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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


Lara Adrian / Midnight Breed 8
Lara Adrian / Midnight Breed 8

                                                                                                                                              

  

 

 

 

 

 

 

Vida... ou morte?
As palavras flutuaram até ela em meio à escuridão. Sílabas separadas. O ligeiro raspar de uma voz uniforme, sem ar, que chegou ao torpor pesado de sua mente e a forçou a despertar, a ouvir. A tomar uma decisão.
Vida?
Ou morte?
Ela gemeu ao encontro da tábua fria debaixo de sua face, tentando bloquear a voz, e a decisão implacável que ela exigia, de sua mente. Não era a primeira vez que ela ouvia essas palavras, essa pergunta. Não era a primeira vez no período de algumas horas infindáveis que ela entreabria uma pálpebra pesada na frigidez imóvel do seu chalé e se via diante do rosto horrendo de um monstro.
De um vampiro.
– Escolha – a criatura sussurrou, a palavra emitida num sibilo baixo, agachada diante de onde ela jazia, enroscada e trêmula no chão próximo à lareira apagada.
As presas reluziam à luz do luar, afiadas, letais. As pontas ainda estavam manchadas pelo sangue fresco – seu sangue, sugado pela mordida que dera em seu pescoço apenas momentos antes.
Ela tentou se levantar, mas não conseguia sequer flexionar os músculos em algum tipo de movimento. Tentou falar, conseguindo apenas emitir um gemido rouco. A garganta estava seca, a língua grossa e inerte dentro da boca.
Do lado de fora, o inverno do Alasca bradava, inclemente, preenchendo seus ouvidos. Ela não entendia o motivo de ser pressionada a uma resposta à pergunta que vinha se fazendo praticamente todos os dias de sua vida nos últimos quatro anos.
Desde o acidente que levara seu marido e sua filhinha.

 

 


 

 


Quantas vezes desejara ter morrido com eles naquela estrada escorregadia? Tudo teria sido mais fácil, menos doloroso, se isso tivesse acontecido.

Ela sentia um julgamento silencioso nos olhos não humanos, que não piscavam, fixos nela agora na escuridão, pupilas luminosas e cauterizantes, tão finas quanto as de um gato. Marcas intricadas na pele cobriam toda a cabeça calva e o corpo imenso da criatura. O desenho entrelaçado parecia pulsar em cores violentas enquanto ele a observava. O silêncio se estendeu enquanto ele a examinava pacientemente, como se observasse um inseto preso num jarro.

Quando voltou a falar, seus lábios não se moveram. As palavras penetraram seu crânio como fumaça e mergulharam fundo em sua mente.

A decisão é sua, humana. Diga o que será: vida ou morte?

Desviou a cabeça e fechou os olhos, recusando-se a olhar para o monstro. Recusando-se a tomar parte do jogo não revelado que ele parecia fazer com ela. Um predador brincando com sua presa, observando-a se retorcer enquanto decidia se a pouparia ou não.

O fim depende de você. Você decidirá.

– Vá para o inferno – ela disse, com uma voz grossa e arrastada.

Dedos fortes como aço seguraram-na pelo queixo, forçando-a a encará-lo uma vez mais. A criatura inclinou a cabeça, aqueles imóveis olhos felinos cor de âmbar conforme inspirava forçadamente, depois disse entre os lábios e as presas manchadas de sangue:

– Escolha seu caminho. Não há mais muito tempo.

Não havia impaciência na voz que grunhiu tão perto do seu rosto, apenas indiferença. Uma apatia que parecia revelar que ele pouco se importava com a resposta.

Raiva borbulhou dentro dela. Quis mandá-lo às favas, que a matasse de uma vez e acabasse com aquilo, se era isso o que pretendia fazer. Ele não a faria implorar, maldição. A rebeldia ardeu em seu estômago, fazendo a raiva subir até a garganta, chegando até a ponta da língua.

Mas as palavras não saíram.

Ela não podia pedir para morrer. Nem mesmo quando a morte parecia ser a única saída para o seu terror. A única fuga da dor pela perda das duas pessoas que ela mais amara e da existência aparentemente sem objetivo que lhe sobrara depois que eles se foram.

O vampiro a libertou e a observou com calma enlouquecedora quando ela voltou a se deitar no chão. O tempo se estendeu, inacreditavelmente longo. Ela se esforçou para encontrar a voz, para dizer a palavra que ou a libertaria ou a condenaria. Agachado próximo a ela, o ser oscilava sobre os calcanhares e inclinava a cabeça, deliberando silenciosamente.

Em seguida, para seu horror e confusão, ele esticou o braço e passou uma garra pela pele acima do pulso. O sangue saiu do corte, gotejando, pingos escarlates caíram no chão de madeira logo abaixo. Ele enfiou o dedo dentro do corte, cavoucando entre os músculos e tendões do braço.

– Jesus! O que está fazendo? – A repugnância revirou seus sentidos. Seus instintos alertaram que algo terrível estava para acontecer, algo talvez até mais horroroso do que ser prisioneira daquele ser tenebroso que a mantinha em cativeiro há horas, alimentando-se do seu sangue. – Deus do céu. Por favor, não. Que diabos está fazendo?

Ele não respondeu. Sequer olhou para ela até remover algo minúsculo de dentro de suas carnes, que segurava entre o polegar e o indicador ensanguentados. Ele piscou devagar, um breve tremular dos olhos antes de hipnotizá-la com seu olhar âmbar.

– Vida ou morte – sibilou a criatura, os olhos implacáveis cravados nela. Inclinou-se na sua direção, o sangue pingando do ferimento autoinfligido no braço. – Você tem que decidir. Agora.

Não, ela pensou desesperada. Não.

Uma onda de fúria surgiu de algum lugar dentro de si, que ela não conseguiu controlar. Não conseguia refrear a explosão de raiva que subiu à garganta seca e escapou de sua boca como o grito de uma banshee.

– Não! – Levantou os punhos e bateu com força na pele não humana dos ombros nus da criatura. Bateu e socou, esmurrando-a com todas as forças que conseguiu juntar, deliciando-se com a dor do impacto toda vez que seus golpes atingiam o corpo. – Maldito, não! Saia de perto de mim! Não me toque!

Ela o golpeou com os punhos, vezes sem conta. Ainda assim, ele se aproximou.

– Deixe-me em paz, maldito! Suma daqui!

As juntas dos seus dedos se chocaram com os ombros dele e na lateral do crânio, golpe após golpe, mesmo quando uma escuridão começou a descer sobre ela. Uma escuridão espessa, uma mortalha pesada que tornou seus movimentos lentos, seus pensamentos enevoados dentro da mente.

Seus músculos pesaram, recusando-se a cooperar. Ainda assim, atacou a criatura, batendo de leve, como se estivesse socando um oceano tomado por piche.

– Não – gemeu, os olhos fechados na escuridão que a rodeava. Ela continuava mergulhando. Cada vez mais profundo num vazio interminável, silencioso, sem gravidade. – Não... deixe-me ir. Maldito... Deixe-me...

Então, quando pareceu que a escuridão que a envolvia nunca a soltaria, sentiu algo fresco e úmido pressionado em sua testa. Vozes falando um murmurar indiscernível em algum ponto acima da sua cabeça.

– Não – murmurou ela. – Não. Solte-me...

Juntando o resto de forças que ainda possuía, desferiu outro soco na criatura que a segurava. Músculos firmes absorveram o golpe. Ela segurou seu captor, prendendo-o, arranhando-o. Assustada, sentiu a maciez de um tecido preso nas mãos. Lã quente. Não a pele nua pegajosa da criatura que invadira seu chalé e a mantivera em cativeiro.

A confusão lançou um aviso em sua mente entorpecida.

– Quem... Não, não me toque...

– Jenna, consegue me ouvir? – A voz grave de barítono que falava tão próxima ao seu ouvido lhe parecia familiar. Estranhamente tranquilizadora.

Clamava algo muito profundo dentro dela, dando-lhe algo em que se apegar quando não havia mais nada além de um oceano negro insondável ao seu redor. Gemeu, ainda perdida, mas sentindo um fio tênue de esperança de que talvez sobrevivesse.

A voz grave que ela, de algum modo, necessitava com desespero surgiu novamente:

– Kade, Alex. Caramba, ela está recobrando a consciência. Acho que está finalmente despertando.

Ela inspirou fundo, à procura de ar.

– Solte-me – murmurou, sem saber se podia confiar em seus instintos. Sem saber se poderia confiar em qualquer coisa agora. – Meu Deus... Por favor, não... Não me toque. Não...

– Jenna? – Em algum ponto ali perto, uma voz feminina se formou acima dela. Tom carinhoso, preocupação sombria. Uma amiga. – Jenna, querida, sou eu, Alex. Você está bem agora. Entendeu? Está segura, eu prometo.

As palavras foram registradas lentamente, trazendo uma sensação de alívio e conforto. Uma sensação de paz, apesar do terror gélido que ainda lhe atravessava as veias.

Com esforço, ela levantou as pálpebras e piscou, afastando a confusão que cobria seus sentidos como um véu. Três figuras pairavam acima dela, duas masculinas, imensas, a outra alta, delgada e feminina. Sua melhor amiga do Alasca, Alexandra Maguire.

– O que... Onde estou?

– Psiu – Alex a acalentou. – Fique quietinha agora. Está tudo bem. Você está num lugar seguro. Vai ficar bem agora.

Jenna piscou, tentando focalizar. Devagar, as formas ao seu redor se mostraram humanas. Meio sentada, percebeu que seus punhos ainda seguravam o suéter de lã de alguém. Do homem negro imenso e com ar destemido, cuja voz grave ajudara a arrancá-la das profundezas do terror dos seus pesadelos.

Aquele a quem estivera golpeando ferrenhamente por só Deus sabia quanto tempo, confundindo-o com a criatura infernal que a atacara no Alasca.

– Ei – murmurou ele, a boca grande se curvando com gentileza. Olhos castanho-escuros, que vasculhavam a alma, mantiveram seu olhar preso. Aquele sorriso caloroso se curvou como quem a compreendia quando ela o soltou e voltou a se deitar. – Fico feliz em ver que resolveu voltar para o mundo dos vivos.

Jenna franziu o cenho ante seu humor leve, lembrando-se da terrível decisão que fora forçada a tomar pelo seu agressor. Exalou profundamente ao tentar absorver o ambiente desconhecido que a cercava. Sentia-se um pouco como Dorothy acordando em Kansas depois de sua viagem a Oz.

Só que a Oz desse cenário fora um tormento aparentemente sem fim. Uma viagem horrível para um tipo de inferno sangrento.

Pelo menos o horror dessa provação chegara ao fim.

Relanceou para Alex.

– Onde estamos?

Sua amiga se aproximou e pousou um pano frio e úmido em sua testa.

– Você está segura, Jenna. Nada poderá feri-la neste lugar.

– Onde? – exigiu saber, começando a sentir um estranho pânico. Apesar de a cama debaixo de si ser macia, cheia de travesseiros fofos e mantas, ela não deixou de perceber as paredes brancas, os vários monitores de equipamentos médicos e os leitores digitais ao seu redor no quarto. – O que é isto, um hospital?

– Não exatamente – respondeu Alex. – Estamos em Boston, numa propriedade particular. É o lugar mais seguro para você estar no momento. O lugar mais seguro para todos nós.

Boston? Numa propriedade particular? A explicação vaga não a fez se sentir melhor.

– Onde está Zach? Preciso vê-lo. Tenho que falar com ele.

A expressão de Alex empalideceu um pouco ante a menção do nome do irmão de Jenna. Ela ficou calada por um momento. Um momento longo demais. E olhou por sobre o ombro para o homem atrás de si. Ele parecia vagamente familiar a Jenna, com seu cabelo escuro espetado, olhos prateados penetrantes e ossos malares acentuados. Alex disse seu nome num sussurro baixo:

– Kade...

– Vou buscar Gideon – disse ele, acariciando-a de leve ao falar. Esse homem – Kade – era, evidentemente, um amigo de Alex. Um amigo íntimo. Ele e Alex estavam juntos; mesmo no estado de consciência confuso de Jenna, ela sentia o amor profundo que unia aquele casal. Quando Kade se afastou de Alex, ele lançou um olhar para o outro homem no quarto.

– Brock, certifique-se de que as coisas fiquem calmas até eu voltar.

A cabeça escura assentiu uma vez, com seriedade. No entanto, quando Jenna o fitou, o homenzarrão chamado Brock encontrou seu olhar com a mesma calma gentil que a recebera quando ela abrira os olhos naquele lugar estranho.

Jenna engoliu por sobre o nó de medo firme em sua garganta.

– Alex, conte o que está acontecendo. Sei que fui... atacada. Fui mordida. Ah, Jesus... Havia uma... uma criatura. De algum modo ela entrou no meu chalé e me atacou.

A expressão de Alex se mostrou pesada, a mão suave ao descansar sobre a de Jenna.

– Eu sei, meu bem. Sei que deve ter sido horrível a situação por que passou. Mas agora você está aqui. Você sobreviveu, graças a Deus.

Jenna fechou os olhos quando um soluço de choro a sufocou.

– Alex... ele se alimentou de mim.

Brock se aproximara da cama sem que ela notasse. Parou bem ao seu lado e esticou a mão para passar os dedos na lateral de seu pescoço. As mãos grandes eram quentes e inacreditavelmente carinhosas. Foi uma sensação muito estranha a paz que emanou da sua leve carícia.

Uma parte dela queria rejeitar o toque indesejado, mas uma outra – uma parte necessitada e vulnerável que ela odiava reconhecer, quanto mais favorecer – não conseguia recusar tal conforto. Sua pulsação vigorosa desacelerou sob o toque ritmado dos dedos conforme eles trafegavam ao longo da extensão do pescoço.

– Melhor? – perguntou ele baixinho ao afastar a mão.

Ela exalou um suspiro profundo e acenou de leve.

– Preciso mesmo ver meu irmão. Zach sabe que estou aqui?

Os lábios de Alex se contraíram e um silêncio sofrido se estendeu no quarto.

– Jenna, querida, não se preocupe com nada nem com ninguém agora, está bem? Você passou por coisas demais. Por enquanto, vamos nos concentrar em você e garantir que você esteja bem. Zach haveria de querer isso também.

– Onde ele está, Alex? – Apesar de fazer anos que Jenna já não usava mais seu distintivo e o uniforme da Polícia Estadual do Alasca, ela ainda sabia quando alguém tentava se esquivar. Sabia quando alguém tentava proteger outra pessoa, procurando poupá-la de alguma dor. Como Alex estava fazendo com ela naquele instante. – O que aconteceu com o meu irmão? Preciso vê-lo. Há algo errado com ele, sei disso pela sua expressão, Alex. Preciso sair daqui, agora.

A mão grande de Brock se moveu novamente na sua direção, mas desta vez Jenna a afastou. Foi apenas um movimento leve do pulso dela, mas que derrubou aquela mão como se ela tivesse aplicado todas as suas forças – e mais algumas – no movimento.

– Mas que diabos? – Os olhos de Brock se estreitaram; algo brilhante e perigoso se deixou ver em seus olhos escuros, tão rápido aparecendo quanto sumindo, que ela não conseguiu registrar por completo.

Nesse mesmo instante, Kade voltou para o quarto com outros dois homens. Um era alto e magro, atlético, com cabelos loiros despenteados e óculos de sol azuis bem claros apoiados quase na ponta do nariz, conferindo-lhe um ar de cientista maluco. O outro, de cabelos escuros e ar sério, entrou no pequeno quarto como um rei medieval – apenas sua presença exigia atenção e parecia sugar todo o ar do lugar.

Jenna engoliu em seco. Como ex-policial, estava acostumada a enfrentar homens do dobro do seu tamanho sem titubear. Ela nunca foi alguém fácil de intimidar, mas, olhando para aqueles mais de quinhentos quilos de músculos e força bruta que agora a cercavam na forma daqueles quatro homens – sem falar no ar letal que pareciam vestir como uma segunda pele –, ela considerou bem difícil sustentar os olhares perscrutadores, quase suspeitos, que cada um deles lhe lançava.

