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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


MADAME BOVARY
MADAME BOVARY

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

Segunda parte

I

Yonville-LAbbaye (assim chamada por causa de uma antiga abadia de capuchinhos de que nem já ruínas existiam) é uma vilória situada a oito léguas de Ruão, entre as estradas de Abbeville e de Beauvais, no fundo de um vale banhado pelo Rieule, pequeno rio que desagua no Andelle, depois de ter feito girar três moinhos nas proximidades da sua foz, e onde existem algumas trutas, que os rapazes, ao domingo, se entretêm a pescar à linha.

Deixa-se a estrada principal em Boissière e continua-se em caminho plano até ao alto da encosta de Leux, donde se avista o vale. O riacho que o atravessa como que o divide em duas regiões de aspecto diferente: tudo quanto fica à esquerda é aproveitado para pastagem; tudo o que fica para a direita é cultivado. Os prados estendem-se sob um enfiamento de colinas baixas, indo ligar-se, por detrás, às pastagens da região de Bray, enquanto, para leste, a planície, elevando-se suavemente, vai alargando e estende até perder de vista as suas louras searas de trigo. A água que corre à beira da verdura separa com um risco branco a cor dos prados e a da terra lavrada, de modo que o campo assim faz lembrar um enorme manto estendido com uma gola de veludo verde orlada de prata.

Logo à chegada vêem-se, no extremo do horizonte, os carvalhos da floresta de Argueil, com as escarpas da encosta de Saint-Jean, riscadas de alto a baixo por grandes sulcos vermelhos, irregulares; são as marcas das chuvas, e aqueles tons de tijolo, destacando-se em traços delgados sobre a cor parda da montanha, provêm da quantidade de nascentes ferruginosas que correm ao longe, nas regiões circunvizinhas.

Encontramo-nos nos confins da Normandia, da Picardia e da Ilha de França, região abastardada onde a linguagem é incaracterística, tal como a sua paisagem. É aqui que se fabricam os piores queijos de Neufchâtel de toda a província, sendo, por outro lado, a cultura dispendiosa, por requerer muito estrume para adubar estas terras friáveis, cheias de areia e de pedras.

Até 1835 não havia estrada transitável para se chegar a Yonville; mas abriu-se nessa época um caminho de grande vicinalidade que liga a estrada de Abbeville à de Amiens e às vezes serve aos almocreves que se dirigem de Ruão para as Flandres. No entanto, Yonville-l’Abbaye continuou estacionária, apesar das novas vias de desobstrução. Em vez de melhorar as culturas, ainda hoje ali se mantêm obstinadamente os pastos, por mais depreciados que estejam, e o burgo indolente, afastando-se da planície, continuou naturalmente a crescer na direcção do rio. Avista-se à distância, estendido ao longo da margem, como um guardador de vacas dormindo a sesta à beira da água.

Na base da encosta, passada uma ponte, começa uma calçada ladeada de pequenos choupos que leva, em linha recta, até às primeiras casas do lugar. Estas são rodeadas de sebes, no meio de pátios cheios de construções dispersas, lagares, cocheiras e alambiques, espalhados à sombra de frondosas árvores com escadas, varas ou foices penduradas nos ramos. Os tectos de colmo, como barretes de peles puxados para os olhos, descem até cerca de um terço da altura das janelas baixas, cujas grossas vidraças abauladas têm um nó no centro, à maneira dos fundos das garrafas. Ao muro de reboco, atravessado em diagonal por traves negras, agarra-se às vezes alguma pereira enfezada, e os pavimentos do rés-do-chão têm na porta uma pequena cancela para os defender dos pintos que vêm debicar, nas soleiras, migalhas de pão escuro molhado em sidra. À medida que se avança, os pátios vão sendo mais pequenos, as habitações vão-se aproximando e as sebes desaparecem; um molho de fetos baloiça-se por baixo de uma janela, na ponta de um cabo de vassoura; há a forja do ferrador e a seguir um segeiro, com duas ou três carroças novas, cá fora, a atravancar o caminho. Depois, através de um gradeamento, aparece uma casa branca atrás de um círculo relvado enfeitado por um Cupido de dedo na boca; a cada lado do patamar vêem-se dois vasos de ferro fundido; à porta brilham tabuletas; é a casa do tabelião, a mais bonita da localidade.

A igreja fica do outro lado da rua, vinte passos adiante, à entrada do largo. O pequeno cemitério que a rodeia, fechado por um muro baixo, está tão cheio de sepulturas, que as velhas pedras rasas formam, ao nível do chão, um lajedo contínuo, onde a erva desenhou espontaneamente quadrados verdes regulares. A igreja foi reconstruída nos últimos anos do reinado de Carlos X. A abóbada, de madeira, começa a apodrecer no alto e, de espaço a espaço, mostra depressões negras no meio da sua cor azul.

Por cima da porta, onde deveria existir o órgão há uma tribuna para os homens, com uma escada de caracol que os tamancos fazem ressoar.

A luz do Sol, entrando pelos vitrais muito simples, ilumina obliquamente os bancos alinhados contra a parede, vendo-se aqui e além um ou outro capacho pregado, tendo por baixo, em grandes letras: Banco do senhor Fulano. Mais adiante, onde a nave se estreita, o confessionário forma simetria com uma estatueta da Virgem, vestida de cetim, com um véu de tule recamado de estrelas prateadas e as faces avermelhadas como um ídolo das ilhas Sanduíche; finalmente, uma cópia da Sagrada Família, oferta do ministro do Interior, dominando o altar-mor entre quatro castiçais, fecha, ao fundo, a perspectiva. Os bancos do coro, de madeira de pinho, ficaram por pintar.

O mercado, isto é, um telheiro sustentado por uns vinte postes, ocupa, só por si, cerca de metade da grande praça de Yonville. O edifício da administração municipal, construído segundo os planos de um arquitecto de Paris, é uma espécie de templo grego que faz esquina, ao lado da casa do farmacêutico.

Tem, no rés-do-chão, três colunas jónicas e, no primeiro andar, uma galeria em arco de volta inteira. O frontão que a remata é ornamentado por um galo gaulês, com uma pata apoiada sobre a Carta e a outra segurando a balança da justiça.

No entanto, aquilo que mais atrai a vista é, defronte da estalagem do Leão de Ouro, a farmácia do senhor Homais!

Principalmente à noite, quando tem o candeeiro aceso e as redomas verdes e vermelhas que Lhe enfeitam a montra projectam à distância, no chão, os seus dois reflexos coloridos; então, através deles, como no meio de um fogo-de-artifício, entrevê-se o vulto do farmacêutico encostado à sua escrivaninha. A casa está coberta, de cima a baixo, por inscrições em cursivo, em redondo e em letra de forma: Águas de Vichy, de Seltz e de Barces, xaropes depurativos, medicamentos Raspail, fécula dos Arabes, pastilhas Darcet, massa Regnault, ligaduras, sais de banho, chocolates medicinais, etc. E o letreiro, que ocupa toda a largura da loja, diz em letras douradas: Homais, farmacêutico. Ainda ao fundo, por trás das grandes balanças chumbadas ao balcão, ostenta-se a palavra laboratório por cima de uma porta envidraçada, que, a meio da altura, repete novamente o nome Homais, em letras douradas sobre um fundo negro.

Além disso, não há mais nada para ver em Yonville. A rua (a única), com o comprimento de um tiro de espingarda e ladeada de algumas lojas, termina bruscamente na curva da estrada.

Deixando-a à direita e seguindo pela base da encosta de Saint-Jean, chega-se logo ao cemitério.

Quando foi da cólera, para o aumentar, deitou-se um trecho de muro abaixo e compraram-se três acres de terra ao lado; mas toda essa nova porção está quase desocupada, pois as sepulturas, como antes acontecia, continuam a amontoar-se na direcção da porta. O guarda, que é simultaneamente coveiro e sacristão na igreja (tirando assim um duplo benefício dos cadáveres da paróquia), aproveitou o terreno vazio para lá semear batatas. Entretanto, de ano para ano, a sua pequena horta vai ficando mais pequena e, quando surge uma epidemia, não sabe se há-de regozijar-se com os falecimentos ou entristecer com as sepulturas.

- Você come à custa dos mortos, Lestiboudois! - disselhe por fim, um dia, o padre.

Esta observação sombria fê-lo reflectir; fê-lo parar por algum tempo; mas, até hoje, continua a cultivar os seus tubérculos, e ainda tem o descaramento de afirmar que nascem espontaneamente.

Desde os acontecimentos que se vão narrar, nada, com efeito, mudou em Yonville. A bandeira tricolor de lata gira ainda no alto do campanário da igreja; a loja do negociante de modas continua a agitar ao vento as suas bandeirolas de chita. Os fetos do farmacêutico, como pacotes de isca branca, apodrecem cada vez mais dentro do seu álcool turvo e, por cima da grande porta da estalagem, o velho leão de ouro, desbotado pelas chuvas, continua a mostrar aos transeuntes o seu frisado de caniche.

Na noite em que o casal Bovary devia chegar a Yonville, a viúva Lefrançois, dona da dita estalagem, andava tão atarefada que suava em bica a remexer as panelas. Era véspera de dia de mercado na povoação. Era preciso cortar antecipadamente as carnes, arranjar os frangos, fazer sopa e café. Tinha, além disso, a refeição dos hóspedes, a do médico, da mulher deste e da criada; o bilhar estava cheio de ruídos de riso, na sala pequena, três moleiros pediam que lhes servissem aguardente; a lenha flamejava, o braseiro crepitava e, sobre a grande mesa da cozinha, entre os pedaços de carneiro cru, erguiam-se pilhas de pratos que tremiam às sacudidelas do cepo onde estavam esmagando espinafres.

Na capoeira ouviam-se gritar as aves que a criada perseguia para lhes cortar o pescoço.

Um homem, de chinelas de pele verde, um tanto marcado pelas bexigas e de boné de veludo com borla de ouro, aquecia as costas encostado à chaminé. Tinha estampada no rosto a satisfação de si mesmo e parecia levar uma vida tão tranquila como a do pintassilgo empoleirado por cima da sua cabeça, numa gaiola de vime: era o farmacêutico.

- Artémise! - gritava a dona da estalagem -, parte lenha miúda, enche as garrafas e traz aguardente; vá, despacha-te!

Se ao menos eu soubesse a sobremesa que hei-de preparar para as pessoas que o senhor espera! Santo Deus! Lá estão os empregados das mudanças outra vez a fazer barulho no bilhar! E deixaram a carroça mesmo defronte do portão! Quando chegar a Andorinha, é capaz de ir de encontro a ela! Chama o Polyte para ir recolhê-la!... Veja só, senhor Homais, que, desde esta manhã, já jogaram talvez quinze partidas e beberam oito bilhas de sidra!... Vão-me rasgar o pano - continuava ela, olhando-os de longe, com a escumadeira na mão.

- Não seria grande prejuízo - respondeu o senhor Homais -, você comprava outro.

- Outro bilhar! - exclamou a viúva.

- Se aquele já não aguenta, senhora Lefrançois, você está a fazer mal, repito que acho que faz mesmo mal! Além disso, hoje, os amadores gostam dos buracos pequenos e dos tacos mais pesados. Já não é jogar ao berlinde; tudo mudou! Temos de acompanhar o progresso! Veja antes o Tellier...

A hospedeira corou de despeito. O farmacêutico continuou:

- O bilhar dele, pode a senhora dizer o que quiser, é mais interessante que o seu; e, no caso de alguém se lembrar, por exemplo, de organizar uma rifa patriótica a favor da Polónia ou dos sinistrados das inundações de Lião...

- Não são velhacos como ele que me metem medo! - interrompeu a hospedeira, sacudindo os fortes ombros. - Deixe lá, senhor Homais, enquanto existir, o Leão de Ouro há-de ter sempre freguesia! É que nós temos meios, senhor Homais! Ao passo que um destes dias verá o Café Francês fechado com um belo anúncio nas portas!... Trocar o meu bilhar - continuava, falando para si mesma -, tão cómodo para lhe estender a roupa em cima, e que já me tem servido, na época da caça, para lá deitar até seis pessoas!... Ora aquela lesma do Hivert que não há meio de chegar!

- Está à espera dele para servir o jantar aos seus hóspedes? - perguntou o farmacêutico.

- Esperar? E então o senhor Binet! Vai vê-lo entrar às seis horas em ponto, que não há no mundo quem se lhe compare em pontualidade. Não dispensa o seu lugarzinho na sala pequena!

Seria mais fácil matá-lo do que obrigá-lo a comer noutro sítio! E como é fastiento! E exigente com a sidra! Não é como o senhor Léon; esse chega às vezes às sete horas, sete e meia até; nem sequer olha para o que come. Que bom moço! Nuncadiz uma palavra mais alta do que outra.

- Sabe, é que há muita diferença entre uma pessoa que recebeu uma boa educação e um antigo soldado que agora é tesoureiro municipal.

Bateram as seis horas. Binet entrou.

Trazia uma casaca azul, que lhe caía a direito em volta do corpo magro, e o seu boné de cabedal, de orelhas atadas por cordões no alto da cabeça, deixava ver, por baixo da pala levantada, uma testa calva, marcada pelo uso do capacete.

Usava um colete de pano preto, colarinho de crina, calças cinzentas e, durante todo o ano, umas botas muito bem engraxadas, com duas dilatações paralelas devidas às saliências dos tornozelos. Nem um pêlo lhe ultrapassava a linha da barba loura que, cortada à passa-piolho, lhe contornava o queixo, como a cercadura de um canteiro, emoldurando-Lhe o rosto comprido e macilento, de olhos pequenos e nariz achatado. Forte em todos os jogos de cartas, bom caçador, tinha uma boa caligrafia e, em casa, possuía um torno onde se entretinha a tornear argolas para guardanapos, com que enchia a casa toda, com o zelo de um artista e o egoísmo de um aldeão.

Dirigiu-se para a sala pequena; mas primeiro foi preciso mandar embora os três moleiros; e, durante o tempo que levou a dispor-lhe o talher na mesa, Binet manteve-se em silêncio no seu lugar, ao pé do fogão; depois fechou a porta e tirou o boné, como costumava fazer.

- Não gasta a língua a cumprimentar ninguém! – disse o farmacêutico, logo que ficou sozinho com a hospedeira.

- Nunca conversa mais do que isto - respondeu ela. - Estiveram cá, na semana passada, dois negociantes de panos, rapazes com muita graça que, à noite, contavam uma série de histórias que me faziam chorar a rir; pois bem, ele ali ficava, como um sável, sem dizer uma palavra.

- É - disse o farmacêutico -, não tem imaginação, nem espírito de humor, nada do que constitui um homem de sociedade!

- Dizem, no entanto, que tem meios - observou a estalajadeira.

- Meios? - replicou o senhor Homais. - Ele? Meios? Na sua especialidade é possível - acrescentou em tom mais calmo.

E continuou:

- Lá que um negociante com um movimento considerável, um jurisconsulto, um médico ou um farmacêutico andem de tal modo absortos que se tornem extravagantes e até intratáveis, compreendo, citam-se casos desses na história. Mas pelo menos, é por pensarem em qualquer coisa. Eu, por exemplo, tem-me muitas vezes acontecido andar à procura da pena em cima da secretária para escrever uma etiqueta e acabar por encontrá-la entalada atrás da orelha!

Entretanto, a senhora Lefrançois foi até à porta ver se chegava a Andorinha. Nisto estremeceu. Um homem vestido de preto entrou subitamente na cozinha. A última claridade do crepúsculo deixava ver que tinha um rosto avermelhado e o corpo atlético.

- Em que posso servi-lo, senhor Prior? - perguntou a dona da estalagem, apanhando em cima da chaminé um dos castiçais de cobre que ali se encontravam em fila com as respectivas velas.

- Deseja tomar alguma coisa? Um gole de cássis, um copo de vinho?

O sacerdote recusou muito delicadamente. Vinha buscar o seu chapéu-de-chuva, de que havia dias se esquecera no Convento de Ernemont, e, depois de pedir à senhora Lefrançois que lho mandasse, à noite, ao presbitério, saiu na direcção da igreja, onde se tocavam as trindades.

Quando o farmacêutico deixou de lhe ouvir o ruído dos passos na praça, disse que fora muito incorrecta a maneira de ele proceder. Aquela recusa de aceitar um refresco parecia-lhe uma hipocrisia das mais odiosas; todos os padres faziam patuscadas às escondidas e procuravam fazer-nos voltar ao tempo dos dízimos.

A hospedeira tomou a defesa do padre.

- Seja como for, ele seria capaz de dobrar quatro da sua estatura debaixo do joelho. No ano passado ajudou a nossa gente a recolher a palha; é tão forte que carregava até seis molhos de cada vez!

- Bravo! - disse o farmacêutico. - Mande então as suas fiLhas confessarem-se a espertalhões desse temperamento! Eu cá , se estivesse no governo, exigia que sangrassem os padres uma vez por mês. Sim, senhora Lefrançois, todos os meses uma abundante flebotomia, no interesse da Polícia e dos costumes!

- Cale-se lá, senhor Homais! Você é um ímpio! O senhor não tem religião!

O farmacêutico replicou:

- Tenho uma religião, a minha religião, e até tenho mais que todos eles com as suas momices e imposturas! Pelo contrário, creio em Deus! Creio no ser supremo, num Criador, seja ele quem for, pouco importa, que nos pôs neste mundo para cumprir os nossos deveres de cidadãos e chefes de família; mas não tenho necessidade de ir a uma igreja beijar salvas de prata e engordar à minha custa uma cambada de farsantes que vivem melhor do que nós! Posso honrar a Deus da mesma maneira num bosque, num campo, ou até contemplando a abóbada etérea, como os antigos. O meu Deus é o mesmo de Sócrates, de Franklin, de Voltaire e de Béranger! Eu sou pela profissão de fé do vigário saboiano e pelos princípios imortais de 89! Por isso não admito que Deus seja assim um sujeito que anda a passear no seu jardim de bengala na mão, instale os seus amigos no ventre das baleias, morra soltando um grito e ressuscite ao cabo de três dias: coisas absurdas por si mesmas e completamente opostas, além disso, a todas as leis da física; diga-se de passagem que tudo isso prova que os padres estagnaram sempre numa torpe ignorância, onde se esforçam por atolar também as populações.

Calou-se, procurando com o olhar um público à sua volta, pois, na sua efervescência, o farmacêutico, por um instante, julgou estar em pleno conselho municipal. Mas a dona da estalagem já não o ouvia; prestava atenção a um rumor ao longe. Distinguiu-se o ruído de uma carruagem, à mistura com o chocalhar de ferraduras soltas batendo a terra, e a Andorinha parou finalmente diante da porta.

Era uma caixa amarela suspensa por duas grandes rodas que, subindo até à altura do toldo, impediam os viajantes de ver bem a estrada e ainda lhes sujavam os ombros. Os pequenos vidros dos seus estreitos postigos tremiam nos caixilhos quando o veículo ia fechado e conservavam manchas de lama, aqui e ali, no meio da sua velha camada de pó, que nem a chuva das trovoadas conseguia lavar completamente. Era tirada por três cavalos, dos quais o primeiro atrelado em sota, e, nas descidas, tocava no chão, dando solavancos.

Apareceram então na praça alguns moradores de Yonville; falavam todos ao mesmo tempo, pedindo explicações, notícias e encomendas; Hivert não sabia a qual responder. Era ele quem fazia na cidade os recados do lugar. Ia às lojas, trazia rolos de sola para o sapateiro, ferragem para o ferrador, uma barrica de arenques para a patroa, toucas da modista e postiços do cabeleireiro; e, ao longo da estrada, no regresso, distribuía os seus pacotes, que ia atirando por cima da vedação dos pátios, pondo-se de pé sobre o assento e gritando a plenos pulmões, enquanto os cavalos continuavam a andar sozinhos.

Um incidente motivara o atraso: a cadelinha galga da senhora Bobary fugira pelos campos fora. Tinham assobiado por ela durante mais de um quarto de hora. Hivert havia até voltado atrás cerca de meia légua, julgando avistá-la de minuto a minuto; fora, porém, necessário prosseguir a viagem. Emma chorava, desesperara-se e acusara Charles daquela desgraça. O senhor Lheureux, negociante de fazendas, que vinha também na carruagem, procurava confortá-la falando de uma quantidade de casos de cães perdidos que reconheciam o dono depois de muitos anos. Falava-se de um, dizia ele, que voltara de Constantinopla para Paris. Outro percorrera cinquenta léguas em linha recta e atravessara quatro rios a nado; e o seu próprio pai tivera um caniche que, após doze anos de ausência, lhe saltara inesperadamente às costas, uma noite, na rua, quando ia jantar na cidade.


II

Emma foi a primeira a apear-se, depois Félicité, o senhor Lheureux e uma ama de leite, e tiveram de acordar Charles, que, a um canto, adormecera completamente logo que se fizera noite.

Homais apresentou-se; dirigiu os seus cumprimentos à senhora e gentilezas ao marido, disse que se sentia muito honrado de ter podido ser-lhes de alguma utilidade e acrescentou em tom cordial que ousara convidar-se a si mesmo, tanto mais que tinha a sua mulher ausente.

A senhora Bovary, logo que chegou à cozinha, aproximou-se da chaminé. Com as pontas dos dedos levantou o vestido até à altura do tornozelo e estendeu para a chama, por baixo da perna de carneiro que girava no espeto, o pezinho calçado com uma botina preta. A luz crua do fogo, atravessando a trama do vestido, iluminava-lhe em cheio os poros regulares da pele branca, e até as pálpebras, com as quais de vez em quando pestanejava. Conforme soprava o vento que entrava pela porta entreaberta, assim incidia sobre ela um forte clarão vermelho.

Do outro lado da chaminé, um rapaz de cabeleira loura observava-a silenciosamente.

Como se aborrecia bastante em Yonville, onde era escriturário do tabelião Guillaumin, o senhor Léon Dupuis (era ele o segundo cliente do Leão de Ouro) costumava retardar a hora da refeição, na esperança de que chegasse à estalagem algum viajante com quem conversar ao serão. Nos dias em que acabava cedo a sua tarefa, não sabendo o que fazer, era obrigado a apresentar-se à hora exacta e suportar, desde a sopa até ao queijo, a conversa com Binet. Foi portanto com alegria que aceitou a proposta da estalajadeira para jantar na companhia dos recém-chegados, e instalaram-se todos na sala grande, onde a senhora Lefrançois, por ostentação, mandara pôr os quatro talheres.

Homais pediu licença para conservar o seu barrete grego, com medo das constipações.

Depois, voltando-se para a sua vizinha:

- A senhora deve estar com certeza um tanto moída? A nossa Andorinha sacode-nos de maneira terrível!

- É verdade - respondeu Emma -, mas as mudanças divertem-me sempre; gosto imenso de variar de sítio.

- É uma coisa muito aborrecida - suspirou o escriturário -, viver amarrado sempre aos mesmos lugares!

- Se o senhor fosse, como eu - disse Charles -, continuamente obrigado a andar a cavalo...

- Ora essa - retorquiu Léon, voltando-se para a senhora Bovary -, parece-me que não há nada mais agradável; quando se pode - acrescentou.

- Aliás - dizia o farmacêutico -, o exercício da medicina não é muito penoso na nossa região, porque o estado das estradas permite o uso do cabriolé e, geralmente, pagam bastante bem, visto que os lavradores são abastados.

De tempos a tempos temos aqui, do ponto de vista médico, além dos casos vulgares de enterite, bronquite, afecções biliosas, etc., algumas febres intermitentes na altura das colheitas, mas, em resumo, poucos casos graves, nada de especial a assinalar, a não ser bastantes humores frios, relacionados, sem dúvida, com as deploráveis condições higiénicas das nossas habitações de camponeses. Oh! Encontrará muitos preconceitos para combater, senhor Bovary, muitas teimosias rotineiras com que se defrontarão todos os dias os esforços da sua ciência; porque aqui ainda se recorre mais facilmente às novenas, às relíquias, ao padre, do que, naturalmente, ao médico ou ao farmacêutico. O clima, no entanto, não se pode dizer que seja mau, e até temos cá na comuna alguns nonagenários. O termómetro (observações feitas por mim) desce no Inverno até quatro graus e na estação quente chega aos vinte e cinco, trinta graus centígrados, quando muito, o que nos dá vinte e quatro Réaumur no máximo, ou seja, cinquenta e quatro Fahrenheit (medida inglesa), e não ultrapassa isso! Efectivamente, estamos abrigados dos ventos do norte pela floresta de Argueil, por um lado, e, por outro, dos ventos do oeste pela encosta de Saint-Jean; e este calor, no entanto, que devido ao vapor de água liberto pelo rio e à presença considerável de animais nas pastagens, que exalam, como sabe, muito amoníaco, isto é, azoto, hidrogénio e oxigénio (não só azoto e hidrogénio), e que, chamando a si o húmus da terra, misturando todas estas emanações diferentes e reunindo-as, por assim dizer, num único feixe, e combinando-se a si mesmo com a electricidade espalhada na atmosfera, quando é o caso, poderia, com a continuação, como nos países tropicais, dar origem a miasmas insalubres - este calor, dizia, acha-se justamente temperado do lado donde vem, ou, antes, donde viria, quer dizer, do sul, pelos ventos de sudeste, os quais, tendo-se refrescado a si mesmos com a passagem sobre o Sena, nos chegam por vezes repentinamente, como brisas da Rússia!

- Haverá, ao menos, alguns lugares bons para passear aqui pelos arredores! - continuava a senhora Bovary, falando com o rapaz.

- Oh!, bem poucos - respondeu ele. - Há um sítio que chamam O Pasto, no alto da encosta, na orla da floresta. Às vezes, ao domingo, vou lá e entretenho-me a ler um livro e a ver o pôr do Sol.

- Acho que não há nada tão admirável como um pôr do Sol - continuou ela -, mas sobretudo à beira-mar.

- Oh!, eu adoro o mar - disse Léon.

- E não Lhe parece também - replicou a senhora Bovary - que o espírito voga mais livremente sobre essa extensão sem limites, cuja contemplação nos eleva a alma e comunica ideias de infinito, de ideal?

- Acontece o mesmo com as paisagens de montanha - retorquiu Léon. - Tenho um primo que o ano passado viajou pela Suíça e me dizia que não é possível imaginar-se a poesia dos lagos, o encanto das cascatas, o gigantesco efeito dos glaciares.

Vêem-se pinheiros de um porte inacreditável atravessados nas torrentes, cabanas suspensas sobre precipícios e, quando as nuvens se entreabrem, vales inteiros mil pés abaixo de nós.

Esses espectáculos devem entusiasmar, predispor para a oração e para o êxtase! Por isso já não me admiro daquele célebre músico que, para excitar melhor a imaginação, tinha o hábito de ir tocar piano diante de qualquer paisagem majestosa.

- O senhor cultiva música? - perguntou ela.

- Não, mas aprecio-a muito - respondeu ele.

- Oh!, não Lhe dê ouvidos, senhora Bovary - interrompeu Homais, debruçando-se sobre o prato. - É pura modéstia. Então, meu caro, não é verdade que no outro dia o ouvi cantar magnificamente, no seu quarto, o Anjo da Guarda? Eu estava no meu laboratório e você arrancava as notas como um actor.

Léon, efectivamente, estava hospedado em casa do farmacêutico, onde ocupava um pequeno quarto no segundo andar, do lado da praça. O rapaz corou com este elogio do seu senhorio, que, entretanto, já se voltara para o médico e Lhe enumerava, um após outro, todos os principais habitantes de Yonville. Contava anedotas e dava informações; nem se sabia ao certo a fortuna do tabelião, e havia a casa Tuvache, que estava numa situação bastante embaraçosa.

Emma prosseguia:

- E qual é a música que prefere?

- Oh!, a música alemã, aquela que faz sonhar.

- Conhece os italianos?

- Ainda não, mas irei vê-los no próximo ano, quando for morar em Paris, para terminar o meu curso de Direito.

- Como eu tinha a honra de explicar ao senhor seu esposo - disse o farmacêutico - a propósito desse pobre Yanoda que fugiu; graças aos disparates que ele fez, os senhores vão ter a possibilidade de desfrutar uma das casas mais confortáveis de Yonville. A principal comodidade que ela tem para um médico é uma porta para a Alameda, que permite entrar e sair sem se ser visto.

Aliás, está recheada de tudo quanto é agradável para uma família: divisão própria para lavar a roupa, cozinha com despensa, sala de convívio, casa para guardar a fruta, etc.

Era um figurão que não olhava a despesas! Tinha mandado construir, ao fundo do jardim, ao pé da água, um caramanchão, de propósito para beber cerveja no Verão, e, se a senhora gostar de jardinagem, poderá...

- A minha mulher não se ocupa disso - respondeu Charles. - Apesar de lhe ser recomendado o exercício, gosta mais de ficar no quarto, a ler.

- É como eu - atalhou Léon. - Há lá efectivamente coisa melhor do que ficar, à noite, ao canto da lareira, a ler um livro, com a luz acesa, enquanto o vento bate nas vidraças!...

- Não é? - disse ela, fixando sobre o rapaz os grandes olhos negros muito abertos.

- Não se pensa em nada - continuava ele - e as horas passam.

Passeia-se, imóvel, em países que se julga ver e o pensamento, enlaçando-se na ficção, demora-se nos pormenores ou segue o desenrolar das aventuras. Mistura-se com os personagens;

parece que somos nós,que palpitamos dentro da roupa deles.

- É verdade! É verdade! - dizia ela.

- Nunca lhe aconteceu - continuou Léon - encontrar num livro uma ideia vaga que já teve, alguma imagem obscurecida que vem de longe e que parece uma exposição completa do seu mais subtil sentimento?

- Já senti isso mesmo - respondeu ela.

- É por isso - disse ele - que aprecio sobretudo os poetas.

Acho os versos mais ternos do que a prosa e fazem-nos mais facilmente chorar.

- No entanto, acabam por cansar - continuou Emma. - Eu agora, pelo contrário, adoro as histórias que se seguem de um fôlego e que fazem sentir medo. Detesto os heróis vulgares e os sentimentos moderados, como se encontram na natureza.

- Com efeito - observou o escriturário -, essas obras, não tocando o coração, afastam-se, a meu ver, do verdadeiro objectivo da arte. É tão agradável, no meio das desilusões da vída, poder a gente reportar-se, por intermédio do espírito, a caracteres nobres, afeições puras, quadros de felicidade! Para mim, que vivo aqui, longe do mundo, é a minha única distracção; mas Yonville oferece tão poucos recursos!

- Como Tostes, naturalmente - prosseguiu Emma. - Por isso eu era sempre assinante de um gabinete de leitura.

- Se a senhora quiser dar-me a honra de utilizar a minha biblioteca - disse o farmacêutico, que ouvira aquelas últimas palavras -, tem-na à sua disposição; uma biblioteca composta dos melhores autores: Voltaire, Rousseau, Delille, Walter Scott, L’Écho des euilletons, etc.; além disso, recebo todos os dias diversas folhas periódicas, entre as quais Le Fanal de Rouen, de que tenho a vantagem de ser o correspondente nos círculos de Buchy, Forges, Neufchâtel, Yonville e seus arredores.

Havia já duas horas e meia que se estava à mesa, pois a criada Artémise, arrastando indolentemente pelo lajedo os chinelos de ourelo, trazia cada prato por sua vez, esquecia-se de tudo, não atendia a nada e deixava constantemente entreaberta a porta do bilhar, que batia com a maçaneta do fecho contra a parede.

Sem se dar conta disso, enquanto falava, Léon apoiara o pé numa das travessas da cadeira onde estava sentada a senhora Bovary. Nesse dia ela trazia uma gravatinha de seda azul a segurar um colarinho de cambraia aos canudos, como se fosse um colarinho de pregas; e, conforme os movimentos que fazia com a cabeça, assim a parte inferior do rosto se ocultava ou saía suavemente do tecido. Foi assim, um ao pé do outro, enquanto Charles e o farmacêutico cavaqueavam, que eles entraram numa dessas vagas conversações em que o acaso das frases leva sempre ao centro fixo de uma simpatia comum. Espectáculos de Paris, títulos de romances, quadrilhas novas, o mundo que não conheciam, Tostes, onde ela vivera, Yonville, onde presentemente se encontravam, examinaram tudo, falaram de tudo até ao fim do jantar.

Depois de servido o café, Félicité foi preparar o quarto na nova casa e os convivas em breve dispersaram. A senhora Lefrançois dormia junto das cinzas, enquanto o moço da cavalariça, de lanterna na mão, esperava o senhor e a senhora Bovary, para os conduzir a casa. Os cabelos ruivos do moço tinham fios de palha entremeados e ele era coxo da perna esquerda.

Logo que empunhou com a outra mão o guarda - chuva do padre, puseram-se a caminho.

A povoação estava adormecida. Os pilares do mercado estendiam grandes sombras. A terra via-se toda cinzenta, como numa noite de Verão.

Como, porém, a casa do médico ficava apenas a cinquenta passos da estalagem, logo chegou o momento de se desejarem boas-noites e o grupo dispersou-se.

Emma, assim que entrou no vestíbulo, sentiu cair-lhe sobre os ombros como que um pano húmido, o frio do reboco. As paredes eram novas e os degraus de madeira rangeram. Dentro do quarto, no primeiro andar, havia uma claridade lívida que entrava pelas janelas sem cortinas. Entreviam-se cimos de árvores e, mais longe, os prados, meio cobertos pelo nevoeiro, que, ao luar, parecia fumo ao longo do curso do rio. No meio do aposento, em confusão, estavam gavetas de cómodas, garrafas, varões de cortinados, varetas douradas juntamente com colchões por cima de cadeiras e bacias no chão - tudo aquilo ali deixado a trouxe-mouxe pelos homens que haviam trazido os móveis.

Era a quarta vez que ela dormia num sítio desconhecido. A primeira fora no dia da sua entrada para o convento; a segunda, no dia da chegada a Tostes; a terceira em Vaubyessard, e a quarta ali; e cada uma delas representara na sua vida uma espécie de inauguração de uma nova fase. Não acreditava que as coisas se pudessem apresentar da mesma maneira em lugares diferentes, e, uma vez que a parte já vivida havia sido má, certamente haveria de ser melhor a que lhe restava para viver.


III

Na manhã seguinte, ao acordar, notou a presença do escriturário na praça. Ela estava de roupão. Ele levantou a cabeça e cumprimentou-a. Ela inclinou rapidamente a sua e voltou a fechar a janela.

Léon esperou durante todo o dia que chegassem as seis horas; mas, quando entrou na estalagem, não encontrou ninguém senão o senhor Binet sentado à mesa.

Aquele jantar da véspera fora para ele um acontecimento importante; nunca antes conversara durante duas horas seguidas com uma dama. Como pudera então expor-lhe, e em tal linguagem, uma porção de coisas que antes não seria capaz de dizer tão bem? Era habitualmente tímido e conservava sempre aquela reserva que é feita tanto de pudor como de dissimulação.

Achavam em Yonville que ele tinha uns modos como deve ser.

Escutava os raciocínios das pessoas maduras e não se mostrava exaltado na política, coisa notável num jovem.

Além disso, possuía talentos: pintava aguarelas, sabia ler a clave de sol e gostava de conversar sobre literatura depois do jantar, quando não jogava às cartas. O senhor Homais admirava-o muito pela sua instrução; a senhora Homais gostava muito dele pela sua complacência, pois muitas vezes lhe levava os filhos para o jardim, sendo eles crianças que andavam sempre sujas, muito mal-educadas e um tanto linfáticas, como a mãe. Para tratar deles, além da criada, havia Justin, o aprendiz de farmácia, primo afastado do senhor Homais, que este recolhera em casa por caridade e que, ao mesmo tempo, servia de criado.

O boticário mostrou-se o melhor dos vizinhos. Informou a senhora Bovary sobre os fornecedores, mandou vir expressamente o negociante da sidra, provou ele próprio a bebida e verificou ainda se as vasilhas ficavam bem acomodadas na adega; indicou também a maneira de conseguir um fornecimento de manteiga a um preço barato e fez um acordo com Lestiboudois, o sacristão, que, além das suas funções sagradas e mortuárias, cuidava dos principais jardins de Yonville, à hora ou ao ano, conforme a preferência das pessoas.

Não era só o desejo de ser útil aos outros que levava o farmacêutico a tantos obséquios e cordialidade; por detrás daquilo havia um plano.

Ele infringira a lei do 19 Ventoso do ano xI, artigo 1.o, que proíbe o exercício da medicina a qualquer indivíduo que não seja portador do respectivo diploma; de modo que, devido a denúncias tenebrosas, Homais havia sido chamado a Ruão, à presença do procurador régio, no seu gabinete particular. O magistrado havia-o recebido de pé, com a sua toga, capa de arminho e borla na cabeça. Era de manhã, antes da audiência.

Ouviam-se passar no corredor as botas grossas dos polícias e, ao longe, uma espécie de ruído de grandes fechaduras em funcionamento. Os ouvidos do farmacêutico zumbiram-Lhe como se fosse cair com uma apoplexia; pôs-se a imaginar as enxovias da prisão, a família lavada em lágrimas, a farmácia vendida, os frascos todos espalhados; e teve de entrar num café e tomar um copo de rum com água de Seltz, para se reanimar. A pouco e pouco foi enfraquecendo a recordação dessa advertência e ele continuava, como antes, a dar consultas inofensivas no fundo da loja. Mas o presidente da Câmara Municipal não o suportava, tinha colegas invejosos, havia que recear tudo; ligar-se ao doutor Bovary por meio de gentilezas era atrair o seu reconhecimento e impedir que ele mais tarde viesse a falar, no caso de perceber qualquer coisa. Por isso, todas as manhãs Homais lhe trazia o jornal e muitas vezes, à tarde, deixava uns momentos a farmácia para ir a casa do oficial de saúde dar dois dedos de conversa.

Charles estava triste: a clientela não chegava. Ficava longas horas sentado, sem dizer nada, e ia dormir para o seu consultório ou entretinha-se a ver a mulher costurar. Para se distrair, começou a fazer trabalhos braçais em casa e até experimentou pintar o sótão com um resto de tinta deixado pelos pintores. Preocupava-o, porém, a questão do dinheiro.

Tinha gasto tanto nas reparações de Tostes, nos vestidos da mulher e na mudança, que todo o dote, mais de três mil escudos, se tinha esgotado em dois anos. Depois, quantas coisas avariadas ou perdidas no transporte de Tostes para Yonville, sem contar o sacerdote de gesso que, caindo da carroça com um solavanco mais forte, se desfez em mil pedaços no pavimento de Quincampoix!

Veio distraí-lo uma preocupação mais agradável, ou seja, a gravidez da mulher. À medida que se ia aproximando o termo, ia-Lhe ele dedicando um maior afecto. Era o estabelecimento de outro laço de carne e uma espécie de sentimento contínuo de uma união mais complexa. Quando lhe via de longe o andar indolente e a cintura rodar molemente sobre as ancas, sem espartilho, quando, a sós com ela, a contemplava à vontade e a via, sentada, tomar atitudes de fadiga na poltrona, então não podia conter mais a sua felicidade, levantava-se, beijava-a, passava-lhe as mãos pelo rosto, chamava-Lhe mãezinha, queria fazê-la dançar, e, meio a rir, meio a chorar, cumulava-a de toda a espécie de gracejos carinhosos que lhe vinham à cabeça.

Deleitava-se com a ideia de ser pai. Agora nada lhe faltava.

Conhecia todas as experiências da existência humana e nela se instalava confortável e serenamente.

Emma começou por se sentir assombrada, depois veio-lhe um grande desejo de dar à luz para saber o que era ser mãe.

Porém, não podendo fazer a despesa que queria, ter um berço em forma de barquinha, com cortinado de seda cor-de-rosa e touquinhas bordadas, num acesso de amargura renunciou ao enxoval e encomendou-o por junto a uma costureira, sem nada escolher nem discutir. Não se entreteve, portanto, com aqueles preparativos que estimulam a ternura das mães, e a sua afeição foi talvez, desde o princípio, um tanto atenuada.

No entanto, como Charles, a todas as refeições, falava do pequerrucho, em breve começou a pensar nele com mais persistência.

Ela desejava um rapaz, seria forte e moreno, chamar-se-ia Georges, e esta ideia de ter um filho varão era uma espécie de desejo de desforra de todas as suas frustrações passadas. Um homem, pelo menos, é livre, pode explorar todas as paixões e todas as terras, atravessar os obstáculos, tomar o gosto das venturas mais distantes. Mas uma mulher é continuamente impedida de tudo. Ao mesmo tempo inerte e flexível, tem contra si a debilidade da carne juntamente com a força da lei. A sua vontade, como a aba do chapéu preso por um cordão, flutua a todos os ventos, há sempre algum desejo que a arrasta e alguma conveniência que a detém.

Deu à luz num domingo, pelas seis horas da manhã, ao nascer do Sol.

- É uma menina! - disse Charles.

Emma voltou a cabeça e desmaiou.

Quase no mesmo instante acorreu a senhora Homais e beijou-a, bem como a velha Lefrançois, do Leão de Ouro. O farmacêutico, como homem discreto, apenas lhe dirigiu algumas felicitações provisórias pela porta entreaberta. Quis ver a criança e achou-a bem constituída.

Durante a convalescença, Emma preocupou-se muito com a escolha de um nome para a filha. Em primeiro lugar, passou em revista todos os que tinham terminações italianas, como Clara, Louisa, Amanda, Atala, gostava bastante de Galsuinde, e ainda mais de Yseult ou Léocadie. Charles queria que pusessem à criança o nome da avó, Emma opôs-se a isso. Percorreram o calendário de ponta a ponta e consultaram até os estrangeiros.

- O senhor Léon - dizia o farmacêutico -, com quem eu falei a esse propósito no outro dia, admira-se de que não escolham Madeleine, nome que está actualmente muito na moda.

Mas a velha Bovary protestou energicamente contra esse nome de pecadora. O senhor Homais, por seu lado, tinha predilecção por todos os nomes que lembrassem personagens importantes, feitos ilustres ou concepções generosas, e dentro desse sistema baptizara os seus quatro filhos. Assim, Napoléon representava a glória e Franklin a liberdade, Irma fora, talvez, uma concessão ao romantismo, mas Athalie representava uma homenagem à mais célebre obra-prima do teatro francês.

Porque as suas convicções filosóficas não prejudicavam as suas apreciações artísticas, nele, o pensador não suprimia o homem sensível, sabia estabelecer as diferenças, separar a imaginação do fanatismo. Daquela tragédia, por exemplo, condenava as ideias, mas admirava o estilo, detestava-lhe a concepção, mas aplaudia-lhe todos os pormenores, exasperava-se contra as personagens e entusiasmava-se com os discursos delas. Quando lia trechos escolhidos, sentia-se arrebatado, mas, se pensava que os padrecas os exploravam para proveito próprio, ficava desolado e, nesta confusão de sentimentos que o embaraçava, desejaria poder coroar Racine com ambas as mãos e, ao mesmo tempo, discutir com ele por um bom quarto de hora.

Finalmente, Emma recordou-se de ter ouvido a marquesa, no palácio de Vaubyessard, chamar Berthe a uma jovem, a partir de então ficou escolhido esse nome e, como o Tio Rouault não podia vir, o senhor Homais foi convidado para padrinho. Deu uma prenda toda composta de produtos do seu estabelecimento, a saber: seis caixas de jujuba, um frasco inteiro de fécula alimentícia, três pacotes de pasta de alteia e, além disso, seis embalagens de açúcar cristalizado que encontrara dentro de um armário. No dia da cerimónia houve um grande jantar, convidou-se o padre, toda a gente se excitou. O senhor Homais, quando começaram a servir os licores, entoou o Deus dos Bons.

