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Um homem que comete um crime precisa encobrir seus rastros, mesmo que eles sejam deixados pelos melhores sapatos que o dinheiro poderia comprar.
Para encobrir os seus, lorde Elliot Rothwell retornou à casa de sua família, em Londres, e se juntou às pessoas recém-chegadas para o baile promovido por seu irmão. Agiu como se houvesse se ausentado por breves instantes para tomar um pouco de ar naquela gloriosa e agradável noite de maio.
Ao cruzar o limiar da porta, começou a cumprimentar os presentes. Belo e alto, o irmão mais novo do quarto marquês de Easterbrook – e também o Rothwell considerado mais amistoso e normal – distribuiu sorrisos a todos, alguns bastante calorosos a certas damas.
Quinze minutos depois, tão suavemente quanto voltara à festa, Elliot puxou assunto com Lady Falrith. Retomou uma conversa que deixara em suspenso duas horas antes e elogiou a dama com tanto tato que ela se esqueceu de que ele havia se ausentado. Em questão de minutos, Lady Falrith parou de se dar conta da passagem do tempo.
Enquanto jogava seus encantos em Lady Falrith, Elliot varria o salão com os olhos à procura do irmão. Não Hayden, que, junto com a esposa, Alexia, era o anfitrião da noite. Estava em busca de Christian, o marquês de Easterbrook.
Os olhares dos dois não se cruzaram, mas o retorno de Elliot ao baile foi notado por Christian. O mais velho se afastou de um círculo de lordes no fundo da sala e caminhou para a porta.
Elliot dançou uma valsa com Lady Falrith antes de continuar a missão da noite. Fez isso como penitência por estar usando a dama e como um agradecimento sem palavras por sua ajuda involuntária. A noção de tempo de Lady Falrith poderia ser bastante vaga e sua memória, um tanto benevolente. De manhã, ela acreditaria que Elliot havia lhe dispensado atenção a noite inteira e que tinha flertado com ela. Sua autoconfiança seria útil caso algo desagradável acontecesse em relação às atividades de Elliot na cidade naquela noite.
Finda a valsa, ele de novo pediu licença. Ao contrário de Christian, que seguira solitário e direto para a porta, Elliot caminhou pelo salão distribuindo cumprimentos e conversando com todos, até chegar à nova cunhada.
– Está tudo indo bem, não acha? – perguntou ela, seu olhar percorrendo o espaço em busca de confirmação.
– É um triunfo, Alexia.
E, para ela, era mesmo. Um triunfo da personalidade e do temperamento. E talvez um triunfo do amor.
Alexia não era o tipo de mulher que a sociedade esperaria que pudesse se casar com Hayden. Não tinha família nem fortuna. Era tão sensata que nunca aprendera a dissimular, que dirá flertar. Porém, naquela noite ela era a anfitriã no lar de um marquês, com seu cabelo escuro impecavelmente penteado como ditava a última moda e usando roupas igualmente elegantes. A órfã pobre se casara com um homem que a amava como nunca amara antes.
Elliot acreditava que aquele casamento daria certo. Alexia cuidaria para que isso acontecesse. A história já provara que o amor era uma emoção perigosa para os homens da família Rothwell. Contudo a sensata e prática Alexia saberia usar o amor para controlar o perigo. Elliot suspeitava que ela já dominara a fera várias vezes.
Ele se uniu a ela na admiração do sucesso da noite. Em um canto distante, uma mulher pequena de pele muito clara era o centro das atenções. Um penteado adornado de plumas em abundância valorizava seu cabelo louro. Ao mesmo tempo, ela se mantinha vigilante na atenção que uma bela jovem recebia dos rapazes ali por perto.
– O triunfo é seu, Alexia, no entanto, creio que minha tia pretende levar o troféu desta temporada de caça.
– É compreensível a felicidade de sua tia Henrietta por apresentar a filha à sociedade. Dois nobres vinham fazendo galanteios a Caroline nos últimos tempos. Mas ela está irritada comigo hoje porque não convidei um deles para o baile, apesar de ela haver ordenado que eu o fizesse.
Elliot estava pouco interessado nos motivos de irritação da tia. Na lista de convidados, entretanto, tinha todo o interesse.
– Não vi a Srta. Blair, Alexia. Nenhum vestido preto. Nenhum cabelo solto. Hayden a proibiu de convidá-la?
– De jeito nenhum. Phaedra está no exterior. Ela embarcou há cerca de quinze dias.
Ele não queria parecer curioso demais, mas...
– No exterior, você disse?
Os olhos violeta dela se suavizaram, divertindo-se. Voltou toda a sua atenção para ele, o que, considerando o assunto em pauta, não era algo que ele desejasse.
– Primeiro, Nápoles, depois, uma excursão ao sul. Eu avisei a ela que você costuma dizer que não é muito sensato visitar a península Itálica no calor do verão, mas ela queria investigar os rituais e festividades da estação.
Alexia inclinou a cabeça como se fosse confidenciar um segredo.
– Acredito que o falecimento do pai a afetou mais do que ela admite. O último encontro que tiveram foi muito emotivo. Phaedra ficou bastante abalada. Acho que fez a viagem para se animar um pouco.
Ele não duvidava de que se encontrar com o pai em seu leito de morte fosse algo bastante emotivo. Ele mesmo ficara muito consternado ao perder o pai. Nessa noite, porém, estava mais interessado no paradeiro da Srta. Blair e em assuntos discutidos com o pai dela antes da despedida final.
– Se souber onde ela vai se hospedar em Nápoles, posso fazer-lhe uma visita quando eu for, caso ela ainda esteja por lá.
– Ela deixou o endereço do local onde pretendia ficar. Foi indicação de um amigo. Se Phaedra ainda não tiver voltado quando você for, ficarei feliz se puder visitá-la. A independência dela às vezes beira o descuido, e isso me preocupa.
Elliot duvidava de que Phaedra Blair gostasse de ter alguém preocupando-se com ela. Mas Alexia se preocupava de qualquer forma.
– Ai, meu Deus! – murmurou Alexia.
Elliot se virou e viu o motivo do suspiro da cunhada. Henrietta vinha na direção deles, com suas plumas esvoaçantes e seus olhos sonhadores e brilhantes lampejando de tanta determinação.
– Acho que ela está atrás de você – sussurrou Alexia. – Fuja enquanto é tempo ou ela vai pegá-lo para reclamar. Easterbrook permitiu que eu recepcionasse os convidados do baile sem o consentimento dela. Henrietta acredita que o fato de morar nesta casa a torna sua dona.
Elliot era mestre em sair à francesa. Quando a tia alcançou seu destino, ele já se fora havia muito tempo.
Depois de pegar um atalho pelo corredor dos criados e dar uma corrida subindo as escadas dos fundos, Elliot se aproximou dos aposentos de Christian. Entrou na sala de estar e encontrou o irmão esticado em uma cadeira no canto.
O olhar penetrante que Christian lhe lançou deixou claro que sua mente não estava nem de longe tão relaxada quanto o corpo.
– Não encontrei – disse Elliot, respondendo à pergunta que aqueles olhos escuros faziam. – Se estiver na casa ou no escritório dele, está muito bem escondido.
Christian expirou com força. O som que fez demonstrava seu aborrecimento. O assunto em questão vinha cerceando sua liberdade de passar os dias fazendo o que bem entendesse. Elliot não fazia ideia de quais atividades seriam essas. Na verdade, ninguém fazia.
– Ele deve ter queimado tudo ao saber que estava à beira da morte – sugeriu Elliot.
– Merris Langton demonstrava ter uma personalidade tal que é improvável que pensasse em poupar os outros, mesmo à beira da morte.
Christian enfiou um dedo por baixo de sua gravata atada com perfeição e deu um puxão para soltá-la. Sua aparência estava impecável naquela noite, tudo nele demonstrava se tratar de um lorde. Os tecidos de suas vestimentas exibiam a qualidade superior em cada fio. Contudo o gesto ao desatar a gravata mostrava seu desconforto em relação à formalidade da noite e o longo cabelo escuro preso em um rabo de cavalo indicava seu lado excêntrico.
Elliot imaginou que o irmão estaria louco para se desvencilhar daqueles símbolos formais da civilização e se refestelar no robe exótico que sempre usava. O mais comum era encontrá-lo descalço em seus aposentos, não usando meias de seda e sapatos. No momento, entretanto, as únicas indicações de seu jeito informal em casa eram a sobrecasaca desabotoada e a forma lânguida como seu corpo alto se moldava ao forro da cadeira.
– Você verificou se havia tábuas soltas no piso ou outros esconderijos? – perguntou Christian.
– Cheguei a arriscar ser descoberto. Permaneci por tempo de mais nos dois prédios e um guarda estava passando quando saí do escritório no centro financeiro. Estava escuro, não havia luz perto da porta, mas...
Sua descrição da aventura sugeria mais receio do que ele de fato tivera. Elliot acreditava que, em certas circunstâncias, não havia opção a não ser infringir a lei. Só nunca esperara reagir de forma tão fria e indiferente quando se visse numa dessas situações.
– Se alguém perguntar, você ficou no baile a noite toda – disse Christian. – Langton possuía uma pequena editora que publica textos revolucionários. Também era um homem com certo gosto pela chantagem, como descobrimos. Foi uma pena ele ter morrido antes que eu pudesse pagar-lhe. Agora o manuscrito de Richard Drury está sabe lá Deus onde e sua mentira sórdida sobre nosso pai ainda pode vir a público.
– Vou garantir que isso não aconteça.
– Você acha que alguém pode ter pegado o manuscrito antes de você? É provável que eu não tenha sido a única pessoa que Langton abordou.
– Não vi indícios de que alguém já tivesse mexido nas coisas dele. Nem mesmo seu advogado ou testamenteiro. Ele acabou de ser enterrado; foi esta tarde. Não acho que o manuscrito estivesse nem na casa nem no escritório quando ele morreu.
– Esse é um obstáculo muito inconveniente.
– Inconveniente, mas não intransponível. Vou descobrir o manuscrito e o destruirei, se necessário.
A atenção de Christian focou nele.
– Você fala com muita confiança. Sabe onde está o maldito manuscrito, não sabe?
– Faço ideia. Se estiver certo, vamos acabar com isso em breve. Mas pode haver custos para você.
– Pois pagarei. Richard Drury foi membro do Parlamento e, apesar de suas ideias extremistas, um intelectual respeitado. Se suas memórias incluírem tal acusação contra meu pai, muitas pessoas vão acreditar nele.
Vão acreditar porque a acusação reforça o que já creem ser verdade.
Elliot não verbalizou a resposta, mas aquela ideia rondava sua cabeça desde que soubera que Merris Langton planejava publicar as memórias de Richard Drury. O livro incluiria segredos e intrigas que repercutiriam mal sobre a reputação de muitos poderosos, tanto do passado quanto do presente. A acusação que supostamente existia contra o pai deles combinava bem demais com o que a sociedade já pressupunha sobre seu casamento.
Porém, a sociedade estava errada em relação à maior parte do caso. O pai lhe explicara isso em um momento em que os homens não mentem.
Você era o favorito dela. Ela o queria para si e eu permiti, já que você era o caçula. Era um alívio vê-la às vezes se lembrar de que era mãe. Só que agora estou morrendo e mal o conheço. Não espero amor ou pesar de você, mas não vou deixar que pense que sou um monstro, como é provável que ela tenha dito.
– Onde você acha que o manuscrito está? Mantenha-me informado de cada passo, Elliot. Se não estiver fazendo progressos, cuidarei de tudo sozinho.
Só não estava claro como Christian faria isso. Essa incerteza levara Elliot a assumir a tarefa. Seu irmão podia ser cruel ao silenciar ecos do passado.
– Apesar de não ter achado o manuscrito, descobri documentos financeiros no escritório de Langton. A editora está em apuros. Os documentos referentes à propriedade dela foram de grande valia. Richard Drury foi sócio desde o início. Sem dúvida foi esse o motivo pelo qual Langton recebeu suas memórias.
Christian achou isso interessante.
– Teremos que abordar o advogado de Langton e ver quem vai ficar com tudo agora.
– Os documentos indicam que a parte de Drury foi deixada para a única filha. Portanto, ainda há alguém vivo para lidar com o assunto. E provavelmente foi cúmplice no esquema de chantagem desde o início.
– Única filha? Maldição!
Christian apoiou a cabeça no encosto da cadeira, fechou os olhos e emitiu um resmungo exasperado.
– Não me diga que é Phaedra Blair. Que inferno!
– Sim, Phaedra Blair.
Christian xingou novamente.
– É bem do estilo do Sr. Drury, com suas ideias radicais e vida não convencional, deixar para uma mulher, sua filha bastarda, a sociedade num negócio – afirmou, depois desviou o olhar para baixo e prosseguiu: – É claro, ela deve ficar feliz com o dinheiro se a editora estiver em apuros. Talvez até agradeça por ter um motivo para não publicar as memórias do pai. Com certeza os textos abordam assuntos pessoais sobre ela e a mãe.
– É possível.
Mas Elliot não acreditava que as negociações seriam tão simples assim. A Srta. Blair era uma complicação inoportuna. Ela poderia ver na publicação das memórias e seus segredos uma possibilidade de ganhar um bom dinheiro e salvar a editora. Ou, pior, poderia acreditar que seus ideais de justiça social seriam fortalecidos quando ela revelasse o calcanhar de aquiles da sociedade culta.
– O livro dela foi publicado por Langton, não? Está na biblioteca aqui, em algum lugar. Confesso que nunca o li. Não tenho muito interesse em mitologia e folclore, que dirá em estudos que misturam ambos – confessou Christian.
– Ouvi dizer que a base teórica é mais do que respeitável.
Elliot dava a mão à palmatória, quando era o caso.
– Ela herdou a inteligência dos pais, junto com a indiferença pelas convenções sociais e pelas regras de conduta.
– Então, nas atuais circunstâncias, nada do que lhe foi legado é boa notícia para nós.
Christian se levantou, abotoou o casaco e verificou se o colarinho estava arrumado. Ia voltar ao baile.
– É melhor não contar a Hayden sobre isso. Ele é muito protetor em relação à esposa, e a Srta. Blair é amiga dela. Seria melhor que eles continuassem na ignorância, para o caso de você ser obrigado a agir mais rispidamente.
– A Srta. Blair zarpou para Nápoles há duas semanas. Farei a transação com ela antes que Alexia tenha oportunidade de vê-la.
– Vai segui-la até lá para isso?
– Eu pretendia ir a Pompeia no outono, de qualquer forma. Quero estudar as recentes escavações para meu próximo livro. Só vou antecipar a viagem.
Andaram lado a lado até a escada. A cada degrau, os acordes musicais iam ficando cada vez mais altos e o burburinho de vozes enchia os espaços majestosos. Ao descerem para a alegre turba, Elliot observou a expressão distante e distraída do irmão.
– Não se preocupe, Christian. Vou me certificar de que a acusação contra nosso pai nunca seja publicada.
O rápido sorriso de Christian não deixou sua expressão mais leve.
– Não duvido de suas habilidades ou de sua determinação. Não era sobre isso que estava pensando neste exato momento.
– Então era sobre o quê?
– Estava pensando em Phaedra Blair e imaginando se existe um homem na face da Terra que consiga, como você disse, fazer transações com ela.
Elliot seguia no escuro, iluminando o caminho com a chama da pequena lamparina que carregava.
Os convidados tinham ido embora e os criados estavam dormindo. Hayden e Alexia provavelmente gozavam das delícias do leito conjugal em sua casa na Hill Street. Christian ainda devia estar acordado, mas não deixaria seus aposentos pelos próximos dias.
A luz fraca se refletia nas molduras douradas na galeria. A lua lançava um pouco mais de luminosidade através dos janelões que vazavam outra parede. Elliot parou na frente de dois retratos. Não tinha descido no intuito de ir àquele cômodo, mas seu objetivo tinha tudo a ver com o homem e a mulher imortalizados naquelas imagens.
O artista tinha usado fundos semelhantes para os dois quadros, como se uma pintura desse continuidade à outra. Era bom ver seus pais juntos assim, duas metades de um todo, mesmo que a unidade implícita fosse mentira. Podia contar nos dedos o número de vezes que ao menos vira os dois no mesmo ambiente.
Não vou deixar que pense que sou um monstro, como é provável que ela tenha dito.
Seu pai se enganara nessa avaliação. Exceto por um único desabafo, a mãe nunca falara com ele sobre a separação e seus motivos. Ela quase não falava nada nas horas que passava com Elliot na biblioteca em Aylesbury.
O medo que sentira do pai vinha dele mesmo, não viera da mãe. Mas apreciara os raros momentos de atenção que recebera daquele pai que parecia não se lembrar de que tinha três filhos, não apenas dois.
Continuou sua caminhada para a biblioteca pensando na longa conversa que tivera com o pai, a última e única da vida inteira. Aprendera verdades importantes naquele dia, sobre seres humanos e paixões, sobre orgulho e alma e sobre a forma como uma criança pode não enxergar direito o mundo à sua volta.
Tinha chegado ao fim dessa conversa já sem medo. Após aquelas confidências, sentira-se como filho de seu pai pela primeira vez na vida.
Correu a lamparina pelas lombadas de couro dos livros na biblioteca. Seguiu para a estante do canto, buscando a prateleira mais baixa. Depois da morte da mãe, havia trazido para ali os livros pessoais dela, os que ele a vira lendo em seu exílio em Aylesbury.
Não sabia por que trouxera aqueles livros para Londres. Talvez assim uma parte dela permanecesse onde a família costumava se reunir. Seguira esse impulso muito antes da conversa com o pai, um ato de rebeldia na tentativa de finalmente pôr fim à separação dela de suas vidas.
Ninguém nunca notara o acréscimo desses livros às centenas de volumes. Bem embaixo, em um canto obscuro, nem o fato de suas encadernações não combinarem com as dos outros tinha importância.
Passou o dedo por um grupo de obras não encadernadas. Finas e pequenas, eram as brochuras que pertenceram à mãe. Retirou-as da estante, espalhou-as pelo chão e aproximou a lamparina de seus títulos.
Viu o que queria. Um ensaio contra o casamento, escrito trinta anos antes por uma famosa intelectual. A autora vivera de acordo com as próprias crenças. Chegara a recusar uma proposta de casamento do amor de sua vida, Richard Drury, mesmo estando grávida.
Ele carregou a brochura e a lamparina até a estante onde Easterbrook arrumara as novas aquisições da biblioteca. Pegou uma dissertação sobre mitologia que ainda exalava cheiro de couro novo.
Levou os dois livros para seu quarto e começou a lê-los. Estava se preparando para enfrentar Phaedra Blair.
CAPÍTULO 2
– Signora, não acho que eu deva pagar por estes cômodos se nem mesmo quero usá-los.
Phaedra conseguiu expressar sua objeção juntando seus conhecimentos de latim aos poucos termos que aprendera do dialeto napolitano. Esperava que, ainda que as palavras não fossem suficientes, seu tom comunicasse seu desacordo em relação à conta que a signora Cirillo lhe apresentara.
Recebeu uma resposta longa e raivosa, despejada de forma igualmente eloquente. A signora Cirillo não se importava se Phaedra tinha ficado nos cômodos contra sua vontade. Nem gostava de ter guardas reais posicionados do lado de fora de sua hospedaria modesta porém respeitável. Queria ser paga e tivera a ousadia de acrescentar um valor referente ao incômodo que os guardas representavam para os outros hóspedes.
Apesar de tentada a dizer à mulher que mandasse aquela conta para o rei, Phaedra se controlou e foi buscar as moedas no quarto.
Fora mesmo um erro gastar uma semana naquela cidade antes de partir para as ruínas. Se sua reclusão durasse muito tempo, não teria dinheiro para comprar a passagem de volta para a Inglaterra, que dirá continuar sua missão por ali. A ideia era fazer uma viagem curta ao exterior. Não viera a passeio, afinal. Estava lá por um motivo e tinha assuntos urgentes a tratar quando voltasse para casa.
Amansada por mais uma semana, a signora Cirillo foi embora. Phaedra voltou para onde estava sua bagagem e refletiu sobre a situação. Procurou em sua valise e encontrou um xale preto. Desfez o nó que havia em uma de suas pontas, soltando o objeto escondido nele.
Uma joia grande caiu em seu colo e seus matizes brilharam na pouca luz do quarto. Pequenas imagens finamente entalhadas se destacavam em branco-perolado contra o fundo vermelho-escuro. Retratavam uma cena mitológica do deus Baco e seu séquito.
Fora o objeto mais caro que a mãe lhe deixara ao morrer. Para garantir o futuro de minha filha, deixo-lhe meu único objeto de valor, meu camafeu de ágata, uma antiguidade de Pompeia, ela havia acrescentado à mão ao testamento.
Phaedra nunca tinha pensado muito sobre aquele aditamento nos seis anos que se passaram desde a morte da mãe. Conservava com carinho aquela peça, assim como tudo o que lembrava a brilhante e extraordinária Artemis Blair. O valor da joia a deixava mais tranquila em relação a seu futuro financeiro, era bem verdade, mas ela esperava nunca ter que vendê-la. Agora, no entanto, a frase belamente escrita pela mãe levantava perguntas que exigiam respostas.
Amarrou o camafeu de volta no xale, guardou-o e retornou para a sala de estar. Abriu as persianas do janelão que dava para oeste. A baía pareceu muito azul a distância e a ilha de Ischia podia ser avistada em meio à névoa longínqua.
Uma brisa marinha penetrou no cômodo, esvoaçando alguns de seus cachos. A voz do guarda também chegou até ela. Phaedra debruçou-se na janela do terceiro pavimento para ver com quem ele conversava.
Viu alguém de cabelos escuros bem diante do capacete de metal e da imponente bainha da espada do guarda. O cabelo tinha um corte da última moda e se movia de forma romântica ao soprar da brisa. Pertencia a um homem bem mais alto do que o guarda, de ombros largos e que parecia usar uma sobrecasaca cara. As botas eram do tipo visto nos pés mais elegantes de Londres. A julgar pelos trajes, tratava-se de um cavalheiro inglês.
Ela apurou o ouvido para escutar a conversa. Sentiu-se surpreendentemente reconfortada por haver alguém de seu país ali, mesmo que só estivesse pedindo instruções de como andar pela cidade nas ruas mais escondidas do Bairro Espanhol.
Ela considerou a hipótese de chamá-lo e pedir ajuda. Não tinha certeza se os ingleses ali, em Nápoles, sabiam que ela fora presa. Mas também duvidava de que dessem a mínima caso soubessem. Os que a conheciam não aprovavam seu comportamento nem queriam sua companhia. Phaedra normalmente também não apreciava a companhia deles, mas sua inabilidade de se mesclar à sociedade inglesa ali tinha lhe criado problemas muito antes de seu inesperado encarceramento.
As coisas pareciam não ir bem para o inglês: os gestos do guarda deixavam claro que ele se desculpava respeitosamente. Estou cumprindo meu dever. Eu colaboraria se pudesse, mas...
O inglês começou a se afastar. Caminhou para o outro lado da calçada e parou. Olhou para cima, franzindo de leve as sobrancelhas perfeitas. Seus olhos escuros alertas percorreram a fachada do prédio.
Phaedra sentiu o coração ficar mais leve – e não só porque o homem tinha um rosto que faria a pulsação de qualquer mulher acelerar. Ela o conhecia. Era o famoso historiador lorde Elliot Rothwell que estava lá embaixo. Alexia dissera que ele visitaria Nápoles no outono, contudo parecia que ele antecipara a viagem.
Ela se inclinou mais para fora da janela e acenou. Lorde Elliot respondeu com um leve movimento de cabeça. Ela levou um dedo aos lábios e apontou para o guarda. Depois gesticulou indicando os fundos do prédio.
Lorde Elliot se afastou fingindo estudar a arquitetura das construções erguidas ao longo da rua. Phaedra fechou a persiana e correu para o outro lado do apartamento. Abriu a janela e olhou para o pequeno jardim embaixo.
Lorde Elliot levou um tempo para chegar lá. Por fim, ela o viu entrar pela extremidade oposta, vindo pelo portão que dava para a ruela fétida que separava os imóveis. Ele seguiu sem nenhuma hesitação. Caminhou na direção dela, alto e confiante, como um homem acostumado a fazer o que bem entendia. Mesmo que a natureza não o houvesse agraciado com um rosto tão bonito e angular, só seu jeito relaxado de andar e seus modos seguros já causariam forte impressão.
Ela ficou tão feliz por ver alguém conhecido que nem se importou por aqueles olhos escuros a avaliarem tão minuciosamente. Percebera um olhar semelhante por sobre o sorriso manso de lorde Elliot quando se conheceram, no casamento de Alexia. Era a reação de um homem que a achava vagamente interessante, mesmo desaprovando sua aparência, suas crenças, sua história, sua família, seu... tudo.
– Srta. Blair, estou aliviado em vê-la bem-disposta e em boa forma.
Outro daqueles sorrisos mansos acompanhou a saudação.
– Também estou aliviada em vê-lo, lorde Elliot.
– Alexia me deu o nome de sua hospedaria e me pediu que viesse visitá-la, para verificar se não precisava de nada.
– Foi muita gentileza dela. Lamento não poder recebê-lo adequadamente, agora que chegou.
– Parece que não pode me receber de forma nenhuma.
Era bem característico dele fazer algumas gracinhas antes de entrar no assunto.
– Imagino que esteja surpreso, até mesmo chocado, por minha prisão.
– Sou um homem que raramente se choca e quase nunca se surpreende. Contudo admito estar um tanto curioso. A senhorita só está em Nápoles há poucas semanas. A maioria das pessoas levaria pelo menos um ano para acumular crimes suficientes para merecer tal punição.
Ele estava se divertindo com a situação? Naquelas circunstâncias, Phaedra achou a conversa inteligente de lorde Elliot bastante inadequada.
– Não houve crime nenhum, só um pequeno mal-entendido.
– Pequeno? Srta. Blair, há um membro da guarda real na sua porta.
– Não estou convencida de que foi o rei que o colocou lá. Um dos funcionários do tribunal fez isso comigo. Ele é um homenzinho abominável, com poder em demasia e pouca inteligência.
Lorde Elliot cruzou os braços, o que o fez parecer crítico e poderoso. Ela odiava quando os homens assumiam essa postura com ela. Era a personificação de tudo o que havia de errado com a metade masculina da humanidade.
– O guarda mencionou um duelo – disse lorde Elliot.
– Como é que eu iria adivinhar que esses homens fossem tão possessivos a ponto de tentarem se matar porque uma mulher conversou com...
– Espadas e adagas. O guarda disse que houve sangue.
– Marsilio é um jovem artista. Não passa de um garoto. Teimoso, porém muito gentil. Eu não fazia ideia de que iria interpretar erroneamente a nossa amizade a ponto de desafiar Pietro simplesmente porque passeei com ele às margens da baía.
– É lamentável para a senhorita que Marsilio, o garoto teimoso e gentil, seja parente do rei. Ele quase foi morto no duelo. Felizmente, o guarda disse que ele irá sobreviver.
– Ah, graças a Deus! Apesar de as pessoas exagerarem bastante por aqui. Pelo que entendi, ele não ficou muito ferido, ainda que qualquer ferimento possa se agravar neste clima. Fiquei muito pesarosa com o ocorrido. Eu disse isso. Expressei meu arrependimento e minhas desculpas falando bem devagar no meu idioma e também em latim, para ser bem entendida, mas o homenzinho intrometido, odioso e estúpido não me ouviu. Ele até me acusou de ser uma meretriz, o que passou de todas as medidas. Expliquei que nunca tirei nem um centavo de homem nenhum.
– A senhorita declarou sua virtude e honra ou disse ao homenzinho intrometido e estúpido que acha que as mulheres devem dispor de seu corpo livremente?
Ela não gostou nada do olhar profundo e sagaz dele ao expressar essa ousada insinuação. Se não estivesse em uma situação tão ridícula, Phaedra lhe diria que era, sim, uma mulher pouco convencional, mas isso não dava a ele o direito de ser rude. No momento, contudo a prudência tinha que falar mais alto.
– Expliquei minha crença no amor livre, o que é diferente de dispor do corpo livremente, lorde Elliot. Tentei instruí-lo. Ficaria feliz em fazer o mesmo pelo senhor, se algum dia tivermos um encontro mais oportuno.
– Que proposta tentadora, Srta. Blair. Contudo espero que as reflexões filosóficas tenham ficado esquecidas em sua cela. Seria melhor ter se declarado uma cortesã. Aqui se sabe tudo sobre esse assunto. Por outro lado, conceitos radicais sobre o amor livre, bem...
O gesto dele com as mãos disse tudo. O que esperava, mulher? Você vive fora das regras sociais e até a sua aparência convida a mal-entendidos.
Mais uma vez ela engoliu o que seu instinto lhe mandava dizer. Discutir só serviria para afastá-lo, e ela queria muito que ele ficasse um pouco mais. Não se dera conta da própria solidão ali e da tristeza que o isolamento lhe causava. Só ouvir o próprio idioma já era um alento.
– Acha que vão me soltar logo?
De novo o mesmo gesto com as mãos, só que agora acompanhado de um dar de ombros.
– Não há constituição aqui. Nem se julgam os casos observando precedentes, como na Inglaterra. Na verdade, não existe um direito codificado, é uma monarquia à moda antiga. A senhorita tanto pode ser libertada amanhã como ser mandada de volta à Inglaterra, ou levada a julgamento, ou permanecer nesses aposentos por anos, ao bel-prazer do rei.
– Anos! Isso seria uma barbaridade.
– Acho que não vai chegar a esse ponto. Contudo pode levar alguns meses até que seu homenzinho odioso e estúpido perca o interesse no caso.
Ele olhou para a fachada do prédio em frente e depois para o portão do jardim.
– Srta. Blair, não posso mais ficar escondido neste jardim, ou também correria o risco de me tornar hóspede dos guardas do rei. Tomarei providências para que lhe mandem comida e deixarei uma quantia em dinheiro para pagar pelo apartamento, pois com certeza continuarão a lhe cobrar o aluguel. Também vou pedir que um adido inglês venha, de tempos em tempos, verificar se está tudo bem.
Meu Deus, ele estava indo embora! Talvez ela envelhecesse naqueles cômodos, ou até morresse de fome quando o dinheiro acabasse.
Ela não era o tipo de mulher que dependesse de um homem para sustentá-la ou protegê-la. Além do mais, lorde Elliot não havia conquistado seu apreço durante a conversa. Contudo estar diante de um futuro incerto a ajudou a superar sua aversão natural a pedir ajuda àquele homem.
– Lorde Elliot – chamou, fazendo-o parar após ele ter dado três passos na direção do portão do jardim. – Lorde Elliot, os adidos ingleses não estão interessados em minha situação. Pergunto-me se o senhor consideraria a hipótese de interceder em meu favor. Tenho certeza de que o homenzinho odioso ficaria muito impressionado com suas ligações familiares e sua fama como historiador. Se pedisse em meu nome, talvez ajudasse.
A expressão dele foi simpática, porém nada encorajadora.
– Sou o caçula. Minha posição é bem menos importante aqui e minha fama pouco conta. Esse tribunal não tem motivo algum para me conceder favores.
– Estou certa de que será mais bem recebido do que eu jamais conseguiria. Pelo menos, conhece o idioma deles. Vi-o conversar com o guarda.
– Não sou fluente o bastante no dialeto para defendê-la bem.
– Ficaria grata por qualquer tentativa de sua parte.
Que fim levara o cavalheirismo? Não acreditava nele, mas gente do tipo de Elliot Rothwell, sim. Ela era uma donzela em perigo e esse cavalheiro deveria se prontificar a ajudá-la, não ficar parado no meio do jardim, com aquele jeito de quem adoraria nunca tê-la avistado na janela.
Ele refletiu um distante, analisando o pedido. Ela sentiu seu sorriso congelar até virar uma careta suplicante.
– Não estamos na Inglaterra, Srta. Blair. Mesmo que eu tenha êxito, talvez a senhorita não aprecie as condições impostas por eles em troca de sua liberdade.
– Vou me esforçar e acatar quaisquer condições, ainda que reze para que não me ponham em um navio de volta para a Inglaterra de imediato. Vim até aqui e preciso, na verdade quero, visitar as escavações de Pompeia. Antes de ir embora. É um antigo sonho meu.
Ele parou para pensar por um longo tempo. Seu suspiro deixou claro que sua decisão ia contra o próprio bom senso.
– Prometi a Alexia que cuidaria do seu bem-estar, então farei o que puder. Encontrar o homem que ordenou sua detenção pode não ser tarefa fácil. Qual é o nome dele? Preferia não ter que andar pelos corredores do tribunal perguntando por um homenzinho odioso e estúpido. Ele poderia ouvir a descrição, o que não nos ajudaria em nada. Além disso, ela provavelmente se aplica a muitos outros funcionários da Justiça.
Ele havia aceitado seu pedido não por um desejo genuíno de ajudá-la, mas para cumprir o que considerava seu dever. Mas Phaedra Blair estava desesperada demais para entrar em detalhes a respeito de suas motivações.
– O nome dele é Gentile Sansoni. Que cara é essa? O senhor o conhece?
– Já ouvi falar dele. Sua autodefesa caiu em ouvidos moucos, Srta. Blair. Sansoni não fala inglês nem latim. Ele é um legítimo napolitano, o que não é boa notícia.
Certamente Phaedra Blair chamara a atenção de Gentile Sansoni, capitão da polícia secreta do rei. É claro que, com seu longo cabelo ruivo esvoaçando ao sol, solto e descoberto, ela chamaria a atenção de toda a Nápoles.
Elliot ouvira falar sobre o algoz da Srta. Blair durante sua última visita à cidade, fazia três anos. Sansoni fizera sua fama a custa de sangue, em 1820, quando o breve governo republicano fora violentamente vencido e a monarquia, restaurada.
Diziam que Sansoni era responsável pelo desaparecimento inesperado de carbonários, ou constitucionalistas, e também que abusava de sua autoridade em setores que tinham pouco a ver com política. Não era o tipo de homem que se impressionaria com um cavalheiro inglês, e Elliot também não acreditava que encarasse de forma positiva uma tentativa sua de recorrer a seus superiores para mudar a decisão tomada pelo capitão.
Elliot não poderia negociar sobre o livro do pai da Srta. Blair enquanto ela permanecesse presa, por isso aceitara de imediato tentar libertá-la. Só tinha fingido hesitar para fazer com que ela se sentisse em dívida.
Também se deixara levar pela desprezível tentação de fazer com que aquela defensora declarada da independência feminina implorasse pela ajuda de um homem. De alguma forma, pelo simples fato de existir, a Srta. Blair conseguia fazer com que um homem se sentisse desafiado. Os instintos dele tinham reagido à altura.
Contudo o dever falara mais alto e, no dia seguinte, ele se dispôs a fazer o que estivesse a seu alcance por ela. Sansoni não se deixaria impressionar por cavalheiros ingleses, mas talvez pelo menos ouvisse um capitão da Marinha britânica. A corte de Nápoles ainda reverenciava a memória de Nelson, e Elliot suspeitava que Sansoni veria o herói inglês quase como um irmão que um dia, muito tempo antes do rápido governo republicano, ajudara a impedir outra tentativa de golpe contra o rei.
Sempre havia navios britânicos no porto de Nápoles, e Elliot foi visitar um cujo capitão ele conhecia. Dois dias depois de se encontrar com a Srta. Blair, Elliot levou Augustus Cornell – que vestia seu traje militar completo e impecável – ao longo de quilômetros de corredores de palácios até encontrarem o covil de Gentile Sansoni.
Como era apropriado a um funcionário da Justiça que trabalhava nas sombras, a sala de Sansoni se localizava nos fundos do prédio e num andar tão baixo que, a caminho dela, as escadas passavam de fino mármore para simples travertino. Apesar da localização, Sansoni a dotara de móveis suntuosos o suficiente para parecer importante. Arrumara um local grande o bastante para suas ambições, mas o teto baixo e a falta de janelas davam ao lugar um aspecto cavernoso.
– Pode deixar que eu falo – disse Cornell, com seu rosto suave e pálido que expressava a formalidade dos homens de sua patente. – Já tive que tratar com ele antes e todo cuidado é pouco.
– Sabe falar a língua?
O napolitano era um dialeto bem diferente daquele falado em Roma ou em Florença. Mesmo tendo muito de latim, que Elliot conhecia, o lorde não saberia o bastante dele para não ficar em desvantagem ao usá-lo ali.
– Esperemos que o suficiente. Fique aqui. Agirei como mediador, física e simbolicamente.
Elliot ficou perto da porta, como ordenado. Cornell atravessou a sala e se aproximou do homenzinho moreno sentado na larga mesa na outra extremidade. A descrição que a Srta. Blair fizera de Sansoni fora perfeita. Ele parecia mesmo repugnante e odioso e, naquele momento, muito desconfiado. Suas sobrancelhas negras encobriam os olhos de águia amendoados, tão comuns naquela região.
Sansoni ofereceu vinho, fizeram um brinde e depois entabularam uma conversa. Por fim, Cornell caminhou de volta até Elliot.
– Há uma complicação – disse ele, baixo. – Esse amigo da Srta. Blair, Marsilio, o que levou a pior no duelo, é parente distante do rei e recebe os favores da família real por conta de seus dotes artísticos. Também é um rapaz com quem acho que Sansoni espera casar uma de suas parentas, consolidando assim sua própria posição. Mas esse sonho é improvável de se realizar devido à origem humilde de Sansoni. Ainda assim, ele fez do bem-estar do rapaz sua missão pessoal.
O capitão aproximou o rosto do de Elliot para poder falar ainda mais baixo.
– Também creio que o rei não tenha conhecimento desse duelo. Mencionei várias vezes o título nobre do seu irmão e suspeito que Sansoni só me recebeu por temer que um marquês britânico possa levar o assunto diretamente ao rei.
Um marquês com certeza poderia, mas isso demoraria meses.
– Pode conseguir a libertação da Srta. Blair?
– Duvido muito. O duelo não foi tudo. O rei possui uma coleção de arte e o acesso a uma de suas salas é proibido a mulheres, pois contém imagens antigas de natureza carnal. A Srta. Blair convenceu o jovem Marsilio a deixá-la entrar lá. Agora é acusada de invasão de domicílio e de gostar de arte licenciosa. Sansoni também disse que ela é uma cortesã. Apesar de Nápoles ser infame por permitir que as mulheres exerçam atividades desse tipo, a Srta. Blair se esgueirou por lugares que a corte frequenta...
– Ela não é cortesã. Ponho a minha mão no fogo. Ela é incomum, é verdade. Excêntrica. Uma livre-pensadora, porém honesta. É claro que Sansoni sabe que pessoas assim existem. Explique isso a ele.
– A função desse homem é deter livres-pensadores e ele a cumpre com deleite. Ainda assim, vou tentar novamente.
Mais uma vez Cornell atravessou a sala. A conversa foi mais breve dessa vez. Os olhos negros de Sansoni buscaram Elliot e o examinaram dos pés à cabeça.
Cornell voltou.
– Ele falou mais rápido dessa vez e não compreendi tudo. Mas perguntou com que autoridade você e sua família se intrometem neste caso. Exige saber se você tem parentesco ou alguma outra relação com ela.
Elliot não tinha qualquer relação com ela, nem autoridade sobre o caso, porém não poderia admitir isso.
– Diga-lhe que ela é uma boa amiga da família. Easterbrook a recebe como a uma irmã.
Essa mentira deslavada nunca seria refutada. Christian faria o mesmo naquelas circunstâncias.
– Diga que tentamos exercer nosso controle sobre ela, contudo ela fez essa viagem inesperada a Nápoles para fugir da nossa influência. Vim para cuidar de seu bem-estar e posso garantir que não vai haver mais problemas. Se ele der a entender que aceita suborno, diga-lhe que pagarei para tê-la de volta.
A conversa de Cornell com Sansoni ficou mais animada dessa vez. O napolitano gesticulava muito, numa rápida sucessão. Quando Cornell voltou com seu relatório, parecia um pouco preocupado.
– Temo que tenha havido um mal-entendido. E que esclarecê-lo possa trazer outras complicações. Culpo minha falta de fluência no idioma por essa infeliz reviravolta nas negociações – disse ele.
– Mas ele parece bem mais calmo e amigável. Qual foi o mal-entendido?
Cornell enrubesceu.
– Não sei exatamente como, mas ele concluiu que o senhor é noivo da Srta. Blair e que ela veio para cá fugindo de um casamento arranjado que sua família aceitou devido ao polpudo dote da moça. Ele acha que você a seguiu para levá-la de volta.
– Um mal-entendido e tanto! Como isso aconteceu?
– Não tenho certeza. Devo ter usado as palavras “família”, “irmã”, “dinheiro” e “fuga” de forma confusa e dado a entender mais do que pretendia.
Cornell deu um suspiro e já voltava para a sala, para tentar corrigir seu erro, quando Elliot o pegou pelo braço, detendo-o.
– Ele está disposto a libertá-la se mantivermos esse mal-entendido?
– Sim, mas...
– Tem certeza de que é isso que ele tem em mente?
– Não posso garantir que tenha entendido direito a interpretação dele, mas...
– Então não vamos corrigir nada.
– Não estou certo de que isso seja honroso.
– Você não disse inverdades e não tem certeza do mal-entendido – assegurou Elliot, pondo a mão no ombro de Cornell. – Aceitarei isso como um presente da Providência divina e deixarei como está. Ele não é um homem que tenha contato com a comunidade britânica daqui. Se entendeu mal, nunca descobrirá a verdade.
Cornell se deixou convencer.
– Se você está tão determinado, então que assim seja. Venha comigo. Ele quer a sua palavra de que vai controlar a Srta. Blair enquanto ela permanecer neste reino. Ela deve ficar sob sua autoridade. Será responsabilizado por qualquer outro problema que ela crie. Está preparado para prestar juramento?
Elliot assentiu. Atravessou a caverna com o capitão Cornell e assumiu a guarda da Srta. Blair, concedida pelo odioso e repugnante Gentile Sansoni.
CAPÍTULO 3
A signora Cirillo chamou à porta e Phaedra se levantou da escrivaninha para atendê-la. Se aquela mulher queria mais dinheiro tão cedo...
Uma visão maravilhosa a aguardava quando abriu a porta de seus aposentos. A signora Cirillo não estava sozinha. Lorde Elliot estava ao seu lado.
Phaedra manteve a compostura, apesar da vontade de gritar de alegria. Se ele estava lá, só podia significar uma coisa.
– Lorde Elliot, entre, por favor. Grazie, signora.
A signora Cirillo arqueou as sobrancelhas por sobre seus olhos felinos escuros ao ser dispensada. Phaedra fez-lhe ver que não era bem-vinda.
– Está trazendo boas-novas, assim espero, lorde Elliot – disse Phaedra quando ficaram sozinhos.
– Sua prisão domiciliar está encerrada, Srta. Blair. Temos que agradecer ao capitão Cornell, do Euryalus. Ele falou com Sansoni em nosso favor.
– Graças a Deus pela Marinha britânica.
Phaedra correu para a janela e abriu as persianas. O guarda tinha ido embora.
– Nem acredito que vou poder dar uma volta às margens da baía hoje à noite.
Correu de volta até lorde Elliott e lhe deu um abraço.
– Sou imensamente grata.
Ele sorriu gentilmente quando ela o largou. Parecia entender sua animação e perdoar sua exuberância. Se seu olhar tinha se abrandado um pouco depois do abraço impulsivo, era compreensível. Afinal, ele era homem.
Estava magnífico, vestido em uma sobrecasaca marrom feita sob medida e botas de cano alto. O sorriso contribuía bastante para suavizar a dureza das feições dos Rothwells. Ao contrário de seus irmãos mais velhos, lorde Elliot era considerado alguém muito sorridente, o que, ao que tudo indicava, era pura verdade.
Ele olhou em volta da sala de estar e o olhar se deteve na escrivaninha.
– Temo ter interrompido sua carta.
– Uma interrupção muito bem-vinda. Estava escrevendo para Alexia, desabafando meu infortúnio, na esperança de que ao menos conseguisse jogar a carta quando o senhor voltasse aqui.
– Por que não termina a carta logo e lhe diz que está tudo bem? Posso entregá-la a Cornell. Ele vai zarpar em dois dias para Portsmouth e poderá postar a carta para Londres de lá.
– Que ideia esplêndida, se não me achar rude por rabiscar umas linhas a mais.
– Nem um pouco, Srta. Blair. Nem um pouco.
Ela se sentou e acrescentou rapidamente um parágrafo para contar a Alexia que tudo fora resolvido a contento, graças ao cunhado da amiga. Dobrou, endereçou, selou o papel e ficou com ele na mão. Lorde Elliot puxou a carta de seus dedos com delicadeza e a colocou no bolso da sobrecasaca.
Em seguida, retomou sua avaliação da sala de estar e da vista.
– A senhorita veio atender a porta. Onde está sua camareira?
– Não tenho camareira, lorde Elliot. Nem criados. Nem em Londres.
– Isso é por causa de outra crença filosófica?
– É uma decisão prática. Um tio me deixou uma renda respeitável, contudo prefiro gastá-la de outras formas.
– Muito sensato de sua parte. Contudo o fato de não ter criados é um inconveniente.
– De jeito nenhum.
Ela deu meia-volta e as dobras de seu vestido preto, assim com o cabelo comprido, esvoaçaram.
– Um vestido como este não exige uma criada para ser colocado e meu cabelo só precisa de uma boa escovadela.
– Não estava pensando nas suas vestimentas. Preciso lhe falar dos desdobramentos do caso e, sem uma criada conosco...
Estava preocupado com a reputação dela por ficar sozinha com um homem. Que encantador.
– Lorde Elliot, é impossível me comprometer, porque estou acima dessas regras sociais estúpidas. Além disso, trata-se de um encontro de negócios, não? Em situações assim, nossa privacidade não é apenas permitida, como necessária.
Ela duvidava que ele aceitasse seu raciocínio, por mais lógico que fosse. Homens como ele nunca aceitavam. Contudo, para seu espanto, ele não a refutou.
– A senhorita está certa. Prossigamos, então. Não quer se sentar? Isso vai levar um tempo.
Ele pareceu muito sério de repente. Sério, grave e... severo. Seu gesto ao apontar o sofá pareceu acompanhar uma ordem, não a sugestão que fizera tão educadamente. A tentação de permanecer de pé a atiçou. Sentou-se, mas apenas porque ele fora o responsável por obter sua libertação.
Elliot se acomodou em uma cadeira diante dela e então lhe deu uma boa olhada, como se a medisse dos pés à cabeça. Foi como se nunca a tivesse visto e tentasse interpretar a imagem peculiar que ela apresentava.
Phaedra não podia afastar da mente a impressão de que, de certa forma, nunca o tinha visto antes também. Não havia nada mais da graça suave do lorde agora, apenas um longo olhar avaliador e invasivo que a deixava desconfortável. Uma reação muito feminina retumbava dentro dela.
Isso era a pior coisa em relação aos homens bonitos. A beleza deles deixava a mulher em desvantagem quando eles lhe dirigiam sua atenção. Esse homem era muito bonito. Era também muito masculino na maioria das situações e sutilmente másculo nas piores delas. Naquele exato momento, parecia estar tentando, de maneira deliberada, deixá-la perturbada. Não o fazia por motivos carnais, disso Phaedra tinha certeza. Porém, ele emanava sedução também e o sangue dela reagia a isso.
Proteger, possuir, conquistar – tudo eram facetas do mesmo instinto primitivo, não? Um homem não poderia seguir uma dessas inclinações sem despertar as outras dentro de si, e uma mulher era facilmente subjugada se não tomasse cuidado. Ela se perguntou que parte ancestral da personalidade masculina o motivava naquele momento.
– Alexia me pediu para tomar conta da senhorita. Não menti ao lhe dizer isso. Contudo tive outros motivos para visitá-la e agora preciso tratar deles.
– Como só nos vimos uma vez, no casamento de Alexia, e muito rápido, não posso imaginar quais possam ser seus motivos.
– Acho que pode.
Agora ele a estava aborrecendo.
– Tenho certeza de que não posso.
O tom dele indicou que ela o aborrecera também:
– Srta. Blair, chegou aos meus ouvidos que a senhorita agora é sócia da editora de Merris Langton, tendo herdado a participação de seu pai no negócio.
– Essa informação não foi divulgada, lorde Elliot. Uma vez que os homens pressupõem que as mulheres não podem ter sucesso nos negócios e como muitos acreditam ser anormal até que uma mulher tente, decidi manter isso em sigilo, de forma que o preconceito não afete a empresa.
– Pretende ter uma participação ativa nela?
– Vou participar na seleção dos títulos a serem publicados, mas espero que o Sr. Langton continue a supervisionar as questões práticas. Gostaria de saber quem lhe contou isso. Se meu advogado foi indiscreto...
– Seu advogado é irrepreensível.
A atenção dele se desviou dela. Seus olhos ficaram meditativos, obscuros. O homem elegante e cosmopolita que escrevera um famoso livro de História antes de completar 23 anos agora estava distraído, absorto nos próprios pensamentos.
– Srta. Blair, lamento trazer-lhe algumas más notícias. Depois que a senhorita deixou Londres, Merris Langton faleceu da doença que o acometia. Ele foi enterrado dias antes de eu partir.
Ela temera que o Sr. Langton não chegasse a se recuperar; ainda assim, ficou surpresa ao ouvir a notícia de sua morte.
– De fato, são más notícias, lorde Elliot. Obrigada por me contar. Não o conhecia bem, contudo o falecimento de uma pessoa é sempre triste. Contava com ele para ajudar a manter a editora, mas parece que vou ter que dar um jeito sozinha.
– É tudo seu agora?
– Meu pai fundou a editora e a subsidiou desde sempre. Ele poderia passar sua parte a outra pessoa, entretanto a do Sr. Langton ficaria para o meu pai se ele morresse. Então, sim, acredito que seja tudo meu agora.
A distração dele desapareceu. Sua objetividade voltou. Fria.
– Antes da doença, Langton procurou meu irmão. Falou que publicaria as memórias do seu pai. Ofereceu-se para omitir vários parágrafos no manuscrito que tratavam da minha família se uma quantia significativa fosse paga a ele.
– Ele fez isso? Que horror! Estou chocada com essa traição para com os princípios de meu pai e peço desculpas sinceras por meu sócio.
Ela se levantou e começou a andar de um lado para outro, agitada com a revelação. Por educação, lorde Elliot se levantou também, mas ela o ignorou. Tentava compreender todas as implicações do esquema idiota do Sr. Langton. Aquilo poderia significar o fim da editora.
Ela conhecia bem a situação precária das finanças da empresa e, como proprietária, era responsável pelas dívidas não saldadas. Contava com as memórias do seu pai para quitá-las. Se o Sr. Langton comprometera a integridade dessa publicação, as pessoas talvez ficassem descrentes de todo o conteúdo do livro.
– Isso tudo é culpa de Harriette Wilson – disse ela, com sua perturbação agora beirando a raiva. – Ela estabeleceu um precedente infeliz ao pedir que seus amantes pagassem para ter os nomes retirados. Escrevi-lhe sobre isso, se quer saber. Disse a ela que era errado receber dinheiro para apagar trechos de biografias, que era só uma forma velada de chantagem. Ela só pensou no próprio bolso, é claro. Bem, eis o resultado da vida dependente que ela escolheu e da extravagância tola que pôs em prática.
Ela passou a andar com passos mais resolutos.
– Sem dúvida o Sr. Langton abordou outras pessoas também. Nunca imaginei que ele comprometeria a ética de nossa editora dessa forma.
– Srta. Blair, por favor, poupe-me do ultraje teatral. Minha família estava pronta para pagar a Langton. Vim procurá-la para dizer que pagaremos com prazer à senhorita no lugar dele.
Ultraje teatral? Ela parou de andar e o encarou.
– Lorde Elliot, espero tê-lo entendido mal. Está sugerindo que eu aceitaria seu dinheiro para suprimir partes das memórias de meu pai a seu bel-prazer?
– Esperamos que sim.
Ela se aproximou dele até estar perto o bastante para ver os pensamentos refletidos em seus olhos.
– Meu Deus, o senhor acha que eu tinha conhecimento de que o Sr. Langton fazia isso, não acha? Acredita que eu fui cúmplice.
Ele não respondeu. Só sustentou o olhar, visivelmente não acreditando no espanto dela.
Furiosa com as suposições dele e afrontada pelo insulto, ela se virou.
– Lorde Elliot, as memórias do meu pai vão ser publicadas tão logo eu chegue à Inglaterra. Cada frase delas. Foi seu último desejo, feito a mim em seu leito de morte. Eu nunca as editaria de forma a escolher as palavras dele que o mundo devesse ler. Fico muito grata por sua ajuda com o Sr. Sansoni, mas é melhor pararmos esta conversa por aqui. Se eu tivesse uma criada, ela lhe mostraria a saída. Como não tenho, o senhor pode encontrá-la sozinho.
Para deixar mais claro que o lorde estava dispensado, Phaedra se dirigiu ao quarto e fechou a porta.
Ainda não havia se recomposto quando a porta do quarto foi aberta e lorde Elliot entrou calmamente, fechando a porta atrás de si.
– Minha visita ainda não acabou e nossos negócios não estão concluídos, Srta. Blair.
– Como ousa? Este é o meu quarto, senhor.
Ele cruzou os braços e assumiu a atitude masculina e irritante de quem se considera no comando.
– Normalmente isso me impediria, entretanto a senhorita está acima de regras sociais estúpidas, como a que dita que eu não deveria entrar aqui, lembra?
Ela não considerava essa regra social tão estúpida. Tinha uma razão muito especial e primitiva de existir. Aquele era seu espaço mais privado, seu santuário. O clima foi se alterando à medida que Elliot olhava em volta, para o guarda-roupa onde suas vestimentas estavam arrumadas e a penteadeira que exibia seus objetos pessoais. Seu olhar percorreu a cama devagar e voltou para Phaedra.
Os pensamentos dele não ficaram tão ocultos quanto ele imaginou. Ela notou as mudanças sutis em sua expressão, na forma como a dureza que ele exibia se alterou, mesmo que ligeiramente. Os homens não conseguem ficar perto de uma cama e de uma mulher sem começar a devanear. Era uma maldição da natureza que eles carregavam.
Ela ficou irritada ao se pegar pensando na mesma coisa. A forma como ele acabara de insultá-la deveria ter sido suficiente para que aquela intimidade que começava a se infiltrar no quarto jamais existisse. O breve silêncio foi ficando cada vez mais pesado e cheio de uma excitação magnética que mexia com ela.
Uma imagem relampejou em sua mente: lorde Elliot olhando do alto para ela, seus rostos afastados por meros centímetros, seu cabelo escuro despenteado por motivos que nada tinham a ver com moda, seus pensamentos completamente desmascarados. Ela viu seus ombros nus e sentiu a pressão de seu corpo e a firme pegada de seu abraço na pele dela. Sentiu...
Phaedra se esforçou para afastar a imagem da cabeça, mas os olhos dele faiscaram, demonstrando que lera os pensamentos dela. Ele sabia por onde a mente dela andara, assim como ela conhecia os caminhos da dele.
Ele descruzou os braços. Phaedra pensou que ele fosse segurá-la e imaginou se não iria insultá-la ainda mais. Havia homens que a interpretavam erroneamente e, por ignorância, lhe faziam propostas, só que lorde Elliot não era estúpido. Seria uma ofensa cruel e deliberada se ele tentasse se aproveitar da tensão sexual que tinham percebido.
Ele desviou sua atenção dela, diluindo a intimidade, porém não a dissipando por completo. O orgulho de Phaedra foi poupado, ainda que, com isso, seu lado mais primitivo se ressentisse.
– O manuscrito está aqui? – perguntou ele. – A senhorita o trouxe?
– É claro que não. Por que faria isso?
Ele olhou para o guarda-roupa.
– Jura? Do contrário, terei que fazer uma busca.
– Juro, e não ouse fazer isso. O senhor não tem o direito de estar aqui.
– Na verdade, tenho sim, mas conversaremos depois.
O que isso queria dizer?
– Deixei-o em Londres, em um lugar muito seguro. Ele contém as memórias de meu pai, seus últimos desejos. Nunca seria descuidada a esse respeito.
– A senhorita o leu?
– É claro.
– Então sabe o que ele escreveu sobre a minha família. Quero que me fale disso agora. Suas palavras exatas, o melhor que se lembrar.
Não era um pedido, mas uma exigência. Sua arrogância dominadora estava rapidamente fazendo com que a gratidão de Phaedra desaparecesse.
– Lorde Elliot, o nome de sua família e o de Easterbrook não são mencionados no manuscrito.
Isso o surpreendeu. Sua severidade ficou abalada por tempo suficiente para que ela percebesse novamente o homem amigável e prestativo que entrara em seu apartamento. Não durou muito. Ele voltou a ficar distraído e meditativo, e sua mente ágil captou o que ela dissera.
– Srta. Blair, Merris Langton descreveu a meu irmão uma acusação específica contra meu pai. Há algo no manuscrito que, em sua opinião, poderia ser interpretado como uma referência a meus pais?
Ela queria que ele não tivesse feito a pergunta nesses termos.
– Há uma parte que pode ser interpretada assim, imagino eu.
– Por favor, descreva-a.
– Prefiro não descrever.
– Eu insisto. A senhorita vai me contar agora.
Sua voz, sua postura e sua expressão indicavam que nenhum argumento seria ouvido. Nunca antes na vida Phaedra tinha sido tão claramente coagida por um homem a fazer algo.
Talvez fosse melhor que ele e sua família ficassem avisados. A passagem em questão era uma entre várias nas memórias que a haviam feito hesitar.
– Meu pai descreve um jantar oferecido muitos anos antes de minha mãe morrer. Eles estavam recepcionando um jovem adido recém-chegado do Cabo. Meu pai queria saber as verdadeiras condições de vida lá. Esse rapaz bebeu demais e ficou embriagado. Acabou confidenciando algo que ocorreu em um regimento britânico na colônia.
A menção à colônia do Cabo atraiu a atenção de Elliot por completo. Ela se condoeu. Sempre tivera esperanças de que aquele rumor não fosse verdadeiro, mas...
– Prossiga, Srta. Blair.
– Ele disse que, enquanto esteve lá, um oficial britânico morreu. A causa da morte foi registrada como febre, contudo, na realidade, ele levou um tiro. Foi encontrado morto após sair para fazer a ronda. Chegaram a desconfiar do outro oficial que o acompanhava, só que não acharam provas. Em vez de contestarem o suspeito, optaram por usar uma causa mortis falsa.
Ele agora ocultava muito bem sua reação. O rosto estava impassível, como se talhado em pedra. Contudo seu silêncio foi se tornando terrível, carregado da raiva que emanava dele.
– Srta. Blair, se associou esse caso com a minha família, a senhorita deve saber do boato imoral de que meu pai teria enviado o suposto amante de minha mãe para assumir um posto na colônia do Cabo, onde morreu de febre.
Ela engoliu em seco.
– Creio que tenha ouvido algo a respeito em algum momento.
– Se a senhorita soube, muitos souberam. Nem Langton nem a senhorita tiveram qualquer dificuldade em juntar as referências e chegar a uma conclusão. Se a senhorita publicar essa parte, ficará bastante clara a insinuação de que meu pai pagou outro oficial para matar o amante da esposa. A ausência de nomes nas memórias não poupará a reputação de meu pai, e ele não pode se defender da sepultura.
– Não estou convencida...
– Droga, é exatamente o que acontecerá, e a senhorita sabe disso. Exijo que suprima esse trecho das memórias.
– Lorde Elliot, sou solidária em sua perturbação. De verdade. Contudo meu pai me encarregou de fazer com que suas memórias fossem publicadas e é meu dever fazê-lo. Pensei muito nisso. Se eu suprimir cada frase que possa ser interpretada como perigosa ou pouco lisonjeira a essa ou àquela pessoa, pouco vai restar.
Ele andou até ela e a olhou de cima com firmeza.
– Essa mentira não será publicada.
A determinação dele era palpável. Ele não precisava de expressões de raiva ou ameaças verbais para enfatizar o poder que usaria contra ela. Estava tudo ali, ao redor dela, junto com a tensão sexual que não abandonara o quarto, num clima carregado de todas as nuances daquele instinto obscuro.
– Se for mentira, pensarei em omitir – assegurou ela. – Se conseguir obter provas de que o homem morreu de febre ou se o convidado de meus pais desmentir a história, eu a suprimirei. Farei isso por Alexia, não pelo senhor ou por Easterbrook.
Essa declaração o aliviou. Um sorriso vagaroso se formou.
– Por Alexia? Que conveniente. Assim pode recuar sem me dar a vitória.
Elliot a entendia bem demais. Phaedra não dava a mínima importância para provas.
Olhou-a com gentileza. De repente pareceu inapropriado estarem tão próximos, uma proximidade que nascera num momento de fúria dele. Com a raiva saindo de cena, era a outra sensação que voltava a crescer.
Ele não recuou como deveria – e como as sobrancelhas erguidas de Phaedra pediam. Em vez disso, ajeitou uma mecha do cabelo dela e ficou olhando para aqueles fios vermelhos enquanto os enrolava com delicadeza entre os dedos.
– Seu pai incluiu o nome de algum desses homens, Srta. Blair? Do jovem adido do jantar ou do oficial suspeito?
Ele não a tocou, mas a brincadeira com o cabelo dela implicava coisas em que ela preferia nem pensar. O fato de estarem sozinhos num quarto, até mesmo o de terem se confrontado, demolira as formalidades que a protegeriam. O formigamento sutil que ele causava em seu couro cabeludo era tão delicioso que levava a pensar em outras excitações físicas.
Conquistar, possuir, proteger – ela não tinha dúvida de que ele estava preparado para ser implacável e brincar com mais do que o cabelo, se achasse que com isso obteria o que desejava. Também não acreditava em si mesma para vencer aquele desafio, se ele surgisse.
– O jovem adido que meus pais convidaram para jantar é Jonathan Merriweather.
Ele olhou nos olhos dela, desconfiado de novo.
– Merriweather hoje é assistente do embaixador britânico aqui, em Nápoles.
– Muito conveniente para o senhor.
A mão dele se moveu por entre os cabelos com mais firmeza. A brincadeira sutil se tornava controladora.
– A senhorita viajou até aqui para falar com ele? É por isso que está em Nápoles? Pretende adicionar notas a essas memórias e completá-las com os nomes que seu pai foi discreto ao omitir? O livro venderia mais ainda, e ouso dizer que o dinheiro resultante seria muito bem-vindo para sua editora.
Ela segurou o cabelo e o retirou de entre os dedos dele, determinada. Sua indignação a ajudou a ignorar a sensação daquela mão quente ao roçar na sua e a não dar importância ao modo como os olhos dele refletiram sua consciência do toque feminino.
– Agradeço a sugestão, mas espero que as memórias do meu pai caiam no gosto popular do jeito que são, sem acréscimos. De qualquer forma, não estou aqui com esse objetivo.
Era uma mentira deslavada, mas ela não sentiria remorso por confundir aquele homem. Seu interesse em preencher as lacunas das memórias do pai nada tinha a ver com a família Rothwell.
– Lorde Elliot, vim até aqui para visitar as escavações e as ruínas ao sul. Preciso me preparar para deixar a cidade de imediato e continuar minha viagem como planejei desde o início. Portanto, peço-lhe, mais uma vez, que parta.
– Sua viagem terá que ser adiada por uns poucos dias. Não posso permitir que vá agora.
Ela riu. A presunção do homem havia chegado ao ponto do ridículo.
– O que o senhor permitiria ou deixaria de permitir não é de meu interesse.
– É de interesse essencial para a senhorita. Eu a adverti de que sua libertação teria condições e a senhorita prometeu aceitá-las.
– O senhor não falou em condições ao chegar.
– Seu abraço apertado me distraiu.
Ela o encarou desconfiada.
– Quais são essas condições?
Ele olhou para baixo devagar, para seus cachos esvoaçantes – portanto, para boa parte do corpo dela. Phaedra achou ter notado um interesse possessivo, como se ele tivesse acabado de receber um presente e aquilatasse o valor.
– Gentile Sansoni só a libertaria se ficasse sob minha guarda. Tive que aceitar total responsabilidade pela senhorita e prometi controlar seu comportamento.
Um calor de fúria lhe subiu à cabeça. Agora entendia por que, de repente, lorde Elliot passara a se comportar de forma arrogante, fazendo exigências.
– Isso é intolerável. Nunca me submeti a um homem. Isso faria minha mãe se revirar no túmulo. Recuso-me a concordar com isso.
– Prefere enfrentar Sansoni? Podemos providenciar o embate.
A ameaça a deixou sem palavras.
Lorde Elliot não chegou a rir enquanto se dirigia para a porta, mas também não escondeu o fato de estar se divertindo muito com o dilema da moça.
– Viajaremos para Pompeia juntos, Srta. Blair, depois que eu falar com Merriweather. Até lá, está proibida de deixar esses aposentos sem minha companhia. Ah, e não haverá visitas de Marsilios nem de Pietros. Ficarei em apuros se a senhorita provocar mais algum duelo enquanto estiver sob minha autoridade. Fiz um juramento de controlá-la e espero poder contar com sua colaboração e obediência.
Autoridade? Controle? Obediência? Ela estava tão estupefata que ele se foi antes que ela recuperasse a voz para xingá-lo.
CAPÍTULO 4
A boa vontade da Srta. Blair em entrarem num acordo em relação às memórias do pai dela melhorou o humor de Elliot. Ele obteria a retratação necessária de Merriweather, colocaria a Srta. Blair no próximo navio para a Inglaterra e voltaria sua atenção para assuntos mais interessantes.
Merriweather colaboraria, com certeza. Ele, melhor do que ninguém, estava ciente de que a história de Drury sobre a morte do oficial era falsa. Além do mais, sua carreira seria prejudicada se o mundo inteiro soubesse que fora indiscreto ao se embebedar. Ele seria um aliado de lorde Elliot em seus esforços para convencer a Srta. Blair a cortar os trechos incriminadores.
Em uma hora, Elliot descobriu que a questão não seria resolvida tão facilmente. Um funcionário da missão diplomática britânica no Palazzo Calabritto lhe informou que Merriweather fora para o Chipre a serviço e não deveria estar de volta em menos de duas semanas.
Elliot voltou ao hotel e reorganizou alguns de seus planos. Conforme a tarde terminava e a temperatura ia ficando mais amena, ele pegou uma carruagem de aluguel e rumou para o Bairro Espanhol para visitar Phaedra Blair mais uma vez.
Seus olhos azuis chamejaram ao vê-lo na porta.
– O que deseja agora, lorde Elliot?
– A senhorita me disse que desejava caminhar às margens da baía esta noite. Estou aqui para acompanhá-la.
– Não preciso da sua companhia.
– Ou vai comigo ou não vai. Seria uma pena não gozar de sua liberdade, agora que a recuperou.
Ela franziu os lábios. A dúvida se refletiu em seus olhos.
– Muito bem, vamos lá.
Phaedra deu um passo adiante, esperando que ele lhe desse passagem.
– Esqueceu o seu chapéu, Srta. Blair. O sol ainda não se pôs e pode ser prejudicial à sua pele delicada. Tenho certeza de que preferiria evitar mais sardas em seu nariz, por mais charmosas que elas sejam.
A mão dela foi rápida para o nariz. Por um instante, a vaidade feminina venceu sua postura de indiferença a essas preocupações banais.
– O senhor é muito hábil em misturar críticas com falsos elogios.
– Os elogios não foram falsos. As sardas são adoravelmente femininas, mas ainda assim precisa de um chapéu. Vou esperar até que ponha um. A senhorita tem um chapéu, não?
– É claro.
Exasperada, ela deu meia-volta e seguiu na direção do quarto.
– Não me siga desta vez.
– Nunca entraria no quarto de uma dama duas vezes no mesmo dia. Assim como quatro danças em um baile, isso poderia ser mal interpretado.
– Nunca interpreto mal os homens, lorde Elliot. Eles são as criaturas mais transparentes que existem.
De fato, ele imaginava que eram, para ela. Não era uma moça inexperiente. Sabia por onde os pensamentos dele haviam vagueado quando estavam os dois de pé ao lado da cama. Seu cabelo solto lhe dava a aparência de uma mulher preparada para uma tarde de prazer.
Ela não reagira a ele com choque ou vergonha recatada. Não houvera a indignação de quem defende sua virtude. Ao contrário, ela só o encarara enquanto as possibilidades sensuais atiçavam a ambos. A expressão dela tinha sido a de quem reconhecia aquele impulso e suas possibilidades.
Ele nunca vivenciara nada parecido antes. Phaedra conseguia provocar e rejeitar sem dizer uma só palavra. Você me quer e pode ser que um dia eu o queira, mas não hoje. Talvez nunca. Ainda não decidi. Ela devia saber que seu comportamento estimulava o lado mais selvagem dos homens.
Phaedra voltou usando um chapéu de palhinha que era muito mais bonito do que ele teria imaginado. Sua aba em diagonal e as flores de seda brancas e azuis realçavam seus olhos e a pele clara. Seus cabelos longos e esvoaçantes, a falta total de maquiagem e as sardas lhe davam uma aparência fresca e campestre.
Porém, seu vestido comprometia a imagem. O tecido preto leve e sem enfeites a cobria do pescoço aos pés. Uma faixa rodeava a cintura, mas, afora isso, pouco se podia notar de suas formas sob o pano solto e volumoso.
O vestido provocava mais fantasias do que ela provavelmente imaginava. Provocava curiosidade quanto ao que dissera mais cedo. Não havia criadas para ajudá-la a se vestir. Não usava corpete nem espartilhos, e as formas gerais indicavam que o corpo tão livre embaixo do tecido valia a pena ser imaginado. Peito empinado, avaliou ele, de tamanho indeterminado, porém digno de nota, e quadril feminino o bastante para fazer com que a cintura parecesse bem fina. Alguns gestos e uns poucos ganchos e tudo seria revelado.
– Alexia o fez para mim – disse ela, ao notar sua admiração pelo chapéu. – Acho que ela tem esperanças de me mudar. Quanto a meu vestido, que o senhor está examinando de forma tão crítica, não espere que eu o troque. Não fui eu quem decidiu que o senhor teria de andar em público em companhia de uma mulher tão fora de moda.
– O vestido me convence ainda mais. Insisto em que cubra o cabelo, contudo não peço que abra mão de todos os símbolos com os quais desafia o mundo.
Ela ergueu o queixo e rumou para a porta.
– Se tiver juízo, não pedirá coisa nenhuma.
Barulho, gestos teatrais, toucados com plumas e sombrinhas coloridas. Riqueza digna de príncipes, pobreza abominável e o brilho das armaduras dos soldados.
O elegante passeio londrino era uma pálida imitação do que acontecia no final da tarde nas terras mais ao sul. O passeio que circundava a baía de Nápoles ficava apinhado de transeuntes. Aristocratas em vestidos e casacos da moda caminhavam em grupos entre os pobres que perambulavam nas proximidades da água. Comerciantes e suas esposas passeavam com os filhos.
A hora do passeio vespertino – aproveitada nas proximidades da baía ou nas piazzas das igrejas – servia a importantes objetivos na cidade, a julgar pelo modo como as moças casadoiras eram exibidas. Sua beleza jovem e morena brilhava entre os pais, que avaliavam criticamente, com semblantes sóbrios, os homens que olhavam duas vezes na direção delas.
Toda a Nápoles era uma ópera e Phaedra Blair não parecia tão estranha ali quanto poderia pretender. Ela estava razoavelmente apresentável, graças ao chapéu; ainda assim, Elliot notava a atenção que atraía com seu cabelo ao vento. Imaginou a reação que causara na primeira vez que estivera ali, com seus fios vermelhos esvoaçando em meio a um mar de castanho e preto. Londres era mais tolerante com o tipo de excentricidade que ela exibia.
– Falou com o Sr. Merriweather?
Eram as primeiras palavras que ela pronunciava desde que haviam saído do apartamento. Elliot não forçara uma conversa na carruagem. Não se importava com o silêncio. Passara um bom tempo calado, tendo a própria mente como única companhia. Gostava do contato social até certo ponto, mas apenas se houvesse horas de silêncio para contrabalançar as de ruído e conversas.
– Ele está fora em uma missão e só deve voltar em duas semanas, no mínimo.
Elliot se perguntou se ela já não saberia disso. Não estava convencido de que a Srta. Blair tivesse objetivos tão inocentes ao visitar a cidade. Se quisesse ver as ruínas, faria mais sentido vir em outra época do ano. Embarcar para lá em pleno calor do verão napolitano, quando sua editora passava por dificuldades, seu sócio estava doente e as memórias do pai esperavam preparação do original... Ele ainda suspeitava que interrogar Merriweather estivera entre os motivos que a levaram ali.
– Espero que não queira me fazer esperar quinze dias ou mais para ir a Pompeia.
– Decidi que visitaremos as ruínas enquanto o espero voltar.
Isso a apaziguou. Ela pareceu quase aliviada. Talvez tivesse vindo mesmo apenas a passeio.
– Na última primavera, Alexia me disse que o senhor estava escrevendo um livro novo, lorde Elliot. Sua visita a Pompeia está ligada a isso?
– Visitarei as novas escavações para saber o que foi descoberto nos últimos anos. Vou conversar com arqueólogos e pesquisar alguns temas para o livro.
– Alexia me disse que é um livro sobre assuntos quotidianos, sobre a forma como as pessoas viviam. Muito incomum. Normalmente, os livros de História descrevem as guerras, a política e os feitos dos grandes homens. Até o seu último foi sobre isso.
– Estou atento para o fato de que esse livro pode ser criticado por sua aparente falta de relevância. Porém o assunto me interessa e posso me dar ao luxo de me dedicar ao que gosto.
– Se acha que o estou criticando, está equivocado. Acredito que seu livro pode ser muito popular, não importa o que digam os acadêmicos. Ele deve vender muito bem.
– Não estou tão certo de que meu editor concorde com isso.
– Então, talvez deva achar outro. Ficaria honrada de publicá-lo se aturar a ideia de fazer negócios com uma mulher.
Ele riu da sua expressão sagaz. Essa editora poderia sobreviver muito bem, no final das contas, se a Srta. Blair mostrasse tamanho talento de bajular autores para atraí-los.
O humor dela havia melhorado desde o início do passeio. Talvez a luz suave do sol poente e a brisa refrescante fossem os motivos da mudança. O mais provável era que a Srta. Blair tivesse decidido que a raiva a atrapalharia a gozar sua recém-adquirida liberdade.
A alegria brilhava em seus olhos enquanto caminhavam, observavam os grupos de passantes, os barcos e as gaivotas. Ela sorria para lorde Elliot de uma forma cálida que poderia ser erroneamente interpretada como flerte. E não passava despercebido dele a forma como os homens a olhavam. Por si só, o cabelo ruivo solto já bastava para destacá-la, contudo a Srta. Blair chamaria atenção de qualquer forma.
Esses olhares também não passavam despercebidos a ela, que não os encorajava nem desestimulava. Também não lhes davam satisfação nem a insultavam, pelo que Elliot podia ver. Phaedra simplesmente seguia seu caminho, uma mulher diferente das outras mas muito confiante, com o tecido preto e leve do vestido a revelar mais do que se pretendia.
Sutilmente, ela projetava uma aura carregada daquele mesmo desafio que Elliot sentira no quarto, só que agora atraía todos os homens que a olhavam por mais tempo. Você me quer, só que nada vai acontecer entre nós, porque eu decidi assim.
Ela parou para comprar um pequeno buquê de flores de uma menina que as oferecia numa caixa. Elliot tentou pagar por elas, mas Phaedra afastou sua moeda e pagou com o próprio dinheiro. Continuou a andar, segurando perto do nariz as flores perfumadas.
– Lorde Elliot, gostaria de lhe fazer uma proposta.
Não seria a proposta que ele desejava, contudo seu corpo se enrijeceu de qualquer forma. As palavras dela tinham sido escolhidas de propósito para atiçá-lo e isso o deixou com raiva, porque funcionou.
Ele não deveria, só que não resistiu:
– Vi o que acontece aos homens que aceitam os termos de suas propostas, Srta. Blair, portanto prefiro declinar.
A expressão dela mudou.
– O que quer dizer?
– Ah, eu entendi erroneamente? Desculpe-me.
– O que o senhor quis dizer?
Ele deu de ombros.
– Pensei que fosse propor que me tornasse um de seus amigos. Uma dessas abelhas que ficam zumbindo em volta da rainha.
Sua pele branca enrubesceu e sua raiva deixou transparecer uma boa dose de consternação.
– O que sabe a respeito dos meus amigos?
– A senhorita pode desprezar a sociedade, mas ela está a par do seu comportamento. Todos sabem sobre a filha de Artemis Blair e como, a exemplo da mãe, ela se considera acima de todas as regras sociais estúpidas.
– Sua ignorância me espanta.
A raiva dela vencia a consternação.
– É muito típico o senhor interpretar mal minhas amizades e é por isso que nunca considerarei a hipótese de tornar meu amigo alguém como o senhor.
Ah, ela consideraria, sim. Até já havia considerado. As negociações começaram cedo naquele dia.
– Se fui rude, peço desculpas.
A expressão dela relaxou.
– No entanto...
As sobrancelhas dela se arquearam.
–... se a senhorita está acima de regras sociais idiotas, não há como eu ser rude, não concorda, Srta. Blair? Digo, no âmbito de suas crenças. A palavra “rude” se aplicaria apenas dentro do contexto das regras sociais, não estou certo? Nos próximos dias, a senhorita terá de me ajudar a perceber onde sua sujeição a tais regras começa e onde termina, assim não a interpretarei erroneamente de novo.
Mais uma vez aquela confiança presunçosa, aquele desafio, a saturou.
– Pode ter certeza de que farei isso, lorde Elliot.
A caminhada os levara até Riviera di Chiaia, às belas mansões com vista para a baía. A Srta. Blair enterrou seus pensamentos por trás de uma máscara de passividade e ficou admirando a beleza das construções.
– Lorde Elliot, é conveniente que tenha falado a respeito dos próximos dias e que tenha expressado sua desaprovação e desprezo com relação à minha pessoa. Minha proposta tem a ver com ambas as atitudes.
– Não desaprovo nem desprezo. Só decidi que devemos ter um entendimento correto quanto a uma pequena questão.
A mais importante de todas.
– O fato de interpretar erroneamente minhas amizades com outras pessoas e meu interesse pelo senhor indica que não nos daremos muito bem. Nem o senhor vai querer o peso de ter alguém que veio a passeio como companheira de viagem. Eu só iria atrapalhá-lo e seus estudos só atrasariam meus planos. Proponho que nos separemos assim que deixarmos Nápoles.
– Isso não é possível.
– Gentile Sansoni nunca saberá.
– A influência dele se estende para muito além das fronteiras desta cidade. Além disso, dei minha palavra, e essa é uma das tais regras sociais estúpidas que levo muito a sério.
– Senhor...
– Não, Srta. Blair. Partiremos juntos, daqui a dois dias, pela manhã. Vamos de barco primeiro para Positano e depois para Amalfi. De lá seguiremos viagem por terra.
– Quero ir para Pompeia imediatamente.
– O atraso será breve. Prometi visitar um amigo em Positano e ele me espera por estes dias, não depois. Se está a passeio, deve se alegrar com uns dias a mais visitando a costa ao sul. É espetacular.
Phaedra não parecia nem um pouco alegre. Ele imaginou que veria aquela perturbação constantemente nos olhos dela pelas próximas semanas.
Deram meia-volta para refazer o caminho e Elliot quase tropeçou em uma criança que os seguia. Grandes olhos negros olhavam para cima em uma esperança calada de que alguém a enxergasse entre tantas das mais pobres crianças da cidade. Ela não pediu nada, mas seu corpinho frágil vestido em andrajos implorou de forma pungente.
Ele enfiou a mão no bolso do colete. Quando a moeda surgiu, mais duas crianças apareceram ao lado da primeira. Outras foram atraídas por instinto para o inglês que não sabia parar de distribuir esmolas para as crianças pedintes de Nápoles.
Ele achou mais moedas. A Srta. Blair não pareceu com medo por estar cercada de pobres ávidos por moedas, como a maioria das mulheres ficaria. Ela tentou conversar com a primeira menina, a mão oculta em algum lugar do vestido, na altura do quadril.
Os dois adultos ficaram num mar de olhos negros e corpinhos morenos, distribuindo moedas até que todas tinham se acabado.
Voltaram para a carruagem sem outras discussões. Ela só falou mais uma vez antes de ser deixada de volta em seu apartamento.
– Partiremos daqui a dois dias pela manhã, como disse? Então nada me resta a não ser me preparar para a viagem.
A aparente submissão de Phaedra Blair não o convenceu. Elliot partiu para fazer seus próprios preparativos.
Phaedra tirou o camafeu do nó no xale. Envolveu-o em um lenço e colocou o embrulho dentro do bolso fundo da saia de seu vestido. Depois envolveu a cabeça com o xale e o amarrou debaixo do queixo.
Verificou a valise, conferindo mais uma vez as roupas e os objetos pessoais que tinha colocado nela. Orgulhava-se da falta de vaidade feminina, mas ainda a irritava ter tão poucas roupas para usar pela próxima semana.
Era tudo culpa de lorde Elliot. Qualquer um sabia que um juramento feito sob coação não contava. E, para ela, fazer um juramento para salvar uma mulher de um destino incerto se qualificava como coação. A insistência do lorde em manter sua palavra a perturbava. Tinha sido muito azar dela que a única pessoa disponível para ajudá-la fosse um homem com noções ultrapassadas de honra.
De jeito nenhum ela permitiria que ele os fizesse vítimas de sua mente pequena. Lorde Elliot não queria a companhia dela muito mais do que ela queria a dele. Só haveria problema se os dois permanecessem juntos.
Uma dessas abelhas que ficam zumbindo em volta da rainha. Ele era incapaz de entender as amizades honestas e sinceras que ela mantinha com alguns poucos e raros homens que pensavam como ela. Ficaria chocado ao descobrir que alguns homens conseguem controlar as forças primitivas de posse e domínio que causaram tanto sofrimento ao longo da história, em especial às mulheres. Na verdade, havia homens para quem a sensualidade não despertava a necessidade de conquistar, dominar e exigir submissão.
Bem, não cabia a ela lhe explicar. Além disso, seria um esforço em vão e exigiria que passasse mais tempo com ele.
Deixou um bilhete e algum dinheiro em sua mala para garantir que a signora Cirillo entendesse que ela voltaria logo para buscá-la. Depois se esgueirou do apartamento para o corredor escuro. Achou o caminho da escada.
Andando pé ante pé, envolta em negro, seguiu até o andar de baixo. Ainda na escuridão, foi tateando às cegas em busca do lance de degraus seguinte.
De repente as sombras se transformaram em corrimões, portas e paredes, como se alguém tivesse aberto as persianas para deixar a luz da lua entrar.
– Pietro não está à sua espera no cruzamento, Srta. Blair.
O coração dela parou de bater ao ouvir a voz tranquila atrás de si. Deu meia-volta. Lorde Elliot estava a pouca distância, em uma porta aberta que dava para o apartamento que ficava abaixo do dela. Estava sem camisa e descalço, como se estivesse dormindo e houvesse posto a calça às pressas para investigar o barulho. A luz fraca da lamparina do quarto o banhava em uma névoa dourada.
A presença daquele homem anunciava o fim de seu plano de fuga. Apesar de sua exasperação, que aumentava cada vez mais, Phaedra não pôde se furtar a apreciar aquele homem. Lorde Elliot era esguio, elegante e tinha ombros largos. Seu corpo possuía o retesamento jovial que abençoava os homens por tanto tempo na vida quanto permanecessem ativos. A luz fraca ressaltava os músculos rígidos do peito, do abdome e dos braços.
Ele deu dois passos, pegou a valise da mão de Phaedra e segurou seu braço, empurrando-a para o quarto dele. Depois fechou a porta.
– O que está fazendo aqui? – perguntou ela.
A luz da lamparina valorizava o peito musculoso e a pele maravilhosa agora tão próximos de seu rosto. Se não estivesse aborrecida pela interferência daquele homem, poderia até aproveitar a bela visão.
– Eu me hospedei aqui.
Ele permaneceu imóvel por um longo tempo. Phaedra olhou para o rosto do lorde e percebeu que ele a observava. E que tinha notado que ela avaliava seu corpo. Sentiu a pulsação acelerar. Os olhos deles refletiam a mesma reação, mas com uma anuência fria, como se Elliot controlasse a reação tanto nela quanto nele.
Sim, esse homem significava problema na certa.
– Não se mexa. Não tente sair – disse isso e andou até a escrivaninha, onde pegou a camisa e a vestiu.
Ela não ficou olhando. Não exatamente. Mas, com o canto do olho, viu como seus braços se moviam e seu dorso se esticava. A imagem do encontro deles à tarde invadiu sua cabeça de novo, mais vívida dessa vez: o rosto masculino pairando acima dela, aqueles ombros e aquele peito sob sua carícia...
Olhando de esguelha, percebeu os sinais de que o cômodo estava ocupado. Havia uma lamparina sobre uma escrivaninha na sala de estar, junto com uma pilha de papéis. Notou manchas de tinta nos dedos dele. Ele estivera escrevendo, não dormindo. Imaginou-o lá, entregue ao frescor da noite, imerso em sua escrita.
Com pouca roupa e aquela camisa solta, parecendo libertino e romântico demais para que ela se sentisse segura, ele a encarou.
– Lorde Elliot, mudou-se para cá para me espionar?
– Deixei para a signora Cirillo a tarefa de espionar. Mudei-me para cá para impedi-la de fugir na calada da noite.
Ele adivinhara seu plano. Isso a desanimou.
– Intrometer aquela ave de rapina em meus assuntos particulares é indesculpável.
– Parece que foi necessário. A signora Cirillo se empenhou em sua missão e a desempenhou com fervor. Eu só pedi que informasse caso a senhorita me desobedecesse e deixasse a hospedaria. Mas ela a seguiu e interceptou a carta para seu amigo.
A expressão dele assumiu um ar crítico.
– Tentar arranjar esse encontro clandestino à meia-noite é intolerável. E se Pietro não a esperasse naquele cruzamento? A senhorita ficaria lá fora no meio da noite, nessa cidade devassa, desprotegida...
– Não me repreenda. Não ouse. Se ele não aparecesse, eu logo teria encontrado um jeito de arrumar uma carruagem de aluguel, uma carroça ou até um burro, se preciso, e teria partido.
Todas as implicações desse episódio lastimável se seguiram em sua cabeça. Ressentiu-se de cada uma delas.
– Parece que troquei um carcereiro por outro – disse ela.
Ele pegou a valise.
– Chame como quiser.
Então Elliot estendeu o braço na direção da porta, mostrando o caminho.
Bufando de raiva, ela subiu de volta as escadas até seus aposentos. Para seu espanto, o lorde não deixou a valise na porta de entrada. Em vez disso, carregou-a até o quarto. Ela não o seguiu. Uma intuição, daquelas que só as mulheres têm, a manteve na sala de estar.
– Venha até aqui, Srta. Blair.
A ordem ressoou dentro dela de um jeito que ela não reconheceu nem gostou. Compreendia a raiva que trazia, mas havia também outros impulsos e palpitações que a espantaram. Ela odiava quando os homens tentavam lhe dar ordens, quando pressupunham serem seus donos, no entanto...
Phaedra espiou dentro do quarto. Lorde Elliot estava lá, com o colarinho da camisa branca aberto, o cabelo despenteado e a expressão resoluta. Quando ele notou a presença dela, um reconhecimento mudo se deu entre os dois. Lampejos de excitação e perigo a perpassaram.
Ele andou até ela e a puxou para dentro do cômodo. A pegada tão firme e confiante, tão segura em relação ao direito dele de fazer o que bem quisesse, a espantou. Nunca na vida um homem a tratara assim. Phaedra tentou se recompor e encontrar as palavras que o colocassem em seu devido lugar, mas...
Ele começou a desatar o nó do xale sob seu queixo. Isso levou tempo de mais. E o deixou perto demais. Com certeza ele não era um canalha a ponto de... Deveria detê-lo e desatar o nó ela mesma. Deveria...
Ele fez o xale correr com suavidade pela cabeça e os ombros dela. Foi como uma carícia longa e vagarosa. O olhar dele acompanhou uma ponta do xale deslizar ao longo do corpo dela até que ficasse pendurado na mão dele pela outra.
Apenas a luz da lua que entrava pela janela iluminava o quarto, porém Phaedra não precisava ver com clareza o rosto daquele homem para adivinhar seus pensamentos. Eles preenchiam o quarto, estavam no ar, como tinha acontecido à tarde.
Uma nova reação a deixou perplexa, uma que nunca vivenciara antes: medo. Não medo dele ou de ser forçada a fazer algo. Foi dela mesma e da maneira chocante e singular como seu corpo reagia à forma como ele tentava dominá-la.
Elliot fez um gesto apontando para a cama.
– Tire o vestido e deite-se.
Isso quase a fez cair em si. Quase. Uma excitação inexplicável a atingiu lá embaixo, uma excitação absolutamente escandalosa. Deus do céu...
– Está indo longe demais.
Ela havia mesmo falado? Sua mente por fim juntara algum bom senso e fora em seu socorro?
– Você não me deixa escolha. Não posso me arriscar a deixá-la escapar.
– Prometo que não vou fugir.
– Uma mulher que espera que eu quebre minha promessa a Sansoni não manterá a própria palavra. Agora coopere, a menos que queira que eu a force a obedecer.
Ela levou as mãos às costas e começou a soltar os ganchinhos do vestido. Só levou um minuto até se despir e pôr o vestido sobre uma cadeira. A luz não era fraca o bastante para ocultá-la. Desejou estar usando aqueles ridículos espartilhos, pois suspeitava que lorde Elliot pudesse ver mais do que deveria por baixo da camisa simples que usava sob o vestido.
Ela se aproximou da cama e subiu nela, tentando não se expor demais e excitada por suspeitar estar se expondo ainda assim. Deitou de costas e olhou para ele. Pairou um silêncio no ar por um longo momento.
– Quais são as suas intenções, lorde Elliot?
Ele riu de novo. Em silêncio. Sarcasticamente.
– Não é um bom momento para provocar e instigar, Srta. Blair.
De repente, ele se inclinou sobre ela. Pairando. O coração dela começou a bater mais forte. A camisa dele adejava perto do rosto dela. O cheiro dele a tomou de assalto. O tamanho dele a dominou. Uma expectativa terrível e maravilhosa formigou nela. Seus seios ficaram mais sensíveis e...
Ele pegou no braço esquerdo dela e o levou até as barras de ferro da cabeceira da cama.
– O que está fazendo?
Ele enroscou o xale em volta das barras.
– Certificando-me de que não fugirá. Não preciso dormir muito, entretanto não posso ficar acordado por duas noites.
– Isso passa dos limites. É repugnante. Exijo que...
– Isso é necessário. Ou é isso ou durmo ao seu lado. Prefere?
Ela o encarou. Ele parou de fazer os nós e olhou para baixo. O coração dela pulou para a boca.
– Prefere? – repetiu ele.
Era uma pergunta direta e sincera. Um convite que lhe permitia extravasar a atração.
Ela engoliu em seco.
– É claro que não.
Mesmo na luz fraca, ela viu o sorriso dele. Ele voltou sua atenção para os nós.
Por fim, ele se afastou e se endireitou. Phaedra deu um puxão com o braço esquerdo. Não havia folga nas laçadas. Ela se virou para o lado e tentou forçar um nó com a outra mão.
– Fique à vontade para tentar desfazer os nós. Só que não vai conseguir. Pode se sentar e se mexer, pode até ficar de pé. Pode usar o penico do lado da cama. Mas nunca vai conseguir se soltar. É melhor passar o tempo dormindo.
Uma nota em seu tom de voz a fez parar de tentar. Rolou de volta para ficar de costas e o encarou. O desamparo dela e o domínio dele gritaram no silêncio entre os dois. A mente de Phaedra bradava insultos rebeldes, mas seu corpo experimentava um calor e uma expectativa deliciosos. Espantava-a que essa submissão provocasse desejo, um desejo muito erótico.
Ele sabia, droga. Ela podia garantir que ele sabia.
– Está muito bonita aí, Srta. Blair. Muito bela e vulnerável e, ouso dizer... submissa?
– Seu canalha.
De novo, aquela risada silenciosa. Depois ele se foi, deixando-a livre para conversar consigo mesma pelo resto da noite sobre quão vulnerável e submissa ele a havia tornado.
CAPÍTULO 5
Phaedra segurava o camafeu na luz matinal que penetrava pela janela da sala de estar. O objeto tinha se tornado um talismã nos dois últimos dias, no embate com um homem confiante demais de seus direitos de controlá-la.
Você deveria ter me avisado, mãe.
Talvez Artemis não pudesse ter lhe avisado simplesmente porque não sabia. Talvez tivesse se isolado tanto de homens como Elliot Rothwell que nunca os houvesse enfrentado.
Ela imaginava a mãe, linda de tirar o fôlego. Com um rosto tão suave que as pessoas nunca imaginavam sua mente brilhante até que ela abrisse a boca ou lhes dirigisse aquele olhar aguçado. De fato, sempre fora uma rainha com muitas abelhas em volta. Acadêmicos, artistas e homens que admiravam sua inteligência estavam entre os amigos que a amavam e ficavam apenas à espera de uma deixa. Sua casa ficava sempre cheia de homens famosos e esperançosos.
Na certa, um desses homens teria tentado conquistá-la. Na certa, a famosa Artemis Blair vivenciara a excitação primitiva de encontrar um par na inteligência e no poder. Ela devia ter avisado à filha que esse homem poderia surgir um dia.
Phaedra olhou pela janela. Lá embaixo, lorde Elliot dava ordens aos criados da signora Cirillo, que carregavam as valises para a carruagem que os levaria ao porto. Os olhos dela se estreitaram para focalizar o inimigo.
Pelo menos, ele não a mantivera amarrada na última noite. Ela prometera de cinco formas diferentes não fugir. Ele só a soltou depois de ela jurar – jurar – sobre o túmulo da mãe. Ele a fizera implorar como se fosse seu dono.
Sua mãe provavelmente estaria se revirando no túmulo naquele exato momento. Artemis Blair nunca se submetera a um homem, de forma nenhuma. Nunca se casara, nem com seu amor de toda a vida, Richard Drury, mesmo quando se viu grávida. Nunca abrira mão de sua liberdade, sua independência e seu direito de amar e dividir a cama com quem quer que escolhesse, nem ao descobrir que só queria amar e dividir a cama com um único homem.
O camafeu esquentou na mão de Phaedra. Ela olhou para a joia. Não, não um único homem. Tinha havido outro.
Tinha sido um choque ler isso nas memórias do pai. Sentia-se nauseada só de lembrar as palavras dele. Sempre imaginara que o amor de seus pais fora perfeito, desprovido de obrigações e leis, um verdadeiro encontro de almas que duraria pela eternidade. A amizade dos pais mostrava ao mundo que havia uma forma melhor para um casal conviver.
Tinha sido assim por muitos anos, até que um dia outro homem entrara na história.
Esse intruso era charmoso, contudo estava no centro de um esquema ao mesmo tempo brilhante e nefasto. Foi o que seu pai escreveu. Ela se lembrava das palavras exatas. Memorizara essas palavras antes de zarpar da Inglaterra. Ele seduziu Artemis para que tivessem um caso, usou-a da forma mais desonrosa, a ponto de destruir sua reputação. Foram seus atos que, em última análise, levaram à morte dela. Assim como vendia falsas antiguidades, ele lhe ofertou mentiras. Porém é só uma questão de tempo até que ele seja desmascarado, porque os objetos estão lá, visíveis, como o que vendeu a Artemis. Um dia alguém revelará a origem suspeita desses objetos, e a forma como ele usa a sedução no intuito de roubar será sua desgraça.
Os dedos dela se fecharam com força ao redor do camafeu. Uma antiguidade de origem suspeita. Uma joia acrescentada na última hora a um testamento, supostamente vinda de Pompeia. Phaedra estava bastante certa de que era a este objeto que o pai se referira – e também sua única ligação com o homem que ele acusava.
Seus atos, em última análise, a levaram à morte. Phaedra não conseguia tirar essas palavras da cabeça. Elas ressoavam em seus sonhos junto com as imagens da mãe naquelas últimas semanas, séria demais, distraída demais. Phaedra nem chegara a notar essa seriedade e distração na época, pois a mãe sempre tinha um sorriso para ela. Porém seu declínio fora rápido demais e sua morte, um choque.
Phaedra baixou o olhar de novo. Lorde Elliot olhava para cima, em sua direção. Há quanto tempo ele a observava lá da rua?
Talvez a mãe não tivesse avisado porque nem ela mesma sabia. Talvez o intruso fosse um homem como aquele lá embaixo, que causava arrepios só por dar sua atenção e cuja presença era uma tentação para que, em um segundo, uma mulher se esquecesse de todas as crenças e princípios que ancoravam sua vida.
Poderia perdoar a mãe por não ter lhe dado essa lição. Poderia perdoá-la por qualquer coisa, até mesmo por deixar o mundo cedo demais. Porém, se um homem realmente a havia usado de forma desonrosa, se os atos dele tinham causado sua morte, isso era outro caso. A filha de Artemis Blair nunca o perdoaria. Se tivesse certeza de que isso era verdade, então queria ver a queda desse homem.
Pegou o xale e envolveu a cabeça. Lorde Elliot era um inconveniente, mas ela não deixaria que a companhia dele atrapalhasse o motivo real que a levara ao Reino das Duas Sicílias.
Elliot voltou ao quarto para pegar a maleta com seus muitos papéis. Passou pela Srta. Blair nas escadas.
– Vou esperar na carruagem.
Seu tom ríspido demonstrava a frieza que agora sempre exibia em sua presença.
Ela nunca o perdoaria por amarrá-la na cama, não só pela humilhação e falta de confiança. Ambos sabiam que isso a excitara, e ela o odiava por isso e por todas as implicações resultantes. Ambos também sabiam que, se ele não tivesse feito isso, ela teria escapado durante a noite para evitar as implicações resultantes.
Na última noite, Phaedra fora enfática ao afirmar que não aconteceria de novo. Suas promessas foram tão sinceras e suas garantias de não fugir, tão genuínas que ele voltara atrás.
Isso significara que ele poderia dormir. Na primeira noite, ficara deitado, inquieto e ávido, sentindo o desejo rasgá-lo por dentro como uma faca de serra. Imaginando-a naquela blusa fina, amarrada na cabeceira da cama, com o cabelo espalhado como seda acobreada e o corpo visível demais. Quais são as suas intenções, lorde Elliot?
Que inferno!
Elliot pegou a mala e um embrulho comprido e se juntou a ela na carruagem. O olhar vazio, distante e focado dizia que era só por falta de escolha que Phaedra tolerava a companhia dele. Não se daria o trabalho de bater papo para tornar seu tempo juntos mais fácil.
O barco que ele alugara esperava perto do Castel Nuovo. Uma hora depois, eles navegavam margeando a baía.
A Srta. Blair se posicionou na área central do convés, segurando-se na amurada. Ela observava a costa passar e o monte Vesúvio ficar cada vez maior ao fundo. A brisa empurrava o xale dos seus cabelos e sua beleza pálida e incomum chamava a atenção do pessoal de bordo. Elliot se aproximou para que não restasse dúvida quanto à sua situação de protetor da moça.
Ele estendeu a mão, oferecendo-lhe o embrulho que trouxera.
– O que é isto? – perguntou ela.
– Um presente.
Ela sorriu de um jeito suave, porém firme.
– Não aceito presentes de homens, lorde Elliot.
– Você não aceita presentes em troca de favores, o que é admirável. No entanto, como não gozei de seus favores, ainda está livre para aceitar presentes. Se eu a seduzir, pode devolvê-lo.
Ele quase disse “quando” em vez de “se”.
Ainda hesitante, porém curiosa, ela pegou o pacote e tirou parte do papel.
– Uma sombrinha? – disse, e rasgou o restante do embrulho, rindo então. – Preta. Toda preta. Que... gentileza!
– Achei que ia combinar.
– Isto é para me poupar de mais sardas?
– Isto é para poupá-la de ficar doente. O sol aqui é muito forte e estamos em pleno verão. Quando desembarcarmos, ficará feliz em ter alguma sombra.
Ela abriu a sombrinha e cobriu a cabeça.
– O senhor conhece bem o país. Já esteve aqui antes?
– Duas vezes. Primeiro em uma viagem por vários países do continente, e de novo há alguns anos.
Ele apontou para a costa.
– Ali fica Herculano. A mesma erupção do Vesúvio que enterrou Pompeia em cinzas cobriu Herculano de lava.
Ela desviou o olhar para onde os vestidos e casacos dos visitantes salpicavam de cor a rocha.
– Tinha a intenção de visitar Herculano também, mas o signore Sansoni... – suspirou ela. – Agora vou perder muita coisa da viagem.
– Por que não gasta algum tempo na volta de nossa pequena viagem e faz a visita?
– Não tenho tempo a perder. Preciso voltar para casa. Tenho uma editora para tocar.
E um livro especial para publicar. Se ele não conseguisse o que queria ao falar com Merriweather, a Srta. Blair não voltaria para casa por um bom tempo.
– Também acho que não vou gostar de voltar a Nápoles depois de nossa viagem – emendou ela. – Com certeza você achará que a palavra dada a Sansoni ainda estará valendo, e ficarei com o senhor no meu pé.
Ele admirou impressionado o enorme cone que era o Vesúvio enquanto passavam tão perto de Herculano que podiam ver alguns trabalhadores nas escavações. O cabelo cor de cobre esvoaçava perto do braço dele.
– Srta. Blair, pergunto-me se o que a incomoda não seria o fato de me ter no seu pé e não a seus pés.
O suspiro profundo expressou o pensamento dela. Deus, dê-me paciência com esse homem tão pouco esclarecido e tão previsível.
– Suspeito que seja inútil explicar isso, mas tentarei, em nome da paz. Acredito que nenhum parceiro na amizade, no casamento ou num caso amoroso deva ficar aos pés do outro. Minha ideia só é considerada estranha porque o pé em questão quase sempre é de um homem e o mundo acha normal que ele fique cravado nas costas de uma mulher. Creio que homens e mulheres possam ficar lado a lado, sem que um tenha que pertencer ao outro. A vida da minha mãe provou que isso é possível e a minha também, até agora, prova o mesmo. Não fomos nós que inventamos essa crença. Essa ideia é bem conhecida e foi defendida por pessoas a quem admiro muito.
– Sei tudo sobre a sua crença, Srta. Blair. Não sou ignorante dessa filosofia. Ela até soa correta e racional. O único problema é que não leva em conta vários aspectos.
– É mesmo? Quais?
– A natureza humana. A história da humanidade. A tendência de os maus vitimarem os fracos e a necessidade dos fracos de proteção. Aventure-se sozinha nos vilarejos de Campanha ou nas ruelas de Marselha ou Istambul, ande pelas espeluncas de Londres e veja o que acontece com uma mulher sozinha e desprotegida.
– Os senhores de antigamente davam proteção a seus servos. O que não significa que era correto exigir a vassalagem em troca.
Ele riu.
– Senhores, servos. Que visão nefasta a senhorita tem da vida das mulheres. Não precisa ser desse jeito.
– Mas pode ser – disse ela. – O senhor sabe que pode. A lei faz isso.
A ênfase que ela deu ao “senhor” foi tão sutil que ele se perguntou se não passava de fruto de sua imaginação. Ela cutucou uma velha ferida com muita delicadeza, contudo ele sentiu a dor de qualquer forma. Uma raiva obscura se instilou nele.
Ela voltou a atenção para a costa. Um leve rubor em seu rosto indicava o reconhecimento de que tinha ido longe demais. Elliot controlou sua reação, mas pensamentos predatórios agora penetravam em sua mente. Ele ponderou o que seria preciso para ser senhor dessa mulher, para fazer com que se dobrasse diante dele.
– Desculpe-me, lorde Elliot. Eu não deveria...
– Está fazendo a impertinência aumentar, Srta. Blair. Melhor teria sido deixar que sua insinuação voasse para longe junto com a brisa.
Só que ela não o fizera, e ele se perguntava por que falara de maneira tão segura.
– Está se referindo a boatos sobre minha mãe, não é?
Ela pensou duas vezes na resposta enquanto olhava para ele.
– Admito que o fato de ela haver se retirado para o campo durante seus últimos anos de vida foi interpretado como feito de seu pai.
Elliot sabia que essa história corria solta nas salas de estar de ricos e pobres. Diziam que sua mãe tinha um amante e que seu pai a punira mandando o homem para a morte em uma colônia distante e depois aprisionando-a em uma propriedade rural.
Seria verdade? Ele e seus irmãos haviam concluído que o amante fora real, mas não a parte sobre o cárcere. O próprio pai lhe jurara não ter feito o que as pessoas falavam. Porém, o exílio da mãe estimulara a fofoca, a ponto de ela mesma passar a acreditar na história.
Ele a via na biblioteca, com os cabelos escuros pairando acima de livros e papéis, perdida em pensamentos. Quase totalmente afastada dos filhos. Por ser o caçula, havia passado a maior parte do tempo com ela lá. Ela emergia de sua concentração às vezes para guiá-lo pelas estantes, escolhendo livros para ele ler ou comentando os escritos dele.
No entanto, algumas poucas vezes o vínculo se estreitara, como no dia em que ela recebeu uma carta que a deixou em prantos. Era a notícia da morte de um oficial do Exército. Foi ele que fez isso. Para me punir por amar outra pessoa.
Tinha sido um amor ilícito. Ela era uma adúltera. Ainda assim, o sofrimento dela o comoveu. Só que ele entendeu que a acusação dela era o delírio de uma alma sofredora.
Elliot sentiu a presença da Srta. Blair ao seu lado. Nem mesmo a raiva conseguia sufocar a reação que sua sensualidade causava nele. A droga das memórias do pai dela insinuava que uma mulher reclusa fora a única a entender como o sangue dos Rothwells podia tornar um homem cruel. Sua certeza de que isso era mentira não seria suficiente para diminuir as acusações a seu pai.
– Elas se conheciam – disse a Srta. Blair. – Nossas mães.
– Minha mãe conhecia os ensaios de Artemis Blair, contudo nunca mencionou uma amizade.
Isso não queria dizer nada, uma vez que ela nunca mencionava assunto nenhum.
– Acho que elas nunca se conheceram pessoalmente, porém elas se correspondiam. Eram ambas escritoras. Tinham interesses em comum. Uma vez sua mãe enviou um poema para a minha. Encontrei-o entre os papéis dela depois que morreu. Um belo poema que refletia uma alma inteligente e sensível.
Ele fixou o olhar na cidade costeira que se aproximava, Sorrento. Estava enfurecido por saber que a mãe compartilhara seus textos com Artemis Blair e nunca com os próprios filhos.
– Sua mãe a encorajou a cometer adultério?
As palavras soaram cruéis e duras mesmo ao ouvido dele.
– Ela pregava a crença no amor livre em suas cartas?
Ele imaginou a famosa Artemis Blair virando a cabeça de sua mãe, o que levaria a tanto sofrimento depois.
– Creio que elas falavam principalmente de literatura em suas cartas. Minha mãe só a mencionou uma vez, quando soube de seu falecimento.
– O que ela disse?
A frase soou mais como um rosnado do que como uma pergunta.
– Ela disse: “Ele devia tê-la deixado ir embora, mas, é claro, por ser um homem, não poderia.”
Isso só fez com que um trovão rugisse nas nuvens que se acumulavam em sua mente. Ele queria dizer que um homem não poderia permitir que a mãe de seus filhos fugisse em uma aventura amorosa. É claro que seu pai não tinha opção a não ser negar essa liberdade a ela.
Só que, a seu modo, ela havia encontrado uma forma de fugir de qualquer maneira.
Pelo canto do olho, Elliot percebeu um membro da tripulação se demorar muito com o cordame. O homem alongava a tarefa só para ficar apreciando a beleza de Phaedra Blair.
A tempestade em sua cabeça estourou. Relâmpagos espocaram. Ele estreitou os olhos e disse quatro palavras. O homem saiu às pressas.
A Srta. Blair percebeu.
– O que você lhe disse?
– Nada importante. Uma expressão napolitana exigindo privacidade.
Nem se deu o trabalho de explicar que as palavras em italiano significavam mexa-se ou morra.
Um vento forte os ajudou a fazer um bom tempo de viagem. A paisagem foi ficando cada vez mais bonita à medida que cortavam a baía em direção à península de Sorrento. Montanhas altas abraçavam a costa, mergulhando no mar em declives acentuados e verdes. Pequenas praias abrigavam alguns barcos e casas se encarapitavam no despenhadeiro, como se fossem cubos brancos e em tons pastel a pairar acima da água.
Contornaram a pequena península, passaram pela ilha de Capri e seguiram para a costa amalfitana. Encostas mais íngremes, perigosas e inacessíveis assomavam sobre eles. O cenário deixou Phaedra boquiaberta. Lorde Elliot estava certo. Teria sido uma pena perder essa visão.
– O que está havendo ali? – perguntou ela, apontando para alguma atividade na colina.
– O rei está construindo uma estrada para Amalfi. Estão escavando a encosta.
Ela notou que a estrada ficaria acima das vilas de pescadores.
– De qualquer forma, vai ser preciso subir ou descer a colina – falou ela.
– Pelo menos os habitantes não vão depender de barcos e burros. E a vista lá de cima será espetacular.
Ele apontou para a frente, mais adiante na costa.
– Positano fica logo depois daquele promontório. Daqui já é possível avistar a torre de vigia normanda nele. Há muitas delas nesta costa, construídas para proteger o reino normando medieval que havia aqui da ameaça dos sarracenos.
Phaedra andou para a proa do barco a fim de ver melhor a torre assim que entrasse em seu campo de visão. A velha torre de pedra era bem alta e isolada. Pequenas janelas a pontuavam, como se fosse um castelo medieval. Parecia uma intromissão de estrangeiros do norte naquela terra banhada pelo sol.
– Aquelas janelas altas dão para o leste e o oeste – disse ela. – Não há nada entre aquela e o horizonte do mar e nada entre a outra e o pico da montanha alta. Vamos ficar aqui muitos dias?
– Calculo que sim.
Phaedra perdera a noção do tempo enquanto fora prisioneira de Sansoni. Agora começava a se situar.
– O solstício de verão se aproxima. Imagino se a torre não será usada para algum ritual.
– Esta é uma região católica. Os rituais pagãos foram banidos há milhares de anos.
Apesar de lorde Elliot ter respondido, ela podia apostar que ele estava muito distante. Estava tomado por um silêncio que pouco tinha a ver com sons. Era algo interior, como se seu espírito tivesse se recolhido para as câmaras secretas de sua alma.
Phaedra se arrependia de ter se referido, ainda que discretamente, à situação da mãe dele. Deixara a frase escapar no auge de sua irritação com lorde Elliot por ele pressupor que estava certo e ela, totalmente errada. Já devia ter aprendido a não entrar em discussões a respeito do modo como pensava e vivia. No que tangia a esse assunto, aquele homem lhe era tão estranho quanto os pescadores daquelas vilas pitorescas.
Aproximaram-se da torre, passando bem perto quando o vento inflou as velas do barco. Parecia deserta.
– Quem é esse amigo a quem vamos visitar? – perguntou ela. – Como vamos chegar logo, acho que eu deveria saber o nome.
– Matthias Greenwood. Foi um dos meus professores na universidade.
Ela conteve sua surpresa. Conhecia Greenwood. Tinha tentado em vão localizar sua casa em Nápoles.
– Ele não vai se incomodar por você ter trazido mais bagagem do que ele esperava?
– Ele ficará muito satisfeito por ter a companhia da filha de Artemis Blair. Ele encontrou com ela algumas vezes, eu acho.
– Sim, com certeza. Eu o vi em algumas ocasiões; a última, no funeral da minha mãe.
Matthias Greenwood tinha sido um dos muitos acadêmicos a prestar homenagem à mulher que deixara o mundo inteiro confuso.
Também era alguém que poderia lançar luz sobre o “outro” homem. Phaedra pensara que esse atraso na viagem para Pompeia seria uma amolação. No entanto lorde Elliot a estava ajudando a riscar um dos itens em sua lista de pendências naquela terra.
– Ele a admirava. Disse que, se tivesse nascido homem, ela teria sido reconhecida como uma das maiores especialistas em línguas românicas antigas da Inglaterra – contou lorde Elliot.
Ele ainda falava em um tom distraído, como se apenas metade de sua mente prestasse atenção.
Phaedra olhou para a cidade de Positano com mais otimismo e não apenas porque sua missão poderia ser favorecida ali. Ela não se pautava por regras sociais estúpidas, mas a maior parte do mundo, sim. Imaginava como seria recebida ao chegar com lorde Elliot. Viajar com ele implicava coisas que ela não tolerava e que não gostaria que as pessoas presumissem.
O Sr. Greenwood provavelmente entenderia que era melhor não presumir nada.
Phaedra sentiu seu companheiro de viagem olhando para ela e virou a cabeça. Ele tinha voltado a si.
– Ele costuma receber convidados os mais variados – disse Elliot. – Pode ser que haja outras pessoas lá. Você vai se comportar, não?
Ela confiou que ele não esperaria que ela bancasse a amante dócil em uma vã tentativa de ser alguém que os convidados tolerariam.
Mesmo que quisesse criar esse disfarce, nem saberia por onde começar.
CAPÍTULO 6
Positano ficava numa angra apinhada de barcos. As construções em tons pastel pairavam acima do horizonte, amontoadas umas sobre as outras no declive acentuado da montanha. A cidade toda era uma sequência íngreme de casas que seguiam na direção do mar.
Phaedra deu uma olhada no despenhadeiro alto, no mar infinito cor de safira e na folhagem de um verde muito escuro. Nunca tinha visto nada tão fascinante em toda a sua vida.
– Qual casa pertence ao Sr. Greenwood? – perguntou ela.
Lorde Elliot se aproximou e estendeu o braço para que a vista dela o acompanhasse.
– Aquela lá em cima, com colunas.
As colunas sustentavam a cobertura de uma comprida varanda na casa mais ao alto. A casa fora erigida um pouco acima da área central da cidade. Sua distância criava uma coroa para os prédios que se espalhavam como uma cascata abaixo dela.
– Vamos voar até lá ou ele vai jogar uma cesta para nos apanhar aqui embaixo?
Um dos membros da tripulação já tinha se ocupado em resolver o problema e voltava com a solução: dois garotos que o seguiam puxando burros.
Phaedra permitiu que os garotos a ajudassem a subir no lombo de um animal. Lorde Elliot só precisou levantar a perna para montar no dele. Era mais alto que o bicho, e suas botas arrastavam pelo chão. A tripulação amarrou suas valises e malas em dois outros burros.
Ela riu deles mesmos.
– Que comitiva, lorde Elliot! Fará um desfile impressionante pela cidade. Talvez eu pegue meu livro de esboços e registre para a posteridade sua elegância sobre esse belo corcel.
Ele tocou seu burro para assumir a dianteira e deu um tapa no traseiro do animal dela ao passar.
– Cuide de sua própria montaria, Srta. Blair. Tome cuidado para não cair ou não vai parar de rolar até chegar à baía.
Ela logo entendeu o que ele queria dizer. Os burros passavam por caminhos muito íngremes, que tinham sido cortados em degraus baixos e estreitos e depois pavimentados. Ela pensou que ia mesmo cair no mar. Os animais sabiam onde pisavam, mas, sentada de lado na sela, Phaedra precisava ter cuidado para proteger a própria vida.
Eles foram um espetáculo e tanto. Os habitantes do vilarejo saíram às portas e janelas para espiar, curiosos, os estrangeiros que iam para a mansão localizada acima da cidade. Crianças começaram a segui-los, formando um verdadeiro séquito. Duas meninas andaram ao lado de Phaedra por um tempo, espiando com curiosidade as pontas ruivas de seu cabelo que apareciam sob o xale. Algumas mulheres fizeram leves mesuras quando lorde Elliot passou, sabendo, por seu porte e seus modos, que ele tinha sangue nobre.
Ela relaxou ao se adaptar à andadura do burro. Não ousava olhar para trás, mas se permitiu olhar as casas de pedra, lindamente rústicas. Varandas simples e coberturas de telhas ajudavam a criar um amálgama de formas e cores. Algumas casas maiores tinham azulejos decorados em volta das portas principais. Todas pareciam muito antigas, como a torre. Estuque cobria a maioria delas, quase sempre trabalhado com ornamentos e cornijas decorativos. Algumas construções eram brancas, mas muitas ostentavam detalhes em vermelho e rosa.
Os sons da vida na comunidade ecoavam ao redor conforme as pessoas chamavam umas às outras pelas janelas abertas e nas ruas do mercado embaixo. Em algum lugar, um homem cantava descontraidamente uma ária de Rossini enquanto cumpria outra tarefa qualquer.
As ruelas iam ficando mais planas à medida que se aproximavam da mansão. Era como se alguém tivesse retirado um pedaço da montanha para que a grande casa pudesse ser construída.
Um homem apareceu numa das arcadas entre as colunas da varanda. Era alto e magro, com uma basta cabeleira branca, nariz aquilino e postura ereta. O maxilar de traços muito retos terminava em um queixo partido. Phaedra só tinha visto Matthias Greenwood umas poucas vezes, porém sua aparência era tão peculiar que se tornava inesquecível.
Ele acenou em saudação, depois saiu e andou na direção deles.
– Rothwell! Que alívio vê-lo finalmente. Meus companheiros anseiam pela sua perspicácia.
Eles se cumprimentaram e Elliot apresentou Phaedra.
– Já tive a honra de conhecê-la, Rothwell. Fico feliz em vê-la de novo, Srta. Blair, e em circunstâncias menos penosas do que da última vez. Sua mãe era muito estimada por humildes acadêmicos como eu e foi muito generosa conosco. Sou-lhe grato pelas pessoas a quem me apresentou em suas recepções.
Os criados apareceram e Matthias deu ordens a respeito das bagagens.
– Entrem e descansem. Meus outros convidados estão fazendo a sesta, mas se reunirão a nós em breve.
Ela subiu o caminho de pedras e seguiu Matthias até a varanda. Olhou através dos arcos e perdeu o fôlego.
A visão era impressionante, um ângulo que exigia uma tela e um pincel. Se a vista montanha acima era incrível, olhá-la de cima para baixo era de deixar qualquer um embasbacado. Os telhados e faixas de circulação da cidade se espalhavam pela encosta. O declive era tão acentuado que era de espantar que se tivesse construído alguma coisa nele. O mar infinito, o céu tão próximo, o promontório que abraçava a paisagem – tudo isso criava um panorama vasto e irreal de um lugar precário no mundo, uma visão empolgante e romântica, mergulhada em beleza e, ao mesmo tempo, repleta de perigos.
– É um espanto que o senhor não viva somente nesta varanda e nem se importe se o restante da casa cair aos pedaços, Sr. Greenwood.
– É quase isso o que faço, Srta. Blair. Aqui e nos outros terraços e varandas. Mesmo não sendo católico, vou à igreja da paróquia para acender velas pela alma de um parente distante cuja herança me permite viver no paraíso.
Uma mulher os saudou quando entraram na sala de visitas arejada, de piso de mármore. Era uma mulher local, elegante e de pele morena. Tinha um rosto lindo e comovente, marcado por um traço de melancolia. Chamava-se signora Roviale e a forma como entrou e cuidou de acomodá-los indicou que aquela era a sua casa. Matthias Greenwood não vivia sozinho no paraíso.
Outro convidado se juntou a eles logo em seguida, depois que um criado trouxe vinho. Phaedra o reconheceu também. Ele não fora ao enterro de sua mãe, mas tinha estado uma ou duas vezes em sua casa quando ela era garota. Tinha uma beleza tão nobre, de traços finos, que ela quase se apaixonou na primeira vez que o viu.
– Veja quem está aqui para celebrar sua visita, Rothwell – disse Matthias. – Escrevi contando a ele que você viria de Nápoles e ele e a esposa vieram de Roma para vê-lo. Srta. Blair, permita-me apresentá-la ao Sr. Randall Whitmarsh, cavalheiro, acadêmico e outro refugiado da Inglaterra.
O Sr. Whitmarsh adotara os modos e o estilo europeu continental, reflexo de seus longos anos vivendo no exterior. Sussurrou um “belíssima” ao se inclinar para beijar a mão de Phaedra com tamanho exagero que ficou provado que deixara para trás o jeito reservado britânico ao adotar Roma como sua residência principal.
– É uma alegria conhecer a filha da indomável Artemis Blair – disse ele, dando um sorriso charmoso e encantador.
Phaedra não era insensível à atenção de um belo homem. Notou que lorde Elliot ficou observando de soslaio enquanto o Sr. Whitmarsh se demorava segurando a mão dela.
– Soube recentemente do falecimento de Richard Drury – disse o Sr. Whitmarsh, dando um tapinha na mão dela. – Vejo que ainda está de luto, mas creio que tenha sido uma opção muito saudável viajar para o exterior para suavizar seu sofrimento.
– O modo como costumo me vestir tornou desnecessário encomendar um guarda-roupa apropriado ao luto, entretanto meu pai não ia querer isso de qualquer forma. Na última vez que o vi, ele proibiu terminantemente que eu ficasse de luto.
Ela puxou a mão da pegada suave do Sr. Whitmarsh.
– Não esperava encontrar tantas pessoas que conheceram minha mãe na remota Positano.
– Nós três somos membros da Sociedade dos Dilettanti, Srta. Blair. Por ser mulher, sua mãe não podia participar. Vez ou outra, porém, nós lhe fazíamos uma visita para prestar nossa homenagem – explicou o Sr. Whitmarsh. – Considerando o conhecimento dela em letras românicas, não é de surpreender que encontre tantos dos que a conheceram ao visitar as terras do antigo império.
– Também é membro da Sociedade, lorde Elliot?
– Entrei depois de voltar da minha viagem pelo continente.
Ela só tinha 18 anos quando a mãe morreu, por isso ainda não chegara a frequentar os salões e jantares em que Artemis recebia acadêmicos e artistas. Porém, ali estavam, diante dela, alguns integrantes do círculo de amizades de sua mãe, mesmo que talvez pertencessem ao círculo mais distante.
Phaedra teria que descobrir se algum daqueles homens tinha percebido ou ouvido falar no homem que recebera as últimas afeições de Artemis.
Phaedra Blair estava aliviada por ela e a signora Roviale não serem as únicas mulheres na festa. A Sra. Whitmarsh desceu do quarto logo.
Phaedra entendeu de imediato que a Sra. Whitmarsh não tinha uma mente tão aberta quanto a do marido. Não falava muito, parecia mais um passarinho pálido, entretanto tinha um rosto tão expressivo que era possível adivinhar seus pensamentos. Ao perceber que Phaedra e lorde Elliot tinham chegado juntos, a Sra. Whitmarsh deu um sorrisinho superficial e lançou para a signora Roviale um sutil olhar de desdém. Depois, resignada, se recolheu a sua silenciosa desaprovação da companhia de mulheres perdidas.
Naquela noite, ao jantarem ao ar livre na varanda, lorde Elliot teve a elegância de incluir a Sra. Whitmarsh na conversa sobre a sociedade londrina, na certeza de que isso lhe agradaria. Phaedra permitiu que os cavalheiros a cobrissem de conselhos sobre as maravilhas da Antiguidade que ela não poderia deixar de visitar.
– A senhorita tem que ir aos sítios de Paestum – exortou Matthias. – Rothwell, ordeno que a leve até lá. Não entendo esses ingleses que percorrem confeitarias e bordéis em Pompeia e ignoram alguns dos mais belos templos gregos do mundo que há no entorno.
– Se a Srta. Blair desejar, iremos visitar os templos – disse lorde Elliot.
Matthias pareceu muito um acadêmico naquele momento. Com o cabelo branco despenteado, o maxilar cortando o ar e o nariz aquilino empinado, ele entoava a lição como se ela fosse uma universitária, algo que nunca lhe permitiram, por ser mulher.
– É por isso que estou aqui, Srta. Blair. Rothwell e Whitmarsh admiram os romanos, mas meu foco é mais antigo. Esta terra foi colônia dos gregos quando Roma ainda era uma cidadezinha com cinco cabeças de gado. Depois de ver os sítios de Paestum, a senhorita entenderá a superioridade do pensamento grego.
– Se isso não exigir que minha visita se prolongue por muito tempo, talvez eu aceite seu conselho.
Após o jantar, a signora Roviale levou as mulheres para longe da varanda, deixando os homens a discutir e debater sobre a Antiguidade. Phaedra não gostaria de manter uma conversa forçada com a crítica Sra. Whitmarsh. Assim, alegou cansaço e se isentou de mais obrigações sociais.
Uma criada a conduziu ao quarto. Quadrado e branco, com o mesmo piso de mármore visto por toda a mansão, tinha janelas grandes que davam para um terraço estreito que se estendia acima dos arcos da varanda principal. Alguém já tinha desfeito suas malas e guardado as roupas em um armário de madeira escura. Havia uma jarra de água na bancada para lavar o rosto e as mãos. Era de cerâmica, com flores vermelhas e folhas azuis. Cores semelhantes decoravam os azulejos em volta da lareira e o peitoril de uma janela.
Phaedra abriu as portas duplas que davam para o terraço de modo que a brisa do mar e os últimos raios do crepúsculo entrassem. Sons da varanda chegavam até ela: Matthias em tom professoral e Elliot rindo, assim como o ruído de conversa. Ela se perguntou se sua mãe algum dia realmente fora aceita naquelas discussões masculinas. Quando os Dilettanti a prestigiavam, era sempre uma relação de homens com uma mulher, com tudo o que isso implicava?
Cadeiras foram arrastadas e despedidas foram feitas. O silêncio tomou a mansão. Ela se levantou a fim de se preparar para dormir. Começava a soltar os fechos do vestido quando um ruído mínimo do lado de fora chamou sua atenção. Um feixe de luz dourada atravessou o terraço e alcançou a noite. Ela foi até lá e espiou.
Lorde Elliot estava de pé na outra extremidade do terraço, em mangas de camisa e colete. Phaedra tinha certeza de não haver feito barulho, porém ele olhou na direção dela como se tivesse feito.
– Estava imaginando se Matthias a teria acomodado neste quarto – disse Elliot.
Ela caminhou até o piso de terracota lá fora. A luz vinha de outro conjunto de portas ao lado do dela. O terraço era compartilhado por dois quartos.
– Parece que nosso anfitrião entendeu errado – disse ela.
– Possivelmente. No entanto, se for para dividir um terraço com alguém, prefiro você à Sra. Whitmarsh.
Ela arriscou se afastar um pouco mais, contudo permaneceu do próprio lado no espaço comum. Da balaustrada de pedra podia-se ver o mar, que agora brilhava lá embaixo com milhões de pequenos reflexos de estrelas.
– O Sr. Whitmarsh disse que os Dilettanti faziam homenagens a minha mãe. Fico feliz de saber que a capacidade dela era reconhecida.
– Um homem honesto teria que admitir o brilhantismo dela. É claro que havia outros menos honestos que diminuíam isso.
– É claro. Você a conheceu?
– Ainda estava na universidade quando ela faleceu. Ouvi falar nela e a vi na cidade, contudo não estava em posição de visitá-la.
– O que achava dela?
Ele se virou e descansou o quadril na balaustrada, olhando para a noite na direção dela. Phaedra desejou que ele não parecesse tão lindo e sedutor. Desejou que a luz se apagasse para que seu rosto ficasse no escuro.
– Fui criado em uma casa de homens e meu pai não compreendia bem as mulheres. Então, saber da sua mãe foi uma revelação. Os colegiais falavam muito dela. Alguns se apaixonavam por ela, outros a achavam irreal, mas sem dúvida ela os fazia questionar a ordem das coisas. Quanto a mim, eu a achava bonita, interessante, inteligente e provavelmente perigosa.
– Acho que ela era perigosa. Se o mundo fosse cheio de Artemis Blairs, os homens não poderiam continuar a ser o que são. Todos teriam que questionar a ordem das coisas, como você.
– Era o que me passava pela cabeça, entretanto eu era um garoto na época e não gostava de perigos reais. Tive que conhecer a filha dela para entender essa parte.
Foi a vez dela de rir.
– Dificilmente eu poderia representar um perigo para você.
– Você se engana, como eu me enganei. O perigo não vem de você.
Não, não vinha. Isso ficara evidente aquela noite. Um poder fluía dele, em impulsos viris. Isso não a surpreendia nem a assustava. Porém, a forma como seus próprios instintos femininos reagiam, sim.
– Não me culpe por suas piores inclinações, lorde Elliot.
– Elas não parecem estar entre as ruins, que dirá as piores, querida Phaedra. Ao contrário, elas me parecem naturais, inevitáveis e até necessárias.
Sua voz baixa e segura lançava cordas de veludo que a amarravam. O coração dela foi parar na boca e sua pulsação acelerou. Ele não se mexeu. Não se aproximou nem um centímetro, contudo pareceu estar ao seu lado, correndo a mão por seu corpo todo.
– Quero você.
O tom calmo e descontraído agitou o sangue dela como a brisa agitava seu cabelo.
– Quero-a sem resistências ao prazer e implorando por mim. Quero-a nua e tremendo e despida de suas...
– Basta. Se é isso o que pensa das mulheres...
– Só de você, querida dama. Você lança um desafio a cada homem que vê. Não se surpreenda se um deles o aceitar.
– Como ousa...
– Ah, sim, eu ouso. Estou a ponto de ousar neste exato momento. Você sabe disso e ainda assim está aqui. Se não quisesse que eu ousasse, nunca teria saído por aquela porta.
Ela abriu a boca para negar, mas as palavras lhe faltaram.
Com um sorriso vago, ele se afastou da balaustrada. O coração dela deu um salto e suas pernas fraquejaram.
– Esse perigo que incita em mim a excita.
Elliot andou em direção à luz do próprio quarto.
– Quem está zumbindo em volta de quem agora, Srta. Blair?
– Um nome estranho para se dar a uma filha, Phaedra – ponderou Matthias em voz alta.
Era a manhã seguinte e ele e Elliot tomavam café na varanda. Lá embaixo, Positano despertava após o nascer do sol.
– Duvido que haja outra mulher com esse nome na Inglaterra, considerando a referência – acrescentou Matthias. – É muito típico de Artemis Blair decidir que a fonte não importa e valorizar sua exclusividade.
Levando em conta que a Phaedra da mitologia teve um caso com o enteado, era mesmo uma escolha estranha. Elliot duvidava que a crença da Srta. Blair e da mãe no amor livre fosse tão longe assim.
– Acho que ela escolheu o nome pela sonoridade. É um belo nome – disse Elliot.
– Eu poderia pensar em uns cinco ou seis melhores. Não, seu descuido por este primeiro dever maternal sugere que ela era indiferente a essa parte da vida.
– Você falava bem dela na época em que fui seu aluno e a Srta. Blair a idolatra. Vamos calar as observações que ela possa ouvir.
– Ela ainda está deitada e não vai ouvir minhas alusões à falta de impulsos femininos de sua mãe, entretanto sua repreensão faz sentido.
De fato, ela ainda estava na cama, dormindo profundamente. Elliot tinha ido até lá e espiado antes de descer. As portas do quarto dela ainda estavam abertas, como uma forma de contradizer as últimas palavras dele. Veja como você não é nem um pouco perigoso para mim. Sua honra e a lei me protegem do pior e meu autocontrole cuidará do resto.
Ele vira um cabelo cor de cobre espalhado pelo travesseiro e uma pele alva enroscada nos lençóis. Uma perna linda e esguia se alongava sobre a roupa de cama. A tentação de entrar lá só para ficar observando-a o tomou, assim como o aborrecimento por vê-la dormindo tão profundamente, algo que ele não tinha conseguido fazer.
Nos últimos tempos, andava pensando nela demais. Ficando com a cabeça nas nuvens por muito tempo. Desejando demais. Achava que a companhia dos amigos e as obrigações do trabalho diminuiriam a importância da presença dela e assim ele voltaria a mente para algo mais normal.
– Está vivendo como um rei aqui, Greenwood – disse, para se distrair das imagens de Phaedra tão etereamente erótica em seu repouso. – As melhorias desde a minha última visita são visíveis.
Matthias ficou radiante.
– Suponho que esteja falando da casa e não da minha companheira, apesar de eu não saber ao certo dizer qual me agrada mais. Trazer as pedras até aqui foi um inferno, mas valeu a pena. Você deveria se juntar a mim, Rothwell. Compre uma mansão antiga e veja como seu dinheiro inglês pode render nesta costa.
– Ele rende porque o lugar é tão inacessível que é preciso navegar milhas até chegar a uma cidadezinha que fica logo ali atrás da montanha. Preciso da vida urbana com mais frequência do que duas vezes ao ano. Contudo, se está feliz em seu isolamento, fico satisfeito por você.
– Não estou nem um pouco isolado. Sempre tenho companhia. Os amigos vêm da Inglaterra, de Roma, de Nápoles e até de Pompeia. Recebi o superintendente do município no mês passado. Ele não se incomodou de subir a montanha em lombo de burro.
– Gostaria que me desse uma carta de apresentação – pediu Elliot. – Quero ver tudo o que escavaram nos últimos anos, não só as atrações abertas para visitantes.
Matthias levantou a sobrancelha, curioso.
– Quer ver os afrescos reveladores das delícias noturnas? A Srta. Blair não vai poder entrar, por mais que eu peça.
– Vou pesquisar outros assuntos. Antes de partir, gostaria que me concedesse alguns minutos para discutirmos o rumo que meu trabalho está tomando.
– Está combinado, então. Amanhã cedo nos trancaremos em meu escritório para falar sobre isso. Sinto falta de dar aulas. Depois me lembro de quão limitados muitos de meus alunos eram e a saudade vai embora.
– Brincar de professor e aluno vai ser muito útil. Vai clarear meus pensamentos. Ah, estou obrigado como cavalheiro a dizer que creio que você tenha entendido mal minha amizade com a Srta. Blair.
– É mesmo? Que pena!
Naquele momento, a dama em questão se juntou a eles. Com seu vestido preto esvoaçante e o cabelo solto, fazia pensar numa linda feiticeira celta. Matthias a convidou para se sentar à mesa. Serviu-lhe café e ficou atrapalhado, o que revelava quanto a companhia dela o provocava.
– Espero que tenha dormido bem em minha humilde casa, Srta. Blair.
– Sua casa é tudo, menos humilde, e dormi muito bem. O som e a brisa do mar são muito relaxantes – assegurou Phaedra, e então virou a cadeira para olhar a cidade. – O que estão fazendo lá embaixo? O que é aquela coisa vermelha perto da água?
– Ah, deve ser o carro para a procissão. Eles devem estar pintando-o. Daqui a três dias é a festa de San Giovanni, São João Batista. É uma grande festa religiosa por aqui. Nenhum barco sai para pescar nesse dia.
– Vai haver uma procissão?
– Uma procissão, uma missa e uma festa. Entre outros rituais, eles colhem nozes nas montanhas para fazer óleo.
– Interessante – disse ela. – Coincide com o solstício. Deve ser outro exemplo de festa pagã da qual os cristãos se apropriaram.
– A Srta. Blair está alcançando uma reputação em estudos mitológicos comparável à da mãe dela em letras românicas – informou Elliot. – Ela publicou um livro sobre o assunto que é muito benquisto.
– Que louvável!
Matthias conseguira falar de forma a diminuir o feito, apesar de admirá-lo.
– Esta data em comum é uma coincidência – continuou ele. – O deus do sol não era uma figura de destaque nas mitologias grega e romana. Apolo é associado a ele, mas o próprio sol, Hélio, desempenha um papel menor. Talvez por haver tanto sol por estas terras, não tenha sido preciso apaziguar esse deus.
– Há muito sol no Egito e, ainda assim, seu deus sol reinava supremo – contrapôs Elliot. – Acho que a Srta. Blair está certa sobre a festa de San Giovanni.
– Talvez – disse Matthias. – E o simbolismo das nozes, o que seria?
Phaedra riu.
– Vou pensar em uma resposta antes de partir, já que o senhor está disposto a ser flexível em suas opiniões.
– Para uma mulher bonita, posso ser completamente flexível, senhorita Phaedra. É meu maior defeito.
Ele olhou para fora da varanda. Um homem se aproximava, vindo por um caminho do norte.
– Eis Whitmarsh, de volta de sua caminhada matinal. Prometi mostrar-lhe um novo tesouro que encontrei. Gostaria de ver minha humilde e querida coleção de artefatos, Srta. Blair?
– Com certeza, Sr. Greenwood.
Ela aceitou sua mão para se levantar. Whitmarsh se juntou a eles ao entrarem na casa.
Elliot estava curioso para ver se Phaedra conseguiria manter a pose de indiferença em relação a ele que assumira nessa manhã. Ela nem sequer enrubescera. Não ficara agitada. Havia notado sua presença de forma indiferente e segura de si. Sua atitude só fez provocar o lado mais obscuro do desejo que o atormentava.
Esse lado agora lhe dizia que ele deveria tê-la seduzido no terraço na noite anterior, como desejara. A ideia fazia mais sentido a cada minuto que passava.
