente. O jeito com que estão cuidando das missões durante o dia está começando
a acabar com a nossa imagem.
Desde que ele ligara para o Q.G. da Ordem há alguns minutos, Brock o vinha presenteando com histórias sobre as Companheiras de Raça dos outros guerreiros e dos esforços
delas em ajudar no que, até pouco tempo, fora uma espécie de clube só de garotos. Agora as missões da Ordem se tornaram operações em que todos colocavam as mãos
– exclusivamente com o intuito de impedir que o maníaco da Raça ávido pelo poder chamado Dragos desencadeasse seu tipo pessoal de inferno tanto para a espécie humana
como para a Raça deles.
Os recursos de Dragos estavam de acordo com suas finanças e, ao que parecia, eram tão sombrios quanto seus planos. Seu ato mais hediondo fora a captura e o aprisionamento
de um sem-número de Companheiras de Raça ao longo das últimas décadas, usando-as para criar um exército de assassinos selvagens. Tendo o quartel-general de Dragos
sido atacado pela Ordem algumas semanas antes, suas operações foram interrompidas – desmontadas e desviadas, conforme as suspeitas da Ordem.
Encontrar Companheiras de Raça em cativeiro antes que ele pudesse causar mais mal era o objetivo primário da Ordem no momento. Visto que a rapidez na ação podia
representar a diferença entre a vida e a morte, Lucan concordara em utilizar toda arma do arsenal da Ordem, que incluía as fêmeas muito especiais e singularmente
dotadas que aceitaram alguns dos guerreiros como companheiros.
Havia a parceira de Rio, Dylan, que possuía a habilidade de ver os espíritos das outras Companheiras de Raça mortas e, quando tinha sorte, obter informações críticas
delas. Elise, unida a Tegan, possuía o talento de ouvir as intenções humanas sombrias e corruptas. Ela acompanhava Dylan em abrigos, lares e albergues, e sua habilidade
a ajudava a acessar as intenções das pessoas que conheciam ao longo do caminho.
A companheira de Gideon, Savannah, usava sua habilidade tátil para ler a história de um objeto, na esperança de encontrar elos para algumas das desaparecidas. A
de Nikolai, Renata, com seu poder de explodir a mente mesmo do mais forte dos vampiros, transformou-se numa aliada formidável em qualquer missão, fornecendo serviços
de guarda-costas para as outras Companheiras de Raça em suas missões diurnas.
Mesmo a companheira de Andreas Reichen, Claire, que apenas recentemente se recuperara do seu ordálio nas mãos de Dragos e dos seus associados, aparentemente estava
se envolvendo nos assuntos da Ordem. Utilizando-se do seu dom de andar pelos sonhos, ela vinha tentando fazer contato com algumas das Companheiras de Raça conhecidas
que foram dadas como desaparecidas ao longo dos anos.
– Sabe – acrescentou Brock com secura –, quando Niko me recrutou para esse trabalho no ano passado, eu esperava que fosse apenas uma bela desculpa para poder chutar
uns traseiros Renegados.
Kade sorriu, lembrando-se das primeiras patrulhas pelas ruas de Boston, que costumavam envolver apanhar os ferozes viciados em sangue da cidade e explodi-los.
– Isso o faz sentir saudades da simplicidade dos primeiros meses no trabalho, não é?
Brock grunhiu em concordância. Depois perguntou:
– Falando em Renegados, como estão as coisas aí nessa geladeira? Já faz dois dias. Ainda não cuidou do assunto?
– Estou seguindo algumas pistas, mas nada de concreto até agora. Provavelmente vou ficar aqui mais alguns dias, talvez uma semana.
Brock exalou uma imprecação que revelou a Kade o que ele achava dessa perspectiva.
– Antes você do que eu, cara. Antes você do que eu… – Houve uma pausa antes de ele perguntar: – Já conseguiu encontrar sua família?
– Bem… – Kade disse, inclinando a cabeça para trás para fitar a viga de madeira do teto. – A minha chegada em casa foi mais ou menos como antecipei.
– Tão bom assim, é?
– Digamos que me sinto mais acolhido quando saio na escuridão de vinte graus abaixo de zero.
– Dureza – disse Brock. – Lamento por isso, cara. De verdade.
Kade assentiu.
– Deixa pra lá. Não preciso falar sobre a minha recepção calorosa em casa. Eu só queria ligar para passar uma informação que Gideon pode achar interessante.
– Ok. Manda ver.
– Encontrei o cretino que postou o vídeo sobre o ataque aos humanos. Seu nome é Skeeter Arnold, um drogado local, provavelmente um traficante café com leite. Eu
o vi sair de um bar e entrar numa Hummer zerinho com motorista. Foi levado a algum tipo de escritório de uma mineradora na floresta. O nome no portão era Companhia
de Mineração Coldstream. Peça a Gideon que dê uma olhada quando tiver tempo. Estou curioso para saber que tipo de negócios esse perdedor tem com eles.
– Pode deixar – disse Brock. – Cuide-se. Não congele nada de que possa precisar depois.
Kade riu, apesar da inquietação que sentia só de pensar naquela missão.
– Entrarei em contato – disse ao terminar a ligação.
Assim que deixou o telefone na mesinha ao lado, uma batida forte soou do lado de fora da porta do chalé.
– Está aberta – disse, esperando ver o pai. Preparou-se para a desaprovação que se seguiria. – Pode entrar.
Mas foi Maksim quem entrou, provocando um alívio em Kade que ele mal conseguiu esconder. Levantou-se sorrindo e gesticulou para que o tio se juntasse a ele diante
da lareira.
– Não pensei que você fosse voltar – comentou Max. – Pelo menos não tão cedo. Ouvi que as coisas não correram bem entre você e meu irmão no outro dia. Bem que eu
gostaria que ele não fosse tão duro com você.
Kade deu de ombros.
– Nunca nos entendemos bem. Eu não tinha esperanças de que começássemos agora.
– Agora que você é um dos guerreiros da Ordem – disse Max, com os olhos cintilando numa conspiração ávida, e a voz grave com uma pontada de franca admiração. – Estou
orgulhoso de você, meu sobrinho. Orgulhoso do trabalho que vem fazendo. Há honra nele, assim como sempre houve em você.
Kade quis descartar o elogio como se fosse algo desnecessário, mas ouvi-lo – especialmente vindo de Max, que, apesar de ser algumas centenas de anos mais velho que
ele, sempre lhe pareceu mais com um irmão – fez com que se sentisse bem demais para fingir que não importava.
– Obrigado, Max. Isso significa muito para mim, vindo de você.
– Não há por que me agradecer. Estou dizendo a verdade. – Fitou Kade longamente, depois se inclinou para a frente, os cotovelos plantados nos joelhos afastados.
– Ficou fora por um ano. Deve estar fazendo coisas importantes para Lucan e para a Ordem.
Kade sorriu, percebendo as suas intenções. Como ele, Max ansiava por aventuras. Ao contrário dele, Max se comprometeu a servir como segundo homem para o pai de Kade,
o líder do Refúgio Secreto em Fairbanks. A lealdade de Max o acorrentara àquela prisão de quatro mil hectares, e ainda que ele jamais se esquivasse das suas obrigações
ou da sua promessa ao irmão duro e intransigente, Max apreciava os conceitos de risco e recompensa, de coragem e honra, tanto quanto Kade.
Por causa disso, e porque Kade entendia que a lealdade de Max se estendia a ele também, sabia que lhe confiar alguns detalhes das suas experiências na Ordem e da
missão atual não teria problema.
– Ouvi dizer que houve uma revolta na Agência lá no leste há alguns meses – comentou Max, observando Kade com curiosidade, à espera que ele elaborasse a questão.
– Houve, sim – ele admitiu, lembrando-se de uma das suas primeiras missões e do começo dos problemas da Ordem com o louco chamado Dragos. – O nosso departamento
de informações descobriu um diretor de alto escalão da Agência que não era o que aparentava ser. Esse cara vinha trabalhando com um nome falso e fomentando uma rebelião
secreta há várias décadas – mais até. Ainda estamos tentando determinar até onde chega essa corrupção, mas não tem sido fácil. Toda vez que nos aproximamos do bastardo,
ele se esconde ainda mais.
– E aí vocês o perseguem ainda mais – Max disse, falando como um dos guerreiros de Boston. – Vocês têm que continuar atingindo-o, cercando-o por todos os lados,
até ele ficar exausto demais para correr e não ter alternativa a não ser ficar e lutar. E então vocês o destruirão de uma vez por todas.
Kade assentiu com gravidade, percebendo a sabedoria do conselho de Max e desejando que a perseguição a Dragos fosse tão simples e direta assim.
O que Max não sabia – o que nem ele, nem qualquer outra pessoa, tinha permissão de saber – era que Dragos era apenas a ponta de um iceberg bem traiçoeiro. Dragos
tinha uma arma secreta, uma que ele detinha há séculos. Mais ou menos na mesma época em que Kade se unira à Ordem, eles descobriram a existência de uma criatura
que se pensava estar morta há muito tempo. Um Antigo. Um dos extraterrestres sedentos de sangue que deram vida à Raça de vampiros na Terra há milênios.
Dragos era neto daquela criatura e vinha formando seu exército de vampiros assassinos, incontroláveis e implacáveis, gerados a partir dele por mais tempo do que
qualquer pessoa gostaria de conceber.
Se essa novidade se espalhasse pelas comunidades da Raça nos Estados Unidos e no exterior, o pânico se propagaria.
Caso vazasse para a população humana que não só havia vampiros entre eles, mas que um megalomaníaco dentre eles pretendia assumir o poder e escravizar a todos?
Armagedom.
Kade teve que se sacudir mentalmente para se livrar desse cenário de pesadelos.
– Enquanto o restante da Ordem está fazendo exatamente o que você disse, eu acabei escolhendo o palitinho menor e vim parar no Alasca. Estou investigando um ataque
a humanos na floresta – uma família inteira dizimada, em apenas uma noite.
Max franziu o cenho.
– Renegados?
– É o nosso palpite. – E também a esperança de Kade, embora cada minuto daquela missão o levasse cada vez mais longe de um resultado favorável. – Não ficou sabendo
de nenhum problema nos Refúgios, ficou? Algum boato de alguém com propensões para a Sede de Sangue?
Max meneou a cabeça lentamente.
– Nada parecido. Houve um incidente no Refúgio em Anchorage uns nove meses atrás. Algum garoto idiota quase sangrou um humano até a morte numa festa, mas esse foi
o único problema na região nos últimos tempos.
Essa novidade por certo não fez Kade se sentir melhor. Porque se não havia Renegados à solta, então só restava um lugar sensato para se colocar a culpa.
– Fico imaginando se Seth não ouviu nada – murmurou, tentando esconder o medo e a fúria da voz. – Eu detestaria não vê-lo enquanto estou aqui.
– Ele também detestaria isso – Max disse, e Kade pôde ver que ele falava sério.
Ele não sabia a respeito de Seth. Como todos os outros, ele não fazia ideia.
Somente Kade sabia.
E o fardo desse conhecimento pesava cada vez mais.
Max se recostou na poltrona e pigarreou com suavidade.
– Há algo que eu gostaria de lhe contar, Kade. Algo que você precisa entender… A respeito da sua família, do seu pai.
– Continue – disse Kade, sem saber direito se gostaria de ouvir o quanto o pai adorava Seth e desejava que Kade fosse mais parecido com ele.
– Meu irmão, o seu pai, não tem facilidade para demonstrar afeição. Especialmente com você.
– Engraçado, eu não tinha percebido isso. – Kade sorriu com um humor que não sentia.
– A nossa família tem um segredo sombrio – Max disse, e Kade sentiu o corpo ficar entorpecido. – Kir e eu tínhamos um irmão mais novo. Estou certo de que você nunca
soube disso. Poucas pessoas sabem. Seu nome era Grigori. Kir o amava muito. Todos nós o amávamos. Grigori era um rapaz inteligente e charmoso. Mas também tinha um
lado selvagem. Mesmo em idade tenra, ele se revelava contra a autoridade e andava no fio da navalha em todas as situações sem medo algum.
Kade se viu sorrindo, pensando que talvez também gostaria de Grigori.
– Apesar dos seus defeitos, Kir o adorava. Mas, alguns anos mais tarde, quando ficamos sabendo que Grigori se tornara Renegado, que em sua Sede de Sangue ele tinha
matado, Kir o excluiu completamente. Simples assim – Max disse, estalando os dedos. – Nunca mais vimos Grigori. Desde então, Kir sequer o mencionou novamente. Dali
por diante, Kir se tornou outro homem.
Kade ouviu atentamente, relutante em admitir a pontada de empatia que sentia pelo pai e pela perda que ele sofrera.
– Talvez seu pai acredite que não suportaria esse tipo de dor novamente – Max sugeriu. – Talvez, às vezes, ele veja muito de Grigori em você.
E, pelo visto, resolvera excluir Kade antes, ao mesmo tempo em que depositava todas as esperanças paternais em Seth.
– Não tem importância – Kade murmurou, acreditando apenas parcialmente nisso. Estava envolvido demais com situações de vida e morte para se preocupar com a baixa
expectativa do pai para com ele. – Agradeço pela informação, Max. E pela sua opinião. Também agradeço por você ter vindo.
Max, perceptivo como sempre, captou a sutil sugestão e se levantou.
– Você tem coisas para fazer. Não devo prendê-lo.
Quando esticou a mão, Kade, em vez de aceitá-la, o puxou para um abraço.
– Você é um bom homem, Max. Um bom amigo. Obrigado.
– Qualquer coisa que você precisar, Kade, só precisa me pedir.
Foram juntos até a porta, e Kade a abriu no momento em que duas mulheres, embrulhadas em pesados casacos de inverno e carregando uma manta cada uma, passavam diante
do seu chalé. Uma delas levantou o olhar e estava prestes a desviá-lo quando voltou a olhar novamente.
– Ah… Kade? – perguntou ela, seu belo rosto se iluminando num sorriso. – Kade! Ouvi que você tinha voltado para o Alasca, mas não sabia que estava aqui.
– Olá, Patrice – disse ele, lançando um sorriso educado para a Companheira de Raça que seu irmão gêmeo mantinha à sua espera debaixo das asas nos últimos anos.
Ao seu lado, Max ficara absolutamente imóvel. Kade sentia o calor emanando do outro macho, enquanto Patrice continuava conversando com animação, gentil e bela, com
o cabelo ruivo brilhante e os vívidos olhos verde-escuros iluminados pela luz da lareira que vinha de dentro do chalé.
– Ruby e eu estávamos indo ver a aurora boreal de uma das rochas. Vocês gostariam de nos acompanhar?
Kade e Max recusaram ao mesmo tempo, mas foi a recusa de Max que diminuiu o sorriso de Patrice, embora ela tivesse tentado esconder isso com a ponta da manta que
carregava. Enquanto as Companheiras de Raça se afastavam, Kade notou que o macho mais velho não conseguia deixar de olhar para elas.
Ou melhor, para uma delas.
– Patrice? – Kade perguntou, surpreso pelo desejo muito bem contido que percebera nos dois.
Maksim desviou o olhar para ele.
– Ela se comprometeu com outro. Eu jamais interferiria nisso, não importando o quanto Seth demore em finalmente aceitar o presente precioso que recebeu. O bastardinho
arrogante e ignorante…
Kade viu o tio sair pela varanda e continuar pelo terreno coberto de neve até seus próprios aposentos.
Não sabia se ria ante a virulência da declaração de Max ou se amaldiçoava Seth por estar potencialmente arruinando mais duas vidas.
Capítulo 12
Alex despejou uma chaleira de água fervente na cafeteira antiga sobre o fogão. Conforme a cozinha se enchia com o aroma do café recém-coado pela segunda vez naquele
dia, ela se virou para a mesinha onde Jenna e ela estavam tomando café da manhã. Ou melhor, onde Alex estava tomando café da manhã. Jenna apenas beliscara as batatas
fritas caseiras e deixara os ovos mexidos praticamente intocados.
– Deus do céu, eu odeio o inverno – murmurou ela, recostando-se na cadeira de madeira que rangeu, desviando um olhar pensativo para a escuridão de fora às oito horas
da manhã. – Em determinados dias, parece que ele nunca vai acabar.
– Vai, sim – disse Alex, sentando-se diante da amiga e observando o olhar atormentado de Jenna se aprofundar.
Claro que não era nem a escuridão nem o frio que a entristeciam. Alex não tinha de olhar para o calendário na parede ao lado do telefone para compreender a crescente
tristeza de Jenna.
– Ei – disse Alex, forçando um tom alegre na voz. – Se o tempo continuar claro no final de semana, pensei que poderíamos voar até Anchorage. Que tal fazer compras
ou ir ao cinema? Topa um fim de semana só de garotas na cidade?
Jenna voltou a fitá-la e balançou a cabeça de leve.
– Acho que não.
– Ah, que é isso? Vai ser divertido. Sem falar que você está me devendo uma. Acabei o meu melhor café Red Goat com você. Preciso dar um pulo na Kiladi Brothers
para renovar o meu estoque.
Jenna sorriu de modo tristonho.
– Acabou seu amado Red Goat comigo? Uau, você deve estar mesmo preocupada comigo. Acha que estou mal, hein?
– E está? – Alex formulou a pergunta cautelosa, porém direta, que exigia uma resposta igualmente franca. Estendeu a mão por sobre a mesa e segurou a da amiga. Observou-a
com atenção, dando ouvidos aos seus instintos que sempre lhe diziam se estavam lhe contando a verdade ou uma mentira. – Você vai ficar bem desta vez?
Jenna sustentou seu olhar como se estivesse preso a ele e deu um suspiro baixo.
– Eu não sei, Alex. Sinto saudades deles. Eles me davam um motivo para levantar da cama de manhã, entende? Eu me sentia necessária, sentia que minha vida tinha um
propósito maior quando Mitch e Libby faziam parte dela. Não sei se um dia voltarei a sentir isso.
A verdade, então, por mais dolorosa que fosse. Alex recebeu a confissão da amiga com um aperto em sua mão. Ela piscou, libertando Jenna da ligação invisível do seu
olhar inquisidor.
– A sua vida tem um propósito, Jenna. Tem um significado. E você não está sozinha. Para início de conversa, você tem a Zach e a mim.
Jenna deu de ombros.
– Meu irmão e eu temos nos afastado nos últimos tempos e a minha melhor amiga tem falado umas besteiras sobre se mudar daqui.
– Eu falei sem pensar – disse Alex, sentindo uma pontada de culpa tanto pela covardia que a fazia cogitar a ideia de fugir novamente quanto pela meia-verdade que
dava a Jenna agora, na esperança de fazê-la se sentir melhor.
Levantou-se e levou as canecas de café até o fogão.
– A que horas você saiu do Pete’s ontem à noite? – Jenna perguntou enquanto Alex servia café fresco e o trazia de volta até a mesa.
– Saí pouco depois de você. Zach apareceu para me dar uma carona para casa.
Jenna sorveu um gole da sua caneca e a pousou no tampo da mesa.
– É mesmo?
– Foi só uma carona – explicou Alex. – Ele se ofereceu para tomar uma cerveja comigo no Pete’s, mas eu já estava a caminho de casa.
– Bem, conhecendo meu irmão, ele só devia estar querendo uma desculpa para tê-la na caminhonete dele. Ele tem uma queda por você desde que éramos adolescentes, você
sabe disso. Talvez, apesar dessa conversa de ele ser um cara durão, comprometido com o trabalho, ele ainda esteja de olho em você.
Alex não pensava assim. A única noite deles juntos fora prova suficiente para ambos de que o que quer que sentiam um pelo outro, isso jamais voltaria a ultrapassar
os limites da amizade. Ela conhecia Zach há mais de uma década, mas ele lhe parecia mais desconhecido do que Kade, que conhecera apenas um dia atrás.
Por mais incrível que pudesse parecer, apesar da maneira com que Kade mexia com as suas emoções, ela se sentia mais protegida fisicamente com ele do que com Zach,
um oficial condecorado.
Deus do céu. O que isso queria dizer a respeito do seu bom senso, Alex não saberia determinar.
Enquanto refletia tomando um belo gole de café, o telefone da cozinha começou a tocar. Alex se levantou e atendeu a linha comercial de modo automático.
– Entregas e Fretes Maguire.
– Oi.
Aquela única palavra – a voz profunda e agora intimamente familiar – entrou pelos seus ouvidos e desceu por sua espinha numa corrente de pura eletricidade.
– Hum, olá… Kade – respondeu, desejando não soar tão atordoada. E também tinha que parecer que havia perdido o fôlego? – Como conseguiu meu número?
Do outro lado da cozinha, Jenna ergueu as sobrancelhas num indício de surpresa. Alex girou sobre os calcanhares, desejando esconder parte do calor que lhe subia
pelas faces.
– Não existem muitos Maguires em Harmony – disse ele do outro lado da linha. – Nem tantos pilotos. Por isso, com um palpite calculado, telefonei para o único número
que aparecia listado que cobria os dois critérios – um Hank Maguire da Entregas e Fretes Maguire.
– Ah… – A boca de Alex se abriu num sorriso. – E como sabe que ele não é meu marido?
A risada baixa dele soava tão agradável como veludo.
– Você não beija como uma mulher casada…
As entranhas de Alex ficaram moles e aquecidas com esse lembrete, e estava bem difícil não se contorcer ao pensar nos lábios dele sobre os seus e na revisita mental
sensual que tinha feito sozinha no chuveiro na noite anterior.
– Hum, bem… por que telefonou? Você… está ligando a trabalho?
Que Deus a ajudasse, ela quase acrescentou “ou por prazer”, mas teve o bom senso de refrear as palavras antes de se envergonhar ao proferi-las. A última coisa de
que ela precisava era pensar em Kade e em prazer na mesma frase. Ela já tivera uma bela amostra disso. O bastante para saber que traria perigo e complicações; coisas
das quais ela já tinha o suficiente.
– Eu deveria me encontrar com Big Dave e alguns outros caras em Harmony hoje – disse Kade, casualmente lançando o melhor motivo de que ela necessitava para não querer
nada com ele.
– Ah, certo – disse Alex. – A grande caçada aos lobos.
E lá estava ela, permitindo que seus hormônios tresloucados a cegassem para o fato de que ela ainda não conhecia o jogo dele. A raiva surgiu com amargura em sua
garganta.
– Bem, divirta-se. Preciso desligar…
– Espere – disse ele, no momento em que ela estava prestes a colocar o aparelho no gancho. – Eu deveria me encontrar com Big Dave hoje, mas, na verdade, eu tinha
esperanças de conseguir um guia para me levar à casa de Henry Tulak.
– Henry Tulak – Alex repetiu lentamente. – O que você poderia querer no chalé dele?
– Eu só… Eu preciso mesmo saber como aquele homem morreu, Alex. Você pode me levar lá?
Ele parecia sincero e estranhamente resignado. Por isso parecer tão importante para ele, Alex se viu cedendo quando deveria estar afastando-o por completo.
– E quanto a Big Dave?
– Eu me desculpo quando o encontrar novamente – respondeu, parecendo qualquer coisa exceto preocupado quanto a enfrentar o valentão da cidade e os seus amigos. –
O que me diz, Alex?
– Sim, tudo bem. – Maldição, não deveria se sentir tão excitada com a perspectiva de passar um tempo ao lado dele. – O dia vai nascer lá pelo meio-dia, então por
que não se encontra comigo aqui em Harmony às onze? Teremos luz suficiente para viajar e algumas horas para verificar o lugar depois que chegarmos.
Kade resmungou, como se estivesse refletindo a respeito do outro lado da linha.
– Prefiro não esperar pela aurora para seguir para lá, se estiver tudo bem para você.
– Prefere viajar no escuro?
Ela conseguia perceber o sorriso se ampliar nas feições dele quando ele respondeu:
– Não tenho medo de um escurinho se você não tiver. Já estou a caminho, posso encontrá-la na sua casa em uma hora.
Bem, ele era direto, ela tinha que admitir. O homem colocava uma coisa na cabeça e não temia ir atrás dela.
– Daqui a uma hora está bom para você, Alex?
Ela relanceou para o relógio e perguntou se conseguiria tirar o pijama, tomar banho e dar um jeito no rosto e no cabelo nesse meio-tempo.
– Hum, sim, claro… Daqui a uma hora. Até lá.
Quando desligou, Alex sentiu a curiosidade do olhar de Jenna às suas costas.
– Era o Kade?
Ela se virou, com um sorriso bobo.
– É, ele mesmo.
Jenna se recostou na cadeira e cruzou os braços diante do peito, parecendo uma verdadeira policial, mesmo de blusa de moletom e jeans gastos, com os cabelos soltos
ao redor dos ombros.
– O mesmo Kade que estava no Pete’s ontem à noite, e o mesmo Kade que você viu na propriedade dos Toms ontem e com quem você disse que não quer ter nada? Esse Kade?
– O próprio – respondeu Alex. – E antes que você diga qualquer outra coisa, só vou levá-lo para o chalé do Tulak para que ele dê uma olhada.
– Ok.
– São só negócios – disse Alex, pegando os pratos do desjejum com pressa e colocando-os na pia. Pegou uma fatia de pão embebida em ovos e a jogou na direção da boca
esperançosa de Luna. – Na minha opinião, se eu conseguir afastar uma arma sequer da mira dos lobos, então estou mais do que contente em distrair Kade com um passeiozinho
no campo.
Quando se aproximou da mesa para limpá-la, Jenna a encarou.
Não era preciso ter o detector de mentiras de Alex, nem o olhar treinado de policial de Jenna, para entender que, sem sombra de dúvida, Alex estava entusiasmada.
Revirada de ponta-cabeça por um homem que conhecera há dois dias. Tentada a permitir que esse homem, que era de uma centena de tons de cinza, entrasse em seu mundo
certinho onde tudo era preto ou branco.
– Tome cuidado, Alex – disse Jenna. – Sou sua amiga e te amo, não quero que você se machuque.
– Eu sei – ela disse. – E não vou sair magoada.
Jenna riu baixinho e balançou a mão à sua frente, dispensando-a.
– Bem, por que está parada aí quando deveria estar se aprontando para esse não encontro? Vá em frente. Deixe que eu e Luna cuidemos da limpeza do café da manhã.
Alex sorriu.
– Obrigada, Jenna.
– Mas quando você voltar desse não encontro – Jenna lhe disse, enquanto ela avançava pelo corredor –, vou querer o nome completo dele e o número do seguro social.
E também seu histórico médico completo! Sabe que não estou brincando!
Alex sabia muito bem disso, mas estava rindo mesmo assim, levada pelas muito bem-vindas, talvez porque incomuns, sensações de excitação e esperança.
Capítulo 13
Kade não tinha percebido o quanto estava ansioso para ver Alex até enxergar sua silhueta atrás do vidro jateado da porta da casa dela quando ela foi abri-la. Alta
e magra, vestida num par de jeans escuros e uma malha verde-limão com uma camiseta de gola alta por baixo, o cabelo loiro preso em duas tranças que derramavam-se
em seus ombros, em pleno inverno, ela parecia fresca como a primavera. Ela lhe sorriu através dos cristais de gelo pensos nas janelas, o rosto naturalmente belo
enaltecido por um pouco de rímel e o rubor repentino que se fez em suas faces.
– Olá – disse ela, ao abrir a porta para que ele entrasse. – Você me encontrou.
Ele inclinou a cabeça uma vez num aceno.