O senhor Léon cantou uma barcarola, e a senhora Bovary avó, que era a madrinha, uma romança do tempo do Império, finalmente, o senhor Bovary avô exigiu que fossem buscar a criança e pôs-se a baptizá-la com uma taça de champanhe que lhe despejou no alto da cabeça. Esta zombaria com o primeiro dos sacramentos indignou o padre Bournisien, o velho Bovary respondeu com uma citação de A Guerra dos Deuses, o cura quis retirar-se, as senhoras suplicaram-lhe que não se fosse embora, Homais meteu-se no meio, e lá conseguiram que o eclesiástico voltasse a sentar-se, pegando de novo, tranquilamente, na chávena e no pires, para beber o resto do seu café.

O velho Bovary demorou-se ainda um mês em Yonville, onde deslumbrou os habitantes com um soberbo boné de polícia agaloado de prata, que usava de manhã, para fumar o seu cachimbo na praça. Como tinha o hábito de beber muita aguardente, muitas vezes mandava a criada comprar-lhe uma garrafa no Leão de Ouro, que era acrescentada à conta do filho, e gastou, para perfumar os seus lenços do pescoço, toda a reserva de água-de-colónia da nora.

Esta não desgostava da sua companhia. Ele havia corrido o mundo: falava de Berlim, de Viena, de Estrasburgo, do seu tempo de oficial, das amantes que tivera, dos grandes almoços que dera, além disso, mostrava-se amável e até, às vezes, quer fosse na escada quer no jardim, a abraçava pela cintura, exclamando:

- Charles, toma cuidado contigo!

Então, a velha Bovary afligiu-se pela felicidade do filho e, temendo que o marido, com a continuação, viesse a exercer uma influência imoral sobre as ideias da nora, tratou de apressar a partida. Talvez tivesse ainda preocupações mais sérias.

Bovary era homem para não ter respeito a nada.

Um dia, Emma sentiu repentinamente o desejo de ver a sua filhinha, que havia sido entregue à ama, a mulher do marceneiro, e, sem ver no almanaque se as seis semanas da Virgem já tinham passado, pôs-se a caminho da casa de Rolet, que ficava no extremo da aldeia, ao fundo da encosta, entre a estrada larga e os prados.

Era meio-dia, as casas tinham as persianas fechadas e os tectos de ardósia, que reluziam â luz intensa do céu azul, pareciam soltar faíscas pelas arestas dos seus beirais.

Soprava um vento pesado. Emma sentia-se fraca enquanto caminhava, as pedras do ladrilho magoavam-na, hesitou entre voltar para casa e entrar em qualquer parte para se sentar.

Nesse momento saiu Léon de uma porta próxima com um rolo de papéis debaixo do braço. Veio cumprimentá-la e abrigou-se à sombra do toldo cinzento, aberto na frente da loja de Lheureux.

A senhora Bovary explicou que ia ver o seu bebé, mas que já estava a sentir-se cansada.

- Se... - avançou Léon, não se atrevendo a prosseguir.

- Tem de ir a algum lado? - perguntou ela.

E, ouvindo a resposta do escriturário, pediu-lhe que a acompanhasse. Logo naquela noite se tornou conhecido o acontecimento em Yonville e a senhora Tuvache, mulher do presidente da Câmara, declarou diante da criada que a senhora Bovary se estava a comprometer.

Para chegar a casa da ama era necessário, no fim da rua, voltar à esquerda, como para ir ao cemitério, e seguir, entre casinhotas e pátios, um estreito caminho ladeado por alfenas.

Estas estavam floridas, e também as verónicas, as roseiras bravas, as urtigas e as silvas que saíam do meio dos arbustos.

Pelas aberturas dos tapumes avistava-se, nos pardieiros, algum porco fossando o esterco, ou algumas vacas amarradas, esfregando os cornos nos troncos das árvores. Iam os dois caminhando lentamente, lado a lado, Emma apoiando-se nele e fazendo-o atrasar o passo, que ele media pelo dela, diante de ambos rodopiava um enxame de moscas, zumbindo no ar quente.

Reconheceram a casa por uma velha nogueira que lhe fazia sombra. Baixa e coberta de telhas escuras, tinha pendurada no exterior, por baixo da lucarna do sótão, uma grande réstia de cebolas. Molhos de lenha, empilhados contra a vedação de espinheiro, protegiam um canteiro de alfaces, alguns pés de alfazema e ervilhas-de-cheiro apoiados em estacas. Havia água suja a correr, encharcando a erva, e, pendurados a toda a volta, vários trapos indistintos, meias de lã, uma camisola de chita vermelha e um grande cobertor de estopa estendido ao longo da sebe. Ouvindo o barulho da cancela, a ama apareceu, trazendo no braço uma criança a mamar. Com a outra mão arrastava um pobre garoto enfezado, coberto de escrófulas, filho do chapeleiro de Ruão, que, demasiado ocupado com a mulher no seu negócio, o deixava no campo.

- Entre - disse ela. - A sua menina está ali a dormir.

O quarto, no rés-do-chão, o único da casa, tinha ao fundo, encostado à parede, um grande leito sem cortinas, enquanto a masseira ocupava o lado da janela, onde havia um vidro consertado com uma rodela de papel azul. No canto, atrás da porta, viam-se umas botas de cardas reluzentes arrumadas debaixo da pedra do lavadouro, ao pé de uma garrafa cheia de óleo com uma pena enfiada no gargalo, sobre a chaminé, coberta de pó, havia um almanaque Mathieu Laensberg, entre bocados de pederneira, cotos de vela e pedaços de isca. Finalmente, o último objecto decorativo deste aposento era uma Fama soprando a trombeta, imagem certamente recortada de algum prospecto de perfumaria, pregada à parede com seis tachas.

A filha de Emma dormia no chão, dentro de um berço de vime.

Ela pegou-lhe com o cobertor que a envolvia e pôs-se a cantar baixinho e a embalá-la.

Léon passeava pelo quarto, causava-lhe estranheza ver aquela formosa mulher, vestida de nanquim, no meio de tanta miséria.

A senhora Bovary corou, ele voltou-se, pensando que talvez o seu olhar tivesse cometido alguma imprudência.

Ela tornou então a deitar a pequerrucha, que acabara de bolçar sobre a gola do vestido. A ama veio logo limpar, afiançando que não ficaria a ver-se.

- A mim faz-me coisas bem piores - dizia ela - e passo o tempo todo a pô-la de lavado! Se a senhora tivesse a bondade de me autorizar a trazer da mercearia do Camus um bocado de sabão quando eu precisasse!... Seria até menos maçador para si, que assim já a não incomodava.

- Está bem, está bem! - disse Emma. - Adeus, Tia Rolet!

E saiu, limpando os pés na soleira.

A pobre mulher acompanhou-a até ao fundo do pátio, falando de quanto lhe custava levantar-se de noite.

- Ando às vezes tão estafada, que até adormeço sentada na cadeira, por isso a senhora me devia dar, pelo menos, um pacotinho de café moído para eu tomar de manhã com o leite.

Depois de lhe ter suportado os agradecimentos, a senhora Bovary foi-se embora, e já dera alguns passos quando um ruído de tamancos a fez voltar a cabeça: era a ama!

- O que há?

Então a campónia, puxando-a de parte, para detrás de um choupo, pôs-se a falar-Lhe do marido, que, com o seu ofício e seis francos por ano que o capitão...

- Despache-se lá com isso - disse Emma.

- Pois bem - continuou a ama, suspirando a cada palavra -, tenho medo que ele fique triste por me ver tomar o café sozinha, a senhora sabe, os homens...

- Mas você vai tê-lo - repetiu Emma -, eu vou-Lho dar!...

Está a ser maçadora!

- É que, infelizmente, minha querida senhora, por causa dos ferimentos, ele sofre de terríveis cãibras no peito. Ele mesmo diz que a sidra o enfraquece.

- Mas diga lá depressa, Tia Rolet!

- Então - recomeçou esta, fazendo uma vénia -, se não fosse pedir-Lhe demasiado... - fez nova mesura -, quando a senhora quisesse - e o seu olhar suplicava -, uma botijazinha de aguardente - disse por fim - para esfregar os pezinhos da sua menina, que os tem tão molinhos como a língua.

Depois de se ter visto livre da ama, Ema retomou o braço de Léon. Caminhou rapidamente durante algum tempo, depois afrouxou o andamento e, passeando a vista por tudo o que havia na sua frente, reparou no ombro do rapaz, cuja sobrecasaca tinha uma gola de veludo preto.

Sobre ela caíam-lhe os cabelos castanhos, lisos e bem penteados. Notou-lhe as unhas mais compridas do que era hábito usar-se em Yonville. Uma das grandes ocupações do escriturário era cuidar das unhas, tendo dentro do estojo de trabalho um canivete só destinado a isso.

Voltaram para Yonville seguindo a margem do rio. Durante a estação quente, a riba, alargando-se mais, deixava descobertos até à base os muros dos jardins, que tinham uma escada com alguns degraus para o rio. Este corria silencioso, rápido e frio à vista, viam-se na água compridas ervas, dobrando-se na direcção da corrente que as empurrava, parecendo cabeleiras verdes estendendo-se livremente na sua limpidez. Aqui e ali, na ponta dos juncos ou sobre uma folha de nenúfar, via-se pousar ou andar um insecto de patas finas. O sol atravessava com os seus raios as pequeninas bolhas azuis produzidas pelas ondas, que se sucediam, desfazendo-se, os velhos salgueiros despidos miravam na água a casca pardacenta, do outro lado, até onde atingia a vista, a pradaria parecia deserta. Era a hora do jantar nas quintas, a jovem mulher e o seu companheiro ouviam apenas, enquanto andavam, a cadência dos próprios passos sobre a terra do caminho, as palavras que diziam um ao outro e o roçagar do vestido de Emma, que fazia um ruído sussurrante em volta dela.

Os muros dos quintais, com a sua crista de cacos de garrafas, estavam quentes como as vidraças de uma estufa. Nas fendas dos tijolos tinham nascido goivos, e, com a borda da sombrinha aberta, a senhora Bovary, ao passar, ia desfazendo em poeira amarela algumas das suas flores já murchas, ou então algum ramo de madressilva ou clematite que pendia para fora roçava momentaneamente pela seda, prendendo-se-lhe aos fios.

Iam falando de uma companhia de bailarinos espanhóis anunciada para breve no teatro de Ruão.

- Vai lá vê-los? - perguntou ela.

- Se puder - respondeu o rapaz.

Não teriam nada mais a dizer um ao outro? Os seus olhos, contudo, transbordavam de uma conversação mais séria, e, enquanto se esforçavam por encontrar frases banais, ambos se sentiam invadidos pela mesma languidéz, era uma espécie de murmúrio da alma, profundo, contínuo, que se sobrepunha ao da voz. Tomados pela surpresa desta nova suavidade, não pensaram em falar um ao outro da sensação que lhes causava, nem em descobrir-lhe a causa. As felicidades futuras, como as praias tropicais, projectam na imensidade que as precede os seus langores natais, uma brisa perfumada, entorpecendo-nos numa embriaguez que não nos deixa inquietar com o horizonte que não se vê.

A terra, em certo lugar, afundara-se com a passagem dos animais, era preciso caminhar sobre umas grandes pedras verdes dispostas, de espaço a espaço, sobre a lama. Muitas vezes Emma parava um minuto a ver onde havia de apoiar a botina e, vacilando sobre a pedra que oscilava, de cotovelos levantados, dobrada pela cintura, olhar indeciso, ria, então, com medo de cair nas poças de água.

Quando chegaram à entrada do jardim dos Bovary, Emma empurrou a cancela, subiu os degraus a correr e desapareceu.

Léon voltou para o seu escritório. O patrão estava ausente, lançou um olhar sobre os molhos de documentos, aparou uma pena, pegou por fim no chapéu e saiu.

Subiu até ao Pasto, no alto da encosta de Argueil, à entrada da floresta, deitou-se no chão, debaixo dos pinheiros, e pôs-se a fixar o céu através dos dedos cruzados sobre os olhos.

- Que tédio! - dizia ele para consigo. - Que vida aborrecida!

Lamentava-se de viver naquela aldeia, tendo Homais como amigo e Guillaumin como patrão. Este último, sempre absorvido no trabalho, com óculos de aros de ouro e suíças ruivas por cima de um lenço branco, não entendia nada das delicadezas do espírito, apesar de afectar um temperamento rígido e inglês que deslumbrara o escriturário nos primeiros tempos. Quanto à mulher do farmacêutico, era a melhor esposa da Normandia, mansa como um cordeiro, acariciava os filhos, o pai, a mãe, os primos, chorava com as desgraças dos outros, deixava andar tudo em casa de qualquer maneira e detestava os espartilhos, mas era tão lenta de movimentos, tão maçadora quando falava, tinha um aspecto tão vulgar e uma conversação tão restrita, que, embora tivesse trinta anos e ele vinte, dormissem ambos porta com porta e lhe falasse todos os dias, jamais pensara que ela pudesse ser mulher para alguém, ou que tivesse do sexo algo mais além das saias.

E que havia mais? Binet, alguns comerciantes, dois ou três taberneiros, o padre e, finalmente, o senhor Tuvache e o administrador, com os seus dois filhos, gente opulenta, intratável, obtusa, que cultivava a sua própria terra, fazia patuscadas em família e, além disso, era muito beata, formando uma sociedade completamente insuportável.

Porém, sobre o fundo comum de todas aquelas caras humanas destacava-se o rosto de Emma, isolado e, contudo, mais longínquo, pois que ele sentia entre si e ela uma espécie de vagos abismos.

A princípio fora várias vezes a casa dela na companhia do farmacêutico. Charles não parecera extremamente desejoso de o receber, e Léon não sabia como agir, entre o receio de ser indiscreto e o desejo de uma intimidade que achava quase impossível.


IV

Logo aos primeiros frios, Emma deixou o seu quarto para se instalar na sala, uma comprida divisão de tecto baixo onde havia, sobre o fogão, um ramalhudo polipeiro exposto diante do espelho. Instalada na sua poltrona, ao pé da janela, via passar as pessoas da aldeia no passeio.

Léon passava duas vezes por dia do escritório para o Leão de Ouro. Emma ouvia-o aproximar-se ao longe, encostava-se à janela e escutava. O rapaz deslizava por detrás da cortina, sempre vestido da mesma maneira e sem voltar a cabeça. Mas, ao crepúsculo, quando, com o queixo apoiado na mão esquerda, abandonara já sobre os joelhos o bordado que começara a fazer, muitas vezes estremecia ao aparecimento daquela sombra que repentinamente deslizava. Levantava-se e mandava pôr a mesa.

O senhor Homais aparecia durante o jantar. De barrete grego na mão, entrava nas pontas dos pés para não incomodar ninguém e repetia sempre a mesma frase: “Ora boa noite a todos!”

Seguidamente, depois de se instalar no sítio habitual, encostado à mesa, entre os dois esposos, pedia ao médico notícias dos seus doentes e dava-lhe uma ideia dos honorários que poderia receber. Depois falava-se sobre o que vinha no jornal. Homais, a essa hora, já sabia quase tudo de cor, e relatava-o integralmente, com os comentários do jornalista e todas as histórias, uma por uma, das catástrofes ocorridas em França e no estrangeiro. Porém, esgotado o assunto, não tardava a fazer algumas observações acerca dos pratos que via na mesa. Acontecia até, às vezes, levantar-se um pouco do assento para indicar delicadamente à senhora o pedaço mais tenro, ou, voltando-se para a criada, dar-lhe conselhos sobre a manipulação dos ensopados e a higiene dos temperos.

Falava de aroma, de osmazoma, de sumos e de gelatina de uma maneira que encantava.

Homais tinha, aliás, a cabeça mais cheia de receitas do que a sua farmácia de frascos e era exímio a fazer uma quantidade de doces, vinagres e licores, conhecia também todas as invenções novas de aparelhos de aquecimento económicos, a arte de conservar os queijos e de beneficiar os vinhos deteriorados.

Às oito horas Justin vinha-o chamar para ir fechar a farmácia. Então, Homais deitava-lhe uma olhadela de esguelha, sobretudo quando Félicité se encontrava presente, pois descobrira que o seu aluno gostava da casa do médico.

- Este espertalhão - dizia ele - parece-me que já anda com ideias, e diabos me levem se não está apaixonado pela vossa criada!

Mas um defeito mais grave de que ele o acusava era o de escutar continuamente as conversas. Ao domingo, por exemplo, era impossível arrancá-lo da sala, aonde a senhora Homais o chamava para Lhe pegar nas crianças, que adormeciam nas poltronas, repuxando com as costas as coberturas de algodão, largas de mais.

Não vinha muita gente aos serões do farmacêutico, dado que a sua maledicência e as suas opiniões políticas haviam afastado sucessivamente diversas pessoas respeitáveis. O escriturário nunca deixava de estar presente. Logo que ouvia a campainha, corria ao encontro da senhora Bovary, pegava-lhe no xaile e ia colocar debaixo da secretária da farmácia as grossas chinelas de ourelo que ela usava por cima dos sapatos quando havia neve.

Começava-se por jogar algumas partidas de trinta e um, depois o senhor Homais jogava ao écarté com Emma, Léon, colocado por detrás dela, dava-lhe conselhos. De pé e com as mãos nas costas da cadeira onde ela estava sentada, observava os dentes da travessa que lhe prendia o carrapicho. A cada movimento que Emma fazia para jogar uma carta, o vestido subia-lhe um pouco do lado direito. Dos cabelos arrepanhados descia-lhe uma mancha acastanhada sobre as costas, desmaiando gradualmente e perdendo-se, pouco a pouco, na sombra. Depois o vestido caía-lhe dos dois lados sobre o assento, tufado, cheio de pregas, e es tendia-se até ao chão. Quando, às vezes, Léon lhe tocava com a sola da bota, afastava-se como se tivesse pisado alguém.

Terminada a partida das cartas, o boticário e o médico jogavam ao dominó e Emma, mudando de lugar, debruçava-se sobre a mesa a folhear L’Illustration. Trouxera consigo a sua revista de modas. Léon chegava-se para o pé dela, iam vendo as gravuras os dois e esperavam um pelo outro quando chegavam ao fundo da página. Ela pedia-lhe muitas vezes que lesse versos, Léon declamava-os numa voz arrastada, expirando cuidadosamente nas passagens amorosas. Mas estorvava-o o ruído dos dominós, Homais era forte a jogar, derrotava Charles mesmo com o doble-seis. Depois, feitos os trezentos pontos, estendiam-se ambos diante do fogo e dali a pouco adormeciam. O fogo ia morrendo nas cinzas, a chaleira estava vazia, Léon continuava a ler. Emma escutava-o, fazendo girar maquinalmente o quebra-luz da lâmpada, onde se viam pintados palhaços em carruagens e dançarinas na corda, com os seus trapézios. Léon detinha-se, indicando com um gesto o seu auditório adormecido, então falavam em voz baixa um com o outro e a conversa que tinham parecia-lhes mais doce, por não estar a ser ouvida.

Assim se estabeleceu entre eles uma espécie de associação, uma troca contínua de livros e de romances, o senhor Bovary, pouco ciumento, não se admirava com isso.

Recebeu pelo seu aniversário uma bela cabeça frenológica, toda cheia de números até ao tórax e pintada de azul. Era uma atenção do escriturário. Este tinha para com ele muitas outras atenções, ao ponto de Lhe fazer os recados em Ruão, e, como o livro de um romancista pusera em voga a mania dos cactos, Léon comprava-lhos para a esposa, trazendo-os na Andorinha, em cima dos joelhos, e picando os dedos nos espinhos duros.

Emma mandou adaptar ao caixilho da janela uma prateleira com balaústres, para pôr os seus vasinhos. O escriturário teve também o seu jardim suspenso, avistavam-se um ao outro cuidando das plantas às respectivas janelas.

De todas as janelas da vila, havia uma ainda mais vezes ocupada, pois, ao domingo, de manhã até à noite, e todas as tardes, se o tempo estivesse claro, via-se na lucarna de um sótão o perfil magro do senhor Binet debruçado sobre o seu torno, cujo ruído monótono se ouvia até ao Leão de Ouro.

Uma noite, ao voltar para casa, Léon encontrou no seu quarto um tapete de lã e veludo, com um desenho de folhagens sobre fundo claro, chamou a dona da casa, o senhor Homais,

Justin, as crianças, a cozinheira, e falou no assunto até ao patrão. Toda a gente quis conhecer o tapete, mas por que razão teria a mulher do médico amabilidades com o escriturário? A coisa pareceu esquisita e concluiu-se, definitivamente, que deviam estar apaixonados um pelo outro.

Ele dava-o a entender pela maneira como falava constantemente dos encantos e da inteligência de Emma, de tal modo que uma vez Binet Lhe respondeu com brutalidade:

- Que me importa isso a mim, se não faço parte lá da sociedade dela!

Léon torturava-se para descobrir a maneira de lhe fazer a declaração, e, hesitando sempre entre o medo de Lhe desagradar e a vergonha de ser tão pusilânime, chorava de desânimo e de desejo ao mesmo tempo. Depois tomava decisões enérgicas, escrevia cartas que rasgava em seguida, marcava datas que depois protelava. Muitas vezes, metia-se a caminho com o projecto de se atrever a tudo, mas depressa abandonava a resolução na presença de Emma e, quando Charles, ao chegar, o convidava a subir para a carruagem e ir com ele ver algum doente nos arredores, aceitava imediatamente, despedia-se de Emma e partia. O marido não era, afinal, qualquer coisa que fazia parte dela?

Quanto a Emma, não se interrogava a si mesma para saber se o amava. O amor, segundo acreditava, devia surgir de repente, com grande tumulto e fulgurações - tempestade dos céus que cai sobre a vida e a revolve, arranca as vontades como folhas e arrebata para o abismo o coração inteiro. Não sabia que, nos terraços das casas, a chuva forma lagos quando as goteiras estão entupidas, e assim vivia confiada na sua segurança, quando subitamente descobriu uma fenda na parede.


V

Foi num domingo de Fevereiro, numa tarde em que caía neve.

Tinham ido todos, o casal Bovary, Homais e Léon, a cerca de meia légua de Yonville, no vale, ver uma fiação de linho que se estava montando. O boticário levara consigo Napoléon e Athalie, para os obrigar a fazer exercício, e Justin acompanhava-os com os guarda-chuvas ao ombro.

Nada, porém, era menos curioso do que aquela curiosidade. Um grande espaço de terreno vazio, onde se viam, em confusão, entre montes de areia e de pedras, algumas rodas de engrenagens já enferrujadas, rodeando um grande edifício quadrangular com uma infinidade de janelinhas. Não estava ainda acabado de construir e via-se o céu através do madeiramento do tecto. Atado ao extremo da trave da cumeeira, um molho de palha entremeado de espigas deixava flutuar ao vento as suas fitas tricolores.

Homais falava. Explicava aos visitantes a importância futura daquele estabelecimento, avaliava a resistência dos sobrados, a espessura das paredes, e lamentava não ter consigo uma vara de medir, como a que tinha o senhor Binet para seu uso particular.

Emma, que lhe dava o braço, apoiava-se um pouco no ombro dele e olhava para o disco solar, que irradiava ao longe, na bruma, a sua claridade ofuscante, mas voltou a cabeça: ali estava Charles. Tinha o boné enterrado até às sobrancelhas e os seus dois grossos lábios trémulos acrescentavam-Lhe ao rosto um ar de estupidez, até as costas, aquelas costas tranquilas, eram irritantes de ver, patente naquela sobrecasaca, via Emma toda a vulgaridade da personagem.

Enquanto o estava observando, sentindo assim, na sua irritação, uma espécie de voluptuosidade depravada, Léon avançou um passo. O frio que o tornava pálido parecia dar-lhe ao rosto uma languidez mais doce, entre a gravata e o pescoço, o colarinho da camisa, um pouco largo, deixava ver-lhe a pele, uma porção da orelha ficava à vista por baixo de uma madeixa de cabelos e os seus grandes olhos azuis, erguidos para as nuvens, pareceram a Emma mais límpidos e belos que esses lagos da montanha que reflectem o céu.

- Desgraçado! - exclamou de repente o boticário.

E correu para o filho, que acabava de se atirar para cima de um montão de cal, para pintar os sapatos de branco.

Acabrunhado com a reprimenda que lhe deram, Napoléon desatou a gritar, enquanto Justin lhe limpava os sapatos com um molho de palha. Mas seria precisa uma navalha, Charles pôs a sua à disposição dele.

“Olhem, pensou ela, e anda com uma navalha no bolso, como um camponês!”

Mas começou a cair granizo e voltaram para Yonville.

A senhora Bovary, naquela noite, não foi a casa dos vizinhos e, quando Charles saiu, logo que se sentiu só, recomeçou a comparação com a nitidez de uma sensação quase imediata e com aquele prolongamento da perspectiva que a recordação dá aos objectos. Deitada na sua cama, a olhar para o clarão que o fogo fazia, conseguia ainda ver, como lá no vale, Léon de pé, fazendo com uma das mãos dobrar o pingalim e, com a outra, segurando Athalie, que chupava tranquilamente um pedaço de gelo. Ela achava-o encantador, não conseguia desprender-se dele, lembrava-se de outras atitudes suas noutras ocasiões, de frases que dissera, do som da sua voz, de toda a sua pessoa, e repetia, avançando os lábios como para o beijar:

- Sim, encantador!, encantador!... Será que não ama? - perguntou a si mesma. - Mas a quem então?... Mas é a mim!

Todas as provas se lhe apresentaram simultaneamente ao espírito e sentiu pular-lhe o coração. A chama do fogão fazia tremular no tecto uma claridade alegre, Emma voltou-se de costas e estendeu os braços.

Começaram então as eternas lamentações: “Oh!, se Deus tivesse querido! Porque é que não haveria de ter sido assim?

Mas então quem é que impediu?...”

Quando Charles, à meia-noite, voltou para casa, Emma fingiu que acordava e, enquanto ele fazia barulho a despir-se, queixou-se de enxaqueca, depois perguntou indolentemente que tal fora o serão.

- O senhor Léon - respondeu ele - foi-se deitar cedo.

Ela não pôde evitar de sorrir e adormeceu com a alma cheia de um novo encantamento.

No dia seguinte, ao cair da noite, recebeu a visita do senhor Lhereux, negociante de novidades. Era um homem esperto, aquele lojista.

Gascão de origem, mas tendo-se já tornado normando, combinava a sua facúndia meridional com a astúcia dos naturais de Caux. A sua fisionomia gorducha, mole e sem barba, parecia untada com uma decocção de alcaçuz claro e a cabeleira branca tornava mais vivo ainda o brilho rude dos olhos piscos e negros. Ignorava-se o que teria sido antes: vendedor ambulante, diziam uns, banqueiro em Routot, segundo outros. O certo é que fazia de cabeça complicadíssimos cálculos que causavam assombro ao próprio Binet. Polido até ao exagero, mantinha sempre uma posição meio curvada, na atitude de quem cumprimenta ou faz um convite.

Depois de ter deixado à porta um chapéu com fumo, colocou em cima da mesa uma caixa de cartão verde e começou por se lamentar à senhora, com todo o respeito, pelo facto de não ter até àquele dia merecido a sua confiança. Uma pobre lojeca como a sua não era própria para atrair uma senhora elegante, acentuou bem a palavra. Bastar-lhe-ia portanto, encomendar, e ele se encarregaria de lhe fornecer o que desejasse, tanto em retrosaria como em rouparia, chapelaria ou novidades, porque ia regularmente à cidade quatro vezes por mês. Tinha relações com as casas mais importantes. Podiam pedir informações dele nos Três Irmãos, na Barba de Ouro ou no Grande Selvagem, todos aqueles comerciantes o conheciam como aos próprios dedos!

Portanto, hoje, vinha apenas de passagem, mostrar à senhora vários artigos que tinham de momento, graças a uma oportunidade das mais raras. E retirou da caixa uma meia dúzia de golas bordadas.

A senhora Bovary examinou-as.

- Não preciso de nada - disse ela.

Então o senhor Lheureux exibiu delicadamente três estolas argelinas, vários maços de agulhas inglesas e, por fim, quatro tigelinhas de coco lavradas a cinzel pelos degredados. Depois, com as duas mãos apoiadas na mesa, o pescoço esticado, a cintura dobrada, fixou a seguir, de boca aberta, os olhos de Emma, que vagueavam indecisos por todas aquelas mercadorias.

De vez em quando, como que para sacudir o pó, dava um estalo com a unha na seda das estolas, desdobradas em todo o seu cumprimento, e elas estremeciam com um ligeiro ruído, fazendo cintilar, como minúsculas estrelas, à luz esverdeada do crepúsculo, os fios dourados do tecido.

- Quanto custam elas?

- Uma miséria - respondeu -, uma miséria, mas não há pressa, quando desejar, não somos judeus!

Emma reflectiu ainda alguns instantes e acabou por agradecer ao senhor Lhereux, que lhe respondeu sem se perturbar:

- Pois bem, entender-nos-emos noutra ocasião, com as senhoras tenho-me sempre conseguido entender, desde que, no entanto, não seja a minha!

Emma sorriu.

- Quer isto dizer - continuou ele com ar bonacheirão, depois do gracejo - que não me preocupo com o dinheiro... Até lho daria, se fosse necessário.

Ela teve um gesto de surpresa.

- Oh! - disse ele, com vivacidade, baixando a voz -, não precisaria de ir muito longe para lho arranjar, pode ter a certeza disso!

E pôs-se a perguntar por notícias do Tio Tellier, o dono do Café Francês, que o doutor Bovary andava nessa altura a tratar.

- Mas que tem então o Tio Tellier?... Quando tosse, parece que sacode a casa toda, e receio mesmo que, dentro de pouco tempo, tenha mais necessidade de um paletó de pinho que de uma camisola de flanela! Fartou-se de fazer patuscadas quando era novo! Aquela gente, minha senhora, não tinha a mínima regra!

Ele calcinou-se com aguardente! Mas, mesmo assim, é aborrecido ver partir uma pessoa conhecida.

E, enquanto voltava a fechar a caixa, ia fazendo assim comentários sobre a clientela do médico.

- É com certeza o tempo - disse, olhando para os vidros com a cara franzida - que provoca todas estas doenças! Eu também não me sinto lá muito em forma, um destes dias terei mesmo de vir consultar o doutor, por causa de uma dor que tenho nas costas. Enfim, até à vista, senhora Bovary, à sua disposição, um criado às ordens!

E fechou a porta devagarinho.

Emma mandou servir o jantar no quarto, no canto do fogão, sobre um tabuleiro, comeu com muito vagar, tudo lhe soube bem.

“Fui bastante sensata!”, dizia para si mesma, a pensar nas estolas.

Ouviu passos na escada: era Léon. Levantou-se e apanhou, de cima da cómoda, o primeiro de uma rima de panos que tinha para embainhar. Mostrou-se muito ocupada quando ele entrou.

A conversa não teve interesse, pois a senhora Bovary abandonava-a constantemente, enquanto ele próprio se sentia bastante embaraçado. Sentado numa cadeira baixa, perto do fogão, fazia girar entre os dedos o estojo de marfim, ela ia dando os pontos, ou, de vez em quando, com a unha, vincava a bainha do pano. Não dizia nada, e ele calava-se, cativo do seu silêncio, como o teria igualmente ficado das suas palavras.

“Pobre rapaz!”, pensava ela.

“Em que será que lhe desagrado?”, perguntava ele a si mesmo.

Léon, entretanto, acabou por dizer que teria de ir a Ruão num daqueles dias por causa de um assunto relacionado com os seus estudos.

- A sua assinatura de música já terminou, quer que lha renove?

- Não - respondeu ela.

- Porquê?

- Porque...

E, apertando os lábios, puxou lentamente uma longa linha cinzenta que enfiara na agulha.

Aquele trabalho irritava Léon. Parecia-lhe que os dedos de Emma iriam ficar todos esfolados nas pontas, veio-lhe à mente uma frase galante, mas não se arriscou a dizê-la.

- Então, abandona-a? - insistiu ele.

- O quê? - disse ela com vivacidade. - A música? Oh, meu Deus, claro que sim! É que tenho a casa para cuidar, o marido para tratar, imensas coisas a fazer, enfim, uma quantidade de deveres que estão em primeiro lugar!

Ela olhou para o relógio. Charles estava atrasado. Então fingiu que se preocupava muito com o marido. Repetiu mesmo duas ou três vezes:

- Ele é tão bom!

O escriturário era amigo de Bovary. Mas aquela ternura surpreendeu-o de uma maneira desagradável, apesar disso, continuou a elogiá-lo, como achava dever fazer a toda a gente, dizia ele, e sobretudo ao farmacêutico.

- Ah, sim! É uma excelente pessoa.

- Sem dúvida - retorquiu o escriturário.

E pôs-se a falar da senhora Homais, cuja maneira descuidada de se vestir provocava normalmente o riso de ambos.

- E que tem isso? - interrompeu Emma. - Uma boa mãe de família não se preocupa com a sua toilette.

Depois mergulhou de novo no silêncio.

O seu comportamento foi o mesmo durante os dias que se seguiram, as suas palavras, os seus modos, tudo mudou.

Viram-na tomar a peito o governo da casa, voltar a frequentar regularmente a igreja e tratar a criada com um pouco mais de severidade.

Retirou Berthe da ama. Félicité trazia-a quando vinham visitas e a senhora Bovary despia-a para mostrar como era robusta. Dizia que adorava crianças, eram a sua consolação, a sua alegria, a sua loucura, e acompanhava as carícias com tais expansões líricas que, a outra gente que não fosse a de Yonville, teriam feito recordar a Religiosa de Nossa Senhora de Paris.

Quando Charles voltava, à noite, encontrava as suas pantufas a aquecer junto da lareira. Os seus coletes agora não tinham falta de forro e as camisas de botões, e até dava gosto ver no armário todos os barretes de algodão dispostos em pilhas iguais. Já não se mostrava contrariada, como antes, por passear no jardim, com tudo o que ele propusesse ela logo concordava, ainda que não adivinhasse as vontades às quais se submetia sem um murmúrio, e, quando Léon o via ao canto do fogo, depois de jantar, com ambas as mãos apoiadas na barriga, os pés sobre o rebordo da chaminé, as faces ruborizadas pela digestão, os olhos húmidos de felicidade, com a criança a gatinhar sobre o tapete e aquela mulher de cintura delicada que, por sobre as costas da poltrona, lhe ia dar um beijo na testa, dizia de si para consigo: “Que loucura! Deste modo, como será possível consegui-la?”

Emma pareceu-lhe assim tão virtuosa e inacessível que o fez abandonar toda e qualquer esperança.

Mas, através desta renúncia, colocava-a em condições extraordinárias. Emma desprendeu-se, para ele, das qualidades carnais, de que não tinha nada a conseguir, e, no seu coração, foi sempre subindo e destacando-se, à maneira magnífica de uma apoteose que arrebata. Era um daqueles sentimentos puros que não embaraçam o exercício da vida, que se cultivam porque são raros e cuja perda daria mais tristeza do que a posse satisfação.

Emma emagreceu e ficou com as faces pálidas e o rosto alongado. Com os seus bandós negros, os grandes olhos, o nariz correcto, o andar de passarinho e, agora, sempre silenciosa, não parecia ela atravessar a existência mal lhe tocando e trazer na fronte a marca muito vaga de qualquer sublime predestinação? Era tão triste e tão calma, e, ao mesmo tempo, tão meiga e tão reservada, que ao pé dela se tinha a sensação de se ser dominado por um encanto glacial, como nas igrejas se tem um estremecimento ao sentir o perfume das flores de mistura com a frieza dos mármores. Nem mesmo os outros escapavam àquela sedução. O farmacêutico dizia:

- É uma mulher de grandes recursos e que não ficaria deslocada numa capital de distrito.

As donas de casa admiravam-lhe a economia, os clientes a delicadeza e os pobres a caridade.

Emma, porém, vivia cheia de desejos, de raiva, de ódio.

Aquele vestido de pregas escondia um coração revoltado e aqueles lábios tão pudicos não confessavam o seu tormento. Ela estava apaixonada por Léon e procurava a solidão para poder mais à vontade deleitar-se com a sua imagem. A visão da sua pessoa perturbava a volúpia daquela meditação. Emma palpitava ao ruído dos seus passos, depois, em presença dele, desfazia-se-lhe a emoção e, a seguir, só lhe ficava um imenso espanto, que terminava em tristeza.

Léon não sabia, quando saía de casa dela desesperado, que Emma se levantava logo a seguir para o ver na rua.

Preocupava-se com o que ele fazia, espiava-Lhe o aspecto do rosto, inventou uma história complicada como pretexto para lhe visitar o quarto. A mulher do farmacêutico parecia-lhe muito feliz por dormir debaixo do mesmo tecto, e os seus pensamentos iam constantemente pousar naquela casa, como os pombos do Leão de Ouro que ali iam molhar, nas goteiras, as patas cor-de-rosa e as asas brancas. Mas, quanto mais Emma tomava consciência do amor, mais o recalcava, para que não aparecesse e o fazer diminuir. Sentia o desejo de que Léon Lhe adivinhasse o sentimento, e imaginava circunstâncias de acaso, catástrofes que pudessem contribuir para isso. O que a detinha era, sem dúvida, a inércia ou o receio, e também o pudor. Imaginava que o tinha repelido demasiado, que já não havia oportunidade e que tudo estava perdido. Também o orgulho, a satisfação de poder dizer: “Sou virtuosa”, e de olhar para o espelho assumindo poses de resignação, a consolava um pouco pelo sacrifício que acreditava estar fazendo.

Então, os apetites da carne, as cobiças do dinheiro e as melancolias da paixão, tudo se confundia num mesmo sofrimento, e, em vez de procurar afastar daí o pensamento, ainda mais se prendia ao mesmo, excitando-se à dor e procurando para isso todas as ocasiões. Irritava-se com um prato mal servido ou com uma porta entreaberta, lastimava-se pelo veludo que lhe faltava, pela felicidade que não tinha, por as suas aspirações serem demasiado elevadas e por a casa ser acanhada de mais.

O que a exasperava é que Charles não dava a impressão de suspeitar do seu suplício. A convicção que ele tinha de a fazer feliz parecia-lhe um insulto imbecil e a segurança que revelava a esse respeito ingratidão. Por causa de quem se comportava ela tão escrupulosamente?

Não era ele o obstáculo a toda a felicidade, o motivo de toda a desgraça, como que o bico da fivela a travar aquela complexa correia que por todos os lados a amarrava?

Então voltou contra ele todo o ódio acumulado pelos seus aborrecimentos e cada esforço que fazia para o reduzir servia apenas para o aumentar, pois esse esforço inútil ia acrescentar-se aos outros motivos de desespero e contribuía ainda para maior afastamento. A sua própria docilidade lhe causava revolta. A mediocridade doméstica incitava-a a fantasias luxuosas; a ternura matrimonial, a desejos adúlteros. Preferiria que Charles lhe batesse, para poder com mais justiça detestá-lo, vingar-se dele. Por vezes assustava-se com as atrozes conjecturas que lhe vinham à ideia; e era necessário continuar a sorrir, escutar as suas próprias repetições de que ele era feliz, fazer de conta que o era, dar a entender isso aos outros!

Enojava-se, entretanto, daquela hipocrisia. Tinha tentações de fugir com Léon para qualquer parte, muito longe, tentar um destino novo; mas logo se lhe abria na alma um abismo de confusão, cheio de negrume.

“Ainda por cima, não me ama”, pensava ela; “qual vai ser o meu futuro? Que ajuda posso esperar, que consolação, que alívio?”

E ficava alquebrada, ofegante, inerte, soluçando baixinho e com as lágrimas a correrem-Lhe pelas faces.

- Porque é que não se avisa o patrão? - perguntava-lhe a criada quando a surpreendia nessas crises.

- São nervos - respondia Emma. - Não lhe digas nada, ele afligir-se-ia.

- Pois é! - continuava Félicité -, a senhora é exactamente como a Guérine, filha do Tio Guérin, o pescador de Pollet, que conheci em Dieppe antes de vir trabalhar para si. Ela era tão triste que vê-la de pé sobre a soleira da porta era a mesma coisa que ver um pano de enterro ali pendurado. O mal dela, segundo parece, era uma espécie de nevoeiro que tinha na cabeça, e os médicos não lhe podiam fazer nada, nem tão-pouco o padre. Quando lhe dava com muita força, ia passear sozinha para a beira-mar, e às vezes até o oficial da alfândega, quando fazia a ronda, a ia encontrar estendida de bruços a chorar em cima dos seixos. Depois do casamento, dizem que lhe passou.

- Mas a mim - respondia Emma - foi depois do casamento que isto me apareceu.


VI

Uma tarde em que, sentada junto da janela aberta, acabara de olhar para Lestiboudois, o sacristão que aparava o bucho, Emma ouv iu subitamente tocar as ave-marias.

Estava-se no princípio de Abril, quando as primaveras começam a desabrochar; corria um vento cálido sobre os canteiros cultivados e as hortas, como as mulheres, pareciam cuidar das suas toilettes para as festas do Verão. Através das grades do caramanchão via-se, na extensão do outro lado, correr o rio pela pradaria, desenhando sobre a erva errantes sinuosidades. A neblina da tarde passava entre os álamos ainda sem folhas, esfumando-Lhes os contornos com uma tonalidade violácea, mais desmaiada e transparente do que um véu subtil pairando sobre os seus ramos. Ao longe moviam-se animais; não se lhes ouviam os passos nem os mugidos; e o sino, continuando a tocar, prolongava nos ares a sua pacífica lamentação.

Com aquele repetido badalar, perdiam-se os pensamentos de Emma nas suas velhas recordações da juventude e do colégio.

Lembrou-se dos grandes candelabros, maiores do que os vasos de flores em cima do altar, e do tabernáculo com colunas.

Quisera, como outrora, encontrar-se ainda no meio da longa fila de mantilhas brancas, aqui e além interrompida pelos hirtos capuzes das boas freiras debruçadas sobre o genuflexório; ao domingo, na missa, quando levantava a cabeça, avistava o rosto meigo da Virgem entre as nuvens azuladas do incenso que subia. Sobreveio-lhe então uma forte comoção; sentiu-se débil e abandonada, como penugem de um pássaro que volteia na tempestade; e foi inconscientemente que se dirigiu à igreja, disposta a qualquer devoção, contanto que Lhe absorvesse a alma e lhe fizesse esquecer completamente a existência.

Na praça encontrou Lestiboudois, que vinha de volta; pois, para não prejudicar o trabalho do dia, ele optava por interromper a tarefa e depois retomá-la, de modo que tocava as ave-marias quando lhe convinha. Além disso, o toque feito mais cedo avisava os garotos de que eram horas da catequese.

Alguns deles, que já haviam chegado, estavam a jogar o berlinde nas lajes do cemitério. Outros, encavalitados no muro, agitavam as pernas, ceifando com os tamancos as grandes ortigas nascidas entre a pequena vedação e as últimas sepulturas. Era o único sítio onde havia verdura; tudo o resto eram pedras e o chão continuamente coberto por uma poeira fina, apesar da vassoura do sacristão.

As crianças corriam por ali em chinelos, como num chão de madeira preparado para elas, e ouvia-se-lhes o tumulto das vozes por entre as badaladas do sino. Diminuía com as oscilações da grande corda, que, caindo do alto do campanário, roçava com a ponta no chão. Passavam andorinhas pipilando e cortando o ar na trajectória do seu voo, voltando rapidamente aos seus ninhos amarelos, sob as telhas do beiral. No fundo da igreja brilhava uma lamparina, ou, melhor, uma torcida de lamparina dentro de um copo suspenso. A luz que deitava parecia, de longe, uma mancha esbranquiçada a tremer sobre o azeite. Um longo raio de sol atravessava toda a nave central, tornando ainda mais sombrios os lados e os ângulos do interior.

- Onde está o padre? - perguntou a senhora Bovary a um rapaz que se divertia a sacudir o molinete no seu encaixe demasiado largo.