CONTINUA
Um homem que comete um crime precisa encobrir seus rastros, mesmo que eles sejam deixados pelos melhores sapatos que o dinheiro poderia comprar.
Para encobrir os seus, lorde Elliot Rothwell retornou à casa de sua família, em Londres, e se juntou às pessoas recém-chegadas para o baile promovido por seu irmão. Agiu como se houvesse se ausentado por breves instantes para tomar um pouco de ar naquela gloriosa e agradável noite de maio.
Ao cruzar o limiar da porta, começou a cumprimentar os presentes. Belo e alto, o irmão mais novo do quarto marquês de Easterbrook – e também o Rothwell considerado mais amistoso e normal – distribuiu sorrisos a todos, alguns bastante calorosos a certas damas.
Quinze minutos depois, tão suavemente quanto voltara à festa, Elliot puxou assunto com Lady Falrith. Retomou uma conversa que deixara em suspenso duas horas antes e elogiou a dama com tanto tato que ela se esqueceu de que ele havia se ausentado. Em questão de minutos, Lady Falrith parou de se dar conta da passagem do tempo.
Enquanto jogava seus encantos em Lady Falrith, Elliot varria o salão com os olhos à procura do irmão. Não Hayden, que, junto com a esposa, Alexia, era o anfitrião da noite. Estava em busca de Christian, o marquês de Easterbrook.
Os olhares dos dois não se cruzaram, mas o retorno de Elliot ao baile foi notado por Christian. O mais velho se afastou de um círculo de lordes no fundo da sala e caminhou para a porta.
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Elliot dançou uma valsa com Lady Falrith antes de continuar a missão da noite. Fez isso como penitência por estar usando a dama e como um agradecimento sem palavras por sua ajuda involuntária. A noção de tempo de Lady Falrith poderia ser bastante vaga e sua memória, um tanto benevolente. De manhã, ela acreditaria que Elliot havia lhe dispensado atenção a noite inteira e que tinha flertado com ela. Sua autoconfiança seria útil caso algo desagradável acontecesse em relação às atividades de Elliot na cidade naquela noite.
Finda a valsa, ele de novo pediu licença. Ao contrário de Christian, que seguira solitário e direto para a porta, Elliot caminhou pelo salão distribuindo cumprimentos e conversando com todos, até chegar à nova cunhada.
– Está tudo indo bem, não acha? – perguntou ela, seu olhar percorrendo o espaço em busca de confirmação.
– É um triunfo, Alexia.
E, para ela, era mesmo. Um triunfo da personalidade e do temperamento. E talvez um triunfo do amor.
Alexia não era o tipo de mulher que a sociedade esperaria que pudesse se casar com Hayden. Não tinha família nem fortuna. Era tão sensata que nunca aprendera a dissimular, que dirá flertar. Porém, naquela noite ela era a anfitriã no lar de um marquês, com seu cabelo escuro impecavelmente penteado como ditava a última moda e usando roupas igualmente elegantes. A órfã pobre se casara com um homem que a amava como nunca amara antes.
Elliot acreditava que aquele casamento daria certo. Alexia cuidaria para que isso acontecesse. A história já provara que o amor era uma emoção perigosa para os homens da família Rothwell. Contudo a sensata e prática Alexia saberia usar o amor para controlar o perigo. Elliot suspeitava que ela já dominara a fera várias vezes.
Ele se uniu a ela na admiração do sucesso da noite. Em um canto distante, uma mulher pequena de pele muito clara era o centro das atenções. Um penteado adornado de plumas em abundância valorizava seu cabelo louro. Ao mesmo tempo, ela se mantinha vigilante na atenção que uma bela jovem recebia dos rapazes ali por perto.
– O triunfo é seu, Alexia, no entanto, creio que minha tia pretende levar o troféu desta temporada de caça.
– É compreensível a felicidade de sua tia Henrietta por apresentar a filha à sociedade. Dois nobres vinham fazendo galanteios a Caroline nos últimos tempos. Mas ela está irritada comigo hoje porque não convidei um deles para o baile, apesar de ela haver ordenado que eu o fizesse.
Elliot estava pouco interessado nos motivos de irritação da tia. Na lista de convidados, entretanto, tinha todo o interesse.
– Não vi a Srta. Blair, Alexia. Nenhum vestido preto. Nenhum cabelo solto. Hayden a proibiu de convidá-la?
– De jeito nenhum. Phaedra está no exterior. Ela embarcou há cerca de quinze dias.
Ele não queria parecer curioso demais, mas...
– No exterior, você disse?
Os olhos violeta dela se suavizaram, divertindo-se. Voltou toda a sua atenção para ele, o que, considerando o assunto em pauta, não era algo que ele desejasse.
– Primeiro, Nápoles, depois, uma excursão ao sul. Eu avisei a ela que você costuma dizer que não é muito sensato visitar a península Itálica no calor do verão, mas ela queria investigar os rituais e festividades da estação.
Alexia inclinou a cabeça como se fosse confidenciar um segredo.
– Acredito que o falecimento do pai a afetou mais do que ela admite. O último encontro que tiveram foi muito emotivo. Phaedra ficou bastante abalada. Acho que fez a viagem para se animar um pouco.
Ele não duvidava de que se encontrar com o pai em seu leito de morte fosse algo bastante emotivo. Ele mesmo ficara muito consternado ao perder o pai. Nessa noite, porém, estava mais interessado no paradeiro da Srta. Blair e em assuntos discutidos com o pai dela antes da despedida final.
– Se souber onde ela vai se hospedar em Nápoles, posso fazer-lhe uma visita quando eu for, caso ela ainda esteja por lá.
– Ela deixou o endereço do local onde pretendia ficar. Foi indicação de um amigo. Se Phaedra ainda não tiver voltado quando você for, ficarei feliz se puder visitá-la. A independência dela às vezes beira o descuido, e isso me preocupa.
Elliot duvidava de que Phaedra Blair gostasse de ter alguém preocupando-se com ela. Mas Alexia se preocupava de qualquer forma.
– Ai, meu Deus! – murmurou Alexia.
Elliot se virou e viu o motivo do suspiro da cunhada. Henrietta vinha na direção deles, com suas plumas esvoaçantes e seus olhos sonhadores e brilhantes lampejando de tanta determinação.
– Acho que ela está atrás de você – sussurrou Alexia. – Fuja enquanto é tempo ou ela vai pegá-lo para reclamar. Easterbrook permitiu que eu recepcionasse os convidados do baile sem o consentimento dela. Henrietta acredita que o fato de morar nesta casa a torna sua dona.
Elliot era mestre em sair à francesa. Quando a tia alcançou seu destino, ele já se fora havia muito tempo.
Depois de pegar um atalho pelo corredor dos criados e dar uma corrida subindo as escadas dos fundos, Elliot se aproximou dos aposentos de Christian. Entrou na sala de estar e encontrou o irmão esticado em uma cadeira no canto.
O olhar penetrante que Christian lhe lançou deixou claro que sua mente não estava nem de longe tão relaxada quanto o corpo.
– Não encontrei – disse Elliot, respondendo à pergunta que aqueles olhos escuros faziam. – Se estiver na casa ou no escritório dele, está muito bem escondido.
Christian expirou com força. O som que fez demonstrava seu aborrecimento. O assunto em questão vinha cerceando sua liberdade de passar os dias fazendo o que bem entendesse. Elliot não fazia ideia de quais atividades seriam essas. Na verdade, ninguém fazia.
– Ele deve ter queimado tudo ao saber que estava à beira da morte – sugeriu Elliot.
– Merris Langton demonstrava ter uma personalidade tal que é improvável que pensasse em poupar os outros, mesmo à beira da morte.
Christian enfiou um dedo por baixo de sua gravata atada com perfeição e deu um puxão para soltá-la. Sua aparência estava impecável naquela noite, tudo nele demonstrava se tratar de um lorde. Os tecidos de suas vestimentas exibiam a qualidade superior em cada fio. Contudo o gesto ao desatar a gravata mostrava seu desconforto em relação à formalidade da noite e o longo cabelo escuro preso em um rabo de cavalo indicava seu lado excêntrico.
Elliot imaginou que o irmão estaria louco para se desvencilhar daqueles símbolos formais da civilização e se refestelar no robe exótico que sempre usava. O mais comum era encontrá-lo descalço em seus aposentos, não usando meias de seda e sapatos. No momento, entretanto, as únicas indicações de seu jeito informal em casa eram a sobrecasaca desabotoada e a forma lânguida como seu corpo alto se moldava ao forro da cadeira.
– Você verificou se havia tábuas soltas no piso ou outros esconderijos? – perguntou Christian.
– Cheguei a arriscar ser descoberto. Permaneci por tempo de mais nos dois prédios e um guarda estava passando quando saí do escritório no centro financeiro. Estava escuro, não havia luz perto da porta, mas...
Sua descrição da aventura sugeria mais receio do que ele de fato tivera. Elliot acreditava que, em certas circunstâncias, não havia opção a não ser infringir a lei. Só nunca esperara reagir de forma tão fria e indiferente quando se visse numa dessas situações.
– Se alguém perguntar, você ficou no baile a noite toda – disse Christian. – Langton possuía uma pequena editora que publica textos revolucionários. Também era um homem com certo gosto pela chantagem, como descobrimos. Foi uma pena ele ter morrido antes que eu pudesse pagar-lhe. Agora o manuscrito de Richard Drury está sabe lá Deus onde e sua mentira sórdida sobre nosso pai ainda pode vir a público.
– Vou garantir que isso não aconteça.
– Você acha que alguém pode ter pegado o manuscrito antes de você? É provável que eu não tenha sido a única pessoa que Langton abordou.
– Não vi indícios de que alguém já tivesse mexido nas coisas dele. Nem mesmo seu advogado ou testamenteiro. Ele acabou de ser enterrado; foi esta tarde. Não acho que o manuscrito estivesse nem na casa nem no escritório quando ele morreu.
– Esse é um obstáculo muito inconveniente.
– Inconveniente, mas não intransponível. Vou descobrir o manuscrito e o destruirei, se necessário.
A atenção de Christian focou nele.
– Você fala com muita confiança. Sabe onde está o maldito manuscrito, não sabe?
– Faço ideia. Se estiver certo, vamos acabar com isso em breve. Mas pode haver custos para você.
– Pois pagarei. Richard Drury foi membro do Parlamento e, apesar de suas ideias extremistas, um intelectual respeitado. Se suas memórias incluírem tal acusação contra meu pai, muitas pessoas vão acreditar nele.
Vão acreditar porque a acusação reforça o que já creem ser verdade.
Elliot não verbalizou a resposta, mas aquela ideia rondava sua cabeça desde que soubera que Merris Langton planejava publicar as memórias de Richard Drury. O livro incluiria segredos e intrigas que repercutiriam mal sobre a reputação de muitos poderosos, tanto do passado quanto do presente. A acusação que supostamente existia contra o pai deles combinava bem demais com o que a sociedade já pressupunha sobre seu casamento.
Porém, a sociedade estava errada em relação à maior parte do caso. O pai lhe explicara isso em um momento em que os homens não mentem.
Você era o favorito dela. Ela o queria para si e eu permiti, já que você era o caçula. Era um alívio vê-la às vezes se lembrar de que era mãe. Só que agora estou morrendo e mal o conheço. Não espero amor ou pesar de você, mas não vou deixar que pense que sou um monstro, como é provável que ela tenha dito.
– Onde você acha que o manuscrito está? Mantenha-me informado de cada passo, Elliot. Se não estiver fazendo progressos, cuidarei de tudo sozinho.
Só não estava claro como Christian faria isso. Essa incerteza levara Elliot a assumir a tarefa. Seu irmão podia ser cruel ao silenciar ecos do passado.
– Apesar de não ter achado o manuscrito, descobri documentos financeiros no escritório de Langton. A editora está em apuros. Os documentos referentes à propriedade dela foram de grande valia. Richard Drury foi sócio desde o início. Sem dúvida foi esse o motivo pelo qual Langton recebeu suas memórias.
Christian achou isso interessante.
– Teremos que abordar o advogado de Langton e ver quem vai ficar com tudo agora.
– Os documentos indicam que a parte de Drury foi deixada para a única filha. Portanto, ainda há alguém vivo para lidar com o assunto. E provavelmente foi cúmplice no esquema de chantagem desde o início.
– Única filha? Maldição!
Christian apoiou a cabeça no encosto da cadeira, fechou os olhos e emitiu um resmungo exasperado.
– Não me diga que é Phaedra Blair. Que inferno!
– Sim, Phaedra Blair.
Christian xingou novamente.
– É bem do estilo do Sr. Drury, com suas ideias radicais e vida não convencional, deixar para uma mulher, sua filha bastarda, a sociedade num negócio – afirmou, depois desviou o olhar para baixo e prosseguiu: – É claro, ela deve ficar feliz com o dinheiro se a editora estiver em apuros. Talvez até agradeça por ter um motivo para não publicar as memórias do pai. Com certeza os textos abordam assuntos pessoais sobre ela e a mãe.
– É possível.
Mas Elliot não acreditava que as negociações seriam tão simples assim. A Srta. Blair era uma complicação inoportuna. Ela poderia ver na publicação das memórias e seus segredos uma possibilidade de ganhar um bom dinheiro e salvar a editora. Ou, pior, poderia acreditar que seus ideais de justiça social seriam fortalecidos quando ela revelasse o calcanhar de aquiles da sociedade culta.
– O livro dela foi publicado por Langton, não? Está na biblioteca aqui, em algum lugar. Confesso que nunca o li. Não tenho muito interesse em mitologia e folclore, que dirá em estudos que misturam ambos – confessou Christian.
– Ouvi dizer que a base teórica é mais do que respeitável.
Elliot dava a mão à palmatória, quando era o caso.
– Ela herdou a inteligência dos pais, junto com a indiferença pelas convenções sociais e pelas regras de conduta.
– Então, nas atuais circunstâncias, nada do que lhe foi legado é boa notícia para nós.
Christian se levantou, abotoou o casaco e verificou se o colarinho estava arrumado. Ia voltar ao baile.
– É melhor não contar a Hayden sobre isso. Ele é muito protetor em relação à esposa, e a Srta. Blair é amiga dela. Seria melhor que eles continuassem na ignorância, para o caso de você ser obrigado a agir mais rispidamente.
– A Srta. Blair zarpou para Nápoles há duas semanas. Farei a transação com ela antes que Alexia tenha oportunidade de vê-la.
– Vai segui-la até lá para isso?
– Eu pretendia ir a Pompeia no outono, de qualquer forma. Quero estudar as recentes escavações para meu próximo livro. Só vou antecipar a viagem.
Andaram lado a lado até a escada. A cada degrau, os acordes musicais iam ficando cada vez mais altos e o burburinho de vozes enchia os espaços majestosos. Ao descerem para a alegre turba, Elliot observou a expressão distante e distraída do irmão.
– Não se preocupe, Christian. Vou me certificar de que a acusação contra nosso pai nunca seja publicada.
O rápido sorriso de Christian não deixou sua expressão mais leve.
– Não duvido de suas habilidades ou de sua determinação. Não era sobre isso que estava pensando neste exato momento.
– Então era sobre o quê?
– Estava pensando em Phaedra Blair e imaginando se existe um homem na face da Terra que consiga, como você disse, fazer transações com ela.
Elliot seguia no escuro, iluminando o caminho com a chama da pequena lamparina que carregava.
Os convidados tinham ido embora e os criados estavam dormindo. Hayden e Alexia provavelmente gozavam das delícias do leito conjugal em sua casa na Hill Street. Christian ainda devia estar acordado, mas não deixaria seus aposentos pelos próximos dias.
A luz fraca se refletia nas molduras douradas na galeria. A lua lançava um pouco mais de luminosidade através dos janelões que vazavam outra parede. Elliot parou na frente de dois retratos. Não tinha descido no intuito de ir àquele cômodo, mas seu objetivo tinha tudo a ver com o homem e a mulher imortalizados naquelas imagens.
O artista tinha usado fundos semelhantes para os dois quadros, como se uma pintura desse continuidade à outra. Era bom ver seus pais juntos assim, duas metades de um todo, mesmo que a unidade implícita fosse mentira. Podia contar nos dedos o número de vezes que ao menos vira os dois no mesmo ambiente.
Não vou deixar que pense que sou um monstro, como é provável que ela tenha dito.
Seu pai se enganara nessa avaliação. Exceto por um único desabafo, a mãe nunca falara com ele sobre a separação e seus motivos. Ela quase não falava nada nas horas que passava com Elliot na biblioteca em Aylesbury.
O medo que sentira do pai vinha dele mesmo, não viera da mãe. Mas apreciara os raros momentos de atenção que recebera daquele pai que parecia não se lembrar de que tinha três filhos, não apenas dois.
Continuou sua caminhada para a biblioteca pensando na longa conversa que tivera com o pai, a última e única da vida inteira. Aprendera verdades importantes naquele dia, sobre seres humanos e paixões, sobre orgulho e alma e sobre a forma como uma criança pode não enxergar direito o mundo à sua volta.
Tinha chegado ao fim dessa conversa já sem medo. Após aquelas confidências, sentira-se como filho de seu pai pela primeira vez na vida.
Correu a lamparina pelas lombadas de couro dos livros na biblioteca. Seguiu para a estante do canto, buscando a prateleira mais baixa. Depois da morte da mãe, havia trazido para ali os livros pessoais dela, os que ele a vira lendo em seu exílio em Aylesbury.
Não sabia por que trouxera aqueles livros para Londres. Talvez assim uma parte dela permanecesse onde a família costumava se reunir. Seguira esse impulso muito antes da conversa com o pai, um ato de rebeldia na tentativa de finalmente pôr fim à separação dela de suas vidas.
Ninguém nunca notara o acréscimo desses livros às centenas de volumes. Bem embaixo, em um canto obscuro, nem o fato de suas encadernações não combinarem com as dos outros tinha importância.
Passou o dedo por um grupo de obras não encadernadas. Finas e pequenas, eram as brochuras que pertenceram à mãe. Retirou-as da estante, espalhou-as pelo chão e aproximou a lamparina de seus títulos.
Viu o que queria. Um ensaio contra o casamento, escrito trinta anos antes por uma famosa intelectual. A autora vivera de acordo com as próprias crenças. Chegara a recusar uma proposta de casamento do amor de sua vida, Richard Drury, mesmo estando grávida.
Ele carregou a brochura e a lamparina até a estante onde Easterbrook arrumara as novas aquisições da biblioteca. Pegou uma dissertação sobre mitologia que ainda exalava cheiro de couro novo.
Levou os dois livros para seu quarto e começou a lê-los. Estava se preparando para enfrentar Phaedra Blair.
CAPÍTULO 2
– Signora, não acho que eu deva pagar por estes cômodos se nem mesmo quero usá-los.
Phaedra conseguiu expressar sua objeção juntando seus conhecimentos de latim aos poucos termos que aprendera do dialeto napolitano. Esperava que, ainda que as palavras não fossem suficientes, seu tom comunicasse seu desacordo em relação à conta que a signora Cirillo lhe apresentara.
Recebeu uma resposta longa e raivosa, despejada de forma igualmente eloquente. A signora Cirillo não se importava se Phaedra tinha ficado nos cômodos contra sua vontade. Nem gostava de ter guardas reais posicionados do lado de fora de sua hospedaria modesta porém respeitável. Queria ser paga e tivera a ousadia de acrescentar um valor referente ao incômodo que os guardas representavam para os outros hóspedes.
Apesar de tentada a dizer à mulher que mandasse aquela conta para o rei, Phaedra se controlou e foi buscar as moedas no quarto.
Fora mesmo um erro gastar uma semana naquela cidade antes de partir para as ruínas. Se sua reclusão durasse muito tempo, não teria dinheiro para comprar a passagem de volta para a Inglaterra, que dirá continuar sua missão por ali. A ideia era fazer uma viagem curta ao exterior. Não viera a passeio, afinal. Estava lá por um motivo e tinha assuntos urgentes a tratar quando voltasse para casa.
Amansada por mais uma semana, a signora Cirillo foi embora. Phaedra voltou para onde estava sua bagagem e refletiu sobre a situação. Procurou em sua valise e encontrou um xale preto. Desfez o nó que havia em uma de suas pontas, soltando o objeto escondido nele.
Uma joia grande caiu em seu colo e seus matizes brilharam na pouca luz do quarto. Pequenas imagens finamente entalhadas se destacavam em branco-perolado contra o fundo vermelho-escuro. Retratavam uma cena mitológica do deus Baco e seu séquito.
Fora o objeto mais caro que a mãe lhe deixara ao morrer. Para garantir o futuro de minha filha, deixo-lhe meu único objeto de valor, meu camafeu de ágata, uma antiguidade de Pompeia, ela havia acrescentado à mão ao testamento.
Phaedra nunca tinha pensado muito sobre aquele aditamento nos seis anos que se passaram desde a morte da mãe. Conservava com carinho aquela peça, assim como tudo o que lembrava a brilhante e extraordinária Artemis Blair. O valor da joia a deixava mais tranquila em relação a seu futuro financeiro, era bem verdade, mas ela esperava nunca ter que vendê-la. Agora, no entanto, a frase belamente escrita pela mãe levantava perguntas que exigiam respostas.
Amarrou o camafeu de volta no xale, guardou-o e retornou para a sala de estar. Abriu as persianas do janelão que dava para oeste. A baía pareceu muito azul a distância e a ilha de Ischia podia ser avistada em meio à névoa longínqua.
Uma brisa marinha penetrou no cômodo, esvoaçando alguns de seus cachos. A voz do guarda também chegou até ela. Phaedra debruçou-se na janela do terceiro pavimento para ver com quem ele conversava.
Viu alguém de cabelos escuros bem diante do capacete de metal e da imponente bainha da espada do guarda. O cabelo tinha um corte da última moda e se movia de forma romântica ao soprar da brisa. Pertencia a um homem bem mais alto do que o guarda, de ombros largos e que parecia usar uma sobrecasaca cara. As botas eram do tipo visto nos pés mais elegantes de Londres. A julgar pelos trajes, tratava-se de um cavalheiro inglês.
Ela apurou o ouvido para escutar a conversa. Sentiu-se surpreendentemente reconfortada por haver alguém de seu país ali, mesmo que só estivesse pedindo instruções de como andar pela cidade nas ruas mais escondidas do Bairro Espanhol.
Ela considerou a hipótese de chamá-lo e pedir ajuda. Não tinha certeza se os ingleses ali, em Nápoles, sabiam que ela fora presa. Mas também duvidava de que dessem a mínima caso soubessem. Os que a conheciam não aprovavam seu comportamento nem queriam sua companhia. Phaedra normalmente também não apreciava a companhia deles, mas sua inabilidade de se mesclar à sociedade inglesa ali tinha lhe criado problemas muito antes de seu inesperado encarceramento.
As coisas pareciam não ir bem para o inglês: os gestos do guarda deixavam claro que ele se desculpava respeitosamente. Estou cumprindo meu dever. Eu colaboraria se pudesse, mas...
O inglês começou a se afastar. Caminhou para o outro lado da calçada e parou. Olhou para cima, franzindo de leve as sobrancelhas perfeitas. Seus olhos escuros alertas percorreram a fachada do prédio.
Phaedra sentiu o coração ficar mais leve – e não só porque o homem tinha um rosto que faria a pulsação de qualquer mulher acelerar. Ela o conhecia. Era o famoso historiador lorde Elliot Rothwell que estava lá embaixo. Alexia dissera que ele visitaria Nápoles no outono, contudo parecia que ele antecipara a viagem.
Ela se inclinou mais para fora da janela e acenou. Lorde Elliot respondeu com um leve movimento de cabeça. Ela levou um dedo aos lábios e apontou para o guarda. Depois gesticulou indicando os fundos do prédio.
Lorde Elliot se afastou fingindo estudar a arquitetura das construções erguidas ao longo da rua. Phaedra fechou a persiana e correu para o outro lado do apartamento. Abriu a janela e olhou para o pequeno jardim embaixo.
Lorde Elliot levou um tempo para chegar lá. Por fim, ela o viu entrar pela extremidade oposta, vindo pelo portão que dava para a ruela fétida que separava os imóveis. Ele seguiu sem nenhuma hesitação. Caminhou na direção dela, alto e confiante, como um homem acostumado a fazer o que bem entendia. Mesmo que a natureza não o houvesse agraciado com um rosto tão bonito e angular, só seu jeito relaxado de andar e seus modos seguros já causariam forte impressão.
Ela ficou tão feliz por ver alguém conhecido que nem se importou por aqueles olhos escuros a avaliarem tão minuciosamente. Percebera um olhar semelhante por sobre o sorriso manso de lorde Elliot quando se conheceram, no casamento de Alexia. Era a reação de um homem que a achava vagamente interessante, mesmo desaprovando sua aparência, suas crenças, sua história, sua família, seu... tudo.
– Srta. Blair, estou aliviado em vê-la bem-disposta e em boa forma.
Outro daqueles sorrisos mansos acompanhou a saudação.
– Também estou aliviada em vê-lo, lorde Elliot.
– Alexia me deu o nome de sua hospedaria e me pediu que viesse visitá-la, para verificar se não precisava de nada.
– Foi muita gentileza dela. Lamento não poder recebê-lo adequadamente, agora que chegou.
– Parece que não pode me receber de forma nenhuma.
Era bem característico dele fazer algumas gracinhas antes de entrar no assunto.
– Imagino que esteja surpreso, até mesmo chocado, por minha prisão.
– Sou um homem que raramente se choca e quase nunca se surpreende. Contudo admito estar um tanto curioso. A senhorita só está em Nápoles há poucas semanas. A maioria das pessoas levaria pelo menos um ano para acumular crimes suficientes para merecer tal punição.
Ele estava se divertindo com a situação? Naquelas circunstâncias, Phaedra achou a conversa inteligente de lorde Elliot bastante inadequada.
– Não houve crime nenhum, só um pequeno mal-entendido.
– Pequeno? Srta. Blair, há um membro da guarda real na sua porta.
– Não estou convencida de que foi o rei que o colocou lá. Um dos funcionários do tribunal fez isso comigo. Ele é um homenzinho abominável, com poder em demasia e pouca inteligência.
Lorde Elliot cruzou os braços, o que o fez parecer crítico e poderoso. Ela odiava quando os homens assumiam essa postura com ela. Era a personificação de tudo o que havia de errado com a metade masculina da humanidade.
– O guarda mencionou um duelo – disse lorde Elliot.
– Como é que eu iria adivinhar que esses homens fossem tão possessivos a ponto de tentarem se matar porque uma mulher conversou com...
– Espadas e adagas. O guarda disse que houve sangue.
– Marsilio é um jovem artista. Não passa de um garoto. Teimoso, porém muito gentil. Eu não fazia ideia de que iria interpretar erroneamente a nossa amizade a ponto de desafiar Pietro simplesmente porque passeei com ele às margens da baía.
– É lamentável para a senhorita que Marsilio, o garoto teimoso e gentil, seja parente do rei. Ele quase foi morto no duelo. Felizmente, o guarda disse que ele irá sobreviver.
– Ah, graças a Deus! Apesar de as pessoas exagerarem bastante por aqui. Pelo que entendi, ele não ficou muito ferido, ainda que qualquer ferimento possa se agravar neste clima. Fiquei muito pesarosa com o ocorrido. Eu disse isso. Expressei meu arrependimento e minhas desculpas falando bem devagar no meu idioma e também em latim, para ser bem entendida, mas o homenzinho intrometido, odioso e estúpido não me ouviu. Ele até me acusou de ser uma meretriz, o que passou de todas as medidas. Expliquei que nunca tirei nem um centavo de homem nenhum.
– A senhorita declarou sua virtude e honra ou disse ao homenzinho intrometido e estúpido que acha que as mulheres devem dispor de seu corpo livremente?
Ela não gostou nada do olhar profundo e sagaz dele ao expressar essa ousada insinuação. Se não estivesse em uma situação tão ridícula, Phaedra lhe diria que era, sim, uma mulher pouco convencional, mas isso não dava a ele o direito de ser rude. No momento, contudo a prudência tinha que falar mais alto.
– Expliquei minha crença no amor livre, o que é diferente de dispor do corpo livremente, lorde Elliot. Tentei instruí-lo. Ficaria feliz em fazer o mesmo pelo senhor, se algum dia tivermos um encontro mais oportuno.
– Que proposta tentadora, Srta. Blair. Contudo espero que as reflexões filosóficas tenham ficado esquecidas em sua cela. Seria melhor ter se declarado uma cortesã. Aqui se sabe tudo sobre esse assunto. Por outro lado, conceitos radicais sobre o amor livre, bem...
O gesto dele com as mãos disse tudo. O que esperava, mulher? Você vive fora das regras sociais e até a sua aparência convida a mal-entendidos.
Mais uma vez ela engoliu o que seu instinto lhe mandava dizer. Discutir só serviria para afastá-lo, e ela queria muito que ele ficasse um pouco mais. Não se dera conta da própria solidão ali e da tristeza que o isolamento lhe causava. Só ouvir o próprio idioma já era um alento.
– Acha que vão me soltar logo?
De novo o mesmo gesto com as mãos, só que agora acompanhado de um dar de ombros.
– Não há constituição aqui. Nem se julgam os casos observando precedentes, como na Inglaterra. Na verdade, não existe um direito codificado, é uma monarquia à moda antiga. A senhorita tanto pode ser libertada amanhã como ser mandada de volta à Inglaterra, ou levada a julgamento, ou permanecer nesses aposentos por anos, ao bel-prazer do rei.
– Anos! Isso seria uma barbaridade.
– Acho que não vai chegar a esse ponto. Contudo pode levar alguns meses até que seu homenzinho odioso e estúpido perca o interesse no caso.
Ele olhou para a fachada do prédio em frente e depois para o portão do jardim.
– Srta. Blair, não posso mais ficar escondido neste jardim, ou também correria o risco de me tornar hóspede dos guardas do rei. Tomarei providências para que lhe mandem comida e deixarei uma quantia em dinheiro para pagar pelo apartamento, pois com certeza continuarão a lhe cobrar o aluguel. Também vou pedir que um adido inglês venha, de tempos em tempos, verificar se está tudo bem.
Meu Deus, ele estava indo embora! Talvez ela envelhecesse naqueles cômodos, ou até morresse de fome quando o dinheiro acabasse.
Ela não era o tipo de mulher que dependesse de um homem para sustentá-la ou protegê-la. Além do mais, lorde Elliot não havia conquistado seu apreço durante a conversa. Contudo estar diante de um futuro incerto a ajudou a superar sua aversão natural a pedir ajuda àquele homem.
– Lorde Elliot – chamou, fazendo-o parar após ele ter dado três passos na direção do portão do jardim. – Lorde Elliot, os adidos ingleses não estão interessados em minha situação. Pergunto-me se o senhor consideraria a hipótese de interceder em meu favor. Tenho certeza de que o homenzinho odioso ficaria muito impressionado com suas ligações familiares e sua fama como historiador. Se pedisse em meu nome, talvez ajudasse.
A expressão dele foi simpática, porém nada encorajadora.
– Sou o caçula. Minha posição é bem menos importante aqui e minha fama pouco conta. Esse tribunal não tem motivo algum para me conceder favores.
– Estou certa de que será mais bem recebido do que eu jamais conseguiria. Pelo menos, conhece o idioma deles. Vi-o conversar com o guarda.
– Não sou fluente o bastante no dialeto para defendê-la bem.
– Ficaria grata por qualquer tentativa de sua parte.
Que fim levara o cavalheirismo? Não acreditava nele, mas gente do tipo de Elliot Rothwell, sim. Ela era uma donzela em perigo e esse cavalheiro deveria se prontificar a ajudá-la, não ficar parado no meio do jardim, com aquele jeito de quem adoraria nunca tê-la avistado na janela.
Ele refletiu um distante, analisando o pedido. Ela sentiu seu sorriso congelar até virar uma careta suplicante.
– Não estamos na Inglaterra, Srta. Blair. Mesmo que eu tenha êxito, talvez a senhorita não aprecie as condições impostas por eles em troca de sua liberdade.
– Vou me esforçar e acatar quaisquer condições, ainda que reze para que não me ponham em um navio de volta para a Inglaterra de imediato. Vim até aqui e preciso, na verdade quero, visitar as escavações de Pompeia. Antes de ir embora. É um antigo sonho meu.
Ele parou para pensar por um longo tempo. Seu suspiro deixou claro que sua decisão ia contra o próprio bom senso.
– Prometi a Alexia que cuidaria do seu bem-estar, então farei o que puder. Encontrar o homem que ordenou sua detenção pode não ser tarefa fácil. Qual é o nome dele? Preferia não ter que andar pelos corredores do tribunal perguntando por um homenzinho odioso e estúpido. Ele poderia ouvir a descrição, o que não nos ajudaria em nada. Além disso, ela provavelmente se aplica a muitos outros funcionários da Justiça.
Ele havia aceitado seu pedido não por um desejo genuíno de ajudá-la, mas para cumprir o que considerava seu dever. Mas Phaedra Blair estava desesperada demais para entrar em detalhes a respeito de suas motivações.
– O nome dele é Gentile Sansoni. Que cara é essa? O senhor o conhece?
– Já ouvi falar dele. Sua autodefesa caiu em ouvidos moucos, Srta. Blair. Sansoni não fala inglês nem latim. Ele é um legítimo napolitano, o que não é boa notícia.
Certamente Phaedra Blair chamara a atenção de Gentile Sansoni, capitão da polícia secreta do rei. É claro que, com seu longo cabelo ruivo esvoaçando ao sol, solto e descoberto, ela chamaria a atenção de toda a Nápoles.
Elliot ouvira falar sobre o algoz da Srta. Blair durante sua última visita à cidade, fazia três anos. Sansoni fizera sua fama a custa de sangue, em 1820, quando o breve governo republicano fora violentamente vencido e a monarquia, restaurada.
Diziam que Sansoni era responsável pelo desaparecimento inesperado de carbonários, ou constitucionalistas, e também que abusava de sua autoridade em setores que tinham pouco a ver com política. Não era o tipo de homem que se impressionaria com um cavalheiro inglês, e Elliot também não acreditava que encarasse de forma positiva uma tentativa sua de recorrer a seus superiores para mudar a decisão tomada pelo capitão.
Elliot não poderia negociar sobre o livro do pai da Srta. Blair enquanto ela permanecesse presa, por isso aceitara de imediato tentar libertá-la. Só tinha fingido hesitar para fazer com que ela se sentisse em dívida.
Também se deixara levar pela desprezível tentação de fazer com que aquela defensora declarada da independência feminina implorasse pela ajuda de um homem. De alguma forma, pelo simples fato de existir, a Srta. Blair conseguia fazer com que um homem se sentisse desafiado. Os instintos dele tinham reagido à altura.
Contudo o dever falara mais alto e, no dia seguinte, ele se dispôs a fazer o que estivesse a seu alcance por ela. Sansoni não se deixaria impressionar por cavalheiros ingleses, mas talvez pelo menos ouvisse um capitão da Marinha britânica. A corte de Nápoles ainda reverenciava a memória de Nelson, e Elliot suspeitava que Sansoni veria o herói inglês quase como um irmão que um dia, muito tempo antes do rápido governo republicano, ajudara a impedir outra tentativa de golpe contra o rei.
Sempre havia navios britânicos no porto de Nápoles, e Elliot foi visitar um cujo capitão ele conhecia. Dois dias depois de se encontrar com a Srta. Blair, Elliot levou Augustus Cornell – que vestia seu traje militar completo e impecável – ao longo de quilômetros de corredores de palácios até encontrarem o covil de Gentile Sansoni.
Como era apropriado a um funcionário da Justiça que trabalhava nas sombras, a sala de Sansoni se localizava nos fundos do prédio e num andar tão baixo que, a caminho dela, as escadas passavam de fino mármore para simples travertino. Apesar da localização, Sansoni a dotara de móveis suntuosos o suficiente para parecer importante. Arrumara um local grande o bastante para suas ambições, mas o teto baixo e a falta de janelas davam ao lugar um aspecto cavernoso.
– Pode deixar que eu falo – disse Cornell, com seu rosto suave e pálido que expressava a formalidade dos homens de sua patente. – Já tive que tratar com ele antes e todo cuidado é pouco.
– Sabe falar a língua?
O napolitano era um dialeto bem diferente daquele falado em Roma ou em Florença. Mesmo tendo muito de latim, que Elliot conhecia, o lorde não saberia o bastante dele para não ficar em desvantagem ao usá-lo ali.
– Esperemos que o suficiente. Fique aqui. Agirei como mediador, física e simbolicamente.
Elliot ficou perto da porta, como ordenado. Cornell atravessou a sala e se aproximou do homenzinho moreno sentado na larga mesa na outra extremidade. A descrição que a Srta. Blair fizera de Sansoni fora perfeita. Ele parecia mesmo repugnante e odioso e, naquele momento, muito desconfiado. Suas sobrancelhas negras encobriam os olhos de águia amendoados, tão comuns naquela região.
Sansoni ofereceu vinho, fizeram um brinde e depois entabularam uma conversa. Por fim, Cornell caminhou de volta até Elliot.
– Há uma complicação – disse ele, baixo. – Esse amigo da Srta. Blair, Marsilio, o que levou a pior no duelo, é parente distante do rei e recebe os favores da família real por conta de seus dotes artísticos. Também é um rapaz com quem acho que Sansoni espera casar uma de suas parentas, consolidando assim sua própria posição. Mas esse sonho é improvável de se realizar devido à origem humilde de Sansoni. Ainda assim, ele fez do bem-estar do rapaz sua missão pessoal.
O capitão aproximou o rosto do de Elliot para poder falar ainda mais baixo.
– Também creio que o rei não tenha conhecimento desse duelo. Mencionei várias vezes o título nobre do seu irmão e suspeito que Sansoni só me recebeu por temer que um marquês britânico possa levar o assunto diretamente ao rei.
Um marquês com certeza poderia, mas isso demoraria meses.
– Pode conseguir a libertação da Srta. Blair?
– Duvido muito. O duelo não foi tudo. O rei possui uma coleção de arte e o acesso a uma de suas salas é proibido a mulheres, pois contém imagens antigas de natureza carnal. A Srta. Blair convenceu o jovem Marsilio a deixá-la entrar lá. Agora é acusada de invasão de domicílio e de gostar de arte licenciosa. Sansoni também disse que ela é uma cortesã. Apesar de Nápoles ser infame por permitir que as mulheres exerçam atividades desse tipo, a Srta. Blair se esgueirou por lugares que a corte frequenta...
– Ela não é cortesã. Ponho a minha mão no fogo. Ela é incomum, é verdade. Excêntrica. Uma livre-pensadora, porém honesta. É claro que Sansoni sabe que pessoas assim existem. Explique isso a ele.
– A função desse homem é deter livres-pensadores e ele a cumpre com deleite. Ainda assim, vou tentar novamente.
Mais uma vez Cornell atravessou a sala. A conversa foi mais breve dessa vez. Os olhos negros de Sansoni buscaram Elliot e o examinaram dos pés à cabeça.
Cornell voltou.
– Ele falou mais rápido dessa vez e não compreendi tudo. Mas perguntou com que autoridade você e sua família se intrometem neste caso. Exige saber se você tem parentesco ou alguma outra relação com ela.
Elliot não tinha qualquer relação com ela, nem autoridade sobre o caso, porém não poderia admitir isso.
– Diga-lhe que ela é uma boa amiga da família. Easterbrook a recebe como a uma irmã.
Essa mentira deslavada nunca seria refutada. Christian faria o mesmo naquelas circunstâncias.
– Diga que tentamos exercer nosso controle sobre ela, contudo ela fez essa viagem inesperada a Nápoles para fugir da nossa influência. Vim para cuidar de seu bem-estar e posso garantir que não vai haver mais problemas. Se ele der a entender que aceita suborno, diga-lhe que pagarei para tê-la de volta.
A conversa de Cornell com Sansoni ficou mais animada dessa vez. O napolitano gesticulava muito, numa rápida sucessão. Quando Cornell voltou com seu relatório, parecia um pouco preocupado.
– Temo que tenha havido um mal-entendido. E que esclarecê-lo possa trazer outras complicações. Culpo minha falta de fluência no idioma por essa infeliz reviravolta nas negociações – disse ele.
– Mas ele parece bem mais calmo e amigável. Qual foi o mal-entendido?
Cornell enrubesceu.
– Não sei exatamente como, mas ele concluiu que o senhor é noivo da Srta. Blair e que ela veio para cá fugindo de um casamento arranjado que sua família aceitou devido ao polpudo dote da moça. Ele acha que você a seguiu para levá-la de volta.
– Um mal-entendido e tanto! Como isso aconteceu?
– Não tenho certeza. Devo ter usado as palavras “família”, “irmã”, “dinheiro” e “fuga” de forma confusa e dado a entender mais do que pretendia.
Cornell deu um suspiro e já voltava para a sala, para tentar corrigir seu erro, quando Elliot o pegou pelo braço, detendo-o.
– Ele está disposto a libertá-la se mantivermos esse mal-entendido?
– Sim, mas...
– Tem certeza de que é isso que ele tem em mente?
– Não posso garantir que tenha entendido direito a interpretação dele, mas...
– Então não vamos corrigir nada.
– Não estou certo de que isso seja honroso.
– Você não disse inverdades e não tem certeza do mal-entendido – assegurou Elliot, pondo a mão no ombro de Cornell. – Aceitarei isso como um presente da Providência divina e deixarei como está. Ele não é um homem que tenha contato com a comunidade britânica daqui. Se entendeu mal, nunca descobrirá a verdade.
Cornell se deixou convencer.
– Se você está tão determinado, então que assim seja. Venha comigo. Ele quer a sua palavra de que vai controlar a Srta. Blair enquanto ela permanecer neste reino. Ela deve ficar sob sua autoridade. Será responsabilizado por qualquer outro problema que ela crie. Está preparado para prestar juramento?
Elliot assentiu. Atravessou a caverna com o capitão Cornell e assumiu a guarda da Srta. Blair, concedida pelo odioso e repugnante Gentile Sansoni.
CAPÍTULO 3
A signora Cirillo chamou à porta e Phaedra se levantou da escrivaninha para atendê-la. Se aquela mulher queria mais dinheiro tão cedo...
Uma visão maravilhosa a aguardava quando abriu a porta de seus aposentos. A signora Cirillo não estava sozinha. Lorde Elliot estava ao seu lado.
Phaedra manteve a compostura, apesar da vontade de gritar de alegria. Se ele estava lá, só podia significar uma coisa.
– Lorde Elliot, entre, por favor. Grazie, signora.
A signora Cirillo arqueou as sobrancelhas por sobre seus olhos felinos escuros ao ser dispensada. Phaedra fez-lhe ver que não era bem-vinda.
– Está trazendo boas-novas, assim espero, lorde Elliot – disse Phaedra quando ficaram sozinhos.
– Sua prisão domiciliar está encerrada, Srta. Blair. Temos que agradecer ao capitão Cornell, do Euryalus. Ele falou com Sansoni em nosso favor.
– Graças a Deus pela Marinha britânica.
Phaedra correu para a janela e abriu as persianas. O guarda tinha ido embora.
– Nem acredito que vou poder dar uma volta às margens da baía hoje à noite.
Correu de volta até lorde Elliott e lhe deu um abraço.
– Sou imensamente grata.
Ele sorriu gentilmente quando ela o largou. Parecia entender sua animação e perdoar sua exuberância. Se seu olhar tinha se abrandado um pouco depois do abraço impulsivo, era compreensível. Afinal, ele era homem.
Estava magnífico, vestido em uma sobrecasaca marrom feita sob medida e botas de cano alto. O sorriso contribuía bastante para suavizar a dureza das feições dos Rothwells. Ao contrário de seus irmãos mais velhos, lorde Elliot era considerado alguém muito sorridente, o que, ao que tudo indicava, era pura verdade.
Ele olhou em volta da sala de estar e o olhar se deteve na escrivaninha.
– Temo ter interrompido sua carta.
– Uma interrupção muito bem-vinda. Estava escrevendo para Alexia, desabafando meu infortúnio, na esperança de que ao menos conseguisse jogar a carta quando o senhor voltasse aqui.
– Por que não termina a carta logo e lhe diz que está tudo bem? Posso entregá-la a Cornell. Ele vai zarpar em dois dias para Portsmouth e poderá postar a carta para Londres de lá.
– Que ideia esplêndida, se não me achar rude por rabiscar umas linhas a mais.
– Nem um pouco, Srta. Blair. Nem um pouco.
Ela se sentou e acrescentou rapidamente um parágrafo para contar a Alexia que tudo fora resolvido a contento, graças ao cunhado da amiga. Dobrou, endereçou, selou o papel e ficou com ele na mão. Lorde Elliot puxou a carta de seus dedos com delicadeza e a colocou no bolso da sobrecasaca.
Em seguida, retomou sua avaliação da sala de estar e da vista.
– A senhorita veio atender a porta. Onde está sua camareira?
– Não tenho camareira, lorde Elliot. Nem criados. Nem em Londres.
– Isso é por causa de outra crença filosófica?
– É uma decisão prática. Um tio me deixou uma renda respeitável, contudo prefiro gastá-la de outras formas.
– Muito sensato de sua parte. Contudo o fato de não ter criados é um inconveniente.
– De jeito nenhum.
Ela deu meia-volta e as dobras de seu vestido preto, assim com o cabelo comprido, esvoaçaram.
– Um vestido como este não exige uma criada para ser colocado e meu cabelo só precisa de uma boa escovadela.
– Não estava pensando nas suas vestimentas. Preciso lhe falar dos desdobramentos do caso e, sem uma criada conosco...
Estava preocupado com a reputação dela por ficar sozinha com um homem. Que encantador.
– Lorde Elliot, é impossível me comprometer, porque estou acima dessas regras sociais estúpidas. Além disso, trata-se de um encontro de negócios, não? Em situações assim, nossa privacidade não é apenas permitida, como necessária.
Ela duvidava que ele aceitasse seu raciocínio, por mais lógico que fosse. Homens como ele nunca aceitavam. Contudo, para seu espanto, ele não a refutou.
– A senhorita está certa. Prossigamos, então. Não quer se sentar? Isso vai levar um tempo.
Ele pareceu muito sério de repente. Sério, grave e... severo. Seu gesto ao apontar o sofá pareceu acompanhar uma ordem, não a sugestão que fizera tão educadamente. A tentação de permanecer de pé a atiçou. Sentou-se, mas apenas porque ele fora o responsável por obter sua libertação.
Elliot se acomodou em uma cadeira diante dela e então lhe deu uma boa olhada, como se a medisse dos pés à cabeça. Foi como se nunca a tivesse visto e tentasse interpretar a imagem peculiar que ela apresentava.
Phaedra não podia afastar da mente a impressão de que, de certa forma, nunca o tinha visto antes também. Não havia nada mais da graça suave do lorde agora, apenas um longo olhar avaliador e invasivo que a deixava desconfortável. Uma reação muito feminina retumbava dentro dela.
Isso era a pior coisa em relação aos homens bonitos. A beleza deles deixava a mulher em desvantagem quando eles lhe dirigiam sua atenção. Esse homem era muito bonito. Era também muito masculino na maioria das situações e sutilmente másculo nas piores delas. Naquele exato momento, parecia estar tentando, de maneira deliberada, deixá-la perturbada. Não o fazia por motivos carnais, disso Phaedra tinha certeza. Porém, ele emanava sedução também e o sangue dela reagia a isso.
Proteger, possuir, conquistar – tudo eram facetas do mesmo instinto primitivo, não? Um homem não poderia seguir uma dessas inclinações sem despertar as outras dentro de si, e uma mulher era facilmente subjugada se não tomasse cuidado. Ela se perguntou que parte ancestral da personalidade masculina o motivava naquele momento.
– Alexia me pediu para tomar conta da senhorita. Não menti ao lhe dizer isso. Contudo tive outros motivos para visitá-la e agora preciso tratar deles.
– Como só nos vimos uma vez, no casamento de Alexia, e muito rápido, não posso imaginar quais possam ser seus motivos.
– Acho que pode.
Agora ele a estava aborrecendo.
– Tenho certeza de que não posso.
O tom dele indicou que ela o aborrecera também:
– Srta. Blair, chegou aos meus ouvidos que a senhorita agora é sócia da editora de Merris Langton, tendo herdado a participação de seu pai no negócio.
– Essa informação não foi divulgada, lorde Elliot. Uma vez que os homens pressupõem que as mulheres não podem ter sucesso nos negócios e como muitos acreditam ser anormal até que uma mulher tente, decidi manter isso em sigilo, de forma que o preconceito não afete a empresa.
– Pretende ter uma participação ativa nela?
– Vou participar na seleção dos títulos a serem publicados, mas espero que o Sr. Langton continue a supervisionar as questões práticas. Gostaria de saber quem lhe contou isso. Se meu advogado foi indiscreto...
– Seu advogado é irrepreensível.
A atenção dele se desviou dela. Seus olhos ficaram meditativos, obscuros. O homem elegante e cosmopolita que escrevera um famoso livro de História antes de completar 23 anos agora estava distraído, absorto nos próprios pensamentos.
– Srta. Blair, lamento trazer-lhe algumas más notícias. Depois que a senhorita deixou Londres, Merris Langton faleceu da doença que o acometia. Ele foi enterrado dias antes de eu partir.
Ela temera que o Sr. Langton não chegasse a se recuperar; ainda assim, ficou surpresa ao ouvir a notícia de sua morte.
– De fato, são más notícias, lorde Elliot. Obrigada por me contar. Não o conhecia bem, contudo o falecimento de uma pessoa é sempre triste. Contava com ele para ajudar a manter a editora, mas parece que vou ter que dar um jeito sozinha.
– É tudo seu agora?
– Meu pai fundou a editora e a subsidiou desde sempre. Ele poderia passar sua parte a outra pessoa, entretanto a do Sr. Langton ficaria para o meu pai se ele morresse. Então, sim, acredito que seja tudo meu agora.
A distração dele desapareceu. Sua objetividade voltou. Fria.
– Antes da doença, Langton procurou meu irmão. Falou que publicaria as memórias do seu pai. Ofereceu-se para omitir vários parágrafos no manuscrito que tratavam da minha família se uma quantia significativa fosse paga a ele.
– Ele fez isso? Que horror! Estou chocada com essa traição para com os princípios de meu pai e peço desculpas sinceras por meu sócio.
Ela se levantou e começou a andar de um lado para outro, agitada com a revelação. Por educação, lorde Elliot se levantou também, mas ela o ignorou. Tentava compreender todas as implicações do esquema idiota do Sr. Langton. Aquilo poderia significar o fim da editora.
Ela conhecia bem a situação precária das finanças da empresa e, como proprietária, era responsável pelas dívidas não saldadas. Contava com as memórias do seu pai para quitá-las. Se o Sr. Langton comprometera a integridade dessa publicação, as pessoas talvez ficassem descrentes de todo o conteúdo do livro.
– Isso tudo é culpa de Harriette Wilson – disse ela, com sua perturbação agora beirando a raiva. – Ela estabeleceu um precedente infeliz ao pedir que seus amantes pagassem para ter os nomes retirados. Escrevi-lhe sobre isso, se quer saber. Disse a ela que era errado receber dinheiro para apagar trechos de biografias, que era só uma forma velada de chantagem. Ela só pensou no próprio bolso, é claro. Bem, eis o resultado da vida dependente que ela escolheu e da extravagância tola que pôs em prática.
Ela passou a andar com passos mais resolutos.
– Sem dúvida o Sr. Langton abordou outras pessoas também. Nunca imaginei que ele comprometeria a ética de nossa editora dessa forma.
– Srta. Blair, por favor, poupe-me do ultraje teatral. Minha família estava pronta para pagar a Langton. Vim procurá-la para dizer que pagaremos com prazer à senhorita no lugar dele.
Ultraje teatral? Ela parou de andar e o encarou.
– Lorde Elliot, espero tê-lo entendido mal. Está sugerindo que eu aceitaria seu dinheiro para suprimir partes das memórias de meu pai a seu bel-prazer?
– Esperamos que sim.
Ela se aproximou dele até estar perto o bastante para ver os pensamentos refletidos em seus olhos.
– Meu Deus, o senhor acha que eu tinha conhecimento de que o Sr. Langton fazia isso, não acha? Acredita que eu fui cúmplice.
Ele não respondeu. Só sustentou o olhar, visivelmente não acreditando no espanto dela.
Furiosa com as suposições dele e afrontada pelo insulto, ela se virou.
– Lorde Elliot, as memórias do meu pai vão ser publicadas tão logo eu chegue à Inglaterra. Cada frase delas. Foi seu último desejo, feito a mim em seu leito de morte. Eu nunca as editaria de forma a escolher as palavras dele que o mundo devesse ler. Fico muito grata por sua ajuda com o Sr. Sansoni, mas é melhor pararmos esta conversa por aqui. Se eu tivesse uma criada, ela lhe mostraria a saída. Como não tenho, o senhor pode encontrá-la sozinho.
Para deixar mais claro que o lorde estava dispensado, Phaedra se dirigiu ao quarto e fechou a porta.
Ainda não havia se recomposto quando a porta do quarto foi aberta e lorde Elliot entrou calmamente, fechando a porta atrás de si.
– Minha visita ainda não acabou e nossos negócios não estão concluídos, Srta. Blair.
– Como ousa? Este é o meu quarto, senhor.
Ele cruzou os braços e assumiu a atitude masculina e irritante de quem se considera no comando.
– Normalmente isso me impediria, entretanto a senhorita está acima de regras sociais estúpidas, como a que dita que eu não deveria entrar aqui, lembra?
Ela não considerava essa regra social tão estúpida. Tinha uma razão muito especial e primitiva de existir. Aquele era seu espaço mais privado, seu santuário. O clima foi se alterando à medida que Elliot olhava em volta, para o guarda-roupa onde suas vestimentas estavam arrumadas e a penteadeira que exibia seus objetos pessoais. Seu olhar percorreu a cama devagar e voltou para Phaedra.
Os pensamentos dele não ficaram tão ocultos quanto ele imaginou. Ela notou as mudanças sutis em sua expressão, na forma como a dureza que ele exibia se alterou, mesmo que ligeiramente. Os homens não conseguem ficar perto de uma cama e de uma mulher sem começar a devanear. Era uma maldição da natureza que eles carregavam.
Ela ficou irritada ao se pegar pensando na mesma coisa. A forma como ele acabara de insultá-la deveria ter sido suficiente para que aquela intimidade que começava a se infiltrar no quarto jamais existisse. O breve silêncio foi ficando cada vez mais pesado e cheio de uma excitação magnética que mexia com ela.
Uma imagem relampejou em sua mente: lorde Elliot olhando do alto para ela, seus rostos afastados por meros centímetros, seu cabelo escuro despenteado por motivos que nada tinham a ver com moda, seus pensamentos completamente desmascarados. Ela viu seus ombros nus e sentiu a pressão de seu corpo e a firme pegada de seu abraço na pele dela. Sentiu...
Phaedra se esforçou para afastar a imagem da cabeça, mas os olhos dele faiscaram, demonstrando que lera os pensamentos dela. Ele sabia por onde a mente dela andara, assim como ela conhecia os caminhos da dele.
Ele descruzou os braços. Phaedra pensou que ele fosse segurá-la e imaginou se não iria insultá-la ainda mais. Havia homens que a interpretavam erroneamente e, por ignorância, lhe faziam propostas, só que lorde Elliot não era estúpido. Seria uma ofensa cruel e deliberada se ele tentasse se aproveitar da tensão sexual que tinham percebido.
Ele desviou sua atenção dela, diluindo a intimidade, porém não a dissipando por completo. O orgulho de Phaedra foi poupado, ainda que, com isso, seu lado mais primitivo se ressentisse.
– O manuscrito está aqui? – perguntou ele. – A senhorita o trouxe?
– É claro que não. Por que faria isso?
Ele olhou para o guarda-roupa.
– Jura? Do contrário, terei que fazer uma busca.
– Juro, e não ouse fazer isso. O senhor não tem o direito de estar aqui.
– Na verdade, tenho sim, mas conversaremos depois.
O que isso queria dizer?
– Deixei-o em Londres, em um lugar muito seguro. Ele contém as memórias de meu pai, seus últimos desejos. Nunca seria descuidada a esse respeito.
– A senhorita o leu?
– É claro.
– Então sabe o que ele escreveu sobre a minha família. Quero que me fale disso agora. Suas palavras exatas, o melhor que se lembrar.
Não era um pedido, mas uma exigência. Sua arrogância dominadora estava rapidamente fazendo com que a gratidão de Phaedra desaparecesse.
– Lorde Elliot, o nome de sua família e o de Easterbrook não são mencionados no manuscrito.
Isso o surpreendeu. Sua severidade ficou abalada por tempo suficiente para que ela percebesse novamente o homem amigável e prestativo que entrara em seu apartamento. Não durou muito. Ele voltou a ficar distraído e meditativo, e sua mente ágil captou o que ela dissera.
– Srta. Blair, Merris Langton descreveu a meu irmão uma acusação específica contra meu pai. Há algo no manuscrito que, em sua opinião, poderia ser interpretado como uma referência a meus pais?
Ela queria que ele não tivesse feito a pergunta nesses termos.
– Há uma parte que pode ser interpretada assim, imagino eu.
– Por favor, descreva-a.
– Prefiro não descrever.
– Eu insisto. A senhorita vai me contar agora.
Sua voz, sua postura e sua expressão indicavam que nenhum argumento seria ouvido. Nunca antes na vida Phaedra tinha sido tão claramente coagida por um homem a fazer algo.
Talvez fosse melhor que ele e sua família ficassem avisados. A passagem em questão era uma entre várias nas memórias que a haviam feito hesitar.
– Meu pai descreve um jantar oferecido muitos anos antes de minha mãe morrer. Eles estavam recepcionando um jovem adido recém-chegado do Cabo. Meu pai queria saber as verdadeiras condições de vida lá. Esse rapaz bebeu demais e ficou embriagado. Acabou confidenciando algo que ocorreu em um regimento britânico na colônia.
A menção à colônia do Cabo atraiu a atenção de Elliot por completo. Ela se condoeu. Sempre tivera esperanças de que aquele rumor não fosse verdadeiro, mas...
– Prossiga, Srta. Blair.
– Ele disse que, enquanto esteve lá, um oficial britânico morreu. A causa da morte foi registrada como febre, contudo, na realidade, ele levou um tiro. Foi encontrado morto após sair para fazer a ronda. Chegaram a desconfiar do outro oficial que o acompanhava, só que não acharam provas. Em vez de contestarem o suspeito, optaram por usar uma causa mortis falsa.
Ele agora ocultava muito bem sua reação. O rosto estava impassível, como se talhado em pedra. Contudo seu silêncio foi se tornando terrível, carregado da raiva que emanava dele.
– Srta. Blair, se associou esse caso com a minha família, a senhorita deve saber do boato imoral de que meu pai teria enviado o suposto amante de minha mãe para assumir um posto na colônia do Cabo, onde morreu de febre.
Ela engoliu em seco.
– Creio que tenha ouvido algo a respeito em algum momento.
– Se a senhorita soube, muitos souberam. Nem Langton nem a senhorita tiveram qualquer dificuldade em juntar as referências e chegar a uma conclusão. Se a senhorita publicar essa parte, ficará bastante clara a insinuação de que meu pai pagou outro oficial para matar o amante da esposa. A ausência de nomes nas memórias não poupará a reputação de meu pai, e ele não pode se defender da sepultura.
– Não estou convencida...
– Droga, é exatamente o que acontecerá, e a senhorita sabe disso. Exijo que suprima esse trecho das memórias.
– Lorde Elliot, sou solidária em sua perturbação. De verdade. Contudo meu pai me encarregou de fazer com que suas memórias fossem publicadas e é meu dever fazê-lo. Pensei muito nisso. Se eu suprimir cada frase que possa ser interpretada como perigosa ou pouco lisonjeira a essa ou àquela pessoa, pouco vai restar.
Ele andou até ela e a olhou de cima com firmeza.
– Essa mentira não será publicada.
A determinação dele era palpável. Ele não precisava de expressões de raiva ou ameaças verbais para enfatizar o poder que usaria contra ela. Estava tudo ali, ao redor dela, junto com a tensão sexual que não abandonara o quarto, num clima carregado de todas as nuances daquele instinto obscuro.
– Se for mentira, pensarei em omitir – assegurou ela. – Se conseguir obter provas de que o homem morreu de febre ou se o convidado de meus pais desmentir a história, eu a suprimirei. Farei isso por Alexia, não pelo senhor ou por Easterbrook.
Essa declaração o aliviou. Um sorriso vagaroso se formou.
– Por Alexia? Que conveniente. Assim pode recuar sem me dar a vitória.
Elliot a entendia bem demais. Phaedra não dava a mínima importância para provas.
Olhou-a com gentileza. De repente pareceu inapropriado estarem tão próximos, uma proximidade que nascera num momento de fúria dele. Com a raiva saindo de cena, era a outra sensação que voltava a crescer.
Ele não recuou como deveria – e como as sobrancelhas erguidas de Phaedra pediam. Em vez disso, ajeitou uma mecha do cabelo dela e ficou olhando para aqueles fios vermelhos enquanto os enrolava com delicadeza entre os dedos.
– Seu pai incluiu o nome de algum desses homens, Srta. Blair? Do jovem adido do jantar ou do oficial suspeito?
Ele não a tocou, mas a brincadeira com o cabelo dela implicava coisas em que ela preferia nem pensar. O fato de estarem sozinhos num quarto, até mesmo o de terem se confrontado, demolira as formalidades que a protegeriam. O formigamento sutil que ele causava em seu couro cabeludo era tão delicioso que levava a pensar em outras excitações físicas.
Conquistar, possuir, proteger – ela não tinha dúvida de que ele estava preparado para ser implacável e brincar com mais do que o cabelo, se achasse que com isso obteria o que desejava. Também não acreditava em si mesma para vencer aquele desafio, se ele surgisse.
– O jovem adido que meus pais convidaram para jantar é Jonathan Merriweather.
Ele olhou nos olhos dela, desconfiado de novo.
– Merriweather hoje é assistente do embaixador britânico aqui, em Nápoles.
– Muito conveniente para o senhor.
A mão dele se moveu por entre os cabelos com mais firmeza. A brincadeira sutil se tornava controladora.
– A senhorita viajou até aqui para falar com ele? É por isso que está em Nápoles? Pretende adicionar notas a essas memórias e completá-las com os nomes que seu pai foi discreto ao omitir? O livro venderia mais ainda, e ouso dizer que o dinheiro resultante seria muito bem-vindo para sua editora.
Ela segurou o cabelo e o retirou de entre os dedos dele, determinada. Sua indignação a ajudou a ignorar a sensação daquela mão quente ao roçar na sua e a não dar importância ao modo como os olhos dele refletiram sua consciência do toque feminino.
– Agradeço a sugestão, mas espero que as memórias do meu pai caiam no gosto popular do jeito que são, sem acréscimos. De qualquer forma, não estou aqui com esse objetivo.
Era uma mentira deslavada, mas ela não sentiria remorso por confundir aquele homem. Seu interesse em preencher as lacunas das memórias do pai nada tinha a ver com a família Rothwell.
– Lorde Elliot, vim até aqui para visitar as escavações e as ruínas ao sul. Preciso me preparar para deixar a cidade de imediato e continuar minha viagem como planejei desde o início. Portanto, peço-lhe, mais uma vez, que parta.
– Sua viagem terá que ser adiada por uns poucos dias. Não posso permitir que vá agora.
Ela riu. A presunção do homem havia chegado ao ponto do ridículo.
– O que o senhor permitiria ou deixaria de permitir não é de meu interesse.
– É de interesse essencial para a senhorita. Eu a adverti de que sua libertação teria condições e a senhorita prometeu aceitá-las.
– O senhor não falou em condições ao chegar.
– Seu abraço apertado me distraiu.
Ela o encarou desconfiada.
– Quais são essas condições?
Ele olhou para baixo devagar, para seus cachos esvoaçantes – portanto, para boa parte do corpo dela. Phaedra achou ter notado um interesse possessivo, como se ele tivesse acabado de receber um presente e aquilatasse o valor.
– Gentile Sansoni só a libertaria se ficasse sob minha guarda. Tive que aceitar total responsabilidade pela senhorita e prometi controlar seu comportamento.
Um calor de fúria lhe subiu à cabeça. Agora entendia por que, de repente, lorde Elliot passara a se comportar de forma arrogante, fazendo exigências.
– Isso é intolerável. Nunca me submeti a um homem. Isso faria minha mãe se revirar no túmulo. Recuso-me a concordar com isso.
– Prefere enfrentar Sansoni? Podemos providenciar o embate.
A ameaça a deixou sem palavras.
Lorde Elliot não chegou a rir enquanto se dirigia para a porta, mas também não escondeu o fato de estar se divertindo muito com o dilema da moça.
– Viajaremos para Pompeia juntos, Srta. Blair, depois que eu falar com Merriweather. Até lá, está proibida de deixar esses aposentos sem minha companhia. Ah, e não haverá visitas de Marsilios nem de Pietros. Ficarei em apuros se a senhorita provocar mais algum duelo enquanto estiver sob minha autoridade. Fiz um juramento de controlá-la e espero poder contar com sua colaboração e obediência.
Autoridade? Controle? Obediência? Ela estava tão estupefata que ele se foi antes que ela recuperasse a voz para xingá-lo.
CAPÍTULO 4
A boa vontade da Srta. Blair em entrarem num acordo em relação às memórias do pai dela melhorou o humor de Elliot. Ele obteria a retratação necessária de Merriweather, colocaria a Srta. Blair no próximo navio para a Inglaterra e voltaria sua atenção para assuntos mais interessantes.
Merriweather colaboraria, com certeza. Ele, melhor do que ninguém, estava ciente de que a história de Drury sobre a morte do oficial era falsa. Além do mais, sua carreira seria prejudicada se o mundo inteiro soubesse que fora indiscreto ao se embebedar. Ele seria um aliado de lorde Elliot em seus esforços para convencer a Srta. Blair a cortar os trechos incriminadores.
Em uma hora, Elliot descobriu que a questão não seria resolvida tão facilmente. Um funcionário da missão diplomática britânica no Palazzo Calabritto lhe informou que Merriweather fora para o Chipre a serviço e não deveria estar de volta em menos de duas semanas.
Elliot voltou ao hotel e reorganizou alguns de seus planos. Conforme a tarde terminava e a temperatura ia ficando mais amena, ele pegou uma carruagem de aluguel e rumou para o Bairro Espanhol para visitar Phaedra Blair mais uma vez.
Seus olhos azuis chamejaram ao vê-lo na porta.
– O que deseja agora, lorde Elliot?
– A senhorita me disse que desejava caminhar às margens da baía esta noite. Estou aqui para acompanhá-la.
– Não preciso da sua companhia.
– Ou vai comigo ou não vai. Seria uma pena não gozar de sua liberdade, agora que a recuperou.
Ela franziu os lábios. A dúvida se refletiu em seus olhos.
– Muito bem, vamos lá.
Phaedra deu um passo adiante, esperando que ele lhe desse passagem.
– Esqueceu o seu chapéu, Srta. Blair. O sol ainda não se pôs e pode ser prejudicial à sua pele delicada. Tenho certeza de que preferiria evitar mais sardas em seu nariz, por mais charmosas que elas sejam.
A mão dela foi rápida para o nariz. Por um instante, a vaidade feminina venceu sua postura de indiferença a essas preocupações banais.
– O senhor é muito hábil em misturar críticas com falsos elogios.
– Os elogios não foram falsos. As sardas são adoravelmente femininas, mas ainda assim precisa de um chapéu. Vou esperar até que ponha um. A senhorita tem um chapéu, não?
– É claro.
Exasperada, ela deu meia-volta e seguiu na direção do quarto.
– Não me siga desta vez.
– Nunca entraria no quarto de uma dama duas vezes no mesmo dia. Assim como quatro danças em um baile, isso poderia ser mal interpretado.
– Nunca interpreto mal os homens, lorde Elliot. Eles são as criaturas mais transparentes que existem.
De fato, ele imaginava que eram, para ela. Não era uma moça inexperiente. Sabia por onde os pensamentos dele haviam vagueado quando estavam os dois de pé ao lado da cama. Seu cabelo solto lhe dava a aparência de uma mulher preparada para uma tarde de prazer.
Ela não reagira a ele com choque ou vergonha recatada. Não houvera a indignação de quem defende sua virtude. Ao contrário, ela só o encarara enquanto as possibilidades sensuais atiçavam a ambos. A expressão dela tinha sido a de quem reconhecia aquele impulso e suas possibilidades.
Ele nunca vivenciara nada parecido antes. Phaedra conseguia provocar e rejeitar sem dizer uma só palavra. Você me quer e pode ser que um dia eu o queira, mas não hoje. Talvez nunca. Ainda não decidi. Ela devia saber que seu comportamento estimulava o lado mais selvagem dos homens.
Phaedra voltou usando um chapéu de palhinha que era muito mais bonito do que ele teria imaginado. Sua aba em diagonal e as flores de seda brancas e azuis realçavam seus olhos e a pele clara. Seus cabelos longos e esvoaçantes, a falta total de maquiagem e as sardas lhe davam uma aparência fresca e campestre.
Porém, seu vestido comprometia a imagem. O tecido preto leve e sem enfeites a cobria do pescoço aos pés. Uma faixa rodeava a cintura, mas, afora isso, pouco se podia notar de suas formas sob o pano solto e volumoso.
O vestido provocava mais fantasias do que ela provavelmente imaginava. Provocava curiosidade quanto ao que dissera mais cedo. Não havia criadas para ajudá-la a se vestir. Não usava corpete nem espartilhos, e as formas gerais indicavam que o corpo tão livre embaixo do tecido valia a pena ser imaginado. Peito empinado, avaliou ele, de tamanho indeterminado, porém digno de nota, e quadril feminino o bastante para fazer com que a cintura parecesse bem fina. Alguns gestos e uns poucos ganchos e tudo seria revelado.
– Alexia o fez para mim – disse ela, ao notar sua admiração pelo chapéu. – Acho que ela tem esperanças de me mudar. Quanto a meu vestido, que o senhor está examinando de forma tão crítica, não espere que eu o troque. Não fui eu quem decidiu que o senhor teria de andar em público em companhia de uma mulher tão fora de moda.
– O vestido me convence ainda mais. Insisto em que cubra o cabelo, contudo não peço que abra mão de todos os símbolos com os quais desafia o mundo.
Ela ergueu o queixo e rumou para a porta.
– Se tiver juízo, não pedirá coisa nenhuma.
Barulho, gestos teatrais, toucados com plumas e sombrinhas coloridas. Riqueza digna de príncipes, pobreza abominável e o brilho das armaduras dos soldados.
O elegante passeio londrino era uma pálida imitação do que acontecia no final da tarde nas terras mais ao sul. O passeio que circundava a baía de Nápoles ficava apinhado de transeuntes. Aristocratas em vestidos e casacos da moda caminhavam em grupos entre os pobres que perambulavam nas proximidades da água. Comerciantes e suas esposas passeavam com os filhos.
A hora do passeio vespertino – aproveitada nas proximidades da baía ou nas piazzas das igrejas – servia a importantes objetivos na cidade, a julgar pelo modo como as moças casadoiras eram exibidas. Sua beleza jovem e morena brilhava entre os pais, que avaliavam criticamente, com semblantes sóbrios, os homens que olhavam duas vezes na direção delas.
Toda a Nápoles era uma ópera e Phaedra Blair não parecia tão estranha ali quanto poderia pretender. Ela estava razoavelmente apresentável, graças ao chapéu; ainda assim, Elliot notava a atenção que atraía com seu cabelo ao vento. Imaginou a reação que causara na primeira vez que estivera ali, com seus fios vermelhos esvoaçando em meio a um mar de castanho e preto. Londres era mais tolerante com o tipo de excentricidade que ela exibia.
– Falou com o Sr. Merriweather?
Eram as primeiras palavras que ela pronunciava desde que haviam saído do apartamento. Elliot não forçara uma conversa na carruagem. Não se importava com o silêncio. Passara um bom tempo calado, tendo a própria mente como única companhia. Gostava do contato social até certo ponto, mas apenas se houvesse horas de silêncio para contrabalançar as de ruído e conversas.
– Ele está fora em uma missão e só deve voltar em duas semanas, no mínimo.
Elliot se perguntou se ela já não saberia disso. Não estava convencido de que a Srta. Blair tivesse objetivos tão inocentes ao visitar a cidade. Se quisesse ver as ruínas, faria mais sentido vir em outra época do ano. Embarcar para lá em pleno calor do verão napolitano, quando sua editora passava por dificuldades, seu sócio estava doente e as memórias do pai esperavam preparação do original... Ele ainda suspeitava que interrogar Merriweather estivera entre os motivos que a levaram ali.
– Espero que não queira me fazer esperar quinze dias ou mais para ir a Pompeia.
– Decidi que visitaremos as ruínas enquanto o espero voltar.
Isso a apaziguou. Ela pareceu quase aliviada. Talvez tivesse vindo mesmo apenas a passeio.
– Na última primavera, Alexia me disse que o senhor estava escrevendo um livro novo, lorde Elliot. Sua visita a Pompeia está ligada a isso?
– Visitarei as novas escavações para saber o que foi descoberto nos últimos anos. Vou conversar com arqueólogos e pesquisar alguns temas para o livro.
– Alexia me disse que é um livro sobre assuntos quotidianos, sobre a forma como as pessoas viviam. Muito incomum. Normalmente, os livros de História descrevem as guerras, a política e os feitos dos grandes homens. Até o seu último foi sobre isso.
– Estou atento para o fato de que esse livro pode ser criticado por sua aparente falta de relevância. Porém o assunto me interessa e posso me dar ao luxo de me dedicar ao que gosto.
– Se acha que o estou criticando, está equivocado. Acredito que seu livro pode ser muito popular, não importa o que digam os acadêmicos. Ele deve vender muito bem.
– Não estou tão certo de que meu editor concorde com isso.
– Então, talvez deva achar outro. Ficaria honrada de publicá-lo se aturar a ideia de fazer negócios com uma mulher.
Ele riu da sua expressão sagaz. Essa editora poderia sobreviver muito bem, no final das contas, se a Srta. Blair mostrasse tamanho talento de bajular autores para atraí-los.
O humor dela havia melhorado desde o início do passeio. Talvez a luz suave do sol poente e a brisa refrescante fossem os motivos da mudança. O mais provável era que a Srta. Blair tivesse decidido que a raiva a atrapalharia a gozar sua recém-adquirida liberdade.
A alegria brilhava em seus olhos enquanto caminhavam, observavam os grupos de passantes, os barcos e as gaivotas. Ela sorria para lorde Elliot de uma forma cálida que poderia ser erroneamente interpretada como flerte. E não passava despercebido dele a forma como os homens a olhavam. Por si só, o cabelo ruivo solto já bastava para destacá-la, contudo a Srta. Blair chamaria atenção de qualquer forma.
Esses olhares também não passavam despercebidos a ela, que não os encorajava nem desestimulava. Também não lhes davam satisfação nem a insultavam, pelo que Elliot podia ver. Phaedra simplesmente seguia seu caminho, uma mulher diferente das outras mas muito confiante, com o tecido preto e leve do vestido a revelar mais do que se pretendia.
Sutilmente, ela projetava uma aura carregada daquele mesmo desafio que Elliot sentira no quarto, só que agora atraía todos os homens que a olhavam por mais tempo. Você me quer, só que nada vai acontecer entre nós, porque eu decidi assim.
Ela parou para comprar um pequeno buquê de flores de uma menina que as oferecia numa caixa. Elliot tentou pagar por elas, mas Phaedra afastou sua moeda e pagou com o próprio dinheiro. Continuou a andar, segurando perto do nariz as flores perfumadas.
– Lorde Elliot, gostaria de lhe fazer uma proposta.
Não seria a proposta que ele desejava, contudo seu corpo se enrijeceu de qualquer forma. As palavras dela tinham sido escolhidas de propósito para atiçá-lo e isso o deixou com raiva, porque funcionou.
Ele não deveria, só que não resistiu:
– Vi o que acontece aos homens que aceitam os termos de suas propostas, Srta. Blair, portanto prefiro declinar.
A expressão dela mudou.
– O que quer dizer?
– Ah, eu entendi erroneamente? Desculpe-me.
– O que o senhor quis dizer?
Ele deu de ombros.
– Pensei que fosse propor que me tornasse um de seus amigos. Uma dessas abelhas que ficam zumbindo em volta da rainha.
Sua pele branca enrubesceu e sua raiva deixou transparecer uma boa dose de consternação.
– O que sabe a respeito dos meus amigos?
– A senhorita pode desprezar a sociedade, mas ela está a par do seu comportamento. Todos sabem sobre a filha de Artemis Blair e como, a exemplo da mãe, ela se considera acima de todas as regras sociais estúpidas.
– Sua ignorância me espanta.
A raiva dela vencia a consternação.
– É muito típico o senhor interpretar mal minhas amizades e é por isso que nunca considerarei a hipótese de tornar meu amigo alguém como o senhor.
Ah, ela consideraria, sim. Até já havia considerado. As negociações começaram cedo naquele dia.
– Se fui rude, peço desculpas.
A expressão dela relaxou.
– No entanto...
As sobrancelhas dela se arquearam.
–... se a senhorita está acima de regras sociais idiotas, não há como eu ser rude, não concorda, Srta. Blair? Digo, no âmbito de suas crenças. A palavra “rude” se aplicaria apenas dentro do contexto das regras sociais, não estou certo? Nos próximos dias, a senhorita terá de me ajudar a perceber onde sua sujeição a tais regras começa e onde termina, assim não a interpretarei erroneamente de novo.
Mais uma vez aquela confiança presunçosa, aquele desafio, a saturou.
– Pode ter certeza de que farei isso, lorde Elliot.
A caminhada os levara até Riviera di Chiaia, às belas mansões com vista para a baía. A Srta. Blair enterrou seus pensamentos por trás de uma máscara de passividade e ficou admirando a beleza das construções.
– Lorde Elliot, é conveniente que tenha falado a respeito dos próximos dias e que tenha expressado sua desaprovação e desprezo com relação à minha pessoa. Minha proposta tem a ver com ambas as atitudes.
– Não desaprovo nem desprezo. Só decidi que devemos ter um entendimento correto quanto a uma pequena questão.
A mais importante de todas.
– O fato de interpretar erroneamente minhas amizades com outras pessoas e meu interesse pelo senhor indica que não nos daremos muito bem. Nem o senhor vai querer o peso de ter alguém que veio a passeio como companheira de viagem. Eu só iria atrapalhá-lo e seus estudos só atrasariam meus planos. Proponho que nos separemos assim que deixarmos Nápoles.
– Isso não é possível.
– Gentile Sansoni nunca saberá.
– A influência dele se estende para muito além das fronteiras desta cidade. Além disso, dei minha palavra, e essa é uma das tais regras sociais estúpidas que levo muito a sério.
– Senhor...
– Não, Srta. Blair. Partiremos juntos, daqui a dois dias, pela manhã. Vamos de barco primeiro para Positano e depois para Amalfi. De lá seguiremos viagem por terra.
– Quero ir para Pompeia imediatamente.
– O atraso será breve. Prometi visitar um amigo em Positano e ele me espera por estes dias, não depois. Se está a passeio, deve se alegrar com uns dias a mais visitando a costa ao sul. É espetacular.
Phaedra não parecia nem um pouco alegre. Ele imaginou que veria aquela perturbação constantemente nos olhos dela pelas próximas semanas.
Deram meia-volta para refazer o caminho e Elliot quase tropeçou em uma criança que os seguia. Grandes olhos negros olhavam para cima em uma esperança calada de que alguém a enxergasse entre tantas das mais pobres crianças da cidade. Ela não pediu nada, mas seu corpinho frágil vestido em andrajos implorou de forma pungente.
Ele enfiou a mão no bolso do colete. Quando a moeda surgiu, mais duas crianças apareceram ao lado da primeira. Outras foram atraídas por instinto para o inglês que não sabia parar de distribuir esmolas para as crianças pedintes de Nápoles.
Ele achou mais moedas. A Srta. Blair não pareceu com medo por estar cercada de pobres ávidos por moedas, como a maioria das mulheres ficaria. Ela tentou conversar com a primeira menina, a mão oculta em algum lugar do vestido, na altura do quadril.
Os dois adultos ficaram num mar de olhos negros e corpinhos morenos, distribuindo moedas até que todas tinham se acabado.
Voltaram para a carruagem sem outras discussões. Ela só falou mais uma vez antes de ser deixada de volta em seu apartamento.
– Partiremos daqui a dois dias pela manhã, como disse? Então nada me resta a não ser me preparar para a viagem.
A aparente submissão de Phaedra Blair não o convenceu. Elliot partiu para fazer seus próprios preparativos.
Phaedra tirou o camafeu do nó no xale. Envolveu-o em um lenço e colocou o embrulho dentro do bolso fundo da saia de seu vestido. Depois envolveu a cabeça com o xale e o amarrou debaixo do queixo.
Verificou a valise, conferindo mais uma vez as roupas e os objetos pessoais que tinha colocado nela. Orgulhava-se da falta de vaidade feminina, mas ainda a irritava ter tão poucas roupas para usar pela próxima semana.
Era tudo culpa de lorde Elliot. Qualquer um sabia que um juramento feito sob coação não contava. E, para ela, fazer um juramento para salvar uma mulher de um destino incerto se qualificava como coação. A insistência do lorde em manter sua palavra a perturbava. Tinha sido muito azar dela que a única pessoa disponível para ajudá-la fosse um homem com noções ultrapassadas de honra.
De jeito nenhum ela permitiria que ele os fizesse vítimas de sua mente pequena. Lorde Elliot não queria a companhia dela muito mais do que ela queria a dele. Só haveria problema se os dois permanecessem juntos.
Uma dessas abelhas que ficam zumbindo em volta da rainha. Ele era incapaz de entender as amizades honestas e sinceras que ela mantinha com alguns poucos e raros homens que pensavam como ela. Ficaria chocado ao descobrir que alguns homens conseguem controlar as forças primitivas de posse e domínio que causaram tanto sofrimento ao longo da história, em especial às mulheres. Na verdade, havia homens para quem a sensualidade não despertava a necessidade de conquistar, dominar e exigir submissão.
Bem, não cabia a ela lhe explicar. Além disso, seria um esforço em vão e exigiria que passasse mais tempo com ele.
Deixou um bilhete e algum dinheiro em sua mala para garantir que a signora Cirillo entendesse que ela voltaria logo para buscá-la. Depois se esgueirou do apartamento para o corredor escuro. Achou o caminho da escada.
Andando pé ante pé, envolta em negro, seguiu até o andar de baixo. Ainda na escuridão, foi tateando às cegas em busca do lance de degraus seguinte.
De repente as sombras se transformaram em corrimões, portas e paredes, como se alguém tivesse aberto as persianas para deixar a luz da lua entrar.
– Pietro não está à sua espera no cruzamento, Srta. Blair.
O coração dela parou de bater ao ouvir a voz tranquila atrás de si. Deu meia-volta. Lorde Elliot estava a pouca distância, em uma porta aberta que dava para o apartamento que ficava abaixo do dela. Estava sem camisa e descalço, como se estivesse dormindo e houvesse posto a calça às pressas para investigar o barulho. A luz fraca da lamparina do quarto o banhava em uma névoa dourada.
A presença daquele homem anunciava o fim de seu plano de fuga. Apesar de sua exasperação, que aumentava cada vez mais, Phaedra não pôde se furtar a apreciar aquele homem. Lorde Elliot era esguio, elegante e tinha ombros largos. Seu corpo possuía o retesamento jovial que abençoava os homens por tanto tempo na vida quanto permanecessem ativos. A luz fraca ressaltava os músculos rígidos do peito, do abdome e dos braços.
Ele deu dois passos, pegou a valise da mão de Phaedra e segurou seu braço, empurrando-a para o quarto dele. Depois fechou a porta.
– O que está fazendo aqui? – perguntou ela.
A luz da lamparina valorizava o peito musculoso e a pele maravilhosa agora tão próximos de seu rosto. Se não estivesse aborrecida pela interferência daquele homem, poderia até aproveitar a bela visão.
– Eu me hospedei aqui.
Ele permaneceu imóvel por um longo tempo. Phaedra olhou para o rosto do lorde e percebeu que ele a observava. E que tinha notado que ela avaliava seu corpo. Sentiu a pulsação acelerar. Os olhos deles refletiam a mesma reação, mas com uma anuência fria, como se Elliot controlasse a reação tanto nela quanto nele.
Sim, esse homem significava problema na certa.
– Não se mexa. Não tente sair – disse isso e andou até a escrivaninha, onde pegou a camisa e a vestiu.
Ela não ficou olhando. Não exatamente. Mas, com o canto do olho, viu como seus braços se moviam e seu dorso se esticava. A imagem do encontro deles à tarde invadiu sua cabeça de novo, mais vívida dessa vez: o rosto masculino pairando acima dela, aqueles ombros e aquele peito sob sua carícia...
Olhando de esguelha, percebeu os sinais de que o cômodo estava ocupado. Havia uma lamparina sobre uma escrivaninha na sala de estar, junto com uma pilha de papéis. Notou manchas de tinta nos dedos dele. Ele estivera escrevendo, não dormindo. Imaginou-o lá, entregue ao frescor da noite, imerso em sua escrita.
Com pouca roupa e aquela camisa solta, parecendo libertino e romântico demais para que ela se sentisse segura, ele a encarou.
– Lorde Elliot, mudou-se para cá para me espionar?
– Deixei para a signora Cirillo a tarefa de espionar. Mudei-me para cá para impedi-la de fugir na calada da noite.
Ele adivinhara seu plano. Isso a desanimou.
– Intrometer aquela ave de rapina em meus assuntos particulares é indesculpável.
– Parece que foi necessário. A signora Cirillo se empenhou em sua missão e a desempenhou com fervor. Eu só pedi que informasse caso a senhorita me desobedecesse e deixasse a hospedaria. Mas ela a seguiu e interceptou a carta para seu amigo.
A expressão dele assumiu um ar crítico.
– Tentar arranjar esse encontro clandestino à meia-noite é intolerável. E se Pietro não a esperasse naquele cruzamento? A senhorita ficaria lá fora no meio da noite, nessa cidade devassa, desprotegida...
– Não me repreenda. Não ouse. Se ele não aparecesse, eu logo teria encontrado um jeito de arrumar uma carruagem de aluguel, uma carroça ou até um burro, se preciso, e teria partido.
Todas as implicações desse episódio lastimável se seguiram em sua cabeça. Ressentiu-se de cada uma delas.
– Parece que troquei um carcereiro por outro – disse ela.
Ele pegou a valise.
– Chame como quiser.
Então Elliot estendeu o braço na direção da porta, mostrando o caminho.
Bufando de raiva, ela subiu de volta as escadas até seus aposentos. Para seu espanto, o lorde não deixou a valise na porta de entrada. Em vez disso, carregou-a até o quarto. Ela não o seguiu. Uma intuição, daquelas que só as mulheres têm, a manteve na sala de estar.
– Venha até aqui, Srta. Blair.
A ordem ressoou dentro dela de um jeito que ela não reconheceu nem gostou. Compreendia a raiva que trazia, mas havia também outros impulsos e palpitações que a espantaram. Ela odiava quando os homens tentavam lhe dar ordens, quando pressupunham serem seus donos, no entanto...
Phaedra espiou dentro do quarto. Lorde Elliot estava lá, com o colarinho da camisa branca aberto, o cabelo despenteado e a expressão resoluta. Quando ele notou a presença dela, um reconhecimento mudo se deu entre os dois. Lampejos de excitação e perigo a perpassaram.
Ele andou até ela e a puxou para dentro do cômodo. A pegada tão firme e confiante, tão segura em relação ao direito dele de fazer o que bem quisesse, a espantou. Nunca na vida um homem a tratara assim. Phaedra tentou se recompor e encontrar as palavras que o colocassem em seu devido lugar, mas...
Ele começou a desatar o nó do xale sob seu queixo. Isso levou tempo de mais. E o deixou perto demais. Com certeza ele não era um canalha a ponto de... Deveria detê-lo e desatar o nó ela mesma. Deveria...
Ele fez o xale correr com suavidade pela cabeça e os ombros dela. Foi como uma carícia longa e vagarosa. O olhar dele acompanhou uma ponta do xale deslizar ao longo do corpo dela até que ficasse pendurado na mão dele pela outra.
Apenas a luz da lua que entrava pela janela iluminava o quarto, porém Phaedra não precisava ver com clareza o rosto daquele homem para adivinhar seus pensamentos. Eles preenchiam o quarto, estavam no ar, como tinha acontecido à tarde.
Uma nova reação a deixou perplexa, uma que nunca vivenciara antes: medo. Não medo dele ou de ser forçada a fazer algo. Foi dela mesma e da maneira chocante e singular como seu corpo reagia à forma como ele tentava dominá-la.
Elliot fez um gesto apontando para a cama.
– Tire o vestido e deite-se.
Isso quase a fez cair em si. Quase. Uma excitação inexplicável a atingiu lá embaixo, uma excitação absolutamente escandalosa. Deus do céu...
– Está indo longe demais.
Ela havia mesmo falado? Sua mente por fim juntara algum bom senso e fora em seu socorro?
– Você não me deixa escolha. Não posso me arriscar a deixá-la escapar.
– Prometo que não vou fugir.
– Uma mulher que espera que eu quebre minha promessa a Sansoni não manterá a própria palavra. Agora coopere, a menos que queira que eu a force a obedecer.
Ela levou as mãos às costas e começou a soltar os ganchinhos do vestido. Só levou um minuto até se despir e pôr o vestido sobre uma cadeira. A luz não era fraca o bastante para ocultá-la. Desejou estar usando aqueles ridículos espartilhos, pois suspeitava que lorde Elliot pudesse ver mais do que deveria por baixo da camisa simples que usava sob o vestido.
Ela se aproximou da cama e subiu nela, tentando não se expor demais e excitada por suspeitar estar se expondo ainda assim. Deitou de costas e olhou para ele. Pairou um silêncio no ar por um longo momento.
– Quais são as suas intenções, lorde Elliot?
Ele riu de novo. Em silêncio. Sarcasticamente.
– Não é um bom momento para provocar e instigar, Srta. Blair.
De repente, ele se inclinou sobre ela. Pairando. O coração dela começou a bater mais forte. A camisa dele adejava perto do rosto dela. O cheiro dele a tomou de assalto. O tamanho dele a dominou. Uma expectativa terrível e maravilhosa formigou nela. Seus seios ficaram mais sensíveis e...
Ele pegou no braço esquerdo dela e o levou até as barras de ferro da cabeceira da cama.
– O que está fazendo?
Ele enroscou o xale em volta das barras.
– Certificando-me de que não fugirá. Não preciso dormir muito, entretanto não posso ficar acordado por duas noites.
– Isso passa dos limites. É repugnante. Exijo que...
– Isso é necessário. Ou é isso ou durmo ao seu lado. Prefere?
Ela o encarou. Ele parou de fazer os nós e olhou para baixo. O coração dela pulou para a boca.
– Prefere? – repetiu ele.
Era uma pergunta direta e sincera. Um convite que lhe permitia extravasar a atração.
Ela engoliu em seco.
– É claro que não.
Mesmo na luz fraca, ela viu o sorriso dele. Ele voltou sua atenção para os nós.
Por fim, ele se afastou e se endireitou. Phaedra deu um puxão com o braço esquerdo. Não havia folga nas laçadas. Ela se virou para o lado e tentou forçar um nó com a outra mão.
– Fique à vontade para tentar desfazer os nós. Só que não vai conseguir. Pode se sentar e se mexer, pode até ficar de pé. Pode usar o penico do lado da cama. Mas nunca vai conseguir se soltar. É melhor passar o tempo dormindo.
Uma nota em seu tom de voz a fez parar de tentar. Rolou de volta para ficar de costas e o encarou. O desamparo dela e o domínio dele gritaram no silêncio entre os dois. A mente de Phaedra bradava insultos rebeldes, mas seu corpo experimentava um calor e uma expectativa deliciosos. Espantava-a que essa submissão provocasse desejo, um desejo muito erótico.
Ele sabia, droga. Ela podia garantir que ele sabia.
– Está muito bonita aí, Srta. Blair. Muito bela e vulnerável e, ouso dizer... submissa?
– Seu canalha.
De novo, aquela risada silenciosa. Depois ele se foi, deixando-a livre para conversar consigo mesma pelo resto da noite sobre quão vulnerável e submissa ele a havia tornado.
CAPÍTULO 5
Phaedra segurava o camafeu na luz matinal que penetrava pela janela da sala de estar. O objeto tinha se tornado um talismã nos dois últimos dias, no embate com um homem confiante demais de seus direitos de controlá-la.
Você deveria ter me avisado, mãe.
Talvez Artemis não pudesse ter lhe avisado simplesmente porque não sabia. Talvez tivesse se isolado tanto de homens como Elliot Rothwell que nunca os houvesse enfrentado.
Ela imaginava a mãe, linda de tirar o fôlego. Com um rosto tão suave que as pessoas nunca imaginavam sua mente brilhante até que ela abrisse a boca ou lhes dirigisse aquele olhar aguçado. De fato, sempre fora uma rainha com muitas abelhas em volta. Acadêmicos, artistas e homens que admiravam sua inteligência estavam entre os amigos que a amavam e ficavam apenas à espera de uma deixa. Sua casa ficava sempre cheia de homens famosos e esperançosos.
Na certa, um desses homens teria tentado conquistá-la. Na certa, a famosa Artemis Blair vivenciara a excitação primitiva de encontrar um par na inteligência e no poder. Ela devia ter avisado à filha que esse homem poderia surgir um dia.
Phaedra olhou pela janela. Lá embaixo, lorde Elliot dava ordens aos criados da signora Cirillo, que carregavam as valises para a carruagem que os levaria ao porto. Os olhos dela se estreitaram para focalizar o inimigo.
Pelo menos, ele não a mantivera amarrada na última noite. Ela prometera de cinco formas diferentes não fugir. Ele só a soltou depois de ela jurar – jurar – sobre o túmulo da mãe. Ele a fizera implorar como se fosse seu dono.
Sua mãe provavelmente estaria se revirando no túmulo naquele exato momento. Artemis Blair nunca se submetera a um homem, de forma nenhuma. Nunca se casara, nem com seu amor de toda a vida, Richard Drury, mesmo quando se viu grávida. Nunca abrira mão de sua liberdade, sua independência e seu direito de amar e dividir a cama com quem quer que escolhesse, nem ao descobrir que só queria amar e dividir a cama com um único homem.
O camafeu esquentou na mão de Phaedra. Ela olhou para a joia. Não, não um único homem. Tinha havido outro.
Tinha sido um choque ler isso nas memórias do pai. Sentia-se nauseada só de lembrar as palavras dele. Sempre imaginara que o amor de seus pais fora perfeito, desprovido de obrigações e leis, um verdadeiro encontro de almas que duraria pela eternidade. A amizade dos pais mostrava ao mundo que havia uma forma melhor para um casal conviver.
Tinha sido assim por muitos anos, até que um dia outro homem entrara na história.
Esse intruso era charmoso, contudo estava no centro de um esquema ao mesmo tempo brilhante e nefasto. Foi o que seu pai escreveu. Ela se lembrava das palavras exatas. Memorizara essas palavras antes de zarpar da Inglaterra. Ele seduziu Artemis para que tivessem um caso, usou-a da forma mais desonrosa, a ponto de destruir sua reputação. Foram seus atos que, em última análise, levaram à morte dela. Assim como vendia falsas antiguidades, ele lhe ofertou mentiras. Porém é só uma questão de tempo até que ele seja desmascarado, porque os objetos estão lá, visíveis, como o que vendeu a Artemis. Um dia alguém revelará a origem suspeita desses objetos, e a forma como ele usa a sedução no intuito de roubar será sua desgraça.
Os dedos dela se fecharam com força ao redor do camafeu. Uma antiguidade de origem suspeita. Uma joia acrescentada na última hora a um testamento, supostamente vinda de Pompeia. Phaedra estava bastante certa de que era a este objeto que o pai se referira – e também sua única ligação com o homem que ele acusava.
Seus atos, em última análise, a levaram à morte. Phaedra não conseguia tirar essas palavras da cabeça. Elas ressoavam em seus sonhos junto com as imagens da mãe naquelas últimas semanas, séria demais, distraída demais. Phaedra nem chegara a notar essa seriedade e distração na época, pois a mãe sempre tinha um sorriso para ela. Porém seu declínio fora rápido demais e sua morte, um choque.
Phaedra baixou o olhar de novo. Lorde Elliot olhava para cima, em sua direção. Há quanto tempo ele a observava lá da rua?
Talvez a mãe não tivesse avisado porque nem ela mesma sabia. Talvez o intruso fosse um homem como aquele lá embaixo, que causava arrepios só por dar sua atenção e cuja presença era uma tentação para que, em um segundo, uma mulher se esquecesse de todas as crenças e princípios que ancoravam sua vida.
Poderia perdoar a mãe por não ter lhe dado essa lição. Poderia perdoá-la por qualquer coisa, até mesmo por deixar o mundo cedo demais. Porém, se um homem realmente a havia usado de forma desonrosa, se os atos dele tinham causado sua morte, isso era outro caso. A filha de Artemis Blair nunca o perdoaria. Se tivesse certeza de que isso era verdade, então queria ver a queda desse homem.
Pegou o xale e envolveu a cabeça. Lorde Elliot era um inconveniente, mas ela não deixaria que a companhia dele atrapalhasse o motivo real que a levara ao Reino das Duas Sicílias.
Elliot voltou ao quarto para pegar a maleta com seus muitos papéis. Passou pela Srta. Blair nas escadas.
– Vou esperar na carruagem.
Seu tom ríspido demonstrava a frieza que agora sempre exibia em sua presença.
Ela nunca o perdoaria por amarrá-la na cama, não só pela humilhação e falta de confiança. Ambos sabiam que isso a excitara, e ela o odiava por isso e por todas as implicações resultantes. Ambos também sabiam que, se ele não tivesse feito isso, ela teria escapado durante a noite para evitar as implicações resultantes.
Na última noite, Phaedra fora enfática ao afirmar que não aconteceria de novo. Suas promessas foram tão sinceras e suas garantias de não fugir, tão genuínas que ele voltara atrás.
Isso significara que ele poderia dormir. Na primeira noite, ficara deitado, inquieto e ávido, sentindo o desejo rasgá-lo por dentro como uma faca de serra. Imaginando-a naquela blusa fina, amarrada na cabeceira da cama, com o cabelo espalhado como seda acobreada e o corpo visível demais. Quais são as suas intenções, lorde Elliot?
Que inferno!
Elliot pegou a mala e um embrulho comprido e se juntou a ela na carruagem. O olhar vazio, distante e focado dizia que era só por falta de escolha que Phaedra tolerava a companhia dele. Não se daria o trabalho de bater papo para tornar seu tempo juntos mais fácil.
O barco que ele alugara esperava perto do Castel Nuovo. Uma hora depois, eles navegavam margeando a baía.
A Srta. Blair se posicionou na área central do convés, segurando-se na amurada. Ela observava a costa passar e o monte Vesúvio ficar cada vez maior ao fundo. A brisa empurrava o xale dos seus cabelos e sua beleza pálida e incomum chamava a atenção do pessoal de bordo. Elliot se aproximou para que não restasse dúvida quanto à sua situação de protetor da moça.
Ele estendeu a mão, oferecendo-lhe o embrulho que trouxera.
– O que é isto? – perguntou ela.
– Um presente.
Ela sorriu de um jeito suave, porém firme.
– Não aceito presentes de homens, lorde Elliot.
– Você não aceita presentes em troca de favores, o que é admirável. No entanto, como não gozei de seus favores, ainda está livre para aceitar presentes. Se eu a seduzir, pode devolvê-lo.
Ele quase disse “quando” em vez de “se”.
Ainda hesitante, porém curiosa, ela pegou o pacote e tirou parte do papel.
– Uma sombrinha? – disse, e rasgou o restante do embrulho, rindo então. – Preta. Toda preta. Que... gentileza!
– Achei que ia combinar.
– Isto é para me poupar de mais sardas?
– Isto é para poupá-la de ficar doente. O sol aqui é muito forte e estamos em pleno verão. Quando desembarcarmos, ficará feliz em ter alguma sombra.
Ela abriu a sombrinha e cobriu a cabeça.
– O senhor conhece bem o país. Já esteve aqui antes?
– Duas vezes. Primeiro em uma viagem por vários países do continente, e de novo há alguns anos.
Ele apontou para a costa.
– Ali fica Herculano. A mesma erupção do Vesúvio que enterrou Pompeia em cinzas cobriu Herculano de lava.
Ela desviou o olhar para onde os vestidos e casacos dos visitantes salpicavam de cor a rocha.
– Tinha a intenção de visitar Herculano também, mas o signore Sansoni... – suspirou ela. – Agora vou perder muita coisa da viagem.
– Por que não gasta algum tempo na volta de nossa pequena viagem e faz a visita?
– Não tenho tempo a perder. Preciso voltar para casa. Tenho uma editora para tocar.
E um livro especial para publicar. Se ele não conseguisse o que queria ao falar com Merriweather, a Srta. Blair não voltaria para casa por um bom tempo.
– Também acho que não vou gostar de voltar a Nápoles depois de nossa viagem – emendou ela. – Com certeza você achará que a palavra dada a Sansoni ainda estará valendo, e ficarei com o senhor no meu pé.
Ele admirou impressionado o enorme cone que era o Vesúvio enquanto passavam tão perto de Herculano que podiam ver alguns trabalhadores nas escavações. O cabelo cor de cobre esvoaçava perto do braço dele.
– Srta. Blair, pergunto-me se o que a incomoda não seria o fato de me ter no seu pé e não a seus pés.
O suspiro profundo expressou o pensamento dela. Deus, dê-me paciência com esse homem tão pouco esclarecido e tão previsível.
– Suspeito que seja inútil explicar isso, mas tentarei, em nome da paz. Acredito que nenhum parceiro na amizade, no casamento ou num caso amoroso deva ficar aos pés do outro. Minha ideia só é considerada estranha porque o pé em questão quase sempre é de um homem e o mundo acha normal que ele fique cravado nas costas de uma mulher. Creio que homens e mulheres possam ficar lado a lado, sem que um tenha que pertencer ao outro. A vida da minha mãe provou que isso é possível e a minha também, até agora, prova o mesmo. Não fomos nós que inventamos essa crença. Essa ideia é bem conhecida e foi defendida por pessoas a quem admiro muito.
– Sei tudo sobre a sua crença, Srta. Blair. Não sou ignorante dessa filosofia. Ela até soa correta e racional. O único problema é que não leva em conta vários aspectos.
– É mesmo? Quais?
– A natureza humana. A história da humanidade. A tendência de os maus vitimarem os fracos e a necessidade dos fracos de proteção. Aventure-se sozinha nos vilarejos de Campanha ou nas ruelas de Marselha ou Istambul, ande pelas espeluncas de Londres e veja o que acontece com uma mulher sozinha e desprotegida.
– Os senhores de antigamente davam proteção a seus servos. O que não significa que era correto exigir a vassalagem em troca.
Ele riu.
– Senhores, servos. Que visão nefasta a senhorita tem da vida das mulheres. Não precisa ser desse jeito.
– Mas pode ser – disse ela. – O senhor sabe que pode. A lei faz isso.
A ênfase que ela deu ao “senhor” foi tão sutil que ele se perguntou se não passava de fruto de sua imaginação. Ela cutucou uma velha ferida com muita delicadeza, contudo ele sentiu a dor de qualquer forma. Uma raiva obscura se instilou nele.
Ela voltou a atenção para a costa. Um leve rubor em seu rosto indicava o reconhecimento de que tinha ido longe demais. Elliot controlou sua reação, mas pensamentos predatórios agora penetravam em sua mente. Ele ponderou o que seria preciso para ser senhor dessa mulher, para fazer com que se dobrasse diante dele.
– Desculpe-me, lorde Elliot. Eu não deveria...
– Está fazendo a impertinência aumentar, Srta. Blair. Melhor teria sido deixar que sua insinuação voasse para longe junto com a brisa.
Só que ela não o fizera, e ele se perguntava por que falara de maneira tão segura.
– Está se referindo a boatos sobre minha mãe, não é?
Ela pensou duas vezes na resposta enquanto olhava para ele.
– Admito que o fato de ela haver se retirado para o campo durante seus últimos anos de vida foi interpretado como feito de seu pai.
Elliot sabia que essa história corria solta nas salas de estar de ricos e pobres. Diziam que sua mãe tinha um amante e que seu pai a punira mandando o homem para a morte em uma colônia distante e depois aprisionando-a em uma propriedade rural.
Seria verdade? Ele e seus irmãos haviam concluído que o amante fora real, mas não a parte sobre o cárcere. O próprio pai lhe jurara não ter feito o que as pessoas falavam. Porém, o exílio da mãe estimulara a fofoca, a ponto de ela mesma passar a acreditar na história.
Ele a via na biblioteca, com os cabelos escuros pairando acima de livros e papéis, perdida em pensamentos. Quase totalmente afastada dos filhos. Por ser o caçula, havia passado a maior parte do tempo com ela lá. Ela emergia de sua concentração às vezes para guiá-lo pelas estantes, escolhendo livros para ele ler ou comentando os escritos dele.
No entanto, algumas poucas vezes o vínculo se estreitara, como no dia em que ela recebeu uma carta que a deixou em prantos. Era a notícia da morte de um oficial do Exército. Foi ele que fez isso. Para me punir por amar outra pessoa.
Tinha sido um amor ilícito. Ela era uma adúltera. Ainda assim, o sofrimento dela o comoveu. Só que ele entendeu que a acusação dela era o delírio de uma alma sofredora.
Elliot sentiu a presença da Srta. Blair ao seu lado. Nem mesmo a raiva conseguia sufocar a reação que sua sensualidade causava nele. A droga das memórias do pai dela insinuava que uma mulher reclusa fora a única a entender como o sangue dos Rothwells podia tornar um homem cruel. Sua certeza de que isso era mentira não seria suficiente para diminuir as acusações a seu pai.
– Elas se conheciam – disse a Srta. Blair. – Nossas mães.
– Minha mãe conhecia os ensaios de Artemis Blair, contudo nunca mencionou uma amizade.
Isso não queria dizer nada, uma vez que ela nunca mencionava assunto nenhum.
– Acho que elas nunca se conheceram pessoalmente, porém elas se correspondiam. Eram ambas escritoras. Tinham interesses em comum. Uma vez sua mãe enviou um poema para a minha. Encontrei-o entre os papéis dela depois que morreu. Um belo poema que refletia uma alma inteligente e sensível.
Ele fixou o olhar na cidade costeira que se aproximava, Sorrento. Estava enfurecido por saber que a mãe compartilhara seus textos com Artemis Blair e nunca com os próprios filhos.
– Sua mãe a encorajou a cometer adultério?
As palavras soaram cruéis e duras mesmo ao ouvido dele.
– Ela pregava a crença no amor livre em suas cartas?
Ele imaginou a famosa Artemis Blair virando a cabeça de sua mãe, o que levaria a tanto sofrimento depois.
– Creio que elas falavam principalmente de literatura em suas cartas. Minha mãe só a mencionou uma vez, quando soube de seu falecimento.
– O que ela disse?
A frase soou mais como um rosnado do que como uma pergunta.
– Ela disse: “Ele devia tê-la deixado ir embora, mas, é claro, por ser um homem, não poderia.”
Isso só fez com que um trovão rugisse nas nuvens que se acumulavam em sua mente. Ele queria dizer que um homem não poderia permitir que a mãe de seus filhos fugisse em uma aventura amorosa. É claro que seu pai não tinha opção a não ser negar essa liberdade a ela.
Só que, a seu modo, ela havia encontrado uma forma de fugir de qualquer maneira.
Pelo canto do olho, Elliot percebeu um membro da tripulação se demorar muito com o cordame. O homem alongava a tarefa só para ficar apreciando a beleza de Phaedra Blair.
A tempestade em sua cabeça estourou. Relâmpagos espocaram. Ele estreitou os olhos e disse quatro palavras. O homem saiu às pressas.
A Srta. Blair percebeu.
– O que você lhe disse?
– Nada importante. Uma expressão napolitana exigindo privacidade.
Nem se deu o trabalho de explicar que as palavras em italiano significavam mexa-se ou morra.
Um vento forte os ajudou a fazer um bom tempo de viagem. A paisagem foi ficando cada vez mais bonita à medida que cortavam a baía em direção à península de Sorrento. Montanhas altas abraçavam a costa, mergulhando no mar em declives acentuados e verdes. Pequenas praias abrigavam alguns barcos e casas se encarapitavam no despenhadeiro, como se fossem cubos brancos e em tons pastel a pairar acima da água.
Contornaram a pequena península, passaram pela ilha de Capri e seguiram para a costa amalfitana. Encostas mais íngremes, perigosas e inacessíveis assomavam sobre eles. O cenário deixou Phaedra boquiaberta. Lorde Elliot estava certo. Teria sido uma pena perder essa visão.
– O que está havendo ali? – perguntou ela, apontando para alguma atividade na colina.
– O rei está construindo uma estrada para Amalfi. Estão escavando a encosta.
Ela notou que a estrada ficaria acima das vilas de pescadores.
– De qualquer forma, vai ser preciso subir ou descer a colina – falou ela.
– Pelo menos os habitantes não vão depender de barcos e burros. E a vista lá de cima será espetacular.
Ele apontou para a frente, mais adiante na costa.
– Positano fica logo depois daquele promontório. Daqui já é possível avistar a torre de vigia normanda nele. Há muitas delas nesta costa, construídas para proteger o reino normando medieval que havia aqui da ameaça dos sarracenos.
Phaedra andou para a proa do barco a fim de ver melhor a torre assim que entrasse em seu campo de visão. A velha torre de pedra era bem alta e isolada. Pequenas janelas a pontuavam, como se fosse um castelo medieval. Parecia uma intromissão de estrangeiros do norte naquela terra banhada pelo sol.
– Aquelas janelas altas dão para o leste e o oeste – disse ela. – Não há nada entre aquela e o horizonte do mar e nada entre a outra e o pico da montanha alta. Vamos ficar aqui muitos dias?
– Calculo que sim.
Phaedra perdera a noção do tempo enquanto fora prisioneira de Sansoni. Agora começava a se situar.
– O solstício de verão se aproxima. Imagino se a torre não será usada para algum ritual.
– Esta é uma região católica. Os rituais pagãos foram banidos há milhares de anos.
Apesar de lorde Elliot ter respondido, ela podia apostar que ele estava muito distante. Estava tomado por um silêncio que pouco tinha a ver com sons. Era algo interior, como se seu espírito tivesse se recolhido para as câmaras secretas de sua alma.
Phaedra se arrependia de ter se referido, ainda que discretamente, à situação da mãe dele. Deixara a frase escapar no auge de sua irritação com lorde Elliot por ele pressupor que estava certo e ela, totalmente errada. Já devia ter aprendido a não entrar em discussões a respeito do modo como pensava e vivia. No que tangia a esse assunto, aquele homem lhe era tão estranho quanto os pescadores daquelas vilas pitorescas.
Aproximaram-se da torre, passando bem perto quando o vento inflou as velas do barco. Parecia deserta.
– Quem é esse amigo a quem vamos visitar? – perguntou ela. – Como vamos chegar logo, acho que eu deveria saber o nome.
– Matthias Greenwood. Foi um dos meus professores na universidade.
Ela conteve sua surpresa. Conhecia Greenwood. Tinha tentado em vão localizar sua casa em Nápoles.
– Ele não vai se incomodar por você ter trazido mais bagagem do que ele esperava?
– Ele ficará muito satisfeito por ter a companhia da filha de Artemis Blair. Ele encontrou com ela algumas vezes, eu acho.
– Sim, com certeza. Eu o vi em algumas ocasiões; a última, no funeral da minha mãe.
Matthias Greenwood tinha sido um dos muitos acadêmicos a prestar homenagem à mulher que deixara o mundo inteiro confuso.
Também era alguém que poderia lançar luz sobre o “outro” homem. Phaedra pensara que esse atraso na viagem para Pompeia seria uma amolação. No entanto lorde Elliot a estava ajudando a riscar um dos itens em sua lista de pendências naquela terra.
– Ele a admirava. Disse que, se tivesse nascido homem, ela teria sido reconhecida como uma das maiores especialistas em línguas românicas antigas da Inglaterra – contou lorde Elliot.
Ele ainda falava em um tom distraído, como se apenas metade de sua mente prestasse atenção.
Phaedra olhou para a cidade de Positano com mais otimismo e não apenas porque sua missão poderia ser favorecida ali. Ela não se pautava por regras sociais estúpidas, mas a maior parte do mundo, sim. Imaginava como seria recebida ao chegar com lorde Elliot. Viajar com ele implicava coisas que ela não tolerava e que não gostaria que as pessoas presumissem.
O Sr. Greenwood provavelmente entenderia que era melhor não presumir nada.
Phaedra sentiu seu companheiro de viagem olhando para ela e virou a cabeça. Ele tinha voltado a si.
– Ele costuma receber convidados os mais variados – disse Elliot. – Pode ser que haja outras pessoas lá. Você vai se comportar, não?
Ela confiou que ele não esperaria que ela bancasse a amante dócil em uma vã tentativa de ser alguém que os convidados tolerariam.
Mesmo que quisesse criar esse disfarce, nem saberia por onde começar.
CAPÍTULO 6
Positano ficava numa angra apinhada de barcos. As construções em tons pastel pairavam acima do horizonte, amontoadas umas sobre as outras no declive acentuado da montanha. A cidade toda era uma sequência íngreme de casas que seguiam na direção do mar.
Phaedra deu uma olhada no despenhadeiro alto, no mar infinito cor de safira e na folhagem de um verde muito escuro. Nunca tinha visto nada tão fascinante em toda a sua vida.
– Qual casa pertence ao Sr. Greenwood? – perguntou ela.
Lorde Elliot se aproximou e estendeu o braço para que a vista dela o acompanhasse.
– Aquela lá em cima, com colunas.
As colunas sustentavam a cobertura de uma comprida varanda na casa mais ao alto. A casa fora erigida um pouco acima da área central da cidade. Sua distância criava uma coroa para os prédios que se espalhavam como uma cascata abaixo dela.
– Vamos voar até lá ou ele vai jogar uma cesta para nos apanhar aqui embaixo?
Um dos membros da tripulação já tinha se ocupado em resolver o problema e voltava com a solução: dois garotos que o seguiam puxando burros.
Phaedra permitiu que os garotos a ajudassem a subir no lombo de um animal. Lorde Elliot só precisou levantar a perna para montar no dele. Era mais alto que o bicho, e suas botas arrastavam pelo chão. A tripulação amarrou suas valises e malas em dois outros burros.
Ela riu deles mesmos.
– Que comitiva, lorde Elliot! Fará um desfile impressionante pela cidade. Talvez eu pegue meu livro de esboços e registre para a posteridade sua elegância sobre esse belo corcel.
Ele tocou seu burro para assumir a dianteira e deu um tapa no traseiro do animal dela ao passar.
– Cuide de sua própria montaria, Srta. Blair. Tome cuidado para não cair ou não vai parar de rolar até chegar à baía.
Ela logo entendeu o que ele queria dizer. Os burros passavam por caminhos muito íngremes, que tinham sido cortados em degraus baixos e estreitos e depois pavimentados. Ela pensou que ia mesmo cair no mar. Os animais sabiam onde pisavam, mas, sentada de lado na sela, Phaedra precisava ter cuidado para proteger a própria vida.
Eles foram um espetáculo e tanto. Os habitantes do vilarejo saíram às portas e janelas para espiar, curiosos, os estrangeiros que iam para a mansão localizada acima da cidade. Crianças começaram a segui-los, formando um verdadeiro séquito. Duas meninas andaram ao lado de Phaedra por um tempo, espiando com curiosidade as pontas ruivas de seu cabelo que apareciam sob o xale. Algumas mulheres fizeram leves mesuras quando lorde Elliot passou, sabendo, por seu porte e seus modos, que ele tinha sangue nobre.
Ela relaxou ao se adaptar à andadura do burro. Não ousava olhar para trás, mas se permitiu olhar as casas de pedra, lindamente rústicas. Varandas simples e coberturas de telhas ajudavam a criar um amálgama de formas e cores. Algumas casas maiores tinham azulejos decorados em volta das portas principais. Todas pareciam muito antigas, como a torre. Estuque cobria a maioria delas, quase sempre trabalhado com ornamentos e cornijas decorativos. Algumas construções eram brancas, mas muitas ostentavam detalhes em vermelho e rosa.
Os sons da vida na comunidade ecoavam ao redor conforme as pessoas chamavam umas às outras pelas janelas abertas e nas ruas do mercado embaixo. Em algum lugar, um homem cantava descontraidamente uma ária de Rossini enquanto cumpria outra tarefa qualquer.
As ruelas iam ficando mais planas à medida que se aproximavam da mansão. Era como se alguém tivesse retirado um pedaço da montanha para que a grande casa pudesse ser construída.
Um homem apareceu numa das arcadas entre as colunas da varanda. Era alto e magro, com uma basta cabeleira branca, nariz aquilino e postura ereta. O maxilar de traços muito retos terminava em um queixo partido. Phaedra só tinha visto Matthias Greenwood umas poucas vezes, porém sua aparência era tão peculiar que se tornava inesquecível.
Ele acenou em saudação, depois saiu e andou na direção deles.
– Rothwell! Que alívio vê-lo finalmente. Meus companheiros anseiam pela sua perspicácia.
Eles se cumprimentaram e Elliot apresentou Phaedra.
– Já tive a honra de conhecê-la, Rothwell. Fico feliz em vê-la de novo, Srta. Blair, e em circunstâncias menos penosas do que da última vez. Sua mãe era muito estimada por humildes acadêmicos como eu e foi muito generosa conosco. Sou-lhe grato pelas pessoas a quem me apresentou em suas recepções.
Os criados apareceram e Matthias deu ordens a respeito das bagagens.
– Entrem e descansem. Meus outros convidados estão fazendo a sesta, mas se reunirão a nós em breve.
Ela subiu o caminho de pedras e seguiu Matthias até a varanda. Olhou através dos arcos e perdeu o fôlego.
A visão era impressionante, um ângulo que exigia uma tela e um pincel. Se a vista montanha acima era incrível, olhá-la de cima para baixo era de deixar qualquer um embasbacado. Os telhados e faixas de circulação da cidade se espalhavam pela encosta. O declive era tão acentuado que era de espantar que se tivesse construído alguma coisa nele. O mar infinito, o céu tão próximo, o promontório que abraçava a paisagem – tudo isso criava um panorama vasto e irreal de um lugar precário no mundo, uma visão empolgante e romântica, mergulhada em beleza e, ao mesmo tempo, repleta de perigos.
– É um espanto que o senhor não viva somente nesta varanda e nem se importe se o restante da casa cair aos pedaços, Sr. Greenwood.
– É quase isso o que faço, Srta. Blair. Aqui e nos outros terraços e varandas. Mesmo não sendo católico, vou à igreja da paróquia para acender velas pela alma de um parente distante cuja herança me permite viver no paraíso.
Uma mulher os saudou quando entraram na sala de visitas arejada, de piso de mármore. Era uma mulher local, elegante e de pele morena. Tinha um rosto lindo e comovente, marcado por um traço de melancolia. Chamava-se signora Roviale e a forma como entrou e cuidou de acomodá-los indicou que aquela era a sua casa. Matthias Greenwood não vivia sozinho no paraíso.
Outro convidado se juntou a eles logo em seguida, depois que um criado trouxe vinho. Phaedra o reconheceu também. Ele não fora ao enterro de sua mãe, mas tinha estado uma ou duas vezes em sua casa quando ela era garota. Tinha uma beleza tão nobre, de traços finos, que ela quase se apaixonou na primeira vez que o viu.
– Veja quem está aqui para celebrar sua visita, Rothwell – disse Matthias. – Escrevi contando a ele que você viria de Nápoles e ele e a esposa vieram de Roma para vê-lo. Srta. Blair, permita-me apresentá-la ao Sr. Randall Whitmarsh, cavalheiro, acadêmico e outro refugiado da Inglaterra.
O Sr. Whitmarsh adotara os modos e o estilo europeu continental, reflexo de seus longos anos vivendo no exterior. Sussurrou um “belíssima” ao se inclinar para beijar a mão de Phaedra com tamanho exagero que ficou provado que deixara para trás o jeito reservado britânico ao adotar Roma como sua residência principal.
– É uma alegria conhecer a filha da indomável Artemis Blair – disse ele, dando um sorriso charmoso e encantador.
Phaedra não era insensível à atenção de um belo homem. Notou que lorde Elliot ficou observando de soslaio enquanto o Sr. Whitmarsh se demorava segurando a mão dela.
– Soube recentemente do falecimento de Richard Drury – disse o Sr. Whitmarsh, dando um tapinha na mão dela. – Vejo que ainda está de luto, mas creio que tenha sido uma opção muito saudável viajar para o exterior para suavizar seu sofrimento.
– O modo como costumo me vestir tornou desnecessário encomendar um guarda-roupa apropriado ao luto, entretanto meu pai não ia querer isso de qualquer forma. Na última vez que o vi, ele proibiu terminantemente que eu ficasse de luto.
Ela puxou a mão da pegada suave do Sr. Whitmarsh.
– Não esperava encontrar tantas pessoas que conheceram minha mãe na remota Positano.
– Nós três somos membros da Sociedade dos Dilettanti, Srta. Blair. Por ser mulher, sua mãe não podia participar. Vez ou outra, porém, nós lhe fazíamos uma visita para prestar nossa homenagem – explicou o Sr. Whitmarsh. – Considerando o conhecimento dela em letras românicas, não é de surpreender que encontre tantos dos que a conheceram ao visitar as terras do antigo império.
– Também é membro da Sociedade, lorde Elliot?
– Entrei depois de voltar da minha viagem pelo continente.
Ela só tinha 18 anos quando a mãe morreu, por isso ainda não chegara a frequentar os salões e jantares em que Artemis recebia acadêmicos e artistas. Porém, ali estavam, diante dela, alguns integrantes do círculo de amizades de sua mãe, mesmo que talvez pertencessem ao círculo mais distante.
Phaedra teria que descobrir se algum daqueles homens tinha percebido ou ouvido falar no homem que recebera as últimas afeições de Artemis.
Phaedra Blair estava aliviada por ela e a signora Roviale não serem as únicas mulheres na festa. A Sra. Whitmarsh desceu do quarto logo.
Phaedra entendeu de imediato que a Sra. Whitmarsh não tinha uma mente tão aberta quanto a do marido. Não falava muito, parecia mais um passarinho pálido, entretanto tinha um rosto tão expressivo que era possível adivinhar seus pensamentos. Ao perceber que Phaedra e lorde Elliot tinham chegado juntos, a Sra. Whitmarsh deu um sorrisinho superficial e lançou para a signora Roviale um sutil olhar de desdém. Depois, resignada, se recolheu a sua silenciosa desaprovação da companhia de mulheres perdidas.
Naquela noite, ao jantarem ao ar livre na varanda, lorde Elliot teve a elegância de incluir a Sra. Whitmarsh na conversa sobre a sociedade londrina, na certeza de que isso lhe agradaria. Phaedra permitiu que os cavalheiros a cobrissem de conselhos sobre as maravilhas da Antiguidade que ela não poderia deixar de visitar.
– A senhorita tem que ir aos sítios de Paestum – exortou Matthias. – Rothwell, ordeno que a leve até lá. Não entendo esses ingleses que percorrem confeitarias e bordéis em Pompeia e ignoram alguns dos mais belos templos gregos do mundo que há no entorno.
– Se a Srta. Blair desejar, iremos visitar os templos – disse lorde Elliot.
Matthias pareceu muito um acadêmico naquele momento. Com o cabelo branco despenteado, o maxilar cortando o ar e o nariz aquilino empinado, ele entoava a lição como se ela fosse uma universitária, algo que nunca lhe permitiram, por ser mulher.
– É por isso que estou aqui, Srta. Blair. Rothwell e Whitmarsh admiram os romanos, mas meu foco é mais antigo. Esta terra foi colônia dos gregos quando Roma ainda era uma cidadezinha com cinco cabeças de gado. Depois de ver os sítios de Paestum, a senhorita entenderá a superioridade do pensamento grego.
– Se isso não exigir que minha visita se prolongue por muito tempo, talvez eu aceite seu conselho.
Após o jantar, a signora Roviale levou as mulheres para longe da varanda, deixando os homens a discutir e debater sobre a Antiguidade. Phaedra não gostaria de manter uma conversa forçada com a crítica Sra. Whitmarsh. Assim, alegou cansaço e se isentou de mais obrigações sociais.
Uma criada a conduziu ao quarto. Quadrado e branco, com o mesmo piso de mármore visto por toda a mansão, tinha janelas grandes que davam para um terraço estreito que se estendia acima dos arcos da varanda principal. Alguém já tinha desfeito suas malas e guardado as roupas em um armário de madeira escura. Havia uma jarra de água na bancada para lavar o rosto e as mãos. Era de cerâmica, com flores vermelhas e folhas azuis. Cores semelhantes decoravam os azulejos em volta da lareira e o peitoril de uma janela.
Phaedra abriu as portas duplas que davam para o terraço de modo que a brisa do mar e os últimos raios do crepúsculo entrassem. Sons da varanda chegavam até ela: Matthias em tom professoral e Elliot rindo, assim como o ruído de conversa. Ela se perguntou se sua mãe algum dia realmente fora aceita naquelas discussões masculinas. Quando os Dilettanti a prestigiavam, era sempre uma relação de homens com uma mulher, com tudo o que isso implicava?
Cadeiras foram arrastadas e despedidas foram feitas. O silêncio tomou a mansão. Ela se levantou a fim de se preparar para dormir. Começava a soltar os fechos do vestido quando um ruído mínimo do lado de fora chamou sua atenção. Um feixe de luz dourada atravessou o terraço e alcançou a noite. Ela foi até lá e espiou.
Lorde Elliot estava de pé na outra extremidade do terraço, em mangas de camisa e colete. Phaedra tinha certeza de não haver feito barulho, porém ele olhou na direção dela como se tivesse feito.
– Estava imaginando se Matthias a teria acomodado neste quarto – disse Elliot.
Ela caminhou até o piso de terracota lá fora. A luz vinha de outro conjunto de portas ao lado do dela. O terraço era compartilhado por dois quartos.
– Parece que nosso anfitrião entendeu errado – disse ela.
– Possivelmente. No entanto, se for para dividir um terraço com alguém, prefiro você à Sra. Whitmarsh.
Ela arriscou se afastar um pouco mais, contudo permaneceu do próprio lado no espaço comum. Da balaustrada de pedra podia-se ver o mar, que agora brilhava lá embaixo com milhões de pequenos reflexos de estrelas.
– O Sr. Whitmarsh disse que os Dilettanti faziam homenagens a minha mãe. Fico feliz de saber que a capacidade dela era reconhecida.
– Um homem honesto teria que admitir o brilhantismo dela. É claro que havia outros menos honestos que diminuíam isso.
– É claro. Você a conheceu?
– Ainda estava na universidade quando ela faleceu. Ouvi falar nela e a vi na cidade, contudo não estava em posição de visitá-la.
– O que achava dela?
Ele se virou e descansou o quadril na balaustrada, olhando para a noite na direção dela. Phaedra desejou que ele não parecesse tão lindo e sedutor. Desejou que a luz se apagasse para que seu rosto ficasse no escuro.
– Fui criado em uma casa de homens e meu pai não compreendia bem as mulheres. Então, saber da sua mãe foi uma revelação. Os colegiais falavam muito dela. Alguns se apaixonavam por ela, outros a achavam irreal, mas sem dúvida ela os fazia questionar a ordem das coisas. Quanto a mim, eu a achava bonita, interessante, inteligente e provavelmente perigosa.
– Acho que ela era perigosa. Se o mundo fosse cheio de Artemis Blairs, os homens não poderiam continuar a ser o que são. Todos teriam que questionar a ordem das coisas, como você.
– Era o que me passava pela cabeça, entretanto eu era um garoto na época e não gostava de perigos reais. Tive que conhecer a filha dela para entender essa parte.
Foi a vez dela de rir.
– Dificilmente eu poderia representar um perigo para você.
– Você se engana, como eu me enganei. O perigo não vem de você.
Não, não vinha. Isso ficara evidente aquela noite. Um poder fluía dele, em impulsos viris. Isso não a surpreendia nem a assustava. Porém, a forma como seus próprios instintos femininos reagiam, sim.
– Não me culpe por suas piores inclinações, lorde Elliot.
– Elas não parecem estar entre as ruins, que dirá as piores, querida Phaedra. Ao contrário, elas me parecem naturais, inevitáveis e até necessárias.
Sua voz baixa e segura lançava cordas de veludo que a amarravam. O coração dela foi parar na boca e sua pulsação acelerou. Ele não se mexeu. Não se aproximou nem um centímetro, contudo pareceu estar ao seu lado, correndo a mão por seu corpo todo.
– Quero você.
O tom calmo e descontraído agitou o sangue dela como a brisa agitava seu cabelo.
– Quero-a sem resistências ao prazer e implorando por mim. Quero-a nua e tremendo e despida de suas...
– Basta. Se é isso o que pensa das mulheres...
– Só de você, querida dama. Você lança um desafio a cada homem que vê. Não se surpreenda se um deles o aceitar.
– Como ousa...
– Ah, sim, eu ouso. Estou a ponto de ousar neste exato momento. Você sabe disso e ainda assim está aqui. Se não quisesse que eu ousasse, nunca teria saído por aquela porta.
Ela abriu a boca para negar, mas as palavras lhe faltaram.
Com um sorriso vago, ele se afastou da balaustrada. O coração dela deu um salto e suas pernas fraquejaram.
– Esse perigo que incita em mim a excita.
Elliot andou em direção à luz do próprio quarto.
– Quem está zumbindo em volta de quem agora, Srta. Blair?
– Um nome estranho para se dar a uma filha, Phaedra – ponderou Matthias em voz alta.
Era a manhã seguinte e ele e Elliot tomavam café na varanda. Lá embaixo, Positano despertava após o nascer do sol.
– Duvido que haja outra mulher com esse nome na Inglaterra, considerando a referência – acrescentou Matthias. – É muito típico de Artemis Blair decidir que a fonte não importa e valorizar sua exclusividade.
Levando em conta que a Phaedra da mitologia teve um caso com o enteado, era mesmo uma escolha estranha. Elliot duvidava que a crença da Srta. Blair e da mãe no amor livre fosse tão longe assim.
– Acho que ela escolheu o nome pela sonoridade. É um belo nome – disse Elliot.
– Eu poderia pensar em uns cinco ou seis melhores. Não, seu descuido por este primeiro dever maternal sugere que ela era indiferente a essa parte da vida.
– Você falava bem dela na época em que fui seu aluno e a Srta. Blair a idolatra. Vamos calar as observações que ela possa ouvir.
– Ela ainda está deitada e não vai ouvir minhas alusões à falta de impulsos femininos de sua mãe, entretanto sua repreensão faz sentido.
De fato, ela ainda estava na cama, dormindo profundamente. Elliot tinha ido até lá e espiado antes de descer. As portas do quarto dela ainda estavam abertas, como uma forma de contradizer as últimas palavras dele. Veja como você não é nem um pouco perigoso para mim. Sua honra e a lei me protegem do pior e meu autocontrole cuidará do resto.
Ele vira um cabelo cor de cobre espalhado pelo travesseiro e uma pele alva enroscada nos lençóis. Uma perna linda e esguia se alongava sobre a roupa de cama. A tentação de entrar lá só para ficar observando-a o tomou, assim como o aborrecimento por vê-la dormindo tão profundamente, algo que ele não tinha conseguido fazer.
Nos últimos tempos, andava pensando nela demais. Ficando com a cabeça nas nuvens por muito tempo. Desejando demais. Achava que a companhia dos amigos e as obrigações do trabalho diminuiriam a importância da presença dela e assim ele voltaria a mente para algo mais normal.
– Está vivendo como um rei aqui, Greenwood – disse, para se distrair das imagens de Phaedra tão etereamente erótica em seu repouso. – As melhorias desde a minha última visita são visíveis.
Matthias ficou radiante.
– Suponho que esteja falando da casa e não da minha companheira, apesar de eu não saber ao certo dizer qual me agrada mais. Trazer as pedras até aqui foi um inferno, mas valeu a pena. Você deveria se juntar a mim, Rothwell. Compre uma mansão antiga e veja como seu dinheiro inglês pode render nesta costa.
– Ele rende porque o lugar é tão inacessível que é preciso navegar milhas até chegar a uma cidadezinha que fica logo ali atrás da montanha. Preciso da vida urbana com mais frequência do que duas vezes ao ano. Contudo, se está feliz em seu isolamento, fico satisfeito por você.
– Não estou nem um pouco isolado. Sempre tenho companhia. Os amigos vêm da Inglaterra, de Roma, de Nápoles e até de Pompeia. Recebi o superintendente do município no mês passado. Ele não se incomodou de subir a montanha em lombo de burro.
– Gostaria que me desse uma carta de apresentação – pediu Elliot. – Quero ver tudo o que escavaram nos últimos anos, não só as atrações abertas para visitantes.
Matthias levantou a sobrancelha, curioso.
– Quer ver os afrescos reveladores das delícias noturnas? A Srta. Blair não vai poder entrar, por mais que eu peça.
– Vou pesquisar outros assuntos. Antes de partir, gostaria que me concedesse alguns minutos para discutirmos o rumo que meu trabalho está tomando.
– Está combinado, então. Amanhã cedo nos trancaremos em meu escritório para falar sobre isso. Sinto falta de dar aulas. Depois me lembro de quão limitados muitos de meus alunos eram e a saudade vai embora.
– Brincar de professor e aluno vai ser muito útil. Vai clarear meus pensamentos. Ah, estou obrigado como cavalheiro a dizer que creio que você tenha entendido mal minha amizade com a Srta. Blair.
– É mesmo? Que pena!
Naquele momento, a dama em questão se juntou a eles. Com seu vestido preto esvoaçante e o cabelo solto, fazia pensar numa linda feiticeira celta. Matthias a convidou para se sentar à mesa. Serviu-lhe café e ficou atrapalhado, o que revelava quanto a companhia dela o provocava.
– Espero que tenha dormido bem em minha humilde casa, Srta. Blair.
– Sua casa é tudo, menos humilde, e dormi muito bem. O som e a brisa do mar são muito relaxantes – assegurou Phaedra, e então virou a cadeira para olhar a cidade. – O que estão fazendo lá embaixo? O que é aquela coisa vermelha perto da água?
– Ah, deve ser o carro para a procissão. Eles devem estar pintando-o. Daqui a três dias é a festa de San Giovanni, São João Batista. É uma grande festa religiosa por aqui. Nenhum barco sai para pescar nesse dia.
– Vai haver uma procissão?
– Uma procissão, uma missa e uma festa. Entre outros rituais, eles colhem nozes nas montanhas para fazer óleo.
– Interessante – disse ela. – Coincide com o solstício. Deve ser outro exemplo de festa pagã da qual os cristãos se apropriaram.
– A Srta. Blair está alcançando uma reputação em estudos mitológicos comparável à da mãe dela em letras românicas – informou Elliot. – Ela publicou um livro sobre o assunto que é muito benquisto.
– Que louvável!
Matthias conseguira falar de forma a diminuir o feito, apesar de admirá-lo.
– Esta data em comum é uma coincidência – continuou ele. – O deus do sol não era uma figura de destaque nas mitologias grega e romana. Apolo é associado a ele, mas o próprio sol, Hélio, desempenha um papel menor. Talvez por haver tanto sol por estas terras, não tenha sido preciso apaziguar esse deus.
– Há muito sol no Egito e, ainda assim, seu deus sol reinava supremo – contrapôs Elliot. – Acho que a Srta. Blair está certa sobre a festa de San Giovanni.
– Talvez – disse Matthias. – E o simbolismo das nozes, o que seria?
Phaedra riu.
– Vou pensar em uma resposta antes de partir, já que o senhor está disposto a ser flexível em suas opiniões.
– Para uma mulher bonita, posso ser completamente flexível, senhorita Phaedra. É meu maior defeito.
Ele olhou para fora da varanda. Um homem se aproximava, vindo por um caminho do norte.
– Eis Whitmarsh, de volta de sua caminhada matinal. Prometi mostrar-lhe um novo tesouro que encontrei. Gostaria de ver minha humilde e querida coleção de artefatos, Srta. Blair?
– Com certeza, Sr. Greenwood.
Ela aceitou sua mão para se levantar. Whitmarsh se juntou a eles ao entrarem na casa.
Elliot estava curioso para ver se Phaedra conseguiria manter a pose de indiferença em relação a ele que assumira nessa manhã. Ela nem sequer enrubescera. Não ficara agitada. Havia notado sua presença de forma indiferente e segura de si. Sua atitude só fez provocar o lado mais obscuro do desejo que o atormentava.
Esse lado agora lhe dizia que ele deveria tê-la seduzido no terraço na noite anterior, como desejara. A ideia fazia mais sentido a cada minuto que passava.
