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A TARDE MUDARA EM NOITE, e todo ímpeto e atividade dos Downs jaziam quedos, banhados em luz pérola. A relva seca, prateada como geada, soltava um vapor esgarçado que se prendia nas sebes como teias de aranha. As poças de orvalho, pires de leite desnatado, não refletiam a imagem de uma lua amarelenta que mirava, redonda e baixa, como o olho de um grande gato, agachado na colina, pronto para saltar.
Nessa quietude brilhante, de uma igreja normanda de pedra tão pequena que parecia perdida numa dobra do descampado - apesar dos nítidos contornos das suas linhas longas e breves, da sua torre achaparrada, de suas chagosas paredes inclinadas - inverossímil como um sonho, emergiu uma sombra, comprida e escura, à qual se seguiram um baque de carvalho e o tinido de um pesado ferrolho, a figura de um homem, menos comprido talvez, mas igualmente sombrio. Muito apropriadamente, um clérigo, Bertram
Desmonde, Reitor de Stillwater.
De cabeça nua, mas com uma capa sobre os ombros, enfiou pela confusão de lápides cobertas de liquens, passou os dois grandes teixos retorcidos, dos quais o mais
novo tinha sem dúvida fornecido arcos para os arqueiros de Sussex pelo menos durante cinco séculos, e depois atravessou a cancela para a azinhaga.
Aqui, apanhado pela brancura da noite, por um ímpeto da sua secreta alegria, fez uma pausa e, por um longo instante, aspirou a beleza da sua gleba, uns bons 100
acres, indo por um lado até os altos do bosque de faias de Ditchley, e pelo outro até a coutada de tojo arenoso que beirava a estrada para Stillwater. Na distância,
o Anel de Chanctonbury era visível contra o céu oriental, e mais abaixo, por entre árvores, o absurdo mas amigo torreão de Broughton Court. Para oeste, a planura
continuava, cortada por uma caleira
- ferida incruenta - por túmulos tidos como romanos, mas provavelmente restos de antigos fornos de ladrilhos. Vinham então as choças dos trabalhadores, seis, em
fila, como cogumelos, e frouxamente, acima da orla da estrada, o bruxuleio da aldeia. Abaixo dele, brilhante de luzes, a Reitoria.
Solidamente georgiana, com janelas paládicas, um espaçoso pórtico sustentado por colunas acanaladas e - delicioso pensamento! - uma balaustrada na cimalha, era uma
verdadeira casa de campo, construída pelo seu bisavô, Canon Hilary Desmonde, em 1780, em pedra branca dali mesmo - a pedreira, bem perto, estava agora felizmente
coberta pela vegetação. Traços de um Tudor primitivo ainda persistiam no celeiro e estábulos de tijolos, nos anexos da fazenda, no delicado muro de sílex e nos seixos
redondos que cercavam a ampla horta. Envolvida por relvados macios, orlados de canteiros de tulipas e prímulas, o jardim de roseiras, ainda não desperto, formando
um hexágono em torno do relógio de sol, cordões de rosas Ribston e Beauty of the Bath, com as suas soprepelizes de flores, como chantres, ao longo do prado do sul,
uma gigantesca azinheira sombreando a trilha ensaibrada, essa casa, esse pequeno abrigo de casca dourada, enraizado e imutável, seu lar, lar dos Desmondes por tantos
anos, especialmente esta noite aquecia de orgulho o coração do Reitor.
Quase certamente eles tinham vindo com o Conquistador. Um deles, o Sieur d'Esmonde, que estivera nas Cruzadas, jazia sob a sua efígie de mármore, com seu curvo nariz
quebrado, ai!, por algum turista vandálico, na pequena igreja de Downland. Se o nome tinha sido um tanto alterado pelo uso rústico - não se poderia aplicar a palavra
corrompido - ele não os identificava de modo mais completo com a boa terra de Sussex? Eles tinham prestado bons serviços à sua pátria nas três profissões abertas
para um cavalheiro: na Igreja particularmente, mas também na Justiça e no Exército. Seu irmão Hubert, após um longo e útil trabalho nas fronteiras do Afeganistão,
estava agora parcialmente aposentado em Simla Lodge, a cerca de 25 quilómetros, com o posto de general, e ainda em contato com o Ministério da Guerra, devotando
o seu lazer à cultura científica da pêra Jargonelle. Somente uma ocasião, até onde alcançava a memória, a família descera ao comércio: quando, no início do reinado
de Victoria, um Joseph Desmonde, tio-avô do Reitor, ocupara-se com a manufatura de objetos eclesiásticos. Mas como o negócio tinha certo sabor de discrição, trazendo-lhe
ainda uma considerável fortuna, o lapso, embora lamentável, era menos difícil de perdoar.
- Uma bela noite para o senhor, Reverendo.
Nas profundezas do seu devaneio, o Reitor deixara de notar a figura troncuda do velho Mould, seu jardineiro-chefe, que era também o seu sacristão, manquejando trilha
acima para fechar a igreja.
- Boa noite, Mould. Já a fechei, você pode voltar comigo. - Fez uma www.pausa, não revelando o impulso que, contra o seu hábito, o tinha levado à igreja; contudo,
estimulado pela alegria, acrescentou: - Stephen volta para casa esta noite, como sabe.
- E como é que eu ia esquecer isso, senhor? Uma notícia muito boa mesmo. Espero que ele tenha tempo de ir caçar coelhos comigo. E acrescentou mais gravemente: -
Nós logo o teremos no púlpito, quem sabe.
- Ele ainda tem algum caminho para andar, Mould. - Ao descerem a trilha juntos, Bertram sorria. - Embora eu me atreva a dizer que vocês gostariam mais de ouvir um
jovem recém-saído de Oxford do que um velho caturra como eu.
- Não, meu Pastor, não deve dizer uma coisa dessas. Não servi os Desmondes durante 50 anos para agora ignorar a sua qualidade. E pode pregar quem quiser pregar,
que não há ninguém melhor no país.
Bastava apenas essa tocante prova de lealdade quase feudal para selar a disposição do Reitor. O denso perfume das prímulas era, de certo modo, mais doce, os agudos
balidos noturnos dos cordeiros, atrás da cerca de varas, tão enternecedores que quase causavam um aperto no coração. Ah, esta Inglaterra, pensou ele: e aqui, no
seu próprio coração, preciosa como uma jóia, navegando ao luar como um navio de almas, esta pequena paróquia que seria de Stephen também, inviolada, intemporal e
imutável como a eternidade.
- Vamos precisar de alguém para a bagagem. Mande Albert ficar por perto.
- Farei isso, senhor... se ele estiver em casa. Estou tendo dificuldades com esse meu rapaz. Ele não gosta de trabalho. Mas eu dobro ele a pau... prometo.
- com o tempo, ele será um bom rapaz, Mould. Não seja duro com ele - disse Bertram, num tom neutro.
Despediu o velho diante da sua casa, baixa, de paredes curvas na frente, e momentos depois estava na larga entrada do saguão da Reitoria, entregando a capa à sua
filha Caroline, que, inevitavelmente, ali estava para recebê-lo.
- Ainda não chegaram?
Esfregou as mãos: o saguão tinha o defeito do seu teto alto e soalho de mosaico - dava uma sensação de frio da noite, mal atenuado pelo rumor dos tubos de calefação.
- Não, papai. Mas não devem demorar. Claire foi à estação no seu automóvel novo.
- Devemos comprar uma dessas engenhocas. - O reflexo de um capricho aliviou momentaneamente a austeridade das feições delgadas de Bertram e das faces um tanto encovadas.
- Será útil para visitar a paróquia.
- O senhor não está falando sério, papai. - A sua mentalidade prática, despida de humor, tomava-o literalmente. - Sabe o quanto detesta cheiros e poeira. E eu não
o sirvo bastante bem com o tílburi?
Sem dúvida, a iminência do regresso de Stephen a deixava nervosa. Assim, falara com mais vigor do que pretendia, com o seu rosto liso e sério brilhando de sentimento.
E em verdade, antes que ela o pudesse lamentar, a expressão ausente do pai, que, com o ouvido atento, esperava o ruído das rodas na alameda, puniu-a severamente.
Ela baixou os olhos, e seu corpo pesado, sustentado por duas robustas panturrilhas, diminuiu um pouco. Quando é que ele ia apreciar a profundeza ilimitada da sua
devoção, compreender que o seu único desejo era servi-lo? desde o exato momento em que começava o seu dia, depois de vestir-se às pressas, sem o benefício de um
espelho, ombreava com a carga da sua casa, conferenciava com a cozinheira sobre como ele seria alimentado, arranjava as flores, inspecionava o jardim e a granja,
tratava da sua correspondência, atendia visitantes importunos, via paroquianos doentes, desencorajava arqueólogos, juntamente com as carruagens que vinham aos domingos
e feriados cheias de gente, pedindo em coro para ver a "tumba", e ainda achava tempo para cuidar do seu linho e tricotar as suas meias de lã. E, para piorar as coisas,
estava resfriada e a toda hora tinha que assoar o nariz num lenço ensopado.
- Sua mãe vem? - Fez a pergunta com cautela.
- Acho que não. Esta tarde molhei a sua testa com água-de-colônia. Mas ela ainda se sente indisposta.
- Então seremos quatro para o jantar.
- Três. Claire telefonou para dizer que sente muito, muito, mas não poderá ficar.
- Que pena. Mas... haverá outros dias.
Seu tom de voz exprimia tristeza; contudo, ela percebeu que, a despeito da sua alta consideração por Claire, filha de Lady Broughton, da vizinha Court, e da sua
cálida aprovação do entendimento tácito existente entre ela e o seu filho mais velho, no fundo estava feliz nesta noite de reunião por ter Stephen inteiramente para
si.
Com esforço, ela conseguiu manter o tom sereno.
- Ainda não terminei de datilografar todas as suas notas para a convocação de amanhã. Quando partirá para Charminster?
- Oh, depois do almoço, suponho. O Deão raramente é pontual.
- Duas horas então. Eu o levo. - Subitamente, com ciúmes brilhando nos olhos, ajuntou: - O senhor parece cansado, papai. E terá um dia cheio amanhã. Não deixe Stephen
retê-lo até muito tarde.
- Não se inquiete, Caroline. E, a propósito, espero que nos apresente um bom jantar.
- Temos sopa hindu com caril e salmão que o tio Hubert nos mandou de Test, com pepino e molho verde, é claro, e depois um lombo de cordeiro com ervilhas da nossa
horta e batatas novas. Para sobremesa, Beasley fez aquela charlotte de maçã que Stephen tanto adora.
- Ah, sim, minha querida. Lembro que ele sempre a pedia ao voltar de Marlborough para casa. Mas, espere, não é o ruído de um motor?
De fato, ouvia-se um som fraco mas rítmico; avançando para a porta, ele a abriu, deixando ver um pequeno cupê de Dion, ativo e trepidante, do
qual, cessada a agitação por meio de alguma engenhosidade, emergiram duas figuras.
- Stephen!
- Como está, papai... e você, Caroline? Davie não está?
- Ainda não... ele terá licença na próxima segunda-feira.
O arco de luz do pórtico mostrou uma figura franzina de estatura abaixo de mediana, vestida de preto e forcejando com uma valise de couro - o rapaz de Mould não
aparecera - um relance, também, de feições finamente cinzeladas, narinas sensíveis, e um rosto estreito, pensativo, e um tanto sério. Então veio, com discrição,
deixando que as saudações familiares cessassem, uma jovem alta de mãos enluvadas e um comprido casaco de tweed. Seu boné de dirigir, com um véu pendente, absurdamente
como um bolo de cevada, usado apenas em deferência às instâncias maternas, não podia destruir o seu ar de tranquila compostura, uma inescapável sensação de boa educação,
confirmada por sua voz ao se reunir ao pequeno grupo.
- Lamento termos deixado atrás alguma bagagem. Minha baratinha não tem espaço para malas.
- Não se preocupe, querida Claire. Amanhã mandaremos buscá-la. O Reitor tomou-lhe o braço num gesto quase paternal. - Mas você não pode ficar conosco agora?
- Gostaria muito. Mas mamãe espera gente da aldeia... uma comissão de agricultores... arrendatários... que não podem ser despachados.
- Ah, sim! As obrigações da senhora de um proprietário rural. Não está uma linda noite?
- Perfeita. Ao passarmos por Halborough, estava claro como dia... Ela voltou a cabeça, um movimento que, dissolvendo a sombra do atroz boné, revelou um perfil puro
e regular. - Não estava linda, Stephen?
Ele ficara em pé, silencioso, num constrangimento de que agora parecia livrar-se com um esforço.
- Foi um belo passeio. - Depois, como se não tivesse dito o bastante, forçando uma frivolidade que lhe era de todo alheia: - Mas em certo ponto acho que devíamos
ter descido e empurrado.
- Em Ambry Hill - riu-se Claire. - Não sou muito entendida nas mudanças. - Seu sorriso demorou-se um instante na obscuridade do pórtico. Mas não devo detê-los. Boa
noite. Venham ver-nos logo... amanhã, se possível. E tenha cuidado com o seu resfriado, Caroline.
Quando ela saiu, Bertram pôs o braço no ombro do filho e levou-o para dentro de casa.
- É bom tê-lo em casa novamente, Stephen. Você não sabe... Ora, bem... como deixou Oxford? E como se sente? Faminto, estou certo. Corra lá em cima para ver sua mãe.
Depois, desça para o jantar.
E enquanto Caroline, com os olhos e nariz vermelhos pelo ar da noite, levantava uma sacola de livros que fora deixada, esquecida, no pórtico, o pai deteve-se um
pouco vendo Stephen subir a escadaria, olhando para cima com uma expressão que, na sua ternura descuidada, era quase um transe.
CAPÍTULO II
APÓS O EXCELENTE JANTAR, bem servido por duas copeiras que, outrora de uma primitiva grosseria de aldeãs, Caroline tinha treinado tão admiravelmente, o Reitor, amolecido,
levou Stephen para o estúdio, onde as cortinas de droguete estavam descidas e ardia um belo fogo de carvão de algas. O aquecimento da Reitoria podia não ser moderno,
mas as lareiras eram amplas e o combustível abundante. E isto se harmonizava com a sala, a despeito dos ornatos moldados, com um tom íntimo e esportivo para amenizar
o ambiente vagamente paroquial, confirmado por uma escrivaninha de tampa corrediça que continha os sermões de Pusey, o Calendário Eclesiástico, e uma estola de púrpura
dobrada. Um par de espreguiçadeiras de couro marrom flanqueava a lareira, contra uma parede estava o armário envidraçado das armas, em outra uma caixa de moedas
saxãs, produto das pesquisas arqueológicas do Reitor, e, acima do consolo da lareira, dois chicotes de cabo de osso cruzavam-se por trás de uma cabeça empalhada
de raposa.
Mais cedo, nessa tarde, preparando-se, Bertram descera ao porão da casa para uma visita à adega, e agora, com um ar ligeiramente consciente, apanhou uma garrafa
empoeirada, que deitara na cestinha, com as pintas de cal para cima, sobre a escrivaninha; tendo imperitamente tirado a rolha em pedaços, serviu dois cálices de
porto. Ele era um homem temperante, que só de raro em raro bebia álcool, e não usava tabaco, mas esta ocasião exigia um registro dentro da verdadeira tradição da
família.
- Seu avô guardou este - observou ele, segurando o cálice de vinho contra a luz e assumindo um ar de crítico. - É um GrahanVs, 1876.
Stephen, que detestava vinho do Porto, fez da sua poltrona um murmúrio de aprovação e levou o cálice aos lábios. Desempenhava, como um ator, o papel que dele se
esperava.
- Parece muito saudável.
A palavra agradou ao Reitor.
- Sim, o seu avô sabia o que estava fazendo. Foi ele que mandou colocar aquelas notáveis manilhas lá embaixo. Elas drenavam o South Meadow, como sabe, em 1878, e
sobrara boa quantidade delas. O velho viu que cada uma podia conter muito bem uma garrafa, e mandou argamassá-las na adega, como perfeitos favos... Naturalmente,
ele não era um grande bebedor. Mas gostava do seu quartilho de clarete após um bom dia com os cães. Deixou-nos, como sabe, quando tinha 70 anos.
- Deve ter sido um grande caráter.
- Era um bom homem. Um verdadeiro cavalheiro inglês do campo.
O Reitor suspirou. - Não se pode desejar um epitáfio mais belo.
- Minha avó também - acudiu Stephen devidamente, porque, desde Oxford, meditando nervosamente enquanto o trem corria pelos prados, pomares e tortuosas regiões, resolvera
ser inteiramente filial. - Ela não ficava muito atrás dele... Mould me contou muitas histórias a seu respeito.
- Ah, sim, ele era muito devotado a ela... como todos os seus serviçais. Mas ela o trazia num pé só. - Um vagaroso sorriso de reminiscência assomou aos olhos de
Bertram. - Você sabe que nos seus últimos anos a velha senhora tornou-se excessivamente gorda. Na verdade, tinha dificuldade em andar, era obrigada a locomover-se
num carrinho, e Mould, e depois o filho do jardineiro, ambos serviam como meio de propulsão. Por mais seis penies semanais. Era uma grande honra. Mas um tanto extenuante,
especialmente quando sua avó desejava ir à aldeia e tinha que ser empurrada durante todo o caminho até Ambry Hill. Num dia quente de verão, quando alcançou o topo
da colina, o jovem Mould parou para enxugar o rosto na manga. Mas ao deixar escapar a cadeira de rodas, lá se foi ela sem ele, aumentando de velocidade, zunindo
colina abaixo e em torno da curva numa velocidade vertiginosa. O coitado do rapaz ficou petrificado. Via-se como o assassino da sua ama. Com um grito de horror,
precipitou-se encosta abaixo. Quando chegou...
Stephen, encolhendo-se, pôs-se a rir; conhecia a anedota de cor.
- ... lá estava a sua avó, calmamente na praça da aldeia, barganhando com o açougueiro as costelas de um cordeiro. - O sorriso de Bertram extinguiu-se. - Era uma
mulher indomável. Imensamente caridosa. E devotada ao meu pai. Morreu somente oito semanas depois dele.
Estaria o Reitor pensando no seu próprio casamento? Lá fora, piou uma coruja. Na copa, no fim do corredor, Caroline estava mexendo em jarras de cerâmica de picles
com uma brusquidão desnecessária. Bertram endireitou-se e bebericou o seu porto, consciente de que devia quebrar o silêncio antes que houvesse um constrangimento
entre ele e Stephen. Como era estranho terem um grande carinho, e, contudo, uma sensação desse embaraço perseguir as suas relações sempre que ficavam a sós. Seria
porque ele se preocupava demasiado? Nunca tinha sentido essa falta de naturalidade na companhia dos
seus dois outros filhos. Naturalmente, ele gostava de Caroline, aceitava aquela sua fortaleza, considerava-a uma "grande presença". Mas a sua domesticidade, conservando-a
uma perpétua solteirona, chocava inconscientemente o seu senso de orgulho de família. Quanto a David, seu filho mais moço, agora com quase 13 anos de idade, aqui,
ai! o seu amor mergulhava em tristeza, decepção e pena. Pensar que um filho seu, aliás, qualquer Desmonde, fosse um epiléptico que, mesmo sem sofrer ataques, tendia
a gaguejar!
O Reitor reprimiu um suspiro. Ceder a tal sentimento era perigoso. Contudo, no seu presente humor, não havia como evitá-lo.
- Que bom ter terminado seus estudos em Oxford. Você se saiu bem.
- Oh, não sei não. No fim, pareceu-me ter perdido o ânimo.
- Eu também me senti assim quando voltei de Trinity... embora gostasse de lá tanto quanto você.
Stephen ficou silencioso. Como poderia dizer a papai que detestava a universidade?... aquela secura, a superioridade, a sensação de estar fora da vida, a interminável
preocupação com esportes que não o interessavam, o estudo sem sangue de línguas mortas que o aborreciam inexprimivelmente, de pura contrariedade, acima de tudo aperfeiçoar-se
em francês e espanhol... sua aversão a uma carreira que lhe fora determinada.
Mas o Reitor dizia:
- Você ganhou umas férias. Claire o quer para jogar ténis. Seu tio Hubert convidou-o para Chillingham. O salmão dele não esteve bom esta noite? Seu primo Geoffrey
está aqui, numa breve licença.
Novamente Stephen não respondeu. E pela primeira vez Bertram começou a se questionar, se, por baixo da sua maneira passiva, o seu filho não estava combatendo sinais
de Cansaço. Sua palidez natural parecia mais intensa, e seus olhos tinham aquela negrura aumentada que, diminuindo o resto do seu rosto, - representara desde os
seus primeiros dias um sintoma de mal-estar físico ou emotivo. Ele não é forte, espero que não esteja adoecendo de alguma coisa, pensou Bertram, com súbita ansiedade,
e rápido, protetoramente, declarou:
- Você tem mesmo que descansar. Não precisa ir à Sede antes de julho. Descontando cinco meses para Londres, a sua ordenação seria no Natal, a quadra mais conveniente
do ano.
Stephen levantou-se. Por muito tempo havia antecipado este temido momento, tentado, a conselho do seu amigo Glyn, apressá-lo, e então recuava nervoso, escrevia uma
dezena de cartas, e sempre as rasgava. Agora aquilo estava diante dele, e ele se sentia mal, vazio por dentro.
- Papai... preciso falar com o senhor.
- Sim? - Animou-o com um aceno, as pontas dos dedos juntas.
Uma pausa. Seria dinheiro?, pensou serenamente o Reitor. Alguma dívida não paga na universidade? Então, ouviu as palavras entrecortadas:
- Eu não quero ser ordenado.
A expressão do Reitor não se alterou aparentemente, como se uma súbita e completa surpresa tivesse, como a morte repentina, paralisado as suas feições numa semelhança
de normalidade. Por fim, quase estupidamente, disse:
- Não quer?
- Acho que não sirvo para a Igreja... Não sou bom com pessoas Não sei organizar... Eu seria incapaz de pregar um sermão decente, ainda que para salvar a minha própria
vida.
- Essas coisas virão. - Em pé, Bertram estava quase franzindo o cenho.
- Os meus próprios sermões não são particularmente brilhantes. Mas bastam.
- Mas papai, não é apenas isso. Eu não tenho interesse por esse trabalho. Eu... eu não me sinto capaz de sucedê-lo aqui...
Confirmado em sua primeira suspeita pela voz interrompida, o Reitor recuperou-se e assumiu um tom brando.
- Você está cansado e abatido, meu filho. Nós todos ficamos cansados e desanimados ocasionalmente. Você se sentirá diferente depois de umas caminhadas pelos Downs.
- Não, papai. - Respirando irregularmente, Stephen fortificou a sua vontade. - Venho sentindo isto há muito tempo. Não posso amarrar-me neste lugarzinho... a um
futuro vazio e frustrado.
Que tinha dito ele, procurando desesperadamente as palavras? A expressão chocada nos olhos do seu pai afligiu-o. Um momento de insuportável silêncio. Então:
- Não percebi que você via Stillwater sob esse aspecto. Somos uma pequena paróquia, talvez. Mas nosso valor para o país pode ser julgado por outros padrões que não
os da mera dimensão.
- O senhor me interpretou mal. Eu gosto de Stillwater. ., é o meu lar. E sei o quanto o senhor é estimado em quilómetros e quilómetros aqui em volta. É uma coisa
diferente... certamente o senhor entende o que eu quero dizer... o que acho que devo fazer com a minha vida.
O Reitor recuou bruscamente, e então, com toda a compreensão, olhou sobressaltado para o filho.
- Stephen... não será aquela ideia doida outra vez?
- É, papai.
Novamente um compasso de silêncio vibrou entre eles. O Reitor pôs-se de pé, e começou, lentamente a princípio, depois com crescente perturbação, a andar de cá para
lá. Finalmente, com um esforço, acalmou-se e aproximou-se de Stephen.
- Meu querido filho - disse ele com grande seriedade. - Eu nunca tentei prendê-lo a mim pelo seu senso do dever. Mesmo quando você era muito moço, antes de ir para
a escola, preferi confiar nos seus sentimentos naturais
de afeição e respeito. No entanto, deve compreender o quanto contei inteiramente com você para me suceder aqui... Stillwater significa tanto para mim... para todos
nós. E as circunstâncias da minha vida... a invalidez de sua mãe... a infeliz deficiência de David... o fato de ser o meu filho mais velho e, perdoe-me - a sua voz
tremeu ligeiramente - meu filho bem-amado - levou-me a colocar as minhas esperanças em você. Contudo, neste momento, ponho tudo isso de lado. Por minha honra, é
em você que estou pensando, e não em mim, quando lhe digo, quando lhe suplico que esqueça esse sonho fantástico. Você não compreende realmente o que isso significa.
Você não deve... não pode realizá-lo.
Stephen baixou os olhos a fim de não ver o rosto contraído do pai.
- Mas eu com certeza tenho direito à minha própria vida. - Através do seu respeito ardia uma íntima confiança.
- Não a essa espécie de vida. Ela só lhe trará infelicidade. Jogar fora as suas brilhantes perspectivas, arruinar toda a sua carreira por um mero capricho... seria
um ultraje à face de Deus. E depois há Claire... como, em nome do Céu, ela caberia nesse plano? Não, não. Você é muito jovem para a sua idade, Stephen... Essa ideia
louca que se apoderou de você pode lhe parecer muito importante agora. Mas dentro de poucos anos, rirá de si mesmo pelo simples fato de ter pensado nela.
Afundado na sua cadeira, de faces vermelhas e olhos baixos, com o espírito tardo e embotado pelo vinho do Porto, Stephen não podia achar uma palavra para dizer.
Naquele momento, sem exagero, odiava o seu pai. contudo, ao mesmo tempo, mostrava-se vencido pela vergonhosa consciência da sua afeição paternal, pela gratidão e
justiça do seu ponto de vista, e, pior que tudo, por uma tépida onda de nostalgia que lhe subia à garganta, um dilúvio de recordações da infância... as corridas
de tílburi a Ambry, seu pai afrouxando as rédeas, Carrie no seu limpo avental branco, Davie usando os seus primeiros calções de flanela; os piqueniques à beira do
Avon, o sol quente na água fria, e um pato selvagem subindo do juncal amarelo à medida que a canoa avançava; as canções familiares entoadas diante da árvore de Natal,
uma poeira de neve nas vidraças... oh, como poderia arrancar essas ternas, fortes raízes?
Bertram inclinou-se para diante e, não de modo comovente, mas com um toque de desconfiança, pôs-lhe a mão no ombro.
- Acredite-me, trata-se da sua felicidade, Stephen. Você não pode... não poderia achar no seu coração alguma coisa contra mim.
Stephen não se atrevia a erguer os olhos, com medo de romper em lágrimas. Estava liquidado... pelo menos no presente. E ele tinha pensado lutar duramente, tinha
jurado a Glyn que ganharia a partida.
- Muito bem - conseguiu murmurar finalmente, provando toda a
amargura que a derrota traz a uma natureza dócil mas apaixonada. - Se é assim que o senhor pensa, com tanta veemência... tentarei a Sede... para ver o que acontece.
CAPÍTULO III
BERTRAM SUBIU AS ESCADAS VAGAROSAMENTE. Embora fosse grande a sua sensação de alívio, não diminuía o cansaço que lhe viera de repente, nem a demorada ansiedade do
seu coração. Diante do quarto da esposa, hesitava, com a cabeça inclinada numa atitude de escuta; depois, batendo ligeiramente no painel, empertigou-se e entrou.
Era um vasto compartimento, outrora a sala de estar de cima, a melhor da casa, como referira o velho Cónego Desmonde, sem dúvida por suas belas proporções e por
dar para o sul, o que, além de permitir a entrada do sol da manhã, oferecia um vasto panorama dos Downs. Na sua conversão em quarto e sala de estar da esposa, parte
da mobília original tinha sido mantida - as cadeiras de tapeçaria e os canapés Chippendale, um largo espelho em semicírculo com moldura de gesso em cima do consolo
de mármore branco da lareira, o tapete vermelho de Bruxelas. Protegida por um guarda-vento, Julia Desmonde estava deitada, lendo, embaixo de uma cobertura de cetim.
Era uma mulher formosa e bem conservada, de 45 anos, com grande ar tranquilo e muito indolente, feições cheias e lisas, e um denso cabelo castanho espalhado no travesseiro
como uma nuvem.
Marcando com uma unha branca o lugar do livro que tinha o desenho de uma figura do zodíaco, Julia dirigiu para o marido, por baixo das finas sobrancelhas, um olhar
inquiridor. Seus olhos eram de um notável azul de amor-perfeito, quase infantis, com pálpebras carnudas quase caídas.
- Então temos Stephen em casa novamente - disse ela.
- Sim, achei que meu querido filho estava com boa aparência. Podia-se contar com ela para exprimir, na sua voz aristocrática e absorta consigo mesma, uma opinião
contrária à dele.
- E a dor de cabeça?
- Melhor, muito obrigada. Sentei-me demais ao sol esta tarde. O sol desta primavera precoce é muito traiçoeiro. Mas eu acabo de fazer um tratamento.
Ele percebeu, pelo aparelho que estava na mesa ao lado, que ela acabara de aplicar uma das suas vibrações. No guarda-fogo, uma caldeirinha de metal assobiava com
um alegre penacho de vapor, indicando que em 20 minutos o extrato de farelo seria levantado e misturado, os tabletes de fermento esmagados e engolidos, o iogurte
batido, ou desta vez seriam algas secas? Então a bolsa de água quente seria reenchida, o fogo disposto para a noite, as luzes diminuídas, as almofadinhas para as
pálpebras umedecidas e colocadas para dormir. E outra vez, embora lutasse contra ela com determinação cristã, a pergunta lhe veio: Por que cargas-d'água tinha casado
com ela?
Ela fora, sem dúvida - aliás ainda o era, evidentemente na sua maneira estatuesca, uma espécie de beleza, e como filha única de Sir Henry Marsden de Haselton Park,
tinha sido considerada pela sociedade do campo daquela ocasião "o partido da estação". Quem, olhando-a, teria adivinhado, por exemplo, que aquela jovem com a graça
de um cisne, anfitriã da Haselton Fête, considerada a beldade do baile de caça, cercada por jovens oficiais dos quartéis de Charminster, sorridente mas composta,
centro de atração, mais tarde revelaria a acentuada peculiaridade de ser tão inteiramente inútil para ele como esposa?
A não ser por uns poucos garden-parties nos seus primeiros anos de casados, quando arrastava um guarda-sol com babados, movendo-se graciosamente sobre a relva, com
um chapeirão, ela se recusara com pacífica resolução a tomar interesse pelas obras da paróquia. "Deus", dizia ela amavelmente, "não há nenhum sentido em levar sopa
para rústicos indigentes ou estragar os nervos costurando roupa de criança para encorajamento da população rural." Afortunadamente, a mulher do bispo gostava dela,
mas ela não recebia as senhoras da clerezia menor.
Preferia passar os dias sentada, exageradamente vestida, à sua janela, ou no roseiral, empenhada num interminável bordado em seda colorida, do qual levantava a cabeça
repetidamente para olhar por longos períodos o espaço, ou tomar notas ocasionais, quando lhe ocorriam, do que haveria de comunicar ao seu médico, que - tendo há
muito esgotado o doutor do condado - visitava duas vezes por mês em Londres. Seus filhos, que ela suportava com uma facilidade distraída, não tinham sido para ela
mais do que episódios momentâneos. Desde que não a incomodassem, ela os considerava com remota indulgência. Contudo, ao aumentar, mais e mais, o seu alheamento,
ela se retirava para si mesma, criando uma existência que se desenvolvia em torno das suas funções físicas, um pequeno mundo de feliz hipocondria, no qual - poderia
ele, ó Deus, tê-lo previsto quando naquela tarde cheirando a rosas, 20 anos atrás, ele quase morrera de dor com o seu beijo aromático? - ela não tinha maior prazer,
nenhum interesse mais vivo, do que discutir amavelmente com ele a cor dos seus tamboretes.
Talvez o cavalo de campanha empalhado no saguão paterno - lembrança de Balaclava - devesse tê-lo advertido, mas, ai! podia ter predito que o pai dela, até a idade
de 60 anos, não era mais que um excêntrico amável, dedicado em suas horas de fazer as pesquisas mecânicas - a eletrificação da sua propriedade por uma cadeia de
moinhos de vento, a inócua construção de um canhão de tiro rápido que, recusado pelo Ministério da Guerra, tinha não mais do que levado ao céu, na sua parte de carne,
o mordomo da família, que, em nome de Deus, devia ter previsto que aquele irreprimível doido teria, na sua caduquice, lançado subitamente um grandioso projeto para
a construção de uma máquina voadora, como a que foi subsequentemente voada por Blériot através do Canal da Mancha, embora aquilo em si mesmo fosse extremamente doentio,
e não passasse de uma feia geringonça com fantásticos parafusos, supostamente capaz de subir do chão na vertical: um helicóptero. Assim, em desafio às leis da gravidade,
Sir Henry profanara o seu belo parque com alpendres e hangar, operários importados, engenheiros, um mecânico belga, gastara dinheiro como água, em resumo, arruinara-se,
e, permanecendo no chão, morrendo como alvo de mofa.
Haselton, que devia ter sido de Julia, era agora uma escola para meninas, o grande hangar um ginásio, e os alpendres - horrores - recém pintados depósitos para tacos
de hóquei enlameados e sapatos desemparceirados de lona.
Seria possível, pensava Bertram, com novo abatimento, que algo dessa instabilidade agora se manifestasse em Stephen? Não, não... impossível. O filho, tão de perto
parecido com ele em corpo e alma, era todo dele, de fato o seu outro eu. No entanto, devido à sua ansiedade, a nuvem que pairava sobre o seu espírito, era tentado,
a despeito do seu melhor juízo, a abrir a mente e procurar alguma espécie de consolo da parte de sua esposa.
- Minha querida - disse ele. - Enquanto Stephen estiver conosco, acho que devemos fazer um esforço para afastá-lo de si mesmo.
Julia mirou-o surpreendida. Ela possuía em grau notável a faculdade de torcer o sentido do que lhe diziam.
- Meu caro Bertram, você sabe muito bem que não posso fazer qualquer esforço. E por que Stephen deve ser afastado de si mesmo?
- Eu... eu estou preocupado com ele. Ele sempre foi um rapaz incomum. Está atravessando uma fase difícil.
- Difícil, Bertram? Ele já não passou pela puberdade?
- Naturalmente... mas não sei o que se passa com esses rapazes. Na primavera, metem ideias estranhas na cabeça.
- Você quer dizer que Stephen está em estado de amor?
- Não... bem, sabemos que ele gosta de Claire.
- Então o que quer dizer? Ele não pode estar doente. Você mesmo disSe um momento atrás que ele está muito bem.
- Foi você quem disse isso. - A despeito de si mesmo, Bertram falava com crescente impaciência. - Acho que ele está longe de se sentir bem. Mas vejo que você não
deseja participar da minha ansiedade.
- Desejo que me fale, meu querido, não faço nenhuma objeção a ouvi-lo. Mas não é suficiente você estar aborrecido sem me aborrecer? Acho que
fiz a minha parte em trazer os seus filhos ao mundo. Sempre houve, do primeiro ao último, pouco prazer nessa tarefa. Depois, você fez deles sua responsabilidade.
Eu jamais interferi. Por que devo fazê-lo agora?
- É verdade - disse ele, tentando reprimir a sua amargura. - Faria pouca diferença para você se Stephen arruinasse a vida dele. Julia, há alguma coisa nele, algo
debaixo da superfície, que eu não compreendo. O que é que ele realmente pensa? Quem são os seus amigos? Não se lembra de que quando Geoffrey o visitou no ano passado,
em Trinity, encontrou lá a pessoa mais inesperada no seu alojamento... um excêntrico de primeira, foi como Geoffrey o chamou, um artista desmazelado... um galês
Interrompeu-se, olhando quase súplice para ela, até que ela foi obrigada a responder. Sua voz era suave.
- Que tem você contra os galeses, Bertram? Eles possuem belas vozes. Esse galês canta?
- Não - replicou Bertram, corando. - Ele vive insistindo com Stephen para que vá a Paris.
- Muitos jovens já fizeram isso antes, Bertram.
- Até concordo. Mas, desta vez, não pela razão óbvia.
- Então por que razão, se não é para ter uma mulher francesa?
- Para pintar!
Tinha-o dito, livrara-se daquilo afinal; e tensamente, embora com uma certa sensação de alívio, esperou, em silêncio, que ela falasse.
- Devo confessar, Bertram, que não vejo mal algum nisso tudo. Lembro-me de que, quando estive em Interlaken com papá, fiz algumas deliciosas pequenas aquarelas do
lago. Azul era o tom predominante. Stephen sempre gostou de desenhar. Aliás, foi você quem lhe deu a primeira caixa de lápis de cor.
Ele mordeu forte os lábios.
- Isso não é ocupação de criança, Julia. Sabe que há mais de um ano, sem nos dizer uma palavra, ele tem viajado de Oxford para assistir às aulas noturnas de arte
em Slade?
- Slade é uma instituição respeitável. Stephen terá bastante tempo para fazer seus esboços entre os sermões. E, sem dúvida, desenhar é Um calmante para os nervos.
Ele refreou o seu impulso de gritar. Por um momento, manteve os olhos baixos, no tom de quem foi Vencido, mas, respirando um pouco depressa demais, disse:
- Espero que tenha razão, minha cara. Suponho que me preocupo desnecessariamente. Sem dúvida ele se restabelecerá logo que entre na rotina do seu trabalho em Londres.
- Sem dúvida. E, Bertram, resolvi que, em vez de Harrogate, irei a Cheltenham no mês que vem. Lá há águas minerais, e dizem que são excelentes para promover a secreção
da bile. Quando o Dr. Leonard examinou a minha urina pela última vez, encontrou uma acentuada insuficiência de sais biliares.
Ele deu boa-noite, em tom baixo, e saiu rapidamente, antes que dissesse coisa pior.
Ao sair do quarto, podia ouvir no corredor o lento tique-taque da máquina de Caroline, que, sem se poupar, batia as notas para o seu discurso do dia seguinte.
CAPÍTULO IV
NUMA TARDE CINZENTA E ENEVOADA, seis semanas mais tarde, Stephen, voltando de uma visita de casa em casa, caminhava lentamente pela Clinker Street, no East Stepney.
A nuvem sulfurosa sobre as docas de Londres tornava o estreito logradouro mais triste e opressivo para ele. Nenhuma luz, nenhuma cor - somente a inércia dos carros
de descarga vazios, os paralelepípedos graxentos, um cavalo da zorra de um cervejeiro fumegando na chuva, com os arreios dentro de um saco gotejante. Um ônibus ruidoso
passou no rumo oeste, salpicando-o de lama quando ele voltava para a Sede.
Aquela construção de tijolo vermelho, erguida no alinhamento das casas de estuque derruídas que se inclinavam ao longo da rua como velhas decaídas, agora mais do
que nunca parecia-lhe uma pequena mas eficiente penitenciária. Nesse momento, abriu-se a porta da frente e o Guardião, o Reverendo Crispin Bliss, saiu, de guarda-chuva
em pé, nariz levantado para farejar o tempo, alto, magro, envolto até os sapatos em uma comprida capa impermeável preta. Um encontro, pensou Stephen, era inevitável;
e aproximou-se.
- Ali, Desmonde... já de volta?
O tom frouxamente cordial era, achou Stephen, o de um homem que procurava gostar dele e não podia, a despeito da melhor das intenções e dos reclamos do amor fraterno.
Inquestionavelmente, o Reverendo Crispin Bliss, membro da confraria de St. Cuthbert era um clérigo devotado que trabalhava
arduamente pelo bem da sua vinha infrutífera. Clérigo menor, com fortes tendências evangélicas, era um homem de sincera embora limitada piedade. Religião à parte,
porém, a sua maneira era muito pouco atraente: seco, académico, suscetivelmente superior. Igualmente infeliz era a sua maneira de caminhar com a cabeça atirada para
trás, o ar nobre com que procurava se proteger, e, sobretudo, a sua voz rachada, ligeiramente fanhosa, parecendo sempre pronta a pronunciar contradições culturais
em notas de agudo falsete. Quase no início, Stephen tivera a má sorte de ofendê-lo.
No corredor superior da Sede estava pendurado um cruento quadro do martírio de São Sebastião, que para Stephen sangrava de novo sempre que ele saía da sua sala.
Desde que a pintura parecia ignorada por todos menos ele, uma manhã, num momento de aversão, virou-a contra a parede. O ato passou aparentemente despercebido. Mas
na ceia dessa noite, com um sorriso magoado que passou por cima dos seus dois coadjutores, Loftus e Geer, e foi repousar em Stephen, o Guardião observou, nos seus
tons mais nasais:
- Não faço objeção ao humor, mesmo na sua forma mais disfarçada, a brincadeira de mau gosto. Mas interferir em qualquer objeto desta casa que por seu assunto ou
associação possa ser considerado como sagrado é, para o meu espírito, um ato indecoroso e irreligioso.
Stephen corou até a raiz dos cabelos e manteve os olhos no seu prato. Não tinha querido fazer mal algum, e quando a refeição terminou, o desejo de explicar-se levou-o
ao Guardião.
- Lamento ter virado o quadro. A única desculpa que posso oferecer é que ele bulia com os meus nervos.
- Com os seus nervos, Desmonde?
- Bem... sim. É de um gosto muito chocante, além de ser evidentemente uma falsificação.
- Não posso compreendê-lo, Desmonde. O quadro é um legítimo Carlo Dolci.
Stephen sorriu em tom de desculpa.
- Oh, dificilmente, senhor. Nem sequer isso. Além das pinceladas grosseiras, e do pigmento moderno, é pintado em tela branca de cânhamo - um tecido que só foi manufaturado
por volta de 1890, uns bons 200 anos após a morte de Dolci.
A expressão do Guardião petrificou-se. Respirava rapidamente pelas narinas, não fogo precisamente, mas a contrapartida cristã da cólera - justa indignação.
- Acontece que esse quadro é meu, Desmonde, e uma propriedade muito estimada. Comprei-o de um jovem na Itália, de fonte impecável. A despeito da sua opinião, continuarei
a apreciá-lo como o original de uma obra de arte.
Agora, todavia, havia menos hostilidade do que vigilante moderação no
olhar com que o Guardião, parado na chuva, ofereceu a Stephen o abrigo do seu guarda-chuva e perguntou:
- Fez a série de Skinner esta tarde?
- Praticamente toda, senhor.
Não queria confessar que, esperando a visita de Richard Glyn, tinha saltado os números ímpares.
- Como encontrou a velha Sra. Blimey?
- Não muito bem, receio.
- A bronquite da pobre criatura piorou? - Depois, como Stephen hesitava, parecendo inquieto, ajuntou: - Ela precisa do médico?
- Não... não exatamente. Aliás, encontrei-a muito embriagada.
Houve uma pausa perturbadora, então veio a pergunta um tanto mundana:
- Como é que ela conseguiu dinheiro?
- Acredito ser o responsável, senhor. Dei-lhe seis xelins ontem para que pagasse o aluguel do quarto. Ela parece que o gastou em gim.
O Guardião fez um som, estalando a língua.
- Bem... vivendo e aprendendo, Desmonde. Não o censuro. Mas você não deve pôr a tentação no caminho das pobres criaturas de Deus.
- Acho que não. Por outro lado, quem pode censurá-la por tentar escapar à miséria umas poucas horas? Ela sofre do peito, não arranja trabalho de costura de qualquer
espécie, deve o aluguel ao senhorio e já empenhou quase tudo no seu quarto. Devo confessar que me senti quase contente ao vê-la rolar num estado de feliz esquecimento.
- Desmonde!
- E o que é mais... não pude deixar de pensar que se algum de nós estivesse naquela situação teria feito exatamente a mesma coisa.
- Ora, vamos. Isso é levar o caso um pouco longe demais. Nós nunca devemos, queira Deus, achar-nos em tais situações desagradáveis. - Abanou a cabeça em reprovação
e abriu o seu guarda-chuva. - Haverá reunião dos rapazes esta noite? Trocarei uma palavra com você a esse respeito depois da ceia.
com um aceno de despedida, um tanto distante, pôs-se a caminho, deixando Stephen a subir as escadas para o seu quarto, um estreito cubículo forrado de carvalho claro,
com um consolo gótico e uma estante de livros giratória - A cama ainda não tinha sido feita. Os residentes da Sede deviam arranjar-se sozinhos, era o que se esperava;
de manhã, por exemplo, Stephen iria encontrar-se regularmente com Geer, o coadjutor, um brilhante e musculoso cristão, levando o seu urinol cheio para o banheiro
com ar de sincera despreoCupação.
Contudo, para que a tradição monástica não parecesse muito severa, uma pequena moça de fora, chamada Jenny Dill, vinha do distrito,
ostensivamente para dar os retoques finais, na realidade fazer a maior parte do trabalho. Quando Stephen se atirou, ainda, de chapéu e casacão, numa cadeira Morris,
podia ouvir os seus passinhos rápidos no quarto de Loftus através da fina parede que servia de repartição. Loftus, um belo rapaz, exigente e moderado, muito elegante
de uma maneira sacerdotal, sempre lhe deixava muito que fazer, tal como sapatos para lustrar, roupas atiradas e por escovar. Contudo, ela parecia ter acabado essas
tarefas, porque, em poucos minutos, houve uma batidinha na porta do seu quarto e, trazendo espanador e balde, ela entrou lepidamente.
- Oh, senhor, perdoe-me... Não sabia que estava aqui.
- Não tem importância, entre.
Observou-a ausente quando ela começou habilmente a tirar os lençóis e a virar o colchão. Era uma mulherzinha agradável, com as faces muito coradas, como se tivessem
sido esfregadas com pó de tijolo, brilhantes olhos castanhos e uma franja de cabelo preto. Parecia, pensou ele, uma moça típica das camadas populares de Londres...
inteiramente competente e que ninguém poderia enganar. No entanto, havia nela algo mais do que ordinário: um ar de simplicidade bem-disposta, uma inocência, uma
afabilidade afetuosa, e, acima de tudo, um vigor, como se ela não pudesse conter a energia e deleite que pulsavam no seu corpo jovem e sadio. E ao mover-se de um
lado para outro com precisão, a cintura fina, o busto pequeno mas firme, inconsciente de que ele a observava, ou pelo menos de nenhuma maneira perturbada com isso,
instintivamente a sua mão pegou o lápis e um bloco de cima da escrivaninha.
Dali a pouco, quando ela foi à lareira, curvou-se e começou a tirar as cinzas. Nesse momento, o seu interesse aumentou, e quando ela fez menção
de levantar-se, ele a deteve bruscamente.
- Por favor, não se mexa, Jenny.
- Mas, senhor.
- Não, não. Volte a cabeça e não se mexa.
Enquanto ela, obediente, voltava a cabeça, mantendo a sua posição curvada, os dedos de Stephen moviam-se nervosos sobre o papel.
- Pensa que sou maluco, não é, Jenny? Todos os outros do distrito também pensam.
- Oh, não, senhor - protestou ela vigorosamente. - A gente acha é que o senhor é um bocado esquisito, desenhando no clube dos rapazes e coisas assim, diferente de
um coadjutor regular, que ensina eles a lutar boxe. Ora, quando o Sr. Geer trouxer os grandões e eles se pegarem, vai ver que quase se matam um ao outro. E mal vai
poder reconhecer eles, com os olhos pretos e as ventas sangrando. Não, não é o que parece muito natural, acho, Mas a gente pensa que o senhor é mesmo um cavalheiro
muito delicado.
- Isso é animador... e apesar da ausência de sangue. Diga-me uma coisa,
Jenny, se você fosse uma velha doente, de cama, preferiria uma Bíblia ou uma garrafa de gim?
- Eu tenho uma Bíblia, senhor... aliás, duas. O Sr. Loftus e o Sr. Geer me deram uma cada um. A do Sr. Loftus tem umas lindas fitas coloridas. Sou capaz de dizer
que se eu estivesse mal mesmo, o gim até que vinha bem.
- Não fuja, Jenny. Você é honesta como o dia. Diga-me: o que é que você pensa disto aqui?
Lentamente, ela relaxou, aproximou-se e examinou dubiamente o desenho que ele lhe entregara.
- Não sei nada dessas coisas, senhor... mas acho mesmo bonito.
- Ora, sua garota tola, não está vendo que é você?
- Bem, já que o senhor diz - respondeu ela modestamente - parece comigo de costas. Eu só queria não estar com a minha roupa velha e com um rasgão bem ali, tão encabulante,
na abertura da saia.
Stephen riu-se e atirou o bloco para a escrivaninha.
- É da saia velha que eu gosto. Gostaria que você posasse para mim. Eu lhe pagaria cinco xelins por hora.
Ela olhou rapidamente para ele, depois desviou os olhos.
- Isso não seria muito correto, seria, senhor?
- Ora, tolice - disse ele descuidado. - Onde é que está o mal? Mas acho que você não está interessada...
- Bem, senhor... - Ela falava acanhadamente, e uma cor mais viva lhe veio às faces. - Na verdade, se tudo estivesse em ordem, eu bem que poderia fazer mais uns cobres.
- Como?
- É, senhor O senhor sabe... eu espero me casar logo.
- Parabéns. Quem é o felizardo?
- O nome dele é Alfred, senhor. Alfred Baines. Ele é camaroteiro num barco da Orient Lane. Vai estar na terra no outro mês, sem ser esse que vem.
- Excelente para você, Jenny. Não admira que queira ganhar mais um dinheirinho. Quando larga?
- Quando termino de arrumar o seu quarto, senhor. Aí pelas cinco.
- Bem, então... suponha que fique mais uma hora, das cinco às seis, duas vezes por semana. Posso pagar-lhe cinco xelins de cada vez.
- Isso é mais do que generoso, senhor.
- É muito pouco realmente. Mas se você não achar o trabalho muito cansativo, posso lhe dar um bilhete para um amigo meu que ensina nas turmas noturnas no Slade.
Ele terá prazer em empregá-la por uma breve temporada...
Ele não vai esperar que eu, senhor... - Jenny tornou-se rubra.
- Por Deus do céu, não - disse Stephen bondosamente. - Você vestirá uma espécie de costume. Provavelmente ele vai querer somente a sua cabeça e ombros.
- Então ficarei muito agradecida, senhor. . . fico mesmo... especialmente ao senhor.
- Então fechamos negócio? - pergunta ele, sorrindo, aquele raro sorriso que iluminava a sua face e o tornava tão atraente, e estendeu-lhe a mão.
Ela corou, e aproximou-se. Seus pequenos dedos, de unhas mal cortadas ou quebradas, estavam quentes e secos, com cicatrizes nas pontas e frieiras curadas. Contudo,
era uma mão extraordinariamente agradável de segurar, nela estava a pulsação do seu jovem corpo; ele mal pôde soltá-la. E quando o fez, ela se voltou para a porta.
Estava agora um tanto pálida, e sem olhar para ele disse:
- O senhor sempre me tratou tão gentilmente, Sr. Desmonde, é mesmo um prazer fazer as coisas para o senhor. Eu sempre dou ao seu quarto um extra. E lustro muito
bem os seus sapatos, porque... ora, porque são seus, senhor. - Interrompeu-se, e desapareceu.
Para quem era atormentado por humores de autodepreciação, aquelas palavras trouxeram um esquisito calor. Mas logo a momentânea alegria de Stephen sumiu, ele se tornou
novamente consciente de si mesmo, do seu ambiente, e da tristeza que o esperava adiante. Desejou que Glyn aparecesse logo.
Apanhando o Evidences, de Paley, que prometera ao seu pai ler, tentou mergulhar no livro. Mas era inútil. Não tinha interesse nele, detestava a vida que estava levando,
desde que chegara à Sede: a visitação, as aulas de Bíblia, o clube - embora à sua maneira tentasse animá-lo - a terna hipocrisia das palavras alimentando a fome
e o frio das pessoas, enquanto ele e os outros da sua raça permaneciam aquecidos e bem nutridos.
Podia compreender um homem que entrasse para a Igreja por sua natureza profundamente religiosa, por sentir que a sua missão predestinada era ajudar o próximo. Mas
assumir uma existência confortável sem uma forte vocação, por motivos que eram claramente materiais, parecia-lhe a pior espécie de fraude. E, além disso, ele não
tinha a sua própria vocação, um chamado que o mantinha cingido ao seu próprio coração? Que tolo fora em se deixar levar a semelhante passo, como um carneiro estúpido
entalado entre as portas de uma feira do campo. E agora que ali estava, parecia não haver como sair.
Justamente então soaram passos de sapatos pesados nas escadas de madeira, e poucos segundos depois um homem alguns anos mais velho que Stephen foi entrando no quarto
e atirou-se sem fôlego numa cadeira. Era de porte mais do que mediano e fortemente construído, com um cabelo vermelho cortado e uma curta barba vermelha eriçada,
de feições vigorosas, os olhos, sob sobrancelhas bem marcadas, vivazes, rebeldes, contudo muito divertido naquele momento. Vestia calças de pele de toupeira e uma
blusa de operário,
um lenço pintalgado de vermelho amarrado no pescoço; tinha o ar de um bucaneiro, fanfarrão, livre, cheio de um vigoroso prazer pela vida. Dali a pouco, quando cessou
a sua transpiração, puxou um relógio de metal, ligado a ele por um pedaço de cordão esfiapado de quadro.
- Bem na hora - observou com satisfação. - Não está mau para Whitehall.
Embora advertido da paixão espasmódica de Glyn pelos exercícios violentos, Stephen estava moderadamente surpreso.
- Você andou todo o caminho?
- Corri - disse Glyn, enxugando o suor. - Foi diabolicamente divertido. Botei toda a polícia a correr, pensando que eu tinha assaltado um banco. Mas que sede me
deu! Suponho que não haja um pingo de cerveja nesta casa de Deus, não é?
- Sinto, Richard. Não nos permitem tê-la em nosso quarto. Posso lhe dar chá... e biscoitos.
Glyn explodiu em gargalhadas.
- Vocês, jovens teólogos. Como podem combater Satanás com chá e biscoitos? Mas se não for incómodo, traga-os. E acrescentou, mais sério: Sinto não poder ficar muito
tempo, mas eu queria vê-lo.
Conversaram enquanto Stephen fervia uma chaleira de folha no bico de gás junto à lareira. Pronto o chá, Richard bebeu quatro xícaras da desprezada beberagem e, de
uma maneira ausente, liquidou um prato de macarrão. Depois, um tanto embaraçosamente, a conversa cessou.
- A sua mostra correu bem? - perguntou Stephen por fim.
- Muito bem - respondeu Glyn descuidadamente. As críticas foram tão perfeitamente depreciativas que atraíram público.
- Mas você vendeu alguma coisa.
- Um vermelhinho. E tudo porque sou galês. A Galeria Nacional de Cardiff comprou-o. Encorajando o talento nativo... filho de um mineiro e assim por diante.
Houve uma pausa.
- Contudo - resumiu Glyn - o dinheiro me safou das dívidas, e Anna e eu partimos para Paris amanhã.
Stephen empertigou-se imperceptivelmente, um reflexo de todos os seus nervos, não apenas ao som de uma palavra que o perseguia, mas porque naquela maneira demasiado
despreocupada ele pressentiu o verdadeiro motivo da visita de Glyn. Procurou dominar a voz.
- E quanto tempo pretende ficar por lá?
- No mínimo um ano. Vou viver barato e trabalhar como um mouro. Acredite se quiser, Paris é um lugar maravilhoso para trabalhar. - Fez uma pausa e atirou um rápido
olhar para o outro. - Você não vai mesmo conosco?
Stephen sentiu um nó na garganta. As suas mãos, nos braços da poltrona, mostraram os nós dos dedos.
- De que jeito? Você conhece a minha situação.
- Ao mesmo tempo, tive a impressão de que você queria pintar.
Stephen, de cabeça baixa, não respondeu. De súbito ergueu os olhos.
- Glyn... se eu jogasse tudo fora... teria mesmo sucesso como artista?
- Ora, ora, Desmonde - Glyn inclinou-se para diante, de cenho cerrado, - Que pergunta mais idiota. Sucesso? Que quer dizer com sucesso? Então você não sabe que neste
jogo não pode haver garantias, que você não tem mais que você no momento em que se resolve? E você não entra nisso por nenhuma outra razão a não ser a de que não
pode evitá-lo. Se for para valer, abandona tudo, passa fome, rouba, engana a sua avó, transgride cada um dos Dez Mandamentos, só para ter nas suas mãos um tubo de
tinta e uma espátula.
Glyn interrompeu-se, relaxou a postura e continuou, mais serenamente:
- Acredito que você tem talento, possibilidades extraordinárias, do contrário não ia aborrecer o meu bestunto a seu respeito. Eu sei como é duro para você... atolado
na tradição. Você teve todos os inícios errados. Devia ser como eu, nascido numa vila de operários, numa nojenta cidade carvoeira. Mas, assim, você mesmo é quem
tem que decidir. E se não se decidir, atrevo-me a dizer que dará um pastor aceitável. - Tirou de repente o seu relógio niquelado. - Bem, tenho que ir. Preciso reunir
umas coisas. E juntar isto com aquilo. Adeus, Desmonde. Escreva-me quando tiver tempo.
Stephen permaneceu imóvel. Glyn levantou-se. Ao dar o primeiro passo, viu sobre o consolo da lareira um cartão perfurado com as cores do Clube de Críquete Marylebone.
Era um bilhete para a partida de criquete entre Oxford e Cambridge, a ser disputada no mês seguinte. Acompanhando o olhar de Glyn, Stephen corou.
- Tenho que ir - disse ele secamente. - Toda a família irá.
CAPÍTULO V
A PARTIDA TINHA TERMINADO, as balizas haviam sido retiradas, e enquanto o sol lançava sombras compridas sobre a quadra relvada do Lord's, um grupo de sete pessoas
podia ser observado entre a elegante assistência - dificilmente se poderia referir essa afluência como uma multidão - andando
vagarosamente para os portões principais na St. John's Wood Road. Caroline e Claire iam na frente com Davie e seu primo Geoffrey, enquanto poucos passos atrás, Stephen
acompanhava o General Desmonde e sua esposa. Uma emergência na paróquia tinha impedido no último instante o Reitor de estar presente, e Julia, claro, era uma ausente
anual. Por isso, Stephen tinha vindo somente para estar com o irmão, e enquanto Davie tinha grande prazer em ver o jogo - o que era mais tocante, uma vez que, devido
à sua afecção, não lhe era permitido jogar críquete - teve em certa medida a sua recompensa, pois o dia tinha sido duro para ele, e ainda lhe ressoavam na cabeça
os incessantes gritos de Geoffrey de "Boa jogada, senhor", e, como sempre, a mulher do General raramente pensava nela como tia Adelaide - tinha exercido sobre ele
uma familiar combinação de condescendência e arrogância que despertava os seus mais perversos instintos. Mulher dominante, fria, de rosto fino, criada na tradição
do Exército e endurecida nos sóis da Índia, ainda era bonita, de uma maneira dura e atrevida, e possuía uma figura admirável, embora tendendo para a magreza, seu
olhar às vezes letal como um golpe de baioneta.
Agora, ao deixarem o campo e permanecerem juntos um tanto indecisos, enquanto carruagens e cabriolés saíam da calçada, ela falava com rapidez, na sua voz apressada
"do condado".
- Hoje foi um dia tão delicioso, que é uma pena deixá-lo morrer prematuramente. - Voltou-se para o marido. - Tem alguma sugestão, Hubert?
O General Desmonde examinou o grupo. Alto, feições retas, ereto como uma vareta de espingarda, até no chapéu de forma cinza e no fraque matutino, parecia um soldado,
um soldado notável. Um bigode curto acentuava a brevidade incisiva da sua fala.
- Pensei que poderíamos cear no Frascati's.
- Magnífico, papai - disse Geoffrey, endireitando a gravata e depois o colete bordado, talvez pela ducentésima vez, como se estivesse determinado a manter a supremacia
de alfaiataria que fazia dele, tinha certeza, um alvo de admiração. Estilo, que ele chamava de boa forma, era na verdade a sua maior ocupação, fosse numa praça de
armas ou em Piccadilly, e que já o configurava, na idade de 24 anos, como modelo de um elegante, ainda que um tanto tolo, jovem de sucesso da sociedade.
- Davie tem que voltar às sete - interpôs Caroline. - E já passam das seis. Mas ninguém precisa se incomodar, vou levá-lo ao trem.
- Querida, você é tão gentil e tão atenciosa - disse Adelaide sorrindo. Ela não queria Caroline no Frascati's com o seu rosto vermelho de sol como uma peônia, e
naquele medonho vestido marrom que a fazia parecer uma copeira no seu dia de folga, aquelas pernas também, que desgraça, como as patas de um piano de cauda; Caroline,
para tia Adelaide, era sempre uma responsabilidade social, uma mortificação anual no baile de caça, quando, sentada na
entrada do salão, com seu jornal na mão, sem que ninguém a tirasse para dançar, esperava tristemente que algum velho cavalheiro se dirigisse a ela; e agora já tinha
sido bastante desagradável tê-la com eles durante o dia inteiro. - Você deve vir uma outra vez.
- Acho que também tenho que voltar - disse Stephen. Se Davie não fosse, ele não teria nenhum prazer em ir.
- Tem mesmo? - Hubert franziu o cenho, bem-humorado; ele até gostava, ou pelo menos tolerava, aquele jovem sobrinho e futuro pastor. - Tão cedo?
- Mas é claro que você pode ficar, Stephen. - Claire estava ao seu lado, contida, mas de certo modo rogando, com a sua tez macia e feições tão bem modeladas, sombreadas
por um chapéu de aba larga enfeitado de rosas. Hoje mais do que nunca, naquele ambiente, ela parecia o que era: a mais amável das moças inglesas, cujo bom senso,
maneiras e cordialidade franca e agradável faziam amigos onde quer que estivesse. - Fica, sim - ajuntou ela.
- Querida - interveio Adelaide antes que Stephen pudesse responder - não devemos interferir com as regras e regulamentos. Afinal de contas, a vida na Sede, imagino,
é mais ou menos monástica, não é, Stephen? e muito digna, estou certa. É mesmo uma lástima que você não possa vir. Geoffrey acompanhará Claire, e eu pretendo que
Hubert seja o meu galã. Adelaide tornou a sorrir, e com satisfação, pois tinha as suas razões para não desejar que Stephen fosse um do grupo.
- Não podemos deixá-la em alguma parte, Caroline? - perguntou Hubert.
- Oh, não, Davie e eu iremos de metro.
- E eu de ônibus - disse Stephen.
Trocaram-se despedidas, e então, vagamente consciente do desgosto nos olhos de Claire, Stephen afastou-se com Caroline e Davie. Como ainda tinham alguns minutos,
deteve-se no Fuller's da Park Road para oferecer um sorvete de morango ao seu jovem irmão e uma taça de chá a Caroline, que, sub-repticiamente descalçando os sapatos,
confessou que estivera mortificada todo o dia. Depois ele os deixou no metro da Baker Street e tomou o ônibus nº 23 para a zona leste.
Ao matracolejar para Stepney, a despeito do alívio de estar novamente entre gente impolida que não pedia mais do que a sua parte numa cadeira dura, uma lenta depressão
foi tomando conta de Stephen. Como se sentira física e espiritualmente diminuído, como se sentira diferente dos outros durante voltas em todas as metas de críquete,
os encontros e cumprimentos, o almoço no Guard's Club Marquee - "seu diabinho" - quase podia ouvir o pensamento por trás dos olhares indiferentes dirigidos para
ele pelos amigos do primo, ao discutir com Geoffrey a última comédia musical, a corrida de obstáculos
de Sussex, e a última fantasia para o Cambridgeshire. Com esta disposição, chegou à Sede. No saguão, ainda redolente dos odores do bife refogado com repolho do meio-dia,
passou por Luftus, que saía, e deu-lhe uma "boa-tarde". O coadjutor noviço mal respondeu e escorregou para a frente, discreto e elegante, o olho com um tal brilho
de malícia e divertimento, que Stephen recuou instintivamente.
- Que é que há, Loftus?
Já na porta, o outro como que se voltou, com lábios torcidos e apertados pelo humor eclesiástico.
- Então não sabe?
- Claro que não, o que é?
- Não muito, acho eu. A não ser que a pequena Dill parece estar em maus lençóis.
De que diabo estava ele falando? pensou Stephen. Mas deu de ombros, e vendo que não havia correspondência na estante, subiu as escadas. Sentada tesa numa cadeira
dura no centro do seu quarto, usando as suas roupas de sair à rua, um chapéu de palha chato com uma fita estreita, e luvas brancas de algodão, estava Jenny.
Levantou-se imediatamente quando ele entrou, mas com compostura, e enquanto ele a olhava com surpresa, uma vez que ela normalmente não vinha à Sede nos sábados,
ela começou:
- Peço-lhe desculpas pela liberdade, senhor. Mas eu queria estar certa de encontrá-lo. E parece que não havia outro jeito senão eu esperar.
- Muito bem - disse ele incerto. - Não quer sentar? Assim é melhor. Então, que é que há?
Enquanto ele ia até a lareira, ela tornava a sentar-se na beira da cadeira, com as luvas cuidadosamente dobradas.
- Bem, senhor. O fato é que vou embora, hoje, meio de repente. E como o senhor tem sido tão bom para mim, achei que tinha que vir lhe dar adeus.
- Oh, Jenny, sinto muito. Não imaginei que você nos deixasse tão cedo.
- Nem eu, senhor. Mas a verdade é que me despediram.
- Despediram? - repetiu ele desnorteado.
- Sim, despediram. - Acenou com a cabeça, francamente, no seu modo prático, sem acanhamento. - A culpa foi minha. Ontem fui tão boba que vim sem o meu espartilho.
Eu nem notei que já começava a aparecer. Mas não há jeito de enganar essa cozinheira. Correu para o Guardião como uma flecha.
- Mas de que diabo está falando?
- Não está vendo, senhor? Vou ter uma criança.
Ele ficou tão desconcertado que não conseguia achar o que dizer.
- Oh, Jenny, como é que você...?
- Acho que me deixei levar, senhor.
- Como?
- Nós todos temos sentimentos, senhor. Não se pode fugir disso. Oh, eu sou muito respeitável, garanto lhe. Alf é um sujeito correto. Camaroteiro de navio, como eu
lhe disse. Vamos casar quando ele voltar.
Houve uma breve pausa, enquanto Stephen a estudava com simpatia.
- Suponho que você o ama.
- Acho que deve ser isso, senhor. - Um ligeiro e sábio sorriso passou-lhe pelo rosto jovem e fresco. - Ele é muito mais velho que eu, isso é. E vou lhe dizer: se
não fosse pelas duas cervejas que tomei no Good Intent, eu não teria cedido. Mas aí eu também podia ter feito pior. Alf é decente, lá isso é. E habilidoso também.
Gosta de música e me ensinou a tocar gaitinha de boca.
Outra pausa.
- Bem... vamos sentir a sua falta, Jenny.
- E eu vou sentir falta do senhor. Acho que o senhor foi até bom demais comigo. Não é igual a outros por aqui.
- Que outros?
- Bem, principalmente o Guardião, senhor. Tenho que dizer que ele me perseguiu muito antes de me botar na rua.
- Mas você não está saindo por sua vontade?
- Oh, não, senhor. Isso não me convém nem um pouco... Vivo por minha conta, sabe, e não tenho pais vivos. Mas o Guardião não queria ter este lugar contaminado, disse
ele, com três jovens-coadjutores por aqui, e me despachou na hora.
Stephen mordeu o lábio. Olhando disfarçadamente para a moça, percebeu que, sob a sua expressão habitual de serenidade e bom humor, ela parecia pálida e desorientada.
Seria capaz de jurar que não havia nela um pingo de maldade.
- Jenny - disse ele impulsivamente - eu não quero interferir. Mas espero que você tenha feito arranjos para... ir a um hospital... essas coisas.
- Não vou para o hospital, senhor. Tenho o meu quarto. E vou falar com a Sra. Kelley. Ela é parteira, senhor, e muito recomendada.
- Você tem certeza de que estará bem?
- Oh, não se preocupe comigo, senhor. - Pela primeira vez havia uma nota de tristeza na sua voz. - Eu só espero não ter trazido encrenca para o senhor. Isso tudo
aconteceu porque o senhor me arranjou trabalho na aula de arte. E o Guardião parece que ficou furioso com isso.
Stephen ficou um tanto desconcertado com essa notícia. Contudo, o seu genuíno interesse era por Jenny. A admiração que sentia por sua coragem e bom senso, e a indignação
pelo tratamento que lhe tinham dado, tornavam-no mais descuidado consigo. Tinha começado a gostar dela nos últimos meses,
e não podia deixá-la sem alguma expressão da sua boa vontade. Voltou-se de lado, remexeu meio inconscientemente na sua carteira e deu um passo na direção dela.
- Escute, Jenny. Não quero ofendê-la. Mas você fez tanta coisa por mim aqui... você realmente vai precisar de alguma coisa para sustentar-se. Eu gostaria que aceitasse
isto.
Desajeitadamente, pôs-lhe na mão uma nota de cinco libras, que, para esconder o seu elevado valor, dobrara em várias partes.
- Não... não vou aceitar isso...
- Mas Jenny... você tem que...
As lágrimas não lhe vinham facilmente, mas ela passara por tantas agruras naquele dia, que agora elas corriam quentes pelas suas faces.
Nesse momento, enquanto ela se retirava e ele a acompanhava, estendendo-lhe o dinheiro, a porta abriu-se e o Guardião entrou. Houve um silêncio mortal por um momento,
enquanto ele ficava petrificado. Depois, com a voz controlada, disse:
- Pode ir agora, Dill.
Quando Jenny se voltou para sair, arrasada, com as lágrimas a escorrer lhe pelas faces, Stephen, a despeito da sua expressão culpada, vermelha, teve calma suficiente
para se aproveitar da sua confusão e enfiar-lhe a nota no bolso da jaqueta.
- Adeus, Jenny - murmurou ele. - E muita sorte.
Sua resposta, se resposta houve, foi inaudível.
Ainda na sua maneira distante, o Reverendo Crispin fechou a porta atrás dela; depois, com um rápido olhar para Stephen, comprimiu os lábios e fixou o olhar no teto.
- Desmonde - disse ele - presumi que a sua conduta tinha sido seriamente indiscreta. Mas jamais sonhei que pudesse ir tão longe. Como amigo de seu caro pai, isso
me aflige mais do que posso expressar.
Stephen engoliu o bolo que tinha na garganta. A cor lhe fugira do rosto, mas havia uma centelha nas suas pupilas escuras.
- Não posso compreendê-lo.
- Ora, vamos, Desmonde. Você não pode negar que está, e tem estado há algum tempo, em termos de imprópria intimidade com a jovem pessoa que acabo de despedir.
- Fui amistoso com Jenny. Ela fazia muitas pequenas coisas para mim. E procurei ajudá-la, em retribuição.
- Ah! - fez o Guardião num tom significativo. - E a sua ideia de ajudá-la é estar frequentemente com ela, sozinho, no seu quarto?
- Ela vinha arrumar o quarto. E ocasionalmente fiz alguns esboços dela. Isso é tudo.
- Ora essa! Então você acha que faz parte dos seus deveres, como candidato à ordenação, tomar um modelo, furtivamente, entre as criadas desta casa de Deus? Foi meu
dever examinar alguns desenhos que resultaram dessa colaboração ilícita, e devo confessar que me pareceram extremamente questionáveis.
O sangue subiu à testa de Stephen. Seus olhos fuzilaram furiosamente.
- Pelo que sei do seu gosto, senhor - respondeu ele, tremendo ligeiramente - não me surpreende que não os tenha compreendido.
- É mesmo? - fez Bliss com a calma ácida que achava ir-lhe tão bem. Na verdade, parece que meus padrões, particularmente os de moralidade, diferem dos seus.
- Certamente diferem. - Stephen jogou a prudência de lado. - Eu não teria atirado essa pobre moça no olho da rua por causa de um erro.
- Ouso dizer que não. Isso é precisamente o que eu temia.
Até este momento, as maneiras do Guardião tinham sido estudadamente controladas, mas agora as suas narinas se apertavam e algo não diferente de uma carranca se estabeleceu
na sua testa elevada.
- Embora Dill tenha dado o nome do seu parceiro, não estou inteiramente convencido. Minha firme convicção é de que, pela sua conduta para com essa infeliz moça,
pela maneira como a utilizou para os seus fins chamados artísticos, você é responsável, ou pelo menos indiretamente culpado, pelo estado de depravação em que ela
caiu.
Respirando rapidamente, Stephen encarou Bliss com uma expressão maldosa no rosto. Explodiu:
- Nunca ouvi tanta tolice na minha vida. Nem tamanha hipocrisia. Jenny não é depravada. Ela tem um namorado e vai se casar com ele. Sua ideia de caridade cristã
é vilipendiá-la, e a mim, sem uma justa causa?
- Cale-se, senhor. Não tolerarei que fale comigo dessa maneira. Na verdade, se eu fosse cumprir à risca o meu dever, deveria pedir-lhe que deixasse a Sede imediatamente.
- Fez uma pausa para se recuperar. - Mas em atenção à sua família, e também ao futuro que ainda pode estar à sua frente, estou disposto a ser mais tolerante. Devo
dar ao seu pai alguma ideia do que ocorreu. E você, sem dúvida, me dará a sua garantia por escrito de abandonar, de uma vez por todas, essa obsessão que chama de
"arte", e que é inteiramente incompatível com a sua vocação de clérigo. Haverá, além disso, mais algumas restrições que sou obrigado a lhe impor. Venha ao meu estúdio
depois das orações noturnas, e eu o aconselharei.
Terminando a entrevista, sem dar a Stephen uma oportunidade de responder, girou nos calcanhares e saiu do quarto.
- Ora, vá para o diabo que o carregue! - exclamou Stephen violentamente. Mas infelizmente a porta já estava fechada.
Durante uns momentos, Stephen permaneceu tenso, de punhos cerrados, olhos fitos nos painéis de carvalho envernizado. Depois, com um gesto de abandono, afundou numa
cadeira diante da escrivaninha, tirou papel da gaveta e apanhou uma caneta.
Caro papai,
Fiz aqui o melhor que pude e fui nisso um completo fracasso. Não quero magoá-lo, tomando uma decisão final contra a sua vontade, mas, nas circunstâncias, acho que
devo me afastar um pouco - um ano, no mínimo - até poder ver as coisas mais claramente e experimentar a minha capacidade nesse campo particular tão desagradável
para o senhor que sequer o nomearei. Compreendo o golpe que isto representa para o senhor, e a minha única desculpa é que simplesmente não posso evitá-lo.
Recomendações a todos em Stillwater e a Claire. Tornarei a escrever-lhe quando estiver em Paris.
Stephen
CAPÍTULO VI
PARIS ERA DESCONHECIDA PARA STEPHEN, e embora ao primeiro fôlego o estimulasse como vinho, ele entrou nela nervosamente - como se temesse aqueles olhares satíricos
que os verdadeiros parisienses devem conceder a um forasteiro. Assim, apegava-se ao nome de um hotel que ouvira o pai mencionar num tom de benigna aprovação clerical,
e dando-o ao cocheiro com a maior segurança que pôde encontrar, foi arrebatado da Gare du Nord com uma imprudente velocidade através das ruas naquela tarde de domingo,
surpreendentemente vazias, para o Clifton, na Rue de la Sourdière. Parecia um lugar tranquilo, não particularmente excitante talvez, abrindo-se através de uma entrada
estreita para um pátio quadrado envidraçado, em torno do qual os quartos estavam dispostos atrás de descascados balcões de ferro fundido. Na portaria sonolenta -
o tom era dado por um gato malhado de preto e amarelo dormitando em cima do balcão - não se surpreenderam pela súbita materialização de um jovem inglês. Na verdade,
quando Stephen foi conduzido ao seu quarto no andar de cima, que era um tanto escuro e bolorento, com o papel de parede desbotado e uma enorme cama de cortinas vermelhas,
o idoso concierge, desafivelando as malas do ombro com exagerada falta de ar, sobressaltou-o ligeiramente ao lhe perguntar se ele queria chá.
- Não, muito obrigado - sorriu Stephen, pensando no extraordinário valor que aquele indistinto interior dava ao velho de olhos lacrimejantes com as faces caídas,
marcadas por veias vermelhas, o seu colete listrado de preto e amarelo. - vou sair... e olhar um pouco por aí.
- Não há muito que ver hoje, monsieur - disse o porteiro, encolhendo amavelmente os ombros. - Tudo está fechado.
Mas Stephen mal podia esperar para desfazer a mala e atirar suas coisas no armário poeirento. Então, eufórico, deixou o hotel e foi andando pelas ruas, a esmo, ao
longo da Rue du Mont Tabor e pela Place de la Concorde. Seu imediato pensamento tinha sido em Glyn, mas no constrangido momento de partir, ele esquecera de pedir
o endereço de Richard, e naquele ínterim não recebera nenhuma notícia dele. No entanto, Stephen estava certo de que, no círculo que se propunha frequentar, logo
o encontraria.
O tempo estava bom e claro, o céu pálido riscado pelas costelas de nuvens brilhantes. Quando viu a longa fila de castanheiros, agora em plena folhagem, junto ao
rio, quase exclamou alto. Agitadas pela brisa, as folhas eram luz e sombra, macias, encontrando os seus olhos como uma carícia. Através da avenida chegou ao Sena,
cinza-aço e polido, reverberando atrás de barcaças atracadas. Numa destas, uma jovem mulher, de seios fartos e cabelo louro, estava pendurando roupas cor-de-rosa
numa corda. Um cachorrinho saltitava nos seus tornozelos. Um homem de camiseta e chapéu baixo de feltro fumava placidamente, de braços nus, sentado num balde emborcado.
Numa espécie de transe melódico, Stephen caminhou lentamente pela margem, através de Port Royal, além da linha de quiosques de livros, de volta à Pont Neuf para
a L'Île de la Cité. Lá, ficou a olhar o jogo de cores sobre a água, o escurecer das sombras sobre as moles de pedra. Somente quando a luz desapareceu, ele se voltou,
com um suspiro apatetado, e começou a voltar para o hotel.
Agora a cidade despertava do seu torpor dominical. Nas ruas laterais, ao norte do rio, os pequenos cafés de esquina começavam a se encher de maneira discreta mas
movimentada. As mercearias estavam abrindo, e famílias da classe média começavam a tomar ar, homens robustos com pantufas apareciam nos umbrais. Diante de uma padaria,
ainda fechada, donas-de-casa, tagarelando tranquilamente, reuniam-se para comprar pão. Estou em Paris, pensava Stephen estonteado, finalmente, finalmente.
À guisa de contraste, o Clifton, banhado numa ténue luz religiosa, tinha um ar solene, quase sepulcral. Na verdade, por um instante Stephen teve a tentação de dar
a volta e ir cear no Maxim's ou no Café Riche, ou qualquer daqueles restaurantes alegres sobre os quais lera tantas vezes. Mas estava cansado e tímido para ir desacompanhado.
Além disso, tinha resolvido fazer uma razoável economia. Da sua pensão anual restavam-lhe 150 libras, e essa quantia deveria durar um ano inteiro.
Assim, baixou ao frio refeitório e comeu sozinho - a não ser por um distante cavalheiro solteirão numa desmazelada jaqueta Norfolk que lia continuamente entre os
pratos, e duas cochichantes velhas de malva, todos inconfundivelmente ingleses - uma refeição de cardápio fixo, de sopa, carneiro, ameixas amargas cozidas, que,
embora fossem perfeitamente saudáveis, demonstravam a falácia do argumento de que, na França, a cozinha francesa era uma arte universal. Contudo, nada poderia abater
a sua alegre disposição. Subiu as escadas assobiando e dormiu como uma toupeira na cama de dossel.
Na manhã seguinte, sem demora, saiu para Montparnasse. Depois de considerável reflexão, tinha resolvido não se matricular na École des Beaux Arts, mas procurar uma
atenção mais pessoal, dada pelo Professor Dupret na sua famosa academia do Boulevard Seline. Encontrou o estúdio sem dificuldade, tendo comprado, no balcão do hotel,
um mapa de Paris. Era no último andar de um edifício esquisito, parecido com um quartel, protegido por grades em ponta de lança e guardado por duas guaritas vazias,
bem no fundo do boulevard. Pairava no ar um cheiro de casca de tanino, indicando que ali fora uma armaria, e uma grande algazarra lá em cima sugeriu a Stephen, por
um sobressaltado momento, que os soldados ainda o ocupavam.
Quando subiu, depois de completar as formalidades de admissão com o massier, um tipo corpulento de cara chata, suéter cinzento, calças de lona, que tinha a aparência
de um boxeador aposentado - e que na verdade lá estava para impedir uma flagrante desordem - a aula já tinha começado.
A saia ampla e clara, aquecida por uma enorme estufa holandesa, com paredes que pareciam todas janelas, estava apinhada com uns 50 alunos, formando o grupo mais
estranho que ele já tinha visto. Na maior parte, eram homens entre 20 e 30 anos de idade, vestidos numa variedade de gostos, de muitas nacionalidades - eslavos barbudos,
indianos de pele escura, um grupo de escandinavos louros, vários jovens americanos. As poucas mulheres eram uma coleção esquisita. O olho de Stephen prendeu-se numa
senhora de idade metida numa blusa cor de rato, espiando a sua tela através de um pincenê de aros de ouro, como uma professora diante do seu quadro-negro num jardim
de infância do campo.
O barulho, ali dentro, era ensurdecedor - um rumor contínuo de conversação, trechos altos de canções, em línguas competitivas, observações fanfarronas
gritadas através da sala. Parecia que o tumulto ia permitir que Stephen entrasse sem ser notado. Mas ao ficar ali na porta, hesitante e um tanto pálido, vestindo
a sua roupa escura de clérigo, colarinho branco engomado e gravata preta, a vestimenta regular para os coadjutores da Clinker Street, sobreveio um infeliz intervalo
durante o qual a atenção da classe se voltou diretamente para ele. E então, no silêncio, uma voz de falsete exclamou:
- Ah! C'est Monsieur l'Abbé.
Uivos de risadas saudaram essa observação. Entrando confuso, Stephen encontrou um banco coberto com raspaduras de paletas, mas nenhum cavalete, espremeu-se com dificuldade
para um lugar, e abriu a sua pasta de papel Ingres sobre os joelhos.
O modelo, um velho de longos cabelos prateados, com o aspecto de um ator decadente, bonito, estava sentado numa postura convencional na plataforma do centro, ligeiramente
inclinado para a frente, com o queixo apoiado nas costas da mão. Stephen não gostou da pose, e a expressão do velho era aborrecida e indiferente, mas apanhou o seu
carvão e começou a trabalhar.
Às 11 horas Monsieur Dupret apareceu - um homem de uns 60 anos, belo de uma maneira teatral, com uma cabeleira arrepiada, porte ereto e digno, e mãos móveis. Apesar
das calças ligeiramente frouxas, o seu fraque ajustado dava-lhe um ar correto, distinto, acentuado pela fita na lapela. A sua entrada, impressionante e brusca, causou
uma cessação do barulho maior, e em relativo silêncio ele começou a dar vagarosamente a volta à sala, detendo-se aqui e ali para examinar uma tela com olhos apertados,
pronunciar, com um floreado gesto das mãos, umas breves palavras, mais como um cirurgião visitando a sua enfermaria.
Quando ele se aproximou, Stephen preparou-se para algumas palavras de saudação, de cortês interrogação, mas o professor, com alheamento impessoal, não disse coisa
alguma. Olhou de esguelha para Stephen, meio curioso, meio indiferente, e depois para o seu esboço, e, no instante seguinte, sem um piscar de olhos, desapareceu.
À uma hora tocou uma sineta. Imediatamente se ergueu uma vozearia, o modelo levantou-se como se fosse soltado por uma mola e afastou-se da plataforma, enquanto em
volta os estudantes atiravam pincéis ou carvões e começavam a se acotovelar contra a porta. Perturbado e decepcionado, Stephen foi arrastado, contra a sua vontade,
pela turba que empurrava. Subitamente, no seu cotovelo, ouviu uma voz agradável.
- Você é inglês, não? Meu nome é Chester.
Stephen voltou a cabeça e deu com um jovem mais ou menos da sua idade sorrindo para ele. O cabelo, o queixo partido e os olhos azuis, sombreados por compridas pestanas
negras, davam-lhe um ar de sincero e atraente encanto. Usava uma velha gravata de Harrow.
- Espero você lá embaixo - disse ele quando a maré o carregou. Lá fora, Chester estendeu-lhe a mão.
- Espero que não se importe de eu vir falar com você. No meio dessa turba, os que são do outro lado do Canal devem ficar juntos.
Após a sua deprimente recepção, Stephen estava contente por ter achado um amigo. Quando se apresentou, Chester fez uma pausa por um momento, e exclamou:
- Que tal almoçar comigo?
Saíram juntos pela avenida.
O restaurante em que entraram ficava bem perto, na Place Seline, um salão estreito, de teto baixo, quase uma adega, abrindo para uma cozinha escura, a meia dúzia
de passos do nível da rua, com um fogo de carvão de lenha e espetos com assados, cheio do barulho de panelas de cobre e de um agradável cheiro de cozinha. O lugar
já estava repleto, principalmente de alunos de Dupret, mas Chester, com tranquila segurança, guiou-o através de um pequeno pátio adornado por cubas de alfenas, calmamente
retirou o cartão marcado "RESERVADO" de uma mesa do fundo, habilmente atirou o chapéu para um cabide e convidou Stephen a sentar-se.
Imediatamente, uma mulher gorda, de cara vermelha, vestida de preto, protestou da cozinha:
- Não, não, Harry... Esse lugar está reservado para o Monsieur Lambert.
- Não se agite, Madame Chobert - sorriu Chester. - A senhora sabe que Monsieur Lambert é meu amigo. Além disso, ele sempre chega atrasado.
Madame Chobert não se deu por satisfeita; discutiu e resmungou, mas o charme de Harry Chester - embora ela claramente tentasse precaver-se contra ele - no fim acabou
por vencê-la. Encolhendo os ombros com pena da sua própria fraqueza, levantou a ardósia escrita a giz que pendia da cintura do seu avental, e apresentou-lhes o cardápio.
Por sugestão de Chester, pediram potage maison, boeuf bordelaise e um queijo brie. Uma jarra de cerveja amarela e espumante já estava sobre a mesa.
- Não é uma pessoa má - sorriu Chester quando ela se afastou. Durante a refeição, ele manteve a conversação viva e fluente, aludindo, com inesgotável provisão de
troça e frases feitas, aos seus vizinhos. Apontou para Biondello, o italiano, que já tinha exposto no Salon do ano passado, e Pierre Aumerle, um caso irremediável,
que bebia uma garrafa de Pernod todos os dias, almoçando com uma mulher de semblante ocre com um enorme chapéu, para a qual Chester ergueu as sobrancelhas com um
sorriso. Entrementes, sondou Stephen com algumas perguntas divertidas; então, depois que trouxeram o café filtre, fez uma pausa, com um certo ar consciente, e pareceu
ter achado necessário explicar-se.
- Curioso, não? - comentou ele, riscando desenhos na toalha xadrez - como a gente sempre pode identificar um universitário. Philip Lambert também é um deles. Depois
de Harrow - lançou um olhar rápido para Stephen
- eu mesmo devia ter ido para Cambridge... se não a tivesse trocado pela arte.
Continuou, revelando, com um sorriso suplicante, que o pai tinha sido um grande plantador de chá no Ceilão, ao passo que a mãe, agora viúva, voltara para habitar
uma imensa mansão de Highgate com uma legião de criados. Naturalmente, ela o estragara com mimos, dava-lhe uma generosa pensão. Estava em Paris fazia 18 meses.
- É muito divertido - concluiu ele. - Você deve me deixar mostrar-lhe os meus trabalhos.
- Que acha de Dupret? - perguntou Stephen.
- É o professor mais decente que há por aqui. Você sabe que ele pertence à Legião de Honra?
Ligeiramente chocado, Stephen não respondeu. Chester intrigava-o, como o intrigaria um desenho estranho que, embora agradável, tivesse complexidades estranhas ao
seu gosto.
Terminaram o café. As pessoas começavam a se retirar.
- Seu amigo Lambert parece que não vem - disse Stephen por fim, para quebrar o silêncio.
Chester riu-se.
- Philip é um mendigo errante. Você nunca sabe quando ele vai aparecer... ou com que atraentes saias.
- Ele frequenta a Dupret?
- Trabalha em casa... quando trabalha. Tem recursos particulares, você sabe, e já andou por toda a Europa, estudou em Roma e Viena, mas agora ele e a mulher alugaram
um pequeno apartamento na Esplanada dos Inválidos. - Chester assentiu com um aceno. - E posso lhe dizer que a Sra. Lambert é muito elegante. E, naturalmente, uma
perfeita dama.
Ali estava novamente uma observação que arranhava o ouvido de Stephen, e ele olhou de um modo esquisito para o seu colega, imaginando como poderia usar uma expressão
infeliz. Mas antes que tivesse tempo de responder à pergunta, Harry Chester sentou-se.
- Olhe, aí está Philip.
Seguindo o olhar de Chester, Stephen viu entrar no restaurante um homem delgado, de aparência afetada, com cerca de 30 anos, vestido com uma curta sobrecasaca marrom,
colarinho baixo e gravata fofa. O rosto, pálido e profundamente marcado abaixo dos olhos, tinha um ar de langor. O seu brilhante cabelo preto era repartido nitidamente
no meio, mas a um lado uma mecha tinha escapado num pequeno cacho sobre a sua testa branca. Os seus
modos, aliás toda a sua aparência, davam a impressão de uma indolência amaneirada, de aborrecimento e pretensão.
Quando chegou, pôs a bengala debaixo do braço e começou a descalçar uma luva amarelo-limão, enquanto olhava para Chester com uma alegria levemente desdenhosa.
- Agradeço-lhe por ter guardado a minha mesa, caro rapaz. Mas agora deve ir-se. Espero um convidado às duas horas. E não preciso de acompanhante.
- Estamos saindo, Philip. - O tom de Chester assumira uma inflexão submissa. - Olhe, gostaria que conhecesse Desmonde. Ele entrou para a Dupret hoje.
Lambert lançou uma olhadela a Stephen e depois curvou-se polidamente.
- Desmonde acaba de chegar do seu último ano em Oxford - disse Chester rapidamente.
- Ah, sim - exclamou Lambert. - Que colégio, posso perguntar?
- Trinity - respondeu Stephen.
- Ah! - Lambert relaxou com um sorriso, mostrando os dentes brancos e parelhos, e, tirando a segunda luva apertada de pelica - uma operação que ele executava em
silêncio e sem arrepiar um pêlo - estendeu uma mão pequena para Stephen. - Muito prazer em conhecê-lo. Também estive na Casa. Por favor, não tenham tanta pressa
em se retirar. Posso facilmente encontrar outra mesa.
- Asseguro-lhe - disse Stephen, levantando-se - que terminamos mesmo.
- Então venha tomar chá conosco um dia destes. Estamos em casa quase todas as sextas-feiras às cinco horas. Então falaremos como dois homens de Oxford - seu sorriso
brincou na direção de Chester - e um que quase foi para Cambridge.
A conta, que Madame Chobert apresentara rapidamente, estava sobre a mesa. Uma vez que Chester parecia não vê-la, Stephen apanhou-a e, a despeito dos súbitos e enérgicos
protestos de Harry, pagou a despesa.
CAPÍTULO VII
SOB A MAGIA DA SUA NOVA LIBERDADE, Stephen, entrou rapidamente e com deliciada facilidade numa rotina agradabilíssima, tanto mais que, uma semana
após a sua chegada, recebeu uma carta de Stillwater que foi um grande alívio para o seu espírito. Embora acentuasse o sofrimento ocasionado pela súbita partida de
Stephen, o Reitor havia-o, em certo sentido, perdoado. Obviamente, escreveu ele, a inclinação (a palavra "tentação" fora riscada) tinha sido demasiado forte para
opor-lhe resistência. Por conseguinte, podia "ser tudo pelo melhor", se, como o próprio Stephen tinha proposto, esse interregno de um ano fosse considerado por ambos
os lados como um "campo de prova". Entrementes, aprovava a escolha de Stephen quanto à sua acomodação, conhecia-o demasiado bem para exortá-lo à virtude, e desejava
que nada lhe faltasse do que cabia à sua condição.
De manhã, era uma sensação que nunca diminuía acordar com a consciência de que estava em Paris, de fato seguindo a sua "carreira artística".
Levantou-se, vestiu-se rapidamente e, como o desjejum no Clifton não tinha nada que o recomendasse, saiu para uma pequena crèmerie na esquina do hotel. Ali, por
30 soldos, foram-lhe servidos um jarro de café ou lait e dois croissants flocosos ainda quentes do forno e recém-trazidos pelo padeiro.
Sua caminhada para o estúdio através das ruas frescas era sempre uma delícia, A multidão apressada e os policiais de capa azul, as donas-de-casa madrugadoras com
os braços enganchados em cestas carregadas, um soldado zuavo de calça escarlate, duas porteiras tagarelando apoiadas nas suas vassouras, um velho varredor de rua
lançando esguichos de água pela sarjeta, carrinhos barulhentos de verdura fresca do Halles - tudo isso o extasiava além das exclamações súbitas, agudas, a tagarelice
de muitas línguas, um vagaroso badalar de sinos ecoando nos edifícios de um cinza suave, as graciosas pontes brancas, o rio adorável, já começando a cintilar ao sol.
No estúdio, é verdade, ele não se sentia em casa. A falta de ordem e o perpétuo barulho tornavam difícil a concentração. Parecia que muitos estudantes tinham vindo
menos para trabalhar do que por mero divertimento e feroz exibição dos seus espíritos animais. Riam e cantavam, pregavam peças grosseiras, mantinham intermináveis
discussões em altas vozes nos cafés, afetavam uma boémia exagerada no vestuário e nas maneiras. Falavam a gíria do quarteirão, sabiam tudo a respeito dos últimos
"movimentos", reconheciam Manet, Degas e Renoir como seus mestres e imitavam-nos dolorosamente, desprezavam Millet e Ingres, eram muito críticos com Delacroix, e
contudo tinham pouco ou nada para oferecer de seu.
Naturalmente outros havia que se aplicavam. Ao lado de Stephen havia um moço polaco, vindo de uma pequena cidade do interior próxima de Varsóvia, que, inflamado
pela ambição, tinha vindo sem dinheiro para Paris. Para pagar a sua mensalidade na Dupret, havia trabalhado 12 meses como carregador na estação de Montparnasse.
A intensidade do seu esforço era assustadora, contudo ele não tinha o menor talento. Muitas vezes, quando Dupret
fazia a sua ronda diária, Stephen esperava que ele, com uma única palavra, acabasse piedosamente com aquele fútil labor. Mas o professor não dizia nada, nada além
de corrigir uma linha ou apontar uma expressão vazia, a falta de equilíbrio na composição. Sua atitude com Stephen continuava igualmente impassível, embora uma ou
duas vezes, após estudar alguma parte do seu trabalho, olhasse para ele de uma maneira curiosa, quase às escondidas, como se o visse e examinasse pela primeira vez.
Mais e mais, sob o alheamento de Dupret e suas grandes maneiras, Stephen começou a discernir um núcleo carcomido de decepção, a biliosa amargura de um homem que
no seu coração sabia que tinha falhado no cumprimento da sua expectativa juvenil. Ter obtido o reconhecimento dos círculos oficiais, exibir anualmente o seu trabalho
no Salon (uma pintura segura e cuidadosamente executada, que sempre era pendurada em um bom lugar), participar das juntas e comissões, representar a arte de luvas
brancas nas recepções do governo - tais distinções significavam alguma coisa para quem queria abalar o mundo com uma poderosa obra-prima? Dupret não tinha um verdadeiro
interesse pelo seu estúdio e ainda menos por seus alunos, a não ser quando, com uma ponta de ciúmes, via a evidência de um talento que podia ultrapassar o seu. Atrás
daquela fachada, era um homem vazio, um homem movido pelo homem que supunha ser, um homem mais digno de pena do que desprezo. Na verdade, quando o professor entrava
imponentemente na sala, Stephen fazia dele uma curiosa imagem, no fim do dia, despindo vagarosamente o fraque apertado e soltando os botões brilhantes dos sapatos,
remexendo os dedos comprimidos para aliviar os calos, voltando para a tela semiacabada um Casamento Bretão, pensando, com um arrepio: "Mon Dieu, devo continuar com
isto?"
Na hora do almoço, Stephen ia com Chester ao restaurante de Madame Chobert, mas ocasionalmente escapava à efusiva amizade de Harry e vagabundeava ao longo do cais,
mastigando um petit pain no qual havia uma fatia de presunto avivada pela mostarda amarela. Então, apressando o passo, ia aos museus, ao Louvre ou ao Luxembourg.
Era quase noite quando, com olhos ainda não ajustados às realidades da rua, deixava as compridas galerias e caminhava de volta para o Clifton.
Para Chester, e as poucas outras relações que fizera na Dupret, parecia extraordinário que Stephen passasse as suas noites só, e várias vezes instavam com ele para
que os acompanhasse numa visita a Montmartre. Certa ocasião, ele acedeu, acompanhado de meia dúzia de outros, em ir a um café-concerto na Toque Bleue, perto do Moulin
de la Galette.
Mas ficou enormemente entediado com as cenas que se presumiam vívidas e excitantes, mas, de fato, eram estupidamente fúteis. Os salões de dança eram uma massa humana
empurrando, sapateando, rodeando, semi-intoxicada,
ampliada e distorcida por dezenas de espelhos, retorcendo-se em formas grosseiras, ao estridor de uma banda reles. Certo, nada podia ser mais assustadoramente triste
do que as caras dos frequentadores mais velhos - peitos côncavos e olhos mortiços, estranhamente rebarbativos. Algumas das conhecidas cocotes que Chester lhe apontava
eram francamente medonhas, seus parceiros, com roupas pretas justíssimas, sinistros e degenerados.
Mais tarde, diversas jovens se reuniram à festa, que agora atingia uma fase turbulenta. Suas vozes roucas e grosseira camaradagem, seus braços atirados em torno
de pescoços e seus carinhos cochichados em voz alta despertavam nele um frio desagrado. Enquanto ele permanecia ali sentado, pálido e silencioso, como um peixe fora
da água, uma das jovens se curvou para Chester, que tinha bebido um bocado, e, com os olhos em Stephen, riu-se sem motivo e murmurou alguma coisa no seu ouvido.
Imediatamente, Chester rompeu num ataque de riso.
Nesse momento, Stephen não fez nenhum comentário, mas a caminho de casa, com Chester, falou no assunto.
- Não foi nada, meu velho. Ela apenas disse - Chester, com um tom de desculpa, modificou o comentário original, impublicável - que você era um tipo esquisito. -
E quando Stephen desviou a cabeça, acrescentou: - Lamento que você não tenha se divertido esta noite. Não esqueça de que vamos visitar Lambert na sexta-feira. Avise-me
antes de sair.
Nesse dia, por volta das quatro horas, Stephen saiu para a Rue Bonaparte, onde, no número 15, Harry tinha um quarto no último andar. Após uma íngreme subida de três
lances de escada, percebeu que havia uma furiosa altercação, "e empurrando a porta meio aberta encontrou Chester discutindo com um homem baixo de chapéu preto e
quadrado e um sobretudo pardacento, que, imperturbável, superintendia os movimentos de um subordinado muito ocupado em meter num grande saco de serapilheira o relógio
do consolo, um par de vasos chineses e outros objetos que decoravam o quarto.
- Agora, por favor, o seu relógio, Monsieur Chester.
- Ora, deixe disso, Maurice - suplicou Chester - o relógio não. Dê-me um prazo até o fim da semana que eu pago.
Neste momento, Chester viu Stephen. Por um instante, apatetou-se; depois, aproximando-se, forçou um sorriso confiante.
- Não é uma coisa idiota, Desmonde? Esgotei a minha pensão há pouco. E esses credores importunos, miseráveis, estão me despojando. É praticamente nada. Uns míseros
100-francos. E naturalmente receberei o cheque de mamã no fim do mês. É claro que eu não sonharia em pedir a você; contudo, se houver alguma chance...
Houve uma pequena pausa, então Stephen disse, de boa vontade:
- Terei muito prazer em atendê-lo.
- Muitíssimo obrigado, meu velho. Você o terá de volta, com juros, no dia primeiro do mês. Está vendo, Maurice, seu ladrão? E agora foutre le camp.
Dobrou as notas novinhas que Stephen extraiu da sua carteira e atirou ao oficial de diligências, o qual, após contá-las duas vezes com o polegar umedecido, acenou
silenciosamente, esvaziou o conteúdo da sacola sobre a mesa, com uma reverência enigmática, imitada pelo seu companheiro, e deslizou para fora da sala.
- bom! Acabou! - Chester riu-se alegremente, como se fosse uma excelente piada. - Eu ia sentir falta das minhas velhas panelas. E, naturalmente, disto aqui... -
Colocando os vasos de volta no consolo da lareira, abriu descuidadamente a tampa de um estojo chato e exibiu uma medalha redonda de prata presa a uma fita azul;
depois, de um modo um tanto envergonhado, que não deixava de ser encantador, ajuntou: - Essas coisas não se devem mencionar, Desmonde. Mas uma vez que você me apanhou
desprevenido, tenho que falar... é a Medalha Albert. Pois é... tive que recebê-la, há alguns anos.
- Por quê?
Stephen não podia negar que estava impressionado.
- Ora, porque salvei uma vida no mar, é como chamam isso. Uma velha tonta caiu do navio ao largo de Folkstone. Não posso culpá-la... o mar estava muito agitado...
e era inverno. Aconteceu que fui atrás dela. Não foi absolutamente nada. Não estivemos na água mais do que meia hora, enquanto o vapor fazia a curva e nos mandavam
um bote. Mas vamos esquecer isso e tratar de andar. Se não nos apressarmos, chegaremos tarde para o chá.
Com seu bom humor inteiramente recuperado, Chester desceu as escadas na frente, falando e rindo durante todo o caminho até o apartamento dos Lamberts, situado num
beco sem saída muito atrás da Avenue Duquesne. Ali, num pátio de paralelepípedos, havia um pequeno pavilhão de pedra cinzenta - avivado artisticamente por uma porta
verde-maçã e janelas da mesma cor - que fora outrora a casa do porteiro de uma mansão nos dias de Henrique IV. Cheirando a almoço e a defumador recém-queimado, o
pequeno e um tanto escuro interior estava artisticamente disposto com pequenos tapetes felpudos aqui e ali, cortinas de contas e cadeiras de bambu. Um xale espanhol
estava estendido sobre o piano de armário.
Arrastados pela impetuosidade de Chester, chegaram cedo. Lambert, dormitando numa espreguiçadeira junto às cinzas da lareira, ainda parecia afundado na letargia
de após-almoço, e mal ergueu uma pálpebra pesada quando eles entraram. Mas a Sra. Lambert lá estava para recebê-los. Era alta e esbelta, mais velha do que Stephen
tinha esperado, com grandes olhos verdes, feições tendentes à rispidez, cabelo cor de areia e uma pele branca leitosa que com ele combinava. Seu vestido de tarde,
recortado em torno do pescoço de maneira rebuscada e com saias cheias e compridas, era de brocado branco.
Enquanto ela e Chester conversavam, Stephen observava-a, sentada com compostura, com o pescoço arqueado, contra um biombo laqueado, até que ela, como se notasse
o seu olhar perscrutador, voltou os olhos para ele com um sorriso em arco.
- Espero que aprove o meu vestido...
E como ela parecia esperar um cumprimento, ele disse:
- Estou certo de que Whistler teria gostado de pintá-la com ele.
- Que coisa mais encantadora para dizer. - E ajuntou, confiadamente: - Fui eu mesma que o fiz.
Dali a pouco saiu e trouxe o chá, numa bandeja de prata, com muitas xícaras, com finos sanduíches de agrião, e petits fours. Quando começou a servir, Lambert bocejou
e espreguiçou-se.
- Chá! - exclamou ele. - Não posso viver sem chá. Abençoado, nutritivo chá. Forte, Elise. - Aceitou uma xícara, balançou-a airosamente. Este pode ter vindo das extensas
plantações da sua família no Ceilão, Harry. Não é uma ideia estimulante? Diga-nos se reconhece o sabor. - Olhou para Stephen. - Bem... o que esteve fazendo nesta
cidade malvada, Monsieur l'Abbé?
Stephen corou, Viu que Chester tinha andado a tagarelar a seu respeito.
- Certamente lhe parecerá ridículo. Um futuro pastor desertando para a pintura.
E em poucas palavras explicou algumas das circunstâncias da sua vinda para Paris.
Quando terminou, seguiu-se uma breve pausa, e então Lambert exclamou, com a sua costumeira ironia:
- Bravo, Abbé! E agora que já fez a sua confissão, tem a nossa absolvição incondicional.
Elise, inclinando-se um pouco para ele, com um sorriso, murmurou:
- Deve ter sentido uma incrível vontade de pintar. Tome mais um pouco de chá.
Quando Stephen levantou a mão com a sua xícara até os olhos, viu três leques, pintados em seda à maneira japonesa, arranjados sobre a parede. Fez uma pausa, impressionado
pela delicadeza do trabalho.
- Quem fez essas coisas tão encantadoras?
As pálpebras de Lambert ergueram-se. Acendeu um cigarro, antes de responder, de modo quase casual:
- Para dizer a verdade, caro Abbé, são minhas. Se não lhe aborrecer, mostro-lhe mais alguns trabalhos meus.
Depôs a xícara, e de uma pequena passagem lateral trouxe várias telas; então, de uma maneira fatigada colocou-as em pé, uma após a outra, de modo que recebessem
toda a luz, numa cadeira alta junto à janela.
A maioria dos quadros era bem pequena, e de temas leves - um raminho de flor de cereja numa malga azul, dois salgueiros à beira de uma poça estagnada, uma criança
com chapéu de palha sentada num caramanchão à margem de um rio - contudo, cada um deles tinha uma beleza decorativa que acentuava o simples. Era uma qualidade que
parecia infundir em formas pálidas um encanto enfastiado e indefinível.
Mostradas as poucas pinturas, Stephen voltou-se para Lambert.
- Eu não tinha ideia de que podia pintar assim... são encantadoras. Lambert encolheu os ombros, mas estava claramente satisfeito, ao passo que sua mulher, estendendo
o braço, apertou vivamente a mão de Stephen.
- Phil é realmente um génio. Ele também pinta retratos. - Seus olhos verdes demoraram-se luzindo. - Se souberem de alguém que esteja interessado em comprar... Sou
a sócia comercial.
Depois disso, a campainha da porta soou e,.em rápida sucessão, outros convidados chegaram, todos singularmente apropriados para aquela atmosfera de refinada boémia:
um jovem de meias brancas com um manuscrito debaixo do braço, outro homem, menos moço, mas de ombros quadrados e bem vestido, da Embaixada americana, uma modelo
chamada Nina, que Stephen tinha visto ocasionalmente no restaurante de Madame Chobert. Um francês de monóculo, gordo e idoso, que beijou a mão de Elise com tocante
galanteria, e sobre o qual, como um possível comprador, ela voltou todas as suas blandícies.
Um chá novo foi trazido, Lambert serviu uísque, o ruído da conversação aumentou, e dali a pouco Stephen, que em sua primeira visita não queria ficar muito tempo,
levantou-se para se retirar. Philip e a esposa instaram para que ele viesse outra vez. Aliás, Madame Lambert interrompeu a conversa para acompanhá-lo até a porta.
- Venha conosco rio acima no domingo. Fazemos um piquenique em Champrosay. - Deteve-se, de olhos grandes, com o ar de quem fazia um cumprimento. - Philip gostou
muito do senhor.
No domingo, então, e em outros dias depois, Stephen acompanhou os Lamberts, às vezes só, às vezes com Chester ou outros de seus amigos, àquela adorável altura do
Sena, entre Châtillon e Melun. Tomavam o bateau mouche na Pont Neuf para Ablon, onde alugavam um esquife e subiam com remadas descansadas a vagarosa corrente verde,
serpeando placidamente entre as ribas tornadas famosas pela Floresta de Sénart até atracarem diante de uma estalagem à margem do rio, desembarcando para almoçar
numa mesa de madeira ao ar livre.
O tempo era soberbo, a folhagem no seu melhor momento de beleza madura, as malvas-rosas e os girassóis em plena florada. O sol cintilante e o
ar caricioso, o exercício, aqueles amigos agradáveis, a esfuziante novidade de cada vista e som, o apito rouco de uma barcaça, a cor da blusa de um operário, a pose
da mulher do encarregado da comporta, tudo o que nele despertava um êxtase vibrante agia como um entorpecente sobre Stephen. Lambert, tirante algumas horas de melancolia,
estava na sua disposição mais atraente, lançando um dito de espírito aqui, um epigrama ali, exibindo o seu brilhantismo, recitando longos trechos de Verlaine e das
Fleurs du Mal.
- Mais sagrada que o Indo - murmurava ele, detendo-se para tomar fôlego, arrastando os seus compridos dedos na corrente fria, com o peito estreito a arfar, a mecha
de cabelos caída sobre a testa úmida. - Esses lírios d'água... cálices do mais puro alabastro... translucidamente rosados... e frios... frios como os seios das ninféias
flutuantes... - E assim por diante.
Seu olho para a beleza não se limitava à natureza, e sempre que a mulher que os servia na estalagem era razoavelmente favorecida, ele, a despeito do olhar agudo
da esposa, flertava com ela ultrajantemente.
A princípio, Stephen trazia consigo um bloco, querendo registrar tudo o que via, mas Lambert desanimou-o com um sorriso cómico.
- Deve guardar tudo aqui, caro Abbé. - Bateu na testa ligeiramente. Mais tarde... na solidão... isso nascerá outra vez.
Numa tarde de domingo, depois de uma excursão mais encantadora do que qualquer outra, Stephen despediu-se dos Lamberts e de dois outros que tinham participado do
passeio de barco, e caminhou do embarcadouro, no Quai St. Bernard, para o seu hotel. O sol, afundando agora por trás da cúpula do Trocadero, tinha incendiado o céu
o dia inteiro. Animados pelo calor do dia, todos tinham se banhado num lago abaixo do açude de L'Hermitage, comido um almoço especial de trutas, frias com patê,
enriquecido pelo nobre Chambertin, e depois adormecido sobre a relva tépida embaixo das faias de Sénart.
Como ele se sentia bem!... a pele queimada pelo sol, os pulmões cheios de ar do campo, o corpo formigando com a água picante do rio... uma espécie de satisfação
divina espalhava-se por ele.
De súbito, ao atravessar a Rue de Bièvre, um homem saiu de uma entrada estreita bem à sua frente. Usava sapatos pesados, uma calça de pele de toupeira e uma blusa
de porteiro pintalgada de azul; em torno do pescoço, um lenço vermelho enrolado negligentemente. Parecia um trabalhador voltando para casa após um duro dia de labor;
contudo, algo no aprumo dos ombros, o porte desafiante da cabeça, fez Stephen sobressaltar-se. Apressou o passo para alcançá-lo.
- Glyn!
Richard Glyn deu meia-volta, de cara séria e cenhuda; então, ao olhar, as rugas que tão profundamente lhe franziam a testa foram aos poucos desaparecendo.
- É você, Desmonde... Conseguiu deixar aquilo.
- Há cinco semanas - disse Stephen sorrindo de prazer. - E desde então estive esperando encontrá-lo. Escute, estou justamente voltando para o hotel. Venha e jante
comigo.
- bom - considerou Glyn - eu bem que gostaria de dar umas dentadas. Não comi nada o dia inteiro.
- Deus do céu, que esteve fazendo?
- Pintando... desde as seis da manhã - respondeu Glyn com uma espécie de violência sombria. - Costumo esquecer o almoço quando estou trabalhando... especialmente
quando não consigo dominar meus amaldiçoados valores das nuanças.
Falando, os seus olhos de ágata cintilavam com uma súbita e rude impaciência, o cansaço de um prolongado e apaixonado esforço para criar. Travando Stephen pelo braço,
saiu com ele rua afora.
CAPÍTULO VIII
O APARECIMENTO DE GLYN, de lenço vermelho no pescoço e botas ferradas, causou um pequeno rebuliço na sala de refeições do Clifton. O velho chefe dos garçons, criado
na tradição dos milords ingleses, não gostou do que via, e as duas damas solteironas, que até agora consideravam Stephen com simpática aprovação, agitaram-se de
chocada surpresa. Richard, contudo, não pareceu importar-se e, aboletando-se na sua cadeira, passeou os olhos em torno com visível curiosidade.
- Por que, em nome do Céu, você se hospeda num lugar como este, Desmonde?
- Oh, não sei... habituei-me a ele, suponho.
Glyn provou a sopa, feita, como sempre, de farinha e água gordurosa.
- Talvez você goste da comida, não?
Stephen riu-se.
- Sei que não é lá essas coisas. Mas o prato de carne será bom.
- É melhor que seja. - Richard partiu outro pão. - Eu lhe disse que estava faminto. Uma noite destas vou levá-lo para comer numa verdadeira casa de pasto.
- No restaurante de Madame Chobert?
- Por Deus que não! Nada de casa de picadinhos artísticos!... Detesto falsas aparências, tanto em cozinha como em pintura. Um bistro de cocheiros perto da minha
casa. Você pode confiar numa taberna onde os cocheiros comem. Servem lá um patê de lebre que não é deste mundo. - Glyn se deteve. - Agora me conte o que andou fazendo.
De boa vontade, mas sem entusiasmo, Stephen iniciou um relatório completo das suas recentes atividades. Falou da sua "labuta" matinal na Dupret, encareceu a sua
amizade com Chester e os Lamberts, tornou-se lírico ao descrever as suas excursões a Champrosay. A princípio, Glyn ouvia com um sorriso entre irónico e sarcástico,
mas lentamente a sua expressão se tornou séria, e ele ficou olhando de esguelha para o seu companheiro.
- Bem - exclamou ele quando a narrativa terminou. - Você parece que tem andado ocupado. Talvez me leve depois ao seu quarto para vermos o que tem feito.
- Oh, não tenho muito que mostrar... - respondeu Stephen apressadamente. - Apenas uns poucos esboços. Tenho me concentrado nas linhas, sabe?
- Sim - fez Glyn.
Em completo silêncio, ele mastigava o resistente pouding à l'anglaise que constituía a sobremesa do Clifton. Não disse palavra por uns bons cinco minutos. Depois,
por baixo das sobrancelhas franzidas, voltou para Stephen um olhar firme que também tinha um reflexo de extremo desagrado.
- Desmonde, você quer pintar? Ou enganar a sua vida como um desses personagens extravagantes de La Boême?
- Não compreendo.
- Ouça, então. Há talvez 10 mil impostores safados nesta cidade que se imaginam artistas porque estudam um pouco, desenham um pouco e sentam os rabos nos cafés todas
as noites, cacarejando sobre as suas obras-primas natimortas. Você é quase um deles. Sabe muitíssimo bem que está desperdiçando tempo, Desmonde. Só o trabalho duro,
infernal, é que tira o que você tem aí dentro, não vagabundeando pelo Sena, estendido de costas numa canoa com um poseur simplório que lhe esguicha Verlaine e Baudelaire.
Stephen avermelhou-se, indignado.
- Você é injusto, Glyn. Chester e Lambert são sujeitos muito decentes. E Lambert tem certamente um grande talento.
- Besteira! Que fez ele? Algumas japonaiseries, leques pintados, fragmentos... oh, bem bonito, não nego, mas coisinhas meio efeminadas... afetadas... e tudo muito
pequeno.
- Certamente é um sinal de vulgaridade produzir enormes telas.
Em seu ressentimento, Stephen citara uma observação favorita de Lambert, e Glyn logo farejou a sua origem. Riu-se rudemente.
- E Rubens, e Correggio, e del Sarto, com as suas tremendas concepções, e o velho Michelangelo, cobrindo o teto da Capela Sistina com a sua portentosa visão da Criação,
trabalhando tão duramente que em muitos dias nem tinha tempo de tirar a roupa? Eles foram vulgares? Não, Desmonde... Lambert é um amador bem-dotado, um artista menor,
que nunca seria ouvido se não fosse empurrado por trás pela sua astuta mulher. Não tenho nada contra esse sujeito, é em você que estou pensando, Desmonde. Você tem
algo que Lambert daria a alma para possuir. Não quero vê-lo jogando isso fora por causa da sua maldita tolice. E quanto a Harry Chester, prosseguiu Glyn, será você
tão ingénuo para já não ter saltado por cima dele?
- Não sei o que você quer dizer - respondeu Stephen agastado.
Glyn pensou em esclarecê-lo, mas contentou-se com um sorriso.
- Quanto dinheiro ele já levou de você?
Stephen corou profundamente. Chester tinha em várias ocasiões pedido empréstimos, e agora já lhe devia mais de 500 francos, mas não tinha ele dado a sua palavra
de honra que os pagaria fielmente?
- Ouça - continuou Glyn mais tranquilo - você teve um falso início, acabou em más companhias e, pior de tudo, tem afrouxado abominavelmente. Se não se levantar,
estará cavando o seu próprio túmulo. O poço mais fundo do inferno é ocupado pelo artista que não trabalha!
Fez-se um comprido e gélido silêncio. Embora Stephen se tivesse defendido, ao comparar o seu próprio dia inútil com as horas de esforço concentrado de Glyn, uma
vergonha começava a apoderar-se dele.
- Que devo fazer? - disse ele por fim.
- Em primeiro lugar, sair desta casa anglicana de repouso.
- Quando?
- Agora.
O olhar consternado de Stephen pareceu divertir Glyn imensamente, mas num instante ele ficou novamente sério.
- Não posso lhe pedir que venha para o meu buraco. Mas conheço um homem que terá prazer em recebê-lo.
- Quem?
- Jerome Peyrat é o nome dele. Tio Peyrat. É um camarada velhusco, em situação não muito boa, que quer alguém para dividir as despesas. Um tipo esquisito, por Deus,
mas um verdadeiro pintor, diferente dos seus falsos boémios. - O meio sorriso de Glyn era desconcertante, mas desapareceu rapidamente quando ele concluiu: - Você
já não tem mais nada com Dupret, está claro. Pode usar o meu estúdio. E vou lhe apresentar o meu homem das tintas, Napoleon Campo. Ele fia... às vezes. Vamos embora.
A natureza de Stephen não era adaptada às mudanças súbitas e decisões bruscas, contudo havia uma força avassaladora nos argumentos de Glyn, uma
irresistível compulsão na sua maneira. Dirigiu-se, portanto, ao escritório e, para surpresa e mortificação do gerente, pediu e liquidou a sua conta. Então fez a
mala e trouxe-a para baixo, desculpando-se por sua partida inesperada com uma profusa distribuição de gorjetas.
Glyn, no corredor, e claramente olhado pelo pessoal do Clifton como o demónio da peça, mostrou-se frio a respeito daquelas gratificações, e comentou sombriamente:
- Aconselho-o a guardar o seu dinheiro, Desmonde. Você pode vir a precisar dele depois.
- Espere, Glyn. Eles têm que nos arranjar um carro.
- Para o diabo com o carro. Está realmente tão fraco que não pode andar?
Apanhando a valise, que não era leve, Richard atirou-a no ombro e saiu do hotel a passos largos. Stephen acompanhou-o para a poeira luminosa da rua.
Era uma distância considerável até o alojamento de Peyrat, mas Glyn, que tinha uma satisfação selvagem em extrair o máximo de si mesmo, percorreu-a em passos rápidos,
sem vacilar ou depor a mala. Finalmente, numa escura rua lateral de Rive Gauche, no triângulo formado pelo encontro da Rue de Assas e do Boulevard Montparnasse,
Glyn enveredou por uma entrada torta ao lado de uma pastelaria, que, embora mal iluminada por uma lâmpada fraca, estava esfregada e limpa, e começou a subir de três
em três os degraus de pedra. Deteve-se no segundo andar, bateu na porta e, sem esperar resposta, torceu o trinco e fez Stephen entrar.
Era um apartamento de três cómodos, e na sala de estar, mobiliada com correção burguesa, sentava-se diante da mesa coberta por um oleado um homem franzino, de ombros
redondos, com cerca de 50 anos, um rosto chato e sulcado e uma barba inculta, vestindo, apesar do calor do fogo que flamejava na lareira, um descosido sobretudo
preto com a gola levantada e um chapéu duro, também preto; enquanto um tordo, sem a metade das penas, piava um acompanhamento numa gaiola junto à janela, ele se
exercitava na ocarina. À vista de Glyn, os seus olhos, que eram claros e jovens e o enchiam de engenhosa audácia, brilharam. Depôs o instrumento e, erguendo-se,
beijou Richard, com afeiçoada familiaridade, em ambas as faces.
- Peyrat - disse Glyn brevemente, enquanto se desvencilhava - trouxe-lhe o seu novo inquilino. É um amigo meu. Stephen Desmonde.
O olhar de Jerome Peyrat passou de Glyn para Stephen e nele repousou pensativamente - um escrutínio a um tempo inocente e amável.
- Se é seu amigo, mon vieux, então será meu também. Desculpe-me recebê-lo assim, Monsieur Desmonde. Richard sabe como padeço com correntes de ar.
- Espero que não o estejamos perturbando - disse Stephen, embaraçado.
- Longe disso. De noite tenho o hábito de contemplar a minha própria alma. Às vezes acho-a esplêndida, outras medonha. Esta noite - sorriu gravemente - agradeço
qualquer distração.
- Desmonde é pintor, Peyrat. Vai trabalhar comigo e com você.
- ótimo. - Peyrat não mostrou a menor surpresa. - Seja bem-vindo no meu apartamento... pelo menos temporariamente, uma vez que pertence a Monsieur Bisque, o pasteleiro.
Não importa. Aqui renunciamos à beleza das mulheres e ao brilho da fama contemporânea, a fim de produzir obras-primas que serão aclamadas mil anos após a nossa morte.
- Que esperança! - exclamou Glyn com irónica indulgência.
- É unicamente a esperança que nos mantém vivos.
- E a beata Teresa...
- É verdade. Somos sustentados pelo exemplo dessa nobre alma. - Voltou-se para Stephen. - Já visitou a Espanha?
- Não.
- Então um dia podemos fazer uma peregrinação juntos. Até Ávila de los Caballeros... que fica atrás de muralhas de granito, amareladas pelo sol do verão, geladas
pelo inverno de Castela, aprumando-se como uma grande coroa no seu deserto de rocha contra o duro azul das Montanhas de Greda.
- O senhor já esteve lá? - perguntou Stephen polidamente.
- Muitas vezes. Mas somente em espírito. Glyn explodiu numa gargalhada.