Onde quer que ela estivesse, quem quer que fossem aqueles homens associados a Kade, Jenna ficou com a distinta impressão de que aquela chamada propriedade particular não era nenhum tipo de hospital. Tampouco um clube de campo.

– Só faz cinco minutos que ela acordou? – perguntou o loiro, sua voz com um leve sotaque britânico. Ante o assentimento conjunto de Alex e Brock, ele se aproximou da cama. – Olá, Jenna. Meu nome é Gideon. Este é Lucan – disse ele, apontando para seu companheiro do tamanho de uma montanha, que agora estava com Brock do outro lado do quarto. Gideon franziu a testa acima dos óculos. – Como está se sentindo?

Ela retribuiu o franzir de testa.

– Como se um ônibus tivesse me atropelado. Pelo visto, um ônibus que me arrastou desde o Alasca até Boston.

– Era a única solução – interveio Lucan, o comando palpável em seu tom que não permitia perguntas. Ele era o líder dali, não havia dúvidas. – Você detém informações demais e precisava de cuidados e observação especializados.

Ela não gostou nem um pouco de ouvir isso.

– O que eu preciso é voltar para casa. Sobrevivi ao que quer que aquele monstro fez comigo. Não vou precisar de nenhum tipo de observação, porque estou bem.

– Não – argumentou Lucan com severidade. – Você não está bem. Está longe de estar bem, na verdade.

Ainda que isso tivesse sido dito sem nenhuma crueldade ou ameaça, um frio de medo a permeou. Olhou para Alex e para Brock, para as duas pessoas que lhe garantiram que ela estava bem, que estava a salvo. As duas pessoas que de fato conseguiram fazê-la se sentir segura, depois de ter despertado do pesadelo que ainda conseguia sentir na ponta da língua. Nenhum dos dois disse nada agora.

Desviou o olhar, magoada, mas sem medo do que aquele silêncio de fato significava.

– Tenho que sair daqui. Quero ir para casa.

Quando ela fez menção de virar as pernas para a lateral da cama para se levantar, não foi nem Lucan nem Brock, nem nenhum dos outros homens grandes que a detiveram, mas Alex. A melhor amiga de Jenna se moveu para bloqueá-la, um olhar soturno no rosto mais eficiente do que qualquer força bruta presente em qualquer outra parte do quarto.

– Jen, agora você precisa me ouvir. A todos nós. Existem coisas que você precisa entender... a respeito do que aconteceu no Alasca e sobre as coisas que ainda precisamos entender. Coisas que só você será capaz de explicar.

Jenna balançou a cabeça.

– Não sei do que está falando. A única coisa que eu sei é que fui mantida presa e fui atacada – mordida e sangrada, pelo amor de Deus – por algo pior do que um pesadelo. Que ainda pode estar à solta em Harmony. Não posso ficar aqui sentada sabendo que o monstro que me aterrorizou pode estar fazendo a mesma coisa horrenda com meu irmão ou com qualquer outra pessoa em minha cidade.

– Isso não vai acontecer – disse Alex. – A criatura que a atacou – o Antigo – morreu. Ninguém em Harmony está à mercê dele. Kade e os outros garantiram isso.

Jenna sentiu apenas uma leve pontada de alívio porque, apesar da boa notícia de que seu agressor estava morto, ainda havia algo apertando seu coração.

– E Zach? Onde está o meu irmão?

Alex relanceou na direção de Kade e de Brock, sendo que ambos tinham se aproximado da cama. Alex balançou a cabeça muito de leve, os olhos castanhos entristecidos sob as ondas dos cabelos loiros.

– Ah, Jenna... Sinto muito.

Ela absorveu as palavras da amiga, relutante em deixá-las serem absorvidas. Seu irmão – o que restava da sua família – estava morto?

– Não. – Ela engoliu sua negação, a tristeza subindo pela garganta enquanto Alex passava um braço consolador ao seu redor.

Na esteira do seu pesar, lembranças vieram à superfície: a voz de Alex, chamando-a do lado de fora do seu chalé onde a criatura pairava sobre Jenna na escuridão. Os gritos zangados de Zach, uma torrente de ameaças mortais em cada sílaba, mas dirigidas a quem? Ela não havia entendido naquele momento. E, agora, não sabia se tinha alguma importância.

Houve um tiro do lado de fora do chalé, e nem um segundo depois a criatura saltou e se lançou sobre os painéis de madeira surrada da porta da frente, saindo para o jardim coberto de neve que dava para a floresta. Lembrou-se dos gritos agudos do irmão. O terror puro que precedeu um silêncio horrível.

E depois... Nada.

Nada além de um sono profundo, artificial, e da escuridão infindável.

Ela se desvencilhou do abraço de Alex, suprimindo sua dor. Não se descontrolaria assim, não diante daqueles homens de expressão séria que a fitavam com um misto de piedade e de cautela, de interesse questionador.

– Vou embora agora – disse ela, procurando em seu interior o tom policial “não mexa comigo” que lhe caía tão bem quando estivera na ativa. Levantou-se, sentindo apenas um leve tremor nas pernas. Quando oscilou de leve para um lado, Brock se adiantou para ajudá-la, mas ela recobrou o equilíbrio antes que ele conseguisse oferecer sua assistência não solicitada. Ela não precisava que ninguém a confortasse, fazendo-a se sentir fraca.

– Alex pode me mostrar a saída.

Lucan pigarreou.

– Hum, acho que isso não será possível – interveio Gideon, britanicamente educado, porém resoluto. – Agora que despertou e está lúcida, vamos precisar da sua ajuda.

– Da minha ajuda? – Ela franziu a testa. – Com o quê?

– Precisamos entender o que, exatamente, aconteceu entre você e o Antigo durante o tempo em que estiveram juntos. Mais especificamente, se ele lhe disse algo ou se lhe confiou alguma informação.

Ela escarneceu.

– Lamento. Já passei por essa provação. Não tenho interesse em revivê-la em detalhes para vocês. Obrigada, mas não. Só quero tirar isso da cabeça de uma vez por todas.

– Você precisa ver uma coisa, Jenna. – Dessa vez foi Brock quem falou. A voz dele era baixa, mais preocupada que exigente. – Por favor, nos escute.

Ela parou, incerta, e Gideon preencheu o silêncio da sua indecisão.

– Nós a observamos desde que chegou ao complexo – ele lhe disse ao se encaminhar para um painel acoplado à parede. Digitou algumas coisas num teclado e um monitor de tela plana desceu do teto. A imagem que surgiu na tela era, aparentemente, uma gravação dela deitada adormecida naquela cama. Nada de mais. – As coisas começam a ficar interessantes perto da marca de 23 horas.

Ele digitou um comando que fez a imagem avançar até a parte mencionada. Jenna se observou na tela com uma sensação de estranheza quando, na gravação, ela começou a se debater e se contorcer com violência na cama. Murmurava algo em seu sono, uma corrente de sons – palavras e frases, tinha certeza, apesar de não ter base para entendê-las.

– Não entendo. O que está acontecendo?

– Tínhamos esperança de que nos explicasse – disse Lucan. – Reconhece a língua que está falando?

– Língua? Parece um monte de coisas sem sentido para mim.

– Tem certeza? – Ele não pareceu convencido. – Gideon, passe o vídeo seguinte.

Outra filmagem preencheu o monitor, imagens aceleradas até outro episódio, esse ainda mais perturbador que o primeiro. Jenna assistiu, pasma, enquanto seu corpo na tela chutava e se contorcia, acompanhado pelo som surreal da sua voz falando algo que não fazia absolutamente sentido algum para ela.

Era preciso muita coisa para assustá-la, mas aquele vídeo hospitalar insano era basicamente a última coisa que ela precisava ver depois de tudo com que tivera que lidar.

– Desligue – murmurou. – Por favor. Não quero ver mais nada disso agora.

– Temos horas de gravações como essas – disse Lucan, enquanto Gideon desligava a gravação. – Você esteve sob observação constante o tempo todo.

– O tempo todo... – ecoou Jenna. – Há quanto tempo estou aqui?

– Cinco dias – respondeu Gideon. – A princípio, pensamos que fosse um coma induzido pelo trauma, mas os seus sinais vitais ficaram estáveis esse tempo todo. Os resultados dos exames de sangue também. Do ponto de vista do diagnóstico médico, você simplesmente esteve... – Ele pareceu procurar pela palavra adequada – ... dormindo.

– Cinco dias – disse ela, precisando ter certeza de que havia entendido bem. – Ninguém dorme por cinco dias. Deve haver outra coisa comigo. Jesus, depois de tudo o que aconteceu, eu deveria procurar um médico, ir a um hospital de verdade.

Lucan meneou a cabeça de leve.

– Gideon é mais capaz do que qualquer pessoa que possa procurar lá fora. Este tipo de coisa não pode ser tratada pelo seu tipo de médico.

– Meu tipo? Que diabos isso significa?

– Jenna – disse Alex, segurando sua mão. – Sei que deve estar confusa e assustada. Eu mesma passei por isso há pouco tempo, apesar de não conseguir imaginar as coisas pelas quais você passou. Mas agora você tem que ser forte. Precisa confiar em nós – confiar em mim – de que está nas melhores mãos possíveis. Nós vamos ajudá-la. Vamos desvendar tudo isso, prometo.

– Desvendar o quê? Fale. Maldição, preciso saber o que, de fato, está acontecendo.

– Deixe-a ver as radiografias – Lucan murmurou para Gideon, que digitou uma série de teclas e trouxe imagens para a tela.

– Esta primeira foi tirada poucos minutos depois da sua chegada ao complexo – explicou ele, quando um crânio com a coluna cervical apareceu na tela. Na parte mais superior das vértebras, algo pequeno reluzia bem claramente, tão pequeno quanto um grão de arroz.

A voz dela, quando recobrou-a por fim, revelava um leve tremor.

– O que é isso?

– Não temos certeza – Gideon explicou com gentileza. Ele mostrou outra radiografia. – Esta foi tirada 24 horas mais tarde. Dá para perceber os filamentos que começaram a se espalhar para fora do objeto.

Enquanto Jenna olhava, sentiu os dedos de Alex apertarem os seus. Outra imagem surgiu na tela, e nessa os filamentos que se estendiam a partir do objeto brilhante pareciam dar a volta em sua coluna.

– Ai, meu Deus... – sussurrou ela, colocando a mão na nuca. Pressionou com força e quase vomitou ao perceber o leve relevo do que quer que estivesse dentro dela. – Ele fez isso comigo?

Vida... ou morte?

A escolha é sua, Jenna Tucker-Darrow.

As palavras da criatura voltaram para ela agora, junto com a lembrança do corte autoinfligido, do objeto mal perceptível que ele retirara do próprio corpo.

Vida ou morte?

Escolha.

– Ele colocou alguma coisa dentro de mim – murmurou.

O leve desequilíbrio que a acometeu pouco antes retornou com força. Seus joelhos se dobraram, mas antes que ela acabasse estatelada no chão, Brock e Alex a seguraram pelos braços, apoiando-a. Por mais terrível que aquilo fosse, Jenna não conseguia despregar os olhos da radiografia que tomava conta de toda a tela em sua frente.

– Meu Deus – gemeu. – Que diabos aquele monstro fez comigo?

Lucan a encarou.

– É isso que pretendemos descobrir.


Capítulo 2

Parado no corredor do lado de fora da enfermaria alguns minutos mais tarde, Brock e os outros guerreiros observavam enquanto Alex se sentava na ponta da cama e silenciosamente acalentava a amiga. Jenna não se descontrolou, não demonstrou nenhuma emoção. Permitiu que Alex a abraçasse com carinho, mas os olhos castanhos continuaram secos, fixos adiante, a expressão inescrutável, reluzindo uma imobilidade causada pelo choque.

Gideon pigarreou, rompendo o silêncio ao desviar o olhar da janelinha da porta da enfermaria.

– Até que não foi ruim. Levando-se tudo em consideração.

Brock grunhiu.

– Levando-se em consideração que ela acabou de sair de uma experiência de cinco dias a la Rip van Winkle1, descobriu que o irmão está morto, foi sangrada pelo avô de todos os sugadores de sangue, trazida para cá contra a vontade e, ah, a propósito, também encontramos algo embutido na sua coluna vertebral que provavelmente não se origina deste planeta. Portanto, parabéns, e, além disso tudo, existem grandes chances de você ser parcialmente Borg2 agora. – Ele exalou uma imprecação. – Jesus do céu, que confusão.

– Verdade – concordou Lucan. – Mas seria muito pior se não tivéssemos contido a situação. Agora só precisamos manter a fêmea calma e sob atenta observação até compreendermos melhor esse implante e o que isso significa para nós, se é que significa alguma coisa. Sem falar que deve ter existido um motivo para o Antigo colocar o material dentro dela, para início de conversa. Essa é a pergunta que não quer calar. E quanto antes tivermos uma resposta, melhor será.

Brock assentiu, junto com o restante da irmandade. Foi apenas um ligeiro movimento; mesmo assim, o flexionar do pescoço disparou uma nova onda de dor para o crânio. Ele pressionou os dedos nas têmporas, à espera que a agonia em forma de punhaladas passasse.

Ao seu lado, Kade carranqueou, as sobrancelhas se unindo sobre os olhos prateados de lobo.

– Está tudo bem?

– Perfeito – murmurou Brock, irritado pela demonstração pública de preocupação, mesmo vinda do guerreiro mais próximo que um irmão para ele. E, mesmo que o trauma de Jenna o estivesse dilacerando de dentro para fora, ele apenas deu de ombros. – Nada de mais, o mesmo de sempre.

– Você tem absorvido a dor dessa fêmea por quase uma semana inteira – Lucan o relembrou. – Se precisar de uma pausa...

Brock sibilou uma imprecação.

– Não há nada de errado comigo que algumas horas de patrulha hoje à noite não curem.

Seu olhar se debandou para o pequeno painel de vidro que dava para a enfermaria. Como todos os da Raça, Brock tinha uma habilidade singular. Seu talento em absorver a dor humana o ajudara a manter Jenna confortável desde a experiência no Alasca, mas suas habilidades só podiam ser consideradas uma espécie de Band-Aid.

Agora que ela estava consciente e capaz de dar as informações de que a Ordem precisava saber a respeito do tempo passado com o Antigo e do material colocado dentro dela, os problemas de Jenna Darrow eram exclusivamente seus.

– Vocês precisam saber de mais uma coisa a respeito dela – disse Brock, enquanto a observava balançar as pernas na beira da cama e se levantar. Ele tentou não perceber como a camisola hospitalar subiu até o meio das coxas pouco antes que seus pés chegassem ao chão. Em vez disso, concentrou-se na presteza com que ela se equilibrou. Depois de cinco dias deitada em seu sono sobrenatural, seus músculos suportaram seu peso sem nenhum tremor ou instabilidade. – Ela está mais forte do que deveria. Consegue andar sem ajuda e, há alguns minutos, quando estávamos apenas Alex e eu na enfermaria com ela, Jenna estava começando a ficar agitada querendo ver o irmão. Fui tocá-la para acalmá-la e ela empurrou minha mão. Me lançou de lado como se eu não fosse grande coisa.

As sobrancelhas de Kade se ergueram.

– Esqueça o fato de você ser da Raça e ter reflexos condizentes. Você tem, no mínimo, uns cinquenta quilos a mais que ela.

– Foi o que quis dizer. – Brock voltou a olhar para Lucan e os outros. – Não acho que ela tenha percebido a significância do que fez, mas não há como desconsiderar a força com que me empurrou sem nem mesmo tentar.

– Jesus... – Lucan suspirou com o maxilar rijo.

– Sua dor agora também está mais forte do que antes – acrescentou Brock. – Não sei o que está acontecendo, mas tudo nela parece intensificado agora que despertou.