CONTINUA
Um homem que comete um crime precisa encobrir seus rastros, mesmo que eles sejam deixados pelos melhores sapatos que o dinheiro poderia comprar.
Para encobrir os seus, lorde Elliot Rothwell retornou à casa de sua família, em Londres, e se juntou às pessoas recém-chegadas para o baile promovido por seu irmão. Agiu como se houvesse se ausentado por breves instantes para tomar um pouco de ar naquela gloriosa e agradável noite de maio.
Ao cruzar o limiar da porta, começou a cumprimentar os presentes. Belo e alto, o irmão mais novo do quarto marquês de Easterbrook – e também o Rothwell considerado mais amistoso e normal – distribuiu sorrisos a todos, alguns bastante calorosos a certas damas.
Quinze minutos depois, tão suavemente quanto voltara à festa, Elliot puxou assunto com Lady Falrith. Retomou uma conversa que deixara em suspenso duas horas antes e elogiou a dama com tanto tato que ela se esqueceu de que ele havia se ausentado. Em questão de minutos, Lady Falrith parou de se dar conta da passagem do tempo.
Enquanto jogava seus encantos em Lady Falrith, Elliot varria o salão com os olhos à procura do irmão. Não Hayden, que, junto com a esposa, Alexia, era o anfitrião da noite. Estava em busca de Christian, o marquês de Easterbrook.
Os olhares dos dois não se cruzaram, mas o retorno de Elliot ao baile foi notado por Christian. O mais velho se afastou de um círculo de lordes no fundo da sala e caminhou para a porta.
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Elliot dançou uma valsa com Lady Falrith antes de continuar a missão da noite. Fez isso como penitência por estar usando a dama e como um agradecimento sem palavras por sua ajuda involuntária. A noção de tempo de Lady Falrith poderia ser bastante vaga e sua memória, um tanto benevolente. De manhã, ela acreditaria que Elliot havia lhe dispensado atenção a noite inteira e que tinha flertado com ela. Sua autoconfiança seria útil caso algo desagradável acontecesse em relação às atividades de Elliot na cidade naquela noite.
Finda a valsa, ele de novo pediu licença. Ao contrário de Christian, que seguira solitário e direto para a porta, Elliot caminhou pelo salão distribuindo cumprimentos e conversando com todos, até chegar à nova cunhada.
– Está tudo indo bem, não acha? – perguntou ela, seu olhar percorrendo o espaço em busca de confirmação.
– É um triunfo, Alexia.
E, para ela, era mesmo. Um triunfo da personalidade e do temperamento. E talvez um triunfo do amor.
Alexia não era o tipo de mulher que a sociedade esperaria que pudesse se casar com Hayden. Não tinha família nem fortuna. Era tão sensata que nunca aprendera a dissimular, que dirá flertar. Porém, naquela noite ela era a anfitriã no lar de um marquês, com seu cabelo escuro impecavelmente penteado como ditava a última moda e usando roupas igualmente elegantes. A órfã pobre se casara com um homem que a amava como nunca amara antes.
Elliot acreditava que aquele casamento daria certo. Alexia cuidaria para que isso acontecesse. A história já provara que o amor era uma emoção perigosa para os homens da família Rothwell. Contudo a sensata e prática Alexia saberia usar o amor para controlar o perigo. Elliot suspeitava que ela já dominara a fera várias vezes.
Ele se uniu a ela na admiração do sucesso da noite. Em um canto distante, uma mulher pequena de pele muito clara era o centro das atenções. Um penteado adornado de plumas em abundância valorizava seu cabelo louro. Ao mesmo tempo, ela se mantinha vigilante na atenção que uma bela jovem recebia dos rapazes ali por perto.
– O triunfo é seu, Alexia, no entanto, creio que minha tia pretende levar o troféu desta temporada de caça.
– É compreensível a felicidade de sua tia Henrietta por apresentar a filha à sociedade. Dois nobres vinham fazendo galanteios a Caroline nos últimos tempos. Mas ela está irritada comigo hoje porque não convidei um deles para o baile, apesar de ela haver ordenado que eu o fizesse.
Elliot estava pouco interessado nos motivos de irritação da tia. Na lista de convidados, entretanto, tinha todo o interesse.
– Não vi a Srta. Blair, Alexia. Nenhum vestido preto. Nenhum cabelo solto. Hayden a proibiu de convidá-la?
– De jeito nenhum. Phaedra está no exterior. Ela embarcou há cerca de quinze dias.
Ele não queria parecer curioso demais, mas...
– No exterior, você disse?
Os olhos violeta dela se suavizaram, divertindo-se. Voltou toda a sua atenção para ele, o que, considerando o assunto em pauta, não era algo que ele desejasse.
– Primeiro, Nápoles, depois, uma excursão ao sul. Eu avisei a ela que você costuma dizer que não é muito sensato visitar a península Itálica no calor do verão, mas ela queria investigar os rituais e festividades da estação.
Alexia inclinou a cabeça como se fosse confidenciar um segredo.
– Acredito que o falecimento do pai a afetou mais do que ela admite. O último encontro que tiveram foi muito emotivo. Phaedra ficou bastante abalada. Acho que fez a viagem para se animar um pouco.
Ele não duvidava de que se encontrar com o pai em seu leito de morte fosse algo bastante emotivo. Ele mesmo ficara muito consternado ao perder o pai. Nessa noite, porém, estava mais interessado no paradeiro da Srta. Blair e em assuntos discutidos com o pai dela antes da despedida final.
– Se souber onde ela vai se hospedar em Nápoles, posso fazer-lhe uma visita quando eu for, caso ela ainda esteja por lá.
– Ela deixou o endereço do local onde pretendia ficar. Foi indicação de um amigo. Se Phaedra ainda não tiver voltado quando você for, ficarei feliz se puder visitá-la. A independência dela às vezes beira o descuido, e isso me preocupa.
Elliot duvidava de que Phaedra Blair gostasse de ter alguém preocupando-se com ela. Mas Alexia se preocupava de qualquer forma.
– Ai, meu Deus! – murmurou Alexia.
Elliot se virou e viu o motivo do suspiro da cunhada. Henrietta vinha na direção deles, com suas plumas esvoaçantes e seus olhos sonhadores e brilhantes lampejando de tanta determinação.
– Acho que ela está atrás de você – sussurrou Alexia. – Fuja enquanto é tempo ou ela vai pegá-lo para reclamar. Easterbrook permitiu que eu recepcionasse os convidados do baile sem o consentimento dela. Henrietta acredita que o fato de morar nesta casa a torna sua dona.
Elliot era mestre em sair à francesa. Quando a tia alcançou seu destino, ele já se fora havia muito tempo.
Depois de pegar um atalho pelo corredor dos criados e dar uma corrida subindo as escadas dos fundos, Elliot se aproximou dos aposentos de Christian. Entrou na sala de estar e encontrou o irmão esticado em uma cadeira no canto.
O olhar penetrante que Christian lhe lançou deixou claro que sua mente não estava nem de longe tão relaxada quanto o corpo.
– Não encontrei – disse Elliot, respondendo à pergunta que aqueles olhos escuros faziam. – Se estiver na casa ou no escritório dele, está muito bem escondido.
Christian expirou com força. O som que fez demonstrava seu aborrecimento. O assunto em questão vinha cerceando sua liberdade de passar os dias fazendo o que bem entendesse. Elliot não fazia ideia de quais atividades seriam essas. Na verdade, ninguém fazia.
– Ele deve ter queimado tudo ao saber que estava à beira da morte – sugeriu Elliot.
– Merris Langton demonstrava ter uma personalidade tal que é improvável que pensasse em poupar os outros, mesmo à beira da morte.
Christian enfiou um dedo por baixo de sua gravata atada com perfeição e deu um puxão para soltá-la. Sua aparência estava impecável naquela noite, tudo nele demonstrava se tratar de um lorde. Os tecidos de suas vestimentas exibiam a qualidade superior em cada fio. Contudo o gesto ao desatar a gravata mostrava seu desconforto em relação à formalidade da noite e o longo cabelo escuro preso em um rabo de cavalo indicava seu lado excêntrico.
Elliot imaginou que o irmão estaria louco para se desvencilhar daqueles símbolos formais da civilização e se refestelar no robe exótico que sempre usava. O mais comum era encontrá-lo descalço em seus aposentos, não usando meias de seda e sapatos. No momento, entretanto, as únicas indicações de seu jeito informal em casa eram a sobrecasaca desabotoada e a forma lânguida como seu corpo alto se moldava ao forro da cadeira.
– Você verificou se havia tábuas soltas no piso ou outros esconderijos? – perguntou Christian.
– Cheguei a arriscar ser descoberto. Permaneci por tempo de mais nos dois prédios e um guarda estava passando quando saí do escritório no centro financeiro. Estava escuro, não havia luz perto da porta, mas...
Sua descrição da aventura sugeria mais receio do que ele de fato tivera. Elliot acreditava que, em certas circunstâncias, não havia opção a não ser infringir a lei. Só nunca esperara reagir de forma tão fria e indiferente quando se visse numa dessas situações.
– Se alguém perguntar, você ficou no baile a noite toda – disse Christian. – Langton possuía uma pequena editora que publica textos revolucionários. Também era um homem com certo gosto pela chantagem, como descobrimos. Foi uma pena ele ter morrido antes que eu pudesse pagar-lhe. Agora o manuscrito de Richard Drury está sabe lá Deus onde e sua mentira sórdida sobre nosso pai ainda pode vir a público.
– Vou garantir que isso não aconteça.
– Você acha que alguém pode ter pegado o manuscrito antes de você? É provável que eu não tenha sido a única pessoa que Langton abordou.
– Não vi indícios de que alguém já tivesse mexido nas coisas dele. Nem mesmo seu advogado ou testamenteiro. Ele acabou de ser enterrado; foi esta tarde. Não acho que o manuscrito estivesse nem na casa nem no escritório quando ele morreu.
– Esse é um obstáculo muito inconveniente.
– Inconveniente, mas não intransponível. Vou descobrir o manuscrito e o destruirei, se necessário.
A atenção de Christian focou nele.
– Você fala com muita confiança. Sabe onde está o maldito manuscrito, não sabe?
– Faço ideia. Se estiver certo, vamos acabar com isso em breve. Mas pode haver custos para você.
– Pois pagarei. Richard Drury foi membro do Parlamento e, apesar de suas ideias extremistas, um intelectual respeitado. Se suas memórias incluírem tal acusação contra meu pai, muitas pessoas vão acreditar nele.
Vão acreditar porque a acusação reforça o que já creem ser verdade.
Elliot não verbalizou a resposta, mas aquela ideia rondava sua cabeça desde que soubera que Merris Langton planejava publicar as memórias de Richard Drury. O livro incluiria segredos e intrigas que repercutiriam mal sobre a reputação de muitos poderosos, tanto do passado quanto do presente. A acusação que supostamente existia contra o pai deles combinava bem demais com o que a sociedade já pressupunha sobre seu casamento.
Porém, a sociedade estava errada em relação à maior parte do caso. O pai lhe explicara isso em um momento em que os homens não mentem.
Você era o favorito dela. Ela o queria para si e eu permiti, já que você era o caçula. Era um alívio vê-la às vezes se lembrar de que era mãe. Só que agora estou morrendo e mal o conheço. Não espero amor ou pesar de você, mas não vou deixar que pense que sou um monstro, como é provável que ela tenha dito.
– Onde você acha que o manuscrito está? Mantenha-me informado de cada passo, Elliot. Se não estiver fazendo progressos, cuidarei de tudo sozinho.
Só não estava claro como Christian faria isso. Essa incerteza levara Elliot a assumir a tarefa. Seu irmão podia ser cruel ao silenciar ecos do passado.
– Apesar de não ter achado o manuscrito, descobri documentos financeiros no escritório de Langton. A editora está em apuros. Os documentos referentes à propriedade dela foram de grande valia. Richard Drury foi sócio desde o início. Sem dúvida foi esse o motivo pelo qual Langton recebeu suas memórias.
Christian achou isso interessante.
– Teremos que abordar o advogado de Langton e ver quem vai ficar com tudo agora.
– Os documentos indicam que a parte de Drury foi deixada para a única filha. Portanto, ainda há alguém vivo para lidar com o assunto. E provavelmente foi cúmplice no esquema de chantagem desde o início.
– Única filha? Maldição!
Christian apoiou a cabeça no encosto da cadeira, fechou os olhos e emitiu um resmungo exasperado.
– Não me diga que é Phaedra Blair. Que inferno!
– Sim, Phaedra Blair.
Christian xingou novamente.
– É bem do estilo do Sr. Drury, com suas ideias radicais e vida não convencional, deixar para uma mulher, sua filha bastarda, a sociedade num negócio – afirmou, depois desviou o olhar para baixo e prosseguiu: – É claro, ela deve ficar feliz com o dinheiro se a editora estiver em apuros. Talvez até agradeça por ter um motivo para não publicar as memórias do pai. Com certeza os textos abordam assuntos pessoais sobre ela e a mãe.
– É possível.
Mas Elliot não acreditava que as negociações seriam tão simples assim. A Srta. Blair era uma complicação inoportuna. Ela poderia ver na publicação das memórias e seus segredos uma possibilidade de ganhar um bom dinheiro e salvar a editora. Ou, pior, poderia acreditar que seus ideais de justiça social seriam fortalecidos quando ela revelasse o calcanhar de aquiles da sociedade culta.
– O livro dela foi publicado por Langton, não? Está na biblioteca aqui, em algum lugar. Confesso que nunca o li. Não tenho muito interesse em mitologia e folclore, que dirá em estudos que misturam ambos – confessou Christian.
– Ouvi dizer que a base teórica é mais do que respeitável.
Elliot dava a mão à palmatória, quando era o caso.
– Ela herdou a inteligência dos pais, junto com a indiferença pelas convenções sociais e pelas regras de conduta.
– Então, nas atuais circunstâncias, nada do que lhe foi legado é boa notícia para nós.
Christian se levantou, abotoou o casaco e verificou se o colarinho estava arrumado. Ia voltar ao baile.
– É melhor não contar a Hayden sobre isso. Ele é muito protetor em relação à esposa, e a Srta. Blair é amiga dela. Seria melhor que eles continuassem na ignorância, para o caso de você ser obrigado a agir mais rispidamente.
– A Srta. Blair zarpou para Nápoles há duas semanas. Farei a transação com ela antes que Alexia tenha oportunidade de vê-la.
– Vai segui-la até lá para isso?
– Eu pretendia ir a Pompeia no outono, de qualquer forma. Quero estudar as recentes escavações para meu próximo livro. Só vou antecipar a viagem.
Andaram lado a lado até a escada. A cada degrau, os acordes musicais iam ficando cada vez mais altos e o burburinho de vozes enchia os espaços majestosos. Ao descerem para a alegre turba, Elliot observou a expressão distante e distraída do irmão.
– Não se preocupe, Christian. Vou me certificar de que a acusação contra nosso pai nunca seja publicada.
O rápido sorriso de Christian não deixou sua expressão mais leve.
– Não duvido de suas habilidades ou de sua determinação. Não era sobre isso que estava pensando neste exato momento.
– Então era sobre o quê?
– Estava pensando em Phaedra Blair e imaginando se existe um homem na face da Terra que consiga, como você disse, fazer transações com ela.
Elliot seguia no escuro, iluminando o caminho com a chama da pequena lamparina que carregava.
Os convidados tinham ido embora e os criados estavam dormindo. Hayden e Alexia provavelmente gozavam das delícias do leito conjugal em sua casa na Hill Street. Christian ainda devia estar acordado, mas não deixaria seus aposentos pelos próximos dias.
A luz fraca se refletia nas molduras douradas na galeria. A lua lançava um pouco mais de luminosidade através dos janelões que vazavam outra parede. Elliot parou na frente de dois retratos. Não tinha descido no intuito de ir àquele cômodo, mas seu objetivo tinha tudo a ver com o homem e a mulher imortalizados naquelas imagens.
O artista tinha usado fundos semelhantes para os dois quadros, como se uma pintura desse continuidade à outra. Era bom ver seus pais juntos assim, duas metades de um todo, mesmo que a unidade implícita fosse mentira. Podia contar nos dedos o número de vezes que ao menos vira os dois no mesmo ambiente.
Não vou deixar que pense que sou um monstro, como é provável que ela tenha dito.
Seu pai se enganara nessa avaliação. Exceto por um único desabafo, a mãe nunca falara com ele sobre a separação e seus motivos. Ela quase não falava nada nas horas que passava com Elliot na biblioteca em Aylesbury.
O medo que sentira do pai vinha dele mesmo, não viera da mãe. Mas apreciara os raros momentos de atenção que recebera daquele pai que parecia não se lembrar de que tinha três filhos, não apenas dois.
Continuou sua caminhada para a biblioteca pensando na longa conversa que tivera com o pai, a última e única da vida inteira. Aprendera verdades importantes naquele dia, sobre seres humanos e paixões, sobre orgulho e alma e sobre a forma como uma criança pode não enxergar direito o mundo à sua volta.
Tinha chegado ao fim dessa conversa já sem medo. Após aquelas confidências, sentira-se como filho de seu pai pela primeira vez na vida.
Correu a lamparina pelas lombadas de couro dos livros na biblioteca. Seguiu para a estante do canto, buscando a prateleira mais baixa. Depois da morte da mãe, havia trazido para ali os livros pessoais dela, os que ele a vira lendo em seu exílio em Aylesbury.
Não sabia por que trouxera aqueles livros para Londres. Talvez assim uma parte dela permanecesse onde a família costumava se reunir. Seguira esse impulso muito antes da conversa com o pai, um ato de rebeldia na tentativa de finalmente pôr fim à separação dela de suas vidas.
Ninguém nunca notara o acréscimo desses livros às centenas de volumes. Bem embaixo, em um canto obscuro, nem o fato de suas encadernações não combinarem com as dos outros tinha importância.
Passou o dedo por um grupo de obras não encadernadas. Finas e pequenas, eram as brochuras que pertenceram à mãe. Retirou-as da estante, espalhou-as pelo chão e aproximou a lamparina de seus títulos.
Viu o que queria. Um ensaio contra o casamento, escrito trinta anos antes por uma famosa intelectual. A autora vivera de acordo com as próprias crenças. Chegara a recusar uma proposta de casamento do amor de sua vida, Richard Drury, mesmo estando grávida.
Ele carregou a brochura e a lamparina até a estante onde Easterbrook arrumara as novas aquisições da biblioteca. Pegou uma dissertação sobre mitologia que ainda exalava cheiro de couro novo.
Levou os dois livros para seu quarto e começou a lê-los. Estava se preparando para enfrentar Phaedra Blair.
CAPÍTULO 2
– Signora, não acho que eu deva pagar por estes cômodos se nem mesmo quero usá-los.
Phaedra conseguiu expressar sua objeção juntando seus conhecimentos de latim aos poucos termos que aprendera do dialeto napolitano. Esperava que, ainda que as palavras não fossem suficientes, seu tom comunicasse seu desacordo em relação à conta que a signora Cirillo lhe apresentara.
Recebeu uma resposta longa e raivosa, despejada de forma igualmente eloquente. A signora Cirillo não se importava se Phaedra tinha ficado nos cômodos contra sua vontade. Nem gostava de ter guardas reais posicionados do lado de fora de sua hospedaria modesta porém respeitável. Queria ser paga e tivera a ousadia de acrescentar um valor referente ao incômodo que os guardas representavam para os outros hóspedes.
Apesar de tentada a dizer à mulher que mandasse aquela conta para o rei, Phaedra se controlou e foi buscar as moedas no quarto.
Fora mesmo um erro gastar uma semana naquela cidade antes de partir para as ruínas. Se sua reclusão durasse muito tempo, não teria dinheiro para comprar a passagem de volta para a Inglaterra, que dirá continuar sua missão por ali. A ideia era fazer uma viagem curta ao exterior. Não viera a passeio, afinal. Estava lá por um motivo e tinha assuntos urgentes a tratar quando voltasse para casa.
Amansada por mais uma semana, a signora Cirillo foi embora. Phaedra voltou para onde estava sua bagagem e refletiu sobre a situação. Procurou em sua valise e encontrou um xale preto. Desfez o nó que havia em uma de suas pontas, soltando o objeto escondido nele.
Uma joia grande caiu em seu colo e seus matizes brilharam na pouca luz do quarto. Pequenas imagens finamente entalhadas se destacavam em branco-perolado contra o fundo vermelho-escuro. Retratavam uma cena mitológica do deus Baco e seu séquito.
Fora o objeto mais caro que a mãe lhe deixara ao morrer. Para garantir o futuro de minha filha, deixo-lhe meu único objeto de valor, meu camafeu de ágata, uma antiguidade de Pompeia, ela havia acrescentado à mão ao testamento.
Phaedra nunca tinha pensado muito sobre aquele aditamento nos seis anos que se passaram desde a morte da mãe. Conservava com carinho aquela peça, assim como tudo o que lembrava a brilhante e extraordinária Artemis Blair. O valor da joia a deixava mais tranquila em relação a seu futuro financeiro, era bem verdade, mas ela esperava nunca ter que vendê-la. Agora, no entanto, a frase belamente escrita pela mãe levantava perguntas que exigiam respostas.
Amarrou o camafeu de volta no xale, guardou-o e retornou para a sala de estar. Abriu as persianas do janelão que dava para oeste. A baía pareceu muito azul a distância e a ilha de Ischia podia ser avistada em meio à névoa longínqua.
Uma brisa marinha penetrou no cômodo, esvoaçando alguns de seus cachos. A voz do guarda também chegou até ela. Phaedra debruçou-se na janela do terceiro pavimento para ver com quem ele conversava.
Viu alguém de cabelos escuros bem diante do capacete de metal e da imponente bainha da espada do guarda. O cabelo tinha um corte da última moda e se movia de forma romântica ao soprar da brisa. Pertencia a um homem bem mais alto do que o guarda, de ombros largos e que parecia usar uma sobrecasaca cara. As botas eram do tipo visto nos pés mais elegantes de Londres. A julgar pelos trajes, tratava-se de um cavalheiro inglês.
Ela apurou o ouvido para escutar a conversa. Sentiu-se surpreendentemente reconfortada por haver alguém de seu país ali, mesmo que só estivesse pedindo instruções de como andar pela cidade nas ruas mais escondidas do Bairro Espanhol.
Ela considerou a hipótese de chamá-lo e pedir ajuda. Não tinha certeza se os ingleses ali, em Nápoles, sabiam que ela fora presa. Mas também duvidava de que dessem a mínima caso soubessem. Os que a conheciam não aprovavam seu comportamento nem queriam sua companhia. Phaedra normalmente também não apreciava a companhia deles, mas sua inabilidade de se mesclar à sociedade inglesa ali tinha lhe criado problemas muito antes de seu inesperado encarceramento.
As coisas pareciam não ir bem para o inglês: os gestos do guarda deixavam claro que ele se desculpava respeitosamente. Estou cumprindo meu dever. Eu colaboraria se pudesse, mas...
O inglês começou a se afastar. Caminhou para o outro lado da calçada e parou. Olhou para cima, franzindo de leve as sobrancelhas perfeitas. Seus olhos escuros alertas percorreram a fachada do prédio.
Phaedra sentiu o coração ficar mais leve – e não só porque o homem tinha um rosto que faria a pulsação de qualquer mulher acelerar. Ela o conhecia. Era o famoso historiador lorde Elliot Rothwell que estava lá embaixo. Alexia dissera que ele visitaria Nápoles no outono, contudo parecia que ele antecipara a viagem.
Ela se inclinou mais para fora da janela e acenou. Lorde Elliot respondeu com um leve movimento de cabeça. Ela levou um dedo aos lábios e apontou para o guarda. Depois gesticulou indicando os fundos do prédio.
Lorde Elliot se afastou fingindo estudar a arquitetura das construções erguidas ao longo da rua. Phaedra fechou a persiana e correu para o outro lado do apartamento. Abriu a janela e olhou para o pequeno jardim embaixo.
Lorde Elliot levou um tempo para chegar lá. Por fim, ela o viu entrar pela extremidade oposta, vindo pelo portão que dava para a ruela fétida que separava os imóveis. Ele seguiu sem nenhuma hesitação. Caminhou na direção dela, alto e confiante, como um homem acostumado a fazer o que bem entendia. Mesmo que a natureza não o houvesse agraciado com um rosto tão bonito e angular, só seu jeito relaxado de andar e seus modos seguros já causariam forte impressão.
Ela ficou tão feliz por ver alguém conhecido que nem se importou por aqueles olhos escuros a avaliarem tão minuciosamente. Percebera um olhar semelhante por sobre o sorriso manso de lorde Elliot quando se conheceram, no casamento de Alexia. Era a reação de um homem que a achava vagamente interessante, mesmo desaprovando sua aparência, suas crenças, sua história, sua família, seu... tudo.
– Srta. Blair, estou aliviado em vê-la bem-disposta e em boa forma.
Outro daqueles sorrisos mansos acompanhou a saudação.
– Também estou aliviada em vê-lo, lorde Elliot.
– Alexia me deu o nome de sua hospedaria e me pediu que viesse visitá-la, para verificar se não precisava de nada.
– Foi muita gentileza dela. Lamento não poder recebê-lo adequadamente, agora que chegou.
– Parece que não pode me receber de forma nenhuma.
Era bem característico dele fazer algumas gracinhas antes de entrar no assunto.
– Imagino que esteja surpreso, até mesmo chocado, por minha prisão.
– Sou um homem que raramente se choca e quase nunca se surpreende. Contudo admito estar um tanto curioso. A senhorita só está em Nápoles há poucas semanas. A maioria das pessoas levaria pelo menos um ano para acumular crimes suficientes para merecer tal punição.
Ele estava se divertindo com a situação? Naquelas circunstâncias, Phaedra achou a conversa inteligente de lorde Elliot bastante inadequada.
– Não houve crime nenhum, só um pequeno mal-entendido.
– Pequeno? Srta. Blair, há um membro da guarda real na sua porta.
– Não estou convencida de que foi o rei que o colocou lá. Um dos funcionários do tribunal fez isso comigo. Ele é um homenzinho abominável, com poder em demasia e pouca inteligência.
Lorde Elliot cruzou os braços, o que o fez parecer crítico e poderoso. Ela odiava quando os homens assumiam essa postura com ela. Era a personificação de tudo o que havia de errado com a metade masculina da humanidade.
– O guarda mencionou um duelo – disse lorde Elliot.
– Como é que eu iria adivinhar que esses homens fossem tão possessivos a ponto de tentarem se matar porque uma mulher conversou com...
– Espadas e adagas. O guarda disse que houve sangue.
– Marsilio é um jovem artista. Não passa de um garoto. Teimoso, porém muito gentil. Eu não fazia ideia de que iria interpretar erroneamente a nossa amizade a ponto de desafiar Pietro simplesmente porque passeei com ele às margens da baía.
– É lamentável para a senhorita que Marsilio, o garoto teimoso e gentil, seja parente do rei. Ele quase foi morto no duelo. Felizmente, o guarda disse que ele irá sobreviver.
– Ah, graças a Deus! Apesar de as pessoas exagerarem bastante por aqui. Pelo que entendi, ele não ficou muito ferido, ainda que qualquer ferimento possa se agravar neste clima. Fiquei muito pesarosa com o ocorrido. Eu disse isso. Expressei meu arrependimento e minhas desculpas falando bem devagar no meu idioma e também em latim, para ser bem entendida, mas o homenzinho intrometido, odioso e estúpido não me ouviu. Ele até me acusou de ser uma meretriz, o que passou de todas as medidas. Expliquei que nunca tirei nem um centavo de homem nenhum.
– A senhorita declarou sua virtude e honra ou disse ao homenzinho intrometido e estúpido que acha que as mulheres devem dispor de seu corpo livremente?
Ela não gostou nada do olhar profundo e sagaz dele ao expressar essa ousada insinuação. Se não estivesse em uma situação tão ridícula, Phaedra lhe diria que era, sim, uma mulher pouco convencional, mas isso não dava a ele o direito de ser rude. No momento, contudo a prudência tinha que falar mais alto.
– Expliquei minha crença no amor livre, o que é diferente de dispor do corpo livremente, lorde Elliot. Tentei instruí-lo. Ficaria feliz em fazer o mesmo pelo senhor, se algum dia tivermos um encontro mais oportuno.
– Que proposta tentadora, Srta. Blair. Contudo espero que as reflexões filosóficas tenham ficado esquecidas em sua cela. Seria melhor ter se declarado uma cortesã. Aqui se sabe tudo sobre esse assunto. Por outro lado, conceitos radicais sobre o amor livre, bem...
O gesto dele com as mãos disse tudo. O que esperava, mulher? Você vive fora das regras sociais e até a sua aparência convida a mal-entendidos.
Mais uma vez ela engoliu o que seu instinto lhe mandava dizer. Discutir só serviria para afastá-lo, e ela queria muito que ele ficasse um pouco mais. Não se dera conta da própria solidão ali e da tristeza que o isolamento lhe causava. Só ouvir o próprio idioma já era um alento.
– Acha que vão me soltar logo?
De novo o mesmo gesto com as mãos, só que agora acompanhado de um dar de ombros.
– Não há constituição aqui. Nem se julgam os casos observando precedentes, como na Inglaterra. Na verdade, não existe um direito codificado, é uma monarquia à moda antiga. A senhorita tanto pode ser libertada amanhã como ser mandada de volta à Inglaterra, ou levada a julgamento, ou permanecer nesses aposentos por anos, ao bel-prazer do rei.
– Anos! Isso seria uma barbaridade.
– Acho que não vai chegar a esse ponto. Contudo pode levar alguns meses até que seu homenzinho odioso e estúpido perca o interesse no caso.
Ele olhou para a fachada do prédio em frente e depois para o portão do jardim.
– Srta. Blair, não posso mais ficar escondido neste jardim, ou também correria o risco de me tornar hóspede dos guardas do rei. Tomarei providências para que lhe mandem comida e deixarei uma quantia em dinheiro para pagar pelo apartamento, pois com certeza continuarão a lhe cobrar o aluguel. Também vou pedir que um adido inglês venha, de tempos em tempos, verificar se está tudo bem.
Meu Deus, ele estava indo embora! Talvez ela envelhecesse naqueles cômodos, ou até morresse de fome quando o dinheiro acabasse.
Ela não era o tipo de mulher que dependesse de um homem para sustentá-la ou protegê-la. Além do mais, lorde Elliot não havia conquistado seu apreço durante a conversa. Contudo estar diante de um futuro incerto a ajudou a superar sua aversão natural a pedir ajuda àquele homem.
– Lorde Elliot – chamou, fazendo-o parar após ele ter dado três passos na direção do portão do jardim. – Lorde Elliot, os adidos ingleses não estão interessados em minha situação. Pergunto-me se o senhor consideraria a hipótese de interceder em meu favor. Tenho certeza de que o homenzinho odioso ficaria muito impressionado com suas ligações familiares e sua fama como historiador. Se pedisse em meu nome, talvez ajudasse.
A expressão dele foi simpática, porém nada encorajadora.
– Sou o caçula. Minha posição é bem menos importante aqui e minha fama pouco conta. Esse tribunal não tem motivo algum para me conceder favores.
– Estou certa de que será mais bem recebido do que eu jamais conseguiria. Pelo menos, conhece o idioma deles. Vi-o conversar com o guarda.
– Não sou fluente o bastante no dialeto para defendê-la bem.
– Ficaria grata por qualquer tentativa de sua parte.
Que fim levara o cavalheirismo? Não acreditava nele, mas gente do tipo de Elliot Rothwell, sim. Ela era uma donzela em perigo e esse cavalheiro deveria se prontificar a ajudá-la, não ficar parado no meio do jardim, com aquele jeito de quem adoraria nunca tê-la avistado na janela.
Ele refletiu um distante, analisando o pedido. Ela sentiu seu sorriso congelar até virar uma careta suplicante.
– Não estamos na Inglaterra, Srta. Blair. Mesmo que eu tenha êxito, talvez a senhorita não aprecie as condições impostas por eles em troca de sua liberdade.
– Vou me esforçar e acatar quaisquer condições, ainda que reze para que não me ponham em um navio de volta para a Inglaterra de imediato. Vim até aqui e preciso, na verdade quero, visitar as escavações de Pompeia. Antes de ir embora. É um antigo sonho meu.
Ele parou para pensar por um longo tempo. Seu suspiro deixou claro que sua decisão ia contra o próprio bom senso.
– Prometi a Alexia que cuidaria do seu bem-estar, então farei o que puder. Encontrar o homem que ordenou sua detenção pode não ser tarefa fácil. Qual é o nome dele? Preferia não ter que andar pelos corredores do tribunal perguntando por um homenzinho odioso e estúpido. Ele poderia ouvir a descrição, o que não nos ajudaria em nada. Além disso, ela provavelmente se aplica a muitos outros funcionários da Justiça.
Ele havia aceitado seu pedido não por um desejo genuíno de ajudá-la, mas para cumprir o que considerava seu dever. Mas Phaedra Blair estava desesperada demais para entrar em detalhes a respeito de suas motivações.
– O nome dele é Gentile Sansoni. Que cara é essa? O senhor o conhece?
– Já ouvi falar dele. Sua autodefesa caiu em ouvidos moucos, Srta. Blair. Sansoni não fala inglês nem latim. Ele é um legítimo napolitano, o que não é boa notícia.
Certamente Phaedra Blair chamara a atenção de Gentile Sansoni, capitão da polícia secreta do rei. É claro que, com seu longo cabelo ruivo esvoaçando ao sol, solto e descoberto, ela chamaria a atenção de toda a Nápoles.
Elliot ouvira falar sobre o algoz da Srta. Blair durante sua última visita à cidade, fazia três anos. Sansoni fizera sua fama a custa de sangue, em 1820, quando o breve governo republicano fora violentamente vencido e a monarquia, restaurada.
Diziam que Sansoni era responsável pelo desaparecimento inesperado de carbonários, ou constitucionalistas, e também que abusava de sua autoridade em setores que tinham pouco a ver com política. Não era o tipo de homem que se impressionaria com um cavalheiro inglês, e Elliot também não acreditava que encarasse de forma positiva uma tentativa sua de recorrer a seus superiores para mudar a decisão tomada pelo capitão.
Elliot não poderia negociar sobre o livro do pai da Srta. Blair enquanto ela permanecesse presa, por isso aceitara de imediato tentar libertá-la. Só tinha fingido hesitar para fazer com que ela se sentisse em dívida.
Também se deixara levar pela desprezível tentação de fazer com que aquela defensora declarada da independência feminina implorasse pela ajuda de um homem. De alguma forma, pelo simples fato de existir, a Srta. Blair conseguia fazer com que um homem se sentisse desafiado. Os instintos dele tinham reagido à altura.
Contudo o dever falara mais alto e, no dia seguinte, ele se dispôs a fazer o que estivesse a seu alcance por ela. Sansoni não se deixaria impressionar por cavalheiros ingleses, mas talvez pelo menos ouvisse um capitão da Marinha britânica. A corte de Nápoles ainda reverenciava a memória de Nelson, e Elliot suspeitava que Sansoni veria o herói inglês quase como um irmão que um dia, muito tempo antes do rápido governo republicano, ajudara a impedir outra tentativa de golpe contra o rei.
Sempre havia navios britânicos no porto de Nápoles, e Elliot foi visitar um cujo capitão ele conhecia. Dois dias depois de se encontrar com a Srta. Blair, Elliot levou Augustus Cornell – que vestia seu traje militar completo e impecável – ao longo de quilômetros de corredores de palácios até encontrarem o covil de Gentile Sansoni.
Como era apropriado a um funcionário da Justiça que trabalhava nas sombras, a sala de Sansoni se localizava nos fundos do prédio e num andar tão baixo que, a caminho dela, as escadas passavam de fino mármore para simples travertino. Apesar da localização, Sansoni a dotara de móveis suntuosos o suficiente para parecer importante. Arrumara um local grande o bastante para suas ambições, mas o teto baixo e a falta de janelas davam ao lugar um aspecto cavernoso.
– Pode deixar que eu falo – disse Cornell, com seu rosto suave e pálido que expressava a formalidade dos homens de sua patente. – Já tive que tratar com ele antes e todo cuidado é pouco.
– Sabe falar a língua?
O napolitano era um dialeto bem diferente daquele falado em Roma ou em Florença. Mesmo tendo muito de latim, que Elliot conhecia, o lorde não saberia o bastante dele para não ficar em desvantagem ao usá-lo ali.
– Esperemos que o suficiente. Fique aqui. Agirei como mediador, física e simbolicamente.
Elliot ficou perto da porta, como ordenado. Cornell atravessou a sala e se aproximou do homenzinho moreno sentado na larga mesa na outra extremidade. A descrição que a Srta. Blair fizera de Sansoni fora perfeita. Ele parecia mesmo repugnante e odioso e, naquele momento, muito desconfiado. Suas sobrancelhas negras encobriam os olhos de águia amendoados, tão comuns naquela região.
Sansoni ofereceu vinho, fizeram um brinde e depois entabularam uma conversa. Por fim, Cornell caminhou de volta até Elliot.
– Há uma complicação – disse ele, baixo. – Esse amigo da Srta. Blair, Marsilio, o que levou a pior no duelo, é parente distante do rei e recebe os favores da família real por conta de seus dotes artísticos. Também é um rapaz com quem acho que Sansoni espera casar uma de suas parentas, consolidando assim sua própria posição. Mas esse sonho é improvável de se realizar devido à origem humilde de Sansoni. Ainda assim, ele fez do bem-estar do rapaz sua missão pessoal.
O capitão aproximou o rosto do de Elliot para poder falar ainda mais baixo.
– Também creio que o rei não tenha conhecimento desse duelo. Mencionei várias vezes o título nobre do seu irmão e suspeito que Sansoni só me recebeu por temer que um marquês britânico possa levar o assunto diretamente ao rei.
Um marquês com certeza poderia, mas isso demoraria meses.
– Pode conseguir a libertação da Srta. Blair?
– Duvido muito. O duelo não foi tudo. O rei possui uma coleção de arte e o acesso a uma de suas salas é proibido a mulheres, pois contém imagens antigas de natureza carnal. A Srta. Blair convenceu o jovem Marsilio a deixá-la entrar lá. Agora é acusada de invasão de domicílio e de gostar de arte licenciosa. Sansoni também disse que ela é uma cortesã. Apesar de Nápoles ser infame por permitir que as mulheres exerçam atividades desse tipo, a Srta. Blair se esgueirou por lugares que a corte frequenta...
– Ela não é cortesã. Ponho a minha mão no fogo. Ela é incomum, é verdade. Excêntrica. Uma livre-pensadora, porém honesta. É claro que Sansoni sabe que pessoas assim existem. Explique isso a ele.
– A função desse homem é deter livres-pensadores e ele a cumpre com deleite. Ainda assim, vou tentar novamente.
Mais uma vez Cornell atravessou a sala. A conversa foi mais breve dessa vez. Os olhos negros de Sansoni buscaram Elliot e o examinaram dos pés à cabeça.
Cornell voltou.
– Ele falou mais rápido dessa vez e não compreendi tudo. Mas perguntou com que autoridade você e sua família se intrometem neste caso. Exige saber se você tem parentesco ou alguma outra relação com ela.
Elliot não tinha qualquer relação com ela, nem autoridade sobre o caso, porém não poderia admitir isso.
– Diga-lhe que ela é uma boa amiga da família. Easterbrook a recebe como a uma irmã.
Essa mentira deslavada nunca seria refutada. Christian faria o mesmo naquelas circunstâncias.
– Diga que tentamos exercer nosso controle sobre ela, contudo ela fez essa viagem inesperada a Nápoles para fugir da nossa influência. Vim para cuidar de seu bem-estar e posso garantir que não vai haver mais problemas. Se ele der a entender que aceita suborno, diga-lhe que pagarei para tê-la de volta.
A conversa de Cornell com Sansoni ficou mais animada dessa vez. O napolitano gesticulava muito, numa rápida sucessão. Quando Cornell voltou com seu relatório, parecia um pouco preocupado.
– Temo que tenha havido um mal-entendido. E que esclarecê-lo possa trazer outras complicações. Culpo minha falta de fluência no idioma por essa infeliz reviravolta nas negociações – disse ele.
– Mas ele parece bem mais calmo e amigável. Qual foi o mal-entendido?
Cornell enrubesceu.
– Não sei exatamente como, mas ele concluiu que o senhor é noivo da Srta. Blair e que ela veio para cá fugindo de um casamento arranjado que sua família aceitou devido ao polpudo dote da moça. Ele acha que você a seguiu para levá-la de volta.
– Um mal-entendido e tanto! Como isso aconteceu?
– Não tenho certeza. Devo ter usado as palavras “família”, “irmã”, “dinheiro” e “fuga” de forma confusa e dado a entender mais do que pretendia.
Cornell deu um suspiro e já voltava para a sala, para tentar corrigir seu erro, quando Elliot o pegou pelo braço, detendo-o.
– Ele está disposto a libertá-la se mantivermos esse mal-entendido?
– Sim, mas...
– Tem certeza de que é isso que ele tem em mente?
– Não posso garantir que tenha entendido direito a interpretação dele, mas...
– Então não vamos corrigir nada.
– Não estou certo de que isso seja honroso.
– Você não disse inverdades e não tem certeza do mal-entendido – assegurou Elliot, pondo a mão no ombro de Cornell. – Aceitarei isso como um presente da Providência divina e deixarei como está. Ele não é um homem que tenha contato com a comunidade britânica daqui. Se entendeu mal, nunca descobrirá a verdade.
Cornell se deixou convencer.
– Se você está tão determinado, então que assim seja. Venha comigo. Ele quer a sua palavra de que vai controlar a Srta. Blair enquanto ela permanecer neste reino. Ela deve ficar sob sua autoridade. Será responsabilizado por qualquer outro problema que ela crie. Está preparado para prestar juramento?
Elliot assentiu. Atravessou a caverna com o capitão Cornell e assumiu a guarda da Srta. Blair, concedida pelo odioso e repugnante Gentile Sansoni.
CAPÍTULO 3
A signora Cirillo chamou à porta e Phaedra se levantou da escrivaninha para atendê-la. Se aquela mulher queria mais dinheiro tão cedo...
Uma visão maravilhosa a aguardava quando abriu a porta de seus aposentos. A signora Cirillo não estava sozinha. Lorde Elliot estava ao seu lado.
Phaedra manteve a compostura, apesar da vontade de gritar de alegria. Se ele estava lá, só podia significar uma coisa.
– Lorde Elliot, entre, por favor. Grazie, signora.
A signora Cirillo arqueou as sobrancelhas por sobre seus olhos felinos escuros ao ser dispensada. Phaedra fez-lhe ver que não era bem-vinda.
– Está trazendo boas-novas, assim espero, lorde Elliot – disse Phaedra quando ficaram sozinhos.
– Sua prisão domiciliar está encerrada, Srta. Blair. Temos que agradecer ao capitão Cornell, do Euryalus. Ele falou com Sansoni em nosso favor.
– Graças a Deus pela Marinha britânica.
Phaedra correu para a janela e abriu as persianas. O guarda tinha ido embora.
– Nem acredito que vou poder dar uma volta às margens da baía hoje à noite.
Correu de volta até lorde Elliott e lhe deu um abraço.
– Sou imensamente grata.
Ele sorriu gentilmente quando ela o largou. Parecia entender sua animação e perdoar sua exuberância. Se seu olhar tinha se abrandado um pouco depois do abraço impulsivo, era compreensível. Afinal, ele era homem.
Estava magnífico, vestido em uma sobrecasaca marrom feita sob medida e botas de cano alto. O sorriso contribuía bastante para suavizar a dureza das feições dos Rothwells. Ao contrário de seus irmãos mais velhos, lorde Elliot era considerado alguém muito sorridente, o que, ao que tudo indicava, era pura verdade.
Ele olhou em volta da sala de estar e o olhar se deteve na escrivaninha.
– Temo ter interrompido sua carta.
– Uma interrupção muito bem-vinda. Estava escrevendo para Alexia, desabafando meu infortúnio, na esperança de que ao menos conseguisse jogar a carta quando o senhor voltasse aqui.
– Por que não termina a carta logo e lhe diz que está tudo bem? Posso entregá-la a Cornell. Ele vai zarpar em dois dias para Portsmouth e poderá postar a carta para Londres de lá.
– Que ideia esplêndida, se não me achar rude por rabiscar umas linhas a mais.
– Nem um pouco, Srta. Blair. Nem um pouco.
Ela se sentou e acrescentou rapidamente um parágrafo para contar a Alexia que tudo fora resolvido a contento, graças ao cunhado da amiga. Dobrou, endereçou, selou o papel e ficou com ele na mão. Lorde Elliot puxou a carta de seus dedos com delicadeza e a colocou no bolso da sobrecasaca.
Em seguida, retomou sua avaliação da sala de estar e da vista.
– A senhorita veio atender a porta. Onde está sua camareira?
– Não tenho camareira, lorde Elliot. Nem criados. Nem em Londres.
– Isso é por causa de outra crença filosófica?
– É uma decisão prática. Um tio me deixou uma renda respeitável, contudo prefiro gastá-la de outras formas.
– Muito sensato de sua parte. Contudo o fato de não ter criados é um inconveniente.
– De jeito nenhum.
Ela deu meia-volta e as dobras de seu vestido preto, assim com o cabelo comprido, esvoaçaram.
– Um vestido como este não exige uma criada para ser colocado e meu cabelo só precisa de uma boa escovadela.
– Não estava pensando nas suas vestimentas. Preciso lhe falar dos desdobramentos do caso e, sem uma criada conosco...
Estava preocupado com a reputação dela por ficar sozinha com um homem. Que encantador.
– Lorde Elliot, é impossível me comprometer, porque estou acima dessas regras sociais estúpidas. Além disso, trata-se de um encontro de negócios, não? Em situações assim, nossa privacidade não é apenas permitida, como necessária.
Ela duvidava que ele aceitasse seu raciocínio, por mais lógico que fosse. Homens como ele nunca aceitavam. Contudo, para seu espanto, ele não a refutou.
– A senhorita está certa. Prossigamos, então. Não quer se sentar? Isso vai levar um tempo.
Ele pareceu muito sério de repente. Sério, grave e... severo. Seu gesto ao apontar o sofá pareceu acompanhar uma ordem, não a sugestão que fizera tão educadamente. A tentação de permanecer de pé a atiçou. Sentou-se, mas apenas porque ele fora o responsável por obter sua libertação.
Elliot se acomodou em uma cadeira diante dela e então lhe deu uma boa olhada, como se a medisse dos pés à cabeça. Foi como se nunca a tivesse visto e tentasse interpretar a imagem peculiar que ela apresentava.
Phaedra não podia afastar da mente a impressão de que, de certa forma, nunca o tinha visto antes também. Não havia nada mais da graça suave do lorde agora, apenas um longo olhar avaliador e invasivo que a deixava desconfortável. Uma reação muito feminina retumbava dentro dela.
Isso era a pior coisa em relação aos homens bonitos. A beleza deles deixava a mulher em desvantagem quando eles lhe dirigiam sua atenção. Esse homem era muito bonito. Era também muito masculino na maioria das situações e sutilmente másculo nas piores delas. Naquele exato momento, parecia estar tentando, de maneira deliberada, deixá-la perturbada. Não o fazia por motivos carnais, disso Phaedra tinha certeza. Porém, ele emanava sedução também e o sangue dela reagia a isso.
Proteger, possuir, conquistar – tudo eram facetas do mesmo instinto primitivo, não? Um homem não poderia seguir uma dessas inclinações sem despertar as outras dentro de si, e uma mulher era facilmente subjugada se não tomasse cuidado. Ela se perguntou que parte ancestral da personalidade masculina o motivava naquele momento.
– Alexia me pediu para tomar conta da senhorita. Não menti ao lhe dizer isso. Contudo tive outros motivos para visitá-la e agora preciso tratar deles.
– Como só nos vimos uma vez, no casamento de Alexia, e muito rápido, não posso imaginar quais possam ser seus motivos.
– Acho que pode.
Agora ele a estava aborrecendo.
– Tenho certeza de que não posso.
O tom dele indicou que ela o aborrecera também:
– Srta. Blair, chegou aos meus ouvidos que a senhorita agora é sócia da editora de Merris Langton, tendo herdado a participação de seu pai no negócio.
– Essa informação não foi divulgada, lorde Elliot. Uma vez que os homens pressupõem que as mulheres não podem ter sucesso nos negócios e como muitos acreditam ser anormal até que uma mulher tente, decidi manter isso em sigilo, de forma que o preconceito não afete a empresa.
– Pretende ter uma participação ativa nela?
– Vou participar na seleção dos títulos a serem publicados, mas espero que o Sr. Langton continue a supervisionar as questões práticas. Gostaria de saber quem lhe contou isso. Se meu advogado foi indiscreto...
– Seu advogado é irrepreensível.
A atenção dele se desviou dela. Seus olhos ficaram meditativos, obscuros. O homem elegante e cosmopolita que escrevera um famoso livro de História antes de completar 23 anos agora estava distraído, absorto nos próprios pensamentos.
– Srta. Blair, lamento trazer-lhe algumas más notícias. Depois que a senhorita deixou Londres, Merris Langton faleceu da doença que o acometia. Ele foi enterrado dias antes de eu partir.
Ela temera que o Sr. Langton não chegasse a se recuperar; ainda assim, ficou surpresa ao ouvir a notícia de sua morte.
– De fato, são más notícias, lorde Elliot. Obrigada por me contar. Não o conhecia bem, contudo o falecimento de uma pessoa é sempre triste. Contava com ele para ajudar a manter a editora, mas parece que vou ter que dar um jeito sozinha.
– É tudo seu agora?
– Meu pai fundou a editora e a subsidiou desde sempre. Ele poderia passar sua parte a outra pessoa, entretanto a do Sr. Langton ficaria para o meu pai se ele morresse. Então, sim, acredito que seja tudo meu agora.
A distração dele desapareceu. Sua objetividade voltou. Fria.
– Antes da doença, Langton procurou meu irmão. Falou que publicaria as memórias do seu pai. Ofereceu-se para omitir vários parágrafos no manuscrito que tratavam da minha família se uma quantia significativa fosse paga a ele.
– Ele fez isso? Que horror! Estou chocada com essa traição para com os princípios de meu pai e peço desculpas sinceras por meu sócio.
Ela se levantou e começou a andar de um lado para outro, agitada com a revelação. Por educação, lorde Elliot se levantou também, mas ela o ignorou. Tentava compreender todas as implicações do esquema idiota do Sr. Langton. Aquilo poderia significar o fim da editora.
Ela conhecia bem a situação precária das finanças da empresa e, como proprietária, era responsável pelas dívidas não saldadas. Contava com as memórias do seu pai para quitá-las. Se o Sr. Langton comprometera a integridade dessa publicação, as pessoas talvez ficassem descrentes de todo o conteúdo do livro.
– Isso tudo é culpa de Harriette Wilson – disse ela, com sua perturbação agora beirando a raiva. – Ela estabeleceu um precedente infeliz ao pedir que seus amantes pagassem para ter os nomes retirados. Escrevi-lhe sobre isso, se quer saber. Disse a ela que era errado receber dinheiro para apagar trechos de biografias, que era só uma forma velada de chantagem. Ela só pensou no próprio bolso, é claro. Bem, eis o resultado da vida dependente que ela escolheu e da extravagância tola que pôs em prática.
Ela passou a andar com passos mais resolutos.
– Sem dúvida o Sr. Langton abordou outras pessoas também. Nunca imaginei que ele comprometeria a ética de nossa editora dessa forma.
– Srta. Blair, por favor, poupe-me do ultraje teatral. Minha família estava pronta para pagar a Langton. Vim procurá-la para dizer que pagaremos com prazer à senhorita no lugar dele.
Ultraje teatral? Ela parou de andar e o encarou.
– Lorde Elliot, espero tê-lo entendido mal. Está sugerindo que eu aceitaria seu dinheiro para suprimir partes das memórias de meu pai a seu bel-prazer?
– Esperamos que sim.
Ela se aproximou dele até estar perto o bastante para ver os pensamentos refletidos em seus olhos.
– Meu Deus, o senhor acha que eu tinha conhecimento de que o Sr. Langton fazia isso, não acha? Acredita que eu fui cúmplice.
Ele não respondeu. Só sustentou o olhar, visivelmente não acreditando no espanto dela.
Furiosa com as suposições dele e afrontada pelo insulto, ela se virou.
– Lorde Elliot, as memórias do meu pai vão ser publicadas tão logo eu chegue à Inglaterra. Cada frase delas. Foi seu último desejo, feito a mim em seu leito de morte. Eu nunca as editaria de forma a escolher as palavras dele que o mundo devesse ler. Fico muito grata por sua ajuda com o Sr. Sansoni, mas é melhor pararmos esta conversa por aqui. Se eu tivesse uma criada, ela lhe mostraria a saída. Como não tenho, o senhor pode encontrá-la sozinho.
Para deixar mais claro que o lorde estava dispensado, Phaedra se dirigiu ao quarto e fechou a porta.
Ainda não havia se recomposto quando a porta do quarto foi aberta e lorde Elliot entrou calmamente, fechando a porta atrás de si.
– Minha visita ainda não acabou e nossos negócios não estão concluídos, Srta. Blair.
– Como ousa? Este é o meu quarto, senhor.
Ele cruzou os braços e assumiu a atitude masculina e irritante de quem se considera no comando.
– Normalmente isso me impediria, entretanto a senhorita está acima de regras sociais estúpidas, como a que dita que eu não deveria entrar aqui, lembra?
Ela não considerava essa regra social tão estúpida. Tinha uma razão muito especial e primitiva de existir. Aquele era seu espaço mais privado, seu santuário. O clima foi se alterando à medida que Elliot olhava em volta, para o guarda-roupa onde suas vestimentas estavam arrumadas e a penteadeira que exibia seus objetos pessoais. Seu olhar percorreu a cama devagar e voltou para Phaedra.
Os pensamentos dele não ficaram tão ocultos quanto ele imaginou. Ela notou as mudanças sutis em sua expressão, na forma como a dureza que ele exibia se alterou, mesmo que ligeiramente. Os homens não conseguem ficar perto de uma cama e de uma mulher sem começar a devanear. Era uma maldição da natureza que eles carregavam.
Ela ficou irritada ao se pegar pensando na mesma coisa. A forma como ele acabara de insultá-la deveria ter sido suficiente para que aquela intimidade que começava a se infiltrar no quarto jamais existisse. O breve silêncio foi ficando cada vez mais pesado e cheio de uma excitação magnética que mexia com ela.
Uma imagem relampejou em sua mente: lorde Elliot olhando do alto para ela, seus rostos afastados por meros centímetros, seu cabelo escuro despenteado por motivos que nada tinham a ver com moda, seus pensamentos completamente desmascarados. Ela viu seus ombros nus e sentiu a pressão de seu corpo e a firme pegada de seu abraço na pele dela. Sentiu...
Phaedra se esforçou para afastar a imagem da cabeça, mas os olhos dele faiscaram, demonstrando que lera os pensamentos dela. Ele sabia por onde a mente dela andara, assim como ela conhecia os caminhos da dele.
Ele descruzou os braços. Phaedra pensou que ele fosse segurá-la e imaginou se não iria insultá-la ainda mais. Havia homens que a interpretavam erroneamente e, por ignorância, lhe faziam propostas, só que lorde Elliot não era estúpido. Seria uma ofensa cruel e deliberada se ele tentasse se aproveitar da tensão sexual que tinham percebido.
Ele desviou sua atenção dela, diluindo a intimidade, porém não a dissipando por completo. O orgulho de Phaedra foi poupado, ainda que, com isso, seu lado mais primitivo se ressentisse.
– O manuscrito está aqui? – perguntou ele. – A senhorita o trouxe?
– É claro que não. Por que faria isso?
Ele olhou para o guarda-roupa.
– Jura? Do contrário, terei que fazer uma busca.
– Juro, e não ouse fazer isso. O senhor não tem o direito de estar aqui.
– Na verdade, tenho sim, mas conversaremos depois.
O que isso queria dizer?
– Deixei-o em Londres, em um lugar muito seguro. Ele contém as memórias de meu pai, seus últimos desejos. Nunca seria descuidada a esse respeito.
– A senhorita o leu?
– É claro.
– Então sabe o que ele escreveu sobre a minha família. Quero que me fale disso agora. Suas palavras exatas, o melhor que se lembrar.
Não era um pedido, mas uma exigência. Sua arrogância dominadora estava rapidamente fazendo com que a gratidão de Phaedra desaparecesse.
– Lorde Elliot, o nome de sua família e o de Easterbrook não são mencionados no manuscrito.
Isso o surpreendeu. Sua severidade ficou abalada por tempo suficiente para que ela percebesse novamente o homem amigável e prestativo que entrara em seu apartamento. Não durou muito. Ele voltou a ficar distraído e meditativo, e sua mente ágil captou o que ela dissera.
– Srta. Blair, Merris Langton descreveu a meu irmão uma acusação específica contra meu pai. Há algo no manuscrito que, em sua opinião, poderia ser interpretado como uma referência a meus pais?
Ela queria que ele não tivesse feito a pergunta nesses termos.
– Há uma parte que pode ser interpretada assim, imagino eu.
– Por favor, descreva-a.
– Prefiro não descrever.
– Eu insisto. A senhorita vai me contar agora.
Sua voz, sua postura e sua expressão indicavam que nenhum argumento seria ouvido. Nunca antes na vida Phaedra tinha sido tão claramente coagida por um homem a fazer algo.
Talvez fosse melhor que ele e sua família ficassem avisados. A passagem em questão era uma entre várias nas memórias que a haviam feito hesitar.
– Meu pai descreve um jantar oferecido muitos anos antes de minha mãe morrer. Eles estavam recepcionando um jovem adido recém-chegado do Cabo. Meu pai queria saber as verdadeiras condições de vida lá. Esse rapaz bebeu demais e ficou embriagado. Acabou confidenciando algo que ocorreu em um regimento britânico na colônia.
A menção à colônia do Cabo atraiu a atenção de Elliot por completo. Ela se condoeu. Sempre tivera esperanças de que aquele rumor não fosse verdadeiro, mas...
– Prossiga, Srta. Blair.
– Ele disse que, enquanto esteve lá, um oficial britânico morreu. A causa da morte foi registrada como febre, contudo, na realidade, ele levou um tiro. Foi encontrado morto após sair para fazer a ronda. Chegaram a desconfiar do outro oficial que o acompanhava, só que não acharam provas. Em vez de contestarem o suspeito, optaram por usar uma causa mortis falsa.
Ele agora ocultava muito bem sua reação. O rosto estava impassível, como se talhado em pedra. Contudo seu silêncio foi se tornando terrível, carregado da raiva que emanava dele.
– Srta. Blair, se associou esse caso com a minha família, a senhorita deve saber do boato imoral de que meu pai teria enviado o suposto amante de minha mãe para assumir um posto na colônia do Cabo, onde morreu de febre.
Ela engoliu em seco.
– Creio que tenha ouvido algo a respeito em algum momento.
– Se a senhorita soube, muitos souberam. Nem Langton nem a senhorita tiveram qualquer dificuldade em juntar as referências e chegar a uma conclusão. Se a senhorita publicar essa parte, ficará bastante clara a insinuação de que meu pai pagou outro oficial para matar o amante da esposa. A ausência de nomes nas memórias não poupará a reputação de meu pai, e ele não pode se defender da sepultura.
– Não estou convencida...
– Droga, é exatamente o que acontecerá, e a senhorita sabe disso. Exijo que suprima esse trecho das memórias.
– Lorde Elliot, sou solidária em sua perturbação. De verdade. Contudo meu pai me encarregou de fazer com que suas memórias fossem publicadas e é meu dever fazê-lo. Pensei muito nisso. Se eu suprimir cada frase que possa ser interpretada como perigosa ou pouco lisonjeira a essa ou àquela pessoa, pouco vai restar.
Ele andou até ela e a olhou de cima com firmeza.
– Essa mentira não será publicada.
A determinação dele era palpável. Ele não precisava de expressões de raiva ou ameaças verbais para enfatizar o poder que usaria contra ela. Estava tudo ali, ao redor dela, junto com a tensão sexual que não abandonara o quarto, num clima carregado de todas as nuances daquele instinto obscuro.
– Se for mentira, pensarei em omitir – assegurou ela. – Se conseguir obter provas de que o homem morreu de febre ou se o convidado de meus pais desmentir a história, eu a suprimirei. Farei isso por Alexia, não pelo senhor ou por Easterbrook.
Essa declaração o aliviou. Um sorriso vagaroso se formou.
– Por Alexia? Que conveniente. Assim pode recuar sem me dar a vitória.
Elliot a entendia bem demais. Phaedra não dava a mínima importância para provas.
Olhou-a com gentileza. De repente pareceu inapropriado estarem tão próximos, uma proximidade que nascera num momento de fúria dele. Com a raiva saindo de cena, era a outra sensação que voltava a crescer.
Ele não recuou como deveria – e como as sobrancelhas erguidas de Phaedra pediam. Em vez disso, ajeitou uma mecha do cabelo dela e ficou olhando para aqueles fios vermelhos enquanto os enrolava com delicadeza entre os dedos.
– Seu pai incluiu o nome de algum desses homens, Srta. Blair? Do jovem adido do jantar ou do oficial suspeito?
Ele não a tocou, mas a brincadeira com o cabelo dela implicava coisas em que ela preferia nem pensar. O fato de estarem sozinhos num quarto, até mesmo o de terem se confrontado, demolira as formalidades que a protegeriam. O formigamento sutil que ele causava em seu couro cabeludo era tão delicioso que levava a pensar em outras excitações físicas.
Conquistar, possuir, proteger – ela não tinha dúvida de que ele estava preparado para ser implacável e brincar com mais do que o cabelo, se achasse que com isso obteria o que desejava. Também não acreditava em si mesma para vencer aquele desafio, se ele surgisse.
– O jovem adido que meus pais convidaram para jantar é Jonathan Merriweather.
Ele olhou nos olhos dela, desconfiado de novo.
– Merriweather hoje é assistente do embaixador britânico aqui, em Nápoles.
– Muito conveniente para o senhor.
A mão dele se moveu por entre os cabelos com mais firmeza. A brincadeira sutil se tornava controladora.
– A senhorita viajou até aqui para falar com ele? É por isso que está em Nápoles? Pretende adicionar notas a essas memórias e completá-las com os nomes que seu pai foi discreto ao omitir? O livro venderia mais ainda, e ouso dizer que o dinheiro resultante seria muito bem-vindo para sua editora.
Ela segurou o cabelo e o retirou de entre os dedos dele, determinada. Sua indignação a ajudou a ignorar a sensação daquela mão quente ao roçar na sua e a não dar importância ao modo como os olhos dele refletiram sua consciência do toque feminino.
– Agradeço a sugestão, mas espero que as memórias do meu pai caiam no gosto popular do jeito que são, sem acréscimos. De qualquer forma, não estou aqui com esse objetivo.
Era uma mentira deslavada, mas ela não sentiria remorso por confundir aquele homem. Seu interesse em preencher as lacunas das memórias do pai nada tinha a ver com a família Rothwell.
– Lorde Elliot, vim até aqui para visitar as escavações e as ruínas ao sul. Preciso me preparar para deixar a cidade de imediato e continuar minha viagem como planejei desde o início. Portanto, peço-lhe, mais uma vez, que parta.
– Sua viagem terá que ser adiada por uns poucos dias. Não posso permitir que vá agora.
Ela riu. A presunção do homem havia chegado ao ponto do ridículo.
– O que o senhor permitiria ou deixaria de permitir não é de meu interesse.
– É de interesse essencial para a senhorita. Eu a adverti de que sua libertação teria condições e a senhorita prometeu aceitá-las.
– O senhor não falou em condições ao chegar.
– Seu abraço apertado me distraiu.
Ela o encarou desconfiada.
– Quais são essas condições?
Ele olhou para baixo devagar, para seus cachos esvoaçantes – portanto, para boa parte do corpo dela. Phaedra achou ter notado um interesse possessivo, como se ele tivesse acabado de receber um presente e aquilatasse o valor.
– Gentile Sansoni só a libertaria se ficasse sob minha guarda. Tive que aceitar total responsabilidade pela senhorita e prometi controlar seu comportamento.
Um calor de fúria lhe subiu à cabeça. Agora entendia por que, de repente, lorde Elliot passara a se comportar de forma arrogante, fazendo exigências.
– Isso é intolerável. Nunca me submeti a um homem. Isso faria minha mãe se revirar no túmulo. Recuso-me a concordar com isso.
– Prefere enfrentar Sansoni? Podemos providenciar o embate.
A ameaça a deixou sem palavras.
Lorde Elliot não chegou a rir enquanto se dirigia para a porta, mas também não escondeu o fato de estar se divertindo muito com o dilema da moça.
– Viajaremos para Pompeia juntos, Srta. Blair, depois que eu falar com Merriweather. Até lá, está proibida de deixar esses aposentos sem minha companhia. Ah, e não haverá visitas de Marsilios nem de Pietros. Ficarei em apuros se a senhorita provocar mais algum duelo enquanto estiver sob minha autoridade. Fiz um juramento de controlá-la e espero poder contar com sua colaboração e obediência.
Autoridade? Controle? Obediência? Ela estava tão estupefata que ele se foi antes que ela recuperasse a voz para xingá-lo.
CAPÍTULO 4
A boa vontade da Srta. Blair em entrarem num acordo em relação às memórias do pai dela melhorou o humor de Elliot. Ele obteria a retratação necessária de Merriweather, colocaria a Srta. Blair no próximo navio para a Inglaterra e voltaria sua atenção para assuntos mais interessantes.
Merriweather colaboraria, com certeza. Ele, melhor do que ninguém, estava ciente de que a história de Drury sobre a morte do oficial era falsa. Além do mais, sua carreira seria prejudicada se o mundo inteiro soubesse que fora indiscreto ao se embebedar. Ele seria um aliado de lorde Elliot em seus esforços para convencer a Srta. Blair a cortar os trechos incriminadores.
Em uma hora, Elliot descobriu que a questão não seria resolvida tão facilmente. Um funcionário da missão diplomática britânica no Palazzo Calabritto lhe informou que Merriweather fora para o Chipre a serviço e não deveria estar de volta em menos de duas semanas.
Elliot voltou ao hotel e reorganizou alguns de seus planos. Conforme a tarde terminava e a temperatura ia ficando mais amena, ele pegou uma carruagem de aluguel e rumou para o Bairro Espanhol para visitar Phaedra Blair mais uma vez.
Seus olhos azuis chamejaram ao vê-lo na porta.
– O que deseja agora, lorde Elliot?
– A senhorita me disse que desejava caminhar às margens da baía esta noite. Estou aqui para acompanhá-la.
– Não preciso da sua companhia.
– Ou vai comigo ou não vai. Seria uma pena não gozar de sua liberdade, agora que a recuperou.
Ela franziu os lábios. A dúvida se refletiu em seus olhos.
– Muito bem, vamos lá.
Phaedra deu um passo adiante, esperando que ele lhe desse passagem.
– Esqueceu o seu chapéu, Srta. Blair. O sol ainda não se pôs e pode ser prejudicial à sua pele delicada. Tenho certeza de que preferiria evitar mais sardas em seu nariz, por mais charmosas que elas sejam.
A mão dela foi rápida para o nariz. Por um instante, a vaidade feminina venceu sua postura de indiferença a essas preocupações banais.
– O senhor é muito hábil em misturar críticas com falsos elogios.
– Os elogios não foram falsos. As sardas são adoravelmente femininas, mas ainda assim precisa de um chapéu. Vou esperar até que ponha um. A senhorita tem um chapéu, não?
– É claro.
Exasperada, ela deu meia-volta e seguiu na direção do quarto.
– Não me siga desta vez.
– Nunca entraria no quarto de uma dama duas vezes no mesmo dia. Assim como quatro danças em um baile, isso poderia ser mal interpretado.
– Nunca interpreto mal os homens, lorde Elliot. Eles são as criaturas mais transparentes que existem.
De fato, ele imaginava que eram, para ela. Não era uma moça inexperiente. Sabia por onde os pensamentos dele haviam vagueado quando estavam os dois de pé ao lado da cama. Seu cabelo solto lhe dava a aparência de uma mulher preparada para uma tarde de prazer.
Ela não reagira a ele com choque ou vergonha recatada. Não houvera a indignação de quem defende sua virtude. Ao contrário, ela só o encarara enquanto as possibilidades sensuais atiçavam a ambos. A expressão dela tinha sido a de quem reconhecia aquele impulso e suas possibilidades.
Ele nunca vivenciara nada parecido antes. Phaedra conseguia provocar e rejeitar sem dizer uma só palavra. Você me quer e pode ser que um dia eu o queira, mas não hoje. Talvez nunca. Ainda não decidi. Ela devia saber que seu comportamento estimulava o lado mais selvagem dos homens.
Phaedra voltou usando um chapéu de palhinha que era muito mais bonito do que ele teria imaginado. Sua aba em diagonal e as flores de seda brancas e azuis realçavam seus olhos e a pele clara. Seus cabelos longos e esvoaçantes, a falta total de maquiagem e as sardas lhe davam uma aparência fresca e campestre.
Porém, seu vestido comprometia a imagem. O tecido preto leve e sem enfeites a cobria do pescoço aos pés. Uma faixa rodeava a cintura, mas, afora isso, pouco se podia notar de suas formas sob o pano solto e volumoso.
O vestido provocava mais fantasias do que ela provavelmente imaginava. Provocava curiosidade quanto ao que dissera mais cedo. Não havia criadas para ajudá-la a se vestir. Não usava corpete nem espartilhos, e as formas gerais indicavam que o corpo tão livre embaixo do tecido valia a pena ser imaginado. Peito empinado, avaliou ele, de tamanho indeterminado, porém digno de nota, e quadril feminino o bastante para fazer com que a cintura parecesse bem fina. Alguns gestos e uns poucos ganchos e tudo seria revelado.
– Alexia o fez para mim – disse ela, ao notar sua admiração pelo chapéu. – Acho que ela tem esperanças de me mudar. Quanto a meu vestido, que o senhor está examinando de forma tão crítica, não espere que eu o troque. Não fui eu quem decidiu que o senhor teria de andar em público em companhia de uma mulher tão fora de moda.
– O vestido me convence ainda mais. Insisto em que cubra o cabelo, contudo não peço que abra mão de todos os símbolos com os quais desafia o mundo.
Ela ergueu o queixo e rumou para a porta.
– Se tiver juízo, não pedirá coisa nenhuma.
Barulho, gestos teatrais, toucados com plumas e sombrinhas coloridas. Riqueza digna de príncipes, pobreza abominável e o brilho das armaduras dos soldados.
O elegante passeio londrino era uma pálida imitação do que acontecia no final da tarde nas terras mais ao sul. O passeio que circundava a baía de Nápoles ficava apinhado de transeuntes. Aristocratas em vestidos e casacos da moda caminhavam em grupos entre os pobres que perambulavam nas proximidades da água. Comerciantes e suas esposas passeavam com os filhos.
A hora do passeio vespertino – aproveitada nas proximidades da baía ou nas piazzas das igrejas – servia a importantes objetivos na cidade, a julgar pelo modo como as moças casadoiras eram exibidas. Sua beleza jovem e morena brilhava entre os pais, que avaliavam criticamente, com semblantes sóbrios, os homens que olhavam duas vezes na direção delas.
Toda a Nápoles era uma ópera e Phaedra Blair não parecia tão estranha ali quanto poderia pretender. Ela estava razoavelmente apresentável, graças ao chapéu; ainda assim, Elliot notava a atenção que atraía com seu cabelo ao vento. Imaginou a reação que causara na primeira vez que estivera ali, com seus fios vermelhos esvoaçando em meio a um mar de castanho e preto. Londres era mais tolerante com o tipo de excentricidade que ela exibia.
– Falou com o Sr. Merriweather?
Eram as primeiras palavras que ela pronunciava desde que haviam saído do apartamento. Elliot não forçara uma conversa na carruagem. Não se importava com o silêncio. Passara um bom tempo calado, tendo a própria mente como única companhia. Gostava do contato social até certo ponto, mas apenas se houvesse horas de silêncio para contrabalançar as de ruído e conversas.
– Ele está fora em uma missão e só deve voltar em duas semanas, no mínimo.
Elliot se perguntou se ela já não saberia disso. Não estava convencido de que a Srta. Blair tivesse objetivos tão inocentes ao visitar a cidade. Se quisesse ver as ruínas, faria mais sentido vir em outra época do ano. Embarcar para lá em pleno calor do verão napolitano, quando sua editora passava por dificuldades, seu sócio estava doente e as memórias do pai esperavam preparação do original... Ele ainda suspeitava que interrogar Merriweather estivera entre os motivos que a levaram ali.
– Espero que não queira me fazer esperar quinze dias ou mais para ir a Pompeia.
– Decidi que visitaremos as ruínas enquanto o espero voltar.
Isso a apaziguou. Ela pareceu quase aliviada. Talvez tivesse vindo mesmo apenas a passeio.
– Na última primavera, Alexia me disse que o senhor estava escrevendo um livro novo, lorde Elliot. Sua visita a Pompeia está ligada a isso?
– Visitarei as novas escavações para saber o que foi descoberto nos últimos anos. Vou conversar com arqueólogos e pesquisar alguns temas para o livro.
– Alexia me disse que é um livro sobre assuntos quotidianos, sobre a forma como as pessoas viviam. Muito incomum. Normalmente, os livros de História descrevem as guerras, a política e os feitos dos grandes homens. Até o seu último foi sobre isso.
– Estou atento para o fato de que esse livro pode ser criticado por sua aparente falta de relevância. Porém o assunto me interessa e posso me dar ao luxo de me dedicar ao que gosto.
– Se acha que o estou criticando, está equivocado. Acredito que seu livro pode ser muito popular, não importa o que digam os acadêmicos. Ele deve vender muito bem.
– Não estou tão certo de que meu editor concorde com isso.
– Então, talvez deva achar outro. Ficaria honrada de publicá-lo se aturar a ideia de fazer negócios com uma mulher.
Ele riu da sua expressão sagaz. Essa editora poderia sobreviver muito bem, no final das contas, se a Srta. Blair mostrasse tamanho talento de bajular autores para atraí-los.
O humor dela havia melhorado desde o início do passeio. Talvez a luz suave do sol poente e a brisa refrescante fossem os motivos da mudança. O mais provável era que a Srta. Blair tivesse decidido que a raiva a atrapalharia a gozar sua recém-adquirida liberdade.
A alegria brilhava em seus olhos enquanto caminhavam, observavam os grupos de passantes, os barcos e as gaivotas. Ela sorria para lorde Elliot de uma forma cálida que poderia ser erroneamente interpretada como flerte. E não passava despercebido dele a forma como os homens a olhavam. Por si só, o cabelo ruivo solto já bastava para destacá-la, contudo a Srta. Blair chamaria atenção de qualquer forma.
Esses olhares também não passavam despercebidos a ela, que não os encorajava nem desestimulava. Também não lhes davam satisfação nem a insultavam, pelo que Elliot podia ver. Phaedra simplesmente seguia seu caminho, uma mulher diferente das outras mas muito confiante, com o tecido preto e leve do vestido a revelar mais do que se pretendia.
Sutilmente, ela projetava uma aura carregada daquele mesmo desafio que Elliot sentira no quarto, só que agora atraía todos os homens que a olhavam por mais tempo. Você me quer, só que nada vai acontecer entre nós, porque eu decidi assim.
Ela parou para comprar um pequeno buquê de flores de uma menina que as oferecia numa caixa. Elliot tentou pagar por elas, mas Phaedra afastou sua moeda e pagou com o próprio dinheiro. Continuou a andar, segurando perto do nariz as flores perfumadas.
– Lorde Elliot, gostaria de lhe fazer uma proposta.
Não seria a proposta que ele desejava, contudo seu corpo se enrijeceu de qualquer forma. As palavras dela tinham sido escolhidas de propósito para atiçá-lo e isso o deixou com raiva, porque funcionou.
Ele não deveria, só que não resistiu:
– Vi o que acontece aos homens que aceitam os termos de suas propostas, Srta. Blair, portanto prefiro declinar.
A expressão dela mudou.
– O que quer dizer?
– Ah, eu entendi erroneamente? Desculpe-me.
– O que o senhor quis dizer?
Ele deu de ombros.
– Pensei que fosse propor que me tornasse um de seus amigos. Uma dessas abelhas que ficam zumbindo em volta da rainha.
Sua pele branca enrubesceu e sua raiva deixou transparecer uma boa dose de consternação.
– O que sabe a respeito dos meus amigos?
– A senhorita pode desprezar a sociedade, mas ela está a par do seu comportamento. Todos sabem sobre a filha de Artemis Blair e como, a exemplo da mãe, ela se considera acima de todas as regras sociais estúpidas.
– Sua ignorância me espanta.
A raiva dela vencia a consternação.
– É muito típico o senhor interpretar mal minhas amizades e é por isso que nunca considerarei a hipótese de tornar meu amigo alguém como o senhor.
Ah, ela consideraria, sim. Até já havia considerado. As negociações começaram cedo naquele dia.
– Se fui rude, peço desculpas.
A expressão dela relaxou.
– No entanto...
As sobrancelhas dela se arquearam.
–... se a senhorita está acima de regras sociais idiotas, não há como eu ser rude, não concorda, Srta. Blair? Digo, no âmbito de suas crenças. A palavra “rude” se aplicaria apenas dentro do contexto das regras sociais, não estou certo? Nos próximos dias, a senhorita terá de me ajudar a perceber onde sua sujeição a tais regras começa e onde termina, assim não a interpretarei erroneamente de novo.
Mais uma vez aquela confiança presunçosa, aquele desafio, a saturou.
– Pode ter certeza de que farei isso, lorde Elliot.
A caminhada os levara até Riviera di Chiaia, às belas mansões com vista para a baía. A Srta. Blair enterrou seus pensamentos por trás de uma máscara de passividade e ficou admirando a beleza das construções.
– Lorde Elliot, é conveniente que tenha falado a respeito dos próximos dias e que tenha expressado sua desaprovação e desprezo com relação à minha pessoa. Minha proposta tem a ver com ambas as atitudes.
– Não desaprovo nem desprezo. Só decidi que devemos ter um entendimento correto quanto a uma pequena questão.
A mais importante de todas.
– O fato de interpretar erroneamente minhas amizades com outras pessoas e meu interesse pelo senhor indica que não nos daremos muito bem. Nem o senhor vai querer o peso de ter alguém que veio a passeio como companheira de viagem. Eu só iria atrapalhá-lo e seus estudos só atrasariam meus planos. Proponho que nos separemos assim que deixarmos Nápoles.
– Isso não é possível.
– Gentile Sansoni nunca saberá.
– A influência dele se estende para muito além das fronteiras desta cidade. Além disso, dei minha palavra, e essa é uma das tais regras sociais estúpidas que levo muito a sério.
– Senhor...
– Não, Srta. Blair. Partiremos juntos, daqui a dois dias, pela manhã. Vamos de barco primeiro para Positano e depois para Amalfi. De lá seguiremos viagem por terra.
– Quero ir para Pompeia imediatamente.
– O atraso será breve. Prometi visitar um amigo em Positano e ele me espera por estes dias, não depois. Se está a passeio, deve se alegrar com uns dias a mais visitando a costa ao sul. É espetacular.
Phaedra não parecia nem um pouco alegre. Ele imaginou que veria aquela perturbação constantemente nos olhos dela pelas próximas semanas.
Deram meia-volta para refazer o caminho e Elliot quase tropeçou em uma criança que os seguia. Grandes olhos negros olhavam para cima em uma esperança calada de que alguém a enxergasse entre tantas das mais pobres crianças da cidade. Ela não pediu nada, mas seu corpinho frágil vestido em andrajos implorou de forma pungente.
Ele enfiou a mão no bolso do colete. Quando a moeda surgiu, mais duas crianças apareceram ao lado da primeira. Outras foram atraídas por instinto para o inglês que não sabia parar de distribuir esmolas para as crianças pedintes de Nápoles.
Ele achou mais moedas. A Srta. Blair não pareceu com medo por estar cercada de pobres ávidos por moedas, como a maioria das mulheres ficaria. Ela tentou conversar com a primeira menina, a mão oculta em algum lugar do vestido, na altura do quadril.
Os dois adultos ficaram num mar de olhos negros e corpinhos morenos, distribuindo moedas até que todas tinham se acabado.
Voltaram para a carruagem sem outras discussões. Ela só falou mais uma vez antes de ser deixada de volta em seu apartamento.
– Partiremos daqui a dois dias pela manhã, como disse? Então nada me resta a não ser me preparar para a viagem.
A aparente submissão de Phaedra Blair não o convenceu. Elliot partiu para fazer seus próprios preparativos.
Phaedra tirou o camafeu do nó no xale. Envolveu-o em um lenço e colocou o embrulho dentro do bolso fundo da saia de seu vestido. Depois envolveu a cabeça com o xale e o amarrou debaixo do queixo.
Verificou a valise, conferindo mais uma vez as roupas e os objetos pessoais que tinha colocado nela. Orgulhava-se da falta de vaidade feminina, mas ainda a irritava ter tão poucas roupas para usar pela próxima semana.
Era tudo culpa de lorde Elliot. Qualquer um sabia que um juramento feito sob coação não contava. E, para ela, fazer um juramento para salvar uma mulher de um destino incerto se qualificava como coação. A insistência do lorde em manter sua palavra a perturbava. Tinha sido muito azar dela que a única pessoa disponível para ajudá-la fosse um homem com noções ultrapassadas de honra.
De jeito nenhum ela permitiria que ele os fizesse vítimas de sua mente pequena. Lorde Elliot não queria a companhia dela muito mais do que ela queria a dele. Só haveria problema se os dois permanecessem juntos.
Uma dessas abelhas que ficam zumbindo em volta da rainha. Ele era incapaz de entender as amizades honestas e sinceras que ela mantinha com alguns poucos e raros homens que pensavam como ela. Ficaria chocado ao descobrir que alguns homens conseguem controlar as forças primitivas de posse e domínio que causaram tanto sofrimento ao longo da história, em especial às mulheres. Na verdade, havia homens para quem a sensualidade não despertava a necessidade de conquistar, dominar e exigir submissão.
Bem, não cabia a ela lhe explicar. Além disso, seria um esforço em vão e exigiria que passasse mais tempo com ele.
Deixou um bilhete e algum dinheiro em sua mala para garantir que a signora Cirillo entendesse que ela voltaria logo para buscá-la. Depois se esgueirou do apartamento para o corredor escuro. Achou o caminho da escada.
Andando pé ante pé, envolta em negro, seguiu até o andar de baixo. Ainda na escuridão, foi tateando às cegas em busca do lance de degraus seguinte.
De repente as sombras se transformaram em corrimões, portas e paredes, como se alguém tivesse aberto as persianas para deixar a luz da lua entrar.
– Pietro não está à sua espera no cruzamento, Srta. Blair.
O coração dela parou de bater ao ouvir a voz tranquila atrás de si. Deu meia-volta. Lorde Elliot estava a pouca distância, em uma porta aberta que dava para o apartamento que ficava abaixo do dela. Estava sem camisa e descalço, como se estivesse dormindo e houvesse posto a calça às pressas para investigar o barulho. A luz fraca da lamparina do quarto o banhava em uma névoa dourada.
A presença daquele homem anunciava o fim de seu plano de fuga. Apesar de sua exasperação, que aumentava cada vez mais, Phaedra não pôde se furtar a apreciar aquele homem. Lorde Elliot era esguio, elegante e tinha ombros largos. Seu corpo possuía o retesamento jovial que abençoava os homens por tanto tempo na vida quanto permanecessem ativos. A luz fraca ressaltava os músculos rígidos do peito, do abdome e dos braços.
Ele deu dois passos, pegou a valise da mão de Phaedra e segurou seu braço, empurrando-a para o quarto dele. Depois fechou a porta.
– O que está fazendo aqui? – perguntou ela.
A luz da lamparina valorizava o peito musculoso e a pele maravilhosa agora tão próximos de seu rosto. Se não estivesse aborrecida pela interferência daquele homem, poderia até aproveitar a bela visão.
– Eu me hospedei aqui.
Ele permaneceu imóvel por um longo tempo. Phaedra olhou para o rosto do lorde e percebeu que ele a observava. E que tinha notado que ela avaliava seu corpo. Sentiu a pulsação acelerar. Os olhos deles refletiam a mesma reação, mas com uma anuência fria, como se Elliot controlasse a reação tanto nela quanto nele.
Sim, esse homem significava problema na certa.
– Não se mexa. Não tente sair – disse isso e andou até a escrivaninha, onde pegou a camisa e a vestiu.
Ela não ficou olhando. Não exatamente. Mas, com o canto do olho, viu como seus braços se moviam e seu dorso se esticava. A imagem do encontro deles à tarde invadiu sua cabeça de novo, mais vívida dessa vez: o rosto masculino pairando acima dela, aqueles ombros e aquele peito sob sua carícia...
Olhando de esguelha, percebeu os sinais de que o cômodo estava ocupado. Havia uma lamparina sobre uma escrivaninha na sala de estar, junto com uma pilha de papéis. Notou manchas de tinta nos dedos dele. Ele estivera escrevendo, não dormindo. Imaginou-o lá, entregue ao frescor da noite, imerso em sua escrita.
Com pouca roupa e aquela camisa solta, parecendo libertino e romântico demais para que ela se sentisse segura, ele a encarou.
– Lorde Elliot, mudou-se para cá para me espionar?
– Deixei para a signora Cirillo a tarefa de espionar. Mudei-me para cá para impedi-la de fugir na calada da noite.
Ele adivinhara seu plano. Isso a desanimou.
– Intrometer aquela ave de rapina em meus assuntos particulares é indesculpável.
– Parece que foi necessário. A signora Cirillo se empenhou em sua missão e a desempenhou com fervor. Eu só pedi que informasse caso a senhorita me desobedecesse e deixasse a hospedaria. Mas ela a seguiu e interceptou a carta para seu amigo.
A expressão dele assumiu um ar crítico.
– Tentar arranjar esse encontro clandestino à meia-noite é intolerável. E se Pietro não a esperasse naquele cruzamento? A senhorita ficaria lá fora no meio da noite, nessa cidade devassa, desprotegida...
– Não me repreenda. Não ouse. Se ele não aparecesse, eu logo teria encontrado um jeito de arrumar uma carruagem de aluguel, uma carroça ou até um burro, se preciso, e teria partido.
Todas as implicações desse episódio lastimável se seguiram em sua cabeça. Ressentiu-se de cada uma delas.
– Parece que troquei um carcereiro por outro – disse ela.
Ele pegou a valise.
– Chame como quiser.
Então Elliot estendeu o braço na direção da porta, mostrando o caminho.
Bufando de raiva, ela subiu de volta as escadas até seus aposentos. Para seu espanto, o lorde não deixou a valise na porta de entrada. Em vez disso, carregou-a até o quarto. Ela não o seguiu. Uma intuição, daquelas que só as mulheres têm, a manteve na sala de estar.
– Venha até aqui, Srta. Blair.
A ordem ressoou dentro dela de um jeito que ela não reconheceu nem gostou. Compreendia a raiva que trazia, mas havia também outros impulsos e palpitações que a espantaram. Ela odiava quando os homens tentavam lhe dar ordens, quando pressupunham serem seus donos, no entanto...
Phaedra espiou dentro do quarto. Lorde Elliot estava lá, com o colarinho da camisa branca aberto, o cabelo despenteado e a expressão resoluta. Quando ele notou a presença dela, um reconhecimento mudo se deu entre os dois. Lampejos de excitação e perigo a perpassaram.
Ele andou até ela e a puxou para dentro do cômodo. A pegada tão firme e confiante, tão segura em relação ao direito dele de fazer o que bem quisesse, a espantou. Nunca na vida um homem a tratara assim. Phaedra tentou se recompor e encontrar as palavras que o colocassem em seu devido lugar, mas...
Ele começou a desatar o nó do xale sob seu queixo. Isso levou tempo de mais. E o deixou perto demais. Com certeza ele não era um canalha a ponto de... Deveria detê-lo e desatar o nó ela mesma. Deveria...
Ele fez o xale correr com suavidade pela cabeça e os ombros dela. Foi como uma carícia longa e vagarosa. O olhar dele acompanhou uma ponta do xale deslizar ao longo do corpo dela até que ficasse pendurado na mão dele pela outra.
Apenas a luz da lua que entrava pela janela iluminava o quarto, porém Phaedra não precisava ver com clareza o rosto daquele homem para adivinhar seus pensamentos. Eles preenchiam o quarto, estavam no ar, como tinha acontecido à tarde.
Uma nova reação a deixou perplexa, uma que nunca vivenciara antes: medo. Não medo dele ou de ser forçada a fazer algo. Foi dela mesma e da maneira chocante e singular como seu corpo reagia à forma como ele tentava dominá-la.
Elliot fez um gesto apontando para a cama.
– Tire o vestido e deite-se.
Isso quase a fez cair em si. Quase. Uma excitação inexplicável a atingiu lá embaixo, uma excitação absolutamente escandalosa. Deus do céu...
– Está indo longe demais.
Ela havia mesmo falado? Sua mente por fim juntara algum bom senso e fora em seu socorro?
– Você não me deixa escolha. Não posso me arriscar a deixá-la escapar.
– Prometo que não vou fugir.
– Uma mulher que espera que eu quebre minha promessa a Sansoni não manterá a própria palavra. Agora coopere, a menos que queira que eu a force a obedecer.
Ela levou as mãos às costas e começou a soltar os ganchinhos do vestido. Só levou um minuto até se despir e pôr o vestido sobre uma cadeira. A luz não era fraca o bastante para ocultá-la. Desejou estar usando aqueles ridículos espartilhos, pois suspeitava que lorde Elliot pudesse ver mais do que deveria por baixo da camisa simples que usava sob o vestido.
Ela se aproximou da cama e subiu nela, tentando não se expor demais e excitada por suspeitar estar se expondo ainda assim. Deitou de costas e olhou para ele. Pairou um silêncio no ar por um longo momento.
– Quais são as suas intenções, lorde Elliot?
Ele riu de novo. Em silêncio. Sarcasticamente.
– Não é um bom momento para provocar e instigar, Srta. Blair.
De repente, ele se inclinou sobre ela. Pairando. O coração dela começou a bater mais forte. A camisa dele adejava perto do rosto dela. O cheiro dele a tomou de assalto. O tamanho dele a dominou. Uma expectativa terrível e maravilhosa formigou nela. Seus seios ficaram mais sensíveis e...
Ele pegou no braço esquerdo dela e o levou até as barras de ferro da cabeceira da cama.
– O que está fazendo?
Ele enroscou o xale em volta das barras.
– Certificando-me de que não fugirá. Não preciso dormir muito, entretanto não posso ficar acordado por duas noites.
– Isso passa dos limites. É repugnante. Exijo que...
– Isso é necessário. Ou é isso ou durmo ao seu lado. Prefere?
Ela o encarou. Ele parou de fazer os nós e olhou para baixo. O coração dela pulou para a boca.
– Prefere? – repetiu ele.
Era uma pergunta direta e sincera. Um convite que lhe permitia extravasar a atração.
Ela engoliu em seco.
– É claro que não.
Mesmo na luz fraca, ela viu o sorriso dele. Ele voltou sua atenção para os nós.
Por fim, ele se afastou e se endireitou. Phaedra deu um puxão com o braço esquerdo. Não havia folga nas laçadas. Ela se virou para o lado e tentou forçar um nó com a outra mão.
– Fique à vontade para tentar desfazer os nós. Só que não vai conseguir. Pode se sentar e se mexer, pode até ficar de pé. Pode usar o penico do lado da cama. Mas nunca vai conseguir se soltar. É melhor passar o tempo dormindo.
Uma nota em seu tom de voz a fez parar de tentar. Rolou de volta para ficar de costas e o encarou. O desamparo dela e o domínio dele gritaram no silêncio entre os dois. A mente de Phaedra bradava insultos rebeldes, mas seu corpo experimentava um calor e uma expectativa deliciosos. Espantava-a que essa submissão provocasse desejo, um desejo muito erótico.
Ele sabia, droga. Ela podia garantir que ele sabia.
– Está muito bonita aí, Srta. Blair. Muito bela e vulnerável e, ouso dizer... submissa?
– Seu canalha.
De novo, aquela risada silenciosa. Depois ele se foi, deixando-a livre para conversar consigo mesma pelo resto da noite sobre quão vulnerável e submissa ele a havia tornado.
CAPÍTULO 5
Phaedra segurava o camafeu na luz matinal que penetrava pela janela da sala de estar. O objeto tinha se tornado um talismã nos dois últimos dias, no embate com um homem confiante demais de seus direitos de controlá-la.
Você deveria ter me avisado, mãe.
Talvez Artemis não pudesse ter lhe avisado simplesmente porque não sabia. Talvez tivesse se isolado tanto de homens como Elliot Rothwell que nunca os houvesse enfrentado.
Ela imaginava a mãe, linda de tirar o fôlego. Com um rosto tão suave que as pessoas nunca imaginavam sua mente brilhante até que ela abrisse a boca ou lhes dirigisse aquele olhar aguçado. De fato, sempre fora uma rainha com muitas abelhas em volta. Acadêmicos, artistas e homens que admiravam sua inteligência estavam entre os amigos que a amavam e ficavam apenas à espera de uma deixa. Sua casa ficava sempre cheia de homens famosos e esperançosos.
Na certa, um desses homens teria tentado conquistá-la. Na certa, a famosa Artemis Blair vivenciara a excitação primitiva de encontrar um par na inteligência e no poder. Ela devia ter avisado à filha que esse homem poderia surgir um dia.
Phaedra olhou pela janela. Lá embaixo, lorde Elliot dava ordens aos criados da signora Cirillo, que carregavam as valises para a carruagem que os levaria ao porto. Os olhos dela se estreitaram para focalizar o inimigo.
Pelo menos, ele não a mantivera amarrada na última noite. Ela prometera de cinco formas diferentes não fugir. Ele só a soltou depois de ela jurar – jurar – sobre o túmulo da mãe. Ele a fizera implorar como se fosse seu dono.
Sua mãe provavelmente estaria se revirando no túmulo naquele exato momento. Artemis Blair nunca se submetera a um homem, de forma nenhuma. Nunca se casara, nem com seu amor de toda a vida, Richard Drury, mesmo quando se viu grávida. Nunca abrira mão de sua liberdade, sua independência e seu direito de amar e dividir a cama com quem quer que escolhesse, nem ao descobrir que só queria amar e dividir a cama com um único homem.
O camafeu esquentou na mão de Phaedra. Ela olhou para a joia. Não, não um único homem. Tinha havido outro.
Tinha sido um choque ler isso nas memórias do pai. Sentia-se nauseada só de lembrar as palavras dele. Sempre imaginara que o amor de seus pais fora perfeito, desprovido de obrigações e leis, um verdadeiro encontro de almas que duraria pela eternidade. A amizade dos pais mostrava ao mundo que havia uma forma melhor para um casal conviver.
Tinha sido assim por muitos anos, até que um dia outro homem entrara na história.
Esse intruso era charmoso, contudo estava no centro de um esquema ao mesmo tempo brilhante e nefasto. Foi o que seu pai escreveu. Ela se lembrava das palavras exatas. Memorizara essas palavras antes de zarpar da Inglaterra. Ele seduziu Artemis para que tivessem um caso, usou-a da forma mais desonrosa, a ponto de destruir sua reputação. Foram seus atos que, em última análise, levaram à morte dela. Assim como vendia falsas antiguidades, ele lhe ofertou mentiras. Porém é só uma questão de tempo até que ele seja desmascarado, porque os objetos estão lá, visíveis, como o que vendeu a Artemis. Um dia alguém revelará a origem suspeita desses objetos, e a forma como ele usa a sedução no intuito de roubar será sua desgraça.
Os dedos dela se fecharam com força ao redor do camafeu. Uma antiguidade de origem suspeita. Uma joia acrescentada na última hora a um testamento, supostamente vinda de Pompeia. Phaedra estava bastante certa de que era a este objeto que o pai se referira – e também sua única ligação com o homem que ele acusava.
Seus atos, em última análise, a levaram à morte. Phaedra não conseguia tirar essas palavras da cabeça. Elas ressoavam em seus sonhos junto com as imagens da mãe naquelas últimas semanas, séria demais, distraída demais. Phaedra nem chegara a notar essa seriedade e distração na época, pois a mãe sempre tinha um sorriso para ela. Porém seu declínio fora rápido demais e sua morte, um choque.
Phaedra baixou o olhar de novo. Lorde Elliot olhava para cima, em sua direção. Há quanto tempo ele a observava lá da rua?
Talvez a mãe não tivesse avisado porque nem ela mesma sabia. Talvez o intruso fosse um homem como aquele lá embaixo, que causava arrepios só por dar sua atenção e cuja presença era uma tentação para que, em um segundo, uma mulher se esquecesse de todas as crenças e princípios que ancoravam sua vida.
Poderia perdoar a mãe por não ter lhe dado essa lição. Poderia perdoá-la por qualquer coisa, até mesmo por deixar o mundo cedo demais. Porém, se um homem realmente a havia usado de forma desonrosa, se os atos dele tinham causado sua morte, isso era outro caso. A filha de Artemis Blair nunca o perdoaria. Se tivesse certeza de que isso era verdade, então queria ver a queda desse homem.
Pegou o xale e envolveu a cabeça. Lorde Elliot era um inconveniente, mas ela não deixaria que a companhia dele atrapalhasse o motivo real que a levara ao Reino das Duas Sicílias.
Elliot voltou ao quarto para pegar a maleta com seus muitos papéis. Passou pela Srta. Blair nas escadas.
– Vou esperar na carruagem.
Seu tom ríspido demonstrava a frieza que agora sempre exibia em sua presença.
Ela nunca o perdoaria por amarrá-la na cama, não só pela humilhação e falta de confiança. Ambos sabiam que isso a excitara, e ela o odiava por isso e por todas as implicações resultantes. Ambos também sabiam que, se ele não tivesse feito isso, ela teria escapado durante a noite para evitar as implicações resultantes.
Na última noite, Phaedra fora enfática ao afirmar que não aconteceria de novo. Suas promessas foram tão sinceras e suas garantias de não fugir, tão genuínas que ele voltara atrás.
Isso significara que ele poderia dormir. Na primeira noite, ficara deitado, inquieto e ávido, sentindo o desejo rasgá-lo por dentro como uma faca de serra. Imaginando-a naquela blusa fina, amarrada na cabeceira da cama, com o cabelo espalhado como seda acobreada e o corpo visível demais. Quais são as suas intenções, lorde Elliot?
Que inferno!
Elliot pegou a mala e um embrulho comprido e se juntou a ela na carruagem. O olhar vazio, distante e focado dizia que era só por falta de escolha que Phaedra tolerava a companhia dele. Não se daria o trabalho de bater papo para tornar seu tempo juntos mais fácil.
O barco que ele alugara esperava perto do Castel Nuovo. Uma hora depois, eles navegavam margeando a baía.
A Srta. Blair se posicionou na área central do convés, segurando-se na amurada. Ela observava a costa passar e o monte Vesúvio ficar cada vez maior ao fundo. A brisa empurrava o xale dos seus cabelos e sua beleza pálida e incomum chamava a atenção do pessoal de bordo. Elliot se aproximou para que não restasse dúvida quanto à sua situação de protetor da moça.
Ele estendeu a mão, oferecendo-lhe o embrulho que trouxera.
– O que é isto? – perguntou ela.
– Um presente.
Ela sorriu de um jeito suave, porém firme.
– Não aceito presentes de homens, lorde Elliot.
– Você não aceita presentes em troca de favores, o que é admirável. No entanto, como não gozei de seus favores, ainda está livre para aceitar presentes. Se eu a seduzir, pode devolvê-lo.
Ele quase disse “quando” em vez de “se”.
Ainda hesitante, porém curiosa, ela pegou o pacote e tirou parte do papel.
– Uma sombrinha? – disse, e rasgou o restante do embrulho, rindo então. – Preta. Toda preta. Que... gentileza!
– Achei que ia combinar.
– Isto é para me poupar de mais sardas?
– Isto é para poupá-la de ficar doente. O sol aqui é muito forte e estamos em pleno verão. Quando desembarcarmos, ficará feliz em ter alguma sombra.
Ela abriu a sombrinha e cobriu a cabeça.
– O senhor conhece bem o país. Já esteve aqui antes?
– Duas vezes. Primeiro em uma viagem por vários países do continente, e de novo há alguns anos.
Ele apontou para a costa.
– Ali fica Herculano. A mesma erupção do Vesúvio que enterrou Pompeia em cinzas cobriu Herculano de lava.
Ela desviou o olhar para onde os vestidos e casacos dos visitantes salpicavam de cor a rocha.
– Tinha a intenção de visitar Herculano também, mas o signore Sansoni... – suspirou ela. – Agora vou perder muita coisa da viagem.
– Por que não gasta algum tempo na volta de nossa pequena viagem e faz a visita?
– Não tenho tempo a perder. Preciso voltar para casa. Tenho uma editora para tocar.
E um livro especial para publicar. Se ele não conseguisse o que queria ao falar com Merriweather, a Srta. Blair não voltaria para casa por um bom tempo.
– Também acho que não vou gostar de voltar a Nápoles depois de nossa viagem – emendou ela. – Com certeza você achará que a palavra dada a Sansoni ainda estará valendo, e ficarei com o senhor no meu pé.
Ele admirou impressionado o enorme cone que era o Vesúvio enquanto passavam tão perto de Herculano que podiam ver alguns trabalhadores nas escavações. O cabelo cor de cobre esvoaçava perto do braço dele.
– Srta. Blair, pergunto-me se o que a incomoda não seria o fato de me ter no seu pé e não a seus pés.
O suspiro profundo expressou o pensamento dela. Deus, dê-me paciência com esse homem tão pouco esclarecido e tão previsível.
– Suspeito que seja inútil explicar isso, mas tentarei, em nome da paz. Acredito que nenhum parceiro na amizade, no casamento ou num caso amoroso deva ficar aos pés do outro. Minha ideia só é considerada estranha porque o pé em questão quase sempre é de um homem e o mundo acha normal que ele fique cravado nas costas de uma mulher. Creio que homens e mulheres possam ficar lado a lado, sem que um tenha que pertencer ao outro. A vida da minha mãe provou que isso é possível e a minha também, até agora, prova o mesmo. Não fomos nós que inventamos essa crença. Essa ideia é bem conhecida e foi defendida por pessoas a quem admiro muito.
– Sei tudo sobre a sua crença, Srta. Blair. Não sou ignorante dessa filosofia. Ela até soa correta e racional. O único problema é que não leva em conta vários aspectos.
– É mesmo? Quais?
– A natureza humana. A história da humanidade. A tendência de os maus vitimarem os fracos e a necessidade dos fracos de proteção. Aventure-se sozinha nos vilarejos de Campanha ou nas ruelas de Marselha ou Istambul, ande pelas espeluncas de Londres e veja o que acontece com uma mulher sozinha e desprotegida.
– Os senhores de antigamente davam proteção a seus servos. O que não significa que era correto exigir a vassalagem em troca.
Ele riu.
– Senhores, servos. Que visão nefasta a senhorita tem da vida das mulheres. Não precisa ser desse jeito.
– Mas pode ser – disse ela. – O senhor sabe que pode. A lei faz isso.
A ênfase que ela deu ao “senhor” foi tão sutil que ele se perguntou se não passava de fruto de sua imaginação. Ela cutucou uma velha ferida com muita delicadeza, contudo ele sentiu a dor de qualquer forma. Uma raiva obscura se instilou nele.
Ela voltou a atenção para a costa. Um leve rubor em seu rosto indicava o reconhecimento de que tinha ido longe demais. Elliot controlou sua reação, mas pensamentos predatórios agora penetravam em sua mente. Ele ponderou o que seria preciso para ser senhor dessa mulher, para fazer com que se dobrasse diante dele.
– Desculpe-me, lorde Elliot. Eu não deveria...
– Está fazendo a impertinência aumentar, Srta. Blair. Melhor teria sido deixar que sua insinuação voasse para longe junto com a brisa.
Só que ela não o fizera, e ele se perguntava por que falara de maneira tão segura.
– Está se referindo a boatos sobre minha mãe, não é?
Ela pensou duas vezes na resposta enquanto olhava para ele.
– Admito que o fato de ela haver se retirado para o campo durante seus últimos anos de vida foi interpretado como feito de seu pai.
Elliot sabia que essa história corria solta nas salas de estar de ricos e pobres. Diziam que sua mãe tinha um amante e que seu pai a punira mandando o homem para a morte em uma colônia distante e depois aprisionando-a em uma propriedade rural.
Seria verdade? Ele e seus irmãos haviam concluído que o amante fora real, mas não a parte sobre o cárcere. O próprio pai lhe jurara não ter feito o que as pessoas falavam. Porém, o exílio da mãe estimulara a fofoca, a ponto de ela mesma passar a acreditar na história.
Ele a via na biblioteca, com os cabelos escuros pairando acima de livros e papéis, perdida em pensamentos. Quase totalmente afastada dos filhos. Por ser o caçula, havia passado a maior parte do tempo com ela lá. Ela emergia de sua concentração às vezes para guiá-lo pelas estantes, escolhendo livros para ele ler ou comentando os escritos dele.
No entanto, algumas poucas vezes o vínculo se estreitara, como no dia em que ela recebeu uma carta que a deixou em prantos. Era a notícia da morte de um oficial do Exército. Foi ele que fez isso. Para me punir por amar outra pessoa.
Tinha sido um amor ilícito. Ela era uma adúltera. Ainda assim, o sofrimento dela o comoveu. Só que ele entendeu que a acusação dela era o delírio de uma alma sofredora.
Elliot sentiu a presença da Srta. Blair ao seu lado. Nem mesmo a raiva conseguia sufocar a reação que sua sensualidade causava nele. A droga das memórias do pai dela insinuava que uma mulher reclusa fora a única a entender como o sangue dos Rothwells podia tornar um homem cruel. Sua certeza de que isso era mentira não seria suficiente para diminuir as acusações a seu pai.
– Elas se conheciam – disse a Srta. Blair. – Nossas mães.
– Minha mãe conhecia os ensaios de Artemis Blair, contudo nunca mencionou uma amizade.
Isso não queria dizer nada, uma vez que ela nunca mencionava assunto nenhum.
– Acho que elas nunca se conheceram pessoalmente, porém elas se correspondiam. Eram ambas escritoras. Tinham interesses em comum. Uma vez sua mãe enviou um poema para a minha. Encontrei-o entre os papéis dela depois que morreu. Um belo poema que refletia uma alma inteligente e sensível.
Ele fixou o olhar na cidade costeira que se aproximava, Sorrento. Estava enfurecido por saber que a mãe compartilhara seus textos com Artemis Blair e nunca com os próprios filhos.
– Sua mãe a encorajou a cometer adultério?
As palavras soaram cruéis e duras mesmo ao ouvido dele.
– Ela pregava a crença no amor livre em suas cartas?
Ele imaginou a famosa Artemis Blair virando a cabeça de sua mãe, o que levaria a tanto sofrimento depois.
– Creio que elas falavam principalmente de literatura em suas cartas. Minha mãe só a mencionou uma vez, quando soube de seu falecimento.
– O que ela disse?
A frase soou mais como um rosnado do que como uma pergunta.
– Ela disse: “Ele devia tê-la deixado ir embora, mas, é claro, por ser um homem, não poderia.”
Isso só fez com que um trovão rugisse nas nuvens que se acumulavam em sua mente. Ele queria dizer que um homem não poderia permitir que a mãe de seus filhos fugisse em uma aventura amorosa. É claro que seu pai não tinha opção a não ser negar essa liberdade a ela.
Só que, a seu modo, ela havia encontrado uma forma de fugir de qualquer maneira.
Pelo canto do olho, Elliot percebeu um membro da tripulação se demorar muito com o cordame. O homem alongava a tarefa só para ficar apreciando a beleza de Phaedra Blair.
A tempestade em sua cabeça estourou. Relâmpagos espocaram. Ele estreitou os olhos e disse quatro palavras. O homem saiu às pressas.
A Srta. Blair percebeu.
– O que você lhe disse?
– Nada importante. Uma expressão napolitana exigindo privacidade.
Nem se deu o trabalho de explicar que as palavras em italiano significavam mexa-se ou morra.
Um vento forte os ajudou a fazer um bom tempo de viagem. A paisagem foi ficando cada vez mais bonita à medida que cortavam a baía em direção à península de Sorrento. Montanhas altas abraçavam a costa, mergulhando no mar em declives acentuados e verdes. Pequenas praias abrigavam alguns barcos e casas se encarapitavam no despenhadeiro, como se fossem cubos brancos e em tons pastel a pairar acima da água.
Contornaram a pequena península, passaram pela ilha de Capri e seguiram para a costa amalfitana. Encostas mais íngremes, perigosas e inacessíveis assomavam sobre eles. O cenário deixou Phaedra boquiaberta. Lorde Elliot estava certo. Teria sido uma pena perder essa visão.
– O que está havendo ali? – perguntou ela, apontando para alguma atividade na colina.
– O rei está construindo uma estrada para Amalfi. Estão escavando a encosta.
Ela notou que a estrada ficaria acima das vilas de pescadores.
– De qualquer forma, vai ser preciso subir ou descer a colina – falou ela.
– Pelo menos os habitantes não vão depender de barcos e burros. E a vista lá de cima será espetacular.
Ele apontou para a frente, mais adiante na costa.
– Positano fica logo depois daquele promontório. Daqui já é possível avistar a torre de vigia normanda nele. Há muitas delas nesta costa, construídas para proteger o reino normando medieval que havia aqui da ameaça dos sarracenos.
Phaedra andou para a proa do barco a fim de ver melhor a torre assim que entrasse em seu campo de visão. A velha torre de pedra era bem alta e isolada. Pequenas janelas a pontuavam, como se fosse um castelo medieval. Parecia uma intromissão de estrangeiros do norte naquela terra banhada pelo sol.
– Aquelas janelas altas dão para o leste e o oeste – disse ela. – Não há nada entre aquela e o horizonte do mar e nada entre a outra e o pico da montanha alta. Vamos ficar aqui muitos dias?
– Calculo que sim.
Phaedra perdera a noção do tempo enquanto fora prisioneira de Sansoni. Agora começava a se situar.
– O solstício de verão se aproxima. Imagino se a torre não será usada para algum ritual.
– Esta é uma região católica. Os rituais pagãos foram banidos há milhares de anos.
Apesar de lorde Elliot ter respondido, ela podia apostar que ele estava muito distante. Estava tomado por um silêncio que pouco tinha a ver com sons. Era algo interior, como se seu espírito tivesse se recolhido para as câmaras secretas de sua alma.
Phaedra se arrependia de ter se referido, ainda que discretamente, à situação da mãe dele. Deixara a frase escapar no auge de sua irritação com lorde Elliot por ele pressupor que estava certo e ela, totalmente errada. Já devia ter aprendido a não entrar em discussões a respeito do modo como pensava e vivia. No que tangia a esse assunto, aquele homem lhe era tão estranho quanto os pescadores daquelas vilas pitorescas.
Aproximaram-se da torre, passando bem perto quando o vento inflou as velas do barco. Parecia deserta.
– Quem é esse amigo a quem vamos visitar? – perguntou ela. – Como vamos chegar logo, acho que eu deveria saber o nome.
– Matthias Greenwood. Foi um dos meus professores na universidade.
Ela conteve sua surpresa. Conhecia Greenwood. Tinha tentado em vão localizar sua casa em Nápoles.
– Ele não vai se incomodar por você ter trazido mais bagagem do que ele esperava?
– Ele ficará muito satisfeito por ter a companhia da filha de Artemis Blair. Ele encontrou com ela algumas vezes, eu acho.
– Sim, com certeza. Eu o vi em algumas ocasiões; a última, no funeral da minha mãe.
Matthias Greenwood tinha sido um dos muitos acadêmicos a prestar homenagem à mulher que deixara o mundo inteiro confuso.
Também era alguém que poderia lançar luz sobre o “outro” homem. Phaedra pensara que esse atraso na viagem para Pompeia seria uma amolação. No entanto lorde Elliot a estava ajudando a riscar um dos itens em sua lista de pendências naquela terra.
– Ele a admirava. Disse que, se tivesse nascido homem, ela teria sido reconhecida como uma das maiores especialistas em línguas românicas antigas da Inglaterra – contou lorde Elliot.
Ele ainda falava em um tom distraído, como se apenas metade de sua mente prestasse atenção.
Phaedra olhou para a cidade de Positano com mais otimismo e não apenas porque sua missão poderia ser favorecida ali. Ela não se pautava por regras sociais estúpidas, mas a maior parte do mundo, sim. Imaginava como seria recebida ao chegar com lorde Elliot. Viajar com ele implicava coisas que ela não tolerava e que não gostaria que as pessoas presumissem.
O Sr. Greenwood provavelmente entenderia que era melhor não presumir nada.
Phaedra sentiu seu companheiro de viagem olhando para ela e virou a cabeça. Ele tinha voltado a si.
– Ele costuma receber convidados os mais variados – disse Elliot. – Pode ser que haja outras pessoas lá. Você vai se comportar, não?
Ela confiou que ele não esperaria que ela bancasse a amante dócil em uma vã tentativa de ser alguém que os convidados tolerariam.
Mesmo que quisesse criar esse disfarce, nem saberia por onde começar.
CAPÍTULO 6
Positano ficava numa angra apinhada de barcos. As construções em tons pastel pairavam acima do horizonte, amontoadas umas sobre as outras no declive acentuado da montanha. A cidade toda era uma sequência íngreme de casas que seguiam na direção do mar.
Phaedra deu uma olhada no despenhadeiro alto, no mar infinito cor de safira e na folhagem de um verde muito escuro. Nunca tinha visto nada tão fascinante em toda a sua vida.
– Qual casa pertence ao Sr. Greenwood? – perguntou ela.
Lorde Elliot se aproximou e estendeu o braço para que a vista dela o acompanhasse.
– Aquela lá em cima, com colunas.
As colunas sustentavam a cobertura de uma comprida varanda na casa mais ao alto. A casa fora erigida um pouco acima da área central da cidade. Sua distância criava uma coroa para os prédios que se espalhavam como uma cascata abaixo dela.
– Vamos voar até lá ou ele vai jogar uma cesta para nos apanhar aqui embaixo?
Um dos membros da tripulação já tinha se ocupado em resolver o problema e voltava com a solução: dois garotos que o seguiam puxando burros.
Phaedra permitiu que os garotos a ajudassem a subir no lombo de um animal. Lorde Elliot só precisou levantar a perna para montar no dele. Era mais alto que o bicho, e suas botas arrastavam pelo chão. A tripulação amarrou suas valises e malas em dois outros burros.
Ela riu deles mesmos.
– Que comitiva, lorde Elliot! Fará um desfile impressionante pela cidade. Talvez eu pegue meu livro de esboços e registre para a posteridade sua elegância sobre esse belo corcel.
Ele tocou seu burro para assumir a dianteira e deu um tapa no traseiro do animal dela ao passar.
– Cuide de sua própria montaria, Srta. Blair. Tome cuidado para não cair ou não vai parar de rolar até chegar à baía.
Ela logo entendeu o que ele queria dizer. Os burros passavam por caminhos muito íngremes, que tinham sido cortados em degraus baixos e estreitos e depois pavimentados. Ela pensou que ia mesmo cair no mar. Os animais sabiam onde pisavam, mas, sentada de lado na sela, Phaedra precisava ter cuidado para proteger a própria vida.
Eles foram um espetáculo e tanto. Os habitantes do vilarejo saíram às portas e janelas para espiar, curiosos, os estrangeiros que iam para a mansão localizada acima da cidade. Crianças começaram a segui-los, formando um verdadeiro séquito. Duas meninas andaram ao lado de Phaedra por um tempo, espiando com curiosidade as pontas ruivas de seu cabelo que apareciam sob o xale. Algumas mulheres fizeram leves mesuras quando lorde Elliot passou, sabendo, por seu porte e seus modos, que ele tinha sangue nobre.
Ela relaxou ao se adaptar à andadura do burro. Não ousava olhar para trás, mas se permitiu olhar as casas de pedra, lindamente rústicas. Varandas simples e coberturas de telhas ajudavam a criar um amálgama de formas e cores. Algumas casas maiores tinham azulejos decorados em volta das portas principais. Todas pareciam muito antigas, como a torre. Estuque cobria a maioria delas, quase sempre trabalhado com ornamentos e cornijas decorativos. Algumas construções eram brancas, mas muitas ostentavam detalhes em vermelho e rosa.
Os sons da vida na comunidade ecoavam ao redor conforme as pessoas chamavam umas às outras pelas janelas abertas e nas ruas do mercado embaixo. Em algum lugar, um homem cantava descontraidamente uma ária de Rossini enquanto cumpria outra tarefa qualquer.
As ruelas iam ficando mais planas à medida que se aproximavam da mansão. Era como se alguém tivesse retirado um pedaço da montanha para que a grande casa pudesse ser construída.
Um homem apareceu numa das arcadas entre as colunas da varanda. Era alto e magro, com uma basta cabeleira branca, nariz aquilino e postura ereta. O maxilar de traços muito retos terminava em um queixo partido. Phaedra só tinha visto Matthias Greenwood umas poucas vezes, porém sua aparência era tão peculiar que se tornava inesquecível.
Ele acenou em saudação, depois saiu e andou na direção deles.
– Rothwell! Que alívio vê-lo finalmente. Meus companheiros anseiam pela sua perspicácia.
Eles se cumprimentaram e Elliot apresentou Phaedra.
– Já tive a honra de conhecê-la, Rothwell. Fico feliz em vê-la de novo, Srta. Blair, e em circunstâncias menos penosas do que da última vez. Sua mãe era muito estimada por humildes acadêmicos como eu e foi muito generosa conosco. Sou-lhe grato pelas pessoas a quem me apresentou em suas recepções.
Os criados apareceram e Matthias deu ordens a respeito das bagagens.
– Entrem e descansem. Meus outros convidados estão fazendo a sesta, mas se reunirão a nós em breve.
Ela subiu o caminho de pedras e seguiu Matthias até a varanda. Olhou através dos arcos e perdeu o fôlego.
A visão era impressionante, um ângulo que exigia uma tela e um pincel. Se a vista montanha acima era incrível, olhá-la de cima para baixo era de deixar qualquer um embasbacado. Os telhados e faixas de circulação da cidade se espalhavam pela encosta. O declive era tão acentuado que era de espantar que se tivesse construído alguma coisa nele. O mar infinito, o céu tão próximo, o promontório que abraçava a paisagem – tudo isso criava um panorama vasto e irreal de um lugar precário no mundo, uma visão empolgante e romântica, mergulhada em beleza e, ao mesmo tempo, repleta de perigos.
– É um espanto que o senhor não viva somente nesta varanda e nem se importe se o restante da casa cair aos pedaços, Sr. Greenwood.
– É quase isso o que faço, Srta. Blair. Aqui e nos outros terraços e varandas. Mesmo não sendo católico, vou à igreja da paróquia para acender velas pela alma de um parente distante cuja herança me permite viver no paraíso.
Uma mulher os saudou quando entraram na sala de visitas arejada, de piso de mármore. Era uma mulher local, elegante e de pele morena. Tinha um rosto lindo e comovente, marcado por um traço de melancolia. Chamava-se signora Roviale e a forma como entrou e cuidou de acomodá-los indicou que aquela era a sua casa. Matthias Greenwood não vivia sozinho no paraíso.
Outro convidado se juntou a eles logo em seguida, depois que um criado trouxe vinho. Phaedra o reconheceu também. Ele não fora ao enterro de sua mãe, mas tinha estado uma ou duas vezes em sua casa quando ela era garota. Tinha uma beleza tão nobre, de traços finos, que ela quase se apaixonou na primeira vez que o viu.
– Veja quem está aqui para celebrar sua visita, Rothwell – disse Matthias. – Escrevi contando a ele que você viria de Nápoles e ele e a esposa vieram de Roma para vê-lo. Srta. Blair, permita-me apresentá-la ao Sr. Randall Whitmarsh, cavalheiro, acadêmico e outro refugiado da Inglaterra.
O Sr. Whitmarsh adotara os modos e o estilo europeu continental, reflexo de seus longos anos vivendo no exterior. Sussurrou um “belíssima” ao se inclinar para beijar a mão de Phaedra com tamanho exagero que ficou provado que deixara para trás o jeito reservado britânico ao adotar Roma como sua residência principal.
– É uma alegria conhecer a filha da indomável Artemis Blair – disse ele, dando um sorriso charmoso e encantador.
Phaedra não era insensível à atenção de um belo homem. Notou que lorde Elliot ficou observando de soslaio enquanto o Sr. Whitmarsh se demorava segurando a mão dela.
– Soube recentemente do falecimento de Richard Drury – disse o Sr. Whitmarsh, dando um tapinha na mão dela. – Vejo que ainda está de luto, mas creio que tenha sido uma opção muito saudável viajar para o exterior para suavizar seu sofrimento.
– O modo como costumo me vestir tornou desnecessário encomendar um guarda-roupa apropriado ao luto, entretanto meu pai não ia querer isso de qualquer forma. Na última vez que o vi, ele proibiu terminantemente que eu ficasse de luto.
Ela puxou a mão da pegada suave do Sr. Whitmarsh.
– Não esperava encontrar tantas pessoas que conheceram minha mãe na remota Positano.
– Nós três somos membros da Sociedade dos Dilettanti, Srta. Blair. Por ser mulher, sua mãe não podia participar. Vez ou outra, porém, nós lhe fazíamos uma visita para prestar nossa homenagem – explicou o Sr. Whitmarsh. – Considerando o conhecimento dela em letras românicas, não é de surpreender que encontre tantos dos que a conheceram ao visitar as terras do antigo império.
– Também é membro da Sociedade, lorde Elliot?
– Entrei depois de voltar da minha viagem pelo continente.
Ela só tinha 18 anos quando a mãe morreu, por isso ainda não chegara a frequentar os salões e jantares em que Artemis recebia acadêmicos e artistas. Porém, ali estavam, diante dela, alguns integrantes do círculo de amizades de sua mãe, mesmo que talvez pertencessem ao círculo mais distante.
Phaedra teria que descobrir se algum daqueles homens tinha percebido ou ouvido falar no homem que recebera as últimas afeições de Artemis.
Phaedra Blair estava aliviada por ela e a signora Roviale não serem as únicas mulheres na festa. A Sra. Whitmarsh desceu do quarto logo.
Phaedra entendeu de imediato que a Sra. Whitmarsh não tinha uma mente tão aberta quanto a do marido. Não falava muito, parecia mais um passarinho pálido, entretanto tinha um rosto tão expressivo que era possível adivinhar seus pensamentos. Ao perceber que Phaedra e lorde Elliot tinham chegado juntos, a Sra. Whitmarsh deu um sorrisinho superficial e lançou para a signora Roviale um sutil olhar de desdém. Depois, resignada, se recolheu a sua silenciosa desaprovação da companhia de mulheres perdidas.
Naquela noite, ao jantarem ao ar livre na varanda, lorde Elliot teve a elegância de incluir a Sra. Whitmarsh na conversa sobre a sociedade londrina, na certeza de que isso lhe agradaria. Phaedra permitiu que os cavalheiros a cobrissem de conselhos sobre as maravilhas da Antiguidade que ela não poderia deixar de visitar.
– A senhorita tem que ir aos sítios de Paestum – exortou Matthias. – Rothwell, ordeno que a leve até lá. Não entendo esses ingleses que percorrem confeitarias e bordéis em Pompeia e ignoram alguns dos mais belos templos gregos do mundo que há no entorno.
– Se a Srta. Blair desejar, iremos visitar os templos – disse lorde Elliot.
Matthias pareceu muito um acadêmico naquele momento. Com o cabelo branco despenteado, o maxilar cortando o ar e o nariz aquilino empinado, ele entoava a lição como se ela fosse uma universitária, algo que nunca lhe permitiram, por ser mulher.
– É por isso que estou aqui, Srta. Blair. Rothwell e Whitmarsh admiram os romanos, mas meu foco é mais antigo. Esta terra foi colônia dos gregos quando Roma ainda era uma cidadezinha com cinco cabeças de gado. Depois de ver os sítios de Paestum, a senhorita entenderá a superioridade do pensamento grego.
– Se isso não exigir que minha visita se prolongue por muito tempo, talvez eu aceite seu conselho.
Após o jantar, a signora Roviale levou as mulheres para longe da varanda, deixando os homens a discutir e debater sobre a Antiguidade. Phaedra não gostaria de manter uma conversa forçada com a crítica Sra. Whitmarsh. Assim, alegou cansaço e se isentou de mais obrigações sociais.
Uma criada a conduziu ao quarto. Quadrado e branco, com o mesmo piso de mármore visto por toda a mansão, tinha janelas grandes que davam para um terraço estreito que se estendia acima dos arcos da varanda principal. Alguém já tinha desfeito suas malas e guardado as roupas em um armário de madeira escura. Havia uma jarra de água na bancada para lavar o rosto e as mãos. Era de cerâmica, com flores vermelhas e folhas azuis. Cores semelhantes decoravam os azulejos em volta da lareira e o peitoril de uma janela.
Phaedra abriu as portas duplas que davam para o terraço de modo que a brisa do mar e os últimos raios do crepúsculo entrassem. Sons da varanda chegavam até ela: Matthias em tom professoral e Elliot rindo, assim como o ruído de conversa. Ela se perguntou se sua mãe algum dia realmente fora aceita naquelas discussões masculinas. Quando os Dilettanti a prestigiavam, era sempre uma relação de homens com uma mulher, com tudo o que isso implicava?
Cadeiras foram arrastadas e despedidas foram feitas. O silêncio tomou a mansão. Ela se levantou a fim de se preparar para dormir. Começava a soltar os fechos do vestido quando um ruído mínimo do lado de fora chamou sua atenção. Um feixe de luz dourada atravessou o terraço e alcançou a noite. Ela foi até lá e espiou.
Lorde Elliot estava de pé na outra extremidade do terraço, em mangas de camisa e colete. Phaedra tinha certeza de não haver feito barulho, porém ele olhou na direção dela como se tivesse feito.
– Estava imaginando se Matthias a teria acomodado neste quarto – disse Elliot.
Ela caminhou até o piso de terracota lá fora. A luz vinha de outro conjunto de portas ao lado do dela. O terraço era compartilhado por dois quartos.
– Parece que nosso anfitrião entendeu errado – disse ela.
– Possivelmente. No entanto, se for para dividir um terraço com alguém, prefiro você à Sra. Whitmarsh.
Ela arriscou se afastar um pouco mais, contudo permaneceu do próprio lado no espaço comum. Da balaustrada de pedra podia-se ver o mar, que agora brilhava lá embaixo com milhões de pequenos reflexos de estrelas.
– O Sr. Whitmarsh disse que os Dilettanti faziam homenagens a minha mãe. Fico feliz de saber que a capacidade dela era reconhecida.
– Um homem honesto teria que admitir o brilhantismo dela. É claro que havia outros menos honestos que diminuíam isso.
– É claro. Você a conheceu?
– Ainda estava na universidade quando ela faleceu. Ouvi falar nela e a vi na cidade, contudo não estava em posição de visitá-la.
– O que achava dela?
Ele se virou e descansou o quadril na balaustrada, olhando para a noite na direção dela. Phaedra desejou que ele não parecesse tão lindo e sedutor. Desejou que a luz se apagasse para que seu rosto ficasse no escuro.
– Fui criado em uma casa de homens e meu pai não compreendia bem as mulheres. Então, saber da sua mãe foi uma revelação. Os colegiais falavam muito dela. Alguns se apaixonavam por ela, outros a achavam irreal, mas sem dúvida ela os fazia questionar a ordem das coisas. Quanto a mim, eu a achava bonita, interessante, inteligente e provavelmente perigosa.
– Acho que ela era perigosa. Se o mundo fosse cheio de Artemis Blairs, os homens não poderiam continuar a ser o que são. Todos teriam que questionar a ordem das coisas, como você.
– Era o que me passava pela cabeça, entretanto eu era um garoto na época e não gostava de perigos reais. Tive que conhecer a filha dela para entender essa parte.
Foi a vez dela de rir.
– Dificilmente eu poderia representar um perigo para você.
– Você se engana, como eu me enganei. O perigo não vem de você.
Não, não vinha. Isso ficara evidente aquela noite. Um poder fluía dele, em impulsos viris. Isso não a surpreendia nem a assustava. Porém, a forma como seus próprios instintos femininos reagiam, sim.
– Não me culpe por suas piores inclinações, lorde Elliot.
– Elas não parecem estar entre as ruins, que dirá as piores, querida Phaedra. Ao contrário, elas me parecem naturais, inevitáveis e até necessárias.
Sua voz baixa e segura lançava cordas de veludo que a amarravam. O coração dela foi parar na boca e sua pulsação acelerou. Ele não se mexeu. Não se aproximou nem um centímetro, contudo pareceu estar ao seu lado, correndo a mão por seu corpo todo.
– Quero você.
O tom calmo e descontraído agitou o sangue dela como a brisa agitava seu cabelo.
– Quero-a sem resistências ao prazer e implorando por mim. Quero-a nua e tremendo e despida de suas...
– Basta. Se é isso o que pensa das mulheres...
– Só de você, querida dama. Você lança um desafio a cada homem que vê. Não se surpreenda se um deles o aceitar.
– Como ousa...
– Ah, sim, eu ouso. Estou a ponto de ousar neste exato momento. Você sabe disso e ainda assim está aqui. Se não quisesse que eu ousasse, nunca teria saído por aquela porta.
Ela abriu a boca para negar, mas as palavras lhe faltaram.
Com um sorriso vago, ele se afastou da balaustrada. O coração dela deu um salto e suas pernas fraquejaram.
– Esse perigo que incita em mim a excita.
Elliot andou em direção à luz do próprio quarto.
– Quem está zumbindo em volta de quem agora, Srta. Blair?
– Um nome estranho para se dar a uma filha, Phaedra – ponderou Matthias em voz alta.
Era a manhã seguinte e ele e Elliot tomavam café na varanda. Lá embaixo, Positano despertava após o nascer do sol.
– Duvido que haja outra mulher com esse nome na Inglaterra, considerando a referência – acrescentou Matthias. – É muito típico de Artemis Blair decidir que a fonte não importa e valorizar sua exclusividade.
Levando em conta que a Phaedra da mitologia teve um caso com o enteado, era mesmo uma escolha estranha. Elliot duvidava que a crença da Srta. Blair e da mãe no amor livre fosse tão longe assim.
– Acho que ela escolheu o nome pela sonoridade. É um belo nome – disse Elliot.
– Eu poderia pensar em uns cinco ou seis melhores. Não, seu descuido por este primeiro dever maternal sugere que ela era indiferente a essa parte da vida.
– Você falava bem dela na época em que fui seu aluno e a Srta. Blair a idolatra. Vamos calar as observações que ela possa ouvir.
– Ela ainda está deitada e não vai ouvir minhas alusões à falta de impulsos femininos de sua mãe, entretanto sua repreensão faz sentido.
De fato, ela ainda estava na cama, dormindo profundamente. Elliot tinha ido até lá e espiado antes de descer. As portas do quarto dela ainda estavam abertas, como uma forma de contradizer as últimas palavras dele. Veja como você não é nem um pouco perigoso para mim. Sua honra e a lei me protegem do pior e meu autocontrole cuidará do resto.
Ele vira um cabelo cor de cobre espalhado pelo travesseiro e uma pele alva enroscada nos lençóis. Uma perna linda e esguia se alongava sobre a roupa de cama. A tentação de entrar lá só para ficar observando-a o tomou, assim como o aborrecimento por vê-la dormindo tão profundamente, algo que ele não tinha conseguido fazer.
Nos últimos tempos, andava pensando nela demais. Ficando com a cabeça nas nuvens por muito tempo. Desejando demais. Achava que a companhia dos amigos e as obrigações do trabalho diminuiriam a importância da presença dela e assim ele voltaria a mente para algo mais normal.
– Está vivendo como um rei aqui, Greenwood – disse, para se distrair das imagens de Phaedra tão etereamente erótica em seu repouso. – As melhorias desde a minha última visita são visíveis.
Matthias ficou radiante.
– Suponho que esteja falando da casa e não da minha companheira, apesar de eu não saber ao certo dizer qual me agrada mais. Trazer as pedras até aqui foi um inferno, mas valeu a pena. Você deveria se juntar a mim, Rothwell. Compre uma mansão antiga e veja como seu dinheiro inglês pode render nesta costa.
– Ele rende porque o lugar é tão inacessível que é preciso navegar milhas até chegar a uma cidadezinha que fica logo ali atrás da montanha. Preciso da vida urbana com mais frequência do que duas vezes ao ano. Contudo, se está feliz em seu isolamento, fico satisfeito por você.
– Não estou nem um pouco isolado. Sempre tenho companhia. Os amigos vêm da Inglaterra, de Roma, de Nápoles e até de Pompeia. Recebi o superintendente do município no mês passado. Ele não se incomodou de subir a montanha em lombo de burro.
– Gostaria que me desse uma carta de apresentação – pediu Elliot. – Quero ver tudo o que escavaram nos últimos anos, não só as atrações abertas para visitantes.
Matthias levantou a sobrancelha, curioso.
– Quer ver os afrescos reveladores das delícias noturnas? A Srta. Blair não vai poder entrar, por mais que eu peça.
– Vou pesquisar outros assuntos. Antes de partir, gostaria que me concedesse alguns minutos para discutirmos o rumo que meu trabalho está tomando.
– Está combinado, então. Amanhã cedo nos trancaremos em meu escritório para falar sobre isso. Sinto falta de dar aulas. Depois me lembro de quão limitados muitos de meus alunos eram e a saudade vai embora.
– Brincar de professor e aluno vai ser muito útil. Vai clarear meus pensamentos. Ah, estou obrigado como cavalheiro a dizer que creio que você tenha entendido mal minha amizade com a Srta. Blair.
– É mesmo? Que pena!
Naquele momento, a dama em questão se juntou a eles. Com seu vestido preto esvoaçante e o cabelo solto, fazia pensar numa linda feiticeira celta. Matthias a convidou para se sentar à mesa. Serviu-lhe café e ficou atrapalhado, o que revelava quanto a companhia dela o provocava.
– Espero que tenha dormido bem em minha humilde casa, Srta. Blair.
– Sua casa é tudo, menos humilde, e dormi muito bem. O som e a brisa do mar são muito relaxantes – assegurou Phaedra, e então virou a cadeira para olhar a cidade. – O que estão fazendo lá embaixo? O que é aquela coisa vermelha perto da água?
– Ah, deve ser o carro para a procissão. Eles devem estar pintando-o. Daqui a três dias é a festa de San Giovanni, São João Batista. É uma grande festa religiosa por aqui. Nenhum barco sai para pescar nesse dia.
– Vai haver uma procissão?
– Uma procissão, uma missa e uma festa. Entre outros rituais, eles colhem nozes nas montanhas para fazer óleo.
– Interessante – disse ela. – Coincide com o solstício. Deve ser outro exemplo de festa pagã da qual os cristãos se apropriaram.
– A Srta. Blair está alcançando uma reputação em estudos mitológicos comparável à da mãe dela em letras românicas – informou Elliot. – Ela publicou um livro sobre o assunto que é muito benquisto.
– Que louvável!
Matthias conseguira falar de forma a diminuir o feito, apesar de admirá-lo.
– Esta data em comum é uma coincidência – continuou ele. – O deus do sol não era uma figura de destaque nas mitologias grega e romana. Apolo é associado a ele, mas o próprio sol, Hélio, desempenha um papel menor. Talvez por haver tanto sol por estas terras, não tenha sido preciso apaziguar esse deus.
– Há muito sol no Egito e, ainda assim, seu deus sol reinava supremo – contrapôs Elliot. – Acho que a Srta. Blair está certa sobre a festa de San Giovanni.
– Talvez – disse Matthias. – E o simbolismo das nozes, o que seria?
Phaedra riu.
– Vou pensar em uma resposta antes de partir, já que o senhor está disposto a ser flexível em suas opiniões.
– Para uma mulher bonita, posso ser completamente flexível, senhorita Phaedra. É meu maior defeito.
Ele olhou para fora da varanda. Um homem se aproximava, vindo por um caminho do norte.
– Eis Whitmarsh, de volta de sua caminhada matinal. Prometi mostrar-lhe um novo tesouro que encontrei. Gostaria de ver minha humilde e querida coleção de artefatos, Srta. Blair?
– Com certeza, Sr. Greenwood.
Ela aceitou sua mão para se levantar. Whitmarsh se juntou a eles ao entrarem na casa.
Elliot estava curioso para ver se Phaedra conseguiria manter a pose de indiferença em relação a ele que assumira nessa manhã. Ela nem sequer enrubescera. Não ficara agitada. Havia notado sua presença de forma indiferente e segura de si. Sua atitude só fez provocar o lado mais obscuro do desejo que o atormentava.
Esse lado agora lhe dizia que ele deveria tê-la seduzido no terraço na noite anterior, como desejara. A ideia fazia mais sentido a cada minuto que passava.