– Eu te encontrei.
– Deixe-me adivinhar – disse ela, com o sorriso ainda estampado no rosto. – Você andou até aqui assim como fez no outro dia para ir até a floresta?
Ele lançou um sorriso malicioso e indicou a motoneve estacionada no jardim.
– Resolvi dirigir hoje.
– Sim, claro que sim. – Ela segurou a porta aberta para ele. – Entre. Só preciso calçar as botas e pegar o casaco, e podemos ir.
Quando ela desapareceu virando na sala de estar, Kade entrou na aconchegante cozinha e passou o olhar pela mobília simples e pela atmosfera convidativa e casual.
Ele sentia o perfume de Alex ali, sentia a presença dela nas linhas retas e regulares do sofá e das cadeiras, na madeira rústica das mesas e nos tons verdes, marrons
e cremes do tapete entrelaçado debaixo dos pés.
Ela voltou para a sala com um par de botas Sorel e uma parca pesada cor cáqui.
– Pronta, se você estiver. Deixe sua moto aqui. Vamos para os fundos pegar a minha para irmos até a pista.
Kade parou alguns passos atrás dela.
– Pista?
– É – afirmou ela. – Não há previsão de neve para os próximos dias, então para que perder tempo indo de motoneve quando podemos voar até lá?
– Eu não sabia que iríamos voando. – Ele sentiu uma pontada momentânea de incerteza, algo novo para ele. – Ainda está escuro.
– O meu avião não sabe a diferença entre dia ou noite – disse ela, com um brilho dançando nos olhos castanhos. – Vamos. Isto é, a menos que fique pouco à vontade
com um pouco de escuridão, Kade.
Ela caçoava dele, e ele adorou isso. Sorriu, pronto para enfrentar qualquer desafio que ela lhe lançasse.
– Mostre o caminho.
Com Alex encarregada e Kade muito satisfeito em ir na garupa, nem que fosse apenas pela desculpa de passar os braços ao seu redor, aceleraram pelas vias congeladas
da cidade até onde o avião monomotor estava estacionado na singela pista de pouso de Harmony. Além do hangar onde estavam temporariamente estocados os corpos da
família Toms, o aeroporto consistia de uma pista curta de neve compactada e luzes de orientação que mal se enxergava por cima dos montes de neve mais altos.
O Havilland Beaver de Alex tinha um vizinho por companhia, um pequeno Super Cub, equipado com pneus largos em vez dos esquis do veículo de Alex. Uma rajada de vento
atravessou a pista, erguendo uma nuvem de neve que subia como folhas ao vento.
– Lugar agitado, hein?
– Melhor do que nada. – Ela estacionou, e os dois desceram da motoneve. – Vá em frente e entre. Preciso checar o avião antes de decolarmos.
Kade poderia ter se recusado a acatar ordens de uma fêmea, caso não estivesse tão intrigado pela confiança de Alex naquilo que ela realizava. Kade entrou pela cabina
destrancada e fechou a porta. Mesmo o Beaver parecendo um burro de carga visto pelo interior, Kade se assustou com a sensação claustrofóbica da sua cabina. Tendo
mais de um e noventa de altura e pesando mais de cento e dez quilos sem armas e roupas, ele era considerado um macho grande segundo qualquer padrão, mas, ao se sentar
no banco do passageiro do monomotor, os painéis curvados e as janelas estreitas faziam aquilo se parecer com uma gaiola.
Alex apareceu pelo lado do piloto e se sentou no banco atrás do manche.
– Tudo pronto – anunciou com alegria. – Aperte os cintos, e estaremos voando em seguida.
No interior remoto do Alasca, não era de se admirar que não houvesse controle de tráfego aéreo, nenhuma torre de rádio para liberar a decolagem. Dependia somente
de Alex levantar voo e seguir na direção correta. Um minuto mais tarde, subiram na escuridão, cada vez mais alto no céu matutino desprovido de luzes a não ser pelo
manto distante de estrelas reluzentes.
– Bom trabalho – comentou Kade, lançando um olhar para Alex enquanto ela equilibrava a subida e os desviava de um trecho de solavancos provocados pelos ventos. –
Imagino que você já fez isso algumas vezes.
Ela sorriu de leve.
– Voo desde que tinha doze anos de idade. Mas tive que esperar até os dezoito para fazer o curso oficial e tirar o brevê.
– Você gosta de estar aqui em cima, perto das estrelas e das nuvens?
– Adoro – disse ela, concordando com um aceno pensativo, enquanto verificava alguns controles no painel. Depois voltou o olhar para a vastidão diante deles. – Meu
pai me ensinou a voar. Quando eu era menina, ele me dizia que o céu é um lugar mágico. Às vezes, quando eu ficava com medo ou acordava assustada com um pesadelo,
ele me trazia com ele, não importando que horas fossem. Subíamos bem alto no céu, onde nada de ruim podia nos alcançar.
Kade conseguiu detectar a afeição na voz dela quando falou do pai, e também percebeu a tristeza pela sua perda.
– Há quanto tempo seu pai morreu?
– Há seis meses… Alzheimer. Há quatro anos ele começou a se esquecer das coisas. Isso piorou bem rápido, e depois de um ano, quando a doença começou a afetar seus
reflexos no avião, ele finalmente me deixou levá-lo ao hospital em Galena. A doença progride de forma diferente nas pessoas, mas com papai, pareceu dominá-lo com
tanta rapidez… – Alex soltou um suspiro pensativo. – Acho que ele entregou os pontos assim que recebeu o diagnóstico. Não sei, talvez já tivesse desistido de viver
muito antes.
– Por que diz isso?
Aquela não fora uma pergunta invasiva, mas ela mordeu o lábio quando ele a fez, um ato reflexo que revelava que ela provavelmente sentia ter lhe contado mais do
que pretendia. Pelo olhar desconfiado e repentino que ela lhe lançou, ele percebeu que ela tentava avaliá-lo de algum modo, tentando decidir se seria seguro confiar
nele.
Quando ela por fim falou, sua voz saiu baixa, o olhar mirando o para-brisa, como se ela não pudesse falar com ele e olhá-lo ao mesmo tempo.
– Meu… hum… meu pai e eu nos mudamos para o Alasca quando eu tinha nove anos. Antes disso morávamos na Flórida, nas Everglades, onde meu pai pilotava um avião para
passeios turísticos sobre os pântanos e Keys.
Kade a avaliou na luz fraca da cabina.
– É um mundo totalmente diferente daqui.
– É. Pode apostar nisso.
Um barulho metálico repentino surgiu do nada no avião, e a cabina reverberou. Kade se segurou no banco, grato ao ver que Alex não entrara em pânico. A sua atenção
estava voltada para os instrumentos do painel, e ela aumentou a velocidade do avião. Os sacolejos e o barulho abrandaram, e o voo voltou a ficar suave.
– Não se preocupe – ela lhe disse, o tom tão sério quanto sua expressão. – Como meu pai costumava dizer, é um fato científico que alguns dos sons mais alarmantes
nos aviões só podem ser escutados à noite. Acho que estamos bem agora.
Kade riu pouco à vontade.
– Acho que vou ter que confiar em você.
Sobrevoaram um pico, depois fizeram uma leve curva, mudando de direção para voltarem a acompanhar o Koyukuk logo abaixo.
– Então, o que aconteceu na Flórida, Alex? – perguntou, voltando ao assunto que não pretendia deixar de lado. Seus instintos lhe diziam que estava perto de descobrir
os segredos que ela escondia, mas ele não estava querendo avançar nas suas investigações naquele momento. Estava, de fato, interessado nela – caramba, se fosse honesto
consigo mesmo, teria que admitir que começava a se preocupar de verdade – e desejava entender o que se passara com ela. Tendo captado a dor em sua voz, desejou poder
ajudá-la da maneira que pudesse. – Alguma coisa aconteceu com a sua família na Flórida?
Ela balançou a cabeça e lhe lançou mais um daqueles olhares perscrutadores.
– Não, não conosco… mas minha mãe e meu irmãozinho…
A voz se partiu, emocionada. Kade sentiu as sobrancelhas se unirem ao fitá-la.
– Como eles morreram, Alex?
Por um momento estonteante, seus olhos se prenderam aos dele, imóveis e carregados de um medo renovado, um pavor frio que começou a se formar em seu âmago. O pequeno
compartimento que partilhavam a mais de dois mil metros acima do solo se estreitou ainda mais, contraído pelo silêncio de Alex ao seu lado.
– Eles foram mortos – disse ela por fim. Palavras que só fizeram a pulsação de Kade acelerar quando ele considerou uma causa possível; uma causa terrível que faria
do seu envolvimento com Alex algo ainda mais impossível do que já era. Mas ela deu de ombros e voltou a olhar para a frente. Inspirou fundo e depois soltou o ar.
– Num acidente. Um motorista embriagado passou por um semáforo vermelho num cruzamento. Bateu no carro da minha mãe. Ela e meu irmão caçula morreram com o impacto.
A carranca de Kade se acentuou enquanto ela recitava os fatos depressa, como se não conseguisse dizê-los com a rapidez desejada. E recitar parecia uma descrição
correta, porque algo na explicação dela parecia ensaiado, muito bem treinado.
– Sinto muito, Alex – disse ele, sem conseguir despregar seu olhar interrogador dela. – Imagino que seja ao menos uma bênção o fato de eles não terem sofrido.
– É – respondeu ela automaticamente. – Pelo menos eles não sofreram.
Voaram por um tempo sem conversarem, observando a paisagem escura debaixo deles se alternando de faixas sem luz de floresta densa e montanhas elevadas, para o azul
elétrico da tundra coberta de neve e dos contrafortes das montanhas. No céu ao longe, Kade viu o brilho esverdeado misterioso das luzes do norte. Ele as indicou
para Alex e, apesar de ter visto a aurora boreal inúmeras vezes desde o seu nascimento há quase cem anos, ele nunca estivera no céu para presenciar as cores fantásticas
dançando no horizonte.
– Incrível, não? – Alex comentou, obviamente à vontade ao navegar num amplo arco para que pudessem ver as luzes por mais tempo.
Kade observava as luzes, mas seus pensamentos ainda estavam em Alex, tentando juntar as peças da ficção em que ela queria fazê-lo acreditar.
– O Alasca não poderia ser mais diferente da Flórida, não?
– É verdade – concordou ela. – Meu pai e eu queríamos recomeçar… Tivemos que fazer isso depois que mamãe e Ricky… – Inspirou fundo, fortalecendo-se antes de dizer
mais do que pretendia. – Depois que eles morreram, meu pai e eu voamos para Miami para comprar uma passagem para algum lugar a fim de recomeçarmos nossas vidas.
Havia um globo em uma das livrarias do terminal. Papai me mostrou onde estávamos e me pediu para escolher um lugar para irmos. Escolhi o Alasca. Quando chegamos
aqui, achamos que Harmony parecia uma cidade amigável na qual poderíamos criar nosso novo lar.
– E foi?
– Sim. – Sua voz soou um tanto saudosa. – Mas agora que ele se foi, está diferente para mim. Andei pensando se não está na hora de dar mais uma olhada no globo,
conhecer outra parte do país por um tempo.
Antes que Kade tivesse a chance de perguntar algo mais, o motor começou a fazer barulho e sacolejar com vingança renovada. Alex acelerou mais uma vez, mas o barulho
e o sacolejo persistiram.
– O que está acontecendo?
– Vou ter que aterrissar agora – disse ela. – Ali está o chalé do Tulak. Vou tentar chegar o mais próximo possível.
– Tudo bem. – Kade olhou pela janelinha para o chão que se aproximava mais rapidamente do que ele gostaria. – Só tente descer devagar. Não estou vendo nenhuma pista
aí embaixo.
Ele não precisava ter se preocupado. Alex baixou a aeronave sacolejante em seu par de esquis num deslize suave, conseguindo se desviar de alguns abetos antigos que
se materializaram do nada na escuridão ao pararem sobre a neve fofa. O chalé estava bem diante deles, mas Alex diminuiu a velocidade do Beaver e fez uma curva suave,
navegando com muita precisão para quem teve que aterrissar tão abruptamente.
– Nossa, essa passou perto – exclamou ele ao pararem de vez na neve.
– Acha mesmo? – A expressão de divertimento de Alex era imensa ao desligar o motor.
Ela desceu, e Kade a seguiu até o motor. Ela o olhou por dentro.
– Droga. Bem, pelo menos isso explica o problema. Alguns parafusos saíram da tampa do motor e caíram.
Kade sabia tanto de tampas de motores quanto de tricô. E ele não tinha problema em desejar que isso prendesse-os na floresta por algumas horas. Ou, melhor ainda,
por algumas noites.
– Então, o que você está me dizendo é que ficaremos presos aqui até alguém vir ajudar?
– Você está olhando para a ajuda – ela lhe disse, lançando-lhe um sorriso enquanto voltava para pegar uma caixa de ferramentas no compartimento de carga do avião.
Parte do motivo pelo qual Kade a levou até aquela localização remota era que queria, de uma vez por todas, chegar à raiz do que ela sabia quanto aos homicídios da
família Toms. Agora, depois das meias-verdades que ela lhe contara a respeito das mortes da mãe e do irmão, ele tinha outro motivo para questioná-la. E ele disse
a si mesmo que, no final das contas, se Alex soubesse de algo sobre a existência da Raça – ainda mais se esse conhecimento estivesse relacionado à perda dos familiares
na Flórida –, então, aliviá-la do fardo dessa lembrança seria um ato de bondade seu.
Aquilo, porém, não dizia respeito somente à missão. Ele tentara se convencer de que era isso, mas a obrigação ficara em segundo plano no instante em que chegara
à casa de Alex. A maneira como a sua pulsação ficava mais rápida ao redor dessa fêmea por certo não fazia parte do plano. Seu coração ainda estava acelerado por
conta da repentina aterrissagem, mas assim que Alex voltou para junto dele, parecendo inteligente e capaz, e tão adorável, ao se aproximar do motor, as batidas do
seu coração passaram a ser uma palpitação.
– Importa-se de segurar essa lanterna para mim? – Ela a acendeu e a entregou a ele, depois tirou uma luva e apanhou alguns parafusos na caixa de ferramentas. – Alguns
desses devem servir até voltarmos para casa.
Kade a observou colocar cada parafuso no buraco, imaginando se os guerreiros em Boston sentiam o mesmo orgulho e prazer ao verem suas fêmeas fazerem aquilo que faziam
de melhor.
Mas o pensamento o irritou assim que entrou em sua mente… Desde quando ele era do tipo que pensava em ter uma companheira, quanto mais aproximar Alexandra Maguire
desse cenário? Na melhor das hipóteses, ela era um obstáculo temporário no cumprimento da sua missão para a Ordem. Na pior, ela representava um risco de segurança
para toda a nação da Raça – alguém que ele devia silenciar o quanto antes.
Mas nada disso importava para seu coração acelerado, nem para os estalidos de atenção que atravessavam todas as suas veias e células enquanto ela concluía seu trabalho
a poucos centímetros de distância. Atrás dela, ao longe, a luz verde da aurora boreal se unira a uma faixa avermelhada. A cor emoldurou Alex quando ela se virou
para olhá-lo, e ele se questionou se já vira algo tão belo quanto o rosto dela com o halo de magia congelada da selva do Alasca. Ela não disse nada, apenas sustentou
seu olhar com a mesma intensidade silenciosa que ele sentia atravessando-o.
Kade apagou a lanterna e a colocou sobre a tampa do motor agora fechado. Tirou as luvas e segurou a mão nua de Alex, aquecendo-lhe os dedos na pressão de suas palmas
quentes. Segurou-a de leve, dando-lhe a oportunidade de se afastar caso não desejasse seu toque. Mas ela não opôs resistência.
Ela entrelaçou os dedos nos dele, fitando-o nos olhos com uma intensidade voraz.
– O que quer de mim, Kade? Por favor, preciso saber. Preciso que me diga.
– Eu achei que sabia – disse ele, mas balançou a cabeça. – Achei que tinha tudo certo na cabeça. Deus, Alex… conhecer você mudou tudo.
Ele soltou uma mão para pousar na curva do maxilar dela, escorregando os dedos entre o capuz da parca e o calor aveludado do seu rosto.
– Não consigo entender você – ela disse, franzindo o cenho ao levantar o olhar para ele. – Eu me sinto desconfortável por não conseguir entendê-lo.
Ele tocou a ponta do nariz dela e lhe lançou um sorriso torto.
– Muito cinza no seu mundo em preto e branco?
A expressão dela permaneceu grave.
– Isso me assusta.
– Não se assuste.
– Você me assusta, Kade. Durante toda a minha vida, fugi das coisas que me assustavam, mas com você… – Ela emitiu um suspiro incerto e lento. – Com você, pareço
incapaz de me afastar.
Ele afagou o rosto dela, passou as pontas dos dedos sobre as rugas formadas na testa enquanto ela o fitava.
– Não há motivo para você ficar assustada quando está comigo – ele lhe disse, com toda a honestidade.
Mas, então, ele inclinou a cabeça e pressionou os lábios sobre os dela, e o beijo que deveria ter representado uma promessa carinhosa inflamou-se em algo mais selvagem
quando Alex o retribuiu tão abertamente, provocando a boca dele com a ponta da língua. Todo o calor que surgira entre eles na noite anterior no estacionamento do
Pete’s foi reavivado naquele instante, só que mais veloz, mais intenso, pelas horas em que Kade a desejara. Ele ardia por aquela fêmea, de uma maneira muito perigosa.
Beijá-la era um risco alto; o desejo já alongara as presas, a visão já se tornara aguçada com a luz âmbar que agora preenchia suas íris.
Seduzi-la ali não fora seu objetivo, não importando a missão da Ordem ou o quanto ele desejasse descobrir os segredos de Alex para satisfazer sua curiosidade pessoal.
Afastou-se, a cabeça baixa, o rosto virado para longe para esconder as mudanças que não poderia permitir que ela visse. Mudanças que a assustariam.
Mudanças que ele não seria capaz de explicar.
– O que foi? – perguntou ela, com a voz rouca devido ao beijo. – Algo errado?
– Não. – Ele meneou a cabeça, ainda escondendo o rosto até conseguir aplacar seu desejo. – Nada errado. Mas está frio demais para ficarmos parados aqui. Você deve
estar congelando.
– Não posso dizer que eu esteja sentindo frio no momento – replicou, fazendo-o sorrir a despeito da guerra que acontecia em seu interior.
– É melhor entrarmos. – Ele não aguardou uma resposta antes de dar a volta no avião. – Só preciso da minha mochila. Vá na frente. Vou logo atrás.
– Está bem. – Ela hesitou por um momento, depois se pôs a caminhar na direção do chalé, as botas esmagando a neve. – Traga lenha, já que está por aí. As pessoas
usam este lugar como abrigo agora, então você deve encontrar um pouco no galpão logo atrás.
Ele esperou até que ela tivesse entrado no chalé antes de tirar a mochila com armamento do avião e seguir para procurar o abrigo de madeira. O ar ártico o estapeou
conforme ele avançava pela neve imaculada. Ficou grato pelo castigo do tempo frio. Necessitava da lucidez do vento gélido.
E ainda assim ardia internamente por Alex.
Desejava-a demais, e seria preciso que uma geleira o engolisse para aplacar parte do calor que ela acendia nele.
Capítulo 14
Alex entrou no chalé de um único cômodo e fechou a porta atrás de si para lacrar o frio, com esperanças de conseguir um instante de privacidade para poder lidar
com o tumulto que acontecia dentro dela. Recostou-se contra a madeira gasta e exalou um suspiro trêmulo.
– Controle-se, Maguire.
Quis fingir que o beijo não significara nada, que o simples fato de Kade ter se afastado primeiro era indício de que até mesmo ele pensava que deixar as coisas esquentarem
entre eles seria má ideia. Só que as coisas já estavam quentes, e negar isso não faria o fato desaparecer. Não havia um lugar longe o bastante para que Alex deixasse
de sentir o desejo que sentia por Kade. E o engraçado era que ela não queria fugir daquela sensação. Pela primeira vez na vida, existia algo que a assustava sobremaneira,
mas que não lhe provocava ímpetos de sair correndo.
Não, ainda pior: seus sentimentos por Kade a impeliam a se aproximar dele.
Ainda mais assustador, ela sentiu que Kade poderia ser alguém forte o bastante em quem se apoiar, forte o bastante para que ela se abrisse – se abrisse de verdade
– a respeito de tudo o que mantinha represado dentro de si por tanto tempo. Uma parte sua queria acreditar que ele poderia ser o homem forte que ficaria ao seu lado
em qualquer tempestade, mesmo uma repleta de monstros, na qual a noite tinha dentes e o vento grunhia sedento de sangue.
Kade seria capaz de ficar ao seu lado.
Alex sabia disso do mesmo modo como sabia quando alguém lhe mentia. Ainda que não conseguisse lê-lo como fazia com as outras pessoas, esse mesmo sentido intenso
lhe dizia que isso acontecia porque Kade era diferente das outras pessoas de alguma maneira. Ele era diferente dos homens que já conhecera e que viria a conhecer.
Esse mesmo estranho e inabalável, instinto estivera no comando no voo, quando ela estivera perto de lhe contar a verdade – toda a verdade – sobre os motivos que
levaram o pai e ela a se mudarem da Flórida. A verdade a respeito do que, exatamente, matara sua mãe e seu irmão.
Fora difícil lutar contra esse instinto que desejava permitir a aproximação de Kade, e quando ela lançou a mentira ensaiada que usara com tantos outros sem nenhum
remorso, ser desonesta com Kade fez com que se sentisse terrível. Imagine só – ela escondera uma das verdades mais fundamentais sobre si mesma de todos em Harmony
que a conheciam desde que era uma criança; no entanto, após apenas alguns dias de flertes com um desconhecido, ela se via pronta a contar tudo.
Kade, contudo, já não era mais um estranho para ela. Ele não lhe pareceu um estranho nem mesmo na primeira noite no fundo da igreja, quando os olhos prateados se
encontraram com os seus do outro lado do salão.
E se tudo o que vinham fazendo desde então era apenas um flerte, por que seu coração batia forte contra o osso esterno toda vez que estava perto dele? Por que ela
sentia, contra toda lógica e sensatez, que seu lugar era ao lado desse homem?
Com o frio das lembranças remotas e a incerteza do futuro se aproximando, ela precisava de algo forte e quente no qual se segurar.
Não apenas de qualquer coisa ou de qualquer pessoa… mas dele.
Precisava do calor de Kade agora – da sua força –, mesmo que apenas por uns instantes.
O depósito de madeira atrás do chalé tinha um estoque decente de lenha cortada e seca, empilhada dentro da construção externa que tinha as iniciais de Henry Tulak
acima da porta. Era costume na floresta que os viajantes cuidassem uns dos outros, deixando combustível e alimentos para o próximo e respeitando a natureza a fim
de preservá-la tanto para si quanto para outrem.
Enquanto apanhava as achas de madeira que usariam, Kade pensava no que poderia deixar em troca da lenha que queimaria no chalé com Alex. Ajoelhou-se e abriu o zíper
da mochila. As únicas coisas que trazia que poderiam ser úteis ali eram suas armas, porém, as pistolas destinadas a matar Renegados que ele carregava eram valiosas
demais para serem deixadas para trás. Uma adaga, então. Ele tinha mais do que uma consigo.
Ao colocar a mão dentro da mochila à procura de uma faca que poderia deixar, o solado da bota se prendeu em algo branco e duro, preso entre as tábuas do abrigo.
– O que é isso?
Moveu-se para o lado para poder ver melhor o que havia debaixo da bota. Um dente de urso. A ponta de marfim longa e afiada estava encravada no espaço entre duas
tábuas como se tivesse sido afundada por inúmeras botas antes da sua. Não foi o dente, contudo, que fez o sangue de Kade gelar nas veias. Foi a tira fina de couro
entrelaçada presa a ele.
Exatamente do mesmo tipo que a pulseira presa a outro dente que vira recentemente.
Aquele que ele encontrara manchado de sangue humano seco, guardado no esconderijo de tesouros particulares de Seth. A coleção pervertida de souvenires mantida por
um assassino.
Seu irmão estivera ali.
Ah, não… seria possível que Seth tivesse matado o homem encontrado devorado por animais naquele mesmo lugar no ano anterior?
Kade quis negar a prova que tinha na mão fingindo ser uma mera coincidência, mas o gelo em seu peito lhe disse que seu irmão gêmeo estivera ali no inverno anterior,
quando Henry Tulak respirou pela última vez.
– Filho da mãe… – Kade sussurrou, enojado, ainda que tivesse procurado provas daquilo desde que chegara ao Alasca.
Agora que ela o encarava – a certeza de que somente um gêmeo idêntico pode ter a respeito da sua outra metade –, não havia mais como negar o que ele sabia em seu
coração há tanto tempo. Seu irmão era um assassino. Não melhor do que os Renegados que Kade sempre odiara e que agora perseguia como membro da Ordem. A fúria o atravessou,
ultraje não só em relação a Seth, mas a si mesmo, por querer acreditar que estivesse errado a respeito do irmão. Não havia mais incerteza em acusar Seth, ou a repugnância
em relação aos seus atos.
Kade soltou o dente de urso com a ponta da faca e o segurou diante de si, fitando, enojado, a prova que acabara de condenar o irmão. A mesma prova que impelia Kade
a fazer o que era justo e correto – fazer o que era seu dever, não só pela Ordem, mas como um macho cuja conduta pessoal de honra exigia justiça.
Precisava encontrar Seth e colocar um fim àquela matança.
Precisava sair dali naquele instante. Estava nervoso demais pela ira e pela determinação para voar de volta para Harmony com Alex; seguiria para lá a pé para iniciar
sua caçada pessoal, enquanto a aurora do meio-dia ainda demoraria algumas horas a chegar. Cobriria o maldito interior inteiro a pé se fosse necessário – chamaria
os lobos para ajudá-lo a encontrar Seth se não conseguisse rastreá-lo sozinho rápido o bastante.
Kade enfiou o pingente de dente de urso no bolso da frente dos jeans e deixou a faca sobre a pilha de lenha, uma oferenda, apesar de não ter mais uso para ela agora.
A única coisa de que precisava era sair logo dali e fazer o trabalho que o trouxera de volta ao lar, ao Alasca, de uma vez por todas.
Enquanto dava a volta no abrigo e subia até o chalé, ele era como um barril de dinamite numa combinação de raiva e intenção letal. Porém, ao abrir a porta do chalé,
pronto a oferecer alguma desculpa esfarrapada para Alex explicando por que teria que abandoná-la ali, ele foi recebido pelo ar quente e o brilho dourado de um fogo
crepitando no pequeno fogão a lenha no meio do chalé.
E pela própria Alex, sentada em meio a um ninho fofo de sacos de dormir e mantas de lã macias. O cabelo loiro fora libertado das tranças e caíam em ondas sobre os
ombros nus. Ombros despidos, assim como as pernas longas que se viam por debaixo da manta fina que mal a cobria.
Caramba… a linda e sensual Alex, nua à sua espera.
Kade pigarreou, subitamente sem palavras, e mais ainda sem as desculpas que pretendera dar para sair dali imediatamente.
– Eu… hum… eu encontrei um pouco de lenha e fósforos naquele balde ali – Alex disse. – Pensei em esquentar as coisas por aqui.