A carranca de Lucan aumentou ao olhar para Gideon.

– Tem certeza de que ela é humana e não uma Companheira de Raça?

– Um simples exemplar de Homo sapiens – o gênio residente da Ordem confirmou. – Pedi a Alexandra que fizesse uma varredura em sua pele assim que chegaram do Alasca. Não havia nenhuma marca de nascença de lágrima e lua crescente. No que se refere aos exames de sangue e de DNA, todas as amostras que colhi também não resultaram em nada. Na verdade, venho fazendo exames a cada 24 horas e não há nada notável. Tudo nessa mulher até aqui, exceto pelo implante, tem se mostrado absolutamente mundano.

Mundano? Brock quase não conseguiu refrear a zombaria ante a inadequação da palavra. Claro, nem Gideon nem os outros estiveram presentes na averiguação feita dos pés à cabeça em Jenna assim que ela chegou ao complexo. Ela estivera se revirando de dor, perdendo e recobrando a consciência desde que Brock, Kade, Alex e o resto da equipe que esteve com eles no Alasca concluíram a viagem até Boston.

Visto que ele era o único que conseguiria controlá-la, Brock fora escalado para permanecer ao lado de Jenna e manter a situação sob controle da melhor maneira possível. Seu papel deveria ter sido meramente profissional, analítico e desinteressado. Um instrumento especializado à disposição no caso de uma emergência.

Todavia, sua reação fora absolutamente imprópria ao ver o corpo de Jenna desnudo. Isso aconteceu há cinco dias, mas ele se lembrava de cada centímetro exposto da pele de alabastro como se a estivesse vendo agora, e sua pulsação acelerou ante a lembrança.

Lembrava-se de cada curva e vale, cada pinta, cada cicatriz – da antiga incisão da cesárea no abdômen e das punções e lacerações cicatrizadas ao longo do tronco e dos braços, que lhe disseram que ela já passara pelo inferno pelo menos uma vez antes e sobrevivera.

Ele tampouco se mostrara pouco analítico e desinteressado quando Jenna recaiu em mais uma repentina convulsão de agonia assim que Alex terminou de procurar, em vão, pela marca de nascença que significaria que ela era uma Companheira de Raça assim como Alex e as outras mulheres que moravam no complexo da Ordem. Colocara as duas mãos nas laterais do pescoço e sugara a dor de dentro dela, muito ciente da maciez e da delicadeza da pele sob seus dedos. Cerrou os punhos ao se lembrar disso agora.

Ele não tinha nada que ficar pensando na mulher, nem nua nem vestida. A não ser pelo fato de que, agora que estivera ali, ele não conseguia pensar em nada mais. E quando ela ergueu o olhar e percebeu o seu através da janelinha na porta, um calor espontâneo o perpassou como uma flecha de fogo.

Sentir desejo já era bem ruim, mas era a estranha sensação de querer protegê-la que o incomodava. Começara ainda no Alasca, quando ele e os outros guerreiros a encontraram. E não diminuíra nos dias em que ela esteve no complexo. Para falar a verdade, esse sentimento só ficou mais forte, ao vê-la se debater e lutar em seu sonho estranho que a manteve inconsciente desde que ela escapou da sua provação no Alasca.

O olhar franco ainda o prendia do outro lado da enfermaria: cauteloso, quase desconfiado. Não havia fraqueza em seu olhar, nem na leve inclinação do queixo. Jenna Darrow era, sem dúvida, uma fêmea forte, apesar de tudo pelo que passara, e ele se viu desejando que ela estivesse histérica e descontrolada, em vez da mulher fria e composta cujo olhar inabalável se recusava a libertá-lo.

Ela era calma e estoica, tão valente quanto bela, e isso, com certeza, não a tornava menos fascinante.

– Quando foi a última vez que você fez os exames de sangue e de DNA nela? – perguntou Lucan, a pergunta feita num tom grave e baixo, dando a Brock algo mais em que pensar.

Gideon puxou a manga da camisa para consultar o relógio.

– Colhi a última amostra há sete horas.

Lucan grunhiu ao se afastar da porta da enfermaria.

– Repita os exames agora. Se os resultados tiverem se alterado, mesmo que apenas uma fração em relação à última amostra, quero saber.

A cabeça loira de Gideon assentiu.

– Considerando o que Brock nos contou, eu também gostaria de testar sua força e resistência. Qualquer informação que conseguirmos ao estudar Jenna pode ser crucial para que possamos descobrir com o que estamos lidando aqui.

– Faça o que for preciso – Lucan disse com seriedade. – Apenas faça logo. Esta situação é importante, mas também não podemos deixar de lado nossas outras missões.

Brock inclinou a cabeça junto com os demais guerreiros, sabendo muito bem que uma humana no complexo era uma complicação que a Ordem não precisava quando ainda tinham um inimigo à solta, Dragos, um ancião da Raça corrupto a quem a Ordem vinha perseguindo por boa parte do último ano.

Dragos vinha trabalhando em segredo por muitas décadas, assumindo mais do que uma identidade, tendo aliados poderosos e clandestinos. Sua operação crescera e estendera seus tentáculos, como os guerreiros vinham descobrindo, e cada um desses ramos vinha trabalhando em conjunto com um único objetivo: a dominação total e absoluta tanto da Raça quanto dos humanos por Dragos.

O principal objetivo da Ordem era a sua destruição e o desmantelamento imediato e permanente de toda a operação. Ela pretendia extirpar Dragos, mas havia algumas complicações. Recentemente, ele desaparecera, e havia, como sempre, camadas de proteção sobre ele – aliados secretos dentro da nação da Raça e, talvez, fora dela também. Dragos também tinha um sem-número de assassinos treinados sob seu comando, cada um nascido e criado com o propósito específico de matar. Machos letais da Raça descendentes diretos do extraterrestre que, até sua fuga no Alasca há poucas semanas e subsequente morte, estivera sob o comando de Dragos.

Brock relanceou através da porta da enfermaria, onde Jenna havia começado a andar de um lado para o outro como um animal enjaulado. Dizer que a Ordem estava com as mãos ocupadas era expor a situação de maneira atenuada. Agora que ela estava consciente, pelo menos a sua participação naquilo chegara ao fim. Sua habilidade a ajudara a superar aquela semana; para onde ela iria a partir dali dependia somente de Lucan e de Gideon.

Dentro do quarto, Alex se afastou da amiga e se aproximou da porta. Abriu-a e saiu para o corredor, os olhos castanhos demonstrando preocupação por debaixo da franja loiro-escura.

– Como ela está? – perguntou Kade, indo na direção da sua mulher como se a gravidade o levasse para lá. Eram um casal recém-formado, tendo se conhecido durante a missão de Kade no Alasca, mas, olhando para o guerreiro e sua Companheira de Raça, a piloto de aviões, Brock achava quase impossível acreditar que eles estivessem juntos há apenas duas semanas. – Jenna precisa de alguma coisa, amor?

– Ela está confusa e perturbada, o que é compreensível – respondeu Alex, aninhando-se na proteção do corpo de Kade, assim como ele fizera. – Acho que ela vai se sentir melhor depois que tomar um longo banho e vestir roupas limpas. Ela disse que está enlouquecendo ali dentro e quer sair para esticar as pernas. Disse-lhe que precisava verificar se ela podia fazer isso.

Alex olhou para Lucan ao dizer isso, direcionando a pergunta ao membro mais antigo da Ordem, seu fundador e líder.

– Jenna não é nossa prisioneira. Claro que ela tem permissão para tomar banho, se trocar e andar por aí.

– Obrigada – disse Alex, a gratidão dissipando um pouco da preocupação em seu olhar. – Eu lhe disse que ela não seria mantida prisioneira, mas não pareceu acreditar. Depois do que passou, acho que isso não é nada surpreendente. Vou lá dentro contar o que você disse, Lucan.

Quando ela se virou para voltar para a enfermaria, o líder da Ordem pigarreou. A companheira de Kade parou e relanceou por sobre o ombro, um pouco da animação já desaparecendo ao notar seu olhar sério.

– Jenna é livre para andar por aí e fazer quase tudo o que quiser, contanto que esteja acompanhada e não tente sair do complexo. Providencie tudo o que ela precisar. Quando estiver pronta para andar pelo complexo, Brock a acompanhará. Eu o estou encarregando do bem-estar dela. Ele garantirá que Jenna não se perca.

Brock teve que refrear a imprecação que surgiu em sua língua.

Que maravilha, pensou, querendo mais do que tudo rejeitar a continuidade daquela missão, que o manteria tão próximo de Jenna Darrow.

Em vez disso, concordou com o pedido de Lucan com um movimento da cabeça.


Originalmente um personagem de Washington Irvin, o termo “Rip van Winkle” acabou se tornando sinônimo de uma pessoa que vive situação de mudança social, seja ela intencional ou não, mas que “congela no tempo”. Tornou-se um símbolo daquilo que estagnou, que dormiu e acordou em dois períodos distintos, mas ainda permanece o mesmo. (N.T.)

Borg: pseudoespécie de organismos cibernéticos mostrados no universo ficcional da franquia Star Trek. (N.E.)


Capítulo 3

Os punhos de Jenna estavam cerrados quando ela os enfiou dentro dos bolsos do roupão amarrado que lhe cobria a camisola hospitalar. Os pés sobravam dentro dos chinelos masculinos novos, porém imensos. Alex os pegara no armário da enfermaria em que ela despertara menos de uma hora atrás. Arrastava os pés ao lado da amiga ao longo do corredor de mármore branco bem iluminado que girava e girava no que parecia um labirinto interminável de corredores iguais.

Jenna se sentia estranhamente entorpecida, não só pelo choque de saber que o irmão estava morto, mas também porque o pesadelo do qual despertara não acabara na sua sobrevivência. A criatura que a atacara em seu chalé podia ter sido morta, como fora informada, mas ela não estava livre.

Depois de ter visto as radiografias e os vídeos na enfermaria, ela entendeu, horrorizada, que o monstro de presas ainda a mantinha de certa forma cativa. Devia estar gritando de pavor só por saber disso. Bem no fundo, o medo e o pesar a incomodavam. Ela manteve uma tampa abafando sua histeria, recusando-se a demonstrar esse tipo de fraqueza, mesmo na frente da sua amiga.

Sentia, porém, também uma calma genuína, que a acompanhara na enfermaria – desde o instante em que Brock pousara suas mãos nela, prometendo que estaria segura. Era essa garantia, assim como sua determinação em suportar tudo, que a impediam de se descontrolar ao caminhar em meio ao labirinto de corredores com Alex.

– Estamos quase chegando – informou Alex ao conduzir Jenna em mais uma curva, em direção a outro corredor bem iluminado. – Pensei que você se sentiria mais à vontade tomando banho e se trocando no meu quarto e de Kade do que na enfermaria.

Jenna conseguiu assentir de leve, ainda que fosse difícil imaginar que ela conseguisse ficar à vontade naquele lugar desconhecido e estranho. Andava com cautela, os antigos instintos policiais formigando ao passar diante de portas e mais portas não identificadas. Não havia nenhuma janela, nada que indicasse onde ficava aquele lugar, nem o que havia além das paredes. Nem mesmo um modo de saber se era dia ou noite do lado de fora.

Acima de sua cabeça, ao longo desse corredor como dos outros, pequenos domos pretos escondiam o que ela só podia deduzir que fossem câmeras de segurança. Todos equipamentos de ponta, muito reservados, muito seguros.

– O que é este lugar? Algum tipo de prédio governamental? – perguntou, dando voz às suas suspeitas. – Não pode ser nada civil. É algum tipo de instituição militar?

Alex lhe lançou um olhar hesitante.

– É mais seguro do que isso que mencionou. Estamos cerca de trinta andares abaixo do solo, não muito longe do centro de Boston.

– Um bunker, então – deduziu Jenna, ainda tentando entender tudo aquilo. – Se não faz parte do governo nem do exército, o que é então?

Alex pareceu pensar em sua resposta um instante a mais do que o necessário.

– O complexo em que estamos, e a propriedade cercada no térreo, pertencem à Ordem.

– A Ordem – repetiu Jenna, descobrindo que a resposta de Alex confundia mais do que respondia. Ela nunca estivera num lugar como aquele antes. Era estranho em seu projeto altamente tecnológico, algo muito distante de tudo o que vira no Alasca rural ou em qualquer outro lugar em que estivera nos outros 48 estados continentais.

Para aumentar ainda mais a estranheza, debaixo dos seus chinelos, o mármore branco polido estava incrustado com pedra preta brilhante que formava um desenho de símbolos estranhos ao longo do piso – arcos floreados e formas geométricas complexas que se assemelhavam a tatuagens tribais.

Dermaglifos.

A palavra surgiu do nada em seus pensamentos, uma resposta para uma pergunta que ela nem sabia que tinha que fazer. Era uma palavra desconhecida, tão desconhecida quanto tudo naquele lugar e nas pessoas que, aparentemente, viviam ali. Entretanto, a certeza com que sua mente forneceu o termo foi como se ela o tivesse pensado ou dito milhares de vezes.

Impossível.

– Jenna, você está bem? – Alex fez uma pausa no corredor, alguns poucos passos mais à frente de onde os pés de Jenna haviam parado de se mover. – Está cansada? Podemos descansar um pouco, se você precisar.

– Não. Estou bem. – Sentiu a testa franzir ao erguer o olhar do desenho intricado do piso lustroso. – Estou... confusa.

E isso se devia a mais do que a peculiaridade de onde se encontrava. Tudo parecia diferente nela, mesmo em seu corpo. Uma parte do seu intelecto sabia que, após cinco dias de inconsciência na cama, ela deveria, de alguma forma, estar exausta por ter percorrido aquela distância.

Os músculos não se recobram naturalmente desse tipo de inatividade sem ao menos um pouco de dor ou cansaço. Ela sabia disso por experiência própria, depois do acidente de quatro anos antes que a colocara na UTI em Fairbanks. O mesmo acidente que matara seu marido e sua filha.

Jenna se lembrava muito bem das semanas de reabilitação necessárias para que voltasse a andar com os próprios pés. No entanto, agora, depois da provação por que passara e da qual acabara de acordar, seus membros estavam estáveis e ágeis. Completamente inabalados pela falta prolongada de uso.

Seu corpo parecia estranhamente reavivado. Mais forte, de algum modo, como se não fosse seu.

– Nada disso faz sentido para mim – murmurou, conforme ela e Alex continuavam a prosseguir pelo corredor.

– Ah, Jen... – Alex tocou o ombro da amiga com gentileza. – Entendo a confusão que deve estar sentindo agora. Acredite, eu sei. Como eu queria que nada disso tivesse acontecido com você... Eu queria que existisse um modo de apagar tudo isso pelo que você passou.

Jenna pestanejou, registrando a profundidade do pesar da amiga. Ela tinha perguntas – tantas perguntas –, mas, conforme caminhavam pelo labirinto de corredores adentro, sons de vozes misturadas passaram pela parede de vidro de uma sala logo à frente. Ela ouviu a voz de barítono de Brock, e a mais suave, com as sílabas pronunciadas rapidamente num sotaque britânico, do homem chamado Gideon.

Quando ambas se aproximaram da sala, ela viu que aquele chamado Lucan também estava ali, assim como Kade e dois outros que só faziam intensificar a vibração letal que aqueles homens pareciam vestir com a mesma casualidade que o uniforme preto e os cintos de munição bem estocados.

– Este é o laboratório de tecnologia – Alex lhe explicou. – Todos os equipamentos de computação que você vê são o domínio de Gideon. Kade me contou que ele é um tipo de gênio no que se refere à tecnologia. Provavelmente um gênio no que se refere a qualquer coisa.

Ao pararem no corredor, Kade levantou os olhos e lançou um olhar demorado para Alex através do vidro. A eletricidade crepitou dos olhos prateados, e Jenna teria que estar inconsciente na cama para não sentir o calor partilhado por Alex e seu homem.