CONTINUA
Um homem que comete um crime precisa encobrir seus rastros, mesmo que eles sejam deixados pelos melhores sapatos que o dinheiro poderia comprar.
Para encobrir os seus, lorde Elliot Rothwell retornou à casa de sua família, em Londres, e se juntou às pessoas recém-chegadas para o baile promovido por seu irmão. Agiu como se houvesse se ausentado por breves instantes para tomar um pouco de ar naquela gloriosa e agradável noite de maio.
Ao cruzar o limiar da porta, começou a cumprimentar os presentes. Belo e alto, o irmão mais novo do quarto marquês de Easterbrook – e também o Rothwell considerado mais amistoso e normal – distribuiu sorrisos a todos, alguns bastante calorosos a certas damas.
Quinze minutos depois, tão suavemente quanto voltara à festa, Elliot puxou assunto com Lady Falrith. Retomou uma conversa que deixara em suspenso duas horas antes e elogiou a dama com tanto tato que ela se esqueceu de que ele havia se ausentado. Em questão de minutos, Lady Falrith parou de se dar conta da passagem do tempo.
Enquanto jogava seus encantos em Lady Falrith, Elliot varria o salão com os olhos à procura do irmão. Não Hayden, que, junto com a esposa, Alexia, era o anfitrião da noite. Estava em busca de Christian, o marquês de Easterbrook.
Os olhares dos dois não se cruzaram, mas o retorno de Elliot ao baile foi notado por Christian. O mais velho se afastou de um círculo de lordes no fundo da sala e caminhou para a porta.
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Elliot dançou uma valsa com Lady Falrith antes de continuar a missão da noite. Fez isso como penitência por estar usando a dama e como um agradecimento sem palavras por sua ajuda involuntária. A noção de tempo de Lady Falrith poderia ser bastante vaga e sua memória, um tanto benevolente. De manhã, ela acreditaria que Elliot havia lhe dispensado atenção a noite inteira e que tinha flertado com ela. Sua autoconfiança seria útil caso algo desagradável acontecesse em relação às atividades de Elliot na cidade naquela noite.
Finda a valsa, ele de novo pediu licença. Ao contrário de Christian, que seguira solitário e direto para a porta, Elliot caminhou pelo salão distribuindo cumprimentos e conversando com todos, até chegar à nova cunhada.
– Está tudo indo bem, não acha? – perguntou ela, seu olhar percorrendo o espaço em busca de confirmação.
– É um triunfo, Alexia.
E, para ela, era mesmo. Um triunfo da personalidade e do temperamento. E talvez um triunfo do amor.
Alexia não era o tipo de mulher que a sociedade esperaria que pudesse se casar com Hayden. Não tinha família nem fortuna. Era tão sensata que nunca aprendera a dissimular, que dirá flertar. Porém, naquela noite ela era a anfitriã no lar de um marquês, com seu cabelo escuro impecavelmente penteado como ditava a última moda e usando roupas igualmente elegantes. A órfã pobre se casara com um homem que a amava como nunca amara antes.
Elliot acreditava que aquele casamento daria certo. Alexia cuidaria para que isso acontecesse. A história já provara que o amor era uma emoção perigosa para os homens da família Rothwell. Contudo a sensata e prática Alexia saberia usar o amor para controlar o perigo. Elliot suspeitava que ela já dominara a fera várias vezes.
Ele se uniu a ela na admiração do sucesso da noite. Em um canto distante, uma mulher pequena de pele muito clara era o centro das atenções. Um penteado adornado de plumas em abundância valorizava seu cabelo louro. Ao mesmo tempo, ela se mantinha vigilante na atenção que uma bela jovem recebia dos rapazes ali por perto.
– O triunfo é seu, Alexia, no entanto, creio que minha tia pretende levar o troféu desta temporada de caça.
– É compreensível a felicidade de sua tia Henrietta por apresentar a filha à sociedade. Dois nobres vinham fazendo galanteios a Caroline nos últimos tempos. Mas ela está irritada comigo hoje porque não convidei um deles para o baile, apesar de ela haver ordenado que eu o fizesse.
Elliot estava pouco interessado nos motivos de irritação da tia. Na lista de convidados, entretanto, tinha todo o interesse.
– Não vi a Srta. Blair, Alexia. Nenhum vestido preto. Nenhum cabelo solto. Hayden a proibiu de convidá-la?
– De jeito nenhum. Phaedra está no exterior. Ela embarcou há cerca de quinze dias.
Ele não queria parecer curioso demais, mas...
– No exterior, você disse?
Os olhos violeta dela se suavizaram, divertindo-se. Voltou toda a sua atenção para ele, o que, considerando o assunto em pauta, não era algo que ele desejasse.
– Primeiro, Nápoles, depois, uma excursão ao sul. Eu avisei a ela que você costuma dizer que não é muito sensato visitar a península Itálica no calor do verão, mas ela queria investigar os rituais e festividades da estação.
Alexia inclinou a cabeça como se fosse confidenciar um segredo.
– Acredito que o falecimento do pai a afetou mais do que ela admite. O último encontro que tiveram foi muito emotivo. Phaedra ficou bastante abalada. Acho que fez a viagem para se animar um pouco.
Ele não duvidava de que se encontrar com o pai em seu leito de morte fosse algo bastante emotivo. Ele mesmo ficara muito consternado ao perder o pai. Nessa noite, porém, estava mais interessado no paradeiro da Srta. Blair e em assuntos discutidos com o pai dela antes da despedida final.
– Se souber onde ela vai se hospedar em Nápoles, posso fazer-lhe uma visita quando eu for, caso ela ainda esteja por lá.
– Ela deixou o endereço do local onde pretendia ficar. Foi indicação de um amigo. Se Phaedra ainda não tiver voltado quando você for, ficarei feliz se puder visitá-la. A independência dela às vezes beira o descuido, e isso me preocupa.
Elliot duvidava de que Phaedra Blair gostasse de ter alguém preocupando-se com ela. Mas Alexia se preocupava de qualquer forma.
– Ai, meu Deus! – murmurou Alexia.
Elliot se virou e viu o motivo do suspiro da cunhada. Henrietta vinha na direção deles, com suas plumas esvoaçantes e seus olhos sonhadores e brilhantes lampejando de tanta determinação.
– Acho que ela está atrás de você – sussurrou Alexia. – Fuja enquanto é tempo ou ela vai pegá-lo para reclamar. Easterbrook permitiu que eu recepcionasse os convidados do baile sem o consentimento dela. Henrietta acredita que o fato de morar nesta casa a torna sua dona.
Elliot era mestre em sair à francesa. Quando a tia alcançou seu destino, ele já se fora havia muito tempo.
Depois de pegar um atalho pelo corredor dos criados e dar uma corrida subindo as escadas dos fundos, Elliot se aproximou dos aposentos de Christian. Entrou na sala de estar e encontrou o irmão esticado em uma cadeira no canto.
O olhar penetrante que Christian lhe lançou deixou claro que sua mente não estava nem de longe tão relaxada quanto o corpo.
– Não encontrei – disse Elliot, respondendo à pergunta que aqueles olhos escuros faziam. – Se estiver na casa ou no escritório dele, está muito bem escondido.
Christian expirou com força. O som que fez demonstrava seu aborrecimento. O assunto em questão vinha cerceando sua liberdade de passar os dias fazendo o que bem entendesse. Elliot não fazia ideia de quais atividades seriam essas. Na verdade, ninguém fazia.
– Ele deve ter queimado tudo ao saber que estava à beira da morte – sugeriu Elliot.
– Merris Langton demonstrava ter uma personalidade tal que é improvável que pensasse em poupar os outros, mesmo à beira da morte.
Christian enfiou um dedo por baixo de sua gravata atada com perfeição e deu um puxão para soltá-la. Sua aparência estava impecável naquela noite, tudo nele demonstrava se tratar de um lorde. Os tecidos de suas vestimentas exibiam a qualidade superior em cada fio. Contudo o gesto ao desatar a gravata mostrava seu desconforto em relação à formalidade da noite e o longo cabelo escuro preso em um rabo de cavalo indicava seu lado excêntrico.
Elliot imaginou que o irmão estaria louco para se desvencilhar daqueles símbolos formais da civilização e se refestelar no robe exótico que sempre usava. O mais comum era encontrá-lo descalço em seus aposentos, não usando meias de seda e sapatos. No momento, entretanto, as únicas indicações de seu jeito informal em casa eram a sobrecasaca desabotoada e a forma lânguida como seu corpo alto se moldava ao forro da cadeira.
– Você verificou se havia tábuas soltas no piso ou outros esconderijos? – perguntou Christian.
– Cheguei a arriscar ser descoberto. Permaneci por tempo de mais nos dois prédios e um guarda estava passando quando saí do escritório no centro financeiro. Estava escuro, não havia luz perto da porta, mas...
Sua descrição da aventura sugeria mais receio do que ele de fato tivera. Elliot acreditava que, em certas circunstâncias, não havia opção a não ser infringir a lei. Só nunca esperara reagir de forma tão fria e indiferente quando se visse numa dessas situações.
– Se alguém perguntar, você ficou no baile a noite toda – disse Christian. – Langton possuía uma pequena editora que publica textos revolucionários. Também era um homem com certo gosto pela chantagem, como descobrimos. Foi uma pena ele ter morrido antes que eu pudesse pagar-lhe. Agora o manuscrito de Richard Drury está sabe lá Deus onde e sua mentira sórdida sobre nosso pai ainda pode vir a público.
– Vou garantir que isso não aconteça.
– Você acha que alguém pode ter pegado o manuscrito antes de você? É provável que eu não tenha sido a única pessoa que Langton abordou.
– Não vi indícios de que alguém já tivesse mexido nas coisas dele. Nem mesmo seu advogado ou testamenteiro. Ele acabou de ser enterrado; foi esta tarde. Não acho que o manuscrito estivesse nem na casa nem no escritório quando ele morreu.
– Esse é um obstáculo muito inconveniente.
– Inconveniente, mas não intransponível. Vou descobrir o manuscrito e o destruirei, se necessário.
A atenção de Christian focou nele.
– Você fala com muita confiança. Sabe onde está o maldito manuscrito, não sabe?
– Faço ideia. Se estiver certo, vamos acabar com isso em breve. Mas pode haver custos para você.
– Pois pagarei. Richard Drury foi membro do Parlamento e, apesar de suas ideias extremistas, um intelectual respeitado. Se suas memórias incluírem tal acusação contra meu pai, muitas pessoas vão acreditar nele.
Vão acreditar porque a acusação reforça o que já creem ser verdade.
Elliot não verbalizou a resposta, mas aquela ideia rondava sua cabeça desde que soubera que Merris Langton planejava publicar as memórias de Richard Drury. O livro incluiria segredos e intrigas que repercutiriam mal sobre a reputação de muitos poderosos, tanto do passado quanto do presente. A acusação que supostamente existia contra o pai deles combinava bem demais com o que a sociedade já pressupunha sobre seu casamento.
Porém, a sociedade estava errada em relação à maior parte do caso. O pai lhe explicara isso em um momento em que os homens não mentem.
Você era o favorito dela. Ela o queria para si e eu permiti, já que você era o caçula. Era um alívio vê-la às vezes se lembrar de que era mãe. Só que agora estou morrendo e mal o conheço. Não espero amor ou pesar de você, mas não vou deixar que pense que sou um monstro, como é provável que ela tenha dito.
– Onde você acha que o manuscrito está? Mantenha-me informado de cada passo, Elliot. Se não estiver fazendo progressos, cuidarei de tudo sozinho.
Só não estava claro como Christian faria isso. Essa incerteza levara Elliot a assumir a tarefa. Seu irmão podia ser cruel ao silenciar ecos do passado.
– Apesar de não ter achado o manuscrito, descobri documentos financeiros no escritório de Langton. A editora está em apuros. Os documentos referentes à propriedade dela foram de grande valia. Richard Drury foi sócio desde o início. Sem dúvida foi esse o motivo pelo qual Langton recebeu suas memórias.
Christian achou isso interessante.
– Teremos que abordar o advogado de Langton e ver quem vai ficar com tudo agora.
– Os documentos indicam que a parte de Drury foi deixada para a única filha. Portanto, ainda há alguém vivo para lidar com o assunto. E provavelmente foi cúmplice no esquema de chantagem desde o início.
– Única filha? Maldição!
Christian apoiou a cabeça no encosto da cadeira, fechou os olhos e emitiu um resmungo exasperado.
– Não me diga que é Phaedra Blair. Que inferno!
– Sim, Phaedra Blair.
Christian xingou novamente.
– É bem do estilo do Sr. Drury, com suas ideias radicais e vida não convencional, deixar para uma mulher, sua filha bastarda, a sociedade num negócio – afirmou, depois desviou o olhar para baixo e prosseguiu: – É claro, ela deve ficar feliz com o dinheiro se a editora estiver em apuros. Talvez até agradeça por ter um motivo para não publicar as memórias do pai. Com certeza os textos abordam assuntos pessoais sobre ela e a mãe.
– É possível.
Mas Elliot não acreditava que as negociações seriam tão simples assim. A Srta. Blair era uma complicação inoportuna. Ela poderia ver na publicação das memórias e seus segredos uma possibilidade de ganhar um bom dinheiro e salvar a editora. Ou, pior, poderia acreditar que seus ideais de justiça social seriam fortalecidos quando ela revelasse o calcanhar de aquiles da sociedade culta.
– O livro dela foi publicado por Langton, não? Está na biblioteca aqui, em algum lugar. Confesso que nunca o li. Não tenho muito interesse em mitologia e folclore, que dirá em estudos que misturam ambos – confessou Christian.
– Ouvi dizer que a base teórica é mais do que respeitável.
Elliot dava a mão à palmatória, quando era o caso.
– Ela herdou a inteligência dos pais, junto com a indiferença pelas convenções sociais e pelas regras de conduta.
– Então, nas atuais circunstâncias, nada do que lhe foi legado é boa notícia para nós.
Christian se levantou, abotoou o casaco e verificou se o colarinho estava arrumado. Ia voltar ao baile.
– É melhor não contar a Hayden sobre isso. Ele é muito protetor em relação à esposa, e a Srta. Blair é amiga dela. Seria melhor que eles continuassem na ignorância, para o caso de você ser obrigado a agir mais rispidamente.
– A Srta. Blair zarpou para Nápoles há duas semanas. Farei a transação com ela antes que Alexia tenha oportunidade de vê-la.
– Vai segui-la até lá para isso?
– Eu pretendia ir a Pompeia no outono, de qualquer forma. Quero estudar as recentes escavações para meu próximo livro. Só vou antecipar a viagem.
Andaram lado a lado até a escada. A cada degrau, os acordes musicais iam ficando cada vez mais altos e o burburinho de vozes enchia os espaços majestosos. Ao descerem para a alegre turba, Elliot observou a expressão distante e distraída do irmão.
– Não se preocupe, Christian. Vou me certificar de que a acusação contra nosso pai nunca seja publicada.
O rápido sorriso de Christian não deixou sua expressão mais leve.
– Não duvido de suas habilidades ou de sua determinação. Não era sobre isso que estava pensando neste exato momento.
– Então era sobre o quê?
– Estava pensando em Phaedra Blair e imaginando se existe um homem na face da Terra que consiga, como você disse, fazer transações com ela.
Elliot seguia no escuro, iluminando o caminho com a chama da pequena lamparina que carregava.
Os convidados tinham ido embora e os criados estavam dormindo. Hayden e Alexia provavelmente gozavam das delícias do leito conjugal em sua casa na Hill Street. Christian ainda devia estar acordado, mas não deixaria seus aposentos pelos próximos dias.
A luz fraca se refletia nas molduras douradas na galeria. A lua lançava um pouco mais de luminosidade através dos janelões que vazavam outra parede. Elliot parou na frente de dois retratos. Não tinha descido no intuito de ir àquele cômodo, mas seu objetivo tinha tudo a ver com o homem e a mulher imortalizados naquelas imagens.
O artista tinha usado fundos semelhantes para os dois quadros, como se uma pintura desse continuidade à outra. Era bom ver seus pais juntos assim, duas metades de um todo, mesmo que a unidade implícita fosse mentira. Podia contar nos dedos o número de vezes que ao menos vira os dois no mesmo ambiente.
Não vou deixar que pense que sou um monstro, como é provável que ela tenha dito.
Seu pai se enganara nessa avaliação. Exceto por um único desabafo, a mãe nunca falara com ele sobre a separação e seus motivos. Ela quase não falava nada nas horas que passava com Elliot na biblioteca em Aylesbury.
O medo que sentira do pai vinha dele mesmo, não viera da mãe. Mas apreciara os raros momentos de atenção que recebera daquele pai que parecia não se lembrar de que tinha três filhos, não apenas dois.
Continuou sua caminhada para a biblioteca pensando na longa conversa que tivera com o pai, a última e única da vida inteira. Aprendera verdades importantes naquele dia, sobre seres humanos e paixões, sobre orgulho e alma e sobre a forma como uma criança pode não enxergar direito o mundo à sua volta.
Tinha chegado ao fim dessa conversa já sem medo. Após aquelas confidências, sentira-se como filho de seu pai pela primeira vez na vida.
Correu a lamparina pelas lombadas de couro dos livros na biblioteca. Seguiu para a estante do canto, buscando a prateleira mais baixa. Depois da morte da mãe, havia trazido para ali os livros pessoais dela, os que ele a vira lendo em seu exílio em Aylesbury.
Não sabia por que trouxera aqueles livros para Londres. Talvez assim uma parte dela permanecesse onde a família costumava se reunir. Seguira esse impulso muito antes da conversa com o pai, um ato de rebeldia na tentativa de finalmente pôr fim à separação dela de suas vidas.
Ninguém nunca notara o acréscimo desses livros às centenas de volumes. Bem embaixo, em um canto obscuro, nem o fato de suas encadernações não combinarem com as dos outros tinha importância.
Passou o dedo por um grupo de obras não encadernadas. Finas e pequenas, eram as brochuras que pertenceram à mãe. Retirou-as da estante, espalhou-as pelo chão e aproximou a lamparina de seus títulos.
Viu o que queria. Um ensaio contra o casamento, escrito trinta anos antes por uma famosa intelectual. A autora vivera de acordo com as próprias crenças. Chegara a recusar uma proposta de casamento do amor de sua vida, Richard Drury, mesmo estando grávida.
Ele carregou a brochura e a lamparina até a estante onde Easterbrook arrumara as novas aquisições da biblioteca. Pegou uma dissertação sobre mitologia que ainda exalava cheiro de couro novo.
Levou os dois livros para seu quarto e começou a lê-los. Estava se preparando para enfrentar Phaedra Blair.
CAPÍTULO 2
– Signora, não acho que eu deva pagar por estes cômodos se nem mesmo quero usá-los.
Phaedra conseguiu expressar sua objeção juntando seus conhecimentos de latim aos poucos termos que aprendera do dialeto napolitano. Esperava que, ainda que as palavras não fossem suficientes, seu tom comunicasse seu desacordo em relação à conta que a signora Cirillo lhe apresentara.
Recebeu uma resposta longa e raivosa, despejada de forma igualmente eloquente. A signora Cirillo não se importava se Phaedra tinha ficado nos cômodos contra sua vontade. Nem gostava de ter guardas reais posicionados do lado de fora de sua hospedaria modesta porém respeitável. Queria ser paga e tivera a ousadia de acrescentar um valor referente ao incômodo que os guardas representavam para os outros hóspedes.
Apesar de tentada a dizer à mulher que mandasse aquela conta para o rei, Phaedra se controlou e foi buscar as moedas no quarto.
Fora mesmo um erro gastar uma semana naquela cidade antes de partir para as ruínas. Se sua reclusão durasse muito tempo, não teria dinheiro para comprar a passagem de volta para a Inglaterra, que dirá continuar sua missão por ali. A ideia era fazer uma viagem curta ao exterior. Não viera a passeio, afinal. Estava lá por um motivo e tinha assuntos urgentes a tratar quando voltasse para casa.
Amansada por mais uma semana, a signora Cirillo foi embora. Phaedra voltou para onde estava sua bagagem e refletiu sobre a situação. Procurou em sua valise e encontrou um xale preto. Desfez o nó que havia em uma de suas pontas, soltando o objeto escondido nele.
Uma joia grande caiu em seu colo e seus matizes brilharam na pouca luz do quarto. Pequenas imagens finamente entalhadas se destacavam em branco-perolado contra o fundo vermelho-escuro. Retratavam uma cena mitológica do deus Baco e seu séquito.
Fora o objeto mais caro que a mãe lhe deixara ao morrer. Para garantir o futuro de minha filha, deixo-lhe meu único objeto de valor, meu camafeu de ágata, uma antiguidade de Pompeia, ela havia acrescentado à mão ao testamento.
Phaedra nunca tinha pensado muito sobre aquele aditamento nos seis anos que se passaram desde a morte da mãe. Conservava com carinho aquela peça, assim como tudo o que lembrava a brilhante e extraordinária Artemis Blair. O valor da joia a deixava mais tranquila em relação a seu futuro financeiro, era bem verdade, mas ela esperava nunca ter que vendê-la. Agora, no entanto, a frase belamente escrita pela mãe levantava perguntas que exigiam respostas.
Amarrou o camafeu de volta no xale, guardou-o e retornou para a sala de estar. Abriu as persianas do janelão que dava para oeste. A baía pareceu muito azul a distância e a ilha de Ischia podia ser avistada em meio à névoa longínqua.
Uma brisa marinha penetrou no cômodo, esvoaçando alguns de seus cachos. A voz do guarda também chegou até ela. Phaedra debruçou-se na janela do terceiro pavimento para ver com quem ele conversava.
Viu alguém de cabelos escuros bem diante do capacete de metal e da imponente bainha da espada do guarda. O cabelo tinha um corte da última moda e se movia de forma romântica ao soprar da brisa. Pertencia a um homem bem mais alto do que o guarda, de ombros largos e que parecia usar uma sobrecasaca cara. As botas eram do tipo visto nos pés mais elegantes de Londres. A julgar pelos trajes, tratava-se de um cavalheiro inglês.
Ela apurou o ouvido para escutar a conversa. Sentiu-se surpreendentemente reconfortada por haver alguém de seu país ali, mesmo que só estivesse pedindo instruções de como andar pela cidade nas ruas mais escondidas do Bairro Espanhol.
Ela considerou a hipótese de chamá-lo e pedir ajuda. Não tinha certeza se os ingleses ali, em Nápoles, sabiam que ela fora presa. Mas também duvidava de que dessem a mínima caso soubessem. Os que a conheciam não aprovavam seu comportamento nem queriam sua companhia. Phaedra normalmente também não apreciava a companhia deles, mas sua inabilidade de se mesclar à sociedade inglesa ali tinha lhe criado problemas muito antes de seu inesperado encarceramento.
As coisas pareciam não ir bem para o inglês: os gestos do guarda deixavam claro que ele se desculpava respeitosamente. Estou cumprindo meu dever. Eu colaboraria se pudesse, mas...
O inglês começou a se afastar. Caminhou para o outro lado da calçada e parou. Olhou para cima, franzindo de leve as sobrancelhas perfeitas. Seus olhos escuros alertas percorreram a fachada do prédio.
Phaedra sentiu o coração ficar mais leve – e não só porque o homem tinha um rosto que faria a pulsação de qualquer mulher acelerar. Ela o conhecia. Era o famoso historiador lorde Elliot Rothwell que estava lá embaixo. Alexia dissera que ele visitaria Nápoles no outono, contudo parecia que ele antecipara a viagem.
Ela se inclinou mais para fora da janela e acenou. Lorde Elliot respondeu com um leve movimento de cabeça. Ela levou um dedo aos lábios e apontou para o guarda. Depois gesticulou indicando os fundos do prédio.
Lorde Elliot se afastou fingindo estudar a arquitetura das construções erguidas ao longo da rua. Phaedra fechou a persiana e correu para o outro lado do apartamento. Abriu a janela e olhou para o pequeno jardim embaixo.
Lorde Elliot levou um tempo para chegar lá. Por fim, ela o viu entrar pela extremidade oposta, vindo pelo portão que dava para a ruela fétida que separava os imóveis. Ele seguiu sem nenhuma hesitação. Caminhou na direção dela, alto e confiante, como um homem acostumado a fazer o que bem entendia. Mesmo que a natureza não o houvesse agraciado com um rosto tão bonito e angular, só seu jeito relaxado de andar e seus modos seguros já causariam forte impressão.
Ela ficou tão feliz por ver alguém conhecido que nem se importou por aqueles olhos escuros a avaliarem tão minuciosamente. Percebera um olhar semelhante por sobre o sorriso manso de lorde Elliot quando se conheceram, no casamento de Alexia. Era a reação de um homem que a achava vagamente interessante, mesmo desaprovando sua aparência, suas crenças, sua história, sua família, seu... tudo.
– Srta. Blair, estou aliviado em vê-la bem-disposta e em boa forma.
Outro daqueles sorrisos mansos acompanhou a saudação.
– Também estou aliviada em vê-lo, lorde Elliot.
– Alexia me deu o nome de sua hospedaria e me pediu que viesse visitá-la, para verificar se não precisava de nada.
– Foi muita gentileza dela. Lamento não poder recebê-lo adequadamente, agora que chegou.
– Parece que não pode me receber de forma nenhuma.
Era bem característico dele fazer algumas gracinhas antes de entrar no assunto.
– Imagino que esteja surpreso, até mesmo chocado, por minha prisão.
– Sou um homem que raramente se choca e quase nunca se surpreende. Contudo admito estar um tanto curioso. A senhorita só está em Nápoles há poucas semanas. A maioria das pessoas levaria pelo menos um ano para acumular crimes suficientes para merecer tal punição.
Ele estava se divertindo com a situação? Naquelas circunstâncias, Phaedra achou a conversa inteligente de lorde Elliot bastante inadequada.
– Não houve crime nenhum, só um pequeno mal-entendido.
– Pequeno? Srta. Blair, há um membro da guarda real na sua porta.
– Não estou convencida de que foi o rei que o colocou lá. Um dos funcionários do tribunal fez isso comigo. Ele é um homenzinho abominável, com poder em demasia e pouca inteligência.
Lorde Elliot cruzou os braços, o que o fez parecer crítico e poderoso. Ela odiava quando os homens assumiam essa postura com ela. Era a personificação de tudo o que havia de errado com a metade masculina da humanidade.
– O guarda mencionou um duelo – disse lorde Elliot.
– Como é que eu iria adivinhar que esses homens fossem tão possessivos a ponto de tentarem se matar porque uma mulher conversou com...
– Espadas e adagas. O guarda disse que houve sangue.
– Marsilio é um jovem artista. Não passa de um garoto. Teimoso, porém muito gentil. Eu não fazia ideia de que iria interpretar erroneamente a nossa amizade a ponto de desafiar Pietro simplesmente porque passeei com ele às margens da baía.
– É lamentável para a senhorita que Marsilio, o garoto teimoso e gentil, seja parente do rei. Ele quase foi morto no duelo. Felizmente, o guarda disse que ele irá sobreviver.
– Ah, graças a Deus! Apesar de as pessoas exagerarem bastante por aqui. Pelo que entendi, ele não ficou muito ferido, ainda que qualquer ferimento possa se agravar neste clima. Fiquei muito pesarosa com o ocorrido. Eu disse isso. Expressei meu arrependimento e minhas desculpas falando bem devagar no meu idioma e também em latim, para ser bem entendida, mas o homenzinho intrometido, odioso e estúpido não me ouviu. Ele até me acusou de ser uma meretriz, o que passou de todas as medidas. Expliquei que nunca tirei nem um centavo de homem nenhum.
– A senhorita declarou sua virtude e honra ou disse ao homenzinho intrometido e estúpido que acha que as mulheres devem dispor de seu corpo livremente?
Ela não gostou nada do olhar profundo e sagaz dele ao expressar essa ousada insinuação. Se não estivesse em uma situação tão ridícula, Phaedra lhe diria que era, sim, uma mulher pouco convencional, mas isso não dava a ele o direito de ser rude. No momento, contudo a prudência tinha que falar mais alto.
– Expliquei minha crença no amor livre, o que é diferente de dispor do corpo livremente, lorde Elliot. Tentei instruí-lo. Ficaria feliz em fazer o mesmo pelo senhor, se algum dia tivermos um encontro mais oportuno.
– Que proposta tentadora, Srta. Blair. Contudo espero que as reflexões filosóficas tenham ficado esquecidas em sua cela. Seria melhor ter se declarado uma cortesã. Aqui se sabe tudo sobre esse assunto. Por outro lado, conceitos radicais sobre o amor livre, bem...
O gesto dele com as mãos disse tudo. O que esperava, mulher? Você vive fora das regras sociais e até a sua aparência convida a mal-entendidos.
Mais uma vez ela engoliu o que seu instinto lhe mandava dizer. Discutir só serviria para afastá-lo, e ela queria muito que ele ficasse um pouco mais. Não se dera conta da própria solidão ali e da tristeza que o isolamento lhe causava. Só ouvir o próprio idioma já era um alento.
– Acha que vão me soltar logo?
De novo o mesmo gesto com as mãos, só que agora acompanhado de um dar de ombros.
– Não há constituição aqui. Nem se julgam os casos observando precedentes, como na Inglaterra. Na verdade, não existe um direito codificado, é uma monarquia à moda antiga. A senhorita tanto pode ser libertada amanhã como ser mandada de volta à Inglaterra, ou levada a julgamento, ou permanecer nesses aposentos por anos, ao bel-prazer do rei.
– Anos! Isso seria uma barbaridade.
– Acho que não vai chegar a esse ponto. Contudo pode levar alguns meses até que seu homenzinho odioso e estúpido perca o interesse no caso.
Ele olhou para a fachada do prédio em frente e depois para o portão do jardim.
– Srta. Blair, não posso mais ficar escondido neste jardim, ou também correria o risco de me tornar hóspede dos guardas do rei. Tomarei providências para que lhe mandem comida e deixarei uma quantia em dinheiro para pagar pelo apartamento, pois com certeza continuarão a lhe cobrar o aluguel. Também vou pedir que um adido inglês venha, de tempos em tempos, verificar se está tudo bem.
Meu Deus, ele estava indo embora! Talvez ela envelhecesse naqueles cômodos, ou até morresse de fome quando o dinheiro acabasse.
Ela não era o tipo de mulher que dependesse de um homem para sustentá-la ou protegê-la. Além do mais, lorde Elliot não havia conquistado seu apreço durante a conversa. Contudo estar diante de um futuro incerto a ajudou a superar sua aversão natural a pedir ajuda àquele homem.
– Lorde Elliot – chamou, fazendo-o parar após ele ter dado três passos na direção do portão do jardim. – Lorde Elliot, os adidos ingleses não estão interessados em minha situação. Pergunto-me se o senhor consideraria a hipótese de interceder em meu favor. Tenho certeza de que o homenzinho odioso ficaria muito impressionado com suas ligações familiares e sua fama como historiador. Se pedisse em meu nome, talvez ajudasse.
A expressão dele foi simpática, porém nada encorajadora.
– Sou o caçula. Minha posição é bem menos importante aqui e minha fama pouco conta. Esse tribunal não tem motivo algum para me conceder favores.
– Estou certa de que será mais bem recebido do que eu jamais conseguiria. Pelo menos, conhece o idioma deles. Vi-o conversar com o guarda.
– Não sou fluente o bastante no dialeto para defendê-la bem.
– Ficaria grata por qualquer tentativa de sua parte.
Que fim levara o cavalheirismo? Não acreditava nele, mas gente do tipo de Elliot Rothwell, sim. Ela era uma donzela em perigo e esse cavalheiro deveria se prontificar a ajudá-la, não ficar parado no meio do jardim, com aquele jeito de quem adoraria nunca tê-la avistado na janela.
Ele refletiu um distante, analisando o pedido. Ela sentiu seu sorriso congelar até virar uma careta suplicante.
– Não estamos na Inglaterra, Srta. Blair. Mesmo que eu tenha êxito, talvez a senhorita não aprecie as condições impostas por eles em troca de sua liberdade.
– Vou me esforçar e acatar quaisquer condições, ainda que reze para que não me ponham em um navio de volta para a Inglaterra de imediato. Vim até aqui e preciso, na verdade quero, visitar as escavações de Pompeia. Antes de ir embora. É um antigo sonho meu.
Ele parou para pensar por um longo tempo. Seu suspiro deixou claro que sua decisão ia contra o próprio bom senso.
– Prometi a Alexia que cuidaria do seu bem-estar, então farei o que puder. Encontrar o homem que ordenou sua detenção pode não ser tarefa fácil. Qual é o nome dele? Preferia não ter que andar pelos corredores do tribunal perguntando por um homenzinho odioso e estúpido. Ele poderia ouvir a descrição, o que não nos ajudaria em nada. Além disso, ela provavelmente se aplica a muitos outros funcionários da Justiça.
Ele havia aceitado seu pedido não por um desejo genuíno de ajudá-la, mas para cumprir o que considerava seu dever. Mas Phaedra Blair estava desesperada demais para entrar em detalhes a respeito de suas motivações.
– O nome dele é Gentile Sansoni. Que cara é essa? O senhor o conhece?
– Já ouvi falar dele. Sua autodefesa caiu em ouvidos moucos, Srta. Blair. Sansoni não fala inglês nem latim. Ele é um legítimo napolitano, o que não é boa notícia.
Certamente Phaedra Blair chamara a atenção de Gentile Sansoni, capitão da polícia secreta do rei. É claro que, com seu longo cabelo ruivo esvoaçando ao sol, solto e descoberto, ela chamaria a atenção de toda a Nápoles.
Elliot ouvira falar sobre o algoz da Srta. Blair durante sua última visita à cidade, fazia três anos. Sansoni fizera sua fama a custa de sangue, em 1820, quando o breve governo republicano fora violentamente vencido e a monarquia, restaurada.
Diziam que Sansoni era responsável pelo desaparecimento inesperado de carbonários, ou constitucionalistas, e também que abusava de sua autoridade em setores que tinham pouco a ver com política. Não era o tipo de homem que se impressionaria com um cavalheiro inglês, e Elliot também não acreditava que encarasse de forma positiva uma tentativa sua de recorrer a seus superiores para mudar a decisão tomada pelo capitão.
Elliot não poderia negociar sobre o livro do pai da Srta. Blair enquanto ela permanecesse presa, por isso aceitara de imediato tentar libertá-la. Só tinha fingido hesitar para fazer com que ela se sentisse em dívida.
Também se deixara levar pela desprezível tentação de fazer com que aquela defensora declarada da independência feminina implorasse pela ajuda de um homem. De alguma forma, pelo simples fato de existir, a Srta. Blair conseguia fazer com que um homem se sentisse desafiado. Os instintos dele tinham reagido à altura.
Contudo o dever falara mais alto e, no dia seguinte, ele se dispôs a fazer o que estivesse a seu alcance por ela. Sansoni não se deixaria impressionar por cavalheiros ingleses, mas talvez pelo menos ouvisse um capitão da Marinha britânica. A corte de Nápoles ainda reverenciava a memória de Nelson, e Elliot suspeitava que Sansoni veria o herói inglês quase como um irmão que um dia, muito tempo antes do rápido governo republicano, ajudara a impedir outra tentativa de golpe contra o rei.
Sempre havia navios britânicos no porto de Nápoles, e Elliot foi visitar um cujo capitão ele conhecia. Dois dias depois de se encontrar com a Srta. Blair, Elliot levou Augustus Cornell – que vestia seu traje militar completo e impecável – ao longo de quilômetros de corredores de palácios até encontrarem o covil de Gentile Sansoni.
Como era apropriado a um funcionário da Justiça que trabalhava nas sombras, a sala de Sansoni se localizava nos fundos do prédio e num andar tão baixo que, a caminho dela, as escadas passavam de fino mármore para simples travertino. Apesar da localização, Sansoni a dotara de móveis suntuosos o suficiente para parecer importante. Arrumara um local grande o bastante para suas ambições, mas o teto baixo e a falta de janelas davam ao lugar um aspecto cavernoso.
– Pode deixar que eu falo – disse Cornell, com seu rosto suave e pálido que expressava a formalidade dos homens de sua patente. – Já tive que tratar com ele antes e todo cuidado é pouco.
– Sabe falar a língua?
O napolitano era um dialeto bem diferente daquele falado em Roma ou em Florença. Mesmo tendo muito de latim, que Elliot conhecia, o lorde não saberia o bastante dele para não ficar em desvantagem ao usá-lo ali.
– Esperemos que o suficiente. Fique aqui. Agirei como mediador, física e simbolicamente.
Elliot ficou perto da porta, como ordenado. Cornell atravessou a sala e se aproximou do homenzinho moreno sentado na larga mesa na outra extremidade. A descrição que a Srta. Blair fizera de Sansoni fora perfeita. Ele parecia mesmo repugnante e odioso e, naquele momento, muito desconfiado. Suas sobrancelhas negras encobriam os olhos de águia amendoados, tão comuns naquela região.
Sansoni ofereceu vinho, fizeram um brinde e depois entabularam uma conversa. Por fim, Cornell caminhou de volta até Elliot.
– Há uma complicação – disse ele, baixo. – Esse amigo da Srta. Blair, Marsilio, o que levou a pior no duelo, é parente distante do rei e recebe os favores da família real por conta de seus dotes artísticos. Também é um rapaz com quem acho que Sansoni espera casar uma de suas parentas, consolidando assim sua própria posição. Mas esse sonho é improvável de se realizar devido à origem humilde de Sansoni. Ainda assim, ele fez do bem-estar do rapaz sua missão pessoal.
O capitão aproximou o rosto do de Elliot para poder falar ainda mais baixo.
– Também creio que o rei não tenha conhecimento desse duelo. Mencionei várias vezes o título nobre do seu irmão e suspeito que Sansoni só me recebeu por temer que um marquês britânico possa levar o assunto diretamente ao rei.
Um marquês com certeza poderia, mas isso demoraria meses.
– Pode conseguir a libertação da Srta. Blair?
– Duvido muito. O duelo não foi tudo. O rei possui uma coleção de arte e o acesso a uma de suas salas é proibido a mulheres, pois contém imagens antigas de natureza carnal. A Srta. Blair convenceu o jovem Marsilio a deixá-la entrar lá. Agora é acusada de invasão de domicílio e de gostar de arte licenciosa. Sansoni também disse que ela é uma cortesã. Apesar de Nápoles ser infame por permitir que as mulheres exerçam atividades desse tipo, a Srta. Blair se esgueirou por lugares que a corte frequenta...
– Ela não é cortesã. Ponho a minha mão no fogo. Ela é incomum, é verdade. Excêntrica. Uma livre-pensadora, porém honesta. É claro que Sansoni sabe que pessoas assim existem. Explique isso a ele.
– A função desse homem é deter livres-pensadores e ele a cumpre com deleite. Ainda assim, vou tentar novamente.
Mais uma vez Cornell atravessou a sala. A conversa foi mais breve dessa vez. Os olhos negros de Sansoni buscaram Elliot e o examinaram dos pés à cabeça.
Cornell voltou.
– Ele falou mais rápido dessa vez e não compreendi tudo. Mas perguntou com que autoridade você e sua família se intrometem neste caso. Exige saber se você tem parentesco ou alguma outra relação com ela.
Elliot não tinha qualquer relação com ela, nem autoridade sobre o caso, porém não poderia admitir isso.
– Diga-lhe que ela é uma boa amiga da família. Easterbrook a recebe como a uma irmã.
Essa mentira deslavada nunca seria refutada. Christian faria o mesmo naquelas circunstâncias.
– Diga que tentamos exercer nosso controle sobre ela, contudo ela fez essa viagem inesperada a Nápoles para fugir da nossa influência. Vim para cuidar de seu bem-estar e posso garantir que não vai haver mais problemas. Se ele der a entender que aceita suborno, diga-lhe que pagarei para tê-la de volta.
A conversa de Cornell com Sansoni ficou mais animada dessa vez. O napolitano gesticulava muito, numa rápida sucessão. Quando Cornell voltou com seu relatório, parecia um pouco preocupado.
– Temo que tenha havido um mal-entendido. E que esclarecê-lo possa trazer outras complicações. Culpo minha falta de fluência no idioma por essa infeliz reviravolta nas negociações – disse ele.
– Mas ele parece bem mais calmo e amigável. Qual foi o mal-entendido?
Cornell enrubesceu.
– Não sei exatamente como, mas ele concluiu que o senhor é noivo da Srta. Blair e que ela veio para cá fugindo de um casamento arranjado que sua família aceitou devido ao polpudo dote da moça. Ele acha que você a seguiu para levá-la de volta.
– Um mal-entendido e tanto! Como isso aconteceu?
– Não tenho certeza. Devo ter usado as palavras “família”, “irmã”, “dinheiro” e “fuga” de forma confusa e dado a entender mais do que pretendia.
Cornell deu um suspiro e já voltava para a sala, para tentar corrigir seu erro, quando Elliot o pegou pelo braço, detendo-o.
– Ele está disposto a libertá-la se mantivermos esse mal-entendido?
– Sim, mas...
– Tem certeza de que é isso que ele tem em mente?
– Não posso garantir que tenha entendido direito a interpretação dele, mas...
– Então não vamos corrigir nada.
– Não estou certo de que isso seja honroso.
– Você não disse inverdades e não tem certeza do mal-entendido – assegurou Elliot, pondo a mão no ombro de Cornell. – Aceitarei isso como um presente da Providência divina e deixarei como está. Ele não é um homem que tenha contato com a comunidade britânica daqui. Se entendeu mal, nunca descobrirá a verdade.
Cornell se deixou convencer.
– Se você está tão determinado, então que assim seja. Venha comigo. Ele quer a sua palavra de que vai controlar a Srta. Blair enquanto ela permanecer neste reino. Ela deve ficar sob sua autoridade. Será responsabilizado por qualquer outro problema que ela crie. Está preparado para prestar juramento?
Elliot assentiu. Atravessou a caverna com o capitão Cornell e assumiu a guarda da Srta. Blair, concedida pelo odioso e repugnante Gentile Sansoni.
CAPÍTULO 3
A signora Cirillo chamou à porta e Phaedra se levantou da escrivaninha para atendê-la. Se aquela mulher queria mais dinheiro tão cedo...
Uma visão maravilhosa a aguardava quando abriu a porta de seus aposentos. A signora Cirillo não estava sozinha. Lorde Elliot estava ao seu lado.
Phaedra manteve a compostura, apesar da vontade de gritar de alegria. Se ele estava lá, só podia significar uma coisa.
– Lorde Elliot, entre, por favor. Grazie, signora.
A signora Cirillo arqueou as sobrancelhas por sobre seus olhos felinos escuros ao ser dispensada. Phaedra fez-lhe ver que não era bem-vinda.
– Está trazendo boas-novas, assim espero, lorde Elliot – disse Phaedra quando ficaram sozinhos.
– Sua prisão domiciliar está encerrada, Srta. Blair. Temos que agradecer ao capitão Cornell, do Euryalus. Ele falou com Sansoni em nosso favor.
– Graças a Deus pela Marinha britânica.
Phaedra correu para a janela e abriu as persianas. O guarda tinha ido embora.
– Nem acredito que vou poder dar uma volta às margens da baía hoje à noite.
Correu de volta até lorde Elliott e lhe deu um abraço.
– Sou imensamente grata.
Ele sorriu gentilmente quando ela o largou. Parecia entender sua animação e perdoar sua exuberância. Se seu olhar tinha se abrandado um pouco depois do abraço impulsivo, era compreensível. Afinal, ele era homem.
Estava magnífico, vestido em uma sobrecasaca marrom feita sob medida e botas de cano alto. O sorriso contribuía bastante para suavizar a dureza das feições dos Rothwells. Ao contrário de seus irmãos mais velhos, lorde Elliot era considerado alguém muito sorridente, o que, ao que tudo indicava, era pura verdade.
Ele olhou em volta da sala de estar e o olhar se deteve na escrivaninha.
– Temo ter interrompido sua carta.
– Uma interrupção muito bem-vinda. Estava escrevendo para Alexia, desabafando meu infortúnio, na esperança de que ao menos conseguisse jogar a carta quando o senhor voltasse aqui.
– Por que não termina a carta logo e lhe diz que está tudo bem? Posso entregá-la a Cornell. Ele vai zarpar em dois dias para Portsmouth e poderá postar a carta para Londres de lá.
– Que ideia esplêndida, se não me achar rude por rabiscar umas linhas a mais.
– Nem um pouco, Srta. Blair. Nem um pouco.
Ela se sentou e acrescentou rapidamente um parágrafo para contar a Alexia que tudo fora resolvido a contento, graças ao cunhado da amiga. Dobrou, endereçou, selou o papel e ficou com ele na mão. Lorde Elliot puxou a carta de seus dedos com delicadeza e a colocou no bolso da sobrecasaca.
Em seguida, retomou sua avaliação da sala de estar e da vista.
– A senhorita veio atender a porta. Onde está sua camareira?
– Não tenho camareira, lorde Elliot. Nem criados. Nem em Londres.
– Isso é por causa de outra crença filosófica?
– É uma decisão prática. Um tio me deixou uma renda respeitável, contudo prefiro gastá-la de outras formas.
– Muito sensato de sua parte. Contudo o fato de não ter criados é um inconveniente.
– De jeito nenhum.
Ela deu meia-volta e as dobras de seu vestido preto, assim com o cabelo comprido, esvoaçaram.
– Um vestido como este não exige uma criada para ser colocado e meu cabelo só precisa de uma boa escovadela.
– Não estava pensando nas suas vestimentas. Preciso lhe falar dos desdobramentos do caso e, sem uma criada conosco...
Estava preocupado com a reputação dela por ficar sozinha com um homem. Que encantador.
– Lorde Elliot, é impossível me comprometer, porque estou acima dessas regras sociais estúpidas. Além disso, trata-se de um encontro de negócios, não? Em situações assim, nossa privacidade não é apenas permitida, como necessária.
Ela duvidava que ele aceitasse seu raciocínio, por mais lógico que fosse. Homens como ele nunca aceitavam. Contudo, para seu espanto, ele não a refutou.
– A senhorita está certa. Prossigamos, então. Não quer se sentar? Isso vai levar um tempo.
Ele pareceu muito sério de repente. Sério, grave e... severo. Seu gesto ao apontar o sofá pareceu acompanhar uma ordem, não a sugestão que fizera tão educadamente. A tentação de permanecer de pé a atiçou. Sentou-se, mas apenas porque ele fora o responsável por obter sua libertação.
Elliot se acomodou em uma cadeira diante dela e então lhe deu uma boa olhada, como se a medisse dos pés à cabeça. Foi como se nunca a tivesse visto e tentasse interpretar a imagem peculiar que ela apresentava.
Phaedra não podia afastar da mente a impressão de que, de certa forma, nunca o tinha visto antes também. Não havia nada mais da graça suave do lorde agora, apenas um longo olhar avaliador e invasivo que a deixava desconfortável. Uma reação muito feminina retumbava dentro dela.
Isso era a pior coisa em relação aos homens bonitos. A beleza deles deixava a mulher em desvantagem quando eles lhe dirigiam sua atenção. Esse homem era muito bonito. Era também muito masculino na maioria das situações e sutilmente másculo nas piores delas. Naquele exato momento, parecia estar tentando, de maneira deliberada, deixá-la perturbada. Não o fazia por motivos carnais, disso Phaedra tinha certeza. Porém, ele emanava sedução também e o sangue dela reagia a isso.
Proteger, possuir, conquistar – tudo eram facetas do mesmo instinto primitivo, não? Um homem não poderia seguir uma dessas inclinações sem despertar as outras dentro de si, e uma mulher era facilmente subjugada se não tomasse cuidado. Ela se perguntou que parte ancestral da personalidade masculina o motivava naquele momento.
– Alexia me pediu para tomar conta da senhorita. Não menti ao lhe dizer isso. Contudo tive outros motivos para visitá-la e agora preciso tratar deles.
– Como só nos vimos uma vez, no casamento de Alexia, e muito rápido, não posso imaginar quais possam ser seus motivos.
– Acho que pode.
Agora ele a estava aborrecendo.
– Tenho certeza de que não posso.
O tom dele indicou que ela o aborrecera também:
– Srta. Blair, chegou aos meus ouvidos que a senhorita agora é sócia da editora de Merris Langton, tendo herdado a participação de seu pai no negócio.
– Essa informação não foi divulgada, lorde Elliot. Uma vez que os homens pressupõem que as mulheres não podem ter sucesso nos negócios e como muitos acreditam ser anormal até que uma mulher tente, decidi manter isso em sigilo, de forma que o preconceito não afete a empresa.
– Pretende ter uma participação ativa nela?
– Vou participar na seleção dos títulos a serem publicados, mas espero que o Sr. Langton continue a supervisionar as questões práticas. Gostaria de saber quem lhe contou isso. Se meu advogado foi indiscreto...
– Seu advogado é irrepreensível.
A atenção dele se desviou dela. Seus olhos ficaram meditativos, obscuros. O homem elegante e cosmopolita que escrevera um famoso livro de História antes de completar 23 anos agora estava distraído, absorto nos próprios pensamentos.
– Srta. Blair, lamento trazer-lhe algumas más notícias. Depois que a senhorita deixou Londres, Merris Langton faleceu da doença que o acometia. Ele foi enterrado dias antes de eu partir.
Ela temera que o Sr. Langton não chegasse a se recuperar; ainda assim, ficou surpresa ao ouvir a notícia de sua morte.
– De fato, são más notícias, lorde Elliot. Obrigada por me contar. Não o conhecia bem, contudo o falecimento de uma pessoa é sempre triste. Contava com ele para ajudar a manter a editora, mas parece que vou ter que dar um jeito sozinha.
– É tudo seu agora?
– Meu pai fundou a editora e a subsidiou desde sempre. Ele poderia passar sua parte a outra pessoa, entretanto a do Sr. Langton ficaria para o meu pai se ele morresse. Então, sim, acredito que seja tudo meu agora.
A distração dele desapareceu. Sua objetividade voltou. Fria.
– Antes da doença, Langton procurou meu irmão. Falou que publicaria as memórias do seu pai. Ofereceu-se para omitir vários parágrafos no manuscrito que tratavam da minha família se uma quantia significativa fosse paga a ele.
– Ele fez isso? Que horror! Estou chocada com essa traição para com os princípios de meu pai e peço desculpas sinceras por meu sócio.
Ela se levantou e começou a andar de um lado para outro, agitada com a revelação. Por educação, lorde Elliot se levantou também, mas ela o ignorou. Tentava compreender todas as implicações do esquema idiota do Sr. Langton. Aquilo poderia significar o fim da editora.
Ela conhecia bem a situação precária das finanças da empresa e, como proprietária, era responsável pelas dívidas não saldadas. Contava com as memórias do seu pai para quitá-las. Se o Sr. Langton comprometera a integridade dessa publicação, as pessoas talvez ficassem descrentes de todo o conteúdo do livro.
– Isso tudo é culpa de Harriette Wilson – disse ela, com sua perturbação agora beirando a raiva. – Ela estabeleceu um precedente infeliz ao pedir que seus amantes pagassem para ter os nomes retirados. Escrevi-lhe sobre isso, se quer saber. Disse a ela que era errado receber dinheiro para apagar trechos de biografias, que era só uma forma velada de chantagem. Ela só pensou no próprio bolso, é claro. Bem, eis o resultado da vida dependente que ela escolheu e da extravagância tola que pôs em prática.
Ela passou a andar com passos mais resolutos.
– Sem dúvida o Sr. Langton abordou outras pessoas também. Nunca imaginei que ele comprometeria a ética de nossa editora dessa forma.
– Srta. Blair, por favor, poupe-me do ultraje teatral. Minha família estava pronta para pagar a Langton. Vim procurá-la para dizer que pagaremos com prazer à senhorita no lugar dele.
Ultraje teatral? Ela parou de andar e o encarou.
– Lorde Elliot, espero tê-lo entendido mal. Está sugerindo que eu aceitaria seu dinheiro para suprimir partes das memórias de meu pai a seu bel-prazer?
– Esperamos que sim.
Ela se aproximou dele até estar perto o bastante para ver os pensamentos refletidos em seus olhos.
– Meu Deus, o senhor acha que eu tinha conhecimento de que o Sr. Langton fazia isso, não acha? Acredita que eu fui cúmplice.
Ele não respondeu. Só sustentou o olhar, visivelmente não acreditando no espanto dela.
Furiosa com as suposições dele e afrontada pelo insulto, ela se virou.
– Lorde Elliot, as memórias do meu pai vão ser publicadas tão logo eu chegue à Inglaterra. Cada frase delas. Foi seu último desejo, feito a mim em seu leito de morte. Eu nunca as editaria de forma a escolher as palavras dele que o mundo devesse ler. Fico muito grata por sua ajuda com o Sr. Sansoni, mas é melhor pararmos esta conversa por aqui. Se eu tivesse uma criada, ela lhe mostraria a saída. Como não tenho, o senhor pode encontrá-la sozinho.
Para deixar mais claro que o lorde estava dispensado, Phaedra se dirigiu ao quarto e fechou a porta.
Ainda não havia se recomposto quando a porta do quarto foi aberta e lorde Elliot entrou calmamente, fechando a porta atrás de si.
– Minha visita ainda não acabou e nossos negócios não estão concluídos, Srta. Blair.
– Como ousa? Este é o meu quarto, senhor.
Ele cruzou os braços e assumiu a atitude masculina e irritante de quem se considera no comando.
– Normalmente isso me impediria, entretanto a senhorita está acima de regras sociais estúpidas, como a que dita que eu não deveria entrar aqui, lembra?
Ela não considerava essa regra social tão estúpida. Tinha uma razão muito especial e primitiva de existir. Aquele era seu espaço mais privado, seu santuário. O clima foi se alterando à medida que Elliot olhava em volta, para o guarda-roupa onde suas vestimentas estavam arrumadas e a penteadeira que exibia seus objetos pessoais. Seu olhar percorreu a cama devagar e voltou para Phaedra.
Os pensamentos dele não ficaram tão ocultos quanto ele imaginou. Ela notou as mudanças sutis em sua expressão, na forma como a dureza que ele exibia se alterou, mesmo que ligeiramente. Os homens não conseguem ficar perto de uma cama e de uma mulher sem começar a devanear. Era uma maldição da natureza que eles carregavam.
Ela ficou irritada ao se pegar pensando na mesma coisa. A forma como ele acabara de insultá-la deveria ter sido suficiente para que aquela intimidade que começava a se infiltrar no quarto jamais existisse. O breve silêncio foi ficando cada vez mais pesado e cheio de uma excitação magnética que mexia com ela.
Uma imagem relampejou em sua mente: lorde Elliot olhando do alto para ela, seus rostos afastados por meros centímetros, seu cabelo escuro despenteado por motivos que nada tinham a ver com moda, seus pensamentos completamente desmascarados. Ela viu seus ombros nus e sentiu a pressão de seu corpo e a firme pegada de seu abraço na pele dela. Sentiu...
Phaedra se esforçou para afastar a imagem da cabeça, mas os olhos dele faiscaram, demonstrando que lera os pensamentos dela. Ele sabia por onde a mente dela andara, assim como ela conhecia os caminhos da dele.
Ele descruzou os braços. Phaedra pensou que ele fosse segurá-la e imaginou se não iria insultá-la ainda mais. Havia homens que a interpretavam erroneamente e, por ignorância, lhe faziam propostas, só que lorde Elliot não era estúpido. Seria uma ofensa cruel e deliberada se ele tentasse se aproveitar da tensão sexual que tinham percebido.
Ele desviou sua atenção dela, diluindo a intimidade, porém não a dissipando por completo. O orgulho de Phaedra foi poupado, ainda que, com isso, seu lado mais primitivo se ressentisse.
– O manuscrito está aqui? – perguntou ele. – A senhorita o trouxe?
– É claro que não. Por que faria isso?
Ele olhou para o guarda-roupa.
– Jura? Do contrário, terei que fazer uma busca.
– Juro, e não ouse fazer isso. O senhor não tem o direito de estar aqui.
– Na verdade, tenho sim, mas conversaremos depois.
O que isso queria dizer?
– Deixei-o em Londres, em um lugar muito seguro. Ele contém as memórias de meu pai, seus últimos desejos. Nunca seria descuidada a esse respeito.
– A senhorita o leu?
– É claro.
– Então sabe o que ele escreveu sobre a minha família. Quero que me fale disso agora. Suas palavras exatas, o melhor que se lembrar.
Não era um pedido, mas uma exigência. Sua arrogância dominadora estava rapidamente fazendo com que a gratidão de Phaedra desaparecesse.
– Lorde Elliot, o nome de sua família e o de Easterbrook não são mencionados no manuscrito.
Isso o surpreendeu. Sua severidade ficou abalada por tempo suficiente para que ela percebesse novamente o homem amigável e prestativo que entrara em seu apartamento. Não durou muito. Ele voltou a ficar distraído e meditativo, e sua mente ágil captou o que ela dissera.
– Srta. Blair, Merris Langton descreveu a meu irmão uma acusação específica contra meu pai. Há algo no manuscrito que, em sua opinião, poderia ser interpretado como uma referência a meus pais?
Ela queria que ele não tivesse feito a pergunta nesses termos.
– Há uma parte que pode ser interpretada assim, imagino eu.
– Por favor, descreva-a.
– Prefiro não descrever.
– Eu insisto. A senhorita vai me contar agora.
Sua voz, sua postura e sua expressão indicavam que nenhum argumento seria ouvido. Nunca antes na vida Phaedra tinha sido tão claramente coagida por um homem a fazer algo.
Talvez fosse melhor que ele e sua família ficassem avisados. A passagem em questão era uma entre várias nas memórias que a haviam feito hesitar.
– Meu pai descreve um jantar oferecido muitos anos antes de minha mãe morrer. Eles estavam recepcionando um jovem adido recém-chegado do Cabo. Meu pai queria saber as verdadeiras condições de vida lá. Esse rapaz bebeu demais e ficou embriagado. Acabou confidenciando algo que ocorreu em um regimento britânico na colônia.
A menção à colônia do Cabo atraiu a atenção de Elliot por completo. Ela se condoeu. Sempre tivera esperanças de que aquele rumor não fosse verdadeiro, mas...
– Prossiga, Srta. Blair.
– Ele disse que, enquanto esteve lá, um oficial britânico morreu. A causa da morte foi registrada como febre, contudo, na realidade, ele levou um tiro. Foi encontrado morto após sair para fazer a ronda. Chegaram a desconfiar do outro oficial que o acompanhava, só que não acharam provas. Em vez de contestarem o suspeito, optaram por usar uma causa mortis falsa.
Ele agora ocultava muito bem sua reação. O rosto estava impassível, como se talhado em pedra. Contudo seu silêncio foi se tornando terrível, carregado da raiva que emanava dele.
– Srta. Blair, se associou esse caso com a minha família, a senhorita deve saber do boato imoral de que meu pai teria enviado o suposto amante de minha mãe para assumir um posto na colônia do Cabo, onde morreu de febre.
Ela engoliu em seco.
– Creio que tenha ouvido algo a respeito em algum momento.
– Se a senhorita soube, muitos souberam. Nem Langton nem a senhorita tiveram qualquer dificuldade em juntar as referências e chegar a uma conclusão. Se a senhorita publicar essa parte, ficará bastante clara a insinuação de que meu pai pagou outro oficial para matar o amante da esposa. A ausência de nomes nas memórias não poupará a reputação de meu pai, e ele não pode se defender da sepultura.
– Não estou convencida...
– Droga, é exatamente o que acontecerá, e a senhorita sabe disso. Exijo que suprima esse trecho das memórias.
– Lorde Elliot, sou solidária em sua perturbação. De verdade. Contudo meu pai me encarregou de fazer com que suas memórias fossem publicadas e é meu dever fazê-lo. Pensei muito nisso. Se eu suprimir cada frase que possa ser interpretada como perigosa ou pouco lisonjeira a essa ou àquela pessoa, pouco vai restar.
Ele andou até ela e a olhou de cima com firmeza.
– Essa mentira não será publicada.
A determinação dele era palpável. Ele não precisava de expressões de raiva ou ameaças verbais para enfatizar o poder que usaria contra ela. Estava tudo ali, ao redor dela, junto com a tensão sexual que não abandonara o quarto, num clima carregado de todas as nuances daquele instinto obscuro.
– Se for mentira, pensarei em omitir – assegurou ela. – Se conseguir obter provas de que o homem morreu de febre ou se o convidado de meus pais desmentir a história, eu a suprimirei. Farei isso por Alexia, não pelo senhor ou por Easterbrook.
Essa declaração o aliviou. Um sorriso vagaroso se formou.
– Por Alexia? Que conveniente. Assim pode recuar sem me dar a vitória.
Elliot a entendia bem demais. Phaedra não dava a mínima importância para provas.
Olhou-a com gentileza. De repente pareceu inapropriado estarem tão próximos, uma proximidade que nascera num momento de fúria dele. Com a raiva saindo de cena, era a outra sensação que voltava a crescer.
Ele não recuou como deveria – e como as sobrancelhas erguidas de Phaedra pediam. Em vez disso, ajeitou uma mecha do cabelo dela e ficou olhando para aqueles fios vermelhos enquanto os enrolava com delicadeza entre os dedos.
– Seu pai incluiu o nome de algum desses homens, Srta. Blair? Do jovem adido do jantar ou do oficial suspeito?
Ele não a tocou, mas a brincadeira com o cabelo dela implicava coisas em que ela preferia nem pensar. O fato de estarem sozinhos num quarto, até mesmo o de terem se confrontado, demolira as formalidades que a protegeriam. O formigamento sutil que ele causava em seu couro cabeludo era tão delicioso que levava a pensar em outras excitações físicas.
Conquistar, possuir, proteger – ela não tinha dúvida de que ele estava preparado para ser implacável e brincar com mais do que o cabelo, se achasse que com isso obteria o que desejava. Também não acreditava em si mesma para vencer aquele desafio, se ele surgisse.
– O jovem adido que meus pais convidaram para jantar é Jonathan Merriweather.
Ele olhou nos olhos dela, desconfiado de novo.
– Merriweather hoje é assistente do embaixador britânico aqui, em Nápoles.
– Muito conveniente para o senhor.
A mão dele se moveu por entre os cabelos com mais firmeza. A brincadeira sutil se tornava controladora.
– A senhorita viajou até aqui para falar com ele? É por isso que está em Nápoles? Pretende adicionar notas a essas memórias e completá-las com os nomes que seu pai foi discreto ao omitir? O livro venderia mais ainda, e ouso dizer que o dinheiro resultante seria muito bem-vindo para sua editora.
Ela segurou o cabelo e o retirou de entre os dedos dele, determinada. Sua indignação a ajudou a ignorar a sensação daquela mão quente ao roçar na sua e a não dar importância ao modo como os olhos dele refletiram sua consciência do toque feminino.
– Agradeço a sugestão, mas espero que as memórias do meu pai caiam no gosto popular do jeito que são, sem acréscimos. De qualquer forma, não estou aqui com esse objetivo.
Era uma mentira deslavada, mas ela não sentiria remorso por confundir aquele homem. Seu interesse em preencher as lacunas das memórias do pai nada tinha a ver com a família Rothwell.
– Lorde Elliot, vim até aqui para visitar as escavações e as ruínas ao sul. Preciso me preparar para deixar a cidade de imediato e continuar minha viagem como planejei desde o início. Portanto, peço-lhe, mais uma vez, que parta.
– Sua viagem terá que ser adiada por uns poucos dias. Não posso permitir que vá agora.
Ela riu. A presunção do homem havia chegado ao ponto do ridículo.
– O que o senhor permitiria ou deixaria de permitir não é de meu interesse.
– É de interesse essencial para a senhorita. Eu a adverti de que sua libertação teria condições e a senhorita prometeu aceitá-las.
– O senhor não falou em condições ao chegar.
– Seu abraço apertado me distraiu.
Ela o encarou desconfiada.
– Quais são essas condições?
Ele olhou para baixo devagar, para seus cachos esvoaçantes – portanto, para boa parte do corpo dela. Phaedra achou ter notado um interesse possessivo, como se ele tivesse acabado de receber um presente e aquilatasse o valor.
– Gentile Sansoni só a libertaria se ficasse sob minha guarda. Tive que aceitar total responsabilidade pela senhorita e prometi controlar seu comportamento.
Um calor de fúria lhe subiu à cabeça. Agora entendia por que, de repente, lorde Elliot passara a se comportar de forma arrogante, fazendo exigências.
– Isso é intolerável. Nunca me submeti a um homem. Isso faria minha mãe se revirar no túmulo. Recuso-me a concordar com isso.
– Prefere enfrentar Sansoni? Podemos providenciar o embate.
A ameaça a deixou sem palavras.
Lorde Elliot não chegou a rir enquanto se dirigia para a porta, mas também não escondeu o fato de estar se divertindo muito com o dilema da moça.
– Viajaremos para Pompeia juntos, Srta. Blair, depois que eu falar com Merriweather. Até lá, está proibida de deixar esses aposentos sem minha companhia. Ah, e não haverá visitas de Marsilios nem de Pietros. Ficarei em apuros se a senhorita provocar mais algum duelo enquanto estiver sob minha autoridade. Fiz um juramento de controlá-la e espero poder contar com sua colaboração e obediência.
Autoridade? Controle? Obediência? Ela estava tão estupefata que ele se foi antes que ela recuperasse a voz para xingá-lo.
CAPÍTULO 4
A boa vontade da Srta. Blair em entrarem num acordo em relação às memórias do pai dela melhorou o humor de Elliot. Ele obteria a retratação necessária de Merriweather, colocaria a Srta. Blair no próximo navio para a Inglaterra e voltaria sua atenção para assuntos mais interessantes.
Merriweather colaboraria, com certeza. Ele, melhor do que ninguém, estava ciente de que a história de Drury sobre a morte do oficial era falsa. Além do mais, sua carreira seria prejudicada se o mundo inteiro soubesse que fora indiscreto ao se embebedar. Ele seria um aliado de lorde Elliot em seus esforços para convencer a Srta. Blair a cortar os trechos incriminadores.
Em uma hora, Elliot descobriu que a questão não seria resolvida tão facilmente. Um funcionário da missão diplomática britânica no Palazzo Calabritto lhe informou que Merriweather fora para o Chipre a serviço e não deveria estar de volta em menos de duas semanas.
Elliot voltou ao hotel e reorganizou alguns de seus planos. Conforme a tarde terminava e a temperatura ia ficando mais amena, ele pegou uma carruagem de aluguel e rumou para o Bairro Espanhol para visitar Phaedra Blair mais uma vez.
Seus olhos azuis chamejaram ao vê-lo na porta.
– O que deseja agora, lorde Elliot?
– A senhorita me disse que desejava caminhar às margens da baía esta noite. Estou aqui para acompanhá-la.
– Não preciso da sua companhia.
– Ou vai comigo ou não vai. Seria uma pena não gozar de sua liberdade, agora que a recuperou.
Ela franziu os lábios. A dúvida se refletiu em seus olhos.
– Muito bem, vamos lá.
Phaedra deu um passo adiante, esperando que ele lhe desse passagem.
– Esqueceu o seu chapéu, Srta. Blair. O sol ainda não se pôs e pode ser prejudicial à sua pele delicada. Tenho certeza de que preferiria evitar mais sardas em seu nariz, por mais charmosas que elas sejam.
A mão dela foi rápida para o nariz. Por um instante, a vaidade feminina venceu sua postura de indiferença a essas preocupações banais.
– O senhor é muito hábil em misturar críticas com falsos elogios.
– Os elogios não foram falsos. As sardas são adoravelmente femininas, mas ainda assim precisa de um chapéu. Vou esperar até que ponha um. A senhorita tem um chapéu, não?
– É claro.
Exasperada, ela deu meia-volta e seguiu na direção do quarto.
– Não me siga desta vez.
– Nunca entraria no quarto de uma dama duas vezes no mesmo dia. Assim como quatro danças em um baile, isso poderia ser mal interpretado.
– Nunca interpreto mal os homens, lorde Elliot. Eles são as criaturas mais transparentes que existem.
De fato, ele imaginava que eram, para ela. Não era uma moça inexperiente. Sabia por onde os pensamentos dele haviam vagueado quando estavam os dois de pé ao lado da cama. Seu cabelo solto lhe dava a aparência de uma mulher preparada para uma tarde de prazer.
Ela não reagira a ele com choque ou vergonha recatada. Não houvera a indignação de quem defende sua virtude. Ao contrário, ela só o encarara enquanto as possibilidades sensuais atiçavam a ambos. A expressão dela tinha sido a de quem reconhecia aquele impulso e suas possibilidades.
Ele nunca vivenciara nada parecido antes. Phaedra conseguia provocar e rejeitar sem dizer uma só palavra. Você me quer e pode ser que um dia eu o queira, mas não hoje. Talvez nunca. Ainda não decidi. Ela devia saber que seu comportamento estimulava o lado mais selvagem dos homens.
Phaedra voltou usando um chapéu de palhinha que era muito mais bonito do que ele teria imaginado. Sua aba em diagonal e as flores de seda brancas e azuis realçavam seus olhos e a pele clara. Seus cabelos longos e esvoaçantes, a falta total de maquiagem e as sardas lhe davam uma aparência fresca e campestre.
Porém, seu vestido comprometia a imagem. O tecido preto leve e sem enfeites a cobria do pescoço aos pés. Uma faixa rodeava a cintura, mas, afora isso, pouco se podia notar de suas formas sob o pano solto e volumoso.
O vestido provocava mais fantasias do que ela provavelmente imaginava. Provocava curiosidade quanto ao que dissera mais cedo. Não havia criadas para ajudá-la a se vestir. Não usava corpete nem espartilhos, e as formas gerais indicavam que o corpo tão livre embaixo do tecido valia a pena ser imaginado. Peito empinado, avaliou ele, de tamanho indeterminado, porém digno de nota, e quadril feminino o bastante para fazer com que a cintura parecesse bem fina. Alguns gestos e uns poucos ganchos e tudo seria revelado.
– Alexia o fez para mim – disse ela, ao notar sua admiração pelo chapéu. – Acho que ela tem esperanças de me mudar. Quanto a meu vestido, que o senhor está examinando de forma tão crítica, não espere que eu o troque. Não fui eu quem decidiu que o senhor teria de andar em público em companhia de uma mulher tão fora de moda.
– O vestido me convence ainda mais. Insisto em que cubra o cabelo, contudo não peço que abra mão de todos os símbolos com os quais desafia o mundo.
Ela ergueu o queixo e rumou para a porta.
– Se tiver juízo, não pedirá coisa nenhuma.
Barulho, gestos teatrais, toucados com plumas e sombrinhas coloridas. Riqueza digna de príncipes, pobreza abominável e o brilho das armaduras dos soldados.
O elegante passeio londrino era uma pálida imitação do que acontecia no final da tarde nas terras mais ao sul. O passeio que circundava a baía de Nápoles ficava apinhado de transeuntes. Aristocratas em vestidos e casacos da moda caminhavam em grupos entre os pobres que perambulavam nas proximidades da água. Comerciantes e suas esposas passeavam com os filhos.
A hora do passeio vespertino – aproveitada nas proximidades da baía ou nas piazzas das igrejas – servia a importantes objetivos na cidade, a julgar pelo modo como as moças casadoiras eram exibidas. Sua beleza jovem e morena brilhava entre os pais, que avaliavam criticamente, com semblantes sóbrios, os homens que olhavam duas vezes na direção delas.
Toda a Nápoles era uma ópera e Phaedra Blair não parecia tão estranha ali quanto poderia pretender. Ela estava razoavelmente apresentável, graças ao chapéu; ainda assim, Elliot notava a atenção que atraía com seu cabelo ao vento. Imaginou a reação que causara na primeira vez que estivera ali, com seus fios vermelhos esvoaçando em meio a um mar de castanho e preto. Londres era mais tolerante com o tipo de excentricidade que ela exibia.
– Falou com o Sr. Merriweather?
Eram as primeiras palavras que ela pronunciava desde que haviam saído do apartamento. Elliot não forçara uma conversa na carruagem. Não se importava com o silêncio. Passara um bom tempo calado, tendo a própria mente como única companhia. Gostava do contato social até certo ponto, mas apenas se houvesse horas de silêncio para contrabalançar as de ruído e conversas.
– Ele está fora em uma missão e só deve voltar em duas semanas, no mínimo.
Elliot se perguntou se ela já não saberia disso. Não estava convencido de que a Srta. Blair tivesse objetivos tão inocentes ao visitar a cidade. Se quisesse ver as ruínas, faria mais sentido vir em outra época do ano. Embarcar para lá em pleno calor do verão napolitano, quando sua editora passava por dificuldades, seu sócio estava doente e as memórias do pai esperavam preparação do original... Ele ainda suspeitava que interrogar Merriweather estivera entre os motivos que a levaram ali.
– Espero que não queira me fazer esperar quinze dias ou mais para ir a Pompeia.
– Decidi que visitaremos as ruínas enquanto o espero voltar.
Isso a apaziguou. Ela pareceu quase aliviada. Talvez tivesse vindo mesmo apenas a passeio.
– Na última primavera, Alexia me disse que o senhor estava escrevendo um livro novo, lorde Elliot. Sua visita a Pompeia está ligada a isso?
– Visitarei as novas escavações para saber o que foi descoberto nos últimos anos. Vou conversar com arqueólogos e pesquisar alguns temas para o livro.
– Alexia me disse que é um livro sobre assuntos quotidianos, sobre a forma como as pessoas viviam. Muito incomum. Normalmente, os livros de História descrevem as guerras, a política e os feitos dos grandes homens. Até o seu último foi sobre isso.
– Estou atento para o fato de que esse livro pode ser criticado por sua aparente falta de relevância. Porém o assunto me interessa e posso me dar ao luxo de me dedicar ao que gosto.
– Se acha que o estou criticando, está equivocado. Acredito que seu livro pode ser muito popular, não importa o que digam os acadêmicos. Ele deve vender muito bem.
– Não estou tão certo de que meu editor concorde com isso.
– Então, talvez deva achar outro. Ficaria honrada de publicá-lo se aturar a ideia de fazer negócios com uma mulher.
Ele riu da sua expressão sagaz. Essa editora poderia sobreviver muito bem, no final das contas, se a Srta. Blair mostrasse tamanho talento de bajular autores para atraí-los.
O humor dela havia melhorado desde o início do passeio. Talvez a luz suave do sol poente e a brisa refrescante fossem os motivos da mudança. O mais provável era que a Srta. Blair tivesse decidido que a raiva a atrapalharia a gozar sua recém-adquirida liberdade.
A alegria brilhava em seus olhos enquanto caminhavam, observavam os grupos de passantes, os barcos e as gaivotas. Ela sorria para lorde Elliot de uma forma cálida que poderia ser erroneamente interpretada como flerte. E não passava despercebido dele a forma como os homens a olhavam. Por si só, o cabelo ruivo solto já bastava para destacá-la, contudo a Srta. Blair chamaria atenção de qualquer forma.
Esses olhares também não passavam despercebidos a ela, que não os encorajava nem desestimulava. Também não lhes davam satisfação nem a insultavam, pelo que Elliot podia ver. Phaedra simplesmente seguia seu caminho, uma mulher diferente das outras mas muito confiante, com o tecido preto e leve do vestido a revelar mais do que se pretendia.
Sutilmente, ela projetava uma aura carregada daquele mesmo desafio que Elliot sentira no quarto, só que agora atraía todos os homens que a olhavam por mais tempo. Você me quer, só que nada vai acontecer entre nós, porque eu decidi assim.
Ela parou para comprar um pequeno buquê de flores de uma menina que as oferecia numa caixa. Elliot tentou pagar por elas, mas Phaedra afastou sua moeda e pagou com o próprio dinheiro. Continuou a andar, segurando perto do nariz as flores perfumadas.
– Lorde Elliot, gostaria de lhe fazer uma proposta.
Não seria a proposta que ele desejava, contudo seu corpo se enrijeceu de qualquer forma. As palavras dela tinham sido escolhidas de propósito para atiçá-lo e isso o deixou com raiva, porque funcionou.
Ele não deveria, só que não resistiu:
– Vi o que acontece aos homens que aceitam os termos de suas propostas, Srta. Blair, portanto prefiro declinar.
A expressão dela mudou.
– O que quer dizer?
– Ah, eu entendi erroneamente? Desculpe-me.
– O que o senhor quis dizer?
Ele deu de ombros.
– Pensei que fosse propor que me tornasse um de seus amigos. Uma dessas abelhas que ficam zumbindo em volta da rainha.
Sua pele branca enrubesceu e sua raiva deixou transparecer uma boa dose de consternação.
– O que sabe a respeito dos meus amigos?
– A senhorita pode desprezar a sociedade, mas ela está a par do seu comportamento. Todos sabem sobre a filha de Artemis Blair e como, a exemplo da mãe, ela se considera acima de todas as regras sociais estúpidas.
– Sua ignorância me espanta.
A raiva dela vencia a consternação.
– É muito típico o senhor interpretar mal minhas amizades e é por isso que nunca considerarei a hipótese de tornar meu amigo alguém como o senhor.
Ah, ela consideraria, sim. Até já havia considerado. As negociações começaram cedo naquele dia.
– Se fui rude, peço desculpas.
A expressão dela relaxou.
– No entanto...
As sobrancelhas dela se arquearam.
–... se a senhorita está acima de regras sociais idiotas, não há como eu ser rude, não concorda, Srta. Blair? Digo, no âmbito de suas crenças. A palavra “rude” se aplicaria apenas dentro do contexto das regras sociais, não estou certo? Nos próximos dias, a senhorita terá de me ajudar a perceber onde sua sujeição a tais regras começa e onde termina, assim não a interpretarei erroneamente de novo.
Mais uma vez aquela confiança presunçosa, aquele desafio, a saturou.
– Pode ter certeza de que farei isso, lorde Elliot.
A caminhada os levara até Riviera di Chiaia, às belas mansões com vista para a baía. A Srta. Blair enterrou seus pensamentos por trás de uma máscara de passividade e ficou admirando a beleza das construções.
– Lorde Elliot, é conveniente que tenha falado a respeito dos próximos dias e que tenha expressado sua desaprovação e desprezo com relação à minha pessoa. Minha proposta tem a ver com ambas as atitudes.
– Não desaprovo nem desprezo. Só decidi que devemos ter um entendimento correto quanto a uma pequena questão.
A mais importante de todas.
– O fato de interpretar erroneamente minhas amizades com outras pessoas e meu interesse pelo senhor indica que não nos daremos muito bem. Nem o senhor vai querer o peso de ter alguém que veio a passeio como companheira de viagem. Eu só iria atrapalhá-lo e seus estudos só atrasariam meus planos. Proponho que nos separemos assim que deixarmos Nápoles.
– Isso não é possível.
– Gentile Sansoni nunca saberá.
– A influência dele se estende para muito além das fronteiras desta cidade. Além disso, dei minha palavra, e essa é uma das tais regras sociais estúpidas que levo muito a sério.
– Senhor...
– Não, Srta. Blair. Partiremos juntos, daqui a dois dias, pela manhã. Vamos de barco primeiro para Positano e depois para Amalfi. De lá seguiremos viagem por terra.
– Quero ir para Pompeia imediatamente.
– O atraso será breve. Prometi visitar um amigo em Positano e ele me espera por estes dias, não depois. Se está a passeio, deve se alegrar com uns dias a mais visitando a costa ao sul. É espetacular.
Phaedra não parecia nem um pouco alegre. Ele imaginou que veria aquela perturbação constantemente nos olhos dela pelas próximas semanas.
Deram meia-volta para refazer o caminho e Elliot quase tropeçou em uma criança que os seguia. Grandes olhos negros olhavam para cima em uma esperança calada de que alguém a enxergasse entre tantas das mais pobres crianças da cidade. Ela não pediu nada, mas seu corpinho frágil vestido em andrajos implorou de forma pungente.
Ele enfiou a mão no bolso do colete. Quando a moeda surgiu, mais duas crianças apareceram ao lado da primeira. Outras foram atraídas por instinto para o inglês que não sabia parar de distribuir esmolas para as crianças pedintes de Nápoles.
Ele achou mais moedas. A Srta. Blair não pareceu com medo por estar cercada de pobres ávidos por moedas, como a maioria das mulheres ficaria. Ela tentou conversar com a primeira menina, a mão oculta em algum lugar do vestido, na altura do quadril.
Os dois adultos ficaram num mar de olhos negros e corpinhos morenos, distribuindo moedas até que todas tinham se acabado.
Voltaram para a carruagem sem outras discussões. Ela só falou mais uma vez antes de ser deixada de volta em seu apartamento.
– Partiremos daqui a dois dias pela manhã, como disse? Então nada me resta a não ser me preparar para a viagem.
A aparente submissão de Phaedra Blair não o convenceu. Elliot partiu para fazer seus próprios preparativos.
Phaedra tirou o camafeu do nó no xale. Envolveu-o em um lenço e colocou o embrulho dentro do bolso fundo da saia de seu vestido. Depois envolveu a cabeça com o xale e o amarrou debaixo do queixo.
Verificou a valise, conferindo mais uma vez as roupas e os objetos pessoais que tinha colocado nela. Orgulhava-se da falta de vaidade feminina, mas ainda a irritava ter tão poucas roupas para usar pela próxima semana.
Era tudo culpa de lorde Elliot. Qualquer um sabia que um juramento feito sob coação não contava. E, para ela, fazer um juramento para salvar uma mulher de um destino incerto se qualificava como coação. A insistência do lorde em manter sua palavra a perturbava. Tinha sido muito azar dela que a única pessoa disponível para ajudá-la fosse um homem com noções ultrapassadas de honra.
De jeito nenhum ela permitiria que ele os fizesse vítimas de sua mente pequena. Lorde Elliot não queria a companhia dela muito mais do que ela queria a dele. Só haveria problema se os dois permanecessem juntos.
Uma dessas abelhas que ficam zumbindo em volta da rainha. Ele era incapaz de entender as amizades honestas e sinceras que ela mantinha com alguns poucos e raros homens que pensavam como ela. Ficaria chocado ao descobrir que alguns homens conseguem controlar as forças primitivas de posse e domínio que causaram tanto sofrimento ao longo da história, em especial às mulheres. Na verdade, havia homens para quem a sensualidade não despertava a necessidade de conquistar, dominar e exigir submissão.
Bem, não cabia a ela lhe explicar. Além disso, seria um esforço em vão e exigiria que passasse mais tempo com ele.
Deixou um bilhete e algum dinheiro em sua mala para garantir que a signora Cirillo entendesse que ela voltaria logo para buscá-la. Depois se esgueirou do apartamento para o corredor escuro. Achou o caminho da escada.
Andando pé ante pé, envolta em negro, seguiu até o andar de baixo. Ainda na escuridão, foi tateando às cegas em busca do lance de degraus seguinte.
De repente as sombras se transformaram em corrimões, portas e paredes, como se alguém tivesse aberto as persianas para deixar a luz da lua entrar.
– Pietro não está à sua espera no cruzamento, Srta. Blair.
O coração dela parou de bater ao ouvir a voz tranquila atrás de si. Deu meia-volta. Lorde Elliot estava a pouca distância, em uma porta aberta que dava para o apartamento que ficava abaixo do dela. Estava sem camisa e descalço, como se estivesse dormindo e houvesse posto a calça às pressas para investigar o barulho. A luz fraca da lamparina do quarto o banhava em uma névoa dourada.
A presença daquele homem anunciava o fim de seu plano de fuga. Apesar de sua exasperação, que aumentava cada vez mais, Phaedra não pôde se furtar a apreciar aquele homem. Lorde Elliot era esguio, elegante e tinha ombros largos. Seu corpo possuía o retesamento jovial que abençoava os homens por tanto tempo na vida quanto permanecessem ativos. A luz fraca ressaltava os músculos rígidos do peito, do abdome e dos braços.
Ele deu dois passos, pegou a valise da mão de Phaedra e segurou seu braço, empurrando-a para o quarto dele. Depois fechou a porta.
– O que está fazendo aqui? – perguntou ela.
A luz da lamparina valorizava o peito musculoso e a pele maravilhosa agora tão próximos de seu rosto. Se não estivesse aborrecida pela interferência daquele homem, poderia até aproveitar a bela visão.
– Eu me hospedei aqui.
Ele permaneceu imóvel por um longo tempo. Phaedra olhou para o rosto do lorde e percebeu que ele a observava. E que tinha notado que ela avaliava seu corpo. Sentiu a pulsação acelerar. Os olhos deles refletiam a mesma reação, mas com uma anuência fria, como se Elliot controlasse a reação tanto nela quanto nele.
Sim, esse homem significava problema na certa.
– Não se mexa. Não tente sair – disse isso e andou até a escrivaninha, onde pegou a camisa e a vestiu.
Ela não ficou olhando. Não exatamente. Mas, com o canto do olho, viu como seus braços se moviam e seu dorso se esticava. A imagem do encontro deles à tarde invadiu sua cabeça de novo, mais vívida dessa vez: o rosto masculino pairando acima dela, aqueles ombros e aquele peito sob sua carícia...
Olhando de esguelha, percebeu os sinais de que o cômodo estava ocupado. Havia uma lamparina sobre uma escrivaninha na sala de estar, junto com uma pilha de papéis. Notou manchas de tinta nos dedos dele. Ele estivera escrevendo, não dormindo. Imaginou-o lá, entregue ao frescor da noite, imerso em sua escrita.
Com pouca roupa e aquela camisa solta, parecendo libertino e romântico demais para que ela se sentisse segura, ele a encarou.
– Lorde Elliot, mudou-se para cá para me espionar?
– Deixei para a signora Cirillo a tarefa de espionar. Mudei-me para cá para impedi-la de fugir na calada da noite.
Ele adivinhara seu plano. Isso a desanimou.
– Intrometer aquela ave de rapina em meus assuntos particulares é indesculpável.
– Parece que foi necessário. A signora Cirillo se empenhou em sua missão e a desempenhou com fervor. Eu só pedi que informasse caso a senhorita me desobedecesse e deixasse a hospedaria. Mas ela a seguiu e interceptou a carta para seu amigo.
A expressão dele assumiu um ar crítico.
– Tentar arranjar esse encontro clandestino à meia-noite é intolerável. E se Pietro não a esperasse naquele cruzamento? A senhorita ficaria lá fora no meio da noite, nessa cidade devassa, desprotegida...
– Não me repreenda. Não ouse. Se ele não aparecesse, eu logo teria encontrado um jeito de arrumar uma carruagem de aluguel, uma carroça ou até um burro, se preciso, e teria partido.
Todas as implicações desse episódio lastimável se seguiram em sua cabeça. Ressentiu-se de cada uma delas.
– Parece que troquei um carcereiro por outro – disse ela.
Ele pegou a valise.
– Chame como quiser.
Então Elliot estendeu o braço na direção da porta, mostrando o caminho.
Bufando de raiva, ela subiu de volta as escadas até seus aposentos. Para seu espanto, o lorde não deixou a valise na porta de entrada. Em vez disso, carregou-a até o quarto. Ela não o seguiu. Uma intuição, daquelas que só as mulheres têm, a manteve na sala de estar.
– Venha até aqui, Srta. Blair.
A ordem ressoou dentro dela de um jeito que ela não reconheceu nem gostou. Compreendia a raiva que trazia, mas havia também outros impulsos e palpitações que a espantaram. Ela odiava quando os homens tentavam lhe dar ordens, quando pressupunham serem seus donos, no entanto...
Phaedra espiou dentro do quarto. Lorde Elliot estava lá, com o colarinho da camisa branca aberto, o cabelo despenteado e a expressão resoluta. Quando ele notou a presença dela, um reconhecimento mudo se deu entre os dois. Lampejos de excitação e perigo a perpassaram.
Ele andou até ela e a puxou para dentro do cômodo. A pegada tão firme e confiante, tão segura em relação ao direito dele de fazer o que bem quisesse, a espantou. Nunca na vida um homem a tratara assim. Phaedra tentou se recompor e encontrar as palavras que o colocassem em seu devido lugar, mas...
Ele começou a desatar o nó do xale sob seu queixo. Isso levou tempo de mais. E o deixou perto demais. Com certeza ele não era um canalha a ponto de... Deveria detê-lo e desatar o nó ela mesma. Deveria...
Ele fez o xale correr com suavidade pela cabeça e os ombros dela. Foi como uma carícia longa e vagarosa. O olhar dele acompanhou uma ponta do xale deslizar ao longo do corpo dela até que ficasse pendurado na mão dele pela outra.
Apenas a luz da lua que entrava pela janela iluminava o quarto, porém Phaedra não precisava ver com clareza o rosto daquele homem para adivinhar seus pensamentos. Eles preenchiam o quarto, estavam no ar, como tinha acontecido à tarde.
Uma nova reação a deixou perplexa, uma que nunca vivenciara antes: medo. Não medo dele ou de ser forçada a fazer algo. Foi dela mesma e da maneira chocante e singular como seu corpo reagia à forma como ele tentava dominá-la.
Elliot fez um gesto apontando para a cama.
– Tire o vestido e deite-se.
Isso quase a fez cair em si. Quase. Uma excitação inexplicável a atingiu lá embaixo, uma excitação absolutamente escandalosa. Deus do céu...
– Está indo longe demais.
Ela havia mesmo falado? Sua mente por fim juntara algum bom senso e fora em seu socorro?
– Você não me deixa escolha. Não posso me arriscar a deixá-la escapar.
– Prometo que não vou fugir.
– Uma mulher que espera que eu quebre minha promessa a Sansoni não manterá a própria palavra. Agora coopere, a menos que queira que eu a force a obedecer.
Ela levou as mãos às costas e começou a soltar os ganchinhos do vestido. Só levou um minuto até se despir e pôr o vestido sobre uma cadeira. A luz não era fraca o bastante para ocultá-la. Desejou estar usando aqueles ridículos espartilhos, pois suspeitava que lorde Elliot pudesse ver mais do que deveria por baixo da camisa simples que usava sob o vestido.
Ela se aproximou da cama e subiu nela, tentando não se expor demais e excitada por suspeitar estar se expondo ainda assim. Deitou de costas e olhou para ele. Pairou um silêncio no ar por um longo momento.
– Quais são as suas intenções, lorde Elliot?
Ele riu de novo. Em silêncio. Sarcasticamente.
– Não é um bom momento para provocar e instigar, Srta. Blair.
De repente, ele se inclinou sobre ela. Pairando. O coração dela começou a bater mais forte. A camisa dele adejava perto do rosto dela. O cheiro dele a tomou de assalto. O tamanho dele a dominou. Uma expectativa terrível e maravilhosa formigou nela. Seus seios ficaram mais sensíveis e...
Ele pegou no braço esquerdo dela e o levou até as barras de ferro da cabeceira da cama.
– O que está fazendo?
Ele enroscou o xale em volta das barras.
– Certificando-me de que não fugirá. Não preciso dormir muito, entretanto não posso ficar acordado por duas noites.
– Isso passa dos limites. É repugnante. Exijo que...
– Isso é necessário. Ou é isso ou durmo ao seu lado. Prefere?
Ela o encarou. Ele parou de fazer os nós e olhou para baixo. O coração dela pulou para a boca.
– Prefere? – repetiu ele.
Era uma pergunta direta e sincera. Um convite que lhe permitia extravasar a atração.
Ela engoliu em seco.
– É claro que não.
Mesmo na luz fraca, ela viu o sorriso dele. Ele voltou sua atenção para os nós.
Por fim, ele se afastou e se endireitou. Phaedra deu um puxão com o braço esquerdo. Não havia folga nas laçadas. Ela se virou para o lado e tentou forçar um nó com a outra mão.
– Fique à vontade para tentar desfazer os nós. Só que não vai conseguir. Pode se sentar e se mexer, pode até ficar de pé. Pode usar o penico do lado da cama. Mas nunca vai conseguir se soltar. É melhor passar o tempo dormindo.
Uma nota em seu tom de voz a fez parar de tentar. Rolou de volta para ficar de costas e o encarou. O desamparo dela e o domínio dele gritaram no silêncio entre os dois. A mente de Phaedra bradava insultos rebeldes, mas seu corpo experimentava um calor e uma expectativa deliciosos. Espantava-a que essa submissão provocasse desejo, um desejo muito erótico.
Ele sabia, droga. Ela podia garantir que ele sabia.
– Está muito bonita aí, Srta. Blair. Muito bela e vulnerável e, ouso dizer... submissa?
– Seu canalha.
De novo, aquela risada silenciosa. Depois ele se foi, deixando-a livre para conversar consigo mesma pelo resto da noite sobre quão vulnerável e submissa ele a havia tornado.
CAPÍTULO 5
Phaedra segurava o camafeu na luz matinal que penetrava pela janela da sala de estar. O objeto tinha se tornado um talismã nos dois últimos dias, no embate com um homem confiante demais de seus direitos de controlá-la.
Você deveria ter me avisado, mãe.
Talvez Artemis não pudesse ter lhe avisado simplesmente porque não sabia. Talvez tivesse se isolado tanto de homens como Elliot Rothwell que nunca os houvesse enfrentado.
Ela imaginava a mãe, linda de tirar o fôlego. Com um rosto tão suave que as pessoas nunca imaginavam sua mente brilhante até que ela abrisse a boca ou lhes dirigisse aquele olhar aguçado. De fato, sempre fora uma rainha com muitas abelhas em volta. Acadêmicos, artistas e homens que admiravam sua inteligência estavam entre os amigos que a amavam e ficavam apenas à espera de uma deixa. Sua casa ficava sempre cheia de homens famosos e esperançosos.
Na certa, um desses homens teria tentado conquistá-la. Na certa, a famosa Artemis Blair vivenciara a excitação primitiva de encontrar um par na inteligência e no poder. Ela devia ter avisado à filha que esse homem poderia surgir um dia.
Phaedra olhou pela janela. Lá embaixo, lorde Elliot dava ordens aos criados da signora Cirillo, que carregavam as valises para a carruagem que os levaria ao porto. Os olhos dela se estreitaram para focalizar o inimigo.
Pelo menos, ele não a mantivera amarrada na última noite. Ela prometera de cinco formas diferentes não fugir. Ele só a soltou depois de ela jurar – jurar – sobre o túmulo da mãe. Ele a fizera implorar como se fosse seu dono.
Sua mãe provavelmente estaria se revirando no túmulo naquele exato momento. Artemis Blair nunca se submetera a um homem, de forma nenhuma. Nunca se casara, nem com seu amor de toda a vida, Richard Drury, mesmo quando se viu grávida. Nunca abrira mão de sua liberdade, sua independência e seu direito de amar e dividir a cama com quem quer que escolhesse, nem ao descobrir que só queria amar e dividir a cama com um único homem.
O camafeu esquentou na mão de Phaedra. Ela olhou para a joia. Não, não um único homem. Tinha havido outro.
Tinha sido um choque ler isso nas memórias do pai. Sentia-se nauseada só de lembrar as palavras dele. Sempre imaginara que o amor de seus pais fora perfeito, desprovido de obrigações e leis, um verdadeiro encontro de almas que duraria pela eternidade. A amizade dos pais mostrava ao mundo que havia uma forma melhor para um casal conviver.
Tinha sido assim por muitos anos, até que um dia outro homem entrara na história.
Esse intruso era charmoso, contudo estava no centro de um esquema ao mesmo tempo brilhante e nefasto. Foi o que seu pai escreveu. Ela se lembrava das palavras exatas. Memorizara essas palavras antes de zarpar da Inglaterra. Ele seduziu Artemis para que tivessem um caso, usou-a da forma mais desonrosa, a ponto de destruir sua reputação. Foram seus atos que, em última análise, levaram à morte dela. Assim como vendia falsas antiguidades, ele lhe ofertou mentiras. Porém é só uma questão de tempo até que ele seja desmascarado, porque os objetos estão lá, visíveis, como o que vendeu a Artemis. Um dia alguém revelará a origem suspeita desses objetos, e a forma como ele usa a sedução no intuito de roubar será sua desgraça.
Os dedos dela se fecharam com força ao redor do camafeu. Uma antiguidade de origem suspeita. Uma joia acrescentada na última hora a um testamento, supostamente vinda de Pompeia. Phaedra estava bastante certa de que era a este objeto que o pai se referira – e também sua única ligação com o homem que ele acusava.
Seus atos, em última análise, a levaram à morte. Phaedra não conseguia tirar essas palavras da cabeça. Elas ressoavam em seus sonhos junto com as imagens da mãe naquelas últimas semanas, séria demais, distraída demais. Phaedra nem chegara a notar essa seriedade e distração na época, pois a mãe sempre tinha um sorriso para ela. Porém seu declínio fora rápido demais e sua morte, um choque.
Phaedra baixou o olhar de novo. Lorde Elliot olhava para cima, em sua direção. Há quanto tempo ele a observava lá da rua?
Talvez a mãe não tivesse avisado porque nem ela mesma sabia. Talvez o intruso fosse um homem como aquele lá embaixo, que causava arrepios só por dar sua atenção e cuja presença era uma tentação para que, em um segundo, uma mulher se esquecesse de todas as crenças e princípios que ancoravam sua vida.
Poderia perdoar a mãe por não ter lhe dado essa lição. Poderia perdoá-la por qualquer coisa, até mesmo por deixar o mundo cedo demais. Porém, se um homem realmente a havia usado de forma desonrosa, se os atos dele tinham causado sua morte, isso era outro caso. A filha de Artemis Blair nunca o perdoaria. Se tivesse certeza de que isso era verdade, então queria ver a queda desse homem.
Pegou o xale e envolveu a cabeça. Lorde Elliot era um inconveniente, mas ela não deixaria que a companhia dele atrapalhasse o motivo real que a levara ao Reino das Duas Sicílias.
Elliot voltou ao quarto para pegar a maleta com seus muitos papéis. Passou pela Srta. Blair nas escadas.
– Vou esperar na carruagem.
Seu tom ríspido demonstrava a frieza que agora sempre exibia em sua presença.
Ela nunca o perdoaria por amarrá-la na cama, não só pela humilhação e falta de confiança. Ambos sabiam que isso a excitara, e ela o odiava por isso e por todas as implicações resultantes. Ambos também sabiam que, se ele não tivesse feito isso, ela teria escapado durante a noite para evitar as implicações resultantes.
Na última noite, Phaedra fora enfática ao afirmar que não aconteceria de novo. Suas promessas foram tão sinceras e suas garantias de não fugir, tão genuínas que ele voltara atrás.
Isso significara que ele poderia dormir. Na primeira noite, ficara deitado, inquieto e ávido, sentindo o desejo rasgá-lo por dentro como uma faca de serra. Imaginando-a naquela blusa fina, amarrada na cabeceira da cama, com o cabelo espalhado como seda acobreada e o corpo visível demais. Quais são as suas intenções, lorde Elliot?
Que inferno!
Elliot pegou a mala e um embrulho comprido e se juntou a ela na carruagem. O olhar vazio, distante e focado dizia que era só por falta de escolha que Phaedra tolerava a companhia dele. Não se daria o trabalho de bater papo para tornar seu tempo juntos mais fácil.
O barco que ele alugara esperava perto do Castel Nuovo. Uma hora depois, eles navegavam margeando a baía.
A Srta. Blair se posicionou na área central do convés, segurando-se na amurada. Ela observava a costa passar e o monte Vesúvio ficar cada vez maior ao fundo. A brisa empurrava o xale dos seus cabelos e sua beleza pálida e incomum chamava a atenção do pessoal de bordo. Elliot se aproximou para que não restasse dúvida quanto à sua situação de protetor da moça.
Ele estendeu a mão, oferecendo-lhe o embrulho que trouxera.
– O que é isto? – perguntou ela.
– Um presente.
Ela sorriu de um jeito suave, porém firme.
– Não aceito presentes de homens, lorde Elliot.
– Você não aceita presentes em troca de favores, o que é admirável. No entanto, como não gozei de seus favores, ainda está livre para aceitar presentes. Se eu a seduzir, pode devolvê-lo.
Ele quase disse “quando” em vez de “se”.
Ainda hesitante, porém curiosa, ela pegou o pacote e tirou parte do papel.
– Uma sombrinha? – disse, e rasgou o restante do embrulho, rindo então. – Preta. Toda preta. Que... gentileza!
– Achei que ia combinar.
– Isto é para me poupar de mais sardas?
– Isto é para poupá-la de ficar doente. O sol aqui é muito forte e estamos em pleno verão. Quando desembarcarmos, ficará feliz em ter alguma sombra.
Ela abriu a sombrinha e cobriu a cabeça.
– O senhor conhece bem o país. Já esteve aqui antes?
– Duas vezes. Primeiro em uma viagem por vários países do continente, e de novo há alguns anos.
Ele apontou para a costa.
– Ali fica Herculano. A mesma erupção do Vesúvio que enterrou Pompeia em cinzas cobriu Herculano de lava.
Ela desviou o olhar para onde os vestidos e casacos dos visitantes salpicavam de cor a rocha.
– Tinha a intenção de visitar Herculano também, mas o signore Sansoni... – suspirou ela. – Agora vou perder muita coisa da viagem.
– Por que não gasta algum tempo na volta de nossa pequena viagem e faz a visita?
– Não tenho tempo a perder. Preciso voltar para casa. Tenho uma editora para tocar.
E um livro especial para publicar. Se ele não conseguisse o que queria ao falar com Merriweather, a Srta. Blair não voltaria para casa por um bom tempo.
– Também acho que não vou gostar de voltar a Nápoles depois de nossa viagem – emendou ela. – Com certeza você achará que a palavra dada a Sansoni ainda estará valendo, e ficarei com o senhor no meu pé.
Ele admirou impressionado o enorme cone que era o Vesúvio enquanto passavam tão perto de Herculano que podiam ver alguns trabalhadores nas escavações. O cabelo cor de cobre esvoaçava perto do braço dele.
– Srta. Blair, pergunto-me se o que a incomoda não seria o fato de me ter no seu pé e não a seus pés.
O suspiro profundo expressou o pensamento dela. Deus, dê-me paciência com esse homem tão pouco esclarecido e tão previsível.
– Suspeito que seja inútil explicar isso, mas tentarei, em nome da paz. Acredito que nenhum parceiro na amizade, no casamento ou num caso amoroso deva ficar aos pés do outro. Minha ideia só é considerada estranha porque o pé em questão quase sempre é de um homem e o mundo acha normal que ele fique cravado nas costas de uma mulher. Creio que homens e mulheres possam ficar lado a lado, sem que um tenha que pertencer ao outro. A vida da minha mãe provou que isso é possível e a minha também, até agora, prova o mesmo. Não fomos nós que inventamos essa crença. Essa ideia é bem conhecida e foi defendida por pessoas a quem admiro muito.
– Sei tudo sobre a sua crença, Srta. Blair. Não sou ignorante dessa filosofia. Ela até soa correta e racional. O único problema é que não leva em conta vários aspectos.
– É mesmo? Quais?
– A natureza humana. A história da humanidade. A tendência de os maus vitimarem os fracos e a necessidade dos fracos de proteção. Aventure-se sozinha nos vilarejos de Campanha ou nas ruelas de Marselha ou Istambul, ande pelas espeluncas de Londres e veja o que acontece com uma mulher sozinha e desprotegida.
– Os senhores de antigamente davam proteção a seus servos. O que não significa que era correto exigir a vassalagem em troca.
Ele riu.
– Senhores, servos. Que visão nefasta a senhorita tem da vida das mulheres. Não precisa ser desse jeito.
– Mas pode ser – disse ela. – O senhor sabe que pode. A lei faz isso.
A ênfase que ela deu ao “senhor” foi tão sutil que ele se perguntou se não passava de fruto de sua imaginação. Ela cutucou uma velha ferida com muita delicadeza, contudo ele sentiu a dor de qualquer forma. Uma raiva obscura se instilou nele.
Ela voltou a atenção para a costa. Um leve rubor em seu rosto indicava o reconhecimento de que tinha ido longe demais. Elliot controlou sua reação, mas pensamentos predatórios agora penetravam em sua mente. Ele ponderou o que seria preciso para ser senhor dessa mulher, para fazer com que se dobrasse diante dele.
– Desculpe-me, lorde Elliot. Eu não deveria...
– Está fazendo a impertinência aumentar, Srta. Blair. Melhor teria sido deixar que sua insinuação voasse para longe junto com a brisa.
Só que ela não o fizera, e ele se perguntava por que falara de maneira tão segura.
– Está se referindo a boatos sobre minha mãe, não é?
Ela pensou duas vezes na resposta enquanto olhava para ele.
– Admito que o fato de ela haver se retirado para o campo durante seus últimos anos de vida foi interpretado como feito de seu pai.
Elliot sabia que essa história corria solta nas salas de estar de ricos e pobres. Diziam que sua mãe tinha um amante e que seu pai a punira mandando o homem para a morte em uma colônia distante e depois aprisionando-a em uma propriedade rural.
Seria verdade? Ele e seus irmãos haviam concluído que o amante fora real, mas não a parte sobre o cárcere. O próprio pai lhe jurara não ter feito o que as pessoas falavam. Porém, o exílio da mãe estimulara a fofoca, a ponto de ela mesma passar a acreditar na história.
Ele a via na biblioteca, com os cabelos escuros pairando acima de livros e papéis, perdida em pensamentos. Quase totalmente afastada dos filhos. Por ser o caçula, havia passado a maior parte do tempo com ela lá. Ela emergia de sua concentração às vezes para guiá-lo pelas estantes, escolhendo livros para ele ler ou comentando os escritos dele.
No entanto, algumas poucas vezes o vínculo se estreitara, como no dia em que ela recebeu uma carta que a deixou em prantos. Era a notícia da morte de um oficial do Exército. Foi ele que fez isso. Para me punir por amar outra pessoa.
Tinha sido um amor ilícito. Ela era uma adúltera. Ainda assim, o sofrimento dela o comoveu. Só que ele entendeu que a acusação dela era o delírio de uma alma sofredora.
Elliot sentiu a presença da Srta. Blair ao seu lado. Nem mesmo a raiva conseguia sufocar a reação que sua sensualidade causava nele. A droga das memórias do pai dela insinuava que uma mulher reclusa fora a única a entender como o sangue dos Rothwells podia tornar um homem cruel. Sua certeza de que isso era mentira não seria suficiente para diminuir as acusações a seu pai.
– Elas se conheciam – disse a Srta. Blair. – Nossas mães.
– Minha mãe conhecia os ensaios de Artemis Blair, contudo nunca mencionou uma amizade.
Isso não queria dizer nada, uma vez que ela nunca mencionava assunto nenhum.
– Acho que elas nunca se conheceram pessoalmente, porém elas se correspondiam. Eram ambas escritoras. Tinham interesses em comum. Uma vez sua mãe enviou um poema para a minha. Encontrei-o entre os papéis dela depois que morreu. Um belo poema que refletia uma alma inteligente e sensível.
Ele fixou o olhar na cidade costeira que se aproximava, Sorrento. Estava enfurecido por saber que a mãe compartilhara seus textos com Artemis Blair e nunca com os próprios filhos.
– Sua mãe a encorajou a cometer adultério?
As palavras soaram cruéis e duras mesmo ao ouvido dele.
– Ela pregava a crença no amor livre em suas cartas?
Ele imaginou a famosa Artemis Blair virando a cabeça de sua mãe, o que levaria a tanto sofrimento depois.
– Creio que elas falavam principalmente de literatura em suas cartas. Minha mãe só a mencionou uma vez, quando soube de seu falecimento.
– O que ela disse?
A frase soou mais como um rosnado do que como uma pergunta.
– Ela disse: “Ele devia tê-la deixado ir embora, mas, é claro, por ser um homem, não poderia.”
Isso só fez com que um trovão rugisse nas nuvens que se acumulavam em sua mente. Ele queria dizer que um homem não poderia permitir que a mãe de seus filhos fugisse em uma aventura amorosa. É claro que seu pai não tinha opção a não ser negar essa liberdade a ela.
Só que, a seu modo, ela havia encontrado uma forma de fugir de qualquer maneira.
Pelo canto do olho, Elliot percebeu um membro da tripulação se demorar muito com o cordame. O homem alongava a tarefa só para ficar apreciando a beleza de Phaedra Blair.
A tempestade em sua cabeça estourou. Relâmpagos espocaram. Ele estreitou os olhos e disse quatro palavras. O homem saiu às pressas.
A Srta. Blair percebeu.
– O que você lhe disse?
– Nada importante. Uma expressão napolitana exigindo privacidade.
Nem se deu o trabalho de explicar que as palavras em italiano significavam mexa-se ou morra.
Um vento forte os ajudou a fazer um bom tempo de viagem. A paisagem foi ficando cada vez mais bonita à medida que cortavam a baía em direção à península de Sorrento. Montanhas altas abraçavam a costa, mergulhando no mar em declives acentuados e verdes. Pequenas praias abrigavam alguns barcos e casas se encarapitavam no despenhadeiro, como se fossem cubos brancos e em tons pastel a pairar acima da água.
Contornaram a pequena península, passaram pela ilha de Capri e seguiram para a costa amalfitana. Encostas mais íngremes, perigosas e inacessíveis assomavam sobre eles. O cenário deixou Phaedra boquiaberta. Lorde Elliot estava certo. Teria sido uma pena perder essa visão.
– O que está havendo ali? – perguntou ela, apontando para alguma atividade na colina.
– O rei está construindo uma estrada para Amalfi. Estão escavando a encosta.
Ela notou que a estrada ficaria acima das vilas de pescadores.
– De qualquer forma, vai ser preciso subir ou descer a colina – falou ela.
– Pelo menos os habitantes não vão depender de barcos e burros. E a vista lá de cima será espetacular.
Ele apontou para a frente, mais adiante na costa.
– Positano fica logo depois daquele promontório. Daqui já é possível avistar a torre de vigia normanda nele. Há muitas delas nesta costa, construídas para proteger o reino normando medieval que havia aqui da ameaça dos sarracenos.
Phaedra andou para a proa do barco a fim de ver melhor a torre assim que entrasse em seu campo de visão. A velha torre de pedra era bem alta e isolada. Pequenas janelas a pontuavam, como se fosse um castelo medieval. Parecia uma intromissão de estrangeiros do norte naquela terra banhada pelo sol.
– Aquelas janelas altas dão para o leste e o oeste – disse ela. – Não há nada entre aquela e o horizonte do mar e nada entre a outra e o pico da montanha alta. Vamos ficar aqui muitos dias?
– Calculo que sim.
Phaedra perdera a noção do tempo enquanto fora prisioneira de Sansoni. Agora começava a se situar.
– O solstício de verão se aproxima. Imagino se a torre não será usada para algum ritual.
– Esta é uma região católica. Os rituais pagãos foram banidos há milhares de anos.
Apesar de lorde Elliot ter respondido, ela podia apostar que ele estava muito distante. Estava tomado por um silêncio que pouco tinha a ver com sons. Era algo interior, como se seu espírito tivesse se recolhido para as câmaras secretas de sua alma.
Phaedra se arrependia de ter se referido, ainda que discretamente, à situação da mãe dele. Deixara a frase escapar no auge de sua irritação com lorde Elliot por ele pressupor que estava certo e ela, totalmente errada. Já devia ter aprendido a não entrar em discussões a respeito do modo como pensava e vivia. No que tangia a esse assunto, aquele homem lhe era tão estranho quanto os pescadores daquelas vilas pitorescas.
Aproximaram-se da torre, passando bem perto quando o vento inflou as velas do barco. Parecia deserta.
– Quem é esse amigo a quem vamos visitar? – perguntou ela. – Como vamos chegar logo, acho que eu deveria saber o nome.
– Matthias Greenwood. Foi um dos meus professores na universidade.
Ela conteve sua surpresa. Conhecia Greenwood. Tinha tentado em vão localizar sua casa em Nápoles.
– Ele não vai se incomodar por você ter trazido mais bagagem do que ele esperava?
– Ele ficará muito satisfeito por ter a companhia da filha de Artemis Blair. Ele encontrou com ela algumas vezes, eu acho.
– Sim, com certeza. Eu o vi em algumas ocasiões; a última, no funeral da minha mãe.
Matthias Greenwood tinha sido um dos muitos acadêmicos a prestar homenagem à mulher que deixara o mundo inteiro confuso.
Também era alguém que poderia lançar luz sobre o “outro” homem. Phaedra pensara que esse atraso na viagem para Pompeia seria uma amolação. No entanto lorde Elliot a estava ajudando a riscar um dos itens em sua lista de pendências naquela terra.
– Ele a admirava. Disse que, se tivesse nascido homem, ela teria sido reconhecida como uma das maiores especialistas em línguas românicas antigas da Inglaterra – contou lorde Elliot.
Ele ainda falava em um tom distraído, como se apenas metade de sua mente prestasse atenção.
Phaedra olhou para a cidade de Positano com mais otimismo e não apenas porque sua missão poderia ser favorecida ali. Ela não se pautava por regras sociais estúpidas, mas a maior parte do mundo, sim. Imaginava como seria recebida ao chegar com lorde Elliot. Viajar com ele implicava coisas que ela não tolerava e que não gostaria que as pessoas presumissem.
O Sr. Greenwood provavelmente entenderia que era melhor não presumir nada.
Phaedra sentiu seu companheiro de viagem olhando para ela e virou a cabeça. Ele tinha voltado a si.
– Ele costuma receber convidados os mais variados – disse Elliot. – Pode ser que haja outras pessoas lá. Você vai se comportar, não?
Ela confiou que ele não esperaria que ela bancasse a amante dócil em uma vã tentativa de ser alguém que os convidados tolerariam.
Mesmo que quisesse criar esse disfarce, nem saberia por onde começar.
CAPÍTULO 6
Positano ficava numa angra apinhada de barcos. As construções em tons pastel pairavam acima do horizonte, amontoadas umas sobre as outras no declive acentuado da montanha. A cidade toda era uma sequência íngreme de casas que seguiam na direção do mar.
Phaedra deu uma olhada no despenhadeiro alto, no mar infinito cor de safira e na folhagem de um verde muito escuro. Nunca tinha visto nada tão fascinante em toda a sua vida.
– Qual casa pertence ao Sr. Greenwood? – perguntou ela.
Lorde Elliot se aproximou e estendeu o braço para que a vista dela o acompanhasse.
– Aquela lá em cima, com colunas.
As colunas sustentavam a cobertura de uma comprida varanda na casa mais ao alto. A casa fora erigida um pouco acima da área central da cidade. Sua distância criava uma coroa para os prédios que se espalhavam como uma cascata abaixo dela.
– Vamos voar até lá ou ele vai jogar uma cesta para nos apanhar aqui embaixo?
Um dos membros da tripulação já tinha se ocupado em resolver o problema e voltava com a solução: dois garotos que o seguiam puxando burros.
Phaedra permitiu que os garotos a ajudassem a subir no lombo de um animal. Lorde Elliot só precisou levantar a perna para montar no dele. Era mais alto que o bicho, e suas botas arrastavam pelo chão. A tripulação amarrou suas valises e malas em dois outros burros.
Ela riu deles mesmos.
– Que comitiva, lorde Elliot! Fará um desfile impressionante pela cidade. Talvez eu pegue meu livro de esboços e registre para a posteridade sua elegância sobre esse belo corcel.
Ele tocou seu burro para assumir a dianteira e deu um tapa no traseiro do animal dela ao passar.
– Cuide de sua própria montaria, Srta. Blair. Tome cuidado para não cair ou não vai parar de rolar até chegar à baía.
Ela logo entendeu o que ele queria dizer. Os burros passavam por caminhos muito íngremes, que tinham sido cortados em degraus baixos e estreitos e depois pavimentados. Ela pensou que ia mesmo cair no mar. Os animais sabiam onde pisavam, mas, sentada de lado na sela, Phaedra precisava ter cuidado para proteger a própria vida.
Eles foram um espetáculo e tanto. Os habitantes do vilarejo saíram às portas e janelas para espiar, curiosos, os estrangeiros que iam para a mansão localizada acima da cidade. Crianças começaram a segui-los, formando um verdadeiro séquito. Duas meninas andaram ao lado de Phaedra por um tempo, espiando com curiosidade as pontas ruivas de seu cabelo que apareciam sob o xale. Algumas mulheres fizeram leves mesuras quando lorde Elliot passou, sabendo, por seu porte e seus modos, que ele tinha sangue nobre.
Ela relaxou ao se adaptar à andadura do burro. Não ousava olhar para trás, mas se permitiu olhar as casas de pedra, lindamente rústicas. Varandas simples e coberturas de telhas ajudavam a criar um amálgama de formas e cores. Algumas casas maiores tinham azulejos decorados em volta das portas principais. Todas pareciam muito antigas, como a torre. Estuque cobria a maioria delas, quase sempre trabalhado com ornamentos e cornijas decorativos. Algumas construções eram brancas, mas muitas ostentavam detalhes em vermelho e rosa.
Os sons da vida na comunidade ecoavam ao redor conforme as pessoas chamavam umas às outras pelas janelas abertas e nas ruas do mercado embaixo. Em algum lugar, um homem cantava descontraidamente uma ária de Rossini enquanto cumpria outra tarefa qualquer.
As ruelas iam ficando mais planas à medida que se aproximavam da mansão. Era como se alguém tivesse retirado um pedaço da montanha para que a grande casa pudesse ser construída.
Um homem apareceu numa das arcadas entre as colunas da varanda. Era alto e magro, com uma basta cabeleira branca, nariz aquilino e postura ereta. O maxilar de traços muito retos terminava em um queixo partido. Phaedra só tinha visto Matthias Greenwood umas poucas vezes, porém sua aparência era tão peculiar que se tornava inesquecível.
Ele acenou em saudação, depois saiu e andou na direção deles.
– Rothwell! Que alívio vê-lo finalmente. Meus companheiros anseiam pela sua perspicácia.
Eles se cumprimentaram e Elliot apresentou Phaedra.
– Já tive a honra de conhecê-la, Rothwell. Fico feliz em vê-la de novo, Srta. Blair, e em circunstâncias menos penosas do que da última vez. Sua mãe era muito estimada por humildes acadêmicos como eu e foi muito generosa conosco. Sou-lhe grato pelas pessoas a quem me apresentou em suas recepções.
Os criados apareceram e Matthias deu ordens a respeito das bagagens.
– Entrem e descansem. Meus outros convidados estão fazendo a sesta, mas se reunirão a nós em breve.
Ela subiu o caminho de pedras e seguiu Matthias até a varanda. Olhou através dos arcos e perdeu o fôlego.
A visão era impressionante, um ângulo que exigia uma tela e um pincel. Se a vista montanha acima era incrível, olhá-la de cima para baixo era de deixar qualquer um embasbacado. Os telhados e faixas de circulação da cidade se espalhavam pela encosta. O declive era tão acentuado que era de espantar que se tivesse construído alguma coisa nele. O mar infinito, o céu tão próximo, o promontório que abraçava a paisagem – tudo isso criava um panorama vasto e irreal de um lugar precário no mundo, uma visão empolgante e romântica, mergulhada em beleza e, ao mesmo tempo, repleta de perigos.
– É um espanto que o senhor não viva somente nesta varanda e nem se importe se o restante da casa cair aos pedaços, Sr. Greenwood.
– É quase isso o que faço, Srta. Blair. Aqui e nos outros terraços e varandas. Mesmo não sendo católico, vou à igreja da paróquia para acender velas pela alma de um parente distante cuja herança me permite viver no paraíso.
Uma mulher os saudou quando entraram na sala de visitas arejada, de piso de mármore. Era uma mulher local, elegante e de pele morena. Tinha um rosto lindo e comovente, marcado por um traço de melancolia. Chamava-se signora Roviale e a forma como entrou e cuidou de acomodá-los indicou que aquela era a sua casa. Matthias Greenwood não vivia sozinho no paraíso.
Outro convidado se juntou a eles logo em seguida, depois que um criado trouxe vinho. Phaedra o reconheceu também. Ele não fora ao enterro de sua mãe, mas tinha estado uma ou duas vezes em sua casa quando ela era garota. Tinha uma beleza tão nobre, de traços finos, que ela quase se apaixonou na primeira vez que o viu.
– Veja quem está aqui para celebrar sua visita, Rothwell – disse Matthias. – Escrevi contando a ele que você viria de Nápoles e ele e a esposa vieram de Roma para vê-lo. Srta. Blair, permita-me apresentá-la ao Sr. Randall Whitmarsh, cavalheiro, acadêmico e outro refugiado da Inglaterra.
O Sr. Whitmarsh adotara os modos e o estilo europeu continental, reflexo de seus longos anos vivendo no exterior. Sussurrou um “belíssima” ao se inclinar para beijar a mão de Phaedra com tamanho exagero que ficou provado que deixara para trás o jeito reservado britânico ao adotar Roma como sua residência principal.
– É uma alegria conhecer a filha da indomável Artemis Blair – disse ele, dando um sorriso charmoso e encantador.
Phaedra não era insensível à atenção de um belo homem. Notou que lorde Elliot ficou observando de soslaio enquanto o Sr. Whitmarsh se demorava segurando a mão dela.
– Soube recentemente do falecimento de Richard Drury – disse o Sr. Whitmarsh, dando um tapinha na mão dela. – Vejo que ainda está de luto, mas creio que tenha sido uma opção muito saudável viajar para o exterior para suavizar seu sofrimento.
– O modo como costumo me vestir tornou desnecessário encomendar um guarda-roupa apropriado ao luto, entretanto meu pai não ia querer isso de qualquer forma. Na última vez que o vi, ele proibiu terminantemente que eu ficasse de luto.
Ela puxou a mão da pegada suave do Sr. Whitmarsh.
– Não esperava encontrar tantas pessoas que conheceram minha mãe na remota Positano.
– Nós três somos membros da Sociedade dos Dilettanti, Srta. Blair. Por ser mulher, sua mãe não podia participar. Vez ou outra, porém, nós lhe fazíamos uma visita para prestar nossa homenagem – explicou o Sr. Whitmarsh. – Considerando o conhecimento dela em letras românicas, não é de surpreender que encontre tantos dos que a conheceram ao visitar as terras do antigo império.
– Também é membro da Sociedade, lorde Elliot?
– Entrei depois de voltar da minha viagem pelo continente.
Ela só tinha 18 anos quando a mãe morreu, por isso ainda não chegara a frequentar os salões e jantares em que Artemis recebia acadêmicos e artistas. Porém, ali estavam, diante dela, alguns integrantes do círculo de amizades de sua mãe, mesmo que talvez pertencessem ao círculo mais distante.
Phaedra teria que descobrir se algum daqueles homens tinha percebido ou ouvido falar no homem que recebera as últimas afeições de Artemis.
Phaedra Blair estava aliviada por ela e a signora Roviale não serem as únicas mulheres na festa. A Sra. Whitmarsh desceu do quarto logo.
Phaedra entendeu de imediato que a Sra. Whitmarsh não tinha uma mente tão aberta quanto a do marido. Não falava muito, parecia mais um passarinho pálido, entretanto tinha um rosto tão expressivo que era possível adivinhar seus pensamentos. Ao perceber que Phaedra e lorde Elliot tinham chegado juntos, a Sra. Whitmarsh deu um sorrisinho superficial e lançou para a signora Roviale um sutil olhar de desdém. Depois, resignada, se recolheu a sua silenciosa desaprovação da companhia de mulheres perdidas.
Naquela noite, ao jantarem ao ar livre na varanda, lorde Elliot teve a elegância de incluir a Sra. Whitmarsh na conversa sobre a sociedade londrina, na certeza de que isso lhe agradaria. Phaedra permitiu que os cavalheiros a cobrissem de conselhos sobre as maravilhas da Antiguidade que ela não poderia deixar de visitar.
– A senhorita tem que ir aos sítios de Paestum – exortou Matthias. – Rothwell, ordeno que a leve até lá. Não entendo esses ingleses que percorrem confeitarias e bordéis em Pompeia e ignoram alguns dos mais belos templos gregos do mundo que há no entorno.
– Se a Srta. Blair desejar, iremos visitar os templos – disse lorde Elliot.
Matthias pareceu muito um acadêmico naquele momento. Com o cabelo branco despenteado, o maxilar cortando o ar e o nariz aquilino empinado, ele entoava a lição como se ela fosse uma universitária, algo que nunca lhe permitiram, por ser mulher.
– É por isso que estou aqui, Srta. Blair. Rothwell e Whitmarsh admiram os romanos, mas meu foco é mais antigo. Esta terra foi colônia dos gregos quando Roma ainda era uma cidadezinha com cinco cabeças de gado. Depois de ver os sítios de Paestum, a senhorita entenderá a superioridade do pensamento grego.
– Se isso não exigir que minha visita se prolongue por muito tempo, talvez eu aceite seu conselho.
Após o jantar, a signora Roviale levou as mulheres para longe da varanda, deixando os homens a discutir e debater sobre a Antiguidade. Phaedra não gostaria de manter uma conversa forçada com a crítica Sra. Whitmarsh. Assim, alegou cansaço e se isentou de mais obrigações sociais.
Uma criada a conduziu ao quarto. Quadrado e branco, com o mesmo piso de mármore visto por toda a mansão, tinha janelas grandes que davam para um terraço estreito que se estendia acima dos arcos da varanda principal. Alguém já tinha desfeito suas malas e guardado as roupas em um armário de madeira escura. Havia uma jarra de água na bancada para lavar o rosto e as mãos. Era de cerâmica, com flores vermelhas e folhas azuis. Cores semelhantes decoravam os azulejos em volta da lareira e o peitoril de uma janela.
Phaedra abriu as portas duplas que davam para o terraço de modo que a brisa do mar e os últimos raios do crepúsculo entrassem. Sons da varanda chegavam até ela: Matthias em tom professoral e Elliot rindo, assim como o ruído de conversa. Ela se perguntou se sua mãe algum dia realmente fora aceita naquelas discussões masculinas. Quando os Dilettanti a prestigiavam, era sempre uma relação de homens com uma mulher, com tudo o que isso implicava?
Cadeiras foram arrastadas e despedidas foram feitas. O silêncio tomou a mansão. Ela se levantou a fim de se preparar para dormir. Começava a soltar os fechos do vestido quando um ruído mínimo do lado de fora chamou sua atenção. Um feixe de luz dourada atravessou o terraço e alcançou a noite. Ela foi até lá e espiou.
Lorde Elliot estava de pé na outra extremidade do terraço, em mangas de camisa e colete. Phaedra tinha certeza de não haver feito barulho, porém ele olhou na direção dela como se tivesse feito.
– Estava imaginando se Matthias a teria acomodado neste quarto – disse Elliot.
Ela caminhou até o piso de terracota lá fora. A luz vinha de outro conjunto de portas ao lado do dela. O terraço era compartilhado por dois quartos.
– Parece que nosso anfitrião entendeu errado – disse ela.
– Possivelmente. No entanto, se for para dividir um terraço com alguém, prefiro você à Sra. Whitmarsh.
Ela arriscou se afastar um pouco mais, contudo permaneceu do próprio lado no espaço comum. Da balaustrada de pedra podia-se ver o mar, que agora brilhava lá embaixo com milhões de pequenos reflexos de estrelas.
– O Sr. Whitmarsh disse que os Dilettanti faziam homenagens a minha mãe. Fico feliz de saber que a capacidade dela era reconhecida.
– Um homem honesto teria que admitir o brilhantismo dela. É claro que havia outros menos honestos que diminuíam isso.
– É claro. Você a conheceu?
– Ainda estava na universidade quando ela faleceu. Ouvi falar nela e a vi na cidade, contudo não estava em posição de visitá-la.
– O que achava dela?
Ele se virou e descansou o quadril na balaustrada, olhando para a noite na direção dela. Phaedra desejou que ele não parecesse tão lindo e sedutor. Desejou que a luz se apagasse para que seu rosto ficasse no escuro.
– Fui criado em uma casa de homens e meu pai não compreendia bem as mulheres. Então, saber da sua mãe foi uma revelação. Os colegiais falavam muito dela. Alguns se apaixonavam por ela, outros a achavam irreal, mas sem dúvida ela os fazia questionar a ordem das coisas. Quanto a mim, eu a achava bonita, interessante, inteligente e provavelmente perigosa.
– Acho que ela era perigosa. Se o mundo fosse cheio de Artemis Blairs, os homens não poderiam continuar a ser o que são. Todos teriam que questionar a ordem das coisas, como você.
– Era o que me passava pela cabeça, entretanto eu era um garoto na época e não gostava de perigos reais. Tive que conhecer a filha dela para entender essa parte.
Foi a vez dela de rir.
– Dificilmente eu poderia representar um perigo para você.
– Você se engana, como eu me enganei. O perigo não vem de você.
Não, não vinha. Isso ficara evidente aquela noite. Um poder fluía dele, em impulsos viris. Isso não a surpreendia nem a assustava. Porém, a forma como seus próprios instintos femininos reagiam, sim.
– Não me culpe por suas piores inclinações, lorde Elliot.
– Elas não parecem estar entre as ruins, que dirá as piores, querida Phaedra. Ao contrário, elas me parecem naturais, inevitáveis e até necessárias.
Sua voz baixa e segura lançava cordas de veludo que a amarravam. O coração dela foi parar na boca e sua pulsação acelerou. Ele não se mexeu. Não se aproximou nem um centímetro, contudo pareceu estar ao seu lado, correndo a mão por seu corpo todo.
– Quero você.
O tom calmo e descontraído agitou o sangue dela como a brisa agitava seu cabelo.
– Quero-a sem resistências ao prazer e implorando por mim. Quero-a nua e tremendo e despida de suas...
– Basta. Se é isso o que pensa das mulheres...
– Só de você, querida dama. Você lança um desafio a cada homem que vê. Não se surpreenda se um deles o aceitar.
– Como ousa...
– Ah, sim, eu ouso. Estou a ponto de ousar neste exato momento. Você sabe disso e ainda assim está aqui. Se não quisesse que eu ousasse, nunca teria saído por aquela porta.
Ela abriu a boca para negar, mas as palavras lhe faltaram.
Com um sorriso vago, ele se afastou da balaustrada. O coração dela deu um salto e suas pernas fraquejaram.
– Esse perigo que incita em mim a excita.
Elliot andou em direção à luz do próprio quarto.
– Quem está zumbindo em volta de quem agora, Srta. Blair?
– Um nome estranho para se dar a uma filha, Phaedra – ponderou Matthias em voz alta.
Era a manhã seguinte e ele e Elliot tomavam café na varanda. Lá embaixo, Positano despertava após o nascer do sol.
– Duvido que haja outra mulher com esse nome na Inglaterra, considerando a referência – acrescentou Matthias. – É muito típico de Artemis Blair decidir que a fonte não importa e valorizar sua exclusividade.
Levando em conta que a Phaedra da mitologia teve um caso com o enteado, era mesmo uma escolha estranha. Elliot duvidava que a crença da Srta. Blair e da mãe no amor livre fosse tão longe assim.
– Acho que ela escolheu o nome pela sonoridade. É um belo nome – disse Elliot.
– Eu poderia pensar em uns cinco ou seis melhores. Não, seu descuido por este primeiro dever maternal sugere que ela era indiferente a essa parte da vida.
– Você falava bem dela na época em que fui seu aluno e a Srta. Blair a idolatra. Vamos calar as observações que ela possa ouvir.
– Ela ainda está deitada e não vai ouvir minhas alusões à falta de impulsos femininos de sua mãe, entretanto sua repreensão faz sentido.
De fato, ela ainda estava na cama, dormindo profundamente. Elliot tinha ido até lá e espiado antes de descer. As portas do quarto dela ainda estavam abertas, como uma forma de contradizer as últimas palavras dele. Veja como você não é nem um pouco perigoso para mim. Sua honra e a lei me protegem do pior e meu autocontrole cuidará do resto.
Ele vira um cabelo cor de cobre espalhado pelo travesseiro e uma pele alva enroscada nos lençóis. Uma perna linda e esguia se alongava sobre a roupa de cama. A tentação de entrar lá só para ficar observando-a o tomou, assim como o aborrecimento por vê-la dormindo tão profundamente, algo que ele não tinha conseguido fazer.
Nos últimos tempos, andava pensando nela demais. Ficando com a cabeça nas nuvens por muito tempo. Desejando demais. Achava que a companhia dos amigos e as obrigações do trabalho diminuiriam a importância da presença dela e assim ele voltaria a mente para algo mais normal.
– Está vivendo como um rei aqui, Greenwood – disse, para se distrair das imagens de Phaedra tão etereamente erótica em seu repouso. – As melhorias desde a minha última visita são visíveis.
Matthias ficou radiante.
– Suponho que esteja falando da casa e não da minha companheira, apesar de eu não saber ao certo dizer qual me agrada mais. Trazer as pedras até aqui foi um inferno, mas valeu a pena. Você deveria se juntar a mim, Rothwell. Compre uma mansão antiga e veja como seu dinheiro inglês pode render nesta costa.
– Ele rende porque o lugar é tão inacessível que é preciso navegar milhas até chegar a uma cidadezinha que fica logo ali atrás da montanha. Preciso da vida urbana com mais frequência do que duas vezes ao ano. Contudo, se está feliz em seu isolamento, fico satisfeito por você.
– Não estou nem um pouco isolado. Sempre tenho companhia. Os amigos vêm da Inglaterra, de Roma, de Nápoles e até de Pompeia. Recebi o superintendente do município no mês passado. Ele não se incomodou de subir a montanha em lombo de burro.
– Gostaria que me desse uma carta de apresentação – pediu Elliot. – Quero ver tudo o que escavaram nos últimos anos, não só as atrações abertas para visitantes.
Matthias levantou a sobrancelha, curioso.
– Quer ver os afrescos reveladores das delícias noturnas? A Srta. Blair não vai poder entrar, por mais que eu peça.
– Vou pesquisar outros assuntos. Antes de partir, gostaria que me concedesse alguns minutos para discutirmos o rumo que meu trabalho está tomando.
– Está combinado, então. Amanhã cedo nos trancaremos em meu escritório para falar sobre isso. Sinto falta de dar aulas. Depois me lembro de quão limitados muitos de meus alunos eram e a saudade vai embora.
– Brincar de professor e aluno vai ser muito útil. Vai clarear meus pensamentos. Ah, estou obrigado como cavalheiro a dizer que creio que você tenha entendido mal minha amizade com a Srta. Blair.
– É mesmo? Que pena!
Naquele momento, a dama em questão se juntou a eles. Com seu vestido preto esvoaçante e o cabelo solto, fazia pensar numa linda feiticeira celta. Matthias a convidou para se sentar à mesa. Serviu-lhe café e ficou atrapalhado, o que revelava quanto a companhia dela o provocava.
– Espero que tenha dormido bem em minha humilde casa, Srta. Blair.
– Sua casa é tudo, menos humilde, e dormi muito bem. O som e a brisa do mar são muito relaxantes – assegurou Phaedra, e então virou a cadeira para olhar a cidade. – O que estão fazendo lá embaixo? O que é aquela coisa vermelha perto da água?
– Ah, deve ser o carro para a procissão. Eles devem estar pintando-o. Daqui a três dias é a festa de San Giovanni, São João Batista. É uma grande festa religiosa por aqui. Nenhum barco sai para pescar nesse dia.
– Vai haver uma procissão?
– Uma procissão, uma missa e uma festa. Entre outros rituais, eles colhem nozes nas montanhas para fazer óleo.
– Interessante – disse ela. – Coincide com o solstício. Deve ser outro exemplo de festa pagã da qual os cristãos se apropriaram.
– A Srta. Blair está alcançando uma reputação em estudos mitológicos comparável à da mãe dela em letras românicas – informou Elliot. – Ela publicou um livro sobre o assunto que é muito benquisto.
– Que louvável!
Matthias conseguira falar de forma a diminuir o feito, apesar de admirá-lo.
– Esta data em comum é uma coincidência – continuou ele. – O deus do sol não era uma figura de destaque nas mitologias grega e romana. Apolo é associado a ele, mas o próprio sol, Hélio, desempenha um papel menor. Talvez por haver tanto sol por estas terras, não tenha sido preciso apaziguar esse deus.
– Há muito sol no Egito e, ainda assim, seu deus sol reinava supremo – contrapôs Elliot. – Acho que a Srta. Blair está certa sobre a festa de San Giovanni.
– Talvez – disse Matthias. – E o simbolismo das nozes, o que seria?
Phaedra riu.
– Vou pensar em uma resposta antes de partir, já que o senhor está disposto a ser flexível em suas opiniões.
– Para uma mulher bonita, posso ser completamente flexível, senhorita Phaedra. É meu maior defeito.
Ele olhou para fora da varanda. Um homem se aproximava, vindo por um caminho do norte.
– Eis Whitmarsh, de volta de sua caminhada matinal. Prometi mostrar-lhe um novo tesouro que encontrei. Gostaria de ver minha humilde e querida coleção de artefatos, Srta. Blair?
– Com certeza, Sr. Greenwood.
Ela aceitou sua mão para se levantar. Whitmarsh se juntou a eles ao entrarem na casa.
Elliot estava curioso para ver se Phaedra conseguiria manter a pose de indiferença em relação a ele que assumira nessa manhã. Ela nem sequer enrubescera. Não ficara agitada. Havia notado sua presença de forma indiferente e segura de si. Sua atitude só fez provocar o lado mais obscuro do desejo que o atormentava.
Esse lado agora lhe dizia que ele deveria tê-la seduzido no terraço na noite anterior, como desejara. A ideia fazia mais sentido a cada minuto que passava.