- Aviso-o, Desmonde. Este maluco, que nunca vai à igreja e diz coisas desagradáveis a respeito do Papa, tem uma absurda veneração por Santa Teresa.
- Peyrat sacudiu a cabeça em reprovação.
- Meu amigo, não tome em vão o nome da doce e obstinada mulher de Castela, a Velha, que restaurou a ordem descalça original, abandonou a vida ociosa e tagarela das
carmelitas. Ela troou a sua batalha com o espírito, o encanto, a humildade, as rezas, os argumentos, a paciência de uma santa e a têmpera de um capitão do mar. Também
foi uma poetisa...
- vou sair - disse Glyn, sorrindo e dirigindo-se para a porta. - vou deixá-los a sós para que se conheçam. Esteja no meu estúdio amanhã às sete, Desmonde. Boa noite.
Saiu. Peyrat, após um momento de silêncio, levantou-se e foi apertar a mão de Stephen.
Disse simplesmente:
- Espero que se sinta em casa.
CAPÍTULO IX
AGORA COMEÇAVA PARA STEPHEN, sob a influência de Glyn e Peyrat, uma nova existência, cheia de incessante trabalho, inteiramente oposta à sua recente interpretação
da vida artística. Jerome Peyrat, conhecido no distrito de Plaisance como "Tio Peyrat", era de origem humilde; seus pais, já falecidos, não foram mais que gente
simples do campo - embora ele falasse deles com orgulho - labutando nuns poucos hectares perto de Nantes. Durante 30 anos, como empregado do governo, petit fonctionaire,
passando os dias metido num paletó de alpaca com punhos de papel, tomando anotações nos registros poeirentos do Palais de Justice. Somente uma vez estivera fora
da França, quando, como terceiro secretário de uma comissão judicial, tinha ido à Índia. Lá, passara todo o seu lazer como um espectador ingénuo e fascinado dos
animais alinhados atrás das grades, debaixo das altas palmeiras e carobas do jardim zoológico de Calcutá. Alguns meses depois do seu regresso, o pessoal do ministério
foi reduzido e Peyrat aposentado com uma pensão tão diminuta que mal lhe dava para viver de pão. Então, inesperadamente, nunca antes tendo manifestado no menor grau
qualquer interesse pela arte, começou a pintar prolificamente. Não apenas a pintar, mas a considerar-se placidamente um pintor de génio. Nunca recebera uma só lição
na sua vida. Pintava os retratos dos amigos, ruas, edifícios, feios edifícios, cortejos nupciais, fábricas da banlieue, e punhados de flores agarradas por mãos descarnadas,
pintava composições de florestas - uma forma feminina nua, pródiga de seios e cadeiras, montada num tigre mostrando os dentes embaixo de um intrincado novelo de
palmas, trepadeiras, samambaias, orquídeas de tons cromáticos, uma floresta da imaginação, luxuriante e estupenda, povoada por serpentes e macacos trepadores entrelaçados
como num combate mortal, durante a execução dos quais tremia, suava e, para que não desmaiasse, era forçado, apesar do seu medo de apanhar um resfriado, a abrir
a janela para respirar ar fresco.
A vizinhança encolhia os ombros e sorria diante das suas pinturas, que eram expostas à venda, ao preço de 15 francos, na janela da sua amiga, Madame Huffnaegel,
uma viúva respeitável que tinha uma chapelaria a poucas portas rua abaixo e por quem ele nutria um respeito moderado. A não ser Napoleon Campo, o homem das tintas,
que tinha levado telas em pagamento de materiais
fornecidos a Peyrat - e cujo sótão estava, admitia-se, atulhado de refugos de artistas lutadores - ninguém comprava os quadros, que se tornaram, nas vizinhanças
da Rue Gastel, um alvo regular de hilariante, embora afetuosa, alegria. Contudo, complacentemente, Peyrat continuava pintando, às vezes passando muitas necessidades,
mas completando a sua magra pensão com vários recursos. Além da ocarina, que ele tocava para seu próprio prazer, e do corne francês, tinha um conhecimento limitado
do violino e do clarinete. Consequentemente, escreveu uns volantes que ele mesmo distribuía de porta em porta pelo bairro.
Aviso
JEROME PEYRAT
CURSOS DE MÚSICA, HARMÓNICA E SOLFEJO PARA CRIANÇAS
Aos sábados, das duas às cinco da tarde.
Rápido progresso garantido.
Pais podem assistir às aulas. Mensalidade por estudante: cinco francos.
Número limitado de alunos.
No verão, também tirava um bom efeito da sua habilidade no corne francês, tocando todas as tardes de terça-feira na orquestra que encantava as babás e seus pirralhos
no Jardim das Tulherias. E quando a necessidade o premia demasiado, lá estava o amigo da sua infância, Alphonse Bisque, agora o pasteleiro do Plaisance, gordo, de
meia-idade, completamente calvo, com quem - por recordação sentimental dos dias distantes da escola em Nantes, e não por causa das pinturas que de tempos em tempos
Jerome lhe empurrava em pagamento - se podia contar para fornecer pastel de carneiro ou patê de carne.
Nos seus hábitos e no seu modo geral de vida, Peyrat - Stephen logo o descobriu - era tão engenhoso, tão original como os seus quadros. com toda a sua simplicidade,
tinha uma mente ativa e inquisidora, abarrotada com os frutos das suas pesquisas em volumes abstrusos de segunda mão comprados nos quais, frequentemente vomitados
em discursos ingenuamente eruditos sobre história, teologia medieval ou assuntos tão inconciliáveis como Cosme de Alexandria, que no ano 548 denunciara a doutrina
da redondeza da Terra, e Santa Teresa de Ávila, a quem ele, um ateu, tinha tranquilamente tomado por padroeira.
A despeito dessas excentricidades, portava-se, na sua frase favorita, como un brave homme et un bon camarade. Por mais cedo que Stephen se levantasse, Peyrat já
estava de pé antes dele, para apanhar o leite e o pão quente que o menino Alphonse entregava todas as manhãs na sua porta. Terminado o seu simples desjejum, vestia
um avental e lavava a louça; depois, tendo dado água e sementes ao tordo que achara na rua, estropiado por um gato, e que se propunha soltar quando a asa se emendasse,
aprestava-se para o dia de trabalho, punha no ombro a sua paleta e caixa de tintas, mais um grande guarda-chuva para protegê-lo contra os elementos, e saía a pé
para algum canto remoto dos subúrbios, Ivry, Charenton ou Passy, onde, imperturbável ante comentários grosseiros dos passantes ou peças que as crianças lhe pregavam,
atormentando-o, perdia-se na maravilha e no mistério de transpor para a tela alguma visão celestial de um vagão encostado, um bonde ou o cano de uma chaminé.
Stephen saía à mesma hora, apressando-se todas as manhãs para a Rue de Biêvre a fim de utilizar a luz clara do norte, depois do amanhecer, que jorrava através das
clarabóias chumbadas do estúdio de Glyn. Richard, que nunca se poupava, era impiedoso na sua atitude de severo e às vezes estúpido feitor.
- Mostre-me o que é capaz de fazer - dizia ele sombriamente. - Em seis meses, se você não me satisfizer, pode voltar para o Senhor.
O modelo de Glyn, Anna Montel, era uma mulher de 30 anos, alta e vigorosa, de cabelos negros e olhar cigano, desolado. Era uma ramani Cinzany, cujos antepassados
deviam ter vindo originariamente da Hungria, embora Glyn a tivesse encontrado numa remota parte de Gales do Norte. Sua pele era áspera, e como sempre ela andava
descalça, numa saia escura e blusa verde, sem luvas ou capote; suas mãos e faces eram gretadas pelas cortantes brisas do outono que assobiavam na rua vindas do rio.
Mas os planos daquela face castigada pelo vento, com as suas órbitas firmes e malares altos, eram lisos e fortes. Andando pelo estúdio nas suas chinelas de ourela,
lendo de relance os desejos de Glyn, era a pessoa mais silenciosa que Stephen tinha conhecido-. Posava a todas as horas, e por longos períodos; depois, sem uma palavra,
deslizava do estúdio para Halles e, voltando com uma braçada de provisões, ia ao fogãozinho e preparava um goulash, ou coava café naquela chaleirinha azul de esmalte
com o bico quebrado, que figurou, mais tarde, num dos mais conhecidos quadros de Glyn: Le Café Matinal.
Embora nunca procurasse instruir, Glyn era incansável na sua exigência por originalidade, insistindo em que Stephen descartasse as suas noções preconcebidas, encorajando-o
a olhar para os objetos não como eles eram vistos e representados pela tradição, mas com os seus olhos novos.
- Faça como Peyrat faz! - exclamava Glyn. - Faça cada quadro absolutamente seu.
- Você tem Peyrat em grande conta?
- Acho que ele é grande. - Glyn falava com inteira convicção. - Tem a visão direta original de um artista primitivo. Podem rir dele o quanto quiserem, achando-o
um velho tolo. Mas dentro de 20 anos se arrastarão para ter um dos seus quadros.
Era um trabalho duro - e frio. No estúdio gélido, as semanas avançavam mais frígidas ainda, porque Glyn tinha uma teoria espartana de que ninguém podia dar o que
tinha de melhor num ambiente de conforto. Morta para sempre estava a primeira ideia de Stephen de que pintar era uma arte suave e sedutora. Nunca em sua existência
teve um regime tão rigoroso. E Glyn era insaciável na sua demanda por maior, e ainda maior, esforço.
Um dia, quando a cabeça de Stephen girava e ele sentiu que não podia continuar, Richard, respirando fundo, atirou a sua paleta no chão.
- Exercício - decretou ele. - O tampo da minha cabeça está saltando. Sabe andar de bicicleta?
- Sem dúvida.
- Suponho que você praticava o crawl de coadjutor lá em Oxford. Seis quilómetros por hora.
- Acredito que posso fazer um pouco melhor do que isso.
- Muito bem. - Glyn sorriu. - Veremos de que você é feito.
Saíram do estúdio e atravessaram a rua para a loja de bicicletas do quarteirão, atendida por Pierre Berthelot, um antigo ciclista de corridas que, embora incapacitado
agora por um coração danificado pelo Pernod, tinha nos seus dias obtido um terceiro lugar no Tour de France. Era um estabelecimento pequeno, arruinado, com uma fila
de bicicletas penduradas do teto, na frente, e uma escura oficina de reparos ao fundo. Entraram. O lugar parecia deserto.
- Pierre! - gritou Glyn, batendo no balcão.
Uma moça de uns 20 anos surgiu dos fundos. Era um tanto baixa, usava um suéter escuro e uma saia preta pregueada, com pés sem meias enfiados em compridas chinelas
pretas.
- É você? - fez Glyn.
- A quem esperavk? A rainha de Sabá?
- Por que não está no circo?
- Desmontado para o inverno. - Ela falava com frases curtas, desgraciosamente, com as mãos nas cadeiras e as pernas separadas.
- E o seu pai?
- Curando uma bebedeira.
- Hum! Stephen, esta é Emmy Berthelot. E enquanto ela olhava de um para outro de uma maneira aborrecida, ele continuou: - Queremos duas bicicletas para esta tarde.
Boas.
- Todas são boas. Peguem as duas do fim.
Enquanto Glyn abaixara a corda na roldana, Stephen observava-a experimentar cada bicicleta como entendida, fazendo as rodas girarem. Tinha um rosto pálido, emburrado,
testa baixa, ligeiramente saliente, sobrancelhas bem marcadas, uma boca grande de lábios finos. O nariz tinha uma boa linha, mas apresentava essa ponta arrebitada
dos bairros pobres que a denunciava. A não ser pelos seios, salientes sob o jérsei apertado, tinha a figura de um menino bem desenvolvido. Virando inesperadamente,
notou que Stephen tinha os olhos nela. Sob o seu olhar frio e avaliador, ele sentiu que corava - havia na maneira dela uma insolência que o magoava. Richard estava
levando as bicicletas para a porta.
- Gostaria de vir conosco Emmy?
- De que jeito? Tenho que cuidar da loja. Graças a esse velho beberrão.
- Outro dia então. Voltaremos antes de escurecer.
Stephen acompanhou Glyn para a rua. Montaram e, dobrados em dois sobre os guidons abaixados, Glyn adiante, afastaram-se, furando o tráfego do Faubourg St. Germaine
até a Porte de Versailles. Fora das portas da cidade, aceleraram pela estrada reta e lisa para Ville d'Avray. Richard, com ocasionais olhadelas para trás, imprimiu
uma velocidade arriscada. St. Appoline, Pontchartrain e Meul ficaram vertiginosamente para trás. E, depois, Jussieu, e Orgeval. Por fim, numa ampla curva circular,
tinham percorrido cerca de 30 quilómetros, e Glyn parou com uma freada diante de uma buvette na pequena aldeia de Louveciennes. Respirando forte, olhou criticamente
para Stephen, suado e empoeirado, completamente sem fôlego. Sorriu.
- Nada mau, meu rapaz. Você não gosta de desistir, não é? É uma qualidade que pode lhe ser útil. Venha tomar uma cerveja.
No bar escuro, de teto baixo, tomaram uma caneca de cerveja gelada, que escorregou deliciosamente nas suas gargantas secas. Glyn sugou a espuma da barba e suspirou.
- bom lugar para pintar este campo em torno de Louveciennes - meditou ele. Renoir e Pissarro costumavam andar por aqui. Sisley também. Traremos Emmy para dar o ritmo.
Ela pode realmente vir.
A lembrança do encontro na loja de bicicleta ainda doía em Stephen. Ele disse secamente:
- Aquela moça me pareceu uma pessoa um tanto desagradável.
Glyn soltou uma risada.
- Modere a sua língua, padre... - E depois de uma pausa: - Na verdade, ela é uma putinha barata... o seu amigo Chester podia lhe dizer... E dura. Praticamente criada
na equipe no circuit de France. Troteia por aí com um bando de vadias. Faz uma tournée de seis meses por ano com o grupo do Peroz.
- Peroz?
- Adolf Peroz. Primeiro, eram os Irmãos Peroz. Adolf é o sobrevivente. Conheço-o. Sujeito decente. Tem um circo muito bom. Emmy faz os números de ciclista. Acho
que deve ser extremamente arriscado. Ela ganha um bom dinheiro, e deixa você saber disso. Ela não tem préstimo para nós, realmente, e sabe que andamos tesos. Mas
é incrivelmente vaidosa, e quer que eu a pinte.
- Vai pintar?
- Não mesmo! Não lido com tipos da sarjeta. Mas me divirto pondo uma mosca na sopa dela. Ela é realmente uma perfeita cadelinha. - Terminou a sua cerveja. - Vamos
embora.
Voltaram lentamente no frescor da tarde. Glyn estava eufórico, purgado da tensão nervosa, cantando trechos de canções populares do País de Gales.
Diante da loja de bicicleta, consultou o relógio e deu um assobio.
- Estou atrasado. Tenho que me encontrar com Anna. Entregue isto por mim, como um bom sujeito. Deixou a sua bicicleta com Stephen e precipitou-se.
Com alguma dificuldade, Stephen manobrou as duas bicicletas para dentro da loja. Como antes, estava vazia. Ele bateu no balcão, e então, como ninguém aparecesse,
empurrou a porta dos fundos; no corredorzinho escuro, foi de encontro a Emmy, que vinha para a loja. A porta de fora fechou-se, deixando-os juntos, confinados na
escuridão de um espaço não maior que um armário. Muito desconcertado, Stephen não achava o que dizer, e de súbito o seu pulso começou a bater como um martelo. Ela
estava em pé a seu lado, tão perto que ele podia sentir-lhe o calor, e uma estranha e repentina emoção fez a sua garganta se apertar. Ela o observava impassível,
sem surpresa, embora o seu íntimo torvelinho lhe fosse perfeitamente aparente; deu-lhe um sorriso frio, crítico.
- Que veux-tu?
O duplo sentido da pergunta trouxe-lhe uma onda de calor. Houve uma pausa, durante a qual ele ouvia as rápidas e altas batidas do seu coração. Numa voz não natural,
respondeu:
- Queria que soubesse... que eu trouxe as bicicletas de volta.
- Fizeram um bom passeio? - Ela continuava a observá-lo conscientemente, olhos apertados, meio divertida com a sua emoção, embora não participando dela.
- Sim, obrigado.
Silêncio outra vez. Ela não fazia nenhum gesto para se mover. Afinal, com grande esforço, ele pôs a mão na porta às suas costas e empurrou-a.
- Espero - gaguejou ele como um colegial - espero vê-la novamente. Envergonhado e muito tenso, tentou sem sucesso afastá-la da mente. Mas ela crescia cada vez que
a via - ocasiões que se tornaram frequentes desde que, com a chegada da primavera, Glyn insistia em exercícios regulares
semanais. Sentia-se ao mesmo tempo atraído e repelido por Emmy. Desejava muito pedir-lhe que posasse para ele, mas não podia chegar a dizê-lo com tantas palavras.
Uma oportunidade favorável parecia não surgir nunca. Ela permanecia como um enigma não decifrado, um sentido procurado e não achado, uma estranha irritação no fundo
do seu espírito.
E o tempo ia passando com desconcertante rapidez. À medida que os dias iam ficando mais compridos, e os castanheiros rebentavam em flores outra vez, ele percebia
que este ano de graça em breve estaria acabado. Mais e mais as cartas de Stillwater, de seu pai, de Davie, e de Claire, começavam a antecipar o seu regresso, a pedi-lo
mesmo, com crescente urgência.
Julho chegou, e do céu brônzeo um ar abafado pesava sobre a cidade. Glyn, que detestava o tempo de calor, resistiu por duas semanas, depois resolveu subitamente
ir para a Bretanha com Anna, vagabundear por lá, e pintar Calveries. Os Lamberts já tinham partido para La Baule e agora Chester ia encontrar-se com eles. Até Peyrat
falava em desertar de Paris. O aluguel do apartamento terminava em agosto e ele planejava ir ver um tio em Auvergne.
Tanto Richard como Peyrat insistiram para que Stephen os acompanhasse. Mas ele não podia aceitar - uma carta final, com um ressaibo de severidade, tinha chegado
do Reitor, na qual ele esperava que Stephen não "recuasse da palavra empenhada" nem se deixasse deter pelos "divertimentos e atrações de Paris",
Depois de a ler, Stephen atirou os seus pincéis sobre a mesa e saiu para a rua. Poderia ter ido ao Bois, onde sempre havia sombra embaixo das árvores, mas o seu
humor, deprimido e irritável, proibia-o. Em vez disso, apesar da sua fadiga e de uma sensação de estar absolutamente exausto, caminhou direto para cidade, através
de quilómetros de ruas monótonas. Lojas e cafés em todo o caminho, grandes a princípio, gradativamente menores. Quase todas vazias. Numa delas, deserta, um garçom,
com a cabeça nos braços, dormia numa mesa. Stephen passou por baixo das pontes da estrada de ferro, pelos trilhos serpenteantes do grande Terminal, atravessou canais;
finalmente, passado o octroi, encontrou-se num ermo poeirento fora das barreiras de Paris. A esse tempo, pingava de suor e continuava a repetir para si mesmo:
- Meu Deus, que vida... E papai pensa que os meus dias são uma ronda de prazer.
Quando voltou, parou na agência postal do Plaisance e escreveu um telegrama.
DESMONDE, REITORIA, STILLWATER, SUSSEX. ATRAVESSANDO BARCO CEDO AMANHÃ DEZENOVE JULHO.
STEPHEN.
CAPÍTULO X
NADA, PENSAVA STEPHEN, excede a alegria de revisitar os amados lugares familiares, meio esquecidos, agora vistos mais belos do que antes. Estendido na relva da ribanceira
do Lago Chillingham, com uma vara de pescar a seu lado, aquecido pelo sol da tarde, estava observando Davie lançar um peixinho prateado, ainda desajeitado, mas com
uma seriedade que traduzia aperfeiçoamento, entre os lírios floridos, debaixo de cuja frescura estava um lúcio escuro. O ar era claro e dourado, havia flores silvestres
por toda a parte, as árvores ostentavam a sua mais ampla e tenra folhagem; nas sarças, as rosas-de-cão, de um róseo delicado, exalavam o seu perfume, que se misturava
com o denso aroma das rainhas-dos-prados. Pombos revoavam distantes lá em cima e, da granja familiar, em Broughton Park, ele ouvia o cacarejo das aves.
Era difícil perceber que estava em casa havia duas semanas. Desde aquele momento em que, em Halborough, tinha sido recebido por Davie e Caroline - uma combinação
feita com delicada discrição - tudo corria tão maciamente que o tempo parecia voar. Sim, era bom estar de volta - se pelo menos não o tratassem como o filho pródigo
agora perdoado e que devesse ser mantido a todo o custo pela bondade. Desjejum na cama, o Times do seu pai fechado na bandeja - até ele protestar dizendo que preferia
levantar-se e tomar café com Davie lá embaixo; seus pratos prediletos no almoço e jantar, Beasley trabalhando mais horas na cozinha, Mould trazendo cestas de frutos
escolhidos; seus desejos atendidos, excursões planejadas; claramente, todos os membros da família estavam unidos num esforço diplomático para desarmá-lo.
O assunto da sua pintura não era discutido - estava morto desde a primeira noite, quando, a pedido do Reitor, mostrou as suas telas. Com uma contração do cenho,
entre uma carranca e um sorriso, ele reconheceu quão honestamente, embora de modo vão, o pai tentara aprovar o seu trabalho, perplexo diante de tudo o que via, o
olho assustado indo descansar, em particular, numa cena de banlieue que mostrava uma mulher pendurando um varal de roupa no fundo do seu quintal num dia de vento.
- Meu caro rapaz... você acha isto... belo?
- Sim. É um dos meus prediletos.
- Mas não compreendo. Por que tem que pintar uma corda de roupa?
- É a interação dos tons brilhantes, papai... contra o fundo sombrio, o vestido cinza e branco da velha...
Procurou explicar a base da sua ideia e como as cores puras eram aplicadas com uma espátula. Contudo, era claro que o Reitor continuava perplexo e não convencido.
Seguiu-se uma longa pausa. Por fim, depois de um último exame, seu olhar voltou-se dúbia e ainda inquisidoramente para ele.
- Suponho que um perito possa apreciar isto.
- Acho que pode.
A seguir, a consideração suplantou a crítica. Caroline, muito mais terna à sua maneira, tinha passado as suas roupas, costurado os botões da camisa, e a sua mãe,
estimulada no seu mundo solitário e peculiar, subitamente descobrira e declarara que usaria um novelo de lã com o qual, desde que ele estava em Oxford, pensava tricotar-lhe
umas meias.
Tinha sido, na maior parte, um grupo familiar restrito - para alívio de Stephen, o General Desmonde e sua mulher estavam na Escócia com Geoffrey, caçando - mas nesta
tarde, sabendo que ele e Davie tinham que estar em Chillingham, Lady Broughton convidara-os para o chá.
Com um olhar para o sol, agora obliquando na crista dos Downs, Stephen achou que era melhor saírem logo. Levantou-se, caminhou ao longo da ribanceira e ficou atrás
do irmão, que, embora desse sinais de cansaço, ainda lançava a sua linha, perseverantemente, na água indiferente. A pesca, até agora, tinha sido fraca - três percas
amarelas tão pequenas que não satisfaziam o gato da Reitoria. Ciente do apaixonado ardor que Davie tinha por aquilo, e aliás por qualquer esporte ao ar livre - um
sentimento tão contrário à sua própria indiferença, tão comoventemente incoerente também, dadas as condições delicadas do rapaz e da sua saúde, que estava longe
de ser robusta - ele desejava que uma grande e digna truta se enganchasse no anzol. Podia muito bem ver a alegria e triunfo que essa captura causaria.
Mas embora esperasse pacientemente, com uma palavra ocasional de animação, não houve esse golpe de sorte. Davie, refletiu com momentânea tristeza, nunca tinha sorte.
E enquanto o seu jovem irmão enrolava a linha, passou-lhe um braço nos ombros e, louvando o seu progresso em lançar a vara, condenando os elementos desfavoráveis
do calor e da luz, finalmente, aumentando o valor dos três peixinhos agora curvados e secos na cesta, trouxe-o de volta para a alegria.
- Acho que estou melhor - disse Davie esperançoso. - Esforcei-me muitíssimo. E, como você diz, essas percas não são más. Acha que dão para cozinhar?
- Perfeitamente.
- De qualquer modo... são muito pequenas.
- Quanto menor, melhor - disse Stephen.
Ao saírem pelo prado, evitando o longo caminho em volta do Foxcross Corner e, uma vez que estava tão seco, atravessando os carriços mais baixos, Davie tagarelava
com a viva animação que era um traço do seu caráter. Tinha crescido muito ultimamente, parecia alto para 14 anos, e os seus membros tinham a descoordenação da idade
ingrata, fazendo parecer que caminhava aos arrancos. Contudo, a expressão do seu rosto delicado era menos febril do que antes, e os seus ataques, Stephen soubera
de Caroline, eram menos fortes, revelando uma firme mudança na frequência. Ouvindo com simpatia, observando o jogo de luzes sobre aquelas feições bem talhadas, Stephen
estava consciente de uma profunda onda de afeição por seu irmão. Tinham estado juntos quase continuamente durante as últimas duas semanas.
Saindo dos bosques, pularam a grade de ferro que cercava o parque, onde o gado pastava placidamente, e dali a pouco chegaram à avenida que, contornando o jardim
formal que margeava o relvado, acabou levando-os à própria mansão, uma grande edificação vitoriana de arenito vermelho maciço, corrompida por torres e torreões,
que Lady Broughton pretendia ser a casa mais alta de Sussex.
Foi ela quem os recebeu, reclinada numa chaise-longue junto às janelas francesas abertas ao sul da sala de estar, pedindo-lhes que desculpassem a sua aparente indolência
- seu médico andava ridiculamente severo com ela pondo-os imediatamente à vontade com o tranquilo calor da sua acolhida.
- Bem-vindo, Stephen. - Segurando-lhe a mão, olhou-o de alto a baixo.
- Cheio de conhecimento de coisas lindas. Sinto que não tenha uma barba. Acho que Paris fez-lhe bem. Pode beijar-me o pulso como um francês?
- Não estive estudando essa arte.
- Que pena! - sorriu ela. - Não é, Davie?
- Só será uma pena se meu irmão voltar para lá, Lady Broughton.
- Bem dito. Você vê como estamos contentes em tê-lo de volta em casa outra vez, Stephen. Como prova disso, eu lhes darei pães de milho de Sussex no chá. Lembra-se
como gostava deles quando tinha a idade de Davie?
- Lembro-me, e muito! Ainda gosto. E Davie também.
Lady Broughton sorriu, e continuou a caçoar amavelmente. Contudo, ouvindo-a calado, Stephen notava a mudança por que ela passara. Sempre gostara daquela mulher,
baixa, de cores vivas, sem qualquer aparência de distinção, cuja boa e enérgica natureza e sólido bom senso transpareciam em todas as suas ações. E agora causava-lhe
mágoa aquela atitude passiva, aquela respiração rápida, o leve tom purpurino em suas faces sempre vívidas.
- Claire deve chegar logo - disse ela. - Atrevo-me a dizer que ela fará a sua entrada com uma cesta de rosas, como algo pintado por Gainsborough.
Quase como dissera a mãe, Claire entrou, não do jardim, nem com flores, de cabeça descoberta, não parecendo um Gainsborough mas antes um
Burne-Jones, no seu vestido de linho de corte quadrado no pescoço, de uma cor de burel que combinava com os seus cabelos vermelho-dourados. Embora tivesse sem dúvida
esquecido, Stephen disse imediatamente que ela condizia com aquela rica sombra pré-rafaelita.
A sua postura era admirável. Ninguém teria adivinhado quão rápido batia o seu coração, ou há quanto tempo ela esperava por este momento.
- Claire - fez Stephen dirigindo-se para ela.
- É tão bom ver você - disse ela. - E você, Davie.
Esperava que a ligeira cor que sentia subir-lhe às faces passasse despercebida. Vê-lo outra vez, sentir o contato dos seus dedos punham a sua compostura à prova
mais do que ela poderia esperar.
Nesse momento, foi servido o chá, não um repasto frugal de biscoitos e pão fino e manteiga, mas uma regular fartura colegial de ovos cozidos e pão de minuto, sanduíches
e pãezinhos de milho, com morangos e nata batida à Sussex, tudo disposto sobre uma mesa de pau-cetim com rodas.
- Achamos que você estaria com fome depois da pescaria - disse Claire a Davie.
- E estamos - concordou ele com entusiasmo. - Nosso lanche não foi grande coisa.
Segurou a xícara que Claire enchera e, polidamente, embora com certa ternura, levou-a a Lady Broughton antes de sentar-se.
- Obrigada, Davie. - Rompendo o ligeiro constrangimento, comentou, na sua maneira arreliante: - Claire, não acha que Stephen está com o ar de um parisiense?
- Está mais magro, talvez. - Que estúpida resposta! Mas ele estava em casa - e a inquietante doçura desse pensamento banhava de luz os seus olhos.
- Não acho que a comida francesa seja muito nutritiva - arriscou Davie seriamente. - Eu pelo menos não quero caracóis nem pernas de rã, ou coisas assim.
Todos riram-se, e depois que eram um alegre bando, Davie, como para provar a virtude da dieta anglo-saxã, empenhou-se numa viva discussão com Claire sobre os métodos
de apanhar lúcios, no fim da qual ambos concordaram que num dia como aquele uma isca artificial seria muito melhor que um barrigudinho prateado.
- Acho que há algumas dessas iscas no salão de bilhar - disse Claire, e após um momento de reflexão ajuntou: - Não gostaria de tê-las?
- Ora, ora... - murmurou Davie. - Mas não são para você? Quero dizer... está falando sério?
- Estou sim. Ninguém as usa. Venha comigo e daremos uma olhada. Perguntando se poderia ser desculpado, Davie levantou-se com alacridade e abriu a porta para Claire.
Saíram juntos.
Logo depois, Lady Broughton olhou meditativamente para Stephen, de quem ela sinceramente sempre gostara e por quem, na verdade, tinha admiração. O fato de ele ter
deixado a Igreja absolutamente não a perturbava - com uma natureza tão sensível, apaixonada e tímida, ela não o considerava talhado para ser um pastor rural. Nem
as suas recentes aventuras artísticas lhe causaram grande inquietação. Encarava-as apenas como um capricho passageiro, uma tendência temporária herdada sem dúvida
das excentricidades do lado materno - estava bem lembrada de como, quando era criança, ficara petrificada pelas coloridas extravagâncias do digno pai da Sra. Desmonde
- e que de modo algum diminuíam a finura essencial do caráter de Stephen. Contudo, era menos esta genuína atenção do que o seu conhecimento dos sentimentos de Claire
que a fazia desejar dizer alguma coisa compatível com a boa educação que pudesse trazer o assunto à baila. Naqueles últimos meses, tinha observado com simpatia a
indiferença e desatenção da sua filha, e notado também, não sem desconfiança, os seus esforços ocasionais para romper aquela disposição pensativa e achar distração
em atividades que lhe eram inteiramente alheias. Recentemente, Geoffrey Desmonde tinha sido um visitante persistente, e, quando menos pela maneira com que arrastava
as suas frases, Lady Broughtpn o detestava. Considerava-o estereotipado e banal, afetado, presumido e mimado; e tendo sido casada com um homem cuja pesada obtusidade
tinha feito da sua vida, por mais de 20 anos, uma penitência, não desejava semelhante destino para Claire.
Foi sem dúvida essa ordem de ideias que a levou a observar:
- Não tinha visto a sua prima desde que voltou?
- Não. Todo o pessoal do Simla parece estar na Escócia.
- Geoffrey tem dado muitos tiros por aqui.
- Ele gosta disso. Tem caçado?
- Claire e ele têm corrido bastante pelos Downs. Andam Juntos muitas vezes. Acho que a levou a Brooklands outro dia... para as corridas de automóveis.
- Não sabia que Claire se interessava por tais coisas.
- Não acho que ela se interesse... mas não fica bem recusar - disse Lady Broughton sorrindo.
Na pausa que se seguiu, inclinou-se ligeiramente para ele e continuou num tom que, embora confidencial, manteve deliberadamente casual.
- Preocupo-me um pouco com ela, Stephen. É uma pessoa tão quieta e introspectiva, se quiser - amiga, mas que não sabe fazer amigos. Para estar contente, ela precisa
do tipo certo de companhia - ou vou mais adiante e digo - o tipo certo de marido? Não preciso lhe dizer que não estarei aqui para sempre. Muito em breve, Claire
pode ficar só. E embora ela ame este lugar, são muitas as responsabilidades - que pode achar difícil assumir...
Não dissera nada de definido, nada que pudesse de qualquer modo embaraçá-lo, contudo não havia como se enganar quanto à sua intenção. Na verdade, antes que ele pudesse
falar, ela prosseguiu, colocando os dedos de veias ligeiramente inchadas no seu ombro.
- Acho que foi sensato passar aquela temporada em Paris. E o seu excelentíssimo pai foi sensato em deixá-lo ir. Nos meus dias, os jovens sempre faziam a grande excursão.
Isso não apenas era considerado uma necessidade virtual, mas tirava muitas coisas do seu sistema. Eles voltavam, estabeleciam-se como bons proprietários rurais e
constituíam uma família. Isso é precisamente o que você deve fazer, Stephen.
- Mas supondo... - Ele evitava o seu olhar, com uma ligeira cor nas faces. - Supondo que sinta que devo ir ao estrangeiro outra vez?
-Para quê?
- Para continuar a estudar... e trabalhar.
- Em quê?
- Pintura.
Ela abanou a cabeça e deu-lhe uma indulgente palmadinha na mão.
- Meu caro rapaz, quando eu era jovem e romântica, pensava que poderia escrever poesia, e escrevi, para minha vergonha. Todavia, livrei-me disso. E assim será com
você.
O argumento parecia conclusivo, e ela acomodou-se na sua almofada. Antes que Stephen pudesse responder, Davie entrou na sala com Claire, trazendo uma caixa de metal
laqueado.
- Veja, Stephen, o que Claire me deu. Todas estas belas iscas. Até giradores e bóias. E esta caixa impermeável.
- Não se esqueça - sorriu Claire - que eu espero muitos peixes.
- Agora vai ser fácil. Eu gostaria que a escola não reabrisse tão cedo.
- O inverno não é a melhor época para o lúcio?
- É, sim. E eu estarei à espera dos feriados de Natal.
- Bem, lembre-se de vir tomar chá sempre que estivermos em Chillingham.
Stephen levantou-se, preparando-se para se despedir, tocado pela bondade de Claire com Davie, por sua quieta amabilidade, aparente, mesmo com o seu ar reservado,
em cada palavra ou gesto. Os últimos lampejos da tarde douravam o comprido salão com suas colunas, não belo, mas acolhedor, encantador, com o sentimento de uma velha
casa de campo. Além das janelas, os escuros relvados mas ainda visíveis, sombreados pelo grande cedro, os bosques de faias com os telhados vermelhos das choupanas,
lá no alto, e mais longe, ondeando como o mar, os verdes Downs.
A caminho de casa, Davie achou o seu irmão estranhamente silencioso. Depois de relancear os olhos para ele uma ou duas vezes, disse:
- É formidável no Court. Você não deseja ir lá mais vezes?
Mas Stephen não respondeu.
CAPÍTULO XI
NA TERÇA-FEIRA SEGUINTE, o almoço na Reitoria estava quase terminado. Tinha sido uma refeição um tanto opressiva para Davie, já formalmente vestido, que devia voltar
à escola nessa tarde. Contudo, olhando em torno, Stephen sentia uma tensão maior do que a exigida pela ocasião, um ar geral de conspiração e expectativa. Sentia
também uma intensificação daquela intangível coerção, que, disfarçada em uma nuvem de afeição, vinha envolvendo-o de quando em quando durante as últimas duas semanas.
O Reitor, que já tinha consultado o relógio três vezes nos últimos cinco minutos, tornou a fazê-lo, terminou o seu café e, sem fitar ninguém em particular, disse:
- Acontece que o Sr. Munsey Peters está nas vizinhanças. Infelizmente não pôde vir almoçar. Mas eu o convidei a vir pouco depois.
- Que interessante, papai - murmurou Caroline, com os olhos no prato.
- Está se referindo - perguntou a Sra. Desmonde no tom de quem fora instruída a perguntar - a Munsey Peters?
- Isso mesmo. Conhece o Sr. Peters, Stephen? - Inatento, cortando uma careta numa casca de laranja para Davie, Stephen levantou os olhos, certo de que seu pai se
dirigira a ele.
- Sim, é membro da Academia Real.
Houve uma pausa. Contido, com a expressão subitamente fixa, Stephen esperava que Bertram caísse na armadilha.
- Achamos que ele podia ter vontade de olhar os seus quadros.
Houve outro silêncio, que Caroline se apressou em romper, com um ar de inteligência.
- Não é ótimo, Stephen? Agora você pode se valer do conselho dele.
- Acredito - disse a Sra. Desmonde - se a memória não me falha, que há uma paisagem de Peters no Salão Pump, em Cheltenham. Está pendurada sobre a Fonte de Chalybeate.
Uma vista das colinas de Malvern com uma ovelha. Cheia de vida.
- Ele está na primeira fila - concordou Bertram.
- Não há também um livro, papai - interpôs Caroline - algo como De Rafael a Reynolds, ou coisa parecida?
- Ele escreveu muitos livros sobre arte. O mais conhecido intitula-se A Arte pela Arte.
- Devo procurá-lo na biblioteca - murmurou Caroline.
- Você não se importa se mostrarmos a ele as suas pinturas? - O Reitor voltou-se para o filho com uma nova firmeza. - Desde que se apresentou a oportunidade, seria
sensato pedir-lhe a opinião.
Stephen empalidecera. Não respondeu por um momento.
- Mostre-lhe qualquer coisa que quiser. Sua opinião não tem nenhum valor.
- O quê? Munsey Peters é um académico famoso. Exibe regularmente há 15 anos.
- Que significa isso? Não posso imaginar nada mais mortal, mais vulgar e idiota do que as suas pinturas.
Bruscamente Stephen rompeu o seu silêncio, sentindo que o julgariam invejoso e com medo. Então, ao voltar-se, ouviu um som de rodas e, pela janela, viu um cabriolé
de aluguel chegando à porta da frente. Um homem baixo, tornado mais baixo por um vasto sombrero preto e uma capa preta do Inverness, desceu rápido do cabriolé, olhou
em volta e tocou a sineta. Bertram levantou-se e, acompanhado pela mulher e Caroline, foi a saguão. Stephen permaneceu sentado à mesa, vendo muito bem que tudo aquilo
fora arranjado - ele tinha vindo especialmente de Londres. A julgar por suas roupas, Peters não estava absolutamente visitando o campo - tinha vindo expressamente
de Londres, mas fora comissionado, sem dúvida por tal ou qual preço - vinha especialmente de Londres como um cirurgião chamado à cabeceira de uma pessoa gravemente
enferma, cujo diagnóstico era uma questão de vida ou morte.
Um toque tranquilizador no ombro acordou-o. Era Davie.
- Não é melhor irmos agora? Não se aborreça, Stephen, aposto que você vai sair por cima.
Na sala de estar, construída originalmente como um parlatório retangular e posteriormente afeada por janelas de sacadas vitorianas abertas ao lado oeste, Munsey
Peters estava sentado no sofá, gorducho, de cara lisa, solicitamente oficioso, já no centro de uma plateia inteligente.
Quando Stephen entrou, girou e estendeu-lhe uma mão amável.
- Então este é o seu jovem cavalheiro? Prazer em conhecê-lo, senhor. Stephen apertou-lhe a mão, dizendo a si mesmo, apesar do conflito de emoções no seu peito, que
não devia ter ódio àquele visitante indesejável, que sem dúvida era uma pessoa honesta e estimável, agindo de boa fé. Contudo, conhecendo o trabalho de Peters, que
sempre recebia destaque na imprensa e
muitas vezes era reproduzido nos melhores semanários, aquelas suas paisagens lanudas e interiores betuminosos, tresandando a sentimentalismo e cheios daquele claro-escuro
que Glyn tinha profanamente descrito como siena queimada e merde, Stephen não podia reprimir uma aversão instintiva, aumentada e não diminuída por aquele homenzinho
de aparência presumida e maneiras seguras, que, embora um tanto menos que assertivo, estava odiosamente satisfeito consigo mesmo. Recusara o almoço, tendo "satisfeito
o homem interior"
- suas próprias palavras - no vagão-restaurante que sempre acompanhava o expresso do meio-dia, mas, diante da insistência, consentiu em tomar café. E, balançando
a xícara nos joelhos, de pernas cruzadas, sapatos com polainas, dirigiu a Stephen uma série de perguntas agradáveis, exatamente como faria um notável académico para
deixar um neófito nervoso.
- Então esteve em Parri, hein?
- Sim. Pouco menos de um ano.
- Trabalhando duramente, espero, na cidade alegre. - Isto, com um olhar de humor velado para os outros; então, como Stephen não respondesse:
- Com quem estudou?
- No começo... com Dupret.
- Ah! E que pensa ele do amigo?
- - Eu realmente não sei. Deixei-o depois de poucas semanas.
- Hum! Hum! Isso foi um engano. - E, num tom intrigado: - Quer dizer que ficou a maior parte do tempo por sua própria conta? Não pode ter aproveitado muito dessa
maneira.
- Ao menos aprendi o quanto a força de vontade, a disciplina e a intensa aplicação são necessárias para fazer um bom artista.
- Ora! Isso é muito fino. Mas, e o aprendizado?
A frieza da voz de Stephen era provocante.
- Há certos elementos essenciais. Já os acentuei muitas vezes no meu livro. Ouso dizer que ele fez parte do seu estudo.
- Receio que não. Estive estudando no Louvre.
- Oh, copiando - exclamou Peters contrariado. - Isso não é bom. Um artista procura ser original acima de tudo.
- Contudo, todos os grandes artistas influenciaram uns aos outros - argumentou Stephen diretamente. - Rafael provém de Perugino, El Greco de Tintoretto, Manet de
Franz Hals. Todos os pós-impressionistas se ajudaram uns aos outros. A lista seria interminável. Porque, se me perdoa, vemos no seu próprio trabalho Leighton e Poynter.
A menção desses dois artistas, tão famosos na época vitoriana e agora esquecidos, trouxe ao rosto de Munsey Peters uma expressão confusa, como se mal pudesse saber
se a intenção era de louvor ou insulto.
A Sra. Desmonde, sempre diplomática, rompeu o silêncio.
- Deixe-me oferecer-lhe mais café.
- Não, obrigado - e devolveu-lhe a xícara. - Na verdade, tenho pressa, deixei o meu veículo à espera. Podemos entrar no assunto sério do dia?
- Com muito gosto. - Bertram, um apreensivo observador daquele choque de temperamentos, fez um sinal a Davie, que deixou a sala num pulo. Quase imediatamente voltou,
trazendo o primeiro quadro, uma vista do Sena em Passy, que colocou sobre uma cadeira de alto espaldar posta adrede em boa luz e diante do sofá.
Impondo silêncio com um dedo nos lábios, Munsey Peters ajustou o pincenê. Estudou a pintura intensa e longamente, inclinou a cabeça em vários ângulos; então, dramaticamente
fez um gesto para Davie, que a retirou, colocou-a junto à janela e trouxe a seguinte. Para Stephen, parado lá atrás com uma expressão insensível e um latejar doloroso
no coração, era uma experiência martirizante, uma crua exposição da sua delicada sensibilidade.
Olhou em torno para o círculo doméstico - o pai, sentado, muito teso, com as pontas dos dedos fortemente unidas, as pernas cruzadas, um pé balançando em nervosa
expectativa; Caroline, na banqueta junto ao sofá, com uma ruga de ansiedade na testa, olhando para Peters, ora para o chão; sua mãe, sonhadoramente confortável numa
poltrona, de todo indiferente; e Davie, no colarinho branco engomado e roupa cinza-escura do colégio, o cabelo penteado para trás, olhos brilhantes, sem compreender
bem a questão, e contudo cheio de confiança em que seu irmão seria justificado.
Acabou-se afinal, a última pintura fora mostrada.
- Então? - exclamou Bertram.
Munsey Peters não respondeu imediatamente, mas, erguendo-se, fez uma nova inspeção nos quadros contra o peitoril oval da janela da sacada, como para afastar qualquer
impressão de que o seu julgamento era apressado ou inconsiderado. Uma tela em particular, a mulher com as suas roupas brancas, parecia perturbá-lo de modo especial;
vez por outra, quase furtivamente, os seus olhos voltavam àqueles ousados contrastes e cores vivas. Por fim, deixou cair o pincenê, seguro por uma fita de seda lavada,
e tomou posição no tapete da lareira.
- Que deseja que eu lhe diga?
- Meu filho tem... - Bertram respirou fundo - alguma chance de se tornar um pintor... posso dizer... de primeira categoria?
- Nenhuma.
Fez-se um silêncio mortal. Impulsivamente, Caroline lançou um olhar de simpatia para o irmão. O Reitor curvou a cabeça. Stephen, com a sombra de um sorriso, continuou
a olhar diretamente para Munsey Peters.
- Naturalmente - continuou ele - eu poderia ser polido. Mas entendi que o senhor queria a verdade. E nessas telas, que têm talvez um certo brio
rude, ignoram completamente as grandes tradições da pintura, tradições de propriedade e restrição, só posso encontrar... - encolheu os ombros - matéria para condolência
e pesar.
- Então - disse Bertram lentamente, como se estivesse determinado a se convencer - se forem, digamos, submetidas à Academia, acha que seriam recusadas?
- Meu caro senhor, como membro da comissão de exposição, não sei, não estou seguro. Acredite-me, dói-me extinguir as suas esperanças. Se o seu filho quiser continuar
isto como um passatempo... um hobby... isso é com ele. Mas profissionalmente... ah, meu caro senhor, a pintura é, para todos nós que vivemos dela, uma arte cruel.
Não há lugar para fracassos.
Bertram lançou um olhar cheio de compaixão para o filho, como esperando que ele protestasse, ao menos oferecesse alguma defesa do seu trabalho. Mas Stephen, com
a mesma sombra de um sorriso, e aquele ar de orgulhosa indiferença, mantinha-se calado.
- E agora, se me desculparem - disse Peters, curvando-se.
O Reitor pôs-se de pé.
- Estamos muito agradecidos ao senhor... mesmo que o seu veredicto tenha sido desfavorável.
Munsey Peters curvou-se novamente e, ao deixar a sala com modos graves e polidos, aceitou prestemente o envelope que Bertram, após murmurar umas palavras de escusas,
escorregou-lhe na mão - uma transação efetuada com tamanha destreza que ninguém pareceu notá-la, a não ser Stephen. Dali a pouco se ouviu o rangido do cabriolé.
O professor tinha partido.
Como se para poupar os outros, mais do que a si mesmo, do embaraço, Stephen foi para fora. Ali, andando de cá para lá, de cabeça descoberta, estava o Reitor. Tomou
imediatamente o braço do filho, com um aperto de simpatia, e, após atravessar as lajes, observou várias vezes:
- Tenho que ir à sacristia. Quer caminhar comigo?
Ao subirem juntos a alameda, Bertram continuou, sombriamente, sem um indício de autojustificação.
- Stephen, essa foi uma experiência dolorosa para você, e, em grau nSo menor, para todos nós. Mas era imperativo para mim saber a verdade. Espero que não me reprove.
- Claro que não. - A voz calma do filho causou a Bertram uma viva surpresa, seguida por um sentimento de oposição.
- Você aceitou a coisa muito bem, Stephen - como um verdadeiro Desmonde. Eu temia que pudesse ficar encolerizado comigo por lhe ter imposto esse teste sem aviso.
Mas se eu lhe tivesse dito de antemão, você poderia ter recusado...
- Sim, acho que recusaria.
- Você percebe que não foi questão de influência indevida, que a opinião de Munsey Peters foi inteiramente dele?
- Estou certo disso. Acho até que o nosso pequeno argumento no começo eriçou ligeiramente a sua plumagem. Mas não há sombra de dúvida - ele detestou a minha pintura
como veneno.
- Ah! - murmurou o Reitor condoído. - Pobre rapaz.
Chegaram à igreja; detendo-se na cancela, Bertram pousou a mão na efígie do cruzado, um gesto costumeiro de apoio, e encarou o filho.
- Pelo menos o caminho agora está claro... e não há nada contra o seu regresso para ser ordenado. Não quero pressioná-lo. Há a toga, os serviços militares. Contudo
- olhou em torno - o seu lugar é aqui, Stephen.
Uma pausa quase imperceptível.
- Acho que não compreende. Não vou abandonar a pintura.
- Mas que diabo quer dizer?
- Simplesmente que tomei uma resolução, irrevogável, que vou dedicar a minha vida inteiramente à arte.
- Mas você acaba de ter uma opinião... com mil diabos... de um perito.
- Essa nulidade idiota... roída por um rancor secreto! O fato de ele ter difamado o meu trabalho foi o maior cumprimento que podia me fazer.
- Você está louco? - Cólera e desalento levaram o sangue à testa de Bertram. - Ele é um dos melhores pintores da Inglaterra e pode vir a ser o próximo presidente
da Academia.
- O senhor não compreende, papai. - A despeito da tensão das suas feições, Stephen quase sorriu. - Peters não pinta coisa nenhuma. O seu trabalho é convencional,
sentimental, e sem um traço de originalidade. O sucesso dele é o de uma mediocridade intrometida. Ora, até as tapeações do velho Dupret, com a sua peinture léchée,
são mais toleráveis. O senhor não sentiu nojo dos seus chavões, sua afetação, suas mãos gordinhas? Ele marcha com o rebanho. O verdadeiro artista só pode cumprir
o seu destino sozinho.
Durante esse discurso, que lhe pareceu bombástico, o rosto de Bertram foi gradualmente endurecendo. Empedernia-se contra a dor que sentia no peito, e um imenso desejo
de tomar o filho nos braços.
- Para qualquer pessoa normal, a evidência é clara. Você deve aceitá-la.
- Não.
- Insisto.
- Tenho o direito de viver a minha própria vida.
- Não, se está disposto a arruiná-la.
Nenhum deles levantou a voz. O Reitor estava muito pálido, mas os seus olhos nunca se afastaram do rosto do filho. Por baixo de sua agitação havia uma firmeza que
Stephen nunca tinha visto.
- Por simples justiça, você não me deve alguma retribuição por tudo que tenho feito por você? Sem dúvida, você afeta desprezar uma coisa tão sórdida como o dinheiro.
Contudo, gastei na sua educação - a mais primorosa que qualquer filho podia desejar - um capital que eu mal podia despender. Estamos muito menos bem do que estávamos,
e é com dificuldade que mantenho Stillwater nos padrões a que estamos acostumados. Sempre esperei que esta medida não fosse necessária. No entanto, para seu próprio
bem, devo repô-lo no seu juízo. Sua pensão está suspensa. E você verá que é impossível continuar sem ela.
Um compasso de silêncio latejou na pequena igreja. Stephen baixou os olhos, deteve-os por um longo momento na efígie de pedra do seu ancestral que, à meia-luz, parecia
sorrir-lhe cinicamente. Olhando para a espada, os grandes guantes de malha, uma frase das leituras da sua infância lhe veio à memória: mão de ferro em luva de veludo.
E suspirou:
- Bem, papai, isso parece resolver a questão.
Bertram apanhou o seu diário na sacristia - a mão lhe tremia tanto que mal podia segurar o grosso volume, sendo obrigado a apertá-lo Contra o flanco. Deixaram a
igreja em silêncio.
Pelo resto da tarde, Stephen foi um modelo de complacência, animando os outros com a sua vivacidade e bom humor. Às seis horas, insistiu em ir com Davie à estação
e embarcou-o no trem, despachando-o com alegre afeição. Depois, voltando, com uma expressão diferente, foi à fila de veículos, onde um motorista estava com a sua
bagagem, secretamente introduzida na de Davie. No horário colado na frente do guichê, viu que um trem costeiro partia dentro de uma hora. Comprou uma passagem e
sentou-se à espera dele.
CONTINUA
A TARDE MUDARA EM NOITE, e todo ímpeto e atividade dos Downs jaziam quedos, banhados em luz pérola. A relva seca, prateada como geada, soltava um vapor esgarçado que se prendia nas sebes como teias de aranha. As poças de orvalho, pires de leite desnatado, não refletiam a imagem de uma lua amarelenta que mirava, redonda e baixa, como o olho de um grande gato, agachado na colina, pronto para saltar.
Nessa quietude brilhante, de uma igreja normanda de pedra tão pequena que parecia perdida numa dobra do descampado - apesar dos nítidos contornos das suas linhas longas e breves, da sua torre achaparrada, de suas chagosas paredes inclinadas - inverossímil como um sonho, emergiu uma sombra, comprida e escura, à qual se seguiram um baque de carvalho e o tinido de um pesado ferrolho, a figura de um homem, menos comprido talvez, mas igualmente sombrio. Muito apropriadamente, um clérigo, Bertram
Desmonde, Reitor de Stillwater.
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De cabeça nua, mas com uma capa sobre os ombros, enfiou pela confusão de lápides cobertas de liquens, passou os dois grandes teixos retorcidos, dos quais o mais
novo tinha sem dúvida fornecido arcos para os arqueiros de Sussex pelo menos durante cinco séculos, e depois atravessou a cancela para a azinhaga.
Aqui, apanhado pela brancura da noite, por um ímpeto da sua secreta alegria, fez uma pausa e, por um longo instante, aspirou a beleza da sua gleba, uns bons 100
acres, indo por um lado até os altos do bosque de faias de Ditchley, e pelo outro até a coutada de tojo arenoso que beirava a estrada para Stillwater. Na distância,
o Anel de Chanctonbury era visível contra o céu oriental, e mais abaixo, por entre árvores, o absurdo mas amigo torreão de Broughton Court. Para oeste, a planura
continuava, cortada por uma caleira
- ferida incruenta - por túmulos tidos como romanos, mas provavelmente restos de antigos fornos de ladrilhos. Vinham então as choças dos trabalhadores, seis, em
fila, como cogumelos, e frouxamente, acima da orla da estrada, o bruxuleio da aldeia. Abaixo dele, brilhante de luzes, a Reitoria.
Solidamente georgiana, com janelas paládicas, um espaçoso pórtico sustentado por colunas acanaladas e - delicioso pensamento! - uma balaustrada na cimalha, era uma
verdadeira casa de campo, construída pelo seu bisavô, Canon Hilary Desmonde, em 1780, em pedra branca dali mesmo - a pedreira, bem perto, estava agora felizmente
coberta pela vegetação. Traços de um Tudor primitivo ainda persistiam no celeiro e estábulos de tijolos, nos anexos da fazenda, no delicado muro de sílex e nos seixos
redondos que cercavam a ampla horta. Envolvida por relvados macios, orlados de canteiros de tulipas e prímulas, o jardim de roseiras, ainda não desperto, formando
um hexágono em torno do relógio de sol, cordões de rosas Ribston e Beauty of the Bath, com as suas soprepelizes de flores, como chantres, ao longo do prado do sul,
uma gigantesca azinheira sombreando a trilha ensaibrada, essa casa, esse pequeno abrigo de casca dourada, enraizado e imutável, seu lar, lar dos Desmondes por tantos
anos, especialmente esta noite aquecia de orgulho o coração do Reitor.
Quase certamente eles tinham vindo com o Conquistador. Um deles, o Sieur d'Esmonde, que estivera nas Cruzadas, jazia sob a sua efígie de mármore, com seu curvo nariz
quebrado, ai!, por algum turista vandálico, na pequena igreja de Downland. Se o nome tinha sido um tanto alterado pelo uso rústico - não se poderia aplicar a palavra
corrompido - ele não os identificava de modo mais completo com a boa terra de Sussex? Eles tinham prestado bons serviços à sua pátria nas três profissões abertas
para um cavalheiro: na Igreja particularmente, mas também na Justiça e no Exército. Seu irmão Hubert, após um longo e útil trabalho nas fronteiras do Afeganistão,
estava agora parcialmente aposentado em Simla Lodge, a cerca de 25 quilómetros, com o posto de general, e ainda em contato com o Ministério da Guerra, devotando
o seu lazer à cultura científica da pêra Jargonelle. Somente uma ocasião, até onde alcançava a memória, a família descera ao comércio: quando, no início do reinado
de Victoria, um Joseph Desmonde, tio-avô do Reitor, ocupara-se com a manufatura de objetos eclesiásticos. Mas como o negócio tinha certo sabor de discrição, trazendo-lhe
ainda uma considerável fortuna, o lapso, embora lamentável, era menos difícil de perdoar.
- Uma bela noite para o senhor, Reverendo.
Nas profundezas do seu devaneio, o Reitor deixara de notar a figura troncuda do velho Mould, seu jardineiro-chefe, que era também o seu sacristão, manquejando trilha
acima para fechar a igreja.
- Boa noite, Mould. Já a fechei, você pode voltar comigo. - Fez uma www.pausa, não revelando o impulso que, contra o seu hábito, o tinha levado à igreja; contudo,
estimulado pela alegria, acrescentou: - Stephen volta para casa esta noite, como sabe.
- E como é que eu ia esquecer isso, senhor? Uma notícia muito boa mesmo. Espero que ele tenha tempo de ir caçar coelhos comigo. E acrescentou mais gravemente: -
Nós logo o teremos no púlpito, quem sabe.
- Ele ainda tem algum caminho para andar, Mould. - Ao descerem a trilha juntos, Bertram sorria. - Embora eu me atreva a dizer que vocês gostariam mais de ouvir um
jovem recém-saído de Oxford do que um velho caturra como eu.
- Não, meu Pastor, não deve dizer uma coisa dessas. Não servi os Desmondes durante 50 anos para agora ignorar a sua qualidade. E pode pregar quem quiser pregar,
que não há ninguém melhor no país.
Bastava apenas essa tocante prova de lealdade quase feudal para selar a disposição do Reitor. O denso perfume das prímulas era, de certo modo, mais doce, os agudos
balidos noturnos dos cordeiros, atrás da cerca de varas, tão enternecedores que quase causavam um aperto no coração. Ah, esta Inglaterra, pensou ele: e aqui, no
seu próprio coração, preciosa como uma jóia, navegando ao luar como um navio de almas, esta pequena paróquia que seria de Stephen também, inviolada, intemporal e
imutável como a eternidade.
- Vamos precisar de alguém para a bagagem. Mande Albert ficar por perto.
- Farei isso, senhor... se ele estiver em casa. Estou tendo dificuldades com esse meu rapaz. Ele não gosta de trabalho. Mas eu dobro ele a pau... prometo.
- com o tempo, ele será um bom rapaz, Mould. Não seja duro com ele - disse Bertram, num tom neutro.
Despediu o velho diante da sua casa, baixa, de paredes curvas na frente, e momentos depois estava na larga entrada do saguão da Reitoria, entregando a capa à sua
filha Caroline, que, inevitavelmente, ali estava para recebê-lo.
- Ainda não chegaram?
Esfregou as mãos: o saguão tinha o defeito do seu teto alto e soalho de mosaico - dava uma sensação de frio da noite, mal atenuado pelo rumor dos tubos de calefação.
- Não, papai. Mas não devem demorar. Claire foi à estação no seu automóvel novo.
- Devemos comprar uma dessas engenhocas. - O reflexo de um capricho aliviou momentaneamente a austeridade das feições delgadas de Bertram e das faces um tanto encovadas.
- Será útil para visitar a paróquia.
- O senhor não está falando sério, papai. - A sua mentalidade prática, despida de humor, tomava-o literalmente. - Sabe o quanto detesta cheiros e poeira. E eu não
o sirvo bastante bem com o tílburi?
Sem dúvida, a iminência do regresso de Stephen a deixava nervosa. Assim, falara com mais vigor do que pretendia, com o seu rosto liso e sério brilhando de sentimento.
E em verdade, antes que ela o pudesse lamentar, a expressão ausente do pai, que, com o ouvido atento, esperava o ruído das rodas na alameda, puniu-a severamente.
Ela baixou os olhos, e seu corpo pesado, sustentado por duas robustas panturrilhas, diminuiu um pouco. Quando é que ele ia apreciar a profundeza ilimitada da sua
devoção, compreender que o seu único desejo era servi-lo? desde o exato momento em que começava o seu dia, depois de vestir-se às pressas, sem o benefício de um
espelho, ombreava com a carga da sua casa, conferenciava com a cozinheira sobre como ele seria alimentado, arranjava as flores, inspecionava o jardim e a granja,
tratava da sua correspondência, atendia visitantes importunos, via paroquianos doentes, desencorajava arqueólogos, juntamente com as carruagens que vinham aos domingos
e feriados cheias de gente, pedindo em coro para ver a "tumba", e ainda achava tempo para cuidar do seu linho e tricotar as suas meias de lã. E, para piorar as coisas,
estava resfriada e a toda hora tinha que assoar o nariz num lenço ensopado.
- Sua mãe vem? - Fez a pergunta com cautela.
- Acho que não. Esta tarde molhei a sua testa com água-de-colônia. Mas ela ainda se sente indisposta.
- Então seremos quatro para o jantar.
- Três. Claire telefonou para dizer que sente muito, muito, mas não poderá ficar.
- Que pena. Mas... haverá outros dias.
Seu tom de voz exprimia tristeza; contudo, ela percebeu que, a despeito da sua alta consideração por Claire, filha de Lady Broughton, da vizinha Court, e da sua
cálida aprovação do entendimento tácito existente entre ela e o seu filho mais velho, no fundo estava feliz nesta noite de reunião por ter Stephen inteiramente para
si.
Com esforço, ela conseguiu manter o tom sereno.
- Ainda não terminei de datilografar todas as suas notas para a convocação de amanhã. Quando partirá para Charminster?
- Oh, depois do almoço, suponho. O Deão raramente é pontual.
- Duas horas então. Eu o levo. - Subitamente, com ciúmes brilhando nos olhos, ajuntou: - O senhor parece cansado, papai. E terá um dia cheio amanhã. Não deixe Stephen
retê-lo até muito tarde.
- Não se inquiete, Caroline. E, a propósito, espero que nos apresente um bom jantar.
- Temos sopa hindu com caril e salmão que o tio Hubert nos mandou de Test, com pepino e molho verde, é claro, e depois um lombo de cordeiro com ervilhas da nossa
horta e batatas novas. Para sobremesa, Beasley fez aquela charlotte de maçã que Stephen tanto adora.
- Ah, sim, minha querida. Lembro que ele sempre a pedia ao voltar de Marlborough para casa. Mas, espere, não é o ruído de um motor?
De fato, ouvia-se um som fraco mas rítmico; avançando para a porta, ele a abriu, deixando ver um pequeno cupê de Dion, ativo e trepidante, do
qual, cessada a agitação por meio de alguma engenhosidade, emergiram duas figuras.
- Stephen!
- Como está, papai... e você, Caroline? Davie não está?
- Ainda não... ele terá licença na próxima segunda-feira.
O arco de luz do pórtico mostrou uma figura franzina de estatura abaixo de mediana, vestida de preto e forcejando com uma valise de couro - o rapaz de Mould não
aparecera - um relance, também, de feições finamente cinzeladas, narinas sensíveis, e um rosto estreito, pensativo, e um tanto sério. Então veio, com discrição,
deixando que as saudações familiares cessassem, uma jovem alta de mãos enluvadas e um comprido casaco de tweed. Seu boné de dirigir, com um véu pendente, absurdamente
como um bolo de cevada, usado apenas em deferência às instâncias maternas, não podia destruir o seu ar de tranquila compostura, uma inescapável sensação de boa educação,
confirmada por sua voz ao se reunir ao pequeno grupo.
- Lamento termos deixado atrás alguma bagagem. Minha baratinha não tem espaço para malas.
- Não se preocupe, querida Claire. Amanhã mandaremos buscá-la. O Reitor tomou-lhe o braço num gesto quase paternal. - Mas você não pode ficar conosco agora?
- Gostaria muito. Mas mamãe espera gente da aldeia... uma comissão de agricultores... arrendatários... que não podem ser despachados.
- Ah, sim! As obrigações da senhora de um proprietário rural. Não está uma linda noite?
- Perfeita. Ao passarmos por Halborough, estava claro como dia... Ela voltou a cabeça, um movimento que, dissolvendo a sombra do atroz boné, revelou um perfil puro
e regular. - Não estava linda, Stephen?
Ele ficara em pé, silencioso, num constrangimento de que agora parecia livrar-se com um esforço.
- Foi um belo passeio. - Depois, como se não tivesse dito o bastante, forçando uma frivolidade que lhe era de todo alheia: - Mas em certo ponto acho que devíamos
ter descido e empurrado.
- Em Ambry Hill - riu-se Claire. - Não sou muito entendida nas mudanças. - Seu sorriso demorou-se um instante na obscuridade do pórtico. Mas não devo detê-los. Boa
noite. Venham ver-nos logo... amanhã, se possível. E tenha cuidado com o seu resfriado, Caroline.
Quando ela saiu, Bertram pôs o braço no ombro do filho e levou-o para dentro de casa.
- É bom tê-lo em casa novamente, Stephen. Você não sabe... Ora, bem... como deixou Oxford? E como se sente? Faminto, estou certo. Corra lá em cima para ver sua mãe.
Depois, desça para o jantar.
E enquanto Caroline, com os olhos e nariz vermelhos pelo ar da noite, levantava uma sacola de livros que fora deixada, esquecida, no pórtico, o pai deteve-se um
pouco vendo Stephen subir a escadaria, olhando para cima com uma expressão que, na sua ternura descuidada, era quase um transe.
CAPÍTULO II
APÓS O EXCELENTE JANTAR, bem servido por duas copeiras que, outrora de uma primitiva grosseria de aldeãs, Caroline tinha treinado tão admiravelmente, o Reitor, amolecido,
levou Stephen para o estúdio, onde as cortinas de droguete estavam descidas e ardia um belo fogo de carvão de algas. O aquecimento da Reitoria podia não ser moderno,
mas as lareiras eram amplas e o combustível abundante. E isto se harmonizava com a sala, a despeito dos ornatos moldados, com um tom íntimo e esportivo para amenizar
o ambiente vagamente paroquial, confirmado por uma escrivaninha de tampa corrediça que continha os sermões de Pusey, o Calendário Eclesiástico, e uma estola de púrpura
dobrada. Um par de espreguiçadeiras de couro marrom flanqueava a lareira, contra uma parede estava o armário envidraçado das armas, em outra uma caixa de moedas
saxãs, produto das pesquisas arqueológicas do Reitor, e, acima do consolo da lareira, dois chicotes de cabo de osso cruzavam-se por trás de uma cabeça empalhada
de raposa.
Mais cedo, nessa tarde, preparando-se, Bertram descera ao porão da casa para uma visita à adega, e agora, com um ar ligeiramente consciente, apanhou uma garrafa
empoeirada, que deitara na cestinha, com as pintas de cal para cima, sobre a escrivaninha; tendo imperitamente tirado a rolha em pedaços, serviu dois cálices de
porto. Ele era um homem temperante, que só de raro em raro bebia álcool, e não usava tabaco, mas esta ocasião exigia um registro dentro da verdadeira tradição da
família.
- Seu avô guardou este - observou ele, segurando o cálice de vinho contra a luz e assumindo um ar de crítico. - É um GrahanVs, 1876.
Stephen, que detestava vinho do Porto, fez da sua poltrona um murmúrio de aprovação e levou o cálice aos lábios. Desempenhava, como um ator, o papel que dele se
esperava.
- Parece muito saudável.
A palavra agradou ao Reitor.
- Sim, o seu avô sabia o que estava fazendo. Foi ele que mandou colocar aquelas notáveis manilhas lá embaixo. Elas drenavam o South Meadow, como sabe, em 1878, e
sobrara boa quantidade delas. O velho viu que cada uma podia conter muito bem uma garrafa, e mandou argamassá-las na adega, como perfeitos favos... Naturalmente,
ele não era um grande bebedor. Mas gostava do seu quartilho de clarete após um bom dia com os cães. Deixou-nos, como sabe, quando tinha 70 anos.
- Deve ter sido um grande caráter.
- Era um bom homem. Um verdadeiro cavalheiro inglês do campo.
O Reitor suspirou. - Não se pode desejar um epitáfio mais belo.
- Minha avó também - acudiu Stephen devidamente, porque, desde Oxford, meditando nervosamente enquanto o trem corria pelos prados, pomares e tortuosas regiões, resolvera
ser inteiramente filial. - Ela não ficava muito atrás dele... Mould me contou muitas histórias a seu respeito.
- Ah, sim, ele era muito devotado a ela... como todos os seus serviçais. Mas ela o trazia num pé só. - Um vagaroso sorriso de reminiscência assomou aos olhos de
Bertram. - Você sabe que nos seus últimos anos a velha senhora tornou-se excessivamente gorda. Na verdade, tinha dificuldade em andar, era obrigada a locomover-se
num carrinho, e Mould, e depois o filho do jardineiro, ambos serviam como meio de propulsão. Por mais seis penies semanais. Era uma grande honra. Mas um tanto extenuante,
especialmente quando sua avó desejava ir à aldeia e tinha que ser empurrada durante todo o caminho até Ambry Hill. Num dia quente de verão, quando alcançou o topo
da colina, o jovem Mould parou para enxugar o rosto na manga. Mas ao deixar escapar a cadeira de rodas, lá se foi ela sem ele, aumentando de velocidade, zunindo
colina abaixo e em torno da curva numa velocidade vertiginosa. O coitado do rapaz ficou petrificado. Via-se como o assassino da sua ama. Com um grito de horror,
precipitou-se encosta abaixo. Quando chegou...
Stephen, encolhendo-se, pôs-se a rir; conhecia a anedota de cor.
- ... lá estava a sua avó, calmamente na praça da aldeia, barganhando com o açougueiro as costelas de um cordeiro. - O sorriso de Bertram extinguiu-se. - Era uma
mulher indomável. Imensamente caridosa. E devotada ao meu pai. Morreu somente oito semanas depois dele.
Estaria o Reitor pensando no seu próprio casamento? Lá fora, piou uma coruja. Na copa, no fim do corredor, Caroline estava mexendo em jarras de cerâmica de picles
com uma brusquidão desnecessária. Bertram endireitou-se e bebericou o seu porto, consciente de que devia quebrar o silêncio antes que houvesse um constrangimento
entre ele e Stephen. Como era estranho terem um grande carinho, e, contudo, uma sensação desse embaraço perseguir as suas relações sempre que ficavam a sós. Seria
porque ele se preocupava demasiado? Nunca tinha sentido essa falta de naturalidade na companhia dos
seus dois outros filhos. Naturalmente, ele gostava de Caroline, aceitava aquela sua fortaleza, considerava-a uma "grande presença". Mas a sua domesticidade, conservando-a
uma perpétua solteirona, chocava inconscientemente o seu senso de orgulho de família. Quanto a David, seu filho mais moço, agora com quase 13 anos de idade, aqui,
ai! o seu amor mergulhava em tristeza, decepção e pena. Pensar que um filho seu, aliás, qualquer Desmonde, fosse um epiléptico que, mesmo sem sofrer ataques, tendia
a gaguejar!
O Reitor reprimiu um suspiro. Ceder a tal sentimento era perigoso. Contudo, no seu presente humor, não havia como evitá-lo.
- Que bom ter terminado seus estudos em Oxford. Você se saiu bem.
- Oh, não sei não. No fim, pareceu-me ter perdido o ânimo.
- Eu também me senti assim quando voltei de Trinity... embora gostasse de lá tanto quanto você.
Stephen ficou silencioso. Como poderia dizer a papai que detestava a universidade?... aquela secura, a superioridade, a sensação de estar fora da vida, a interminável
preocupação com esportes que não o interessavam, o estudo sem sangue de línguas mortas que o aborreciam inexprimivelmente, de pura contrariedade, acima de tudo aperfeiçoar-se
em francês e espanhol... sua aversão a uma carreira que lhe fora determinada.
Mas o Reitor dizia:
- Você ganhou umas férias. Claire o quer para jogar ténis. Seu tio Hubert convidou-o para Chillingham. O salmão dele não esteve bom esta noite? Seu primo Geoffrey
está aqui, numa breve licença.
Novamente Stephen não respondeu. E pela primeira vez Bertram começou a se questionar, se, por baixo da sua maneira passiva, o seu filho não estava combatendo sinais
de Cansaço. Sua palidez natural parecia mais intensa, e seus olhos tinham aquela negrura aumentada que, diminuindo o resto do seu rosto, - representara desde os
seus primeiros dias um sintoma de mal-estar físico ou emotivo. Ele não é forte, espero que não esteja adoecendo de alguma coisa, pensou Bertram, com súbita ansiedade,
e rápido, protetoramente, declarou:
- Você tem mesmo que descansar. Não precisa ir à Sede antes de julho. Descontando cinco meses para Londres, a sua ordenação seria no Natal, a quadra mais conveniente
do ano.
Stephen levantou-se. Por muito tempo havia antecipado este temido momento, tentado, a conselho do seu amigo Glyn, apressá-lo, e então recuava nervoso, escrevia uma
dezena de cartas, e sempre as rasgava. Agora aquilo estava diante dele, e ele se sentia mal, vazio por dentro.
- Papai... preciso falar com o senhor.
- Sim? - Animou-o com um aceno, as pontas dos dedos juntas.
Uma pausa. Seria dinheiro?, pensou serenamente o Reitor. Alguma dívida não paga na universidade? Então, ouviu as palavras entrecortadas:
- Eu não quero ser ordenado.
A expressão do Reitor não se alterou aparentemente, como se uma súbita e completa surpresa tivesse, como a morte repentina, paralisado as suas feições numa semelhança
de normalidade. Por fim, quase estupidamente, disse:
- Não quer?
- Acho que não sirvo para a Igreja... Não sou bom com pessoas Não sei organizar... Eu seria incapaz de pregar um sermão decente, ainda que para salvar a minha própria
vida.
- Essas coisas virão. - Em pé, Bertram estava quase franzindo o cenho.
- Os meus próprios sermões não são particularmente brilhantes. Mas bastam.
- Mas papai, não é apenas isso. Eu não tenho interesse por esse trabalho. Eu... eu não me sinto capaz de sucedê-lo aqui...
Confirmado em sua primeira suspeita pela voz interrompida, o Reitor recuperou-se e assumiu um tom brando.
- Você está cansado e abatido, meu filho. Nós todos ficamos cansados e desanimados ocasionalmente. Você se sentirá diferente depois de umas caminhadas pelos Downs.
- Não, papai. - Respirando irregularmente, Stephen fortificou a sua vontade. - Venho sentindo isto há muito tempo. Não posso amarrar-me neste lugarzinho... a um
futuro vazio e frustrado.
Que tinha dito ele, procurando desesperadamente as palavras? A expressão chocada nos olhos do seu pai afligiu-o. Um momento de insuportável silêncio. Então:
- Não percebi que você via Stillwater sob esse aspecto. Somos uma pequena paróquia, talvez. Mas nosso valor para o país pode ser julgado por outros padrões que não
os da mera dimensão.
- O senhor me interpretou mal. Eu gosto de Stillwater. ., é o meu lar. E sei o quanto o senhor é estimado em quilómetros e quilómetros aqui em volta. É uma coisa
diferente... certamente o senhor entende o que eu quero dizer... o que acho que devo fazer com a minha vida.
O Reitor recuou bruscamente, e então, com toda a compreensão, olhou sobressaltado para o filho.
- Stephen... não será aquela ideia doida outra vez?
- É, papai.
Novamente um compasso de silêncio vibrou entre eles. O Reitor pôs-se de pé, e começou, lentamente a princípio, depois com crescente perturbação, a andar de cá para
lá. Finalmente, com um esforço, acalmou-se e aproximou-se de Stephen.
- Meu querido filho - disse ele com grande seriedade. - Eu nunca tentei prendê-lo a mim pelo seu senso do dever. Mesmo quando você era muito moço, antes de ir para
a escola, preferi confiar nos seus sentimentos naturais
de afeição e respeito. No entanto, deve compreender o quanto contei inteiramente com você para me suceder aqui... Stillwater significa tanto para mim... para todos
nós. E as circunstâncias da minha vida... a invalidez de sua mãe... a infeliz deficiência de David... o fato de ser o meu filho mais velho e, perdoe-me - a sua voz
tremeu ligeiramente - meu filho bem-amado - levou-me a colocar as minhas esperanças em você. Contudo, neste momento, ponho tudo isso de lado. Por minha honra, é
em você que estou pensando, e não em mim, quando lhe digo, quando lhe suplico que esqueça esse sonho fantástico. Você não compreende realmente o que isso significa.
Você não deve... não pode realizá-lo.
Stephen baixou os olhos a fim de não ver o rosto contraído do pai.
- Mas eu com certeza tenho direito à minha própria vida. - Através do seu respeito ardia uma íntima confiança.
- Não a essa espécie de vida. Ela só lhe trará infelicidade. Jogar fora as suas brilhantes perspectivas, arruinar toda a sua carreira por um mero capricho... seria
um ultraje à face de Deus. E depois há Claire... como, em nome do Céu, ela caberia nesse plano? Não, não. Você é muito jovem para a sua idade, Stephen... Essa ideia
louca que se apoderou de você pode lhe parecer muito importante agora. Mas dentro de poucos anos, rirá de si mesmo pelo simples fato de ter pensado nela.
Afundado na sua cadeira, de faces vermelhas e olhos baixos, com o espírito tardo e embotado pelo vinho do Porto, Stephen não podia achar uma palavra para dizer.
Naquele momento, sem exagero, odiava o seu pai. contudo, ao mesmo tempo, mostrava-se vencido pela vergonhosa consciência da sua afeição paternal, pela gratidão e
justiça do seu ponto de vista, e, pior que tudo, por uma tépida onda de nostalgia que lhe subia à garganta, um dilúvio de recordações da infância... as corridas
de tílburi a Ambry, seu pai afrouxando as rédeas, Carrie no seu limpo avental branco, Davie usando os seus primeiros calções de flanela; os piqueniques à beira do
Avon, o sol quente na água fria, e um pato selvagem subindo do juncal amarelo à medida que a canoa avançava; as canções familiares entoadas diante da árvore de Natal,
uma poeira de neve nas vidraças... oh, como poderia arrancar essas ternas, fortes raízes?
Bertram inclinou-se para diante e, não de modo comovente, mas com um toque de desconfiança, pôs-lhe a mão no ombro.
- Acredite-me, trata-se da sua felicidade, Stephen. Você não pode... não poderia achar no seu coração alguma coisa contra mim.
Stephen não se atrevia a erguer os olhos, com medo de romper em lágrimas. Estava liquidado... pelo menos no presente. E ele tinha pensado lutar duramente, tinha
jurado a Glyn que ganharia a partida.
- Muito bem - conseguiu murmurar finalmente, provando toda a
amargura que a derrota traz a uma natureza dócil mas apaixonada. - Se é assim que o senhor pensa, com tanta veemência... tentarei a Sede... para ver o que acontece.
CAPÍTULO III
BERTRAM SUBIU AS ESCADAS VAGAROSAMENTE. Embora fosse grande a sua sensação de alívio, não diminuía o cansaço que lhe viera de repente, nem a demorada ansiedade do
seu coração. Diante do quarto da esposa, hesitava, com a cabeça inclinada numa atitude de escuta; depois, batendo ligeiramente no painel, empertigou-se e entrou.
Era um vasto compartimento, outrora a sala de estar de cima, a melhor da casa, como referira o velho Cónego Desmonde, sem dúvida por suas belas proporções e por
dar para o sul, o que, além de permitir a entrada do sol da manhã, oferecia um vasto panorama dos Downs. Na sua conversão em quarto e sala de estar da esposa, parte
da mobília original tinha sido mantida - as cadeiras de tapeçaria e os canapés Chippendale, um largo espelho em semicírculo com moldura de gesso em cima do consolo
de mármore branco da lareira, o tapete vermelho de Bruxelas. Protegida por um guarda-vento, Julia Desmonde estava deitada, lendo, embaixo de uma cobertura de cetim.
Era uma mulher formosa e bem conservada, de 45 anos, com grande ar tranquilo e muito indolente, feições cheias e lisas, e um denso cabelo castanho espalhado no travesseiro
como uma nuvem.
Marcando com uma unha branca o lugar do livro que tinha o desenho de uma figura do zodíaco, Julia dirigiu para o marido, por baixo das finas sobrancelhas, um olhar
inquiridor. Seus olhos eram de um notável azul de amor-perfeito, quase infantis, com pálpebras carnudas quase caídas.
- Então temos Stephen em casa novamente - disse ela.
- Sim, achei que meu querido filho estava com boa aparência. Podia-se contar com ela para exprimir, na sua voz aristocrática e absorta consigo mesma, uma opinião
contrária à dele.
- E a dor de cabeça?
- Melhor, muito obrigada. Sentei-me demais ao sol esta tarde. O sol desta primavera precoce é muito traiçoeiro. Mas eu acabo de fazer um tratamento.
Ele percebeu, pelo aparelho que estava na mesa ao lado, que ela acabara de aplicar uma das suas vibrações. No guarda-fogo, uma caldeirinha de metal assobiava com
um alegre penacho de vapor, indicando que em 20 minutos o extrato de farelo seria levantado e misturado, os tabletes de fermento esmagados e engolidos, o iogurte
batido, ou desta vez seriam algas secas? Então a bolsa de água quente seria reenchida, o fogo disposto para a noite, as luzes diminuídas, as almofadinhas para as
pálpebras umedecidas e colocadas para dormir. E outra vez, embora lutasse contra ela com determinação cristã, a pergunta lhe veio: Por que cargas-d'água tinha casado
com ela?
Ela fora, sem dúvida - aliás ainda o era, evidentemente na sua maneira estatuesca, uma espécie de beleza, e como filha única de Sir Henry Marsden de Haselton Park,
tinha sido considerada pela sociedade do campo daquela ocasião "o partido da estação". Quem, olhando-a, teria adivinhado, por exemplo, que aquela jovem com a graça
de um cisne, anfitriã da Haselton Fête, considerada a beldade do baile de caça, cercada por jovens oficiais dos quartéis de Charminster, sorridente mas composta,
centro de atração, mais tarde revelaria a acentuada peculiaridade de ser tão inteiramente inútil para ele como esposa?
A não ser por uns poucos garden-parties nos seus primeiros anos de casados, quando arrastava um guarda-sol com babados, movendo-se graciosamente sobre a relva, com
um chapeirão, ela se recusara com pacífica resolução a tomar interesse pelas obras da paróquia. "Deus", dizia ela amavelmente, "não há nenhum sentido em levar sopa
para rústicos indigentes ou estragar os nervos costurando roupa de criança para encorajamento da população rural." Afortunadamente, a mulher do bispo gostava dela,
mas ela não recebia as senhoras da clerezia menor.
Preferia passar os dias sentada, exageradamente vestida, à sua janela, ou no roseiral, empenhada num interminável bordado em seda colorida, do qual levantava a cabeça
repetidamente para olhar por longos períodos o espaço, ou tomar notas ocasionais, quando lhe ocorriam, do que haveria de comunicar ao seu médico, que - tendo há
muito esgotado o doutor do condado - visitava duas vezes por mês em Londres. Seus filhos, que ela suportava com uma facilidade distraída, não tinham sido para ela
mais do que episódios momentâneos. Desde que não a incomodassem, ela os considerava com remota indulgência. Contudo, ao aumentar, mais e mais, o seu alheamento,
ela se retirava para si mesma, criando uma existência que se desenvolvia em torno das suas funções físicas, um pequeno mundo de feliz hipocondria, no qual - poderia
ele, ó Deus, tê-lo previsto quando naquela tarde cheirando a rosas, 20 anos atrás, ele quase morrera de dor com o seu beijo aromático? - ela não tinha maior prazer,
nenhum interesse mais vivo, do que discutir amavelmente com ele a cor dos seus tamboretes.
Talvez o cavalo de campanha empalhado no saguão paterno - lembrança de Balaclava - devesse tê-lo advertido, mas, ai! podia ter predito que o pai dela, até a idade
de 60 anos, não era mais que um excêntrico amável, dedicado em suas horas de fazer as pesquisas mecânicas - a eletrificação da sua propriedade por uma cadeia de
moinhos de vento, a inócua construção de um canhão de tiro rápido que, recusado pelo Ministério da Guerra, tinha não mais do que levado ao céu, na sua parte de carne,
o mordomo da família, que, em nome de Deus, devia ter previsto que aquele irreprimível doido teria, na sua caduquice, lançado subitamente um grandioso projeto para
a construção de uma máquina voadora, como a que foi subsequentemente voada por Blériot através do Canal da Mancha, embora aquilo em si mesmo fosse extremamente doentio,
e não passasse de uma feia geringonça com fantásticos parafusos, supostamente capaz de subir do chão na vertical: um helicóptero. Assim, em desafio às leis da gravidade,
Sir Henry profanara o seu belo parque com alpendres e hangar, operários importados, engenheiros, um mecânico belga, gastara dinheiro como água, em resumo, arruinara-se,
e, permanecendo no chão, morrendo como alvo de mofa.
Haselton, que devia ter sido de Julia, era agora uma escola para meninas, o grande hangar um ginásio, e os alpendres - horrores - recém pintados depósitos para tacos
de hóquei enlameados e sapatos desemparceirados de lona.
Seria possível, pensava Bertram, com novo abatimento, que algo dessa instabilidade agora se manifestasse em Stephen? Não, não... impossível. O filho, tão de perto
parecido com ele em corpo e alma, era todo dele, de fato o seu outro eu. No entanto, devido à sua ansiedade, a nuvem que pairava sobre o seu espírito, era tentado,
a despeito do seu melhor juízo, a abrir a mente e procurar alguma espécie de consolo da parte de sua esposa.
- Minha querida - disse ele. - Enquanto Stephen estiver conosco, acho que devemos fazer um esforço para afastá-lo de si mesmo.
Julia mirou-o surpreendida. Ela possuía em grau notável a faculdade de torcer o sentido do que lhe diziam.
- Meu caro Bertram, você sabe muito bem que não posso fazer qualquer esforço. E por que Stephen deve ser afastado de si mesmo?
- Eu... eu estou preocupado com ele. Ele sempre foi um rapaz incomum. Está atravessando uma fase difícil.
- Difícil, Bertram? Ele já não passou pela puberdade?
- Naturalmente... mas não sei o que se passa com esses rapazes. Na primavera, metem ideias estranhas na cabeça.
- Você quer dizer que Stephen está em estado de amor?
- Não... bem, sabemos que ele gosta de Claire.
- Então o que quer dizer? Ele não pode estar doente. Você mesmo disSe um momento atrás que ele está muito bem.
- Foi você quem disse isso. - A despeito de si mesmo, Bertram falava com crescente impaciência. - Acho que ele está longe de se sentir bem. Mas vejo que você não
deseja participar da minha ansiedade.
- Desejo que me fale, meu querido, não faço nenhuma objeção a ouvi-lo. Mas não é suficiente você estar aborrecido sem me aborrecer? Acho que
fiz a minha parte em trazer os seus filhos ao mundo. Sempre houve, do primeiro ao último, pouco prazer nessa tarefa. Depois, você fez deles sua responsabilidade.
Eu jamais interferi. Por que devo fazê-lo agora?
- É verdade - disse ele, tentando reprimir a sua amargura. - Faria pouca diferença para você se Stephen arruinasse a vida dele. Julia, há alguma coisa nele, algo
debaixo da superfície, que eu não compreendo. O que é que ele realmente pensa? Quem são os seus amigos? Não se lembra de que quando Geoffrey o visitou no ano passado,
em Trinity, encontrou lá a pessoa mais inesperada no seu alojamento... um excêntrico de primeira, foi como Geoffrey o chamou, um artista desmazelado... um galês
Interrompeu-se, olhando quase súplice para ela, até que ela foi obrigada a responder. Sua voz era suave.
- Que tem você contra os galeses, Bertram? Eles possuem belas vozes. Esse galês canta?
- Não - replicou Bertram, corando. - Ele vive insistindo com Stephen para que vá a Paris.
- Muitos jovens já fizeram isso antes, Bertram.
- Até concordo. Mas, desta vez, não pela razão óbvia.
- Então por que razão, se não é para ter uma mulher francesa?
- Para pintar!
Tinha-o dito, livrara-se daquilo afinal; e tensamente, embora com uma certa sensação de alívio, esperou, em silêncio, que ela falasse.
- Devo confessar, Bertram, que não vejo mal algum nisso tudo. Lembro-me de que, quando estive em Interlaken com papá, fiz algumas deliciosas pequenas aquarelas do
lago. Azul era o tom predominante. Stephen sempre gostou de desenhar. Aliás, foi você quem lhe deu a primeira caixa de lápis de cor.
Ele mordeu forte os lábios.
- Isso não é ocupação de criança, Julia. Sabe que há mais de um ano, sem nos dizer uma palavra, ele tem viajado de Oxford para assistir às aulas noturnas de arte
em Slade?
- Slade é uma instituição respeitável. Stephen terá bastante tempo para fazer seus esboços entre os sermões. E, sem dúvida, desenhar é Um calmante para os nervos.
Ele refreou o seu impulso de gritar. Por um momento, manteve os olhos baixos, no tom de quem foi Vencido, mas, respirando um pouco depressa demais, disse:
- Espero que tenha razão, minha cara. Suponho que me preocupo desnecessariamente. Sem dúvida ele se restabelecerá logo que entre na rotina do seu trabalho em Londres.
- Sem dúvida. E, Bertram, resolvi que, em vez de Harrogate, irei a Cheltenham no mês que vem. Lá há águas minerais, e dizem que são excelentes para promover a secreção
da bile. Quando o Dr. Leonard examinou a minha urina pela última vez, encontrou uma acentuada insuficiência de sais biliares.
Ele deu boa-noite, em tom baixo, e saiu rapidamente, antes que dissesse coisa pior.
Ao sair do quarto, podia ouvir no corredor o lento tique-taque da máquina de Caroline, que, sem se poupar, batia as notas para o seu discurso do dia seguinte.
CAPÍTULO IV
NUMA TARDE CINZENTA E ENEVOADA, seis semanas mais tarde, Stephen, voltando de uma visita de casa em casa, caminhava lentamente pela Clinker Street, no East Stepney.
A nuvem sulfurosa sobre as docas de Londres tornava o estreito logradouro mais triste e opressivo para ele. Nenhuma luz, nenhuma cor - somente a inércia dos carros
de descarga vazios, os paralelepípedos graxentos, um cavalo da zorra de um cervejeiro fumegando na chuva, com os arreios dentro de um saco gotejante. Um ônibus ruidoso
passou no rumo oeste, salpicando-o de lama quando ele voltava para a Sede.
Aquela construção de tijolo vermelho, erguida no alinhamento das casas de estuque derruídas que se inclinavam ao longo da rua como velhas decaídas, agora mais do
que nunca parecia-lhe uma pequena mas eficiente penitenciária. Nesse momento, abriu-se a porta da frente e o Guardião, o Reverendo Crispin Bliss, saiu, de guarda-chuva
em pé, nariz levantado para farejar o tempo, alto, magro, envolto até os sapatos em uma comprida capa impermeável preta. Um encontro, pensou Stephen, era inevitável;
e aproximou-se.
- Ali, Desmonde... já de volta?
O tom frouxamente cordial era, achou Stephen, o de um homem que procurava gostar dele e não podia, a despeito da melhor das intenções e dos reclamos do amor fraterno.
Inquestionavelmente, o Reverendo Crispin Bliss, membro da confraria de St. Cuthbert era um clérigo devotado que trabalhava
arduamente pelo bem da sua vinha infrutífera. Clérigo menor, com fortes tendências evangélicas, era um homem de sincera embora limitada piedade. Religião à parte,
porém, a sua maneira era muito pouco atraente: seco, académico, suscetivelmente superior. Igualmente infeliz era a sua maneira de caminhar com a cabeça atirada para
trás, o ar nobre com que procurava se proteger, e, sobretudo, a sua voz rachada, ligeiramente fanhosa, parecendo sempre pronta a pronunciar contradições culturais
em notas de agudo falsete. Quase no início, Stephen tivera a má sorte de ofendê-lo.
No corredor superior da Sede estava pendurado um cruento quadro do martírio de São Sebastião, que para Stephen sangrava de novo sempre que ele saía da sua sala.
Desde que a pintura parecia ignorada por todos menos ele, uma manhã, num momento de aversão, virou-a contra a parede. O ato passou aparentemente despercebido. Mas
na ceia dessa noite, com um sorriso magoado que passou por cima dos seus dois coadjutores, Loftus e Geer, e foi repousar em Stephen, o Guardião observou, nos seus
tons mais nasais:
- Não faço objeção ao humor, mesmo na sua forma mais disfarçada, a brincadeira de mau gosto. Mas interferir em qualquer objeto desta casa que por seu assunto ou
associação possa ser considerado como sagrado é, para o meu espírito, um ato indecoroso e irreligioso.
Stephen corou até a raiz dos cabelos e manteve os olhos no seu prato. Não tinha querido fazer mal algum, e quando a refeição terminou, o desejo de explicar-se levou-o
ao Guardião.
- Lamento ter virado o quadro. A única desculpa que posso oferecer é que ele bulia com os meus nervos.
- Com os seus nervos, Desmonde?
- Bem... sim. É de um gosto muito chocante, além de ser evidentemente uma falsificação.
- Não posso compreendê-lo, Desmonde. O quadro é um legítimo Carlo Dolci.
Stephen sorriu em tom de desculpa.
- Oh, dificilmente, senhor. Nem sequer isso. Além das pinceladas grosseiras, e do pigmento moderno, é pintado em tela branca de cânhamo - um tecido que só foi manufaturado
por volta de 1890, uns bons 200 anos após a morte de Dolci.
A expressão do Guardião petrificou-se. Respirava rapidamente pelas narinas, não fogo precisamente, mas a contrapartida cristã da cólera - justa indignação.
- Acontece que esse quadro é meu, Desmonde, e uma propriedade muito estimada. Comprei-o de um jovem na Itália, de fonte impecável. A despeito da sua opinião, continuarei
a apreciá-lo como o original de uma obra de arte.
Agora, todavia, havia menos hostilidade do que vigilante moderação no
olhar com que o Guardião, parado na chuva, ofereceu a Stephen o abrigo do seu guarda-chuva e perguntou:
- Fez a série de Skinner esta tarde?
- Praticamente toda, senhor.
Não queria confessar que, esperando a visita de Richard Glyn, tinha saltado os números ímpares.
- Como encontrou a velha Sra. Blimey?
- Não muito bem, receio.
- A bronquite da pobre criatura piorou? - Depois, como Stephen hesitava, parecendo inquieto, ajuntou: - Ela precisa do médico?
- Não... não exatamente. Aliás, encontrei-a muito embriagada.
Houve uma pausa perturbadora, então veio a pergunta um tanto mundana:
- Como é que ela conseguiu dinheiro?
- Acredito ser o responsável, senhor. Dei-lhe seis xelins ontem para que pagasse o aluguel do quarto. Ela parece que o gastou em gim.
O Guardião fez um som, estalando a língua.
- Bem... vivendo e aprendendo, Desmonde. Não o censuro. Mas você não deve pôr a tentação no caminho das pobres criaturas de Deus.
- Acho que não. Por outro lado, quem pode censurá-la por tentar escapar à miséria umas poucas horas? Ela sofre do peito, não arranja trabalho de costura de qualquer
espécie, deve o aluguel ao senhorio e já empenhou quase tudo no seu quarto. Devo confessar que me senti quase contente ao vê-la rolar num estado de feliz esquecimento.
- Desmonde!
- E o que é mais... não pude deixar de pensar que se algum de nós estivesse naquela situação teria feito exatamente a mesma coisa.
- Ora, vamos. Isso é levar o caso um pouco longe demais. Nós nunca devemos, queira Deus, achar-nos em tais situações desagradáveis. - Abanou a cabeça em reprovação
e abriu o seu guarda-chuva. - Haverá reunião dos rapazes esta noite? Trocarei uma palavra com você a esse respeito depois da ceia.
com um aceno de despedida, um tanto distante, pôs-se a caminho, deixando Stephen a subir as escadas para o seu quarto, um estreito cubículo forrado de carvalho claro,
com um consolo gótico e uma estante de livros giratória - A cama ainda não tinha sido feita. Os residentes da Sede deviam arranjar-se sozinhos, era o que se esperava;
de manhã, por exemplo, Stephen iria encontrar-se regularmente com Geer, o coadjutor, um brilhante e musculoso cristão, levando o seu urinol cheio para o banheiro
com ar de sincera despreoCupação.
Contudo, para que a tradição monástica não parecesse muito severa, uma pequena moça de fora, chamada Jenny Dill, vinha do distrito,
ostensivamente para dar os retoques finais, na realidade fazer a maior parte do trabalho. Quando Stephen se atirou, ainda, de chapéu e casacão, numa cadeira Morris,
podia ouvir os seus passinhos rápidos no quarto de Loftus através da fina parede que servia de repartição. Loftus, um belo rapaz, exigente e moderado, muito elegante
de uma maneira sacerdotal, sempre lhe deixava muito que fazer, tal como sapatos para lustrar, roupas atiradas e por escovar. Contudo, ela parecia ter acabado essas
tarefas, porque, em poucos minutos, houve uma batidinha na porta do seu quarto e, trazendo espanador e balde, ela entrou lepidamente.
- Oh, senhor, perdoe-me... Não sabia que estava aqui.
- Não tem importância, entre.
Observou-a ausente quando ela começou habilmente a tirar os lençóis e a virar o colchão. Era uma mulherzinha agradável, com as faces muito coradas, como se tivessem
sido esfregadas com pó de tijolo, brilhantes olhos castanhos e uma franja de cabelo preto. Parecia, pensou ele, uma moça típica das camadas populares de Londres...
inteiramente competente e que ninguém poderia enganar. No entanto, havia nela algo mais do que ordinário: um ar de simplicidade bem-disposta, uma inocência, uma
afabilidade afetuosa, e, acima de tudo, um vigor, como se ela não pudesse conter a energia e deleite que pulsavam no seu corpo jovem e sadio. E ao mover-se de um
lado para outro com precisão, a cintura fina, o busto pequeno mas firme, inconsciente de que ele a observava, ou pelo menos de nenhuma maneira perturbada com isso,
instintivamente a sua mão pegou o lápis e um bloco de cima da escrivaninha.
Dali a pouco, quando ela foi à lareira, curvou-se e começou a tirar as cinzas. Nesse momento, o seu interesse aumentou, e quando ela fez menção
de levantar-se, ele a deteve bruscamente.
- Por favor, não se mexa, Jenny.
- Mas, senhor.
- Não, não. Volte a cabeça e não se mexa.
Enquanto ela, obediente, voltava a cabeça, mantendo a sua posição curvada, os dedos de Stephen moviam-se nervosos sobre o papel.
- Pensa que sou maluco, não é, Jenny? Todos os outros do distrito também pensam.
- Oh, não, senhor - protestou ela vigorosamente. - A gente acha é que o senhor é um bocado esquisito, desenhando no clube dos rapazes e coisas assim, diferente de
um coadjutor regular, que ensina eles a lutar boxe. Ora, quando o Sr. Geer trouxer os grandões e eles se pegarem, vai ver que quase se matam um ao outro. E mal vai
poder reconhecer eles, com os olhos pretos e as ventas sangrando. Não, não é o que parece muito natural, acho, Mas a gente pensa que o senhor é mesmo um cavalheiro
muito delicado.
- Isso é animador... e apesar da ausência de sangue. Diga-me uma coisa,
Jenny, se você fosse uma velha doente, de cama, preferiria uma Bíblia ou uma garrafa de gim?
- Eu tenho uma Bíblia, senhor... aliás, duas. O Sr. Loftus e o Sr. Geer me deram uma cada um. A do Sr. Loftus tem umas lindas fitas coloridas. Sou capaz de dizer
que se eu estivesse mal mesmo, o gim até que vinha bem.
- Não fuja, Jenny. Você é honesta como o dia. Diga-me: o que é que você pensa disto aqui?
Lentamente, ela relaxou, aproximou-se e examinou dubiamente o desenho que ele lhe entregara.
- Não sei nada dessas coisas, senhor... mas acho mesmo bonito.
- Ora, sua garota tola, não está vendo que é você?
- Bem, já que o senhor diz - respondeu ela modestamente - parece comigo de costas. Eu só queria não estar com a minha roupa velha e com um rasgão bem ali, tão encabulante,
na abertura da saia.
Stephen riu-se e atirou o bloco para a escrivaninha.
- É da saia velha que eu gosto. Gostaria que você posasse para mim. Eu lhe pagaria cinco xelins por hora.
Ela olhou rapidamente para ele, depois desviou os olhos.
- Isso não seria muito correto, seria, senhor?
- Ora, tolice - disse ele descuidado. - Onde é que está o mal? Mas acho que você não está interessada...
- Bem, senhor... - Ela falava acanhadamente, e uma cor mais viva lhe veio às faces. - Na verdade, se tudo estivesse em ordem, eu bem que poderia fazer mais uns cobres.
- Como?
- É, senhor O senhor sabe... eu espero me casar logo.
- Parabéns. Quem é o felizardo?
- O nome dele é Alfred, senhor. Alfred Baines. Ele é camaroteiro num barco da Orient Lane. Vai estar na terra no outro mês, sem ser esse que vem.
- Excelente para você, Jenny. Não admira que queira ganhar mais um dinheirinho. Quando larga?
- Quando termino de arrumar o seu quarto, senhor. Aí pelas cinco.
- Bem, então... suponha que fique mais uma hora, das cinco às seis, duas vezes por semana. Posso pagar-lhe cinco xelins de cada vez.
- Isso é mais do que generoso, senhor.
- É muito pouco realmente. Mas se você não achar o trabalho muito cansativo, posso lhe dar um bilhete para um amigo meu que ensina nas turmas noturnas no Slade.
Ele terá prazer em empregá-la por uma breve temporada...
Ele não vai esperar que eu, senhor... - Jenny tornou-se rubra.
- Por Deus do céu, não - disse Stephen bondosamente. - Você vestirá uma espécie de costume. Provavelmente ele vai querer somente a sua cabeça e ombros.
- Então ficarei muito agradecida, senhor. . . fico mesmo... especialmente ao senhor.
- Então fechamos negócio? - pergunta ele, sorrindo, aquele raro sorriso que iluminava a sua face e o tornava tão atraente, e estendeu-lhe a mão.
Ela corou, e aproximou-se. Seus pequenos dedos, de unhas mal cortadas ou quebradas, estavam quentes e secos, com cicatrizes nas pontas e frieiras curadas. Contudo,
era uma mão extraordinariamente agradável de segurar, nela estava a pulsação do seu jovem corpo; ele mal pôde soltá-la. E quando o fez, ela se voltou para a porta.
Estava agora um tanto pálida, e sem olhar para ele disse:
- O senhor sempre me tratou tão gentilmente, Sr. Desmonde, é mesmo um prazer fazer as coisas para o senhor. Eu sempre dou ao seu quarto um extra. E lustro muito
bem os seus sapatos, porque... ora, porque são seus, senhor. - Interrompeu-se, e desapareceu.
Para quem era atormentado por humores de autodepreciação, aquelas palavras trouxeram um esquisito calor. Mas logo a momentânea alegria de Stephen sumiu, ele se tornou
novamente consciente de si mesmo, do seu ambiente, e da tristeza que o esperava adiante. Desejou que Glyn aparecesse logo.
Apanhando o Evidences, de Paley, que prometera ao seu pai ler, tentou mergulhar no livro. Mas era inútil. Não tinha interesse nele, detestava a vida que estava levando,
desde que chegara à Sede: a visitação, as aulas de Bíblia, o clube - embora à sua maneira tentasse animá-lo - a terna hipocrisia das palavras alimentando a fome
e o frio das pessoas, enquanto ele e os outros da sua raça permaneciam aquecidos e bem nutridos.
Podia compreender um homem que entrasse para a Igreja por sua natureza profundamente religiosa, por sentir que a sua missão predestinada era ajudar o próximo. Mas
assumir uma existência confortável sem uma forte vocação, por motivos que eram claramente materiais, parecia-lhe a pior espécie de fraude. E, além disso, ele não
tinha a sua própria vocação, um chamado que o mantinha cingido ao seu próprio coração? Que tolo fora em se deixar levar a semelhante passo, como um carneiro estúpido
entalado entre as portas de uma feira do campo. E agora que ali estava, parecia não haver como sair.
Justamente então soaram passos de sapatos pesados nas escadas de madeira, e poucos segundos depois um homem alguns anos mais velho que Stephen foi entrando no quarto
e atirou-se sem fôlego numa cadeira. Era de porte mais do que mediano e fortemente construído, com um cabelo vermelho cortado e uma curta barba vermelha eriçada,
de feições vigorosas, os olhos, sob sobrancelhas bem marcadas, vivazes, rebeldes, contudo muito divertido naquele momento. Vestia calças de pele de toupeira e uma
blusa de operário,
um lenço pintalgado de vermelho amarrado no pescoço; tinha o ar de um bucaneiro, fanfarrão, livre, cheio de um vigoroso prazer pela vida. Dali a pouco, quando cessou
a sua transpiração, puxou um relógio de metal, ligado a ele por um pedaço de cordão esfiapado de quadro.
- Bem na hora - observou com satisfação. - Não está mau para Whitehall.
Embora advertido da paixão espasmódica de Glyn pelos exercícios violentos, Stephen estava moderadamente surpreso.
- Você andou todo o caminho?
- Corri - disse Glyn, enxugando o suor. - Foi diabolicamente divertido. Botei toda a polícia a correr, pensando que eu tinha assaltado um banco. Mas que sede me
deu! Suponho que não haja um pingo de cerveja nesta casa de Deus, não é?
- Sinto, Richard. Não nos permitem tê-la em nosso quarto. Posso lhe dar chá... e biscoitos.
Glyn explodiu em gargalhadas.
- Vocês, jovens teólogos. Como podem combater Satanás com chá e biscoitos? Mas se não for incómodo, traga-os. E acrescentou, mais sério: Sinto não poder ficar muito
tempo, mas eu queria vê-lo.
Conversaram enquanto Stephen fervia uma chaleira de folha no bico de gás junto à lareira. Pronto o chá, Richard bebeu quatro xícaras da desprezada beberagem e, de
uma maneira ausente, liquidou um prato de macarrão. Depois, um tanto embaraçosamente, a conversa cessou.
- A sua mostra correu bem? - perguntou Stephen por fim.
- Muito bem - respondeu Glyn descuidadamente. As críticas foram tão perfeitamente depreciativas que atraíram público.
- Mas você vendeu alguma coisa.
- Um vermelhinho. E tudo porque sou galês. A Galeria Nacional de Cardiff comprou-o. Encorajando o talento nativo... filho de um mineiro e assim por diante.
Houve uma pausa.
- Contudo - resumiu Glyn - o dinheiro me safou das dívidas, e Anna e eu partimos para Paris amanhã.
Stephen empertigou-se imperceptivelmente, um reflexo de todos os seus nervos, não apenas ao som de uma palavra que o perseguia, mas porque naquela maneira demasiado
despreocupada ele pressentiu o verdadeiro motivo da visita de Glyn. Procurou dominar a voz.
- E quanto tempo pretende ficar por lá?
- No mínimo um ano. Vou viver barato e trabalhar como um mouro. Acredite se quiser, Paris é um lugar maravilhoso para trabalhar. - Fez uma pausa e atirou um rápido
olhar para o outro. - Você não vai mesmo conosco?
Stephen sentiu um nó na garganta. As suas mãos, nos braços da poltrona, mostraram os nós dos dedos.
- De que jeito? Você conhece a minha situação.
- Ao mesmo tempo, tive a impressão de que você queria pintar.
Stephen, de cabeça baixa, não respondeu. De súbito ergueu os olhos.
- Glyn... se eu jogasse tudo fora... teria mesmo sucesso como artista?
- Ora, ora, Desmonde - Glyn inclinou-se para diante, de cenho cerrado, - Que pergunta mais idiota. Sucesso? Que quer dizer com sucesso? Então você não sabe que neste
jogo não pode haver garantias, que você não tem mais que você no momento em que se resolve? E você não entra nisso por nenhuma outra razão a não ser a de que não
pode evitá-lo. Se for para valer, abandona tudo, passa fome, rouba, engana a sua avó, transgride cada um dos Dez Mandamentos, só para ter nas suas mãos um tubo de
tinta e uma espátula.
Glyn interrompeu-se, relaxou a postura e continuou, mais serenamente:
- Acredito que você tem talento, possibilidades extraordinárias, do contrário não ia aborrecer o meu bestunto a seu respeito. Eu sei como é duro para você... atolado
na tradição. Você teve todos os inícios errados. Devia ser como eu, nascido numa vila de operários, numa nojenta cidade carvoeira. Mas, assim, você mesmo é quem
tem que decidir. E se não se decidir, atrevo-me a dizer que dará um pastor aceitável. - Tirou de repente o seu relógio niquelado. - Bem, tenho que ir. Preciso reunir
umas coisas. E juntar isto com aquilo. Adeus, Desmonde. Escreva-me quando tiver tempo.
Stephen permaneceu imóvel. Glyn levantou-se. Ao dar o primeiro passo, viu sobre o consolo da lareira um cartão perfurado com as cores do Clube de Críquete Marylebone.
Era um bilhete para a partida de criquete entre Oxford e Cambridge, a ser disputada no mês seguinte. Acompanhando o olhar de Glyn, Stephen corou.
- Tenho que ir - disse ele secamente. - Toda a família irá.
CAPÍTULO V
A PARTIDA TINHA TERMINADO, as balizas haviam sido retiradas, e enquanto o sol lançava sombras compridas sobre a quadra relvada do Lord's, um grupo de sete pessoas
podia ser observado entre a elegante assistência - dificilmente se poderia referir essa afluência como uma multidão - andando
vagarosamente para os portões principais na St. John's Wood Road. Caroline e Claire iam na frente com Davie e seu primo Geoffrey, enquanto poucos passos atrás, Stephen
acompanhava o General Desmonde e sua esposa. Uma emergência na paróquia tinha impedido no último instante o Reitor de estar presente, e Julia, claro, era uma ausente
anual. Por isso, Stephen tinha vindo somente para estar com o irmão, e enquanto Davie tinha grande prazer em ver o jogo - o que era mais tocante, uma vez que, devido
à sua afecção, não lhe era permitido jogar críquete - teve em certa medida a sua recompensa, pois o dia tinha sido duro para ele, e ainda lhe ressoavam na cabeça
os incessantes gritos de Geoffrey de "Boa jogada, senhor", e, como sempre, a mulher do General raramente pensava nela como tia Adelaide - tinha exercido sobre ele
uma familiar combinação de condescendência e arrogância que despertava os seus mais perversos instintos. Mulher dominante, fria, de rosto fino, criada na tradição
do Exército e endurecida nos sóis da Índia, ainda era bonita, de uma maneira dura e atrevida, e possuía uma figura admirável, embora tendendo para a magreza, seu
olhar às vezes letal como um golpe de baioneta.
Agora, ao deixarem o campo e permanecerem juntos um tanto indecisos, enquanto carruagens e cabriolés saíam da calçada, ela falava com rapidez, na sua voz apressada
"do condado".
- Hoje foi um dia tão delicioso, que é uma pena deixá-lo morrer prematuramente. - Voltou-se para o marido. - Tem alguma sugestão, Hubert?
O General Desmonde examinou o grupo. Alto, feições retas, ereto como uma vareta de espingarda, até no chapéu de forma cinza e no fraque matutino, parecia um soldado,
um soldado notável. Um bigode curto acentuava a brevidade incisiva da sua fala.
- Pensei que poderíamos cear no Frascati's.
- Magnífico, papai - disse Geoffrey, endireitando a gravata e depois o colete bordado, talvez pela ducentésima vez, como se estivesse determinado a manter a supremacia
de alfaiataria que fazia dele, tinha certeza, um alvo de admiração. Estilo, que ele chamava de boa forma, era na verdade a sua maior ocupação, fosse numa praça de
armas ou em Piccadilly, e que já o configurava, na idade de 24 anos, como modelo de um elegante, ainda que um tanto tolo, jovem de sucesso da sociedade.
- Davie tem que voltar às sete - interpôs Caroline. - E já passam das seis. Mas ninguém precisa se incomodar, vou levá-lo ao trem.
- Querida, você é tão gentil e tão atenciosa - disse Adelaide sorrindo. Ela não queria Caroline no Frascati's com o seu rosto vermelho de sol como uma peônia, e
naquele medonho vestido marrom que a fazia parecer uma copeira no seu dia de folga, aquelas pernas também, que desgraça, como as patas de um piano de cauda; Caroline,
para tia Adelaide, era sempre uma responsabilidade social, uma mortificação anual no baile de caça, quando, sentada na
entrada do salão, com seu jornal na mão, sem que ninguém a tirasse para dançar, esperava tristemente que algum velho cavalheiro se dirigisse a ela; e agora já tinha
sido bastante desagradável tê-la com eles durante o dia inteiro. - Você deve vir uma outra vez.
- Acho que também tenho que voltar - disse Stephen. Se Davie não fosse, ele não teria nenhum prazer em ir.
- Tem mesmo? - Hubert franziu o cenho, bem-humorado; ele até gostava, ou pelo menos tolerava, aquele jovem sobrinho e futuro pastor. - Tão cedo?
- Mas é claro que você pode ficar, Stephen. - Claire estava ao seu lado, contida, mas de certo modo rogando, com a sua tez macia e feições tão bem modeladas, sombreadas
por um chapéu de aba larga enfeitado de rosas. Hoje mais do que nunca, naquele ambiente, ela parecia o que era: a mais amável das moças inglesas, cujo bom senso,
maneiras e cordialidade franca e agradável faziam amigos onde quer que estivesse. - Fica, sim - ajuntou ela.
- Querida - interveio Adelaide antes que Stephen pudesse responder - não devemos interferir com as regras e regulamentos. Afinal de contas, a vida na Sede, imagino,
é mais ou menos monástica, não é, Stephen? e muito digna, estou certa. É mesmo uma lástima que você não possa vir. Geoffrey acompanhará Claire, e eu pretendo que
Hubert seja o meu galã. Adelaide tornou a sorrir, e com satisfação, pois tinha as suas razões para não desejar que Stephen fosse um do grupo.
- Não podemos deixá-la em alguma parte, Caroline? - perguntou Hubert.
- Oh, não, Davie e eu iremos de metro.
- E eu de ônibus - disse Stephen.
Trocaram-se despedidas, e então, vagamente consciente do desgosto nos olhos de Claire, Stephen afastou-se com Caroline e Davie. Como ainda tinham alguns minutos,
deteve-se no Fuller's da Park Road para oferecer um sorvete de morango ao seu jovem irmão e uma taça de chá a Caroline, que, sub-repticiamente descalçando os sapatos,
confessou que estivera mortificada todo o dia. Depois ele os deixou no metro da Baker Street e tomou o ônibus nº 23 para a zona leste.
Ao matracolejar para Stepney, a despeito do alívio de estar novamente entre gente impolida que não pedia mais do que a sua parte numa cadeira dura, uma lenta depressão
foi tomando conta de Stephen. Como se sentira física e espiritualmente diminuído, como se sentira diferente dos outros durante voltas em todas as metas de críquete,
os encontros e cumprimentos, o almoço no Guard's Club Marquee - "seu diabinho" - quase podia ouvir o pensamento por trás dos olhares indiferentes dirigidos para
ele pelos amigos do primo, ao discutir com Geoffrey a última comédia musical, a corrida de obstáculos
de Sussex, e a última fantasia para o Cambridgeshire. Com esta disposição, chegou à Sede. No saguão, ainda redolente dos odores do bife refogado com repolho do meio-dia,
passou por Luftus, que saía, e deu-lhe uma "boa-tarde". O coadjutor noviço mal respondeu e escorregou para a frente, discreto e elegante, o olho com um tal brilho
de malícia e divertimento, que Stephen recuou instintivamente.
- Que é que há, Loftus?
Já na porta, o outro como que se voltou, com lábios torcidos e apertados pelo humor eclesiástico.
- Então não sabe?
- Claro que não, o que é?
- Não muito, acho eu. A não ser que a pequena Dill parece estar em maus lençóis.
De que diabo estava ele falando? pensou Stephen. Mas deu de ombros, e vendo que não havia correspondência na estante, subiu as escadas. Sentada tesa numa cadeira
dura no centro do seu quarto, usando as suas roupas de sair à rua, um chapéu de palha chato com uma fita estreita, e luvas brancas de algodão, estava Jenny.
Levantou-se imediatamente quando ele entrou, mas com compostura, e enquanto ele a olhava com surpresa, uma vez que ela normalmente não vinha à Sede nos sábados,
ela começou:
- Peço-lhe desculpas pela liberdade, senhor. Mas eu queria estar certa de encontrá-lo. E parece que não havia outro jeito senão eu esperar.
- Muito bem - disse ele incerto. - Não quer sentar? Assim é melhor. Então, que é que há?
Enquanto ele ia até a lareira, ela tornava a sentar-se na beira da cadeira, com as luvas cuidadosamente dobradas.
- Bem, senhor. O fato é que vou embora, hoje, meio de repente. E como o senhor tem sido tão bom para mim, achei que tinha que vir lhe dar adeus.
- Oh, Jenny, sinto muito. Não imaginei que você nos deixasse tão cedo.
- Nem eu, senhor. Mas a verdade é que me despediram.
- Despediram? - repetiu ele desnorteado.
- Sim, despediram. - Acenou com a cabeça, francamente, no seu modo prático, sem acanhamento. - A culpa foi minha. Ontem fui tão boba que vim sem o meu espartilho.
Eu nem notei que já começava a aparecer. Mas não há jeito de enganar essa cozinheira. Correu para o Guardião como uma flecha.
- Mas de que diabo está falando?
- Não está vendo, senhor? Vou ter uma criança.
Ele ficou tão desconcertado que não conseguia achar o que dizer.
- Oh, Jenny, como é que você...?
- Acho que me deixei levar, senhor.
- Como?
- Nós todos temos sentimentos, senhor. Não se pode fugir disso. Oh, eu sou muito respeitável, garanto lhe. Alf é um sujeito correto. Camaroteiro de navio, como eu
lhe disse. Vamos casar quando ele voltar.
Houve uma breve pausa, enquanto Stephen a estudava com simpatia.
- Suponho que você o ama.
- Acho que deve ser isso, senhor. - Um ligeiro e sábio sorriso passou-lhe pelo rosto jovem e fresco. - Ele é muito mais velho que eu, isso é. E vou lhe dizer: se
não fosse pelas duas cervejas que tomei no Good Intent, eu não teria cedido. Mas aí eu também podia ter feito pior. Alf é decente, lá isso é. E habilidoso também.
Gosta de música e me ensinou a tocar gaitinha de boca.
Outra pausa.
- Bem... vamos sentir a sua falta, Jenny.
- E eu vou sentir falta do senhor. Acho que o senhor foi até bom demais comigo. Não é igual a outros por aqui.
- Que outros?
- Bem, principalmente o Guardião, senhor. Tenho que dizer que ele me perseguiu muito antes de me botar na rua.
- Mas você não está saindo por sua vontade?
- Oh, não, senhor. Isso não me convém nem um pouco... Vivo por minha conta, sabe, e não tenho pais vivos. Mas o Guardião não queria ter este lugar contaminado, disse
ele, com três jovens-coadjutores por aqui, e me despachou na hora.
Stephen mordeu o lábio. Olhando disfarçadamente para a moça, percebeu que, sob a sua expressão habitual de serenidade e bom humor, ela parecia pálida e desorientada.
Seria capaz de jurar que não havia nela um pingo de maldade.
- Jenny - disse ele impulsivamente - eu não quero interferir. Mas espero que você tenha feito arranjos para... ir a um hospital... essas coisas.
- Não vou para o hospital, senhor. Tenho o meu quarto. E vou falar com a Sra. Kelley. Ela é parteira, senhor, e muito recomendada.
- Você tem certeza de que estará bem?
- Oh, não se preocupe comigo, senhor. - Pela primeira vez havia uma nota de tristeza na sua voz. - Eu só espero não ter trazido encrenca para o senhor. Isso tudo
aconteceu porque o senhor me arranjou trabalho na aula de arte. E o Guardião parece que ficou furioso com isso.
Stephen ficou um tanto desconcertado com essa notícia. Contudo, o seu genuíno interesse era por Jenny. A admiração que sentia por sua coragem e bom senso, e a indignação
pelo tratamento que lhe tinham dado, tornavam-no mais descuidado consigo. Tinha começado a gostar dela nos últimos meses,
e não podia deixá-la sem alguma expressão da sua boa vontade. Voltou-se de lado, remexeu meio inconscientemente na sua carteira e deu um passo na direção dela.
- Escute, Jenny. Não quero ofendê-la. Mas você fez tanta coisa por mim aqui... você realmente vai precisar de alguma coisa para sustentar-se. Eu gostaria que aceitasse
isto.
Desajeitadamente, pôs-lhe na mão uma nota de cinco libras, que, para esconder o seu elevado valor, dobrara em várias partes.
- Não... não vou aceitar isso...
- Mas Jenny... você tem que...
As lágrimas não lhe vinham facilmente, mas ela passara por tantas agruras naquele dia, que agora elas corriam quentes pelas suas faces.
Nesse momento, enquanto ela se retirava e ele a acompanhava, estendendo-lhe o dinheiro, a porta abriu-se e o Guardião entrou. Houve um silêncio mortal por um momento,
enquanto ele ficava petrificado. Depois, com a voz controlada, disse:
- Pode ir agora, Dill.
Quando Jenny se voltou para sair, arrasada, com as lágrimas a escorrer lhe pelas faces, Stephen, a despeito da sua expressão culpada, vermelha, teve calma suficiente
para se aproveitar da sua confusão e enfiar-lhe a nota no bolso da jaqueta.
- Adeus, Jenny - murmurou ele. - E muita sorte.
Sua resposta, se resposta houve, foi inaudível.
Ainda na sua maneira distante, o Reverendo Crispin fechou a porta atrás dela; depois, com um rápido olhar para Stephen, comprimiu os lábios e fixou o olhar no teto.
- Desmonde - disse ele - presumi que a sua conduta tinha sido seriamente indiscreta. Mas jamais sonhei que pudesse ir tão longe. Como amigo de seu caro pai, isso
me aflige mais do que posso expressar.
Stephen engoliu o bolo que tinha na garganta. A cor lhe fugira do rosto, mas havia uma centelha nas suas pupilas escuras.
- Não posso compreendê-lo.
- Ora, vamos, Desmonde. Você não pode negar que está, e tem estado há algum tempo, em termos de imprópria intimidade com a jovem pessoa que acabo de despedir.
- Fui amistoso com Jenny. Ela fazia muitas pequenas coisas para mim. E procurei ajudá-la, em retribuição.
