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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


Lourenço / Franklin Távora
Lourenço / Franklin Távora

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

 

Palavras que escrevi, aos 3 de julho do ano corrente,     na folha exterior do original donde fora copiado o Lourenço     para a Revista Brasileira.

Esta crônica, pronta há mais de dois anos para seguir em volume     o Matuto, cujo é conclusão lógica e natural,     acaba de sair a lume na Revista Brasileira, a que dedico afetos de     natureza paternal.

Mudando-se o plano da publicação, tive por necessário     adaptar aos leitores da Revista, que eu não podia presumir     fossem absolutamente os mesmos do Matuto. Fiz por isso muitas alterações     neste manuscrito. Aumentei informações e minúcias, reproduzi     idéias inúteis no primeiro caso, indispensáveis no segundo.     Quem ler agora o Matuto e o Lourenço notará     algumas repetições. É certo, porém, que, na leitura,     pode ser este desacompanhado daquele. Pelo que respeita às repetições,     passará as vistas por cima delas o leitor benévolo, sem enxergar     matéria para corpo de delito contra o autor, atentos os motivos explicados.

Cumpre advertir, que, conquanto cada uma das duas narrativas tenha ação     própria, conquanto cada uma delas possa subsistir sem a outra, para     melhor conhecimento da guerra dos mascates em que ambas se inspiraram, a leitura     do Matuto sem a do Lourenço, e vice-versa, não     é bastante.

Esforcei-me por dar, quer no primeiro quer no último, uma idéia     tão completa quanto possível, dessa guerra, ainda pouco estudada,     não obstante a sua originalidade, por si só no caso de convidar     a sério exame e meditação o historiador depois do economista     e do político. Pouca ou nenhuma importância se lhe tem dado entre     nós; é certo contudo que, sem a guerra dos mascates, a qual     deixou um valo profundo entre brasileiros e portugueses. não teríamos     a revolução de 1817, radiante e alva de que fora aquela guerra     o pálido crepúsculo precursor do dia da Independência     em 1822.

Antes da emancipação das colônias americanas (1776),     antes da conjuração mineira (1789), reunida a nobreza com o     Senado da Câmara de Olinda, em 1710 tratou de dar à capitania     de Pernambuco outra forma de governo, independente de Portugal: foi a guerra     dos mascates o primeiro grito do novo mundo contra as metrópoles européias.     Não imitou Pernambuco a França nem os Estados Unidos. Pensou     e obrou por si muito antes de nesses países se pensar em independência     e república.

O ajuntamento discutiu a idéia sugerida por vários nobres     de se estabelecer em Olinda uma república aristocrática modelada     pela de Veneza; e se esta idéia, considerada por todos de alta magnitude,     e recebida por muitos com medo, não prevaleceu, porque foram votos     vencedores os dos moderados que, como meio de conciliar os ânimos     discordes, propuseram fosse aceito para governador o bispo alheio às     lutas partidárias, e a quem aliás cabia o governo, na falta     do governador fugitivo, por via de sucessão, conforme dispunha a carta-régia     prevenindo as vacâncias, nem por isso se deve desconhecer a prioridade     de Pernambuco em cogitar na independência.

A devassa, instaurada depois da chegada do governador Félix José     Machado, ocasionou homízios, prisões, seqüestros, que somente     tiveram termo em 1714. A capitania ficou arruinada, muitas famílias     na viuvez e na miséria; muitas fortunas desapareceram: foram quatro     longos anos de calamidades, de lágrimas e luto. Se não houve     execuções capitais, não foi por faltarem bons desejos     ao governador e aos ministros, mas por se poderem avir neste ponto com aquelas     autoridades sanguinárias os ouvidores da Paraíba e das Alagoas;     houve, porém, mortes e não poucas por ocasião dos levantes     nos assaltos e batalhas; houve assassínios nas estradas e até     nos refúgios onde os nobres tinham buscado pôr em segurança     a sua vida.

Com todo o fundamento dever-se-ia reputar esta guerra como uma das mais     prejudiciais a Pernambuco, se ela não fora a semente donde pululou     a planta da nossa independência política.

Franklin Távora

 

 

Lourenço

 

O governador Félix José Machado de Mendonça   Eça Castro e Vasconcelos, que chegara a Pernambuco em 7 de outubro de   1711, depois de ter passado alguns dias em Olinda, mudou a sua residência   para Recife, com grande desagrado e desconfiança dos nobres, porque a   florescente vila era a praça forte da burguesia portuguesa, que aspirava   à posse e mando da capitânia. 

 

Posto que já muito aumentado, não podia no lustre e número     dos habitantes competir o Recife com a opulenta e populosa Capital, que, do     alto do seu orgulho, olhava com desdém de soberana para a humilde vizinhança     a quem hoje paga feudo de vassalagem. Eram poucas as ruas, quase nenhum os     estabelecimentos públicos. Maurício de Nassau fizera surgir,     da ilha pitoresca, aos sobrados, palácios e outras obras, cujos restos     ainda atestam a grandeza do gênio batavo. Mas todos estes edifícios     e estabelecimentos, bastantes para certificar vinte e quatro anos de domínio     fecundo de um grande povo, pouco eram em comparação às     ruas sem conta, aos templos suntuosos, às habitações     aristocráticas com que dos seus outeiros descia até os vales,     por entre pomares e jardins esplêndidos, a Olinda dos poetas, que nascera     de um conflito de prazer das vistas de Albuquerque com as risonhas perspectivas     que de cima desses outeiros se descortinam, como nascera Vênus do ajuntamento     do sangue do céu com as escumas do mar.

A preferência do governador feriu a nobreza nos seus foros anciãos,     e a cidade na sua justa e legítima vaidade. Todavia os nobres teriam     curtido em silêncio este dobrado desdouro, se  em 18 de novembro,     quarenta dias depois da chegada de Félix José Machado, não     fossem escandalizados com a nova inauguração do pelourinho,     causa primordial da guerra extinta (1). Não podendo mais reter, em     presença do novo desacato, os seus ressentimentos mal ocultos, os mais     importantes membros da nobreza pernambucana procuraram o bispo D. Manuel Alves     da Costa, de cujas mãos o governador recebera as rédeas do governo,     para o consultarem sobre o procedimento que deviam ter.

O bispo, modelo de brandura cristã e de concórdia fraternal,     tratou de amaciar os fidalgos melindres eriçados.

Senhores, disse ele, não há razão para assim vos mostrardes     descontentes. O ouvidor não podia deixar de restabelecer o pelourinho,     demolido em 1710 no ardor das paixões pelo povo levantado, visto que     a vila está criada. Até me parece que, a não ter este     procedimento, o ouvidor incorreria em culpa.

Perdoe-me v. exa., redargüiu Estevam de Aragão. É verdade     que a vila está criada; mas, tendo oposto os nobres e os homens bons,     ou antes o clero, a nobreza e o povo da capitania (que não podem compreender     neste número os abomináveis mascates) geral reação     a este ato, justo parecera que sem novo ato em que se visse manifesta a vontade     de el-rei acerca de tal assunto, não houvesse por parte dos ministros     a menor deliberação. Poder-se-á acaso compreender que     os pernambucanos derramassem o seu sangue, que a nobreza lançasse mão     das armas e gastasse rios de dinheiro pra no fim de tão sanguinolenta     e dispendiosa contenda, ficarem satisfeitos com a renovação     do infame padrão?! Demais, que significam a carta de D. Lourenço     de Almeida, e a confirmação do perdão aos nobres pelo     primeiro levante senão que estes tinham razão no dito assunto?     Declaro a v. exa., não posso conformar-me com a opinião dos     que entendem estar tudo acabado, e nada nos restar d’ora em diante neste     singular pleito, senão curvarmos a cabeça aos que tem agora     por si a autoridade que não sabem dar o devido apreço à     sua honra, e à justiça entregue nas suas mãos. A meu     parecer, a questão está de pé, a luta não teve     o natural desfecho. O pelourinho, há pouco inaugurado por entre festivas     demonstrações dos mercadores, deve ser novamente demolido.

Nem nos custará muito darmos aos vilões esta lição,     ajuntou Antônio Dias de Figueiredo. Robustos estão ainda os braços     que construíram à roda do Recife essas trincheiras, que o novo     governador mandou destruir tanto que tomou conta da terra, mas que as maiores     e mais desesperadas investidas dos mascates não puderam romper durante     quatro longos meses de cerco. Os pleitos patrióticos, que castigaram     a arrogância da vilanagem, depressa voltarão ao posto, onde morrer     pela pátria lhes parecia mais nobre do que vencer o inimigo.

Senhores, respondeu o bispo, as guerras são cruas calamidades, que     os estados devem evitar e os homens temer; elas se opõem à civilização,     e a moral condena-as. Milhões de cruzados e, o que é mais, milhares     de vidas gastaram-se nesses infaustos meses. Sofreu a agricultura, sofreu     o comércio, sofreu o governo, sofreu a família, sofreu a religião     prejuízos incalculáveis. Mas para justificar o estado lastimoso     de Pernambuco, havia uma razão o governo tinha o direito de se fazer     obedecer e a obrigação de impor aos rebeldes a obediência.     Nestes intuitos, a nobreza fez o que ordenara sua honra e o seu dever. Mas     as circunstâncias atuais não são as mesmas. A nossa resistência     às novas autoridades meteria na mão deles a arma que brandimos     contra os rebeldes, e estigma de rebeldia deixaria em nossas frontes. Cuidemos     antes de reparar os grandes males que nos deixou como legado fatal essa luta     inglória e fratricida. Deixemos o mais à conta da disciplina     das coisas humanas, aos altos conselhos da Providência.

Este parecer, que tinhas as principais raízes no ânimo piedoso     do bispo, não foi bem aceito pelos circunstantes. Entre estes, o que     mais tenaz se mostrou em não se conformar com a nova direção     das coisas públicas, foi Leão Falcão d’Eça.     Estava ele para os fidalgos do sul da província, pela sua intrepidez     e exaltação, na mesma relação que Cosme Cavalcanti     para os do norte. Pelo seu voto, o primeiro passo que deviam dar os pernambucanos     era porem abaixo o pelourinho. Disse ele que tinha amigos e moradores em Tracunhaém     que o seguiriam na represália, sem entrarem na indagação     e dos perigos e do resultado final. Disse mais, que não queria a vida     senão até o momento de dar esse segundo ensino aos mascates,     depressa esquecidos do primeiro.

Cosme Cavalcanti trouxe também a sua pedra para o edifício     da revolta.

Não ignorais que vim de propósito de Goiana a cumprimentar     o governador, porque se me mandara dizer desta cidade que os nobres haviam     assentado fazer cada qual a sua visita, e recolher-se enquanto a obrigação     de algum negócio os não chamasse. Ia eu chegando às portas     do palácio, quando saíam de dentro João da Mota e o padre     João da Costa. Ao darem com as vistas em mim, risos escarninhos são     os cumprimentos que tem um, olhares ameaçadores e desdenhosos são     a cortesia que tem o outro. Diante dessas figuras ainda macilentas pela fome     que com o cerco padeceram, todos os meus brios sentiram-se insultados. Pareceu-me     que subir cabisbaixo as escadas por onde haviam descido triunfantes duas víboras     peçonhentas não era ação que se compadecesse com     o meu sangue e linhagem. Dei de rédeas ao cavalo e torci para trás.     Não me hajais por arrebatado, senhores. Eu já trazia nesse momento     todos os espíritos erguidos: pelas ruas da infame povoação     encontrara magotes de reles mercadores com alegres ares, e palavras descompostas.     Uns diziam versos em honra do seu triunfo; outros cantavam as trovas depravadas     contra a nobreza, chocalhando da nossa derrota. Sabeis ao que ia essa desprezível     gentalha? Ia levar os seus agradecimentos ao ouvidor e ao governador pelo     restabelecimento do pelourinho.

Coisas de imprudentes, disse o bispo. Ponhamos bem altos os nossos ouvidos     para que não escutemos insultos e injúrias, e bem atentas as     vistas no estudo da nossa posição. Senhores, não nos     iludamos. O governador traz largos poderes, e empregará todos os meios     para se fazer obedecer. Não é tão fácil como vos     parece entorpecer a administração em sua marcha. Ele procura     mostrar-se imparcial, se acaso não o é.

Procurou ao princípio, hoje não. Hoje tem-no consigo, os mascates,     graças à força milagrosa do seu ouro e dos padres da     recoleta.

Graves coisas afirmais, Sr. Falcão d’Eça, observou o     bispo em ar de quem fazia amiga censura.

Sentindo a intenção de D. Manuel, Falcão d’Eça     retorquiu: Perdoe-me v. exa., não estou levantando aleives. Contou-me     José da Silva que, indo com um requerimento um dia à casa do     ouvidor, achara aí dois missionários, que naquela ocasião     lhe entregavam um cartucho de porte; e, querendo, sem que esta parte o visse,     recebê-lo, rompendo-se-lhe nas mãos o papel com o peso que embrulhava,     se espalharam sobre um bufete as moedas de ouro, que caíram em quantidade,     do que ficou o que as recebera, se bem pago, em nada satisfeito da testemunha     de vista (2). Quer v. exa. lhe aponte outros fatos? No banquete que deu há     oito dias, o governador, em seu palácio, aos mascates, aceitou peças     de ouro, louvando por essa ocasião a inteligência deles e, dizendo-lhes     que era muito superior à dos naturais de Pernambuco(3).

Não obstante esse forte ânimo dos nobres contra a política     do governador e do ouvidor, não obstante a inclinação     das suas paixões para o novo conflito, que devia resolver-se em segunda     guerra porventura mais encarniçada e mortífera que a primeira,     pôde D. Manuel, graças ao prestígio que lhe ficara do     governo, ao seu sagrado ministério, à sua piedade, ao seu esforço,     dissuadir os nobres do grave pensamento que alimentavam. D. Manuel foi ainda     além deste resultado.

Sou de parecer, dissera ele por derradeiro, que cada um dos amigos presentes     volte à sua casa a tratar dos seus interesses, sem outro ânimo     em relação à administração pública     senão o de obedecer às autoridades e ser fiel a el-rei que elas     representam.

Estas palavras foram ouvidas por todos. Ate Cosme Bezerra e Falcão     d’Eça dentro de vinte e quatro horas volviam a seus lares.

O bispo não se enganara nas conjeturas. De fato, Félix José     Machado estava armado com todos os poderes para vencer o espírito da     rebelião, fosse de que lado fosse. A corte de Lisboa não quisera     desconsiderar inteiramente os pernambucanos, importantes pelas suas tradições,     posição e fortuna; mas incumbira o governador de destruir tudo     o que se parecesse com germens de resistência, de que pudesse proceder     o pensamento de tornar independente o Brasil. Não era sem razão     que se previa ali este caso: soubera-se em Portugal tudo o que em Olinda se     passara em 1710, por ocasião de reunir-se a nobreza com o Senado da     Câmara para escolha do governador, depois da fuga de Sebastião     de Castro Caldas. D. João V percorrera com a vistas algumas das cartas,     em que pelo miúdo se referiam, a importantes pessoas do reino, palavras     dos nobres, reveladoras do intento de realizar essa independência. De     feito, este intento já expresso em 1650, quando a coroa esteve para     abandonar a colônia à sua própria sorte, em 1710 teve     ainda mais positiva afirmação. Pedro Ribeiro da Silva, capitão-mor     de Santo Antão, João de Barros Rego, capitão-mor em Olinda,     João de Freitas da Cunha, mestre de campo, Bernardino Vieira de Mello,     sargento-mor, enfim a principal nobreza opinara pela separação.     Bernardino Vieira chegara a propor que se declarasse a capitania em república      ad instar dos venezianos.

O primeiro cuidado de Félix José de Machado depois de chegar     a Pernambuco foi estudar o estado dos dois partidos que se combatiam.

Estavam ambos cansados por mais que se inculcassem o contrário. Os     mascates, além de cansados, não tinham meios de prosseguir a     luta. Em toda a guerra só haviam contado uma vitória a de Sibiró.     Esta mesma teve por principal origem a circunstância de haver o mestre     de campo, comandante das tropas da nobreza, jurado ao bispo que em caso nenhum     derramaria sangue; era o juramento de entregar-se ao inimigo. A vitória     incruenta trouxe grande força moral aos mascates, e até lhes     facilitou pelo lado do sul o fornecimento de gêneros, sem os quais dentro     em pouco tempo cairia o Recife em poder dos nobres. Mas aquela impressão     desvaneceu-se, e as facilidades cessaram com a vitória de Ipojuca,     e o assédio da fortaleza de Tamandaré, que tanto ilustraram     o já ilustre ajudante de tenente Francisco Gil Ribeiro. Félix     José Machado, que trazia a intenção reservada de tomar     o partido dos mascates, não pôde sustentar a máscara de     imparcialidade senão nos primeiros dias: e em vez de compor os discordes,     afastar os motivos da contenda, realizar, numa palavra, a obra do congraçamento,     entendeu em mostrar-se forte para com os nobres em que o cansaço não     pudera ainda gerar a fraqueza, nem os grandes gastos e prejuízos o     receio de cair em penúria.

Não satisfeito com a restauração do pelourinho, ordenou     ao novo ouvidor João Marques Bacalhau, que com ele viera, que instituísse     a devassa sobre o primeiro levante, sem embargo de perdão; e nesta     devassa atropelaram tão parcialmente os princípios da justiça,     que dezenove dos principais nobres de Olinda, pronunciados em segredo, foram     mandados prender pelo governador, em 17 de fevereiro de 1712. De alguns, como     do sargento-mor Leonardo Bezerra e do alferes André Vieira de Mello,     verificou-se a prisão por ocasião de saírem do próprio     palácio do governador. As prisões continuaram. O capitão     André Dias de Figueiredo, depois de passar quase uma semana dentro     de uma mina, no convento dos jesuítas, em Olinda, teve de ser ali arrancado     para a semi-tumba das Cinco Pontas. A fuga para o mato foi então o     primeiro, senão o único recurso dos nobres. Em poucos dias Olinda     ficou entregue somente às famílias apavoradas, os engenhos ficaram     ao desamparo, como a cidade e vilas. A guerra já contribuíra     poderosamente para paralisar o serviço da lavoura; o novo golpe veio     completar a triste obra.

A capitania era como um país conquistado. Olinda chorava lágrimas     de sangue e trajava luto. O Recife, porém, embalava entre verdores     gentis e águas mansas, como cândida ninfa.

Os mascates banqueteavam-se como os novos ministros. Chegara a sua vez.   

 

O eclipse do astro dos nobres em Olinda alongou a sua sombra até Goiana,     e nele viram medonho anúncio de próximos males todos os daquela     vila que pertenciam à nobreza.

Goiana era um dos pontos da capitania onde a causa dos mascates passara     por maiores reveses. Do combate que ali se dera na noite de 23 de agosto de     1711, haviam saído vitoriosos o sargento-mor João da Cunha,     senhor do engenho Bujari, Cosme Cavalcanti, juiz ordinário, e outros     fidalgos, auxiliados pelo ajudante de tenente Gil Ribeiro, que completamente     destroçara com as suas tropas as paraibanas capitaneadas por Luís     Soares. Realizaram-se por essa ocasião a morte dos sargento-mor dos     mascates Antônio Coelho,  a prisão de Jerônimo Paz,     poderoso marchante, e a de vários cabeças no mesmo partido.     Era portanto de esperar que, restituído Jerônimo Paz à     liberdade com a chegada do novo governador, não se demorasse a desforra     que devia ser atroz, desforra premeditada e jurada pelo feroz procurador     do povo desde o momento da sua prisão (4).

O perigo era eminente. Trataram de prevenir-se os principais nobres.

Prometi ao bispo curvar a cabeça aos decretos da autoridade que nos     mandaram para aniquilar-nos; mas não devo considerar-me ligado por     esta promessa, porque para fazer tive o fundamento de supor que o intento     do governador era administrar justiça a todos igualmente. O seu último     procedimento prova o contrário, e eu não estou mais pela obediência     senão pela oposição ao tirano. A devassa continua aberta.     O governador, o ouvidor e o juiz de fora, os três paus da forca destinada     a acabar com os pernambucanos, não pararam em sua obra destruidora.     Jerônimo Paz diz pelas tabernas que nos há de pôr as cordas.     À vista disso, deveremos ficar impassíveis? Não. Organizar     a guerra à tirania eis o que nos cumpre a fazer.

Com que gente contais vós, Sr. Cosme Cavalcanti, para organizar e     sustentar essa guerra? Onde estão as vossas ordenanças? Estão     com os inimigos, que são as atuais autoridades, ou os sustentadores     delas. Onde estão os nossos escravos? Uns morreram, outros fugiram;     os que ainda restam, mal chegam para dar-nos água para os pés.     Onde estão os nossos moradores, que os não vejo, por mais que     estenda as vistas? Os que não ganharam, fugitivos, o sertão     a fim de não servirem contra a sua vontade nos regimentos que o governador     vai formando a seu modo, são velhos achacados, ou meninos que para     nada prestam. Dizei-me, por caridade, com quem havemos de fazer frente aos     carrascos? Tendes razão, João da Cunha disse Luís Vidal.     O baralho caiu nas mãos dos inimigos, que formam o jogo que lhes faz     conta.

Cosme Cavalcanti redargüiu: Não perdi ainda a esperança     de dar a esse governador que recebe em palácio aos pares as mulheres     de má vida, e sustenta aí banca de jogo, a lição     que receberam de nós, por várias vezes, os que com ele se dão     agora àquele vício, deixando-se roubar, para terem o grande     vicioso a seu lado. Corramos daqui a Itambé. Matias Vidal deve ter     muita gente reunida para arrostar com os nossos opressores.

Ouvindo falar em Matias Vidal, os outros fidalgos sobrestiveram: aquele     ilustre pernambucano, filho natural de André Vidal de Negreiros um     dos heróis da restauração grangeara grande nomeada com     a formação do batalhão sagrado, composto de     sacerdotes resolutos a derramar até a última gota de sangue     em defesa do bispo ameaçado em sua vida pelos mascates, nos primeiros     tempos do cerco do Recife.

Mas a agradável ilusão durou pouco. Rumor de passos fez-se     ouvir, e um novo interlocutor, entrando inesperadamente na sala, advertiu:     Matias Vidal desapareceu, não se sabe para onde. É o que acabo     de ler em uma carta escrita por seu genro a Manoel de Lacerda.

O novo interlocutor era André Cavalcanti que, sabendo esta triste     notícia, correra a participá-la a Cosme Cavalcanti, seu irmão.

Cosme refletiu um momento.

Não importa disse depois. Tenho cá o meu plano, e para sua     realização conto convosco, Sr. Luís Vidal, e convosco,     André. Estarei enganado? Podeis contar, podeis contar conosco responderam     os dois ao mesmo tempo.

Morrerei onde morrerdes ajuntou Luís Vidal.

Estando convosco, Sr. Cosme disse André Cavalcanti parece-me que     terei por mais certa a vitória que a derrota.

Que plano é o vosso? perguntou o sargento-mor.

Irei para as minhas fazendas de gado no Açu.

Estão muito distantes. Não poderei acompanhar-vos até     lá tornou João da Cunha.

Aí continuou Cosme reunirei os meus vaqueiros e criadores que quiserem     seguir-me: todos hão de seguir-me. Tenho fé que em menos de     dois meses Félix José Machado há de tremer ao ouvir falar     em meu nome.

Um momento de silêncio que sucedeu a esta declaração,     indicou que os valorosos pernambucanos ali congregados refletiam sobre a sua     sorte. Às palavras de Cosme, sempre de peso para os amigos, parentes     e todos os que conheciam os seus grandes espíritos, seguiu-se breve     mas solene interrupção. João da Cunha foi o primeiro     que se libertou dessa prisão do prestígio natural da coragem     e importância pessoal.

E quando é vossa partida? perguntou.

Para tão breve a tenho assentada que talvez seja esta a última     vez que nos achemos juntos. Há muitos dias que me aparelhei para realizá-la.     Vejo que é chegado o momento de deixar Goiana, a fim de poder ser útil     a Goiana. Os inimigos não dormem. Devemos ser, como eles, espertos     e diligentes.

Cosme levantou-se, deu alguns passos em direção a João     da Cunha, abriu os braços, e apertou-o, entre eles.

Se não virmos mais, seja esta a nossa despedida disse.

Os dois fidalgos ficaram comovidos. Aquela cena foi tão inesperada,     tão muda e tão eloqüente que não podia ser outro     o sentimento dos que tomaram parte nela.

Depois de abraçar Luís Vidal e André Cavalcanti, João     da Cunha encaminhou-se à escada.

Vede bem como sois, observou Cosme acompanhando-o. Antes de pordes o pé     na rua, examinai primeiro se há do lado de fora algum vulto suspeito.     Andamos cercados de espiões.

Não há novidades. Matias e José ficaram embaixo; trazem     armas, são valentes, e já teriam vindo a meu encontro se houvesse     qualquer desconfiança. A noite está medonha, mas eles são     dois gatos do mato; vêem perfeitamente no escuro.

Agora nós disse Cosme a meia voz aos irmãos, tornando à     sala do sobrado onde estas coisas se passavam. São dezoito horas. À     meia-noite devemos achar-nos em marcha. Ide dizer adeus à família,     enquanto tomo as últimas providências.

À meia-noite três cavalos selados, e cinco carregados deixavam-se     ver no quintal da casa. As cargas eram formadas com barricas, caixões     e malas. Nas barricas em que se imaginavam estarem metidos comestíveis,     o que continha era pólvora e bala: nos caixões havia armas de     fogo. Quando Zacarias, escravo de estimação de Cosme, veio dizer-lhe     que as suas ordens tinham sido executadas, ele, com os dois irmãos,     que desde as onze horas se achavam de volta, entraram para o quarto de vestir,     e com pouco tornaram à sala. Mostravam-se inteiramente disfarçados.     Cada um era um perfeito sertanejo com as suas perneiras, guarda-peito     e véstia de couro. Quando puseram na cabeça o chapéu,     e um pegou do chicote, e outro da peia, tendo cada qual na mão esquerda     um clavinote, ninguém diria que ali se ofereciam à vista três     fidalgos finos, senão três vaqueiros encourados que voltavam     com carregamento ao sertão.

Cosme desceu ao quintal, abriu de manso a porta que comunicava com a rua,     e examinou cautelosamente as adjacências: estavam metidas em trevas;     o silêncio era absoluto.

Então ordenou aos escravos e arrieiros que tocassem os animais carregados,     e montando a cavalo, tomou lugar no couce do comboio. André e Luís     seguiram o seu exemplo. Aquelas sombras mudas e tristes desapareceram em menos     de um minuto na erma escuridão da noite.

Passados alguns dias, João da Cunha recebeu no seu engenho dentro     de um só envoltório duas cartas de circunstância. A primeira     rezava assim:

Amigo e Sr. Sargento-mor

A tempestade que desabou sobre este Pernambuco alcançou como um raio   mortal o meu amigo e sogro, quando ele julgava ter cessado a fúria dos   elementos. Mas a infâmia do mau gênio que preside atualmente os   destinos da capitania, não há quem dela possa tomar conhecimento   sem se encher de assombro. Tanto que constou que pela devassa aberta pelo ouvidor   contra os levantes, os nobres estavam expostos às perseguições   e às aflições que se usam nestes negócios, tratou   o Sr. Sargento-mor honorário, meu ilustre sogro, de ocultar-se nos matos   da sua propriedade em Itambé. E porque foram dizer línguas serpentinas   ao governador que aí o mesmo sargento-mor honorário planejava,   de acordo com os nobres, terceiro levante, e o dito governador tenha em muita   conta o valor e os meios do Sr. Matias Vidal, o mandou declarar em um bando,   que se publicou a toque de caixas, revoltoso e inconfidente. E vendo que por   este meio não conseguia prendê-lo, lembrou-lhe a perfídia   publicar novo bando, destruindo todo o conceito que no primeiro patenteara contra   aquele sargento-mor, restituindo-lhe as honras, mandando que lhe fossem entregues   todos os bens que lhe haviam sido seqüestrados, e declarando por último   que ele podia recolher-se livremente à sua casa, que não haveria   pessoa que lho impedisse. Mas aqui, amigo e senhor meu, é que está   a nefanda perfídia, porque tudo isso não passou de laço   para prender o Sr. Matias Vidal, que, confiando na palavra do primeiro magistrado   desta capitania, largou mão das cautelas até aquele momento observadas,   e tanto que o tiveram fora do esconderijo deram passos para o prender; e se   a prisão não se realizou desta vez, foi porque, avisado em tempo   pelos amigos de que tudo quilo era uma traição, voltou ao seu   esconderijo. Mas daí o foram arrancar os agentes do governador, e a esta   hora jaz sepultado aquele honrado pernambucano na semi-tumba das Cinco Pontas,   com outros companheiros de luta e infortúnio. À vista   disto, senhor e amigo meu, tomei a deliberação de ocultar-me nestas   matas de Tracunhaém. Onde vos escrevo as presentes regras, que particularmente   se dirigem a chamar-vos para este abrigo, no qual o valoroso Falcão d’Eça   espera dar terrível ensino aos algozes dos pernambucanos. Se vos parecer,   com a demais nobreza dessa vila, vir fazer-nos companhia nestas  matas,   mandai prevenir-nos, para que todas as providências sejam dadas a fim   de se vos facilitar a entrada nos segredos. Deus vos guarde, amigo   e senhor meu Vosso humilde servo MARTINHO DE BULHÕES.  

 

A outra carta era escrita pelo bispo, e não tinha mais que as linhas     seguintes:

Amigo e senhor sargento-mor

Não tendo aqui um amigo que vos avise, visto que, uns por se acharem   presos, outros por andarem foragidos pelos bosques, todos estão ausentes,   tomo eu este caridoso ofício. Ocultai-vos com os amigos. Vai   partir para aí uma grande força comandada por João da Mota.   Martinho pede-me que vos remeta a carta junta. + D. MANUEL A. DA   COSTA.  

 

O sargento-mor acabou de ler estas cartas com profunda mágoa. Chamar     pela mulher, D. Damiana, e dizer-lhe em poucas palavras o que lera, foi o     seu primeiro passo. D. Damiana, posto que moça, era discreta e ajuizada.     A estes dotes reunia outro estimava muito o marido; estimava-o como esposa     e como filha. O seu conselho era o da prudência; o seu parecer tinha     as principais forças na confiança que inspirava àquele     que, podendo ser seu pai e sendo rico, compartira com ela a sorte a fortuna.

Não vos assusteis disse o senhor de engenho, disfarçando o     seu pesar. O malvado governador jurou acabar com a nobreza de Pernambuco,     e vai cumprindo o juramento. Vem aí uma grande força para prender     os fidalgos de Goiana. Em Olinda já a maldade não tem em que     pôr os dentes e as garras. Os nobres que não caem nas prisões,     perdem-se nos matos. D. Manuel manda dizer-me que me oculte. Não há     outra esperança de salvação. Lá se foi o tempo     em que eu podia castigar tão grandes ousadias. Hoje tudo me falta.     A guerra levou-me as economias que eu tinha juntas. Há um ano que meu     engenho não mói uma cana, e as minhas lavouras mal dão     para o gasto da casa. A nossa fábrica está reduzida pela morte     de uns escravos, pela fuga de outros. Os meus foreiros, cansados do serviço     da guerra a que foram forçados ante de chegar o governador, ocultam-se     agora para não serem chamados a igual inclemência. Nestas penosas     circunstâncias, que me resta fazer senão meter-me nas brenhas?     Nos primeiros momentos, D. Damiana, tomada de amargura, não soube o     que dizer. A separação é morte temporária para     os esposos que se estimam: e, a esta idéia, poucos espíritos     feitos na suave paz conjugal, tão rica de brandas satisfações,     não perdem a serenidade necessária a resoluções     que podem traduzir-se na privação daquelas.

Mas não se demorou a recobrar os ânimos. Era mulher para lutas     próprias de homens. Chamavam-lhe Escopeteira, por ser perita     em atirar ao alvo. Antes de Goiana ser atacada pelo bando de Luís Soares,     ele dissera a Cosme Cavalcanti: Se entrardes na sala das mulheres, ficareis     admirado do armamento que lá existe. Há mais de uma semana que     não tinha eu no engenho outra ocupação, que fazer cartuchame.     Na casa de João da Cunha só penetrará mascate depois     que Damiana da Cunha houver exalado o último suspiro. Não fora     isto uma bravata vã e ridícula, porque na manhã seguinte     defendera heroicamente com as mucamas e escravos o sobrado onde se achava,     atirando contra os assaltantes, exposta nos maiores perigos(5).

Por que motivo havia de querer ocultar-vos? Estará perdida toda a     esperança? inquiriu D. Damiana.

Que outra esperança me resta? respondeu-lhe o sargento-mor. Aqueles     parentes e amigos que me ajudaram a dar um ensino aos inimigos em agosto do     ano passado abandonaram-me. Vejo-me só. Tudo se mudou para pior. Nem     negros, nem moradores, nem provisões de boca.

D. Damiana não se deu por vencida, A ausência do marido afigurava-se-lhe     mais penosa que as perseguições ordenadas pelo governador. Enquanto     pôde, impediu João da Cunha de resolver-se a deixar o engenho.

Chegou, porém, uma manhã decisiva. A tropa a que se referia     o bispo, estava perto. Uma pobre mulher, amiga da família ameaçada,     viera, atravessando florestas, trazer ao senhor de engenho esta triste nova.

Se estás deliberado a deixar Goiana, iremos juntos disse D. Damiana     ao marido. Não quero ficar aqui. Os nossos inimigos insultar-me-iam     se eu ficasse só. Não vão eles mostrando para quanto     prestam com os desacatos que, por onde passam, têm para as famílias?     Infelizmente não podeis, senhora advertiu João da Cunha. A minha     jornada há de ser árdua, por dentro de bosques, através     de desertos medonhos e inóspitos. Ser-me-á preciso recorrer     ao disfarce que não há de valer muito em vós, porque     o disfarce nas mulheres por pouco tempo engana. Ser-me-á preciso estar     só, para, se tiver de morrer, poder morrer só, e menos dura     me ser a dor da morte. Mas nada temais. Ficam convosco os últimos escravos     da nossa confiança: alguns deles carregaram-vos em seus braços     quando éreis menina. Mandei vir para junto de vós Marcelina,     essa santa e piedosa mulher. Lourenço, que deverá acompanhar-me,     porque eu não confio em outrem para viagem de tanto risco, voltará     a Bujari, e tereis nele um defensor que valerá por cem. Deus, com a     sua vigilância, completará o amparo.

Confidenciava o senhor de engenho com a mulher naquele mesmo gabinete particular     onde, pouco mais de um ano antes, por São João, reunira a principal     nobreza da vila, e lhe propusera o ataque aos mascates do Recife. Então     dera mostras de força pelas quais se pudera aferir quanto era superior     àqueles em recursos, quer materiais, quer morais. Agora, era tudo diferente.     Em lugar de atacar, tratava de fugir aos inimigos. Ao seu lado via somente     a mulher, que, posto fosse resoluta, e rogasse participar da sua sorte, antes     lhe inspirava incerteza que decisão. Em vez de rubra soberba, mostrava     no gesto cauteloso, pálida resignação, em vez de arrogância,     tinha nas palavras magoados tons.

D. Damiana sentou-se ao pé do marido, e pôs-lhe meigamente     um braço sobre o ombro. Não lhe consentiu ele ficar assim mais     que um instante e, levantando-se, disse: Partirei dentro de poucas horas.     Irei tratar sem demora dos preparativos dessa jornada que o coração     me anuncia ser a última.

D. Damiana encaminhou-se para dentro, levando lágrimas a banhar-lhe     as faces, onde antes se acendiam, viçosas como a juventude, as rosas     de felicidade agora murchas e quase extintas.

 

Marcelina e Lourenço, depois do incêndio praticado pelo bando     de Luís Soares na casa que Francisco fizera à beira da estrada,     no Cajueiro, lugarejo distante de Goiana uma légua, atualmente     muito estendido, moravam em uma palhoça, obra de vinte braças     para dentro na mesma direção da casa queimada. Fora fácil     ao rapaz e à sua mãe de criação, mulher afeita     ao trabalho do campo, tão resoluta como Francisco, seu marido, reconstruírem     a antiga habitação; mas, estando os tempos muito contrários,     e receando a cada momento as hostilidades movidas pelos parciais dos mercadores,     pareceu-lhe melhor espaçar a reconstrução para depois,     contentando-se com levantarem a ligeira palhoça onde se recolheram,     e cuja perda lhes seria de pouco tomo, se houvessem de passar por este novo     prejuízo.

A palhoça fôra de propósito feita entre umas árvores     grandes e ramalhudas, muito juntas e entrelaçadas, que quase a encobriam     do lado da estrada. Do lado oposto, porém, dava ela em um como descampado     que se interpunha entre aquelas árvores e a renque de dendezeiros e     cajueiros que circulava a lagoa, onde certa manhã Francisco surpreendera     Marcelina a cortar juncos para fazer esteiras.

Logo que constou em Goiana o levantamento do cerco, Marcelina mandou Lourenço     tomar o caminho do Recife.

Não percas nem um dia, sequer; prepara o cavalo e corre a buscar     Francisco. Ele já há de estar no Recife, ou na cidade; e quem     sabe se não espera por condução para voltar? Quantas     saudades tenho do meu marido! E irresistivelmente as lágrimas de um     amor sinceramente comovido começaram a bailar nos olhos da cabocla.

Marcelina tinha razão: havia alguns meses que Francisco estava ausente.     Caindo na graça do ajudante de tenente, pelos bons serviços     que, com lealdade e discrição admiráveis, lhe prestara     desde que com ele se encontrara ao sair de Itamaracá, até a     completa vitória, no dia 23 de agosto do ano precedente, Francisco,     a quem Gil Ribeiro fizera grandes vantagens e prometera outras maiores, o     tinha acompanhado ao sul, e se comprometera a não o deixar senão     quando acabasse a guerra.

  Se hei de andar almocrevando com risco de me tomarem o meu cavalo     e fazerem o diabo comigo dissera o matuto por ocasião de discorrer     com sua mulher sobre a proposta do ajudante de tenente melhor é que     me acoste a seu ajudante, e vá ganhar meu dinheiro prestando serviços     à nobreza. Esta guerra não pode durar muito, porque os pés     de chumbo estão encurralados. Portanto, no fim de dois meses já     estarei de volta com gimbo bastante para encher o nosso mealheiro.

Para fazer a proposta ao matuto, muito influíra em Gil, além     das razões referidas, o conhecimento que tinha aquele de toda a região     das matas, desde Goiana até Jaboatão. De sorte que Francisco     era ao mesmo tempo confidente e guia do ajudante de tenente.

Francisco, porém, enganara-se, e Marcelina, a quem ao princípio     se afigurara, pelo interesse esperado, poder arrostar a ausência, nos     últimos tempos sentia-se ralada de saudades e todo dia fazia novas     promessas aos santos da sua devoção para que permitissem que     seu marido voltasse logo.

Recebendo a ordem de sua mãe, Lourenço não gastou mais     tempo no Cajueiro que o necessário ao arranjo da jornada. No outro     dia bem cedo já estava em caminho.

A vida de Lourenço entrava em nova fase depois do que se tinha passado     no memorável 23 de agosto de 1711.

Com o cerco do Recife, os produtos das pequenas lavouras começaram     a escassear, e consequentemente a encarecer. Todos os lavradores da zona das     matas, que circula o Recife, tinham acudido ao chamado do governo a fim de     pegar em armas, arrastando consigo os matutos e escravos que cultivavam suas     terras. Por isso, aqueles que  por qualquer circunstância especial     não se acharam neste caso, e puderam prosseguir o seu trabalho do campo,     depressa começaram a vender por bom dinheiro as sementes e cereais     que levavam ao Recife. Compravam-lhes os capitães-mores esses produtos     por ordem do governo para manter as gentes que sustentavam os presídios.     E além de lhes comprarem a mercadoria, consideravam grande favor o     apresentarem-se com ela, porque, sem este recurso, sustentar o cerco lhes     seria impossível.

Marcelina, que tinha o instinto mercantil mais desenvolvido, entreviu os     grandes resultados que deveria tirar das circunstâncias. Infelizmente,     não podia encher a medida dos seus desejos, porque, além de     Francisco não plantar senão quanto era necessário ao     sustento da família (nem dispunha de meios para mais, ainda que o quisesse),     o ajudante de tenente o levara para a capital, como dissemos. À vista     de tão favoráveis promessas, o matuto não achava argumentos     com que se esquivar. Demais, Lourenço estava já um homem, e     ficava com Marcelina, a quem defenderia nas horas de perigo. O matuto, conhecendo     os ânimos do rapaz, e não havendo motivo de perder os proveitos,     disse adeus ao Cajueiro, e partiu, o que não lhe custou pouco. Sempre     que se separava da mulher, da casa, do seu mundo, sentia uma como mutilação     da alma.

Marcelina, porém, não perdia por falta de quem a dirigisse,     porque trazia em si o melhor senso administrativo e comercial que ainda se     conheceu em mulher. Terras no engenho Bujari não lhe faltavam; e quanto     a braços, tratou de aproveitar os que pôde. Nem lhe foi preciso     ir muito longe, para preencher esse fim. Com a morte de Vitorino, por ocasião     do assalto contra o engenho e da destruição da casa, ficariam     Joaquina e Marianinha ao desamparo, se Marcelina as não chamasse para     sua companhia. Outra palhoça foi feita nas proximidades da de Francisco,     a aí vieram morar a mãe e a filha do morto. Marcelina disse-lhes     o seu pensamento, e como eram mulheres do campo, longe de se oporem, mostraram-se     deliberadas a trabalhar com vontade. Dentro de algumas semanas, lavouras graciosas     cobriam uma vasta quadra de terra até aonde a vista podia alcançar.     E porque tão cedo não estivesse em estado de colher-se, Lourenço,     que instruído e educado na escola de Marcelina, não tinha ânimo     para ver perdida tão boa ocasião de ganhar com que comprar uma     engenhoca, adotou, por conselho da cabocla, outro meio de interesse. Muitos     plantadores careciam de coragem para ir ao Recife vender os seus produtos;     levavam-nos então a Goiana, onde os deixavam por baixo preço.     Ao princípio com algumas economias de sua mãe, e depois já     com lucros das primeiras vendas, Lourenço comprava o que ninguém     queria mais nas feiras; e depois, conduzia os gêneros comprados para     Olinda e Recife, e aí os revendia com grandes lucros. Esse lucros já     chegavam para fazer aquisição de terras onde levantar uma engenhoca,     e Lourenço tinha de olho uma meia légua de massapé que     do outro lado das em que morava, estavam em capoeira, e pertencia a um sujeito     que andava oferecendo por falta de braços que a cultivassem.

 

Não custou muito a Lourenço encontrar-se com Francisco no     Recife; mas a sorte parecia querer caprichosamente prolongar a ausência     do matuto, e as saudades de Marcelina. Apenas o primeiro viu o segundo, correu     para ele e atirou-se em seus braços.

Tu por aqui, Lourenço? E que novas me dás de Marcelina? Fala,     fala logo, filho de minha alma.

Deixei-a boa, Deus louvado. Foi ela que me mandou buscar vosmecê.     E vosmecê ainda está de farda?     E estarei por meus pecados. Nem tu sabes o que acaba de acontecer. Quando     eu já me supunha livre e tratava de arrumar a minha trouxa, sabes o     que havia de suceder? Oh! Estes mascates só queimados! Diabos os levem,     os malditos.

Que foi que sucedeu?     Recebi ordem para continuar a servir el-rei. Maldita foi a hora em que disse     a seu ajudante que vinha com ele.

Que está dizendo, meu pai? Pois vosmecê que até poucos     dias serviu aos nobres, vai agora servir aos mascates?     É verdade, meu filho. Fizeram-me esta os endemoninhados. Mas isto não     é o melhor; Queres saber o resto? Por ordem do governador, foram tomadas     todas as presas que seu ajudante tinha feito em Itamaracá. Tu sabes     que eu devia ter parte nelas, mas, agora, fico em branco.

Que está dizendo?     Lá se vão as nove sumacas e tudo o mais pela água abaixo      bois, cavalos, jóias, dinheiro; tudo vai entregar-se ao governador.     Eu nas sumacas não tinha parte, porque seu ajudante as tomou em Itamaracá     antes de ir para Goiana; mas no restante devia ter meu quinhão, e não     era usura, não senhor. Olha, Lourenço, eu estou falando com     o coração nas mãos. No ataque do engenho Garapu, em Ipojuca,     atirei-me às trincheiras inimigas como doido. Recebi ali uma bala no     ombro, que me deixou um rasgão no couro, que já está     são e logo te mostrarei. Os inimigos desampararam as trincheiras, e     nós daí fomos a Tamandaré, encontrando sempre gente contrária     a fazer-nos fogo. Onde seu ajudante se achava, eu com ele. Nunca virei a cara     à bala. Se não chega o novo governador, teríamos de contar     nova vitória. Mas os tempos mudaram-se, e de Tamandaré partimos     para aqui, onde tivemos a notícia desta boa paga. Seu ajudante está     muito desgostoso. E pelo jeito das coisas, parece que vamos ter nova guerra     dos fidalgos contra os mascates.

Antes isso, meu pai, de que ficar vosmecê às ordens desta gente     ruim, que queimou a nossa casa e levou a nossa criação.

Eu já me lembrei de desertar. mas além de não ser isso     bonito, onde iria me meter, que eles não pudessem dar comigo? Mas,     se os nobres quiserem novamente pegar em armas, podes dizer que nem um momento     estarei com os pés de chumbo.

Quando ainda nem tinham dito um ao outro o necessário, um soldado     aproximou-se de Francisco e intimou-o a que voltasse imediatamente ao quartel,     por ordem superior. Para encurtar razões, algumas horas depois Francisco     saiu em destacamento volante que devia auxiliar o Camarão em importantes     diligências contra certos nobres de Serinhaém.

Lourenço voltou ao Cajueiro verdadeiramente amargurado.

Diabos levem a vida de soldado. E eu que já quis sentar praça!     Deus me livre. Antes ser negro cativo.

Os dissabores de Marcelina foram maiores. Esperava o marido com o coração     transbordando de alegrias, e em vez de consoladoras doçura, recebeu     o fel da prolongação da ausência por tempo indefinido.     Mas logo caiu naquele espírito privilegiado o bálsamo da resignação.

Que hei de fazer, meu Deus! Tanta promessa pedida a Nossa Senhora do Rosário,     a Santo Cristo dos Milagres, ao Bom Jesus dos Martírios. Os meus merecimentos     não são nenhuns. Que hei de fazer?!     E voltou-se de corpo e alma ao trabalho, sua esperança, sua fé,     sua consolação.

Uma tarde, já em 1712, chamou Lourenço e disse-lhe:     Vamos aumentar o puxado, que já não tenho onde botar as esteiras     novas que acabei. Estou vendo a hora que os ladrões vêem furtá-las     do alpendre.

Sendo já quase sol posto. Lourenço, para não se expor     e anoitecer dentro da mata, lembrou-se de aproveitar a madeira da casa queimada,     que se estava perdendo ao tempo. Pegou de um ferro-de-cova e uma enxada, e     encaminhou-se às ruínas. Por baixo de um grande entulho, formado     pelo barro das paredes e por pedaços de estacas que a força     do vento e das chamas havia atirado em uma só direção,     apareciam as pontas de uns caibros que não alcançara o fogo.

Era talvez este o único entulho que não tinha sido bulido.     Todo mais o espaço restante, ocupado pelos destroços, mostrava-se     resolvido, e em alguns pontos viam-se até fundas covas, algumas das     quais se converteram em barreiras onde as chuvas deixaram as águas     estagnadas.

Lourenço meteu a enxada no barro com vontade e em pouco tempo ouviu     um som cavo ecoar de sob as camadas que cobriam a madeira.