- Ele já vem - respondeu o rapaz.

Com efeito, a porta do presbitério rangeu, deixando aparecer o padre Bournisien; as crianças escaparam-se, em confusão, para dentro da igreja.

- Estes gaiatos! - murmurou o eclesiástico. - São sempre os mesmos!

E acrescentou, apanhando um catecismo esfarrapado em que tropeçara:

- Não respeitam nada!

Mas, logo que reconheceu a senhora Bovary:

- Desculpe, não tinha reparado.

Enfiou o catecismo no bolso e deteve-se, continuando a balouçar entre os dedos a pesada chave da sacristia.

A claridade do sol-poente, que lhe dava em cheio no rosto, empalidecia-lhe a sarja da sotaina, com lustro nos cotovelos e a desfiar-se pela orla. Manchas de sebo e de tabaco seguiam, sobre o peito, a linha dos botõezinhos, tornando-se mais numerosas à medida que se lhe afastavam da gola, onde lhe pousavam as abundantes rugas da pele avermelhada, semeada de manchas amarelas, que desapareciam no meio dos pêlos duros da sua barba grisalha. Acabara de jantar e respirava ruidosamente.

- Como tem passado? - acrescentou.

- Mal - respondeu Emma. - Ando doente.

- Olhe, eu cá também - continuou o sacerdote. - São estes primeiros calores, não é?, que nos amolecem espantosamente.

Enfim, que quer? Nascemos para sofrer, como diz São Paulo. Mas o doutor Bovary que diz a isso?

- Ele!... - respondeu Emma, com um gesto desdenhoso.

- O quê? - replicou o velhote com grande admiração. - Ele não Lhe receita nada?

- Oh! - exclamou ela -, não é dos remédios da Terra que eu preciso.

Mas o padre olhava de vez em quando para a igreja, onde os garotos, todos ajoelhados, se empurravam uns aos outros com os ombros e caíam como um baralho de cartas.

- Eu desejava saber... - prosseguia ela.

- Espera, espera, Riboudet - gritou o eclesiástico com voz colérica -, já te vou aquecer as orelhas, grande maroto!

Depois, voltando-se para Emma:

- É o filho do carpinteiro Boudet; os pais não se ralam e deixam-no fazer tudo o que lhe apetece. E, contudo, poderia aprender depressa, se quisesse, porque é bastante inteligente.

Eu então, às vezes, por brincadeira, chamo-lhe Riboudet (como o monte que se sobe quando se vai para Maronne). Ah!, ah!

Monte Riboudet! No outro dia disse isto ao senhor Bispo e ele riu-se... dignou-se achar graça. E o senhor Doutor, como vai?

Emma parecia não estar a ouvir. O padre continuou:

- Sempre muito ocupado, naturalmente? É que ele e eu somos, com certeza, as duas pessoas que mais têm que fazer cá na paróquia. Mas ele lá é médico dos corpos, acrescentou, com uma grossa gargalhada; eu sou o médico das almas!

Ela fixou no padre um olhar suplicante:

- Sim..., o senhor alivia todas as misérias.

- Oh!, nem me fale nisso, senhora Bovary! Ainda esta manhã tive de ir a Bas-Diauville por causa de uma vaca que estava inchada; pensavam que era bruxedo. Todas as vacas deles, não sei como... Mas desculpe! Longuemarre e Boudet! Vamos lá a ver! Querem fazer o favor de acabar com isso?...

E, num pulo, correu para a igreja.

Os miúdos apertavam-se em torno do púlpito, trepavam para cima do banco do chantre, abriam o missal; outros, em bicos de pés, iam-se aventurando a entrar mesmo no confessionário. Mas o padre, surgindo subitamente, distribuiu a todos uma saraivada de bofetadas.

Pegando-Lhes pela gola da jaqueta, suspendia-os do chão e pousava-os de novo com força de joelhos nas lajes do coro, como se os quisesse plantar naquela posição.

- Veja bem como os pobres agricultores são dignos de lástima! - disse o padre, depois de voltar para junto de Emma, enquanto desdobrava o seu grande lenço de chita, segurando-lhe uma ponta com os dentes.

- Há mais quem o seja - respondeu ela.

- Pois com certeza! Os operários das fábricas, por exemplo.

- Não são esses...

- Queira desculpar-me, mas tenho lá conhecido pobres mães de família, mulheres virtuosas, posso-lhe garantir, verdadeiras santas, que até falta de pão passam.

- E aquelas - continuou Emma (que falava contorcendo os cantos da boca) -, aquelas, senhor Prior, que têm pão e que não têm...

- Fogo para se aquecer no Inverno - atalhou o padre.

- Que importa isso?

- Como? Que importa? A mim parece-me que, quando se tem bom aquecimento, boa alimentação... porque, enfim...

- Oh, meu Deus! Meu Deus! - suspirava ela.

- Sente-se maldisposta? - perguntou o padre, aproximando-se com ar preocupado. - É naturalmente da digestão, não? Tem de voltar para casa, senhora Bovary; beba um pouco de chá, que Lhe fará bem, ou então um copo de água fresca com açúcar mascavado.

- Para quê?

E dava a impressão de ter acordado de um sonho.

- É que a vi passar a mão pela testa. Pensei que estivesse a sentir vertigens.

Depois, mudando de assunto:

- Mas a senhora queria perguntar-me qualquer coisa. O que era então?

- Eu? Nada..., nada... - repetiu Emma.

E o seu olhar, que divagava em redor, voltou-se lentamente para o velho de sotaina. Fixaram-se ambos, frente a frente, sem dizer nada.

- Sendo assim, senhora Bovary - disse ele por fim -, queira desculpar-me, mas o dever acima de tudo, como sabe; tenho de despachar aqueles estouvados. Estamos quase na altura das primeiras comunhões e receio que me falte o tempo! É por isso que, desde a Ascensão, todas as quartas-feiras os faço aguentar mais uma hora. Pobres crianças! Nunca é cedo de mais para os guiar no caminho do Senhor, como Ele mesmo nos recomendou pela boca do Seu Divino Filho... Estimo as suas melhoras; os meus cumprimentos ao senhor seu marido!

E entrou na igreja, fazendo logo à porta uma genuflexão.

Emma viu-o desaparecer entre a dupla fila de bancos, andando pesadamente, com a cabeça um pouco tombada sobre o ombro e as mãos meio abertas, voltadas para fora.

Ela rodou seguidamente sobre os calcanhares, com um só movimento, como uma estátua que girasse sobre um eixo, e tomou o caminho de casa. Mas a voz grossa do padre e a voz clara dos garotos ainda lhe chegavam aos ouvidos e continuavam a segui-la:

- Tu és cristão?

- Sim, senhor, sou cristão.

- E o que é um cristão?

- É aquele que, depois de ser baptizado..., baptizado..., baptizado.

Emma subiu os degraus da escada agarrando-se ao corrimão e, quando chegou ao quarto, deixou-se cair numa poltrona.

A claridade esbranquiçada das vidraças ia diminuindo lentamente, com ondulações. Os móveis, no seu lugar, pareciam ter-se tornado mais inertes e perder-se na sombra como num oceano tenebroso. O fogo apagara-se, o relógio continuava o seu tiquetaque e Emma sentia-se vagamente admirada com toda aquela tranquilidade das coisas, enquanto havia no seu próprio íntimo tanta agitação. Mas, entre a janela e a mesinha de trabalho, lá estava a pequenina Berthe, cambaleando sobre as botinhas de malha, a procurar aproximar-se da mãe para se lhe agarrar às pontas das fitas do avental.

- Deixa-me! - disse esta, afastando-a com a mão.

A pequerrucha logo voltou a aproximar-se ainda mais, encostando-se-Lhe aos joelhos; e, apoiando neles os bracinhos, erguia para ela os seus grandes olhos azuis, enquanto um fio de saliva pura lhe escorria do lábio sobre a seda do avental.

- Deixa-me! - repetiu a mãe toda irritada.

A expressão que fez assustou a criança, que se pôs a chorar.

- Já te disse que me deixes! - repetiu, repelindo-a com o cotovelo.

Berthe foi cair ao pé da cómoda, contra a patera de cobre; fez um golpe na cara, donde saía sangue. A senhora Bovary precipitou-se para a levantar, rebentou o cordão da campainha, gritou com toda a força pela criada e começava já a vociferar quando apareceu Charles. Era a hora do jantar e acabava de chegar a casa.

- Olha aqui, querido - disselhe Emma com uma voz calma -, a menina, mesmo agora, a brincar, caiu no chão e feriu-se.

Charles garantiu-Lhe que não era nada grave e foi buscar um emplastro.

A senhora Bovary não desceu à sala e quis ficar sozinha a tomar conta da filha. Depois, contemplando-a a dormir, o que lhe restava de preocupação dissipou-se gradualmente e viu-se aos seus próprios olhos bem parva e tola por se ter momentos antes inquietado por tão pouca coisa. Berthe, efectivamente, já não soluçava. A sua respiração fazia agora levantar insensivelmente o cobertor de algodão. Tinham-lhe ficado aos cantos dos olhos umas grandes lágrimas e as pálpebras semicerradas deixavam ver, por entre as pestanas, duas pupilas pálidas, encovadas; o adesivo, colado na face, repuxava-lhe obliquamente a pele esticada.

“É uma coisa estranha”, pensava Emma, “como esta criança é feia!”

Quando Charles, às onze horas da noite, voltou da farmácia (onde, depois do jantar, fora entregar o resto do emplastro), encontrou a mulher de pé junto do berço.

- Uma vez que eu já te disse que não vai ser nada - disselhe ele, beijando-a na testa -, não te aflijas, minha querida, senão ficas doente!

Ele demorara-se bastante em casa do boticário. Embora não se tivesse mostrado ali muito emocionado, o senhor Homais fizera o possível por animá-lo, levantar lhe o moral. Tinham então falado de diversos perigos que ameaçam as crianças e do descuido dos criados. A senhora Homais bem o sabia, pois conservava ainda no peito as marcas de uma porção de brasas que uma cozinheira, certa vez, lhe deixara cair em cima do bibe. Por isso, aqueles pais exemplares tomavam uma quantidade de precauções. As facas nunca estavam afiadas, nem os quartos encerados. Nas janelas tinham redes de arame e umas fortes barras fixas nos alizares. Os pequenos Homais, apesar da sua independência, não se podiam mexer sem alguém a vigiá-los; à menor constipação, o pai enchia-os de remédios peitorais, e até depois dos quatro anos usavam todos, implacavelmente, bonés enchumaçados. Na verdade, aquilo era uma mania da senhora Homais; o marido sentia-se interiormente preocupado, receando os resultados de semelhante compressão sobre os órgãos do intelecto, e chegava às vezes a dizer-lhe:

- Mas pretendes então fazer deles caraíbas ou botocudos?

Charles, entretanto, procurava várias vezes interromper a conversação.

- Tenho um assunto para tratar consigo - dissera ele ao ouvido do escriturário, que logo se pôs a subir a escada na sua frente.

“Teria ele desconfiado de alguma coisa?”, pensava Léon.

Sentia o coração bater e perdia-se em conjecturas.

Finalmente, Charles, depois de fechar a porta, pediu-lhe que visse, ele mesmo, qual poderia ser o preço de um bom daguerreótipo; era uma surpresa sentimental que queria fazer à mulher, uma atenção requintada, o seu retrato de casaca preta.

Mas queria saber antecipadamente com o que teria de contar;

aquelas informações não deviam dar-lhe muita maçada, visto que Léon ia à cidade mais ou menos todas as semanas.

Com que finalidade? Homais suspeitava que havia ali qualquer história de rapaz, qualquer intriga de amor. Mas enganava-se;

Léon não andava atrás de nenhum namoro. Estava mais triste do que nunca e a senhora Lefrançois bem se apercebia disso pela quantidade de comida que deixava agora no prato. Para ver se descobria alguma coisa, ela foi interrogar o tesoureiro; Binet respondeu-Lhe, em tom irritado, que não era pago pela polícia.

O companheiro parecia-lhe, entretanto, bastante estranho;

pois muitas vezes Léon se recostava na cadeira, de braços caídos, queixando-se vagamente da existência.

- É que você não se distrai o suficiente - dizia o tesoureiro.

- Ora, como?

- Eu, no seu lugar, arranjava um torno!

- Mas eu não sei tornear - respondia o escriturário.

- Oh!, é verdade! - dizia o outro, passando a mão pelo queixo, com um ar de desdém misturado com satisfação.

Léon estava cansado de amar sem resultado; além disso, começava a sentir aquele abatimento que é provocado pela «instante repetição» da mesma vida, quando nenhum interesse a dirige e nenhuma esperança a sustém.

Sentia-se tão enjoado de Yonville e dos seus habitantes, que a vista de certas pessoas ou de certas casas o irritava até ao ponto de não a poder suportar; e o farmacêutico, apesar da boa pessoa que era, tornava-se-lhe também completamente insuportável. Contudo, a perspectiva de uma situação nova assustava-o tanto quanto o seduzia.

Aquela apreensão depressa se transformou em impaciência, e então Paris começou a acenar-lhe, de longe, com a fanfarra dos seus bailes de máscaras, juntamente com o riso das operariazinhas galantes. Uma vez que era lá que teria de ir terminar o seu curso de Direito, porque não havia de pôr-se a caminho? Quem o impediria disso? E começou a preparar-se interiormente: planeou antecipadamente as suas ocupações.

Mobilou mentalmente um apartamento. Levaria ali uma vida de artista! Tomaria lições de guitarra clássica! Teria um roupão, uma boina basca, pantufas de veludo azul! E até contemplava já, por cima do fogão, dois floretes cruzados, com uma caveira e a guitarra em cima.

O mais difícil seria o consentimento da mãe; no entanto, nada lhe parecia mais razoável. O próprio patrão o aconselhava a ir para outro cartório, onde se pudesse desenvolver meLhor.

Adoptando então uma solução intermédia, Léon procurou um lugar qualquer de segundo - escriturário em Ruão, não o encontrou e acabou por escrever à mãe uma longa carta com pormenores, em que lhe expunha as razões para ir morar em Paris imediatamente. Ela consentiu.

Não se precipitou. Todos os dias, durante um mês inteiro, Hiven lhe foi transportando, de Yonville para Ruão e de Ruão para Yonville, caixas, malas, pacotes; e, depois de ter acrescentado o seu guarda-roupa, mandado estofar de novo as suas três poltronas, comprado um fornecimento de lenços, em resumo, depois de ter tomado mais disposições do que seria necessário para uma viagem à volta do mundo, foi adiando a partida de semana para semana, até que recebeu uma segunda carta da mãe, em que esta lhe dizia que se apressasse a partir, visto que desejava fazer o seu exame antes das férias.

Quando chegou o momento dos abraços, a senhora Homais chorou; Justine soluçava; Homais, fazendo-se forte, dissimulava a emoção; quis ser ele próprio a levar o paletó do amigo até à porta do notário, que o levaria a Ruão na sua carruagem. A Léon restava apenas o tempo necessário para se despedir do doutor Bovary.

Quando chegou ao cimo da escada, parou, de tal maneira lhe faltava o fôlego. Logo que entrou, a senhora Bovary levantou-se.

- Sou eu mais uma vez! - disse Léon.

- Eu tinha a certeza!

Emma mordeu os lábios e o sangue afluiu-lhe à pele do rosto, fazendo-a corar desde a raiz dos cabelos até à orla da gola.

Deixou-se ficar de pé, com o ombro encostado a uma ombreira.

- O doutor então não está? — prosseguiu ele.

- Está ausente.

E repetiu:

- Está ausente.

Houve um momento de silêncio. Olharam um para o outro; e os seus pensamentos, confundidos na mesma angústia, abraçavam-se estreitamente, como dois peitos palpitantes.

- Gostava de beijar Berthe - disse Léon.

Emma desceu alguns degraus e chamou Félicité.

Ele olhou demoradamente em redor, detendo-se nas paredes, nas prateleiras, na chaminé, como que para penetrar em tudo, para levar tudo consigo.

Mas Emma voltou a entrar e a criada trouxe Berthe, que sacudia, na ponta de um cordel, um moinho de vento de cabeça para baixo.

Léon beijou-a repetidas vezes no pescoço.

- Adeus, pobre criança! Adeus, querida menina, adeus!

E entregou-a de novo à mãe.

- Leve-a - disse esta à criada.

Ficaram sós.

A senhora Bovary, de costas voltadas, tinha a cabeça encostada a um vidro; Léon conservava o boné na mão e batia com ele vagarosamente na coxa.

- Vai chover - disse Emma.

- Tenho capote - respondeu ele.

- Ah!

Ela voltou-se, com o queixo inclinado para baixo e a testa para a frente. Como sobre o mármore, a luz deslizava-Lhe pela fronte até às sobrancelhas, sem que se pudesse saber o que Emma observava no horizonte nem o que estava pensando no fundo de si mesma.

- Bom, adeus! - suspirou ele.

Ela levantou a cabeça com um movimento brusco:

- Sim, adeus..., vá-se embora!

Avançaram um para o outro; ele estendeu a mão, ela hesitou.

- Então, à inglesa - disse ela, abandonando-lhe a sua e esforçando-se por rir.

Léon sentiu-a entre os dedos, parecendo-lhe que toda a própria substância do seu ser descia até à palma húmida daquela mão.

Depois largou-a; os olhos de ambos encontraram-se ainda uma vez e ele desapareceu.

Quando chegou ao mercado, parou e escondeu-se atrás de uma coluna para contemplar pela última vez aquela casa branca com as suas quatro gelosias verdes. Pareceu-lhe ver uma sombra atrás da janela do quarto; mas a cortina, desprendendo-se do alizar como se ninguém lhe tivesse tocado, moveu lentamente as suas longas pregas oblíquas, que num instante se estenderam todas, e ficou direita, mais imóvel do que uma parede de estuque. Léon lançou-se a correr.

Avistou de longe, na estrada, o cabriolé do patrão e, ao lado, um homem vestido de serguilha, segurando o cavalo.

Homais e o senhor Guillaumin conversavam ambos. Estavam à espera dele.

- Dê-me cá um abraço - disse o boticário, com as lágrimas nos olhos. - Aqui está o seu paletó, meu bom amigo; tenha cuidado com o frio! Cuide de si! Poupe-se!

- Vamos, Léon, suba! - disse o tabelião.

Homais debruçou-se sobre o guarda-lama e, com a voz entrecortada de soluços, soltou estas duas palavras tristes:

- Boa viagem!

- Boa tarde, - respondeu Guillaumin. - Larga!

Partiram e Homais voltou para casa.

A senhora Bovary abrira a janela que dava para o jardim e estava a olhar para as nuvens.

Estas acumulavam-se no Poente, do lado de Ruão, e enrolavam rapidamente as suas negras volutas, por trás das quais se viam estender grandes raios de sol, como flechas de ouro suspensas de um troféu, enquanto o restante do céu, vazio, tinha uma brancura de porcelana. Mas uma rajada de vento fez curvar os choupos e, subitamente, a chuva começou a cair ruidosamente sobre as folhas verdes. Depois voltou a aparecer o Sol, as galinhas cacarejavam, os pardais sacudiram as asas nas moitas húmidas e as poças de água na areia arrastaram, escoando-se, as flores cor-de-rosa de uma acácia.

“Como deve já ir longe!”, pensou ela.

O senhor Homais, como habitualmente, apareceu às seis e meia, durante o jantar.

- Lá se foi então embora o nosso rapaz! - disse, enquanto se sentava.

- Parece que sim! - respondeu o médico.

Depois, voltando-se na cadeira:

- E lá por sua casa, que novidades há?

- Nada de especial. Só a minha mulher é que esteve esta tarde um pouco comovida. Sabe como é, as mulheres, qualquer coisa as perturba! Sobretudo a minha! E seria errado revoltarmo-nos com isso, porque a constituição nervosa delas é bastante mais frágil do que a nossa.

- O pobre Léon! - dizia Charles. - Como vai ele viver em Paris?... Conseguirá acostumar-se?

A senhora Bovary suspirou.

- Ora, ora! - disse o farmacêutico, dando um estalinho com a língua. - Os bons petiscos nos restaurantes, os bailes de máscaras, o champanhe! Tudo isso vai ajudar, garanto-lhe.

- Não creio que corra muito atrás dessas coisas - objectou o doutor Bovary.

- Nem eu! - apressou-se a responder Homais. - Apesar de que terá de fazer um pouco como os outros, para não se arriscar a passar por jesuíta. E não faz uma ideia da vida que levam esses farsantes lá no Bairro Latino com as actrizes! E também os estudantes são muito apreciados em Paris. Desde que saibam agradar, recebem-nos nas melhores sociedades, e há até damas do subúrbio de Saint-Germain que se apaixonam por eles, o que lhes permite, como resultado, fazerem bons casamentos.

- Mas - disse o médico - tenho um certo receio que... por lá...

- Tem razão - interrompeu o boticário -, há o reverso da medalha! É preciso andar sempre com a mão a segurar a carteira. Em Paris, por exemplo, está-se num jardim público e aparece um fulano, muito apresentável, condecorado até, que se poderia tomar por um diplomata; apresenta-se, estabelece-se a conversação; ele insinua-se, oferece uma pitada, apanha-nos o chapéu que caiu. A gente toma mais confiança, ele leva-nos ao café, convida-nos a ir à sua casa de campo, entre dois cálices apresenta-nos a uma quantidade de pessoas e, durante três quartas partes do tempo, não faz senão explorar-nos a bolsa ou levar-nos a dar passos perniciosos.

- Isso é verdade - respondeu Charles -, mas estava a pensar principalmente nas doenças, na febre tifóide, por exemplo, que ataca os estudantes da província.

Emma estremeceu.

- Devido à mudança de regime - continuou o farmacêutico - e à perturbação que daí resulta para todo o organismo. E, depois, a água de Paris, sabe como é!, a comida dos restaurantes, todos aqueles alimentos condimentados acabam por escaldar o sangue e não valem, por mais que o digam, um bom cozido feito em casa. Eu, por mim, sempre preferi a cozinha provinciana: é mais sã! Por isso é que, quando estudei Farmácia em Ruão, me hospedei numa pensão; comia com os professores.

E continuou então a expor as suas opiniões gerais e simpatias pessoais, até ao momento em que Justin o veio chamar para uma gemada especial que era preciso preparar.

- Nem um momento de descanso! - exclamou ele. - Sempre a correr! Não posso sair nem um minuto! Tenho de suar sangue e água, como um cavalo de lavoura! Que jugo desgraçado!

Depois, quando já estava junto da porta:

- A propósito - disse ele -, sabem a novidade?

- Qual?

- É que é muito provável - prosseguiu Homais, levantando as sobrancelhas e assumindo uma expressão das mais sérias -, que os comícios agrícolas do Sena Inferior se realizem este ano em Yonville-l’Abbaye. Pelo menos é o que consta. Esta manhã o jornal dizia qualquer coisa. Isso teria uma grande importância para o nosso concelho! Mas depois falamos no assunto.

Obrigado, vejo bem; o Justin trouxe a lanterna.


VII

O dia seguinte foi para Emma um dia fúnebre. Tudo lhe parecia envolvido numa atmosfera negra que flutuava confusamente no exterior das coisas e o desgosto engolfava-se-lhe na alma com uivos brandos, como faz o vento do Inverno nos castelos abandonados. Era aquele sonhar com o que não voltará mais, a prostração em que se fica após cada facto consumado, enfim, essa dor provocada pela interrupção de qualquer gesto habitual, pela cessação brusca de uma vibração prolongada.

Como no regresso de Vaubyessard, quando as quadrilhas se lhe agitavam em turbilhão na cabeça, sentia agora uma melancolia taciturna, um desespero entorpecido. Léon ressurgia-Lhe mais alto, mais belo, mais suave, mais vago; embora separado dela, não a abandonara; ali estava ele e as paredes da casa pareciam conservar-lhe ainda a sombra. Não podia despegar a vista daquela alcatifa que ele pisara, daquelas cadeiras vazias onde se sentara. O rio continuava a correr, empurrando lentamente as suas minúsculas vagas ao longo da margem escorregadia.

Tinham passeado por ali muitas vezes os dois, ouvindo aquele mesmo marulhar das ondas sobre os seixos cobertos de musgo.

Que boas horas de sol ali tinham passado! Que tardes belas, sós, à sombra, no fundo do jardim! Ele lia em voz alta, de cabeça descoberta, sentado num banco rústico feito de troncos secos; a brisa fresca da pradaria fazia tremer as páginas do livro e as campainhas do caramanchão... Mas ai!, fora-se embora o único encanto da sua vida, a única esperança possível de felicidade! Porque não se apoderara ela daquela ventura quando estava ao seu alcance! Porque não o retivera com as duas mãos, com os dois joelhos, quando lhe quisera fugir? E Emma amaldiçoava-se por não ter amado Léon; tinha sede dos seus lábios. Sentiu vontade de correr para o pé dele, lançar-se-Lhe nos braços e dizer-lhe: “Aqui me tens, sou tua!”

Mas embaraçava-se antecipadamente com as dificuldades da aventura e os seus desejos, a que se acrescentava o desgosto, ainda se tornavam mais activos.

A partir de então, aquela recordação de Léon tornou-se o centro do seu tédio. Nele crepitava com mais força do que, numa estepe russa, uma fogueira de viajantes abandonada na neve. Emma corria para ela, chegava-se-lhe tão perto quanto podia, remexia delicadamente aquela fogueira quase a extinguir-se, ia buscar por toda a parte ao seu redor tudo o que pudesse avivá-la mais; e as mais longínquas reminiscências, do mesmo modo que as oportunidades mais recentes, aquilo que sentia, juntamente com o que imaginava; os seus desejos de volúpia que se dispersavam, os projectos de felicidade que estalavam ao vento como ramos secos, a sua virtude inútil, as esperanças desvanecidas, as tarefas domésticas, tudo juntava, tudo apanhava, e tudo servia para lhe aquecer a tristeza.

Entretanto, as chamas aplacaram-se, ou porque as reservas por si mesmas se exaurissem, ou porque o amontoamento fosse demasiado grande. O amor extinguiu-se, pouco a pouco, pela ausência e a saudade foi sufocada pelo hábito; aquele clarão de incêndio que lhe tingia de púrpura o céu pálido cobriu-se de mais sombras e extinguiu-se gradualmente. No meio do entorpecimento da sua consciência, chegou ela a tomar as repugnâncias pelo marido como aspirações pelo amante, os ardores do ódio como renovações da ternura; mas, como o furacão continuava a soprar e a paixão se consumiu até às cinzas, e não chegou qualquer auxílio, e nenhum sol apareceu, por todos os lados se fez noite cerrada e ela ficou perdida no meio de um horrível frio que a trespassava.

Recomeçaram então os maus dias de Tostes. Sentia-se agora muito mais infeliz, pois tinha a experiência do desgosto, com a certeza de que não teria fim.

Uma mulher que tantos sacrifícios impusera a si mesma poderia muito bem dispensar fantasias. Comprou um genuflexório gótico e despendeu, num mês, cerca de catorze francos de limões a limpar as unhas; escreveu para Ruão a encomendar um vestido de caxemira azul, escolheu na loja de Lheureux a mais bonita das suas estolas, atou-a à cintura por cima do roupão e, nessa indumentária, deixava-se estar, de persianas fechadas, estendida num canapé, com um livro na mão.

Variava muitas vezes de penteado: penteava-se à chinesa, com caracóis, com tranças; fez um risco ao lado, na cabeça, e enrolou o cabelo para baixo, como um homem.

Quis aprender italiano: comprou dicionários, uma gramática e uma quantidade de folhas de papel. Experimentou as leituras sérias, a história e a filosofia. Às vezes, de noite, Charles acordava sobressaltado, julgando que o vinham chamar para ir atender um doente:

- Vou já - balbuciava ele.

E era o barulho de um fósforo que Emma riscara para acender a lâmpada. Mas acontecia com as leituras o mesmo que com os seus bordados, que, todos começados, lhe enchiam o armário; ela pegava-Lhes, largava-as e passava a outras.

Tinha acessos, durante os quais era facilmente levada a fazer extravagâncias. Um dia apostou com o marido que seria capaz de beber metade de um grande copo de aguardente e, como Charles cometeu o disparate de a desafiar a fazê-lo, engoliu a aguardente até à última gota.

Apesar dos seus ares levianos (era o termo usado pelas senhoras de Yonville), Emma não parecia alegre e, habitualmente, conservava nos cantos da boca aquela contracção imóvel que enruga o rosto das solteironas e dos ambiciosos desiludidos. A sua palidez era geral, apresentando-se branca como linho, com a pele do nariz esticada junto das narinas, olhando para as pessoas de um modo vago. Por ter descüberto três cabelos brancos junto às fontes, fartou-se de falar da sua velhice.

Desmaiava muito frequentemente. Um dia deitou até um escarro de sangue e, vendo Charles correr, dando a entender que estava preocupado, respondeu:

- Ora! Que importância tem isto?

Charles foi refugiar-se no consultório; e chorou, com os cotovelos em cima da mesa, sentado na sua poltrona de escritório, por baixo da cabeça frenológica.

Escreveu então à mãe, pedindo-lhe que viesse, e tiveram os dois longas conversas acerca de Emma.

Qual seria a solução? Que se poderia fazer, uma vez que ela recusava todo e qualquer tratamento?

- Sabes o que a tua mulher precisava? - prosseguia a velha Bovary. - Eram ocupações obrigatórias, trabalho manual! Se, como tantas outras, ela se visse obrigada a ganhar o pão, não teria esses flatos que são o resultado de um monte de ideias que tem metidas na cabeça e da mandriice em que vive.

- No entanto, ela faz alguma coisa - dizia Charles.

- Ah!, faz alguma coisa! E o que é que faz? Lê romances , maus livros que até são contra a religião, em que se faz troça dos padres com citações tiradas de Voltaire. Mas tudo isso leva longe de mais, meu pobre filho, e qualquer pessoa que não tenha religião acaba sempre mal.

Resolveu-se, portanto, impedir que Emma lesse romances. A empresa não parecia nada fácil. Encarregou-se disso a boa senhora: quando passasse em Ruão, iria pessoalmente falar com o alugador dos livros e dizer-lhe que Emma suspendia a sua assinatura. Não haveria o direito de avisar a polícia se o livreiro, mesmo assim, persistisse na sua actividade de envenenador?

As despedidas entre a sogra e a nora foram secas. Durante as três semanas que haviam estado juntas não tinham trocado meia dúzia de palavras, além das informações e cumprimentos quando se encontravam à mesa e à noite, quando se iam deitar.

A mãe do doutor Bovary partiu numa quarta-feira, que era dia de mercado em Yonville.

A praça, desde manhã cedo, estava atulhada com uma enfiada de carroças, todas de varais voltados para u ar, estendendo-se ao longo das casas, desde a igreja até à estalagem. Do outro lado havia barracas de lona unde se vendiam tecidos de algodão, cobertores, meias de lã, juntamente com cabrestos para os cavalos e meadas de fitas azuis, cujas pontas voavam ao vento. Espalhadas nu chão estavam quinquilharias baratas, entre pirâmides de ovos e cestos de queijos, donde saíam palhinhas pegajosas. Ao pé das máquinas de debulhar trigo havia galinhas cacarejando dentro de gaiolas, com o pescoço saído por entre as grades. A multidão, acumulada toda nu mesmo sítio, sem querer arredar pé, às vezes quase arrombava a montra da farmácia. Esta, às quartas-feiras, estava sempre cheia de gente, que ia lá, não tanto para comprar medicamentos, como para se fazer consultar, tão famosa era a reputação do senhor Homais nas aldeias circunvizinhas. A sua aprumada robustez havia fascinado os camponeses.

Consideravam-no melhor médico do que todos os médicos.

Emma tinha-se debruçado à janela (instalava-se ali frequentemente: a janela, na província, substitui os teatros e os passeios) e estava entretida a ver aquela barafunda geral, quando reparou num cavalheiro de sobrecasaca de veludo verde.

Trazia luvas amarelas, apesar de usar grossas polainas, e dirigia-se para casa do médico, seguido por um camponês que caminhava cabisbaixo e com ar pensativo.

- Posso falar com o senhor Doutor? - perguntou ele a Justin, que conversava à porta com Félicité.

E, julgando ser ele o criado da casa:

- Diga-lhe que está aqui o senhor Rodolphe Boulanger de La Huchette.

Não era por vaidade territorial que o recém-chegado acrescentava ao nome a partícula, mas para melhor se dar a conhecer. La Huchette era, com efeito, uma herdade próxima de Yonville, cujo castelo ele acabava de comprar, juntamente com duas quintas que o próprio cultivava sem grande trabalho.

Vivia como rapaz solteiro e passava por ter pelo menos quinze mil libras de rendimento!

Charles entrou na sala. Boulanger apresentou-Lhe o homem, que queria ser sangrado, porque sentia formigueiros pelo corpo todo.

- A sangria vai-me purgar - respondia ele a todos os argumentos.

Bovary mandou então trazer uma ligadura e uma bacia e pediu a Justin que segurasse nela. Depois voltou-se para o camponês, que já estava lívido:

- Não tenha medo, homem!

- Não, não, respondeu o outro, faça lá isso!

E, com ar fanfarrão, estendeu o grosso braço. Com a picada da lanceta, o sangue esguichou e foi sujar o espelho.

- Aproxima a bacia! - exclamou Charles.

- Olha! - dizia o campónio -, parece mesmo uma bica a correr! Tenho o sangue bastante vermelho! Deve ser bom sinal, não?

- Às vezes - comentou o oficial de saúde - não se sente nada no princípio, mas depois a síncope declara-se, especialmente nos indivíduos bem constituídos, como este.

O camponês, ao ouvir estas palavras, largou o estojo que fazia girar entre os dedos. Com um safanão dos ombros fez estalar as costas da cadeira. Deixou cair u chapéu.

- Já calculava isto - disse Buvary, aplicando o dedo sobre a veia.

A bacia começava a tremer nas mãos de Justin; os joelhos vacilaram-lhe e empalideceu.

- A minha mulher! Emma! - chamou Charles.

Ela desceu a escada num pulo.

- Vinagre! - gritou ele. - Oh, meu Deus, dois de uma vez só!

E, na sua atrapalhação, tinha dificuldade em aplicar a compressa.

- Não é nada - dizia calmamente o senhor Boulanger, enquanto amparava Justin com os braços.

E sentou-o em cima da mesa, apoiando-lhe as costas contra a parede.

A senhora Bovary começou logo a tirar-lhe a gravata. Havia um nó nos cordões da camisa; levou uns minutos a remexer com os seus dedos leves no pescoço do rapaz; seguidamente pôs vinagre no seu lenço de cambraia e molhou-lhe as fontes com pequenos toques, soprando-Lhes em cima delicadamente.

O carroceiro voltou a si; mas a síncope de Justin ainda durava e as pupilas desapareciam-lhe na esclerótica descorada como flores azuis dentro de leite.

- Tem de se Lhe esconder isso - disse Charles.

A senhora Bovary pegou na bacia. Para a meter debaixo da mesa, com o movimento que fez ao inclinar-se, o vestido (era um vestido de Verão com quatro folhos, amarelo, de cintura descaída e largo de saia) abriu-se em volta dela, sobre o ladrilho da sala; e, à medida que Emma, abaixada, oscilava um pouco com o afastamento dos braços, o tecido tufado enrugava-se de um ou de outro lado, conforme as inflexões do corpo. Seguidamente foi buscar uma garrafa de água e estava a derreter pedaços de açúcar quando entrou o farmacêutico. A criada fora chamá-lo naquela balbúrdia; ele, encontrando o seu aluno com os olhos abertos, respirou fundo. Depois, girando-lhe em torno, olhava-o de alto a baixo.

- Parvo! - dizia ele. - É mesmo parvinho! Parvo com todas as letras! Olhem que grande coisa, afinal, uma flebotomia! É isto um valentão que não tem medo de nada! Parece um esquilo, o maroto que aí se vê, capaz de trepar a alturas vertiginosas para sacudir as nozes. Vá lá, fala, anda, gaba-te! Eis uma excelente inclinação para exerceres mais tarde a farmácia; é que podes ser chamado, em circunstâncias graves, diante dos tribunais, para esclarecer a consciência dos magistrados; e terás mesmo de manter o sangue frio, raciocinar, mostrar que és um homem, ou então passar por um imbecil!

Justin não respondia. O boticário continuava:

- Quem te mandou cá vir? Estás sempre a importunar estes senhores! Ainda por cima, à quarta-feira, quando a tua presença me é mais necessária. Tenho lá agora vinte pessoas para atender. Deixei tudo por tua causa. Vai, despacha-te!

Corre! Espera lá por mim e toma conta dos frascos!

Quando Justin, depois de ajeitar a roupa, se foi embora, conversaram um pouco sobre desmaios. A senhora Bovary nunca tivera nenhum.

- É extraordinário numa mulher! - disse Boulanger. - Há até pessoas bastante sujeitas a desmaiar. Já vi, por exemplo, num duelo, uma testemunha perder os sentidos só por causa do ruído de carregar as pistolas.

- A mim - disse o boticário -, ver o sangue dos outros não me causa nenhuma impressão; mas só a ideia do meu sangue a correr seria suficiente para me provocar desfalecimentos, se me pusesse a pensar muito nisso.

Entretanto, o senhor Boulanger mandou embora o criado, dizendo que acalmasse o espírito, visto que já lhe fora feita a vontade.

- O que me proporcionou a vantagem de poder conhecê-la - acrescentou.

E fixava Emma enquanto dizia esta frase.

Depois colocou três francos em cima da mesa, despediu-se com indiferença e saiu.

Dali a pouco encontrava-se já do outro lado do rio (era esse o caminho para regressar a La Huchette); Emma avistou-o na pradaria, caminhando debaixo dos choupos, demorando o passo, de vez em quando, como quem reflecte.

“Que simpática que ela é!”, ia ele pensando; “é mesmo simpática, aquela mulher do médico! Lindos dentes, olhos negros, pezinhos delicados e o aspecto distinto de uma parisiense.

Donde diabo terá ela vindo? Onde a terá desencantado aquele grosseirão?”

Rodolphe Boulanger tinha trinta e quatro anos; possuía um temperamento agressivo e uma inteligência perspicaz, além de ter conhecido muitas mulheres, no que se tornara um especialista. Aquela parecera-Lhe bonita; pensava já nela e no marido.

“Ele parece-me muito estúpido. Ela com certeza já se cansou de o aturar. Ele traz as unhas encardidas e uma barba de três dias. Enquanto sai a cavalo para tratar dos doentes, fica ela em casa a passajar as meias. Com certeza que se aborrece, lhe dá vontade de viver na cidade, dançar a polca todas as noites!

Pobrezita da mulher! Aposto que anseia pelo amor como uma carpa pela água em cima da mesa da cozinha! Com três palavras de galanteio, tenho a certeza de que até me adorava! Seria uma delícia! Que encanto!... Pois é, mas depois, como é que me vou ver livre dela?”

Então os obstáculos ao prazer, entrevistos em perspectiva, fizeram-no, por contraste, pensar na amante. Era uma actriz de Ruão, que ele tinha por sua conta; e, quando se deteve na imagem dela, da qual, até em pensamento, se sentia saciado, pensou:

“Ah! A mulher do médico é muito mais bonita do que ela, sobretudo mais fresca. Virginie já começa mesmo a ficar gorda demais. É tão enfadonha com as suas alegrias! E, além disso, que mania aquela dos camarões!”

O campo estava deserto e Rodolphe nada ouvia à sua volta senão o bater regular da erva de encontro às botas, juntamente com o estrilar dos grilos escondidos, ao longe, nos campos de aveia; revia Emma na sala, vestida como a tinha visto, e pôs-se a despi-la mentalmente.

“Há-de ser mínha!”, exclamou, ao mesmo tempo que esmagava, com uma bengalada, um torrão de terra na sua frente.

Começou logo a examinar a parte prática do empreendimento.

Perguntou a si mesmo:

“Onde é que nos vamos encontrar? Como é que há-de ser? Terá sempre a fedelha atrás dela, e a criada, os vizinhos, o marido, toda uma série de consideráveis complicações. Que maçada!”, dízía ele, “com tudo isso perde-se tempo de mais!”

Mas depois voltava a considerar:

“É que ela tem uns olhos que penetram no coração como verrumas. E aquela cor pálida!... Eu, que adoro as mulheres pálidas!”

Quando chegou ao alto da encosta de Argueil, tinha a sua resolução tomada.

“É só uma questão de procurar as ocasiões. Pois bem, passarei por lá de vez em quando, vou-lhes mandar umas peças de caça, umas aves; faço-me sangrar, se for preciso; ficaremos amigos, hei-de convidá-los para minha casa... Ah!, é verdade!, vêm aí agora os comícios; ela vai aparecer e eu vou vê-la.

Vamos começar, e ousadamente, que é o mais seguro.


VIII

Chegaram, efectivamente, os tais famosos comícios! No dia da solenidade, desde manhã que todos os habitantes conversavam, às portas, a respeito dos preparativos; tinham engrinaldado de heras a frontaria da Câmara; no meio de um prado fora montada uma tenda para o festejo e, ao centro da praça, diante da igreja, uma espécie de bombarda devia assinalar a chegada do prefeito e o nome dos lavradores premiados. A guarda nacional de Buchy (que não havia em Yonville) viera juntar-se à corporação dos bombeiros, de que Binet era o comandante. Naquele dia pusera um colarinho ainda mais alto do que era costume; e, apertado na sua farda, tinha o tronco tão rígido e imóvel que toda a parte vital do corpo parecia ter-Lhe descido para as pernas, que se erguiam em cadência, marcando o passo com um só movimento. Como havia certa rivalidade entre o tesoureiro e o coronel, um e outro, querendo mostrar os respectivos talentos, faziam manobrar separadamente os seus homens. Viam-se passar e voltar a passar, alternadamente, as dragonas vermelhas e os peitilhos pretos. A coisa não parava e voltava sempre ao princípio.

Nunca ali se vira tamanha exibição de pompa! Muitos moradores tinham lavado as fachadas das casas desde a véspera; pendiam bandeiras nacionais das janelas entreabertas; todas as tabernas estavam apinhadas; e, com o lindo tempo que fazia, as toucas engomadas pareciam mais brancas do que a neve, as cruzes de ouro rebrilhavam ao sol esplêndido e os lenços de cor quebravam, com a sua mescla colorida, a escura monotonia das sobrecasacas e dos blusões azuis. As camponesas dos arredores, apeando-se dos cavalos, despregavam o grande alfinete que lhes segurava o vestido levantado em volta do corpo para evitar as nódoas; e os maridos, por sua vez, para poupar os chapéus, cobriam-nos com os lenços, dos quais seguravam uma ponta entre os dedos. O povo afluía à rua principal por ambos os extremos da vila. Saía dos becos, das travessas, das casas, e ouvia-se de vez em quando o cair das aldrabas atrás das mulheres, que, de luvas de algodão, fechavam as portas para ir ver a festa. O que mais se admirava eram duas longas armações de madeira cobertas de balões, que flanqueavam um estrado onde iam ficar as autoridades; e havia ainda, ao pé das quatro colunas da Câmara, quatro paus, à maneira de mastros, arvorando cada um o seu pequeno estandarte de tecido esverdeado, com inscrições bordadas a ouro. Num deles lia-se: Comércio; noutro: Agricultura; no terceiro:

Indústria; e no quarto: Belas-Artes.

Mas o júbilo que alegrava todos os rostos parecia entristecer a estalajadeira Lefrançois. De pé, sobre os degraus da cozinha, murmurava consigo mesma:

“Que estupidez! Que estupidez aquela barraca de pano! Pensam eles que o prefeito se vai sentir bem a jantar ali, debaixo de uma tenda, como se fosse um saltimbanco? E chamam a estas trapalhadas zelar pelos interesses da terra! Para isso não valia a pena terem ido buscar um tasqueiro a Neufchâtel! E para quem? Para vaqueiros, para gente de pé descalço!...”