CONTINUA
Um homem que comete um crime precisa encobrir seus rastros, mesmo que eles sejam deixados pelos melhores sapatos que o dinheiro poderia comprar.
Para encobrir os seus, lorde Elliot Rothwell retornou à casa de sua família, em Londres, e se juntou às pessoas recém-chegadas para o baile promovido por seu irmão. Agiu como se houvesse se ausentado por breves instantes para tomar um pouco de ar naquela gloriosa e agradável noite de maio.
Ao cruzar o limiar da porta, começou a cumprimentar os presentes. Belo e alto, o irmão mais novo do quarto marquês de Easterbrook – e também o Rothwell considerado mais amistoso e normal – distribuiu sorrisos a todos, alguns bastante calorosos a certas damas.
Quinze minutos depois, tão suavemente quanto voltara à festa, Elliot puxou assunto com Lady Falrith. Retomou uma conversa que deixara em suspenso duas horas antes e elogiou a dama com tanto tato que ela se esqueceu de que ele havia se ausentado. Em questão de minutos, Lady Falrith parou de se dar conta da passagem do tempo.
Enquanto jogava seus encantos em Lady Falrith, Elliot varria o salão com os olhos à procura do irmão. Não Hayden, que, junto com a esposa, Alexia, era o anfitrião da noite. Estava em busca de Christian, o marquês de Easterbrook.
Os olhares dos dois não se cruzaram, mas o retorno de Elliot ao baile foi notado por Christian. O mais velho se afastou de um círculo de lordes no fundo da sala e caminhou para a porta.
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Elliot dançou uma valsa com Lady Falrith antes de continuar a missão da noite. Fez isso como penitência por estar usando a dama e como um agradecimento sem palavras por sua ajuda involuntária. A noção de tempo de Lady Falrith poderia ser bastante vaga e sua memória, um tanto benevolente. De manhã, ela acreditaria que Elliot havia lhe dispensado atenção a noite inteira e que tinha flertado com ela. Sua autoconfiança seria útil caso algo desagradável acontecesse em relação às atividades de Elliot na cidade naquela noite.
Finda a valsa, ele de novo pediu licença. Ao contrário de Christian, que seguira solitário e direto para a porta, Elliot caminhou pelo salão distribuindo cumprimentos e conversando com todos, até chegar à nova cunhada.
– Está tudo indo bem, não acha? – perguntou ela, seu olhar percorrendo o espaço em busca de confirmação.
– É um triunfo, Alexia.
E, para ela, era mesmo. Um triunfo da personalidade e do temperamento. E talvez um triunfo do amor.
Alexia não era o tipo de mulher que a sociedade esperaria que pudesse se casar com Hayden. Não tinha família nem fortuna. Era tão sensata que nunca aprendera a dissimular, que dirá flertar. Porém, naquela noite ela era a anfitriã no lar de um marquês, com seu cabelo escuro impecavelmente penteado como ditava a última moda e usando roupas igualmente elegantes. A órfã pobre se casara com um homem que a amava como nunca amara antes.
Elliot acreditava que aquele casamento daria certo. Alexia cuidaria para que isso acontecesse. A história já provara que o amor era uma emoção perigosa para os homens da família Rothwell. Contudo a sensata e prática Alexia saberia usar o amor para controlar o perigo. Elliot suspeitava que ela já dominara a fera várias vezes.
Ele se uniu a ela na admiração do sucesso da noite. Em um canto distante, uma mulher pequena de pele muito clara era o centro das atenções. Um penteado adornado de plumas em abundância valorizava seu cabelo louro. Ao mesmo tempo, ela se mantinha vigilante na atenção que uma bela jovem recebia dos rapazes ali por perto.
– O triunfo é seu, Alexia, no entanto, creio que minha tia pretende levar o troféu desta temporada de caça.
– É compreensível a felicidade de sua tia Henrietta por apresentar a filha à sociedade. Dois nobres vinham fazendo galanteios a Caroline nos últimos tempos. Mas ela está irritada comigo hoje porque não convidei um deles para o baile, apesar de ela haver ordenado que eu o fizesse.
Elliot estava pouco interessado nos motivos de irritação da tia. Na lista de convidados, entretanto, tinha todo o interesse.
– Não vi a Srta. Blair, Alexia. Nenhum vestido preto. Nenhum cabelo solto. Hayden a proibiu de convidá-la?
– De jeito nenhum. Phaedra está no exterior. Ela embarcou há cerca de quinze dias.
Ele não queria parecer curioso demais, mas...
– No exterior, você disse?
Os olhos violeta dela se suavizaram, divertindo-se. Voltou toda a sua atenção para ele, o que, considerando o assunto em pauta, não era algo que ele desejasse.
– Primeiro, Nápoles, depois, uma excursão ao sul. Eu avisei a ela que você costuma dizer que não é muito sensato visitar a península Itálica no calor do verão, mas ela queria investigar os rituais e festividades da estação.
Alexia inclinou a cabeça como se fosse confidenciar um segredo.
– Acredito que o falecimento do pai a afetou mais do que ela admite. O último encontro que tiveram foi muito emotivo. Phaedra ficou bastante abalada. Acho que fez a viagem para se animar um pouco.
Ele não duvidava de que se encontrar com o pai em seu leito de morte fosse algo bastante emotivo. Ele mesmo ficara muito consternado ao perder o pai. Nessa noite, porém, estava mais interessado no paradeiro da Srta. Blair e em assuntos discutidos com o pai dela antes da despedida final.
– Se souber onde ela vai se hospedar em Nápoles, posso fazer-lhe uma visita quando eu for, caso ela ainda esteja por lá.
– Ela deixou o endereço do local onde pretendia ficar. Foi indicação de um amigo. Se Phaedra ainda não tiver voltado quando você for, ficarei feliz se puder visitá-la. A independência dela às vezes beira o descuido, e isso me preocupa.
Elliot duvidava de que Phaedra Blair gostasse de ter alguém preocupando-se com ela. Mas Alexia se preocupava de qualquer forma.
– Ai, meu Deus! – murmurou Alexia.
Elliot se virou e viu o motivo do suspiro da cunhada. Henrietta vinha na direção deles, com suas plumas esvoaçantes e seus olhos sonhadores e brilhantes lampejando de tanta determinação.
– Acho que ela está atrás de você – sussurrou Alexia. – Fuja enquanto é tempo ou ela vai pegá-lo para reclamar. Easterbrook permitiu que eu recepcionasse os convidados do baile sem o consentimento dela. Henrietta acredita que o fato de morar nesta casa a torna sua dona.
Elliot era mestre em sair à francesa. Quando a tia alcançou seu destino, ele já se fora havia muito tempo.
Depois de pegar um atalho pelo corredor dos criados e dar uma corrida subindo as escadas dos fundos, Elliot se aproximou dos aposentos de Christian. Entrou na sala de estar e encontrou o irmão esticado em uma cadeira no canto.
O olhar penetrante que Christian lhe lançou deixou claro que sua mente não estava nem de longe tão relaxada quanto o corpo.
– Não encontrei – disse Elliot, respondendo à pergunta que aqueles olhos escuros faziam. – Se estiver na casa ou no escritório dele, está muito bem escondido.
Christian expirou com força. O som que fez demonstrava seu aborrecimento. O assunto em questão vinha cerceando sua liberdade de passar os dias fazendo o que bem entendesse. Elliot não fazia ideia de quais atividades seriam essas. Na verdade, ninguém fazia.
– Ele deve ter queimado tudo ao saber que estava à beira da morte – sugeriu Elliot.
– Merris Langton demonstrava ter uma personalidade tal que é improvável que pensasse em poupar os outros, mesmo à beira da morte.
Christian enfiou um dedo por baixo de sua gravata atada com perfeição e deu um puxão para soltá-la. Sua aparência estava impecável naquela noite, tudo nele demonstrava se tratar de um lorde. Os tecidos de suas vestimentas exibiam a qualidade superior em cada fio. Contudo o gesto ao desatar a gravata mostrava seu desconforto em relação à formalidade da noite e o longo cabelo escuro preso em um rabo de cavalo indicava seu lado excêntrico.
Elliot imaginou que o irmão estaria louco para se desvencilhar daqueles símbolos formais da civilização e se refestelar no robe exótico que sempre usava. O mais comum era encontrá-lo descalço em seus aposentos, não usando meias de seda e sapatos. No momento, entretanto, as únicas indicações de seu jeito informal em casa eram a sobrecasaca desabotoada e a forma lânguida como seu corpo alto se moldava ao forro da cadeira.
– Você verificou se havia tábuas soltas no piso ou outros esconderijos? – perguntou Christian.
– Cheguei a arriscar ser descoberto. Permaneci por tempo de mais nos dois prédios e um guarda estava passando quando saí do escritório no centro financeiro. Estava escuro, não havia luz perto da porta, mas...
Sua descrição da aventura sugeria mais receio do que ele de fato tivera. Elliot acreditava que, em certas circunstâncias, não havia opção a não ser infringir a lei. Só nunca esperara reagir de forma tão fria e indiferente quando se visse numa dessas situações.
– Se alguém perguntar, você ficou no baile a noite toda – disse Christian. – Langton possuía uma pequena editora que publica textos revolucionários. Também era um homem com certo gosto pela chantagem, como descobrimos. Foi uma pena ele ter morrido antes que eu pudesse pagar-lhe. Agora o manuscrito de Richard Drury está sabe lá Deus onde e sua mentira sórdida sobre nosso pai ainda pode vir a público.
– Vou garantir que isso não aconteça.
– Você acha que alguém pode ter pegado o manuscrito antes de você? É provável que eu não tenha sido a única pessoa que Langton abordou.
– Não vi indícios de que alguém já tivesse mexido nas coisas dele. Nem mesmo seu advogado ou testamenteiro. Ele acabou de ser enterrado; foi esta tarde. Não acho que o manuscrito estivesse nem na casa nem no escritório quando ele morreu.
– Esse é um obstáculo muito inconveniente.
– Inconveniente, mas não intransponível. Vou descobrir o manuscrito e o destruirei, se necessário.
A atenção de Christian focou nele.
– Você fala com muita confiança. Sabe onde está o maldito manuscrito, não sabe?
– Faço ideia. Se estiver certo, vamos acabar com isso em breve. Mas pode haver custos para você.
– Pois pagarei. Richard Drury foi membro do Parlamento e, apesar de suas ideias extremistas, um intelectual respeitado. Se suas memórias incluírem tal acusação contra meu pai, muitas pessoas vão acreditar nele.
Vão acreditar porque a acusação reforça o que já creem ser verdade.
Elliot não verbalizou a resposta, mas aquela ideia rondava sua cabeça desde que soubera que Merris Langton planejava publicar as memórias de Richard Drury. O livro incluiria segredos e intrigas que repercutiriam mal sobre a reputação de muitos poderosos, tanto do passado quanto do presente. A acusação que supostamente existia contra o pai deles combinava bem demais com o que a sociedade já pressupunha sobre seu casamento.
Porém, a sociedade estava errada em relação à maior parte do caso. O pai lhe explicara isso em um momento em que os homens não mentem.
Você era o favorito dela. Ela o queria para si e eu permiti, já que você era o caçula. Era um alívio vê-la às vezes se lembrar de que era mãe. Só que agora estou morrendo e mal o conheço. Não espero amor ou pesar de você, mas não vou deixar que pense que sou um monstro, como é provável que ela tenha dito.
– Onde você acha que o manuscrito está? Mantenha-me informado de cada passo, Elliot. Se não estiver fazendo progressos, cuidarei de tudo sozinho.
Só não estava claro como Christian faria isso. Essa incerteza levara Elliot a assumir a tarefa. Seu irmão podia ser cruel ao silenciar ecos do passado.
– Apesar de não ter achado o manuscrito, descobri documentos financeiros no escritório de Langton. A editora está em apuros. Os documentos referentes à propriedade dela foram de grande valia. Richard Drury foi sócio desde o início. Sem dúvida foi esse o motivo pelo qual Langton recebeu suas memórias.
Christian achou isso interessante.
– Teremos que abordar o advogado de Langton e ver quem vai ficar com tudo agora.
– Os documentos indicam que a parte de Drury foi deixada para a única filha. Portanto, ainda há alguém vivo para lidar com o assunto. E provavelmente foi cúmplice no esquema de chantagem desde o início.
– Única filha? Maldição!
Christian apoiou a cabeça no encosto da cadeira, fechou os olhos e emitiu um resmungo exasperado.
– Não me diga que é Phaedra Blair. Que inferno!
– Sim, Phaedra Blair.
Christian xingou novamente.
– É bem do estilo do Sr. Drury, com suas ideias radicais e vida não convencional, deixar para uma mulher, sua filha bastarda, a sociedade num negócio – afirmou, depois desviou o olhar para baixo e prosseguiu: – É claro, ela deve ficar feliz com o dinheiro se a editora estiver em apuros. Talvez até agradeça por ter um motivo para não publicar as memórias do pai. Com certeza os textos abordam assuntos pessoais sobre ela e a mãe.
– É possível.
Mas Elliot não acreditava que as negociações seriam tão simples assim. A Srta. Blair era uma complicação inoportuna. Ela poderia ver na publicação das memórias e seus segredos uma possibilidade de ganhar um bom dinheiro e salvar a editora. Ou, pior, poderia acreditar que seus ideais de justiça social seriam fortalecidos quando ela revelasse o calcanhar de aquiles da sociedade culta.
– O livro dela foi publicado por Langton, não? Está na biblioteca aqui, em algum lugar. Confesso que nunca o li. Não tenho muito interesse em mitologia e folclore, que dirá em estudos que misturam ambos – confessou Christian.
– Ouvi dizer que a base teórica é mais do que respeitável.
Elliot dava a mão à palmatória, quando era o caso.
– Ela herdou a inteligência dos pais, junto com a indiferença pelas convenções sociais e pelas regras de conduta.
– Então, nas atuais circunstâncias, nada do que lhe foi legado é boa notícia para nós.
Christian se levantou, abotoou o casaco e verificou se o colarinho estava arrumado. Ia voltar ao baile.
– É melhor não contar a Hayden sobre isso. Ele é muito protetor em relação à esposa, e a Srta. Blair é amiga dela. Seria melhor que eles continuassem na ignorância, para o caso de você ser obrigado a agir mais rispidamente.
– A Srta. Blair zarpou para Nápoles há duas semanas. Farei a transação com ela antes que Alexia tenha oportunidade de vê-la.
– Vai segui-la até lá para isso?
– Eu pretendia ir a Pompeia no outono, de qualquer forma. Quero estudar as recentes escavações para meu próximo livro. Só vou antecipar a viagem.
Andaram lado a lado até a escada. A cada degrau, os acordes musicais iam ficando cada vez mais altos e o burburinho de vozes enchia os espaços majestosos. Ao descerem para a alegre turba, Elliot observou a expressão distante e distraída do irmão.
– Não se preocupe, Christian. Vou me certificar de que a acusação contra nosso pai nunca seja publicada.
O rápido sorriso de Christian não deixou sua expressão mais leve.
– Não duvido de suas habilidades ou de sua determinação. Não era sobre isso que estava pensando neste exato momento.
– Então era sobre o quê?
– Estava pensando em Phaedra Blair e imaginando se existe um homem na face da Terra que consiga, como você disse, fazer transações com ela.
Elliot seguia no escuro, iluminando o caminho com a chama da pequena lamparina que carregava.
Os convidados tinham ido embora e os criados estavam dormindo. Hayden e Alexia provavelmente gozavam das delícias do leito conjugal em sua casa na Hill Street. Christian ainda devia estar acordado, mas não deixaria seus aposentos pelos próximos dias.
A luz fraca se refletia nas molduras douradas na galeria. A lua lançava um pouco mais de luminosidade através dos janelões que vazavam outra parede. Elliot parou na frente de dois retratos. Não tinha descido no intuito de ir àquele cômodo, mas seu objetivo tinha tudo a ver com o homem e a mulher imortalizados naquelas imagens.
O artista tinha usado fundos semelhantes para os dois quadros, como se uma pintura desse continuidade à outra. Era bom ver seus pais juntos assim, duas metades de um todo, mesmo que a unidade implícita fosse mentira. Podia contar nos dedos o número de vezes que ao menos vira os dois no mesmo ambiente.
Não vou deixar que pense que sou um monstro, como é provável que ela tenha dito.
Seu pai se enganara nessa avaliação. Exceto por um único desabafo, a mãe nunca falara com ele sobre a separação e seus motivos. Ela quase não falava nada nas horas que passava com Elliot na biblioteca em Aylesbury.
O medo que sentira do pai vinha dele mesmo, não viera da mãe. Mas apreciara os raros momentos de atenção que recebera daquele pai que parecia não se lembrar de que tinha três filhos, não apenas dois.
Continuou sua caminhada para a biblioteca pensando na longa conversa que tivera com o pai, a última e única da vida inteira. Aprendera verdades importantes naquele dia, sobre seres humanos e paixões, sobre orgulho e alma e sobre a forma como uma criança pode não enxergar direito o mundo à sua volta.
Tinha chegado ao fim dessa conversa já sem medo. Após aquelas confidências, sentira-se como filho de seu pai pela primeira vez na vida.
Correu a lamparina pelas lombadas de couro dos livros na biblioteca. Seguiu para a estante do canto, buscando a prateleira mais baixa. Depois da morte da mãe, havia trazido para ali os livros pessoais dela, os que ele a vira lendo em seu exílio em Aylesbury.
Não sabia por que trouxera aqueles livros para Londres. Talvez assim uma parte dela permanecesse onde a família costumava se reunir. Seguira esse impulso muito antes da conversa com o pai, um ato de rebeldia na tentativa de finalmente pôr fim à separação dela de suas vidas.
Ninguém nunca notara o acréscimo desses livros às centenas de volumes. Bem embaixo, em um canto obscuro, nem o fato de suas encadernações não combinarem com as dos outros tinha importância.
Passou o dedo por um grupo de obras não encadernadas. Finas e pequenas, eram as brochuras que pertenceram à mãe. Retirou-as da estante, espalhou-as pelo chão e aproximou a lamparina de seus títulos.
Viu o que queria. Um ensaio contra o casamento, escrito trinta anos antes por uma famosa intelectual. A autora vivera de acordo com as próprias crenças. Chegara a recusar uma proposta de casamento do amor de sua vida, Richard Drury, mesmo estando grávida.
Ele carregou a brochura e a lamparina até a estante onde Easterbrook arrumara as novas aquisições da biblioteca. Pegou uma dissertação sobre mitologia que ainda exalava cheiro de couro novo.
Levou os dois livros para seu quarto e começou a lê-los. Estava se preparando para enfrentar Phaedra Blair.
CAPÍTULO 2
– Signora, não acho que eu deva pagar por estes cômodos se nem mesmo quero usá-los.
Phaedra conseguiu expressar sua objeção juntando seus conhecimentos de latim aos poucos termos que aprendera do dialeto napolitano. Esperava que, ainda que as palavras não fossem suficientes, seu tom comunicasse seu desacordo em relação à conta que a signora Cirillo lhe apresentara.
Recebeu uma resposta longa e raivosa, despejada de forma igualmente eloquente. A signora Cirillo não se importava se Phaedra tinha ficado nos cômodos contra sua vontade. Nem gostava de ter guardas reais posicionados do lado de fora de sua hospedaria modesta porém respeitável. Queria ser paga e tivera a ousadia de acrescentar um valor referente ao incômodo que os guardas representavam para os outros hóspedes.
Apesar de tentada a dizer à mulher que mandasse aquela conta para o rei, Phaedra se controlou e foi buscar as moedas no quarto.
Fora mesmo um erro gastar uma semana naquela cidade antes de partir para as ruínas. Se sua reclusão durasse muito tempo, não teria dinheiro para comprar a passagem de volta para a Inglaterra, que dirá continuar sua missão por ali. A ideia era fazer uma viagem curta ao exterior. Não viera a passeio, afinal. Estava lá por um motivo e tinha assuntos urgentes a tratar quando voltasse para casa.
Amansada por mais uma semana, a signora Cirillo foi embora. Phaedra voltou para onde estava sua bagagem e refletiu sobre a situação. Procurou em sua valise e encontrou um xale preto. Desfez o nó que havia em uma de suas pontas, soltando o objeto escondido nele.
Uma joia grande caiu em seu colo e seus matizes brilharam na pouca luz do quarto. Pequenas imagens finamente entalhadas se destacavam em branco-perolado contra o fundo vermelho-escuro. Retratavam uma cena mitológica do deus Baco e seu séquito.
Fora o objeto mais caro que a mãe lhe deixara ao morrer. Para garantir o futuro de minha filha, deixo-lhe meu único objeto de valor, meu camafeu de ágata, uma antiguidade de Pompeia, ela havia acrescentado à mão ao testamento.
Phaedra nunca tinha pensado muito sobre aquele aditamento nos seis anos que se passaram desde a morte da mãe. Conservava com carinho aquela peça, assim como tudo o que lembrava a brilhante e extraordinária Artemis Blair. O valor da joia a deixava mais tranquila em relação a seu futuro financeiro, era bem verdade, mas ela esperava nunca ter que vendê-la. Agora, no entanto, a frase belamente escrita pela mãe levantava perguntas que exigiam respostas.
Amarrou o camafeu de volta no xale, guardou-o e retornou para a sala de estar. Abriu as persianas do janelão que dava para oeste. A baía pareceu muito azul a distância e a ilha de Ischia podia ser avistada em meio à névoa longínqua.
Uma brisa marinha penetrou no cômodo, esvoaçando alguns de seus cachos. A voz do guarda também chegou até ela. Phaedra debruçou-se na janela do terceiro pavimento para ver com quem ele conversava.
Viu alguém de cabelos escuros bem diante do capacete de metal e da imponente bainha da espada do guarda. O cabelo tinha um corte da última moda e se movia de forma romântica ao soprar da brisa. Pertencia a um homem bem mais alto do que o guarda, de ombros largos e que parecia usar uma sobrecasaca cara. As botas eram do tipo visto nos pés mais elegantes de Londres. A julgar pelos trajes, tratava-se de um cavalheiro inglês.
Ela apurou o ouvido para escutar a conversa. Sentiu-se surpreendentemente reconfortada por haver alguém de seu país ali, mesmo que só estivesse pedindo instruções de como andar pela cidade nas ruas mais escondidas do Bairro Espanhol.
Ela considerou a hipótese de chamá-lo e pedir ajuda. Não tinha certeza se os ingleses ali, em Nápoles, sabiam que ela fora presa. Mas também duvidava de que dessem a mínima caso soubessem. Os que a conheciam não aprovavam seu comportamento nem queriam sua companhia. Phaedra normalmente também não apreciava a companhia deles, mas sua inabilidade de se mesclar à sociedade inglesa ali tinha lhe criado problemas muito antes de seu inesperado encarceramento.
As coisas pareciam não ir bem para o inglês: os gestos do guarda deixavam claro que ele se desculpava respeitosamente. Estou cumprindo meu dever. Eu colaboraria se pudesse, mas...
O inglês começou a se afastar. Caminhou para o outro lado da calçada e parou. Olhou para cima, franzindo de leve as sobrancelhas perfeitas. Seus olhos escuros alertas percorreram a fachada do prédio.
Phaedra sentiu o coração ficar mais leve – e não só porque o homem tinha um rosto que faria a pulsação de qualquer mulher acelerar. Ela o conhecia. Era o famoso historiador lorde Elliot Rothwell que estava lá embaixo. Alexia dissera que ele visitaria Nápoles no outono, contudo parecia que ele antecipara a viagem.
Ela se inclinou mais para fora da janela e acenou. Lorde Elliot respondeu com um leve movimento de cabeça. Ela levou um dedo aos lábios e apontou para o guarda. Depois gesticulou indicando os fundos do prédio.
Lorde Elliot se afastou fingindo estudar a arquitetura das construções erguidas ao longo da rua. Phaedra fechou a persiana e correu para o outro lado do apartamento. Abriu a janela e olhou para o pequeno jardim embaixo.
Lorde Elliot levou um tempo para chegar lá. Por fim, ela o viu entrar pela extremidade oposta, vindo pelo portão que dava para a ruela fétida que separava os imóveis. Ele seguiu sem nenhuma hesitação. Caminhou na direção dela, alto e confiante, como um homem acostumado a fazer o que bem entendia. Mesmo que a natureza não o houvesse agraciado com um rosto tão bonito e angular, só seu jeito relaxado de andar e seus modos seguros já causariam forte impressão.
Ela ficou tão feliz por ver alguém conhecido que nem se importou por aqueles olhos escuros a avaliarem tão minuciosamente. Percebera um olhar semelhante por sobre o sorriso manso de lorde Elliot quando se conheceram, no casamento de Alexia. Era a reação de um homem que a achava vagamente interessante, mesmo desaprovando sua aparência, suas crenças, sua história, sua família, seu... tudo.
– Srta. Blair, estou aliviado em vê-la bem-disposta e em boa forma.
Outro daqueles sorrisos mansos acompanhou a saudação.
– Também estou aliviada em vê-lo, lorde Elliot.
– Alexia me deu o nome de sua hospedaria e me pediu que viesse visitá-la, para verificar se não precisava de nada.
– Foi muita gentileza dela. Lamento não poder recebê-lo adequadamente, agora que chegou.
– Parece que não pode me receber de forma nenhuma.
Era bem característico dele fazer algumas gracinhas antes de entrar no assunto.
– Imagino que esteja surpreso, até mesmo chocado, por minha prisão.
– Sou um homem que raramente se choca e quase nunca se surpreende. Contudo admito estar um tanto curioso. A senhorita só está em Nápoles há poucas semanas. A maioria das pessoas levaria pelo menos um ano para acumular crimes suficientes para merecer tal punição.
Ele estava se divertindo com a situação? Naquelas circunstâncias, Phaedra achou a conversa inteligente de lorde Elliot bastante inadequada.
– Não houve crime nenhum, só um pequeno mal-entendido.
– Pequeno? Srta. Blair, há um membro da guarda real na sua porta.
– Não estou convencida de que foi o rei que o colocou lá. Um dos funcionários do tribunal fez isso comigo. Ele é um homenzinho abominável, com poder em demasia e pouca inteligência.
Lorde Elliot cruzou os braços, o que o fez parecer crítico e poderoso. Ela odiava quando os homens assumiam essa postura com ela. Era a personificação de tudo o que havia de errado com a metade masculina da humanidade.
– O guarda mencionou um duelo – disse lorde Elliot.
– Como é que eu iria adivinhar que esses homens fossem tão possessivos a ponto de tentarem se matar porque uma mulher conversou com...
– Espadas e adagas. O guarda disse que houve sangue.
– Marsilio é um jovem artista. Não passa de um garoto. Teimoso, porém muito gentil. Eu não fazia ideia de que iria interpretar erroneamente a nossa amizade a ponto de desafiar Pietro simplesmente porque passeei com ele às margens da baía.
– É lamentável para a senhorita que Marsilio, o garoto teimoso e gentil, seja parente do rei. Ele quase foi morto no duelo. Felizmente, o guarda disse que ele irá sobreviver.
– Ah, graças a Deus! Apesar de as pessoas exagerarem bastante por aqui. Pelo que entendi, ele não ficou muito ferido, ainda que qualquer ferimento possa se agravar neste clima. Fiquei muito pesarosa com o ocorrido. Eu disse isso. Expressei meu arrependimento e minhas desculpas falando bem devagar no meu idioma e também em latim, para ser bem entendida, mas o homenzinho intrometido, odioso e estúpido não me ouviu. Ele até me acusou de ser uma meretriz, o que passou de todas as medidas. Expliquei que nunca tirei nem um centavo de homem nenhum.
– A senhorita declarou sua virtude e honra ou disse ao homenzinho intrometido e estúpido que acha que as mulheres devem dispor de seu corpo livremente?
Ela não gostou nada do olhar profundo e sagaz dele ao expressar essa ousada insinuação. Se não estivesse em uma situação tão ridícula, Phaedra lhe diria que era, sim, uma mulher pouco convencional, mas isso não dava a ele o direito de ser rude. No momento, contudo a prudência tinha que falar mais alto.
– Expliquei minha crença no amor livre, o que é diferente de dispor do corpo livremente, lorde Elliot. Tentei instruí-lo. Ficaria feliz em fazer o mesmo pelo senhor, se algum dia tivermos um encontro mais oportuno.
– Que proposta tentadora, Srta. Blair. Contudo espero que as reflexões filosóficas tenham ficado esquecidas em sua cela. Seria melhor ter se declarado uma cortesã. Aqui se sabe tudo sobre esse assunto. Por outro lado, conceitos radicais sobre o amor livre, bem...
O gesto dele com as mãos disse tudo. O que esperava, mulher? Você vive fora das regras sociais e até a sua aparência convida a mal-entendidos.
Mais uma vez ela engoliu o que seu instinto lhe mandava dizer. Discutir só serviria para afastá-lo, e ela queria muito que ele ficasse um pouco mais. Não se dera conta da própria solidão ali e da tristeza que o isolamento lhe causava. Só ouvir o próprio idioma já era um alento.
– Acha que vão me soltar logo?
De novo o mesmo gesto com as mãos, só que agora acompanhado de um dar de ombros.
– Não há constituição aqui. Nem se julgam os casos observando precedentes, como na Inglaterra. Na verdade, não existe um direito codificado, é uma monarquia à moda antiga. A senhorita tanto pode ser libertada amanhã como ser mandada de volta à Inglaterra, ou levada a julgamento, ou permanecer nesses aposentos por anos, ao bel-prazer do rei.
– Anos! Isso seria uma barbaridade.
– Acho que não vai chegar a esse ponto. Contudo pode levar alguns meses até que seu homenzinho odioso e estúpido perca o interesse no caso.
Ele olhou para a fachada do prédio em frente e depois para o portão do jardim.
– Srta. Blair, não posso mais ficar escondido neste jardim, ou também correria o risco de me tornar hóspede dos guardas do rei. Tomarei providências para que lhe mandem comida e deixarei uma quantia em dinheiro para pagar pelo apartamento, pois com certeza continuarão a lhe cobrar o aluguel. Também vou pedir que um adido inglês venha, de tempos em tempos, verificar se está tudo bem.
Meu Deus, ele estava indo embora! Talvez ela envelhecesse naqueles cômodos, ou até morresse de fome quando o dinheiro acabasse.
Ela não era o tipo de mulher que dependesse de um homem para sustentá-la ou protegê-la. Além do mais, lorde Elliot não havia conquistado seu apreço durante a conversa. Contudo estar diante de um futuro incerto a ajudou a superar sua aversão natural a pedir ajuda àquele homem.
– Lorde Elliot – chamou, fazendo-o parar após ele ter dado três passos na direção do portão do jardim. – Lorde Elliot, os adidos ingleses não estão interessados em minha situação. Pergunto-me se o senhor consideraria a hipótese de interceder em meu favor. Tenho certeza de que o homenzinho odioso ficaria muito impressionado com suas ligações familiares e sua fama como historiador. Se pedisse em meu nome, talvez ajudasse.
A expressão dele foi simpática, porém nada encorajadora.
– Sou o caçula. Minha posição é bem menos importante aqui e minha fama pouco conta. Esse tribunal não tem motivo algum para me conceder favores.
– Estou certa de que será mais bem recebido do que eu jamais conseguiria. Pelo menos, conhece o idioma deles. Vi-o conversar com o guarda.
– Não sou fluente o bastante no dialeto para defendê-la bem.
– Ficaria grata por qualquer tentativa de sua parte.
Que fim levara o cavalheirismo? Não acreditava nele, mas gente do tipo de Elliot Rothwell, sim. Ela era uma donzela em perigo e esse cavalheiro deveria se prontificar a ajudá-la, não ficar parado no meio do jardim, com aquele jeito de quem adoraria nunca tê-la avistado na janela.
Ele refletiu um distante, analisando o pedido. Ela sentiu seu sorriso congelar até virar uma careta suplicante.
– Não estamos na Inglaterra, Srta. Blair. Mesmo que eu tenha êxito, talvez a senhorita não aprecie as condições impostas por eles em troca de sua liberdade.
– Vou me esforçar e acatar quaisquer condições, ainda que reze para que não me ponham em um navio de volta para a Inglaterra de imediato. Vim até aqui e preciso, na verdade quero, visitar as escavações de Pompeia. Antes de ir embora. É um antigo sonho meu.
Ele parou para pensar por um longo tempo. Seu suspiro deixou claro que sua decisão ia contra o próprio bom senso.
– Prometi a Alexia que cuidaria do seu bem-estar, então farei o que puder. Encontrar o homem que ordenou sua detenção pode não ser tarefa fácil. Qual é o nome dele? Preferia não ter que andar pelos corredores do tribunal perguntando por um homenzinho odioso e estúpido. Ele poderia ouvir a descrição, o que não nos ajudaria em nada. Além disso, ela provavelmente se aplica a muitos outros funcionários da Justiça.
Ele havia aceitado seu pedido não por um desejo genuíno de ajudá-la, mas para cumprir o que considerava seu dever. Mas Phaedra Blair estava desesperada demais para entrar em detalhes a respeito de suas motivações.
– O nome dele é Gentile Sansoni. Que cara é essa? O senhor o conhece?
– Já ouvi falar dele. Sua autodefesa caiu em ouvidos moucos, Srta. Blair. Sansoni não fala inglês nem latim. Ele é um legítimo napolitano, o que não é boa notícia.
Certamente Phaedra Blair chamara a atenção de Gentile Sansoni, capitão da polícia secreta do rei. É claro que, com seu longo cabelo ruivo esvoaçando ao sol, solto e descoberto, ela chamaria a atenção de toda a Nápoles.
Elliot ouvira falar sobre o algoz da Srta. Blair durante sua última visita à cidade, fazia três anos. Sansoni fizera sua fama a custa de sangue, em 1820, quando o breve governo republicano fora violentamente vencido e a monarquia, restaurada.
Diziam que Sansoni era responsável pelo desaparecimento inesperado de carbonários, ou constitucionalistas, e também que abusava de sua autoridade em setores que tinham pouco a ver com política. Não era o tipo de homem que se impressionaria com um cavalheiro inglês, e Elliot também não acreditava que encarasse de forma positiva uma tentativa sua de recorrer a seus superiores para mudar a decisão tomada pelo capitão.
Elliot não poderia negociar sobre o livro do pai da Srta. Blair enquanto ela permanecesse presa, por isso aceitara de imediato tentar libertá-la. Só tinha fingido hesitar para fazer com que ela se sentisse em dívida.
Também se deixara levar pela desprezível tentação de fazer com que aquela defensora declarada da independência feminina implorasse pela ajuda de um homem. De alguma forma, pelo simples fato de existir, a Srta. Blair conseguia fazer com que um homem se sentisse desafiado. Os instintos dele tinham reagido à altura.
Contudo o dever falara mais alto e, no dia seguinte, ele se dispôs a fazer o que estivesse a seu alcance por ela. Sansoni não se deixaria impressionar por cavalheiros ingleses, mas talvez pelo menos ouvisse um capitão da Marinha britânica. A corte de Nápoles ainda reverenciava a memória de Nelson, e Elliot suspeitava que Sansoni veria o herói inglês quase como um irmão que um dia, muito tempo antes do rápido governo republicano, ajudara a impedir outra tentativa de golpe contra o rei.
Sempre havia navios britânicos no porto de Nápoles, e Elliot foi visitar um cujo capitão ele conhecia. Dois dias depois de se encontrar com a Srta. Blair, Elliot levou Augustus Cornell – que vestia seu traje militar completo e impecável – ao longo de quilômetros de corredores de palácios até encontrarem o covil de Gentile Sansoni.
Como era apropriado a um funcionário da Justiça que trabalhava nas sombras, a sala de Sansoni se localizava nos fundos do prédio e num andar tão baixo que, a caminho dela, as escadas passavam de fino mármore para simples travertino. Apesar da localização, Sansoni a dotara de móveis suntuosos o suficiente para parecer importante. Arrumara um local grande o bastante para suas ambições, mas o teto baixo e a falta de janelas davam ao lugar um aspecto cavernoso.
– Pode deixar que eu falo – disse Cornell, com seu rosto suave e pálido que expressava a formalidade dos homens de sua patente. – Já tive que tratar com ele antes e todo cuidado é pouco.
– Sabe falar a língua?
O napolitano era um dialeto bem diferente daquele falado em Roma ou em Florença. Mesmo tendo muito de latim, que Elliot conhecia, o lorde não saberia o bastante dele para não ficar em desvantagem ao usá-lo ali.
– Esperemos que o suficiente. Fique aqui. Agirei como mediador, física e simbolicamente.
Elliot ficou perto da porta, como ordenado. Cornell atravessou a sala e se aproximou do homenzinho moreno sentado na larga mesa na outra extremidade. A descrição que a Srta. Blair fizera de Sansoni fora perfeita. Ele parecia mesmo repugnante e odioso e, naquele momento, muito desconfiado. Suas sobrancelhas negras encobriam os olhos de águia amendoados, tão comuns naquela região.
Sansoni ofereceu vinho, fizeram um brinde e depois entabularam uma conversa. Por fim, Cornell caminhou de volta até Elliot.
– Há uma complicação – disse ele, baixo. – Esse amigo da Srta. Blair, Marsilio, o que levou a pior no duelo, é parente distante do rei e recebe os favores da família real por conta de seus dotes artísticos. Também é um rapaz com quem acho que Sansoni espera casar uma de suas parentas, consolidando assim sua própria posição. Mas esse sonho é improvável de se realizar devido à origem humilde de Sansoni. Ainda assim, ele fez do bem-estar do rapaz sua missão pessoal.
O capitão aproximou o rosto do de Elliot para poder falar ainda mais baixo.
– Também creio que o rei não tenha conhecimento desse duelo. Mencionei várias vezes o título nobre do seu irmão e suspeito que Sansoni só me recebeu por temer que um marquês britânico possa levar o assunto diretamente ao rei.
Um marquês com certeza poderia, mas isso demoraria meses.
– Pode conseguir a libertação da Srta. Blair?
– Duvido muito. O duelo não foi tudo. O rei possui uma coleção de arte e o acesso a uma de suas salas é proibido a mulheres, pois contém imagens antigas de natureza carnal. A Srta. Blair convenceu o jovem Marsilio a deixá-la entrar lá. Agora é acusada de invasão de domicílio e de gostar de arte licenciosa. Sansoni também disse que ela é uma cortesã. Apesar de Nápoles ser infame por permitir que as mulheres exerçam atividades desse tipo, a Srta. Blair se esgueirou por lugares que a corte frequenta...
– Ela não é cortesã. Ponho a minha mão no fogo. Ela é incomum, é verdade. Excêntrica. Uma livre-pensadora, porém honesta. É claro que Sansoni sabe que pessoas assim existem. Explique isso a ele.
– A função desse homem é deter livres-pensadores e ele a cumpre com deleite. Ainda assim, vou tentar novamente.
Mais uma vez Cornell atravessou a sala. A conversa foi mais breve dessa vez. Os olhos negros de Sansoni buscaram Elliot e o examinaram dos pés à cabeça.
Cornell voltou.
– Ele falou mais rápido dessa vez e não compreendi tudo. Mas perguntou com que autoridade você e sua família se intrometem neste caso. Exige saber se você tem parentesco ou alguma outra relação com ela.
Elliot não tinha qualquer relação com ela, nem autoridade sobre o caso, porém não poderia admitir isso.
– Diga-lhe que ela é uma boa amiga da família. Easterbrook a recebe como a uma irmã.
Essa mentira deslavada nunca seria refutada. Christian faria o mesmo naquelas circunstâncias.
– Diga que tentamos exercer nosso controle sobre ela, contudo ela fez essa viagem inesperada a Nápoles para fugir da nossa influência. Vim para cuidar de seu bem-estar e posso garantir que não vai haver mais problemas. Se ele der a entender que aceita suborno, diga-lhe que pagarei para tê-la de volta.
A conversa de Cornell com Sansoni ficou mais animada dessa vez. O napolitano gesticulava muito, numa rápida sucessão. Quando Cornell voltou com seu relatório, parecia um pouco preocupado.
– Temo que tenha havido um mal-entendido. E que esclarecê-lo possa trazer outras complicações. Culpo minha falta de fluência no idioma por essa infeliz reviravolta nas negociações – disse ele.
– Mas ele parece bem mais calmo e amigável. Qual foi o mal-entendido?
Cornell enrubesceu.
– Não sei exatamente como, mas ele concluiu que o senhor é noivo da Srta. Blair e que ela veio para cá fugindo de um casamento arranjado que sua família aceitou devido ao polpudo dote da moça. Ele acha que você a seguiu para levá-la de volta.
– Um mal-entendido e tanto! Como isso aconteceu?
– Não tenho certeza. Devo ter usado as palavras “família”, “irmã”, “dinheiro” e “fuga” de forma confusa e dado a entender mais do que pretendia.
Cornell deu um suspiro e já voltava para a sala, para tentar corrigir seu erro, quando Elliot o pegou pelo braço, detendo-o.
– Ele está disposto a libertá-la se mantivermos esse mal-entendido?
– Sim, mas...
– Tem certeza de que é isso que ele tem em mente?
– Não posso garantir que tenha entendido direito a interpretação dele, mas...
– Então não vamos corrigir nada.
– Não estou certo de que isso seja honroso.
– Você não disse inverdades e não tem certeza do mal-entendido – assegurou Elliot, pondo a mão no ombro de Cornell. – Aceitarei isso como um presente da Providência divina e deixarei como está. Ele não é um homem que tenha contato com a comunidade britânica daqui. Se entendeu mal, nunca descobrirá a verdade.
Cornell se deixou convencer.
– Se você está tão determinado, então que assim seja. Venha comigo. Ele quer a sua palavra de que vai controlar a Srta. Blair enquanto ela permanecer neste reino. Ela deve ficar sob sua autoridade. Será responsabilizado por qualquer outro problema que ela crie. Está preparado para prestar juramento?
Elliot assentiu. Atravessou a caverna com o capitão Cornell e assumiu a guarda da Srta. Blair, concedida pelo odioso e repugnante Gentile Sansoni.
CAPÍTULO 3
A signora Cirillo chamou à porta e Phaedra se levantou da escrivaninha para atendê-la. Se aquela mulher queria mais dinheiro tão cedo...
Uma visão maravilhosa a aguardava quando abriu a porta de seus aposentos. A signora Cirillo não estava sozinha. Lorde Elliot estava ao seu lado.
Phaedra manteve a compostura, apesar da vontade de gritar de alegria. Se ele estava lá, só podia significar uma coisa.
– Lorde Elliot, entre, por favor. Grazie, signora.
A signora Cirillo arqueou as sobrancelhas por sobre seus olhos felinos escuros ao ser dispensada. Phaedra fez-lhe ver que não era bem-vinda.
– Está trazendo boas-novas, assim espero, lorde Elliot – disse Phaedra quando ficaram sozinhos.
– Sua prisão domiciliar está encerrada, Srta. Blair. Temos que agradecer ao capitão Cornell, do Euryalus. Ele falou com Sansoni em nosso favor.
– Graças a Deus pela Marinha britânica.
Phaedra correu para a janela e abriu as persianas. O guarda tinha ido embora.
– Nem acredito que vou poder dar uma volta às margens da baía hoje à noite.
Correu de volta até lorde Elliott e lhe deu um abraço.
– Sou imensamente grata.
Ele sorriu gentilmente quando ela o largou. Parecia entender sua animação e perdoar sua exuberância. Se seu olhar tinha se abrandado um pouco depois do abraço impulsivo, era compreensível. Afinal, ele era homem.
Estava magnífico, vestido em uma sobrecasaca marrom feita sob medida e botas de cano alto. O sorriso contribuía bastante para suavizar a dureza das feições dos Rothwells. Ao contrário de seus irmãos mais velhos, lorde Elliot era considerado alguém muito sorridente, o que, ao que tudo indicava, era pura verdade.
Ele olhou em volta da sala de estar e o olhar se deteve na escrivaninha.
– Temo ter interrompido sua carta.
– Uma interrupção muito bem-vinda. Estava escrevendo para Alexia, desabafando meu infortúnio, na esperança de que ao menos conseguisse jogar a carta quando o senhor voltasse aqui.
– Por que não termina a carta logo e lhe diz que está tudo bem? Posso entregá-la a Cornell. Ele vai zarpar em dois dias para Portsmouth e poderá postar a carta para Londres de lá.
– Que ideia esplêndida, se não me achar rude por rabiscar umas linhas a mais.
– Nem um pouco, Srta. Blair. Nem um pouco.
Ela se sentou e acrescentou rapidamente um parágrafo para contar a Alexia que tudo fora resolvido a contento, graças ao cunhado da amiga. Dobrou, endereçou, selou o papel e ficou com ele na mão. Lorde Elliot puxou a carta de seus dedos com delicadeza e a colocou no bolso da sobrecasaca.
Em seguida, retomou sua avaliação da sala de estar e da vista.
– A senhorita veio atender a porta. Onde está sua camareira?
– Não tenho camareira, lorde Elliot. Nem criados. Nem em Londres.
– Isso é por causa de outra crença filosófica?
– É uma decisão prática. Um tio me deixou uma renda respeitável, contudo prefiro gastá-la de outras formas.
– Muito sensato de sua parte. Contudo o fato de não ter criados é um inconveniente.
– De jeito nenhum.
Ela deu meia-volta e as dobras de seu vestido preto, assim com o cabelo comprido, esvoaçaram.
– Um vestido como este não exige uma criada para ser colocado e meu cabelo só precisa de uma boa escovadela.
– Não estava pensando nas suas vestimentas. Preciso lhe falar dos desdobramentos do caso e, sem uma criada conosco...
Estava preocupado com a reputação dela por ficar sozinha com um homem. Que encantador.
– Lorde Elliot, é impossível me comprometer, porque estou acima dessas regras sociais estúpidas. Além disso, trata-se de um encontro de negócios, não? Em situações assim, nossa privacidade não é apenas permitida, como necessária.
Ela duvidava que ele aceitasse seu raciocínio, por mais lógico que fosse. Homens como ele nunca aceitavam. Contudo, para seu espanto, ele não a refutou.
– A senhorita está certa. Prossigamos, então. Não quer se sentar? Isso vai levar um tempo.
Ele pareceu muito sério de repente. Sério, grave e... severo. Seu gesto ao apontar o sofá pareceu acompanhar uma ordem, não a sugestão que fizera tão educadamente. A tentação de permanecer de pé a atiçou. Sentou-se, mas apenas porque ele fora o responsável por obter sua libertação.
Elliot se acomodou em uma cadeira diante dela e então lhe deu uma boa olhada, como se a medisse dos pés à cabeça. Foi como se nunca a tivesse visto e tentasse interpretar a imagem peculiar que ela apresentava.
Phaedra não podia afastar da mente a impressão de que, de certa forma, nunca o tinha visto antes também. Não havia nada mais da graça suave do lorde agora, apenas um longo olhar avaliador e invasivo que a deixava desconfortável. Uma reação muito feminina retumbava dentro dela.
Isso era a pior coisa em relação aos homens bonitos. A beleza deles deixava a mulher em desvantagem quando eles lhe dirigiam sua atenção. Esse homem era muito bonito. Era também muito masculino na maioria das situações e sutilmente másculo nas piores delas. Naquele exato momento, parecia estar tentando, de maneira deliberada, deixá-la perturbada. Não o fazia por motivos carnais, disso Phaedra tinha certeza. Porém, ele emanava sedução também e o sangue dela reagia a isso.
Proteger, possuir, conquistar – tudo eram facetas do mesmo instinto primitivo, não? Um homem não poderia seguir uma dessas inclinações sem despertar as outras dentro de si, e uma mulher era facilmente subjugada se não tomasse cuidado. Ela se perguntou que parte ancestral da personalidade masculina o motivava naquele momento.
– Alexia me pediu para tomar conta da senhorita. Não menti ao lhe dizer isso. Contudo tive outros motivos para visitá-la e agora preciso tratar deles.
– Como só nos vimos uma vez, no casamento de Alexia, e muito rápido, não posso imaginar quais possam ser seus motivos.
– Acho que pode.
Agora ele a estava aborrecendo.
– Tenho certeza de que não posso.
O tom dele indicou que ela o aborrecera também:
– Srta. Blair, chegou aos meus ouvidos que a senhorita agora é sócia da editora de Merris Langton, tendo herdado a participação de seu pai no negócio.
– Essa informação não foi divulgada, lorde Elliot. Uma vez que os homens pressupõem que as mulheres não podem ter sucesso nos negócios e como muitos acreditam ser anormal até que uma mulher tente, decidi manter isso em sigilo, de forma que o preconceito não afete a empresa.
– Pretende ter uma participação ativa nela?
– Vou participar na seleção dos títulos a serem publicados, mas espero que o Sr. Langton continue a supervisionar as questões práticas. Gostaria de saber quem lhe contou isso. Se meu advogado foi indiscreto...
– Seu advogado é irrepreensível.
A atenção dele se desviou dela. Seus olhos ficaram meditativos, obscuros. O homem elegante e cosmopolita que escrevera um famoso livro de História antes de completar 23 anos agora estava distraído, absorto nos próprios pensamentos.
– Srta. Blair, lamento trazer-lhe algumas más notícias. Depois que a senhorita deixou Londres, Merris Langton faleceu da doença que o acometia. Ele foi enterrado dias antes de eu partir.
Ela temera que o Sr. Langton não chegasse a se recuperar; ainda assim, ficou surpresa ao ouvir a notícia de sua morte.
– De fato, são más notícias, lorde Elliot. Obrigada por me contar. Não o conhecia bem, contudo o falecimento de uma pessoa é sempre triste. Contava com ele para ajudar a manter a editora, mas parece que vou ter que dar um jeito sozinha.
– É tudo seu agora?
– Meu pai fundou a editora e a subsidiou desde sempre. Ele poderia passar sua parte a outra pessoa, entretanto a do Sr. Langton ficaria para o meu pai se ele morresse. Então, sim, acredito que seja tudo meu agora.
A distração dele desapareceu. Sua objetividade voltou. Fria.
– Antes da doença, Langton procurou meu irmão. Falou que publicaria as memórias do seu pai. Ofereceu-se para omitir vários parágrafos no manuscrito que tratavam da minha família se uma quantia significativa fosse paga a ele.
– Ele fez isso? Que horror! Estou chocada com essa traição para com os princípios de meu pai e peço desculpas sinceras por meu sócio.
Ela se levantou e começou a andar de um lado para outro, agitada com a revelação. Por educação, lorde Elliot se levantou também, mas ela o ignorou. Tentava compreender todas as implicações do esquema idiota do Sr. Langton. Aquilo poderia significar o fim da editora.
Ela conhecia bem a situação precária das finanças da empresa e, como proprietária, era responsável pelas dívidas não saldadas. Contava com as memórias do seu pai para quitá-las. Se o Sr. Langton comprometera a integridade dessa publicação, as pessoas talvez ficassem descrentes de todo o conteúdo do livro.
– Isso tudo é culpa de Harriette Wilson – disse ela, com sua perturbação agora beirando a raiva. – Ela estabeleceu um precedente infeliz ao pedir que seus amantes pagassem para ter os nomes retirados. Escrevi-lhe sobre isso, se quer saber. Disse a ela que era errado receber dinheiro para apagar trechos de biografias, que era só uma forma velada de chantagem. Ela só pensou no próprio bolso, é claro. Bem, eis o resultado da vida dependente que ela escolheu e da extravagância tola que pôs em prática.
Ela passou a andar com passos mais resolutos.
– Sem dúvida o Sr. Langton abordou outras pessoas também. Nunca imaginei que ele comprometeria a ética de nossa editora dessa forma.
– Srta. Blair, por favor, poupe-me do ultraje teatral. Minha família estava pronta para pagar a Langton. Vim procurá-la para dizer que pagaremos com prazer à senhorita no lugar dele.
Ultraje teatral? Ela parou de andar e o encarou.
– Lorde Elliot, espero tê-lo entendido mal. Está sugerindo que eu aceitaria seu dinheiro para suprimir partes das memórias de meu pai a seu bel-prazer?
– Esperamos que sim.
Ela se aproximou dele até estar perto o bastante para ver os pensamentos refletidos em seus olhos.
– Meu Deus, o senhor acha que eu tinha conhecimento de que o Sr. Langton fazia isso, não acha? Acredita que eu fui cúmplice.
Ele não respondeu. Só sustentou o olhar, visivelmente não acreditando no espanto dela.
Furiosa com as suposições dele e afrontada pelo insulto, ela se virou.
– Lorde Elliot, as memórias do meu pai vão ser publicadas tão logo eu chegue à Inglaterra. Cada frase delas. Foi seu último desejo, feito a mim em seu leito de morte. Eu nunca as editaria de forma a escolher as palavras dele que o mundo devesse ler. Fico muito grata por sua ajuda com o Sr. Sansoni, mas é melhor pararmos esta conversa por aqui. Se eu tivesse uma criada, ela lhe mostraria a saída. Como não tenho, o senhor pode encontrá-la sozinho.
Para deixar mais claro que o lorde estava dispensado, Phaedra se dirigiu ao quarto e fechou a porta.
Ainda não havia se recomposto quando a porta do quarto foi aberta e lorde Elliot entrou calmamente, fechando a porta atrás de si.
– Minha visita ainda não acabou e nossos negócios não estão concluídos, Srta. Blair.
– Como ousa? Este é o meu quarto, senhor.
Ele cruzou os braços e assumiu a atitude masculina e irritante de quem se considera no comando.
– Normalmente isso me impediria, entretanto a senhorita está acima de regras sociais estúpidas, como a que dita que eu não deveria entrar aqui, lembra?
Ela não considerava essa regra social tão estúpida. Tinha uma razão muito especial e primitiva de existir. Aquele era seu espaço mais privado, seu santuário. O clima foi se alterando à medida que Elliot olhava em volta, para o guarda-roupa onde suas vestimentas estavam arrumadas e a penteadeira que exibia seus objetos pessoais. Seu olhar percorreu a cama devagar e voltou para Phaedra.
Os pensamentos dele não ficaram tão ocultos quanto ele imaginou. Ela notou as mudanças sutis em sua expressão, na forma como a dureza que ele exibia se alterou, mesmo que ligeiramente. Os homens não conseguem ficar perto de uma cama e de uma mulher sem começar a devanear. Era uma maldição da natureza que eles carregavam.
Ela ficou irritada ao se pegar pensando na mesma coisa. A forma como ele acabara de insultá-la deveria ter sido suficiente para que aquela intimidade que começava a se infiltrar no quarto jamais existisse. O breve silêncio foi ficando cada vez mais pesado e cheio de uma excitação magnética que mexia com ela.
Uma imagem relampejou em sua mente: lorde Elliot olhando do alto para ela, seus rostos afastados por meros centímetros, seu cabelo escuro despenteado por motivos que nada tinham a ver com moda, seus pensamentos completamente desmascarados. Ela viu seus ombros nus e sentiu a pressão de seu corpo e a firme pegada de seu abraço na pele dela. Sentiu...
Phaedra se esforçou para afastar a imagem da cabeça, mas os olhos dele faiscaram, demonstrando que lera os pensamentos dela. Ele sabia por onde a mente dela andara, assim como ela conhecia os caminhos da dele.
Ele descruzou os braços. Phaedra pensou que ele fosse segurá-la e imaginou se não iria insultá-la ainda mais. Havia homens que a interpretavam erroneamente e, por ignorância, lhe faziam propostas, só que lorde Elliot não era estúpido. Seria uma ofensa cruel e deliberada se ele tentasse se aproveitar da tensão sexual que tinham percebido.
Ele desviou sua atenção dela, diluindo a intimidade, porém não a dissipando por completo. O orgulho de Phaedra foi poupado, ainda que, com isso, seu lado mais primitivo se ressentisse.
– O manuscrito está aqui? – perguntou ele. – A senhorita o trouxe?
– É claro que não. Por que faria isso?
Ele olhou para o guarda-roupa.
– Jura? Do contrário, terei que fazer uma busca.
– Juro, e não ouse fazer isso. O senhor não tem o direito de estar aqui.
– Na verdade, tenho sim, mas conversaremos depois.
O que isso queria dizer?
– Deixei-o em Londres, em um lugar muito seguro. Ele contém as memórias de meu pai, seus últimos desejos. Nunca seria descuidada a esse respeito.
– A senhorita o leu?
– É claro.
– Então sabe o que ele escreveu sobre a minha família. Quero que me fale disso agora. Suas palavras exatas, o melhor que se lembrar.
Não era um pedido, mas uma exigência. Sua arrogância dominadora estava rapidamente fazendo com que a gratidão de Phaedra desaparecesse.
– Lorde Elliot, o nome de sua família e o de Easterbrook não são mencionados no manuscrito.
Isso o surpreendeu. Sua severidade ficou abalada por tempo suficiente para que ela percebesse novamente o homem amigável e prestativo que entrara em seu apartamento. Não durou muito. Ele voltou a ficar distraído e meditativo, e sua mente ágil captou o que ela dissera.
– Srta. Blair, Merris Langton descreveu a meu irmão uma acusação específica contra meu pai. Há algo no manuscrito que, em sua opinião, poderia ser interpretado como uma referência a meus pais?
Ela queria que ele não tivesse feito a pergunta nesses termos.
– Há uma parte que pode ser interpretada assim, imagino eu.
– Por favor, descreva-a.
– Prefiro não descrever.
– Eu insisto. A senhorita vai me contar agora.
Sua voz, sua postura e sua expressão indicavam que nenhum argumento seria ouvido. Nunca antes na vida Phaedra tinha sido tão claramente coagida por um homem a fazer algo.
Talvez fosse melhor que ele e sua família ficassem avisados. A passagem em questão era uma entre várias nas memórias que a haviam feito hesitar.
– Meu pai descreve um jantar oferecido muitos anos antes de minha mãe morrer. Eles estavam recepcionando um jovem adido recém-chegado do Cabo. Meu pai queria saber as verdadeiras condições de vida lá. Esse rapaz bebeu demais e ficou embriagado. Acabou confidenciando algo que ocorreu em um regimento britânico na colônia.
A menção à colônia do Cabo atraiu a atenção de Elliot por completo. Ela se condoeu. Sempre tivera esperanças de que aquele rumor não fosse verdadeiro, mas...
– Prossiga, Srta. Blair.
– Ele disse que, enquanto esteve lá, um oficial britânico morreu. A causa da morte foi registrada como febre, contudo, na realidade, ele levou um tiro. Foi encontrado morto após sair para fazer a ronda. Chegaram a desconfiar do outro oficial que o acompanhava, só que não acharam provas. Em vez de contestarem o suspeito, optaram por usar uma causa mortis falsa.
Ele agora ocultava muito bem sua reação. O rosto estava impassível, como se talhado em pedra. Contudo seu silêncio foi se tornando terrível, carregado da raiva que emanava dele.
– Srta. Blair, se associou esse caso com a minha família, a senhorita deve saber do boato imoral de que meu pai teria enviado o suposto amante de minha mãe para assumir um posto na colônia do Cabo, onde morreu de febre.
Ela engoliu em seco.
– Creio que tenha ouvido algo a respeito em algum momento.
– Se a senhorita soube, muitos souberam. Nem Langton nem a senhorita tiveram qualquer dificuldade em juntar as referências e chegar a uma conclusão. Se a senhorita publicar essa parte, ficará bastante clara a insinuação de que meu pai pagou outro oficial para matar o amante da esposa. A ausência de nomes nas memórias não poupará a reputação de meu pai, e ele não pode se defender da sepultura.
– Não estou convencida...
– Droga, é exatamente o que acontecerá, e a senhorita sabe disso. Exijo que suprima esse trecho das memórias.
– Lorde Elliot, sou solidária em sua perturbação. De verdade. Contudo meu pai me encarregou de fazer com que suas memórias fossem publicadas e é meu dever fazê-lo. Pensei muito nisso. Se eu suprimir cada frase que possa ser interpretada como perigosa ou pouco lisonjeira a essa ou àquela pessoa, pouco vai restar.
Ele andou até ela e a olhou de cima com firmeza.
– Essa mentira não será publicada.
A determinação dele era palpável. Ele não precisava de expressões de raiva ou ameaças verbais para enfatizar o poder que usaria contra ela. Estava tudo ali, ao redor dela, junto com a tensão sexual que não abandonara o quarto, num clima carregado de todas as nuances daquele instinto obscuro.
– Se for mentira, pensarei em omitir – assegurou ela. – Se conseguir obter provas de que o homem morreu de febre ou se o convidado de meus pais desmentir a história, eu a suprimirei. Farei isso por Alexia, não pelo senhor ou por Easterbrook.
Essa declaração o aliviou. Um sorriso vagaroso se formou.
– Por Alexia? Que conveniente. Assim pode recuar sem me dar a vitória.
Elliot a entendia bem demais. Phaedra não dava a mínima importância para provas.
Olhou-a com gentileza. De repente pareceu inapropriado estarem tão próximos, uma proximidade que nascera num momento de fúria dele. Com a raiva saindo de cena, era a outra sensação que voltava a crescer.
Ele não recuou como deveria – e como as sobrancelhas erguidas de Phaedra pediam. Em vez disso, ajeitou uma mecha do cabelo dela e ficou olhando para aqueles fios vermelhos enquanto os enrolava com delicadeza entre os dedos.
– Seu pai incluiu o nome de algum desses homens, Srta. Blair? Do jovem adido do jantar ou do oficial suspeito?
Ele não a tocou, mas a brincadeira com o cabelo dela implicava coisas em que ela preferia nem pensar. O fato de estarem sozinhos num quarto, até mesmo o de terem se confrontado, demolira as formalidades que a protegeriam. O formigamento sutil que ele causava em seu couro cabeludo era tão delicioso que levava a pensar em outras excitações físicas.
Conquistar, possuir, proteger – ela não tinha dúvida de que ele estava preparado para ser implacável e brincar com mais do que o cabelo, se achasse que com isso obteria o que desejava. Também não acreditava em si mesma para vencer aquele desafio, se ele surgisse.
– O jovem adido que meus pais convidaram para jantar é Jonathan Merriweather.
Ele olhou nos olhos dela, desconfiado de novo.
– Merriweather hoje é assistente do embaixador britânico aqui, em Nápoles.
– Muito conveniente para o senhor.
A mão dele se moveu por entre os cabelos com mais firmeza. A brincadeira sutil se tornava controladora.
– A senhorita viajou até aqui para falar com ele? É por isso que está em Nápoles? Pretende adicionar notas a essas memórias e completá-las com os nomes que seu pai foi discreto ao omitir? O livro venderia mais ainda, e ouso dizer que o dinheiro resultante seria muito bem-vindo para sua editora.
Ela segurou o cabelo e o retirou de entre os dedos dele, determinada. Sua indignação a ajudou a ignorar a sensação daquela mão quente ao roçar na sua e a não dar importância ao modo como os olhos dele refletiram sua consciência do toque feminino.
– Agradeço a sugestão, mas espero que as memórias do meu pai caiam no gosto popular do jeito que são, sem acréscimos. De qualquer forma, não estou aqui com esse objetivo.
Era uma mentira deslavada, mas ela não sentiria remorso por confundir aquele homem. Seu interesse em preencher as lacunas das memórias do pai nada tinha a ver com a família Rothwell.
– Lorde Elliot, vim até aqui para visitar as escavações e as ruínas ao sul. Preciso me preparar para deixar a cidade de imediato e continuar minha viagem como planejei desde o início. Portanto, peço-lhe, mais uma vez, que parta.
– Sua viagem terá que ser adiada por uns poucos dias. Não posso permitir que vá agora.
Ela riu. A presunção do homem havia chegado ao ponto do ridículo.
– O que o senhor permitiria ou deixaria de permitir não é de meu interesse.
– É de interesse essencial para a senhorita. Eu a adverti de que sua libertação teria condições e a senhorita prometeu aceitá-las.
– O senhor não falou em condições ao chegar.
– Seu abraço apertado me distraiu.
Ela o encarou desconfiada.
– Quais são essas condições?
Ele olhou para baixo devagar, para seus cachos esvoaçantes – portanto, para boa parte do corpo dela. Phaedra achou ter notado um interesse possessivo, como se ele tivesse acabado de receber um presente e aquilatasse o valor.
– Gentile Sansoni só a libertaria se ficasse sob minha guarda. Tive que aceitar total responsabilidade pela senhorita e prometi controlar seu comportamento.
Um calor de fúria lhe subiu à cabeça. Agora entendia por que, de repente, lorde Elliot passara a se comportar de forma arrogante, fazendo exigências.
– Isso é intolerável. Nunca me submeti a um homem. Isso faria minha mãe se revirar no túmulo. Recuso-me a concordar com isso.
– Prefere enfrentar Sansoni? Podemos providenciar o embate.
A ameaça a deixou sem palavras.
Lorde Elliot não chegou a rir enquanto se dirigia para a porta, mas também não escondeu o fato de estar se divertindo muito com o dilema da moça.
– Viajaremos para Pompeia juntos, Srta. Blair, depois que eu falar com Merriweather. Até lá, está proibida de deixar esses aposentos sem minha companhia. Ah, e não haverá visitas de Marsilios nem de Pietros. Ficarei em apuros se a senhorita provocar mais algum duelo enquanto estiver sob minha autoridade. Fiz um juramento de controlá-la e espero poder contar com sua colaboração e obediência.
Autoridade? Controle? Obediência? Ela estava tão estupefata que ele se foi antes que ela recuperasse a voz para xingá-lo.
CAPÍTULO 4
A boa vontade da Srta. Blair em entrarem num acordo em relação às memórias do pai dela melhorou o humor de Elliot. Ele obteria a retratação necessária de Merriweather, colocaria a Srta. Blair no próximo navio para a Inglaterra e voltaria sua atenção para assuntos mais interessantes.
Merriweather colaboraria, com certeza. Ele, melhor do que ninguém, estava ciente de que a história de Drury sobre a morte do oficial era falsa. Além do mais, sua carreira seria prejudicada se o mundo inteiro soubesse que fora indiscreto ao se embebedar. Ele seria um aliado de lorde Elliot em seus esforços para convencer a Srta. Blair a cortar os trechos incriminadores.
Em uma hora, Elliot descobriu que a questão não seria resolvida tão facilmente. Um funcionário da missão diplomática britânica no Palazzo Calabritto lhe informou que Merriweather fora para o Chipre a serviço e não deveria estar de volta em menos de duas semanas.
Elliot voltou ao hotel e reorganizou alguns de seus planos. Conforme a tarde terminava e a temperatura ia ficando mais amena, ele pegou uma carruagem de aluguel e rumou para o Bairro Espanhol para visitar Phaedra Blair mais uma vez.
Seus olhos azuis chamejaram ao vê-lo na porta.
– O que deseja agora, lorde Elliot?
– A senhorita me disse que desejava caminhar às margens da baía esta noite. Estou aqui para acompanhá-la.
– Não preciso da sua companhia.
– Ou vai comigo ou não vai. Seria uma pena não gozar de sua liberdade, agora que a recuperou.
Ela franziu os lábios. A dúvida se refletiu em seus olhos.
– Muito bem, vamos lá.
Phaedra deu um passo adiante, esperando que ele lhe desse passagem.
– Esqueceu o seu chapéu, Srta. Blair. O sol ainda não se pôs e pode ser prejudicial à sua pele delicada. Tenho certeza de que preferiria evitar mais sardas em seu nariz, por mais charmosas que elas sejam.
A mão dela foi rápida para o nariz. Por um instante, a vaidade feminina venceu sua postura de indiferença a essas preocupações banais.
– O senhor é muito hábil em misturar críticas com falsos elogios.
– Os elogios não foram falsos. As sardas são adoravelmente femininas, mas ainda assim precisa de um chapéu. Vou esperar até que ponha um. A senhorita tem um chapéu, não?
– É claro.
Exasperada, ela deu meia-volta e seguiu na direção do quarto.
– Não me siga desta vez.
– Nunca entraria no quarto de uma dama duas vezes no mesmo dia. Assim como quatro danças em um baile, isso poderia ser mal interpretado.
– Nunca interpreto mal os homens, lorde Elliot. Eles são as criaturas mais transparentes que existem.
De fato, ele imaginava que eram, para ela. Não era uma moça inexperiente. Sabia por onde os pensamentos dele haviam vagueado quando estavam os dois de pé ao lado da cama. Seu cabelo solto lhe dava a aparência de uma mulher preparada para uma tarde de prazer.
Ela não reagira a ele com choque ou vergonha recatada. Não houvera a indignação de quem defende sua virtude. Ao contrário, ela só o encarara enquanto as possibilidades sensuais atiçavam a ambos. A expressão dela tinha sido a de quem reconhecia aquele impulso e suas possibilidades.
Ele nunca vivenciara nada parecido antes. Phaedra conseguia provocar e rejeitar sem dizer uma só palavra. Você me quer e pode ser que um dia eu o queira, mas não hoje. Talvez nunca. Ainda não decidi. Ela devia saber que seu comportamento estimulava o lado mais selvagem dos homens.
Phaedra voltou usando um chapéu de palhinha que era muito mais bonito do que ele teria imaginado. Sua aba em diagonal e as flores de seda brancas e azuis realçavam seus olhos e a pele clara. Seus cabelos longos e esvoaçantes, a falta total de maquiagem e as sardas lhe davam uma aparência fresca e campestre.
Porém, seu vestido comprometia a imagem. O tecido preto leve e sem enfeites a cobria do pescoço aos pés. Uma faixa rodeava a cintura, mas, afora isso, pouco se podia notar de suas formas sob o pano solto e volumoso.
O vestido provocava mais fantasias do que ela provavelmente imaginava. Provocava curiosidade quanto ao que dissera mais cedo. Não havia criadas para ajudá-la a se vestir. Não usava corpete nem espartilhos, e as formas gerais indicavam que o corpo tão livre embaixo do tecido valia a pena ser imaginado. Peito empinado, avaliou ele, de tamanho indeterminado, porém digno de nota, e quadril feminino o bastante para fazer com que a cintura parecesse bem fina. Alguns gestos e uns poucos ganchos e tudo seria revelado.
– Alexia o fez para mim – disse ela, ao notar sua admiração pelo chapéu. – Acho que ela tem esperanças de me mudar. Quanto a meu vestido, que o senhor está examinando de forma tão crítica, não espere que eu o troque. Não fui eu quem decidiu que o senhor teria de andar em público em companhia de uma mulher tão fora de moda.
– O vestido me convence ainda mais. Insisto em que cubra o cabelo, contudo não peço que abra mão de todos os símbolos com os quais desafia o mundo.
Ela ergueu o queixo e rumou para a porta.
– Se tiver juízo, não pedirá coisa nenhuma.
Barulho, gestos teatrais, toucados com plumas e sombrinhas coloridas. Riqueza digna de príncipes, pobreza abominável e o brilho das armaduras dos soldados.
O elegante passeio londrino era uma pálida imitação do que acontecia no final da tarde nas terras mais ao sul. O passeio que circundava a baía de Nápoles ficava apinhado de transeuntes. Aristocratas em vestidos e casacos da moda caminhavam em grupos entre os pobres que perambulavam nas proximidades da água. Comerciantes e suas esposas passeavam com os filhos.
A hora do passeio vespertino – aproveitada nas proximidades da baía ou nas piazzas das igrejas – servia a importantes objetivos na cidade, a julgar pelo modo como as moças casadoiras eram exibidas. Sua beleza jovem e morena brilhava entre os pais, que avaliavam criticamente, com semblantes sóbrios, os homens que olhavam duas vezes na direção delas.
Toda a Nápoles era uma ópera e Phaedra Blair não parecia tão estranha ali quanto poderia pretender. Ela estava razoavelmente apresentável, graças ao chapéu; ainda assim, Elliot notava a atenção que atraía com seu cabelo ao vento. Imaginou a reação que causara na primeira vez que estivera ali, com seus fios vermelhos esvoaçando em meio a um mar de castanho e preto. Londres era mais tolerante com o tipo de excentricidade que ela exibia.
– Falou com o Sr. Merriweather?
Eram as primeiras palavras que ela pronunciava desde que haviam saído do apartamento. Elliot não forçara uma conversa na carruagem. Não se importava com o silêncio. Passara um bom tempo calado, tendo a própria mente como única companhia. Gostava do contato social até certo ponto, mas apenas se houvesse horas de silêncio para contrabalançar as de ruído e conversas.
– Ele está fora em uma missão e só deve voltar em duas semanas, no mínimo.
Elliot se perguntou se ela já não saberia disso. Não estava convencido de que a Srta. Blair tivesse objetivos tão inocentes ao visitar a cidade. Se quisesse ver as ruínas, faria mais sentido vir em outra época do ano. Embarcar para lá em pleno calor do verão napolitano, quando sua editora passava por dificuldades, seu sócio estava doente e as memórias do pai esperavam preparação do original... Ele ainda suspeitava que interrogar Merriweather estivera entre os motivos que a levaram ali.
– Espero que não queira me fazer esperar quinze dias ou mais para ir a Pompeia.
– Decidi que visitaremos as ruínas enquanto o espero voltar.
Isso a apaziguou. Ela pareceu quase aliviada. Talvez tivesse vindo mesmo apenas a passeio.
– Na última primavera, Alexia me disse que o senhor estava escrevendo um livro novo, lorde Elliot. Sua visita a Pompeia está ligada a isso?
– Visitarei as novas escavações para saber o que foi descoberto nos últimos anos. Vou conversar com arqueólogos e pesquisar alguns temas para o livro.
– Alexia me disse que é um livro sobre assuntos quotidianos, sobre a forma como as pessoas viviam. Muito incomum. Normalmente, os livros de História descrevem as guerras, a política e os feitos dos grandes homens. Até o seu último foi sobre isso.
– Estou atento para o fato de que esse livro pode ser criticado por sua aparente falta de relevância. Porém o assunto me interessa e posso me dar ao luxo de me dedicar ao que gosto.
– Se acha que o estou criticando, está equivocado. Acredito que seu livro pode ser muito popular, não importa o que digam os acadêmicos. Ele deve vender muito bem.
– Não estou tão certo de que meu editor concorde com isso.
– Então, talvez deva achar outro. Ficaria honrada de publicá-lo se aturar a ideia de fazer negócios com uma mulher.
Ele riu da sua expressão sagaz. Essa editora poderia sobreviver muito bem, no final das contas, se a Srta. Blair mostrasse tamanho talento de bajular autores para atraí-los.
O humor dela havia melhorado desde o início do passeio. Talvez a luz suave do sol poente e a brisa refrescante fossem os motivos da mudança. O mais provável era que a Srta. Blair tivesse decidido que a raiva a atrapalharia a gozar sua recém-adquirida liberdade.
A alegria brilhava em seus olhos enquanto caminhavam, observavam os grupos de passantes, os barcos e as gaivotas. Ela sorria para lorde Elliot de uma forma cálida que poderia ser erroneamente interpretada como flerte. E não passava despercebido dele a forma como os homens a olhavam. Por si só, o cabelo ruivo solto já bastava para destacá-la, contudo a Srta. Blair chamaria atenção de qualquer forma.
Esses olhares também não passavam despercebidos a ela, que não os encorajava nem desestimulava. Também não lhes davam satisfação nem a insultavam, pelo que Elliot podia ver. Phaedra simplesmente seguia seu caminho, uma mulher diferente das outras mas muito confiante, com o tecido preto e leve do vestido a revelar mais do que se pretendia.
Sutilmente, ela projetava uma aura carregada daquele mesmo desafio que Elliot sentira no quarto, só que agora atraía todos os homens que a olhavam por mais tempo. Você me quer, só que nada vai acontecer entre nós, porque eu decidi assim.
Ela parou para comprar um pequeno buquê de flores de uma menina que as oferecia numa caixa. Elliot tentou pagar por elas, mas Phaedra afastou sua moeda e pagou com o próprio dinheiro. Continuou a andar, segurando perto do nariz as flores perfumadas.
– Lorde Elliot, gostaria de lhe fazer uma proposta.
Não seria a proposta que ele desejava, contudo seu corpo se enrijeceu de qualquer forma. As palavras dela tinham sido escolhidas de propósito para atiçá-lo e isso o deixou com raiva, porque funcionou.
Ele não deveria, só que não resistiu:
– Vi o que acontece aos homens que aceitam os termos de suas propostas, Srta. Blair, portanto prefiro declinar.
A expressão dela mudou.
– O que quer dizer?
– Ah, eu entendi erroneamente? Desculpe-me.
– O que o senhor quis dizer?
Ele deu de ombros.
– Pensei que fosse propor que me tornasse um de seus amigos. Uma dessas abelhas que ficam zumbindo em volta da rainha.
Sua pele branca enrubesceu e sua raiva deixou transparecer uma boa dose de consternação.
– O que sabe a respeito dos meus amigos?
– A senhorita pode desprezar a sociedade, mas ela está a par do seu comportamento. Todos sabem sobre a filha de Artemis Blair e como, a exemplo da mãe, ela se considera acima de todas as regras sociais estúpidas.
– Sua ignorância me espanta.
A raiva dela vencia a consternação.
– É muito típico o senhor interpretar mal minhas amizades e é por isso que nunca considerarei a hipótese de tornar meu amigo alguém como o senhor.
Ah, ela consideraria, sim. Até já havia considerado. As negociações começaram cedo naquele dia.
– Se fui rude, peço desculpas.
A expressão dela relaxou.
– No entanto...
As sobrancelhas dela se arquearam.
–... se a senhorita está acima de regras sociais idiotas, não há como eu ser rude, não concorda, Srta. Blair? Digo, no âmbito de suas crenças. A palavra “rude” se aplicaria apenas dentro do contexto das regras sociais, não estou certo? Nos próximos dias, a senhorita terá de me ajudar a perceber onde sua sujeição a tais regras começa e onde termina, assim não a interpretarei erroneamente de novo.
Mais uma vez aquela confiança presunçosa, aquele desafio, a saturou.
– Pode ter certeza de que farei isso, lorde Elliot.
A caminhada os levara até Riviera di Chiaia, às belas mansões com vista para a baía. A Srta. Blair enterrou seus pensamentos por trás de uma máscara de passividade e ficou admirando a beleza das construções.
– Lorde Elliot, é conveniente que tenha falado a respeito dos próximos dias e que tenha expressado sua desaprovação e desprezo com relação à minha pessoa. Minha proposta tem a ver com ambas as atitudes.
– Não desaprovo nem desprezo. Só decidi que devemos ter um entendimento correto quanto a uma pequena questão.
A mais importante de todas.
– O fato de interpretar erroneamente minhas amizades com outras pessoas e meu interesse pelo senhor indica que não nos daremos muito bem. Nem o senhor vai querer o peso de ter alguém que veio a passeio como companheira de viagem. Eu só iria atrapalhá-lo e seus estudos só atrasariam meus planos. Proponho que nos separemos assim que deixarmos Nápoles.
– Isso não é possível.
– Gentile Sansoni nunca saberá.
– A influência dele se estende para muito além das fronteiras desta cidade. Além disso, dei minha palavra, e essa é uma das tais regras sociais estúpidas que levo muito a sério.
– Senhor...
– Não, Srta. Blair. Partiremos juntos, daqui a dois dias, pela manhã. Vamos de barco primeiro para Positano e depois para Amalfi. De lá seguiremos viagem por terra.
– Quero ir para Pompeia imediatamente.
– O atraso será breve. Prometi visitar um amigo em Positano e ele me espera por estes dias, não depois. Se está a passeio, deve se alegrar com uns dias a mais visitando a costa ao sul. É espetacular.
Phaedra não parecia nem um pouco alegre. Ele imaginou que veria aquela perturbação constantemente nos olhos dela pelas próximas semanas.
Deram meia-volta para refazer o caminho e Elliot quase tropeçou em uma criança que os seguia. Grandes olhos negros olhavam para cima em uma esperança calada de que alguém a enxergasse entre tantas das mais pobres crianças da cidade. Ela não pediu nada, mas seu corpinho frágil vestido em andrajos implorou de forma pungente.
Ele enfiou a mão no bolso do colete. Quando a moeda surgiu, mais duas crianças apareceram ao lado da primeira. Outras foram atraídas por instinto para o inglês que não sabia parar de distribuir esmolas para as crianças pedintes de Nápoles.
Ele achou mais moedas. A Srta. Blair não pareceu com medo por estar cercada de pobres ávidos por moedas, como a maioria das mulheres ficaria. Ela tentou conversar com a primeira menina, a mão oculta em algum lugar do vestido, na altura do quadril.
Os dois adultos ficaram num mar de olhos negros e corpinhos morenos, distribuindo moedas até que todas tinham se acabado.
Voltaram para a carruagem sem outras discussões. Ela só falou mais uma vez antes de ser deixada de volta em seu apartamento.
– Partiremos daqui a dois dias pela manhã, como disse? Então nada me resta a não ser me preparar para a viagem.
A aparente submissão de Phaedra Blair não o convenceu. Elliot partiu para fazer seus próprios preparativos.
Phaedra tirou o camafeu do nó no xale. Envolveu-o em um lenço e colocou o embrulho dentro do bolso fundo da saia de seu vestido. Depois envolveu a cabeça com o xale e o amarrou debaixo do queixo.
Verificou a valise, conferindo mais uma vez as roupas e os objetos pessoais que tinha colocado nela. Orgulhava-se da falta de vaidade feminina, mas ainda a irritava ter tão poucas roupas para usar pela próxima semana.
Era tudo culpa de lorde Elliot. Qualquer um sabia que um juramento feito sob coação não contava. E, para ela, fazer um juramento para salvar uma mulher de um destino incerto se qualificava como coação. A insistência do lorde em manter sua palavra a perturbava. Tinha sido muito azar dela que a única pessoa disponível para ajudá-la fosse um homem com noções ultrapassadas de honra.
De jeito nenhum ela permitiria que ele os fizesse vítimas de sua mente pequena. Lorde Elliot não queria a companhia dela muito mais do que ela queria a dele. Só haveria problema se os dois permanecessem juntos.
Uma dessas abelhas que ficam zumbindo em volta da rainha. Ele era incapaz de entender as amizades honestas e sinceras que ela mantinha com alguns poucos e raros homens que pensavam como ela. Ficaria chocado ao descobrir que alguns homens conseguem controlar as forças primitivas de posse e domínio que causaram tanto sofrimento ao longo da história, em especial às mulheres. Na verdade, havia homens para quem a sensualidade não despertava a necessidade de conquistar, dominar e exigir submissão.
Bem, não cabia a ela lhe explicar. Além disso, seria um esforço em vão e exigiria que passasse mais tempo com ele.
Deixou um bilhete e algum dinheiro em sua mala para garantir que a signora Cirillo entendesse que ela voltaria logo para buscá-la. Depois se esgueirou do apartamento para o corredor escuro. Achou o caminho da escada.
Andando pé ante pé, envolta em negro, seguiu até o andar de baixo. Ainda na escuridão, foi tateando às cegas em busca do lance de degraus seguinte.
De repente as sombras se transformaram em corrimões, portas e paredes, como se alguém tivesse aberto as persianas para deixar a luz da lua entrar.
– Pietro não está à sua espera no cruzamento, Srta. Blair.
O coração dela parou de bater ao ouvir a voz tranquila atrás de si. Deu meia-volta. Lorde Elliot estava a pouca distância, em uma porta aberta que dava para o apartamento que ficava abaixo do dela. Estava sem camisa e descalço, como se estivesse dormindo e houvesse posto a calça às pressas para investigar o barulho. A luz fraca da lamparina do quarto o banhava em uma névoa dourada.
A presença daquele homem anunciava o fim de seu plano de fuga. Apesar de sua exasperação, que aumentava cada vez mais, Phaedra não pôde se furtar a apreciar aquele homem. Lorde Elliot era esguio, elegante e tinha ombros largos. Seu corpo possuía o retesamento jovial que abençoava os homens por tanto tempo na vida quanto permanecessem ativos. A luz fraca ressaltava os músculos rígidos do peito, do abdome e dos braços.
Ele deu dois passos, pegou a valise da mão de Phaedra e segurou seu braço, empurrando-a para o quarto dele. Depois fechou a porta.
– O que está fazendo aqui? – perguntou ela.
A luz da lamparina valorizava o peito musculoso e a pele maravilhosa agora tão próximos de seu rosto. Se não estivesse aborrecida pela interferência daquele homem, poderia até aproveitar a bela visão.
– Eu me hospedei aqui.
Ele permaneceu imóvel por um longo tempo. Phaedra olhou para o rosto do lorde e percebeu que ele a observava. E que tinha notado que ela avaliava seu corpo. Sentiu a pulsação acelerar. Os olhos deles refletiam a mesma reação, mas com uma anuência fria, como se Elliot controlasse a reação tanto nela quanto nele.
Sim, esse homem significava problema na certa.
– Não se mexa. Não tente sair – disse isso e andou até a escrivaninha, onde pegou a camisa e a vestiu.
Ela não ficou olhando. Não exatamente. Mas, com o canto do olho, viu como seus braços se moviam e seu dorso se esticava. A imagem do encontro deles à tarde invadiu sua cabeça de novo, mais vívida dessa vez: o rosto masculino pairando acima dela, aqueles ombros e aquele peito sob sua carícia...
Olhando de esguelha, percebeu os sinais de que o cômodo estava ocupado. Havia uma lamparina sobre uma escrivaninha na sala de estar, junto com uma pilha de papéis. Notou manchas de tinta nos dedos dele. Ele estivera escrevendo, não dormindo. Imaginou-o lá, entregue ao frescor da noite, imerso em sua escrita.
Com pouca roupa e aquela camisa solta, parecendo libertino e romântico demais para que ela se sentisse segura, ele a encarou.
– Lorde Elliot, mudou-se para cá para me espionar?
– Deixei para a signora Cirillo a tarefa de espionar. Mudei-me para cá para impedi-la de fugir na calada da noite.
Ele adivinhara seu plano. Isso a desanimou.
– Intrometer aquela ave de rapina em meus assuntos particulares é indesculpável.
– Parece que foi necessário. A signora Cirillo se empenhou em sua missão e a desempenhou com fervor. Eu só pedi que informasse caso a senhorita me desobedecesse e deixasse a hospedaria. Mas ela a seguiu e interceptou a carta para seu amigo.
A expressão dele assumiu um ar crítico.
– Tentar arranjar esse encontro clandestino à meia-noite é intolerável. E se Pietro não a esperasse naquele cruzamento? A senhorita ficaria lá fora no meio da noite, nessa cidade devassa, desprotegida...
– Não me repreenda. Não ouse. Se ele não aparecesse, eu logo teria encontrado um jeito de arrumar uma carruagem de aluguel, uma carroça ou até um burro, se preciso, e teria partido.
Todas as implicações desse episódio lastimável se seguiram em sua cabeça. Ressentiu-se de cada uma delas.
– Parece que troquei um carcereiro por outro – disse ela.
Ele pegou a valise.
– Chame como quiser.
Então Elliot estendeu o braço na direção da porta, mostrando o caminho.
Bufando de raiva, ela subiu de volta as escadas até seus aposentos. Para seu espanto, o lorde não deixou a valise na porta de entrada. Em vez disso, carregou-a até o quarto. Ela não o seguiu. Uma intuição, daquelas que só as mulheres têm, a manteve na sala de estar.
– Venha até aqui, Srta. Blair.
A ordem ressoou dentro dela de um jeito que ela não reconheceu nem gostou. Compreendia a raiva que trazia, mas havia também outros impulsos e palpitações que a espantaram. Ela odiava quando os homens tentavam lhe dar ordens, quando pressupunham serem seus donos, no entanto...
Phaedra espiou dentro do quarto. Lorde Elliot estava lá, com o colarinho da camisa branca aberto, o cabelo despenteado e a expressão resoluta. Quando ele notou a presença dela, um reconhecimento mudo se deu entre os dois. Lampejos de excitação e perigo a perpassaram.
Ele andou até ela e a puxou para dentro do cômodo. A pegada tão firme e confiante, tão segura em relação ao direito dele de fazer o que bem quisesse, a espantou. Nunca na vida um homem a tratara assim. Phaedra tentou se recompor e encontrar as palavras que o colocassem em seu devido lugar, mas...
Ele começou a desatar o nó do xale sob seu queixo. Isso levou tempo de mais. E o deixou perto demais. Com certeza ele não era um canalha a ponto de... Deveria detê-lo e desatar o nó ela mesma. Deveria...
Ele fez o xale correr com suavidade pela cabeça e os ombros dela. Foi como uma carícia longa e vagarosa. O olhar dele acompanhou uma ponta do xale deslizar ao longo do corpo dela até que ficasse pendurado na mão dele pela outra.
Apenas a luz da lua que entrava pela janela iluminava o quarto, porém Phaedra não precisava ver com clareza o rosto daquele homem para adivinhar seus pensamentos. Eles preenchiam o quarto, estavam no ar, como tinha acontecido à tarde.
Uma nova reação a deixou perplexa, uma que nunca vivenciara antes: medo. Não medo dele ou de ser forçada a fazer algo. Foi dela mesma e da maneira chocante e singular como seu corpo reagia à forma como ele tentava dominá-la.
Elliot fez um gesto apontando para a cama.
– Tire o vestido e deite-se.
Isso quase a fez cair em si. Quase. Uma excitação inexplicável a atingiu lá embaixo, uma excitação absolutamente escandalosa. Deus do céu...
– Está indo longe demais.
Ela havia mesmo falado? Sua mente por fim juntara algum bom senso e fora em seu socorro?
– Você não me deixa escolha. Não posso me arriscar a deixá-la escapar.
– Prometo que não vou fugir.
– Uma mulher que espera que eu quebre minha promessa a Sansoni não manterá a própria palavra. Agora coopere, a menos que queira que eu a force a obedecer.
Ela levou as mãos às costas e começou a soltar os ganchinhos do vestido. Só levou um minuto até se despir e pôr o vestido sobre uma cadeira. A luz não era fraca o bastante para ocultá-la. Desejou estar usando aqueles ridículos espartilhos, pois suspeitava que lorde Elliot pudesse ver mais do que deveria por baixo da camisa simples que usava sob o vestido.
Ela se aproximou da cama e subiu nela, tentando não se expor demais e excitada por suspeitar estar se expondo ainda assim. Deitou de costas e olhou para ele. Pairou um silêncio no ar por um longo momento.
– Quais são as suas intenções, lorde Elliot?
Ele riu de novo. Em silêncio. Sarcasticamente.
– Não é um bom momento para provocar e instigar, Srta. Blair.
De repente, ele se inclinou sobre ela. Pairando. O coração dela começou a bater mais forte. A camisa dele adejava perto do rosto dela. O cheiro dele a tomou de assalto. O tamanho dele a dominou. Uma expectativa terrível e maravilhosa formigou nela. Seus seios ficaram mais sensíveis e...
Ele pegou no braço esquerdo dela e o levou até as barras de ferro da cabeceira da cama.
– O que está fazendo?
Ele enroscou o xale em volta das barras.
– Certificando-me de que não fugirá. Não preciso dormir muito, entretanto não posso ficar acordado por duas noites.
– Isso passa dos limites. É repugnante. Exijo que...
– Isso é necessário. Ou é isso ou durmo ao seu lado. Prefere?
Ela o encarou. Ele parou de fazer os nós e olhou para baixo. O coração dela pulou para a boca.
– Prefere? – repetiu ele.
Era uma pergunta direta e sincera. Um convite que lhe permitia extravasar a atração.
Ela engoliu em seco.
– É claro que não.
Mesmo na luz fraca, ela viu o sorriso dele. Ele voltou sua atenção para os nós.
Por fim, ele se afastou e se endireitou. Phaedra deu um puxão com o braço esquerdo. Não havia folga nas laçadas. Ela se virou para o lado e tentou forçar um nó com a outra mão.
– Fique à vontade para tentar desfazer os nós. Só que não vai conseguir. Pode se sentar e se mexer, pode até ficar de pé. Pode usar o penico do lado da cama. Mas nunca vai conseguir se soltar. É melhor passar o tempo dormindo.
Uma nota em seu tom de voz a fez parar de tentar. Rolou de volta para ficar de costas e o encarou. O desamparo dela e o domínio dele gritaram no silêncio entre os dois. A mente de Phaedra bradava insultos rebeldes, mas seu corpo experimentava um calor e uma expectativa deliciosos. Espantava-a que essa submissão provocasse desejo, um desejo muito erótico.
Ele sabia, droga. Ela podia garantir que ele sabia.
– Está muito bonita aí, Srta. Blair. Muito bela e vulnerável e, ouso dizer... submissa?
– Seu canalha.
De novo, aquela risada silenciosa. Depois ele se foi, deixando-a livre para conversar consigo mesma pelo resto da noite sobre quão vulnerável e submissa ele a havia tornado.
CAPÍTULO 5
Phaedra segurava o camafeu na luz matinal que penetrava pela janela da sala de estar. O objeto tinha se tornado um talismã nos dois últimos dias, no embate com um homem confiante demais de seus direitos de controlá-la.
Você deveria ter me avisado, mãe.
Talvez Artemis não pudesse ter lhe avisado simplesmente porque não sabia. Talvez tivesse se isolado tanto de homens como Elliot Rothwell que nunca os houvesse enfrentado.
Ela imaginava a mãe, linda de tirar o fôlego. Com um rosto tão suave que as pessoas nunca imaginavam sua mente brilhante até que ela abrisse a boca ou lhes dirigisse aquele olhar aguçado. De fato, sempre fora uma rainha com muitas abelhas em volta. Acadêmicos, artistas e homens que admiravam sua inteligência estavam entre os amigos que a amavam e ficavam apenas à espera de uma deixa. Sua casa ficava sempre cheia de homens famosos e esperançosos.
Na certa, um desses homens teria tentado conquistá-la. Na certa, a famosa Artemis Blair vivenciara a excitação primitiva de encontrar um par na inteligência e no poder. Ela devia ter avisado à filha que esse homem poderia surgir um dia.
Phaedra olhou pela janela. Lá embaixo, lorde Elliot dava ordens aos criados da signora Cirillo, que carregavam as valises para a carruagem que os levaria ao porto. Os olhos dela se estreitaram para focalizar o inimigo.
Pelo menos, ele não a mantivera amarrada na última noite. Ela prometera de cinco formas diferentes não fugir. Ele só a soltou depois de ela jurar – jurar – sobre o túmulo da mãe. Ele a fizera implorar como se fosse seu dono.
Sua mãe provavelmente estaria se revirando no túmulo naquele exato momento. Artemis Blair nunca se submetera a um homem, de forma nenhuma. Nunca se casara, nem com seu amor de toda a vida, Richard Drury, mesmo quando se viu grávida. Nunca abrira mão de sua liberdade, sua independência e seu direito de amar e dividir a cama com quem quer que escolhesse, nem ao descobrir que só queria amar e dividir a cama com um único homem.
O camafeu esquentou na mão de Phaedra. Ela olhou para a joia. Não, não um único homem. Tinha havido outro.
Tinha sido um choque ler isso nas memórias do pai. Sentia-se nauseada só de lembrar as palavras dele. Sempre imaginara que o amor de seus pais fora perfeito, desprovido de obrigações e leis, um verdadeiro encontro de almas que duraria pela eternidade. A amizade dos pais mostrava ao mundo que havia uma forma melhor para um casal conviver.
Tinha sido assim por muitos anos, até que um dia outro homem entrara na história.
Esse intruso era charmoso, contudo estava no centro de um esquema ao mesmo tempo brilhante e nefasto. Foi o que seu pai escreveu. Ela se lembrava das palavras exatas. Memorizara essas palavras antes de zarpar da Inglaterra. Ele seduziu Artemis para que tivessem um caso, usou-a da forma mais desonrosa, a ponto de destruir sua reputação. Foram seus atos que, em última análise, levaram à morte dela. Assim como vendia falsas antiguidades, ele lhe ofertou mentiras. Porém é só uma questão de tempo até que ele seja desmascarado, porque os objetos estão lá, visíveis, como o que vendeu a Artemis. Um dia alguém revelará a origem suspeita desses objetos, e a forma como ele usa a sedução no intuito de roubar será sua desgraça.
Os dedos dela se fecharam com força ao redor do camafeu. Uma antiguidade de origem suspeita. Uma joia acrescentada na última hora a um testamento, supostamente vinda de Pompeia. Phaedra estava bastante certa de que era a este objeto que o pai se referira – e também sua única ligação com o homem que ele acusava.
Seus atos, em última análise, a levaram à morte. Phaedra não conseguia tirar essas palavras da cabeça. Elas ressoavam em seus sonhos junto com as imagens da mãe naquelas últimas semanas, séria demais, distraída demais. Phaedra nem chegara a notar essa seriedade e distração na época, pois a mãe sempre tinha um sorriso para ela. Porém seu declínio fora rápido demais e sua morte, um choque.
Phaedra baixou o olhar de novo. Lorde Elliot olhava para cima, em sua direção. Há quanto tempo ele a observava lá da rua?
Talvez a mãe não tivesse avisado porque nem ela mesma sabia. Talvez o intruso fosse um homem como aquele lá embaixo, que causava arrepios só por dar sua atenção e cuja presença era uma tentação para que, em um segundo, uma mulher se esquecesse de todas as crenças e princípios que ancoravam sua vida.
Poderia perdoar a mãe por não ter lhe dado essa lição. Poderia perdoá-la por qualquer coisa, até mesmo por deixar o mundo cedo demais. Porém, se um homem realmente a havia usado de forma desonrosa, se os atos dele tinham causado sua morte, isso era outro caso. A filha de Artemis Blair nunca o perdoaria. Se tivesse certeza de que isso era verdade, então queria ver a queda desse homem.
Pegou o xale e envolveu a cabeça. Lorde Elliot era um inconveniente, mas ela não deixaria que a companhia dele atrapalhasse o motivo real que a levara ao Reino das Duas Sicílias.
Elliot voltou ao quarto para pegar a maleta com seus muitos papéis. Passou pela Srta. Blair nas escadas.
– Vou esperar na carruagem.
Seu tom ríspido demonstrava a frieza que agora sempre exibia em sua presença.
Ela nunca o perdoaria por amarrá-la na cama, não só pela humilhação e falta de confiança. Ambos sabiam que isso a excitara, e ela o odiava por isso e por todas as implicações resultantes. Ambos também sabiam que, se ele não tivesse feito isso, ela teria escapado durante a noite para evitar as implicações resultantes.
Na última noite, Phaedra fora enfática ao afirmar que não aconteceria de novo. Suas promessas foram tão sinceras e suas garantias de não fugir, tão genuínas que ele voltara atrás.
Isso significara que ele poderia dormir. Na primeira noite, ficara deitado, inquieto e ávido, sentindo o desejo rasgá-lo por dentro como uma faca de serra. Imaginando-a naquela blusa fina, amarrada na cabeceira da cama, com o cabelo espalhado como seda acobreada e o corpo visível demais. Quais são as suas intenções, lorde Elliot?
Que inferno!
Elliot pegou a mala e um embrulho comprido e se juntou a ela na carruagem. O olhar vazio, distante e focado dizia que era só por falta de escolha que Phaedra tolerava a companhia dele. Não se daria o trabalho de bater papo para tornar seu tempo juntos mais fácil.
O barco que ele alugara esperava perto do Castel Nuovo. Uma hora depois, eles navegavam margeando a baía.
A Srta. Blair se posicionou na área central do convés, segurando-se na amurada. Ela observava a costa passar e o monte Vesúvio ficar cada vez maior ao fundo. A brisa empurrava o xale dos seus cabelos e sua beleza pálida e incomum chamava a atenção do pessoal de bordo. Elliot se aproximou para que não restasse dúvida quanto à sua situação de protetor da moça.
Ele estendeu a mão, oferecendo-lhe o embrulho que trouxera.
– O que é isto? – perguntou ela.
– Um presente.
Ela sorriu de um jeito suave, porém firme.
– Não aceito presentes de homens, lorde Elliot.
– Você não aceita presentes em troca de favores, o que é admirável. No entanto, como não gozei de seus favores, ainda está livre para aceitar presentes. Se eu a seduzir, pode devolvê-lo.
Ele quase disse “quando” em vez de “se”.
Ainda hesitante, porém curiosa, ela pegou o pacote e tirou parte do papel.
– Uma sombrinha? – disse, e rasgou o restante do embrulho, rindo então. – Preta. Toda preta. Que... gentileza!
– Achei que ia combinar.
– Isto é para me poupar de mais sardas?
– Isto é para poupá-la de ficar doente. O sol aqui é muito forte e estamos em pleno verão. Quando desembarcarmos, ficará feliz em ter alguma sombra.
Ela abriu a sombrinha e cobriu a cabeça.
– O senhor conhece bem o país. Já esteve aqui antes?
– Duas vezes. Primeiro em uma viagem por vários países do continente, e de novo há alguns anos.
Ele apontou para a costa.
– Ali fica Herculano. A mesma erupção do Vesúvio que enterrou Pompeia em cinzas cobriu Herculano de lava.
Ela desviou o olhar para onde os vestidos e casacos dos visitantes salpicavam de cor a rocha.
– Tinha a intenção de visitar Herculano também, mas o signore Sansoni... – suspirou ela. – Agora vou perder muita coisa da viagem.
– Por que não gasta algum tempo na volta de nossa pequena viagem e faz a visita?
– Não tenho tempo a perder. Preciso voltar para casa. Tenho uma editora para tocar.
E um livro especial para publicar. Se ele não conseguisse o que queria ao falar com Merriweather, a Srta. Blair não voltaria para casa por um bom tempo.
– Também acho que não vou gostar de voltar a Nápoles depois de nossa viagem – emendou ela. – Com certeza você achará que a palavra dada a Sansoni ainda estará valendo, e ficarei com o senhor no meu pé.
Ele admirou impressionado o enorme cone que era o Vesúvio enquanto passavam tão perto de Herculano que podiam ver alguns trabalhadores nas escavações. O cabelo cor de cobre esvoaçava perto do braço dele.
– Srta. Blair, pergunto-me se o que a incomoda não seria o fato de me ter no seu pé e não a seus pés.
O suspiro profundo expressou o pensamento dela. Deus, dê-me paciência com esse homem tão pouco esclarecido e tão previsível.
– Suspeito que seja inútil explicar isso, mas tentarei, em nome da paz. Acredito que nenhum parceiro na amizade, no casamento ou num caso amoroso deva ficar aos pés do outro. Minha ideia só é considerada estranha porque o pé em questão quase sempre é de um homem e o mundo acha normal que ele fique cravado nas costas de uma mulher. Creio que homens e mulheres possam ficar lado a lado, sem que um tenha que pertencer ao outro. A vida da minha mãe provou que isso é possível e a minha também, até agora, prova o mesmo. Não fomos nós que inventamos essa crença. Essa ideia é bem conhecida e foi defendida por pessoas a quem admiro muito.
– Sei tudo sobre a sua crença, Srta. Blair. Não sou ignorante dessa filosofia. Ela até soa correta e racional. O único problema é que não leva em conta vários aspectos.
– É mesmo? Quais?
– A natureza humana. A história da humanidade. A tendência de os maus vitimarem os fracos e a necessidade dos fracos de proteção. Aventure-se sozinha nos vilarejos de Campanha ou nas ruelas de Marselha ou Istambul, ande pelas espeluncas de Londres e veja o que acontece com uma mulher sozinha e desprotegida.
– Os senhores de antigamente davam proteção a seus servos. O que não significa que era correto exigir a vassalagem em troca.
Ele riu.
– Senhores, servos. Que visão nefasta a senhorita tem da vida das mulheres. Não precisa ser desse jeito.
– Mas pode ser – disse ela. – O senhor sabe que pode. A lei faz isso.
A ênfase que ela deu ao “senhor” foi tão sutil que ele se perguntou se não passava de fruto de sua imaginação. Ela cutucou uma velha ferida com muita delicadeza, contudo ele sentiu a dor de qualquer forma. Uma raiva obscura se instilou nele.
Ela voltou a atenção para a costa. Um leve rubor em seu rosto indicava o reconhecimento de que tinha ido longe demais. Elliot controlou sua reação, mas pensamentos predatórios agora penetravam em sua mente. Ele ponderou o que seria preciso para ser senhor dessa mulher, para fazer com que se dobrasse diante dele.
– Desculpe-me, lorde Elliot. Eu não deveria...
– Está fazendo a impertinência aumentar, Srta. Blair. Melhor teria sido deixar que sua insinuação voasse para longe junto com a brisa.
Só que ela não o fizera, e ele se perguntava por que falara de maneira tão segura.
– Está se referindo a boatos sobre minha mãe, não é?
Ela pensou duas vezes na resposta enquanto olhava para ele.
– Admito que o fato de ela haver se retirado para o campo durante seus últimos anos de vida foi interpretado como feito de seu pai.
Elliot sabia que essa história corria solta nas salas de estar de ricos e pobres. Diziam que sua mãe tinha um amante e que seu pai a punira mandando o homem para a morte em uma colônia distante e depois aprisionando-a em uma propriedade rural.
Seria verdade? Ele e seus irmãos haviam concluído que o amante fora real, mas não a parte sobre o cárcere. O próprio pai lhe jurara não ter feito o que as pessoas falavam. Porém, o exílio da mãe estimulara a fofoca, a ponto de ela mesma passar a acreditar na história.
Ele a via na biblioteca, com os cabelos escuros pairando acima de livros e papéis, perdida em pensamentos. Quase totalmente afastada dos filhos. Por ser o caçula, havia passado a maior parte do tempo com ela lá. Ela emergia de sua concentração às vezes para guiá-lo pelas estantes, escolhendo livros para ele ler ou comentando os escritos dele.
No entanto, algumas poucas vezes o vínculo se estreitara, como no dia em que ela recebeu uma carta que a deixou em prantos. Era a notícia da morte de um oficial do Exército. Foi ele que fez isso. Para me punir por amar outra pessoa.
Tinha sido um amor ilícito. Ela era uma adúltera. Ainda assim, o sofrimento dela o comoveu. Só que ele entendeu que a acusação dela era o delírio de uma alma sofredora.
Elliot sentiu a presença da Srta. Blair ao seu lado. Nem mesmo a raiva conseguia sufocar a reação que sua sensualidade causava nele. A droga das memórias do pai dela insinuava que uma mulher reclusa fora a única a entender como o sangue dos Rothwells podia tornar um homem cruel. Sua certeza de que isso era mentira não seria suficiente para diminuir as acusações a seu pai.
– Elas se conheciam – disse a Srta. Blair. – Nossas mães.
– Minha mãe conhecia os ensaios de Artemis Blair, contudo nunca mencionou uma amizade.
Isso não queria dizer nada, uma vez que ela nunca mencionava assunto nenhum.
– Acho que elas nunca se conheceram pessoalmente, porém elas se correspondiam. Eram ambas escritoras. Tinham interesses em comum. Uma vez sua mãe enviou um poema para a minha. Encontrei-o entre os papéis dela depois que morreu. Um belo poema que refletia uma alma inteligente e sensível.
Ele fixou o olhar na cidade costeira que se aproximava, Sorrento. Estava enfurecido por saber que a mãe compartilhara seus textos com Artemis Blair e nunca com os próprios filhos.
– Sua mãe a encorajou a cometer adultério?
As palavras soaram cruéis e duras mesmo ao ouvido dele.
– Ela pregava a crença no amor livre em suas cartas?
Ele imaginou a famosa Artemis Blair virando a cabeça de sua mãe, o que levaria a tanto sofrimento depois.
– Creio que elas falavam principalmente de literatura em suas cartas. Minha mãe só a mencionou uma vez, quando soube de seu falecimento.
– O que ela disse?
A frase soou mais como um rosnado do que como uma pergunta.
– Ela disse: “Ele devia tê-la deixado ir embora, mas, é claro, por ser um homem, não poderia.”
Isso só fez com que um trovão rugisse nas nuvens que se acumulavam em sua mente. Ele queria dizer que um homem não poderia permitir que a mãe de seus filhos fugisse em uma aventura amorosa. É claro que seu pai não tinha opção a não ser negar essa liberdade a ela.
Só que, a seu modo, ela havia encontrado uma forma de fugir de qualquer maneira.
Pelo canto do olho, Elliot percebeu um membro da tripulação se demorar muito com o cordame. O homem alongava a tarefa só para ficar apreciando a beleza de Phaedra Blair.
A tempestade em sua cabeça estourou. Relâmpagos espocaram. Ele estreitou os olhos e disse quatro palavras. O homem saiu às pressas.
A Srta. Blair percebeu.
– O que você lhe disse?
– Nada importante. Uma expressão napolitana exigindo privacidade.
Nem se deu o trabalho de explicar que as palavras em italiano significavam mexa-se ou morra.
Um vento forte os ajudou a fazer um bom tempo de viagem. A paisagem foi ficando cada vez mais bonita à medida que cortavam a baía em direção à península de Sorrento. Montanhas altas abraçavam a costa, mergulhando no mar em declives acentuados e verdes. Pequenas praias abrigavam alguns barcos e casas se encarapitavam no despenhadeiro, como se fossem cubos brancos e em tons pastel a pairar acima da água.
Contornaram a pequena península, passaram pela ilha de Capri e seguiram para a costa amalfitana. Encostas mais íngremes, perigosas e inacessíveis assomavam sobre eles. O cenário deixou Phaedra boquiaberta. Lorde Elliot estava certo. Teria sido uma pena perder essa visão.
– O que está havendo ali? – perguntou ela, apontando para alguma atividade na colina.
– O rei está construindo uma estrada para Amalfi. Estão escavando a encosta.
Ela notou que a estrada ficaria acima das vilas de pescadores.
– De qualquer forma, vai ser preciso subir ou descer a colina – falou ela.
– Pelo menos os habitantes não vão depender de barcos e burros. E a vista lá de cima será espetacular.
Ele apontou para a frente, mais adiante na costa.
– Positano fica logo depois daquele promontório. Daqui já é possível avistar a torre de vigia normanda nele. Há muitas delas nesta costa, construídas para proteger o reino normando medieval que havia aqui da ameaça dos sarracenos.
Phaedra andou para a proa do barco a fim de ver melhor a torre assim que entrasse em seu campo de visão. A velha torre de pedra era bem alta e isolada. Pequenas janelas a pontuavam, como se fosse um castelo medieval. Parecia uma intromissão de estrangeiros do norte naquela terra banhada pelo sol.
– Aquelas janelas altas dão para o leste e o oeste – disse ela. – Não há nada entre aquela e o horizonte do mar e nada entre a outra e o pico da montanha alta. Vamos ficar aqui muitos dias?
– Calculo que sim.
Phaedra perdera a noção do tempo enquanto fora prisioneira de Sansoni. Agora começava a se situar.
– O solstício de verão se aproxima. Imagino se a torre não será usada para algum ritual.
– Esta é uma região católica. Os rituais pagãos foram banidos há milhares de anos.
Apesar de lorde Elliot ter respondido, ela podia apostar que ele estava muito distante. Estava tomado por um silêncio que pouco tinha a ver com sons. Era algo interior, como se seu espírito tivesse se recolhido para as câmaras secretas de sua alma.
Phaedra se arrependia de ter se referido, ainda que discretamente, à situação da mãe dele. Deixara a frase escapar no auge de sua irritação com lorde Elliot por ele pressupor que estava certo e ela, totalmente errada. Já devia ter aprendido a não entrar em discussões a respeito do modo como pensava e vivia. No que tangia a esse assunto, aquele homem lhe era tão estranho quanto os pescadores daquelas vilas pitorescas.
Aproximaram-se da torre, passando bem perto quando o vento inflou as velas do barco. Parecia deserta.
– Quem é esse amigo a quem vamos visitar? – perguntou ela. – Como vamos chegar logo, acho que eu deveria saber o nome.
– Matthias Greenwood. Foi um dos meus professores na universidade.
Ela conteve sua surpresa. Conhecia Greenwood. Tinha tentado em vão localizar sua casa em Nápoles.
– Ele não vai se incomodar por você ter trazido mais bagagem do que ele esperava?
– Ele ficará muito satisfeito por ter a companhia da filha de Artemis Blair. Ele encontrou com ela algumas vezes, eu acho.
– Sim, com certeza. Eu o vi em algumas ocasiões; a última, no funeral da minha mãe.
Matthias Greenwood tinha sido um dos muitos acadêmicos a prestar homenagem à mulher que deixara o mundo inteiro confuso.
Também era alguém que poderia lançar luz sobre o “outro” homem. Phaedra pensara que esse atraso na viagem para Pompeia seria uma amolação. No entanto lorde Elliot a estava ajudando a riscar um dos itens em sua lista de pendências naquela terra.
– Ele a admirava. Disse que, se tivesse nascido homem, ela teria sido reconhecida como uma das maiores especialistas em línguas românicas antigas da Inglaterra – contou lorde Elliot.
Ele ainda falava em um tom distraído, como se apenas metade de sua mente prestasse atenção.
Phaedra olhou para a cidade de Positano com mais otimismo e não apenas porque sua missão poderia ser favorecida ali. Ela não se pautava por regras sociais estúpidas, mas a maior parte do mundo, sim. Imaginava como seria recebida ao chegar com lorde Elliot. Viajar com ele implicava coisas que ela não tolerava e que não gostaria que as pessoas presumissem.
O Sr. Greenwood provavelmente entenderia que era melhor não presumir nada.
Phaedra sentiu seu companheiro de viagem olhando para ela e virou a cabeça. Ele tinha voltado a si.
– Ele costuma receber convidados os mais variados – disse Elliot. – Pode ser que haja outras pessoas lá. Você vai se comportar, não?
Ela confiou que ele não esperaria que ela bancasse a amante dócil em uma vã tentativa de ser alguém que os convidados tolerariam.
Mesmo que quisesse criar esse disfarce, nem saberia por onde começar.
CAPÍTULO 6
Positano ficava numa angra apinhada de barcos. As construções em tons pastel pairavam acima do horizonte, amontoadas umas sobre as outras no declive acentuado da montanha. A cidade toda era uma sequência íngreme de casas que seguiam na direção do mar.
Phaedra deu uma olhada no despenhadeiro alto, no mar infinito cor de safira e na folhagem de um verde muito escuro. Nunca tinha visto nada tão fascinante em toda a sua vida.
– Qual casa pertence ao Sr. Greenwood? – perguntou ela.
Lorde Elliot se aproximou e estendeu o braço para que a vista dela o acompanhasse.
– Aquela lá em cima, com colunas.
As colunas sustentavam a cobertura de uma comprida varanda na casa mais ao alto. A casa fora erigida um pouco acima da área central da cidade. Sua distância criava uma coroa para os prédios que se espalhavam como uma cascata abaixo dela.
– Vamos voar até lá ou ele vai jogar uma cesta para nos apanhar aqui embaixo?
Um dos membros da tripulação já tinha se ocupado em resolver o problema e voltava com a solução: dois garotos que o seguiam puxando burros.
Phaedra permitiu que os garotos a ajudassem a subir no lombo de um animal. Lorde Elliot só precisou levantar a perna para montar no dele. Era mais alto que o bicho, e suas botas arrastavam pelo chão. A tripulação amarrou suas valises e malas em dois outros burros.
Ela riu deles mesmos.
– Que comitiva, lorde Elliot! Fará um desfile impressionante pela cidade. Talvez eu pegue meu livro de esboços e registre para a posteridade sua elegância sobre esse belo corcel.
Ele tocou seu burro para assumir a dianteira e deu um tapa no traseiro do animal dela ao passar.
– Cuide de sua própria montaria, Srta. Blair. Tome cuidado para não cair ou não vai parar de rolar até chegar à baía.
Ela logo entendeu o que ele queria dizer. Os burros passavam por caminhos muito íngremes, que tinham sido cortados em degraus baixos e estreitos e depois pavimentados. Ela pensou que ia mesmo cair no mar. Os animais sabiam onde pisavam, mas, sentada de lado na sela, Phaedra precisava ter cuidado para proteger a própria vida.
Eles foram um espetáculo e tanto. Os habitantes do vilarejo saíram às portas e janelas para espiar, curiosos, os estrangeiros que iam para a mansão localizada acima da cidade. Crianças começaram a segui-los, formando um verdadeiro séquito. Duas meninas andaram ao lado de Phaedra por um tempo, espiando com curiosidade as pontas ruivas de seu cabelo que apareciam sob o xale. Algumas mulheres fizeram leves mesuras quando lorde Elliot passou, sabendo, por seu porte e seus modos, que ele tinha sangue nobre.
Ela relaxou ao se adaptar à andadura do burro. Não ousava olhar para trás, mas se permitiu olhar as casas de pedra, lindamente rústicas. Varandas simples e coberturas de telhas ajudavam a criar um amálgama de formas e cores. Algumas casas maiores tinham azulejos decorados em volta das portas principais. Todas pareciam muito antigas, como a torre. Estuque cobria a maioria delas, quase sempre trabalhado com ornamentos e cornijas decorativos. Algumas construções eram brancas, mas muitas ostentavam detalhes em vermelho e rosa.
Os sons da vida na comunidade ecoavam ao redor conforme as pessoas chamavam umas às outras pelas janelas abertas e nas ruas do mercado embaixo. Em algum lugar, um homem cantava descontraidamente uma ária de Rossini enquanto cumpria outra tarefa qualquer.
As ruelas iam ficando mais planas à medida que se aproximavam da mansão. Era como se alguém tivesse retirado um pedaço da montanha para que a grande casa pudesse ser construída.
Um homem apareceu numa das arcadas entre as colunas da varanda. Era alto e magro, com uma basta cabeleira branca, nariz aquilino e postura ereta. O maxilar de traços muito retos terminava em um queixo partido. Phaedra só tinha visto Matthias Greenwood umas poucas vezes, porém sua aparência era tão peculiar que se tornava inesquecível.
Ele acenou em saudação, depois saiu e andou na direção deles.
– Rothwell! Que alívio vê-lo finalmente. Meus companheiros anseiam pela sua perspicácia.
Eles se cumprimentaram e Elliot apresentou Phaedra.
– Já tive a honra de conhecê-la, Rothwell. Fico feliz em vê-la de novo, Srta. Blair, e em circunstâncias menos penosas do que da última vez. Sua mãe era muito estimada por humildes acadêmicos como eu e foi muito generosa conosco. Sou-lhe grato pelas pessoas a quem me apresentou em suas recepções.
Os criados apareceram e Matthias deu ordens a respeito das bagagens.
– Entrem e descansem. Meus outros convidados estão fazendo a sesta, mas se reunirão a nós em breve.
Ela subiu o caminho de pedras e seguiu Matthias até a varanda. Olhou através dos arcos e perdeu o fôlego.
A visão era impressionante, um ângulo que exigia uma tela e um pincel. Se a vista montanha acima era incrível, olhá-la de cima para baixo era de deixar qualquer um embasbacado. Os telhados e faixas de circulação da cidade se espalhavam pela encosta. O declive era tão acentuado que era de espantar que se tivesse construído alguma coisa nele. O mar infinito, o céu tão próximo, o promontório que abraçava a paisagem – tudo isso criava um panorama vasto e irreal de um lugar precário no mundo, uma visão empolgante e romântica, mergulhada em beleza e, ao mesmo tempo, repleta de perigos.
– É um espanto que o senhor não viva somente nesta varanda e nem se importe se o restante da casa cair aos pedaços, Sr. Greenwood.
– É quase isso o que faço, Srta. Blair. Aqui e nos outros terraços e varandas. Mesmo não sendo católico, vou à igreja da paróquia para acender velas pela alma de um parente distante cuja herança me permite viver no paraíso.
Uma mulher os saudou quando entraram na sala de visitas arejada, de piso de mármore. Era uma mulher local, elegante e de pele morena. Tinha um rosto lindo e comovente, marcado por um traço de melancolia. Chamava-se signora Roviale e a forma como entrou e cuidou de acomodá-los indicou que aquela era a sua casa. Matthias Greenwood não vivia sozinho no paraíso.
Outro convidado se juntou a eles logo em seguida, depois que um criado trouxe vinho. Phaedra o reconheceu também. Ele não fora ao enterro de sua mãe, mas tinha estado uma ou duas vezes em sua casa quando ela era garota. Tinha uma beleza tão nobre, de traços finos, que ela quase se apaixonou na primeira vez que o viu.
– Veja quem está aqui para celebrar sua visita, Rothwell – disse Matthias. – Escrevi contando a ele que você viria de Nápoles e ele e a esposa vieram de Roma para vê-lo. Srta. Blair, permita-me apresentá-la ao Sr. Randall Whitmarsh, cavalheiro, acadêmico e outro refugiado da Inglaterra.
O Sr. Whitmarsh adotara os modos e o estilo europeu continental, reflexo de seus longos anos vivendo no exterior. Sussurrou um “belíssima” ao se inclinar para beijar a mão de Phaedra com tamanho exagero que ficou provado que deixara para trás o jeito reservado britânico ao adotar Roma como sua residência principal.
– É uma alegria conhecer a filha da indomável Artemis Blair – disse ele, dando um sorriso charmoso e encantador.
Phaedra não era insensível à atenção de um belo homem. Notou que lorde Elliot ficou observando de soslaio enquanto o Sr. Whitmarsh se demorava segurando a mão dela.
– Soube recentemente do falecimento de Richard Drury – disse o Sr. Whitmarsh, dando um tapinha na mão dela. – Vejo que ainda está de luto, mas creio que tenha sido uma opção muito saudável viajar para o exterior para suavizar seu sofrimento.
– O modo como costumo me vestir tornou desnecessário encomendar um guarda-roupa apropriado ao luto, entretanto meu pai não ia querer isso de qualquer forma. Na última vez que o vi, ele proibiu terminantemente que eu ficasse de luto.
Ela puxou a mão da pegada suave do Sr. Whitmarsh.
– Não esperava encontrar tantas pessoas que conheceram minha mãe na remota Positano.
– Nós três somos membros da Sociedade dos Dilettanti, Srta. Blair. Por ser mulher, sua mãe não podia participar. Vez ou outra, porém, nós lhe fazíamos uma visita para prestar nossa homenagem – explicou o Sr. Whitmarsh. – Considerando o conhecimento dela em letras românicas, não é de surpreender que encontre tantos dos que a conheceram ao visitar as terras do antigo império.
– Também é membro da Sociedade, lorde Elliot?
– Entrei depois de voltar da minha viagem pelo continente.
Ela só tinha 18 anos quando a mãe morreu, por isso ainda não chegara a frequentar os salões e jantares em que Artemis recebia acadêmicos e artistas. Porém, ali estavam, diante dela, alguns integrantes do círculo de amizades de sua mãe, mesmo que talvez pertencessem ao círculo mais distante.
Phaedra teria que descobrir se algum daqueles homens tinha percebido ou ouvido falar no homem que recebera as últimas afeições de Artemis.
Phaedra Blair estava aliviada por ela e a signora Roviale não serem as únicas mulheres na festa. A Sra. Whitmarsh desceu do quarto logo.
Phaedra entendeu de imediato que a Sra. Whitmarsh não tinha uma mente tão aberta quanto a do marido. Não falava muito, parecia mais um passarinho pálido, entretanto tinha um rosto tão expressivo que era possível adivinhar seus pensamentos. Ao perceber que Phaedra e lorde Elliot tinham chegado juntos, a Sra. Whitmarsh deu um sorrisinho superficial e lançou para a signora Roviale um sutil olhar de desdém. Depois, resignada, se recolheu a sua silenciosa desaprovação da companhia de mulheres perdidas.
Naquela noite, ao jantarem ao ar livre na varanda, lorde Elliot teve a elegância de incluir a Sra. Whitmarsh na conversa sobre a sociedade londrina, na certeza de que isso lhe agradaria. Phaedra permitiu que os cavalheiros a cobrissem de conselhos sobre as maravilhas da Antiguidade que ela não poderia deixar de visitar.
– A senhorita tem que ir aos sítios de Paestum – exortou Matthias. – Rothwell, ordeno que a leve até lá. Não entendo esses ingleses que percorrem confeitarias e bordéis em Pompeia e ignoram alguns dos mais belos templos gregos do mundo que há no entorno.
– Se a Srta. Blair desejar, iremos visitar os templos – disse lorde Elliot.
Matthias pareceu muito um acadêmico naquele momento. Com o cabelo branco despenteado, o maxilar cortando o ar e o nariz aquilino empinado, ele entoava a lição como se ela fosse uma universitária, algo que nunca lhe permitiram, por ser mulher.
– É por isso que estou aqui, Srta. Blair. Rothwell e Whitmarsh admiram os romanos, mas meu foco é mais antigo. Esta terra foi colônia dos gregos quando Roma ainda era uma cidadezinha com cinco cabeças de gado. Depois de ver os sítios de Paestum, a senhorita entenderá a superioridade do pensamento grego.
– Se isso não exigir que minha visita se prolongue por muito tempo, talvez eu aceite seu conselho.
Após o jantar, a signora Roviale levou as mulheres para longe da varanda, deixando os homens a discutir e debater sobre a Antiguidade. Phaedra não gostaria de manter uma conversa forçada com a crítica Sra. Whitmarsh. Assim, alegou cansaço e se isentou de mais obrigações sociais.
Uma criada a conduziu ao quarto. Quadrado e branco, com o mesmo piso de mármore visto por toda a mansão, tinha janelas grandes que davam para um terraço estreito que se estendia acima dos arcos da varanda principal. Alguém já tinha desfeito suas malas e guardado as roupas em um armário de madeira escura. Havia uma jarra de água na bancada para lavar o rosto e as mãos. Era de cerâmica, com flores vermelhas e folhas azuis. Cores semelhantes decoravam os azulejos em volta da lareira e o peitoril de uma janela.
Phaedra abriu as portas duplas que davam para o terraço de modo que a brisa do mar e os últimos raios do crepúsculo entrassem. Sons da varanda chegavam até ela: Matthias em tom professoral e Elliot rindo, assim como o ruído de conversa. Ela se perguntou se sua mãe algum dia realmente fora aceita naquelas discussões masculinas. Quando os Dilettanti a prestigiavam, era sempre uma relação de homens com uma mulher, com tudo o que isso implicava?
Cadeiras foram arrastadas e despedidas foram feitas. O silêncio tomou a mansão. Ela se levantou a fim de se preparar para dormir. Começava a soltar os fechos do vestido quando um ruído mínimo do lado de fora chamou sua atenção. Um feixe de luz dourada atravessou o terraço e alcançou a noite. Ela foi até lá e espiou.
Lorde Elliot estava de pé na outra extremidade do terraço, em mangas de camisa e colete. Phaedra tinha certeza de não haver feito barulho, porém ele olhou na direção dela como se tivesse feito.
– Estava imaginando se Matthias a teria acomodado neste quarto – disse Elliot.
Ela caminhou até o piso de terracota lá fora. A luz vinha de outro conjunto de portas ao lado do dela. O terraço era compartilhado por dois quartos.
– Parece que nosso anfitrião entendeu errado – disse ela.
– Possivelmente. No entanto, se for para dividir um terraço com alguém, prefiro você à Sra. Whitmarsh.
Ela arriscou se afastar um pouco mais, contudo permaneceu do próprio lado no espaço comum. Da balaustrada de pedra podia-se ver o mar, que agora brilhava lá embaixo com milhões de pequenos reflexos de estrelas.
– O Sr. Whitmarsh disse que os Dilettanti faziam homenagens a minha mãe. Fico feliz de saber que a capacidade dela era reconhecida.
– Um homem honesto teria que admitir o brilhantismo dela. É claro que havia outros menos honestos que diminuíam isso.
– É claro. Você a conheceu?
– Ainda estava na universidade quando ela faleceu. Ouvi falar nela e a vi na cidade, contudo não estava em posição de visitá-la.
– O que achava dela?
Ele se virou e descansou o quadril na balaustrada, olhando para a noite na direção dela. Phaedra desejou que ele não parecesse tão lindo e sedutor. Desejou que a luz se apagasse para que seu rosto ficasse no escuro.
– Fui criado em uma casa de homens e meu pai não compreendia bem as mulheres. Então, saber da sua mãe foi uma revelação. Os colegiais falavam muito dela. Alguns se apaixonavam por ela, outros a achavam irreal, mas sem dúvida ela os fazia questionar a ordem das coisas. Quanto a mim, eu a achava bonita, interessante, inteligente e provavelmente perigosa.
– Acho que ela era perigosa. Se o mundo fosse cheio de Artemis Blairs, os homens não poderiam continuar a ser o que são. Todos teriam que questionar a ordem das coisas, como você.
– Era o que me passava pela cabeça, entretanto eu era um garoto na época e não gostava de perigos reais. Tive que conhecer a filha dela para entender essa parte.
Foi a vez dela de rir.
– Dificilmente eu poderia representar um perigo para você.
– Você se engana, como eu me enganei. O perigo não vem de você.
Não, não vinha. Isso ficara evidente aquela noite. Um poder fluía dele, em impulsos viris. Isso não a surpreendia nem a assustava. Porém, a forma como seus próprios instintos femininos reagiam, sim.
– Não me culpe por suas piores inclinações, lorde Elliot.
– Elas não parecem estar entre as ruins, que dirá as piores, querida Phaedra. Ao contrário, elas me parecem naturais, inevitáveis e até necessárias.
Sua voz baixa e segura lançava cordas de veludo que a amarravam. O coração dela foi parar na boca e sua pulsação acelerou. Ele não se mexeu. Não se aproximou nem um centímetro, contudo pareceu estar ao seu lado, correndo a mão por seu corpo todo.
– Quero você.
O tom calmo e descontraído agitou o sangue dela como a brisa agitava seu cabelo.
– Quero-a sem resistências ao prazer e implorando por mim. Quero-a nua e tremendo e despida de suas...
– Basta. Se é isso o que pensa das mulheres...
– Só de você, querida dama. Você lança um desafio a cada homem que vê. Não se surpreenda se um deles o aceitar.
– Como ousa...
– Ah, sim, eu ouso. Estou a ponto de ousar neste exato momento. Você sabe disso e ainda assim está aqui. Se não quisesse que eu ousasse, nunca teria saído por aquela porta.
Ela abriu a boca para negar, mas as palavras lhe faltaram.
Com um sorriso vago, ele se afastou da balaustrada. O coração dela deu um salto e suas pernas fraquejaram.
– Esse perigo que incita em mim a excita.
Elliot andou em direção à luz do próprio quarto.
– Quem está zumbindo em volta de quem agora, Srta. Blair?
– Um nome estranho para se dar a uma filha, Phaedra – ponderou Matthias em voz alta.
Era a manhã seguinte e ele e Elliot tomavam café na varanda. Lá embaixo, Positano despertava após o nascer do sol.
– Duvido que haja outra mulher com esse nome na Inglaterra, considerando a referência – acrescentou Matthias. – É muito típico de Artemis Blair decidir que a fonte não importa e valorizar sua exclusividade.
Levando em conta que a Phaedra da mitologia teve um caso com o enteado, era mesmo uma escolha estranha. Elliot duvidava que a crença da Srta. Blair e da mãe no amor livre fosse tão longe assim.
– Acho que ela escolheu o nome pela sonoridade. É um belo nome – disse Elliot.
– Eu poderia pensar em uns cinco ou seis melhores. Não, seu descuido por este primeiro dever maternal sugere que ela era indiferente a essa parte da vida.
– Você falava bem dela na época em que fui seu aluno e a Srta. Blair a idolatra. Vamos calar as observações que ela possa ouvir.
– Ela ainda está deitada e não vai ouvir minhas alusões à falta de impulsos femininos de sua mãe, entretanto sua repreensão faz sentido.
De fato, ela ainda estava na cama, dormindo profundamente. Elliot tinha ido até lá e espiado antes de descer. As portas do quarto dela ainda estavam abertas, como uma forma de contradizer as últimas palavras dele. Veja como você não é nem um pouco perigoso para mim. Sua honra e a lei me protegem do pior e meu autocontrole cuidará do resto.
Ele vira um cabelo cor de cobre espalhado pelo travesseiro e uma pele alva enroscada nos lençóis. Uma perna linda e esguia se alongava sobre a roupa de cama. A tentação de entrar lá só para ficar observando-a o tomou, assim como o aborrecimento por vê-la dormindo tão profundamente, algo que ele não tinha conseguido fazer.
Nos últimos tempos, andava pensando nela demais. Ficando com a cabeça nas nuvens por muito tempo. Desejando demais. Achava que a companhia dos amigos e as obrigações do trabalho diminuiriam a importância da presença dela e assim ele voltaria a mente para algo mais normal.
– Está vivendo como um rei aqui, Greenwood – disse, para se distrair das imagens de Phaedra tão etereamente erótica em seu repouso. – As melhorias desde a minha última visita são visíveis.
Matthias ficou radiante.
– Suponho que esteja falando da casa e não da minha companheira, apesar de eu não saber ao certo dizer qual me agrada mais. Trazer as pedras até aqui foi um inferno, mas valeu a pena. Você deveria se juntar a mim, Rothwell. Compre uma mansão antiga e veja como seu dinheiro inglês pode render nesta costa.
– Ele rende porque o lugar é tão inacessível que é preciso navegar milhas até chegar a uma cidadezinha que fica logo ali atrás da montanha. Preciso da vida urbana com mais frequência do que duas vezes ao ano. Contudo, se está feliz em seu isolamento, fico satisfeito por você.
– Não estou nem um pouco isolado. Sempre tenho companhia. Os amigos vêm da Inglaterra, de Roma, de Nápoles e até de Pompeia. Recebi o superintendente do município no mês passado. Ele não se incomodou de subir a montanha em lombo de burro.
– Gostaria que me desse uma carta de apresentação – pediu Elliot. – Quero ver tudo o que escavaram nos últimos anos, não só as atrações abertas para visitantes.
Matthias levantou a sobrancelha, curioso.
– Quer ver os afrescos reveladores das delícias noturnas? A Srta. Blair não vai poder entrar, por mais que eu peça.
– Vou pesquisar outros assuntos. Antes de partir, gostaria que me concedesse alguns minutos para discutirmos o rumo que meu trabalho está tomando.
– Está combinado, então. Amanhã cedo nos trancaremos em meu escritório para falar sobre isso. Sinto falta de dar aulas. Depois me lembro de quão limitados muitos de meus alunos eram e a saudade vai embora.
– Brincar de professor e aluno vai ser muito útil. Vai clarear meus pensamentos. Ah, estou obrigado como cavalheiro a dizer que creio que você tenha entendido mal minha amizade com a Srta. Blair.
– É mesmo? Que pena!
Naquele momento, a dama em questão se juntou a eles. Com seu vestido preto esvoaçante e o cabelo solto, fazia pensar numa linda feiticeira celta. Matthias a convidou para se sentar à mesa. Serviu-lhe café e ficou atrapalhado, o que revelava quanto a companhia dela o provocava.
– Espero que tenha dormido bem em minha humilde casa, Srta. Blair.
– Sua casa é tudo, menos humilde, e dormi muito bem. O som e a brisa do mar são muito relaxantes – assegurou Phaedra, e então virou a cadeira para olhar a cidade. – O que estão fazendo lá embaixo? O que é aquela coisa vermelha perto da água?
– Ah, deve ser o carro para a procissão. Eles devem estar pintando-o. Daqui a três dias é a festa de San Giovanni, São João Batista. É uma grande festa religiosa por aqui. Nenhum barco sai para pescar nesse dia.
– Vai haver uma procissão?
– Uma procissão, uma missa e uma festa. Entre outros rituais, eles colhem nozes nas montanhas para fazer óleo.
– Interessante – disse ela. – Coincide com o solstício. Deve ser outro exemplo de festa pagã da qual os cristãos se apropriaram.
– A Srta. Blair está alcançando uma reputação em estudos mitológicos comparável à da mãe dela em letras românicas – informou Elliot. – Ela publicou um livro sobre o assunto que é muito benquisto.
– Que louvável!
Matthias conseguira falar de forma a diminuir o feito, apesar de admirá-lo.
– Esta data em comum é uma coincidência – continuou ele. – O deus do sol não era uma figura de destaque nas mitologias grega e romana. Apolo é associado a ele, mas o próprio sol, Hélio, desempenha um papel menor. Talvez por haver tanto sol por estas terras, não tenha sido preciso apaziguar esse deus.
– Há muito sol no Egito e, ainda assim, seu deus sol reinava supremo – contrapôs Elliot. – Acho que a Srta. Blair está certa sobre a festa de San Giovanni.
– Talvez – disse Matthias. – E o simbolismo das nozes, o que seria?
Phaedra riu.
– Vou pensar em uma resposta antes de partir, já que o senhor está disposto a ser flexível em suas opiniões.
– Para uma mulher bonita, posso ser completamente flexível, senhorita Phaedra. É meu maior defeito.
Ele olhou para fora da varanda. Um homem se aproximava, vindo por um caminho do norte.
– Eis Whitmarsh, de volta de sua caminhada matinal. Prometi mostrar-lhe um novo tesouro que encontrei. Gostaria de ver minha humilde e querida coleção de artefatos, Srta. Blair?
– Com certeza, Sr. Greenwood.
Ela aceitou sua mão para se levantar. Whitmarsh se juntou a eles ao entrarem na casa.
Elliot estava curioso para ver se Phaedra conseguiria manter a pose de indiferença em relação a ele que assumira nessa manhã. Ela nem sequer enrubescera. Não ficara agitada. Havia notado sua presença de forma indiferente e segura de si. Sua atitude só fez provocar o lado mais obscuro do desejo que o atormentava.
Esse lado agora lhe dizia que ele deveria tê-la seduzido no terraço na noite anterior, como desejara. A ideia fazia mais sentido a cada minuto que passava.