Jenna recebeu sua partilha de olhares dos outros reunidos na sala envidraçada. Lucan e Gideon se viraram em sua direção, bem como os dois outros homens grandes que lhe eram desconhecidos. Um deles era loiro com um olhar dourado severo tão frio quanto uma lâmina, o outro, de pele olivácea, com uma cabeleira ondulada cor de chocolate que acentuava os cílios longos emoldurando os olhos cor de topázio e uma infeliz combinação de cicatrizes que maculava a face esquerda, num rosto que, de outro modo, seria impecável. Havia curiosidade nos olhares francos e, talvez, uma pontada de desconfiança.

– Aqueles são Hunter e Rio – disse Alex, indicando o loiro ameaçador e o moreno cheio de cicatrizes. – Eles também fazem parte da Ordem.

Jenna assentiu, sentindo-se em evidência diante daqueles homens, assim como se sentiu em seu primeiro dia de trabalho na Polícia Estadual do Alasca, uma novata feminina da academia de polícia. Mas ali, a sensação não se devia à discriminação de gênero ou às inseguranças masculinas sem sentido. Ela conheceu o suficiente dessa bobagem durante o tempo em que trabalhou na polícia para perceber que aquilo era algo diferente. Algo muito mais profundo.

Ali, ela sentiu a vibração devido puramente à sua presença; ela estava invadindo um lugar sagrado. De uma maneira subentendida, ela tinha a sensação, diante daqueles cinco pares de olhos avaliando-a naquele lugar, entre aquelas pessoas, de ser a mais absoluta invasora.

Mesmo o olhar escuro e profundo de Brock pousou sobre ela com uma medida de avaliação significativa que parecia dizer que ele não sabia se gostava de vê-la ali, apesar do cuidado e da gentileza que lhe dispensara na enfermaria.

Jenna não discutiria isso nem por um segundo. Ficou propensa a concordar com a vibração que emanava pelas paredes de vidro do laboratório de tecnologia. Ali não era o seu lugar. Aquelas não eram as suas pessoas.

Não, algo em cada uma das expressões inescrutáveis e inflexíveis lhe dizia que eles não eram como ela. Eles eram algo mais... algo diferente.

Mas, depois do que ela passou em seu chalé no Alasca – e depois do que viu de si na filmagem na enfermaria –, teria como saber com certeza o que ela era agora?

Essa pergunta gelou seus ossos.

Não queria pensar nisso. Mal podia suportar que algo tão monstruoso e aterrador como a criatura que a mantivera em cativeiro em seu próprio lar tivesse se alimentado dela por todas aquelas horas. A mesma criatura que implantara algo estranho em seu corpo e que virara sua vida – o pouco que restara dela – do avesso.

O que seria dela agora?

Como poderia voltar a ser a mulher que fora um dia?

Jenna quase cedeu ante o peso de mais perguntas às quais não estava preparada para responder.

Para piorar, a sensação de confusão que a seguira em meio aos corredores do complexo ressurgiu, mais forte agora. Tudo pareceu se amplificar ao seu redor, desde o zunido das luzes fluorescentes no teto – luzes fortes demais para seus olhos sensíveis – até as batidas aceleradas do seu coração, que parecia desgovernado, bombeando sangue demais em suas veias. A pele pareceu apertada, envolvendo um corpo estimulado por um tipo de consciência nova. Havia sentido essas mudanças desde que abriu os olhos na enfermaria e, em vez de diminuir, elas estavam piorando.

Algum tipo estranho de poder crescia dentro dela.

Estendendo-se, despertando...

– Estou me sentindo meio estranha – disse a Alex, enquanto as têmporas latejavam acompanhando a pulsação, as palmas das mãos suando ainda fechadas dentro dos bolsos do roupão. – Preciso sair daqui, respirar um pouco de ar.

Alex esticou a mão e afastou uma mecha de cabelo do seu rosto.

– O meu quarto com Kade fica perto daqui. Tenho certeza de que vai se sentir muito melhor depois de um belo banho quente.

– Ok – murmurou Jenna, permitindo-se guiar para longe da parede envidraçada do laboratório de tecnologia e dos olhares enervantes que a acompanharam.

Alguns metros à frente na curva do corredor, um par de portas de elevador se abriu. Três mulheres saíram dele, vestindo parcas salpicadas por flocos de neve e botas molhadas. Foram seguidas por uma menina vestida do mesmo modo que segurava duas guias de cachorros – um terrier pequeno e exuberante e a malamute-do-alasca cinza e branca de Alex, Luna, que, pelo visto, também havia se mudado do Alasca para Boston.

Assim que os olhos azuis aguçados de Luna perceberam Alex e Jenna, ela saltou adiante. A menina que a segurava pela guia emitiu um gritinho de surpresa, mais um riso do que qualquer outra coisa, e o capuz da sua parca caiu para trás, libertando os cabelos loiros que balançaram ao redor do rostinho delicado.

– Olá, Alex! – exclamou ela, gargalhando enquanto Luna a arrastava pelo corredor. – Acabamos de voltar do passeio dela. Está um gelo lá fora!

Esticando a mão para afagar Luna na cabeça e no pescoço, Alex recebeu a menina com um sorriso de boas-vindas.

– Obrigada por levá-la. Sei que ela gosta da sua companhia, Mira.

A menina balançou a cabeça com entusiasmo.

– Eu também gosto da Luna. E Harvard também.

Quer fosse em protesto ou em concordância, o terrier latiu uma vez e dançou freneticamente ao redor das pernas da cadela maior, o rabo sacudindo a cem quilômetros por hora.

– Olá – disse uma das três mulheres. – Sou Gabrielle. É bom vê-la desperta e passeando, Jenna.

– Ah, desculpe – interveio Alex, fazendo as apresentações. – Jenna, Gabrielle é a Companheira de Raça de Lucan.

– Olá. – Jenna tirou a mão do bolso do roupão e a estendeu para cumprimentar a jovem de cabelos castanhos arruivados. Ao lado de Gabrielle, uma linda mulher negra lhe lançou um sorriso acolhedor ao esticar a mão para cumprimentá-la.

– Sou Savannah – disse ela, a voz aveludada fazendo com que Jenna se sentisse em casa de imediato. – Tenho certeza de que já conheceu meu companheiro, Gideon.

Jenna assentiu, sentindo-se despreparada para amenidades, apesar do acolhimento da outra mulher.

– E esta é Tess – acrescentou Alex, indicando a última do trio, uma loira num estágio de gravidez avançada, de olhos verde-claros que pareciam mais sábios que sua idade. – Ela e o companheiro, Dante, estão esperando que seu filho nasça em breve.

– Faltam poucas semanas – disse Tess ao apertar brevemente a mão de Jenna, a outra repousando sobre o abdômen estendido. – Todas nós ficamos muito preocupadas com você desde sua chegada, Jenna. Precisa de alguma coisa? Se pudermos fazer algo por você, espero que nos diga.

– Pode me fazer voltar uma semana no tempo? – perguntou Jenna, só parcialmente brincando. – Eu adoraria apagar os últimos dias da minha vida no Alasca. Alguém daqui pode fazer isso por mim?

Um olhar apreensivo se passou entre as mulheres.

– Sinto que isso não seja possível – disse Gabrielle. Embora o pesar suavizasse sua expressão, a companheira de Lucan falava com a confiança de uma mulher sabedora da sua autoridade, mas não propensa a abusar dela. – Você passou por uma experiência horrível, Jenna, mas o único caminho agora é adiante. Lamento muito.

– Não tanto quanto eu – disse Jenna, com suavidade.

Alex murmurou algumas palavras apressadas de despedida para as mulheres. Depois coçou Luna atrás das orelhas e lhe deu um beijo rápido no focinho antes de voltar a conduzir Jenna pelo corredor. Em algum lugar ao longe, ela captou o raspar de metal contra metal, e os sons abafados de risos em meio a conversas espirituosas – pelo tom, uma boa e velha disputa de pessoas irritando uma à outra de propósito – entre pelo menos uma mulher e não menos do que três homens.

Jenna prosseguiu ao lado de Alex quando viraram num corredor e o barulho das armas e das vozes ficou para trás.

– Quantas pessoas vivem aqui?

Alex inclinou a cabeça, pensando.

– A Ordem tem dez membros que moram aqui no complexo agora. Todos menos Brock, Hunter e Chase têm companheiras, então isso dá um total de sete Companheiras de Raça, mais Mira.

– Dezoito pessoas no total – disse Jenna, contando-as mentalmente.

– Dezenove agora – corrigiu-a Alex, ao lançar um olhar especulativo por sobre o ombro.

– Sou temporária – disse Jenna, caminhando por mais um corredor de mármore, depois parando atrás de Alex diante de uma porta não identificada. – Assim que um dos seus novos amigos agentes secretos descobrir como me livrar desta coisa na minha nuca, vou embora. Não pertenço a este lugar, Alex. A minha vida é no Alasca.

O modo como o sorriso de Alex tremulou em seus lábios fez o pulso de Jenna acelerar.

– Bem, aqui estamos. – Abriu a porta de um apartamento privativo e fez Jenna entrar. Foi na frente, acendendo um abajur, preenchendo o lugar espaçoso com uma luz agradável. Alex pareceu ansiosa de certa forma, andando pelo lugar como um redemoinho e falando rápido demais. – Quero que se sinta em casa, Jen. Relaxe um instante na sala, se quiser. Vou pegar roupas limpas e ligar o chuveiro para você. A menos que prefira descansar um pouco antes? Posso lhe dar uma das camisetas de Kade para dormir e preparo a cama para você.

– Alex.

Ela desapareceu no quarto adjacente, ainda falando com rapidez.

– Está com fome? Quer que eu prepare alguma coisa para você comer?

Jenna se aproximou da porta aberta.

– Me conte o que está acontecendo aqui. Quero dizer, o que está acontecendo de fato.

Por fim, Alex parou.

Virou a cabeça e a fitou pelo que pareceu um minuto inteiro de silêncio.

– Quero saber – disse Jenna. – Maldição, preciso saber. Por favor, Alex, como amiga, conte-me a verdade.

Alex a encarou, exalou fundo ao balançar a cabeça devagar.

– Ah, Jen... Há tantas coisas que você não sabe. Coisas que nem eu sabia até poucas semanas atrás, depois que Kade apareceu no Alasca.

Jenna ficou ali de pé, vendo sua amiga normalmente franca e direta lutar com as palavras.

– Pode me contar, Alex. Do que se trata tudo isto?

– Vampiros, Jen. – A palavra foi sussurrada, o olhar de Alex não vacilou. – Você já sabe que eles são reais agora. Você mesma viu. Mas o que você não sabe é que eles não são como aprendemos a acreditar que fossem, por meio dos filmes e dos livros de terror.

Jenna escarneceu.

– Aquela coisa que me atacou foi bem terrível.

– Eu sei – prosseguiu Alex, implorando agora. – Não tenho como justificar o que o Antigo fez com você. Mas me deixe falar. Existem outros da espécie dele que não são tão diferentes de nós, Jen. Na superfície, claro, não somos parecidos. Eles têm necessidades de sobrevivência diferentes, mas, no fundo, existe um cerne de humanidade dentro deles. Eles têm famílias e amigos. São capazes de amar incrivelmente, assim como são gentis e honrados. Assim como conosco, há bons e ruins entre eles também.

Não muito tempo atrás, apenas uma semana, de fato, Jenna teria explodido numa gargalhada ao ouvir algo tão bizarro quanto o que Alex lhe contava agora.

Mas tudo mudara desde então. Uma semana parecia um século, segundo seu ponto de vista. Jenna não conseguia rir, não conseguia sequer proferir uma palavra de negação enquanto Alex prosseguia, explicando como a Raça, como eles preferiam ser chamados, começou a existir e prosperar através dos milênios nas sombras do mundo humano.

Jenna só conseguiu ouvir enquanto Alex lhe contava como a Ordem fora criada há séculos por Lucan e um punhado de outros, a maioria morta há muito tempo. Os homens acomodados naquele complexo eram guerreiros, inclusive Kade e Brock, até mesmo o gênio Gideon. Eram parte da Raça, sobrenaturais e letais. Eram algo mais, exatamente como os instintos de Jenna tinham lhe dito.

Os membros da Ordem, os do passado e os de agora, juraram proteger tanto a raça humana quanto a raça vampírica, sua missão sendo caçar os vampiros viciados em sangue chamados Renegados.

Jenna prendeu a respiração quando Alex lhe confessou que, quando era criança na Flórida, sua mãe e seu irmão caçula foram atacados por Renegados. Alex e o pai escaparam com vida por um triz.

– A história que contamos a todos sobre a minha mãe e Richie quando nos mudamos para Harmony não passa disso, Jen, uma história. Uma mentira que nós dois quisemos acreditar. Acho que, no fim, papai acabou acreditando e, quando chegou o Alzheimer, ele cuidou de todo o resto. Eu também quase consegui acreditar em nossa mentira, até aquelas mortes começarem no Alasca. Foi então que entendi. Eu não podia mais fugir da verdade. Tinha que enfrentá-la.

Jenna fechou os olhos, deixando que todo o entendimento se acomodasse sobre seus ombros tal qual um manto pesado. Ela não tinha como desprezar o que lhe havia acontecido, assim como não podia desconsiderar a dor pungente que sua amiga vivenciara quando criança. A provação de Alex ficara no passado, ainda bem. Ela conseguira seguir em frente. Por fim, encontrara felicidade, talvez de maneira irônica, com Kade.

Jenna tinha esperanças de poder superar o pesadelo pelo qual passara, mas sentia o toque frio dos grilhões quando pensava naquele pedacinho de matéria desconhecida flutuando logo abaixo do seu crânio.

– E quanto a mim? – ouviu-se murmurar. A voz se elevou com uma pontada de ansiedade que percorria sua corrente sanguínea. – E quanto a essa coisa que está dentro de mim, Alex? O que é isso? Como vou me livrar disso?

– Ainda não temos essas respostas, Jenna. – Alex se aproximou, a preocupação crispando sua testa. – Não sabemos, mas eu prometo, encontraremos um modo de ajudá-la. Kade e o restante da Ordem farão de tudo em seu poder para desvendar isso. Nesse meio-tempo, eles a protegerão e garantirão que seja bem cuidada.

– Não. – Jenna passou os braços ao redor de seu corpo. – Eu só preciso voltar para casa. Quero voltar para Harmony.

– Ah, Jen... – Alex meneou a cabeça lentamente. – A vida que você conhecia no Alasca não existe mais. Tudo mudou em Harmony. Precauções foram tomadas.

Ela não gostou de ouvir aquilo, nem um pouco.

– Do que está falando? Que precauções? O que mudou?

– A Ordem teve que se certificar que o restante da população não ficasse sabendo sobre o Antigo e sobre os estranhos acontecimentos na cidade. – O olhar de Alex permaneceu fixo no dela. – Jenna, eles apagaram as memórias da semana em torno dos assassinatos na floresta e das outras mortes em Harmony. Pelo que as pessoas de lá sabem, você e eu nos mudamos de Harmony há vários meses. Você não pode voltar e fazer um monte de perguntas. Tudo desmoronaria ao nosso redor.

Jenna forçou-se a se controlar enquanto processava tudo o que ouvia. Vampiros e quartéis-generais escondidos. Um mundo alternativo que existia junto à sua realidade há milhares de anos. Sua melhor amiga das últimas duas décadas mal sobrevivendo a um ataque de vampiros quando era criança.

E depois a parte que lhe trazia uma onda renovada de sofrimento: os homicídios múltiplos em Harmony, que, ao que tudo levava a crer, incluíam seu irmão.

– Conte o que aconteceu com Zach.

O rosto de Alex se encheu de lamento.

– Ele mantinha segredos, Jen. Muitos segredos. Talvez seja melhor você não saber de tudo...