Ia a passar o boticário. Levava uma casáca preta, calças amarelas de nanquim, sapatos de castor e, excepcionalmente, um chapéu - um chapéu baixo.

- Um seu criado! - disse ele. - Desculpe-me, estou com muita pressa.

E, como a corpulenta viúva lhe perguntasse aonde ia:

- Parece-Lhe estranho, não é? Eu, que fico sempre mais encafuado no meu laboratório do que um rato no queijo.

- Qual queijo?

- Não, nada! Não é nada! - continuou Homais. - Só queria dizer com isto, senhora Lefrançois, que costumo ficar sempre fechado em casa. Hoje, no entanto, dadas as circunstâncias, tenho mesmo de...

- Ah!, também lá vai? - perguntou ela com ar desdenhoso.

- Sim, vou - respondeu, admirado, o boticário. - Então não faço parte da comissão consultiva?

A Tia Lefrançois fixou-o durante alguns minutos e acabou por lhe responder a sorrir:

- Isso é outra coisa! Mas o que tem a agricultura a ver consigo? Então também entende disso?

- Pois está claro que entendo, visto que sou farmacêutico, quer dizer, químico! E a química, senhora Lefrançois, tendo por objecto o conhecimento da acção recíproca e molecular de todos os corpos da natureza, segue-se que a agricultura está compreendida no seu domínio! E, com efeito, a composição dos adubos, a fermentação dos líquidos, a análise dos gases e a influência dos miasmas, o que é tudo isso, pergunto, senão química — pura e simples?

A estalajadeira nada retorquiu. Homais continuou:

- Acha que para se ser agrónomo é preciso ter lavrado a terra ou criado galinhas? O que é preciso conhecer é a constituição das substâncias de que se trata, os jazigos geológicos, as acções atmosféricas, a qualidade dos terrenos, dos minerais, das águas, a densidade dos diferentes corpos e a sua capilaridade, que sei eu? E é preciso dominar a fundo todos os princípios da higiene, para dirigir, criticar a construção dos edifícios, o regime dos animais, a alimentação dos criados! É preciso ainda, senhora Lefrançois, conhecer a botânica; saber diferençar as plantas, compreende?, para ver quais são as salutares e as deletérias, quais são as improdutivas e as nutritivas, se é melhor arrancá-las de um lado e plantá-las no outro, disseminar umas e destruir outras; em resumo, é preciso estar sempre em dia com a ciência, lendo livros e outras publicações, sempre na expectativa, a fim de poder indicar os melhoramentos...

A estalajadeira não tirava os olhos da porta do Café Francês, enquanto o farmacêutico continuava:

- Prouvera a Deus que os nossos agricultores fossem químicos, ou que, pelo menos, escutassem mais os conselhos da ciência! Eu, por exemplo, escrevi recentemente um volumoso opúsculo, uma memória de mais de setenta e duas páginas, intitulada: Da Sidra, do Seu fabrico e dos Seus Efeitos;

Seguida de Algumas Reflexões Novas sobre o Assunto, que enviei à Sociedade Agronómica de Ruão; o que me valeu a honra de ser admitido entre os seus membros, secção de agricultura, classe de pomologia; pois bem, se a minha obra fosse dada à publicidade...

Mas aqui deteve-se o boticário, tão preocupada Lhe parecia a senhora Lefrançois.

- Ora vejam lá aquilo! - dizia ela. — Nem se chega a perceber! Uma baiuca daquelas!

E, levantando os ombros de um jeito que Lhe fazia estirar no peito as malhas da camisola, apontava com as duas mãos a taberna do seu rival, onde agora se ouviam cantigas.

- Demais a mais, já não lhe resta muito tempo - acrescentou ela. - Em menos de oito dias está tudo acabado.

Homais recuou estupefacto. A estalajadeira desceu os três degraus e, segredando-lhe ao ouvido, disse:

- Como! Então não sabia? Vão-Lhe levantar uma penhora esta semana. É o Lheureux que o vai obrigar a liquidar tudo.

Afundou-o com letras.

- Mas que pavorosa catástrofe! - exclamou o boticário, que tinha sempre expressões adaptadas a todas as situações imagináveis.

A hospedeira pôs-se então a contar-lhe aquela história, que ela sabia por Théodore, o criado do senhor Guillaumin, e, embora detestasse Tellier, censurava Lhereux, que era um aliciador, um servil.

- Olhe!, lá está ele, no mercado, a cumprimentar a senhora Bovary; que vai de chapéu verde. E ela até vai de braço dado com o senhor Boulanger.

- A senhora Bovary! - exclamou Homais. - Deixe-me ir já apresentar-lhe as minhas homenagens. Talvez gostasse de ter um lugar no recinto, debaixo das colunas.

E, sem escutar sequer a tia Lefrançois, que o chamava para lhe contar mais coisas, o farmacêutico afastou-se, de sorriso nos lábios e perna esticada, distribuindo cumprimentos á esquerda e à direita, ocupando muito espaço com as grandes abas da casaca preta, que flutuavam ao vento atrás dele.

Rodolphe, tendo-o avistado de longe, apressara o passo; mas a senhora Bovary sentiu faltar-lhe o fôlego; ele reduziu então o andamento e disselhe a sorrir, sem qualquer delicadeza:

- Foi para evitar aquele grosseirão, sabe?, o boticário.

Emma deu-Lhe um toque com o cotovelo.

“Que quererá dizer isto?”, perguntou a si mesmo.

E espreitou-a de soslaio, continuando sempre a andar.

O perfil dela estava tão sereno, que nada deixava adivinhar.

Destacava-se em plena luz, no oval do seu chapéu, cujas fitas de cor desmaiada lembravam folhas de funcho. Os olhos, de pestanas compridas e arqueadas, olhavam bem em frente e, conquanto fossem bem abertos, pareciam um pouco repuxados para as maçãs do rosto devido ao sangue, que Lhe pulsava suavemente debaixo da pele fina. Um tom rosado atravessava-lhe o septo do nariz. Levava a cabeça ligeiramente inclinada para o ombro e via-se-lhe entre os lábios a ponta dos dentes alVOS.

“Estará a troçar de mim?”, pensava Rodolphe.

Aquele gesto de Emma fora afinal um simples aviso; porque o senhor Lheureux os acompanhava, dirigindo-lhes de vez em quando algumas palavras, procurando entabular uma conversação:

- Está um dia magnífico! Toda a gente na rua! O vento sopra do nascente.

Nem Emma nem Rodolphe lhe alimentavam a conversa, enquanto Lheureux, ao mínimo movimento deles, se aproximava e, levando a mão ao chapéu, dizia: “Se vos agrada a companhia...”

Quando chegaram defronte da casa do ferrador, em vez de seguir pelo caminho até à cancela, Rodolphe tomou bruscamente por um atalho, arrastando consigo a senhora Bovary, e exclamou:

- Boa tarde, senhor Lheureux! Muito obrigado!

- A maneira como o despediu! - disse ela, rindo-se.

- Porque é que nos havemos de deixar invadir pelos outros? - continuou ele. - E, uma vez que tenho hoje a felicidade de estar consigo...

Emma corou. Ele não terminou a frase. Falou então do bom tempo e do prazer de caminhar sobre a erva. Algumas margaridas haviam voltado a florir.

- Veja que lindos malmequeres! - disse ele. - Suficientes para fornecer muitos oráculos a todas as apaixonadas cá do sítio.

E acrescentou:

- Se eu apanhasse alguns. Que acha?

- Você está apaixonado? - disse ela, tossindo um pouco.

- Ora, quem sabe? - respondeu Rodolphe.

O prado começava a encher-se e as mães de família davam encontrões com os seus grandes guarda-chuvas, os cestos e os pimpolhos. Muitas vezes tinham de se afastar para deixar passar uma longa fila de aldeãs, criadas de meias azuis, sapatos rasos, anéis de prata e cheirando a leite quando se passava perto delas. Caminhavam todas de mãos dadas, ocupando assim toda a extensão do prado, desde a linha dos álamos até à tenda do banquete. Mas era o momento do exame, e os lavradores, uns atrás dos outros, iam entrando numa espécie de hipódromo formado por uma longa corda suportada por estacas.

Os animais ali estavam, com as ventas voltadas para a corda, alinhando confusamente as suas ancas desiguais. Porcos entorpecidos enterravam o focinho no chão; vitelos mugiam; ovelhas balavam, as vacas, com um jarrete dobrado, estendiam o ventre em cima da relva e, ruminando lentamente, piscavam as pesadas pálpebras, evitando os moscardos que zumbiam em torno delas. Alguns carroceiros, de braços nus, seguravam pelo cabresto garanhões que se empinavam e relinchavam, arreganhando o focinho para o lado das éguas. Estas mantinham-se sossegadas, de cabeça estendida e crina pendente, enquanto os poldros descansavam à sua sombra, ou se punham a mamar de vez em quando; e, por cima da longa ondulação de todos aqueles corpos amontoados, via-se alguma crina branca erguer-se, como uma vaga sacudida pelo vento, ou sobressaírem pontas de chavelhos e cabeças de homens a correr. Fora das estacas , uns cem passos afastado, estava um grande touro preto, amarrado pelo focinho, com uma argola de ferro enfiada nas ventas, imóvel como se fosse de bronze. Segurava-o pela corda um garoto esfarrapado.

Entretanto avançavam pelo meio das duas filas uns senhores que, com passo vagaroso, iam examinando cada animal e depois se consultavam uns aos outros em voz baixa. Um deles , que parecia mais importante, ia tomando notas num caderno enquanto andava. Era o presidente do júri: o senhor Derozerays de La Panville. Assim que reconheceu Rodolphe, avançou rapidamente para ele e disselhe, sorrindo com um ar amável:

- Com que então, senhor Boulanger, assim nos abandona?

Rodolphe respondeu que já lá ia. Mas, logo que o presidente desapareceu, acrescentou:

- Não, palavra de honra que não vou; para mim, a sua companhia vale mais do que a deles.

E, mesmo a fazer troça dos comícios, Rodolphe, para circular mais à vontade, ia mostrando ao polícia o seu cartão azul e parava, uma vez por outra, diante de um belo exemplar, que a senhora Bovary não apreciava nada. Dando-se conta disso, pôs-se então a dizer piadas a propósito das damas de Yonville e da sua toilette; depois desculpou-se pela maneira como ele próprio estava vestido. O seu trajo tinha a incoerência das coisas comuns e rebuscadas, onde a pessoa vulgar crê geralmente entrever a revelação de uma existência excêntrica, as desordens do sentimento, as tiranias da arte e sempre um certo desprezo pelas convenções sociais, o que a seduz ou exaspera. Assim, a camisa de cambraia com punhos pregueados tufava-se com o vento, na abertura do colete, que era de cotim cinzento, e as calças de risca larga descobriam-lhe nos tornozelos os botins de duraque gaspeados de cabedal envernizado. Brilhavam tanto que até reflectiam a erva. E pisava com eles o estrume dos cavalos, com uma mão enfiada no bolso do casaco e o chapéu de palha posto de banda.

- Aliás - acrescentou ele -, quando se vive no campo...

- Todos os cuidados com o vestir são tempo perdido - atalhou Emma.

- É verdade! - replicou Rodolphe. - Basta pensar que nem uma só destas pobres criaturas é capaz de compreender sequer o que seja um fato bem talhado!

Falaram então da mediocridade provinciana, das existências que ela sufocava e das ilusões que nela se desfaziam.

- É por isso - dizia Rodolphe - que me deixo afundar numa tristeza...

- O senhor! - exclamou ela com espanto. - Mas eu julguei que fosse muito alegre?!

- Ah, sim, aparentemente, porque na presença das pessoas sei afivelar uma máscara de brincalhão; e, no entanto, quantas vezes, à vista de um cemitério, à luz da Lua, não tenho perguntado a mim mesmo se não seria melhor ir-me juntar àqueles que estarão a dormir...

- Ora! E os seus amigos? - disse ela. - Não pensa neles?

- Meus amigos? Quais amigos? Tenho porventura alguns?

Alguém que se preocupe comigo?

E acentuou estas últimas palavras com uma espécie de sibilar dos lábios.

Mas foram obrigados a afastar-se um do outro, por causa de uma enorme pilha de cadeiras que um homem transportava atrás deles. Vinha tão carregado que se lhe avistava apenas a ponta dos tamancos e a extremidade dos dois braços, bem abertos. Era Lestiboudois, o coveiro, que carregava, por entre a multidão, as cadeiras da igreja. Sempre cheio de imaginação para tudo o que dissesse respeito aos seus interesses, descobrira este meio de tirar partido dos comícios; e a ideia dava resultado, porque já nem sabia a quem havia de atender. Efectivamente, os aldeões, cheios de calor, disputavam aqueles assentos, cuja palha cheirava a incenso, e encostavam-se aos seus grandes espaldares, sujos da cera dos círios, com uma certa veneração.

A senhora Bovary retomou o braço de Rodolphe; este continuou, como se estivesse falando para si próprio:

- Sim!, faltou-me tanta coisa! Sempre só! Ah!, se eu tivesse tido um objectivo na minha vida, se houvesse encontrado uma afeição, se tivesse achado alguém... Oh!, como teria utilizado toda a energia de que sou capaz, como teria suplantado tudo, vencido tudo!

- No entanto, a minha impressão - replicou Emma - é a de que não tem muito de que se queixar.

- Acha isso? - disse Rodolphe.

- Porque, enfim... - prosseguiu ela -, o senhor livre.

E acrescentou, depois de hesitar:

- Rico.

- Não faça pouco de mim - respondeu Rodolphe.

E, quando ela jurava que não estava a divertir-se à custa dele, ouviu-se um tiro de canhão; no mesmo instante, as pessoas começaram a correr, em confusão, para a vila.

Fora um alerta falso. O prefeito não chegara ainda; e os membros do júri encontravam-se em grande embaraço, sem saber se haviam de começar a cerimónia ou continuar à espera.

Finalmente, ao fundo da praça, apareceu uma grande carruagem de aluguer, tirada por dois cavalos magros, fustigados, ora de um lado ora do outro, por um cocheiro de chapéu branco. Binet só teve tempo de gritar: Às armas!”, e o coronel de o imitar.

Todos correram para os sarilhos. Na precipitação, alguns até se esqueciam dos colarinhos. Mas a equipagem prefeitoral pareceu adivinhar o embaraço e a parelha das pilecas, bamboleando-se sobre a atrelagem, chegou a trote curto à frente do vestíbulo da Câmara, precisamente no momento em que a guarda nacional e os bombeiros ali formavam, rufando os tambores e marcando passo.

- Levantem bem os braços e os joelhos! - gritou Binet.

- Alto! - gritou o coronel. - pela esquerda, perfilar!

E, depois de um manejo de espingardas, em que o retinir das braçadeiras, chocalhando, soou como se uma panela de cobre caísse por uma escada aos trambolhões, todas as armas voltaram a descansar.

Viu-se então descer da carruagem um senhor vestido de casaca curta, com bordados de prata, calvo na frente, com um estranho topete na nuca, de rosto macilento e um ar de bonacheirão. Os olhos, bastante salientes e cobertos por umas pálpebras espessas, semicerravam-se para observar a multidão, ao mesmo tempo que levantava o nariz arrebitado e sorria com a boca recolhida. Reconheceu o administrador pela faixa e expôs-lhe que o senhor perfeito não pudera vir. Ele era um conselheiro da prefeitura; depois acrescentou algumas desculpas. Tuvache respondeu-lhe com muitas demonstrações de cortesia e o outro confessou-se confundido; e assim ficaram, frente a frente, quase testa com testa, com os membros do júri todos em roda, o conselho municipal, as pessoas mais importantes, a guarda nacional e o povo. O conselheiro, encostando ao peito o seu pequeno tricórnio preto, reiterava os cumprimentos, enquanto Tuvache, curtado em arco, sorria também, gaguejava, procurava as frases, reafirmava a sua devoção à monarquia e assinalava a honra que era feita a Yonville.

Hippolyte, o moço da estalagem, recebeu os cavalos do cocheiro e, coxeando do seu pé boto, levou-os pelas rédeas para o alpendre do Leão de Ouro, onde se juntaram muitos camponeses a admirar a carruagem. Rufou o tambor, o obus troou e todos os senhores, em fila, subiram ao estrado, onde tomaram lugar nas poltronas de veludo vermelho, emprestadas pela senhora Tuvache.

Toda aquela gente se assemelhava. As deslavadas fisionomias louras, um pouco tisnadas pelo sol, tinham a cor da sidra doce e as suíças entufadas saíam dos grandes colarinhos engomados, apertados por gravatas brancas com enormes nós. Todos os coletes eram de veludo e cruzados; todos os relógios tinham, na extremidade de uma comprida fita, um sinete oval, de cornalina; e todos apoiavam as duas mãos sobre as duas coxas, afastando cuidadosamente as pernas, mostrando o tecido das calças, que, por não ter sido deslustrado, brilhava mais do que o couro das botas grossas.

As damas da sociedade ficavam atrás, no vestíbulo, entre as colunas, enquanto a maioria do povo estava na frente, de pé, ou então sentado em cadeiras. Efectivamente, Lestiboudois levara para lá todas as que retirara do prado e continuava a ir, de minuto a minuto, buscar mais algumas à igreja, causando tal atravancamento com o seu negócio, que se tinha muita dificuldade em chegar até à pequena escada do estrado.

- Eu acho - disse Lheureux (dirigindo-se ao farmacêutico, que passava para ocupar o seu lugar) - que se deviam ter levantado ali dois mastros venezianos, que qualquer coisa diferente, mais séria e mais rica. Teriam produzido um bonito efeito.

- Era mesmo - respondeu Homais. - Mas que quer? Foi o administrador que tomou tudo à sua conta. O pobre Tuvache não tem lá grande gosto e é mesmo destituído de tudo o que seja o espírito das artes.

Entretanto, Rodolphe subira, com a senhora Bovary, ao primeiro andar da Câmara, entrara na sala das sessões e, como esta se encontrasse vazia, resolvera que ali estariam muito bem, a gozar o espectáculo mais à vontade. Foi buscar três banquinhos, dos que circundavam a mesa oval onde se encontrava o busto do monarca, e, chegando-os para junto de uma janela, sentaram-se um ao pé do outro.

Houve uma agitação em cima do estrado, um longo cochichar e muitos colóquios. Finalmente, o conselheiro levantou-se.

Sabia-se agora que se chamava Lieuvain, e o nome ia correndo no meio da multidão, de boca em boca. Depois de ter consultado algumas folhas, aproximando-as bem dos olhos para ver melhor, começou:

 

Meus Senhores:

Seja-me permitido, em primeiro lugar (antes de vos falar do motivo desta reunião de hoje e este sentimento, estou certo disso, será partilhado por todos vós), seja-me permitido, dizia eu, fazer justiça à administração superior, ao governo, ao monarca, meus senhores, ao nosso soberano, a esse querido rei a quem nenhum ramo da prosperidade pública ou privada é indiferente e que dirige com uma mão ao mesmo tempo tão forte e tão prudente o carro do Estado por entre os incessantes perigos de um mar tempestuoso, sabendo, além disso, respeitar a paz como a guerra, a indústria, o comércio, a agricultura e as belas-artes.

- Eu devia - disse Rodolphe - chegar-me um pouco para trás.

- Porquê? - perguntou Emma.

Mas, nesse momento a voz do conselheiro elevou-se num tom extraordinário. Ele declamava:

Já lá vai o tempo, meus senhores, em que a discórdia civil ensanguentava as nossas praças públicas, em que o proprietário, o comerciante, o próprio operário, adormecendo pacificamente à noite, tremiam quando, repentinamente, eram acordados com o barulho dos alarmes incendiários, em que as máximas mais subversivas minavam audaciosamente as bases...

- É que podem - continuou Rodolphe - avistar-me lá de baixo; depois teria de apresentar desculpas durante quinze dias, e, com a minha má reputação...

- Oh! Está-se caluniando a si mesmo - disse Emma.

- Não, não estou, ela é execrável, juro-lhe.

Mas, meus senhores, prosseguia o conselheiro, se afastar da minha memória esses quadros sombrios e voltar os olhos para a situação actual da nossa bela pátria, que vejo eu? Por todo o lado florescem o comércio e as artes; por toda a parte, novas vias de comunicação, como outras tantas novas artérias no corpo do Estado, nele estabelecem novas relações; os nossos grandes centros industriais retomaram a sua actividade; a religião, mais fortalecida, sorri a todos os corações; os nossos portos estão cheios, a confiança renasce e, enfim, a França respira!..., - Aliás - acrescentou Rodolphe -, do ponto de vista das pessoas, quem sabe se não terão razão?

- Mas como? - disse ela.

- Então não sabe - insistiu ele - que há almas continuamente atormentadas? Têm alternadamente necessidade de sonho e de acção, das paixões mais puras, dos gozos mais violentos, e por isso se lançam em toda a espécie de fantasias, de loucuras.

Ela então fitou-o como se olha para um viajante que andou por terras extraordinárias e prosseguiu:

- Nós, pobres mulheres, nem sequer temos essa distracção!

- Triste distracção, porque nela não se encontra a felicidade.

- E alguma vez ela se encontra? - perguntou Emma.

- Sim, um dia encontra-se - respondeu ele.

“E foi isso que vós compreendestes”, dizia o conselheiro.

“Vós, agricultores e trabalhadores dos campos; vós, pacíficos pioneiros de toda uma obra de civilização! Vós, homens de progresso e de moralidade! Vós compreendestes, dizia eu, que as tempestades políticas são ainda mais temíveis, na realidade, do que as desordens da atmosfera...”

- Encontra-se um dia - repetiu Rodolphe -, um dia, de repente e quando já não se tem esperança. Então abrem-se os horizontes, é como que uma voz que grita: “Aí está ela!”

Sente-se necessidade de fazer àquela pessoa a confidência da nossa vida, dar-lhe tudo, sacrificar-Lhe tudo! Não há que dar explicações, tudo se adivinha. Já nos conhecíamos nos nossos sonhos. (E olhava para ela.) Enfim, está ali o tesouro que tanto procurávamos, ali, diante de nós; ele brilha, resplandece. No entanto, ainda duvidamos, não temos coragem para acreditar; ficamos deslumbrados, como se tivéssemos saído da escuridão para a plena luz.

E, a rematar estas palavras, Rodolphe acrescentou a pantomina à sua frase. Passou a mão pelo rosto, como quem se sente atordoado; depois deixou-a cair sobre a de Emma. Esta retirou a sua. Mas o conselheiro continuava a leitura do discurso:

“E quem poderia admirar-se de que assim acontecesse, meus senhores? Unicamente quem fosse suficientemente cego, suficientemente mergulhado (não receio dizê-lo), suficientemente mergulhado nos preconceitos de uma outra época, para desconhecer ainda o espírito das populações agrícolas. Onde, efectivamente, se poderá encontrar mais patriotismo do que nos campos, mais dedicação à causa pública, numa palavra, mais inteligência? E não me quero referir, meus senhores, àquela inteligência superficial, vão ornamento dos espíritos ociosos, mas antes a essa inteligência profunda e moderada que se dedica, acima de tudo, a alcançar objectivos úteis, contribuindo assim para o bem de cada indivíduo, para o melhoramento comum e para a protecção dos Estados, fruto do respeito pelas leis e da prática dos deveres...”

- Ainda mais esta! - disse Rodolphe. - Sempre os deveres, estou cansado de ouvir aquelas palavras. São uma data de veLhos caturras de colete de flanela e de beatas de escalfeta e rosário na mão, repetindo-nos sempre a mesma cantilena aos ouvidos: “O dever! O dever!” Caramba! O dever é sentir aquilo que é grande, amar o que é belo e não aceitar todas as convenções da sociedade, com as ignomínias que ela nos impõe.

- No entanto..., no entanto... - objectava a senhora Bovary.

- Oh, não! Porque se há-de declamar contra as paixões? Não são elas a única coisa bela que existe na Terra, a fonte do heroísmo, do entusiasmo, da poesia, da música, das artes, enfim, de tudo?

- Mas é necessário - disse Emma - seguir um pouco a opinião da sociedade e obedecer à sua moral.

- Ah!, mas é que existem duas - replicou ele. - a mesquinha, a convencional, a dos homens, a que varia constantemente e berra tão alto que se agita no chão, terra a terra, como esta assembleia de imbecis que está a ver. Mas a outra, a eterna, essa circunda tudo e está acima de tudo, como a paisagem que nos rodeia e o céu que nos ilumina.

O senhor Lieuvain, que acabava de limpar a boca com o lenço de bolso, continuou:

“Que necessidade teria eu, meus senhores, de vos demonstrar aqui a utilidade da agricultura? Quem é então que provê às nossas necessidades? Quem fornece a nossa subsistência? Não será o agricultor? O agricultor, meus senhores, que, semeando com mão laboriosa os sulcos fecundos dos campos, faz nascer o trigo, que, moído, se torna em pó por meio de engenhosos aparelhos, tomando o nome de farinha, e que, transportado para as cidades, logo chega à loja do padeiro, o qual com ele confecciona um alimento que se destina tanto aos pobres como aos ricos. Não é ainda o agricultor quem, para o nosso vestuário, cria nos pastos os seus numerosos rebanhos? Como nos vestiríamos nós e como nos alimentaríamos sem o agricultor? E será mesmo necessário, meus senhores, procurar exemplos tão longe? Quem não reflectiu frequentemente na ornamento das nossas capoeiras, que fornece, simultaneamente, uma macia almofada para as nossas camas, a sua carne suculenta para as nossas mesas e ainda os ovos? Mas não chegaríamos ao fim se fosse preciso enumerar, um após outro, todos os produtos que a terra bem cultivada, qual mãe generosa, distribui prodigamente pelos seus filhos. Aqui é a vinha; além são as macieiras para a sidra; ali, a colza; noutro lado os queijos; e o linho, meus senhores, não esqueçamos o linho, que nestes últimos anos teve um desenvolvimento considerável e para o qual chamarei mais particularmente a vossa atenção.”

Não tinha necessidade de a chamar: naquela multidão, todas as bocas estavam abertas, como que para lhe beber as palavras.

Tuvache, ao lado dele, escutava-o franzindo os olhos;

Derozerays, de vez em quando, fechava as pálpebras devagarinho; e, mais longe, o farmacêutico, com o filho Napoléon encostado aos joelhos, punha a mão em concha no ouvido, para não perder uma única sílaba. Os outros membros do júri oscilavam lentamente com o queixo na direcção do colete, em sinal de aprovação. Os bombeiros, na base do estrado, descansavam apoiando-se nas baionetas; e Binet, imóvel, continuava de cotovelo levantado, com a ponta do sabre voltada para o ar. Ouvia, talvez, mas não devia ver nada, por causa da pala do capacete que lhe descia até ao nariz. O seu ajudante, o filho mais novo do senhor Tuvache, ainda exagerara mais com o capacete, que era enorme e lhe oscilava em cima da cabeça, deixando ver de fora uma ponta do lenço de chita. Sorria lá debaixo com uma ternura muito infantil e o seu pequeno rosto pálido, onde corria o suor, tinha uma expressão de prazer, de fadiga e de sono.

A praça estava apinhada de gente até ao pé das casas.

Viam-se pessoas em todas as janelas, outras de pé a todas as portas e Justin, diante da montra da farmácia, parecia todo absorvido na contemplação do que via. Apesar do silêncio, a voz de Lieuvain perdia-se no ar. Chegava apenas como retalhos de frases, de vez em quando interrompidas pelo ruído das cadeiras na multidão; depois ouvia-se, subitamente, vir mesmo ali de trás um longo mugido de vaca, ou então os balidos dos borregos, que, às esquinas das ruas, respondiam uns aos outros. De facto, os vaqueiros e os pastores tinham levado até ali os seus animais, que de vez em quando berravam, enquanto iam arrancando com a língua algum resto de folhagem que lhe pendesse do focinho.

Rodolphe aproximara-se mais de Emma e dizia-Lhe em voz baixa, falando rapidamente:

- Não se sente revoltada contra esta conjuração da sociedade? Existirá um único sentimento que ela não condene?

Os instintos mais nobres, as simpatias mais puras, são perseguidos, caluniados, e, se, afinal, duas pobres almas se encontram, tudo está organizado de maneira que não se possam juntar. Tentarão, apesar de tudo, agitarão as asas e chamar-se-ão uma à outra. Seja como for, mais cedo ou mais tarde, ao cabo de seis meses, ou de dez anos, reunir-se-ão, amar-se-ão por que a fatalidade o exige e nasceram uma para a outra.

Mantinha-se de braços cruzados sobre os joelhos e, erguendo o rosto para Emma, olhava-a de perto, fixamente. Èla distinguia-Lhe nos olhos pequenos raios dourados em torno das pupilas negras e sentia até o perfume da pomada que lhe fazia brilhar a cabeleira. Então apoderou-se dela uma espécie de languidez, lembrou-se do Visconde, com quem valsara em Vaubyessard e cuja barba exalava, como aqueles cabelos, o mesmo perfume de baunilha e limão, e, maquinalmente, semicerrou as pálpebras para melhor o aspirar. Mas, com o gesto que fez ao endireitar-se na cadeira, avistou ao longe, mesmo no horizonte, a velha diligência Andorinha, que descia vagarosamente a encosta de Leux, arrastando atrás de si uma comprida nuvem de pó. Naquele veículo amarelo voltara Léon, tantas vezes, para ela; e por aquela mesma estrada tinha ele partido para sempre!

Imaginou vê-lo à janela, na sua frente; depois tudo se confundiu, passaram nuvens; pareceu-lhe rodopiar ainda na valsa, à luz dos lustres, nos braços do Visconde, e que Léon não estava longe, que voltaria... e, contudo, continuava a sentir a cabeça de Rodolphe ali ao lado. A doçura desta sensação penetrava assim os desejos de outrora, que, como grãos de areia ao sopro do vento, Lhe giravam em turbilhão no subtil arrebatamento do perfume que lhe invadia a alma.

Dilatou várias vezes as narinas, fortemente, para aspirar a frescura da hera que cingia os capitéis. Tirou as luvas e enxugou as mãos; depois começou a abanar o lenço para refrescar o rosto, enquanto, por entre o latejar das fontes, ouviu o rumor da multidão e a voz do conselheiro salmodiando as suas frases. Dizia ele:

“Continuai! Perseverai! Não escuteis nem as sugestões da rotina, nem os conselhos demasiado apressados de um empirismo temerário! Aplicai-vos sobretudo a melhorar o solo com bons adubos, a desenvolver as raças equídeas, bovinas, ovinas e porcinas! Que estes comícios sejam para vós uma espécie de arena pacífica onde o vencedor, no final, estenderá a mão ao vencido e confraternizará com ele, animando-o na esperança de maior êxito! E vós, veneráveis servidores, humildes criados, de quem, até hoje, nenhum governo havia tomado em consideração os penosos trabalhos, vinde receber a recompensa das vossas silenciosas virtudes e convencei-vos de que o Estado, de agora em diante, tem os olhos postos em vós, que ele vos anima, que ele vos protege, que honrará as vossas justas reclamações e aliviará, tanto quanto esteja ao seu alcance, o fardo dos vossos penosos sacrifícios!”

O senhor Lieuvain tornou então a sentar-se. Levantou-se o senhor Derozerays e começou outro discurso. Este não foi talvez tão floreado como o do conselheiro, mas tinha a recomendá-lo um carácter de estilo mais positivo, quer dizer, com conhecimentos mais específicos e considerações mais exactas. Por exemplo, perdeu menos tempo a elogiar o governo;

alargou-se mais sobre a religião e a agricultura. Estabeleceu a relação entre uma e outra, mostrando como ambas haviam sempre concorrido para a civilização. Rodolphe e a senhora Bovary conversavam sobre sonhos, pressentimentos, magnetismo.

Remontando ao berço das sociedades, descrevia o orador esses tempos selvagens em que os homens se alimentavam de bolotas, no interior dos bosques. Depois deixaram as peles dos animais, vestiram-se de pano, abriram sulcos na terra, plantaram vinhas. Teria sido isto um bem e não haveria nesta descoberta mais inconvenientes do que vantagens? Derozerays punha o problema à consideração. Do magnetismo passara Rodolphe, a pouco e pouco, para as afinidades e, enquanto o senhor Presidente citava Cincinato lavrando com o seu arado, Diocleciano plantando as suas couves e os imperadores da China inaugurando o ano com sementeiras, o rapaz explicava a Emma que aquelas irresistíveis atracções tinham origem nalguma existência anterior.

- Por exemplo, nós - dizia ele -, por que razão nos conhecemos? Que acaso o permitiu? Foi, sem dúvida nenhuma, porque, através da separação, como dois rios que correm para se encontrar, os nossos declives particulares nos haviam impelido um para o outro.

E agarrou-Lhe a mão; ela não a retirou.

“Conjunto de boas culturas!”, gritou o presidente.

- Há pouco, por exemplo, quando fui a sua casa... Ao senhor Bizet, de Quincampoix.” - Sabia eu, porventura, que a acompanharia?

“Setenta francos!”

- Uma centena de vezes quis mesmo vir-me embora, e afinal segui-a, deixei-me ficar.

“Estrumes.”

- Assim como ficaria esta noite, amanhã, nos outros dias, toda a minha vida!

“Ao senhor Caron, de Argueil, medalha de ouro!”

- Porque nunca encontrei na companhia de ninguém um encanto tão completo.

“Ao senhor Bain, de Givx-y-Saint-Martin!”

- Por isso a levarei na lembrança.

“Por um carneiro merino...”

- Mas vai esquecer-me, terei passado como uma sombra.

“Ao senhor Belot, de Notre-Dame...”

- Oh., não, não será assim; não representarei alguma coisa no seu pensamento, na sua vida?

“Raça porcina, prémio ex-aequo: aos senhores Lehérissé e Cullembourg; sessenta francos!”

Rodolphe apertava-Lhe a mão e sentia-a muito quente e trémula, como uma rola cativa que quer retomar novamente o voo, mas, ou porque tentasse desprendê-la, ou então porque estivesse correspondendo àquela pressão, ela fez um movimento com os dedos; e ele exclamou:

- Oh!, obrigado! Vejo que não me repele! É muito bondosa!

Compreenda que lhe pertenço! Deixe-me vê-la, deixe-me contemplá-la!

Um pé de vento que entrou pelas janelas encrespou o pano da mesa e, lá em baixo na praça, todas as grandes toucas das camponesas se levantaram, como asas de borboletas brancas que se agitassem.

“Aproveitamento de bagaço de sementes oleaginosas”, continuava o presidente.

O homem apressava-se:

“Adubo flamengo, cultura do linho, drenagens, arrendamentos a longo prazo, serviços domésticos.”

Rodolphe já não falava. Fitavam-se ambos. Um desejo supremo fazia-Lhes estremecer os lábios secos; e, suavemente, sem esforço, entrelaçaram-se-Lhes os dedos.

“Catherine-Nicaise-Élisabeth Leroux, de Sassetotla-Guerrière, por cinquenta e quatro anos de serviço na mesma herdade, uma medalha de prata, no valor de vinte e cinco francos!”

“Onde está ela, Catherine Leroux?”, repetiu o conselheiro.

A mulher não se apresentava e ouviam-se vozes cochichar:

- Vai lá!

- Não.

- À esquerda!

- Não tenhas medo!

- Mas que estúpida!

- Afinal, sempre está presente? - exclamou Tuvache.

- Sim!... Aqui está ela!

- Então que se aproxime!

Viu-se subir ao estrado uma velhinha de aspecto tímido, parecendo encolher-se o mais que podia nas suas pobres roupas.

Levava nos pés grossos tamancos de madeira e ao longo dos quadris um grande avental azul. O magro rosto, circundado por uma coifa simples, estava mais cheio de rugas do que uma maçã reineta já passada e das mangas da camisola vermelha saíam duas mãos compridas, de articulações nodosas. O pó dos celeiros, a potassa das barrelas e a suarda das lãs a tal ponto as tinham encrostado, escoriado e endurecido, que pareciam sujas, apesar de bem lavadas e passadas por água limpa; e, à força de terem trabalhado, mantinham-se entreabertas, como que para apresentar por si mesmas o humilde testemunho de tantos sofrimentos suportados. Havia uma espécie de rigidez monacal que lhe realçava a expressão do rosto.

Nenhuma tristeza ou ternura parecia abrandar aquele olhar baço. No trato com os animais adquirira-lhes o mutismo e a placidez. Era a primeira vez que se via no meio de tanta gente; e, interiormente assustada pelas bandeiras, pelos tambores, pelos senhores de casaca preta e pela cruz de honra do conselheiro, ficou completamente imobilizada, não sabendo se devia avançar ou fugir, nem porque a empurrava a multidão e os examinadores lhe sorriam. Assim se apresentava, diante daqueles prósperos, burgueses, esse meio século de servidão.

- Aproxime-se, veneranda Catherine-Nicaise-Élisabeth Leroux!

- disse o senhor Conselheiro, que tomara das mãos do presidente a lista dos homenageados.

E, examinando ora a folha de papel, ora a velha mulher, repetia num tom paternal:

- Aproxime-se, aproxime-se!

- Vossemecê é surda? - disse Turvache, saltando da poltrona.

E pôs-se-lhe a gritar ao ouvido:

- Cinquenta e quatro anos de serviço! Uma medalha de prata!

Vinte e cinco francos! É para si.

Depois, quando recebeu a sua medalha, ficou a olhar para ela. Então assomou-lhe ao rosto um sorriso de beatitude e ouviram-na murmurar enquanto se afastava:

- Vou dá-la ao nosso prior, para dizer missas por mim.

- Que fanatismo! - exclamou o farmacêutico, inclinando-se para o tabelião.

Estava terminada a sessão; a turba dispersou; e agora, lidos todos os discursos, voltava cada um ao seu posto e tudo reentrava na normalidade: os senhores ralhavam aos criados e estes batiam nos animais, indolentes vencedores que tornavam para o estábulo com uma coroa verde entre os chavelhos.

Entretanto, os guardas nacionais tinham subido ao primeiro andar da Câmara, com bolos espetados nas baionetas, além do tambor do batalhão, que levava um cesto cheio de garrafas. A senhora Bovary tomou o braço de Rodolphe, que a acompanhou a casa dela; separaram-se diante da porta; depois ele foi passear sozinho pela pradaria, à espera da hora do banquete.

O festim foi demorado, ruidoso, mal servido; as pessoas estavam tão apertadas que tinham dificuldade em mexer os cotovelos, e as tábuas estreitas que serviam de bancos estiveram quase a partir-se sob o peso dos convivas. Estes comiam abundantemente. Cada qual procurava a compensação da parte com que contribuíra. O suor corria por todas as testas; e por cima da mesa, entre os candeeiros suspensos, flutuava um vapor esbranquiçado, como o nevoeiro de um rio em manhã de Outono. Rodolphe, com as costas coladas à lona da barraca, pensava de tal maneira em Emma que não ouvia nada. Mesmo por trás dele, em cima da relva, os criados empilhavam os pratos sujos; os companheiros de mesa falavam com ele, mas não lhes respondia; enchiam-lhe o copo e no seu cérebro estabelecia-se completo silêncio, apesar de o barulho aumentar cada vez mais. Pensava no que ela dissera e na forma dos seus lábios; via-lhe o rosto, como num espelho mágico, a brilhar na chapa das barretinas; as pregas do vestido a descer ao longo das paredes; e, nas perspectivas do futuro, os días de amor desenrolavam-se até ao infinito.

Tornou a vê-la à noite, durante o fogo de artifício; mas ela estava com o marido, com a senhora Homais e o farmacêutico, que se afligia muito com o perigo dos foguetes perdidos e abandonava a cada momento o grupo para ir fazer recomendações a Binet.

As peças pirotécnicas, enviadas em nome do senhor Tuvache, tinham, por excesso de precaução, estado fechadas na cave deste; por essa razão, a pólvora húmida ardia mal e o principal trabalho, que devia representar um dragão mordendo a própria cauda, falhou completamente. De vez em quando lá disparava um pobre foguete de lágrimas; então, a multidão de boca aberta soltava um clamor, a que se juntava o grito das mulheres a quem apalpavam durante a escuridão. Emma, silenciosa, encostava-se docemente ao ombro de Charles;

depois, erguendo o queixo, seguia no céu negro a trajectória luminosa dos foguetes. Rodolphe contemplava-a à luz dos balões que ardiam.

Estes foram-se extinguindo pouco a pouco. As estrelas acenderam-se. Chegaram a cair algumas gotas de chuva e ela atou o lenço sobre a cabeça desprotegida.

Nesse momento saiu da estalagem o fiacre do conselheiro. O cocheiro, que estava bêbedo, ficou subitamente calmo; e de longe, por cima da capota, entre duas lanternas, avistava-se-lhe o vulto balouçando-se da direita para a esquerda, segundo os solavancos da carruagem.

- Na verdade - disse o boticário -, devia punir-se severamente a embriaguez! Gostava que se inscrevessem, semanalmente, à porta da Câmara, num quadro ad hoc, os nomes de todos aqueles que se tivessem intoxicado com álcool. Além disso, no aspecto estatístico, ficar-se-ia com uma espécie de registos-patentes que, em caso de necessidade... Mas desculpem.

E correu novamente para o comandante dos bombeiros.

Este voltava para casa. Ia rever o seu torno.

- Talvez não fosse mau - disseLhe Homais - mandar um dos seus homens ou ir você mesmo...

- Deixe-me em paz - respondeu o tesoureiro. - Não há nada!

- Podem estar sossegados - disse o boticário, quando voltou para junto dos amigos. - O senhor Binet garantiu-me que foram tomadas todas as medidas. Não caiu nem uma fagulha. As bombas estão cheias. Vamos dormir.

- Bem precisada estou! - disse a senhora Homais, que continuamente bocejava. - Mas, mesmo assim, tivemos um belíssimo dia para a nossa festa.

Rodolphe repetiu em voz baixa e com um olhar terno:

- Oh, sim, um dia belíssimo!

E, feitas as despedidas, todos se voltaram de costas.

Dois dias depois aparecia, em Le Fanal de Rouen, um grande artigo sobre os comícios. Escrevera-o Homais, com muita verve, logo no dia seguinte:

Qual o motivo daqueles festões, daquelas flores, daquelas grinaldas? Para onde corria a multidão, como ondas de um mar enfurecido, sob as torrentes de um sol tropical derramando o seu calor sobre a nossa campina?

Em seguida falava a respeito da condição dos camponeses.

Certamente que o governo já fazia muito mas ainda não era suficiente! “Coragem!”, bradava ele; “há mil reformas que são indispensáveis, vamos realizá-las., Depois, abordando a chegada do conselheiro, não esquecia o aspecto marcial da nossa milícia, nem as nossas buliçosas aldeãs, nem tão-pouco os velhos calvos, espécie de patriarcas que ali se achavam, alguns dos quais, despojos das nossas imortais falanges, sentiam ainda palpitar-Lhes o coração ao som varonil dos tambores. Citava-se a si próprio como um dos principais membros do júri, e até lembrava, numa nota, que o senhor Homais, farmacêutico, enviara à Sociedade de Agricultura uma memória sobre a sidra. Quando chegava à distribuição das recompensas, descrevia a alegria dos homenageados com traços ditirâmbicos. O pai abraçava o filho, um irmão o outro irmão, o esposo a esposa. Alguns mostravam com orgulho a sua humilde medalha e, com certeza, ao chegarem a casa, ao pé da sua boa companheira, a terão pendurado, chorando, na parede discreta da sua choupana.

Por volta das seis horas, um banquete, organizado na cerca do senhor Liégeard, reuniu os principais assistentes da festa.