Com uma nova enxadada, um objeto estalou debaixo do instrumento. Lourenço     meteu o ferro-de-cova nesse ponto, e forcejando no cabo, revirou parte dos     caibros sotopostos. Ao mesmo tempo um embrulho passou por entre a terra solta,     trazido na ponta do ferro. O rapaz corre presto a ver ao achado. Era como     uma palma de luva de couro cobrindo um objeto brando e flexível. Com     a ponta da faca que trazia ao cós, descoseu este envoltório     misterioso, e o que lhe fica nas mãos, tirado o couro, é um     papel dobrado em quatro faces.

Que será isto, meu Deus? disse consigo o rapaz.

Abriu o papel e leu o seguinte:

Dou a Lourenço, órfão que Francisco dos Prazeres     e sua mulher Marcelina, moradores no Cajueiro, têm como filho em sua     companhia, a casa e as terras que me deu o senhor do engenho Bujari, sargento-mor     João da Cunha Cavalcanti, do outro lado da estrada onde têm a     sua casa os ditos moradores. Os limites das terras que ora vão ao referido órfão,     estão lançados por escritura nas notas do tabelião Belchior     da Fonseca e Silva. Goiana, 22 de agosto de 1711 PADRE ANTÔNIO DO ESPÍRITO SANTO MARIZ

Estático, os olhos imóveis, as pernas trêmulas, Lourenço     exclamou:     Oh, meu Deus! Eu não sei o que é que estou lendo! Será     certo que seu Padre Antônio me deu a sua casa e as suas terras?      Mas, como veio isso parar aqui? E quem coseu o papel no couro? Ah! já     entendo tudo. Foi minha mãe que guardou esta fortuna. Foi por isso     que ela andou fazendo tantos buracos por aqui, e não cessava de procurar     nestes entulhos uma coisa que nunca disse o que era. Achei, achei, minha mãe;     está aqui, está aqui a minha fortuna, o meu dote. Deus lhe dê     o pago, seu Padre. Deus lhe dê muitos aumentos por me ter feito esta     esmola de tanto valor. Mas, onde estará seu Padre? Oh! Se eu pudesse     vê-lo, abraçá-lo, beijar-lhe, de joelhos, a benfeitora     mão... Meu Deus! Meu Deus! Será verdade que a casa que ali está     me pertence? E foi seu Padre Antônio quem me fez este benefício?     

  Lágrimas de satisfação indizível acudiram aos olhos   do rapaz.  

 

Passado o primeiro momento desta comoção, ele, inclinando-se,     examinou o lugar donde o ferro-de-cova tirara aquele tesouro, e pode descobrir     uma caixinha onde Marcelina costumava guardar várias orações     prodigiosas para a cura de maleita e outras doenças.

Quando Lourenço se ergueu, a fim de ler de novo o papel em que parecia     não acreditar estivessem escritas tão agradáveis coisas,     sentiu atrás de si rumor de passos.

É minha mãe, disse consigo.

Voltando-se, viu um homem. Era João da Cunha.

Seu sargento-mor, por aqui! emendou ele, ocultando instintivamente o papel     na mão.

Vai buscar o teu cavalo, para acompanhar-me. Temos de sair já. Não     há tempo senão de tomares o cavalo.

Minha mãe sabe para onde vamos?     Sabe tudo; já me entendi com ela. Neste momento dirigiu-se a Bujari     a fazer companhia à sra. D. Damiana. Não te demores, que já     me parece ouvir o rumor surdo dos passos da tropa que vem em busca de mim.

É já, seu sargento-mor.

Não tendo meios de guardar o papel em lugar seguro, ele o atou por     dentro da camisa na cintura, envolto no mesmo couro que o tivera ileso debaixo     da terra.

Antes de anoitecer tomaram a direção de Tracunhaém.

Ficava o famoso ponto de resistência, estabelecido e sustentado aí     por Falcão d’Eça perto do rio que deu o nome à     liga, cerca de um quarto de légua. Guarnecido de matos por todos os     lados, só se podia ir ter ali por um caminho oculto que começava     entre duas pedras quase unidas na beira do rio. Para tomar entrada entre essas     duas pedras, era preciso seguir um bom pedaço rio acima, de verão     com a água pela barriga, e de inverno a nado. Sem isto o ponto era     inacessível, porque pelo lado de Tracunhaém os matos vinham     morrer quase dentro das águas, entre talhados que não deixavam     nenhum espaço à passagem nem de cabras; e pelos outros lados,     árvores seculares, que dois homens não podiam abarcar, serviam     de natural paliçada, impossível de romper. João da Cunha,     que tinha todas as indicações necessárias para entrar     no pouso, mandadas pelo próprio Falcão d’Eça, muito     antes, chegou sem novidades ao coração do segredo.

Perto de cinqüenta fidalgos, tendo à sua frente Falcão     d’Eça, arrostavam neste majestoso esconderijo todos os rigores     da sorte adversa.

 

O rigoroso inverno que caiu sobre Pernambuco em 1713, um ano antes começara     a mostrar o que havia de ser. Em agosto estavam os rios ainda muito grossos,     os caminhos cortados de atoleiros, as terras baixas convertidas em vastos     pântanos.

Em uma das noites mais ásperas de 1712, Lourenço entrou nas     matas de Tracunhaém. Já muito lhe custara atravessar o rio,     e como não oferecesse este passagem, senão arriscada, para o     ponto onde se escondiam os nobres, julgou aquele prudente pernoitar por ali     mesmo. Em certo fechado ao pé de um cedro colossal, em cujo tronco     se via uma grande fenda na altura de um homem pôs abaixo a carga de     mantimento e roupa que levava do engenho para o sargento-mor.

Se vier por aí alguma trovoada, - dissera ele consigo, -     meto-me dentro deste oco, onde ninguém me há de ver.

O enfado da jornada trouxe-lhe sono que depressa o prendeu, não obstante     a chuva. Pela madrugada acordou, ouvindo soar tiros ao longe; e conquanto     estivesse certo de se terem ordenado diligências contra os nobres escondidos,     recuperou o sono, e dormiu até o raiar do dia, que foi fresco e belo.     A chuva cessara inteiramente. O sol dardejava raios horizontais por entre     as folhagens, que se esclareciam tomando diferente aspecto.

Apenas de pé, quando tratava de buscar o cavalo para continuar a     jornada, ouviu ruído de passos e vozes perto. Os passos e as vozes     foram aumentando pouco a pouco. Dentro de algum tempo aquele ruído     já era acompanhado do retintim de muitas armas. Enfim, viu o rapaz,     com espanto e confusão, desfilar por diante das árvores, que     o encobriam, grande partida de soldados.

Afiguravam-se estes aos seus olhos vultos patibulares, visões pavorosas     como demônios em que ele acreditava.

Tinham calças arregaçadas e enlameadas, as jaquetas pegadas     ao corpo, os chapéus ainda umedecidos e demudados, nas faces estampado     o sono, o cansaço, a fome e a maldade, nas mãos armas sinistras     e ameaçadoras.

Grande parte desta força passante, de duzentos homens, era composta     de caboclos; no restante havia de tudo  negros, curibocas, mestiços,     semi-brancos e até brancos.

Formava o todo uma grande mó, em cujo centro se destacavam onze membros     da nobreza. No couce da tropa mostravam-se a cavalo os coronéis Manoel     Gonçalves Tunda-Cumbe e Sebastião Pinheiro Camarão, chefes     do bando. A um lado deles, seguiam-nos o capitão-mor de Iguaraçu,     Antônio da Silva Pereira, e o de Tracunhaém João Cavalcanti     de Albuquerque, que por ordem do governador auxiliaram com gente sua os dois     primeiros na importante busca. O semblante destes caudilhos acusava sinistra     vaidade; o daqueles tinha a expressão alvar do delator.

Quando menos esperava, impressão mais violenta deixou o rapaz atônito:     descobrira, entre os prisioneiros, João da Cunha. Uma corda ligava-o     com outro nobre pelo braço direito. Trazia ele a fisionomia decomposta     por aflição íntima, por desgosto mortal, antes vergonha     filha do desdouro em que se via posto.

Em toda a sua vida, Lourenço nunca sentia dor tão atroz. Afeito     desde menino a ver no sargento-mor representada uma instituição,     que ele não sabia explicar, mas que impunha a seu espírito a     força de lei fatal e quase divina  a instituição     da nobreza, foi com verdadeiro assombro que testemunhou agora aquele claro     pulso aviltado pelo instrumento destinado aos réus vulgares, que só     despertavam compaixão. A filosofia da vida, dava pela primeira vez     a ler ao bisonho almocreve uma das páginas tristes, que o homem versado     em letras encontra aos milhares no imenso livro da história.

Passada esta primeira comoção, uma como revolta interior operou-se     de repente em todo o seu ser.

Impulso irresistível atira-o para diante, eletricamente.

Por entre os ramos que o ocultam, a mão direita armada com a faca     livre da bainha, mostra-se em atitude de descarregar golpe cruel. Mas a voz     da consciência soou mais alto que a da paixão no ânimo     do almocreve. Ele tinha diante de si duzentos homens armados.

Será possível  disse consigo  que eu não     possa valer nesta amargura a seu sargento-mor? Desgraçado que sou!     Fraco e só, diante de tanta gente forte! Triste foi a hora que fiz     esta viagem.

Súbito o assalta um pensamento que ele realiza inconscientemente,     mecanicamente. Põe o pé sobre a borda do grande oco, e sobre     ao pau. Ganhando posição elevada, atira dentre a folhagem a     faca que empalmara quando se lhe deparara a estranha vista. O movimento foi     rápido. Como faísca elétrica, a arma, descrevendo uma     elipse no vácuo, foi bater contra o alvo. Um grito quebrou a mudez     dos bosques: soltara-o Tunda-Cumbe, em cujo braço esquerdo a faca se     cravara.

No mesmo instante sentiu o rapaz forte pancada contra os quadris, semelhante     à que produz o bote de alentada cobra; e logo força descomunal     o puxa para baixo. Mal seguro, não pode resistir à força     que o alcançara, e teve de cair, não ao pé da árvore,     mas no interior do oco, onde a escuridão era profunda.

Então, uma voz abafada, mas conhecida dele, segredou-lhe aos ouvidos:          Estás doido, Lourenço? Queres que os malvados te matem?     É vosmecê, seu Falcão? inquiriu o rapaz aturdido da descida     rude, que lhe lançara grande confusão no espírito. Vosmecê     quer desgraçar-me? Eu não sou bom, e não gosto que me     tratem deste modo. Por que não me deixa matar aquele puço,     aquele infame Tunda-Cumbe?     Cala-te, menino, retorquiu o capitão. Tu não tens juízo;     és um tolo. Que seria de ti se eles chegassem a ver-te?     Verdade é que estou desarmado. Mas tenho muita força. Deus louvado.     Era capaz de quebrar os ossos do marinheiro, se o apertasse entre     os braços.

Guarda a tua força para quando for tempo.

Vosmecê atirou-me aqui dentro, quando eu já ia salvar seu sargento-mor.     Estou zangado. Não me faça mais isso.

Ias perder-te. Por ver a tua loucura foi que te puxei para aqui. Não     sejas criança. Que farias tu, só, sem armas, sem uma faca ao     menos? Ali vão amarrados parentes e amigos, que muito me merecem; mas     nem por isso praticarei asneiras.

Lourenço ia responder, quando sentiu sobre os lábios a mão     do capitão querendo dizer que não falasse. Ao mesmo tempo ouviu     surdo rumor de passos acima de sua cabeça. Eram vários soldados     que haviam corrido a ver se descobriam o autor do atentado contra o coronel.

Neste momento, o Tunda-Cumbe, rangendo os dentes, clamou inflamado na paixão     que o tomara:     Hás de pagar-me, Falcão d’Eça, hás de pagar-me     o que ora fizeste. Hei de cortar-te as orelhas para dar de presente ao meu     cão. Se estes matos têm ouvidos, eles que ouçam a tua     sentença de morte, que se há de realizar no futuro, pois tão     cobarde és que não te apresentas e somente me feres à     traição.

Ditas estas palavras, o Tunda-Cumbe, como se reconhecesse os perigos de     dar busca em domínios encobertos, alheios e desconhecidos, voltou imediatamente     ao ponto onde fizera alto a tropa, que ele ordenou que seguisse a marche-marche.

Não é nada, disse como para tranqüilizar os seus. Já     não vertem sangue as minhas veias; o da estúpida nobreza de     Pernambuco, descendente de Caeté com Moçambique, esse sim, não     vejo atadura que o faça tão cedo estacar.

Não o matei, mas sempre lhe dei um ensino  disse Lourenço     a meia-voz debaixo da terra, sentindo serenada com as palavras do capitão,     parte da sua grande cólera. Assim foi bom. Os nobres precisam da tua     vida, miserável peixeiro, para tomarem a vingança que mereces.     Havemos de ver qual dos dois sangues deixará primeiro de correr em     Pernambuco, se o teu sangue de bicho da outra banda, se o da nobreza de minha     terra, o sangue azul daqueles que te mataram a fome e agora cobres de lama     e desaforos.

E voltando-se para o capitão, acrescentou:     E o que faz vosmecê, seu Falcão d’Eça, que não     mostra ao governador e ao ouvidor dos mascates para quanto presta o seu brio?     Será possível que tanta gente, tanto fidalgo limpo, tanto homem     rico e que sabe onde tem as ventas, esteja a sofrer as ousadias de labregos     sujos, que deviam ser botados para fora à peia?     Veremos agora o que se há de fazer  disse o capitão.

Os pernambucanos metidos entre a escolta tinham sido presos por ocasião     da diligência que vem apontada nas crônicas  daquele tempo     com a denominação de caçada geral.     O fim principal desta caçada, para cujo bom resultado os bandoleiros     do Camarão e do Tunda-Cumbe até amestraram cães a pegar     gente no mato, era destruir pela prisão de Falcão d’Eça,     que por suas grandes faculdades naturais, se tornara o apoio da nobreza, e     um dos que mais davam que pensar ao governador, aquele asilo onde se encastelavam     muitos e importantes cavalheiros.

Falcão tinha direito a esta distinção que deixou seu     nome tão conspicuamente inscrito nos anais pernambucanos.

Tanto que, pelas primeiras prisões, a nobreza começou a procurar     os matos, ou ausentar-se para fora da capitania. Félix José     Machado, a quem não é lícito recusar ânimos excepcionais,     considerando-se inatacável, entregou-se a passeios, banquetes, divertimentos,     digressões pelos arrabaldes, e até a grandes jogos e largas     crápulas.

Nas crônicas se lêem os nomes dos que freqüentavam a banca     de jogo armada em palácio, e os das meretrizes que tinham aí     entrada franca.

Um dia, disse-lhe Manoel Carneiro:     Breve teremos tinguijada, Sr. governador.

Tanto bastou para que este se desse por convidado, e no dia aprazado se     achasse em casa de Carneiro com o ouvidor, o juiz de fora, D. Francisco de     Souza, e outros importantes membros do partido dos mercadores.

Não era a primeira vez que ele compelia Manoel Carneiro a aumentar     os pratos da sua mesa. Meses antes, um grande jantar se realizara ali por     ocasião da botada do engenho, ao qual compareceu Félix     José Machado.

Mas nenhuma festa deu tanto que falar como a tinguijada. Foram     três dias gordos. Só em ovos sessenta patacas se despenderam,     diz, admirado, o principal cronista da guerra dos mascates.

Chegado o momento da apanha do peixe o governador encaminhou-se para a beira     do Capibaribe.

Não deixando o rio poços, duas tapagens tinham sido feitas     com palmas de coqueiros. Entre as ditas tapagens ficava o espaço talvez     de vinte e trinta braças. As águas estavam ali dentro em um     como remanso. Tirados antes os grandes ramos que por muitos dias haviam ficado     sobre elas a fim de chamar os peixes para aquele ponto, convidados pela sombra,     viam-se ainda a meladinha, o  melão de Caetano     e o tingui, que depois de machucados tinham sido lançados     dentro da tapagem. As águas nesse ponto estavam esverdeadas, e grandes     camorins, prateadas carapebas e tantos outros habitadores do rio mostravam-se     boiando por entre as crostas venenosas, embriagadas pelo forte narcótico     dos cipós; outros enchiam giquisenfiados nas cercas.

Félix José Machado entrou na canoa que devia percorrer o âmbito     da tapagem, e com outros convidados de porte começou a apanhar com     a mão o peixe que boiava possesso da mortal tontura.

Olhos atentos e perspicazes haveriam notado que, por entre o prazer, os     risos, os gracejos, os banhos involuntários e outros mil incidentes     naturais de semelhantes patuscadas, o governador não tirava as vistas     da parte superior do rio. Havia nos seus lances d’olhos indícios     de inquietação e receio. Eis os fundamentos deste dois sentimentos,     que aliás não se compadeciam com as alegrias e a confiança     que costumam reinar em semelhantes reuniões.

Um mulato do capitão-mor de Tracunhaém dirigiu-se ao governador     em princípios de junho e lhe dissera que se seu senhor, cunhado de     Falcão d’Eça, e que muitos serviços prestara no     primeiro levante contra Sebastião de Castro Caldas, não fosse     incomodado nem sua família, ele revelaria um grande movimento que estava     planejado. Tendo a promessa não só de ser poupado o dito capitão-mor,     mas também de se lhe dar um prêmio pela revelação     do segredo, disse o mulato que consistia aquele plano em um levante contra     o governador, assentado entre Falcão d’Eça e outros nobres     que com ele se tinham homiziado nas matas. Os conspiradores, aproveitando-se     da festa da tinguijada no engenho de Manoel Carneiro, por ocasião     da qual o governador ficava distante da capital e sem meios prontos de resistir     com vantagem ao assalto, deveriam sair do esconderijo com todos os sequazes,     embarcar em certo ponto em canoas, com antecipação preparadas     para este fim, descer pelo rio, e surpreender o governador no meio da folgança.     O que se seguiria não pôde o mulato dizer, mas Félix Machado     compreendeu que semelhante surpresa não podia ter um termo que lhe     não fosse fatal. E porque o capitão-mor fazia parte da conspiração,     visto que, temendo ser preso, se recolhera ao mato com Falcão d’Eça,     mandou o governador chamá-lo pelo mesmo mulato à sua presença,     ao que se não esquivou o capitão-mor, tendo somente o cuidado     de comparecer às escondidas. Félix José Machado confirmou     a promessa feita ao mulato, mas exigiu, como principal condição     do ajuste, que o próprio capitão-mor guiasse as forças     encarregadas da caçada geral ao esconderijo não sabido.     Esta infame condição foi aceita, e a traição teria     sortido todo o efeito se Falcão, havendo dado pela falta do cunhado     na véspera do projetado assalto, não se prevenisse em tempo.

Como conhecesse a capacidade do parente, e desse todo o valor à responsabilidade     que a si próprio cabia como principal membro da Liga de Tracunhaém,     congraçando  os companheiros, comunicou-lhes francamente os seus     receios.

Não vos assusteis, porém, concluiu Falcão d’Eça.     Retiros não nos faltam neste mundo virgem para nos ocultarmos do traidor.     Proponho-vos que desamparemos já este pouso. Amanhã talvez já     seja tarde.

Alguns dos nobres, não querendo acreditar na possibilidade de serem     traídos por parente e companheiro tão qualificado, hesitaram     indecisos. Deste número foi João da Cunha.

Que diria de nós Albuquerque, se viesse a saber, não se verificando     a vossa suspeita, Falcão d’Eça, que havíamos formado     dele conceito tão incompatível com homens de bem?  inquiriu     João da Cunha. Considero imprudente o passo que aconselhais, e não     estou resoluto a dá-lo, para não me arriscar a cair no justo     desprezo de um homem de nossa igualha. Demais, temos armas e munições.     O ponto em que nos achamos pode reputar-se inexpugnável. Desta banda     está o rio de nado, das outras grossos paus que se amparam uns aos     outros em muitas ordens à roda de nós. Por que havemos de abandonar     tão seguro abrigo? Por uma simples suspeita? Por isso somente não     o deixarei.

Fixando a vista em João da Cunha:     Sois livre, sargento-mor  disse Falcão; podeis ficar, eu porém,     não ficarei. Oxalá não se verifiquem as minhas previsões;     mas o coração leal anuncia-me que, se ainda hoje pernoitarmos     neste recesso, a nossa liberdade e a vida correrão perigo. Podeis ficar,     e convosco os que quiserem. Deixo-vos grande parte das munições     de guerra. Até a primeira vista,     Falcão deu o andar. Alguns dos nobres seguiram-no imediatamente, outros     pouco depois. Ele era a alma da resistência; a sua ausência enfraquecia     os mais fortes. Com João da Cunha ficaram perto de vinte que tinham     o mesmo pensar que ele. Este procedimento cravava as raízes na nobreza     dos seus corações.

Mas, bem depressa tiveram a prova de quanto a sua grandeza moral se enganara.     Antes do amanhecer, despertou-o do sono a perfídia. Defronte da entrada     alguma balsas, vencendo a força das águas, atracaram entre as     duas pedras; vinham carregadas de bandoleiros. O Camarão dirigiu o     assalto. Exercitados na vida do mato, os seus caboclos penetraram no pouso     sem grande custo, não obstante ser preciso, para chegar aí,     dar muitas voltas onde haviam grandes fojos com estepes aguçados, habilmente     dispostos por baixo de camadas de folhas secas. Os nobres somente tiveram     tempo de dar alguns tiros a que os agressores responderam com vantagem. João     da Cunha, conquanto muito animoso, teve de render-se ao grande número,     depois de ferido. Os bandoleiros saquearam o pouco, derrubaram árvores,     e deslocaram pedras para o abrir e patentear.

Ao amanhecer, alguns espias vieram referir a Falcão o que se havia     passado. Então, tomando escusa vereda, o chefe da liga penetrou na     manga subterrânea, e foi parar no cedro oco donde esperava ver a tropa,     e pela vista avaliar o destroço.

A hora em que se deu começo à tinguijada, nada constava ainda     a Félix José Machado sobre o resultado da diligências     às matas. Seu espírito por isso vacilava inquieto entre o bom     e o mau êxito; e seus olhos não cessavam de volver-se para o     lado donde deveriam vir as canoas inimigas, se acaso a tropa não tivesse     dado sobre os conspiradores a tempo de frustrar-lhes o plano.

A tinguijada durou até depois do meio-dia. Da beira do rio levaram     peixe para o engenho em caçuás, tão grande fora a pescaria.     O vinho, a aguardente, a viola, a toada, a dança começaram a     reinar com toda a sua força. Calculando que, visto não aparecerem     as canoas, deveriam estar na corda todos os conspiradores, o coração     e o espírito de Félix José Machado expandiam-se gradualmente     à proporção que o dia ia subindo.

Passando pela casa onde estava a balança de pesar o açúcar     do engenho, o governador, cujo corpo era de proporções hercúleas,     teve o pensamento de se fazer pesar. Pesou dois quintais e quatro libras (6).

Quando chegou a hora da refeição, pôs-se a comer tão     alambazadamente, que a todos meteu assombro(6).

Sobre a tarde recebeu a comunicação do resultado da diligência.     Sentiu então grande desgosto por saber que Falcão d’Eça     não havia caído no trama urdido.

Mas, Sr. governador, disse o capitão-mor, vieram entre outros o capitão     Antônio Silva, o capitão Miguel Lopes, os irmãos do padre     Antônio Jorge Guerra, o alferes Diogo de Carvalho Maciel, o sargento-mor     João da Cunha, e um escravo de Eça que é seu braço     direito.

O governador respondeu:     Pois bem. Façamos conta de que o escravo vale o senhor. Daí     ordem, sr. ouvidor, para que esse vil cativo seja hoje mesmo trateado, hoje     mesmo, sem falta; ouvistes, sr. ouvidor?     A ordem foi rigorosamente cumprida. À noite soube-se na Várzea     que o padecente não pudera sobreviver aos tratos senão algumas     horas.

Falcão d’Eça  disse Félix Machado, há     de chegar a tua vez.

 

A cavidade onde estavam Lourenço e Falcão d’Eça     terminava, com a forma de funil, em abertura entre certo bamburral enredado,     obra de vinte braças distante do cedro: por esta abertura dificilmente     passava um homem. Rastejando um atrás do outro, chegaram os dois à     extremidade, e esperaram que cessasse inteiramente o ruído dos passos     dos soldados e animais.

Segue-me  disse Falcão a Lourenço. Nada temas. Quase     todo o dia transito por estes lugares onde, para bem dizer, me nasceram os     dentes.

Lourenço trazia o espírito preso a certa ordem de idéias     que o envolviam como em cipoal mais inextricável do que o bamburral     por onde iam. Pensava em livrar o sargento-mor, ainda que para o livramento     lhe fosse preciso sacrificar a própria vida. Pensava em castigar atrozmente     os inimigos que tinham levado a audácia ao ponto de prenderem o ilustre     senhor de engenho, como se fora um dos seus negros: Lourenço estava     quase fora de si, arrebatado, nas asas do desespero, da vingança e     do ódio.

Seu Falcão  disse ele ao saírem do estreito      se vosmecê não pensa em meio de prender, açoitar, matar,     queimar os infames camarões e tunda-cumbes, escusa de estar     com estes atalhos e estas voltas, eu não sirvo para isso, não     senhor; eu queria morrer mesmo entre eles, contanto que matasse esse cachorro     que tem feito tantos latrocínios por aí além.

Ouvindo estas palavras, o capitão parou e encarou o rapaz, como quem     queria ler-lhe o íntimo através da face.

E que cuidas tu, Lourenço? inquiriu a modo de ofendido. Cuidas que     não é o meu pensamento de todas as horas, de todos os instantes,     tomar uma vingança dos nossos inimigos? Não sabes que estava     tudo pronto para darmos hoje um assalto ao engenho de Manoel Carneiro, e tirarmos     dali o governador e o ouvidor, e enforcar depois um na tripa do outro?     Mas em toda parte há traidores: Cristo teve um Judas para o entregar:     eu tive um cunhado. Se não fora a infame traição, podíamos     ter a esta hora nossos principais carrascos, prontinhos para um sarapatel     no meio destas matas.

Mas  disse Lourenço  por uma vez mentir fogo a espingarda,     a gente não deixa de lhe pôr nova escova e fazer pontaria outra     vez sobre a caça.

Miséria, miséria sem nome! Ajustaram a minha cabeça     com o governador. Venderam-me ao ouro português. Denunciaram o abrigo     de cinqüenta patriotas, cinqüenta bravos, que representaram nestas     matas seculares a nacionalidade brasileira. Pernambucanos degenerados, vilões     ruins que lançam com esta ação infame uma mancha eterna     sobre a nossa história, rica de páginas verdadeiramente imortais.

E não poderemos ir tomar aqueles presos?     Como? Poderíamos fazer uma surpresa, mas não empenhar-nos em     luta mais séria. Falta-nos o exército; só temos comandantes.     O povo não está conosco. porque o governador o não importuna,     antes o chama para o seu lado, fingindo-se amigo dele. Por ora, contamos apenas     com meios de defesa, e estes mesmos escassos; meios de agressão não     temos nenhum; Talvez para diante possamos compor tropas regulares, que estejam     no caso de fazer frente às infantarias de Félix José     Machado. Mas não há razão para desanimarmos. Tenho cá     um pensamento que, se for posto em prática, a vitória há     de ser necessariamente nossa. Vamos ver o que diz da minha idéia o     Padre Guerra.

Eram chegados ao novo pouso, que não se distinguia por nenhuma feição     particular, a não ser um embastido de árvores colossais, que     formavam com sua basta folhagem um abrigo sombrio. Nenhuma árvore fora     abatida, nenhuma cabana fora levantada. Viam-se apenas algumas redes armadas,     alforjes pelos pés de paus, trouxas, malas e armas.

No momento em que chegaram Falcão d’Eça e Lourenço,     havia no pouso de quinze a vinte foragidos, entre os quais estava o Padre     Antônio Jorge Guerra.

Que notícias nos trazeis? perguntou o padre a Falcão.

Tristes, muito tristes. O Tunda-Cumbe apanhou sempre onze dos nossos companheiros.     Que lhes disse eu?     Grande desgraça!     Mas, não nos deixemos desanimar, senhores, por este revés. Tratemos     de desforra, e eu chamo a vossa atenção para o que vou dizer-vos.     Se o bispo se dirigir, por um pastoral, aos povos da capitania, declarando-lhes     que está em campo, e pedindo o seu auxílio contra o governo     de Félix José Machado, exclusivamente empenhado em acabar com     os pernambucanos, fio que o povo acompanhará o seu prelado; e se o     acompanhar, a vitória há de ser nossa.

Toda a dificuldade está em resolver o bispo a fazer a guerra      disse Martinho de Bulhões.

Não a fará, não a fará nunca  disse o     ajudante Bernardo Alemão.

Se, quando ele exercitava o governo, faltou-lhe ânimo para dirigir     a guerra, como tomará hoje à sua conta esta obrigação?     inquiriu o coronel Duarte de Albuquerque.

Mas, senhores, tornou Falcão  refleti que, se não o     fizer, ele próprio será preso, e talvez correrá risco     a sua cabeça. Ignorais o ódio que lhe votam os principais dos     mascates? Ignorais que já foi entre eles ponto resolvido tirar-lhe     a vida? Tão fraco será D. Manoel, que nem ao menos se defenda?     Não é possível. Chegou a ocasião de fazermos o     Brasil grande e feliz. Não sou pela guerra de um partido contra outro,     guerra pessoal e local; sou pela guerra inspirada num motivo verdadeiramente     nobre  o de tornarmos nossa terra independente de Portugal. Senhores,     até quando havemos de ser colônia de portugueses? Não     poderemos prosperar enquanto não nos pertencerem os nossos próprios     destinos. É chegada a ocasião de quebrarmos a pesada cadeia     que nos acorrenta. Não deixemos para mais tarde uma obra grandiosa,     que podemos realizar hoje com algum esforço e sacrifício. Se     há dois anos, por ocasião da fuga de Castro Caldas, tivéssemos     levantado bem alto a bandeira da independência brasiliense, conforme     propuseram Bernardo Vieira de Melo Silva e outros patriotas insignes, não     estaríamos agora derramados por estas matas, separados de nossa mulheres     e filhos, curtindo as mágoas e dores, comendo o sobressaltado pão     do homizio. Padre Guerra, que fazeis, vós que sois amigo particular     de D. Manoel, que fazeis, que não pegais já da pena para o convidardes     a vir colocar-se ente nós, ser o nosso general, levantar conosco o     pendão da liberdade do meio destas solidões, que por si só     aterram a tirania?     Nas palavras do capitão havia o que quer que era de majestoso e patético.     O sentimento nacional subira-lhe até os lábios, e dali se derramava,     comunicando a todos que o escutavam, os tons desta paixão excelsa.

Não creio que D. Manoel aceite esta posição; ele não     viu a luz do Brasil. Mas, não obstante, escrever-lhe-ei. Tendes portador     seguro para lhe levar a carta?     Quanto a isto não vos inquieteis  respondeu Falcão d’Eça.

Então o padre, tirando de uma maleta um frasco com tinta, uma pena     e papel escreveu sobre um tronco derrubado, a carta seguinte:

Revmo. Senhor.

Do seio destas matas, refúgio franco e largo contra a tirania,     sou obrigado a enviar a V. Revma., nestas regras escritas sobre tosco madeiro,     a súplica de pernambucanos êxules e perseguidos. Revmo. Senhor: ninguém melhor do que V. Revma. pode ajuizar das     nossas desgraças, porque delas tem sido, como nós, ilustre vítima.     As armas, as algemas, as injúrias ainda não cessaram contra     nós o seu odioso ofício. Nossos inimigos não escolhem     meios de aniquilar-nos. Tendo por eles o governador e o ouvidor, não há ofensas     que destes desnaturados ministros não consigam contra nossas pessoas,     nossas famílias, nossas próprias vidas. A caçada geral, ordenada pelo parcial governador, apanhou onze     dos nossos mais estimados amigos, e ilustres pernambucanos. Neste momento tivemos aqui a notícia da prisão dos meus     dignos irmãos João Alves Guerra e Miguel Lopes. Para levarem     a efeito este intento, não hesitaram ante o sangue e a morte; pelo     crime de tomar a defesa de seus senhores, um escravo fiel foi assassinado.     Do nosso seio os bandoleiros de Camarão e Tunda-Cumbe acabaram     de arrancar tão importantes amigos e patrícios, e sobre a cabeça     destes está pendente cruel sentença de morte. Enfim, de toda a parte levantaram-se aos céus clamores contra a     tirania de Félix José Machado e Marques Bacalhau, instrumentos     dos mascates do Recife. À vista de tantos e tão violentos atentados, Revmo. Senhor,     estamos deliberados a lançar mão das armas para defesa da pátria     e de tudo o que nos pertence. Essa defesa nós a imaginamos grande, forte, tenaz. O que nós     queremos é a independência de Pernambucano, e antes que V. Revma.     nos pergunte qual o meio de realizar essa independência, apresso eu     a declaração: esse meio é a revolução.     Aos que nos disserem, Revmo. Senhor, que, não procedendo de el-rei,     mas de seu governo, os males que padecemos, haveria excesso do recurso indicado,     responderei que não se podendo compreender sejam bons reis aqueles     que sustentam maus governos, não há excesso, antes há     justiça, na projetada providência. Não é de hoje que na separação do Brasil do     reino de Portugal eu vejo o único remédio para os nossos males.     Quando em 1710, em Olinda, reunidos o senado da Câmara e a nobreza     se tratou da eleição do governador, por ter fugido covardemente     para a Bahia, Sebastião de Castro Caldas, antes que fosse feita a escolha     tão honrosamente para a pátria, por ter recaído na pessoa     de V. Revma., largamente se discutiu a idéia de sacudir com os mascates,     o jugo de Portugal, e V. Revma. sabe decerto, que a independência de     Pernambuco era ponto decidido e concertado pelo venerando ancião Bernardo     Vieira de Mello, herói talhado pela natureza para libertador da pátria     com seu mestre de campo, o famoso João de Freitas da Cunha e o capitão-mor     Antônio Ribeiro da Silva Nesse ajuntamento, Revmo. Senhor, votei com estes exímios patriotas     para que nos declarássemos em República ad instar dos venezianos;     e se então os nossos votos não prevaleceram, por entender a     maioria do ajuntamento que o nosso projeto era de alta audácia e magnitude,     e que, com a mudança do odiado governador, volveriam a Pernambuco ditosos     e serenos tempo, não pensam mais assim esses mesmos que ilusoriamente     acreditaram na eficácia dos meios incompletos, e ao menos todos os     que nos achamos no seio destas matas seculares, não temos por eficaz     nenhum outro remédio senão a independência do Brasil,     seja qual for a forma de governo que possa ele vir a ter. Cheguei ao ponto essencial desta carta, Revmo. Senhor. Somos por hora trinta, os que nos achamos aqui; amanhã seremos     talvez mil. Dos presentes não um sóque não prefira perecer     honrosamente no campo da batalha, pelejando pela liberdade da pátria,     a afinar-se obscura e ignominiosamente nos subterrâneos das Cinco Pontas,     servindo de ludibrio a estrangeiros que nunca jamais hão de ter para     nós sentimentos benévolos.

Que é que nos falta para realizarmos a magna idéia     da libertação do Brasil, ou pelo menos de Pernambuco? Falta-nos     um chefe querido do povo da capitania, Revmo. Senhor, um chefe de reúna     em si altas virtudes particulares e públicas, que seja de egrégias     tradições, de ilustre consciência e ilustrada razão,     que comungue conosco amigavelmente aos pés do altar da liberdade, que     francamente, como nós, queira a revolução, por bem da     felicidade dos brasileiros. V. Revma. preenche satisfatoriamente as condições exigidas     no chefe de que necessitamos. V. revma. é vítima como nós,     da sanha dos mascates, por ter sido desde o começo da guerra o primeiro     esteio da nobreza, é alvo das iras inimigas e está exposto à     prisão e à morte; por suas altas virtudes e respeitabilíssima     posição, pode melhor do que nenhum outro, ocupar o lugar mais     elevado e conspícuo no movimento libertador. E logo que proclamar aos     povos da capitânia, todos se levantarão para o seguir, como um     só homem, ao caminho da glória. Eis-nos, por todas estas razões, a pedir a V. Revma. que salve     a nossa pátria, aceitando o lugar que está por preencher na     frente das falanges pernambucanas. É esta a nossa súplica, Revmo. Senhor. Vosso humilde servo e respeitador,

PADRE A. JORGE GUERRA

Em menos de cinco minutos Lourenço estava de caminho para Olinda,     e dois dias depois entregava a resposta do prelado que foi desanimadora. “Que     nos resta senão curvamos a cabeça aos decretos da Providência?     assim concluía ele.

Passado um momento Falcão d’Eça perguntou aos seus companheiros     de infortúnio:     Que havemos de fazer, meus amigos?     Se havemos de errar expatriados, famintos, sem sossego de noite e de dia,     e por fim cair no poder dos nossos opressores, melhor é que, poupando     tantas inclemências e padecimentos, nos entreguemos em suas mãos.     Teremos por esta forma, feito jus ao perdão d’el rei, e salvado     com as nossas vidas, parte das nossas fortunas.

Entregue-se quem quiser, disse Falcão; eu não me entregarei     jamais. Daqui não sairei senão morto ou livre. Ainda que todos     me abandonem, não abandonarei eu estas solidões e espessuras     protetoras. Até a última gota resistirei à opressão.

Também nós resistiremos disseram alguns dos foragidos.

Resistiremos todos, Falcão disse o padre Guerra. Não ficareis     só. Trinta homens dentro de uma fortaleza batem um exército     aguerrido, quanto mais dentro de um mundo imenso e desconhecido, como são     estas matas intricadas.

Tendes razão, padre Guerra.

O que devemos fazer agora é alargar e aumentar os meios de defesa     e agressão.

Isto corre por minha conta,.

Eis como finalizou o congresso dos fugitivos, após a leitura da carta     do bispo.

O espírito de resistência em todos os dominava; a firmeza de     seus ânimos; a coragem; a fé; a convicção de que     por seu número, que tendia a aumentar, e pelas condições     de defesa, não havia forças que os pudesse bater, fizeram voltar-lhe     aos corações o sossego, um momento interrompido.

Não tendo mais de fazer ali, Lourenço, que ouvira as últimas     palavras, profundamente comovido, despediu-se de Falcão d’Eça     e tomou para Goiana.

Ia descontente e desanimado. Não lhe restava a mais pequena esperança     de salvar o sargento-mor. A última carta tinha sido jogada, e perdera-se     a mão.

Sempre pensei dizia consigo que seu Falcão faria alguma coisa; mas     toda esperança está acabada. Vejo que não posso ser bom     em nada. E como terei ânimo para contar em Goiana, a sinhá D.     Damiana e à minha mãe, esta grande desgraça? Oh! que     tempos, meu Deus, que tempos! A gente não sabe meios nem modo de fugir     à adversidade,     E para matar as idéias tristes que lhe iam na cabeça, começou     a cantarolar as letras de uma chula popular:

Tenho minha cachorrinha.

Que minha Tatá me deu;     Tenho um só desgosto dela:     É ser filha de europeu     Toda moça que é briosa,     Não casa com marinheiro;

Espera para casar     Com os quindins dos brasileiros.

Bravo, patusco     Patusquinho, patuscão     Marinheiros, pé de chumbo,     Comedor e beberrão

Lodo impuro que o exclusivismo partidário, revolvendo os corações     trazia à luz como arma de guerra, colocava à frente da família,     primeiro santuário do povo.

 

João da Mota chegou com a tropa à Goiana, no dia seguinte ao     da partida de João da Cunha para as matas.

Faltam-me expressões para pintar o estado de agitação     da vila, desde as primeiras horas do dia. Soubera-se da fuga do sargento-mor,     e não fora preciso mais para que os que eram pelos mascates se considerassem     absolutamente invencíveis e irresponsáveis, e os que pertenciam     ao partido oposto se sentissem mortalmente desanimados. Não havia então     em Goiana os dois partidos que antes lutavam para aniquilar-se mutuamente.     Agora ela se mostrava dividida em um campo vencedor e outro vencido; neste     dominava o terror, naquele exercia poder absoluto a vingança sedenta     de escândalo e sangue. Os nobres de grande representação     na vila, que antes da chegada do governador, tinham, à frente de uma     parte da população, batido o pé à outra parte     que lhes fazia face, esses desapareciam do dia para a noite, por não     serem vítimas. Ficava o povo fraco e desamparado, e em cima dele caía     o peso da desforra.

Das dez para as onze horas da manhã foram presos Jorge Cavalcanti     em seu sítio da Conceição, e Manoel de Lacerda quando     saía da sua propriedade do Tanquinho.

Antes disso já se soubera em Goiânia da prisão do sargento-mor     Jorge Camelo de Valcácer, e dos capitães Antônio Rebello     e José de Barros Cavalcanti na Paraíba, para onde se haviam     retirado, logo que em Goiana, onde, pela sua longa residência, contavam     contra si muitos dos principais mercadores, se teve conhecimento das prisões     no Recife.

Jerônimo Paes e os filhos, que chegaram com João da Mota, ao     saberem que, além de João da Cunha, puderam escapar-se os irmãos     Cavalcanti, lastimaram tão importantes perdas. Por sua conta procederam     imediatamente as indagações a fim de averiguarem onde paravam     os fugitivos. Os segredos, por mais bem guardados, acham sempre reveladores.     Tanto indagaram eles que, por boca de um fâmulo, vieram a ter certeza     de estarem os Cavalcantis no Açu, onde possuíam fazendas de     gado.

Jerônimo Paes, vencido do ódio que votava a Cosme, ofereceu-se     a João da Mota para ir, pelo Ceará, prender-se os três     expatriados. Aceito este oferecimento, expediram-se as necessárias     ordens ao governador Manoel da Rocha Lima; e Jerônimo partiu a seu destino.

A ausência destes ardentes sequazes dos mascates moderou, mas não     fez cessar inteiramente a agitação, que, como febre, dominava     o povo da vila. Belchior, Manoel Rodrigues, Manoel Gaudêncio, Romão     da Silva, e até o preto Lauriano alentavam a efervescência pública,     ora percorrendo as ruas, em vociferações, ora comentando em     adjuntos nas esquinas e adros, os acontecimentos que se davam; agora, soltando     vivas e morras, agora penetrando nas casas onde se achavam as mulheres e filhas     dos nobres, para as insultar e desacatar. A medida da desforra era como o     tonel das Danaides: não se enchia nunca.

Nos semblantes desfigurados desses homens que as bebidas alcoólicas,     larga e gratuitamente fornecidas por taberneiros sem fé nem moral,     tornavam mais malvados do que na realidade eram liam-se baixos sentimentos     e paixões indignas que a polícia do tempo, em vez de açular     como fazia, visto que era conivente nas desordens e motins, devia refrear     e punir.

Quando constou a prisão do senhor do engenho Bujari, subiram à     altura de delírio as demonstrações e regozijo com que     os inimigos a festejaram.

À frente de um espesso magote, de que faziam parte os mais afamados     vultos da gentalha, Belchior correu ao condenado engenho, alvo das mais entranháveis     animadversões vilãs. A casa grande mereceu as honras da primeira     vítima: apedrejaram-na, tomados de brutal sanha. Os insultos praticados     foram tanto mais agravantes quanto aumentaram a dor de uma senhora ilustre,     que, no resignado martírio, buscava remédio contra a saudade.     D. Damiana teve, por fim, de suster as lágrimas para cuidar da sua     defesa. Afigurou-se-lhe não sem razão, que o engenho passaria     pelo mesmo transe de que fora vítima um ano antes, como o sobrado do     pátio do Carmo. Poucos eram os escravos restantes, e estes mesmos em     sua maioria, velhos. Marcelina estava ao seu lado. Por conselho dela, trancaram-se     todos a fim de ver se quebravam a fúria da canalha, por esta demonstração     de fraqueza. Os exaltados que capitaneavam a partida desordeira tiveram um     momento de senso comum, e dando-se por satisfeitos com o apedrejamento da     casa, a gritaria da plebe, as injúrias atiradas a Escopeteira,     voltaram à vila, onde repetiram o que nos dias precedentes haviam feito     o insulto às famílias, a violação do lar doméstico,     destruindo o que não tentava a sua cobiça e levando aquilo em     que ela se comprazia.

Dias depois da feroz romaria ao engenho, novo ensejo ofereceu-se ao espírito     de perturbação para prolongar o seu estúpido entusiasmo     a notícia da prisão de Cosme Cavalcanti, André Cavalcanti     e Luís Vidal. Parecia que a vila vinha abaixo, tamanha foi a vertigem     das turbas sem freio.

Era situada a fazenda de gado de Cosme Cavalcanti na comarca de Açu,     à margem de um rio. Receando ser aí mesmo perseguidos, não     obstante estarem muitas léguas distantes dos rancores e vinganças     pessoais, resolveram ocultar-se não na casa da fazenda, mas em uma     palhoça em que os vaqueiros se recolhiam por ocasião da ajunta     do gado. Para mais segurança, somente tomavam a palhoça de dia:     as noites iam eles passá-las numa caatinga.

Cosme pouco ou nada pudera fazer para a formação do corpo     de milicianos que planejara. Todos os vaqueiros e criadores tinham sido chamados     antes de sua chegada, pelo governador Manoel da Rocha Lima, a pegar em armas;     a maioria deles ocupava-se em proceder a diligência contra a nobreza.     Depois de esforços incomparáveis, reconhecendo que somente lhe     estava como único recurso, encobrir-ser às vistas dos que tramavam     incessantemente o seu aniquilamento, chamou para junto de si os poucos sertanejos     que pôde reunir, e os escravos fiéis. Mas esta resolução     quando foi tomada, já não podia surtir o efeito esperado, era     de todo sabido que ele estava no lugar, e o governador já aparelhava     expedição para dar no rancho, quando chegou Jerônimo Paes,     com as requisições do governador de Pernambuco. Então     não houve mais demora, Rocha Lima encarrega o Coronel do Açu,     João de Barros Braga, de prender a todo custo os emigrados pernambucanos.     Um vaqueiro, encontrando-se com a força, deitou a correr para preveni-los.     Fizeram-lhe fogo pelas costas, e ele caiu com uma perna quebrada, correndo-lhe     o cavalo. Ao estrondo dos tiros, o mulato Barnabé, de um dos homiziados,     acode com uma espingarda que dispara contra a tropa. O tiro emprega-se em     um dos soldados e prosta-o morto, por terra; mas imediatamente dão     uma descarga, contra o escravo, que cai atravessado por balas. Dando-se estas     tristes cenas quase defronte a palhoça, não tiveram os homiziados     tempo de fugir. Perdido esse recurso, trataram de combinar meios de defesa.

Não vejo nenhum, a não ser a fuga disse Luís Vidal.

A fuga? inquiriu André Cavalcanti. Mas por que modo? A tropa aí     está.

Cosme cortou a discussão com estas palavras decisivas.

Cosme Bezerra Cavalcanti, quando tem pela frente o inimigo, não sabe     dar-lhe as costas. Para que nos hão de servir as armas e munições     que trouxemos de Goiana? Lutaremos como homens até morrer, mas não     fujamos jamais, como fracas mulheres, quando está com vistas em nós     o inimigo, que atiraria contra nós pelas costas, como se faz aos covardes,     se usássemos esse meio indigno.

Não tinha ainda acabado, quando rompeu o fogo de fora sobre a frágil     cabana.