Esquentar? Se ela fosse mais quente, o corpo de Kade se incendiaria ali mesmo. O coração ainda batia descompassado por conta da descoberta desagradável no abrigo
de lenha, mas agora seu ritmo passou para uma batida mais profunda e mais urgente. Ele sentiu um músculo no maxilar dar um repuxão violento enquanto via a luz do
fogo dançar sobre a pele suave e macia.
– Alex…
Ele meneou a cabeça de leve, incapaz de pronunciar as palavras para rejeitá-la. As mais de uma dúzia de razões pelas quais aquilo era uma má ideia – ainda mais agora,
quando seu dever o impelia a deixar de lado suas necessidades egoístas para se concentrar plenamente na missão que o levara para lá – simplesmente despareceram da
sua mente lasciva. Uma avidez o assolou, o desejo substituiu a raiva que o consumia há menos de um minuto do lado de fora. Não sabia ao certo se levar as coisas
entre Alex e ele para um nível mais íntimo, dadas as circunstâncias, podia ou não ser mais do que uma péssima ideia.
Isto é, até ela se levantar e começar a andar na sua direção. A manta fina que mal envolvia sua silhueta, arrastando-se aos seus pés, agora se entreabria na frente
e lhe permitia um vislumbre desobstruído das pernas delgadas e infinitas a cada passo que ela dava. E conforme ela se aproximava, com o tecido fino se mexendo para
desnudar a pele macia do quadril esquerdo, Kade viu a minúscula marca de nascença carmesim, na forma de uma lágrima e de uma lua crescente, que transportou aquela
situação do reino das más ideias diretamente para uma zona de completo desastre.
Ela era uma Companheira de Raça.
E isso mudava tudo.
Pois Alexandra Maguire não era uma simples mortal, uma humana com quem poderia simplesmente se divertir, manipular em busca de informações, talvez transar por um
tempo, para no fim apagar sua mente e se esquecer dela. Ela era como um membro da família para os da sua espécie, uma fêmea para ser honrada e reverenciada, tão
preciosa quanto ouro.
Ela era algo raro e miraculoso, algo que ele certamente não merecia, e ela não fazia ideia disso.
– Ah, Cristo… – Apoiou a mochila no chão. Seus assuntos com Seth e com a Ordem teriam que esperar. – Alex, tem uma coisa… nós precisamos conversar.
Ela sorriu numa curva sensual dos lábios.
– A menos que precise me informar de alguma doença que tenha ou que, na verdade, seu interesse é por homens…
Ele a encarou, perguntando-se se existiram pistas ao longo do caminho. Mas, no começo, ele não olhara para Alex apenas como uma fonte de informações, uma testemunha
relutante que ele teria que fazer se abrir usando quaisquer meios necessários. Depois que falara com ela, começara a gostar dela. E depois que gostara dela, foi
difícil não desejá-la.
E agora?
Agora tinha a obrigação de proteger aquela fêmea a qualquer custo, e isso incluía impedi-la de cair nas mãos de um macho como ele. Ele a colocava em perigo só pelo
fato de estar com ela, arrastando-a em sua missão para a Ordem e aproximando-a, ainda mais depois de hoje, dos horrores dos joguinhos doentios do seu irmão. Se ele
era metade do guerreiro que jurara a si mesmo ser, levaria Alex para longe daquele lugar, a levaria para casa, para nunca mais procurá-la.
– Kade? – Ela inclinou a cabeça ao se aproximar, ainda à espera da sua resposta, o tom de voz suave. – Hum… não é isso o que tem a me dizer, é?
– Não. Não é.
– Que bom – ela disse, praticamente ronronando as palavras. – Porque eu não estou com vontade de conversar agora.
Kade inspirou fundo quando ela se aproximou, deixando pouco mais de alguns centímetros e uma fina manta de lã entre eles. E a sua fragrância… de pele aquecida, de
calor feminino e de um traço adocicado de algo mais esquivo que ele agora sabia que só podia ser o odor singular do sangue de uma Companheira de Raça.
Mesmo sem a maldita marca de nascença, inferno, apesar disso, Alexandra Maguire era uma combinação tóxica que o envolvia – por fora e por dentro – como a mais potente
das drogas.
Ela levantou o olhar para ele, os olhos cor de caramelo agora escurecidos como duas piscinas profundas em que ele poderia se afogar.
– Quero estar com você, Kade, aqui e agora. – Devagar, ela abriu a manta, expondo-se por completo para ele ao passar os braços ao seu redor, envolvendo ambos com
as dobras do tecido. O calor do corpo nu quase o queimou, entalhando-se em sua lembrança como um ferro em brasa. – Estou cansada de sentir frio o tempo todo. Estou
farta de me sentir sozinha. Só por agora, quero que me toque, Kade. Quero sentir as suas mãos em mim.
Ela não teve que pedir duas vezes. Ele sabia que ela precisara de coragem para admitir sua vulnerabilidade para ele, para se expor daquela maneira. Não poderia fingir
que não desejava aquilo tanto quanto ela. Ele a desejou desde o momento em que a viu pela primeira vez. Agora, todas as suas boas intenções, todos os seus pensamentos
de honra e de dever foram incinerados num instante.
Levantou uma palma até a linha delicada da coluna dela; a outra se ergueu para acariciar a curva graciosa do rosto e a pele sedosa da nuca. A pulsação dela vibrava
ao encontro do seu polegar conforme ele acariciava a pele macia sobre a carótida. Enquanto ele brincava com a faixa erótica de pele debaixo dos dedos, ela fechou
os olhos e inclinou a cabeça para trás, dando-lhe mais acesso do que seria sensato.
A pulsação de Kade também acelerou, cada um dos batimentos cardíacos dela, cada pequeno tremor do corpo junto ao seu estimulando suas necessidades mais primitivas.
Ele afundou a cabeça e aninhou o rosto na junção do pescoço e do ombro dela, ousando o mais suave dos beijos enquanto as presas rapidamente preenchiam sua boca,
a língua ávida por saboreá-la. Exalou seu desejo num grunhido baixo, tracejando a boca ao longo do pescoço, depois descendo, inclinando-se conforme apanhava um seio
perfeito na mão, erguendo o mamilo róseo até os lábios.
Sugou-a, atento para não arranhá-la com as pontas afiadas das presas, enquanto puxava o botão mais fundo em sua boca, envolvendo-o com a língua, deliciando-se com
os arquejos excitados de prazer dela. Desceu a mão livre, espalmando a nádega arredondada, brincando com a junção do corpo dela por trás. A sensação de tê-la nos
braços era tão boa, tão gostosa. Ele esmagou-a contra o seu corpo, deixando que os dedos se aprofundassem, chegando às dobras do sexo. Ela estava úmida e quente,
a pele um paraíso acolhedor quando seu toque se aprofundou.
– Ai, meu Deus… – ela arfou, arqueando-se em seu abraço. – Kade…
Num gemido, ele soltou o seio da mordida sensual e voltou aos lábios, capturando-lhe o suspiro num beijo profundo e faminto. Embora ela o acompanhasse, era ele quem
estabelecia o ritmo, mais urgente do que fora sua intenção, mas ele estava envolvido demais para desacelerar. Também estava mais do que ciente das mudanças que lhe
aconteciam – mudanças que exigiriam algum tipo de explicação, que também exigiriam um tipo de conversa, algo em que ela não se mostrara interessada e algo que ele
seria incapaz de realizar no momento.
Ainda beijando-a, pois se via incapaz de afastar a boca da dela, ele a guiou de volta ao ninho de cobertas perto do fogo. Juntos, eles o despiram, arrancando rapidamente
o casaco e a camisa, as botas e os jeans. Kade se despiu do resto das roupas enquanto Alex trilhava com a língua um caminho ao longo do pescoço dele. Kade estremeceu
ao sentir um disparo de desejo preenchendo suas veias, sentiu o sangue apressado até os membros e o pênis pulsante. A pele comichava com a transformação dos dermaglifos,
as marcas da Raça que lhe cobriam o peito, os braços e as coxas. Os glifos, normalmente um tom ou dois mais escuros que o de sua pele, por certo estariam saturados
de cor agora, escurecendo-se para refletir o desejo que sentia por Alex.
– Ah, caramba… – grunhiu, sibilando profundamente quando ela mordiscou a pele macia logo abaixo da sua mandíbula. Não sabia quanto mais aguentaria. Quando ela abaixou
a mão para afagá-lo em toda a sua extensão, ele não teve como segurar seu rosnar animal. Ela espalmou a cabeça do sexo, num toque tanto curioso quanto exigente ao
espalhar a umidade natural sobre a pele sensível.
– Deite-se comigo – pediu ele, com a voz rouca, a respiração ofegante.
Segurou-a nos braços e afundou com ela no piso coberto de mantas do chalé, beijando-a enquanto a pressionava com suavidade debaixo de si. Ela estava tão macia e
quente ao seu encontro, os braços envolvendo-o pelos ombros, as coxas afastadas onde os seus quadris se encaixaram. O pênis se aninhou ao encontro da fenda úmida
do seu sexo, louco de desejo de se afundar, mas Kade só brincou de penetrá-la, escorregando entre as pétalas aveludadas do seu corpo ao mesmo tempo em que brincava
com a boca ao longo da pulsação na lateral do pescoço. Segurou o sexo para se conter, esfregando sua rigidez na suavidade dela, usando a ponta larga do pênis para
acariciar seu clitóris. Ela gemeu, arqueando-se para acompanhar seu ritmo, alargando as pernas num convite. Ele resistiu à tentação, quase sem conseguir.
Ela lhe pedira que a aquecesse, e ela estava quente, mas ele quis deixá-la mais quente do que nunca. A necessidade repentina e incomensurável de marcá-la como sua
– de lhe dar prazer como ninguém antes dele – ressoou em seu sangue como um tambor. Atordoado com a sensação, ele se refreou. Mas Alex era tão gostosa, parecia tão
certa para ele, que antes que se lembrasse de que ela merecia algo melhor, ele passou a beijá-la corpo abaixo. Saboreou cada centímetro desde os montes dos seios
até a musculatura firme do abdômen e a maldita marca de nascença no quadril que tornava seu prazer e sua necessidade egoísta algo tão errado.
Mas, errado ou não, por mais egoísta que fosse ao ceder ao seu desejo por Alex, ele passara do ponto de resistir. A sensação de tê-la debaixo de si elevou a chama
em seu sangue levantando fervura. A fragrância dela o atraía como um ímã até a faixa de pelos claros e encaracolados entre as pernas. Beijou-a ali, usando os lábios
e a língua e os dentes até ela se contorcer contra sua boca. E mesmo assim ele não parou. Sugou-a e afagou-a, dando-lhe prazer até que ela se arqueasse debaixo dele
e gritasse durante o trepidante clímax.
E ainda assim ele não parou.
Continuou sugando, beijando e afagando-a, conduzindo-a até mais um pico e depois, só depois, ergueu-se para cobri-la com seu corpo, penetrando-a profundamente enquanto
as quentes paredes internas se contraíam ao redor do pênis pulsante. Penetrou-a percebendo que ele também precisava daquele calor, daquela sensação – mesmo que temporária
– de não estar sozinho. Precisara de Alex daquele modo, naquele instante, tanto quanto ela acreditava precisar dele.
O orgasmo de Kade se avolumava na base do pênis, intensificando-se a cada estocada fervorosa. Cada vez mais ardente, cada vez mais estreito, até que ele não conseguiu
segurar nem mais um segundo. Sentiu o corpo tenso com a força com que ele vinha e a penetrou o máximo que ela conseguia acomodá-lo, enterrando o rosto no ombro dela
e emitindo um grito rouco de alívio quando seu sêmen explodiu numa torrente líquida quente.
Ele não teria conseguido segurar mesmo que tivesse tentado, apesar de não existir a possibilidade de uma gravidez, contanto que não houvesse troca de sangue. Mas
isso também se mostrou mais tentador do que deveria. As presas de Kade alongaram-se das gengivas quando ele se perdeu no calor interno de Alex. Ele ouvia a pulsação
acelerada dela, sentia-a no eco enlouquecido das batidas do seu coração. E ele sentia o fluxo do sangue dela pulsando logo abaixo da superfície da pele delicada
onde a boca dele repousava numa careta retesada.
– Ah, caramba… Alex – sibilou, atormentado pelo fluxo de sensações que ela lhe provocava.
Tudo o que pertencia à Raça nele exigia que ele tornasse aquela sua fêmea, que clamasse seu sangue assim como clamara seu corpo.
Kade suprimiu essa necessidade, mas, maldição, não foi algo fácil. Rolou-a contra si, acomodando-a de costas para ajudar a esconder as mudanças que o acometeram
no ato de paixão.
– Você está bem? – ela perguntou, enquanto ele se esforçava para conter seus impulsos e obter um pouco de juízo.
– Sim – ele conseguiu dizer depois de um instante. – Melhor do que tenho o direito de estar.
– Eu também – disse ela, o sorriso evidente pelo torpor na voz que resvalou com suavidade no alto do seu braço. – Para o caso de estar se perguntando, os meus serviços
de piloto não costumam incluir ficar nua com meus clientes.
– Isso é bom – Kade disse quase num grunhido ao aproximá-la ainda mais do corpo ainda ardente. Ele não queria que ela ficasse nua com ninguém, percebeu num rompante.
Já não teria gostado dessa ideia antes, mas depois do que acontecera entre eles, ele não receberia isso nada bem.
– E quanto a você? – perguntou ela, enquanto ele os cobria com as mantas para esconder seus glifos do olhar dela.
– O que tem eu?
– Você faz isso… com frequência?
– Ficar nu com pilotos sensuais do interior do Alasca no meio de uma floresta gélida? – Fez uma pequena pausa, deixando-a pensar que estava levando a pergunta em
consideração. – Não. Foi a minha primeira vez.
Bem como a ferrenha sensação de posse que ainda corria em seu sangue ao pensar em Alex com outro macho. Perguntou a si mesmo se foi o fato de ela ser uma Companheira
de Raça que o atraiu logo de cara. Mas, assim que pensou nisso, percebeu que a marca de nascença que a ligava ao mundo sombrio que ele habitava como um ser da Raça
foi a menor das qualidades que o atraíram a Alexandra Maguire. A última coisa de que ele precisava naquele momento era um envolvimento emocional, ainda menos com
uma fêmea que trazia a marca da lágrima e da lua crescente.
Mas ele estava envolvido. Na verdade, acabara de atar mais alguns nós a uma situação já impossível.
Praguejando contra si mesmo, como um idiota de primeira classe que era, Kade a beijou no alto da cabeça e a abraçou, enquanto esperava que seus olhos voltassem à
aparência normal e as presas tivessem a oportunidade de se retraírem.
Levou um tempo para isso acontecer, e mesmo depois que o corpo voltou ao ritmo normal, o desejo que sentia pela mulher em seus braços permaneceu.
Capítulo 15
A luz do dia brilhou fraca e escondida pelas nuvens fora da boca da caverna na floresta. O predador buscara abrigo ali pouco antes, quando os primeiros raios começaram
a mostrar as garras em meio à escuridão do inverno. Poucas coisas existiam mais poderosas do que ele, ainda mais naquele mundo primitivo que era tão diferente do
distante mundo em que nascera muitos milênios atrás. No entanto, por mais avançada que fosse a forma de vida da sua espécie, a sua pele desprovida de pelos e coberta
de dermaglifos não processava a luz ultravioleta: apenas alguns minutos de exposição o matariam.
Das profundezas da sua segurança na caverna, ele descansou da perseguição da caça da noite anterior, impaciente para que a luz tênue se extinguisse e recuasse uma
vez mais. Logo precisaria se alimentar novamente. Ainda sentia fome, as células, os órgãos e os músculos demandavam rejuvenescimento extensivo depois do longo período
de privação e abuso que sofrera enquanto estivera em cativeiro. O instinto de sobrevivência se digladiava com o conhecimento de estar, absoluta e completamente,
sozinho naquele naco inóspito de entulho.
Não restava mais ninguém como ele já há muito tempo. Ele era o último dos oito exploradores que caíram neste planeta, um náufrago solitário sem chance de escapar.
Eles tinham nascido para conquistar, para serem reis. No entanto, um a um, seus irmãos abandonados morreram, quer pela crueldade do novo ambiente que os cercava,
quer pelas guerras com a prole meio-humana nos séculos que se seguiram. Através de uma traição e de um acordo secreto com seu filho, somente ele sobrevivera. Mas
fora a mesma traição e acordo secreto que o tornaram escravo do filho do seu filho, Dragos.
Agora que estava livre, a única coisa mais atraente do que pôr um fim em seu tempo naquele planeta abandonado era a ideia de poder levar seu herdeiro traidor consigo
para a morte.
Uivou ante a lembrança das longas décadas de dor e experiências a ele infligidas. Sua voz reverberou nas paredes da caverna, um rugido sinistro que saiu rasgando
dos pulmões, semelhante a um grito de guerra.
Um disparo respondeu de algum lugar não muito distante, em algum lugar na floresta lá fora.
Houve uma batida súbita nas folhagens do lado externo. Em seguida, ouviu passadas fugidias de animais – de muitos animais – correndo próximos à entrada da caverna.
Lobos.
A alcateia se dividiu, metade correndo pelo lado direito da entrada, metade disparando pela esquerda. E logo atrás deles, poucos segundos depois, o som de vozes
humanas, homens armados em perseguição.
– Por aqui – um deles gritou. – A maldita alcateia inteira subiu este cume, Dave!
– Vocês, peguem o lado oeste – uma voz retumbante comandou. – Lanny e eu vamos a pé pela colina. Há uma caverna logo adiante; é provável que um ou dois dos bastardos
tenham se escondido ali.
O barulho dos motores dando ré e o fedor do combustível queimado permearam o ar quando alguns dos homens saíram dali. Alguns minutos depois, do lado de fora da boca
da caverna, na luz do dia que barrava a única via de fuga, as silhuetas de duas pessoas segurando longos rifles tomaram forma. O homem da frente era grande, com
um peito amplo e ombros largos e uma barriga que outrora podia ter sido musculosa, mas que agora era somente flácida. O homem que o acompanhava devia ser uns trinta
centímetros mais baixo e muitos quilos mais magro, uma criatura tímida de voz trêmula.
– Acho que não tem nada aqui, Dave. E não sei se foi uma boa ideia nos separarmos dos outros.
Confinado às sombras, o único ocupante se encolheu na parede da caverna, mas não rápido o bastante.
– Ali! Acabei de ver um par de olhos cintilantes aqui dentro. O que eu disse, Lanny? Pegamos um dos bastardos bem aqui! – A voz do homem grande estava carregada
de agressão ao levantar a arma. – Acenda a lanterna e me deixe ver no que estou atirando, sim?
– Hum, tudo bem, Dave. – O companheiro nervoso se atrapalhou com a tarefa, ligando a luz e oscilando-a com gestos nervosos no chão e nas paredes da caverna. – Está
vendo alguma coisa? Eu não estou vendo nada por aqui.
Claro que não, pois o olhar cintilante que o homem vira apenas um instante antes já não estava no solo, mas fitando os humanos do alto, onde o predador agora se
segurava nas estalactites acima de suas cabeças, parado no escuro tal qual uma aranha.
O homem grande abaixou a arma.
– Mas que diabos! Onde o danado foi parar?
– Não devíamos estar aqui, Dave. Acho melhor a gente ir procurar os outros…
O homem grande avançou mais alguns passos para dentro da caverna.
– Não seja covarde. Me passe a lanterna.
Quando o baixinho esticou a mão para entregar-lhe a lanterna, a bota bateu numa pedra solta. Ele cambaleou, caiu de joelhos e deu um grito de surpresa e dor.
– Merda! Acho que me cortei.
A prova acobreada do sangramento se elevou numa súbita onda olfativa. O cheiro de sangue fresco perfurou as narinas do predador. Ele aspirou e sibilou em resposta
ao exalar o ar dos pulmões por entre os dentes e as presas.
Abaixo dele, no chão da caverna, o homenzinho nervoso levantou a cabeça. Seu rosto aflito se retesou com horror sob o olhar âmbar faminto do alienígena.
Ele berrou, sua voz tão aguda e horrorizada quanto a de uma garotinha.
Ao mesmo tempo, o homem grande se virou com o rifle.
A caverna explodiu com o estrondo do tiro e da luz ofuscante, enquanto o predador saltava das rochas de cima e se lançava sobre o par de humanos.
Alex não se lembrava da última vez em que dormira tão profundamente sem interrupções. Nem se lembrava de ter se sentido tão relaxada e saciada como depois de fazer
amor com Kade. Espreguiçou-se sob a pilha fofa de mantas e sacos de dormir no chão, depois se ergueu sobre um cotovelo para vê-lo colocando mais lenha na fogueira
no pequeno fogão do chalé.
Ele estava agachado, os músculos fortes das costas e dos braços se esticando e flexionando quando ele colocou mais uma acha no fogão a lenha, a pele suave brilhando
na luz quente da fogueira. O cabelo preto curto estava todo bagunçado numa confusão de espetos que lhe conferia um ar ainda mais selvagem do que de costume, principalmente
quando ele virou a cabeça para olhar em sua direção, e ela se sentiu atingida pelas linhas letais do rosto e mandíbula e pelo olhar prateado cercado por cílios escuros.
Ele estava lindo, de tirar o fôlego, cem vezes mais do que quando estava agachado nu diante dela, com o olhar intenso e íntimo, travado no seu. O corpo de Alex ainda
vibrava com a lembrança da paixão partilhada, a dor agradável entre as pernas pulsava um pouco mais forte agora com o modo com que ele a fitava, como se quisesse
devorá-la novamente.
– Dormimos enquanto era dia? – perguntou, subitamente sentindo necessidade de preencher aquele silêncio ardente.
Ele acenou com a cabeça.
– Já faz umas duas horas que o sol se pôs.
– Vejo que saiu – comentou, percebendo a pilha renovada de lenha ao lado dele.
– É. Acabei de chegar.
Ela sorriu, arqueando as sobrancelhas.
– Espero que não tenha saído assim. No escuro a temperatura não deve passar de zero.
Ele grunhiu, a boca sensual se curvando com bom humor.
– Não tenho problemas de encolhimento.
Não, aquele definitivamente era um homem sem a mínima insegurança quanto à sua masculinidade. Cada centímetro seu era feito de músculos esculpidos, rijos e delgados.
Com seus mais de um metro e noventa de altura, ele tinha a forma bruta mítica de um guerreiro, desde os ombros amplos e bíceps definidos até a superfície entalhada
do peito e do abdômen tanquinho, terminando nos perfeitos quadris estreitos. O restante dele era igualmente perfeito, e ela podia atestar que ele sabia o que fazer
com aquilo.
Deus do céu, ele era uma obra de arte viva, que só era enaltecida pelo desenho intricado, ainda que sutil, da tatuagem – e de que cor ela era mesmo? – sobre a pele
dourada do torso e membros, como um caminho traçado pela língua de uma amante. Alex acompanhou os desenhos estranhos com os olhos, imaginando se era apenas um truque
da luz do fogo que fazia a cor de henna das tatuagens parecer escurecer, enquanto o avaliava em franca admiração.
Sorrindo como se já estivesse acostumado a ter mulheres admirando-o, ele se levantou e andou com lentidão até onde ela estava deitada, sem nenhuma inibição com a
sua nudez.
Alex riu com suavidade e balançou a cabeça.
– Você nunca se cansa?
Ele ergueu uma sobrancelha ao se reclinar com negligência ao seu lado.
– Se eu me canso?
– De ter mulheres aos seus pés – disse ela, percebendo com uma ponta de surpresa que não gostava muito dessa ideia. Odiava, na verdade, e se perguntou de onde vinha
a dor do ciúme, levando em consideração que ele não era seu só porque partilharam algumas horas suadas – e, sim, espetaculares – nos braços um do outro.
Ele afagou uma mecha solta do cabelo dela e levantou o olhar dela para o seu.
– Só estou vendo uma mulher comigo agora. E posso garantir que não estou nem um pouco cansado.
Segurou-a pelo rosto e a deitou sobre as cobertas. Seu olhar a derreteu quando a fitou, e ela sentiu a pressão rígida da ereção cutucando-a na lateral do corpo quando
ele se esticou ao seu lado.
– Você é uma mulher especial, Alexandra. Mais especial do que pensa.
– Você não me conhece – protestou ela baixinho, precisando se lembrar disso mais do que a ele. Conheciam-se há… quanto tempo? Dois dias? Ela não era de permitir
que alguém entrasse em sua vida tão rapidamente, ou tão profundamente, ainda mais depois de tão pouco tempo. Então, por que ele? Por que agora, quando tudo em seu
mundo parecia estar empoleirado no alto de um penhasco? Um empurrão na direção errada, e ela desapareceria. – Você não sabe nada sobre mim… não de verdade.
– Então me conte.
Ela o fitou, surpresa com a sinceridade, com o pedido franco em sua voz.
– Contar…
– Conte-me o que aconteceu na Flórida, Alex.
O ar pareceu sair dos seus pulmões naquele instante.
– Mas já contei…
– Sim, mas tanto você quanto eu sabemos que não foi um motorista embriagado que arrancou sua mãe e seu irmão de você. Foi outra coisa que aconteceu com eles, não
foi? Algo que você manteve em segredo todos esses anos. – Ele falou com paciência, suavemente, coagindo a confiança dela. E que Deus a ajudasse, mas ela se sentia
pronta para ceder. Ela precisava partilhar aquilo com alguém, e no fundo do seu coração, ela sabia que esse alguém era Kade. – Está tudo bem, Alex. Você pode me
contar a verdade.
Ela fechou os olhos, sentindo as palavras horrendas – as lembranças terríveis – subindo como ácido pela garganta.
– Não consigo – murmurou. – Se eu disser, então tudo o que tentei deixar para trás… tudo pelo que me esforcei tanto a esquecer… tudo vai voltar a ser real.
– Não pode passar a vida se escondendo da verdade – disse ele, e ecos de coisas passadas surgiram em sua voz. Uma tristeza, uma resignação que garantiu a ela que
ele entendia parte do fardo que ela há tanto tempo carregava. – Negar a verdade não a faz desaparecer, Alex.
– Não, não faz – concordou ela bem baixinho. Em seu coração, ela sabia disso. Estava cansada de fugir e cansada de manter o horror do seu passado enterrado e esquecido.
Queria se livrar de tudo aquilo, e se isso significava enfrentar a verdade, não importando o quanto ela fosse horrível – não importando o quanto ela fosse inimaginável
–, então que fosse assim. Mas o medo era um inimigo poderoso. Talvez poderoso demais. – Eu tenho medo, Kade. Não sei se sou forte o bastante para enfrentar isso
sozinha.
– Você é. – Ele depositou um beijo rápido no ombro dela, depois a fez fitá-lo novamente. – Mas não está sozinha. Eu estou com você, Alex. Conte-me o que aconteceu.
Eu a ajudarei, se você permitir.
Ela sustentou o olhar suplicante dele e encontrou a coragem de que precisava na força de aço dos seus olhos.
– Nós tivemos um dia maravilhoso juntos, todos nós. Fizemos um piquenique ao lado do rio, e eu ensinara Richie a mergulhar de costas do píer. Ele só tinha seis
anos, mas era destemido, sempre querendo tentar tudo o que eu fazia. Foi um dia perfeito, repleto de riso e de amor.
Até a escuridão recair sobre o pântano, trazendo um terror profano consigo.