Não deixou de reinar ali a maior cordialidade. Houve diversos brindes: “do senhor Lieuvain ao monarca! Do senhor Tuvache ao prefeito! Do senhor Derozerays à agricultura! Do senhor Homais à indústria e às belas-artes, essas duas irmãs! Do senhor Leplichey aos melhoramentos!”

À noite, um brilhante fogo de artifício iluminou subitamente os ares. Dir-se-ia um verdadeiro caleidoscópio, uma autêntica decoração de ópera; e, por um momento, a nossa pequena localidade pôde julgar-se transportada ao meio de um sonho das Mil e Uma Noites.

Assinala-se que nenhum acontecimento desagradável veio perturbar esta reunião de família.

E acrescentava:

Apenas se notou a ausência do clero. Naturalmente, as sacristias entendem o progresso doutra maneira. Estais no vosso direito, senhores de Loiola!


IX

Decorreram seis semanas. Rodolphe não voltou. Uma noite, por fim, apareceu.

No dia seguinte ao dos comícios pensara:

“Não vamos lá voltar tão cedo; seria um erro.”

E ao cabo de uma semana partira para a caça. Depois da caça imaginara que seria já demasiado tarde, mas seguidamente fez este raciocínio:

“Ora, se ela me amou desde o primeiro dia, pela impaciência de me voltar a ver, deve amar-me ainda mais. Portanto, continuemos!”

E verificou que o cálculo fora bem feito quando, ao entrar na sala, notou que Emma empalidecia.

Ela estava só. O dia declinava. As pequenas cortinas de musselina, acompanhando os vidros, tornava mais denso o crepúsculo e os dourados do barómetro, sobre que caía um raio de sol, faziam reflexos no espelho, entre os recortes do polipeiro.

Rodolphe ficou de pé; Emma mal respondeu às suas primeiras frases de cortesia.

- Tenho tido muito que fazer - disse ele. - Estive doente.

- E foi grave? - exclamou ela.

- Pois bem - disse Rodolphe, sentando-se ao seu lado num tamborete -, não foi isso!... É que não queria voltar.

- Porquê?

- Não adivinha?

Olhou para ela mais uma vez, mas de maneira tão violenta que a fez baixar a cabeça e corar. E prosseguiu:

- Emma...

- Cavalheiro! - exclamou ela, afastando-se um pouco.

- Ah!, bem vê - replicou ele com voz melancólica - que eu tinha razão em não querer voltar; porque esse nome que me enche a alma e me escapou dos lábios me é interdito! Senhora Bovary!... Pois! É assim que toda a gente a chama! E, além disso, nem sequer é o seu nome; é um nome que pertence a outro!

E repetiu:

- Pertence a outro!

E escondeu o rosto entre as mãos.

- Sim, penso constantemente em si!... A saudade desespera-me! Oh!, perdão!... Eu vou deixá-la... Adeus!... Vou para longe..., tão longe que não ouvirá falar mais de mim!...

Hoje..., no entanto..., não sei que força me impeliu ainda para si! Porque não se pode lutar contra o Céu, não se resiste ao sorriso dos anjos! Somos sempre arrastados pelo que é belo, encantador, adorável!

Era a primeira vez que Emma ouvia alguém dizer-lhe estas coisas; e o seu orgulho, como quem que se espreguiça numa estufa, todo se dilatava brandamente ao calor daquela linguagem.

- Mas, se não vim - continuou ele -, se a não pude ver, oh!, pelo menos demorei-me a contemplar tudo aquilo que a rodeia. À noite, todas as noites, levantava-me, vinha até aqui, contemplava a sua casa, o telhado que brilhava ao luar, as árvores do jardim que balouçavam à sua janela e uma pequena lâmpada, uma luzinha que brilhava na sombra, através da vidraça. Ah! Mal sabia que ali, tão perto e tão longe, se achava um pobre miserável...

Emma voltou-se para ele com um soluço.

- Oh!, o senhor é bom! - disse ela.

- Não; é que a amo, só isso! Não pode duvidar! Diga-me uma palavra! Uma única palavra!

E Rodolphe, insensivelmente, deixou-se escorregar do tamborete para o chão; mas ouviu-se um ruído de tamancos na cozinha, e a porta da sala, conforme reparou, não estava fechada.

- Como seria generosa - prosseguiu ele enquanto se levantava - se satisfizesse uma fantasia minha!

Queria ver a casa; desejava conhecê-la; e, como a senhora Bovary não visse nisso inconveniente, ambos se levantavam, quando Charles entrou.

- Bom dia, senhor Doutor - disseLhe Rodolphe.

O médico, lisonjeado com o inesperado tratamento, desfez-se em obséquios e o outro aproveitou para recobrar um pouco a calma.

- A senhora estava-me falando da sua saúde... - começou ele a dizer.

Charles interrompeu-o: andava realmente muito inquieto a esse respeito; as opressões que sua mulher sentia recomeçavam.

Então Rodolphe perguntou se não lhe faria bem o exercício de andar a cavalo.

- Decerto! É um excelente exercício, perfeitamente!... Aí está uma ideia! Deverias aproveitá-la.

E, objectando ela que não tinha cavalo, o senhor Rodolphe punha-lhe um à disposição; ela recusou o oferecimento; ele não insistiu; depois, para justificar a sua visita, contou que o carroceiro, o homem da sangria, sentia sempre tonturas.

- Passarei por lá - disse Bovary.

- Não, não, eu mando-o cá; vimos cá os dois, será mais cómodo para si.

- Ah!, muito bem. Agradeço-lhe.

E, logo que o casal ficou só:

- Porque não aceitas o oferecimento do senhor Boulanger, que é tão delicado?

Ela assumiu um ar contrariado, procurou mil desculpas e acabou por dizer que isso poderia talvez parecer estranho.

- Ora! A mim bem me importa! - disse Charles, fazendo uma pirueta. - A saúde primeiro que tudo! Acho que fazes mal!

- Pois é! E como queres que eu monte a cavalo, se não tenho fato de amazona?

- Tem de se encomendar um! - respondeu ele.

O fato decidiu-a.

Assim que este ficou pronto, Charles escreveu ao senhor Boulanger, dizendo que a mulher estava à sua disposição, e que ambos contavam com a sua condescendência.

No dia seguinte, ao meio-dia, apareceu Rodolphe à porta de Charles com dois magníficos cavalos. Um tinha pompons cor-de-rosa nas orelhas e uma sela de senhora em pele de gamo.

Rodolphe calçara grandes botas flexíveis, dizendo para si mesmo que ela certamente nunca vira outras iguais; efectivamente, Emma ficou encantada com o seu aspecto quando ele apareceu no pátio envergando uma grande casaca de veludo e calções brancos de malha. Emma estava pronta, à espera.

Justin fugiu da farmácia para ir vê-la, e também o boticário se deslocou. Pôs-se a fazer recomendações ao senhor Boulanger:

- Uma desgraça acontece num instante! Tome cuidado! Os cavalos são talvez fogosos!

Emma ouviu um rumor por cima da cabeça: era Félicité que tamborilava na vidraça para entreter a pequenina Berthe. A criança atirou-lhe de longe um beijo; a mãe respondeu-lhe acenando com o castão do pequeno chicote.

- Bom passeio! - gritou o senhor Homais. - Sobretudo prudência, muita prudência!

E agitou o jornal que tinha na mão, vendo-os afastar-se.

Logo que sentiu chão de terra, o cavalo de Emma tomou o galope. Rodolphe galopava ao lado dela. De quando em quando trocavam uma palavra. Com o rosto um pouco inclinado, a mão levantada e o braço direito caído, Emma abandonava-se à cadência do movimento que a embalava sobre a sela.

Na base da encosta, Rodolphe soltou as rédeas; partiram juntos, arrancando bruscamente; depois, no alto, de súbito, os cavalos estacaram e o grande véu azul voltou a descer.

Estava-se nos primeiros dias de Outubro. Havia cerração nos campos. O nevoeiro estendia-se pelo horizonte, entre os contornos das colinas; alguns farrapos destacavam-se, subiam e desapareciam. Às vezes, numa abertura das nuvens, sob um raio de sol, avistavam-se ao longe os telhados de Yonville, com os quintais à beira do rio, os pátios, o muro e os campanários da igreja. Emma semicerrava as pálpebras, procurando identificar a sua casa, e nunca aquela mísera aldeia onde vivia lhe parecera tão pequena. Da altura onde se encontravam, todo o vale se assemelhava a um imenso lago desmaiado, evaporando-se ao ar. Os amontoados de árvores, aqui e além, tinham o aspecto de rochedos escuros; e os altos topos dos álamos, ultrapassando a bruma, faziam lembrar areais remexidos pelo vento.

Ali ao lado, sobre a erva, entre os pinheiros, circulava uma luz mortiça na atmosfera tépida. A terra, arruivada como pó de tabaco, amortecia o ruído dos passos; e, no andamento, os cavalos empurravam, com a ponta das ferraduras, as pinhas caídas no chão.

Rodolphe e Emma seguiram assim a orla do bosque. De vez em quando, ela voltava-se para lhe evitar o olhar, e então apenas via os troncos dos pinheiros alinhados, numa sucessão contínua que a estonteava um pouco. Os cavalos resfolegavam. O couro das selas rangia.

No momento em que entraram na floresta apareceu o sol.

- Deus protege-nos! - disse Rodolphe.

- Acha que sim? - respondeu ela.

- Avancemos! Avancemos! - retorquiu ele.

Deu um estalido com a língua. Os dois animais deitaram a correr.

Os grandes fetos da beira do caminho prendiam-se ao estribo de Emma. Rodolphe, mesmo sem parar, inclinava-se e ia-os soltando. Outras vezes, para afastar us ramos, passava junto dela e Emma sentia-lhe o joelho roçar pela perna. O céu ficara azul. As folhas nem mexiam. Havia grandes espaços cobertos de urzes todas floridas; e as extensões de violetas alternavam com os maciços de árvores, que eram pardos, ruivos ou dourados, segundo a diversidade das folhagens. Muitas vezes ouvia-se passar, debaixo dos arbustos, um leve bater de asas, ou então o grito rouco e suave dos corvos, que voavam entre os carvalhos.

Apearam-se. Rodolphe prendeu os cavalos. Ela seguia na frente, pisando o musgo, entre os sulcos do caminho.

Mas o vestido, comprido de mais, embaraçava-lhe os movimentos, apesar de o levar erguido pela cauda, e Rodolphe, caminhando atrás dela, contemplava, entre o tecido preto e a botina também preta, a delicadeza da meia branca, que se Lhe afigurava como que um pouco da sua nudez.

Emma parou.

- Estou cansada - disse ela.

- Vamos, experimente mais um pouco! - respondeu ele.Animo!

Cem passos adiante, ela voltou a parar e, através do véu, que do chapéu de homem lhe descia obliquamente sobre os quadris, distinguia-se-Lha o rosto numa transparência azulada, como se estivesse nadando debaixo de ondas azuis.

- Mas aonde vamos nós?

Ele não respondeu. Ela respirava de um modo reprimido.

Rodolphe olhava em redor e mordia o bigode.

Chegaram a um lugar mais descoberto, onde tinham abatido algumas árvores. Sentaram-se sobre um tronco derrubado e Rodolphe começou a falar-Lhe do seu amor.

Não principiou por a assustar com galanteios. Mostrou-se calmo, sério, melancólico.

Emma escutava-o de cabeça baixa, enquanto, com a ponta do pé, ia remexendo nas maravalhas espalhadas pelo chão.

Mas, quando ele lhe disse:

- Não são agora comuns os nossos destinos?

Ela respondeu:

- Isso não! Sabe bem que é impossível.

E levantou-se para se retirar. Ele segurou-a pelo pulso.

Emma deteve-se. Depois, tendo-o fitado durante alguns minutos com um olhar amoroso e húmido, disse rapidamente:

- Olhe! Não falemos mais nesse assunto... Onde estão os cavalos? Vamo-nos embora.

Rodolphe teve um gesto de cólera e de enfado. Ela repetiu:

- Onde estão os cavalos? Onde estão os cavalos?

Então, sorrindo com um sorriso estranho, olhar fixo e dentes cerrados, ele avançou de braços abertos. Ela recuou a tremer.

Balbuciava:

- O senhor mete-me medo! Está-me fazendo mal! Vamo-nos embora.

- Já que é necessário... - prosseguiu ele, mudando de expressão.

E imediatamente voltou a mostrar-se respeitador, delicado e tímido. Ela deu-Lhe o braço. Regressaram. Rodolphe ia-lhe dizendo:

- O que foi que se passou consigo? Porquê? Não percebi! Está sem dúvida equivocada a meu respeito. O seu lugar na minha alma é o de uma madona sobre um pedestal, num lugar elevado, forte e imaculada. Mas preciso de si para viver! Necessito dos seus olhos, da sua voz, do seu pensamento. Seja minha amiga, minha irmã, meu anjo!

E, estendendo o braço, enlaçava-lhe a cintura. Ela procurava brandamente soltar-se. Ele segurava-a assim enquanto caminhavam.

Ouviram então os dois cavalos tosando a erva.

- Oh!, um momento - disse Rodolphe. - Não nos vamos embora!

Fique!

E levou-a até mais longe, à beira de uma lagoa, onde lentilhas aquáticas cobriam a água de verdura. Alguns nenúfares murchos conservavam-se imóveis entre os juncos. Ao ruído que faziam com os passos na relva saltavam rãs para se esconder.

- Faço mal, faço mal - dizia ela. - Não tenho juízo em escutá-lo.

- Porquê?... Emma! Emma!

- Oh! Rodolphe!... - disse lentamente a jovem mulher, encostando-se ao ombro dele.

O pano do vestido prendia-se ao veludo da casaca. Ela curvou para trás o alvo pescoço, que se dilatou com um suspiro; e, desfalecida, banhada em lágrimas, com um prolongado estremecimento e escondendo o rosto, entregou-se.

Caíam as sombras do crepúsculo; u sol horizontal, passando entre os ramos, deslumbrava-lhe a vista. Aqui e além, em redor dela, na folhagem ou no chão, tremiam manchas luminosas, como se colibris, voando, tivessem espalhado as suas plumas. O silêncio era completo; uma certa doçura parecia destacar-se das árvores; Emma ouvia o coração, cujo pulsar recomeçava, e sentia o sangue circular-lhe no corpo como uma torrente de leite. Ouviu então muito ao longe, para lá da mata, sobre as outras colinas, um grito vago e prolongado, uma voz que se arrastava e que ela escutava em silêncio, como uma melodia que se misturava com as últimas vibrações dos seus nervos emocionados. Rodolphe, de charuto entre os dentes, consertava, com o seu canivete, uma das rédeas, que rebentara.

Voltaram a Yonville pelo mesmo caminho. Viram ainda na lama os sinais das patas dos cavalos, lado a lado, e os mesmos arbustos, os mesmos calhaus no meio da erva. Nada mudara em redor de ambos; e para ela, entretanto, sobrevivera qualquer coisa mais importante do que se as montanhas se houvessem deslocado. Rodolphe, de momento a momento, inclinava-se e pegava-lhe na mão para a beijar.

Ela estava encantadora a cavalo! Direita, cintura delgada, joelho dobrado sobre a crina do animal e um pouco corada pelo ar livre, na vermelhidão crepuscular.

À entrada de Yonville fez caracolar o cavalo sobre a alçada.

Assomavam às janelas para a ver.

O marido, ao jantar, achou-Lhe bom parecer; mas ela fez que não ouviu quando ele perguntou que tal fora o passeio;

deixou-se ficar com o cotovelo apoiado junto do prato, entre as duas velas acesas.

- Emma! - disse ele.

- O que é?

- Sabes, passei esta tarde por casa do senhor Alexandre; ele tem uma velha poldrinha ainda muito bonita, apenas um pouco coroada, e que poderíamos conseguir, tenho a certeza, por uma centena de escudos...

E acrescentou:

- Pensando até que isso te agradaria, fiquei com ela...

comprei-a.. Achas que fiz bem? Diz lá.

Emma balouçou a cabeça em sinal de assentimento; depois, passado um quarto de hora:

- Vais sair esta noite? - perguntou.

— Sim. Porquê?

- Oh! Por nada, meu amigo.

E, mal se descartou de Charles, foi-se fechar em cima, no quarto.

Começou por sentir uma espécie de atordoamento; via as árvores, os caminhos, os valados, Rodolphe, e sentia ainda o amplexo dos seus braços, enquanto a folhagem tremia e os juncos sibilavam.

Olhando, porém, para o espelho, admirou-se com o aspecto do rosto. Nunca se vira com os olhos tão grandes, tão negros nem tão profundos. Havia qualquer coisa de subtil espalhada na sua pessoa que a transfigurava.

Repetia consigo mesma: “Tenho um amante! Um amante!”, deleitando-se nesta ideia como se fosse a da chegada de uma nova puberdade. Ia então possuir finalmente aquelas alegrias do amor, aquela febre de felicidade de que havia já desesperado. Entrava no que quer que fosse de maravilhoso, em que tudo seria paixão, êxtase, delírio; sentia-se circundada por uma imensidão de azul, os píncaros do sentimento cintilavam-Lhe na imaginação e a existência ordinária só lhe aparecia muito ao longe, lá em baixo, na sombra, pelos intervalos daquelas eminências.

Lembrou-se então das heroínas dos livros que lera, e toda aquela lírica legião de mulheres adúlteras começou a cantar-lhe na memória, com vozes de irmãs que a seduziam.

Tornava-se ela mesma agora parte autêntica dessas imaginações e realizava o longo devaneio da sua juventude, enquadrando-se naquele tipo de mulher apaixonada que tanto invejara. Além disso, Emma sentia uma satisfação de vingança. Já sofrera bastante! Mas agora triunfava, e o amor, por tanto tempo reprimido, jorrava livremente em alegre efervescência.

Saboreava-o sem remorsos, sem inquietude, sem desassossego.

O dia seguinte passou-se numa nova doçura. Fizeram juramentos um ao outro. Rodolphe interrompia-a com os seus beijos; ela pedia-lhe, fixando-lhe as pálpebras semicerradas, que a chamasse mais uma vez pelo nome e Lhe repetisse que a amava.

Foi na floresta, como na véspera, numa cabana de tamanqueiros. As paredes eram de palha e o tecto tão baixo que tinham de manter-se curvados. Sentaram-se encostados um ao outro, sobre uma cama de folhas secas.

A partir desse dia escreviam-se regularmente todas as noites. Emma levava a sua carta ao fundo do jardim, junto do rio, e metia-a numa fresta do terraço. Rodolphe ia lá buscá-la e no mesmo lugar metia outra, que ela acusava sempre de ser demasiado pequena.

Uma manhã em que Charles saíra antes do amanhecer deixou-se tentar pela fantasia de ver Rodolphe naquele mesmo momento.

Poderia chegar num instante à Huchette, demorar-se lá uma hora e regressar a Yonville enquanto todos estariam ainda a dormir.

Esta ideia fê-la arder em desejos, e logo se achou no meio do campo, caminhando a passos rápidos, sem olhar para trás.

O dia começava a despontar. Emma, de longe, reconheceu a casa do amante, onde dois cata-ventos em cauda de andorinha se recortavam a negro sobre o pálido crepúsculo.

Passado o pátio da granja, havia um bloco de habitações que devia ser o palacete. Entrou, como se as paredes, à sua aproximação, se tivessem afastado por si mesmas. Um grande lanço de escada dava acesso a um corredor. Emma levantou o fecho de uma porta e, no mesmo instante, viu no fundo do quarto um homem adormecido. Era Rodolphe. Soltou um grito.

- Tu!, tu! - repetia ele. - Como conseguiste vir aqui?..

Olha! Tens o vestido molhado!

- Amo-te! - respondeu ela, passando-lhe o braço em volta do pescoço.

Depois do êxito desta primeira audácia, todas as vezes que Charles saía muito cedo, Emma vestia-se rapidamente e descia pé ante pé a escada que conduzia à beira da água.

Mas, se acontecia a prancha das vacas encontrar-se levantada, era necessário seguir ao longo dos muros que contornavam o rio; a margem era escorregadia; para não cair, ela agarrava-se às moitas de goiveiros secos. Depois atravessava os campos lavrados, onde se atolava, tropeçava e fazia força para despegar as botinas ligeiras. O lenço amarrado sobre a cabeça agitava-se ao vento ao passar pelos pastos; ela tinha medo dos bois e largava a correr; chegava sem fôlego, as faces rosadas, exalando de toda a sua pessoa um fresco perfume de seiva, de verdura e de ar puro.

Rodolphe, àquela hora, dormia ainda. Era como se uma manhã de Primavera lhe entrasse pelo quarto.

As cortinas amarelas das vidraças deixavam passar suavemente uma loura luz velada. Emma entrava ás apalpadelas, piscando os olhos, enquanto as gotas de orvalho suspensas dos bandós Lhe formavam como que uma auréola de topázios a toda a volta do rosto. Rodolphe, rindo, puxava-a para si e apertava-a contra o coração.

Depois ela examinava o aposento, abria as gavetas dos móveis, penteava-se com o pente dele e mirava-se no espelho de fazer a barba. Muitas vezes até metia entre os dentes o pipo de um grande cachimbo que estava sobre a mesa-de-cabeceira, entre limões e pedaços de açúcar, ao pé de um jarro com água.

Precisavam de um bom quarto de hora para as despedidas.

Então Emma chorava; quisera nunca mais se separar de Rodolphe.

Qualquer coisa mais forte do que ela a puxava para ele, de tal modo que, um dia, vendo-a aparecer inesperadamente, Rodolphe franziu a testa como quem se sente contrariado.

- O que é que tens? - disse ela. - Estás doente? Fala para mim!

Finalmente, ele declarou, com ar sério, que as visitas dela estavam a tornar-se imprudentes e que ela se comprometia.

 

Decorreram seis semanas. Rodolphe não voltou. Uma noite, por fim, apareceu.

No dia seguinte ao dos comícios pensara:

“Não vamos lá voltar tão cedo; seria um erro.”

E ao cabo de uma semana partira para a caça. Depois da caça imaginara que seria já demasiado tarde, mas seguidamente fez este raciocínio:

“Ora, se ela me amou desde o primeiro dia, pela impaciência de me voltar a ver, deve amar-me ainda mais. Portanto, continuemos!”

E verificou que o cálculo fora bem feito quando, ao entrar na sala, notou que Emma empalidecia.

Ela estava só. O dia declinava. As pequenas cortinas de musselina, acompanhando os vidros, tornava mais denso o crepúsculo e os dourados do barómetro, sobre que caía um raio de sol, faziam reflexos no espelho, entre os recortes do polipeiro.

Rodolphe ficou de pé; Emma mal respondeu às suas primeiras frases de cortesia.

- Tenho tido muito que fazer - disse ele. - Estive doente.

- E foi grave? - exclamou ela.

- Pois bem - disse Rodolphe, sentando-se ao seu lado num tamborete -, não foi isso!... É que não queria voltar.

- Porquê?

- Não adivinha?

Olhou para ela mais uma vez, mas de maneira tão violenta que a fez baixar a cabeça e corar. E prosseguiu:

- Emma...

- Cavalheiro! - exclamou ela, afastando-se um pouco.

- Ah!, bem vê - replicou ele com voz melancólica - que eu tinha razão em não querer voltar; porque esse nome que me enche a alma e me escapou dos lábios me é interdito! Senhora Bovary!... Pois! É assim que toda a gente a chama! E, além disso, nem sequer é o seu nome; é um nome que pertence a outro!

E repetiu:

- Pertence a outro!

E escondeu o rosto entre as mãos.

- Sim, penso constantemente em si!... A saudade desespera-me! Oh!, perdão!... Eu vou deixá-la... Adeus!... Vou para longe..., tão longe que não ouvirá falar mais de mim!...

Hoje..., no entanto..., não sei que força me impeliu ainda para si! Porque não se pode lutar contra o Céu, não se resiste ao sorriso dos anjos! Somos sempre arrastados pelo que é belo, encantador, adorável!

Era a primeira vez que Emma ouvia alguém dizer-lhe estas coisas; e o seu orgulho, como quem que se espreguiça numa estufa, todo se dilatava brandamente ao calor daquela linguagem.

- Mas, se não vim - continuou ele -, se a não pude ver, oh!, pelo menos demorei-me a contemplar tudo aquilo que a rodeia. À noite, todas as noites, levantava-me, vinha até aqui, contemplava a sua casa, o telhado que brilhava ao luar, as árvores do jardim que balouçavam à sua janela e uma pequena lâmpada, uma luzinha que brilhava na sombra, através da vidraça. Ah! Mal sabia que ali, tão perto e tão longe, se achava um pobre miserável...

Emma voltou-se para ele com um soluço.

- Oh!, o senhor é bom! - disse ela.

- Não; é que a amo, só isso! Não pode duvidar! Diga-me uma palavra! Uma única palavra!

E Rodolphe, insensivelmente, deixou-se escorregar do tamborete para o chão; mas ouviu-se um ruído de tamancos na cozinha, e a porta da sala, conforme reparou, não estava fechada.

- Como seria generosa - prosseguiu ele enquanto se levantava - se satisfizesse uma fantasia minha!

Queria ver a casa; desejava conhecê-la; e, como a senhora Bovary não visse nisso inconveniente, ambos se levantavam, quando Charles entrou.

- Bom dia, senhor Doutor - disseLhe Rodolphe.

O médico, lisonjeado com o inesperado tratamento, desfez-se em obséquios e o outro aproveitou para recobrar um pouco a calma.

- A senhora estava-me falando da sua saúde... - começou ele a dizer.

Charles interrompeu-o: andava realmente muito inquieto a esse respeito; as opressões que sua mulher sentia recomeçavam.

Então Rodolphe perguntou se não lhe faria bem o exercício de andar a cavalo.

- Decerto! É um excelente exercício, perfeitamente!... Aí está uma ideia! Deverias aproveitá-la.

E, objectando ela que não tinha cavalo, o senhor Rodolphe punha-lhe um à disposição; ela recusou o oferecimento; ele não insistiu; depois, para justificar a sua visita, contou que o carroceiro, o homem da sangria, sentia sempre tonturas.

- Passarei por lá - disse Bovary.

- Não, não, eu mando-o cá; vimos cá os dois, será mais cómodo para si.

- Ah!, muito bem. Agradeço-lhe.

E, logo que o casal ficou só:

- Porque não aceitas o oferecimento do senhor Boulanger, que é tão delicado?

Ela assumiu um ar contrariado, procurou mil desculpas e acabou por dizer que isso poderia talvez parecer estranho.

- Ora! A mim bem me importa! - disse Charles, fazendo uma pirueta. - A saúde primeiro que tudo! Acho que fazes mal!

- Pois é! E como queres que eu monte a cavalo, se não tenho fato de amazona?

- Tem de se encomendar um! - respondeu ele.

O fato decidiu-a.

Assim que este ficou pronto, Charles escreveu ao senhor Boulanger, dizendo que a mulher estava à sua disposição, e que ambos contavam com a sua condescendência.

No dia seguinte, ao meio-dia, apareceu Rodolphe à porta de Charles com dois magníficos cavalos. Um tinha pompons cor-de-rosa nas orelhas e uma sela de senhora em pele de gamo.

Rodolphe calçara grandes botas flexíveis, dizendo para si mesmo que ela certamente nunca vira outras iguais; efectivamente, Emma ficou encantada com o seu aspecto quando ele apareceu no pátio envergando uma grande casaca de veludo e calções brancos de malha. Emma estava pronta, à espera.

Justin fugiu da farmácia para ir vê-la, e também o boticário se deslocou. Pôs-se a fazer recomendações ao senhor Boulanger:

- Uma desgraça acontece num instante! Tome cuidado! Os cavalos são talvez fogosos!

Emma ouviu um rumor por cima da cabeça: era Félicité que tamborilava na vidraça para entreter a pequenina Berthe. A criança atirou-lhe de longe um beijo; a mãe respondeu-lhe acenando com o castão do pequeno chicote.

- Bom passeio! - gritou o senhor Homais. - Sobretudo prudência, muita prudência!

E agitou o jornal que tinha na mão, vendo-os afastar-se.

Logo que sentiu chão de terra, o cavalo de Emma tomou o galope. Rodolphe galopava ao lado dela. De quando em quando trocavam uma palavra. Com o rosto um pouco inclinado, a mão levantada e o braço direito caído, Emma abandonava-se à cadência do movimento que a embalava sobre a sela.

Na base da encosta, Rodolphe soltou as rédeas; partiram juntos, arrancando bruscamente; depois, no alto, de súbito, os cavalos estacaram e o grande véu azul voltou a descer.

Estava-se nos primeiros dias de Outubro. Havia cerração nos campos. O nevoeiro estendia-se pelo horizonte, entre os contornos das colinas; alguns farrapos destacavam-se, subiam e desapareciam. Às vezes, numa abertura das nuvens, sob um raio de sol, avistavam-se ao longe os telhados de Yonville, com os quintais à beira do rio, os pátios, o muro e os campanários da igreja. Emma semicerrava as pálpebras, procurando identificar a sua casa, e nunca aquela mísera aldeia onde vivia lhe parecera tão pequena. Da altura onde se encontravam, todo o vale se assemelhava a um imenso lago desmaiado, evaporando-se ao ar. Os amontoados de árvores, aqui e além, tinham o aspecto de rochedos escuros; e os altos topos dos álamos, ultrapassando a bruma, faziam lembrar areais remexidos pelo vento.

Ali ao lado, sobre a erva, entre os pinheiros, circulava uma luz mortiça na atmosfera tépida. A terra, arruivada como pó de tabaco, amortecia o ruído dos passos; e, no andamento, os cavalos empurravam, com a ponta das ferraduras, as pinhas caídas no chão.

Rodolphe e Emma seguiram assim a orla do bosque. De vez em quando, ela voltava-se para lhe evitar o olhar, e então apenas via os troncos dos pinheiros alinhados, numa sucessão contínua que a estonteava um pouco. Os cavalos resfolegavam. O couro das selas rangia.

No momento em que entraram na floresta apareceu o sol.

- Deus protege-nos! - disse Rodolphe.

- Acha que sim? - respondeu ela.

- Avancemos! Avancemos! - retorquiu ele.

Deu um estalido com a língua. Os dois animais deitaram a correr.

Os grandes fetos da beira do caminho prendiam-se ao estribo de Emma. Rodolphe, mesmo sem parar, inclinava-se e ia-os soltando. Outras vezes, para afastar us ramos, passava junto dela e Emma sentia-lhe o joelho roçar pela perna. O céu ficara azul. As folhas nem mexiam. Havia grandes espaços cobertos de urzes todas floridas; e as extensões de violetas alternavam com os maciços de árvores, que eram pardos, ruivos ou dourados, segundo a diversidade das folhagens. Muitas vezes ouvia-se passar, debaixo dos arbustos, um leve bater de asas, ou então o grito rouco e suave dos corvos, que voavam entre os carvalhos.

Apearam-se. Rodolphe prendeu os cavalos. Ela seguia na frente, pisando o musgo, entre os sulcos do caminho.

Mas o vestido, comprido de mais, embaraçava-lhe os movimentos, apesar de o levar erguido pela cauda, e Rodolphe, caminhando atrás dela, contemplava, entre o tecido preto e a botina também preta, a delicadeza da meia branca, que se Lhe afigurava como que um pouco da sua nudez.

Emma parou.

- Estou cansada - disse ela.

- Vamos, experimente mais um pouco! - respondeu ele.Animo!

Cem passos adiante, ela voltou a parar e, através do véu, que do chapéu de homem lhe descia obliquamente sobre os quadris, distinguia-se-Lha o rosto numa transparência azulada, como se estivesse nadando debaixo de ondas azuis.

- Mas aonde vamos nós?

Ele não respondeu. Ela respirava de um modo reprimido.

Rodolphe olhava em redor e mordia o bigode.

Chegaram a um lugar mais descoberto, onde tinham abatido algumas árvores. Sentaram-se sobre um tronco derrubado e Rodolphe começou a falar-Lhe do seu amor.

Não principiou por a assustar com galanteios. Mostrou-se calmo, sério, melancólico.

Emma escutava-o de cabeça baixa, enquanto, com a ponta do pé, ia remexendo nas maravalhas espalhadas pelo chão.

Mas, quando ele lhe disse:

- Não são agora comuns os nossos destinos?

Ela respondeu:

- Isso não! Sabe bem que é impossível.

E levantou-se para se retirar. Ele segurou-a pelo pulso.

Emma deteve-se. Depois, tendo-o fitado durante alguns minutos com um olhar amoroso e húmido, disse rapidamente:

- Olhe! Não falemos mais nesse assunto... Onde estão os cavalos? Vamo-nos embora.

Rodolphe teve um gesto de cólera e de enfado. Ela repetiu:

- Onde estão os cavalos? Onde estão os cavalos?

Então, sorrindo com um sorriso estranho, olhar fixo e dentes cerrados, ele avançou de braços abertos. Ela recuou a tremer.

Balbuciava:

- O senhor mete-me medo! Está-me fazendo mal! Vamo-nos embora.

- Já que é necessário... - prosseguiu ele, mudando de expressão.

E imediatamente voltou a mostrar-se respeitador, delicado e tímido. Ela deu-Lhe o braço. Regressaram. Rodolphe ia-lhe dizendo:

- O que foi que se passou consigo? Porquê? Não percebi! Está sem dúvida equivocada a meu respeito. O seu lugar na minha alma é o de uma madona sobre um pedestal, num lugar elevado, forte e imaculada. Mas preciso de si para viver! Necessito dos seus olhos, da sua voz, do seu pensamento. Seja minha amiga, minha irmã, meu anjo!

E, estendendo o braço, enlaçava-lhe a cintura. Ela procurava brandamente soltar-se. Ele segurava-a assim enquanto caminhavam.

Ouviram então os dois cavalos tosando a erva.

- Oh!, um momento - disse Rodolphe. - Não nos vamos embora!

Fique!

E levou-a até mais longe, à beira de uma lagoa, onde lentilhas aquáticas cobriam a água de verdura. Alguns nenúfares murchos conservavam-se imóveis entre os juncos. Ao ruído que faziam com os passos na relva saltavam rãs para se esconder.

- Faço mal, faço mal - dizia ela. - Não tenho juízo em escutá-lo.

- Porquê?... Emma! Emma!

- Oh! Rodolphe!... - disse lentamente a jovem mulher, encostando-se ao ombro dele.

O pano do vestido prendia-se ao veludo da casaca. Ela curvou para trás o alvo pescoço, que se dilatou com um suspiro; e, desfalecida, banhada em lágrimas, com um prolongado estremecimento e escondendo o rosto, entregou-se.

Caíam as sombras do crepúsculo; u sol horizontal, passando entre os ramos, deslumbrava-lhe a vista. Aqui e além, em redor dela, na folhagem ou no chão, tremiam manchas luminosas, como se colibris, voando, tivessem espalhado as suas plumas. O silêncio era completo; uma certa doçura parecia destacar-se das árvores; Emma ouvia o coração, cujo pulsar recomeçava, e sentia o sangue circular-lhe no corpo como uma torrente de leite. Ouviu então muito ao longe, para lá da mata, sobre as outras colinas, um grito vago e prolongado, uma voz que se arrastava e que ela escutava em silêncio, como uma melodia que se misturava com as últimas vibrações dos seus nervos emocionados. Rodolphe, de charuto entre os dentes, consertava, com o seu canivete, uma das rédeas, que rebentara.

Voltaram a Yonville pelo mesmo caminho. Viram ainda na lama os sinais das patas dos cavalos, lado a lado, e os mesmos arbustos, os mesmos calhaus no meio da erva. Nada mudara em redor de ambos; e para ela, entretanto, sobrevivera qualquer coisa mais importante do que se as montanhas se houvessem deslocado. Rodolphe, de momento a momento, inclinava-se e pegava-lhe na mão para a beijar.

Ela estava encantadora a cavalo! Direita, cintura delgada, joelho dobrado sobre a crina do animal e um pouco corada pelo ar livre, na vermelhidão crepuscular.

À entrada de Yonville fez caracolar o cavalo sobre a alçada.

Assomavam às janelas para a ver.

O marido, ao jantar, achou-Lhe bom parecer; mas ela fez que não ouviu quando ele perguntou que tal fora o passeio; deixou-se ficar com o cotovelo apoiado junto do prato, entre as duas velas acesas.

- Emma! - disse ele.

- O que é?

- Sabes, passei esta tarde por casa do senhor Alexandre; ele tem uma velha poldrinha ainda muito bonita, apenas um pouco coroada, e que poderíamos conseguir, tenho a certeza, por uma centena de escudos...

E acrescentou:

- Pensando até que isso te agradaria, fiquei com ela... comprei-a.. Achas que fiz bem? Diz lá.

Emma balouçou a cabeça em sinal de assentimento; depois, passado um quarto de hora:

- Vais sair esta noite? - perguntou.

- Sim. Porquê?

- Oh! Por nada, meu amigo.

E, mal se descartou de Charles, foi-se fechar em cima, no quarto.

Começou por sentir uma espécie de atordoamento; via as árvores, os caminhos, os valados, Rodolphe, e sentia ainda o amplexo dos seus braços, enquanto a folhagem tremia e os juncos sibilavam.

Olhando, porém, para o espelho, admirou-se com o aspecto do rosto. Nunca se vira com os olhos tão grandes, tão negros nem tão profundos. Havia qualquer coisa de subtil espalhada na sua pessoa que a transfigurava.

Repetia consigo mesma: “Tenho um amante! Um amante!”, deleitando-se nesta ideia como se fosse a da chegada de uma nova puberdade. Ia então possuir finalmente aquelas alegrias do amor, aquela febre de felicidade de que havia já desesperado. Entrava no que quer que fosse de maravilhoso, em que tudo seria paixão, êxtase, delírio; sentia-se circundada por uma imensidão de azul, os píncaros do sentimento cintilavam-Lhe na imaginação e a existência ordinária só lhe aparecia muito ao longe, lá em baixo, na sombra, pelos intervalos daquelas eminências.

Lembrou-se então das heroínas dos livros que lera, e toda aquela lírica legião de mulheres adúlteras começou a cantar-lhe na memória, com vozes de irmãs que a seduziam.

Tornava-se ela mesma agora parte autêntica dessas imaginações e realizava o longo devaneio da sua juventude, enquadrando-se naquele tipo de mulher apaixonada que tanto invejara. Além disso, Emma sentia uma satisfação de vingança. Já sofrera bastante! Mas agora triunfava, e o amor, por tanto tempo reprimido, jorrava livremente em alegre efervescência.

Saboreava-o sem remorsos, sem inquietude, sem desassossego.

O dia seguinte passou-se numa nova doçura. Fizeram juramentos um ao outro. Rodolphe interrompia-a com os seus beijos; ela pedia-lhe, fixando-lhe as pálpebras semicerradas, que a chamasse mais uma vez pelo nome e Lhe repetisse que a amava.

Foi na floresta, como na véspera, numa cabana de tamanqueiros. As paredes eram de palha e o tecto tão baixo que tinham de manter-se curvados. Sentaram-se encostados um ao outro, sobre uma cama de folhas secas.

A partir desse dia escreviam-se regularmente todas as noites. Emma levava a sua carta ao fundo do jardim, junto do rio, e metia-a numa fresta do terraço. Rodolphe ia lá buscá-la e no mesmo lugar metia outra, que ela acusava sempre de ser demasiado pequena.

Uma manhã em que Charles saíra antes do amanhecer deixou-se tentar pela fantasia de ver Rodolphe naquele mesmo momento.

Poderia chegar num instante à Huchette, demorar-se lá uma hora e regressar a Yonville enquanto todos estariam ainda a dormir.

Esta ideia fê-la arder em desejos, e logo se achou no meio do campo, caminhando a passos rápidos, sem olhar para trás.

O dia começava a despontar. Emma, de longe, reconheceu a casa do amante, onde dois cata-ventos em cauda de andorinha se recortavam a negro sobre o pálido crepúsculo.

Passado o pátio da granja, havia um bloco de habitações que devia ser o palacete. Entrou, como se as paredes, à sua aproximação, se tivessem afastado por si mesmas. Um grande lanço de escada dava acesso a um corredor. Emma levantou o fecho de uma porta e, no mesmo instante, viu no fundo do quarto um homem adormecido. Era Rodolphe. Soltou um grito.

- Tu!, tu! - repetia ele. - Como conseguiste vir aqui?..

Olha! Tens o vestido molhado!

- Amo-te! - respondeu ela, passando-lhe o braço em volta do pescoço.

Depois do êxito desta primeira audácia, todas as vezes que Charles saía muito cedo, Emma vestia-se rapidamente e descia pé ante pé a escada que conduzia à beira da água.

Mas, se acontecia a prancha das vacas encontrar-se levantada, era necessário seguir ao longo dos muros que contornavam o rio; a margem era escorregadia; para não cair, ela agarrava-se às moitas de goiveiros secos. Depois atravessava os campos lavrados, onde se atolava, tropeçava e fazia força para despegar as botinas ligeiras. O lenço amarrado sobre a cabeça agitava-se ao vento ao passar pelos pastos; ela tinha medo dos bois e largava a correr; chegava sem fôlego, as faces rosadas, exalando de toda a sua pessoa um fresco perfume de seiva, de verdura e de ar puro.

Rodolphe, àquela hora, dormia ainda. Era como se uma manhã de Primavera lhe entrasse pelo quarto.

As cortinas amarelas das vidraças deixavam passar suavemente uma loura luz velada. Emma entrava ás apalpadelas, piscando os olhos, enquanto as gotas de orvalho suspensas dos bandós Lhe formavam como que uma auréola de topázios a toda a volta do rosto. Rodolphe, rindo, puxava-a para si e apertava-a contra o coração.

Depois ela examinava o aposento, abria as gavetas dos móveis, penteava-se com o pente dele e mirava-se no espelho de fazer a barba. Muitas vezes até metia entre os dentes o pipo de um grande cachimbo que estava sobre a mesa-de-cabeceira, entre limões e pedaços de açúcar, ao pé de um jarro com água.

Precisavam de um bom quarto de hora para as despedidas.

Então Emma chorava; quisera nunca mais se separar de Rodolphe.

Qualquer coisa mais forte do que ela a puxava para ele, de tal modo que, um dia, vendo-a aparecer inesperadamente, Rodolphe franziu a testa como quem se sente contrariado.

- O que é que tens? - disse ela. - Estás doente? Fala para mim!

Finalmente, ele declarou, com ar sério, que as visitas dela estavam a tornar-se imprudentes e que ela se comprometia.


X

Pouco a pouco, aqueles receios de Rodolphe tomaram posse dela. O amor tinha começado por embriagá-la, não a deixando pensar em mais nada. Mas agora, que se Lhe havia tornado indispensável à vida, receava sofrer-lhe a mínima perda, ou até mesmo perturbá-lo. Quando voltava de casa dele, lançava em torno de si olhares inquietos, vigiava cada vulto que passasse no horizonte e cada postigo da vila donde pudesse ser avistada. Escutava os passos, os gritos, o ruído das charruas; parava mais pálida e mais trémula do que as folhas dos choupos balouçando por cima da sua cabeça.

Certa manhã em que voltava para casa pareceu-lhe de repente distinguir o longo cano de uma carabina que dava a impressão de estar apontada para ela. Saía obliquamente do rebordo de um barril, meio escondido na vegetação, à beira de uma vala.

Emma, quase a desmaiar de terror, continuou no entanto a avançar, quando do barril surdiu um homem, à semelhança daqueles diabos de mola que saltam repentinamente do fundo das caixinhas de surpresas. Tinha polainas afiveladas até aos joelhos, boné enfiado até aos olhos, os lábios a tremer e o nariz vermelho. Era Binet, o comandante dos bombeiros, à espera dos patos bravos.

- Devia ter avisado de longe! - exclamou ele. - Quando se vê uma espingarda, deve-se sempre dar sinal.