Eram doze a dezesseis homens os que haviam dentro, doze a dezesseis para     um troço de cinqüenta a sessenta, bem municiados, tendo consigo     a força da autoridade. Travou-se desigual, porém fortíssima     luta; mas a vitória, ainda que demorada, não podia caber a quem     estava cercado, e recebia balas por todos os lados cada qual mais exposto     às agressões. No medonho conflito, Cosme chegou a matar um dos     agressores, e ferir dois mortalmente. E porque, não obstante a superioridade     em número da tropa sobre os da casa, a resistência se prolongava     tenazmente, lembrou-se o coronel Braga de um recurso trivial e covarde      contra os que de dentro combatiam como heróis o de por fogo na palhoça.     Então a defesa tornou-se de todo o ponto impossível. Logo que     as chamas começaram a invadir o âmbito, André e Luís     Vidal, depondo as armas, entregaram-se à prisão. Cosme não     fez outro tanto; os seus ânimos não se compadeciam com esta solução     de prudência extrema: resistiu até onde foi humanamente impossível.     Quando as labaredas, cercando-o por todos os lados, o ameaçavam com     mais fúria do que os inimigos que, aliás, de fora não     cessavam de ajudar o terrível elemento com tiros sem conta, saltou     por uma janela resolvido a abrir, ainda assim, caminho por entre as chamas     e os agressores, intento que se frustrou.

Isto não é nada, é a vossa hora derradeira, Sr. Cosme     Bezerra disse um dos da escolta, levantando-o do chão onde o nobre     caíra por ocasião do salto.

Cosme, ainda aturdido da queda, volvendo as vistas ao que lhe falara, reconheceu     Jerônimo Paes.

Trazia este na mão uma catana desembainhada. Dos olhos fuzilavam-lhe     brilhos indescritíveis. O rancor, a cólera, a vingança     satisfeita nunca tiveram mais fiel e completa expressão.

Eu contava com o assassínio como termo natural desta perseguição     respondeu Cosme. Quando saltei pela janela para não morrer pelo fogo     que a vossa covardia pôs na casa, escapuliu-me a arma da mão,     e caindo em baixo desloquei um pé. Estou que nem posso andar; valho     menos que uma criança. Não é pois de admirar que me assassineis.

Não vos façais de fraco e inocente. Há algumas horas     que resistis com as armas nas mãos, ferindo e matando gente. Ali estão     três camaradas a quem tirastes a vida; vede aqui quanto sangue derramado     de outros três que nem se podem mexer. Como é que agora que vos     pondes numa cruz, dizendo que somos assassinos?     Cosme nada respondeu. Tinha nesses momento os olhos voltados para André     e Luís Vidal que, no centro da escolta, recusavam entregar os pulsos     às cordas com que, por ordem do coronel Braga, pretendiam manietá-los.

Somos nobres e não temos nenhum crime, dizia Luís Vidal. Não     nos sujeitaremos jamais à infâmia de nos deixar amarrar como     cativos ou vilões.

O tempo da nobreza acabou respondeu um, chacoteando.

Falais ainda em nobreza, mazombo? Tu e teus irmãos não     passais de rebeldes. Havemos de pôr as cordas em todos vós. Haveis     de pagar-nos o novo e o velho.

Foi frustrado todo o esforço dos vencidos. No meio dos maiores impropérios,     seis robustos ilhéus que acompanhavam a força, ataram os três     irmãos com os vaqueiros, e, o que é mais, com os próprios     escravos que não haviam caído na luta. Quando Cosme, passada     a exaltação, reconheceu que sem forças, sem armas, sem     um braço livre que o defendesse, não era mais que um réu     no poder de verdugos apaixonados, pensou em diminuir a humilhação;     e valendo-se do momento de vir o coronel fazer-lhe certas perguntas sobre     os bens que possuía, dirigiu-lhe estas palavras:     Não sei, Sr. Coronel, se alguma vez vos ofendi. A minha consciência     apressa-se a dizer-me que nunca dei motivo ao vosso desagrado, quanto mais     ao vosso ódio. Mas se não é esta a verdade, peço-vos     me declareis a minha culpa, que talvez possa convencer-vos da sem razão.

Braga respondeu:     Sr. Capitão, de vós nunca recebi a menor ofensa. Apenas vos     conheço.

E por que então procedeis tão atrozmente conosco?     Cumpro ordens. As instruções do governador, que me foram transmitidas,     são positivas e rigorosas. Parece-me que, se por qualquer circunstância,     o que Deus não há de permitir, viésseis a escapar de     meu poder, a minha cabeça pagaria esta desgraça.

Não penseis que estranho a parte que tomaste em nossa prisão;     o que estranho é a descortesia que tendes com presos a quem a adversidade     não pode ainda, nem poderá nunca fazer esquecer a nobreza natural     do seu caráter. Uma vez presos, Coronel, nem Cosme Bezerra Cavalcanti,     nem André Cavalcanti, nem Luís Vidal Cavalcanti fugiriam jamais     ainda que lhes fosse fácil a fuga. A sua palavra honrada tornaria indispensáveis     cordas e algemas.

Sr. Cosme, eu não acredito na honra, na nobreza e ainda menos nas     palavras dos rebeldes respondeu o coronel. Haveis de seguir amarrados até     o Recife. As instrução que me foram dadas não permitem     lugar a outro procedimento.

Cosme sorriu com amargura.

Enganai-vos, coronel, se pensais que vos peço misericórdia.     Podeis em lugar de cordas mandar pôr em nossos pulsos pesadas algemas;     podeis pôr-nos à ração de pão e água:     com isso não fareis mais que antecipar os tratos que nos esperam na     semi-tumba das Cinco Pontas. Não vos peço que mandeis afrouxar     as cordas que estão cortando os meus braços, tamanha foi a força     que Jerônimo Paes os amarrou. Seriam indignos da causa que nos faz sofrer,     se vos pedíssemos brandura em vez do rigor a que temos direito.

Não sei o que quereis dizer.

Quero saber se nas vossas instruções vem determinado o itinerário,     como vem, ao que parece, o modo de sermos levados presos.

Depois de refletir por alguns instantes, Braga respondeu:     Quanto ao itinerário, nada se me determinou.

Portanto uma vez que nos leveis ao Recife, tereis preenchido a vossa obrigação?          Certamente.

Pois bem. É agora que vos peço um favor.

Qual é?     Imaginai que em vez de sermos vossos prisioneiros, éreis vós     nosso; e que, em vez de seguirmos para o Recife, teríamos de ir a um     ponto além do Açu, donde sois natural, onde viste correr a vossa     mocidade, onde tendes representação. Qual dos dois caminhos     preferidos o que passa por dentro do lugar do vosso nascimento, ou que rodeia     por fora?     Compreendi já o que desejais, disse Braga.

Em Goiana, Coronel, nasci eu, e nasceram os meus irmãos, que estão     presentes. Sou ali juiz ordinário e Capitão de ordenanças;     tenho aí família e amigos que me prezam com todas as veras.     Meus amigos e parentes, vendo-me passar por dentro da vila neste estado lastimoso,     sentiriam o mais acerbo desgosto. Para poupar-lhes este golpe, peço-vos,     que ordeneis outro caminho, onde só encontremos inimigos ou indiferente.     Eis o favor.

Braga respondeu:     Estais servido. Passaremos por fora de Goiana.

Prometeis então que não passarei por dentro de Goiana, Coronel?          Podeis ficar tranqüilo, que há de ser satisfeita neste ponto a     vossa vontade.

Coronel, perdôo-vos a parte que tendes tomado nos meus males, e desde     já vos agradeço tamanha graça. Eu tinha-vos por vilão,     mas agora reconheço que sois nobre. Beijo-vos as mãos.

Cosme fez um sinal de cabeça em sinal de reverência a Braga.   

 

Não tinha cessado ainda, se não aumentara, a agitação     em Goiânia, quando Lourenço chegou ai Cajueiro, de volta de Tracunhaém.

Vinham com ele vários almocreves com quem se juntara algumas léguas     atrás. Iam todos àquela vila, e eram antigos conhecidos de Lourenço,     que uma hora por outra se encontrava com eles nos caminhos e ranchos.

Uma circunstância muito contribuíra, pouco antes de chegaram     ao Cajueiro, para estreitar cada vez mais as relações de simpatia     que já ligavam a maioria deles ao rapaz. Foi o caso que jornadeavam     muito tranqüilamente, quando de improviso lhes aparece pela frente uma     partida de bandoleiros. Apenas avistam o comboio, o chefe do bando e mais     três que o seguiam de perto, foram ao seu encontro; e sem mais nem menos,     intimam-lhe que entreguem os animais por ordem de Tunda-Cumbe, para que o     bando pudesse realizar certa diligência de que estavam incumbidos. Naqueles     tempos o terror dominava todos os que não pertenciam à classe     elevada do partido do governador. O povo não tinha direitos. Qualquer     bandido julgava-se autorizado para apoderar-se da propriedade do pobre, e     fazer dele o seu moço de recados. Inúmeros pais de família,     pertencentes à classe desfavorecida, perderam muitos dias de serviço     por se ocuparem na condução de ofício ou outro qualquer     objeto a pontos longínquos, por ordem de agentes subalternos. Por isso     a intimação foi ouvida pelos almocreves como uma sentença     de que não havia onde apelar.

Não estavam os bandidos acostumados a declarar as suas vontades sem     as verem imediatamente cumpridas. O chefe, que vinha a cavalo, atirou-o com     força que pôde sobre o matuto que mais próximo estava,     dizendo arrogantemente:     Ainda estão montados? Não ouviram o que lhes disse?     Seus olhos tinham a expressão da insolência brutal que caracteriza     o poder nos agentes subalternos.

Montados estão e estarão advertiu a este tempo um grito que     viera ecoando por sobre as cabeças dos almocreves parados na frente.

Súbito, por entre eles, rompe o que soltara aquelas palavras. Era     Lourenço.

Logo que se achou diante do chefe, o rapaz prosseguiu assim:     Então vosmecê entende que quem comprou um cavalinho com o suor     do seu rosto, e dele precisa para seu meio de vida, há de entregá-lo     a quem quer andar montado à custa dos outros?     Que desaforo! gritou o chefe em brasas. Atreves-te a fazer-me observações,     confiado?     Este pé-rapado precisa de uma roda de pau disse um dos da     tropa, aproximando-se de Lourenço.

Este já tinha o facão desembainhado na mão.

Desaforo é o seu respondeu ele ao chefe. Nenhum de nós está     resolvido a entregar o seu animal. Ainda quando todos entregassem o seu, eu     cá não entregarei o meu castanho. Se os senhores andam em diligência,     sigam o seu caminho devagar, para não serem pressentidos; agora se     andam fazendo coisa que não devem, estão pior um pouco.

Soava ainda o veemente protesto, quando um dos bandoleiros fez menção     de pegar no cabresto do castanho; mas antes que mão tocasse     a corda já o braço se retraía à dor de uma forte     pancada que sobre ele vibrara Lourenço, o qual, voltando-se aos almocreves,     lhes falou com gesto imperioso.

Para diante, para diante, camaradas!     E deu o exemplo, esporeando o castanho que tão depressa sentiu a espora,     como rompeu caminho, aos pinotes e aos coices, por entre a tropa, debaixo     de um chuveiro de pancadas.

A tropa tentou então impedir a passagem dos almocreves; mas já     foi tarde: o exemplo de Lourenço levantara os espíritos. Não     houvesse um só dentre aqueles que não desse mostras de grande     valor. Aos golpes dos bandidos, respondiam com chicotadas e pranchadas. Estando     a maioria dos bandidos a pé, não foi difícil aos almocreves     escapar-lhes. O chefe e dois ou três, quando muito, que estavam cavalgando,     cansados animais, ainda tentaram atalhar a fuga, descarregando as armas de     fogo que traziam sobre os que fugiam. Mas, assim que viram Lourenço     seguidos de três ou quatro mais animosos torcer para trás, e     de facão em punho, fazer-lhes frente, sobrestiveram, espantados de     tanta coragem e receosos de serem vítimas deles.

Havemos de encontrar-nos muito em breve disse o chefe.

É quando quiser. Ando sempre por estas estradas a qualquer hora do     dia e da noite retorquiu Lourenço.

Assim falando, voltou com os quatro a reunir-se aos outros, que, livres     do embate, já corriam à brida solta pela estrada afora.

Começaram agora as reflexões sobre o que poderia acontecer-lhes.     Fracos homens do povo, sem o menor amparo, porque o único que tinham     eram os senhores de engenho, por então ainda em mais estreitas condições     do que eles mesmos, levaram algum tempo, não a mostrar-se arrependidos     do seu procedimento, mas lastimando-se por ter a sorte criado para eles tão     perigosa alternativa. Lourenço porém tratou de tranqüilizá-los,     o que lhe não custou muito, porque a sua energia impusera os seus sentimentos     aos outros, que, se já o estimavam antes, agora não só     começaram a respeitá-lo, mas até a chamá-lo digno     de sua confiança.

Não tenham medo destes assassinos, destes ladrões do alheio,     que só têm valentia par as mulheres que vestem saia, para os     poleiros de galinhas, as estrebarias de bestas velhas mal guardadas e os chiqueiros     dos porcos.

Eles são capazes de esperar-nos na vila e prender-nos.

Pois então, em vez de tomarem vocês o rancho, façam     a sua pousada no mato. Mas afora me lembra uma coisa. O rancho é na     entrada da vila, e eu moro muito para cá do Cajueiro, como vocês     sabem, e a minha casa, que por ora é uma palhoça, está     sem gente, porque a minha mãe foi fazer companhia à senhora     do engenho Bujari. Podem vocês arranchar-se na minha palhoça,     que fica da estrada muito para dentro, e de noite não se vê;     amanhã de manhãzinha seguirão então para Goiana.     De dia e dentro da vila já eles, se aí ainda se acharem, não     farão o que lhes vier nos narizes; porque, ainda que os mascates estão     de cima, sempre nos povoados há alguém que fala pelos perseguidos.

Este alvitre de Lourenço foi aceito com reconhecimento por todos     os almocreves, e ainda mais acrescentou o seu vulto, já desenhado em     grande tela na imaginação deles.

Quando chegaram à palhoça, era quase noite. Lourenço     apenas lhe deu os esclarecimentos necessários, continuou a jornada     até Bujari, onde não se demorou, e mais tarde, com o intento     de saber se o encontro com o bando já era conhecido na vila e se tomavam     providências contra os desobedientes, dirigiu-se até lá.

Goiana estava cheia de uma notícia, mas de estrondo a prisão     dos irmãos Cavalcanti.

Quero ter o gosto de vê-los entrar aqui amanhã com as cordas     nos pulsos dizia um mascate. Quero chegar-me ao Cosme, que de todos ele é     o mais peitudo, e perguntar-lhe: “Onde está a tua fama,     pé-rapado mofino?     Outro dizia:     Hei de dar-lhe uma bofetada e ameaçá-lo de dar outra se ele     não disser em altas vozes: “Viva quem me deu. Só assim     me pagará o pouco caso em que sempre me teve esse ruim e arrogante     mazombo.

Cá as minhas contas são com o André, que ainda pela     última quaresma teve para mim gestos de desprezo, por lhe parecer que     estavam mal pesadas umas caixas de açúcar que mandara para o     meu armazém. Chegou a chamar-me ladrão. Hei de lhe perguntar     quem é mais ladrão se o que está solto e livre, tratando     do seu negócio, ou se o que vem amarrado, e em pouco tempo há     de subir à forca?     É impossível dar uma idéia aproximada da angústia     de Lourenço, quando soube a cruel notícia, e da aflição,     que o possuía por não poder dar incontinenti o castigo a quem     o merecia, quando nos adjuntos pelas ruas, e nas portas das tabernas e das     boticas, ouvia semelhantes projetos de vilãs vinganças contra     os nobres em quem se acostumara a não pôr as vistas senão     com respeito.

Que desgraça, meu Deus! Parece que não ficará um fidalgo     que não seja preso. Mal pensa seu Cosme o que está para lhe     acontecer.

Cosme Bezerra, entretanto, confiando na promessa do Coronel Braga, pôs     o espírito ao largo, e da grandeza do infortúnio tratou de tirar     forças e resignação maiores que o mesmo infortúnio     para o vencer com dignidade.

Estou preso como um cativo, mas no meu crime há um protesto em favor     da liberdade dos pernambucanos. Demais, desobedecer ao despotismo, à     violência, em lugar de crime, é direito. Poderão matar-me,     porque são assassinos; poderei subir à forca, e outro fim não     espero, se antes disso não me assassinarem por estes caminhos, sob     qualquer pretexto para se verem logo livres de mim. Mas, meu nome passará,     com meu ânimo, ao grande quadro da história de Pernambuco, onde     vêem desenhados vultos tão ilustres, que basta ocupar um lugar     ao pé deles para ter seguro o respeito dos pósteros.

Mal acabara este solilóquio, quando, erguendo a vista à roda     de si, sentiu que o espírito se lhe abatia repentinamente. Conhecera     os lugares que o dia, ao romper, lhe ia mostrando aos olhos. Estava na estrada     de Goiana.

Mas o abatimento foi rápido; a antiga energia correu de novo pelas     veias do brioso goianista; o espírito ergueu-se-lhe fresco, forte,     diante das paisagens natais, alentado pela sua gentileza em que se deliciara     nos bons tempos da mocidade.

Vamos entrar em Goiana, disse a Luís Vidal.

É verdade, respondeu este tristemente.

Neste momento passou por junto dos presos o Coronel.

Sr. Coronel, disse-lhe Cosme, quer ter a bondade de ouvir uma palavra?     Braga aproximou-se.

Se não me engano, este caminho vai dar à vila de Goiana.

É verdade.

Mas vós me prometestes que passaríamos por fora.

A estas palavras, Jerônimo Paes, que se aproximara também dos     prisioneiros, disse:     O Sr. Coronel fez esta promessa, é verdade, mas mudou de resoluções,     por eu lhe lembrar uma circunstância. Como extremosos filhos, segundo     inculcais, da terra que vos viu nascer, seria grande crueza cortar, para não     vê-la pela última vez, por escusos atalhos e rodeios.

Eu não me dirijo a ti, vilão imundo, retorquiu Cosme.

Sr. Cosme Bezerra! advertiu o Coronel Braga.

Dirigia-me a vós, Coronel, que aliás sois também um     vilão ruim, um homem infame, um soldado covarde, que outros não     cabem a quem falta à palavra dada a um nobre prisioneiro.

Os cães acorrentados ladram com mais fúria do que os soltos,     replicou Braga.

E deu o andar, enquanto Paes, achegando-se mais da mó formada pelos     prisioneiros, ia talvez erguer o chicote para flagelar Cosme na face, quando     foi compelido a voltar-se para inquirir com as vistas a causa de um ramalhar     violento que um dos lados do caminho se fizera sentir.

E volver as vistas, ao ponto, foi o mesmo que ver uma partida de cavaleiros     armados de facões e pistolas correr sobre a tropa. O Coronel deu imediatamente     ordem para que as forças cercasse os presos e disparasse as armas contra     os assaltantes. Poucos tiros soaram; com a umidade da noite, as escovas da     maior parte das armas haviam esfriado e muitas destas mentiram fogo. Não     se viu depois senão um torvelinho medonho e indescritível. Os     cavaleiros caíram sobre a tropa, e a patas de cavalo, começaram     a atropelar os que não lhe davam passagem. Braga, que descalvagara     momentos antes de falar com Cosme Bezerra, não teve tempo de tomar     o seu animal. Jerônimo Paes, porém, homem de lutas desabridas     e de valentia, tivera tempo de saltar sobe a sua cavalgadura, e com a espada     investia, em defesa dos que formavam um círculo à roda dos presos,     como possesso do gênio do mal.

Esta luta durou poucos momentos, porque um dos assaltantes correu acesso     em valor, ao círculo, e expondo-se a dezenas de golpes, pode romper     o cordão, e chegar até aos prisioneiros.

És tu, Lourenço, és tu, Lourenço! clamaram os     nobres admirados de tanta bravura, e satisfeitos com a nova face que a sua     sorte apresentava, um momento depois de ter para eles uma das mais feias carrancas.

Sou eu mesmo, seu Cosme. Em poucos instantes, seu Cosme, havemos de mostrar     a estes safados mascates para quanto prestam os pernambucanos.

O facão de Lourenço cortava já os últimos nós     da corda passada à roda dos braços de Cosme, quando uma pranchada     vigorosa fez o rapaz sobressaltar. Com este novo estímulo, o homem     mudou-se em fera. Perdida a sensibilidade que o momento exigia, deixou a obra     de salvação em mais de meio, e voltou-se para investir contra     o seu ofensor. Inexperiência da idade que frustrou a grande obra quase     terminada.

O ofensor era Jerônimo Paes. A sua coragem, se fosse ajudada de força     tão extensa como ela, seria, talvez, digna de competir com a de Lourenço;     mas só este, de todos os que ali estavam, trazia os dois tesouros reunidos.     Descarregar um golpe sobre Jerônimo foi o mesmo que prostrá-lo;     mas quando ia acabar com este inimigo, teve que volver a sua atenção     para outro ponto, donde um da tropa dissera aos camaradas:     Não esmoreçam, minha gente, que ali vem o Tunda-Cumbe.

João da Mota, receando que os nobres que andavam foragidos pelos     matos se reunissem e tentassem tomar os presos trazidos do norte, dera a ordem     para que Tnda-Cumbe, que já voltara do Recife, onde deixara os outros     presos, fosse reforçar com gente fresca e descansada a que trazia tantos     dias de jornada passando rios cheios, fomes e outras inclemências naturais     da longa digressão pelo sertão. E porque tinha recebido informação     do Coronel Braga sobre a hora da entrada na vila, muito cedinho fizera partir     o Manuel Gonçalves com trinta homens do seu séquito.

Tunda-Cumbe caiu sem piedade com os seus sobre os assaltantes, e não     obstante terem estes já do seu lado a vitória, pode, a golpes     e a tiros, dispersar os que não morreram no meio da luta.

Os assaltantes não eram outros senão os matutos a quem Lourenço     dera pousada em casa à noite anterior.

Eis o que tinha havido:     Voltando à palhoça, com grande mágoa, pelo que vira e     ouvira nas ruas e tabernas onde se tratava da recepção hostil     a Cosme e aos irmãos.

Trago o coração negro, como tinta de escrever dissera. Meu     desgosto é tão grande que, se não tivesse pai e mãe     ainda vivos, eu me atiraria por aí além, em busca da morte.

Ora, deixe-se disso, Lourenço. Não vejo razão para     essa zanga.

Olhem vocês. Enquanto eu não tomar uma desforra desses mascates,     e dos ladrões que andam aí prendendo a gente limpa da terra,     eu não fico bom nem tenho sossego. Estou em termos de arrebentar.

Então lhes referiu o que ouvira e presenciara na vila.

Mas, por que não tiras a desforra? Que te falta? A ocasião     não podia ser melhor. Vamos tomar os nobres pelo poder da força.

Este é o meu intento, e se vocês me ajudam...

Ora! disse um. Somos tão somente nove, mas assim mesmo havemos de     dar o que fazer.

A minha birra é com o ladrão desse peixeiro desprezível,     o desavergonhado Tunda-Cumbe, que traz galões dourados nas mangas,     quando devia trazer algemas.

Pensa você então em se pegar com o Tunda-Cumbe que, além     de não ser peco, valha a verdade, traz consigo tanto cabra  matador,     e tanto negro feio mandingueiro?     Lourenço sorriu em ar de mofa e impaciente.

E por que não me hei de pegar com ele, Manoel Félix. Eu só     sou capaz de lhe dar com a bainha da minha faca nas ventas quanto mais se     vocês lhe fizeram uma perna. O marinheiro bem me conhece, e     tem-me ronha. Em um samba que houve o ano passado, em casa do defunto     Vitorino, o Tunda-Cumbe bem viu o pau da minha canoa. Há pouco tempo     mesmo ele sentiu no braço o dente da minha faca; se as folhas dos paus     não estivessem tão embrenhadas, havia de sentir o gosto dela,     não no braço, mas no coração, que foi para aí     que eu a atirei. Eis aí. Vocês bem sabem a cantiga que eu canto:   

Não tenho medo de homem     Nem do ronco que ele tem     O besouro também ronca     Vai se ver, não é ninguém.

Está bem, basta, Lourenço.

Você também parece que está com medo, Antonio Luís.     Ora não seja mofino, que um homem quando come carne e farinha é     para ser duro.

Eu não tenho medo. Por mim está já assentado que tomaremos     os presos das mãos dos malvados.

Os matutos escorvaram algumas armas de fogo que traziam, examinaram os facões     e as facas, e puseram-se a espiar o momento do assalto. No outro dia de manhã     apontou a escolta na extremidade do caminho. Foi então quem por entre     as folhagens que lhes serviam de graciosa e natural moldura, caíram     os almocreves sobre os soldados.

Lourenço lutou até não poder mais, até ficar     só em campo, e seria vítima debaixo do peso do grande número     do bando, se Cosme Bezerra, que chegara a ter um braço livre, não     descarregasse uma arma contra o Coronel Braga. Supondo que este ia morrer,     as atenções dos bandidos e soldados dividiram-se entre os prisioneiros     e o ferido. Neste momento pôde Lourenço escapar-se. O chão     estava juncado de cadáveres.

Das onze horas para o meio-dia, um homem, que entrara gacheiro, afastando     os matos aqui, unindo-se acolá, para passar sem ser visto, meteu a     cabeça por entre as estacas do engenho Bujari, e correu para a casa     grande.

Quando o desconhecido, cujas roupas se mostravam rasgadas em alguns pontos,     cobertas de sangue em outros, penetrou na sala onde somente se achavam as     mulheres D. Damiana, Marcelina, Joaquina e Mariana algumas delas amedrontadas     da inesperada visão, chegaram a procurar os quartos para se trancarem,     supondo que estavam com um malfeitor em casa. Marcelina, porém, reconhecendo     logo com mágoa o filho, correu ao seu encontro, e tomou-o nos braços.

Minha Nossa Senhora do Rosário, Virgem Santíssima! Que te     fizeram, Lourenço?     Este respondeu por interrogação:     Não passou por aqui seu Cosme com os irmãos?     Não fales nisso Lourenço observou Marcelina. Tem piedade daquela     senhora que mal pode enxugar as lágrimas de tantas que são.     Nem tu sabes o que disseram, o que praticaram os malvados. Eles aí     vão ainda. Quase nos matam. Olha para aquelas urupemas. Não     vês como estão quebradas e esburacadas? Não vês     as paredes como estão? As balas e as pedras dos endemoninhados choveram     aqui dentro. Parecia que o mundo ia se acabar, tamanho foi o estrondo, o estrago,     o desatino. Com as balas e as pedras, chegavam aqui também os desaforos     e as poucas vergonhas que eles diziam. A canalha do Tunda-Cumbe foi quem teve     a maior parte nisso. A outra gente ia ocupada com o seu Cosme, seu André     e seu Luís, e pouco se demorou à porta da casa. Sinhá     D. Damiana ainda quis abrir a urupema para falar a seu Cosme. Se não     sou eu, ela fazia esta asneira, e talvez não vivesse. Mas, quem foi     que te pôs neste estado?     Quis ver se podia livrá-los das mãos dos malvados, minha mãe;     mas Deus não quis. Quando já estavam quase soltos, chegou o     Tunda-Cumbe com a quadrilha, e não houve meio de vencer. Os meus camaradas     morreram quase todos; e eu fiquei jurado pelo Tunda-Cumbe de morrer mais cedo     ou mais tarde às suas mãos. Talvez que hoje mesmo ele ainda     venha correr esta casa, ou vá à palhoça para ver se me     encontra.

Santo Cristo de Ipojuca! Valei-nos, minha Nossa Senhora da Conceição!          Olhe, minha mãe, tenha paciência; porque o pior é o que     eu lhe vou dizer agora. Eu não tenho medo do marinheiro, mas ele tem     muito quem o acompanhe. Por isso acho bom ganhar o mato por alguns dias, até     ver se as cousas tomam outra cara.

Filho de minh’alma, queres deixar-me?     Lourenço, Lourenço, não nos desampares disse Marianinha.

Que resolução é esta, Lourenço? perguntou D.     Damiana, quase soluçando.

O rapaz não soube o que dizer. Calado, impassível, confuso,     lançava olhares estúpidos de uma para outra das mulheres, que     assim recebiam a triste declaração e sua ausência.

Mas, minha mãe... sinhá D. Damiana... Marianinha... Se eu     ficar aqui, ainda pode ser pior. Se eles me prenderem, se me levarem para     o Recife, que será de vosmecês? Eu não vou desamparar     esta casa por uma vez, minha mãe; Deus me livre disso; nem tenho coração     para fazer semelhante ingratidão. Andarei por aqui mesmo em roda da     casa, mas dentro do mato. Se os negócios forem ficando muito feios,     irei para Tracunhaém; irei reunir-me a seu Falcão, que já     deve ter muita gente junta.

As mulheres ouviram atentas, no maior silêncio, estas palavras, nascidas     do sentimento da prudência, que era aliás obra de Marcelina no     coração do corajoso jovem.

Valha-me Deus! disse Marcelina, como quem compreendia que era absolutamente     necessário resignar-se à ausência daquele que, com ser     filho de outra mulher, se tornara objeto dos seus maternais afetos.

Ele nos queria valer, Marcelina acrescentou D. Damiana. Longe estava eu ainda     há bem pouco tempo de pensar neste novo revés da minha infeliz     sorte.

Ontem era seu Francisco, hoje é Lourenço que vai deixar-nos     disse Joaquina. Será o que Deus quiser.

Já não há corda em meu coração que não     tenha estalado acrescentou Marcelina. mas, já que Deus assim ordena,     vai Lourenço, mete-te no mato, esconde-te bem dos facinorosos; e por     nosso respeito não te percas. A Virgem Maria, na tua ausência     há de ser a nossa advogada, há de proteger-nos.

Esta cena de dor foi interrompida pela chegada de um negro que acompanhara     João da Cunha às matas e com ele seguira para a prisão     no Recife. Vendo-o coberto e suor, e ofegante de cansaço de longa jornada,     D. Damiana foi a primeira que lhe falou, não sem grande sobressalto.

Que novas nos trazes, José?     O escravo fiel e respeitoso, por única resposta, entregou-lhe um papel     que ela inquieta e nervosa, desdobrou rapidamente. Era uma carta do seu cunhado     Amador Cavalcanti, senhor de engenho, residente em Jaboatão.

Eis o que continha  a carta:

“Prezada prima

  Escrevo-lhe estas regras quase às escuras, porque estou na semi-tumba   das Cinco Pontas, onde me recolheram ontem, por ordem do governador depois de   sofrer os maiores vexames da quadrilha do Camarão que me prendeu.  

 

Vim aqui encontrar o meu irmão, o seu marido João da Cunha.

Mal poderá imaginar em que estado o encontrei. Ferido, enfermo,     maltratado pelos nossos verdugos... não tenho ânimo para lhe     dizer tudo; mas o parentesco e a amizade não permitem furtar-me a este     penoso dever.

Hoje, pela manhã, ele chamou-me para junto de si; os seus ferimentos     tinham se agravado. Mal pude entender o que me disse; digo mal: não     entendi uma só das suas palavras.

Abraçou-me, e inclinou a cabeça sobre o peito. Não     a levantou mais, senão talvez para comparecer perante o Criador, que     nos há de julgar e vingar.

Resigne-se     AMADOR CAVALCANTI

D. Mariana caiu quase sem sentidos nos braços de D. Marcelina. Os     soluços queriam arrancar-lhe a vida.

A este tempo, Cosme Cavalcanti e os irmãos, atravessavam a rua principal     de Goiana no meio do mais público espetáculo cujo único     objeto eram eles.

Para que fosse esplêndida a recepção das ilustres vítimas,     os principais mercadores da vila tinham ordenado comédias e cavalhadas.

Fogos estouraram de todos os cantos e alguns sinos repicaram em sinal e     alegria, logo que os presos se aproximaram. Na rua das Portas de Romão     armara-se um tablado pelo modelo do que se tinha levantado em Olinda para     festejar a chegada do governador, a 7 de dezembro de 1711. Aí apareceram     cinco figuras ricamente vestidas; quatro representavam as quatro partes do     mundo, e outra, Goiana.

O tablado ficava como o de Olinda. debaixo de uma “parreira agradável     na forma, e abundante de uvas, com passarinhos que as depinicavam.

Quando os presos passaram pela frente do tablado a figura que representava     Goiana fez sinal que parasse o troço, e com ênfase dirigiu “em     romance curioso, uma alocução a Jerônimo Paes, que exaltou     como benemérito do povo e da realeza. A rua não tinha mais onde     se pôr um pé de pessoa. A vila em peso, uns por satisfação,     outros por natural curiosidade, assistia ao estrepitoso espetáculo.

Os mercadores mais dinheirosos distribuíam aos soldados peças     de ouro e bebidas finas; a plebe atirava insultos e injúrias aos algemados.

Estes nunca haviam demonstrado tanta nobreza no gesto e no porte. Tinham     a serenidade de mártires. O silêncio dava-lhes gravidade, e a     elevação da face deixava manifesto que os seus espíritos,     longe de rastejarem, se sustentavam na altura do seu nome e posição.

A um insulto que lhes dirigiu o taberneiro Joaquim Rodrigues, Cosme Bezerra     retorquiu:     Insulta os nobres que vês presos, marinheiros; mas fica sabendo que     se não pudermos algum dia ajustar as nossas contas contigo, ajustá-la-ão     com os teus malungos, que para cá vierem, os nossos filhos,     os nossos netos, enfim a nossa geração; ódio eterno à     tua raça é a primeira herança que ensinaremos e deixaremos     aos nossos descendentes.

Toma lá que te dou, profeta sujo retorquiu-lhe em ar de zombaria     o taberneiro.

E atirou-lhe uma moeda de cobre.

 

Receoso de encontrar-se com algum bando inimigo, Lourenço que, ao     deixar o engenho, tomara a margem direita do Tracunhaém, pela qual     passava o caminho por onde se saía de Goiana atravessou não     sem risco o rio com bastante água pelas chuvas torrenciais do inverno,     e meteu-se numa capoeira que, ao cabo de um quarto de légua, vinha     morrer na margem esquerda.

Era quase noite, e desde a saída, a chuva não cessara ainda,     antes aumentara.

Em todas as paragens circunvizinhas, não se descobria uma só     habitação. |O rio entrava aqui pelos matos, saía acolá     por entre lajedos, espraiava-se além em várzeas cobertas de     buritizeiros. De verão, a região que Lourenço percorria     agora silencioso e pesaroso, tinha aspecto risonho; era um lindo painel, não     obstante ser deserta e quase virgem. Atualmente vêem-se já por     ali casinhas de almocreves, quadras de terra cobertas de roças, partidinhos     de canas que alegram a vista e comunicam ao espírito a sua graciosa     flutuação iluminada e colorida. Por esse tempo, só se     avistavam ali águas, matos e céu, que o verão enchia     de limpidez, verdura e azul. Aos olhos de Lourenço, porém, não     eram estas tintas oferecidas pelas paisagens feiticeiras. Com o inverno elas     haviam tomado feições espessas e sombrias. As águas barrentas,     em vários pontos encachoeiradas, enovelando-se com arbustos e pedras,     semelhavam terras diluídas por forte ebulição, mostrando     todas as fezes e lia deixadas no seu seio pelo curso de muitas idades, as     folhagens inclinadas para o chão, quando as águas do céu     caíam sobre elas sem sopro de tormenta, ou revoltas e confusas quando     a tempestade as açoitava com a sua violenta cólera, apresentavam     o semblante de tristeza ou do desespero; o céu cor de cinza tinha comunicativa     morbidez que penetrava nos corações ternos. Enfim, longe de     despertar pensamentos e sensações gratas, essa região     demorada não oferecia ao hóspede perdido no seio dela outros     presentes senão o tédio, a ingratidão e a aspereza do     deserto.

Ao anoitecer, saindo de uns pauis perigosos, onde quase se havia sumido     com o cavalo, ouviu, surpreso, o bater de uma caçula por ali     perto. Guiado por este sinal, ganhou um alto onde deu de rosto com uma casinha     de barro, coberta de palha. Alongando as vistas, descobriu na baixada que     ficava do outro lado da eminência, uma como aldeia de índios.     Contavam-se talvez de quinze a vinte palhoças. Quase todas estavam     fechadas, e somente da que ficava mais próxima da casinha do alto,     se levantava aos ares, sem embargo dos pesados pingos d’água     que no momento caíam, uma fumacinha azulada, indicando que havia moradores     na palhoça.

Já tenho, graças a Deus pensou o rapaz onde passar esta cruel     noite de inverno.

E tirou para a casinha, donde lhe chegava aos ouvidos o som levantado pelo     alternado bater das mãos do pilão sobre o milho.

Faziam a caçula uma rapariga e uma mulher já de idade.     Aquela podia passar por branca, e não era mal parecida: cabelos negros     e cacheados emolduravam-lhe o rosto jovial e franco; formas boleadas sem carência     de gentileza, acusavam tesouros que se perdiam ocultos ou mal apreciados no     ermo.

A outra mulher tinha feição e formas vulgares, que nenhum     traço particular tornava distintas, a não ser o olhar suspeitoso     e a grossura corpórea: ambas trajavam saia de chita e cabeção     de renda. Estavam de pé, na sala posterior da casinha, perto de um     banco largo, espécie de porta deitada sobre quatro pés cravados     no chão, a qual, pelos indícios, preenchia o ofício de     estrado, mesa de jantar e cama de dormir. Sobre o banco via-se um alguidar     de barro de tamanho, contendo certa quantidade de milho pilado; junto do alguidar,     um rapa-coco de ferro e alguns pratos ordinários. Dentro de um destes     estava o coco, partido já em duas bandas, destinado a dar as rapas     de que se devia extrair, pela expressão, o leite grosso e saboroso.     O leitor entendido nos usos do norte há de ter compreendido por estas     particularidades domésticas, que as duas mulheres se ocupavam em fazer     o popular e apreciado mucunzá. Ficava de permeio entre uma     e outra, o pilão que lhes dava pela cintura.

A quantidade de milho quebrado que se via dentro do alguidar, e o suor que     aljofrava o rosto e as espáduas das mulheres, não obstante o     tempo frio, revelavam que a caçula já ia puxada, ou     antes, estava perto de acabar.

Lourenço, rodeando a casa, foi parar defronte da janela, onde se     entregavam àquela ocupação culinária as duas mulheres.

Ó de casa? disse ele.

Apenas estas palavras ressoaram dentro, as moradoras fizeram uma pausa,     e cessou o batecum.     Ó de fora respondeu a mais velha, enquanto a mais nova, que estava     oculta por trás da parede, estirou o pescoço, e com os olhos     procurou ver quem era o hóspede. Tão depressa porém o     viu como, deixando a sua mão de pilão metida no milho, deitou     a correr para a camarinha, único aposento encoberto que havia na casa.

Tenha vosmecê muito boas noites, minha senhora disse Lourenço,     chegando o cavalo mais para junto da janela.

Nosso Senhor lhe dê as mesmas respondeu a matuta.

Minha senhora prosseguiu o rapaz venho pedir a vosmecê um rancho por     esta noite. Com semelhante chuvarada, que vosmecê bem está vendo,     é impossível a gente andar por dentro de lamas que querem engolir     homem e animal.

Mas senhor... balbuciou a mulher com evidente embaraço.

E como não passou dali, Lourenço, compreendendo estar ameaçado     de eminente recusa, acrescentou:     Quer vosmecê acredite, quer não, o que eu lhe posso dizer é     que ainda hoje não comi nem descansei. Estou resfriado desde os pés     até a cabeça. Não sei bem em que altura ando. Além     disso, com os rios cheios e de noite pelo escuro, não se pode viajar.

Meu senhor... retorquiu a mulher sempre hesitante, eu não teria dúvida     em lhe dar o rancho: mas o dono da casa não está em casa, e     não é de bem... vosmecê bem sabe.

Sim, se o dono da casa não está em casa, nem aqui por perto,     é verdade, vosmecê tem razão. Mas também quero     lhe dizer uma coisa: eu com  pouco me satisfaço. Basta que vosmecê     consinta que eu me recolha debaixo deste alpendre, ao menos enquanto ponho     um punhado de farinha e um pedaço de carne na boca, e o meu cavalo     descansa.

A mulher não disse uma palavra; continuou indecisa. Estava sem saber     determinar-se.

Passado um momento, como visse Lourenço que não cessava a     indecisão, disse o seguinte:     Minha senhora, eu não sou nenhum malfeitor. Pela cara dou logo a conhecer.

Não digo menos disso retorquiu ela.

Meto-me ali debaixo do puxado, e pode vosmecê ter certeza que não     arredarei dali o pé senão para ver o meu cavalo, ou tratar da     jornada quando as barras vierem quebrando.

A mulher ia reforçar a recusa com outras razões, mas a um     sinal feito do dentro da camarinha pela moça mudou de rumo, e respondeu     sem os escrúpulos de há pouco.

Está bom. No alpendre pode vosmecê ficar.

Deus é que lha há de pagar este favor, disse o rapaz, criando     alma nova com a resposta.

E sem mais esperar, tirou para o pequenino alpendre, onde descavalgou.

Quando estava para soltar o cavalo com a peia, como é costume, ouviu     dizer da janela:     Ó meu senhor? Ó meu senhor?     Pela voz reconheceu a mulher, e imediatamente botou-se para aquele ponto onde     a encontrou, tendo numa da mãos uma cuia.

Se vosmecê não tem o que dar ao seu cavalo, aqui lhe ofereço     este bocado de milho que sempre há de chegar para ele ir roendo durante     a noite.

Aceito o favor, e muito agradeço a vosmecê a sua lembrança.     Eu já ia soltar o animal aí no campo, sem esperança que     ele comesse qualquer coisa, porque está tudo debaixo de água.

Pouco depois, sob a folhagem de uma gameleira próxima do alpendre,     o cavalo quebrava com estrépito o presente da hospitalidade, e o seu     dono, de uma rede que armara, fazia-lhe companhia, comendo, com apetite devorador,     da matalotagem que trazia em um saco de couro, onde a água da chuva     não pudera penetrar.

Ali mesmo, rendendo-se do enfado da jornada, Lourenço, recostado     na rede, adormeceu. A noite fechada, a chuva, o silêncio, o ermo convidavam     ao repouso.

Por volta de oito horas, não obstante estar no melhor do sono, foi     despertado pelo ladrar do cachorro da casa contra o cavalo. Logo depois ouviu     uma porta, rumor de alguém que saía, e as palavras seguintes:          Não me demoro, não. Vou levar a Joaninha esta tigela de mucunzá     para ela cear, e dizer-lhe que eu venho hoje fazer companhia a você.

Compreendeu Lourenço que a mulher era dali mesmo das vizinhanças,     e viera ajudar a moradora no serviço da caçula. E como levantara     a cabeça, deram seus olhos com a suave claridade no alpendre. Era produzida     por um fogo que havia sido feito não muito distante da rede onde ele     estava.

Esta fineza com que ele não contara, deu-lhe grande satisfação.

Boa gente é a desta casa, disse, levantando-se para atiçar     o fogo, e ver o cavalo que, com os latidos do cão, se afastara um pouco     da gameleira. Pois não me pareceu assim, quando cheguei logo.

Fizera-se uma estiada, o que permitiu a Lourenço ir sem repugnância     até o lugar onde estava o cavalo, que ele tocou para junto do alpendre.

Já ia sentar-se novamente na rede, a fim de retomar o sono do ponto     em que fora interrompido, quando enxergou, à claridade do fogo, um     vulto que se encaminhava para o seu lado. Era a dona da casinha. Mostrava-se     cautelosa, olhando para um lado e para o outro.

Quando não faltavam senão alguns passos, Lourenço quis     levantar-se; mas antes que se pusesse de pé, a rapariga estava sentada     com ele na rede, apertava-o entre os braços com frenesi de alucinada.

Lourenço, Lourenço, você não me conhece? perguntou     ela em voz baixa.

Estou reconhecendo a sua voz disse o rapaz, tomando posição     conveniente para ver o rosto da rapariga.

Sou Bernardina, disse ela.

Bernardina! Bernardina! exclamou Lourenço.

Então, afirmando a vista, reconheceu, de feito, com indescritível     prazer, a filha de Vitorino que fora raptada por Tunda-Cumbe, por ocasião     do ataque contra o engenho.

Bernardina não parecia a mesma que estivera de tarde na caçula,     com a outra mulher. Substituíra a saia caseira por um vestido de chita     impregnado dos cheiros do coradouro campestre. Entre os cabelos anelados,     que o pente alisara momentos antes, um galhinho de alecrim recendia suavíssimo     aroma. As faces estavam animadas de irradiação rósea;     os braços e as espáduas acusavam recente ablução.

Ninguém diria, em presença daquele asseio modesto, único     talvez ao alcance da pobre, ninguém diria que o suor do trabalho umedecera,     algumas horas atrás, pele tão fresca e limpa. O que à     primeira vista se adivinhava, era que a galante cachopa havia posto particular     cuidado em aparecer sem vexame ao seu camarada da meninice.

Meu Deus! continuou ele. Como são as coisas! Quem havia de dizer     que eu teria hoje este encontro? Eu bem ouvi cantar, um pouco antes de chegar     a este lugar, um pitiguari no olho de um catolé.

É verdade disse ela. Eu reconheci você, logo que o vi chegar     à janela, ainda que você está muito diferente. Está     um moço alto, e bonito de fazer a gente ter oura de gosto de vê-lo.

Mas por que se escondeu de mim? Por que fugiu tão depressa, tanto     que a não pude ver senão pelas costas, e por isso não     pude saber que era você?     Fugi para lhe poder falar mais tarde. Se eu me desse logo a conhecer à     vista da mulher que saiu daqui há pouco, ela não nos deixava     sós, e eu não podia abrir-lhe o meu coração, como     estou fazendo. Ela é uma boa mulher, mas não havia de consentir     que os avistássemos, nem eu quero que ela saiba da minha vida.

E o que faz você por estas alturas, Bernardina?     Ora! Foi a minha desgraça. Mas por que não se deita como estava     ainda há pouco? Deitemo-nos, para não parecer que estão     aqui duas pessoas. Meta o seu braço por debaixo do meu pescoço.     Falaremos baixinho. Direi assim tudo que lhe quero dizer. Você não     sabe como estou satisfeita com a sua presença. Não tenha vergonha     de mim. Faça de conta que ainda somos meninos.

A rapariga foi a primeira a deitar-se transversalmente na rede: o rapaz     imitou-a. Os seus hálitos se confundiram. Os negros cabelos de Bernardina     espalharam-se, em ondas, voluptuosas, pelas faces nédias e afogueadas     de Lourenço, que parecia estar numa fascinação parva.

Perto da rede jazia atirado um tronco seco destinado ao fogo. Bernardina,     tomada de frenesi irresistível, alcançou com a ponta do pé     a cabeça do tronco, e firmando-se nela, deu balanço à     rede. Caiu-lhe então a chinela e com o movimento enfunou-se-lhe parte     da saia arrendada, aparecendo, com uma tentação, o pé     pequenino e metade da perna de perfeição incomparável.

Mas Bernardina não atentou no seu estado. Era outra a ordem de idéias     que lhe andava no cérebro. Fervilhava-lhe aí a serpente do remorso     e da saudade.

Quando eu não quis falar com você diante daquela mulher foi     justamente porque os meus segredos não eram para ela ouvir. Mas antes     de tudo, não se demore; dê-me notícias dos meus. Minha     mãe e Marianinha como estão? Há quase dois anos que as     não vejo. Só Deus sabe a minha dor, as lágrimas que tenho     derramado, longe dos meus, com saudades deles.

Elas estão boas, Bernardina.

Não houve nenhuma novidade?     Houve somente a morte de seu pai.

Desta já soube. Meu pai era tão bom para mim!     Mas que vida é a sua, Bernardina?     Não me fale, não me fale, Lourenço. Nem sei como me deixei     desgraçar, em vez de morrer; antes tivesse morrido. Lá não     souberam como eu fui roubada por seu Tunda-Cumbe, quando entraram com ele     no engenho os malvados que lhe dão força para fazer tudo o que     lhe vem às ventas?     E o que está você fazendo aqui?     Aqui é que eu moro. Não sabe que este é o Rancho     do Cipó?     Pois aqui é o Cipó? Aqui é que o ladrão     do Tunda-Cumbe tem os seus malfeitores?     Aqui mesmo. Aí adiante na baixada moram eles. Só eu moro aqui     com seu Tunda Cumbe, neste deserto por onde não passa ninguém,     com medo de ser atacado e assassinado.