- Ah! - fez o Guardião num tom significativo. - E a sua ideia de ajudá-la é estar frequentemente com ela, sozinho, no seu quarto?
- Ela vinha arrumar o quarto. E ocasionalmente fiz alguns esboços dela. Isso é tudo.
- Ora essa! Então você acha que faz parte dos seus deveres, como candidato à ordenação, tomar um modelo, furtivamente, entre as criadas desta casa de Deus? Foi meu
dever examinar alguns desenhos que resultaram dessa colaboração ilícita, e devo confessar que me pareceram extremamente questionáveis.
O sangue subiu à testa de Stephen. Seus olhos fuzilaram furiosamente.
- Pelo que sei do seu gosto, senhor - respondeu ele, tremendo ligeiramente - não me surpreende que não os tenha compreendido.
- É mesmo? - fez Bliss com a calma ácida que achava ir-lhe tão bem. Na verdade, parece que meus padrões, particularmente os de moralidade, diferem dos seus.
- Certamente diferem. - Stephen jogou a prudência de lado. - Eu não teria atirado essa pobre moça no olho da rua por causa de um erro.
- Ouso dizer que não. Isso é precisamente o que eu temia.
Até este momento, as maneiras do Guardião tinham sido estudadamente controladas, mas agora as suas narinas se apertavam e algo não diferente de uma carranca se estabeleceu
na sua testa elevada.
- Embora Dill tenha dado o nome do seu parceiro, não estou inteiramente convencido. Minha firme convicção é de que, pela sua conduta para com essa infeliz moça,
pela maneira como a utilizou para os seus fins chamados artísticos, você é responsável, ou pelo menos indiretamente culpado, pelo estado de depravação em que ela
caiu.
Respirando rapidamente, Stephen encarou Bliss com uma expressão maldosa no rosto. Explodiu:
- Nunca ouvi tanta tolice na minha vida. Nem tamanha hipocrisia. Jenny não é depravada. Ela tem um namorado e vai se casar com ele. Sua ideia de caridade cristã
é vilipendiá-la, e a mim, sem uma justa causa?
- Cale-se, senhor. Não tolerarei que fale comigo dessa maneira. Na verdade, se eu fosse cumprir à risca o meu dever, deveria pedir-lhe que deixasse a Sede imediatamente.
- Fez uma pausa para se recuperar. - Mas em atenção à sua família, e também ao futuro que ainda pode estar à sua frente, estou disposto a ser mais tolerante. Devo
dar ao seu pai alguma ideia do que ocorreu. E você, sem dúvida, me dará a sua garantia por escrito de abandonar, de uma vez por todas, essa obsessão que chama de
"arte", e que é inteiramente incompatível com a sua vocação de clérigo. Haverá, além disso, mais algumas restrições que sou obrigado a lhe impor. Venha ao meu estúdio
depois das orações noturnas, e eu o aconselharei.
Terminando a entrevista, sem dar a Stephen uma oportunidade de responder, girou nos calcanhares e saiu do quarto.
- Ora, vá para o diabo que o carregue! - exclamou Stephen violentamente. Mas infelizmente a porta já estava fechada.
Durante uns momentos, Stephen permaneceu tenso, de punhos cerrados, olhos fitos nos painéis de carvalho envernizado. Depois, com um gesto de abandono, afundou numa
cadeira diante da escrivaninha, tirou papel da gaveta e apanhou uma caneta.
Caro papai,
Fiz aqui o melhor que pude e fui nisso um completo fracasso. Não quero magoá-lo, tomando uma decisão final contra a sua vontade, mas, nas circunstâncias, acho que
devo me afastar um pouco - um ano, no mínimo - até poder ver as coisas mais claramente e experimentar a minha capacidade nesse campo particular tão desagradável
para o senhor que sequer o nomearei. Compreendo o golpe que isto representa para o senhor, e a minha única desculpa é que simplesmente não posso evitá-lo.
Recomendações a todos em Stillwater e a Claire. Tornarei a escrever-lhe quando estiver em Paris.
Stephen
CAPÍTULO VI
PARIS ERA DESCONHECIDA PARA STEPHEN, e embora ao primeiro fôlego o estimulasse como vinho, ele entrou nela nervosamente - como se temesse aqueles olhares satíricos
que os verdadeiros parisienses devem conceder a um forasteiro. Assim, apegava-se ao nome de um hotel que ouvira o pai mencionar num tom de benigna aprovação clerical,
e dando-o ao cocheiro com a maior segurança que pôde encontrar, foi arrebatado da Gare du Nord com uma imprudente velocidade através das ruas naquela tarde de domingo,
surpreendentemente vazias, para o Clifton, na Rue de la Sourdière. Parecia um lugar tranquilo, não particularmente excitante talvez, abrindo-se através de uma entrada
estreita para um pátio quadrado envidraçado, em torno do qual os quartos estavam dispostos atrás de descascados balcões de ferro fundido. Na portaria sonolenta -
o tom era dado por um gato malhado de preto e amarelo dormitando em cima do balcão - não se surpreenderam pela súbita materialização de um jovem inglês. Na verdade,
quando Stephen foi conduzido ao seu quarto no andar de cima, que era um tanto escuro e bolorento, com o papel de parede desbotado e uma enorme cama de cortinas vermelhas,
o idoso concierge, desafivelando as malas do ombro com exagerada falta de ar, sobressaltou-o ligeiramente ao lhe perguntar se ele queria chá.
- Não, muito obrigado - sorriu Stephen, pensando no extraordinário valor que aquele indistinto interior dava ao velho de olhos lacrimejantes com as faces caídas,
marcadas por veias vermelhas, o seu colete listrado de preto e amarelo. - vou sair... e olhar um pouco por aí.
- Não há muito que ver hoje, monsieur - disse o porteiro, encolhendo amavelmente os ombros. - Tudo está fechado.
Mas Stephen mal podia esperar para desfazer a mala e atirar suas coisas no armário poeirento. Então, eufórico, deixou o hotel e foi andando pelas ruas, a esmo, ao
longo da Rue du Mont Tabor e pela Place de la Concorde. Seu imediato pensamento tinha sido em Glyn, mas no constrangido momento de partir, ele esquecera de pedir
o endereço de Richard, e naquele ínterim não recebera nenhuma notícia dele. No entanto, Stephen estava certo de que, no círculo que se propunha frequentar, logo
o encontraria.
O tempo estava bom e claro, o céu pálido riscado pelas costelas de nuvens brilhantes. Quando viu a longa fila de castanheiros, agora em plena folhagem, junto ao
rio, quase exclamou alto. Agitadas pela brisa, as folhas eram luz e sombra, macias, encontrando os seus olhos como uma carícia. Através da avenida chegou ao Sena,
cinza-aço e polido, reverberando atrás de barcaças atracadas. Numa destas, uma jovem mulher, de seios fartos e cabelo louro, estava pendurando roupas cor-de-rosa
numa corda. Um cachorrinho saltitava nos seus tornozelos. Um homem de camiseta e chapéu baixo de feltro fumava placidamente, de braços nus, sentado num balde emborcado.
Numa espécie de transe melódico, Stephen caminhou lentamente pela margem, através de Port Royal, além da linha de quiosques de livros, de volta à Pont Neuf para
a L'Île de la Cité. Lá, ficou a olhar o jogo de cores sobre a água, o escurecer das sombras sobre as moles de pedra. Somente quando a luz desapareceu, ele se voltou,
com um suspiro apatetado, e começou a voltar para o hotel.
Agora a cidade despertava do seu torpor dominical. Nas ruas laterais, ao norte do rio, os pequenos cafés de esquina começavam a se encher de maneira discreta mas
movimentada. As mercearias estavam abrindo, e famílias da classe média começavam a tomar ar, homens robustos com pantufas apareciam nos umbrais. Diante de uma padaria,
ainda fechada, donas-de-casa, tagarelando tranquilamente, reuniam-se para comprar pão. Estou em Paris, pensava Stephen estonteado, finalmente, finalmente.
À guisa de contraste, o Clifton, banhado numa ténue luz religiosa, tinha um ar solene, quase sepulcral. Na verdade, por um instante Stephen teve a tentação de dar
a volta e ir cear no Maxim's ou no Café Riche, ou qualquer daqueles restaurantes alegres sobre os quais lera tantas vezes. Mas estava cansado e tímido para ir desacompanhado.
Além disso, tinha resolvido fazer uma razoável economia. Da sua pensão anual restavam-lhe 150 libras, e essa quantia deveria durar um ano inteiro.
Assim, baixou ao frio refeitório e comeu sozinho - a não ser por um distante cavalheiro solteirão numa desmazelada jaqueta Norfolk que lia continuamente entre os
pratos, e duas cochichantes velhas de malva, todos inconfundivelmente ingleses - uma refeição de cardápio fixo, de sopa, carneiro, ameixas amargas cozidas, que,
embora fossem perfeitamente saudáveis, demonstravam a falácia do argumento de que, na França, a cozinha francesa era uma arte universal. Contudo, nada poderia abater
a sua alegre disposição. Subiu as escadas assobiando e dormiu como uma toupeira na cama de dossel.
Na manhã seguinte, sem demora, saiu para Montparnasse. Depois de considerável reflexão, tinha resolvido não se matricular na École des Beaux Arts, mas procurar uma
atenção mais pessoal, dada pelo Professor Dupret na sua famosa academia do Boulevard Seline. Encontrou o estúdio sem dificuldade, tendo comprado, no balcão do hotel,
um mapa de Paris. Era no último andar de um edifício esquisito, parecido com um quartel, protegido por grades em ponta de lança e guardado por duas guaritas vazias,
bem no fundo do boulevard. Pairava no ar um cheiro de casca de tanino, indicando que ali fora uma armaria, e uma grande algazarra lá em cima sugeriu a Stephen, por
um sobressaltado momento, que os soldados ainda o ocupavam.
Quando subiu, depois de completar as formalidades de admissão com o massier, um tipo corpulento de cara chata, suéter cinzento, calças de lona, que tinha a aparência
de um boxeador aposentado - e que na verdade lá estava para impedir uma flagrante desordem - a aula já tinha começado.
A saia ampla e clara, aquecida por uma enorme estufa holandesa, com paredes que pareciam todas janelas, estava apinhada com uns 50 alunos, formando o grupo mais
estranho que ele já tinha visto. Na maior parte, eram homens entre 20 e 30 anos de idade, vestidos numa variedade de gostos, de muitas nacionalidades - eslavos barbudos,
indianos de pele escura, um grupo de escandinavos louros, vários jovens americanos. As poucas mulheres eram uma coleção esquisita. O olho de Stephen prendeu-se numa
senhora de idade metida numa blusa cor de rato, espiando a sua tela através de um pincenê de aros de ouro, como uma professora diante do seu quadro-negro num jardim
de infância do campo.
O barulho, ali dentro, era ensurdecedor - um rumor contínuo de conversação, trechos altos de canções, em línguas competitivas, observações fanfarronas
gritadas através da sala. Parecia que o tumulto ia permitir que Stephen entrasse sem ser notado. Mas ao ficar ali na porta, hesitante e um tanto pálido, vestindo
a sua roupa escura de clérigo, colarinho branco engomado e gravata preta, a vestimenta regular para os coadjutores da Clinker Street, sobreveio um infeliz intervalo
durante o qual a atenção da classe se voltou diretamente para ele. E então, no silêncio, uma voz de falsete exclamou:
- Ah! C'est Monsieur l'Abbé.
Uivos de risadas saudaram essa observação. Entrando confuso, Stephen encontrou um banco coberto com raspaduras de paletas, mas nenhum cavalete, espremeu-se com dificuldade
para um lugar, e abriu a sua pasta de papel Ingres sobre os joelhos.
O modelo, um velho de longos cabelos prateados, com o aspecto de um ator decadente, bonito, estava sentado numa postura convencional na plataforma do centro, ligeiramente
inclinado para a frente, com o queixo apoiado nas costas da mão. Stephen não gostou da pose, e a expressão do velho era aborrecida e indiferente, mas apanhou o seu
carvão e começou a trabalhar.
Às 11 horas Monsieur Dupret apareceu - um homem de uns 60 anos, belo de uma maneira teatral, com uma cabeleira arrepiada, porte ereto e digno, e mãos móveis. Apesar
das calças ligeiramente frouxas, o seu fraque ajustado dava-lhe um ar correto, distinto, acentuado pela fita na lapela. A sua entrada, impressionante e brusca, causou
uma cessação do barulho maior, e em relativo silêncio ele começou a dar vagarosamente a volta à sala, detendo-se aqui e ali para examinar uma tela com olhos apertados,
pronunciar, com um floreado gesto das mãos, umas breves palavras, mais como um cirurgião visitando a sua enfermaria.
Quando ele se aproximou, Stephen preparou-se para algumas palavras de saudação, de cortês interrogação, mas o professor, com alheamento impessoal, não disse coisa
alguma. Olhou de esguelha para Stephen, meio curioso, meio indiferente, e depois para o seu esboço, e, no instante seguinte, sem um piscar de olhos, desapareceu.
À uma hora tocou uma sineta. Imediatamente se ergueu uma vozearia, o modelo levantou-se como se fosse soltado por uma mola e afastou-se da plataforma, enquanto em
volta os estudantes atiravam pincéis ou carvões e começavam a se acotovelar contra a porta. Perturbado e decepcionado, Stephen foi arrastado, contra a sua vontade,
pela turba que empurrava. Subitamente, no seu cotovelo, ouviu uma voz agradável.
- Você é inglês, não? Meu nome é Chester.
Stephen voltou a cabeça e deu com um jovem mais ou menos da sua idade sorrindo para ele. O cabelo, o queixo partido e os olhos azuis, sombreados por compridas pestanas
negras, davam-lhe um ar de sincero e atraente encanto. Usava uma velha gravata de Harrow.
- Espero você lá embaixo - disse ele quando a maré o carregou. Lá fora, Chester estendeu-lhe a mão.
- Espero que não se importe de eu vir falar com você. No meio dessa turba, os que são do outro lado do Canal devem ficar juntos.
Após a sua deprimente recepção, Stephen estava contente por ter achado um amigo. Quando se apresentou, Chester fez uma pausa por um momento, e exclamou:
- Que tal almoçar comigo?
Saíram juntos pela avenida.
O restaurante em que entraram ficava bem perto, na Place Seline, um salão estreito, de teto baixo, quase uma adega, abrindo para uma cozinha escura, a meia dúzia
de passos do nível da rua, com um fogo de carvão de lenha e espetos com assados, cheio do barulho de panelas de cobre e de um agradável cheiro de cozinha. O lugar
já estava repleto, principalmente de alunos de Dupret, mas Chester, com tranquila segurança, guiou-o através de um pequeno pátio adornado por cubas de alfenas, calmamente
retirou o cartão marcado "RESERVADO" de uma mesa do fundo, habilmente atirou o chapéu para um cabide e convidou Stephen a sentar-se.
Imediatamente, uma mulher gorda, de cara vermelha, vestida de preto, protestou da cozinha:
- Não, não, Harry... Esse lugar está reservado para o Monsieur Lambert.
- Não se agite, Madame Chobert - sorriu Chester. - A senhora sabe que Monsieur Lambert é meu amigo. Além disso, ele sempre chega atrasado.
Madame Chobert não se deu por satisfeita; discutiu e resmungou, mas o charme de Harry Chester - embora ela claramente tentasse precaver-se contra ele - no fim acabou
por vencê-la. Encolhendo os ombros com pena da sua própria fraqueza, levantou a ardósia escrita a giz que pendia da cintura do seu avental, e apresentou-lhes o cardápio.
Por sugestão de Chester, pediram potage maison, boeuf bordelaise e um queijo brie. Uma jarra de cerveja amarela e espumante já estava sobre a mesa.
- Não é uma pessoa má - sorriu Chester quando ela se afastou. Durante a refeição, ele manteve a conversação viva e fluente, aludindo, com inesgotável provisão de
troça e frases feitas, aos seus vizinhos. Apontou para Biondello, o italiano, que já tinha exposto no Salon do ano passado, e Pierre Aumerle, um caso irremediável,
que bebia uma garrafa de Pernod todos os dias, almoçando com uma mulher de semblante ocre com um enorme chapéu, para a qual Chester ergueu as sobrancelhas com um
sorriso. Entrementes, sondou Stephen com algumas perguntas divertidas; então, depois que trouxeram o café filtre, fez uma pausa, com um certo ar consciente, e pareceu
ter achado necessário explicar-se.
- Curioso, não? - comentou ele, riscando desenhos na toalha xadrez - como a gente sempre pode identificar um universitário. Philip Lambert também é um deles. Depois
de Harrow - lançou um olhar rápido para Stephen
- eu mesmo devia ter ido para Cambridge... se não a tivesse trocado pela arte.
Continuou, revelando, com um sorriso suplicante, que o pai tinha sido um grande plantador de chá no Ceilão, ao passo que a mãe, agora viúva, voltara para habitar
uma imensa mansão de Highgate com uma legião de criados. Naturalmente, ela o estragara com mimos, dava-lhe uma generosa pensão. Estava em Paris fazia 18 meses.
- É muito divertido - concluiu ele. - Você deve me deixar mostrar-lhe os meus trabalhos.
- Que acha de Dupret? - perguntou Stephen.
- É o professor mais decente que há por aqui. Você sabe que ele pertence à Legião de Honra?
Ligeiramente chocado, Stephen não respondeu. Chester intrigava-o, como o intrigaria um desenho estranho que, embora agradável, tivesse complexidades estranhas ao
seu gosto.
Terminaram o café. As pessoas começavam a se retirar.
- Seu amigo Lambert parece que não vem - disse Stephen por fim, para quebrar o silêncio.
Chester riu-se.
- Philip é um mendigo errante. Você nunca sabe quando ele vai aparecer... ou com que atraentes saias.
- Ele frequenta a Dupret?
- Trabalha em casa... quando trabalha. Tem recursos particulares, você sabe, e já andou por toda a Europa, estudou em Roma e Viena, mas agora ele e a mulher alugaram
um pequeno apartamento na Esplanada dos Inválidos. - Chester assentiu com um aceno. - E posso lhe dizer que a Sra. Lambert é muito elegante. E, naturalmente, uma
perfeita dama.
Ali estava novamente uma observação que arranhava o ouvido de Stephen, e ele olhou de um modo esquisito para o seu colega, imaginando como poderia usar uma expressão
infeliz. Mas antes que tivesse tempo de responder à pergunta, Harry Chester sentou-se.
- Olhe, aí está Philip.
Seguindo o olhar de Chester, Stephen viu entrar no restaurante um homem delgado, de aparência afetada, com cerca de 30 anos, vestido com uma curta sobrecasaca marrom,
colarinho baixo e gravata fofa. O rosto, pálido e profundamente marcado abaixo dos olhos, tinha um ar de langor. O seu brilhante cabelo preto era repartido nitidamente
no meio, mas a um lado uma mecha tinha escapado num pequeno cacho sobre a sua testa branca. Os seus
modos, aliás toda a sua aparência, davam a impressão de uma indolência amaneirada, de aborrecimento e pretensão.
Quando chegou, pôs a bengala debaixo do braço e começou a descalçar uma luva amarelo-limão, enquanto olhava para Chester com uma alegria levemente desdenhosa.
- Agradeço-lhe por ter guardado a minha mesa, caro rapaz. Mas agora deve ir-se. Espero um convidado às duas horas. E não preciso de acompanhante.
- Estamos saindo, Philip. - O tom de Chester assumira uma inflexão submissa. - Olhe, gostaria que conhecesse Desmonde. Ele entrou para a Dupret hoje.
Lambert lançou uma olhadela a Stephen e depois curvou-se polidamente.
- Desmonde acaba de chegar do seu último ano em Oxford - disse Chester rapidamente.
- Ah, sim - exclamou Lambert. - Que colégio, posso perguntar?
- Trinity - respondeu Stephen.
- Ah! - Lambert relaxou com um sorriso, mostrando os dentes brancos e parelhos, e, tirando a segunda luva apertada de pelica - uma operação que ele executava em
silêncio e sem arrepiar um pêlo - estendeu uma mão pequena para Stephen. - Muito prazer em conhecê-lo. Também estive na Casa. Por favor, não tenham tanta pressa
em se retirar. Posso facilmente encontrar outra mesa.
- Asseguro-lhe - disse Stephen, levantando-se - que terminamos mesmo.
- Então venha tomar chá conosco um dia destes. Estamos em casa quase todas as sextas-feiras às cinco horas. Então falaremos como dois homens de Oxford - seu sorriso
brincou na direção de Chester - e um que quase foi para Cambridge.
A conta, que Madame Chobert apresentara rapidamente, estava sobre a mesa. Uma vez que Chester parecia não vê-la, Stephen apanhou-a e, a despeito dos súbitos e enérgicos
protestos de Harry, pagou a despesa.
CAPÍTULO VII
SOB A MAGIA DA SUA NOVA LIBERDADE, Stephen, entrou rapidamente e com deliciada facilidade numa rotina agradabilíssima, tanto mais que, uma semana
após a sua chegada, recebeu uma carta de Stillwater que foi um grande alívio para o seu espírito. Embora acentuasse o sofrimento ocasionado pela súbita partida de
Stephen, o Reitor havia-o, em certo sentido, perdoado. Obviamente, escreveu ele, a inclinação (a palavra "tentação" fora riscada) tinha sido demasiado forte para
opor-lhe resistência. Por conseguinte, podia "ser tudo pelo melhor", se, como o próprio Stephen tinha proposto, esse interregno de um ano fosse considerado por ambos
os lados como um "campo de prova". Entrementes, aprovava a escolha de Stephen quanto à sua acomodação, conhecia-o demasiado bem para exortá-lo à virtude, e desejava
que nada lhe faltasse do que cabia à sua condição.
De manhã, era uma sensação que nunca diminuía acordar com a consciência de que estava em Paris, de fato seguindo a sua "carreira artística".
Levantou-se, vestiu-se rapidamente e, como o desjejum no Clifton não tinha nada que o recomendasse, saiu para uma pequena crèmerie na esquina do hotel. Ali, por
30 soldos, foram-lhe servidos um jarro de café ou lait e dois croissants flocosos ainda quentes do forno e recém-trazidos pelo padeiro.
Sua caminhada para o estúdio através das ruas frescas era sempre uma delícia, A multidão apressada e os policiais de capa azul, as donas-de-casa madrugadoras com
os braços enganchados em cestas carregadas, um soldado zuavo de calça escarlate, duas porteiras tagarelando apoiadas nas suas vassouras, um velho varredor de rua
lançando esguichos de água pela sarjeta, carrinhos barulhentos de verdura fresca do Halles - tudo isso o extasiava além das exclamações súbitas, agudas, a tagarelice
de muitas línguas, um vagaroso badalar de sinos ecoando nos edifícios de um cinza suave, as graciosas pontes brancas, o rio adorável, já começando a cintilar ao sol.
No estúdio, é verdade, ele não se sentia em casa. A falta de ordem e o perpétuo barulho tornavam difícil a concentração. Parecia que muitos estudantes tinham vindo
menos para trabalhar do que por mero divertimento e feroz exibição dos seus espíritos animais. Riam e cantavam, pregavam peças grosseiras, mantinham intermináveis
discussões em altas vozes nos cafés, afetavam uma boémia exagerada no vestuário e nas maneiras. Falavam a gíria do quarteirão, sabiam tudo a respeito dos últimos
"movimentos", reconheciam Manet, Degas e Renoir como seus mestres e imitavam-nos dolorosamente, desprezavam Millet e Ingres, eram muito críticos com Delacroix, e
contudo tinham pouco ou nada para oferecer de seu.
Naturalmente outros havia que se aplicavam. Ao lado de Stephen havia um moço polaco, vindo de uma pequena cidade do interior próxima de Varsóvia, que, inflamado
pela ambição, tinha vindo sem dinheiro para Paris. Para pagar a sua mensalidade na Dupret, havia trabalhado 12 meses como carregador na estação de Montparnasse.
A intensidade do seu esforço era assustadora, contudo ele não tinha o menor talento. Muitas vezes, quando Dupret
fazia a sua ronda diária, Stephen esperava que ele, com uma única palavra, acabasse piedosamente com aquele fútil labor. Mas o professor não dizia nada, nada além
de corrigir uma linha ou apontar uma expressão vazia, a falta de equilíbrio na composição. Sua atitude com Stephen continuava igualmente impassível, embora uma ou
duas vezes, após estudar alguma parte do seu trabalho, olhasse para ele de uma maneira curiosa, quase às escondidas, como se o visse e examinasse pela primeira vez.
Mais e mais, sob o alheamento de Dupret e suas grandes maneiras, Stephen começou a discernir um núcleo carcomido de decepção, a biliosa amargura de um homem que
no seu coração sabia que tinha falhado no cumprimento da sua expectativa juvenil. Ter obtido o reconhecimento dos círculos oficiais, exibir anualmente o seu trabalho
no Salon (uma pintura segura e cuidadosamente executada, que sempre era pendurada em um bom lugar), participar das juntas e comissões, representar a arte de luvas
brancas nas recepções do governo - tais distinções significavam alguma coisa para quem queria abalar o mundo com uma poderosa obra-prima? Dupret não tinha um verdadeiro
interesse pelo seu estúdio e ainda menos por seus alunos, a não ser quando, com uma ponta de ciúmes, via a evidência de um talento que podia ultrapassar o seu. Atrás
daquela fachada, era um homem vazio, um homem movido pelo homem que supunha ser, um homem mais digno de pena do que desprezo. Na verdade, quando o professor entrava
imponentemente na sala, Stephen fazia dele uma curiosa imagem, no fim do dia, despindo vagarosamente o fraque apertado e soltando os botões brilhantes dos sapatos,
remexendo os dedos comprimidos para aliviar os calos, voltando para a tela semiacabada um Casamento Bretão, pensando, com um arrepio: "Mon Dieu, devo continuar com
isto?"
Na hora do almoço, Stephen ia com Chester ao restaurante de Madame Chobert, mas ocasionalmente escapava à efusiva amizade de Harry e vagabundeava ao longo do cais,
mastigando um petit pain no qual havia uma fatia de presunto avivada pela mostarda amarela. Então, apressando o passo, ia aos museus, ao Louvre ou ao Luxembourg.
Era quase noite quando, com olhos ainda não ajustados às realidades da rua, deixava as compridas galerias e caminhava de volta para o Clifton.
Para Chester, e as poucas outras relações que fizera na Dupret, parecia extraordinário que Stephen passasse as suas noites só, e várias vezes instavam com ele para
que os acompanhasse numa visita a Montmartre. Certa ocasião, ele acedeu, acompanhado de meia dúzia de outros, em ir a um café-concerto na Toque Bleue, perto do Moulin
de la Galette.
Mas ficou enormemente entediado com as cenas que se presumiam vívidas e excitantes, mas, de fato, eram estupidamente fúteis. Os salões de dança eram uma massa humana
empurrando, sapateando, rodeando, semi-intoxicada,
ampliada e distorcida por dezenas de espelhos, retorcendo-se em formas grosseiras, ao estridor de uma banda reles. Certo, nada podia ser mais assustadoramente triste
do que as caras dos frequentadores mais velhos - peitos côncavos e olhos mortiços, estranhamente rebarbativos. Algumas das conhecidas cocotes que Chester lhe apontava
eram francamente medonhas, seus parceiros, com roupas pretas justíssimas, sinistros e degenerados.
Mais tarde, diversas jovens se reuniram à festa, que agora atingia uma fase turbulenta. Suas vozes roucas e grosseira camaradagem, seus braços atirados em torno
de pescoços e seus carinhos cochichados em voz alta despertavam nele um frio desagrado. Enquanto ele permanecia ali sentado, pálido e silencioso, como um peixe fora
da água, uma das jovens se curvou para Chester, que tinha bebido um bocado, e, com os olhos em Stephen, riu-se sem motivo e murmurou alguma coisa no seu ouvido.
Imediatamente, Chester rompeu num ataque de riso.
Nesse momento, Stephen não fez nenhum comentário, mas a caminho de casa, com Chester, falou no assunto.
- Não foi nada, meu velho. Ela apenas disse - Chester, com um tom de desculpa, modificou o comentário original, impublicável - que você era um tipo esquisito. -
E quando Stephen desviou a cabeça, acrescentou: - Lamento que você não tenha se divertido esta noite. Não esqueça de que vamos visitar Lambert na sexta-feira. Avise-me
antes de sair.
Nesse dia, por volta das quatro horas, Stephen saiu para a Rue Bonaparte, onde, no número 15, Harry tinha um quarto no último andar. Após uma íngreme subida de três
lances de escada, percebeu que havia uma furiosa altercação, "e empurrando a porta meio aberta encontrou Chester discutindo com um homem baixo de chapéu preto e
quadrado e um sobretudo pardacento, que, imperturbável, superintendia os movimentos de um subordinado muito ocupado em meter num grande saco de serapilheira o relógio
do consolo, um par de vasos chineses e outros objetos que decoravam o quarto.
- Agora, por favor, o seu relógio, Monsieur Chester.
- Ora, deixe disso, Maurice - suplicou Chester - o relógio não. Dê-me um prazo até o fim da semana que eu pago.
Neste momento, Chester viu Stephen. Por um instante, apatetou-se; depois, aproximando-se, forçou um sorriso confiante.
- Não é uma coisa idiota, Desmonde? Esgotei a minha pensão há pouco. E esses credores importunos, miseráveis, estão me despojando. É praticamente nada. Uns míseros
100-francos. E naturalmente receberei o cheque de mamã no fim do mês. É claro que eu não sonharia em pedir a você; contudo, se houver alguma chance...
Houve uma pequena pausa, então Stephen disse, de boa vontade:
- Terei muito prazer em atendê-lo.
- Muitíssimo obrigado, meu velho. Você o terá de volta, com juros, no dia primeiro do mês. Está vendo, Maurice, seu ladrão? E agora foutre le camp.
Dobrou as notas novinhas que Stephen extraiu da sua carteira e atirou ao oficial de diligências, o qual, após contá-las duas vezes com o polegar umedecido, acenou
silenciosamente, esvaziou o conteúdo da sacola sobre a mesa, com uma reverência enigmática, imitada pelo seu companheiro, e deslizou para fora da sala.
- bom! Acabou! - Chester riu-se alegremente, como se fosse uma excelente piada. - Eu ia sentir falta das minhas velhas panelas. E, naturalmente, disto aqui... -
Colocando os vasos de volta no consolo da lareira, abriu descuidadamente a tampa de um estojo chato e exibiu uma medalha redonda de prata presa a uma fita azul;
depois, de um modo um tanto envergonhado, que não deixava de ser encantador, ajuntou: - Essas coisas não se devem mencionar, Desmonde. Mas uma vez que você me apanhou
desprevenido, tenho que falar... é a Medalha Albert. Pois é... tive que recebê-la, há alguns anos.
- Por quê?
Stephen não podia negar que estava impressionado.
- Ora, porque salvei uma vida no mar, é como chamam isso. Uma velha tonta caiu do navio ao largo de Folkstone. Não posso culpá-la... o mar estava muito agitado...
e era inverno. Aconteceu que fui atrás dela. Não foi absolutamente nada. Não estivemos na água mais do que meia hora, enquanto o vapor fazia a curva e nos mandavam
um bote. Mas vamos esquecer isso e tratar de andar. Se não nos apressarmos, chegaremos tarde para o chá.
Com seu bom humor inteiramente recuperado, Chester desceu as escadas na frente, falando e rindo durante todo o caminho até o apartamento dos Lamberts, situado num
beco sem saída muito atrás da Avenue Duquesne. Ali, num pátio de paralelepípedos, havia um pequeno pavilhão de pedra cinzenta - avivado artisticamente por uma porta
verde-maçã e janelas da mesma cor - que fora outrora a casa do porteiro de uma mansão nos dias de Henrique IV. Cheirando a almoço e a defumador recém-queimado, o
pequeno e um tanto escuro interior estava artisticamente disposto com pequenos tapetes felpudos aqui e ali, cortinas de contas e cadeiras de bambu. Um xale espanhol
estava estendido sobre o piano de armário.
Arrastados pela impetuosidade de Chester, chegaram cedo. Lambert, dormitando numa espreguiçadeira junto às cinzas da lareira, ainda parecia afundado na letargia
de após-almoço, e mal ergueu uma pálpebra pesada quando eles entraram. Mas a Sra. Lambert lá estava para recebê-los. Era alta e esbelta, mais velha do que Stephen
tinha esperado, com grandes olhos verdes, feições tendentes à rispidez, cabelo cor de areia e uma pele branca leitosa que com ele combinava. Seu vestido de tarde,
recortado em torno do pescoço de maneira rebuscada e com saias cheias e compridas, era de brocado branco.
Enquanto ela e Chester conversavam, Stephen observava-a, sentada com compostura, com o pescoço arqueado, contra um biombo laqueado, até que ela, como se notasse
o seu olhar perscrutador, voltou os olhos para ele com um sorriso em arco.
- Espero que aprove o meu vestido...
E como ela parecia esperar um cumprimento, ele disse:
- Estou certo de que Whistler teria gostado de pintá-la com ele.
- Que coisa mais encantadora para dizer. - E ajuntou, confiadamente: - Fui eu mesma que o fiz.
Dali a pouco saiu e trouxe o chá, numa bandeja de prata, com muitas xícaras, com finos sanduíches de agrião, e petits fours. Quando começou a servir, Lambert bocejou
e espreguiçou-se.
- Chá! - exclamou ele. - Não posso viver sem chá. Abençoado, nutritivo chá. Forte, Elise. - Aceitou uma xícara, balançou-a airosamente. Este pode ter vindo das extensas
plantações da sua família no Ceilão, Harry. Não é uma ideia estimulante? Diga-nos se reconhece o sabor. - Olhou para Stephen. - Bem... o que esteve fazendo nesta
cidade malvada, Monsieur l'Abbé?
Stephen corou, Viu que Chester tinha andado a tagarelar a seu respeito.
- Certamente lhe parecerá ridículo. Um futuro pastor desertando para a pintura.
E em poucas palavras explicou algumas das circunstâncias da sua vinda para Paris.
Quando terminou, seguiu-se uma breve pausa, e então Lambert exclamou, com a sua costumeira ironia:
- Bravo, Abbé! E agora que já fez a sua confissão, tem a nossa absolvição incondicional.
Elise, inclinando-se um pouco para ele, com um sorriso, murmurou:
- Deve ter sentido uma incrível vontade de pintar. Tome mais um pouco de chá.
Quando Stephen levantou a mão com a sua xícara até os olhos, viu três leques, pintados em seda à maneira japonesa, arranjados sobre a parede. Fez uma pausa, impressionado
pela delicadeza do trabalho.
- Quem fez essas coisas tão encantadoras?
As pálpebras de Lambert ergueram-se. Acendeu um cigarro, antes de responder, de modo quase casual:
- Para dizer a verdade, caro Abbé, são minhas. Se não lhe aborrecer, mostro-lhe mais alguns trabalhos meus.
Depôs a xícara, e de uma pequena passagem lateral trouxe várias telas; então, de uma maneira fatigada colocou-as em pé, uma após a outra, de modo que recebessem
toda a luz, numa cadeira alta junto à janela.
A maioria dos quadros era bem pequena, e de temas leves - um raminho de flor de cereja numa malga azul, dois salgueiros à beira de uma poça estagnada, uma criança
com chapéu de palha sentada num caramanchão à margem de um rio - contudo, cada um deles tinha uma beleza decorativa que acentuava o simples. Era uma qualidade que
parecia infundir em formas pálidas um encanto enfastiado e indefinível.
Mostradas as poucas pinturas, Stephen voltou-se para Lambert.
- Eu não tinha ideia de que podia pintar assim... são encantadoras. Lambert encolheu os ombros, mas estava claramente satisfeito, ao passo que sua mulher, estendendo
o braço, apertou vivamente a mão de Stephen.
- Phil é realmente um génio. Ele também pinta retratos. - Seus olhos verdes demoraram-se luzindo. - Se souberem de alguém que esteja interessado em comprar... Sou
a sócia comercial.
Depois disso, a campainha da porta soou e,.em rápida sucessão, outros convidados chegaram, todos singularmente apropriados para aquela atmosfera de refinada boémia:
um jovem de meias brancas com um manuscrito debaixo do braço, outro homem, menos moço, mas de ombros quadrados e bem vestido, da Embaixada americana, uma modelo
chamada Nina, que Stephen tinha visto ocasionalmente no restaurante de Madame Chobert. Um francês de monóculo, gordo e idoso, que beijou a mão de Elise com tocante
galanteria, e sobre o qual, como um possível comprador, ela voltou todas as suas blandícies.
Um chá novo foi trazido, Lambert serviu uísque, o ruído da conversação aumentou, e dali a pouco Stephen, que em sua primeira visita não queria ficar muito tempo,
levantou-se para se retirar. Philip e a esposa instaram para que ele viesse outra vez. Aliás, Madame Lambert interrompeu a conversa para acompanhá-lo até a porta.
- Venha conosco rio acima no domingo. Fazemos um piquenique em Champrosay. - Deteve-se, de olhos grandes, com o ar de quem fazia um cumprimento. - Philip gostou
muito do senhor.
No domingo, então, e em outros dias depois, Stephen acompanhou os Lamberts, às vezes só, às vezes com Chester ou outros de seus amigos, àquela adorável altura do
Sena, entre Châtillon e Melun. Tomavam o bateau mouche na Pont Neuf para Ablon, onde alugavam um esquife e subiam com remadas descansadas a vagarosa corrente verde,
serpeando placidamente entre as ribas tornadas famosas pela Floresta de Sénart até atracarem diante de uma estalagem à margem do rio, desembarcando para almoçar
numa mesa de madeira ao ar livre.
O tempo era soberbo, a folhagem no seu melhor momento de beleza madura, as malvas-rosas e os girassóis em plena florada. O sol cintilante e o
ar caricioso, o exercício, aqueles amigos agradáveis, a esfuziante novidade de cada vista e som, o apito rouco de uma barcaça, a cor da blusa de um operário, a pose
da mulher do encarregado da comporta, tudo o que nele despertava um êxtase vibrante agia como um entorpecente sobre Stephen. Lambert, tirante algumas horas de melancolia,
estava na sua disposição mais atraente, lançando um dito de espírito aqui, um epigrama ali, exibindo o seu brilhantismo, recitando longos trechos de Verlaine e das
Fleurs du Mal.
- Mais sagrada que o Indo - murmurava ele, detendo-se para tomar fôlego, arrastando os seus compridos dedos na corrente fria, com o peito estreito a arfar, a mecha
de cabelos caída sobre a testa úmida. - Esses lírios d'água... cálices do mais puro alabastro... translucidamente rosados... e frios... frios como os seios das ninféias
flutuantes... - E assim por diante.
Seu olho para a beleza não se limitava à natureza, e sempre que a mulher que os servia na estalagem era razoavelmente favorecida, ele, a despeito do olhar agudo
da esposa, flertava com ela ultrajantemente.
A princípio, Stephen trazia consigo um bloco, querendo registrar tudo o que via, mas Lambert desanimou-o com um sorriso cómico.
- Deve guardar tudo aqui, caro Abbé. - Bateu na testa ligeiramente. Mais tarde... na solidão... isso nascerá outra vez.
Numa tarde de domingo, depois de uma excursão mais encantadora do que qualquer outra, Stephen despediu-se dos Lamberts e de dois outros que tinham participado do
passeio de barco, e caminhou do embarcadouro, no Quai St. Bernard, para o seu hotel. O sol, afundando agora por trás da cúpula do Trocadero, tinha incendiado o céu
o dia inteiro. Animados pelo calor do dia, todos tinham se banhado num lago abaixo do açude de L'Hermitage, comido um almoço especial de trutas, frias com patê,
enriquecido pelo nobre Chambertin, e depois adormecido sobre a relva tépida embaixo das faias de Sénart.
Como ele se sentia bem!... a pele queimada pelo sol, os pulmões cheios de ar do campo, o corpo formigando com a água picante do rio... uma espécie de satisfação
divina espalhava-se por ele.
De súbito, ao atravessar a Rue de Bièvre, um homem saiu de uma entrada estreita bem à sua frente. Usava sapatos pesados, uma calça de pele de toupeira e uma blusa
de porteiro pintalgada de azul; em torno do pescoço, um lenço vermelho enrolado negligentemente. Parecia um trabalhador voltando para casa após um duro dia de labor;
contudo, algo no aprumo dos ombros, o porte desafiante da cabeça, fez Stephen sobressaltar-se. Apressou o passo para alcançá-lo.
- Glyn!
Richard Glyn deu meia-volta, de cara séria e cenhuda; então, ao olhar, as rugas que tão profundamente lhe franziam a testa foram aos poucos desaparecendo.
- É você, Desmonde... Conseguiu deixar aquilo.
- Há cinco semanas - disse Stephen sorrindo de prazer. - E desde então estive esperando encontrá-lo. Escute, estou justamente voltando para o hotel. Venha e jante
comigo.
- bom - considerou Glyn - eu bem que gostaria de dar umas dentadas. Não comi nada o dia inteiro.
- Deus do céu, que esteve fazendo?
- Pintando... desde as seis da manhã - respondeu Glyn com uma espécie de violência sombria. - Costumo esquecer o almoço quando estou trabalhando... especialmente
quando não consigo dominar meus amaldiçoados valores das nuanças.
Falando, os seus olhos de ágata cintilavam com uma súbita e rude impaciência, o cansaço de um prolongado e apaixonado esforço para criar. Travando Stephen pelo braço,
saiu com ele rua afora.
CAPÍTULO VIII
O APARECIMENTO DE GLYN, de lenço vermelho no pescoço e botas ferradas, causou um pequeno rebuliço na sala de refeições do Clifton. O velho chefe dos garçons, criado
na tradição dos milords ingleses, não gostou do que via, e as duas damas solteironas, que até agora consideravam Stephen com simpática aprovação, agitaram-se de
chocada surpresa. Richard, contudo, não pareceu importar-se e, aboletando-se na sua cadeira, passeou os olhos em torno com visível curiosidade.
- Por que, em nome do Céu, você se hospeda num lugar como este, Desmonde?
- Oh, não sei... habituei-me a ele, suponho.
Glyn provou a sopa, feita, como sempre, de farinha e água gordurosa.
- Talvez você goste da comida, não?
Stephen riu-se.
- Sei que não é lá essas coisas. Mas o prato de carne será bom.
- É melhor que seja. - Richard partiu outro pão. - Eu lhe disse que estava faminto. Uma noite destas vou levá-lo para comer numa verdadeira casa de pasto.
- No restaurante de Madame Chobert?
- Por Deus que não! Nada de casa de picadinhos artísticos!... Detesto falsas aparências, tanto em cozinha como em pintura. Um bistro de cocheiros perto da minha
casa. Você pode confiar numa taberna onde os cocheiros comem. Servem lá um patê de lebre que não é deste mundo. - Glyn se deteve. - Agora me conte o que andou fazendo.
De boa vontade, mas sem entusiasmo, Stephen iniciou um relatório completo das suas recentes atividades. Falou da sua "labuta" matinal na Dupret, encareceu a sua
amizade com Chester e os Lamberts, tornou-se lírico ao descrever as suas excursões a Champrosay. A princípio, Glyn ouvia com um sorriso entre irónico e sarcástico,
mas lentamente a sua expressão se tornou séria, e ele ficou olhando de esguelha para o seu companheiro.
- Bem - exclamou ele quando a narrativa terminou. - Você parece que tem andado ocupado. Talvez me leve depois ao seu quarto para vermos o que tem feito.
- Oh, não tenho muito que mostrar... - respondeu Stephen apressadamente. - Apenas uns poucos esboços. Tenho me concentrado nas linhas, sabe?
- Sim - fez Glyn.
Em completo silêncio, ele mastigava o resistente pouding à l'anglaise que constituía a sobremesa do Clifton. Não disse palavra por uns bons cinco minutos. Depois,
por baixo das sobrancelhas franzidas, voltou para Stephen um olhar firme que também tinha um reflexo de extremo desagrado.
- Desmonde, você quer pintar? Ou enganar a sua vida como um desses personagens extravagantes de La Boême?
- Não compreendo.
- Ouça, então. Há talvez 10 mil impostores safados nesta cidade que se imaginam artistas porque estudam um pouco, desenham um pouco e sentam os rabos nos cafés todas
as noites, cacarejando sobre as suas obras-primas natimortas. Você é quase um deles. Sabe muitíssimo bem que está desperdiçando tempo, Desmonde. Só o trabalho duro,
infernal, é que tira o que você tem aí dentro, não vagabundeando pelo Sena, estendido de costas numa canoa com um poseur simplório que lhe esguicha Verlaine e Baudelaire.
Stephen avermelhou-se, indignado.
- Você é injusto, Glyn. Chester e Lambert são sujeitos muito decentes. E Lambert tem certamente um grande talento.
- Besteira! Que fez ele? Algumas japonaiseries, leques pintados, fragmentos... oh, bem bonito, não nego, mas coisinhas meio efeminadas... afetadas... e tudo muito
pequeno.
- Certamente é um sinal de vulgaridade produzir enormes telas.
Em seu ressentimento, Stephen citara uma observação favorita de Lambert, e Glyn logo farejou a sua origem. Riu-se rudemente.
- E Rubens, e Correggio, e del Sarto, com as suas tremendas concepções, e o velho Michelangelo, cobrindo o teto da Capela Sistina com a sua portentosa visão da Criação,
trabalhando tão duramente que em muitos dias nem tinha tempo de tirar a roupa? Eles foram vulgares? Não, Desmonde... Lambert é um amador bem-dotado, um artista menor,
que nunca seria ouvido se não fosse empurrado por trás pela sua astuta mulher. Não tenho nada contra esse sujeito, é em você que estou pensando, Desmonde. Você tem
algo que Lambert daria a alma para possuir. Não quero vê-lo jogando isso fora por causa da sua maldita tolice. E quanto a Harry Chester, prosseguiu Glyn, será você
tão ingénuo para já não ter saltado por cima dele?
- Não sei o que você quer dizer - respondeu Stephen agastado.
Glyn pensou em esclarecê-lo, mas contentou-se com um sorriso.
- Quanto dinheiro ele já levou de você?
Stephen corou profundamente. Chester tinha em várias ocasiões pedido empréstimos, e agora já lhe devia mais de 500 francos, mas não tinha ele dado a sua palavra
de honra que os pagaria fielmente?
- Ouça - continuou Glyn mais tranquilo - você teve um falso início, acabou em más companhias e, pior de tudo, tem afrouxado abominavelmente. Se não se levantar,
estará cavando o seu próprio túmulo. O poço mais fundo do inferno é ocupado pelo artista que não trabalha!
Fez-se um comprido e gélido silêncio. Embora Stephen se tivesse defendido, ao comparar o seu próprio dia inútil com as horas de esforço concentrado de Glyn, uma
vergonha começava a apoderar-se dele.
- Que devo fazer? - disse ele por fim.
- Em primeiro lugar, sair desta casa anglicana de repouso.
- Quando?
- Agora.
O olhar consternado de Stephen pareceu divertir Glyn imensamente, mas num instante ele ficou novamente sério.
- Não posso lhe pedir que venha para o meu buraco. Mas conheço um homem que terá prazer em recebê-lo.
- Quem?
- Jerome Peyrat é o nome dele. Tio Peyrat. É um camarada velhusco, em situação não muito boa, que quer alguém para dividir as despesas. Um tipo esquisito, por Deus,
mas um verdadeiro pintor, diferente dos seus falsos boémios. - O meio sorriso de Glyn era desconcertante, mas desapareceu rapidamente quando ele concluiu: - Você
já não tem mais nada com Dupret, está claro. Pode usar o meu estúdio. E vou lhe apresentar o meu homem das tintas, Napoleon Campo. Ele fia... às vezes. Vamos embora.
A natureza de Stephen não era adaptada às mudanças súbitas e decisões bruscas, contudo havia uma força avassaladora nos argumentos de Glyn, uma
irresistível compulsão na sua maneira. Dirigiu-se, portanto, ao escritório e, para surpresa e mortificação do gerente, pediu e liquidou a sua conta. Então fez a
mala e trouxe-a para baixo, desculpando-se por sua partida inesperada com uma profusa distribuição de gorjetas.
Glyn, no corredor, e claramente olhado pelo pessoal do Clifton como o demónio da peça, mostrou-se frio a respeito daquelas gratificações, e comentou sombriamente:
- Aconselho-o a guardar o seu dinheiro, Desmonde. Você pode vir a precisar dele depois.
- Espere, Glyn. Eles têm que nos arranjar um carro.
- Para o diabo com o carro. Está realmente tão fraco que não pode andar?
Apanhando a valise, que não era leve, Richard atirou-a no ombro e saiu do hotel a passos largos. Stephen acompanhou-o para a poeira luminosa da rua.
Era uma distância considerável até o alojamento de Peyrat, mas Glyn, que tinha uma satisfação selvagem em extrair o máximo de si mesmo, percorreu-a em passos rápidos,
sem vacilar ou depor a mala. Finalmente, numa escura rua lateral de Rive Gauche, no triângulo formado pelo encontro da Rue de Assas e do Boulevard Montparnasse,
Glyn enveredou por uma entrada torta ao lado de uma pastelaria, que, embora mal iluminada por uma lâmpada fraca, estava esfregada e limpa, e começou a subir de três
em três os degraus de pedra. Deteve-se no segundo andar, bateu na porta e, sem esperar resposta, torceu o trinco e fez Stephen entrar.
Era um apartamento de três cómodos, e na sala de estar, mobiliada com correção burguesa, sentava-se diante da mesa coberta por um oleado um homem franzino, de ombros
redondos, com cerca de 50 anos, um rosto chato e sulcado e uma barba inculta, vestindo, apesar do calor do fogo que flamejava na lareira, um descosido sobretudo
preto com a gola levantada e um chapéu duro, também preto; enquanto um tordo, sem a metade das penas, piava um acompanhamento numa gaiola junto à janela, ele se
exercitava na ocarina. À vista de Glyn, os seus olhos, que eram claros e jovens e o enchiam de engenhosa audácia, brilharam. Depôs o instrumento e, erguendo-se,
beijou Richard, com afeiçoada familiaridade, em ambas as faces.
- Peyrat - disse Glyn brevemente, enquanto se desvencilhava - trouxe-lhe o seu novo inquilino. É um amigo meu. Stephen Desmonde.
O olhar de Jerome Peyrat passou de Glyn para Stephen e nele repousou pensativamente - um escrutínio a um tempo inocente e amável.
- Se é seu amigo, mon vieux, então será meu também. Desculpe-me recebê-lo assim, Monsieur Desmonde. Richard sabe como padeço com correntes de ar.
- Espero que não o estejamos perturbando - disse Stephen, embaraçado.
- Longe disso. De noite tenho o hábito de contemplar a minha própria alma. Às vezes acho-a esplêndida, outras medonha. Esta noite - sorriu gravemente - agradeço
qualquer distração.
- Desmonde é pintor, Peyrat. Vai trabalhar comigo e com você.
- ótimo. - Peyrat não mostrou a menor surpresa. - Seja bem-vindo no meu apartamento... pelo menos temporariamente, uma vez que pertence a Monsieur Bisque, o pasteleiro.
Não importa. Aqui renunciamos à beleza das mulheres e ao brilho da fama contemporânea, a fim de produzir obras-primas que serão aclamadas mil anos após a nossa morte.
- Que esperança! - exclamou Glyn com irónica indulgência.
- É unicamente a esperança que nos mantém vivos.
- E a beata Teresa...
- É verdade. Somos sustentados pelo exemplo dessa nobre alma. - Voltou-se para Stephen. - Já visitou a Espanha?
- Não.
- Então um dia podemos fazer uma peregrinação juntos. Até Ávila de los Caballeros... que fica atrás de muralhas de granito, amareladas pelo sol do verão, geladas
pelo inverno de Castela, aprumando-se como uma grande coroa no seu deserto de rocha contra o duro azul das Montanhas de Greda.
- O senhor já esteve lá? - perguntou Stephen polidamente.
- Muitas vezes. Mas somente em espírito. Glyn explodiu numa gargalhada.
- Aviso-o, Desmonde. Este maluco, que nunca vai à igreja e diz coisas desagradáveis a respeito do Papa, tem uma absurda veneração por Santa Teresa.
- Peyrat sacudiu a cabeça em reprovação.
- Meu amigo, não tome em vão o nome da doce e obstinada mulher de Castela, a Velha, que restaurou a ordem descalça original, abandonou a vida ociosa e tagarela das
carmelitas. Ela troou a sua batalha com o espírito, o encanto, a humildade, as rezas, os argumentos, a paciência de uma santa e a têmpera de um capitão do mar. Também
foi uma poetisa...
- vou sair - disse Glyn, sorrindo e dirigindo-se para a porta. - vou deixá-los a sós para que se conheçam. Esteja no meu estúdio amanhã às sete, Desmonde. Boa noite.
Saiu. Peyrat, após um momento de silêncio, levantou-se e foi apertar a mão de Stephen.
Disse simplesmente:
- Espero que se sinta em casa.
CAPÍTULO IX
AGORA COMEÇAVA PARA STEPHEN, sob a influência de Glyn e Peyrat, uma nova existência, cheia de incessante trabalho, inteiramente oposta à sua recente interpretação
da vida artística. Jerome Peyrat, conhecido no distrito de Plaisance como "Tio Peyrat", era de origem humilde; seus pais, já falecidos, não foram mais que gente
simples do campo - embora ele falasse deles com orgulho - labutando nuns poucos hectares perto de Nantes. Durante 30 anos, como empregado do governo, petit fonctionaire,
passando os dias metido num paletó de alpaca com punhos de papel, tomando anotações nos registros poeirentos do Palais de Justice. Somente uma vez estivera fora
da França, quando, como terceiro secretário de uma comissão judicial, tinha ido à Índia. Lá, passara todo o seu lazer como um espectador ingénuo e fascinado dos
animais alinhados atrás das grades, debaixo das altas palmeiras e carobas do jardim zoológico de Calcutá. Alguns meses depois do seu regresso, o pessoal do ministério
foi reduzido e Peyrat aposentado com uma pensão tão diminuta que mal lhe dava para viver de pão. Então, inesperadamente, nunca antes tendo manifestado no menor grau
qualquer interesse pela arte, começou a pintar prolificamente. Não apenas a pintar, mas a considerar-se placidamente um pintor de génio. Nunca recebera uma só lição
na sua vida. Pintava os retratos dos amigos, ruas, edifícios, feios edifícios, cortejos nupciais, fábricas da banlieue, e punhados de flores agarradas por mãos descarnadas,
pintava composições de florestas - uma forma feminina nua, pródiga de seios e cadeiras, montada num tigre mostrando os dentes embaixo de um intrincado novelo de
palmas, trepadeiras, samambaias, orquídeas de tons cromáticos, uma floresta da imaginação, luxuriante e estupenda, povoada por serpentes e macacos trepadores entrelaçados
como num combate mortal, durante a execução dos quais tremia, suava e, para que não desmaiasse, era forçado, apesar do seu medo de apanhar um resfriado, a abrir
a janela para respirar ar fresco.
A vizinhança encolhia os ombros e sorria diante das suas pinturas, que eram expostas à venda, ao preço de 15 francos, na janela da sua amiga, Madame Huffnaegel,
uma viúva respeitável que tinha uma chapelaria a poucas portas rua abaixo e por quem ele nutria um respeito moderado. A não ser Napoleon Campo, o homem das tintas,
que tinha levado telas em pagamento de materiais
fornecidos a Peyrat - e cujo sótão estava, admitia-se, atulhado de refugos de artistas lutadores - ninguém comprava os quadros, que se tornaram, nas vizinhanças
da Rue Gastel, um alvo regular de hilariante, embora afetuosa, alegria. Contudo, complacentemente, Peyrat continuava pintando, às vezes passando muitas necessidades,
mas completando a sua magra pensão com vários recursos. Além da ocarina, que ele tocava para seu próprio prazer, e do corne francês, tinha um conhecimento limitado
do violino e do clarinete. Consequentemente, escreveu uns volantes que ele mesmo distribuía de porta em porta pelo bairro.
Aviso
JEROME PEYRAT
CURSOS DE MÚSICA, HARMÓNICA E SOLFEJO PARA CRIANÇAS
Aos sábados, das duas às cinco da tarde.
Rápido progresso garantido.
Pais podem assistir às aulas. Mensalidade por estudante: cinco francos.
Número limitado de alunos.
No verão, também tirava um bom efeito da sua habilidade no corne francês, tocando todas as tardes de terça-feira na orquestra que encantava as babás e seus pirralhos
no Jardim das Tulherias. E quando a necessidade o premia demasiado, lá estava o amigo da sua infância, Alphonse Bisque, agora o pasteleiro do Plaisance, gordo, de
meia-idade, completamente calvo, com quem - por recordação sentimental dos dias distantes da escola em Nantes, e não por causa das pinturas que de tempos em tempos
Jerome lhe empurrava em pagamento - se podia contar para fornecer pastel de carneiro ou patê de carne.
Nos seus hábitos e no seu modo geral de vida, Peyrat - Stephen logo o descobriu - era tão engenhoso, tão original como os seus quadros. com toda a sua simplicidade,
tinha uma mente ativa e inquisidora, abarrotada com os frutos das suas pesquisas em volumes abstrusos de segunda mão comprados nos quais, frequentemente vomitados
em discursos ingenuamente eruditos sobre história, teologia medieval ou assuntos tão inconciliáveis como Cosme de Alexandria, que no ano 548 denunciara a doutrina
da redondeza da Terra, e Santa Teresa de Ávila, a quem ele, um ateu, tinha tranquilamente tomado por padroeira.
A despeito dessas excentricidades, portava-se, na sua frase favorita, como un brave homme et un bon camarade. Por mais cedo que Stephen se levantasse, Peyrat já
estava de pé antes dele, para apanhar o leite e o pão quente que o menino Alphonse entregava todas as manhãs na sua porta. Terminado o seu simples desjejum, vestia
um avental e lavava a louça; depois, tendo dado água e sementes ao tordo que achara na rua, estropiado por um gato, e que se propunha soltar quando a asa se emendasse,
aprestava-se para o dia de trabalho, punha no ombro a sua paleta e caixa de tintas, mais um grande guarda-chuva para protegê-lo contra os elementos, e saía a pé
para algum canto remoto dos subúrbios, Ivry, Charenton ou Passy, onde, imperturbável ante comentários grosseiros dos passantes ou peças que as crianças lhe pregavam,
atormentando-o, perdia-se na maravilha e no mistério de transpor para a tela alguma visão celestial de um vagão encostado, um bonde ou o cano de uma chaminé.
Stephen saía à mesma hora, apressando-se todas as manhãs para a Rue de Biêvre a fim de utilizar a luz clara do norte, depois do amanhecer, que jorrava através das
clarabóias chumbadas do estúdio de Glyn. Richard, que nunca se poupava, era impiedoso na sua atitude de severo e às vezes estúpido feitor.
- Mostre-me o que é capaz de fazer - dizia ele sombriamente. - Em seis meses, se você não me satisfizer, pode voltar para o Senhor.
O modelo de Glyn, Anna Montel, era uma mulher de 30 anos, alta e vigorosa, de cabelos negros e olhar cigano, desolado. Era uma ramani Cinzany, cujos antepassados
deviam ter vindo originariamente da Hungria, embora Glyn a tivesse encontrado numa remota parte de Gales do Norte. Sua pele era áspera, e como sempre ela andava
descalça, numa saia escura e blusa verde, sem luvas ou capote; suas mãos e faces eram gretadas pelas cortantes brisas do outono que assobiavam na rua vindas do rio.
Mas os planos daquela face castigada pelo vento, com as suas órbitas firmes e malares altos, eram lisos e fortes. Andando pelo estúdio nas suas chinelas de ourela,
lendo de relance os desejos de Glyn, era a pessoa mais silenciosa que Stephen tinha conhecido-. Posava a todas as horas, e por longos períodos; depois, sem uma palavra,
deslizava do estúdio para Halles e, voltando com uma braçada de provisões, ia ao fogãozinho e preparava um goulash, ou coava café naquela chaleirinha azul de esmalte
com o bico quebrado, que figurou, mais tarde, num dos mais conhecidos quadros de Glyn: Le Café Matinal.
Embora nunca procurasse instruir, Glyn era incansável na sua exigência por originalidade, insistindo em que Stephen descartasse as suas noções preconcebidas, encorajando-o
a olhar para os objetos não como eles eram vistos e representados pela tradição, mas com os seus olhos novos.
- Faça como Peyrat faz! - exclamava Glyn. - Faça cada quadro absolutamente seu.
- Você tem Peyrat em grande conta?
- Acho que ele é grande. - Glyn falava com inteira convicção. - Tem a visão direta original de um artista primitivo. Podem rir dele o quanto quiserem, achando-o
um velho tolo. Mas dentro de 20 anos se arrastarão para ter um dos seus quadros.
Era um trabalho duro - e frio. No estúdio gélido, as semanas avançavam mais frígidas ainda, porque Glyn tinha uma teoria espartana de que ninguém podia dar o que
tinha de melhor num ambiente de conforto. Morta para sempre estava a primeira ideia de Stephen de que pintar era uma arte suave e sedutora. Nunca em sua existência
teve um regime tão rigoroso. E Glyn era insaciável na sua demanda por maior, e ainda maior, esforço.
Um dia, quando a cabeça de Stephen girava e ele sentiu que não podia continuar, Richard, respirando fundo, atirou a sua paleta no chão.
- Exercício - decretou ele. - O tampo da minha cabeça está saltando. Sabe andar de bicicleta?
- Sem dúvida.
- Suponho que você praticava o crawl de coadjutor lá em Oxford. Seis quilómetros por hora.
- Acredito que posso fazer um pouco melhor do que isso.
- Muito bem. - Glyn sorriu. - Veremos de que você é feito.
Saíram do estúdio e atravessaram a rua para a loja de bicicletas do quarteirão, atendida por Pierre Berthelot, um antigo ciclista de corridas que, embora incapacitado
agora por um coração danificado pelo Pernod, tinha nos seus dias obtido um terceiro lugar no Tour de France. Era um estabelecimento pequeno, arruinado, com uma fila
de bicicletas penduradas do teto, na frente, e uma escura oficina de reparos ao fundo. Entraram. O lugar parecia deserto.
- Pierre! - gritou Glyn, batendo no balcão.
Uma moça de uns 20 anos surgiu dos fundos. Era um tanto baixa, usava um suéter escuro e uma saia preta pregueada, com pés sem meias enfiados em compridas chinelas
pretas.
- É você? - fez Glyn.
- A quem esperavk? A rainha de Sabá?
- Por que não está no circo?
- Desmontado para o inverno. - Ela falava com frases curtas, desgraciosamente, com as mãos nas cadeiras e as pernas separadas.
- E o seu pai?
- Curando uma bebedeira.
- Hum! Stephen, esta é Emmy Berthelot. E enquanto ela olhava de um para outro de uma maneira aborrecida, ele continuou: - Queremos duas bicicletas para esta tarde.
Boas.
- Todas são boas. Peguem as duas do fim.
Enquanto Glyn abaixara a corda na roldana, Stephen observava-a experimentar cada bicicleta como entendida, fazendo as rodas girarem. Tinha um rosto pálido, emburrado,
testa baixa, ligeiramente saliente, sobrancelhas bem marcadas, uma boca grande de lábios finos. O nariz tinha uma boa linha, mas apresentava essa ponta arrebitada
dos bairros pobres que a denunciava. A não ser pelos seios, salientes sob o jérsei apertado, tinha a figura de um menino bem desenvolvido. Virando inesperadamente,
notou que Stephen tinha os olhos nela. Sob o seu olhar frio e avaliador, ele sentiu que corava - havia na maneira dela uma insolência que o magoava. Richard estava
levando as bicicletas para a porta.
- Gostaria de vir conosco Emmy?
- De que jeito? Tenho que cuidar da loja. Graças a esse velho beberrão.
- Outro dia então. Voltaremos antes de escurecer.
Stephen acompanhou Glyn para a rua. Montaram e, dobrados em dois sobre os guidons abaixados, Glyn adiante, afastaram-se, furando o tráfego do Faubourg St. Germaine
até a Porte de Versailles. Fora das portas da cidade, aceleraram pela estrada reta e lisa para Ville d'Avray. Richard, com ocasionais olhadelas para trás, imprimiu
uma velocidade arriscada. St. Appoline, Pontchartrain e Meul ficaram vertiginosamente para trás. E, depois, Jussieu, e Orgeval. Por fim, numa ampla curva circular,
tinham percorrido cerca de 30 quilómetros, e Glyn parou com uma freada diante de uma buvette na pequena aldeia de Louveciennes. Respirando forte, olhou criticamente
para Stephen, suado e empoeirado, completamente sem fôlego. Sorriu.
- Nada mau, meu rapaz. Você não gosta de desistir, não é? É uma qualidade que pode lhe ser útil. Venha tomar uma cerveja.
No bar escuro, de teto baixo, tomaram uma caneca de cerveja gelada, que escorregou deliciosamente nas suas gargantas secas. Glyn sugou a espuma da barba e suspirou.
- bom lugar para pintar este campo em torno de Louveciennes - meditou ele. Renoir e Pissarro costumavam andar por aqui. Sisley também. Traremos Emmy para dar o ritmo.
Ela pode realmente vir.
A lembrança do encontro na loja de bicicleta ainda doía em Stephen. Ele disse secamente:
- Aquela moça me pareceu uma pessoa um tanto desagradável.
Glyn soltou uma risada.
- Modere a sua língua, padre... - E depois de uma pausa: - Na verdade, ela é uma putinha barata... o seu amigo Chester podia lhe dizer... E dura. Praticamente criada
na equipe no circuit de France. Troteia por aí com um bando de vadias. Faz uma tournée de seis meses por ano com o grupo do Peroz.
- Peroz?
- Adolf Peroz. Primeiro, eram os Irmãos Peroz. Adolf é o sobrevivente. Conheço-o. Sujeito decente. Tem um circo muito bom. Emmy faz os números de ciclista. Acho
que deve ser extremamente arriscado. Ela ganha um bom dinheiro, e deixa você saber disso. Ela não tem préstimo para nós, realmente, e sabe que andamos tesos. Mas
é incrivelmente vaidosa, e quer que eu a pinte.
- Vai pintar?
- Não mesmo! Não lido com tipos da sarjeta. Mas me divirto pondo uma mosca na sopa dela. Ela é realmente uma perfeita cadelinha. - Terminou a sua cerveja. - Vamos
embora.
Voltaram lentamente no frescor da tarde. Glyn estava eufórico, purgado da tensão nervosa, cantando trechos de canções populares do País de Gales.
Diante da loja de bicicleta, consultou o relógio e deu um assobio.
- Estou atrasado. Tenho que me encontrar com Anna. Entregue isto por mim, como um bom sujeito. Deixou a sua bicicleta com Stephen e precipitou-se.
Com alguma dificuldade, Stephen manobrou as duas bicicletas para dentro da loja. Como antes, estava vazia. Ele bateu no balcão, e então, como ninguém aparecesse,
empurrou a porta dos fundos; no corredorzinho escuro, foi de encontro a Emmy, que vinha para a loja. A porta de fora fechou-se, deixando-os juntos, confinados na
escuridão de um espaço não maior que um armário. Muito desconcertado, Stephen não achava o que dizer, e de súbito o seu pulso começou a bater como um martelo. Ela
estava em pé a seu lado, tão perto que ele podia sentir-lhe o calor, e uma estranha e repentina emoção fez a sua garganta se apertar. Ela o observava impassível,
sem surpresa, embora o seu íntimo torvelinho lhe fosse perfeitamente aparente; deu-lhe um sorriso frio, crítico.
- Que veux-tu?
O duplo sentido da pergunta trouxe-lhe uma onda de calor. Houve uma pausa, durante a qual ele ouvia as rápidas e altas batidas do seu coração. Numa voz não natural,
respondeu:
- Queria que soubesse... que eu trouxe as bicicletas de volta.
- Fizeram um bom passeio? - Ela continuava a observá-lo conscientemente, olhos apertados, meio divertida com a sua emoção, embora não participando dela.
- Sim, obrigado.
Silêncio outra vez. Ela não fazia nenhum gesto para se mover. Afinal, com grande esforço, ele pôs a mão na porta às suas costas e empurrou-a.
- Espero - gaguejou ele como um colegial - espero vê-la novamente. Envergonhado e muito tenso, tentou sem sucesso afastá-la da mente. Mas ela crescia cada vez que
a via - ocasiões que se tornaram frequentes desde que, com a chegada da primavera, Glyn insistia em exercícios regulares
semanais. Sentia-se ao mesmo tempo atraído e repelido por Emmy. Desejava muito pedir-lhe que posasse para ele, mas não podia chegar a dizê-lo com tantas palavras.
Uma oportunidade favorável parecia não surgir nunca. Ela permanecia como um enigma não decifrado, um sentido procurado e não achado, uma estranha irritação no fundo
do seu espírito.
E o tempo ia passando com desconcertante rapidez. À medida que os dias iam ficando mais compridos, e os castanheiros rebentavam em flores outra vez, ele percebia
que este ano de graça em breve estaria acabado. Mais e mais as cartas de Stillwater, de seu pai, de Davie, e de Claire, começavam a antecipar o seu regresso, a pedi-lo
mesmo, com crescente urgência.
Julho chegou, e do céu brônzeo um ar abafado pesava sobre a cidade. Glyn, que detestava o tempo de calor, resistiu por duas semanas, depois resolveu subitamente
ir para a Bretanha com Anna, vagabundear por lá, e pintar Calveries. Os Lamberts já tinham partido para La Baule e agora Chester ia encontrar-se com eles. Até Peyrat
falava em desertar de Paris. O aluguel do apartamento terminava em agosto e ele planejava ir ver um tio em Auvergne.
Tanto Richard como Peyrat insistiram para que Stephen os acompanhasse. Mas ele não podia aceitar - uma carta final, com um ressaibo de severidade, tinha chegado
do Reitor, na qual ele esperava que Stephen não "recuasse da palavra empenhada" nem se deixasse deter pelos "divertimentos e atrações de Paris",
Depois de a ler, Stephen atirou os seus pincéis sobre a mesa e saiu para a rua. Poderia ter ido ao Bois, onde sempre havia sombra embaixo das árvores, mas o seu
humor, deprimido e irritável, proibia-o. Em vez disso, apesar da sua fadiga e de uma sensação de estar absolutamente exausto, caminhou direto para cidade, através
de quilómetros de ruas monótonas. Lojas e cafés em todo o caminho, grandes a princípio, gradativamente menores. Quase todas vazias. Numa delas, deserta, um garçom,
com a cabeça nos braços, dormia numa mesa. Stephen passou por baixo das pontes da estrada de ferro, pelos trilhos serpenteantes do grande Terminal, atravessou canais;
finalmente, passado o octroi, encontrou-se num ermo poeirento fora das barreiras de Paris. A esse tempo, pingava de suor e continuava a repetir para si mesmo:
- Meu Deus, que vida... E papai pensa que os meus dias são uma ronda de prazer.
Quando voltou, parou na agência postal do Plaisance e escreveu um telegrama.
DESMONDE, REITORIA, STILLWATER, SUSSEX. ATRAVESSANDO BARCO CEDO AMANHÃ DEZENOVE JULHO.
STEPHEN.
CAPÍTULO X
NADA, PENSAVA STEPHEN, excede a alegria de revisitar os amados lugares familiares, meio esquecidos, agora vistos mais belos do que antes. Estendido na relva da ribanceira
do Lago Chillingham, com uma vara de pescar a seu lado, aquecido pelo sol da tarde, estava observando Davie lançar um peixinho prateado, ainda desajeitado, mas com
uma seriedade que traduzia aperfeiçoamento, entre os lírios floridos, debaixo de cuja frescura estava um lúcio escuro. O ar era claro e dourado, havia flores silvestres
por toda a parte, as árvores ostentavam a sua mais ampla e tenra folhagem; nas sarças, as rosas-de-cão, de um róseo delicado, exalavam o seu perfume, que se misturava
com o denso aroma das rainhas-dos-prados. Pombos revoavam distantes lá em cima e, da granja familiar, em Broughton Park, ele ouvia o cacarejo das aves.
Era difícil perceber que estava em casa havia duas semanas. Desde aquele momento em que, em Halborough, tinha sido recebido por Davie e Caroline - uma combinação
feita com delicada discrição - tudo corria tão maciamente que o tempo parecia voar. Sim, era bom estar de volta - se pelo menos não o tratassem como o filho pródigo
agora perdoado e que devesse ser mantido a todo o custo pela bondade. Desjejum na cama, o Times do seu pai fechado na bandeja - até ele protestar dizendo que preferia
levantar-se e tomar café com Davie lá embaixo; seus pratos prediletos no almoço e jantar, Beasley trabalhando mais horas na cozinha, Mould trazendo cestas de frutos
escolhidos; seus desejos atendidos, excursões planejadas; claramente, todos os membros da família estavam unidos num esforço diplomático para desarmá-lo.
O assunto da sua pintura não era discutido - estava morto desde a primeira noite, quando, a pedido do Reitor, mostrou as suas telas. Com uma contração do cenho,
entre uma carranca e um sorriso, ele reconheceu quão honestamente, embora de modo vão, o pai tentara aprovar o seu trabalho, perplexo diante de tudo o que via, o
olho assustado indo descansar, em particular, numa cena de banlieue que mostrava uma mulher pendurando um varal de roupa no fundo do seu quintal num dia de vento.
- Meu caro rapaz... você acha isto... belo?
- Sim. É um dos meus prediletos.
- Mas não compreendo. Por que tem que pintar uma corda de roupa?
- É a interação dos tons brilhantes, papai... contra o fundo sombrio, o vestido cinza e branco da velha...
Procurou explicar a base da sua ideia e como as cores puras eram aplicadas com uma espátula. Contudo, era claro que o Reitor continuava perplexo e não convencido.
Seguiu-se uma longa pausa. Por fim, depois de um último exame, seu olhar voltou-se dúbia e ainda inquisidoramente para ele.
- Suponho que um perito possa apreciar isto.
- Acho que pode.
A seguir, a consideração suplantou a crítica. Caroline, muito mais terna à sua maneira, tinha passado as suas roupas, costurado os botões da camisa, e a sua mãe,
estimulada no seu mundo solitário e peculiar, subitamente descobrira e declarara que usaria um novelo de lã com o qual, desde que ele estava em Oxford, pensava tricotar-lhe
umas meias.
Tinha sido, na maior parte, um grupo familiar restrito - para alívio de Stephen, o General Desmonde e sua mulher estavam na Escócia com Geoffrey, caçando - mas nesta
tarde, sabendo que ele e Davie tinham que estar em Chillingham, Lady Broughton convidara-os para o chá.
Com um olhar para o sol, agora obliquando na crista dos Downs, Stephen achou que era melhor saírem logo. Levantou-se, caminhou ao longo da ribanceira e ficou atrás
do irmão, que, embora desse sinais de cansaço, ainda lançava a sua linha, perseverantemente, na água indiferente. A pesca, até agora, tinha sido fraca - três percas
amarelas tão pequenas que não satisfaziam o gato da Reitoria. Ciente do apaixonado ardor que Davie tinha por aquilo, e aliás por qualquer esporte ao ar livre - um
sentimento tão contrário à sua própria indiferença, tão comoventemente incoerente também, dadas as condições delicadas do rapaz e da sua saúde, que estava longe
de ser robusta - ele desejava que uma grande e digna truta se enganchasse no anzol. Podia muito bem ver a alegria e triunfo que essa captura causaria.
Mas embora esperasse pacientemente, com uma palavra ocasional de animação, não houve esse golpe de sorte. Davie, refletiu com momentânea tristeza, nunca tinha sorte.
E enquanto o seu jovem irmão enrolava a linha, passou-lhe um braço nos ombros e, louvando o seu progresso em lançar a vara, condenando os elementos desfavoráveis
do calor e da luz, finalmente, aumentando o valor dos três peixinhos agora curvados e secos na cesta, trouxe-o de volta para a alegria.
- Acho que estou melhor - disse Davie esperançoso. - Esforcei-me muitíssimo. E, como você diz, essas percas não são más. Acha que dão para cozinhar?
- Perfeitamente.
- De qualquer modo... são muito pequenas.
- Quanto menor, melhor - disse Stephen.
Ao saírem pelo prado, evitando o longo caminho em volta do Foxcross Corner e, uma vez que estava tão seco, atravessando os carriços mais baixos, Davie tagarelava
com a viva animação que era um traço do seu caráter. Tinha crescido muito ultimamente, parecia alto para 14 anos, e os seus membros tinham a descoordenação da idade
ingrata, fazendo parecer que caminhava aos arrancos. Contudo, a expressão do seu rosto delicado era menos febril do que antes, e os seus ataques, Stephen soubera
de Caroline, eram menos fortes, revelando uma firme mudança na frequência. Ouvindo com simpatia, observando o jogo de luzes sobre aquelas feições bem talhadas, Stephen
estava consciente de uma profunda onda de afeição por seu irmão. Tinham estado juntos quase continuamente durante as últimas duas semanas.
Saindo dos bosques, pularam a grade de ferro que cercava o parque, onde o gado pastava placidamente, e dali a pouco chegaram à avenida que, contornando o jardim
formal que margeava o relvado, acabou levando-os à própria mansão, uma grande edificação vitoriana de arenito vermelho maciço, corrompida por torres e torreões,
que Lady Broughton pretendia ser a casa mais alta de Sussex.
Foi ela quem os recebeu, reclinada numa chaise-longue junto às janelas francesas abertas ao sul da sala de estar, pedindo-lhes que desculpassem a sua aparente indolência
- seu médico andava ridiculamente severo com ela pondo-os imediatamente à vontade com o tranquilo calor da sua acolhida.
- Bem-vindo, Stephen. - Segurando-lhe a mão, olhou-o de alto a baixo.
- Cheio de conhecimento de coisas lindas. Sinto que não tenha uma barba. Acho que Paris fez-lhe bem. Pode beijar-me o pulso como um francês?
- Não estive estudando essa arte.
- Que pena! - sorriu ela. - Não é, Davie?
- Só será uma pena se meu irmão voltar para lá, Lady Broughton.
- Bem dito. Você vê como estamos contentes em tê-lo de volta em casa outra vez, Stephen. Como prova disso, eu lhes darei pães de milho de Sussex no chá. Lembra-se
como gostava deles quando tinha a idade de Davie?
- Lembro-me, e muito! Ainda gosto. E Davie também.
Lady Broughton sorriu, e continuou a caçoar amavelmente. Contudo, ouvindo-a calado, Stephen notava a mudança por que ela passara. Sempre gostara daquela mulher,
baixa, de cores vivas, sem qualquer aparência de distinção, cuja boa e enérgica natureza e sólido bom senso transpareciam em todas as suas ações. E agora causava-lhe
mágoa aquela atitude passiva, aquela respiração rápida, o leve tom purpurino em suas faces sempre vívidas.
- Claire deve chegar logo - disse ela. - Atrevo-me a dizer que ela fará a sua entrada com uma cesta de rosas, como algo pintado por Gainsborough.
Quase como dissera a mãe, Claire entrou, não do jardim, nem com flores, de cabeça descoberta, não parecendo um Gainsborough mas antes um
Burne-Jones, no seu vestido de linho de corte quadrado no pescoço, de uma cor de burel que combinava com os seus cabelos vermelho-dourados. Embora tivesse sem dúvida
esquecido, Stephen disse imediatamente que ela condizia com aquela rica sombra pré-rafaelita.
A sua postura era admirável. Ninguém teria adivinhado quão rápido batia o seu coração, ou há quanto tempo ela esperava por este momento.
- Claire - fez Stephen dirigindo-se para ela.
- É tão bom ver você - disse ela. - E você, Davie.
Esperava que a ligeira cor que sentia subir-lhe às faces passasse despercebida. Vê-lo outra vez, sentir o contato dos seus dedos punham a sua compostura à prova
mais do que ela poderia esperar.
Nesse momento, foi servido o chá, não um repasto frugal de biscoitos e pão fino e manteiga, mas uma regular fartura colegial de ovos cozidos e pão de minuto, sanduíches
e pãezinhos de milho, com morangos e nata batida à Sussex, tudo disposto sobre uma mesa de pau-cetim com rodas.
- Achamos que você estaria com fome depois da pescaria - disse Claire a Davie.
- E estamos - concordou ele com entusiasmo. - Nosso lanche não foi grande coisa.
Segurou a xícara que Claire enchera e, polidamente, embora com certa ternura, levou-a a Lady Broughton antes de sentar-se.
- Obrigada, Davie. - Rompendo o ligeiro constrangimento, comentou, na sua maneira arreliante: - Claire, não acha que Stephen está com o ar de um parisiense?
- Está mais magro, talvez. - Que estúpida resposta! Mas ele estava em casa - e a inquietante doçura desse pensamento banhava de luz os seus olhos.
- Não acho que a comida francesa seja muito nutritiva - arriscou Davie seriamente. - Eu pelo menos não quero caracóis nem pernas de rã, ou coisas assim.
Todos riram-se, e depois que eram um alegre bando, Davie, como para provar a virtude da dieta anglo-saxã, empenhou-se numa viva discussão com Claire sobre os métodos
de apanhar lúcios, no fim da qual ambos concordaram que num dia como aquele uma isca artificial seria muito melhor que um barrigudinho prateado.
- Acho que há algumas dessas iscas no salão de bilhar - disse Claire, e após um momento de reflexão ajuntou: - Não gostaria de tê-las?
- Ora, ora... - murmurou Davie. - Mas não são para você? Quero dizer... está falando sério?
- Estou sim. Ninguém as usa. Venha comigo e daremos uma olhada. Perguntando se poderia ser desculpado, Davie levantou-se com alacridade e abriu a porta para Claire.
Saíram juntos.
Logo depois, Lady Broughton olhou meditativamente para Stephen, de quem ela sinceramente sempre gostara e por quem, na verdade, tinha admiração. O fato de ele ter
deixado a Igreja absolutamente não a perturbava - com uma natureza tão sensível, apaixonada e tímida, ela não o considerava talhado para ser um pastor rural. Nem
as suas recentes aventuras artísticas lhe causaram grande inquietação. Encarava-as apenas como um capricho passageiro, uma tendência temporária herdada sem dúvida
das excentricidades do lado materno - estava bem lembrada de como, quando era criança, ficara petrificada pelas coloridas extravagâncias do digno pai da Sra. Desmonde
- e que de modo algum diminuíam a finura essencial do caráter de Stephen. Contudo, era menos esta genuína atenção do que o seu conhecimento dos sentimentos de Claire
que a fazia desejar dizer alguma coisa compatível com a boa educação que pudesse trazer o assunto à baila. Naqueles últimos meses, tinha observado com simpatia a
indiferença e desatenção da sua filha, e notado também, não sem desconfiança, os seus esforços ocasionais para romper aquela disposição pensativa e achar distração
em atividades que lhe eram inteiramente alheias. Recentemente, Geoffrey Desmonde tinha sido um visitante persistente, e, quando menos pela maneira com que arrastava
as suas frases, Lady Broughtpn o detestava. Considerava-o estereotipado e banal, afetado, presumido e mimado; e tendo sido casada com um homem cuja pesada obtusidade
tinha feito da sua vida, por mais de 20 anos, uma penitência, não desejava semelhante destino para Claire.
Foi sem dúvida essa ordem de ideias que a levou a observar:
- Não tinha visto a sua prima desde que voltou?
- Não. Todo o pessoal do Simla parece estar na Escócia.
- Geoffrey tem dado muitos tiros por aqui.
- Ele gosta disso. Tem caçado?
- Claire e ele têm corrido bastante pelos Downs. Andam Juntos muitas vezes. Acho que a levou a Brooklands outro dia... para as corridas de automóveis.
- Não sabia que Claire se interessava por tais coisas.
- Não acho que ela se interesse... mas não fica bem recusar - disse Lady Broughton sorrindo.
Na pausa que se seguiu, inclinou-se ligeiramente para ele e continuou num tom que, embora confidencial, manteve deliberadamente casual.
- Preocupo-me um pouco com ela, Stephen. É uma pessoa tão quieta e introspectiva, se quiser - amiga, mas que não sabe fazer amigos. Para estar contente, ela precisa
do tipo certo de companhia - ou vou mais adiante e digo - o tipo certo de marido? Não preciso lhe dizer que não estarei aqui para sempre. Muito em breve, Claire
pode ficar só. E embora ela ame este lugar, são muitas as responsabilidades - que pode achar difícil assumir...
Não dissera nada de definido, nada que pudesse de qualquer modo embaraçá-lo, contudo não havia como se enganar quanto à sua intenção. Na verdade, antes que ele pudesse
falar, ela prosseguiu, colocando os dedos de veias ligeiramente inchadas no seu ombro.
- Acho que foi sensato passar aquela temporada em Paris. E o seu excelentíssimo pai foi sensato em deixá-lo ir. Nos meus dias, os jovens sempre faziam a grande excursão.
Isso não apenas era considerado uma necessidade virtual, mas tirava muitas coisas do seu sistema. Eles voltavam, estabeleciam-se como bons proprietários rurais e
constituíam uma família. Isso é precisamente o que você deve fazer, Stephen.
- Mas supondo... - Ele evitava o seu olhar, com uma ligeira cor nas faces. - Supondo que sinta que devo ir ao estrangeiro outra vez?
-Para quê?
- Para continuar a estudar... e trabalhar.
- Em quê?
- Pintura.
Ela abanou a cabeça e deu-lhe uma indulgente palmadinha na mão.
- Meu caro rapaz, quando eu era jovem e romântica, pensava que poderia escrever poesia, e escrevi, para minha vergonha. Todavia, livrei-me disso. E assim será com
você.
O argumento parecia conclusivo, e ela acomodou-se na sua almofada. Antes que Stephen pudesse responder, Davie entrou na sala com Claire, trazendo uma caixa de metal
laqueado.
- Veja, Stephen, o que Claire me deu. Todas estas belas iscas. Até giradores e bóias. E esta caixa impermeável.
- Não se esqueça - sorriu Claire - que eu espero muitos peixes.
- Agora vai ser fácil. Eu gostaria que a escola não reabrisse tão cedo.
- O inverno não é a melhor época para o lúcio?
- É, sim. E eu estarei à espera dos feriados de Natal.
- Bem, lembre-se de vir tomar chá sempre que estivermos em Chillingham.
Stephen levantou-se, preparando-se para se despedir, tocado pela bondade de Claire com Davie, por sua quieta amabilidade, aparente, mesmo com o seu ar reservado,
em cada palavra ou gesto. Os últimos lampejos da tarde douravam o comprido salão com suas colunas, não belo, mas acolhedor, encantador, com o sentimento de uma velha
casa de campo. Além das janelas, os escuros relvados mas ainda visíveis, sombreados pelo grande cedro, os bosques de faias com os telhados vermelhos das choupanas,
lá no alto, e mais longe, ondeando como o mar, os verdes Downs.
A caminho de casa, Davie achou o seu irmão estranhamente silencioso. Depois de relancear os olhos para ele uma ou duas vezes, disse:
- É formidável no Court. Você não deseja ir lá mais vezes?
Mas Stephen não respondeu.
CAPÍTULO XI
NA TERÇA-FEIRA SEGUINTE, o almoço na Reitoria estava quase terminado. Tinha sido uma refeição um tanto opressiva para Davie, já formalmente vestido, que devia voltar
à escola nessa tarde. Contudo, olhando em torno, Stephen sentia uma tensão maior do que a exigida pela ocasião, um ar geral de conspiração e expectativa. Sentia
também uma intensificação daquela intangível coerção, que, disfarçada em uma nuvem de afeição, vinha envolvendo-o de quando em quando durante as últimas duas semanas.
O Reitor, que já tinha consultado o relógio três vezes nos últimos cinco minutos, tornou a fazê-lo, terminou o seu café e, sem fitar ninguém em particular, disse:
- Acontece que o Sr. Munsey Peters está nas vizinhanças. Infelizmente não pôde vir almoçar. Mas eu o convidei a vir pouco depois.
- Que interessante, papai - murmurou Caroline, com os olhos no prato.
- Está se referindo - perguntou a Sra. Desmonde no tom de quem fora instruída a perguntar - a Munsey Peters?
- Isso mesmo. Conhece o Sr. Peters, Stephen? - Inatento, cortando uma careta numa casca de laranja para Davie, Stephen levantou os olhos, certo de que seu pai se
dirigira a ele.
- Sim, é membro da Academia Real.
Houve uma pausa. Contido, com a expressão subitamente fixa, Stephen esperava que Bertram caísse na armadilha.
- Achamos que ele podia ter vontade de olhar os seus quadros.
Houve outro silêncio, que Caroline se apressou em romper, com um ar de inteligência.
- Não é ótimo, Stephen? Agora você pode se valer do conselho dele.
- Acredito - disse a Sra. Desmonde - se a memória não me falha, que há uma paisagem de Peters no Salão Pump, em Cheltenham. Está pendurada sobre a Fonte de Chalybeate.
Uma vista das colinas de Malvern com uma ovelha. Cheia de vida.
- Ele está na primeira fila - concordou Bertram.
- Não há também um livro, papai - interpôs Caroline - algo como De Rafael a Reynolds, ou coisa parecida?
- Ele escreveu muitos livros sobre arte. O mais conhecido intitula-se A Arte pela Arte.
- Devo procurá-lo na biblioteca - murmurou Caroline.
- Você não se importa se mostrarmos a ele as suas pinturas? - O Reitor voltou-se para o filho com uma nova firmeza. - Desde que se apresentou a oportunidade, seria
sensato pedir-lhe a opinião.
Stephen empalidecera. Não respondeu por um momento.
- Mostre-lhe qualquer coisa que quiser. Sua opinião não tem nenhum valor.
- O quê? Munsey Peters é um académico famoso. Exibe regularmente há 15 anos.
- Que significa isso? Não posso imaginar nada mais mortal, mais vulgar e idiota do que as suas pinturas.
Bruscamente Stephen rompeu o seu silêncio, sentindo que o julgariam invejoso e com medo. Então, ao voltar-se, ouviu um som de rodas e, pela janela, viu um cabriolé
de aluguel chegando à porta da frente. Um homem baixo, tornado mais baixo por um vasto sombrero preto e uma capa preta do Inverness, desceu rápido do cabriolé, olhou
em volta e tocou a sineta. Bertram levantou-se e, acompanhado pela mulher e Caroline, foi a saguão. Stephen permaneceu sentado à mesa, vendo muito bem que tudo aquilo
fora arranjado - ele tinha vindo especialmente de Londres. A julgar por suas roupas, Peters não estava absolutamente visitando o campo - tinha vindo expressamente
de Londres, mas fora comissionado, sem dúvida por tal ou qual preço - vinha especialmente de Londres como um cirurgião chamado à cabeceira de uma pessoa gravemente
enferma, cujo diagnóstico era uma questão de vida ou morte.
Um toque tranquilizador no ombro acordou-o. Era Davie.
- Não é melhor irmos agora? Não se aborreça, Stephen, aposto que você vai sair por cima.
Na sala de estar, construída originalmente como um parlatório retangular e posteriormente afeada por janelas de sacadas vitorianas abertas ao lado oeste, Munsey
Peters estava sentado no sofá, gorducho, de cara lisa, solicitamente oficioso, já no centro de uma plateia inteligente.
Quando Stephen entrou, girou e estendeu-lhe uma mão amável.
- Então este é o seu jovem cavalheiro? Prazer em conhecê-lo, senhor. Stephen apertou-lhe a mão, dizendo a si mesmo, apesar do conflito de emoções no seu peito, que
não devia ter ódio àquele visitante indesejável, que sem dúvida era uma pessoa honesta e estimável, agindo de boa fé. Contudo, conhecendo o trabalho de Peters, que
sempre recebia destaque na imprensa e
muitas vezes era reproduzido nos melhores semanários, aquelas suas paisagens lanudas e interiores betuminosos, tresandando a sentimentalismo e cheios daquele claro-escuro
que Glyn tinha profanamente descrito como siena queimada e merde, Stephen não podia reprimir uma aversão instintiva, aumentada e não diminuída por aquele homenzinho
de aparência presumida e maneiras seguras, que, embora um tanto menos que assertivo, estava odiosamente satisfeito consigo mesmo. Recusara o almoço, tendo "satisfeito
o homem interior"
- suas próprias palavras - no vagão-restaurante que sempre acompanhava o expresso do meio-dia, mas, diante da insistência, consentiu em tomar café. E, balançando
a xícara nos joelhos, de pernas cruzadas, sapatos com polainas, dirigiu a Stephen uma série de perguntas agradáveis, exatamente como faria um notável académico para
deixar um neófito nervoso.
- Então esteve em Parri, hein?
- Sim. Pouco menos de um ano.
- Trabalhando duramente, espero, na cidade alegre. - Isto, com um olhar de humor velado para os outros; então, como Stephen não respondesse:
- Com quem estudou?
- No começo... com Dupret.
- Ah! E que pensa ele do amigo?
- - Eu realmente não sei. Deixei-o depois de poucas semanas.
- Hum! Hum! Isso foi um engano. - E, num tom intrigado: - Quer dizer que ficou a maior parte do tempo por sua própria conta? Não pode ter aproveitado muito dessa
maneira.
- Ao menos aprendi o quanto a força de vontade, a disciplina e a intensa aplicação são necessárias para fazer um bom artista.
- Ora! Isso é muito fino. Mas, e o aprendizado?
A frieza da voz de Stephen era provocante.
- Há certos elementos essenciais. Já os acentuei muitas vezes no meu livro. Ouso dizer que ele fez parte do seu estudo.
- Receio que não. Estive estudando no Louvre.
- Oh, copiando - exclamou Peters contrariado. - Isso não é bom. Um artista procura ser original acima de tudo.
- Contudo, todos os grandes artistas influenciaram uns aos outros - argumentou Stephen diretamente. - Rafael provém de Perugino, El Greco de Tintoretto, Manet de
Franz Hals. Todos os pós-impressionistas se ajudaram uns aos outros. A lista seria interminável. Porque, se me perdoa, vemos no seu próprio trabalho Leighton e Poynter.
A menção desses dois artistas, tão famosos na época vitoriana e agora esquecidos, trouxe ao rosto de Munsey Peters uma expressão confusa, como se mal pudesse saber
se a intenção era de louvor ou insulto.
A Sra. Desmonde, sempre diplomática, rompeu o silêncio.
- Deixe-me oferecer-lhe mais café.
- Não, obrigado - e devolveu-lhe a xícara. - Na verdade, tenho pressa, deixei o meu veículo à espera. Podemos entrar no assunto sério do dia?
- Com muito gosto. - Bertram, um apreensivo observador daquele choque de temperamentos, fez um sinal a Davie, que deixou a sala num pulo. Quase imediatamente voltou,
trazendo o primeiro quadro, uma vista do Sena em Passy, que colocou sobre uma cadeira de alto espaldar posta adrede em boa luz e diante do sofá.
Impondo silêncio com um dedo nos lábios, Munsey Peters ajustou o pincenê. Estudou a pintura intensa e longamente, inclinou a cabeça em vários ângulos; então, dramaticamente
fez um gesto para Davie, que a retirou, colocou-a junto à janela e trouxe a seguinte. Para Stephen, parado lá atrás com uma expressão insensível e um latejar doloroso
no coração, era uma experiência martirizante, uma crua exposição da sua delicada sensibilidade.
Olhou em torno para o círculo doméstico - o pai, sentado, muito teso, com as pontas dos dedos fortemente unidas, as pernas cruzadas, um pé balançando em nervosa
expectativa; Caroline, na banqueta junto ao sofá, com uma ruga de ansiedade na testa, olhando para Peters, ora para o chão; sua mãe, sonhadoramente confortável numa
poltrona, de todo indiferente; e Davie, no colarinho branco engomado e roupa cinza-escura do colégio, o cabelo penteado para trás, olhos brilhantes, sem compreender
bem a questão, e contudo cheio de confiança em que seu irmão seria justificado.
Acabou-se afinal, a última pintura fora mostrada.
- Então? - exclamou Bertram.
Munsey Peters não respondeu imediatamente, mas, erguendo-se, fez uma nova inspeção nos quadros contra o peitoril oval da janela da sacada, como para afastar qualquer
impressão de que o seu julgamento era apressado ou inconsiderado. Uma tela em particular, a mulher com as suas roupas brancas, parecia perturbá-lo de modo especial;
vez por outra, quase furtivamente, os seus olhos voltavam àqueles ousados contrastes e cores vivas. Por fim, deixou cair o pincenê, seguro por uma fita de seda lavada,
e tomou posição no tapete da lareira.
- Que deseja que eu lhe diga?
- Meu filho tem... - Bertram respirou fundo - alguma chance de se tornar um pintor... posso dizer... de primeira categoria?
- Nenhuma.
Fez-se um silêncio mortal. Impulsivamente, Caroline lançou um olhar de simpatia para o irmão. O Reitor curvou a cabeça. Stephen, com a sombra de um sorriso, continuou
a olhar diretamente para Munsey Peters.
- Naturalmente - continuou ele - eu poderia ser polido. Mas entendi que o senhor queria a verdade. E nessas telas, que têm talvez um certo brio
rude, ignoram completamente as grandes tradições da pintura, tradições de propriedade e restrição, só posso encontrar... - encolheu os ombros - matéria para condolência
e pesar.
- Então - disse Bertram lentamente, como se estivesse determinado a se convencer - se forem, digamos, submetidas à Academia, acha que seriam recusadas?
- Meu caro senhor, como membro da comissão de exposição, não sei, não estou seguro. Acredite-me, dói-me extinguir as suas esperanças. Se o seu filho quiser continuar
isto como um passatempo... um hobby... isso é com ele. Mas profissionalmente... ah, meu caro senhor, a pintura é, para todos nós que vivemos dela, uma arte cruel.
Não há lugar para fracassos.
Bertram lançou um olhar cheio de compaixão para o filho, como esperando que ele protestasse, ao menos oferecesse alguma defesa do seu trabalho. Mas Stephen, com
a mesma sombra de um sorriso, e aquele ar de orgulhosa indiferença, mantinha-se calado.
- E agora, se me desculparem - disse Peters, curvando-se.
O Reitor pôs-se de pé.
- Estamos muito agradecidos ao senhor... mesmo que o seu veredicto tenha sido desfavorável.
Munsey Peters curvou-se novamente e, ao deixar a sala com modos graves e polidos, aceitou prestemente o envelope que Bertram, após murmurar umas palavras de escusas,
escorregou-lhe na mão - uma transação efetuada com tamanha destreza que ninguém pareceu notá-la, a não ser Stephen. Dali a pouco se ouviu o rangido do cabriolé.
O professor tinha partido.
Como se para poupar os outros, mais do que a si mesmo, do embaraço, Stephen foi para fora. Ali, andando de cá para lá, de cabeça descoberta, estava o Reitor. Tomou
imediatamente o braço do filho, com um aperto de simpatia, e, após atravessar as lajes, observou várias vezes:
- Tenho que ir à sacristia. Quer caminhar comigo?
Ao subirem juntos a alameda, Bertram continuou, sombriamente, sem um indício de autojustificação.
- Stephen, essa foi uma experiência dolorosa para você, e, em grau nSo menor, para todos nós. Mas era imperativo para mim saber a verdade. Espero que não me reprove.
- Claro que não. - A voz calma do filho causou a Bertram uma viva surpresa, seguida por um sentimento de oposição.
- Você aceitou a coisa muito bem, Stephen - como um verdadeiro Desmonde. Eu temia que pudesse ficar encolerizado comigo por lhe ter imposto esse teste sem aviso.
Mas se eu lhe tivesse dito de antemão, você poderia ter recusado...
- Sim, acho que recusaria.
- Você percebe que não foi questão de influência indevida, que a opinião de Munsey Peters foi inteiramente dele?
- Estou certo disso. Acho até que o nosso pequeno argumento no começo eriçou ligeiramente a sua plumagem. Mas não há sombra de dúvida - ele detestou a minha pintura
como veneno.
- Ah! - murmurou o Reitor condoído. - Pobre rapaz.
Chegaram à igreja; detendo-se na cancela, Bertram pousou a mão na efígie do cruzado, um gesto costumeiro de apoio, e encarou o filho.
- Pelo menos o caminho agora está claro... e não há nada contra o seu regresso para ser ordenado. Não quero pressioná-lo. Há a toga, os serviços militares. Contudo
- olhou em torno - o seu lugar é aqui, Stephen.
Uma pausa quase imperceptível.
- Acho que não compreende. Não vou abandonar a pintura.
- Mas que diabo quer dizer?
- Simplesmente que tomei uma resolução, irrevogável, que vou dedicar a minha vida inteiramente à arte.
- Mas você acaba de ter uma opinião... com mil diabos... de um perito.
- Essa nulidade idiota... roída por um rancor secreto! O fato de ele ter difamado o meu trabalho foi o maior cumprimento que podia me fazer.
- Você está louco? - Cólera e desalento levaram o sangue à testa de Bertram. - Ele é um dos melhores pintores da Inglaterra e pode vir a ser o próximo presidente
da Academia.
- O senhor não compreende, papai. - A despeito da tensão das suas feições, Stephen quase sorriu. - Peters não pinta coisa nenhuma. O seu trabalho é convencional,
sentimental, e sem um traço de originalidade. O sucesso dele é o de uma mediocridade intrometida. Ora, até as tapeações do velho Dupret, com a sua peinture léchée,
são mais toleráveis. O senhor não sentiu nojo dos seus chavões, sua afetação, suas mãos gordinhas? Ele marcha com o rebanho. O verdadeiro artista só pode cumprir
o seu destino sozinho.
Durante esse discurso, que lhe pareceu bombástico, o rosto de Bertram foi gradualmente endurecendo. Empedernia-se contra a dor que sentia no peito, e um imenso desejo
de tomar o filho nos braços.
- Para qualquer pessoa normal, a evidência é clara. Você deve aceitá-la.
- Não.
- Insisto.
- Tenho o direito de viver a minha própria vida.
- Não, se está disposto a arruiná-la.
Nenhum deles levantou a voz. O Reitor estava muito pálido, mas os seus olhos nunca se afastaram do rosto do filho. Por baixo de sua agitação havia uma firmeza que
Stephen nunca tinha visto.
- Por simples justiça, você não me deve alguma retribuição por tudo que tenho feito por você? Sem dúvida, você afeta desprezar uma coisa tão sórdida como o dinheiro.
Contudo, gastei na sua educação - a mais primorosa que qualquer filho podia desejar - um capital que eu mal podia despender. Estamos muito menos bem do que estávamos,
e é com dificuldade que mantenho Stillwater nos padrões a que estamos acostumados. Sempre esperei que esta medida não fosse necessária. No entanto, para seu próprio
bem, devo repô-lo no seu juízo. Sua pensão está suspensa. E você verá que é impossível continuar sem ela.
Um compasso de silêncio latejou na pequena igreja. Stephen baixou os olhos, deteve-os por um longo momento na efígie de pedra do seu ancestral que, à meia-luz, parecia
sorrir-lhe cinicamente. Olhando para a espada, os grandes guantes de malha, uma frase das leituras da sua infância lhe veio à memória: mão de ferro em luva de veludo.
E suspirou:
- Bem, papai, isso parece resolver a questão.
Bertram apanhou o seu diário na sacristia - a mão lhe tremia tanto que mal podia segurar o grosso volume, sendo obrigado a apertá-lo Contra o flanco. Deixaram a
igreja em silêncio.
Pelo resto da tarde, Stephen foi um modelo de complacência, animando os outros com a sua vivacidade e bom humor. Às seis horas, insistiu em ir com Davie à estação
e embarcou-o no trem, despachando-o com alegre afeição. Depois, voltando, com uma expressão diferente, foi à fila de veículos, onde um motorista estava com a sua
bagagem, secretamente introduzida na de Davie. No horário colado na frente do guichê, viu que um trem costeiro partia dentro de uma hora. Comprou uma passagem e
sentou-se à espera dele.
CONTINUA
A TARDE MUDARA EM NOITE, e todo ímpeto e atividade dos Downs jaziam quedos, banhados em luz pérola. A relva seca, prateada como geada, soltava um vapor esgarçado que se prendia nas sebes como teias de aranha. As poças de orvalho, pires de leite desnatado, não refletiam a imagem de uma lua amarelenta que mirava, redonda e baixa, como o olho de um grande gato, agachado na colina, pronto para saltar.
Nessa quietude brilhante, de uma igreja normanda de pedra tão pequena que parecia perdida numa dobra do descampado - apesar dos nítidos contornos das suas linhas longas e breves, da sua torre achaparrada, de suas chagosas paredes inclinadas - inverossímil como um sonho, emergiu uma sombra, comprida e escura, à qual se seguiram um baque de carvalho e o tinido de um pesado ferrolho, a figura de um homem, menos comprido talvez, mas igualmente sombrio. Muito apropriadamente, um clérigo, Bertram
Desmonde, Reitor de Stillwater.
https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/MAIS_FORTE_QUE_O_AMOR.jpg
De cabeça nua, mas com uma capa sobre os ombros, enfiou pela confusão de lápides cobertas de liquens, passou os dois grandes teixos retorcidos, dos quais o mais
novo tinha sem dúvida fornecido arcos para os arqueiros de Sussex pelo menos durante cinco séculos, e depois atravessou a cancela para a azinhaga.
Aqui, apanhado pela brancura da noite, por um ímpeto da sua secreta alegria, fez uma pausa e, por um longo instante, aspirou a beleza da sua gleba, uns bons 100
acres, indo por um lado até os altos do bosque de faias de Ditchley, e pelo outro até a coutada de tojo arenoso que beirava a estrada para Stillwater. Na distância,
o Anel de Chanctonbury era visível contra o céu oriental, e mais abaixo, por entre árvores, o absurdo mas amigo torreão de Broughton Court. Para oeste, a planura
continuava, cortada por uma caleira
- ferida incruenta - por túmulos tidos como romanos, mas provavelmente restos de antigos fornos de ladrilhos. Vinham então as choças dos trabalhadores, seis, em
fila, como cogumelos, e frouxamente, acima da orla da estrada, o bruxuleio da aldeia. Abaixo dele, brilhante de luzes, a Reitoria.
Solidamente georgiana, com janelas paládicas, um espaçoso pórtico sustentado por colunas acanaladas e - delicioso pensamento! - uma balaustrada na cimalha, era uma
verdadeira casa de campo, construída pelo seu bisavô, Canon Hilary Desmonde, em 1780, em pedra branca dali mesmo - a pedreira, bem perto, estava agora felizmente
coberta pela vegetação. Traços de um Tudor primitivo ainda persistiam no celeiro e estábulos de tijolos, nos anexos da fazenda, no delicado muro de sílex e nos seixos
redondos que cercavam a ampla horta. Envolvida por relvados macios, orlados de canteiros de tulipas e prímulas, o jardim de roseiras, ainda não desperto, formando
um hexágono em torno do relógio de sol, cordões de rosas Ribston e Beauty of the Bath, com as suas soprepelizes de flores, como chantres, ao longo do prado do sul,
uma gigantesca azinheira sombreando a trilha ensaibrada, essa casa, esse pequeno abrigo de casca dourada, enraizado e imutável, seu lar, lar dos Desmondes por tantos
anos, especialmente esta noite aquecia de orgulho o coração do Reitor.
Quase certamente eles tinham vindo com o Conquistador. Um deles, o Sieur d'Esmonde, que estivera nas Cruzadas, jazia sob a sua efígie de mármore, com seu curvo nariz
quebrado, ai!, por algum turista vandálico, na pequena igreja de Downland. Se o nome tinha sido um tanto alterado pelo uso rústico - não se poderia aplicar a palavra
corrompido - ele não os identificava de modo mais completo com a boa terra de Sussex? Eles tinham prestado bons serviços à sua pátria nas três profissões abertas
para um cavalheiro: na Igreja particularmente, mas também na Justiça e no Exército. Seu irmão Hubert, após um longo e útil trabalho nas fronteiras do Afeganistão,
estava agora parcialmente aposentado em Simla Lodge, a cerca de 25 quilómetros, com o posto de general, e ainda em contato com o Ministério da Guerra, devotando
o seu lazer à cultura científica da pêra Jargonelle. Somente uma ocasião, até onde alcançava a memória, a família descera ao comércio: quando, no início do reinado
de Victoria, um Joseph Desmonde, tio-avô do Reitor, ocupara-se com a manufatura de objetos eclesiásticos. Mas como o negócio tinha certo sabor de discrição, trazendo-lhe
ainda uma considerável fortuna, o lapso, embora lamentável, era menos difícil de perdoar.
- Uma bela noite para o senhor, Reverendo.
Nas profundezas do seu devaneio, o Reitor deixara de notar a figura troncuda do velho Mould, seu jardineiro-chefe, que era também o seu sacristão, manquejando trilha
acima para fechar a igreja.
- Boa noite, Mould. Já a fechei, você pode voltar comigo. - Fez uma www.pausa, não revelando o impulso que, contra o seu hábito, o tinha levado à igreja; contudo,
estimulado pela alegria, acrescentou: - Stephen volta para casa esta noite, como sabe.
- E como é que eu ia esquecer isso, senhor? Uma notícia muito boa mesmo. Espero que ele tenha tempo de ir caçar coelhos comigo. E acrescentou mais gravemente: -
Nós logo o teremos no púlpito, quem sabe.
- Ele ainda tem algum caminho para andar, Mould. - Ao descerem a trilha juntos, Bertram sorria. - Embora eu me atreva a dizer que vocês gostariam mais de ouvir um
jovem recém-saído de Oxford do que um velho caturra como eu.
- Não, meu Pastor, não deve dizer uma coisa dessas. Não servi os Desmondes durante 50 anos para agora ignorar a sua qualidade. E pode pregar quem quiser pregar,
que não há ninguém melhor no país.
Bastava apenas essa tocante prova de lealdade quase feudal para selar a disposição do Reitor. O denso perfume das prímulas era, de certo modo, mais doce, os agudos
balidos noturnos dos cordeiros, atrás da cerca de varas, tão enternecedores que quase causavam um aperto no coração. Ah, esta Inglaterra, pensou ele: e aqui, no
seu próprio coração, preciosa como uma jóia, navegando ao luar como um navio de almas, esta pequena paróquia que seria de Stephen também, inviolada, intemporal e
imutável como a eternidade.
- Vamos precisar de alguém para a bagagem. Mande Albert ficar por perto.
- Farei isso, senhor... se ele estiver em casa. Estou tendo dificuldades com esse meu rapaz. Ele não gosta de trabalho. Mas eu dobro ele a pau... prometo.
- com o tempo, ele será um bom rapaz, Mould. Não seja duro com ele - disse Bertram, num tom neutro.
Despediu o velho diante da sua casa, baixa, de paredes curvas na frente, e momentos depois estava na larga entrada do saguão da Reitoria, entregando a capa à sua
filha Caroline, que, inevitavelmente, ali estava para recebê-lo.
- Ainda não chegaram?
Esfregou as mãos: o saguão tinha o defeito do seu teto alto e soalho de mosaico - dava uma sensação de frio da noite, mal atenuado pelo rumor dos tubos de calefação.
- Não, papai. Mas não devem demorar. Claire foi à estação no seu automóvel novo.
- Devemos comprar uma dessas engenhocas. - O reflexo de um capricho aliviou momentaneamente a austeridade das feições delgadas de Bertram e das faces um tanto encovadas.
- Será útil para visitar a paróquia.
- O senhor não está falando sério, papai. - A sua mentalidade prática, despida de humor, tomava-o literalmente. - Sabe o quanto detesta cheiros e poeira. E eu não
o sirvo bastante bem com o tílburi?
Sem dúvida, a iminência do regresso de Stephen a deixava nervosa. Assim, falara com mais vigor do que pretendia, com o seu rosto liso e sério brilhando de sentimento.
E em verdade, antes que ela o pudesse lamentar, a expressão ausente do pai, que, com o ouvido atento, esperava o ruído das rodas na alameda, puniu-a severamente.
Ela baixou os olhos, e seu corpo pesado, sustentado por duas robustas panturrilhas, diminuiu um pouco. Quando é que ele ia apreciar a profundeza ilimitada da sua
devoção, compreender que o seu único desejo era servi-lo? desde o exato momento em que começava o seu dia, depois de vestir-se às pressas, sem o benefício de um
espelho, ombreava com a carga da sua casa, conferenciava com a cozinheira sobre como ele seria alimentado, arranjava as flores, inspecionava o jardim e a granja,
tratava da sua correspondência, atendia visitantes importunos, via paroquianos doentes, desencorajava arqueólogos, juntamente com as carruagens que vinham aos domingos
e feriados cheias de gente, pedindo em coro para ver a "tumba", e ainda achava tempo para cuidar do seu linho e tricotar as suas meias de lã. E, para piorar as coisas,
estava resfriada e a toda hora tinha que assoar o nariz num lenço ensopado.
- Sua mãe vem? - Fez a pergunta com cautela.
- Acho que não. Esta tarde molhei a sua testa com água-de-colônia. Mas ela ainda se sente indisposta.
- Então seremos quatro para o jantar.
- Três. Claire telefonou para dizer que sente muito, muito, mas não poderá ficar.
- Que pena. Mas... haverá outros dias.
Seu tom de voz exprimia tristeza; contudo, ela percebeu que, a despeito da sua alta consideração por Claire, filha de Lady Broughton, da vizinha Court, e da sua
cálida aprovação do entendimento tácito existente entre ela e o seu filho mais velho, no fundo estava feliz nesta noite de reunião por ter Stephen inteiramente para
si.
Com esforço, ela conseguiu manter o tom sereno.
- Ainda não terminei de datilografar todas as suas notas para a convocação de amanhã. Quando partirá para Charminster?
- Oh, depois do almoço, suponho. O Deão raramente é pontual.
- Duas horas então. Eu o levo. - Subitamente, com ciúmes brilhando nos olhos, ajuntou: - O senhor parece cansado, papai. E terá um dia cheio amanhã. Não deixe Stephen
retê-lo até muito tarde.
- Não se inquiete, Caroline. E, a propósito, espero que nos apresente um bom jantar.
- Temos sopa hindu com caril e salmão que o tio Hubert nos mandou de Test, com pepino e molho verde, é claro, e depois um lombo de cordeiro com ervilhas da nossa
horta e batatas novas. Para sobremesa, Beasley fez aquela charlotte de maçã que Stephen tanto adora.
- Ah, sim, minha querida. Lembro que ele sempre a pedia ao voltar de Marlborough para casa. Mas, espere, não é o ruído de um motor?
De fato, ouvia-se um som fraco mas rítmico; avançando para a porta, ele a abriu, deixando ver um pequeno cupê de Dion, ativo e trepidante, do
qual, cessada a agitação por meio de alguma engenhosidade, emergiram duas figuras.
- Stephen!
- Como está, papai... e você, Caroline? Davie não está?
- Ainda não... ele terá licença na próxima segunda-feira.
O arco de luz do pórtico mostrou uma figura franzina de estatura abaixo de mediana, vestida de preto e forcejando com uma valise de couro - o rapaz de Mould não
aparecera - um relance, também, de feições finamente cinzeladas, narinas sensíveis, e um rosto estreito, pensativo, e um tanto sério. Então veio, com discrição,
deixando que as saudações familiares cessassem, uma jovem alta de mãos enluvadas e um comprido casaco de tweed. Seu boné de dirigir, com um véu pendente, absurdamente
como um bolo de cevada, usado apenas em deferência às instâncias maternas, não podia destruir o seu ar de tranquila compostura, uma inescapável sensação de boa educação,
confirmada por sua voz ao se reunir ao pequeno grupo.
- Lamento termos deixado atrás alguma bagagem. Minha baratinha não tem espaço para malas.
- Não se preocupe, querida Claire. Amanhã mandaremos buscá-la. O Reitor tomou-lhe o braço num gesto quase paternal. - Mas você não pode ficar conosco agora?
- Gostaria muito. Mas mamãe espera gente da aldeia... uma comissão de agricultores... arrendatários... que não podem ser despachados.
- Ah, sim! As obrigações da senhora de um proprietário rural. Não está uma linda noite?
- Perfeita. Ao passarmos por Halborough, estava claro como dia... Ela voltou a cabeça, um movimento que, dissolvendo a sombra do atroz boné, revelou um perfil puro
e regular. - Não estava linda, Stephen?
Ele ficara em pé, silencioso, num constrangimento de que agora parecia livrar-se com um esforço.
- Foi um belo passeio. - Depois, como se não tivesse dito o bastante, forçando uma frivolidade que lhe era de todo alheia: - Mas em certo ponto acho que devíamos
ter descido e empurrado.
- Em Ambry Hill - riu-se Claire. - Não sou muito entendida nas mudanças. - Seu sorriso demorou-se um instante na obscuridade do pórtico. Mas não devo detê-los. Boa
noite. Venham ver-nos logo... amanhã, se possível. E tenha cuidado com o seu resfriado, Caroline.
Quando ela saiu, Bertram pôs o braço no ombro do filho e levou-o para dentro de casa.
- É bom tê-lo em casa novamente, Stephen. Você não sabe... Ora, bem... como deixou Oxford? E como se sente? Faminto, estou certo. Corra lá em cima para ver sua mãe.
Depois, desça para o jantar.
E enquanto Caroline, com os olhos e nariz vermelhos pelo ar da noite, levantava uma sacola de livros que fora deixada, esquecida, no pórtico, o pai deteve-se um
pouco vendo Stephen subir a escadaria, olhando para cima com uma expressão que, na sua ternura descuidada, era quase um transe.
CAPÍTULO II
APÓS O EXCELENTE JANTAR, bem servido por duas copeiras que, outrora de uma primitiva grosseria de aldeãs, Caroline tinha treinado tão admiravelmente, o Reitor, amolecido,
levou Stephen para o estúdio, onde as cortinas de droguete estavam descidas e ardia um belo fogo de carvão de algas. O aquecimento da Reitoria podia não ser moderno,
mas as lareiras eram amplas e o combustível abundante. E isto se harmonizava com a sala, a despeito dos ornatos moldados, com um tom íntimo e esportivo para amenizar
o ambiente vagamente paroquial, confirmado por uma escrivaninha de tampa corrediça que continha os sermões de Pusey, o Calendário Eclesiástico, e uma estola de púrpura
dobrada. Um par de espreguiçadeiras de couro marrom flanqueava a lareira, contra uma parede estava o armário envidraçado das armas, em outra uma caixa de moedas
saxãs, produto das pesquisas arqueológicas do Reitor, e, acima do consolo da lareira, dois chicotes de cabo de osso cruzavam-se por trás de uma cabeça empalhada
de raposa.
Mais cedo, nessa tarde, preparando-se, Bertram descera ao porão da casa para uma visita à adega, e agora, com um ar ligeiramente consciente, apanhou uma garrafa
empoeirada, que deitara na cestinha, com as pintas de cal para cima, sobre a escrivaninha; tendo imperitamente tirado a rolha em pedaços, serviu dois cálices de
porto. Ele era um homem temperante, que só de raro em raro bebia álcool, e não usava tabaco, mas esta ocasião exigia um registro dentro da verdadeira tradição da
família.
- Seu avô guardou este - observou ele, segurando o cálice de vinho contra a luz e assumindo um ar de crítico. - É um GrahanVs, 1876.
Stephen, que detestava vinho do Porto, fez da sua poltrona um murmúrio de aprovação e levou o cálice aos lábios. Desempenhava, como um ator, o papel que dele se
esperava.
- Parece muito saudável.
A palavra agradou ao Reitor.
- Sim, o seu avô sabia o que estava fazendo. Foi ele que mandou colocar aquelas notáveis manilhas lá embaixo. Elas drenavam o South Meadow, como sabe, em 1878, e
sobrara boa quantidade delas. O velho viu que cada uma podia conter muito bem uma garrafa, e mandou argamassá-las na adega, como perfeitos favos... Naturalmente,
ele não era um grande bebedor. Mas gostava do seu quartilho de clarete após um bom dia com os cães. Deixou-nos, como sabe, quando tinha 70 anos.
- Deve ter sido um grande caráter.
- Era um bom homem. Um verdadeiro cavalheiro inglês do campo.
O Reitor suspirou. - Não se pode desejar um epitáfio mais belo.
- Minha avó também - acudiu Stephen devidamente, porque, desde Oxford, meditando nervosamente enquanto o trem corria pelos prados, pomares e tortuosas regiões, resolvera
ser inteiramente filial. - Ela não ficava muito atrás dele... Mould me contou muitas histórias a seu respeito.
- Ah, sim, ele era muito devotado a ela... como todos os seus serviçais. Mas ela o trazia num pé só. - Um vagaroso sorriso de reminiscência assomou aos olhos de
Bertram. - Você sabe que nos seus últimos anos a velha senhora tornou-se excessivamente gorda. Na verdade, tinha dificuldade em andar, era obrigada a locomover-se
num carrinho, e Mould, e depois o filho do jardineiro, ambos serviam como meio de propulsão. Por mais seis penies semanais. Era uma grande honra. Mas um tanto extenuante,
especialmente quando sua avó desejava ir à aldeia e tinha que ser empurrada durante todo o caminho até Ambry Hill. Num dia quente de verão, quando alcançou o topo
da colina, o jovem Mould parou para enxugar o rosto na manga. Mas ao deixar escapar a cadeira de rodas, lá se foi ela sem ele, aumentando de velocidade, zunindo
colina abaixo e em torno da curva numa velocidade vertiginosa. O coitado do rapaz ficou petrificado. Via-se como o assassino da sua ama. Com um grito de horror,
precipitou-se encosta abaixo. Quando chegou...
Stephen, encolhendo-se, pôs-se a rir; conhecia a anedota de cor.
- ... lá estava a sua avó, calmamente na praça da aldeia, barganhando com o açougueiro as costelas de um cordeiro. - O sorriso de Bertram extinguiu-se. - Era uma
mulher indomável. Imensamente caridosa. E devotada ao meu pai. Morreu somente oito semanas depois dele.
Estaria o Reitor pensando no seu próprio casamento? Lá fora, piou uma coruja. Na copa, no fim do corredor, Caroline estava mexendo em jarras de cerâmica de picles
com uma brusquidão desnecessária. Bertram endireitou-se e bebericou o seu porto, consciente de que devia quebrar o silêncio antes que houvesse um constrangimento
entre ele e Stephen. Como era estranho terem um grande carinho, e, contudo, uma sensação desse embaraço perseguir as suas relações sempre que ficavam a sós. Seria
porque ele se preocupava demasiado? Nunca tinha sentido essa falta de naturalidade na companhia dos
seus dois outros filhos. Naturalmente, ele gostava de Caroline, aceitava aquela sua fortaleza, considerava-a uma "grande presença". Mas a sua domesticidade, conservando-a
uma perpétua solteirona, chocava inconscientemente o seu senso de orgulho de família. Quanto a David, seu filho mais moço, agora com quase 13 anos de idade, aqui,
ai! o seu amor mergulhava em tristeza, decepção e pena. Pensar que um filho seu, aliás, qualquer Desmonde, fosse um epiléptico que, mesmo sem sofrer ataques, tendia
a gaguejar!