Com este arrazoado, o tesoureiro procurava dissimular o medo que acabara de sentir; porque, existindo uma postura municipal que proibia a caça aos patos a não ser de barco, o senhor Binet, apesar do seu respeito pelas leis, encontrava-se em transgressão. De maneira que lhe parecia ver surgir, a cada instante, o guarda-florestal. Mas este sobressalto excitava-lhe o prazer e, sozinho dentro do seu barril, felicitava-se pela sorte e pela esperteza que tinha.

Vendo Emma, pareceu aliviado de um grande peso e, entabulando imediatamente a conversação, disse:

- Não faz calor nenhum, está um frio que corta!

Emma não respondeu. Ele continuou:

- E a senhora a sair assim tão cedo?

- É verdade - balbuciou ela. - Venho de casa da ama onde está a minha filha.

- Ah, perfeitamente. Perfeitamente. Pois eu, tal como me vê, estou aqui desde madrugada; mas o tempo está tão enevoado que, a não ser que me venham parar as penas mesmo à boca do cano...

- Passe muito bem, senhor Binet - interrompeu ela, voltando-lhe as costas.

- Às suas ordens - replicou ele secamente.

E voltou a enfiar-se no barril.

Emma arrependeu-se de ter deixado assim tão bruscamente o tesoureiro. Ele iria sem dúvida fazer conjecturas desfavoráveis. A história da ama era a pior desculpa, porque toda a gente sabia em Yonville que a pequenita dos Bovary há um ano já que voltara para casa dos pais. Além disso, não morava ninguém por ali perto e aquele caminho só dava passagem para a Huchette; portanto, Binet calculara donde ela vinha e não se calaria, daria à língua, era mais que certo! Emma ficou até à noite a torturar o espírito com todos os projectos de mentiras imagináveis, vendo sempre na sua frente aquele caçador imbecil.

Charles, depois do jantar, vendo-a inquieta, quis levá-la a casa do farmacêutico para a distrair; e a primeira pessoa com quem Emma encarou na farmácia logo haveria de ser ele, o tesoureiro! Estava de pé, diante do balcão, iluminado pela luz da redoma vermelha, e dizia:

- Dê-me, por favor, meia onça de vitríolo.

- Justin - gritou o boticário -, traz-me o ácido sulfúrico!

Depois, voltando-se para Emma, que queria subir ao quarto da senhora Homais:

- Não, pode esperar, não vale a pena, ela desce já.

Entretanto vá-se aquecendo um pouco ao pé do fogão.

Desculpe-me... Boa tarde, doutor. (o farmacêutico sentia grande prazer em pronunciar esta palavra doutor, como se, dirigindo-a a outro, fizesse ressaltar sobre si mesmo qualquer coisa da pompa que Lhe atribuía)... Mas toma cuidado, não derrubes algum almofariz! Vai antes buscar as cadeiras da salinha; já sabes que não se desarrumam as poltronas da outra sala.

Homais saía precipitadamente do balcão para arrumar a sua poltrona, quando Binet lhe pediu meia onça de ácido de açúcar.

- Ácido de açúcar? - disse desdenhosamente o farmacêutico. - Não sei o que é, desconheço! Talvez queira dizer ácido oxálico? É oxálico, não é?

Binet explicou que tinha necessidade de um mordente para fazer uma água de cobre que servisse para desenferrujar diversos apetrechos de caça. Emma estremeceu. O farmacêutico pôs-se a dizer:

- Com efeito, o tempo não está propício, por causa da humidade.

- No entanto - prosseguiu o tesoureiro com um ar de finório - há pessoas que se dão bem com ele.

Ela sentia-se sufocar.

- Dê-me ainda...

“E nunca mais se vai embora!”, pensava Emma.

- Meia onça de pez e terebintina, quatro onças de cera virgem e onça e meia de negro-animal, se faz favor, para limpar as correias envernizadas do meu equipamento.

Começava o boticário a cortar a cera, quando a senhora Homais apareceu com Irma nos braços, Napoléon agarrado à saia e Athalie atrás. Foi sentar-se no banco de veludo encostado à janela e o pequeno acocorou-se num tamborete, enquanto a irmãzita mais velha girava à volta da caixa de melaço, ao pé do paizinho. Este enchia funis e rolhava frascos, colava rótulos, fazia pacotes. Estabelecia-se silêncio em torno dele; e apenas se ouvia de tempos a tempos tinir os pesos nas balanças, de mistura com algumas palavras do farmacêutico, em voz baixa, dando conselhos ao praticante.

- Como vai a sua menina? - perguntou de repente a senhora Homais.

- Silêncio! - exclamou o marido, que escrevia algarismos no borrador.

- Porque não a trouxe consigo? - prosseguiu ela a meia voz.

- Chiu! Chiu! - fez Emma, apontando para o boticário.

Mas Binet, todo absorvido a conferir a soma, provavelmente não ouvira nada. Finalmente saiu. Então Emma, aliviada, soltou um grande suspiro.

- Como respira fundo! - disse a senhora Homais.

- Ah! É que está um pouco de calor - respondeu ela.

Trataram, pois, no dia seguinte, de organizar os seus encontros. Emma queria subornar a criada com um presente; mas seria melhor descobrir em Yonville uma casa discreta. Rodolphe prometeu procurar uma.

Durante todo o Inverno, três ou quatro vezes por semana, quando já era noite fechada, vinha ele ter ao jardim. Emma, de propósito, tirara da cancela a chave, que Charles julgava haver-se perdido.

Para a avisar, Rodolphe atirava um punhado de areia contra as persianas. Ela erguia-se em sobressalto; mas às vezes era obrigada a esperar, porque Charles tinha a mania de ficar ao pé do fogo, numa conversa que parecia não ter fim. Emma mordia-se de impaciência. Se fosse possível, lançá-lo-ia pela janela fora com os olhos. Por fim começava a fazer a sua toilette de noite; depois pegava num livro e continuava a ler muito sossegadamente, como se a leitura a distraísse. Mas Charles, já na cama, chamava-a para se deitar.

- Vem, anda, Emma - dizia ele de vez em quando.

- Sim, já vou! - respondia ela.

Entretanto, como a luz das velas o incomodava, voltava-se para a parede e adormecia. Ela escapava-se, suspendendo a respiração, sorridente, palpitante, despida.

Rodolphe trazia um grande capote; envolvia-a completamente e, passando-lhe o braço em volta da cintura, sem falar, levava-a até ao fundo do jardim.

Era debaixo do caramanchão, sobre aquele mesmo banco de troncos velhos onde antes Léon a contemplara tão amorosamente durante as noites de Verão. Agora já nem pensava nele.

As estrelas brilhavam por entre os ramos dos jasmineiros sem folhas. Ouviam, por trás, o rio a correr e, de quando em quando, na margem, o estalar dos juncos secos. Aqui e além, na escuridão, avolumavam-se maciços de sombra, que, por vezes, estremecendo todos num único movimento, se erguiam e inclinavam como imensas vagas negras que avançassem para os envolver. O frio da noite fazia-os estreitarem-se mais; os suspiros que se Lhes soltavam dos lábios pareciam-lhes mais intensos; os olhos, que ambos mal podiam ver, pareciam-lhes maiores e, no meio do silêncio, havia palavras ditas em sussurro que lhes caíam na alma com uma sonoridade cristalina e ali se repercutiam em vibrações múltiplas.

Quando a noite estava chuvosa, iam refugiar-se no gabinete das consultas, entre o telheiro e a cavalariça. Ela acendia um dos castiçais da cozinha, que escondera atrás dos livros.

Rodolphe instalava-se ali como em casa. A vista dos livros e da secretária, de todo o aposento, enfim, excitava-lhe o humor; e não se continha sem dizer, a propósito de Charles, uma série de gracejos que embaraçavam Emma. Esta preferiria vê-lo mais sério e, ocasionalmente, mesmo mais dramático, como daquela vez em que Lhe parecera ter ouvido um rumor de passos que se aproximavam.

- Vem gente! - disse Emma.

Ele assoprou a vela.

- Tens a tua pistola?

- Para quê?

- Mas... para te defenderes - replicou ela.

- De quem? Do teu marido? Oh, desgraçado dele!

E rematou a frase com um gesto que significava: Esmagava-o com um piparote.” Emma ficou surpreendida com tanta bravura, apesar de ter notado nele um género de indelicadeza e de grosseria ingénua que a escandalizou.

Rodolphe reflectiu muito naquela história da pistola. Se ela falara a sério, a coisa era bastante ridícula, pensava, e até odiosa, porque, pela sua parte, não tinha nenhuma razão para odiar o pobre do Charles, não se sentindo propriamente devorado por ciúmes; e, a propósito disto, fizera-lhe Emma um grande juramento, que ele também não achara do melhor gosto.

Além disso, ela tornava-se muito sentimental. Fora necessário trocarem retratos em miniatura, tinham cortado um ao outro madeixas de cabelo e agora pedia ela um anel, uma verdadeira aliança de casamento, em sinal de aliança eterna.

Falava-Lhe muitas vezes dos sinos da tarde ou das vozes da natureza; depois falava-lhe da sua mãe e da mãe dele. Havia vinte anos que Rodolphe a perdera. Emma, no entanto, consolava-o com afectações da linguagem, como se ele fosse um miúdo abandonado, e até lhe dizia, às vezes, fixando a Lua:

- Tenho a certeza de que, lá em cima, juntas, ambas aprovam o nosso amor.

Porém, Emma era tão linda! Bem poucas havia ele possuído com semelhante candura! Aquele amor sem libertinagem era para Rodolphe qualquer coisa de novo que, fazendo-o sair dos seus hábitos fáceis, lhe acariciava ao mesmo tempo o orgulho e a sensualidade. A exaltação de Emma, que o seu bom senso burguês desdenhava, parecia-lhe, no fundo, encantadora, uma vez que era dirigida à sua pessoa. Então, certo de ser amado, deixou de se constranger e, insensivelmente, foi modificando as suas maneiras.

Já não tinha, como dantes, aquelas palavras tão doces que a faziam chorar, nem aquelas carícias veementes que a faziam endoidecer; de tal maneira que o grande amor existente entre ambos, e em que ela vivia mergulhada, lhe pareceu diminuir aos seus pés, como a água de um rio absorvida pelo seu próprio leito descobrindo o lodo. Emma não quis acreditar; redobrou de ternura; e Rodolphe foi escondendo cada vez menos a sua indiferença.

Ela não sabia se lastimava ter-Lhe cedido, ou se não desejava, pelo contrário, querer-lhe ainda mais. A humilhação de se sentir fraca transformava-se num rancor que se acalmava com as voluptuosidades. Não era dedicação, era uma espécie de sedução permanente. Ele subjugava-a. Ela quase que tinha medo dele.

Apesar disso, as aparências eram mais serenas que nunca, porque Rodolphe conseguira conduzir o adultério segundo a sua fantasia; e, ao fim de seis meses, quando chegou a Primavera, encontravam-se, um em relação ao outro, como duas pessoas casadas que alimentam tranquilamente uma chama doméstica.

Era a época em que o tio Rouault enviava o seu peru, em recordação da perna curada. O presente chegava sempre com uma carta. Emma cortou o fio que a prendia ao cesto e leu as seguintes linhas:

 

Meus queridos filhos:

Espero que esta vos possa encontrar de boa saúde e que o peru seja tão bom como os outros; ele até me parece um pouco mais tenro e mesmo mais carnudo. Mas, da próxima vez, para variar, vou mandar um galo, a não ser que mantenham a preferência pelos perus; e devolvam-me a cesta, por favor, juntamente com as duas anteriores. Tive um azar com a cocheira, numa noite de muito vento foi-se-me a cobertura pelos ares. A colheita também não foi muito famosa. Enfim, não sei quando vos poderei ir ver. Agora é-me tão difícil deixar a casa, desde que estou só, minha boa Emma!

 

E seguia-se um intervalo entre as linhas, como se o pobre homem tivesse deixado cair a pena para meditar por algum tempo.

 

Quanto a mim, vou passando bem, a não ser uma constipação que apanhei no outro dia na feira de Ivetot, onde fui contratar um pastor, porque tinha mandado o meu embora por ser de má boca. É uma carga de trabalhos com esses ladrões! Ainda por cima era desonesto.

Soube por um vendedor ambulante que passou por aí este Inverno Que foi arrancar um dente que o Bovary continua a trabalhar no duro. Não me admira nada isso, e o homem mostrou-me o dente, tomámos um café juntos. Perguntei-lhe se ele te tinha visto e disseme que não, mas que vira dois cavalos na estrebaria, donde concluo que o negócio está dando.

Ainda bem, meus queridos filhos, e que Nosso Senhor vos conceda toda a felicidade que se possa imaginar.

Tenho muita pena de ainda não conhecer a minha querida netinha Berthe Bovary. Plantei para ela, no quintal, por baixo do teu quarto, uma linda ameixieira e não deixo que ninguém lhe toque, a não ser para depois Lhe fazer compotas, que vou guardar no armário, para ela comer quando cá vier.

Adeus, meus queridos filhos. Um beijo para ti, minha filha, para si também, meu genro, e para a pequenina, em ambas as faces.

Sou com muitas saudades, Vosso pai afectuoso, Théodore Rouault.

Emma ficou ainda alguns minutos com o papel entre os dedos.

Os erros de ortografia eram uns atrás dos outros e ela seguia o meigo sentido daquelas palavras que pareciam o cacarejar de uma galinha meio escondida atrás de uma sebe de espinhos. A tinta fora seca com cinzas da lareira, porque lhe caiu um pouco de pó cinzento sobre o vestido, e parecia-Lhe até estar vendo o pai curvado sobre o lume para pegar na tenaz. Há quanto tempo já que não estava ao pé dele, no escabelo, junto à chaminé, quando se punha a queimar a ponta de um pau na grande chama dos juncos marinhos que crepitavam!...

Lembrava-se das tardes de Verão cheias de sol. Os poldros relinchavam quando passava alguém e galopavam, galopavam...

Havia debaixo da sua janela um cortiço, e algumas vezes as abelhas, volteando na luz, batiam contra a vidraça como balas de ouro fazendo ricochete. Que tempo feliz aquele! Que liberdade! Que esperança! Que abundância de ilusões! Agora já não lhe restava nenhuma! Gastara-as todas com as aventuras da sua alma, em todas as condições sucessivas, na virgindade, no casamento e no amor, perdendo-as assim continuamente ao longo da vida, como um viajante que deixa parte da sua riqueza em cada estalagem do caminho.

Mas quem a fazia assim tão infeliz? Onde estava a extraordinária catástrofe que a revolvera? E ergueu a cabeça, olhando em torno de si, como que para procurar a causa do que a fazia sofrer.

Um raio de Abril refulgia nas porcelanas da prateleira, o fogo crepitava, ela sentia debaixo das pantufas a macieza da alcatifa, o dia estava claro, a atmosfera cálida, e ouvia a filha soltando gargalhadas.

Com efeito, a pequenina brincava nesse momento sobre a erva, no meio do feno posto a secar. Estava deitada de bruços, no alto de uma meda de feno. A criada segurava-a pela saia.

Lestiboudois andava ao lado a sachar e, todas as vezes que se aproximava, a criança inclinava-se e agitava os dois braços no ar.

- Traga-ma cá! - disse a mãe, precipitando-se para a beijar.

- Como eu gosto de ti, minha querida filha! Como gosto de ti!

Depois, reparando que ela tinha as pontas das orelhas um pouco sujas, tocou a campainha para trazerem água quente e limpou-a, mudou-lhe a roupa, as meias, os sapatos, fez-lhe mil perguntas sobre a saúde, como se fosse o regresso de uma viagem, e, por fim, voltando a beijá-la e choramingando, entregou-a de novo à criada, que ficou estupefacta diante daqueles excessos de ternura.

Rodolphe, à noite, achou-a mais séria do que habitualmente.

Isto passa-lhe, pensou ele, é um capricho.

E faltou consecutivamente a três encontros. Quando apareceu novamente, ela mostrou-se fria e quase desdenhosa.

“Ah!, perdes o teu tempo, minha amiguinha...”

Fez de conta que não lhe notava os suspiros melancólicos, nem o lenço que tirava do bolso.

Foi então que Emma se arrependeu!

Perguntou até a si mesma porque detestava Charles e se não teria sido melhor conseguir amá-lo. Ele, porém, não lhe dava grande ensejo a tais regressos do sentimento, de modo que a fazia sentir-se muito embaraçada com a sua veleidade de sacrifício, quando o boticário, mesmo a propósito, Lhe veio proporcionar uma oportunidade.


XI

Tinha Homais lido recentemente o elogio de um novo método para curar pés aleijados, e, como era partidário do progresso, concebeu a patriótica ideia de que Yonville, para se pôr à altura, devia ter operações de estrefopodia.

- Porque - dizia ele a Emma - o que é que se arrisca? Veja bem (e contava, pelos dedos, as vantagens da tentativa): êxito quase certo, alívio e embelezamento do doente, celebridade rapidamente adquirida pelo operador. Porque é que o seu marido, por exemplo, não haveria de querer ajudar aquele pobre Hippolyte, do Leão de Ouro? Note que ele não deixaria de fazer propaganda da cura a todos os viajantes, e, depois (Homais baixava a voz e olhava em torno de si), quem me poderia impedir de enviar para o jornal uma pequena nota sobre o assunto? Oh, meu Deus! um artigo circula..., fazem-se comentários..., acaba por ser como a bola de neve! E quem sabe? Quem sabe?

Efectivamente, Bovary poderia ter êxito, nada indicava a Emma que ele não fosse hábil, e que satisfação haveria de sentir por tê-lo animado num empreendimento com o qual tanto a reputação como a fortuna dele viessem a aumentar! Ela nada mais pedia agora do que poder apoiar-se em qualquer coisa de mais sólido que o amor.

Charles, solicitado pelo boticário e por ela, deixou-se convencer. Mandou vir de Ruão o livro do doutor Duval e todas as noites, com a testa apoiada nas mãos, mergulhava na sua leitura.

Enquanto o médico estudava os equinos, os varos e os valgos, ou seja, a estrefocatopodia, a estrefendopodia e a estrefexopodia (ou, melhor dizendo, os diferentes desvios do pé: para baixo, para dentro ou para fora), juntamente com a estrefipopodia e a estrefanopodia (por outras palavras, torção para baixo e reviramento para cima), o senhor Homais, com toda a espécie de raciocínios, exortava o moço da estalagem a deixar-se operar.

- Quando muito, sentirás, talvez, uma ligeira dor, é uma simples picada como a de uma pequena sangria, menos do que a extirpação de certos calos.

Hippolyte, reflectindo, revolvia uns olhos estúpidos.

- Eu, no entanto - continuava o farmacêutico -, não tenho nada com isso! É por ti! Simples sentimento humanitário!

Gostava de ver-te, meu amigo, livre da tua hedionda claudicação, com esse baloiçar da região lombar, que, por mais que digas, te deve prejudicar consideravelmente no exercício da tua profissão.

Então, Homais fazia-lhe ver como ele se haveria de sentir depois mais alegre e desembaraçado, e até Lhe dava a entender que ficaria em melhores condições de agradar às mulheres, e o moço de cavalariça punha-se a sorrir grosseiramente. Depois atacava-o pelo lado da vaidade:

- Não és um homem, caramba? Que seria então se tivesses de servir no exército, de combater pela pátria?... Ah! Hippolyte!

E Homais afastava-se, declarando que não compreendia aquela teimosia, aquela cegueira em recusar os benefícios da ciência.

O infeliz cedeu, porque foi uma autêntica conjuração. Binet, que nunca se metia nos assuntos dos outros, a senhora Lefrançois, Artémise, os vizinhos e até o administrador, o senhor Tuvache, toda a gente o instigou, lhe fez sermões, o procurou envergonhar, mas o que acabou por convencê-lo foi o facto de não lhe custar dinheiro. Bovary encarregava-se mesmo de oferecer o aparelho para a operação. Emma tivera a ideia dessa generosidade, e Charles acedeu, dizendo para consigo que a sua mulher era um anjo.

Com os conselhos do farmacêutico, e depois de ter voltado três vezes ao princípio, conseguiu então que o marceneiro, ajudado pelo serralheiro, lhe construísse uma espécie de caixa com o peso aproximadamente de oito libras, em que não houve economia de ferro, madeira, lata, couro, porcas e parafusos.

Entretanto, para saber que tendão cortar a Hippolyte, era necessário primeiro conhecer a espécie de pé boto que ele tinha.

Tinha ele um pé que fazia quase uma linha recta com a perna, o que não impedia que fosse voltado para dentro, de sorte que era um equino combinado com um pouco de varo, ou então um varo ligeiro fortemente acentuado de equinismo. Mas, com aquele pé equino, efectivamente grosso como uma pata de cavalo, de pele rugosa, tendões secos, grandes dedos, em que as unhas negras pereciam os cravos de uma ferradura, o estrefópode galopava como um veado de manhã até à noite. Era continuamente visto na praça, a saltitar em volta das carroças, atirando para a frente o seu membro desigual. Parecia até ter mais vigor naquela perna do que na outra. À força de ser exercitada, ela como que tinha contraído qualidades morais de paciência e energia, e, quando lhe davam algum trabalho importante, era sobre essa perna que ele, de preferência, se apoiava.

Ora, visto tratar-se de um equino, era preciso cortar o tendão de Aquiles, ainda que se tivesse de mexer mais tarde no músculo tibial anterior para resolver o problema do varo, porque o médico não ousava fazer ao mesmo tempo as duas operações, e mesmo assim já se sentia tremer de medo, não fosse atingir alguma região importante que não conhecesse.

Nem Ambroise Paré, aplicando pela primeira vez desde Celso, após quinze séculos de intervalo, a laqueação imediata de uma artéria, nem Dupuytren, quando estava para abrir um abcesso através de uma espessa camada de encéfalo, nem Gensoul, quando fez a primeira ablação do maxilar superior, sentiram provavelmente palpitar tanto o coração, tremer a mão tanto, nem uma tão grande tensão mental como aconteceu ao doutor Bovary quando se aproximou de Hippolyte com o seu tenótomo entre os dedos. E, como nos hospitais, via-se ao lado, em cima de uma mesa, uma quantidade de farrapos de linho, de linhas enceradas e muitas ligaduras, uma pirâmide de ligaduras, todas as ligaduras que havia em casa do boticário. Fora Homais quem organizara, desde a manhã, todos estes preparativos, tanto para deslumbrar a multidão, como para se iludir a si próprio.

Charles picou a pele, ouviu-se um estalido seco. O tendão estava cortado, a operação terminada. Hippolyte não se refazia da surpresa, inclinava-se sobre as mãos de Bovary para cobri-las de beijos.

- Vamos! Acalma-te - dizia o boticário. - Testemunharás depois o teu reconhecimento ao teu benfeitor!

E desceu a contar o resultado a cinco ou seis curiosos que estacionavam no pátio e imaginavam que Hippolyte ia logo aparecer a andar direito. Depois Charles, tendo afivelado o seu doente ao aparelho mecânico, voltou para casa, onde Emma, toda ansiosa, o esperava à porta. Ela saltou-Lhe ao pescoço, sentaram-se à mesa, ele comeu muito e quis até, à sobremesa, tomar uma chávena de café, extravagância que se permitia ter apenas ao domingo, quando havia visitas.

O serão foi encantador, cheio de conversa, de sonhos em comum. Falaram da futura fortuna, dos melhoramentos a fazer na casa, ele via alastrar-se a sua fama, avolumar-se o seu bem-estar, tendo sempre o amor da mulher, e ela sentia-se feliz por se refrescar com um sentimento novo, mais são, melhor, por experimentar, enfim, alguma ternura por aquele pobre rapaz que tanto lhe queria. Passou-Lhe pela cabeça, durante um momento, a lembrança de Rodolphe, mas voltou os olhos para Charles: notou até com surpresa que ele não tinha os dentes feios.

Estavam eles na cama quando o senhor Homais, sem atender à cozinheira, entrou de repente no quarto, segurando na mão uma folha de papel em que acabava de escrever. Era a publicidade destinada a Le Fanal de Rouen. Vinha trazê-la para que a lessem.

- Leia o senhor mesmo - disse Bovary.

Ele leu:

- Apesar dos preconceitos que cobrem ainda uma parte da face da Europa como uma rede, a luz começa contudo a penetrar nos nossos campos. Foi assim que, na terça-feira, a nossa pequena vila de Yonville se viu teatro de uma experiência cirúrgica que é, ao mesmo tempo, um acto de elevada filantropia. O doutor Bovary, um dos nossos mais distintos especialistas...

- Oh!, é de mais! É de mais! - dizia Charles, sufocado pela emoção.

- Deixe-se disso, não é nada de mais! Ora essa!... operou um pé aleijado... Não pus o termo científico porque, como sabe,

num jornal..., talvez nem toda a gente compreendesse, é preciso que as massas...

- Tem razão - disse Bovary. - Continue.

- Volto a ler - disse o farmacêutico. - O doutor Bovary, um dos nossos mais distintos especialistas, operou um pé aleijado a Hippolyte Tautain, moço de cavalariça há vinte e cinco anos no hotel do Leão de Ouro, gerido pela viúva Lefrançois, na Praça de Armas. A novidade da experiência e o interesse que se ligava ao assunto tinha atraído uma tal afluência de habitantes, que havia uma verdadeira multidão à entrada do estabelecimento. A operação, afinal, foi praticada como que por encanto e mal apareceram sobre a pele algumas gotas de sangue, como para assinalar que o tendão rebelde acabava finalmente de ceder aos esforços da arte. O doente, coisa estranha (afirmamo-lo de viso), não acusou nenhuma dor. O seu estado, até ao presente, não deixa nada a desejar. Tudo leva a crer que a convalescença será breve, e quem sabe até se, na próxima festa da vila, não veremos o nosso bom Hippolyte figurar nas danças báquicas, no meio de um coro de alegres companheiros, provando assim perante o olhar de todos, com energia e agilidade nos saltos, a sua completa cura? Honra, pois, aos sábios generosos! Honra aos espíritos infatigáveis que consagram as suas vigílias ao melhoramento ou ainda à cura da espécie humana! Honra!, três vezes honra! Não será este o caso de exclamar que os cegos verão, os surdos ouvirão e os coxos andarão? O que outrora o fanatismo prometia aos seus eleitos oferece hoje a ciência a todos os homens! Manteremos os nossos leitores informados acerca das fases sucessivas desta cura tão extraordinária.” Isto não impediu que, cinco dias depois, aparecesse a tia Lefrançois, desvairada, a gritar:

- Acudam! Ele está a morrer!... Eu perco a cabeça!

Charles precipitou-se para o Leão de Ouro e o farmacêutico, que o viu passar pela praça, sem chapéu, abandonou a farmácia.

Apareceu ele também esbaforido, afogueado, inquieto, a perguntar a todos os que subiam a escada:

- O que tem então o nosso interessante estrefópode?

O estrefópode contorcia-se em atrozes convulsões, de tal maneira que a caixa mecânica em que tinha a perna encerrada batia contra a parede, a ponto de a esburacar.

Com muitas precauções, para não deslocar a posição do membro, retirou-se então a caixa e viu-se um espectáculo horroroso.

A forma do pé desaparecia numa tal inchação que toda a pele parecia prestes a estalar e estava coberta de equimoses provocadas pelo famoso aparelho. Hippolyte já se queixara com dores, mas não lhe tinham ligado importância, houve que reconhecer que ele sempre tivera alguma razão e deixaram-no livre durante algumas horas. Mas, mal o edema desaparecera um pouco, logo os dois sábios acharam por bem repor o membro no aparelho, apertando-o mais, para apressar os resultados.

Enfim, três dias depois, como Hippolyte já não aguentava mais, retiraram uma vez mais o mecanismo, ao mesmo tempo que ficavam muito admirados com o resultado que se lhes deparou.

Estendia-se pela perna uma tumefacção lívida, com algumas ampolas por onde escorria um líquido escuro. A coisa tomava um aspecto grave. Hippolyte começava a aborrecer-se e a tia Lefrançois instalou-o na sala pequena, ao pé da cozinha, para que ao menos tivesse alguma distracção.

Mas o tesoureiro, que todos os dias ali ia jantar, queixava-se amargamente de tal vizinhança. Levaram então Hippolyte para a sala de bilhar.

Ali estava ele, gemendo debaixo dos grosseiros cobertores, pálido, com a barba crescida, os olhos encovados e, de tempos a tempos, voltando a cabeça coberta de suor na suja almofada onde pousavam as moscas. A senhora Bovary ia vê-lo. Levava-lhe panos para as cataplasmas e consolava-o, animava-o. Aliás, não lhe faltava companhia, sobretudo nos dias de mercado, quando em volta deles os aldeãos empurravam as bolas do bilhar, esgrimiam com os tacos, fumavam, bebiam, cantavam e vociferavam.

- Como estás tu? - perguntavam eles, batendo-lhe no ombro. - Eh, lá!, parece que estás desanimado! Mas a culpa é tua.

Devias fazer isto, fazer aquilo.

E contavam-Lhe histórias de indivíduos que se tinham curado com remédios diferentes daqueles, depois, à maneira de consolação, acrescentavam:

- É que ligas demasiada importância a isso! Levanta-te daí!

Estás refestelado como um rei! O que é verdade, meu intrujão, é que não estás a cheirar nada bem!

Com efeito, a gangrena ia subindo cada vez mais. O próprio Bovary sentia-se doente com aquilo. Vinha vê-lo a todas as horas, de momento a momento. Hippolyte olhava-o com olhos espantados e balbuciava, soluçando:

- Quando é que vou ficar bom?... Ai!, salve-me... Oh, que desgraça a minha!, que desgraça a minha!

O médico ia-se embora, voltando a recomendar-lhe a dieta.

- Não lhe dês ouvidos, rapaz - dizia-lhe a tia Lefrançois.Não estás farto de ser martirizado? Ainda apanhas alguma fraqueza. Anda, engole!

E apresentava-lhe um bom caldo, um pedaço de carneiro, um bocado de toucinho e, às vezes, um copinho de aguardente, que ele nem tinha coragem de levar à boca.

O padre Bournisien, sabendo que ele estava a piorar, pediu para o ver. Começou por lastimá-lo da sua doença, dizendo, ao mesmo tempo, que se devia regozijar, pois que essa era a vontade de Nosso Senhor, e aproveitar quanto antes a ocasião para se reconciliar com o Céu.

- Porque - dizia o eclesiástico num tom paternal - tu negligenciavas um pouco os teus deveres, raras vezes aparecias no ofício divino, há quantos anos não te aproximas da mesa da comunhão? Compreendo que as tuas ocupações e o turbilhão do mundo tenham podido afastar-te do cuidado da salvação. Mas agora é o momento de reflectir. Não percas a esperança, tenho conhecido grandes culpados que, prestes a comparecer na presença de Deus (bem sei que ainda não chegaste a esse ponto), tinham implorado a sua misericórdia e que certamente morreram nas melhores disposições. Espero que, tal como eles, tu nos dês bons exemplos! De maneira que, por precaução, quem te impede de rezar de manhã e à noite uma ave-maria... e um padre-nosso? Faz então isso! Olha, em atenção a mim, dá-me esse prazer. O que é que te custa?... Prometes-me?

O pobre diabo prometeu. O padre voltou nos dias seguintes.

Cavaqueava com a estalajadeira e até contava anedotas entremeadas de gracejos, de trocadilhos que Hippolyte não entendia. Depois, quando as circunstâncias o permitiam, voltava aos assuntos da religião, assumindo uns ares convenientemente apropriados.

O seu zelo pareceu dar resultado, pois o estrefópode, dentro de pouco tempo, manifestou o desejo de ir em peregrinação ao Bom Socorro, se ficasse curado, ao que o padre Bournisien respondeu que não via nisso nenhum inconveniente, duas precauções valem mais do que uma. Não se perdia nada com isso.

O boticário indignava-se com o que ele chamava as manobras do padre, achava que prejudicavam a convalescença de Hippolyte e repetia para a senhora Lefrançois:

- Deixem-no! Deixem-no! O vosso misticismo perturba-lhe o moral!

Mas a boa mulher não lhe dava ouvidos. Ele era o centro de tudo. Por espírito de contradição, até pendurou à cabeceira do doente uma piazinha de água benta, com um raminho de buxo.

Entretanto, a religião não parecia ajudá-lo mais do que a cirurgia e a invencível podridão ia sempre subindo das extremidades para o ventre. Por mais que tivessem variado as poções e as cataplasmas, os músculos iam mirrando de dia para dia e, por fim, Charles acenou afirmativamente com a cabeça quando a tia Lefrançois lhe perguntou se não podia, como último recurso, mandar chamar o doutor Canivet, de Neufchâtel, que era uma celebridade.

Doutor em Medicina, de cinquenta anos de idade, desfrutando uma boa posição e seguro de si mesmo, o colega não teve pejo de se rir desdenhosamente quando descobriu aquela perna gangrenada até ao joelho. Depois de declarar com toda a franqueza que era necessário amputá-la, foi à farmácia invectivar os asnos que tinham conseguido reduzir um infeliz àquele estado. Sacudindo o senhor Homais pelo botão da sobrecasaca, pôs-se a vociferar:

- Ora aí estão as invenções de Paris! As ideias desses senhores da capital! É como o estrabismo, o clorofórmio e a litotripsia, uma data de monstruosidades que o governo devia proibir! Querem fazer-se espertos e toca de enfiar remédios sem querer saber das consequências. Nós cá não somos tão competentes como eles, não somos sábios, janotas, delambidos, somos é práticos, médicos que curam, e não nos passaria pela cabeça operar quem goza de perfeita saúde! Endireitar pés botos! Mas alguma vez se podem endireitar os pés botos? Era a mesma coisa que querer, por exemplo, endireitar um corcunda!

Homais sofria ao ouvir aquele discurso e dissimulava o seu mal-estar com um sorriso bajulador, por precisar de tratar com deferência o doutor Canivet, cujas receitas chegavam às vezes a Yonville, por isso não tomou a defesa de Bovary, não fez, por seu lado, nenhuma observação e, abandonando os seus princípios, sacrificou a dignidade aos interesses mais sérios do negócio.

Foi na vila um acontecimento importante aquela amputação da coxa pelo doutor Canivet. Todos os habitantes, nesse dia, se haviam levantado mais cedo e a rua principal, apesar de cheia de gente, tinha qualquer coisa de lúgubre, como se se tratasse de uma execução capital. Discutia-se na mercearia a doença do Hippolyte, as lojas não vendiam nada e a senhora Tuvache, mulher do administrador, não arredava da janela, na impaciência de ver chegar o operador.

Este chegou conduzindo o seu próprio cabriolé. Mas, como a mola do lado direito acabara por se cansar com o peso da sua corpulência, acontecia que o veículo seguia um pouco tombado, deixando ver, no outro assento, ao lado do médico, uma grande caixa, coberta de carneira vermelha, com três fechos de cobre brilhando magistralmente.

Quando entrou de rompante no portão do Leão de Ouro, o médico ordenou, aos berros, que lhe desatrelassem o cavalo, depois foi à cavalariça verificar se ele comia bem a aveia, porque, sempre que chegava a casa dos doentes, se ocupava primeiramente da sua égua e do seu cabriolé. Até se dizia, a propósito disso: “Ah!, o doutor Canivet é um tipo original!”, E ainda o estimavam mais por aquele inabalável aprumo. Poderia morrer todo o universo até à última pessoa, que ele não saía do menor dos seus hábitos.

Homais apresentou-se.

- Estou a contar consigo - disse o médico. - Estamos prontos? Então vamos!

Mas o boticário, corando, confessou que era demasiado sensível para assistir a uma operação daquelas.

- Quando se é simples espectador - dizia ele -, a imaginação, como sabe, impressiona-se! E depois tenho o sistema nervoso de tal maneira...

- Ora adeus! - interrompeu Canivet. - O que o senhor me parece é que é propenso à apoplexia. Aliás, isso não me admira nada, porque os senhores farmacêuticos estão sempre encafuados na sua cozinha, o que deve acabar por lhes alterar o temperamento. Olhe bem para mim: todos os dias me levanto às quatro horas, faço a barba com água fria (nunca sinto frio) e não uso flanela, nunca me constipo, tenho uma boa caixa torácica! Vivo ora de uma maneira, ora doutra, como um filósofo, com aquilo que me cai no prato. É por isso que não sou delicado como o senhor e tanto se me faz esquartejar um cristão como a primeira ave que me apareça. Depois disto, o senhor dirá que é o hábito..., o hábito!...

Então, sem qualquer consideração por Hippolyte, que suava de angústia dentro dos lençóis, aqueles senhores entabularam uma conversa em que o boticário comparava o sangue-frio... de um cirurgião com o de um general, e o paralelo agradou a Canivet, que se espraiou em palavreado sobre as exigências da sua arte.

Considerava-a como um sacerdócio, ainda que os oficiais de saúde contribuíssem para o seu descrédito. Por fim, voltando ao doente, examinou as ligaduras trazidas por Homais, as mesmas que tinham sido apresentadas para a operação do pé boto, e reclamou alguém para vir segurar no membro. Mandaram chamar Lestiboudois, e o doutor Canivet, depois de arregaçar as mangas, passou à sala de bilhar, enquanto o boticário se deixava ficar ao pé de Artémise e da estalajadeira, mais pálidas as duas do que os aventais que traziam, e de ouvido apurado na direcção da porta.

Enquanto isto se passava, Bovary não se atrevia a sair de casa. Manteve-se em baixo, na sala, sentado ao pé do fogão apagado, de queixo encostado ao peito, as mãos juntas, os olhos parados. “Que infelicidade”, pensava ele, que desilusão!

Tomara, no entanto, todas as precauções imagináveis. Fora a fatalidade que se lhe atravessara no caminho. De qualquer maneira, se Hippolyte viesse ainda a morrer, teria sido ele a assassiná-lo. E, depois, que razões poderia apresentar quando fosse visitar doentes e Lhe fizessem perguntas? Talvez, entretanto, se tivesse enganado em qualquer coisa? Procurava, mas não encontrava. Contudo, até os mais famosos cirurgiões estavam sujeitos a enganar-se. Nisso ninguém iria acreditar!

Pelo contrário, iriam rir-se e falar mal! O caso espalhar-se-ia até Forges!, até Neufchâtel!, até Ruão!, por toda a parte! Quem sabe se alguns colegas não iriam escrever contra ele? Isso daria lugar a uma polémica, seria necessário responder pelos jornais. O próprio Hippolyte poderia mover-lhe um processo. Via-se desacreditado, arruinado, perdido! E a sua imaginação, assaltada por uma multidão de hipóteses, balouçava no meio de todas elas como um barril vazio lançado ao mar, rolando sobre as ondas.

Emma, na frente dele, fitava-o, não participava da sua humilhação, mas sentia outra: a de ter imaginado que semelhante homem pudesse ter algum valor, como se não tivesse já verificado dezenas de vezes a sua mediocridade.

Charles passeava de um lado para outro, na sala. As botas faziam ranger o soalho.

- Senta-te, que me irritas! - disse ela.

Ele sentou-se.

Mas como pudera ela (tão inteligente como era) enganar-se uma vez mais? Além disso, por que deplorável mania haveria de ter estragado assim a sua existência em sacrifícios contínuos?

Recordava todos os seus instintos de luxo, todas as privações da alma, as baixezas do casamento, da vida doméstica, os sonhos desfeitos na lama como andorinhas feridas, tudo o que havia desejado, tudo o que negara a si mesma, tudo o que poderia ter tido! E porquê? Porquê?

No meio do silêncio que enchia a vila, atravessou o ar um grito lancinante. Bovary ficou pálido como se fosse desmaiar.

Ela franziu as sobrancelhas num gesto nervoso, depois prosseguiu no pensamento. Fora, no entanto, por ele, por aquele ser, por aquele homem que não compreendia nada, que não sentia nada, pois estava ali muito tranquilamente, sem sequer pensar que o ridículo do seu nome iria dali em diante atingi-la a ela tanto como a ele. Fizera esforços para o amar e arrependera-se, chorando, de haver cedido a outro.

- Quem sabe se era um valgo! - exclamou subitamente Bovary, que estivera meditando.

Com o choque imprevisto desta frase caindo-lhe sobre o pensamento como uma bala de chumbo numa salva de prata, Emma, estremecendo, ergueu a cabeça, tentando adivinhar o que ele queria dizer, olharam-se ambos silenciosamente, quase surpreendidos de se verem, de tal modo se encontravam, em espírito, afastados um do outro. Charles contemplava-a com o olhar turvo de um bêbedo, enquanto escutava, imóvel, os últimos gritos do amputado, que se sucediam em modulações arrastadas, cortadas por arranques agudos, como o uivo longínquo de um animal a ser degolado. Emma mordia os lábios descorados e, rolando entre os dedos um dos raminhos do polipeiro que ela quebrara, fixou sobre Charles o ponto ardente das pupilas, como duas flechas de fogo prestes a disparar. Tudo nele agora a irritava, o rosto, o vestuário, o que ele não dizia, toda a sua pessoa, a sua própria existência. Arrependia-se, como de um crime, da sua virtude passada, e o que dela ainda restava desabava sob os golpes furiosos do seu orgulho. Deleitava-se com todas as ironias maliciosas do adultério triunfante. A recordação do amante vinha-lhe ao espírito com atracções vertiginosas: entregava-lhe a alma, impelida para a sua imagem por um novo entusiasmo, e Charles parecia-lhe tão separado da sua vida, tão definitivamente ausente, tão impossível e aniquilado, como se fosse morrer e estivesse agonizando na sua frente.

Ouviu-se um ruído de passos na rua. Charles olhou e, através da persiana descida, distinguiu ao lado do mercado, em pleno sol, o doutor Canivet limpando a testa com o lenço. Homais, atrás dele, levava na mão uma grande caixa vermelha e ambos se dirigiam para o lado da farmácia.

Então, por um súbito ataque de ternura e de desânimo, Charles voltou-se para a mulher, dizendo:

- Dá-me um beijo, minha querida!

- Deixa-me - disse ela, rubra de cólera.

- Que tens tu? Mas o que é que tens? - repetia ele, estupefacto. - Acalma-te! Sossega!... Sabes bem que te amo!...

Anda cá!

- Basta! - gritou ela com uma expressão terrível.

E fugiu da sala, atirando a porta com tanta força que o barómetro saltou da parede e se fez em pedaços no chão.

Charles deixou-se cair na poltrona, transtornado, pensando no que ela poderia ter, imaginando uma doença nervosa, chorando e sentindo vagamente circular em torno de si qualquer coisa de funesto e incompreensível.

Quando Rodolphe, à noite, chegou ao jardim, encontrou a amante à sua espera ao fundo da escada, sobre o primeiro degrau. Abraçaram-se e todo o seu ressentimento se desfez como a neve ao calor daquele beijo.


XII

Recomeçaram a amar-se. Frequentemente, até, ao meio do dia, Emma resolvia escrever-lhe, depois, por dentro dos vidros, fazia sinal a Justin, que desatava rapidamente o avental e corria à Huchette. Rodolphe chegava, era para lhe dizer que estava enfadada, que o marido lhe era odioso e que levava uma existência horrível!

- Posso eu porventura fazer alguma coisa? - exclamou ele um dia, impaciente.

- Ah!, se tu quisesses!...

Ela estava sentada no chão, entre os joelhos dele, com os cabelos soltos, o olhar perdido.

- Continua - disse Rodolphe.

Ela suspirou.

- Iríamos viver juntos longe daqui..., em qualquer parte...

- Estás louca, realmente! - disse ele a rir. - Como pode ser uma coisa dessas?

Ela insistiu no assunto, ele fez que não compreendia e desviou a conversação.

O que ele não compreendia era toda aquela perturbação numa coisa tão simples como o amor. Emma tinha um motivo, uma razão, como que um reforço para a sua dedicação.