CONTINUA
Um homem que comete um crime precisa encobrir seus rastros, mesmo que eles sejam deixados pelos melhores sapatos que o dinheiro poderia comprar.
Para encobrir os seus, lorde Elliot Rothwell retornou à casa de sua família, em Londres, e se juntou às pessoas recém-chegadas para o baile promovido por seu irmão. Agiu como se houvesse se ausentado por breves instantes para tomar um pouco de ar naquela gloriosa e agradável noite de maio.
Ao cruzar o limiar da porta, começou a cumprimentar os presentes. Belo e alto, o irmão mais novo do quarto marquês de Easterbrook – e também o Rothwell considerado mais amistoso e normal – distribuiu sorrisos a todos, alguns bastante calorosos a certas damas.
Quinze minutos depois, tão suavemente quanto voltara à festa, Elliot puxou assunto com Lady Falrith. Retomou uma conversa que deixara em suspenso duas horas antes e elogiou a dama com tanto tato que ela se esqueceu de que ele havia se ausentado. Em questão de minutos, Lady Falrith parou de se dar conta da passagem do tempo.
Enquanto jogava seus encantos em Lady Falrith, Elliot varria o salão com os olhos à procura do irmão. Não Hayden, que, junto com a esposa, Alexia, era o anfitrião da noite. Estava em busca de Christian, o marquês de Easterbrook.
Os olhares dos dois não se cruzaram, mas o retorno de Elliot ao baile foi notado por Christian. O mais velho se afastou de um círculo de lordes no fundo da sala e caminhou para a porta.
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Elliot dançou uma valsa com Lady Falrith antes de continuar a missão da noite. Fez isso como penitência por estar usando a dama e como um agradecimento sem palavras por sua ajuda involuntária. A noção de tempo de Lady Falrith poderia ser bastante vaga e sua memória, um tanto benevolente. De manhã, ela acreditaria que Elliot havia lhe dispensado atenção a noite inteira e que tinha flertado com ela. Sua autoconfiança seria útil caso algo desagradável acontecesse em relação às atividades de Elliot na cidade naquela noite.
Finda a valsa, ele de novo pediu licença. Ao contrário de Christian, que seguira solitário e direto para a porta, Elliot caminhou pelo salão distribuindo cumprimentos e conversando com todos, até chegar à nova cunhada.
– Está tudo indo bem, não acha? – perguntou ela, seu olhar percorrendo o espaço em busca de confirmação.
– É um triunfo, Alexia.
E, para ela, era mesmo. Um triunfo da personalidade e do temperamento. E talvez um triunfo do amor.
Alexia não era o tipo de mulher que a sociedade esperaria que pudesse se casar com Hayden. Não tinha família nem fortuna. Era tão sensata que nunca aprendera a dissimular, que dirá flertar. Porém, naquela noite ela era a anfitriã no lar de um marquês, com seu cabelo escuro impecavelmente penteado como ditava a última moda e usando roupas igualmente elegantes. A órfã pobre se casara com um homem que a amava como nunca amara antes.
Elliot acreditava que aquele casamento daria certo. Alexia cuidaria para que isso acontecesse. A história já provara que o amor era uma emoção perigosa para os homens da família Rothwell. Contudo a sensata e prática Alexia saberia usar o amor para controlar o perigo. Elliot suspeitava que ela já dominara a fera várias vezes.
Ele se uniu a ela na admiração do sucesso da noite. Em um canto distante, uma mulher pequena de pele muito clara era o centro das atenções. Um penteado adornado de plumas em abundância valorizava seu cabelo louro. Ao mesmo tempo, ela se mantinha vigilante na atenção que uma bela jovem recebia dos rapazes ali por perto.
– O triunfo é seu, Alexia, no entanto, creio que minha tia pretende levar o troféu desta temporada de caça.
– É compreensível a felicidade de sua tia Henrietta por apresentar a filha à sociedade. Dois nobres vinham fazendo galanteios a Caroline nos últimos tempos. Mas ela está irritada comigo hoje porque não convidei um deles para o baile, apesar de ela haver ordenado que eu o fizesse.
Elliot estava pouco interessado nos motivos de irritação da tia. Na lista de convidados, entretanto, tinha todo o interesse.
– Não vi a Srta. Blair, Alexia. Nenhum vestido preto. Nenhum cabelo solto. Hayden a proibiu de convidá-la?
– De jeito nenhum. Phaedra está no exterior. Ela embarcou há cerca de quinze dias.
Ele não queria parecer curioso demais, mas...
– No exterior, você disse?
Os olhos violeta dela se suavizaram, divertindo-se. Voltou toda a sua atenção para ele, o que, considerando o assunto em pauta, não era algo que ele desejasse.
– Primeiro, Nápoles, depois, uma excursão ao sul. Eu avisei a ela que você costuma dizer que não é muito sensato visitar a península Itálica no calor do verão, mas ela queria investigar os rituais e festividades da estação.
Alexia inclinou a cabeça como se fosse confidenciar um segredo.
– Acredito que o falecimento do pai a afetou mais do que ela admite. O último encontro que tiveram foi muito emotivo. Phaedra ficou bastante abalada. Acho que fez a viagem para se animar um pouco.
Ele não duvidava de que se encontrar com o pai em seu leito de morte fosse algo bastante emotivo. Ele mesmo ficara muito consternado ao perder o pai. Nessa noite, porém, estava mais interessado no paradeiro da Srta. Blair e em assuntos discutidos com o pai dela antes da despedida final.
– Se souber onde ela vai se hospedar em Nápoles, posso fazer-lhe uma visita quando eu for, caso ela ainda esteja por lá.
– Ela deixou o endereço do local onde pretendia ficar. Foi indicação de um amigo. Se Phaedra ainda não tiver voltado quando você for, ficarei feliz se puder visitá-la. A independência dela às vezes beira o descuido, e isso me preocupa.
Elliot duvidava de que Phaedra Blair gostasse de ter alguém preocupando-se com ela. Mas Alexia se preocupava de qualquer forma.
– Ai, meu Deus! – murmurou Alexia.
Elliot se virou e viu o motivo do suspiro da cunhada. Henrietta vinha na direção deles, com suas plumas esvoaçantes e seus olhos sonhadores e brilhantes lampejando de tanta determinação.
– Acho que ela está atrás de você – sussurrou Alexia. – Fuja enquanto é tempo ou ela vai pegá-lo para reclamar. Easterbrook permitiu que eu recepcionasse os convidados do baile sem o consentimento dela. Henrietta acredita que o fato de morar nesta casa a torna sua dona.
Elliot era mestre em sair à francesa. Quando a tia alcançou seu destino, ele já se fora havia muito tempo.
Depois de pegar um atalho pelo corredor dos criados e dar uma corrida subindo as escadas dos fundos, Elliot se aproximou dos aposentos de Christian. Entrou na sala de estar e encontrou o irmão esticado em uma cadeira no canto.
O olhar penetrante que Christian lhe lançou deixou claro que sua mente não estava nem de longe tão relaxada quanto o corpo.
– Não encontrei – disse Elliot, respondendo à pergunta que aqueles olhos escuros faziam. – Se estiver na casa ou no escritório dele, está muito bem escondido.
Christian expirou com força. O som que fez demonstrava seu aborrecimento. O assunto em questão vinha cerceando sua liberdade de passar os dias fazendo o que bem entendesse. Elliot não fazia ideia de quais atividades seriam essas. Na verdade, ninguém fazia.
– Ele deve ter queimado tudo ao saber que estava à beira da morte – sugeriu Elliot.
– Merris Langton demonstrava ter uma personalidade tal que é improvável que pensasse em poupar os outros, mesmo à beira da morte.
Christian enfiou um dedo por baixo de sua gravata atada com perfeição e deu um puxão para soltá-la. Sua aparência estava impecável naquela noite, tudo nele demonstrava se tratar de um lorde. Os tecidos de suas vestimentas exibiam a qualidade superior em cada fio. Contudo o gesto ao desatar a gravata mostrava seu desconforto em relação à formalidade da noite e o longo cabelo escuro preso em um rabo de cavalo indicava seu lado excêntrico.
Elliot imaginou que o irmão estaria louco para se desvencilhar daqueles símbolos formais da civilização e se refestelar no robe exótico que sempre usava. O mais comum era encontrá-lo descalço em seus aposentos, não usando meias de seda e sapatos. No momento, entretanto, as únicas indicações de seu jeito informal em casa eram a sobrecasaca desabotoada e a forma lânguida como seu corpo alto se moldava ao forro da cadeira.
– Você verificou se havia tábuas soltas no piso ou outros esconderijos? – perguntou Christian.
– Cheguei a arriscar ser descoberto. Permaneci por tempo de mais nos dois prédios e um guarda estava passando quando saí do escritório no centro financeiro. Estava escuro, não havia luz perto da porta, mas...
Sua descrição da aventura sugeria mais receio do que ele de fato tivera. Elliot acreditava que, em certas circunstâncias, não havia opção a não ser infringir a lei. Só nunca esperara reagir de forma tão fria e indiferente quando se visse numa dessas situações.
– Se alguém perguntar, você ficou no baile a noite toda – disse Christian. – Langton possuía uma pequena editora que publica textos revolucionários. Também era um homem com certo gosto pela chantagem, como descobrimos. Foi uma pena ele ter morrido antes que eu pudesse pagar-lhe. Agora o manuscrito de Richard Drury está sabe lá Deus onde e sua mentira sórdida sobre nosso pai ainda pode vir a público.
– Vou garantir que isso não aconteça.
– Você acha que alguém pode ter pegado o manuscrito antes de você? É provável que eu não tenha sido a única pessoa que Langton abordou.
– Não vi indícios de que alguém já tivesse mexido nas coisas dele. Nem mesmo seu advogado ou testamenteiro. Ele acabou de ser enterrado; foi esta tarde. Não acho que o manuscrito estivesse nem na casa nem no escritório quando ele morreu.
– Esse é um obstáculo muito inconveniente.
– Inconveniente, mas não intransponível. Vou descobrir o manuscrito e o destruirei, se necessário.
A atenção de Christian focou nele.
– Você fala com muita confiança. Sabe onde está o maldito manuscrito, não sabe?
– Faço ideia. Se estiver certo, vamos acabar com isso em breve. Mas pode haver custos para você.
– Pois pagarei. Richard Drury foi membro do Parlamento e, apesar de suas ideias extremistas, um intelectual respeitado. Se suas memórias incluírem tal acusação contra meu pai, muitas pessoas vão acreditar nele.
Vão acreditar porque a acusação reforça o que já creem ser verdade.
Elliot não verbalizou a resposta, mas aquela ideia rondava sua cabeça desde que soubera que Merris Langton planejava publicar as memórias de Richard Drury. O livro incluiria segredos e intrigas que repercutiriam mal sobre a reputação de muitos poderosos, tanto do passado quanto do presente. A acusação que supostamente existia contra o pai deles combinava bem demais com o que a sociedade já pressupunha sobre seu casamento.
Porém, a sociedade estava errada em relação à maior parte do caso. O pai lhe explicara isso em um momento em que os homens não mentem.
Você era o favorito dela. Ela o queria para si e eu permiti, já que você era o caçula. Era um alívio vê-la às vezes se lembrar de que era mãe. Só que agora estou morrendo e mal o conheço. Não espero amor ou pesar de você, mas não vou deixar que pense que sou um monstro, como é provável que ela tenha dito.
– Onde você acha que o manuscrito está? Mantenha-me informado de cada passo, Elliot. Se não estiver fazendo progressos, cuidarei de tudo sozinho.
Só não estava claro como Christian faria isso. Essa incerteza levara Elliot a assumir a tarefa. Seu irmão podia ser cruel ao silenciar ecos do passado.
– Apesar de não ter achado o manuscrito, descobri documentos financeiros no escritório de Langton. A editora está em apuros. Os documentos referentes à propriedade dela foram de grande valia. Richard Drury foi sócio desde o início. Sem dúvida foi esse o motivo pelo qual Langton recebeu suas memórias.
Christian achou isso interessante.
– Teremos que abordar o advogado de Langton e ver quem vai ficar com tudo agora.
– Os documentos indicam que a parte de Drury foi deixada para a única filha. Portanto, ainda há alguém vivo para lidar com o assunto. E provavelmente foi cúmplice no esquema de chantagem desde o início.
– Única filha? Maldição!
Christian apoiou a cabeça no encosto da cadeira, fechou os olhos e emitiu um resmungo exasperado.
– Não me diga que é Phaedra Blair. Que inferno!
– Sim, Phaedra Blair.
Christian xingou novamente.
– É bem do estilo do Sr. Drury, com suas ideias radicais e vida não convencional, deixar para uma mulher, sua filha bastarda, a sociedade num negócio – afirmou, depois desviou o olhar para baixo e prosseguiu: – É claro, ela deve ficar feliz com o dinheiro se a editora estiver em apuros. Talvez até agradeça por ter um motivo para não publicar as memórias do pai. Com certeza os textos abordam assuntos pessoais sobre ela e a mãe.
– É possível.
Mas Elliot não acreditava que as negociações seriam tão simples assim. A Srta. Blair era uma complicação inoportuna. Ela poderia ver na publicação das memórias e seus segredos uma possibilidade de ganhar um bom dinheiro e salvar a editora. Ou, pior, poderia acreditar que seus ideais de justiça social seriam fortalecidos quando ela revelasse o calcanhar de aquiles da sociedade culta.
– O livro dela foi publicado por Langton, não? Está na biblioteca aqui, em algum lugar. Confesso que nunca o li. Não tenho muito interesse em mitologia e folclore, que dirá em estudos que misturam ambos – confessou Christian.
– Ouvi dizer que a base teórica é mais do que respeitável.
Elliot dava a mão à palmatória, quando era o caso.
– Ela herdou a inteligência dos pais, junto com a indiferença pelas convenções sociais e pelas regras de conduta.
– Então, nas atuais circunstâncias, nada do que lhe foi legado é boa notícia para nós.
Christian se levantou, abotoou o casaco e verificou se o colarinho estava arrumado. Ia voltar ao baile.
– É melhor não contar a Hayden sobre isso. Ele é muito protetor em relação à esposa, e a Srta. Blair é amiga dela. Seria melhor que eles continuassem na ignorância, para o caso de você ser obrigado a agir mais rispidamente.
– A Srta. Blair zarpou para Nápoles há duas semanas. Farei a transação com ela antes que Alexia tenha oportunidade de vê-la.
– Vai segui-la até lá para isso?
– Eu pretendia ir a Pompeia no outono, de qualquer forma. Quero estudar as recentes escavações para meu próximo livro. Só vou antecipar a viagem.
Andaram lado a lado até a escada. A cada degrau, os acordes musicais iam ficando cada vez mais altos e o burburinho de vozes enchia os espaços majestosos. Ao descerem para a alegre turba, Elliot observou a expressão distante e distraída do irmão.
– Não se preocupe, Christian. Vou me certificar de que a acusação contra nosso pai nunca seja publicada.
O rápido sorriso de Christian não deixou sua expressão mais leve.
– Não duvido de suas habilidades ou de sua determinação. Não era sobre isso que estava pensando neste exato momento.
– Então era sobre o quê?
– Estava pensando em Phaedra Blair e imaginando se existe um homem na face da Terra que consiga, como você disse, fazer transações com ela.
Elliot seguia no escuro, iluminando o caminho com a chama da pequena lamparina que carregava.
Os convidados tinham ido embora e os criados estavam dormindo. Hayden e Alexia provavelmente gozavam das delícias do leito conjugal em sua casa na Hill Street. Christian ainda devia estar acordado, mas não deixaria seus aposentos pelos próximos dias.
A luz fraca se refletia nas molduras douradas na galeria. A lua lançava um pouco mais de luminosidade através dos janelões que vazavam outra parede. Elliot parou na frente de dois retratos. Não tinha descido no intuito de ir àquele cômodo, mas seu objetivo tinha tudo a ver com o homem e a mulher imortalizados naquelas imagens.
O artista tinha usado fundos semelhantes para os dois quadros, como se uma pintura desse continuidade à outra. Era bom ver seus pais juntos assim, duas metades de um todo, mesmo que a unidade implícita fosse mentira. Podia contar nos dedos o número de vezes que ao menos vira os dois no mesmo ambiente.
Não vou deixar que pense que sou um monstro, como é provável que ela tenha dito.
Seu pai se enganara nessa avaliação. Exceto por um único desabafo, a mãe nunca falara com ele sobre a separação e seus motivos. Ela quase não falava nada nas horas que passava com Elliot na biblioteca em Aylesbury.
O medo que sentira do pai vinha dele mesmo, não viera da mãe. Mas apreciara os raros momentos de atenção que recebera daquele pai que parecia não se lembrar de que tinha três filhos, não apenas dois.
Continuou sua caminhada para a biblioteca pensando na longa conversa que tivera com o pai, a última e única da vida inteira. Aprendera verdades importantes naquele dia, sobre seres humanos e paixões, sobre orgulho e alma e sobre a forma como uma criança pode não enxergar direito o mundo à sua volta.
Tinha chegado ao fim dessa conversa já sem medo. Após aquelas confidências, sentira-se como filho de seu pai pela primeira vez na vida.
Correu a lamparina pelas lombadas de couro dos livros na biblioteca. Seguiu para a estante do canto, buscando a prateleira mais baixa. Depois da morte da mãe, havia trazido para ali os livros pessoais dela, os que ele a vira lendo em seu exílio em Aylesbury.
Não sabia por que trouxera aqueles livros para Londres. Talvez assim uma parte dela permanecesse onde a família costumava se reunir. Seguira esse impulso muito antes da conversa com o pai, um ato de rebeldia na tentativa de finalmente pôr fim à separação dela de suas vidas.
Ninguém nunca notara o acréscimo desses livros às centenas de volumes. Bem embaixo, em um canto obscuro, nem o fato de suas encadernações não combinarem com as dos outros tinha importância.
Passou o dedo por um grupo de obras não encadernadas. Finas e pequenas, eram as brochuras que pertenceram à mãe. Retirou-as da estante, espalhou-as pelo chão e aproximou a lamparina de seus títulos.
Viu o que queria. Um ensaio contra o casamento, escrito trinta anos antes por uma famosa intelectual. A autora vivera de acordo com as próprias crenças. Chegara a recusar uma proposta de casamento do amor de sua vida, Richard Drury, mesmo estando grávida.
Ele carregou a brochura e a lamparina até a estante onde Easterbrook arrumara as novas aquisições da biblioteca. Pegou uma dissertação sobre mitologia que ainda exalava cheiro de couro novo.
Levou os dois livros para seu quarto e começou a lê-los. Estava se preparando para enfrentar Phaedra Blair.
CAPÍTULO 2
– Signora, não acho que eu deva pagar por estes cômodos se nem mesmo quero usá-los.
Phaedra conseguiu expressar sua objeção juntando seus conhecimentos de latim aos poucos termos que aprendera do dialeto napolitano. Esperava que, ainda que as palavras não fossem suficientes, seu tom comunicasse seu desacordo em relação à conta que a signora Cirillo lhe apresentara.
Recebeu uma resposta longa e raivosa, despejada de forma igualmente eloquente. A signora Cirillo não se importava se Phaedra tinha ficado nos cômodos contra sua vontade. Nem gostava de ter guardas reais posicionados do lado de fora de sua hospedaria modesta porém respeitável. Queria ser paga e tivera a ousadia de acrescentar um valor referente ao incômodo que os guardas representavam para os outros hóspedes.
Apesar de tentada a dizer à mulher que mandasse aquela conta para o rei, Phaedra se controlou e foi buscar as moedas no quarto.
Fora mesmo um erro gastar uma semana naquela cidade antes de partir para as ruínas. Se sua reclusão durasse muito tempo, não teria dinheiro para comprar a passagem de volta para a Inglaterra, que dirá continuar sua missão por ali. A ideia era fazer uma viagem curta ao exterior. Não viera a passeio, afinal. Estava lá por um motivo e tinha assuntos urgentes a tratar quando voltasse para casa.
Amansada por mais uma semana, a signora Cirillo foi embora. Phaedra voltou para onde estava sua bagagem e refletiu sobre a situação. Procurou em sua valise e encontrou um xale preto. Desfez o nó que havia em uma de suas pontas, soltando o objeto escondido nele.
Uma joia grande caiu em seu colo e seus matizes brilharam na pouca luz do quarto. Pequenas imagens finamente entalhadas se destacavam em branco-perolado contra o fundo vermelho-escuro. Retratavam uma cena mitológica do deus Baco e seu séquito.
Fora o objeto mais caro que a mãe lhe deixara ao morrer. Para garantir o futuro de minha filha, deixo-lhe meu único objeto de valor, meu camafeu de ágata, uma antiguidade de Pompeia, ela havia acrescentado à mão ao testamento.
Phaedra nunca tinha pensado muito sobre aquele aditamento nos seis anos que se passaram desde a morte da mãe. Conservava com carinho aquela peça, assim como tudo o que lembrava a brilhante e extraordinária Artemis Blair. O valor da joia a deixava mais tranquila em relação a seu futuro financeiro, era bem verdade, mas ela esperava nunca ter que vendê-la. Agora, no entanto, a frase belamente escrita pela mãe levantava perguntas que exigiam respostas.
Amarrou o camafeu de volta no xale, guardou-o e retornou para a sala de estar. Abriu as persianas do janelão que dava para oeste. A baía pareceu muito azul a distância e a ilha de Ischia podia ser avistada em meio à névoa longínqua.
Uma brisa marinha penetrou no cômodo, esvoaçando alguns de seus cachos. A voz do guarda também chegou até ela. Phaedra debruçou-se na janela do terceiro pavimento para ver com quem ele conversava.
Viu alguém de cabelos escuros bem diante do capacete de metal e da imponente bainha da espada do guarda. O cabelo tinha um corte da última moda e se movia de forma romântica ao soprar da brisa. Pertencia a um homem bem mais alto do que o guarda, de ombros largos e que parecia usar uma sobrecasaca cara. As botas eram do tipo visto nos pés mais elegantes de Londres. A julgar pelos trajes, tratava-se de um cavalheiro inglês.
Ela apurou o ouvido para escutar a conversa. Sentiu-se surpreendentemente reconfortada por haver alguém de seu país ali, mesmo que só estivesse pedindo instruções de como andar pela cidade nas ruas mais escondidas do Bairro Espanhol.
Ela considerou a hipótese de chamá-lo e pedir ajuda. Não tinha certeza se os ingleses ali, em Nápoles, sabiam que ela fora presa. Mas também duvidava de que dessem a mínima caso soubessem. Os que a conheciam não aprovavam seu comportamento nem queriam sua companhia. Phaedra normalmente também não apreciava a companhia deles, mas sua inabilidade de se mesclar à sociedade inglesa ali tinha lhe criado problemas muito antes de seu inesperado encarceramento.
As coisas pareciam não ir bem para o inglês: os gestos do guarda deixavam claro que ele se desculpava respeitosamente. Estou cumprindo meu dever. Eu colaboraria se pudesse, mas...
O inglês começou a se afastar. Caminhou para o outro lado da calçada e parou. Olhou para cima, franzindo de leve as sobrancelhas perfeitas. Seus olhos escuros alertas percorreram a fachada do prédio.
Phaedra sentiu o coração ficar mais leve – e não só porque o homem tinha um rosto que faria a pulsação de qualquer mulher acelerar. Ela o conhecia. Era o famoso historiador lorde Elliot Rothwell que estava lá embaixo. Alexia dissera que ele visitaria Nápoles no outono, contudo parecia que ele antecipara a viagem.
Ela se inclinou mais para fora da janela e acenou. Lorde Elliot respondeu com um leve movimento de cabeça. Ela levou um dedo aos lábios e apontou para o guarda. Depois gesticulou indicando os fundos do prédio.
Lorde Elliot se afastou fingindo estudar a arquitetura das construções erguidas ao longo da rua. Phaedra fechou a persiana e correu para o outro lado do apartamento. Abriu a janela e olhou para o pequeno jardim embaixo.
Lorde Elliot levou um tempo para chegar lá. Por fim, ela o viu entrar pela extremidade oposta, vindo pelo portão que dava para a ruela fétida que separava os imóveis. Ele seguiu sem nenhuma hesitação. Caminhou na direção dela, alto e confiante, como um homem acostumado a fazer o que bem entendia. Mesmo que a natureza não o houvesse agraciado com um rosto tão bonito e angular, só seu jeito relaxado de andar e seus modos seguros já causariam forte impressão.
Ela ficou tão feliz por ver alguém conhecido que nem se importou por aqueles olhos escuros a avaliarem tão minuciosamente. Percebera um olhar semelhante por sobre o sorriso manso de lorde Elliot quando se conheceram, no casamento de Alexia. Era a reação de um homem que a achava vagamente interessante, mesmo desaprovando sua aparência, suas crenças, sua história, sua família, seu... tudo.
– Srta. Blair, estou aliviado em vê-la bem-disposta e em boa forma.
Outro daqueles sorrisos mansos acompanhou a saudação.
– Também estou aliviada em vê-lo, lorde Elliot.
– Alexia me deu o nome de sua hospedaria e me pediu que viesse visitá-la, para verificar se não precisava de nada.
– Foi muita gentileza dela. Lamento não poder recebê-lo adequadamente, agora que chegou.
– Parece que não pode me receber de forma nenhuma.
Era bem característico dele fazer algumas gracinhas antes de entrar no assunto.
– Imagino que esteja surpreso, até mesmo chocado, por minha prisão.
– Sou um homem que raramente se choca e quase nunca se surpreende. Contudo admito estar um tanto curioso. A senhorita só está em Nápoles há poucas semanas. A maioria das pessoas levaria pelo menos um ano para acumular crimes suficientes para merecer tal punição.
Ele estava se divertindo com a situação? Naquelas circunstâncias, Phaedra achou a conversa inteligente de lorde Elliot bastante inadequada.
– Não houve crime nenhum, só um pequeno mal-entendido.
– Pequeno? Srta. Blair, há um membro da guarda real na sua porta.
– Não estou convencida de que foi o rei que o colocou lá. Um dos funcionários do tribunal fez isso comigo. Ele é um homenzinho abominável, com poder em demasia e pouca inteligência.
Lorde Elliot cruzou os braços, o que o fez parecer crítico e poderoso. Ela odiava quando os homens assumiam essa postura com ela. Era a personificação de tudo o que havia de errado com a metade masculina da humanidade.
– O guarda mencionou um duelo – disse lorde Elliot.
– Como é que eu iria adivinhar que esses homens fossem tão possessivos a ponto de tentarem se matar porque uma mulher conversou com...
– Espadas e adagas. O guarda disse que houve sangue.
– Marsilio é um jovem artista. Não passa de um garoto. Teimoso, porém muito gentil. Eu não fazia ideia de que iria interpretar erroneamente a nossa amizade a ponto de desafiar Pietro simplesmente porque passeei com ele às margens da baía.
– É lamentável para a senhorita que Marsilio, o garoto teimoso e gentil, seja parente do rei. Ele quase foi morto no duelo. Felizmente, o guarda disse que ele irá sobreviver.
– Ah, graças a Deus! Apesar de as pessoas exagerarem bastante por aqui. Pelo que entendi, ele não ficou muito ferido, ainda que qualquer ferimento possa se agravar neste clima. Fiquei muito pesarosa com o ocorrido. Eu disse isso. Expressei meu arrependimento e minhas desculpas falando bem devagar no meu idioma e também em latim, para ser bem entendida, mas o homenzinho intrometido, odioso e estúpido não me ouviu. Ele até me acusou de ser uma meretriz, o que passou de todas as medidas. Expliquei que nunca tirei nem um centavo de homem nenhum.
– A senhorita declarou sua virtude e honra ou disse ao homenzinho intrometido e estúpido que acha que as mulheres devem dispor de seu corpo livremente?
Ela não gostou nada do olhar profundo e sagaz dele ao expressar essa ousada insinuação. Se não estivesse em uma situação tão ridícula, Phaedra lhe diria que era, sim, uma mulher pouco convencional, mas isso não dava a ele o direito de ser rude. No momento, contudo a prudência tinha que falar mais alto.
– Expliquei minha crença no amor livre, o que é diferente de dispor do corpo livremente, lorde Elliot. Tentei instruí-lo. Ficaria feliz em fazer o mesmo pelo senhor, se algum dia tivermos um encontro mais oportuno.
– Que proposta tentadora, Srta. Blair. Contudo espero que as reflexões filosóficas tenham ficado esquecidas em sua cela. Seria melhor ter se declarado uma cortesã. Aqui se sabe tudo sobre esse assunto. Por outro lado, conceitos radicais sobre o amor livre, bem...
O gesto dele com as mãos disse tudo. O que esperava, mulher? Você vive fora das regras sociais e até a sua aparência convida a mal-entendidos.
Mais uma vez ela engoliu o que seu instinto lhe mandava dizer. Discutir só serviria para afastá-lo, e ela queria muito que ele ficasse um pouco mais. Não se dera conta da própria solidão ali e da tristeza que o isolamento lhe causava. Só ouvir o próprio idioma já era um alento.
– Acha que vão me soltar logo?
De novo o mesmo gesto com as mãos, só que agora acompanhado de um dar de ombros.
– Não há constituição aqui. Nem se julgam os casos observando precedentes, como na Inglaterra. Na verdade, não existe um direito codificado, é uma monarquia à moda antiga. A senhorita tanto pode ser libertada amanhã como ser mandada de volta à Inglaterra, ou levada a julgamento, ou permanecer nesses aposentos por anos, ao bel-prazer do rei.
– Anos! Isso seria uma barbaridade.
– Acho que não vai chegar a esse ponto. Contudo pode levar alguns meses até que seu homenzinho odioso e estúpido perca o interesse no caso.
Ele olhou para a fachada do prédio em frente e depois para o portão do jardim.
– Srta. Blair, não posso mais ficar escondido neste jardim, ou também correria o risco de me tornar hóspede dos guardas do rei. Tomarei providências para que lhe mandem comida e deixarei uma quantia em dinheiro para pagar pelo apartamento, pois com certeza continuarão a lhe cobrar o aluguel. Também vou pedir que um adido inglês venha, de tempos em tempos, verificar se está tudo bem.
Meu Deus, ele estava indo embora! Talvez ela envelhecesse naqueles cômodos, ou até morresse de fome quando o dinheiro acabasse.
Ela não era o tipo de mulher que dependesse de um homem para sustentá-la ou protegê-la. Além do mais, lorde Elliot não havia conquistado seu apreço durante a conversa. Contudo estar diante de um futuro incerto a ajudou a superar sua aversão natural a pedir ajuda àquele homem.
– Lorde Elliot – chamou, fazendo-o parar após ele ter dado três passos na direção do portão do jardim. – Lorde Elliot, os adidos ingleses não estão interessados em minha situação. Pergunto-me se o senhor consideraria a hipótese de interceder em meu favor. Tenho certeza de que o homenzinho odioso ficaria muito impressionado com suas ligações familiares e sua fama como historiador. Se pedisse em meu nome, talvez ajudasse.
A expressão dele foi simpática, porém nada encorajadora.
– Sou o caçula. Minha posição é bem menos importante aqui e minha fama pouco conta. Esse tribunal não tem motivo algum para me conceder favores.
– Estou certa de que será mais bem recebido do que eu jamais conseguiria. Pelo menos, conhece o idioma deles. Vi-o conversar com o guarda.
– Não sou fluente o bastante no dialeto para defendê-la bem.
– Ficaria grata por qualquer tentativa de sua parte.
Que fim levara o cavalheirismo? Não acreditava nele, mas gente do tipo de Elliot Rothwell, sim. Ela era uma donzela em perigo e esse cavalheiro deveria se prontificar a ajudá-la, não ficar parado no meio do jardim, com aquele jeito de quem adoraria nunca tê-la avistado na janela.
Ele refletiu um distante, analisando o pedido. Ela sentiu seu sorriso congelar até virar uma careta suplicante.
– Não estamos na Inglaterra, Srta. Blair. Mesmo que eu tenha êxito, talvez a senhorita não aprecie as condições impostas por eles em troca de sua liberdade.
– Vou me esforçar e acatar quaisquer condições, ainda que reze para que não me ponham em um navio de volta para a Inglaterra de imediato. Vim até aqui e preciso, na verdade quero, visitar as escavações de Pompeia. Antes de ir embora. É um antigo sonho meu.
Ele parou para pensar por um longo tempo. Seu suspiro deixou claro que sua decisão ia contra o próprio bom senso.
– Prometi a Alexia que cuidaria do seu bem-estar, então farei o que puder. Encontrar o homem que ordenou sua detenção pode não ser tarefa fácil. Qual é o nome dele? Preferia não ter que andar pelos corredores do tribunal perguntando por um homenzinho odioso e estúpido. Ele poderia ouvir a descrição, o que não nos ajudaria em nada. Além disso, ela provavelmente se aplica a muitos outros funcionários da Justiça.
Ele havia aceitado seu pedido não por um desejo genuíno de ajudá-la, mas para cumprir o que considerava seu dever. Mas Phaedra Blair estava desesperada demais para entrar em detalhes a respeito de suas motivações.
– O nome dele é Gentile Sansoni. Que cara é essa? O senhor o conhece?
– Já ouvi falar dele. Sua autodefesa caiu em ouvidos moucos, Srta. Blair. Sansoni não fala inglês nem latim. Ele é um legítimo napolitano, o que não é boa notícia.
Certamente Phaedra Blair chamara a atenção de Gentile Sansoni, capitão da polícia secreta do rei. É claro que, com seu longo cabelo ruivo esvoaçando ao sol, solto e descoberto, ela chamaria a atenção de toda a Nápoles.
Elliot ouvira falar sobre o algoz da Srta. Blair durante sua última visita à cidade, fazia três anos. Sansoni fizera sua fama a custa de sangue, em 1820, quando o breve governo republicano fora violentamente vencido e a monarquia, restaurada.
Diziam que Sansoni era responsável pelo desaparecimento inesperado de carbonários, ou constitucionalistas, e também que abusava de sua autoridade em setores que tinham pouco a ver com política. Não era o tipo de homem que se impressionaria com um cavalheiro inglês, e Elliot também não acreditava que encarasse de forma positiva uma tentativa sua de recorrer a seus superiores para mudar a decisão tomada pelo capitão.
Elliot não poderia negociar sobre o livro do pai da Srta. Blair enquanto ela permanecesse presa, por isso aceitara de imediato tentar libertá-la. Só tinha fingido hesitar para fazer com que ela se sentisse em dívida.
Também se deixara levar pela desprezível tentação de fazer com que aquela defensora declarada da independência feminina implorasse pela ajuda de um homem. De alguma forma, pelo simples fato de existir, a Srta. Blair conseguia fazer com que um homem se sentisse desafiado. Os instintos dele tinham reagido à altura.
Contudo o dever falara mais alto e, no dia seguinte, ele se dispôs a fazer o que estivesse a seu alcance por ela. Sansoni não se deixaria impressionar por cavalheiros ingleses, mas talvez pelo menos ouvisse um capitão da Marinha britânica. A corte de Nápoles ainda reverenciava a memória de Nelson, e Elliot suspeitava que Sansoni veria o herói inglês quase como um irmão que um dia, muito tempo antes do rápido governo republicano, ajudara a impedir outra tentativa de golpe contra o rei.
Sempre havia navios britânicos no porto de Nápoles, e Elliot foi visitar um cujo capitão ele conhecia. Dois dias depois de se encontrar com a Srta. Blair, Elliot levou Augustus Cornell – que vestia seu traje militar completo e impecável – ao longo de quilômetros de corredores de palácios até encontrarem o covil de Gentile Sansoni.
Como era apropriado a um funcionário da Justiça que trabalhava nas sombras, a sala de Sansoni se localizava nos fundos do prédio e num andar tão baixo que, a caminho dela, as escadas passavam de fino mármore para simples travertino. Apesar da localização, Sansoni a dotara de móveis suntuosos o suficiente para parecer importante. Arrumara um local grande o bastante para suas ambições, mas o teto baixo e a falta de janelas davam ao lugar um aspecto cavernoso.
– Pode deixar que eu falo – disse Cornell, com seu rosto suave e pálido que expressava a formalidade dos homens de sua patente. – Já tive que tratar com ele antes e todo cuidado é pouco.
– Sabe falar a língua?
O napolitano era um dialeto bem diferente daquele falado em Roma ou em Florença. Mesmo tendo muito de latim, que Elliot conhecia, o lorde não saberia o bastante dele para não ficar em desvantagem ao usá-lo ali.
– Esperemos que o suficiente. Fique aqui. Agirei como mediador, física e simbolicamente.
Elliot ficou perto da porta, como ordenado. Cornell atravessou a sala e se aproximou do homenzinho moreno sentado na larga mesa na outra extremidade. A descrição que a Srta. Blair fizera de Sansoni fora perfeita. Ele parecia mesmo repugnante e odioso e, naquele momento, muito desconfiado. Suas sobrancelhas negras encobriam os olhos de águia amendoados, tão comuns naquela região.
Sansoni ofereceu vinho, fizeram um brinde e depois entabularam uma conversa. Por fim, Cornell caminhou de volta até Elliot.
– Há uma complicação – disse ele, baixo. – Esse amigo da Srta. Blair, Marsilio, o que levou a pior no duelo, é parente distante do rei e recebe os favores da família real por conta de seus dotes artísticos. Também é um rapaz com quem acho que Sansoni espera casar uma de suas parentas, consolidando assim sua própria posição. Mas esse sonho é improvável de se realizar devido à origem humilde de Sansoni. Ainda assim, ele fez do bem-estar do rapaz sua missão pessoal.
O capitão aproximou o rosto do de Elliot para poder falar ainda mais baixo.
– Também creio que o rei não tenha conhecimento desse duelo. Mencionei várias vezes o título nobre do seu irmão e suspeito que Sansoni só me recebeu por temer que um marquês britânico possa levar o assunto diretamente ao rei.
Um marquês com certeza poderia, mas isso demoraria meses.
– Pode conseguir a libertação da Srta. Blair?
– Duvido muito. O duelo não foi tudo. O rei possui uma coleção de arte e o acesso a uma de suas salas é proibido a mulheres, pois contém imagens antigas de natureza carnal. A Srta. Blair convenceu o jovem Marsilio a deixá-la entrar lá. Agora é acusada de invasão de domicílio e de gostar de arte licenciosa. Sansoni também disse que ela é uma cortesã. Apesar de Nápoles ser infame por permitir que as mulheres exerçam atividades desse tipo, a Srta. Blair se esgueirou por lugares que a corte frequenta...
– Ela não é cortesã. Ponho a minha mão no fogo. Ela é incomum, é verdade. Excêntrica. Uma livre-pensadora, porém honesta. É claro que Sansoni sabe que pessoas assim existem. Explique isso a ele.
– A função desse homem é deter livres-pensadores e ele a cumpre com deleite. Ainda assim, vou tentar novamente.
Mais uma vez Cornell atravessou a sala. A conversa foi mais breve dessa vez. Os olhos negros de Sansoni buscaram Elliot e o examinaram dos pés à cabeça.
Cornell voltou.
– Ele falou mais rápido dessa vez e não compreendi tudo. Mas perguntou com que autoridade você e sua família se intrometem neste caso. Exige saber se você tem parentesco ou alguma outra relação com ela.
Elliot não tinha qualquer relação com ela, nem autoridade sobre o caso, porém não poderia admitir isso.
– Diga-lhe que ela é uma boa amiga da família. Easterbrook a recebe como a uma irmã.
Essa mentira deslavada nunca seria refutada. Christian faria o mesmo naquelas circunstâncias.
– Diga que tentamos exercer nosso controle sobre ela, contudo ela fez essa viagem inesperada a Nápoles para fugir da nossa influência. Vim para cuidar de seu bem-estar e posso garantir que não vai haver mais problemas. Se ele der a entender que aceita suborno, diga-lhe que pagarei para tê-la de volta.
A conversa de Cornell com Sansoni ficou mais animada dessa vez. O napolitano gesticulava muito, numa rápida sucessão. Quando Cornell voltou com seu relatório, parecia um pouco preocupado.
– Temo que tenha havido um mal-entendido. E que esclarecê-lo possa trazer outras complicações. Culpo minha falta de fluência no idioma por essa infeliz reviravolta nas negociações – disse ele.
– Mas ele parece bem mais calmo e amigável. Qual foi o mal-entendido?
Cornell enrubesceu.
– Não sei exatamente como, mas ele concluiu que o senhor é noivo da Srta. Blair e que ela veio para cá fugindo de um casamento arranjado que sua família aceitou devido ao polpudo dote da moça. Ele acha que você a seguiu para levá-la de volta.
– Um mal-entendido e tanto! Como isso aconteceu?
– Não tenho certeza. Devo ter usado as palavras “família”, “irmã”, “dinheiro” e “fuga” de forma confusa e dado a entender mais do que pretendia.
Cornell deu um suspiro e já voltava para a sala, para tentar corrigir seu erro, quando Elliot o pegou pelo braço, detendo-o.
– Ele está disposto a libertá-la se mantivermos esse mal-entendido?
– Sim, mas...
– Tem certeza de que é isso que ele tem em mente?
– Não posso garantir que tenha entendido direito a interpretação dele, mas...
– Então não vamos corrigir nada.
– Não estou certo de que isso seja honroso.
– Você não disse inverdades e não tem certeza do mal-entendido – assegurou Elliot, pondo a mão no ombro de Cornell. – Aceitarei isso como um presente da Providência divina e deixarei como está. Ele não é um homem que tenha contato com a comunidade britânica daqui. Se entendeu mal, nunca descobrirá a verdade.
Cornell se deixou convencer.
– Se você está tão determinado, então que assim seja. Venha comigo. Ele quer a sua palavra de que vai controlar a Srta. Blair enquanto ela permanecer neste reino. Ela deve ficar sob sua autoridade. Será responsabilizado por qualquer outro problema que ela crie. Está preparado para prestar juramento?
Elliot assentiu. Atravessou a caverna com o capitão Cornell e assumiu a guarda da Srta. Blair, concedida pelo odioso e repugnante Gentile Sansoni.
CAPÍTULO 3
A signora Cirillo chamou à porta e Phaedra se levantou da escrivaninha para atendê-la. Se aquela mulher queria mais dinheiro tão cedo...
Uma visão maravilhosa a aguardava quando abriu a porta de seus aposentos. A signora Cirillo não estava sozinha. Lorde Elliot estava ao seu lado.
Phaedra manteve a compostura, apesar da vontade de gritar de alegria. Se ele estava lá, só podia significar uma coisa.
– Lorde Elliot, entre, por favor. Grazie, signora.
A signora Cirillo arqueou as sobrancelhas por sobre seus olhos felinos escuros ao ser dispensada. Phaedra fez-lhe ver que não era bem-vinda.
– Está trazendo boas-novas, assim espero, lorde Elliot – disse Phaedra quando ficaram sozinhos.
– Sua prisão domiciliar está encerrada, Srta. Blair. Temos que agradecer ao capitão Cornell, do Euryalus. Ele falou com Sansoni em nosso favor.
– Graças a Deus pela Marinha britânica.
Phaedra correu para a janela e abriu as persianas. O guarda tinha ido embora.
– Nem acredito que vou poder dar uma volta às margens da baía hoje à noite.
Correu de volta até lorde Elliott e lhe deu um abraço.
– Sou imensamente grata.
Ele sorriu gentilmente quando ela o largou. Parecia entender sua animação e perdoar sua exuberância. Se seu olhar tinha se abrandado um pouco depois do abraço impulsivo, era compreensível. Afinal, ele era homem.
Estava magnífico, vestido em uma sobrecasaca marrom feita sob medida e botas de cano alto. O sorriso contribuía bastante para suavizar a dureza das feições dos Rothwells. Ao contrário de seus irmãos mais velhos, lorde Elliot era considerado alguém muito sorridente, o que, ao que tudo indicava, era pura verdade.
Ele olhou em volta da sala de estar e o olhar se deteve na escrivaninha.
– Temo ter interrompido sua carta.
– Uma interrupção muito bem-vinda. Estava escrevendo para Alexia, desabafando meu infortúnio, na esperança de que ao menos conseguisse jogar a carta quando o senhor voltasse aqui.
– Por que não termina a carta logo e lhe diz que está tudo bem? Posso entregá-la a Cornell. Ele vai zarpar em dois dias para Portsmouth e poderá postar a carta para Londres de lá.
– Que ideia esplêndida, se não me achar rude por rabiscar umas linhas a mais.
– Nem um pouco, Srta. Blair. Nem um pouco.
Ela se sentou e acrescentou rapidamente um parágrafo para contar a Alexia que tudo fora resolvido a contento, graças ao cunhado da amiga. Dobrou, endereçou, selou o papel e ficou com ele na mão. Lorde Elliot puxou a carta de seus dedos com delicadeza e a colocou no bolso da sobrecasaca.
Em seguida, retomou sua avaliação da sala de estar e da vista.
– A senhorita veio atender a porta. Onde está sua camareira?
– Não tenho camareira, lorde Elliot. Nem criados. Nem em Londres.
– Isso é por causa de outra crença filosófica?
– É uma decisão prática. Um tio me deixou uma renda respeitável, contudo prefiro gastá-la de outras formas.
– Muito sensato de sua parte. Contudo o fato de não ter criados é um inconveniente.
– De jeito nenhum.
Ela deu meia-volta e as dobras de seu vestido preto, assim com o cabelo comprido, esvoaçaram.
– Um vestido como este não exige uma criada para ser colocado e meu cabelo só precisa de uma boa escovadela.
– Não estava pensando nas suas vestimentas. Preciso lhe falar dos desdobramentos do caso e, sem uma criada conosco...
Estava preocupado com a reputação dela por ficar sozinha com um homem. Que encantador.
– Lorde Elliot, é impossível me comprometer, porque estou acima dessas regras sociais estúpidas. Além disso, trata-se de um encontro de negócios, não? Em situações assim, nossa privacidade não é apenas permitida, como necessária.
Ela duvidava que ele aceitasse seu raciocínio, por mais lógico que fosse. Homens como ele nunca aceitavam. Contudo, para seu espanto, ele não a refutou.
– A senhorita está certa. Prossigamos, então. Não quer se sentar? Isso vai levar um tempo.
Ele pareceu muito sério de repente. Sério, grave e... severo. Seu gesto ao apontar o sofá pareceu acompanhar uma ordem, não a sugestão que fizera tão educadamente. A tentação de permanecer de pé a atiçou. Sentou-se, mas apenas porque ele fora o responsável por obter sua libertação.
Elliot se acomodou em uma cadeira diante dela e então lhe deu uma boa olhada, como se a medisse dos pés à cabeça. Foi como se nunca a tivesse visto e tentasse interpretar a imagem peculiar que ela apresentava.
Phaedra não podia afastar da mente a impressão de que, de certa forma, nunca o tinha visto antes também. Não havia nada mais da graça suave do lorde agora, apenas um longo olhar avaliador e invasivo que a deixava desconfortável. Uma reação muito feminina retumbava dentro dela.
Isso era a pior coisa em relação aos homens bonitos. A beleza deles deixava a mulher em desvantagem quando eles lhe dirigiam sua atenção. Esse homem era muito bonito. Era também muito masculino na maioria das situações e sutilmente másculo nas piores delas. Naquele exato momento, parecia estar tentando, de maneira deliberada, deixá-la perturbada. Não o fazia por motivos carnais, disso Phaedra tinha certeza. Porém, ele emanava sedução também e o sangue dela reagia a isso.
Proteger, possuir, conquistar – tudo eram facetas do mesmo instinto primitivo, não? Um homem não poderia seguir uma dessas inclinações sem despertar as outras dentro de si, e uma mulher era facilmente subjugada se não tomasse cuidado. Ela se perguntou que parte ancestral da personalidade masculina o motivava naquele momento.
– Alexia me pediu para tomar conta da senhorita. Não menti ao lhe dizer isso. Contudo tive outros motivos para visitá-la e agora preciso tratar deles.
– Como só nos vimos uma vez, no casamento de Alexia, e muito rápido, não posso imaginar quais possam ser seus motivos.
– Acho que pode.
Agora ele a estava aborrecendo.
– Tenho certeza de que não posso.
O tom dele indicou que ela o aborrecera também:
– Srta. Blair, chegou aos meus ouvidos que a senhorita agora é sócia da editora de Merris Langton, tendo herdado a participação de seu pai no negócio.
– Essa informação não foi divulgada, lorde Elliot. Uma vez que os homens pressupõem que as mulheres não podem ter sucesso nos negócios e como muitos acreditam ser anormal até que uma mulher tente, decidi manter isso em sigilo, de forma que o preconceito não afete a empresa.
– Pretende ter uma participação ativa nela?
– Vou participar na seleção dos títulos a serem publicados, mas espero que o Sr. Langton continue a supervisionar as questões práticas. Gostaria de saber quem lhe contou isso. Se meu advogado foi indiscreto...
– Seu advogado é irrepreensível.
A atenção dele se desviou dela. Seus olhos ficaram meditativos, obscuros. O homem elegante e cosmopolita que escrevera um famoso livro de História antes de completar 23 anos agora estava distraído, absorto nos próprios pensamentos.
– Srta. Blair, lamento trazer-lhe algumas más notícias. Depois que a senhorita deixou Londres, Merris Langton faleceu da doença que o acometia. Ele foi enterrado dias antes de eu partir.
Ela temera que o Sr. Langton não chegasse a se recuperar; ainda assim, ficou surpresa ao ouvir a notícia de sua morte.
– De fato, são más notícias, lorde Elliot. Obrigada por me contar. Não o conhecia bem, contudo o falecimento de uma pessoa é sempre triste. Contava com ele para ajudar a manter a editora, mas parece que vou ter que dar um jeito sozinha.
– É tudo seu agora?
– Meu pai fundou a editora e a subsidiou desde sempre. Ele poderia passar sua parte a outra pessoa, entretanto a do Sr. Langton ficaria para o meu pai se ele morresse. Então, sim, acredito que seja tudo meu agora.
A distração dele desapareceu. Sua objetividade voltou. Fria.
– Antes da doença, Langton procurou meu irmão. Falou que publicaria as memórias do seu pai. Ofereceu-se para omitir vários parágrafos no manuscrito que tratavam da minha família se uma quantia significativa fosse paga a ele.
– Ele fez isso? Que horror! Estou chocada com essa traição para com os princípios de meu pai e peço desculpas sinceras por meu sócio.
Ela se levantou e começou a andar de um lado para outro, agitada com a revelação. Por educação, lorde Elliot se levantou também, mas ela o ignorou. Tentava compreender todas as implicações do esquema idiota do Sr. Langton. Aquilo poderia significar o fim da editora.
Ela conhecia bem a situação precária das finanças da empresa e, como proprietária, era responsável pelas dívidas não saldadas. Contava com as memórias do seu pai para quitá-las. Se o Sr. Langton comprometera a integridade dessa publicação, as pessoas talvez ficassem descrentes de todo o conteúdo do livro.
– Isso tudo é culpa de Harriette Wilson – disse ela, com sua perturbação agora beirando a raiva. – Ela estabeleceu um precedente infeliz ao pedir que seus amantes pagassem para ter os nomes retirados. Escrevi-lhe sobre isso, se quer saber. Disse a ela que era errado receber dinheiro para apagar trechos de biografias, que era só uma forma velada de chantagem. Ela só pensou no próprio bolso, é claro. Bem, eis o resultado da vida dependente que ela escolheu e da extravagância tola que pôs em prática.
Ela passou a andar com passos mais resolutos.
– Sem dúvida o Sr. Langton abordou outras pessoas também. Nunca imaginei que ele comprometeria a ética de nossa editora dessa forma.
– Srta. Blair, por favor, poupe-me do ultraje teatral. Minha família estava pronta para pagar a Langton. Vim procurá-la para dizer que pagaremos com prazer à senhorita no lugar dele.
Ultraje teatral? Ela parou de andar e o encarou.
– Lorde Elliot, espero tê-lo entendido mal. Está sugerindo que eu aceitaria seu dinheiro para suprimir partes das memórias de meu pai a seu bel-prazer?
– Esperamos que sim.
Ela se aproximou dele até estar perto o bastante para ver os pensamentos refletidos em seus olhos.
– Meu Deus, o senhor acha que eu tinha conhecimento de que o Sr. Langton fazia isso, não acha? Acredita que eu fui cúmplice.
Ele não respondeu. Só sustentou o olhar, visivelmente não acreditando no espanto dela.
Furiosa com as suposições dele e afrontada pelo insulto, ela se virou.
– Lorde Elliot, as memórias do meu pai vão ser publicadas tão logo eu chegue à Inglaterra. Cada frase delas. Foi seu último desejo, feito a mim em seu leito de morte. Eu nunca as editaria de forma a escolher as palavras dele que o mundo devesse ler. Fico muito grata por sua ajuda com o Sr. Sansoni, mas é melhor pararmos esta conversa por aqui. Se eu tivesse uma criada, ela lhe mostraria a saída. Como não tenho, o senhor pode encontrá-la sozinho.
Para deixar mais claro que o lorde estava dispensado, Phaedra se dirigiu ao quarto e fechou a porta.
Ainda não havia se recomposto quando a porta do quarto foi aberta e lorde Elliot entrou calmamente, fechando a porta atrás de si.
– Minha visita ainda não acabou e nossos negócios não estão concluídos, Srta. Blair.
– Como ousa? Este é o meu quarto, senhor.
Ele cruzou os braços e assumiu a atitude masculina e irritante de quem se considera no comando.
– Normalmente isso me impediria, entretanto a senhorita está acima de regras sociais estúpidas, como a que dita que eu não deveria entrar aqui, lembra?
Ela não considerava essa regra social tão estúpida. Tinha uma razão muito especial e primitiva de existir. Aquele era seu espaço mais privado, seu santuário. O clima foi se alterando à medida que Elliot olhava em volta, para o guarda-roupa onde suas vestimentas estavam arrumadas e a penteadeira que exibia seus objetos pessoais. Seu olhar percorreu a cama devagar e voltou para Phaedra.
Os pensamentos dele não ficaram tão ocultos quanto ele imaginou. Ela notou as mudanças sutis em sua expressão, na forma como a dureza que ele exibia se alterou, mesmo que ligeiramente. Os homens não conseguem ficar perto de uma cama e de uma mulher sem começar a devanear. Era uma maldição da natureza que eles carregavam.
Ela ficou irritada ao se pegar pensando na mesma coisa. A forma como ele acabara de insultá-la deveria ter sido suficiente para que aquela intimidade que começava a se infiltrar no quarto jamais existisse. O breve silêncio foi ficando cada vez mais pesado e cheio de uma excitação magnética que mexia com ela.
Uma imagem relampejou em sua mente: lorde Elliot olhando do alto para ela, seus rostos afastados por meros centímetros, seu cabelo escuro despenteado por motivos que nada tinham a ver com moda, seus pensamentos completamente desmascarados. Ela viu seus ombros nus e sentiu a pressão de seu corpo e a firme pegada de seu abraço na pele dela. Sentiu...
Phaedra se esforçou para afastar a imagem da cabeça, mas os olhos dele faiscaram, demonstrando que lera os pensamentos dela. Ele sabia por onde a mente dela andara, assim como ela conhecia os caminhos da dele.
Ele descruzou os braços. Phaedra pensou que ele fosse segurá-la e imaginou se não iria insultá-la ainda mais. Havia homens que a interpretavam erroneamente e, por ignorância, lhe faziam propostas, só que lorde Elliot não era estúpido. Seria uma ofensa cruel e deliberada se ele tentasse se aproveitar da tensão sexual que tinham percebido.
Ele desviou sua atenção dela, diluindo a intimidade, porém não a dissipando por completo. O orgulho de Phaedra foi poupado, ainda que, com isso, seu lado mais primitivo se ressentisse.
– O manuscrito está aqui? – perguntou ele. – A senhorita o trouxe?
– É claro que não. Por que faria isso?
Ele olhou para o guarda-roupa.
– Jura? Do contrário, terei que fazer uma busca.
– Juro, e não ouse fazer isso. O senhor não tem o direito de estar aqui.
– Na verdade, tenho sim, mas conversaremos depois.
O que isso queria dizer?
– Deixei-o em Londres, em um lugar muito seguro. Ele contém as memórias de meu pai, seus últimos desejos. Nunca seria descuidada a esse respeito.
– A senhorita o leu?
– É claro.
– Então sabe o que ele escreveu sobre a minha família. Quero que me fale disso agora. Suas palavras exatas, o melhor que se lembrar.
Não era um pedido, mas uma exigência. Sua arrogância dominadora estava rapidamente fazendo com que a gratidão de Phaedra desaparecesse.
– Lorde Elliot, o nome de sua família e o de Easterbrook não são mencionados no manuscrito.
Isso o surpreendeu. Sua severidade ficou abalada por tempo suficiente para que ela percebesse novamente o homem amigável e prestativo que entrara em seu apartamento. Não durou muito. Ele voltou a ficar distraído e meditativo, e sua mente ágil captou o que ela dissera.
– Srta. Blair, Merris Langton descreveu a meu irmão uma acusação específica contra meu pai. Há algo no manuscrito que, em sua opinião, poderia ser interpretado como uma referência a meus pais?
Ela queria que ele não tivesse feito a pergunta nesses termos.
– Há uma parte que pode ser interpretada assim, imagino eu.
– Por favor, descreva-a.
– Prefiro não descrever.
– Eu insisto. A senhorita vai me contar agora.
Sua voz, sua postura e sua expressão indicavam que nenhum argumento seria ouvido. Nunca antes na vida Phaedra tinha sido tão claramente coagida por um homem a fazer algo.
Talvez fosse melhor que ele e sua família ficassem avisados. A passagem em questão era uma entre várias nas memórias que a haviam feito hesitar.
– Meu pai descreve um jantar oferecido muitos anos antes de minha mãe morrer. Eles estavam recepcionando um jovem adido recém-chegado do Cabo. Meu pai queria saber as verdadeiras condições de vida lá. Esse rapaz bebeu demais e ficou embriagado. Acabou confidenciando algo que ocorreu em um regimento britânico na colônia.
A menção à colônia do Cabo atraiu a atenção de Elliot por completo. Ela se condoeu. Sempre tivera esperanças de que aquele rumor não fosse verdadeiro, mas...
– Prossiga, Srta. Blair.
– Ele disse que, enquanto esteve lá, um oficial britânico morreu. A causa da morte foi registrada como febre, contudo, na realidade, ele levou um tiro. Foi encontrado morto após sair para fazer a ronda. Chegaram a desconfiar do outro oficial que o acompanhava, só que não acharam provas. Em vez de contestarem o suspeito, optaram por usar uma causa mortis falsa.
Ele agora ocultava muito bem sua reação. O rosto estava impassível, como se talhado em pedra. Contudo seu silêncio foi se tornando terrível, carregado da raiva que emanava dele.
– Srta. Blair, se associou esse caso com a minha família, a senhorita deve saber do boato imoral de que meu pai teria enviado o suposto amante de minha mãe para assumir um posto na colônia do Cabo, onde morreu de febre.
Ela engoliu em seco.
– Creio que tenha ouvido algo a respeito em algum momento.
– Se a senhorita soube, muitos souberam. Nem Langton nem a senhorita tiveram qualquer dificuldade em juntar as referências e chegar a uma conclusão. Se a senhorita publicar essa parte, ficará bastante clara a insinuação de que meu pai pagou outro oficial para matar o amante da esposa. A ausência de nomes nas memórias não poupará a reputação de meu pai, e ele não pode se defender da sepultura.
– Não estou convencida...
– Droga, é exatamente o que acontecerá, e a senhorita sabe disso. Exijo que suprima esse trecho das memórias.
– Lorde Elliot, sou solidária em sua perturbação. De verdade. Contudo meu pai me encarregou de fazer com que suas memórias fossem publicadas e é meu dever fazê-lo. Pensei muito nisso. Se eu suprimir cada frase que possa ser interpretada como perigosa ou pouco lisonjeira a essa ou àquela pessoa, pouco vai restar.
Ele andou até ela e a olhou de cima com firmeza.
– Essa mentira não será publicada.
A determinação dele era palpável. Ele não precisava de expressões de raiva ou ameaças verbais para enfatizar o poder que usaria contra ela. Estava tudo ali, ao redor dela, junto com a tensão sexual que não abandonara o quarto, num clima carregado de todas as nuances daquele instinto obscuro.
– Se for mentira, pensarei em omitir – assegurou ela. – Se conseguir obter provas de que o homem morreu de febre ou se o convidado de meus pais desmentir a história, eu a suprimirei. Farei isso por Alexia, não pelo senhor ou por Easterbrook.
Essa declaração o aliviou. Um sorriso vagaroso se formou.
– Por Alexia? Que conveniente. Assim pode recuar sem me dar a vitória.
Elliot a entendia bem demais. Phaedra não dava a mínima importância para provas.
Olhou-a com gentileza. De repente pareceu inapropriado estarem tão próximos, uma proximidade que nascera num momento de fúria dele. Com a raiva saindo de cena, era a outra sensação que voltava a crescer.
Ele não recuou como deveria – e como as sobrancelhas erguidas de Phaedra pediam. Em vez disso, ajeitou uma mecha do cabelo dela e ficou olhando para aqueles fios vermelhos enquanto os enrolava com delicadeza entre os dedos.
– Seu pai incluiu o nome de algum desses homens, Srta. Blair? Do jovem adido do jantar ou do oficial suspeito?
Ele não a tocou, mas a brincadeira com o cabelo dela implicava coisas em que ela preferia nem pensar. O fato de estarem sozinhos num quarto, até mesmo o de terem se confrontado, demolira as formalidades que a protegeriam. O formigamento sutil que ele causava em seu couro cabeludo era tão delicioso que levava a pensar em outras excitações físicas.
Conquistar, possuir, proteger – ela não tinha dúvida de que ele estava preparado para ser implacável e brincar com mais do que o cabelo, se achasse que com isso obteria o que desejava. Também não acreditava em si mesma para vencer aquele desafio, se ele surgisse.
– O jovem adido que meus pais convidaram para jantar é Jonathan Merriweather.
Ele olhou nos olhos dela, desconfiado de novo.
– Merriweather hoje é assistente do embaixador britânico aqui, em Nápoles.
– Muito conveniente para o senhor.
A mão dele se moveu por entre os cabelos com mais firmeza. A brincadeira sutil se tornava controladora.
– A senhorita viajou até aqui para falar com ele? É por isso que está em Nápoles? Pretende adicionar notas a essas memórias e completá-las com os nomes que seu pai foi discreto ao omitir? O livro venderia mais ainda, e ouso dizer que o dinheiro resultante seria muito bem-vindo para sua editora.
Ela segurou o cabelo e o retirou de entre os dedos dele, determinada. Sua indignação a ajudou a ignorar a sensação daquela mão quente ao roçar na sua e a não dar importância ao modo como os olhos dele refletiram sua consciência do toque feminino.
– Agradeço a sugestão, mas espero que as memórias do meu pai caiam no gosto popular do jeito que são, sem acréscimos. De qualquer forma, não estou aqui com esse objetivo.
Era uma mentira deslavada, mas ela não sentiria remorso por confundir aquele homem. Seu interesse em preencher as lacunas das memórias do pai nada tinha a ver com a família Rothwell.
– Lorde Elliot, vim até aqui para visitar as escavações e as ruínas ao sul. Preciso me preparar para deixar a cidade de imediato e continuar minha viagem como planejei desde o início. Portanto, peço-lhe, mais uma vez, que parta.
– Sua viagem terá que ser adiada por uns poucos dias. Não posso permitir que vá agora.
Ela riu. A presunção do homem havia chegado ao ponto do ridículo.
– O que o senhor permitiria ou deixaria de permitir não é de meu interesse.
– É de interesse essencial para a senhorita. Eu a adverti de que sua libertação teria condições e a senhorita prometeu aceitá-las.
– O senhor não falou em condições ao chegar.
– Seu abraço apertado me distraiu.
Ela o encarou desconfiada.
– Quais são essas condições?
Ele olhou para baixo devagar, para seus cachos esvoaçantes – portanto, para boa parte do corpo dela. Phaedra achou ter notado um interesse possessivo, como se ele tivesse acabado de receber um presente e aquilatasse o valor.
– Gentile Sansoni só a libertaria se ficasse sob minha guarda. Tive que aceitar total responsabilidade pela senhorita e prometi controlar seu comportamento.
Um calor de fúria lhe subiu à cabeça. Agora entendia por que, de repente, lorde Elliot passara a se comportar de forma arrogante, fazendo exigências.
– Isso é intolerável. Nunca me submeti a um homem. Isso faria minha mãe se revirar no túmulo. Recuso-me a concordar com isso.
– Prefere enfrentar Sansoni? Podemos providenciar o embate.
A ameaça a deixou sem palavras.
Lorde Elliot não chegou a rir enquanto se dirigia para a porta, mas também não escondeu o fato de estar se divertindo muito com o dilema da moça.
– Viajaremos para Pompeia juntos, Srta. Blair, depois que eu falar com Merriweather. Até lá, está proibida de deixar esses aposentos sem minha companhia. Ah, e não haverá visitas de Marsilios nem de Pietros. Ficarei em apuros se a senhorita provocar mais algum duelo enquanto estiver sob minha autoridade. Fiz um juramento de controlá-la e espero poder contar com sua colaboração e obediência.
Autoridade? Controle? Obediência? Ela estava tão estupefata que ele se foi antes que ela recuperasse a voz para xingá-lo.
CAPÍTULO 4
A boa vontade da Srta. Blair em entrarem num acordo em relação às memórias do pai dela melhorou o humor de Elliot. Ele obteria a retratação necessária de Merriweather, colocaria a Srta. Blair no próximo navio para a Inglaterra e voltaria sua atenção para assuntos mais interessantes.
Merriweather colaboraria, com certeza. Ele, melhor do que ninguém, estava ciente de que a história de Drury sobre a morte do oficial era falsa. Além do mais, sua carreira seria prejudicada se o mundo inteiro soubesse que fora indiscreto ao se embebedar. Ele seria um aliado de lorde Elliot em seus esforços para convencer a Srta. Blair a cortar os trechos incriminadores.
Em uma hora, Elliot descobriu que a questão não seria resolvida tão facilmente. Um funcionário da missão diplomática britânica no Palazzo Calabritto lhe informou que Merriweather fora para o Chipre a serviço e não deveria estar de volta em menos de duas semanas.
Elliot voltou ao hotel e reorganizou alguns de seus planos. Conforme a tarde terminava e a temperatura ia ficando mais amena, ele pegou uma carruagem de aluguel e rumou para o Bairro Espanhol para visitar Phaedra Blair mais uma vez.
Seus olhos azuis chamejaram ao vê-lo na porta.
– O que deseja agora, lorde Elliot?
– A senhorita me disse que desejava caminhar às margens da baía esta noite. Estou aqui para acompanhá-la.
– Não preciso da sua companhia.
– Ou vai comigo ou não vai. Seria uma pena não gozar de sua liberdade, agora que a recuperou.
Ela franziu os lábios. A dúvida se refletiu em seus olhos.
– Muito bem, vamos lá.
Phaedra deu um passo adiante, esperando que ele lhe desse passagem.
– Esqueceu o seu chapéu, Srta. Blair. O sol ainda não se pôs e pode ser prejudicial à sua pele delicada. Tenho certeza de que preferiria evitar mais sardas em seu nariz, por mais charmosas que elas sejam.
A mão dela foi rápida para o nariz. Por um instante, a vaidade feminina venceu sua postura de indiferença a essas preocupações banais.
– O senhor é muito hábil em misturar críticas com falsos elogios.
– Os elogios não foram falsos. As sardas são adoravelmente femininas, mas ainda assim precisa de um chapéu. Vou esperar até que ponha um. A senhorita tem um chapéu, não?
– É claro.
Exasperada, ela deu meia-volta e seguiu na direção do quarto.
– Não me siga desta vez.
– Nunca entraria no quarto de uma dama duas vezes no mesmo dia. Assim como quatro danças em um baile, isso poderia ser mal interpretado.
– Nunca interpreto mal os homens, lorde Elliot. Eles são as criaturas mais transparentes que existem.
De fato, ele imaginava que eram, para ela. Não era uma moça inexperiente. Sabia por onde os pensamentos dele haviam vagueado quando estavam os dois de pé ao lado da cama. Seu cabelo solto lhe dava a aparência de uma mulher preparada para uma tarde de prazer.
Ela não reagira a ele com choque ou vergonha recatada. Não houvera a indignação de quem defende sua virtude. Ao contrário, ela só o encarara enquanto as possibilidades sensuais atiçavam a ambos. A expressão dela tinha sido a de quem reconhecia aquele impulso e suas possibilidades.
Ele nunca vivenciara nada parecido antes. Phaedra conseguia provocar e rejeitar sem dizer uma só palavra. Você me quer e pode ser que um dia eu o queira, mas não hoje. Talvez nunca. Ainda não decidi. Ela devia saber que seu comportamento estimulava o lado mais selvagem dos homens.
Phaedra voltou usando um chapéu de palhinha que era muito mais bonito do que ele teria imaginado. Sua aba em diagonal e as flores de seda brancas e azuis realçavam seus olhos e a pele clara. Seus cabelos longos e esvoaçantes, a falta total de maquiagem e as sardas lhe davam uma aparência fresca e campestre.
Porém, seu vestido comprometia a imagem. O tecido preto leve e sem enfeites a cobria do pescoço aos pés. Uma faixa rodeava a cintura, mas, afora isso, pouco se podia notar de suas formas sob o pano solto e volumoso.
O vestido provocava mais fantasias do que ela provavelmente imaginava. Provocava curiosidade quanto ao que dissera mais cedo. Não havia criadas para ajudá-la a se vestir. Não usava corpete nem espartilhos, e as formas gerais indicavam que o corpo tão livre embaixo do tecido valia a pena ser imaginado. Peito empinado, avaliou ele, de tamanho indeterminado, porém digno de nota, e quadril feminino o bastante para fazer com que a cintura parecesse bem fina. Alguns gestos e uns poucos ganchos e tudo seria revelado.
– Alexia o fez para mim – disse ela, ao notar sua admiração pelo chapéu. – Acho que ela tem esperanças de me mudar. Quanto a meu vestido, que o senhor está examinando de forma tão crítica, não espere que eu o troque. Não fui eu quem decidiu que o senhor teria de andar em público em companhia de uma mulher tão fora de moda.
– O vestido me convence ainda mais. Insisto em que cubra o cabelo, contudo não peço que abra mão de todos os símbolos com os quais desafia o mundo.
Ela ergueu o queixo e rumou para a porta.
– Se tiver juízo, não pedirá coisa nenhuma.
Barulho, gestos teatrais, toucados com plumas e sombrinhas coloridas. Riqueza digna de príncipes, pobreza abominável e o brilho das armaduras dos soldados.
O elegante passeio londrino era uma pálida imitação do que acontecia no final da tarde nas terras mais ao sul. O passeio que circundava a baía de Nápoles ficava apinhado de transeuntes. Aristocratas em vestidos e casacos da moda caminhavam em grupos entre os pobres que perambulavam nas proximidades da água. Comerciantes e suas esposas passeavam com os filhos.
A hora do passeio vespertino – aproveitada nas proximidades da baía ou nas piazzas das igrejas – servia a importantes objetivos na cidade, a julgar pelo modo como as moças casadoiras eram exibidas. Sua beleza jovem e morena brilhava entre os pais, que avaliavam criticamente, com semblantes sóbrios, os homens que olhavam duas vezes na direção delas.
Toda a Nápoles era uma ópera e Phaedra Blair não parecia tão estranha ali quanto poderia pretender. Ela estava razoavelmente apresentável, graças ao chapéu; ainda assim, Elliot notava a atenção que atraía com seu cabelo ao vento. Imaginou a reação que causara na primeira vez que estivera ali, com seus fios vermelhos esvoaçando em meio a um mar de castanho e preto. Londres era mais tolerante com o tipo de excentricidade que ela exibia.
– Falou com o Sr. Merriweather?
Eram as primeiras palavras que ela pronunciava desde que haviam saído do apartamento. Elliot não forçara uma conversa na carruagem. Não se importava com o silêncio. Passara um bom tempo calado, tendo a própria mente como única companhia. Gostava do contato social até certo ponto, mas apenas se houvesse horas de silêncio para contrabalançar as de ruído e conversas.
– Ele está fora em uma missão e só deve voltar em duas semanas, no mínimo.
Elliot se perguntou se ela já não saberia disso. Não estava convencido de que a Srta. Blair tivesse objetivos tão inocentes ao visitar a cidade. Se quisesse ver as ruínas, faria mais sentido vir em outra época do ano. Embarcar para lá em pleno calor do verão napolitano, quando sua editora passava por dificuldades, seu sócio estava doente e as memórias do pai esperavam preparação do original... Ele ainda suspeitava que interrogar Merriweather estivera entre os motivos que a levaram ali.
– Espero que não queira me fazer esperar quinze dias ou mais para ir a Pompeia.
– Decidi que visitaremos as ruínas enquanto o espero voltar.
Isso a apaziguou. Ela pareceu quase aliviada. Talvez tivesse vindo mesmo apenas a passeio.
– Na última primavera, Alexia me disse que o senhor estava escrevendo um livro novo, lorde Elliot. Sua visita a Pompeia está ligada a isso?
– Visitarei as novas escavações para saber o que foi descoberto nos últimos anos. Vou conversar com arqueólogos e pesquisar alguns temas para o livro.
– Alexia me disse que é um livro sobre assuntos quotidianos, sobre a forma como as pessoas viviam. Muito incomum. Normalmente, os livros de História descrevem as guerras, a política e os feitos dos grandes homens. Até o seu último foi sobre isso.
– Estou atento para o fato de que esse livro pode ser criticado por sua aparente falta de relevância. Porém o assunto me interessa e posso me dar ao luxo de me dedicar ao que gosto.
– Se acha que o estou criticando, está equivocado. Acredito que seu livro pode ser muito popular, não importa o que digam os acadêmicos. Ele deve vender muito bem.
– Não estou tão certo de que meu editor concorde com isso.
– Então, talvez deva achar outro. Ficaria honrada de publicá-lo se aturar a ideia de fazer negócios com uma mulher.
Ele riu da sua expressão sagaz. Essa editora poderia sobreviver muito bem, no final das contas, se a Srta. Blair mostrasse tamanho talento de bajular autores para atraí-los.
O humor dela havia melhorado desde o início do passeio. Talvez a luz suave do sol poente e a brisa refrescante fossem os motivos da mudança. O mais provável era que a Srta. Blair tivesse decidido que a raiva a atrapalharia a gozar sua recém-adquirida liberdade.
A alegria brilhava em seus olhos enquanto caminhavam, observavam os grupos de passantes, os barcos e as gaivotas. Ela sorria para lorde Elliot de uma forma cálida que poderia ser erroneamente interpretada como flerte. E não passava despercebido dele a forma como os homens a olhavam. Por si só, o cabelo ruivo solto já bastava para destacá-la, contudo a Srta. Blair chamaria atenção de qualquer forma.
Esses olhares também não passavam despercebidos a ela, que não os encorajava nem desestimulava. Também não lhes davam satisfação nem a insultavam, pelo que Elliot podia ver. Phaedra simplesmente seguia seu caminho, uma mulher diferente das outras mas muito confiante, com o tecido preto e leve do vestido a revelar mais do que se pretendia.
Sutilmente, ela projetava uma aura carregada daquele mesmo desafio que Elliot sentira no quarto, só que agora atraía todos os homens que a olhavam por mais tempo. Você me quer, só que nada vai acontecer entre nós, porque eu decidi assim.
Ela parou para comprar um pequeno buquê de flores de uma menina que as oferecia numa caixa. Elliot tentou pagar por elas, mas Phaedra afastou sua moeda e pagou com o próprio dinheiro. Continuou a andar, segurando perto do nariz as flores perfumadas.
– Lorde Elliot, gostaria de lhe fazer uma proposta.
Não seria a proposta que ele desejava, contudo seu corpo se enrijeceu de qualquer forma. As palavras dela tinham sido escolhidas de propósito para atiçá-lo e isso o deixou com raiva, porque funcionou.
Ele não deveria, só que não resistiu:
– Vi o que acontece aos homens que aceitam os termos de suas propostas, Srta. Blair, portanto prefiro declinar.
A expressão dela mudou.
– O que quer dizer?
– Ah, eu entendi erroneamente? Desculpe-me.
– O que o senhor quis dizer?
Ele deu de ombros.
– Pensei que fosse propor que me tornasse um de seus amigos. Uma dessas abelhas que ficam zumbindo em volta da rainha.
Sua pele branca enrubesceu e sua raiva deixou transparecer uma boa dose de consternação.
– O que sabe a respeito dos meus amigos?
– A senhorita pode desprezar a sociedade, mas ela está a par do seu comportamento. Todos sabem sobre a filha de Artemis Blair e como, a exemplo da mãe, ela se considera acima de todas as regras sociais estúpidas.
– Sua ignorância me espanta.
A raiva dela vencia a consternação.
– É muito típico o senhor interpretar mal minhas amizades e é por isso que nunca considerarei a hipótese de tornar meu amigo alguém como o senhor.
Ah, ela consideraria, sim. Até já havia considerado. As negociações começaram cedo naquele dia.
– Se fui rude, peço desculpas.
A expressão dela relaxou.
– No entanto...
As sobrancelhas dela se arquearam.
–... se a senhorita está acima de regras sociais idiotas, não há como eu ser rude, não concorda, Srta. Blair? Digo, no âmbito de suas crenças. A palavra “rude” se aplicaria apenas dentro do contexto das regras sociais, não estou certo? Nos próximos dias, a senhorita terá de me ajudar a perceber onde sua sujeição a tais regras começa e onde termina, assim não a interpretarei erroneamente de novo.
Mais uma vez aquela confiança presunçosa, aquele desafio, a saturou.
– Pode ter certeza de que farei isso, lorde Elliot.
A caminhada os levara até Riviera di Chiaia, às belas mansões com vista para a baía. A Srta. Blair enterrou seus pensamentos por trás de uma máscara de passividade e ficou admirando a beleza das construções.
– Lorde Elliot, é conveniente que tenha falado a respeito dos próximos dias e que tenha expressado sua desaprovação e desprezo com relação à minha pessoa. Minha proposta tem a ver com ambas as atitudes.
– Não desaprovo nem desprezo. Só decidi que devemos ter um entendimento correto quanto a uma pequena questão.
A mais importante de todas.
– O fato de interpretar erroneamente minhas amizades com outras pessoas e meu interesse pelo senhor indica que não nos daremos muito bem. Nem o senhor vai querer o peso de ter alguém que veio a passeio como companheira de viagem. Eu só iria atrapalhá-lo e seus estudos só atrasariam meus planos. Proponho que nos separemos assim que deixarmos Nápoles.
– Isso não é possível.
– Gentile Sansoni nunca saberá.
– A influência dele se estende para muito além das fronteiras desta cidade. Além disso, dei minha palavra, e essa é uma das tais regras sociais estúpidas que levo muito a sério.
– Senhor...
– Não, Srta. Blair. Partiremos juntos, daqui a dois dias, pela manhã. Vamos de barco primeiro para Positano e depois para Amalfi. De lá seguiremos viagem por terra.
– Quero ir para Pompeia imediatamente.
– O atraso será breve. Prometi visitar um amigo em Positano e ele me espera por estes dias, não depois. Se está a passeio, deve se alegrar com uns dias a mais visitando a costa ao sul. É espetacular.
Phaedra não parecia nem um pouco alegre. Ele imaginou que veria aquela perturbação constantemente nos olhos dela pelas próximas semanas.
Deram meia-volta para refazer o caminho e Elliot quase tropeçou em uma criança que os seguia. Grandes olhos negros olhavam para cima em uma esperança calada de que alguém a enxergasse entre tantas das mais pobres crianças da cidade. Ela não pediu nada, mas seu corpinho frágil vestido em andrajos implorou de forma pungente.
Ele enfiou a mão no bolso do colete. Quando a moeda surgiu, mais duas crianças apareceram ao lado da primeira. Outras foram atraídas por instinto para o inglês que não sabia parar de distribuir esmolas para as crianças pedintes de Nápoles.
Ele achou mais moedas. A Srta. Blair não pareceu com medo por estar cercada de pobres ávidos por moedas, como a maioria das mulheres ficaria. Ela tentou conversar com a primeira menina, a mão oculta em algum lugar do vestido, na altura do quadril.
Os dois adultos ficaram num mar de olhos negros e corpinhos morenos, distribuindo moedas até que todas tinham se acabado.
Voltaram para a carruagem sem outras discussões. Ela só falou mais uma vez antes de ser deixada de volta em seu apartamento.
– Partiremos daqui a dois dias pela manhã, como disse? Então nada me resta a não ser me preparar para a viagem.
A aparente submissão de Phaedra Blair não o convenceu. Elliot partiu para fazer seus próprios preparativos.
Phaedra tirou o camafeu do nó no xale. Envolveu-o em um lenço e colocou o embrulho dentro do bolso fundo da saia de seu vestido. Depois envolveu a cabeça com o xale e o amarrou debaixo do queixo.
Verificou a valise, conferindo mais uma vez as roupas e os objetos pessoais que tinha colocado nela. Orgulhava-se da falta de vaidade feminina, mas ainda a irritava ter tão poucas roupas para usar pela próxima semana.
Era tudo culpa de lorde Elliot. Qualquer um sabia que um juramento feito sob coação não contava. E, para ela, fazer um juramento para salvar uma mulher de um destino incerto se qualificava como coação. A insistência do lorde em manter sua palavra a perturbava. Tinha sido muito azar dela que a única pessoa disponível para ajudá-la fosse um homem com noções ultrapassadas de honra.
De jeito nenhum ela permitiria que ele os fizesse vítimas de sua mente pequena. Lorde Elliot não queria a companhia dela muito mais do que ela queria a dele. Só haveria problema se os dois permanecessem juntos.
Uma dessas abelhas que ficam zumbindo em volta da rainha. Ele era incapaz de entender as amizades honestas e sinceras que ela mantinha com alguns poucos e raros homens que pensavam como ela. Ficaria chocado ao descobrir que alguns homens conseguem controlar as forças primitivas de posse e domínio que causaram tanto sofrimento ao longo da história, em especial às mulheres. Na verdade, havia homens para quem a sensualidade não despertava a necessidade de conquistar, dominar e exigir submissão.
Bem, não cabia a ela lhe explicar. Além disso, seria um esforço em vão e exigiria que passasse mais tempo com ele.
Deixou um bilhete e algum dinheiro em sua mala para garantir que a signora Cirillo entendesse que ela voltaria logo para buscá-la. Depois se esgueirou do apartamento para o corredor escuro. Achou o caminho da escada.
Andando pé ante pé, envolta em negro, seguiu até o andar de baixo. Ainda na escuridão, foi tateando às cegas em busca do lance de degraus seguinte.
De repente as sombras se transformaram em corrimões, portas e paredes, como se alguém tivesse aberto as persianas para deixar a luz da lua entrar.
– Pietro não está à sua espera no cruzamento, Srta. Blair.
O coração dela parou de bater ao ouvir a voz tranquila atrás de si. Deu meia-volta. Lorde Elliot estava a pouca distância, em uma porta aberta que dava para o apartamento que ficava abaixo do dela. Estava sem camisa e descalço, como se estivesse dormindo e houvesse posto a calça às pressas para investigar o barulho. A luz fraca da lamparina do quarto o banhava em uma névoa dourada.
A presença daquele homem anunciava o fim de seu plano de fuga. Apesar de sua exasperação, que aumentava cada vez mais, Phaedra não pôde se furtar a apreciar aquele homem. Lorde Elliot era esguio, elegante e tinha ombros largos. Seu corpo possuía o retesamento jovial que abençoava os homens por tanto tempo na vida quanto permanecessem ativos. A luz fraca ressaltava os músculos rígidos do peito, do abdome e dos braços.
Ele deu dois passos, pegou a valise da mão de Phaedra e segurou seu braço, empurrando-a para o quarto dele. Depois fechou a porta.
– O que está fazendo aqui? – perguntou ela.
A luz da lamparina valorizava o peito musculoso e a pele maravilhosa agora tão próximos de seu rosto. Se não estivesse aborrecida pela interferência daquele homem, poderia até aproveitar a bela visão.
– Eu me hospedei aqui.
Ele permaneceu imóvel por um longo tempo. Phaedra olhou para o rosto do lorde e percebeu que ele a observava. E que tinha notado que ela avaliava seu corpo. Sentiu a pulsação acelerar. Os olhos deles refletiam a mesma reação, mas com uma anuência fria, como se Elliot controlasse a reação tanto nela quanto nele.
Sim, esse homem significava problema na certa.
– Não se mexa. Não tente sair – disse isso e andou até a escrivaninha, onde pegou a camisa e a vestiu.
Ela não ficou olhando. Não exatamente. Mas, com o canto do olho, viu como seus braços se moviam e seu dorso se esticava. A imagem do encontro deles à tarde invadiu sua cabeça de novo, mais vívida dessa vez: o rosto masculino pairando acima dela, aqueles ombros e aquele peito sob sua carícia...
Olhando de esguelha, percebeu os sinais de que o cômodo estava ocupado. Havia uma lamparina sobre uma escrivaninha na sala de estar, junto com uma pilha de papéis. Notou manchas de tinta nos dedos dele. Ele estivera escrevendo, não dormindo. Imaginou-o lá, entregue ao frescor da noite, imerso em sua escrita.
Com pouca roupa e aquela camisa solta, parecendo libertino e romântico demais para que ela se sentisse segura, ele a encarou.
– Lorde Elliot, mudou-se para cá para me espionar?
– Deixei para a signora Cirillo a tarefa de espionar. Mudei-me para cá para impedi-la de fugir na calada da noite.
Ele adivinhara seu plano. Isso a desanimou.
– Intrometer aquela ave de rapina em meus assuntos particulares é indesculpável.
– Parece que foi necessário. A signora Cirillo se empenhou em sua missão e a desempenhou com fervor. Eu só pedi que informasse caso a senhorita me desobedecesse e deixasse a hospedaria. Mas ela a seguiu e interceptou a carta para seu amigo.
A expressão dele assumiu um ar crítico.
– Tentar arranjar esse encontro clandestino à meia-noite é intolerável. E se Pietro não a esperasse naquele cruzamento? A senhorita ficaria lá fora no meio da noite, nessa cidade devassa, desprotegida...
– Não me repreenda. Não ouse. Se ele não aparecesse, eu logo teria encontrado um jeito de arrumar uma carruagem de aluguel, uma carroça ou até um burro, se preciso, e teria partido.
Todas as implicações desse episódio lastimável se seguiram em sua cabeça. Ressentiu-se de cada uma delas.
– Parece que troquei um carcereiro por outro – disse ela.
Ele pegou a valise.
– Chame como quiser.
Então Elliot estendeu o braço na direção da porta, mostrando o caminho.
Bufando de raiva, ela subiu de volta as escadas até seus aposentos. Para seu espanto, o lorde não deixou a valise na porta de entrada. Em vez disso, carregou-a até o quarto. Ela não o seguiu. Uma intuição, daquelas que só as mulheres têm, a manteve na sala de estar.
– Venha até aqui, Srta. Blair.
A ordem ressoou dentro dela de um jeito que ela não reconheceu nem gostou. Compreendia a raiva que trazia, mas havia também outros impulsos e palpitações que a espantaram. Ela odiava quando os homens tentavam lhe dar ordens, quando pressupunham serem seus donos, no entanto...
Phaedra espiou dentro do quarto. Lorde Elliot estava lá, com o colarinho da camisa branca aberto, o cabelo despenteado e a expressão resoluta. Quando ele notou a presença dela, um reconhecimento mudo se deu entre os dois. Lampejos de excitação e perigo a perpassaram.
Ele andou até ela e a puxou para dentro do cômodo. A pegada tão firme e confiante, tão segura em relação ao direito dele de fazer o que bem quisesse, a espantou. Nunca na vida um homem a tratara assim. Phaedra tentou se recompor e encontrar as palavras que o colocassem em seu devido lugar, mas...
Ele começou a desatar o nó do xale sob seu queixo. Isso levou tempo de mais. E o deixou perto demais. Com certeza ele não era um canalha a ponto de... Deveria detê-lo e desatar o nó ela mesma. Deveria...
Ele fez o xale correr com suavidade pela cabeça e os ombros dela. Foi como uma carícia longa e vagarosa. O olhar dele acompanhou uma ponta do xale deslizar ao longo do corpo dela até que ficasse pendurado na mão dele pela outra.
Apenas a luz da lua que entrava pela janela iluminava o quarto, porém Phaedra não precisava ver com clareza o rosto daquele homem para adivinhar seus pensamentos. Eles preenchiam o quarto, estavam no ar, como tinha acontecido à tarde.
Uma nova reação a deixou perplexa, uma que nunca vivenciara antes: medo. Não medo dele ou de ser forçada a fazer algo. Foi dela mesma e da maneira chocante e singular como seu corpo reagia à forma como ele tentava dominá-la.
Elliot fez um gesto apontando para a cama.
– Tire o vestido e deite-se.
Isso quase a fez cair em si. Quase. Uma excitação inexplicável a atingiu lá embaixo, uma excitação absolutamente escandalosa. Deus do céu...
– Está indo longe demais.
Ela havia mesmo falado? Sua mente por fim juntara algum bom senso e fora em seu socorro?
– Você não me deixa escolha. Não posso me arriscar a deixá-la escapar.
– Prometo que não vou fugir.
– Uma mulher que espera que eu quebre minha promessa a Sansoni não manterá a própria palavra. Agora coopere, a menos que queira que eu a force a obedecer.
Ela levou as mãos às costas e começou a soltar os ganchinhos do vestido. Só levou um minuto até se despir e pôr o vestido sobre uma cadeira. A luz não era fraca o bastante para ocultá-la. Desejou estar usando aqueles ridículos espartilhos, pois suspeitava que lorde Elliot pudesse ver mais do que deveria por baixo da camisa simples que usava sob o vestido.
Ela se aproximou da cama e subiu nela, tentando não se expor demais e excitada por suspeitar estar se expondo ainda assim. Deitou de costas e olhou para ele. Pairou um silêncio no ar por um longo momento.
– Quais são as suas intenções, lorde Elliot?
Ele riu de novo. Em silêncio. Sarcasticamente.
– Não é um bom momento para provocar e instigar, Srta. Blair.
De repente, ele se inclinou sobre ela. Pairando. O coração dela começou a bater mais forte. A camisa dele adejava perto do rosto dela. O cheiro dele a tomou de assalto. O tamanho dele a dominou. Uma expectativa terrível e maravilhosa formigou nela. Seus seios ficaram mais sensíveis e...
Ele pegou no braço esquerdo dela e o levou até as barras de ferro da cabeceira da cama.
– O que está fazendo?
Ele enroscou o xale em volta das barras.
– Certificando-me de que não fugirá. Não preciso dormir muito, entretanto não posso ficar acordado por duas noites.
– Isso passa dos limites. É repugnante. Exijo que...
– Isso é necessário. Ou é isso ou durmo ao seu lado. Prefere?
Ela o encarou. Ele parou de fazer os nós e olhou para baixo. O coração dela pulou para a boca.
– Prefere? – repetiu ele.
Era uma pergunta direta e sincera. Um convite que lhe permitia extravasar a atração.
Ela engoliu em seco.
– É claro que não.
Mesmo na luz fraca, ela viu o sorriso dele. Ele voltou sua atenção para os nós.
Por fim, ele se afastou e se endireitou. Phaedra deu um puxão com o braço esquerdo. Não havia folga nas laçadas. Ela se virou para o lado e tentou forçar um nó com a outra mão.
– Fique à vontade para tentar desfazer os nós. Só que não vai conseguir. Pode se sentar e se mexer, pode até ficar de pé. Pode usar o penico do lado da cama. Mas nunca vai conseguir se soltar. É melhor passar o tempo dormindo.
Uma nota em seu tom de voz a fez parar de tentar. Rolou de volta para ficar de costas e o encarou. O desamparo dela e o domínio dele gritaram no silêncio entre os dois. A mente de Phaedra bradava insultos rebeldes, mas seu corpo experimentava um calor e uma expectativa deliciosos. Espantava-a que essa submissão provocasse desejo, um desejo muito erótico.
Ele sabia, droga. Ela podia garantir que ele sabia.
– Está muito bonita aí, Srta. Blair. Muito bela e vulnerável e, ouso dizer... submissa?
– Seu canalha.
De novo, aquela risada silenciosa. Depois ele se foi, deixando-a livre para conversar consigo mesma pelo resto da noite sobre quão vulnerável e submissa ele a havia tornado.
CAPÍTULO 5
Phaedra segurava o camafeu na luz matinal que penetrava pela janela da sala de estar. O objeto tinha se tornado um talismã nos dois últimos dias, no embate com um homem confiante demais de seus direitos de controlá-la.
Você deveria ter me avisado, mãe.
Talvez Artemis não pudesse ter lhe avisado simplesmente porque não sabia. Talvez tivesse se isolado tanto de homens como Elliot Rothwell que nunca os houvesse enfrentado.
Ela imaginava a mãe, linda de tirar o fôlego. Com um rosto tão suave que as pessoas nunca imaginavam sua mente brilhante até que ela abrisse a boca ou lhes dirigisse aquele olhar aguçado. De fato, sempre fora uma rainha com muitas abelhas em volta. Acadêmicos, artistas e homens que admiravam sua inteligência estavam entre os amigos que a amavam e ficavam apenas à espera de uma deixa. Sua casa ficava sempre cheia de homens famosos e esperançosos.
Na certa, um desses homens teria tentado conquistá-la. Na certa, a famosa Artemis Blair vivenciara a excitação primitiva de encontrar um par na inteligência e no poder. Ela devia ter avisado à filha que esse homem poderia surgir um dia.
Phaedra olhou pela janela. Lá embaixo, lorde Elliot dava ordens aos criados da signora Cirillo, que carregavam as valises para a carruagem que os levaria ao porto. Os olhos dela se estreitaram para focalizar o inimigo.
Pelo menos, ele não a mantivera amarrada na última noite. Ela prometera de cinco formas diferentes não fugir. Ele só a soltou depois de ela jurar – jurar – sobre o túmulo da mãe. Ele a fizera implorar como se fosse seu dono.
Sua mãe provavelmente estaria se revirando no túmulo naquele exato momento. Artemis Blair nunca se submetera a um homem, de forma nenhuma. Nunca se casara, nem com seu amor de toda a vida, Richard Drury, mesmo quando se viu grávida. Nunca abrira mão de sua liberdade, sua independência e seu direito de amar e dividir a cama com quem quer que escolhesse, nem ao descobrir que só queria amar e dividir a cama com um único homem.
O camafeu esquentou na mão de Phaedra. Ela olhou para a joia. Não, não um único homem. Tinha havido outro.
Tinha sido um choque ler isso nas memórias do pai. Sentia-se nauseada só de lembrar as palavras dele. Sempre imaginara que o amor de seus pais fora perfeito, desprovido de obrigações e leis, um verdadeiro encontro de almas que duraria pela eternidade. A amizade dos pais mostrava ao mundo que havia uma forma melhor para um casal conviver.
Tinha sido assim por muitos anos, até que um dia outro homem entrara na história.
Esse intruso era charmoso, contudo estava no centro de um esquema ao mesmo tempo brilhante e nefasto. Foi o que seu pai escreveu. Ela se lembrava das palavras exatas. Memorizara essas palavras antes de zarpar da Inglaterra. Ele seduziu Artemis para que tivessem um caso, usou-a da forma mais desonrosa, a ponto de destruir sua reputação. Foram seus atos que, em última análise, levaram à morte dela. Assim como vendia falsas antiguidades, ele lhe ofertou mentiras. Porém é só uma questão de tempo até que ele seja desmascarado, porque os objetos estão lá, visíveis, como o que vendeu a Artemis. Um dia alguém revelará a origem suspeita desses objetos, e a forma como ele usa a sedução no intuito de roubar será sua desgraça.
Os dedos dela se fecharam com força ao redor do camafeu. Uma antiguidade de origem suspeita. Uma joia acrescentada na última hora a um testamento, supostamente vinda de Pompeia. Phaedra estava bastante certa de que era a este objeto que o pai se referira – e também sua única ligação com o homem que ele acusava.
Seus atos, em última análise, a levaram à morte. Phaedra não conseguia tirar essas palavras da cabeça. Elas ressoavam em seus sonhos junto com as imagens da mãe naquelas últimas semanas, séria demais, distraída demais. Phaedra nem chegara a notar essa seriedade e distração na época, pois a mãe sempre tinha um sorriso para ela. Porém seu declínio fora rápido demais e sua morte, um choque.
Phaedra baixou o olhar de novo. Lorde Elliot olhava para cima, em sua direção. Há quanto tempo ele a observava lá da rua?
Talvez a mãe não tivesse avisado porque nem ela mesma sabia. Talvez o intruso fosse um homem como aquele lá embaixo, que causava arrepios só por dar sua atenção e cuja presença era uma tentação para que, em um segundo, uma mulher se esquecesse de todas as crenças e princípios que ancoravam sua vida.
Poderia perdoar a mãe por não ter lhe dado essa lição. Poderia perdoá-la por qualquer coisa, até mesmo por deixar o mundo cedo demais. Porém, se um homem realmente a havia usado de forma desonrosa, se os atos dele tinham causado sua morte, isso era outro caso. A filha de Artemis Blair nunca o perdoaria. Se tivesse certeza de que isso era verdade, então queria ver a queda desse homem.
Pegou o xale e envolveu a cabeça. Lorde Elliot era um inconveniente, mas ela não deixaria que a companhia dele atrapalhasse o motivo real que a levara ao Reino das Duas Sicílias.
Elliot voltou ao quarto para pegar a maleta com seus muitos papéis. Passou pela Srta. Blair nas escadas.
– Vou esperar na carruagem.
Seu tom ríspido demonstrava a frieza que agora sempre exibia em sua presença.
Ela nunca o perdoaria por amarrá-la na cama, não só pela humilhação e falta de confiança. Ambos sabiam que isso a excitara, e ela o odiava por isso e por todas as implicações resultantes. Ambos também sabiam que, se ele não tivesse feito isso, ela teria escapado durante a noite para evitar as implicações resultantes.
Na última noite, Phaedra fora enfática ao afirmar que não aconteceria de novo. Suas promessas foram tão sinceras e suas garantias de não fugir, tão genuínas que ele voltara atrás.
Isso significara que ele poderia dormir. Na primeira noite, ficara deitado, inquieto e ávido, sentindo o desejo rasgá-lo por dentro como uma faca de serra. Imaginando-a naquela blusa fina, amarrada na cabeceira da cama, com o cabelo espalhado como seda acobreada e o corpo visível demais. Quais são as suas intenções, lorde Elliot?
Que inferno!
Elliot pegou a mala e um embrulho comprido e se juntou a ela na carruagem. O olhar vazio, distante e focado dizia que era só por falta de escolha que Phaedra tolerava a companhia dele. Não se daria o trabalho de bater papo para tornar seu tempo juntos mais fácil.
O barco que ele alugara esperava perto do Castel Nuovo. Uma hora depois, eles navegavam margeando a baía.
A Srta. Blair se posicionou na área central do convés, segurando-se na amurada. Ela observava a costa passar e o monte Vesúvio ficar cada vez maior ao fundo. A brisa empurrava o xale dos seus cabelos e sua beleza pálida e incomum chamava a atenção do pessoal de bordo. Elliot se aproximou para que não restasse dúvida quanto à sua situação de protetor da moça.
Ele estendeu a mão, oferecendo-lhe o embrulho que trouxera.
– O que é isto? – perguntou ela.
– Um presente.
Ela sorriu de um jeito suave, porém firme.
– Não aceito presentes de homens, lorde Elliot.
– Você não aceita presentes em troca de favores, o que é admirável. No entanto, como não gozei de seus favores, ainda está livre para aceitar presentes. Se eu a seduzir, pode devolvê-lo.
Ele quase disse “quando” em vez de “se”.
Ainda hesitante, porém curiosa, ela pegou o pacote e tirou parte do papel.
– Uma sombrinha? – disse, e rasgou o restante do embrulho, rindo então. – Preta. Toda preta. Que... gentileza!
– Achei que ia combinar.
– Isto é para me poupar de mais sardas?
– Isto é para poupá-la de ficar doente. O sol aqui é muito forte e estamos em pleno verão. Quando desembarcarmos, ficará feliz em ter alguma sombra.
Ela abriu a sombrinha e cobriu a cabeça.
– O senhor conhece bem o país. Já esteve aqui antes?
– Duas vezes. Primeiro em uma viagem por vários países do continente, e de novo há alguns anos.
Ele apontou para a costa.
– Ali fica Herculano. A mesma erupção do Vesúvio que enterrou Pompeia em cinzas cobriu Herculano de lava.
Ela desviou o olhar para onde os vestidos e casacos dos visitantes salpicavam de cor a rocha.
– Tinha a intenção de visitar Herculano também, mas o signore Sansoni... – suspirou ela. – Agora vou perder muita coisa da viagem.
– Por que não gasta algum tempo na volta de nossa pequena viagem e faz a visita?
– Não tenho tempo a perder. Preciso voltar para casa. Tenho uma editora para tocar.
E um livro especial para publicar. Se ele não conseguisse o que queria ao falar com Merriweather, a Srta. Blair não voltaria para casa por um bom tempo.
– Também acho que não vou gostar de voltar a Nápoles depois de nossa viagem – emendou ela. – Com certeza você achará que a palavra dada a Sansoni ainda estará valendo, e ficarei com o senhor no meu pé.
Ele admirou impressionado o enorme cone que era o Vesúvio enquanto passavam tão perto de Herculano que podiam ver alguns trabalhadores nas escavações. O cabelo cor de cobre esvoaçava perto do braço dele.
– Srta. Blair, pergunto-me se o que a incomoda não seria o fato de me ter no seu pé e não a seus pés.
O suspiro profundo expressou o pensamento dela. Deus, dê-me paciência com esse homem tão pouco esclarecido e tão previsível.
– Suspeito que seja inútil explicar isso, mas tentarei, em nome da paz. Acredito que nenhum parceiro na amizade, no casamento ou num caso amoroso deva ficar aos pés do outro. Minha ideia só é considerada estranha porque o pé em questão quase sempre é de um homem e o mundo acha normal que ele fique cravado nas costas de uma mulher. Creio que homens e mulheres possam ficar lado a lado, sem que um tenha que pertencer ao outro. A vida da minha mãe provou que isso é possível e a minha também, até agora, prova o mesmo. Não fomos nós que inventamos essa crença. Essa ideia é bem conhecida e foi defendida por pessoas a quem admiro muito.
– Sei tudo sobre a sua crença, Srta. Blair. Não sou ignorante dessa filosofia. Ela até soa correta e racional. O único problema é que não leva em conta vários aspectos.
– É mesmo? Quais?
– A natureza humana. A história da humanidade. A tendência de os maus vitimarem os fracos e a necessidade dos fracos de proteção. Aventure-se sozinha nos vilarejos de Campanha ou nas ruelas de Marselha ou Istambul, ande pelas espeluncas de Londres e veja o que acontece com uma mulher sozinha e desprotegida.
– Os senhores de antigamente davam proteção a seus servos. O que não significa que era correto exigir a vassalagem em troca.
Ele riu.
– Senhores, servos. Que visão nefasta a senhorita tem da vida das mulheres. Não precisa ser desse jeito.
– Mas pode ser – disse ela. – O senhor sabe que pode. A lei faz isso.
A ênfase que ela deu ao “senhor” foi tão sutil que ele se perguntou se não passava de fruto de sua imaginação. Ela cutucou uma velha ferida com muita delicadeza, contudo ele sentiu a dor de qualquer forma. Uma raiva obscura se instilou nele.
Ela voltou a atenção para a costa. Um leve rubor em seu rosto indicava o reconhecimento de que tinha ido longe demais. Elliot controlou sua reação, mas pensamentos predatórios agora penetravam em sua mente. Ele ponderou o que seria preciso para ser senhor dessa mulher, para fazer com que se dobrasse diante dele.
– Desculpe-me, lorde Elliot. Eu não deveria...
– Está fazendo a impertinência aumentar, Srta. Blair. Melhor teria sido deixar que sua insinuação voasse para longe junto com a brisa.
Só que ela não o fizera, e ele se perguntava por que falara de maneira tão segura.
– Está se referindo a boatos sobre minha mãe, não é?
Ela pensou duas vezes na resposta enquanto olhava para ele.
– Admito que o fato de ela haver se retirado para o campo durante seus últimos anos de vida foi interpretado como feito de seu pai.
Elliot sabia que essa história corria solta nas salas de estar de ricos e pobres. Diziam que sua mãe tinha um amante e que seu pai a punira mandando o homem para a morte em uma colônia distante e depois aprisionando-a em uma propriedade rural.
Seria verdade? Ele e seus irmãos haviam concluído que o amante fora real, mas não a parte sobre o cárcere. O próprio pai lhe jurara não ter feito o que as pessoas falavam. Porém, o exílio da mãe estimulara a fofoca, a ponto de ela mesma passar a acreditar na história.
Ele a via na biblioteca, com os cabelos escuros pairando acima de livros e papéis, perdida em pensamentos. Quase totalmente afastada dos filhos. Por ser o caçula, havia passado a maior parte do tempo com ela lá. Ela emergia de sua concentração às vezes para guiá-lo pelas estantes, escolhendo livros para ele ler ou comentando os escritos dele.
No entanto, algumas poucas vezes o vínculo se estreitara, como no dia em que ela recebeu uma carta que a deixou em prantos. Era a notícia da morte de um oficial do Exército. Foi ele que fez isso. Para me punir por amar outra pessoa.
Tinha sido um amor ilícito. Ela era uma adúltera. Ainda assim, o sofrimento dela o comoveu. Só que ele entendeu que a acusação dela era o delírio de uma alma sofredora.
Elliot sentiu a presença da Srta. Blair ao seu lado. Nem mesmo a raiva conseguia sufocar a reação que sua sensualidade causava nele. A droga das memórias do pai dela insinuava que uma mulher reclusa fora a única a entender como o sangue dos Rothwells podia tornar um homem cruel. Sua certeza de que isso era mentira não seria suficiente para diminuir as acusações a seu pai.
– Elas se conheciam – disse a Srta. Blair. – Nossas mães.
– Minha mãe conhecia os ensaios de Artemis Blair, contudo nunca mencionou uma amizade.
Isso não queria dizer nada, uma vez que ela nunca mencionava assunto nenhum.
– Acho que elas nunca se conheceram pessoalmente, porém elas se correspondiam. Eram ambas escritoras. Tinham interesses em comum. Uma vez sua mãe enviou um poema para a minha. Encontrei-o entre os papéis dela depois que morreu. Um belo poema que refletia uma alma inteligente e sensível.
Ele fixou o olhar na cidade costeira que se aproximava, Sorrento. Estava enfurecido por saber que a mãe compartilhara seus textos com Artemis Blair e nunca com os próprios filhos.
– Sua mãe a encorajou a cometer adultério?
As palavras soaram cruéis e duras mesmo ao ouvido dele.
– Ela pregava a crença no amor livre em suas cartas?
Ele imaginou a famosa Artemis Blair virando a cabeça de sua mãe, o que levaria a tanto sofrimento depois.
– Creio que elas falavam principalmente de literatura em suas cartas. Minha mãe só a mencionou uma vez, quando soube de seu falecimento.
– O que ela disse?
A frase soou mais como um rosnado do que como uma pergunta.
– Ela disse: “Ele devia tê-la deixado ir embora, mas, é claro, por ser um homem, não poderia.”
Isso só fez com que um trovão rugisse nas nuvens que se acumulavam em sua mente. Ele queria dizer que um homem não poderia permitir que a mãe de seus filhos fugisse em uma aventura amorosa. É claro que seu pai não tinha opção a não ser negar essa liberdade a ela.
Só que, a seu modo, ela havia encontrado uma forma de fugir de qualquer maneira.
Pelo canto do olho, Elliot percebeu um membro da tripulação se demorar muito com o cordame. O homem alongava a tarefa só para ficar apreciando a beleza de Phaedra Blair.
A tempestade em sua cabeça estourou. Relâmpagos espocaram. Ele estreitou os olhos e disse quatro palavras. O homem saiu às pressas.
A Srta. Blair percebeu.
– O que você lhe disse?
– Nada importante. Uma expressão napolitana exigindo privacidade.
Nem se deu o trabalho de explicar que as palavras em italiano significavam mexa-se ou morra.
Um vento forte os ajudou a fazer um bom tempo de viagem. A paisagem foi ficando cada vez mais bonita à medida que cortavam a baía em direção à península de Sorrento. Montanhas altas abraçavam a costa, mergulhando no mar em declives acentuados e verdes. Pequenas praias abrigavam alguns barcos e casas se encarapitavam no despenhadeiro, como se fossem cubos brancos e em tons pastel a pairar acima da água.
Contornaram a pequena península, passaram pela ilha de Capri e seguiram para a costa amalfitana. Encostas mais íngremes, perigosas e inacessíveis assomavam sobre eles. O cenário deixou Phaedra boquiaberta. Lorde Elliot estava certo. Teria sido uma pena perder essa visão.
– O que está havendo ali? – perguntou ela, apontando para alguma atividade na colina.
– O rei está construindo uma estrada para Amalfi. Estão escavando a encosta.
Ela notou que a estrada ficaria acima das vilas de pescadores.
– De qualquer forma, vai ser preciso subir ou descer a colina – falou ela.
– Pelo menos os habitantes não vão depender de barcos e burros. E a vista lá de cima será espetacular.
Ele apontou para a frente, mais adiante na costa.
– Positano fica logo depois daquele promontório. Daqui já é possível avistar a torre de vigia normanda nele. Há muitas delas nesta costa, construídas para proteger o reino normando medieval que havia aqui da ameaça dos sarracenos.
Phaedra andou para a proa do barco a fim de ver melhor a torre assim que entrasse em seu campo de visão. A velha torre de pedra era bem alta e isolada. Pequenas janelas a pontuavam, como se fosse um castelo medieval. Parecia uma intromissão de estrangeiros do norte naquela terra banhada pelo sol.
– Aquelas janelas altas dão para o leste e o oeste – disse ela. – Não há nada entre aquela e o horizonte do mar e nada entre a outra e o pico da montanha alta. Vamos ficar aqui muitos dias?
– Calculo que sim.
Phaedra perdera a noção do tempo enquanto fora prisioneira de Sansoni. Agora começava a se situar.
– O solstício de verão se aproxima. Imagino se a torre não será usada para algum ritual.
– Esta é uma região católica. Os rituais pagãos foram banidos há milhares de anos.
Apesar de lorde Elliot ter respondido, ela podia apostar que ele estava muito distante. Estava tomado por um silêncio que pouco tinha a ver com sons. Era algo interior, como se seu espírito tivesse se recolhido para as câmaras secretas de sua alma.
Phaedra se arrependia de ter se referido, ainda que discretamente, à situação da mãe dele. Deixara a frase escapar no auge de sua irritação com lorde Elliot por ele pressupor que estava certo e ela, totalmente errada. Já devia ter aprendido a não entrar em discussões a respeito do modo como pensava e vivia. No que tangia a esse assunto, aquele homem lhe era tão estranho quanto os pescadores daquelas vilas pitorescas.
Aproximaram-se da torre, passando bem perto quando o vento inflou as velas do barco. Parecia deserta.
– Quem é esse amigo a quem vamos visitar? – perguntou ela. – Como vamos chegar logo, acho que eu deveria saber o nome.
– Matthias Greenwood. Foi um dos meus professores na universidade.
Ela conteve sua surpresa. Conhecia Greenwood. Tinha tentado em vão localizar sua casa em Nápoles.
– Ele não vai se incomodar por você ter trazido mais bagagem do que ele esperava?
– Ele ficará muito satisfeito por ter a companhia da filha de Artemis Blair. Ele encontrou com ela algumas vezes, eu acho.
– Sim, com certeza. Eu o vi em algumas ocasiões; a última, no funeral da minha mãe.
Matthias Greenwood tinha sido um dos muitos acadêmicos a prestar homenagem à mulher que deixara o mundo inteiro confuso.
Também era alguém que poderia lançar luz sobre o “outro” homem. Phaedra pensara que esse atraso na viagem para Pompeia seria uma amolação. No entanto lorde Elliot a estava ajudando a riscar um dos itens em sua lista de pendências naquela terra.
– Ele a admirava. Disse que, se tivesse nascido homem, ela teria sido reconhecida como uma das maiores especialistas em línguas românicas antigas da Inglaterra – contou lorde Elliot.
Ele ainda falava em um tom distraído, como se apenas metade de sua mente prestasse atenção.
Phaedra olhou para a cidade de Positano com mais otimismo e não apenas porque sua missão poderia ser favorecida ali. Ela não se pautava por regras sociais estúpidas, mas a maior parte do mundo, sim. Imaginava como seria recebida ao chegar com lorde Elliot. Viajar com ele implicava coisas que ela não tolerava e que não gostaria que as pessoas presumissem.
O Sr. Greenwood provavelmente entenderia que era melhor não presumir nada.
Phaedra sentiu seu companheiro de viagem olhando para ela e virou a cabeça. Ele tinha voltado a si.
– Ele costuma receber convidados os mais variados – disse Elliot. – Pode ser que haja outras pessoas lá. Você vai se comportar, não?
Ela confiou que ele não esperaria que ela bancasse a amante dócil em uma vã tentativa de ser alguém que os convidados tolerariam.
Mesmo que quisesse criar esse disfarce, nem saberia por onde começar.
CAPÍTULO 6
Positano ficava numa angra apinhada de barcos. As construções em tons pastel pairavam acima do horizonte, amontoadas umas sobre as outras no declive acentuado da montanha. A cidade toda era uma sequência íngreme de casas que seguiam na direção do mar.
Phaedra deu uma olhada no despenhadeiro alto, no mar infinito cor de safira e na folhagem de um verde muito escuro. Nunca tinha visto nada tão fascinante em toda a sua vida.
– Qual casa pertence ao Sr. Greenwood? – perguntou ela.
Lorde Elliot se aproximou e estendeu o braço para que a vista dela o acompanhasse.
– Aquela lá em cima, com colunas.
As colunas sustentavam a cobertura de uma comprida varanda na casa mais ao alto. A casa fora erigida um pouco acima da área central da cidade. Sua distância criava uma coroa para os prédios que se espalhavam como uma cascata abaixo dela.
– Vamos voar até lá ou ele vai jogar uma cesta para nos apanhar aqui embaixo?
Um dos membros da tripulação já tinha se ocupado em resolver o problema e voltava com a solução: dois garotos que o seguiam puxando burros.
Phaedra permitiu que os garotos a ajudassem a subir no lombo de um animal. Lorde Elliot só precisou levantar a perna para montar no dele. Era mais alto que o bicho, e suas botas arrastavam pelo chão. A tripulação amarrou suas valises e malas em dois outros burros.
Ela riu deles mesmos.
– Que comitiva, lorde Elliot! Fará um desfile impressionante pela cidade. Talvez eu pegue meu livro de esboços e registre para a posteridade sua elegância sobre esse belo corcel.
Ele tocou seu burro para assumir a dianteira e deu um tapa no traseiro do animal dela ao passar.
– Cuide de sua própria montaria, Srta. Blair. Tome cuidado para não cair ou não vai parar de rolar até chegar à baía.
Ela logo entendeu o que ele queria dizer. Os burros passavam por caminhos muito íngremes, que tinham sido cortados em degraus baixos e estreitos e depois pavimentados. Ela pensou que ia mesmo cair no mar. Os animais sabiam onde pisavam, mas, sentada de lado na sela, Phaedra precisava ter cuidado para proteger a própria vida.
Eles foram um espetáculo e tanto. Os habitantes do vilarejo saíram às portas e janelas para espiar, curiosos, os estrangeiros que iam para a mansão localizada acima da cidade. Crianças começaram a segui-los, formando um verdadeiro séquito. Duas meninas andaram ao lado de Phaedra por um tempo, espiando com curiosidade as pontas ruivas de seu cabelo que apareciam sob o xale. Algumas mulheres fizeram leves mesuras quando lorde Elliot passou, sabendo, por seu porte e seus modos, que ele tinha sangue nobre.
Ela relaxou ao se adaptar à andadura do burro. Não ousava olhar para trás, mas se permitiu olhar as casas de pedra, lindamente rústicas. Varandas simples e coberturas de telhas ajudavam a criar um amálgama de formas e cores. Algumas casas maiores tinham azulejos decorados em volta das portas principais. Todas pareciam muito antigas, como a torre. Estuque cobria a maioria delas, quase sempre trabalhado com ornamentos e cornijas decorativos. Algumas construções eram brancas, mas muitas ostentavam detalhes em vermelho e rosa.
Os sons da vida na comunidade ecoavam ao redor conforme as pessoas chamavam umas às outras pelas janelas abertas e nas ruas do mercado embaixo. Em algum lugar, um homem cantava descontraidamente uma ária de Rossini enquanto cumpria outra tarefa qualquer.
As ruelas iam ficando mais planas à medida que se aproximavam da mansão. Era como se alguém tivesse retirado um pedaço da montanha para que a grande casa pudesse ser construída.
Um homem apareceu numa das arcadas entre as colunas da varanda. Era alto e magro, com uma basta cabeleira branca, nariz aquilino e postura ereta. O maxilar de traços muito retos terminava em um queixo partido. Phaedra só tinha visto Matthias Greenwood umas poucas vezes, porém sua aparência era tão peculiar que se tornava inesquecível.
Ele acenou em saudação, depois saiu e andou na direção deles.
– Rothwell! Que alívio vê-lo finalmente. Meus companheiros anseiam pela sua perspicácia.
Eles se cumprimentaram e Elliot apresentou Phaedra.
– Já tive a honra de conhecê-la, Rothwell. Fico feliz em vê-la de novo, Srta. Blair, e em circunstâncias menos penosas do que da última vez. Sua mãe era muito estimada por humildes acadêmicos como eu e foi muito generosa conosco. Sou-lhe grato pelas pessoas a quem me apresentou em suas recepções.
Os criados apareceram e Matthias deu ordens a respeito das bagagens.
– Entrem e descansem. Meus outros convidados estão fazendo a sesta, mas se reunirão a nós em breve.
Ela subiu o caminho de pedras e seguiu Matthias até a varanda. Olhou através dos arcos e perdeu o fôlego.
A visão era impressionante, um ângulo que exigia uma tela e um pincel. Se a vista montanha acima era incrível, olhá-la de cima para baixo era de deixar qualquer um embasbacado. Os telhados e faixas de circulação da cidade se espalhavam pela encosta. O declive era tão acentuado que era de espantar que se tivesse construído alguma coisa nele. O mar infinito, o céu tão próximo, o promontório que abraçava a paisagem – tudo isso criava um panorama vasto e irreal de um lugar precário no mundo, uma visão empolgante e romântica, mergulhada em beleza e, ao mesmo tempo, repleta de perigos.
– É um espanto que o senhor não viva somente nesta varanda e nem se importe se o restante da casa cair aos pedaços, Sr. Greenwood.
– É quase isso o que faço, Srta. Blair. Aqui e nos outros terraços e varandas. Mesmo não sendo católico, vou à igreja da paróquia para acender velas pela alma de um parente distante cuja herança me permite viver no paraíso.
Uma mulher os saudou quando entraram na sala de visitas arejada, de piso de mármore. Era uma mulher local, elegante e de pele morena. Tinha um rosto lindo e comovente, marcado por um traço de melancolia. Chamava-se signora Roviale e a forma como entrou e cuidou de acomodá-los indicou que aquela era a sua casa. Matthias Greenwood não vivia sozinho no paraíso.
Outro convidado se juntou a eles logo em seguida, depois que um criado trouxe vinho. Phaedra o reconheceu também. Ele não fora ao enterro de sua mãe, mas tinha estado uma ou duas vezes em sua casa quando ela era garota. Tinha uma beleza tão nobre, de traços finos, que ela quase se apaixonou na primeira vez que o viu.
– Veja quem está aqui para celebrar sua visita, Rothwell – disse Matthias. – Escrevi contando a ele que você viria de Nápoles e ele e a esposa vieram de Roma para vê-lo. Srta. Blair, permita-me apresentá-la ao Sr. Randall Whitmarsh, cavalheiro, acadêmico e outro refugiado da Inglaterra.
O Sr. Whitmarsh adotara os modos e o estilo europeu continental, reflexo de seus longos anos vivendo no exterior. Sussurrou um “belíssima” ao se inclinar para beijar a mão de Phaedra com tamanho exagero que ficou provado que deixara para trás o jeito reservado britânico ao adotar Roma como sua residência principal.
– É uma alegria conhecer a filha da indomável Artemis Blair – disse ele, dando um sorriso charmoso e encantador.
Phaedra não era insensível à atenção de um belo homem. Notou que lorde Elliot ficou observando de soslaio enquanto o Sr. Whitmarsh se demorava segurando a mão dela.
– Soube recentemente do falecimento de Richard Drury – disse o Sr. Whitmarsh, dando um tapinha na mão dela. – Vejo que ainda está de luto, mas creio que tenha sido uma opção muito saudável viajar para o exterior para suavizar seu sofrimento.
– O modo como costumo me vestir tornou desnecessário encomendar um guarda-roupa apropriado ao luto, entretanto meu pai não ia querer isso de qualquer forma. Na última vez que o vi, ele proibiu terminantemente que eu ficasse de luto.
Ela puxou a mão da pegada suave do Sr. Whitmarsh.
– Não esperava encontrar tantas pessoas que conheceram minha mãe na remota Positano.
– Nós três somos membros da Sociedade dos Dilettanti, Srta. Blair. Por ser mulher, sua mãe não podia participar. Vez ou outra, porém, nós lhe fazíamos uma visita para prestar nossa homenagem – explicou o Sr. Whitmarsh. – Considerando o conhecimento dela em letras românicas, não é de surpreender que encontre tantos dos que a conheceram ao visitar as terras do antigo império.
– Também é membro da Sociedade, lorde Elliot?
– Entrei depois de voltar da minha viagem pelo continente.
Ela só tinha 18 anos quando a mãe morreu, por isso ainda não chegara a frequentar os salões e jantares em que Artemis recebia acadêmicos e artistas. Porém, ali estavam, diante dela, alguns integrantes do círculo de amizades de sua mãe, mesmo que talvez pertencessem ao círculo mais distante.
Phaedra teria que descobrir se algum daqueles homens tinha percebido ou ouvido falar no homem que recebera as últimas afeições de Artemis.
Phaedra Blair estava aliviada por ela e a signora Roviale não serem as únicas mulheres na festa. A Sra. Whitmarsh desceu do quarto logo.
Phaedra entendeu de imediato que a Sra. Whitmarsh não tinha uma mente tão aberta quanto a do marido. Não falava muito, parecia mais um passarinho pálido, entretanto tinha um rosto tão expressivo que era possível adivinhar seus pensamentos. Ao perceber que Phaedra e lorde Elliot tinham chegado juntos, a Sra. Whitmarsh deu um sorrisinho superficial e lançou para a signora Roviale um sutil olhar de desdém. Depois, resignada, se recolheu a sua silenciosa desaprovação da companhia de mulheres perdidas.
Naquela noite, ao jantarem ao ar livre na varanda, lorde Elliot teve a elegância de incluir a Sra. Whitmarsh na conversa sobre a sociedade londrina, na certeza de que isso lhe agradaria. Phaedra permitiu que os cavalheiros a cobrissem de conselhos sobre as maravilhas da Antiguidade que ela não poderia deixar de visitar.
– A senhorita tem que ir aos sítios de Paestum – exortou Matthias. – Rothwell, ordeno que a leve até lá. Não entendo esses ingleses que percorrem confeitarias e bordéis em Pompeia e ignoram alguns dos mais belos templos gregos do mundo que há no entorno.
– Se a Srta. Blair desejar, iremos visitar os templos – disse lorde Elliot.
Matthias pareceu muito um acadêmico naquele momento. Com o cabelo branco despenteado, o maxilar cortando o ar e o nariz aquilino empinado, ele entoava a lição como se ela fosse uma universitária, algo que nunca lhe permitiram, por ser mulher.
– É por isso que estou aqui, Srta. Blair. Rothwell e Whitmarsh admiram os romanos, mas meu foco é mais antigo. Esta terra foi colônia dos gregos quando Roma ainda era uma cidadezinha com cinco cabeças de gado. Depois de ver os sítios de Paestum, a senhorita entenderá a superioridade do pensamento grego.
– Se isso não exigir que minha visita se prolongue por muito tempo, talvez eu aceite seu conselho.
Após o jantar, a signora Roviale levou as mulheres para longe da varanda, deixando os homens a discutir e debater sobre a Antiguidade. Phaedra não gostaria de manter uma conversa forçada com a crítica Sra. Whitmarsh. Assim, alegou cansaço e se isentou de mais obrigações sociais.
Uma criada a conduziu ao quarto. Quadrado e branco, com o mesmo piso de mármore visto por toda a mansão, tinha janelas grandes que davam para um terraço estreito que se estendia acima dos arcos da varanda principal. Alguém já tinha desfeito suas malas e guardado as roupas em um armário de madeira escura. Havia uma jarra de água na bancada para lavar o rosto e as mãos. Era de cerâmica, com flores vermelhas e folhas azuis. Cores semelhantes decoravam os azulejos em volta da lareira e o peitoril de uma janela.
Phaedra abriu as portas duplas que davam para o terraço de modo que a brisa do mar e os últimos raios do crepúsculo entrassem. Sons da varanda chegavam até ela: Matthias em tom professoral e Elliot rindo, assim como o ruído de conversa. Ela se perguntou se sua mãe algum dia realmente fora aceita naquelas discussões masculinas. Quando os Dilettanti a prestigiavam, era sempre uma relação de homens com uma mulher, com tudo o que isso implicava?
Cadeiras foram arrastadas e despedidas foram feitas. O silêncio tomou a mansão. Ela se levantou a fim de se preparar para dormir. Começava a soltar os fechos do vestido quando um ruído mínimo do lado de fora chamou sua atenção. Um feixe de luz dourada atravessou o terraço e alcançou a noite. Ela foi até lá e espiou.
Lorde Elliot estava de pé na outra extremidade do terraço, em mangas de camisa e colete. Phaedra tinha certeza de não haver feito barulho, porém ele olhou na direção dela como se tivesse feito.
– Estava imaginando se Matthias a teria acomodado neste quarto – disse Elliot.
Ela caminhou até o piso de terracota lá fora. A luz vinha de outro conjunto de portas ao lado do dela. O terraço era compartilhado por dois quartos.
– Parece que nosso anfitrião entendeu errado – disse ela.
– Possivelmente. No entanto, se for para dividir um terraço com alguém, prefiro você à Sra. Whitmarsh.
Ela arriscou se afastar um pouco mais, contudo permaneceu do próprio lado no espaço comum. Da balaustrada de pedra podia-se ver o mar, que agora brilhava lá embaixo com milhões de pequenos reflexos de estrelas.
– O Sr. Whitmarsh disse que os Dilettanti faziam homenagens a minha mãe. Fico feliz de saber que a capacidade dela era reconhecida.
– Um homem honesto teria que admitir o brilhantismo dela. É claro que havia outros menos honestos que diminuíam isso.
– É claro. Você a conheceu?
– Ainda estava na universidade quando ela faleceu. Ouvi falar nela e a vi na cidade, contudo não estava em posição de visitá-la.
– O que achava dela?
Ele se virou e descansou o quadril na balaustrada, olhando para a noite na direção dela. Phaedra desejou que ele não parecesse tão lindo e sedutor. Desejou que a luz se apagasse para que seu rosto ficasse no escuro.
– Fui criado em uma casa de homens e meu pai não compreendia bem as mulheres. Então, saber da sua mãe foi uma revelação. Os colegiais falavam muito dela. Alguns se apaixonavam por ela, outros a achavam irreal, mas sem dúvida ela os fazia questionar a ordem das coisas. Quanto a mim, eu a achava bonita, interessante, inteligente e provavelmente perigosa.
– Acho que ela era perigosa. Se o mundo fosse cheio de Artemis Blairs, os homens não poderiam continuar a ser o que são. Todos teriam que questionar a ordem das coisas, como você.
– Era o que me passava pela cabeça, entretanto eu era um garoto na época e não gostava de perigos reais. Tive que conhecer a filha dela para entender essa parte.
Foi a vez dela de rir.
– Dificilmente eu poderia representar um perigo para você.
– Você se engana, como eu me enganei. O perigo não vem de você.
Não, não vinha. Isso ficara evidente aquela noite. Um poder fluía dele, em impulsos viris. Isso não a surpreendia nem a assustava. Porém, a forma como seus próprios instintos femininos reagiam, sim.
– Não me culpe por suas piores inclinações, lorde Elliot.
– Elas não parecem estar entre as ruins, que dirá as piores, querida Phaedra. Ao contrário, elas me parecem naturais, inevitáveis e até necessárias.
Sua voz baixa e segura lançava cordas de veludo que a amarravam. O coração dela foi parar na boca e sua pulsação acelerou. Ele não se mexeu. Não se aproximou nem um centímetro, contudo pareceu estar ao seu lado, correndo a mão por seu corpo todo.
– Quero você.
O tom calmo e descontraído agitou o sangue dela como a brisa agitava seu cabelo.
– Quero-a sem resistências ao prazer e implorando por mim. Quero-a nua e tremendo e despida de suas...
– Basta. Se é isso o que pensa das mulheres...
– Só de você, querida dama. Você lança um desafio a cada homem que vê. Não se surpreenda se um deles o aceitar.
– Como ousa...
– Ah, sim, eu ouso. Estou a ponto de ousar neste exato momento. Você sabe disso e ainda assim está aqui. Se não quisesse que eu ousasse, nunca teria saído por aquela porta.
Ela abriu a boca para negar, mas as palavras lhe faltaram.
Com um sorriso vago, ele se afastou da balaustrada. O coração dela deu um salto e suas pernas fraquejaram.
– Esse perigo que incita em mim a excita.
Elliot andou em direção à luz do próprio quarto.
– Quem está zumbindo em volta de quem agora, Srta. Blair?
– Um nome estranho para se dar a uma filha, Phaedra – ponderou Matthias em voz alta.
Era a manhã seguinte e ele e Elliot tomavam café na varanda. Lá embaixo, Positano despertava após o nascer do sol.
– Duvido que haja outra mulher com esse nome na Inglaterra, considerando a referência – acrescentou Matthias. – É muito típico de Artemis Blair decidir que a fonte não importa e valorizar sua exclusividade.
Levando em conta que a Phaedra da mitologia teve um caso com o enteado, era mesmo uma escolha estranha. Elliot duvidava que a crença da Srta. Blair e da mãe no amor livre fosse tão longe assim.
– Acho que ela escolheu o nome pela sonoridade. É um belo nome – disse Elliot.
– Eu poderia pensar em uns cinco ou seis melhores. Não, seu descuido por este primeiro dever maternal sugere que ela era indiferente a essa parte da vida.
– Você falava bem dela na época em que fui seu aluno e a Srta. Blair a idolatra. Vamos calar as observações que ela possa ouvir.
– Ela ainda está deitada e não vai ouvir minhas alusões à falta de impulsos femininos de sua mãe, entretanto sua repreensão faz sentido.
De fato, ela ainda estava na cama, dormindo profundamente. Elliot tinha ido até lá e espiado antes de descer. As portas do quarto dela ainda estavam abertas, como uma forma de contradizer as últimas palavras dele. Veja como você não é nem um pouco perigoso para mim. Sua honra e a lei me protegem do pior e meu autocontrole cuidará do resto.
Ele vira um cabelo cor de cobre espalhado pelo travesseiro e uma pele alva enroscada nos lençóis. Uma perna linda e esguia se alongava sobre a roupa de cama. A tentação de entrar lá só para ficar observando-a o tomou, assim como o aborrecimento por vê-la dormindo tão profundamente, algo que ele não tinha conseguido fazer.
Nos últimos tempos, andava pensando nela demais. Ficando com a cabeça nas nuvens por muito tempo. Desejando demais. Achava que a companhia dos amigos e as obrigações do trabalho diminuiriam a importância da presença dela e assim ele voltaria a mente para algo mais normal.
– Está vivendo como um rei aqui, Greenwood – disse, para se distrair das imagens de Phaedra tão etereamente erótica em seu repouso. – As melhorias desde a minha última visita são visíveis.
Matthias ficou radiante.
– Suponho que esteja falando da casa e não da minha companheira, apesar de eu não saber ao certo dizer qual me agrada mais. Trazer as pedras até aqui foi um inferno, mas valeu a pena. Você deveria se juntar a mim, Rothwell. Compre uma mansão antiga e veja como seu dinheiro inglês pode render nesta costa.
– Ele rende porque o lugar é tão inacessível que é preciso navegar milhas até chegar a uma cidadezinha que fica logo ali atrás da montanha. Preciso da vida urbana com mais frequência do que duas vezes ao ano. Contudo, se está feliz em seu isolamento, fico satisfeito por você.
– Não estou nem um pouco isolado. Sempre tenho companhia. Os amigos vêm da Inglaterra, de Roma, de Nápoles e até de Pompeia. Recebi o superintendente do município no mês passado. Ele não se incomodou de subir a montanha em lombo de burro.
– Gostaria que me desse uma carta de apresentação – pediu Elliot. – Quero ver tudo o que escavaram nos últimos anos, não só as atrações abertas para visitantes.
Matthias levantou a sobrancelha, curioso.
– Quer ver os afrescos reveladores das delícias noturnas? A Srta. Blair não vai poder entrar, por mais que eu peça.
– Vou pesquisar outros assuntos. Antes de partir, gostaria que me concedesse alguns minutos para discutirmos o rumo que meu trabalho está tomando.
– Está combinado, então. Amanhã cedo nos trancaremos em meu escritório para falar sobre isso. Sinto falta de dar aulas. Depois me lembro de quão limitados muitos de meus alunos eram e a saudade vai embora.
– Brincar de professor e aluno vai ser muito útil. Vai clarear meus pensamentos. Ah, estou obrigado como cavalheiro a dizer que creio que você tenha entendido mal minha amizade com a Srta. Blair.
– É mesmo? Que pena!
Naquele momento, a dama em questão se juntou a eles. Com seu vestido preto esvoaçante e o cabelo solto, fazia pensar numa linda feiticeira celta. Matthias a convidou para se sentar à mesa. Serviu-lhe café e ficou atrapalhado, o que revelava quanto a companhia dela o provocava.
– Espero que tenha dormido bem em minha humilde casa, Srta. Blair.
– Sua casa é tudo, menos humilde, e dormi muito bem. O som e a brisa do mar são muito relaxantes – assegurou Phaedra, e então virou a cadeira para olhar a cidade. – O que estão fazendo lá embaixo? O que é aquela coisa vermelha perto da água?
– Ah, deve ser o carro para a procissão. Eles devem estar pintando-o. Daqui a três dias é a festa de San Giovanni, São João Batista. É uma grande festa religiosa por aqui. Nenhum barco sai para pescar nesse dia.
– Vai haver uma procissão?
– Uma procissão, uma missa e uma festa. Entre outros rituais, eles colhem nozes nas montanhas para fazer óleo.
– Interessante – disse ela. – Coincide com o solstício. Deve ser outro exemplo de festa pagã da qual os cristãos se apropriaram.
– A Srta. Blair está alcançando uma reputação em estudos mitológicos comparável à da mãe dela em letras românicas – informou Elliot. – Ela publicou um livro sobre o assunto que é muito benquisto.
– Que louvável!
Matthias conseguira falar de forma a diminuir o feito, apesar de admirá-lo.
– Esta data em comum é uma coincidência – continuou ele. – O deus do sol não era uma figura de destaque nas mitologias grega e romana. Apolo é associado a ele, mas o próprio sol, Hélio, desempenha um papel menor. Talvez por haver tanto sol por estas terras, não tenha sido preciso apaziguar esse deus.
– Há muito sol no Egito e, ainda assim, seu deus sol reinava supremo – contrapôs Elliot. – Acho que a Srta. Blair está certa sobre a festa de San Giovanni.
– Talvez – disse Matthias. – E o simbolismo das nozes, o que seria?
Phaedra riu.
– Vou pensar em uma resposta antes de partir, já que o senhor está disposto a ser flexível em suas opiniões.
– Para uma mulher bonita, posso ser completamente flexível, senhorita Phaedra. É meu maior defeito.
Ele olhou para fora da varanda. Um homem se aproximava, vindo por um caminho do norte.
– Eis Whitmarsh, de volta de sua caminhada matinal. Prometi mostrar-lhe um novo tesouro que encontrei. Gostaria de ver minha humilde e querida coleção de artefatos, Srta. Blair?
– Com certeza, Sr. Greenwood.
Ela aceitou sua mão para se levantar. Whitmarsh se juntou a eles ao entrarem na casa.
Elliot estava curioso para ver se Phaedra conseguiria manter a pose de indiferença em relação a ele que assumira nessa manhã. Ela nem sequer enrubescera. Não ficara agitada. Havia notado sua presença de forma indiferente e segura de si. Sua atitude só fez provocar o lado mais obscuro do desejo que o atormentava.
Esse lado agora lhe dizia que ele deveria tê-la seduzido no terraço na noite anterior, como desejara. A ideia fazia mais sentido a cada minuto que passava.