Lourenço estava admirado do que ouvia. Nunca pensara em tal.

Eu sou mulher continuou Bernardina; mas assim mesmo, não tenho medo     dele nem dos malfeitores; e mais de uma vez tenho feito tenção     de deixar este degredo, dê no que der.

Pois este é o falado rancho do Cipó! inquiriu Lourenço     pela segunda vez, parecendo não ter o seu pensamento preso a assunto     diferente, ou fingindo-se alheio do que na realidade pusera alerta todos os     seus sentidos. Ah! é verdade. Eu vi, quando vinha, as tais casinhas     lá embaixo. Em boas estou metido. Venho fugindo do malvado, e caio     dentro do seu giqui.     Em poucas palavras referiu Lourenço os acontecimentos em que andara     envolvido de manhã, a luta com o Tunda-Cumbe, o juramento que este     fizera de vingar-se dele, enfim, as circunstâncias que davam a sua posição     atual um caráter melindroso, pelos muitos perigos que o cercavam.

Para um homem da sua coragem, Lourenço, não há perigos,     disse Bernardina. Eu tenho tanta confiança em você que, se você     quisesse tirar-me daqui, eu não punha a menor dúvida.

Dizendo isto, a rapariga roçava a face pela do rapaz, que, embriagado     e ofegante, devorava com os olhos acesos em estranho anelo aquela imagem provocadora.

Você diz o que eu tenho no juízo. E fique sabendo que, ainda     que houvesse de cair, transpassado de balas, ali diante nos atoleiros, eu     a levava comigo para entrega-la à sua mãe. O ajuste de contas     com o ladrão do marinheiro se não pudesse ser antes,     ficaria para depois. O principal era tirar você do poder dele, que é     um ladrão muito desaforado.

Que está dizendo? Pois você tem esta idéia? Não     sei como agradecer a Deus esta mercê.

Mas, presentemente, Bernardina observou o rapaz, pegando-lhe de uma das     mãos eu não a procurava. Nos primeiros tempos da sua ausência     , andei com Saturnino pelos matos a ver se a achava; não foi uma nem     duas vezes que fizemos isto, foram muitas que não tem conta; e se nunca     viemos ao rancho do Cipó, foi porque nunca pensamos que o Tunda-Cumbe     a tivesse trazido para viver junto dos negros e cabras safados que compõem     a sua quadrilha. Mas desta feita o meu destino será outro.

Eu estou aqui desde que ele me roubou do Bujari. Não viu você     a mulher que estava comigo e ficou de voltar? É a caseira do Pedro     de Lima, que ele encarregou de me espiar.

Lourenço ficou silencioso um instante, como quem refletia.

Agora, disse depois, a ocasião não é das melhores para     ir comigo, porque não vou para o Cajueiro, vou até fugindo dele.

Não me diga isso, Lourenço, tornou Bernardina pesarosa. Não     o deixarei sair sem me levar em sua companhia. Ainda que vá para o     inferno, irei com você, porque tão cedo não se há     de oferecer outra ocasião.

Depois de novo instante de silêncio, disse o rapaz:     Quer tomar um conselho? Deixe-me ir primeiro aonde tenho de ir, a Tracunhaém,     a ver se dá algum jeito para livrar-se da prisão seu Cosme Bezerra     e os irmãos. Na volta passarei outra vez por aqui, e então você     irá comigo.

Ora, Lourenço! disse a rapariga ainda mais magoada. Você está     com isso para se livrar de mim. Sou uma desgraçada.

Os olhos da gentil matuta, há pouco tão cheios de alegres     brilhos, inundaram-se de tristeza e lágrimas.

Lourenço reparando na mudança, sentiu-se comovido.

Para consolar a moça, apertou-a contra o coração com     ternura e meiguice infantil.

Para que diz isso de mim, Bernardina? Você bem me conhece, e sabe     que eu não sou de prometer uma coisa e fazer outra.

Nisto o cão, que há pouco ladrara, começou a ladrar     de novo. Ouvindo os latidos, Bernardina sentou-se na rede.

É sinhá Manuela que volta. Não posso mais demorar-me.

Talvez não seja ela. Fique ainda um instantinho só, Bernardina.

Não; adeus. Se não nos virmos mais, leve este abraço     para mamãe, e este outro para Marianinha.

Assim falando, a rapariga, de pé, inclinada sobre a rede, suspendeu     e apertou por duas vezes o rapaz aos seios em quantas forças tinha.

Este agora é o seu disse por fim.

Lourenço, que estava já também de pé, foi o     primeiro a tomar ente os braços Bernardina, cujas formas, com o ardente     contato da despedida, lhe deixara no corpo deleitoso quebranto.

Dou-lhe este abraço, para que você não se esqueça     de mim.

Foram estas as suas palavras. Correu para dentro rapidamente e desapareceu.

Pouca era já a claridade espalhada no alpendre. A fogueira estava     extinta. O frio da noite invadia o informe aposento. Lourenço, porém,     não precisava de calor extremo para se sentir aquecido. Tinha o fogo     interior, o fogo das paixões, o fogo dos dezoito anos que as provações     quase ingênuas de Bernardina, tão moça como ele, haviam     deixado no maior grau de intensidade.

 

Os braços de Bernardina, antes irresistível manifestação     de estima e contentamento sem malícia, do que indício de paixão     desonesta como se pode afigurar ao leitor menos entendido na singeleza dos     costumes do campo, deixaram Lourenço num estado de excitação     nervosa que não revelava a mesma simplicidade, nem o mesmo puro incentivo.     De feito, Lourenço via as coisas por outro lado. Das duas filhas do     finado Vitorino, fora sempre Bernardina a que, por muito saída, merecera     a sua particular atenção. Demais, havendo tantos meses que não     a via, o vulto da sedutora rapariga teve para ele, com o tom misterioso que     lhe davam as condições da atualidade, o encanto das visões     inesperadas, frescas e gentis, dessas que matizam os sonhos apaixonados da     juventude. Bernardina, na fantasia estreita de Lourenço, limitada aos     horizontes dos bosques, dos rios, dos engenhos, das ásperas jornadas     e dos sambas rudes, surgira como a estrela boeira nas madrugadas de verão.     A rapariga iluminara-se com o fogo dos dezoito anos, cujo reflexo revelava     nos olhos o calor da alma. Não obstante a vida, não raro orvalhada     de lágrimas, que ela arrastava na solidão agreste da sua desgraça,     tinha o seu corpo ganhado formas esbeltas, as suas feições distinta     vivacidade. Ao clarão da fogueira, vira ele nesse vulto de natural     elegância o quer que fosse que lhe descobriu novos mundos até     então perdidos na vacuidade do seu espírito mais positivo que     sonhador.

Depois que Joaquina fora morar junto de Marcelina, e para assim dizer à     sua sombra, quase todos os dias ofereciam-se ensejos de Lourenço conversar     a sós com Marianinha, impressionar-se da sua beleza fresca e rósea,     e comover-se da brandura do seu natural. Muitas provas de estimação     dava-lhe a filha mais nova de Joaquina e ele, se bem que não se havia     entregado inteiramente a este amor, porque a juventude raras vezes se deixa     cativar das paixões modestas, da ternura passada ainda que pura e imensa,     sentia já por Marianinha doce afeição, que começava     a encher-lhe o coração como o aroma do manacá silvestre     povoa as abóbadas formadas pelas ingazeiras nas margens dos rios.

Ainda na manhã daquele dia, depois da cena de dor e prantos a que     assistiu na sala do engenho, quando Lourenço desceu à cavalariça,     seguiu atrás dele Marianinha trazendo os olhos arrasados de lágrimas;     era a dor da separação que lhe arrancava aos sentimentos aquela     triste homenagem.

“ Lourenço, Lourenço perguntara ela você se esquecerá     de mim? “ Não me esqueço, não, Marianinha. Olhe, quando     não esperar por mim, há de ver-me bem juntinho de você,     de todos de casa.

“ Eu não deixarei nunca de esperar por você; esperarei     sempre, de dia e de noite, a todo momento. Não se ocupa com ninguém,     senão com você, a minha lembrança, a minha imaginação.

Quando o rapaz estava para tomar o cavalo, Marianinha aproximou-se, cada     vez mais comovida.

“ Tome esta oração. Ela serve para você se lembrar     de mim, e para o livrar dos perigos.

Era uma oração prodigiosa, um breve, cosido dentro     de um saquinho de cetim, e preso a um rosário de contas tão     límpidas como as lágrimas que se deslizavam pelas faces da moçoila.

“ Reze todas as noites, e todas as manhãs, a Nossa Senhora     do Rosário esta coroa. Ela há de protege-lo.

Com as próprias mãos, hesitantes e trêmulas pela comoção,     a filha de Vitorino lançara ao pescoço do rapaz o talismã     popular misto de fetichismo e catolicismo, tão conhecido das gentes     do campo. Lourenço agradeceu-lhe a lembrança, o presente da     despedida, e, para retribuir a fineza, apertou a rapariga ao peito, com vontade     de a levar ao sertão, ao deserto, ao desconhecido, onde necessariamente     devia precisar de uma companhia, ou antes de uma companheira que suavizasse     os rigores da peregrinação.

As despedidas exercem grande influência na vida. Durante a jornada,     Lourenço só pensava em Marianinha, chorosa e meiga por ocasião     de lhe entregar o rosário e o brevezinho. Não foi uma nem duas     vezes que teve vontade de chorar de saudade lembrando-se da menina, da mãe,     do engenho, lembrando-se de tudo o que deixara, e que não sabia quando     havia de tornar a ver. Foi assim, enternecido por lembrança tão     grata e comovente, que ele chegou ao rancho do Cipó.

Mas Bernardina, aparecendo-lhe de improviso com uma alma benfazeja, filha     do mato, criada na solidão, uma alma nova, não obstante ser     sua conhecida da infância, aparecendo-lhe assim, quando ele menos esperava,     ente uma fogueira símbolo da paixão, e uma rede símbolo     do gozo, por uma noite de inverno estação propícia ao     aconchego, e sem outras testemunhas que os elementos mudos posto que traiçoeiros     e irritantes, apagou com a sua imagem, rica de estímulos sensuais,     a doce cena de amor inocente em que se deixara entrever a irmã com     o recato da alma cândida, como apaga o pintor com o pincel ensopado     em tintas vivas, brancas virgens retratadas em quadros ainda mais branco que     elas.

Depois de um instante de vacilação, o rapaz correu em busca     da fugitiva moça. Esta já estava dentro da casa fazendo que     repousava. Nem sombra restava de tão encantadora visão. Afigurou-se     a Lourenço um momento ter-lhe ido a vida com ela. Fora um enganoso     egoísmo que o provocara, que o exacerbara, e que o havia esquecido,     fugindo rapidamente quando ele mais desejava tê-la unido ao peito. Levara     consigo todas as formas da sedução; todas? Não; uma tinha     ficado no alpendre, talvez contra a vontade daquela tentação     revestida em contornos ondulantes como os das serpentes: era o galhinho de     alecrim que Bernardina trouxera entre os cachos do cabelo.

Lourenço achou-o pouco antes da porta, no chão, e reconhecendo-o,     apanhou-o, aspirou-lhe o brando cheiro, e meteu-o entre a camisa e o corpo.     Penetrando aí, a sua mão tocou involuntariamente em outro objeto     que lhe veio imediatamente à lembrança o talismã que     lhe dera Marianinha, o qual, pendente do rosário, nadava sobre o peito     do rapaz. Lourenço estremeceu, sentindo o contato do breve;     e seria capaz de afirmar que as paixões que se lhe haviam mitigado     repentinamente com esse contato. Toda a idéia que tinha de forçar     a frágil porta da palhoça varreu-se-lhe do espírito.     Poderoso cordão aquele, Marianinha, aquele que deste a Lourenço!     Poderoso porque lhe acalmou por um instante os ardores infrenes que o atiravam     para imprevistos abismos, poderoso, porque o fez volver à rede, quando     já ia passando de tempo. De fato, não se meteu um momento, que     atravessou o terreiro, encaminhando-se à porta, que abriu, uma sombra     em que Lourenço reconheceu a grosseira Manuela.

Lourenço não dormiu mais. Em seu espírito travou-se     então uma luta fratricida a luta das duas irmãs uma que ressurgira     depois de apagada, outra que perdera metade da sua grande força, logo     que se achou defronte da primeira.

Que seria dele, solicitado por duas atrações iguais? Ficou     sem dar um passo nem para um lado nem para outro. Tinha a inércia de     um corpo pequeno entre dois maiores de igual grandeza. Mas se a vontade caíra     nessa indecisão passiva, indecisão da criança, que, vendo     ao alcance dois quadros sedutores, não sabe por qual deles se há     de decidir, o seu espírito parecia incliná-lo para aquela que,     a poucos passos de distância, ouvindo talvez o rumor dos seus movimentos,     lhe havia despertado no coração alvoroços que se assemelhavam     a chamas.

Perto do amanhecer a chuva cessou inteiramente. À claridade do dia,     as condições do estado do almocreve modificaram-se consideravelmente.     A realidade, eriçada de perigos, ressurgiu-lhe de novo aos olhos. Volvendo-os     à baixada, avistou lá a rua de casinhas que lhe avivou a idéia     da quadrilha e do chefe, a que ele ia fugindo. Era tempo de deixar a ameaçadora     pousada, por algumas horas tão hospedeira e carinhosa.

Mas partir sem ver Bernardina, sem lhe protestar estima recente, cujas raízes     vinham do passado, sem receber, talvez, na despedida, uma daqueles sorrisos     feiticeiros que, quando a menina cantava e dançava nos sambas, deixaram     tantas vezes corações atravessados de desejos mais agudos que     pontas de espinho, isto afigurou-se-lhe um tormento, um impossível.     Ainda esteve um instante para bater à janela sob qualquer pretexto;     mas, receando-se não ter forças para ausentar-se, se a rapariga     lhe aparecesse, quando a sua salvação exigia rapidez no apartamento,     dominou o desejo, e partiu.

Não tinha ainda perdido de vista a casa, quando, ao emparelhar-se     com umas árvores sombrias e fechadas, virando-se para trás,     viu vir descendo a rua do rancho a mulher que fizera companhia a Bernardina.     Foi o caso que Manuela, tanto que percebera, pelo rumor das pisadas do cavalo,     que Lourenço deixava a casa, se despediu de Bernardina e encaminhou-se     à sua cabana.

Este incidente, com que o rapaz não contava, reacendeu-lhe o desejo     de voltar. Sobresteve um instante, pensando. As árvores ocultavam-no     inteiramente. Ele podia refletir por quanto tempo quisesse, sem receio de     ser notada a sua presença.

Estou quase voltando disse consigo, ao cabo de alguns minutos de reflexão.

Pouco depois, tomada a resolução, acrescentou:     Ora! Aconteça o que acontecer. Para os perigos é que são     os homens.

Não se demorou mais. Com pouco, estava junto da janela que se abriu     tanto que ele chegou, para deixar aparecer o rosto da gentil rapariga, mais     sedutor do que nunca, porque se mostrava agora orvalhado de lágrimas,     como as florinhas do campo estavam nadando entre as águas da noite.

Eu logo vi que você não havia de se ir embora de um vez sem     me dizer adeus, Lourenço disse ela, recobrando, com a vista do rapaz,     o fulgor da sua natural expressão. Lourenço aproximou-se mais,     e perguntou-lhe à meia-voz:     Bernardina, você ainda está no parecer de me acompanhar?     Como ouvira a voz da sua salvação, a rapariga, erguendo-se sobre     as pontas dos pés, inclinou-se para fora, e, estendendo os braços     como quem queria prender o almocreve, respondeu num assomo de entrega, filho     de absoluta confiança.

Pois ainda pergunta, Lourenço?     Então venha depressa, antes que chegue alguém tornou ele. Eu     bem sei que vou correr grandes perigos; mas por seu respeito, cometo tudo.     Que espero mais? Acabemos já com isso. O que chegar, chegou. Comigo     ninguém pode.

Em poucos minutos o cardão passeiro e passarinheiro, que Lourenço     tirara da estrebaria do engenho para se meter na jornada, tomou sobre o dorso     o rapaz e a rapariga; e não obstante esta dobrada carga, atravessou     com pés seguros os atoleiros, e ganhou outra vez o caminho sem mostrar     o menor enfado, antes lesto e forte, graças ao milho que comera de     noite.

Por toda a parte foram encontrados riachos cheios que se assemelhavam a     rios, campos inundados que se assemelhavam a lagos, vales que se assemelhavam     a correntes encachoeiradas, e enfim as provas evidentes do inverno que se     prolongou em Pernambuco de 1712 a 1713.

Mas Bernardina, na sua qualidade de mulher, tinha ânimo inexcedível.     A sua organização parecia de ferro. Nada a fatigava.

Quanto mais se afastavam da colônia de malfeitores, mais animada e     contente se mostrava a fugitiva.

Estou vendo que você é muito forte, Bernardina observou uma     vez Lourenço.

Ora! retorquiu ela com disfarce. Neste cortado vou até o fim do mundo.     Estou tão contente como você não avalia. Vou achando tanta     graça nos matos que eu aborrecia ainda ontem... Que bonita manhã,     não é Lourenço? Eu vou achando tudo tão bonito,     porque me soltei da prisão.

Passados momentos, acrescentou:     Que prazer vou ter, meu Deus! Há tanto tempo que não vejo minha     mãe e minha irmã. Chegaremos hoje à Goiana?     A Goiana! Pois eu não lhe disse que a nossa viagem não é     para Goiana? Se eu voltasse ao Cajueiro ou a Bujari, era o mesmo que ir meter-me     na boca da onça.

E para onde vamos nós?     Vamos... vamos para o sul respondeu Lourenço, com voz hesitante. Eu     estava me lembrando agora mesmo de um lugar onde podemos demorar algum tempo     sem grande risco. Vou cortando para Jaboatão. Aí mora seu Amador,     irmão do defunto João da Cunha: Deus se lembre de sua alma.     Os Camarões deram-lhe no engenho, e ele, coitado, está     preso no Recife; mas como ninguém nos conhece nem a mim, nem a você     em Jaboatão, podemos ficar aí mesmo pelo engenho, ou em alguma     casinha por perto, até vermos tudo isto em que dá.

Ora! disse Bernardina. Estava já tão satisfeita de ver os     meus de hoje para amanhã!     Mas que lhe parece, Bernardina? Não acha que meu plano é bom?          É bom, Lourenço. Que havemos de fazer? Para mim, tendo saído     do poder do Tunda-Cumbe, todo lugar me serve para moradia, enquanto não     chega ocasião de reunir-me outra vez com minha mãe.

Muita raiva tem você do Tunda-Cumbe.

Nem na hora da morte lhe hei de perdoar o que ele me fez contra a minha     vontade.

E por que você não fugiu logo? Nunca achou uma ocasião?          Nunca. Nos primeiros tempos, Tunda-Cumbe deixava sempre no rancho muitos espiões.     Eu não era senhora de sair no terreiro sem ser acompanhada. Fui pouco     a pouco perdendo a esperança de voltar para a companhia da minha mãe.     Além disso, o Tunda-Cumbe disse-me uma vez que ela se tinha mudado     de Goiana, e estava em outra terra muito distante. Então tive paciência.     Quando reconheci você ontem de tarde, Lourenço, estava longe     de cuidar que você havia de aparecer por estas paragens.

Ele nunca lhe falou em se casar com você?     Casar-se comigo? quem? o Tunda-Cumbe? Malvado! depois de ser um parteiro na     sua terra, e vendedor de peixe cá, está fidalgo. Ele havia de     casar-se com filha de gente pobre?     E se houvesse quem o obrigasse a casar com você, era do seu gosto o     casamento?     Eu não quero casar-me com semelhante diabo, renego dele! Quem quiser     que o tome para si, que eu passo muito bem sem ele. Um diabo que matou meu     pai!     Lourenço deixou correr um instante em silêncio, e tornou depois:          E comigo quer casar-se, Bernardina?     A rapariga, como se não ouvira a pergunta, ou como se fizesse que a     não ouvira, nada respondeu.

Diga, diga, insistiu Lourenço, sentindo rápido calafrio a     percorrer-lhe o corpo.

Pois você há de querer-me para sua mulher, Lourenço?     respondeu ela enfim, a modo de quem via um impossível na idéia     do rapaz.

Faça de conta que eu quero, e responda então, tornou ele,     cada vez mais empenhado em obter resposta decisiva.

O lugar onde estas coisas se passavam, tinha uma beleza suave, plana e ampla.     De um e outra banda estendia-se um varjado, coberto de cajueiros novos, mangabeiras     e araçazeiros bravos. Abaixava-se para o lado do ocidente, mas não     perdia a sua natural decoração. O sol, que nascera havia pouco,     lançava sobre a face dessas milhares de árvores, quase todas     do mesmo tamanho, uma neblina de luz, que dando nas gotas de chuva ainda espalhadas     nas folhas lisas, fazia sair dali uma imensa esteira de reflexos cristalinos.     Dir-se-ia que a maior prodigalidade conhecida atirara por cima daquele extenso     arvoredo todos os brilhantes que têm saído das minas do mundo.     Era uma região nova, nitente, alegre, fresca, paradisíaca. Lourenço     parou o cavalo, e voltou-se para encarar a rapariga, que com um dos braços     lhe cingia o corpo. Todo o sentimento dos dezoito anos, vivaz como a natureza     circunstante, havia acordado, ora trêmulo e tímido, ora afirmando     sua pujança nos impulsos mal refreados. Longe ia a imagem de Marianinha,     peregrina na vastidão daquele mundo, apropriada somente à vida     do lar, onde não se querem comoções vertiginosas, indomáveis,     mas mornas como a família, despertadas pela ternura, não pela     paixão. Quem Lourenço sentia junto dele era a mulher ardente,     de vigorosas formas, de inebriante contato, mulher que o acompanharia ao coração     dos sertões mais adustos, às margens dos rios mais arrebatados,     aos braços dos vales mais ingratos, enfim era a mulher que exigia a     vida do deserto com todas as suas impressões mordentes, agudas e atrozes.

Mas a fisiologia humana é um enigma indecifrável Bernardina,     ordinariamente desembaraçada, guardou silêncio. A sua mão     esquerda tremia no corpo do cavaleiro. Este, paciente, pegou-lhe da outra     mão, e levou-a aos lábios. Em vez de quente, estava resfriada,     não pela temperatura, senão por sobressalto invencível.

Diga, Bernardina instou ele. Você sabe que seus olhos sempre me renderam,     que sua danças e cantigas sempre me cativaram.

E porque, ainda com isto, a rapariga continuou tenazmente calada, Lourenço     acrescentou:     Ora, deixe-se de vergonhas. Ninguém nos vê, ninguém nos     ouve; estamos sós neste deserto, e podemos fazer o que quisermos.

Eu só me casava com você, Lourenço, se tivesse a certeza     de uma coisa.

Que é?     Só me casava se você jurasse nunca mais voltarmos ao Cajueiro.

Mas por que não havemos de voltar?     Por quê? Pois você acha que eu teria cara para aparecer como sua     mulher diante de minha mãe e de

Marianinha? Se jura que não havemos de voltar lá nunca mais,     então sim.

No primeiro momento, Lourenço não soube o que dizer. Compreendeu     e achou, além de naturais, muito louváveis os escrúpulos     da sua camarada de infância. Desde pequeno na casa do pai, na de Vitorino,     nas vizinhanças, o seu casamento com Marianinha considerava-se coisa     assentada. Francisco afiançara muitas vezes que esta união havia     de realizar-se.

Mas logo depois a paixão, fustigando-o com mais veemência,     pôs-lhe no espírito estas interrogações: Por que     não havia de sujeitar-se à condição indicada pela     moça? Esta condição não estava tão concorde     com o tempo? Não ia ele fugindo bem longe, sem saber quando poderia     voltar? Marianinha não ficaria solteira, quase certa de não     ver realizados os seus sonhos? Enfim, o que Bernardina propunha não     era quase a realidade das coisas, na atualidade?     O juramento acudiu aos lábios do rapaz. Se tomasse para a Paraíba,     o Ceará ou Piauí, quem saberia mais deles em Goiana? E por que     não havia de seguir para um desses lugares estranhos e desconhecidos?     Estava assim ele, como ela, na flor da mocidade; ambos tinham grandes energias     para o trabalho e a vida; meter-se-iam num retiro ignorado, onde gozariam     a existência satisfeitos.

O espírito, ou antes o ânimo de Lourenço, oscilava entre     estas idéias de um lado, e aquelas do outro, quando uma lembrança,     rompendo como faísca elétrica o nebuloso céu do seu cérebro,     o fez empalidecer. Lembrou-se Marcelina e Francisca, seus bons pais, tão     ricos de meiguice para ele. Lembrou-se especialmente de Marcelina no momento     da despedida, tendo as faces banhadas de lágrimas, rogando aos santos     que o protegessem, rogando-lhe que não se esquecesse dela, que esquecê-la     era matá-la, não porque precisasse do seu arrimo para viver,     mas porque, na sua ausência, o coração dela ficava sangrando     de saudades dele, e de sobressalto pela sua conservação.

Saíram-lhe imediatamente dos lábios estas palavras: — A troco de semelhante coisa, Bernardina, já não quero     aquilo que há pouco tanto cobiçava. Deus me livre de não     acompanhar minha mãe de perto, a fim de a defender quando ela precisar     de ter quem a defenda. Ela fez tanto por mim  você bem sabe      quando eu era pequeno e estava no mau caminho, que a minha primeira obrigação     é dar por ela a vida, se tanto for preciso.

Ouvindo palavras tão consoladoras, Bernardina respirou livremente,     e sentiu-se aliviada do grande peso que a oprimia; — E pensa você muito bem. Era isto mesmo o que eu queria e esperava     que você dissesse.

— Mas, observou o rapaz, voltando ao estafado assunto, que tem que     vamos viver casados no Cajueiro, na mesma harmonia com todos? — Está bom, está bom; vamos para diante. Logo falaremos     sobre o que você propõe.

Tinham ele descido o declive da planície, e estavam perto do rio     Tracunhaém. No lugar onde iam, o rio apenas se dava a perceber pelo     medonho fragor das águas. Se não fora este, ainda que por ali     se notavam pedras espelhadas, ninguém diria que o tinha a poucos passos     de distância mais embaixo. Ficava encoberto por uma orla de árvores     espessas de cujos galhos caíam largos panos de samambaia a que um poeta     chamaria barbas ou guedelhas daqueles monges seculares. De um e de outro lado     apareciam pés de manacá, de cujos ramos pareciam namorar a manhã     as flores ora roxas. ora brancas, que lhe matizavam a copa.

O cavalo deu alguns passos, e atravessando, por uma lamacenta trilha, a     rústica paragem, achou-se quase de repente à beira do Tracunhaém.     Do embastido passara ao descampado.

Descobriram então os dois fugitivos na vasta margem, em sua maior     parte alagada, três sujeitos armados. Haviam eles passado o rio pouco     antes, e estavam apertando as cilhas das selas, e experimentando os loros,     como quem se aparelhava para apostar carreira. Do outro lado, seis tangerinos     tocavam para dentro da água uma boiada, passante talvez de cem cabeças.

— Meu Deus! disse baixinho Bernardina, tomada de sobressalto, e buscando     o mais possível esconder o rosto por trás do corpo de Lourenço.     Que homens serão esses? — Se não me engano, Bernardina, vamos ter caldo derramado; quem     está ali é Pedro de Lima, Manoel Hilário e Chico Andorinha.     Mas você não esmoreça, que é pior.

A rapariga quase cai do cavalo abaixo, tamanho foi o terror que estas palavras     lhe causaram; mas Lourenço, depois de lhe dirigir outras palavras de     animação, seguiu adiante na marcha que ia.

— Lourenço, pelo amor de Deus, voltemos.

O rapaz já não tinha ouvidos para rogativas. Todos os seus     espíritos estavam concentrados em um ponto  o grupo dos malfeitores.

Logo que Pedro Lima reconheceu Lourenço, voltou-se para os companheiros,     e disse-lhes: — Chegou a hora de tirar uma desforra deste pé-rapado. Meto-lhe     a peia e tomo a camarada.

Assim falando, o cabra, que já sabia de quanto o almocreve era capaz,     em vez de pegar a peia a que se referiu, segurou o bacamarte e examinou com     atenção se a escova estava enxuta.

A esse tempo achavam-se os inimigos a dez passos de distância.

— Tire já o chapéu e apeie-se para passar por baixo     da barriga do meu cavalo, pé-rapado de borra  gritou o bandido,     pondo as pernas ao cavalo, e indo esbarrar com violência e arrogância     em frente de Lourenço.

— Tu não sabes com quem está falando, cabra ruim. Era     preciso que eu me chamasse Pedro de Lima, que já apanhou com uma bainha     de parnaíba na cara, ou Manoel Gonçalves, que já levou      Tunda da mão de escravos no engenho Cumbe, para cobrar     esta ação de negro cambado.

Pedro de Lima não esperou por mais nada; levantou com a mão     direita o bacamarte até a altura dos peitos de Lourenço, e ameaçando-o     com uma tabica que trazia na outra mão, replicou alvoroçado:      — Se queres morrer, patife, repete o que aí disseste.

— Negro, eu te direi já com quem é que estás     metido.

Firmando-se nas cordas da cangalha em que se estribava, Lourenço     deu um salto para agarrar Pedro de Lima, e com a mão procurou tomar-lhe     o bacamarte. A esse tempo um tiro soou, e o cardão, em que se empregara     toda a carga da arma do bandido, rolou por terra em sangue, estrebuchando.

Imediatamente Lourenço voltou-se, temendo que debaixo do cavalo agonizante     ficasse Bernardina. Pode ver então que um dos companheiros de Pedro     de Lima tinha agarrado a rapariga pelos braços, e afastava-a do lugar     da luta com quem queria pô-la a salvo de qualquer golpe perdido.

Quando encarou novamente Pedro de Lima, estava este desmontado, e tinha     uma espada de ponta direita na mão. O bacamarte descarregado pedia-lhe     a tiracolo, pela correia. A seu lado estava também armado com uma catana     Manoel Hilário, mameluco reforçado, cuja cara por si só     era uma provocação de meter medo. Ambos os malfeitores caíram     imediatamente sobre o rapaz decididos a fazê-lo em postas.

Pedro de Lima não era fraco, Manoel Hilário era assassino     de profissão. Lourenço era a coragem e a força no mais     alto grau. À vista dos outros, poder-se-ia dizer dele que era uma criança.     As suas feições corretas e finas, a cor branca que mais parecia     indicar sentimento de paz e índole branda, a juventude, fase da existência     em que se desconhecem ainda os recursos que a experiência e o traquejo     do mundo sugerem e aperfeiçoam deviam torná-lo inferior na luta     de vida e morte com os dois malvados, mais velhos que ele, mais experimentas     e inteiramente familiarizados com o sangue humano pelo assassinato. Quem os     visse antes de travada a briga assombrosa, pouco daria pelo jovem, tudo pelos     maduros matadores; mas em pouco tempo de assistência e observação,     coisa diversa se lhe afiguraria; porque a intrepidez e a temeridade, a energia     muscular, a agilidade mais flexível postas em ação por     Lourenço lhe davam inquestionável superioridade sobre os dois     contendores, ainda que apostados a destruí-lo e aniquilá-lo.

Como conhecessem, logo nos primeiros golpes com que Lourenço respondeu     aos deles, a sua incomparável habilidade no manejo da arma branca,     trataram de metê-lo entre eles dois; Lourenço, porém,     alcançando a estratégia, encostou-se ao tronco de uma ingazeira,     conseguindo por este meio impedir que qualquer deles o pudesse atacar pelas     costas, fito principal de Pedro Lima.

A luta prolongar-se-ia por mais tempo, se Chico Andorinha não corresse     a aumentar a agressão, fazendo frente a Lourenço, enquanto os     outros dois bandidos o tomavam pelos lados. Andorinha amarrara Bernardina     pelas mãos com um cabresto a um tronco, para que não fugisse.     Ele conhecia-a do rancho do Cipó, sabia que com ela estava amasiado     o Tunda-Cumbe, e para prestar serviço a este, por baixa adulação,     resolvera levá-la à casa.

Em vão Bernardina estorcia-se e forcejava para romper a sua cadeia;     em vão carpia, arrastando-se pelo chão, a sua desgraça     extrema; em vão pedia socorro, em altas vozes, rogando que não     matassem Lourenço, e protestando a inocência dele.

Dessa tribulação veio arrancá-la um estrupido vasto,     medonho, após um tiro que ressoara na imensa solidão. A larga     margem do rio estremeceu, com uma onda sonora no interior: os terremotos devem     produzir o som cavernoso que saiu naquele instante do chão rudemente     percutido. Quem não soubesse o que era, julgaria que um cataclismo,     revolvendo as entranhas da terra, ia abrir covas profundas, goelas tenebrosas     que imediatamente se iluminariam, deixando passar fogo e lavas abrasadoras.     O tiro tinha sido dado por Andorinha contra Lourenço; o ruído     subterrâneo não fora produzido senão pela corrida da boiada     que arrancara da beira do rio, espantada pela detonação do tiro.

Foi então tudo confusão e burburinho. O fato de arrancar uma     boiada é vulgar para os que conhecem a vida sertaneja; mas sempre infunde     pavor, ainda nos que melhor sabem esta feição daquela vida.     Quando uma boiada arranca, uma boiada de duzentas a trezentas cabeças,     pouco depois de ter deixado o pasto usual, isto é, quando está     em quase todo o vigor, e não tem ainda perdido, pelo cansaço,     parte das forças ganhas na vida livre do sertão, não     fica incólume e ileso o que encontra à sua frente. O chão     arrasa-se, porque as moitas desaparecem e os arbustos acamam-se torcidos ou     quebrados sob os seus pés. Os espinheiros ficam lisos. Onde não     havia nenhuma trilha, nem uma aberta, mostram-se depois entradas novas, que     o homem aproveita algumas vezes. As longas cortinas de cipó pendentes     das folhagens das grandes árvores, esfrangalhadas, despedaçadas,     ou deslocam-se das alturas donde as suas flores namoravam o sol e o azul etéreo,     e vêm alcatifar confusas e revolvidas o chão, ou, partidas ao     meio, oscilavam dali em retalhos que resistiram à invasão das     centenas de cabeças bicornes que, através deste floridos cortinados     com que a natureza decora os tetos e as abóbadas dos sombrios paços     de espessura, abriram improvisa passagem, no desespero do pânico bruto.     Tudo leva de rojo a mole ambulante, na disparada. A tempestade muitas vezes     não produz tantos estragos, não muda tão prontamente     os aspectos da solidão.

Bernardina cosera-se com o tronco da árvore, para não ficar     debaixo dos pés dos bois. Quanto a Lourenço, seus dias pareciam     estar contados. O tiro covardemente desfechado, ferira-o gravemente em um     dos ombros. O facão fugiu-lhe das mãos, as pernas cambalearam,     o sangue envolveu-lhe o corpo em rubra mortalha. Enfim, caindo quase sem sentidos     somente ele dentre os lutadores, ficou exposto a acabar sob o peso da vaga     bravia que assolava a paragem, porque os outros, não tendo podido montar     os cavalos que correram espavoridos, se haviam suspendido a galhos superiores     de árvores próximas, e dali aguardaram que passasse o vertiginoso     soão.

 

Por alguns momentos ouviu-se, agora perto, depois mais longe, o rude bater     dos chifres das reses, uns contra os outros, o som soturno que despedia de     si o chão violentamente contundido pelas patas daqueles animais unidos,     conchegados, conforme soem correr em semelhantes ocasiões, o estalar     dos ramos, o rechinar das folhas, o espadanar das lamas sem empate nem medida,     no varjado esplêndido.

Restabelecidos o silêncio e a imobilidade do ermo, os assassinos desceram     das árvores, em busca do ferido. Covardes, faltara-lhes coragem para     fazerem frente aos animais alvoroçados e infrenes; tiveram-na, porém,     de sobejo, para correrem ao tronco de uma árvore que, com um galho     baixo e curvo, sob o qual se metera Lourenço, e que os bois na corrida     haviam saltado, o protegera e o salvara.

— Já conhecestes para quanto presto, caneludo, moleirão,     que só tens parolas e desaforos? disse Pedro de Lima, arrastando por     uma perna Lourenço ao meio da trilha onde a lama quase o afoga. Eu     bem disse que este cabra não servia para nada.

E porque, através da mutilada camisa do rapaz tomado de mortal delíquio,     lhe descobriu o cinto em torno da barriga, imediatamente o cortou, supondo     que trazia dinheiro. O que encontrou foi a luva de couro, dentro da qual estava     o papel de doação. Indignado por ter sido iludido em sua cobiça,     ia cravar o facão no peito de Lourenço, quando sentiu o braço     preso por uma vigorosa mão. Viu então, ao seu lado um homem     calçado de botas, vestido de preto, com um chapéu de palha na     cabeça: era o dono da boiada. Junto dele estava um dos tangerinos e     um negro, que minutos antes haviam passado o rio.

Logo que deu com os olhos no primeiro dos novos personagens, Pedro de Lima     abrandou a raiva e a arrogância, mostrando-se outro que ninguém     diria ser o mesmo.

— Vosmecê me perdoe, seu João Mateus  disse, em     tom respeitoso, ao fazendeiro. Há muito que eu tinha umas contas a     ajustar com este pé-rapado, que sempre foi muito confiado, e parecia     não fazer caso de ninguém. O pior é que, cuidando que     ele trazia algum gimbo, só encontrei no cinto magro este papel     metido num pedaço de couro velho. Parece que é um patuá       para livrar de arma e de prisão; mas o cabra não     tem fé, que o patuá não lhe valeu, e ele fica     bem castigado.

Assim falando, Pedro de Lima passou o papel de doação ao fazendeiro     que, como se vira nos caracteres ali traçados, uma escritura cabalística     e maldita, deu um grito  mistura de espanto e consternação,     volvendo rápidas vistas a Lourenço. Pedro de Lima e Manoel Hilário,     a quem este gesto não escapara, puseram os olhos em cima do fazendeiro,     em ar de quem interrogava.

— É uma oração... Não, é uma oração...     São palavras diabólicas as que estão aqui escritas, disse-lhes     o fazendeiro. Se vosmecês soubessem ler, haviam de reconhecer que este     papel tem coisas infernais. Coitado de quem o trazia.

E com gesto nervoso despedaçou o papel, dando mostras de forte comoção,     que aumentava de instante a instante.

— Mas  acrescentou logo  que querem ainda vosmecês     fazer deste infeliz? Está moribundo, se ainda não morreu. Deixem-no     comigo. “Não matarás,  disse Deus por boca de Moisés     aos Hebreus; e esta sentença é hoje um dos primeiros preceitos     da Cristandade. Quererão vosmecês ainda matar alguém que     já está quase morto?     O semblante do fazendeiro tinha adquirido feições tão     particularmente severas e tristes, que não só os dois assassinos,     mas até o tangedor, companheiro daquele, se sentiram tomados de espanto.

Pedro de Lima não se demorou a responder.

— Eu não o quero mais matar. Ainda quando ele desta se levante,     o que eu duvido, não teria eu mais para quem é tão mofino     a minha arma, porque o ensino está dado. Só peço a vosmecê     que me perdoe.

Tendo disto estas palavras, cortejou o dono da boiada como quem se despedia,     e encaminhou-se para o fechado em busca do cavalo. Manoel Hilário,     acompanhou-o, silencioso e cabisbaixo.

Um quarto de légua distante do lugar onde se deu este encontro, via-se     dentro de um capão de mato que vinha morrer à beira do rio,     uma casa de tacaniça, de aspecto quase claustral, que convidava ao     repouso. À volta, fora roçado vasto espaço, destinado     a pequena lavoura e criação de aves e animais miúdos.     Entre a casa e o mato, do lado sul, era um extenso curral de vacas, e ao lado     do norte um curral de cabras. Logo à primeira vista, reconhecia-se     que naquela situação agreste estava fundada uma fazendola de     gado.

O dono desta propriedade era João Mateus, sujeito magro, de cabelos     e barbas compridos, que no meio das brenhas onde se concentrara, lugar semi-bárbaro,     quase inteiramente inacessível à luz das letras, levava grande     parte do tempo a ler seus livros. Tipo misterioso e incompreensível,     cujo segredo ninguém penetrara. Não era casado, nem tinha família     de espécie alguma, com exceção de uma negrota que lhe     fazia comida, uma negra idosa que lhe lavava a roupa,e um negro de meia idade     que era o seu pajem e confidente.

Levantava-se logo cedo, chamava as aves, e com as próprias mãos     dava-lhes a ração de milho ou arroz. As galinhas, os patos,     os perus, os capotes, depinicavam os caroços, escarvavam o chão,     soltavam as suas toadas  uma baças, outras argentinas      alegres, domésticos, mansos, amigos do seu senhor, em redor do qual     se demoravam, como se, presos pela confiança, lhes custasse muito apartar-se     de quem era tão bom para eles. João Mateus dirigia-se depois     a um e outro curral, e passava as vistas por sobre as reses, algumas cabras     que andavam soltas do lado de fora, iam a seu encontro logo que o avistavam,     e tomadas de familiar ternura, lambiam-lhe as pernas ou as mãos, na     mesma doce entrega da amizade que para o fazendeiro tinha a criação.

Nos primeiros tempos que sucederam à chegada de João Mateus,     sumiram-se algumas cabeças de gado; mas depois os ladrões começaram     a excluir do número das suas explorações a propriedade     do velho, mudança que tinha natural explicação na caridade     com que ele tratava aquela gente sem cultura, mas não sem o discernimento     necessário para render homenagem à virtude, especialmente se     lhe devia gratidão. Os pobres, os viajeiros, os doentes sem encosto     encontravam em casa de João Mateus abrigo paternal e piedoso.

A sua fama, porque a fama dos bons homens vai a grandes distâncias     como vão os sons, invadira as cercanias e impusera aos que antes o     defraudavam, respeitosa afeição que nos últimos tempo     se traduziu em estima de filhos para pai. Os próprios bandidos desenfreados     não ousavam penetrar na fazenda do Jatobá, senão     quando tinham de pedir com que matar as suas necessidades, nunca se apossarem,     como dantes, do que lhes não pertencia. A qualquer hora do dia ou da     noite, de verão ou de inverno, a porta da casa do Jatobá     abria-se para dar agasalho a quem batia nela. Mariana  a negra, e Clara      a negrota, inquiriam do hóspede se precisava de alimentos ou     de remédios; os primeiros davam-lhos elas, os últimos era o     ancião quem os ministrava; se o caso urgia, levantava-se ele ainda     que fosse fora de horas, a fim de acudir àquele a quem os seus socorros     deviam oferecer alívio. E porque as moléstias que ordinariamente     atacavam as pessoas do povo naquelas circunstâncias, eram uma dor, umas     maleitas, uma maligna, quase sempre a limitada ciência prática     de João Mateus e os remédios de que ele dispunha, bastavam a     minorar senão a extinguir o padecimento alheio.

Ao passo que cuidava tão paternalmente dos outros, não se     descuidava inteiramente de si mesmo. De tudo o que havia dentro das suas terras     ele vendia a quem estava nas condições de o comprar; estas vendas,     porém, eram feitas sem relevar a mínima cobiça, nem usura     da parte dele. O ancião, que diziam ter vindo do Ceará ou do     Piauí, comprara a fazenda do Jatobá nos começos     da guerra. Recebendo-a muito estragada e empobrecida, dentro de uma mão     lhe dera aumento que a todos causava admiração. Quando alguém     lhe dizia que seu antecessor não prosperara, porque, por preguiçoso     ou desmazelado, não era para andar com semelhante ramo de vida, João     Mateus acudia logo, refutando estes descaridosos conceitos.

— A razão não é esta; a razão principal     é porque ele tinha talvez grande família, enquanto eu não     tenho nenhuma; ele despendia talvez com incontáveis credores, doenças     graves, ou largas fianças ou pequenos rendimentos; eu, graças     a Deus, não tenho sentido a unha ou o dente destes males que amofinam     tantos pais de família amantes dos seus, e dignos da consideração     de todos. Não devemos fazer mau juízos dos outros, porque não     há réu que não possa alegar a sua justificação     ou as suas escusas.

A verdade, porém, é que João Mateus, que não     possuía senão aqueles três escravos, não sentia     falta, e parecia ir amoedando já alguns lucros de manso e manso. Era     isto o que dizia o povo.

Certa manhã, pôs-se a caminho para Goiana com uma grande boiada     que ali deveria vender por bom dinheiro. O vaqueiro Valentim ficara na fazenda;     com João Mateus iam seis tangedores, entre os quais um de nome Cipriano,     rapaz de excelente coração, trabalhador e sossegado. Depois     que comprara a fazenda era a primeira vez que arredava dali o pé o     dono dela. Quando chegaram à beira do rio, começavam a atravessá-lo     os três malfeitores que sabemos.

Os tangedores tocaram os bois para água, e iam estes pelo meio do     rio, quando soou o primeiro tiro, o que fora disparado por Pedro Lima; e conquanto     as boiadas não arranquem de dentro da água, ficaram as reses     tão espantadas, que, com a detonação do segundo tiro,     quando já estavam da outra banda, deitaram a correr. Quatro dos tangedores     seguiram a boiada praticando esforço, gritando aos animais, a fim de     os conterem; dos outros dois, um sabedor das proezas dos malvados      deixou-se ficar com o negro ao pé do fazendeiro, para o defender se     fosse preciso; o outro  Cipriano  condoendo-se de Bernardina,     correra a salvá-la, sem que o vissem os malfeitores. Quanto a João     Mateus, resolvera ir em socorro de Lourenço, parte fraca. Posto que     o não conhecesse, a nobreza dos seus sentimentos sugeriu-lhe este procedimento;     e foi assim que se achou tão a ponto de livrar o moribundo da fúria     dos bandidos.

O fazendeiro tomou Lourenço nos braços com especial expressão     de dó. De instante a instante escapavam-lhe dos lábios palavras     repassadas de mágoa e aflição: — Meu Deus! Meu Deus! Quem havia de dizer que seria este o seu destino?     Está acabado. Somente a misericórdia divina o poderá     salvar.

Com o auxílio do tangedor e do negro, conduziu o enfermo para um     lugar mais alto, aonde as águas do rio não tinham podido chegar,     e em panos que trazia na maleta presa à garupa, tomou-lhe os golpes,     e enxugou-lhe o sangue.

Ali esteve com ele enquanto o negro e o tangedor improvisavam uma balsa     para transportá-los à outra margem. Enfim, antes do meio dia,     Lourenço ocupava o melhor aposento da casa da fazenda.

Por muitas horas esteve sem fala. João Mateus já sentia desampará-lo      a última esperança de salvar aquela vida, quando Lourenço,     depois de um ai que lhe arrancara a dor dos ferimentos perguntou: — Bernardina? Onde está Bernardina? — Estou aqui, Lourenço.

A rapariga estava, de fato, à cabeceira do moribundo. Cipriano pudera     salvá-la, metendo-se pelo mato, por fugir aos bandidos, no momento     em que estes falavam com João Mateus, tomando depois atalhos que lhe     eram usuais, descendo à margem do rio cerca de um quarto de légua     abaixo do lugar do conflito, atravessando as águas, e enfim levando-a     à fazenda onde presumia já estar o ferido.

Junto de Bernardina, João Mateus tinha as vistas presas em Lourenço.     Um dos ferimentos era profundo e mortal; requeria toda a atenção     e cuidado. Por isso, aqueles dois entes, que parecia dedicarem igual afeto     ao doente, não consentiam em deixá-lo entregue somente a si.