– Conte – disse Jenna, odiando o tratamento gentil que recebia, ainda mais da parte de Alex. – Nunca deixamos que nada ficasse entre nós duas, e eu, de minha parte, não quero deixar isso começar agora.

Alex assentiu.

– Zach estava traficando drogas e bebidas alcoólicas para a população nativa. Ele e Skeeter Arnold vinham trabalhando juntos já há algum tempo. Eu só descobri quando Zach... – Expirou lentamente. – Quando o confrontei sobre o que eu sabia, ele ficou violento, Jen. Apontou uma arma para mim.

Jenna fechou os olhos, nauseada em pensar que seu irmão mais velho, o policial condecorado a quem ela tentara imitar praticamente toda a sua vida, era, na verdade, corrupto. Certo, eles nunca foram próximos de verdade, irmãos ou não, e vinham se distanciando mais nos últimos anos.

Deus, quantas vezes pressionara Zach para que investigasse as atividades questionáveis de Skeeter Arnold em Harmony? Agora a relutância de Zach fazia todo o sentido. Ele pouco se importava com o que acontecia na cidade. Estava mais preocupado em se proteger. Até onde ele chegaria para proteger seus segredos escusos?

– Ele te machucou, Alex?

– Não – respondeu ela. – Mas teria, Jen. Fugi para a sua casa na minha motoneve. Ele me seguiu. Quando chegamos lá, ele atirou, para me assustar, a princípio. Tudo aconteceu tão rápido depois disso. Logo depois, o Antigo saiu voando do seu chalé e o abateu. Depois do ataque inicial, tudo acabou bem rápido.

Jenna ficou com o olhar perdido por um bom tempo, sem saber o que dizer.

– Jesus Cristo, Alex. Tudo o que está me contando... é verdade, mesmo? Tudo isso?

– Sim. Você disse que queria saber. Eu não conseguiria esconder de você, acho que é melhor mesmo que compreenda tudo.

Jenna recuou um passo, cambaleando um pouco. Subitamente sentiu-se tomada pela confusão. Repentinamente afogada em emoções que encurtaram seu fôlego e comprimiram seu peito.

– Eu tenho que... ficar sozinha...

Alex assentiu.

– Sei como isso deve estar sendo difícil para você. Acredite, eu sei.

Ela foi devagar para o banheiro adjacente, seguida de perto por Alex, que acreditava que Jenna poderia desmaiar. Mas suas pernas não fraquejaram. Ela estava atordoada e confusa pelo que acabara de ouvir, mas seu corpo e sua mente não estavam nem um pouco frágeis.

A adrenalina a perpassava, inundando seus sentidos e incitando seus instintos de lutadora em alerta máximo. Forçou a expressão a permanecer tranquila ao fitar Alex, enquanto, por dentro, não se sentia nada calma.

– Acho que... que vou tomar aquele banho agora. Quero... quero ficar sozinha por um tempo. Preciso pensar...

– Tudo bem – concordou Alex, conduzindo-a para o enorme banheiro. – Leve o tempo de que precisar. Vou buscar roupas e sapatos, depois ficarei ali do lado de fora se precisar de mim.

Jenna assentiu, seus olhos acompanhando Alex até a porta, esperando que ela se fechasse. Só depois permitiu que as lágrimas começassem a cair. Enxugou-as, mas elas molharam seu rosto, quentes como ácido, enquanto o resto do seu corpo ficava gelado até a medula.

Sentia-se perdida e amedrontada, tão desesperada quanto um animal preso numa armadilha. Tinha que sair daquele lugar, mesmo que precisasse arrancar uma perna para fugir. Mesmo que, para isso, tivesse que usar uma amiga.

Abriu a torneira da água quente dentro do box imenso para duas pessoas. Quando o vapor começou a tomar conta do cômodo, ela pensou no elevador que trouxera aquelas mulheres e a criança de lá de fora.

Pensou na liberdade e no que seria necessário para experimentá-la.

– Mais duas horas até o sol se pôr – comentou Brock, relanceando para o relógio na parede do laboratório de tecnologia como se pudesse ordenar que a noite chegasse logo. Afastou-se da mesa de reuniões na qual estivera apoiado, as pernas inquietas, o corpo necessitando se mexer. – Os dias podem ser mais curtos nesta época do ano na Nova Inglaterra, mas, caramba, às vezes eles parecem se arrastar.

Sentiu olhos sobre si quando começou a vagar pela sala. Estavam ali apenas ele, Kade e Gideon; Lucan tinha ido procurar Gabrielle, e Hunter e Rio tinham saído para se juntarem a Renata, Nikolai e Tegan na sala de armas para se exercitarem antes de começarem a patrulha pelas ruas da cidade à noite. Deveria tê-los acompanhado. Em vez disso, ficara no laboratório, curioso para ver os resultados do último exame de sangue de Jenna feito por Gideon.

Parou diante do monitor do computador e viu uma série de números rolarem na tela.

– Quanto tempo mais vai demorar, Gid?

Por alguns segundos, o barulho nas teclas foi a sua única resposta.

– Só estou rodando um último teste de DNA. Em seguida, teremos alguns resultados.

Brock grunhiu. Impaciente, cruzou os braços diante do peito e continuou a fazer uma trilha no chão.

– Está se sentindo bem?

Quando ele virou a cabeça, deparou-se com o olhar avaliador de Kade. Retribuiu esse olhar com uma carranca.

– Sim, por quê?

Kade deu de ombros.

– Não sei, cara. Não estou acostumado a te ver tão inquieto.

– Inquieto? – Brock repetiu a palavra como se ela tivesse sido um insulto. – Droga. Não sei o que quer dizer com isso. Não estou inquieto.

– Você está inquieto – Gideon confirmou enquanto continuava teclando diante do computador. – Na verdade, esteve visivelmente distraído nas últimas horas. Desde que a amiga humana de Alex acordou hoje.

Brock sentiu a carranca se intensificar, ao mesmo tempo em que seus passos se tornavam mais agitados. Inferno, talvez estivesse mesmo irritado, mas só porque estava ansioso para que a escuridão caísse, e ele pudesse começar a patrulha e fazer aquilo para que fora treinado. Só isso. Não tinha nada a ver com nada, nem com ninguém.

Se estava distraído por Jenna Darrow, era porque a presença dela no complexo era uma infração às regras da Ordem. Nunca permitiram a presença de humanos no quartel-general. Todos os guerreiros estavam bem cientes desse fato, muito evidente quando ela e Alex passaram diante do laboratório de tecnologia pouco antes. E se essa mulher humana carregava algo alienígena dentro de si – algo indeterminado, que poderia ou não ser pernicioso à Ordem e à sua missão contra Dragos –, sua presença se tornava ainda mais perturbadora.

Jenna fizera todos ficarem alertas, de certa forma. Com Brock, isso não era diferente. Pelo menos era isso o que dizia a si próprio ao parar novamente atrás da mesa de trabalho de Gideon, exalando uma imprecação baixa.

– Cacete, vou sair daqui. Se alguma coisa interessante aparecer nesse exame antes do anoitecer, estarei na sala de armas.

Foi até a porta do laboratório quando o painel de vidro deslizou se abrindo diante dele. Assim que passou pela soleira, Alex veio correndo da direção do seu quarto.

– Ela sumiu – exclamou ao entrar na sala, visivelmente aborrecida. – Jenna... ela desapareceu!

Brock não sabia por que essa notícia o atingira no abdômen tal qual um golpe físico.

– Onde ela está?

– Não sei – respondeu Alex, com os olhos tomados de infelicidade.

Kade se postou ao lado da companheira em menos de meio segundo.

– O que aconteceu?

Alex balançou a cabeça.

– Ela tomou banho e se vestiu. Quando saiu do banheiro, disse que estava cansada. Perguntou se poderia se deitar um pouco no sofá. Quando me virei para pegar um travesseiro e uma coberta, ela simplesmente... desapareceu. A porta do nosso apartamento estava aberta, mas não havia sinal de Jenna no corredor. Fiquei procurando por ela nos últimos minutos, mas não a encontrei em parte alguma. Estou preocupada com ela. Desculpe, Kade. Eu deveria ter tomado mais cuidado. Eu deveria...

– Está tudo bem – disse ele, afagando-a no braço. – Você não fez nada errado.

– Talvez sim. Contei a ela sobre a Raça e sobre a Ordem. Contei tudo sobre Zach e sobre como ficou a situação em Harmony. Ela tinha tantas perguntas que pensei que tivesse o direito de saber.

Brock refreou a imprecação que já estava na ponta de sua língua. Sabia muito bem que teria tido dificuldades para mentir para Jenna também.

Kade assentiu, sério ao depositar um beijo na testa de Alex.

– Está tudo bem. Você fez a coisa certa. É melhor que ela saiba de tudo logo do início.

– Céus – murmurou Gideon, da sua posição diante dos computadores do laboratório. Um dos painéis monitorava os detectores de movimento da propriedade, as luzes piscando como uma árvore de Natal. – Ela está no piso da mansão. Ou melhor, estava na mansão. Temos uma quebra de segurança na porta exterior.

– Pensei que todos os pontos de entrada do andar superior tivessem sistema de travamento – disse Brock, sem querer que sua afirmação saísse acusatória como pareceu.

– Dê uma olhada – disse Gideon, virando o monitor enquanto clicava no fone e apertava um botão de discagem direta. – Lucan, temos um problema.

Enquanto o líder da Ordem recebia um relatório resumido, Brock ia para o centro de comando computadorizado, seguido por Kade e Alex. Na filmagem da câmera de segurança da propriedade acima do complexo, uma das barras de aço reforçadas estava retorcida como chiclete. A porta estava escancarada, o brilho dos raios solares no solo coberto de neve quase ofuscante, mesmo na tela.

– Inferno – murmurou Brock.

Ao seu lado, Alex arfou em descrença. Kade permaneceu calado, o olhar tão soturno quanto descrente quando seu olhar passou para Brock. Ao telefone, Gideon agora dava ordens urgentes para que uma das fêmeas mais formidáveis da Ordem na residência, Renata, subisse às pressas para trazer Jenna de volta.

– Tenho a localização dela na tela agora, Renata. Ela está na parte leste da propriedade, indo a sudeste a pé. Se sair pela porta de serviço ao sul, deve conseguir alcançá-la antes que ela chegue à cerca perimetral.

– A cerca perimetral – murmurou Brock. – Jesus Cristo, aquela coisa está carregada com mais de mil volts de eletricidade.

Gideon continuou falando, informando Renata do progresso de Jenna.

– Corte a força – disse Brock. – Você tem que cortar a força da cerca.

Gideon lhe voltou um olhar duvidoso.

– E deixar que ela saia da propriedade? Não posso, cara.

Brock sabia que o guerreiro tinha razão. Sabia que a manobra mais inteligente, o melhor a fazer para a Ordem, era garantir que a mulher humana ficasse dentro da propriedade. Mas pensar que Jenna pudesse tocar na cerca com a dose potencialmente letal de eletricidade era demais. Era inaceitável.

Relanceou para a câmera de segurança e viu Jenna, vestida com um par de jeans e um suéter branco, o cabelo castanho solto, voando atrás de si enquanto ela corria pelo jardim coberto de neve num ritmo alucinado na direção dos limites da propriedade. Direto para a cerca de três metros que circundava a propriedade por todos os lados.

– Gideon – grunhiu, enquanto Jenna ficava cada vez menor no monitor. – Corte a maldita eletricidade.

Brock não esperou até que o outro guerreiro obedecesse. Avançou e bateu a mão no painel de controle. As luzes piscaram e somente um bipe persistente soou avisando que a eletricidade havia sido cortada na cerca.

Um longo silêncio encheu a sala.

– Consigo vê-la – a voz de Renata soou nos alto-falantes do laboratório. – Estou logo atrás dela.

Viram na tela enquanto a companheira de Nikolai acelerava a pé pela trilha formada por Jenna na neve. Segundos se passaram enquanto esperavam por mais notícias.

Por fim, Renata falou, mas a imprecação sibilada no seu microfone não era o que os que aguardavam na sala esperavam ouvir:

– Maldição, não...

As veias de Brock gelaram de medo.

– O que aconteceu?

– Fale comigo – disse Gideon. – O que está acontecendo, Renata?

– Tarde demais – respondeu ela, a voz inflexível. – Cheguei tarde demais. Ela fugiu. Escapou.

Gideon se inclinou para a frente, virando a cabeça na direção de Brock.

– Ela escalou a maldita cerca, não foi?

– Escalou? – A risada de Renata foi mais uma expiração forçada. – Não, ela não escalou. Ela... merda... Acreditem ou não, acabei de vê-la pulando a cerca.


Capítulo 4

A estrada zunia debaixo dos jeans e dos sapatos de Jenna, agora sujos de neve, o cheiro de carne e suor masculino flutuando ao seu redor em todas as direções dentro do compartimento de carga escuro do furgão de entregas. Ela estava sentada no chão em meio a engradados empilhados e caixas de papelão, saltando a cada solavanco. Seu estômago revirava, mas ela não tinha como saber se pela adrenalina pulsando nela ou pela mistura sobrepujante dos cheiros de carne processada e suor que assaltava suas narinas.

A forma como escapara do complexo não passava de um borrão. A mente ainda se ocupava com as revelações perturbadoras das últimas horas, e seus sentidos estiveram acelerados desde que tomara a decisão de fugir. Mesmo agora, cenas, barulhos e movimento, todo tipo de percepção sensorial, pareciam voar ao seu redor num borrão caótico.

Na parte da frente do furgão, o motorista e o passageiro conversavam com animação numa língua estrangeira, carregada como uma eslava poderia ser. Eles entendiam inglês o suficiente para concordar em levá-la para a cidade quando ela lhes acenou na rua logo além da propriedade cercada, e, naquela hora, aquilo lhe bastara. Mas, agora que haviam se distanciado alguns quilômetros, ela não tinha como deixar de notar que pararam de lhe sorrir e de tentar se comunicar num inglês falho.

Agora o motorista lhe lançava olhares furtivos pelo espelho retrovisor, e ela não estava gostando das vozes baixas e das risadas partilhadas dos dois homens enquanto ela sacolejava nos fundos do furgão escuro.

– Quanto tempo até o centro da cidade? – perguntou, segurando-se a um engradado de salames enquanto o furgão virava à esquerda numa luz amarela piscante. Seu estômago se revolveu com o movimento, os ouvidos tiniram, a cabeça latejou. Estreitou o olhar através do para-brisa conforme o veículo avançava em direção ao brilho alaranjado da cidade ao longe. – A estação de ônibus? Foi para lá que concordaram em me levar. Está muito longe?

Por um segundo, ficou imaginando se eles a ouviram por sobre o barulho do motor quando o motorista acelerou. O som lhe parecia ensurdecedor. Mas, em seguida, o passageiro virou para trás e disse algo em seu idioma.

Algo que pareceu divertir o amigo pé de chumbo no volante.

Um nó de medo se formou no estômago de Jenna.

– Sabe de uma coisa? Mudei de ideia. Esqueça a estação. Pode me levar à delegacia. DE-LE-GA-CI-A – disse, enfatizando as sílabas para que não a compreendessem mal. Indicou a si mesma quando o motorista lhe lançou um olhar soturno através do espelho retrovisor. – Sou da polícia. Sou policial.

Ela falou naquele tom que não tolerava asneiras que lhe era tão característico, mesmo depois de anos sem vestir o uniforme. Mas se o par de idiotas no banco da frente entenderam seu tom ou o que lhes disse, não pareceram inclinados a acreditar nela.

– Polícia? – O motorista casquinhou ao olhar para o companheiro. – Nassi, nuk duken si ajo e policisë për ju?

– Não – aquele que, pelo visto, se chamava Nassi respondeu, balançando a cabeça, revelando os dentes tortos por trás dos lábios finos. O olhar carregado por baixo de sobrancelhas grossas pareceu viajar pelo corpo de Jenna. – Për mua, ajo duket si një copë e shijshme e gomarit.

Ela me parece um belo pedaço de traseiro.