O Reitor reprimiu um suspiro. Ceder a tal sentimento era perigoso. Contudo, no seu presente humor, não havia como evitá-lo.
- Que bom ter terminado seus estudos em Oxford. Você se saiu bem.
- Oh, não sei não. No fim, pareceu-me ter perdido o ânimo.
- Eu também me senti assim quando voltei de Trinity... embora gostasse de lá tanto quanto você.
Stephen ficou silencioso. Como poderia dizer a papai que detestava a universidade?... aquela secura, a superioridade, a sensação de estar fora da vida, a interminável
preocupação com esportes que não o interessavam, o estudo sem sangue de línguas mortas que o aborreciam inexprimivelmente, de pura contrariedade, acima de tudo aperfeiçoar-se
em francês e espanhol... sua aversão a uma carreira que lhe fora determinada.
Mas o Reitor dizia:
- Você ganhou umas férias. Claire o quer para jogar ténis. Seu tio Hubert convidou-o para Chillingham. O salmão dele não esteve bom esta noite? Seu primo Geoffrey
está aqui, numa breve licença.
Novamente Stephen não respondeu. E pela primeira vez Bertram começou a se questionar, se, por baixo da sua maneira passiva, o seu filho não estava combatendo sinais
de Cansaço. Sua palidez natural parecia mais intensa, e seus olhos tinham aquela negrura aumentada que, diminuindo o resto do seu rosto, - representara desde os
seus primeiros dias um sintoma de mal-estar físico ou emotivo. Ele não é forte, espero que não esteja adoecendo de alguma coisa, pensou Bertram, com súbita ansiedade,
e rápido, protetoramente, declarou:
- Você tem mesmo que descansar. Não precisa ir à Sede antes de julho. Descontando cinco meses para Londres, a sua ordenação seria no Natal, a quadra mais conveniente
do ano.
Stephen levantou-se. Por muito tempo havia antecipado este temido momento, tentado, a conselho do seu amigo Glyn, apressá-lo, e então recuava nervoso, escrevia uma
dezena de cartas, e sempre as rasgava. Agora aquilo estava diante dele, e ele se sentia mal, vazio por dentro.
- Papai... preciso falar com o senhor.
- Sim? - Animou-o com um aceno, as pontas dos dedos juntas.
Uma pausa. Seria dinheiro?, pensou serenamente o Reitor. Alguma dívida não paga na universidade? Então, ouviu as palavras entrecortadas:
- Eu não quero ser ordenado.
A expressão do Reitor não se alterou aparentemente, como se uma súbita e completa surpresa tivesse, como a morte repentina, paralisado as suas feições numa semelhança
de normalidade. Por fim, quase estupidamente, disse:
- Não quer?
- Acho que não sirvo para a Igreja... Não sou bom com pessoas Não sei organizar... Eu seria incapaz de pregar um sermão decente, ainda que para salvar a minha própria
vida.
- Essas coisas virão. - Em pé, Bertram estava quase franzindo o cenho.
- Os meus próprios sermões não são particularmente brilhantes. Mas bastam.
- Mas papai, não é apenas isso. Eu não tenho interesse por esse trabalho. Eu... eu não me sinto capaz de sucedê-lo aqui...
Confirmado em sua primeira suspeita pela voz interrompida, o Reitor recuperou-se e assumiu um tom brando.
- Você está cansado e abatido, meu filho. Nós todos ficamos cansados e desanimados ocasionalmente. Você se sentirá diferente depois de umas caminhadas pelos Downs.
- Não, papai. - Respirando irregularmente, Stephen fortificou a sua vontade. - Venho sentindo isto há muito tempo. Não posso amarrar-me neste lugarzinho... a um
futuro vazio e frustrado.
Que tinha dito ele, procurando desesperadamente as palavras? A expressão chocada nos olhos do seu pai afligiu-o. Um momento de insuportável silêncio. Então:
- Não percebi que você via Stillwater sob esse aspecto. Somos uma pequena paróquia, talvez. Mas nosso valor para o país pode ser julgado por outros padrões que não
os da mera dimensão.
- O senhor me interpretou mal. Eu gosto de Stillwater. ., é o meu lar. E sei o quanto o senhor é estimado em quilómetros e quilómetros aqui em volta. É uma coisa
diferente... certamente o senhor entende o que eu quero dizer... o que acho que devo fazer com a minha vida.
O Reitor recuou bruscamente, e então, com toda a compreensão, olhou sobressaltado para o filho.
- Stephen... não será aquela ideia doida outra vez?
- É, papai.
Novamente um compasso de silêncio vibrou entre eles. O Reitor pôs-se de pé, e começou, lentamente a princípio, depois com crescente perturbação, a andar de cá para
lá. Finalmente, com um esforço, acalmou-se e aproximou-se de Stephen.
- Meu querido filho - disse ele com grande seriedade. - Eu nunca tentei prendê-lo a mim pelo seu senso do dever. Mesmo quando você era muito moço, antes de ir para
a escola, preferi confiar nos seus sentimentos naturais
de afeição e respeito. No entanto, deve compreender o quanto contei inteiramente com você para me suceder aqui... Stillwater significa tanto para mim... para todos
nós. E as circunstâncias da minha vida... a invalidez de sua mãe... a infeliz deficiência de David... o fato de ser o meu filho mais velho e, perdoe-me - a sua voz
tremeu ligeiramente - meu filho bem-amado - levou-me a colocar as minhas esperanças em você. Contudo, neste momento, ponho tudo isso de lado. Por minha honra, é
em você que estou pensando, e não em mim, quando lhe digo, quando lhe suplico que esqueça esse sonho fantástico. Você não compreende realmente o que isso significa.
Você não deve... não pode realizá-lo.
Stephen baixou os olhos a fim de não ver o rosto contraído do pai.
- Mas eu com certeza tenho direito à minha própria vida. - Através do seu respeito ardia uma íntima confiança.
- Não a essa espécie de vida. Ela só lhe trará infelicidade. Jogar fora as suas brilhantes perspectivas, arruinar toda a sua carreira por um mero capricho... seria
um ultraje à face de Deus. E depois há Claire... como, em nome do Céu, ela caberia nesse plano? Não, não. Você é muito jovem para a sua idade, Stephen... Essa ideia
louca que se apoderou de você pode lhe parecer muito importante agora. Mas dentro de poucos anos, rirá de si mesmo pelo simples fato de ter pensado nela.
Afundado na sua cadeira, de faces vermelhas e olhos baixos, com o espírito tardo e embotado pelo vinho do Porto, Stephen não podia achar uma palavra para dizer.
Naquele momento, sem exagero, odiava o seu pai. contudo, ao mesmo tempo, mostrava-se vencido pela vergonhosa consciência da sua afeição paternal, pela gratidão e
justiça do seu ponto de vista, e, pior que tudo, por uma tépida onda de nostalgia que lhe subia à garganta, um dilúvio de recordações da infância... as corridas
de tílburi a Ambry, seu pai afrouxando as rédeas, Carrie no seu limpo avental branco, Davie usando os seus primeiros calções de flanela; os piqueniques à beira do
Avon, o sol quente na água fria, e um pato selvagem subindo do juncal amarelo à medida que a canoa avançava; as canções familiares entoadas diante da árvore de Natal,
uma poeira de neve nas vidraças... oh, como poderia arrancar essas ternas, fortes raízes?
Bertram inclinou-se para diante e, não de modo comovente, mas com um toque de desconfiança, pôs-lhe a mão no ombro.
- Acredite-me, trata-se da sua felicidade, Stephen. Você não pode... não poderia achar no seu coração alguma coisa contra mim.
Stephen não se atrevia a erguer os olhos, com medo de romper em lágrimas. Estava liquidado... pelo menos no presente. E ele tinha pensado lutar duramente, tinha
jurado a Glyn que ganharia a partida.
- Muito bem - conseguiu murmurar finalmente, provando toda a
amargura que a derrota traz a uma natureza dócil mas apaixonada. - Se é assim que o senhor pensa, com tanta veemência... tentarei a Sede... para ver o que acontece.
CAPÍTULO III
BERTRAM SUBIU AS ESCADAS VAGAROSAMENTE. Embora fosse grande a sua sensação de alívio, não diminuía o cansaço que lhe viera de repente, nem a demorada ansiedade do
seu coração. Diante do quarto da esposa, hesitava, com a cabeça inclinada numa atitude de escuta; depois, batendo ligeiramente no painel, empertigou-se e entrou.
Era um vasto compartimento, outrora a sala de estar de cima, a melhor da casa, como referira o velho Cónego Desmonde, sem dúvida por suas belas proporções e por
dar para o sul, o que, além de permitir a entrada do sol da manhã, oferecia um vasto panorama dos Downs. Na sua conversão em quarto e sala de estar da esposa, parte
da mobília original tinha sido mantida - as cadeiras de tapeçaria e os canapés Chippendale, um largo espelho em semicírculo com moldura de gesso em cima do consolo
de mármore branco da lareira, o tapete vermelho de Bruxelas. Protegida por um guarda-vento, Julia Desmonde estava deitada, lendo, embaixo de uma cobertura de cetim.
Era uma mulher formosa e bem conservada, de 45 anos, com grande ar tranquilo e muito indolente, feições cheias e lisas, e um denso cabelo castanho espalhado no travesseiro
como uma nuvem.
Marcando com uma unha branca o lugar do livro que tinha o desenho de uma figura do zodíaco, Julia dirigiu para o marido, por baixo das finas sobrancelhas, um olhar
inquiridor. Seus olhos eram de um notável azul de amor-perfeito, quase infantis, com pálpebras carnudas quase caídas.
- Então temos Stephen em casa novamente - disse ela.
- Sim, achei que meu querido filho estava com boa aparência. Podia-se contar com ela para exprimir, na sua voz aristocrática e absorta consigo mesma, uma opinião
contrária à dele.
- E a dor de cabeça?
- Melhor, muito obrigada. Sentei-me demais ao sol esta tarde. O sol desta primavera precoce é muito traiçoeiro. Mas eu acabo de fazer um tratamento.
Ele percebeu, pelo aparelho que estava na mesa ao lado, que ela acabara de aplicar uma das suas vibrações. No guarda-fogo, uma caldeirinha de metal assobiava com
um alegre penacho de vapor, indicando que em 20 minutos o extrato de farelo seria levantado e misturado, os tabletes de fermento esmagados e engolidos, o iogurte
batido, ou desta vez seriam algas secas? Então a bolsa de água quente seria reenchida, o fogo disposto para a noite, as luzes diminuídas, as almofadinhas para as
pálpebras umedecidas e colocadas para dormir. E outra vez, embora lutasse contra ela com determinação cristã, a pergunta lhe veio: Por que cargas-d'água tinha casado
com ela?
Ela fora, sem dúvida - aliás ainda o era, evidentemente na sua maneira estatuesca, uma espécie de beleza, e como filha única de Sir Henry Marsden de Haselton Park,
tinha sido considerada pela sociedade do campo daquela ocasião "o partido da estação". Quem, olhando-a, teria adivinhado, por exemplo, que aquela jovem com a graça
de um cisne, anfitriã da Haselton Fête, considerada a beldade do baile de caça, cercada por jovens oficiais dos quartéis de Charminster, sorridente mas composta,
centro de atração, mais tarde revelaria a acentuada peculiaridade de ser tão inteiramente inútil para ele como esposa?
A não ser por uns poucos garden-parties nos seus primeiros anos de casados, quando arrastava um guarda-sol com babados, movendo-se graciosamente sobre a relva, com
um chapeirão, ela se recusara com pacífica resolução a tomar interesse pelas obras da paróquia. "Deus", dizia ela amavelmente, "não há nenhum sentido em levar sopa
para rústicos indigentes ou estragar os nervos costurando roupa de criança para encorajamento da população rural." Afortunadamente, a mulher do bispo gostava dela,
mas ela não recebia as senhoras da clerezia menor.
Preferia passar os dias sentada, exageradamente vestida, à sua janela, ou no roseiral, empenhada num interminável bordado em seda colorida, do qual levantava a cabeça
repetidamente para olhar por longos períodos o espaço, ou tomar notas ocasionais, quando lhe ocorriam, do que haveria de comunicar ao seu médico, que - tendo há
muito esgotado o doutor do condado - visitava duas vezes por mês em Londres. Seus filhos, que ela suportava com uma facilidade distraída, não tinham sido para ela
mais do que episódios momentâneos. Desde que não a incomodassem, ela os considerava com remota indulgência. Contudo, ao aumentar, mais e mais, o seu alheamento,
ela se retirava para si mesma, criando uma existência que se desenvolvia em torno das suas funções físicas, um pequeno mundo de feliz hipocondria, no qual - poderia
ele, ó Deus, tê-lo previsto quando naquela tarde cheirando a rosas, 20 anos atrás, ele quase morrera de dor com o seu beijo aromático? - ela não tinha maior prazer,
nenhum interesse mais vivo, do que discutir amavelmente com ele a cor dos seus tamboretes.
Talvez o cavalo de campanha empalhado no saguão paterno - lembrança de Balaclava - devesse tê-lo advertido, mas, ai! podia ter predito que o pai dela, até a idade
de 60 anos, não era mais que um excêntrico amável, dedicado em suas horas de fazer as pesquisas mecânicas - a eletrificação da sua propriedade por uma cadeia de
moinhos de vento, a inócua construção de um canhão de tiro rápido que, recusado pelo Ministério da Guerra, tinha não mais do que levado ao céu, na sua parte de carne,
o mordomo da família, que, em nome de Deus, devia ter previsto que aquele irreprimível doido teria, na sua caduquice, lançado subitamente um grandioso projeto para
a construção de uma máquina voadora, como a que foi subsequentemente voada por Blériot através do Canal da Mancha, embora aquilo em si mesmo fosse extremamente doentio,
e não passasse de uma feia geringonça com fantásticos parafusos, supostamente capaz de subir do chão na vertical: um helicóptero. Assim, em desafio às leis da gravidade,
Sir Henry profanara o seu belo parque com alpendres e hangar, operários importados, engenheiros, um mecânico belga, gastara dinheiro como água, em resumo, arruinara-se,
e, permanecendo no chão, morrendo como alvo de mofa.
Haselton, que devia ter sido de Julia, era agora uma escola para meninas, o grande hangar um ginásio, e os alpendres - horrores - recém pintados depósitos para tacos
de hóquei enlameados e sapatos desemparceirados de lona.
Seria possível, pensava Bertram, com novo abatimento, que algo dessa instabilidade agora se manifestasse em Stephen? Não, não... impossível. O filho, tão de perto
parecido com ele em corpo e alma, era todo dele, de fato o seu outro eu. No entanto, devido à sua ansiedade, a nuvem que pairava sobre o seu espírito, era tentado,
a despeito do seu melhor juízo, a abrir a mente e procurar alguma espécie de consolo da parte de sua esposa.
- Minha querida - disse ele. - Enquanto Stephen estiver conosco, acho que devemos fazer um esforço para afastá-lo de si mesmo.
Julia mirou-o surpreendida. Ela possuía em grau notável a faculdade de torcer o sentido do que lhe diziam.
- Meu caro Bertram, você sabe muito bem que não posso fazer qualquer esforço. E por que Stephen deve ser afastado de si mesmo?
- Eu... eu estou preocupado com ele. Ele sempre foi um rapaz incomum. Está atravessando uma fase difícil.
- Difícil, Bertram? Ele já não passou pela puberdade?
- Naturalmente... mas não sei o que se passa com esses rapazes. Na primavera, metem ideias estranhas na cabeça.
- Você quer dizer que Stephen está em estado de amor?
- Não... bem, sabemos que ele gosta de Claire.
- Então o que quer dizer? Ele não pode estar doente. Você mesmo disSe um momento atrás que ele está muito bem.
- Foi você quem disse isso. - A despeito de si mesmo, Bertram falava com crescente impaciência. - Acho que ele está longe de se sentir bem. Mas vejo que você não
deseja participar da minha ansiedade.
- Desejo que me fale, meu querido, não faço nenhuma objeção a ouvi-lo. Mas não é suficiente você estar aborrecido sem me aborrecer? Acho que
fiz a minha parte em trazer os seus filhos ao mundo. Sempre houve, do primeiro ao último, pouco prazer nessa tarefa. Depois, você fez deles sua responsabilidade.
Eu jamais interferi. Por que devo fazê-lo agora?
- É verdade - disse ele, tentando reprimir a sua amargura. - Faria pouca diferença para você se Stephen arruinasse a vida dele. Julia, há alguma coisa nele, algo
debaixo da superfície, que eu não compreendo. O que é que ele realmente pensa? Quem são os seus amigos? Não se lembra de que quando Geoffrey o visitou no ano passado,
em Trinity, encontrou lá a pessoa mais inesperada no seu alojamento... um excêntrico de primeira, foi como Geoffrey o chamou, um artista desmazelado... um galês
Interrompeu-se, olhando quase súplice para ela, até que ela foi obrigada a responder. Sua voz era suave.
- Que tem você contra os galeses, Bertram? Eles possuem belas vozes. Esse galês canta?
- Não - replicou Bertram, corando. - Ele vive insistindo com Stephen para que vá a Paris.
- Muitos jovens já fizeram isso antes, Bertram.
- Até concordo. Mas, desta vez, não pela razão óbvia.
- Então por que razão, se não é para ter uma mulher francesa?
- Para pintar!
Tinha-o dito, livrara-se daquilo afinal; e tensamente, embora com uma certa sensação de alívio, esperou, em silêncio, que ela falasse.
- Devo confessar, Bertram, que não vejo mal algum nisso tudo. Lembro-me de que, quando estive em Interlaken com papá, fiz algumas deliciosas pequenas aquarelas do
lago. Azul era o tom predominante. Stephen sempre gostou de desenhar. Aliás, foi você quem lhe deu a primeira caixa de lápis de cor.
Ele mordeu forte os lábios.
- Isso não é ocupação de criança, Julia. Sabe que há mais de um ano, sem nos dizer uma palavra, ele tem viajado de Oxford para assistir às aulas noturnas de arte
em Slade?
- Slade é uma instituição respeitável. Stephen terá bastante tempo para fazer seus esboços entre os sermões. E, sem dúvida, desenhar é Um calmante para os nervos.
Ele refreou o seu impulso de gritar. Por um momento, manteve os olhos baixos, no tom de quem foi Vencido, mas, respirando um pouco depressa demais, disse:
- Espero que tenha razão, minha cara. Suponho que me preocupo desnecessariamente. Sem dúvida ele se restabelecerá logo que entre na rotina do seu trabalho em Londres.
- Sem dúvida. E, Bertram, resolvi que, em vez de Harrogate, irei a Cheltenham no mês que vem. Lá há águas minerais, e dizem que são excelentes para promover a secreção
da bile. Quando o Dr. Leonard examinou a minha urina pela última vez, encontrou uma acentuada insuficiência de sais biliares.
Ele deu boa-noite, em tom baixo, e saiu rapidamente, antes que dissesse coisa pior.
Ao sair do quarto, podia ouvir no corredor o lento tique-taque da máquina de Caroline, que, sem se poupar, batia as notas para o seu discurso do dia seguinte.
CAPÍTULO IV
NUMA TARDE CINZENTA E ENEVOADA, seis semanas mais tarde, Stephen, voltando de uma visita de casa em casa, caminhava lentamente pela Clinker Street, no East Stepney.
A nuvem sulfurosa sobre as docas de Londres tornava o estreito logradouro mais triste e opressivo para ele. Nenhuma luz, nenhuma cor - somente a inércia dos carros
de descarga vazios, os paralelepípedos graxentos, um cavalo da zorra de um cervejeiro fumegando na chuva, com os arreios dentro de um saco gotejante. Um ônibus ruidoso
passou no rumo oeste, salpicando-o de lama quando ele voltava para a Sede.
Aquela construção de tijolo vermelho, erguida no alinhamento das casas de estuque derruídas que se inclinavam ao longo da rua como velhas decaídas, agora mais do
que nunca parecia-lhe uma pequena mas eficiente penitenciária. Nesse momento, abriu-se a porta da frente e o Guardião, o Reverendo Crispin Bliss, saiu, de guarda-chuva
em pé, nariz levantado para farejar o tempo, alto, magro, envolto até os sapatos em uma comprida capa impermeável preta. Um encontro, pensou Stephen, era inevitável;
e aproximou-se.
- Ali, Desmonde... já de volta?
O tom frouxamente cordial era, achou Stephen, o de um homem que procurava gostar dele e não podia, a despeito da melhor das intenções e dos reclamos do amor fraterno.
Inquestionavelmente, o Reverendo Crispin Bliss, membro da confraria de St. Cuthbert era um clérigo devotado que trabalhava
arduamente pelo bem da sua vinha infrutífera. Clérigo menor, com fortes tendências evangélicas, era um homem de sincera embora limitada piedade. Religião à parte,
porém, a sua maneira era muito pouco atraente: seco, académico, suscetivelmente superior. Igualmente infeliz era a sua maneira de caminhar com a cabeça atirada para
trás, o ar nobre com que procurava se proteger, e, sobretudo, a sua voz rachada, ligeiramente fanhosa, parecendo sempre pronta a pronunciar contradições culturais
em notas de agudo falsete. Quase no início, Stephen tivera a má sorte de ofendê-lo.
No corredor superior da Sede estava pendurado um cruento quadro do martírio de São Sebastião, que para Stephen sangrava de novo sempre que ele saía da sua sala.
Desde que a pintura parecia ignorada por todos menos ele, uma manhã, num momento de aversão, virou-a contra a parede. O ato passou aparentemente despercebido. Mas
na ceia dessa noite, com um sorriso magoado que passou por cima dos seus dois coadjutores, Loftus e Geer, e foi repousar em Stephen, o Guardião observou, nos seus
tons mais nasais:
- Não faço objeção ao humor, mesmo na sua forma mais disfarçada, a brincadeira de mau gosto. Mas interferir em qualquer objeto desta casa que por seu assunto ou
associação possa ser considerado como sagrado é, para o meu espírito, um ato indecoroso e irreligioso.
Stephen corou até a raiz dos cabelos e manteve os olhos no seu prato. Não tinha querido fazer mal algum, e quando a refeição terminou, o desejo de explicar-se levou-o
ao Guardião.
- Lamento ter virado o quadro. A única desculpa que posso oferecer é que ele bulia com os meus nervos.
- Com os seus nervos, Desmonde?
- Bem... sim. É de um gosto muito chocante, além de ser evidentemente uma falsificação.
- Não posso compreendê-lo, Desmonde. O quadro é um legítimo Carlo Dolci.
Stephen sorriu em tom de desculpa.
- Oh, dificilmente, senhor. Nem sequer isso. Além das pinceladas grosseiras, e do pigmento moderno, é pintado em tela branca de cânhamo - um tecido que só foi manufaturado
por volta de 1890, uns bons 200 anos após a morte de Dolci.
A expressão do Guardião petrificou-se. Respirava rapidamente pelas narinas, não fogo precisamente, mas a contrapartida cristã da cólera - justa indignação.
- Acontece que esse quadro é meu, Desmonde, e uma propriedade muito estimada. Comprei-o de um jovem na Itália, de fonte impecável. A despeito da sua opinião, continuarei
a apreciá-lo como o original de uma obra de arte.
Agora, todavia, havia menos hostilidade do que vigilante moderação no
olhar com que o Guardião, parado na chuva, ofereceu a Stephen o abrigo do seu guarda-chuva e perguntou:
- Fez a série de Skinner esta tarde?
- Praticamente toda, senhor.
Não queria confessar que, esperando a visita de Richard Glyn, tinha saltado os números ímpares.
- Como encontrou a velha Sra. Blimey?
- Não muito bem, receio.
- A bronquite da pobre criatura piorou? - Depois, como Stephen hesitava, parecendo inquieto, ajuntou: - Ela precisa do médico?
- Não... não exatamente. Aliás, encontrei-a muito embriagada.
Houve uma pausa perturbadora, então veio a pergunta um tanto mundana:
- Como é que ela conseguiu dinheiro?
- Acredito ser o responsável, senhor. Dei-lhe seis xelins ontem para que pagasse o aluguel do quarto. Ela parece que o gastou em gim.
O Guardião fez um som, estalando a língua.
- Bem... vivendo e aprendendo, Desmonde. Não o censuro. Mas você não deve pôr a tentação no caminho das pobres criaturas de Deus.
- Acho que não. Por outro lado, quem pode censurá-la por tentar escapar à miséria umas poucas horas? Ela sofre do peito, não arranja trabalho de costura de qualquer
espécie, deve o aluguel ao senhorio e já empenhou quase tudo no seu quarto. Devo confessar que me senti quase contente ao vê-la rolar num estado de feliz esquecimento.
- Desmonde!
- E o que é mais... não pude deixar de pensar que se algum de nós estivesse naquela situação teria feito exatamente a mesma coisa.
- Ora, vamos. Isso é levar o caso um pouco longe demais. Nós nunca devemos, queira Deus, achar-nos em tais situações desagradáveis. - Abanou a cabeça em reprovação
e abriu o seu guarda-chuva. - Haverá reunião dos rapazes esta noite? Trocarei uma palavra com você a esse respeito depois da ceia.
com um aceno de despedida, um tanto distante, pôs-se a caminho, deixando Stephen a subir as escadas para o seu quarto, um estreito cubículo forrado de carvalho claro,
com um consolo gótico e uma estante de livros giratória - A cama ainda não tinha sido feita. Os residentes da Sede deviam arranjar-se sozinhos, era o que se esperava;
de manhã, por exemplo, Stephen iria encontrar-se regularmente com Geer, o coadjutor, um brilhante e musculoso cristão, levando o seu urinol cheio para o banheiro
com ar de sincera despreoCupação.
Contudo, para que a tradição monástica não parecesse muito severa, uma pequena moça de fora, chamada Jenny Dill, vinha do distrito,
ostensivamente para dar os retoques finais, na realidade fazer a maior parte do trabalho. Quando Stephen se atirou, ainda, de chapéu e casacão, numa cadeira Morris,
podia ouvir os seus passinhos rápidos no quarto de Loftus através da fina parede que servia de repartição. Loftus, um belo rapaz, exigente e moderado, muito elegante
de uma maneira sacerdotal, sempre lhe deixava muito que fazer, tal como sapatos para lustrar, roupas atiradas e por escovar. Contudo, ela parecia ter acabado essas
tarefas, porque, em poucos minutos, houve uma batidinha na porta do seu quarto e, trazendo espanador e balde, ela entrou lepidamente.
- Oh, senhor, perdoe-me... Não sabia que estava aqui.
- Não tem importância, entre.
Observou-a ausente quando ela começou habilmente a tirar os lençóis e a virar o colchão. Era uma mulherzinha agradável, com as faces muito coradas, como se tivessem
sido esfregadas com pó de tijolo, brilhantes olhos castanhos e uma franja de cabelo preto. Parecia, pensou ele, uma moça típica das camadas populares de Londres...
inteiramente competente e que ninguém poderia enganar. No entanto, havia nela algo mais do que ordinário: um ar de simplicidade bem-disposta, uma inocência, uma
afabilidade afetuosa, e, acima de tudo, um vigor, como se ela não pudesse conter a energia e deleite que pulsavam no seu corpo jovem e sadio. E ao mover-se de um
lado para outro com precisão, a cintura fina, o busto pequeno mas firme, inconsciente de que ele a observava, ou pelo menos de nenhuma maneira perturbada com isso,
instintivamente a sua mão pegou o lápis e um bloco de cima da escrivaninha.
Dali a pouco, quando ela foi à lareira, curvou-se e começou a tirar as cinzas. Nesse momento, o seu interesse aumentou, e quando ela fez menção
de levantar-se, ele a deteve bruscamente.
- Por favor, não se mexa, Jenny.
- Mas, senhor.
- Não, não. Volte a cabeça e não se mexa.
Enquanto ela, obediente, voltava a cabeça, mantendo a sua posição curvada, os dedos de Stephen moviam-se nervosos sobre o papel.
- Pensa que sou maluco, não é, Jenny? Todos os outros do distrito também pensam.
- Oh, não, senhor - protestou ela vigorosamente. - A gente acha é que o senhor é um bocado esquisito, desenhando no clube dos rapazes e coisas assim, diferente de
um coadjutor regular, que ensina eles a lutar boxe. Ora, quando o Sr. Geer trouxer os grandões e eles se pegarem, vai ver que quase se matam um ao outro. E mal vai
poder reconhecer eles, com os olhos pretos e as ventas sangrando. Não, não é o que parece muito natural, acho, Mas a gente pensa que o senhor é mesmo um cavalheiro
muito delicado.
- Isso é animador... e apesar da ausência de sangue. Diga-me uma coisa,
Jenny, se você fosse uma velha doente, de cama, preferiria uma Bíblia ou uma garrafa de gim?
- Eu tenho uma Bíblia, senhor... aliás, duas. O Sr. Loftus e o Sr. Geer me deram uma cada um. A do Sr. Loftus tem umas lindas fitas coloridas. Sou capaz de dizer
que se eu estivesse mal mesmo, o gim até que vinha bem.
- Não fuja, Jenny. Você é honesta como o dia. Diga-me: o que é que você pensa disto aqui?
Lentamente, ela relaxou, aproximou-se e examinou dubiamente o desenho que ele lhe entregara.
- Não sei nada dessas coisas, senhor... mas acho mesmo bonito.
- Ora, sua garota tola, não está vendo que é você?
- Bem, já que o senhor diz - respondeu ela modestamente - parece comigo de costas. Eu só queria não estar com a minha roupa velha e com um rasgão bem ali, tão encabulante,
na abertura da saia.
Stephen riu-se e atirou o bloco para a escrivaninha.
- É da saia velha que eu gosto. Gostaria que você posasse para mim. Eu lhe pagaria cinco xelins por hora.
Ela olhou rapidamente para ele, depois desviou os olhos.
- Isso não seria muito correto, seria, senhor?
- Ora, tolice - disse ele descuidado. - Onde é que está o mal? Mas acho que você não está interessada...
- Bem, senhor... - Ela falava acanhadamente, e uma cor mais viva lhe veio às faces. - Na verdade, se tudo estivesse em ordem, eu bem que poderia fazer mais uns cobres.
- Como?
- É, senhor O senhor sabe... eu espero me casar logo.
- Parabéns. Quem é o felizardo?
- O nome dele é Alfred, senhor. Alfred Baines. Ele é camaroteiro num barco da Orient Lane. Vai estar na terra no outro mês, sem ser esse que vem.
- Excelente para você, Jenny. Não admira que queira ganhar mais um dinheirinho. Quando larga?
- Quando termino de arrumar o seu quarto, senhor. Aí pelas cinco.
- Bem, então... suponha que fique mais uma hora, das cinco às seis, duas vezes por semana. Posso pagar-lhe cinco xelins de cada vez.
- Isso é mais do que generoso, senhor.
- É muito pouco realmente. Mas se você não achar o trabalho muito cansativo, posso lhe dar um bilhete para um amigo meu que ensina nas turmas noturnas no Slade.
Ele terá prazer em empregá-la por uma breve temporada...
Ele não vai esperar que eu, senhor... - Jenny tornou-se rubra.
- Por Deus do céu, não - disse Stephen bondosamente. - Você vestirá uma espécie de costume. Provavelmente ele vai querer somente a sua cabeça e ombros.
- Então ficarei muito agradecida, senhor. . . fico mesmo... especialmente ao senhor.
- Então fechamos negócio? - pergunta ele, sorrindo, aquele raro sorriso que iluminava a sua face e o tornava tão atraente, e estendeu-lhe a mão.
Ela corou, e aproximou-se. Seus pequenos dedos, de unhas mal cortadas ou quebradas, estavam quentes e secos, com cicatrizes nas pontas e frieiras curadas. Contudo,
era uma mão extraordinariamente agradável de segurar, nela estava a pulsação do seu jovem corpo; ele mal pôde soltá-la. E quando o fez, ela se voltou para a porta.
Estava agora um tanto pálida, e sem olhar para ele disse:
- O senhor sempre me tratou tão gentilmente, Sr. Desmonde, é mesmo um prazer fazer as coisas para o senhor. Eu sempre dou ao seu quarto um extra. E lustro muito
bem os seus sapatos, porque... ora, porque são seus, senhor. - Interrompeu-se, e desapareceu.
Para quem era atormentado por humores de autodepreciação, aquelas palavras trouxeram um esquisito calor. Mas logo a momentânea alegria de Stephen sumiu, ele se tornou
novamente consciente de si mesmo, do seu ambiente, e da tristeza que o esperava adiante. Desejou que Glyn aparecesse logo.
Apanhando o Evidences, de Paley, que prometera ao seu pai ler, tentou mergulhar no livro. Mas era inútil. Não tinha interesse nele, detestava a vida que estava levando,
desde que chegara à Sede: a visitação, as aulas de Bíblia, o clube - embora à sua maneira tentasse animá-lo - a terna hipocrisia das palavras alimentando a fome
e o frio das pessoas, enquanto ele e os outros da sua raça permaneciam aquecidos e bem nutridos.
Podia compreender um homem que entrasse para a Igreja por sua natureza profundamente religiosa, por sentir que a sua missão predestinada era ajudar o próximo. Mas
assumir uma existência confortável sem uma forte vocação, por motivos que eram claramente materiais, parecia-lhe a pior espécie de fraude. E, além disso, ele não
tinha a sua própria vocação, um chamado que o mantinha cingido ao seu próprio coração? Que tolo fora em se deixar levar a semelhante passo, como um carneiro estúpido
entalado entre as portas de uma feira do campo. E agora que ali estava, parecia não haver como sair.
Justamente então soaram passos de sapatos pesados nas escadas de madeira, e poucos segundos depois um homem alguns anos mais velho que Stephen foi entrando no quarto
e atirou-se sem fôlego numa cadeira. Era de porte mais do que mediano e fortemente construído, com um cabelo vermelho cortado e uma curta barba vermelha eriçada,
de feições vigorosas, os olhos, sob sobrancelhas bem marcadas, vivazes, rebeldes, contudo muito divertido naquele momento. Vestia calças de pele de toupeira e uma
blusa de operário,
um lenço pintalgado de vermelho amarrado no pescoço; tinha o ar de um bucaneiro, fanfarrão, livre, cheio de um vigoroso prazer pela vida. Dali a pouco, quando cessou
a sua transpiração, puxou um relógio de metal, ligado a ele por um pedaço de cordão esfiapado de quadro.
- Bem na hora - observou com satisfação. - Não está mau para Whitehall.
Embora advertido da paixão espasmódica de Glyn pelos exercícios violentos, Stephen estava moderadamente surpreso.
- Você andou todo o caminho?
- Corri - disse Glyn, enxugando o suor. - Foi diabolicamente divertido. Botei toda a polícia a correr, pensando que eu tinha assaltado um banco. Mas que sede me
deu! Suponho que não haja um pingo de cerveja nesta casa de Deus, não é?
- Sinto, Richard. Não nos permitem tê-la em nosso quarto. Posso lhe dar chá... e biscoitos.
Glyn explodiu em gargalhadas.
- Vocês, jovens teólogos. Como podem combater Satanás com chá e biscoitos? Mas se não for incómodo, traga-os. E acrescentou, mais sério: Sinto não poder ficar muito
tempo, mas eu queria vê-lo.
Conversaram enquanto Stephen fervia uma chaleira de folha no bico de gás junto à lareira. Pronto o chá, Richard bebeu quatro xícaras da desprezada beberagem e, de
uma maneira ausente, liquidou um prato de macarrão. Depois, um tanto embaraçosamente, a conversa cessou.
- A sua mostra correu bem? - perguntou Stephen por fim.
- Muito bem - respondeu Glyn descuidadamente. As críticas foram tão perfeitamente depreciativas que atraíram público.
- Mas você vendeu alguma coisa.
- Um vermelhinho. E tudo porque sou galês. A Galeria Nacional de Cardiff comprou-o. Encorajando o talento nativo... filho de um mineiro e assim por diante.
Houve uma pausa.
- Contudo - resumiu Glyn - o dinheiro me safou das dívidas, e Anna e eu partimos para Paris amanhã.
Stephen empertigou-se imperceptivelmente, um reflexo de todos os seus nervos, não apenas ao som de uma palavra que o perseguia, mas porque naquela maneira demasiado
despreocupada ele pressentiu o verdadeiro motivo da visita de Glyn. Procurou dominar a voz.
- E quanto tempo pretende ficar por lá?
- No mínimo um ano. Vou viver barato e trabalhar como um mouro. Acredite se quiser, Paris é um lugar maravilhoso para trabalhar. - Fez uma pausa e atirou um rápido
olhar para o outro. - Você não vai mesmo conosco?
Stephen sentiu um nó na garganta. As suas mãos, nos braços da poltrona, mostraram os nós dos dedos.
- De que jeito? Você conhece a minha situação.
- Ao mesmo tempo, tive a impressão de que você queria pintar.
Stephen, de cabeça baixa, não respondeu. De súbito ergueu os olhos.
- Glyn... se eu jogasse tudo fora... teria mesmo sucesso como artista?
- Ora, ora, Desmonde - Glyn inclinou-se para diante, de cenho cerrado, - Que pergunta mais idiota. Sucesso? Que quer dizer com sucesso? Então você não sabe que neste
jogo não pode haver garantias, que você não tem mais que você no momento em que se resolve? E você não entra nisso por nenhuma outra razão a não ser a de que não
pode evitá-lo. Se for para valer, abandona tudo, passa fome, rouba, engana a sua avó, transgride cada um dos Dez Mandamentos, só para ter nas suas mãos um tubo de
tinta e uma espátula.
Glyn interrompeu-se, relaxou a postura e continuou, mais serenamente:
- Acredito que você tem talento, possibilidades extraordinárias, do contrário não ia aborrecer o meu bestunto a seu respeito. Eu sei como é duro para você... atolado
na tradição. Você teve todos os inícios errados. Devia ser como eu, nascido numa vila de operários, numa nojenta cidade carvoeira. Mas, assim, você mesmo é quem
tem que decidir. E se não se decidir, atrevo-me a dizer que dará um pastor aceitável. - Tirou de repente o seu relógio niquelado. - Bem, tenho que ir. Preciso reunir
umas coisas. E juntar isto com aquilo. Adeus, Desmonde. Escreva-me quando tiver tempo.
Stephen permaneceu imóvel. Glyn levantou-se. Ao dar o primeiro passo, viu sobre o consolo da lareira um cartão perfurado com as cores do Clube de Críquete Marylebone.
Era um bilhete para a partida de criquete entre Oxford e Cambridge, a ser disputada no mês seguinte. Acompanhando o olhar de Glyn, Stephen corou.
- Tenho que ir - disse ele secamente. - Toda a família irá.
CAPÍTULO V
A PARTIDA TINHA TERMINADO, as balizas haviam sido retiradas, e enquanto o sol lançava sombras compridas sobre a quadra relvada do Lord's, um grupo de sete pessoas
podia ser observado entre a elegante assistência - dificilmente se poderia referir essa afluência como uma multidão - andando
vagarosamente para os portões principais na St. John's Wood Road. Caroline e Claire iam na frente com Davie e seu primo Geoffrey, enquanto poucos passos atrás, Stephen
acompanhava o General Desmonde e sua esposa. Uma emergência na paróquia tinha impedido no último instante o Reitor de estar presente, e Julia, claro, era uma ausente
anual. Por isso, Stephen tinha vindo somente para estar com o irmão, e enquanto Davie tinha grande prazer em ver o jogo - o que era mais tocante, uma vez que, devido
à sua afecção, não lhe era permitido jogar críquete - teve em certa medida a sua recompensa, pois o dia tinha sido duro para ele, e ainda lhe ressoavam na cabeça
os incessantes gritos de Geoffrey de "Boa jogada, senhor", e, como sempre, a mulher do General raramente pensava nela como tia Adelaide - tinha exercido sobre ele
uma familiar combinação de condescendência e arrogância que despertava os seus mais perversos instintos. Mulher dominante, fria, de rosto fino, criada na tradição
do Exército e endurecida nos sóis da Índia, ainda era bonita, de uma maneira dura e atrevida, e possuía uma figura admirável, embora tendendo para a magreza, seu
olhar às vezes letal como um golpe de baioneta.
Agora, ao deixarem o campo e permanecerem juntos um tanto indecisos, enquanto carruagens e cabriolés saíam da calçada, ela falava com rapidez, na sua voz apressada
"do condado".
- Hoje foi um dia tão delicioso, que é uma pena deixá-lo morrer prematuramente. - Voltou-se para o marido. - Tem alguma sugestão, Hubert?
O General Desmonde examinou o grupo. Alto, feições retas, ereto como uma vareta de espingarda, até no chapéu de forma cinza e no fraque matutino, parecia um soldado,
um soldado notável. Um bigode curto acentuava a brevidade incisiva da sua fala.
- Pensei que poderíamos cear no Frascati's.
- Magnífico, papai - disse Geoffrey, endireitando a gravata e depois o colete bordado, talvez pela ducentésima vez, como se estivesse determinado a manter a supremacia
de alfaiataria que fazia dele, tinha certeza, um alvo de admiração. Estilo, que ele chamava de boa forma, era na verdade a sua maior ocupação, fosse numa praça de
armas ou em Piccadilly, e que já o configurava, na idade de 24 anos, como modelo de um elegante, ainda que um tanto tolo, jovem de sucesso da sociedade.
- Davie tem que voltar às sete - interpôs Caroline. - E já passam das seis. Mas ninguém precisa se incomodar, vou levá-lo ao trem.
- Querida, você é tão gentil e tão atenciosa - disse Adelaide sorrindo. Ela não queria Caroline no Frascati's com o seu rosto vermelho de sol como uma peônia, e
naquele medonho vestido marrom que a fazia parecer uma copeira no seu dia de folga, aquelas pernas também, que desgraça, como as patas de um piano de cauda; Caroline,
para tia Adelaide, era sempre uma responsabilidade social, uma mortificação anual no baile de caça, quando, sentada na
entrada do salão, com seu jornal na mão, sem que ninguém a tirasse para dançar, esperava tristemente que algum velho cavalheiro se dirigisse a ela; e agora já tinha
sido bastante desagradável tê-la com eles durante o dia inteiro. - Você deve vir uma outra vez.
- Acho que também tenho que voltar - disse Stephen. Se Davie não fosse, ele não teria nenhum prazer em ir.
- Tem mesmo? - Hubert franziu o cenho, bem-humorado; ele até gostava, ou pelo menos tolerava, aquele jovem sobrinho e futuro pastor. - Tão cedo?
- Mas é claro que você pode ficar, Stephen. - Claire estava ao seu lado, contida, mas de certo modo rogando, com a sua tez macia e feições tão bem modeladas, sombreadas
por um chapéu de aba larga enfeitado de rosas. Hoje mais do que nunca, naquele ambiente, ela parecia o que era: a mais amável das moças inglesas, cujo bom senso,
maneiras e cordialidade franca e agradável faziam amigos onde quer que estivesse. - Fica, sim - ajuntou ela.
- Querida - interveio Adelaide antes que Stephen pudesse responder - não devemos interferir com as regras e regulamentos. Afinal de contas, a vida na Sede, imagino,
é mais ou menos monástica, não é, Stephen? e muito digna, estou certa. É mesmo uma lástima que você não possa vir. Geoffrey acompanhará Claire, e eu pretendo que
Hubert seja o meu galã. Adelaide tornou a sorrir, e com satisfação, pois tinha as suas razões para não desejar que Stephen fosse um do grupo.
- Não podemos deixá-la em alguma parte, Caroline? - perguntou Hubert.
- Oh, não, Davie e eu iremos de metro.
- E eu de ônibus - disse Stephen.
Trocaram-se despedidas, e então, vagamente consciente do desgosto nos olhos de Claire, Stephen afastou-se com Caroline e Davie. Como ainda tinham alguns minutos,
deteve-se no Fuller's da Park Road para oferecer um sorvete de morango ao seu jovem irmão e uma taça de chá a Caroline, que, sub-repticiamente descalçando os sapatos,
confessou que estivera mortificada todo o dia. Depois ele os deixou no metro da Baker Street e tomou o ônibus nº 23 para a zona leste.
Ao matracolejar para Stepney, a despeito do alívio de estar novamente entre gente impolida que não pedia mais do que a sua parte numa cadeira dura, uma lenta depressão
foi tomando conta de Stephen. Como se sentira física e espiritualmente diminuído, como se sentira diferente dos outros durante voltas em todas as metas de críquete,
os encontros e cumprimentos, o almoço no Guard's Club Marquee - "seu diabinho" - quase podia ouvir o pensamento por trás dos olhares indiferentes dirigidos para
ele pelos amigos do primo, ao discutir com Geoffrey a última comédia musical, a corrida de obstáculos
de Sussex, e a última fantasia para o Cambridgeshire. Com esta disposição, chegou à Sede. No saguão, ainda redolente dos odores do bife refogado com repolho do meio-dia,
passou por Luftus, que saía, e deu-lhe uma "boa-tarde". O coadjutor noviço mal respondeu e escorregou para a frente, discreto e elegante, o olho com um tal brilho
de malícia e divertimento, que Stephen recuou instintivamente.
- Que é que há, Loftus?
Já na porta, o outro como que se voltou, com lábios torcidos e apertados pelo humor eclesiástico.
- Então não sabe?
- Claro que não, o que é?
- Não muito, acho eu. A não ser que a pequena Dill parece estar em maus lençóis.
De que diabo estava ele falando? pensou Stephen. Mas deu de ombros, e vendo que não havia correspondência na estante, subiu as escadas. Sentada tesa numa cadeira
dura no centro do seu quarto, usando as suas roupas de sair à rua, um chapéu de palha chato com uma fita estreita, e luvas brancas de algodão, estava Jenny.
Levantou-se imediatamente quando ele entrou, mas com compostura, e enquanto ele a olhava com surpresa, uma vez que ela normalmente não vinha à Sede nos sábados,
ela começou:
- Peço-lhe desculpas pela liberdade, senhor. Mas eu queria estar certa de encontrá-lo. E parece que não havia outro jeito senão eu esperar.
- Muito bem - disse ele incerto. - Não quer sentar? Assim é melhor. Então, que é que há?
Enquanto ele ia até a lareira, ela tornava a sentar-se na beira da cadeira, com as luvas cuidadosamente dobradas.
- Bem, senhor. O fato é que vou embora, hoje, meio de repente. E como o senhor tem sido tão bom para mim, achei que tinha que vir lhe dar adeus.
- Oh, Jenny, sinto muito. Não imaginei que você nos deixasse tão cedo.
- Nem eu, senhor. Mas a verdade é que me despediram.
- Despediram? - repetiu ele desnorteado.
- Sim, despediram. - Acenou com a cabeça, francamente, no seu modo prático, sem acanhamento. - A culpa foi minha. Ontem fui tão boba que vim sem o meu espartilho.
Eu nem notei que já começava a aparecer. Mas não há jeito de enganar essa cozinheira. Correu para o Guardião como uma flecha.
- Mas de que diabo está falando?
- Não está vendo, senhor? Vou ter uma criança.
Ele ficou tão desconcertado que não conseguia achar o que dizer.
- Oh, Jenny, como é que você...?
- Acho que me deixei levar, senhor.
- Como?
- Nós todos temos sentimentos, senhor. Não se pode fugir disso. Oh, eu sou muito respeitável, garanto lhe. Alf é um sujeito correto. Camaroteiro de navio, como eu
lhe disse. Vamos casar quando ele voltar.
Houve uma breve pausa, enquanto Stephen a estudava com simpatia.
- Suponho que você o ama.
- Acho que deve ser isso, senhor. - Um ligeiro e sábio sorriso passou-lhe pelo rosto jovem e fresco. - Ele é muito mais velho que eu, isso é. E vou lhe dizer: se
não fosse pelas duas cervejas que tomei no Good Intent, eu não teria cedido. Mas aí eu também podia ter feito pior. Alf é decente, lá isso é. E habilidoso também.
Gosta de música e me ensinou a tocar gaitinha de boca.
Outra pausa.
- Bem... vamos sentir a sua falta, Jenny.
- E eu vou sentir falta do senhor. Acho que o senhor foi até bom demais comigo. Não é igual a outros por aqui.
- Que outros?
- Bem, principalmente o Guardião, senhor. Tenho que dizer que ele me perseguiu muito antes de me botar na rua.
- Mas você não está saindo por sua vontade?
- Oh, não, senhor. Isso não me convém nem um pouco... Vivo por minha conta, sabe, e não tenho pais vivos. Mas o Guardião não queria ter este lugar contaminado, disse
ele, com três jovens-coadjutores por aqui, e me despachou na hora.
Stephen mordeu o lábio. Olhando disfarçadamente para a moça, percebeu que, sob a sua expressão habitual de serenidade e bom humor, ela parecia pálida e desorientada.
Seria capaz de jurar que não havia nela um pingo de maldade.
- Jenny - disse ele impulsivamente - eu não quero interferir. Mas espero que você tenha feito arranjos para... ir a um hospital... essas coisas.
- Não vou para o hospital, senhor. Tenho o meu quarto. E vou falar com a Sra. Kelley. Ela é parteira, senhor, e muito recomendada.
- Você tem certeza de que estará bem?
- Oh, não se preocupe comigo, senhor. - Pela primeira vez havia uma nota de tristeza na sua voz. - Eu só espero não ter trazido encrenca para o senhor. Isso tudo
aconteceu porque o senhor me arranjou trabalho na aula de arte. E o Guardião parece que ficou furioso com isso.
Stephen ficou um tanto desconcertado com essa notícia. Contudo, o seu genuíno interesse era por Jenny. A admiração que sentia por sua coragem e bom senso, e a indignação
pelo tratamento que lhe tinham dado, tornavam-no mais descuidado consigo. Tinha começado a gostar dela nos últimos meses,
e não podia deixá-la sem alguma expressão da sua boa vontade. Voltou-se de lado, remexeu meio inconscientemente na sua carteira e deu um passo na direção dela.
- Escute, Jenny. Não quero ofendê-la. Mas você fez tanta coisa por mim aqui... você realmente vai precisar de alguma coisa para sustentar-se. Eu gostaria que aceitasse
isto.
Desajeitadamente, pôs-lhe na mão uma nota de cinco libras, que, para esconder o seu elevado valor, dobrara em várias partes.
- Não... não vou aceitar isso...
- Mas Jenny... você tem que...
As lágrimas não lhe vinham facilmente, mas ela passara por tantas agruras naquele dia, que agora elas corriam quentes pelas suas faces.
Nesse momento, enquanto ela se retirava e ele a acompanhava, estendendo-lhe o dinheiro, a porta abriu-se e o Guardião entrou. Houve um silêncio mortal por um momento,
enquanto ele ficava petrificado. Depois, com a voz controlada, disse:
- Pode ir agora, Dill.
Quando Jenny se voltou para sair, arrasada, com as lágrimas a escorrer lhe pelas faces, Stephen, a despeito da sua expressão culpada, vermelha, teve calma suficiente
para se aproveitar da sua confusão e enfiar-lhe a nota no bolso da jaqueta.
- Adeus, Jenny - murmurou ele. - E muita sorte.
Sua resposta, se resposta houve, foi inaudível.
Ainda na sua maneira distante, o Reverendo Crispin fechou a porta atrás dela; depois, com um rápido olhar para Stephen, comprimiu os lábios e fixou o olhar no teto.
- Desmonde - disse ele - presumi que a sua conduta tinha sido seriamente indiscreta. Mas jamais sonhei que pudesse ir tão longe. Como amigo de seu caro pai, isso
me aflige mais do que posso expressar.
Stephen engoliu o bolo que tinha na garganta. A cor lhe fugira do rosto, mas havia uma centelha nas suas pupilas escuras.
- Não posso compreendê-lo.
- Ora, vamos, Desmonde. Você não pode negar que está, e tem estado há algum tempo, em termos de imprópria intimidade com a jovem pessoa que acabo de despedir.
- Fui amistoso com Jenny. Ela fazia muitas pequenas coisas para mim. E procurei ajudá-la, em retribuição.
- Ah! - fez o Guardião num tom significativo. - E a sua ideia de ajudá-la é estar frequentemente com ela, sozinho, no seu quarto?
- Ela vinha arrumar o quarto. E ocasionalmente fiz alguns esboços dela. Isso é tudo.
- Ora essa! Então você acha que faz parte dos seus deveres, como candidato à ordenação, tomar um modelo, furtivamente, entre as criadas desta casa de Deus? Foi meu
dever examinar alguns desenhos que resultaram dessa colaboração ilícita, e devo confessar que me pareceram extremamente questionáveis.
O sangue subiu à testa de Stephen. Seus olhos fuzilaram furiosamente.
- Pelo que sei do seu gosto, senhor - respondeu ele, tremendo ligeiramente - não me surpreende que não os tenha compreendido.
- É mesmo? - fez Bliss com a calma ácida que achava ir-lhe tão bem. Na verdade, parece que meus padrões, particularmente os de moralidade, diferem dos seus.
- Certamente diferem. - Stephen jogou a prudência de lado. - Eu não teria atirado essa pobre moça no olho da rua por causa de um erro.
- Ouso dizer que não. Isso é precisamente o que eu temia.
Até este momento, as maneiras do Guardião tinham sido estudadamente controladas, mas agora as suas narinas se apertavam e algo não diferente de uma carranca se estabeleceu
na sua testa elevada.
- Embora Dill tenha dado o nome do seu parceiro, não estou inteiramente convencido. Minha firme convicção é de que, pela sua conduta para com essa infeliz moça,
pela maneira como a utilizou para os seus fins chamados artísticos, você é responsável, ou pelo menos indiretamente culpado, pelo estado de depravação em que ela
caiu.
Respirando rapidamente, Stephen encarou Bliss com uma expressão maldosa no rosto. Explodiu:
- Nunca ouvi tanta tolice na minha vida. Nem tamanha hipocrisia. Jenny não é depravada. Ela tem um namorado e vai se casar com ele. Sua ideia de caridade cristã
é vilipendiá-la, e a mim, sem uma justa causa?
- Cale-se, senhor. Não tolerarei que fale comigo dessa maneira. Na verdade, se eu fosse cumprir à risca o meu dever, deveria pedir-lhe que deixasse a Sede imediatamente.
- Fez uma pausa para se recuperar. - Mas em atenção à sua família, e também ao futuro que ainda pode estar à sua frente, estou disposto a ser mais tolerante. Devo
dar ao seu pai alguma ideia do que ocorreu. E você, sem dúvida, me dará a sua garantia por escrito de abandonar, de uma vez por todas, essa obsessão que chama de
"arte", e que é inteiramente incompatível com a sua vocação de clérigo. Haverá, além disso, mais algumas restrições que sou obrigado a lhe impor. Venha ao meu estúdio
depois das orações noturnas, e eu o aconselharei.
Terminando a entrevista, sem dar a Stephen uma oportunidade de responder, girou nos calcanhares e saiu do quarto.
- Ora, vá para o diabo que o carregue! - exclamou Stephen violentamente. Mas infelizmente a porta já estava fechada.
Durante uns momentos, Stephen permaneceu tenso, de punhos cerrados, olhos fitos nos painéis de carvalho envernizado. Depois, com um gesto de abandono, afundou numa
cadeira diante da escrivaninha, tirou papel da gaveta e apanhou uma caneta.
Caro papai,
Fiz aqui o melhor que pude e fui nisso um completo fracasso. Não quero magoá-lo, tomando uma decisão final contra a sua vontade, mas, nas circunstâncias, acho que
devo me afastar um pouco - um ano, no mínimo - até poder ver as coisas mais claramente e experimentar a minha capacidade nesse campo particular tão desagradável
para o senhor que sequer o nomearei. Compreendo o golpe que isto representa para o senhor, e a minha única desculpa é que simplesmente não posso evitá-lo.
Recomendações a todos em Stillwater e a Claire. Tornarei a escrever-lhe quando estiver em Paris.
Stephen
CAPÍTULO VI
PARIS ERA DESCONHECIDA PARA STEPHEN, e embora ao primeiro fôlego o estimulasse como vinho, ele entrou nela nervosamente - como se temesse aqueles olhares satíricos
que os verdadeiros parisienses devem conceder a um forasteiro. Assim, apegava-se ao nome de um hotel que ouvira o pai mencionar num tom de benigna aprovação clerical,
e dando-o ao cocheiro com a maior segurança que pôde encontrar, foi arrebatado da Gare du Nord com uma imprudente velocidade através das ruas naquela tarde de domingo,
surpreendentemente vazias, para o Clifton, na Rue de la Sourdière. Parecia um lugar tranquilo, não particularmente excitante talvez, abrindo-se através de uma entrada
estreita para um pátio quadrado envidraçado, em torno do qual os quartos estavam dispostos atrás de descascados balcões de ferro fundido. Na portaria sonolenta -
o tom era dado por um gato malhado de preto e amarelo dormitando em cima do balcão - não se surpreenderam pela súbita materialização de um jovem inglês. Na verdade,
quando Stephen foi conduzido ao seu quarto no andar de cima, que era um tanto escuro e bolorento, com o papel de parede desbotado e uma enorme cama de cortinas vermelhas,
o idoso concierge, desafivelando as malas do ombro com exagerada falta de ar, sobressaltou-o ligeiramente ao lhe perguntar se ele queria chá.
- Não, muito obrigado - sorriu Stephen, pensando no extraordinário valor que aquele indistinto interior dava ao velho de olhos lacrimejantes com as faces caídas,
marcadas por veias vermelhas, o seu colete listrado de preto e amarelo. - vou sair... e olhar um pouco por aí.
- Não há muito que ver hoje, monsieur - disse o porteiro, encolhendo amavelmente os ombros. - Tudo está fechado.
Mas Stephen mal podia esperar para desfazer a mala e atirar suas coisas no armário poeirento. Então, eufórico, deixou o hotel e foi andando pelas ruas, a esmo, ao
longo da Rue du Mont Tabor e pela Place de la Concorde. Seu imediato pensamento tinha sido em Glyn, mas no constrangido momento de partir, ele esquecera de pedir
o endereço de Richard, e naquele ínterim não recebera nenhuma notícia dele. No entanto, Stephen estava certo de que, no círculo que se propunha frequentar, logo
o encontraria.
O tempo estava bom e claro, o céu pálido riscado pelas costelas de nuvens brilhantes. Quando viu a longa fila de castanheiros, agora em plena folhagem, junto ao
rio, quase exclamou alto. Agitadas pela brisa, as folhas eram luz e sombra, macias, encontrando os seus olhos como uma carícia. Através da avenida chegou ao Sena,
cinza-aço e polido, reverberando atrás de barcaças atracadas. Numa destas, uma jovem mulher, de seios fartos e cabelo louro, estava pendurando roupas cor-de-rosa
numa corda. Um cachorrinho saltitava nos seus tornozelos. Um homem de camiseta e chapéu baixo de feltro fumava placidamente, de braços nus, sentado num balde emborcado.
Numa espécie de transe melódico, Stephen caminhou lentamente pela margem, através de Port Royal, além da linha de quiosques de livros, de volta à Pont Neuf para
a L'Île de la Cité. Lá, ficou a olhar o jogo de cores sobre a água, o escurecer das sombras sobre as moles de pedra. Somente quando a luz desapareceu, ele se voltou,
com um suspiro apatetado, e começou a voltar para o hotel.
Agora a cidade despertava do seu torpor dominical. Nas ruas laterais, ao norte do rio, os pequenos cafés de esquina começavam a se encher de maneira discreta mas
movimentada. As mercearias estavam abrindo, e famílias da classe média começavam a tomar ar, homens robustos com pantufas apareciam nos umbrais. Diante de uma padaria,
ainda fechada, donas-de-casa, tagarelando tranquilamente, reuniam-se para comprar pão. Estou em Paris, pensava Stephen estonteado, finalmente, finalmente.
À guisa de contraste, o Clifton, banhado numa ténue luz religiosa, tinha um ar solene, quase sepulcral. Na verdade, por um instante Stephen teve a tentação de dar
a volta e ir cear no Maxim's ou no Café Riche, ou qualquer daqueles restaurantes alegres sobre os quais lera tantas vezes. Mas estava cansado e tímido para ir desacompanhado.
Além disso, tinha resolvido fazer uma razoável economia. Da sua pensão anual restavam-lhe 150 libras, e essa quantia deveria durar um ano inteiro.
Assim, baixou ao frio refeitório e comeu sozinho - a não ser por um distante cavalheiro solteirão numa desmazelada jaqueta Norfolk que lia continuamente entre os
pratos, e duas cochichantes velhas de malva, todos inconfundivelmente ingleses - uma refeição de cardápio fixo, de sopa, carneiro, ameixas amargas cozidas, que,
embora fossem perfeitamente saudáveis, demonstravam a falácia do argumento de que, na França, a cozinha francesa era uma arte universal. Contudo, nada poderia abater
a sua alegre disposição. Subiu as escadas assobiando e dormiu como uma toupeira na cama de dossel.
Na manhã seguinte, sem demora, saiu para Montparnasse. Depois de considerável reflexão, tinha resolvido não se matricular na École des Beaux Arts, mas procurar uma
atenção mais pessoal, dada pelo Professor Dupret na sua famosa academia do Boulevard Seline. Encontrou o estúdio sem dificuldade, tendo comprado, no balcão do hotel,
um mapa de Paris. Era no último andar de um edifício esquisito, parecido com um quartel, protegido por grades em ponta de lança e guardado por duas guaritas vazias,
bem no fundo do boulevard. Pairava no ar um cheiro de casca de tanino, indicando que ali fora uma armaria, e uma grande algazarra lá em cima sugeriu a Stephen, por
um sobressaltado momento, que os soldados ainda o ocupavam.
Quando subiu, depois de completar as formalidades de admissão com o massier, um tipo corpulento de cara chata, suéter cinzento, calças de lona, que tinha a aparência
de um boxeador aposentado - e que na verdade lá estava para impedir uma flagrante desordem - a aula já tinha começado.
A saia ampla e clara, aquecida por uma enorme estufa holandesa, com paredes que pareciam todas janelas, estava apinhada com uns 50 alunos, formando o grupo mais
estranho que ele já tinha visto. Na maior parte, eram homens entre 20 e 30 anos de idade, vestidos numa variedade de gostos, de muitas nacionalidades - eslavos barbudos,
indianos de pele escura, um grupo de escandinavos louros, vários jovens americanos. As poucas mulheres eram uma coleção esquisita. O olho de Stephen prendeu-se numa
senhora de idade metida numa blusa cor de rato, espiando a sua tela através de um pincenê de aros de ouro, como uma professora diante do seu quadro-negro num jardim
de infância do campo.
O barulho, ali dentro, era ensurdecedor - um rumor contínuo de conversação, trechos altos de canções, em línguas competitivas, observações fanfarronas
gritadas através da sala. Parecia que o tumulto ia permitir que Stephen entrasse sem ser notado. Mas ao ficar ali na porta, hesitante e um tanto pálido, vestindo
a sua roupa escura de clérigo, colarinho branco engomado e gravata preta, a vestimenta regular para os coadjutores da Clinker Street, sobreveio um infeliz intervalo
durante o qual a atenção da classe se voltou diretamente para ele. E então, no silêncio, uma voz de falsete exclamou:
- Ah! C'est Monsieur l'Abbé.
Uivos de risadas saudaram essa observação. Entrando confuso, Stephen encontrou um banco coberto com raspaduras de paletas, mas nenhum cavalete, espremeu-se com dificuldade
para um lugar, e abriu a sua pasta de papel Ingres sobre os joelhos.
O modelo, um velho de longos cabelos prateados, com o aspecto de um ator decadente, bonito, estava sentado numa postura convencional na plataforma do centro, ligeiramente
inclinado para a frente, com o queixo apoiado nas costas da mão. Stephen não gostou da pose, e a expressão do velho era aborrecida e indiferente, mas apanhou o seu
carvão e começou a trabalhar.
Às 11 horas Monsieur Dupret apareceu - um homem de uns 60 anos, belo de uma maneira teatral, com uma cabeleira arrepiada, porte ereto e digno, e mãos móveis. Apesar
das calças ligeiramente frouxas, o seu fraque ajustado dava-lhe um ar correto, distinto, acentuado pela fita na lapela. A sua entrada, impressionante e brusca, causou
uma cessação do barulho maior, e em relativo silêncio ele começou a dar vagarosamente a volta à sala, detendo-se aqui e ali para examinar uma tela com olhos apertados,
pronunciar, com um floreado gesto das mãos, umas breves palavras, mais como um cirurgião visitando a sua enfermaria.
Quando ele se aproximou, Stephen preparou-se para algumas palavras de saudação, de cortês interrogação, mas o professor, com alheamento impessoal, não disse coisa
alguma. Olhou de esguelha para Stephen, meio curioso, meio indiferente, e depois para o seu esboço, e, no instante seguinte, sem um piscar de olhos, desapareceu.
À uma hora tocou uma sineta. Imediatamente se ergueu uma vozearia, o modelo levantou-se como se fosse soltado por uma mola e afastou-se da plataforma, enquanto em
volta os estudantes atiravam pincéis ou carvões e começavam a se acotovelar contra a porta. Perturbado e decepcionado, Stephen foi arrastado, contra a sua vontade,
pela turba que empurrava. Subitamente, no seu cotovelo, ouviu uma voz agradável.
- Você é inglês, não? Meu nome é Chester.
Stephen voltou a cabeça e deu com um jovem mais ou menos da sua idade sorrindo para ele. O cabelo, o queixo partido e os olhos azuis, sombreados por compridas pestanas
negras, davam-lhe um ar de sincero e atraente encanto. Usava uma velha gravata de Harrow.
- Espero você lá embaixo - disse ele quando a maré o carregou. Lá fora, Chester estendeu-lhe a mão.
- Espero que não se importe de eu vir falar com você. No meio dessa turba, os que são do outro lado do Canal devem ficar juntos.
Após a sua deprimente recepção, Stephen estava contente por ter achado um amigo. Quando se apresentou, Chester fez uma pausa por um momento, e exclamou:
- Que tal almoçar comigo?
Saíram juntos pela avenida.
O restaurante em que entraram ficava bem perto, na Place Seline, um salão estreito, de teto baixo, quase uma adega, abrindo para uma cozinha escura, a meia dúzia
de passos do nível da rua, com um fogo de carvão de lenha e espetos com assados, cheio do barulho de panelas de cobre e de um agradável cheiro de cozinha. O lugar
já estava repleto, principalmente de alunos de Dupret, mas Chester, com tranquila segurança, guiou-o através de um pequeno pátio adornado por cubas de alfenas, calmamente
retirou o cartão marcado "RESERVADO" de uma mesa do fundo, habilmente atirou o chapéu para um cabide e convidou Stephen a sentar-se.
Imediatamente, uma mulher gorda, de cara vermelha, vestida de preto, protestou da cozinha:
- Não, não, Harry... Esse lugar está reservado para o Monsieur Lambert.
- Não se agite, Madame Chobert - sorriu Chester. - A senhora sabe que Monsieur Lambert é meu amigo. Além disso, ele sempre chega atrasado.
Madame Chobert não se deu por satisfeita; discutiu e resmungou, mas o charme de Harry Chester - embora ela claramente tentasse precaver-se contra ele - no fim acabou
por vencê-la. Encolhendo os ombros com pena da sua própria fraqueza, levantou a ardósia escrita a giz que pendia da cintura do seu avental, e apresentou-lhes o cardápio.
Por sugestão de Chester, pediram potage maison, boeuf bordelaise e um queijo brie. Uma jarra de cerveja amarela e espumante já estava sobre a mesa.
- Não é uma pessoa má - sorriu Chester quando ela se afastou. Durante a refeição, ele manteve a conversação viva e fluente, aludindo, com inesgotável provisão de
troça e frases feitas, aos seus vizinhos. Apontou para Biondello, o italiano, que já tinha exposto no Salon do ano passado, e Pierre Aumerle, um caso irremediável,
que bebia uma garrafa de Pernod todos os dias, almoçando com uma mulher de semblante ocre com um enorme chapéu, para a qual Chester ergueu as sobrancelhas com um
sorriso. Entrementes, sondou Stephen com algumas perguntas divertidas; então, depois que trouxeram o café filtre, fez uma pausa, com um certo ar consciente, e pareceu
ter achado necessário explicar-se.
- Curioso, não? - comentou ele, riscando desenhos na toalha xadrez - como a gente sempre pode identificar um universitário. Philip Lambert também é um deles. Depois
de Harrow - lançou um olhar rápido para Stephen
- eu mesmo devia ter ido para Cambridge... se não a tivesse trocado pela arte.
Continuou, revelando, com um sorriso suplicante, que o pai tinha sido um grande plantador de chá no Ceilão, ao passo que a mãe, agora viúva, voltara para habitar
uma imensa mansão de Highgate com uma legião de criados. Naturalmente, ela o estragara com mimos, dava-lhe uma generosa pensão. Estava em Paris fazia 18 meses.
- É muito divertido - concluiu ele. - Você deve me deixar mostrar-lhe os meus trabalhos.
- Que acha de Dupret? - perguntou Stephen.
- É o professor mais decente que há por aqui. Você sabe que ele pertence à Legião de Honra?
Ligeiramente chocado, Stephen não respondeu. Chester intrigava-o, como o intrigaria um desenho estranho que, embora agradável, tivesse complexidades estranhas ao
seu gosto.
Terminaram o café. As pessoas começavam a se retirar.
- Seu amigo Lambert parece que não vem - disse Stephen por fim, para quebrar o silêncio.
Chester riu-se.
- Philip é um mendigo errante. Você nunca sabe quando ele vai aparecer... ou com que atraentes saias.
- Ele frequenta a Dupret?
- Trabalha em casa... quando trabalha. Tem recursos particulares, você sabe, e já andou por toda a Europa, estudou em Roma e Viena, mas agora ele e a mulher alugaram
um pequeno apartamento na Esplanada dos Inválidos. - Chester assentiu com um aceno. - E posso lhe dizer que a Sra. Lambert é muito elegante. E, naturalmente, uma
perfeita dama.
Ali estava novamente uma observação que arranhava o ouvido de Stephen, e ele olhou de um modo esquisito para o seu colega, imaginando como poderia usar uma expressão
infeliz. Mas antes que tivesse tempo de responder à pergunta, Harry Chester sentou-se.
- Olhe, aí está Philip.
Seguindo o olhar de Chester, Stephen viu entrar no restaurante um homem delgado, de aparência afetada, com cerca de 30 anos, vestido com uma curta sobrecasaca marrom,
colarinho baixo e gravata fofa. O rosto, pálido e profundamente marcado abaixo dos olhos, tinha um ar de langor. O seu brilhante cabelo preto era repartido nitidamente
no meio, mas a um lado uma mecha tinha escapado num pequeno cacho sobre a sua testa branca. Os seus
modos, aliás toda a sua aparência, davam a impressão de uma indolência amaneirada, de aborrecimento e pretensão.
Quando chegou, pôs a bengala debaixo do braço e começou a descalçar uma luva amarelo-limão, enquanto olhava para Chester com uma alegria levemente desdenhosa.
- Agradeço-lhe por ter guardado a minha mesa, caro rapaz. Mas agora deve ir-se. Espero um convidado às duas horas. E não preciso de acompanhante.
- Estamos saindo, Philip. - O tom de Chester assumira uma inflexão submissa. - Olhe, gostaria que conhecesse Desmonde. Ele entrou para a Dupret hoje.
Lambert lançou uma olhadela a Stephen e depois curvou-se polidamente.
- Desmonde acaba de chegar do seu último ano em Oxford - disse Chester rapidamente.
- Ah, sim - exclamou Lambert. - Que colégio, posso perguntar?
- Trinity - respondeu Stephen.
- Ah! - Lambert relaxou com um sorriso, mostrando os dentes brancos e parelhos, e, tirando a segunda luva apertada de pelica - uma operação que ele executava em
silêncio e sem arrepiar um pêlo - estendeu uma mão pequena para Stephen. - Muito prazer em conhecê-lo. Também estive na Casa. Por favor, não tenham tanta pressa
em se retirar. Posso facilmente encontrar outra mesa.
- Asseguro-lhe - disse Stephen, levantando-se - que terminamos mesmo.
- Então venha tomar chá conosco um dia destes. Estamos em casa quase todas as sextas-feiras às cinco horas. Então falaremos como dois homens de Oxford - seu sorriso
brincou na direção de Chester - e um que quase foi para Cambridge.
A conta, que Madame Chobert apresentara rapidamente, estava sobre a mesa. Uma vez que Chester parecia não vê-la, Stephen apanhou-a e, a despeito dos súbitos e enérgicos
protestos de Harry, pagou a despesa.
CAPÍTULO VII
SOB A MAGIA DA SUA NOVA LIBERDADE, Stephen, entrou rapidamente e com deliciada facilidade numa rotina agradabilíssima, tanto mais que, uma semana
após a sua chegada, recebeu uma carta de Stillwater que foi um grande alívio para o seu espírito. Embora acentuasse o sofrimento ocasionado pela súbita partida de
Stephen, o Reitor havia-o, em certo sentido, perdoado. Obviamente, escreveu ele, a inclinação (a palavra "tentação" fora riscada) tinha sido demasiado forte para
opor-lhe resistência. Por conseguinte, podia "ser tudo pelo melhor", se, como o próprio Stephen tinha proposto, esse interregno de um ano fosse considerado por ambos
os lados como um "campo de prova". Entrementes, aprovava a escolha de Stephen quanto à sua acomodação, conhecia-o demasiado bem para exortá-lo à virtude, e desejava
que nada lhe faltasse do que cabia à sua condição.
De manhã, era uma sensação que nunca diminuía acordar com a consciência de que estava em Paris, de fato seguindo a sua "carreira artística".
Levantou-se, vestiu-se rapidamente e, como o desjejum no Clifton não tinha nada que o recomendasse, saiu para uma pequena crèmerie na esquina do hotel. Ali, por
30 soldos, foram-lhe servidos um jarro de café ou lait e dois croissants flocosos ainda quentes do forno e recém-trazidos pelo padeiro.
Sua caminhada para o estúdio através das ruas frescas era sempre uma delícia, A multidão apressada e os policiais de capa azul, as donas-de-casa madrugadoras com
os braços enganchados em cestas carregadas, um soldado zuavo de calça escarlate, duas porteiras tagarelando apoiadas nas suas vassouras, um velho varredor de rua
lançando esguichos de água pela sarjeta, carrinhos barulhentos de verdura fresca do Halles - tudo isso o extasiava além das exclamações súbitas, agudas, a tagarelice
de muitas línguas, um vagaroso badalar de sinos ecoando nos edifícios de um cinza suave, as graciosas pontes brancas, o rio adorável, já começando a cintilar ao sol.
No estúdio, é verdade, ele não se sentia em casa. A falta de ordem e o perpétuo barulho tornavam difícil a concentração. Parecia que muitos estudantes tinham vindo
menos para trabalhar do que por mero divertimento e feroz exibição dos seus espíritos animais. Riam e cantavam, pregavam peças grosseiras, mantinham intermináveis
discussões em altas vozes nos cafés, afetavam uma boémia exagerada no vestuário e nas maneiras. Falavam a gíria do quarteirão, sabiam tudo a respeito dos últimos
"movimentos", reconheciam Manet, Degas e Renoir como seus mestres e imitavam-nos dolorosamente, desprezavam Millet e Ingres, eram muito críticos com Delacroix, e
contudo tinham pouco ou nada para oferecer de seu.
Naturalmente outros havia que se aplicavam. Ao lado de Stephen havia um moço polaco, vindo de uma pequena cidade do interior próxima de Varsóvia, que, inflamado
pela ambição, tinha vindo sem dinheiro para Paris. Para pagar a sua mensalidade na Dupret, havia trabalhado 12 meses como carregador na estação de Montparnasse.
A intensidade do seu esforço era assustadora, contudo ele não tinha o menor talento. Muitas vezes, quando Dupret
fazia a sua ronda diária, Stephen esperava que ele, com uma única palavra, acabasse piedosamente com aquele fútil labor. Mas o professor não dizia nada, nada além
de corrigir uma linha ou apontar uma expressão vazia, a falta de equilíbrio na composição. Sua atitude com Stephen continuava igualmente impassível, embora uma ou
duas vezes, após estudar alguma parte do seu trabalho, olhasse para ele de uma maneira curiosa, quase às escondidas, como se o visse e examinasse pela primeira vez.
Mais e mais, sob o alheamento de Dupret e suas grandes maneiras, Stephen começou a discernir um núcleo carcomido de decepção, a biliosa amargura de um homem que
no seu coração sabia que tinha falhado no cumprimento da sua expectativa juvenil. Ter obtido o reconhecimento dos círculos oficiais, exibir anualmente o seu trabalho
no Salon (uma pintura segura e cuidadosamente executada, que sempre era pendurada em um bom lugar), participar das juntas e comissões, representar a arte de luvas
brancas nas recepções do governo - tais distinções significavam alguma coisa para quem queria abalar o mundo com uma poderosa obra-prima? Dupret não tinha um verdadeiro
interesse pelo seu estúdio e ainda menos por seus alunos, a não ser quando, com uma ponta de ciúmes, via a evidência de um talento que podia ultrapassar o seu. Atrás
daquela fachada, era um homem vazio, um homem movido pelo homem que supunha ser, um homem mais digno de pena do que desprezo. Na verdade, quando o professor entrava
imponentemente na sala, Stephen fazia dele uma curiosa imagem, no fim do dia, despindo vagarosamente o fraque apertado e soltando os botões brilhantes dos sapatos,
remexendo os dedos comprimidos para aliviar os calos, voltando para a tela semiacabada um Casamento Bretão, pensando, com um arrepio: "Mon Dieu, devo continuar com
isto?"
Na hora do almoço, Stephen ia com Chester ao restaurante de Madame Chobert, mas ocasionalmente escapava à efusiva amizade de Harry e vagabundeava ao longo do cais,
mastigando um petit pain no qual havia uma fatia de presunto avivada pela mostarda amarela. Então, apressando o passo, ia aos museus, ao Louvre ou ao Luxembourg.
Era quase noite quando, com olhos ainda não ajustados às realidades da rua, deixava as compridas galerias e caminhava de volta para o Clifton.
Para Chester, e as poucas outras relações que fizera na Dupret, parecia extraordinário que Stephen passasse as suas noites só, e várias vezes instavam com ele para
que os acompanhasse numa visita a Montmartre. Certa ocasião, ele acedeu, acompanhado de meia dúzia de outros, em ir a um café-concerto na Toque Bleue, perto do Moulin
de la Galette.
Mas ficou enormemente entediado com as cenas que se presumiam vívidas e excitantes, mas, de fato, eram estupidamente fúteis. Os salões de dança eram uma massa humana
empurrando, sapateando, rodeando, semi-intoxicada,
ampliada e distorcida por dezenas de espelhos, retorcendo-se em formas grosseiras, ao estridor de uma banda reles. Certo, nada podia ser mais assustadoramente triste
do que as caras dos frequentadores mais velhos - peitos côncavos e olhos mortiços, estranhamente rebarbativos. Algumas das conhecidas cocotes que Chester lhe apontava
eram francamente medonhas, seus parceiros, com roupas pretas justíssimas, sinistros e degenerados.
Mais tarde, diversas jovens se reuniram à festa, que agora atingia uma fase turbulenta. Suas vozes roucas e grosseira camaradagem, seus braços atirados em torno
de pescoços e seus carinhos cochichados em voz alta despertavam nele um frio desagrado. Enquanto ele permanecia ali sentado, pálido e silencioso, como um peixe fora
da água, uma das jovens se curvou para Chester, que tinha bebido um bocado, e, com os olhos em Stephen, riu-se sem motivo e murmurou alguma coisa no seu ouvido.
Imediatamente, Chester rompeu num ataque de riso.
Nesse momento, Stephen não fez nenhum comentário, mas a caminho de casa, com Chester, falou no assunto.
- Não foi nada, meu velho. Ela apenas disse - Chester, com um tom de desculpa, modificou o comentário original, impublicável - que você era um tipo esquisito. -
E quando Stephen desviou a cabeça, acrescentou: - Lamento que você não tenha se divertido esta noite. Não esqueça de que vamos visitar Lambert na sexta-feira. Avise-me
antes de sair.
Nesse dia, por volta das quatro horas, Stephen saiu para a Rue Bonaparte, onde, no número 15, Harry tinha um quarto no último andar. Após uma íngreme subida de três
lances de escada, percebeu que havia uma furiosa altercação, "e empurrando a porta meio aberta encontrou Chester discutindo com um homem baixo de chapéu preto e
quadrado e um sobretudo pardacento, que, imperturbável, superintendia os movimentos de um subordinado muito ocupado em meter num grande saco de serapilheira o relógio
do consolo, um par de vasos chineses e outros objetos que decoravam o quarto.
- Agora, por favor, o seu relógio, Monsieur Chester.
- Ora, deixe disso, Maurice - suplicou Chester - o relógio não. Dê-me um prazo até o fim da semana que eu pago.
Neste momento, Chester viu Stephen. Por um instante, apatetou-se; depois, aproximando-se, forçou um sorriso confiante.
- Não é uma coisa idiota, Desmonde? Esgotei a minha pensão há pouco. E esses credores importunos, miseráveis, estão me despojando. É praticamente nada. Uns míseros
100-francos. E naturalmente receberei o cheque de mamã no fim do mês. É claro que eu não sonharia em pedir a você; contudo, se houver alguma chance...
Houve uma pequena pausa, então Stephen disse, de boa vontade:
- Terei muito prazer em atendê-lo.
- Muitíssimo obrigado, meu velho. Você o terá de volta, com juros, no dia primeiro do mês. Está vendo, Maurice, seu ladrão? E agora foutre le camp.
Dobrou as notas novinhas que Stephen extraiu da sua carteira e atirou ao oficial de diligências, o qual, após contá-las duas vezes com o polegar umedecido, acenou
silenciosamente, esvaziou o conteúdo da sacola sobre a mesa, com uma reverência enigmática, imitada pelo seu companheiro, e deslizou para fora da sala.
- bom! Acabou! - Chester riu-se alegremente, como se fosse uma excelente piada. - Eu ia sentir falta das minhas velhas panelas. E, naturalmente, disto aqui... -
Colocando os vasos de volta no consolo da lareira, abriu descuidadamente a tampa de um estojo chato e exibiu uma medalha redonda de prata presa a uma fita azul;
depois, de um modo um tanto envergonhado, que não deixava de ser encantador, ajuntou: - Essas coisas não se devem mencionar, Desmonde. Mas uma vez que você me apanhou
desprevenido, tenho que falar... é a Medalha Albert. Pois é... tive que recebê-la, há alguns anos.
- Por quê?
Stephen não podia negar que estava impressionado.
- Ora, porque salvei uma vida no mar, é como chamam isso. Uma velha tonta caiu do navio ao largo de Folkstone. Não posso culpá-la... o mar estava muito agitado...
e era inverno. Aconteceu que fui atrás dela. Não foi absolutamente nada. Não estivemos na água mais do que meia hora, enquanto o vapor fazia a curva e nos mandavam
um bote. Mas vamos esquecer isso e tratar de andar. Se não nos apressarmos, chegaremos tarde para o chá.
Com seu bom humor inteiramente recuperado, Chester desceu as escadas na frente, falando e rindo durante todo o caminho até o apartamento dos Lamberts, situado num
beco sem saída muito atrás da Avenue Duquesne. Ali, num pátio de paralelepípedos, havia um pequeno pavilhão de pedra cinzenta - avivado artisticamente por uma porta
verde-maçã e janelas da mesma cor - que fora outrora a casa do porteiro de uma mansão nos dias de Henrique IV. Cheirando a almoço e a defumador recém-queimado, o
pequeno e um tanto escuro interior estava artisticamente disposto com pequenos tapetes felpudos aqui e ali, cortinas de contas e cadeiras de bambu. Um xale espanhol
estava estendido sobre o piano de armário.
Arrastados pela impetuosidade de Chester, chegaram cedo. Lambert, dormitando numa espreguiçadeira junto às cinzas da lareira, ainda parecia afundado na letargia
de após-almoço, e mal ergueu uma pálpebra pesada quando eles entraram. Mas a Sra. Lambert lá estava para recebê-los. Era alta e esbelta, mais velha do que Stephen
tinha esperado, com grandes olhos verdes, feições tendentes à rispidez, cabelo cor de areia e uma pele branca leitosa que com ele combinava. Seu vestido de tarde,
recortado em torno do pescoço de maneira rebuscada e com saias cheias e compridas, era de brocado branco.
Enquanto ela e Chester conversavam, Stephen observava-a, sentada com compostura, com o pescoço arqueado, contra um biombo laqueado, até que ela, como se notasse
o seu olhar perscrutador, voltou os olhos para ele com um sorriso em arco.
- Espero que aprove o meu vestido...
E como ela parecia esperar um cumprimento, ele disse:
- Estou certo de que Whistler teria gostado de pintá-la com ele.
- Que coisa mais encantadora para dizer. - E ajuntou, confiadamente: - Fui eu mesma que o fiz.
Dali a pouco saiu e trouxe o chá, numa bandeja de prata, com muitas xícaras, com finos sanduíches de agrião, e petits fours. Quando começou a servir, Lambert bocejou
e espreguiçou-se.
- Chá! - exclamou ele. - Não posso viver sem chá. Abençoado, nutritivo chá. Forte, Elise. - Aceitou uma xícara, balançou-a airosamente. Este pode ter vindo das extensas
plantações da sua família no Ceilão, Harry. Não é uma ideia estimulante? Diga-nos se reconhece o sabor. - Olhou para Stephen. - Bem... o que esteve fazendo nesta
cidade malvada, Monsieur l'Abbé?
Stephen corou, Viu que Chester tinha andado a tagarelar a seu respeito.
- Certamente lhe parecerá ridículo. Um futuro pastor desertando para a pintura.
E em poucas palavras explicou algumas das circunstâncias da sua vinda para Paris.
Quando terminou, seguiu-se uma breve pausa, e então Lambert exclamou, com a sua costumeira ironia:
- Bravo, Abbé! E agora que já fez a sua confissão, tem a nossa absolvição incondicional.
Elise, inclinando-se um pouco para ele, com um sorriso, murmurou:
- Deve ter sentido uma incrível vontade de pintar. Tome mais um pouco de chá.
Quando Stephen levantou a mão com a sua xícara até os olhos, viu três leques, pintados em seda à maneira japonesa, arranjados sobre a parede. Fez uma pausa, impressionado
pela delicadeza do trabalho.
- Quem fez essas coisas tão encantadoras?
As pálpebras de Lambert ergueram-se. Acendeu um cigarro, antes de responder, de modo quase casual:
- Para dizer a verdade, caro Abbé, são minhas. Se não lhe aborrecer, mostro-lhe mais alguns trabalhos meus.
Depôs a xícara, e de uma pequena passagem lateral trouxe várias telas; então, de uma maneira fatigada colocou-as em pé, uma após a outra, de modo que recebessem
toda a luz, numa cadeira alta junto à janela.
A maioria dos quadros era bem pequena, e de temas leves - um raminho de flor de cereja numa malga azul, dois salgueiros à beira de uma poça estagnada, uma criança
com chapéu de palha sentada num caramanchão à margem de um rio - contudo, cada um deles tinha uma beleza decorativa que acentuava o simples. Era uma qualidade que
parecia infundir em formas pálidas um encanto enfastiado e indefinível.
Mostradas as poucas pinturas, Stephen voltou-se para Lambert.
- Eu não tinha ideia de que podia pintar assim... são encantadoras. Lambert encolheu os ombros, mas estava claramente satisfeito, ao passo que sua mulher, estendendo
o braço, apertou vivamente a mão de Stephen.
- Phil é realmente um génio. Ele também pinta retratos. - Seus olhos verdes demoraram-se luzindo. - Se souberem de alguém que esteja interessado em comprar... Sou
a sócia comercial.
Depois disso, a campainha da porta soou e,.em rápida sucessão, outros convidados chegaram, todos singularmente apropriados para aquela atmosfera de refinada boémia:
um jovem de meias brancas com um manuscrito debaixo do braço, outro homem, menos moço, mas de ombros quadrados e bem vestido, da Embaixada americana, uma modelo
chamada Nina, que Stephen tinha visto ocasionalmente no restaurante de Madame Chobert. Um francês de monóculo, gordo e idoso, que beijou a mão de Elise com tocante
galanteria, e sobre o qual, como um possível comprador, ela voltou todas as suas blandícies.
Um chá novo foi trazido, Lambert serviu uísque, o ruído da conversação aumentou, e dali a pouco Stephen, que em sua primeira visita não queria ficar muito tempo,
levantou-se para se retirar. Philip e a esposa instaram para que ele viesse outra vez. Aliás, Madame Lambert interrompeu a conversa para acompanhá-lo até a porta.
- Venha conosco rio acima no domingo. Fazemos um piquenique em Champrosay. - Deteve-se, de olhos grandes, com o ar de quem fazia um cumprimento. - Philip gostou
muito do senhor.
No domingo, então, e em outros dias depois, Stephen acompanhou os Lamberts, às vezes só, às vezes com Chester ou outros de seus amigos, àquela adorável altura do
Sena, entre Châtillon e Melun. Tomavam o bateau mouche na Pont Neuf para Ablon, onde alugavam um esquife e subiam com remadas descansadas a vagarosa corrente verde,
serpeando placidamente entre as ribas tornadas famosas pela Floresta de Sénart até atracarem diante de uma estalagem à margem do rio, desembarcando para almoçar
numa mesa de madeira ao ar livre.
O tempo era soberbo, a folhagem no seu melhor momento de beleza madura, as malvas-rosas e os girassóis em plena florada. O sol cintilante e o
ar caricioso, o exercício, aqueles amigos agradáveis, a esfuziante novidade de cada vista e som, o apito rouco de uma barcaça, a cor da blusa de um operário, a pose
da mulher do encarregado da comporta, tudo o que nele despertava um êxtase vibrante agia como um entorpecente sobre Stephen. Lambert, tirante algumas horas de melancolia,
estava na sua disposição mais atraente, lançando um dito de espírito aqui, um epigrama ali, exibindo o seu brilhantismo, recitando longos trechos de Verlaine e das
Fleurs du Mal.
- Mais sagrada que o Indo - murmurava ele, detendo-se para tomar fôlego, arrastando os seus compridos dedos na corrente fria, com o peito estreito a arfar, a mecha
de cabelos caída sobre a testa úmida. - Esses lírios d'água... cálices do mais puro alabastro... translucidamente rosados... e frios... frios como os seios das ninféias
flutuantes... - E assim por diante.
Seu olho para a beleza não se limitava à natureza, e sempre que a mulher que os servia na estalagem era razoavelmente favorecida, ele, a despeito do olhar agudo
da esposa, flertava com ela ultrajantemente.
A princípio, Stephen trazia consigo um bloco, querendo registrar tudo o que via, mas Lambert desanimou-o com um sorriso cómico.
- Deve guardar tudo aqui, caro Abbé. - Bateu na testa ligeiramente. Mais tarde... na solidão... isso nascerá outra vez.
Numa tarde de domingo, depois de uma excursão mais encantadora do que qualquer outra, Stephen despediu-se dos Lamberts e de dois outros que tinham participado do
passeio de barco, e caminhou do embarcadouro, no Quai St. Bernard, para o seu hotel. O sol, afundando agora por trás da cúpula do Trocadero, tinha incendiado o céu
o dia inteiro. Animados pelo calor do dia, todos tinham se banhado num lago abaixo do açude de L'Hermitage, comido um almoço especial de trutas, frias com patê,
enriquecido pelo nobre Chambertin, e depois adormecido sobre a relva tépida embaixo das faias de Sénart.
Como ele se sentia bem!... a pele queimada pelo sol, os pulmões cheios de ar do campo, o corpo formigando com a água picante do rio... uma espécie de satisfação
divina espalhava-se por ele.
De súbito, ao atravessar a Rue de Bièvre, um homem saiu de uma entrada estreita bem à sua frente. Usava sapatos pesados, uma calça de pele de toupeira e uma blusa
de porteiro pintalgada de azul; em torno do pescoço, um lenço vermelho enrolado negligentemente. Parecia um trabalhador voltando para casa após um duro dia de labor;
contudo, algo no aprumo dos ombros, o porte desafiante da cabeça, fez Stephen sobressaltar-se. Apressou o passo para alcançá-lo.
- Glyn!
Richard Glyn deu meia-volta, de cara séria e cenhuda; então, ao olhar, as rugas que tão profundamente lhe franziam a testa foram aos poucos desaparecendo.
- É você, Desmonde... Conseguiu deixar aquilo.
- Há cinco semanas - disse Stephen sorrindo de prazer. - E desde então estive esperando encontrá-lo. Escute, estou justamente voltando para o hotel. Venha e jante
comigo.
- bom - considerou Glyn - eu bem que gostaria de dar umas dentadas. Não comi nada o dia inteiro.
- Deus do céu, que esteve fazendo?
- Pintando... desde as seis da manhã - respondeu Glyn com uma espécie de violência sombria. - Costumo esquecer o almoço quando estou trabalhando... especialmente
quando não consigo dominar meus amaldiçoados valores das nuanças.
Falando, os seus olhos de ágata cintilavam com uma súbita e rude impaciência, o cansaço de um prolongado e apaixonado esforço para criar. Travando Stephen pelo braço,
saiu com ele rua afora.
CAPÍTULO VIII
O APARECIMENTO DE GLYN, de lenço vermelho no pescoço e botas ferradas, causou um pequeno rebuliço na sala de refeições do Clifton. O velho chefe dos garçons, criado
na tradição dos milords ingleses, não gostou do que via, e as duas damas solteironas, que até agora consideravam Stephen com simpática aprovação, agitaram-se de
chocada surpresa. Richard, contudo, não pareceu importar-se e, aboletando-se na sua cadeira, passeou os olhos em torno com visível curiosidade.
- Por que, em nome do Céu, você se hospeda num lugar como este, Desmonde?
- Oh, não sei... habituei-me a ele, suponho.
Glyn provou a sopa, feita, como sempre, de farinha e água gordurosa.
- Talvez você goste da comida, não?
Stephen riu-se.
- Sei que não é lá essas coisas. Mas o prato de carne será bom.
- É melhor que seja. - Richard partiu outro pão. - Eu lhe disse que estava faminto. Uma noite destas vou levá-lo para comer numa verdadeira casa de pasto.
- No restaurante de Madame Chobert?
- Por Deus que não! Nada de casa de picadinhos artísticos!... Detesto falsas aparências, tanto em cozinha como em pintura. Um bistro de cocheiros perto da minha
casa. Você pode confiar numa taberna onde os cocheiros comem. Servem lá um patê de lebre que não é deste mundo. - Glyn se deteve. - Agora me conte o que andou fazendo.
De boa vontade, mas sem entusiasmo, Stephen iniciou um relatório completo das suas recentes atividades. Falou da sua "labuta" matinal na Dupret, encareceu a sua
amizade com Chester e os Lamberts, tornou-se lírico ao descrever as suas excursões a Champrosay. A princípio, Glyn ouvia com um sorriso entre irónico e sarcástico,
mas lentamente a sua expressão se tornou séria, e ele ficou olhando de esguelha para o seu companheiro.
- Bem - exclamou ele quando a narrativa terminou. - Você parece que tem andado ocupado. Talvez me leve depois ao seu quarto para vermos o que tem feito.
- Oh, não tenho muito que mostrar... - respondeu Stephen apressadamente. - Apenas uns poucos esboços. Tenho me concentrado nas linhas, sabe?
- Sim - fez Glyn.
Em completo silêncio, ele mastigava o resistente pouding à l'anglaise que constituía a sobremesa do Clifton. Não disse palavra por uns bons cinco minutos. Depois,
por baixo das sobrancelhas franzidas, voltou para Stephen um olhar firme que também tinha um reflexo de extremo desagrado.
- Desmonde, você quer pintar? Ou enganar a sua vida como um desses personagens extravagantes de La Boême?
- Não compreendo.
- Ouça, então. Há talvez 10 mil impostores safados nesta cidade que se imaginam artistas porque estudam um pouco, desenham um pouco e sentam os rabos nos cafés todas
as noites, cacarejando sobre as suas obras-primas natimortas. Você é quase um deles. Sabe muitíssimo bem que está desperdiçando tempo, Desmonde. Só o trabalho duro,
infernal, é que tira o que você tem aí dentro, não vagabundeando pelo Sena, estendido de costas numa canoa com um poseur simplório que lhe esguicha Verlaine e Baudelaire.
Stephen avermelhou-se, indignado.
- Você é injusto, Glyn. Chester e Lambert são sujeitos muito decentes. E Lambert tem certamente um grande talento.
- Besteira! Que fez ele? Algumas japonaiseries, leques pintados, fragmentos... oh, bem bonito, não nego, mas coisinhas meio efeminadas... afetadas... e tudo muito
pequeno.
- Certamente é um sinal de vulgaridade produzir enormes telas.
Em seu ressentimento, Stephen citara uma observação favorita de Lambert, e Glyn logo farejou a sua origem. Riu-se rudemente.
- E Rubens, e Correggio, e del Sarto, com as suas tremendas concepções, e o velho Michelangelo, cobrindo o teto da Capela Sistina com a sua portentosa visão da Criação,
trabalhando tão duramente que em muitos dias nem tinha tempo de tirar a roupa? Eles foram vulgares? Não, Desmonde... Lambert é um amador bem-dotado, um artista menor,
que nunca seria ouvido se não fosse empurrado por trás pela sua astuta mulher. Não tenho nada contra esse sujeito, é em você que estou pensando, Desmonde. Você tem
algo que Lambert daria a alma para possuir. Não quero vê-lo jogando isso fora por causa da sua maldita tolice. E quanto a Harry Chester, prosseguiu Glyn, será você
tão ingénuo para já não ter saltado por cima dele?
- Não sei o que você quer dizer - respondeu Stephen agastado.
Glyn pensou em esclarecê-lo, mas contentou-se com um sorriso.
- Quanto dinheiro ele já levou de você?
Stephen corou profundamente. Chester tinha em várias ocasiões pedido empréstimos, e agora já lhe devia mais de 500 francos, mas não tinha ele dado a sua palavra
de honra que os pagaria fielmente?
- Ouça - continuou Glyn mais tranquilo - você teve um falso início, acabou em más companhias e, pior de tudo, tem afrouxado abominavelmente. Se não se levantar,
estará cavando o seu próprio túmulo. O poço mais fundo do inferno é ocupado pelo artista que não trabalha!
Fez-se um comprido e gélido silêncio. Embora Stephen se tivesse defendido, ao comparar o seu próprio dia inútil com as horas de esforço concentrado de Glyn, uma
vergonha começava a apoderar-se dele.
- Que devo fazer? - disse ele por fim.
- Em primeiro lugar, sair desta casa anglicana de repouso.
- Quando?
- Agora.
O olhar consternado de Stephen pareceu divertir Glyn imensamente, mas num instante ele ficou novamente sério.
- Não posso lhe pedir que venha para o meu buraco. Mas conheço um homem que terá prazer em recebê-lo.
- Quem?
- Jerome Peyrat é o nome dele. Tio Peyrat. É um camarada velhusco, em situação não muito boa, que quer alguém para dividir as despesas. Um tipo esquisito, por Deus,
mas um verdadeiro pintor, diferente dos seus falsos boémios. - O meio sorriso de Glyn era desconcertante, mas desapareceu rapidamente quando ele concluiu: - Você
já não tem mais nada com Dupret, está claro. Pode usar o meu estúdio. E vou lhe apresentar o meu homem das tintas, Napoleon Campo. Ele fia... às vezes. Vamos embora.
A natureza de Stephen não era adaptada às mudanças súbitas e decisões bruscas, contudo havia uma força avassaladora nos argumentos de Glyn, uma
irresistível compulsão na sua maneira. Dirigiu-se, portanto, ao escritório e, para surpresa e mortificação do gerente, pediu e liquidou a sua conta. Então fez a
mala e trouxe-a para baixo, desculpando-se por sua partida inesperada com uma profusa distribuição de gorjetas.
Glyn, no corredor, e claramente olhado pelo pessoal do Clifton como o demónio da peça, mostrou-se frio a respeito daquelas gratificações, e comentou sombriamente:
- Aconselho-o a guardar o seu dinheiro, Desmonde. Você pode vir a precisar dele depois.
- Espere, Glyn. Eles têm que nos arranjar um carro.
- Para o diabo com o carro. Está realmente tão fraco que não pode andar?
Apanhando a valise, que não era leve, Richard atirou-a no ombro e saiu do hotel a passos largos. Stephen acompanhou-o para a poeira luminosa da rua.
Era uma distância considerável até o alojamento de Peyrat, mas Glyn, que tinha uma satisfação selvagem em extrair o máximo de si mesmo, percorreu-a em passos rápidos,
sem vacilar ou depor a mala. Finalmente, numa escura rua lateral de Rive Gauche, no triângulo formado pelo encontro da Rue de Assas e do Boulevard Montparnasse,
Glyn enveredou por uma entrada torta ao lado de uma pastelaria, que, embora mal iluminada por uma lâmpada fraca, estava esfregada e limpa, e começou a subir de três
em três os degraus de pedra. Deteve-se no segundo andar, bateu na porta e, sem esperar resposta, torceu o trinco e fez Stephen entrar.
Era um apartamento de três cómodos, e na sala de estar, mobiliada com correção burguesa, sentava-se diante da mesa coberta por um oleado um homem franzino, de ombros
redondos, com cerca de 50 anos, um rosto chato e sulcado e uma barba inculta, vestindo, apesar do calor do fogo que flamejava na lareira, um descosido sobretudo
preto com a gola levantada e um chapéu duro, também preto; enquanto um tordo, sem a metade das penas, piava um acompanhamento numa gaiola junto à janela, ele se
exercitava na ocarina. À vista de Glyn, os seus olhos, que eram claros e jovens e o enchiam de engenhosa audácia, brilharam. Depôs o instrumento e, erguendo-se,
beijou Richard, com afeiçoada familiaridade, em ambas as faces.
- Peyrat - disse Glyn brevemente, enquanto se desvencilhava - trouxe-lhe o seu novo inquilino. É um amigo meu. Stephen Desmonde.
O olhar de Jerome Peyrat passou de Glyn para Stephen e nele repousou pensativamente - um escrutínio a um tempo inocente e amável.
- Se é seu amigo, mon vieux, então será meu também. Desculpe-me recebê-lo assim, Monsieur Desmonde. Richard sabe como padeço com correntes de ar.
- Espero que não o estejamos perturbando - disse Stephen, embaraçado.
- Longe disso. De noite tenho o hábito de contemplar a minha própria alma. Às vezes acho-a esplêndida, outras medonha. Esta noite - sorriu gravemente - agradeço
qualquer distração.
- Desmonde é pintor, Peyrat. Vai trabalhar comigo e com você.
- ótimo. - Peyrat não mostrou a menor surpresa. - Seja bem-vindo no meu apartamento... pelo menos temporariamente, uma vez que pertence a Monsieur Bisque, o pasteleiro.
Não importa. Aqui renunciamos à beleza das mulheres e ao brilho da fama contemporânea, a fim de produzir obras-primas que serão aclamadas mil anos após a nossa morte.
- Que esperança! - exclamou Glyn com irónica indulgência.
- É unicamente a esperança que nos mantém vivos.
- E a beata Teresa...
- É verdade. Somos sustentados pelo exemplo dessa nobre alma. - Voltou-se para Stephen. - Já visitou a Espanha?
- Não.
- Então um dia podemos fazer uma peregrinação juntos. Até Ávila de los Caballeros... que fica atrás de muralhas de granito, amareladas pelo sol do verão, geladas
pelo inverno de Castela, aprumando-se como uma grande coroa no seu deserto de rocha contra o duro azul das Montanhas de Greda.
- O senhor já esteve lá? - perguntou Stephen polidamente.
- Muitas vezes. Mas somente em espírito. Glyn explodiu numa gargalhada.
- Aviso-o, Desmonde. Este maluco, que nunca vai à igreja e diz coisas desagradáveis a respeito do Papa, tem uma absurda veneração por Santa Teresa.
- Peyrat sacudiu a cabeça em reprovação.
- Meu amigo, não tome em vão o nome da doce e obstinada mulher de Castela, a Velha, que restaurou a ordem descalça original, abandonou a vida ociosa e tagarela das
carmelitas. Ela troou a sua batalha com o espírito, o encanto, a humildade, as rezas, os argumentos, a paciência de uma santa e a têmpera de um capitão do mar. Também
foi uma poetisa...
- vou sair - disse Glyn, sorrindo e dirigindo-se para a porta. - vou deixá-los a sós para que se conheçam. Esteja no meu estúdio amanhã às sete, Desmonde. Boa noite.
Saiu. Peyrat, após um momento de silêncio, levantou-se e foi apertar a mão de Stephen.
Disse simplesmente:
- Espero que se sinta em casa.
CAPÍTULO IX
AGORA COMEÇAVA PARA STEPHEN, sob a influência de Glyn e Peyrat, uma nova existência, cheia de incessante trabalho, inteiramente oposta à sua recente interpretação
da vida artística. Jerome Peyrat, conhecido no distrito de Plaisance como "Tio Peyrat", era de origem humilde; seus pais, já falecidos, não foram mais que gente
simples do campo - embora ele falasse deles com orgulho - labutando nuns poucos hectares perto de Nantes. Durante 30 anos, como empregado do governo, petit fonctionaire,
passando os dias metido num paletó de alpaca com punhos de papel, tomando anotações nos registros poeirentos do Palais de Justice. Somente uma vez estivera fora
da França, quando, como terceiro secretário de uma comissão judicial, tinha ido à Índia. Lá, passara todo o seu lazer como um espectador ingénuo e fascinado dos
animais alinhados atrás das grades, debaixo das altas palmeiras e carobas do jardim zoológico de Calcutá. Alguns meses depois do seu regresso, o pessoal do ministério
foi reduzido e Peyrat aposentado com uma pensão tão diminuta que mal lhe dava para viver de pão. Então, inesperadamente, nunca antes tendo manifestado no menor grau
qualquer interesse pela arte, começou a pintar prolificamente. Não apenas a pintar, mas a considerar-se placidamente um pintor de génio. Nunca recebera uma só lição
na sua vida. Pintava os retratos dos amigos, ruas, edifícios, feios edifícios, cortejos nupciais, fábricas da banlieue, e punhados de flores agarradas por mãos descarnadas,
pintava composições de florestas - uma forma feminina nua, pródiga de seios e cadeiras, montada num tigre mostrando os dentes embaixo de um intrincado novelo de
palmas, trepadeiras, samambaias, orquídeas de tons cromáticos, uma floresta da imaginação, luxuriante e estupenda, povoada por serpentes e macacos trepadores entrelaçados
como num combate mortal, durante a execução dos quais tremia, suava e, para que não desmaiasse, era forçado, apesar do seu medo de apanhar um resfriado, a abrir
a janela para respirar ar fresco.
A vizinhança encolhia os ombros e sorria diante das suas pinturas, que eram expostas à venda, ao preço de 15 francos, na janela da sua amiga, Madame Huffnaegel,
uma viúva respeitável que tinha uma chapelaria a poucas portas rua abaixo e por quem ele nutria um respeito moderado. A não ser Napoleon Campo, o homem das tintas,
que tinha levado telas em pagamento de materiais
fornecidos a Peyrat - e cujo sótão estava, admitia-se, atulhado de refugos de artistas lutadores - ninguém comprava os quadros, que se tornaram, nas vizinhanças
da Rue Gastel, um alvo regular de hilariante, embora afetuosa, alegria. Contudo, complacentemente, Peyrat continuava pintando, às vezes passando muitas necessidades,
mas completando a sua magra pensão com vários recursos. Além da ocarina, que ele tocava para seu próprio prazer, e do corne francês, tinha um conhecimento limitado
do violino e do clarinete. Consequentemente, escreveu uns volantes que ele mesmo distribuía de porta em porta pelo bairro.
Aviso
JEROME PEYRAT
CURSOS DE MÚSICA, HARMÓNICA E SOLFEJO PARA CRIANÇAS
Aos sábados, das duas às cinco da tarde.
Rápido progresso garantido.
Pais podem assistir às aulas. Mensalidade por estudante: cinco francos.
Número limitado de alunos.
No verão, também tirava um bom efeito da sua habilidade no corne francês, tocando todas as tardes de terça-feira na orquestra que encantava as babás e seus pirralhos
no Jardim das Tulherias. E quando a necessidade o premia demasiado, lá estava o amigo da sua infância, Alphonse Bisque, agora o pasteleiro do Plaisance, gordo, de
meia-idade, completamente calvo, com quem - por recordação sentimental dos dias distantes da escola em Nantes, e não por causa das pinturas que de tempos em tempos
Jerome lhe empurrava em pagamento - se podia contar para fornecer pastel de carneiro ou patê de carne.
Nos seus hábitos e no seu modo geral de vida, Peyrat - Stephen logo o descobriu - era tão engenhoso, tão original como os seus quadros. com toda a sua simplicidade,
tinha uma mente ativa e inquisidora, abarrotada com os frutos das suas pesquisas em volumes abstrusos de segunda mão comprados nos quais, frequentemente vomitados
em discursos ingenuamente eruditos sobre história, teologia medieval ou assuntos tão inconciliáveis como Cosme de Alexandria, que no ano 548 denunciara a doutrina
da redondeza da Terra, e Santa Teresa de Ávila, a quem ele, um ateu, tinha tranquilamente tomado por padroeira.
A despeito dessas excentricidades, portava-se, na sua frase favorita, como un brave homme et un bon camarade. Por mais cedo que Stephen se levantasse, Peyrat já
estava de pé antes dele, para apanhar o leite e o pão quente que o menino Alphonse entregava todas as manhãs na sua porta. Terminado o seu simples desjejum, vestia
um avental e lavava a louça; depois, tendo dado água e sementes ao tordo que achara na rua, estropiado por um gato, e que se propunha soltar quando a asa se emendasse,
aprestava-se para o dia de trabalho, punha no ombro a sua paleta e caixa de tintas, mais um grande guarda-chuva para protegê-lo contra os elementos, e saía a pé
para algum canto remoto dos subúrbios, Ivry, Charenton ou Passy, onde, imperturbável ante comentários grosseiros dos passantes ou peças que as crianças lhe pregavam,
atormentando-o, perdia-se na maravilha e no mistério de transpor para a tela alguma visão celestial de um vagão encostado, um bonde ou o cano de uma chaminé.
Stephen saía à mesma hora, apressando-se todas as manhãs para a Rue de Biêvre a fim de utilizar a luz clara do norte, depois do amanhecer, que jorrava através das
clarabóias chumbadas do estúdio de Glyn. Richard, que nunca se poupava, era impiedoso na sua atitude de severo e às vezes estúpido feitor.
- Mostre-me o que é capaz de fazer - dizia ele sombriamente. - Em seis meses, se você não me satisfizer, pode voltar para o Senhor.
O modelo de Glyn, Anna Montel, era uma mulher de 30 anos, alta e vigorosa, de cabelos negros e olhar cigano, desolado. Era uma ramani Cinzany, cujos antepassados
deviam ter vindo originariamente da Hungria, embora Glyn a tivesse encontrado numa remota parte de Gales do Norte. Sua pele era áspera, e como sempre ela andava
descalça, numa saia escura e blusa verde, sem luvas ou capote; suas mãos e faces eram gretadas pelas cortantes brisas do outono que assobiavam na rua vindas do rio.
Mas os planos daquela face castigada pelo vento, com as suas órbitas firmes e malares altos, eram lisos e fortes. Andando pelo estúdio nas suas chinelas de ourela,
lendo de relance os desejos de Glyn, era a pessoa mais silenciosa que Stephen tinha conhecido-. Posava a todas as horas, e por longos períodos; depois, sem uma palavra,
deslizava do estúdio para Halles e, voltando com uma braçada de provisões, ia ao fogãozinho e preparava um goulash, ou coava café naquela chaleirinha azul de esmalte
com o bico quebrado, que figurou, mais tarde, num dos mais conhecidos quadros de Glyn: Le Café Matinal.
Embora nunca procurasse instruir, Glyn era incansável na sua exigência por originalidade, insistindo em que Stephen descartasse as suas noções preconcebidas, encorajando-o
a olhar para os objetos não como eles eram vistos e representados pela tradição, mas com os seus olhos novos.
- Faça como Peyrat faz! - exclamava Glyn. - Faça cada quadro absolutamente seu.
- Você tem Peyrat em grande conta?
- Acho que ele é grande. - Glyn falava com inteira convicção. - Tem a visão direta original de um artista primitivo. Podem rir dele o quanto quiserem, achando-o
um velho tolo. Mas dentro de 20 anos se arrastarão para ter um dos seus quadros.
Era um trabalho duro - e frio. No estúdio gélido, as semanas avançavam mais frígidas ainda, porque Glyn tinha uma teoria espartana de que ninguém podia dar o que
tinha de melhor num ambiente de conforto. Morta para sempre estava a primeira ideia de Stephen de que pintar era uma arte suave e sedutora. Nunca em sua existência
teve um regime tão rigoroso. E Glyn era insaciável na sua demanda por maior, e ainda maior, esforço.
Um dia, quando a cabeça de Stephen girava e ele sentiu que não podia continuar, Richard, respirando fundo, atirou a sua paleta no chão.
- Exercício - decretou ele. - O tampo da minha cabeça está saltando. Sabe andar de bicicleta?
- Sem dúvida.
- Suponho que você praticava o crawl de coadjutor lá em Oxford. Seis quilómetros por hora.
- Acredito que posso fazer um pouco melhor do que isso.
- Muito bem. - Glyn sorriu. - Veremos de que você é feito.
Saíram do estúdio e atravessaram a rua para a loja de bicicletas do quarteirão, atendida por Pierre Berthelot, um antigo ciclista de corridas que, embora incapacitado
agora por um coração danificado pelo Pernod, tinha nos seus dias obtido um terceiro lugar no Tour de France. Era um estabelecimento pequeno, arruinado, com uma fila
de bicicletas penduradas do teto, na frente, e uma escura oficina de reparos ao fundo. Entraram. O lugar parecia deserto.
- Pierre! - gritou Glyn, batendo no balcão.
Uma moça de uns 20 anos surgiu dos fundos. Era um tanto baixa, usava um suéter escuro e uma saia preta pregueada, com pés sem meias enfiados em compridas chinelas
pretas.
- É você? - fez Glyn.
- A quem esperavk? A rainha de Sabá?
- Por que não está no circo?
- Desmontado para o inverno. - Ela falava com frases curtas, desgraciosamente, com as mãos nas cadeiras e as pernas separadas.
- E o seu pai?
- Curando uma bebedeira.
- Hum! Stephen, esta é Emmy Berthelot. E enquanto ela olhava de um para outro de uma maneira aborrecida, ele continuou: - Queremos duas bicicletas para esta tarde.
Boas.
- Todas são boas. Peguem as duas do fim.
Enquanto Glyn abaixara a corda na roldana, Stephen observava-a experimentar cada bicicleta como entendida, fazendo as rodas girarem. Tinha um rosto pálido, emburrado,
testa baixa, ligeiramente saliente, sobrancelhas bem marcadas, uma boca grande de lábios finos. O nariz tinha uma boa linha, mas apresentava essa ponta arrebitada
dos bairros pobres que a denunciava. A não ser pelos seios, salientes sob o jérsei apertado, tinha a figura de um menino bem desenvolvido. Virando inesperadamente,
notou que Stephen tinha os olhos nela. Sob o seu olhar frio e avaliador, ele sentiu que corava - havia na maneira dela uma insolência que o magoava. Richard estava
levando as bicicletas para a porta.
- Gostaria de vir conosco Emmy?
- De que jeito? Tenho que cuidar da loja. Graças a esse velho beberrão.
- Outro dia então. Voltaremos antes de escurecer.
Stephen acompanhou Glyn para a rua. Montaram e, dobrados em dois sobre os guidons abaixados, Glyn adiante, afastaram-se, furando o tráfego do Faubourg St. Germaine
até a Porte de Versailles. Fora das portas da cidade, aceleraram pela estrada reta e lisa para Ville d'Avray. Richard, com ocasionais olhadelas para trás, imprimiu
uma velocidade arriscada. St. Appoline, Pontchartrain e Meul ficaram vertiginosamente para trás. E, depois, Jussieu, e Orgeval. Por fim, numa ampla curva circular,
tinham percorrido cerca de 30 quilómetros, e Glyn parou com uma freada diante de uma buvette na pequena aldeia de Louveciennes. Respirando forte, olhou criticamente
para Stephen, suado e empoeirado, completamente sem fôlego. Sorriu.
- Nada mau, meu rapaz. Você não gosta de desistir, não é? É uma qualidade que pode lhe ser útil. Venha tomar uma cerveja.
No bar escuro, de teto baixo, tomaram uma caneca de cerveja gelada, que escorregou deliciosamente nas suas gargantas secas. Glyn sugou a espuma da barba e suspirou.
- bom lugar para pintar este campo em torno de Louveciennes - meditou ele. Renoir e Pissarro costumavam andar por aqui. Sisley também. Traremos Emmy para dar o ritmo.
Ela pode realmente vir.
A lembrança do encontro na loja de bicicleta ainda doía em Stephen. Ele disse secamente:
- Aquela moça me pareceu uma pessoa um tanto desagradável.
Glyn soltou uma risada.
- Modere a sua língua, padre... - E depois de uma pausa: - Na verdade, ela é uma putinha barata... o seu amigo Chester podia lhe dizer... E dura. Praticamente criada
na equipe no circuit de France. Troteia por aí com um bando de vadias. Faz uma tournée de seis meses por ano com o grupo do Peroz.
- Peroz?
- Adolf Peroz. Primeiro, eram os Irmãos Peroz. Adolf é o sobrevivente. Conheço-o. Sujeito decente. Tem um circo muito bom. Emmy faz os números de ciclista. Acho
que deve ser extremamente arriscado. Ela ganha um bom dinheiro, e deixa você saber disso. Ela não tem préstimo para nós, realmente, e sabe que andamos tesos. Mas
é incrivelmente vaidosa, e quer que eu a pinte.
- Vai pintar?
- Não mesmo! Não lido com tipos da sarjeta. Mas me divirto pondo uma mosca na sopa dela. Ela é realmente uma perfeita cadelinha. - Terminou a sua cerveja. - Vamos
embora.
Voltaram lentamente no frescor da tarde. Glyn estava eufórico, purgado da tensão nervosa, cantando trechos de canções populares do País de Gales.
Diante da loja de bicicleta, consultou o relógio e deu um assobio.
- Estou atrasado. Tenho que me encontrar com Anna. Entregue isto por mim, como um bom sujeito. Deixou a sua bicicleta com Stephen e precipitou-se.
Com alguma dificuldade, Stephen manobrou as duas bicicletas para dentro da loja. Como antes, estava vazia. Ele bateu no balcão, e então, como ninguém aparecesse,
empurrou a porta dos fundos; no corredorzinho escuro, foi de encontro a Emmy, que vinha para a loja. A porta de fora fechou-se, deixando-os juntos, confinados na
escuridão de um espaço não maior que um armário. Muito desconcertado, Stephen não achava o que dizer, e de súbito o seu pulso começou a bater como um martelo. Ela
estava em pé a seu lado, tão perto que ele podia sentir-lhe o calor, e uma estranha e repentina emoção fez a sua garganta se apertar. Ela o observava impassível,
sem surpresa, embora o seu íntimo torvelinho lhe fosse perfeitamente aparente; deu-lhe um sorriso frio, crítico.
- Que veux-tu?
O duplo sentido da pergunta trouxe-lhe uma onda de calor. Houve uma pausa, durante a qual ele ouvia as rápidas e altas batidas do seu coração. Numa voz não natural,
respondeu:
- Queria que soubesse... que eu trouxe as bicicletas de volta.
- Fizeram um bom passeio? - Ela continuava a observá-lo conscientemente, olhos apertados, meio divertida com a sua emoção, embora não participando dela.
- Sim, obrigado.
Silêncio outra vez. Ela não fazia nenhum gesto para se mover. Afinal, com grande esforço, ele pôs a mão na porta às suas costas e empurrou-a.
- Espero - gaguejou ele como um colegial - espero vê-la novamente. Envergonhado e muito tenso, tentou sem sucesso afastá-la da mente. Mas ela crescia cada vez que
a via - ocasiões que se tornaram frequentes desde que, com a chegada da primavera, Glyn insistia em exercícios regulares
semanais. Sentia-se ao mesmo tempo atraído e repelido por Emmy. Desejava muito pedir-lhe que posasse para ele, mas não podia chegar a dizê-lo com tantas palavras.
Uma oportunidade favorável parecia não surgir nunca. Ela permanecia como um enigma não decifrado, um sentido procurado e não achado, uma estranha irritação no fundo
do seu espírito.
E o tempo ia passando com desconcertante rapidez. À medida que os dias iam ficando mais compridos, e os castanheiros rebentavam em flores outra vez, ele percebia
que este ano de graça em breve estaria acabado. Mais e mais as cartas de Stillwater, de seu pai, de Davie, e de Claire, começavam a antecipar o seu regresso, a pedi-lo
mesmo, com crescente urgência.
Julho chegou, e do céu brônzeo um ar abafado pesava sobre a cidade. Glyn, que detestava o tempo de calor, resistiu por duas semanas, depois resolveu subitamente
ir para a Bretanha com Anna, vagabundear por lá, e pintar Calveries. Os Lamberts já tinham partido para La Baule e agora Chester ia encontrar-se com eles. Até Peyrat
falava em desertar de Paris. O aluguel do apartamento terminava em agosto e ele planejava ir ver um tio em Auvergne.
Tanto Richard como Peyrat insistiram para que Stephen os acompanhasse. Mas ele não podia aceitar - uma carta final, com um ressaibo de severidade, tinha chegado
do Reitor, na qual ele esperava que Stephen não "recuasse da palavra empenhada" nem se deixasse deter pelos "divertimentos e atrações de Paris",
Depois de a ler, Stephen atirou os seus pincéis sobre a mesa e saiu para a rua. Poderia ter ido ao Bois, onde sempre havia sombra embaixo das árvores, mas o seu
humor, deprimido e irritável, proibia-o. Em vez disso, apesar da sua fadiga e de uma sensação de estar absolutamente exausto, caminhou direto para cidade, através
de quilómetros de ruas monótonas. Lojas e cafés em todo o caminho, grandes a princípio, gradativamente menores. Quase todas vazias. Numa delas, deserta, um garçom,
com a cabeça nos braços, dormia numa mesa. Stephen passou por baixo das pontes da estrada de ferro, pelos trilhos serpenteantes do grande Terminal, atravessou canais;
finalmente, passado o octroi, encontrou-se num ermo poeirento fora das barreiras de Paris. A esse tempo, pingava de suor e continuava a repetir para si mesmo:
- Meu Deus, que vida... E papai pensa que os meus dias são uma ronda de prazer.