– Não sei por que escolheram a nossa família. Procurei por um motivo, mas nunca descobri por que eles apareceram à noite para nos atacar.
Kade a acariciou com cuidado, enquanto ela se debatia com as palavras seguintes.
– Às vezes não existe razão. Às vezes as coisas acontecem e não há nada que possamos fazer para entendê-las. A vida e a morte nem sempre são lógicas, claras.
Às vezes a morte salta da escuridão como um fantasma, como um monstro terrível demais para ser verdadeiro.
– Havia dois deles – murmurou Alex. – Nem sabíamos que eles estavam lá até ser tarde demais. Estava escuro, e estávamos todos sentados na varanda, relaxando depois
do jantar. Minha mãe estava no balanço da varanda com Richie, lendo uma história do Ursinho Pooh antes de nos levar para a cama, quando o primeiro apareceu do nada,
sem aviso, e se lançou sobre ela.
A mão de Kade ficou imóvel.
– Você não está falando de um homem.
Ela engoliu em seco.
– Não. Não era um homem. Não era nem… humano. Era outra coisa. Algo maligno. Ele a mordeu, Kade. E, então, o outro agarrou Richie com os dentes também.
– Dentes – repetiu ele, sem surpresa nem descrença na voz, apenas compreensão grave. – Você quer dizer presas, não quer, Alex? Os agressores tinham presas.
Ela fechou os olhos quando a impossibilidade da palavra se registrou.
– Sim. Eles tinham presas. E os olhos, eles… eles cintilavam no escuro como brasas ardentes, e no centro deles as pupilas eram longas e finas como as dos gatos.
Eles não podiam ser humanos. Eram monstros.
O toque de Kade no rosto e nos cabelos dela a acalmava, enquanto as lembranças daquela noite terrível ressurgiam em sua mente.
– Está tudo bem. Você está segura agora. Eu só queria ter estado lá para ajudar você e a sua família.
O sentimento era gentil, ainda que improvável, visto que ele não podia ter mais do que alguns poucos anos a mais do que ela. Mas pela sinceridade em sua voz, ela
soube que ele estava sendo sincero. Pouco importava a improbabilidade, ou a enormidade do mal que enfrentavam, Kade teria ficado ao seu lado contra o ataque. Ele
os teria mantido a salvo quando ninguém conseguiria.
– Meu pai tentou combatê-los – murmurou Alex –, mas tudo foi muito rápido. E eles eram tão mais fortes do que ele. Derrubaram-no como se ele não fosse nada. Àquela
altura, Richie já estava morto. Ele era tão pequeno que não teria a menor chance de escapar daquele tipo de violência. Minha mãe gritou para o meu pai fugir, para
me salvar se pudesse. “Não deixe minha filha morrer!” Essas foram as suas últimas palavras. Aquele que a segurava fincou a mandíbula no pescoço dela. Não a soltou,
ficou com a boca fechada sobre ela. Ele… ah, meu Deus, Kade. Isso vai parecer loucura, mas ele… ele bebeu o sangue dela.
Uma lágrima rolou pelo rosto, e Kade pressionou os lábios na sua testa, trazendo-a para junto de si e oferecendo-lhe o conforto tão necessário.
– Não me parece loucura, Alex. E eu sinto muito pelo que a sua família passou. Ninguém deveria passar por tamanha dor e perda.
Embora ela não quisesse reviver aquilo, as lembranças tinham sido ressuscitadas e, depois de mantê-las enterradas por tanto tempo, ela sentiu que não conseguiria
mais contê-las. Não enquanto Kade estivesse ali para fazê-la se sentir mais aquecida e segura do que em toda a sua vida.
– Pelo modo como atacaram minha mãe e Richie, pareciam animais. Mas nem mesmo animais fariam o que eles fizeram. Ah… meu Deus, e havia tanto sangue. Meu pai me pegou
no colo e começamos a correr. Mas não consegui desviar o olhar do que estava acontecendo atrás, na escuridão. Eu não queria ver mais, era tudo tão irreal. A minha
mente não conseguia processar aquilo. Já faz tanto tempo, e ainda não tenho certeza se posso explicar o que foi que nos atacou naquela noite. Eu só… Eu quero que
tudo faça sentido, mas não faz. Nunca vai fazer. – Inalou fundo, revivendo uma dor mais fresca, uma confusão mais recente. – Vi o mesmo tipo de ferimentos na família
Toms. Eles foram atacados, assim como nós fomos, pelo mesmo tipo de maldade. Isso está aqui no Alasca, Kade… e eu estou com medo.
Por um longo momento, Kade nada disse. Ela conseguia ver a mente dele repassando tudo o que ela lhe dissera, cada detalhe incrível que faria com que qualquer outra
pessoa escarnecesse em descrença ou lhe dissesse que ela deveria procurar ajuda profissional. Mas ele não. Ele aceitava a sua verdade pelo que era, sem traço de
dúvida em seus olhos ou em seu tom inflexível.
– Você não precisa mais fugir. Pode confiar em mim. Nada de ruim vai acontecer com você enquanto eu estiver por perto. Acredita em mim, Alex?
Ela assentiu, percebendo só então o quanto confiava nele. Confiava nele num nível além do instintivo, era visceral. O que sentia por ele desafiava o fato de que
ele entrara em sua vida ainda naquela semana, tampouco estava relacionado ao modo como ela o desejava fisicamente – com uma sofreguidão que ainda não estava pronta
para analisar.
Ela simplesmente fitou os olhos inabaláveis de Kade e soube, em sua alma, que ele era forte o bastante para carregar qualquer fardo que ela partilhasse com ele.
– Preciso que confie em mim – disse ele com gentileza. – Existem algumas coisas que você precisa saber, Alex, agora mais do que nunca. Coisas sobre si mesma, e
sobre o que você viu, tanto na Flórida quanto aqui. E também há coisas que você precisa saber sobre mim.
Ela se sentou, o coração batendo de modo estranho no peito, pesado com uma sensação de expectativa.
– O que quer dizer?
Ele desviou o olhar, passando a acompanhar a carícia ao longo do corpo nu, depois se deteve no osso do quadril. Com o polegar, ele traçou um círculo ao redor da
sua pequena marca de nascença.
– Você é diferente, Alexandra. Extraordinária. Eu deveria ter reconhecido isso de cara. Houve sinais, mas eu não os percebi. Eu estava concentrado em outras coisas
e eu… maldição.
Alex franziu o cenho, mais confusa do que nunca.
– O que você está tentando dizer?
– Você não é como as outras mulheres, Alex.
Quando ele voltou a encará-la, a confiança que normalmente cintilava em seu olhar não estava lá. Ele engoliu, o clique seco em sua garganta fazendo o sangue dela
gelar nas veias. O que quer que ele tivesse a dizer, era ele quem tinha medo agora, e ver o traço de incerteza nele aumentou a sua ansiedade.
– Você é muito diferente das outras mulheres, Alex – repetiu com hesitação. – E eu… você precisa saber que eu também não sou como os outros homens.
Ela piscou, vendo uma pressão invisível pesar no silêncio que se fez entre eles. O mesmo instinto que lhe dizia para exigir mais respostas implorava para que ela
recuasse e fingisse não querer saber – não precisava saber o que deixava Kade tão sem palavras e ansioso. Tudo o que ela conseguia fazer era observá-lo e esperar,
preocupando-se com a possibilidade de ele estar prestes a lançar seu mundo num redemoinho ainda maior.
O toque estridente do celular de Alex lhe deu um choque tal qual o de um fio de alta-tensão. Ele tocou novamente e ela mergulhou para pegá-lo, contente pela desculpa
para fugir da estranha e sombria mudança de humor de Kade.
– Alex falando – disse ela, reconhecendo o número de Zach ao abrir o aparelho e atender a chamada.
– Onde você está? – exigiu saber, nem mesmo perdendo tempo em dizer olá. – Acabei de passar pela sua casa e você não estava lá. Você está na casa de Jenna?
– Não – respondeu ela. – Jenna esteve na minha casa hoje cedo, antes de eu sair. Ela deve ter ido para casa.
– Bem, onde foi que você se meteu, então?
– Estou trabalhando – disse ela, irritada com o tom rude dele. – Estou com um cliente que agendou um voo hoje de manhã…
– Escuta aqui, temos um problema aqui em Harmony – Zach a interrompeu com rispidez. – Estou no meio de uma crise médica e preciso que você traga um ferido grave
da floresta.
Alex despertou do nevoeiro emocional em que estivera presa antes de atender ao telefonema.
– Quem está ferido, Zach? O que está acontecendo?
– Dave Grant. Não sei a história toda, mas ele e Lanny Ham e alguns outros homens da cidade saíram para caçar na parte oeste hoje. Depararam-se com uma situação
grave, muito grave. Lanny está morto e, pelo visto, as coisas não estão muito boas para Big Dave. Os homens estão com medo de transportá-lo na motoneve, temendo
não conseguir trazê-lo a tempo de salvá-lo.
– Ai, meu Deus. – Alex se sentou para trás, sobre as pernas dobradas, sentindo um frio se espalhar pela pele. – Os ferimentos, Zach… o que aconteceu?
– Alguma coisa os atacou, de acordo com os outros homens. Dave está delirando, falando coisas sem sentido sobre uma criatura espreitando numa das cavernas a oeste
de Harmony. O que os atacou é algo bem ruim, Alex. Ruim mesmo. Dilacerou-os de uma maneira horrível. A notícia se espalhou pela cidade e todos estão em pânico.
Ela fechou os olhos.
– Ai, meu Deus…
A mão de Kade pousou sobre seu ombro nu.
– O que houve, Alex?
Ela balançou a cabeça, incapaz de formar as palavras.
– Quem está com você? – Zach exigiu saber. – Puta que o pariu, Alex, você está com aquele homem do Pete’s da outra noite?
Alex não achava que precisava dizer a Zach Tucker com quem passava seu tempo, não enquanto havia um homem morto e a vida de outro pendia por um fio. Não enquanto
o horror do seu passado – o horror que ela temia ter visitado a família dos Toms há apenas alguns dias – estava novamente estraçalhando seu coração.
– Estou no chalé de Tulak, Zach. Posso sair agora mesmo, mas só devo chegar em quarenta e cinco minutos.
– Esqueça. Não podemos esperar por você. Vou localizar Roger Bemis.
Ele desligou, deixando Alex sentada ali, congelada pelo medo.
– O que aconteceu? – Kade perguntou. – Quem se feriu?
Por um momento, ela só conseguia se concentrar em inspirar e expirar. O coração batia com tristeza, a culpa a corroía.
– Eu deveria tê-los avisado. Eu deveria ter dito o que sabia em vez de acreditar que poderia negar isso.
– Alex? – A voz de Kade saiu cautelosa; os dedos, ao erguer seu rosto, foram firmes, ainda que gentis. – Me conte o que está acontecendo.
– Big Dave e Lanny Ham – murmurou. – Foram atacados hoje na floresta. Lanny está morto. Big Dave pode não sobreviver.
E se Kade tivesse ido com eles em vez de vir com ela? A ideia de que ele poderia estar perto desse tipo de perigo – ou pior, ser vítima dele – fez seu coração se
contorcer. Sentiu-se doente de tanto medo, mas foi na raiva que ela se apegou.
– Você tem razão, Kade. Não posso fugir do que sei. Não mais. Tenho que enfrentar o mal. Tenho que tomar partido agora, antes que mais alguém se machuque. – A fúria
a incentivava, enquanto o medo ameaçava segurá-la. – Preciso contar a verdade – para todos em Harmony. Para o maldito mundo inteiro, se for preciso. As pessoas precisam
saber o que está aí. Não podem destruir o mal se nem mesmo sabem que ele existe.
– Alex – ele contraiu os lábios, começou a balançar a cabeça como se tivesse a intenção de dissuadi-la. – Alex, não acho que isso seja sensato…
Ela sustentou o olhar dele, incrédula.
– É por sua causa que eu me sinto forte para fazer isto, Kade. Precisamos ficar juntos – todos juntos – para derrotar isso.
– Ah, Cristo… Alex…
A hesitação dele foi como um punhal frio lentamente entrando no seu esterno. Confusa ante a mudança de atitude, mas determinada a fazer o que era certo – fazer o
que tinha que ser feito – ela se afastou dele e começou a se vestir.
– Tenho que voltar para Harmony. Vou partir em cinco minutos. Você decide se vem comigo ou não.
Capítulo 16
Não conversaram durante todo o voo de volta para Harmony.
Kade ficou sentado ao lado de Alex num silêncio infeliz, dividido, querendo lhe explicar sobre a Raça e o lugar dela naquele mundo e temendo que, se ela soubesse
o que ele de fato era, ela o colocasse na mesma categoria do monstro que ela abominava e que agora estava tão determinada a expor para toda a cidade e para o resto
da humanidade.
O medo de que ela o odiasse manteve sua língua grudada ao céu da boca durante todos os quarenta e cinco minutos que foram necessários para levá-los de volta à pista
de voo de neve, compactada nos limites da cidade. Sabia ser um bastardo por negar-lhe toda a verdade. Provara ser algo ainda pior no chalé de Tulak, quando permitiu
que seu desejo por ela superasse seu dever – seu código de honra, por mais frágil que fosse –, que teria compelido um macho melhor a pôr todas as cartas na mesa
antes de tomá-la para si.
Mas, com Alex, não foi só sexo. Não era só desejo, ainda que ele a desejasse sobremaneira. As coisas estariam bem melhores agora se aquilo fosse algo meramente físico.
A verdade era que gostava dela. Preocupava-se com ela. Não queria vê-la sofrendo mais, muito menos pelas próprias ações. Queria protegê-la das coisas que a atingiram
no passado, e faria o que fosse possível para que nada de ruim voltasse a lhe acontecer.
Ah, sim, seus esforços até então estavam sendo bem-sucedidos…
Vinha fazendo um trabalho de primeira linha em tudo o que tocara desde que chegara ao Alasca.
Frente às provas que encontrara no chalé, o que deveria ter sido uma missão simples e secundária de aniquilar um Renegado no norte congelado do país agora se tornara
uma busca para localizar um assassino em sua própria família. E agora ele tinha pelo menos mais um morto para acrescentar à mistura, talvez dois, se o relato sobre
os ferimentos de Big Dave fosse acurado.
Outro ataque selvagem a respeito do qual Kade rezava para que todas as suspeitas não recaíssem sobre Seth.
Ele ainda ruminava esse temor quando Alex pousou o avião de maneira impecável. Maldição, mesmo perturbada como ela devia estar, Alex estava em total controle do
manche. Uma verdadeira profissional. Apenas mais um detalhe que o fazia apreciá-la ainda mais.
– Merda – sussurrou baixo ao olhar para fora da janela da cabina. Estava mesmo caído por aquela fêmea.
– Parece que metade da cidade está agrupada do lado de fora do posto de saúde – observou Alex. – Já que o avião de Roger Bemis está estacionado, acho que eles já
devem ter trazido Big Dave e Lanny da floresta.
Kade grunhiu, olhando para um quarteirão na direção do centro da cidade, para o que antes fora uma antiga casa de rancho, agora convertida em posto de saúde, no
qual algumas dúzias de pessoas estavam reunidas sob a luz do pátio, algumas de pé, outras sentadas à toa em motoneves.
Alex desligou o motor do avião e abriu a porta do piloto. Kade saiu junto com ela, andando pela frente da aeronave enquanto ela o prendia e trancava tudo. Seus movimentos
eram eficientes, as mãos enluvadas trabalhavam mais por hábito do que seguindo pensamentos conscientes. Quando, por fim, olhou para ele, Kade viu que o rosto dela
estava pálido, a expressão estava séria e preocupada. Mas o olhar estava afiado com determinação.
– Alex… vamos discutir isso antes que você vá lá e diga o que acha que tem que dizer para esse pessoal.
Ela franziu o cenho.
– Eles precisam saber. Eu tenho que contar.
– Alex. – Ele a segurou pelo braço, com mais firmeza do que pretendia. Ela olhou para os dedos que a prendiam, depois levantou o olhar. – Não posso permitir que
você faça isso.
Ela se desvencilhou e, por um segundo, ele considerou colocá-la em transe para mantê-la afastada da aglomeração logo adiante. Com um mínimo esforço mental e um resvalar
de sua palma na testa dela, ele poderia colocá-la num estado mais maleável de semiconsciência.
Poderia ganhar um tempo precioso. Impedi-la de colocar em risco sua missão para a Ordem ao alertar seus concidadãos da existência de vampiros vivendo entre eles,
à espreita na escuridão.
E ela o odiaria ainda mais – e com todo o direito – por continuar a manipulá-la.
Ela recuou um passo, as sobrancelhas ainda unidas mostrando sua confusão.
– O que deu em você? Eu tenho que ir.
Ele não a impediu quando ela girou e seguiu trotando na direção da pequena clínica da cidade. Com uma imprecação semicerrada, Kade foi atrás dela. Alcançou-a num
instante, depois abriu caminho ao seu lado entre as pessoas agrupadas que conversavam ansiosas.
– … terrível que algo assim tenha acontecido novamente – uma mulher de cabelos brancos murmurou para a pessoa ao seu lado.
– … ele perdeu tanto sangue – outra pessoa observou. – Ficaram dilacerados, foi o que ouvi. Não sobrou nada muito intacto em nenhum dos dois.
– Que coisa horrível – disse outra voz na multidão, carregada de pânico. – Primeiro os Toms, agora Big Dave e Lanny. Quero saber o que o oficial Tucker planeja fazer
a respeito!
Kade caminhou ao lado de Alex enquanto ela marchava na direção de Zach, que estava próximo à entrada da clínica, com o celular pressionado ao ouvido. Ele deu a entender
que notara sua aproximação com um aceno de cabeça, continuando a gritar ordens para alguém do outro lado da linha.
– Zach – disse ela –, preciso falar com você…
– Estou ocupado – ele ralhou.
– Mas, Zach…
– Agora não, mas que merda! Tenho um homem morto e outro sangrando ali dentro e toda a maldita cidade fica me atormentando!
Kade conseguiu conter o grunhido protetor que se formou na garganta ante a explosão do humano. Sua raiva escalou perigosamente, os músculos ficaram tensos e prontos
para uma briga para a qual ele percebeu estar mais do que pronto para começar. No entanto, sutilmente segurou Alex pelo braço e se colocou entre ela e o outro macho.
– Venha – ele lhe disse, guiando-a para longe do policial e também da sua fúria. – Vamos para outro lugar até as coisas se assentarem.
– Não – ela se opôs. – Não posso ir. Tenho que ver Big Dave. Preciso ter certeza…
Ela se soltou e subiu os degraus de concreto às pressas, sendo seguida de perto por Kade. O lugar estava muito silencioso, somente o zumbido das luzes fosforescentes
no teto, vindo da recepção deserta e seguindo por todo o corredor em direção às salas de exames. Vendo a aparência dispersa da clínica e a sua falta de equipamentos,
ela não lhe parecia pronta para tratar de algo muito maior do que um machucado ou uma aplicação de vacinas.
Alex caminhou pelo corredor com passos firmes e rápidos.
– Onde está Fran Littlejohn? Ela nunca deixa ficar tão frio aqui dentro – murmurou, mais ou menos na mesma hora em que Kade atentava para a temperatura.
Um frio ártico soprava pelo corredor vindo de uma das salas do fundo. A única com a porta fechada.
Alex pôs a mão na maçaneta. Ela não cedeu.
– Que estranho. Está trancada.
Os instintos de guerreiro de Kade se acenderam.
– Para trás.
Ele já se colocava diante dela, movendo-se com uma rapidez que os olhos dela não conseguiram acompanhar. Segurou a maçaneta e a girou com força. A tranca se abriu,
os mecanismos se desintegraram como pó num segundo.
Kade abriu a porta e se viu fitando os olhos frios de um Servo Humano.
– Skeeter? – A voz de Alex soou aguda de surpresa e carregada de suspeitas. – Que diabos está fazendo aqui?
O interesse do Servo estava bem claro para Kade. No chão ao lado da maca de Big Dave jazia uma mulher grande, de meia-idade, sem dúvida a funcionária do posto de
saúde. Estava inconsciente, mas ainda respirando, o que era melhor do que se podia dizer do seu paciente no leito.
– Fran! – Alex exclamou, apressando-se para junto da mulher, que não reagiu.
O foco de Kade era outro. O cômodo fedia com o cheiro sobrepujante de sangue humano. Se estivesse fresco, a reação física de Kade seria impossível de esconder, mas
o cheiro era de sangue envelhecido, as células já não viviam. Assim como Big Dave, que, deitado na maca, estava praticamente irreconhecível devido à gravidade dos
ferimentos. Kade só precisou aspirar uma vez o cheiro da hemoglobina coagulada para saber que o homem havia morrido há vários minutos.
– Meu Mestre ficou aborrecido ao saber do ataque de hoje – disse o Servo, com o rosto pálido e inexpressivo. Atrás dele havia uma janela aberta, obviamente sua via
de entrada. Na mão, ele trazia um par de tesouras cirúrgicas que tinham sido usadas para acelerar os efeitos dos ferimentos letais de Big Dave.
– Kade… do que ele está falando?
Skeeter sorriu para Alex, um sorriso estranho.
– Meu Mestre também não ficou nada satisfeito ao ouvir a seu respeito. Testemunhas costumam ser um problema, entende?
– Ai, meu Deus – Alex murmurou. – Skeeter, o que você está dizendo? O que você fez?!
– Filho da puta – Kade sibilou, lançando-se sobre o Servo. Derrubou Skeeter num ataque de esmagar os ossos. – Quem criou você? Responda!
Mas o escravo de sangue só o encarou e riu, apesar dos golpes que Kade desferia nele.
– Quem é o filho da puta do seu Mestre? – bateu novamente em Skeeter. E mais uma vez. – Fale, seu merdinha.
As respostas não lhe foram dadas. Uma parte irracional sua se prendeu ao nome de Seth, mas aquilo era impossível. Ainda que Kade e seu irmão gêmeo fossem da Raça,
a linhagem deles não era antiga o bastante ou pura o suficiente para qualquer um deles criar um Servo Humano. Somente as gerações mais antigas da raça vampírica
tinham o poder de sugar um humano até quase a morte, depois assumir o comando da sua mente.
– Quais são as suas ordens? – Socou o rosto sem alma e sorridente do Servo. – O que contou ao seu Mestre a respeito de Alex?
Atrás dele, a voz dela penetrou a violência que o acometia.
– Kade… por favor, pare. Você está me assustando. Pare com isso e deixe-o ir.
Mas ele não podia parar. Não poderia libertar o humano que um dia fora Skeeter Arnold, não mais. Não sabendo o que ele era agora. Não sabendo o que ele poderia fazer
com Alex se fosse libertado para obedecer às ordens do seu Mestre novamente.
– Kade, por favor…
Com um rugido gutural, ele segurou o pescoço do Servo nas mãos e girou com força. Houve um estalido de ossos e tendões se partindo, depois um baque quando ele deixou
o fardo inerte cair no chão.
Ouviu o arfar de Alex às suas costas. Ele pensou que ela fosse gritar, mas ela ficou completamente calada. Quando Kade se virou para ela, não foi difícil ver a confusão
– e o choque – nos olhos castanhos arregalados.
– Lamento que tenha visto isso – disse ele, baixinho. – Não havia como evitar.
– Você… o matou. Simplesmente o matou… com as próprias mãos.
– Ele já não estava mais vivo, Alex. Não passava de uma concha. Já não era mais humano. – Kade franziu o cenho, percebendo como aquilo devia ter soado para ela,
vendo seu olhar confuso. Lentamente ele se levantou, e ela recuou um passo, para longe do seu alcance.
– Não me toque.
– Ah, merda – ele murmurou, passando os dedos pela cabeça. Ela passara por muita violência, mais do que o seu quinhão; a última coisa de que ela precisava era participar
de mais por causa do seu envolvimento com ele. – Odeio o fato de você estar aqui agora, testemunhando isso. Mas eu posso explicar…
– Não. – Ela balançou a cabeça com vigor. – Não, tenho que procurar Zach. Tenho que buscar ajuda para Big Dave e tenho que…
– Alex. – Kade a segurou pelos braços de leve, mas sem permitir que ela se soltasse. – Não há nada que possa ser feito por nenhum desses homens agora. Envolver Zach
Tucker ou qualquer outra pessoa nisso só tornará a situação ainda mais perigosa – não só para eles, mas para você. Não posso correr esse risco.
Ela o encarou, os olhos perscrutando-o.
No silêncio que pareceu permear o ar, a funcionária da clínica que Skeeter nocauteara começava a recobrar a consciência. A mulher gemeu, murmurando algo incompreensível.
– Fran – disse Alex, virando-se para ajudar a outra mulher.
Kade bloqueou o seu caminho.
– Ela vai ficar bem.
Com Alex observando-o atentamente, ele foi para junto da mulher e pousou a mão sobre a testa dela com gentileza.
– Durma, Fran. Quando você acordar, não se lembrará de nada disso.
– O que está fazendo com ela? – Alex exigiu saber, a voz se elevando enquanto a funcionária relaxava ao toque dele.
– Será mais fácil para ela se ela se esquecer de que Skeeter esteve aqui – disse ele, certificando-se de que a mente dela apagara qualquer lembrança do ataque de
Skeeter e da presença dele e de Alex ali. – Também será mais seguro para ela assim.
– Do que está falando?
Kade virou a cabeça para encará-la.
– Há mais sobre os seus monstros do que você imagina, Alex. Muito mais.
Ela o encarou.
– O que está dizendo, Kade?
– Antes, quando estávamos no chalé, você disse que confiava em mim, certo?
Ela engoliu em seco e concordou sem dizer nada.
– Então, confie em mim, Alex. Ah, caramba… Não confie em ninguém mais a não ser em mim. – Relanceou para o corpo de Skeeter – o cadáver do Servo Humano que agora
ele teria que desovar em algum lugar, e rápido. – Preciso que volte lá para fora. Não pode mencionar nada a ninguém a respeito de Big Dave e de Skeeter ou do que
aconteceu aqui. Não conte a ninguém o que viu aqui, Alex. Preciso que saia, volte para casa e espere que eu a procure. Prometa.
– Mas ele… – a voz se partiu ao gesticular na direção do corpo alquebrado no chão.
– Cuidarei de tudo, Alex. Só preciso que me diga que confia em mim. Que acredita quando eu lhe digo que não há motivos para você ter medo. Não de mim. – Esticou
a mão para tocar no rosto frio e ficou aliviado quando ela não se retraiu ou se afastou. Estava pedindo muito dela – muito mais do que tinha direito. – Vá para casa
e espere por mim, Alex. Vou para lá assim que puder.
Ela piscou algumas vezes, depois retrocedeu alguns passos. Seus olhos estavam inexpressivos ao se aproximar da porta, e por um instante ele se perguntou se o medo
seria demais para ela agora.
– Está tudo bem – disse ele. – Eu também confio em você, Alex.
Ele se virou e ouviu quando ela se foi, deixando-o ali para se livrar daquela confusão sozinho.
CONTINUA
Capítulo 11
Era estranho estar de volta aos seus velhos aposentos no Refúgio do pai, como se ele tivesse de algum modo entrado num lar dos sonhos, distante e conservado na memória,
que já não parecia mais ser adequado a ele. No entanto, fiel à sua palavra, a mãe de Kade se certificou de que nada estivesse fora do lugar desde que ele partira
um ano antes. Depois da longa noite que teve em Harmony, ele conseguia apreciar o estofamento confortável de sua antiga poltrona reclinável de couro, perfeitamente
localizada diante da imensa lareira de pedras do rio, que crepitava com achas de madeira recém-dispostas.