Jenna achava que o olhar malicioso que Nassi lhe lançara devia ter bastado para que ela entendesse o que ele dissera, mas as palavras lhe pareceram muito claras. Inacreditavelmente claras. Encarou os dois homens quando começaram a conversar em seu idioma materno. Observou os lábios, estudou os sons que deveriam lhe ser absolutamente estrangeiros, palavras que ela não tinha como entender, mas, de alguma forma, entendia.

– Não sei quanto a você, Gresa, meu amigo, mas eu até que gostaria de um bom rabo americano – Nassi acrescentou, tão confiante que sua fala estrangeira não seria compreensível que teve a audácia de olhar fixamente para Jenna enquanto falava. – Leve essa vaca de volta ao escritório e vamos nos divertir um pouco com ela.

– Parece uma boa ideia – Gresa gargalhou e afundou o pé no acelerador, lançando o furgão em alta velocidade debaixo do viaduto de uma autoestrada em direção ao trânsito carregado.

Ai, meu Deus.

O medo de Jenna de alguns minutos antes gelou em sua barriga naquele instante.

A aceleração repentina a fez cair. Ela se esforçou para se segurar nos engradados ao seu redor, sabendo que suas chances de escapar do furgão em movimento eram nulas. Se a queda do veículo não a matasse, os carros e caminhões que passavam pelas duas pistas laterais ao lado deles certamente o fariam.

Para piorar tudo, sua cabeça começava a girar com a passagem das luzes e com o barulho do lado externo do furgão. A fumaça dos carros aliada ao fedor de dentro do veículo formavam uma mistura nauseante ao seu sistema olfativo, que fez com que seu estômago se revirasse, ameaçando revolver-se nela mesma. Todo o ambiente que a cercava parecia amplificado, como se, de alguma forma, o mundo tivesse se tornado mais vívido, mais detalhado.

Estaria enlouquecendo?

Depois de tudo pelo que passara recentemente, depois de tudo o que vira e ouvira, ela não se surpreenderia se estivesse perdendo a cabeça.

Ao se recostar infeliz ao encontro dos engradados e caixas, atenta aos homens discutindo suas ideias em relação a ela em detalhes ávidos e violentos, ela tinha a sensação de que sua sanidade não era a única coisa em risco no momento. Nassi e seu amigo Gresa tinham planos bem horrendos para ela assim que voltassem ao escritório. Planos que incluíam facas, correntes e paredes à prova de som para que ninguém ouvisse seus gritos, se é que Jenna podia se fiar na súbita fluência no idioma deles.

Discutiam qual deles seria o primeiro, quando desviaram o furgão da estrada principal, entrando numa parte isolada da cidade. A faixa de rodagem se estreitara, os postes de luz se tornaram mais esparsos quanto mais avançavam no que parecia uma zona industrial. Armazéns e prédios compridos de tijolos vermelhos tomavam conta das ruas e dos becos.

O furgão de entregas sacolejou sobre duas tampas de esgoto e no asfalto irregular, os pneus esmagando a neve suja que se acumulara na rua.

– Lar, doce lar – disse Nassi, em inglês, desta vez, sorrindo para ela do banco do passageiro. – Fim da carona. Hora de pagar pelo favor.

Os dois homens gargalharam quando o motorista colocou o câmbio em ponto morto e desligou o motor. Nassi saiu do seu banco e começou a se dirigir para os fundos do furgão pelo lado de dentro. Jenna sabia que teria apenas poucos segundos para reagir, segundos preciosos para desarmá-lo, ou aos dois, e fugir dali.

Colocou-se em posição, preparando-se para o momento que sabia estar se aproximando.

Nassi sorriu ao avançar dentro do veículo.

– O que tem para dar, hein? Deixa eu ver.

– Não – disse Jenna, balançando a cabeça, fingindo ser uma mulher indefesa. – Não, por favor.

Ele deu uma risada maliciosa.

– Gosto de mulher que implora. Uma mulher que sabe o seu lugar.

– Por favor, não – repetiu Jenna quando ele se aproximou. O fedor dele quase a fez vomitar, mas ela manteve o olhar fixo. Quando ele ficou perto o bastante, ela esticou a mão, mostrando a palma, como se pudesse afastá-lo fisicamente assim.

Ela sabia que ele a seguraria pelo braço.

Contava com isso, e mal conteve a reação de triunfo que trespassou suas veias quando ele a segurou pelo pulso e a puxou do chão do furgão.

Ela colocou seu peso no movimento, usando a força bruta dele para se lançar sobre ele. Usando a parte dura da palma livre, atingiu-o no nariz, esmagando a cartilagem para dentro do septo e quebrando o osso num estalido.

– Aaaiii! – Nassi gemeu em agonia. – Putanë! Vadia, vai pagar por isso! O sangue jorrou pelo rosto e nela quando ele avançou em sua direção. Jenna se esquivou para a esquerda, desviando. Na frente do furgão, ouviu o homem se movimentar, saindo do seu assento e remexendo no console entre os bancos.

Não tinha tempo para se preocupar com ele, pois Nassi estava furioso, e, para sair do furgão, ela tinha que passar por ele primeiro.

Jenna juntou as mãos e desceu os cotovelos sobre a coluna do agressor. Ele urrou de dor, tossindo ao tentar, mais uma vez sem sucesso, segurá-la. Ela o enganou novamente, afastando-se do seu alcance como se ele estivesse de pé, parado.

– Puthje topa tuaj lamtumirë, ju copille shëmtuar! – sussurrou para ele, uma ameaça que cumpriu quando ergueu o joelho entre as pernas dele e o atingiu com força na virilha.

Nassi despencou como uma tonelada de tijolos.

Jenna gritou, pronta para a batalha com o amigo dele, Gresa.

Ela não percebeu a arma na mão do homem até um tiro brilhante disparar como um raio. O barulho da bala sendo lançada na sua direção foi ensurdecedor.

Ela pestanejou, entorpecida e estranhamente distanciada, quando o calor do impacto a atingiu.

– Alguma novidade?

Lucan entrou apressado no laboratório de tecnologia onde Brock, Kade, Alex, Renata e Nikolai cercavam a estação de trabalho de Gideon.

Brock tinha as mãos apoiadas na mesa, olhando para a tela por cima do ombro de Gideon, e balançou a cabeça com seriedade para Lucan.

– Nada de concreto. Ainda estamos procurando os registros do Departamento de Trânsito para ver se encontramos placas possíveis.

Fazia mais de uma hora desde a fuga de Jenna. A melhor pista de onde ela poderia ter escapado era alguns segundos de filmagem da câmera de segurança montada no perímetro sul da cerca ao redor da propriedade.

Mais ou menos na mesma hora em que Renata viu Jenna saltar pela cerca e desaparecer da propriedade, um furgão de entregas sem identificação passou pela rua adjacente à propriedade. Gideon só havia conseguido ler metade da placa do furgão comercial de Massachusetts antes que ele virasse a esquina e saísse de vista. Nesse meio-tempo, ele entrara no sistema do Departamento de Trânsito, inserindo combinações de placas, tentando estreitar a busca pelo proprietário do furgão e onde ele poderia ser encontrado.

Brock tinha certeza de que, se localizassem o furgão, Jenna não estaria muito longe.

– Quer tenhamos pistas concretas ou não, assim que o sol se pôr, vamos mandar patrulhas vasculhando a cidade – disse Lucan. – Não podemos nos dar ao luxo de perder essa mulher antes de entendermos o que ela pode significar para as nossas operações.

– E eu não posso permitir que nada aconteça à minha melhor amiga – disse Alex, ponderando sobre a questão emocional de toda essa situação com Jenna. – Ela está perturbada e magoada. E se algo de ruim acontecer com ela? Ela é uma pessoa boa. Não merece nada disso.

– Nós vamos encontrá-la – disse Brock com firmeza. – Prometo.

Kade se deparou com seu olhar e assentiu solene. Depois das circunstâncias surpreendentes da fuga de Jenna do complexo, encontrar aquela humana com um pouco de matéria alienígena em seu corpo era uma missão da qual nenhum dos guerreiros se esquivaria. Jenna Darrow tinha que ser recuperada, não importando o preço.

– Espere, espere – murmurou Gideon. – Isso pode ser interessante... Encontrei umas pistas com a última combinação. Uma delas está registrada numa garagem em Quincy.

– E a outra? – perguntou Brock, inclinando-se para olhar mais de perto.

– Fábrica de processamento de carne em Southie – disse Gideon. – Um lugar chamado Butcher’s Best. Diz aqui que é especializado em cortes especiais e serviço de fornecimento de alimentos para festas.

– Isso! – disse Renata, o cabelo escuro na altura do queixo balançando quando ela virou a cabeça para olhar para os demais no laboratório. – O executivo que mora alguns quilômetros acima nessa estrada está dando uma festa de Natal neste fim de semana. Faz sentido que um furgão de entrega desse tipo tenha vindo para cá.

– Faz mesmo – concordou Lucan. – Gideon, consiga o endereço dessa empresa.

– Agora mesmo. – Ele apertou algumas teclas e tanto o endereço como uma imagem de satélite do mapa apareceram na tela. – Aqui está, bem na periferia de Southie.

Os olhos de Brock se fixaram no endereço, queimando como fachos de laser. Ele se virou e saiu do laboratório de tecnologia, a determinação marcada em cada passo de sua bota que atingia o piso de mármore.

Atrás dele, Kade saiu apressado do laboratório.

– Que é isso, cara? O sol vai demorar um pouco a se pôr. Aonde vai?

Brock continuou andando.

– Vou trazê-la de volta.


Capítulo 5

O sol apenas começava a descer na linha do horizonte dos arranha-céus de Boston quando Brock virou um dos SUVs da Ordem numa rua lateral de Southie. Debaixo do casaco de couro preto, ele vestia uniforme preto com proteção contra os raios ultravioleta, luvas e óculos escuros esportivos. Com pouco mais que uma década a mais do que um século, e diversas linhagens separando-o da primeira geração da Raça, como Lucan, a pele de Brock conseguia suportar a exposição aos raios solares por um período breve, mas não havia nenhum membro vivo da Raça que não tratasse a ameaça da luz solar com uma dose salutar de respeito.

Ele não tinha intenção alguma de fritar o traseiro, mas pensar em esperar sentado no complexo até que o pôr do sol começasse enquanto uma mulher inocente vagava pela cidade, sozinha, acabrunhada, fora demais para ele suportar. Sua decisão pareceu ainda mais sensata quando ele viu o furgão branco estacionado no endereço que Gideon localizara. Mesmo antes que Brock tivesse saído do Rover, o cheiro de sangue humano fresco atingiu suas narinas.

– Droga! – murmurou baixo, avançando em meio ao terreno gelado e à rua suja em direção ao veículo.

Espiou pela janela do passageiro e se deparou com o cartucho de uma bala disparada entre os bancos. O cheiro metálico da hemoglobina era mais forte ali, quase esmagador.

Sendo da Raça, ele não conseguiu controlar sua reação corporal à presença de sangue fresco. A saliva se acumulou na boca, os dentes caninos estenderam-se a partir das gengivas até as presas pressionarem a língua.

Instintivamente, ele inspirou o cheiro bem fundo, tentando determinar se o sangue era de Jenna. Mas ela não era uma Companheira de Raça; o cheiro de seu sangue não carregara a marca singular como o de Alex e das outras fêmeas do complexo.

Um macho da Raça conseguia rastrear o sangue de uma Companheira de Raça a quilômetros de distância, mesmo que ele fosse tênue. Jenna poderia estar sangrando debaixo do nariz de Brock, fora de sua vista, e não havia modo de ele saber se era ela ou outro Homo sapiens quem sangrava.

– Maldição – grunhiu, virando a cabeça na direção da fábrica ali ao lado. O fato de alguém ter recentemente sangrado dentro do furgão de entregas era toda prova de que ele precisava para saber que Jenna estava, muito provavelmente, correndo perigo.

A raiva latente dele borbulhou em antecipação pelo que encontraria no interior do prédio de tijolos vermelhos. Da rua, ao se aproximar, ele conseguia ouvir vozes masculinas e o zunido do compressor do sistema de ventilação girando no teto.

Brock passou sorrateiro por uma porta lateral e espiou por uma janelinha reforçada por arame. Nada além de engradados e caixas de embalagens. Segurou a maçaneta e a virou no punho, arrancando-a da porta. Jogou-a sobre um monte de neve suja ao lado da escada e entrou no prédio.

Os coturnos não fizeram barulho no piso de concreto conforme ele avançava no depósito em direção ao centro da pequena fábrica. O barulho da conversa se elevou conforme ele progredia. Havia, pelo menos, quatro vozes diferentes, todas masculinas, todas marcadas por sílabas fortes características de algum idioma do Leste Europeu.

Algo os havia agitado. Um deles gritava nervoso, mais tossindo do que respirando de fato.

Brock seguiu o ralo longo coberto por uma grade que seguia até o meio do espaço. Suas narinas se encheram com os odores químicos, os produtos de limpeza e o cheiro nauseante de sangue envelhecido de animais e de especiarias.

A porta aberta diante dele tinha uma cortina feita com várias fitas verticais plásticas largas. Quando estava a um metro dela, um homem falando albanês saiu da sala ao seu lado. Usava um avental sujo de sangue, a cabeça calva coberta por uma touca plástica, e tinha um facão de açougueiro na mão.

– Ei! – exclamou ele ao virar a cabeça e notar a presença de Brock. – O que está fazendo aqui, idiota? Propriedade particular! Saia daqui!

Brock deu um passo ameaçador na sua direção.

– Onde está a mulher?

– Hum? – O cara pareceu surpreso por um segundo, antes de se recompor e balançar o facão na frente do rosto de Brock. – Nenhuma mulher aqui! Fora!

Brock se moveu com rapidez, derrubando a faca da mão do homem e esmagando a garganta dele em seu punho antes que o filho da mãe conseguisse emitir um grito. Desviando do corpo silenciado, Brock afastou a cortina plástica e entrou na área de processamento da construção.

A presença de sangue humano derramado era mais forte ali, ainda fresco. Brock viu um homem sozinho sentado em um banquinho dentro de um escritório envidraçado, com um pano amassado e ensanguentado debaixo do nariz. Naquela parte do prédio, lombos de boi e de porco estavam pendurados em ganchos grandes. O cômodo estava gelado, carregado pelo fedor do sangue e da morte.

As botas de Brock diminuíram a distância conforme ele avançava para o escritório e depois abriu a porta.

– Onde ela está?

– Q-que cacete? – O homem desceu apressado do banquinho. O sotaque carregado saiu atrapalhado, anasalado por causa do nariz quebrado. – O que foi? Não sei do que está falando.

– Até parece que não. – Brock esticou a mão e o segurou pela camisa manchada de sangue. Ergueu-o do chão, fazendo com que os pés ficassem pendurados a centímetros do concreto. – Você apanhou uma mulher na periferia da cidade. Diga o que fez com ela.

– Quem é você? – grasnou o homem, o branco dos olhos se alargando enquanto ele se debatia, sem conseguir se soltar. – Por favor, me solte.

– Diga onde ela está e talvez eu não o mate.

– Por favor! – choramingou o homem. – Por favor, não me machuque!

Brock sorriu sombrio, depois sua audição aguçada captou o som de passos movendo-se sorrateiros atrás das mesas e dos equipamentos de açougueiro na sala adjacente. Levantou o olhar... bem a tempo de ver o cano de uma pistola mirando em sua direção.

O tiro ecoou, atravessando a janela do escritório e atingindo-o no ombro.

Brock rugiu, não por sentir dor, mas sim fúria.

Virou o olhar na direção do bastardo que atirara nele, prendendo o humano com a luz âmbar ardente dos seus olhos, que haviam passado da costumeira cor castanha para a cor ardente de sua outra natureza mais letal. Brock curvou os lábios, revelando dentes e presas, e gritou em sua fúria.