Quando voltou, parou na agência postal do Plaisance e escreveu um telegrama.
DESMONDE, REITORIA, STILLWATER, SUSSEX. ATRAVESSANDO BARCO CEDO AMANHÃ DEZENOVE JULHO.
STEPHEN.
CAPÍTULO X
NADA, PENSAVA STEPHEN, excede a alegria de revisitar os amados lugares familiares, meio esquecidos, agora vistos mais belos do que antes. Estendido na relva da ribanceira
do Lago Chillingham, com uma vara de pescar a seu lado, aquecido pelo sol da tarde, estava observando Davie lançar um peixinho prateado, ainda desajeitado, mas com
uma seriedade que traduzia aperfeiçoamento, entre os lírios floridos, debaixo de cuja frescura estava um lúcio escuro. O ar era claro e dourado, havia flores silvestres
por toda a parte, as árvores ostentavam a sua mais ampla e tenra folhagem; nas sarças, as rosas-de-cão, de um róseo delicado, exalavam o seu perfume, que se misturava
com o denso aroma das rainhas-dos-prados. Pombos revoavam distantes lá em cima e, da granja familiar, em Broughton Park, ele ouvia o cacarejo das aves.
Era difícil perceber que estava em casa havia duas semanas. Desde aquele momento em que, em Halborough, tinha sido recebido por Davie e Caroline - uma combinação
feita com delicada discrição - tudo corria tão maciamente que o tempo parecia voar. Sim, era bom estar de volta - se pelo menos não o tratassem como o filho pródigo
agora perdoado e que devesse ser mantido a todo o custo pela bondade. Desjejum na cama, o Times do seu pai fechado na bandeja - até ele protestar dizendo que preferia
levantar-se e tomar café com Davie lá embaixo; seus pratos prediletos no almoço e jantar, Beasley trabalhando mais horas na cozinha, Mould trazendo cestas de frutos
escolhidos; seus desejos atendidos, excursões planejadas; claramente, todos os membros da família estavam unidos num esforço diplomático para desarmá-lo.
O assunto da sua pintura não era discutido - estava morto desde a primeira noite, quando, a pedido do Reitor, mostrou as suas telas. Com uma contração do cenho,
entre uma carranca e um sorriso, ele reconheceu quão honestamente, embora de modo vão, o pai tentara aprovar o seu trabalho, perplexo diante de tudo o que via, o
olho assustado indo descansar, em particular, numa cena de banlieue que mostrava uma mulher pendurando um varal de roupa no fundo do seu quintal num dia de vento.
- Meu caro rapaz... você acha isto... belo?
- Sim. É um dos meus prediletos.
- Mas não compreendo. Por que tem que pintar uma corda de roupa?
- É a interação dos tons brilhantes, papai... contra o fundo sombrio, o vestido cinza e branco da velha...
Procurou explicar a base da sua ideia e como as cores puras eram aplicadas com uma espátula. Contudo, era claro que o Reitor continuava perplexo e não convencido.
Seguiu-se uma longa pausa. Por fim, depois de um último exame, seu olhar voltou-se dúbia e ainda inquisidoramente para ele.
- Suponho que um perito possa apreciar isto.
- Acho que pode.
A seguir, a consideração suplantou a crítica. Caroline, muito mais terna à sua maneira, tinha passado as suas roupas, costurado os botões da camisa, e a sua mãe,
estimulada no seu mundo solitário e peculiar, subitamente descobrira e declarara que usaria um novelo de lã com o qual, desde que ele estava em Oxford, pensava tricotar-lhe
umas meias.
Tinha sido, na maior parte, um grupo familiar restrito - para alívio de Stephen, o General Desmonde e sua mulher estavam na Escócia com Geoffrey, caçando - mas nesta
tarde, sabendo que ele e Davie tinham que estar em Chillingham, Lady Broughton convidara-os para o chá.
Com um olhar para o sol, agora obliquando na crista dos Downs, Stephen achou que era melhor saírem logo. Levantou-se, caminhou ao longo da ribanceira e ficou atrás
do irmão, que, embora desse sinais de cansaço, ainda lançava a sua linha, perseverantemente, na água indiferente. A pesca, até agora, tinha sido fraca - três percas
amarelas tão pequenas que não satisfaziam o gato da Reitoria. Ciente do apaixonado ardor que Davie tinha por aquilo, e aliás por qualquer esporte ao ar livre - um
sentimento tão contrário à sua própria indiferença, tão comoventemente incoerente também, dadas as condições delicadas do rapaz e da sua saúde, que estava longe
de ser robusta - ele desejava que uma grande e digna truta se enganchasse no anzol. Podia muito bem ver a alegria e triunfo que essa captura causaria.
Mas embora esperasse pacientemente, com uma palavra ocasional de animação, não houve esse golpe de sorte. Davie, refletiu com momentânea tristeza, nunca tinha sorte.
E enquanto o seu jovem irmão enrolava a linha, passou-lhe um braço nos ombros e, louvando o seu progresso em lançar a vara, condenando os elementos desfavoráveis
do calor e da luz, finalmente, aumentando o valor dos três peixinhos agora curvados e secos na cesta, trouxe-o de volta para a alegria.
- Acho que estou melhor - disse Davie esperançoso. - Esforcei-me muitíssimo. E, como você diz, essas percas não são más. Acha que dão para cozinhar?
- Perfeitamente.
- De qualquer modo... são muito pequenas.
- Quanto menor, melhor - disse Stephen.
Ao saírem pelo prado, evitando o longo caminho em volta do Foxcross Corner e, uma vez que estava tão seco, atravessando os carriços mais baixos, Davie tagarelava
com a viva animação que era um traço do seu caráter. Tinha crescido muito ultimamente, parecia alto para 14 anos, e os seus membros tinham a descoordenação da idade
ingrata, fazendo parecer que caminhava aos arrancos. Contudo, a expressão do seu rosto delicado era menos febril do que antes, e os seus ataques, Stephen soubera
de Caroline, eram menos fortes, revelando uma firme mudança na frequência. Ouvindo com simpatia, observando o jogo de luzes sobre aquelas feições bem talhadas, Stephen
estava consciente de uma profunda onda de afeição por seu irmão. Tinham estado juntos quase continuamente durante as últimas duas semanas.
Saindo dos bosques, pularam a grade de ferro que cercava o parque, onde o gado pastava placidamente, e dali a pouco chegaram à avenida que, contornando o jardim
formal que margeava o relvado, acabou levando-os à própria mansão, uma grande edificação vitoriana de arenito vermelho maciço, corrompida por torres e torreões,
que Lady Broughton pretendia ser a casa mais alta de Sussex.
Foi ela quem os recebeu, reclinada numa chaise-longue junto às janelas francesas abertas ao sul da sala de estar, pedindo-lhes que desculpassem a sua aparente indolência
- seu médico andava ridiculamente severo com ela pondo-os imediatamente à vontade com o tranquilo calor da sua acolhida.
- Bem-vindo, Stephen. - Segurando-lhe a mão, olhou-o de alto a baixo.
- Cheio de conhecimento de coisas lindas. Sinto que não tenha uma barba. Acho que Paris fez-lhe bem. Pode beijar-me o pulso como um francês?
- Não estive estudando essa arte.
- Que pena! - sorriu ela. - Não é, Davie?
- Só será uma pena se meu irmão voltar para lá, Lady Broughton.
- Bem dito. Você vê como estamos contentes em tê-lo de volta em casa outra vez, Stephen. Como prova disso, eu lhes darei pães de milho de Sussex no chá. Lembra-se
como gostava deles quando tinha a idade de Davie?
- Lembro-me, e muito! Ainda gosto. E Davie também.
Lady Broughton sorriu, e continuou a caçoar amavelmente. Contudo, ouvindo-a calado, Stephen notava a mudança por que ela passara. Sempre gostara daquela mulher,
baixa, de cores vivas, sem qualquer aparência de distinção, cuja boa e enérgica natureza e sólido bom senso transpareciam em todas as suas ações. E agora causava-lhe
mágoa aquela atitude passiva, aquela respiração rápida, o leve tom purpurino em suas faces sempre vívidas.
- Claire deve chegar logo - disse ela. - Atrevo-me a dizer que ela fará a sua entrada com uma cesta de rosas, como algo pintado por Gainsborough.
Quase como dissera a mãe, Claire entrou, não do jardim, nem com flores, de cabeça descoberta, não parecendo um Gainsborough mas antes um
Burne-Jones, no seu vestido de linho de corte quadrado no pescoço, de uma cor de burel que combinava com os seus cabelos vermelho-dourados. Embora tivesse sem dúvida
esquecido, Stephen disse imediatamente que ela condizia com aquela rica sombra pré-rafaelita.
A sua postura era admirável. Ninguém teria adivinhado quão rápido batia o seu coração, ou há quanto tempo ela esperava por este momento.
- Claire - fez Stephen dirigindo-se para ela.
- É tão bom ver você - disse ela. - E você, Davie.
Esperava que a ligeira cor que sentia subir-lhe às faces passasse despercebida. Vê-lo outra vez, sentir o contato dos seus dedos punham a sua compostura à prova
mais do que ela poderia esperar.
Nesse momento, foi servido o chá, não um repasto frugal de biscoitos e pão fino e manteiga, mas uma regular fartura colegial de ovos cozidos e pão de minuto, sanduíches
e pãezinhos de milho, com morangos e nata batida à Sussex, tudo disposto sobre uma mesa de pau-cetim com rodas.
- Achamos que você estaria com fome depois da pescaria - disse Claire a Davie.
- E estamos - concordou ele com entusiasmo. - Nosso lanche não foi grande coisa.
Segurou a xícara que Claire enchera e, polidamente, embora com certa ternura, levou-a a Lady Broughton antes de sentar-se.
- Obrigada, Davie. - Rompendo o ligeiro constrangimento, comentou, na sua maneira arreliante: - Claire, não acha que Stephen está com o ar de um parisiense?
- Está mais magro, talvez. - Que estúpida resposta! Mas ele estava em casa - e a inquietante doçura desse pensamento banhava de luz os seus olhos.
- Não acho que a comida francesa seja muito nutritiva - arriscou Davie seriamente. - Eu pelo menos não quero caracóis nem pernas de rã, ou coisas assim.
Todos riram-se, e depois que eram um alegre bando, Davie, como para provar a virtude da dieta anglo-saxã, empenhou-se numa viva discussão com Claire sobre os métodos
de apanhar lúcios, no fim da qual ambos concordaram que num dia como aquele uma isca artificial seria muito melhor que um barrigudinho prateado.
- Acho que há algumas dessas iscas no salão de bilhar - disse Claire, e após um momento de reflexão ajuntou: - Não gostaria de tê-las?
- Ora, ora... - murmurou Davie. - Mas não são para você? Quero dizer... está falando sério?
- Estou sim. Ninguém as usa. Venha comigo e daremos uma olhada. Perguntando se poderia ser desculpado, Davie levantou-se com alacridade e abriu a porta para Claire.
Saíram juntos.
Logo depois, Lady Broughton olhou meditativamente para Stephen, de quem ela sinceramente sempre gostara e por quem, na verdade, tinha admiração. O fato de ele ter
deixado a Igreja absolutamente não a perturbava - com uma natureza tão sensível, apaixonada e tímida, ela não o considerava talhado para ser um pastor rural. Nem
as suas recentes aventuras artísticas lhe causaram grande inquietação. Encarava-as apenas como um capricho passageiro, uma tendência temporária herdada sem dúvida
das excentricidades do lado materno - estava bem lembrada de como, quando era criança, ficara petrificada pelas coloridas extravagâncias do digno pai da Sra. Desmonde
- e que de modo algum diminuíam a finura essencial do caráter de Stephen. Contudo, era menos esta genuína atenção do que o seu conhecimento dos sentimentos de Claire
que a fazia desejar dizer alguma coisa compatível com a boa educação que pudesse trazer o assunto à baila. Naqueles últimos meses, tinha observado com simpatia a
indiferença e desatenção da sua filha, e notado também, não sem desconfiança, os seus esforços ocasionais para romper aquela disposição pensativa e achar distração
em atividades que lhe eram inteiramente alheias. Recentemente, Geoffrey Desmonde tinha sido um visitante persistente, e, quando menos pela maneira com que arrastava
as suas frases, Lady Broughtpn o detestava. Considerava-o estereotipado e banal, afetado, presumido e mimado; e tendo sido casada com um homem cuja pesada obtusidade
tinha feito da sua vida, por mais de 20 anos, uma penitência, não desejava semelhante destino para Claire.
Foi sem dúvida essa ordem de ideias que a levou a observar:
- Não tinha visto a sua prima desde que voltou?
- Não. Todo o pessoal do Simla parece estar na Escócia.
- Geoffrey tem dado muitos tiros por aqui.
- Ele gosta disso. Tem caçado?
- Claire e ele têm corrido bastante pelos Downs. Andam Juntos muitas vezes. Acho que a levou a Brooklands outro dia... para as corridas de automóveis.
- Não sabia que Claire se interessava por tais coisas.
- Não acho que ela se interesse... mas não fica bem recusar - disse Lady Broughton sorrindo.
Na pausa que se seguiu, inclinou-se ligeiramente para ele e continuou num tom que, embora confidencial, manteve deliberadamente casual.
- Preocupo-me um pouco com ela, Stephen. É uma pessoa tão quieta e introspectiva, se quiser - amiga, mas que não sabe fazer amigos. Para estar contente, ela precisa
do tipo certo de companhia - ou vou mais adiante e digo - o tipo certo de marido? Não preciso lhe dizer que não estarei aqui para sempre. Muito em breve, Claire
pode ficar só. E embora ela ame este lugar, são muitas as responsabilidades - que pode achar difícil assumir...
Não dissera nada de definido, nada que pudesse de qualquer modo embaraçá-lo, contudo não havia como se enganar quanto à sua intenção. Na verdade, antes que ele pudesse
falar, ela prosseguiu, colocando os dedos de veias ligeiramente inchadas no seu ombro.
- Acho que foi sensato passar aquela temporada em Paris. E o seu excelentíssimo pai foi sensato em deixá-lo ir. Nos meus dias, os jovens sempre faziam a grande excursão.
Isso não apenas era considerado uma necessidade virtual, mas tirava muitas coisas do seu sistema. Eles voltavam, estabeleciam-se como bons proprietários rurais e
constituíam uma família. Isso é precisamente o que você deve fazer, Stephen.
- Mas supondo... - Ele evitava o seu olhar, com uma ligeira cor nas faces. - Supondo que sinta que devo ir ao estrangeiro outra vez?
-Para quê?
- Para continuar a estudar... e trabalhar.
- Em quê?
- Pintura.
Ela abanou a cabeça e deu-lhe uma indulgente palmadinha na mão.
- Meu caro rapaz, quando eu era jovem e romântica, pensava que poderia escrever poesia, e escrevi, para minha vergonha. Todavia, livrei-me disso. E assim será com
você.
O argumento parecia conclusivo, e ela acomodou-se na sua almofada. Antes que Stephen pudesse responder, Davie entrou na sala com Claire, trazendo uma caixa de metal
laqueado.
- Veja, Stephen, o que Claire me deu. Todas estas belas iscas. Até giradores e bóias. E esta caixa impermeável.
- Não se esqueça - sorriu Claire - que eu espero muitos peixes.
- Agora vai ser fácil. Eu gostaria que a escola não reabrisse tão cedo.
- O inverno não é a melhor época para o lúcio?
- É, sim. E eu estarei à espera dos feriados de Natal.
- Bem, lembre-se de vir tomar chá sempre que estivermos em Chillingham.
Stephen levantou-se, preparando-se para se despedir, tocado pela bondade de Claire com Davie, por sua quieta amabilidade, aparente, mesmo com o seu ar reservado,
em cada palavra ou gesto. Os últimos lampejos da tarde douravam o comprido salão com suas colunas, não belo, mas acolhedor, encantador, com o sentimento de uma velha
casa de campo. Além das janelas, os escuros relvados mas ainda visíveis, sombreados pelo grande cedro, os bosques de faias com os telhados vermelhos das choupanas,
lá no alto, e mais longe, ondeando como o mar, os verdes Downs.
A caminho de casa, Davie achou o seu irmão estranhamente silencioso. Depois de relancear os olhos para ele uma ou duas vezes, disse:
- É formidável no Court. Você não deseja ir lá mais vezes?
Mas Stephen não respondeu.
CAPÍTULO XI
NA TERÇA-FEIRA SEGUINTE, o almoço na Reitoria estava quase terminado. Tinha sido uma refeição um tanto opressiva para Davie, já formalmente vestido, que devia voltar
à escola nessa tarde. Contudo, olhando em torno, Stephen sentia uma tensão maior do que a exigida pela ocasião, um ar geral de conspiração e expectativa. Sentia
também uma intensificação daquela intangível coerção, que, disfarçada em uma nuvem de afeição, vinha envolvendo-o de quando em quando durante as últimas duas semanas.
O Reitor, que já tinha consultado o relógio três vezes nos últimos cinco minutos, tornou a fazê-lo, terminou o seu café e, sem fitar ninguém em particular, disse:
- Acontece que o Sr. Munsey Peters está nas vizinhanças. Infelizmente não pôde vir almoçar. Mas eu o convidei a vir pouco depois.
- Que interessante, papai - murmurou Caroline, com os olhos no prato.
- Está se referindo - perguntou a Sra. Desmonde no tom de quem fora instruída a perguntar - a Munsey Peters?
- Isso mesmo. Conhece o Sr. Peters, Stephen? - Inatento, cortando uma careta numa casca de laranja para Davie, Stephen levantou os olhos, certo de que seu pai se
dirigira a ele.
- Sim, é membro da Academia Real.
Houve uma pausa. Contido, com a expressão subitamente fixa, Stephen esperava que Bertram caísse na armadilha.
- Achamos que ele podia ter vontade de olhar os seus quadros.
Houve outro silêncio, que Caroline se apressou em romper, com um ar de inteligência.
- Não é ótimo, Stephen? Agora você pode se valer do conselho dele.
- Acredito - disse a Sra. Desmonde - se a memória não me falha, que há uma paisagem de Peters no Salão Pump, em Cheltenham. Está pendurada sobre a Fonte de Chalybeate.
Uma vista das colinas de Malvern com uma ovelha. Cheia de vida.
- Ele está na primeira fila - concordou Bertram.
- Não há também um livro, papai - interpôs Caroline - algo como De Rafael a Reynolds, ou coisa parecida?
- Ele escreveu muitos livros sobre arte. O mais conhecido intitula-se A Arte pela Arte.
- Devo procurá-lo na biblioteca - murmurou Caroline.
- Você não se importa se mostrarmos a ele as suas pinturas? - O Reitor voltou-se para o filho com uma nova firmeza. - Desde que se apresentou a oportunidade, seria
sensato pedir-lhe a opinião.
Stephen empalidecera. Não respondeu por um momento.
- Mostre-lhe qualquer coisa que quiser. Sua opinião não tem nenhum valor.
- O quê? Munsey Peters é um académico famoso. Exibe regularmente há 15 anos.
- Que significa isso? Não posso imaginar nada mais mortal, mais vulgar e idiota do que as suas pinturas.
Bruscamente Stephen rompeu o seu silêncio, sentindo que o julgariam invejoso e com medo. Então, ao voltar-se, ouviu um som de rodas e, pela janela, viu um cabriolé
de aluguel chegando à porta da frente. Um homem baixo, tornado mais baixo por um vasto sombrero preto e uma capa preta do Inverness, desceu rápido do cabriolé, olhou
em volta e tocou a sineta. Bertram levantou-se e, acompanhado pela mulher e Caroline, foi a saguão. Stephen permaneceu sentado à mesa, vendo muito bem que tudo aquilo
fora arranjado - ele tinha vindo especialmente de Londres. A julgar por suas roupas, Peters não estava absolutamente visitando o campo - tinha vindo expressamente
de Londres, mas fora comissionado, sem dúvida por tal ou qual preço - vinha especialmente de Londres como um cirurgião chamado à cabeceira de uma pessoa gravemente
enferma, cujo diagnóstico era uma questão de vida ou morte.
Um toque tranquilizador no ombro acordou-o. Era Davie.
- Não é melhor irmos agora? Não se aborreça, Stephen, aposto que você vai sair por cima.
Na sala de estar, construída originalmente como um parlatório retangular e posteriormente afeada por janelas de sacadas vitorianas abertas ao lado oeste, Munsey
Peters estava sentado no sofá, gorducho, de cara lisa, solicitamente oficioso, já no centro de uma plateia inteligente.
Quando Stephen entrou, girou e estendeu-lhe uma mão amável.
- Então este é o seu jovem cavalheiro? Prazer em conhecê-lo, senhor. Stephen apertou-lhe a mão, dizendo a si mesmo, apesar do conflito de emoções no seu peito, que
não devia ter ódio àquele visitante indesejável, que sem dúvida era uma pessoa honesta e estimável, agindo de boa fé. Contudo, conhecendo o trabalho de Peters, que
sempre recebia destaque na imprensa e
muitas vezes era reproduzido nos melhores semanários, aquelas suas paisagens lanudas e interiores betuminosos, tresandando a sentimentalismo e cheios daquele claro-escuro
que Glyn tinha profanamente descrito como siena queimada e merde, Stephen não podia reprimir uma aversão instintiva, aumentada e não diminuída por aquele homenzinho
de aparência presumida e maneiras seguras, que, embora um tanto menos que assertivo, estava odiosamente satisfeito consigo mesmo. Recusara o almoço, tendo "satisfeito
o homem interior"
- suas próprias palavras - no vagão-restaurante que sempre acompanhava o expresso do meio-dia, mas, diante da insistência, consentiu em tomar café. E, balançando
a xícara nos joelhos, de pernas cruzadas, sapatos com polainas, dirigiu a Stephen uma série de perguntas agradáveis, exatamente como faria um notável académico para
deixar um neófito nervoso.
- Então esteve em Parri, hein?
- Sim. Pouco menos de um ano.
- Trabalhando duramente, espero, na cidade alegre. - Isto, com um olhar de humor velado para os outros; então, como Stephen não respondesse:
- Com quem estudou?
- No começo... com Dupret.
- Ah! E que pensa ele do amigo?
- - Eu realmente não sei. Deixei-o depois de poucas semanas.
- Hum! Hum! Isso foi um engano. - E, num tom intrigado: - Quer dizer que ficou a maior parte do tempo por sua própria conta? Não pode ter aproveitado muito dessa
maneira.
- Ao menos aprendi o quanto a força de vontade, a disciplina e a intensa aplicação são necessárias para fazer um bom artista.
- Ora! Isso é muito fino. Mas, e o aprendizado?
A frieza da voz de Stephen era provocante.
- Há certos elementos essenciais. Já os acentuei muitas vezes no meu livro. Ouso dizer que ele fez parte do seu estudo.
- Receio que não. Estive estudando no Louvre.
- Oh, copiando - exclamou Peters contrariado. - Isso não é bom. Um artista procura ser original acima de tudo.
- Contudo, todos os grandes artistas influenciaram uns aos outros - argumentou Stephen diretamente. - Rafael provém de Perugino, El Greco de Tintoretto, Manet de
Franz Hals. Todos os pós-impressionistas se ajudaram uns aos outros. A lista seria interminável. Porque, se me perdoa, vemos no seu próprio trabalho Leighton e Poynter.
A menção desses dois artistas, tão famosos na época vitoriana e agora esquecidos, trouxe ao rosto de Munsey Peters uma expressão confusa, como se mal pudesse saber
se a intenção era de louvor ou insulto.
A Sra. Desmonde, sempre diplomática, rompeu o silêncio.
- Deixe-me oferecer-lhe mais café.
- Não, obrigado - e devolveu-lhe a xícara. - Na verdade, tenho pressa, deixei o meu veículo à espera. Podemos entrar no assunto sério do dia?
- Com muito gosto. - Bertram, um apreensivo observador daquele choque de temperamentos, fez um sinal a Davie, que deixou a sala num pulo. Quase imediatamente voltou,
trazendo o primeiro quadro, uma vista do Sena em Passy, que colocou sobre uma cadeira de alto espaldar posta adrede em boa luz e diante do sofá.
Impondo silêncio com um dedo nos lábios, Munsey Peters ajustou o pincenê. Estudou a pintura intensa e longamente, inclinou a cabeça em vários ângulos; então, dramaticamente
fez um gesto para Davie, que a retirou, colocou-a junto à janela e trouxe a seguinte. Para Stephen, parado lá atrás com uma expressão insensível e um latejar doloroso
no coração, era uma experiência martirizante, uma crua exposição da sua delicada sensibilidade.
Olhou em torno para o círculo doméstico - o pai, sentado, muito teso, com as pontas dos dedos fortemente unidas, as pernas cruzadas, um pé balançando em nervosa
expectativa; Caroline, na banqueta junto ao sofá, com uma ruga de ansiedade na testa, olhando para Peters, ora para o chão; sua mãe, sonhadoramente confortável numa
poltrona, de todo indiferente; e Davie, no colarinho branco engomado e roupa cinza-escura do colégio, o cabelo penteado para trás, olhos brilhantes, sem compreender
bem a questão, e contudo cheio de confiança em que seu irmão seria justificado.
Acabou-se afinal, a última pintura fora mostrada.
- Então? - exclamou Bertram.
Munsey Peters não respondeu imediatamente, mas, erguendo-se, fez uma nova inspeção nos quadros contra o peitoril oval da janela da sacada, como para afastar qualquer
impressão de que o seu julgamento era apressado ou inconsiderado. Uma tela em particular, a mulher com as suas roupas brancas, parecia perturbá-lo de modo especial;
vez por outra, quase furtivamente, os seus olhos voltavam àqueles ousados contrastes e cores vivas. Por fim, deixou cair o pincenê, seguro por uma fita de seda lavada,
e tomou posição no tapete da lareira.
- Que deseja que eu lhe diga?
- Meu filho tem... - Bertram respirou fundo - alguma chance de se tornar um pintor... posso dizer... de primeira categoria?
- Nenhuma.
Fez-se um silêncio mortal. Impulsivamente, Caroline lançou um olhar de simpatia para o irmão. O Reitor curvou a cabeça. Stephen, com a sombra de um sorriso, continuou
a olhar diretamente para Munsey Peters.
- Naturalmente - continuou ele - eu poderia ser polido. Mas entendi que o senhor queria a verdade. E nessas telas, que têm talvez um certo brio
rude, ignoram completamente as grandes tradições da pintura, tradições de propriedade e restrição, só posso encontrar... - encolheu os ombros - matéria para condolência
e pesar.
- Então - disse Bertram lentamente, como se estivesse determinado a se convencer - se forem, digamos, submetidas à Academia, acha que seriam recusadas?
- Meu caro senhor, como membro da comissão de exposição, não sei, não estou seguro. Acredite-me, dói-me extinguir as suas esperanças. Se o seu filho quiser continuar
isto como um passatempo... um hobby... isso é com ele. Mas profissionalmente... ah, meu caro senhor, a pintura é, para todos nós que vivemos dela, uma arte cruel.
Não há lugar para fracassos.
Bertram lançou um olhar cheio de compaixão para o filho, como esperando que ele protestasse, ao menos oferecesse alguma defesa do seu trabalho. Mas Stephen, com
a mesma sombra de um sorriso, e aquele ar de orgulhosa indiferença, mantinha-se calado.
- E agora, se me desculparem - disse Peters, curvando-se.
O Reitor pôs-se de pé.
- Estamos muito agradecidos ao senhor... mesmo que o seu veredicto tenha sido desfavorável.
Munsey Peters curvou-se novamente e, ao deixar a sala com modos graves e polidos, aceitou prestemente o envelope que Bertram, após murmurar umas palavras de escusas,
escorregou-lhe na mão - uma transação efetuada com tamanha destreza que ninguém pareceu notá-la, a não ser Stephen. Dali a pouco se ouviu o rangido do cabriolé.
O professor tinha partido.
Como se para poupar os outros, mais do que a si mesmo, do embaraço, Stephen foi para fora. Ali, andando de cá para lá, de cabeça descoberta, estava o Reitor. Tomou
imediatamente o braço do filho, com um aperto de simpatia, e, após atravessar as lajes, observou várias vezes:
- Tenho que ir à sacristia. Quer caminhar comigo?
Ao subirem juntos a alameda, Bertram continuou, sombriamente, sem um indício de autojustificação.
- Stephen, essa foi uma experiência dolorosa para você, e, em grau nSo menor, para todos nós. Mas era imperativo para mim saber a verdade. Espero que não me reprove.
- Claro que não. - A voz calma do filho causou a Bertram uma viva surpresa, seguida por um sentimento de oposição.
- Você aceitou a coisa muito bem, Stephen - como um verdadeiro Desmonde. Eu temia que pudesse ficar encolerizado comigo por lhe ter imposto esse teste sem aviso.
Mas se eu lhe tivesse dito de antemão, você poderia ter recusado...
- Sim, acho que recusaria.
- Você percebe que não foi questão de influência indevida, que a opinião de Munsey Peters foi inteiramente dele?
- Estou certo disso. Acho até que o nosso pequeno argumento no começo eriçou ligeiramente a sua plumagem. Mas não há sombra de dúvida - ele detestou a minha pintura
como veneno.
- Ah! - murmurou o Reitor condoído. - Pobre rapaz.
Chegaram à igreja; detendo-se na cancela, Bertram pousou a mão na efígie do cruzado, um gesto costumeiro de apoio, e encarou o filho.
- Pelo menos o caminho agora está claro... e não há nada contra o seu regresso para ser ordenado. Não quero pressioná-lo. Há a toga, os serviços militares. Contudo
- olhou em torno - o seu lugar é aqui, Stephen.
Uma pausa quase imperceptível.
- Acho que não compreende. Não vou abandonar a pintura.
- Mas que diabo quer dizer?
- Simplesmente que tomei uma resolução, irrevogável, que vou dedicar a minha vida inteiramente à arte.
- Mas você acaba de ter uma opinião... com mil diabos... de um perito.
- Essa nulidade idiota... roída por um rancor secreto! O fato de ele ter difamado o meu trabalho foi o maior cumprimento que podia me fazer.
- Você está louco? - Cólera e desalento levaram o sangue à testa de Bertram. - Ele é um dos melhores pintores da Inglaterra e pode vir a ser o próximo presidente
da Academia.
- O senhor não compreende, papai. - A despeito da tensão das suas feições, Stephen quase sorriu. - Peters não pinta coisa nenhuma. O seu trabalho é convencional,
sentimental, e sem um traço de originalidade. O sucesso dele é o de uma mediocridade intrometida. Ora, até as tapeações do velho Dupret, com a sua peinture léchée,
são mais toleráveis. O senhor não sentiu nojo dos seus chavões, sua afetação, suas mãos gordinhas? Ele marcha com o rebanho. O verdadeiro artista só pode cumprir
o seu destino sozinho.
Durante esse discurso, que lhe pareceu bombástico, o rosto de Bertram foi gradualmente endurecendo. Empedernia-se contra a dor que sentia no peito, e um imenso desejo
de tomar o filho nos braços.
- Para qualquer pessoa normal, a evidência é clara. Você deve aceitá-la.
- Não.
- Insisto.
- Tenho o direito de viver a minha própria vida.
- Não, se está disposto a arruiná-la.
Nenhum deles levantou a voz. O Reitor estava muito pálido, mas os seus olhos nunca se afastaram do rosto do filho. Por baixo de sua agitação havia uma firmeza que
Stephen nunca tinha visto.
- Por simples justiça, você não me deve alguma retribuição por tudo que tenho feito por você? Sem dúvida, você afeta desprezar uma coisa tão sórdida como o dinheiro.
Contudo, gastei na sua educação - a mais primorosa que qualquer filho podia desejar - um capital que eu mal podia despender. Estamos muito menos bem do que estávamos,
e é com dificuldade que mantenho Stillwater nos padrões a que estamos acostumados. Sempre esperei que esta medida não fosse necessária. No entanto, para seu próprio
bem, devo repô-lo no seu juízo. Sua pensão está suspensa. E você verá que é impossível continuar sem ela.
Um compasso de silêncio latejou na pequena igreja. Stephen baixou os olhos, deteve-os por um longo momento na efígie de pedra do seu ancestral que, à meia-luz, parecia
sorrir-lhe cinicamente. Olhando para a espada, os grandes guantes de malha, uma frase das leituras da sua infância lhe veio à memória: mão de ferro em luva de veludo.
E suspirou:
- Bem, papai, isso parece resolver a questão.
Bertram apanhou o seu diário na sacristia - a mão lhe tremia tanto que mal podia segurar o grosso volume, sendo obrigado a apertá-lo Contra o flanco. Deixaram a
igreja em silêncio.
Pelo resto da tarde, Stephen foi um modelo de complacência, animando os outros com a sua vivacidade e bom humor. Às seis horas, insistiu em ir com Davie à estação
e embarcou-o no trem, despachando-o com alegre afeição. Depois, voltando, com uma expressão diferente, foi à fila de veículos, onde um motorista estava com a sua
bagagem, secretamente introduzida na de Davie. No horário colado na frente do guichê, viu que um trem costeiro partia dentro de uma hora. Comprou uma passagem e
sentou-se à espera dele.
CONTINUA
A TARDE MUDARA EM NOITE, e todo ímpeto e atividade dos Downs jaziam quedos, banhados em luz pérola. A relva seca, prateada como geada, soltava um vapor esgarçado que se prendia nas sebes como teias de aranha. As poças de orvalho, pires de leite desnatado, não refletiam a imagem de uma lua amarelenta que mirava, redonda e baixa, como o olho de um grande gato, agachado na colina, pronto para saltar.
Nessa quietude brilhante, de uma igreja normanda de pedra tão pequena que parecia perdida numa dobra do descampado - apesar dos nítidos contornos das suas linhas longas e breves, da sua torre achaparrada, de suas chagosas paredes inclinadas - inverossímil como um sonho, emergiu uma sombra, comprida e escura, à qual se seguiram um baque de carvalho e o tinido de um pesado ferrolho, a figura de um homem, menos comprido talvez, mas igualmente sombrio. Muito apropriadamente, um clérigo, Bertram
Desmonde, Reitor de Stillwater.
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De cabeça nua, mas com uma capa sobre os ombros, enfiou pela confusão de lápides cobertas de liquens, passou os dois grandes teixos retorcidos, dos quais o mais
novo tinha sem dúvida fornecido arcos para os arqueiros de Sussex pelo menos durante cinco séculos, e depois atravessou a cancela para a azinhaga.
Aqui, apanhado pela brancura da noite, por um ímpeto da sua secreta alegria, fez uma pausa e, por um longo instante, aspirou a beleza da sua gleba, uns bons 100
acres, indo por um lado até os altos do bosque de faias de Ditchley, e pelo outro até a coutada de tojo arenoso que beirava a estrada para Stillwater. Na distância,
o Anel de Chanctonbury era visível contra o céu oriental, e mais abaixo, por entre árvores, o absurdo mas amigo torreão de Broughton Court. Para oeste, a planura
continuava, cortada por uma caleira
- ferida incruenta - por túmulos tidos como romanos, mas provavelmente restos de antigos fornos de ladrilhos. Vinham então as choças dos trabalhadores, seis, em
fila, como cogumelos, e frouxamente, acima da orla da estrada, o bruxuleio da aldeia. Abaixo dele, brilhante de luzes, a Reitoria.
Solidamente georgiana, com janelas paládicas, um espaçoso pórtico sustentado por colunas acanaladas e - delicioso pensamento! - uma balaustrada na cimalha, era uma
verdadeira casa de campo, construída pelo seu bisavô, Canon Hilary Desmonde, em 1780, em pedra branca dali mesmo - a pedreira, bem perto, estava agora felizmente
coberta pela vegetação. Traços de um Tudor primitivo ainda persistiam no celeiro e estábulos de tijolos, nos anexos da fazenda, no delicado muro de sílex e nos seixos
redondos que cercavam a ampla horta. Envolvida por relvados macios, orlados de canteiros de tulipas e prímulas, o jardim de roseiras, ainda não desperto, formando
um hexágono em torno do relógio de sol, cordões de rosas Ribston e Beauty of the Bath, com as suas soprepelizes de flores, como chantres, ao longo do prado do sul,
uma gigantesca azinheira sombreando a trilha ensaibrada, essa casa, esse pequeno abrigo de casca dourada, enraizado e imutável, seu lar, lar dos Desmondes por tantos
anos, especialmente esta noite aquecia de orgulho o coração do Reitor.
Quase certamente eles tinham vindo com o Conquistador. Um deles, o Sieur d'Esmonde, que estivera nas Cruzadas, jazia sob a sua efígie de mármore, com seu curvo nariz
quebrado, ai!, por algum turista vandálico, na pequena igreja de Downland. Se o nome tinha sido um tanto alterado pelo uso rústico - não se poderia aplicar a palavra
corrompido - ele não os identificava de modo mais completo com a boa terra de Sussex? Eles tinham prestado bons serviços à sua pátria nas três profissões abertas
para um cavalheiro: na Igreja particularmente, mas também na Justiça e no Exército. Seu irmão Hubert, após um longo e útil trabalho nas fronteiras do Afeganistão,
estava agora parcialmente aposentado em Simla Lodge, a cerca de 25 quilómetros, com o posto de general, e ainda em contato com o Ministério da Guerra, devotando
o seu lazer à cultura científica da pêra Jargonelle. Somente uma ocasião, até onde alcançava a memória, a família descera ao comércio: quando, no início do reinado
de Victoria, um Joseph Desmonde, tio-avô do Reitor, ocupara-se com a manufatura de objetos eclesiásticos. Mas como o negócio tinha certo sabor de discrição, trazendo-lhe
ainda uma considerável fortuna, o lapso, embora lamentável, era menos difícil de perdoar.
- Uma bela noite para o senhor, Reverendo.
Nas profundezas do seu devaneio, o Reitor deixara de notar a figura troncuda do velho Mould, seu jardineiro-chefe, que era também o seu sacristão, manquejando trilha
acima para fechar a igreja.
- Boa noite, Mould. Já a fechei, você pode voltar comigo. - Fez uma www.pausa, não revelando o impulso que, contra o seu hábito, o tinha levado à igreja; contudo,
estimulado pela alegria, acrescentou: - Stephen volta para casa esta noite, como sabe.
- E como é que eu ia esquecer isso, senhor? Uma notícia muito boa mesmo. Espero que ele tenha tempo de ir caçar coelhos comigo. E acrescentou mais gravemente: -
Nós logo o teremos no púlpito, quem sabe.
- Ele ainda tem algum caminho para andar, Mould. - Ao descerem a trilha juntos, Bertram sorria. - Embora eu me atreva a dizer que vocês gostariam mais de ouvir um
jovem recém-saído de Oxford do que um velho caturra como eu.
- Não, meu Pastor, não deve dizer uma coisa dessas. Não servi os Desmondes durante 50 anos para agora ignorar a sua qualidade. E pode pregar quem quiser pregar,
que não há ninguém melhor no país.
Bastava apenas essa tocante prova de lealdade quase feudal para selar a disposição do Reitor. O denso perfume das prímulas era, de certo modo, mais doce, os agudos
balidos noturnos dos cordeiros, atrás da cerca de varas, tão enternecedores que quase causavam um aperto no coração. Ah, esta Inglaterra, pensou ele: e aqui, no
seu próprio coração, preciosa como uma jóia, navegando ao luar como um navio de almas, esta pequena paróquia que seria de Stephen também, inviolada, intemporal e
imutável como a eternidade.
- Vamos precisar de alguém para a bagagem. Mande Albert ficar por perto.
- Farei isso, senhor... se ele estiver em casa. Estou tendo dificuldades com esse meu rapaz. Ele não gosta de trabalho. Mas eu dobro ele a pau... prometo.
- com o tempo, ele será um bom rapaz, Mould. Não seja duro com ele - disse Bertram, num tom neutro.
Despediu o velho diante da sua casa, baixa, de paredes curvas na frente, e momentos depois estava na larga entrada do saguão da Reitoria, entregando a capa à sua
filha Caroline, que, inevitavelmente, ali estava para recebê-lo.
- Ainda não chegaram?
Esfregou as mãos: o saguão tinha o defeito do seu teto alto e soalho de mosaico - dava uma sensação de frio da noite, mal atenuado pelo rumor dos tubos de calefação.
- Não, papai. Mas não devem demorar. Claire foi à estação no seu automóvel novo.
- Devemos comprar uma dessas engenhocas. - O reflexo de um capricho aliviou momentaneamente a austeridade das feições delgadas de Bertram e das faces um tanto encovadas.
- Será útil para visitar a paróquia.
- O senhor não está falando sério, papai. - A sua mentalidade prática, despida de humor, tomava-o literalmente. - Sabe o quanto detesta cheiros e poeira. E eu não
o sirvo bastante bem com o tílburi?
Sem dúvida, a iminência do regresso de Stephen a deixava nervosa. Assim, falara com mais vigor do que pretendia, com o seu rosto liso e sério brilhando de sentimento.
E em verdade, antes que ela o pudesse lamentar, a expressão ausente do pai, que, com o ouvido atento, esperava o ruído das rodas na alameda, puniu-a severamente.
Ela baixou os olhos, e seu corpo pesado, sustentado por duas robustas panturrilhas, diminuiu um pouco. Quando é que ele ia apreciar a profundeza ilimitada da sua
devoção, compreender que o seu único desejo era servi-lo? desde o exato momento em que começava o seu dia, depois de vestir-se às pressas, sem o benefício de um
espelho, ombreava com a carga da sua casa, conferenciava com a cozinheira sobre como ele seria alimentado, arranjava as flores, inspecionava o jardim e a granja,
tratava da sua correspondência, atendia visitantes importunos, via paroquianos doentes, desencorajava arqueólogos, juntamente com as carruagens que vinham aos domingos
e feriados cheias de gente, pedindo em coro para ver a "tumba", e ainda achava tempo para cuidar do seu linho e tricotar as suas meias de lã. E, para piorar as coisas,
estava resfriada e a toda hora tinha que assoar o nariz num lenço ensopado.
- Sua mãe vem? - Fez a pergunta com cautela.
- Acho que não. Esta tarde molhei a sua testa com água-de-colônia. Mas ela ainda se sente indisposta.
- Então seremos quatro para o jantar.
- Três. Claire telefonou para dizer que sente muito, muito, mas não poderá ficar.
- Que pena. Mas... haverá outros dias.
Seu tom de voz exprimia tristeza; contudo, ela percebeu que, a despeito da sua alta consideração por Claire, filha de Lady Broughton, da vizinha Court, e da sua
cálida aprovação do entendimento tácito existente entre ela e o seu filho mais velho, no fundo estava feliz nesta noite de reunião por ter Stephen inteiramente para
si.
Com esforço, ela conseguiu manter o tom sereno.
- Ainda não terminei de datilografar todas as suas notas para a convocação de amanhã. Quando partirá para Charminster?
- Oh, depois do almoço, suponho. O Deão raramente é pontual.
- Duas horas então. Eu o levo. - Subitamente, com ciúmes brilhando nos olhos, ajuntou: - O senhor parece cansado, papai. E terá um dia cheio amanhã. Não deixe Stephen
retê-lo até muito tarde.
- Não se inquiete, Caroline. E, a propósito, espero que nos apresente um bom jantar.
- Temos sopa hindu com caril e salmão que o tio Hubert nos mandou de Test, com pepino e molho verde, é claro, e depois um lombo de cordeiro com ervilhas da nossa
horta e batatas novas. Para sobremesa, Beasley fez aquela charlotte de maçã que Stephen tanto adora.
- Ah, sim, minha querida. Lembro que ele sempre a pedia ao voltar de Marlborough para casa. Mas, espere, não é o ruído de um motor?
De fato, ouvia-se um som fraco mas rítmico; avançando para a porta, ele a abriu, deixando ver um pequeno cupê de Dion, ativo e trepidante, do
qual, cessada a agitação por meio de alguma engenhosidade, emergiram duas figuras.
- Stephen!
- Como está, papai... e você, Caroline? Davie não está?
- Ainda não... ele terá licença na próxima segunda-feira.
O arco de luz do pórtico mostrou uma figura franzina de estatura abaixo de mediana, vestida de preto e forcejando com uma valise de couro - o rapaz de Mould não
aparecera - um relance, também, de feições finamente cinzeladas, narinas sensíveis, e um rosto estreito, pensativo, e um tanto sério. Então veio, com discrição,
deixando que as saudações familiares cessassem, uma jovem alta de mãos enluvadas e um comprido casaco de tweed. Seu boné de dirigir, com um véu pendente, absurdamente
como um bolo de cevada, usado apenas em deferência às instâncias maternas, não podia destruir o seu ar de tranquila compostura, uma inescapável sensação de boa educação,
confirmada por sua voz ao se reunir ao pequeno grupo.
- Lamento termos deixado atrás alguma bagagem. Minha baratinha não tem espaço para malas.
- Não se preocupe, querida Claire. Amanhã mandaremos buscá-la. O Reitor tomou-lhe o braço num gesto quase paternal. - Mas você não pode ficar conosco agora?
- Gostaria muito. Mas mamãe espera gente da aldeia... uma comissão de agricultores... arrendatários... que não podem ser despachados.
- Ah, sim! As obrigações da senhora de um proprietário rural. Não está uma linda noite?
- Perfeita. Ao passarmos por Halborough, estava claro como dia... Ela voltou a cabeça, um movimento que, dissolvendo a sombra do atroz boné, revelou um perfil puro
e regular. - Não estava linda, Stephen?
Ele ficara em pé, silencioso, num constrangimento de que agora parecia livrar-se com um esforço.
- Foi um belo passeio. - Depois, como se não tivesse dito o bastante, forçando uma frivolidade que lhe era de todo alheia: - Mas em certo ponto acho que devíamos
ter descido e empurrado.
- Em Ambry Hill - riu-se Claire. - Não sou muito entendida nas mudanças. - Seu sorriso demorou-se um instante na obscuridade do pórtico. Mas não devo detê-los. Boa
noite. Venham ver-nos logo... amanhã, se possível. E tenha cuidado com o seu resfriado, Caroline.
Quando ela saiu, Bertram pôs o braço no ombro do filho e levou-o para dentro de casa.
- É bom tê-lo em casa novamente, Stephen. Você não sabe... Ora, bem... como deixou Oxford? E como se sente? Faminto, estou certo. Corra lá em cima para ver sua mãe.
Depois, desça para o jantar.
E enquanto Caroline, com os olhos e nariz vermelhos pelo ar da noite, levantava uma sacola de livros que fora deixada, esquecida, no pórtico, o pai deteve-se um
pouco vendo Stephen subir a escadaria, olhando para cima com uma expressão que, na sua ternura descuidada, era quase um transe.
CAPÍTULO II
APÓS O EXCELENTE JANTAR, bem servido por duas copeiras que, outrora de uma primitiva grosseria de aldeãs, Caroline tinha treinado tão admiravelmente, o Reitor, amolecido,
levou Stephen para o estúdio, onde as cortinas de droguete estavam descidas e ardia um belo fogo de carvão de algas. O aquecimento da Reitoria podia não ser moderno,
mas as lareiras eram amplas e o combustível abundante. E isto se harmonizava com a sala, a despeito dos ornatos moldados, com um tom íntimo e esportivo para amenizar
o ambiente vagamente paroquial, confirmado por uma escrivaninha de tampa corrediça que continha os sermões de Pusey, o Calendário Eclesiástico, e uma estola de púrpura
dobrada. Um par de espreguiçadeiras de couro marrom flanqueava a lareira, contra uma parede estava o armário envidraçado das armas, em outra uma caixa de moedas
saxãs, produto das pesquisas arqueológicas do Reitor, e, acima do consolo da lareira, dois chicotes de cabo de osso cruzavam-se por trás de uma cabeça empalhada
de raposa.
Mais cedo, nessa tarde, preparando-se, Bertram descera ao porão da casa para uma visita à adega, e agora, com um ar ligeiramente consciente, apanhou uma garrafa
empoeirada, que deitara na cestinha, com as pintas de cal para cima, sobre a escrivaninha; tendo imperitamente tirado a rolha em pedaços, serviu dois cálices de
porto. Ele era um homem temperante, que só de raro em raro bebia álcool, e não usava tabaco, mas esta ocasião exigia um registro dentro da verdadeira tradição da
família.
- Seu avô guardou este - observou ele, segurando o cálice de vinho contra a luz e assumindo um ar de crítico. - É um GrahanVs, 1876.
Stephen, que detestava vinho do Porto, fez da sua poltrona um murmúrio de aprovação e levou o cálice aos lábios. Desempenhava, como um ator, o papel que dele se
esperava.
- Parece muito saudável.
A palavra agradou ao Reitor.
- Sim, o seu avô sabia o que estava fazendo. Foi ele que mandou colocar aquelas notáveis manilhas lá embaixo. Elas drenavam o South Meadow, como sabe, em 1878, e
sobrara boa quantidade delas. O velho viu que cada uma podia conter muito bem uma garrafa, e mandou argamassá-las na adega, como perfeitos favos... Naturalmente,
ele não era um grande bebedor. Mas gostava do seu quartilho de clarete após um bom dia com os cães. Deixou-nos, como sabe, quando tinha 70 anos.
- Deve ter sido um grande caráter.
- Era um bom homem. Um verdadeiro cavalheiro inglês do campo.
O Reitor suspirou. - Não se pode desejar um epitáfio mais belo.
- Minha avó também - acudiu Stephen devidamente, porque, desde Oxford, meditando nervosamente enquanto o trem corria pelos prados, pomares e tortuosas regiões, resolvera
ser inteiramente filial. - Ela não ficava muito atrás dele... Mould me contou muitas histórias a seu respeito.
- Ah, sim, ele era muito devotado a ela... como todos os seus serviçais. Mas ela o trazia num pé só. - Um vagaroso sorriso de reminiscência assomou aos olhos de
Bertram. - Você sabe que nos seus últimos anos a velha senhora tornou-se excessivamente gorda. Na verdade, tinha dificuldade em andar, era obrigada a locomover-se
num carrinho, e Mould, e depois o filho do jardineiro, ambos serviam como meio de propulsão. Por mais seis penies semanais. Era uma grande honra. Mas um tanto extenuante,
especialmente quando sua avó desejava ir à aldeia e tinha que ser empurrada durante todo o caminho até Ambry Hill. Num dia quente de verão, quando alcançou o topo
da colina, o jovem Mould parou para enxugar o rosto na manga. Mas ao deixar escapar a cadeira de rodas, lá se foi ela sem ele, aumentando de velocidade, zunindo
colina abaixo e em torno da curva numa velocidade vertiginosa. O coitado do rapaz ficou petrificado. Via-se como o assassino da sua ama. Com um grito de horror,
precipitou-se encosta abaixo. Quando chegou...
Stephen, encolhendo-se, pôs-se a rir; conhecia a anedota de cor.
- ... lá estava a sua avó, calmamente na praça da aldeia, barganhando com o açougueiro as costelas de um cordeiro. - O sorriso de Bertram extinguiu-se. - Era uma
mulher indomável. Imensamente caridosa. E devotada ao meu pai. Morreu somente oito semanas depois dele.
Estaria o Reitor pensando no seu próprio casamento? Lá fora, piou uma coruja. Na copa, no fim do corredor, Caroline estava mexendo em jarras de cerâmica de picles
com uma brusquidão desnecessária. Bertram endireitou-se e bebericou o seu porto, consciente de que devia quebrar o silêncio antes que houvesse um constrangimento
entre ele e Stephen. Como era estranho terem um grande carinho, e, contudo, uma sensação desse embaraço perseguir as suas relações sempre que ficavam a sós. Seria
porque ele se preocupava demasiado? Nunca tinha sentido essa falta de naturalidade na companhia dos
seus dois outros filhos. Naturalmente, ele gostava de Caroline, aceitava aquela sua fortaleza, considerava-a uma "grande presença". Mas a sua domesticidade, conservando-a
uma perpétua solteirona, chocava inconscientemente o seu senso de orgulho de família. Quanto a David, seu filho mais moço, agora com quase 13 anos de idade, aqui,
ai! o seu amor mergulhava em tristeza, decepção e pena. Pensar que um filho seu, aliás, qualquer Desmonde, fosse um epiléptico que, mesmo sem sofrer ataques, tendia
a gaguejar!
O Reitor reprimiu um suspiro. Ceder a tal sentimento era perigoso. Contudo, no seu presente humor, não havia como evitá-lo.
- Que bom ter terminado seus estudos em Oxford. Você se saiu bem.
- Oh, não sei não. No fim, pareceu-me ter perdido o ânimo.
- Eu também me senti assim quando voltei de Trinity... embora gostasse de lá tanto quanto você.
Stephen ficou silencioso. Como poderia dizer a papai que detestava a universidade?... aquela secura, a superioridade, a sensação de estar fora da vida, a interminável
preocupação com esportes que não o interessavam, o estudo sem sangue de línguas mortas que o aborreciam inexprimivelmente, de pura contrariedade, acima de tudo aperfeiçoar-se
em francês e espanhol... sua aversão a uma carreira que lhe fora determinada.
Mas o Reitor dizia:
- Você ganhou umas férias. Claire o quer para jogar ténis. Seu tio Hubert convidou-o para Chillingham. O salmão dele não esteve bom esta noite? Seu primo Geoffrey
está aqui, numa breve licença.
Novamente Stephen não respondeu. E pela primeira vez Bertram começou a se questionar, se, por baixo da sua maneira passiva, o seu filho não estava combatendo sinais
de Cansaço. Sua palidez natural parecia mais intensa, e seus olhos tinham aquela negrura aumentada que, diminuindo o resto do seu rosto, - representara desde os
seus primeiros dias um sintoma de mal-estar físico ou emotivo. Ele não é forte, espero que não esteja adoecendo de alguma coisa, pensou Bertram, com súbita ansiedade,
e rápido, protetoramente, declarou:
- Você tem mesmo que descansar. Não precisa ir à Sede antes de julho. Descontando cinco meses para Londres, a sua ordenação seria no Natal, a quadra mais conveniente
do ano.
Stephen levantou-se. Por muito tempo havia antecipado este temido momento, tentado, a conselho do seu amigo Glyn, apressá-lo, e então recuava nervoso, escrevia uma
dezena de cartas, e sempre as rasgava. Agora aquilo estava diante dele, e ele se sentia mal, vazio por dentro.
- Papai... preciso falar com o senhor.
- Sim? - Animou-o com um aceno, as pontas dos dedos juntas.
Uma pausa. Seria dinheiro?, pensou serenamente o Reitor. Alguma dívida não paga na universidade? Então, ouviu as palavras entrecortadas:
- Eu não quero ser ordenado.
A expressão do Reitor não se alterou aparentemente, como se uma súbita e completa surpresa tivesse, como a morte repentina, paralisado as suas feições numa semelhança
de normalidade. Por fim, quase estupidamente, disse:
- Não quer?
- Acho que não sirvo para a Igreja... Não sou bom com pessoas Não sei organizar... Eu seria incapaz de pregar um sermão decente, ainda que para salvar a minha própria
vida.
- Essas coisas virão. - Em pé, Bertram estava quase franzindo o cenho.
- Os meus próprios sermões não são particularmente brilhantes. Mas bastam.
- Mas papai, não é apenas isso. Eu não tenho interesse por esse trabalho. Eu... eu não me sinto capaz de sucedê-lo aqui...
Confirmado em sua primeira suspeita pela voz interrompida, o Reitor recuperou-se e assumiu um tom brando.
- Você está cansado e abatido, meu filho. Nós todos ficamos cansados e desanimados ocasionalmente. Você se sentirá diferente depois de umas caminhadas pelos Downs.
- Não, papai. - Respirando irregularmente, Stephen fortificou a sua vontade. - Venho sentindo isto há muito tempo. Não posso amarrar-me neste lugarzinho... a um
futuro vazio e frustrado.
Que tinha dito ele, procurando desesperadamente as palavras? A expressão chocada nos olhos do seu pai afligiu-o. Um momento de insuportável silêncio. Então:
- Não percebi que você via Stillwater sob esse aspecto. Somos uma pequena paróquia, talvez. Mas nosso valor para o país pode ser julgado por outros padrões que não
os da mera dimensão.
- O senhor me interpretou mal. Eu gosto de Stillwater. ., é o meu lar. E sei o quanto o senhor é estimado em quilómetros e quilómetros aqui em volta. É uma coisa
diferente... certamente o senhor entende o que eu quero dizer... o que acho que devo fazer com a minha vida.
O Reitor recuou bruscamente, e então, com toda a compreensão, olhou sobressaltado para o filho.
- Stephen... não será aquela ideia doida outra vez?
- É, papai.
Novamente um compasso de silêncio vibrou entre eles. O Reitor pôs-se de pé, e começou, lentamente a princípio, depois com crescente perturbação, a andar de cá para
lá. Finalmente, com um esforço, acalmou-se e aproximou-se de Stephen.
- Meu querido filho - disse ele com grande seriedade. - Eu nunca tentei prendê-lo a mim pelo seu senso do dever. Mesmo quando você era muito moço, antes de ir para
a escola, preferi confiar nos seus sentimentos naturais
de afeição e respeito. No entanto, deve compreender o quanto contei inteiramente com você para me suceder aqui... Stillwater significa tanto para mim... para todos
nós. E as circunstâncias da minha vida... a invalidez de sua mãe... a infeliz deficiência de David... o fato de ser o meu filho mais velho e, perdoe-me - a sua voz
tremeu ligeiramente - meu filho bem-amado - levou-me a colocar as minhas esperanças em você. Contudo, neste momento, ponho tudo isso de lado. Por minha honra, é
em você que estou pensando, e não em mim, quando lhe digo, quando lhe suplico que esqueça esse sonho fantástico. Você não compreende realmente o que isso significa.
Você não deve... não pode realizá-lo.
Stephen baixou os olhos a fim de não ver o rosto contraído do pai.
- Mas eu com certeza tenho direito à minha própria vida. - Através do seu respeito ardia uma íntima confiança.
- Não a essa espécie de vida. Ela só lhe trará infelicidade. Jogar fora as suas brilhantes perspectivas, arruinar toda a sua carreira por um mero capricho... seria
um ultraje à face de Deus. E depois há Claire... como, em nome do Céu, ela caberia nesse plano? Não, não. Você é muito jovem para a sua idade, Stephen... Essa ideia
louca que se apoderou de você pode lhe parecer muito importante agora. Mas dentro de poucos anos, rirá de si mesmo pelo simples fato de ter pensado nela.
Afundado na sua cadeira, de faces vermelhas e olhos baixos, com o espírito tardo e embotado pelo vinho do Porto, Stephen não podia achar uma palavra para dizer.
Naquele momento, sem exagero, odiava o seu pai. contudo, ao mesmo tempo, mostrava-se vencido pela vergonhosa consciência da sua afeição paternal, pela gratidão e
justiça do seu ponto de vista, e, pior que tudo, por uma tépida onda de nostalgia que lhe subia à garganta, um dilúvio de recordações da infância... as corridas
de tílburi a Ambry, seu pai afrouxando as rédeas, Carrie no seu limpo avental branco, Davie usando os seus primeiros calções de flanela; os piqueniques à beira do
Avon, o sol quente na água fria, e um pato selvagem subindo do juncal amarelo à medida que a canoa avançava; as canções familiares entoadas diante da árvore de Natal,
uma poeira de neve nas vidraças... oh, como poderia arrancar essas ternas, fortes raízes?
Bertram inclinou-se para diante e, não de modo comovente, mas com um toque de desconfiança, pôs-lhe a mão no ombro.
- Acredite-me, trata-se da sua felicidade, Stephen. Você não pode... não poderia achar no seu coração alguma coisa contra mim.
Stephen não se atrevia a erguer os olhos, com medo de romper em lágrimas. Estava liquidado... pelo menos no presente. E ele tinha pensado lutar duramente, tinha
jurado a Glyn que ganharia a partida.
- Muito bem - conseguiu murmurar finalmente, provando toda a
amargura que a derrota traz a uma natureza dócil mas apaixonada. - Se é assim que o senhor pensa, com tanta veemência... tentarei a Sede... para ver o que acontece.
CAPÍTULO III
BERTRAM SUBIU AS ESCADAS VAGAROSAMENTE. Embora fosse grande a sua sensação de alívio, não diminuía o cansaço que lhe viera de repente, nem a demorada ansiedade do
seu coração. Diante do quarto da esposa, hesitava, com a cabeça inclinada numa atitude de escuta; depois, batendo ligeiramente no painel, empertigou-se e entrou.
Era um vasto compartimento, outrora a sala de estar de cima, a melhor da casa, como referira o velho Cónego Desmonde, sem dúvida por suas belas proporções e por
dar para o sul, o que, além de permitir a entrada do sol da manhã, oferecia um vasto panorama dos Downs. Na sua conversão em quarto e sala de estar da esposa, parte
da mobília original tinha sido mantida - as cadeiras de tapeçaria e os canapés Chippendale, um largo espelho em semicírculo com moldura de gesso em cima do consolo
de mármore branco da lareira, o tapete vermelho de Bruxelas. Protegida por um guarda-vento, Julia Desmonde estava deitada, lendo, embaixo de uma cobertura de cetim.
Era uma mulher formosa e bem conservada, de 45 anos, com grande ar tranquilo e muito indolente, feições cheias e lisas, e um denso cabelo castanho espalhado no travesseiro
como uma nuvem.
Marcando com uma unha branca o lugar do livro que tinha o desenho de uma figura do zodíaco, Julia dirigiu para o marido, por baixo das finas sobrancelhas, um olhar
inquiridor. Seus olhos eram de um notável azul de amor-perfeito, quase infantis, com pálpebras carnudas quase caídas.
- Então temos Stephen em casa novamente - disse ela.
- Sim, achei que meu querido filho estava com boa aparência. Podia-se contar com ela para exprimir, na sua voz aristocrática e absorta consigo mesma, uma opinião
contrária à dele.
- E a dor de cabeça?
- Melhor, muito obrigada. Sentei-me demais ao sol esta tarde. O sol desta primavera precoce é muito traiçoeiro. Mas eu acabo de fazer um tratamento.
Ele percebeu, pelo aparelho que estava na mesa ao lado, que ela acabara de aplicar uma das suas vibrações. No guarda-fogo, uma caldeirinha de metal assobiava com
um alegre penacho de vapor, indicando que em 20 minutos o extrato de farelo seria levantado e misturado, os tabletes de fermento esmagados e engolidos, o iogurte
batido, ou desta vez seriam algas secas? Então a bolsa de água quente seria reenchida, o fogo disposto para a noite, as luzes diminuídas, as almofadinhas para as
pálpebras umedecidas e colocadas para dormir. E outra vez, embora lutasse contra ela com determinação cristã, a pergunta lhe veio: Por que cargas-d'água tinha casado
com ela?
Ela fora, sem dúvida - aliás ainda o era, evidentemente na sua maneira estatuesca, uma espécie de beleza, e como filha única de Sir Henry Marsden de Haselton Park,
tinha sido considerada pela sociedade do campo daquela ocasião "o partido da estação". Quem, olhando-a, teria adivinhado, por exemplo, que aquela jovem com a graça
de um cisne, anfitriã da Haselton Fête, considerada a beldade do baile de caça, cercada por jovens oficiais dos quartéis de Charminster, sorridente mas composta,
centro de atração, mais tarde revelaria a acentuada peculiaridade de ser tão inteiramente inútil para ele como esposa?
A não ser por uns poucos garden-parties nos seus primeiros anos de casados, quando arrastava um guarda-sol com babados, movendo-se graciosamente sobre a relva, com
um chapeirão, ela se recusara com pacífica resolução a tomar interesse pelas obras da paróquia. "Deus", dizia ela amavelmente, "não há nenhum sentido em levar sopa
para rústicos indigentes ou estragar os nervos costurando roupa de criança para encorajamento da população rural." Afortunadamente, a mulher do bispo gostava dela,
mas ela não recebia as senhoras da clerezia menor.
Preferia passar os dias sentada, exageradamente vestida, à sua janela, ou no roseiral, empenhada num interminável bordado em seda colorida, do qual levantava a cabeça
repetidamente para olhar por longos períodos o espaço, ou tomar notas ocasionais, quando lhe ocorriam, do que haveria de comunicar ao seu médico, que - tendo há
muito esgotado o doutor do condado - visitava duas vezes por mês em Londres. Seus filhos, que ela suportava com uma facilidade distraída, não tinham sido para ela
mais do que episódios momentâneos. Desde que não a incomodassem, ela os considerava com remota indulgência. Contudo, ao aumentar, mais e mais, o seu alheamento,
ela se retirava para si mesma, criando uma existência que se desenvolvia em torno das suas funções físicas, um pequeno mundo de feliz hipocondria, no qual - poderia
ele, ó Deus, tê-lo previsto quando naquela tarde cheirando a rosas, 20 anos atrás, ele quase morrera de dor com o seu beijo aromático? - ela não tinha maior prazer,
nenhum interesse mais vivo, do que discutir amavelmente com ele a cor dos seus tamboretes.
Talvez o cavalo de campanha empalhado no saguão paterno - lembrança de Balaclava - devesse tê-lo advertido, mas, ai! podia ter predito que o pai dela, até a idade
de 60 anos, não era mais que um excêntrico amável, dedicado em suas horas de fazer as pesquisas mecânicas - a eletrificação da sua propriedade por uma cadeia de
moinhos de vento, a inócua construção de um canhão de tiro rápido que, recusado pelo Ministério da Guerra, tinha não mais do que levado ao céu, na sua parte de carne,
o mordomo da família, que, em nome de Deus, devia ter previsto que aquele irreprimível doido teria, na sua caduquice, lançado subitamente um grandioso projeto para
a construção de uma máquina voadora, como a que foi subsequentemente voada por Blériot através do Canal da Mancha, embora aquilo em si mesmo fosse extremamente doentio,
e não passasse de uma feia geringonça com fantásticos parafusos, supostamente capaz de subir do chão na vertical: um helicóptero. Assim, em desafio às leis da gravidade,
Sir Henry profanara o seu belo parque com alpendres e hangar, operários importados, engenheiros, um mecânico belga, gastara dinheiro como água, em resumo, arruinara-se,
e, permanecendo no chão, morrendo como alvo de mofa.
Haselton, que devia ter sido de Julia, era agora uma escola para meninas, o grande hangar um ginásio, e os alpendres - horrores - recém pintados depósitos para tacos
de hóquei enlameados e sapatos desemparceirados de lona.
Seria possível, pensava Bertram, com novo abatimento, que algo dessa instabilidade agora se manifestasse em Stephen? Não, não... impossível. O filho, tão de perto
parecido com ele em corpo e alma, era todo dele, de fato o seu outro eu. No entanto, devido à sua ansiedade, a nuvem que pairava sobre o seu espírito, era tentado,
a despeito do seu melhor juízo, a abrir a mente e procurar alguma espécie de consolo da parte de sua esposa.
- Minha querida - disse ele. - Enquanto Stephen estiver conosco, acho que devemos fazer um esforço para afastá-lo de si mesmo.
Julia mirou-o surpreendida. Ela possuía em grau notável a faculdade de torcer o sentido do que lhe diziam.
- Meu caro Bertram, você sabe muito bem que não posso fazer qualquer esforço. E por que Stephen deve ser afastado de si mesmo?
- Eu... eu estou preocupado com ele. Ele sempre foi um rapaz incomum. Está atravessando uma fase difícil.
- Difícil, Bertram? Ele já não passou pela puberdade?
- Naturalmente... mas não sei o que se passa com esses rapazes. Na primavera, metem ideias estranhas na cabeça.
- Você quer dizer que Stephen está em estado de amor?
- Não... bem, sabemos que ele gosta de Claire.
- Então o que quer dizer? Ele não pode estar doente. Você mesmo disSe um momento atrás que ele está muito bem.
- Foi você quem disse isso. - A despeito de si mesmo, Bertram falava com crescente impaciência. - Acho que ele está longe de se sentir bem. Mas vejo que você não
deseja participar da minha ansiedade.
- Desejo que me fale, meu querido, não faço nenhuma objeção a ouvi-lo. Mas não é suficiente você estar aborrecido sem me aborrecer? Acho que
fiz a minha parte em trazer os seus filhos ao mundo. Sempre houve, do primeiro ao último, pouco prazer nessa tarefa. Depois, você fez deles sua responsabilidade.
Eu jamais interferi. Por que devo fazê-lo agora?
- É verdade - disse ele, tentando reprimir a sua amargura. - Faria pouca diferença para você se Stephen arruinasse a vida dele. Julia, há alguma coisa nele, algo
debaixo da superfície, que eu não compreendo. O que é que ele realmente pensa? Quem são os seus amigos? Não se lembra de que quando Geoffrey o visitou no ano passado,
em Trinity, encontrou lá a pessoa mais inesperada no seu alojamento... um excêntrico de primeira, foi como Geoffrey o chamou, um artista desmazelado... um galês
Interrompeu-se, olhando quase súplice para ela, até que ela foi obrigada a responder. Sua voz era suave.
- Que tem você contra os galeses, Bertram? Eles possuem belas vozes. Esse galês canta?
- Não - replicou Bertram, corando. - Ele vive insistindo com Stephen para que vá a Paris.
- Muitos jovens já fizeram isso antes, Bertram.
- Até concordo. Mas, desta vez, não pela razão óbvia.
- Então por que razão, se não é para ter uma mulher francesa?
- Para pintar!
Tinha-o dito, livrara-se daquilo afinal; e tensamente, embora com uma certa sensação de alívio, esperou, em silêncio, que ela falasse.
- Devo confessar, Bertram, que não vejo mal algum nisso tudo. Lembro-me de que, quando estive em Interlaken com papá, fiz algumas deliciosas pequenas aquarelas do
lago. Azul era o tom predominante. Stephen sempre gostou de desenhar. Aliás, foi você quem lhe deu a primeira caixa de lápis de cor.
Ele mordeu forte os lábios.
- Isso não é ocupação de criança, Julia. Sabe que há mais de um ano, sem nos dizer uma palavra, ele tem viajado de Oxford para assistir às aulas noturnas de arte
em Slade?
- Slade é uma instituição respeitável. Stephen terá bastante tempo para fazer seus esboços entre os sermões. E, sem dúvida, desenhar é Um calmante para os nervos.
Ele refreou o seu impulso de gritar. Por um momento, manteve os olhos baixos, no tom de quem foi Vencido, mas, respirando um pouco depressa demais, disse:
- Espero que tenha razão, minha cara. Suponho que me preocupo desnecessariamente. Sem dúvida ele se restabelecerá logo que entre na rotina do seu trabalho em Londres.
- Sem dúvida. E, Bertram, resolvi que, em vez de Harrogate, irei a Cheltenham no mês que vem. Lá há águas minerais, e dizem que são excelentes para promover a secreção
da bile. Quando o Dr. Leonard examinou a minha urina pela última vez, encontrou uma acentuada insuficiência de sais biliares.
Ele deu boa-noite, em tom baixo, e saiu rapidamente, antes que dissesse coisa pior.
Ao sair do quarto, podia ouvir no corredor o lento tique-taque da máquina de Caroline, que, sem se poupar, batia as notas para o seu discurso do dia seguinte.
CAPÍTULO IV
NUMA TARDE CINZENTA E ENEVOADA, seis semanas mais tarde, Stephen, voltando de uma visita de casa em casa, caminhava lentamente pela Clinker Street, no East Stepney.
A nuvem sulfurosa sobre as docas de Londres tornava o estreito logradouro mais triste e opressivo para ele. Nenhuma luz, nenhuma cor - somente a inércia dos carros
de descarga vazios, os paralelepípedos graxentos, um cavalo da zorra de um cervejeiro fumegando na chuva, com os arreios dentro de um saco gotejante. Um ônibus ruidoso
passou no rumo oeste, salpicando-o de lama quando ele voltava para a Sede.
Aquela construção de tijolo vermelho, erguida no alinhamento das casas de estuque derruídas que se inclinavam ao longo da rua como velhas decaídas, agora mais do
que nunca parecia-lhe uma pequena mas eficiente penitenciária. Nesse momento, abriu-se a porta da frente e o Guardião, o Reverendo Crispin Bliss, saiu, de guarda-chuva
em pé, nariz levantado para farejar o tempo, alto, magro, envolto até os sapatos em uma comprida capa impermeável preta. Um encontro, pensou Stephen, era inevitável;
e aproximou-se.
- Ali, Desmonde... já de volta?
O tom frouxamente cordial era, achou Stephen, o de um homem que procurava gostar dele e não podia, a despeito da melhor das intenções e dos reclamos do amor fraterno.
Inquestionavelmente, o Reverendo Crispin Bliss, membro da confraria de St. Cuthbert era um clérigo devotado que trabalhava
arduamente pelo bem da sua vinha infrutífera. Clérigo menor, com fortes tendências evangélicas, era um homem de sincera embora limitada piedade. Religião à parte,
porém, a sua maneira era muito pouco atraente: seco, académico, suscetivelmente superior. Igualmente infeliz era a sua maneira de caminhar com a cabeça atirada para
trás, o ar nobre com que procurava se proteger, e, sobretudo, a sua voz rachada, ligeiramente fanhosa, parecendo sempre pronta a pronunciar contradições culturais
em notas de agudo falsete. Quase no início, Stephen tivera a má sorte de ofendê-lo.
No corredor superior da Sede estava pendurado um cruento quadro do martírio de São Sebastião, que para Stephen sangrava de novo sempre que ele saía da sua sala.
Desde que a pintura parecia ignorada por todos menos ele, uma manhã, num momento de aversão, virou-a contra a parede. O ato passou aparentemente despercebido. Mas
na ceia dessa noite, com um sorriso magoado que passou por cima dos seus dois coadjutores, Loftus e Geer, e foi repousar em Stephen, o Guardião observou, nos seus
tons mais nasais:
- Não faço objeção ao humor, mesmo na sua forma mais disfarçada, a brincadeira de mau gosto. Mas interferir em qualquer objeto desta casa que por seu assunto ou
associação possa ser considerado como sagrado é, para o meu espírito, um ato indecoroso e irreligioso.
Stephen corou até a raiz dos cabelos e manteve os olhos no seu prato. Não tinha querido fazer mal algum, e quando a refeição terminou, o desejo de explicar-se levou-o
ao Guardião.
- Lamento ter virado o quadro. A única desculpa que posso oferecer é que ele bulia com os meus nervos.
- Com os seus nervos, Desmonde?
- Bem... sim. É de um gosto muito chocante, além de ser evidentemente uma falsificação.
- Não posso compreendê-lo, Desmonde. O quadro é um legítimo Carlo Dolci.
Stephen sorriu em tom de desculpa.
- Oh, dificilmente, senhor. Nem sequer isso. Além das pinceladas grosseiras, e do pigmento moderno, é pintado em tela branca de cânhamo - um tecido que só foi manufaturado
por volta de 1890, uns bons 200 anos após a morte de Dolci.
A expressão do Guardião petrificou-se. Respirava rapidamente pelas narinas, não fogo precisamente, mas a contrapartida cristã da cólera - justa indignação.
- Acontece que esse quadro é meu, Desmonde, e uma propriedade muito estimada. Comprei-o de um jovem na Itália, de fonte impecável. A despeito da sua opinião, continuarei
a apreciá-lo como o original de uma obra de arte.
Agora, todavia, havia menos hostilidade do que vigilante moderação no
olhar com que o Guardião, parado na chuva, ofereceu a Stephen o abrigo do seu guarda-chuva e perguntou:
- Fez a série de Skinner esta tarde?
- Praticamente toda, senhor.
Não queria confessar que, esperando a visita de Richard Glyn, tinha saltado os números ímpares.
- Como encontrou a velha Sra. Blimey?
- Não muito bem, receio.
- A bronquite da pobre criatura piorou? - Depois, como Stephen hesitava, parecendo inquieto, ajuntou: - Ela precisa do médico?
- Não... não exatamente. Aliás, encontrei-a muito embriagada.
Houve uma pausa perturbadora, então veio a pergunta um tanto mundana:
- Como é que ela conseguiu dinheiro?
- Acredito ser o responsável, senhor. Dei-lhe seis xelins ontem para que pagasse o aluguel do quarto. Ela parece que o gastou em gim.
O Guardião fez um som, estalando a língua.
- Bem... vivendo e aprendendo, Desmonde. Não o censuro. Mas você não deve pôr a tentação no caminho das pobres criaturas de Deus.
- Acho que não. Por outro lado, quem pode censurá-la por tentar escapar à miséria umas poucas horas? Ela sofre do peito, não arranja trabalho de costura de qualquer
espécie, deve o aluguel ao senhorio e já empenhou quase tudo no seu quarto. Devo confessar que me senti quase contente ao vê-la rolar num estado de feliz esquecimento.
- Desmonde!
- E o que é mais... não pude deixar de pensar que se algum de nós estivesse naquela situação teria feito exatamente a mesma coisa.
- Ora, vamos. Isso é levar o caso um pouco longe demais. Nós nunca devemos, queira Deus, achar-nos em tais situações desagradáveis. - Abanou a cabeça em reprovação
e abriu o seu guarda-chuva. - Haverá reunião dos rapazes esta noite? Trocarei uma palavra com você a esse respeito depois da ceia.
com um aceno de despedida, um tanto distante, pôs-se a caminho, deixando Stephen a subir as escadas para o seu quarto, um estreito cubículo forrado de carvalho claro,
com um consolo gótico e uma estante de livros giratória - A cama ainda não tinha sido feita. Os residentes da Sede deviam arranjar-se sozinhos, era o que se esperava;
de manhã, por exemplo, Stephen iria encontrar-se regularmente com Geer, o coadjutor, um brilhante e musculoso cristão, levando o seu urinol cheio para o banheiro
com ar de sincera despreoCupação.
Contudo, para que a tradição monástica não parecesse muito severa, uma pequena moça de fora, chamada Jenny Dill, vinha do distrito,
ostensivamente para dar os retoques finais, na realidade fazer a maior parte do trabalho. Quando Stephen se atirou, ainda, de chapéu e casacão, numa cadeira Morris,
podia ouvir os seus passinhos rápidos no quarto de Loftus através da fina parede que servia de repartição. Loftus, um belo rapaz, exigente e moderado, muito elegante
de uma maneira sacerdotal, sempre lhe deixava muito que fazer, tal como sapatos para lustrar, roupas atiradas e por escovar. Contudo, ela parecia ter acabado essas
tarefas, porque, em poucos minutos, houve uma batidinha na porta do seu quarto e, trazendo espanador e balde, ela entrou lepidamente.
- Oh, senhor, perdoe-me... Não sabia que estava aqui.
- Não tem importância, entre.
Observou-a ausente quando ela começou habilmente a tirar os lençóis e a virar o colchão. Era uma mulherzinha agradável, com as faces muito coradas, como se tivessem
sido esfregadas com pó de tijolo, brilhantes olhos castanhos e uma franja de cabelo preto. Parecia, pensou ele, uma moça típica das camadas populares de Londres...
inteiramente competente e que ninguém poderia enganar. No entanto, havia nela algo mais do que ordinário: um ar de simplicidade bem-disposta, uma inocência, uma
afabilidade afetuosa, e, acima de tudo, um vigor, como se ela não pudesse conter a energia e deleite que pulsavam no seu corpo jovem e sadio. E ao mover-se de um
lado para outro com precisão, a cintura fina, o busto pequeno mas firme, inconsciente de que ele a observava, ou pelo menos de nenhuma maneira perturbada com isso,
instintivamente a sua mão pegou o lápis e um bloco de cima da escrivaninha.
Dali a pouco, quando ela foi à lareira, curvou-se e começou a tirar as cinzas. Nesse momento, o seu interesse aumentou, e quando ela fez menção
de levantar-se, ele a deteve bruscamente.
- Por favor, não se mexa, Jenny.
- Mas, senhor.
- Não, não. Volte a cabeça e não se mexa.
Enquanto ela, obediente, voltava a cabeça, mantendo a sua posição curvada, os dedos de Stephen moviam-se nervosos sobre o papel.
- Pensa que sou maluco, não é, Jenny? Todos os outros do distrito também pensam.
- Oh, não, senhor - protestou ela vigorosamente. - A gente acha é que o senhor é um bocado esquisito, desenhando no clube dos rapazes e coisas assim, diferente de
um coadjutor regular, que ensina eles a lutar boxe. Ora, quando o Sr. Geer trouxer os grandões e eles se pegarem, vai ver que quase se matam um ao outro. E mal vai
poder reconhecer eles, com os olhos pretos e as ventas sangrando. Não, não é o que parece muito natural, acho, Mas a gente pensa que o senhor é mesmo um cavalheiro
muito delicado.
- Isso é animador... e apesar da ausência de sangue. Diga-me uma coisa,
Jenny, se você fosse uma velha doente, de cama, preferiria uma Bíblia ou uma garrafa de gim?
- Eu tenho uma Bíblia, senhor... aliás, duas. O Sr. Loftus e o Sr. Geer me deram uma cada um. A do Sr. Loftus tem umas lindas fitas coloridas. Sou capaz de dizer
que se eu estivesse mal mesmo, o gim até que vinha bem.
- Não fuja, Jenny. Você é honesta como o dia. Diga-me: o que é que você pensa disto aqui?
Lentamente, ela relaxou, aproximou-se e examinou dubiamente o desenho que ele lhe entregara.
- Não sei nada dessas coisas, senhor... mas acho mesmo bonito.
- Ora, sua garota tola, não está vendo que é você?
- Bem, já que o senhor diz - respondeu ela modestamente - parece comigo de costas. Eu só queria não estar com a minha roupa velha e com um rasgão bem ali, tão encabulante,
na abertura da saia.
Stephen riu-se e atirou o bloco para a escrivaninha.
- É da saia velha que eu gosto. Gostaria que você posasse para mim. Eu lhe pagaria cinco xelins por hora.
Ela olhou rapidamente para ele, depois desviou os olhos.
- Isso não seria muito correto, seria, senhor?
- Ora, tolice - disse ele descuidado. - Onde é que está o mal? Mas acho que você não está interessada...
- Bem, senhor... - Ela falava acanhadamente, e uma cor mais viva lhe veio às faces. - Na verdade, se tudo estivesse em ordem, eu bem que poderia fazer mais uns cobres.
- Como?
- É, senhor O senhor sabe... eu espero me casar logo.
- Parabéns. Quem é o felizardo?
- O nome dele é Alfred, senhor. Alfred Baines. Ele é camaroteiro num barco da Orient Lane. Vai estar na terra no outro mês, sem ser esse que vem.
- Excelente para você, Jenny. Não admira que queira ganhar mais um dinheirinho. Quando larga?
- Quando termino de arrumar o seu quarto, senhor. Aí pelas cinco.
- Bem, então... suponha que fique mais uma hora, das cinco às seis, duas vezes por semana. Posso pagar-lhe cinco xelins de cada vez.
- Isso é mais do que generoso, senhor.
- É muito pouco realmente. Mas se você não achar o trabalho muito cansativo, posso lhe dar um bilhete para um amigo meu que ensina nas turmas noturnas no Slade.
Ele terá prazer em empregá-la por uma breve temporada...
Ele não vai esperar que eu, senhor... - Jenny tornou-se rubra.
- Por Deus do céu, não - disse Stephen bondosamente. - Você vestirá uma espécie de costume. Provavelmente ele vai querer somente a sua cabeça e ombros.
- Então ficarei muito agradecida, senhor. . . fico mesmo... especialmente ao senhor.
- Então fechamos negócio? - pergunta ele, sorrindo, aquele raro sorriso que iluminava a sua face e o tornava tão atraente, e estendeu-lhe a mão.
Ela corou, e aproximou-se. Seus pequenos dedos, de unhas mal cortadas ou quebradas, estavam quentes e secos, com cicatrizes nas pontas e frieiras curadas. Contudo,
era uma mão extraordinariamente agradável de segurar, nela estava a pulsação do seu jovem corpo; ele mal pôde soltá-la. E quando o fez, ela se voltou para a porta.
Estava agora um tanto pálida, e sem olhar para ele disse:
- O senhor sempre me tratou tão gentilmente, Sr. Desmonde, é mesmo um prazer fazer as coisas para o senhor. Eu sempre dou ao seu quarto um extra. E lustro muito
bem os seus sapatos, porque... ora, porque são seus, senhor. - Interrompeu-se, e desapareceu.
Para quem era atormentado por humores de autodepreciação, aquelas palavras trouxeram um esquisito calor. Mas logo a momentânea alegria de Stephen sumiu, ele se tornou
novamente consciente de si mesmo, do seu ambiente, e da tristeza que o esperava adiante. Desejou que Glyn aparecesse logo.
Apanhando o Evidences, de Paley, que prometera ao seu pai ler, tentou mergulhar no livro. Mas era inútil. Não tinha interesse nele, detestava a vida que estava levando,
desde que chegara à Sede: a visitação, as aulas de Bíblia, o clube - embora à sua maneira tentasse animá-lo - a terna hipocrisia das palavras alimentando a fome
e o frio das pessoas, enquanto ele e os outros da sua raça permaneciam aquecidos e bem nutridos.
Podia compreender um homem que entrasse para a Igreja por sua natureza profundamente religiosa, por sentir que a sua missão predestinada era ajudar o próximo. Mas
assumir uma existência confortável sem uma forte vocação, por motivos que eram claramente materiais, parecia-lhe a pior espécie de fraude. E, além disso, ele não
tinha a sua própria vocação, um chamado que o mantinha cingido ao seu próprio coração? Que tolo fora em se deixar levar a semelhante passo, como um carneiro estúpido
entalado entre as portas de uma feira do campo. E agora que ali estava, parecia não haver como sair.
Justamente então soaram passos de sapatos pesados nas escadas de madeira, e poucos segundos depois um homem alguns anos mais velho que Stephen foi entrando no quarto
e atirou-se sem fôlego numa cadeira. Era de porte mais do que mediano e fortemente construído, com um cabelo vermelho cortado e uma curta barba vermelha eriçada,
de feições vigorosas, os olhos, sob sobrancelhas bem marcadas, vivazes, rebeldes, contudo muito divertido naquele momento. Vestia calças de pele de toupeira e uma
blusa de operário,
um lenço pintalgado de vermelho amarrado no pescoço; tinha o ar de um bucaneiro, fanfarrão, livre, cheio de um vigoroso prazer pela vida. Dali a pouco, quando cessou
a sua transpiração, puxou um relógio de metal, ligado a ele por um pedaço de cordão esfiapado de quadro.
- Bem na hora - observou com satisfação. - Não está mau para Whitehall.
Embora advertido da paixão espasmódica de Glyn pelos exercícios violentos, Stephen estava moderadamente surpreso.
- Você andou todo o caminho?
- Corri - disse Glyn, enxugando o suor. - Foi diabolicamente divertido. Botei toda a polícia a correr, pensando que eu tinha assaltado um banco. Mas que sede me
deu! Suponho que não haja um pingo de cerveja nesta casa de Deus, não é?
- Sinto, Richard. Não nos permitem tê-la em nosso quarto. Posso lhe dar chá... e biscoitos.
Glyn explodiu em gargalhadas.
- Vocês, jovens teólogos. Como podem combater Satanás com chá e biscoitos? Mas se não for incómodo, traga-os. E acrescentou, mais sério: Sinto não poder ficar muito
tempo, mas eu queria vê-lo.
Conversaram enquanto Stephen fervia uma chaleira de folha no bico de gás junto à lareira. Pronto o chá, Richard bebeu quatro xícaras da desprezada beberagem e, de
uma maneira ausente, liquidou um prato de macarrão. Depois, um tanto embaraçosamente, a conversa cessou.
- A sua mostra correu bem? - perguntou Stephen por fim.
- Muito bem - respondeu Glyn descuidadamente. As críticas foram tão perfeitamente depreciativas que atraíram público.
- Mas você vendeu alguma coisa.
- Um vermelhinho. E tudo porque sou galês. A Galeria Nacional de Cardiff comprou-o. Encorajando o talento nativo... filho de um mineiro e assim por diante.
Houve uma pausa.
- Contudo - resumiu Glyn - o dinheiro me safou das dívidas, e Anna e eu partimos para Paris amanhã.
Stephen empertigou-se imperceptivelmente, um reflexo de todos os seus nervos, não apenas ao som de uma palavra que o perseguia, mas porque naquela maneira demasiado
despreocupada ele pressentiu o verdadeiro motivo da visita de Glyn. Procurou dominar a voz.
- E quanto tempo pretende ficar por lá?
- No mínimo um ano. Vou viver barato e trabalhar como um mouro. Acredite se quiser, Paris é um lugar maravilhoso para trabalhar. - Fez uma pausa e atirou um rápido
olhar para o outro. - Você não vai mesmo conosco?
Stephen sentiu um nó na garganta. As suas mãos, nos braços da poltrona, mostraram os nós dos dedos.
- De que jeito? Você conhece a minha situação.
- Ao mesmo tempo, tive a impressão de que você queria pintar.
Stephen, de cabeça baixa, não respondeu. De súbito ergueu os olhos.
- Glyn... se eu jogasse tudo fora... teria mesmo sucesso como artista?
- Ora, ora, Desmonde - Glyn inclinou-se para diante, de cenho cerrado, - Que pergunta mais idiota. Sucesso? Que quer dizer com sucesso? Então você não sabe que neste
jogo não pode haver garantias, que você não tem mais que você no momento em que se resolve? E você não entra nisso por nenhuma outra razão a não ser a de que não
pode evitá-lo. Se for para valer, abandona tudo, passa fome, rouba, engana a sua avó, transgride cada um dos Dez Mandamentos, só para ter nas suas mãos um tubo de
tinta e uma espátula.
Glyn interrompeu-se, relaxou a postura e continuou, mais serenamente:
- Acredito que você tem talento, possibilidades extraordinárias, do contrário não ia aborrecer o meu bestunto a seu respeito. Eu sei como é duro para você... atolado
na tradição. Você teve todos os inícios errados. Devia ser como eu, nascido numa vila de operários, numa nojenta cidade carvoeira. Mas, assim, você mesmo é quem
tem que decidir. E se não se decidir, atrevo-me a dizer que dará um pastor aceitável. - Tirou de repente o seu relógio niquelado. - Bem, tenho que ir. Preciso reunir
umas coisas. E juntar isto com aquilo. Adeus, Desmonde. Escreva-me quando tiver tempo.
Stephen permaneceu imóvel. Glyn levantou-se. Ao dar o primeiro passo, viu sobre o consolo da lareira um cartão perfurado com as cores do Clube de Críquete Marylebone.
Era um bilhete para a partida de criquete entre Oxford e Cambridge, a ser disputada no mês seguinte. Acompanhando o olhar de Glyn, Stephen corou.
- Tenho que ir - disse ele secamente. - Toda a família irá.
CAPÍTULO V
A PARTIDA TINHA TERMINADO, as balizas haviam sido retiradas, e enquanto o sol lançava sombras compridas sobre a quadra relvada do Lord's, um grupo de sete pessoas
podia ser observado entre a elegante assistência - dificilmente se poderia referir essa afluência como uma multidão - andando
vagarosamente para os portões principais na St. John's Wood Road. Caroline e Claire iam na frente com Davie e seu primo Geoffrey, enquanto poucos passos atrás, Stephen
acompanhava o General Desmonde e sua esposa. Uma emergência na paróquia tinha impedido no último instante o Reitor de estar presente, e Julia, claro, era uma ausente
anual. Por isso, Stephen tinha vindo somente para estar com o irmão, e enquanto Davie tinha grande prazer em ver o jogo - o que era mais tocante, uma vez que, devido
à sua afecção, não lhe era permitido jogar críquete - teve em certa medida a sua recompensa, pois o dia tinha sido duro para ele, e ainda lhe ressoavam na cabeça
os incessantes gritos de Geoffrey de "Boa jogada, senhor", e, como sempre, a mulher do General raramente pensava nela como tia Adelaide - tinha exercido sobre ele
uma familiar combinação de condescendência e arrogância que despertava os seus mais perversos instintos. Mulher dominante, fria, de rosto fino, criada na tradição
do Exército e endurecida nos sóis da Índia, ainda era bonita, de uma maneira dura e atrevida, e possuía uma figura admirável, embora tendendo para a magreza, seu
olhar às vezes letal como um golpe de baioneta.
Agora, ao deixarem o campo e permanecerem juntos um tanto indecisos, enquanto carruagens e cabriolés saíam da calçada, ela falava com rapidez, na sua voz apressada
"do condado".
- Hoje foi um dia tão delicioso, que é uma pena deixá-lo morrer prematuramente. - Voltou-se para o marido. - Tem alguma sugestão, Hubert?
O General Desmonde examinou o grupo. Alto, feições retas, ereto como uma vareta de espingarda, até no chapéu de forma cinza e no fraque matutino, parecia um soldado,
um soldado notável. Um bigode curto acentuava a brevidade incisiva da sua fala.
- Pensei que poderíamos cear no Frascati's.
- Magnífico, papai - disse Geoffrey, endireitando a gravata e depois o colete bordado, talvez pela ducentésima vez, como se estivesse determinado a manter a supremacia
de alfaiataria que fazia dele, tinha certeza, um alvo de admiração. Estilo, que ele chamava de boa forma, era na verdade a sua maior ocupação, fosse numa praça de
armas ou em Piccadilly, e que já o configurava, na idade de 24 anos, como modelo de um elegante, ainda que um tanto tolo, jovem de sucesso da sociedade.
- Davie tem que voltar às sete - interpôs Caroline. - E já passam das seis. Mas ninguém precisa se incomodar, vou levá-lo ao trem.
- Querida, você é tão gentil e tão atenciosa - disse Adelaide sorrindo. Ela não queria Caroline no Frascati's com o seu rosto vermelho de sol como uma peônia, e
naquele medonho vestido marrom que a fazia parecer uma copeira no seu dia de folga, aquelas pernas também, que desgraça, como as patas de um piano de cauda; Caroline,
para tia Adelaide, era sempre uma responsabilidade social, uma mortificação anual no baile de caça, quando, sentada na
entrada do salão, com seu jornal na mão, sem que ninguém a tirasse para dançar, esperava tristemente que algum velho cavalheiro se dirigisse a ela; e agora já tinha
sido bastante desagradável tê-la com eles durante o dia inteiro. - Você deve vir uma outra vez.
- Acho que também tenho que voltar - disse Stephen. Se Davie não fosse, ele não teria nenhum prazer em ir.
- Tem mesmo? - Hubert franziu o cenho, bem-humorado; ele até gostava, ou pelo menos tolerava, aquele jovem sobrinho e futuro pastor. - Tão cedo?
- Mas é claro que você pode ficar, Stephen. - Claire estava ao seu lado, contida, mas de certo modo rogando, com a sua tez macia e feições tão bem modeladas, sombreadas
por um chapéu de aba larga enfeitado de rosas. Hoje mais do que nunca, naquele ambiente, ela parecia o que era: a mais amável das moças inglesas, cujo bom senso,
maneiras e cordialidade franca e agradável faziam amigos onde quer que estivesse. - Fica, sim - ajuntou ela.
- Querida - interveio Adelaide antes que Stephen pudesse responder - não devemos interferir com as regras e regulamentos. Afinal de contas, a vida na Sede, imagino,
é mais ou menos monástica, não é, Stephen? e muito digna, estou certa. É mesmo uma lástima que você não possa vir. Geoffrey acompanhará Claire, e eu pretendo que
Hubert seja o meu galã. Adelaide tornou a sorrir, e com satisfação, pois tinha as suas razões para não desejar que Stephen fosse um do grupo.
- Não podemos deixá-la em alguma parte, Caroline? - perguntou Hubert.
- Oh, não, Davie e eu iremos de metro.
- E eu de ônibus - disse Stephen.
Trocaram-se despedidas, e então, vagamente consciente do desgosto nos olhos de Claire, Stephen afastou-se com Caroline e Davie. Como ainda tinham alguns minutos,
deteve-se no Fuller's da Park Road para oferecer um sorvete de morango ao seu jovem irmão e uma taça de chá a Caroline, que, sub-repticiamente descalçando os sapatos,
confessou que estivera mortificada todo o dia. Depois ele os deixou no metro da Baker Street e tomou o ônibus nº 23 para a zona leste.
Ao matracolejar para Stepney, a despeito do alívio de estar novamente entre gente impolida que não pedia mais do que a sua parte numa cadeira dura, uma lenta depressão
foi tomando conta de Stephen. Como se sentira física e espiritualmente diminuído, como se sentira diferente dos outros durante voltas em todas as metas de críquete,
os encontros e cumprimentos, o almoço no Guard's Club Marquee - "seu diabinho" - quase podia ouvir o pensamento por trás dos olhares indiferentes dirigidos para
ele pelos amigos do primo, ao discutir com Geoffrey a última comédia musical, a corrida de obstáculos
de Sussex, e a última fantasia para o Cambridgeshire. Com esta disposição, chegou à Sede. No saguão, ainda redolente dos odores do bife refogado com repolho do meio-dia,
passou por Luftus, que saía, e deu-lhe uma "boa-tarde". O coadjutor noviço mal respondeu e escorregou para a frente, discreto e elegante, o olho com um tal brilho
de malícia e divertimento, que Stephen recuou instintivamente.
- Que é que há, Loftus?
Já na porta, o outro como que se voltou, com lábios torcidos e apertados pelo humor eclesiástico.
- Então não sabe?
- Claro que não, o que é?
- Não muito, acho eu. A não ser que a pequena Dill parece estar em maus lençóis.
De que diabo estava ele falando? pensou Stephen. Mas deu de ombros, e vendo que não havia correspondência na estante, subiu as escadas. Sentada tesa numa cadeira
dura no centro do seu quarto, usando as suas roupas de sair à rua, um chapéu de palha chato com uma fita estreita, e luvas brancas de algodão, estava Jenny.
Levantou-se imediatamente quando ele entrou, mas com compostura, e enquanto ele a olhava com surpresa, uma vez que ela normalmente não vinha à Sede nos sábados,
ela começou:
- Peço-lhe desculpas pela liberdade, senhor. Mas eu queria estar certa de encontrá-lo. E parece que não havia outro jeito senão eu esperar.
- Muito bem - disse ele incerto. - Não quer sentar? Assim é melhor. Então, que é que há?
Enquanto ele ia até a lareira, ela tornava a sentar-se na beira da cadeira, com as luvas cuidadosamente dobradas.
- Bem, senhor. O fato é que vou embora, hoje, meio de repente. E como o senhor tem sido tão bom para mim, achei que tinha que vir lhe dar adeus.
- Oh, Jenny, sinto muito. Não imaginei que você nos deixasse tão cedo.
- Nem eu, senhor. Mas a verdade é que me despediram.
- Despediram? - repetiu ele desnorteado.
- Sim, despediram. - Acenou com a cabeça, francamente, no seu modo prático, sem acanhamento. - A culpa foi minha. Ontem fui tão boba que vim sem o meu espartilho.
Eu nem notei que já começava a aparecer. Mas não há jeito de enganar essa cozinheira. Correu para o Guardião como uma flecha.
- Mas de que diabo está falando?
- Não está vendo, senhor? Vou ter uma criança.
Ele ficou tão desconcertado que não conseguia achar o que dizer.
- Oh, Jenny, como é que você...?
- Acho que me deixei levar, senhor.
- Como?
- Nós todos temos sentimentos, senhor. Não se pode fugir disso. Oh, eu sou muito respeitável, garanto lhe. Alf é um sujeito correto. Camaroteiro de navio, como eu
lhe disse. Vamos casar quando ele voltar.
Houve uma breve pausa, enquanto Stephen a estudava com simpatia.
- Suponho que você o ama.
- Acho que deve ser isso, senhor. - Um ligeiro e sábio sorriso passou-lhe pelo rosto jovem e fresco. - Ele é muito mais velho que eu, isso é. E vou lhe dizer: se
não fosse pelas duas cervejas que tomei no Good Intent, eu não teria cedido. Mas aí eu também podia ter feito pior. Alf é decente, lá isso é. E habilidoso também.
Gosta de música e me ensinou a tocar gaitinha de boca.
Outra pausa.
- Bem... vamos sentir a sua falta, Jenny.
- E eu vou sentir falta do senhor. Acho que o senhor foi até bom demais comigo. Não é igual a outros por aqui.
- Que outros?
- Bem, principalmente o Guardião, senhor. Tenho que dizer que ele me perseguiu muito antes de me botar na rua.
- Mas você não está saindo por sua vontade?
- Oh, não, senhor. Isso não me convém nem um pouco... Vivo por minha conta, sabe, e não tenho pais vivos. Mas o Guardião não queria ter este lugar contaminado, disse
ele, com três jovens-coadjutores por aqui, e me despachou na hora.
Stephen mordeu o lábio. Olhando disfarçadamente para a moça, percebeu que, sob a sua expressão habitual de serenidade e bom humor, ela parecia pálida e desorientada.
Seria capaz de jurar que não havia nela um pingo de maldade.
- Jenny - disse ele impulsivamente - eu não quero interferir. Mas espero que você tenha feito arranjos para... ir a um hospital... essas coisas.
- Não vou para o hospital, senhor. Tenho o meu quarto. E vou falar com a Sra. Kelley. Ela é parteira, senhor, e muito recomendada.
- Você tem certeza de que estará bem?
- Oh, não se preocupe comigo, senhor. - Pela primeira vez havia uma nota de tristeza na sua voz. - Eu só espero não ter trazido encrenca para o senhor. Isso tudo
aconteceu porque o senhor me arranjou trabalho na aula de arte. E o Guardião parece que ficou furioso com isso.
Stephen ficou um tanto desconcertado com essa notícia. Contudo, o seu genuíno interesse era por Jenny. A admiração que sentia por sua coragem e bom senso, e a indignação
pelo tratamento que lhe tinham dado, tornavam-no mais descuidado consigo. Tinha começado a gostar dela nos últimos meses,
e não podia deixá-la sem alguma expressão da sua boa vontade. Voltou-se de lado, remexeu meio inconscientemente na sua carteira e deu um passo na direção dela.
- Escute, Jenny. Não quero ofendê-la. Mas você fez tanta coisa por mim aqui... você realmente vai precisar de alguma coisa para sustentar-se. Eu gostaria que aceitasse
isto.
Desajeitadamente, pôs-lhe na mão uma nota de cinco libras, que, para esconder o seu elevado valor, dobrara em várias partes.
- Não... não vou aceitar isso...
- Mas Jenny... você tem que...
As lágrimas não lhe vinham facilmente, mas ela passara por tantas agruras naquele dia, que agora elas corriam quentes pelas suas faces.
Nesse momento, enquanto ela se retirava e ele a acompanhava, estendendo-lhe o dinheiro, a porta abriu-se e o Guardião entrou. Houve um silêncio mortal por um momento,
enquanto ele ficava petrificado. Depois, com a voz controlada, disse:
- Pode ir agora, Dill.
Quando Jenny se voltou para sair, arrasada, com as lágrimas a escorrer lhe pelas faces, Stephen, a despeito da sua expressão culpada, vermelha, teve calma suficiente
para se aproveitar da sua confusão e enfiar-lhe a nota no bolso da jaqueta.
- Adeus, Jenny - murmurou ele. - E muita sorte.
Sua resposta, se resposta houve, foi inaudível.
Ainda na sua maneira distante, o Reverendo Crispin fechou a porta atrás dela; depois, com um rápido olhar para Stephen, comprimiu os lábios e fixou o olhar no teto.
- Desmonde - disse ele - presumi que a sua conduta tinha sido seriamente indiscreta. Mas jamais sonhei que pudesse ir tão longe. Como amigo de seu caro pai, isso
me aflige mais do que posso expressar.
Stephen engoliu o bolo que tinha na garganta. A cor lhe fugira do rosto, mas havia uma centelha nas suas pupilas escuras.
- Não posso compreendê-lo.
- Ora, vamos, Desmonde. Você não pode negar que está, e tem estado há algum tempo, em termos de imprópria intimidade com a jovem pessoa que acabo de despedir.
- Fui amistoso com Jenny. Ela fazia muitas pequenas coisas para mim. E procurei ajudá-la, em retribuição.
- Ah! - fez o Guardião num tom significativo. - E a sua ideia de ajudá-la é estar frequentemente com ela, sozinho, no seu quarto?
- Ela vinha arrumar o quarto. E ocasionalmente fiz alguns esboços dela. Isso é tudo.
- Ora essa! Então você acha que faz parte dos seus deveres, como candidato à ordenação, tomar um modelo, furtivamente, entre as criadas desta casa de Deus? Foi meu
dever examinar alguns desenhos que resultaram dessa colaboração ilícita, e devo confessar que me pareceram extremamente questionáveis.
O sangue subiu à testa de Stephen. Seus olhos fuzilaram furiosamente.
- Pelo que sei do seu gosto, senhor - respondeu ele, tremendo ligeiramente - não me surpreende que não os tenha compreendido.
- É mesmo? - fez Bliss com a calma ácida que achava ir-lhe tão bem. Na verdade, parece que meus padrões, particularmente os de moralidade, diferem dos seus.
- Certamente diferem. - Stephen jogou a prudência de lado. - Eu não teria atirado essa pobre moça no olho da rua por causa de um erro.
- Ouso dizer que não. Isso é precisamente o que eu temia.
Até este momento, as maneiras do Guardião tinham sido estudadamente controladas, mas agora as suas narinas se apertavam e algo não diferente de uma carranca se estabeleceu
na sua testa elevada.
- Embora Dill tenha dado o nome do seu parceiro, não estou inteiramente convencido. Minha firme convicção é de que, pela sua conduta para com essa infeliz moça,
pela maneira como a utilizou para os seus fins chamados artísticos, você é responsável, ou pelo menos indiretamente culpado, pelo estado de depravação em que ela
caiu.
Respirando rapidamente, Stephen encarou Bliss com uma expressão maldosa no rosto. Explodiu:
- Nunca ouvi tanta tolice na minha vida. Nem tamanha hipocrisia. Jenny não é depravada. Ela tem um namorado e vai se casar com ele. Sua ideia de caridade cristã
é vilipendiá-la, e a mim, sem uma justa causa?
- Cale-se, senhor. Não tolerarei que fale comigo dessa maneira. Na verdade, se eu fosse cumprir à risca o meu dever, deveria pedir-lhe que deixasse a Sede imediatamente.
- Fez uma pausa para se recuperar. - Mas em atenção à sua família, e também ao futuro que ainda pode estar à sua frente, estou disposto a ser mais tolerante. Devo
dar ao seu pai alguma ideia do que ocorreu. E você, sem dúvida, me dará a sua garantia por escrito de abandonar, de uma vez por todas, essa obsessão que chama de
"arte", e que é inteiramente incompatível com a sua vocação de clérigo. Haverá, além disso, mais algumas restrições que sou obrigado a lhe impor. Venha ao meu estúdio
depois das orações noturnas, e eu o aconselharei.
Terminando a entrevista, sem dar a Stephen uma oportunidade de responder, girou nos calcanhares e saiu do quarto.
- Ora, vá para o diabo que o carregue! - exclamou Stephen violentamente. Mas infelizmente a porta já estava fechada.
Durante uns momentos, Stephen permaneceu tenso, de punhos cerrados, olhos fitos nos painéis de carvalho envernizado. Depois, com um gesto de abandono, afundou numa
cadeira diante da escrivaninha, tirou papel da gaveta e apanhou uma caneta.
Caro papai,
Fiz aqui o melhor que pude e fui nisso um completo fracasso. Não quero magoá-lo, tomando uma decisão final contra a sua vontade, mas, nas circunstâncias, acho que
devo me afastar um pouco - um ano, no mínimo - até poder ver as coisas mais claramente e experimentar a minha capacidade nesse campo particular tão desagradável
para o senhor que sequer o nomearei. Compreendo o golpe que isto representa para o senhor, e a minha única desculpa é que simplesmente não posso evitá-lo.
Recomendações a todos em Stillwater e a Claire. Tornarei a escrever-lhe quando estiver em Paris.
Stephen
CAPÍTULO VI
PARIS ERA DESCONHECIDA PARA STEPHEN, e embora ao primeiro fôlego o estimulasse como vinho, ele entrou nela nervosamente - como se temesse aqueles olhares satíricos
que os verdadeiros parisienses devem conceder a um forasteiro. Assim, apegava-se ao nome de um hotel que ouvira o pai mencionar num tom de benigna aprovação clerical,
e dando-o ao cocheiro com a maior segurança que pôde encontrar, foi arrebatado da Gare du Nord com uma imprudente velocidade através das ruas naquela tarde de domingo,
surpreendentemente vazias, para o Clifton, na Rue de la Sourdière. Parecia um lugar tranquilo, não particularmente excitante talvez, abrindo-se através de uma entrada
estreita para um pátio quadrado envidraçado, em torno do qual os quartos estavam dispostos atrás de descascados balcões de ferro fundido. Na portaria sonolenta -
o tom era dado por um gato malhado de preto e amarelo dormitando em cima do balcão - não se surpreenderam pela súbita materialização de um jovem inglês. Na verdade,
quando Stephen foi conduzido ao seu quarto no andar de cima, que era um tanto escuro e bolorento, com o papel de parede desbotado e uma enorme cama de cortinas vermelhas,
o idoso concierge, desafivelando as malas do ombro com exagerada falta de ar, sobressaltou-o ligeiramente ao lhe perguntar se ele queria chá.
- Não, muito obrigado - sorriu Stephen, pensando no extraordinário valor que aquele indistinto interior dava ao velho de olhos lacrimejantes com as faces caídas,
marcadas por veias vermelhas, o seu colete listrado de preto e amarelo. - vou sair... e olhar um pouco por aí.
- Não há muito que ver hoje, monsieur - disse o porteiro, encolhendo amavelmente os ombros. - Tudo está fechado.
Mas Stephen mal podia esperar para desfazer a mala e atirar suas coisas no armário poeirento. Então, eufórico, deixou o hotel e foi andando pelas ruas, a esmo, ao
longo da Rue du Mont Tabor e pela Place de la Concorde. Seu imediato pensamento tinha sido em Glyn, mas no constrangido momento de partir, ele esquecera de pedir
o endereço de Richard, e naquele ínterim não recebera nenhuma notícia dele. No entanto, Stephen estava certo de que, no círculo que se propunha frequentar, logo
o encontraria.
O tempo estava bom e claro, o céu pálido riscado pelas costelas de nuvens brilhantes. Quando viu a longa fila de castanheiros, agora em plena folhagem, junto ao
rio, quase exclamou alto. Agitadas pela brisa, as folhas eram luz e sombra, macias, encontrando os seus olhos como uma carícia. Através da avenida chegou ao Sena,
cinza-aço e polido, reverberando atrás de barcaças atracadas. Numa destas, uma jovem mulher, de seios fartos e cabelo louro, estava pendurando roupas cor-de-rosa
numa corda. Um cachorrinho saltitava nos seus tornozelos. Um homem de camiseta e chapéu baixo de feltro fumava placidamente, de braços nus, sentado num balde emborcado.
Numa espécie de transe melódico, Stephen caminhou lentamente pela margem, através de Port Royal, além da linha de quiosques de livros, de volta à Pont Neuf para
a L'Île de la Cité. Lá, ficou a olhar o jogo de cores sobre a água, o escurecer das sombras sobre as moles de pedra. Somente quando a luz desapareceu, ele se voltou,
com um suspiro apatetado, e começou a voltar para o hotel.
Agora a cidade despertava do seu torpor dominical. Nas ruas laterais, ao norte do rio, os pequenos cafés de esquina começavam a se encher de maneira discreta mas
movimentada. As mercearias estavam abrindo, e famílias da classe média começavam a tomar ar, homens robustos com pantufas apareciam nos umbrais. Diante de uma padaria,
ainda fechada, donas-de-casa, tagarelando tranquilamente, reuniam-se para comprar pão. Estou em Paris, pensava Stephen estonteado, finalmente, finalmente.
À guisa de contraste, o Clifton, banhado numa ténue luz religiosa, tinha um ar solene, quase sepulcral. Na verdade, por um instante Stephen teve a tentação de dar
a volta e ir cear no Maxim's ou no Café Riche, ou qualquer daqueles restaurantes alegres sobre os quais lera tantas vezes. Mas estava cansado e tímido para ir desacompanhado.
Além disso, tinha resolvido fazer uma razoável economia. Da sua pensão anual restavam-lhe 150 libras, e essa quantia deveria durar um ano inteiro.
Assim, baixou ao frio refeitório e comeu sozinho - a não ser por um distante cavalheiro solteirão numa desmazelada jaqueta Norfolk que lia continuamente entre os
pratos, e duas cochichantes velhas de malva, todos inconfundivelmente ingleses - uma refeição de cardápio fixo, de sopa, carneiro, ameixas amargas cozidas, que,
embora fossem perfeitamente saudáveis, demonstravam a falácia do argumento de que, na França, a cozinha francesa era uma arte universal. Contudo, nada poderia abater
a sua alegre disposição. Subiu as escadas assobiando e dormiu como uma toupeira na cama de dossel.
Na manhã seguinte, sem demora, saiu para Montparnasse. Depois de considerável reflexão, tinha resolvido não se matricular na École des Beaux Arts, mas procurar uma
atenção mais pessoal, dada pelo Professor Dupret na sua famosa academia do Boulevard Seline. Encontrou o estúdio sem dificuldade, tendo comprado, no balcão do hotel,
um mapa de Paris. Era no último andar de um edifício esquisito, parecido com um quartel, protegido por grades em ponta de lança e guardado por duas guaritas vazias,
bem no fundo do boulevard. Pairava no ar um cheiro de casca de tanino, indicando que ali fora uma armaria, e uma grande algazarra lá em cima sugeriu a Stephen, por
um sobressaltado momento, que os soldados ainda o ocupavam.
Quando subiu, depois de completar as formalidades de admissão com o massier, um tipo corpulento de cara chata, suéter cinzento, calças de lona, que tinha a aparência
de um boxeador aposentado - e que na verdade lá estava para impedir uma flagrante desordem - a aula já tinha começado.
A saia ampla e clara, aquecida por uma enorme estufa holandesa, com paredes que pareciam todas janelas, estava apinhada com uns 50 alunos, formando o grupo mais
estranho que ele já tinha visto. Na maior parte, eram homens entre 20 e 30 anos de idade, vestidos numa variedade de gostos, de muitas nacionalidades - eslavos barbudos,
indianos de pele escura, um grupo de escandinavos louros, vários jovens americanos. As poucas mulheres eram uma coleção esquisita. O olho de Stephen prendeu-se numa
senhora de idade metida numa blusa cor de rato, espiando a sua tela através de um pincenê de aros de ouro, como uma professora diante do seu quadro-negro num jardim
de infância do campo.
O barulho, ali dentro, era ensurdecedor - um rumor contínuo de conversação, trechos altos de canções, em línguas competitivas, observações fanfarronas
gritadas através da sala. Parecia que o tumulto ia permitir que Stephen entrasse sem ser notado. Mas ao ficar ali na porta, hesitante e um tanto pálido, vestindo
a sua roupa escura de clérigo, colarinho branco engomado e gravata preta, a vestimenta regular para os coadjutores da Clinker Street, sobreveio um infeliz intervalo
durante o qual a atenção da classe se voltou diretamente para ele. E então, no silêncio, uma voz de falsete exclamou:
- Ah! C'est Monsieur l'Abbé.
Uivos de risadas saudaram essa observação. Entrando confuso, Stephen encontrou um banco coberto com raspaduras de paletas, mas nenhum cavalete, espremeu-se com dificuldade
para um lugar, e abriu a sua pasta de papel Ingres sobre os joelhos.
O modelo, um velho de longos cabelos prateados, com o aspecto de um ator decadente, bonito, estava sentado numa postura convencional na plataforma do centro, ligeiramente
inclinado para a frente, com o queixo apoiado nas costas da mão. Stephen não gostou da pose, e a expressão do velho era aborrecida e indiferente, mas apanhou o seu
carvão e começou a trabalhar.
Às 11 horas Monsieur Dupret apareceu - um homem de uns 60 anos, belo de uma maneira teatral, com uma cabeleira arrepiada, porte ereto e digno, e mãos móveis. Apesar
das calças ligeiramente frouxas, o seu fraque ajustado dava-lhe um ar correto, distinto, acentuado pela fita na lapela. A sua entrada, impressionante e brusca, causou
uma cessação do barulho maior, e em relativo silêncio ele começou a dar vagarosamente a volta à sala, detendo-se aqui e ali para examinar uma tela com olhos apertados,
pronunciar, com um floreado gesto das mãos, umas breves palavras, mais como um cirurgião visitando a sua enfermaria.
Quando ele se aproximou, Stephen preparou-se para algumas palavras de saudação, de cortês interrogação, mas o professor, com alheamento impessoal, não disse coisa
alguma. Olhou de esguelha para Stephen, meio curioso, meio indiferente, e depois para o seu esboço, e, no instante seguinte, sem um piscar de olhos, desapareceu.
À uma hora tocou uma sineta. Imediatamente se ergueu uma vozearia, o modelo levantou-se como se fosse soltado por uma mola e afastou-se da plataforma, enquanto em
volta os estudantes atiravam pincéis ou carvões e começavam a se acotovelar contra a porta. Perturbado e decepcionado, Stephen foi arrastado, contra a sua vontade,
pela turba que empurrava. Subitamente, no seu cotovelo, ouviu uma voz agradável.
- Você é inglês, não? Meu nome é Chester.
Stephen voltou a cabeça e deu com um jovem mais ou menos da sua idade sorrindo para ele. O cabelo, o queixo partido e os olhos azuis, sombreados por compridas pestanas
negras, davam-lhe um ar de sincero e atraente encanto. Usava uma velha gravata de Harrow.
- Espero você lá embaixo - disse ele quando a maré o carregou. Lá fora, Chester estendeu-lhe a mão.
- Espero que não se importe de eu vir falar com você. No meio dessa turba, os que são do outro lado do Canal devem ficar juntos.
Após a sua deprimente recepção, Stephen estava contente por ter achado um amigo. Quando se apresentou, Chester fez uma pausa por um momento, e exclamou:
- Que tal almoçar comigo?
Saíram juntos pela avenida.
O restaurante em que entraram ficava bem perto, na Place Seline, um salão estreito, de teto baixo, quase uma adega, abrindo para uma cozinha escura, a meia dúzia
de passos do nível da rua, com um fogo de carvão de lenha e espetos com assados, cheio do barulho de panelas de cobre e de um agradável cheiro de cozinha. O lugar
já estava repleto, principalmente de alunos de Dupret, mas Chester, com tranquila segurança, guiou-o através de um pequeno pátio adornado por cubas de alfenas, calmamente
retirou o cartão marcado "RESERVADO" de uma mesa do fundo, habilmente atirou o chapéu para um cabide e convidou Stephen a sentar-se.
Imediatamente, uma mulher gorda, de cara vermelha, vestida de preto, protestou da cozinha:
- Não, não, Harry... Esse lugar está reservado para o Monsieur Lambert.
- Não se agite, Madame Chobert - sorriu Chester. - A senhora sabe que Monsieur Lambert é meu amigo. Além disso, ele sempre chega atrasado.
Madame Chobert não se deu por satisfeita; discutiu e resmungou, mas o charme de Harry Chester - embora ela claramente tentasse precaver-se contra ele - no fim acabou
por vencê-la. Encolhendo os ombros com pena da sua própria fraqueza, levantou a ardósia escrita a giz que pendia da cintura do seu avental, e apresentou-lhes o cardápio.
Por sugestão de Chester, pediram potage maison, boeuf bordelaise e um queijo brie. Uma jarra de cerveja amarela e espumante já estava sobre a mesa.
- Não é uma pessoa má - sorriu Chester quando ela se afastou. Durante a refeição, ele manteve a conversação viva e fluente, aludindo, com inesgotável provisão de
troça e frases feitas, aos seus vizinhos. Apontou para Biondello, o italiano, que já tinha exposto no Salon do ano passado, e Pierre Aumerle, um caso irremediável,
que bebia uma garrafa de Pernod todos os dias, almoçando com uma mulher de semblante ocre com um enorme chapéu, para a qual Chester ergueu as sobrancelhas com um
sorriso. Entrementes, sondou Stephen com algumas perguntas divertidas; então, depois que trouxeram o café filtre, fez uma pausa, com um certo ar consciente, e pareceu
ter achado necessário explicar-se.
- Curioso, não? - comentou ele, riscando desenhos na toalha xadrez - como a gente sempre pode identificar um universitário. Philip Lambert também é um deles. Depois
de Harrow - lançou um olhar rápido para Stephen
- eu mesmo devia ter ido para Cambridge... se não a tivesse trocado pela arte.
Continuou, revelando, com um sorriso suplicante, que o pai tinha sido um grande plantador de chá no Ceilão, ao passo que a mãe, agora viúva, voltara para habitar
uma imensa mansão de Highgate com uma legião de criados. Naturalmente, ela o estragara com mimos, dava-lhe uma generosa pensão. Estava em Paris fazia 18 meses.
- É muito divertido - concluiu ele. - Você deve me deixar mostrar-lhe os meus trabalhos.
- Que acha de Dupret? - perguntou Stephen.
- É o professor mais decente que há por aqui. Você sabe que ele pertence à Legião de Honra?
Ligeiramente chocado, Stephen não respondeu. Chester intrigava-o, como o intrigaria um desenho estranho que, embora agradável, tivesse complexidades estranhas ao
seu gosto.
Terminaram o café. As pessoas começavam a se retirar.
- Seu amigo Lambert parece que não vem - disse Stephen por fim, para quebrar o silêncio.
Chester riu-se.
- Philip é um mendigo errante. Você nunca sabe quando ele vai aparecer... ou com que atraentes saias.
- Ele frequenta a Dupret?
- Trabalha em casa... quando trabalha. Tem recursos particulares, você sabe, e já andou por toda a Europa, estudou em Roma e Viena, mas agora ele e a mulher alugaram
um pequeno apartamento na Esplanada dos Inválidos. - Chester assentiu com um aceno. - E posso lhe dizer que a Sra. Lambert é muito elegante. E, naturalmente, uma
perfeita dama.
Ali estava novamente uma observação que arranhava o ouvido de Stephen, e ele olhou de um modo esquisito para o seu colega, imaginando como poderia usar uma expressão
infeliz. Mas antes que tivesse tempo de responder à pergunta, Harry Chester sentou-se.
- Olhe, aí está Philip.
Seguindo o olhar de Chester, Stephen viu entrar no restaurante um homem delgado, de aparência afetada, com cerca de 30 anos, vestido com uma curta sobrecasaca marrom,
colarinho baixo e gravata fofa. O rosto, pálido e profundamente marcado abaixo dos olhos, tinha um ar de langor. O seu brilhante cabelo preto era repartido nitidamente
no meio, mas a um lado uma mecha tinha escapado num pequeno cacho sobre a sua testa branca. Os seus
modos, aliás toda a sua aparência, davam a impressão de uma indolência amaneirada, de aborrecimento e pretensão.