Kade se recostou na poltrona e riu ao telefone enquanto Brock o deixava a par de tudo o que tinha perdido em Boston nas duas últimas noites.
– Estou falando, cara, se a gente não se cuidar, estas fêmeas daqui vão arrasar com a gente. O jeito com que estão cuidando das missões durante o dia está começando
a acabar com a nossa imagem.
Desde que ele ligara para o Q.G. da Ordem há alguns minutos, Brock o vinha presenteando com histórias sobre as Companheiras de Raça dos outros guerreiros e dos esforços
delas em ajudar no que, até pouco tempo, fora uma espécie de clube só de garotos. Agora as missões da Ordem se tornaram operações em que todos colocavam as mãos
– exclusivamente com o intuito de impedir que o maníaco da Raça ávido pelo poder chamado Dragos desencadeasse seu tipo pessoal de inferno tanto para a espécie humana
como para a Raça deles.
Os recursos de Dragos estavam de acordo com suas finanças e, ao que parecia, eram tão sombrios quanto seus planos. Seu ato mais hediondo fora a captura e o aprisionamento
de um sem-número de Companheiras de Raça ao longo das últimas décadas, usando-as para criar um exército de assassinos selvagens. Tendo o quartel-general de Dragos
sido atacado pela Ordem algumas semanas antes, suas operações foram interrompidas – desmontadas e desviadas, conforme as suspeitas da Ordem.
Encontrar Companheiras de Raça em cativeiro antes que ele pudesse causar mais mal era o objetivo primário da Ordem no momento. Visto que a rapidez na ação podia
representar a diferença entre a vida e a morte, Lucan concordara em utilizar toda arma do arsenal da Ordem, que incluía as fêmeas muito especiais e singularmente
dotadas que aceitaram alguns dos guerreiros como companheiros.
Havia a parceira de Rio, Dylan, que possuía a habilidade de ver os espíritos das outras Companheiras de Raça mortas e, quando tinha sorte, obter informações críticas
delas. Elise, unida a Tegan, possuía o talento de ouvir as intenções humanas sombrias e corruptas. Ela acompanhava Dylan em abrigos, lares e albergues, e sua habilidade
a ajudava a acessar as intenções das pessoas que conheciam ao longo do caminho.
A companheira de Gideon, Savannah, usava sua habilidade tátil para ler a história de um objeto, na esperança de encontrar elos para algumas das desaparecidas. A
de Nikolai, Renata, com seu poder de explodir a mente mesmo do mais forte dos vampiros, transformou-se numa aliada formidável em qualquer missão, fornecendo serviços
de guarda-costas para as outras Companheiras de Raça em suas missões diurnas.
Mesmo a companheira de Andreas Reichen, Claire, que apenas recentemente se recuperara do seu ordálio nas mãos de Dragos e dos seus associados, aparentemente estava
se envolvendo nos assuntos da Ordem. Utilizando-se do seu dom de andar pelos sonhos, ela vinha tentando fazer contato com algumas das Companheiras de Raça conhecidas
que foram dadas como desaparecidas ao longo dos anos.
– Sabe – acrescentou Brock com secura –, quando Niko me recrutou para esse trabalho no ano passado, eu esperava que fosse apenas uma bela desculpa para poder chutar
uns traseiros Renegados.
Kade sorriu, lembrando-se das primeiras patrulhas pelas ruas de Boston, que costumavam envolver apanhar os ferozes viciados em sangue da cidade e explodi-los.
– Isso o faz sentir saudades da simplicidade dos primeiros meses no trabalho, não é?
Brock grunhiu em concordância. Depois perguntou:
– Falando em Renegados, como estão as coisas aí nessa geladeira? Já faz dois dias. Ainda não cuidou do assunto?
– Estou seguindo algumas pistas, mas nada de concreto até agora. Provavelmente vou ficar aqui mais alguns dias, talvez uma semana.
Brock exalou uma imprecação que revelou a Kade o que ele achava dessa perspectiva.
– Antes você do que eu, cara. Antes você do que eu… – Houve uma pausa antes de ele perguntar: – Já conseguiu encontrar sua família?
– Bem… – Kade disse, inclinando a cabeça para trás para fitar a viga de madeira do teto. – A minha chegada em casa foi mais ou menos como antecipei.
– Tão bom assim, é?
– Digamos que me sinto mais acolhido quando saio na escuridão de vinte graus abaixo de zero.
– Dureza – disse Brock. – Lamento por isso, cara. De verdade.
Kade assentiu.
– Deixa pra lá. Não preciso falar sobre a minha recepção calorosa em casa. Eu só queria ligar para passar uma informação que Gideon pode achar interessante.
– Ok. Manda ver.
– Encontrei o cretino que postou o vídeo sobre o ataque aos humanos. Seu nome é Skeeter Arnold, um drogado local, provavelmente um traficante café com leite. Eu
o vi sair de um bar e entrar numa Hummer zerinho com motorista. Foi levado a algum tipo de escritório de uma mineradora na floresta. O nome no portão era Companhia
de Mineração Coldstream. Peça a Gideon que dê uma olhada quando tiver tempo. Estou curioso para saber que tipo de negócios esse perdedor tem com eles.
– Pode deixar – disse Brock. – Cuide-se. Não congele nada de que possa precisar depois.
Kade riu, apesar da inquietação que sentia só de pensar naquela missão.
– Entrarei em contato – disse ao terminar a ligação.
Assim que deixou o telefone na mesinha ao lado, uma batida forte soou do lado de fora da porta do chalé.
– Está aberta – disse, esperando ver o pai. Preparou-se para a desaprovação que se seguiria. – Pode entrar.
Mas foi Maksim quem entrou, provocando um alívio em Kade que ele mal conseguiu esconder. Levantou-se sorrindo e gesticulou para que o tio se juntasse a ele diante
da lareira.
– Não pensei que você fosse voltar – comentou Max. – Pelo menos não tão cedo. Ouvi que as coisas não correram bem entre você e meu irmão no outro dia. Bem que eu
gostaria que ele não fosse tão duro com você.
Kade deu de ombros.
– Nunca nos entendemos bem. Eu não tinha esperanças de que começássemos agora.
– Agora que você é um dos guerreiros da Ordem – disse Max, com os olhos cintilando numa conspiração ávida, e a voz grave com uma pontada de franca admiração. – Estou
orgulhoso de você, meu sobrinho. Orgulhoso do trabalho que vem fazendo. Há honra nele, assim como sempre houve em você.
Kade quis descartar o elogio como se fosse algo desnecessário, mas ouvi-lo – especialmente vindo de Max, que, apesar de ser algumas centenas de anos mais velho que
ele, sempre lhe pareceu mais com um irmão – fez com que se sentisse bem demais para fingir que não importava.
– Obrigado, Max. Isso significa muito para mim, vindo de você.
– Não há por que me agradecer. Estou dizendo a verdade. – Fitou Kade longamente, depois se inclinou para a frente, os cotovelos plantados nos joelhos afastados.
– Ficou fora por um ano. Deve estar fazendo coisas importantes para Lucan e para a Ordem.
Kade sorriu, percebendo as suas intenções. Como ele, Max ansiava por aventuras. Ao contrário dele, Max se comprometeu a servir como segundo homem para o pai de Kade,
o líder do Refúgio Secreto em Fairbanks. A lealdade de Max o acorrentara àquela prisão de quatro mil hectares, e ainda que ele jamais se esquivasse das suas obrigações
ou da sua promessa ao irmão duro e intransigente, Max apreciava os conceitos de risco e recompensa, de coragem e honra, tanto quanto Kade.
Por causa disso, e porque Kade entendia que a lealdade de Max se estendia a ele também, sabia que lhe confiar alguns detalhes das suas experiências na Ordem e da
missão atual não teria problema.
– Ouvi dizer que houve uma revolta na Agência lá no leste há alguns meses – comentou Max, observando Kade com curiosidade, à espera que ele elaborasse a questão.
– Houve, sim – ele admitiu, lembrando-se de uma das suas primeiras missões e do começo dos problemas da Ordem com o louco chamado Dragos. – O nosso departamento
de informações descobriu um diretor de alto escalão da Agência que não era o que aparentava ser. Esse cara vinha trabalhando com um nome falso e fomentando uma rebelião
secreta há várias décadas – mais até. Ainda estamos tentando determinar até onde chega essa corrupção, mas não tem sido fácil. Toda vez que nos aproximamos do bastardo,
ele se esconde ainda mais.
– E aí vocês o perseguem ainda mais – Max disse, falando como um dos guerreiros de Boston. – Vocês têm que continuar atingindo-o, cercando-o por todos os lados,
até ele ficar exausto demais para correr e não ter alternativa a não ser ficar e lutar. E então vocês o destruirão de uma vez por todas.
Kade assentiu com gravidade, percebendo a sabedoria do conselho de Max e desejando que a perseguição a Dragos fosse tão simples e direta assim.
O que Max não sabia – o que nem ele, nem qualquer outra pessoa, tinha permissão de saber – era que Dragos era apenas a ponta de um iceberg bem traiçoeiro. Dragos
tinha uma arma secreta, uma que ele detinha há séculos. Mais ou menos na mesma época em que Kade se unira à Ordem, eles descobriram a existência de uma criatura
que se pensava estar morta há muito tempo. Um Antigo. Um dos extraterrestres sedentos de sangue que deram vida à Raça de vampiros na Terra há milênios.
Dragos era neto daquela criatura e vinha formando seu exército de vampiros assassinos, incontroláveis e implacáveis, gerados a partir dele por mais tempo do que
qualquer pessoa gostaria de conceber.
Se essa novidade se espalhasse pelas comunidades da Raça nos Estados Unidos e no exterior, o pânico se propagaria.
Caso vazasse para a população humana que não só havia vampiros entre eles, mas que um megalomaníaco dentre eles pretendia assumir o poder e escravizar a todos?
Armagedom.
Kade teve que se sacudir mentalmente para se livrar desse cenário de pesadelos.
– Enquanto o restante da Ordem está fazendo exatamente o que você disse, eu acabei escolhendo o palitinho menor e vim parar no Alasca. Estou investigando um ataque
a humanos na floresta – uma família inteira dizimada, em apenas uma noite.
Max franziu o cenho.
– Renegados?
– É o nosso palpite. – E também a esperança de Kade, embora cada minuto daquela missão o levasse cada vez mais longe de um resultado favorável. – Não ficou sabendo
de nenhum problema nos Refúgios, ficou? Algum boato de alguém com propensões para a Sede de Sangue?
Max meneou a cabeça lentamente.
– Nada parecido. Houve um incidente no Refúgio em Anchorage uns nove meses atrás. Algum garoto idiota quase sangrou um humano até a morte numa festa, mas esse foi
o único problema na região nos últimos tempos.
Essa novidade por certo não fez Kade se sentir melhor. Porque se não havia Renegados à solta, então só restava um lugar sensato para se colocar a culpa.
– Fico imaginando se Seth não ouviu nada – murmurou, tentando esconder o medo e a fúria da voz. – Eu detestaria não vê-lo enquanto estou aqui.
– Ele também detestaria isso – Max disse, e Kade pôde ver que ele falava sério.
Ele não sabia a respeito de Seth. Como todos os outros, ele não fazia ideia.
Somente Kade sabia.
E o fardo desse conhecimento pesava cada vez mais.
Max se recostou na poltrona e pigarreou com suavidade.
– Há algo que eu gostaria de lhe contar, Kade. Algo que você precisa entender… A respeito da sua família, do seu pai.
– Continue – disse Kade, sem saber direito se gostaria de ouvir o quanto o pai adorava Seth e desejava que Kade fosse mais parecido com ele.
– Meu irmão, o seu pai, não tem facilidade para demonstrar afeição. Especialmente com você.
– Engraçado, eu não tinha percebido isso. – Kade sorriu com um humor que não sentia.
– A nossa família tem um segredo sombrio – Max disse, e Kade sentiu o corpo ficar entorpecido. – Kir e eu tínhamos um irmão mais novo. Estou certo de que você nunca
soube disso. Poucas pessoas sabem. Seu nome era Grigori. Kir o amava muito. Todos nós o amávamos. Grigori era um rapaz inteligente e charmoso. Mas também tinha um
lado selvagem. Mesmo em idade tenra, ele se revelava contra a autoridade e andava no fio da navalha em todas as situações sem medo algum.
Kade se viu sorrindo, pensando que talvez também gostaria de Grigori.
– Apesar dos seus defeitos, Kir o adorava. Mas, alguns anos mais tarde, quando ficamos sabendo que Grigori se tornara Renegado, que em sua Sede de Sangue ele tinha
matado, Kir o excluiu completamente. Simples assim – Max disse, estalando os dedos. – Nunca mais vimos Grigori. Desde então, Kir sequer o mencionou novamente. Dali
por diante, Kir se tornou outro homem.
Kade ouviu atentamente, relutante em admitir a pontada de empatia que sentia pelo pai e pela perda que ele sofrera.
– Talvez seu pai acredite que não suportaria esse tipo de dor novamente – Max sugeriu. – Talvez, às vezes, ele veja muito de Grigori em você.
E, pelo visto, resolvera excluir Kade antes, ao mesmo tempo em que depositava todas as esperanças paternais em Seth.
– Não tem importância – Kade murmurou, acreditando apenas parcialmente nisso. Estava envolvido demais com situações de vida e morte para se preocupar com a baixa
expectativa do pai para com ele. – Agradeço pela informação, Max. E pela sua opinião. Também agradeço por você ter vindo.
Max, perceptivo como sempre, captou a sutil sugestão e se levantou.
– Você tem coisas para fazer. Não devo prendê-lo.
Quando esticou a mão, Kade, em vez de aceitá-la, o puxou para um abraço.
– Você é um bom homem, Max. Um bom amigo. Obrigado.
– Qualquer coisa que você precisar, Kade, só precisa me pedir.
Foram juntos até a porta, e Kade a abriu no momento em que duas mulheres, embrulhadas em pesados casacos de inverno e carregando uma manta cada uma, passavam diante
do seu chalé. Uma delas levantou o olhar e estava prestes a desviá-lo quando voltou a olhar novamente.
– Ah… Kade? – perguntou ela, seu belo rosto se iluminando num sorriso. – Kade! Ouvi que você tinha voltado para o Alasca, mas não sabia que estava aqui.
– Olá, Patrice – disse ele, lançando um sorriso educado para a Companheira de Raça que seu irmão gêmeo mantinha à sua espera debaixo das asas nos últimos anos.
Ao seu lado, Max ficara absolutamente imóvel. Kade sentia o calor emanando do outro macho, enquanto Patrice continuava conversando com animação, gentil e bela, com
o cabelo ruivo brilhante e os vívidos olhos verde-escuros iluminados pela luz da lareira que vinha de dentro do chalé.
– Ruby e eu estávamos indo ver a aurora boreal de uma das rochas. Vocês gostariam de nos acompanhar?
Kade e Max recusaram ao mesmo tempo, mas foi a recusa de Max que diminuiu o sorriso de Patrice, embora ela tivesse tentado esconder isso com a ponta da manta que
carregava. Enquanto as Companheiras de Raça se afastavam, Kade notou que o macho mais velho não conseguia deixar de olhar para elas.
Ou melhor, para uma delas.
– Patrice? – Kade perguntou, surpreso pelo desejo muito bem contido que percebera nos dois.
Maksim desviou o olhar para ele.
– Ela se comprometeu com outro. Eu jamais interferiria nisso, não importando o quanto Seth demore em finalmente aceitar o presente precioso que recebeu. O bastardinho
arrogante e ignorante…
Kade viu o tio sair pela varanda e continuar pelo terreno coberto de neve até seus próprios aposentos.
Não sabia se ria ante a virulência da declaração de Max ou se amaldiçoava Seth por estar potencialmente arruinando mais duas vidas.
Capítulo 12
Alex despejou uma chaleira de água fervente na cafeteira antiga sobre o fogão. Conforme a cozinha se enchia com o aroma do café recém-coado pela segunda vez naquele
dia, ela se virou para a mesinha onde Jenna e ela estavam tomando café da manhã. Ou melhor, onde Alex estava tomando café da manhã. Jenna apenas beliscara as batatas
fritas caseiras e deixara os ovos mexidos praticamente intocados.
– Deus do céu, eu odeio o inverno – murmurou ela, recostando-se na cadeira de madeira que rangeu, desviando um olhar pensativo para a escuridão de fora às oito horas
da manhã. – Em determinados dias, parece que ele nunca vai acabar.
– Vai, sim – disse Alex, sentando-se diante da amiga e observando o olhar atormentado de Jenna se aprofundar.
Claro que não era nem a escuridão nem o frio que a entristeciam. Alex não tinha de olhar para o calendário na parede ao lado do telefone para compreender a crescente
tristeza de Jenna.
– Ei – disse Alex, forçando um tom alegre na voz. – Se o tempo continuar claro no final de semana, pensei que poderíamos voar até Anchorage. Que tal fazer compras
ou ir ao cinema? Topa um fim de semana só de garotas na cidade?
Jenna voltou a fitá-la e balançou a cabeça de leve.
– Acho que não.
– Ah, que é isso? Vai ser divertido. Sem falar que você está me devendo uma. Acabei o meu melhor café Red Goat com você. Preciso dar um pulo na Kiladi Brothers
para renovar o meu estoque.
Jenna sorriu de modo tristonho.
– Acabou seu amado Red Goat comigo? Uau, você deve estar mesmo preocupada comigo. Acha que estou mal, hein?
– E está? – Alex formulou a pergunta cautelosa, porém direta, que exigia uma resposta igualmente franca. Estendeu a mão por sobre a mesa e segurou a da amiga. Observou-a
com atenção, dando ouvidos aos seus instintos que sempre lhe diziam se estavam lhe contando a verdade ou uma mentira. – Você vai ficar bem desta vez?
Jenna sustentou seu olhar como se estivesse preso a ele e deu um suspiro baixo.
– Eu não sei, Alex. Sinto saudades deles. Eles me davam um motivo para levantar da cama de manhã, entende? Eu me sentia necessária, sentia que minha vida tinha um
propósito maior quando Mitch e Libby faziam parte dela. Não sei se um dia voltarei a sentir isso.
A verdade, então, por mais dolorosa que fosse. Alex recebeu a confissão da amiga com um aperto em sua mão. Ela piscou, libertando Jenna da ligação invisível do seu
olhar inquisidor.
– A sua vida tem um propósito, Jenna. Tem um significado. E você não está sozinha. Para início de conversa, você tem a Zach e a mim.
Jenna deu de ombros.
– Meu irmão e eu temos nos afastado nos últimos tempos e a minha melhor amiga tem falado umas besteiras sobre se mudar daqui.
– Eu falei sem pensar – disse Alex, sentindo uma pontada de culpa tanto pela covardia que a fazia cogitar a ideia de fugir novamente quanto pela meia-verdade que
dava a Jenna agora, na esperança de fazê-la se sentir melhor.
Levantou-se e levou as canecas de café até o fogão.
– A que horas você saiu do Pete’s ontem à noite? – Jenna perguntou enquanto Alex servia café fresco e o trazia de volta até a mesa.
– Saí pouco depois de você. Zach apareceu para me dar uma carona para casa.
Jenna sorveu um gole da sua caneca e a pousou no tampo da mesa.
– É mesmo?
– Foi só uma carona – explicou Alex. – Ele se ofereceu para tomar uma cerveja comigo no Pete’s, mas eu já estava a caminho de casa.
– Bem, conhecendo meu irmão, ele só devia estar querendo uma desculpa para tê-la na caminhonete dele. Ele tem uma queda por você desde que éramos adolescentes, você
sabe disso. Talvez, apesar dessa conversa de ele ser um cara durão, comprometido com o trabalho, ele ainda esteja de olho em você.
Alex não pensava assim. A única noite deles juntos fora prova suficiente para ambos de que o que quer que sentiam um pelo outro, isso jamais voltaria a ultrapassar
os limites da amizade. Ela conhecia Zach há mais de uma década, mas ele lhe parecia mais desconhecido do que Kade, que conhecera apenas um dia atrás.
Por mais incrível que pudesse parecer, apesar da maneira com que Kade mexia com as suas emoções, ela se sentia mais protegida fisicamente com ele do que com Zach,
um oficial condecorado.
Deus do céu. O que isso queria dizer a respeito do seu bom senso, Alex não saberia determinar.
Enquanto refletia tomando um belo gole de café, o telefone da cozinha começou a tocar. Alex se levantou e atendeu a linha comercial de modo automático.
– Entregas e Fretes Maguire.
– Oi.
Aquela única palavra – a voz profunda e agora intimamente familiar – entrou pelos seus ouvidos e desceu por sua espinha numa corrente de pura eletricidade.
– Hum, olá… Kade – respondeu, desejando não soar tão atordoada. E também tinha que parecer que havia perdido o fôlego? – Como conseguiu meu número?
Do outro lado da cozinha, Jenna ergueu as sobrancelhas num indício de surpresa. Alex girou sobre os calcanhares, desejando esconder parte do calor que lhe subia
pelas faces.
– Não existem muitos Maguires em Harmony – disse ele do outro lado da linha. – Nem tantos pilotos. Por isso, com um palpite calculado, telefonei para o único número
que aparecia listado que cobria os dois critérios – um Hank Maguire da Entregas e Fretes Maguire.
– Ah… – A boca de Alex se abriu num sorriso. – E como sabe que ele não é meu marido?
A risada baixa dele soava tão agradável como veludo.
– Você não beija como uma mulher casada…
As entranhas de Alex ficaram moles e aquecidas com esse lembrete, e estava bem difícil não se contorcer ao pensar nos lábios dele sobre os seus e na revisita mental
sensual que tinha feito sozinha no chuveiro na noite anterior.
– Hum, bem… por que telefonou? Você… está ligando a trabalho?
Que Deus a ajudasse, ela quase acrescentou “ou por prazer”, mas teve o bom senso de refrear as palavras antes de se envergonhar ao proferi-las. A última coisa de
que ela precisava era pensar em Kade e em prazer na mesma frase. Ela já tivera uma bela amostra disso. O bastante para saber que traria perigo e complicações; coisas
das quais ela já tinha o suficiente.
– Eu deveria me encontrar com Big Dave e alguns outros caras em Harmony hoje – disse Kade, casualmente lançando o melhor motivo de que ela necessitava para não querer
nada com ele.
– Ah, certo – disse Alex. – A grande caçada aos lobos.
E lá estava ela, permitindo que seus hormônios tresloucados a cegassem para o fato de que ela ainda não conhecia o jogo dele. A raiva surgiu com amargura em sua
garganta.
– Bem, divirta-se. Preciso desligar…
– Espere – disse ele, no momento em que ela estava prestes a colocar o aparelho no gancho. – Eu deveria me encontrar com Big Dave hoje, mas, na verdade, eu tinha
esperanças de conseguir um guia para me levar à casa de Henry Tulak.
– Henry Tulak – Alex repetiu lentamente. – O que você poderia querer no chalé dele?
– Eu só… Eu preciso mesmo saber como aquele homem morreu, Alex. Você pode me levar lá?
Ele parecia sincero e estranhamente resignado. Por isso parecer tão importante para ele, Alex se viu cedendo quando deveria estar afastando-o por completo.
– E quanto a Big Dave?
– Eu me desculpo quando o encontrar novamente – respondeu, parecendo qualquer coisa exceto preocupado quanto a enfrentar o valentão da cidade e os seus amigos. –
O que me diz, Alex?
– Sim, tudo bem. – Maldição, não deveria se sentir tão excitada com a perspectiva de passar um tempo ao lado dele. – O dia vai nascer lá pelo meio-dia, então por
que não se encontra comigo aqui em Harmony às onze? Teremos luz suficiente para viajar e algumas horas para verificar o lugar depois que chegarmos.
Kade resmungou, como se estivesse refletindo a respeito do outro lado da linha.
– Prefiro não esperar pela aurora para seguir para lá, se estiver tudo bem para você.
– Prefere viajar no escuro?
Ela conseguia perceber o sorriso se ampliar nas feições dele quando ele respondeu:
– Não tenho medo de um escurinho se você não tiver. Já estou a caminho, posso encontrá-la na sua casa em uma hora.
Bem, ele era direto, ela tinha que admitir. O homem colocava uma coisa na cabeça e não temia ir atrás dela.
– Daqui a uma hora está bom para você, Alex?
Ela relanceou para o relógio e perguntou se conseguiria tirar o pijama, tomar banho e dar um jeito no rosto e no cabelo nesse meio-tempo.
– Hum, sim, claro… Daqui a uma hora. Até lá.
Quando desligou, Alex sentiu a curiosidade do olhar de Jenna às suas costas.
– Era o Kade?
Ela se virou, com um sorriso bobo.
– É, ele mesmo.
Jenna se recostou na cadeira e cruzou os braços diante do peito, parecendo uma verdadeira policial, mesmo de blusa de moletom e jeans gastos, com os cabelos soltos
ao redor dos ombros.
– O mesmo Kade que estava no Pete’s ontem à noite, e o mesmo Kade que você viu na propriedade dos Toms ontem e com quem você disse que não quer ter nada? Esse Kade?
– O próprio – respondeu Alex. – E antes que você diga qualquer outra coisa, só vou levá-lo para o chalé do Tulak para que ele dê uma olhada.
– Ok.
– São só negócios – disse Alex, pegando os pratos do desjejum com pressa e colocando-os na pia. Pegou uma fatia de pão embebida em ovos e a jogou na direção da boca
esperançosa de Luna. – Na minha opinião, se eu conseguir afastar uma arma sequer da mira dos lobos, então estou mais do que contente em distrair Kade com um passeiozinho
no campo.
Quando se aproximou da mesa para limpá-la, Jenna a encarou.
Não era preciso ter o detector de mentiras de Alex, nem o olhar treinado de policial de Jenna, para entender que, sem sombra de dúvida, Alex estava entusiasmada.
Revirada de ponta-cabeça por um homem que conhecera há dois dias. Tentada a permitir que esse homem, que era de uma centena de tons de cinza, entrasse em seu mundo
certinho onde tudo era preto ou branco.
– Tome cuidado, Alex – disse Jenna. – Sou sua amiga e te amo, não quero que você se machuque.
– Eu sei – ela disse. – E não vou sair magoada.
Jenna riu baixinho e balançou a mão à sua frente, dispensando-a.
– Bem, por que está parada aí quando deveria estar se aprontando para esse não encontro? Vá em frente. Deixe que eu e Luna cuidemos da limpeza do café da manhã.
Alex sorriu.
– Obrigada, Jenna.
– Mas quando você voltar desse não encontro – Jenna lhe disse, enquanto ela avançava pelo corredor –, vou querer o nome completo dele e o número do seguro social.
E também seu histórico médico completo! Sabe que não estou brincando!
Alex sabia muito bem disso, mas estava rindo mesmo assim, levada pelas muito bem-vindas, talvez porque incomuns, sensações de excitação e esperança.
Capítulo 13
Kade não tinha percebido o quanto estava ansioso para ver Alex até enxergar sua silhueta atrás do vidro jateado da porta da casa dela quando ela foi abri-la. Alta
e magra, vestida num par de jeans escuros e uma malha verde-limão com uma camiseta de gola alta por baixo, o cabelo loiro preso em duas tranças que derramavam-se
em seus ombros, em pleno inverno, ela parecia fresca como a primavera. Ela lhe sorriu através dos cristais de gelo pensos nas janelas, o rosto naturalmente belo
enaltecido por um pouco de rímel e o rubor repentino que se fez em suas faces.