CONTINUA
Um homem que comete um crime precisa encobrir seus rastros, mesmo que eles sejam deixados pelos melhores sapatos que o dinheiro poderia comprar.
Para encobrir os seus, lorde Elliot Rothwell retornou à casa de sua família, em Londres, e se juntou às pessoas recém-chegadas para o baile promovido por seu irmão. Agiu como se houvesse se ausentado por breves instantes para tomar um pouco de ar naquela gloriosa e agradável noite de maio.
Ao cruzar o limiar da porta, começou a cumprimentar os presentes. Belo e alto, o irmão mais novo do quarto marquês de Easterbrook – e também o Rothwell considerado mais amistoso e normal – distribuiu sorrisos a todos, alguns bastante calorosos a certas damas.
Quinze minutos depois, tão suavemente quanto voltara à festa, Elliot puxou assunto com Lady Falrith. Retomou uma conversa que deixara em suspenso duas horas antes e elogiou a dama com tanto tato que ela se esqueceu de que ele havia se ausentado. Em questão de minutos, Lady Falrith parou de se dar conta da passagem do tempo.
Enquanto jogava seus encantos em Lady Falrith, Elliot varria o salão com os olhos à procura do irmão. Não Hayden, que, junto com a esposa, Alexia, era o anfitrião da noite. Estava em busca de Christian, o marquês de Easterbrook.
Os olhares dos dois não se cruzaram, mas o retorno de Elliot ao baile foi notado por Christian. O mais velho se afastou de um círculo de lordes no fundo da sala e caminhou para a porta.
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Elliot dançou uma valsa com Lady Falrith antes de continuar a missão da noite. Fez isso como penitência por estar usando a dama e como um agradecimento sem palavras por sua ajuda involuntária. A noção de tempo de Lady Falrith poderia ser bastante vaga e sua memória, um tanto benevolente. De manhã, ela acreditaria que Elliot havia lhe dispensado atenção a noite inteira e que tinha flertado com ela. Sua autoconfiança seria útil caso algo desagradável acontecesse em relação às atividades de Elliot na cidade naquela noite.
Finda a valsa, ele de novo pediu licença. Ao contrário de Christian, que seguira solitário e direto para a porta, Elliot caminhou pelo salão distribuindo cumprimentos e conversando com todos, até chegar à nova cunhada.
– Está tudo indo bem, não acha? – perguntou ela, seu olhar percorrendo o espaço em busca de confirmação.
– É um triunfo, Alexia.
E, para ela, era mesmo. Um triunfo da personalidade e do temperamento. E talvez um triunfo do amor.
Alexia não era o tipo de mulher que a sociedade esperaria que pudesse se casar com Hayden. Não tinha família nem fortuna. Era tão sensata que nunca aprendera a dissimular, que dirá flertar. Porém, naquela noite ela era a anfitriã no lar de um marquês, com seu cabelo escuro impecavelmente penteado como ditava a última moda e usando roupas igualmente elegantes. A órfã pobre se casara com um homem que a amava como nunca amara antes.
Elliot acreditava que aquele casamento daria certo. Alexia cuidaria para que isso acontecesse. A história já provara que o amor era uma emoção perigosa para os homens da família Rothwell. Contudo a sensata e prática Alexia saberia usar o amor para controlar o perigo. Elliot suspeitava que ela já dominara a fera várias vezes.
Ele se uniu a ela na admiração do sucesso da noite. Em um canto distante, uma mulher pequena de pele muito clara era o centro das atenções. Um penteado adornado de plumas em abundância valorizava seu cabelo louro. Ao mesmo tempo, ela se mantinha vigilante na atenção que uma bela jovem recebia dos rapazes ali por perto.
– O triunfo é seu, Alexia, no entanto, creio que minha tia pretende levar o troféu desta temporada de caça.
– É compreensível a felicidade de sua tia Henrietta por apresentar a filha à sociedade. Dois nobres vinham fazendo galanteios a Caroline nos últimos tempos. Mas ela está irritada comigo hoje porque não convidei um deles para o baile, apesar de ela haver ordenado que eu o fizesse.
Elliot estava pouco interessado nos motivos de irritação da tia. Na lista de convidados, entretanto, tinha todo o interesse.
– Não vi a Srta. Blair, Alexia. Nenhum vestido preto. Nenhum cabelo solto. Hayden a proibiu de convidá-la?
– De jeito nenhum. Phaedra está no exterior. Ela embarcou há cerca de quinze dias.
Ele não queria parecer curioso demais, mas...
– No exterior, você disse?
Os olhos violeta dela se suavizaram, divertindo-se. Voltou toda a sua atenção para ele, o que, considerando o assunto em pauta, não era algo que ele desejasse.
– Primeiro, Nápoles, depois, uma excursão ao sul. Eu avisei a ela que você costuma dizer que não é muito sensato visitar a península Itálica no calor do verão, mas ela queria investigar os rituais e festividades da estação.
Alexia inclinou a cabeça como se fosse confidenciar um segredo.
– Acredito que o falecimento do pai a afetou mais do que ela admite. O último encontro que tiveram foi muito emotivo. Phaedra ficou bastante abalada. Acho que fez a viagem para se animar um pouco.
Ele não duvidava de que se encontrar com o pai em seu leito de morte fosse algo bastante emotivo. Ele mesmo ficara muito consternado ao perder o pai. Nessa noite, porém, estava mais interessado no paradeiro da Srta. Blair e em assuntos discutidos com o pai dela antes da despedida final.
– Se souber onde ela vai se hospedar em Nápoles, posso fazer-lhe uma visita quando eu for, caso ela ainda esteja por lá.
– Ela deixou o endereço do local onde pretendia ficar. Foi indicação de um amigo. Se Phaedra ainda não tiver voltado quando você for, ficarei feliz se puder visitá-la. A independência dela às vezes beira o descuido, e isso me preocupa.
Elliot duvidava de que Phaedra Blair gostasse de ter alguém preocupando-se com ela. Mas Alexia se preocupava de qualquer forma.
– Ai, meu Deus! – murmurou Alexia.
Elliot se virou e viu o motivo do suspiro da cunhada. Henrietta vinha na direção deles, com suas plumas esvoaçantes e seus olhos sonhadores e brilhantes lampejando de tanta determinação.
– Acho que ela está atrás de você – sussurrou Alexia. – Fuja enquanto é tempo ou ela vai pegá-lo para reclamar. Easterbrook permitiu que eu recepcionasse os convidados do baile sem o consentimento dela. Henrietta acredita que o fato de morar nesta casa a torna sua dona.
Elliot era mestre em sair à francesa. Quando a tia alcançou seu destino, ele já se fora havia muito tempo.
Depois de pegar um atalho pelo corredor dos criados e dar uma corrida subindo as escadas dos fundos, Elliot se aproximou dos aposentos de Christian. Entrou na sala de estar e encontrou o irmão esticado em uma cadeira no canto.
O olhar penetrante que Christian lhe lançou deixou claro que sua mente não estava nem de longe tão relaxada quanto o corpo.
– Não encontrei – disse Elliot, respondendo à pergunta que aqueles olhos escuros faziam. – Se estiver na casa ou no escritório dele, está muito bem escondido.
Christian expirou com força. O som que fez demonstrava seu aborrecimento. O assunto em questão vinha cerceando sua liberdade de passar os dias fazendo o que bem entendesse. Elliot não fazia ideia de quais atividades seriam essas. Na verdade, ninguém fazia.
– Ele deve ter queimado tudo ao saber que estava à beira da morte – sugeriu Elliot.
– Merris Langton demonstrava ter uma personalidade tal que é improvável que pensasse em poupar os outros, mesmo à beira da morte.
Christian enfiou um dedo por baixo de sua gravata atada com perfeição e deu um puxão para soltá-la. Sua aparência estava impecável naquela noite, tudo nele demonstrava se tratar de um lorde. Os tecidos de suas vestimentas exibiam a qualidade superior em cada fio. Contudo o gesto ao desatar a gravata mostrava seu desconforto em relação à formalidade da noite e o longo cabelo escuro preso em um rabo de cavalo indicava seu lado excêntrico.
Elliot imaginou que o irmão estaria louco para se desvencilhar daqueles símbolos formais da civilização e se refestelar no robe exótico que sempre usava. O mais comum era encontrá-lo descalço em seus aposentos, não usando meias de seda e sapatos. No momento, entretanto, as únicas indicações de seu jeito informal em casa eram a sobrecasaca desabotoada e a forma lânguida como seu corpo alto se moldava ao forro da cadeira.
– Você verificou se havia tábuas soltas no piso ou outros esconderijos? – perguntou Christian.
– Cheguei a arriscar ser descoberto. Permaneci por tempo de mais nos dois prédios e um guarda estava passando quando saí do escritório no centro financeiro. Estava escuro, não havia luz perto da porta, mas...
Sua descrição da aventura sugeria mais receio do que ele de fato tivera. Elliot acreditava que, em certas circunstâncias, não havia opção a não ser infringir a lei. Só nunca esperara reagir de forma tão fria e indiferente quando se visse numa dessas situações.
– Se alguém perguntar, você ficou no baile a noite toda – disse Christian. – Langton possuía uma pequena editora que publica textos revolucionários. Também era um homem com certo gosto pela chantagem, como descobrimos. Foi uma pena ele ter morrido antes que eu pudesse pagar-lhe. Agora o manuscrito de Richard Drury está sabe lá Deus onde e sua mentira sórdida sobre nosso pai ainda pode vir a público.
– Vou garantir que isso não aconteça.
– Você acha que alguém pode ter pegado o manuscrito antes de você? É provável que eu não tenha sido a única pessoa que Langton abordou.
– Não vi indícios de que alguém já tivesse mexido nas coisas dele. Nem mesmo seu advogado ou testamenteiro. Ele acabou de ser enterrado; foi esta tarde. Não acho que o manuscrito estivesse nem na casa nem no escritório quando ele morreu.
– Esse é um obstáculo muito inconveniente.
– Inconveniente, mas não intransponível. Vou descobrir o manuscrito e o destruirei, se necessário.
A atenção de Christian focou nele.
– Você fala com muita confiança. Sabe onde está o maldito manuscrito, não sabe?
– Faço ideia. Se estiver certo, vamos acabar com isso em breve. Mas pode haver custos para você.
– Pois pagarei. Richard Drury foi membro do Parlamento e, apesar de suas ideias extremistas, um intelectual respeitado. Se suas memórias incluírem tal acusação contra meu pai, muitas pessoas vão acreditar nele.
Vão acreditar porque a acusação reforça o que já creem ser verdade.
Elliot não verbalizou a resposta, mas aquela ideia rondava sua cabeça desde que soubera que Merris Langton planejava publicar as memórias de Richard Drury. O livro incluiria segredos e intrigas que repercutiriam mal sobre a reputação de muitos poderosos, tanto do passado quanto do presente. A acusação que supostamente existia contra o pai deles combinava bem demais com o que a sociedade já pressupunha sobre seu casamento.
Porém, a sociedade estava errada em relação à maior parte do caso. O pai lhe explicara isso em um momento em que os homens não mentem.
Você era o favorito dela. Ela o queria para si e eu permiti, já que você era o caçula. Era um alívio vê-la às vezes se lembrar de que era mãe. Só que agora estou morrendo e mal o conheço. Não espero amor ou pesar de você, mas não vou deixar que pense que sou um monstro, como é provável que ela tenha dito.
– Onde você acha que o manuscrito está? Mantenha-me informado de cada passo, Elliot. Se não estiver fazendo progressos, cuidarei de tudo sozinho.
Só não estava claro como Christian faria isso. Essa incerteza levara Elliot a assumir a tarefa. Seu irmão podia ser cruel ao silenciar ecos do passado.
– Apesar de não ter achado o manuscrito, descobri documentos financeiros no escritório de Langton. A editora está em apuros. Os documentos referentes à propriedade dela foram de grande valia. Richard Drury foi sócio desde o início. Sem dúvida foi esse o motivo pelo qual Langton recebeu suas memórias.
Christian achou isso interessante.
– Teremos que abordar o advogado de Langton e ver quem vai ficar com tudo agora.
– Os documentos indicam que a parte de Drury foi deixada para a única filha. Portanto, ainda há alguém vivo para lidar com o assunto. E provavelmente foi cúmplice no esquema de chantagem desde o início.
– Única filha? Maldição!
Christian apoiou a cabeça no encosto da cadeira, fechou os olhos e emitiu um resmungo exasperado.
– Não me diga que é Phaedra Blair. Que inferno!
– Sim, Phaedra Blair.
Christian xingou novamente.
– É bem do estilo do Sr. Drury, com suas ideias radicais e vida não convencional, deixar para uma mulher, sua filha bastarda, a sociedade num negócio – afirmou, depois desviou o olhar para baixo e prosseguiu: – É claro, ela deve ficar feliz com o dinheiro se a editora estiver em apuros. Talvez até agradeça por ter um motivo para não publicar as memórias do pai. Com certeza os textos abordam assuntos pessoais sobre ela e a mãe.
– É possível.
Mas Elliot não acreditava que as negociações seriam tão simples assim. A Srta. Blair era uma complicação inoportuna. Ela poderia ver na publicação das memórias e seus segredos uma possibilidade de ganhar um bom dinheiro e salvar a editora. Ou, pior, poderia acreditar que seus ideais de justiça social seriam fortalecidos quando ela revelasse o calcanhar de aquiles da sociedade culta.
– O livro dela foi publicado por Langton, não? Está na biblioteca aqui, em algum lugar. Confesso que nunca o li. Não tenho muito interesse em mitologia e folclore, que dirá em estudos que misturam ambos – confessou Christian.
– Ouvi dizer que a base teórica é mais do que respeitável.
Elliot dava a mão à palmatória, quando era o caso.
– Ela herdou a inteligência dos pais, junto com a indiferença pelas convenções sociais e pelas regras de conduta.
– Então, nas atuais circunstâncias, nada do que lhe foi legado é boa notícia para nós.
Christian se levantou, abotoou o casaco e verificou se o colarinho estava arrumado. Ia voltar ao baile.
– É melhor não contar a Hayden sobre isso. Ele é muito protetor em relação à esposa, e a Srta. Blair é amiga dela. Seria melhor que eles continuassem na ignorância, para o caso de você ser obrigado a agir mais rispidamente.
– A Srta. Blair zarpou para Nápoles há duas semanas. Farei a transação com ela antes que Alexia tenha oportunidade de vê-la.
– Vai segui-la até lá para isso?
– Eu pretendia ir a Pompeia no outono, de qualquer forma. Quero estudar as recentes escavações para meu próximo livro. Só vou antecipar a viagem.
Andaram lado a lado até a escada. A cada degrau, os acordes musicais iam ficando cada vez mais altos e o burburinho de vozes enchia os espaços majestosos. Ao descerem para a alegre turba, Elliot observou a expressão distante e distraída do irmão.
– Não se preocupe, Christian. Vou me certificar de que a acusação contra nosso pai nunca seja publicada.
O rápido sorriso de Christian não deixou sua expressão mais leve.
– Não duvido de suas habilidades ou de sua determinação. Não era sobre isso que estava pensando neste exato momento.
– Então era sobre o quê?
– Estava pensando em Phaedra Blair e imaginando se existe um homem na face da Terra que consiga, como você disse, fazer transações com ela.
Elliot seguia no escuro, iluminando o caminho com a chama da pequena lamparina que carregava.
Os convidados tinham ido embora e os criados estavam dormindo. Hayden e Alexia provavelmente gozavam das delícias do leito conjugal em sua casa na Hill Street. Christian ainda devia estar acordado, mas não deixaria seus aposentos pelos próximos dias.
A luz fraca se refletia nas molduras douradas na galeria. A lua lançava um pouco mais de luminosidade através dos janelões que vazavam outra parede. Elliot parou na frente de dois retratos. Não tinha descido no intuito de ir àquele cômodo, mas seu objetivo tinha tudo a ver com o homem e a mulher imortalizados naquelas imagens.
O artista tinha usado fundos semelhantes para os dois quadros, como se uma pintura desse continuidade à outra. Era bom ver seus pais juntos assim, duas metades de um todo, mesmo que a unidade implícita fosse mentira. Podia contar nos dedos o número de vezes que ao menos vira os dois no mesmo ambiente.
Não vou deixar que pense que sou um monstro, como é provável que ela tenha dito.
Seu pai se enganara nessa avaliação. Exceto por um único desabafo, a mãe nunca falara com ele sobre a separação e seus motivos. Ela quase não falava nada nas horas que passava com Elliot na biblioteca em Aylesbury.
O medo que sentira do pai vinha dele mesmo, não viera da mãe. Mas apreciara os raros momentos de atenção que recebera daquele pai que parecia não se lembrar de que tinha três filhos, não apenas dois.
Continuou sua caminhada para a biblioteca pensando na longa conversa que tivera com o pai, a última e única da vida inteira. Aprendera verdades importantes naquele dia, sobre seres humanos e paixões, sobre orgulho e alma e sobre a forma como uma criança pode não enxergar direito o mundo à sua volta.
Tinha chegado ao fim dessa conversa já sem medo. Após aquelas confidências, sentira-se como filho de seu pai pela primeira vez na vida.
Correu a lamparina pelas lombadas de couro dos livros na biblioteca. Seguiu para a estante do canto, buscando a prateleira mais baixa. Depois da morte da mãe, havia trazido para ali os livros pessoais dela, os que ele a vira lendo em seu exílio em Aylesbury.
Não sabia por que trouxera aqueles livros para Londres. Talvez assim uma parte dela permanecesse onde a família costumava se reunir. Seguira esse impulso muito antes da conversa com o pai, um ato de rebeldia na tentativa de finalmente pôr fim à separação dela de suas vidas.
Ninguém nunca notara o acréscimo desses livros às centenas de volumes. Bem embaixo, em um canto obscuro, nem o fato de suas encadernações não combinarem com as dos outros tinha importância.
Passou o dedo por um grupo de obras não encadernadas. Finas e pequenas, eram as brochuras que pertenceram à mãe. Retirou-as da estante, espalhou-as pelo chão e aproximou a lamparina de seus títulos.
Viu o que queria. Um ensaio contra o casamento, escrito trinta anos antes por uma famosa intelectual. A autora vivera de acordo com as próprias crenças. Chegara a recusar uma proposta de casamento do amor de sua vida, Richard Drury, mesmo estando grávida.
Ele carregou a brochura e a lamparina até a estante onde Easterbrook arrumara as novas aquisições da biblioteca. Pegou uma dissertação sobre mitologia que ainda exalava cheiro de couro novo.
Levou os dois livros para seu quarto e começou a lê-los. Estava se preparando para enfrentar Phaedra Blair.
CAPÍTULO 2
– Signora, não acho que eu deva pagar por estes cômodos se nem mesmo quero usá-los.
Phaedra conseguiu expressar sua objeção juntando seus conhecimentos de latim aos poucos termos que aprendera do dialeto napolitano. Esperava que, ainda que as palavras não fossem suficientes, seu tom comunicasse seu desacordo em relação à conta que a signora Cirillo lhe apresentara.
Recebeu uma resposta longa e raivosa, despejada de forma igualmente eloquente. A signora Cirillo não se importava se Phaedra tinha ficado nos cômodos contra sua vontade. Nem gostava de ter guardas reais posicionados do lado de fora de sua hospedaria modesta porém respeitável. Queria ser paga e tivera a ousadia de acrescentar um valor referente ao incômodo que os guardas representavam para os outros hóspedes.
Apesar de tentada a dizer à mulher que mandasse aquela conta para o rei, Phaedra se controlou e foi buscar as moedas no quarto.
Fora mesmo um erro gastar uma semana naquela cidade antes de partir para as ruínas. Se sua reclusão durasse muito tempo, não teria dinheiro para comprar a passagem de volta para a Inglaterra, que dirá continuar sua missão por ali. A ideia era fazer uma viagem curta ao exterior. Não viera a passeio, afinal. Estava lá por um motivo e tinha assuntos urgentes a tratar quando voltasse para casa.
Amansada por mais uma semana, a signora Cirillo foi embora. Phaedra voltou para onde estava sua bagagem e refletiu sobre a situação. Procurou em sua valise e encontrou um xale preto. Desfez o nó que havia em uma de suas pontas, soltando o objeto escondido nele.
Uma joia grande caiu em seu colo e seus matizes brilharam na pouca luz do quarto. Pequenas imagens finamente entalhadas se destacavam em branco-perolado contra o fundo vermelho-escuro. Retratavam uma cena mitológica do deus Baco e seu séquito.
Fora o objeto mais caro que a mãe lhe deixara ao morrer. Para garantir o futuro de minha filha, deixo-lhe meu único objeto de valor, meu camafeu de ágata, uma antiguidade de Pompeia, ela havia acrescentado à mão ao testamento.
Phaedra nunca tinha pensado muito sobre aquele aditamento nos seis anos que se passaram desde a morte da mãe. Conservava com carinho aquela peça, assim como tudo o que lembrava a brilhante e extraordinária Artemis Blair. O valor da joia a deixava mais tranquila em relação a seu futuro financeiro, era bem verdade, mas ela esperava nunca ter que vendê-la. Agora, no entanto, a frase belamente escrita pela mãe levantava perguntas que exigiam respostas.
Amarrou o camafeu de volta no xale, guardou-o e retornou para a sala de estar. Abriu as persianas do janelão que dava para oeste. A baía pareceu muito azul a distância e a ilha de Ischia podia ser avistada em meio à névoa longínqua.
Uma brisa marinha penetrou no cômodo, esvoaçando alguns de seus cachos. A voz do guarda também chegou até ela. Phaedra debruçou-se na janela do terceiro pavimento para ver com quem ele conversava.
Viu alguém de cabelos escuros bem diante do capacete de metal e da imponente bainha da espada do guarda. O cabelo tinha um corte da última moda e se movia de forma romântica ao soprar da brisa. Pertencia a um homem bem mais alto do que o guarda, de ombros largos e que parecia usar uma sobrecasaca cara. As botas eram do tipo visto nos pés mais elegantes de Londres. A julgar pelos trajes, tratava-se de um cavalheiro inglês.
Ela apurou o ouvido para escutar a conversa. Sentiu-se surpreendentemente reconfortada por haver alguém de seu país ali, mesmo que só estivesse pedindo instruções de como andar pela cidade nas ruas mais escondidas do Bairro Espanhol.
Ela considerou a hipótese de chamá-lo e pedir ajuda. Não tinha certeza se os ingleses ali, em Nápoles, sabiam que ela fora presa. Mas também duvidava de que dessem a mínima caso soubessem. Os que a conheciam não aprovavam seu comportamento nem queriam sua companhia. Phaedra normalmente também não apreciava a companhia deles, mas sua inabilidade de se mesclar à sociedade inglesa ali tinha lhe criado problemas muito antes de seu inesperado encarceramento.
As coisas pareciam não ir bem para o inglês: os gestos do guarda deixavam claro que ele se desculpava respeitosamente. Estou cumprindo meu dever. Eu colaboraria se pudesse, mas...
O inglês começou a se afastar. Caminhou para o outro lado da calçada e parou. Olhou para cima, franzindo de leve as sobrancelhas perfeitas. Seus olhos escuros alertas percorreram a fachada do prédio.
Phaedra sentiu o coração ficar mais leve – e não só porque o homem tinha um rosto que faria a pulsação de qualquer mulher acelerar. Ela o conhecia. Era o famoso historiador lorde Elliot Rothwell que estava lá embaixo. Alexia dissera que ele visitaria Nápoles no outono, contudo parecia que ele antecipara a viagem.
Ela se inclinou mais para fora da janela e acenou. Lorde Elliot respondeu com um leve movimento de cabeça. Ela levou um dedo aos lábios e apontou para o guarda. Depois gesticulou indicando os fundos do prédio.
Lorde Elliot se afastou fingindo estudar a arquitetura das construções erguidas ao longo da rua. Phaedra fechou a persiana e correu para o outro lado do apartamento. Abriu a janela e olhou para o pequeno jardim embaixo.
Lorde Elliot levou um tempo para chegar lá. Por fim, ela o viu entrar pela extremidade oposta, vindo pelo portão que dava para a ruela fétida que separava os imóveis. Ele seguiu sem nenhuma hesitação. Caminhou na direção dela, alto e confiante, como um homem acostumado a fazer o que bem entendia. Mesmo que a natureza não o houvesse agraciado com um rosto tão bonito e angular, só seu jeito relaxado de andar e seus modos seguros já causariam forte impressão.
Ela ficou tão feliz por ver alguém conhecido que nem se importou por aqueles olhos escuros a avaliarem tão minuciosamente. Percebera um olhar semelhante por sobre o sorriso manso de lorde Elliot quando se conheceram, no casamento de Alexia. Era a reação de um homem que a achava vagamente interessante, mesmo desaprovando sua aparência, suas crenças, sua história, sua família, seu... tudo.
– Srta. Blair, estou aliviado em vê-la bem-disposta e em boa forma.
Outro daqueles sorrisos mansos acompanhou a saudação.
– Também estou aliviada em vê-lo, lorde Elliot.
– Alexia me deu o nome de sua hospedaria e me pediu que viesse visitá-la, para verificar se não precisava de nada.
– Foi muita gentileza dela. Lamento não poder recebê-lo adequadamente, agora que chegou.
– Parece que não pode me receber de forma nenhuma.
Era bem característico dele fazer algumas gracinhas antes de entrar no assunto.
– Imagino que esteja surpreso, até mesmo chocado, por minha prisão.
– Sou um homem que raramente se choca e quase nunca se surpreende. Contudo admito estar um tanto curioso. A senhorita só está em Nápoles há poucas semanas. A maioria das pessoas levaria pelo menos um ano para acumular crimes suficientes para merecer tal punição.
Ele estava se divertindo com a situação? Naquelas circunstâncias, Phaedra achou a conversa inteligente de lorde Elliot bastante inadequada.
– Não houve crime nenhum, só um pequeno mal-entendido.
– Pequeno? Srta. Blair, há um membro da guarda real na sua porta.
– Não estou convencida de que foi o rei que o colocou lá. Um dos funcionários do tribunal fez isso comigo. Ele é um homenzinho abominável, com poder em demasia e pouca inteligência.
Lorde Elliot cruzou os braços, o que o fez parecer crítico e poderoso. Ela odiava quando os homens assumiam essa postura com ela. Era a personificação de tudo o que havia de errado com a metade masculina da humanidade.
– O guarda mencionou um duelo – disse lorde Elliot.
– Como é que eu iria adivinhar que esses homens fossem tão possessivos a ponto de tentarem se matar porque uma mulher conversou com...
– Espadas e adagas. O guarda disse que houve sangue.
– Marsilio é um jovem artista. Não passa de um garoto. Teimoso, porém muito gentil. Eu não fazia ideia de que iria interpretar erroneamente a nossa amizade a ponto de desafiar Pietro simplesmente porque passeei com ele às margens da baía.
– É lamentável para a senhorita que Marsilio, o garoto teimoso e gentil, seja parente do rei. Ele quase foi morto no duelo. Felizmente, o guarda disse que ele irá sobreviver.
– Ah, graças a Deus! Apesar de as pessoas exagerarem bastante por aqui. Pelo que entendi, ele não ficou muito ferido, ainda que qualquer ferimento possa se agravar neste clima. Fiquei muito pesarosa com o ocorrido. Eu disse isso. Expressei meu arrependimento e minhas desculpas falando bem devagar no meu idioma e também em latim, para ser bem entendida, mas o homenzinho intrometido, odioso e estúpido não me ouviu. Ele até me acusou de ser uma meretriz, o que passou de todas as medidas. Expliquei que nunca tirei nem um centavo de homem nenhum.
– A senhorita declarou sua virtude e honra ou disse ao homenzinho intrometido e estúpido que acha que as mulheres devem dispor de seu corpo livremente?
Ela não gostou nada do olhar profundo e sagaz dele ao expressar essa ousada insinuação. Se não estivesse em uma situação tão ridícula, Phaedra lhe diria que era, sim, uma mulher pouco convencional, mas isso não dava a ele o direito de ser rude. No momento, contudo a prudência tinha que falar mais alto.
– Expliquei minha crença no amor livre, o que é diferente de dispor do corpo livremente, lorde Elliot. Tentei instruí-lo. Ficaria feliz em fazer o mesmo pelo senhor, se algum dia tivermos um encontro mais oportuno.
– Que proposta tentadora, Srta. Blair. Contudo espero que as reflexões filosóficas tenham ficado esquecidas em sua cela. Seria melhor ter se declarado uma cortesã. Aqui se sabe tudo sobre esse assunto. Por outro lado, conceitos radicais sobre o amor livre, bem...
O gesto dele com as mãos disse tudo. O que esperava, mulher? Você vive fora das regras sociais e até a sua aparência convida a mal-entendidos.
Mais uma vez ela engoliu o que seu instinto lhe mandava dizer. Discutir só serviria para afastá-lo, e ela queria muito que ele ficasse um pouco mais. Não se dera conta da própria solidão ali e da tristeza que o isolamento lhe causava. Só ouvir o próprio idioma já era um alento.
– Acha que vão me soltar logo?
De novo o mesmo gesto com as mãos, só que agora acompanhado de um dar de ombros.
– Não há constituição aqui. Nem se julgam os casos observando precedentes, como na Inglaterra. Na verdade, não existe um direito codificado, é uma monarquia à moda antiga. A senhorita tanto pode ser libertada amanhã como ser mandada de volta à Inglaterra, ou levada a julgamento, ou permanecer nesses aposentos por anos, ao bel-prazer do rei.
– Anos! Isso seria uma barbaridade.
– Acho que não vai chegar a esse ponto. Contudo pode levar alguns meses até que seu homenzinho odioso e estúpido perca o interesse no caso.
Ele olhou para a fachada do prédio em frente e depois para o portão do jardim.
– Srta. Blair, não posso mais ficar escondido neste jardim, ou também correria o risco de me tornar hóspede dos guardas do rei. Tomarei providências para que lhe mandem comida e deixarei uma quantia em dinheiro para pagar pelo apartamento, pois com certeza continuarão a lhe cobrar o aluguel. Também vou pedir que um adido inglês venha, de tempos em tempos, verificar se está tudo bem.
Meu Deus, ele estava indo embora! Talvez ela envelhecesse naqueles cômodos, ou até morresse de fome quando o dinheiro acabasse.
Ela não era o tipo de mulher que dependesse de um homem para sustentá-la ou protegê-la. Além do mais, lorde Elliot não havia conquistado seu apreço durante a conversa. Contudo estar diante de um futuro incerto a ajudou a superar sua aversão natural a pedir ajuda àquele homem.
– Lorde Elliot – chamou, fazendo-o parar após ele ter dado três passos na direção do portão do jardim. – Lorde Elliot, os adidos ingleses não estão interessados em minha situação. Pergunto-me se o senhor consideraria a hipótese de interceder em meu favor. Tenho certeza de que o homenzinho odioso ficaria muito impressionado com suas ligações familiares e sua fama como historiador. Se pedisse em meu nome, talvez ajudasse.
A expressão dele foi simpática, porém nada encorajadora.
– Sou o caçula. Minha posição é bem menos importante aqui e minha fama pouco conta. Esse tribunal não tem motivo algum para me conceder favores.
– Estou certa de que será mais bem recebido do que eu jamais conseguiria. Pelo menos, conhece o idioma deles. Vi-o conversar com o guarda.
– Não sou fluente o bastante no dialeto para defendê-la bem.
– Ficaria grata por qualquer tentativa de sua parte.
Que fim levara o cavalheirismo? Não acreditava nele, mas gente do tipo de Elliot Rothwell, sim. Ela era uma donzela em perigo e esse cavalheiro deveria se prontificar a ajudá-la, não ficar parado no meio do jardim, com aquele jeito de quem adoraria nunca tê-la avistado na janela.
Ele refletiu um distante, analisando o pedido. Ela sentiu seu sorriso congelar até virar uma careta suplicante.
– Não estamos na Inglaterra, Srta. Blair. Mesmo que eu tenha êxito, talvez a senhorita não aprecie as condições impostas por eles em troca de sua liberdade.
– Vou me esforçar e acatar quaisquer condições, ainda que reze para que não me ponham em um navio de volta para a Inglaterra de imediato. Vim até aqui e preciso, na verdade quero, visitar as escavações de Pompeia. Antes de ir embora. É um antigo sonho meu.
Ele parou para pensar por um longo tempo. Seu suspiro deixou claro que sua decisão ia contra o próprio bom senso.
– Prometi a Alexia que cuidaria do seu bem-estar, então farei o que puder. Encontrar o homem que ordenou sua detenção pode não ser tarefa fácil. Qual é o nome dele? Preferia não ter que andar pelos corredores do tribunal perguntando por um homenzinho odioso e estúpido. Ele poderia ouvir a descrição, o que não nos ajudaria em nada. Além disso, ela provavelmente se aplica a muitos outros funcionários da Justiça.
Ele havia aceitado seu pedido não por um desejo genuíno de ajudá-la, mas para cumprir o que considerava seu dever. Mas Phaedra Blair estava desesperada demais para entrar em detalhes a respeito de suas motivações.
– O nome dele é Gentile Sansoni. Que cara é essa? O senhor o conhece?
– Já ouvi falar dele. Sua autodefesa caiu em ouvidos moucos, Srta. Blair. Sansoni não fala inglês nem latim. Ele é um legítimo napolitano, o que não é boa notícia.
Certamente Phaedra Blair chamara a atenção de Gentile Sansoni, capitão da polícia secreta do rei. É claro que, com seu longo cabelo ruivo esvoaçando ao sol, solto e descoberto, ela chamaria a atenção de toda a Nápoles.
Elliot ouvira falar sobre o algoz da Srta. Blair durante sua última visita à cidade, fazia três anos. Sansoni fizera sua fama a custa de sangue, em 1820, quando o breve governo republicano fora violentamente vencido e a monarquia, restaurada.
Diziam que Sansoni era responsável pelo desaparecimento inesperado de carbonários, ou constitucionalistas, e também que abusava de sua autoridade em setores que tinham pouco a ver com política. Não era o tipo de homem que se impressionaria com um cavalheiro inglês, e Elliot também não acreditava que encarasse de forma positiva uma tentativa sua de recorrer a seus superiores para mudar a decisão tomada pelo capitão.
Elliot não poderia negociar sobre o livro do pai da Srta. Blair enquanto ela permanecesse presa, por isso aceitara de imediato tentar libertá-la. Só tinha fingido hesitar para fazer com que ela se sentisse em dívida.
Também se deixara levar pela desprezível tentação de fazer com que aquela defensora declarada da independência feminina implorasse pela ajuda de um homem. De alguma forma, pelo simples fato de existir, a Srta. Blair conseguia fazer com que um homem se sentisse desafiado. Os instintos dele tinham reagido à altura.
Contudo o dever falara mais alto e, no dia seguinte, ele se dispôs a fazer o que estivesse a seu alcance por ela. Sansoni não se deixaria impressionar por cavalheiros ingleses, mas talvez pelo menos ouvisse um capitão da Marinha britânica. A corte de Nápoles ainda reverenciava a memória de Nelson, e Elliot suspeitava que Sansoni veria o herói inglês quase como um irmão que um dia, muito tempo antes do rápido governo republicano, ajudara a impedir outra tentativa de golpe contra o rei.
Sempre havia navios britânicos no porto de Nápoles, e Elliot foi visitar um cujo capitão ele conhecia. Dois dias depois de se encontrar com a Srta. Blair, Elliot levou Augustus Cornell – que vestia seu traje militar completo e impecável – ao longo de quilômetros de corredores de palácios até encontrarem o covil de Gentile Sansoni.
Como era apropriado a um funcionário da Justiça que trabalhava nas sombras, a sala de Sansoni se localizava nos fundos do prédio e num andar tão baixo que, a caminho dela, as escadas passavam de fino mármore para simples travertino. Apesar da localização, Sansoni a dotara de móveis suntuosos o suficiente para parecer importante. Arrumara um local grande o bastante para suas ambições, mas o teto baixo e a falta de janelas davam ao lugar um aspecto cavernoso.
– Pode deixar que eu falo – disse Cornell, com seu rosto suave e pálido que expressava a formalidade dos homens de sua patente. – Já tive que tratar com ele antes e todo cuidado é pouco.
– Sabe falar a língua?
O napolitano era um dialeto bem diferente daquele falado em Roma ou em Florença. Mesmo tendo muito de latim, que Elliot conhecia, o lorde não saberia o bastante dele para não ficar em desvantagem ao usá-lo ali.
– Esperemos que o suficiente. Fique aqui. Agirei como mediador, física e simbolicamente.
Elliot ficou perto da porta, como ordenado. Cornell atravessou a sala e se aproximou do homenzinho moreno sentado na larga mesa na outra extremidade. A descrição que a Srta. Blair fizera de Sansoni fora perfeita. Ele parecia mesmo repugnante e odioso e, naquele momento, muito desconfiado. Suas sobrancelhas negras encobriam os olhos de águia amendoados, tão comuns naquela região.
Sansoni ofereceu vinho, fizeram um brinde e depois entabularam uma conversa. Por fim, Cornell caminhou de volta até Elliot.
– Há uma complicação – disse ele, baixo. – Esse amigo da Srta. Blair, Marsilio, o que levou a pior no duelo, é parente distante do rei e recebe os favores da família real por conta de seus dotes artísticos. Também é um rapaz com quem acho que Sansoni espera casar uma de suas parentas, consolidando assim sua própria posição. Mas esse sonho é improvável de se realizar devido à origem humilde de Sansoni. Ainda assim, ele fez do bem-estar do rapaz sua missão pessoal.
O capitão aproximou o rosto do de Elliot para poder falar ainda mais baixo.
– Também creio que o rei não tenha conhecimento desse duelo. Mencionei várias vezes o título nobre do seu irmão e suspeito que Sansoni só me recebeu por temer que um marquês britânico possa levar o assunto diretamente ao rei.
Um marquês com certeza poderia, mas isso demoraria meses.
– Pode conseguir a libertação da Srta. Blair?
– Duvido muito. O duelo não foi tudo. O rei possui uma coleção de arte e o acesso a uma de suas salas é proibido a mulheres, pois contém imagens antigas de natureza carnal. A Srta. Blair convenceu o jovem Marsilio a deixá-la entrar lá. Agora é acusada de invasão de domicílio e de gostar de arte licenciosa. Sansoni também disse que ela é uma cortesã. Apesar de Nápoles ser infame por permitir que as mulheres exerçam atividades desse tipo, a Srta. Blair se esgueirou por lugares que a corte frequenta...
– Ela não é cortesã. Ponho a minha mão no fogo. Ela é incomum, é verdade. Excêntrica. Uma livre-pensadora, porém honesta. É claro que Sansoni sabe que pessoas assim existem. Explique isso a ele.
– A função desse homem é deter livres-pensadores e ele a cumpre com deleite. Ainda assim, vou tentar novamente.
Mais uma vez Cornell atravessou a sala. A conversa foi mais breve dessa vez. Os olhos negros de Sansoni buscaram Elliot e o examinaram dos pés à cabeça.
Cornell voltou.
– Ele falou mais rápido dessa vez e não compreendi tudo. Mas perguntou com que autoridade você e sua família se intrometem neste caso. Exige saber se você tem parentesco ou alguma outra relação com ela.
Elliot não tinha qualquer relação com ela, nem autoridade sobre o caso, porém não poderia admitir isso.
– Diga-lhe que ela é uma boa amiga da família. Easterbrook a recebe como a uma irmã.
Essa mentira deslavada nunca seria refutada. Christian faria o mesmo naquelas circunstâncias.
– Diga que tentamos exercer nosso controle sobre ela, contudo ela fez essa viagem inesperada a Nápoles para fugir da nossa influência. Vim para cuidar de seu bem-estar e posso garantir que não vai haver mais problemas. Se ele der a entender que aceita suborno, diga-lhe que pagarei para tê-la de volta.
A conversa de Cornell com Sansoni ficou mais animada dessa vez. O napolitano gesticulava muito, numa rápida sucessão. Quando Cornell voltou com seu relatório, parecia um pouco preocupado.
– Temo que tenha havido um mal-entendido. E que esclarecê-lo possa trazer outras complicações. Culpo minha falta de fluência no idioma por essa infeliz reviravolta nas negociações – disse ele.
– Mas ele parece bem mais calmo e amigável. Qual foi o mal-entendido?
Cornell enrubesceu.
– Não sei exatamente como, mas ele concluiu que o senhor é noivo da Srta. Blair e que ela veio para cá fugindo de um casamento arranjado que sua família aceitou devido ao polpudo dote da moça. Ele acha que você a seguiu para levá-la de volta.
– Um mal-entendido e tanto! Como isso aconteceu?
– Não tenho certeza. Devo ter usado as palavras “família”, “irmã”, “dinheiro” e “fuga” de forma confusa e dado a entender mais do que pretendia.
Cornell deu um suspiro e já voltava para a sala, para tentar corrigir seu erro, quando Elliot o pegou pelo braço, detendo-o.
– Ele está disposto a libertá-la se mantivermos esse mal-entendido?
– Sim, mas...
– Tem certeza de que é isso que ele tem em mente?
– Não posso garantir que tenha entendido direito a interpretação dele, mas...
– Então não vamos corrigir nada.
– Não estou certo de que isso seja honroso.
– Você não disse inverdades e não tem certeza do mal-entendido – assegurou Elliot, pondo a mão no ombro de Cornell. – Aceitarei isso como um presente da Providência divina e deixarei como está. Ele não é um homem que tenha contato com a comunidade britânica daqui. Se entendeu mal, nunca descobrirá a verdade.
Cornell se deixou convencer.
– Se você está tão determinado, então que assim seja. Venha comigo. Ele quer a sua palavra de que vai controlar a Srta. Blair enquanto ela permanecer neste reino. Ela deve ficar sob sua autoridade. Será responsabilizado por qualquer outro problema que ela crie. Está preparado para prestar juramento?
Elliot assentiu. Atravessou a caverna com o capitão Cornell e assumiu a guarda da Srta. Blair, concedida pelo odioso e repugnante Gentile Sansoni.
CAPÍTULO 3
A signora Cirillo chamou à porta e Phaedra se levantou da escrivaninha para atendê-la. Se aquela mulher queria mais dinheiro tão cedo...
Uma visão maravilhosa a aguardava quando abriu a porta de seus aposentos. A signora Cirillo não estava sozinha. Lorde Elliot estava ao seu lado.
Phaedra manteve a compostura, apesar da vontade de gritar de alegria. Se ele estava lá, só podia significar uma coisa.
– Lorde Elliot, entre, por favor. Grazie, signora.
A signora Cirillo arqueou as sobrancelhas por sobre seus olhos felinos escuros ao ser dispensada. Phaedra fez-lhe ver que não era bem-vinda.
– Está trazendo boas-novas, assim espero, lorde Elliot – disse Phaedra quando ficaram sozinhos.
– Sua prisão domiciliar está encerrada, Srta. Blair. Temos que agradecer ao capitão Cornell, do Euryalus. Ele falou com Sansoni em nosso favor.
– Graças a Deus pela Marinha britânica.
Phaedra correu para a janela e abriu as persianas. O guarda tinha ido embora.
– Nem acredito que vou poder dar uma volta às margens da baía hoje à noite.
Correu de volta até lorde Elliott e lhe deu um abraço.
– Sou imensamente grata.
Ele sorriu gentilmente quando ela o largou. Parecia entender sua animação e perdoar sua exuberância. Se seu olhar tinha se abrandado um pouco depois do abraço impulsivo, era compreensível. Afinal, ele era homem.
Estava magnífico, vestido em uma sobrecasaca marrom feita sob medida e botas de cano alto. O sorriso contribuía bastante para suavizar a dureza das feições dos Rothwells. Ao contrário de seus irmãos mais velhos, lorde Elliot era considerado alguém muito sorridente, o que, ao que tudo indicava, era pura verdade.
Ele olhou em volta da sala de estar e o olhar se deteve na escrivaninha.
– Temo ter interrompido sua carta.
– Uma interrupção muito bem-vinda. Estava escrevendo para Alexia, desabafando meu infortúnio, na esperança de que ao menos conseguisse jogar a carta quando o senhor voltasse aqui.
– Por que não termina a carta logo e lhe diz que está tudo bem? Posso entregá-la a Cornell. Ele vai zarpar em dois dias para Portsmouth e poderá postar a carta para Londres de lá.
– Que ideia esplêndida, se não me achar rude por rabiscar umas linhas a mais.
– Nem um pouco, Srta. Blair. Nem um pouco.
Ela se sentou e acrescentou rapidamente um parágrafo para contar a Alexia que tudo fora resolvido a contento, graças ao cunhado da amiga. Dobrou, endereçou, selou o papel e ficou com ele na mão. Lorde Elliot puxou a carta de seus dedos com delicadeza e a colocou no bolso da sobrecasaca.
Em seguida, retomou sua avaliação da sala de estar e da vista.
– A senhorita veio atender a porta. Onde está sua camareira?
– Não tenho camareira, lorde Elliot. Nem criados. Nem em Londres.
– Isso é por causa de outra crença filosófica?
– É uma decisão prática. Um tio me deixou uma renda respeitável, contudo prefiro gastá-la de outras formas.
– Muito sensato de sua parte. Contudo o fato de não ter criados é um inconveniente.
– De jeito nenhum.
Ela deu meia-volta e as dobras de seu vestido preto, assim com o cabelo comprido, esvoaçaram.
– Um vestido como este não exige uma criada para ser colocado e meu cabelo só precisa de uma boa escovadela.
– Não estava pensando nas suas vestimentas. Preciso lhe falar dos desdobramentos do caso e, sem uma criada conosco...
Estava preocupado com a reputação dela por ficar sozinha com um homem. Que encantador.
– Lorde Elliot, é impossível me comprometer, porque estou acima dessas regras sociais estúpidas. Além disso, trata-se de um encontro de negócios, não? Em situações assim, nossa privacidade não é apenas permitida, como necessária.
Ela duvidava que ele aceitasse seu raciocínio, por mais lógico que fosse. Homens como ele nunca aceitavam. Contudo, para seu espanto, ele não a refutou.
– A senhorita está certa. Prossigamos, então. Não quer se sentar? Isso vai levar um tempo.
Ele pareceu muito sério de repente. Sério, grave e... severo. Seu gesto ao apontar o sofá pareceu acompanhar uma ordem, não a sugestão que fizera tão educadamente. A tentação de permanecer de pé a atiçou. Sentou-se, mas apenas porque ele fora o responsável por obter sua libertação.
Elliot se acomodou em uma cadeira diante dela e então lhe deu uma boa olhada, como se a medisse dos pés à cabeça. Foi como se nunca a tivesse visto e tentasse interpretar a imagem peculiar que ela apresentava.
Phaedra não podia afastar da mente a impressão de que, de certa forma, nunca o tinha visto antes também. Não havia nada mais da graça suave do lorde agora, apenas um longo olhar avaliador e invasivo que a deixava desconfortável. Uma reação muito feminina retumbava dentro dela.
Isso era a pior coisa em relação aos homens bonitos. A beleza deles deixava a mulher em desvantagem quando eles lhe dirigiam sua atenção. Esse homem era muito bonito. Era também muito masculino na maioria das situações e sutilmente másculo nas piores delas. Naquele exato momento, parecia estar tentando, de maneira deliberada, deixá-la perturbada. Não o fazia por motivos carnais, disso Phaedra tinha certeza. Porém, ele emanava sedução também e o sangue dela reagia a isso.
Proteger, possuir, conquistar – tudo eram facetas do mesmo instinto primitivo, não? Um homem não poderia seguir uma dessas inclinações sem despertar as outras dentro de si, e uma mulher era facilmente subjugada se não tomasse cuidado. Ela se perguntou que parte ancestral da personalidade masculina o motivava naquele momento.
– Alexia me pediu para tomar conta da senhorita. Não menti ao lhe dizer isso. Contudo tive outros motivos para visitá-la e agora preciso tratar deles.
– Como só nos vimos uma vez, no casamento de Alexia, e muito rápido, não posso imaginar quais possam ser seus motivos.
– Acho que pode.
Agora ele a estava aborrecendo.
– Tenho certeza de que não posso.
O tom dele indicou que ela o aborrecera também:
– Srta. Blair, chegou aos meus ouvidos que a senhorita agora é sócia da editora de Merris Langton, tendo herdado a participação de seu pai no negócio.
– Essa informação não foi divulgada, lorde Elliot. Uma vez que os homens pressupõem que as mulheres não podem ter sucesso nos negócios e como muitos acreditam ser anormal até que uma mulher tente, decidi manter isso em sigilo, de forma que o preconceito não afete a empresa.
– Pretende ter uma participação ativa nela?
– Vou participar na seleção dos títulos a serem publicados, mas espero que o Sr. Langton continue a supervisionar as questões práticas. Gostaria de saber quem lhe contou isso. Se meu advogado foi indiscreto...
– Seu advogado é irrepreensível.
A atenção dele se desviou dela. Seus olhos ficaram meditativos, obscuros. O homem elegante e cosmopolita que escrevera um famoso livro de História antes de completar 23 anos agora estava distraído, absorto nos próprios pensamentos.
– Srta. Blair, lamento trazer-lhe algumas más notícias. Depois que a senhorita deixou Londres, Merris Langton faleceu da doença que o acometia. Ele foi enterrado dias antes de eu partir.
Ela temera que o Sr. Langton não chegasse a se recuperar; ainda assim, ficou surpresa ao ouvir a notícia de sua morte.
– De fato, são más notícias, lorde Elliot. Obrigada por me contar. Não o conhecia bem, contudo o falecimento de uma pessoa é sempre triste. Contava com ele para ajudar a manter a editora, mas parece que vou ter que dar um jeito sozinha.
– É tudo seu agora?
– Meu pai fundou a editora e a subsidiou desde sempre. Ele poderia passar sua parte a outra pessoa, entretanto a do Sr. Langton ficaria para o meu pai se ele morresse. Então, sim, acredito que seja tudo meu agora.
A distração dele desapareceu. Sua objetividade voltou. Fria.
– Antes da doença, Langton procurou meu irmão. Falou que publicaria as memórias do seu pai. Ofereceu-se para omitir vários parágrafos no manuscrito que tratavam da minha família se uma quantia significativa fosse paga a ele.
– Ele fez isso? Que horror! Estou chocada com essa traição para com os princípios de meu pai e peço desculpas sinceras por meu sócio.
Ela se levantou e começou a andar de um lado para outro, agitada com a revelação. Por educação, lorde Elliot se levantou também, mas ela o ignorou. Tentava compreender todas as implicações do esquema idiota do Sr. Langton. Aquilo poderia significar o fim da editora.
Ela conhecia bem a situação precária das finanças da empresa e, como proprietária, era responsável pelas dívidas não saldadas. Contava com as memórias do seu pai para quitá-las. Se o Sr. Langton comprometera a integridade dessa publicação, as pessoas talvez ficassem descrentes de todo o conteúdo do livro.
– Isso tudo é culpa de Harriette Wilson – disse ela, com sua perturbação agora beirando a raiva. – Ela estabeleceu um precedente infeliz ao pedir que seus amantes pagassem para ter os nomes retirados. Escrevi-lhe sobre isso, se quer saber. Disse a ela que era errado receber dinheiro para apagar trechos de biografias, que era só uma forma velada de chantagem. Ela só pensou no próprio bolso, é claro. Bem, eis o resultado da vida dependente que ela escolheu e da extravagância tola que pôs em prática.
Ela passou a andar com passos mais resolutos.
– Sem dúvida o Sr. Langton abordou outras pessoas também. Nunca imaginei que ele comprometeria a ética de nossa editora dessa forma.
– Srta. Blair, por favor, poupe-me do ultraje teatral. Minha família estava pronta para pagar a Langton. Vim procurá-la para dizer que pagaremos com prazer à senhorita no lugar dele.
Ultraje teatral? Ela parou de andar e o encarou.
– Lorde Elliot, espero tê-lo entendido mal. Está sugerindo que eu aceitaria seu dinheiro para suprimir partes das memórias de meu pai a seu bel-prazer?
– Esperamos que sim.
Ela se aproximou dele até estar perto o bastante para ver os pensamentos refletidos em seus olhos.
– Meu Deus, o senhor acha que eu tinha conhecimento de que o Sr. Langton fazia isso, não acha? Acredita que eu fui cúmplice.
Ele não respondeu. Só sustentou o olhar, visivelmente não acreditando no espanto dela.
Furiosa com as suposições dele e afrontada pelo insulto, ela se virou.
– Lorde Elliot, as memórias do meu pai vão ser publicadas tão logo eu chegue à Inglaterra. Cada frase delas. Foi seu último desejo, feito a mim em seu leito de morte. Eu nunca as editaria de forma a escolher as palavras dele que o mundo devesse ler. Fico muito grata por sua ajuda com o Sr. Sansoni, mas é melhor pararmos esta conversa por aqui. Se eu tivesse uma criada, ela lhe mostraria a saída. Como não tenho, o senhor pode encontrá-la sozinho.
Para deixar mais claro que o lorde estava dispensado, Phaedra se dirigiu ao quarto e fechou a porta.
Ainda não havia se recomposto quando a porta do quarto foi aberta e lorde Elliot entrou calmamente, fechando a porta atrás de si.
– Minha visita ainda não acabou e nossos negócios não estão concluídos, Srta. Blair.
– Como ousa? Este é o meu quarto, senhor.
Ele cruzou os braços e assumiu a atitude masculina e irritante de quem se considera no comando.
– Normalmente isso me impediria, entretanto a senhorita está acima de regras sociais estúpidas, como a que dita que eu não deveria entrar aqui, lembra?
Ela não considerava essa regra social tão estúpida. Tinha uma razão muito especial e primitiva de existir. Aquele era seu espaço mais privado, seu santuário. O clima foi se alterando à medida que Elliot olhava em volta, para o guarda-roupa onde suas vestimentas estavam arrumadas e a penteadeira que exibia seus objetos pessoais. Seu olhar percorreu a cama devagar e voltou para Phaedra.
Os pensamentos dele não ficaram tão ocultos quanto ele imaginou. Ela notou as mudanças sutis em sua expressão, na forma como a dureza que ele exibia se alterou, mesmo que ligeiramente. Os homens não conseguem ficar perto de uma cama e de uma mulher sem começar a devanear. Era uma maldição da natureza que eles carregavam.
Ela ficou irritada ao se pegar pensando na mesma coisa. A forma como ele acabara de insultá-la deveria ter sido suficiente para que aquela intimidade que começava a se infiltrar no quarto jamais existisse. O breve silêncio foi ficando cada vez mais pesado e cheio de uma excitação magnética que mexia com ela.
Uma imagem relampejou em sua mente: lorde Elliot olhando do alto para ela, seus rostos afastados por meros centímetros, seu cabelo escuro despenteado por motivos que nada tinham a ver com moda, seus pensamentos completamente desmascarados. Ela viu seus ombros nus e sentiu a pressão de seu corpo e a firme pegada de seu abraço na pele dela. Sentiu...
Phaedra se esforçou para afastar a imagem da cabeça, mas os olhos dele faiscaram, demonstrando que lera os pensamentos dela. Ele sabia por onde a mente dela andara, assim como ela conhecia os caminhos da dele.
Ele descruzou os braços. Phaedra pensou que ele fosse segurá-la e imaginou se não iria insultá-la ainda mais. Havia homens que a interpretavam erroneamente e, por ignorância, lhe faziam propostas, só que lorde Elliot não era estúpido. Seria uma ofensa cruel e deliberada se ele tentasse se aproveitar da tensão sexual que tinham percebido.
Ele desviou sua atenção dela, diluindo a intimidade, porém não a dissipando por completo. O orgulho de Phaedra foi poupado, ainda que, com isso, seu lado mais primitivo se ressentisse.
– O manuscrito está aqui? – perguntou ele. – A senhorita o trouxe?
– É claro que não. Por que faria isso?
Ele olhou para o guarda-roupa.
– Jura? Do contrário, terei que fazer uma busca.
– Juro, e não ouse fazer isso. O senhor não tem o direito de estar aqui.
– Na verdade, tenho sim, mas conversaremos depois.
O que isso queria dizer?
– Deixei-o em Londres, em um lugar muito seguro. Ele contém as memórias de meu pai, seus últimos desejos. Nunca seria descuidada a esse respeito.
– A senhorita o leu?
– É claro.
– Então sabe o que ele escreveu sobre a minha família. Quero que me fale disso agora. Suas palavras exatas, o melhor que se lembrar.
Não era um pedido, mas uma exigência. Sua arrogância dominadora estava rapidamente fazendo com que a gratidão de Phaedra desaparecesse.
– Lorde Elliot, o nome de sua família e o de Easterbrook não são mencionados no manuscrito.
Isso o surpreendeu. Sua severidade ficou abalada por tempo suficiente para que ela percebesse novamente o homem amigável e prestativo que entrara em seu apartamento. Não durou muito. Ele voltou a ficar distraído e meditativo, e sua mente ágil captou o que ela dissera.
– Srta. Blair, Merris Langton descreveu a meu irmão uma acusação específica contra meu pai. Há algo no manuscrito que, em sua opinião, poderia ser interpretado como uma referência a meus pais?
Ela queria que ele não tivesse feito a pergunta nesses termos.
– Há uma parte que pode ser interpretada assim, imagino eu.
– Por favor, descreva-a.
– Prefiro não descrever.
– Eu insisto. A senhorita vai me contar agora.
Sua voz, sua postura e sua expressão indicavam que nenhum argumento seria ouvido. Nunca antes na vida Phaedra tinha sido tão claramente coagida por um homem a fazer algo.
Talvez fosse melhor que ele e sua família ficassem avisados. A passagem em questão era uma entre várias nas memórias que a haviam feito hesitar.
– Meu pai descreve um jantar oferecido muitos anos antes de minha mãe morrer. Eles estavam recepcionando um jovem adido recém-chegado do Cabo. Meu pai queria saber as verdadeiras condições de vida lá. Esse rapaz bebeu demais e ficou embriagado. Acabou confidenciando algo que ocorreu em um regimento britânico na colônia.
A menção à colônia do Cabo atraiu a atenção de Elliot por completo. Ela se condoeu. Sempre tivera esperanças de que aquele rumor não fosse verdadeiro, mas...
– Prossiga, Srta. Blair.
– Ele disse que, enquanto esteve lá, um oficial britânico morreu. A causa da morte foi registrada como febre, contudo, na realidade, ele levou um tiro. Foi encontrado morto após sair para fazer a ronda. Chegaram a desconfiar do outro oficial que o acompanhava, só que não acharam provas. Em vez de contestarem o suspeito, optaram por usar uma causa mortis falsa.
Ele agora ocultava muito bem sua reação. O rosto estava impassível, como se talhado em pedra. Contudo seu silêncio foi se tornando terrível, carregado da raiva que emanava dele.
– Srta. Blair, se associou esse caso com a minha família, a senhorita deve saber do boato imoral de que meu pai teria enviado o suposto amante de minha mãe para assumir um posto na colônia do Cabo, onde morreu de febre.
Ela engoliu em seco.
– Creio que tenha ouvido algo a respeito em algum momento.
– Se a senhorita soube, muitos souberam. Nem Langton nem a senhorita tiveram qualquer dificuldade em juntar as referências e chegar a uma conclusão. Se a senhorita publicar essa parte, ficará bastante clara a insinuação de que meu pai pagou outro oficial para matar o amante da esposa. A ausência de nomes nas memórias não poupará a reputação de meu pai, e ele não pode se defender da sepultura.
– Não estou convencida...
– Droga, é exatamente o que acontecerá, e a senhorita sabe disso. Exijo que suprima esse trecho das memórias.
– Lorde Elliot, sou solidária em sua perturbação. De verdade. Contudo meu pai me encarregou de fazer com que suas memórias fossem publicadas e é meu dever fazê-lo. Pensei muito nisso. Se eu suprimir cada frase que possa ser interpretada como perigosa ou pouco lisonjeira a essa ou àquela pessoa, pouco vai restar.
Ele andou até ela e a olhou de cima com firmeza.
– Essa mentira não será publicada.
A determinação dele era palpável. Ele não precisava de expressões de raiva ou ameaças verbais para enfatizar o poder que usaria contra ela. Estava tudo ali, ao redor dela, junto com a tensão sexual que não abandonara o quarto, num clima carregado de todas as nuances daquele instinto obscuro.
– Se for mentira, pensarei em omitir – assegurou ela. – Se conseguir obter provas de que o homem morreu de febre ou se o convidado de meus pais desmentir a história, eu a suprimirei. Farei isso por Alexia, não pelo senhor ou por Easterbrook.
Essa declaração o aliviou. Um sorriso vagaroso se formou.
– Por Alexia? Que conveniente. Assim pode recuar sem me dar a vitória.
Elliot a entendia bem demais. Phaedra não dava a mínima importância para provas.
Olhou-a com gentileza. De repente pareceu inapropriado estarem tão próximos, uma proximidade que nascera num momento de fúria dele. Com a raiva saindo de cena, era a outra sensação que voltava a crescer.
Ele não recuou como deveria – e como as sobrancelhas erguidas de Phaedra pediam. Em vez disso, ajeitou uma mecha do cabelo dela e ficou olhando para aqueles fios vermelhos enquanto os enrolava com delicadeza entre os dedos.
– Seu pai incluiu o nome de algum desses homens, Srta. Blair? Do jovem adido do jantar ou do oficial suspeito?
Ele não a tocou, mas a brincadeira com o cabelo dela implicava coisas em que ela preferia nem pensar. O fato de estarem sozinhos num quarto, até mesmo o de terem se confrontado, demolira as formalidades que a protegeriam. O formigamento sutil que ele causava em seu couro cabeludo era tão delicioso que levava a pensar em outras excitações físicas.
Conquistar, possuir, proteger – ela não tinha dúvida de que ele estava preparado para ser implacável e brincar com mais do que o cabelo, se achasse que com isso obteria o que desejava. Também não acreditava em si mesma para vencer aquele desafio, se ele surgisse.
– O jovem adido que meus pais convidaram para jantar é Jonathan Merriweather.
Ele olhou nos olhos dela, desconfiado de novo.
– Merriweather hoje é assistente do embaixador britânico aqui, em Nápoles.
– Muito conveniente para o senhor.
A mão dele se moveu por entre os cabelos com mais firmeza. A brincadeira sutil se tornava controladora.
– A senhorita viajou até aqui para falar com ele? É por isso que está em Nápoles? Pretende adicionar notas a essas memórias e completá-las com os nomes que seu pai foi discreto ao omitir? O livro venderia mais ainda, e ouso dizer que o dinheiro resultante seria muito bem-vindo para sua editora.
Ela segurou o cabelo e o retirou de entre os dedos dele, determinada. Sua indignação a ajudou a ignorar a sensação daquela mão quente ao roçar na sua e a não dar importância ao modo como os olhos dele refletiram sua consciência do toque feminino.
– Agradeço a sugestão, mas espero que as memórias do meu pai caiam no gosto popular do jeito que são, sem acréscimos. De qualquer forma, não estou aqui com esse objetivo.
Era uma mentira deslavada, mas ela não sentiria remorso por confundir aquele homem. Seu interesse em preencher as lacunas das memórias do pai nada tinha a ver com a família Rothwell.
– Lorde Elliot, vim até aqui para visitar as escavações e as ruínas ao sul. Preciso me preparar para deixar a cidade de imediato e continuar minha viagem como planejei desde o início. Portanto, peço-lhe, mais uma vez, que parta.
– Sua viagem terá que ser adiada por uns poucos dias. Não posso permitir que vá agora.
Ela riu. A presunção do homem havia chegado ao ponto do ridículo.
– O que o senhor permitiria ou deixaria de permitir não é de meu interesse.
– É de interesse essencial para a senhorita. Eu a adverti de que sua libertação teria condições e a senhorita prometeu aceitá-las.
– O senhor não falou em condições ao chegar.
– Seu abraço apertado me distraiu.
Ela o encarou desconfiada.
– Quais são essas condições?
Ele olhou para baixo devagar, para seus cachos esvoaçantes – portanto, para boa parte do corpo dela. Phaedra achou ter notado um interesse possessivo, como se ele tivesse acabado de receber um presente e aquilatasse o valor.
– Gentile Sansoni só a libertaria se ficasse sob minha guarda. Tive que aceitar total responsabilidade pela senhorita e prometi controlar seu comportamento.
Um calor de fúria lhe subiu à cabeça. Agora entendia por que, de repente, lorde Elliot passara a se comportar de forma arrogante, fazendo exigências.
– Isso é intolerável. Nunca me submeti a um homem. Isso faria minha mãe se revirar no túmulo. Recuso-me a concordar com isso.
– Prefere enfrentar Sansoni? Podemos providenciar o embate.
A ameaça a deixou sem palavras.
Lorde Elliot não chegou a rir enquanto se dirigia para a porta, mas também não escondeu o fato de estar se divertindo muito com o dilema da moça.
– Viajaremos para Pompeia juntos, Srta. Blair, depois que eu falar com Merriweather. Até lá, está proibida de deixar esses aposentos sem minha companhia. Ah, e não haverá visitas de Marsilios nem de Pietros. Ficarei em apuros se a senhorita provocar mais algum duelo enquanto estiver sob minha autoridade. Fiz um juramento de controlá-la e espero poder contar com sua colaboração e obediência.
Autoridade? Controle? Obediência? Ela estava tão estupefata que ele se foi antes que ela recuperasse a voz para xingá-lo.
CAPÍTULO 4
A boa vontade da Srta. Blair em entrarem num acordo em relação às memórias do pai dela melhorou o humor de Elliot. Ele obteria a retratação necessária de Merriweather, colocaria a Srta. Blair no próximo navio para a Inglaterra e voltaria sua atenção para assuntos mais interessantes.
Merriweather colaboraria, com certeza. Ele, melhor do que ninguém, estava ciente de que a história de Drury sobre a morte do oficial era falsa. Além do mais, sua carreira seria prejudicada se o mundo inteiro soubesse que fora indiscreto ao se embebedar. Ele seria um aliado de lorde Elliot em seus esforços para convencer a Srta. Blair a cortar os trechos incriminadores.
Em uma hora, Elliot descobriu que a questão não seria resolvida tão facilmente. Um funcionário da missão diplomática britânica no Palazzo Calabritto lhe informou que Merriweather fora para o Chipre a serviço e não deveria estar de volta em menos de duas semanas.
Elliot voltou ao hotel e reorganizou alguns de seus planos. Conforme a tarde terminava e a temperatura ia ficando mais amena, ele pegou uma carruagem de aluguel e rumou para o Bairro Espanhol para visitar Phaedra Blair mais uma vez.
Seus olhos azuis chamejaram ao vê-lo na porta.
– O que deseja agora, lorde Elliot?
– A senhorita me disse que desejava caminhar às margens da baía esta noite. Estou aqui para acompanhá-la.
– Não preciso da sua companhia.
– Ou vai comigo ou não vai. Seria uma pena não gozar de sua liberdade, agora que a recuperou.
Ela franziu os lábios. A dúvida se refletiu em seus olhos.
– Muito bem, vamos lá.
Phaedra deu um passo adiante, esperando que ele lhe desse passagem.
– Esqueceu o seu chapéu, Srta. Blair. O sol ainda não se pôs e pode ser prejudicial à sua pele delicada. Tenho certeza de que preferiria evitar mais sardas em seu nariz, por mais charmosas que elas sejam.
A mão dela foi rápida para o nariz. Por um instante, a vaidade feminina venceu sua postura de indiferença a essas preocupações banais.
– O senhor é muito hábil em misturar críticas com falsos elogios.
– Os elogios não foram falsos. As sardas são adoravelmente femininas, mas ainda assim precisa de um chapéu. Vou esperar até que ponha um. A senhorita tem um chapéu, não?
– É claro.
Exasperada, ela deu meia-volta e seguiu na direção do quarto.
– Não me siga desta vez.
– Nunca entraria no quarto de uma dama duas vezes no mesmo dia. Assim como quatro danças em um baile, isso poderia ser mal interpretado.
– Nunca interpreto mal os homens, lorde Elliot. Eles são as criaturas mais transparentes que existem.
De fato, ele imaginava que eram, para ela. Não era uma moça inexperiente. Sabia por onde os pensamentos dele haviam vagueado quando estavam os dois de pé ao lado da cama. Seu cabelo solto lhe dava a aparência de uma mulher preparada para uma tarde de prazer.
Ela não reagira a ele com choque ou vergonha recatada. Não houvera a indignação de quem defende sua virtude. Ao contrário, ela só o encarara enquanto as possibilidades sensuais atiçavam a ambos. A expressão dela tinha sido a de quem reconhecia aquele impulso e suas possibilidades.
Ele nunca vivenciara nada parecido antes. Phaedra conseguia provocar e rejeitar sem dizer uma só palavra. Você me quer e pode ser que um dia eu o queira, mas não hoje. Talvez nunca. Ainda não decidi. Ela devia saber que seu comportamento estimulava o lado mais selvagem dos homens.
Phaedra voltou usando um chapéu de palhinha que era muito mais bonito do que ele teria imaginado. Sua aba em diagonal e as flores de seda brancas e azuis realçavam seus olhos e a pele clara. Seus cabelos longos e esvoaçantes, a falta total de maquiagem e as sardas lhe davam uma aparência fresca e campestre.
Porém, seu vestido comprometia a imagem. O tecido preto leve e sem enfeites a cobria do pescoço aos pés. Uma faixa rodeava a cintura, mas, afora isso, pouco se podia notar de suas formas sob o pano solto e volumoso.
O vestido provocava mais fantasias do que ela provavelmente imaginava. Provocava curiosidade quanto ao que dissera mais cedo. Não havia criadas para ajudá-la a se vestir. Não usava corpete nem espartilhos, e as formas gerais indicavam que o corpo tão livre embaixo do tecido valia a pena ser imaginado. Peito empinado, avaliou ele, de tamanho indeterminado, porém digno de nota, e quadril feminino o bastante para fazer com que a cintura parecesse bem fina. Alguns gestos e uns poucos ganchos e tudo seria revelado.
– Alexia o fez para mim – disse ela, ao notar sua admiração pelo chapéu. – Acho que ela tem esperanças de me mudar. Quanto a meu vestido, que o senhor está examinando de forma tão crítica, não espere que eu o troque. Não fui eu quem decidiu que o senhor teria de andar em público em companhia de uma mulher tão fora de moda.
– O vestido me convence ainda mais. Insisto em que cubra o cabelo, contudo não peço que abra mão de todos os símbolos com os quais desafia o mundo.
Ela ergueu o queixo e rumou para a porta.
– Se tiver juízo, não pedirá coisa nenhuma.
Barulho, gestos teatrais, toucados com plumas e sombrinhas coloridas. Riqueza digna de príncipes, pobreza abominável e o brilho das armaduras dos soldados.
O elegante passeio londrino era uma pálida imitação do que acontecia no final da tarde nas terras mais ao sul. O passeio que circundava a baía de Nápoles ficava apinhado de transeuntes. Aristocratas em vestidos e casacos da moda caminhavam em grupos entre os pobres que perambulavam nas proximidades da água. Comerciantes e suas esposas passeavam com os filhos.
A hora do passeio vespertino – aproveitada nas proximidades da baía ou nas piazzas das igrejas – servia a importantes objetivos na cidade, a julgar pelo modo como as moças casadoiras eram exibidas. Sua beleza jovem e morena brilhava entre os pais, que avaliavam criticamente, com semblantes sóbrios, os homens que olhavam duas vezes na direção delas.
Toda a Nápoles era uma ópera e Phaedra Blair não parecia tão estranha ali quanto poderia pretender. Ela estava razoavelmente apresentável, graças ao chapéu; ainda assim, Elliot notava a atenção que atraía com seu cabelo ao vento. Imaginou a reação que causara na primeira vez que estivera ali, com seus fios vermelhos esvoaçando em meio a um mar de castanho e preto. Londres era mais tolerante com o tipo de excentricidade que ela exibia.
– Falou com o Sr. Merriweather?
Eram as primeiras palavras que ela pronunciava desde que haviam saído do apartamento. Elliot não forçara uma conversa na carruagem. Não se importava com o silêncio. Passara um bom tempo calado, tendo a própria mente como única companhia. Gostava do contato social até certo ponto, mas apenas se houvesse horas de silêncio para contrabalançar as de ruído e conversas.
– Ele está fora em uma missão e só deve voltar em duas semanas, no mínimo.
Elliot se perguntou se ela já não saberia disso. Não estava convencido de que a Srta. Blair tivesse objetivos tão inocentes ao visitar a cidade. Se quisesse ver as ruínas, faria mais sentido vir em outra época do ano. Embarcar para lá em pleno calor do verão napolitano, quando sua editora passava por dificuldades, seu sócio estava doente e as memórias do pai esperavam preparação do original... Ele ainda suspeitava que interrogar Merriweather estivera entre os motivos que a levaram ali.
– Espero que não queira me fazer esperar quinze dias ou mais para ir a Pompeia.
– Decidi que visitaremos as ruínas enquanto o espero voltar.
Isso a apaziguou. Ela pareceu quase aliviada. Talvez tivesse vindo mesmo apenas a passeio.
– Na última primavera, Alexia me disse que o senhor estava escrevendo um livro novo, lorde Elliot. Sua visita a Pompeia está ligada a isso?
– Visitarei as novas escavações para saber o que foi descoberto nos últimos anos. Vou conversar com arqueólogos e pesquisar alguns temas para o livro.
– Alexia me disse que é um livro sobre assuntos quotidianos, sobre a forma como as pessoas viviam. Muito incomum. Normalmente, os livros de História descrevem as guerras, a política e os feitos dos grandes homens. Até o seu último foi sobre isso.
– Estou atento para o fato de que esse livro pode ser criticado por sua aparente falta de relevância. Porém o assunto me interessa e posso me dar ao luxo de me dedicar ao que gosto.
– Se acha que o estou criticando, está equivocado. Acredito que seu livro pode ser muito popular, não importa o que digam os acadêmicos. Ele deve vender muito bem.
– Não estou tão certo de que meu editor concorde com isso.
– Então, talvez deva achar outro. Ficaria honrada de publicá-lo se aturar a ideia de fazer negócios com uma mulher.
Ele riu da sua expressão sagaz. Essa editora poderia sobreviver muito bem, no final das contas, se a Srta. Blair mostrasse tamanho talento de bajular autores para atraí-los.
O humor dela havia melhorado desde o início do passeio. Talvez a luz suave do sol poente e a brisa refrescante fossem os motivos da mudança. O mais provável era que a Srta. Blair tivesse decidido que a raiva a atrapalharia a gozar sua recém-adquirida liberdade.
A alegria brilhava em seus olhos enquanto caminhavam, observavam os grupos de passantes, os barcos e as gaivotas. Ela sorria para lorde Elliot de uma forma cálida que poderia ser erroneamente interpretada como flerte. E não passava despercebido dele a forma como os homens a olhavam. Por si só, o cabelo ruivo solto já bastava para destacá-la, contudo a Srta. Blair chamaria atenção de qualquer forma.
Esses olhares também não passavam despercebidos a ela, que não os encorajava nem desestimulava. Também não lhes davam satisfação nem a insultavam, pelo que Elliot podia ver. Phaedra simplesmente seguia seu caminho, uma mulher diferente das outras mas muito confiante, com o tecido preto e leve do vestido a revelar mais do que se pretendia.
Sutilmente, ela projetava uma aura carregada daquele mesmo desafio que Elliot sentira no quarto, só que agora atraía todos os homens que a olhavam por mais tempo. Você me quer, só que nada vai acontecer entre nós, porque eu decidi assim.
Ela parou para comprar um pequeno buquê de flores de uma menina que as oferecia numa caixa. Elliot tentou pagar por elas, mas Phaedra afastou sua moeda e pagou com o próprio dinheiro. Continuou a andar, segurando perto do nariz as flores perfumadas.
– Lorde Elliot, gostaria de lhe fazer uma proposta.
Não seria a proposta que ele desejava, contudo seu corpo se enrijeceu de qualquer forma. As palavras dela tinham sido escolhidas de propósito para atiçá-lo e isso o deixou com raiva, porque funcionou.
Ele não deveria, só que não resistiu:
– Vi o que acontece aos homens que aceitam os termos de suas propostas, Srta. Blair, portanto prefiro declinar.
A expressão dela mudou.
– O que quer dizer?
– Ah, eu entendi erroneamente? Desculpe-me.
– O que o senhor quis dizer?
Ele deu de ombros.
– Pensei que fosse propor que me tornasse um de seus amigos. Uma dessas abelhas que ficam zumbindo em volta da rainha.
Sua pele branca enrubesceu e sua raiva deixou transparecer uma boa dose de consternação.
– O que sabe a respeito dos meus amigos?
– A senhorita pode desprezar a sociedade, mas ela está a par do seu comportamento. Todos sabem sobre a filha de Artemis Blair e como, a exemplo da mãe, ela se considera acima de todas as regras sociais estúpidas.
– Sua ignorância me espanta.
A raiva dela vencia a consternação.
– É muito típico o senhor interpretar mal minhas amizades e é por isso que nunca considerarei a hipótese de tornar meu amigo alguém como o senhor.
Ah, ela consideraria, sim. Até já havia considerado. As negociações começaram cedo naquele dia.
– Se fui rude, peço desculpas.
A expressão dela relaxou.
– No entanto...
As sobrancelhas dela se arquearam.
–... se a senhorita está acima de regras sociais idiotas, não há como eu ser rude, não concorda, Srta. Blair? Digo, no âmbito de suas crenças. A palavra “rude” se aplicaria apenas dentro do contexto das regras sociais, não estou certo? Nos próximos dias, a senhorita terá de me ajudar a perceber onde sua sujeição a tais regras começa e onde termina, assim não a interpretarei erroneamente de novo.
Mais uma vez aquela confiança presunçosa, aquele desafio, a saturou.
– Pode ter certeza de que farei isso, lorde Elliot.
A caminhada os levara até Riviera di Chiaia, às belas mansões com vista para a baía. A Srta. Blair enterrou seus pensamentos por trás de uma máscara de passividade e ficou admirando a beleza das construções.
– Lorde Elliot, é conveniente que tenha falado a respeito dos próximos dias e que tenha expressado sua desaprovação e desprezo com relação à minha pessoa. Minha proposta tem a ver com ambas as atitudes.
– Não desaprovo nem desprezo. Só decidi que devemos ter um entendimento correto quanto a uma pequena questão.
A mais importante de todas.
– O fato de interpretar erroneamente minhas amizades com outras pessoas e meu interesse pelo senhor indica que não nos daremos muito bem. Nem o senhor vai querer o peso de ter alguém que veio a passeio como companheira de viagem. Eu só iria atrapalhá-lo e seus estudos só atrasariam meus planos. Proponho que nos separemos assim que deixarmos Nápoles.
– Isso não é possível.
– Gentile Sansoni nunca saberá.
– A influência dele se estende para muito além das fronteiras desta cidade. Além disso, dei minha palavra, e essa é uma das tais regras sociais estúpidas que levo muito a sério.
– Senhor...
– Não, Srta. Blair. Partiremos juntos, daqui a dois dias, pela manhã. Vamos de barco primeiro para Positano e depois para Amalfi. De lá seguiremos viagem por terra.
– Quero ir para Pompeia imediatamente.
– O atraso será breve. Prometi visitar um amigo em Positano e ele me espera por estes dias, não depois. Se está a passeio, deve se alegrar com uns dias a mais visitando a costa ao sul. É espetacular.
Phaedra não parecia nem um pouco alegre. Ele imaginou que veria aquela perturbação constantemente nos olhos dela pelas próximas semanas.
Deram meia-volta para refazer o caminho e Elliot quase tropeçou em uma criança que os seguia. Grandes olhos negros olhavam para cima em uma esperança calada de que alguém a enxergasse entre tantas das mais pobres crianças da cidade. Ela não pediu nada, mas seu corpinho frágil vestido em andrajos implorou de forma pungente.
Ele enfiou a mão no bolso do colete. Quando a moeda surgiu, mais duas crianças apareceram ao lado da primeira. Outras foram atraídas por instinto para o inglês que não sabia parar de distribuir esmolas para as crianças pedintes de Nápoles.
Ele achou mais moedas. A Srta. Blair não pareceu com medo por estar cercada de pobres ávidos por moedas, como a maioria das mulheres ficaria. Ela tentou conversar com a primeira menina, a mão oculta em algum lugar do vestido, na altura do quadril.
Os dois adultos ficaram num mar de olhos negros e corpinhos morenos, distribuindo moedas até que todas tinham se acabado.
Voltaram para a carruagem sem outras discussões. Ela só falou mais uma vez antes de ser deixada de volta em seu apartamento.
– Partiremos daqui a dois dias pela manhã, como disse? Então nada me resta a não ser me preparar para a viagem.
A aparente submissão de Phaedra Blair não o convenceu. Elliot partiu para fazer seus próprios preparativos.
Phaedra tirou o camafeu do nó no xale. Envolveu-o em um lenço e colocou o embrulho dentro do bolso fundo da saia de seu vestido. Depois envolveu a cabeça com o xale e o amarrou debaixo do queixo.
Verificou a valise, conferindo mais uma vez as roupas e os objetos pessoais que tinha colocado nela. Orgulhava-se da falta de vaidade feminina, mas ainda a irritava ter tão poucas roupas para usar pela próxima semana.
Era tudo culpa de lorde Elliot. Qualquer um sabia que um juramento feito sob coação não contava. E, para ela, fazer um juramento para salvar uma mulher de um destino incerto se qualificava como coação. A insistência do lorde em manter sua palavra a perturbava. Tinha sido muito azar dela que a única pessoa disponível para ajudá-la fosse um homem com noções ultrapassadas de honra.
De jeito nenhum ela permitiria que ele os fizesse vítimas de sua mente pequena. Lorde Elliot não queria a companhia dela muito mais do que ela queria a dele. Só haveria problema se os dois permanecessem juntos.
Uma dessas abelhas que ficam zumbindo em volta da rainha. Ele era incapaz de entender as amizades honestas e sinceras que ela mantinha com alguns poucos e raros homens que pensavam como ela. Ficaria chocado ao descobrir que alguns homens conseguem controlar as forças primitivas de posse e domínio que causaram tanto sofrimento ao longo da história, em especial às mulheres. Na verdade, havia homens para quem a sensualidade não despertava a necessidade de conquistar, dominar e exigir submissão.
Bem, não cabia a ela lhe explicar. Além disso, seria um esforço em vão e exigiria que passasse mais tempo com ele.
Deixou um bilhete e algum dinheiro em sua mala para garantir que a signora Cirillo entendesse que ela voltaria logo para buscá-la. Depois se esgueirou do apartamento para o corredor escuro. Achou o caminho da escada.
Andando pé ante pé, envolta em negro, seguiu até o andar de baixo. Ainda na escuridão, foi tateando às cegas em busca do lance de degraus seguinte.
De repente as sombras se transformaram em corrimões, portas e paredes, como se alguém tivesse aberto as persianas para deixar a luz da lua entrar.
– Pietro não está à sua espera no cruzamento, Srta. Blair.
O coração dela parou de bater ao ouvir a voz tranquila atrás de si. Deu meia-volta. Lorde Elliot estava a pouca distância, em uma porta aberta que dava para o apartamento que ficava abaixo do dela. Estava sem camisa e descalço, como se estivesse dormindo e houvesse posto a calça às pressas para investigar o barulho. A luz fraca da lamparina do quarto o banhava em uma névoa dourada.
A presença daquele homem anunciava o fim de seu plano de fuga. Apesar de sua exasperação, que aumentava cada vez mais, Phaedra não pôde se furtar a apreciar aquele homem. Lorde Elliot era esguio, elegante e tinha ombros largos. Seu corpo possuía o retesamento jovial que abençoava os homens por tanto tempo na vida quanto permanecessem ativos. A luz fraca ressaltava os músculos rígidos do peito, do abdome e dos braços.
Ele deu dois passos, pegou a valise da mão de Phaedra e segurou seu braço, empurrando-a para o quarto dele. Depois fechou a porta.
– O que está fazendo aqui? – perguntou ela.
A luz da lamparina valorizava o peito musculoso e a pele maravilhosa agora tão próximos de seu rosto. Se não estivesse aborrecida pela interferência daquele homem, poderia até aproveitar a bela visão.
– Eu me hospedei aqui.
Ele permaneceu imóvel por um longo tempo. Phaedra olhou para o rosto do lorde e percebeu que ele a observava. E que tinha notado que ela avaliava seu corpo. Sentiu a pulsação acelerar. Os olhos deles refletiam a mesma reação, mas com uma anuência fria, como se Elliot controlasse a reação tanto nela quanto nele.
Sim, esse homem significava problema na certa.
– Não se mexa. Não tente sair – disse isso e andou até a escrivaninha, onde pegou a camisa e a vestiu.
Ela não ficou olhando. Não exatamente. Mas, com o canto do olho, viu como seus braços se moviam e seu dorso se esticava. A imagem do encontro deles à tarde invadiu sua cabeça de novo, mais vívida dessa vez: o rosto masculino pairando acima dela, aqueles ombros e aquele peito sob sua carícia...
Olhando de esguelha, percebeu os sinais de que o cômodo estava ocupado. Havia uma lamparina sobre uma escrivaninha na sala de estar, junto com uma pilha de papéis. Notou manchas de tinta nos dedos dele. Ele estivera escrevendo, não dormindo. Imaginou-o lá, entregue ao frescor da noite, imerso em sua escrita.
Com pouca roupa e aquela camisa solta, parecendo libertino e romântico demais para que ela se sentisse segura, ele a encarou.
– Lorde Elliot, mudou-se para cá para me espionar?
– Deixei para a signora Cirillo a tarefa de espionar. Mudei-me para cá para impedi-la de fugir na calada da noite.
Ele adivinhara seu plano. Isso a desanimou.
– Intrometer aquela ave de rapina em meus assuntos particulares é indesculpável.
– Parece que foi necessário. A signora Cirillo se empenhou em sua missão e a desempenhou com fervor. Eu só pedi que informasse caso a senhorita me desobedecesse e deixasse a hospedaria. Mas ela a seguiu e interceptou a carta para seu amigo.
A expressão dele assumiu um ar crítico.
– Tentar arranjar esse encontro clandestino à meia-noite é intolerável. E se Pietro não a esperasse naquele cruzamento? A senhorita ficaria lá fora no meio da noite, nessa cidade devassa, desprotegida...
– Não me repreenda. Não ouse. Se ele não aparecesse, eu logo teria encontrado um jeito de arrumar uma carruagem de aluguel, uma carroça ou até um burro, se preciso, e teria partido.
Todas as implicações desse episódio lastimável se seguiram em sua cabeça. Ressentiu-se de cada uma delas.
– Parece que troquei um carcereiro por outro – disse ela.
Ele pegou a valise.
– Chame como quiser.
Então Elliot estendeu o braço na direção da porta, mostrando o caminho.
Bufando de raiva, ela subiu de volta as escadas até seus aposentos. Para seu espanto, o lorde não deixou a valise na porta de entrada. Em vez disso, carregou-a até o quarto. Ela não o seguiu. Uma intuição, daquelas que só as mulheres têm, a manteve na sala de estar.
– Venha até aqui, Srta. Blair.
A ordem ressoou dentro dela de um jeito que ela não reconheceu nem gostou. Compreendia a raiva que trazia, mas havia também outros impulsos e palpitações que a espantaram. Ela odiava quando os homens tentavam lhe dar ordens, quando pressupunham serem seus donos, no entanto...
Phaedra espiou dentro do quarto. Lorde Elliot estava lá, com o colarinho da camisa branca aberto, o cabelo despenteado e a expressão resoluta. Quando ele notou a presença dela, um reconhecimento mudo se deu entre os dois. Lampejos de excitação e perigo a perpassaram.
Ele andou até ela e a puxou para dentro do cômodo. A pegada tão firme e confiante, tão segura em relação ao direito dele de fazer o que bem quisesse, a espantou. Nunca na vida um homem a tratara assim. Phaedra tentou se recompor e encontrar as palavras que o colocassem em seu devido lugar, mas...
Ele começou a desatar o nó do xale sob seu queixo. Isso levou tempo de mais. E o deixou perto demais. Com certeza ele não era um canalha a ponto de... Deveria detê-lo e desatar o nó ela mesma. Deveria...
Ele fez o xale correr com suavidade pela cabeça e os ombros dela. Foi como uma carícia longa e vagarosa. O olhar dele acompanhou uma ponta do xale deslizar ao longo do corpo dela até que ficasse pendurado na mão dele pela outra.
Apenas a luz da lua que entrava pela janela iluminava o quarto, porém Phaedra não precisava ver com clareza o rosto daquele homem para adivinhar seus pensamentos. Eles preenchiam o quarto, estavam no ar, como tinha acontecido à tarde.
Uma nova reação a deixou perplexa, uma que nunca vivenciara antes: medo. Não medo dele ou de ser forçada a fazer algo. Foi dela mesma e da maneira chocante e singular como seu corpo reagia à forma como ele tentava dominá-la.
Elliot fez um gesto apontando para a cama.
– Tire o vestido e deite-se.
Isso quase a fez cair em si. Quase. Uma excitação inexplicável a atingiu lá embaixo, uma excitação absolutamente escandalosa. Deus do céu...
– Está indo longe demais.
Ela havia mesmo falado? Sua mente por fim juntara algum bom senso e fora em seu socorro?
– Você não me deixa escolha. Não posso me arriscar a deixá-la escapar.
– Prometo que não vou fugir.
– Uma mulher que espera que eu quebre minha promessa a Sansoni não manterá a própria palavra. Agora coopere, a menos que queira que eu a force a obedecer.
Ela levou as mãos às costas e começou a soltar os ganchinhos do vestido. Só levou um minuto até se despir e pôr o vestido sobre uma cadeira. A luz não era fraca o bastante para ocultá-la. Desejou estar usando aqueles ridículos espartilhos, pois suspeitava que lorde Elliot pudesse ver mais do que deveria por baixo da camisa simples que usava sob o vestido.
Ela se aproximou da cama e subiu nela, tentando não se expor demais e excitada por suspeitar estar se expondo ainda assim. Deitou de costas e olhou para ele. Pairou um silêncio no ar por um longo momento.
– Quais são as suas intenções, lorde Elliot?
Ele riu de novo. Em silêncio. Sarcasticamente.
– Não é um bom momento para provocar e instigar, Srta. Blair.
De repente, ele se inclinou sobre ela. Pairando. O coração dela começou a bater mais forte. A camisa dele adejava perto do rosto dela. O cheiro dele a tomou de assalto. O tamanho dele a dominou. Uma expectativa terrível e maravilhosa formigou nela. Seus seios ficaram mais sensíveis e...
Ele pegou no braço esquerdo dela e o levou até as barras de ferro da cabeceira da cama.
– O que está fazendo?
Ele enroscou o xale em volta das barras.
– Certificando-me de que não fugirá. Não preciso dormir muito, entretanto não posso ficar acordado por duas noites.
– Isso passa dos limites. É repugnante. Exijo que...
– Isso é necessário. Ou é isso ou durmo ao seu lado. Prefere?
Ela o encarou. Ele parou de fazer os nós e olhou para baixo. O coração dela pulou para a boca.
– Prefere? – repetiu ele.
Era uma pergunta direta e sincera. Um convite que lhe permitia extravasar a atração.
Ela engoliu em seco.
– É claro que não.
Mesmo na luz fraca, ela viu o sorriso dele. Ele voltou sua atenção para os nós.
Por fim, ele se afastou e se endireitou. Phaedra deu um puxão com o braço esquerdo. Não havia folga nas laçadas. Ela se virou para o lado e tentou forçar um nó com a outra mão.
– Fique à vontade para tentar desfazer os nós. Só que não vai conseguir. Pode se sentar e se mexer, pode até ficar de pé. Pode usar o penico do lado da cama. Mas nunca vai conseguir se soltar. É melhor passar o tempo dormindo.
Uma nota em seu tom de voz a fez parar de tentar. Rolou de volta para ficar de costas e o encarou. O desamparo dela e o domínio dele gritaram no silêncio entre os dois. A mente de Phaedra bradava insultos rebeldes, mas seu corpo experimentava um calor e uma expectativa deliciosos. Espantava-a que essa submissão provocasse desejo, um desejo muito erótico.
Ele sabia, droga. Ela podia garantir que ele sabia.
– Está muito bonita aí, Srta. Blair. Muito bela e vulnerável e, ouso dizer... submissa?
– Seu canalha.
De novo, aquela risada silenciosa. Depois ele se foi, deixando-a livre para conversar consigo mesma pelo resto da noite sobre quão vulnerável e submissa ele a havia tornado.
CAPÍTULO 5
Phaedra segurava o camafeu na luz matinal que penetrava pela janela da sala de estar. O objeto tinha se tornado um talismã nos dois últimos dias, no embate com um homem confiante demais de seus direitos de controlá-la.
Você deveria ter me avisado, mãe.
Talvez Artemis não pudesse ter lhe avisado simplesmente porque não sabia. Talvez tivesse se isolado tanto de homens como Elliot Rothwell que nunca os houvesse enfrentado.
Ela imaginava a mãe, linda de tirar o fôlego. Com um rosto tão suave que as pessoas nunca imaginavam sua mente brilhante até que ela abrisse a boca ou lhes dirigisse aquele olhar aguçado. De fato, sempre fora uma rainha com muitas abelhas em volta. Acadêmicos, artistas e homens que admiravam sua inteligência estavam entre os amigos que a amavam e ficavam apenas à espera de uma deixa. Sua casa ficava sempre cheia de homens famosos e esperançosos.
Na certa, um desses homens teria tentado conquistá-la. Na certa, a famosa Artemis Blair vivenciara a excitação primitiva de encontrar um par na inteligência e no poder. Ela devia ter avisado à filha que esse homem poderia surgir um dia.
Phaedra olhou pela janela. Lá embaixo, lorde Elliot dava ordens aos criados da signora Cirillo, que carregavam as valises para a carruagem que os levaria ao porto. Os olhos dela se estreitaram para focalizar o inimigo.
Pelo menos, ele não a mantivera amarrada na última noite. Ela prometera de cinco formas diferentes não fugir. Ele só a soltou depois de ela jurar – jurar – sobre o túmulo da mãe. Ele a fizera implorar como se fosse seu dono.
Sua mãe provavelmente estaria se revirando no túmulo naquele exato momento. Artemis Blair nunca se submetera a um homem, de forma nenhuma. Nunca se casara, nem com seu amor de toda a vida, Richard Drury, mesmo quando se viu grávida. Nunca abrira mão de sua liberdade, sua independência e seu direito de amar e dividir a cama com quem quer que escolhesse, nem ao descobrir que só queria amar e dividir a cama com um único homem.
O camafeu esquentou na mão de Phaedra. Ela olhou para a joia. Não, não um único homem. Tinha havido outro.
Tinha sido um choque ler isso nas memórias do pai. Sentia-se nauseada só de lembrar as palavras dele. Sempre imaginara que o amor de seus pais fora perfeito, desprovido de obrigações e leis, um verdadeiro encontro de almas que duraria pela eternidade. A amizade dos pais mostrava ao mundo que havia uma forma melhor para um casal conviver.
Tinha sido assim por muitos anos, até que um dia outro homem entrara na história.
Esse intruso era charmoso, contudo estava no centro de um esquema ao mesmo tempo brilhante e nefasto. Foi o que seu pai escreveu. Ela se lembrava das palavras exatas. Memorizara essas palavras antes de zarpar da Inglaterra. Ele seduziu Artemis para que tivessem um caso, usou-a da forma mais desonrosa, a ponto de destruir sua reputação. Foram seus atos que, em última análise, levaram à morte dela. Assim como vendia falsas antiguidades, ele lhe ofertou mentiras. Porém é só uma questão de tempo até que ele seja desmascarado, porque os objetos estão lá, visíveis, como o que vendeu a Artemis. Um dia alguém revelará a origem suspeita desses objetos, e a forma como ele usa a sedução no intuito de roubar será sua desgraça.
Os dedos dela se fecharam com força ao redor do camafeu. Uma antiguidade de origem suspeita. Uma joia acrescentada na última hora a um testamento, supostamente vinda de Pompeia. Phaedra estava bastante certa de que era a este objeto que o pai se referira – e também sua única ligação com o homem que ele acusava.
Seus atos, em última análise, a levaram à morte. Phaedra não conseguia tirar essas palavras da cabeça. Elas ressoavam em seus sonhos junto com as imagens da mãe naquelas últimas semanas, séria demais, distraída demais. Phaedra nem chegara a notar essa seriedade e distração na época, pois a mãe sempre tinha um sorriso para ela. Porém seu declínio fora rápido demais e sua morte, um choque.
Phaedra baixou o olhar de novo. Lorde Elliot olhava para cima, em sua direção. Há quanto tempo ele a observava lá da rua?
Talvez a mãe não tivesse avisado porque nem ela mesma sabia. Talvez o intruso fosse um homem como aquele lá embaixo, que causava arrepios só por dar sua atenção e cuja presença era uma tentação para que, em um segundo, uma mulher se esquecesse de todas as crenças e princípios que ancoravam sua vida.
Poderia perdoar a mãe por não ter lhe dado essa lição. Poderia perdoá-la por qualquer coisa, até mesmo por deixar o mundo cedo demais. Porém, se um homem realmente a havia usado de forma desonrosa, se os atos dele tinham causado sua morte, isso era outro caso. A filha de Artemis Blair nunca o perdoaria. Se tivesse certeza de que isso era verdade, então queria ver a queda desse homem.
Pegou o xale e envolveu a cabeça. Lorde Elliot era um inconveniente, mas ela não deixaria que a companhia dele atrapalhasse o motivo real que a levara ao Reino das Duas Sicílias.
Elliot voltou ao quarto para pegar a maleta com seus muitos papéis. Passou pela Srta. Blair nas escadas.
– Vou esperar na carruagem.
Seu tom ríspido demonstrava a frieza que agora sempre exibia em sua presença.
Ela nunca o perdoaria por amarrá-la na cama, não só pela humilhação e falta de confiança. Ambos sabiam que isso a excitara, e ela o odiava por isso e por todas as implicações resultantes. Ambos também sabiam que, se ele não tivesse feito isso, ela teria escapado durante a noite para evitar as implicações resultantes.
Na última noite, Phaedra fora enfática ao afirmar que não aconteceria de novo. Suas promessas foram tão sinceras e suas garantias de não fugir, tão genuínas que ele voltara atrás.
Isso significara que ele poderia dormir. Na primeira noite, ficara deitado, inquieto e ávido, sentindo o desejo rasgá-lo por dentro como uma faca de serra. Imaginando-a naquela blusa fina, amarrada na cabeceira da cama, com o cabelo espalhado como seda acobreada e o corpo visível demais. Quais são as suas intenções, lorde Elliot?
Que inferno!
Elliot pegou a mala e um embrulho comprido e se juntou a ela na carruagem. O olhar vazio, distante e focado dizia que era só por falta de escolha que Phaedra tolerava a companhia dele. Não se daria o trabalho de bater papo para tornar seu tempo juntos mais fácil.
O barco que ele alugara esperava perto do Castel Nuovo. Uma hora depois, eles navegavam margeando a baía.
A Srta. Blair se posicionou na área central do convés, segurando-se na amurada. Ela observava a costa passar e o monte Vesúvio ficar cada vez maior ao fundo. A brisa empurrava o xale dos seus cabelos e sua beleza pálida e incomum chamava a atenção do pessoal de bordo. Elliot se aproximou para que não restasse dúvida quanto à sua situação de protetor da moça.
Ele estendeu a mão, oferecendo-lhe o embrulho que trouxera.
– O que é isto? – perguntou ela.
– Um presente.
Ela sorriu de um jeito suave, porém firme.
– Não aceito presentes de homens, lorde Elliot.
– Você não aceita presentes em troca de favores, o que é admirável. No entanto, como não gozei de seus favores, ainda está livre para aceitar presentes. Se eu a seduzir, pode devolvê-lo.
Ele quase disse “quando” em vez de “se”.
Ainda hesitante, porém curiosa, ela pegou o pacote e tirou parte do papel.
– Uma sombrinha? – disse, e rasgou o restante do embrulho, rindo então. – Preta. Toda preta. Que... gentileza!
– Achei que ia combinar.
– Isto é para me poupar de mais sardas?
– Isto é para poupá-la de ficar doente. O sol aqui é muito forte e estamos em pleno verão. Quando desembarcarmos, ficará feliz em ter alguma sombra.
Ela abriu a sombrinha e cobriu a cabeça.
– O senhor conhece bem o país. Já esteve aqui antes?
– Duas vezes. Primeiro em uma viagem por vários países do continente, e de novo há alguns anos.
Ele apontou para a costa.
– Ali fica Herculano. A mesma erupção do Vesúvio que enterrou Pompeia em cinzas cobriu Herculano de lava.
Ela desviou o olhar para onde os vestidos e casacos dos visitantes salpicavam de cor a rocha.
– Tinha a intenção de visitar Herculano também, mas o signore Sansoni... – suspirou ela. – Agora vou perder muita coisa da viagem.
– Por que não gasta algum tempo na volta de nossa pequena viagem e faz a visita?
– Não tenho tempo a perder. Preciso voltar para casa. Tenho uma editora para tocar.
E um livro especial para publicar. Se ele não conseguisse o que queria ao falar com Merriweather, a Srta. Blair não voltaria para casa por um bom tempo.
– Também acho que não vou gostar de voltar a Nápoles depois de nossa viagem – emendou ela. – Com certeza você achará que a palavra dada a Sansoni ainda estará valendo, e ficarei com o senhor no meu pé.
Ele admirou impressionado o enorme cone que era o Vesúvio enquanto passavam tão perto de Herculano que podiam ver alguns trabalhadores nas escavações. O cabelo cor de cobre esvoaçava perto do braço dele.
– Srta. Blair, pergunto-me se o que a incomoda não seria o fato de me ter no seu pé e não a seus pés.
O suspiro profundo expressou o pensamento dela. Deus, dê-me paciência com esse homem tão pouco esclarecido e tão previsível.
– Suspeito que seja inútil explicar isso, mas tentarei, em nome da paz. Acredito que nenhum parceiro na amizade, no casamento ou num caso amoroso deva ficar aos pés do outro. Minha ideia só é considerada estranha porque o pé em questão quase sempre é de um homem e o mundo acha normal que ele fique cravado nas costas de uma mulher. Creio que homens e mulheres possam ficar lado a lado, sem que um tenha que pertencer ao outro. A vida da minha mãe provou que isso é possível e a minha também, até agora, prova o mesmo. Não fomos nós que inventamos essa crença. Essa ideia é bem conhecida e foi defendida por pessoas a quem admiro muito.
– Sei tudo sobre a sua crença, Srta. Blair. Não sou ignorante dessa filosofia. Ela até soa correta e racional. O único problema é que não leva em conta vários aspectos.
– É mesmo? Quais?
– A natureza humana. A história da humanidade. A tendência de os maus vitimarem os fracos e a necessidade dos fracos de proteção. Aventure-se sozinha nos vilarejos de Campanha ou nas ruelas de Marselha ou Istambul, ande pelas espeluncas de Londres e veja o que acontece com uma mulher sozinha e desprotegida.
– Os senhores de antigamente davam proteção a seus servos. O que não significa que era correto exigir a vassalagem em troca.
Ele riu.
– Senhores, servos. Que visão nefasta a senhorita tem da vida das mulheres. Não precisa ser desse jeito.
– Mas pode ser – disse ela. – O senhor sabe que pode. A lei faz isso.
A ênfase que ela deu ao “senhor” foi tão sutil que ele se perguntou se não passava de fruto de sua imaginação. Ela cutucou uma velha ferida com muita delicadeza, contudo ele sentiu a dor de qualquer forma. Uma raiva obscura se instilou nele.
Ela voltou a atenção para a costa. Um leve rubor em seu rosto indicava o reconhecimento de que tinha ido longe demais. Elliot controlou sua reação, mas pensamentos predatórios agora penetravam em sua mente. Ele ponderou o que seria preciso para ser senhor dessa mulher, para fazer com que se dobrasse diante dele.
– Desculpe-me, lorde Elliot. Eu não deveria...
– Está fazendo a impertinência aumentar, Srta. Blair. Melhor teria sido deixar que sua insinuação voasse para longe junto com a brisa.
Só que ela não o fizera, e ele se perguntava por que falara de maneira tão segura.
– Está se referindo a boatos sobre minha mãe, não é?
Ela pensou duas vezes na resposta enquanto olhava para ele.
– Admito que o fato de ela haver se retirado para o campo durante seus últimos anos de vida foi interpretado como feito de seu pai.
Elliot sabia que essa história corria solta nas salas de estar de ricos e pobres. Diziam que sua mãe tinha um amante e que seu pai a punira mandando o homem para a morte em uma colônia distante e depois aprisionando-a em uma propriedade rural.
Seria verdade? Ele e seus irmãos haviam concluído que o amante fora real, mas não a parte sobre o cárcere. O próprio pai lhe jurara não ter feito o que as pessoas falavam. Porém, o exílio da mãe estimulara a fofoca, a ponto de ela mesma passar a acreditar na história.
Ele a via na biblioteca, com os cabelos escuros pairando acima de livros e papéis, perdida em pensamentos. Quase totalmente afastada dos filhos. Por ser o caçula, havia passado a maior parte do tempo com ela lá. Ela emergia de sua concentração às vezes para guiá-lo pelas estantes, escolhendo livros para ele ler ou comentando os escritos dele.
No entanto, algumas poucas vezes o vínculo se estreitara, como no dia em que ela recebeu uma carta que a deixou em prantos. Era a notícia da morte de um oficial do Exército. Foi ele que fez isso. Para me punir por amar outra pessoa.
Tinha sido um amor ilícito. Ela era uma adúltera. Ainda assim, o sofrimento dela o comoveu. Só que ele entendeu que a acusação dela era o delírio de uma alma sofredora.
Elliot sentiu a presença da Srta. Blair ao seu lado. Nem mesmo a raiva conseguia sufocar a reação que sua sensualidade causava nele. A droga das memórias do pai dela insinuava que uma mulher reclusa fora a única a entender como o sangue dos Rothwells podia tornar um homem cruel. Sua certeza de que isso era mentira não seria suficiente para diminuir as acusações a seu pai.
– Elas se conheciam – disse a Srta. Blair. – Nossas mães.
– Minha mãe conhecia os ensaios de Artemis Blair, contudo nunca mencionou uma amizade.
Isso não queria dizer nada, uma vez que ela nunca mencionava assunto nenhum.
– Acho que elas nunca se conheceram pessoalmente, porém elas se correspondiam. Eram ambas escritoras. Tinham interesses em comum. Uma vez sua mãe enviou um poema para a minha. Encontrei-o entre os papéis dela depois que morreu. Um belo poema que refletia uma alma inteligente e sensível.
Ele fixou o olhar na cidade costeira que se aproximava, Sorrento. Estava enfurecido por saber que a mãe compartilhara seus textos com Artemis Blair e nunca com os próprios filhos.
– Sua mãe a encorajou a cometer adultério?
As palavras soaram cruéis e duras mesmo ao ouvido dele.
– Ela pregava a crença no amor livre em suas cartas?
Ele imaginou a famosa Artemis Blair virando a cabeça de sua mãe, o que levaria a tanto sofrimento depois.
– Creio que elas falavam principalmente de literatura em suas cartas. Minha mãe só a mencionou uma vez, quando soube de seu falecimento.
– O que ela disse?
A frase soou mais como um rosnado do que como uma pergunta.
– Ela disse: “Ele devia tê-la deixado ir embora, mas, é claro, por ser um homem, não poderia.”
Isso só fez com que um trovão rugisse nas nuvens que se acumulavam em sua mente. Ele queria dizer que um homem não poderia permitir que a mãe de seus filhos fugisse em uma aventura amorosa. É claro que seu pai não tinha opção a não ser negar essa liberdade a ela.
Só que, a seu modo, ela havia encontrado uma forma de fugir de qualquer maneira.
Pelo canto do olho, Elliot percebeu um membro da tripulação se demorar muito com o cordame. O homem alongava a tarefa só para ficar apreciando a beleza de Phaedra Blair.
A tempestade em sua cabeça estourou. Relâmpagos espocaram. Ele estreitou os olhos e disse quatro palavras. O homem saiu às pressas.
A Srta. Blair percebeu.
– O que você lhe disse?
– Nada importante. Uma expressão napolitana exigindo privacidade.
Nem se deu o trabalho de explicar que as palavras em italiano significavam mexa-se ou morra.
Um vento forte os ajudou a fazer um bom tempo de viagem. A paisagem foi ficando cada vez mais bonita à medida que cortavam a baía em direção à península de Sorrento. Montanhas altas abraçavam a costa, mergulhando no mar em declives acentuados e verdes. Pequenas praias abrigavam alguns barcos e casas se encarapitavam no despenhadeiro, como se fossem cubos brancos e em tons pastel a pairar acima da água.
Contornaram a pequena península, passaram pela ilha de Capri e seguiram para a costa amalfitana. Encostas mais íngremes, perigosas e inacessíveis assomavam sobre eles. O cenário deixou Phaedra boquiaberta. Lorde Elliot estava certo. Teria sido uma pena perder essa visão.
– O que está havendo ali? – perguntou ela, apontando para alguma atividade na colina.
– O rei está construindo uma estrada para Amalfi. Estão escavando a encosta.
Ela notou que a estrada ficaria acima das vilas de pescadores.
– De qualquer forma, vai ser preciso subir ou descer a colina – falou ela.
– Pelo menos os habitantes não vão depender de barcos e burros. E a vista lá de cima será espetacular.
Ele apontou para a frente, mais adiante na costa.
– Positano fica logo depois daquele promontório. Daqui já é possível avistar a torre de vigia normanda nele. Há muitas delas nesta costa, construídas para proteger o reino normando medieval que havia aqui da ameaça dos sarracenos.
Phaedra andou para a proa do barco a fim de ver melhor a torre assim que entrasse em seu campo de visão. A velha torre de pedra era bem alta e isolada. Pequenas janelas a pontuavam, como se fosse um castelo medieval. Parecia uma intromissão de estrangeiros do norte naquela terra banhada pelo sol.
– Aquelas janelas altas dão para o leste e o oeste – disse ela. – Não há nada entre aquela e o horizonte do mar e nada entre a outra e o pico da montanha alta. Vamos ficar aqui muitos dias?
– Calculo que sim.
Phaedra perdera a noção do tempo enquanto fora prisioneira de Sansoni. Agora começava a se situar.
– O solstício de verão se aproxima. Imagino se a torre não será usada para algum ritual.
– Esta é uma região católica. Os rituais pagãos foram banidos há milhares de anos.
Apesar de lorde Elliot ter respondido, ela podia apostar que ele estava muito distante. Estava tomado por um silêncio que pouco tinha a ver com sons. Era algo interior, como se seu espírito tivesse se recolhido para as câmaras secretas de sua alma.
Phaedra se arrependia de ter se referido, ainda que discretamente, à situação da mãe dele. Deixara a frase escapar no auge de sua irritação com lorde Elliot por ele pressupor que estava certo e ela, totalmente errada. Já devia ter aprendido a não entrar em discussões a respeito do modo como pensava e vivia. No que tangia a esse assunto, aquele homem lhe era tão estranho quanto os pescadores daquelas vilas pitorescas.
Aproximaram-se da torre, passando bem perto quando o vento inflou as velas do barco. Parecia deserta.
– Quem é esse amigo a quem vamos visitar? – perguntou ela. – Como vamos chegar logo, acho que eu deveria saber o nome.
– Matthias Greenwood. Foi um dos meus professores na universidade.
Ela conteve sua surpresa. Conhecia Greenwood. Tinha tentado em vão localizar sua casa em Nápoles.
– Ele não vai se incomodar por você ter trazido mais bagagem do que ele esperava?
– Ele ficará muito satisfeito por ter a companhia da filha de Artemis Blair. Ele encontrou com ela algumas vezes, eu acho.
– Sim, com certeza. Eu o vi em algumas ocasiões; a última, no funeral da minha mãe.
Matthias Greenwood tinha sido um dos muitos acadêmicos a prestar homenagem à mulher que deixara o mundo inteiro confuso.
Também era alguém que poderia lançar luz sobre o “outro” homem. Phaedra pensara que esse atraso na viagem para Pompeia seria uma amolação. No entanto lorde Elliot a estava ajudando a riscar um dos itens em sua lista de pendências naquela terra.
– Ele a admirava. Disse que, se tivesse nascido homem, ela teria sido reconhecida como uma das maiores especialistas em línguas românicas antigas da Inglaterra – contou lorde Elliot.
Ele ainda falava em um tom distraído, como se apenas metade de sua mente prestasse atenção.
Phaedra olhou para a cidade de Positano com mais otimismo e não apenas porque sua missão poderia ser favorecida ali. Ela não se pautava por regras sociais estúpidas, mas a maior parte do mundo, sim. Imaginava como seria recebida ao chegar com lorde Elliot. Viajar com ele implicava coisas que ela não tolerava e que não gostaria que as pessoas presumissem.
O Sr. Greenwood provavelmente entenderia que era melhor não presumir nada.
Phaedra sentiu seu companheiro de viagem olhando para ela e virou a cabeça. Ele tinha voltado a si.
– Ele costuma receber convidados os mais variados – disse Elliot. – Pode ser que haja outras pessoas lá. Você vai se comportar, não?
Ela confiou que ele não esperaria que ela bancasse a amante dócil em uma vã tentativa de ser alguém que os convidados tolerariam.
Mesmo que quisesse criar esse disfarce, nem saberia por onde começar.
CAPÍTULO 6
Positano ficava numa angra apinhada de barcos. As construções em tons pastel pairavam acima do horizonte, amontoadas umas sobre as outras no declive acentuado da montanha. A cidade toda era uma sequência íngreme de casas que seguiam na direção do mar.
Phaedra deu uma olhada no despenhadeiro alto, no mar infinito cor de safira e na folhagem de um verde muito escuro. Nunca tinha visto nada tão fascinante em toda a sua vida.
– Qual casa pertence ao Sr. Greenwood? – perguntou ela.
Lorde Elliot se aproximou e estendeu o braço para que a vista dela o acompanhasse.
– Aquela lá em cima, com colunas.
As colunas sustentavam a cobertura de uma comprida varanda na casa mais ao alto. A casa fora erigida um pouco acima da área central da cidade. Sua distância criava uma coroa para os prédios que se espalhavam como uma cascata abaixo dela.
– Vamos voar até lá ou ele vai jogar uma cesta para nos apanhar aqui embaixo?
Um dos membros da tripulação já tinha se ocupado em resolver o problema e voltava com a solução: dois garotos que o seguiam puxando burros.
Phaedra permitiu que os garotos a ajudassem a subir no lombo de um animal. Lorde Elliot só precisou levantar a perna para montar no dele. Era mais alto que o bicho, e suas botas arrastavam pelo chão. A tripulação amarrou suas valises e malas em dois outros burros.
Ela riu deles mesmos.
– Que comitiva, lorde Elliot! Fará um desfile impressionante pela cidade. Talvez eu pegue meu livro de esboços e registre para a posteridade sua elegância sobre esse belo corcel.
Ele tocou seu burro para assumir a dianteira e deu um tapa no traseiro do animal dela ao passar.
– Cuide de sua própria montaria, Srta. Blair. Tome cuidado para não cair ou não vai parar de rolar até chegar à baía.
Ela logo entendeu o que ele queria dizer. Os burros passavam por caminhos muito íngremes, que tinham sido cortados em degraus baixos e estreitos e depois pavimentados. Ela pensou que ia mesmo cair no mar. Os animais sabiam onde pisavam, mas, sentada de lado na sela, Phaedra precisava ter cuidado para proteger a própria vida.
Eles foram um espetáculo e tanto. Os habitantes do vilarejo saíram às portas e janelas para espiar, curiosos, os estrangeiros que iam para a mansão localizada acima da cidade. Crianças começaram a segui-los, formando um verdadeiro séquito. Duas meninas andaram ao lado de Phaedra por um tempo, espiando com curiosidade as pontas ruivas de seu cabelo que apareciam sob o xale. Algumas mulheres fizeram leves mesuras quando lorde Elliot passou, sabendo, por seu porte e seus modos, que ele tinha sangue nobre.
Ela relaxou ao se adaptar à andadura do burro. Não ousava olhar para trás, mas se permitiu olhar as casas de pedra, lindamente rústicas. Varandas simples e coberturas de telhas ajudavam a criar um amálgama de formas e cores. Algumas casas maiores tinham azulejos decorados em volta das portas principais. Todas pareciam muito antigas, como a torre. Estuque cobria a maioria delas, quase sempre trabalhado com ornamentos e cornijas decorativos. Algumas construções eram brancas, mas muitas ostentavam detalhes em vermelho e rosa.
Os sons da vida na comunidade ecoavam ao redor conforme as pessoas chamavam umas às outras pelas janelas abertas e nas ruas do mercado embaixo. Em algum lugar, um homem cantava descontraidamente uma ária de Rossini enquanto cumpria outra tarefa qualquer.
As ruelas iam ficando mais planas à medida que se aproximavam da mansão. Era como se alguém tivesse retirado um pedaço da montanha para que a grande casa pudesse ser construída.
Um homem apareceu numa das arcadas entre as colunas da varanda. Era alto e magro, com uma basta cabeleira branca, nariz aquilino e postura ereta. O maxilar de traços muito retos terminava em um queixo partido. Phaedra só tinha visto Matthias Greenwood umas poucas vezes, porém sua aparência era tão peculiar que se tornava inesquecível.
Ele acenou em saudação, depois saiu e andou na direção deles.
– Rothwell! Que alívio vê-lo finalmente. Meus companheiros anseiam pela sua perspicácia.
Eles se cumprimentaram e Elliot apresentou Phaedra.
– Já tive a honra de conhecê-la, Rothwell. Fico feliz em vê-la de novo, Srta. Blair, e em circunstâncias menos penosas do que da última vez. Sua mãe era muito estimada por humildes acadêmicos como eu e foi muito generosa conosco. Sou-lhe grato pelas pessoas a quem me apresentou em suas recepções.
Os criados apareceram e Matthias deu ordens a respeito das bagagens.
– Entrem e descansem. Meus outros convidados estão fazendo a sesta, mas se reunirão a nós em breve.
Ela subiu o caminho de pedras e seguiu Matthias até a varanda. Olhou através dos arcos e perdeu o fôlego.
A visão era impressionante, um ângulo que exigia uma tela e um pincel. Se a vista montanha acima era incrível, olhá-la de cima para baixo era de deixar qualquer um embasbacado. Os telhados e faixas de circulação da cidade se espalhavam pela encosta. O declive era tão acentuado que era de espantar que se tivesse construído alguma coisa nele. O mar infinito, o céu tão próximo, o promontório que abraçava a paisagem – tudo isso criava um panorama vasto e irreal de um lugar precário no mundo, uma visão empolgante e romântica, mergulhada em beleza e, ao mesmo tempo, repleta de perigos.
– É um espanto que o senhor não viva somente nesta varanda e nem se importe se o restante da casa cair aos pedaços, Sr. Greenwood.
– É quase isso o que faço, Srta. Blair. Aqui e nos outros terraços e varandas. Mesmo não sendo católico, vou à igreja da paróquia para acender velas pela alma de um parente distante cuja herança me permite viver no paraíso.
Uma mulher os saudou quando entraram na sala de visitas arejada, de piso de mármore. Era uma mulher local, elegante e de pele morena. Tinha um rosto lindo e comovente, marcado por um traço de melancolia. Chamava-se signora Roviale e a forma como entrou e cuidou de acomodá-los indicou que aquela era a sua casa. Matthias Greenwood não vivia sozinho no paraíso.
Outro convidado se juntou a eles logo em seguida, depois que um criado trouxe vinho. Phaedra o reconheceu também. Ele não fora ao enterro de sua mãe, mas tinha estado uma ou duas vezes em sua casa quando ela era garota. Tinha uma beleza tão nobre, de traços finos, que ela quase se apaixonou na primeira vez que o viu.
– Veja quem está aqui para celebrar sua visita, Rothwell – disse Matthias. – Escrevi contando a ele que você viria de Nápoles e ele e a esposa vieram de Roma para vê-lo. Srta. Blair, permita-me apresentá-la ao Sr. Randall Whitmarsh, cavalheiro, acadêmico e outro refugiado da Inglaterra.
O Sr. Whitmarsh adotara os modos e o estilo europeu continental, reflexo de seus longos anos vivendo no exterior. Sussurrou um “belíssima” ao se inclinar para beijar a mão de Phaedra com tamanho exagero que ficou provado que deixara para trás o jeito reservado britânico ao adotar Roma como sua residência principal.
– É uma alegria conhecer a filha da indomável Artemis Blair – disse ele, dando um sorriso charmoso e encantador.
Phaedra não era insensível à atenção de um belo homem. Notou que lorde Elliot ficou observando de soslaio enquanto o Sr. Whitmarsh se demorava segurando a mão dela.
– Soube recentemente do falecimento de Richard Drury – disse o Sr. Whitmarsh, dando um tapinha na mão dela. – Vejo que ainda está de luto, mas creio que tenha sido uma opção muito saudável viajar para o exterior para suavizar seu sofrimento.
– O modo como costumo me vestir tornou desnecessário encomendar um guarda-roupa apropriado ao luto, entretanto meu pai não ia querer isso de qualquer forma. Na última vez que o vi, ele proibiu terminantemente que eu ficasse de luto.
Ela puxou a mão da pegada suave do Sr. Whitmarsh.
– Não esperava encontrar tantas pessoas que conheceram minha mãe na remota Positano.
– Nós três somos membros da Sociedade dos Dilettanti, Srta. Blair. Por ser mulher, sua mãe não podia participar. Vez ou outra, porém, nós lhe fazíamos uma visita para prestar nossa homenagem – explicou o Sr. Whitmarsh. – Considerando o conhecimento dela em letras românicas, não é de surpreender que encontre tantos dos que a conheceram ao visitar as terras do antigo império.
– Também é membro da Sociedade, lorde Elliot?
– Entrei depois de voltar da minha viagem pelo continente.
Ela só tinha 18 anos quando a mãe morreu, por isso ainda não chegara a frequentar os salões e jantares em que Artemis recebia acadêmicos e artistas. Porém, ali estavam, diante dela, alguns integrantes do círculo de amizades de sua mãe, mesmo que talvez pertencessem ao círculo mais distante.
Phaedra teria que descobrir se algum daqueles homens tinha percebido ou ouvido falar no homem que recebera as últimas afeições de Artemis.
Phaedra Blair estava aliviada por ela e a signora Roviale não serem as únicas mulheres na festa. A Sra. Whitmarsh desceu do quarto logo.
Phaedra entendeu de imediato que a Sra. Whitmarsh não tinha uma mente tão aberta quanto a do marido. Não falava muito, parecia mais um passarinho pálido, entretanto tinha um rosto tão expressivo que era possível adivinhar seus pensamentos. Ao perceber que Phaedra e lorde Elliot tinham chegado juntos, a Sra. Whitmarsh deu um sorrisinho superficial e lançou para a signora Roviale um sutil olhar de desdém. Depois, resignada, se recolheu a sua silenciosa desaprovação da companhia de mulheres perdidas.
Naquela noite, ao jantarem ao ar livre na varanda, lorde Elliot teve a elegância de incluir a Sra. Whitmarsh na conversa sobre a sociedade londrina, na certeza de que isso lhe agradaria. Phaedra permitiu que os cavalheiros a cobrissem de conselhos sobre as maravilhas da Antiguidade que ela não poderia deixar de visitar.
– A senhorita tem que ir aos sítios de Paestum – exortou Matthias. – Rothwell, ordeno que a leve até lá. Não entendo esses ingleses que percorrem confeitarias e bordéis em Pompeia e ignoram alguns dos mais belos templos gregos do mundo que há no entorno.
– Se a Srta. Blair desejar, iremos visitar os templos – disse lorde Elliot.
Matthias pareceu muito um acadêmico naquele momento. Com o cabelo branco despenteado, o maxilar cortando o ar e o nariz aquilino empinado, ele entoava a lição como se ela fosse uma universitária, algo que nunca lhe permitiram, por ser mulher.
– É por isso que estou aqui, Srta. Blair. Rothwell e Whitmarsh admiram os romanos, mas meu foco é mais antigo. Esta terra foi colônia dos gregos quando Roma ainda era uma cidadezinha com cinco cabeças de gado. Depois de ver os sítios de Paestum, a senhorita entenderá a superioridade do pensamento grego.
– Se isso não exigir que minha visita se prolongue por muito tempo, talvez eu aceite seu conselho.
Após o jantar, a signora Roviale levou as mulheres para longe da varanda, deixando os homens a discutir e debater sobre a Antiguidade. Phaedra não gostaria de manter uma conversa forçada com a crítica Sra. Whitmarsh. Assim, alegou cansaço e se isentou de mais obrigações sociais.
Uma criada a conduziu ao quarto. Quadrado e branco, com o mesmo piso de mármore visto por toda a mansão, tinha janelas grandes que davam para um terraço estreito que se estendia acima dos arcos da varanda principal. Alguém já tinha desfeito suas malas e guardado as roupas em um armário de madeira escura. Havia uma jarra de água na bancada para lavar o rosto e as mãos. Era de cerâmica, com flores vermelhas e folhas azuis. Cores semelhantes decoravam os azulejos em volta da lareira e o peitoril de uma janela.
Phaedra abriu as portas duplas que davam para o terraço de modo que a brisa do mar e os últimos raios do crepúsculo entrassem. Sons da varanda chegavam até ela: Matthias em tom professoral e Elliot rindo, assim como o ruído de conversa. Ela se perguntou se sua mãe algum dia realmente fora aceita naquelas discussões masculinas. Quando os Dilettanti a prestigiavam, era sempre uma relação de homens com uma mulher, com tudo o que isso implicava?
Cadeiras foram arrastadas e despedidas foram feitas. O silêncio tomou a mansão. Ela se levantou a fim de se preparar para dormir. Começava a soltar os fechos do vestido quando um ruído mínimo do lado de fora chamou sua atenção. Um feixe de luz dourada atravessou o terraço e alcançou a noite. Ela foi até lá e espiou.
Lorde Elliot estava de pé na outra extremidade do terraço, em mangas de camisa e colete. Phaedra tinha certeza de não haver feito barulho, porém ele olhou na direção dela como se tivesse feito.
– Estava imaginando se Matthias a teria acomodado neste quarto – disse Elliot.
Ela caminhou até o piso de terracota lá fora. A luz vinha de outro conjunto de portas ao lado do dela. O terraço era compartilhado por dois quartos.
– Parece que nosso anfitrião entendeu errado – disse ela.
– Possivelmente. No entanto, se for para dividir um terraço com alguém, prefiro você à Sra. Whitmarsh.
Ela arriscou se afastar um pouco mais, contudo permaneceu do próprio lado no espaço comum. Da balaustrada de pedra podia-se ver o mar, que agora brilhava lá embaixo com milhões de pequenos reflexos de estrelas.
– O Sr. Whitmarsh disse que os Dilettanti faziam homenagens a minha mãe. Fico feliz de saber que a capacidade dela era reconhecida.
– Um homem honesto teria que admitir o brilhantismo dela. É claro que havia outros menos honestos que diminuíam isso.
– É claro. Você a conheceu?
– Ainda estava na universidade quando ela faleceu. Ouvi falar nela e a vi na cidade, contudo não estava em posição de visitá-la.
– O que achava dela?
Ele se virou e descansou o quadril na balaustrada, olhando para a noite na direção dela. Phaedra desejou que ele não parecesse tão lindo e sedutor. Desejou que a luz se apagasse para que seu rosto ficasse no escuro.
– Fui criado em uma casa de homens e meu pai não compreendia bem as mulheres. Então, saber da sua mãe foi uma revelação. Os colegiais falavam muito dela. Alguns se apaixonavam por ela, outros a achavam irreal, mas sem dúvida ela os fazia questionar a ordem das coisas. Quanto a mim, eu a achava bonita, interessante, inteligente e provavelmente perigosa.
– Acho que ela era perigosa. Se o mundo fosse cheio de Artemis Blairs, os homens não poderiam continuar a ser o que são. Todos teriam que questionar a ordem das coisas, como você.
– Era o que me passava pela cabeça, entretanto eu era um garoto na época e não gostava de perigos reais. Tive que conhecer a filha dela para entender essa parte.
Foi a vez dela de rir.
– Dificilmente eu poderia representar um perigo para você.
– Você se engana, como eu me enganei. O perigo não vem de você.
Não, não vinha. Isso ficara evidente aquela noite. Um poder fluía dele, em impulsos viris. Isso não a surpreendia nem a assustava. Porém, a forma como seus próprios instintos femininos reagiam, sim.
– Não me culpe por suas piores inclinações, lorde Elliot.
– Elas não parecem estar entre as ruins, que dirá as piores, querida Phaedra. Ao contrário, elas me parecem naturais, inevitáveis e até necessárias.
Sua voz baixa e segura lançava cordas de veludo que a amarravam. O coração dela foi parar na boca e sua pulsação acelerou. Ele não se mexeu. Não se aproximou nem um centímetro, contudo pareceu estar ao seu lado, correndo a mão por seu corpo todo.
– Quero você.
O tom calmo e descontraído agitou o sangue dela como a brisa agitava seu cabelo.
– Quero-a sem resistências ao prazer e implorando por mim. Quero-a nua e tremendo e despida de suas...
– Basta. Se é isso o que pensa das mulheres...
– Só de você, querida dama. Você lança um desafio a cada homem que vê. Não se surpreenda se um deles o aceitar.
– Como ousa...
– Ah, sim, eu ouso. Estou a ponto de ousar neste exato momento. Você sabe disso e ainda assim está aqui. Se não quisesse que eu ousasse, nunca teria saído por aquela porta.
Ela abriu a boca para negar, mas as palavras lhe faltaram.
Com um sorriso vago, ele se afastou da balaustrada. O coração dela deu um salto e suas pernas fraquejaram.
– Esse perigo que incita em mim a excita.
Elliot andou em direção à luz do próprio quarto.
– Quem está zumbindo em volta de quem agora, Srta. Blair?
– Um nome estranho para se dar a uma filha, Phaedra – ponderou Matthias em voz alta.
Era a manhã seguinte e ele e Elliot tomavam café na varanda. Lá embaixo, Positano despertava após o nascer do sol.
– Duvido que haja outra mulher com esse nome na Inglaterra, considerando a referência – acrescentou Matthias. – É muito típico de Artemis Blair decidir que a fonte não importa e valorizar sua exclusividade.
Levando em conta que a Phaedra da mitologia teve um caso com o enteado, era mesmo uma escolha estranha. Elliot duvidava que a crença da Srta. Blair e da mãe no amor livre fosse tão longe assim.
– Acho que ela escolheu o nome pela sonoridade. É um belo nome – disse Elliot.
– Eu poderia pensar em uns cinco ou seis melhores. Não, seu descuido por este primeiro dever maternal sugere que ela era indiferente a essa parte da vida.
– Você falava bem dela na época em que fui seu aluno e a Srta. Blair a idolatra. Vamos calar as observações que ela possa ouvir.
– Ela ainda está deitada e não vai ouvir minhas alusões à falta de impulsos femininos de sua mãe, entretanto sua repreensão faz sentido.
De fato, ela ainda estava na cama, dormindo profundamente. Elliot tinha ido até lá e espiado antes de descer. As portas do quarto dela ainda estavam abertas, como uma forma de contradizer as últimas palavras dele. Veja como você não é nem um pouco perigoso para mim. Sua honra e a lei me protegem do pior e meu autocontrole cuidará do resto.
Ele vira um cabelo cor de cobre espalhado pelo travesseiro e uma pele alva enroscada nos lençóis. Uma perna linda e esguia se alongava sobre a roupa de cama. A tentação de entrar lá só para ficar observando-a o tomou, assim como o aborrecimento por vê-la dormindo tão profundamente, algo que ele não tinha conseguido fazer.
Nos últimos tempos, andava pensando nela demais. Ficando com a cabeça nas nuvens por muito tempo. Desejando demais. Achava que a companhia dos amigos e as obrigações do trabalho diminuiriam a importância da presença dela e assim ele voltaria a mente para algo mais normal.
– Está vivendo como um rei aqui, Greenwood – disse, para se distrair das imagens de Phaedra tão etereamente erótica em seu repouso. – As melhorias desde a minha última visita são visíveis.
Matthias ficou radiante.
– Suponho que esteja falando da casa e não da minha companheira, apesar de eu não saber ao certo dizer qual me agrada mais. Trazer as pedras até aqui foi um inferno, mas valeu a pena. Você deveria se juntar a mim, Rothwell. Compre uma mansão antiga e veja como seu dinheiro inglês pode render nesta costa.
– Ele rende porque o lugar é tão inacessível que é preciso navegar milhas até chegar a uma cidadezinha que fica logo ali atrás da montanha. Preciso da vida urbana com mais frequência do que duas vezes ao ano. Contudo, se está feliz em seu isolamento, fico satisfeito por você.
– Não estou nem um pouco isolado. Sempre tenho companhia. Os amigos vêm da Inglaterra, de Roma, de Nápoles e até de Pompeia. Recebi o superintendente do município no mês passado. Ele não se incomodou de subir a montanha em lombo de burro.
– Gostaria que me desse uma carta de apresentação – pediu Elliot. – Quero ver tudo o que escavaram nos últimos anos, não só as atrações abertas para visitantes.
Matthias levantou a sobrancelha, curioso.
– Quer ver os afrescos reveladores das delícias noturnas? A Srta. Blair não vai poder entrar, por mais que eu peça.
– Vou pesquisar outros assuntos. Antes de partir, gostaria que me concedesse alguns minutos para discutirmos o rumo que meu trabalho está tomando.
– Está combinado, então. Amanhã cedo nos trancaremos em meu escritório para falar sobre isso. Sinto falta de dar aulas. Depois me lembro de quão limitados muitos de meus alunos eram e a saudade vai embora.
– Brincar de professor e aluno vai ser muito útil. Vai clarear meus pensamentos. Ah, estou obrigado como cavalheiro a dizer que creio que você tenha entendido mal minha amizade com a Srta. Blair.
– É mesmo? Que pena!
Naquele momento, a dama em questão se juntou a eles. Com seu vestido preto esvoaçante e o cabelo solto, fazia pensar numa linda feiticeira celta. Matthias a convidou para se sentar à mesa. Serviu-lhe café e ficou atrapalhado, o que revelava quanto a companhia dela o provocava.
– Espero que tenha dormido bem em minha humilde casa, Srta. Blair.
– Sua casa é tudo, menos humilde, e dormi muito bem. O som e a brisa do mar são muito relaxantes – assegurou Phaedra, e então virou a cadeira para olhar a cidade. – O que estão fazendo lá embaixo? O que é aquela coisa vermelha perto da água?
– Ah, deve ser o carro para a procissão. Eles devem estar pintando-o. Daqui a três dias é a festa de San Giovanni, São João Batista. É uma grande festa religiosa por aqui. Nenhum barco sai para pescar nesse dia.
– Vai haver uma procissão?
– Uma procissão, uma missa e uma festa. Entre outros rituais, eles colhem nozes nas montanhas para fazer óleo.
– Interessante – disse ela. – Coincide com o solstício. Deve ser outro exemplo de festa pagã da qual os cristãos se apropriaram.
– A Srta. Blair está alcançando uma reputação em estudos mitológicos comparável à da mãe dela em letras românicas – informou Elliot. – Ela publicou um livro sobre o assunto que é muito benquisto.
– Que louvável!
Matthias conseguira falar de forma a diminuir o feito, apesar de admirá-lo.
– Esta data em comum é uma coincidência – continuou ele. – O deus do sol não era uma figura de destaque nas mitologias grega e romana. Apolo é associado a ele, mas o próprio sol, Hélio, desempenha um papel menor. Talvez por haver tanto sol por estas terras, não tenha sido preciso apaziguar esse deus.
– Há muito sol no Egito e, ainda assim, seu deus sol reinava supremo – contrapôs Elliot. – Acho que a Srta. Blair está certa sobre a festa de San Giovanni.
– Talvez – disse Matthias. – E o simbolismo das nozes, o que seria?
Phaedra riu.
– Vou pensar em uma resposta antes de partir, já que o senhor está disposto a ser flexível em suas opiniões.
– Para uma mulher bonita, posso ser completamente flexível, senhorita Phaedra. É meu maior defeito.
Ele olhou para fora da varanda. Um homem se aproximava, vindo por um caminho do norte.
– Eis Whitmarsh, de volta de sua caminhada matinal. Prometi mostrar-lhe um novo tesouro que encontrei. Gostaria de ver minha humilde e querida coleção de artefatos, Srta. Blair?
– Com certeza, Sr. Greenwood.
Ela aceitou sua mão para se levantar. Whitmarsh se juntou a eles ao entrarem na casa.
Elliot estava curioso para ver se Phaedra conseguiria manter a pose de indiferença em relação a ele que assumira nessa manhã. Ela nem sequer enrubescera. Não ficara agitada. Havia notado sua presença de forma indiferente e segura de si. Sua atitude só fez provocar o lado mais obscuro do desejo que o atormentava.
Esse lado agora lhe dizia que ele deveria tê-la seduzido no terraço na noite anterior, como desejara. A ideia fazia mais sentido a cada minuto que passava.