Quando chegou, pôs a bengala debaixo do braço e começou a descalçar uma luva amarelo-limão, enquanto olhava para Chester com uma alegria levemente desdenhosa.
- Agradeço-lhe por ter guardado a minha mesa, caro rapaz. Mas agora deve ir-se. Espero um convidado às duas horas. E não preciso de acompanhante.
- Estamos saindo, Philip. - O tom de Chester assumira uma inflexão submissa. - Olhe, gostaria que conhecesse Desmonde. Ele entrou para a Dupret hoje.
Lambert lançou uma olhadela a Stephen e depois curvou-se polidamente.
- Desmonde acaba de chegar do seu último ano em Oxford - disse Chester rapidamente.
- Ah, sim - exclamou Lambert. - Que colégio, posso perguntar?
- Trinity - respondeu Stephen.
- Ah! - Lambert relaxou com um sorriso, mostrando os dentes brancos e parelhos, e, tirando a segunda luva apertada de pelica - uma operação que ele executava em
silêncio e sem arrepiar um pêlo - estendeu uma mão pequena para Stephen. - Muito prazer em conhecê-lo. Também estive na Casa. Por favor, não tenham tanta pressa
em se retirar. Posso facilmente encontrar outra mesa.
- Asseguro-lhe - disse Stephen, levantando-se - que terminamos mesmo.
- Então venha tomar chá conosco um dia destes. Estamos em casa quase todas as sextas-feiras às cinco horas. Então falaremos como dois homens de Oxford - seu sorriso
brincou na direção de Chester - e um que quase foi para Cambridge.
A conta, que Madame Chobert apresentara rapidamente, estava sobre a mesa. Uma vez que Chester parecia não vê-la, Stephen apanhou-a e, a despeito dos súbitos e enérgicos
protestos de Harry, pagou a despesa.
CAPÍTULO VII
SOB A MAGIA DA SUA NOVA LIBERDADE, Stephen, entrou rapidamente e com deliciada facilidade numa rotina agradabilíssima, tanto mais que, uma semana
após a sua chegada, recebeu uma carta de Stillwater que foi um grande alívio para o seu espírito. Embora acentuasse o sofrimento ocasionado pela súbita partida de
Stephen, o Reitor havia-o, em certo sentido, perdoado. Obviamente, escreveu ele, a inclinação (a palavra "tentação" fora riscada) tinha sido demasiado forte para
opor-lhe resistência. Por conseguinte, podia "ser tudo pelo melhor", se, como o próprio Stephen tinha proposto, esse interregno de um ano fosse considerado por ambos
os lados como um "campo de prova". Entrementes, aprovava a escolha de Stephen quanto à sua acomodação, conhecia-o demasiado bem para exortá-lo à virtude, e desejava
que nada lhe faltasse do que cabia à sua condição.
De manhã, era uma sensação que nunca diminuía acordar com a consciência de que estava em Paris, de fato seguindo a sua "carreira artística".
Levantou-se, vestiu-se rapidamente e, como o desjejum no Clifton não tinha nada que o recomendasse, saiu para uma pequena crèmerie na esquina do hotel. Ali, por
30 soldos, foram-lhe servidos um jarro de café ou lait e dois croissants flocosos ainda quentes do forno e recém-trazidos pelo padeiro.
Sua caminhada para o estúdio através das ruas frescas era sempre uma delícia, A multidão apressada e os policiais de capa azul, as donas-de-casa madrugadoras com
os braços enganchados em cestas carregadas, um soldado zuavo de calça escarlate, duas porteiras tagarelando apoiadas nas suas vassouras, um velho varredor de rua
lançando esguichos de água pela sarjeta, carrinhos barulhentos de verdura fresca do Halles - tudo isso o extasiava além das exclamações súbitas, agudas, a tagarelice
de muitas línguas, um vagaroso badalar de sinos ecoando nos edifícios de um cinza suave, as graciosas pontes brancas, o rio adorável, já começando a cintilar ao sol.
No estúdio, é verdade, ele não se sentia em casa. A falta de ordem e o perpétuo barulho tornavam difícil a concentração. Parecia que muitos estudantes tinham vindo
menos para trabalhar do que por mero divertimento e feroz exibição dos seus espíritos animais. Riam e cantavam, pregavam peças grosseiras, mantinham intermináveis
discussões em altas vozes nos cafés, afetavam uma boémia exagerada no vestuário e nas maneiras. Falavam a gíria do quarteirão, sabiam tudo a respeito dos últimos
"movimentos", reconheciam Manet, Degas e Renoir como seus mestres e imitavam-nos dolorosamente, desprezavam Millet e Ingres, eram muito críticos com Delacroix, e
contudo tinham pouco ou nada para oferecer de seu.
Naturalmente outros havia que se aplicavam. Ao lado de Stephen havia um moço polaco, vindo de uma pequena cidade do interior próxima de Varsóvia, que, inflamado
pela ambição, tinha vindo sem dinheiro para Paris. Para pagar a sua mensalidade na Dupret, havia trabalhado 12 meses como carregador na estação de Montparnasse.
A intensidade do seu esforço era assustadora, contudo ele não tinha o menor talento. Muitas vezes, quando Dupret
fazia a sua ronda diária, Stephen esperava que ele, com uma única palavra, acabasse piedosamente com aquele fútil labor. Mas o professor não dizia nada, nada além
de corrigir uma linha ou apontar uma expressão vazia, a falta de equilíbrio na composição. Sua atitude com Stephen continuava igualmente impassível, embora uma ou
duas vezes, após estudar alguma parte do seu trabalho, olhasse para ele de uma maneira curiosa, quase às escondidas, como se o visse e examinasse pela primeira vez.
Mais e mais, sob o alheamento de Dupret e suas grandes maneiras, Stephen começou a discernir um núcleo carcomido de decepção, a biliosa amargura de um homem que
no seu coração sabia que tinha falhado no cumprimento da sua expectativa juvenil. Ter obtido o reconhecimento dos círculos oficiais, exibir anualmente o seu trabalho
no Salon (uma pintura segura e cuidadosamente executada, que sempre era pendurada em um bom lugar), participar das juntas e comissões, representar a arte de luvas
brancas nas recepções do governo - tais distinções significavam alguma coisa para quem queria abalar o mundo com uma poderosa obra-prima? Dupret não tinha um verdadeiro
interesse pelo seu estúdio e ainda menos por seus alunos, a não ser quando, com uma ponta de ciúmes, via a evidência de um talento que podia ultrapassar o seu. Atrás
daquela fachada, era um homem vazio, um homem movido pelo homem que supunha ser, um homem mais digno de pena do que desprezo. Na verdade, quando o professor entrava
imponentemente na sala, Stephen fazia dele uma curiosa imagem, no fim do dia, despindo vagarosamente o fraque apertado e soltando os botões brilhantes dos sapatos,
remexendo os dedos comprimidos para aliviar os calos, voltando para a tela semiacabada um Casamento Bretão, pensando, com um arrepio: "Mon Dieu, devo continuar com
isto?"
Na hora do almoço, Stephen ia com Chester ao restaurante de Madame Chobert, mas ocasionalmente escapava à efusiva amizade de Harry e vagabundeava ao longo do cais,
mastigando um petit pain no qual havia uma fatia de presunto avivada pela mostarda amarela. Então, apressando o passo, ia aos museus, ao Louvre ou ao Luxembourg.
Era quase noite quando, com olhos ainda não ajustados às realidades da rua, deixava as compridas galerias e caminhava de volta para o Clifton.
Para Chester, e as poucas outras relações que fizera na Dupret, parecia extraordinário que Stephen passasse as suas noites só, e várias vezes instavam com ele para
que os acompanhasse numa visita a Montmartre. Certa ocasião, ele acedeu, acompanhado de meia dúzia de outros, em ir a um café-concerto na Toque Bleue, perto do Moulin
de la Galette.
Mas ficou enormemente entediado com as cenas que se presumiam vívidas e excitantes, mas, de fato, eram estupidamente fúteis. Os salões de dança eram uma massa humana
empurrando, sapateando, rodeando, semi-intoxicada,
ampliada e distorcida por dezenas de espelhos, retorcendo-se em formas grosseiras, ao estridor de uma banda reles. Certo, nada podia ser mais assustadoramente triste
do que as caras dos frequentadores mais velhos - peitos côncavos e olhos mortiços, estranhamente rebarbativos. Algumas das conhecidas cocotes que Chester lhe apontava
eram francamente medonhas, seus parceiros, com roupas pretas justíssimas, sinistros e degenerados.
Mais tarde, diversas jovens se reuniram à festa, que agora atingia uma fase turbulenta. Suas vozes roucas e grosseira camaradagem, seus braços atirados em torno
de pescoços e seus carinhos cochichados em voz alta despertavam nele um frio desagrado. Enquanto ele permanecia ali sentado, pálido e silencioso, como um peixe fora
da água, uma das jovens se curvou para Chester, que tinha bebido um bocado, e, com os olhos em Stephen, riu-se sem motivo e murmurou alguma coisa no seu ouvido.
Imediatamente, Chester rompeu num ataque de riso.
Nesse momento, Stephen não fez nenhum comentário, mas a caminho de casa, com Chester, falou no assunto.
- Não foi nada, meu velho. Ela apenas disse - Chester, com um tom de desculpa, modificou o comentário original, impublicável - que você era um tipo esquisito. -
E quando Stephen desviou a cabeça, acrescentou: - Lamento que você não tenha se divertido esta noite. Não esqueça de que vamos visitar Lambert na sexta-feira. Avise-me
antes de sair.
Nesse dia, por volta das quatro horas, Stephen saiu para a Rue Bonaparte, onde, no número 15, Harry tinha um quarto no último andar. Após uma íngreme subida de três
lances de escada, percebeu que havia uma furiosa altercação, "e empurrando a porta meio aberta encontrou Chester discutindo com um homem baixo de chapéu preto e
quadrado e um sobretudo pardacento, que, imperturbável, superintendia os movimentos de um subordinado muito ocupado em meter num grande saco de serapilheira o relógio
do consolo, um par de vasos chineses e outros objetos que decoravam o quarto.
- Agora, por favor, o seu relógio, Monsieur Chester.
- Ora, deixe disso, Maurice - suplicou Chester - o relógio não. Dê-me um prazo até o fim da semana que eu pago.
Neste momento, Chester viu Stephen. Por um instante, apatetou-se; depois, aproximando-se, forçou um sorriso confiante.
- Não é uma coisa idiota, Desmonde? Esgotei a minha pensão há pouco. E esses credores importunos, miseráveis, estão me despojando. É praticamente nada. Uns míseros
100-francos. E naturalmente receberei o cheque de mamã no fim do mês. É claro que eu não sonharia em pedir a você; contudo, se houver alguma chance...
Houve uma pequena pausa, então Stephen disse, de boa vontade:
- Terei muito prazer em atendê-lo.
- Muitíssimo obrigado, meu velho. Você o terá de volta, com juros, no dia primeiro do mês. Está vendo, Maurice, seu ladrão? E agora foutre le camp.
Dobrou as notas novinhas que Stephen extraiu da sua carteira e atirou ao oficial de diligências, o qual, após contá-las duas vezes com o polegar umedecido, acenou
silenciosamente, esvaziou o conteúdo da sacola sobre a mesa, com uma reverência enigmática, imitada pelo seu companheiro, e deslizou para fora da sala.
- bom! Acabou! - Chester riu-se alegremente, como se fosse uma excelente piada. - Eu ia sentir falta das minhas velhas panelas. E, naturalmente, disto aqui... -
Colocando os vasos de volta no consolo da lareira, abriu descuidadamente a tampa de um estojo chato e exibiu uma medalha redonda de prata presa a uma fita azul;
depois, de um modo um tanto envergonhado, que não deixava de ser encantador, ajuntou: - Essas coisas não se devem mencionar, Desmonde. Mas uma vez que você me apanhou
desprevenido, tenho que falar... é a Medalha Albert. Pois é... tive que recebê-la, há alguns anos.
- Por quê?
Stephen não podia negar que estava impressionado.
- Ora, porque salvei uma vida no mar, é como chamam isso. Uma velha tonta caiu do navio ao largo de Folkstone. Não posso culpá-la... o mar estava muito agitado...
e era inverno. Aconteceu que fui atrás dela. Não foi absolutamente nada. Não estivemos na água mais do que meia hora, enquanto o vapor fazia a curva e nos mandavam
um bote. Mas vamos esquecer isso e tratar de andar. Se não nos apressarmos, chegaremos tarde para o chá.
Com seu bom humor inteiramente recuperado, Chester desceu as escadas na frente, falando e rindo durante todo o caminho até o apartamento dos Lamberts, situado num
beco sem saída muito atrás da Avenue Duquesne. Ali, num pátio de paralelepípedos, havia um pequeno pavilhão de pedra cinzenta - avivado artisticamente por uma porta
verde-maçã e janelas da mesma cor - que fora outrora a casa do porteiro de uma mansão nos dias de Henrique IV. Cheirando a almoço e a defumador recém-queimado, o
pequeno e um tanto escuro interior estava artisticamente disposto com pequenos tapetes felpudos aqui e ali, cortinas de contas e cadeiras de bambu. Um xale espanhol
estava estendido sobre o piano de armário.
Arrastados pela impetuosidade de Chester, chegaram cedo. Lambert, dormitando numa espreguiçadeira junto às cinzas da lareira, ainda parecia afundado na letargia
de após-almoço, e mal ergueu uma pálpebra pesada quando eles entraram. Mas a Sra. Lambert lá estava para recebê-los. Era alta e esbelta, mais velha do que Stephen
tinha esperado, com grandes olhos verdes, feições tendentes à rispidez, cabelo cor de areia e uma pele branca leitosa que com ele combinava. Seu vestido de tarde,
recortado em torno do pescoço de maneira rebuscada e com saias cheias e compridas, era de brocado branco.
Enquanto ela e Chester conversavam, Stephen observava-a, sentada com compostura, com o pescoço arqueado, contra um biombo laqueado, até que ela, como se notasse
o seu olhar perscrutador, voltou os olhos para ele com um sorriso em arco.
- Espero que aprove o meu vestido...
E como ela parecia esperar um cumprimento, ele disse:
- Estou certo de que Whistler teria gostado de pintá-la com ele.
- Que coisa mais encantadora para dizer. - E ajuntou, confiadamente: - Fui eu mesma que o fiz.
Dali a pouco saiu e trouxe o chá, numa bandeja de prata, com muitas xícaras, com finos sanduíches de agrião, e petits fours. Quando começou a servir, Lambert bocejou
e espreguiçou-se.
- Chá! - exclamou ele. - Não posso viver sem chá. Abençoado, nutritivo chá. Forte, Elise. - Aceitou uma xícara, balançou-a airosamente. Este pode ter vindo das extensas
plantações da sua família no Ceilão, Harry. Não é uma ideia estimulante? Diga-nos se reconhece o sabor. - Olhou para Stephen. - Bem... o que esteve fazendo nesta
cidade malvada, Monsieur l'Abbé?
Stephen corou, Viu que Chester tinha andado a tagarelar a seu respeito.
- Certamente lhe parecerá ridículo. Um futuro pastor desertando para a pintura.
E em poucas palavras explicou algumas das circunstâncias da sua vinda para Paris.
Quando terminou, seguiu-se uma breve pausa, e então Lambert exclamou, com a sua costumeira ironia:
- Bravo, Abbé! E agora que já fez a sua confissão, tem a nossa absolvição incondicional.
Elise, inclinando-se um pouco para ele, com um sorriso, murmurou:
- Deve ter sentido uma incrível vontade de pintar. Tome mais um pouco de chá.
Quando Stephen levantou a mão com a sua xícara até os olhos, viu três leques, pintados em seda à maneira japonesa, arranjados sobre a parede. Fez uma pausa, impressionado
pela delicadeza do trabalho.
- Quem fez essas coisas tão encantadoras?
As pálpebras de Lambert ergueram-se. Acendeu um cigarro, antes de responder, de modo quase casual:
- Para dizer a verdade, caro Abbé, são minhas. Se não lhe aborrecer, mostro-lhe mais alguns trabalhos meus.
Depôs a xícara, e de uma pequena passagem lateral trouxe várias telas; então, de uma maneira fatigada colocou-as em pé, uma após a outra, de modo que recebessem
toda a luz, numa cadeira alta junto à janela.
A maioria dos quadros era bem pequena, e de temas leves - um raminho de flor de cereja numa malga azul, dois salgueiros à beira de uma poça estagnada, uma criança
com chapéu de palha sentada num caramanchão à margem de um rio - contudo, cada um deles tinha uma beleza decorativa que acentuava o simples. Era uma qualidade que
parecia infundir em formas pálidas um encanto enfastiado e indefinível.
Mostradas as poucas pinturas, Stephen voltou-se para Lambert.
- Eu não tinha ideia de que podia pintar assim... são encantadoras. Lambert encolheu os ombros, mas estava claramente satisfeito, ao passo que sua mulher, estendendo
o braço, apertou vivamente a mão de Stephen.
- Phil é realmente um génio. Ele também pinta retratos. - Seus olhos verdes demoraram-se luzindo. - Se souberem de alguém que esteja interessado em comprar... Sou
a sócia comercial.
Depois disso, a campainha da porta soou e,.em rápida sucessão, outros convidados chegaram, todos singularmente apropriados para aquela atmosfera de refinada boémia:
um jovem de meias brancas com um manuscrito debaixo do braço, outro homem, menos moço, mas de ombros quadrados e bem vestido, da Embaixada americana, uma modelo
chamada Nina, que Stephen tinha visto ocasionalmente no restaurante de Madame Chobert. Um francês de monóculo, gordo e idoso, que beijou a mão de Elise com tocante
galanteria, e sobre o qual, como um possível comprador, ela voltou todas as suas blandícies.
Um chá novo foi trazido, Lambert serviu uísque, o ruído da conversação aumentou, e dali a pouco Stephen, que em sua primeira visita não queria ficar muito tempo,
levantou-se para se retirar. Philip e a esposa instaram para que ele viesse outra vez. Aliás, Madame Lambert interrompeu a conversa para acompanhá-lo até a porta.
- Venha conosco rio acima no domingo. Fazemos um piquenique em Champrosay. - Deteve-se, de olhos grandes, com o ar de quem fazia um cumprimento. - Philip gostou
muito do senhor.
No domingo, então, e em outros dias depois, Stephen acompanhou os Lamberts, às vezes só, às vezes com Chester ou outros de seus amigos, àquela adorável altura do
Sena, entre Châtillon e Melun. Tomavam o bateau mouche na Pont Neuf para Ablon, onde alugavam um esquife e subiam com remadas descansadas a vagarosa corrente verde,
serpeando placidamente entre as ribas tornadas famosas pela Floresta de Sénart até atracarem diante de uma estalagem à margem do rio, desembarcando para almoçar
numa mesa de madeira ao ar livre.
O tempo era soberbo, a folhagem no seu melhor momento de beleza madura, as malvas-rosas e os girassóis em plena florada. O sol cintilante e o
ar caricioso, o exercício, aqueles amigos agradáveis, a esfuziante novidade de cada vista e som, o apito rouco de uma barcaça, a cor da blusa de um operário, a pose
da mulher do encarregado da comporta, tudo o que nele despertava um êxtase vibrante agia como um entorpecente sobre Stephen. Lambert, tirante algumas horas de melancolia,
estava na sua disposição mais atraente, lançando um dito de espírito aqui, um epigrama ali, exibindo o seu brilhantismo, recitando longos trechos de Verlaine e das
Fleurs du Mal.
- Mais sagrada que o Indo - murmurava ele, detendo-se para tomar fôlego, arrastando os seus compridos dedos na corrente fria, com o peito estreito a arfar, a mecha
de cabelos caída sobre a testa úmida. - Esses lírios d'água... cálices do mais puro alabastro... translucidamente rosados... e frios... frios como os seios das ninféias
flutuantes... - E assim por diante.
Seu olho para a beleza não se limitava à natureza, e sempre que a mulher que os servia na estalagem era razoavelmente favorecida, ele, a despeito do olhar agudo
da esposa, flertava com ela ultrajantemente.
A princípio, Stephen trazia consigo um bloco, querendo registrar tudo o que via, mas Lambert desanimou-o com um sorriso cómico.
- Deve guardar tudo aqui, caro Abbé. - Bateu na testa ligeiramente. Mais tarde... na solidão... isso nascerá outra vez.
Numa tarde de domingo, depois de uma excursão mais encantadora do que qualquer outra, Stephen despediu-se dos Lamberts e de dois outros que tinham participado do
passeio de barco, e caminhou do embarcadouro, no Quai St. Bernard, para o seu hotel. O sol, afundando agora por trás da cúpula do Trocadero, tinha incendiado o céu
o dia inteiro. Animados pelo calor do dia, todos tinham se banhado num lago abaixo do açude de L'Hermitage, comido um almoço especial de trutas, frias com patê,
enriquecido pelo nobre Chambertin, e depois adormecido sobre a relva tépida embaixo das faias de Sénart.
Como ele se sentia bem!... a pele queimada pelo sol, os pulmões cheios de ar do campo, o corpo formigando com a água picante do rio... uma espécie de satisfação
divina espalhava-se por ele.
De súbito, ao atravessar a Rue de Bièvre, um homem saiu de uma entrada estreita bem à sua frente. Usava sapatos pesados, uma calça de pele de toupeira e uma blusa
de porteiro pintalgada de azul; em torno do pescoço, um lenço vermelho enrolado negligentemente. Parecia um trabalhador voltando para casa após um duro dia de labor;
contudo, algo no aprumo dos ombros, o porte desafiante da cabeça, fez Stephen sobressaltar-se. Apressou o passo para alcançá-lo.
- Glyn!
Richard Glyn deu meia-volta, de cara séria e cenhuda; então, ao olhar, as rugas que tão profundamente lhe franziam a testa foram aos poucos desaparecendo.
- É você, Desmonde... Conseguiu deixar aquilo.
- Há cinco semanas - disse Stephen sorrindo de prazer. - E desde então estive esperando encontrá-lo. Escute, estou justamente voltando para o hotel. Venha e jante
comigo.
- bom - considerou Glyn - eu bem que gostaria de dar umas dentadas. Não comi nada o dia inteiro.
- Deus do céu, que esteve fazendo?
- Pintando... desde as seis da manhã - respondeu Glyn com uma espécie de violência sombria. - Costumo esquecer o almoço quando estou trabalhando... especialmente
quando não consigo dominar meus amaldiçoados valores das nuanças.
Falando, os seus olhos de ágata cintilavam com uma súbita e rude impaciência, o cansaço de um prolongado e apaixonado esforço para criar. Travando Stephen pelo braço,
saiu com ele rua afora.
CAPÍTULO VIII
O APARECIMENTO DE GLYN, de lenço vermelho no pescoço e botas ferradas, causou um pequeno rebuliço na sala de refeições do Clifton. O velho chefe dos garçons, criado
na tradição dos milords ingleses, não gostou do que via, e as duas damas solteironas, que até agora consideravam Stephen com simpática aprovação, agitaram-se de
chocada surpresa. Richard, contudo, não pareceu importar-se e, aboletando-se na sua cadeira, passeou os olhos em torno com visível curiosidade.
- Por que, em nome do Céu, você se hospeda num lugar como este, Desmonde?
- Oh, não sei... habituei-me a ele, suponho.
Glyn provou a sopa, feita, como sempre, de farinha e água gordurosa.
- Talvez você goste da comida, não?
Stephen riu-se.
- Sei que não é lá essas coisas. Mas o prato de carne será bom.
- É melhor que seja. - Richard partiu outro pão. - Eu lhe disse que estava faminto. Uma noite destas vou levá-lo para comer numa verdadeira casa de pasto.
- No restaurante de Madame Chobert?
- Por Deus que não! Nada de casa de picadinhos artísticos!... Detesto falsas aparências, tanto em cozinha como em pintura. Um bistro de cocheiros perto da minha
casa. Você pode confiar numa taberna onde os cocheiros comem. Servem lá um patê de lebre que não é deste mundo. - Glyn se deteve. - Agora me conte o que andou fazendo.
De boa vontade, mas sem entusiasmo, Stephen iniciou um relatório completo das suas recentes atividades. Falou da sua "labuta" matinal na Dupret, encareceu a sua
amizade com Chester e os Lamberts, tornou-se lírico ao descrever as suas excursões a Champrosay. A princípio, Glyn ouvia com um sorriso entre irónico e sarcástico,
mas lentamente a sua expressão se tornou séria, e ele ficou olhando de esguelha para o seu companheiro.
- Bem - exclamou ele quando a narrativa terminou. - Você parece que tem andado ocupado. Talvez me leve depois ao seu quarto para vermos o que tem feito.
- Oh, não tenho muito que mostrar... - respondeu Stephen apressadamente. - Apenas uns poucos esboços. Tenho me concentrado nas linhas, sabe?
- Sim - fez Glyn.
Em completo silêncio, ele mastigava o resistente pouding à l'anglaise que constituía a sobremesa do Clifton. Não disse palavra por uns bons cinco minutos. Depois,
por baixo das sobrancelhas franzidas, voltou para Stephen um olhar firme que também tinha um reflexo de extremo desagrado.
- Desmonde, você quer pintar? Ou enganar a sua vida como um desses personagens extravagantes de La Boême?
- Não compreendo.
- Ouça, então. Há talvez 10 mil impostores safados nesta cidade que se imaginam artistas porque estudam um pouco, desenham um pouco e sentam os rabos nos cafés todas
as noites, cacarejando sobre as suas obras-primas natimortas. Você é quase um deles. Sabe muitíssimo bem que está desperdiçando tempo, Desmonde. Só o trabalho duro,
infernal, é que tira o que você tem aí dentro, não vagabundeando pelo Sena, estendido de costas numa canoa com um poseur simplório que lhe esguicha Verlaine e Baudelaire.
Stephen avermelhou-se, indignado.
- Você é injusto, Glyn. Chester e Lambert são sujeitos muito decentes. E Lambert tem certamente um grande talento.
- Besteira! Que fez ele? Algumas japonaiseries, leques pintados, fragmentos... oh, bem bonito, não nego, mas coisinhas meio efeminadas... afetadas... e tudo muito
pequeno.
- Certamente é um sinal de vulgaridade produzir enormes telas.
Em seu ressentimento, Stephen citara uma observação favorita de Lambert, e Glyn logo farejou a sua origem. Riu-se rudemente.
- E Rubens, e Correggio, e del Sarto, com as suas tremendas concepções, e o velho Michelangelo, cobrindo o teto da Capela Sistina com a sua portentosa visão da Criação,
trabalhando tão duramente que em muitos dias nem tinha tempo de tirar a roupa? Eles foram vulgares? Não, Desmonde... Lambert é um amador bem-dotado, um artista menor,
que nunca seria ouvido se não fosse empurrado por trás pela sua astuta mulher. Não tenho nada contra esse sujeito, é em você que estou pensando, Desmonde. Você tem
algo que Lambert daria a alma para possuir. Não quero vê-lo jogando isso fora por causa da sua maldita tolice. E quanto a Harry Chester, prosseguiu Glyn, será você
tão ingénuo para já não ter saltado por cima dele?
- Não sei o que você quer dizer - respondeu Stephen agastado.
Glyn pensou em esclarecê-lo, mas contentou-se com um sorriso.
- Quanto dinheiro ele já levou de você?
Stephen corou profundamente. Chester tinha em várias ocasiões pedido empréstimos, e agora já lhe devia mais de 500 francos, mas não tinha ele dado a sua palavra
de honra que os pagaria fielmente?
- Ouça - continuou Glyn mais tranquilo - você teve um falso início, acabou em más companhias e, pior de tudo, tem afrouxado abominavelmente. Se não se levantar,
estará cavando o seu próprio túmulo. O poço mais fundo do inferno é ocupado pelo artista que não trabalha!
Fez-se um comprido e gélido silêncio. Embora Stephen se tivesse defendido, ao comparar o seu próprio dia inútil com as horas de esforço concentrado de Glyn, uma
vergonha começava a apoderar-se dele.
- Que devo fazer? - disse ele por fim.
- Em primeiro lugar, sair desta casa anglicana de repouso.
- Quando?
- Agora.
O olhar consternado de Stephen pareceu divertir Glyn imensamente, mas num instante ele ficou novamente sério.
- Não posso lhe pedir que venha para o meu buraco. Mas conheço um homem que terá prazer em recebê-lo.
- Quem?
- Jerome Peyrat é o nome dele. Tio Peyrat. É um camarada velhusco, em situação não muito boa, que quer alguém para dividir as despesas. Um tipo esquisito, por Deus,
mas um verdadeiro pintor, diferente dos seus falsos boémios. - O meio sorriso de Glyn era desconcertante, mas desapareceu rapidamente quando ele concluiu: - Você
já não tem mais nada com Dupret, está claro. Pode usar o meu estúdio. E vou lhe apresentar o meu homem das tintas, Napoleon Campo. Ele fia... às vezes. Vamos embora.
A natureza de Stephen não era adaptada às mudanças súbitas e decisões bruscas, contudo havia uma força avassaladora nos argumentos de Glyn, uma
irresistível compulsão na sua maneira. Dirigiu-se, portanto, ao escritório e, para surpresa e mortificação do gerente, pediu e liquidou a sua conta. Então fez a
mala e trouxe-a para baixo, desculpando-se por sua partida inesperada com uma profusa distribuição de gorjetas.
Glyn, no corredor, e claramente olhado pelo pessoal do Clifton como o demónio da peça, mostrou-se frio a respeito daquelas gratificações, e comentou sombriamente:
- Aconselho-o a guardar o seu dinheiro, Desmonde. Você pode vir a precisar dele depois.
- Espere, Glyn. Eles têm que nos arranjar um carro.
- Para o diabo com o carro. Está realmente tão fraco que não pode andar?
Apanhando a valise, que não era leve, Richard atirou-a no ombro e saiu do hotel a passos largos. Stephen acompanhou-o para a poeira luminosa da rua.
Era uma distância considerável até o alojamento de Peyrat, mas Glyn, que tinha uma satisfação selvagem em extrair o máximo de si mesmo, percorreu-a em passos rápidos,
sem vacilar ou depor a mala. Finalmente, numa escura rua lateral de Rive Gauche, no triângulo formado pelo encontro da Rue de Assas e do Boulevard Montparnasse,
Glyn enveredou por uma entrada torta ao lado de uma pastelaria, que, embora mal iluminada por uma lâmpada fraca, estava esfregada e limpa, e começou a subir de três
em três os degraus de pedra. Deteve-se no segundo andar, bateu na porta e, sem esperar resposta, torceu o trinco e fez Stephen entrar.
Era um apartamento de três cómodos, e na sala de estar, mobiliada com correção burguesa, sentava-se diante da mesa coberta por um oleado um homem franzino, de ombros
redondos, com cerca de 50 anos, um rosto chato e sulcado e uma barba inculta, vestindo, apesar do calor do fogo que flamejava na lareira, um descosido sobretudo
preto com a gola levantada e um chapéu duro, também preto; enquanto um tordo, sem a metade das penas, piava um acompanhamento numa gaiola junto à janela, ele se
exercitava na ocarina. À vista de Glyn, os seus olhos, que eram claros e jovens e o enchiam de engenhosa audácia, brilharam. Depôs o instrumento e, erguendo-se,
beijou Richard, com afeiçoada familiaridade, em ambas as faces.
- Peyrat - disse Glyn brevemente, enquanto se desvencilhava - trouxe-lhe o seu novo inquilino. É um amigo meu. Stephen Desmonde.
O olhar de Jerome Peyrat passou de Glyn para Stephen e nele repousou pensativamente - um escrutínio a um tempo inocente e amável.
- Se é seu amigo, mon vieux, então será meu também. Desculpe-me recebê-lo assim, Monsieur Desmonde. Richard sabe como padeço com correntes de ar.
- Espero que não o estejamos perturbando - disse Stephen, embaraçado.
- Longe disso. De noite tenho o hábito de contemplar a minha própria alma. Às vezes acho-a esplêndida, outras medonha. Esta noite - sorriu gravemente - agradeço
qualquer distração.
- Desmonde é pintor, Peyrat. Vai trabalhar comigo e com você.
- ótimo. - Peyrat não mostrou a menor surpresa. - Seja bem-vindo no meu apartamento... pelo menos temporariamente, uma vez que pertence a Monsieur Bisque, o pasteleiro.
Não importa. Aqui renunciamos à beleza das mulheres e ao brilho da fama contemporânea, a fim de produzir obras-primas que serão aclamadas mil anos após a nossa morte.
- Que esperança! - exclamou Glyn com irónica indulgência.
- É unicamente a esperança que nos mantém vivos.
- E a beata Teresa...
- É verdade. Somos sustentados pelo exemplo dessa nobre alma. - Voltou-se para Stephen. - Já visitou a Espanha?
- Não.
- Então um dia podemos fazer uma peregrinação juntos. Até Ávila de los Caballeros... que fica atrás de muralhas de granito, amareladas pelo sol do verão, geladas
pelo inverno de Castela, aprumando-se como uma grande coroa no seu deserto de rocha contra o duro azul das Montanhas de Greda.
- O senhor já esteve lá? - perguntou Stephen polidamente.
- Muitas vezes. Mas somente em espírito. Glyn explodiu numa gargalhada.
- Aviso-o, Desmonde. Este maluco, que nunca vai à igreja e diz coisas desagradáveis a respeito do Papa, tem uma absurda veneração por Santa Teresa.
- Peyrat sacudiu a cabeça em reprovação.
- Meu amigo, não tome em vão o nome da doce e obstinada mulher de Castela, a Velha, que restaurou a ordem descalça original, abandonou a vida ociosa e tagarela das
carmelitas. Ela troou a sua batalha com o espírito, o encanto, a humildade, as rezas, os argumentos, a paciência de uma santa e a têmpera de um capitão do mar. Também
foi uma poetisa...
- vou sair - disse Glyn, sorrindo e dirigindo-se para a porta. - vou deixá-los a sós para que se conheçam. Esteja no meu estúdio amanhã às sete, Desmonde. Boa noite.
Saiu. Peyrat, após um momento de silêncio, levantou-se e foi apertar a mão de Stephen.
Disse simplesmente:
- Espero que se sinta em casa.
CAPÍTULO IX
AGORA COMEÇAVA PARA STEPHEN, sob a influência de Glyn e Peyrat, uma nova existência, cheia de incessante trabalho, inteiramente oposta à sua recente interpretação
da vida artística. Jerome Peyrat, conhecido no distrito de Plaisance como "Tio Peyrat", era de origem humilde; seus pais, já falecidos, não foram mais que gente
simples do campo - embora ele falasse deles com orgulho - labutando nuns poucos hectares perto de Nantes. Durante 30 anos, como empregado do governo, petit fonctionaire,
passando os dias metido num paletó de alpaca com punhos de papel, tomando anotações nos registros poeirentos do Palais de Justice. Somente uma vez estivera fora
da França, quando, como terceiro secretário de uma comissão judicial, tinha ido à Índia. Lá, passara todo o seu lazer como um espectador ingénuo e fascinado dos
animais alinhados atrás das grades, debaixo das altas palmeiras e carobas do jardim zoológico de Calcutá. Alguns meses depois do seu regresso, o pessoal do ministério
foi reduzido e Peyrat aposentado com uma pensão tão diminuta que mal lhe dava para viver de pão. Então, inesperadamente, nunca antes tendo manifestado no menor grau
qualquer interesse pela arte, começou a pintar prolificamente. Não apenas a pintar, mas a considerar-se placidamente um pintor de génio. Nunca recebera uma só lição
na sua vida. Pintava os retratos dos amigos, ruas, edifícios, feios edifícios, cortejos nupciais, fábricas da banlieue, e punhados de flores agarradas por mãos descarnadas,
pintava composições de florestas - uma forma feminina nua, pródiga de seios e cadeiras, montada num tigre mostrando os dentes embaixo de um intrincado novelo de
palmas, trepadeiras, samambaias, orquídeas de tons cromáticos, uma floresta da imaginação, luxuriante e estupenda, povoada por serpentes e macacos trepadores entrelaçados
como num combate mortal, durante a execução dos quais tremia, suava e, para que não desmaiasse, era forçado, apesar do seu medo de apanhar um resfriado, a abrir
a janela para respirar ar fresco.
A vizinhança encolhia os ombros e sorria diante das suas pinturas, que eram expostas à venda, ao preço de 15 francos, na janela da sua amiga, Madame Huffnaegel,
uma viúva respeitável que tinha uma chapelaria a poucas portas rua abaixo e por quem ele nutria um respeito moderado. A não ser Napoleon Campo, o homem das tintas,
que tinha levado telas em pagamento de materiais
fornecidos a Peyrat - e cujo sótão estava, admitia-se, atulhado de refugos de artistas lutadores - ninguém comprava os quadros, que se tornaram, nas vizinhanças
da Rue Gastel, um alvo regular de hilariante, embora afetuosa, alegria. Contudo, complacentemente, Peyrat continuava pintando, às vezes passando muitas necessidades,
mas completando a sua magra pensão com vários recursos. Além da ocarina, que ele tocava para seu próprio prazer, e do corne francês, tinha um conhecimento limitado
do violino e do clarinete. Consequentemente, escreveu uns volantes que ele mesmo distribuía de porta em porta pelo bairro.
Aviso
JEROME PEYRAT
CURSOS DE MÚSICA, HARMÓNICA E SOLFEJO PARA CRIANÇAS
Aos sábados, das duas às cinco da tarde.
Rápido progresso garantido.
Pais podem assistir às aulas. Mensalidade por estudante: cinco francos.
Número limitado de alunos.
No verão, também tirava um bom efeito da sua habilidade no corne francês, tocando todas as tardes de terça-feira na orquestra que encantava as babás e seus pirralhos
no Jardim das Tulherias. E quando a necessidade o premia demasiado, lá estava o amigo da sua infância, Alphonse Bisque, agora o pasteleiro do Plaisance, gordo, de
meia-idade, completamente calvo, com quem - por recordação sentimental dos dias distantes da escola em Nantes, e não por causa das pinturas que de tempos em tempos
Jerome lhe empurrava em pagamento - se podia contar para fornecer pastel de carneiro ou patê de carne.
Nos seus hábitos e no seu modo geral de vida, Peyrat - Stephen logo o descobriu - era tão engenhoso, tão original como os seus quadros. com toda a sua simplicidade,
tinha uma mente ativa e inquisidora, abarrotada com os frutos das suas pesquisas em volumes abstrusos de segunda mão comprados nos quais, frequentemente vomitados
em discursos ingenuamente eruditos sobre história, teologia medieval ou assuntos tão inconciliáveis como Cosme de Alexandria, que no ano 548 denunciara a doutrina
da redondeza da Terra, e Santa Teresa de Ávila, a quem ele, um ateu, tinha tranquilamente tomado por padroeira.
A despeito dessas excentricidades, portava-se, na sua frase favorita, como un brave homme et un bon camarade. Por mais cedo que Stephen se levantasse, Peyrat já
estava de pé antes dele, para apanhar o leite e o pão quente que o menino Alphonse entregava todas as manhãs na sua porta. Terminado o seu simples desjejum, vestia
um avental e lavava a louça; depois, tendo dado água e sementes ao tordo que achara na rua, estropiado por um gato, e que se propunha soltar quando a asa se emendasse,
aprestava-se para o dia de trabalho, punha no ombro a sua paleta e caixa de tintas, mais um grande guarda-chuva para protegê-lo contra os elementos, e saía a pé
para algum canto remoto dos subúrbios, Ivry, Charenton ou Passy, onde, imperturbável ante comentários grosseiros dos passantes ou peças que as crianças lhe pregavam,
atormentando-o, perdia-se na maravilha e no mistério de transpor para a tela alguma visão celestial de um vagão encostado, um bonde ou o cano de uma chaminé.
Stephen saía à mesma hora, apressando-se todas as manhãs para a Rue de Biêvre a fim de utilizar a luz clara do norte, depois do amanhecer, que jorrava através das
clarabóias chumbadas do estúdio de Glyn. Richard, que nunca se poupava, era impiedoso na sua atitude de severo e às vezes estúpido feitor.
- Mostre-me o que é capaz de fazer - dizia ele sombriamente. - Em seis meses, se você não me satisfizer, pode voltar para o Senhor.
O modelo de Glyn, Anna Montel, era uma mulher de 30 anos, alta e vigorosa, de cabelos negros e olhar cigano, desolado. Era uma ramani Cinzany, cujos antepassados
deviam ter vindo originariamente da Hungria, embora Glyn a tivesse encontrado numa remota parte de Gales do Norte. Sua pele era áspera, e como sempre ela andava
descalça, numa saia escura e blusa verde, sem luvas ou capote; suas mãos e faces eram gretadas pelas cortantes brisas do outono que assobiavam na rua vindas do rio.
Mas os planos daquela face castigada pelo vento, com as suas órbitas firmes e malares altos, eram lisos e fortes. Andando pelo estúdio nas suas chinelas de ourela,
lendo de relance os desejos de Glyn, era a pessoa mais silenciosa que Stephen tinha conhecido-. Posava a todas as horas, e por longos períodos; depois, sem uma palavra,
deslizava do estúdio para Halles e, voltando com uma braçada de provisões, ia ao fogãozinho e preparava um goulash, ou coava café naquela chaleirinha azul de esmalte
com o bico quebrado, que figurou, mais tarde, num dos mais conhecidos quadros de Glyn: Le Café Matinal.
Embora nunca procurasse instruir, Glyn era incansável na sua exigência por originalidade, insistindo em que Stephen descartasse as suas noções preconcebidas, encorajando-o
a olhar para os objetos não como eles eram vistos e representados pela tradição, mas com os seus olhos novos.
- Faça como Peyrat faz! - exclamava Glyn. - Faça cada quadro absolutamente seu.
- Você tem Peyrat em grande conta?
- Acho que ele é grande. - Glyn falava com inteira convicção. - Tem a visão direta original de um artista primitivo. Podem rir dele o quanto quiserem, achando-o
um velho tolo. Mas dentro de 20 anos se arrastarão para ter um dos seus quadros.
Era um trabalho duro - e frio. No estúdio gélido, as semanas avançavam mais frígidas ainda, porque Glyn tinha uma teoria espartana de que ninguém podia dar o que
tinha de melhor num ambiente de conforto. Morta para sempre estava a primeira ideia de Stephen de que pintar era uma arte suave e sedutora. Nunca em sua existência
teve um regime tão rigoroso. E Glyn era insaciável na sua demanda por maior, e ainda maior, esforço.
Um dia, quando a cabeça de Stephen girava e ele sentiu que não podia continuar, Richard, respirando fundo, atirou a sua paleta no chão.
- Exercício - decretou ele. - O tampo da minha cabeça está saltando. Sabe andar de bicicleta?
- Sem dúvida.
- Suponho que você praticava o crawl de coadjutor lá em Oxford. Seis quilómetros por hora.
- Acredito que posso fazer um pouco melhor do que isso.
- Muito bem. - Glyn sorriu. - Veremos de que você é feito.
Saíram do estúdio e atravessaram a rua para a loja de bicicletas do quarteirão, atendida por Pierre Berthelot, um antigo ciclista de corridas que, embora incapacitado
agora por um coração danificado pelo Pernod, tinha nos seus dias obtido um terceiro lugar no Tour de France. Era um estabelecimento pequeno, arruinado, com uma fila
de bicicletas penduradas do teto, na frente, e uma escura oficina de reparos ao fundo. Entraram. O lugar parecia deserto.
- Pierre! - gritou Glyn, batendo no balcão.
Uma moça de uns 20 anos surgiu dos fundos. Era um tanto baixa, usava um suéter escuro e uma saia preta pregueada, com pés sem meias enfiados em compridas chinelas
pretas.
- É você? - fez Glyn.
- A quem esperavk? A rainha de Sabá?
- Por que não está no circo?
- Desmontado para o inverno. - Ela falava com frases curtas, desgraciosamente, com as mãos nas cadeiras e as pernas separadas.
- E o seu pai?
- Curando uma bebedeira.
- Hum! Stephen, esta é Emmy Berthelot. E enquanto ela olhava de um para outro de uma maneira aborrecida, ele continuou: - Queremos duas bicicletas para esta tarde.
Boas.
- Todas são boas. Peguem as duas do fim.
Enquanto Glyn abaixara a corda na roldana, Stephen observava-a experimentar cada bicicleta como entendida, fazendo as rodas girarem. Tinha um rosto pálido, emburrado,
testa baixa, ligeiramente saliente, sobrancelhas bem marcadas, uma boca grande de lábios finos. O nariz tinha uma boa linha, mas apresentava essa ponta arrebitada
dos bairros pobres que a denunciava. A não ser pelos seios, salientes sob o jérsei apertado, tinha a figura de um menino bem desenvolvido. Virando inesperadamente,
notou que Stephen tinha os olhos nela. Sob o seu olhar frio e avaliador, ele sentiu que corava - havia na maneira dela uma insolência que o magoava. Richard estava
levando as bicicletas para a porta.
- Gostaria de vir conosco Emmy?
- De que jeito? Tenho que cuidar da loja. Graças a esse velho beberrão.
- Outro dia então. Voltaremos antes de escurecer.
Stephen acompanhou Glyn para a rua. Montaram e, dobrados em dois sobre os guidons abaixados, Glyn adiante, afastaram-se, furando o tráfego do Faubourg St. Germaine
até a Porte de Versailles. Fora das portas da cidade, aceleraram pela estrada reta e lisa para Ville d'Avray. Richard, com ocasionais olhadelas para trás, imprimiu
uma velocidade arriscada. St. Appoline, Pontchartrain e Meul ficaram vertiginosamente para trás. E, depois, Jussieu, e Orgeval. Por fim, numa ampla curva circular,
tinham percorrido cerca de 30 quilómetros, e Glyn parou com uma freada diante de uma buvette na pequena aldeia de Louveciennes. Respirando forte, olhou criticamente
para Stephen, suado e empoeirado, completamente sem fôlego. Sorriu.
- Nada mau, meu rapaz. Você não gosta de desistir, não é? É uma qualidade que pode lhe ser útil. Venha tomar uma cerveja.
No bar escuro, de teto baixo, tomaram uma caneca de cerveja gelada, que escorregou deliciosamente nas suas gargantas secas. Glyn sugou a espuma da barba e suspirou.
- bom lugar para pintar este campo em torno de Louveciennes - meditou ele. Renoir e Pissarro costumavam andar por aqui. Sisley também. Traremos Emmy para dar o ritmo.
Ela pode realmente vir.
A lembrança do encontro na loja de bicicleta ainda doía em Stephen. Ele disse secamente:
- Aquela moça me pareceu uma pessoa um tanto desagradável.
Glyn soltou uma risada.
- Modere a sua língua, padre... - E depois de uma pausa: - Na verdade, ela é uma putinha barata... o seu amigo Chester podia lhe dizer... E dura. Praticamente criada
na equipe no circuit de France. Troteia por aí com um bando de vadias. Faz uma tournée de seis meses por ano com o grupo do Peroz.
- Peroz?
- Adolf Peroz. Primeiro, eram os Irmãos Peroz. Adolf é o sobrevivente. Conheço-o. Sujeito decente. Tem um circo muito bom. Emmy faz os números de ciclista. Acho
que deve ser extremamente arriscado. Ela ganha um bom dinheiro, e deixa você saber disso. Ela não tem préstimo para nós, realmente, e sabe que andamos tesos. Mas
é incrivelmente vaidosa, e quer que eu a pinte.
- Vai pintar?
- Não mesmo! Não lido com tipos da sarjeta. Mas me divirto pondo uma mosca na sopa dela. Ela é realmente uma perfeita cadelinha. - Terminou a sua cerveja. - Vamos
embora.
Voltaram lentamente no frescor da tarde. Glyn estava eufórico, purgado da tensão nervosa, cantando trechos de canções populares do País de Gales.
Diante da loja de bicicleta, consultou o relógio e deu um assobio.
- Estou atrasado. Tenho que me encontrar com Anna. Entregue isto por mim, como um bom sujeito. Deixou a sua bicicleta com Stephen e precipitou-se.
Com alguma dificuldade, Stephen manobrou as duas bicicletas para dentro da loja. Como antes, estava vazia. Ele bateu no balcão, e então, como ninguém aparecesse,
empurrou a porta dos fundos; no corredorzinho escuro, foi de encontro a Emmy, que vinha para a loja. A porta de fora fechou-se, deixando-os juntos, confinados na
escuridão de um espaço não maior que um armário. Muito desconcertado, Stephen não achava o que dizer, e de súbito o seu pulso começou a bater como um martelo. Ela
estava em pé a seu lado, tão perto que ele podia sentir-lhe o calor, e uma estranha e repentina emoção fez a sua garganta se apertar. Ela o observava impassível,
sem surpresa, embora o seu íntimo torvelinho lhe fosse perfeitamente aparente; deu-lhe um sorriso frio, crítico.
- Que veux-tu?
O duplo sentido da pergunta trouxe-lhe uma onda de calor. Houve uma pausa, durante a qual ele ouvia as rápidas e altas batidas do seu coração. Numa voz não natural,
respondeu:
- Queria que soubesse... que eu trouxe as bicicletas de volta.
- Fizeram um bom passeio? - Ela continuava a observá-lo conscientemente, olhos apertados, meio divertida com a sua emoção, embora não participando dela.
- Sim, obrigado.
Silêncio outra vez. Ela não fazia nenhum gesto para se mover. Afinal, com grande esforço, ele pôs a mão na porta às suas costas e empurrou-a.
- Espero - gaguejou ele como um colegial - espero vê-la novamente. Envergonhado e muito tenso, tentou sem sucesso afastá-la da mente. Mas ela crescia cada vez que
a via - ocasiões que se tornaram frequentes desde que, com a chegada da primavera, Glyn insistia em exercícios regulares
semanais. Sentia-se ao mesmo tempo atraído e repelido por Emmy. Desejava muito pedir-lhe que posasse para ele, mas não podia chegar a dizê-lo com tantas palavras.
Uma oportunidade favorável parecia não surgir nunca. Ela permanecia como um enigma não decifrado, um sentido procurado e não achado, uma estranha irritação no fundo
do seu espírito.
E o tempo ia passando com desconcertante rapidez. À medida que os dias iam ficando mais compridos, e os castanheiros rebentavam em flores outra vez, ele percebia
que este ano de graça em breve estaria acabado. Mais e mais as cartas de Stillwater, de seu pai, de Davie, e de Claire, começavam a antecipar o seu regresso, a pedi-lo
mesmo, com crescente urgência.
Julho chegou, e do céu brônzeo um ar abafado pesava sobre a cidade. Glyn, que detestava o tempo de calor, resistiu por duas semanas, depois resolveu subitamente
ir para a Bretanha com Anna, vagabundear por lá, e pintar Calveries. Os Lamberts já tinham partido para La Baule e agora Chester ia encontrar-se com eles. Até Peyrat
falava em desertar de Paris. O aluguel do apartamento terminava em agosto e ele planejava ir ver um tio em Auvergne.
Tanto Richard como Peyrat insistiram para que Stephen os acompanhasse. Mas ele não podia aceitar - uma carta final, com um ressaibo de severidade, tinha chegado
do Reitor, na qual ele esperava que Stephen não "recuasse da palavra empenhada" nem se deixasse deter pelos "divertimentos e atrações de Paris",
Depois de a ler, Stephen atirou os seus pincéis sobre a mesa e saiu para a rua. Poderia ter ido ao Bois, onde sempre havia sombra embaixo das árvores, mas o seu
humor, deprimido e irritável, proibia-o. Em vez disso, apesar da sua fadiga e de uma sensação de estar absolutamente exausto, caminhou direto para cidade, através
de quilómetros de ruas monótonas. Lojas e cafés em todo o caminho, grandes a princípio, gradativamente menores. Quase todas vazias. Numa delas, deserta, um garçom,
com a cabeça nos braços, dormia numa mesa. Stephen passou por baixo das pontes da estrada de ferro, pelos trilhos serpenteantes do grande Terminal, atravessou canais;
finalmente, passado o octroi, encontrou-se num ermo poeirento fora das barreiras de Paris. A esse tempo, pingava de suor e continuava a repetir para si mesmo:
- Meu Deus, que vida... E papai pensa que os meus dias são uma ronda de prazer.
Quando voltou, parou na agência postal do Plaisance e escreveu um telegrama.
DESMONDE, REITORIA, STILLWATER, SUSSEX. ATRAVESSANDO BARCO CEDO AMANHÃ DEZENOVE JULHO.
STEPHEN.
CAPÍTULO X
NADA, PENSAVA STEPHEN, excede a alegria de revisitar os amados lugares familiares, meio esquecidos, agora vistos mais belos do que antes. Estendido na relva da ribanceira
do Lago Chillingham, com uma vara de pescar a seu lado, aquecido pelo sol da tarde, estava observando Davie lançar um peixinho prateado, ainda desajeitado, mas com
uma seriedade que traduzia aperfeiçoamento, entre os lírios floridos, debaixo de cuja frescura estava um lúcio escuro. O ar era claro e dourado, havia flores silvestres
por toda a parte, as árvores ostentavam a sua mais ampla e tenra folhagem; nas sarças, as rosas-de-cão, de um róseo delicado, exalavam o seu perfume, que se misturava
com o denso aroma das rainhas-dos-prados. Pombos revoavam distantes lá em cima e, da granja familiar, em Broughton Park, ele ouvia o cacarejo das aves.
Era difícil perceber que estava em casa havia duas semanas. Desde aquele momento em que, em Halborough, tinha sido recebido por Davie e Caroline - uma combinação
feita com delicada discrição - tudo corria tão maciamente que o tempo parecia voar. Sim, era bom estar de volta - se pelo menos não o tratassem como o filho pródigo
agora perdoado e que devesse ser mantido a todo o custo pela bondade. Desjejum na cama, o Times do seu pai fechado na bandeja - até ele protestar dizendo que preferia
levantar-se e tomar café com Davie lá embaixo; seus pratos prediletos no almoço e jantar, Beasley trabalhando mais horas na cozinha, Mould trazendo cestas de frutos
escolhidos; seus desejos atendidos, excursões planejadas; claramente, todos os membros da família estavam unidos num esforço diplomático para desarmá-lo.
O assunto da sua pintura não era discutido - estava morto desde a primeira noite, quando, a pedido do Reitor, mostrou as suas telas. Com uma contração do cenho,
entre uma carranca e um sorriso, ele reconheceu quão honestamente, embora de modo vão, o pai tentara aprovar o seu trabalho, perplexo diante de tudo o que via, o
olho assustado indo descansar, em particular, numa cena de banlieue que mostrava uma mulher pendurando um varal de roupa no fundo do seu quintal num dia de vento.
- Meu caro rapaz... você acha isto... belo?
- Sim. É um dos meus prediletos.
- Mas não compreendo. Por que tem que pintar uma corda de roupa?
- É a interação dos tons brilhantes, papai... contra o fundo sombrio, o vestido cinza e branco da velha...
Procurou explicar a base da sua ideia e como as cores puras eram aplicadas com uma espátula. Contudo, era claro que o Reitor continuava perplexo e não convencido.
Seguiu-se uma longa pausa. Por fim, depois de um último exame, seu olhar voltou-se dúbia e ainda inquisidoramente para ele.
- Suponho que um perito possa apreciar isto.
- Acho que pode.
A seguir, a consideração suplantou a crítica. Caroline, muito mais terna à sua maneira, tinha passado as suas roupas, costurado os botões da camisa, e a sua mãe,
estimulada no seu mundo solitário e peculiar, subitamente descobrira e declarara que usaria um novelo de lã com o qual, desde que ele estava em Oxford, pensava tricotar-lhe
umas meias.
Tinha sido, na maior parte, um grupo familiar restrito - para alívio de Stephen, o General Desmonde e sua mulher estavam na Escócia com Geoffrey, caçando - mas nesta
tarde, sabendo que ele e Davie tinham que estar em Chillingham, Lady Broughton convidara-os para o chá.
Com um olhar para o sol, agora obliquando na crista dos Downs, Stephen achou que era melhor saírem logo. Levantou-se, caminhou ao longo da ribanceira e ficou atrás
do irmão, que, embora desse sinais de cansaço, ainda lançava a sua linha, perseverantemente, na água indiferente. A pesca, até agora, tinha sido fraca - três percas
amarelas tão pequenas que não satisfaziam o gato da Reitoria. Ciente do apaixonado ardor que Davie tinha por aquilo, e aliás por qualquer esporte ao ar livre - um
sentimento tão contrário à sua própria indiferença, tão comoventemente incoerente também, dadas as condições delicadas do rapaz e da sua saúde, que estava longe
de ser robusta - ele desejava que uma grande e digna truta se enganchasse no anzol. Podia muito bem ver a alegria e triunfo que essa captura causaria.
Mas embora esperasse pacientemente, com uma palavra ocasional de animação, não houve esse golpe de sorte. Davie, refletiu com momentânea tristeza, nunca tinha sorte.
E enquanto o seu jovem irmão enrolava a linha, passou-lhe um braço nos ombros e, louvando o seu progresso em lançar a vara, condenando os elementos desfavoráveis
do calor e da luz, finalmente, aumentando o valor dos três peixinhos agora curvados e secos na cesta, trouxe-o de volta para a alegria.
- Acho que estou melhor - disse Davie esperançoso. - Esforcei-me muitíssimo. E, como você diz, essas percas não são más. Acha que dão para cozinhar?
- Perfeitamente.
- De qualquer modo... são muito pequenas.
- Quanto menor, melhor - disse Stephen.
Ao saírem pelo prado, evitando o longo caminho em volta do Foxcross Corner e, uma vez que estava tão seco, atravessando os carriços mais baixos, Davie tagarelava
com a viva animação que era um traço do seu caráter. Tinha crescido muito ultimamente, parecia alto para 14 anos, e os seus membros tinham a descoordenação da idade
ingrata, fazendo parecer que caminhava aos arrancos. Contudo, a expressão do seu rosto delicado era menos febril do que antes, e os seus ataques, Stephen soubera
de Caroline, eram menos fortes, revelando uma firme mudança na frequência. Ouvindo com simpatia, observando o jogo de luzes sobre aquelas feições bem talhadas, Stephen
estava consciente de uma profunda onda de afeição por seu irmão. Tinham estado juntos quase continuamente durante as últimas duas semanas.
Saindo dos bosques, pularam a grade de ferro que cercava o parque, onde o gado pastava placidamente, e dali a pouco chegaram à avenida que, contornando o jardim
formal que margeava o relvado, acabou levando-os à própria mansão, uma grande edificação vitoriana de arenito vermelho maciço, corrompida por torres e torreões,
que Lady Broughton pretendia ser a casa mais alta de Sussex.
Foi ela quem os recebeu, reclinada numa chaise-longue junto às janelas francesas abertas ao sul da sala de estar, pedindo-lhes que desculpassem a sua aparente indolência
- seu médico andava ridiculamente severo com ela pondo-os imediatamente à vontade com o tranquilo calor da sua acolhida.
- Bem-vindo, Stephen. - Segurando-lhe a mão, olhou-o de alto a baixo.
- Cheio de conhecimento de coisas lindas. Sinto que não tenha uma barba. Acho que Paris fez-lhe bem. Pode beijar-me o pulso como um francês?
- Não estive estudando essa arte.
- Que pena! - sorriu ela. - Não é, Davie?
- Só será uma pena se meu irmão voltar para lá, Lady Broughton.
- Bem dito. Você vê como estamos contentes em tê-lo de volta em casa outra vez, Stephen. Como prova disso, eu lhes darei pães de milho de Sussex no chá. Lembra-se
como gostava deles quando tinha a idade de Davie?
- Lembro-me, e muito! Ainda gosto. E Davie também.
Lady Broughton sorriu, e continuou a caçoar amavelmente. Contudo, ouvindo-a calado, Stephen notava a mudança por que ela passara. Sempre gostara daquela mulher,
baixa, de cores vivas, sem qualquer aparência de distinção, cuja boa e enérgica natureza e sólido bom senso transpareciam em todas as suas ações. E agora causava-lhe
mágoa aquela atitude passiva, aquela respiração rápida, o leve tom purpurino em suas faces sempre vívidas.
- Claire deve chegar logo - disse ela. - Atrevo-me a dizer que ela fará a sua entrada com uma cesta de rosas, como algo pintado por Gainsborough.
Quase como dissera a mãe, Claire entrou, não do jardim, nem com flores, de cabeça descoberta, não parecendo um Gainsborough mas antes um
Burne-Jones, no seu vestido de linho de corte quadrado no pescoço, de uma cor de burel que combinava com os seus cabelos vermelho-dourados. Embora tivesse sem dúvida
esquecido, Stephen disse imediatamente que ela condizia com aquela rica sombra pré-rafaelita.
A sua postura era admirável. Ninguém teria adivinhado quão rápido batia o seu coração, ou há quanto tempo ela esperava por este momento.
- Claire - fez Stephen dirigindo-se para ela.
- É tão bom ver você - disse ela. - E você, Davie.
Esperava que a ligeira cor que sentia subir-lhe às faces passasse despercebida. Vê-lo outra vez, sentir o contato dos seus dedos punham a sua compostura à prova
mais do que ela poderia esperar.
Nesse momento, foi servido o chá, não um repasto frugal de biscoitos e pão fino e manteiga, mas uma regular fartura colegial de ovos cozidos e pão de minuto, sanduíches
e pãezinhos de milho, com morangos e nata batida à Sussex, tudo disposto sobre uma mesa de pau-cetim com rodas.
- Achamos que você estaria com fome depois da pescaria - disse Claire a Davie.
- E estamos - concordou ele com entusiasmo. - Nosso lanche não foi grande coisa.
Segurou a xícara que Claire enchera e, polidamente, embora com certa ternura, levou-a a Lady Broughton antes de sentar-se.
- Obrigada, Davie. - Rompendo o ligeiro constrangimento, comentou, na sua maneira arreliante: - Claire, não acha que Stephen está com o ar de um parisiense?
- Está mais magro, talvez. - Que estúpida resposta! Mas ele estava em casa - e a inquietante doçura desse pensamento banhava de luz os seus olhos.
- Não acho que a comida francesa seja muito nutritiva - arriscou Davie seriamente. - Eu pelo menos não quero caracóis nem pernas de rã, ou coisas assim.
Todos riram-se, e depois que eram um alegre bando, Davie, como para provar a virtude da dieta anglo-saxã, empenhou-se numa viva discussão com Claire sobre os métodos
de apanhar lúcios, no fim da qual ambos concordaram que num dia como aquele uma isca artificial seria muito melhor que um barrigudinho prateado.
- Acho que há algumas dessas iscas no salão de bilhar - disse Claire, e após um momento de reflexão ajuntou: - Não gostaria de tê-las?
- Ora, ora... - murmurou Davie. - Mas não são para você? Quero dizer... está falando sério?
- Estou sim. Ninguém as usa. Venha comigo e daremos uma olhada. Perguntando se poderia ser desculpado, Davie levantou-se com alacridade e abriu a porta para Claire.
Saíram juntos.
Logo depois, Lady Broughton olhou meditativamente para Stephen, de quem ela sinceramente sempre gostara e por quem, na verdade, tinha admiração. O fato de ele ter
deixado a Igreja absolutamente não a perturbava - com uma natureza tão sensível, apaixonada e tímida, ela não o considerava talhado para ser um pastor rural. Nem
as suas recentes aventuras artísticas lhe causaram grande inquietação. Encarava-as apenas como um capricho passageiro, uma tendência temporária herdada sem dúvida
das excentricidades do lado materno - estava bem lembrada de como, quando era criança, ficara petrificada pelas coloridas extravagâncias do digno pai da Sra. Desmonde
- e que de modo algum diminuíam a finura essencial do caráter de Stephen. Contudo, era menos esta genuína atenção do que o seu conhecimento dos sentimentos de Claire
que a fazia desejar dizer alguma coisa compatível com a boa educação que pudesse trazer o assunto à baila. Naqueles últimos meses, tinha observado com simpatia a
indiferença e desatenção da sua filha, e notado também, não sem desconfiança, os seus esforços ocasionais para romper aquela disposição pensativa e achar distração
em atividades que lhe eram inteiramente alheias. Recentemente, Geoffrey Desmonde tinha sido um visitante persistente, e, quando menos pela maneira com que arrastava
as suas frases, Lady Broughtpn o detestava. Considerava-o estereotipado e banal, afetado, presumido e mimado; e tendo sido casada com um homem cuja pesada obtusidade
tinha feito da sua vida, por mais de 20 anos, uma penitência, não desejava semelhante destino para Claire.
Foi sem dúvida essa ordem de ideias que a levou a observar:
- Não tinha visto a sua prima desde que voltou?
- Não. Todo o pessoal do Simla parece estar na Escócia.
- Geoffrey tem dado muitos tiros por aqui.
- Ele gosta disso. Tem caçado?
- Claire e ele têm corrido bastante pelos Downs. Andam Juntos muitas vezes. Acho que a levou a Brooklands outro dia... para as corridas de automóveis.
- Não sabia que Claire se interessava por tais coisas.
- Não acho que ela se interesse... mas não fica bem recusar - disse Lady Broughton sorrindo.
Na pausa que se seguiu, inclinou-se ligeiramente para ele e continuou num tom que, embora confidencial, manteve deliberadamente casual.
- Preocupo-me um pouco com ela, Stephen. É uma pessoa tão quieta e introspectiva, se quiser - amiga, mas que não sabe fazer amigos. Para estar contente, ela precisa
do tipo certo de companhia - ou vou mais adiante e digo - o tipo certo de marido? Não preciso lhe dizer que não estarei aqui para sempre. Muito em breve, Claire
pode ficar só. E embora ela ame este lugar, são muitas as responsabilidades - que pode achar difícil assumir...
Não dissera nada de definido, nada que pudesse de qualquer modo embaraçá-lo, contudo não havia como se enganar quanto à sua intenção. Na verdade, antes que ele pudesse
falar, ela prosseguiu, colocando os dedos de veias ligeiramente inchadas no seu ombro.
- Acho que foi sensato passar aquela temporada em Paris. E o seu excelentíssimo pai foi sensato em deixá-lo ir. Nos meus dias, os jovens sempre faziam a grande excursão.
Isso não apenas era considerado uma necessidade virtual, mas tirava muitas coisas do seu sistema. Eles voltavam, estabeleciam-se como bons proprietários rurais e
constituíam uma família. Isso é precisamente o que você deve fazer, Stephen.
- Mas supondo... - Ele evitava o seu olhar, com uma ligeira cor nas faces. - Supondo que sinta que devo ir ao estrangeiro outra vez?
-Para quê?
- Para continuar a estudar... e trabalhar.
- Em quê?
- Pintura.
Ela abanou a cabeça e deu-lhe uma indulgente palmadinha na mão.
- Meu caro rapaz, quando eu era jovem e romântica, pensava que poderia escrever poesia, e escrevi, para minha vergonha. Todavia, livrei-me disso. E assim será com
você.
O argumento parecia conclusivo, e ela acomodou-se na sua almofada. Antes que Stephen pudesse responder, Davie entrou na sala com Claire, trazendo uma caixa de metal
laqueado.
- Veja, Stephen, o que Claire me deu. Todas estas belas iscas. Até giradores e bóias. E esta caixa impermeável.
- Não se esqueça - sorriu Claire - que eu espero muitos peixes.
- Agora vai ser fácil. Eu gostaria que a escola não reabrisse tão cedo.
- O inverno não é a melhor época para o lúcio?
- É, sim. E eu estarei à espera dos feriados de Natal.
- Bem, lembre-se de vir tomar chá sempre que estivermos em Chillingham.
Stephen levantou-se, preparando-se para se despedir, tocado pela bondade de Claire com Davie, por sua quieta amabilidade, aparente, mesmo com o seu ar reservado,
em cada palavra ou gesto. Os últimos lampejos da tarde douravam o comprido salão com suas colunas, não belo, mas acolhedor, encantador, com o sentimento de uma velha
casa de campo. Além das janelas, os escuros relvados mas ainda visíveis, sombreados pelo grande cedro, os bosques de faias com os telhados vermelhos das choupanas,
lá no alto, e mais longe, ondeando como o mar, os verdes Downs.
A caminho de casa, Davie achou o seu irmão estranhamente silencioso. Depois de relancear os olhos para ele uma ou duas vezes, disse:
- É formidável no Court. Você não deseja ir lá mais vezes?
Mas Stephen não respondeu.
CAPÍTULO XI
NA TERÇA-FEIRA SEGUINTE, o almoço na Reitoria estava quase terminado. Tinha sido uma refeição um tanto opressiva para Davie, já formalmente vestido, que devia voltar
à escola nessa tarde. Contudo, olhando em torno, Stephen sentia uma tensão maior do que a exigida pela ocasião, um ar geral de conspiração e expectativa. Sentia
também uma intensificação daquela intangível coerção, que, disfarçada em uma nuvem de afeição, vinha envolvendo-o de quando em quando durante as últimas duas semanas.
O Reitor, que já tinha consultado o relógio três vezes nos últimos cinco minutos, tornou a fazê-lo, terminou o seu café e, sem fitar ninguém em particular, disse:
- Acontece que o Sr. Munsey Peters está nas vizinhanças. Infelizmente não pôde vir almoçar. Mas eu o convidei a vir pouco depois.
- Que interessante, papai - murmurou Caroline, com os olhos no prato.
- Está se referindo - perguntou a Sra. Desmonde no tom de quem fora instruída a perguntar - a Munsey Peters?
- Isso mesmo. Conhece o Sr. Peters, Stephen? - Inatento, cortando uma careta numa casca de laranja para Davie, Stephen levantou os olhos, certo de que seu pai se
dirigira a ele.
- Sim, é membro da Academia Real.
Houve uma pausa. Contido, com a expressão subitamente fixa, Stephen esperava que Bertram caísse na armadilha.
- Achamos que ele podia ter vontade de olhar os seus quadros.
Houve outro silêncio, que Caroline se apressou em romper, com um ar de inteligência.
- Não é ótimo, Stephen? Agora você pode se valer do conselho dele.
- Acredito - disse a Sra. Desmonde - se a memória não me falha, que há uma paisagem de Peters no Salão Pump, em Cheltenham. Está pendurada sobre a Fonte de Chalybeate.
Uma vista das colinas de Malvern com uma ovelha. Cheia de vida.
- Ele está na primeira fila - concordou Bertram.
- Não há também um livro, papai - interpôs Caroline - algo como De Rafael a Reynolds, ou coisa parecida?
- Ele escreveu muitos livros sobre arte. O mais conhecido intitula-se A Arte pela Arte.
- Devo procurá-lo na biblioteca - murmurou Caroline.
- Você não se importa se mostrarmos a ele as suas pinturas? - O Reitor voltou-se para o filho com uma nova firmeza. - Desde que se apresentou a oportunidade, seria
sensato pedir-lhe a opinião.
Stephen empalidecera. Não respondeu por um momento.
- Mostre-lhe qualquer coisa que quiser. Sua opinião não tem nenhum valor.
- O quê? Munsey Peters é um académico famoso. Exibe regularmente há 15 anos.
- Que significa isso? Não posso imaginar nada mais mortal, mais vulgar e idiota do que as suas pinturas.
Bruscamente Stephen rompeu o seu silêncio, sentindo que o julgariam invejoso e com medo. Então, ao voltar-se, ouviu um som de rodas e, pela janela, viu um cabriolé
de aluguel chegando à porta da frente. Um homem baixo, tornado mais baixo por um vasto sombrero preto e uma capa preta do Inverness, desceu rápido do cabriolé, olhou
em volta e tocou a sineta. Bertram levantou-se e, acompanhado pela mulher e Caroline, foi a saguão. Stephen permaneceu sentado à mesa, vendo muito bem que tudo aquilo
fora arranjado - ele tinha vindo especialmente de Londres. A julgar por suas roupas, Peters não estava absolutamente visitando o campo - tinha vindo expressamente
de Londres, mas fora comissionado, sem dúvida por tal ou qual preço - vinha especialmente de Londres como um cirurgião chamado à cabeceira de uma pessoa gravemente
enferma, cujo diagnóstico era uma questão de vida ou morte.
Um toque tranquilizador no ombro acordou-o. Era Davie.
- Não é melhor irmos agora? Não se aborreça, Stephen, aposto que você vai sair por cima.
Na sala de estar, construída originalmente como um parlatório retangular e posteriormente afeada por janelas de sacadas vitorianas abertas ao lado oeste, Munsey
Peters estava sentado no sofá, gorducho, de cara lisa, solicitamente oficioso, já no centro de uma plateia inteligente.
Quando Stephen entrou, girou e estendeu-lhe uma mão amável.
- Então este é o seu jovem cavalheiro? Prazer em conhecê-lo, senhor. Stephen apertou-lhe a mão, dizendo a si mesmo, apesar do conflito de emoções no seu peito, que
não devia ter ódio àquele visitante indesejável, que sem dúvida era uma pessoa honesta e estimável, agindo de boa fé. Contudo, conhecendo o trabalho de Peters, que
sempre recebia destaque na imprensa e
muitas vezes era reproduzido nos melhores semanários, aquelas suas paisagens lanudas e interiores betuminosos, tresandando a sentimentalismo e cheios daquele claro-escuro
que Glyn tinha profanamente descrito como siena queimada e merde, Stephen não podia reprimir uma aversão instintiva, aumentada e não diminuída por aquele homenzinho
de aparência presumida e maneiras seguras, que, embora um tanto menos que assertivo, estava odiosamente satisfeito consigo mesmo. Recusara o almoço, tendo "satisfeito
o homem interior"
- suas próprias palavras - no vagão-restaurante que sempre acompanhava o expresso do meio-dia, mas, diante da insistência, consentiu em tomar café. E, balançando
a xícara nos joelhos, de pernas cruzadas, sapatos com polainas, dirigiu a Stephen uma série de perguntas agradáveis, exatamente como faria um notável académico para
deixar um neófito nervoso.
- Então esteve em Parri, hein?
- Sim. Pouco menos de um ano.
- Trabalhando duramente, espero, na cidade alegre. - Isto, com um olhar de humor velado para os outros; então, como Stephen não respondesse:
- Com quem estudou?
- No começo... com Dupret.
- Ah! E que pensa ele do amigo?
- - Eu realmente não sei. Deixei-o depois de poucas semanas.
- Hum! Hum! Isso foi um engano. - E, num tom intrigado: - Quer dizer que ficou a maior parte do tempo por sua própria conta? Não pode ter aproveitado muito dessa
maneira.
- Ao menos aprendi o quanto a força de vontade, a disciplina e a intensa aplicação são necessárias para fazer um bom artista.
- Ora! Isso é muito fino. Mas, e o aprendizado?
A frieza da voz de Stephen era provocante.
- Há certos elementos essenciais. Já os acentuei muitas vezes no meu livro. Ouso dizer que ele fez parte do seu estudo.
- Receio que não. Estive estudando no Louvre.
- Oh, copiando - exclamou Peters contrariado. - Isso não é bom. Um artista procura ser original acima de tudo.
- Contudo, todos os grandes artistas influenciaram uns aos outros - argumentou Stephen diretamente. - Rafael provém de Perugino, El Greco de Tintoretto, Manet de
Franz Hals. Todos os pós-impressionistas se ajudaram uns aos outros. A lista seria interminável. Porque, se me perdoa, vemos no seu próprio trabalho Leighton e Poynter.
A menção desses dois artistas, tão famosos na época vitoriana e agora esquecidos, trouxe ao rosto de Munsey Peters uma expressão confusa, como se mal pudesse saber
se a intenção era de louvor ou insulto.
A Sra. Desmonde, sempre diplomática, rompeu o silêncio.
- Deixe-me oferecer-lhe mais café.
- Não, obrigado - e devolveu-lhe a xícara. - Na verdade, tenho pressa, deixei o meu veículo à espera. Podemos entrar no assunto sério do dia?
- Com muito gosto. - Bertram, um apreensivo observador daquele choque de temperamentos, fez um sinal a Davie, que deixou a sala num pulo. Quase imediatamente voltou,
trazendo o primeiro quadro, uma vista do Sena em Passy, que colocou sobre uma cadeira de alto espaldar posta adrede em boa luz e diante do sofá.
Impondo silêncio com um dedo nos lábios, Munsey Peters ajustou o pincenê. Estudou a pintura intensa e longamente, inclinou a cabeça em vários ângulos; então, dramaticamente
fez um gesto para Davie, que a retirou, colocou-a junto à janela e trouxe a seguinte. Para Stephen, parado lá atrás com uma expressão insensível e um latejar doloroso
no coração, era uma experiência martirizante, uma crua exposição da sua delicada sensibilidade.
Olhou em torno para o círculo doméstico - o pai, sentado, muito teso, com as pontas dos dedos fortemente unidas, as pernas cruzadas, um pé balançando em nervosa
expectativa; Caroline, na banqueta junto ao sofá, com uma ruga de ansiedade na testa, olhando para Peters, ora para o chão; sua mãe, sonhadoramente confortável numa
poltrona, de todo indiferente; e Davie, no colarinho branco engomado e roupa cinza-escura do colégio, o cabelo penteado para trás, olhos brilhantes, sem compreender
bem a questão, e contudo cheio de confiança em que seu irmão seria justificado.
Acabou-se afinal, a última pintura fora mostrada.
- Então? - exclamou Bertram.
Munsey Peters não respondeu imediatamente, mas, erguendo-se, fez uma nova inspeção nos quadros contra o peitoril oval da janela da sacada, como para afastar qualquer
impressão de que o seu julgamento era apressado ou inconsiderado. Uma tela em particular, a mulher com as suas roupas brancas, parecia perturbá-lo de modo especial;
vez por outra, quase furtivamente, os seus olhos voltavam àqueles ousados contrastes e cores vivas. Por fim, deixou cair o pincenê, seguro por uma fita de seda lavada,
e tomou posição no tapete da lareira.
- Que deseja que eu lhe diga?
- Meu filho tem... - Bertram respirou fundo - alguma chance de se tornar um pintor... posso dizer... de primeira categoria?
- Nenhuma.
Fez-se um silêncio mortal. Impulsivamente, Caroline lançou um olhar de simpatia para o irmão. O Reitor curvou a cabeça. Stephen, com a sombra de um sorriso, continuou
a olhar diretamente para Munsey Peters.
- Naturalmente - continuou ele - eu poderia ser polido. Mas entendi que o senhor queria a verdade. E nessas telas, que têm talvez um certo brio
rude, ignoram completamente as grandes tradições da pintura, tradições de propriedade e restrição, só posso encontrar... - encolheu os ombros - matéria para condolência
e pesar.
- Então - disse Bertram lentamente, como se estivesse determinado a se convencer - se forem, digamos, submetidas à Academia, acha que seriam recusadas?
- Meu caro senhor, como membro da comissão de exposição, não sei, não estou seguro. Acredite-me, dói-me extinguir as suas esperanças. Se o seu filho quiser continuar
isto como um passatempo... um hobby... isso é com ele. Mas profissionalmente... ah, meu caro senhor, a pintura é, para todos nós que vivemos dela, uma arte cruel.
Não há lugar para fracassos.
Bertram lançou um olhar cheio de compaixão para o filho, como esperando que ele protestasse, ao menos oferecesse alguma defesa do seu trabalho. Mas Stephen, com
a mesma sombra de um sorriso, e aquele ar de orgulhosa indiferença, mantinha-se calado.
- E agora, se me desculparem - disse Peters, curvando-se.
O Reitor pôs-se de pé.
- Estamos muito agradecidos ao senhor... mesmo que o seu veredicto tenha sido desfavorável.
Munsey Peters curvou-se novamente e, ao deixar a sala com modos graves e polidos, aceitou prestemente o envelope que Bertram, após murmurar umas palavras de escusas,
escorregou-lhe na mão - uma transação efetuada com tamanha destreza que ninguém pareceu notá-la, a não ser Stephen. Dali a pouco se ouviu o rangido do cabriolé.
O professor tinha partido.
Como se para poupar os outros, mais do que a si mesmo, do embaraço, Stephen foi para fora. Ali, andando de cá para lá, de cabeça descoberta, estava o Reitor. Tomou
imediatamente o braço do filho, com um aperto de simpatia, e, após atravessar as lajes, observou várias vezes:
- Tenho que ir à sacristia. Quer caminhar comigo?
Ao subirem juntos a alameda, Bertram continuou, sombriamente, sem um indício de autojustificação.
- Stephen, essa foi uma experiência dolorosa para você, e, em grau nSo menor, para todos nós. Mas era imperativo para mim saber a verdade. Espero que não me reprove.
- Claro que não. - A voz calma do filho causou a Bertram uma viva surpresa, seguida por um sentimento de oposição.
- Você aceitou a coisa muito bem, Stephen - como um verdadeiro Desmonde. Eu temia que pudesse ficar encolerizado comigo por lhe ter imposto esse teste sem aviso.
Mas se eu lhe tivesse dito de antemão, você poderia ter recusado...
- Sim, acho que recusaria.
- Você percebe que não foi questão de influência indevida, que a opinião de Munsey Peters foi inteiramente dele?
- Estou certo disso. Acho até que o nosso pequeno argumento no começo eriçou ligeiramente a sua plumagem. Mas não há sombra de dúvida - ele detestou a minha pintura
como veneno.
- Ah! - murmurou o Reitor condoído. - Pobre rapaz.
Chegaram à igreja; detendo-se na cancela, Bertram pousou a mão na efígie do cruzado, um gesto costumeiro de apoio, e encarou o filho.
- Pelo menos o caminho agora está claro... e não há nada contra o seu regresso para ser ordenado. Não quero pressioná-lo. Há a toga, os serviços militares. Contudo
- olhou em torno - o seu lugar é aqui, Stephen.
Uma pausa quase imperceptível.
- Acho que não compreende. Não vou abandonar a pintura.
- Mas que diabo quer dizer?
- Simplesmente que tomei uma resolução, irrevogável, que vou dedicar a minha vida inteiramente à arte.
- Mas você acaba de ter uma opinião... com mil diabos... de um perito.
- Essa nulidade idiota... roída por um rancor secreto! O fato de ele ter difamado o meu trabalho foi o maior cumprimento que podia me fazer.
- Você está louco? - Cólera e desalento levaram o sangue à testa de Bertram. - Ele é um dos melhores pintores da Inglaterra e pode vir a ser o próximo presidente
da Academia.
- O senhor não compreende, papai. - A despeito da tensão das suas feições, Stephen quase sorriu. - Peters não pinta coisa nenhuma. O seu trabalho é convencional,
sentimental, e sem um traço de originalidade. O sucesso dele é o de uma mediocridade intrometida. Ora, até as tapeações do velho Dupret, com a sua peinture léchée,
são mais toleráveis. O senhor não sentiu nojo dos seus chavões, sua afetação, suas mãos gordinhas? Ele marcha com o rebanho. O verdadeiro artista só pode cumprir
o seu destino sozinho.
Durante esse discurso, que lhe pareceu bombástico, o rosto de Bertram foi gradualmente endurecendo. Empedernia-se contra a dor que sentia no peito, e um imenso desejo
de tomar o filho nos braços.
- Para qualquer pessoa normal, a evidência é clara. Você deve aceitá-la.
- Não.
- Insisto.
- Tenho o direito de viver a minha própria vida.
- Não, se está disposto a arruiná-la.
Nenhum deles levantou a voz. O Reitor estava muito pálido, mas os seus olhos nunca se afastaram do rosto do filho. Por baixo de sua agitação havia uma firmeza que
Stephen nunca tinha visto.
- Por simples justiça, você não me deve alguma retribuição por tudo que tenho feito por você? Sem dúvida, você afeta desprezar uma coisa tão sórdida como o dinheiro.
Contudo, gastei na sua educação - a mais primorosa que qualquer filho podia desejar - um capital que eu mal podia despender. Estamos muito menos bem do que estávamos,
e é com dificuldade que mantenho Stillwater nos padrões a que estamos acostumados. Sempre esperei que esta medida não fosse necessária. No entanto, para seu próprio
bem, devo repô-lo no seu juízo. Sua pensão está suspensa. E você verá que é impossível continuar sem ela.
Um compasso de silêncio latejou na pequena igreja. Stephen baixou os olhos, deteve-os por um longo momento na efígie de pedra do seu ancestral que, à meia-luz, parecia
sorrir-lhe cinicamente. Olhando para a espada, os grandes guantes de malha, uma frase das leituras da sua infância lhe veio à memória: mão de ferro em luva de veludo.
E suspirou:
- Bem, papai, isso parece resolver a questão.
Bertram apanhou o seu diário na sacristia - a mão lhe tremia tanto que mal podia segurar o grosso volume, sendo obrigado a apertá-lo Contra o flanco. Deixaram a
igreja em silêncio.
Pelo resto da tarde, Stephen foi um modelo de complacência, animando os outros com a sua vivacidade e bom humor. Às seis horas, insistiu em ir com Davie à estação
e embarcou-o no trem, despachando-o com alegre afeição. Depois, voltando, com uma expressão diferente, foi à fila de veículos, onde um motorista estava com a sua
bagagem, secretamente introduzida na de Davie. No horário colado na frente do guichê, viu que um trem costeiro partia dentro de uma hora. Comprou uma passagem e
sentou-se à espera dele.
CONTINUA
A TARDE MUDARA EM NOITE, e todo ímpeto e atividade dos Downs jaziam quedos, banhados em luz pérola. A relva seca, prateada como geada, soltava um vapor esgarçado que se prendia nas sebes como teias de aranha. As poças de orvalho, pires de leite desnatado, não refletiam a imagem de uma lua amarelenta que mirava, redonda e baixa, como o olho de um grande gato, agachado na colina, pronto para saltar.
Nessa quietude brilhante, de uma igreja normanda de pedra tão pequena que parecia perdida numa dobra do descampado - apesar dos nítidos contornos das suas linhas longas e breves, da sua torre achaparrada, de suas chagosas paredes inclinadas - inverossímil como um sonho, emergiu uma sombra, comprida e escura, à qual se seguiram um baque de carvalho e o tinido de um pesado ferrolho, a figura de um homem, menos comprido talvez, mas igualmente sombrio. Muito apropriadamente, um clérigo, Bertram
Desmonde, Reitor de Stillwater.
https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/MAIS_FORTE_QUE_O_AMOR.jpg
De cabeça nua, mas com uma capa sobre os ombros, enfiou pela confusão de lápides cobertas de liquens, passou os dois grandes teixos retorcidos, dos quais o mais
novo tinha sem dúvida fornecido arcos para os arqueiros de Sussex pelo menos durante cinco séculos, e depois atravessou a cancela para a azinhaga.
Aqui, apanhado pela brancura da noite, por um ímpeto da sua secreta alegria, fez uma pausa e, por um longo instante, aspirou a beleza da sua gleba, uns bons 100
acres, indo por um lado até os altos do bosque de faias de Ditchley, e pelo outro até a coutada de tojo arenoso que beirava a estrada para Stillwater. Na distância,
o Anel de Chanctonbury era visível contra o céu oriental, e mais abaixo, por entre árvores, o absurdo mas amigo torreão de Broughton Court. Para oeste, a planura
continuava, cortada por uma caleira
- ferida incruenta - por túmulos tidos como romanos, mas provavelmente restos de antigos fornos de ladrilhos. Vinham então as choças dos trabalhadores, seis, em
fila, como cogumelos, e frouxamente, acima da orla da estrada, o bruxuleio da aldeia. Abaixo dele, brilhante de luzes, a Reitoria.
Solidamente georgiana, com janelas paládicas, um espaçoso pórtico sustentado por colunas acanaladas e - delicioso pensamento! - uma balaustrada na cimalha, era uma
verdadeira casa de campo, construída pelo seu bisavô, Canon Hilary Desmonde, em 1780, em pedra branca dali mesmo - a pedreira, bem perto, estava agora felizmente
coberta pela vegetação. Traços de um Tudor primitivo ainda persistiam no celeiro e estábulos de tijolos, nos anexos da fazenda, no delicado muro de sílex e nos seixos
redondos que cercavam a ampla horta. Envolvida por relvados macios, orlados de canteiros de tulipas e prímulas, o jardim de roseiras, ainda não desperto, formando
um hexágono em torno do relógio de sol, cordões de rosas Ribston e Beauty of the Bath, com as suas soprepelizes de flores, como chantres, ao longo do prado do sul,
uma gigantesca azinheira sombreando a trilha ensaibrada, essa casa, esse pequeno abrigo de casca dourada, enraizado e imutável, seu lar, lar dos Desmondes por tantos
anos, especialmente esta noite aquecia de orgulho o coração do Reitor.
Quase certamente eles tinham vindo com o Conquistador. Um deles, o Sieur d'Esmonde, que estivera nas Cruzadas, jazia sob a sua efígie de mármore, com seu curvo nariz
quebrado, ai!, por algum turista vandálico, na pequena igreja de Downland. Se o nome tinha sido um tanto alterado pelo uso rústico - não se poderia aplicar a palavra
corrompido - ele não os identificava de modo mais completo com a boa terra de Sussex? Eles tinham prestado bons serviços à sua pátria nas três profissões abertas
para um cavalheiro: na Igreja particularmente, mas também na Justiça e no Exército. Seu irmão Hubert, após um longo e útil trabalho nas fronteiras do Afeganistão,
estava agora parcialmente aposentado em Simla Lodge, a cerca de 25 quilómetros, com o posto de general, e ainda em contato com o Ministério da Guerra, devotando
o seu lazer à cultura científica da pêra Jargonelle. Somente uma ocasião, até onde alcançava a memória, a família descera ao comércio: quando, no início do reinado
de Victoria, um Joseph Desmonde, tio-avô do Reitor, ocupara-se com a manufatura de objetos eclesiásticos. Mas como o negócio tinha certo sabor de discrição, trazendo-lhe
ainda uma considerável fortuna, o lapso, embora lamentável, era menos difícil de perdoar.
- Uma bela noite para o senhor, Reverendo.
Nas profundezas do seu devaneio, o Reitor deixara de notar a figura troncuda do velho Mould, seu jardineiro-chefe, que era também o seu sacristão, manquejando trilha
acima para fechar a igreja.
- Boa noite, Mould. Já a fechei, você pode voltar comigo. - Fez uma www.pausa, não revelando o impulso que, contra o seu hábito, o tinha levado à igreja; contudo,
estimulado pela alegria, acrescentou: - Stephen volta para casa esta noite, como sabe.
- E como é que eu ia esquecer isso, senhor? Uma notícia muito boa mesmo. Espero que ele tenha tempo de ir caçar coelhos comigo. E acrescentou mais gravemente: -
Nós logo o teremos no púlpito, quem sabe.
- Ele ainda tem algum caminho para andar, Mould. - Ao descerem a trilha juntos, Bertram sorria. - Embora eu me atreva a dizer que vocês gostariam mais de ouvir um
jovem recém-saído de Oxford do que um velho caturra como eu.
- Não, meu Pastor, não deve dizer uma coisa dessas. Não servi os Desmondes durante 50 anos para agora ignorar a sua qualidade. E pode pregar quem quiser pregar,
que não há ninguém melhor no país.
Bastava apenas essa tocante prova de lealdade quase feudal para selar a disposição do Reitor. O denso perfume das prímulas era, de certo modo, mais doce, os agudos
balidos noturnos dos cordeiros, atrás da cerca de varas, tão enternecedores que quase causavam um aperto no coração. Ah, esta Inglaterra, pensou ele: e aqui, no
seu próprio coração, preciosa como uma jóia, navegando ao luar como um navio de almas, esta pequena paróquia que seria de Stephen também, inviolada, intemporal e
imutável como a eternidade.
- Vamos precisar de alguém para a bagagem. Mande Albert ficar por perto.
- Farei isso, senhor... se ele estiver em casa. Estou tendo dificuldades com esse meu rapaz. Ele não gosta de trabalho. Mas eu dobro ele a pau... prometo.
- com o tempo, ele será um bom rapaz, Mould. Não seja duro com ele - disse Bertram, num tom neutro.
Despediu o velho diante da sua casa, baixa, de paredes curvas na frente, e momentos depois estava na larga entrada do saguão da Reitoria, entregando a capa à sua
filha Caroline, que, inevitavelmente, ali estava para recebê-lo.
- Ainda não chegaram?
Esfregou as mãos: o saguão tinha o defeito do seu teto alto e soalho de mosaico - dava uma sensação de frio da noite, mal atenuado pelo rumor dos tubos de calefação.
- Não, papai. Mas não devem demorar. Claire foi à estação no seu automóvel novo.
- Devemos comprar uma dessas engenhocas. - O reflexo de um capricho aliviou momentaneamente a austeridade das feições delgadas de Bertram e das faces um tanto encovadas.
- Será útil para visitar a paróquia.
- O senhor não está falando sério, papai. - A sua mentalidade prática, despida de humor, tomava-o literalmente. - Sabe o quanto detesta cheiros e poeira. E eu não
o sirvo bastante bem com o tílburi?
Sem dúvida, a iminência do regresso de Stephen a deixava nervosa. Assim, falara com mais vigor do que pretendia, com o seu rosto liso e sério brilhando de sentimento.
E em verdade, antes que ela o pudesse lamentar, a expressão ausente do pai, que, com o ouvido atento, esperava o ruído das rodas na alameda, puniu-a severamente.
Ela baixou os olhos, e seu corpo pesado, sustentado por duas robustas panturrilhas, diminuiu um pouco. Quando é que ele ia apreciar a profundeza ilimitada da sua
devoção, compreender que o seu único desejo era servi-lo? desde o exato momento em que começava o seu dia, depois de vestir-se às pressas, sem o benefício de um
espelho, ombreava com a carga da sua casa, conferenciava com a cozinheira sobre como ele seria alimentado, arranjava as flores, inspecionava o jardim e a granja,
tratava da sua correspondência, atendia visitantes importunos, via paroquianos doentes, desencorajava arqueólogos, juntamente com as carruagens que vinham aos domingos
e feriados cheias de gente, pedindo em coro para ver a "tumba", e ainda achava tempo para cuidar do seu linho e tricotar as suas meias de lã. E, para piorar as coisas,
estava resfriada e a toda hora tinha que assoar o nariz num lenço ensopado.
- Sua mãe vem? - Fez a pergunta com cautela.
- Acho que não. Esta tarde molhei a sua testa com água-de-colônia. Mas ela ainda se sente indisposta.
- Então seremos quatro para o jantar.
- Três. Claire telefonou para dizer que sente muito, muito, mas não poderá ficar.
- Que pena. Mas... haverá outros dias.
Seu tom de voz exprimia tristeza; contudo, ela percebeu que, a despeito da sua alta consideração por Claire, filha de Lady Broughton, da vizinha Court, e da sua
cálida aprovação do entendimento tácito existente entre ela e o seu filho mais velho, no fundo estava feliz nesta noite de reunião por ter Stephen inteiramente para
si.
Com esforço, ela conseguiu manter o tom sereno.
- Ainda não terminei de datilografar todas as suas notas para a convocação de amanhã. Quando partirá para Charminster?
- Oh, depois do almoço, suponho. O Deão raramente é pontual.
- Duas horas então. Eu o levo. - Subitamente, com ciúmes brilhando nos olhos, ajuntou: - O senhor parece cansado, papai. E terá um dia cheio amanhã. Não deixe Stephen
retê-lo até muito tarde.
- Não se inquiete, Caroline. E, a propósito, espero que nos apresente um bom jantar.
- Temos sopa hindu com caril e salmão que o tio Hubert nos mandou de Test, com pepino e molho verde, é claro, e depois um lombo de cordeiro com ervilhas da nossa
horta e batatas novas. Para sobremesa, Beasley fez aquela charlotte de maçã que Stephen tanto adora.
- Ah, sim, minha querida. Lembro que ele sempre a pedia ao voltar de Marlborough para casa. Mas, espere, não é o ruído de um motor?
De fato, ouvia-se um som fraco mas rítmico; avançando para a porta, ele a abriu, deixando ver um pequeno cupê de Dion, ativo e trepidante, do
qual, cessada a agitação por meio de alguma engenhosidade, emergiram duas figuras.
- Stephen!
- Como está, papai... e você, Caroline? Davie não está?
- Ainda não... ele terá licença na próxima segunda-feira.
O arco de luz do pórtico mostrou uma figura franzina de estatura abaixo de mediana, vestida de preto e forcejando com uma valise de couro - o rapaz de Mould não
aparecera - um relance, também, de feições finamente cinzeladas, narinas sensíveis, e um rosto estreito, pensativo, e um tanto sério. Então veio, com discrição,
deixando que as saudações familiares cessassem, uma jovem alta de mãos enluvadas e um comprido casaco de tweed. Seu boné de dirigir, com um véu pendente, absurdamente
como um bolo de cevada, usado apenas em deferência às instâncias maternas, não podia destruir o seu ar de tranquila compostura, uma inescapável sensação de boa educação,
confirmada por sua voz ao se reunir ao pequeno grupo.
- Lamento termos deixado atrás alguma bagagem. Minha baratinha não tem espaço para malas.
- Não se preocupe, querida Claire. Amanhã mandaremos buscá-la. O Reitor tomou-lhe o braço num gesto quase paternal. - Mas você não pode ficar conosco agora?
- Gostaria muito. Mas mamãe espera gente da aldeia... uma comissão de agricultores... arrendatários... que não podem ser despachados.
- Ah, sim! As obrigações da senhora de um proprietário rural. Não está uma linda noite?
- Perfeita. Ao passarmos por Halborough, estava claro como dia... Ela voltou a cabeça, um movimento que, dissolvendo a sombra do atroz boné, revelou um perfil puro
e regular. - Não estava linda, Stephen?
Ele ficara em pé, silencioso, num constrangimento de que agora parecia livrar-se com um esforço.
- Foi um belo passeio. - Depois, como se não tivesse dito o bastante, forçando uma frivolidade que lhe era de todo alheia: - Mas em certo ponto acho que devíamos
ter descido e empurrado.
- Em Ambry Hill - riu-se Claire. - Não sou muito entendida nas mudanças. - Seu sorriso demorou-se um instante na obscuridade do pórtico. Mas não devo detê-los. Boa
noite. Venham ver-nos logo... amanhã, se possível. E tenha cuidado com o seu resfriado, Caroline.
Quando ela saiu, Bertram pôs o braço no ombro do filho e levou-o para dentro de casa.
- É bom tê-lo em casa novamente, Stephen. Você não sabe... Ora, bem... como deixou Oxford? E como se sente? Faminto, estou certo. Corra lá em cima para ver sua mãe.
Depois, desça para o jantar.
E enquanto Caroline, com os olhos e nariz vermelhos pelo ar da noite, levantava uma sacola de livros que fora deixada, esquecida, no pórtico, o pai deteve-se um
pouco vendo Stephen subir a escadaria, olhando para cima com uma expressão que, na sua ternura descuidada, era quase um transe.
CAPÍTULO II
APÓS O EXCELENTE JANTAR, bem servido por duas copeiras que, outrora de uma primitiva grosseria de aldeãs, Caroline tinha treinado tão admiravelmente, o Reitor, amolecido,
levou Stephen para o estúdio, onde as cortinas de droguete estavam descidas e ardia um belo fogo de carvão de algas. O aquecimento da Reitoria podia não ser moderno,
mas as lareiras eram amplas e o combustível abundante. E isto se harmonizava com a sala, a despeito dos ornatos moldados, com um tom íntimo e esportivo para amenizar
o ambiente vagamente paroquial, confirmado por uma escrivaninha de tampa corrediça que continha os sermões de Pusey, o Calendário Eclesiástico, e uma estola de púrpura
dobrada. Um par de espreguiçadeiras de couro marrom flanqueava a lareira, contra uma parede estava o armário envidraçado das armas, em outra uma caixa de moedas
saxãs, produto das pesquisas arqueológicas do Reitor, e, acima do consolo da lareira, dois chicotes de cabo de osso cruzavam-se por trás de uma cabeça empalhada
de raposa.
Mais cedo, nessa tarde, preparando-se, Bertram descera ao porão da casa para uma visita à adega, e agora, com um ar ligeiramente consciente, apanhou uma garrafa
empoeirada, que deitara na cestinha, com as pintas de cal para cima, sobre a escrivaninha; tendo imperitamente tirado a rolha em pedaços, serviu dois cálices de
porto. Ele era um homem temperante, que só de raro em raro bebia álcool, e não usava tabaco, mas esta ocasião exigia um registro dentro da verdadeira tradição da
família.
- Seu avô guardou este - observou ele, segurando o cálice de vinho contra a luz e assumindo um ar de crítico. - É um GrahanVs, 1876.
Stephen, que detestava vinho do Porto, fez da sua poltrona um murmúrio de aprovação e levou o cálice aos lábios. Desempenhava, como um ator, o papel que dele se
esperava.
- Parece muito saudável.
A palavra agradou ao Reitor.
- Sim, o seu avô sabia o que estava fazendo. Foi ele que mandou colocar aquelas notáveis manilhas lá embaixo. Elas drenavam o South Meadow, como sabe, em 1878, e
sobrara boa quantidade delas. O velho viu que cada uma podia conter muito bem uma garrafa, e mandou argamassá-las na adega, como perfeitos favos... Naturalmente,
ele não era um grande bebedor. Mas gostava do seu quartilho de clarete após um bom dia com os cães. Deixou-nos, como sabe, quando tinha 70 anos.
- Deve ter sido um grande caráter.
- Era um bom homem. Um verdadeiro cavalheiro inglês do campo.
O Reitor suspirou. - Não se pode desejar um epitáfio mais belo.
- Minha avó também - acudiu Stephen devidamente, porque, desde Oxford, meditando nervosamente enquanto o trem corria pelos prados, pomares e tortuosas regiões, resolvera
ser inteiramente filial. - Ela não ficava muito atrás dele... Mould me contou muitas histórias a seu respeito.
- Ah, sim, ele era muito devotado a ela... como todos os seus serviçais. Mas ela o trazia num pé só. - Um vagaroso sorriso de reminiscência assomou aos olhos de
Bertram. - Você sabe que nos seus últimos anos a velha senhora tornou-se excessivamente gorda. Na verdade, tinha dificuldade em andar, era obrigada a locomover-se
num carrinho, e Mould, e depois o filho do jardineiro, ambos serviam como meio de propulsão. Por mais seis penies semanais. Era uma grande honra. Mas um tanto extenuante,
especialmente quando sua avó desejava ir à aldeia e tinha que ser empurrada durante todo o caminho até Ambry Hill. Num dia quente de verão, quando alcançou o topo
da colina, o jovem Mould parou para enxugar o rosto na manga. Mas ao deixar escapar a cadeira de rodas, lá se foi ela sem ele, aumentando de velocidade, zunindo
colina abaixo e em torno da curva numa velocidade vertiginosa. O coitado do rapaz ficou petrificado. Via-se como o assassino da sua ama. Com um grito de horror,
precipitou-se encosta abaixo. Quando chegou...
Stephen, encolhendo-se, pôs-se a rir; conhecia a anedota de cor.
- ... lá estava a sua avó, calmamente na praça da aldeia, barganhando com o açougueiro as costelas de um cordeiro. - O sorriso de Bertram extinguiu-se. - Era uma
mulher indomável. Imensamente caridosa. E devotada ao meu pai. Morreu somente oito semanas depois dele.
Estaria o Reitor pensando no seu próprio casamento? Lá fora, piou uma coruja. Na copa, no fim do corredor, Caroline estava mexendo em jarras de cerâmica de picles
com uma brusquidão desnecessária. Bertram endireitou-se e bebericou o seu porto, consciente de que devia quebrar o silêncio antes que houvesse um constrangimento
entre ele e Stephen. Como era estranho terem um grande carinho, e, contudo, uma sensação desse embaraço perseguir as suas relações sempre que ficavam a sós. Seria
porque ele se preocupava demasiado? Nunca tinha sentido essa falta de naturalidade na companhia dos
seus dois outros filhos. Naturalmente, ele gostava de Caroline, aceitava aquela sua fortaleza, considerava-a uma "grande presença". Mas a sua domesticidade, conservando-a
uma perpétua solteirona, chocava inconscientemente o seu senso de orgulho de família. Quanto a David, seu filho mais moço, agora com quase 13 anos de idade, aqui,
ai! o seu amor mergulhava em tristeza, decepção e pena. Pensar que um filho seu, aliás, qualquer Desmonde, fosse um epiléptico que, mesmo sem sofrer ataques, tendia
a gaguejar!
O Reitor reprimiu um suspiro. Ceder a tal sentimento era perigoso. Contudo, no seu presente humor, não havia como evitá-lo.
- Que bom ter terminado seus estudos em Oxford. Você se saiu bem.
- Oh, não sei não. No fim, pareceu-me ter perdido o ânimo.
- Eu também me senti assim quando voltei de Trinity... embora gostasse de lá tanto quanto você.
Stephen ficou silencioso. Como poderia dizer a papai que detestava a universidade?... aquela secura, a superioridade, a sensação de estar fora da vida, a interminável
preocupação com esportes que não o interessavam, o estudo sem sangue de línguas mortas que o aborreciam inexprimivelmente, de pura contrariedade, acima de tudo aperfeiçoar-se
em francês e espanhol... sua aversão a uma carreira que lhe fora determinada.
Mas o Reitor dizia:
- Você ganhou umas férias. Claire o quer para jogar ténis. Seu tio Hubert convidou-o para Chillingham. O salmão dele não esteve bom esta noite? Seu primo Geoffrey
está aqui, numa breve licença.
Novamente Stephen não respondeu. E pela primeira vez Bertram começou a se questionar, se, por baixo da sua maneira passiva, o seu filho não estava combatendo sinais
de Cansaço. Sua palidez natural parecia mais intensa, e seus olhos tinham aquela negrura aumentada que, diminuindo o resto do seu rosto, - representara desde os
seus primeiros dias um sintoma de mal-estar físico ou emotivo. Ele não é forte, espero que não esteja adoecendo de alguma coisa, pensou Bertram, com súbita ansiedade,
e rápido, protetoramente, declarou:
- Você tem mesmo que descansar. Não precisa ir à Sede antes de julho. Descontando cinco meses para Londres, a sua ordenação seria no Natal, a quadra mais conveniente
do ano.
Stephen levantou-se. Por muito tempo havia antecipado este temido momento, tentado, a conselho do seu amigo Glyn, apressá-lo, e então recuava nervoso, escrevia uma
dezena de cartas, e sempre as rasgava. Agora aquilo estava diante dele, e ele se sentia mal, vazio por dentro.
- Papai... preciso falar com o senhor.
- Sim? - Animou-o com um aceno, as pontas dos dedos juntas.
Uma pausa. Seria dinheiro?, pensou serenamente o Reitor. Alguma dívida não paga na universidade? Então, ouviu as palavras entrecortadas:
- Eu não quero ser ordenado.
A expressão do Reitor não se alterou aparentemente, como se uma súbita e completa surpresa tivesse, como a morte repentina, paralisado as suas feições numa semelhança
de normalidade. Por fim, quase estupidamente, disse:
- Não quer?
- Acho que não sirvo para a Igreja... Não sou bom com pessoas Não sei organizar... Eu seria incapaz de pregar um sermão decente, ainda que para salvar a minha própria
vida.
- Essas coisas virão. - Em pé, Bertram estava quase franzindo o cenho.
- Os meus próprios sermões não são particularmente brilhantes. Mas bastam.
- Mas papai, não é apenas isso. Eu não tenho interesse por esse trabalho. Eu... eu não me sinto capaz de sucedê-lo aqui...
Confirmado em sua primeira suspeita pela voz interrompida, o Reitor recuperou-se e assumiu um tom brando.
- Você está cansado e abatido, meu filho. Nós todos ficamos cansados e desanimados ocasionalmente. Você se sentirá diferente depois de umas caminhadas pelos Downs.
- Não, papai. - Respirando irregularmente, Stephen fortificou a sua vontade. - Venho sentindo isto há muito tempo. Não posso amarrar-me neste lugarzinho... a um
futuro vazio e frustrado.
Que tinha dito ele, procurando desesperadamente as palavras? A expressão chocada nos olhos do seu pai afligiu-o. Um momento de insuportável silêncio. Então:
- Não percebi que você via Stillwater sob esse aspecto. Somos uma pequena paróquia, talvez. Mas nosso valor para o país pode ser julgado por outros padrões que não
os da mera dimensão.
- O senhor me interpretou mal. Eu gosto de Stillwater. ., é o meu lar. E sei o quanto o senhor é estimado em quilómetros e quilómetros aqui em volta. É uma coisa
diferente... certamente o senhor entende o que eu quero dizer... o que acho que devo fazer com a minha vida.
O Reitor recuou bruscamente, e então, com toda a compreensão, olhou sobressaltado para o filho.
- Stephen... não será aquela ideia doida outra vez?
- É, papai.
Novamente um compasso de silêncio vibrou entre eles. O Reitor pôs-se de pé, e começou, lentamente a princípio, depois com crescente perturbação, a andar de cá para
lá. Finalmente, com um esforço, acalmou-se e aproximou-se de Stephen.
- Meu querido filho - disse ele com grande seriedade. - Eu nunca tentei prendê-lo a mim pelo seu senso do dever. Mesmo quando você era muito moço, antes de ir para
a escola, preferi confiar nos seus sentimentos naturais
de afeição e respeito. No entanto, deve compreender o quanto contei inteiramente com você para me suceder aqui... Stillwater significa tanto para mim... para todos
nós. E as circunstâncias da minha vida... a invalidez de sua mãe... a infeliz deficiência de David... o fato de ser o meu filho mais velho e, perdoe-me - a sua voz
tremeu ligeiramente - meu filho bem-amado - levou-me a colocar as minhas esperanças em você. Contudo, neste momento, ponho tudo isso de lado. Por minha honra, é
em você que estou pensando, e não em mim, quando lhe digo, quando lhe suplico que esqueça esse sonho fantástico. Você não compreende realmente o que isso significa.
Você não deve... não pode realizá-lo.
Stephen baixou os olhos a fim de não ver o rosto contraído do pai.
- Mas eu com certeza tenho direito à minha própria vida. - Através do seu respeito ardia uma íntima confiança.
- Não a essa espécie de vida. Ela só lhe trará infelicidade. Jogar fora as suas brilhantes perspectivas, arruinar toda a sua carreira por um mero capricho... seria
um ultraje à face de Deus. E depois há Claire... como, em nome do Céu, ela caberia nesse plano? Não, não. Você é muito jovem para a sua idade, Stephen... Essa ideia
louca que se apoderou de você pode lhe parecer muito importante agora. Mas dentro de poucos anos, rirá de si mesmo pelo simples fato de ter pensado nela.
Afundado na sua cadeira, de faces vermelhas e olhos baixos, com o espírito tardo e embotado pelo vinho do Porto, Stephen não podia achar uma palavra para dizer.
Naquele momento, sem exagero, odiava o seu pai. contudo, ao mesmo tempo, mostrava-se vencido pela vergonhosa consciência da sua afeição paternal, pela gratidão e
justiça do seu ponto de vista, e, pior que tudo, por uma tépida onda de nostalgia que lhe subia à garganta, um dilúvio de recordações da infância... as corridas
de tílburi a Ambry, seu pai afrouxando as rédeas, Carrie no seu limpo avental branco, Davie usando os seus primeiros calções de flanela; os piqueniques à beira do
Avon, o sol quente na água fria, e um pato selvagem subindo do juncal amarelo à medida que a canoa avançava; as canções familiares entoadas diante da árvore de Natal,
uma poeira de neve nas vidraças... oh, como poderia arrancar essas ternas, fortes raízes?
Bertram inclinou-se para diante e, não de modo comovente, mas com um toque de desconfiança, pôs-lhe a mão no ombro.
- Acredite-me, trata-se da sua felicidade, Stephen. Você não pode... não poderia achar no seu coração alguma coisa contra mim.
Stephen não se atrevia a erguer os olhos, com medo de romper em lágrimas. Estava liquidado... pelo menos no presente. E ele tinha pensado lutar duramente, tinha
jurado a Glyn que ganharia a partida.
- Muito bem - conseguiu murmurar finalmente, provando toda a
amargura que a derrota traz a uma natureza dócil mas apaixonada. - Se é assim que o senhor pensa, com tanta veemência... tentarei a Sede... para ver o que acontece.
CAPÍTULO III
BERTRAM SUBIU AS ESCADAS VAGAROSAMENTE. Embora fosse grande a sua sensação de alívio, não diminuía o cansaço que lhe viera de repente, nem a demorada ansiedade do
seu coração. Diante do quarto da esposa, hesitava, com a cabeça inclinada numa atitude de escuta; depois, batendo ligeiramente no painel, empertigou-se e entrou.
Era um vasto compartimento, outrora a sala de estar de cima, a melhor da casa, como referira o velho Cónego Desmonde, sem dúvida por suas belas proporções e por
dar para o sul, o que, além de permitir a entrada do sol da manhã, oferecia um vasto panorama dos Downs. Na sua conversão em quarto e sala de estar da esposa, parte
da mobília original tinha sido mantida - as cadeiras de tapeçaria e os canapés Chippendale, um largo espelho em semicírculo com moldura de gesso em cima do consolo
de mármore branco da lareira, o tapete vermelho de Bruxelas. Protegida por um guarda-vento, Julia Desmonde estava deitada, lendo, embaixo de uma cobertura de cetim.
Era uma mulher formosa e bem conservada, de 45 anos, com grande ar tranquilo e muito indolente, feições cheias e lisas, e um denso cabelo castanho espalhado no travesseiro
como uma nuvem.
Marcando com uma unha branca o lugar do livro que tinha o desenho de uma figura do zodíaco, Julia dirigiu para o marido, por baixo das finas sobrancelhas, um olhar
inquiridor. Seus olhos eram de um notável azul de amor-perfeito, quase infantis, com pálpebras carnudas quase caídas.
- Então temos Stephen em casa novamente - disse ela.
- Sim, achei que meu querido filho estava com boa aparência. Podia-se contar com ela para exprimir, na sua voz aristocrática e absorta consigo mesma, uma opinião
contrária à dele.
- E a dor de cabeça?
- Melhor, muito obrigada. Sentei-me demais ao sol esta tarde. O sol desta primavera precoce é muito traiçoeiro. Mas eu acabo de fazer um tratamento.
Ele percebeu, pelo aparelho que estava na mesa ao lado, que ela acabara de aplicar uma das suas vibrações. No guarda-fogo, uma caldeirinha de metal assobiava com
um alegre penacho de vapor, indicando que em 20 minutos o extrato de farelo seria levantado e misturado, os tabletes de fermento esmagados e engolidos, o iogurte
batido, ou desta vez seriam algas secas? Então a bolsa de água quente seria reenchida, o fogo disposto para a noite, as luzes diminuídas, as almofadinhas para as
pálpebras umedecidas e colocadas para dormir. E outra vez, embora lutasse contra ela com determinação cristã, a pergunta lhe veio: Por que cargas-d'água tinha casado
com ela?
Ela fora, sem dúvida - aliás ainda o era, evidentemente na sua maneira estatuesca, uma espécie de beleza, e como filha única de Sir Henry Marsden de Haselton Park,
tinha sido considerada pela sociedade do campo daquela ocasião "o partido da estação". Quem, olhando-a, teria adivinhado, por exemplo, que aquela jovem com a graça
de um cisne, anfitriã da Haselton Fête, considerada a beldade do baile de caça, cercada por jovens oficiais dos quartéis de Charminster, sorridente mas composta,
centro de atração, mais tarde revelaria a acentuada peculiaridade de ser tão inteiramente inútil para ele como esposa?
A não ser por uns poucos garden-parties nos seus primeiros anos de casados, quando arrastava um guarda-sol com babados, movendo-se graciosamente sobre a relva, com
um chapeirão, ela se recusara com pacífica resolução a tomar interesse pelas obras da paróquia. "Deus", dizia ela amavelmente, "não há nenhum sentido em levar sopa
para rústicos indigentes ou estragar os nervos costurando roupa de criança para encorajamento da população rural." Afortunadamente, a mulher do bispo gostava dela,
mas ela não recebia as senhoras da clerezia menor.
Preferia passar os dias sentada, exageradamente vestida, à sua janela, ou no roseiral, empenhada num interminável bordado em seda colorida, do qual levantava a cabeça
repetidamente para olhar por longos períodos o espaço, ou tomar notas ocasionais, quando lhe ocorriam, do que haveria de comunicar ao seu médico, que - tendo há
muito esgotado o doutor do condado - visitava duas vezes por mês em Londres. Seus filhos, que ela suportava com uma facilidade distraída, não tinham sido para ela
mais do que episódios momentâneos. Desde que não a incomodassem, ela os considerava com remota indulgência. Contudo, ao aumentar, mais e mais, o seu alheamento,
ela se retirava para si mesma, criando uma existência que se desenvolvia em torno das suas funções físicas, um pequeno mundo de feliz hipocondria, no qual - poderia
ele, ó Deus, tê-lo previsto quando naquela tarde cheirando a rosas, 20 anos atrás, ele quase morrera de dor com o seu beijo aromático? - ela não tinha maior prazer,
nenhum interesse mais vivo, do que discutir amavelmente com ele a cor dos seus tamboretes.
Talvez o cavalo de campanha empalhado no saguão paterno - lembrança de Balaclava - devesse tê-lo advertido, mas, ai! podia ter predito que o pai dela, até a idade
de 60 anos, não era mais que um excêntrico amável, dedicado em suas horas de fazer as pesquisas mecânicas - a eletrificação da sua propriedade por uma cadeia de
moinhos de vento, a inócua construção de um canhão de tiro rápido que, recusado pelo Ministério da Guerra, tinha não mais do que levado ao céu, na sua parte de carne,
o mordomo da família, que, em nome de Deus, devia ter previsto que aquele irreprimível doido teria, na sua caduquice, lançado subitamente um grandioso projeto para
a construção de uma máquina voadora, como a que foi subsequentemente voada por Blériot através do Canal da Mancha, embora aquilo em si mesmo fosse extremamente doentio,
e não passasse de uma feia geringonça com fantásticos parafusos, supostamente capaz de subir do chão na vertical: um helicóptero. Assim, em desafio às leis da gravidade,
Sir Henry profanara o seu belo parque com alpendres e hangar, operários importados, engenheiros, um mecânico belga, gastara dinheiro como água, em resumo, arruinara-se,
e, permanecendo no chão, morrendo como alvo de mofa.
Haselton, que devia ter sido de Julia, era agora uma escola para meninas, o grande hangar um ginásio, e os alpendres - horrores - recém pintados depósitos para tacos
de hóquei enlameados e sapatos desemparceirados de lona.
Seria possível, pensava Bertram, com novo abatimento, que algo dessa instabilidade agora se manifestasse em Stephen? Não, não... impossível. O filho, tão de perto
parecido com ele em corpo e alma, era todo dele, de fato o seu outro eu. No entanto, devido à sua ansiedade, a nuvem que pairava sobre o seu espírito, era tentado,
a despeito do seu melhor juízo, a abrir a mente e procurar alguma espécie de consolo da parte de sua esposa.
- Minha querida - disse ele. - Enquanto Stephen estiver conosco, acho que devemos fazer um esforço para afastá-lo de si mesmo.
Julia mirou-o surpreendida. Ela possuía em grau notável a faculdade de torcer o sentido do que lhe diziam.
- Meu caro Bertram, você sabe muito bem que não posso fazer qualquer esforço. E por que Stephen deve ser afastado de si mesmo?
- Eu... eu estou preocupado com ele. Ele sempre foi um rapaz incomum. Está atravessando uma fase difícil.
- Difícil, Bertram? Ele já não passou pela puberdade?
- Naturalmente... mas não sei o que se passa com esses rapazes. Na primavera, metem ideias estranhas na cabeça.
- Você quer dizer que Stephen está em estado de amor?
- Não... bem, sabemos que ele gosta de Claire.
- Então o que quer dizer? Ele não pode estar doente. Você mesmo disSe um momento atrás que ele está muito bem.
- Foi você quem disse isso. - A despeito de si mesmo, Bertram falava com crescente impaciência. - Acho que ele está longe de se sentir bem. Mas vejo que você não
deseja participar da minha ansiedade.
- Desejo que me fale, meu querido, não faço nenhuma objeção a ouvi-lo. Mas não é suficiente você estar aborrecido sem me aborrecer? Acho que
fiz a minha parte em trazer os seus filhos ao mundo. Sempre houve, do primeiro ao último, pouco prazer nessa tarefa. Depois, você fez deles sua responsabilidade.
Eu jamais interferi. Por que devo fazê-lo agora?
- É verdade - disse ele, tentando reprimir a sua amargura. - Faria pouca diferença para você se Stephen arruinasse a vida dele. Julia, há alguma coisa nele, algo
debaixo da superfície, que eu não compreendo. O que é que ele realmente pensa? Quem são os seus amigos? Não se lembra de que quando Geoffrey o visitou no ano passado,
em Trinity, encontrou lá a pessoa mais inesperada no seu alojamento... um excêntrico de primeira, foi como Geoffrey o chamou, um artista desmazelado... um galês
Interrompeu-se, olhando quase súplice para ela, até que ela foi obrigada a responder. Sua voz era suave.
- Que tem você contra os galeses, Bertram? Eles possuem belas vozes. Esse galês canta?
- Não - replicou Bertram, corando. - Ele vive insistindo com Stephen para que vá a Paris.
- Muitos jovens já fizeram isso antes, Bertram.
- Até concordo. Mas, desta vez, não pela razão óbvia.
- Então por que razão, se não é para ter uma mulher francesa?
- Para pintar!
Tinha-o dito, livrara-se daquilo afinal; e tensamente, embora com uma certa sensação de alívio, esperou, em silêncio, que ela falasse.
- Devo confessar, Bertram, que não vejo mal algum nisso tudo. Lembro-me de que, quando estive em Interlaken com papá, fiz algumas deliciosas pequenas aquarelas do
lago. Azul era o tom predominante. Stephen sempre gostou de desenhar. Aliás, foi você quem lhe deu a primeira caixa de lápis de cor.
Ele mordeu forte os lábios.
- Isso não é ocupação de criança, Julia. Sabe que há mais de um ano, sem nos dizer uma palavra, ele tem viajado de Oxford para assistir às aulas noturnas de arte
em Slade?
- Slade é uma instituição respeitável. Stephen terá bastante tempo para fazer seus esboços entre os sermões. E, sem dúvida, desenhar é Um calmante para os nervos.
Ele refreou o seu impulso de gritar. Por um momento, manteve os olhos baixos, no tom de quem foi Vencido, mas, respirando um pouco depressa demais, disse:
- Espero que tenha razão, minha cara. Suponho que me preocupo desnecessariamente. Sem dúvida ele se restabelecerá logo que entre na rotina do seu trabalho em Londres.
- Sem dúvida. E, Bertram, resolvi que, em vez de Harrogate, irei a Cheltenham no mês que vem. Lá há águas minerais, e dizem que são excelentes para promover a secreção
da bile. Quando o Dr. Leonard examinou a minha urina pela última vez, encontrou uma acentuada insuficiência de sais biliares.