– Olá – disse ela, ao abrir a porta para que ele entrasse. – Você me encontrou.
Ele inclinou a cabeça uma vez num aceno.
– Eu te encontrei.
– Deixe-me adivinhar – disse ela, com o sorriso ainda estampado no rosto. – Você andou até aqui assim como fez no outro dia para ir até a floresta?
Ele lançou um sorriso malicioso e indicou a motoneve estacionada no jardim.
– Resolvi dirigir hoje.
– Sim, claro que sim. – Ela segurou a porta aberta para ele. – Entre. Só preciso calçar as botas e pegar o casaco, e podemos ir.
Quando ela desapareceu virando na sala de estar, Kade entrou na aconchegante cozinha e passou o olhar pela mobília simples e pela atmosfera convidativa e casual.
Ele sentia o perfume de Alex ali, sentia a presença dela nas linhas retas e regulares do sofá e das cadeiras, na madeira rústica das mesas e nos tons verdes, marrons
e cremes do tapete entrelaçado debaixo dos pés.
Ela voltou para a sala com um par de botas Sorel e uma parca pesada cor cáqui.
– Pronta, se você estiver. Deixe sua moto aqui. Vamos para os fundos pegar a minha para irmos até a pista.
Kade parou alguns passos atrás dela.
– Pista?
– É – afirmou ela. – Não há previsão de neve para os próximos dias, então para que perder tempo indo de motoneve quando podemos voar até lá?
– Eu não sabia que iríamos voando. – Ele sentiu uma pontada momentânea de incerteza, algo novo para ele. – Ainda está escuro.
– O meu avião não sabe a diferença entre dia ou noite – disse ela, com um brilho dançando nos olhos castanhos. – Vamos. Isto é, a menos que fique pouco à vontade
com um pouco de escuridão, Kade.
Ela caçoava dele, e ele adorou isso. Sorriu, pronto para enfrentar qualquer desafio que ela lhe lançasse.
– Mostre o caminho.
Com Alex encarregada e Kade muito satisfeito em ir na garupa, nem que fosse apenas pela desculpa de passar os braços ao seu redor, aceleraram pelas vias congeladas
da cidade até onde o avião monomotor estava estacionado na singela pista de pouso de Harmony. Além do hangar onde estavam temporariamente estocados os corpos da
família Toms, o aeroporto consistia de uma pista curta de neve compactada e luzes de orientação que mal se enxergava por cima dos montes de neve mais altos.
O Havilland Beaver de Alex tinha um vizinho por companhia, um pequeno Super Cub, equipado com pneus largos em vez dos esquis do veículo de Alex. Uma rajada de vento
atravessou a pista, erguendo uma nuvem de neve que subia como folhas ao vento.
– Lugar agitado, hein?
– Melhor do que nada. – Ela estacionou, e os dois desceram da motoneve. – Vá em frente e entre. Preciso checar o avião antes de decolarmos.
Kade poderia ter se recusado a acatar ordens de uma fêmea, caso não estivesse tão intrigado pela confiança de Alex naquilo que ela realizava. Kade entrou pela cabina
destrancada e fechou a porta. Mesmo o Beaver parecendo um burro de carga visto pelo interior, Kade se assustou com a sensação claustrofóbica da sua cabina. Tendo
mais de um e noventa de altura e pesando mais de cento e dez quilos sem armas e roupas, ele era considerado um macho grande segundo qualquer padrão, mas, ao se sentar
no banco do passageiro do monomotor, os painéis curvados e as janelas estreitas faziam aquilo se parecer com uma gaiola.
Alex apareceu pelo lado do piloto e se sentou no banco atrás do manche.
– Tudo pronto – anunciou com alegria. – Aperte os cintos, e estaremos voando em seguida.
No interior remoto do Alasca, não era de se admirar que não houvesse controle de tráfego aéreo, nenhuma torre de rádio para liberar a decolagem. Dependia somente
de Alex levantar voo e seguir na direção correta. Um minuto mais tarde, subiram na escuridão, cada vez mais alto no céu matutino desprovido de luzes a não ser pelo
manto distante de estrelas reluzentes.
– Bom trabalho – comentou Kade, lançando um olhar para Alex enquanto ela equilibrava a subida e os desviava de um trecho de solavancos provocados pelos ventos. –
Imagino que você já fez isso algumas vezes.
Ela sorriu de leve.
– Voo desde que tinha doze anos de idade. Mas tive que esperar até os dezoito para fazer o curso oficial e tirar o brevê.
– Você gosta de estar aqui em cima, perto das estrelas e das nuvens?
– Adoro – disse ela, concordando com um aceno pensativo, enquanto verificava alguns controles no painel. Depois voltou o olhar para a vastidão diante deles. – Meu
pai me ensinou a voar. Quando eu era menina, ele me dizia que o céu é um lugar mágico. Às vezes, quando eu ficava com medo ou acordava assustada com um pesadelo,
ele me trazia com ele, não importando que horas fossem. Subíamos bem alto no céu, onde nada de ruim podia nos alcançar.
Kade conseguiu detectar a afeição na voz dela quando falou do pai, e também percebeu a tristeza pela sua perda.
– Há quanto tempo seu pai morreu?
– Há seis meses… Alzheimer. Há quatro anos ele começou a se esquecer das coisas. Isso piorou bem rápido, e depois de um ano, quando a doença começou a afetar seus
reflexos no avião, ele finalmente me deixou levá-lo ao hospital em Galena. A doença progride de forma diferente nas pessoas, mas com papai, pareceu dominá-lo com
tanta rapidez… – Alex soltou um suspiro pensativo. – Acho que ele entregou os pontos assim que recebeu o diagnóstico. Não sei, talvez já tivesse desistido de viver
muito antes.
– Por que diz isso?
Aquela não fora uma pergunta invasiva, mas ela mordeu o lábio quando ele a fez, um ato reflexo que revelava que ela provavelmente sentia ter lhe contado mais do
que pretendia. Pelo olhar desconfiado e repentino que ela lhe lançou, ele percebeu que ela tentava avaliá-lo de algum modo, tentando decidir se seria seguro confiar
nele.
Quando ela por fim falou, sua voz saiu baixa, o olhar mirando o para-brisa, como se ela não pudesse falar com ele e olhá-lo ao mesmo tempo.
– Meu… hum… meu pai e eu nos mudamos para o Alasca quando eu tinha nove anos. Antes disso morávamos na Flórida, nas Everglades, onde meu pai pilotava um avião para
passeios turísticos sobre os pântanos e Keys.
Kade a avaliou na luz fraca da cabina.
– É um mundo totalmente diferente daqui.
– É. Pode apostar nisso.
Um barulho metálico repentino surgiu do nada no avião, e a cabina reverberou. Kade se segurou no banco, grato ao ver que Alex não entrara em pânico. A sua atenção
estava voltada para os instrumentos do painel, e ela aumentou a velocidade do avião. Os sacolejos e o barulho abrandaram, e o voo voltou a ficar suave.
– Não se preocupe – ela lhe disse, o tom tão sério quanto sua expressão. – Como meu pai costumava dizer, é um fato científico que alguns dos sons mais alarmantes
nos aviões só podem ser escutados à noite. Acho que estamos bem agora.
Kade riu pouco à vontade.
– Acho que vou ter que confiar em você.
Sobrevoaram um pico, depois fizeram uma leve curva, mudando de direção para voltarem a acompanhar o Koyukuk logo abaixo.
– Então, o que aconteceu na Flórida, Alex? – perguntou, voltando ao assunto que não pretendia deixar de lado. Seus instintos lhe diziam que estava perto de descobrir
os segredos que ela escondia, mas ele não estava querendo avançar nas suas investigações naquele momento. Estava, de fato, interessado nela – caramba, se fosse honesto
consigo mesmo, teria que admitir que começava a se preocupar de verdade – e desejava entender o que se passara com ela. Tendo captado a dor em sua voz, desejou poder
ajudá-la da maneira que pudesse. – Alguma coisa aconteceu com a sua família na Flórida?
Ela balançou a cabeça e lhe lançou mais um daqueles olhares perscrutadores.
– Não, não conosco… mas minha mãe e meu irmãozinho…
A voz se partiu, emocionada. Kade sentiu as sobrancelhas se unirem ao fitá-la.
– Como eles morreram, Alex?
Por um momento estonteante, seus olhos se prenderam aos dele, imóveis e carregados de um medo renovado, um pavor frio que começou a se formar em seu âmago. O pequeno
compartimento que partilhavam a mais de dois mil metros acima do solo se estreitou ainda mais, contraído pelo silêncio de Alex ao seu lado.
– Eles foram mortos – disse ela por fim. Palavras que só fizeram a pulsação de Kade acelerar quando ele considerou uma causa possível; uma causa terrível que faria
do seu envolvimento com Alex algo ainda mais impossível do que já era. Mas ela deu de ombros e voltou a olhar para a frente. Inspirou fundo e depois soltou o ar.
– Num acidente. Um motorista embriagado passou por um semáforo vermelho num cruzamento. Bateu no carro da minha mãe. Ela e meu irmão caçula morreram com o impacto.
A carranca de Kade se acentuou enquanto ela recitava os fatos depressa, como se não conseguisse dizê-los com a rapidez desejada. E recitar parecia uma descrição
correta, porque algo na explicação dela parecia ensaiado, muito bem treinado.
– Sinto muito, Alex – disse ele, sem conseguir despregar seu olhar interrogador dela. – Imagino que seja ao menos uma bênção o fato de eles não terem sofrido.
– É – respondeu ela automaticamente. – Pelo menos eles não sofreram.
Voaram por um tempo sem conversarem, observando a paisagem escura debaixo deles se alternando de faixas sem luz de floresta densa e montanhas elevadas, para o azul
elétrico da tundra coberta de neve e dos contrafortes das montanhas. No céu ao longe, Kade viu o brilho esverdeado misterioso das luzes do norte. Ele as indicou
para Alex e, apesar de ter visto a aurora boreal inúmeras vezes desde o seu nascimento há quase cem anos, ele nunca estivera no céu para presenciar as cores fantásticas
dançando no horizonte.
– Incrível, não? – Alex comentou, obviamente à vontade ao navegar num amplo arco para que pudessem ver as luzes por mais tempo.
Kade observava as luzes, mas seus pensamentos ainda estavam em Alex, tentando juntar as peças da ficção em que ela queria fazê-lo acreditar.
– O Alasca não poderia ser mais diferente da Flórida, não?
– É verdade – concordou ela. – Meu pai e eu queríamos recomeçar… Tivemos que fazer isso depois que mamãe e Ricky… – Inspirou fundo, fortalecendo-se antes de dizer
mais do que pretendia. – Depois que eles morreram, meu pai e eu voamos para Miami para comprar uma passagem para algum lugar a fim de recomeçarmos nossas vidas.
Havia um globo em uma das livrarias do terminal. Papai me mostrou onde estávamos e me pediu para escolher um lugar para irmos. Escolhi o Alasca. Quando chegamos
aqui, achamos que Harmony parecia uma cidade amigável na qual poderíamos criar nosso novo lar.
– E foi?
– Sim. – Sua voz soou um tanto saudosa. – Mas agora que ele se foi, está diferente para mim. Andei pensando se não está na hora de dar mais uma olhada no globo,
conhecer outra parte do país por um tempo.
Antes que Kade tivesse a chance de perguntar algo mais, o motor começou a fazer barulho e sacolejar com vingança renovada. Alex acelerou mais uma vez, mas o barulho
e o sacolejo persistiram.
– O que está acontecendo?
– Vou ter que aterrissar agora – disse ela. – Ali está o chalé do Tulak. Vou tentar chegar o mais próximo possível.
– Tudo bem. – Kade olhou pela janelinha para o chão que se aproximava mais rapidamente do que ele gostaria. – Só tente descer devagar. Não estou vendo nenhuma pista
aí embaixo.
Ele não precisava ter se preocupado. Alex baixou a aeronave sacolejante em seu par de esquis num deslize suave, conseguindo se desviar de alguns abetos antigos que
se materializaram do nada na escuridão ao pararem sobre a neve fofa. O chalé estava bem diante deles, mas Alex diminuiu a velocidade do Beaver e fez uma curva suave,
navegando com muita precisão para quem teve que aterrissar tão abruptamente.
– Nossa, essa passou perto – exclamou ele ao pararem de vez na neve.
– Acha mesmo? – A expressão de divertimento de Alex era imensa ao desligar o motor.
Ela desceu, e Kade a seguiu até o motor. Ela o olhou por dentro.
– Droga. Bem, pelo menos isso explica o problema. Alguns parafusos saíram da tampa do motor e caíram.
Kade sabia tanto de tampas de motores quanto de tricô. E ele não tinha problema em desejar que isso prendesse-os na floresta por algumas horas. Ou, melhor ainda,
por algumas noites.
– Então, o que você está me dizendo é que ficaremos presos aqui até alguém vir ajudar?
– Você está olhando para a ajuda – ela lhe disse, lançando-lhe um sorriso enquanto voltava para pegar uma caixa de ferramentas no compartimento de carga do avião.
Parte do motivo pelo qual Kade a levou até aquela localização remota era que queria, de uma vez por todas, chegar à raiz do que ela sabia quanto aos homicídios da
família Toms. Agora, depois das meias-verdades que ela lhe contara a respeito das mortes da mãe e do irmão, ele tinha outro motivo para questioná-la. E ele disse
a si mesmo que, no final das contas, se Alex soubesse de algo sobre a existência da Raça – ainda mais se esse conhecimento estivesse relacionado à perda dos familiares
na Flórida –, então, aliviá-la do fardo dessa lembrança seria um ato de bondade seu.
Aquilo, porém, não dizia respeito somente à missão. Ele tentara se convencer de que era isso, mas a obrigação ficara em segundo plano no instante em que chegara
à casa de Alex. A maneira como a sua pulsação ficava mais rápida ao redor dessa fêmea por certo não fazia parte do plano. Seu coração ainda estava acelerado por
conta da repentina aterrissagem, mas assim que Alex voltou para junto dele, parecendo inteligente e capaz, e tão adorável, ao se aproximar do motor, as batidas do
seu coração passaram a ser uma palpitação.
– Importa-se de segurar essa lanterna para mim? – Ela a acendeu e a entregou a ele, depois tirou uma luva e apanhou alguns parafusos na caixa de ferramentas. – Alguns
desses devem servir até voltarmos para casa.
Kade a observou colocar cada parafuso no buraco, imaginando se os guerreiros em Boston sentiam o mesmo orgulho e prazer ao verem suas fêmeas fazerem aquilo que faziam
de melhor.
Mas o pensamento o irritou assim que entrou em sua mente… Desde quando ele era do tipo que pensava em ter uma companheira, quanto mais aproximar Alexandra Maguire
desse cenário? Na melhor das hipóteses, ela era um obstáculo temporário no cumprimento da sua missão para a Ordem. Na pior, ela representava um risco de segurança
para toda a nação da Raça – alguém que ele devia silenciar o quanto antes.
Mas nada disso importava para seu coração acelerado, nem para os estalidos de atenção que atravessavam todas as suas veias e células enquanto ela concluía seu trabalho
a poucos centímetros de distância. Atrás dela, ao longe, a luz verde da aurora boreal se unira a uma faixa avermelhada. A cor emoldurou Alex quando ela se virou
para olhá-lo, e ele se questionou se já vira algo tão belo quanto o rosto dela com o halo de magia congelada da selva do Alasca. Ela não disse nada, apenas sustentou
seu olhar com a mesma intensidade silenciosa que ele sentia atravessando-o.
Kade apagou a lanterna e a colocou sobre a tampa do motor agora fechado. Tirou as luvas e segurou a mão nua de Alex, aquecendo-lhe os dedos na pressão de suas palmas
quentes. Segurou-a de leve, dando-lhe a oportunidade de se afastar caso não desejasse seu toque. Mas ela não opôs resistência.
Ela entrelaçou os dedos nos dele, fitando-o nos olhos com uma intensidade voraz.
– O que quer de mim, Kade? Por favor, preciso saber. Preciso que me diga.
– Eu achei que sabia – disse ele, mas balançou a cabeça. – Achei que tinha tudo certo na cabeça. Deus, Alex… conhecer você mudou tudo.
Ele soltou uma mão para pousar na curva do maxilar dela, escorregando os dedos entre o capuz da parca e o calor aveludado do seu rosto.
– Não consigo entender você – ela disse, franzindo o cenho ao levantar o olhar para ele. – Eu me sinto desconfortável por não conseguir entendê-lo.
Ele tocou a ponta do nariz dela e lhe lançou um sorriso torto.
– Muito cinza no seu mundo em preto e branco?
A expressão dela permaneceu grave.
– Isso me assusta.
– Não se assuste.
– Você me assusta, Kade. Durante toda a minha vida, fugi das coisas que me assustavam, mas com você… – Ela emitiu um suspiro incerto e lento. – Com você, pareço
incapaz de me afastar.
Ele afagou o rosto dela, passou as pontas dos dedos sobre as rugas formadas na testa enquanto ela o fitava.
– Não há motivo para você ficar assustada quando está comigo – ele lhe disse, com toda a honestidade.
Mas, então, ele inclinou a cabeça e pressionou os lábios sobre os dela, e o beijo que deveria ter representado uma promessa carinhosa inflamou-se em algo mais selvagem
quando Alex o retribuiu tão abertamente, provocando a boca dele com a ponta da língua. Todo o calor que surgira entre eles na noite anterior no estacionamento do
Pete’s foi reavivado naquele instante, só que mais veloz, mais intenso, pelas horas em que Kade a desejara. Ele ardia por aquela fêmea, de uma maneira muito perigosa.
Beijá-la era um risco alto; o desejo já alongara as presas, a visão já se tornara aguçada com a luz âmbar que agora preenchia suas íris.
Seduzi-la ali não fora seu objetivo, não importando a missão da Ordem ou o quanto ele desejasse descobrir os segredos de Alex para satisfazer sua curiosidade pessoal.
Afastou-se, a cabeça baixa, o rosto virado para longe para esconder as mudanças que não poderia permitir que ela visse. Mudanças que a assustariam.
Mudanças que ele não seria capaz de explicar.
– O que foi? – perguntou ela, com a voz rouca devido ao beijo. – Algo errado?
– Não. – Ele meneou a cabeça, ainda escondendo o rosto até conseguir aplacar seu desejo. – Nada errado. Mas está frio demais para ficarmos parados aqui. Você deve
estar congelando.
– Não posso dizer que eu esteja sentindo frio no momento – replicou, fazendo-o sorrir a despeito da guerra que acontecia em seu interior.
– É melhor entrarmos. – Ele não aguardou uma resposta antes de dar a volta no avião. – Só preciso da minha mochila. Vá na frente. Vou logo atrás.
– Está bem. – Ela hesitou por um momento, depois se pôs a caminhar na direção do chalé, as botas esmagando a neve. – Traga lenha, já que está por aí. As pessoas
usam este lugar como abrigo agora, então você deve encontrar um pouco no galpão logo atrás.
Ele esperou até que ela tivesse entrado no chalé antes de tirar a mochila com armamento do avião e seguir para procurar o abrigo de madeira. O ar ártico o estapeou
conforme ele avançava pela neve imaculada. Ficou grato pelo castigo do tempo frio. Necessitava da lucidez do vento gélido.
E ainda assim ardia internamente por Alex.
Desejava-a demais, e seria preciso que uma geleira o engolisse para aplacar parte do calor que ela acendia nele.
Capítulo 14
Alex entrou no chalé de um único cômodo e fechou a porta atrás de si para lacrar o frio, com esperanças de conseguir um instante de privacidade para poder lidar
com o tumulto que acontecia dentro dela. Recostou-se contra a madeira gasta e exalou um suspiro trêmulo.
– Controle-se, Maguire.
Quis fingir que o beijo não significara nada, que o simples fato de Kade ter se afastado primeiro era indício de que até mesmo ele pensava que deixar as coisas esquentarem
entre eles seria má ideia. Só que as coisas já estavam quentes, e negar isso não faria o fato desaparecer. Não havia um lugar longe o bastante para que Alex deixasse
de sentir o desejo que sentia por Kade. E o engraçado era que ela não queria fugir daquela sensação. Pela primeira vez na vida, existia algo que a assustava sobremaneira,
mas que não lhe provocava ímpetos de sair correndo.
Não, ainda pior: seus sentimentos por Kade a impeliam a se aproximar dele.
Ainda mais assustador, ela sentiu que Kade poderia ser alguém forte o bastante em quem se apoiar, forte o bastante para que ela se abrisse – se abrisse de verdade
– a respeito de tudo o que mantinha represado dentro de si por tanto tempo. Uma parte sua queria acreditar que ele poderia ser o homem forte que ficaria ao seu lado
em qualquer tempestade, mesmo uma repleta de monstros, na qual a noite tinha dentes e o vento grunhia sedento de sangue.
Kade seria capaz de ficar ao seu lado.
Alex sabia disso do mesmo modo como sabia quando alguém lhe mentia. Ainda que não conseguisse lê-lo como fazia com as outras pessoas, esse mesmo sentido intenso
lhe dizia que isso acontecia porque Kade era diferente das outras pessoas de alguma maneira. Ele era diferente dos homens que já conhecera e que viria a conhecer.
Esse mesmo estranho e inabalável, instinto estivera no comando no voo, quando ela estivera perto de lhe contar a verdade – toda a verdade – sobre os motivos que
levaram o pai e ela a se mudarem da Flórida. A verdade a respeito do que, exatamente, matara sua mãe e seu irmão.
Fora difícil lutar contra esse instinto que desejava permitir a aproximação de Kade, e quando ela lançou a mentira ensaiada que usara com tantos outros sem nenhum
remorso, ser desonesta com Kade fez com que se sentisse terrível. Imagine só – ela escondera uma das verdades mais fundamentais sobre si mesma de todos em Harmony
que a conheciam desde que era uma criança; no entanto, após apenas alguns dias de flertes com um desconhecido, ela se via pronta a contar tudo.
Kade, contudo, já não era mais um estranho para ela. Ele não lhe pareceu um estranho nem mesmo na primeira noite no fundo da igreja, quando os olhos prateados se
encontraram com os seus do outro lado do salão.
E se tudo o que vinham fazendo desde então era apenas um flerte, por que seu coração batia forte contra o osso esterno toda vez que estava perto dele? Por que ela
sentia, contra toda lógica e sensatez, que seu lugar era ao lado desse homem?
Com o frio das lembranças remotas e a incerteza do futuro se aproximando, ela precisava de algo forte e quente no qual se segurar.
Não apenas de qualquer coisa ou de qualquer pessoa… mas dele.
Precisava do calor de Kade agora – da sua força –, mesmo que apenas por uns instantes.
O depósito de madeira atrás do chalé tinha um estoque decente de lenha cortada e seca, empilhada dentro da construção externa que tinha as iniciais de Henry Tulak
acima da porta. Era costume na floresta que os viajantes cuidassem uns dos outros, deixando combustível e alimentos para o próximo e respeitando a natureza a fim
de preservá-la tanto para si quanto para outrem.
Enquanto apanhava as achas de madeira que usariam, Kade pensava no que poderia deixar em troca da lenha que queimaria no chalé com Alex. Ajoelhou-se e abriu o zíper
da mochila. As únicas coisas que trazia que poderiam ser úteis ali eram suas armas, porém, as pistolas destinadas a matar Renegados que ele carregava eram valiosas
demais para serem deixadas para trás. Uma adaga, então. Ele tinha mais do que uma consigo.
Ao colocar a mão dentro da mochila à procura de uma faca que poderia deixar, o solado da bota se prendeu em algo branco e duro, preso entre as tábuas do abrigo.
– O que é isso?
Moveu-se para o lado para poder ver melhor o que havia debaixo da bota. Um dente de urso. A ponta de marfim longa e afiada estava encravada no espaço entre duas
tábuas como se tivesse sido afundada por inúmeras botas antes da sua. Não foi o dente, contudo, que fez o sangue de Kade gelar nas veias. Foi a tira fina de couro
entrelaçada presa a ele.
Exatamente do mesmo tipo que a pulseira presa a outro dente que vira recentemente.
Aquele que ele encontrara manchado de sangue humano seco, guardado no esconderijo de tesouros particulares de Seth. A coleção pervertida de souvenires mantida por
um assassino.
Seu irmão estivera ali.
Ah, não… seria possível que Seth tivesse matado o homem encontrado devorado por animais naquele mesmo lugar no ano anterior?
Kade quis negar a prova que tinha na mão fingindo ser uma mera coincidência, mas o gelo em seu peito lhe disse que seu irmão gêmeo estivera ali no inverno anterior,
quando Henry Tulak respirou pela última vez.
– Filho da mãe… – Kade sussurrou, enojado, ainda que tivesse procurado provas daquilo desde que chegara ao Alasca.
Agora que ela o encarava – a certeza de que somente um gêmeo idêntico pode ter a respeito da sua outra metade –, não havia mais como negar o que ele sabia em seu
coração há tanto tempo. Seu irmão era um assassino. Não melhor do que os Renegados que Kade sempre odiara e que agora perseguia como membro da Ordem. A fúria o atravessou,
ultraje não só em relação a Seth, mas a si mesmo, por querer acreditar que estivesse errado a respeito do irmão. Não havia mais incerteza em acusar Seth, ou a repugnância
em relação aos seus atos.
Kade soltou o dente de urso com a ponta da faca e o segurou diante de si, fitando, enojado, a prova que acabara de condenar o irmão. A mesma prova que impelia Kade
a fazer o que era justo e correto – fazer o que era seu dever, não só pela Ordem, mas como um macho cuja conduta pessoal de honra exigia justiça.
Precisava encontrar Seth e colocar um fim àquela matança.
Precisava sair dali naquele instante. Estava nervoso demais pela ira e pela determinação para voar de volta para Harmony com Alex; seguiria para lá a pé para iniciar
sua caçada pessoal, enquanto a aurora do meio-dia ainda demoraria algumas horas a chegar. Cobriria o maldito interior inteiro a pé se fosse necessário – chamaria
os lobos para ajudá-lo a encontrar Seth se não conseguisse rastreá-lo sozinho rápido o bastante.
Kade enfiou o pingente de dente de urso no bolso da frente dos jeans e deixou a faca sobre a pilha de lenha, uma oferenda, apesar de não ter mais uso para ela agora.
A única coisa de que precisava era sair logo dali e fazer o trabalho que o trouxera de volta ao lar, ao Alasca, de uma vez por todas.
Enquanto dava a volta no abrigo e subia até o chalé, ele era como um barril de dinamite numa combinação de raiva e intenção letal. Porém, ao abrir a porta do chalé,
pronto a oferecer alguma desculpa esfarrapada para Alex explicando por que teria que abandoná-la ali, ele foi recebido pelo ar quente e o brilho dourado de um fogo
crepitando no pequeno fogão a lenha no meio do chalé.
E pela própria Alex, sentada em meio a um ninho fofo de sacos de dormir e mantas de lã macias. O cabelo loiro fora libertado das tranças e caíam em ondas sobre os
ombros nus. Ombros despidos, assim como as pernas longas que se viam por debaixo da manta fina que mal a cobria.