Aquela ternura, com efeito, aumentava de dia para dia, com a repulsa que sentia pelo marido. Quanto mais se entregava a um, mais detestava o outro, nunca Charles lhe parecia tão desagradável, ter as mãos tão sapudas, o espírito tão grosseiro e os modos tão vulgares como depois destes encontros com Rodolphe, em que passavam algum tempo juntos. Então, enquanto fazia de esposa e mulher virtuosa, sentia-se inflamar pela ideia daquela cabeça cujos cabelos negros se enrolavam em caracol sobre a fronte crestada, daquele corpo ao mesmo tempo tão robusto e tão elegante, daquele homem, enfim, tão cheio de experiência e discernimento, tão arrebatado no desejo! Era para ele que limava as unhas com um cuidado de cinzelador e punha sempre mais could cream na pele e pachuli nos lenços.

Carregava-se de braceletes, de anéis, de colares. Quando o esperava, enchia de rosas os seus dois grandes vasos de vidro azul e arrumava o quarto e arranjava-se como uma cortesã que espera um príncipe. A criada tinha de estar sempre a lavar roupa, e, durante o dia todo, Félicité não arredava pé da cozinha, onde o pequeno Justin muitas vezes lhe fazia companhia, vendo-a trabalhar.

Com o cotovelo em cima da grande prancha onde ela passava a ferro, Justin contemplava avidamente toda aquela roupa de mulher espalhada à sua volta: os saiotes de bombazina, os lenços do pescoço, os colarinhos, as calças com cordões, largas nas ancas e estreitas em baixo.

- Para que serve isto? - perguntava o rapazito, passando a mão na crinolina ou nos colchetes.

- Então tu nunca viste nada! - respondia Félicité, rindo.Como se a tua patroa, a senhora Homais, não usasse a mesma coisa. - Ah, sim!, a senhora Homais! E acrescentava, em tom meditativo:

- E ela é uma senhora como esta?

Mas Félicité impacientava-se de o ver girar assim à sua volta. Tinha mais seis anos do que ele, e Théodore, o criado do senhor Guillaumin, começava a fazer-lhe a corte.

- Deixa-me em paz! - dizia ela, mudando de lugar a tigela de goma. Vai lá mas é pilar as amêndoas, andas sempre a remexer em coisas de mulheres, espera ao menos que te apareçam alguns pêlos na barba, meu fedelho maldoso, para depois te meteres nestes assuntos.

- Vá lá, não se zangue comigo, que lhe vou engraxar as botinas.

E logo tirou de cima da prateleira as botinas de Emma, todas empastadas de lama - a lama das saídas à socapa -, que se lhe desfazia em pó entre os dedos e que ele via pairar levemente num raio de sol.

- Que medo que tu tens de as estragar! - dizia a cozinheira, que não usava de tantos cuidados quando as limpava, porque a senhora, mal começavam a envelhecer, as punha logo de parte.

Emma tinha uma quantidade delas no seu armário, que estragava como lhe apetecia, sem que Charles se permitisse fazer-lhe a mínima observação.

Do mesmo modo desembolsou ele trezentos francos por uma perna de madeira que ela achou conveniente oferecer a Hippolyte. Era enchumaçada de cortiça, tinha articulações com molas, um complicado mecanismo coberto por uma calça preta e a terminar numa bota envernizada. Mas Hippolyte, não se atrevendo a usar todos os dias uma perna tão bonita, suplicou à senhora Bovary que lhe arranjasse outra mais simples. O médico, bem entendido, fez ainda mais essa despesa.

O moço de cavalariça recomeçou então, pouco a pouco, a sua actividade. Viam-no, como antes, percorrer toda a aldeia e, quando Charles ouvia de longe o bater seco da sua perna de pau sobre a calçada, apressava-se rapidamente a tomar por outro caminho.

Fora o senhor Lheureux, o mercador, que se encarregara da encomenda, isso lhe proporcionava ocasião de conversar de vez em quando com Emma. Falava-Lhe das novidades recebidas de Paris, de mil curiosidades femininas, mostrava-se muito complacente e nunca reclamava dinheiro. Emma deixava-se ir nesta facilidade de satisfazer todos os caprichos. Assim, ela quis mandar vir, para oferecer a Rodolphe, um lindíssimo pingalim que existia em Ruão, num armazém de chapéus-de-chuva.

O senhor Lheureux, na semana imediata, apresentou-Lho em cima da mesa.

Mas logo no dia seguinte lhe apareceu em casa com uma factura de duzentos e setenta francos, sem contar os centavos.

Emma ficou muito embaraçada: todas as gavetas da secretária estavam vazias, deviam-se mais de quinze dias a Lestiboudois, dois trimestres à criada, ainda uma quantidade de outras coisas, e Bovary esperava impacientemente o envio que o senhor Derozerays tinha o hábito de Lhe fazer, todos os anos, pelas vésperas de São Pedro.

A princípio, Emma conseguiu descartar-se de Lheureux, mas, por fim, ele perdeu a paciência: via-se apertado pelos fornecedores, tinha muito capital na mão dos clientes e, se não recebesse algum dinheiro, seria obrigado a levar outra vez todas as mercadorias com que ela Lhe ficara.

- Está bem! Leve-as! - disse Emma.

- Oh!, estava a brincar! - replicou ele. - Só há uma coisa de que tenho pena: é do pingalim. Palavra de honra! Acho que vou pedi-lo ao senhor doutor.

- Não!, não! - acudiu ela.

“Ah!, apanhei-te!”, pensou Lheureux.

E, seguro da sua descoberta, saiu repetindo a meia voz e com o seu assobiozinho habitual:

“Pois seja! Veremos! veremos!”

Ela pensava em como sair daquele apuro, quando a cozinheira entrou, colocando em cima do fogão um pequeno rolo de papel azul, da parte do senhor Derozerays. Emma foi a correr abri-lo. Continha quinze napoleões. Era a conta. Ouviu Charles subir a escada, atirou o ouro para o fundo da sua gaveta e retirou a chave.

Três dias depois, Lheureux voltou a aparecer.

- Tenho uma proposta a fazer-lhe - disse ele. - Se, em vez da importância combinada, a senhora quisesse...

- Aqui a tem - disse ela, colocando-lhe na mão catorze napoleões.

O mercador ficou estupefacto. Então, para dissimular o malogro, desfez-se em desculpas e em ofertas de serviços, que Emma recusou, depois, ela ficou durante alguns minutos apalpando, no bolso do avental, as duas moedas de cem soldos que ele lhe devolvera. Prometeu a si mesma economizar, a fim de repor mais tarde...

“Ora!”, pensou ela, “nunca mais pensará nisso.”

Além do pingalim com castão de prata dourada, Rodolphe recebera um sinete com esta divisa: Amor nel cor, recebeu ainda um lenço para agasalhar o pescoço e, finalmente, uma caixa para charutos igualzinha à do visconde, que Charles em tempos achara na estrada e que Emma conservava consigo.

Entretanto, estas ofertas humilhavam-no. Recusava algumas, ela insistia e Rodolphe acabava por obedecer, achando-a tirânica e demasiado importuna.

Depois, ela tinha ideias estranhas:

- Quando bater a meia-noite - dizia ela -, pensa em mim!

E, se ele confessava ter-se esquecido, fazia-Lhe uma quantidade de censuras, terminando sempre com a eterna pergunta:

- Amas-me?

- Claro que te amo! - respondia ele.

- Muito?

- Com certeza!

- E nunca amaste outras?

- Julgas então que me conheceste virgem? - exclamava ele, rindo.

Emma chorava e ele esforçava-se por consolá-la, enfeitando com trocadilhos os seus protestos.

- Oh!, é que eu amo-te! - prosseguia ela. - Amo-te a ponto de não poder passar sem ti, sabes isso? Às vezes tenho desejos de te ver e sinto-me atormentada por todas as fúrias do amor.

Ponho-me a perguntar: “Onde estará ele? Quem sabe se está a falar com outras mulheres? Elas sorriem-lhe, ele aproxima-se...” Mas não! Nenhuma outra te agrada, não é verdade? Há algumas mais belas, mas eu sei amar melhor! Sou tua serva e tua concubina. Tu és o meu rei, o meu ídolo, tu és bom, tu és belo!, tu és inteligente!, tu és forte!

Tantas vezes havia ele escutado estas coisas, que já não lhes encontrava nenhuma originalidade. Emma assemelhava-se a todas as amantes, e o encanto da novidade, pouco a pouco, caindo como a roupa que se despe, deixava a nu a eterna monotonia da paixão, que tem sempre as mesmas formas e a mesma linguagem. Rodolphe, um homem com tanta prática, não distinguia a diferença de sentimentos na semelhança das expressões. Porque lábios libertinos ou venais lhe haviam murmurado frases do mesmo género, só muito vagamente acreditava na ingenuidade daquelas.

Era preciso dar o desconto, pensava ele, aos discursos exagerados que escondem afeições medíocres, como se a plenitude da alma não transbordasse por vezes nas metáforas mais ocas, já que jamais alguém pôde dar a exacta medida das suas necessidades, ou das suas concepções, ou das suas dores, É que a palavra humana é como um caldeirão rachado em que se batem melodias para fazer dançar os ursos, quando o que se pretendia era enternecer as estrelas.

Mas, com aquela superioridade de crítica que têm os que, seja qual for o empenho, se mantêm de pé atrás, Rodolphe descobriu naquele amor gozos a explorar. Júlgou incómoda toda a espécie de pudor. Passou a tratá-la sem qualquer respeito.

Fez dela uma coisa maleável e corrupta. Era uma espécie de apego idiota cheio de admiração por ele, de voluptuosidade para ela, uma felicidade que a entorpecia, afundava-se-lhe a alma nesta embriaguez e nela se afogava, engelhada, como o duque de Clarence no seu tonel de malvasia.

Só por efeito dos seus hábitos amorosos, a senhora Bovary mudou de maneiras. O seu olhar tornou-se mais atrevido e a sua conversação mais livre, cometeu até a inconveniência de passear com o senhor Rodolphe, de cigarro na boca, como que para caçoar das pessoas, enfim, os que ainda duvidavam deixaram de ter dúvidas quando ela foi vista, um dia, descer da Andorinha, de corpo cingido por um colete, como os homens, e a própria sogra, que, depois de uma terrível cena com o marido, se viera refugiar em casa do filho, não foi a senhora menos escandalizada. Muitas outras coisas lhe desagradaram: primeiramente, Charles não dera ouvidos aos seus conselhos sobre a proibição dos romances, depois, também não lhe agradava o género da casa, tomou a liberdade de fazer observações e houve zanga, sobretudo uma vez, por causa de Félicité.

A mãe do doutor Bovary, na véspera à noite, ao atravessar o corredor, surpreendera-a na companhia de um homem, um sujeito de colarinho escuro, de cerca de quarenta anos e que, ao ruído dos passos dela, se escapara rapidamente da cozinha. Então, Emma desatou a rir, mas a boa senhora exaltou-se, declarando que, salvo querendo escarnecer dos bons costumes, devia vigiar os hábitos dos criados.

- A que mundo pertence a senhora? - retorquiu a nora, com um olhar de tal modo impertinente que a mãe Bovary lhe perguntou se ela, com semelhante atitude, não estaria defendendo a sua própria causa.

- Saia! - gritou Emma, levantando-se de um pulo.

- Emma!... Mamã!... - exclamava Charles, para as reconciliar.

Mas ambas tinham desaparecido, levadas pela exasperação.

Emma batia o pé, ao mesmo tempo que repetia:

- Oh, que modos! Que grosseria!

Ele correu para a mãe, ela tinha perdido as estribeiras e balbuciava:

- É uma insolente!, uma estouvada!, ou coisa pior ainda!

E queria ir-se embora imediatamente se a outra não lhe viesse pedir desculpa. Charles voltou então para o pé da mulher e suplicou-lhe que cedesse, pôs-se de joelhos e ela acabou por responder:

- Está bem! Vou.

Efectivamente, estendeu a mão à sogra com uma dignidade de marquesa, dizendo-Lhe:

- Desculpe, minha senhora.

Depois, subindo ao quarto, Emma atirou-se de bruços para cima da cama e chorou como uma criança, com a cabeça enterrada no travesseiro.

Tinham combinado, ela e Rodolphe, que, no caso de acontecer qualquer coisa de extraordinário, ela prenderia à persiana um pedaço de papel branco, para que, no caso de ele se encontrar em Yonville, acorrer logo ao beco, atrás da casa. Emma fez o sinal, e já havia três quartos de hora que esperava quando, subitamente, avistou Rodolphe à esquina do mercado. Teve a tentação de abrir a janela e de o chamar, mas ele já desaparecera. Caiu de novo no seu desespero.

Logo de seguida, no entanto, pareceu-Lhe ouvir passos na calçada. Era ele, com certeza, ela desceu a escada e atravessou o pátio. Ele lá estava, do lado de fora. Emma atirou-se-lhe nos braços.

- Vê lá, tem cuidado! - disse ele.

- Oh!, se tu soubesses! - respondeu ela.

E pôs-se a contar-lhe tudo, à pressa, sem nexo, exagerando os factos, inventando algumas coisas e voltando tantas vezes atrás que ele acabou por não compreender nada do que se passara.

- Então, meu pobre anjo, coragem, anima-te, tem paciência!

- Mas já há quatro anos que tenho paciência e que sofro!...

Um amor como o nosso devia confessar-se diante do Céu! Eles estão a torturar-me. Já não aguento mais! Salva-me!

Ela estreitava-se contra Rodolphe. Os seus olhos, inundados de lágrimas, pareciam luzes cintilando debaixo de água, a garganta contraía-se-lhe numa respiração ofegante, nunca Rodolphe sentira tanto amor por ela, a tal ponto que perdeu a cabeça e lhe disse:

- Que achas então que devemos fazer?

- Leva-me! - gritou ela. - Foge comigo!... Peço-te por tudo que me leves.

E precipitou-se sobre a boca dele, como que para agarrar ali o inesperado consentimento que, na forma de um beijo, se exalava.

- Mas... - retornou Rodolphe.

- Mas o quê?

- E a tua filha?

Ela reflectiu alguns minutos e depois respondeu:

- Levamo-la connosco e pronto!

- Que mulher! - disse ele para consigo, vendo-a afastar-se.

Emma escapara-se para o jardim, pois estavam a chamá-la.

A mãe Bovary, nos dias seguintes, ficou muito admirada com a transformação da sua nora. Efectivamente, Emma mostrou-se mais dócil e levou a deferência ao ponto de lhe pedir uma receita para fazer conserva de pepinos.

Seria na intenção de melhor os iludir a ambos? Ou queria ela, por uma espécie de voluptuoso estoicismo, sentir mais profundamente a amargura das coisas que iria abandonar? Mas não prestava qualquer atenção a esse género de sentimentos, vivia, pelo contrário, como perdida no antegozo da sua próxima ventura. Com Rodolphe era um inesgotável tema de conversação.

Apoiava-se ao ombro dele e murmurava:

- Hem? Quando estivermos na mala-posta!... Já pensaste bem?

Será possível? A mim parece-me que, quando sentir a carruagem arrancar, será como se subíssemos num balão, como se partíssemos em direcção às nuvens. Sabes que estou a contar os dias?... E tu?

Nunca a senhora Bovary estivera tão bela como naquela época, tinha aquela indefinível beleza que resulta da alegria, do entusiasmo, do êxito, e que é nem mais nem menos que a harmonia do temperamento com as circunstâncias.

Os seus desejos, os seus pesares, a experiência do prazer e as ilusões constantemente renovadas, como o adubo, a chuva, os ventos e o Sol fazem às flores, tinham-na feito desenvolver gradualmente e desabrochava, por fim, na plenitude da sua natureza. As pálpebras pareciam talhadas expressamente para os seus longos olhares amorosos, em que a pupila se perdia, enquanto uma forte respiração fazia arquear as narinas delicadas e levantava o canto carnudo dos lábios, onde, à luz, se via a leve sombra de um pouco de penugem escura. Dir-se-ia que um artista hábil em seduções Lhe havia disposto sobre a nuca o rolo dos cabelos: enrolavam-se numa massa pesada, negligentemente, aos acasos do adultério, que todos os dias os desmanchava. A voz tomava-lhe agora inflexões mais lânguidas, o mesmo acontecendo com o busto, qualquer coisa de subtil e penetrante se lhe desprendia até das pregas do vestido e do arqueamento do pé. Charles, como nos primeiros tempos do casamento, achava-a deliciosa e irresistível de todo.

Quando ele regressava a meio da noite, não se atrevia a acordá-la. A lamparina de porcelana arredondava no tecto uma claridade trémula e as cortinas fechadas do pequeno berço formavam como que uma cabana branca que sobressaía da sombra, ao lado da cama. Charles contemplava-as. Parecia-lhe ouvir a leve respiração da filha. Ela iria agora crescer, cada estação do ano levá-la-ia a fazer rapidamente um novo progresso. Já a via regressando da escola ao fim da tarde, toda risonha, com o bibe manchado de tinta, de cestinha no braço, depois seria preciso pô-la num colégio, o que representaria uma despesa grande, como haveria de ser? Então reflectia. Pensava em arrendar uma pequena quinta nos arredores, que ele mesmo vigiaria, todas as manhãs, quando saísse para ir ver os doentes. Pouparia então a receita e pô-la-ia na caixa económica, depois compraria acções em qualquer parte, fosse do que fosse, além disso, a clientela aumentaria, contava que assim sucedesse, porque queria que Berthe tivesse uma boa educação, que fosse prendada, que aprendesse piano. Ah!, como haveria de ser linda, mais tarde, quando tivesse quinze anos, quando, parecendo-se com a mãe, usasse, como ela, grandes chapéus de palha! De longe pareciam duas irmãs. Imaginava-a trabalhando à noite junto deles, à luz do candeeiro, bordaria umas pantufas para ele, tomaria conta do governo doméstico e encheria toda a casa com a sua gentileza e alegria.

Finalmente, pensariam em dar-lhe uma situação: encontrariam para ela um bom rapaz com uma posição sólida, ele fá-la-ia feliz e assim seria para sempre.

Emma não dormia, fingia que estava adormecida, e, enquanto ao seu lado Charles se deixava vencer pelo sono, ela despertava em sonhos diferentes.

Ao galope de quatro cavalos, era arrebatada, havia oito dias, para um país novo, donde não mais voltariam. Iam, iam, de braços enlaçados, sem falar. Muitas vezes, do alto de uma montanha, avistavam subitamente alguma esplêndida cidade com os seus zimbórios, pontes, navios, florestas de limoeiros e catedrais de mármore branco, cujos campanários pontiagudos sustentavam ninhos de cegonhas. Caminhava-se a passo, por causa das grandes lajes, e havia no chão ramos de flores oferecidos por mulheres em corpete encarnado. Ouviam-se tocar os sinos, relinchar os cavalos, juntamente com o gemido das guitarras e o murmúrio das fontes, dissipando vapor que refrescava pilhas de frutos, dispostos em pirâmide junto de estátuas pálidas que sorriam sob os jactos de água. Depois chegavam, uma noite, a uma aldeia de pescadores, onde redes escuras secavam ao vento, ao longo da falésia e das cabanas.

Era lá que ficariam a viver, morariam numa casa baixa, de telhado plano, à sombra de uma palmeira, no fundo de um golfo, à beira do mar. Passeariam de gôndola, baloiçar-se-iam na rede suspensa, teriam uma existência fácil e folgada como as suas roupas de seda, cálida e cheia de estrelas como as noites suaves que contemplariam. Entretanto, na imensidão daquele futuro que, na sua imaginação, ela fazia aparecer, nada de particular acontecia, os dias, todos magníficos, eram semelhantes como as ondas, e a cena estendia-se até ao horizonte, infinita, harmoniosa, azulada e coberta de sol. Mas a criança punha-se a tossir no seu bercinho, ou então Bovary ressonava com mais força, e Emma só adormecia de manhã, quando a aurora embranquecia as vidraças e já o pequeno Justin, na praça, abria os taipais da farmácia.

Mandara chamar o senhor Lheureux e dissera-lhe:

- Vou precisar de um capote, um capote largo, de gola grande, e forrado.

- Vai viajar? - perguntou ele.

- Não, mas..., não interessa, conto consigo não é verdade?, e com pressa!

Ele inclinou-se.

- Preciso ainda de um baú... - continuou -, não muito pesado..., cómodo.

- Sim, sim, perfeitamente, de cerca de noventa e dois centímetros por cinquenta, como agora se fazem.

- E um saco de dormir.

“Decididamente”, pensou Lheureux, “aqui há trapalhada.”

- E olhe - disse a senhora Bovary, tirando o relógio do cinto -, leve isto, pagar-se-á com o que Lhe render.

Mas o negociante exclamou que não era preciso, conheciam-se, ia lá agora desconfiar dela? Que criancice! Ela insistiu, no entanto, em que levasse pelo menos a corrente, e já ele a metera no bolso e se ia embora, quando Emma o chamou novamente:

- Deixe ficar tudo em sua casa. Quanto ao capote - ela pareceu reflectir -, também não o traga, dê-me só o endereço do alfaiate e previna-o para que o tenha à minha disposição.

Era no mês seguinte que deviam fugir. Ela sairia de Yonville como se fosse para ir fazer compras a Ruão. Rodolphe teria marcado os lugares, conseguido os passaportes e até escrito para Paris, a fim de terem transporte completo até Marselha, onde comprariam uma caleche e, de lá, continuariam sem parar, pela estrada de Génova. Ela teria tido o cuidado de mandar para casa de Lheureux a bagagem, que seria levada directamente à Andorinha, de modo que assim ninguém suspeitaria, e, em tudo aquilo, a filha não entrava nos planos. Rodolphe evitava falar no assunto, talvez ela já não pensasse mais nisso.

Ele quis ter ainda mais duas semanas na sua frente, para terminar alguns preparativos, depois, ao cabo de oito dias, pediu outros quinze, depois disse que estava doente, em seguida foi fazer uma viagem, o mês de Agosto passou, e, após todos aqueles atrasos, acertaram em que seria irrevogavelmente para o dia 4 de Setembro, uma segunda-feira.

Finalmente chegou o sábado da antevéspera.

Rodolphe apareceu à noite, mais cedo que de costume.

- Está tudo pronto? - perguntou-lhe ela.

- Está.

Deram então a volta a um canteiro e foram sentar-se perto do terraço, sobre o parapeito do muro.

- Estás triste - disse Emma.

- Não, porquê?

Apesar disso, ele olhava-a com meiguice, de um modo singular.

- É por te ires embora? - continuou ela -, por deixares os teus amigos, a tua vida? Ah!, compreendo... Mas eu não tenho nada neste mundo! Tu és tudo para mim. Serei também tudo para ti, serei a tua família, a tua pátria, tratarei de ti, amar-te-ei.

- És encantadora! - disse ele, tomando-a nos braços.

- Verdade? - respondeu ela, com um risinho de volúpia.Amas-me? Então jura!

- Se te amo! Se te amo! Mas adoro-te, meu amor!

A Lua, bem redonda e cor de púrpura, erguia-se a rasar o horizonte, ao fundo da pradaria. Subia rápida entre os ramos dos ulmeiros, que de vez em quando a escondiam, como uma cortina preta com buracos. Depois ela apareceu, resplendente de brancura, no céu limpo que iluminava, e então, afrouxando a sua marcha, deixou cair sobre o rio uma grande mancha, que produzia uma infinidade de estrelas, aquele clarão de prata parecia retorcer-se ali até ao fundo, à maneira de uma serpente sem cabeça, coberta de escamas luminosas.

Assemelhava-se também a um monstruoso candelabro, ao longo do qual corriam gotas de diamante em fusão. A noite meiga estendia-se em redor deles, toalhas de sombra cobriam a folhagem. Emma, de olhos semicerrados, aspirava com grandes suspiros o vento fresco que soprava. Não falavam um ao outro, perdidos como estavam na invasão dos seus devaneios. A ternura dos dias passados voltava a inundar-Lhes o coração, abundante e silenciosa como o rio que corria, com tanta indolência quanta se exalava do perfume das silindras, projectando-lhes na memória sombras mais vastas e mais melancólicas do que aquelas que os salgueiros imóveis estendiam no chão. De vez em quando, um animal nocturno, ouriço ou doninha, saindo à caça, fazia deslocar as folhas, ou então ouvia-se por instantes um pêssego maduro cair sozinho da latada.

- Oh!, que noite maravilhosa! - disse Rodolphe.

- Vamos ter outras noites maravilhosas! - respondeu Emma.

E, como se falasse consigo mesma:

- Sim, vai ser bom viajar.. Porque terei então, apesar de tudo, o coração triste? Será a apreensão do desconhecido..., o efeito dos hábitos que se abandonam..., ou será...? Não, é o excesso de felicidade! Sou muito fraca, não sou? Perdoa-me!

- Ainda é tempo! - exclamou ele. - Pensa bem, que talvez te venhas a arrepender.

- Nunca! - respondeu ela impetuosamente.

E, aproximando-se mais dele:

- Que infelicidade me poderá então acontecer? Não há deserto, nem precipício, nem oceano que eu não seja capaz de atravessar contigo. À medida que formos vivendo juntos, será como um abraço cada vez mais apertado, mais completo! Não teremos nada que nos perturbe, nenhuma preocupação, nenhum obstáculo! Estaremos sós, entregues a nós mesmos, eternamente... Fala, responde-me.

Ele ia respondendo a intervalos regulares: “Sim... sim!...”

Emma passara-lhe as mãos pelos cabelos e repetia com uma voz infantil, apesar das grandes lágrimas que lhe corriam pelo rosto:

- Rodolphe! Rodolphe!... Oh!, Rodolphe, meu querido Rodolphe!

Soou a meia-noite.

- Meia-noite! - exclamou ela. - Vamos, é amanhã! Só mais um dia!

Ele levantou-se para se ir embora, e, como se aquele gesto de Rodolphe tivesse sido o sinal para a fuga, Emma, repentinamente, assumindo um tom alegre:

- Tens os passaportes?

- Tenho.

- Não te esqueces de nada?

- Não.

- Tens a certeza?

- Tenho a certeza.

- É no Hotel de Provença, não é, que esperas por mim?..., ao meio-dia?

Ele fez um gesto com a cabeça.

- Então, até amanhã! - disse Emma, com uma última carícia.

E ficou a vê-lo afastar-se.

Rodolphe não se voltou. Emma correu atrás dele e, debruçando-se à beira da água, entre os silvados:

- Até amanhã! - exclamou.

Ele estava já do outro lado do rio e caminhava rapidamente pela pradaria.

Passados alguns minutos, Rodolphe parou, e, quando a viu com o seu vestido branco desvanecer-se pouco a pouco na sombra como um fantasma, começou-lhe o coração a bater com tal intensidade, que teve de se encostar a uma árvore para não cair.

- Que imbecil que eu sou! - disse ele, praguejando espantosamente. - Não tem importância, era uma linda amante!

E, no mesmo instante, veio-lhe novamente ao espírito a beleza de Emma, com todos os prazeres daquele amor. Primeiro enterneceu-se, depois revoltou-se contra ela.

- Com franqueza - exclamava ele gesticulando -, não me posso expatriar, ficar com a responsabilidade de uma criança.

Dizia coisas para reforçar a decisão tomada.

- E, além disso, as atrapalhações, a despesa... Ah!, não, não, mil vezes não! Seria estúpido de mais.


XIII

Mal chegou a casa, Rodolphe sentou-se bruscamente à escrivaninha, debaixo da cabeça de veado posta na parede à maneira de troféu. Mas, quando pegou na pena, não foi capaz de escrever nada, de modo que, apoiando-se nos dois cotovelos, se pôs a reflectir. Emma parecia ter recuado para um passado longínquo, como se a resolução por ele tomada tivesse estabelecido subitamente entre os dois um imenso intervalo.

Para tornar a evocar qualquer coisa dela, foi procurar no armário, à cabeceira da cama, uma velha caixa de biscoitos de Reims, onde tinha o hábito de meter todas as cartas de mulheres. De dentro saiu um cheiro de poeira húmida e rosas murchas. Primeiro encontrou um lenço de bolso, coberto de gotinhas desmaiadas. Era um lenço dela, de uma vez que, a passear, deitara sangue pelo nariz, já nem se lembrava. Havia depois, dobrado em todos os cantos, o retrato oferecido por Emma, o trajo pareceu-lhe pretensioso e o olhar, afectado, do mais deplorável efeito, depois, à força de olhar para aquela imagem e de evocar a recordação do modelo, os traços de Emma foram-se-lhe pouco a pouco confundindo na memória, como se a figura viva e a figura pintada, roçando-se uma na outra, se tivessem reciprocamente apagado. Finalmente, leu cartas dela, estavam cheias de explicações referentes à viagem, breves, técnicas e insistentes como cartas comerciais. Quis rever as longas, as de outrora, para encontrá-las no fundo da caixa, Rodolphe desarrumou todas as outras, e, maquinalmente, pôs-se a remexer aquele monte de papéis e de coisas, encontrando a trouxe-mouxe ramalhetes, uma liga, uma máscara negra, alfinetes e cabelos - cabelos!, escuros, louros, alguns, até, presos à ferragem da caixa, partiam-se quando a abria.

Vagueando assim no meio das suas recordações, examinava as caligrafias e o estilo das cartas, tão variadas como as respectivas ortografias. Eram ternas ou joviais, galhofeiras ou melancólicas, algumas pediam amor e outras pediam dinheiro.

A propósito de uma palavra, lembrava-se de feições, de certos gestos, de um som de voz, no entanto, algumas vezes não se lembrava de nada.

Efectivamente, aquelas mulheres, acorrendo-lhe todas juntas ao pensamento, apertavam-se umas às outras e reduziam as suas proporções, como que no mesmo nível de amor que as fazia iguais. Pegando então num punhado daquelas cartas todas misturadas, entreteve-se durante alguns momentos a fazê-las cair em cascata, da mão direita para a mão esquerda. Por fim, entediado, sonolento, Rodolphe voltou a colocar a caixa dentro do armário, dizendo para si mesmo:

“Que monte de patetices!...”

Isto resumia a sua opinião, porque os prazeres, como garotos no pátio de um colégio, de tal modo lhe haviam espezinhado o coração que nenhuma verdura nele nascia, e quem por lá passava, mais estouvado do que as crianças, nem ao menos deixava, como elas, o nome gravado na parede.

“Vamos lá começar”, pensou ele!

Escreveu:

 

Coragem, Emma! Tenha coragem! Não quero fazer a infelicidade da sua existência...

No fim de contas, é verdade, pensou Rodolphe. - Procedo no seu interesse, sou honesto.

Acaso ponderou maduramente a sua determinação? Sabe o abismo para o qual eu a estava arrastando, pobre anjo? Não sabe, pois não? Ia confiante e louca, acreditando na felicidade, no futuro... Como somos infelizes, insensatos!

 

Rodolphe deteve-se para procurar aqui uma boa desculpa.

Se eu lhe dissesse que perdi toda a minha fortuna?... Isso não! Aliás não resolveria nada. Daria para recomeçar mais tarde. Pode-se lá fazer ouvir a razão a mulheres daquele género!

Reflectiu e depois acrescentou:

 

Nunca a esquecerei, acredite-me, e terei sempre por si uma profunda dedicação, mas, um dia, mais tarde ou mais cedo, este ardor (é essa a sorte de tudo o que é humano) reduzir-se-ia, sem dúvida! Surgir-nos-ia o enfado, e quem sabe se até eu não passaria pelo atroz sofrimento de assistir aos seus remorsos e de participar eu próprio neles, por ter sido o causador de tudo. Basta-me a ideia dos seus desgostos para me torturar, Emma! Esqueça-me! Porque haveria eu de conhecê-la? E porque haveria de ser tão bela? Serei culpado disso? Oh, meu Deus!

Não, não me acuse. A culpa é da fatalidade!

“Aqui está uma palavra que produz sempre efeito”, pensou ele.

Se a Emma fosse uma dessas mulheres de coração frívolo, como se vêem tantas, então sim, eu teria podido, por egoismo, tentar uma experiência sem perigo para si. Mas essa deliciosa exaltação, causa ao mesmo tempo do seu encanto e do seu tormento, impede-a de compreender, mulher adorável, a falsidade da nossa posição futura. Tão-pouco tinha eu a princípio reflectido nisso e descansava à sombra dessa felicidade ideal, como à sombra da mançanilheira, sem prever as consequências.

“Ela vai talvez acreditar que é por avareza que renuncio...

Deixá-lo! Não faz mal! O que é preciso é acabar com isto!”

O mundo é cruel, Emma. Onde quer que estivéssemos, ele perseguir-nos-ia. Teria de suportar perguntas indiscretas, a calúnia, o desdém, talvez até o ultraje. O ultraje para si!

Não!... O que eu desejaria era fazê-la sentar sobre um trono!

Levo a recordação da sua pessoa como um talismã! Sim, porque me puno com o desterro de todo o mal que lhe tenho causado.

Vou-me embora. Para onde? Nada sei, porque estou louco! Seja sempre boa! Conserve a lembrança do desgraçado que a perdeu.

Ensine o meu nome à sua filha, para que o repita nas suas oraÇões.

 

A chama das duas velas estremecia. Rodolphe levantou-se para ir fechar a janela e, quando se voltou a sentar, pensou:

“Parece-me que é tudo. Ah!, ainda mais isto, para que não venha outra vez agarrar-se a mim:”

Já estarei longe quando ler estas tristes linhas, pois quis fugir bem depressa para evitar a tentação de voltar a vê-la.

Nada de fraquezas! Voltarei depois, e talvez que, mais tarde, possamos conversar juntos, friamente, sobre os nossos antigos amores. Adeus!

 

E havia um último adeus, separado em duas palavras: “A Deus!”, o que lhe pareceu de muito bom efeito.

“Agora como é que eu vou assinar?” pensou ele. “Seu muito dedicado?... Não. Seu amigo?... Sim, é isso., Seu amigo.”

Releu a carta. Pareceu-lhe boa.

“Pobre mulher!”, pensou, com enternecimento. “Vai acreditar que sou mais insensível do que uma rocha, faziam falta algumas lágrimas em cima disto, mas não sou capaz de chorar, não tenho culpa.” Então, pondo água num copo, Rodolphe molhou um dedo e deixou cair do alto uma grande gota que fez uma mancha esbatida sobre a tinta, depois, querendo lacrar a carta, encontrou o sinete Amor nel cor.

“Isto é que não vem nada a propósito... Ora, não tem importância!”

No fim de tudo fumou três cachimbadas e foi-se deitar.

No dia seguinte, quando se levantou (cerca das duas horas, porque se deitara tarde), mandou apanhar um cesto de damascos.

Colocou a carta no fundo, debaixo de folhas de parreira, e deu imediatamente ordem a Girard, o moço do arado, que levasse aquilo delicadamente a casa da senhora Bovary. Costumava servir-se daquele meio para se corresponder com ela, enviando-lhe, conforme a época do ano, fruta ou caça.

- Se ela te pedir notícias minhas - disseLhe ele -, responde que saí para uma viagem. Tens de entregar o cesto directamente nas mãos dela... Vai, anda, e tem cuidado!

Girard envergou a sua blusa nova, atou o lenço por cima dos damascos e, caminhando a passos largos e pesados nas suas enormes galochas ferradas, tomou tranquilamente o caminho de Yonville.

A senhora Bovary, quando o rapaz lá chegou, estava com Félicité, arrumando, em cima da mesa da cozinha, um embrulho de roupa.

- Aqui está isto que o meu patrão lhe manda - disse o moço.

Emma sentiu-se imediatamente apreensiva e, ao mesmo tempo que procurava qualquer moeda no bolso, fitava o camponês com olhos desvairados, enquanto este, por sua vez, a olhava espantado, não compreendendo como um presente tão simples pudesse comover alguém daquele modo. Finalmente, o rapaz saiu.

Félicité ficou. Emma não aguentava mais, correu para a sala como se lá fosse colocar os damascos, despejou o cesto, arrancou as folhas, achou a carta, abriu-a e, como se atrás dela houvesse um terrível incêndio, desatou a fugir para o quarto, aterrorizada.

Charles estava lá, ela viu-o, ele falou-lhe, ela não ouviu nada e continuou a subir rapidamente os degraus, ofegante, desvairada, entontecida, segurando sempre aquela horrível folha de papel, que lhe estalava entre os dedos como um bocado de lata. No segundo andar parou diante da porta do sótão, que estava fechada.

Então quis acalmar-se, lembrou-se da carta, tinha de acabar de a ler, mas não conseguia. Além disso, onde? Como? Os outros vê-la-iam.

“Ah! Não, aqui estarei bem”, pensou.

Empurrou a porta e entrou.

O telhado de ardósia deixava cair a prumo um calor pesado que lhe apertava as fontes e a sufocava, arrastou-se até à trapeira fechada, correu-lhe o ferrolho e a luz jorrou deslumbrante no mesmo momento.

Em frente, para além dos telhados, estendia-se a planície até se perder de vista. Em baixo, a praça da vila estava deserta, as pedras do ladrilho cintilavam, os cata-ventos das casas mantinham-se imóveis, à esquina da rua, saía de um andar inferior uma espécie de ronco com modulações estridentes. Era Binet a tornear.

Emma encostara-se ao peitoril da água-furtada e relia a carta com risadas de cólera. Mas, quanto mais fixava nela a atenção, mais as ideias se lhe confundiam. Continuava a vê-lo, a ouvi-lo, a estreitá-lo nos braços, no peito, as pulsações do coração causavam-lhe a sensação de fortes pancadas de aríete, acelerando-se umas após outras, com intermitências desiguais.

Lançava o olhar em redor, sentindo o desejo de que o mundo se desmoronasse. Porque não acabar com tudo? Quem a impediria?

Era livre. E avançou, olhou para a calçada e disse para consigo:

“Vamos! Vamos!” O raio luminoso que vinha directamente de baixo atraía-lhe para o abismo o peso do corpo. Parecia-lhe que o solo da praça oscilava, elevando-se ao longo das paredes, e que o sobrado se inclinava para a extremidade, como um navio sobre as ondas. Emma segurava-se mesmo à borda, quase suspensa, rodeada por um grande espaço. O azul do céu invadia-a, o ar circulava-lhe na cabeça vazia, bastava-Lhe ceder, deixar-se levar, e o ronco do torno não parava, como uma voz furiosa que a estivesse chamando.

- Ó mulher!, mulher! - gritou Charles.

Emma deteve-se.

- Mas onde é que estás? Vem daí!

A consciência de ter acabado de escapar à morte quase a fez desmaiar de terror, fechou os olhos, depois estremeceu ao contacto de uma mão que lhe tocava no braço: era Félicité.

- O senhor está à sua espera, a sopa já está nos pratos.

E teve de descer! Não teve outro remédio senão sentar-se à mesa!

Experimentou comer. Os pedaços de comida sufocavam-na. Então desdobrou o guardanapo, como que para examinar as passagens que tinha, e procurou mesmo entregar-se a esse trabalho, contar os fios do tecido. Subitamente voltou a lembrar-se da carta. Tinha-a então perdido? Onde poderia encontrá-la? Mas sentia-se tão esgotada que não conseguiu inventar nenhum pretexto para se levantar da mesa. Além disso acobardara-se, tinha medo de Charles, ele com certeza sabia de tudo!

Efectivamente, ele pronunciou, de modo singular, as seguintes palavras:

- Parece que não veremos tão cedo o senhor Rodolphe.

- Quem foi que te disse? - respondeu ela, estremecendo.

- Quem me disse? - replicou ele, um pouco surpreendido com o tom brusco dela. - Foi o Girard, que encontrei há momentos à porta do Café Francês. Parece que vai ou que foi fazer uma viagem.

Emma teve um soluço.

- Porque é que te admiras? Ele ausenta-se assim de tempos a tempos para se distrair e acho que faz muito bem! Quando se tem uma fortuna e se é ainda novo!... Aliás, o nosso amigo diverte-se à larga! É um grande estroina. O senhor Langlois contou-me...

Calou-se, por decoro, por causa da criada, que entrava nesse momento.

Esta repôs dentro do cesto os damascos espalhados em cima do aparador, Charles, sem notar o rubor da mulher, pediu os frutos, pegou num e deu-Lhe uma dentada.

- Oh! Magnífico! - dizia ele. - Toma, prova.

E estendeu-lhe o cesto, que ela repeliu delicadamente.

- Mas cheira: que perfume! - insistiu ele, passando-o várias vezes por debaixo do nariz de Emma.

- Falta-me o ar! - exclamou ela, levantando-se de um pulo.

Mas, por um esforço de vontade, este espasmo desapareceu, depois continuou:

- Não é nada! Não é nada! É nervoso! Senta-te e come!

Porque temia que Lhe fizessem perguntas, que a fossem tratar, que não a deixassem mais.

Charles, para obedecer, voltara a sentar-se e cuspia na mão os caroços dos damascos, que colocava seguidamente no prato.

Subitamente passou na praça, a trote rápido, um tílburi azul. Emma deu um grito e caiu hirta, de costas, no chão.

Com efeito, Rodolphe, depois de muitas reflexões, decidira-se a partir para Ruão. Ora, como da Huchette para Buchy não há outro caminho senão o de Yonville, teve de atravessar a vila, e Emma reconhecera-o, à luz das lanternas que, como um relâmpago, rasgavam o crepúsculo.

O farmacêutico, com o tumulto que se produziu em casa do Bovary, precipitou-se para lá. A mesa, com todos os pratos, estava tombada: molho, carne, facas, saleiro e galheteiro, tudo espalhado pelo aposento, Charles pedia socorro, Berthe, assombrada, gritava e Félicité, com as mãos a tremer, desapertava a senhora, que tinha movimentos convulsivos por todo o corpo.

- Vou a correr ao laboratório - disse o boticário - buscar um pouco de vinagre aromático.

Depois, quando ela voltou a abrir os olhos com o cheiro do frasco, disse ainda:

- Eu tinha a certeza, isto até acordava um morto.

- Fala! - dizia Charles, fala connosco! Sossega! Sou eu, o teu Charles, que te ama! Não me reconheces? Olha, aqui tens a tua filhinha: vá, dá-lhe um beijo!

A criança estendia os braços à mãe para se lhe pendurar no pescoço. Mas, desviando a cabeça, Emma disse com voz sacudida:

- Não, não... ninguém!

E tornou a desmaiar. Levaram-na para a cama.

Ficou ali estendida, de boca aberta, com as pálpebras cerradas, as mãos estendidas, imóvel e branca como uma estátua de cera. Dos olhos saíam-lhe dois fios de lágrimas que corriam lentamente sobre o travesseiro.

Charles, de pé, conservava-se ao fundo da alcova e o farmacêutico, junto dele, mantinha o silêncio meditativo que convém adoptar nas ocasiões sérias da vida.

- Tenha calma - disse ele, dando-lhe um toque no cotovelo. - Parece-me que o paroxismo já passou.

- Sim, agora está a repousar um pouco! - respondeu Charles, que a via dormir. - Minha pobre mulher!... Minha pobre mulher!... Foi uma recaída!

Então, Homais quis saber como tinha surgido aquele acidente.

Charles respondeu que lhe tinha sobrevindo repentinamente, quando ela estava comendo damascos.

- É extraordinário!... - continuou o farmacêutico. - Mas podem até ter sido os damascos que lhe provocaram a síncope!

Há temperamentos extremamente sensíveis em relação a determinados aromas. Seria um bom assunto de investigação, tanto no aspecto patológico como no aspecto fisiológico. Os padres, que sempre utilizaram perfumes nas suas cerimónias, conhecem-lhes a importância. Fazem isso para nos embotar a mente e provocar êxtases, o que é, aliás, fácil de conseguir em pessoas do sexo feminino, que são mais delicadas do que nós. Conhecem-se casos de algumas que desmaiaram com o cheiro de chifre queimado, de pão quente...

- Cuidado, para não a despertar! - disse Bovary em voz baixa.