Ele deu boa-noite, em tom baixo, e saiu rapidamente, antes que dissesse coisa pior.
Ao sair do quarto, podia ouvir no corredor o lento tique-taque da máquina de Caroline, que, sem se poupar, batia as notas para o seu discurso do dia seguinte.
CAPÍTULO IV
NUMA TARDE CINZENTA E ENEVOADA, seis semanas mais tarde, Stephen, voltando de uma visita de casa em casa, caminhava lentamente pela Clinker Street, no East Stepney.
A nuvem sulfurosa sobre as docas de Londres tornava o estreito logradouro mais triste e opressivo para ele. Nenhuma luz, nenhuma cor - somente a inércia dos carros
de descarga vazios, os paralelepípedos graxentos, um cavalo da zorra de um cervejeiro fumegando na chuva, com os arreios dentro de um saco gotejante. Um ônibus ruidoso
passou no rumo oeste, salpicando-o de lama quando ele voltava para a Sede.
Aquela construção de tijolo vermelho, erguida no alinhamento das casas de estuque derruídas que se inclinavam ao longo da rua como velhas decaídas, agora mais do
que nunca parecia-lhe uma pequena mas eficiente penitenciária. Nesse momento, abriu-se a porta da frente e o Guardião, o Reverendo Crispin Bliss, saiu, de guarda-chuva
em pé, nariz levantado para farejar o tempo, alto, magro, envolto até os sapatos em uma comprida capa impermeável preta. Um encontro, pensou Stephen, era inevitável;
e aproximou-se.
- Ali, Desmonde... já de volta?
O tom frouxamente cordial era, achou Stephen, o de um homem que procurava gostar dele e não podia, a despeito da melhor das intenções e dos reclamos do amor fraterno.
Inquestionavelmente, o Reverendo Crispin Bliss, membro da confraria de St. Cuthbert era um clérigo devotado que trabalhava
arduamente pelo bem da sua vinha infrutífera. Clérigo menor, com fortes tendências evangélicas, era um homem de sincera embora limitada piedade. Religião à parte,
porém, a sua maneira era muito pouco atraente: seco, académico, suscetivelmente superior. Igualmente infeliz era a sua maneira de caminhar com a cabeça atirada para
trás, o ar nobre com que procurava se proteger, e, sobretudo, a sua voz rachada, ligeiramente fanhosa, parecendo sempre pronta a pronunciar contradições culturais
em notas de agudo falsete. Quase no início, Stephen tivera a má sorte de ofendê-lo.
No corredor superior da Sede estava pendurado um cruento quadro do martírio de São Sebastião, que para Stephen sangrava de novo sempre que ele saía da sua sala.
Desde que a pintura parecia ignorada por todos menos ele, uma manhã, num momento de aversão, virou-a contra a parede. O ato passou aparentemente despercebido. Mas
na ceia dessa noite, com um sorriso magoado que passou por cima dos seus dois coadjutores, Loftus e Geer, e foi repousar em Stephen, o Guardião observou, nos seus
tons mais nasais:
- Não faço objeção ao humor, mesmo na sua forma mais disfarçada, a brincadeira de mau gosto. Mas interferir em qualquer objeto desta casa que por seu assunto ou
associação possa ser considerado como sagrado é, para o meu espírito, um ato indecoroso e irreligioso.
Stephen corou até a raiz dos cabelos e manteve os olhos no seu prato. Não tinha querido fazer mal algum, e quando a refeição terminou, o desejo de explicar-se levou-o
ao Guardião.
- Lamento ter virado o quadro. A única desculpa que posso oferecer é que ele bulia com os meus nervos.
- Com os seus nervos, Desmonde?
- Bem... sim. É de um gosto muito chocante, além de ser evidentemente uma falsificação.
- Não posso compreendê-lo, Desmonde. O quadro é um legítimo Carlo Dolci.
Stephen sorriu em tom de desculpa.
- Oh, dificilmente, senhor. Nem sequer isso. Além das pinceladas grosseiras, e do pigmento moderno, é pintado em tela branca de cânhamo - um tecido que só foi manufaturado
por volta de 1890, uns bons 200 anos após a morte de Dolci.
A expressão do Guardião petrificou-se. Respirava rapidamente pelas narinas, não fogo precisamente, mas a contrapartida cristã da cólera - justa indignação.
- Acontece que esse quadro é meu, Desmonde, e uma propriedade muito estimada. Comprei-o de um jovem na Itália, de fonte impecável. A despeito da sua opinião, continuarei
a apreciá-lo como o original de uma obra de arte.
Agora, todavia, havia menos hostilidade do que vigilante moderação no
olhar com que o Guardião, parado na chuva, ofereceu a Stephen o abrigo do seu guarda-chuva e perguntou:
- Fez a série de Skinner esta tarde?
- Praticamente toda, senhor.
Não queria confessar que, esperando a visita de Richard Glyn, tinha saltado os números ímpares.
- Como encontrou a velha Sra. Blimey?
- Não muito bem, receio.
- A bronquite da pobre criatura piorou? - Depois, como Stephen hesitava, parecendo inquieto, ajuntou: - Ela precisa do médico?
- Não... não exatamente. Aliás, encontrei-a muito embriagada.
Houve uma pausa perturbadora, então veio a pergunta um tanto mundana:
- Como é que ela conseguiu dinheiro?
- Acredito ser o responsável, senhor. Dei-lhe seis xelins ontem para que pagasse o aluguel do quarto. Ela parece que o gastou em gim.
O Guardião fez um som, estalando a língua.
- Bem... vivendo e aprendendo, Desmonde. Não o censuro. Mas você não deve pôr a tentação no caminho das pobres criaturas de Deus.
- Acho que não. Por outro lado, quem pode censurá-la por tentar escapar à miséria umas poucas horas? Ela sofre do peito, não arranja trabalho de costura de qualquer
espécie, deve o aluguel ao senhorio e já empenhou quase tudo no seu quarto. Devo confessar que me senti quase contente ao vê-la rolar num estado de feliz esquecimento.
- Desmonde!
- E o que é mais... não pude deixar de pensar que se algum de nós estivesse naquela situação teria feito exatamente a mesma coisa.
- Ora, vamos. Isso é levar o caso um pouco longe demais. Nós nunca devemos, queira Deus, achar-nos em tais situações desagradáveis. - Abanou a cabeça em reprovação
e abriu o seu guarda-chuva. - Haverá reunião dos rapazes esta noite? Trocarei uma palavra com você a esse respeito depois da ceia.
com um aceno de despedida, um tanto distante, pôs-se a caminho, deixando Stephen a subir as escadas para o seu quarto, um estreito cubículo forrado de carvalho claro,
com um consolo gótico e uma estante de livros giratória - A cama ainda não tinha sido feita. Os residentes da Sede deviam arranjar-se sozinhos, era o que se esperava;
de manhã, por exemplo, Stephen iria encontrar-se regularmente com Geer, o coadjutor, um brilhante e musculoso cristão, levando o seu urinol cheio para o banheiro
com ar de sincera despreoCupação.
Contudo, para que a tradição monástica não parecesse muito severa, uma pequena moça de fora, chamada Jenny Dill, vinha do distrito,
ostensivamente para dar os retoques finais, na realidade fazer a maior parte do trabalho. Quando Stephen se atirou, ainda, de chapéu e casacão, numa cadeira Morris,
podia ouvir os seus passinhos rápidos no quarto de Loftus através da fina parede que servia de repartição. Loftus, um belo rapaz, exigente e moderado, muito elegante
de uma maneira sacerdotal, sempre lhe deixava muito que fazer, tal como sapatos para lustrar, roupas atiradas e por escovar. Contudo, ela parecia ter acabado essas
tarefas, porque, em poucos minutos, houve uma batidinha na porta do seu quarto e, trazendo espanador e balde, ela entrou lepidamente.
- Oh, senhor, perdoe-me... Não sabia que estava aqui.
- Não tem importância, entre.
Observou-a ausente quando ela começou habilmente a tirar os lençóis e a virar o colchão. Era uma mulherzinha agradável, com as faces muito coradas, como se tivessem
sido esfregadas com pó de tijolo, brilhantes olhos castanhos e uma franja de cabelo preto. Parecia, pensou ele, uma moça típica das camadas populares de Londres...
inteiramente competente e que ninguém poderia enganar. No entanto, havia nela algo mais do que ordinário: um ar de simplicidade bem-disposta, uma inocência, uma
afabilidade afetuosa, e, acima de tudo, um vigor, como se ela não pudesse conter a energia e deleite que pulsavam no seu corpo jovem e sadio. E ao mover-se de um
lado para outro com precisão, a cintura fina, o busto pequeno mas firme, inconsciente de que ele a observava, ou pelo menos de nenhuma maneira perturbada com isso,
instintivamente a sua mão pegou o lápis e um bloco de cima da escrivaninha.
Dali a pouco, quando ela foi à lareira, curvou-se e começou a tirar as cinzas. Nesse momento, o seu interesse aumentou, e quando ela fez menção
de levantar-se, ele a deteve bruscamente.
- Por favor, não se mexa, Jenny.
- Mas, senhor.
- Não, não. Volte a cabeça e não se mexa.
Enquanto ela, obediente, voltava a cabeça, mantendo a sua posição curvada, os dedos de Stephen moviam-se nervosos sobre o papel.
- Pensa que sou maluco, não é, Jenny? Todos os outros do distrito também pensam.
- Oh, não, senhor - protestou ela vigorosamente. - A gente acha é que o senhor é um bocado esquisito, desenhando no clube dos rapazes e coisas assim, diferente de
um coadjutor regular, que ensina eles a lutar boxe. Ora, quando o Sr. Geer trouxer os grandões e eles se pegarem, vai ver que quase se matam um ao outro. E mal vai
poder reconhecer eles, com os olhos pretos e as ventas sangrando. Não, não é o que parece muito natural, acho, Mas a gente pensa que o senhor é mesmo um cavalheiro
muito delicado.
- Isso é animador... e apesar da ausência de sangue. Diga-me uma coisa,
Jenny, se você fosse uma velha doente, de cama, preferiria uma Bíblia ou uma garrafa de gim?
- Eu tenho uma Bíblia, senhor... aliás, duas. O Sr. Loftus e o Sr. Geer me deram uma cada um. A do Sr. Loftus tem umas lindas fitas coloridas. Sou capaz de dizer
que se eu estivesse mal mesmo, o gim até que vinha bem.
- Não fuja, Jenny. Você é honesta como o dia. Diga-me: o que é que você pensa disto aqui?
Lentamente, ela relaxou, aproximou-se e examinou dubiamente o desenho que ele lhe entregara.
- Não sei nada dessas coisas, senhor... mas acho mesmo bonito.
- Ora, sua garota tola, não está vendo que é você?
- Bem, já que o senhor diz - respondeu ela modestamente - parece comigo de costas. Eu só queria não estar com a minha roupa velha e com um rasgão bem ali, tão encabulante,
na abertura da saia.
Stephen riu-se e atirou o bloco para a escrivaninha.
- É da saia velha que eu gosto. Gostaria que você posasse para mim. Eu lhe pagaria cinco xelins por hora.
Ela olhou rapidamente para ele, depois desviou os olhos.
- Isso não seria muito correto, seria, senhor?
- Ora, tolice - disse ele descuidado. - Onde é que está o mal? Mas acho que você não está interessada...
- Bem, senhor... - Ela falava acanhadamente, e uma cor mais viva lhe veio às faces. - Na verdade, se tudo estivesse em ordem, eu bem que poderia fazer mais uns cobres.
- Como?
- É, senhor O senhor sabe... eu espero me casar logo.
- Parabéns. Quem é o felizardo?
- O nome dele é Alfred, senhor. Alfred Baines. Ele é camaroteiro num barco da Orient Lane. Vai estar na terra no outro mês, sem ser esse que vem.
- Excelente para você, Jenny. Não admira que queira ganhar mais um dinheirinho. Quando larga?
- Quando termino de arrumar o seu quarto, senhor. Aí pelas cinco.
- Bem, então... suponha que fique mais uma hora, das cinco às seis, duas vezes por semana. Posso pagar-lhe cinco xelins de cada vez.
- Isso é mais do que generoso, senhor.
- É muito pouco realmente. Mas se você não achar o trabalho muito cansativo, posso lhe dar um bilhete para um amigo meu que ensina nas turmas noturnas no Slade.
Ele terá prazer em empregá-la por uma breve temporada...
Ele não vai esperar que eu, senhor... - Jenny tornou-se rubra.
- Por Deus do céu, não - disse Stephen bondosamente. - Você vestirá uma espécie de costume. Provavelmente ele vai querer somente a sua cabeça e ombros.
- Então ficarei muito agradecida, senhor. . . fico mesmo... especialmente ao senhor.
- Então fechamos negócio? - pergunta ele, sorrindo, aquele raro sorriso que iluminava a sua face e o tornava tão atraente, e estendeu-lhe a mão.
Ela corou, e aproximou-se. Seus pequenos dedos, de unhas mal cortadas ou quebradas, estavam quentes e secos, com cicatrizes nas pontas e frieiras curadas. Contudo,
era uma mão extraordinariamente agradável de segurar, nela estava a pulsação do seu jovem corpo; ele mal pôde soltá-la. E quando o fez, ela se voltou para a porta.
Estava agora um tanto pálida, e sem olhar para ele disse:
- O senhor sempre me tratou tão gentilmente, Sr. Desmonde, é mesmo um prazer fazer as coisas para o senhor. Eu sempre dou ao seu quarto um extra. E lustro muito
bem os seus sapatos, porque... ora, porque são seus, senhor. - Interrompeu-se, e desapareceu.
Para quem era atormentado por humores de autodepreciação, aquelas palavras trouxeram um esquisito calor. Mas logo a momentânea alegria de Stephen sumiu, ele se tornou
novamente consciente de si mesmo, do seu ambiente, e da tristeza que o esperava adiante. Desejou que Glyn aparecesse logo.
Apanhando o Evidences, de Paley, que prometera ao seu pai ler, tentou mergulhar no livro. Mas era inútil. Não tinha interesse nele, detestava a vida que estava levando,
desde que chegara à Sede: a visitação, as aulas de Bíblia, o clube - embora à sua maneira tentasse animá-lo - a terna hipocrisia das palavras alimentando a fome
e o frio das pessoas, enquanto ele e os outros da sua raça permaneciam aquecidos e bem nutridos.
Podia compreender um homem que entrasse para a Igreja por sua natureza profundamente religiosa, por sentir que a sua missão predestinada era ajudar o próximo. Mas
assumir uma existência confortável sem uma forte vocação, por motivos que eram claramente materiais, parecia-lhe a pior espécie de fraude. E, além disso, ele não
tinha a sua própria vocação, um chamado que o mantinha cingido ao seu próprio coração? Que tolo fora em se deixar levar a semelhante passo, como um carneiro estúpido
entalado entre as portas de uma feira do campo. E agora que ali estava, parecia não haver como sair.
Justamente então soaram passos de sapatos pesados nas escadas de madeira, e poucos segundos depois um homem alguns anos mais velho que Stephen foi entrando no quarto
e atirou-se sem fôlego numa cadeira. Era de porte mais do que mediano e fortemente construído, com um cabelo vermelho cortado e uma curta barba vermelha eriçada,
de feições vigorosas, os olhos, sob sobrancelhas bem marcadas, vivazes, rebeldes, contudo muito divertido naquele momento. Vestia calças de pele de toupeira e uma
blusa de operário,
um lenço pintalgado de vermelho amarrado no pescoço; tinha o ar de um bucaneiro, fanfarrão, livre, cheio de um vigoroso prazer pela vida. Dali a pouco, quando cessou
a sua transpiração, puxou um relógio de metal, ligado a ele por um pedaço de cordão esfiapado de quadro.
- Bem na hora - observou com satisfação. - Não está mau para Whitehall.
Embora advertido da paixão espasmódica de Glyn pelos exercícios violentos, Stephen estava moderadamente surpreso.
- Você andou todo o caminho?
- Corri - disse Glyn, enxugando o suor. - Foi diabolicamente divertido. Botei toda a polícia a correr, pensando que eu tinha assaltado um banco. Mas que sede me
deu! Suponho que não haja um pingo de cerveja nesta casa de Deus, não é?
- Sinto, Richard. Não nos permitem tê-la em nosso quarto. Posso lhe dar chá... e biscoitos.
Glyn explodiu em gargalhadas.
- Vocês, jovens teólogos. Como podem combater Satanás com chá e biscoitos? Mas se não for incómodo, traga-os. E acrescentou, mais sério: Sinto não poder ficar muito
tempo, mas eu queria vê-lo.
Conversaram enquanto Stephen fervia uma chaleira de folha no bico de gás junto à lareira. Pronto o chá, Richard bebeu quatro xícaras da desprezada beberagem e, de
uma maneira ausente, liquidou um prato de macarrão. Depois, um tanto embaraçosamente, a conversa cessou.
- A sua mostra correu bem? - perguntou Stephen por fim.
- Muito bem - respondeu Glyn descuidadamente. As críticas foram tão perfeitamente depreciativas que atraíram público.
- Mas você vendeu alguma coisa.
- Um vermelhinho. E tudo porque sou galês. A Galeria Nacional de Cardiff comprou-o. Encorajando o talento nativo... filho de um mineiro e assim por diante.
Houve uma pausa.
- Contudo - resumiu Glyn - o dinheiro me safou das dívidas, e Anna e eu partimos para Paris amanhã.
Stephen empertigou-se imperceptivelmente, um reflexo de todos os seus nervos, não apenas ao som de uma palavra que o perseguia, mas porque naquela maneira demasiado
despreocupada ele pressentiu o verdadeiro motivo da visita de Glyn. Procurou dominar a voz.
- E quanto tempo pretende ficar por lá?
- No mínimo um ano. Vou viver barato e trabalhar como um mouro. Acredite se quiser, Paris é um lugar maravilhoso para trabalhar. - Fez uma pausa e atirou um rápido
olhar para o outro. - Você não vai mesmo conosco?
Stephen sentiu um nó na garganta. As suas mãos, nos braços da poltrona, mostraram os nós dos dedos.
- De que jeito? Você conhece a minha situação.
- Ao mesmo tempo, tive a impressão de que você queria pintar.
Stephen, de cabeça baixa, não respondeu. De súbito ergueu os olhos.
- Glyn... se eu jogasse tudo fora... teria mesmo sucesso como artista?
- Ora, ora, Desmonde - Glyn inclinou-se para diante, de cenho cerrado, - Que pergunta mais idiota. Sucesso? Que quer dizer com sucesso? Então você não sabe que neste
jogo não pode haver garantias, que você não tem mais que você no momento em que se resolve? E você não entra nisso por nenhuma outra razão a não ser a de que não
pode evitá-lo. Se for para valer, abandona tudo, passa fome, rouba, engana a sua avó, transgride cada um dos Dez Mandamentos, só para ter nas suas mãos um tubo de
tinta e uma espátula.
Glyn interrompeu-se, relaxou a postura e continuou, mais serenamente:
- Acredito que você tem talento, possibilidades extraordinárias, do contrário não ia aborrecer o meu bestunto a seu respeito. Eu sei como é duro para você... atolado
na tradição. Você teve todos os inícios errados. Devia ser como eu, nascido numa vila de operários, numa nojenta cidade carvoeira. Mas, assim, você mesmo é quem
tem que decidir. E se não se decidir, atrevo-me a dizer que dará um pastor aceitável. - Tirou de repente o seu relógio niquelado. - Bem, tenho que ir. Preciso reunir
umas coisas. E juntar isto com aquilo. Adeus, Desmonde. Escreva-me quando tiver tempo.
Stephen permaneceu imóvel. Glyn levantou-se. Ao dar o primeiro passo, viu sobre o consolo da lareira um cartão perfurado com as cores do Clube de Críquete Marylebone.
Era um bilhete para a partida de criquete entre Oxford e Cambridge, a ser disputada no mês seguinte. Acompanhando o olhar de Glyn, Stephen corou.
- Tenho que ir - disse ele secamente. - Toda a família irá.
CAPÍTULO V
A PARTIDA TINHA TERMINADO, as balizas haviam sido retiradas, e enquanto o sol lançava sombras compridas sobre a quadra relvada do Lord's, um grupo de sete pessoas
podia ser observado entre a elegante assistência - dificilmente se poderia referir essa afluência como uma multidão - andando
vagarosamente para os portões principais na St. John's Wood Road. Caroline e Claire iam na frente com Davie e seu primo Geoffrey, enquanto poucos passos atrás, Stephen
acompanhava o General Desmonde e sua esposa. Uma emergência na paróquia tinha impedido no último instante o Reitor de estar presente, e Julia, claro, era uma ausente
anual. Por isso, Stephen tinha vindo somente para estar com o irmão, e enquanto Davie tinha grande prazer em ver o jogo - o que era mais tocante, uma vez que, devido
à sua afecção, não lhe era permitido jogar críquete - teve em certa medida a sua recompensa, pois o dia tinha sido duro para ele, e ainda lhe ressoavam na cabeça
os incessantes gritos de Geoffrey de "Boa jogada, senhor", e, como sempre, a mulher do General raramente pensava nela como tia Adelaide - tinha exercido sobre ele
uma familiar combinação de condescendência e arrogância que despertava os seus mais perversos instintos. Mulher dominante, fria, de rosto fino, criada na tradição
do Exército e endurecida nos sóis da Índia, ainda era bonita, de uma maneira dura e atrevida, e possuía uma figura admirável, embora tendendo para a magreza, seu
olhar às vezes letal como um golpe de baioneta.
Agora, ao deixarem o campo e permanecerem juntos um tanto indecisos, enquanto carruagens e cabriolés saíam da calçada, ela falava com rapidez, na sua voz apressada
"do condado".
- Hoje foi um dia tão delicioso, que é uma pena deixá-lo morrer prematuramente. - Voltou-se para o marido. - Tem alguma sugestão, Hubert?
O General Desmonde examinou o grupo. Alto, feições retas, ereto como uma vareta de espingarda, até no chapéu de forma cinza e no fraque matutino, parecia um soldado,
um soldado notável. Um bigode curto acentuava a brevidade incisiva da sua fala.
- Pensei que poderíamos cear no Frascati's.
- Magnífico, papai - disse Geoffrey, endireitando a gravata e depois o colete bordado, talvez pela ducentésima vez, como se estivesse determinado a manter a supremacia
de alfaiataria que fazia dele, tinha certeza, um alvo de admiração. Estilo, que ele chamava de boa forma, era na verdade a sua maior ocupação, fosse numa praça de
armas ou em Piccadilly, e que já o configurava, na idade de 24 anos, como modelo de um elegante, ainda que um tanto tolo, jovem de sucesso da sociedade.
- Davie tem que voltar às sete - interpôs Caroline. - E já passam das seis. Mas ninguém precisa se incomodar, vou levá-lo ao trem.
- Querida, você é tão gentil e tão atenciosa - disse Adelaide sorrindo. Ela não queria Caroline no Frascati's com o seu rosto vermelho de sol como uma peônia, e
naquele medonho vestido marrom que a fazia parecer uma copeira no seu dia de folga, aquelas pernas também, que desgraça, como as patas de um piano de cauda; Caroline,
para tia Adelaide, era sempre uma responsabilidade social, uma mortificação anual no baile de caça, quando, sentada na
entrada do salão, com seu jornal na mão, sem que ninguém a tirasse para dançar, esperava tristemente que algum velho cavalheiro se dirigisse a ela; e agora já tinha
sido bastante desagradável tê-la com eles durante o dia inteiro. - Você deve vir uma outra vez.
- Acho que também tenho que voltar - disse Stephen. Se Davie não fosse, ele não teria nenhum prazer em ir.
- Tem mesmo? - Hubert franziu o cenho, bem-humorado; ele até gostava, ou pelo menos tolerava, aquele jovem sobrinho e futuro pastor. - Tão cedo?
- Mas é claro que você pode ficar, Stephen. - Claire estava ao seu lado, contida, mas de certo modo rogando, com a sua tez macia e feições tão bem modeladas, sombreadas
por um chapéu de aba larga enfeitado de rosas. Hoje mais do que nunca, naquele ambiente, ela parecia o que era: a mais amável das moças inglesas, cujo bom senso,
maneiras e cordialidade franca e agradável faziam amigos onde quer que estivesse. - Fica, sim - ajuntou ela.
- Querida - interveio Adelaide antes que Stephen pudesse responder - não devemos interferir com as regras e regulamentos. Afinal de contas, a vida na Sede, imagino,
é mais ou menos monástica, não é, Stephen? e muito digna, estou certa. É mesmo uma lástima que você não possa vir. Geoffrey acompanhará Claire, e eu pretendo que
Hubert seja o meu galã. Adelaide tornou a sorrir, e com satisfação, pois tinha as suas razões para não desejar que Stephen fosse um do grupo.
- Não podemos deixá-la em alguma parte, Caroline? - perguntou Hubert.
- Oh, não, Davie e eu iremos de metro.
- E eu de ônibus - disse Stephen.
Trocaram-se despedidas, e então, vagamente consciente do desgosto nos olhos de Claire, Stephen afastou-se com Caroline e Davie. Como ainda tinham alguns minutos,
deteve-se no Fuller's da Park Road para oferecer um sorvete de morango ao seu jovem irmão e uma taça de chá a Caroline, que, sub-repticiamente descalçando os sapatos,
confessou que estivera mortificada todo o dia. Depois ele os deixou no metro da Baker Street e tomou o ônibus nº 23 para a zona leste.
Ao matracolejar para Stepney, a despeito do alívio de estar novamente entre gente impolida que não pedia mais do que a sua parte numa cadeira dura, uma lenta depressão
foi tomando conta de Stephen. Como se sentira física e espiritualmente diminuído, como se sentira diferente dos outros durante voltas em todas as metas de críquete,
os encontros e cumprimentos, o almoço no Guard's Club Marquee - "seu diabinho" - quase podia ouvir o pensamento por trás dos olhares indiferentes dirigidos para
ele pelos amigos do primo, ao discutir com Geoffrey a última comédia musical, a corrida de obstáculos
de Sussex, e a última fantasia para o Cambridgeshire. Com esta disposição, chegou à Sede. No saguão, ainda redolente dos odores do bife refogado com repolho do meio-dia,
passou por Luftus, que saía, e deu-lhe uma "boa-tarde". O coadjutor noviço mal respondeu e escorregou para a frente, discreto e elegante, o olho com um tal brilho
de malícia e divertimento, que Stephen recuou instintivamente.
- Que é que há, Loftus?
Já na porta, o outro como que se voltou, com lábios torcidos e apertados pelo humor eclesiástico.
- Então não sabe?
- Claro que não, o que é?
- Não muito, acho eu. A não ser que a pequena Dill parece estar em maus lençóis.
De que diabo estava ele falando? pensou Stephen. Mas deu de ombros, e vendo que não havia correspondência na estante, subiu as escadas. Sentada tesa numa cadeira
dura no centro do seu quarto, usando as suas roupas de sair à rua, um chapéu de palha chato com uma fita estreita, e luvas brancas de algodão, estava Jenny.
Levantou-se imediatamente quando ele entrou, mas com compostura, e enquanto ele a olhava com surpresa, uma vez que ela normalmente não vinha à Sede nos sábados,
ela começou:
- Peço-lhe desculpas pela liberdade, senhor. Mas eu queria estar certa de encontrá-lo. E parece que não havia outro jeito senão eu esperar.
- Muito bem - disse ele incerto. - Não quer sentar? Assim é melhor. Então, que é que há?
Enquanto ele ia até a lareira, ela tornava a sentar-se na beira da cadeira, com as luvas cuidadosamente dobradas.
- Bem, senhor. O fato é que vou embora, hoje, meio de repente. E como o senhor tem sido tão bom para mim, achei que tinha que vir lhe dar adeus.
- Oh, Jenny, sinto muito. Não imaginei que você nos deixasse tão cedo.
- Nem eu, senhor. Mas a verdade é que me despediram.
- Despediram? - repetiu ele desnorteado.
- Sim, despediram. - Acenou com a cabeça, francamente, no seu modo prático, sem acanhamento. - A culpa foi minha. Ontem fui tão boba que vim sem o meu espartilho.
Eu nem notei que já começava a aparecer. Mas não há jeito de enganar essa cozinheira. Correu para o Guardião como uma flecha.
- Mas de que diabo está falando?
- Não está vendo, senhor? Vou ter uma criança.
Ele ficou tão desconcertado que não conseguia achar o que dizer.
- Oh, Jenny, como é que você...?
- Acho que me deixei levar, senhor.
- Como?
- Nós todos temos sentimentos, senhor. Não se pode fugir disso. Oh, eu sou muito respeitável, garanto lhe. Alf é um sujeito correto. Camaroteiro de navio, como eu
lhe disse. Vamos casar quando ele voltar.
Houve uma breve pausa, enquanto Stephen a estudava com simpatia.
- Suponho que você o ama.
- Acho que deve ser isso, senhor. - Um ligeiro e sábio sorriso passou-lhe pelo rosto jovem e fresco. - Ele é muito mais velho que eu, isso é. E vou lhe dizer: se
não fosse pelas duas cervejas que tomei no Good Intent, eu não teria cedido. Mas aí eu também podia ter feito pior. Alf é decente, lá isso é. E habilidoso também.
Gosta de música e me ensinou a tocar gaitinha de boca.
Outra pausa.
- Bem... vamos sentir a sua falta, Jenny.
- E eu vou sentir falta do senhor. Acho que o senhor foi até bom demais comigo. Não é igual a outros por aqui.
- Que outros?
- Bem, principalmente o Guardião, senhor. Tenho que dizer que ele me perseguiu muito antes de me botar na rua.
- Mas você não está saindo por sua vontade?
- Oh, não, senhor. Isso não me convém nem um pouco... Vivo por minha conta, sabe, e não tenho pais vivos. Mas o Guardião não queria ter este lugar contaminado, disse
ele, com três jovens-coadjutores por aqui, e me despachou na hora.
Stephen mordeu o lábio. Olhando disfarçadamente para a moça, percebeu que, sob a sua expressão habitual de serenidade e bom humor, ela parecia pálida e desorientada.
Seria capaz de jurar que não havia nela um pingo de maldade.
- Jenny - disse ele impulsivamente - eu não quero interferir. Mas espero que você tenha feito arranjos para... ir a um hospital... essas coisas.
- Não vou para o hospital, senhor. Tenho o meu quarto. E vou falar com a Sra. Kelley. Ela é parteira, senhor, e muito recomendada.
- Você tem certeza de que estará bem?
- Oh, não se preocupe comigo, senhor. - Pela primeira vez havia uma nota de tristeza na sua voz. - Eu só espero não ter trazido encrenca para o senhor. Isso tudo
aconteceu porque o senhor me arranjou trabalho na aula de arte. E o Guardião parece que ficou furioso com isso.
Stephen ficou um tanto desconcertado com essa notícia. Contudo, o seu genuíno interesse era por Jenny. A admiração que sentia por sua coragem e bom senso, e a indignação
pelo tratamento que lhe tinham dado, tornavam-no mais descuidado consigo. Tinha começado a gostar dela nos últimos meses,
e não podia deixá-la sem alguma expressão da sua boa vontade. Voltou-se de lado, remexeu meio inconscientemente na sua carteira e deu um passo na direção dela.
- Escute, Jenny. Não quero ofendê-la. Mas você fez tanta coisa por mim aqui... você realmente vai precisar de alguma coisa para sustentar-se. Eu gostaria que aceitasse
isto.
Desajeitadamente, pôs-lhe na mão uma nota de cinco libras, que, para esconder o seu elevado valor, dobrara em várias partes.
- Não... não vou aceitar isso...
- Mas Jenny... você tem que...
As lágrimas não lhe vinham facilmente, mas ela passara por tantas agruras naquele dia, que agora elas corriam quentes pelas suas faces.
Nesse momento, enquanto ela se retirava e ele a acompanhava, estendendo-lhe o dinheiro, a porta abriu-se e o Guardião entrou. Houve um silêncio mortal por um momento,
enquanto ele ficava petrificado. Depois, com a voz controlada, disse:
- Pode ir agora, Dill.
Quando Jenny se voltou para sair, arrasada, com as lágrimas a escorrer lhe pelas faces, Stephen, a despeito da sua expressão culpada, vermelha, teve calma suficiente
para se aproveitar da sua confusão e enfiar-lhe a nota no bolso da jaqueta.
- Adeus, Jenny - murmurou ele. - E muita sorte.
Sua resposta, se resposta houve, foi inaudível.
Ainda na sua maneira distante, o Reverendo Crispin fechou a porta atrás dela; depois, com um rápido olhar para Stephen, comprimiu os lábios e fixou o olhar no teto.
- Desmonde - disse ele - presumi que a sua conduta tinha sido seriamente indiscreta. Mas jamais sonhei que pudesse ir tão longe. Como amigo de seu caro pai, isso
me aflige mais do que posso expressar.
Stephen engoliu o bolo que tinha na garganta. A cor lhe fugira do rosto, mas havia uma centelha nas suas pupilas escuras.
- Não posso compreendê-lo.
- Ora, vamos, Desmonde. Você não pode negar que está, e tem estado há algum tempo, em termos de imprópria intimidade com a jovem pessoa que acabo de despedir.
- Fui amistoso com Jenny. Ela fazia muitas pequenas coisas para mim. E procurei ajudá-la, em retribuição.
- Ah! - fez o Guardião num tom significativo. - E a sua ideia de ajudá-la é estar frequentemente com ela, sozinho, no seu quarto?
- Ela vinha arrumar o quarto. E ocasionalmente fiz alguns esboços dela. Isso é tudo.
- Ora essa! Então você acha que faz parte dos seus deveres, como candidato à ordenação, tomar um modelo, furtivamente, entre as criadas desta casa de Deus? Foi meu
dever examinar alguns desenhos que resultaram dessa colaboração ilícita, e devo confessar que me pareceram extremamente questionáveis.
O sangue subiu à testa de Stephen. Seus olhos fuzilaram furiosamente.
- Pelo que sei do seu gosto, senhor - respondeu ele, tremendo ligeiramente - não me surpreende que não os tenha compreendido.
- É mesmo? - fez Bliss com a calma ácida que achava ir-lhe tão bem. Na verdade, parece que meus padrões, particularmente os de moralidade, diferem dos seus.
- Certamente diferem. - Stephen jogou a prudência de lado. - Eu não teria atirado essa pobre moça no olho da rua por causa de um erro.
- Ouso dizer que não. Isso é precisamente o que eu temia.
Até este momento, as maneiras do Guardião tinham sido estudadamente controladas, mas agora as suas narinas se apertavam e algo não diferente de uma carranca se estabeleceu
na sua testa elevada.
- Embora Dill tenha dado o nome do seu parceiro, não estou inteiramente convencido. Minha firme convicção é de que, pela sua conduta para com essa infeliz moça,
pela maneira como a utilizou para os seus fins chamados artísticos, você é responsável, ou pelo menos indiretamente culpado, pelo estado de depravação em que ela
caiu.
Respirando rapidamente, Stephen encarou Bliss com uma expressão maldosa no rosto. Explodiu:
- Nunca ouvi tanta tolice na minha vida. Nem tamanha hipocrisia. Jenny não é depravada. Ela tem um namorado e vai se casar com ele. Sua ideia de caridade cristã
é vilipendiá-la, e a mim, sem uma justa causa?
- Cale-se, senhor. Não tolerarei que fale comigo dessa maneira. Na verdade, se eu fosse cumprir à risca o meu dever, deveria pedir-lhe que deixasse a Sede imediatamente.
- Fez uma pausa para se recuperar. - Mas em atenção à sua família, e também ao futuro que ainda pode estar à sua frente, estou disposto a ser mais tolerante. Devo
dar ao seu pai alguma ideia do que ocorreu. E você, sem dúvida, me dará a sua garantia por escrito de abandonar, de uma vez por todas, essa obsessão que chama de
"arte", e que é inteiramente incompatível com a sua vocação de clérigo. Haverá, além disso, mais algumas restrições que sou obrigado a lhe impor. Venha ao meu estúdio
depois das orações noturnas, e eu o aconselharei.
Terminando a entrevista, sem dar a Stephen uma oportunidade de responder, girou nos calcanhares e saiu do quarto.
- Ora, vá para o diabo que o carregue! - exclamou Stephen violentamente. Mas infelizmente a porta já estava fechada.
Durante uns momentos, Stephen permaneceu tenso, de punhos cerrados, olhos fitos nos painéis de carvalho envernizado. Depois, com um gesto de abandono, afundou numa
cadeira diante da escrivaninha, tirou papel da gaveta e apanhou uma caneta.
Caro papai,
Fiz aqui o melhor que pude e fui nisso um completo fracasso. Não quero magoá-lo, tomando uma decisão final contra a sua vontade, mas, nas circunstâncias, acho que
devo me afastar um pouco - um ano, no mínimo - até poder ver as coisas mais claramente e experimentar a minha capacidade nesse campo particular tão desagradável
para o senhor que sequer o nomearei. Compreendo o golpe que isto representa para o senhor, e a minha única desculpa é que simplesmente não posso evitá-lo.
Recomendações a todos em Stillwater e a Claire. Tornarei a escrever-lhe quando estiver em Paris.
Stephen
CAPÍTULO VI
PARIS ERA DESCONHECIDA PARA STEPHEN, e embora ao primeiro fôlego o estimulasse como vinho, ele entrou nela nervosamente - como se temesse aqueles olhares satíricos
que os verdadeiros parisienses devem conceder a um forasteiro. Assim, apegava-se ao nome de um hotel que ouvira o pai mencionar num tom de benigna aprovação clerical,
e dando-o ao cocheiro com a maior segurança que pôde encontrar, foi arrebatado da Gare du Nord com uma imprudente velocidade através das ruas naquela tarde de domingo,
surpreendentemente vazias, para o Clifton, na Rue de la Sourdière. Parecia um lugar tranquilo, não particularmente excitante talvez, abrindo-se através de uma entrada
estreita para um pátio quadrado envidraçado, em torno do qual os quartos estavam dispostos atrás de descascados balcões de ferro fundido. Na portaria sonolenta -
o tom era dado por um gato malhado de preto e amarelo dormitando em cima do balcão - não se surpreenderam pela súbita materialização de um jovem inglês. Na verdade,
quando Stephen foi conduzido ao seu quarto no andar de cima, que era um tanto escuro e bolorento, com o papel de parede desbotado e uma enorme cama de cortinas vermelhas,
o idoso concierge, desafivelando as malas do ombro com exagerada falta de ar, sobressaltou-o ligeiramente ao lhe perguntar se ele queria chá.
- Não, muito obrigado - sorriu Stephen, pensando no extraordinário valor que aquele indistinto interior dava ao velho de olhos lacrimejantes com as faces caídas,
marcadas por veias vermelhas, o seu colete listrado de preto e amarelo. - vou sair... e olhar um pouco por aí.
- Não há muito que ver hoje, monsieur - disse o porteiro, encolhendo amavelmente os ombros. - Tudo está fechado.
Mas Stephen mal podia esperar para desfazer a mala e atirar suas coisas no armário poeirento. Então, eufórico, deixou o hotel e foi andando pelas ruas, a esmo, ao
longo da Rue du Mont Tabor e pela Place de la Concorde. Seu imediato pensamento tinha sido em Glyn, mas no constrangido momento de partir, ele esquecera de pedir
o endereço de Richard, e naquele ínterim não recebera nenhuma notícia dele. No entanto, Stephen estava certo de que, no círculo que se propunha frequentar, logo
o encontraria.
O tempo estava bom e claro, o céu pálido riscado pelas costelas de nuvens brilhantes. Quando viu a longa fila de castanheiros, agora em plena folhagem, junto ao
rio, quase exclamou alto. Agitadas pela brisa, as folhas eram luz e sombra, macias, encontrando os seus olhos como uma carícia. Através da avenida chegou ao Sena,
cinza-aço e polido, reverberando atrás de barcaças atracadas. Numa destas, uma jovem mulher, de seios fartos e cabelo louro, estava pendurando roupas cor-de-rosa
numa corda. Um cachorrinho saltitava nos seus tornozelos. Um homem de camiseta e chapéu baixo de feltro fumava placidamente, de braços nus, sentado num balde emborcado.
Numa espécie de transe melódico, Stephen caminhou lentamente pela margem, através de Port Royal, além da linha de quiosques de livros, de volta à Pont Neuf para
a L'Île de la Cité. Lá, ficou a olhar o jogo de cores sobre a água, o escurecer das sombras sobre as moles de pedra. Somente quando a luz desapareceu, ele se voltou,
com um suspiro apatetado, e começou a voltar para o hotel.
Agora a cidade despertava do seu torpor dominical. Nas ruas laterais, ao norte do rio, os pequenos cafés de esquina começavam a se encher de maneira discreta mas
movimentada. As mercearias estavam abrindo, e famílias da classe média começavam a tomar ar, homens robustos com pantufas apareciam nos umbrais. Diante de uma padaria,
ainda fechada, donas-de-casa, tagarelando tranquilamente, reuniam-se para comprar pão. Estou em Paris, pensava Stephen estonteado, finalmente, finalmente.
À guisa de contraste, o Clifton, banhado numa ténue luz religiosa, tinha um ar solene, quase sepulcral. Na verdade, por um instante Stephen teve a tentação de dar
a volta e ir cear no Maxim's ou no Café Riche, ou qualquer daqueles restaurantes alegres sobre os quais lera tantas vezes. Mas estava cansado e tímido para ir desacompanhado.
Além disso, tinha resolvido fazer uma razoável economia. Da sua pensão anual restavam-lhe 150 libras, e essa quantia deveria durar um ano inteiro.
Assim, baixou ao frio refeitório e comeu sozinho - a não ser por um distante cavalheiro solteirão numa desmazelada jaqueta Norfolk que lia continuamente entre os
pratos, e duas cochichantes velhas de malva, todos inconfundivelmente ingleses - uma refeição de cardápio fixo, de sopa, carneiro, ameixas amargas cozidas, que,
embora fossem perfeitamente saudáveis, demonstravam a falácia do argumento de que, na França, a cozinha francesa era uma arte universal. Contudo, nada poderia abater
a sua alegre disposição. Subiu as escadas assobiando e dormiu como uma toupeira na cama de dossel.
Na manhã seguinte, sem demora, saiu para Montparnasse. Depois de considerável reflexão, tinha resolvido não se matricular na École des Beaux Arts, mas procurar uma
atenção mais pessoal, dada pelo Professor Dupret na sua famosa academia do Boulevard Seline. Encontrou o estúdio sem dificuldade, tendo comprado, no balcão do hotel,
um mapa de Paris. Era no último andar de um edifício esquisito, parecido com um quartel, protegido por grades em ponta de lança e guardado por duas guaritas vazias,
bem no fundo do boulevard. Pairava no ar um cheiro de casca de tanino, indicando que ali fora uma armaria, e uma grande algazarra lá em cima sugeriu a Stephen, por
um sobressaltado momento, que os soldados ainda o ocupavam.
Quando subiu, depois de completar as formalidades de admissão com o massier, um tipo corpulento de cara chata, suéter cinzento, calças de lona, que tinha a aparência
de um boxeador aposentado - e que na verdade lá estava para impedir uma flagrante desordem - a aula já tinha começado.
A saia ampla e clara, aquecida por uma enorme estufa holandesa, com paredes que pareciam todas janelas, estava apinhada com uns 50 alunos, formando o grupo mais
estranho que ele já tinha visto. Na maior parte, eram homens entre 20 e 30 anos de idade, vestidos numa variedade de gostos, de muitas nacionalidades - eslavos barbudos,
indianos de pele escura, um grupo de escandinavos louros, vários jovens americanos. As poucas mulheres eram uma coleção esquisita. O olho de Stephen prendeu-se numa
senhora de idade metida numa blusa cor de rato, espiando a sua tela através de um pincenê de aros de ouro, como uma professora diante do seu quadro-negro num jardim
de infância do campo.
O barulho, ali dentro, era ensurdecedor - um rumor contínuo de conversação, trechos altos de canções, em línguas competitivas, observações fanfarronas
gritadas através da sala. Parecia que o tumulto ia permitir que Stephen entrasse sem ser notado. Mas ao ficar ali na porta, hesitante e um tanto pálido, vestindo
a sua roupa escura de clérigo, colarinho branco engomado e gravata preta, a vestimenta regular para os coadjutores da Clinker Street, sobreveio um infeliz intervalo
durante o qual a atenção da classe se voltou diretamente para ele. E então, no silêncio, uma voz de falsete exclamou:
- Ah! C'est Monsieur l'Abbé.
Uivos de risadas saudaram essa observação. Entrando confuso, Stephen encontrou um banco coberto com raspaduras de paletas, mas nenhum cavalete, espremeu-se com dificuldade
para um lugar, e abriu a sua pasta de papel Ingres sobre os joelhos.
O modelo, um velho de longos cabelos prateados, com o aspecto de um ator decadente, bonito, estava sentado numa postura convencional na plataforma do centro, ligeiramente
inclinado para a frente, com o queixo apoiado nas costas da mão. Stephen não gostou da pose, e a expressão do velho era aborrecida e indiferente, mas apanhou o seu
carvão e começou a trabalhar.
Às 11 horas Monsieur Dupret apareceu - um homem de uns 60 anos, belo de uma maneira teatral, com uma cabeleira arrepiada, porte ereto e digno, e mãos móveis. Apesar
das calças ligeiramente frouxas, o seu fraque ajustado dava-lhe um ar correto, distinto, acentuado pela fita na lapela. A sua entrada, impressionante e brusca, causou
uma cessação do barulho maior, e em relativo silêncio ele começou a dar vagarosamente a volta à sala, detendo-se aqui e ali para examinar uma tela com olhos apertados,
pronunciar, com um floreado gesto das mãos, umas breves palavras, mais como um cirurgião visitando a sua enfermaria.
Quando ele se aproximou, Stephen preparou-se para algumas palavras de saudação, de cortês interrogação, mas o professor, com alheamento impessoal, não disse coisa
alguma. Olhou de esguelha para Stephen, meio curioso, meio indiferente, e depois para o seu esboço, e, no instante seguinte, sem um piscar de olhos, desapareceu.
À uma hora tocou uma sineta. Imediatamente se ergueu uma vozearia, o modelo levantou-se como se fosse soltado por uma mola e afastou-se da plataforma, enquanto em
volta os estudantes atiravam pincéis ou carvões e começavam a se acotovelar contra a porta. Perturbado e decepcionado, Stephen foi arrastado, contra a sua vontade,
pela turba que empurrava. Subitamente, no seu cotovelo, ouviu uma voz agradável.
- Você é inglês, não? Meu nome é Chester.
Stephen voltou a cabeça e deu com um jovem mais ou menos da sua idade sorrindo para ele. O cabelo, o queixo partido e os olhos azuis, sombreados por compridas pestanas
negras, davam-lhe um ar de sincero e atraente encanto. Usava uma velha gravata de Harrow.
- Espero você lá embaixo - disse ele quando a maré o carregou. Lá fora, Chester estendeu-lhe a mão.
- Espero que não se importe de eu vir falar com você. No meio dessa turba, os que são do outro lado do Canal devem ficar juntos.
Após a sua deprimente recepção, Stephen estava contente por ter achado um amigo. Quando se apresentou, Chester fez uma pausa por um momento, e exclamou:
- Que tal almoçar comigo?
Saíram juntos pela avenida.
O restaurante em que entraram ficava bem perto, na Place Seline, um salão estreito, de teto baixo, quase uma adega, abrindo para uma cozinha escura, a meia dúzia
de passos do nível da rua, com um fogo de carvão de lenha e espetos com assados, cheio do barulho de panelas de cobre e de um agradável cheiro de cozinha. O lugar
já estava repleto, principalmente de alunos de Dupret, mas Chester, com tranquila segurança, guiou-o através de um pequeno pátio adornado por cubas de alfenas, calmamente
retirou o cartão marcado "RESERVADO" de uma mesa do fundo, habilmente atirou o chapéu para um cabide e convidou Stephen a sentar-se.
Imediatamente, uma mulher gorda, de cara vermelha, vestida de preto, protestou da cozinha:
- Não, não, Harry... Esse lugar está reservado para o Monsieur Lambert.
- Não se agite, Madame Chobert - sorriu Chester. - A senhora sabe que Monsieur Lambert é meu amigo. Além disso, ele sempre chega atrasado.
Madame Chobert não se deu por satisfeita; discutiu e resmungou, mas o charme de Harry Chester - embora ela claramente tentasse precaver-se contra ele - no fim acabou
por vencê-la. Encolhendo os ombros com pena da sua própria fraqueza, levantou a ardósia escrita a giz que pendia da cintura do seu avental, e apresentou-lhes o cardápio.
Por sugestão de Chester, pediram potage maison, boeuf bordelaise e um queijo brie. Uma jarra de cerveja amarela e espumante já estava sobre a mesa.
- Não é uma pessoa má - sorriu Chester quando ela se afastou. Durante a refeição, ele manteve a conversação viva e fluente, aludindo, com inesgotável provisão de
troça e frases feitas, aos seus vizinhos. Apontou para Biondello, o italiano, que já tinha exposto no Salon do ano passado, e Pierre Aumerle, um caso irremediável,
que bebia uma garrafa de Pernod todos os dias, almoçando com uma mulher de semblante ocre com um enorme chapéu, para a qual Chester ergueu as sobrancelhas com um
sorriso. Entrementes, sondou Stephen com algumas perguntas divertidas; então, depois que trouxeram o café filtre, fez uma pausa, com um certo ar consciente, e pareceu
ter achado necessário explicar-se.
- Curioso, não? - comentou ele, riscando desenhos na toalha xadrez - como a gente sempre pode identificar um universitário. Philip Lambert também é um deles. Depois
de Harrow - lançou um olhar rápido para Stephen
- eu mesmo devia ter ido para Cambridge... se não a tivesse trocado pela arte.
Continuou, revelando, com um sorriso suplicante, que o pai tinha sido um grande plantador de chá no Ceilão, ao passo que a mãe, agora viúva, voltara para habitar
uma imensa mansão de Highgate com uma legião de criados. Naturalmente, ela o estragara com mimos, dava-lhe uma generosa pensão. Estava em Paris fazia 18 meses.
- É muito divertido - concluiu ele. - Você deve me deixar mostrar-lhe os meus trabalhos.
- Que acha de Dupret? - perguntou Stephen.
- É o professor mais decente que há por aqui. Você sabe que ele pertence à Legião de Honra?
Ligeiramente chocado, Stephen não respondeu. Chester intrigava-o, como o intrigaria um desenho estranho que, embora agradável, tivesse complexidades estranhas ao
seu gosto.
Terminaram o café. As pessoas começavam a se retirar.
- Seu amigo Lambert parece que não vem - disse Stephen por fim, para quebrar o silêncio.
Chester riu-se.
- Philip é um mendigo errante. Você nunca sabe quando ele vai aparecer... ou com que atraentes saias.
- Ele frequenta a Dupret?
- Trabalha em casa... quando trabalha. Tem recursos particulares, você sabe, e já andou por toda a Europa, estudou em Roma e Viena, mas agora ele e a mulher alugaram
um pequeno apartamento na Esplanada dos Inválidos. - Chester assentiu com um aceno. - E posso lhe dizer que a Sra. Lambert é muito elegante. E, naturalmente, uma
perfeita dama.
Ali estava novamente uma observação que arranhava o ouvido de Stephen, e ele olhou de um modo esquisito para o seu colega, imaginando como poderia usar uma expressão
infeliz. Mas antes que tivesse tempo de responder à pergunta, Harry Chester sentou-se.
- Olhe, aí está Philip.
Seguindo o olhar de Chester, Stephen viu entrar no restaurante um homem delgado, de aparência afetada, com cerca de 30 anos, vestido com uma curta sobrecasaca marrom,
colarinho baixo e gravata fofa. O rosto, pálido e profundamente marcado abaixo dos olhos, tinha um ar de langor. O seu brilhante cabelo preto era repartido nitidamente
no meio, mas a um lado uma mecha tinha escapado num pequeno cacho sobre a sua testa branca. Os seus
modos, aliás toda a sua aparência, davam a impressão de uma indolência amaneirada, de aborrecimento e pretensão.
Quando chegou, pôs a bengala debaixo do braço e começou a descalçar uma luva amarelo-limão, enquanto olhava para Chester com uma alegria levemente desdenhosa.
- Agradeço-lhe por ter guardado a minha mesa, caro rapaz. Mas agora deve ir-se. Espero um convidado às duas horas. E não preciso de acompanhante.
- Estamos saindo, Philip. - O tom de Chester assumira uma inflexão submissa. - Olhe, gostaria que conhecesse Desmonde. Ele entrou para a Dupret hoje.
Lambert lançou uma olhadela a Stephen e depois curvou-se polidamente.
- Desmonde acaba de chegar do seu último ano em Oxford - disse Chester rapidamente.
- Ah, sim - exclamou Lambert. - Que colégio, posso perguntar?
- Trinity - respondeu Stephen.
- Ah! - Lambert relaxou com um sorriso, mostrando os dentes brancos e parelhos, e, tirando a segunda luva apertada de pelica - uma operação que ele executava em
silêncio e sem arrepiar um pêlo - estendeu uma mão pequena para Stephen. - Muito prazer em conhecê-lo. Também estive na Casa. Por favor, não tenham tanta pressa
em se retirar. Posso facilmente encontrar outra mesa.
- Asseguro-lhe - disse Stephen, levantando-se - que terminamos mesmo.
- Então venha tomar chá conosco um dia destes. Estamos em casa quase todas as sextas-feiras às cinco horas. Então falaremos como dois homens de Oxford - seu sorriso
brincou na direção de Chester - e um que quase foi para Cambridge.
A conta, que Madame Chobert apresentara rapidamente, estava sobre a mesa. Uma vez que Chester parecia não vê-la, Stephen apanhou-a e, a despeito dos súbitos e enérgicos
protestos de Harry, pagou a despesa.
CAPÍTULO VII
SOB A MAGIA DA SUA NOVA LIBERDADE, Stephen, entrou rapidamente e com deliciada facilidade numa rotina agradabilíssima, tanto mais que, uma semana
após a sua chegada, recebeu uma carta de Stillwater que foi um grande alívio para o seu espírito. Embora acentuasse o sofrimento ocasionado pela súbita partida de
Stephen, o Reitor havia-o, em certo sentido, perdoado. Obviamente, escreveu ele, a inclinação (a palavra "tentação" fora riscada) tinha sido demasiado forte para
opor-lhe resistência. Por conseguinte, podia "ser tudo pelo melhor", se, como o próprio Stephen tinha proposto, esse interregno de um ano fosse considerado por ambos
os lados como um "campo de prova". Entrementes, aprovava a escolha de Stephen quanto à sua acomodação, conhecia-o demasiado bem para exortá-lo à virtude, e desejava
que nada lhe faltasse do que cabia à sua condição.
De manhã, era uma sensação que nunca diminuía acordar com a consciência de que estava em Paris, de fato seguindo a sua "carreira artística".
Levantou-se, vestiu-se rapidamente e, como o desjejum no Clifton não tinha nada que o recomendasse, saiu para uma pequena crèmerie na esquina do hotel. Ali, por
30 soldos, foram-lhe servidos um jarro de café ou lait e dois croissants flocosos ainda quentes do forno e recém-trazidos pelo padeiro.
Sua caminhada para o estúdio através das ruas frescas era sempre uma delícia, A multidão apressada e os policiais de capa azul, as donas-de-casa madrugadoras com
os braços enganchados em cestas carregadas, um soldado zuavo de calça escarlate, duas porteiras tagarelando apoiadas nas suas vassouras, um velho varredor de rua
lançando esguichos de água pela sarjeta, carrinhos barulhentos de verdura fresca do Halles - tudo isso o extasiava além das exclamações súbitas, agudas, a tagarelice
de muitas línguas, um vagaroso badalar de sinos ecoando nos edifícios de um cinza suave, as graciosas pontes brancas, o rio adorável, já começando a cintilar ao sol.
No estúdio, é verdade, ele não se sentia em casa. A falta de ordem e o perpétuo barulho tornavam difícil a concentração. Parecia que muitos estudantes tinham vindo
menos para trabalhar do que por mero divertimento e feroz exibição dos seus espíritos animais. Riam e cantavam, pregavam peças grosseiras, mantinham intermináveis
discussões em altas vozes nos cafés, afetavam uma boémia exagerada no vestuário e nas maneiras. Falavam a gíria do quarteirão, sabiam tudo a respeito dos últimos
"movimentos", reconheciam Manet, Degas e Renoir como seus mestres e imitavam-nos dolorosamente, desprezavam Millet e Ingres, eram muito críticos com Delacroix, e
contudo tinham pouco ou nada para oferecer de seu.
Naturalmente outros havia que se aplicavam. Ao lado de Stephen havia um moço polaco, vindo de uma pequena cidade do interior próxima de Varsóvia, que, inflamado
pela ambição, tinha vindo sem dinheiro para Paris. Para pagar a sua mensalidade na Dupret, havia trabalhado 12 meses como carregador na estação de Montparnasse.
A intensidade do seu esforço era assustadora, contudo ele não tinha o menor talento. Muitas vezes, quando Dupret
fazia a sua ronda diária, Stephen esperava que ele, com uma única palavra, acabasse piedosamente com aquele fútil labor. Mas o professor não dizia nada, nada além
de corrigir uma linha ou apontar uma expressão vazia, a falta de equilíbrio na composição. Sua atitude com Stephen continuava igualmente impassível, embora uma ou
duas vezes, após estudar alguma parte do seu trabalho, olhasse para ele de uma maneira curiosa, quase às escondidas, como se o visse e examinasse pela primeira vez.
Mais e mais, sob o alheamento de Dupret e suas grandes maneiras, Stephen começou a discernir um núcleo carcomido de decepção, a biliosa amargura de um homem que
no seu coração sabia que tinha falhado no cumprimento da sua expectativa juvenil. Ter obtido o reconhecimento dos círculos oficiais, exibir anualmente o seu trabalho
no Salon (uma pintura segura e cuidadosamente executada, que sempre era pendurada em um bom lugar), participar das juntas e comissões, representar a arte de luvas
brancas nas recepções do governo - tais distinções significavam alguma coisa para quem queria abalar o mundo com uma poderosa obra-prima? Dupret não tinha um verdadeiro
interesse pelo seu estúdio e ainda menos por seus alunos, a não ser quando, com uma ponta de ciúmes, via a evidência de um talento que podia ultrapassar o seu. Atrás
daquela fachada, era um homem vazio, um homem movido pelo homem que supunha ser, um homem mais digno de pena do que desprezo. Na verdade, quando o professor entrava
imponentemente na sala, Stephen fazia dele uma curiosa imagem, no fim do dia, despindo vagarosamente o fraque apertado e soltando os botões brilhantes dos sapatos,
remexendo os dedos comprimidos para aliviar os calos, voltando para a tela semiacabada um Casamento Bretão, pensando, com um arrepio: "Mon Dieu, devo continuar com
isto?"
Na hora do almoço, Stephen ia com Chester ao restaurante de Madame Chobert, mas ocasionalmente escapava à efusiva amizade de Harry e vagabundeava ao longo do cais,
mastigando um petit pain no qual havia uma fatia de presunto avivada pela mostarda amarela. Então, apressando o passo, ia aos museus, ao Louvre ou ao Luxembourg.
Era quase noite quando, com olhos ainda não ajustados às realidades da rua, deixava as compridas galerias e caminhava de volta para o Clifton.
Para Chester, e as poucas outras relações que fizera na Dupret, parecia extraordinário que Stephen passasse as suas noites só, e várias vezes instavam com ele para
que os acompanhasse numa visita a Montmartre. Certa ocasião, ele acedeu, acompanhado de meia dúzia de outros, em ir a um café-concerto na Toque Bleue, perto do Moulin
de la Galette.
Mas ficou enormemente entediado com as cenas que se presumiam vívidas e excitantes, mas, de fato, eram estupidamente fúteis. Os salões de dança eram uma massa humana
empurrando, sapateando, rodeando, semi-intoxicada,
ampliada e distorcida por dezenas de espelhos, retorcendo-se em formas grosseiras, ao estridor de uma banda reles. Certo, nada podia ser mais assustadoramente triste
do que as caras dos frequentadores mais velhos - peitos côncavos e olhos mortiços, estranhamente rebarbativos. Algumas das conhecidas cocotes que Chester lhe apontava
eram francamente medonhas, seus parceiros, com roupas pretas justíssimas, sinistros e degenerados.
Mais tarde, diversas jovens se reuniram à festa, que agora atingia uma fase turbulenta. Suas vozes roucas e grosseira camaradagem, seus braços atirados em torno
de pescoços e seus carinhos cochichados em voz alta despertavam nele um frio desagrado. Enquanto ele permanecia ali sentado, pálido e silencioso, como um peixe fora
da água, uma das jovens se curvou para Chester, que tinha bebido um bocado, e, com os olhos em Stephen, riu-se sem motivo e murmurou alguma coisa no seu ouvido.
Imediatamente, Chester rompeu num ataque de riso.
Nesse momento, Stephen não fez nenhum comentário, mas a caminho de casa, com Chester, falou no assunto.
- Não foi nada, meu velho. Ela apenas disse - Chester, com um tom de desculpa, modificou o comentário original, impublicável - que você era um tipo esquisito. -
E quando Stephen desviou a cabeça, acrescentou: - Lamento que você não tenha se divertido esta noite. Não esqueça de que vamos visitar Lambert na sexta-feira. Avise-me
antes de sair.
Nesse dia, por volta das quatro horas, Stephen saiu para a Rue Bonaparte, onde, no número 15, Harry tinha um quarto no último andar. Após uma íngreme subida de três
lances de escada, percebeu que havia uma furiosa altercação, "e empurrando a porta meio aberta encontrou Chester discutindo com um homem baixo de chapéu preto e
quadrado e um sobretudo pardacento, que, imperturbável, superintendia os movimentos de um subordinado muito ocupado em meter num grande saco de serapilheira o relógio
do consolo, um par de vasos chineses e outros objetos que decoravam o quarto.
- Agora, por favor, o seu relógio, Monsieur Chester.
- Ora, deixe disso, Maurice - suplicou Chester - o relógio não. Dê-me um prazo até o fim da semana que eu pago.
Neste momento, Chester viu Stephen. Por um instante, apatetou-se; depois, aproximando-se, forçou um sorriso confiante.
- Não é uma coisa idiota, Desmonde? Esgotei a minha pensão há pouco. E esses credores importunos, miseráveis, estão me despojando. É praticamente nada. Uns míseros
100-francos. E naturalmente receberei o cheque de mamã no fim do mês. É claro que eu não sonharia em pedir a você; contudo, se houver alguma chance...
Houve uma pequena pausa, então Stephen disse, de boa vontade:
- Terei muito prazer em atendê-lo.
- Muitíssimo obrigado, meu velho. Você o terá de volta, com juros, no dia primeiro do mês. Está vendo, Maurice, seu ladrão? E agora foutre le camp.
Dobrou as notas novinhas que Stephen extraiu da sua carteira e atirou ao oficial de diligências, o qual, após contá-las duas vezes com o polegar umedecido, acenou
silenciosamente, esvaziou o conteúdo da sacola sobre a mesa, com uma reverência enigmática, imitada pelo seu companheiro, e deslizou para fora da sala.
- bom! Acabou! - Chester riu-se alegremente, como se fosse uma excelente piada. - Eu ia sentir falta das minhas velhas panelas. E, naturalmente, disto aqui... -
Colocando os vasos de volta no consolo da lareira, abriu descuidadamente a tampa de um estojo chato e exibiu uma medalha redonda de prata presa a uma fita azul;
depois, de um modo um tanto envergonhado, que não deixava de ser encantador, ajuntou: - Essas coisas não se devem mencionar, Desmonde. Mas uma vez que você me apanhou
desprevenido, tenho que falar... é a Medalha Albert. Pois é... tive que recebê-la, há alguns anos.
- Por quê?
Stephen não podia negar que estava impressionado.
- Ora, porque salvei uma vida no mar, é como chamam isso. Uma velha tonta caiu do navio ao largo de Folkstone. Não posso culpá-la... o mar estava muito agitado...
e era inverno. Aconteceu que fui atrás dela. Não foi absolutamente nada. Não estivemos na água mais do que meia hora, enquanto o vapor fazia a curva e nos mandavam
um bote. Mas vamos esquecer isso e tratar de andar. Se não nos apressarmos, chegaremos tarde para o chá.
Com seu bom humor inteiramente recuperado, Chester desceu as escadas na frente, falando e rindo durante todo o caminho até o apartamento dos Lamberts, situado num
beco sem saída muito atrás da Avenue Duquesne. Ali, num pátio de paralelepípedos, havia um pequeno pavilhão de pedra cinzenta - avivado artisticamente por uma porta
verde-maçã e janelas da mesma cor - que fora outrora a casa do porteiro de uma mansão nos dias de Henrique IV. Cheirando a almoço e a defumador recém-queimado, o
pequeno e um tanto escuro interior estava artisticamente disposto com pequenos tapetes felpudos aqui e ali, cortinas de contas e cadeiras de bambu. Um xale espanhol
estava estendido sobre o piano de armário.
Arrastados pela impetuosidade de Chester, chegaram cedo. Lambert, dormitando numa espreguiçadeira junto às cinzas da lareira, ainda parecia afundado na letargia
de após-almoço, e mal ergueu uma pálpebra pesada quando eles entraram. Mas a Sra. Lambert lá estava para recebê-los. Era alta e esbelta, mais velha do que Stephen
tinha esperado, com grandes olhos verdes, feições tendentes à rispidez, cabelo cor de areia e uma pele branca leitosa que com ele combinava. Seu vestido de tarde,
recortado em torno do pescoço de maneira rebuscada e com saias cheias e compridas, era de brocado branco.
Enquanto ela e Chester conversavam, Stephen observava-a, sentada com compostura, com o pescoço arqueado, contra um biombo laqueado, até que ela, como se notasse
o seu olhar perscrutador, voltou os olhos para ele com um sorriso em arco.
- Espero que aprove o meu vestido...
E como ela parecia esperar um cumprimento, ele disse:
- Estou certo de que Whistler teria gostado de pintá-la com ele.
- Que coisa mais encantadora para dizer. - E ajuntou, confiadamente: - Fui eu mesma que o fiz.
Dali a pouco saiu e trouxe o chá, numa bandeja de prata, com muitas xícaras, com finos sanduíches de agrião, e petits fours. Quando começou a servir, Lambert bocejou
e espreguiçou-se.
- Chá! - exclamou ele. - Não posso viver sem chá. Abençoado, nutritivo chá. Forte, Elise. - Aceitou uma xícara, balançou-a airosamente. Este pode ter vindo das extensas
plantações da sua família no Ceilão, Harry. Não é uma ideia estimulante? Diga-nos se reconhece o sabor. - Olhou para Stephen. - Bem... o que esteve fazendo nesta
cidade malvada, Monsieur l'Abbé?
Stephen corou, Viu que Chester tinha andado a tagarelar a seu respeito.
- Certamente lhe parecerá ridículo. Um futuro pastor desertando para a pintura.
E em poucas palavras explicou algumas das circunstâncias da sua vinda para Paris.
Quando terminou, seguiu-se uma breve pausa, e então Lambert exclamou, com a sua costumeira ironia:
- Bravo, Abbé! E agora que já fez a sua confissão, tem a nossa absolvição incondicional.
Elise, inclinando-se um pouco para ele, com um sorriso, murmurou:
- Deve ter sentido uma incrível vontade de pintar. Tome mais um pouco de chá.
Quando Stephen levantou a mão com a sua xícara até os olhos, viu três leques, pintados em seda à maneira japonesa, arranjados sobre a parede. Fez uma pausa, impressionado
pela delicadeza do trabalho.
- Quem fez essas coisas tão encantadoras?
As pálpebras de Lambert ergueram-se. Acendeu um cigarro, antes de responder, de modo quase casual:
- Para dizer a verdade, caro Abbé, são minhas. Se não lhe aborrecer, mostro-lhe mais alguns trabalhos meus.
Depôs a xícara, e de uma pequena passagem lateral trouxe várias telas; então, de uma maneira fatigada colocou-as em pé, uma após a outra, de modo que recebessem
toda a luz, numa cadeira alta junto à janela.
A maioria dos quadros era bem pequena, e de temas leves - um raminho de flor de cereja numa malga azul, dois salgueiros à beira de uma poça estagnada, uma criança
com chapéu de palha sentada num caramanchão à margem de um rio - contudo, cada um deles tinha uma beleza decorativa que acentuava o simples. Era uma qualidade que
parecia infundir em formas pálidas um encanto enfastiado e indefinível.
Mostradas as poucas pinturas, Stephen voltou-se para Lambert.
- Eu não tinha ideia de que podia pintar assim... são encantadoras. Lambert encolheu os ombros, mas estava claramente satisfeito, ao passo que sua mulher, estendendo
o braço, apertou vivamente a mão de Stephen.
- Phil é realmente um génio. Ele também pinta retratos. - Seus olhos verdes demoraram-se luzindo. - Se souberem de alguém que esteja interessado em comprar... Sou
a sócia comercial.
Depois disso, a campainha da porta soou e,.em rápida sucessão, outros convidados chegaram, todos singularmente apropriados para aquela atmosfera de refinada boémia:
um jovem de meias brancas com um manuscrito debaixo do braço, outro homem, menos moço, mas de ombros quadrados e bem vestido, da Embaixada americana, uma modelo
chamada Nina, que Stephen tinha visto ocasionalmente no restaurante de Madame Chobert. Um francês de monóculo, gordo e idoso, que beijou a mão de Elise com tocante
galanteria, e sobre o qual, como um possível comprador, ela voltou todas as suas blandícies.
Um chá novo foi trazido, Lambert serviu uísque, o ruído da conversação aumentou, e dali a pouco Stephen, que em sua primeira visita não queria ficar muito tempo,
levantou-se para se retirar. Philip e a esposa instaram para que ele viesse outra vez. Aliás, Madame Lambert interrompeu a conversa para acompanhá-lo até a porta.
- Venha conosco rio acima no domingo. Fazemos um piquenique em Champrosay. - Deteve-se, de olhos grandes, com o ar de quem fazia um cumprimento. - Philip gostou
muito do senhor.
No domingo, então, e em outros dias depois, Stephen acompanhou os Lamberts, às vezes só, às vezes com Chester ou outros de seus amigos, àquela adorável altura do
Sena, entre Châtillon e Melun. Tomavam o bateau mouche na Pont Neuf para Ablon, onde alugavam um esquife e subiam com remadas descansadas a vagarosa corrente verde,
serpeando placidamente entre as ribas tornadas famosas pela Floresta de Sénart até atracarem diante de uma estalagem à margem do rio, desembarcando para almoçar
numa mesa de madeira ao ar livre.
O tempo era soberbo, a folhagem no seu melhor momento de beleza madura, as malvas-rosas e os girassóis em plena florada. O sol cintilante e o
ar caricioso, o exercício, aqueles amigos agradáveis, a esfuziante novidade de cada vista e som, o apito rouco de uma barcaça, a cor da blusa de um operário, a pose
da mulher do encarregado da comporta, tudo o que nele despertava um êxtase vibrante agia como um entorpecente sobre Stephen. Lambert, tirante algumas horas de melancolia,
estava na sua disposição mais atraente, lançando um dito de espírito aqui, um epigrama ali, exibindo o seu brilhantismo, recitando longos trechos de Verlaine e das
Fleurs du Mal.
- Mais sagrada que o Indo - murmurava ele, detendo-se para tomar fôlego, arrastando os seus compridos dedos na corrente fria, com o peito estreito a arfar, a mecha
de cabelos caída sobre a testa úmida. - Esses lírios d'água... cálices do mais puro alabastro... translucidamente rosados... e frios... frios como os seios das ninféias
flutuantes... - E assim por diante.
Seu olho para a beleza não se limitava à natureza, e sempre que a mulher que os servia na estalagem era razoavelmente favorecida, ele, a despeito do olhar agudo
da esposa, flertava com ela ultrajantemente.
A princípio, Stephen trazia consigo um bloco, querendo registrar tudo o que via, mas Lambert desanimou-o com um sorriso cómico.
- Deve guardar tudo aqui, caro Abbé. - Bateu na testa ligeiramente. Mais tarde... na solidão... isso nascerá outra vez.
Numa tarde de domingo, depois de uma excursão mais encantadora do que qualquer outra, Stephen despediu-se dos Lamberts e de dois outros que tinham participado do
passeio de barco, e caminhou do embarcadouro, no Quai St. Bernard, para o seu hotel. O sol, afundando agora por trás da cúpula do Trocadero, tinha incendiado o céu
o dia inteiro. Animados pelo calor do dia, todos tinham se banhado num lago abaixo do açude de L'Hermitage, comido um almoço especial de trutas, frias com patê,
enriquecido pelo nobre Chambertin, e depois adormecido sobre a relva tépida embaixo das faias de Sénart.
Como ele se sentia bem!... a pele queimada pelo sol, os pulmões cheios de ar do campo, o corpo formigando com a água picante do rio... uma espécie de satisfação
divina espalhava-se por ele.
De súbito, ao atravessar a Rue de Bièvre, um homem saiu de uma entrada estreita bem à sua frente. Usava sapatos pesados, uma calça de pele de toupeira e uma blusa
de porteiro pintalgada de azul; em torno do pescoço, um lenço vermelho enrolado negligentemente. Parecia um trabalhador voltando para casa após um duro dia de labor;
contudo, algo no aprumo dos ombros, o porte desafiante da cabeça, fez Stephen sobressaltar-se. Apressou o passo para alcançá-lo.
- Glyn!
Richard Glyn deu meia-volta, de cara séria e cenhuda; então, ao olhar, as rugas que tão profundamente lhe franziam a testa foram aos poucos desaparecendo.
- É você, Desmonde... Conseguiu deixar aquilo.
- Há cinco semanas - disse Stephen sorrindo de prazer. - E desde então estive esperando encontrá-lo. Escute, estou justamente voltando para o hotel. Venha e jante
comigo.
- bom - considerou Glyn - eu bem que gostaria de dar umas dentadas. Não comi nada o dia inteiro.
- Deus do céu, que esteve fazendo?
- Pintando... desde as seis da manhã - respondeu Glyn com uma espécie de violência sombria. - Costumo esquecer o almoço quando estou trabalhando... especialmente
quando não consigo dominar meus amaldiçoados valores das nuanças.
Falando, os seus olhos de ágata cintilavam com uma súbita e rude impaciência, o cansaço de um prolongado e apaixonado esforço para criar. Travando Stephen pelo braço,
saiu com ele rua afora.
CAPÍTULO VIII
O APARECIMENTO DE GLYN, de lenço vermelho no pescoço e botas ferradas, causou um pequeno rebuliço na sala de refeições do Clifton. O velho chefe dos garçons, criado
na tradição dos milords ingleses, não gostou do que via, e as duas damas solteironas, que até agora consideravam Stephen com simpática aprovação, agitaram-se de
chocada surpresa. Richard, contudo, não pareceu importar-se e, aboletando-se na sua cadeira, passeou os olhos em torno com visível curiosidade.
- Por que, em nome do Céu, você se hospeda num lugar como este, Desmonde?
- Oh, não sei... habituei-me a ele, suponho.
Glyn provou a sopa, feita, como sempre, de farinha e água gordurosa.
- Talvez você goste da comida, não?
Stephen riu-se.
- Sei que não é lá essas coisas. Mas o prato de carne será bom.
- É melhor que seja. - Richard partiu outro pão. - Eu lhe disse que estava faminto. Uma noite destas vou levá-lo para comer numa verdadeira casa de pasto.
- No restaurante de Madame Chobert?
- Por Deus que não! Nada de casa de picadinhos artísticos!... Detesto falsas aparências, tanto em cozinha como em pintura. Um bistro de cocheiros perto da minha
casa. Você pode confiar numa taberna onde os cocheiros comem. Servem lá um patê de lebre que não é deste mundo. - Glyn se deteve. - Agora me conte o que andou fazendo.
De boa vontade, mas sem entusiasmo, Stephen iniciou um relatório completo das suas recentes atividades. Falou da sua "labuta" matinal na Dupret, encareceu a sua
amizade com Chester e os Lamberts, tornou-se lírico ao descrever as suas excursões a Champrosay. A princípio, Glyn ouvia com um sorriso entre irónico e sarcástico,
mas lentamente a sua expressão se tornou séria, e ele ficou olhando de esguelha para o seu companheiro.
- Bem - exclamou ele quando a narrativa terminou. - Você parece que tem andado ocupado. Talvez me leve depois ao seu quarto para vermos o que tem feito.
- Oh, não tenho muito que mostrar... - respondeu Stephen apressadamente. - Apenas uns poucos esboços. Tenho me concentrado nas linhas, sabe?
- Sim - fez Glyn.
Em completo silêncio, ele mastigava o resistente pouding à l'anglaise que constituía a sobremesa do Clifton. Não disse palavra por uns bons cinco minutos. Depois,
por baixo das sobrancelhas franzidas, voltou para Stephen um olhar firme que também tinha um reflexo de extremo desagrado.
- Desmonde, você quer pintar? Ou enganar a sua vida como um desses personagens extravagantes de La Boême?
- Não compreendo.
- Ouça, então. Há talvez 10 mil impostores safados nesta cidade que se imaginam artistas porque estudam um pouco, desenham um pouco e sentam os rabos nos cafés todas
as noites, cacarejando sobre as suas obras-primas natimortas. Você é quase um deles. Sabe muitíssimo bem que está desperdiçando tempo, Desmonde. Só o trabalho duro,
infernal, é que tira o que você tem aí dentro, não vagabundeando pelo Sena, estendido de costas numa canoa com um poseur simplório que lhe esguicha Verlaine e Baudelaire.
Stephen avermelhou-se, indignado.
- Você é injusto, Glyn. Chester e Lambert são sujeitos muito decentes. E Lambert tem certamente um grande talento.
- Besteira! Que fez ele? Algumas japonaiseries, leques pintados, fragmentos... oh, bem bonito, não nego, mas coisinhas meio efeminadas... afetadas... e tudo muito
pequeno.
- Certamente é um sinal de vulgaridade produzir enormes telas.
Em seu ressentimento, Stephen citara uma observação favorita de Lambert, e Glyn logo farejou a sua origem. Riu-se rudemente.
- E Rubens, e Correggio, e del Sarto, com as suas tremendas concepções, e o velho Michelangelo, cobrindo o teto da Capela Sistina com a sua portentosa visão da Criação,
trabalhando tão duramente que em muitos dias nem tinha tempo de tirar a roupa? Eles foram vulgares? Não, Desmonde... Lambert é um amador bem-dotado, um artista menor,
que nunca seria ouvido se não fosse empurrado por trás pela sua astuta mulher. Não tenho nada contra esse sujeito, é em você que estou pensando, Desmonde. Você tem
algo que Lambert daria a alma para possuir. Não quero vê-lo jogando isso fora por causa da sua maldita tolice. E quanto a Harry Chester, prosseguiu Glyn, será você
tão ingénuo para já não ter saltado por cima dele?
- Não sei o que você quer dizer - respondeu Stephen agastado.
Glyn pensou em esclarecê-lo, mas contentou-se com um sorriso.
- Quanto dinheiro ele já levou de você?
Stephen corou profundamente. Chester tinha em várias ocasiões pedido empréstimos, e agora já lhe devia mais de 500 francos, mas não tinha ele dado a sua palavra
de honra que os pagaria fielmente?
- Ouça - continuou Glyn mais tranquilo - você teve um falso início, acabou em más companhias e, pior de tudo, tem afrouxado abominavelmente. Se não se levantar,
estará cavando o seu próprio túmulo. O poço mais fundo do inferno é ocupado pelo artista que não trabalha!
Fez-se um comprido e gélido silêncio. Embora Stephen se tivesse defendido, ao comparar o seu próprio dia inútil com as horas de esforço concentrado de Glyn, uma
vergonha começava a apoderar-se dele.
- Que devo fazer? - disse ele por fim.
- Em primeiro lugar, sair desta casa anglicana de repouso.
- Quando?
- Agora.
O olhar consternado de Stephen pareceu divertir Glyn imensamente, mas num instante ele ficou novamente sério.
- Não posso lhe pedir que venha para o meu buraco. Mas conheço um homem que terá prazer em recebê-lo.
- Quem?
- Jerome Peyrat é o nome dele. Tio Peyrat. É um camarada velhusco, em situação não muito boa, que quer alguém para dividir as despesas. Um tipo esquisito, por Deus,
mas um verdadeiro pintor, diferente dos seus falsos boémios. - O meio sorriso de Glyn era desconcertante, mas desapareceu rapidamente quando ele concluiu: - Você
já não tem mais nada com Dupret, está claro. Pode usar o meu estúdio. E vou lhe apresentar o meu homem das tintas, Napoleon Campo. Ele fia... às vezes. Vamos embora.
A natureza de Stephen não era adaptada às mudanças súbitas e decisões bruscas, contudo havia uma força avassaladora nos argumentos de Glyn, uma
irresistível compulsão na sua maneira. Dirigiu-se, portanto, ao escritório e, para surpresa e mortificação do gerente, pediu e liquidou a sua conta. Então fez a
mala e trouxe-a para baixo, desculpando-se por sua partida inesperada com uma profusa distribuição de gorjetas.
Glyn, no corredor, e claramente olhado pelo pessoal do Clifton como o demónio da peça, mostrou-se frio a respeito daquelas gratificações, e comentou sombriamente:
- Aconselho-o a guardar o seu dinheiro, Desmonde. Você pode vir a precisar dele depois.
- Espere, Glyn. Eles têm que nos arranjar um carro.
- Para o diabo com o carro. Está realmente tão fraco que não pode andar?
Apanhando a valise, que não era leve, Richard atirou-a no ombro e saiu do hotel a passos largos. Stephen acompanhou-o para a poeira luminosa da rua.
Era uma distância considerável até o alojamento de Peyrat, mas Glyn, que tinha uma satisfação selvagem em extrair o máximo de si mesmo, percorreu-a em passos rápidos,
sem vacilar ou depor a mala. Finalmente, numa escura rua lateral de Rive Gauche, no triângulo formado pelo encontro da Rue de Assas e do Boulevard Montparnasse,
Glyn enveredou por uma entrada torta ao lado de uma pastelaria, que, embora mal iluminada por uma lâmpada fraca, estava esfregada e limpa, e começou a subir de três
em três os degraus de pedra. Deteve-se no segundo andar, bateu na porta e, sem esperar resposta, torceu o trinco e fez Stephen entrar.
Era um apartamento de três cómodos, e na sala de estar, mobiliada com correção burguesa, sentava-se diante da mesa coberta por um oleado um homem franzino, de ombros
redondos, com cerca de 50 anos, um rosto chato e sulcado e uma barba inculta, vestindo, apesar do calor do fogo que flamejava na lareira, um descosido sobretudo
preto com a gola levantada e um chapéu duro, também preto; enquanto um tordo, sem a metade das penas, piava um acompanhamento numa gaiola junto à janela, ele se
exercitava na ocarina. À vista de Glyn, os seus olhos, que eram claros e jovens e o enchiam de engenhosa audácia, brilharam. Depôs o instrumento e, erguendo-se,
beijou Richard, com afeiçoada familiaridade, em ambas as faces.
- Peyrat - disse Glyn brevemente, enquanto se desvencilhava - trouxe-lhe o seu novo inquilino. É um amigo meu. Stephen Desmonde.
O olhar de Jerome Peyrat passou de Glyn para Stephen e nele repousou pensativamente - um escrutínio a um tempo inocente e amável.
- Se é seu amigo, mon vieux, então será meu também. Desculpe-me recebê-lo assim, Monsieur Desmonde. Richard sabe como padeço com correntes de ar.
- Espero que não o estejamos perturbando - disse Stephen, embaraçado.
- Longe disso. De noite tenho o hábito de contemplar a minha própria alma. Às vezes acho-a esplêndida, outras medonha. Esta noite - sorriu gravemente - agradeço
qualquer distração.
- Desmonde é pintor, Peyrat. Vai trabalhar comigo e com você.
- ótimo. - Peyrat não mostrou a menor surpresa. - Seja bem-vindo no meu apartamento... pelo menos temporariamente, uma vez que pertence a Monsieur Bisque, o pasteleiro.
Não importa. Aqui renunciamos à beleza das mulheres e ao brilho da fama contemporânea, a fim de produzir obras-primas que serão aclamadas mil anos após a nossa morte.
- Que esperança! - exclamou Glyn com irónica indulgência.
- É unicamente a esperança que nos mantém vivos.
- E a beata Teresa...
- É verdade. Somos sustentados pelo exemplo dessa nobre alma. - Voltou-se para Stephen. - Já visitou a Espanha?
- Não.
- Então um dia podemos fazer uma peregrinação juntos. Até Ávila de los Caballeros... que fica atrás de muralhas de granito, amareladas pelo sol do verão, geladas
pelo inverno de Castela, aprumando-se como uma grande coroa no seu deserto de rocha contra o duro azul das Montanhas de Greda.
- O senhor já esteve lá? - perguntou Stephen polidamente.
- Muitas vezes. Mas somente em espírito. Glyn explodiu numa gargalhada.
- Aviso-o, Desmonde. Este maluco, que nunca vai à igreja e diz coisas desagradáveis a respeito do Papa, tem uma absurda veneração por Santa Teresa.
- Peyrat sacudiu a cabeça em reprovação.
- Meu amigo, não tome em vão o nome da doce e obstinada mulher de Castela, a Velha, que restaurou a ordem descalça original, abandonou a vida ociosa e tagarela das
carmelitas. Ela troou a sua batalha com o espírito, o encanto, a humildade, as rezas, os argumentos, a paciência de uma santa e a têmpera de um capitão do mar. Também
foi uma poetisa...
- vou sair - disse Glyn, sorrindo e dirigindo-se para a porta. - vou deixá-los a sós para que se conheçam. Esteja no meu estúdio amanhã às sete, Desmonde. Boa noite.
Saiu. Peyrat, após um momento de silêncio, levantou-se e foi apertar a mão de Stephen.
Disse simplesmente:
- Espero que se sinta em casa.
CAPÍTULO IX
AGORA COMEÇAVA PARA STEPHEN, sob a influência de Glyn e Peyrat, uma nova existência, cheia de incessante trabalho, inteiramente oposta à sua recente interpretação
da vida artística. Jerome Peyrat, conhecido no distrito de Plaisance como "Tio Peyrat", era de origem humilde; seus pais, já falecidos, não foram mais que gente
simples do campo - embora ele falasse deles com orgulho - labutando nuns poucos hectares perto de Nantes. Durante 30 anos, como empregado do governo, petit fonctionaire,
passando os dias metido num paletó de alpaca com punhos de papel, tomando anotações nos registros poeirentos do Palais de Justice. Somente uma vez estivera fora
da França, quando, como terceiro secretário de uma comissão judicial, tinha ido à Índia. Lá, passara todo o seu lazer como um espectador ingénuo e fascinado dos
animais alinhados atrás das grades, debaixo das altas palmeiras e carobas do jardim zoológico de Calcutá. Alguns meses depois do seu regresso, o pessoal do ministério
foi reduzido e Peyrat aposentado com uma pensão tão diminuta que mal lhe dava para viver de pão. Então, inesperadamente, nunca antes tendo manifestado no menor grau
qualquer interesse pela arte, começou a pintar prolificamente. Não apenas a pintar, mas a considerar-se placidamente um pintor de génio. Nunca recebera uma só lição
na sua vida. Pintava os retratos dos amigos, ruas, edifícios, feios edifícios, cortejos nupciais, fábricas da banlieue, e punhados de flores agarradas por mãos descarnadas,
pintava composições de florestas - uma forma feminina nua, pródiga de seios e cadeiras, montada num tigre mostrando os dentes embaixo de um intrincado novelo de
palmas, trepadeiras, samambaias, orquídeas de tons cromáticos, uma floresta da imaginação, luxuriante e estupenda, povoada por serpentes e macacos trepadores entrelaçados
como num combate mortal, durante a execução dos quais tremia, suava e, para que não desmaiasse, era forçado, apesar do seu medo de apanhar um resfriado, a abrir
a janela para respirar ar fresco.
A vizinhança encolhia os ombros e sorria diante das suas pinturas, que eram expostas à venda, ao preço de 15 francos, na janela da sua amiga, Madame Huffnaegel,
uma viúva respeitável que tinha uma chapelaria a poucas portas rua abaixo e por quem ele nutria um respeito moderado. A não ser Napoleon Campo, o homem das tintas,
que tinha levado telas em pagamento de materiais
fornecidos a Peyrat - e cujo sótão estava, admitia-se, atulhado de refugos de artistas lutadores - ninguém comprava os quadros, que se tornaram, nas vizinhanças
da Rue Gastel, um alvo regular de hilariante, embora afetuosa, alegria. Contudo, complacentemente, Peyrat continuava pintando, às vezes passando muitas necessidades,
mas completando a sua magra pensão com vários recursos. Além da ocarina, que ele tocava para seu próprio prazer, e do corne francês, tinha um conhecimento limitado
do violino e do clarinete. Consequentemente, escreveu uns volantes que ele mesmo distribuía de porta em porta pelo bairro.
Aviso
JEROME PEYRAT
CURSOS DE MÚSICA, HARMÓNICA E SOLFEJO PARA CRIANÇAS
Aos sábados, das duas às cinco da tarde.
Rápido progresso garantido.
Pais podem assistir às aulas. Mensalidade por estudante: cinco francos.
Número limitado de alunos.
No verão, também tirava um bom efeito da sua habilidade no corne francês, tocando todas as tardes de terça-feira na orquestra que encantava as babás e seus pirralhos
no Jardim das Tulherias. E quando a necessidade o premia demasiado, lá estava o amigo da sua infância, Alphonse Bisque, agora o pasteleiro do Plaisance, gordo, de
meia-idade, completamente calvo, com quem - por recordação sentimental dos dias distantes da escola em Nantes, e não por causa das pinturas que de tempos em tempos
Jerome lhe empurrava em pagamento - se podia contar para fornecer pastel de carneiro ou patê de carne.
Nos seus hábitos e no seu modo geral de vida, Peyrat - Stephen logo o descobriu - era tão engenhoso, tão original como os seus quadros. com toda a sua simplicidade,
tinha uma mente ativa e inquisidora, abarrotada com os frutos das suas pesquisas em volumes abstrusos de segunda mão comprados nos quais, frequentemente vomitados
em discursos ingenuamente eruditos sobre história, teologia medieval ou assuntos tão inconciliáveis como Cosme de Alexandria, que no ano 548 denunciara a doutrina
da redondeza da Terra, e Santa Teresa de Ávila, a quem ele, um ateu, tinha tranquilamente tomado por padroeira.
A despeito dessas excentricidades, portava-se, na sua frase favorita, como un brave homme et un bon camarade. Por mais cedo que Stephen se levantasse, Peyrat já
estava de pé antes dele, para apanhar o leite e o pão quente que o menino Alphonse entregava todas as manhãs na sua porta. Terminado o seu simples desjejum, vestia
um avental e lavava a louça; depois, tendo dado água e sementes ao tordo que achara na rua, estropiado por um gato, e que se propunha soltar quando a asa se emendasse,
aprestava-se para o dia de trabalho, punha no ombro a sua paleta e caixa de tintas, mais um grande guarda-chuva para protegê-lo contra os elementos, e saía a pé
para algum canto remoto dos subúrbios, Ivry, Charenton ou Passy, onde, imperturbável ante comentários grosseiros dos passantes ou peças que as crianças lhe pregavam,
atormentando-o, perdia-se na maravilha e no mistério de transpor para a tela alguma visão celestial de um vagão encostado, um bonde ou o cano de uma chaminé.
Stephen saía à mesma hora, apressando-se todas as manhãs para a Rue de Biêvre a fim de utilizar a luz clara do norte, depois do amanhecer, que jorrava através das
clarabóias chumbadas do estúdio de Glyn. Richard, que nunca se poupava, era impiedoso na sua atitude de severo e às vezes estúpido feitor.
- Mostre-me o que é capaz de fazer - dizia ele sombriamente. - Em seis meses, se você não me satisfizer, pode voltar para o Senhor.
O modelo de Glyn, Anna Montel, era uma mulher de 30 anos, alta e vigorosa, de cabelos negros e olhar cigano, desolado. Era uma ramani Cinzany, cujos antepassados
deviam ter vindo originariamente da Hungria, embora Glyn a tivesse encontrado numa remota parte de Gales do Norte. Sua pele era áspera, e como sempre ela andava
descalça, numa saia escura e blusa verde, sem luvas ou capote; suas mãos e faces eram gretadas pelas cortantes brisas do outono que assobiavam na rua vindas do rio.
Mas os planos daquela face castigada pelo vento, com as suas órbitas firmes e malares altos, eram lisos e fortes. Andando pelo estúdio nas suas chinelas de ourela,
lendo de relance os desejos de Glyn, era a pessoa mais silenciosa que Stephen tinha conhecido-. Posava a todas as horas, e por longos períodos; depois, sem uma palavra,
deslizava do estúdio para Halles e, voltando com uma braçada de provisões, ia ao fogãozinho e preparava um goulash, ou coava café naquela chaleirinha azul de esmalte
com o bico quebrado, que figurou, mais tarde, num dos mais conhecidos quadros de Glyn: Le Café Matinal.
Embora nunca procurasse instruir, Glyn era incansável na sua exigência por originalidade, insistindo em que Stephen descartasse as suas noções preconcebidas, encorajando-o
a olhar para os objetos não como eles eram vistos e representados pela tradição, mas com os seus olhos novos.
- Faça como Peyrat faz! - exclamava Glyn. - Faça cada quadro absolutamente seu.
- Você tem Peyrat em grande conta?
- Acho que ele é grande. - Glyn falava com inteira convicção. - Tem a visão direta original de um artista primitivo. Podem rir dele o quanto quiserem, achando-o
um velho tolo. Mas dentro de 20 anos se arrastarão para ter um dos seus quadros.
Era um trabalho duro - e frio. No estúdio gélido, as semanas avançavam mais frígidas ainda, porque Glyn tinha uma teoria espartana de que ninguém podia dar o que
tinha de melhor num ambiente de conforto. Morta para sempre estava a primeira ideia de Stephen de que pintar era uma arte suave e sedutora. Nunca em sua existência
teve um regime tão rigoroso. E Glyn era insaciável na sua demanda por maior, e ainda maior, esforço.
Um dia, quando a cabeça de Stephen girava e ele sentiu que não podia continuar, Richard, respirando fundo, atirou a sua paleta no chão.
- Exercício - decretou ele. - O tampo da minha cabeça está saltando. Sabe andar de bicicleta?
- Sem dúvida.
- Suponho que você praticava o crawl de coadjutor lá em Oxford. Seis quilómetros por hora.
- Acredito que posso fazer um pouco melhor do que isso.
- Muito bem. - Glyn sorriu. - Veremos de que você é feito.
Saíram do estúdio e atravessaram a rua para a loja de bicicletas do quarteirão, atendida por Pierre Berthelot, um antigo ciclista de corridas que, embora incapacitado
agora por um coração danificado pelo Pernod, tinha nos seus dias obtido um terceiro lugar no Tour de France. Era um estabelecimento pequeno, arruinado, com uma fila
de bicicletas penduradas do teto, na frente, e uma escura oficina de reparos ao fundo. Entraram. O lugar parecia deserto.
- Pierre! - gritou Glyn, batendo no balcão.
Uma moça de uns 20 anos surgiu dos fundos. Era um tanto baixa, usava um suéter escuro e uma saia preta pregueada, com pés sem meias enfiados em compridas chinelas
pretas.
- É você? - fez Glyn.
- A quem esperavk? A rainha de Sabá?
- Por que não está no circo?
- Desmontado para o inverno. - Ela falava com frases curtas, desgraciosamente, com as mãos nas cadeiras e as pernas separadas.
- E o seu pai?
- Curando uma bebedeira.
- Hum! Stephen, esta é Emmy Berthelot. E enquanto ela olhava de um para outro de uma maneira aborrecida, ele continuou: - Queremos duas bicicletas para esta tarde.
Boas.
- Todas são boas. Peguem as duas do fim.
Enquanto Glyn abaixara a corda na roldana, Stephen observava-a experimentar cada bicicleta como entendida, fazendo as rodas girarem. Tinha um rosto pálido, emburrado,
testa baixa, ligeiramente saliente, sobrancelhas bem marcadas, uma boca grande de lábios finos. O nariz tinha uma boa linha, mas apresentava essa ponta arrebitada
dos bairros pobres que a denunciava. A não ser pelos seios, salientes sob o jérsei apertado, tinha a figura de um menino bem desenvolvido. Virando inesperadamente,
notou que Stephen tinha os olhos nela. Sob o seu olhar frio e avaliador, ele sentiu que corava - havia na maneira dela uma insolência que o magoava. Richard estava
levando as bicicletas para a porta.
- Gostaria de vir conosco Emmy?
- De que jeito? Tenho que cuidar da loja. Graças a esse velho beberrão.
- Outro dia então. Voltaremos antes de escurecer.
Stephen acompanhou Glyn para a rua. Montaram e, dobrados em dois sobre os guidons abaixados, Glyn adiante, afastaram-se, furando o tráfego do Faubourg St. Germaine
até a Porte de Versailles. Fora das portas da cidade, aceleraram pela estrada reta e lisa para Ville d'Avray. Richard, com ocasionais olhadelas para trás, imprimiu
uma velocidade arriscada. St. Appoline, Pontchartrain e Meul ficaram vertiginosamente para trás. E, depois, Jussieu, e Orgeval. Por fim, numa ampla curva circular,
tinham percorrido cerca de 30 quilómetros, e Glyn parou com uma freada diante de uma buvette na pequena aldeia de Louveciennes. Respirando forte, olhou criticamente
para Stephen, suado e empoeirado, completamente sem fôlego. Sorriu.
- Nada mau, meu rapaz. Você não gosta de desistir, não é? É uma qualidade que pode lhe ser útil. Venha tomar uma cerveja.
No bar escuro, de teto baixo, tomaram uma caneca de cerveja gelada, que escorregou deliciosamente nas suas gargantas secas. Glyn sugou a espuma da barba e suspirou.
- bom lugar para pintar este campo em torno de Louveciennes - meditou ele. Renoir e Pissarro costumavam andar por aqui. Sisley também. Traremos Emmy para dar o ritmo.
Ela pode realmente vir.
A lembrança do encontro na loja de bicicleta ainda doía em Stephen. Ele disse secamente:
- Aquela moça me pareceu uma pessoa um tanto desagradável.
Glyn soltou uma risada.
- Modere a sua língua, padre... - E depois de uma pausa: - Na verdade, ela é uma putinha barata... o seu amigo Chester podia lhe dizer... E dura. Praticamente criada
na equipe no circuit de France. Troteia por aí com um bando de vadias. Faz uma tournée de seis meses por ano com o grupo do Peroz.
- Peroz?
- Adolf Peroz. Primeiro, eram os Irmãos Peroz. Adolf é o sobrevivente. Conheço-o. Sujeito decente. Tem um circo muito bom. Emmy faz os números de ciclista. Acho
que deve ser extremamente arriscado. Ela ganha um bom dinheiro, e deixa você saber disso. Ela não tem préstimo para nós, realmente, e sabe que andamos tesos. Mas
é incrivelmente vaidosa, e quer que eu a pinte.
- Vai pintar?
- Não mesmo! Não lido com tipos da sarjeta. Mas me divirto pondo uma mosca na sopa dela. Ela é realmente uma perfeita cadelinha. - Terminou a sua cerveja. - Vamos
embora.
Voltaram lentamente no frescor da tarde. Glyn estava eufórico, purgado da tensão nervosa, cantando trechos de canções populares do País de Gales.
Diante da loja de bicicleta, consultou o relógio e deu um assobio.
- Estou atrasado. Tenho que me encontrar com Anna. Entregue isto por mim, como um bom sujeito. Deixou a sua bicicleta com Stephen e precipitou-se.
Com alguma dificuldade, Stephen manobrou as duas bicicletas para dentro da loja. Como antes, estava vazia. Ele bateu no balcão, e então, como ninguém aparecesse,
empurrou a porta dos fundos; no corredorzinho escuro, foi de encontro a Emmy, que vinha para a loja. A porta de fora fechou-se, deixando-os juntos, confinados na
escuridão de um espaço não maior que um armário. Muito desconcertado, Stephen não achava o que dizer, e de súbito o seu pulso começou a bater como um martelo. Ela
estava em pé a seu lado, tão perto que ele podia sentir-lhe o calor, e uma estranha e repentina emoção fez a sua garganta se apertar. Ela o observava impassível,
sem surpresa, embora o seu íntimo torvelinho lhe fosse perfeitamente aparente; deu-lhe um sorriso frio, crítico.
- Que veux-tu?
O duplo sentido da pergunta trouxe-lhe uma onda de calor. Houve uma pausa, durante a qual ele ouvia as rápidas e altas batidas do seu coração. Numa voz não natural,
respondeu:
- Queria que soubesse... que eu trouxe as bicicletas de volta.
- Fizeram um bom passeio? - Ela continuava a observá-lo conscientemente, olhos apertados, meio divertida com a sua emoção, embora não participando dela.
- Sim, obrigado.
Silêncio outra vez. Ela não fazia nenhum gesto para se mover. Afinal, com grande esforço, ele pôs a mão na porta às suas costas e empurrou-a.
- Espero - gaguejou ele como um colegial - espero vê-la novamente. Envergonhado e muito tenso, tentou sem sucesso afastá-la da mente. Mas ela crescia cada vez que
a via - ocasiões que se tornaram frequentes desde que, com a chegada da primavera, Glyn insistia em exercícios regulares
semanais. Sentia-se ao mesmo tempo atraído e repelido por Emmy. Desejava muito pedir-lhe que posasse para ele, mas não podia chegar a dizê-lo com tantas palavras.
Uma oportunidade favorável parecia não surgir nunca. Ela permanecia como um enigma não decifrado, um sentido procurado e não achado, uma estranha irritação no fundo
do seu espírito.
E o tempo ia passando com desconcertante rapidez. À medida que os dias iam ficando mais compridos, e os castanheiros rebentavam em flores outra vez, ele percebia
que este ano de graça em breve estaria acabado. Mais e mais as cartas de Stillwater, de seu pai, de Davie, e de Claire, começavam a antecipar o seu regresso, a pedi-lo
mesmo, com crescente urgência.
Julho chegou, e do céu brônzeo um ar abafado pesava sobre a cidade. Glyn, que detestava o tempo de calor, resistiu por duas semanas, depois resolveu subitamente
ir para a Bretanha com Anna, vagabundear por lá, e pintar Calveries. Os Lamberts já tinham partido para La Baule e agora Chester ia encontrar-se com eles. Até Peyrat
falava em desertar de Paris. O aluguel do apartamento terminava em agosto e ele planejava ir ver um tio em Auvergne.
Tanto Richard como Peyrat insistiram para que Stephen os acompanhasse. Mas ele não podia aceitar - uma carta final, com um ressaibo de severidade, tinha chegado
do Reitor, na qual ele esperava que Stephen não "recuasse da palavra empenhada" nem se deixasse deter pelos "divertimentos e atrações de Paris",
Depois de a ler, Stephen atirou os seus pincéis sobre a mesa e saiu para a rua. Poderia ter ido ao Bois, onde sempre havia sombra embaixo das árvores, mas o seu
humor, deprimido e irritável, proibia-o. Em vez disso, apesar da sua fadiga e de uma sensação de estar absolutamente exausto, caminhou direto para cidade, através
de quilómetros de ruas monótonas. Lojas e cafés em todo o caminho, grandes a princípio, gradativamente menores. Quase todas vazias. Numa delas, deserta, um garçom,
com a cabeça nos braços, dormia numa mesa. Stephen passou por baixo das pontes da estrada de ferro, pelos trilhos serpenteantes do grande Terminal, atravessou canais;
finalmente, passado o octroi, encontrou-se num ermo poeirento fora das barreiras de Paris. A esse tempo, pingava de suor e continuava a repetir para si mesmo:
- Meu Deus, que vida... E papai pensa que os meus dias são uma ronda de prazer.
Quando voltou, parou na agência postal do Plaisance e escreveu um telegrama.
DESMONDE, REITORIA, STILLWATER, SUSSEX. ATRAVESSANDO BARCO CEDO AMANHÃ DEZENOVE JULHO.
STEPHEN.
CAPÍTULO X
NADA, PENSAVA STEPHEN, excede a alegria de revisitar os amados lugares familiares, meio esquecidos, agora vistos mais belos do que antes. Estendido na relva da ribanceira
do Lago Chillingham, com uma vara de pescar a seu lado, aquecido pelo sol da tarde, estava observando Davie lançar um peixinho prateado, ainda desajeitado, mas com
uma seriedade que traduzia aperfeiçoamento, entre os lírios floridos, debaixo de cuja frescura estava um lúcio escuro. O ar era claro e dourado, havia flores silvestres
por toda a parte, as árvores ostentavam a sua mais ampla e tenra folhagem; nas sarças, as rosas-de-cão, de um róseo delicado, exalavam o seu perfume, que se misturava
com o denso aroma das rainhas-dos-prados. Pombos revoavam distantes lá em cima e, da granja familiar, em Broughton Park, ele ouvia o cacarejo das aves.
Era difícil perceber que estava em casa havia duas semanas. Desde aquele momento em que, em Halborough, tinha sido recebido por Davie e Caroline - uma combinação
feita com delicada discrição - tudo corria tão maciamente que o tempo parecia voar. Sim, era bom estar de volta - se pelo menos não o tratassem como o filho pródigo
agora perdoado e que devesse ser mantido a todo o custo pela bondade. Desjejum na cama, o Times do seu pai fechado na bandeja - até ele protestar dizendo que preferia
levantar-se e tomar café com Davie lá embaixo; seus pratos prediletos no almoço e jantar, Beasley trabalhando mais horas na cozinha, Mould trazendo cestas de frutos
escolhidos; seus desejos atendidos, excursões planejadas; claramente, todos os membros da família estavam unidos num esforço diplomático para desarmá-lo.
O assunto da sua pintura não era discutido - estava morto desde a primeira noite, quando, a pedido do Reitor, mostrou as suas telas. Com uma contração do cenho,
entre uma carranca e um sorriso, ele reconheceu quão honestamente, embora de modo vão, o pai tentara aprovar o seu trabalho, perplexo diante de tudo o que via, o
olho assustado indo descansar, em particular, numa cena de banlieue que mostrava uma mulher pendurando um varal de roupa no fundo do seu quintal num dia de vento.
- Meu caro rapaz... você acha isto... belo?
- Sim. É um dos meus prediletos.
- Mas não compreendo. Por que tem que pintar uma corda de roupa?
- É a interação dos tons brilhantes, papai... contra o fundo sombrio, o vestido cinza e branco da velha...
Procurou explicar a base da sua ideia e como as cores puras eram aplicadas com uma espátula. Contudo, era claro que o Reitor continuava perplexo e não convencido.
Seguiu-se uma longa pausa. Por fim, depois de um último exame, seu olhar voltou-se dúbia e ainda inquisidoramente para ele.
- Suponho que um perito possa apreciar isto.
- Acho que pode.
A seguir, a consideração suplantou a crítica. Caroline, muito mais terna à sua maneira, tinha passado as suas roupas, costurado os botões da camisa, e a sua mãe,
estimulada no seu mundo solitário e peculiar, subitamente descobrira e declarara que usaria um novelo de lã com o qual, desde que ele estava em Oxford, pensava tricotar-lhe
umas meias.
Tinha sido, na maior parte, um grupo familiar restrito - para alívio de Stephen, o General Desmonde e sua mulher estavam na Escócia com Geoffrey, caçando - mas nesta
tarde, sabendo que ele e Davie tinham que estar em Chillingham, Lady Broughton convidara-os para o chá.
Com um olhar para o sol, agora obliquando na crista dos Downs, Stephen achou que era melhor saírem logo. Levantou-se, caminhou ao longo da ribanceira e ficou atrás
do irmão, que, embora desse sinais de cansaço, ainda lançava a sua linha, perseverantemente, na água indiferente. A pesca, até agora, tinha sido fraca - três percas
amarelas tão pequenas que não satisfaziam o gato da Reitoria. Ciente do apaixonado ardor que Davie tinha por aquilo, e aliás por qualquer esporte ao ar livre - um
sentimento tão contrário à sua própria indiferença, tão comoventemente incoerente também, dadas as condições delicadas do rapaz e da sua saúde, que estava longe
de ser robusta - ele desejava que uma grande e digna truta se enganchasse no anzol. Podia muito bem ver a alegria e triunfo que essa captura causaria.
Mas embora esperasse pacientemente, com uma palavra ocasional de animação, não houve esse golpe de sorte. Davie, refletiu com momentânea tristeza, nunca tinha sorte.
E enquanto o seu jovem irmão enrolava a linha, passou-lhe um braço nos ombros e, louvando o seu progresso em lançar a vara, condenando os elementos desfavoráveis
do calor e da luz, finalmente, aumentando o valor dos três peixinhos agora curvados e secos na cesta, trouxe-o de volta para a alegria.
- Acho que estou melhor - disse Davie esperançoso. - Esforcei-me muitíssimo. E, como você diz, essas percas não são más. Acha que dão para cozinhar?
- Perfeitamente.
- De qualquer modo... são muito pequenas.
- Quanto menor, melhor - disse Stephen.
Ao saírem pelo prado, evitando o longo caminho em volta do Foxcross Corner e, uma vez que estava tão seco, atravessando os carriços mais baixos, Davie tagarelava
com a viva animação que era um traço do seu caráter. Tinha crescido muito ultimamente, parecia alto para 14 anos, e os seus membros tinham a descoordenação da idade
ingrata, fazendo parecer que caminhava aos arrancos. Contudo, a expressão do seu rosto delicado era menos febril do que antes, e os seus ataques, Stephen soubera
de Caroline, eram menos fortes, revelando uma firme mudança na frequência. Ouvindo com simpatia, observando o jogo de luzes sobre aquelas feições bem talhadas, Stephen
estava consciente de uma profunda onda de afeição por seu irmão. Tinham estado juntos quase continuamente durante as últimas duas semanas.
Saindo dos bosques, pularam a grade de ferro que cercava o parque, onde o gado pastava placidamente, e dali a pouco chegaram à avenida que, contornando o jardim
formal que margeava o relvado, acabou levando-os à própria mansão, uma grande edificação vitoriana de arenito vermelho maciço, corrompida por torres e torreões,
que Lady Broughton pretendia ser a casa mais alta de Sussex.
Foi ela quem os recebeu, reclinada numa chaise-longue junto às janelas francesas abertas ao sul da sala de estar, pedindo-lhes que desculpassem a sua aparente indolência
- seu médico andava ridiculamente severo com ela pondo-os imediatamente à vontade com o tranquilo calor da sua acolhida.
- Bem-vindo, Stephen. - Segurando-lhe a mão, olhou-o de alto a baixo.
- Cheio de conhecimento de coisas lindas. Sinto que não tenha uma barba. Acho que Paris fez-lhe bem. Pode beijar-me o pulso como um francês?
- Não estive estudando essa arte.
- Que pena! - sorriu ela. - Não é, Davie?
- Só será uma pena se meu irmão voltar para lá, Lady Broughton.
- Bem dito. Você vê como estamos contentes em tê-lo de volta em casa outra vez, Stephen. Como prova disso, eu lhes darei pães de milho de Sussex no chá. Lembra-se
como gostava deles quando tinha a idade de Davie?
- Lembro-me, e muito! Ainda gosto. E Davie também.
Lady Broughton sorriu, e continuou a caçoar amavelmente. Contudo, ouvindo-a calado, Stephen notava a mudança por que ela passara. Sempre gostara daquela mulher,
baixa, de cores vivas, sem qualquer aparência de distinção, cuja boa e enérgica natureza e sólido bom senso transpareciam em todas as suas ações. E agora causava-lhe
mágoa aquela atitude passiva, aquela respiração rápida, o leve tom purpurino em suas faces sempre vívidas.
- Claire deve chegar logo - disse ela. - Atrevo-me a dizer que ela fará a sua entrada com uma cesta de rosas, como algo pintado por Gainsborough.
Quase como dissera a mãe, Claire entrou, não do jardim, nem com flores, de cabeça descoberta, não parecendo um Gainsborough mas antes um
Burne-Jones, no seu vestido de linho de corte quadrado no pescoço, de uma cor de burel que combinava com os seus cabelos vermelho-dourados. Embora tivesse sem dúvida
esquecido, Stephen disse imediatamente que ela condizia com aquela rica sombra pré-rafaelita.
A sua postura era admirável. Ninguém teria adivinhado quão rápido batia o seu coração, ou há quanto tempo ela esperava por este momento.
- Claire - fez Stephen dirigindo-se para ela.
- É tão bom ver você - disse ela. - E você, Davie.
Esperava que a ligeira cor que sentia subir-lhe às faces passasse despercebida. Vê-lo outra vez, sentir o contato dos seus dedos punham a sua compostura à prova
mais do que ela poderia esperar.
Nesse momento, foi servido o chá, não um repasto frugal de biscoitos e pão fino e manteiga, mas uma regular fartura colegial de ovos cozidos e pão de minuto, sanduíches
e pãezinhos de milho, com morangos e nata batida à Sussex, tudo disposto sobre uma mesa de pau-cetim com rodas.
- Achamos que você estaria com fome depois da pescaria - disse Claire a Davie.
- E estamos - concordou ele com entusiasmo. - Nosso lanche não foi grande coisa.
Segurou a xícara que Claire enchera e, polidamente, embora com certa ternura, levou-a a Lady Broughton antes de sentar-se.
- Obrigada, Davie. - Rompendo o ligeiro constrangimento, comentou, na sua maneira arreliante: - Claire, não acha que Stephen está com o ar de um parisiense?
- Está mais magro, talvez. - Que estúpida resposta! Mas ele estava em casa - e a inquietante doçura desse pensamento banhava de luz os seus olhos.
- Não acho que a comida francesa seja muito nutritiva - arriscou Davie seriamente. - Eu pelo menos não quero caracóis nem pernas de rã, ou coisas assim.
Todos riram-se, e depois que eram um alegre bando, Davie, como para provar a virtude da dieta anglo-saxã, empenhou-se numa viva discussão com Claire sobre os métodos
de apanhar lúcios, no fim da qual ambos concordaram que num dia como aquele uma isca artificial seria muito melhor que um barrigudinho prateado.
- Acho que há algumas dessas iscas no salão de bilhar - disse Claire, e após um momento de reflexão ajuntou: - Não gostaria de tê-las?
- Ora, ora... - murmurou Davie. - Mas não são para você? Quero dizer... está falando sério?
- Estou sim. Ninguém as usa. Venha comigo e daremos uma olhada. Perguntando se poderia ser desculpado, Davie levantou-se com alacridade e abriu a porta para Claire.
Saíram juntos.
Logo depois, Lady Broughton olhou meditativamente para Stephen, de quem ela sinceramente sempre gostara e por quem, na verdade, tinha admiração. O fato de ele ter
deixado a Igreja absolutamente não a perturbava - com uma natureza tão sensível, apaixonada e tímida, ela não o considerava talhado para ser um pastor rural. Nem
as suas recentes aventuras artísticas lhe causaram grande inquietação. Encarava-as apenas como um capricho passageiro, uma tendência temporária herdada sem dúvida
das excentricidades do lado materno - estava bem lembrada de como, quando era criança, ficara petrificada pelas coloridas extravagâncias do digno pai da Sra. Desmonde
- e que de modo algum diminuíam a finura essencial do caráter de Stephen. Contudo, era menos esta genuína atenção do que o seu conhecimento dos sentimentos de Claire
que a fazia desejar dizer alguma coisa compatível com a boa educação que pudesse trazer o assunto à baila. Naqueles últimos meses, tinha observado com simpatia a
indiferença e desatenção da sua filha, e notado também, não sem desconfiança, os seus esforços ocasionais para romper aquela disposição pensativa e achar distração
em atividades que lhe eram inteiramente alheias. Recentemente, Geoffrey Desmonde tinha sido um visitante persistente, e, quando menos pela maneira com que arrastava
as suas frases, Lady Broughtpn o detestava. Considerava-o estereotipado e banal, afetado, presumido e mimado; e tendo sido casada com um homem cuja pesada obtusidade
tinha feito da sua vida, por mais de 20 anos, uma penitência, não desejava semelhante destino para Claire.
Foi sem dúvida essa ordem de ideias que a levou a observar:
- Não tinha visto a sua prima desde que voltou?
- Não. Todo o pessoal do Simla parece estar na Escócia.
- Geoffrey tem dado muitos tiros por aqui.
- Ele gosta disso. Tem caçado?
- Claire e ele têm corrido bastante pelos Downs. Andam Juntos muitas vezes. Acho que a levou a Brooklands outro dia... para as corridas de automóveis.
- Não sabia que Claire se interessava por tais coisas.
- Não acho que ela se interesse... mas não fica bem recusar - disse Lady Broughton sorrindo.
Na pausa que se seguiu, inclinou-se ligeiramente para ele e continuou num tom que, embora confidencial, manteve deliberadamente casual.
- Preocupo-me um pouco com ela, Stephen. É uma pessoa tão quieta e introspectiva, se quiser - amiga, mas que não sabe fazer amigos. Para estar contente, ela precisa
do tipo certo de companhia - ou vou mais adiante e digo - o tipo certo de marido? Não preciso lhe dizer que não estarei aqui para sempre. Muito em breve, Claire
pode ficar só. E embora ela ame este lugar, são muitas as responsabilidades - que pode achar difícil assumir...
Não dissera nada de definido, nada que pudesse de qualquer modo embaraçá-lo, contudo não havia como se enganar quanto à sua intenção. Na verdade, antes que ele pudesse
falar, ela prosseguiu, colocando os dedos de veias ligeiramente inchadas no seu ombro.
- Acho que foi sensato passar aquela temporada em Paris. E o seu excelentíssimo pai foi sensato em deixá-lo ir. Nos meus dias, os jovens sempre faziam a grande excursão.
Isso não apenas era considerado uma necessidade virtual, mas tirava muitas coisas do seu sistema. Eles voltavam, estabeleciam-se como bons proprietários rurais e
constituíam uma família. Isso é precisamente o que você deve fazer, Stephen.
- Mas supondo... - Ele evitava o seu olhar, com uma ligeira cor nas faces. - Supondo que sinta que devo ir ao estrangeiro outra vez?
-Para quê?
- Para continuar a estudar... e trabalhar.
- Em quê?
- Pintura.
Ela abanou a cabeça e deu-lhe uma indulgente palmadinha na mão.
- Meu caro rapaz, quando eu era jovem e romântica, pensava que poderia escrever poesia, e escrevi, para minha vergonha. Todavia, livrei-me disso. E assim será com
você.
O argumento parecia conclusivo, e ela acomodou-se na sua almofada. Antes que Stephen pudesse responder, Davie entrou na sala com Claire, trazendo uma caixa de metal
laqueado.
- Veja, Stephen, o que Claire me deu. Todas estas belas iscas. Até giradores e bóias. E esta caixa impermeável.
- Não se esqueça - sorriu Claire - que eu espero muitos peixes.
- Agora vai ser fácil. Eu gostaria que a escola não reabrisse tão cedo.
- O inverno não é a melhor época para o lúcio?
- É, sim. E eu estarei à espera dos feriados de Natal.
- Bem, lembre-se de vir tomar chá sempre que estivermos em Chillingham.
Stephen levantou-se, preparando-se para se despedir, tocado pela bondade de Claire com Davie, por sua quieta amabilidade, aparente, mesmo com o seu ar reservado,
em cada palavra ou gesto. Os últimos lampejos da tarde douravam o comprido salão com suas colunas, não belo, mas acolhedor, encantador, com o sentimento de uma velha
casa de campo. Além das janelas, os escuros relvados mas ainda visíveis, sombreados pelo grande cedro, os bosques de faias com os telhados vermelhos das choupanas,
lá no alto, e mais longe, ondeando como o mar, os verdes Downs.
A caminho de casa, Davie achou o seu irmão estranhamente silencioso. Depois de relancear os olhos para ele uma ou duas vezes, disse:
- É formidável no Court. Você não deseja ir lá mais vezes?
Mas Stephen não respondeu.
CAPÍTULO XI
NA TERÇA-FEIRA SEGUINTE, o almoço na Reitoria estava quase terminado. Tinha sido uma refeição um tanto opressiva para Davie, já formalmente vestido, que devia voltar
à escola nessa tarde. Contudo, olhando em torno, Stephen sentia uma tensão maior do que a exigida pela ocasião, um ar geral de conspiração e expectativa. Sentia
também uma intensificação daquela intangível coerção, que, disfarçada em uma nuvem de afeição, vinha envolvendo-o de quando em quando durante as últimas duas semanas.
O Reitor, que já tinha consultado o relógio três vezes nos últimos cinco minutos, tornou a fazê-lo, terminou o seu café e, sem fitar ninguém em particular, disse:
- Acontece que o Sr. Munsey Peters está nas vizinhanças. Infelizmente não pôde vir almoçar. Mas eu o convidei a vir pouco depois.
- Que interessante, papai - murmurou Caroline, com os olhos no prato.
- Está se referindo - perguntou a Sra. Desmonde no tom de quem fora instruída a perguntar - a Munsey Peters?
- Isso mesmo. Conhece o Sr. Peters, Stephen? - Inatento, cortando uma careta numa casca de laranja para Davie, Stephen levantou os olhos, certo de que seu pai se
dirigira a ele.
- Sim, é membro da Academia Real.
Houve uma pausa. Contido, com a expressão subitamente fixa, Stephen esperava que Bertram caísse na armadilha.
- Achamos que ele podia ter vontade de olhar os seus quadros.
Houve outro silêncio, que Caroline se apressou em romper, com um ar de inteligência.
- Não é ótimo, Stephen? Agora você pode se valer do conselho dele.
- Acredito - disse a Sra. Desmonde - se a memória não me falha, que há uma paisagem de Peters no Salão Pump, em Cheltenham. Está pendurada sobre a Fonte de Chalybeate.
Uma vista das colinas de Malvern com uma ovelha. Cheia de vida.
- Ele está na primeira fila - concordou Bertram.
- Não há também um livro, papai - interpôs Caroline - algo como De Rafael a Reynolds, ou coisa parecida?
- Ele escreveu muitos livros sobre arte. O mais conhecido intitula-se A Arte pela Arte.
- Devo procurá-lo na biblioteca - murmurou Caroline.
- Você não se importa se mostrarmos a ele as suas pinturas? - O Reitor voltou-se para o filho com uma nova firmeza. - Desde que se apresentou a oportunidade, seria
sensato pedir-lhe a opinião.
Stephen empalidecera. Não respondeu por um momento.
- Mostre-lhe qualquer coisa que quiser. Sua opinião não tem nenhum valor.