Só restou o grito agudo de terror do homem com a pistola quando ele se virou e fugiu correndo.

– Ah, Cristo! – lamuriou-se o homem que ainda estava suspenso pela garganta por Brock. – Não fiz nada com ela... Juro! A vaca quebrou meu nariz, mas não toquei nela. G-Gresa... – balbuciou, levantando a mão na direção que seu camarada havia fugido. – Ele atirou nela, eu não.

Ante a notícia indesejável, os dedos de Brock se apertaram ao redor da frágil traqueia humana.

– Ela foi alvejada? Diga onde ela está. Agora!

– N-na geladeira – arfou. – Ai, merda. Por favor, não me mate!

Brock apertou com mais força ainda, punindo-o, depois jogou o filho da mãe balbuciante contra a parede oposta. O homem gritou de dor, depois despencou num monte no chão.

– É melhor rezar para que ela esteja bem – disse Brock –, ou vai desejar que eu o tivesse matado agora.

Jenna estava enroscada no chão da câmara frigorífera, os dentes tiritando, o corpo tremendo de frio.

Do lado de fora da porta de aço trancada, barulhos altos surgiram. Homens gritando, algo se quebrando... O tiro repentino de uma pistola e o barulho distinguível de vidro se quebrando. Então, um rugido tão intenso e letal que fez a cabeça dela se erguer bem quando estava mais difícil sustentá-la, mantendo as pálpebras erguidas.

Ouviu atenta, escutando apenas o silêncio se estendendo.

Alguém se aproximou da cela gelada que a prendia. Ela não precisou ouvir as passadas se aproximando para saber que havia alguém ali. Por mais frio que estivesse ali dentro, a rajada de ar que vinha do outro lado da porta trancada era ártica.

A trinca emitiu um som de protesto um segundo antes que a porta de aço inteira fosse arrancada das dobradiças num rangido metálico ensurdecedor. Vapor saiu pela abertura, emoldurando um homem enorme, imenso como uma montanha.

Não, não era um homem, ela percebeu atônita.

Um vampiro.

Brock.

O rosto magro estava tão rijo que ela quase não o reconheceu. Presas imensas brilhavam brancas por trás da boca grande, que estava escancarada num sinal de fúria mal contida. A respiração entrava e saía pelos lábios e, por trás dos óculos bem escuros, fachos gêmeos cintilaram com um calor que Jenna sentiu tão certo quanto um toque quando ele perscrutou o ambiente enevoado e a encontrou amontoada e trêmula num canto.

Jenna não quis sentir a onda de alívio que a assolou quando ele entrou na câmara e se ajoelhou ao seu lado. Não queria confiar na sensação que lhe dizia que ele era um amigo, alguém ali para ajudá-la. Alguém de quem ela precisava naquele momento. Talvez a única pessoa que pudesse ajudá-la.

Começou a lhe dizer que estava bem, mas sua voz estava entrecortada e fraca. O olhar âmbar a atravessou em meio ao véu das lentes escuras. Ele olhou para baixo e sibilou quando percebeu a coxa ferida e o sangue que ensopava a perna da calça jeans, formando uma poça abaixo dela.

– Não fale – disse ele, despindo as luvas de couro e pressionando os dedos ao redor de seu pescoço. O toque foi leve e reconfortante, parecendo aquecê-la de dentro para fora. O frio saiu de dentro dela, levando consigo a dor do ferimento a bala. – Você vai ficar bem agora, Jenna. Vou tirá-la daqui.

Ele tirou o casaco de couro e o passou ao redor dos seus ombros. Jenna suspirou quando o calor do corpo dele e seu cheiro – couro, perfume e uma essência letalmente máscula – a envolveram. Quando ele voltou a se endireitar, ela notou que uma bala o atingira no ombro musculoso.

– Você também está sangrando – murmurou ela, mais alarmada pelo ferimento dele do que ao pensar que seu salvador era um vampiro.

Ele dispensou a preocupação dela com um dar de ombros.

– Não se preocupe comigo. Vou sobreviver. É preciso mais do que isso para derrubar alguém da minha espécie. Você, entretanto...

O modo como ele disse aquilo, o olhar sério que perpassou sua expressão enquanto os olhos obscurecidos avaliaram a coxa ensanguentada, pareceu-lhe quase acusatório.

– Venha – disse ele, esticando-se para tomá-la nos braços. – Pode deixar comigo agora.

Ele a carregou para fora da câmara frigorífera como se ela não passasse de um punhado de penas em seus braços. Com mais de um metro e setenta de altura, altiva desde que deu seus primeiros passos, Jenna nunca foi do tipo que se carregava como alguma princesa dos contos de fada. Como ex-policial, ela jamais esperou isso por parte de um homem, nem tampouco desejou.

Sempre fora a protetora, a primeira a enfrentar o perigo. Odiava o fato de estar vulnerável agora, mas os braços firmes de Brock eram tão agradáveis em torno dela que não conseguiu juntar a vontade de se sentir ofendida. Segurou-se firme enquanto ele atravessava a fábrica, ao longo dos ganchos de carnes e mais do que uma pessoa sem vida no chão.

Jenna virou a cabeça e escondeu o rosto no peito musculoso de Brock ao passarem pela última sala antes de saírem. Anoitecia na rua, o beco coberto de neve e os prédios adjacentes banhados pela luz azulada do início da noite.

Quando Brock desceu as escadas, um SUV preto se aproximou do outro lado da rua. Parou perto da calçada e Kade saltou do banco de trás de passageiros.

– Droga – grunhiu o companheiro de Alex. – Sinto cheiro de sangue.

– Ela levou um tiro – explicou Brock com voz séria.

Kade se aproximou.

– Você está bem? – perguntou para ela, os olhos acinzentados tornando-se um pouco amarelados na escuridão que se acentuava. Jenna assentiu como resposta, observando as pontas das presas que se alongavam por trás do lábio superior. – Niko e Renata estão comigo – informou a Brock. – Qual a situação ali dentro?

Brock grunhiu, com humor negro por baixo do tom perigoso da sua voz.

– Bagunçada.

– Era de se imaginar – disse Kade, lançando-lhe um olhar estranho. – Você também não me parece muito bem, cara. Belo tiro no ombro. Precisamos levar Jenna de volta ao complexo antes que ela perca mais sangue. Renata está dirigindo o Rover. Ela pode levá-la enquanto limpamos aí dentro.

– A humana é responsabilidade minha – disse Brock, o peito reverberando ao encontro do ouvido de Jenna. – Ela fica comigo. Eu vou levá-la até o complexo.

Jenna captou o olhar de curiosidade que se formou no rosto de Kade ante a declaração de Brock. Ele estreitou o olhar e não disse nada enquanto Brock passava por ele indo na direção do SUV, carregando Jenna com leveza nos braços.


Capítulo 6

– Como estamos aí atrás? – Renata, ao volante do Rover preto, perguntou a Brock enquanto o veículo saía do sul de Boston a caminho do complexo da Ordem. Seus olhos verdes piscaram no espelho retrovisor, as sobrancelhas escuras bem desenhadas unidas em sinal de preocupação. – Devemos chegar em quinze minutos. Tudo bem aí?

– Tudo – respondeu Brock, relanceando para Jenna, deitada repousando em seu colo no banco de trás. Ele tinha cortado um dos cintos de segurança para servir de torniquete, na esperança de deter a hemorragia. – Ela está aguentando.

Jenna estava de olhos fechados e lábios entreabertos parcialmente azulados pelo frio passado na câmara frigorífera. O corpo ainda estremecia debaixo do casaco de couro, apesar de ele supor que os tremores fossem mais uma reação ao choque do que desconforto. Sua habilidade natural como membro da Raça garantia isso. Com uma palma ao redor da nuca, a outra alisava a têmpora, sugando a dor de Jenna para si.

Renata pigarreou ao observá-lo pelo espelho.

– E quanto a você, grandão? Tem bastante sangue aí atrás. Tem certeza de que não quer dirigir enquanto cuido dela até chegarmos ao complexo? Basta você pedir que eu paro no acostamento. Não demora mais do que um minuto.

– Continue dirigindo. A situação está sob controle aqui – disse Brock, ainda que desconfiasse que a companheira perspicaz de Niko não acreditasse nisso, uma vez que sua resposta foi dita quase com um rugido entredentes, presas quase totalmente estendidas.

Fora difícil conter sua reação à hemorragia de Jenna quando a encontrara dentro daquele prédio. Agora que estava confinado tão próximo a ela, sentindo o calor do sangue derramado através do couro do casaco, sentindo sua fragrância metálica e ouvindo as batidas baixas do coração que despejava mais sangue ainda pelo ferimento, Brock estava vivendo um inferno particular no banco de trás do SUV.

Era um membro da Raça, e não havia nenhum de sua espécie que conseguiria resistir ao chamado do sangue humano fresco. Não ajudava em nada o fato de ele ter se alimentado pela última vez em... Inferno, ele nem tinha certeza de quando fora. Provavelmente mais do que uma semana, o que já seria bem ruim na melhor das circunstâncias.

Brock se concentrou em sugar a dor de Jenna. Era mais fácil deixar de pensar em sua fome assim. Também o ajudava a não notar como a pele dela era suave, e como as curvas de seu corpo se encaixavam tão bem a ele.

A dor absorvida, e um pouco de irritação própria, eram o que impediam seu corpo de ter mais reações a ela. Mesmo assim, não conseguia ignorar o aperto em sua calça de uniforme, ou o modo como o leve farfalhar da pulsação dela sob seus dedos repousados na nuca o fazia querer grudar a boca na dela.

Saboreá-la, de todos os modos que um homem deseja uma mulher.

Foi preciso bastante esforço para livrar a mente de tais pensamentos. Jenna era uma missão, e só. E era humana, com a fragilidade e a curta expectativa de vida que acompanhavam essa condição. Apesar de que, se fosse honesto consigo próprio, ele seria o primeiro a admitir que há muito preferia as fêmeas mortais às suas irmãs, nascidas Companheiras de Raça.

No que se referia a relacionamentos românticos, tentava manter as coisas casuais. Nada muito permanente. Nada que pudesse durar o suficiente para decepcionar uma mulher que tivesse se permitido confiar nele.

Sim, ele já passara por isso. E tinha tanto a culpa quanto a autodepreciação para provar. Não tinha desejo algum em voltar a trilhar esse caminho em particular, nunca mais.

Antes que as lembranças o arrastassem para as sombras dos seus erros passados, Brock levantou o olhar e viu o portão de entrada do complexo da Ordem assomando-se logo à frente. Renata anunciou a chegada deles para Gideon no fone próximo à boca e, quando o Rover parou diante do portão de ferro, ele se abriu para recebê-los.

– Gideon disse que a enfermaria está preparada à nossa espera – informou ao dirigir até a garagem da frota nos fundos.

Brock resmungou em resposta, não conseguindo responder agora com a presença total de suas presas. A parte de trás do carro estava iluminada na cor âmbar, o brilho dos seus olhos transformados iluminando tudo tal qual uma fogueira, apesar das lentes escuras dos óculos.

Renata estacionou o veículo na garagem, depois deu a volta no carro para ajudar a tirar Jenna do banco de trás e levá-la até o elevador que os levaria do piso térreo até o quartel-general no subterrâneo. Ela despertou quando as portas se fecharam e o sibilo do motor hidráulico o pôs em movimento.

– Ponha-me no chão – murmurou, debatendo-se um pouco nos braços de Brock como se estivesse incomodada com a ajuda dele. – Não estou com dor. Consigo ficar de pé. Posso andar...

– Não, não pode – interrompeu ele com palavras concisas e firmes. – Seu corpo está em estado de choque. A sua perna necessita de cuidados. Você não vai andar para parte alguma.

Em meio ao atordoamento do seu choque, Jenna o encarou, mas manteve as mãos ao redor de seu pescoço até o elevador parar no andar do complexo. Brock saiu, caminhando rapidamente. Renata o seguiu, as solas de borracha dos seus coturnos batendo em contraponto com o sangue que pingava do ferimento de Jenna no chão.

Ao fazerem a curva que os levaria à enfermaria, Lucan os encontrou no meio do caminho. Parou de pronto, os pés afastados, as mãos se cerrando ao lado do corpo. Brock notou o leve tremor das narinas do Primeira Geração ante o cheiro do sangue fresco no corredor.

Os olhos de Lucan miraram a humana ensanguentada, a cor prateada reluzindo, as pupilas se estreitando como as de um gato.

– Mas que droga.

– Pois é – disse Brock. – Ferimento a bala na coxa direita, calibre 45 milímetros sem sinal de saída. Fizemos um torniquete, mas ela perdeu um monte de sangue no caminho entre o lugar em Southie onde a encontramos e aqui.

– Caramba – disse Lucan, as presas totalmente visíveis agora, pontas gêmeas reluzindo enquanto ele falava. Ele ralhou uma imprecação. – Vá em frente. Estão à espera dela na enfermaria.

Brock assentiu com firmeza para o líder da Ordem ao passar por ele. Na enfermaria, Gideon e Tess haviam preparado a mesa cirúrgica. O rosto de Gideon empalideceu um pouco e, quando ele cerrou o maxilar, um músculo saltou no rosto delgado.

– Deite-a aqui – instruiu Tess ao lado da mesa cirúrgica, assumindo o comando quando Gideon, sempre calmo e composto ao costurar um bom número de ferimentos de combate em outros guerreiros, pareceu totalmente perdido agora que a paciente era humana e derramava glóbulos vermelhos como se fosse uma torneira.

– Nossa – Gideon murmurou depois de um instante, o sotaque britânico mais forte do que o normal. – É sangue demais. Tess, você pode...

– Posso – respondeu ela rapidamente. – Posso cuidar disto sozinha.

– Ok – disse ele, visivelmente afetado. – Eu... hum... Acho que vou sair.

Enquanto Gideon saía, Brock deitou Jenna na mesa de aço inoxidável. Quando não se afastou, Tess levantou o olhar numa pergunta.

– Também está ferido?

Ele levantou o ombro bom.

– Não é nada.

Ela pressionou os lábios, não muito convencida.

– Talvez seja melhor Gideon se certificar disso.

– Não é nada – repetiu ele, impaciente. Tirou os óculos e os prendeu no colarinho da camiseta preta. – E quanto a Jenna? Está muito mal?

Tess olhou para ela e estremeceu de leve.

– Deixe-me examiná-la. É uma pena que meu dom tenha sido suprimido por causa do bebê, ou eu poderia curá-la em poucos segundos, em vez de gastar mais de uma hora para tentar controlar a hemorragia.

Tess, antes de se mudar para o complexo da Ordem e se tornar a companheira de Dante, trabalhara como veterinária. Desde então, tornou-se o braço direito de Gideon na enfermaria, cuidando de clientes muito maiores – e sem dúvida, mais rabugentos – do que aqueles com quem lidara em sua antiga clínica na cidade.

Como uma Companheira de Raça, ela também possuía um extraordinário talento – um que lhe era singular e que seria passado para o filho que carregava, assim como a mãe de Brock passara o dela para ele. Tess tinha um toque curador também, mas sua aptidão ia muito além da dele. Enquanto o dom de Brock possibilitava que ele absorvesse a dor, esse efeito era apenas temporário. Tess podia, na verdade, restaurar a saúde, até mesmo restaurar a vida de qualquer criatura.

Ou melhor, fora capaz, antes que a gestação suprimisse seu poder.

Ainda assim, ela era uma excelente profissional da saúde, e Jenna não poderia estar em mãos mais capazes. A despeito disso, Brock tinha dificuldades para se afastar da mesa de operações, apesar da sede de sangue que revirava seu íntimo e o retorcia de dentro para fora.

Ficou ali parado enquanto Tess esterilizava as mãos, removia o torniquete improvisado e depois efetuava um exame visual do ferimento. Pediu a Renata que ficasse por perto para auxiliá-la, depois tranquilizou Jenna, explicando que teria que extrair a bala e cuidar do ferimento.