CONTINUA
Um homem que comete um crime precisa encobrir seus rastros, mesmo que eles sejam deixados pelos melhores sapatos que o dinheiro poderia comprar.
Para encobrir os seus, lorde Elliot Rothwell retornou à casa de sua família, em Londres, e se juntou às pessoas recém-chegadas para o baile promovido por seu irmão. Agiu como se houvesse se ausentado por breves instantes para tomar um pouco de ar naquela gloriosa e agradável noite de maio.
Ao cruzar o limiar da porta, começou a cumprimentar os presentes. Belo e alto, o irmão mais novo do quarto marquês de Easterbrook – e também o Rothwell considerado mais amistoso e normal – distribuiu sorrisos a todos, alguns bastante calorosos a certas damas.
Quinze minutos depois, tão suavemente quanto voltara à festa, Elliot puxou assunto com Lady Falrith. Retomou uma conversa que deixara em suspenso duas horas antes e elogiou a dama com tanto tato que ela se esqueceu de que ele havia se ausentado. Em questão de minutos, Lady Falrith parou de se dar conta da passagem do tempo.
Enquanto jogava seus encantos em Lady Falrith, Elliot varria o salão com os olhos à procura do irmão. Não Hayden, que, junto com a esposa, Alexia, era o anfitrião da noite. Estava em busca de Christian, o marquês de Easterbrook.
Os olhares dos dois não se cruzaram, mas o retorno de Elliot ao baile foi notado por Christian. O mais velho se afastou de um círculo de lordes no fundo da sala e caminhou para a porta.
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Elliot dançou uma valsa com Lady Falrith antes de continuar a missão da noite. Fez isso como penitência por estar usando a dama e como um agradecimento sem palavras por sua ajuda involuntária. A noção de tempo de Lady Falrith poderia ser bastante vaga e sua memória, um tanto benevolente. De manhã, ela acreditaria que Elliot havia lhe dispensado atenção a noite inteira e que tinha flertado com ela. Sua autoconfiança seria útil caso algo desagradável acontecesse em relação às atividades de Elliot na cidade naquela noite.
Finda a valsa, ele de novo pediu licença. Ao contrário de Christian, que seguira solitário e direto para a porta, Elliot caminhou pelo salão distribuindo cumprimentos e conversando com todos, até chegar à nova cunhada.
– Está tudo indo bem, não acha? – perguntou ela, seu olhar percorrendo o espaço em busca de confirmação.
– É um triunfo, Alexia.
E, para ela, era mesmo. Um triunfo da personalidade e do temperamento. E talvez um triunfo do amor.
Alexia não era o tipo de mulher que a sociedade esperaria que pudesse se casar com Hayden. Não tinha família nem fortuna. Era tão sensata que nunca aprendera a dissimular, que dirá flertar. Porém, naquela noite ela era a anfitriã no lar de um marquês, com seu cabelo escuro impecavelmente penteado como ditava a última moda e usando roupas igualmente elegantes. A órfã pobre se casara com um homem que a amava como nunca amara antes.
Elliot acreditava que aquele casamento daria certo. Alexia cuidaria para que isso acontecesse. A história já provara que o amor era uma emoção perigosa para os homens da família Rothwell. Contudo a sensata e prática Alexia saberia usar o amor para controlar o perigo. Elliot suspeitava que ela já dominara a fera várias vezes.
Ele se uniu a ela na admiração do sucesso da noite. Em um canto distante, uma mulher pequena de pele muito clara era o centro das atenções. Um penteado adornado de plumas em abundância valorizava seu cabelo louro. Ao mesmo tempo, ela se mantinha vigilante na atenção que uma bela jovem recebia dos rapazes ali por perto.
– O triunfo é seu, Alexia, no entanto, creio que minha tia pretende levar o troféu desta temporada de caça.
– É compreensível a felicidade de sua tia Henrietta por apresentar a filha à sociedade. Dois nobres vinham fazendo galanteios a Caroline nos últimos tempos. Mas ela está irritada comigo hoje porque não convidei um deles para o baile, apesar de ela haver ordenado que eu o fizesse.
Elliot estava pouco interessado nos motivos de irritação da tia. Na lista de convidados, entretanto, tinha todo o interesse.
– Não vi a Srta. Blair, Alexia. Nenhum vestido preto. Nenhum cabelo solto. Hayden a proibiu de convidá-la?
– De jeito nenhum. Phaedra está no exterior. Ela embarcou há cerca de quinze dias.
Ele não queria parecer curioso demais, mas...
– No exterior, você disse?
Os olhos violeta dela se suavizaram, divertindo-se. Voltou toda a sua atenção para ele, o que, considerando o assunto em pauta, não era algo que ele desejasse.
– Primeiro, Nápoles, depois, uma excursão ao sul. Eu avisei a ela que você costuma dizer que não é muito sensato visitar a península Itálica no calor do verão, mas ela queria investigar os rituais e festividades da estação.
Alexia inclinou a cabeça como se fosse confidenciar um segredo.
– Acredito que o falecimento do pai a afetou mais do que ela admite. O último encontro que tiveram foi muito emotivo. Phaedra ficou bastante abalada. Acho que fez a viagem para se animar um pouco.
Ele não duvidava de que se encontrar com o pai em seu leito de morte fosse algo bastante emotivo. Ele mesmo ficara muito consternado ao perder o pai. Nessa noite, porém, estava mais interessado no paradeiro da Srta. Blair e em assuntos discutidos com o pai dela antes da despedida final.
– Se souber onde ela vai se hospedar em Nápoles, posso fazer-lhe uma visita quando eu for, caso ela ainda esteja por lá.
– Ela deixou o endereço do local onde pretendia ficar. Foi indicação de um amigo. Se Phaedra ainda não tiver voltado quando você for, ficarei feliz se puder visitá-la. A independência dela às vezes beira o descuido, e isso me preocupa.
Elliot duvidava de que Phaedra Blair gostasse de ter alguém preocupando-se com ela. Mas Alexia se preocupava de qualquer forma.
– Ai, meu Deus! – murmurou Alexia.
Elliot se virou e viu o motivo do suspiro da cunhada. Henrietta vinha na direção deles, com suas plumas esvoaçantes e seus olhos sonhadores e brilhantes lampejando de tanta determinação.
– Acho que ela está atrás de você – sussurrou Alexia. – Fuja enquanto é tempo ou ela vai pegá-lo para reclamar. Easterbrook permitiu que eu recepcionasse os convidados do baile sem o consentimento dela. Henrietta acredita que o fato de morar nesta casa a torna sua dona.
Elliot era mestre em sair à francesa. Quando a tia alcançou seu destino, ele já se fora havia muito tempo.
Depois de pegar um atalho pelo corredor dos criados e dar uma corrida subindo as escadas dos fundos, Elliot se aproximou dos aposentos de Christian. Entrou na sala de estar e encontrou o irmão esticado em uma cadeira no canto.
O olhar penetrante que Christian lhe lançou deixou claro que sua mente não estava nem de longe tão relaxada quanto o corpo.
– Não encontrei – disse Elliot, respondendo à pergunta que aqueles olhos escuros faziam. – Se estiver na casa ou no escritório dele, está muito bem escondido.
Christian expirou com força. O som que fez demonstrava seu aborrecimento. O assunto em questão vinha cerceando sua liberdade de passar os dias fazendo o que bem entendesse. Elliot não fazia ideia de quais atividades seriam essas. Na verdade, ninguém fazia.
– Ele deve ter queimado tudo ao saber que estava à beira da morte – sugeriu Elliot.
– Merris Langton demonstrava ter uma personalidade tal que é improvável que pensasse em poupar os outros, mesmo à beira da morte.
Christian enfiou um dedo por baixo de sua gravata atada com perfeição e deu um puxão para soltá-la. Sua aparência estava impecável naquela noite, tudo nele demonstrava se tratar de um lorde. Os tecidos de suas vestimentas exibiam a qualidade superior em cada fio. Contudo o gesto ao desatar a gravata mostrava seu desconforto em relação à formalidade da noite e o longo cabelo escuro preso em um rabo de cavalo indicava seu lado excêntrico.
Elliot imaginou que o irmão estaria louco para se desvencilhar daqueles símbolos formais da civilização e se refestelar no robe exótico que sempre usava. O mais comum era encontrá-lo descalço em seus aposentos, não usando meias de seda e sapatos. No momento, entretanto, as únicas indicações de seu jeito informal em casa eram a sobrecasaca desabotoada e a forma lânguida como seu corpo alto se moldava ao forro da cadeira.
– Você verificou se havia tábuas soltas no piso ou outros esconderijos? – perguntou Christian.
– Cheguei a arriscar ser descoberto. Permaneci por tempo de mais nos dois prédios e um guarda estava passando quando saí do escritório no centro financeiro. Estava escuro, não havia luz perto da porta, mas...
Sua descrição da aventura sugeria mais receio do que ele de fato tivera. Elliot acreditava que, em certas circunstâncias, não havia opção a não ser infringir a lei. Só nunca esperara reagir de forma tão fria e indiferente quando se visse numa dessas situações.
– Se alguém perguntar, você ficou no baile a noite toda – disse Christian. – Langton possuía uma pequena editora que publica textos revolucionários. Também era um homem com certo gosto pela chantagem, como descobrimos. Foi uma pena ele ter morrido antes que eu pudesse pagar-lhe. Agora o manuscrito de Richard Drury está sabe lá Deus onde e sua mentira sórdida sobre nosso pai ainda pode vir a público.
– Vou garantir que isso não aconteça.
– Você acha que alguém pode ter pegado o manuscrito antes de você? É provável que eu não tenha sido a única pessoa que Langton abordou.
– Não vi indícios de que alguém já tivesse mexido nas coisas dele. Nem mesmo seu advogado ou testamenteiro. Ele acabou de ser enterrado; foi esta tarde. Não acho que o manuscrito estivesse nem na casa nem no escritório quando ele morreu.
– Esse é um obstáculo muito inconveniente.
– Inconveniente, mas não intransponível. Vou descobrir o manuscrito e o destruirei, se necessário.
A atenção de Christian focou nele.
– Você fala com muita confiança. Sabe onde está o maldito manuscrito, não sabe?
– Faço ideia. Se estiver certo, vamos acabar com isso em breve. Mas pode haver custos para você.
– Pois pagarei. Richard Drury foi membro do Parlamento e, apesar de suas ideias extremistas, um intelectual respeitado. Se suas memórias incluírem tal acusação contra meu pai, muitas pessoas vão acreditar nele.
Vão acreditar porque a acusação reforça o que já creem ser verdade.
Elliot não verbalizou a resposta, mas aquela ideia rondava sua cabeça desde que soubera que Merris Langton planejava publicar as memórias de Richard Drury. O livro incluiria segredos e intrigas que repercutiriam mal sobre a reputação de muitos poderosos, tanto do passado quanto do presente. A acusação que supostamente existia contra o pai deles combinava bem demais com o que a sociedade já pressupunha sobre seu casamento.
Porém, a sociedade estava errada em relação à maior parte do caso. O pai lhe explicara isso em um momento em que os homens não mentem.
Você era o favorito dela. Ela o queria para si e eu permiti, já que você era o caçula. Era um alívio vê-la às vezes se lembrar de que era mãe. Só que agora estou morrendo e mal o conheço. Não espero amor ou pesar de você, mas não vou deixar que pense que sou um monstro, como é provável que ela tenha dito.
– Onde você acha que o manuscrito está? Mantenha-me informado de cada passo, Elliot. Se não estiver fazendo progressos, cuidarei de tudo sozinho.
Só não estava claro como Christian faria isso. Essa incerteza levara Elliot a assumir a tarefa. Seu irmão podia ser cruel ao silenciar ecos do passado.
– Apesar de não ter achado o manuscrito, descobri documentos financeiros no escritório de Langton. A editora está em apuros. Os documentos referentes à propriedade dela foram de grande valia. Richard Drury foi sócio desde o início. Sem dúvida foi esse o motivo pelo qual Langton recebeu suas memórias.
Christian achou isso interessante.
– Teremos que abordar o advogado de Langton e ver quem vai ficar com tudo agora.
– Os documentos indicam que a parte de Drury foi deixada para a única filha. Portanto, ainda há alguém vivo para lidar com o assunto. E provavelmente foi cúmplice no esquema de chantagem desde o início.
– Única filha? Maldição!
Christian apoiou a cabeça no encosto da cadeira, fechou os olhos e emitiu um resmungo exasperado.
– Não me diga que é Phaedra Blair. Que inferno!
– Sim, Phaedra Blair.
Christian xingou novamente.
– É bem do estilo do Sr. Drury, com suas ideias radicais e vida não convencional, deixar para uma mulher, sua filha bastarda, a sociedade num negócio – afirmou, depois desviou o olhar para baixo e prosseguiu: – É claro, ela deve ficar feliz com o dinheiro se a editora estiver em apuros. Talvez até agradeça por ter um motivo para não publicar as memórias do pai. Com certeza os textos abordam assuntos pessoais sobre ela e a mãe.
– É possível.
Mas Elliot não acreditava que as negociações seriam tão simples assim. A Srta. Blair era uma complicação inoportuna. Ela poderia ver na publicação das memórias e seus segredos uma possibilidade de ganhar um bom dinheiro e salvar a editora. Ou, pior, poderia acreditar que seus ideais de justiça social seriam fortalecidos quando ela revelasse o calcanhar de aquiles da sociedade culta.
– O livro dela foi publicado por Langton, não? Está na biblioteca aqui, em algum lugar. Confesso que nunca o li. Não tenho muito interesse em mitologia e folclore, que dirá em estudos que misturam ambos – confessou Christian.
– Ouvi dizer que a base teórica é mais do que respeitável.
Elliot dava a mão à palmatória, quando era o caso.
– Ela herdou a inteligência dos pais, junto com a indiferença pelas convenções sociais e pelas regras de conduta.
– Então, nas atuais circunstâncias, nada do que lhe foi legado é boa notícia para nós.
Christian se levantou, abotoou o casaco e verificou se o colarinho estava arrumado. Ia voltar ao baile.
– É melhor não contar a Hayden sobre isso. Ele é muito protetor em relação à esposa, e a Srta. Blair é amiga dela. Seria melhor que eles continuassem na ignorância, para o caso de você ser obrigado a agir mais rispidamente.
– A Srta. Blair zarpou para Nápoles há duas semanas. Farei a transação com ela antes que Alexia tenha oportunidade de vê-la.
– Vai segui-la até lá para isso?
– Eu pretendia ir a Pompeia no outono, de qualquer forma. Quero estudar as recentes escavações para meu próximo livro. Só vou antecipar a viagem.
Andaram lado a lado até a escada. A cada degrau, os acordes musicais iam ficando cada vez mais altos e o burburinho de vozes enchia os espaços majestosos. Ao descerem para a alegre turba, Elliot observou a expressão distante e distraída do irmão.
– Não se preocupe, Christian. Vou me certificar de que a acusação contra nosso pai nunca seja publicada.
O rápido sorriso de Christian não deixou sua expressão mais leve.
– Não duvido de suas habilidades ou de sua determinação. Não era sobre isso que estava pensando neste exato momento.
– Então era sobre o quê?
– Estava pensando em Phaedra Blair e imaginando se existe um homem na face da Terra que consiga, como você disse, fazer transações com ela.
Elliot seguia no escuro, iluminando o caminho com a chama da pequena lamparina que carregava.
Os convidados tinham ido embora e os criados estavam dormindo. Hayden e Alexia provavelmente gozavam das delícias do leito conjugal em sua casa na Hill Street. Christian ainda devia estar acordado, mas não deixaria seus aposentos pelos próximos dias.
A luz fraca se refletia nas molduras douradas na galeria. A lua lançava um pouco mais de luminosidade através dos janelões que vazavam outra parede. Elliot parou na frente de dois retratos. Não tinha descido no intuito de ir àquele cômodo, mas seu objetivo tinha tudo a ver com o homem e a mulher imortalizados naquelas imagens.
O artista tinha usado fundos semelhantes para os dois quadros, como se uma pintura desse continuidade à outra. Era bom ver seus pais juntos assim, duas metades de um todo, mesmo que a unidade implícita fosse mentira. Podia contar nos dedos o número de vezes que ao menos vira os dois no mesmo ambiente.
Não vou deixar que pense que sou um monstro, como é provável que ela tenha dito.
Seu pai se enganara nessa avaliação. Exceto por um único desabafo, a mãe nunca falara com ele sobre a separação e seus motivos. Ela quase não falava nada nas horas que passava com Elliot na biblioteca em Aylesbury.
O medo que sentira do pai vinha dele mesmo, não viera da mãe. Mas apreciara os raros momentos de atenção que recebera daquele pai que parecia não se lembrar de que tinha três filhos, não apenas dois.
Continuou sua caminhada para a biblioteca pensando na longa conversa que tivera com o pai, a última e única da vida inteira. Aprendera verdades importantes naquele dia, sobre seres humanos e paixões, sobre orgulho e alma e sobre a forma como uma criança pode não enxergar direito o mundo à sua volta.
Tinha chegado ao fim dessa conversa já sem medo. Após aquelas confidências, sentira-se como filho de seu pai pela primeira vez na vida.
Correu a lamparina pelas lombadas de couro dos livros na biblioteca. Seguiu para a estante do canto, buscando a prateleira mais baixa. Depois da morte da mãe, havia trazido para ali os livros pessoais dela, os que ele a vira lendo em seu exílio em Aylesbury.
Não sabia por que trouxera aqueles livros para Londres. Talvez assim uma parte dela permanecesse onde a família costumava se reunir. Seguira esse impulso muito antes da conversa com o pai, um ato de rebeldia na tentativa de finalmente pôr fim à separação dela de suas vidas.
Ninguém nunca notara o acréscimo desses livros às centenas de volumes. Bem embaixo, em um canto obscuro, nem o fato de suas encadernações não combinarem com as dos outros tinha importância.
Passou o dedo por um grupo de obras não encadernadas. Finas e pequenas, eram as brochuras que pertenceram à mãe. Retirou-as da estante, espalhou-as pelo chão e aproximou a lamparina de seus títulos.
Viu o que queria. Um ensaio contra o casamento, escrito trinta anos antes por uma famosa intelectual. A autora vivera de acordo com as próprias crenças. Chegara a recusar uma proposta de casamento do amor de sua vida, Richard Drury, mesmo estando grávida.
Ele carregou a brochura e a lamparina até a estante onde Easterbrook arrumara as novas aquisições da biblioteca. Pegou uma dissertação sobre mitologia que ainda exalava cheiro de couro novo.
Levou os dois livros para seu quarto e começou a lê-los. Estava se preparando para enfrentar Phaedra Blair.
CAPÍTULO 2
– Signora, não acho que eu deva pagar por estes cômodos se nem mesmo quero usá-los.
Phaedra conseguiu expressar sua objeção juntando seus conhecimentos de latim aos poucos termos que aprendera do dialeto napolitano. Esperava que, ainda que as palavras não fossem suficientes, seu tom comunicasse seu desacordo em relação à conta que a signora Cirillo lhe apresentara.
Recebeu uma resposta longa e raivosa, despejada de forma igualmente eloquente. A signora Cirillo não se importava se Phaedra tinha ficado nos cômodos contra sua vontade. Nem gostava de ter guardas reais posicionados do lado de fora de sua hospedaria modesta porém respeitável. Queria ser paga e tivera a ousadia de acrescentar um valor referente ao incômodo que os guardas representavam para os outros hóspedes.
Apesar de tentada a dizer à mulher que mandasse aquela conta para o rei, Phaedra se controlou e foi buscar as moedas no quarto.
Fora mesmo um erro gastar uma semana naquela cidade antes de partir para as ruínas. Se sua reclusão durasse muito tempo, não teria dinheiro para comprar a passagem de volta para a Inglaterra, que dirá continuar sua missão por ali. A ideia era fazer uma viagem curta ao exterior. Não viera a passeio, afinal. Estava lá por um motivo e tinha assuntos urgentes a tratar quando voltasse para casa.
Amansada por mais uma semana, a signora Cirillo foi embora. Phaedra voltou para onde estava sua bagagem e refletiu sobre a situação. Procurou em sua valise e encontrou um xale preto. Desfez o nó que havia em uma de suas pontas, soltando o objeto escondido nele.
Uma joia grande caiu em seu colo e seus matizes brilharam na pouca luz do quarto. Pequenas imagens finamente entalhadas se destacavam em branco-perolado contra o fundo vermelho-escuro. Retratavam uma cena mitológica do deus Baco e seu séquito.
Fora o objeto mais caro que a mãe lhe deixara ao morrer. Para garantir o futuro de minha filha, deixo-lhe meu único objeto de valor, meu camafeu de ágata, uma antiguidade de Pompeia, ela havia acrescentado à mão ao testamento.
Phaedra nunca tinha pensado muito sobre aquele aditamento nos seis anos que se passaram desde a morte da mãe. Conservava com carinho aquela peça, assim como tudo o que lembrava a brilhante e extraordinária Artemis Blair. O valor da joia a deixava mais tranquila em relação a seu futuro financeiro, era bem verdade, mas ela esperava nunca ter que vendê-la. Agora, no entanto, a frase belamente escrita pela mãe levantava perguntas que exigiam respostas.
Amarrou o camafeu de volta no xale, guardou-o e retornou para a sala de estar. Abriu as persianas do janelão que dava para oeste. A baía pareceu muito azul a distância e a ilha de Ischia podia ser avistada em meio à névoa longínqua.
Uma brisa marinha penetrou no cômodo, esvoaçando alguns de seus cachos. A voz do guarda também chegou até ela. Phaedra debruçou-se na janela do terceiro pavimento para ver com quem ele conversava.
Viu alguém de cabelos escuros bem diante do capacete de metal e da imponente bainha da espada do guarda. O cabelo tinha um corte da última moda e se movia de forma romântica ao soprar da brisa. Pertencia a um homem bem mais alto do que o guarda, de ombros largos e que parecia usar uma sobrecasaca cara. As botas eram do tipo visto nos pés mais elegantes de Londres. A julgar pelos trajes, tratava-se de um cavalheiro inglês.
Ela apurou o ouvido para escutar a conversa. Sentiu-se surpreendentemente reconfortada por haver alguém de seu país ali, mesmo que só estivesse pedindo instruções de como andar pela cidade nas ruas mais escondidas do Bairro Espanhol.
Ela considerou a hipótese de chamá-lo e pedir ajuda. Não tinha certeza se os ingleses ali, em Nápoles, sabiam que ela fora presa. Mas também duvidava de que dessem a mínima caso soubessem. Os que a conheciam não aprovavam seu comportamento nem queriam sua companhia. Phaedra normalmente também não apreciava a companhia deles, mas sua inabilidade de se mesclar à sociedade inglesa ali tinha lhe criado problemas muito antes de seu inesperado encarceramento.
As coisas pareciam não ir bem para o inglês: os gestos do guarda deixavam claro que ele se desculpava respeitosamente. Estou cumprindo meu dever. Eu colaboraria se pudesse, mas...
O inglês começou a se afastar. Caminhou para o outro lado da calçada e parou. Olhou para cima, franzindo de leve as sobrancelhas perfeitas. Seus olhos escuros alertas percorreram a fachada do prédio.
Phaedra sentiu o coração ficar mais leve – e não só porque o homem tinha um rosto que faria a pulsação de qualquer mulher acelerar. Ela o conhecia. Era o famoso historiador lorde Elliot Rothwell que estava lá embaixo. Alexia dissera que ele visitaria Nápoles no outono, contudo parecia que ele antecipara a viagem.
Ela se inclinou mais para fora da janela e acenou. Lorde Elliot respondeu com um leve movimento de cabeça. Ela levou um dedo aos lábios e apontou para o guarda. Depois gesticulou indicando os fundos do prédio.
Lorde Elliot se afastou fingindo estudar a arquitetura das construções erguidas ao longo da rua. Phaedra fechou a persiana e correu para o outro lado do apartamento. Abriu a janela e olhou para o pequeno jardim embaixo.
Lorde Elliot levou um tempo para chegar lá. Por fim, ela o viu entrar pela extremidade oposta, vindo pelo portão que dava para a ruela fétida que separava os imóveis. Ele seguiu sem nenhuma hesitação. Caminhou na direção dela, alto e confiante, como um homem acostumado a fazer o que bem entendia. Mesmo que a natureza não o houvesse agraciado com um rosto tão bonito e angular, só seu jeito relaxado de andar e seus modos seguros já causariam forte impressão.
Ela ficou tão feliz por ver alguém conhecido que nem se importou por aqueles olhos escuros a avaliarem tão minuciosamente. Percebera um olhar semelhante por sobre o sorriso manso de lorde Elliot quando se conheceram, no casamento de Alexia. Era a reação de um homem que a achava vagamente interessante, mesmo desaprovando sua aparência, suas crenças, sua história, sua família, seu... tudo.
– Srta. Blair, estou aliviado em vê-la bem-disposta e em boa forma.
Outro daqueles sorrisos mansos acompanhou a saudação.
– Também estou aliviada em vê-lo, lorde Elliot.
– Alexia me deu o nome de sua hospedaria e me pediu que viesse visitá-la, para verificar se não precisava de nada.
– Foi muita gentileza dela. Lamento não poder recebê-lo adequadamente, agora que chegou.
– Parece que não pode me receber de forma nenhuma.
Era bem característico dele fazer algumas gracinhas antes de entrar no assunto.
– Imagino que esteja surpreso, até mesmo chocado, por minha prisão.
– Sou um homem que raramente se choca e quase nunca se surpreende. Contudo admito estar um tanto curioso. A senhorita só está em Nápoles há poucas semanas. A maioria das pessoas levaria pelo menos um ano para acumular crimes suficientes para merecer tal punição.
Ele estava se divertindo com a situação? Naquelas circunstâncias, Phaedra achou a conversa inteligente de lorde Elliot bastante inadequada.
– Não houve crime nenhum, só um pequeno mal-entendido.
– Pequeno? Srta. Blair, há um membro da guarda real na sua porta.
– Não estou convencida de que foi o rei que o colocou lá. Um dos funcionários do tribunal fez isso comigo. Ele é um homenzinho abominável, com poder em demasia e pouca inteligência.
Lorde Elliot cruzou os braços, o que o fez parecer crítico e poderoso. Ela odiava quando os homens assumiam essa postura com ela. Era a personificação de tudo o que havia de errado com a metade masculina da humanidade.
– O guarda mencionou um duelo – disse lorde Elliot.
– Como é que eu iria adivinhar que esses homens fossem tão possessivos a ponto de tentarem se matar porque uma mulher conversou com...
– Espadas e adagas. O guarda disse que houve sangue.
– Marsilio é um jovem artista. Não passa de um garoto. Teimoso, porém muito gentil. Eu não fazia ideia de que iria interpretar erroneamente a nossa amizade a ponto de desafiar Pietro simplesmente porque passeei com ele às margens da baía.
– É lamentável para a senhorita que Marsilio, o garoto teimoso e gentil, seja parente do rei. Ele quase foi morto no duelo. Felizmente, o guarda disse que ele irá sobreviver.
– Ah, graças a Deus! Apesar de as pessoas exagerarem bastante por aqui. Pelo que entendi, ele não ficou muito ferido, ainda que qualquer ferimento possa se agravar neste clima. Fiquei muito pesarosa com o ocorrido. Eu disse isso. Expressei meu arrependimento e minhas desculpas falando bem devagar no meu idioma e também em latim, para ser bem entendida, mas o homenzinho intrometido, odioso e estúpido não me ouviu. Ele até me acusou de ser uma meretriz, o que passou de todas as medidas. Expliquei que nunca tirei nem um centavo de homem nenhum.
– A senhorita declarou sua virtude e honra ou disse ao homenzinho intrometido e estúpido que acha que as mulheres devem dispor de seu corpo livremente?
Ela não gostou nada do olhar profundo e sagaz dele ao expressar essa ousada insinuação. Se não estivesse em uma situação tão ridícula, Phaedra lhe diria que era, sim, uma mulher pouco convencional, mas isso não dava a ele o direito de ser rude. No momento, contudo a prudência tinha que falar mais alto.
– Expliquei minha crença no amor livre, o que é diferente de dispor do corpo livremente, lorde Elliot. Tentei instruí-lo. Ficaria feliz em fazer o mesmo pelo senhor, se algum dia tivermos um encontro mais oportuno.
– Que proposta tentadora, Srta. Blair. Contudo espero que as reflexões filosóficas tenham ficado esquecidas em sua cela. Seria melhor ter se declarado uma cortesã. Aqui se sabe tudo sobre esse assunto. Por outro lado, conceitos radicais sobre o amor livre, bem...
O gesto dele com as mãos disse tudo. O que esperava, mulher? Você vive fora das regras sociais e até a sua aparência convida a mal-entendidos.
Mais uma vez ela engoliu o que seu instinto lhe mandava dizer. Discutir só serviria para afastá-lo, e ela queria muito que ele ficasse um pouco mais. Não se dera conta da própria solidão ali e da tristeza que o isolamento lhe causava. Só ouvir o próprio idioma já era um alento.
– Acha que vão me soltar logo?
De novo o mesmo gesto com as mãos, só que agora acompanhado de um dar de ombros.
– Não há constituição aqui. Nem se julgam os casos observando precedentes, como na Inglaterra. Na verdade, não existe um direito codificado, é uma monarquia à moda antiga. A senhorita tanto pode ser libertada amanhã como ser mandada de volta à Inglaterra, ou levada a julgamento, ou permanecer nesses aposentos por anos, ao bel-prazer do rei.
– Anos! Isso seria uma barbaridade.
– Acho que não vai chegar a esse ponto. Contudo pode levar alguns meses até que seu homenzinho odioso e estúpido perca o interesse no caso.
Ele olhou para a fachada do prédio em frente e depois para o portão do jardim.
– Srta. Blair, não posso mais ficar escondido neste jardim, ou também correria o risco de me tornar hóspede dos guardas do rei. Tomarei providências para que lhe mandem comida e deixarei uma quantia em dinheiro para pagar pelo apartamento, pois com certeza continuarão a lhe cobrar o aluguel. Também vou pedir que um adido inglês venha, de tempos em tempos, verificar se está tudo bem.
Meu Deus, ele estava indo embora! Talvez ela envelhecesse naqueles cômodos, ou até morresse de fome quando o dinheiro acabasse.
Ela não era o tipo de mulher que dependesse de um homem para sustentá-la ou protegê-la. Além do mais, lorde Elliot não havia conquistado seu apreço durante a conversa. Contudo estar diante de um futuro incerto a ajudou a superar sua aversão natural a pedir ajuda àquele homem.
– Lorde Elliot – chamou, fazendo-o parar após ele ter dado três passos na direção do portão do jardim. – Lorde Elliot, os adidos ingleses não estão interessados em minha situação. Pergunto-me se o senhor consideraria a hipótese de interceder em meu favor. Tenho certeza de que o homenzinho odioso ficaria muito impressionado com suas ligações familiares e sua fama como historiador. Se pedisse em meu nome, talvez ajudasse.
A expressão dele foi simpática, porém nada encorajadora.
– Sou o caçula. Minha posição é bem menos importante aqui e minha fama pouco conta. Esse tribunal não tem motivo algum para me conceder favores.
– Estou certa de que será mais bem recebido do que eu jamais conseguiria. Pelo menos, conhece o idioma deles. Vi-o conversar com o guarda.
– Não sou fluente o bastante no dialeto para defendê-la bem.
– Ficaria grata por qualquer tentativa de sua parte.
Que fim levara o cavalheirismo? Não acreditava nele, mas gente do tipo de Elliot Rothwell, sim. Ela era uma donzela em perigo e esse cavalheiro deveria se prontificar a ajudá-la, não ficar parado no meio do jardim, com aquele jeito de quem adoraria nunca tê-la avistado na janela.
Ele refletiu um distante, analisando o pedido. Ela sentiu seu sorriso congelar até virar uma careta suplicante.
– Não estamos na Inglaterra, Srta. Blair. Mesmo que eu tenha êxito, talvez a senhorita não aprecie as condições impostas por eles em troca de sua liberdade.
– Vou me esforçar e acatar quaisquer condições, ainda que reze para que não me ponham em um navio de volta para a Inglaterra de imediato. Vim até aqui e preciso, na verdade quero, visitar as escavações de Pompeia. Antes de ir embora. É um antigo sonho meu.
Ele parou para pensar por um longo tempo. Seu suspiro deixou claro que sua decisão ia contra o próprio bom senso.
– Prometi a Alexia que cuidaria do seu bem-estar, então farei o que puder. Encontrar o homem que ordenou sua detenção pode não ser tarefa fácil. Qual é o nome dele? Preferia não ter que andar pelos corredores do tribunal perguntando por um homenzinho odioso e estúpido. Ele poderia ouvir a descrição, o que não nos ajudaria em nada. Além disso, ela provavelmente se aplica a muitos outros funcionários da Justiça.
Ele havia aceitado seu pedido não por um desejo genuíno de ajudá-la, mas para cumprir o que considerava seu dever. Mas Phaedra Blair estava desesperada demais para entrar em detalhes a respeito de suas motivações.
– O nome dele é Gentile Sansoni. Que cara é essa? O senhor o conhece?
– Já ouvi falar dele. Sua autodefesa caiu em ouvidos moucos, Srta. Blair. Sansoni não fala inglês nem latim. Ele é um legítimo napolitano, o que não é boa notícia.
Certamente Phaedra Blair chamara a atenção de Gentile Sansoni, capitão da polícia secreta do rei. É claro que, com seu longo cabelo ruivo esvoaçando ao sol, solto e descoberto, ela chamaria a atenção de toda a Nápoles.
Elliot ouvira falar sobre o algoz da Srta. Blair durante sua última visita à cidade, fazia três anos. Sansoni fizera sua fama a custa de sangue, em 1820, quando o breve governo republicano fora violentamente vencido e a monarquia, restaurada.
Diziam que Sansoni era responsável pelo desaparecimento inesperado de carbonários, ou constitucionalistas, e também que abusava de sua autoridade em setores que tinham pouco a ver com política. Não era o tipo de homem que se impressionaria com um cavalheiro inglês, e Elliot também não acreditava que encarasse de forma positiva uma tentativa sua de recorrer a seus superiores para mudar a decisão tomada pelo capitão.
Elliot não poderia negociar sobre o livro do pai da Srta. Blair enquanto ela permanecesse presa, por isso aceitara de imediato tentar libertá-la. Só tinha fingido hesitar para fazer com que ela se sentisse em dívida.
Também se deixara levar pela desprezível tentação de fazer com que aquela defensora declarada da independência feminina implorasse pela ajuda de um homem. De alguma forma, pelo simples fato de existir, a Srta. Blair conseguia fazer com que um homem se sentisse desafiado. Os instintos dele tinham reagido à altura.
Contudo o dever falara mais alto e, no dia seguinte, ele se dispôs a fazer o que estivesse a seu alcance por ela. Sansoni não se deixaria impressionar por cavalheiros ingleses, mas talvez pelo menos ouvisse um capitão da Marinha britânica. A corte de Nápoles ainda reverenciava a memória de Nelson, e Elliot suspeitava que Sansoni veria o herói inglês quase como um irmão que um dia, muito tempo antes do rápido governo republicano, ajudara a impedir outra tentativa de golpe contra o rei.
Sempre havia navios britânicos no porto de Nápoles, e Elliot foi visitar um cujo capitão ele conhecia. Dois dias depois de se encontrar com a Srta. Blair, Elliot levou Augustus Cornell – que vestia seu traje militar completo e impecável – ao longo de quilômetros de corredores de palácios até encontrarem o covil de Gentile Sansoni.
Como era apropriado a um funcionário da Justiça que trabalhava nas sombras, a sala de Sansoni se localizava nos fundos do prédio e num andar tão baixo que, a caminho dela, as escadas passavam de fino mármore para simples travertino. Apesar da localização, Sansoni a dotara de móveis suntuosos o suficiente para parecer importante. Arrumara um local grande o bastante para suas ambições, mas o teto baixo e a falta de janelas davam ao lugar um aspecto cavernoso.
– Pode deixar que eu falo – disse Cornell, com seu rosto suave e pálido que expressava a formalidade dos homens de sua patente. – Já tive que tratar com ele antes e todo cuidado é pouco.
– Sabe falar a língua?
O napolitano era um dialeto bem diferente daquele falado em Roma ou em Florença. Mesmo tendo muito de latim, que Elliot conhecia, o lorde não saberia o bastante dele para não ficar em desvantagem ao usá-lo ali.
– Esperemos que o suficiente. Fique aqui. Agirei como mediador, física e simbolicamente.
Elliot ficou perto da porta, como ordenado. Cornell atravessou a sala e se aproximou do homenzinho moreno sentado na larga mesa na outra extremidade. A descrição que a Srta. Blair fizera de Sansoni fora perfeita. Ele parecia mesmo repugnante e odioso e, naquele momento, muito desconfiado. Suas sobrancelhas negras encobriam os olhos de águia amendoados, tão comuns naquela região.
Sansoni ofereceu vinho, fizeram um brinde e depois entabularam uma conversa. Por fim, Cornell caminhou de volta até Elliot.
– Há uma complicação – disse ele, baixo. – Esse amigo da Srta. Blair, Marsilio, o que levou a pior no duelo, é parente distante do rei e recebe os favores da família real por conta de seus dotes artísticos. Também é um rapaz com quem acho que Sansoni espera casar uma de suas parentas, consolidando assim sua própria posição. Mas esse sonho é improvável de se realizar devido à origem humilde de Sansoni. Ainda assim, ele fez do bem-estar do rapaz sua missão pessoal.
O capitão aproximou o rosto do de Elliot para poder falar ainda mais baixo.
– Também creio que o rei não tenha conhecimento desse duelo. Mencionei várias vezes o título nobre do seu irmão e suspeito que Sansoni só me recebeu por temer que um marquês britânico possa levar o assunto diretamente ao rei.
Um marquês com certeza poderia, mas isso demoraria meses.
– Pode conseguir a libertação da Srta. Blair?
– Duvido muito. O duelo não foi tudo. O rei possui uma coleção de arte e o acesso a uma de suas salas é proibido a mulheres, pois contém imagens antigas de natureza carnal. A Srta. Blair convenceu o jovem Marsilio a deixá-la entrar lá. Agora é acusada de invasão de domicílio e de gostar de arte licenciosa. Sansoni também disse que ela é uma cortesã. Apesar de Nápoles ser infame por permitir que as mulheres exerçam atividades desse tipo, a Srta. Blair se esgueirou por lugares que a corte frequenta...
– Ela não é cortesã. Ponho a minha mão no fogo. Ela é incomum, é verdade. Excêntrica. Uma livre-pensadora, porém honesta. É claro que Sansoni sabe que pessoas assim existem. Explique isso a ele.
– A função desse homem é deter livres-pensadores e ele a cumpre com deleite. Ainda assim, vou tentar novamente.
Mais uma vez Cornell atravessou a sala. A conversa foi mais breve dessa vez. Os olhos negros de Sansoni buscaram Elliot e o examinaram dos pés à cabeça.
Cornell voltou.
– Ele falou mais rápido dessa vez e não compreendi tudo. Mas perguntou com que autoridade você e sua família se intrometem neste caso. Exige saber se você tem parentesco ou alguma outra relação com ela.
Elliot não tinha qualquer relação com ela, nem autoridade sobre o caso, porém não poderia admitir isso.
– Diga-lhe que ela é uma boa amiga da família. Easterbrook a recebe como a uma irmã.
Essa mentira deslavada nunca seria refutada. Christian faria o mesmo naquelas circunstâncias.
– Diga que tentamos exercer nosso controle sobre ela, contudo ela fez essa viagem inesperada a Nápoles para fugir da nossa influência. Vim para cuidar de seu bem-estar e posso garantir que não vai haver mais problemas. Se ele der a entender que aceita suborno, diga-lhe que pagarei para tê-la de volta.
A conversa de Cornell com Sansoni ficou mais animada dessa vez. O napolitano gesticulava muito, numa rápida sucessão. Quando Cornell voltou com seu relatório, parecia um pouco preocupado.
– Temo que tenha havido um mal-entendido. E que esclarecê-lo possa trazer outras complicações. Culpo minha falta de fluência no idioma por essa infeliz reviravolta nas negociações – disse ele.
– Mas ele parece bem mais calmo e amigável. Qual foi o mal-entendido?
Cornell enrubesceu.
– Não sei exatamente como, mas ele concluiu que o senhor é noivo da Srta. Blair e que ela veio para cá fugindo de um casamento arranjado que sua família aceitou devido ao polpudo dote da moça. Ele acha que você a seguiu para levá-la de volta.
– Um mal-entendido e tanto! Como isso aconteceu?
– Não tenho certeza. Devo ter usado as palavras “família”, “irmã”, “dinheiro” e “fuga” de forma confusa e dado a entender mais do que pretendia.
Cornell deu um suspiro e já voltava para a sala, para tentar corrigir seu erro, quando Elliot o pegou pelo braço, detendo-o.
– Ele está disposto a libertá-la se mantivermos esse mal-entendido?
– Sim, mas...
– Tem certeza de que é isso que ele tem em mente?
– Não posso garantir que tenha entendido direito a interpretação dele, mas...
– Então não vamos corrigir nada.
– Não estou certo de que isso seja honroso.
– Você não disse inverdades e não tem certeza do mal-entendido – assegurou Elliot, pondo a mão no ombro de Cornell. – Aceitarei isso como um presente da Providência divina e deixarei como está. Ele não é um homem que tenha contato com a comunidade britânica daqui. Se entendeu mal, nunca descobrirá a verdade.
Cornell se deixou convencer.
– Se você está tão determinado, então que assim seja. Venha comigo. Ele quer a sua palavra de que vai controlar a Srta. Blair enquanto ela permanecer neste reino. Ela deve ficar sob sua autoridade. Será responsabilizado por qualquer outro problema que ela crie. Está preparado para prestar juramento?
Elliot assentiu. Atravessou a caverna com o capitão Cornell e assumiu a guarda da Srta. Blair, concedida pelo odioso e repugnante Gentile Sansoni.
CAPÍTULO 3
A signora Cirillo chamou à porta e Phaedra se levantou da escrivaninha para atendê-la. Se aquela mulher queria mais dinheiro tão cedo...
Uma visão maravilhosa a aguardava quando abriu a porta de seus aposentos. A signora Cirillo não estava sozinha. Lorde Elliot estava ao seu lado.
Phaedra manteve a compostura, apesar da vontade de gritar de alegria. Se ele estava lá, só podia significar uma coisa.
– Lorde Elliot, entre, por favor. Grazie, signora.
A signora Cirillo arqueou as sobrancelhas por sobre seus olhos felinos escuros ao ser dispensada. Phaedra fez-lhe ver que não era bem-vinda.
– Está trazendo boas-novas, assim espero, lorde Elliot – disse Phaedra quando ficaram sozinhos.
– Sua prisão domiciliar está encerrada, Srta. Blair. Temos que agradecer ao capitão Cornell, do Euryalus. Ele falou com Sansoni em nosso favor.
– Graças a Deus pela Marinha britânica.
Phaedra correu para a janela e abriu as persianas. O guarda tinha ido embora.
– Nem acredito que vou poder dar uma volta às margens da baía hoje à noite.
Correu de volta até lorde Elliott e lhe deu um abraço.
– Sou imensamente grata.
Ele sorriu gentilmente quando ela o largou. Parecia entender sua animação e perdoar sua exuberância. Se seu olhar tinha se abrandado um pouco depois do abraço impulsivo, era compreensível. Afinal, ele era homem.
Estava magnífico, vestido em uma sobrecasaca marrom feita sob medida e botas de cano alto. O sorriso contribuía bastante para suavizar a dureza das feições dos Rothwells. Ao contrário de seus irmãos mais velhos, lorde Elliot era considerado alguém muito sorridente, o que, ao que tudo indicava, era pura verdade.
Ele olhou em volta da sala de estar e o olhar se deteve na escrivaninha.
– Temo ter interrompido sua carta.
– Uma interrupção muito bem-vinda. Estava escrevendo para Alexia, desabafando meu infortúnio, na esperança de que ao menos conseguisse jogar a carta quando o senhor voltasse aqui.
– Por que não termina a carta logo e lhe diz que está tudo bem? Posso entregá-la a Cornell. Ele vai zarpar em dois dias para Portsmouth e poderá postar a carta para Londres de lá.
– Que ideia esplêndida, se não me achar rude por rabiscar umas linhas a mais.
– Nem um pouco, Srta. Blair. Nem um pouco.
Ela se sentou e acrescentou rapidamente um parágrafo para contar a Alexia que tudo fora resolvido a contento, graças ao cunhado da amiga. Dobrou, endereçou, selou o papel e ficou com ele na mão. Lorde Elliot puxou a carta de seus dedos com delicadeza e a colocou no bolso da sobrecasaca.
Em seguida, retomou sua avaliação da sala de estar e da vista.
– A senhorita veio atender a porta. Onde está sua camareira?
– Não tenho camareira, lorde Elliot. Nem criados. Nem em Londres.
– Isso é por causa de outra crença filosófica?
– É uma decisão prática. Um tio me deixou uma renda respeitável, contudo prefiro gastá-la de outras formas.
– Muito sensato de sua parte. Contudo o fato de não ter criados é um inconveniente.
– De jeito nenhum.
Ela deu meia-volta e as dobras de seu vestido preto, assim com o cabelo comprido, esvoaçaram.
– Um vestido como este não exige uma criada para ser colocado e meu cabelo só precisa de uma boa escovadela.
– Não estava pensando nas suas vestimentas. Preciso lhe falar dos desdobramentos do caso e, sem uma criada conosco...
Estava preocupado com a reputação dela por ficar sozinha com um homem. Que encantador.
– Lorde Elliot, é impossível me comprometer, porque estou acima dessas regras sociais estúpidas. Além disso, trata-se de um encontro de negócios, não? Em situações assim, nossa privacidade não é apenas permitida, como necessária.
Ela duvidava que ele aceitasse seu raciocínio, por mais lógico que fosse. Homens como ele nunca aceitavam. Contudo, para seu espanto, ele não a refutou.
– A senhorita está certa. Prossigamos, então. Não quer se sentar? Isso vai levar um tempo.
Ele pareceu muito sério de repente. Sério, grave e... severo. Seu gesto ao apontar o sofá pareceu acompanhar uma ordem, não a sugestão que fizera tão educadamente. A tentação de permanecer de pé a atiçou. Sentou-se, mas apenas porque ele fora o responsável por obter sua libertação.
Elliot se acomodou em uma cadeira diante dela e então lhe deu uma boa olhada, como se a medisse dos pés à cabeça. Foi como se nunca a tivesse visto e tentasse interpretar a imagem peculiar que ela apresentava.
Phaedra não podia afastar da mente a impressão de que, de certa forma, nunca o tinha visto antes também. Não havia nada mais da graça suave do lorde agora, apenas um longo olhar avaliador e invasivo que a deixava desconfortável. Uma reação muito feminina retumbava dentro dela.
Isso era a pior coisa em relação aos homens bonitos. A beleza deles deixava a mulher em desvantagem quando eles lhe dirigiam sua atenção. Esse homem era muito bonito. Era também muito masculino na maioria das situações e sutilmente másculo nas piores delas. Naquele exato momento, parecia estar tentando, de maneira deliberada, deixá-la perturbada. Não o fazia por motivos carnais, disso Phaedra tinha certeza. Porém, ele emanava sedução também e o sangue dela reagia a isso.
Proteger, possuir, conquistar – tudo eram facetas do mesmo instinto primitivo, não? Um homem não poderia seguir uma dessas inclinações sem despertar as outras dentro de si, e uma mulher era facilmente subjugada se não tomasse cuidado. Ela se perguntou que parte ancestral da personalidade masculina o motivava naquele momento.
– Alexia me pediu para tomar conta da senhorita. Não menti ao lhe dizer isso. Contudo tive outros motivos para visitá-la e agora preciso tratar deles.
– Como só nos vimos uma vez, no casamento de Alexia, e muito rápido, não posso imaginar quais possam ser seus motivos.
– Acho que pode.
Agora ele a estava aborrecendo.
– Tenho certeza de que não posso.
O tom dele indicou que ela o aborrecera também:
– Srta. Blair, chegou aos meus ouvidos que a senhorita agora é sócia da editora de Merris Langton, tendo herdado a participação de seu pai no negócio.
– Essa informação não foi divulgada, lorde Elliot. Uma vez que os homens pressupõem que as mulheres não podem ter sucesso nos negócios e como muitos acreditam ser anormal até que uma mulher tente, decidi manter isso em sigilo, de forma que o preconceito não afete a empresa.
– Pretende ter uma participação ativa nela?
– Vou participar na seleção dos títulos a serem publicados, mas espero que o Sr. Langton continue a supervisionar as questões práticas. Gostaria de saber quem lhe contou isso. Se meu advogado foi indiscreto...
– Seu advogado é irrepreensível.
A atenção dele se desviou dela. Seus olhos ficaram meditativos, obscuros. O homem elegante e cosmopolita que escrevera um famoso livro de História antes de completar 23 anos agora estava distraído, absorto nos próprios pensamentos.
– Srta. Blair, lamento trazer-lhe algumas más notícias. Depois que a senhorita deixou Londres, Merris Langton faleceu da doença que o acometia. Ele foi enterrado dias antes de eu partir.
Ela temera que o Sr. Langton não chegasse a se recuperar; ainda assim, ficou surpresa ao ouvir a notícia de sua morte.
– De fato, são más notícias, lorde Elliot. Obrigada por me contar. Não o conhecia bem, contudo o falecimento de uma pessoa é sempre triste. Contava com ele para ajudar a manter a editora, mas parece que vou ter que dar um jeito sozinha.
– É tudo seu agora?
– Meu pai fundou a editora e a subsidiou desde sempre. Ele poderia passar sua parte a outra pessoa, entretanto a do Sr. Langton ficaria para o meu pai se ele morresse. Então, sim, acredito que seja tudo meu agora.
A distração dele desapareceu. Sua objetividade voltou. Fria.
– Antes da doença, Langton procurou meu irmão. Falou que publicaria as memórias do seu pai. Ofereceu-se para omitir vários parágrafos no manuscrito que tratavam da minha família se uma quantia significativa fosse paga a ele.
– Ele fez isso? Que horror! Estou chocada com essa traição para com os princípios de meu pai e peço desculpas sinceras por meu sócio.
Ela se levantou e começou a andar de um lado para outro, agitada com a revelação. Por educação, lorde Elliot se levantou também, mas ela o ignorou. Tentava compreender todas as implicações do esquema idiota do Sr. Langton. Aquilo poderia significar o fim da editora.
Ela conhecia bem a situação precária das finanças da empresa e, como proprietária, era responsável pelas dívidas não saldadas. Contava com as memórias do seu pai para quitá-las. Se o Sr. Langton comprometera a integridade dessa publicação, as pessoas talvez ficassem descrentes de todo o conteúdo do livro.
– Isso tudo é culpa de Harriette Wilson – disse ela, com sua perturbação agora beirando a raiva. – Ela estabeleceu um precedente infeliz ao pedir que seus amantes pagassem para ter os nomes retirados. Escrevi-lhe sobre isso, se quer saber. Disse a ela que era errado receber dinheiro para apagar trechos de biografias, que era só uma forma velada de chantagem. Ela só pensou no próprio bolso, é claro. Bem, eis o resultado da vida dependente que ela escolheu e da extravagância tola que pôs em prática.
Ela passou a andar com passos mais resolutos.
– Sem dúvida o Sr. Langton abordou outras pessoas também. Nunca imaginei que ele comprometeria a ética de nossa editora dessa forma.
– Srta. Blair, por favor, poupe-me do ultraje teatral. Minha família estava pronta para pagar a Langton. Vim procurá-la para dizer que pagaremos com prazer à senhorita no lugar dele.
Ultraje teatral? Ela parou de andar e o encarou.
– Lorde Elliot, espero tê-lo entendido mal. Está sugerindo que eu aceitaria seu dinheiro para suprimir partes das memórias de meu pai a seu bel-prazer?
– Esperamos que sim.
Ela se aproximou dele até estar perto o bastante para ver os pensamentos refletidos em seus olhos.
– Meu Deus, o senhor acha que eu tinha conhecimento de que o Sr. Langton fazia isso, não acha? Acredita que eu fui cúmplice.
Ele não respondeu. Só sustentou o olhar, visivelmente não acreditando no espanto dela.
Furiosa com as suposições dele e afrontada pelo insulto, ela se virou.
– Lorde Elliot, as memórias do meu pai vão ser publicadas tão logo eu chegue à Inglaterra. Cada frase delas. Foi seu último desejo, feito a mim em seu leito de morte. Eu nunca as editaria de forma a escolher as palavras dele que o mundo devesse ler. Fico muito grata por sua ajuda com o Sr. Sansoni, mas é melhor pararmos esta conversa por aqui. Se eu tivesse uma criada, ela lhe mostraria a saída. Como não tenho, o senhor pode encontrá-la sozinho.
Para deixar mais claro que o lorde estava dispensado, Phaedra se dirigiu ao quarto e fechou a porta.
Ainda não havia se recomposto quando a porta do quarto foi aberta e lorde Elliot entrou calmamente, fechando a porta atrás de si.
– Minha visita ainda não acabou e nossos negócios não estão concluídos, Srta. Blair.
– Como ousa? Este é o meu quarto, senhor.
Ele cruzou os braços e assumiu a atitude masculina e irritante de quem se considera no comando.
– Normalmente isso me impediria, entretanto a senhorita está acima de regras sociais estúpidas, como a que dita que eu não deveria entrar aqui, lembra?
Ela não considerava essa regra social tão estúpida. Tinha uma razão muito especial e primitiva de existir. Aquele era seu espaço mais privado, seu santuário. O clima foi se alterando à medida que Elliot olhava em volta, para o guarda-roupa onde suas vestimentas estavam arrumadas e a penteadeira que exibia seus objetos pessoais. Seu olhar percorreu a cama devagar e voltou para Phaedra.
Os pensamentos dele não ficaram tão ocultos quanto ele imaginou. Ela notou as mudanças sutis em sua expressão, na forma como a dureza que ele exibia se alterou, mesmo que ligeiramente. Os homens não conseguem ficar perto de uma cama e de uma mulher sem começar a devanear. Era uma maldição da natureza que eles carregavam.
Ela ficou irritada ao se pegar pensando na mesma coisa. A forma como ele acabara de insultá-la deveria ter sido suficiente para que aquela intimidade que começava a se infiltrar no quarto jamais existisse. O breve silêncio foi ficando cada vez mais pesado e cheio de uma excitação magnética que mexia com ela.
Uma imagem relampejou em sua mente: lorde Elliot olhando do alto para ela, seus rostos afastados por meros centímetros, seu cabelo escuro despenteado por motivos que nada tinham a ver com moda, seus pensamentos completamente desmascarados. Ela viu seus ombros nus e sentiu a pressão de seu corpo e a firme pegada de seu abraço na pele dela. Sentiu...
Phaedra se esforçou para afastar a imagem da cabeça, mas os olhos dele faiscaram, demonstrando que lera os pensamentos dela. Ele sabia por onde a mente dela andara, assim como ela conhecia os caminhos da dele.
Ele descruzou os braços. Phaedra pensou que ele fosse segurá-la e imaginou se não iria insultá-la ainda mais. Havia homens que a interpretavam erroneamente e, por ignorância, lhe faziam propostas, só que lorde Elliot não era estúpido. Seria uma ofensa cruel e deliberada se ele tentasse se aproveitar da tensão sexual que tinham percebido.
Ele desviou sua atenção dela, diluindo a intimidade, porém não a dissipando por completo. O orgulho de Phaedra foi poupado, ainda que, com isso, seu lado mais primitivo se ressentisse.
– O manuscrito está aqui? – perguntou ele. – A senhorita o trouxe?
– É claro que não. Por que faria isso?
Ele olhou para o guarda-roupa.
– Jura? Do contrário, terei que fazer uma busca.
– Juro, e não ouse fazer isso. O senhor não tem o direito de estar aqui.
– Na verdade, tenho sim, mas conversaremos depois.
O que isso queria dizer?
– Deixei-o em Londres, em um lugar muito seguro. Ele contém as memórias de meu pai, seus últimos desejos. Nunca seria descuidada a esse respeito.
– A senhorita o leu?
– É claro.
– Então sabe o que ele escreveu sobre a minha família. Quero que me fale disso agora. Suas palavras exatas, o melhor que se lembrar.
Não era um pedido, mas uma exigência. Sua arrogância dominadora estava rapidamente fazendo com que a gratidão de Phaedra desaparecesse.
– Lorde Elliot, o nome de sua família e o de Easterbrook não são mencionados no manuscrito.
Isso o surpreendeu. Sua severidade ficou abalada por tempo suficiente para que ela percebesse novamente o homem amigável e prestativo que entrara em seu apartamento. Não durou muito. Ele voltou a ficar distraído e meditativo, e sua mente ágil captou o que ela dissera.
– Srta. Blair, Merris Langton descreveu a meu irmão uma acusação específica contra meu pai. Há algo no manuscrito que, em sua opinião, poderia ser interpretado como uma referência a meus pais?
Ela queria que ele não tivesse feito a pergunta nesses termos.
– Há uma parte que pode ser interpretada assim, imagino eu.
– Por favor, descreva-a.
– Prefiro não descrever.
– Eu insisto. A senhorita vai me contar agora.
Sua voz, sua postura e sua expressão indicavam que nenhum argumento seria ouvido. Nunca antes na vida Phaedra tinha sido tão claramente coagida por um homem a fazer algo.
Talvez fosse melhor que ele e sua família ficassem avisados. A passagem em questão era uma entre várias nas memórias que a haviam feito hesitar.
– Meu pai descreve um jantar oferecido muitos anos antes de minha mãe morrer. Eles estavam recepcionando um jovem adido recém-chegado do Cabo. Meu pai queria saber as verdadeiras condições de vida lá. Esse rapaz bebeu demais e ficou embriagado. Acabou confidenciando algo que ocorreu em um regimento britânico na colônia.
A menção à colônia do Cabo atraiu a atenção de Elliot por completo. Ela se condoeu. Sempre tivera esperanças de que aquele rumor não fosse verdadeiro, mas...
– Prossiga, Srta. Blair.
– Ele disse que, enquanto esteve lá, um oficial britânico morreu. A causa da morte foi registrada como febre, contudo, na realidade, ele levou um tiro. Foi encontrado morto após sair para fazer a ronda. Chegaram a desconfiar do outro oficial que o acompanhava, só que não acharam provas. Em vez de contestarem o suspeito, optaram por usar uma causa mortis falsa.
Ele agora ocultava muito bem sua reação. O rosto estava impassível, como se talhado em pedra. Contudo seu silêncio foi se tornando terrível, carregado da raiva que emanava dele.
– Srta. Blair, se associou esse caso com a minha família, a senhorita deve saber do boato imoral de que meu pai teria enviado o suposto amante de minha mãe para assumir um posto na colônia do Cabo, onde morreu de febre.
Ela engoliu em seco.
– Creio que tenha ouvido algo a respeito em algum momento.
– Se a senhorita soube, muitos souberam. Nem Langton nem a senhorita tiveram qualquer dificuldade em juntar as referências e chegar a uma conclusão. Se a senhorita publicar essa parte, ficará bastante clara a insinuação de que meu pai pagou outro oficial para matar o amante da esposa. A ausência de nomes nas memórias não poupará a reputação de meu pai, e ele não pode se defender da sepultura.
– Não estou convencida...
– Droga, é exatamente o que acontecerá, e a senhorita sabe disso. Exijo que suprima esse trecho das memórias.
– Lorde Elliot, sou solidária em sua perturbação. De verdade. Contudo meu pai me encarregou de fazer com que suas memórias fossem publicadas e é meu dever fazê-lo. Pensei muito nisso. Se eu suprimir cada frase que possa ser interpretada como perigosa ou pouco lisonjeira a essa ou àquela pessoa, pouco vai restar.
Ele andou até ela e a olhou de cima com firmeza.
– Essa mentira não será publicada.
A determinação dele era palpável. Ele não precisava de expressões de raiva ou ameaças verbais para enfatizar o poder que usaria contra ela. Estava tudo ali, ao redor dela, junto com a tensão sexual que não abandonara o quarto, num clima carregado de todas as nuances daquele instinto obscuro.
– Se for mentira, pensarei em omitir – assegurou ela. – Se conseguir obter provas de que o homem morreu de febre ou se o convidado de meus pais desmentir a história, eu a suprimirei. Farei isso por Alexia, não pelo senhor ou por Easterbrook.
Essa declaração o aliviou. Um sorriso vagaroso se formou.
– Por Alexia? Que conveniente. Assim pode recuar sem me dar a vitória.
Elliot a entendia bem demais. Phaedra não dava a mínima importância para provas.
Olhou-a com gentileza. De repente pareceu inapropriado estarem tão próximos, uma proximidade que nascera num momento de fúria dele. Com a raiva saindo de cena, era a outra sensação que voltava a crescer.
Ele não recuou como deveria – e como as sobrancelhas erguidas de Phaedra pediam. Em vez disso, ajeitou uma mecha do cabelo dela e ficou olhando para aqueles fios vermelhos enquanto os enrolava com delicadeza entre os dedos.
– Seu pai incluiu o nome de algum desses homens, Srta. Blair? Do jovem adido do jantar ou do oficial suspeito?
Ele não a tocou, mas a brincadeira com o cabelo dela implicava coisas em que ela preferia nem pensar. O fato de estarem sozinhos num quarto, até mesmo o de terem se confrontado, demolira as formalidades que a protegeriam. O formigamento sutil que ele causava em seu couro cabeludo era tão delicioso que levava a pensar em outras excitações físicas.
Conquistar, possuir, proteger – ela não tinha dúvida de que ele estava preparado para ser implacável e brincar com mais do que o cabelo, se achasse que com isso obteria o que desejava. Também não acreditava em si mesma para vencer aquele desafio, se ele surgisse.
– O jovem adido que meus pais convidaram para jantar é Jonathan Merriweather.
Ele olhou nos olhos dela, desconfiado de novo.
– Merriweather hoje é assistente do embaixador britânico aqui, em Nápoles.
– Muito conveniente para o senhor.
A mão dele se moveu por entre os cabelos com mais firmeza. A brincadeira sutil se tornava controladora.
– A senhorita viajou até aqui para falar com ele? É por isso que está em Nápoles? Pretende adicionar notas a essas memórias e completá-las com os nomes que seu pai foi discreto ao omitir? O livro venderia mais ainda, e ouso dizer que o dinheiro resultante seria muito bem-vindo para sua editora.
Ela segurou o cabelo e o retirou de entre os dedos dele, determinada. Sua indignação a ajudou a ignorar a sensação daquela mão quente ao roçar na sua e a não dar importância ao modo como os olhos dele refletiram sua consciência do toque feminino.
– Agradeço a sugestão, mas espero que as memórias do meu pai caiam no gosto popular do jeito que são, sem acréscimos. De qualquer forma, não estou aqui com esse objetivo.
Era uma mentira deslavada, mas ela não sentiria remorso por confundir aquele homem. Seu interesse em preencher as lacunas das memórias do pai nada tinha a ver com a família Rothwell.
– Lorde Elliot, vim até aqui para visitar as escavações e as ruínas ao sul. Preciso me preparar para deixar a cidade de imediato e continuar minha viagem como planejei desde o início. Portanto, peço-lhe, mais uma vez, que parta.
– Sua viagem terá que ser adiada por uns poucos dias. Não posso permitir que vá agora.
Ela riu. A presunção do homem havia chegado ao ponto do ridículo.
– O que o senhor permitiria ou deixaria de permitir não é de meu interesse.
– É de interesse essencial para a senhorita. Eu a adverti de que sua libertação teria condições e a senhorita prometeu aceitá-las.
– O senhor não falou em condições ao chegar.
– Seu abraço apertado me distraiu.
Ela o encarou desconfiada.
– Quais são essas condições?
Ele olhou para baixo devagar, para seus cachos esvoaçantes – portanto, para boa parte do corpo dela. Phaedra achou ter notado um interesse possessivo, como se ele tivesse acabado de receber um presente e aquilatasse o valor.
– Gentile Sansoni só a libertaria se ficasse sob minha guarda. Tive que aceitar total responsabilidade pela senhorita e prometi controlar seu comportamento.
Um calor de fúria lhe subiu à cabeça. Agora entendia por que, de repente, lorde Elliot passara a se comportar de forma arrogante, fazendo exigências.
– Isso é intolerável. Nunca me submeti a um homem. Isso faria minha mãe se revirar no túmulo. Recuso-me a concordar com isso.
– Prefere enfrentar Sansoni? Podemos providenciar o embate.
A ameaça a deixou sem palavras.
Lorde Elliot não chegou a rir enquanto se dirigia para a porta, mas também não escondeu o fato de estar se divertindo muito com o dilema da moça.
– Viajaremos para Pompeia juntos, Srta. Blair, depois que eu falar com Merriweather. Até lá, está proibida de deixar esses aposentos sem minha companhia. Ah, e não haverá visitas de Marsilios nem de Pietros. Ficarei em apuros se a senhorita provocar mais algum duelo enquanto estiver sob minha autoridade. Fiz um juramento de controlá-la e espero poder contar com sua colaboração e obediência.
Autoridade? Controle? Obediência? Ela estava tão estupefata que ele se foi antes que ela recuperasse a voz para xingá-lo.
CAPÍTULO 4
A boa vontade da Srta. Blair em entrarem num acordo em relação às memórias do pai dela melhorou o humor de Elliot. Ele obteria a retratação necessária de Merriweather, colocaria a Srta. Blair no próximo navio para a Inglaterra e voltaria sua atenção para assuntos mais interessantes.
Merriweather colaboraria, com certeza. Ele, melhor do que ninguém, estava ciente de que a história de Drury sobre a morte do oficial era falsa. Além do mais, sua carreira seria prejudicada se o mundo inteiro soubesse que fora indiscreto ao se embebedar. Ele seria um aliado de lorde Elliot em seus esforços para convencer a Srta. Blair a cortar os trechos incriminadores.
Em uma hora, Elliot descobriu que a questão não seria resolvida tão facilmente. Um funcionário da missão diplomática britânica no Palazzo Calabritto lhe informou que Merriweather fora para o Chipre a serviço e não deveria estar de volta em menos de duas semanas.
Elliot voltou ao hotel e reorganizou alguns de seus planos. Conforme a tarde terminava e a temperatura ia ficando mais amena, ele pegou uma carruagem de aluguel e rumou para o Bairro Espanhol para visitar Phaedra Blair mais uma vez.
Seus olhos azuis chamejaram ao vê-lo na porta.
– O que deseja agora, lorde Elliot?
– A senhorita me disse que desejava caminhar às margens da baía esta noite. Estou aqui para acompanhá-la.
– Não preciso da sua companhia.
– Ou vai comigo ou não vai. Seria uma pena não gozar de sua liberdade, agora que a recuperou.
Ela franziu os lábios. A dúvida se refletiu em seus olhos.
– Muito bem, vamos lá.
Phaedra deu um passo adiante, esperando que ele lhe desse passagem.
– Esqueceu o seu chapéu, Srta. Blair. O sol ainda não se pôs e pode ser prejudicial à sua pele delicada. Tenho certeza de que preferiria evitar mais sardas em seu nariz, por mais charmosas que elas sejam.
A mão dela foi rápida para o nariz. Por um instante, a vaidade feminina venceu sua postura de indiferença a essas preocupações banais.
– O senhor é muito hábil em misturar críticas com falsos elogios.
– Os elogios não foram falsos. As sardas são adoravelmente femininas, mas ainda assim precisa de um chapéu. Vou esperar até que ponha um. A senhorita tem um chapéu, não?
– É claro.
Exasperada, ela deu meia-volta e seguiu na direção do quarto.
– Não me siga desta vez.
– Nunca entraria no quarto de uma dama duas vezes no mesmo dia. Assim como quatro danças em um baile, isso poderia ser mal interpretado.
– Nunca interpreto mal os homens, lorde Elliot. Eles são as criaturas mais transparentes que existem.
De fato, ele imaginava que eram, para ela. Não era uma moça inexperiente. Sabia por onde os pensamentos dele haviam vagueado quando estavam os dois de pé ao lado da cama. Seu cabelo solto lhe dava a aparência de uma mulher preparada para uma tarde de prazer.
Ela não reagira a ele com choque ou vergonha recatada. Não houvera a indignação de quem defende sua virtude. Ao contrário, ela só o encarara enquanto as possibilidades sensuais atiçavam a ambos. A expressão dela tinha sido a de quem reconhecia aquele impulso e suas possibilidades.
Ele nunca vivenciara nada parecido antes. Phaedra conseguia provocar e rejeitar sem dizer uma só palavra. Você me quer e pode ser que um dia eu o queira, mas não hoje. Talvez nunca. Ainda não decidi. Ela devia saber que seu comportamento estimulava o lado mais selvagem dos homens.
Phaedra voltou usando um chapéu de palhinha que era muito mais bonito do que ele teria imaginado. Sua aba em diagonal e as flores de seda brancas e azuis realçavam seus olhos e a pele clara. Seus cabelos longos e esvoaçantes, a falta total de maquiagem e as sardas lhe davam uma aparência fresca e campestre.
Porém, seu vestido comprometia a imagem. O tecido preto leve e sem enfeites a cobria do pescoço aos pés. Uma faixa rodeava a cintura, mas, afora isso, pouco se podia notar de suas formas sob o pano solto e volumoso.
O vestido provocava mais fantasias do que ela provavelmente imaginava. Provocava curiosidade quanto ao que dissera mais cedo. Não havia criadas para ajudá-la a se vestir. Não usava corpete nem espartilhos, e as formas gerais indicavam que o corpo tão livre embaixo do tecido valia a pena ser imaginado. Peito empinado, avaliou ele, de tamanho indeterminado, porém digno de nota, e quadril feminino o bastante para fazer com que a cintura parecesse bem fina. Alguns gestos e uns poucos ganchos e tudo seria revelado.
– Alexia o fez para mim – disse ela, ao notar sua admiração pelo chapéu. – Acho que ela tem esperanças de me mudar. Quanto a meu vestido, que o senhor está examinando de forma tão crítica, não espere que eu o troque. Não fui eu quem decidiu que o senhor teria de andar em público em companhia de uma mulher tão fora de moda.
– O vestido me convence ainda mais. Insisto em que cubra o cabelo, contudo não peço que abra mão de todos os símbolos com os quais desafia o mundo.
Ela ergueu o queixo e rumou para a porta.
– Se tiver juízo, não pedirá coisa nenhuma.
Barulho, gestos teatrais, toucados com plumas e sombrinhas coloridas. Riqueza digna de príncipes, pobreza abominável e o brilho das armaduras dos soldados.
O elegante passeio londrino era uma pálida imitação do que acontecia no final da tarde nas terras mais ao sul. O passeio que circundava a baía de Nápoles ficava apinhado de transeuntes. Aristocratas em vestidos e casacos da moda caminhavam em grupos entre os pobres que perambulavam nas proximidades da água. Comerciantes e suas esposas passeavam com os filhos.
A hora do passeio vespertino – aproveitada nas proximidades da baía ou nas piazzas das igrejas – servia a importantes objetivos na cidade, a julgar pelo modo como as moças casadoiras eram exibidas. Sua beleza jovem e morena brilhava entre os pais, que avaliavam criticamente, com semblantes sóbrios, os homens que olhavam duas vezes na direção delas.
Toda a Nápoles era uma ópera e Phaedra Blair não parecia tão estranha ali quanto poderia pretender. Ela estava razoavelmente apresentável, graças ao chapéu; ainda assim, Elliot notava a atenção que atraía com seu cabelo ao vento. Imaginou a reação que causara na primeira vez que estivera ali, com seus fios vermelhos esvoaçando em meio a um mar de castanho e preto. Londres era mais tolerante com o tipo de excentricidade que ela exibia.
– Falou com o Sr. Merriweather?
Eram as primeiras palavras que ela pronunciava desde que haviam saído do apartamento. Elliot não forçara uma conversa na carruagem. Não se importava com o silêncio. Passara um bom tempo calado, tendo a própria mente como única companhia. Gostava do contato social até certo ponto, mas apenas se houvesse horas de silêncio para contrabalançar as de ruído e conversas.
– Ele está fora em uma missão e só deve voltar em duas semanas, no mínimo.
Elliot se perguntou se ela já não saberia disso. Não estava convencido de que a Srta. Blair tivesse objetivos tão inocentes ao visitar a cidade. Se quisesse ver as ruínas, faria mais sentido vir em outra época do ano. Embarcar para lá em pleno calor do verão napolitano, quando sua editora passava por dificuldades, seu sócio estava doente e as memórias do pai esperavam preparação do original... Ele ainda suspeitava que interrogar Merriweather estivera entre os motivos que a levaram ali.
– Espero que não queira me fazer esperar quinze dias ou mais para ir a Pompeia.
– Decidi que visitaremos as ruínas enquanto o espero voltar.
Isso a apaziguou. Ela pareceu quase aliviada. Talvez tivesse vindo mesmo apenas a passeio.
– Na última primavera, Alexia me disse que o senhor estava escrevendo um livro novo, lorde Elliot. Sua visita a Pompeia está ligada a isso?
– Visitarei as novas escavações para saber o que foi descoberto nos últimos anos. Vou conversar com arqueólogos e pesquisar alguns temas para o livro.
– Alexia me disse que é um livro sobre assuntos quotidianos, sobre a forma como as pessoas viviam. Muito incomum. Normalmente, os livros de História descrevem as guerras, a política e os feitos dos grandes homens. Até o seu último foi sobre isso.
– Estou atento para o fato de que esse livro pode ser criticado por sua aparente falta de relevância. Porém o assunto me interessa e posso me dar ao luxo de me dedicar ao que gosto.
– Se acha que o estou criticando, está equivocado. Acredito que seu livro pode ser muito popular, não importa o que digam os acadêmicos. Ele deve vender muito bem.
– Não estou tão certo de que meu editor concorde com isso.
– Então, talvez deva achar outro. Ficaria honrada de publicá-lo se aturar a ideia de fazer negócios com uma mulher.
Ele riu da sua expressão sagaz. Essa editora poderia sobreviver muito bem, no final das contas, se a Srta. Blair mostrasse tamanho talento de bajular autores para atraí-los.
O humor dela havia melhorado desde o início do passeio. Talvez a luz suave do sol poente e a brisa refrescante fossem os motivos da mudança. O mais provável era que a Srta. Blair tivesse decidido que a raiva a atrapalharia a gozar sua recém-adquirida liberdade.
A alegria brilhava em seus olhos enquanto caminhavam, observavam os grupos de passantes, os barcos e as gaivotas. Ela sorria para lorde Elliot de uma forma cálida que poderia ser erroneamente interpretada como flerte. E não passava despercebido dele a forma como os homens a olhavam. Por si só, o cabelo ruivo solto já bastava para destacá-la, contudo a Srta. Blair chamaria atenção de qualquer forma.
Esses olhares também não passavam despercebidos a ela, que não os encorajava nem desestimulava. Também não lhes davam satisfação nem a insultavam, pelo que Elliot podia ver. Phaedra simplesmente seguia seu caminho, uma mulher diferente das outras mas muito confiante, com o tecido preto e leve do vestido a revelar mais do que se pretendia.
Sutilmente, ela projetava uma aura carregada daquele mesmo desafio que Elliot sentira no quarto, só que agora atraía todos os homens que a olhavam por mais tempo. Você me quer, só que nada vai acontecer entre nós, porque eu decidi assim.
Ela parou para comprar um pequeno buquê de flores de uma menina que as oferecia numa caixa. Elliot tentou pagar por elas, mas Phaedra afastou sua moeda e pagou com o próprio dinheiro. Continuou a andar, segurando perto do nariz as flores perfumadas.
– Lorde Elliot, gostaria de lhe fazer uma proposta.
Não seria a proposta que ele desejava, contudo seu corpo se enrijeceu de qualquer forma. As palavras dela tinham sido escolhidas de propósito para atiçá-lo e isso o deixou com raiva, porque funcionou.
Ele não deveria, só que não resistiu:
– Vi o que acontece aos homens que aceitam os termos de suas propostas, Srta. Blair, portanto prefiro declinar.
A expressão dela mudou.
– O que quer dizer?
– Ah, eu entendi erroneamente? Desculpe-me.
– O que o senhor quis dizer?
Ele deu de ombros.
– Pensei que fosse propor que me tornasse um de seus amigos. Uma dessas abelhas que ficam zumbindo em volta da rainha.
Sua pele branca enrubesceu e sua raiva deixou transparecer uma boa dose de consternação.
– O que sabe a respeito dos meus amigos?
– A senhorita pode desprezar a sociedade, mas ela está a par do seu comportamento. Todos sabem sobre a filha de Artemis Blair e como, a exemplo da mãe, ela se considera acima de todas as regras sociais estúpidas.
– Sua ignorância me espanta.
A raiva dela vencia a consternação.
– É muito típico o senhor interpretar mal minhas amizades e é por isso que nunca considerarei a hipótese de tornar meu amigo alguém como o senhor.
Ah, ela consideraria, sim. Até já havia considerado. As negociações começaram cedo naquele dia.
– Se fui rude, peço desculpas.
A expressão dela relaxou.
– No entanto...
As sobrancelhas dela se arquearam.
–... se a senhorita está acima de regras sociais idiotas, não há como eu ser rude, não concorda, Srta. Blair? Digo, no âmbito de suas crenças. A palavra “rude” se aplicaria apenas dentro do contexto das regras sociais, não estou certo? Nos próximos dias, a senhorita terá de me ajudar a perceber onde sua sujeição a tais regras começa e onde termina, assim não a interpretarei erroneamente de novo.
Mais uma vez aquela confiança presunçosa, aquele desafio, a saturou.
– Pode ter certeza de que farei isso, lorde Elliot.
A caminhada os levara até Riviera di Chiaia, às belas mansões com vista para a baía. A Srta. Blair enterrou seus pensamentos por trás de uma máscara de passividade e ficou admirando a beleza das construções.
– Lorde Elliot, é conveniente que tenha falado a respeito dos próximos dias e que tenha expressado sua desaprovação e desprezo com relação à minha pessoa. Minha proposta tem a ver com ambas as atitudes.
– Não desaprovo nem desprezo. Só decidi que devemos ter um entendimento correto quanto a uma pequena questão.
A mais importante de todas.
– O fato de interpretar erroneamente minhas amizades com outras pessoas e meu interesse pelo senhor indica que não nos daremos muito bem. Nem o senhor vai querer o peso de ter alguém que veio a passeio como companheira de viagem. Eu só iria atrapalhá-lo e seus estudos só atrasariam meus planos. Proponho que nos separemos assim que deixarmos Nápoles.
– Isso não é possível.
– Gentile Sansoni nunca saberá.
– A influência dele se estende para muito além das fronteiras desta cidade. Além disso, dei minha palavra, e essa é uma das tais regras sociais estúpidas que levo muito a sério.
– Senhor...
– Não, Srta. Blair. Partiremos juntos, daqui a dois dias, pela manhã. Vamos de barco primeiro para Positano e depois para Amalfi. De lá seguiremos viagem por terra.
– Quero ir para Pompeia imediatamente.
– O atraso será breve. Prometi visitar um amigo em Positano e ele me espera por estes dias, não depois. Se está a passeio, deve se alegrar com uns dias a mais visitando a costa ao sul. É espetacular.
Phaedra não parecia nem um pouco alegre. Ele imaginou que veria aquela perturbação constantemente nos olhos dela pelas próximas semanas.
Deram meia-volta para refazer o caminho e Elliot quase tropeçou em uma criança que os seguia. Grandes olhos negros olhavam para cima em uma esperança calada de que alguém a enxergasse entre tantas das mais pobres crianças da cidade. Ela não pediu nada, mas seu corpinho frágil vestido em andrajos implorou de forma pungente.
Ele enfiou a mão no bolso do colete. Quando a moeda surgiu, mais duas crianças apareceram ao lado da primeira. Outras foram atraídas por instinto para o inglês que não sabia parar de distribuir esmolas para as crianças pedintes de Nápoles.
Ele achou mais moedas. A Srta. Blair não pareceu com medo por estar cercada de pobres ávidos por moedas, como a maioria das mulheres ficaria. Ela tentou conversar com a primeira menina, a mão oculta em algum lugar do vestido, na altura do quadril.
Os dois adultos ficaram num mar de olhos negros e corpinhos morenos, distribuindo moedas até que todas tinham se acabado.
Voltaram para a carruagem sem outras discussões. Ela só falou mais uma vez antes de ser deixada de volta em seu apartamento.
– Partiremos daqui a dois dias pela manhã, como disse? Então nada me resta a não ser me preparar para a viagem.
A aparente submissão de Phaedra Blair não o convenceu. Elliot partiu para fazer seus próprios preparativos.
Phaedra tirou o camafeu do nó no xale. Envolveu-o em um lenço e colocou o embrulho dentro do bolso fundo da saia de seu vestido. Depois envolveu a cabeça com o xale e o amarrou debaixo do queixo.
Verificou a valise, conferindo mais uma vez as roupas e os objetos pessoais que tinha colocado nela. Orgulhava-se da falta de vaidade feminina, mas ainda a irritava ter tão poucas roupas para usar pela próxima semana.
Era tudo culpa de lorde Elliot. Qualquer um sabia que um juramento feito sob coação não contava. E, para ela, fazer um juramento para salvar uma mulher de um destino incerto se qualificava como coação. A insistência do lorde em manter sua palavra a perturbava. Tinha sido muito azar dela que a única pessoa disponível para ajudá-la fosse um homem com noções ultrapassadas de honra.
De jeito nenhum ela permitiria que ele os fizesse vítimas de sua mente pequena. Lorde Elliot não queria a companhia dela muito mais do que ela queria a dele. Só haveria problema se os dois permanecessem juntos.
Uma dessas abelhas que ficam zumbindo em volta da rainha. Ele era incapaz de entender as amizades honestas e sinceras que ela mantinha com alguns poucos e raros homens que pensavam como ela. Ficaria chocado ao descobrir que alguns homens conseguem controlar as forças primitivas de posse e domínio que causaram tanto sofrimento ao longo da história, em especial às mulheres. Na verdade, havia homens para quem a sensualidade não despertava a necessidade de conquistar, dominar e exigir submissão.
Bem, não cabia a ela lhe explicar. Além disso, seria um esforço em vão e exigiria que passasse mais tempo com ele.
Deixou um bilhete e algum dinheiro em sua mala para garantir que a signora Cirillo entendesse que ela voltaria logo para buscá-la. Depois se esgueirou do apartamento para o corredor escuro. Achou o caminho da escada.
Andando pé ante pé, envolta em negro, seguiu até o andar de baixo. Ainda na escuridão, foi tateando às cegas em busca do lance de degraus seguinte.
De repente as sombras se transformaram em corrimões, portas e paredes, como se alguém tivesse aberto as persianas para deixar a luz da lua entrar.
– Pietro não está à sua espera no cruzamento, Srta. Blair.
O coração dela parou de bater ao ouvir a voz tranquila atrás de si. Deu meia-volta. Lorde Elliot estava a pouca distância, em uma porta aberta que dava para o apartamento que ficava abaixo do dela. Estava sem camisa e descalço, como se estivesse dormindo e houvesse posto a calça às pressas para investigar o barulho. A luz fraca da lamparina do quarto o banhava em uma névoa dourada.
A presença daquele homem anunciava o fim de seu plano de fuga. Apesar de sua exasperação, que aumentava cada vez mais, Phaedra não pôde se furtar a apreciar aquele homem. Lorde Elliot era esguio, elegante e tinha ombros largos. Seu corpo possuía o retesamento jovial que abençoava os homens por tanto tempo na vida quanto permanecessem ativos. A luz fraca ressaltava os músculos rígidos do peito, do abdome e dos braços.
Ele deu dois passos, pegou a valise da mão de Phaedra e segurou seu braço, empurrando-a para o quarto dele. Depois fechou a porta.
– O que está fazendo aqui? – perguntou ela.
A luz da lamparina valorizava o peito musculoso e a pele maravilhosa agora tão próximos de seu rosto. Se não estivesse aborrecida pela interferência daquele homem, poderia até aproveitar a bela visão.
– Eu me hospedei aqui.
Ele permaneceu imóvel por um longo tempo. Phaedra olhou para o rosto do lorde e percebeu que ele a observava. E que tinha notado que ela avaliava seu corpo. Sentiu a pulsação acelerar. Os olhos deles refletiam a mesma reação, mas com uma anuência fria, como se Elliot controlasse a reação tanto nela quanto nele.
Sim, esse homem significava problema na certa.
– Não se mexa. Não tente sair – disse isso e andou até a escrivaninha, onde pegou a camisa e a vestiu.
Ela não ficou olhando. Não exatamente. Mas, com o canto do olho, viu como seus braços se moviam e seu dorso se esticava. A imagem do encontro deles à tarde invadiu sua cabeça de novo, mais vívida dessa vez: o rosto masculino pairando acima dela, aqueles ombros e aquele peito sob sua carícia...
Olhando de esguelha, percebeu os sinais de que o cômodo estava ocupado. Havia uma lamparina sobre uma escrivaninha na sala de estar, junto com uma pilha de papéis. Notou manchas de tinta nos dedos dele. Ele estivera escrevendo, não dormindo. Imaginou-o lá, entregue ao frescor da noite, imerso em sua escrita.
Com pouca roupa e aquela camisa solta, parecendo libertino e romântico demais para que ela se sentisse segura, ele a encarou.
– Lorde Elliot, mudou-se para cá para me espionar?
– Deixei para a signora Cirillo a tarefa de espionar. Mudei-me para cá para impedi-la de fugir na calada da noite.
Ele adivinhara seu plano. Isso a desanimou.
– Intrometer aquela ave de rapina em meus assuntos particulares é indesculpável.
– Parece que foi necessário. A signora Cirillo se empenhou em sua missão e a desempenhou com fervor. Eu só pedi que informasse caso a senhorita me desobedecesse e deixasse a hospedaria. Mas ela a seguiu e interceptou a carta para seu amigo.
A expressão dele assumiu um ar crítico.
– Tentar arranjar esse encontro clandestino à meia-noite é intolerável. E se Pietro não a esperasse naquele cruzamento? A senhorita ficaria lá fora no meio da noite, nessa cidade devassa, desprotegida...
– Não me repreenda. Não ouse. Se ele não aparecesse, eu logo teria encontrado um jeito de arrumar uma carruagem de aluguel, uma carroça ou até um burro, se preciso, e teria partido.
Todas as implicações desse episódio lastimável se seguiram em sua cabeça. Ressentiu-se de cada uma delas.
– Parece que troquei um carcereiro por outro – disse ela.
Ele pegou a valise.
– Chame como quiser.
Então Elliot estendeu o braço na direção da porta, mostrando o caminho.
Bufando de raiva, ela subiu de volta as escadas até seus aposentos. Para seu espanto, o lorde não deixou a valise na porta de entrada. Em vez disso, carregou-a até o quarto. Ela não o seguiu. Uma intuição, daquelas que só as mulheres têm, a manteve na sala de estar.
– Venha até aqui, Srta. Blair.
A ordem ressoou dentro dela de um jeito que ela não reconheceu nem gostou. Compreendia a raiva que trazia, mas havia também outros impulsos e palpitações que a espantaram. Ela odiava quando os homens tentavam lhe dar ordens, quando pressupunham serem seus donos, no entanto...
Phaedra espiou dentro do quarto. Lorde Elliot estava lá, com o colarinho da camisa branca aberto, o cabelo despenteado e a expressão resoluta. Quando ele notou a presença dela, um reconhecimento mudo se deu entre os dois. Lampejos de excitação e perigo a perpassaram.
Ele andou até ela e a puxou para dentro do cômodo. A pegada tão firme e confiante, tão segura em relação ao direito dele de fazer o que bem quisesse, a espantou. Nunca na vida um homem a tratara assim. Phaedra tentou se recompor e encontrar as palavras que o colocassem em seu devido lugar, mas...
Ele começou a desatar o nó do xale sob seu queixo. Isso levou tempo de mais. E o deixou perto demais. Com certeza ele não era um canalha a ponto de... Deveria detê-lo e desatar o nó ela mesma. Deveria...
Ele fez o xale correr com suavidade pela cabeça e os ombros dela. Foi como uma carícia longa e vagarosa. O olhar dele acompanhou uma ponta do xale deslizar ao longo do corpo dela até que ficasse pendurado na mão dele pela outra.
Apenas a luz da lua que entrava pela janela iluminava o quarto, porém Phaedra não precisava ver com clareza o rosto daquele homem para adivinhar seus pensamentos. Eles preenchiam o quarto, estavam no ar, como tinha acontecido à tarde.
Uma nova reação a deixou perplexa, uma que nunca vivenciara antes: medo. Não medo dele ou de ser forçada a fazer algo. Foi dela mesma e da maneira chocante e singular como seu corpo reagia à forma como ele tentava dominá-la.
Elliot fez um gesto apontando para a cama.
– Tire o vestido e deite-se.
Isso quase a fez cair em si. Quase. Uma excitação inexplicável a atingiu lá embaixo, uma excitação absolutamente escandalosa. Deus do céu...
– Está indo longe demais.
Ela havia mesmo falado? Sua mente por fim juntara algum bom senso e fora em seu socorro?
– Você não me deixa escolha. Não posso me arriscar a deixá-la escapar.
– Prometo que não vou fugir.
– Uma mulher que espera que eu quebre minha promessa a Sansoni não manterá a própria palavra. Agora coopere, a menos que queira que eu a force a obedecer.
Ela levou as mãos às costas e começou a soltar os ganchinhos do vestido. Só levou um minuto até se despir e pôr o vestido sobre uma cadeira. A luz não era fraca o bastante para ocultá-la. Desejou estar usando aqueles ridículos espartilhos, pois suspeitava que lorde Elliot pudesse ver mais do que deveria por baixo da camisa simples que usava sob o vestido.
Ela se aproximou da cama e subiu nela, tentando não se expor demais e excitada por suspeitar estar se expondo ainda assim. Deitou de costas e olhou para ele. Pairou um silêncio no ar por um longo momento.
– Quais são as suas intenções, lorde Elliot?
Ele riu de novo. Em silêncio. Sarcasticamente.
– Não é um bom momento para provocar e instigar, Srta. Blair.
De repente, ele se inclinou sobre ela. Pairando. O coração dela começou a bater mais forte. A camisa dele adejava perto do rosto dela. O cheiro dele a tomou de assalto. O tamanho dele a dominou. Uma expectativa terrível e maravilhosa formigou nela. Seus seios ficaram mais sensíveis e...
Ele pegou no braço esquerdo dela e o levou até as barras de ferro da cabeceira da cama.
– O que está fazendo?
Ele enroscou o xale em volta das barras.
– Certificando-me de que não fugirá. Não preciso dormir muito, entretanto não posso ficar acordado por duas noites.
– Isso passa dos limites. É repugnante. Exijo que...
– Isso é necessário. Ou é isso ou durmo ao seu lado. Prefere?
Ela o encarou. Ele parou de fazer os nós e olhou para baixo. O coração dela pulou para a boca.
– Prefere? – repetiu ele.
Era uma pergunta direta e sincera. Um convite que lhe permitia extravasar a atração.
Ela engoliu em seco.
– É claro que não.
Mesmo na luz fraca, ela viu o sorriso dele. Ele voltou sua atenção para os nós.
Por fim, ele se afastou e se endireitou. Phaedra deu um puxão com o braço esquerdo. Não havia folga nas laçadas. Ela se virou para o lado e tentou forçar um nó com a outra mão.
– Fique à vontade para tentar desfazer os nós. Só que não vai conseguir. Pode se sentar e se mexer, pode até ficar de pé. Pode usar o penico do lado da cama. Mas nunca vai conseguir se soltar. É melhor passar o tempo dormindo.
Uma nota em seu tom de voz a fez parar de tentar. Rolou de volta para ficar de costas e o encarou. O desamparo dela e o domínio dele gritaram no silêncio entre os dois. A mente de Phaedra bradava insultos rebeldes, mas seu corpo experimentava um calor e uma expectativa deliciosos. Espantava-a que essa submissão provocasse desejo, um desejo muito erótico.
Ele sabia, droga. Ela podia garantir que ele sabia.
– Está muito bonita aí, Srta. Blair. Muito bela e vulnerável e, ouso dizer... submissa?
– Seu canalha.
De novo, aquela risada silenciosa. Depois ele se foi, deixando-a livre para conversar consigo mesma pelo resto da noite sobre quão vulnerável e submissa ele a havia tornado.
CAPÍTULO 5
Phaedra segurava o camafeu na luz matinal que penetrava pela janela da sala de estar. O objeto tinha se tornado um talismã nos dois últimos dias, no embate com um homem confiante demais de seus direitos de controlá-la.
Você deveria ter me avisado, mãe.
Talvez Artemis não pudesse ter lhe avisado simplesmente porque não sabia. Talvez tivesse se isolado tanto de homens como Elliot Rothwell que nunca os houvesse enfrentado.
Ela imaginava a mãe, linda de tirar o fôlego. Com um rosto tão suave que as pessoas nunca imaginavam sua mente brilhante até que ela abrisse a boca ou lhes dirigisse aquele olhar aguçado. De fato, sempre fora uma rainha com muitas abelhas em volta. Acadêmicos, artistas e homens que admiravam sua inteligência estavam entre os amigos que a amavam e ficavam apenas à espera de uma deixa. Sua casa ficava sempre cheia de homens famosos e esperançosos.
Na certa, um desses homens teria tentado conquistá-la. Na certa, a famosa Artemis Blair vivenciara a excitação primitiva de encontrar um par na inteligência e no poder. Ela devia ter avisado à filha que esse homem poderia surgir um dia.
Phaedra olhou pela janela. Lá embaixo, lorde Elliot dava ordens aos criados da signora Cirillo, que carregavam as valises para a carruagem que os levaria ao porto. Os olhos dela se estreitaram para focalizar o inimigo.
Pelo menos, ele não a mantivera amarrada na última noite. Ela prometera de cinco formas diferentes não fugir. Ele só a soltou depois de ela jurar – jurar – sobre o túmulo da mãe. Ele a fizera implorar como se fosse seu dono.
Sua mãe provavelmente estaria se revirando no túmulo naquele exato momento. Artemis Blair nunca se submetera a um homem, de forma nenhuma. Nunca se casara, nem com seu amor de toda a vida, Richard Drury, mesmo quando se viu grávida. Nunca abrira mão de sua liberdade, sua independência e seu direito de amar e dividir a cama com quem quer que escolhesse, nem ao descobrir que só queria amar e dividir a cama com um único homem.
O camafeu esquentou na mão de Phaedra. Ela olhou para a joia. Não, não um único homem. Tinha havido outro.
Tinha sido um choque ler isso nas memórias do pai. Sentia-se nauseada só de lembrar as palavras dele. Sempre imaginara que o amor de seus pais fora perfeito, desprovido de obrigações e leis, um verdadeiro encontro de almas que duraria pela eternidade. A amizade dos pais mostrava ao mundo que havia uma forma melhor para um casal conviver.
Tinha sido assim por muitos anos, até que um dia outro homem entrara na história.
Esse intruso era charmoso, contudo estava no centro de um esquema ao mesmo tempo brilhante e nefasto. Foi o que seu pai escreveu. Ela se lembrava das palavras exatas. Memorizara essas palavras antes de zarpar da Inglaterra. Ele seduziu Artemis para que tivessem um caso, usou-a da forma mais desonrosa, a ponto de destruir sua reputação. Foram seus atos que, em última análise, levaram à morte dela. Assim como vendia falsas antiguidades, ele lhe ofertou mentiras. Porém é só uma questão de tempo até que ele seja desmascarado, porque os objetos estão lá, visíveis, como o que vendeu a Artemis. Um dia alguém revelará a origem suspeita desses objetos, e a forma como ele usa a sedução no intuito de roubar será sua desgraça.
Os dedos dela se fecharam com força ao redor do camafeu. Uma antiguidade de origem suspeita. Uma joia acrescentada na última hora a um testamento, supostamente vinda de Pompeia. Phaedra estava bastante certa de que era a este objeto que o pai se referira – e também sua única ligação com o homem que ele acusava.
Seus atos, em última análise, a levaram à morte. Phaedra não conseguia tirar essas palavras da cabeça. Elas ressoavam em seus sonhos junto com as imagens da mãe naquelas últimas semanas, séria demais, distraída demais. Phaedra nem chegara a notar essa seriedade e distração na época, pois a mãe sempre tinha um sorriso para ela. Porém seu declínio fora rápido demais e sua morte, um choque.
Phaedra baixou o olhar de novo. Lorde Elliot olhava para cima, em sua direção. Há quanto tempo ele a observava lá da rua?
Talvez a mãe não tivesse avisado porque nem ela mesma sabia. Talvez o intruso fosse um homem como aquele lá embaixo, que causava arrepios só por dar sua atenção e cuja presença era uma tentação para que, em um segundo, uma mulher se esquecesse de todas as crenças e princípios que ancoravam sua vida.
Poderia perdoar a mãe por não ter lhe dado essa lição. Poderia perdoá-la por qualquer coisa, até mesmo por deixar o mundo cedo demais. Porém, se um homem realmente a havia usado de forma desonrosa, se os atos dele tinham causado sua morte, isso era outro caso. A filha de Artemis Blair nunca o perdoaria. Se tivesse certeza de que isso era verdade, então queria ver a queda desse homem.
Pegou o xale e envolveu a cabeça. Lorde Elliot era um inconveniente, mas ela não deixaria que a companhia dele atrapalhasse o motivo real que a levara ao Reino das Duas Sicílias.
Elliot voltou ao quarto para pegar a maleta com seus muitos papéis. Passou pela Srta. Blair nas escadas.
– Vou esperar na carruagem.
Seu tom ríspido demonstrava a frieza que agora sempre exibia em sua presença.
Ela nunca o perdoaria por amarrá-la na cama, não só pela humilhação e falta de confiança. Ambos sabiam que isso a excitara, e ela o odiava por isso e por todas as implicações resultantes. Ambos também sabiam que, se ele não tivesse feito isso, ela teria escapado durante a noite para evitar as implicações resultantes.
Na última noite, Phaedra fora enfática ao afirmar que não aconteceria de novo. Suas promessas foram tão sinceras e suas garantias de não fugir, tão genuínas que ele voltara atrás.
Isso significara que ele poderia dormir. Na primeira noite, ficara deitado, inquieto e ávido, sentindo o desejo rasgá-lo por dentro como uma faca de serra. Imaginando-a naquela blusa fina, amarrada na cabeceira da cama, com o cabelo espalhado como seda acobreada e o corpo visível demais. Quais são as suas intenções, lorde Elliot?
Que inferno!
Elliot pegou a mala e um embrulho comprido e se juntou a ela na carruagem. O olhar vazio, distante e focado dizia que era só por falta de escolha que Phaedra tolerava a companhia dele. Não se daria o trabalho de bater papo para tornar seu tempo juntos mais fácil.
O barco que ele alugara esperava perto do Castel Nuovo. Uma hora depois, eles navegavam margeando a baía.
A Srta. Blair se posicionou na área central do convés, segurando-se na amurada. Ela observava a costa passar e o monte Vesúvio ficar cada vez maior ao fundo. A brisa empurrava o xale dos seus cabelos e sua beleza pálida e incomum chamava a atenção do pessoal de bordo. Elliot se aproximou para que não restasse dúvida quanto à sua situação de protetor da moça.
Ele estendeu a mão, oferecendo-lhe o embrulho que trouxera.
– O que é isto? – perguntou ela.
– Um presente.
Ela sorriu de um jeito suave, porém firme.
– Não aceito presentes de homens, lorde Elliot.
– Você não aceita presentes em troca de favores, o que é admirável. No entanto, como não gozei de seus favores, ainda está livre para aceitar presentes. Se eu a seduzir, pode devolvê-lo.
Ele quase disse “quando” em vez de “se”.
Ainda hesitante, porém curiosa, ela pegou o pacote e tirou parte do papel.
– Uma sombrinha? – disse, e rasgou o restante do embrulho, rindo então. – Preta. Toda preta. Que... gentileza!
– Achei que ia combinar.
– Isto é para me poupar de mais sardas?
– Isto é para poupá-la de ficar doente. O sol aqui é muito forte e estamos em pleno verão. Quando desembarcarmos, ficará feliz em ter alguma sombra.
Ela abriu a sombrinha e cobriu a cabeça.
– O senhor conhece bem o país. Já esteve aqui antes?
– Duas vezes. Primeiro em uma viagem por vários países do continente, e de novo há alguns anos.
Ele apontou para a costa.
– Ali fica Herculano. A mesma erupção do Vesúvio que enterrou Pompeia em cinzas cobriu Herculano de lava.
Ela desviou o olhar para onde os vestidos e casacos dos visitantes salpicavam de cor a rocha.
– Tinha a intenção de visitar Herculano também, mas o signore Sansoni... – suspirou ela. – Agora vou perder muita coisa da viagem.
– Por que não gasta algum tempo na volta de nossa pequena viagem e faz a visita?
– Não tenho tempo a perder. Preciso voltar para casa. Tenho uma editora para tocar.
E um livro especial para publicar. Se ele não conseguisse o que queria ao falar com Merriweather, a Srta. Blair não voltaria para casa por um bom tempo.
– Também acho que não vou gostar de voltar a Nápoles depois de nossa viagem – emendou ela. – Com certeza você achará que a palavra dada a Sansoni ainda estará valendo, e ficarei com o senhor no meu pé.
Ele admirou impressionado o enorme cone que era o Vesúvio enquanto passavam tão perto de Herculano que podiam ver alguns trabalhadores nas escavações. O cabelo cor de cobre esvoaçava perto do braço dele.
– Srta. Blair, pergunto-me se o que a incomoda não seria o fato de me ter no seu pé e não a seus pés.
O suspiro profundo expressou o pensamento dela. Deus, dê-me paciência com esse homem tão pouco esclarecido e tão previsível.
– Suspeito que seja inútil explicar isso, mas tentarei, em nome da paz. Acredito que nenhum parceiro na amizade, no casamento ou num caso amoroso deva ficar aos pés do outro. Minha ideia só é considerada estranha porque o pé em questão quase sempre é de um homem e o mundo acha normal que ele fique cravado nas costas de uma mulher. Creio que homens e mulheres possam ficar lado a lado, sem que um tenha que pertencer ao outro. A vida da minha mãe provou que isso é possível e a minha também, até agora, prova o mesmo. Não fomos nós que inventamos essa crença. Essa ideia é bem conhecida e foi defendida por pessoas a quem admiro muito.
– Sei tudo sobre a sua crença, Srta. Blair. Não sou ignorante dessa filosofia. Ela até soa correta e racional. O único problema é que não leva em conta vários aspectos.
– É mesmo? Quais?
– A natureza humana. A história da humanidade. A tendência de os maus vitimarem os fracos e a necessidade dos fracos de proteção. Aventure-se sozinha nos vilarejos de Campanha ou nas ruelas de Marselha ou Istambul, ande pelas espeluncas de Londres e veja o que acontece com uma mulher sozinha e desprotegida.
– Os senhores de antigamente davam proteção a seus servos. O que não significa que era correto exigir a vassalagem em troca.
Ele riu.
– Senhores, servos. Que visão nefasta a senhorita tem da vida das mulheres. Não precisa ser desse jeito.
– Mas pode ser – disse ela. – O senhor sabe que pode. A lei faz isso.
A ênfase que ela deu ao “senhor” foi tão sutil que ele se perguntou se não passava de fruto de sua imaginação. Ela cutucou uma velha ferida com muita delicadeza, contudo ele sentiu a dor de qualquer forma. Uma raiva obscura se instilou nele.
Ela voltou a atenção para a costa. Um leve rubor em seu rosto indicava o reconhecimento de que tinha ido longe demais. Elliot controlou sua reação, mas pensamentos predatórios agora penetravam em sua mente. Ele ponderou o que seria preciso para ser senhor dessa mulher, para fazer com que se dobrasse diante dele.
– Desculpe-me, lorde Elliot. Eu não deveria...
– Está fazendo a impertinência aumentar, Srta. Blair. Melhor teria sido deixar que sua insinuação voasse para longe junto com a brisa.
Só que ela não o fizera, e ele se perguntava por que falara de maneira tão segura.
– Está se referindo a boatos sobre minha mãe, não é?
Ela pensou duas vezes na resposta enquanto olhava para ele.
– Admito que o fato de ela haver se retirado para o campo durante seus últimos anos de vida foi interpretado como feito de seu pai.
Elliot sabia que essa história corria solta nas salas de estar de ricos e pobres. Diziam que sua mãe tinha um amante e que seu pai a punira mandando o homem para a morte em uma colônia distante e depois aprisionando-a em uma propriedade rural.
Seria verdade? Ele e seus irmãos haviam concluído que o amante fora real, mas não a parte sobre o cárcere. O próprio pai lhe jurara não ter feito o que as pessoas falavam. Porém, o exílio da mãe estimulara a fofoca, a ponto de ela mesma passar a acreditar na história.
Ele a via na biblioteca, com os cabelos escuros pairando acima de livros e papéis, perdida em pensamentos. Quase totalmente afastada dos filhos. Por ser o caçula, havia passado a maior parte do tempo com ela lá. Ela emergia de sua concentração às vezes para guiá-lo pelas estantes, escolhendo livros para ele ler ou comentando os escritos dele.
No entanto, algumas poucas vezes o vínculo se estreitara, como no dia em que ela recebeu uma carta que a deixou em prantos. Era a notícia da morte de um oficial do Exército. Foi ele que fez isso. Para me punir por amar outra pessoa.
Tinha sido um amor ilícito. Ela era uma adúltera. Ainda assim, o sofrimento dela o comoveu. Só que ele entendeu que a acusação dela era o delírio de uma alma sofredora.
Elliot sentiu a presença da Srta. Blair ao seu lado. Nem mesmo a raiva conseguia sufocar a reação que sua sensualidade causava nele. A droga das memórias do pai dela insinuava que uma mulher reclusa fora a única a entender como o sangue dos Rothwells podia tornar um homem cruel. Sua certeza de que isso era mentira não seria suficiente para diminuir as acusações a seu pai.
– Elas se conheciam – disse a Srta. Blair. – Nossas mães.
– Minha mãe conhecia os ensaios de Artemis Blair, contudo nunca mencionou uma amizade.
Isso não queria dizer nada, uma vez que ela nunca mencionava assunto nenhum.
– Acho que elas nunca se conheceram pessoalmente, porém elas se correspondiam. Eram ambas escritoras. Tinham interesses em comum. Uma vez sua mãe enviou um poema para a minha. Encontrei-o entre os papéis dela depois que morreu. Um belo poema que refletia uma alma inteligente e sensível.
Ele fixou o olhar na cidade costeira que se aproximava, Sorrento. Estava enfurecido por saber que a mãe compartilhara seus textos com Artemis Blair e nunca com os próprios filhos.
– Sua mãe a encorajou a cometer adultério?
As palavras soaram cruéis e duras mesmo ao ouvido dele.
– Ela pregava a crença no amor livre em suas cartas?
Ele imaginou a famosa Artemis Blair virando a cabeça de sua mãe, o que levaria a tanto sofrimento depois.
– Creio que elas falavam principalmente de literatura em suas cartas. Minha mãe só a mencionou uma vez, quando soube de seu falecimento.
– O que ela disse?
A frase soou mais como um rosnado do que como uma pergunta.
– Ela disse: “Ele devia tê-la deixado ir embora, mas, é claro, por ser um homem, não poderia.”
Isso só fez com que um trovão rugisse nas nuvens que se acumulavam em sua mente. Ele queria dizer que um homem não poderia permitir que a mãe de seus filhos fugisse em uma aventura amorosa. É claro que seu pai não tinha opção a não ser negar essa liberdade a ela.
Só que, a seu modo, ela havia encontrado uma forma de fugir de qualquer maneira.
Pelo canto do olho, Elliot percebeu um membro da tripulação se demorar muito com o cordame. O homem alongava a tarefa só para ficar apreciando a beleza de Phaedra Blair.
A tempestade em sua cabeça estourou. Relâmpagos espocaram. Ele estreitou os olhos e disse quatro palavras. O homem saiu às pressas.
A Srta. Blair percebeu.
– O que você lhe disse?
– Nada importante. Uma expressão napolitana exigindo privacidade.
Nem se deu o trabalho de explicar que as palavras em italiano significavam mexa-se ou morra.
Um vento forte os ajudou a fazer um bom tempo de viagem. A paisagem foi ficando cada vez mais bonita à medida que cortavam a baía em direção à península de Sorrento. Montanhas altas abraçavam a costa, mergulhando no mar em declives acentuados e verdes. Pequenas praias abrigavam alguns barcos e casas se encarapitavam no despenhadeiro, como se fossem cubos brancos e em tons pastel a pairar acima da água.
Contornaram a pequena península, passaram pela ilha de Capri e seguiram para a costa amalfitana. Encostas mais íngremes, perigosas e inacessíveis assomavam sobre eles. O cenário deixou Phaedra boquiaberta. Lorde Elliot estava certo. Teria sido uma pena perder essa visão.
– O que está havendo ali? – perguntou ela, apontando para alguma atividade na colina.
– O rei está construindo uma estrada para Amalfi. Estão escavando a encosta.
Ela notou que a estrada ficaria acima das vilas de pescadores.
– De qualquer forma, vai ser preciso subir ou descer a colina – falou ela.
– Pelo menos os habitantes não vão depender de barcos e burros. E a vista lá de cima será espetacular.
Ele apontou para a frente, mais adiante na costa.
– Positano fica logo depois daquele promontório. Daqui já é possível avistar a torre de vigia normanda nele. Há muitas delas nesta costa, construídas para proteger o reino normando medieval que havia aqui da ameaça dos sarracenos.
Phaedra andou para a proa do barco a fim de ver melhor a torre assim que entrasse em seu campo de visão. A velha torre de pedra era bem alta e isolada. Pequenas janelas a pontuavam, como se fosse um castelo medieval. Parecia uma intromissão de estrangeiros do norte naquela terra banhada pelo sol.
– Aquelas janelas altas dão para o leste e o oeste – disse ela. – Não há nada entre aquela e o horizonte do mar e nada entre a outra e o pico da montanha alta. Vamos ficar aqui muitos dias?
– Calculo que sim.
Phaedra perdera a noção do tempo enquanto fora prisioneira de Sansoni. Agora começava a se situar.
– O solstício de verão se aproxima. Imagino se a torre não será usada para algum ritual.
– Esta é uma região católica. Os rituais pagãos foram banidos há milhares de anos.
Apesar de lorde Elliot ter respondido, ela podia apostar que ele estava muito distante. Estava tomado por um silêncio que pouco tinha a ver com sons. Era algo interior, como se seu espírito tivesse se recolhido para as câmaras secretas de sua alma.
Phaedra se arrependia de ter se referido, ainda que discretamente, à situação da mãe dele. Deixara a frase escapar no auge de sua irritação com lorde Elliot por ele pressupor que estava certo e ela, totalmente errada. Já devia ter aprendido a não entrar em discussões a respeito do modo como pensava e vivia. No que tangia a esse assunto, aquele homem lhe era tão estranho quanto os pescadores daquelas vilas pitorescas.
Aproximaram-se da torre, passando bem perto quando o vento inflou as velas do barco. Parecia deserta.
– Quem é esse amigo a quem vamos visitar? – perguntou ela. – Como vamos chegar logo, acho que eu deveria saber o nome.
– Matthias Greenwood. Foi um dos meus professores na universidade.
Ela conteve sua surpresa. Conhecia Greenwood. Tinha tentado em vão localizar sua casa em Nápoles.
– Ele não vai se incomodar por você ter trazido mais bagagem do que ele esperava?
– Ele ficará muito satisfeito por ter a companhia da filha de Artemis Blair. Ele encontrou com ela algumas vezes, eu acho.
– Sim, com certeza. Eu o vi em algumas ocasiões; a última, no funeral da minha mãe.
Matthias Greenwood tinha sido um dos muitos acadêmicos a prestar homenagem à mulher que deixara o mundo inteiro confuso.
Também era alguém que poderia lançar luz sobre o “outro” homem. Phaedra pensara que esse atraso na viagem para Pompeia seria uma amolação. No entanto lorde Elliot a estava ajudando a riscar um dos itens em sua lista de pendências naquela terra.
– Ele a admirava. Disse que, se tivesse nascido homem, ela teria sido reconhecida como uma das maiores especialistas em línguas românicas antigas da Inglaterra – contou lorde Elliot.
Ele ainda falava em um tom distraído, como se apenas metade de sua mente prestasse atenção.
Phaedra olhou para a cidade de Positano com mais otimismo e não apenas porque sua missão poderia ser favorecida ali. Ela não se pautava por regras sociais estúpidas, mas a maior parte do mundo, sim. Imaginava como seria recebida ao chegar com lorde Elliot. Viajar com ele implicava coisas que ela não tolerava e que não gostaria que as pessoas presumissem.
O Sr. Greenwood provavelmente entenderia que era melhor não presumir nada.
Phaedra sentiu seu companheiro de viagem olhando para ela e virou a cabeça. Ele tinha voltado a si.
– Ele costuma receber convidados os mais variados – disse Elliot. – Pode ser que haja outras pessoas lá. Você vai se comportar, não?
Ela confiou que ele não esperaria que ela bancasse a amante dócil em uma vã tentativa de ser alguém que os convidados tolerariam.
Mesmo que quisesse criar esse disfarce, nem saberia por onde começar.
CAPÍTULO 6
Positano ficava numa angra apinhada de barcos. As construções em tons pastel pairavam acima do horizonte, amontoadas umas sobre as outras no declive acentuado da montanha. A cidade toda era uma sequência íngreme de casas que seguiam na direção do mar.
Phaedra deu uma olhada no despenhadeiro alto, no mar infinito cor de safira e na folhagem de um verde muito escuro. Nunca tinha visto nada tão fascinante em toda a sua vida.
– Qual casa pertence ao Sr. Greenwood? – perguntou ela.
Lorde Elliot se aproximou e estendeu o braço para que a vista dela o acompanhasse.
– Aquela lá em cima, com colunas.
As colunas sustentavam a cobertura de uma comprida varanda na casa mais ao alto. A casa fora erigida um pouco acima da área central da cidade. Sua distância criava uma coroa para os prédios que se espalhavam como uma cascata abaixo dela.
– Vamos voar até lá ou ele vai jogar uma cesta para nos apanhar aqui embaixo?
Um dos membros da tripulação já tinha se ocupado em resolver o problema e voltava com a solução: dois garotos que o seguiam puxando burros.
Phaedra permitiu que os garotos a ajudassem a subir no lombo de um animal. Lorde Elliot só precisou levantar a perna para montar no dele. Era mais alto que o bicho, e suas botas arrastavam pelo chão. A tripulação amarrou suas valises e malas em dois outros burros.
Ela riu deles mesmos.
– Que comitiva, lorde Elliot! Fará um desfile impressionante pela cidade. Talvez eu pegue meu livro de esboços e registre para a posteridade sua elegância sobre esse belo corcel.
Ele tocou seu burro para assumir a dianteira e deu um tapa no traseiro do animal dela ao passar.
– Cuide de sua própria montaria, Srta. Blair. Tome cuidado para não cair ou não vai parar de rolar até chegar à baía.
Ela logo entendeu o que ele queria dizer. Os burros passavam por caminhos muito íngremes, que tinham sido cortados em degraus baixos e estreitos e depois pavimentados. Ela pensou que ia mesmo cair no mar. Os animais sabiam onde pisavam, mas, sentada de lado na sela, Phaedra precisava ter cuidado para proteger a própria vida.
Eles foram um espetáculo e tanto. Os habitantes do vilarejo saíram às portas e janelas para espiar, curiosos, os estrangeiros que iam para a mansão localizada acima da cidade. Crianças começaram a segui-los, formando um verdadeiro séquito. Duas meninas andaram ao lado de Phaedra por um tempo, espiando com curiosidade as pontas ruivas de seu cabelo que apareciam sob o xale. Algumas mulheres fizeram leves mesuras quando lorde Elliot passou, sabendo, por seu porte e seus modos, que ele tinha sangue nobre.
Ela relaxou ao se adaptar à andadura do burro. Não ousava olhar para trás, mas se permitiu olhar as casas de pedra, lindamente rústicas. Varandas simples e coberturas de telhas ajudavam a criar um amálgama de formas e cores. Algumas casas maiores tinham azulejos decorados em volta das portas principais. Todas pareciam muito antigas, como a torre. Estuque cobria a maioria delas, quase sempre trabalhado com ornamentos e cornijas decorativos. Algumas construções eram brancas, mas muitas ostentavam detalhes em vermelho e rosa.
Os sons da vida na comunidade ecoavam ao redor conforme as pessoas chamavam umas às outras pelas janelas abertas e nas ruas do mercado embaixo. Em algum lugar, um homem cantava descontraidamente uma ária de Rossini enquanto cumpria outra tarefa qualquer.
As ruelas iam ficando mais planas à medida que se aproximavam da mansão. Era como se alguém tivesse retirado um pedaço da montanha para que a grande casa pudesse ser construída.
Um homem apareceu numa das arcadas entre as colunas da varanda. Era alto e magro, com uma basta cabeleira branca, nariz aquilino e postura ereta. O maxilar de traços muito retos terminava em um queixo partido. Phaedra só tinha visto Matthias Greenwood umas poucas vezes, porém sua aparência era tão peculiar que se tornava inesquecível.
Ele acenou em saudação, depois saiu e andou na direção deles.
– Rothwell! Que alívio vê-lo finalmente. Meus companheiros anseiam pela sua perspicácia.
Eles se cumprimentaram e Elliot apresentou Phaedra.
– Já tive a honra de conhecê-la, Rothwell. Fico feliz em vê-la de novo, Srta. Blair, e em circunstâncias menos penosas do que da última vez. Sua mãe era muito estimada por humildes acadêmicos como eu e foi muito generosa conosco. Sou-lhe grato pelas pessoas a quem me apresentou em suas recepções.
Os criados apareceram e Matthias deu ordens a respeito das bagagens.
– Entrem e descansem. Meus outros convidados estão fazendo a sesta, mas se reunirão a nós em breve.
Ela subiu o caminho de pedras e seguiu Matthias até a varanda. Olhou através dos arcos e perdeu o fôlego.
A visão era impressionante, um ângulo que exigia uma tela e um pincel. Se a vista montanha acima era incrível, olhá-la de cima para baixo era de deixar qualquer um embasbacado. Os telhados e faixas de circulação da cidade se espalhavam pela encosta. O declive era tão acentuado que era de espantar que se tivesse construído alguma coisa nele. O mar infinito, o céu tão próximo, o promontório que abraçava a paisagem – tudo isso criava um panorama vasto e irreal de um lugar precário no mundo, uma visão empolgante e romântica, mergulhada em beleza e, ao mesmo tempo, repleta de perigos.
– É um espanto que o senhor não viva somente nesta varanda e nem se importe se o restante da casa cair aos pedaços, Sr. Greenwood.
– É quase isso o que faço, Srta. Blair. Aqui e nos outros terraços e varandas. Mesmo não sendo católico, vou à igreja da paróquia para acender velas pela alma de um parente distante cuja herança me permite viver no paraíso.
Uma mulher os saudou quando entraram na sala de visitas arejada, de piso de mármore. Era uma mulher local, elegante e de pele morena. Tinha um rosto lindo e comovente, marcado por um traço de melancolia. Chamava-se signora Roviale e a forma como entrou e cuidou de acomodá-los indicou que aquela era a sua casa. Matthias Greenwood não vivia sozinho no paraíso.
Outro convidado se juntou a eles logo em seguida, depois que um criado trouxe vinho. Phaedra o reconheceu também. Ele não fora ao enterro de sua mãe, mas tinha estado uma ou duas vezes em sua casa quando ela era garota. Tinha uma beleza tão nobre, de traços finos, que ela quase se apaixonou na primeira vez que o viu.
– Veja quem está aqui para celebrar sua visita, Rothwell – disse Matthias. – Escrevi contando a ele que você viria de Nápoles e ele e a esposa vieram de Roma para vê-lo. Srta. Blair, permita-me apresentá-la ao Sr. Randall Whitmarsh, cavalheiro, acadêmico e outro refugiado da Inglaterra.
O Sr. Whitmarsh adotara os modos e o estilo europeu continental, reflexo de seus longos anos vivendo no exterior. Sussurrou um “belíssima” ao se inclinar para beijar a mão de Phaedra com tamanho exagero que ficou provado que deixara para trás o jeito reservado britânico ao adotar Roma como sua residência principal.
– É uma alegria conhecer a filha da indomável Artemis Blair – disse ele, dando um sorriso charmoso e encantador.
Phaedra não era insensível à atenção de um belo homem. Notou que lorde Elliot ficou observando de soslaio enquanto o Sr. Whitmarsh se demorava segurando a mão dela.
– Soube recentemente do falecimento de Richard Drury – disse o Sr. Whitmarsh, dando um tapinha na mão dela. – Vejo que ainda está de luto, mas creio que tenha sido uma opção muito saudável viajar para o exterior para suavizar seu sofrimento.
– O modo como costumo me vestir tornou desnecessário encomendar um guarda-roupa apropriado ao luto, entretanto meu pai não ia querer isso de qualquer forma. Na última vez que o vi, ele proibiu terminantemente que eu ficasse de luto.
Ela puxou a mão da pegada suave do Sr. Whitmarsh.
– Não esperava encontrar tantas pessoas que conheceram minha mãe na remota Positano.
– Nós três somos membros da Sociedade dos Dilettanti, Srta. Blair. Por ser mulher, sua mãe não podia participar. Vez ou outra, porém, nós lhe fazíamos uma visita para prestar nossa homenagem – explicou o Sr. Whitmarsh. – Considerando o conhecimento dela em letras românicas, não é de surpreender que encontre tantos dos que a conheceram ao visitar as terras do antigo império.
– Também é membro da Sociedade, lorde Elliot?
– Entrei depois de voltar da minha viagem pelo continente.
Ela só tinha 18 anos quando a mãe morreu, por isso ainda não chegara a frequentar os salões e jantares em que Artemis recebia acadêmicos e artistas. Porém, ali estavam, diante dela, alguns integrantes do círculo de amizades de sua mãe, mesmo que talvez pertencessem ao círculo mais distante.
Phaedra teria que descobrir se algum daqueles homens tinha percebido ou ouvido falar no homem que recebera as últimas afeições de Artemis.
Phaedra Blair estava aliviada por ela e a signora Roviale não serem as únicas mulheres na festa. A Sra. Whitmarsh desceu do quarto logo.
Phaedra entendeu de imediato que a Sra. Whitmarsh não tinha uma mente tão aberta quanto a do marido. Não falava muito, parecia mais um passarinho pálido, entretanto tinha um rosto tão expressivo que era possível adivinhar seus pensamentos. Ao perceber que Phaedra e lorde Elliot tinham chegado juntos, a Sra. Whitmarsh deu um sorrisinho superficial e lançou para a signora Roviale um sutil olhar de desdém. Depois, resignada, se recolheu a sua silenciosa desaprovação da companhia de mulheres perdidas.
Naquela noite, ao jantarem ao ar livre na varanda, lorde Elliot teve a elegância de incluir a Sra. Whitmarsh na conversa sobre a sociedade londrina, na certeza de que isso lhe agradaria. Phaedra permitiu que os cavalheiros a cobrissem de conselhos sobre as maravilhas da Antiguidade que ela não poderia deixar de visitar.
– A senhorita tem que ir aos sítios de Paestum – exortou Matthias. – Rothwell, ordeno que a leve até lá. Não entendo esses ingleses que percorrem confeitarias e bordéis em Pompeia e ignoram alguns dos mais belos templos gregos do mundo que há no entorno.
– Se a Srta. Blair desejar, iremos visitar os templos – disse lorde Elliot.
Matthias pareceu muito um acadêmico naquele momento. Com o cabelo branco despenteado, o maxilar cortando o ar e o nariz aquilino empinado, ele entoava a lição como se ela fosse uma universitária, algo que nunca lhe permitiram, por ser mulher.
– É por isso que estou aqui, Srta. Blair. Rothwell e Whitmarsh admiram os romanos, mas meu foco é mais antigo. Esta terra foi colônia dos gregos quando Roma ainda era uma cidadezinha com cinco cabeças de gado. Depois de ver os sítios de Paestum, a senhorita entenderá a superioridade do pensamento grego.
– Se isso não exigir que minha visita se prolongue por muito tempo, talvez eu aceite seu conselho.
Após o jantar, a signora Roviale levou as mulheres para longe da varanda, deixando os homens a discutir e debater sobre a Antiguidade. Phaedra não gostaria de manter uma conversa forçada com a crítica Sra. Whitmarsh. Assim, alegou cansaço e se isentou de mais obrigações sociais.
Uma criada a conduziu ao quarto. Quadrado e branco, com o mesmo piso de mármore visto por toda a mansão, tinha janelas grandes que davam para um terraço estreito que se estendia acima dos arcos da varanda principal. Alguém já tinha desfeito suas malas e guardado as roupas em um armário de madeira escura. Havia uma jarra de água na bancada para lavar o rosto e as mãos. Era de cerâmica, com flores vermelhas e folhas azuis. Cores semelhantes decoravam os azulejos em volta da lareira e o peitoril de uma janela.
Phaedra abriu as portas duplas que davam para o terraço de modo que a brisa do mar e os últimos raios do crepúsculo entrassem. Sons da varanda chegavam até ela: Matthias em tom professoral e Elliot rindo, assim como o ruído de conversa. Ela se perguntou se sua mãe algum dia realmente fora aceita naquelas discussões masculinas. Quando os Dilettanti a prestigiavam, era sempre uma relação de homens com uma mulher, com tudo o que isso implicava?
Cadeiras foram arrastadas e despedidas foram feitas. O silêncio tomou a mansão. Ela se levantou a fim de se preparar para dormir. Começava a soltar os fechos do vestido quando um ruído mínimo do lado de fora chamou sua atenção. Um feixe de luz dourada atravessou o terraço e alcançou a noite. Ela foi até lá e espiou.
Lorde Elliot estava de pé na outra extremidade do terraço, em mangas de camisa e colete. Phaedra tinha certeza de não haver feito barulho, porém ele olhou na direção dela como se tivesse feito.
– Estava imaginando se Matthias a teria acomodado neste quarto – disse Elliot.
Ela caminhou até o piso de terracota lá fora. A luz vinha de outro conjunto de portas ao lado do dela. O terraço era compartilhado por dois quartos.
– Parece que nosso anfitrião entendeu errado – disse ela.
– Possivelmente. No entanto, se for para dividir um terraço com alguém, prefiro você à Sra. Whitmarsh.
Ela arriscou se afastar um pouco mais, contudo permaneceu do próprio lado no espaço comum. Da balaustrada de pedra podia-se ver o mar, que agora brilhava lá embaixo com milhões de pequenos reflexos de estrelas.
– O Sr. Whitmarsh disse que os Dilettanti faziam homenagens a minha mãe. Fico feliz de saber que a capacidade dela era reconhecida.
– Um homem honesto teria que admitir o brilhantismo dela. É claro que havia outros menos honestos que diminuíam isso.
– É claro. Você a conheceu?
– Ainda estava na universidade quando ela faleceu. Ouvi falar nela e a vi na cidade, contudo não estava em posição de visitá-la.
– O que achava dela?
Ele se virou e descansou o quadril na balaustrada, olhando para a noite na direção dela. Phaedra desejou que ele não parecesse tão lindo e sedutor. Desejou que a luz se apagasse para que seu rosto ficasse no escuro.
– Fui criado em uma casa de homens e meu pai não compreendia bem as mulheres. Então, saber da sua mãe foi uma revelação. Os colegiais falavam muito dela. Alguns se apaixonavam por ela, outros a achavam irreal, mas sem dúvida ela os fazia questionar a ordem das coisas. Quanto a mim, eu a achava bonita, interessante, inteligente e provavelmente perigosa.
– Acho que ela era perigosa. Se o mundo fosse cheio de Artemis Blairs, os homens não poderiam continuar a ser o que são. Todos teriam que questionar a ordem das coisas, como você.
– Era o que me passava pela cabeça, entretanto eu era um garoto na época e não gostava de perigos reais. Tive que conhecer a filha dela para entender essa parte.
Foi a vez dela de rir.
– Dificilmente eu poderia representar um perigo para você.
– Você se engana, como eu me enganei. O perigo não vem de você.
Não, não vinha. Isso ficara evidente aquela noite. Um poder fluía dele, em impulsos viris. Isso não a surpreendia nem a assustava. Porém, a forma como seus próprios instintos femininos reagiam, sim.
– Não me culpe por suas piores inclinações, lorde Elliot.
– Elas não parecem estar entre as ruins, que dirá as piores, querida Phaedra. Ao contrário, elas me parecem naturais, inevitáveis e até necessárias.
Sua voz baixa e segura lançava cordas de veludo que a amarravam. O coração dela foi parar na boca e sua pulsação acelerou. Ele não se mexeu. Não se aproximou nem um centímetro, contudo pareceu estar ao seu lado, correndo a mão por seu corpo todo.
– Quero você.
O tom calmo e descontraído agitou o sangue dela como a brisa agitava seu cabelo.
– Quero-a sem resistências ao prazer e implorando por mim. Quero-a nua e tremendo e despida de suas...
– Basta. Se é isso o que pensa das mulheres...
– Só de você, querida dama. Você lança um desafio a cada homem que vê. Não se surpreenda se um deles o aceitar.
– Como ousa...
– Ah, sim, eu ouso. Estou a ponto de ousar neste exato momento. Você sabe disso e ainda assim está aqui. Se não quisesse que eu ousasse, nunca teria saído por aquela porta.
Ela abriu a boca para negar, mas as palavras lhe faltaram.
Com um sorriso vago, ele se afastou da balaustrada. O coração dela deu um salto e suas pernas fraquejaram.
– Esse perigo que incita em mim a excita.
Elliot andou em direção à luz do próprio quarto.
– Quem está zumbindo em volta de quem agora, Srta. Blair?
– Um nome estranho para se dar a uma filha, Phaedra – ponderou Matthias em voz alta.
Era a manhã seguinte e ele e Elliot tomavam café na varanda. Lá embaixo, Positano despertava após o nascer do sol.
– Duvido que haja outra mulher com esse nome na Inglaterra, considerando a referência – acrescentou Matthias. – É muito típico de Artemis Blair decidir que a fonte não importa e valorizar sua exclusividade.
Levando em conta que a Phaedra da mitologia teve um caso com o enteado, era mesmo uma escolha estranha. Elliot duvidava que a crença da Srta. Blair e da mãe no amor livre fosse tão longe assim.
– Acho que ela escolheu o nome pela sonoridade. É um belo nome – disse Elliot.
– Eu poderia pensar em uns cinco ou seis melhores. Não, seu descuido por este primeiro dever maternal sugere que ela era indiferente a essa parte da vida.
– Você falava bem dela na época em que fui seu aluno e a Srta. Blair a idolatra. Vamos calar as observações que ela possa ouvir.
– Ela ainda está deitada e não vai ouvir minhas alusões à falta de impulsos femininos de sua mãe, entretanto sua repreensão faz sentido.
De fato, ela ainda estava na cama, dormindo profundamente. Elliot tinha ido até lá e espiado antes de descer. As portas do quarto dela ainda estavam abertas, como uma forma de contradizer as últimas palavras dele. Veja como você não é nem um pouco perigoso para mim. Sua honra e a lei me protegem do pior e meu autocontrole cuidará do resto.
Ele vira um cabelo cor de cobre espalhado pelo travesseiro e uma pele alva enroscada nos lençóis. Uma perna linda e esguia se alongava sobre a roupa de cama. A tentação de entrar lá só para ficar observando-a o tomou, assim como o aborrecimento por vê-la dormindo tão profundamente, algo que ele não tinha conseguido fazer.
Nos últimos tempos, andava pensando nela demais. Ficando com a cabeça nas nuvens por muito tempo. Desejando demais. Achava que a companhia dos amigos e as obrigações do trabalho diminuiriam a importância da presença dela e assim ele voltaria a mente para algo mais normal.
– Está vivendo como um rei aqui, Greenwood – disse, para se distrair das imagens de Phaedra tão etereamente erótica em seu repouso. – As melhorias desde a minha última visita são visíveis.
Matthias ficou radiante.
– Suponho que esteja falando da casa e não da minha companheira, apesar de eu não saber ao certo dizer qual me agrada mais. Trazer as pedras até aqui foi um inferno, mas valeu a pena. Você deveria se juntar a mim, Rothwell. Compre uma mansão antiga e veja como seu dinheiro inglês pode render nesta costa.
– Ele rende porque o lugar é tão inacessível que é preciso navegar milhas até chegar a uma cidadezinha que fica logo ali atrás da montanha. Preciso da vida urbana com mais frequência do que duas vezes ao ano. Contudo, se está feliz em seu isolamento, fico satisfeito por você.
– Não estou nem um pouco isolado. Sempre tenho companhia. Os amigos vêm da Inglaterra, de Roma, de Nápoles e até de Pompeia. Recebi o superintendente do município no mês passado. Ele não se incomodou de subir a montanha em lombo de burro.
– Gostaria que me desse uma carta de apresentação – pediu Elliot. – Quero ver tudo o que escavaram nos últimos anos, não só as atrações abertas para visitantes.
Matthias levantou a sobrancelha, curioso.
– Quer ver os afrescos reveladores das delícias noturnas? A Srta. Blair não vai poder entrar, por mais que eu peça.
– Vou pesquisar outros assuntos. Antes de partir, gostaria que me concedesse alguns minutos para discutirmos o rumo que meu trabalho está tomando.
– Está combinado, então. Amanhã cedo nos trancaremos em meu escritório para falar sobre isso. Sinto falta de dar aulas. Depois me lembro de quão limitados muitos de meus alunos eram e a saudade vai embora.
– Brincar de professor e aluno vai ser muito útil. Vai clarear meus pensamentos. Ah, estou obrigado como cavalheiro a dizer que creio que você tenha entendido mal minha amizade com a Srta. Blair.
– É mesmo? Que pena!
Naquele momento, a dama em questão se juntou a eles. Com seu vestido preto esvoaçante e o cabelo solto, fazia pensar numa linda feiticeira celta. Matthias a convidou para se sentar à mesa. Serviu-lhe café e ficou atrapalhado, o que revelava quanto a companhia dela o provocava.
– Espero que tenha dormido bem em minha humilde casa, Srta. Blair.
– Sua casa é tudo, menos humilde, e dormi muito bem. O som e a brisa do mar são muito relaxantes – assegurou Phaedra, e então virou a cadeira para olhar a cidade. – O que estão fazendo lá embaixo? O que é aquela coisa vermelha perto da água?
– Ah, deve ser o carro para a procissão. Eles devem estar pintando-o. Daqui a três dias é a festa de San Giovanni, São João Batista. É uma grande festa religiosa por aqui. Nenhum barco sai para pescar nesse dia.
– Vai haver uma procissão?
– Uma procissão, uma missa e uma festa. Entre outros rituais, eles colhem nozes nas montanhas para fazer óleo.
– Interessante – disse ela. – Coincide com o solstício. Deve ser outro exemplo de festa pagã da qual os cristãos se apropriaram.
– A Srta. Blair está alcançando uma reputação em estudos mitológicos comparável à da mãe dela em letras românicas – informou Elliot. – Ela publicou um livro sobre o assunto que é muito benquisto.
– Que louvável!
Matthias conseguira falar de forma a diminuir o feito, apesar de admirá-lo.
– Esta data em comum é uma coincidência – continuou ele. – O deus do sol não era uma figura de destaque nas mitologias grega e romana. Apolo é associado a ele, mas o próprio sol, Hélio, desempenha um papel menor. Talvez por haver tanto sol por estas terras, não tenha sido preciso apaziguar esse deus.
– Há muito sol no Egito e, ainda assim, seu deus sol reinava supremo – contrapôs Elliot. – Acho que a Srta. Blair está certa sobre a festa de San Giovanni.
– Talvez – disse Matthias. – E o simbolismo das nozes, o que seria?
Phaedra riu.
– Vou pensar em uma resposta antes de partir, já que o senhor está disposto a ser flexível em suas opiniões.
– Para uma mulher bonita, posso ser completamente flexível, senhorita Phaedra. É meu maior defeito.
Ele olhou para fora da varanda. Um homem se aproximava, vindo por um caminho do norte.
– Eis Whitmarsh, de volta de sua caminhada matinal. Prometi mostrar-lhe um novo tesouro que encontrei. Gostaria de ver minha humilde e querida coleção de artefatos, Srta. Blair?
– Com certeza, Sr. Greenwood.
Ela aceitou sua mão para se levantar. Whitmarsh se juntou a eles ao entrarem na casa.
Elliot estava curioso para ver se Phaedra conseguiria manter a pose de indiferença em relação a ele que assumira nessa manhã. Ela nem sequer enrubescera. Não ficara agitada. Havia notado sua presença de forma indiferente e segura de si. Sua atitude só fez provocar o lado mais obscuro do desejo que o atormentava.
Esse lado agora lhe dizia que ele deveria tê-la seduzido no terraço na noite anterior, como desejara. A ideia fazia mais sentido a cada minuto que passava.