Por volta da meia-noite, taciturno, pálido, os olhos encovados, João     Mateus mandou que a rapariga o deixasse só com o enfermo. Ela obedeceu,     levando os olhos cheios de lágrimas.

Na sala da frente havia um oratoriozinho com alguns santos. Estava aberto;     um candeeiro de metal esclarecia-o com sua luz amarelenta, quase lúgubre.     Bernardina ajoelhou-se diante dos santos, e fez uma promessa a S. Sebastião,     que se via preso a uma árvore, tendo o corpo flechado, segundo reza     a crônica, por selvagens. Feita a promessa, a rapariga retirou-se, cheia     de esperança e fé, ao interior da casa.

Enquanto esta cena de piedade, que estava no espírito daqueles tempos,     e ainda se pratica no seio de muitas famílias, se passava na sala,     o fazendeiro, levado por idêntico sentimento religioso, propunha no     quarto ao enfermo a confissão, nestas palavras: — Lourenço, poderás confessar-te?     Abrindo os olhos a custo, o matuto respondeu com voz pesarosa: — Quem é que me há de confessar? — O que te pergunto  retorquiu o fazendeiro, é se podes     cumprir este dever de todo bom cristão.

— Posso e desejo, porque sei que desta não hei de escapar.

O fazendeiro levantou-se, puxou a porta do quarto contra si, deu volta à     chave, e tomou por uma portinha que parecia estabelecer secreta comunicação     com o aposento contíguo. Era neste que ele tinha em bom recado os seus     livros e outros objetos que muito zelava. Ao cabo de alguns minutos estava     de volta à alcova, e dizia ao enfermo: — Lourenço, os teus desejos vão ser satisfeitos.

Lourenço abriu novamente os olhos. À sua cabeceira achava-se     um padre com a vestimenta negra e tala. Procurando com as vistas, à     luz do candeeiro que alumiava a alcova, o fazendeiro que acabara de falar-lhe,     não o encontrou. Volvendo-as depois ao padre, e parecendo reconhecer     nele um antigo conhecido: — “Seu padre Antonio! exclamou espantado.

— Tu me reconheces? respondeu o fazendeiro, que não era outro     senão o padre Antonio de Mariz.

Lourenço, sem se poder dominar, tentou um esforço para levantar-se.     Estendeu os braços como quem queria prender ente eles o sacerdote;     mas, faltando-lhe as forças, recaiu em mortal prostração,     banhado de sangue.

O padre, porém, foi em seu auxílio. Inclinou-se sobre o enfermo,     e pegando-lhe em uma das mãos, inquiriu brandamente: — Que queres de mim, Lourenço? — Que quero? tornou o moribundo. Quero agradecer-lhe a sua bondade,      “seu padre. Estou para morrer, mas ainda me lembro do que vosmecê     me fez no Cajueiro, do ensino que me deu, e das terras e casa...

E como estas palavras lhe avivassem uma lembrança obliterada inteiramente,     procurou, ainda que com dificuldade, na cintura, o cinto de algodão     que sempre trazia consigo.

— Os ladrões até me tiraram o papel... o papel que vosmecê,      “seu padre, deixou em mãos de minha mãe... Roubaram o     meu papel...

— O teu papel agora, Lourenço, é o que cumpre a todo     bom cristão. Estou pronto a ouvir-te.

Terminada a confissão, o padre dirigiu estas palavras ao penitente:      — Se Deus se lembrar de ti, e te sarar, imponho-te que a ninguém     reveles o meu segredo.

— “Seu padre, a ninguém direi quem é vosmecê;     mas meu coração estará a dizer-me, a todo instante, que     vosmecê é “seu padre Antonio, aquele que me ensinou a ler,     que me deu muitos conselhos, que ajudou meus pais a fazerem de mim gente,     que me deu a casa e as terras do Cajueiro, que tem sido para mim um segundo     pai.

— Lourenço, o padre Antonio fugiu, e ninguém sabe onde     ele se meteu. Quem está aqui, neste homem que vês, de barbas     e cabelos compridos, magro e taciturno, mas conformado com a sua sorte, é     o fazendeiro João Mateus. Estás ouvindo? — Pode vosmecê descansar.

— Agora pega-te com Deus, e repousa.

Desaparecendo na porta que dava para o aposento secreto, o padre foi dizendo     consigo estas palavras: — Podes agora comparecer perante o Supremo julgador dos homens. O teu     dever de cristão e o meu de sacerdote estão cumpridos.

Lourenço porém não estava destinado a acabar obscuramente,     no seio daquela solidão agreste de poucos conhecida. Dentro de alguma     semanas, graças à solicitude do padre e de Bernardina, começou     a sair da região da vida que parece pertencer aos domínios da     morte, tão confuso e sombrio é o seu horizonte, tão longo     o crepúsculo que aí reina. As forças voltavam-se lentamente,     por fios tenuíssimos ao princípio, por mais grosso canais depois,     que lhe traziam ao coração e o cérebro a riqueza do seu     antigo ânimo.

Uma manhã, o padre, que penetrara a forte inclinação     de Lourenço por Bernardina, levantou-se muito cedinho, como de costume,     e encaminhou-se ao curral das vacas, onde encontrou já Cipriano tirando     leite. Imediatamente mandou chamar Bernardina para ajudar o vaqueiro no serviço.

Logo que chegou a rapariga, disse o padre a Cipriano: — Dize-me cá uma coisa, Cipriano: que idade tens? — Vou fazer vinte e dois anos.

— É uma idade casadoira, e não sei porque ainda está     solteiro.

— Como me hei de casar? O que eu ganho mal chega para mim e para minha     mãe.

— Não seja esta a dúvida. Tens-me prestado muitos serviços,     e eu não desgosto de ti, porque és um bom rapaz. Venho em teu     auxílio. Procura uma rapariga que te agrade, que te darei gado e terras     bastante para principiares uma fazendola.

Cipriano, que nesse momento batia no ubre de uma vaca a fim de chamar o     leite, ergueu-se e pôs o olhar no seu interlocutor, com quem perguntava     se nas palavras proferidas estava uma promessa real e séria.

— É o que te digo  retorquiu o padre. Procura uma consorte.     Mas parece que em toda esta redondeza não encontrarás nenhuma.     Verdade seja  prosseguiu  que para este inconveniente teríamos     um remédio ao pé de nós. Olha lá. Tu salvaste     Bernardina das unhas dos bandidos, atravessastes com ela os matos e o Tracunhaém,     expuseste por ela a tua vida em terra e nas águas, porque o Andorinha,     tanto que deu pela falta, entrou a rastejar a fugitiva, para ver se a descobria.     Ora, à vista de tanto risco que correste, de tanto esforço que     puseste em salvar esta menina, justo parece que ela sinta por ti, senão     afeição, ao menos qualquer inclinação, que possa     vir a ser no futuro um respeitável amor conjugal. Que dizem vocês?          Não disseram uma palavra sequer o rapaz nem a rapariga.

O padre, porém, conheceu que as suas palavras tinham tido o efeito     que ele calculara.

— Não se vexem com isto  tornou. Pensem no futuro que     lhes ofereço, e que Deus há de abençoar. Amanhã     a esta hora e neste lugar dar-me-ão a resposta.

E retirou-se, deixando Cipriano e Bernardina no trabalho de ordenhar as     vacas.

Tanto que o padre Antonio deu o andar, Bernardina disse, à meia voz:      — Não pensei que seu João Mates me chamava para me fazer     esta entrega.

Cipriano acudiu logo: — Para que você diz isto, sinhá Bernardina? Ele nos quer     bem. Se não quisesse, ele não propunha este negócio.

— Mas ele sabe se eu quero casar com você? — Ele não sabe, nem eu sei. Mas a intenção é     tão boa para você como para mim. Lá a você não     querer casar comigo, é outro caso.

— Pois eu não quero casar com você, não, seu Cipriano,     disse Bernardina com disfarce.

Cipriano não respondeu.

E porque tinham acabado o serviço, cada um se encaminhou para a casa     com sua panela cheia de leite.

Logo depois, encontrando-se o vaqueiro com Bernardina, junto do chiqueiro     das cabras, disse-lhe estas palavras: — Pense no que faz, sinhá Bernardina. Olhe que manhã bem     cedo tem de dar a resposta a seu João Mates.

— Eu já sei que resposta hei e dar.

— Qual é? — Você quer saber? — Quero, sim, porque tenho meu interesse aí também.

— Pois amanhã saberá e talvez o seu interesse tenha     a sorte de ovo goro.

E fugiu para dentro da casa. Mas antes de anoitecer de todo, teve ela de     ir ao poleiro buscar uma galinha para Lourenço; e quando se aproximava     do jirau onde as galinhas dormiam, viu tomando chegada, um vulto que veio     para junto dela. Era Cipriano, que, segundo indicavam as aparências,     não pensara em outro assunto durante o dia, senão no casamento,     e andava rondando a rapariga.

— Então, sinhá Bernardina, que decide você? perguntou     ele, pegando de surpresa, da mão da filha de Vitoriano.

A rapariga estava triste. Em lugar da natural vivacidade, que não     perdiam nos mais arriscados transes, tinham seus olhos uma expressão     de mágoa íntima. Em seu espírito operara-se uma revolução,     cruel e devastadora. O padre Antonio chamara-a depois do almoço, e     tivera com ela uma larga conferência.

— Menina, dissera ele, seja qual for o favor que a sorte tenha lhe     guardado no futuro, não se pode duvidar que o seu casamento com um     rapaz de bons sentimentos, e de costumes ainda melhores, fora a maior felicidade,     e você não a deverá recusar. Você não conhece     Cipriano, mas eu dou testemunho das suas excelentes qualidades. Em toda esta     redondeza não há nenhum que possa ombrear com ele na diligência,     no trabalho, e no bom coração. Não é de hoje que     eu o tenho ao meu serviço. Enfim, basta que eu lhe diga, se Cipriano     não fosse digno de minha benevolência, eu não lhe daria     o que lhe prometi. E o que mais deseja você, minha filha? Melhor marido     posso quase assegurar-lhe que em vão procurará no mundo. Demais,     minha filha, você teve a desgraça de lhe haverem roubado o único     tesouro que traz como dote a filha do pobre. Aceite portanto a minha proposta.     Se Cipriano a quiser para mulher, não enjeite a felicidade.

O vaqueiro não era mal parecido. Bernardina sentia até por     ele inclinações vagas, que se não fossem as condições     que a ligavam a Lourenço naquele momento, poderiam ter-se convertido     talvez em amor. Quando o vaqueiro cortou com sua faca de campo a corda que     lhe apertava os pulsos, e a prendia ao tronco da árvore, ela sentiu-se     tão grata ao moço por esta ação, filha da sua     coragem e da sua caridade, que não teve expressões para manifestar     exatamente quanto ficara cativa dele.

Arrancando-a, para que assim o digamos, das mãos do perverso, ele     não a livrar somente do Tunda-Cumbe, cujo despotismo já não     podia sofrer; ele seguira com ela através de matos, atravessara águas     impetuosas, e sem o menor indício de a querer aviltar, trouxera-a respeitosamente     até a casa da fazenda. Por muito menos têm-se visto acender-se     paixões imortais; e tudo leva a supor que no coração     da matuta alguma dessas sublimes paixões teria origem, se não     se interpusesse entre o vaqueiro e ela o vulto de Lourenço. Este vulto     era simpático à menina por mais de um motivo. Ela conhecia Lourenço     desde a sua infância e voltava-lhe afeição fraternal,     quando foi roubada pelo Tunda-Cumbe.

O sentimento fraternal não era contudo o que ela aninhara no coração     depois que Lourenço, revelando a sua paixão, dera mostras de     lhe dedicar especial afeto. A rapariga pouco e pouco habituara-se a querer     bem ao rapaz de modo diferente. Em sua longa enfermidade esse bem aumentara.     A dor aproxima as almas irmãs. Ela sofria com o sofrimento da vítima.

Ao princípio escrupulizara amar Lourenço. “Lourenço     pertence a Marianinha, dissera-lhe a consciência em sua linguagem muda,     imperiosa. Mas depois, com os cuidados que se julgava obrigada a prestar,     e de feito prestara ao rapaz em sua longa doença, a voz íntima     fora pouco a pouco abafada pelo sentimento nascente: e este resultado chegara     a tal ponto que o sentimento avultara, se tornara força quase invencível,     e a consciência, posto que nunca inteiramente vencida, transigira por     último.

O amor contrariado torna-se indagador e discutidor. Bernardina, antes de     responder ao fazendeiro, pensara no caso.

— Que interesse tem seu João Mateus em me ver casada com Cipriano?     Ele não é seu filho, não é seu irmão, não     é seu parente, não é nada seu: donde vem este empenho?     Eu bem estou vendo que o casamento não é mau, e até não     desgosto de Cipriano, que não é feio, é trabalhador,     e tem o gênio muito brando. Também estou vendo que a minha pouca     sorte, entregando-me a seu Tunda-Cumbe, aumentou a minha desgraça.     Mas quem sabe se assim como fui desgraçada com Tunda-Cumbe, não     poderei vir a ser feliz com outro homem que não seja Cipriano? O melhor     é dizer a verdade a seu João Mateus, já que ele não     compreendeu ainda que eu gosto de Lourenço e Lourenço gosta     de mim. O melhor é dizer-lhe que eu quero bem a Lourenço, e     que só com ele me casarei.

De acordo com esta ordem de idéias, a rapariga deu ao padre Antonio     a resposta seguinte: — Eu não quero casar-me aqui. Lourenço, quando me tirou     do rancho do Cipó, foi me levar para a companhia de minha mãe.     Se estou aqui, é porque tivemos a desgraça de encontrar-nos     com malvados que nos quiseram matar, e a Lourenço deixaram por morto.     Esta é a verdade que estou dizendo a vosmecê. Agora, se eu me     quisesse casar, então seria com Lourenço que me conhece, e que     é meu conhecido desde menino.

O padre, que não contava com esta resposta, pôs os olhos penetrantes     em Bernardina, como quem queria ler todo o passado em seu semblante. Ignorando     o como compromisso que Francisco tomara para com Marianinha, ficou supondo,     por estas palavras de Bernardina, que esse amor que ele tratava de extinguir,     tinha as suas raízes nos corações dos dois jovens desde     os seus primeiros anos. A suposição fê-lo por momentos     considerar mais difícil do que ao princípio lhe parecera, impedir     o consórcio; mas tirando argumentos do que acontecera à rapariga,     retorquiu: — Quaisquer que forem as relações que liguem você     a Lourenço, minha filha, o seu casamento com ele me parece altamente     inconveniente, para não dizer impossível. Eu tenho amplo conhecimento     da vida de Lourenço. Se, pela parte que Lourenço tem tomado     pela nobreza, já lhe é muito arriscado, não obstante     ser solteiro, viver em Goiana, agora, que ele foi tirar a menina do poder     do feroz chefe dos bandoleiros do norte, a sua estada lá, tendo em     sua companhia a menina, seria a mais direta provocação à     vingança desse chefe, e, pelo estado atual das coisas, Lourenço     seria irremissivelmente vencido. O homem que a levasse em sua companhia para     Goiana, expor-se-ia a morrer. Você, voltando à casa de sua mãe,     pode ter desde já a certeza de ser novamente tirada por Tunda-Cumbe.     Somente longe dos lugares onde esse bandoleiro domina despoticamente, poderá     ter alguma tranqüilidade. Ora, estas paragens estão neste caso;     mas Lourenço está impossibilitado de procurar abrigo nelas,     porque a sua família, as suas amizades, os seus benzinhos lá     é que se acham, e pode-se dizer que de lá não podem ser     deslocados. Seja, pois, cordata, e não enjeite a felicidade que se     lhe oferece; Cipriano é de um natural muito estimável, eu conheço-o     de há muito, e folgaria de o ter casado aqui, ao pé de mim.     Deixe Lourenço seguir o seu destino. Seus pais já não     são crianças; mais dia, menos dia, hão e precisar dos     serviços e amparo do filho. Estou informado que a mãe e a irmã     da menina vivem com a mãe de Lourenço; é portanto de     presumir que elas, a quem roubou o único protetor aquele que a você     roubou a honra, participem da proteção que Lourenço tem     para a mãe. Dê você uma prova de benevolência para     a sua mãe e sua irmã, não sendo causa, quando por outra     razão não seja, ao menos em atenção ao bem estar     de ambas, para que se aparte da companhia delas aquele de quem hoje tudo esperam.

Estas palavras exprimiam tão exatamente a verdade, que Bernardina     não teve que retorquir ao padre, em resposta. Inclinou a cabeça,     cravou as vistas no chão e dali a pouco as lágrimas começaram     a apontar-lhe nos olhos.

— Não chore, minha filha disse o padre Antonio. Você ficará     morando aqui ao pé de mim. Do que eu comer, vocês hão     de comer também. Servir-me-ão de companhia neste deserto, e     eu guiá-los-ei na vida, cujos caminhos são tão difíceis     e enredados. Em Deus fio que havemos de ter aqui a tranqüilidade de espírito,     e paz do Senhor, que em vão se buscaria nestas terras, que o vento     da anarquia tem revolvido, e continua a revolver.

O padre, como se considerasse vencida a dificuldade do lado de Bernardina,     encaminhou-se para o quarto onde estava Lourenço; era preciso destruir     ali o outro obstáculo, porventura mais forte que o primeiro. Mas, sem     desanimar, antes fortificado com a vitória ganha, ele tinha quase por     certo que igual vitória ganharia. Refletiu alguns instantes em silêncio,     antes de penetrar no aposento do enfermo.

Lourenço estava sentado na cama, quando o padre entrou.

Pensava precisamente em Bernardina, em quem o seu espírito andava     absorvido.

Tinha terminado a primeira refeição, e ficara encostado à     parede, os olhos voltados para a natureza que, pela janela, nesse momento     aberta, se lhe mostrava fresca, esplêndida e magnificente.

— Há quantos dias estou na cama? perguntou ele ao padre.

— Há talvez, umas cinco semanas.

— Estou doido por me levantar. Tenho muitas saudades da minha vida     no campo.

— E dos teus não te lembras? — De minha mãe me lembro a toda hora. Não vá ela     cuidar que já morri por aí além.

— E é natural que não seja outra a sua idéia.

— Coitada! Quantas lágrimas não terá derramado     por mim! — Não te amofines por isso. Vejo-te quase são; em breve     hás de levantar-te. Tanto que puderes montar a cavalo, bom será     que não retardes a tua volta. Deves encurtar a aflição     da pobrezinha e das outras que com ela vivem hoje.

— É verdade. Sinhá Joaquina e Marianinha hão     de pensar também muito em mim.

— Mas a estas terás uma boa nova que levar. Quanto souberem     que  Bernardina está bem, e fica amparada... É verdade:     devo dizer-te que Bernardina, que parecia estar condenada a trazer os olhos     sempre inclinados para o chão pela sua desgraça, dentro em pouco     tempo será digna de entrar em qualquer casa de família sem sentir     os sangue subir-lhe as faces, ou sem o fazer subir às faces das donzelas     e das damas honradas.

— Que quer dizer com isto, “seu padre? inquiriu o rapaz, inquieto     e como espantado.

— Bernardina casará dentro de algum tempo com Cipriano.

— Bernardina! exclamou Lourenço violentamente, como se lhe     tivesse caído junto um raio. Pois Bernardina vai casar-se? — Não te comovas tanto, meu filho. Condoendo-me da infeliz rapariga,     procurei-lhe essa união, que Deus há de abençoar.

— E foi vosmecê “seu padre, quem lhe arranjou este casamento?      — De que te admiras? Cuidei que esta notícia em vez de te causar     escândalo, fosse origem de muita satisfação para ti. Cipriano     tem uma parte nestas terras, e tantas cabeças de gado quantas forem     bastante para situar, ao lado desta, outra fazenda. Pareceu-me Lourenço,     que nenhum outro partido tão favorável se poderia oferecer a     essa menina, de quem a sorte tem feito joguete.

— E Bernardina, “seu padre, e Bernardina casa-se por gosto?      — E por que não há de  casar por gosto? Em que parte     acharia ela tão bom marido? Em Goiana, onde conheceu seu infortúnio,     e onde não pisará sem expor a mil perigos a sua vida e a do     homem que a levar em sua companhia? — Meu Deus! meu Deus! como as coisas se armam! exclamou Lourenço,     profundamente abalado. Eu cuidei que Bernardina...

Lourenço não pôde acabar.

A luz fugiu-lhe dos olhos. A razão perdeu-se-lhe em um mar de conjeturas.     Caiu sem sentidos sobre o leito.

Correndo a socorrê-lo, o padre Antonio dizia a meia voz, como quem     respondia a uma interrogação ou exprobração íntima:      — Antes quero vê-lo morto do que ligado a uma mulher que o não     mereça.

 

Ainda hoje o seqüestro é um grande mal, não obstante suavizado     pelos princípios novos, mal que até nos indiferentes que o vêem     realizar-se produz vexame: pacientes há que à dor da vergonha,     preferem o suicídio.

A justiça entra pelas casas estranhas, e como se foram dela, apreende     bens ali que os donos não deixariam passar, contra sua vontade, ao     poder de outrem, sem defesa ou resistência formal, não raro ensangüentada.     A justiça procede assim, fria, inexorável, algumas vezes arrogante,     sempre hirta. Em certos casos, talvez não cumpra o seu ofício     com os olhos enxutos; mas, dado que isso aconteça, como ter uma prova     da sua piedade, se a justiça traz nos olhos uma faixa que os vela?     A verdade é que a justiça não chora nunca, não     tem coração, não tem entranhas: a justiça não     tem o direito de chorar, direito vulgar que pertence a todos, até ao     que não tem direito nenhum.

Era, ao menos, assim a que em Goiana, quando na fazenda do Jatobá     se passavam os acontecimentos que sabemos, invadiu com surpresa dos moradores     o engenho Bujari, onde haviam feito estada a aflição e o luto,     desde que ali se teve notícia do falecimento do sargento-mor.

Acompanhado da fez do foro venal, parcial, ou vingativo, o oficial público,     incumbido da execução, não chegou à sala da casa,     trazendo a compostura, ainda que severa, da linguagem da lei, chegou ali,     precedido por insultadores canalhas, quadrilheiros afeitos a conspurcar a     modesta majestade das famílias desamparadas, e a assenhorear-se do     que nos lares desprotegidos encontravam agradável à sua cobiça;     chegou ali trazendo carranca e esgares pavorosos, pelos quais se podia aferir     a sua brandura, ou antes, a sua intenção. Bastará dizer     que faziam parte do séquito o Tunda-Cumbe e o Pedro de Lima, nunca     assaz execrados bandidos do rancho do Cipó.

Os insultos ignóbeis, as zombarias torpes não tiveram forças     para vencer o espírito da jovem viúva. Em vez de se abater com     esta face da sua adversidade, colheu ela novos alentos da aspereza do transe,     primeiro tão rude por que passava.

Dois escravos, únicos que no engenho restavam da avultada fábrica,     inveja de muitos vizinhos, e que, vendo aproximar-se o bando, tentaram a fuga,     quase pagaram com a vida esta dedicação à senhora de     engenho. Animais, móveis, jóias, tudo quanto representava qualquer     valor, foi irremissivelmente seqüestrado. O sargento-mor, embora falecido,     estava indiciado em crime de primeira cabeça; todos os seus haveres     deviam ser confiscados para a coroa, nos termos da tenebrosa Ord. do Liv.     5º. Era isto o que dizia o executor, era isto o que repetiam, vociferando     irados, os sequazes, dignos daquela legislação de sangue e rapina,     que os tempos justificava, mas não enobreciam.

Logo que recebeu a intimação para despejar o sobrado, D. Damiana,     voltando-se ao santuário, que ainda se via em cima de uma mesa, pôs     os olhos na imagem de sua devoção, e, traindo a amargura que     lhe ia na alma, disse: — Para onde hei de ir, Virgem da Conceição?     Uma resposta amiga não se fez esperar: — Para a minha casa, sinhá D. Damiana, para minha casinha, que     há de ter muita honra em recebê-la.

A senhora de engenho, enternecida, caiu nos braços de Marcelina.

— Bem sei prosseguiu a cabocla que ela, à vista deste palácio,     não merece que vosmecê volte para ela os olhos; está na     mesma esteira dos mocambos dos negros fugidos... Mas terá lá     uma escrava para olhar por vosmecê, e dar-lhe água para os pés.

— Havemos de ver disse um dos da multidão havemos de ver até     quando durará este amparo reles.

— Há de durar até quando vosmecês quiserem respondeu,     sem titubear, a cabocla. Eu sei que nada do que é meu me pertence contra     a vontade de vosmecês.

— Marcelina, por piedade, cala-te disse D. Damiana, receando-se de     roubarem aquele mesmo cantinho obscuro onde podia repousar a cabeça,     depois de haver chorado livremente os seus males.

— Pois, já que têm onde se metam, ponham-se no andar     da estrada sem demora. Tudo o que está aqui pertence a el-rei, tirado     antes o que deve caber aos credores do nobre senhor falecido.

Era, em termos irônicos, a intimação para que saíssem     as duas mulheres.

D. Damiana ergue-se imediatamente. As roupas negras, realçando-lhe     a palidez do rosto, davam-lhe aspecto senhoril, em que ainda falava a altivez     de outrora.

Relanceou os olhos por sobre os móveis que decoravam a sala, e dos     quais ia apartar-se para sempre.

Dando as suas vistas, no rápido percurso, com o oratório,     pousaram aí um momento, e dos lábios lhe saíram, sem     que as vistas se afastassem estas palavras: — E as minhas imagens também me são arrancadas das mãos?      — Tudo o que existe no engenho, de porteiras para dentro, pertence à     coroa, respondeu o oficial que dirigia a execução judicial.     De tudo o que os rebeldes deixam, as suas viúvas somente herdam a má     fama.

— Vamos, Marcelina, disse D. Damiana, com decisão, voltando-se     à cabocla.

E caminhou-se à porta, por entre a turba, que sem intenção,     se abriu a fim de lhe dar passagem. Por algum tempo aqueles homens ordinariamente     bulhentos, não tiveram uma palavra das suas grosseiras e banais chacotas     com que menoscabarem a solenidade de tão aflitivo momento.

Chegando embaixo, Marcelina disse à senhora de engenho: — Se pudéssemos tirar um cavalo da estrebaria... Daqui ao Cajueiro     é longe para vosmecê, sinhá D. Damiana. Como é     que há de romper tanta distância a pé? — Vamos assim mesmo, Marcelina. Nem eles nos deixariam tirar qualquer     cavalo, nem os cavalos me pertencem mais. Vamos a pé. Havemos de chegar     lá, ainda que seja com a noite ou com a madrugada. Demais, o Cajueiro     não é tão longe, como dizes. Daqui uma hora, quando muito,     estaremos lá.

A vida de D. Damiana no Cajueiro, ao princípio passada de amarguras     quase incomportáveis, foi perdendo pouco a pouco o travo dos primeiros     tempos. Não se demorou a resignação, devida em grande     parte às condições ministradas por Marcelina, que fazia     tudo por adivinhar os pensamentos da sua nobre hóspede.

Uma vez, depois de certa fineza, a viúva falou nestes termos à     cabocla: — Marcelina, tu não nasceste para viver na pobreza; tu devias     ser muito rica, e viver em palácio, tão nobre és nas     tuas ações.

— Quer vosmecê que lhe diga uma coisa, sinhá D. Damiana?     Dentro das casas de palha, na gente pobre, encontra-se muito bom coração.

Era a voz do povo que se erguia, sem floreios, em linguagem trivial, para     responder à voz da nobreza vencida, mas não convencida.

A história da aludida fineza conta-se em poucas palavras.

Dois dias depois de estar no Cajueiro,a viúva de João da Cunha     travou com ela, a mulher de Francisco, o seguinte diálogo: — Eu sei disse Marcelina que vosmecê não passa bem aqui.     A casinha é pequena e não é digna.

— Muda de conversa respondeu-lhe D. Damiana. Que é que me falta?     Vim até encontrar a tranqüilidade e a consolação     que haviam fugido da casa grande.

— Vosmecê me perdoe, mas eu bem vejo as coisas. Por sua honra,     vosmecê diz que está muito bem; mas pela minha também     eu hei de dizer o que conheço.

— Estou muito bem, sim.

— Pois se está bem pode ficar melhor; e isto é o que     eu quero dizer. Vosmecê pode mudar de casa, sem ir para muito longe;     ficará tão perto daqui que, chamando por mim, eu daqui mesmo     ouvirei a sua voz.

— Como há de ser isso então? — Eu estive pensando ontem de noite e achei o que queria. Lembrei-me     de que tenho em meu poder a chave da casa de seu padre Antonio, que fica ai,     do outro lado da estrada. É uma casinha bonita, limpinha e boa. Vosmecê     sabe melhor do que eu que ela foi dada a seu padre por seu sargento-mor.

— E está sem morador? — Está, sim senhora. Na véspera de fazer a viagem, que     ninguém sabe onde foi, seu Padre Antonio disse-me estas palavras, que     nunca mais hei de esquecer: “Como é possível que no lugar     para onde vou, tenha de entregar a alma a Deus, peço-te, Marcelina,     que olhes por tudo o que é meu, a minha casa, a minha criação,     as minhas plantaçõezinhas, de que levo tantas saudades. A estas     palavras, acrescentou ele estas outras: “Se eu morrer por lá     mesmo, podem vocês dispor de tudo o que lhes entrego, sejam meus herdeiros;     mas, enquanto não tiverem certeza do meu acabamento, tratem de minha     casa como bons vizinhos e amigos. Eu não tenho certeza de seu padre     ter morrido, e Deus queira que ele tenha ainda muitos anos de vida, e muito     breve esteja de volta ao Cajueiro, a que deu tantos aumentos deu com a sua     presença; mas, enquanto ele não chega, sua casa há de     estar se enchendo de aranhas e de ratos, não é melhor estar     servindo a quem já foi dono dela e das terras onde ela está,     e que já morou e ainda há de morara em ricos palácios?          D. Damiana achou caminho na proposta, e aceitou-a com reconhecimento. E para     que tudo saísse à feição, uma preta idosa, muito     pegada com a viúva, e que fugira para o mato, por certo desgosto no     engenho, vindo a saber as condições que estava a senhora, apareceu     no Cajueiro logo depois da mudança desta para ali, onde aquela ficou.     Com a nova companhia, D. Damiana passou-se para a casa do padre, continuando     Joaquina e Marianinha a morar junto de Marcelina na palhoça que fora     levantada entre a lagoa e a casa queimada.

Estavam as coisas neste pé, quando uma noite, por volta das oito     horas, D. Damiana, ainda não recolhida ao seu quarto, sentiu ruídos     de pisadas por perto da casa. Tinham-lhe dito que, sabedora de estar com ela     a escrava Felícia, a autoridade viria tirá-la às escondidas     do seu poder, a fim de adjudicá-la, com os outros bens, à coroa.     Novos dissabores e novas inquietações para a infeliz viúva.

Era aquele o único benzinho de que estava de posse; era todo o seu     haver. E porque na atualidade os serviços da escrava valiam pelo de     cem escravos para a senhora de engenho, a idéia de lha tirarem trazia-a     sobressaltada e agoniada.

Por isso, ouvindo as pisadas já ao pé da casa, correu à     cozinha em busca de Felícia. Esta não se achava ali, e a porta     que dava para fora estava aberta.

Tomada de exaltação momentânea, sem medir a gravidade     do passo, a senhora de engenho ganhou o terreiro, resoluta a disputar a presa     ao roubador que, valendo-se das trevas e do ermo, viera, com emboscada, despojá-la     do último possuído.

Junto da porta estava, de pé, um homem que parecia indagar com as     vistas, cautelosamente, se havia alguém dentro. Vendo-o só,     a viúva como se cobrara novos ânimos, encaminhou-se apressadamente     até onde ele estava e falou-lhe com veemência nervosa: — Senhor, quero a minha escrava, quero a minha escrava. É o único     bem que me resta; todos os mais levaram em nome de el-rei; mas ela, não     consentirei que a levem. Preciso de uma escrava para o meu serviço.     A justiça deve ser feita com a prata, os brilhantes, os móveis,     os bens de raiz e até os santos de que me privou, quando eu deles mais     necessitava para minha consolação. Faça de conta que     Felícia já não existe, ou anda fuga. A única súplica     que faço à justiça de Goiana é que me deixe a     minha negra.

Estas palavras foram um raio de luz no espírito do desconhecido que,     a modo de espanto e confuso, nenhuma palavra dirigira à agoniada senhora.     Em lugar de afastar-se correu para ela, como quem queria tomá-la nos     braços.

Este gesto atemorizou a viúva, que só então pareceu     medir o alcance de sua temeridade.

Faltou-lhe inteiramente a coragem para sustentar o seu papel. Quis correr,     mas entrara tanto pelo terreiro que quem quando com os olhos buscou a porta     da casa, viu entre esta e ela, o desconhecido, que se adiantara e se aproximava     cada vez mais, fazendo menção de a querer cingir com os braços.

— Não corra, não corra de mim, sinhá D. Damiana.

Foi tarde. Temor pânico tomara a gentil senhora, e após o temor     viera o delíquio. Se o desconhecido a não amparasse, se a não     sustentasse contra o peito, ela daria com o corpo em terra, tamanha fora a     exaltação que lhe esgotara os poucos alentos deixados pelas     adversidades recentes.

O desconhecido era Lourenço. Acabara de chegar da fazenda do Jatobá.     Deixara o cavalo preso pelas rédeas no fundo do sítio e viera,     pé ante pé, cauteloso, para não ser visto, a fim de atravessar     incólume a estrada e ganhar o lado oposto. Contando com o sítio     desabitado, tomara por ele para maior segurança; mas, vendo aberta     a porta da cozinha, e pressentindo morador dentro da casa, por curiosidade     ficara a espiar, quando saiu D. Damiana, que de modo nenhum o pudera reconhecer,     não só porque estava longe de o supor tão perto dela,     mas também porque era de noite, conquanto esclarecida por tíbio     luar, e especialmente porque estava Lourenço trajado muito diversamente     do costume, pois trazia chapéu de palha fina, burjaca preta, calças     de ganga, botas de polimento, onde retiniam esporas de prata; numa palavra,     Lourenço não era mais o matuto chão, descalço     e vulgar como quando fugira de Bujari para não cair nas unhas do Tunda-Cumbe.

Toda esta transformação, como bem se compreende, era devida     ao padre Antonio que, na hora da partida, brindara ao filho com aquele fato     novo, o seu cavalo mais forte que tinha, o selim e arreios do seu uso, alguns     trajos caseiros que chegavam exatamente no rapaz, e um cartucho de moedas     de prata, não sem recomendar-lhe primeiro que fosse tratando de se     apresentar mais dignamente, para que tivesse a consideração     dos homens de bem; que deixasse a vida errante, e se empregasse em trabalhos     estáveis; que fugisse de batebarbas com quem quer que fosse enfim,     que se desse o respeito para que qualquer malfeitor não se julgasse     no caso de lhe fazer o que os três malvados haviam praticado com ele     semanas antes.

— Se tu não andasses com mulheres dos outros na garupa, não     havia de acontecer o que te aconteceu.

Por último, disse-lhe o padre Antonio: — Até aqui, tenho somente tratado de ti; quero agora dar-te instruções     que se ligam com o meu interesse. Ainda uma vez te encomendo, Lourenço,     que a ninguém, exceto Marcelina, te suceda declarar o nome do dono     desta fazenda. Não quero fazer juízo temerário; mas uma     vez íntima, a voz de Satanás está a dizer-me que, se     os  frades de Goiana forem sabedores da minha estada nestas paragens,     são capazes de mandar tirar o restante da minha inofensiva existência,     somente porque não consenti em prestar-me a auxiliá-los nos     seus planos de iniqüidade e feroz vingança. Sê prudente     e cauteloso. Não tenho grande apego à vida Lourenço,     mas não desejo que ela me seja tirada por outrem, senão por     Aquele que me achou merecedor de guardar este pesado depósito.

Ainda não de todo restabelecido, Lourenço deixara a fazenda,     por não poder vencer o desgosto de ver Bernardina casar-se com o Cipriano.

— Está em minhas mãos dissera ele mais de uma vez impedir     este casamento, que tanto desgosto me tem dado; era só eu querer; tomava     a rapariga outra vez na garupa e abalava para este mundo que não tem     fim. Mas, o muito que devo a “seu padre Antonio, que foi que me arranjou     tamanha desgraça, prende-me tanto as mãos, que eu não     posso ser bom em nada.

Bernardina, acometida de grave enfermidade, ficara em cima de uma cama,     às portas da morte.

 

A chegada de Lourenço foi uma festa, uma primavera para todos no Cajueiro;     não foi somente uma festa, foi principalmente uma ressurreição,     uma evocação que reviveu ilusões e esperanças     mortas, porque ele já tido ali por perdido para sempre à vista     da sua longa ausência e do silêncio tumular que havia crescido     em torno do seu nome.

Passados alguns dias depois da abortada tentativa de tomada de presos, começaram     a mostrar-se no Cajueiro, umas vezes à boca da noite, outras ao raiar     do dia, nunca em hora certa, sujeitos estranhos, de suspeitas cataduras, que     alguns vizinhos diziam ser do rancho do Cipó. Mais de uma vez Marcelina     havia surpreendido um ou outro rondando-lhe a casa, como quem espiava a vida     dos moradores. De uma feita, um deles, com todo o desplante, encarando a matuta,     perguntou-lhe: — Que novas me dá de seu filho, que há muito ninguém     lhe põe os olhos em cima? Pois era agora ocasião de aparecer     quem andava por estas beiradas arrotando tanta valentia.

— Eu ia perguntar mesmo a vosmecê tornou a cabocla o fim que     lhe haviam dado; porque não sei onde ele para. De todo o mal que aconteça     ao rapaz, eu só tenho que me queixar de vosmecês, porque sem     razão juraram de dar-lhe fim, desde aquela matinada que os homens fizeram     para soltar “seu Cosme Cavalcanti. Começaram a espalhar que Lourenço     tinha sido o autor da tragédia, e quase que o matam.

— E quem foi senão ele, que meteu os outros na dança?     Não foi outro. Você deve saber de tudo, agora põe-se de     fora como quem não sabe como se arranjou a história. Eu só     queria ainda encontrá-lo com vida. E se fosse hoje, que estou com os     meus calundus, você e ele haviam de ver o bonito.

— Vosmecê não tem razão; o rapaz não é     mau.

— Ele sempre foi muito mauzinho, não por você, mas pelos     bofes que trouxe do Pasmado. Pelo gosto de você, ele não fazia     muita coisa que não era para ele fazer, porque ele não é     nada; mas é que ele lhe tomou fôlego,e não leva mais você     em conta.

— O que eu sei é que vosmecês deram fim aqui ao meu filho;     só me parece que nunca mais o tornarei a ver.

Ditas estas palavras, Marcelina pôs-se a chorar, enquanto o espião,     como se comovera, ou convencera, nenhuma lhe voltou em resposta, e deu logo     o andar.

Posteriormente, espalhou-se em Goiana que o rapaz tinha morrido. Pedro de     Lima dizia a quem queria ouvir, jactando-se da sua proeza, que havia deixado     por morto o filho de Francisco, à beira do Tracunhaém, por ocasião     de encontrá-lo, vindo ele, Pedro de Lima, entender-se com o Tunda-Cumbe     sobre certa diligência de muita circunstância.

Ocioso seria dizer quanto esta triste nova enlutou as mulheres que por tantos     laços, cada qual mais estreito, se achavam ligados ao jovem almocreve.     Marcelina, conquanto acostumada a receber más notícias desde     que Francisco se ausentara, e que Lourenço dera em fazer freqüentes     jornadas para fora; Marcelina que, muitas vezes, quando alguém vinha     lhe dizer que seu filho estava preso, que o marido era morto, tinha esta resposta     invariável: “Tempo de guerra, mentira como terra, desta vez não     pode suster as lágrimas por muitos dias; e quanto mais tempo se passava,     mais crescia aos seus olhos a certeza daquela infausta nova, que o testemunho     pessoal de Pedro de Lima e os dois companheiros, verificado por pessoas sérias,     viera confirmar em termos que não admitiam réplica.

Foi nestas condições que Lourenço ressurgiu inesperadamente,     vivo, forte, e até mais bonito de feições. A longa estada     à sombra, pela enfermidade, e posteriormente pela convalescença,     dera ocasião a que suas formas se desenvolvessem e aumentassem, se     lhe afinasse e clareasse a pele, enegrecesse o cabelo, apontasse a barba.     Essas formas, já varonis, adquiriram um novo dom a gentileza; os olhos,     já cheios de brilho, receberam de desconhecido centro de luz novos     raios em que se deixava reconhecer o reflexo de paixões impacientes.     A expressão dessas esferas luminosas. que graciosamente se moviam entre     as pestanas finas e bastas, era banhada em áureas vivacidades, com     uns longes lampejos lácteos, que um pintor poderia copiar para primor     das suas estampas. Demais e era talvez esta circunstância exterior o     que mais afirmava a diferença no trajar, Lourenço já     não era o almocreve tu, desasseado e grosseiro; as novas roupas     em que apareceu metido, davam-lhe o aspecto que distingue os homens de boa     procedência e educação. Poucos meses bastaram para o afeto     de pai transformar o filho.

No outro dia pela manhã, reunidos todos na casa ocupada por D. Damiana,     Lourenço deu mostras de não ter mudado o seu sentimento para     Francisco, assim como tinha mudado de formas e trajos.

— Eu vim somente dizer-lhes, advertiu ele, não morri, porque     nem eu posso ficar por muito tempo aqui à vista de todos, nem, ainda     que pudesse, ficaria antes de saber notícias de meu pai. Eu sempre     cuidei que ele já estivesse de volta; mas uma vez que ainda não     veio, uma vez que está sabe Deus onde, devo ir ver se o encontro vivo     ou morto.

— Filho abençoado, tornou-lhe Marcelina, era isto mesmo o que     eu queria te dizer. Vai, e não voltes sem trazer Francisco adiante     de ti. Não me digas nem por graça que ele morreu, porque assim     como tu tornaste cada vez mais bonito, quando todos aqui diziam e até     eu cuidava que já não existias, assim Francisco há de     tornar também, gordo, forte e mais moço, que Deus não     há de permitir que meu marido, tão bom, morra por aí     além sem ter quem, na hora da morte, lhe chame pelo nome de Jesus.

Nada, porém, ficou assentado quanto ao dia da partida. Lourenço     disse que se sentia cansado da longa jornada; D. Damiana, que ficara muito     abalada do susto e comoção porque passara na noite precedente     pediu tempo para escrever, com a devida pausa e meditação, uma     carta minuciosa que Lourenço devia entregar a Amador, único     parente que, conquanto preso, a podia atualmente valer e socorrer.

Um ponto negro, que se mostrara logo no horizonte iluminado pela presença     do rapaz, começou a avultar de hora em hora a idéia do perigo     que ele correria, se se deixasse ficar no Cajueiro, enquanto não seguia     para o Recife. Aos olhos de Marcelina, prudente e prevenida, já começavam     a aparecer a cada canto os vultos suspeitos, os espiões sinistros que     tempos atrás haviam tido as vistas sobre a palhoça, ameaçando     devassá-la e esmerilha-la, cantinho por cantinho, na intenção     de descobrir quem havia incorrido no ódio dos mascates pela sua dedicação     aos nobres. Marcelina tinha o coração nas mãos, de sobressaltada     e temerosa que andava. Ainda não haviam decorrido vinte e quatro horas     depois da chegada de Lourenço, e já a solicitude da cabocla,     estremecendo pela segurança dele, não sabia onde o resguardar     de emboscadas e delações inimigas.

— Tu não podes ficar aqui muito tempo, Lourenço. Vê     lá como te haveis.

Depois de refletir por alguns momentos, Lourenço, dando mostras de     ter achado a melhor solução, tranqüilizou os espíritos     com estas palavras: — Não se importem comigo. Os cabras não hão de     lamber-me. Tenho um lugar que ninguém suspeita, e para mim é     o melhor que eu podia encontrar. Irei dormir lá todas as noites; e     até de dia, estando eu lá. Não há quem seja capaz     de descobrir onde estou.

Passou-se o dia sem coisa de maior. Quando o sol desapareceu por trás     da mata do Bujari, deixando cair sobre a estrada as primeiras sombras da tarde,     o rapaz, armado com faca e pistola uma pistola que encontrara em casa do padre     Antonio despedindo-se das mulheres, tomou pelos fundos do sítio do     mesmo padre, e alcançou a mata. Logo adiante deu com o cavalo dentro     do fechado onde o deixara todo o dia. Em vez de o cavalgar, foi levando-o     por um cabresto, com grande dificuldade, porque não podia dar um passo     sem lhe ser preciso antes abrir caminho através das folhagens e cipós     emaranhados, que faziam redes e tapagens de diferentes formas.

Depois de andar um bom pedaço pelo mato a dentro, parou para se orientar.     Tinha o espírito confuso. Perdera-se no labirinto e não sabia     onde estava. Com o rigoroso inverno, as antigas veredas haviam desaparecido,     e em lugar delas, e onde supunha encontrá-las, o que achou foram árvores     novas, cujos galhos se entrelaçavam, fazendo com os longos fios e as     miúdas folhas dos cipós, largos panos que o seu braço     por fim já se sentia cansado de mutilar e romper. A cada passo ouvia     o sibilar de cascavéis, ouvia os suspeitos ruídos da massa enorme     da selva que não se afronta impunemente.

— Por onde ando eu, meu Deus? disse começando a apoderar-se     de inquietação. Estou perdido. Já nada vejo. Escureceu     de todo mais cedo do que eu cuidava. Agora não há outro remédio     senão ficar aqui mesmo.

Quando estava neste solilóquio, ouviu, não longe o ponto onde     parara, rumor de cavalgada e vozes. Deu mais alguns passos para a frente,     e pôde reconhecer, por entre as sombras da noite, que estava não     no seio da mata, como julgara, mas à beira do cercado do engenho Bujari.     Obra de cinqüenta braças na frente dele passava a estrada, e pouco     adiante se deixava ver, como uma grande laje escalvada e negra, a casa grande     do engenho.

— Ora, meu Deus! Como vim parar aqui?     Ficou um momento em silêncio, observando o lugar, combinando as idéias,     buscando uma resolução.

Não tardou muito que lhe ocorreu um pensamento singular, e, na realidade,     original o de pernoitar na própria casa do engenho, que, conquanto     seqüestrada com os demais bens do defunto, nenhum destino se lhe havia     dado ainda.

— É, e não é arriscado dormir lá disse     Lourenço, como se praticasse consigo mesmo. Quem é que há     de pensar que eu vou dormir no engenho? Ainda que soubessem que eu já     estou em Goiana, ninguém havia de me julgar com a coragem de ir recolher-me     na casa grande, quanto mais não havendo quem saiba que eu cheguei.     Em vez de arriscado, eu acho até que é o lugar mais seguro que     possa encontrar por aqui para estar. Nunca ninguém há de ir     lá em minha procura.

Lourenço quebrou as varas do cercado, para que o cavalo pudesse passar,     e, logo que lhe pareceu estar longe a cavalgada atravessando a estrada, tomou     para a casa grande.

Chegando aí, estranhou quase tudo o que viu. Nada há que desfigure     tanto os lugares destinados à habitação do homem como     deixá-los por algum tempo sem habitador, porque tomam conta dele outras     habitantes de diversa natureza, tomam conta dele os matos, os musgos, as parietárias,     os bichos peçonhentos: a situação demuda-se: as paredes     amarelecem ou enegrecem: aqui escalam-se, acolá embuçam-se nessa     vegetação parasitas que estendem os seus domínios mais     depressa pelas regiões onde pisou o pé, ou pousou a mão     humana, do que nas regiões virgens em que plantas mais fortes e avultadas     não lhe dão lugar à invasão.