– A boa notícia é que não há nenhum osso fraturado e, pelo que posso afirmar, remover a bala e reparar a artéria afetada será um procedimento razoavelmente simples. – Fez uma pausa. – A má notícia é que não estamos exatamente bem equipados para esse tipo de ferimento, isto é, um ferimento humano. De fato, você é a primeira paciente não pertencente à Raça que já entrou nesta enfermaria.

Jenna desviou o olhar para Brock, como que para confirmar o que estava ouvindo.

– Que sorte a minha, acabei num hospital de vampiros.

Tess sorriu com empatia.

– Vamos cuidar de você, prometo. Infelizmente, não temos coisas como anestesia. Os guerreiros não necessitam disso quando vêm para cá machucados, e nós, que somos suas companheiras, temos o elo de sangue para nos ajudar a nos curarmos. Mas posso aplicar um anestésico local...

– Deixe-me ajudar – interveio Brock, já se movendo ao redor da mesa para ficar ao lado de Jenna. Ele sustentou o olhar questionador de Tess. – Não ligo para o sangue. Sei lidar com isso. Deixe-me ajudá-la.

– Tudo bem – respondeu Tess com suavidade. – Vamos começar.

Brock observou, sem piscar, quando Tess pegou um par de tesouras da bandeja de instrumentos e começou a cortar a roupa arruinada de Jenna. Centímetro a centímetro, do tornozelo ao quadril, o jeans ensopado caiu de lado. Em questão de minutos, só o que cobria a parte inferior do corpo de Jenna era uma calcinha simples de algodão branco.

Brock engoliu em seco, a garganta se movendo audivelmente com o golpe em seu estômago da visão da pele feminina suave enquanto seus sentidos já estavam tomados pelo canto da sereia que era o cheiro do sangue de Jenna.

Ele deve ter rosnado sua fome num tom alto porque, no mesmo instante, os olhos de Jenna se abriram assustados. Sem dúvida, ele era uma visão assustadora, assomando-se na mesa de operações, o olhar preso ao dela, todos os músculos e tendões do corpo retesados como cordas de um piano. Mas, temerosa ou não, Jenna não desviou o olhar. Encarou-o, sem piscar, e ele viu nos olhos castanhos corajosos um pouco da policial de fronteira que sabia que ela fora.

– Renata – disse Tess –, pode me ajudar a movimentá-la só um pouco para eu tirar essas roupas?

As duas Companheiras de Raça trabalharam em conjunto, retirando os jeans manchados e o casaco arruinado enquanto Brock só conseguia ficar ali, imobilizado pela sede e por algo mais que corria de forma ainda mais profunda.

– Ok – disse Tess, percebendo seu olhar ardente. Ela lavara as mãos e as secara para depois vestir luvas de látex que estavam numa caixinha sobre um carrinho com rodas. – Vou começar assim que você estiver pronto, Brock.

Ele esticou a mão na direção de Jenna e encostou a palma na lateral de seu pescoço. Jenna se retraiu a princípio, aquele olhar incerto encontrando o dele como se ela fosse se esquivar de seu toque.

– Feche os olhos – ele lhe disse, com um esforço enorme para esconder o raspar ávido de sua voz. – Tudo vai passar em poucos minutos.

O peito dela subiu e desceu em movimentos rápidos, os olhos travados nos dele, desconfiados.

E por que ela deveria confiar? Ele era farinha do mesmo saco que a criatura que a aterrorizara no Alasca. Com a sua aparência agora, era uma surpresa que ela não tivesse saltado da mesa e tentado se defender com um dos bisturis de Tess.

No entanto, quando ele a fitou, Jenna exalou fundo. Os olhos se fecharam. E ele sentiu a pulsação forte sob seus dedos... depois a primeira pontada de dor quando Tess começou a limpar e tratar do ferimento.

Brock se dedicou em mantê-la confortável, concentrando seu talento na queimação dos antissépticos e na invasão dos instrumentos cirúrgicos afiados. Engoliu a dor de Jenna, ciente do trabalho eficiente de Tess ao remover a bala do fundo do músculo da sua coxa.

– Peguei – murmurou Tess, o barulho do chumbo caindo na bandejinha de metal. – Essa foi a pior parte. O resto do procedimento vai ser moleza.

Brock grunhiu. Ele conseguia lidar com a dor. Inferno, um ferimento a bala e o procedimento padrão para retirá-la era algo casual nas noites da maioria dos guerreiros voltando da patrulha. Mas Jenna não se colocara à disposição de situações como aquela, sendo ou não ex-policial. Ela não pedira para tomar parte das batalhas da Ordem, ainda que ele não entendesse o motivo de isso perturbá-lo.

Estava sentindo muitas coisas que não tinha o menor direito de sentir.

A fome ainda o assolava em seu íntimo como uma tempestade, elevando-se de duas necessidades igualmente imperiosas. Ceder a qualquer uma delas seria um erro, ainda mais agora. Ainda mais porque o objeto dos seus desejos gêmeos era uma mulher que a Ordem tinha que manter a salvo. Manter ao lado deles, pelo menos até poderem determinar o que ela poderia significar na guerra contra Dragos.

E, mesmo assim, ele a queria.

Sentia-se protetor em relação a ela, mesmo sabendo que era inadequado para o trabalho, e mesmo ela parecendo recusar a ideia de que precisava de ajuda de qualquer pessoa. Lucan a tornara sua responsabilidade, mas Brock não tinha como negar que ela se tornara sua missão pessoal muito antes disso. Desde o instante em que pousou os olhos nela no Alasca, depois que o Antigo a atormentara em sua cidade natal, envolvera-se emocionalmente em mantê-la a salvo.

Nada bom, censurou-se. Era uma péssima ideia deixar-se envolver pessoalmente quando um trabalho estava em jogo.

Não aprendera essa dura lição no passado em Detroit?

Envolver-se pessoalmente com alguém era o caminho mais rápido para o fracasso.

Minutos devem ter decorrido enquanto ele contemplava os anos que se passaram entre o capítulo negro da sua vida e o momento que vivia agora. Estava pouco ciente de Tess operando silenciosamente, de Renata com os instrumentos e as provisões requisitadas. Só depois de dado o último ponto e de Tess ir até a pia para lavar as mãos foi que Brock percebeu que ainda tocava Jenna, ainda a acariciava na linha da carótida com o polegar.

Pigarreou e afastou a mão. Quando falou, a voz saiu muito baixa.

– Terminamos aqui, doutora?

Tess parou ante a pia, virando-se para olhar por sobre o ombro.

– E quanto ao seu ferimento?

– Estou bem – respondeu. Ele não tinha intenção alguma de se demorar além do necessário. Além disso, a genética da Raça o curaria em pouco tempo.

Tess deu de ombros.

– Então terminamos.

Na mesa ao seu lado, o olhar de Jenna encontrou o seu e o prendeu, firme e forte. Os lábios, ainda pálidos pelo choque e pelo frio, se entreabriram, e ela exalou uma lufada de ar. A garganta se movimentou quando ela engoliu e tentou novamente:

– Brock... obrig...

– Estou saindo – rosnou ele, com frieza proposital. Recuou um passo; depois, com um xingamento para si mesmo, girou sobre os calcanhares e saiu apressado da enfermaria.


Capítulo 7

Brock manobrou o Rover preto para fora da propriedade da Ordem e seguiu sozinho noite adentro. Normalmente, os guerreiros faziam suas patrulhas em equipes, mas, para ser franco, no momento ele não se considerava uma boa companhia nem para si mesmo.

Suas veias latejavam com agressividade, e a fome que lançara suas garras quando estivera com Jenna não melhorava em nada seu comportamento. Ele precisava sentir o chão debaixo dos coturnos e uma arma na mão. Inferno, no ritmo em que a noite se desenrolara até então, ele receberia de braços abertos até mesmo o frio gélido do início de dezembro, que normalmente odiava.

Qualquer coisa que o distraísse da necessidade que deixava seus nervos à flor da pele.

Por essa razão, sacou o celular do bolso do uniforme e apertou o número que ligava direto para Kade.

– Lavanderia Luz do Dia – atendeu o guerreiro, ironicamente. – Como estão as coisas em casa?

Brock só conseguiu grunhir.

Kade riu.

– Boas, é? Quando foi a última vez que alguém levou uma humana sangrando para o complexo? Ou qualquer humana, para falar a verdade.

– A situação ficou um pouco tensa por um tempo – admitiu Brock. – Felizmente, Tess interveio e cuidou de Jenna. Ela vai ficar bem.

– Fico feliz em ouvir isso. Alex jamais nos perdoaria se deixássemos alguma coisa acontecer com a melhor amiga dela.

Brock não queria discorrer sobre Jenna, ou sobre a responsabilidade de mantê-la a salvo. Franziu a testa ao tomar a direção da cidade, o olhar perscrutando as ruas e os becos, à procura de ladrões ou idiotas – qualquer desculpa para estacionar e se meter numa luta corpo a corpo. Humanos ou da Raça, pouco se importava, contanto que se envolvessem numa briga decente.

– Qual a situação no local em Southie? – perguntou a Kade.

– Como se nada tivesse acontecido, amigo. Niko e eu nos livramos dos corpos, do vidro quebrado e de todo aquele sangue. A câmara frigorífera onde mantiveram Jenna parecia ter sido usada como um maldito matadouro.

O maxilar de Brock se endureceu quando ele reviveu o momento em que a encontrara numa lembrança vívida. Seu mau humor aumentou ainda mais ao pensar nos dois malditos que a machucaram.

– E quanto às testemunhas? – No longo meio segundo de silêncio que lhe respondeu, Brock emitiu uma imprecação. – Os dois caras que apanharam Jenna no lado de fora do complexo e a levaram até lá? Deixei um semiconsciente no escritório do lado de fora da câmara frigorífera, o outro fugiu depois que atirou em mim e captou um relance das minhas presas.

– Ah, cacete – disse Kade. – Não havia ninguém no prédio a não ser os dois corpos que desovamos. Não sabíamos das testemunhas, cara.

É, bem... Isso porque no calor do momento, com Jenna sangrando e trêmula em seus braços, Brock se esquecera de mencioná-las.

– Maldição – ralhou, socando o painel do Rover. – A culpa é minha. Meti os pés pelas mãos. Devia ter contado que havia vivos que precisavam ser contidos.

– Não se preocupe – apaziguou Kade. – Não estamos tão longe. Vou dizer ao Niko para voltarmos. Podemos dar mais uma olhada no lugar, procurar os dois fugitivos e apagar suas memórias de toda essa situação.

– Não é necessário. Já estou a caminho. – Brock fez uma curva fechada à esquerda no cruzamento mais próximo e seguiu para o sul de Boston. – Aviso assim que tiver a situação sob controle.

– Certeza? – perguntou Kade. – Se quiser retaguarda...

– Ligo quando estiver tudo resolvido.

Antes que o irmão de armas pudesse comentar sobre seu tom letal, Brock desligou e guardou o aparelho no bolso de novo, enquanto o Rover entrava na parte abandonada da cidade.

Quando chegou ao bairro da fábrica, sua pulsação latejava com o desejo de vingança. Estacionou o carro num beco lateral e andou o resto do caminho coberto de neve até chegar aos fundos da construção. Havia luzes acesas do lado de dentro, e, através das paredes de tijolos e concreto do lugar, ouviu o murmurar abafado de vozes masculinas, ambas com sotaque acentuado, uma delas à beira da histeria.

Brock saltou sobre o telhado da antiga construção e avançou até uma claraboia coberta de neve que se abria no meio da fábrica logo abaixo. Os dois cretinos que ele queria encontrar andavam de um lado para o outro em meio aos lombos de boi, partilhando uma garrafa suja de vodca barata e fumando cigarros que tremiam entre os dedos.

– Estou te dizendo, Gresa – exclamou aquele com o nariz quebrado. – Temos que chamar os tiras!

O atirador – Gresa, é claro – deu um grande gole da garrafa e sacudiu a cabeça.

– Para dizer o que, Nassi? Olhe ao seu redor! Consegue ver alguma prova do que achamos que vimos aqui hoje? Olha só, não aconteceu nada. E nada de polícia.

– Sei muito bem o que vi – insistiu Nassi, a voz se elevando mais. – Temos que contar pra alguém!

Gresa se aproximou e lhe entregou a garrafa. Enquanto Nassi bebia, seu amigo gesticulou para a fábrica vazia.

– Não tem sangue, nenhum sinal de briga. Nada do Kole ou do Majko também.

– Eles morreram! – berrou Nassi. Ele escorregou para algumas palavras da sua língua materna para depois prosseguir num inglês entrecortado. – Vi os corpos, você também! Estavam aqui quando fugimos do prédio. Sei que viu, Gresa! E se aquele homem, ou seja lá o que fosse, os levou? E se ele voltar para pegar a gente?

O atirador de Jenna levou a mão à lombar e pegou uma pistola. Balançou-a diante de si como um prêmio.

– Se ele voltar, tenho isto. Atirei uma vez, posso atirar de novo. E, da próxima vez, eu mato.

Nassi levou a garrafa uma vez mais à boca e terminou com o que restava da bebida. Largou a garrafa no chão.

– Você é um tolo, Gresa. E logo vai ser um tolo morto. Mas eu não. Vou embora daqui. Vou largar este emprego de merda e voltar para casa.

Ele saiu do campo de visão de Brock, o companheiro seguindo-o.

Quando os dois homens saíram do prédio para a rua escura, Brock já os esperava. Descera do telhado e já estava diante da porta, bloqueando-lhes a saída.

– Indo para algum lugar? – perguntou com gentileza, revelando as presas. – Talvez queiram uma carona.

Os dois gritaram, gritos agudos de puro terror humano que eram música aos ouvidos de Brock, que saltou sobre o da frente, o do nariz quebrado.

Rasgando-lhe a garganta vulnerável, Brock não bebeu, apenas o matou. Largou o corpo inerte na neve, depois inclinou a cabeça na direção do que atirara em Jenna.

Gresa gritou uma vez mais, a pistola em sua mão tremendo violentamente. Se Brock fosse humano ou estivesse distraído como antes dentro da fábrica, quando sua ira voltada para Nassi impedira que percebesse que havia uma pistola apontada para ele do outro lado da sala, Gresa talvez conseguisse atirar nele agora.

Atirou, mas de modo desajeitado e sem mira.

E Brock se moveu na velocidade da luz, mergulhando sobre ele e derrubando-o, mandando a bala perdida para algum lugar no escuro.

Com um giro do braço, quebrou o pulso do atirador e se sentou sobre ele no chão.

– A sua morte será mais lenta – rosnou, curvando os lábios para revelar dentes e presas, prendendo o agressor de Jenna com o âmbar luminoso dos seus olhos transformados.

Gresa choramingou e soluçou, depois berrou horrorizado quando Brock se inclinou e enterrou a mandíbula na artéria enlouquecedoramente pulsante em seu pescoço. Sugou o sangue maculado pelo álcool para a boca, alimentando-se num furor de raiva e sede.

Bebeu e bebeu um pouco mais ainda.

O sangue o alimentou, mas foi a fúria, a vingança pelo que aqueles homens fizeram com uma fêmea inocente, com Jenna, que o saciaram verdadeiramente.

Brock se afastou e rugiu seu triunfo para o céu noturno, o sangue escorrendo pelo queixo numa trilha quente. Alimentou-se um pouco mais, depois segurou o crânio do humano entre as mãos, girando-o com força e quebrando-lhe o pescoço.

Quando tudo terminou, quando o pior da sua ira e a sede começaram a definhar, e tudo o que restava era o descarte imediato dos mortos, Brock lançou um olhar objetivo para a carnificina que executara. Era selvagem e absoluta.

Uma completa aniquilação.

– Jesus Cristo... – sibilou, ajoelhando-se e passando as mãos pela cabeça.

No que se referia a Jenna Darrow, não conseguiria manter as coisas estritamente profissionais.

 

 

                                  CONTINUA