Caramba… a linda e sensual Alex, nua à sua espera.
Kade pigarreou, subitamente sem palavras, e mais ainda sem as desculpas que pretendera dar para sair dali imediatamente.
– Eu… hum… eu encontrei um pouco de lenha e fósforos naquele balde ali – Alex disse. – Pensei em esquentar as coisas por aqui.
Esquentar? Se ela fosse mais quente, o corpo de Kade se incendiaria ali mesmo. O coração ainda batia descompassado por conta da descoberta desagradável no abrigo
de lenha, mas agora seu ritmo passou para uma batida mais profunda e mais urgente. Ele sentiu um músculo no maxilar dar um repuxão violento enquanto via a luz do
fogo dançar sobre a pele suave e macia.
– Alex…
Ele meneou a cabeça de leve, incapaz de pronunciar as palavras para rejeitá-la. As mais de uma dúzia de razões pelas quais aquilo era uma má ideia – ainda mais agora,
quando seu dever o impelia a deixar de lado suas necessidades egoístas para se concentrar plenamente na missão que o levara para lá – simplesmente despareceram da
sua mente lasciva. Uma avidez o assolou, o desejo substituiu a raiva que o consumia há menos de um minuto do lado de fora. Não sabia ao certo se levar as coisas
entre Alex e ele para um nível mais íntimo, dadas as circunstâncias, podia ou não ser mais do que uma péssima ideia.
Isto é, até ela se levantar e começar a andar na sua direção. A manta fina que mal envolvia sua silhueta, arrastando-se aos seus pés, agora se entreabria na frente
e lhe permitia um vislumbre desobstruído das pernas delgadas e infinitas a cada passo que ela dava. E conforme ela se aproximava, com o tecido fino se mexendo para
desnudar a pele macia do quadril esquerdo, Kade viu a minúscula marca de nascença carmesim, na forma de uma lágrima e de uma lua crescente, que transportou aquela
situação do reino das más ideias diretamente para uma zona de completo desastre.
Ela era uma Companheira de Raça.
E isso mudava tudo.
Pois Alexandra Maguire não era uma simples mortal, uma humana com quem poderia simplesmente se divertir, manipular em busca de informações, talvez transar por um
tempo, para no fim apagar sua mente e se esquecer dela. Ela era como um membro da família para os da sua espécie, uma fêmea para ser honrada e reverenciada, tão
preciosa quanto ouro.
Ela era algo raro e miraculoso, algo que ele certamente não merecia, e ela não fazia ideia disso.
– Ah, Cristo… – Apoiou a mochila no chão. Seus assuntos com Seth e com a Ordem teriam que esperar. – Alex, tem uma coisa… nós precisamos conversar.
Ela sorriu numa curva sensual dos lábios.
– A menos que precise me informar de alguma doença que tenha ou que, na verdade, seu interesse é por homens…
Ele a encarou, perguntando-se se existiram pistas ao longo do caminho. Mas, no começo, ele não olhara para Alex apenas como uma fonte de informações, uma testemunha
relutante que ele teria que fazer se abrir usando quaisquer meios necessários. Depois que falara com ela, começara a gostar dela. E depois que gostara dela, foi
difícil não desejá-la.
E agora?
Agora tinha a obrigação de proteger aquela fêmea a qualquer custo, e isso incluía impedi-la de cair nas mãos de um macho como ele. Ele a colocava em perigo só pelo
fato de estar com ela, arrastando-a em sua missão para a Ordem e aproximando-a, ainda mais depois de hoje, dos horrores dos joguinhos doentios do seu irmão. Se ele
era metade do guerreiro que jurara a si mesmo ser, levaria Alex para longe daquele lugar, a levaria para casa, para nunca mais procurá-la.
– Kade? – Ela inclinou a cabeça ao se aproximar, ainda à espera da sua resposta, o tom de voz suave. – Hum… não é isso o que tem a me dizer, é?
– Não. Não é.
– Que bom – ela disse, praticamente ronronando as palavras. – Porque eu não estou com vontade de conversar agora.
Kade inspirou fundo quando ela se aproximou, deixando pouco mais de alguns centímetros e uma fina manta de lã entre eles. E a sua fragrância… de pele aquecida, de
calor feminino e de um traço adocicado de algo mais esquivo que ele agora sabia que só podia ser o odor singular do sangue de uma Companheira de Raça.
Mesmo sem a maldita marca de nascença, inferno, apesar disso, Alexandra Maguire era uma combinação tóxica que o envolvia – por fora e por dentro – como a mais potente
das drogas.
Ela levantou o olhar para ele, os olhos cor de caramelo agora escurecidos como duas piscinas profundas em que ele poderia se afogar.
– Quero estar com você, Kade, aqui e agora. – Devagar, ela abriu a manta, expondo-se por completo para ele ao passar os braços ao seu redor, envolvendo ambos com
as dobras do tecido. O calor do corpo nu quase o queimou, entalhando-se em sua lembrança como um ferro em brasa. – Estou cansada de sentir frio o tempo todo. Estou
farta de me sentir sozinha. Só por agora, quero que me toque, Kade. Quero sentir as suas mãos em mim.
Ela não teve que pedir duas vezes. Ele sabia que ela precisara de coragem para admitir sua vulnerabilidade para ele, para se expor daquela maneira. Não poderia fingir
que não desejava aquilo tanto quanto ela. Ele a desejou desde o momento em que a viu pela primeira vez. Agora, todas as suas boas intenções, todos os seus pensamentos
de honra e de dever foram incinerados num instante.
Levantou uma palma até a linha delicada da coluna dela; a outra se ergueu para acariciar a curva graciosa do rosto e a pele sedosa da nuca. A pulsação dela vibrava
ao encontro do seu polegar conforme ele acariciava a pele macia sobre a carótida. Enquanto ele brincava com a faixa erótica de pele debaixo dos dedos, ela fechou
os olhos e inclinou a cabeça para trás, dando-lhe mais acesso do que seria sensato.
A pulsação de Kade também acelerou, cada um dos batimentos cardíacos dela, cada pequeno tremor do corpo junto ao seu estimulando suas necessidades mais primitivas.
Ele afundou a cabeça e aninhou o rosto na junção do pescoço e do ombro dela, ousando o mais suave dos beijos enquanto as presas rapidamente preenchiam sua boca,
a língua ávida por saboreá-la. Exalou seu desejo num grunhido baixo, tracejando a boca ao longo do pescoço, depois descendo, inclinando-se conforme apanhava um seio
perfeito na mão, erguendo o mamilo róseo até os lábios.
Sugou-a, atento para não arranhá-la com as pontas afiadas das presas, enquanto puxava o botão mais fundo em sua boca, envolvendo-o com a língua, deliciando-se com
os arquejos excitados de prazer dela. Desceu a mão livre, espalmando a nádega arredondada, brincando com a junção do corpo dela por trás. A sensação de tê-la nos
braços era tão boa, tão gostosa. Ele esmagou-a contra o seu corpo, deixando que os dedos se aprofundassem, chegando às dobras do sexo. Ela estava úmida e quente,
a pele um paraíso acolhedor quando seu toque se aprofundou.
– Ai, meu Deus… – ela arfou, arqueando-se em seu abraço. – Kade…
Num gemido, ele soltou o seio da mordida sensual e voltou aos lábios, capturando-lhe o suspiro num beijo profundo e faminto. Embora ela o acompanhasse, era ele quem
estabelecia o ritmo, mais urgente do que fora sua intenção, mas ele estava envolvido demais para desacelerar. Também estava mais do que ciente das mudanças que lhe
aconteciam – mudanças que exigiriam algum tipo de explicação, que também exigiriam um tipo de conversa, algo em que ela não se mostrara interessada e algo que ele
seria incapaz de realizar no momento.
Ainda beijando-a, pois se via incapaz de afastar a boca da dela, ele a guiou de volta ao ninho de cobertas perto do fogo. Juntos, eles o despiram, arrancando rapidamente
o casaco e a camisa, as botas e os jeans. Kade se despiu do resto das roupas enquanto Alex trilhava com a língua um caminho ao longo do pescoço dele. Kade estremeceu
ao sentir um disparo de desejo preenchendo suas veias, sentiu o sangue apressado até os membros e o pênis pulsante. A pele comichava com a transformação dos dermaglifos,
as marcas da Raça que lhe cobriam o peito, os braços e as coxas. Os glifos, normalmente um tom ou dois mais escuros que o de sua pele, por certo estariam saturados
de cor agora, escurecendo-se para refletir o desejo que sentia por Alex.
– Ah, caramba… – grunhiu, sibilando profundamente quando ela mordiscou a pele macia logo abaixo da sua mandíbula. Não sabia quanto mais aguentaria. Quando ela abaixou
a mão para afagá-lo em toda a sua extensão, ele não teve como segurar seu rosnar animal. Ela espalmou a cabeça do sexo, num toque tanto curioso quanto exigente ao
espalhar a umidade natural sobre a pele sensível.
– Deite-se comigo – pediu ele, com a voz rouca, a respiração ofegante.
Segurou-a nos braços e afundou com ela no piso coberto de mantas do chalé, beijando-a enquanto a pressionava com suavidade debaixo de si. Ela estava tão macia e
quente ao seu encontro, os braços envolvendo-o pelos ombros, as coxas afastadas onde os seus quadris se encaixaram. O pênis se aninhou ao encontro da fenda úmida
do seu sexo, louco de desejo de se afundar, mas Kade só brincou de penetrá-la, escorregando entre as pétalas aveludadas do seu corpo ao mesmo tempo em que brincava
com a boca ao longo da pulsação na lateral do pescoço. Segurou o sexo para se conter, esfregando sua rigidez na suavidade dela, usando a ponta larga do pênis para
acariciar seu clitóris. Ela gemeu, arqueando-se para acompanhar seu ritmo, alargando as pernas num convite. Ele resistiu à tentação, quase sem conseguir.
Ela lhe pedira que a aquecesse, e ela estava quente, mas ele quis deixá-la mais quente do que nunca. A necessidade repentina e incomensurável de marcá-la como sua
– de lhe dar prazer como ninguém antes dele – ressoou em seu sangue como um tambor. Atordoado com a sensação, ele se refreou. Mas Alex era tão gostosa, parecia tão
certa para ele, que antes que se lembrasse de que ela merecia algo melhor, ele passou a beijá-la corpo abaixo. Saboreou cada centímetro desde os montes dos seios
até a musculatura firme do abdômen e a maldita marca de nascença no quadril que tornava seu prazer e sua necessidade egoísta algo tão errado.
Mas, errado ou não, por mais egoísta que fosse ao ceder ao seu desejo por Alex, ele passara do ponto de resistir. A sensação de tê-la debaixo de si elevou a chama
em seu sangue levantando fervura. A fragrância dela o atraía como um ímã até a faixa de pelos claros e encaracolados entre as pernas. Beijou-a ali, usando os lábios
e a língua e os dentes até ela se contorcer contra sua boca. E mesmo assim ele não parou. Sugou-a e afagou-a, dando-lhe prazer até que ela se arqueasse debaixo dele
e gritasse durante o trepidante clímax.
E ainda assim ele não parou.
Continuou sugando, beijando e afagando-a, conduzindo-a até mais um pico e depois, só depois, ergueu-se para cobri-la com seu corpo, penetrando-a profundamente enquanto
as quentes paredes internas se contraíam ao redor do pênis pulsante. Penetrou-a percebendo que ele também precisava daquele calor, daquela sensação – mesmo que temporária
– de não estar sozinho. Precisara de Alex daquele modo, naquele instante, tanto quanto ela acreditava precisar dele.
O orgasmo de Kade se avolumava na base do pênis, intensificando-se a cada estocada fervorosa. Cada vez mais ardente, cada vez mais estreito, até que ele não conseguiu
segurar nem mais um segundo. Sentiu o corpo tenso com a força com que ele vinha e a penetrou o máximo que ela conseguia acomodá-lo, enterrando o rosto no ombro dela
e emitindo um grito rouco de alívio quando seu sêmen explodiu numa torrente líquida quente.
Ele não teria conseguido segurar mesmo que tivesse tentado, apesar de não existir a possibilidade de uma gravidez, contanto que não houvesse troca de sangue. Mas
isso também se mostrou mais tentador do que deveria. As presas de Kade alongaram-se das gengivas quando ele se perdeu no calor interno de Alex. Ele ouvia a pulsação
acelerada dela, sentia-a no eco enlouquecido das batidas do seu coração. E ele sentia o fluxo do sangue dela pulsando logo abaixo da superfície da pele delicada
onde a boca dele repousava numa careta retesada.
– Ah, caramba… Alex – sibilou, atormentado pelo fluxo de sensações que ela lhe provocava.
Tudo o que pertencia à Raça nele exigia que ele tornasse aquela sua fêmea, que clamasse seu sangue assim como clamara seu corpo.
Kade suprimiu essa necessidade, mas, maldição, não foi algo fácil. Rolou-a contra si, acomodando-a de costas para ajudar a esconder as mudanças que o acometeram
no ato de paixão.
– Você está bem? – ela perguntou, enquanto ele se esforçava para conter seus impulsos e obter um pouco de juízo.
– Sim – ele conseguiu dizer depois de um instante. – Melhor do que tenho o direito de estar.
– Eu também – disse ela, o sorriso evidente pelo torpor na voz que resvalou com suavidade no alto do seu braço. – Para o caso de estar se perguntando, os meus serviços
de piloto não costumam incluir ficar nua com meus clientes.
– Isso é bom – Kade disse quase num grunhido ao aproximá-la ainda mais do corpo ainda ardente. Ele não queria que ela ficasse nua com ninguém, percebeu num rompante.
Já não teria gostado dessa ideia antes, mas depois do que acontecera entre eles, ele não receberia isso nada bem.
– E quanto a você? – perguntou ela, enquanto ele os cobria com as mantas para esconder seus glifos do olhar dela.
– O que tem eu?
– Você faz isso… com frequência?
– Ficar nu com pilotos sensuais do interior do Alasca no meio de uma floresta gélida? – Fez uma pequena pausa, deixando-a pensar que estava levando a pergunta em
consideração. – Não. Foi a minha primeira vez.
Bem como a ferrenha sensação de posse que ainda corria em seu sangue ao pensar em Alex com outro macho. Perguntou a si mesmo se foi o fato de ela ser uma Companheira
de Raça que o atraiu logo de cara. Mas, assim que pensou nisso, percebeu que a marca de nascença que a ligava ao mundo sombrio que ele habitava como um ser da Raça
foi a menor das qualidades que o atraíram a Alexandra Maguire. A última coisa de que ele precisava naquele momento era um envolvimento emocional, ainda menos com
uma fêmea que trazia a marca da lágrima e da lua crescente.
Mas ele estava envolvido. Na verdade, acabara de atar mais alguns nós a uma situação já impossível.
Praguejando contra si mesmo, como um idiota de primeira classe que era, Kade a beijou no alto da cabeça e a abraçou, enquanto esperava que seus olhos voltassem à
aparência normal e as presas tivessem a oportunidade de se retraírem.
Levou um tempo para isso acontecer, e mesmo depois que o corpo voltou ao ritmo normal, o desejo que sentia pela mulher em seus braços permaneceu.
Capítulo 15
A luz do dia brilhou fraca e escondida pelas nuvens fora da boca da caverna na floresta. O predador buscara abrigo ali pouco antes, quando os primeiros raios começaram
a mostrar as garras em meio à escuridão do inverno. Poucas coisas existiam mais poderosas do que ele, ainda mais naquele mundo primitivo que era tão diferente do
distante mundo em que nascera muitos milênios atrás. No entanto, por mais avançada que fosse a forma de vida da sua espécie, a sua pele desprovida de pelos e coberta
de dermaglifos não processava a luz ultravioleta: apenas alguns minutos de exposição o matariam.
Das profundezas da sua segurança na caverna, ele descansou da perseguição da caça da noite anterior, impaciente para que a luz tênue se extinguisse e recuasse uma
vez mais. Logo precisaria se alimentar novamente. Ainda sentia fome, as células, os órgãos e os músculos demandavam rejuvenescimento extensivo depois do longo período
de privação e abuso que sofrera enquanto estivera em cativeiro. O instinto de sobrevivência se digladiava com o conhecimento de estar, absoluta e completamente,
sozinho naquele naco inóspito de entulho.
Não restava mais ninguém como ele já há muito tempo. Ele era o último dos oito exploradores que caíram neste planeta, um náufrago solitário sem chance de escapar.
Eles tinham nascido para conquistar, para serem reis. No entanto, um a um, seus irmãos abandonados morreram, quer pela crueldade do novo ambiente que os cercava,
quer pelas guerras com a prole meio-humana nos séculos que se seguiram. Através de uma traição e de um acordo secreto com seu filho, somente ele sobrevivera. Mas
fora a mesma traição e acordo secreto que o tornaram escravo do filho do seu filho, Dragos.
Agora que estava livre, a única coisa mais atraente do que pôr um fim em seu tempo naquele planeta abandonado era a ideia de poder levar seu herdeiro traidor consigo
para a morte.
Uivou ante a lembrança das longas décadas de dor e experiências a ele infligidas. Sua voz reverberou nas paredes da caverna, um rugido sinistro que saiu rasgando
dos pulmões, semelhante a um grito de guerra.
Um disparo respondeu de algum lugar não muito distante, em algum lugar na floresta lá fora.
Houve uma batida súbita nas folhagens do lado externo. Em seguida, ouviu passadas fugidias de animais – de muitos animais – correndo próximos à entrada da caverna.
Lobos.
A alcateia se dividiu, metade correndo pelo lado direito da entrada, metade disparando pela esquerda. E logo atrás deles, poucos segundos depois, o som de vozes
humanas, homens armados em perseguição.
– Por aqui – um deles gritou. – A maldita alcateia inteira subiu este cume, Dave!
– Vocês, peguem o lado oeste – uma voz retumbante comandou. – Lanny e eu vamos a pé pela colina. Há uma caverna logo adiante; é provável que um ou dois dos bastardos
tenham se escondido ali.
O barulho dos motores dando ré e o fedor do combustível queimado permearam o ar quando alguns dos homens saíram dali. Alguns minutos depois, do lado de fora da boca
da caverna, na luz do dia que barrava a única via de fuga, as silhuetas de duas pessoas segurando longos rifles tomaram forma. O homem da frente era grande, com
um peito amplo e ombros largos e uma barriga que outrora podia ter sido musculosa, mas que agora era somente flácida. O homem que o acompanhava devia ser uns trinta
centímetros mais baixo e muitos quilos mais magro, uma criatura tímida de voz trêmula.
– Acho que não tem nada aqui, Dave. E não sei se foi uma boa ideia nos separarmos dos outros.
Confinado às sombras, o único ocupante se encolheu na parede da caverna, mas não rápido o bastante.
– Ali! Acabei de ver um par de olhos cintilantes aqui dentro. O que eu disse, Lanny? Pegamos um dos bastardos bem aqui! – A voz do homem grande estava carregada
de agressão ao levantar a arma. – Acenda a lanterna e me deixe ver no que estou atirando, sim?
– Hum, tudo bem, Dave. – O companheiro nervoso se atrapalhou com a tarefa, ligando a luz e oscilando-a com gestos nervosos no chão e nas paredes da caverna. – Está
vendo alguma coisa? Eu não estou vendo nada por aqui.
Claro que não, pois o olhar cintilante que o homem vira apenas um instante antes já não estava no solo, mas fitando os humanos do alto, onde o predador agora se
segurava nas estalactites acima de suas cabeças, parado no escuro tal qual uma aranha.
O homem grande abaixou a arma.
– Mas que diabos! Onde o danado foi parar?
– Não devíamos estar aqui, Dave. Acho melhor a gente ir procurar os outros…
O homem grande avançou mais alguns passos para dentro da caverna.
– Não seja covarde. Me passe a lanterna.
Quando o baixinho esticou a mão para entregar-lhe a lanterna, a bota bateu numa pedra solta. Ele cambaleou, caiu de joelhos e deu um grito de surpresa e dor.
– Merda! Acho que me cortei.
A prova acobreada do sangramento se elevou numa súbita onda olfativa. O cheiro de sangue fresco perfurou as narinas do predador. Ele aspirou e sibilou em resposta
ao exalar o ar dos pulmões por entre os dentes e as presas.
Abaixo dele, no chão da caverna, o homenzinho nervoso levantou a cabeça. Seu rosto aflito se retesou com horror sob o olhar âmbar faminto do alienígena.
Ele berrou, sua voz tão aguda e horrorizada quanto a de uma garotinha.
Ao mesmo tempo, o homem grande se virou com o rifle.
A caverna explodiu com o estrondo do tiro e da luz ofuscante, enquanto o predador saltava das rochas de cima e se lançava sobre o par de humanos.
Alex não se lembrava da última vez em que dormira tão profundamente sem interrupções. Nem se lembrava de ter se sentido tão relaxada e saciada como depois de fazer
amor com Kade. Espreguiçou-se sob a pilha fofa de mantas e sacos de dormir no chão, depois se ergueu sobre um cotovelo para vê-lo colocando mais lenha na fogueira
no pequeno fogão do chalé.
Ele estava agachado, os músculos fortes das costas e dos braços se esticando e flexionando quando ele colocou mais uma acha no fogão a lenha, a pele suave brilhando
na luz quente da fogueira. O cabelo preto curto estava todo bagunçado numa confusão de espetos que lhe conferia um ar ainda mais selvagem do que de costume, principalmente
quando ele virou a cabeça para olhar em sua direção, e ela se sentiu atingida pelas linhas letais do rosto e mandíbula e pelo olhar prateado cercado por cílios escuros.
Ele estava lindo, de tirar o fôlego, cem vezes mais do que quando estava agachado nu diante dela, com o olhar intenso e íntimo, travado no seu. O corpo de Alex ainda
vibrava com a lembrança da paixão partilhada, a dor agradável entre as pernas pulsava um pouco mais forte agora com o modo com que ele a fitava, como se quisesse
devorá-la novamente.
– Dormimos enquanto era dia? – perguntou, subitamente sentindo necessidade de preencher aquele silêncio ardente.
Ele acenou com a cabeça.
– Já faz umas duas horas que o sol se pôs.
– Vejo que saiu – comentou, percebendo a pilha renovada de lenha ao lado dele.
– É. Acabei de chegar.
Ela sorriu, arqueando as sobrancelhas.
– Espero que não tenha saído assim. No escuro a temperatura não deve passar de zero.
Ele grunhiu, a boca sensual se curvando com bom humor.
– Não tenho problemas de encolhimento.
Não, aquele definitivamente era um homem sem a mínima insegurança quanto à sua masculinidade. Cada centímetro seu era feito de músculos esculpidos, rijos e delgados.
Com seus mais de um metro e noventa de altura, ele tinha a forma bruta mítica de um guerreiro, desde os ombros amplos e bíceps definidos até a superfície entalhada
do peito e do abdômen tanquinho, terminando nos perfeitos quadris estreitos. O restante dele era igualmente perfeito, e ela podia atestar que ele sabia o que fazer
com aquilo.
Deus do céu, ele era uma obra de arte viva, que só era enaltecida pelo desenho intricado, ainda que sutil, da tatuagem – e de que cor ela era mesmo? – sobre a pele
dourada do torso e membros, como um caminho traçado pela língua de uma amante. Alex acompanhou os desenhos estranhos com os olhos, imaginando se era apenas um truque
da luz do fogo que fazia a cor de henna das tatuagens parecer escurecer, enquanto o avaliava em franca admiração.
Sorrindo como se já estivesse acostumado a ter mulheres admirando-o, ele se levantou e andou com lentidão até onde ela estava deitada, sem nenhuma inibição com a
sua nudez.
Alex riu com suavidade e balançou a cabeça.
– Você nunca se cansa?
Ele ergueu uma sobrancelha ao se reclinar com negligência ao seu lado.
– Se eu me canso?
– De ter mulheres aos seus pés – disse ela, percebendo com uma ponta de surpresa que não gostava muito dessa ideia. Odiava, na verdade, e se perguntou de onde vinha
a dor do ciúme, levando em consideração que ele não era seu só porque partilharam algumas horas suadas – e, sim, espetaculares – nos braços um do outro.
Ele afagou uma mecha solta do cabelo dela e levantou o olhar dela para o seu.
– Só estou vendo uma mulher comigo agora. E posso garantir que não estou nem um pouco cansado.
Segurou-a pelo rosto e a deitou sobre as cobertas. Seu olhar a derreteu quando a fitou, e ela sentiu a pressão rígida da ereção cutucando-a na lateral do corpo quando
ele se esticou ao seu lado.
– Você é uma mulher especial, Alexandra. Mais especial do que pensa.
– Você não me conhece – protestou ela baixinho, precisando se lembrar disso mais do que a ele. Conheciam-se há… quanto tempo? Dois dias? Ela não era de permitir
que alguém entrasse em sua vida tão rapidamente, ou tão profundamente, ainda mais depois de tão pouco tempo. Então, por que ele? Por que agora, quando tudo em seu
mundo parecia estar empoleirado no alto de um penhasco? Um empurrão na direção errada, e ela desapareceria. – Você não sabe nada sobre mim… não de verdade.
– Então me conte.
Ela o fitou, surpresa com a sinceridade, com o pedido franco em sua voz.
– Contar…
– Conte-me o que aconteceu na Flórida, Alex.
O ar pareceu sair dos seus pulmões naquele instante.
– Mas já contei…
– Sim, mas tanto você quanto eu sabemos que não foi um motorista embriagado que arrancou sua mãe e seu irmão de você. Foi outra coisa que aconteceu com eles, não
foi? Algo que você manteve em segredo todos esses anos. – Ele falou com paciência, suavemente, coagindo a confiança dela. E que Deus a ajudasse, mas ela se sentia
pronta para ceder. Ela precisava partilhar aquilo com alguém, e no fundo do seu coração, ela sabia que esse alguém era Kade. – Está tudo bem, Alex. Você pode me
contar a verdade.
Ela fechou os olhos, sentindo as palavras horrendas – as lembranças terríveis – subindo como ácido pela garganta.
– Não consigo – murmurou. – Se eu disser, então tudo o que tentei deixar para trás… tudo pelo que me esforcei tanto a esquecer… tudo vai voltar a ser real.
– Não pode passar a vida se escondendo da verdade – disse ele, e ecos de coisas passadas surgiram em sua voz. Uma tristeza, uma resignação que garantiu a ela que
ele entendia parte do fardo que ela há tanto tempo carregava. – Negar a verdade não a faz desaparecer, Alex.
– Não, não faz – concordou ela bem baixinho. Em seu coração, ela sabia disso. Estava cansada de fugir e cansada de manter o horror do seu passado enterrado e esquecido.
Queria se livrar de tudo aquilo, e se isso significava enfrentar a verdade, não importando o quanto ela fosse horrível – não importando o quanto ela fosse inimaginável
–, então que fosse assim. Mas o medo era um inimigo poderoso. Talvez poderoso demais. – Eu tenho medo, Kade. Não sei se sou forte o bastante para enfrentar isso
sozinha.
– Você é. – Ele depositou um beijo rápido no ombro dela, depois a fez fitá-lo novamente. – Mas não está sozinha. Eu estou com você, Alex. Conte-me o que aconteceu.
Eu a ajudarei, se você permitir.
Ela sustentou o olhar suplicante dele e encontrou a coragem de que precisava na força de aço dos seus olhos.