À roda da casa nascera um jerobebal espesso, em cujo fechado poderia     esconder-se, não só um homem, mas muitos homens; dentro dele,     em caso de aperto, ainda mesmo de dia, Lourenço poderia ocultar-se     com o cavalo, sem receio de ser descoberto, a não haver suspeita ou     denúncia que determinassem busca minuciosa.

O seu primeiro passo foi para a estrebaria.

— Ponho aí meu cavalo, e deito-me perto dele. Uma noite passa     depressa.

Assim fez. A porta da estrebaria estava encostada, mas não trancada.     A invernada tinha esburacado as paredes do lado norte,e  pelos buracos     penetrava no interior a escassa luz da lua cheia, que mal deixava distinguir     os objetos, dando-lhes feições que infundiam pavor.

Lourenço pôs o cavalo a comer na longa manjedoura deserta um     pouco de milho que trouxera do Cajueiro, e estendeu-se sobre uma tábua     velha, junto da porta.

— O ladrão que entrar aqui há de primeiro pisar em mim,     antes de pegar o cavalo.

Tentou dormir, mas não pôde. As sombras do aposento destinado     a animais, e não a homens, lançavam-lhe vagos temores no espírito.     De um e outro lado ouvia silvos de cobras. Pesados sapos saltavam-lhe por     cima do corpo, aumentando a intensidade das impressões desagradáveis.     O mau cheiro das emanações deletérias que se desprendiam     de restos de matérias corruptas por tantos meses retidas naquele pequeno     espaço, onde o ar não girava livremente, começou a produzir     no hóspede tonturas e náuseas, que o determinaram a mudar de     pouso.

Pensou então em pernoitar no sobrado. Mas havia de deixar o cavalo     sem defesa? Ainda se a estrebaria pudesse trancar-se...

Levando a mão à porta, deu ai com a chave na fechadura.

— Ora bem! disse com satisfação. Fechada a porta, já     não será tão fácil furtarem o animal. Qualquer     barulho me despertará, e em dois saltos estarei cá embaixo.

Lourenço deu a volta à chave, que tirou. A porta era segura.     Não se podia por dentro com duas razões.

Rodeou a casa, não sem as devidas cautelas, e vencida a escada de     tijolo, parou à porta de entrada, entre as três janelas da direita,     e as outras três da esquerda, que davam ao sobrado o aspecto de um convento.     Pela entrada principal não podia abrir caminho, visto que estava trancada;     mas, com a força das chuvas, ou da ventania, fora aberta a primeira     janela da direita, para a qual não era difícil passar do peitoril     de pedra e cal com que terminava o longo plano de parede que ladeava a escada,     sem esforço pôde ele alcançar o batente, e saltar dentro.

A sala, onde se achava, era a destinada às mulheres. Penetrando aí,     sentiu-se tomado de instintivo respeito, porque pouca vezes em vida do sargento-mor     tivera ocasião de chegar até o aristocrático aposento     de D. Damiana, e sempre que nele entrava, era seguido de todos os escrúpulos     que a nobreza e a representação da gentil senhora impunham aos     que mais ou menos dependiam de sua casa.

A admiração do rapaz foi ainda maior quando notou que a mobília     nova, comprada por João da Cunha para ocupar o lugar da que fora arremessada     de cima do pátio do engenho e aí entregue às chamas pelo     bando do Tunda-Cumbe dois anos antes, estava no mesmo lugar em que a vira     pela última vez. O santuário, o estrado, o bufete de D. Damiana     faziam nascer a ilusão de morar ela ainda na sua casa, longe de qualquer     constrangimento, e ainda menos penúria. O seqüestro parecia não     ter tido senão um fim o de humilhar a viúva e o nome do orgulhoso     membro da nobreza.

Bem depressa porém outras foram as impressões.

A luz do luar, alongando-se pela sala em forma de um vasto lenços     da largura da janela, mostrou-lhe a porta da alcova aberta, e lá dentro     um vulto de grandes dimensões que aparecia, como uma larga mancha escura,     no fundo da parede. Era a cama do casal ausente. do casal que nunca mais se     de juntar havia ali, cama altaneira, ao paladar do tempo, para a qual se subia     por degraus. Estava nua, mas tinha o estrado em ser.

Lourenço parou defronte dela: contemplou-a por instantes; chegou     a comover-se. Aquela armação parecia-se mais com uma eça     do que o teto de um leito onde a tranqüilidade e o repouso deveram ter     dado momentos de suave satisfação. Os bons tempos tinham passado     por cima daquela árvore de felicidade, tinham-lhe levado os adornos     e elegância, filhos da posse e condição dos cônjuges,     e tinham-lhe deixado os ramos nus, secos e desgraciosos, representavam o arcabouço     da passada existência, outrora vestido de lençaria, sedas e damascos,     agora mal coberto por tecidos de outra espécie os que fabricavam no     escuro e no silêncio as aranhas, essa industriais dos bairros despovoados.     Era a imagem viva do casal já desfeito em parte pela morte. Figurava     a viúva reduzida à extrema pobreza, desataviada, recolhida,     em escuro canto e condição. Tudo o que fora grandeza e soberba     desaparecera com o finado consorte.

Logo que se desvaneceu esta primeira impressão que não podia     durar muito, porque o momento não era para reflexões filosóficas,     nem o cérebro do rapaz comportava larga meditação, ocorreu-lhe     a idéia de passar a noite na própria cama diante da qual se     achava.

Mas agora eis que lhe surgem novos escrúpulos no curto espírito;     nova luta vem aí travar-se: vem o respeito pueril dizer-lhe que não     devia ocupar o lugar que pertencera a tão nobres e respeitáveis     pessoas. Pareceu-lhe que o vulto do sargento-mor surgiria diante dele, com     a usual arrogância, para tomar-lhe satisfação da sua ousadia.

— Deitar-me na cama de seu sargento-mor! advertia ele dentro de si     mesmo. Dormirei em ouro lugar, naquele estrado, ou naquele canapé.

Antes de se decidir por qualquer dos móveis indicados, chegou-se     à janela para ver se havia alguma novidade da banda de fora. Era tudo     silêncio e imobilidade. Abaixando a cabeça para o lado da cavalariça,     e prestando atenção como quem escutava, pareceu-lhe ouvir longe,     longe, o estalido do milho quebrado pelos forte molares do cavalo. A lua estava     no horizonte, e mal esclarecia a paragem com a sua alva luz enfraquecida.     Ao cabo de pouco mais a escuridão dentro do sobrado seria completa.

Lourenço voltou-se para a alcova, e ganhou resolutamente a cama.

Por um fenômeno fisiológico, que os sensualistas ou os materialistas     talvez expliquem facilmente, em lugar do vulto do sargento-mor, o que surgiu     na fantasia do rapaz, foi a imagem da viúva, conjunto de perfeições     humanas. Deitar-se na mesma cama onde ela se deitava, afigurou-se-lhe o mesmo     que ter a gentil viúva ao seu lado. A intimidade com um objeto de pessoa     que consideramos acima de nós, parece dar-nos a intimidade com o próprio     dono dele: abate as barreiras, enche os abismos que nos separam.

Ilusão ou fenômeno natural, Lourenço sentiu-se imediatamente     outro. Acenderam-se-lhes as paixões, determinando-lhe estremecimentos     nervosos. Ofegava, como se a imagem da formosa mulher fora uma realidade,     e esta ali estivera com o calor, a suavidade da pele, a voluptuosidade do     amplexo e do ósculo, produzindo nele a excitação, ou     antes estimulando-lhe as sufocantes ambições da carne. Lourenço     pensou em tudo o que a natureza põe nas formas da mulher bela para     adoçar no homem, por instantes, as agruras deixadas pelo trabalho,     que é a sua lei fatal, pela inveja dos outros homens, pelas injustiças     da sociedade, enfim pelas misérias da comunhão exterior, que,     se em certos casos protege e ampara, em outros gera crenças veneráveis,     destrói incentivos nobres, desnorteia e avilta afetos que devia encaminhar     e ajudar a subir, bafeja ruins paixões que desenvolve indiretamente,     comunica a bons corações o vírus da sua perfídia,     ensina maus caminhos pelo seu exemplo, planta a semente do egoísmo     onde havia o germe da generosidade natural.

A ilusão, casando-se com a lembrança, pôs na fantasia     do rapaz um quadro completo. Ele reviu, porventura mais vivamente, a cena     em que representara vinte e quatro horas antes, perto da casa do padre Antonio,     com a orgulhosa senhora de engenho. Sentiu novamente os braços, desta     vez com melhor consciência, porque em lugar do inesperado de então,     tinha agora o conhecimento prévio e a sensação antecipada,     sentiu o doce contato do corpo de D. Damiana, inteiramente entregue ao seu     corpo. A precipitação com que atravessara a estrada e fora bater,     sobressaltado e aflito à porta da palhoça onde já dormia     Marcelina, não lhe tinha dado, além disso, ocasião para     bem apreciar os atrativos daquela que carregara em desmaio. Esses atrativos     desenhavam-se agora, no fundo sombrio do quarto, como se fora iluminado em     tela; e ele via-os distintamente, um por um, cada qual mais encantador, ou     fossem os grandes olhos ternos que ela pusera nele quando tornou a si, ou     fossem os espessos cabelos negros que pelos ombros se lhe espalharam, ora     cobrindo, ora descobrindo o colo anelante, ou fossem as mãos afiladas,     aristocráticas, frias, em que ele pegara trêmulo e comovido,     ou fossem sobre todos os outros atrativos, o corpo nem muito pobre nem muito     rico de carnes, mas muitíssimo graciosos, pelas curvas brandas, pela     flexibilidade comparável à das hastes das plantas novas que,     ao mais leve toque da viração, se inclinam, e tornam logo à     sua natural atitude.

Lourenço viu tudo isto, ora vagamente, ora permanentemente, sem poder     ter diante dos olhos outra visão.

Não dormiu um só instante, posto houvesse levado a noite neste     sonho fantástico e ideal.

Quando menos pensava a primeira claridade do dia penetrou na câmara.

Passara toda a noite lidando com a viúva do sargento-mor, no dormir     mais original que ainda tivera na vida.

 

Aos vinte e três anos de idade por grandes que sejam os dissabores     e desenganos, ninguém pode impor às suas próprias paixões     que se não agitem. O coração, como o cérebro,     rege-se por leis impreteríveis. Ora, a primeira, ao menos, uma das     principais dessas leis é a linguagem prática da força,     resistência às adversidades, confiança no volver dos dias,     esquecimento das dores passadas, fé  não encontro outra     palavra que tão bem designe o poder de não cair aos golpes dos     acontecimentos, e de arrostá-los com intrepidez  fé nas     energias físicas e nas aspirações espirituais, que diz     interiormente, com acentos proféticos: Não esmoreças,     não enfraqueças. És moço, resiste, vence as dificuldades;     luta com as resistências que se atravessam. Não vês no     mundo, no passado, na história, nos teus dias, não vês     os moços dominando terríveis oposições, porque     eles têm força, porque os seus músculos, os seus nervos,     o seu cérebro ainda têm vigor para muitos anos, para muito tempo,     e os anos  e os tempos mudam as circunstâncias, matam inimigos,     fazem surgir amigos novos, fazem aparecer outros merecimentos, criam novas     recomendações, restabelecem o império da justiça,     que é a lei em virtude da qual cada um deve adquirir aquilo que vale?     

  D. Damiana era um poço de desgostos. De uma alta representação   na vila onde nascera, caiu na planície da pobreza, afundou-se na obscuridade.   Às sedas e aos brilhantes substituíram-se-lhe jóias e roupas   da viuvez. Os sorrisos que soíam entreabrir-lhe os lábios, quando,   para comemorar datas distintas se reunia em sua casa a primeira nobreza no lugar,   haviam desaparecido sob lágrimas silenciosas e longas, que lhe desciam   agora pelas faces cobertas de mortal palidez. É fácil imaginar   o desgosto que lhe acarretara a súbita transformação.  

 

Mas uma jóia, um tesouro, havia ficado com ela. Por não lho     poder arrebatar a morte do marido, a ausência dos parentes, as injúrias     da plebe amotinada e capitaneada pelos inimigos da nobreza, o seqüestro,     a rápida mudança de uma existência talvez de fausto para     uma existência que estava ao nível das que sustenta a caridade     particular; essa jóia, esse tesouro, eram os seus vinte e três     anos; era a musculatura nova; eram a s carnes rijas, o sangue puro, o coração     sem lesão, a massa encefálica forte, funcionando regular e plenamente.

Para quem está em semelhantes condições, a resignação     não tarda, e a resignação em tais casos é o ressurgir     das esperanças um instante submersa no mar dos contratempos. D. Damiana     conformou-se. As fadas amigas, nas quais se acreditava então, praticando     com ela em misterioso e secreto dialeto, tinham lançado no seu espírito     estas idéias: Pensarás que o mundo se acabou para ti, com a     morte do teu marido, com a perda dos teus bens? Enganas-te. Tens beleza, e     estás na flor da vida. Se choras hoje, amanhã poderás     ter nos lábios sorrisos novos, mais louçãos talvez que     os que perdeste. Se estás agora na miséria, poderás daqui     a pouco voltar à abundância, e reergueres o cetro que te caiu     da mão.

D. Damiana acreditou nestas vozes lisonjeiras, que não eram vozes     de fadas, porque as fadas, como anjos, ou diabos, ou quaisquer influências     de semelhante natureza, nunca existiram senão nas superstições     dos tempos ignaros que precederam os nossos mas, sim, eram a linguagem natural     da consciência, enriquecida e esclarecida pela observação     e pelo conhecimento da vida.

Por singular coincidência que não é, todavia, difícil     explicar, não ouviu elas advertências íntimas senão     depois de ter visto Lourenço. Não era ele o testemunho vivo     e irrecusável dessa verdade? De pobre e humilde, que fora, não     se ia tornando de pouco a pouco outro, quer quanto às suas posses,     quer quanto à sua condição? Não havia achado um     protetor  o fazendeiro desconhecido, que talvez fosse seu pai visto     que tinha para ele extremos de afeto e liberalidade pouco comum? Esse desconhecido     não poderia dar-lhe mais tarde tudo o que era seu, e definitivamente     afiançar a sua completa independência? Assim como por uma volta     inesperada a sorte se tornara propícia para quem dantes rastejava no     pó dos caminhos, por que somente para ela, Damiana, havia de ser implacável     e imutável? Não era possível que dentro de pouco tempo     outra revolução rebentasse contra o governador Machado, a exemplo     do sucedera ao seu antecessor, Sebastião de Castro Caldas?     Quem me diz  ponderava consigo a viúva  quem me diz que,     de posse novamente dos meus bens, hoje no poder da justiça ou de terceiros,     não  se me deparará outro marido, que me levante da humildade     em que ora jazo?     Absorta nesta ordem de idéias, por entre as quais o vulto do rapaz     se mostrava na vaga recordação da cena do terreiro, estava D.     Damiana sentada à porta do sítio, com as vistas embebidas no     laranjal verde e florido que o sombreava, quando pressentiu que se avizinhava     alguém. Voltando os olhos, deu com Lourenço, que vinha chegando     do engenho.

Vaga impressão de satisfação sentiu a viúva,     descobrindo o rapaz. Durante a noite, sem que ela o quisesse. pensara mais     de uma vez nele. Fora triste a sua principal idéia. Temia que lhe acontecesse     qualquer desastre. Se o prendessem, que seria dela e das outras mulheres?          O seu semblante, talvez por isto, talvez por nascente interesse que a ia prendendo     ao rapaz, traiu o prazer íntimo que a vista dele produzira nela. Quanto     a Lourenço, trazia no rosto uns longes de palidez, nos olhos brilho     único e a modo de amortecido que lhe não eram usuais.

Bom dia, sinhá D. Damiana  disse ele à viúva.

Esta, sem se poder dominar, já tinha dito antes:     Graças a Deus que te vejo, Lourenço.

Por que diz vosmecê esta palavra?     Porque... porque estes tempos estão cruéis. A gente deita-se     livre, e acorda na prisão.

Teriam andado aqui em busca de mim?     Não, porque não sabem talvez que está no Cajueiro; mas,     a idéia de que andam nas tuas pisadas, não me deixa o espírito.     A cada canto parece-me ver inimigos e perseguidores.

Lourenço mostrou-se satisfeito com estas palavras, que acusavam da     parte da viúva solicitude para ele.

E como sem consciência, tornou irresistivelmente:     Eu também levei toda a noite pensando em sinhá D. Damiana.

Cuidavas, talvez, que me dariam na casa, que viriam fazer-me novos insultos.

Cuidei em tanta coisa, que nem vosmecê sabe. Cuidei em tanta coisa,     em tanta coisa, meu Deus!...

De repente, acrescentou:     Vou ver minha mãe como amanheceu. Vou dizer-lhe que os cabras me deixaram     em paz por esta.

A primeira pessoa que o rapaz viu sentada à porta da palhoça,     com os olhos na direção donde ele ia, foi Marianinha. Pouco     depois apareceu Marcelina.

Deitei-me com o credo na boca, Lourenço. Deus te abençoe.     Deixa-me tomar um fôlego bem comprido, que levei toda a noite com um     peso no coração.

Marianinha disse somente que não era bom Lourenço andar pelas     bandas da casa do padre Antonio, porque os mascates que deviam ter os olhos     na negra de D. Damiana, podiam vê-lo e prendê-lo. Marcelina achou     razão no que dizia Marianinha, mas Lourenço dissipou estes receios,     observando que quando tivessem que cercar a casa, haviam de vir de noite,     e não àquelas horas.

Na manhã seguinte, voltando Lourenço do sobrado, foi sabedor     de uma novidade que o abalou; a casa onde residia D. Damiana tinha sido cercada     de noite, e haviam arrancado de dentro a negra Felícia.

Para ostentação do pouco caso, realizou-se a diligência     à luz de fachos, e com grande acompanhamento; e para melhor fundamento     desta publicidade, haviam feito correr antes voz de fama que naquela casa     estavam acoitados, além da negra, todos os escravos que tinham fugido     para o mato, logo que a estrela do sargento-mor empalidecera.

Os esbirros varejaram todos os cantos e recantos, não só da     casa principal, mas também de todas as palhoças da redondeza.     Na de Marcelina a busca foi miúda e paciente.

O troço  já se sabe, mas devo repeti-lo, ainda com     o risco de me tornar enfadonho  era composto, em sua maior parte, da     ralé que formava o esquadrão do Tunda-Cumbe. Informado de se     planejar aquela diligência, tinha vindo expressamente do rancho do Cipó,     a porem por obra as suas maldades, esses vagabundos organizados em um corpo     numeroso, que chegava aos pontos mais importantes da vasta região das     matas, isto é, daquela região onde se mostravam situados os     duzentos  e cinqüenta engenhos que se contavam em Pernambuco. Tristes     e lastimosos tempos eram estes, em que “a vil e pífia canalha     vagabunda tinha permissão de entrar pelas fazendas e moradas destituídas     do poder que as defendesse, a decompô-las, e roubá-las, como     por ofício, sem respeito à nobreza dos donos, nem ao decoro     das venerandas matronas, nelas assistentes, sem armas, sem forças e     sem socorro algum que as amparasse(2). Medonhos tempos em que “metidos     os nobres pelos matos, suas mulheres, suas filhas e famílias em triste     desamparo, o Camarão e o Tunda-Cumbe roubavam nas campanhas, matando     cada qual por sua parte bois, vacas e criações, e corriam e     revolviam os interiores mais recônditos das casas principais de Pernambuco,     sem cortesia, nem respeito às suas donas(2).

D. Damiana mal pôde resistir ao golpe de lhe tirarem a escrava. Tinha     visto, cheia de coragem, ir-se toda a sua fortuna; mas aquele pequeno resto,     que era quase metade da sua existência, atento o estado em que se achava     posta, não pôde vê-lo desaparecer de seu poder, sem cair     de cama.

O desacato, conquanto previsto, e a tristeza em que encontrou a senhora     de engenho, sugeriram a Lourenço um pensamento que se deu pressa a     realizar. A escrava foi logo arrematada por um senhor de engenho dali perto.     Com ele entendeu-se Lourenço; e com o dinheiro que lhe dera o padre,     e um pouco das economias destinadas por Marcelina para a compra de um sítio,     recomprou a Felícia. É inútil dizer da satisfação     de D. Damiana, ao ver entrar novamente em casa a sua escrava de estimação.

Obrigada, obrigada, Lourenço, disse, sentindo algumas lágrimas     umedecer-lhe os olhos. Restituíste-me uma parte da minha tranqüilidade,     do meu sossego.

Este ato foi origem de novas alterações no Cajueiro. Marianinha     que notara grande frieza no rapaz, sentiu aumentarem-se as suas suspeitas     e ciúmes.

Uma manhã, voltando Lourenço da casa de engenho, onde continuava     a pernoitar, porque mais do que nunca se receava de ciladas, viu na beira     da estrada, no ponto que ficava justamente fronteiro à casa de D. Damiana,     uma mulher sentada. Era a filha de Joaquina.

Que está fazendo aqui, Marianinha?     Por única resposta, disse-lhe a rapariga:     Olhe, Lourenço: há muito que tenho tenção de lhe     dizer os meus sentimentos. Você é muito ingrato para mim.

Marianinha, você parece que não está em seu juízo     desde que cheguei.

É verdade que não estou. Vivo triste sem gosto de nada. Desde     que essa mulher veio morar aqui, foi-se embora a minha esperança. Vejo     tudo cor de carvão.

Que mulher?     Que mulher! Faça-se desentendido. Você bem sabe a quem é     que me quero referir.

Tenha juízo, Marianinha. Você está ofendendo com suas     palavras uma dona que não é qualquer. Você está     dizendo coisas à toa.

Estou dizendo o que o meu peito sente.

Mas eu é que não estou para ouvir coisas que não devo.     Que tenho eu com o que seu peito sente?     A rapariga inclinou a cabeça. Não teve outra resposta senão     o silêncio e as lágrimas.

Não chore, tornou-lhe o rapaz. Não sei o que querem dizer     estas lágrimas.

Esta fingida e calculada ignorância de Lourenço, irritando     os melindres da matutinha, deu-lhe ânimo para retorquir, com a cabeça     erguida, em atitude de quem exprobrava:     Querem dizer que a sua ingratidão atravessa o meu coração     como faca de matador; Bernardina, desgraçada no princípio, vai     ter um marido, vai ter sua casa; eu sou mais desgraçada do que ela,     porque estou vendo me roubarem aquele que me pertencia.

Eu nunca lhe pertenci, Marianinha.

Dizendo isto, com maus modos, deu o andar, deixando a rapariga sem pingo     de sangue nas faces, porque todo ele lhe refluíra ao coração     pela impressão nervosa.

No dia seguinte, Lourenço não a encontrou ali; mas, no outro,     lá estava, quando ele atravessou a estrada, mais tarde do que costumava.

Logo que seus olhos deram na filha de Joaquina, Lourenço encaminhou-se     diretamente para ela, e, com modos ainda mais rudes do que da outra vez, falou-lhe     neste termos:     Marianinha, não faça mais isto, não faça. Devo-lhe     alguma coisa, para você ficar aqui à espera?     Não me deve nada, mas quero vir vê-lo.

Visivelmente contrariado, tornou-lhe Lourenço:     Não estou para semelhantes impertinências. Não quero que     me espiem, nem é bonito você ficar aqui à beira da estrada,     onde passa tanta gente.

Mas, ela respondeu-lhe com brandura que quase o enterneceu:     Não se zangue, Lourenço. Eu não lhe mereço ingratidões,     o que eu lhe mereço são outros sentimentos. Nós podíamos     ser tão felizes...

Felizes? Você é que está na obrigação     de buscar a felicidade para mim, ou sou eu mesmo que a devo buscar?     Não se zangue, Lourenço  repetiu ela. O que eu defendo     não é a sua, é a minha felicidade, que me querem tirar.     Eu a tinha no coração; mas isto não valeu nada. Daí     mesmo a estão arrancando.

Passando adiante, Lourenço deixou-a ainda mais chorosa que no outro     dia.

No momento em que a rapariga voltava à sua palhoça, Joaquina     procurava-a na de Marcelina.

Já não é esta a primeira vez que Marianinha me deixa     só, e vai meter-se não sei onde. A rapariga anda tão     triste que tenho medo de alguma coisa.

Não adivinha você o que é isto? inquiriu Marcelina.

Que será?     Vontade de casar-se.

Não duvido.

Marianinha não se esquece de Lourenço.

Lourenço é uma grande pessoa. Se eu visse minha filha casada     com ele, considerava todos os meus gostos satisfeitos.

Eu tenho muito desejo de vê-lo casado. Na idade dele o homem perde-se     depressa, se não se casa logo. Ora deixe estar que eu hei de falar     a Lourenço, sobre este negócio. Mas não vá dizer     nada à menina. Nestes dois dias direi o que se passar.

Marianinha, ao princípio, quase inteiramente desorientada com o que     acontecera, tomou, por fim, uma dessas resoluções heróicas     que somente o amor sugere, estimulado pelo ciúme.

Hei de vencer Lourenço pela minha constância.

Firme nesta resolução, foi esperá-lo no ponto onde     costumava.

Lourenço tinha passado a manhã mais feliz da sua vida. Os     seus colóquios com a senhora de engenho nada ofereciam digno de reparo;     eram sempre sustentados em termos respeitosos e discretos; a coragem de Lourenço     enfraquecia perante a idéia de revelar a sua mais preciosa eleição.     Ele e D. Damiana conversavam sobre a guerra, as perseguições,     as ocorrências do tempo. O prazer de Lourenço resumia-se em ver     a viúva tão graciosa, em ouvir-lhe as palavras tão bonitas:     o rapaz vivia encantado pela companhia. A viúva, do seu lado, gostava     de ver o rapaz, cujo rosto adquirira grandes atrativos; gostava de admirar     nele uma grande ânimo.

Tanto em um como no outro, o que havia, quando assim se embebiam em mútua     e branda contemplação, não era senão amor; mas     esse amor não sabia como se declarar; era um amor original      receio e respeito de um lado, superioridade, altivez, gratidão do outro.     Era um amor que ainda não havia amadurecido  eis a verdade.

Lourenço fora feliz naquela manhã, porque, da conversação     com D. Damiana, notara de parte dela menos altivez, mais benevolência.     mais intimidade, e certas revelações de ternura que, conquanto     sem a penetração que a educação gera ou aguça,     o rapaz interpretou como a confissão tácita de lhe ir dando     posse do seu coração.

Vinha ele absorto na consideração de tão grande bem,     quando, pela terceira vez, descobriu Marianinha no ponto sabido.

De chofre, passando da satisfação ao dissabor, apressou o     passo para aquele lugar. A sua exaltação revelou-se-lhe tão     vivamente no rosto, que a rapariga tremeu imediatamente do passo que tinha     dado.

Lourenço não pôde dominar-se. Os seus instintos animais,     tanto tempo adormecidos, acordaram impetuosos, e ofuscaram-lhe, por assim     dizer, o discernimento. Com a violência que tinha quando lhe chegavam     estas temíveis manifestações da índole bravia,     pegou no braço da rapariga, como se fora um galho de árvore     que quisesse arrancar.

Lourenço! gritou ela aterrada. Que é isto, Lourenço?          Ainda pergunta?     A voz soturna foi um novo motivo de pavor para a rapariga,     Não lhe disse que não viesse mais aqui?     Foi o ciúme, o ciúme...

Ciúme!  clamou ele irando-se cada vez mais  Se para     me ver livre de quem tanto me aborrece, for necessário fazer uma morte,     hei de fazê-la, hei de fazê-la.

Não me mate, Lourenço  suplicou a rapariga em pranto.

Mato-te, sim. Não quero mais enxergar-te diante dos meus olhos.

Vendo no mesmo instante, luzir a faca na mão do almocreve, Marianinha     empregou os esforços que pôde para soltar-se. Lourenço     correu atrás dela, e chegou a feri-la covardemente pelas costas. O     mais vil assassínio ter-se-ia consumado, se a rapariga não alcançasse     logo a palhoça.

Lourenço parou à porta, enquanto Marcelina e Joaquina tomavam     nos braços a moça banhada em sangue.

Que loucura foi esta, Lourenço. Dize-me, por que fizeste esta ação     tão feia? Virgem da Conceição! E eu que cuidava que estavas     curado do teu mal natural, desgraçado filho.

De outro lado, Joaquina, indignada, horrorizada, dizia, com a valentia das     mães ofendidas:     Pela minha benção, te peço, filha, que não olhes     mais para este homem. Esquece-te dele, filha de minha alma.

Lourenço esteve um momento em silêncio, contemplando a sua     triste obra. Pouco a pouco, a sua exaltação foi moderando, a     sua loucura transitório foi cedendo lugar à consciência.

Caiu em si. A palidez dos finados tomou-lhe as faces. Enfiado, envergonhado,     arrependido, deu o andar para onde estava Marcelina, e disse-lhe, pondo as     mãos, em atitude de quem suplicava:     Não chore, não chore, minha mãe. Estou arrependido.

Pois não hei de chorar, quando te vejo dar tão triste cópia     de ti?!     Perdoe-me, minha mãe. Eu sou um animal, uma fera. Não pensei     no que fiz. Tudo isto se acaba, deixando eu o Cajueiro. Vou-me embora, vou-me     embora. Se eu já tivesse ido em busca de meu pai, não aconteceria     isto agora.

Abraçou Marcelina e saiu enxugando os olhos.

 

No mesmo dia em que se deu este triste caso, um cavaleiro, acompanhado de     vistosos pajens, descavalgou, por volta de três horas da tarde, à     porta de D. Damiana.

Não me esperava por aqui agora, prima?  perguntou ele, logo     que avistou a senhora de engenho.

Esta correu para o recém-chegado. Abraçaram-se com efusão:     lágrimas de contentamento orvalharam os olhos da viúva.

Por aqui, Amador?! Eu tinha já uma carta escrita para lhe mandar.

Então pensava que não nos tornaríamos mais a ver?     Que poderia eu pensar, sendo tão crus os nossos inimigos? Só     milagre.

Amador sorriu ironicamente.

Sim, milagre foi; milagre do deus-açúcar, ou antes, do deus-dinheiro.     Não me compreendes, prima? Não sabe que Cristovam de Holanda,     nosso parente, preso pelo Bacalhau a dezoito caixas de açúcar,     de que abriu mão a sua mulher, deve o ter voltado à sua liberdade?(6)     Não sabe que o mesmo milagre se reproduziu com André de Abril     de Souza, Antonio Cavalcanti Bezerra e outros? (6) É um deus todo poderoso     o deus-açúcar: Félix José Machado rende-lhe o     culto especial que não tem para o verdadeiro Deus  aquele que     o há de punir pelos seus crimes. Ao deus-açúcar devo     também a minha salvação.

Amador tinha entrado. No exterior dava logo a conhecer que ele se tratava     à lei da nobreza. Um pouco empertigado, um pouco arrogante, olhando     por cima do ombro, era o mesmo que dantes. A prisão não lhe     abatera a vaidade. Solto, parecia mais orgulhoso do antes de ser preso,     Percorrendo as vistas por sobre os objetos que cercavam a cunhada, e somente     descobrindo neles humildade e modéstia, não pôde fugir     de observar, com acento de moralista:     Mas, em que estado a venho encontrar, prima! A última vez que a vi     foi ao lado do mano João. Tinha você todos os mimos da felicidade     e da nobreza. Venho agora achá-la só, vestida de luto, quase     desamparada neste ingrato ermo. Reveses da sorte. Mas Deus é grande.     Quando você nem mais se lembrava de mim, entro-lhe pela porta, para     velar pelo seu destino. Nada lhe faltará de hora em diante. Estou livre,     outra vez livre.

Por ocasião do jantar, Amador desenrolou aos olhos da cunhada o tristonho     quadro das perseguições e rigores.

Principiou contando-lhe o que ele próprio sofrera de Luís     Brás, o famigerado carcereiro das Cinco-Pontas.

Luís Brás é a imagem fiel dos ministros, seus superiores     na hierarquia, seus iguais nas perfídias e manhas. O seu Deus já     não é o deus-açúcar; também não     é o Deus d’Abrão, mas o deus-dobrão. Os grilhões      “feitos a molde de tormento e de martírio, porque não     têm mais de um palmo, para impedir aos presos o andar, com o ferro quadrado     e farpado para ferir, os elos tão justos que a alguns presos fazem     inchar as pernas, os grilhões, inventiva do ministro da devassa, realizada     pela Câmara, enchem as mãos de Luís Brás de alourado     fruto. “Sem mais ordem de justiça, ele bota nos presos para,     a preço de moedas d’ouro, se livrarem deles. Outras vezes, “quando     quer que lhas dêem, ameaça-os com eles, o que não produz     pequeno lucro. Nenhum dos presos logra escrever duas regras a quem quer que     seja, sem pagar a este fiscal da tirania o costumado imposto. “As boas     festas que Luís Brás dá aos presos nas ocasiões     e dias delas, é convidá-los para grilhões, inventando     novas ordens para botá-los, a fim de haver por este modo, em câmbio,     moedas d’ouro, porque mais que este, valem em sua mão os ferros.     A este cão da porta do inferno, porque inferno é a prisão     das Cinco-Pontas, paguei eu o tributo extorquido pela fereza e perversidade.     Provei dos seus grilhões, enchi-lhe do meu ouro as mãos. A carta     que escrevi à prima, participando o falecimento de seu marido, custou-me     seis moedas d’ouro. As pernas, trago-as ainda inchadas do tormento infernal,     mais rendoso que um engenho ou uma fazenda. Imagine a prima, pelo que rapidamente     lhe estou narrando, o que não padeceram as onze vítimas que     compuseram a primeira remessa para Lisboa, o que padeceram André Dias     de Figueiredo, Bernardo Vieira de Melo, Cosme Bezerra, Cosme Bezerra Cavalcanti      nosso primo, João de Barros Correa, José Tavares de     Holanda, Leonardo Bezerra Cavalcanti, Lourenço da Silva e Manoel Bezerra,     ilustres mártires em que o governador e os infames ministros primeiro     ensaiaram a sua sanha.

D. Damiana escutava, atenta e comovida, esta rápida relação     dos padecimentos infligidos aos nobres pelos instrumentos do governador. Por     vezes benzia-se, de assombrada do que ouvia, e em que dificilmente queria     crer.

Amador prosseguiu:     Com a chegada do desembargador Cristovam Soares Romão, que veio substituir     Bacalhau, a sorte dos nobres, se não piorou, não melhorou. Tínhamos     visto passar os pés de um cadáver com um sovelão, para     verificarem se a morte fora real ou mentida, como fizeram ao respeitável     capitão-mor João de Barros; tínhamos visto meterem no     subterrâneo das Cinco-Pontas o licenciado David de Albuquerque, porque      “sendo advogado insigne e perfeitíssimo, conhecido por tal, e     finalmente homem grande nas letras, temeram o governador e o ouvidor que por     seu conselho viessem a pagar o mal que a tantos sem razão estavam fazendo      um homem quase morto, chagado e sem mãos para servir-se; tínhamos     visto mandarem matar o crioulo do Capitão Nicolau Pereira, cortarem-lhe     a cabeça, levarem-na ao ouvidor, e receberem deste 3$ de gratificação,     por haver aquele crioulo  instrumento da justiça divina      tirado a vida ao malvado bandido Pedro de Lima.

Pedro de Lima! exclamou a viúva . Já me pagou os insultos     e ousadias.

... Tínhamos visto todas estas estranhezas, sem contarmos as prisões,     os seqüestros, os despotismos contra a nobreza; e parecia-nos que o novo     ministro, conquanto de muitos conhecido por apaixonado e ambicioso, viria     pôr cobro a tamanhos desatinos; mas os males não tiveram termo,     prima; a ambição e o ódio não desapareceram da     face de Pernambuco: Cristovam Romão seguiu o caminho de Marques Bacalhau.     Um dos seus primeiros passos foi instar para que fossem embarcados os onze     mártires, que a esta hora, talvez, já tenham sido degolados     em Lisboa. Tratou depois da devassa, na qual ouviu como testemunhas, hoje     um mulato, amanhã um cativo, um vil, um destinado, e com esta madeira     erigiu a execrável fábrica destinada a servir de cadafalso à     nobreza. O capitão Antonio Bezerra foi recebido a toque de charamelas     pelos mascates, regozijados da sua prisão. O Capitão Francisco     de Freitas andou quatorze léguas, presas as mãos ambas nas algemas.     Por impedir que os nobres se entendessem, foram estabelecidos presídios     em vários pontos, dos quais não passam os passageiros, sejam     brancos ou pretos, clérigos ou frades, por não terem licença     de ir adiante, nem ainda de voltar para trás, por mais que o desejem;     somente em Tracunhaém se contam nove. E porque o ódio ainda     não se sentia satisfeito, ordenou o governador que o Tunda-Cumbe, com     trezentos e sessenta vagabundos, se unisse com o Camarão e seus trezentos     índios, para baterem novamente as matas, com cães de caça,      “a fim de levantarem aos que, por fugirem dos homens, se haviam acolhido     ao trato das feras. Neste exercício passaram largos dias sem verem     rasto de pessoa alguma, andando mais de quatrocentas escondidas, e nem de     todas as que chegaram a esconder-se puderam prender-se jamais algumas, porque     não eram no mato tão afoitos os que as buscavam, como nas casas     onde sabiam não haver mais poder que o das mulheres! Prima, o que têm     feito contra a nobreza os portugueses europeus com o seu ouro e os seus instrumentos     de baixa ou da alta origem, nunca havemos de esquecer.

Amador sobresteve, um instante. Tinha os olhos inundados de estranho e insólito     brilho. Depois continuou:     Cinco dias passou sem comer, o capitão-mor Matias Coelho, dentro de     um pau oco sem dele sair; e o Capitão Gonçalo Carneiro, homem     de mais de setenta anos, outros cinco esteve debaixo da terra em um caixão     bem coberto, ficando parte dentro de uma casa e outra parte fora dela, sem     ser visto, aberto para ter entrada o ar. O sargento-mor Domingos Coelho Nunes     assistiu a uma temporada no meio do Capibaribe, entre umas lapas, sem mais     comércio, nem mais trato do que com as águas do mesmo rio, e     um filho que lhe levava o sustento. Prima, a valentia dos pernambucanos em     lutar com todos os inimigos que esta guerra assanhou como fim de abater egrégias     tradições, tem-se manifestado por vários modos que eu     me sinto insuficiente para dar a conhecer.

Em idêntica recordações levou Amador o resto do dia.

Na manhã seguinte, deixando o campo das divagações,     e mostrando-se mais ligado aos interesses da família, disse à     cunhada:     Não lhe parece ser tempo de tratarmos da nossa ida?     Devo dizer-lhe, Amador, que, perdendo meu marido, encontrei uma proteção     amiga  respondeu D. Damiana.

Esta declaração encheu-me de satisfação; mas     devo também dizer-lhe que, vindo a Goiana, não tenho outro fim     senão levar você comigo para o seio de minha família,     que não é senão a sua mesma,.

D. Damiana não disse uma palavra. Notando este silêncio, acrescentou     Amador:     Esteja pronta no mais breve tempo que for possível. Precisam muito     de mim no meu engenho. Não posso demorar-me aqui senão o tempo     necessário aos aprestos da partida.

Primo  tornou-lhe D. Damiana  muito lhe agradeço o     seu desvelo; mas não estou resolvida a deixar Goiana. Por que razão     deixarei a terra onde nasci? Bem sei que estou pobre, porque tudo me roubaram     os perseguidores da nobreza; mas, bem depressa me conformei com a adversidade     e vivo hoje tranqüila neste ermo, sem outra cobiça senão     a de continuar viver nele. Você não conhece os tesouros de ternura     das pessoas que me receberam na sua companhia. Marcelina, aos respeitos que,     por sua condição obscura, julga dever ter para mim, ajunta afetos     que me lembram os de minha prezada mãe; Lourenço, filho de Marcelina,     não sabe onde me ponha; a solicitude dele para mim não se pode     avaliar. Entre os meus, Amador, nunca encontrei nem hei de encontrar mais     verdadeira estima.

Estas palavras, impondo silêncio ao irmão de João da     Cunha deram-lhe que pensar por alguns momentos.

Horas depois, voltou ao mesmo assunto, outra era a expressão do seu     rosto, o tom da sua voz.

Disse:     Em poucos meses, prima Damiana, aprendeu você uma lição     que é a repulsa viva e absoluta de todas as lições da     nossa família e da sua vida passada. Muito pode a adversidade; seja,     porém, qual for a sua conformidade com as circunstâncias que     tanto lhe mudaram os sentimentos, devo declarar-lhe que não acho para     isso explicação razoável. Compreendo, e todos compreendem,     que, tendo você o espírito elevado e o coração     católico, as vicissitudes da sorte gerassem nele menos o desespero     que a resignação, e que você visse nos últimos     infortúnios largas ocasiões oferecidas por Deus, para dar provas     das grandes qualidades de que é dotada. O que nem eu, nem você,     nem ninguém poderá explicar, é este enfraquecimento dos     laços que a ligaram por tanto tempo a uma vida distinta e limpa. Nem     ainda é isto o que mais me admira. Quer saber o que me parece verdadeiramente     misteriosos e incompreensível: É a sua indiferença às     relações da família; é o seu desapego aos afetos     que sempre lhe tiveram os seus parentes, e, entre estes, eu sobre todos.

Mas, quem lhe disse, Amador, que sou indiferente à sua benevolência,     às relações da nossa família? Será prova     de desamor querer viver no retiro?     Não, é o retiro o que se lhe pode estranhar, prima. É     natural que, havendo perdido aquele a que, deve o seu maior lustre, busque     ocultar do mundo as suas lágrimas. O que não é natural     é que você troque pela proteção que lhe devem os     parentes, a que, por caridade, lhe dão humildes estranhos. Isto é     inexplicável. Atente bem nisso, prima. O mundo tem mil bocas maldizentes.     Vendo você viver às costas de uma família anônima     e pobre, o mundo há de ter para mim os maiores baldões. Não     há de faltar quem diga que, à baixeza minha, e não ao     seu capricho na realidade difícil de compreender, se deve o fato de     ficar você vivendo de esmola, quando eu disponho de largos meios.

D. Damiana foi sentar-se mais perto de Amador.

Amador, disse-lhe com voz suplicante, que interesse tem você de privar-me     de uma ilusão que me resta na vida? Quero ter toda a franqueza para     você. Tudo o que acabou de figurar, já me tinha passado antes     pelo espírito. O que o mundo poderá dizer de mim, já     o ouvi eu da minha consciência. Mas, Amador  por que não     lhe hei de dizer toda a verdade?  já não poderei viver     apartada desta família, sem sentir o coração despedaçado.     Não há muitos meses que estou aqui; mas, as cadeias que me prendem     a esta gente, são tão fortes, que se alguém as quebrasse,     quebraria com elas as veias do meu corpo, e não sei como poderia viver     depois disso. Sinto que não terei forças para libertar-me de     prisões que são hoje cordas do meu coração.

Amador em poucas horas estava informado de tudo. Soubera de Felícia     a história da restituição dela; soubera da triste cena     da estrada entre Lourenço e Marianinha. Suspeitou que este e a viúva     o amor os enleara em estreitos laços.

Ergueu-se, e deu alguns passo pela sala. Voltou-se depois para a cunhada,     em cujas faces a palidez se estampava. Fitou-a, não revelando ódio,     sim tristeza; não ira, sim, desdém.

Sra. D. Damiana  disse-lhe  se se tratasse simplesmente da     felicidade de uma mulher, fosse nobre ou mecânica, não seria     Amador Cavalcanti quem se interpusesse entre essa mulher e a fonte da sua     felicidade, posto que as mulheres, além de caprichosas, são     muito fáceis de cegar-se e acham muitas vezes grandeza de leão     no verme que rasteja pelo pó. Trata-se, porém, de uma mulher     que foi recebida por um nobre, como legítima consorte, digna do seu     nome e do seu sangue, à face da igreja e do mundo. Dobrada covardia     seria a minha, se eu fosse tão fácil em retroceder, quanto foi     fácil à senhora adiantar-se: como irmão desse nobre,     tenho o dever de afastar de sobre o seu nome uma mancha iminente. Se eu não     procedesse assim, seria mais vilão que o vilão que, valendo-se     da adversidade de uma senhora para quem nunca jamais devera erguer as vistas,     pode lançar no coração dela germes fatais, de que se     geraram serpentes peçonhentas.

A sua intenção é oculta, Amador. Seja claro.

Já compreendi tudo, sra. D. Damiana; de tudo fui sabedor: o mistério     de há pouco, penetrei-o. Aquele que morreu mártir de sua nobreza,     vai ter um sucessor que nem apelido tem. Os mascates não calcularam     com esta vingança, que muito mais os deve alegrar do que a própria     morte do sargento-mor João da Cunha. A viúva deste nobre será     amanhã mulher de um ente anônimo, que percorre as estradas de     Pernambuco, descalço e maltrapilho, vendendo os seus serviços     por muito menos dinheiro do que vendia outrora os seus a Tunda-Cumbe.

Meu Deus! Que está dizendo, Amador! Que fiz eu, que autorize a formar     de mim este conceito? O senhor ofende-me sem razão. Não preciso     das suas lições para saber respeitar-me.

Se esta desgraça houvesse chegado ao meu conhecimento, antes de me     ver outra vez livre, eu diria que Deus resolvera extinguir de todo a nobreza     de Pernambuco, pela prisão, pela morte, e pela infâmia. Não     posso compelir, porque não tenho esse direito, não posso compelir     a sra. D. Damiana a zelar a sua própria honra; a minha nobreza, herdada     de meus avoengos, aumentada com a educação que me deram meus     pais, impede-me de constranger a ter nobre procedimento qualquer mulher que     a não queira ter, ainda que essa mulher seja a viúva de meu     irmão. Mas, o direito de desprezar essa mulher, que é a primeira     a desprezar-se, este eu o tenho, e ninguém pode impedir-me de me o     exercitar. A sra. D. Damiana é livre; pode acompanhar-me, pode ficar.     O que, porém, lhe afianço é que Amador Cavalcanti saberá     perseverar na altura a que tem direito, e aonde não chegarão     jamais nunca os salpicos das lamas levantadas pelos animais dos arreeiros     ou pelos próprios pés destes.

Amador não deixou tempo para mais a D. Damiana. Voltando-lhe as costas,     chamou imediatamente por um dos flâmulos, e, em voz alta, deu-lhe ordem     a fim de ter os animais prestes para a volta, no dia seguinte, muito cedinho.

À noitinha, um vulto veio rompendo do fundo do sítio, e, conhecendo     gente demais na casa, esteve para voltar; pouco depois, tirou para a cozinha.     Era Lourenço que sem ânimo para deixar Goiana tornava ao Cajueiro.     Felícia informou-o de tudo. O rapaz quase perde o uso de suas faculdades     mentais.

Passada essa primeira impressão, tomou para a palhoça, onde     foi encontrar Marcelina chorando. Com a sua presença a cabocla reanimou-se.

Não imaginas o que tem acontecido nestas vinte e quatro horas. Joaquina     com a Marianinha mudaram-se das nossas vizinhanças; e sinhá     D. Damiana segue de madrugadinha para Jaboatão. O Cajueiro vai ficar     bem triste. Quanta novidade em tão pouco tempo, sem a gente esperar!     Felizmente, vejo-te ao pé de mim, filho.