- E não são apenas os humanos - continuou o boticário -, mas até os animais estão sujeitos a estas anomalias. O doutor naturalmente não desconhece o efeito singularmente afrodisíaco que provoca o Nepeta cataria, vulgarmente chamada erva-de-gato, na espécie felina, por outro lado, para lhe citar um exemplo de que garanto a autenticidade, Bridoux (um dos meus antigos camaradas, actualmente estabelecido na Rue Malpalu) possui um cão que entra em convulsões de cada vez que se lhe apresenta uma caixa de rapé.

Muitas vezes ele até faz a experiência diante dos amigos, na casa que tem no Bosque Guillaume. Poder-se-ia imaginar que um simples esternutatório seria suficiente para causar semelhante devastação no organismo de um quadrúpede? É extremamente curioso, não é verdade?

- Pois é - respondeu Charles, que nem o escutava.

- Isto prova - continuou o outro, sorrindo com um ar de benigna suficiência -, as inumeráveis irregularidades do sistema nervoso. No que diz respeito à sua esposa, ela sempre me pareceu, confesso, uma verdadeira sensitiva. Por isso eu nunca Lhe aconselharia, meu bom amigo, nenhum desses pretensos remédios que, a pretexto de atacarem os sintomas, atacam mas é o temperamento. Nada de medicação desnecessária! Dieta, mais nada. Sedativos, emolientes, dulcificantes. Depois não pensa que seria talvez necessário tratar a imaginação?

- O quê? Como? - disse Bovary.

- Ah! Aí está o problema! Essa é efectivamente a questão:

That is the question, como li há pouco tempo no jornal.

Mas Emma, acordando, exclamou:

- E a carta? E a carta?

Pensaram que estivesse delirando, e delirou efectivamente a partir da meia-noite: declarara-se uma febre cerebral.

Durante quarenta e três dias, Charles não a deixou um instante. Abandonou todos os seus doentes, não se deitava, estava continuamente a tomar-Lhe o pulso, a aplicar-lhe sinapismos, compressas de água fria. Mandava Justin buscar gelo a Neufchâtel, o gelo derretia-se pelo caminho, voltava a mandá-lo lá. Chamou o doutor Canivet para uma consulta, mandou vir de Ruão o doutor Larivière, seu antigo professor, estava desesperado. O que mais o assustava era o abatimento de Emma, ela não falava, não ouvia nada e até parecia não sofrer, como se tanto o corpo como a alma estivessem ambos repousando de todas as suas agitações.

Por meados de Outubro, Emma pôde segurar-se sentada na cama, com almofadas atrás dela. Charles chorou quando a viu comer a sua primeira fatia de pão com doce. Voltaram-lhe as forças, levantava-se algumas horas durante a tarde e, um dia em que ela se sentia melhor, Charles procurou levá-la pelo braço a dar um passeio pelo jardim. Não se via a areia do caminho coberto de folhas secas, ela dava um passo de cada vez, arrastando as chinelas, e, apoiada no ombro de Charles, continuava a sorrir.

Chegaram assím ao fundo do jardim, junto do terraço. Ela endireitou-se lentamente, colocou a mão por cima dos olhos, para observar, olhou para longe, para muito longe, mas nada havia no horizonte senão grandes fogueiras de mato, fumegando sobre as colinas.

- Vais-te cansar, querida - disse Bovary.

E, empurrando-a levemente para a obrigar a entrar no caramanchão, continuou:

- Senta-te aqui neste banco: assim ficas bem.

- Não! Aí não, aí não! - balbuciou ela apenas.

Sentiu uma vertigem e, a partir daquela noite, agravou-se-lhe de novo a doença, com um ritmo mais incerto, é verdade, mas com características mais complexas. Tão depressa sofria do coração, como do peito, ora se queixava do cérebro, ora dos membros, apareceram-Lhe vómitos, no que pareceu a Charles reconhecer os primeiros sintomas de cancro.

E o pobre homem, por cima de tudo aquilo, andava inquieto por falta de dinheiro.


XIV

Em primeiro lugar, não sabia como indemnizar o senhor Homais por todos os medicamentos levantados na farmácia dele, e, embora pudesse, como médico, deixar de os pagar, sentia-se envergonhado com aquele favor. Depois, a despesa da casa, agora a cargo da cozinheira, tornava-se insustentável, as facturas choviam-lhe à porta, os fornecedores reclamavam, o mais impertinente era o senhor Lheureux. Este, com efeito, na fase mais aguda da doença de Emma, aproveitando-se da circunstância para exagerar a conta, tinha-se apressado a trazer o capote, o saco de dormir, dois baús em lugar de um e ainda uma quantidade de outras coisas. Por mais que Charles lhe dissesse que não tinha necessidade daquilo, o negociante respondia arrogantemente que Lhe tinham encomendado todos aqueles artigos e que não os aceitaria em devolução, além disso, seria contrariar a senhora Bovary na sua convalescença, o doutor que reflectisse, em resumo, estava disposto a levá-lo para o tribunal, mas não desistia dos seus direitos nem levaria as mercadorias.

Pouco depois Charles deu ordem para que estas lhe fossem entregues no armazém, Felicité esqueceu-se, ele tinha outras preocupações e ninguém mais pensou no assunto, o senhor Lheureux voltou à carga e, ora ameaçando, ora lamentando-se, manobrou a coisa de tal maneira que Bovary acabou por assinar uma letra com vencimento dali a seis meses. Porém, mal havia assinado a letra, surgiu-lhe uma ideia audaciosa: era a de pedir mil francos emprestados ao senhor Lheureux. Perguntou então, com um ar embaraçado, se não havia meio de os conseguir, acrescentando que seria por um ano e ao juro que fosse preciso pagar. Lheureux correu logo à sua loja, trouxe o dinheiro e redigiu uma promissória, na qual Bovary declarava dever pagar à sua ordem, no primeiro de Setembro próximo, a soma de mil e setenta francos, o que, com os cento e oitenta já estipulados, perfazia justamente mil duzentos e cinquenta.

Assim, emprestando a seis por cento de juro, acrescentados de um quarto pela comissão, e com os objectos fornecidos dando uma margem de, pelo menos, um terço, devia dar tudo, em doze meses, um lucro de cento e trinta francos, e esperava que o negócio não ficasse por ali, que não lhe pudessem pagar as letras, que estas fossem renovadas e que o seu dinheirinho, depois de engordar em casa do médico como numa casa de saúde, lhe voltasse às mãos, um dia, consideravelmente mais rechonchudo e aumentado a ponto de rebentar com o saco.

Aliás, tinha sorte com todas as coisas. Era adjudicatário de um fornecimento de sidra para o hospital de Neufchâtel, Guillaumin prometia-lhe acções das turfeiras de Grumesnil, e pensava em montar uma nova carreira de diligências entre Argueil e Ruão, a qual não tardaria certamente a arruinar a traquitana do Leão de Ouro e que, andando mais depressa, a preços mais económicos e levando mais bagagem, lhe poria assim na mão todo o comércio de Yonville.

Charles perguntou várias vezes a si próprio como seria possível, no ano seguinte, reembolsar tanto dinheiro, e procurava, imaginava expedientes, como o de recorrer ao seu pai ou o de vender qualquer coisa. Mas o pai não lhe dava ouvidos e ele, por sua vez, não tinha nada para vender.

Descobria então tantas dificuldades que afastava logo do pensamento tão desagradável assunto de meditação. Acusava-se de se esquecer de Emma, como se todos os seus pensamentos pertencessem àquela mulher, não meditar nela continuamente seria como que roubar-lhe qualquer coisa.

O Inverno foi rigoroso. A convalescença da senhora Bovary foi demorada. Quando estava bom tempo, empurravam-na na sua cadeira para junto da janela, a que dava para a praça, pois ela agora tinha antipatia pelo jardim e a persiana desse lado ficava permanentemente fechada. Quis que vendessem o cavalo, aquilo de que antes gostava era-lhe agora desagradável. Todas as suas ideias pareciam limitar-se ao cuidado consigo mesma.

Ficava na cama a comer pequenas refeições, tocava para chamar a criada, a fim de se informar sobre as suas tisanas ou para conversar com ela. Entretanto, a neve acumulada sobre a cobertura do mercado lançava para dentro do quarto um reflexo branco, imóvel, depois era a chuva que caía. E Emma esperava todos os dias, com uma espécie de ansiedade, a infalível repetição de mínimos acontecimentos que nada de novo lhe traziam. O mais importante era, à noite, a chegada da Andorinha. Nesse momento, a estalajadeira gritava e outras vozes respondiam, enquanto a lanterna do Hippolyte, que procurava as bagagens debaixo do encerado, se assemelhava a uma estrela na escuridão. Ao meio-dia, Charles vinha a casa, seguidamente voltava a sair, depois ela tomava um caldo e, pelas cinco horas, no fim da tarde, as crianças que regressavam da escola, arrastando os tamancos sobre o ladrilho, batiam todas com as suas réguas no fecho das persianas, umas atrás das outras.

Era a essa hora que o padre Bournisien vinha vê-la.

Perguntava-lhe pela saúde, trazia-lhe notícias e exortava-a à religião numa conversa carinhosa que ela não deixava de apreciar. A simples presença da sotaina dava-lhe conforto.

Um dia em que, no período mais grave da doença, ela se julgara agonizante, pedira a comunhão, e, à medida que no quarto se faziam os preparativos para o sacramento, que se armava o altar em cima da cómoda atafulhada de remédios e que Félicité espalhava pelo chão folhas de dálias, Emma começou a sentir-se invadida por uma forte impressão que a libertava de todas as dores, de toda a consciência e de todo o sentimento.

A carne liberta deixara de pesar, começava outra existência, parecia-lhe que o seu ser, subindo para Deus, se ia aniquilar naquele amor como um incenso queimado que se dissipa em vapor.

Aspergiram os lençóis com água benta, o padre retirou do sagrado cibório a alva hóstia, e foi desfalecendo numa alegria celeste que ela avançou os lábios para aceitar o corpo do Salvador que Lhe ofereciam.

As cortinas da alcova flutuavam suavemente em torno dela como nuvens, e os reflexos dos dois círios acesos em cima da cómoda pareceram-lhe glórias deslumbrantes. Então deixou cair a cabeça, crendo ouvir nos espaços o canto das harpas seráficas e avistar num céu azul, sobre um trono de ouro, no meio dos santos empunhando palmas verdes, Deus o Pai irradiando majestade e, com um gesto, fazendo descer à Terra anjos com asas de fogo para a transportarem nos braços.

Esta visão esplêndida perdurou-lhe na memória como a coisa mais bela que era possível sonhar, de modo que agora ela se esforçava por voltar a ter a mesma sensação, que entretanto sentia, mas de um modo menos intenso, embora com a mesma profunda suavidade. A sua alma, extenuada pelo orgulho, repousava enfim na humildade cristã, e, saboreando o prazer de ser débil, Emma contemplava em si mesma a destruição da própria vontade, que devia dar amplo acolhimento às inundações da graça. Existiam pois, no lugar da ventura, felicidades maiores, um outro amor acima de todos os amores, sem intermitência nem fim, que cresceria eternamente! Entrevia ela, por entre as ilusões da sua esperança, um estado de pureza flutuando acima da Terra, confundindo-se com o Céu, a que aspirava chegar. Quis tornar-se uma santa. Comprou rosários, passou a usar amuletos, desejava ter no quarto, à cabeceira da cama, um relicário engastado de esmeraldas, para o beijar todas as noites.

O prior estava encantado com aquelas disposições, ainda que, segundo ele, a religiosidade de Emma podia, à força de tanto fervor, acabar roçando pela heresia e mesmo pela extravagância. Mas, não se achando muito versado nessas matérias desde que ultrapassassem uma certa medida, escreveu a Boulard, livreiro do senhor Bispo, para que lhe enviasse qualquer obra de qualidade superior, destinada a uma senhora que estava cheia de graça. O livreiro, com a mesma indiferença com que teria expedido quinquilharias para pretos, fez um embrulho ao acaso com tudo quanto tinha de momento no género de livros piedosos. Eram pequenos manuais de perguntas e respostas, panfletos em tom arrogante, à maneira de Maistre, e uma espécie de romances de capa cor-de-rosa, em estilo melífluo, fabricados por seminaristas trovadores ou por sabichonas arrependidas. Havia Pensai bem Nisto, O Homem Mundano aos Pés de Maria, pelo Senhor de..., Agraciado com Diversas Ordens, Dos Erros de Voltaire, para Uso da Juventude, etc.

A senhora Bovary não tinha ainda o espírito suficientemente claro para se aplicar a sério fosse no que fosse, além disso, empreendeu estas leituras com demasiada precipitação.

Irritou-se contra as prescrições do culto, a arrogância dos escritos polémicos desagradou-lhe pela obstinação em perseguirem pessoas que não conhecia, e os contos profanos misturados com religião pareceram-lhe escritos com tal ignorância do mundo que a afastaram insensivelmente das verdades de que esperava encontrar a prova. No entanto, persistiu e, quando o volume lhe caía das mãos, julgava-se tomada da mais fina melancolia católica que uma alma etérea pudesse conceber.

Quanto à memória de Rodolphe, sepultara-a bem no fundo do coração, e ali ficara ele, mais solene e imóvel do que a múmia de um rei dentro de um subterrâneo. Desse grande amor embalsamado saía uma certa exalação, que, atravessando tudo, perfumava de ternura a atmosfera imaculada onde queria viver.

Quando se punha de joelhos sobre o genuflexório gótico, dirigia ao Senhor as mesmas palavras de suavidade que antes murmurara ao seu amante, durante as efusões do adultério. Era para atrair a fé, mas nenhuma delícia descia dos Céus e ela erguia-se dali com os membros fatigados e um vago sentimento de um imenso logro. Esta procura de Deus, pensava ela, não deixava de ser um mérito a mais, e, no orgulho da sua devoção, Emma comparava-se às grandes damas de outrora, com cuja glória sonhara examinando uma pintura de Vallière e que, arrastando com tanta majestade as caudas cobertas de rendas dos seus longos vestidos, se retiravam para a solidão a fim de derramarem aos pés de Cristo todas as lágrimas de um coração ferido pela existência.

Entregou-se então a excessos de caridade. Cosia roupas para os pobres, mandava lenha às mulheres de parto, e Charles, ao entrar um dia em casa, encontrou na cozinha três vadios abancados a comer sopa. Mandou regressar a pequenita, que o marido, durante a doença dela, mandara para casa da ama.

Quis-lhe ensinar a ler, por mais que Berthe chorasse, ela já não se irritava. Era uma resignação decidida, uma indulgência universal. A sua linguagem era, a propósito de tudo, cheia de expressões ideais. Dizia à criança:

- Já te passou a cólica, meu anjo?

A mãe do doutor Bovary não encontrava nada de que a censurar, salvo talvez aquela mania de fazer camisolas de malha para os orfãozinhos, em vez de remendar os seus esfregões.

Mas, farta de querelas domésticas, a boa senhora gostava de estar naquela casa tranquila e deixou-se mesmo lá ficar até depois da Páscoa, para evitar os sarcasmos do velho Bovary, que não deixava de mandar preparar, todas as Sextas-Feiras Santas, uma linguiça. Além da companhia da sogra, que de certo modo a fortalecia um pouco nos princípios, com o seu juízo recto e as suas maneiras graves, Emma tinha ainda, quase todos os dias, outras visitas. Eram a senhora Langlois, a senhora Caron, a senhora Dubreuil, a senhora Tuvache e, regularmente, das duas às cinco horas, a excelente senhora Homais, que, essa, nunca quisera dar ouvidos a nenhum dos mexericos que se diziam a respeito da vizinha. Os pequenos Homais também a visitavam, Justin vinha com eles. Subia com eles até ao quarto e ficava de pé, junto da porta, imóvel, sem dizer nada. Muitas vezes até a senhora Bovary, sem reparar, chegava-se ao toucador. Começava por retirar a travessa, sacudindo a cabeça com um movimento brusco, e, quando Justin viu pela primeira vez toda aquela cabeleira descendo até às curvas das pernas, desenrolando os seus anéis escuros, foi para o pobre rapaz como que uma iniciação em qualquer coisa extraordinária e nova cujo esplendor o assustou.

Emma, naturalmente, não notava as suas silenciosas solicitudes nem a sua timidez. Não suspeitava que o amor, que desaparecera da sua vida, palpitava ali, junto dela, sob aquela camisa grosseira, naquele coração de adolescente, aberto às emanações da sua beleza. De resto, ela envolvia agora tudo numa tal indiferença, tinha palavras tão afectuosas e olhares tão altivos, maneiras tão desconcertantes, que não se lhe distinguia já o egoísmo da caridade, nem a corrupção da virtude. Uma noite, por exemplo, zangou-se com a criada, que lhe pedia autorização para sair e balbuciava, procurando um pretexto, e, inesperadamente, disparou:

- Então gostas dele?

E, sem esperar pela resposta de Félicité, que corava, acrescentou com um ar triste:

- Vai lá, corre! Diverte-te!

No começo da Primavera mandou revolver o jardim de uma ponta à outra, apesar das objecções de Bovary; ele, no entanto, ficou contente por vê-la finalmente manifestar uma vontade qualquer. Foi manifestando outras mais, - à medida que se ia restabelecendo. Primeiro encontrou processo de despedir a tia Rolet, a ama, que se habituara, durante a convalescença de Emma, a aparecer com demasiada frequência na cozinha, juntamente com os seus dois petizes e o hóspede, mais esfaimado que um canibal. Depois desembaraçou-se da família Homais, dispensou sucessivamente todas as outras visitas e começou mesmo a frequentar menos assiduamente a igreja, com grande aplauso do boticário, que lhe disse então amigavelmente:

- A senhora estava a ficar um pouco beata de mais!

O padre Bournisien continuava a aparecer todos os dias, quando terminava a catequese. Preferia ficar fora, respirando ar puro no meio do arvoredo, era assim que ele chamava ao caramanchão. Era à hora a que Charles regressava. Sentiam calor, mandavam fazer sidra doce e bebiam juntos ao completo restabelecimento da senhora.

Binet estava por ali, ou seja, um pouco mais abaixo, junto do muro do terraço, pescando lagostins. Bovary convidava-o para um refresco e ele entendia-se muito bem a abrir as garrafas.

- Reparem - dizia ele, lançando um olhar satisfeito em torno de si até às extremidades da paisagem -, é preciso segurar a garrafa assim a prumo sobre a mesa e, depois de cortar os cordéis, ir aliviando a rolha muito devagar, a pouco e pouco, como se faz também com a água de Seltz, nos restaurantes.

Mas a sidra, durante a sua demonstração, muitas vezes lhe saltava para o rosto, e então o eclesiástico, com um riso maroto, nunca deixava de dizer este gracejo:

- A sua boa qualidade salta aos olhos!

O padre era realmente um homem simpático, e até nem se escandalizou quando um dia o farmacêutico aconselhou Charles a levar a senhora, para a distrair, ao teatro de Ruão, a ver o ilustre tenor Lagardy. Homais, admirado com aquele silêncio, quis saber a opinião dele, e o sacerdote declarou que considerava a música menos perigosa para os bons costumes do que a literatura.

Mas o farmacêutico tomou a defesa das letras. O teatro, pretendia ele, servia para criticar os preconceitos e, sob o disfarce do divertimento, ensinava a virtude.

- Castigat ridendo mores, senhor padre Bournisien! Veja, por exemplo, a maior parte das tragédias de Voltaire, estão habilmente semeadas de reflexões filosóficas que constituem para o povo uma verdadeira escola de moral e de diplomacia.

- Eu cá - disse Binet - vi em tempos uma peça intitulada O Garoto de Paris, onde se acentua o carácter de um velho general que é realmente admirável! Ele repreende um filho-família que seduzira uma operária, que por fim...

- Certamente - continuou Homais - existe a má literatura, do mesmo modo que a má farmácia, mas condenar em bloco a mais importante das belas-artes parece-me uma estupidez, uma ideia gótica, digna dos tempos em que encarceraram Galileu.

- Bem sei - objectou o padre - que existem boas obras, de bons autores, no entanto, basta estarem reunidas pessoas de sexo diferente num salão encantador, ornado de pompas mundanas, ainda com os disfarces pagãos, as pinturas do rosto, as luzes, as vozes efeminadas, para que tudo acabe por engendrar uma certa libertinagem de espírito e sugira pensamentos desonestos, tentações impuras. Essa é, pelo menos, a opinião de todos os padres da Igreja. Enfim, acrescentou, adoptando subitamente um tom místico da voz, enquanto enrolava com os dedos uma pitada de tabaco, se a Igreja condenou os espectáculos, tinha razão para os condenar, temos de nos submeter aos seus decretos.

- Porque é que ela excomunga os comediantes? - perguntou o boticário. - Porque, no passado, eles concorriam abertamente com as cerimónias do culto. Sim, faziam-se representações, representavam-se no meio do coro umas espécies de farsas chamadas mistérios, nas quais muitas vezes se ofendiam as leis da decência.

O eclesiástico contentou-se em soltar um gemido e o farmacêutico prosseguiu:

- É como na Bíblia, há..., bem sabe..., certos pormenores...

maliciosos, coisas... verdadeiramente... atrevidas!

E, notando um gesto de irritação da parte do padre Bournisien, continuou:

- Ah!, concorde que não é um livro para se pôr nas mãos de um jovem, e eu ficaria bastante contrariado se Athalie...

- Mas são os protestantes, e não nós - exclamou o outro impaciente -, que recomendam a Bíblia.

- Seja como for! - disse Homais. - Admira-me muito que, nos nossos dias, num século de luzes, se obstinem ainda a proibir um passatempo intelectual que é inofensivo, moralizante e até higiénico algumas vezes, não é, doutor?

- Sem dúvida - respondeu o médico indolentemente, talvez porque, tendo as mesmas ideias, não quisesse ofender ninguém, ou talvez por não ter ideias nenhumas.

A conversa parecia terminada, quando o farmacêutico achou conveniente descarregar um último golpe.

- Conheci padres que se vestiam com trajo secular para ir ver dançar as bailarinas.

- Ora adeus! - exclamou o cura.

- Digo-lhe que conheci!

E, separando as sílabas da sua frase, Homais repetiu:

- Co...nhe...ci.

- Pois então faziam muito mal - disse Bournisien, resignado a ouvir tudo.

- É verdade! E ainda fazem muitas outras! - exclamou o boticário.

- Senhor!... - prosseguiu o eclesiástico, com um olhar tão feroz que intimidou o farmacêutico.

- Eu só queria dizer - replicou o outro em tom menos brutal - que a tolerância é o meio mais seguro de atrair as almas à religião.

- Está certo!, está certo! - concedeu o velhote, voltando a sentar-se na cadeira.

Mas só lá se demorou dois minutos. Depois, logo que ele se foi embora, Homais disse para o médico:

- Isto é o que se chama dar uma bicada! Viu a maneira como o enrolei?... Enfim, acredite no que lhe digo, leve a sua esposa ao espectáculo, nem que seja para fazer danar uma vez na vida um desses corvos, com a breca! Se tivesse alguém que me substituísse, eu mesmo vos acompanharia. Decida-se! Lagardy vai dar uma única representação, está contratado para a Inglaterra com honorários consideráveis. Segundo dizem, é um boémio famoso. Vive a nadar em dinheiro! Faz-se acompanhar de três amantes e um cozinheiro! Todos esses grandes artistas queimam a vela pelos dois lados, têm necessidade de levar uma vida devassa que Lhes excite um pouco a imaginação. Mas acabam por morrer no hospital, porque não tiveram juízo para fazer economias enquanto eram jovens. Bem, bom apetite, até amanhã!

Aquela ideia do espectáculo germinou rapidamente na cabeça de Bovary, pois logo a comunicou à mulher, que começou por recusar, alegando o cansaço, a maçada, a despesa, mas, excepcionalmente, Charles não cedeu, a tal ponto estava convencido de que aquela distracção Lhe seria proveitosa. Não via nenhum impedimento, a mãe enviara-lhe trezentos francos com os quais já não contava, as dívidas correntes não eram exageradas e a data para o pagamento das letras ao senhor Lheureux vinha ainda tão longe que não era necessário pensar nela.

Além disso, imaginando que Emma recusava por delicadeza, Charles continuou a insistir, de tal maneira que, à força de instâncias, ela acabou por se decidir. E, no dia seguinte, às oito horas, meteram-se na Andorinha.

O boticário, que nada retinha em Yonville, mas se julgava obrigado a não arredar pé dali, suspirou quando os viu partir.

- Então, boa viagem! - disseLhes ele. - Felizes mortais!

Depois, dirigindo-se a Emma, que levava um vestido de seda azul, de quatro folhos:

- Acho-a linda como um amor! Vai fazer furor em Ruão.

A diligência parou no Hotel da Cruz Vermelha, na Praça Beauvoisine. Era uma daquelas estalagens como há em todos os lugares da província, com grandes estrebarias e quartos pequenos, vendo-se no meio do pátio galinhas a comer aveia debaixo dos cabriolés enlameados dos caixeiros-viajantes - boas velhas habitações com varanda de madeira carunchosa, estalando com o vento nas noites de Inverno, sempre cheias de gente, de barulho e de comezaina, com mesas negras e encardidas pelos jogos da glória, as grossas vidraças amarelecidas pelas moscas, os guardanapos húmidos manchados de vinho tinto, uma estalagem a cheirar a aldeia, como os moços das granjas vestidos à moda da cidade, e que tinha um café para o lado da rua e, do lado do campo, uma horta com legumes.

Charles começou logo a tomar providências. Confundiu camarotes com galerias, a plateia com as frisas, pediu explicações, não as compreendeu, falou com o porteiro e com o director, voltou à estalagem e depois novamente à bilheteira, e assim por diversas vezes, calcorreou a cidade de um extremo ao outro, desde o teatro até à avenida.

Emma comprou um chapéu, luvas e um ramalhete. O marido tinha grande receio de perder o começo, e, sem ter tido tempo para engolir um caldo, apresentaram-se ambos à porta do teatro, que ainda se conservava fechada.


XV

A multidão estacionava encostada à parede, disposta simetricamente entre as balaustradas. Nas esquinas das ruas próximas, gigantescos cartazes repetiam em caracteres extravagantes: Lúcia de Lammermoor... Lagardy... Ópera..., etc.

Estava bom tempo, fazia calor, o suor escorria dos penteados e todos os lenços tirados dos bolsos limpavam as testas afogueadas, às vezes, uma aragem tépida, que soprava do lado do rio, agitava lentamente a orla dos toldos dos botequins. Um pouco mais baixo, entretanto, era-se refrescado por uma corrente de ar glacial que cheirava a sebo, a sola e a azeite.

Era a exalação da Rue des Charrettes, cheia de grandes armazéns escuros.onde se rolam barricas.

Com medo de parecerem ridículos, Emma quis que fossem dar um passeio pelo porto antes da entrada e Bovary, por prudência, conservou os bilhetes fechados na mão, dentro do bolso das calças, encostados à barriga.

Logo no vestíbulo Emma foi acometida por palpitações. Sorriu involuntariamente de vaidade, vendo o povo precipitar-se para a direita por outro corredor, enquanto ela subia a escada para os camarotes de primeira. Sentiu prazer, como uma criança, a empurrar com o dedo as grandes portas forradas, aspirou com toda a força dos pulmões o cheiro poeirento dos corredores e, já instalada no seu camarote, movia o busto com requebros de duquesa.

A sala começava a encher-se, tiravam-se lunetas de dentro dos estojos e os assinantes, reconhecendo-se de longe, trocavam saudações. Vinham distrair-se, com as belas-artes, das preocupações do comércio, mas, não podendo esquecer os negócios, continuavam a falar de algodões, de aguardente ou de anil. Viam-se cabeças de velhos, inexpressivas e apáticas, que, embranquecidas nos cabelos e na face, se assemelhavam a medalhas de prata embaciadas por vapores de chumbo. Os rapazes elegantes exibiam-se na plateia, ostentando, na abertura do colete, a sua gravata cor-de-rosa ou verde-maçã, e a senhora Bovary admirava-os de cima, vendo-os apoiar nas bengalinhas com castão de ouro as palmas esticadas das suas luvas amarelas.

Entretanto acenderam-se as velas da orquestra, o lustre desceu do tecto, espalhando, com o reflexo das suas facetas, uma alegria súbita na sala, depois entraram os músicos uns atrás dos outros e começou um prolongado chinfrim de roncos de baixos, gemidos de violinos, clarinadas de cornetins, pios de flautas e flautins. Logo se ouviram três pancadas no palco, começou então um rufo de timbales, os instrumentos de metal soltaram acordes e o pano, subindo, descobriu um cenário de paisagem.

Era uma encruzilhada de um bosque, com uma fonte, à esquerda, sombreada por um carvalho. Camponeses e senhores, todos de manta ao ombro, cantavam juntos uma canção de caça, depois apareceu um capitão que invocava o espírito do mal erguendo os dois braços para o céu, apareceu ainda outro, saíram ambos e os caçadores recomeçaram.

Emma revivia as leituras da sua juventude, encontrando-se em pleno Walter Scott. Pareceu-lhe ouvir, através do nevoeiro, o som das gaitas-de-foles escocesas ecoando pelas charnecas.

Além disso, com a recordação do romance facilitando-lhe a compreensão do libreto, seguia a intriga frase a frase, enquanto indefiníveis pensamentos, que lhe surgiam no espírito, logo se dispersavam com as rajadas da música.

Deixava-se embalar pelas melodias e sentia-se vibrar toda interiormente, como se os arcos dos violinos lhe estivessem roçando pelos próprios nervos. Não Lhe chegavam os olhos para contemplar os trajos, os cenários, as personagens, as árvores pintadas, que estremeciam com o andar dos actores, e os gorros de veludo, as mantas, as espadas, todas aquelas fantasias que se agitavam na harmonia como numa atmosfera de outro mundo.

Avançou então uma rapariga atirando uma bolsa a um escudeiro de verde. Depois ficou sozinha e ouviu-se uma flauta imitando o murmúrio de uma fonte ou um chilrear de pássaros. Lúcia atacou corajosamente a sua cavatina em sol maior, queixava-se de amor e pedia asas. Emma, do mesmo modo, quisera fugir da vida, arrebatada num abraço. Repentinamente apareceu Edgar Lagardy.

Tinha uma palidez esplêndida, daquelas que emprestam um quê da majestade dos mármores às ardentes raças do Sul. O seu tronco vigoroso vestia um gibão de cor escura, na coxa esquerda batia-lhe um punhalzinho cinzento, e relanceava olhares lânguidos, descobrindo os seus dentes alvos. Dizia-se que uma princesa polaca, ouvindo-o uma noite cantar na praia de Biarntz, onde consertava embarcações, se apaixonara por ele.

Arruinara-se por sua causa. Depois ele abandonara-a por outras mulheres, e aquela proeza sentimental não deixava de contribuir para a sua reputação artística. O comediante diplomata tinha mesmo o cuidado de incluir sempre nos cartazes uma frase poética sobre o fascínio da sua pessoa e a sensibilidade da sua alma. Uma bela voz, um imperturbável aprumo, mais jeito do que inteligência e mais ênfase do que lirismo, acabavam de realçar aquele admirável tipo de charlatão, que incluía um pouco de cabeleireiro e de toureiro.

Logo na primeira cena causou entusiasmo. Apertava Lúcia nos braços, deixava-a, voltava de novo, parecia desesperado: tinha acessos de ira, depois desabafos elegíacos de uma doçura infinita, e as notas escapavam-se-lhe da garganta despida, cheias de soluços e de beijos. Emma debruçava-se para o ver, esgravatando com as unhas o veludo do camarote. Enchia o coração daqueles lamentos melodiosos que se arrastavam com o acompanhamento dos contrabaixos, como gritos de náufragos no tumulto de uma tempestade. Ela reconhecia todos os arrebatamentos e angústias que por pouco não lhe tinham provocado a morte. A voz da cantora não lhe parecia mais do que o eco da sua própria consciência e aquela ilusão que a encantava alguma coisa da sua própria vida. Mas ninguém no mundo a amará com um amor semelhante. Ele não chorara como Edgar, na última noite, à luz da Lua, quando diziam um ao outro: “Até amanhã, até amanhã!...”

A sala vinha abaixo com os aplausos, bisaram toda a parte final, os amantes falavam das flores da sua sepultura, dos juramentos, do exílio, da fatalidade, de esperanças, e, quando lançaram o último adeus, Emma deu um grito agudo, que se confundiu com a vibração dos acordes finais.

- Mas então porque é que aquele cavalheiro anda a persegui-la? - perguntou Bovary.

- Nada disso - respondeu Emma. - É o seu amante:

- No entanto, ele jura vingar-se na família dela, enquanto o outro, o que apareceu há pouco, dizia: “Amo Lúcia e creio que sou amado por ela”. Além disso, saiu com o pai, abraçado a ele. Era mesmo o pai, não era, aquele tipo baixo e feio, com uma pena de galo no chapéu?

Apesar das explicações da mulher, desde o dueto recitativo em que Gilberto expõe ao seu amo Ashton as suas abomináveis manobras, Charles, quando viu o anel falso que devia enganar Lúcia, supôs que fosse uma lembrança de amor enviada por Edgar. Confessou, além disso, não compreender a história, por causa da música, que prejudicava imenso as palavras.

- Que importa isso? - disse Emma -, Cala-te!

- É que eu - prosseguiu ele, inclinando-se-lhe sobre o ombro -, gosto de perceber o que se passa.

- Cala-te! Cala-te! - disselhe ela impaciente.

Lúcia adiantava-se, meio amparada pelas suas damas, com uma coroa de laranjeira no cabelo, mais pálida do que o cetim branco do vestido. Emma pensava no dia do seu casamento, e via-se lá longe, no meio dos trigos, seguindo pela vereda, a caminho da igreja. Porque não tinha ela então, como aquela, resistido, suplicado? Pelo contrário, sentira-se contente, sem reparar no abismo onde se precipitava... Ah!, se, na frescura da sua beleza, antes da conspurcação do casamento e da desilusão do adultério, pudesse ter entregue a sua vida a algum coração grande e sólido, então, com a virtude, a ternura, as volúpias e o dever confundindo-se numa coisa só, nunca teria descido de tão alta felicidade. Mas essa felicidade, sem dúvida, era uma mentira inventada para causar o desespero de todo o desejo. Ela conhecia agora a mesquinhez das paixões que a arte exagerava. Portanto, esforçando-se por desviar dela o pensamento, Emma queria apenas ver naquela reprodução das suas dores uma fantasia plástica boa para entreter a vista, e até sorria interiormente com uma piedade desdenhosa quando, no fundo do teatro, detrás do reposteiro de veludo, surgiu um homem de capa preta.

O enorme chapéu à espanhola caiu-lhe, com um gesto que fez, e logo os instrumentos e os cantores começaram a entoar o sexteto. Edgar, faiscando de raiva, dominava todos os outros com a sua voz mais clara. Ashton lançava-lhe, em notas graves, provocações homicidas, Lúcia soltava o seu agudo lamento, Artur modulava, à parte, sons intermédios e a baixa estatura do ministro roncava como um órgão, enquanto as vozes femininas, repetindo-lhe as palavras, continuavam deliciosamente em coro. Estavam todos no mesmo plano a gesticular, e a ira, a vingança, o ciúme, o terror, a misericórdia e a estupefacção eram expressos simultaneamente por aquelas bocas entreabertas. O apaixonado traído brandia a sua espada nua, a gargantilha de rendas subia e descia conforme os movimentos do peito e o homem dava grandes passadas da direita para a esquerda, fazendo tilintar contra o sobrado as esporas douradas das suas botas flexíveis, que se lhe alargavam nos tornozelos. Devia ter, pensava ela, um amor inexaurível, para o derramar sobre a multidão em tão grandes eflúvios. Todas as suas veleidades difamatórias se desvaneceram com a poesia do papel, que a invadia, e, atraída para o homem pela ilusão da personagem, procurou imaginar o que seria a vida dele, aquela vida retumbante, extraordinária, esplêndida, e que poderia ter sido a dela se, entretanto, o acaso tivesse querido. Ter-se-iam conhecido, ter-se-iam amado!

Com ele, por todos os reinos da Europa, ela teria viajado de capital em capital, compartilhando com ele as fadigas e o orgulho, apanhando as flores que lhe atirassem, bordando-lhe os fatos ela própria. Depois, todas as noites, no fundo de um camarote, por trás das rótulas douradas, recolheria, maravilhada, as expansões daquela alma que teria cantado unicamente para ela, enquanto representava no palco, tê-la-ia fixado com o olhar. Uma súbita loucura se apoderou dela: ele fixava-a de certeza! Sentiu desejo de correr para os seus braços a fim de se refugiar na sua força, como na própria encarnação do amor, e dizer-lhe, gritar-lhe: “Rapta-me, leva-me, fujamos! Para ti, para ti!, todos os meus ardores e todos os meus sonhos!”

Desceu o pano.

O cheiro do gás misturava-se com a respiração da assistência, o vento feito pelos leques tornava a atmosfera mais sufocante ainda. Emma quis sair, a multidão atulhava os corredores e ela deixou-se novamente cair na poltrona, com palpitações que a sufocavam. Charles, com medo de a ver desmaiar, correu ao bufete para lhe trazer um copo de orchata.

Teve uma enorme dificuldade em regressar ao camarote, porque a cada passo lhe davam cotoveladas, por causa do copo que segurava com ambas as mãos, e chegou a entornar a maior parte do conteúdo nas costas de uma ruanense em mangas curtas, que, sentindo o líquido frio a escorrer-lhe pelos rins, atirou gritos de pavão, como se a estivessem assassinando. O marido dela, que era tecelão, enfureceu-se contra o desastrado, e, enquanto, com o lencinho, a senhora limpava as manchas no seu belo vestido de tafetá cor de cereja, ia ele murmurando em tom mal-humorado palavras como indemnização, despesa e reembolso.

Por fim, Charles conseguiu chegar junto da mulher, dizendo-lhe esbaforido:

- Estava a ver que nunca mais cá chegava! Tanta gente!...

E acrescentou:

- Vê se adivinhas quem encontrei lá em cima? O senhor Léon!

- Léon?

- Ele mesmo! Vem aqui cumprimentar-te.

E, ao acabar de dizer estas palavras, entrou no camarote o antigo escriturário de Yonville.

Estendeu a mão com uma desenvoltura de fidalgo: e a senhora Bovary adiantou maquinalmente a sua, obedecendo certamente à atracção de uma vontade mais forte.

Não a voltara a apertar depois daquela noite de Primavera em que chovia sobre as folhas verdes, quando se tinham despedido, de pé, junto da janela. Mas, recordando-se rapidamente das conveniências da situação, fez um esforço para sacudir aquele torpor das recordações e pôs-se a balbuciar frases apressadas.

- Oh!, como está? Com que então, aqui!

- Silêncio! - gritou uma voz da plateia, porque começava o terceiro acto.

- Está então em Ruão?

- Estou.

- Desde quando?

- Rua! Rua!

Voltavam-se para eles, calaram-se.

Mas, a partir daquele momento, ela não ouviu mais nada, o coro dos convidados, a cena de Ashton e o seu escudeiro, o grande dueto em ré maior, tudo passou por ela à distância, como se os instrumentos se houvessem tornado menos sonoros e as personagens mais afastadas, lembrava-se das partidas de cartas em casa do farmacêutico e do passeio a casa da ama, das leituras debaixo do caramanchão, das conversas a sós ao canto da lareira, de todo aquele pobre amor tão calmo e tão prolongado, tão discreto, tão terno, que ela, entretanto, esquecera. Porque ressurgia então agora? Que combinação de aventuras o colocava de novo na sua vida? Léon colocara-se atrás dela, com o ombro encostado ao tabique, e, de vez em quando, Emma sentia-se estremecer com o sopro tépido das narinas dele, que lhe descia sobre os cabelos.

- Diverte-se com isto? - perguntou ele, inclinando-se tanto que a ponta do bigode lhe aflorou a face.

- Oh!, não, meu Deus! Nem por isso.

Então ele propôs que saíssem do teatro e fossem a qualquer lado tomar uns gelados.

- Ah!, ainda não! Fiquemos! - disse Bovary -, Ela está com os cabelos soltos: isto promete ser trágico.

Mas a cena da loucura não interessava nada a Emma e a actuação da cantora parecia-Lhe exagerada.

- Ela grita de mais - disse Emma, voltando-se para Charles, que escutava.

- Sim... talvez... um pouco - replicou ele, indeciso entre o privilégio de desfrutar aquele prazer e o respeito que tinha pelas opiniões da mulher.

Depois Léon disse, suspirando:

- Está um calor...

- Insuportável! É verdade.

- Estás maldisposta? - perguntou Bovary.

- Estou, falta-me o ar, vamos embora.

Léon colocou-Lhe delicadamente sobre os ombros o grande xaile de renda e foram os três sentar-se ao ar livre, no porto, diante das montras de um café.

Primeiro falou-se da doença dela, ainda que Emma, de vez em quando, interrompesse Charles, com receio, dizia ela, de enfadar o senhor Léon, e este contou-lhes que viera a Ruão passar dois anos num bom cartório, para adquirir prática nas causas, que eram, na Normandia, muito diferentes daquelas que se tratavam em Paris. Depois pediu informações de Berthe, da família Homais, da tia Lefrançois, e, como na presença do marido nada mais tivessem a dizer um ao outro, depressa se esgotou o assunto da conversação.

Pessoas que saíam do espectáculo passaram pelo passeio, cantarolando ou berrando a plenos pulmões. “Ó belo anjo, minha Lúcia!” Então, Léon, para se mostrar entendido, pôs-se a falar de música. Tinha visto Tamburini, Rubini, Persiani, Grisi, e, ao pé desses, Lagardy, apesar de todo o seu espavento, não valia nada.

- No entanto - interrompeu Charles, que dava dentadinhas no seu sorvete de rum -, dizem que no último acto ela é absolutamente admirável, tenho pena de haver saído antes do fim, porque já estava começando a divertir-me.

- Afinal - prosseguiu o escriturário -, ele dará dentro de pouco tempo outra representação.

Mas Charles respondeu que se iam embora no dia seguinte.

- A não ser - acrescentou, voltando-se para a mulher - que queiras cá ficar sozinha, querida.

E, mudando de táctica perante esta inesperada oportunidade que se lhe oferecia à esperança, o jovem começou a fazer o elogio de Lagardy no trecho final. Era qualquer coisa de soberbo, de sublime! Assim Charles insistiu:

- Regressas no domingo. Anda, decide-te! Não deves hesitar, desde que tenhas a mínima impressão de que te poderá fazer bem.

Entretanto, as mesas em torno iam-se desocupando, um criado veio, discretamente, colocar-se junto deles, Charles, compreendendo, puxou pela bolsa, o escriturário reteve-lhe o gesto, e até não se esqueceu de deixar a mais duas moedas brancas que fez retinir em cima do mármore.

- Fico realmente aborrecido - murmurou Bovary -, com o dinheiro que o senhor...

O outro teve um gesto desdenhoso, cheio de cordialidade, e, pegando no chapéu, disse:

- Está combinado, não é verdade?, amanhã, às seis horas?

Charles argumentou mais uma vez que não podia estar ausente por mais tempo, mas nada impediria que Emma...

- Mas é que... - balbuciou ela com um sorriso singular -, não sei bem...

- Pronto! Vais reflectir, veremos isso, a noite é boa conseLheira...

E, dirigindo-se a Léon, que os acompanhava, disse:

- Agora, que está perto dos nossos sítios, espero que venha, uma vez por outra, jantar connosco.

O escriturário afirmou que não deixaria de o fazer, uma vez que tinha mesmo necessidade de ir a Yonville por um assunto do cartório. E separaram-se diante da passagem de Saint-Herbland, no momento em que soavam onze horas e meia na catedral.

 

 

 

 

C      O      N      T      I      N      U      A