– Nós tivemos um dia maravilhoso juntos, todos nós. Fizemos um piquenique ao lado do rio, e eu ensinara Richie a mergulhar de costas do píer. Ele só tinha seis
anos, mas era destemido, sempre querendo tentar tudo o que eu fazia. Foi um dia perfeito, repleto de riso e de amor.
Até a escuridão recair sobre o pântano, trazendo um terror profano consigo.
– Não sei por que escolheram a nossa família. Procurei por um motivo, mas nunca descobri por que eles apareceram à noite para nos atacar.
Kade a acariciou com cuidado, enquanto ela se debatia com as palavras seguintes.
– Às vezes não existe razão. Às vezes as coisas acontecem e não há nada que possamos fazer para entendê-las. A vida e a morte nem sempre são lógicas, claras.
Às vezes a morte salta da escuridão como um fantasma, como um monstro terrível demais para ser verdadeiro.
– Havia dois deles – murmurou Alex. – Nem sabíamos que eles estavam lá até ser tarde demais. Estava escuro, e estávamos todos sentados na varanda, relaxando depois
do jantar. Minha mãe estava no balanço da varanda com Richie, lendo uma história do Ursinho Pooh antes de nos levar para a cama, quando o primeiro apareceu do nada,
sem aviso, e se lançou sobre ela.
A mão de Kade ficou imóvel.
– Você não está falando de um homem.
Ela engoliu em seco.
– Não. Não era um homem. Não era nem… humano. Era outra coisa. Algo maligno. Ele a mordeu, Kade. E, então, o outro agarrou Richie com os dentes também.
– Dentes – repetiu ele, sem surpresa nem descrença na voz, apenas compreensão grave. – Você quer dizer presas, não quer, Alex? Os agressores tinham presas.
Ela fechou os olhos quando a impossibilidade da palavra se registrou.
– Sim. Eles tinham presas. E os olhos, eles… eles cintilavam no escuro como brasas ardentes, e no centro deles as pupilas eram longas e finas como as dos gatos.
Eles não podiam ser humanos. Eram monstros.
O toque de Kade no rosto e nos cabelos dela a acalmava, enquanto as lembranças daquela noite terrível ressurgiam em sua mente.
– Está tudo bem. Você está segura agora. Eu só queria ter estado lá para ajudar você e a sua família.
O sentimento era gentil, ainda que improvável, visto que ele não podia ter mais do que alguns poucos anos a mais do que ela. Mas pela sinceridade em sua voz, ela
soube que ele estava sendo sincero. Pouco importava a improbabilidade, ou a enormidade do mal que enfrentavam, Kade teria ficado ao seu lado contra o ataque. Ele
os teria mantido a salvo quando ninguém conseguiria.
– Meu pai tentou combatê-los – murmurou Alex –, mas tudo foi muito rápido. E eles eram tão mais fortes do que ele. Derrubaram-no como se ele não fosse nada. Àquela
altura, Richie já estava morto. Ele era tão pequeno que não teria a menor chance de escapar daquele tipo de violência. Minha mãe gritou para o meu pai fugir, para
me salvar se pudesse. “Não deixe minha filha morrer!” Essas foram as suas últimas palavras. Aquele que a segurava fincou a mandíbula no pescoço dela. Não a soltou,
ficou com a boca fechada sobre ela. Ele… ah, meu Deus, Kade. Isso vai parecer loucura, mas ele… ele bebeu o sangue dela.
Uma lágrima rolou pelo rosto, e Kade pressionou os lábios na sua testa, trazendo-a para junto de si e oferecendo-lhe o conforto tão necessário.
– Não me parece loucura, Alex. E eu sinto muito pelo que a sua família passou. Ninguém deveria passar por tamanha dor e perda.
Embora ela não quisesse reviver aquilo, as lembranças tinham sido ressuscitadas e, depois de mantê-las enterradas por tanto tempo, ela sentiu que não conseguiria
mais contê-las. Não enquanto Kade estivesse ali para fazê-la se sentir mais aquecida e segura do que em toda a sua vida.
– Pelo modo como atacaram minha mãe e Richie, pareciam animais. Mas nem mesmo animais fariam o que eles fizeram. Ah… meu Deus, e havia tanto sangue. Meu pai me pegou
no colo e começamos a correr. Mas não consegui desviar o olhar do que estava acontecendo atrás, na escuridão. Eu não queria ver mais, era tudo tão irreal. A minha
mente não conseguia processar aquilo. Já faz tanto tempo, e ainda não tenho certeza se posso explicar o que foi que nos atacou naquela noite. Eu só… Eu quero que
tudo faça sentido, mas não faz. Nunca vai fazer. – Inalou fundo, revivendo uma dor mais fresca, uma confusão mais recente. – Vi o mesmo tipo de ferimentos na família
Toms. Eles foram atacados, assim como nós fomos, pelo mesmo tipo de maldade. Isso está aqui no Alasca, Kade… e eu estou com medo.
Por um longo momento, Kade nada disse. Ela conseguia ver a mente dele repassando tudo o que ela lhe dissera, cada detalhe incrível que faria com que qualquer outra
pessoa escarnecesse em descrença ou lhe dissesse que ela deveria procurar ajuda profissional. Mas ele não. Ele aceitava a sua verdade pelo que era, sem traço de
dúvida em seus olhos ou em seu tom inflexível.
– Você não precisa mais fugir. Pode confiar em mim. Nada de ruim vai acontecer com você enquanto eu estiver por perto. Acredita em mim, Alex?
Ela assentiu, percebendo só então o quanto confiava nele. Confiava nele num nível além do instintivo, era visceral. O que sentia por ele desafiava o fato de que
ele entrara em sua vida ainda naquela semana, tampouco estava relacionado ao modo como ela o desejava fisicamente – com uma sofreguidão que ainda não estava pronta
para analisar.
Ela simplesmente fitou os olhos inabaláveis de Kade e soube, em sua alma, que ele era forte o bastante para carregar qualquer fardo que ela partilhasse com ele.
– Preciso que confie em mim – disse ele com gentileza. – Existem algumas coisas que você precisa saber, Alex, agora mais do que nunca. Coisas sobre si mesma, e
sobre o que você viu, tanto na Flórida quanto aqui. E também há coisas que você precisa saber sobre mim.
Ela se sentou, o coração batendo de modo estranho no peito, pesado com uma sensação de expectativa.
– O que quer dizer?
Ele desviou o olhar, passando a acompanhar a carícia ao longo do corpo nu, depois se deteve no osso do quadril. Com o polegar, ele traçou um círculo ao redor da
sua pequena marca de nascença.
– Você é diferente, Alexandra. Extraordinária. Eu deveria ter reconhecido isso de cara. Houve sinais, mas eu não os percebi. Eu estava concentrado em outras coisas
e eu… maldição.
Alex franziu o cenho, mais confusa do que nunca.
– O que você está tentando dizer?
– Você não é como as outras mulheres, Alex.
Quando ele voltou a encará-la, a confiança que normalmente cintilava em seu olhar não estava lá. Ele engoliu, o clique seco em sua garganta fazendo o sangue dela
gelar nas veias. O que quer que ele tivesse a dizer, era ele quem tinha medo agora, e ver o traço de incerteza nele aumentou a sua ansiedade.
– Você é muito diferente das outras mulheres, Alex – repetiu com hesitação. – E eu… você precisa saber que eu também não sou como os outros homens.
Ela piscou, vendo uma pressão invisível pesar no silêncio que se fez entre eles. O mesmo instinto que lhe dizia para exigir mais respostas implorava para que ela
recuasse e fingisse não querer saber – não precisava saber o que deixava Kade tão sem palavras e ansioso. Tudo o que ela conseguia fazer era observá-lo e esperar,
preocupando-se com a possibilidade de ele estar prestes a lançar seu mundo num redemoinho ainda maior.
O toque estridente do celular de Alex lhe deu um choque tal qual o de um fio de alta-tensão. Ele tocou novamente e ela mergulhou para pegá-lo, contente pela desculpa
para fugir da estranha e sombria mudança de humor de Kade.
– Alex falando – disse ela, reconhecendo o número de Zach ao abrir o aparelho e atender a chamada.
– Onde você está? – exigiu saber, nem mesmo perdendo tempo em dizer olá. – Acabei de passar pela sua casa e você não estava lá. Você está na casa de Jenna?
– Não – respondeu ela. – Jenna esteve na minha casa hoje cedo, antes de eu sair. Ela deve ter ido para casa.
– Bem, onde foi que você se meteu, então?
– Estou trabalhando – disse ela, irritada com o tom rude dele. – Estou com um cliente que agendou um voo hoje de manhã…
– Escuta aqui, temos um problema aqui em Harmony – Zach a interrompeu com rispidez. – Estou no meio de uma crise médica e preciso que você traga um ferido grave
da floresta.
Alex despertou do nevoeiro emocional em que estivera presa antes de atender ao telefonema.
– Quem está ferido, Zach? O que está acontecendo?
– Dave Grant. Não sei a história toda, mas ele e Lanny Ham e alguns outros homens da cidade saíram para caçar na parte oeste hoje. Depararam-se com uma situação
grave, muito grave. Lanny está morto e, pelo visto, as coisas não estão muito boas para Big Dave. Os homens estão com medo de transportá-lo na motoneve, temendo
não conseguir trazê-lo a tempo de salvá-lo.
– Ai, meu Deus. – Alex se sentou para trás, sobre as pernas dobradas, sentindo um frio se espalhar pela pele. – Os ferimentos, Zach… o que aconteceu?
– Alguma coisa os atacou, de acordo com os outros homens. Dave está delirando, falando coisas sem sentido sobre uma criatura espreitando numa das cavernas a oeste
de Harmony. O que os atacou é algo bem ruim, Alex. Ruim mesmo. Dilacerou-os de uma maneira horrível. A notícia se espalhou pela cidade e todos estão em pânico.
Ela fechou os olhos.
– Ai, meu Deus…
A mão de Kade pousou sobre seu ombro nu.
– O que houve, Alex?
Ela balançou a cabeça, incapaz de formar as palavras.
– Quem está com você? – Zach exigiu saber. – Puta que o pariu, Alex, você está com aquele homem do Pete’s da outra noite?
Alex não achava que precisava dizer a Zach Tucker com quem passava seu tempo, não enquanto havia um homem morto e a vida de outro pendia por um fio. Não enquanto
o horror do seu passado – o horror que ela temia ter visitado a família dos Toms há apenas alguns dias – estava novamente estraçalhando seu coração.
– Estou no chalé de Tulak, Zach. Posso sair agora mesmo, mas só devo chegar em quarenta e cinco minutos.
– Esqueça. Não podemos esperar por você. Vou localizar Roger Bemis.
Ele desligou, deixando Alex sentada ali, congelada pelo medo.
– O que aconteceu? – Kade perguntou. – Quem se feriu?
Por um momento, ela só conseguia se concentrar em inspirar e expirar. O coração batia com tristeza, a culpa a corroía.
– Eu deveria tê-los avisado. Eu deveria ter dito o que sabia em vez de acreditar que poderia negar isso.
– Alex? – A voz de Kade saiu cautelosa; os dedos, ao erguer seu rosto, foram firmes, ainda que gentis. – Me conte o que está acontecendo.
– Big Dave e Lanny Ham – murmurou. – Foram atacados hoje na floresta. Lanny está morto. Big Dave pode não sobreviver.
E se Kade tivesse ido com eles em vez de vir com ela? A ideia de que ele poderia estar perto desse tipo de perigo – ou pior, ser vítima dele – fez seu coração se
contorcer. Sentiu-se doente de tanto medo, mas foi na raiva que ela se apegou.
– Você tem razão, Kade. Não posso fugir do que sei. Não mais. Tenho que enfrentar o mal. Tenho que tomar partido agora, antes que mais alguém se machuque. – A fúria
a incentivava, enquanto o medo ameaçava segurá-la. – Preciso contar a verdade – para todos em Harmony. Para o maldito mundo inteiro, se for preciso. As pessoas precisam
saber o que está aí. Não podem destruir o mal se nem mesmo sabem que ele existe.
– Alex – ele contraiu os lábios, começou a balançar a cabeça como se tivesse a intenção de dissuadi-la. – Alex, não acho que isso seja sensato…
Ela sustentou o olhar dele, incrédula.
– É por sua causa que eu me sinto forte para fazer isto, Kade. Precisamos ficar juntos – todos juntos – para derrotar isso.
– Ah, Cristo… Alex…
A hesitação dele foi como um punhal frio lentamente entrando no seu esterno. Confusa ante a mudança de atitude, mas determinada a fazer o que era certo – fazer o
que tinha que ser feito – ela se afastou dele e começou a se vestir.
– Tenho que voltar para Harmony. Vou partir em cinco minutos. Você decide se vem comigo ou não.
Capítulo 16
Não conversaram durante todo o voo de volta para Harmony.
Kade ficou sentado ao lado de Alex num silêncio infeliz, dividido, querendo lhe explicar sobre a Raça e o lugar dela naquele mundo e temendo que, se ela soubesse
o que ele de fato era, ela o colocasse na mesma categoria do monstro que ela abominava e que agora estava tão determinada a expor para toda a cidade e para o resto
da humanidade.
O medo de que ela o odiasse manteve sua língua grudada ao céu da boca durante todos os quarenta e cinco minutos que foram necessários para levá-los de volta à pista
de voo de neve, compactada nos limites da cidade. Sabia ser um bastardo por negar-lhe toda a verdade. Provara ser algo ainda pior no chalé de Tulak, quando permitiu
que seu desejo por ela superasse seu dever – seu código de honra, por mais frágil que fosse –, que teria compelido um macho melhor a pôr todas as cartas na mesa
antes de tomá-la para si.
Mas, com Alex, não foi só sexo. Não era só desejo, ainda que ele a desejasse sobremaneira. As coisas estariam bem melhores agora se aquilo fosse algo meramente físico.
A verdade era que gostava dela. Preocupava-se com ela. Não queria vê-la sofrendo mais, muito menos pelas próprias ações. Queria protegê-la das coisas que a atingiram
no passado, e faria o que fosse possível para que nada de ruim voltasse a lhe acontecer.
Ah, sim, seus esforços até então estavam sendo bem-sucedidos…
Vinha fazendo um trabalho de primeira linha em tudo o que tocara desde que chegara ao Alasca.
Frente às provas que encontrara no chalé, o que deveria ter sido uma missão simples e secundária de aniquilar um Renegado no norte congelado do país agora se tornara
uma busca para localizar um assassino em sua própria família. E agora ele tinha pelo menos mais um morto para acrescentar à mistura, talvez dois, se o relato sobre
os ferimentos de Big Dave fosse acurado.
Outro ataque selvagem a respeito do qual Kade rezava para que todas as suspeitas não recaíssem sobre Seth.
Ele ainda ruminava esse temor quando Alex pousou o avião de maneira impecável. Maldição, mesmo perturbada como ela devia estar, Alex estava em total controle do
manche. Uma verdadeira profissional. Apenas mais um detalhe que o fazia apreciá-la ainda mais.
– Merda – sussurrou baixo ao olhar para fora da janela da cabina. Estava mesmo caído por aquela fêmea.
– Parece que metade da cidade está agrupada do lado de fora do posto de saúde – observou Alex. – Já que o avião de Roger Bemis está estacionado, acho que eles já
devem ter trazido Big Dave e Lanny da floresta.
Kade grunhiu, olhando para um quarteirão na direção do centro da cidade, para o que antes fora uma antiga casa de rancho, agora convertida em posto de saúde, no
qual algumas dúzias de pessoas estavam reunidas sob a luz do pátio, algumas de pé, outras sentadas à toa em motoneves.
Alex desligou o motor do avião e abriu a porta do piloto. Kade saiu junto com ela, andando pela frente da aeronave enquanto ela o prendia e trancava tudo. Seus movimentos
eram eficientes, as mãos enluvadas trabalhavam mais por hábito do que seguindo pensamentos conscientes. Quando, por fim, olhou para ele, Kade viu que o rosto dela
estava pálido, a expressão estava séria e preocupada. Mas o olhar estava afiado com determinação.
– Alex… vamos discutir isso antes que você vá lá e diga o que acha que tem que dizer para esse pessoal.
Ela franziu o cenho.
– Eles precisam saber. Eu tenho que contar.
– Alex. – Ele a segurou pelo braço, com mais firmeza do que pretendia. Ela olhou para os dedos que a prendiam, depois levantou o olhar. – Não posso permitir que
você faça isso.
Ela se desvencilhou e, por um segundo, ele considerou colocá-la em transe para mantê-la afastada da aglomeração logo adiante. Com um mínimo esforço mental e um resvalar
de sua palma na testa dela, ele poderia colocá-la num estado mais maleável de semiconsciência.
Poderia ganhar um tempo precioso. Impedi-la de colocar em risco sua missão para a Ordem ao alertar seus concidadãos da existência de vampiros vivendo entre eles,
à espreita na escuridão.
E ela o odiaria ainda mais – e com todo o direito – por continuar a manipulá-la.
Ela recuou um passo, as sobrancelhas ainda unidas mostrando sua confusão.
– O que deu em você? Eu tenho que ir.
Ele não a impediu quando ela girou e seguiu trotando na direção da pequena clínica da cidade. Com uma imprecação semicerrada, Kade foi atrás dela. Alcançou-a num
instante, depois abriu caminho ao seu lado entre as pessoas agrupadas que conversavam ansiosas.
– … terrível que algo assim tenha acontecido novamente – uma mulher de cabelos brancos murmurou para a pessoa ao seu lado.
– … ele perdeu tanto sangue – outra pessoa observou. – Ficaram dilacerados, foi o que ouvi. Não sobrou nada muito intacto em nenhum dos dois.
– Que coisa horrível – disse outra voz na multidão, carregada de pânico. – Primeiro os Toms, agora Big Dave e Lanny. Quero saber o que o oficial Tucker planeja fazer
a respeito!
Kade caminhou ao lado de Alex enquanto ela marchava na direção de Zach, que estava próximo à entrada da clínica, com o celular pressionado ao ouvido. Ele deu a entender
que notara sua aproximação com um aceno de cabeça, continuando a gritar ordens para alguém do outro lado da linha.
– Zach – disse ela –, preciso falar com você…
– Estou ocupado – ele ralhou.
– Mas, Zach…
– Agora não, mas que merda! Tenho um homem morto e outro sangrando ali dentro e toda a maldita cidade fica me atormentando!
Kade conseguiu conter o grunhido protetor que se formou na garganta ante a explosão do humano. Sua raiva escalou perigosamente, os músculos ficaram tensos e prontos
para uma briga para a qual ele percebeu estar mais do que pronto para começar. No entanto, sutilmente segurou Alex pelo braço e se colocou entre ela e o outro macho.
– Venha – ele lhe disse, guiando-a para longe do policial e também da sua fúria. – Vamos para outro lugar até as coisas se assentarem.
– Não – ela se opôs. – Não posso ir. Tenho que ver Big Dave. Preciso ter certeza…
Ela se soltou e subiu os degraus de concreto às pressas, sendo seguida de perto por Kade. O lugar estava muito silencioso, somente o zumbido das luzes fosforescentes
no teto, vindo da recepção deserta e seguindo por todo o corredor em direção às salas de exames. Vendo a aparência dispersa da clínica e a sua falta de equipamentos,
ela não lhe parecia pronta para tratar de algo muito maior do que um machucado ou uma aplicação de vacinas.
Alex caminhou pelo corredor com passos firmes e rápidos.
– Onde está Fran Littlejohn? Ela nunca deixa ficar tão frio aqui dentro – murmurou, mais ou menos na mesma hora em que Kade atentava para a temperatura.
Um frio ártico soprava pelo corredor vindo de uma das salas do fundo. A única com a porta fechada.
Alex pôs a mão na maçaneta. Ela não cedeu.
– Que estranho. Está trancada.
Os instintos de guerreiro de Kade se acenderam.
– Para trás.
Ele já se colocava diante dela, movendo-se com uma rapidez que os olhos dela não conseguiram acompanhar. Segurou a maçaneta e a girou com força. A tranca se abriu,
os mecanismos se desintegraram como pó num segundo.
Kade abriu a porta e se viu fitando os olhos frios de um Servo Humano.
– Skeeter? – A voz de Alex soou aguda de surpresa e carregada de suspeitas. – Que diabos está fazendo aqui?
O interesse do Servo estava bem claro para Kade. No chão ao lado da maca de Big Dave jazia uma mulher grande, de meia-idade, sem dúvida a funcionária do posto de
saúde. Estava inconsciente, mas ainda respirando, o que era melhor do que se podia dizer do seu paciente no leito.
– Fran! – Alex exclamou, apressando-se para junto da mulher, que não reagiu.
O foco de Kade era outro. O cômodo fedia com o cheiro sobrepujante de sangue humano. Se estivesse fresco, a reação física de Kade seria impossível de esconder, mas
o cheiro era de sangue envelhecido, as células já não viviam. Assim como Big Dave, que, deitado na maca, estava praticamente irreconhecível devido à gravidade dos
ferimentos. Kade só precisou aspirar uma vez o cheiro da hemoglobina coagulada para saber que o homem havia morrido há vários minutos.
– Meu Mestre ficou aborrecido ao saber do ataque de hoje – disse o Servo, com o rosto pálido e inexpressivo. Atrás dele havia uma janela aberta, obviamente sua via
de entrada. Na mão, ele trazia um par de tesouras cirúrgicas que tinham sido usadas para acelerar os efeitos dos ferimentos letais de Big Dave.
– Kade… do que ele está falando?
Skeeter sorriu para Alex, um sorriso estranho.
– Meu Mestre também não ficou nada satisfeito ao ouvir a seu respeito. Testemunhas costumam ser um problema, entende?
– Ai, meu Deus – Alex murmurou. – Skeeter, o que você está dizendo? O que você fez?!
– Filho da puta – Kade sibilou, lançando-se sobre o Servo. Derrubou Skeeter num ataque de esmagar os ossos. – Quem criou você? Responda!
Mas o escravo de sangue só o encarou e riu, apesar dos golpes que Kade desferia nele.
– Quem é o filho da puta do seu Mestre? – bateu novamente em Skeeter. E mais uma vez. – Fale, seu merdinha.
As respostas não lhe foram dadas. Uma parte irracional sua se prendeu ao nome de Seth, mas aquilo era impossível. Ainda que Kade e seu irmão gêmeo fossem da Raça,
a linhagem deles não era antiga o bastante ou pura o suficiente para qualquer um deles criar um Servo Humano. Somente as gerações mais antigas da raça vampírica
tinham o poder de sugar um humano até quase a morte, depois assumir o comando da sua mente.
– Quais são as suas ordens? – Socou o rosto sem alma e sorridente do Servo. – O que contou ao seu Mestre a respeito de Alex?
Atrás dele, a voz dela penetrou a violência que o acometia.
– Kade… por favor, pare. Você está me assustando. Pare com isso e deixe-o ir.
Mas ele não podia parar. Não poderia libertar o humano que um dia fora Skeeter Arnold, não mais. Não sabendo o que ele era agora. Não sabendo o que ele poderia fazer
com Alex se fosse libertado para obedecer às ordens do seu Mestre novamente.
– Kade, por favor…
Com um rugido gutural, ele segurou o pescoço do Servo nas mãos e girou com força. Houve um estalido de ossos e tendões se partindo, depois um baque quando ele deixou
o fardo inerte cair no chão.
Ouviu o arfar de Alex às suas costas. Ele pensou que ela fosse gritar, mas ela ficou completamente calada. Quando Kade se virou para ela, não foi difícil ver a confusão
– e o choque – nos olhos castanhos arregalados.
– Lamento que tenha visto isso – disse ele, baixinho. – Não havia como evitar.
– Você… o matou. Simplesmente o matou… com as próprias mãos.
– Ele já não estava mais vivo, Alex. Não passava de uma concha. Já não era mais humano. – Kade franziu o cenho, percebendo como aquilo devia ter soado para ela,
vendo seu olhar confuso. Lentamente ele se levantou, e ela recuou um passo, para longe do seu alcance.
– Não me toque.
– Ah, merda – ele murmurou, passando os dedos pela cabeça. Ela passara por muita violência, mais do que o seu quinhão; a última coisa de que ela precisava era participar
de mais por causa do seu envolvimento com ele. – Odeio o fato de você estar aqui agora, testemunhando isso. Mas eu posso explicar…
– Não. – Ela balançou a cabeça com vigor. – Não, tenho que procurar Zach. Tenho que buscar ajuda para Big Dave e tenho que…
– Alex. – Kade a segurou pelos braços de leve, mas sem permitir que ela se soltasse. – Não há nada que possa ser feito por nenhum desses homens agora. Envolver Zach
Tucker ou qualquer outra pessoa nisso só tornará a situação ainda mais perigosa – não só para eles, mas para você. Não posso correr esse risco.
Ela o encarou, os olhos perscrutando-o.
No silêncio que pareceu permear o ar, a funcionária da clínica que Skeeter nocauteara começava a recobrar a consciência. A mulher gemeu, murmurando algo incompreensível.
– Fran – disse Alex, virando-se para ajudar a outra mulher.
Kade bloqueou o seu caminho.
– Ela vai ficar bem.
Com Alex observando-o atentamente, ele foi para junto da mulher e pousou a mão sobre a testa dela com gentileza.
– Durma, Fran. Quando você acordar, não se lembrará de nada disso.
– O que está fazendo com ela? – Alex exigiu saber, a voz se elevando enquanto a funcionária relaxava ao toque dele.
– Será mais fácil para ela se ela se esquecer de que Skeeter esteve aqui – disse ele, certificando-se de que a mente dela apagara qualquer lembrança do ataque de
Skeeter e da presença dele e de Alex ali. – Também será mais seguro para ela assim.
– Do que está falando?
Kade virou a cabeça para encará-la.
– Há mais sobre os seus monstros do que você imagina, Alex. Muito mais.
Ela o encarou.
– O que está dizendo, Kade?
– Antes, quando estávamos no chalé, você disse que confiava em mim, certo?
Ela engoliu em seco e concordou sem dizer nada.
– Então, confie em mim, Alex. Ah, caramba… Não confie em ninguém mais a não ser em mim. – Relanceou para o corpo de Skeeter – o cadáver do Servo Humano que agora
ele teria que desovar em algum lugar, e rápido. – Preciso que volte lá para fora. Não pode mencionar nada a ninguém a respeito de Big Dave e de Skeeter ou do que
aconteceu aqui. Não conte a ninguém o que viu aqui, Alex. Preciso que saia, volte para casa e espere que eu a procure. Prometa.
– Mas ele… – a voz se partiu ao gesticular na direção do corpo alquebrado no chão.
– Cuidarei de tudo, Alex. Só preciso que me diga que confia em mim. Que acredita quando eu lhe digo que não há motivos para você ter medo. Não de mim. – Esticou
a mão para tocar no rosto frio e ficou aliviado quando ela não se retraiu ou se afastou. Estava pedindo muito dela – muito mais do que tinha direito. – Vá para casa
e espere por mim, Alex. Vou para lá assim que puder.
Ela piscou algumas vezes, depois retrocedeu alguns passos. Seus olhos estavam inexpressivos ao se aproximar da porta, e por um instante ele se perguntou se o medo
seria demais para ela agora.
– Está tudo bem – disse ele. – Eu também confio em você, Alex.
Ele se virou e ouviu quando ela se foi, deixando-o ali para se livrar daquela confusão sozinho.