Que lhe disse sinhá D. Damiana, minha mãe?     Saiu há pouquinho daqui. Ia banhada em lágrimas. “Nunca     julguei  disse-me ela  que havia de passar por este golpe. Tinha     para mim tão resoluto o meu destino!! Mas, que hei de fazer, minha     boa amiga? Amador é duro. Falou-me em nome da memória de meu     marido. Disse-me que se eu o não acompanhasse, cobrir-me-ia de infâmia;     que os mascates, para menoscabarem essa memória, me levantariam mil     aleives. Tenho medo da má fama, muito medo. Além disso, não     me pertenço, conquanto pareça que sou senhora de mim; pertenço     a uma família. Como havia de ser feliz se não tivesse um nome!     Na riqueza não vivi melhor do que na pobreza. Mas, que hei de fazer,     senão pagar o tributo que se exige de mim? Nunca me esquecerei de ti,     Marcelina, nem de Lourenço. Ah!  disse ainda ela  dize     a teu filho que eu lhe quero falar antes de partir.

Sinhá D. Damiana não sabia que eu havia indo embora?     Não sabia. Eu não quis contar-lhe o ato de desespero praticado     ontem por ti.

Fez bem, minha mãe; mas o que não farei é vê-la     mais.

Por que não hás de vê-la, Lourenço, se a pobre     senhora se mostra tão agradecida a todos nós?     Mostra-se muito agradecida? Não tem de que. Não passamos de     uns miseráveis que não lhe fizemos senão o nosso dever.     Se ela não nos tivesse nesta conta, não havia de deixar-nos     com tanta ingratidão.

Quando ia a prosseguir, Lourenço sentiu sobre o ombro uma pressão     meiga. Voltando-se rapidamente, viu junto dele a gentil viúva. A mão,     que lhe pousara no ombro um instante tomou uma das dele. Nunca o rapaz tinha     sentido o doce contato dessa mão fina e deliciosa, senão por     ocasião do desmaio da viúva, ou nos fantásticos delírios     em que ele se absorvia, durante as últimas noites no sobrado.

Não me queiras mal pelo que eu faço contra a minha vontade,     Lourenço, disse ela enternecida. Tenho o coração despedaçado.     Minha alma fica no Cajueiro, ao lado de vocês. Mereço mais a     tua compaixão do que o teu agravo. Levo comigo a saudade e a tristeza,     bem cruéis companheiras; levo-as para bem longe, donde talvez não     torne mais nunca a esta terra dos meus pais, das minhas recordações,     das minhas mágoas. Não te esqueças inteiramente de mim,     Marcelina, nem tu, Lourenço.

Ninguém há de esquecer-se aqui da sinhá D. Damiana,     respondeu o rapaz comovido.

As lágrimas acudiram-lhe aos olhos. Deu o andar para a porta e desapareceu     nas últimas sombras do lusco-fusco, hora atroz para os amantes que     se despedem certos de nunca mais se avistarem.

A liga de Tracunhaém engrossara. Reduzida, pela caçada geral,     a trinta membros, compunha-se de quinhentos um ano depois, não se compreendendo     neste números os escravos e agregados dos senhores de engenho que com     eles se haviam asilado nas matas. O nome do chefe andava de boca em boca.     Falcão d’Eça era a égide dos expatriados, a providência     dos perseguidos; alguns dos nobres tinham-no por doido, muitos por temerário,     a maioria deles por defensor das suas pessoas e fortunas.

Falcão não descansava. Mensageiros de confiança levavam     os seus convites suasórios aos pontos mais afastados. Os nobres, que     pela distância em que ficavam de Tracunhaém, não podiam     sem perigo vir aumentar com suas pessoas o grande núcleo da resistência,     remetiam mantimentos, roupas e munições. Alguns tinham contribuído     com escravos e moradores.

Todas estas diligências porém realizavam-se com grandes cautelas     por evitar os grandes perigos a que se expunham os que nela se metiam.

Como era este o único ponto que o açoite do governo ainda     não lograra reduzir à ultima expressão, o governador     tinha nele concentradas as vistas. Muitos piquetes varriam quase constantemente     as estradas que iam ter a Tracunhaém; muitos percorriam as proximidades     do refúgio. A cada momento, para assim dizermos, estavam sendo espiados     os menores passos dos refugiados, e somente à conhecida valentia do     chefe da liga se devia não se animarem os troços ambulantes     a penetrar no esconderijo onde aquele chefe devia ter o centro das suas operações,     e que eles por maiores esforços empregados não haviam logrado     devassar.

Coisas maravilhosas diziam-se sobre o ponto. Exagerando as forças     e recursos dos asilados, o povo propalava e acreditava que o inimigo, por     mais poderoso, que penetrasse ali, estaria irremissivelmente perdido. No dizer     popular, as matas estavam cortadas de minas. Inexpugnáveis fortificações     haviam sido construídas para defendê-la de assaltos. Existia     dentro verdadeiro arraial de guerra, onde nada faltava.

Havia exagerações nesses boatos, que explicam a reputação     quase lendária, que cercava o nome do chefe da liga e a própria     liga.

Ao contrário disso, Falcão d’Eça assentara por     maior segurança não ter pouso fixo e ter muitos em vários     pontos. Certo havia dentro das matas uma região, um vasto perímetro     que os nobres tinham por seguro, e consideravam do seu exclusivo domínio.     Dentro dessa região, rica de naturais defesas, em parte aumentadas     pelo trabalho dos refugiados, moviam-se estes, segundo convinha. Certo tinham     eles armas e munições, víveres e gente para lutar quando     oferecesse ocasião; mas  pode-se quase afirmar  não     passavam daí os seus elementos de defesa; porque o pensamento de Falcão     não era ficar nas matas por muito tempo, não era somente defender-se,     mas principalmente, quando a medida dos seus recursos estivesse completa,     fazer irrupção sobre a vila odiada, e dar cabo do governador     e dos ministros, ou, ao menos, expulsá-los de Pernambuco, a exemplo     do que em 1710 haviam feito a Sebastião de Castro Caldas.

— Nós não somos negros fugidos, dissera ele uma vez     a um dos companheiros. Os negros contentam-se com o seu esconderijo. Quanto     mais oculto é este, tanto mais lhes convém; porque os negros     fugidos, como morcegos, têm horror à luz. Nós somos patriotas,     que nos ajuntamos aqui especialmente para combinarmos sobre os meios de lançar     fora da terra, que nos deixaram nossos avós, os intrusos que miram     apoderar-se da herança que nos deixaram nossos pais. As matas de Tracunhaém     não são os Palmares. Aqui há homens livres que tratam     de castigar o despotismo; aqui há patriotas que esperam quebrar as     cadeias com que pretendem acorrentá-los aventureiros ralados de cobiça;     aqui não há escravos, há senhores, que hão de     castigar, como a escravos esses estrangeiros, que inculcando-se amigos do     povo e atraindo-o a si, têm o pensamento clandestino de tornar-se donos     de Pernambuco.

Em um dos primeiros dias de junho de 1714, cortando por manhosas veredas     que iam dar na região dos homiziados, onde eram esperados, quatro sujeitos     chegaram a um dos pousos.

Seriam dez para onze horas da noite. Chovia copiosamente; as gotas de água,     caindo na vasta folhagem da mata, produziam rumor monótono e surdo,     que se assemelhava ao do vento nas folhas do coqueiral.

No pouso estava o chefe da liga, que foi o primeiro a recebê-los.     Dois deles eram Faustino Figueira e Domingos Gonçalves Freire que,     depois de muito buscados pelos bandos do governador, e depois de várias     tentativas abortadas para chegarem às matas, tinham realizado o seu     intento, auxiliados por mensageiros de Falcão d’Eça.      O terceiro era o nosso conhecido Francisco dos Prazeres, marido de Marcelina.     O quarto era Saturnino.

O aspecto do pouso era simples. Em um ponto onde os matos haviam deixado     um pequeno espaço livre, mostrava-se suspensa, sobre quatro forquilhas     de boa altura, uma ramada mais baixa para um lado que para o outro, em forma     de meia-água, sob a qual uma fogueira que esclarecia, tanto quanto     era preciso, o âmbito. Não obstante ser muito copiosa, a chuva     não ofendia o fogo assim abrigado.

Para livrar-se do mau tempo, tinham os refugiados posto em prática     o meio simples que em certas tribos os selvagens empregam: em altura conveniente     haviam sido fortemente ligadas por cipós aos troncos de grandes árvores     folhas de palmeira, de um e de outro lado, inclinadas obliquamente, de modo     que ao mesmo tempo serviam de condutores de águas e de coberta às     redes pendentes dos primeiros galhos destinadas ao repouso dos donos durante     a noite. Não eram poucas as árvores que se mostravam decoradas     com estas palmas largas e compridas, o que indicava não ser pequeno     o número das pessoas existentes naquele pouso. Todavia, como nesta     indústria não interviera senão matéria prima oferecida     pela floresta, não se imaginaria, se não fora a fogueira, que     por ali passara a mão do homem.

Faustino Figueira era capitão do terço de linha de Olinda.     Por ocasião do levante dos mascates, em 1711, marchara contra o Camarão.     Pelo seu arrojo e intrepidez, na batalha de Sibiró, onde praticara     atos de bravura, pondo duas vezes em retirada as forças daquele caudilho,     tanto se expusera que, perdida a batalha, teve de cair no poder dos inimigos.     Remetido para o Recife, foi solto pelo bispo, que era então o governador;     mas, com a mudança dos tempos, sendo tenazmente perseguido, escapava     às perseguições, asilando-se nas matas de Tracunhaém.

O outro, Domingos Gonçalves Freire, sargento-mor da ordenança     em Olinda, e que, na distribuição dos presídios, quando     os mascates estiveram sitiados, tivera a seu cargo o comando e inspeção     dos pontos que pelo lado daquela cidade fechavam o assédio, receoso     de pagar com sua liberdade estes atos de hostilidade contra os mascates, viera     com o mesmo destino de Figueira.

Quanto a Francisco, bastará dizer que, não podendo vencer     o remorso de prestar serviços aos perseguidores da nobreza, resolvera     enfim passar-se para os perseguidos. O ajudante-de-tenente indicara-o a Figueira,     exaltando muito a sua fidelidade e discrição.

Foi, talvez, ele o principal guia ao pouso, isto é, o que melhor     compreendeu as indicações.

— Graças a Deus, que já posso dizer —“não     estou com os mascates, dissera o matuto, penetrando na mata. Eu sei bem que     se eles me pegam me penduram logo no primeiro pé de pau que encontrarem;     porque antes de tudo sou desertor  dirão eles. Mas eu direi     que desertor era eu quando lá estava, porque a minha gente sempre foi     a nobreza, e nunca os pés de chumbo. Se estive com eles todo este tempo,     só Deus sabe quanto isto me custou. Por vontade minha não foi;     foi porque encontrando-me com a farda nas costas e pau furado na mão,     puderam dar-me leis e obrigar-me a fazer coisas que, em meu juízo e     em minha liberdade, eu não faria nunca; Mas agora, lá se avenham;     agüentem-se como puderem, que eu, se puder, ajudo a lhes tirar o couro.     Estou muito prático no serviço da arma; sou hoje um soldado     de patente; podia até ser um sargento-mor. Estou pronto para entrar     em fogo, tendo à minha frente “seu Falcão, que é     só em quem se fala. Eu também só falo nele, porque tenho     muita fé em quem mostra tanta coragem.

Tudo isto dissera Francisco ao entrar na mata. Parecia ter ganhado aí     alma nova, ter recuperado os seus antigos espíritos, e até a     sua graça e bom humor natural.

— Capitão  disse Figueira, logo que avistou Falcão     d’Eça  trago-vos uma notícia cruel.

— Mais uma que venha não fará mossa na minha couraça.     Há dois anos que não recebo aqui notícias de outra natureza,     mas dizei-me sempre o que é, dizei logo, sr. Capitão Figueira.

— Tranqüilizai-vos. Não é nada contra as matas     de Tracunhaém.

— Contra as matas, retorquiu Falcão, já eles não     têm mais nada que pôr por obra. O seu entendimento esgotou-se;     digo mal, esgotou-se a sua covardia, a sua perfídia. Somente lhes resta     hoje um meio, que a chuva do céu não lhes permite por em prática:     é tocar fogo nas matas. Se não fora invernada parece que estas     léguas de espessura já teriam ardido, e com elas os que existem     aqui dentro, mais prontos para morrer que cuidadosos da vida.

Tinham desembarcado na pequena aberta onde ardia a fogueira. Vendo-os chegar     salvos, vários dos refugiados, saltando das redes e dos troncos secos     onde estavam, correram ao seu encontro: havia uma como comunicação     de alegria em todos, sempre que chegava um novo companheiro. Ao reflexo do     fogo, aqueles vultos de barbas e cabelos compridos, de variados trajos, uns     altos e esguios, outros baixos e cheios de corpo, quase todos silenciosos;     alguns trazendo arma de fogo na mão, e cartucheira a tiracolo, alguns     com espadim, ou catana pendentes de cintura, alguns arrimados a grossos cipós-paus;     estes trazendo chapéus na cabeça, aqueles trazendo unicamente     esta parte do corpo envoltas em lenços de cor, como praticam com lenços     brancos as mulheres beatas, ou as de humilde condição, mal se     cuidara que ali estava representada a primeira nobreza da província,     e que homens de clara estirpe, muitos deles senhores de grandes fortunas,     se confundiam assim pelas mostras, com um bando de malfeitores, réus     de todos os crimes. Havia, contudo, ali corações verdadeiramente     nobres; espíritos verdadeiramente dignos, pelas idéias de engrandecer     a terra natal; entre esses mesmos haviam muitos que eram realistas sinceros,     inimigos do governador, mas vassalos fiéis que, não sem mágoa,     viam em colisão a sua vida e a hostilidade aos representantes do rei,     os depositários da autoridade pública.

Restabelecido o silêncio, Falcão voltou ao assunto de que tratara     momentos antes: — Não nos dissestes ainda qual é a triste notícia     que tendes para dar-nos.

Figueira respondeu: — Não fostes sabedor de ter chegado ao Recife uma esquadra de     Lisboa, e nela ordem para que o bispo se retirasse cem léguas da sua     catedral, a fim de não influir suborno nas testemunhas? — Fomos sabedores, sim, dessa gentileza do governo da metrópole,     respondeu Falcão.

— Pois bem. O bispo já está de marcha para as Alagoas,     cumprindo humildemente a vontade caprichosa dos fariseus.

Depois de rápidos instantes de silêncio que sucederam a estas     palavras: — Que vos disse eu, padre Guerra? perguntou Falcão, voltando-se     para um dos nobres que cercavam os recém-chegados. Eu esperava que     assim tratassem quem já os teria posto fora, se houvesse aceitado o     convite para ser o chefe da revolução.

— Mas, senhores  disse o padre  já a igreja não     merece nenhum respeito a quem tem o dever de velar pela majestade dela? Quando     a impiedade partia dos aventureiros, nada havia que dizer: os aventureiros     profanam os lugares sagrados, e arrancam dos santos as jóias que vendem     nas tabernas a troco de cachaça ou bertagel; mas que da corte de Lisboa     venha semelhante desacato, coisa me parece esta que excede a medida da maldade     humana, e bem indica o ódio de Portugal contra a nobreza de Pernambuco.

— A chegada daquela frota não foi de todo má, visto     que esta notícia nos trouxe outra com que devemos alegrar-nos. Veio     ordem para que devassasse dos levantes o desembargador Cristovam Soares Romão...     disse Domingos Freire.

— O Cutia, o Cutia  acudiu Falcão     d’Eça... Sim... É boa chita o Cutia. Falas ironicamente,     não é assim? — Não vos pareceu sempre um pouquinho melhor que o Bacalhau,     a quem os drs. Ortiz e Brandão deram por suspeito em Lisboa pela sua     notória parcialidade a favor dos mascates? — Melhor! exclamou Antonio Bezerra. Achais pouco o que tem feito? Conheci     na Paraíba o Cutia. É capaz de todas as aleivosias,     e o tempo vai mostrando se eu não tenho razão. Ah! pensais que     nos há de chegar de Lisboa coisa que preste?     Falcão concentrou-se um momento, enquanto os companheiros praticavam     de vários assuntos relativos ao ponto principal.

Domingos Freire, que era dotado de gênio jovial, quando os outros     consideravam o assunto pelo lado sério, atraiu a atenção     de alguns, encarando o lado cômico.

— Senhores, tenho um presente que lhes dar, mas antes de tudo, quero     cachaça para tomar uns goles, porque estou resfriado; e depois dos     goles, alguma coisa que comer, ainda que sejam pastéis fresquinhos,     ou queijadas doces, como as que aparecem nos presepes de D. Úrsula.

— Pastéis frescos e queijadas doces nestas alturas! Sempre     te conheci chalaceiro, Domingos, disse Manoel Bezerra.

— Não desconversem. Vocês, que são os donos do     rancho, estão na obrigação de dar boa ceia a hóspedes     da minha prosápia. Se, por gulosos, comeram na janta o peru e toda     a eletria, contento-me com um pouco de carne de sol assada ali na fogueira.     Quem é o despenseiro? — A despensa é franca. Do jantar nos ficou ali um quarto de carneiro.     Tira um pedaço, mete-o no espeto, assa-o tu mesmo.

— Asso eu, asso eu  gritou Francisco.

— Então faze logo esta obra de caridade às nossas barrigas     famintas. Molharemos depois a goela com bom vinho de Lisboa, que deve haver     na adega de Falcão.

— Aqui não entra nada de Lisboa, nada da santa terrinha.

— Perdão, perdão, não adverti que estava num     acampamento onde se trama contra tudo quanto é europeu.

— Mas olha: ali há ótima aguardente num garrafão.     Chegou ontem do engenho Cumbe. Presente que mandaram a Bulhões.

— Mas enquanto não chega o carneiro, dá-nos o mimo que     trouxeste, observou Francisco Botelho.

— Isto só ao pé da fogueira.

Encaminharam-se para ali, e em troncos sentaram-se todos os que com Domingos     Freire estavam formando grupo. Além de Matias Barbosa, Antonio Bezerra,     Manuel Bezerra e Francisco Botelho, compunham aquele grupo Francisco de Melo,     João Nunes Tinoco, Lourenço Uchoa, Álvaro Marreiros e     Simão Mendes.

— Não é nem brilhante nem ouro em pó; mas é     coisa que vale ouro e brilhante. É uma décima que compôs     para epitáfio do juiz de fora uma musa nossa patrícia.

— Para epitáfio do juiz de fora? — Sim, o juiz de fora Paula Carvalho, que é morto.

— É verdade.

— Morreu hidrópico do muito mal que fez à nobreza, e     das largas peitas que recebeu da mascataria. Tão hidrópico morresse     o Bacalhau que publicamente dizia que a “todos que morassem das pontes     do Recife para fora, se não pudesse tirar a pele, havia de tirar a     camisa. O diabo os fez e o governador os ajuntou, esse governador alarve,     que é capaz de comer um boi numa assentada, tão sevandija que,     estando à mesa, mandou buscar o asqueroso e imundo vaso de espúrias     pra exoneração do ventre cheio, e à vista dos assistentes,     no mesmo ato do comer, estar em ato contrário(2).

— Quem pratica “ação tão fidalga pode presumir-se     e afirmar-se que teve  o nascimento em alguma estrebaria, e a criação     em algum chiqueiro(2), disse Simão Mendes.

— Vamos à décima, acrescentou Botelho.

Então Domingos Freire, tirando do bolso um papel, desdobrou-o e leu:   

“Jaz debaixo de um calhau     Que é de pederneira galho     O defunto juiz Carvalho     Esperando o Bacalhau     Da morte deste marão     Nenhum dos mortais se queixe     Deixe andar o mundo, deixe     Que a morte não acabou     Se ela o Carvalho cortou     Inda há de pescar o peixe(2)

Gargalhadas e palmas, sucedendo-se irressistivelmente a este produto da musa     pernambucana do século XVIII, atroaram os ares abafados da floresta.

Quando cessou o estrépito do aplauso, Domingos Freire, voltando-se     para um lado, gritou: — Ó Francisco, traze logo o carneiro.

Francisco entrou, quando ainda soavam estas palavras, no pequeno espaço     esclarecido pela fogueira; mas em lugar de carne, o que trazia era um homem     agarrado pela véstia. Com grande esforço pudera arrastá-lo     até ali. A luta fora tão renhida que parte da camisa do matuto     vinha em pedaços.

— Tomem conta do cabra, que já não posso comigo mesmo!          Assim dizendo, atirou para o lado da fogueira com quantas forças lhe     restavam o desconhecido, e, por não se poder ter mais em pé,     caiu para o outro lado.

Em menos de um minuto o desconhecido estava cercado por todos os que de     perto, ou de longe, haviam testemunhado a inesperada cena. Alentada a fogueira     de propósito, para que pudessem ser bem reconhecidas as feições     do espião, puseram-lhe as cordas, e amarraram-no ao tronco de uma árvore.

Havia por esse tempo no Recife uma mascate de nome Gregório, muito     protegido por um europeu chamado Afonso Maciel, de todos temido. Quando o     Camarão, primeiro sustentáculo dos mascates ao sul da província,     entrou no Recife para visitar Félix José Machado, chegado de     há pouco, muito escândalo ocasionou à nobreza Afonso Maciel     com os vitupérios e convícios que para ela teve.

Com um grande séquito de conterrâneos seus, fora esperar e     receber o caudilho em Afogados, ao som de fagotes e chamarelas. No momento     de Miguel lançar ao pescoço do Coração uma medalha     em festão lavrada de ouro, Maciel, não querendo ficar atrás,     desabotoou o talabarte donde pendia vistoso espadim de bainha de ouro, e cingiu     com ele o chefe caboclo. Ao passar pela rua onde morava, alcatifada como se     houvera de receber um monarca, ou um benemérito da humanidade, foi     a mulher de Maciel, que de cima das suas janelas adornadas com tapeçarias     as que mais custosas ostentava, foi a mulher desse europeu a que mais água     de Córdova, mais flores, mais confeitos e mais moedas atirou em honra     do Camarão. Foi ela a que, descendo da sua morada até a rua,     obtida permissão do marido, correu e abraçou o chefe caboclo,     que arrogante e ancho de tão estrondosa recepção ostentava     à frente dos seus quatrocentos índios, a bizarria de um guerreiro     e a altivez de um ditador.

Não lhe faltando meios, porque ele era negociante sólido,     não lhe faltando estímulo, porque a maioria dos seus conterrâneos,     reconhecendo de quanto era capaz, lisonjeava a sua vaidade, e o incitava a     praticar os maiores desdéns para os nobres, disse um dia, no fim de     um jantar opíparo, em um dos sobrados da rua dos judeus, que lhe havia     de ser o seu Gregório quem daria com o esconderijo de Falcão     d’Eça, e quando não pusesse as algemas neste rebelde,     havia de tirar-lhe a vida, para que não tramasse novo levante, e de     uma vez para sempre ficasse ensinado. Fora dito isto depois de larga comezaina     e de copiosos licores que lhe deveram perturbar a consciência; mas,     no outro dia, camaradas exaltados lembraram-lhe o juramento feito no dia precedente,     e foi isto bastante para que Afonso Maciel o ratificasse. Entre os baixos     sequazes dos mascates, aqueles que percorriam em continuadas jornadas o sul     da província, não havia um só que não soubesse     entrar nas matas de Tracunhaém e chegar até a região     onde não corria risco inspeção estranha, porque constituía     domínio do público; mas dentre tantos que chegavam até     terreno ou campo neutro, nenhum se arriscara jamais a dar um passo para adiante,     temendo, não sem razão, cair na emboscada do célebre     chefe da liga.

Gregório, porém, levado por sequazes conhecedores das veredas,     animou-se a penetrar nas que eram suspeitas; e com a coragem dos instrumentos     da sua condição, deixara-se ficar em paciente observação,     oculto pelos matos, na entrada de uma dessas veredas, aguardando meio de penetrar     no segredo.

Duas desgraças esperavam-no porém ali. A primeira foi Faustino     Figueira acertar, com os companheiros, de tomar pela mesma vereda para o pouso.     Gregório acompanhou-os, servindo-lhes eles, sem o suspeitarem, de guias     no intricado labirinto dos matos, e nas trevas da medonha noite de inverno.

A segunda desgraça foi colocar-se perto da árvore donde pendia     a matalotagem que Francisco buscava.

 

Se isto não o fora, ou ele, cansado de esperar em vão, deixaria     o mato sem coisa de maior, desenganado de achar o refúgio dos pernambucanos;     ou não seria descoberto por Francisco, e teria sido o herói     de uma alta façanha no conceito dos mascates, ocasionando a prisão     de quinhentos nobres, entre os quais o chefe da liga, que por si só     valia mais para o governador do que todos os outros quatrocentos e noventa     e nove.

 

Reconhecendo no espião o acostado de Afonso Maciel, Falcão     d’Eça empalideceu. Como pudera penetrar até ali? Teria     vindo só, ou seguido de tropas incumbidas de prender os nobres? Estavam     estas perto ou longe? Demorar-se-ia o ataque, ou deveria romper já?     

  A primeira idéia que lhe ocorreu, foi a de mudar de pouso. Os outros   companheiros tiveram o mesmo pensamento em presença do perigo considerado   iminente.  

 

— Nem mais um instante aqui! disse um, disseram quase todos, entreolhando-se     confusos, senão admirados de não haver ainda rompido fogo contra     eles.

Sobressaltados e precípites, cada um se muniu das suas armas; cada     um, no seu fâmulo, ou escravo, pegou da ligeira bagagem; todos tomaram     imediatamente o caminho em direitura para o Rancho do quiri, denominação     dada por Falcão a outro arraial que ficava distante, cerca de três     quartos de légua, do que desamparavam. Devia chegar lá ao amanhecer,     depois de atravessarem vários arraiais, donde iriam coligindo as forças     esparzidas na vasta massa dos bosques. Esta era uma estratégia que     o chefe praticava sempre que se pressentia ameaçado  concentrar     em um só ponto os vários contingentes.

A noite estava medonha, assim pela escuridão, como pelo tempo, que     não suspendera.

Falcão ia na frente. Ninguém sabia, como ele, as sendas amigas.     Intrépido e hábil, não havia matos, lamas, barrocais,     desfiladeiros, precipícios, que lhe retivessem a marcha por perigosos     ou desconhecidos. Às vezes, deslizava-lhe o pé nas folhas umedecidas,     ou na argila escorregadia, e ele vinha em terra; mas logo se levantava, e     seguia, sem proferir uma palavra que, ao menos e longe, indicasse indecisão     ou desânimo.

Os outros acompanhavam-no quase instintivamente como autômatos. Os     que eram mais sabedores dos caminhos conduziam os menos práticos, dando-lhes     a extremidade de uma vara, e pegando na outra extremidade, como usam os guias     com os cegos.

Era de singular efeito a vista oferecida, de tempos a tempos, por aquele     longo cordão de figuras silenciosas em que se notavam semblantes de     todas as feições, ao fuzilar dos relâmpagos nas abertas     dos matos, ou ao clarear dos vaga-lumes no mais fechado. Uns de bota, outros     descalços, todos, escorrendo água e tiritando de frio, lembravam,     em parte, o tropel de fugitivos que no século XVII, deixando o Recife     e as estâncias vizinhas, que haviam caído no poder dos holandeses,     caminhavam a pé, na direção do sul, em demanda das Alagoas,     por escapar aos vencedores.

O Rancho do quiri, que tomava a sua denominação de     ser o lugar muito abundante daquela madeira, ficava quase no fim da mata,     à beira de uma baixada, que com as grossas chuvas se mudara em vasto     lago mediterrâneo.

Estavam ali os refugiados mais próprios para entrar em fogo, os de     fibra rija, pela vida áspera que tinham levado antes. Compunham-se,     em sua maioria, de moradores e foreiros, dedicados aos senhores do engenho.     Quase toda esta gente, passante de cem indivíduos, se sustentava de     caça e frutas agrestes. Uma vez por outra, saíam alguns do esconderijo,     e nos povoados mais próximos iam prover-se de farinha e bebidas, ou     iam buscar nos engenhos, onde tinham famílias, outras provisões;     o mato, porém, era o seu principal fornecedor, agora lhes dando a paca,     o tatu, a cutia, o preá; agora o jacu, a juriti, o nambu, pato bravo;     agora o ananás, o inhame, a mangaba, o caju.

Às vezes saíam a pescar à noite, nas lagoas perdidas     no interior da espessura; era para ver como tarrafeava habilmente o que se     supunha, à primeira vista, não saber outro ofício senão     o de carguejar. Voltavam trazendo cestos cheios de camarões e traíras.

Para esses homens, não trouxera grandes inclemências o homizio.     Muitos deles preferiram estas indústrias grosseiras e selváticas     à do trabalho de plantar ou almocrevar. Alguns que tinham a sua ponta     de índio, compraziam-se nesse viver despreocupado, próprio e     querido dos povos nômades. Tais haviam que diziam com sinceridade, quando     sucedia falar-se-lhes no termo das perseguições e na volta ao     antigo estado: — Deus queira que não acabe mais esta guerra,     Outros completavam a idéia: — Quero antes esta vida muito menos trabalhosa, que o do engenho. A     única falta que sinto é a da minha mulher.

Pela madrugada chegaram Falcão com os companheiros ao Rancho     do quiri, e ao amanhecer, reunidos em figura de  conselho os principais     nobres, trataram de sentenciar sumariamente o espião.

Notava-se no ponto insólito alvoroço. Todos os semblantes,     ainda os de seu natural mais serenos, davam mostras de invencível inquietação.     Muitos dos fugitivos ali reunidos nunca se tinham achado em condições     de testemunhar espetáculo idêntico ao que fora resolvido.

Chegado o momento, em uma aberta da mata, seis escravos formaram uma roda,     como se se aparelhassem para certa dança circular que usavam os nossos     índios.

Ao meio do círculo fora arrojado o espião, nu, da cintura     para cima, com as mãos atadas atrás da costa. Alguns dos refugiados     mais animosos, os mais duros, de pé, ou sentados junto das árvores     que formavam o desigual anfiteatro  grosseira semelhança dos     circos romanos onde prisioneiros de guerra combatiam para divertimento do     público  testemunhavam a punição cruenta que talvez     terminasse com a morte do delinqüente. Sobre este, que umas vezes implorava     perdão, outras soltava imprecações injuriosas, descarregavam     os executores os instrumentos da infame e infamante pena.

O paciente, que ao princípio rugia de cólera, ou gritava ou     vociferava, do meio para o fim, quebradas as forças, enfraquecidos     os espíritos, recebia em silêncio, mal se sustentando de pé,     e por último caído por terra, as varadas brandidas pelos vigorosos     pulsos africanos.

Era a isto que se chamavam roda de pau, castigo muito praticado     naqueles tempos, por naturais de Pernambuco, especialmente contra os portugueses     europeus.

Vários alvitres tinham sido indicados, várias penas propostas,     entre as quais a do saco de areia, hoje inteiramente desusada, como     a da roda de pau.

A surra de saco de areia ligava-se a uma superstição: o povo     acreditava que o paciente de semelhante suplício não declarava,     em caso de nenhum, o nome do ofensor. Era castigo aplicado a culpas graves,     e consistia em longo estojo de lona cheio de areia fina bem socada, que, tanto     pela forma, como pelo tamanho e dureza, se parecia com um cacete. À     circunstância de ter no fundo uma moeda de cobre e uma rodela de fumo,     invenção da superstição do povo ignaro, atribuía     este a especial virtude de impor silêncio ao que com ele era castigado,     e que, por muito moído em todo o corpo, mui raras vezes sobrevivia     ao castigo.

Quando no rancho foi indicada a surra de saco de areia, para a punição     do espião, um dos matutos observou, em tom de chalaça: — Isto é lá para a beira da praia, onde não há     madeira forte; não é para aqui, onde não falta quiri     nem pitiá, e só temos barro duro, e não areia fina.

Ainda por estas razões, que, bem indicam não ser o aludido     castigo filho da região das matas, ou do sertão, mas, sim, do     litoral, e talvez até de país estrangeiro, provavelmente da     Holanda, prevaleceu o da roda de pau, o qual, parecendo mais atroz que o outro,     nem sempre, na crença do povo, tinha, como aquele, resultados fatais;     porque à roda de pau muitos sobreviviam, ao saco de areia quase nenhum;     o primeiro tinha por fim castigar, ou ensinar, como se dizia então,     ao passo que o último tinha por fim matar.

Ora, os nobres não quiseram sentenciar à morte o espião;     ao contrário, entrara no seu plano que, longe de ocultar o nome de     quem lhe aplicara o castigo, fosse depois o espião revelá-lo     àqueles cujo era mandatário. Havia nisto particular sabor de     vingança  o desdém por não ter o ardil sortido     o esperado efeito. Estava tão enraizado no espírito pernambucano     do século passado, que não contribuiu pouco para a explosão     revolucionária de 1817 a prevenção contra os portugueses,     até certo ponto justificada pelo exclusivismo que afastava os brasileiros     das posições e empregos importantes na região oficial,     e tão em voga o castigo corporal como represália àquele     exclusivismo, à qual se ligava a idéia de ter em pouca conta     os preferidos, ou de os rebaixar, que um dos nobres  o sargento-mor     Leonardo Bezerra, depois de três anos de prisão em Lisboa, escreveu     da Bahia, onde voltando ao Brasil, se fixara definitivamente, aos parentes     de Pernambuco, lugar do seu nascimento: “Não corteis um só quiri das matas; tratai de     poupá-los para, em tempo oportuno, quebrarem-se as costas dos marinheiros(7).

Reproduzindo estas palavras, não sou levado por intuito de picar     a nacionalidade irmã, intuito que não teria o menor fundamento,     e contra o qual, muito ao contrário, não me seria difícil     aduzir provas, tomadas de mim mesmo. O meu fim único é dar idéias     dos costumes e paixões dominantes naquele tempo; é autorizar     a narrativa com a tradição, junto da história.

Terminado o atroz suplício, mandou Falcão d’Eça     por um pano nos olhos do supliciado, e conduzir este para fora do pouco. Inútil,     senão irrisória precaução, Gregório, mole,     esquálido, metia horror. As alvas costas, para onde, por especial recomendação,     tinham convergido os golpes dos executores, haviam enegrecido: não     se notava diferença de cor entre os algozes e a vítima. Somente     as mãos e os pés atestavam, pela brancura, a raça do     infeliz.

Deixaram-no, por morto, na entrada da mata, tendo em uma das mãos     um papel com este improviso em verso, obra de Domingos Freire:

“Buscar lã veio o Gregório,     Mas volta bem tosquiado:     Se vier, por mais finório,     O Felix José Machado,     O Cutia e o Bacalhau,     Havemos de ter, não uma,     mas quatro rodas de pau.

Seria meio-dia. Tinha feito uma estiada, O sol chegou a mostrar-se, ardente     e amarelento, como é o sol do inverno. Aproveitando a impressão     deixada nos espíritos pela notícia da partida de D. Manoel para     as Alagoas, e pela audácia da recente espionagem, aproveitando, enfim,     a crença de todos os homiziados, e não esperarem remédios     aos seus males senão de si mesmos, e de estarem constantemente cercados     de emboscadas e perigos, Falcão d’Eça chamou de parte     alguns amigos, em cujo critério e decisão mais confiava, para     que lhe ouvissem a última palavra:

— É tempo de tomarmos uma resolução. Quando me meti   nestas matas, não foi com o único intento de escapar à   prisão ou à morte. Tendo parentes no Ceará, ser-me-ia fácil,   se o meu intento fosse somente evitar a prisão, emigrar para o seio deles,   onde estaria ao abrigo de toda hostilidade. Quem primeiro me impeliu para aqui,   senhores, não foi um sentimento baixo  o medo; foi um sentimento   elevado  o amor da pátria; fio que vós poderei dizer outro   tanto.  

 

— Decerto, respondeu o padre Guerra.

— Que víamos antes da luta? Dois interesses, um estrangeiro,     outro brasileiro. Levados de cobiça, e não satisfeitos com serem     senhores do comércio e das indústrias, os portugueses europeus     queriam chamar a si a agricultura, impondo aos agricultores obrigações     que redundavam em ficarem estes à mercê daqueles. Como não     pudessem, por meios lícitos, levar a efeito o seu intento, maquinaram     criar a vila onde tinham e onde têm a sua força, e tornar-se,     por este modo, árbitros dos preços dos gêneros que haviam     de ser forçosamente tachados por almotacés do seu plano; e este     diabólico intento estaria de todo realizado, se a nobreza não     pusesse para fora o governador que tivera o arrojo de promover a criação     da vila maldita. Sabeis, tão bem como eu, o que se seguiu ao ato de     energia, que nos livrara de Sebastião de Caldas. Foi no Senado da Câmara     de Olinda, reunido para providenciar sobre o governo da capitânia acéfala,     foi ali que o amor da pátria, fazendo-nos pulsar os corações,     proclamou em nossas consciências a necessidade de tornarmos Pernambuco     independente da metrópole, madrasta e não mãe. O amor     da pátria, pernambucanos, o amor da pátria é uma paixão     grande que se gera, não do ajuntamento de dois seres como geram as     criaturas, mas do ajuntamento de milhares de seres, dos ajuntamento dos povos;     que nasce, não sob o teto particular, ou em leito clandestino, mas     sob o teto público, sob a abóbada livre e ampla dos céus,     no largo leito das praças; que nasce, não ocultamente, à     luz da candeia noturna, trancadas as portas, mas nas vistas de todos, fora     de paredes ou cortinas, alumiados pelo sol do dia; que nasce, não como     nascem as crianças que acende, rubor nas faces das mães, mas     como nascem os sentimentos imortais, trazendo à face dos patriotas     o sangue vivo do coração, porque o amor da pátria não     é uma paixão vergonhosa, e sim uma paixão egrégia,     que dignifica os que nela se abrasam. Sabeis, tão bem como eu, que     a primeira palavra nesse consórcio do Senado da Câmara com a     nobreza, foi no sentido de Pernambuco declarar-se república; mas, como     naturalmente acontece sempre que se congregam muitas vontades, os que assim     pensavam, encontraram da parte de outros pensar, senão inteiramente     oposto, ao menos restrito quanto à oportunidade da declaração.     O que os exaltados, a cujo número tenho orgulho de pertencer     hoje mais do que então, porque os acontecimentos posteriores, confirmando     a nossa razão, vieram provar que dos meios brandos nada colheríamos,     queriam realizar imediatamente, isto é, separação, entenderam     os moderados que se devia adiar para logo. Não faltou nestes,     senhores, amor da pátria, faltou um pouco de previsão, um pouco     do conhecimento dos homens, e sobejou prudência que não mereciam     os nossos inimigos. Os moderados, no pensamento de conciliarem os     ânimos, propuseram a eleição do bispo, ficando este obrigado     a conceder aos nobres o perdão em nome de el-rei. Entendiam-se eles,     e entendem todos, menos alguns, de cujo número faço parte, que     esta providência reconduziria a Pernambuco a tranqüilidade e a     paz, fazendo entrar nos justos limites os mascates exorbitantes. Sabeis, tão     bem como eu, que em vez de se submeterem a tão prudente alvitre, os     mascates levaram seis meses a aparelhar o golpe, que descarregaram contra     nós, e ocasionou o sítio do Recife, até a chegada de     Félix José Machado; o que trouxe a certeza da sua perseverança     e contumácia em sotopor-nos. Sucedendo as prisões, quase em     massa, e por sentenças arbitrárias dos novos ministros contra     os nobres, o único remédio que a estes se ofereceu, foi desamparar     as suas famílias e propriedades, para se meterem como feras, nos bosques.     Depois desta prova da ineficácia do meio paliativo, proposto em Olinda     pelos moderados, que se devia fazer? O que se devia fazer era voltar     à primeira idéia, aventada em Olinda pelos exaltados     ou antes, pelos de maior previdência  à idéia da     separação; era pôr em campo a revolução     nacional. Sabeis, tão bem como eu, que do seio destas matas vozes eloqüentes,     soltadas por quem na tribuna sagrada está afeito a arrebatar os mais     vastos auditórios - vozes eloqüentes do padre Guerra  representando     a aspiração de trinta refugiados ilustres pelos seus troncos     e haveres, foram levar ao bispo D. Manuel  ponto culminante do nosso     partido, não só pela sua posição na igreja, mas     também por ter sido o nosso chefe o governador no levante dos mascates      as nossas súplicas e instâncias, para que aceitasse o     primeiro lugar à frente de nós, nessa revolução     tão nobre quanto justa. Sabeis, tão bem como eu, que surdo às     nossas rogativas, a sua resposta foi uma recusa formal, foi um ato de desânimo,     inspirado talvez em piedosa ingratidão. Todavia, alguns dos que me     escutam aqui agora, não afastaram de todo as vistas de sobre o prelado;     e esperavam que mais cedo ou mais tarde, vendo os destroços daqueles     que o haviam elegido em Olinda para o chefe, se resolvesse a dar o passo direito,     e único adequado à nossa salvação e glória.     Acabamos, porém, de saber que D. Manoel, intimado para se ausentar     da sede do levante cem léguas, já está de marcha para     as Alagoas, como corre a longínquo estábulo fraco cordeirinho     apavorado por lobos carniceiros. Depois desta solução final     da abortada esperança, dizei-nos senhores, o que nos resta? Devemos     continuar aqui foragidos, nus e crus, ausentes de nossos filhos, os nossos     engenhos e fazendas destroçados e seqüestrados, a nossa saúde     enfraquecida pelas injúrias do tempo, fomes, vigílias, febres     e frialdades, sem um físico que nos receite um xarope, os mantimentos     escasseando de dia a dia, os inimigos levantando cada vez mais a cabeça     deles, enquanto nós cada vez abaixamos mais a nossa? Preciso de saber     o que resolveis.

Falcão calou-se.

O padre Guerra, como se estivesse de inteligência com o chefe da liga     respondeu-lhe depois de curta interrupção: — Não nos pergunteis, Falcão, o que resolvemos; dizei-nos     o que tendes resolvido. Vós que haveis sido a nossa coluna neste ermo     de amarguras, tendes o direito de indicar-nos a vossa vontade. Por minha parte     dir-vos-ei que estarei cegamente pelo que vos parecer melhor. Entendeis que     devemos continuar doentes, famintos, rotos e esfarrapados, sem tranqüilidade     de espírito nem comodidades físicas, a cada momento julgando-nos     descobertos como ainda ontem, enfim com o coração nas mãos     e a alma somente entregue a Deus e à aventura? Se é este o vosso     parecer, estarei por ele; ficaremos aqui indefinidamente, até que nos     mares encapelados da adversidade sobrenade uma tábua de salvação.     Entendeis que, tendo em menoscabo todos os sacrifícios porque há     dois anos estamos passando, devemos nós, enfim, para o epílogo     condigno de tamanha tragédia, deixar o nosso asilo, correr à     vila maldita, subir as escadas  escorregadias de vício e devassidão      do palácio das duas torres, e aí batendo com a mão     no peito, como penitente em artigo de morte, confessar ao governador culpas     que na realidade não temos, e pedir perdão que provavelmente     nos será recusado? Se vos parece decisivo, para termos dos nossos males,     este recurso sem nome, acompanhar-vos-ei até a morada da soberba, da     avareza, da luxúria, da ira, da gula, de todos os pecados mortais,     aí rojar-me-ei aos pés do que tem feito do ofício de     governador edifício do ódio, imoralidade, vícios e crimes.     Se vos parecer...

Falcão interrompeu o padre Guerra, com uma interrogação     hábil e estratégica, e um gesto rasgado que acusava irrupção     de sentimentos por muito tempo sustidos: — Padre, falais em vosso nome, somente, ou falais também em nome     de todos os que nos escutam?     O padre Guerra, que estava sentado em um toro seco,  ergue-se imediatamente.     Quem fora estranho ao congresso da selva não dissera que estava ali     um padre. Os cabelos e a barba de mais de um ano, trazidos em parte pela dificuldade     de serem aparados a tempo e a hora, em parte pela conveniência de ter     o rosto mudado, chegavam-lhe aos peitos e às espáduas, e davam-lhe     uns longe de solenidade que haviam às suas grenhas os antigos profetas.     Os olhos brilhantes, o nariz alto no meio e grosso na ponta, as mãos     e a testa salientes, a tez entre pálida e tostada, ajudavam a expressão     da guedelha, dando ao antigo profeta parte do moderno tributo.

— Creio poder afiançar-vos, capitão, disse ele, discorrendo     rápido olhar sobre os companheiros, alguns dos quais, imitando-o, pela     força comunicativa do seu gesto, já estavam de pé, entregues     a poderosa comoção  creio poder jurar-vos que num uma     voz divergente virá contradizer o meu enunciado, filho da nobreza e     lealdade que nos são comuns a todos, filhos principalmente da confiança     sem limites que, pelo vosso procedimento alevantado, nos tendes merecido até     este momento.

Falcão deu alguns instantes ao silêncio, como quem aguardava     manifestação mais larga e positiva. O seu silêncio era     na realidade uma interrogação.

Compreendendo-o talvez alguns dos nobres, e entre estes, Ribeiro da Silva,     Faustino Figueira e Bernardo de Alemão, adiantaram-se para clamarem     com certa ênfase:     Falcão, que era um homem bonito, nesse momento aliava à graça     do seu gesto o prestígio que lhe haviam captado dois anos de perseverantes     esforços em triunfar das maquinações e traições     dos inimigos, dois anos de insano lidar. Alto, espadaúdo, o rosto corado,     os olhos retintos, de fulgor seco e vivo, oferecia majestoso e insinuativo     aspecto. Era o tipo da força e da resolução  um     desses homens que nos afastam dela os adversários e comunicam aos amigos     grande e heróica firmeza  um desses homens em quem se encontram     qualidades de dois mais admiráveis representantes do espírito     revolucionário  Cromwell e Mirabeau.

— Darei a minha resposta em poucas palavras: somos quinhentos nobres,     temos quatrocentos escravos e duzentos camaradas; mil e cem homens bem armados     e municiados para tomar a vila de surpresa, pôr abaixo o governador     e os ministros e expulsar os mascates que não quiserem submeter-se,     proclamar a independência de Pernambuco. O meu intento não é     outro, senhores! O meu intento é libertar a terra que nos viu nascer.     Eu quero a liberdade de Pernambuco, ou do Brasil, eu quero acabar, de uma     vez por todas, com o jugo dessa metrópole ingrata que nos traz em baixa     vassalagem.

Apenas tinha acabado de proferir estas palavras, quando se ouviu ruídos     de passos de cavalo em uma das veredas que vinham dar no pouso.

— Quem será? disse um dos nobres em tom de quem se assustava.

E a esta voz, todos os outros presentes, levantando-se com um só     homem, lançaram mão das armas.

Falcão, empalidecendo levemente, fez-lhes sinal que ficassem silenciosos     e quedos.

O papel arriscado de ir ao encontro de quem quer que fosse, ele o não     quis passar a ninguém. Rompendo por entre troncos seculares, desapareceu     das vistas dos outros, num abris e fechar d’olhos.

Mas logo retornou ao recinto, possuído de diferentes impressões,     ouvindo uma voz conhecida  a de Lourenço. O semblante do rapaz     indicava uma extraordinária satisfação.

— Alvíssaras, seu Falcão, alvíssaras! — Que notícias trazes? perguntou o capitão espantado.

— O perdão.

— O perdão? inquiriram dez, vinte, cem bocas ao mesmo tempo.

— Sim, o perdão que o rei mandou para a nobreza; chegou ontem.     Andei toda a noite, debaixo de chuva que Deus dava, para ser o primeiro que     trouxesse a vosmecês este alegre presente.

Por entre a multidão, que ocorrera ao ponto, a fim de ouvir de perto     a grande nova, Lourenço enxergou Francisco e Saturnino, que se adiantavam     para ele. Atirou-se ao encontro, tendo antes entregue a Falcão uma     carta, que este leu em voz alta, depois de a haver lido para si:

“Amigo e senhor,

  Não tenho tempo senão para lhe participar, sumamente regozijado,   que chegou esta manhã de Lisboa um navio com a notícia de estarem   perdoados os nobres.  

 

O governador ainda não fez público o perdão com que     el-rei se amerceou dos pernambucanos; mas, várias cartas do reino a     amigos nossos são unânimes em afirmar que o perdão foi     concedido e o governador será mudado.

Receba os meus parabéns e abrace todos os nossos amigos e patrícios.

Salinas, 3 de junho de 1714     Gil Ribeiro

Apenas acabada a leitura, muitos exultando de prazer, soltaram irresistivelmente     vivas a el-rei que foram calorosamente correspondidos.

O padre Guerra não pôde fugir de dizer: — Eu logo vi, senhores, que el-rei não havia de ser surdo às     nossas súplicas conteúdas nas cartas dos clérigos,     das matronas pernambucanas...

— Não esqueçais as vossas eloqüentes cartas      acrescentou Christovam de Holanda.

— Senhores, senhores, tornou o padre, demos graças a Deus por     este celestial benefício.

O ruído, o burburinho produzido pelos que celebravam e comentavam     a nova; os sorrisos de uns, os gracejos de outros, os abraços e as     alegrias gerais indicavam que a idéia da separação política,     há pouco aceita e proclamada por todos os homiziados, não tinha     grandes raízes senão em Falcão d’Eça, o     qual emudecera, triste e eclipsado, quando o júbilo dava brilho a todos     os semblantes, e eloqüência a todas as vozes.

 

Vinte e quatro horas antes chegara Lourenço ao sítio do ajudante     de tenente Gil Ribeiro, nas Salinas: viera saber o que era feito de Francisco.

O ajudante mal o reconheceu, não porque o rapaz se mostrasse outro     no trajar, como quando voltara ao Cajueiro, depois de sua longa ausência,     mas porque no rosto cadavérico trazia vestígios de resignada     angústia. Os últimos acontecimentos passado ali tinham-lhe deixado     no coração grandes estragos que a sua fisionomia indiscreta,     sem a escola da hipocrisia, estampava como vago esboço.

Apressara a jornada a fim de atenuar a intensidade da dor ocasionada pela     mudança da viúva do sargento-mor; a jornada, porém, por     paragens e regiões que lhe eram familiares, pouco ou nenhum alívio     trouxera ao rapaz, em quem o ajudante viu antes um enfermo do que o robusto     atleta que admirara em Goiana por ocasião de se bater com as tropas     de Luís Soares.

Mas o que a jornada não conseguira, devia Lourenço encontrar     no Recife  o seu restabelecimento por violenta e grande comoção     que lhe abalou e restaurou os abatidos espíritos  a comoção     que despertou nele a notícia do perdão aos nobres, notícia     imensamente grata, que ele teve a dita de ser o primeiro a levar aos refugiados     de Tracunhaém.

Estava o Recife possuído de febril impaciência por saber a     causa de vir entrando um navio adornado com enfiada de galhardetes, ostentando     alegres ares, e disparando artilharia de tempos a tempos.

Usurpando os foros de Olinda, à qual ainda hoje está preso     pelo ístimo  cordão umbilical que parece destinado a     certificar as relações de mãe e filha entre a cidade     de Albuquerque  e a cidade de Nassau  o Recife, não obstante     ser então vila, concentrara em si desde a chegada do governador Machado,     toda a vida da capitania, enquanto Olinda, triste e chorosa, decaída     do seu ilustre orgulho, curtia longos dias e agras noites em silêncio,     parecido com o que cerca os túmulos.

Com aqueles indícios de extraordinário acontecimento, a vila     alvoroçou-se como soe fazer jovem garrida aos primeiros sons de orquestra     festiva em salão e baile. Sorriu feliz, agitou-se, pensou em mil assuntos,     espreitando a ocasião de transbordarem as suas comoções.

Alguns dos mais insofridos moradores correram ao porto, onde deviam ter     trocada em mágoa a leviana alegria. Contra todas as presunções,     a notícia trazida pelo mensageiro auspicioso não era agradável;     ao contrário, vinha impregnada am azedume e fel. A causa da estrondosa     manifestação era o perdão concedido aos nobres por el-rei.

Conhecida esta causa, a agitação aumentou: uns corriam para     aqui, outros para acolá, a levarem a notícia; mas, depois começaram     a debandar-se, a fugir dos lugares públicos, a concentrar-se no interior     dos estabelecimentos e das casas, onde se espraiaram em reflexões sobre     o novo tema.

As praças e esquinas ficaram desertas. Súbita paralisia pareceu     tomar as ruas. Zacarias de Brito, mercador apacatado, dava ao diabo a fatalidade     que escolhera seu navio para portador de tão infausta novidade.

Penetremos, por volta de sete horas da noite, no palácio das duas     torres, outrora morada de Maurício de Nassau, agora residência     do governador Machado.

À luz de um candeeiro de prata, seis sujeitos conversam sentados     em torno de uma mesa, sobre a qual se vê estendido um papel que, pela     flacidez, está denunciando ter andado de mão em mão.

O primeiro destes  sujeitos, à vista das atenções     que os outros lhe prestam, é o governador. Os seus olhos às     vezes incendeiam-se em violento brilho; mas logo este amortece e não     têm eles outra expressão que a sua expressão usual      a de chata animalidade.

O outro sujeito, o que lhe ficava imediato do lado direito, tinha fronte     estreita, os olhos apertados e piscos, o nariz comprido e fino. Sobre o nariz     viam-se ainda os óculos com que o cavalgara seu dono para ler o papel     que daí não saiu mais; a razão era porque a leitura,     ou, ao menos, o exame visual do documento se repetia de momento a momento,     às vezes para se decidir algum ponto acerca do qual a conversação     sugeria dúvidas, às vezes como sem intenção, ou     simplesmente para iludir o silêncio entrecortado de rápidas observações.     Era o desembargador Cristovam Soares, que da Paraíba, onde se achava     de há muito, viera expressamente por ordem do governo, a fim de proceder     à devassa dos levantes de Pernambuco, por terem os drs. Luís     de Valenzuela Ortiz e Pedro Ferreira Brandão dado de suspeito na corte     o ouvidor Bacalhau, conforme se disse em outro ponto desta crônica.

O dito desembargador, conhecido por duas alcunhas que passaram à     história  Cutia na Paraíba, Tubarão     no Ceará  caracterizava-se por certas habilidades  que     não raro aparece nas administrações acanhadas e decadentes.     Cuidava ele mais dos pequenos do que dos grandes assuntos, mais do exterior     do que das entranhas deles. Bastarão algumas linha tomadas ao cronista     da famosa guerra para se juizar do espírito deste magistrado. “Começou     o sindicante os seus trabalhos  pela escolha do papel para a devassa,     de maneira que andou um meirinho de loja em loja e de venda em venda, sem     descobrir um papel que agradasse ao ministro.

Do seu caráter ainda diz o cronista: “Sendo ouvidor da Paraíba,     pelas coisas desordenadas que ali fez, veio para Pernambuco preso, a fim de     ir, como foi, para Lisboa; mas porque os maus tiveram sempre padrinhos, que     são a quem só servem,  pois os bons não carecem     deles, por meio dos tais padrinhos, teve tal dita, que pode merecer quanto     já tinha desmerecido. Tornou para o mesmo lugar e ocupação,     deixando na corte ofuscada a verdade que dele se dissera. E com esta pena,     de seus erros se pôs tão emendado como dantes e como se pode     presumir à vista dela. Queria com inversões do natural mostrar-se     reto; mas isso mesmo o obrigava a descobrir-se; porque quando humano se supunha,     então era vê-lo impaciente e desabrido. Depois de ouvidor passou     a medir terras, enchendo as medidas de quem lhe enchia as mãos, ainda     que a parte lesada se queixasse. E deste modo ficaram nas montanhas de Jaguaribe     e Açu, por onde andou feito Silvano, memoráveis histórias     suas que ainda hoje se celebram     Do ouro lado do governador achava-se o ouvidor Bacalhau, e junto deste frei     Estevão (da reformada), D. Matias, cônego regrante, irmão     de João da Maia, o qual chegara da Paraíba por ocasião     de se dar começo à devassa; e o padre João da Costa (da     recoleta da Madre de Deus);     Eis o que rezava o papel:

“Faço saber a vós, governador da capitania de Pernambuco,     que fazendo-se-me presente, pelo meu conselho ultramarino, a conta que me     destes das prisões, que se haviam feito nesta capitania nas pessoas     compreendidas nos levantamentos que houve nela, e que também me deu     o desembargador Cristovam Soares Romão sobre o mesmo particular, e     que pelo erro que houve na última ordem, que se lhe passou, tinha procedido     contra os culpados no primeiro e segundo levante; me pareceu mandar-vos estranhar     muito severamente por resolução de 7 do presente mês;     pois nela vos declarava que Eu havia confirmado os perdões do primeiro     e segundo levantamento, pelo que respeitava aos moradores de Olinda; pois     segundo o ministro tivera esta notícia, não inquirira dos ditos     levantamentos, pelo que pertencia aos ditos moradores; e assim lhe ordeno     que se abstenha de perguntar pelos primeiros levantamentos, e que mande soltar     os culpados neles por estarem por mim perdoados, fazendo-lhes repor e restituir     os bens que lhes foram seqüestrados: e o dinheiro que se tiver despendido     das pessoas, que indevidamente foram pronunciadas pelo primeiro e segundo     levantamento, se pague pelas despesas da justiça, ou minha real fazenda,     por ora. El-rei nosso senhor o mandou por Miguel Carlos, conde geral da armada     do mar oceano, de seus conselhos de estado e guerra, e presidente do ultramarino:     e se passou por quatro vias. Manuel Barbosa a fez em Lisboa, a 7 de abril     de 1714. O secretário André Lopes de Lavra fez escrever.     Miguel Carlos

— Idêntica a esta ordem régia  disse o Cutia pegando     pela décima quinta vez no papel  é a que el-rei se serviu     mandar-me, segundo viu v.exa.; mas falta-me disposição, sr.     governador, para cumprir esta vontade real, em que melhor se está vendo     a fatal intervenção do valimento de Antonio de Albuquerque Coelho,     do que a justiça usual e natural de el-rei.

— Parece-vos isto sr. desembargador sindicante? perguntou Félix     Machado, a modo de quem não tinha convicção formada sobre     o objeto, ou de quem vacilava na que tinha.

— Posso afirmá-lo a v.exa., respondeu o Cutia.

— E eu estou de acordo com o parecer do sr. sindicante  acrescentou     o Bacalhau.

O Cutia continuou: — Pode v.exa. ter por seguras todas as minhas afirmativas, porque de     tudo o que digo estou informado; nem é de hoje que pratico o ofício     de sindicante, mas pelo contrário de há muito que estou afeito     às indagações. A Albuquerque e não a outrem devemos     este revés, que a muitos desastres, quiçá, dará     lugar,se a nobreza quiser tirar dele todos os desforços a que ele se     presta.

— Eu já tive ocasião de declarar ao sr. governador      disse o Bacalhau  quantos males devíamos esperar de Antonio     Albuquerque. Durante os dezoito dias de sua estada em Pernambuco, donde é     natural, não o deixaram desacompanhado um só instante os seus     parentes e conterrâneos. Sabido é que nada do que se passou lhe     foi oculto, e que ainda não satisfeitos com isso os mazombos,     grandes invenções lhe meteram na cabeça. Conta-se que     de tantos documentos, cartas, requerimentos e informações o     fizeram portador para os homens que mais representam diante d el-rei, e até     para el-rei mesmo, que uma grande canastra ainda não chegou para os     acondicionar.

— De tudo sei, sr. ouvidor, de tudo sei  disse secamente o     governador. Sei mais o que talvez não saiba o sr. ouvidor  que     grande parte de uma história da guerra que se está escrevendo,     recheadas de mentiras e aleivosias, foi entregue a Antonio de Albuquerque     para ser presente a el-rei.

Neste ponto tomou a mão da reformada e disse: — Mas o que talvez v.exa. ignore, é quem seja o autor desta história.

— Sei tudo, frei Estevam. O autor é o padre Antonio Gonçalves     Leitão  acrescentou o governador  que supõe muito     resguardado o seu nome da publicidade, quando não é desta, mas     da minha gaveta, ou da sua sindicância, sr. desembargador, que ele mais     deve recear.

— No meu canhenho está ele, disse o Cutia; e não se     meterá de permeio uma semana que eu não lhe mande bater à     porta.

— Agora talvez já não seja tempo, observou o governador.

— V. exa. sabe melhor do que eu que todo tempo é bom para se     inquirir de um crime.

— Menos, ajuntou o governador, quando crimes maiores acabaram de ser     perdoados, e réus de lesa-majestade são mandados soltar pela     própria majestade.

À estas palavras do governador, que em outro círculo de que     não fizessem parte o Cutia, o Bacalhau e o frei Estevam, teriam cortado     pela raiz a questão, seguiu-se um momento de profundo silêncio,     mas não todo o silêncio que deviam produzir.

O Cutia, quando julgou que era tempo de tornar ao grave objeto que ali os     trazia juntos, disse: — Mas perdoe-me v. exa.: o sr. governador está no ânimo     de fazer cumprir as vontades de Antonio de Albuquerque? — O que se há de cumprir, sr. desembargador sindicante, é     a ordem de el-rei, respondeu Félix José Machado.

Novo instante de silêncio sucedeu a esta decisiva sentença     do governador, o qual, com uma perna sobre a outra, o lado direito voltado     para a mesa, os olhos postos na imensidade escura da noite, que envolvia do     lado de fora toda a natureza, na qual engolfara a vista através da     janela do palácio que caía sobre o Capibaribe, parecia fazer     companhia às visitas mais com o ouvido do que com os olhos e o pensamento.

— Não sei para que serviram os procuradores que foram mandados     à corte, disse o Bacalhau. Se era para ao cabo de tantos trabalhos     e inquietações voltarem a usar, mais altaneiros, do que dantes,     os réus de alta justiça, das antigas licenciosidades e soberbias,     melhor fora que lá não tivesse ido.

— Não devemos culpar desta faculdade os nossos amigos que foram     para Lisboa na frota, e ainda lá estão, respondeu o governador.     Antonio Barbosa de Lima, escreve-me por todos os navios, dando-me parte do     muito que fez desde que chegou ali, e está ali fazendo a bem da causa     portuguesa; e nenhum dos atos deste meu secretário me deu ainda lugar     a suspeitar da sua lealdade e entendimento. Devemos antes referir à     felicidade dos mazombos ao grande lugar que tem, diante de el-rei,     Antonio de Albuquerque, desde que foi governador das Minas do ouro e do Rio     de Janeiro, do que a descuido e fraqueza dos nossos procuradores. Nem é     só Antonio de Albuquerque o empenhado na defesa destes réus,     que a esta hora já deveriam estar degolados por sua alta contumácia     e desmesurada traição. Muitas cartas foram mandadas daqui a     fidalgos de grande porte que não podendo, por estarem longe do lugar     onde se passam as coisas, ajuizar devidamente da gravidade delas, dão     muito pelo que lhes escrevem uma D. Lourença Tavares, em cujas mãos     melhor cabida teriam os bilros do que a pena, se as cartas que ela assina,     não se devem ao padre Guerra; um Cristovam de Holanda, poço     de altivez inaudita; um Miguel da Rocha, enfim tantos outros, ente os quais     mulheres e clérigos, que não conhecem o que devem a seu sexo     e a seu ministério.

Depois do silêncio que sempre sucedia às palavras do governador,     este, como se acordara de um sonho profundo, volta-se inopinadamente para     João da Costa e lhe dirige estas palavras: — E que nos dizeis vós, padre, dos vossos companheiros que foram     na frota com o meu secretário? Qual foi o seu papel em tudo o que vemos?     Deveis ter deles recebido prolixos esclarecimentos.

— Os da recoleta, excelentíssimo, preencheram o mandado que     os levara à metrópole. Não descansaram ainda, desde que     aportaram em Lisboa. Em outra ocasião poderei mostrar a v.exa. o entendido     relatório que frei Ferrão me enviou, e onde vêm apontados,     pelo menor, os meios empregados para o vencimento da causa, infelizmente já     perdida.

— O pior de tudo isto, o nosso mal, excelentíssimo, está     em não ter feito em Pernambuco a justiça que, por seus crimes,     mereciam os caneludos,  disse o Cutia.

— E não sabeis vós que sempre foi este o meu parecer     e desejo? Ignorais, sr. desembargador sindicante, que entre estas mesmas paredes     que nos estão ouvindo, reuni eu, entre junho e julho de 1712, com o     dr. ouvidor Bacalhau e o defunto juiz de fora Carvalho, os ouvidores da Paraíba     e das Alagoas para, em relação, julgarmos dos crimes cometidos     pela nobreza rebelde? Ignorais que os principais motores do levante devem     o trazerem ainda hoje fixas nos ombros as cabeças serpentinas, não     à generosidade minha, que nunca a tive nem a terei jamais para réprobos     semelhantes, mas à pertinácia e firmeza brutal do ouvidor das     Alagoas, João Soares da Cunha, e do ouvidor da Paraíba, Jerônimo     Correa do Amaral, muito nosso conhecido, que com o pretexto de nada poderem     resolver sobre o assunto sem ordem expressa de el-rei, se retiraram a seus     distritos, deixando com isto mais seguros em sua ousadia os réus, então     impunes, agora perdoados? Não sabeis vós, sr. sindicante, que     do ouvidor das Alagoas corre até assinado um infame papel em que declara     lhe terem sido oferecidos pelos nossos amigos três mil cruzados para     que votasse pela execução dos réus? — De tudo sei, excelentíssimo  respondeu o Cutia; mas...     Enfim, v. exa. sabe o melhor. O que todos nós sabemos e estamos vendo     é que o pior de tudo chegou para nós quando não sem fundamento     pelo melhor esperávamos. Aí está o perdão, e a     não querer v. exa. fazer que o não recebeu, a fim de irmos por     diante na devassa, carregando mais a mão sobre quem não tem     tido a sua leva para nós, não sei como poderemos sair com vida     de Pernambuco.

Félix José Machado levantou-se, deu alguns passos pela sala,     e voltou a ocupar o lugar e a posição de há pouco. Ao     cabo de um momento, disse com voz em que vibrava mistura de pesar e despeito:      — E posso eu ocultar o perdão? — E por que não, sr. governador? perguntaram ao mesmo tempo o     Cutia, o Bacalhau e João da Costa, que pareciam estar de antemão     combinados em indicar a Machado este indigno e criminoso procedimento. Não     se fez o mesmo da outra vez? continuou o sindicante com o calor a que o autorizava     a fria e como hesitante pergunta do governador.

— Quereis referir-vos... disse ele.

— Quero referir-me  prosseguiu o Cutia  ao perdão     mandado por D. Lourenço de Almeida aos portugueses, quando se achavam     cercados pelos pés-rapados. Não se ocultou o dito perdão,     apesar de recebido? E não teve este procedimento por fim impedir que     cessasse a guerra, porque, cessada esta, teria cessado também a esperança     de tirarem os portugueses a sua desforra dos nobres? Não se praticou     tudo isto, sr. governador? E o que se previu não veio a acontecer?     Se v. exa, não publicar o perdão, quem mais haverá competente     para o fazer, ainda que de Lisboa o tenha recebido? Se v. exa. declarar que     o não recebeu, quem poderá asseverar o contrário?     O governador levantou-se novamente, e dirigiu-se à varanda do palácio.

Neste momento uma como constelação luzia ao longe, e, aos     seus reflexos, apareceu no horizonte longínquo o vulto de Olinda.

Não se meteu muito tempo que de diferentes pontos da orgulhosa cidade     começaram a levantar-se aos ares girândolas de variados fogos,     que por todos os que se achavam com o governador, chamados por este à     varanda, foram logo vistos.

— Eis ali a resposta que tenho para dar à vossa última     interrogação, sr. desembargador sindicante. A notícia     do perdão é motivo de festas gerais na soberba cidade. Não     vedes como ela está iluminada de uma extremidade à outra? A     esta hora os restantes da empavesada nobreza que ficaram fora da devassa cavalcantina,     se banqueteiam não só com os das linhas que a cruzam, mas também     com os aduladores e agregados de uma e de outras, Naturalmente da própria     secretaria do ultramarino enviaram cópia da ordem que me foi dirigida,     a algum mazombo de Olinda, a Duarte Tavares por exemplo, para prevenir a perda     do original. Amanhã o perdão estará estampado por todos     os cantos da cidade, a fim de que sobre sua existência não haja     dúvidas. Não seria, pois, o maior dos desacertos a ocultação     deles por parte de quem o recebeu para o fazer cumprir sem tardança?     Não seria, além de desacerto, perder tempo, com o risco de perder     alguma coisa mais? — Se eu fora governador  disse então o Bacalhau      assim como sou ministro, “eu lhes construiria ou fizera construir o     que isto é; não lhes consentiria estes alguergues e parvoíces(8).

— Sr. ouvidor  disse Machado  o meu ânimo e o     meu desejo não podem ir além dos limites da minha autoridade.     A campanha que dei aos nobres está finda; é tempo de recolher-me     à minha tenda de guerra; se não fui vencedor, não fui     vencido. Amanhã se botará bando, fazendo manifesta a graça     de sua majestade; e darei ordem para que desembarquem os que estão     nos navios, e sejam todos eles postos em liberdade, excetuados somente João     Luiz Correa, Felipe Cavalcanti, seu irmão Jorge Cavalcanti, Leandro     Bezerra e Felipe Bandeira, que interpuseram recurso para a Bahia. De lá     naturalmente voltarão livres, visto que segundo se me escreve do reino,     o novo governador-geral e vice-rei vêm no ânimo de compor todas     as discórdias atuais.

— E quem é o novo governador-geral? perguntou o Cutia.

— D. Pedro Antonio de Noronha, conde de Vila-Verde, marquês     de Angeja, respondeu Félix Machado.

— Assim senhor, está tudo acabado sobre estas terras, e do     que fizeram os nobres em sua louca e audaciosa rebeldia nada mais resta, tirante     a memória dela? — E que quereis que reste mais, sr. ouvidor? Eu não sou suspeito.     Nunca perdoei aos emperrados desta terra, e agora ainda menos lhes perdôo     os males que nos trouxeram a sua natural bazófia e arrogância.     Por muito que me desprezem ou que me odeiem, ficarão ainda aquém     dos meus o seu ódio ou o seu desprezo. Mas, pois o quer e o manda el-rei,     que se lhes dê a liberdade, muito embora não venha ela servir     para outros fins que o de revolverem novamente a terra, abaterem a autoridade,     impedirem o desenvolvimento material e comercial, cevarem ódios, alentarem     vinganças, tirarem a vida a quem devera tem muitas para os poder aniquilar     um por um, de geração em geração.

— Não se lhes poderia imputar nova rebeldia, novo levante,     ainda não perdoado? perguntou o Bacalhau.

— Qual? — O levante de Tracunhaém, essa liga tremenda de que é     cabeça Falcão d’Eça.

— A liga de Tracunhaém  respondeu Machado  não     é propriamente levante, sr. ouvidor. E em que aproveitaria a sindicância     que dela se fizesse?     À proporção que a noite ia se adiantando, a sala onde     se realizou este diálogo enchia-se dos principais da parcialidade oposta     à nobreza. Todos corriam a certificar-se da notícia ouvindo-a     da boca de Félix José Machado. Todos tinham os olhos em Olinda,     e os ouvidos à escuta; e não era sem razão que o faziam     porque ali começavam a manifestar-se estranho e geral regozijo. As     casas e as igrejas estavam iluminadas. Repicavam os sinos; bandas de música,     improvisadas em poucos momentos, percorriam as ruas, derramando o movimento     e a alegria onde horas antes era tudo imobilidade e recolhimento. Os ecos     da demonstração febril e vibrante, ondulando por cima das águas     mansas do Capibaribe, por cima dos tufos verde-negros, pitorescos e murmurosos     dos mangues, que bordavam as suas ilhas e margens, vinham ferir os tímpanos     dos ouvidos da burguesia portuguesa que enchia as salas do palácio     das duas torres, e nesses ecos parecia escutar os de uma orquestra fúnebre.

No outro dia, pela manhã. à porta dos principais mascates,     amanheceram papéis com ridículas caricaturas e sátiras     ferinas, alusivas ao destroço daquela parcialidade. Em algumas casas     e notórios amigos de Camarão, viam-se covos com alguns camarões     dentro, indicando que os parciais do chefe caboclo tinham caído na     armadilha. Em outras viam-se forcas de varinhas. Andava ali o engenho popular     que não perde vasa.

A musa anônima, que já celebrava a morte do juiz de fora em     graciosa décima, produziu mais duas comemorativas de certo fato que     dera muito o que falar  o de ter tentado contra os seus dias em Olinda     certo partidário do Camarão, o qual morreria enforcado se a     mulher não o salvasse.

A crônica, prevenida, recolheu estes produtos que me considero na     obrigação de trasladar aqui:

“Nesta cidade se quis     Enforcar um camarão,     Fazendo, por sua mão,     O laço como se diz:     Já pela boca e nariz,     Sem poder resfolegar,     Acudiu, no pernear,     A mulher deste madraço;     E, cortando-lhe o cadarço,     O tirou de se enforcar.

Foi coisa bem mal tirada.

Porque a todos desta seita,     Não vi coisa mais bem feita,     Que enforcados, quando nada,     Ação foi desesperada,     E de um homem já perdido;     Mas ficando suspendido     Pela fé dos camarões,     Livrava-se de questões,     E a mulher de tal marido.(2)

A cidade de Albuquerque devolvia assim, aumentados, os insultos e mofas com     que havia mais de dois anos a ousada e risonha vila respondia aos seus pesares     e lágrimas, dia por dia, às mãos cheias, como inimigo     atroz e implacável.

 

Obra de um mês depois, pacificada a capitania, voltados aos seus lares     Francisco e Lourenço, saiu este uma manhã do sítio do     padre Antonio, onde todos moravam agora, enquanto Francisco cortava umas varas     na mata para fazer um caritó onde guardar goiamus, que começava     a andar ao atar. Fora Marcelina a autora da idéia, dizendo     ao marido que os goiamus, bem cevados como ela os sabia cevar, haviam de dar     bom dinheiro na vila, e não convinha perder este lucro.

Lourenço, conquanto a manhã estivesse fresca e risonha, levava     no rosto a sombra do desgosto íntimo que, passada a impressão     do grande acontecimento, voltou de novo, não tão intenso como     dantes, mas tenaz e constante como um, remorso ou uma chaga incurável.

E saíra com o pé esquerdo, porque, adiante, saltando um pau     que cortava a passagem, foi cair com a cabeça de encontro a uma pedra     onde se feriu, ficando com a camisa lavrada de longas machas de sangue.

Como tinha feito tenção de ir ver um pedaço de terra,     do lado de Jopomim, que lhe fora oferecido pelo dono que o vendia por pouco     dinheiro, prosseguiu o caminho, não obstante o desastre e a má     aparência.

Depois de andar cerca de meia hora, deu na várzea que de há     muito não via, a várzea do Jopomim, por onde brincara alguns     anos antes, pegando canários e gurinhatãs, quando o seu espírito     discorria por horizontes sem nuvens nem limites, quando no seu coração     não havia nenhum espinho.

De repente ouviu umas vozes femininas que partiam de ponto não muito     distante do em que estava. Com pouco descobriu, de fato, duas mulheres, uma     das quais trazia um saco nas costas, e era acompanhada por um cão,     que farejava de moita em moita, e às vezes parava de latir. Então     a mulher aproximava-se do lugar, arreava o saco, inclinava-se para o chão,     e aí apanhava, ora rindo-se ora fugindo com o corpo e as mãos,     um objeto que, com toda a precaução, atirava dentro do saco.     Lourenço compreendeu logo que a mulher andava apanhando goiamus.

A outra, que estava mais perto dele, e parecia mais nova, em vez de imitar     a mais velha, colhia araçás aqui e acolá, e atirava-os     dentro de uma cuia, correndo e saltando com os cabelos soltos, de um araçazeiro     para outro, como fazem os beija flores de roseira em roseira, nos jardins.

Pressentindo gente por ali, antes de ver quem era, o cão, mais defensor     que caçador, deixou aquela a quem estava prestando seus bons serviços,     e correu na direção de Lourenço, com quem deu em um instante.     Logo que a mulher que se achava mais perto, viu o rapaz com a camisa cheia     de lavores pouco tranqüilizadores, um cacete em uma das mãos,     um facão na outra, e as vistas cravadas nela, deixando escapar um grito     angustioso, e cair da mão a cuia, correu para onde estava a outra:      — Minha mãe! minha mãe! gritou ela, assusta da e trêmula.     É Lourenço! É ele. Corramos, fujamos, minha mãe.     Quem sabe se ele não vem matar-me! — Cala a boca, Marianinha. Quem te disse que é Lourenço?     respondeu Joaquina, a qual, pela distância, não pudera ainda     distinguir bem as feições do rapaz.

Este reconheceu pelas vozes as suas amigas vizinhas e camaradas.

Penetrante e atroz foi a mágoa sentida por Lourenço, quando     ouviu as acerbas palavras da filha de Vitorino. O seu coração     já tão castigado pelos últimos acontecimentos, o seu     coração infeliz que tinha a sensibilidade nervosa dos enfermos     de doença moral, experimentou uma dessas impressões produzidas     por choques traumáticos a que muitas vezes não se pode resistir     com a vida.

Ao princípio, quis fugir para o lado oposto. Não era este     o meio direto de resolver aquela situação aflitiva? Fugir das     vistas daquele a quem desagradamos, não é passo natural e racional?          Lourenço esteve para dá-lo; mas, compreendendo que, se assim     procedesse, confirmaria o mau conceito que dele já formava Marianinha,     tomou resolução contrária.

— Elas têm para si que sou um assassino; mas eu não sou     o que elas pensam. É preciso que se desenganem. Às vezes, quando     me esquento, sou capaz de comer gente viva, mas isto acontece uma vez na vida.

Eis o que ele pensou, eis o que lhe ocorreu, após o primeiro impulso,     vencido pelas reflexões. Não hesitou mais, e encaminhou-se para     onde estavam mãe e filha.

— Então, que é isto, Marianinha? perguntou ele, ainda     de longe. Correu de mim? Eu não venho fazer mal a ninguém. O     meu facão não tem ponta; partiu-se ali atrás em uma pedra     onde quebrei a cabeça; e é por isso que estou com a camisa cheia     de sangue.

Assim falando, Lourenço atirou o facão, de feito quebrado,     aos pés da menina, a fim de que ela visse distintamente que ele dissera     a verdade.

Não obstante a humildade e brandura destas expressões, Marianinha     não ousava levantar os olhos ao rapaz. Mudas e abaladas, Joaquina e     a filha não sabiam o que dizer.

— Nunca matei ninguém, nem Deus há de permitir que eu     chegue a matar quem quer que seja algum dia. Vim por aqui para as ver. Tenho     sentido muitas saudades da sua companhia. Mudaram-se do Cajueiro sem me dizerem     adeus, zangadas comigo sem grande razão, porque...

Lourenço não soube como continuar.

— Se não nos despedimos, disse Joaquina, foi porque você     tinha feito o que não devia fazer com  a  Marianinha, que     morria por você, que lhe queria tanto bem, que vivia somente para lhe     querer bem.

— Naquele tempo, tornou o rapaz, eu andava fora de mim. Agora não     hei de sair mais do bom caminho. Foram-se os que tinham vindo, e ficaram os     que cá estavam. Com estes é que eu me hei de achar.

Enquanto falava, Lourenço punha os olhos em Marianinha, cujas formas     tinham se tornado esplêndidas. Quantas diferenças lhe notou!          Desgostosa do que acontecera, Marianinha cortara os cabelos logo depois da     mudança. Estava agora com cabelos novos, bastos e lindos. Libertada     do amor e do ciúmes que a amofinavam, engordou e cobrou cores finas.     As espáduas, o pescoço, a raiz dos seios, os braços curtos,     as mãos pequeninas, estavam revelando a Lourenço, no boleado     e no ilustre, quanto ganhara ela com a transformação.

— Não fujam mais de mim, que me fazem ficar tristes      prosseguiu o rapaz. Não vivemos sempre em boa harmonia? — Sempre não  atalhou Joaquina; até certo tempo,     enquanto não se meteu entre nós uma nuvem negra que foi a causa     do nosso desgosto.

— Está tudo acabado agora. A nuvem foi-se embora. Não     está tão bonita esta manhã? Pois quem sabe se não     vem com ela a manhã da nossa passada amizade? — Como está Marcelina? Como está Francisco? Ainda não     o vi depois que chegou, disse Joaquina, como quem ia se acomodando com a nova     ordem de idéias sugerias pela imaginação de Lourenço.

— Estão bons. Vou já dizer-lhes que estive aqui, e que     depois de amanhã, que é domingo, sinhá Joaquina e Marianinha     vão passar o dia lá em casa.

— Não, Lourenço; lá não  disse     Joaquina.

— Pois então há de ser cá. Venho eu, meu pai     e minha mãe. Pegaremos o resto dos goiamus. A andada não dura     três dias? — Se quiserem vir, venham. Aqui nos acharão para os recebermos.

— Havemos de fazer a nossa festa mesmo debaixo destes araçazeiros.     Mas, que é isto, Marianinha? Você parece que está muda.     Se não diz que posso vir, não venho.

— Minha mãe já não disse que você podia     vir? O que ela disse é o que é.

— Então, até domingo.

— Até domingo. Olhe. O caminho é por ali, e a casa é     aquela  ponderou a viúva do Vitorino, apontando, por ver que     o rapaz se resolvia a partir.

No dia seguinte amanheceu Marianinha tratando dos preparativos para a esperada     recepção.

A casa era de barro, coberta com palhas. Tinha pertencido a um morador que,     por desgostos com a senhora daquelas terras, se passara para outras. Estava     ainda muito bem conservada e ficava em boa situação. Do lado     direito vinham morrer-lhe no oitão uns canaviais; pela esquerda e pelos     fundos tinha a várzea; pela frente passava o caminho que levava a Goiana;     Entre a casa e o caminho havia um araçazal mais basto do que se via     na zona intermédia entre aquela e a mata.

Marianinha cortou com o facão alguns matos que fechavam o caminho,     decotou umas goiabeiras ramalhudas que tiravam a vista do alpendre, limpou     à enxada a frente, a fim de tornar mais espaçoso e alegre o     pátio. De tarde mostrava-se graciosa e faceira. Remoçara com     o asseio, e estava como sorrindo aos hóspedes ainda ausentes.

Quem soubesse dos precedentes entre as duas famílias, que circunstâncias     supervenientes tinham separado, havia de cuidar que a filha de Joaquina, tão     solícita em preparar digna recepção à suas antigas     amizades, entre as quais se compreendia Francisco, seu padrinho, estava nadando     em satisfação.

Mas a verdade é que bem diverso sentimento dominava Marianinha. Em     vez de clarões suavíssimos, clarões e esperanças,     tinha no espírito nuvens negras, nuvens de desgosto invencível.     A vinda de Lourenço avivara todo o seu passado de que não restavam     na lembrança dela senão quadros desbotados, quase extintos;     e o passado não lhe era agradável, porque nunca Lourenço     lhe dera motivos de verdadeira satisfação, antes quase sempre     a contrariara.

Marianinha passou toda a noite pensando no que havia de fazer. Lourenço     para ela já tinha morrido, e com ele o grande amor que lhe dedicara.     Ressurgindo-lhe agora diante dos olhos, devia ela desenterrar o falecido amor?     Lourenço merecia-lhe este milagre? Lourenço, que nunca lhe dera     provas de sincera estima, devia voltar a ocupar nas aras do seu coração     o lugar de honra, e receber o culto exclusivo que ele próprio desprezara?     Depois de pensar em tudo isto, e de meditar cada uma das graves questões     que no espírito se lhe apresentavam, a menina, tomando uma resolução     heróica, disse consigo: — Lourenço morreu para mim de uma vez. Seja de quem quiser, menos     meu; nem eu serei dele. Lourenço acabou-se para mim, como homem a quem     eu queria bem.

Com Lourenço dera-se o contrário. Aparecendo-lhe acrescentada     de beleza e graça, quando ele tinha a alma devastada e árida,     a gentil rapariga deu-lhe frescura e vigor. A sua imagem restituiu-lhe o amor     à vida. Dissuadido do enganoso sonho, sentiu-se voltar todo, como o     girassol, para aquele astro que se lhe deparou no horizonte brusco. Marianinha     era meiga e boa, era extremosa e dedicada, era paciente e cândida. Ele     conhecia as suas superiores qualidades raras numa menina, adoráveis     numa esposa. Onde acharia mulher mais digna dele? Nenhuma conhecia que se     comparasse com ela na ternura, na modéstia, no afeto, e poucas poderiam     ser rivais nos seus encantos.

Aceso em desejos, anelou pelo domingo. Tinha tomado também a sua     resolução. Na mesa, por ocasião do almoço ou do     jantar, recordaria a passada promessa, e designaria dia para o casamento.

No domingo aprazado, ainda com escuro, bateram à porta da casa da     várzea. Marianinha e Joaquina puseram-se imediatamente de pé,     julgando serem as visitas. Era um negro que Lourenço mandara adiante     com um carneiro que devia ser sacrificado nas aras da reconciliação,     e com algumas garrafas de vinho dentro e um cesto, licor indispensável     em semelhantes sacrifícios, como é no sacrifício por     excelência da igreja católica.

Pouco depois chegaram Marcelina, Lourenço e Francisco, que foram     recebidos pelas duas mulheres à beira da estrada, onde eram esperados     com impaciência.

Todos sabem ou ao menos avaliam com que atenções e cortesias     se tratam no primeiro encontro pessoas que, depois de desavindas, reatam as     antigas relações. Neste particular, nenhum dos que se achavam     presentes levou vantagem a Lourenço, origem da desavença.

Das nove para as dez horas começou o almoço, na parte lateral     do alpendre que dava para a várzea. Com ser almoço de gente     pobre, foi variado e abundante.

Moquecas e amorés, e frigideiras e ensopados de goiamus, preparados     na véspera por Marianinha; sarapatel feito do sangue do carneiro por     Marcelina; angu de milho já nesse tempo muito usado entre o povo, e     que Joaquina sabia fazer primorosamente, deram-lhe, com café com leite,     e as usuais macaxeiras e batatas doces, honras de lauta refeição     de gente abastada.

Quando foi chegando a ocasião do café, Francisco pegou do     copo e, dirigindo-se a Marianinha, disse-lhe: — Marianinha, enche o teu copo. Há de ser de virar. À     saúde do teu casamento.

A menina empalideceu, e guardou silêncio.

— Então, Marianinha, que é isso? inquiriu Marcelina.     Põe vinho no copo, menina. Não fiques triste. Desta vez há     de fazer-se o que tanto desejas.

— À saúde do teu casamento, Marianinha, repetiu Francisco,     pondo-se de pé.

E voltando-se para Lourenço: — Que fazes tu também aí que não despejas logo     o teu bacamarte? Queres ou não queres casar com Marianinha.

— Quero, sim senhor. Eu já tinha feito tenção     de falar nisto hoje, se vosmecê me desse licença.

— E por que não? Jurei sobre a cova do compadre Vitorino que     tu, Lourenço, havias de ser o marido de Marianinha. Chegou a ocasião.     Mas... que tens, menina? perguntou Francisco, vendo a afilhada com os olhos     cheios de lágrimas. Não chores. A ocasião é para     a gente rir.

Lourenço, Francisco, Marcelina e Joaquina levaram os copos aos lábios,     e esvaziaram-nos. Somente Marianinha não bebeu.

— Por que motivo não bebes? perguntou Francisco espantado.

— Porque esse casamento não se há de fazer, respondeu     a menina, com voz chorosa.

— Estás malucando, menina, tornou Francisco.

Os outros, silenciosos e confusos, cravaram as vistas na filha de Vitorino,     cuja palidez aumentara.

— Há de fazer-se o casamento, porque eu quero, Lourenço     quer, e tu queres.

— Não, eu não quero, meu padrinho, respondeu ela com     firmeza, que a todos deixou por um instante espantados, quase fulminados.

— Tu não queres! exclamou o matuto, tomado de assombro. Por     esta não esperava eu! — Não quero, não senhor. Não quero, porque sei     que Lourenço não me quer bem.

Lourenço, a esta voz, quis vir ao encontro da rapariga, mas faltaram-lhe     expressões. Como havia de provar o contrário, quando na consciência     de todos parecia haver um tropel de provas a favor da afirmação     de Marianinha?     Houve, por instantes, uma como suspensão da vida em todos os convivas.     No semblante de alguns, em cujo número estava Marcelina, revelou-se     vaga expressão de pesar.

Francisco, levando as vistas ao rosto de Lourenço, foi o primeiro     que rompeu o silêncio: — Quanto a isto, estou calado. Se Lourenço te quer bem ou não     quer, só ele é que sabe, só ele poderá dizer.

Lourenço acudiu simplesmente: — Por meu gosto, quero casar com Marianinha.

Esta retorquiu: — Eu já quis, mas agora não quero mais. Se não     me casar nunca, nem por isso hei de morrer. Tenho vivido muito bem em companhia     de minha mãe.

Tão decisiva resposta pôs termo à questão. O     casamento estava definitivamente desmanchado.

Neste ínterim, ouvindo ruído de passos de cavalo no caminho     e, logo depois o eco de pancadas na porta da frente, correu Joaquina a ver     quem era.

— Querem ver que temos por aqui o Saturnino, que volta do Jatobá      conjeturou Francisco.

Palavras não eram ditas, quando Joaquina gritou de fora: — Marianinha, Marianinha, aqui está Bernardina!     Todos correram ao encontro da filha mais velha de Vitorino.

Era de feito ela com o marido, o incomparável Cipriano, já     casados, que, aproveitando a ocasião de ter ido com eles por mandado     de Joaquina, o Saturnino logo depois da sua chegada do Tracunhaém com     Lourenço e Francisco, vinham abraçar a velha e a moça,     contentes e felizes.

O convívio que esfriara um momento, recobrou novo calor.

Bernardina, depois da grave doença que a pusera de cama, botara corpo,     e estava outra, isto é, cada vez mais bonita.

Cipriano também mudara muito com o casamento. De concentrado e bisonho     que era, tornara-se expansivo e sociável. À sombra do padre     Antonio formara-se aquela modesta família, por ele dotada e favorecida.

O padre mandara a Lourenço uma carta: — Que diz essa carta, Lourenço? perguntou Francisco, vendo o     rapaz passar as vistas por cima das regras tremidas.

Lourenço leu em voz alta, para todos ouvirem:

Lourenço, Deus te abençoe. Depois de casados e arranjados aqui juntos de mim, Cipriano e Bernardina     resolveram mudar-se para Goiana, onde ela diz querer morrer. Lá nasceu,     lá lhe correram os dias da primeira mocidade, lá tem as cinzas     de seu pai, lá quer acabar, ao lado da mãe e da irmã.     Para que tudo se arranjasse do melhor modo, fiquei com a parte da terra, que     tinha dado de dote à menina, e dei-lhe o equivalente em dinheiro, com     a condição de comprarem aí outra terra onde vivam, sem     serem pesados à ninguém. Estando eu já no fim a vida, e vendo-me só neste ermo, venho     propor-te a tua mudança para aqui. Em casa deste padre velho e achacado acharás, ao menos, bons conselhos     que de muito te devem servir na vida. Cipriano porá nas tuas mãos novo papel de doações     no sítio do Cajueiro, onde poderão ficar morando Francisco e     Marcelina. Está com os olhos no caminho o Padre Antonio.

Quando Lourenço terminou a leitura, Marcelina tinha os olhos nadando     em lágrimas, Francisco emudecera comovido, e o próprio rapaz,     dobrando o papel, sentia uma grande aperto no coração. A carta     era uma ordem terminante a que ele devia obedecer. A separação     era inevitável.

— Vais assim deixar-nos, meu filho! exclamou Marcelina. Meu Deus!     Quantas coisas neste dia! Só consinto que nos deixe, porque sei que     tu não me pertences.

Depois, enxugando os olhos, a cabocla disse com voz segura: — Deves ir, Lourenço. A felicidade está te chamando. É     a felicidade, filho; acredita nas minhas palavras, porque eu sei o que estou     dizendo. Seu padre que te abençoa é porque ele quer ser teu     pai.

Dizendo estas palavras, a cabocla parecia querer fazer-se forte; mas, foi     em vão. As lágrimas, desta vez copiosas, voltaram-lhe aos olhos;     e com pouco, entrou a soluçar. Sem se poder conter, correu ao rapaz,     abraçou-o ternamente, com quem ia separar-se de uma vez, por morte.

No outro dia, pela manhã, deu-se uma cena ainda mais viva do que     esta entre Marcelina  Lourenço.

— Minha mãe, perguntou este, vosmecê viu o que Marianinha     me fez ontem? — Vi sim. Eu não esperava por aquilo, ainda que tu...

— Não me diga nada, minha mãe que eu tudo sei. Se lhe     falo nisto agora, é para lhe dizer que antes de sair do Cajueiro para     o Jatobá, hei de vingar-me de Marianinha.

Um raio que caísse aos pés da cabocla não teria aterrado     tanto como estas palavras do rapaz.

— Lourenço, Lourenço, que estás dizendo, Lourenço?!     respondeu ela com os tons de suprema angústia.

E atirando-se de joelhos aos pés do rapaz com as mãos postas,     em atitude de quem suplicava, continuou: — Por minha benção te rogo, Lourenço, que te esqueças     de semelhante delírio.

— Deixe-me falar, minha mãe  tornou ele, levantando-a;     vosmecê não sabe o que vou dizer. Pensa que, para vingar-me do     que Marianinha me fez, quero matá-la? — Nem por graça digas esta palavra, filho.

— Eu quero vingar-me dela de modo muito diferente. Quando ela souber     para quanto presto, há de correr para me abraçar; mas já     não há de encontrar-me, minha mãe, porque eu estarei     bem longe desta terra onde tenho sofrido tanto desgosto, onde só eu     tenho sido o infeliz.

— E que é que tu queres fazer? — Vosmecê sabe que Saturnino, desde pequeno, sempre quis muito     bem a Marianinha.

— É verdade.

— Pois, sim; eu quero fazer um presente a Marianinha coma condição     de casar com Saturnino; mas o presente depende de vosmecê e de meu pai.

— Que presente? — Quero dar-lhe este sítio, que seu padre me deu.

— O teu sítio, Lourenço? O teu sítio tão     bom, tão bonito? — Bom e bonito? Sim, ele é tudo isto; mas ele me recorda sempre     coisas muito tristes. Eu não passo daqui sem me lembrar de sinhá     D. Damiana, e de tudo que mais que houve. Além disso, para que eu o     quero, se não hei de voltar mais para Goiana senão de passagem?     Sinhá D. Damiana deve voltar, porque todos os seus bens hão     de ser-lhe restituídos. Ora, Deus me livre de ter terras e casa junto     das dela. Vosmecês também não precisam dele, para morarem     porque têm o seu pedacinho de terra e a sua casa. Assim, minha mãe,     deixe-me tomar a vingança a meu modo. Só assim sairei de Goiana     consolado.

— Pois faze o que quiseres, Lourenço.

Três dias depois, quando os galos começaram a amiudar, Lourenço     montou a cavalo à porta do sítio do Cajueiro, Francisco e Marcelina     de pé, do lado de fora, viram-no partir, viram-no desaparecer, ouviram     ambos, com as faces inundadas de lágrimas, os últimos ruídos     dos passos do cavalo, que conduzia para bem longe o melhor das esperanças,     o melhor dos afetos, daquelas existências tão boas, tão     dignas, tão irmãs  daquelas existências tão     ricas na sua pobreza, tão grandes no seu pequenino mundo, tão     nobres na sua humilde condição  dois tomos de uma obra     que se poderia intitular  Trabalho, bom senso e virtude.

 

                                                                                                     Franklin Távora

 

Carlos Cunha     Arte & Produção Visual

 

 

Planeta Criança                                                             Literatura Licenciosa

 

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