- O quê? Munsey Peters é um académico famoso. Exibe regularmente há 15 anos.
- Que significa isso? Não posso imaginar nada mais mortal, mais vulgar e idiota do que as suas pinturas.
Bruscamente Stephen rompeu o seu silêncio, sentindo que o julgariam invejoso e com medo. Então, ao voltar-se, ouviu um som de rodas e, pela janela, viu um cabriolé
de aluguel chegando à porta da frente. Um homem baixo, tornado mais baixo por um vasto sombrero preto e uma capa preta do Inverness, desceu rápido do cabriolé, olhou
em volta e tocou a sineta. Bertram levantou-se e, acompanhado pela mulher e Caroline, foi a saguão. Stephen permaneceu sentado à mesa, vendo muito bem que tudo aquilo
fora arranjado - ele tinha vindo especialmente de Londres. A julgar por suas roupas, Peters não estava absolutamente visitando o campo - tinha vindo expressamente
de Londres, mas fora comissionado, sem dúvida por tal ou qual preço - vinha especialmente de Londres como um cirurgião chamado à cabeceira de uma pessoa gravemente
enferma, cujo diagnóstico era uma questão de vida ou morte.
Um toque tranquilizador no ombro acordou-o. Era Davie.
- Não é melhor irmos agora? Não se aborreça, Stephen, aposto que você vai sair por cima.
Na sala de estar, construída originalmente como um parlatório retangular e posteriormente afeada por janelas de sacadas vitorianas abertas ao lado oeste, Munsey
Peters estava sentado no sofá, gorducho, de cara lisa, solicitamente oficioso, já no centro de uma plateia inteligente.
Quando Stephen entrou, girou e estendeu-lhe uma mão amável.
- Então este é o seu jovem cavalheiro? Prazer em conhecê-lo, senhor. Stephen apertou-lhe a mão, dizendo a si mesmo, apesar do conflito de emoções no seu peito, que
não devia ter ódio àquele visitante indesejável, que sem dúvida era uma pessoa honesta e estimável, agindo de boa fé. Contudo, conhecendo o trabalho de Peters, que
sempre recebia destaque na imprensa e
muitas vezes era reproduzido nos melhores semanários, aquelas suas paisagens lanudas e interiores betuminosos, tresandando a sentimentalismo e cheios daquele claro-escuro
que Glyn tinha profanamente descrito como siena queimada e merde, Stephen não podia reprimir uma aversão instintiva, aumentada e não diminuída por aquele homenzinho
de aparência presumida e maneiras seguras, que, embora um tanto menos que assertivo, estava odiosamente satisfeito consigo mesmo. Recusara o almoço, tendo "satisfeito
o homem interior"
- suas próprias palavras - no vagão-restaurante que sempre acompanhava o expresso do meio-dia, mas, diante da insistência, consentiu em tomar café. E, balançando
a xícara nos joelhos, de pernas cruzadas, sapatos com polainas, dirigiu a Stephen uma série de perguntas agradáveis, exatamente como faria um notável académico para
deixar um neófito nervoso.
- Então esteve em Parri, hein?
- Sim. Pouco menos de um ano.
- Trabalhando duramente, espero, na cidade alegre. - Isto, com um olhar de humor velado para os outros; então, como Stephen não respondesse:
- Com quem estudou?
- No começo... com Dupret.
- Ah! E que pensa ele do amigo?
- - Eu realmente não sei. Deixei-o depois de poucas semanas.
- Hum! Hum! Isso foi um engano. - E, num tom intrigado: - Quer dizer que ficou a maior parte do tempo por sua própria conta? Não pode ter aproveitado muito dessa
maneira.
- Ao menos aprendi o quanto a força de vontade, a disciplina e a intensa aplicação são necessárias para fazer um bom artista.
- Ora! Isso é muito fino. Mas, e o aprendizado?
A frieza da voz de Stephen era provocante.
- Há certos elementos essenciais. Já os acentuei muitas vezes no meu livro. Ouso dizer que ele fez parte do seu estudo.
- Receio que não. Estive estudando no Louvre.
- Oh, copiando - exclamou Peters contrariado. - Isso não é bom. Um artista procura ser original acima de tudo.
- Contudo, todos os grandes artistas influenciaram uns aos outros - argumentou Stephen diretamente. - Rafael provém de Perugino, El Greco de Tintoretto, Manet de
Franz Hals. Todos os pós-impressionistas se ajudaram uns aos outros. A lista seria interminável. Porque, se me perdoa, vemos no seu próprio trabalho Leighton e Poynter.
A menção desses dois artistas, tão famosos na época vitoriana e agora esquecidos, trouxe ao rosto de Munsey Peters uma expressão confusa, como se mal pudesse saber
se a intenção era de louvor ou insulto.
A Sra. Desmonde, sempre diplomática, rompeu o silêncio.
- Deixe-me oferecer-lhe mais café.
- Não, obrigado - e devolveu-lhe a xícara. - Na verdade, tenho pressa, deixei o meu veículo à espera. Podemos entrar no assunto sério do dia?
- Com muito gosto. - Bertram, um apreensivo observador daquele choque de temperamentos, fez um sinal a Davie, que deixou a sala num pulo. Quase imediatamente voltou,
trazendo o primeiro quadro, uma vista do Sena em Passy, que colocou sobre uma cadeira de alto espaldar posta adrede em boa luz e diante do sofá.
Impondo silêncio com um dedo nos lábios, Munsey Peters ajustou o pincenê. Estudou a pintura intensa e longamente, inclinou a cabeça em vários ângulos; então, dramaticamente
fez um gesto para Davie, que a retirou, colocou-a junto à janela e trouxe a seguinte. Para Stephen, parado lá atrás com uma expressão insensível e um latejar doloroso
no coração, era uma experiência martirizante, uma crua exposição da sua delicada sensibilidade.
Olhou em torno para o círculo doméstico - o pai, sentado, muito teso, com as pontas dos dedos fortemente unidas, as pernas cruzadas, um pé balançando em nervosa
expectativa; Caroline, na banqueta junto ao sofá, com uma ruga de ansiedade na testa, olhando para Peters, ora para o chão; sua mãe, sonhadoramente confortável numa
poltrona, de todo indiferente; e Davie, no colarinho branco engomado e roupa cinza-escura do colégio, o cabelo penteado para trás, olhos brilhantes, sem compreender
bem a questão, e contudo cheio de confiança em que seu irmão seria justificado.
Acabou-se afinal, a última pintura fora mostrada.
- Então? - exclamou Bertram.
Munsey Peters não respondeu imediatamente, mas, erguendo-se, fez uma nova inspeção nos quadros contra o peitoril oval da janela da sacada, como para afastar qualquer
impressão de que o seu julgamento era apressado ou inconsiderado. Uma tela em particular, a mulher com as suas roupas brancas, parecia perturbá-lo de modo especial;
vez por outra, quase furtivamente, os seus olhos voltavam àqueles ousados contrastes e cores vivas. Por fim, deixou cair o pincenê, seguro por uma fita de seda lavada,
e tomou posição no tapete da lareira.
- Que deseja que eu lhe diga?
- Meu filho tem... - Bertram respirou fundo - alguma chance de se tornar um pintor... posso dizer... de primeira categoria?
- Nenhuma.
Fez-se um silêncio mortal. Impulsivamente, Caroline lançou um olhar de simpatia para o irmão. O Reitor curvou a cabeça. Stephen, com a sombra de um sorriso, continuou
a olhar diretamente para Munsey Peters.
- Naturalmente - continuou ele - eu poderia ser polido. Mas entendi que o senhor queria a verdade. E nessas telas, que têm talvez um certo brio
rude, ignoram completamente as grandes tradições da pintura, tradições de propriedade e restrição, só posso encontrar... - encolheu os ombros - matéria para condolência
e pesar.
- Então - disse Bertram lentamente, como se estivesse determinado a se convencer - se forem, digamos, submetidas à Academia, acha que seriam recusadas?
- Meu caro senhor, como membro da comissão de exposição, não sei, não estou seguro. Acredite-me, dói-me extinguir as suas esperanças. Se o seu filho quiser continuar
isto como um passatempo... um hobby... isso é com ele. Mas profissionalmente... ah, meu caro senhor, a pintura é, para todos nós que vivemos dela, uma arte cruel.
Não há lugar para fracassos.
Bertram lançou um olhar cheio de compaixão para o filho, como esperando que ele protestasse, ao menos oferecesse alguma defesa do seu trabalho. Mas Stephen, com
a mesma sombra de um sorriso, e aquele ar de orgulhosa indiferença, mantinha-se calado.
- E agora, se me desculparem - disse Peters, curvando-se.
O Reitor pôs-se de pé.
- Estamos muito agradecidos ao senhor... mesmo que o seu veredicto tenha sido desfavorável.
Munsey Peters curvou-se novamente e, ao deixar a sala com modos graves e polidos, aceitou prestemente o envelope que Bertram, após murmurar umas palavras de escusas,
escorregou-lhe na mão - uma transação efetuada com tamanha destreza que ninguém pareceu notá-la, a não ser Stephen. Dali a pouco se ouviu o rangido do cabriolé.
O professor tinha partido.
Como se para poupar os outros, mais do que a si mesmo, do embaraço, Stephen foi para fora. Ali, andando de cá para lá, de cabeça descoberta, estava o Reitor. Tomou
imediatamente o braço do filho, com um aperto de simpatia, e, após atravessar as lajes, observou várias vezes:
- Tenho que ir à sacristia. Quer caminhar comigo?
Ao subirem juntos a alameda, Bertram continuou, sombriamente, sem um indício de autojustificação.
- Stephen, essa foi uma experiência dolorosa para você, e, em grau nSo menor, para todos nós. Mas era imperativo para mim saber a verdade. Espero que não me reprove.
- Claro que não. - A voz calma do filho causou a Bertram uma viva surpresa, seguida por um sentimento de oposição.
- Você aceitou a coisa muito bem, Stephen - como um verdadeiro Desmonde. Eu temia que pudesse ficar encolerizado comigo por lhe ter imposto esse teste sem aviso.
Mas se eu lhe tivesse dito de antemão, você poderia ter recusado...
- Sim, acho que recusaria.
- Você percebe que não foi questão de influência indevida, que a opinião de Munsey Peters foi inteiramente dele?
- Estou certo disso. Acho até que o nosso pequeno argumento no começo eriçou ligeiramente a sua plumagem. Mas não há sombra de dúvida - ele detestou a minha pintura
como veneno.
- Ah! - murmurou o Reitor condoído. - Pobre rapaz.
Chegaram à igreja; detendo-se na cancela, Bertram pousou a mão na efígie do cruzado, um gesto costumeiro de apoio, e encarou o filho.
- Pelo menos o caminho agora está claro... e não há nada contra o seu regresso para ser ordenado. Não quero pressioná-lo. Há a toga, os serviços militares. Contudo
- olhou em torno - o seu lugar é aqui, Stephen.
Uma pausa quase imperceptível.
- Acho que não compreende. Não vou abandonar a pintura.
- Mas que diabo quer dizer?
- Simplesmente que tomei uma resolução, irrevogável, que vou dedicar a minha vida inteiramente à arte.
- Mas você acaba de ter uma opinião... com mil diabos... de um perito.
- Essa nulidade idiota... roída por um rancor secreto! O fato de ele ter difamado o meu trabalho foi o maior cumprimento que podia me fazer.
- Você está louco? - Cólera e desalento levaram o sangue à testa de Bertram. - Ele é um dos melhores pintores da Inglaterra e pode vir a ser o próximo presidente
da Academia.
- O senhor não compreende, papai. - A despeito da tensão das suas feições, Stephen quase sorriu. - Peters não pinta coisa nenhuma. O seu trabalho é convencional,
sentimental, e sem um traço de originalidade. O sucesso dele é o de uma mediocridade intrometida. Ora, até as tapeações do velho Dupret, com a sua peinture léchée,
são mais toleráveis. O senhor não sentiu nojo dos seus chavões, sua afetação, suas mãos gordinhas? Ele marcha com o rebanho. O verdadeiro artista só pode cumprir
o seu destino sozinho.
Durante esse discurso, que lhe pareceu bombástico, o rosto de Bertram foi gradualmente endurecendo. Empedernia-se contra a dor que sentia no peito, e um imenso desejo
de tomar o filho nos braços.
- Para qualquer pessoa normal, a evidência é clara. Você deve aceitá-la.
- Não.
- Insisto.
- Tenho o direito de viver a minha própria vida.
- Não, se está disposto a arruiná-la.
Nenhum deles levantou a voz. O Reitor estava muito pálido, mas os seus olhos nunca se afastaram do rosto do filho. Por baixo de sua agitação havia uma firmeza que
Stephen nunca tinha visto.
- Por simples justiça, você não me deve alguma retribuição por tudo que tenho feito por você? Sem dúvida, você afeta desprezar uma coisa tão sórdida como o dinheiro.
Contudo, gastei na sua educação - a mais primorosa que qualquer filho podia desejar - um capital que eu mal podia despender. Estamos muito menos bem do que estávamos,
e é com dificuldade que mantenho Stillwater nos padrões a que estamos acostumados. Sempre esperei que esta medida não fosse necessária. No entanto, para seu próprio
bem, devo repô-lo no seu juízo. Sua pensão está suspensa. E você verá que é impossível continuar sem ela.
Um compasso de silêncio latejou na pequena igreja. Stephen baixou os olhos, deteve-os por um longo momento na efígie de pedra do seu ancestral que, à meia-luz, parecia
sorrir-lhe cinicamente. Olhando para a espada, os grandes guantes de malha, uma frase das leituras da sua infância lhe veio à memória: mão de ferro em luva de veludo.
E suspirou:
- Bem, papai, isso parece resolver a questão.
Bertram apanhou o seu diário na sacristia - a mão lhe tremia tanto que mal podia segurar o grosso volume, sendo obrigado a apertá-lo Contra o flanco. Deixaram a
igreja em silêncio.
Pelo resto da tarde, Stephen foi um modelo de complacência, animando os outros com a sua vivacidade e bom humor. Às seis horas, insistiu em ir com Davie à estação
e embarcou-o no trem, despachando-o com alegre afeição. Depois, voltando, com uma expressão diferente, foi à fila de veículos, onde um motorista estava com a sua
bagagem, secretamente introduzida na de Davie. No horário colado na frente do guichê, viu que um trem costeiro partia dentro de uma hora. Comprou uma passagem e
sentou-se à espera dele.
CONTINUA
A TARDE MUDARA EM NOITE, e todo ímpeto e atividade dos Downs jaziam quedos, banhados em luz pérola. A relva seca, prateada como geada, soltava um vapor esgarçado que se prendia nas sebes como teias de aranha. As poças de orvalho, pires de leite desnatado, não refletiam a imagem de uma lua amarelenta que mirava, redonda e baixa, como o olho de um grande gato, agachado na colina, pronto para saltar.
Nessa quietude brilhante, de uma igreja normanda de pedra tão pequena que parecia perdida numa dobra do descampado - apesar dos nítidos contornos das suas linhas longas e breves, da sua torre achaparrada, de suas chagosas paredes inclinadas - inverossímil como um sonho, emergiu uma sombra, comprida e escura, à qual se seguiram um baque de carvalho e o tinido de um pesado ferrolho, a figura de um homem, menos comprido talvez, mas igualmente sombrio. Muito apropriadamente, um clérigo, Bertram
Desmonde, Reitor de Stillwater.
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De cabeça nua, mas com uma capa sobre os ombros, enfiou pela confusão de lápides cobertas de liquens, passou os dois grandes teixos retorcidos, dos quais o mais
novo tinha sem dúvida fornecido arcos para os arqueiros de Sussex pelo menos durante cinco séculos, e depois atravessou a cancela para a azinhaga.
Aqui, apanhado pela brancura da noite, por um ímpeto da sua secreta alegria, fez uma pausa e, por um longo instante, aspirou a beleza da sua gleba, uns bons 100
acres, indo por um lado até os altos do bosque de faias de Ditchley, e pelo outro até a coutada de tojo arenoso que beirava a estrada para Stillwater. Na distância,
o Anel de Chanctonbury era visível contra o céu oriental, e mais abaixo, por entre árvores, o absurdo mas amigo torreão de Broughton Court. Para oeste, a planura
continuava, cortada por uma caleira
- ferida incruenta - por túmulos tidos como romanos, mas provavelmente restos de antigos fornos de ladrilhos. Vinham então as choças dos trabalhadores, seis, em
fila, como cogumelos, e frouxamente, acima da orla da estrada, o bruxuleio da aldeia. Abaixo dele, brilhante de luzes, a Reitoria.
Solidamente georgiana, com janelas paládicas, um espaçoso pórtico sustentado por colunas acanaladas e - delicioso pensamento! - uma balaustrada na cimalha, era uma
verdadeira casa de campo, construída pelo seu bisavô, Canon Hilary Desmonde, em 1780, em pedra branca dali mesmo - a pedreira, bem perto, estava agora felizmente
coberta pela vegetação. Traços de um Tudor primitivo ainda persistiam no celeiro e estábulos de tijolos, nos anexos da fazenda, no delicado muro de sílex e nos seixos
redondos que cercavam a ampla horta. Envolvida por relvados macios, orlados de canteiros de tulipas e prímulas, o jardim de roseiras, ainda não desperto, formando
um hexágono em torno do relógio de sol, cordões de rosas Ribston e Beauty of the Bath, com as suas soprepelizes de flores, como chantres, ao longo do prado do sul,
uma gigantesca azinheira sombreando a trilha ensaibrada, essa casa, esse pequeno abrigo de casca dourada, enraizado e imutável, seu lar, lar dos Desmondes por tantos
anos, especialmente esta noite aquecia de orgulho o coração do Reitor.
Quase certamente eles tinham vindo com o Conquistador. Um deles, o Sieur d'Esmonde, que estivera nas Cruzadas, jazia sob a sua efígie de mármore, com seu curvo nariz
quebrado, ai!, por algum turista vandálico, na pequena igreja de Downland. Se o nome tinha sido um tanto alterado pelo uso rústico - não se poderia aplicar a palavra
corrompido - ele não os identificava de modo mais completo com a boa terra de Sussex? Eles tinham prestado bons serviços à sua pátria nas três profissões abertas
para um cavalheiro: na Igreja particularmente, mas também na Justiça e no Exército. Seu irmão Hubert, após um longo e útil trabalho nas fronteiras do Afeganistão,
estava agora parcialmente aposentado em Simla Lodge, a cerca de 25 quilómetros, com o posto de general, e ainda em contato com o Ministério da Guerra, devotando
o seu lazer à cultura científica da pêra Jargonelle. Somente uma ocasião, até onde alcançava a memória, a família descera ao comércio: quando, no início do reinado
de Victoria, um Joseph Desmonde, tio-avô do Reitor, ocupara-se com a manufatura de objetos eclesiásticos. Mas como o negócio tinha certo sabor de discrição, trazendo-lhe
ainda uma considerável fortuna, o lapso, embora lamentável, era menos difícil de perdoar.
- Uma bela noite para o senhor, Reverendo.
Nas profundezas do seu devaneio, o Reitor deixara de notar a figura troncuda do velho Mould, seu jardineiro-chefe, que era também o seu sacristão, manquejando trilha
acima para fechar a igreja.
- Boa noite, Mould. Já a fechei, você pode voltar comigo. - Fez uma www.pausa, não revelando o impulso que, contra o seu hábito, o tinha levado à igreja; contudo,
estimulado pela alegria, acrescentou: - Stephen volta para casa esta noite, como sabe.
- E como é que eu ia esquecer isso, senhor? Uma notícia muito boa mesmo. Espero que ele tenha tempo de ir caçar coelhos comigo. E acrescentou mais gravemente: -
Nós logo o teremos no púlpito, quem sabe.
- Ele ainda tem algum caminho para andar, Mould. - Ao descerem a trilha juntos, Bertram sorria. - Embora eu me atreva a dizer que vocês gostariam mais de ouvir um
jovem recém-saído de Oxford do que um velho caturra como eu.
- Não, meu Pastor, não deve dizer uma coisa dessas. Não servi os Desmondes durante 50 anos para agora ignorar a sua qualidade. E pode pregar quem quiser pregar,
que não há ninguém melhor no país.
Bastava apenas essa tocante prova de lealdade quase feudal para selar a disposição do Reitor. O denso perfume das prímulas era, de certo modo, mais doce, os agudos
balidos noturnos dos cordeiros, atrás da cerca de varas, tão enternecedores que quase causavam um aperto no coração. Ah, esta Inglaterra, pensou ele: e aqui, no
seu próprio coração, preciosa como uma jóia, navegando ao luar como um navio de almas, esta pequena paróquia que seria de Stephen também, inviolada, intemporal e
imutável como a eternidade.
- Vamos precisar de alguém para a bagagem. Mande Albert ficar por perto.
- Farei isso, senhor... se ele estiver em casa. Estou tendo dificuldades com esse meu rapaz. Ele não gosta de trabalho. Mas eu dobro ele a pau... prometo.
- com o tempo, ele será um bom rapaz, Mould. Não seja duro com ele - disse Bertram, num tom neutro.
Despediu o velho diante da sua casa, baixa, de paredes curvas na frente, e momentos depois estava na larga entrada do saguão da Reitoria, entregando a capa à sua
filha Caroline, que, inevitavelmente, ali estava para recebê-lo.
- Ainda não chegaram?
Esfregou as mãos: o saguão tinha o defeito do seu teto alto e soalho de mosaico - dava uma sensação de frio da noite, mal atenuado pelo rumor dos tubos de calefação.
- Não, papai. Mas não devem demorar. Claire foi à estação no seu automóvel novo.
- Devemos comprar uma dessas engenhocas. - O reflexo de um capricho aliviou momentaneamente a austeridade das feições delgadas de Bertram e das faces um tanto encovadas.
- Será útil para visitar a paróquia.
- O senhor não está falando sério, papai. - A sua mentalidade prática, despida de humor, tomava-o literalmente. - Sabe o quanto detesta cheiros e poeira. E eu não
o sirvo bastante bem com o tílburi?
Sem dúvida, a iminência do regresso de Stephen a deixava nervosa. Assim, falara com mais vigor do que pretendia, com o seu rosto liso e sério brilhando de sentimento.
E em verdade, antes que ela o pudesse lamentar, a expressão ausente do pai, que, com o ouvido atento, esperava o ruído das rodas na alameda, puniu-a severamente.
Ela baixou os olhos, e seu corpo pesado, sustentado por duas robustas panturrilhas, diminuiu um pouco. Quando é que ele ia apreciar a profundeza ilimitada da sua
devoção, compreender que o seu único desejo era servi-lo? desde o exato momento em que começava o seu dia, depois de vestir-se às pressas, sem o benefício de um
espelho, ombreava com a carga da sua casa, conferenciava com a cozinheira sobre como ele seria alimentado, arranjava as flores, inspecionava o jardim e a granja,
tratava da sua correspondência, atendia visitantes importunos, via paroquianos doentes, desencorajava arqueólogos, juntamente com as carruagens que vinham aos domingos
e feriados cheias de gente, pedindo em coro para ver a "tumba", e ainda achava tempo para cuidar do seu linho e tricotar as suas meias de lã. E, para piorar as coisas,
estava resfriada e a toda hora tinha que assoar o nariz num lenço ensopado.
- Sua mãe vem? - Fez a pergunta com cautela.
- Acho que não. Esta tarde molhei a sua testa com água-de-colônia. Mas ela ainda se sente indisposta.
- Então seremos quatro para o jantar.
- Três. Claire telefonou para dizer que sente muito, muito, mas não poderá ficar.
- Que pena. Mas... haverá outros dias.
Seu tom de voz exprimia tristeza; contudo, ela percebeu que, a despeito da sua alta consideração por Claire, filha de Lady Broughton, da vizinha Court, e da sua
cálida aprovação do entendimento tácito existente entre ela e o seu filho mais velho, no fundo estava feliz nesta noite de reunião por ter Stephen inteiramente para
si.
Com esforço, ela conseguiu manter o tom sereno.
- Ainda não terminei de datilografar todas as suas notas para a convocação de amanhã. Quando partirá para Charminster?
- Oh, depois do almoço, suponho. O Deão raramente é pontual.
- Duas horas então. Eu o levo. - Subitamente, com ciúmes brilhando nos olhos, ajuntou: - O senhor parece cansado, papai. E terá um dia cheio amanhã. Não deixe Stephen
retê-lo até muito tarde.
- Não se inquiete, Caroline. E, a propósito, espero que nos apresente um bom jantar.
- Temos sopa hindu com caril e salmão que o tio Hubert nos mandou de Test, com pepino e molho verde, é claro, e depois um lombo de cordeiro com ervilhas da nossa
horta e batatas novas. Para sobremesa, Beasley fez aquela charlotte de maçã que Stephen tanto adora.
- Ah, sim, minha querida. Lembro que ele sempre a pedia ao voltar de Marlborough para casa. Mas, espere, não é o ruído de um motor?
De fato, ouvia-se um som fraco mas rítmico; avançando para a porta, ele a abriu, deixando ver um pequeno cupê de Dion, ativo e trepidante, do
qual, cessada a agitação por meio de alguma engenhosidade, emergiram duas figuras.
- Stephen!
- Como está, papai... e você, Caroline? Davie não está?
- Ainda não... ele terá licença na próxima segunda-feira.
O arco de luz do pórtico mostrou uma figura franzina de estatura abaixo de mediana, vestida de preto e forcejando com uma valise de couro - o rapaz de Mould não
aparecera - um relance, também, de feições finamente cinzeladas, narinas sensíveis, e um rosto estreito, pensativo, e um tanto sério. Então veio, com discrição,
deixando que as saudações familiares cessassem, uma jovem alta de mãos enluvadas e um comprido casaco de tweed. Seu boné de dirigir, com um véu pendente, absurdamente
como um bolo de cevada, usado apenas em deferência às instâncias maternas, não podia destruir o seu ar de tranquila compostura, uma inescapável sensação de boa educação,
confirmada por sua voz ao se reunir ao pequeno grupo.
- Lamento termos deixado atrás alguma bagagem. Minha baratinha não tem espaço para malas.
- Não se preocupe, querida Claire. Amanhã mandaremos buscá-la. O Reitor tomou-lhe o braço num gesto quase paternal. - Mas você não pode ficar conosco agora?
- Gostaria muito. Mas mamãe espera gente da aldeia... uma comissão de agricultores... arrendatários... que não podem ser despachados.
- Ah, sim! As obrigações da senhora de um proprietário rural. Não está uma linda noite?
- Perfeita. Ao passarmos por Halborough, estava claro como dia... Ela voltou a cabeça, um movimento que, dissolvendo a sombra do atroz boné, revelou um perfil puro
e regular. - Não estava linda, Stephen?
Ele ficara em pé, silencioso, num constrangimento de que agora parecia livrar-se com um esforço.
- Foi um belo passeio. - Depois, como se não tivesse dito o bastante, forçando uma frivolidade que lhe era de todo alheia: - Mas em certo ponto acho que devíamos
ter descido e empurrado.
- Em Ambry Hill - riu-se Claire. - Não sou muito entendida nas mudanças. - Seu sorriso demorou-se um instante na obscuridade do pórtico. Mas não devo detê-los. Boa
noite. Venham ver-nos logo... amanhã, se possível. E tenha cuidado com o seu resfriado, Caroline.
Quando ela saiu, Bertram pôs o braço no ombro do filho e levou-o para dentro de casa.
- É bom tê-lo em casa novamente, Stephen. Você não sabe... Ora, bem... como deixou Oxford? E como se sente? Faminto, estou certo. Corra lá em cima para ver sua mãe.
Depois, desça para o jantar.
E enquanto Caroline, com os olhos e nariz vermelhos pelo ar da noite, levantava uma sacola de livros que fora deixada, esquecida, no pórtico, o pai deteve-se um
pouco vendo Stephen subir a escadaria, olhando para cima com uma expressão que, na sua ternura descuidada, era quase um transe.
CAPÍTULO II
APÓS O EXCELENTE JANTAR, bem servido por duas copeiras que, outrora de uma primitiva grosseria de aldeãs, Caroline tinha treinado tão admiravelmente, o Reitor, amolecido,
levou Stephen para o estúdio, onde as cortinas de droguete estavam descidas e ardia um belo fogo de carvão de algas. O aquecimento da Reitoria podia não ser moderno,
mas as lareiras eram amplas e o combustível abundante. E isto se harmonizava com a sala, a despeito dos ornatos moldados, com um tom íntimo e esportivo para amenizar
o ambiente vagamente paroquial, confirmado por uma escrivaninha de tampa corrediça que continha os sermões de Pusey, o Calendário Eclesiástico, e uma estola de púrpura
dobrada. Um par de espreguiçadeiras de couro marrom flanqueava a lareira, contra uma parede estava o armário envidraçado das armas, em outra uma caixa de moedas
saxãs, produto das pesquisas arqueológicas do Reitor, e, acima do consolo da lareira, dois chicotes de cabo de osso cruzavam-se por trás de uma cabeça empalhada
de raposa.
Mais cedo, nessa tarde, preparando-se, Bertram descera ao porão da casa para uma visita à adega, e agora, com um ar ligeiramente consciente, apanhou uma garrafa
empoeirada, que deitara na cestinha, com as pintas de cal para cima, sobre a escrivaninha; tendo imperitamente tirado a rolha em pedaços, serviu dois cálices de
porto. Ele era um homem temperante, que só de raro em raro bebia álcool, e não usava tabaco, mas esta ocasião exigia um registro dentro da verdadeira tradição da
família.
- Seu avô guardou este - observou ele, segurando o cálice de vinho contra a luz e assumindo um ar de crítico. - É um GrahanVs, 1876.
Stephen, que detestava vinho do Porto, fez da sua poltrona um murmúrio de aprovação e levou o cálice aos lábios. Desempenhava, como um ator, o papel que dele se
esperava.
- Parece muito saudável.
A palavra agradou ao Reitor.
- Sim, o seu avô sabia o que estava fazendo. Foi ele que mandou colocar aquelas notáveis manilhas lá embaixo. Elas drenavam o South Meadow, como sabe, em 1878, e
sobrara boa quantidade delas. O velho viu que cada uma podia conter muito bem uma garrafa, e mandou argamassá-las na adega, como perfeitos favos... Naturalmente,
ele não era um grande bebedor. Mas gostava do seu quartilho de clarete após um bom dia com os cães. Deixou-nos, como sabe, quando tinha 70 anos.
- Deve ter sido um grande caráter.
- Era um bom homem. Um verdadeiro cavalheiro inglês do campo.
O Reitor suspirou. - Não se pode desejar um epitáfio mais belo.
- Minha avó também - acudiu Stephen devidamente, porque, desde Oxford, meditando nervosamente enquanto o trem corria pelos prados, pomares e tortuosas regiões, resolvera
ser inteiramente filial. - Ela não ficava muito atrás dele... Mould me contou muitas histórias a seu respeito.
- Ah, sim, ele era muito devotado a ela... como todos os seus serviçais. Mas ela o trazia num pé só. - Um vagaroso sorriso de reminiscência assomou aos olhos de
Bertram. - Você sabe que nos seus últimos anos a velha senhora tornou-se excessivamente gorda. Na verdade, tinha dificuldade em andar, era obrigada a locomover-se
num carrinho, e Mould, e depois o filho do jardineiro, ambos serviam como meio de propulsão. Por mais seis penies semanais. Era uma grande honra. Mas um tanto extenuante,
especialmente quando sua avó desejava ir à aldeia e tinha que ser empurrada durante todo o caminho até Ambry Hill. Num dia quente de verão, quando alcançou o topo
da colina, o jovem Mould parou para enxugar o rosto na manga. Mas ao deixar escapar a cadeira de rodas, lá se foi ela sem ele, aumentando de velocidade, zunindo
colina abaixo e em torno da curva numa velocidade vertiginosa. O coitado do rapaz ficou petrificado. Via-se como o assassino da sua ama. Com um grito de horror,
precipitou-se encosta abaixo. Quando chegou...
Stephen, encolhendo-se, pôs-se a rir; conhecia a anedota de cor.
- ... lá estava a sua avó, calmamente na praça da aldeia, barganhando com o açougueiro as costelas de um cordeiro. - O sorriso de Bertram extinguiu-se. - Era uma
mulher indomável. Imensamente caridosa. E devotada ao meu pai. Morreu somente oito semanas depois dele.
Estaria o Reitor pensando no seu próprio casamento? Lá fora, piou uma coruja. Na copa, no fim do corredor, Caroline estava mexendo em jarras de cerâmica de picles
com uma brusquidão desnecessária. Bertram endireitou-se e bebericou o seu porto, consciente de que devia quebrar o silêncio antes que houvesse um constrangimento
entre ele e Stephen. Como era estranho terem um grande carinho, e, contudo, uma sensação desse embaraço perseguir as suas relações sempre que ficavam a sós. Seria
porque ele se preocupava demasiado? Nunca tinha sentido essa falta de naturalidade na companhia dos
seus dois outros filhos. Naturalmente, ele gostava de Caroline, aceitava aquela sua fortaleza, considerava-a uma "grande presença". Mas a sua domesticidade, conservando-a
uma perpétua solteirona, chocava inconscientemente o seu senso de orgulho de família. Quanto a David, seu filho mais moço, agora com quase 13 anos de idade, aqui,
ai! o seu amor mergulhava em tristeza, decepção e pena. Pensar que um filho seu, aliás, qualquer Desmonde, fosse um epiléptico que, mesmo sem sofrer ataques, tendia
a gaguejar!
O Reitor reprimiu um suspiro. Ceder a tal sentimento era perigoso. Contudo, no seu presente humor, não havia como evitá-lo.
- Que bom ter terminado seus estudos em Oxford. Você se saiu bem.
- Oh, não sei não. No fim, pareceu-me ter perdido o ânimo.
- Eu também me senti assim quando voltei de Trinity... embora gostasse de lá tanto quanto você.
Stephen ficou silencioso. Como poderia dizer a papai que detestava a universidade?... aquela secura, a superioridade, a sensação de estar fora da vida, a interminável
preocupação com esportes que não o interessavam, o estudo sem sangue de línguas mortas que o aborreciam inexprimivelmente, de pura contrariedade, acima de tudo aperfeiçoar-se
em francês e espanhol... sua aversão a uma carreira que lhe fora determinada.
Mas o Reitor dizia:
- Você ganhou umas férias. Claire o quer para jogar ténis. Seu tio Hubert convidou-o para Chillingham. O salmão dele não esteve bom esta noite? Seu primo Geoffrey
está aqui, numa breve licença.
Novamente Stephen não respondeu. E pela primeira vez Bertram começou a se questionar, se, por baixo da sua maneira passiva, o seu filho não estava combatendo sinais
de Cansaço. Sua palidez natural parecia mais intensa, e seus olhos tinham aquela negrura aumentada que, diminuindo o resto do seu rosto, - representara desde os
seus primeiros dias um sintoma de mal-estar físico ou emotivo. Ele não é forte, espero que não esteja adoecendo de alguma coisa, pensou Bertram, com súbita ansiedade,
e rápido, protetoramente, declarou:
- Você tem mesmo que descansar. Não precisa ir à Sede antes de julho. Descontando cinco meses para Londres, a sua ordenação seria no Natal, a quadra mais conveniente
do ano.
Stephen levantou-se. Por muito tempo havia antecipado este temido momento, tentado, a conselho do seu amigo Glyn, apressá-lo, e então recuava nervoso, escrevia uma
dezena de cartas, e sempre as rasgava. Agora aquilo estava diante dele, e ele se sentia mal, vazio por dentro.
- Papai... preciso falar com o senhor.
- Sim? - Animou-o com um aceno, as pontas dos dedos juntas.
Uma pausa. Seria dinheiro?, pensou serenamente o Reitor. Alguma dívida não paga na universidade? Então, ouviu as palavras entrecortadas:
- Eu não quero ser ordenado.
A expressão do Reitor não se alterou aparentemente, como se uma súbita e completa surpresa tivesse, como a morte repentina, paralisado as suas feições numa semelhança
de normalidade. Por fim, quase estupidamente, disse:
- Não quer?
- Acho que não sirvo para a Igreja... Não sou bom com pessoas Não sei organizar... Eu seria incapaz de pregar um sermão decente, ainda que para salvar a minha própria
vida.
- Essas coisas virão. - Em pé, Bertram estava quase franzindo o cenho.
- Os meus próprios sermões não são particularmente brilhantes. Mas bastam.
- Mas papai, não é apenas isso. Eu não tenho interesse por esse trabalho. Eu... eu não me sinto capaz de sucedê-lo aqui...
Confirmado em sua primeira suspeita pela voz interrompida, o Reitor recuperou-se e assumiu um tom brando.
- Você está cansado e abatido, meu filho. Nós todos ficamos cansados e desanimados ocasionalmente. Você se sentirá diferente depois de umas caminhadas pelos Downs.
- Não, papai. - Respirando irregularmente, Stephen fortificou a sua vontade. - Venho sentindo isto há muito tempo. Não posso amarrar-me neste lugarzinho... a um
futuro vazio e frustrado.
Que tinha dito ele, procurando desesperadamente as palavras? A expressão chocada nos olhos do seu pai afligiu-o. Um momento de insuportável silêncio. Então:
- Não percebi que você via Stillwater sob esse aspecto. Somos uma pequena paróquia, talvez. Mas nosso valor para o país pode ser julgado por outros padrões que não
os da mera dimensão.
- O senhor me interpretou mal. Eu gosto de Stillwater. ., é o meu lar. E sei o quanto o senhor é estimado em quilómetros e quilómetros aqui em volta. É uma coisa
diferente... certamente o senhor entende o que eu quero dizer... o que acho que devo fazer com a minha vida.
O Reitor recuou bruscamente, e então, com toda a compreensão, olhou sobressaltado para o filho.
- Stephen... não será aquela ideia doida outra vez?
- É, papai.
Novamente um compasso de silêncio vibrou entre eles. O Reitor pôs-se de pé, e começou, lentamente a princípio, depois com crescente perturbação, a andar de cá para
lá. Finalmente, com um esforço, acalmou-se e aproximou-se de Stephen.
- Meu querido filho - disse ele com grande seriedade. - Eu nunca tentei prendê-lo a mim pelo seu senso do dever. Mesmo quando você era muito moço, antes de ir para
a escola, preferi confiar nos seus sentimentos naturais
de afeição e respeito. No entanto, deve compreender o quanto contei inteiramente com você para me suceder aqui... Stillwater significa tanto para mim... para todos
nós. E as circunstâncias da minha vida... a invalidez de sua mãe... a infeliz deficiência de David... o fato de ser o meu filho mais velho e, perdoe-me - a sua voz
tremeu ligeiramente - meu filho bem-amado - levou-me a colocar as minhas esperanças em você. Contudo, neste momento, ponho tudo isso de lado. Por minha honra, é
em você que estou pensando, e não em mim, quando lhe digo, quando lhe suplico que esqueça esse sonho fantástico. Você não compreende realmente o que isso significa.
Você não deve... não pode realizá-lo.
Stephen baixou os olhos a fim de não ver o rosto contraído do pai.
- Mas eu com certeza tenho direito à minha própria vida. - Através do seu respeito ardia uma íntima confiança.
- Não a essa espécie de vida. Ela só lhe trará infelicidade. Jogar fora as suas brilhantes perspectivas, arruinar toda a sua carreira por um mero capricho... seria
um ultraje à face de Deus. E depois há Claire... como, em nome do Céu, ela caberia nesse plano? Não, não. Você é muito jovem para a sua idade, Stephen... Essa ideia
louca que se apoderou de você pode lhe parecer muito importante agora. Mas dentro de poucos anos, rirá de si mesmo pelo simples fato de ter pensado nela.
Afundado na sua cadeira, de faces vermelhas e olhos baixos, com o espírito tardo e embotado pelo vinho do Porto, Stephen não podia achar uma palavra para dizer.
Naquele momento, sem exagero, odiava o seu pai. contudo, ao mesmo tempo, mostrava-se vencido pela vergonhosa consciência da sua afeição paternal, pela gratidão e
justiça do seu ponto de vista, e, pior que tudo, por uma tépida onda de nostalgia que lhe subia à garganta, um dilúvio de recordações da infância... as corridas
de tílburi a Ambry, seu pai afrouxando as rédeas, Carrie no seu limpo avental branco, Davie usando os seus primeiros calções de flanela; os piqueniques à beira do
Avon, o sol quente na água fria, e um pato selvagem subindo do juncal amarelo à medida que a canoa avançava; as canções familiares entoadas diante da árvore de Natal,
uma poeira de neve nas vidraças... oh, como poderia arrancar essas ternas, fortes raízes?
Bertram inclinou-se para diante e, não de modo comovente, mas com um toque de desconfiança, pôs-lhe a mão no ombro.
- Acredite-me, trata-se da sua felicidade, Stephen. Você não pode... não poderia achar no seu coração alguma coisa contra mim.
Stephen não se atrevia a erguer os olhos, com medo de romper em lágrimas. Estava liquidado... pelo menos no presente. E ele tinha pensado lutar duramente, tinha
jurado a Glyn que ganharia a partida.
- Muito bem - conseguiu murmurar finalmente, provando toda a
amargura que a derrota traz a uma natureza dócil mas apaixonada. - Se é assim que o senhor pensa, com tanta veemência... tentarei a Sede... para ver o que acontece.
CAPÍTULO III
BERTRAM SUBIU AS ESCADAS VAGAROSAMENTE. Embora fosse grande a sua sensação de alívio, não diminuía o cansaço que lhe viera de repente, nem a demorada ansiedade do
seu coração. Diante do quarto da esposa, hesitava, com a cabeça inclinada numa atitude de escuta; depois, batendo ligeiramente no painel, empertigou-se e entrou.
Era um vasto compartimento, outrora a sala de estar de cima, a melhor da casa, como referira o velho Cónego Desmonde, sem dúvida por suas belas proporções e por
dar para o sul, o que, além de permitir a entrada do sol da manhã, oferecia um vasto panorama dos Downs. Na sua conversão em quarto e sala de estar da esposa, parte
da mobília original tinha sido mantida - as cadeiras de tapeçaria e os canapés Chippendale, um largo espelho em semicírculo com moldura de gesso em cima do consolo
de mármore branco da lareira, o tapete vermelho de Bruxelas. Protegida por um guarda-vento, Julia Desmonde estava deitada, lendo, embaixo de uma cobertura de cetim.
Era uma mulher formosa e bem conservada, de 45 anos, com grande ar tranquilo e muito indolente, feições cheias e lisas, e um denso cabelo castanho espalhado no travesseiro
como uma nuvem.
Marcando com uma unha branca o lugar do livro que tinha o desenho de uma figura do zodíaco, Julia dirigiu para o marido, por baixo das finas sobrancelhas, um olhar
inquiridor. Seus olhos eram de um notável azul de amor-perfeito, quase infantis, com pálpebras carnudas quase caídas.
- Então temos Stephen em casa novamente - disse ela.
- Sim, achei que meu querido filho estava com boa aparência. Podia-se contar com ela para exprimir, na sua voz aristocrática e absorta consigo mesma, uma opinião
contrária à dele.
- E a dor de cabeça?
- Melhor, muito obrigada. Sentei-me demais ao sol esta tarde. O sol desta primavera precoce é muito traiçoeiro. Mas eu acabo de fazer um tratamento.
Ele percebeu, pelo aparelho que estava na mesa ao lado, que ela acabara de aplicar uma das suas vibrações. No guarda-fogo, uma caldeirinha de metal assobiava com
um alegre penacho de vapor, indicando que em 20 minutos o extrato de farelo seria levantado e misturado, os tabletes de fermento esmagados e engolidos, o iogurte
batido, ou desta vez seriam algas secas? Então a bolsa de água quente seria reenchida, o fogo disposto para a noite, as luzes diminuídas, as almofadinhas para as
pálpebras umedecidas e colocadas para dormir. E outra vez, embora lutasse contra ela com determinação cristã, a pergunta lhe veio: Por que cargas-d'água tinha casado
com ela?
Ela fora, sem dúvida - aliás ainda o era, evidentemente na sua maneira estatuesca, uma espécie de beleza, e como filha única de Sir Henry Marsden de Haselton Park,
tinha sido considerada pela sociedade do campo daquela ocasião "o partido da estação". Quem, olhando-a, teria adivinhado, por exemplo, que aquela jovem com a graça
de um cisne, anfitriã da Haselton Fête, considerada a beldade do baile de caça, cercada por jovens oficiais dos quartéis de Charminster, sorridente mas composta,
centro de atração, mais tarde revelaria a acentuada peculiaridade de ser tão inteiramente inútil para ele como esposa?
A não ser por uns poucos garden-parties nos seus primeiros anos de casados, quando arrastava um guarda-sol com babados, movendo-se graciosamente sobre a relva, com
um chapeirão, ela se recusara com pacífica resolução a tomar interesse pelas obras da paróquia. "Deus", dizia ela amavelmente, "não há nenhum sentido em levar sopa
para rústicos indigentes ou estragar os nervos costurando roupa de criança para encorajamento da população rural." Afortunadamente, a mulher do bispo gostava dela,
mas ela não recebia as senhoras da clerezia menor.
Preferia passar os dias sentada, exageradamente vestida, à sua janela, ou no roseiral, empenhada num interminável bordado em seda colorida, do qual levantava a cabeça
repetidamente para olhar por longos períodos o espaço, ou tomar notas ocasionais, quando lhe ocorriam, do que haveria de comunicar ao seu médico, que - tendo há
muito esgotado o doutor do condado - visitava duas vezes por mês em Londres. Seus filhos, que ela suportava com uma facilidade distraída, não tinham sido para ela
mais do que episódios momentâneos. Desde que não a incomodassem, ela os considerava com remota indulgência. Contudo, ao aumentar, mais e mais, o seu alheamento,
ela se retirava para si mesma, criando uma existência que se desenvolvia em torno das suas funções físicas, um pequeno mundo de feliz hipocondria, no qual - poderia
ele, ó Deus, tê-lo previsto quando naquela tarde cheirando a rosas, 20 anos atrás, ele quase morrera de dor com o seu beijo aromático? - ela não tinha maior prazer,
nenhum interesse mais vivo, do que discutir amavelmente com ele a cor dos seus tamboretes.
Talvez o cavalo de campanha empalhado no saguão paterno - lembrança de Balaclava - devesse tê-lo advertido, mas, ai! podia ter predito que o pai dela, até a idade
de 60 anos, não era mais que um excêntrico amável, dedicado em suas horas de fazer as pesquisas mecânicas - a eletrificação da sua propriedade por uma cadeia de
moinhos de vento, a inócua construção de um canhão de tiro rápido que, recusado pelo Ministério da Guerra, tinha não mais do que levado ao céu, na sua parte de carne,
o mordomo da família, que, em nome de Deus, devia ter previsto que aquele irreprimível doido teria, na sua caduquice, lançado subitamente um grandioso projeto para
a construção de uma máquina voadora, como a que foi subsequentemente voada por Blériot através do Canal da Mancha, embora aquilo em si mesmo fosse extremamente doentio,
e não passasse de uma feia geringonça com fantásticos parafusos, supostamente capaz de subir do chão na vertical: um helicóptero. Assim, em desafio às leis da gravidade,
Sir Henry profanara o seu belo parque com alpendres e hangar, operários importados, engenheiros, um mecânico belga, gastara dinheiro como água, em resumo, arruinara-se,
e, permanecendo no chão, morrendo como alvo de mofa.
Haselton, que devia ter sido de Julia, era agora uma escola para meninas, o grande hangar um ginásio, e os alpendres - horrores - recém pintados depósitos para tacos
de hóquei enlameados e sapatos desemparceirados de lona.
Seria possível, pensava Bertram, com novo abatimento, que algo dessa instabilidade agora se manifestasse em Stephen? Não, não... impossível. O filho, tão de perto
parecido com ele em corpo e alma, era todo dele, de fato o seu outro eu. No entanto, devido à sua ansiedade, a nuvem que pairava sobre o seu espírito, era tentado,
a despeito do seu melhor juízo, a abrir a mente e procurar alguma espécie de consolo da parte de sua esposa.
- Minha querida - disse ele. - Enquanto Stephen estiver conosco, acho que devemos fazer um esforço para afastá-lo de si mesmo.
Julia mirou-o surpreendida. Ela possuía em grau notável a faculdade de torcer o sentido do que lhe diziam.
- Meu caro Bertram, você sabe muito bem que não posso fazer qualquer esforço. E por que Stephen deve ser afastado de si mesmo?
- Eu... eu estou preocupado com ele. Ele sempre foi um rapaz incomum. Está atravessando uma fase difícil.
- Difícil, Bertram? Ele já não passou pela puberdade?
- Naturalmente... mas não sei o que se passa com esses rapazes. Na primavera, metem ideias estranhas na cabeça.
- Você quer dizer que Stephen está em estado de amor?
- Não... bem, sabemos que ele gosta de Claire.
- Então o que quer dizer? Ele não pode estar doente. Você mesmo disSe um momento atrás que ele está muito bem.
- Foi você quem disse isso. - A despeito de si mesmo, Bertram falava com crescente impaciência. - Acho que ele está longe de se sentir bem. Mas vejo que você não
deseja participar da minha ansiedade.
- Desejo que me fale, meu querido, não faço nenhuma objeção a ouvi-lo. Mas não é suficiente você estar aborrecido sem me aborrecer? Acho que
fiz a minha parte em trazer os seus filhos ao mundo. Sempre houve, do primeiro ao último, pouco prazer nessa tarefa. Depois, você fez deles sua responsabilidade.
Eu jamais interferi. Por que devo fazê-lo agora?
- É verdade - disse ele, tentando reprimir a sua amargura. - Faria pouca diferença para você se Stephen arruinasse a vida dele. Julia, há alguma coisa nele, algo
debaixo da superfície, que eu não compreendo. O que é que ele realmente pensa? Quem são os seus amigos? Não se lembra de que quando Geoffrey o visitou no ano passado,
em Trinity, encontrou lá a pessoa mais inesperada no seu alojamento... um excêntrico de primeira, foi como Geoffrey o chamou, um artista desmazelado... um galês
Interrompeu-se, olhando quase súplice para ela, até que ela foi obrigada a responder. Sua voz era suave.
- Que tem você contra os galeses, Bertram? Eles possuem belas vozes. Esse galês canta?
- Não - replicou Bertram, corando. - Ele vive insistindo com Stephen para que vá a Paris.
- Muitos jovens já fizeram isso antes, Bertram.
- Até concordo. Mas, desta vez, não pela razão óbvia.
- Então por que razão, se não é para ter uma mulher francesa?
- Para pintar!
Tinha-o dito, livrara-se daquilo afinal; e tensamente, embora com uma certa sensação de alívio, esperou, em silêncio, que ela falasse.
- Devo confessar, Bertram, que não vejo mal algum nisso tudo. Lembro-me de que, quando estive em Interlaken com papá, fiz algumas deliciosas pequenas aquarelas do
lago. Azul era o tom predominante. Stephen sempre gostou de desenhar. Aliás, foi você quem lhe deu a primeira caixa de lápis de cor.
Ele mordeu forte os lábios.
- Isso não é ocupação de criança, Julia. Sabe que há mais de um ano, sem nos dizer uma palavra, ele tem viajado de Oxford para assistir às aulas noturnas de arte
em Slade?
- Slade é uma instituição respeitável. Stephen terá bastante tempo para fazer seus esboços entre os sermões. E, sem dúvida, desenhar é Um calmante para os nervos.
Ele refreou o seu impulso de gritar. Por um momento, manteve os olhos baixos, no tom de quem foi Vencido, mas, respirando um pouco depressa demais, disse:
- Espero que tenha razão, minha cara. Suponho que me preocupo desnecessariamente. Sem dúvida ele se restabelecerá logo que entre na rotina do seu trabalho em Londres.
- Sem dúvida. E, Bertram, resolvi que, em vez de Harrogate, irei a Cheltenham no mês que vem. Lá há águas minerais, e dizem que são excelentes para promover a secreção
da bile. Quando o Dr. Leonard examinou a minha urina pela última vez, encontrou uma acentuada insuficiência de sais biliares.
Ele deu boa-noite, em tom baixo, e saiu rapidamente, antes que dissesse coisa pior.
Ao sair do quarto, podia ouvir no corredor o lento tique-taque da máquina de Caroline, que, sem se poupar, batia as notas para o seu discurso do dia seguinte.
CAPÍTULO IV
NUMA TARDE CINZENTA E ENEVOADA, seis semanas mais tarde, Stephen, voltando de uma visita de casa em casa, caminhava lentamente pela Clinker Street, no East Stepney.
A nuvem sulfurosa sobre as docas de Londres tornava o estreito logradouro mais triste e opressivo para ele. Nenhuma luz, nenhuma cor - somente a inércia dos carros
de descarga vazios, os paralelepípedos graxentos, um cavalo da zorra de um cervejeiro fumegando na chuva, com os arreios dentro de um saco gotejante. Um ônibus ruidoso
passou no rumo oeste, salpicando-o de lama quando ele voltava para a Sede.
Aquela construção de tijolo vermelho, erguida no alinhamento das casas de estuque derruídas que se inclinavam ao longo da rua como velhas decaídas, agora mais do
que nunca parecia-lhe uma pequena mas eficiente penitenciária. Nesse momento, abriu-se a porta da frente e o Guardião, o Reverendo Crispin Bliss, saiu, de guarda-chuva
em pé, nariz levantado para farejar o tempo, alto, magro, envolto até os sapatos em uma comprida capa impermeável preta. Um encontro, pensou Stephen, era inevitável;
e aproximou-se.
- Ali, Desmonde... já de volta?
O tom frouxamente cordial era, achou Stephen, o de um homem que procurava gostar dele e não podia, a despeito da melhor das intenções e dos reclamos do amor fraterno.
Inquestionavelmente, o Reverendo Crispin Bliss, membro da confraria de St. Cuthbert era um clérigo devotado que trabalhava
arduamente pelo bem da sua vinha infrutífera. Clérigo menor, com fortes tendências evangélicas, era um homem de sincera embora limitada piedade. Religião à parte,
porém, a sua maneira era muito pouco atraente: seco, académico, suscetivelmente superior. Igualmente infeliz era a sua maneira de caminhar com a cabeça atirada para
trás, o ar nobre com que procurava se proteger, e, sobretudo, a sua voz rachada, ligeiramente fanhosa, parecendo sempre pronta a pronunciar contradições culturais
em notas de agudo falsete. Quase no início, Stephen tivera a má sorte de ofendê-lo.
No corredor superior da Sede estava pendurado um cruento quadro do martírio de São Sebastião, que para Stephen sangrava de novo sempre que ele saía da sua sala.
Desde que a pintura parecia ignorada por todos menos ele, uma manhã, num momento de aversão, virou-a contra a parede. O ato passou aparentemente despercebido. Mas
na ceia dessa noite, com um sorriso magoado que passou por cima dos seus dois coadjutores, Loftus e Geer, e foi repousar em Stephen, o Guardião observou, nos seus
tons mais nasais:
- Não faço objeção ao humor, mesmo na sua forma mais disfarçada, a brincadeira de mau gosto. Mas interferir em qualquer objeto desta casa que por seu assunto ou
associação possa ser considerado como sagrado é, para o meu espírito, um ato indecoroso e irreligioso.
Stephen corou até a raiz dos cabelos e manteve os olhos no seu prato. Não tinha querido fazer mal algum, e quando a refeição terminou, o desejo de explicar-se levou-o
ao Guardião.
- Lamento ter virado o quadro. A única desculpa que posso oferecer é que ele bulia com os meus nervos.
- Com os seus nervos, Desmonde?
- Bem... sim. É de um gosto muito chocante, além de ser evidentemente uma falsificação.
- Não posso compreendê-lo, Desmonde. O quadro é um legítimo Carlo Dolci.
Stephen sorriu em tom de desculpa.
- Oh, dificilmente, senhor. Nem sequer isso. Além das pinceladas grosseiras, e do pigmento moderno, é pintado em tela branca de cânhamo - um tecido que só foi manufaturado
por volta de 1890, uns bons 200 anos após a morte de Dolci.
A expressão do Guardião petrificou-se. Respirava rapidamente pelas narinas, não fogo precisamente, mas a contrapartida cristã da cólera - justa indignação.
- Acontece que esse quadro é meu, Desmonde, e uma propriedade muito estimada. Comprei-o de um jovem na Itália, de fonte impecável. A despeito da sua opinião, continuarei
a apreciá-lo como o original de uma obra de arte.
Agora, todavia, havia menos hostilidade do que vigilante moderação no
olhar com que o Guardião, parado na chuva, ofereceu a Stephen o abrigo do seu guarda-chuva e perguntou:
- Fez a série de Skinner esta tarde?
- Praticamente toda, senhor.
Não queria confessar que, esperando a visita de Richard Glyn, tinha saltado os números ímpares.
- Como encontrou a velha Sra. Blimey?
- Não muito bem, receio.
- A bronquite da pobre criatura piorou? - Depois, como Stephen hesitava, parecendo inquieto, ajuntou: - Ela precisa do médico?
- Não... não exatamente. Aliás, encontrei-a muito embriagada.
Houve uma pausa perturbadora, então veio a pergunta um tanto mundana:
- Como é que ela conseguiu dinheiro?
- Acredito ser o responsável, senhor. Dei-lhe seis xelins ontem para que pagasse o aluguel do quarto. Ela parece que o gastou em gim.
O Guardião fez um som, estalando a língua.
- Bem... vivendo e aprendendo, Desmonde. Não o censuro. Mas você não deve pôr a tentação no caminho das pobres criaturas de Deus.
- Acho que não. Por outro lado, quem pode censurá-la por tentar escapar à miséria umas poucas horas? Ela sofre do peito, não arranja trabalho de costura de qualquer
espécie, deve o aluguel ao senhorio e já empenhou quase tudo no seu quarto. Devo confessar que me senti quase contente ao vê-la rolar num estado de feliz esquecimento.
- Desmonde!
- E o que é mais... não pude deixar de pensar que se algum de nós estivesse naquela situação teria feito exatamente a mesma coisa.
- Ora, vamos. Isso é levar o caso um pouco longe demais. Nós nunca devemos, queira Deus, achar-nos em tais situações desagradáveis. - Abanou a cabeça em reprovação
e abriu o seu guarda-chuva. - Haverá reunião dos rapazes esta noite? Trocarei uma palavra com você a esse respeito depois da ceia.
com um aceno de despedida, um tanto distante, pôs-se a caminho, deixando Stephen a subir as escadas para o seu quarto, um estreito cubículo forrado de carvalho claro,
com um consolo gótico e uma estante de livros giratória - A cama ainda não tinha sido feita. Os residentes da Sede deviam arranjar-se sozinhos, era o que se esperava;
de manhã, por exemplo, Stephen iria encontrar-se regularmente com Geer, o coadjutor, um brilhante e musculoso cristão, levando o seu urinol cheio para o banheiro
com ar de sincera despreoCupação.
Contudo, para que a tradição monástica não parecesse muito severa, uma pequena moça de fora, chamada Jenny Dill, vinha do distrito,
ostensivamente para dar os retoques finais, na realidade fazer a maior parte do trabalho. Quando Stephen se atirou, ainda, de chapéu e casacão, numa cadeira Morris,
podia ouvir os seus passinhos rápidos no quarto de Loftus através da fina parede que servia de repartição. Loftus, um belo rapaz, exigente e moderado, muito elegante
de uma maneira sacerdotal, sempre lhe deixava muito que fazer, tal como sapatos para lustrar, roupas atiradas e por escovar. Contudo, ela parecia ter acabado essas
tarefas, porque, em poucos minutos, houve uma batidinha na porta do seu quarto e, trazendo espanador e balde, ela entrou lepidamente.
- Oh, senhor, perdoe-me... Não sabia que estava aqui.
- Não tem importância, entre.
Observou-a ausente quando ela começou habilmente a tirar os lençóis e a virar o colchão. Era uma mulherzinha agradável, com as faces muito coradas, como se tivessem
sido esfregadas com pó de tijolo, brilhantes olhos castanhos e uma franja de cabelo preto. Parecia, pensou ele, uma moça típica das camadas populares de Londres...
inteiramente competente e que ninguém poderia enganar. No entanto, havia nela algo mais do que ordinário: um ar de simplicidade bem-disposta, uma inocência, uma
afabilidade afetuosa, e, acima de tudo, um vigor, como se ela não pudesse conter a energia e deleite que pulsavam no seu corpo jovem e sadio. E ao mover-se de um
lado para outro com precisão, a cintura fina, o busto pequeno mas firme, inconsciente de que ele a observava, ou pelo menos de nenhuma maneira perturbada com isso,
instintivamente a sua mão pegou o lápis e um bloco de cima da escrivaninha.
Dali a pouco, quando ela foi à lareira, curvou-se e começou a tirar as cinzas. Nesse momento, o seu interesse aumentou, e quando ela fez menção
de levantar-se, ele a deteve bruscamente.
- Por favor, não se mexa, Jenny.
- Mas, senhor.
- Não, não. Volte a cabeça e não se mexa.
Enquanto ela, obediente, voltava a cabeça, mantendo a sua posição curvada, os dedos de Stephen moviam-se nervosos sobre o papel.
- Pensa que sou maluco, não é, Jenny? Todos os outros do distrito também pensam.
- Oh, não, senhor - protestou ela vigorosamente. - A gente acha é que o senhor é um bocado esquisito, desenhando no clube dos rapazes e coisas assim, diferente de
um coadjutor regular, que ensina eles a lutar boxe. Ora, quando o Sr. Geer trouxer os grandões e eles se pegarem, vai ver que quase se matam um ao outro. E mal vai
poder reconhecer eles, com os olhos pretos e as ventas sangrando. Não, não é o que parece muito natural, acho, Mas a gente pensa que o senhor é mesmo um cavalheiro
muito delicado.
- Isso é animador... e apesar da ausência de sangue. Diga-me uma coisa,
Jenny, se você fosse uma velha doente, de cama, preferiria uma Bíblia ou uma garrafa de gim?
- Eu tenho uma Bíblia, senhor... aliás, duas. O Sr. Loftus e o Sr. Geer me deram uma cada um. A do Sr. Loftus tem umas lindas fitas coloridas. Sou capaz de dizer
que se eu estivesse mal mesmo, o gim até que vinha bem.
- Não fuja, Jenny. Você é honesta como o dia. Diga-me: o que é que você pensa disto aqui?
Lentamente, ela relaxou, aproximou-se e examinou dubiamente o desenho que ele lhe entregara.
- Não sei nada dessas coisas, senhor... mas acho mesmo bonito.
- Ora, sua garota tola, não está vendo que é você?
- Bem, já que o senhor diz - respondeu ela modestamente - parece comigo de costas. Eu só queria não estar com a minha roupa velha e com um rasgão bem ali, tão encabulante,
na abertura da saia.
Stephen riu-se e atirou o bloco para a escrivaninha.
- É da saia velha que eu gosto. Gostaria que você posasse para mim. Eu lhe pagaria cinco xelins por hora.
Ela olhou rapidamente para ele, depois desviou os olhos.
- Isso não seria muito correto, seria, senhor?
- Ora, tolice - disse ele descuidado. - Onde é que está o mal? Mas acho que você não está interessada...
- Bem, senhor... - Ela falava acanhadamente, e uma cor mais viva lhe veio às faces. - Na verdade, se tudo estivesse em ordem, eu bem que poderia fazer mais uns cobres.
- Como?
- É, senhor O senhor sabe... eu espero me casar logo.
- Parabéns. Quem é o felizardo?
- O nome dele é Alfred, senhor. Alfred Baines. Ele é camaroteiro num barco da Orient Lane. Vai estar na terra no outro mês, sem ser esse que vem.
- Excelente para você, Jenny. Não admira que queira ganhar mais um dinheirinho. Quando larga?
- Quando termino de arrumar o seu quarto, senhor. Aí pelas cinco.
- Bem, então... suponha que fique mais uma hora, das cinco às seis, duas vezes por semana. Posso pagar-lhe cinco xelins de cada vez.
- Isso é mais do que generoso, senhor.
- É muito pouco realmente. Mas se você não achar o trabalho muito cansativo, posso lhe dar um bilhete para um amigo meu que ensina nas turmas noturnas no Slade.
Ele terá prazer em empregá-la por uma breve temporada...
Ele não vai esperar que eu, senhor... - Jenny tornou-se rubra.
- Por Deus do céu, não - disse Stephen bondosamente. - Você vestirá uma espécie de costume. Provavelmente ele vai querer somente a sua cabeça e ombros.
- Então ficarei muito agradecida, senhor. . . fico mesmo... especialmente ao senhor.
- Então fechamos negócio? - pergunta ele, sorrindo, aquele raro sorriso que iluminava a sua face e o tornava tão atraente, e estendeu-lhe a mão.
Ela corou, e aproximou-se. Seus pequenos dedos, de unhas mal cortadas ou quebradas, estavam quentes e secos, com cicatrizes nas pontas e frieiras curadas. Contudo,
era uma mão extraordinariamente agradável de segurar, nela estava a pulsação do seu jovem corpo; ele mal pôde soltá-la. E quando o fez, ela se voltou para a porta.
Estava agora um tanto pálida, e sem olhar para ele disse:
- O senhor sempre me tratou tão gentilmente, Sr. Desmonde, é mesmo um prazer fazer as coisas para o senhor. Eu sempre dou ao seu quarto um extra. E lustro muito
bem os seus sapatos, porque... ora, porque são seus, senhor. - Interrompeu-se, e desapareceu.
Para quem era atormentado por humores de autodepreciação, aquelas palavras trouxeram um esquisito calor. Mas logo a momentânea alegria de Stephen sumiu, ele se tornou
novamente consciente de si mesmo, do seu ambiente, e da tristeza que o esperava adiante. Desejou que Glyn aparecesse logo.
Apanhando o Evidences, de Paley, que prometera ao seu pai ler, tentou mergulhar no livro. Mas era inútil. Não tinha interesse nele, detestava a vida que estava levando,
desde que chegara à Sede: a visitação, as aulas de Bíblia, o clube - embora à sua maneira tentasse animá-lo - a terna hipocrisia das palavras alimentando a fome
e o frio das pessoas, enquanto ele e os outros da sua raça permaneciam aquecidos e bem nutridos.
Podia compreender um homem que entrasse para a Igreja por sua natureza profundamente religiosa, por sentir que a sua missão predestinada era ajudar o próximo. Mas
assumir uma existência confortável sem uma forte vocação, por motivos que eram claramente materiais, parecia-lhe a pior espécie de fraude. E, além disso, ele não
tinha a sua própria vocação, um chamado que o mantinha cingido ao seu próprio coração? Que tolo fora em se deixar levar a semelhante passo, como um carneiro estúpido
entalado entre as portas de uma feira do campo. E agora que ali estava, parecia não haver como sair.
Justamente então soaram passos de sapatos pesados nas escadas de madeira, e poucos segundos depois um homem alguns anos mais velho que Stephen foi entrando no quarto
e atirou-se sem fôlego numa cadeira. Era de porte mais do que mediano e fortemente construído, com um cabelo vermelho cortado e uma curta barba vermelha eriçada,
de feições vigorosas, os olhos, sob sobrancelhas bem marcadas, vivazes, rebeldes, contudo muito divertido naquele momento. Vestia calças de pele de toupeira e uma
blusa de operário,
um lenço pintalgado de vermelho amarrado no pescoço; tinha o ar de um bucaneiro, fanfarrão, livre, cheio de um vigoroso prazer pela vida. Dali a pouco, quando cessou
a sua transpiração, puxou um relógio de metal, ligado a ele por um pedaço de cordão esfiapado de quadro.
- Bem na hora - observou com satisfação. - Não está mau para Whitehall.
Embora advertido da paixão espasmódica de Glyn pelos exercícios violentos, Stephen estava moderadamente surpreso.
- Você andou todo o caminho?
- Corri - disse Glyn, enxugando o suor. - Foi diabolicamente divertido. Botei toda a polícia a correr, pensando que eu tinha assaltado um banco. Mas que sede me
deu! Suponho que não haja um pingo de cerveja nesta casa de Deus, não é?
- Sinto, Richard. Não nos permitem tê-la em nosso quarto. Posso lhe dar chá... e biscoitos.
Glyn explodiu em gargalhadas.
- Vocês, jovens teólogos. Como podem combater Satanás com chá e biscoitos? Mas se não for incómodo, traga-os. E acrescentou, mais sério: Sinto não poder ficar muito
tempo, mas eu queria vê-lo.
Conversaram enquanto Stephen fervia uma chaleira de folha no bico de gás junto à lareira. Pronto o chá, Richard bebeu quatro xícaras da desprezada beberagem e, de
uma maneira ausente, liquidou um prato de macarrão. Depois, um tanto embaraçosamente, a conversa cessou.
- A sua mostra correu bem? - perguntou Stephen por fim.
- Muito bem - respondeu Glyn descuidadamente. As críticas foram tão perfeitamente depreciativas que atraíram público.
- Mas você vendeu alguma coisa.
- Um vermelhinho. E tudo porque sou galês. A Galeria Nacional de Cardiff comprou-o. Encorajando o talento nativo... filho de um mineiro e assim por diante.
Houve uma pausa.
- Contudo - resumiu Glyn - o dinheiro me safou das dívidas, e Anna e eu partimos para Paris amanhã.
Stephen empertigou-se imperceptivelmente, um reflexo de todos os seus nervos, não apenas ao som de uma palavra que o perseguia, mas porque naquela maneira demasiado
despreocupada ele pressentiu o verdadeiro motivo da visita de Glyn. Procurou dominar a voz.
- E quanto tempo pretende ficar por lá?
- No mínimo um ano. Vou viver barato e trabalhar como um mouro. Acredite se quiser, Paris é um lugar maravilhoso para trabalhar. - Fez uma pausa e atirou um rápido
olhar para o outro. - Você não vai mesmo conosco?
Stephen sentiu um nó na garganta. As suas mãos, nos braços da poltrona, mostraram os nós dos dedos.
- De que jeito? Você conhece a minha situação.
- Ao mesmo tempo, tive a impressão de que você queria pintar.
Stephen, de cabeça baixa, não respondeu. De súbito ergueu os olhos.
- Glyn... se eu jogasse tudo fora... teria mesmo sucesso como artista?
- Ora, ora, Desmonde - Glyn inclinou-se para diante, de cenho cerrado, - Que pergunta mais idiota. Sucesso? Que quer dizer com sucesso? Então você não sabe que neste
jogo não pode haver garantias, que você não tem mais que você no momento em que se resolve? E você não entra nisso por nenhuma outra razão a não ser a de que não
pode evitá-lo. Se for para valer, abandona tudo, passa fome, rouba, engana a sua avó, transgride cada um dos Dez Mandamentos, só para ter nas suas mãos um tubo de
tinta e uma espátula.
Glyn interrompeu-se, relaxou a postura e continuou, mais serenamente:
- Acredito que você tem talento, possibilidades extraordinárias, do contrário não ia aborrecer o meu bestunto a seu respeito. Eu sei como é duro para você... atolado
na tradição. Você teve todos os inícios errados. Devia ser como eu, nascido numa vila de operários, numa nojenta cidade carvoeira. Mas, assim, você mesmo é quem
tem que decidir. E se não se decidir, atrevo-me a dizer que dará um pastor aceitável. - Tirou de repente o seu relógio niquelado. - Bem, tenho que ir. Preciso reunir
umas coisas. E juntar isto com aquilo. Adeus, Desmonde. Escreva-me quando tiver tempo.
Stephen permaneceu imóvel. Glyn levantou-se. Ao dar o primeiro passo, viu sobre o consolo da lareira um cartão perfurado com as cores do Clube de Críquete Marylebone.
Era um bilhete para a partida de criquete entre Oxford e Cambridge, a ser disputada no mês seguinte. Acompanhando o olhar de Glyn, Stephen corou.
- Tenho que ir - disse ele secamente. - Toda a família irá.
CAPÍTULO V
A PARTIDA TINHA TERMINADO, as balizas haviam sido retiradas, e enquanto o sol lançava sombras compridas sobre a quadra relvada do Lord's, um grupo de sete pessoas
podia ser observado entre a elegante assistência - dificilmente se poderia referir essa afluência como uma multidão - andando
vagarosamente para os portões principais na St. John's Wood Road. Caroline e Claire iam na frente com Davie e seu primo Geoffrey, enquanto poucos passos atrás, Stephen
acompanhava o General Desmonde e sua esposa. Uma emergência na paróquia tinha impedido no último instante o Reitor de estar presente, e Julia, claro, era uma ausente
anual. Por isso, Stephen tinha vindo somente para estar com o irmão, e enquanto Davie tinha grande prazer em ver o jogo - o que era mais tocante, uma vez que, devido
à sua afecção, não lhe era permitido jogar críquete - teve em certa medida a sua recompensa, pois o dia tinha sido duro para ele, e ainda lhe ressoavam na cabeça
os incessantes gritos de Geoffrey de "Boa jogada, senhor", e, como sempre, a mulher do General raramente pensava nela como tia Adelaide - tinha exercido sobre ele
uma familiar combinação de condescendência e arrogância que despertava os seus mais perversos instintos. Mulher dominante, fria, de rosto fino, criada na tradição
do Exército e endurecida nos sóis da Índia, ainda era bonita, de uma maneira dura e atrevida, e possuía uma figura admirável, embora tendendo para a magreza, seu
olhar às vezes letal como um golpe de baioneta.
Agora, ao deixarem o campo e permanecerem juntos um tanto indecisos, enquanto carruagens e cabriolés saíam da calçada, ela falava com rapidez, na sua voz apressada
"do condado".
- Hoje foi um dia tão delicioso, que é uma pena deixá-lo morrer prematuramente. - Voltou-se para o marido. - Tem alguma sugestão, Hubert?
O General Desmonde examinou o grupo. Alto, feições retas, ereto como uma vareta de espingarda, até no chapéu de forma cinza e no fraque matutino, parecia um soldado,
um soldado notável. Um bigode curto acentuava a brevidade incisiva da sua fala.
- Pensei que poderíamos cear no Frascati's.
- Magnífico, papai - disse Geoffrey, endireitando a gravata e depois o colete bordado, talvez pela ducentésima vez, como se estivesse determinado a manter a supremacia
de alfaiataria que fazia dele, tinha certeza, um alvo de admiração. Estilo, que ele chamava de boa forma, era na verdade a sua maior ocupação, fosse numa praça de
armas ou em Piccadilly, e que já o configurava, na idade de 24 anos, como modelo de um elegante, ainda que um tanto tolo, jovem de sucesso da sociedade.
- Davie tem que voltar às sete - interpôs Caroline. - E já passam das seis. Mas ninguém precisa se incomodar, vou levá-lo ao trem.
- Querida, você é tão gentil e tão atenciosa - disse Adelaide sorrindo. Ela não queria Caroline no Frascati's com o seu rosto vermelho de sol como uma peônia, e
naquele medonho vestido marrom que a fazia parecer uma copeira no seu dia de folga, aquelas pernas também, que desgraça, como as patas de um piano de cauda; Caroline,
para tia Adelaide, era sempre uma responsabilidade social, uma mortificação anual no baile de caça, quando, sentada na
entrada do salão, com seu jornal na mão, sem que ninguém a tirasse para dançar, esperava tristemente que algum velho cavalheiro se dirigisse a ela; e agora já tinha
sido bastante desagradável tê-la com eles durante o dia inteiro. - Você deve vir uma outra vez.
- Acho que também tenho que voltar - disse Stephen. Se Davie não fosse, ele não teria nenhum prazer em ir.
- Tem mesmo? - Hubert franziu o cenho, bem-humorado; ele até gostava, ou pelo menos tolerava, aquele jovem sobrinho e futuro pastor. - Tão cedo?
- Mas é claro que você pode ficar, Stephen. - Claire estava ao seu lado, contida, mas de certo modo rogando, com a sua tez macia e feições tão bem modeladas, sombreadas
por um chapéu de aba larga enfeitado de rosas. Hoje mais do que nunca, naquele ambiente, ela parecia o que era: a mais amável das moças inglesas, cujo bom senso,
maneiras e cordialidade franca e agradável faziam amigos onde quer que estivesse. - Fica, sim - ajuntou ela.
- Querida - interveio Adelaide antes que Stephen pudesse responder - não devemos interferir com as regras e regulamentos. Afinal de contas, a vida na Sede, imagino,
é mais ou menos monástica, não é, Stephen? e muito digna, estou certa. É mesmo uma lástima que você não possa vir. Geoffrey acompanhará Claire, e eu pretendo que
Hubert seja o meu galã. Adelaide tornou a sorrir, e com satisfação, pois tinha as suas razões para não desejar que Stephen fosse um do grupo.
- Não podemos deixá-la em alguma parte, Caroline? - perguntou Hubert.
- Oh, não, Davie e eu iremos de metro.
- E eu de ônibus - disse Stephen.
Trocaram-se despedidas, e então, vagamente consciente do desgosto nos olhos de Claire, Stephen afastou-se com Caroline e Davie. Como ainda tinham alguns minutos,
deteve-se no Fuller's da Park Road para oferecer um sorvete de morango ao seu jovem irmão e uma taça de chá a Caroline, que, sub-repticiamente descalçando os sapatos,
confessou que estivera mortificada todo o dia. Depois ele os deixou no metro da Baker Street e tomou o ônibus nº 23 para a zona leste.
Ao matracolejar para Stepney, a despeito do alívio de estar novamente entre gente impolida que não pedia mais do que a sua parte numa cadeira dura, uma lenta depressão
foi tomando conta de Stephen. Como se sentira física e espiritualmente diminuído, como se sentira diferente dos outros durante voltas em todas as metas de críquete,
os encontros e cumprimentos, o almoço no Guard's Club Marquee - "seu diabinho" - quase podia ouvir o pensamento por trás dos olhares indiferentes dirigidos para
ele pelos amigos do primo, ao discutir com Geoffrey a última comédia musical, a corrida de obstáculos
de Sussex, e a última fantasia para o Cambridgeshire. Com esta disposição, chegou à Sede. No saguão, ainda redolente dos odores do bife refogado com repolho do meio-dia,
passou por Luftus, que saía, e deu-lhe uma "boa-tarde". O coadjutor noviço mal respondeu e escorregou para a frente, discreto e elegante, o olho com um tal brilho
de malícia e divertimento, que Stephen recuou instintivamente.
- Que é que há, Loftus?
Já na porta, o outro como que se voltou, com lábios torcidos e apertados pelo humor eclesiástico.
- Então não sabe?
- Claro que não, o que é?
- Não muito, acho eu. A não ser que a pequena Dill parece estar em maus lençóis.
De que diabo estava ele falando? pensou Stephen. Mas deu de ombros, e vendo que não havia correspondência na estante, subiu as escadas. Sentada tesa numa cadeira
dura no centro do seu quarto, usando as suas roupas de sair à rua, um chapéu de palha chato com uma fita estreita, e luvas brancas de algodão, estava Jenny.
Levantou-se imediatamente quando ele entrou, mas com compostura, e enquanto ele a olhava com surpresa, uma vez que ela normalmente não vinha à Sede nos sábados,
ela começou:
- Peço-lhe desculpas pela liberdade, senhor. Mas eu queria estar certa de encontrá-lo. E parece que não havia outro jeito senão eu esperar.
- Muito bem - disse ele incerto. - Não quer sentar? Assim é melhor. Então, que é que há?
Enquanto ele ia até a lareira, ela tornava a sentar-se na beira da cadeira, com as luvas cuidadosamente dobradas.
- Bem, senhor. O fato é que vou embora, hoje, meio de repente. E como o senhor tem sido tão bom para mim, achei que tinha que vir lhe dar adeus.
- Oh, Jenny, sinto muito. Não imaginei que você nos deixasse tão cedo.
- Nem eu, senhor. Mas a verdade é que me despediram.
- Despediram? - repetiu ele desnorteado.
- Sim, despediram. - Acenou com a cabeça, francamente, no seu modo prático, sem acanhamento. - A culpa foi minha. Ontem fui tão boba que vim sem o meu espartilho.
Eu nem notei que já começava a aparecer. Mas não há jeito de enganar essa cozinheira. Correu para o Guardião como uma flecha.
- Mas de que diabo está falando?
- Não está vendo, senhor? Vou ter uma criança.
Ele ficou tão desconcertado que não conseguia achar o que dizer.
- Oh, Jenny, como é que você...?
- Acho que me deixei levar, senhor.
- Como?
- Nós todos temos sentimentos, senhor. Não se pode fugir disso. Oh, eu sou muito respeitável, garanto lhe. Alf é um sujeito correto. Camaroteiro de navio, como eu
lhe disse. Vamos casar quando ele voltar.
Houve uma breve pausa, enquanto Stephen a estudava com simpatia.
- Suponho que você o ama.
- Acho que deve ser isso, senhor. - Um ligeiro e sábio sorriso passou-lhe pelo rosto jovem e fresco. - Ele é muito mais velho que eu, isso é. E vou lhe dizer: se
não fosse pelas duas cervejas que tomei no Good Intent, eu não teria cedido. Mas aí eu também podia ter feito pior. Alf é decente, lá isso é. E habilidoso também.
Gosta de música e me ensinou a tocar gaitinha de boca.
Outra pausa.
- Bem... vamos sentir a sua falta, Jenny.
- E eu vou sentir falta do senhor. Acho que o senhor foi até bom demais comigo. Não é igual a outros por aqui.
- Que outros?
- Bem, principalmente o Guardião, senhor. Tenho que dizer que ele me perseguiu muito antes de me botar na rua.
- Mas você não está saindo por sua vontade?
- Oh, não, senhor. Isso não me convém nem um pouco... Vivo por minha conta, sabe, e não tenho pais vivos. Mas o Guardião não queria ter este lugar contaminado, disse
ele, com três jovens-coadjutores por aqui, e me despachou na hora.
Stephen mordeu o lábio. Olhando disfarçadamente para a moça, percebeu que, sob a sua expressão habitual de serenidade e bom humor, ela parecia pálida e desorientada.
Seria capaz de jurar que não havia nela um pingo de maldade.
- Jenny - disse ele impulsivamente - eu não quero interferir. Mas espero que você tenha feito arranjos para... ir a um hospital... essas coisas.
- Não vou para o hospital, senhor. Tenho o meu quarto. E vou falar com a Sra. Kelley. Ela é parteira, senhor, e muito recomendada.
- Você tem certeza de que estará bem?
- Oh, não se preocupe comigo, senhor. - Pela primeira vez havia uma nota de tristeza na sua voz. - Eu só espero não ter trazido encrenca para o senhor. Isso tudo
aconteceu porque o senhor me arranjou trabalho na aula de arte. E o Guardião parece que ficou furioso com isso.
Stephen ficou um tanto desconcertado com essa notícia. Contudo, o seu genuíno interesse era por Jenny. A admiração que sentia por sua coragem e bom senso, e a indignação
pelo tratamento que lhe tinham dado, tornavam-no mais descuidado consigo. Tinha começado a gostar dela nos últimos meses,
e não podia deixá-la sem alguma expressão da sua boa vontade. Voltou-se de lado, remexeu meio inconscientemente na sua carteira e deu um passo na direção dela.
- Escute, Jenny. Não quero ofendê-la. Mas você fez tanta coisa por mim aqui... você realmente vai precisar de alguma coisa para sustentar-se. Eu gostaria que aceitasse
isto.
Desajeitadamente, pôs-lhe na mão uma nota de cinco libras, que, para esconder o seu elevado valor, dobrara em várias partes.
- Não... não vou aceitar isso...
- Mas Jenny... você tem que...
As lágrimas não lhe vinham facilmente, mas ela passara por tantas agruras naquele dia, que agora elas corriam quentes pelas suas faces.
Nesse momento, enquanto ela se retirava e ele a acompanhava, estendendo-lhe o dinheiro, a porta abriu-se e o Guardião entrou. Houve um silêncio mortal por um momento,
enquanto ele ficava petrificado. Depois, com a voz controlada, disse:
- Pode ir agora, Dill.
Quando Jenny se voltou para sair, arrasada, com as lágrimas a escorrer lhe pelas faces, Stephen, a despeito da sua expressão culpada, vermelha, teve calma suficiente
para se aproveitar da sua confusão e enfiar-lhe a nota no bolso da jaqueta.
- Adeus, Jenny - murmurou ele. - E muita sorte.
Sua resposta, se resposta houve, foi inaudível.
Ainda na sua maneira distante, o Reverendo Crispin fechou a porta atrás dela; depois, com um rápido olhar para Stephen, comprimiu os lábios e fixou o olhar no teto.
- Desmonde - disse ele - presumi que a sua conduta tinha sido seriamente indiscreta. Mas jamais sonhei que pudesse ir tão longe. Como amigo de seu caro pai, isso
me aflige mais do que posso expressar.
Stephen engoliu o bolo que tinha na garganta. A cor lhe fugira do rosto, mas havia uma centelha nas suas pupilas escuras.
- Não posso compreendê-lo.
- Ora, vamos, Desmonde. Você não pode negar que está, e tem estado há algum tempo, em termos de imprópria intimidade com a jovem pessoa que acabo de despedir.
- Fui amistoso com Jenny. Ela fazia muitas pequenas coisas para mim. E procurei ajudá-la, em retribuição.
- Ah! - fez o Guardião num tom significativo. - E a sua ideia de ajudá-la é estar frequentemente com ela, sozinho, no seu quarto?
- Ela vinha arrumar o quarto. E ocasionalmente fiz alguns esboços dela. Isso é tudo.
- Ora essa! Então você acha que faz parte dos seus deveres, como candidato à ordenação, tomar um modelo, furtivamente, entre as criadas desta casa de Deus? Foi meu
dever examinar alguns desenhos que resultaram dessa colaboração ilícita, e devo confessar que me pareceram extremamente questionáveis.
O sangue subiu à testa de Stephen. Seus olhos fuzilaram furiosamente.
- Pelo que sei do seu gosto, senhor - respondeu ele, tremendo ligeiramente - não me surpreende que não os tenha compreendido.
- É mesmo? - fez Bliss com a calma ácida que achava ir-lhe tão bem. Na verdade, parece que meus padrões, particularmente os de moralidade, diferem dos seus.
- Certamente diferem. - Stephen jogou a prudência de lado. - Eu não teria atirado essa pobre moça no olho da rua por causa de um erro.
- Ouso dizer que não. Isso é precisamente o que eu temia.
Até este momento, as maneiras do Guardião tinham sido estudadamente controladas, mas agora as suas narinas se apertavam e algo não diferente de uma carranca se estabeleceu
na sua testa elevada.
- Embora Dill tenha dado o nome do seu parceiro, não estou inteiramente convencido. Minha firme convicção é de que, pela sua conduta para com essa infeliz moça,
pela maneira como a utilizou para os seus fins chamados artísticos, você é responsável, ou pelo menos indiretamente culpado, pelo estado de depravação em que ela
caiu.
Respirando rapidamente, Stephen encarou Bliss com uma expressão maldosa no rosto. Explodiu:
- Nunca ouvi tanta tolice na minha vida. Nem tamanha hipocrisia. Jenny não é depravada. Ela tem um namorado e vai se casar com ele. Sua ideia de caridade cristã
é vilipendiá-la, e a mim, sem uma justa causa?
- Cale-se, senhor. Não tolerarei que fale comigo dessa maneira. Na verdade, se eu fosse cumprir à risca o meu dever, deveria pedir-lhe que deixasse a Sede imediatamente.
- Fez uma pausa para se recuperar. - Mas em atenção à sua família, e também ao futuro que ainda pode estar à sua frente, estou disposto a ser mais tolerante. Devo
dar ao seu pai alguma ideia do que ocorreu. E você, sem dúvida, me dará a sua garantia por escrito de abandonar, de uma vez por todas, essa obsessão que chama de
"arte", e que é inteiramente incompatível com a sua vocação de clérigo. Haverá, além disso, mais algumas restrições que sou obrigado a lhe impor. Venha ao meu estúdio
depois das orações noturnas, e eu o aconselharei.
Terminando a entrevista, sem dar a Stephen uma oportunidade de responder, girou nos calcanhares e saiu do quarto.
- Ora, vá para o diabo que o carregue! - exclamou Stephen violentamente. Mas infelizmente a porta já estava fechada.
Durante uns momentos, Stephen permaneceu tenso, de punhos cerrados, olhos fitos nos painéis de carvalho envernizado. Depois, com um gesto de abandono, afundou numa
cadeira diante da escrivaninha, tirou papel da gaveta e apanhou uma caneta.
Caro papai,
Fiz aqui o melhor que pude e fui nisso um completo fracasso. Não quero magoá-lo, tomando uma decisão final contra a sua vontade, mas, nas circunstâncias, acho que
devo me afastar um pouco - um ano, no mínimo - até poder ver as coisas mais claramente e experimentar a minha capacidade nesse campo particular tão desagradável
para o senhor que sequer o nomearei. Compreendo o golpe que isto representa para o senhor, e a minha única desculpa é que simplesmente não posso evitá-lo.
Recomendações a todos em Stillwater e a Claire. Tornarei a escrever-lhe quando estiver em Paris.
Stephen
CAPÍTULO VI
PARIS ERA DESCONHECIDA PARA STEPHEN, e embora ao primeiro fôlego o estimulasse como vinho, ele entrou nela nervosamente - como se temesse aqueles olhares satíricos
que os verdadeiros parisienses devem conceder a um forasteiro. Assim, apegava-se ao nome de um hotel que ouvira o pai mencionar num tom de benigna aprovação clerical,
e dando-o ao cocheiro com a maior segurança que pôde encontrar, foi arrebatado da Gare du Nord com uma imprudente velocidade através das ruas naquela tarde de domingo,
surpreendentemente vazias, para o Clifton, na Rue de la Sourdière. Parecia um lugar tranquilo, não particularmente excitante talvez, abrindo-se através de uma entrada
estreita para um pátio quadrado envidraçado, em torno do qual os quartos estavam dispostos atrás de descascados balcões de ferro fundido. Na portaria sonolenta -
o tom era dado por um gato malhado de preto e amarelo dormitando em cima do balcão - não se surpreenderam pela súbita materialização de um jovem inglês. Na verdade,
quando Stephen foi conduzido ao seu quarto no andar de cima, que era um tanto escuro e bolorento, com o papel de parede desbotado e uma enorme cama de cortinas vermelhas,
o idoso concierge, desafivelando as malas do ombro com exagerada falta de ar, sobressaltou-o ligeiramente ao lhe perguntar se ele queria chá.
- Não, muito obrigado - sorriu Stephen, pensando no extraordinário valor que aquele indistinto interior dava ao velho de olhos lacrimejantes com as faces caídas,
marcadas por veias vermelhas, o seu colete listrado de preto e amarelo. - vou sair... e olhar um pouco por aí.
- Não há muito que ver hoje, monsieur - disse o porteiro, encolhendo amavelmente os ombros. - Tudo está fechado.
Mas Stephen mal podia esperar para desfazer a mala e atirar suas coisas no armário poeirento. Então, eufórico, deixou o hotel e foi andando pelas ruas, a esmo, ao
longo da Rue du Mont Tabor e pela Place de la Concorde. Seu imediato pensamento tinha sido em Glyn, mas no constrangido momento de partir, ele esquecera de pedir
o endereço de Richard, e naquele ínterim não recebera nenhuma notícia dele. No entanto, Stephen estava certo de que, no círculo que se propunha frequentar, logo
o encontraria.
O tempo estava bom e claro, o céu pálido riscado pelas costelas de nuvens brilhantes. Quando viu a longa fila de castanheiros, agora em plena folhagem, junto ao
rio, quase exclamou alto. Agitadas pela brisa, as folhas eram luz e sombra, macias, encontrando os seus olhos como uma carícia. Através da avenida chegou ao Sena,
cinza-aço e polido, reverberando atrás de barcaças atracadas. Numa destas, uma jovem mulher, de seios fartos e cabelo louro, estava pendurando roupas cor-de-rosa
numa corda. Um cachorrinho saltitava nos seus tornozelos. Um homem de camiseta e chapéu baixo de feltro fumava placidamente, de braços nus, sentado num balde emborcado.
Numa espécie de transe melódico, Stephen caminhou lentamente pela margem, através de Port Royal, além da linha de quiosques de livros, de volta à Pont Neuf para
a L'Île de la Cité. Lá, ficou a olhar o jogo de cores sobre a água, o escurecer das sombras sobre as moles de pedra. Somente quando a luz desapareceu, ele se voltou,
com um suspiro apatetado, e começou a voltar para o hotel.
Agora a cidade despertava do seu torpor dominical. Nas ruas laterais, ao norte do rio, os pequenos cafés de esquina começavam a se encher de maneira discreta mas
movimentada. As mercearias estavam abrindo, e famílias da classe média começavam a tomar ar, homens robustos com pantufas apareciam nos umbrais. Diante de uma padaria,
ainda fechada, donas-de-casa, tagarelando tranquilamente, reuniam-se para comprar pão. Estou em Paris, pensava Stephen estonteado, finalmente, finalmente.
À guisa de contraste, o Clifton, banhado numa ténue luz religiosa, tinha um ar solene, quase sepulcral. Na verdade, por um instante Stephen teve a tentação de dar
a volta e ir cear no Maxim's ou no Café Riche, ou qualquer daqueles restaurantes alegres sobre os quais lera tantas vezes. Mas estava cansado e tímido para ir desacompanhado.
Além disso, tinha resolvido fazer uma razoável economia. Da sua pensão anual restavam-lhe 150 libras, e essa quantia deveria durar um ano inteiro.
Assim, baixou ao frio refeitório e comeu sozinho - a não ser por um distante cavalheiro solteirão numa desmazelada jaqueta Norfolk que lia continuamente entre os
pratos, e duas cochichantes velhas de malva, todos inconfundivelmente ingleses - uma refeição de cardápio fixo, de sopa, carneiro, ameixas amargas cozidas, que,
embora fossem perfeitamente saudáveis, demonstravam a falácia do argumento de que, na França, a cozinha francesa era uma arte universal. Contudo, nada poderia abater
a sua alegre disposição. Subiu as escadas assobiando e dormiu como uma toupeira na cama de dossel.
Na manhã seguinte, sem demora, saiu para Montparnasse. Depois de considerável reflexão, tinha resolvido não se matricular na École des Beaux Arts, mas procurar uma
atenção mais pessoal, dada pelo Professor Dupret na sua famosa academia do Boulevard Seline. Encontrou o estúdio sem dificuldade, tendo comprado, no balcão do hotel,
um mapa de Paris. Era no último andar de um edifício esquisito, parecido com um quartel, protegido por grades em ponta de lança e guardado por duas guaritas vazias,
bem no fundo do boulevard. Pairava no ar um cheiro de casca de tanino, indicando que ali fora uma armaria, e uma grande algazarra lá em cima sugeriu a Stephen, por
um sobressaltado momento, que os soldados ainda o ocupavam.
Quando subiu, depois de completar as formalidades de admissão com o massier, um tipo corpulento de cara chata, suéter cinzento, calças de lona, que tinha a aparência
de um boxeador aposentado - e que na verdade lá estava para impedir uma flagrante desordem - a aula já tinha começado.
A saia ampla e clara, aquecida por uma enorme estufa holandesa, com paredes que pareciam todas janelas, estava apinhada com uns 50 alunos, formando o grupo mais
estranho que ele já tinha visto. Na maior parte, eram homens entre 20 e 30 anos de idade, vestidos numa variedade de gostos, de muitas nacionalidades - eslavos barbudos,
indianos de pele escura, um grupo de escandinavos louros, vários jovens americanos. As poucas mulheres eram uma coleção esquisita. O olho de Stephen prendeu-se numa
senhora de idade metida numa blusa cor de rato, espiando a sua tela através de um pincenê de aros de ouro, como uma professora diante do seu quadro-negro num jardim
de infância do campo.
O barulho, ali dentro, era ensurdecedor - um rumor contínuo de conversação, trechos altos de canções, em línguas competitivas, observações fanfarronas
gritadas através da sala. Parecia que o tumulto ia permitir que Stephen entrasse sem ser notado. Mas ao ficar ali na porta, hesitante e um tanto pálido, vestindo
a sua roupa escura de clérigo, colarinho branco engomado e gravata preta, a vestimenta regular para os coadjutores da Clinker Street, sobreveio um infeliz intervalo
durante o qual a atenção da classe se voltou diretamente para ele. E então, no silêncio, uma voz de falsete exclamou:
- Ah! C'est Monsieur l'Abbé.
Uivos de risadas saudaram essa observação. Entrando confuso, Stephen encontrou um banco coberto com raspaduras de paletas, mas nenhum cavalete, espremeu-se com dificuldade
para um lugar, e abriu a sua pasta de papel Ingres sobre os joelhos.
O modelo, um velho de longos cabelos prateados, com o aspecto de um ator decadente, bonito, estava sentado numa postura convencional na plataforma do centro, ligeiramente
inclinado para a frente, com o queixo apoiado nas costas da mão. Stephen não gostou da pose, e a expressão do velho era aborrecida e indiferente, mas apanhou o seu
carvão e começou a trabalhar.
Às 11 horas Monsieur Dupret apareceu - um homem de uns 60 anos, belo de uma maneira teatral, com uma cabeleira arrepiada, porte ereto e digno, e mãos móveis. Apesar
das calças ligeiramente frouxas, o seu fraque ajustado dava-lhe um ar correto, distinto, acentuado pela fita na lapela. A sua entrada, impressionante e brusca, causou
uma cessação do barulho maior, e em relativo silêncio ele começou a dar vagarosamente a volta à sala, detendo-se aqui e ali para examinar uma tela com olhos apertados,
pronunciar, com um floreado gesto das mãos, umas breves palavras, mais como um cirurgião visitando a sua enfermaria.
Quando ele se aproximou, Stephen preparou-se para algumas palavras de saudação, de cortês interrogação, mas o professor, com alheamento impessoal, não disse coisa
alguma. Olhou de esguelha para Stephen, meio curioso, meio indiferente, e depois para o seu esboço, e, no instante seguinte, sem um piscar de olhos, desapareceu.
À uma hora tocou uma sineta. Imediatamente se ergueu uma vozearia, o modelo levantou-se como se fosse soltado por uma mola e afastou-se da plataforma, enquanto em
volta os estudantes atiravam pincéis ou carvões e começavam a se acotovelar contra a porta. Perturbado e decepcionado, Stephen foi arrastado, contra a sua vontade,
pela turba que empurrava. Subitamente, no seu cotovelo, ouviu uma voz agradável.
- Você é inglês, não? Meu nome é Chester.
Stephen voltou a cabeça e deu com um jovem mais ou menos da sua idade sorrindo para ele. O cabelo, o queixo partido e os olhos azuis, sombreados por compridas pestanas
negras, davam-lhe um ar de sincero e atraente encanto. Usava uma velha gravata de Harrow.
- Espero você lá embaixo - disse ele quando a maré o carregou. Lá fora, Chester estendeu-lhe a mão.
- Espero que não se importe de eu vir falar com você. No meio dessa turba, os que são do outro lado do Canal devem ficar juntos.
Após a sua deprimente recepção, Stephen estava contente por ter achado um amigo. Quando se apresentou, Chester fez uma pausa por um momento, e exclamou:
- Que tal almoçar comigo?
Saíram juntos pela avenida.
O restaurante em que entraram ficava bem perto, na Place Seline, um salão estreito, de teto baixo, quase uma adega, abrindo para uma cozinha escura, a meia dúzia
de passos do nível da rua, com um fogo de carvão de lenha e espetos com assados, cheio do barulho de panelas de cobre e de um agradável cheiro de cozinha. O lugar
já estava repleto, principalmente de alunos de Dupret, mas Chester, com tranquila segurança, guiou-o através de um pequeno pátio adornado por cubas de alfenas, calmamente
retirou o cartão marcado "RESERVADO" de uma mesa do fundo, habilmente atirou o chapéu para um cabide e convidou Stephen a sentar-se.
Imediatamente, uma mulher gorda, de cara vermelha, vestida de preto, protestou da cozinha:
- Não, não, Harry... Esse lugar está reservado para o Monsieur Lambert.
- Não se agite, Madame Chobert - sorriu Chester. - A senhora sabe que Monsieur Lambert é meu amigo. Além disso, ele sempre chega atrasado.
Madame Chobert não se deu por satisfeita; discutiu e resmungou, mas o charme de Harry Chester - embora ela claramente tentasse precaver-se contra ele - no fim acabou
por vencê-la. Encolhendo os ombros com pena da sua própria fraqueza, levantou a ardósia escrita a giz que pendia da cintura do seu avental, e apresentou-lhes o cardápio.
Por sugestão de Chester, pediram potage maison, boeuf bordelaise e um queijo brie. Uma jarra de cerveja amarela e espumante já estava sobre a mesa.
- Não é uma pessoa má - sorriu Chester quando ela se afastou. Durante a refeição, ele manteve a conversação viva e fluente, aludindo, com inesgotável provisão de
troça e frases feitas, aos seus vizinhos. Apontou para Biondello, o italiano, que já tinha exposto no Salon do ano passado, e Pierre Aumerle, um caso irremediável,
que bebia uma garrafa de Pernod todos os dias, almoçando com uma mulher de semblante ocre com um enorme chapéu, para a qual Chester ergueu as sobrancelhas com um
sorriso. Entrementes, sondou Stephen com algumas perguntas divertidas; então, depois que trouxeram o café filtre, fez uma pausa, com um certo ar consciente, e pareceu
ter achado necessário explicar-se.
- Curioso, não? - comentou ele, riscando desenhos na toalha xadrez - como a gente sempre pode identificar um universitário. Philip Lambert também é um deles. Depois
de Harrow - lançou um olhar rápido para Stephen
- eu mesmo devia ter ido para Cambridge... se não a tivesse trocado pela arte.
Continuou, revelando, com um sorriso suplicante, que o pai tinha sido um grande plantador de chá no Ceilão, ao passo que a mãe, agora viúva, voltara para habitar
uma imensa mansão de Highgate com uma legião de criados. Naturalmente, ela o estragara com mimos, dava-lhe uma generosa pensão. Estava em Paris fazia 18 meses.
- É muito divertido - concluiu ele. - Você deve me deixar mostrar-lhe os meus trabalhos.
- Que acha de Dupret? - perguntou Stephen.
- É o professor mais decente que há por aqui. Você sabe que ele pertence à Legião de Honra?
Ligeiramente chocado, Stephen não respondeu. Chester intrigava-o, como o intrigaria um desenho estranho que, embora agradável, tivesse complexidades estranhas ao
seu gosto.
Terminaram o café. As pessoas começavam a se retirar.
- Seu amigo Lambert parece que não vem - disse Stephen por fim, para quebrar o silêncio.
Chester riu-se.
- Philip é um mendigo errante. Você nunca sabe quando ele vai aparecer... ou com que atraentes saias.
- Ele frequenta a Dupret?
- Trabalha em casa... quando trabalha. Tem recursos particulares, você sabe, e já andou por toda a Europa, estudou em Roma e Viena, mas agora ele e a mulher alugaram
um pequeno apartamento na Esplanada dos Inválidos. - Chester assentiu com um aceno. - E posso lhe dizer que a Sra. Lambert é muito elegante. E, naturalmente, uma
perfeita dama.
Ali estava novamente uma observação que arranhava o ouvido de Stephen, e ele olhou de um modo esquisito para o seu colega, imaginando como poderia usar uma expressão
infeliz. Mas antes que tivesse tempo de responder à pergunta, Harry Chester sentou-se.
- Olhe, aí está Philip.
Seguindo o olhar de Chester, Stephen viu entrar no restaurante um homem delgado, de aparência afetada, com cerca de 30 anos, vestido com uma curta sobrecasaca marrom,
colarinho baixo e gravata fofa. O rosto, pálido e profundamente marcado abaixo dos olhos, tinha um ar de langor. O seu brilhante cabelo preto era repartido nitidamente
no meio, mas a um lado uma mecha tinha escapado num pequeno cacho sobre a sua testa branca. Os seus
modos, aliás toda a sua aparência, davam a impressão de uma indolência amaneirada, de aborrecimento e pretensão.
Quando chegou, pôs a bengala debaixo do braço e começou a descalçar uma luva amarelo-limão, enquanto olhava para Chester com uma alegria levemente desdenhosa.
- Agradeço-lhe por ter guardado a minha mesa, caro rapaz. Mas agora deve ir-se. Espero um convidado às duas horas. E não preciso de acompanhante.
- Estamos saindo, Philip. - O tom de Chester assumira uma inflexão submissa. - Olhe, gostaria que conhecesse Desmonde. Ele entrou para a Dupret hoje.
Lambert lançou uma olhadela a Stephen e depois curvou-se polidamente.
- Desmonde acaba de chegar do seu último ano em Oxford - disse Chester rapidamente.
- Ah, sim - exclamou Lambert. - Que colégio, posso perguntar?
- Trinity - respondeu Stephen.
- Ah! - Lambert relaxou com um sorriso, mostrando os dentes brancos e parelhos, e, tirando a segunda luva apertada de pelica - uma operação que ele executava em
silêncio e sem arrepiar um pêlo - estendeu uma mão pequena para Stephen. - Muito prazer em conhecê-lo. Também estive na Casa. Por favor, não tenham tanta pressa
em se retirar. Posso facilmente encontrar outra mesa.
- Asseguro-lhe - disse Stephen, levantando-se - que terminamos mesmo.
- Então venha tomar chá conosco um dia destes. Estamos em casa quase todas as sextas-feiras às cinco horas. Então falaremos como dois homens de Oxford - seu sorriso
brincou na direção de Chester - e um que quase foi para Cambridge.
A conta, que Madame Chobert apresentara rapidamente, estava sobre a mesa. Uma vez que Chester parecia não vê-la, Stephen apanhou-a e, a despeito dos súbitos e enérgicos
protestos de Harry, pagou a despesa.
CAPÍTULO VII
SOB A MAGIA DA SUA NOVA LIBERDADE, Stephen, entrou rapidamente e com deliciada facilidade numa rotina agradabilíssima, tanto mais que, uma semana
após a sua chegada, recebeu uma carta de Stillwater que foi um grande alívio para o seu espírito. Embora acentuasse o sofrimento ocasionado pela súbita partida de
Stephen, o Reitor havia-o, em certo sentido, perdoado. Obviamente, escreveu ele, a inclinação (a palavra "tentação" fora riscada) tinha sido demasiado forte para
opor-lhe resistência. Por conseguinte, podia "ser tudo pelo melhor", se, como o próprio Stephen tinha proposto, esse interregno de um ano fosse considerado por ambos
os lados como um "campo de prova". Entrementes, aprovava a escolha de Stephen quanto à sua acomodação, conhecia-o demasiado bem para exortá-lo à virtude, e desejava
que nada lhe faltasse do que cabia à sua condição.
De manhã, era uma sensação que nunca diminuía acordar com a consciência de que estava em Paris, de fato seguindo a sua "carreira artística".
Levantou-se, vestiu-se rapidamente e, como o desjejum no Clifton não tinha nada que o recomendasse, saiu para uma pequena crèmerie na esquina do hotel. Ali, por
30 soldos, foram-lhe servidos um jarro de café ou lait e dois croissants flocosos ainda quentes do forno e recém-trazidos pelo padeiro.
Sua caminhada para o estúdio através das ruas frescas era sempre uma delícia, A multidão apressada e os policiais de capa azul, as donas-de-casa madrugadoras com
os braços enganchados em cestas carregadas, um soldado zuavo de calça escarlate, duas porteiras tagarelando apoiadas nas suas vassouras, um velho varredor de rua
lançando esguichos de água pela sarjeta, carrinhos barulhentos de verdura fresca do Halles - tudo isso o extasiava além das exclamações súbitas, agudas, a tagarelice
de muitas línguas, um vagaroso badalar de sinos ecoando nos edifícios de um cinza suave, as graciosas pontes brancas, o rio adorável, já começando a cintilar ao sol.
No estúdio, é verdade, ele não se sentia em casa. A falta de ordem e o perpétuo barulho tornavam difícil a concentração. Parecia que muitos estudantes tinham vindo
menos para trabalhar do que por mero divertimento e feroz exibição dos seus espíritos animais. Riam e cantavam, pregavam peças grosseiras, mantinham intermináveis
discussões em altas vozes nos cafés, afetavam uma boémia exagerada no vestuário e nas maneiras. Falavam a gíria do quarteirão, sabiam tudo a respeito dos últimos
"movimentos", reconheciam Manet, Degas e Renoir como seus mestres e imitavam-nos dolorosamente, desprezavam Millet e Ingres, eram muito críticos com Delacroix, e
contudo tinham pouco ou nada para oferecer de seu.
Naturalmente outros havia que se aplicavam. Ao lado de Stephen havia um moço polaco, vindo de uma pequena cidade do interior próxima de Varsóvia, que, inflamado
pela ambição, tinha vindo sem dinheiro para Paris. Para pagar a sua mensalidade na Dupret, havia trabalhado 12 meses como carregador na estação de Montparnasse.
A intensidade do seu esforço era assustadora, contudo ele não tinha o menor talento. Muitas vezes, quando Dupret
fazia a sua ronda diária, Stephen esperava que ele, com uma única palavra, acabasse piedosamente com aquele fútil labor. Mas o professor não dizia nada, nada além
de corrigir uma linha ou apontar uma expressão vazia, a falta de equilíbrio na composição. Sua atitude com Stephen continuava igualmente impassível, embora uma ou
duas vezes, após estudar alguma parte do seu trabalho, olhasse para ele de uma maneira curiosa, quase às escondidas, como se o visse e examinasse pela primeira vez.
Mais e mais, sob o alheamento de Dupret e suas grandes maneiras, Stephen começou a discernir um núcleo carcomido de decepção, a biliosa amargura de um homem que
no seu coração sabia que tinha falhado no cumprimento da sua expectativa juvenil. Ter obtido o reconhecimento dos círculos oficiais, exibir anualmente o seu trabalho
no Salon (uma pintura segura e cuidadosamente executada, que sempre era pendurada em um bom lugar), participar das juntas e comissões, representar a arte de luvas
brancas nas recepções do governo - tais distinções significavam alguma coisa para quem queria abalar o mundo com uma poderosa obra-prima? Dupret não tinha um verdadeiro
interesse pelo seu estúdio e ainda menos por seus alunos, a não ser quando, com uma ponta de ciúmes, via a evidência de um talento que podia ultrapassar o seu. Atrás
daquela fachada, era um homem vazio, um homem movido pelo homem que supunha ser, um homem mais digno de pena do que desprezo. Na verdade, quando o professor entrava
imponentemente na sala, Stephen fazia dele uma curiosa imagem, no fim do dia, despindo vagarosamente o fraque apertado e soltando os botões brilhantes dos sapatos,
remexendo os dedos comprimidos para aliviar os calos, voltando para a tela semiacabada um Casamento Bretão, pensando, com um arrepio: "Mon Dieu, devo continuar com
isto?"
Na hora do almoço, Stephen ia com Chester ao restaurante de Madame Chobert, mas ocasionalmente escapava à efusiva amizade de Harry e vagabundeava ao longo do cais,
mastigando um petit pain no qual havia uma fatia de presunto avivada pela mostarda amarela. Então, apressando o passo, ia aos museus, ao Louvre ou ao Luxembourg.
Era quase noite quando, com olhos ainda não ajustados às realidades da rua, deixava as compridas galerias e caminhava de volta para o Clifton.
Para Chester, e as poucas outras relações que fizera na Dupret, parecia extraordinário que Stephen passasse as suas noites só, e várias vezes instavam com ele para
que os acompanhasse numa visita a Montmartre. Certa ocasião, ele acedeu, acompanhado de meia dúzia de outros, em ir a um café-concerto na Toque Bleue, perto do Moulin
de la Galette.
Mas ficou enormemente entediado com as cenas que se presumiam vívidas e excitantes, mas, de fato, eram estupidamente fúteis. Os salões de dança eram uma massa humana
empurrando, sapateando, rodeando, semi-intoxicada,
ampliada e distorcida por dezenas de espelhos, retorcendo-se em formas grosseiras, ao estridor de uma banda reles. Certo, nada podia ser mais assustadoramente triste
do que as caras dos frequentadores mais velhos - peitos côncavos e olhos mortiços, estranhamente rebarbativos. Algumas das conhecidas cocotes que Chester lhe apontava
eram francamente medonhas, seus parceiros, com roupas pretas justíssimas, sinistros e degenerados.
Mais tarde, diversas jovens se reuniram à festa, que agora atingia uma fase turbulenta. Suas vozes roucas e grosseira camaradagem, seus braços atirados em torno
de pescoços e seus carinhos cochichados em voz alta despertavam nele um frio desagrado. Enquanto ele permanecia ali sentado, pálido e silencioso, como um peixe fora
da água, uma das jovens se curvou para Chester, que tinha bebido um bocado, e, com os olhos em Stephen, riu-se sem motivo e murmurou alguma coisa no seu ouvido.
Imediatamente, Chester rompeu num ataque de riso.
Nesse momento, Stephen não fez nenhum comentário, mas a caminho de casa, com Chester, falou no assunto.
- Não foi nada, meu velho. Ela apenas disse - Chester, com um tom de desculpa, modificou o comentário original, impublicável - que você era um tipo esquisito. -
E quando Stephen desviou a cabeça, acrescentou: - Lamento que você não tenha se divertido esta noite. Não esqueça de que vamos visitar Lambert na sexta-feira. Avise-me
antes de sair.
Nesse dia, por volta das quatro horas, Stephen saiu para a Rue Bonaparte, onde, no número 15, Harry tinha um quarto no último andar. Após uma íngreme subida de três
lances de escada, percebeu que havia uma furiosa altercação, "e empurrando a porta meio aberta encontrou Chester discutindo com um homem baixo de chapéu preto e
quadrado e um sobretudo pardacento, que, imperturbável, superintendia os movimentos de um subordinado muito ocupado em meter num grande saco de serapilheira o relógio
do consolo, um par de vasos chineses e outros objetos que decoravam o quarto.
- Agora, por favor, o seu relógio, Monsieur Chester.
- Ora, deixe disso, Maurice - suplicou Chester - o relógio não. Dê-me um prazo até o fim da semana que eu pago.
Neste momento, Chester viu Stephen. Por um instante, apatetou-se; depois, aproximando-se, forçou um sorriso confiante.
- Não é uma coisa idiota, Desmonde? Esgotei a minha pensão há pouco. E esses credores importunos, miseráveis, estão me despojando. É praticamente nada. Uns míseros
100-francos. E naturalmente receberei o cheque de mamã no fim do mês. É claro que eu não sonharia em pedir a você; contudo, se houver alguma chance...
Houve uma pequena pausa, então Stephen disse, de boa vontade:
- Terei muito prazer em atendê-lo.
- Muitíssimo obrigado, meu velho. Você o terá de volta, com juros, no dia primeiro do mês. Está vendo, Maurice, seu ladrão? E agora foutre le camp.
Dobrou as notas novinhas que Stephen extraiu da sua carteira e atirou ao oficial de diligências, o qual, após contá-las duas vezes com o polegar umedecido, acenou
silenciosamente, esvaziou o conteúdo da sacola sobre a mesa, com uma reverência enigmática, imitada pelo seu companheiro, e deslizou para fora da sala.
- bom! Acabou! - Chester riu-se alegremente, como se fosse uma excelente piada. - Eu ia sentir falta das minhas velhas panelas. E, naturalmente, disto aqui... -
Colocando os vasos de volta no consolo da lareira, abriu descuidadamente a tampa de um estojo chato e exibiu uma medalha redonda de prata presa a uma fita azul;
depois, de um modo um tanto envergonhado, que não deixava de ser encantador, ajuntou: - Essas coisas não se devem mencionar, Desmonde. Mas uma vez que você me apanhou
desprevenido, tenho que falar... é a Medalha Albert. Pois é... tive que recebê-la, há alguns anos.
- Por quê?
Stephen não podia negar que estava impressionado.
- Ora, porque salvei uma vida no mar, é como chamam isso. Uma velha tonta caiu do navio ao largo de Folkstone. Não posso culpá-la... o mar estava muito agitado...
e era inverno. Aconteceu que fui atrás dela. Não foi absolutamente nada. Não estivemos na água mais do que meia hora, enquanto o vapor fazia a curva e nos mandavam
um bote. Mas vamos esquecer isso e tratar de andar. Se não nos apressarmos, chegaremos tarde para o chá.
Com seu bom humor inteiramente recuperado, Chester desceu as escadas na frente, falando e rindo durante todo o caminho até o apartamento dos Lamberts, situado num
beco sem saída muito atrás da Avenue Duquesne. Ali, num pátio de paralelepípedos, havia um pequeno pavilhão de pedra cinzenta - avivado artisticamente por uma porta
verde-maçã e janelas da mesma cor - que fora outrora a casa do porteiro de uma mansão nos dias de Henrique IV. Cheirando a almoço e a defumador recém-queimado, o
pequeno e um tanto escuro interior estava artisticamente disposto com pequenos tapetes felpudos aqui e ali, cortinas de contas e cadeiras de bambu. Um xale espanhol
estava estendido sobre o piano de armário.
Arrastados pela impetuosidade de Chester, chegaram cedo. Lambert, dormitando numa espreguiçadeira junto às cinzas da lareira, ainda parecia afundado na letargia
de após-almoço, e mal ergueu uma pálpebra pesada quando eles entraram. Mas a Sra. Lambert lá estava para recebê-los. Era alta e esbelta, mais velha do que Stephen
tinha esperado, com grandes olhos verdes, feições tendentes à rispidez, cabelo cor de areia e uma pele branca leitosa que com ele combinava. Seu vestido de tarde,
recortado em torno do pescoço de maneira rebuscada e com saias cheias e compridas, era de brocado branco.
Enquanto ela e Chester conversavam, Stephen observava-a, sentada com compostura, com o pescoço arqueado, contra um biombo laqueado, até que ela, como se notasse
o seu olhar perscrutador, voltou os olhos para ele com um sorriso em arco.
- Espero que aprove o meu vestido...
E como ela parecia esperar um cumprimento, ele disse:
- Estou certo de que Whistler teria gostado de pintá-la com ele.
- Que coisa mais encantadora para dizer. - E ajuntou, confiadamente: - Fui eu mesma que o fiz.
Dali a pouco saiu e trouxe o chá, numa bandeja de prata, com muitas xícaras, com finos sanduíches de agrião, e petits fours. Quando começou a servir, Lambert bocejou
e espreguiçou-se.
- Chá! - exclamou ele. - Não posso viver sem chá. Abençoado, nutritivo chá. Forte, Elise. - Aceitou uma xícara, balançou-a airosamente. Este pode ter vindo das extensas
plantações da sua família no Ceilão, Harry. Não é uma ideia estimulante? Diga-nos se reconhece o sabor. - Olhou para Stephen. - Bem... o que esteve fazendo nesta
cidade malvada, Monsieur l'Abbé?
Stephen corou, Viu que Chester tinha andado a tagarelar a seu respeito.
- Certamente lhe parecerá ridículo. Um futuro pastor desertando para a pintura.
E em poucas palavras explicou algumas das circunstâncias da sua vinda para Paris.
Quando terminou, seguiu-se uma breve pausa, e então Lambert exclamou, com a sua costumeira ironia:
- Bravo, Abbé! E agora que já fez a sua confissão, tem a nossa absolvição incondicional.
Elise, inclinando-se um pouco para ele, com um sorriso, murmurou:
- Deve ter sentido uma incrível vontade de pintar. Tome mais um pouco de chá.
Quando Stephen levantou a mão com a sua xícara até os olhos, viu três leques, pintados em seda à maneira japonesa, arranjados sobre a parede. Fez uma pausa, impressionado
pela delicadeza do trabalho.
- Quem fez essas coisas tão encantadoras?
As pálpebras de Lambert ergueram-se. Acendeu um cigarro, antes de responder, de modo quase casual:
- Para dizer a verdade, caro Abbé, são minhas. Se não lhe aborrecer, mostro-lhe mais alguns trabalhos meus.
Depôs a xícara, e de uma pequena passagem lateral trouxe várias telas; então, de uma maneira fatigada colocou-as em pé, uma após a outra, de modo que recebessem
toda a luz, numa cadeira alta junto à janela.
A maioria dos quadros era bem pequena, e de temas leves - um raminho de flor de cereja numa malga azul, dois salgueiros à beira de uma poça estagnada, uma criança
com chapéu de palha sentada num caramanchão à margem de um rio - contudo, cada um deles tinha uma beleza decorativa que acentuava o simples. Era uma qualidade que
parecia infundir em formas pálidas um encanto enfastiado e indefinível.
Mostradas as poucas pinturas, Stephen voltou-se para Lambert.
- Eu não tinha ideia de que podia pintar assim... são encantadoras. Lambert encolheu os ombros, mas estava claramente satisfeito, ao passo que sua mulher, estendendo
o braço, apertou vivamente a mão de Stephen.
- Phil é realmente um génio. Ele também pinta retratos. - Seus olhos verdes demoraram-se luzindo. - Se souberem de alguém que esteja interessado em comprar... Sou
a sócia comercial.
Depois disso, a campainha da porta soou e,.em rápida sucessão, outros convidados chegaram, todos singularmente apropriados para aquela atmosfera de refinada boémia:
um jovem de meias brancas com um manuscrito debaixo do braço, outro homem, menos moço, mas de ombros quadrados e bem vestido, da Embaixada americana, uma modelo
chamada Nina, que Stephen tinha visto ocasionalmente no restaurante de Madame Chobert. Um francês de monóculo, gordo e idoso, que beijou a mão de Elise com tocante
galanteria, e sobre o qual, como um possível comprador, ela voltou todas as suas blandícies.
Um chá novo foi trazido, Lambert serviu uísque, o ruído da conversação aumentou, e dali a pouco Stephen, que em sua primeira visita não queria ficar muito tempo,
levantou-se para se retirar. Philip e a esposa instaram para que ele viesse outra vez. Aliás, Madame Lambert interrompeu a conversa para acompanhá-lo até a porta.
- Venha conosco rio acima no domingo. Fazemos um piquenique em Champrosay. - Deteve-se, de olhos grandes, com o ar de quem fazia um cumprimento. - Philip gostou
muito do senhor.
No domingo, então, e em outros dias depois, Stephen acompanhou os Lamberts, às vezes só, às vezes com Chester ou outros de seus amigos, àquela adorável altura do
Sena, entre Châtillon e Melun. Tomavam o bateau mouche na Pont Neuf para Ablon, onde alugavam um esquife e subiam com remadas descansadas a vagarosa corrente verde,
serpeando placidamente entre as ribas tornadas famosas pela Floresta de Sénart até atracarem diante de uma estalagem à margem do rio, desembarcando para almoçar
numa mesa de madeira ao ar livre.
O tempo era soberbo, a folhagem no seu melhor momento de beleza madura, as malvas-rosas e os girassóis em plena florada. O sol cintilante e o
ar caricioso, o exercício, aqueles amigos agradáveis, a esfuziante novidade de cada vista e som, o apito rouco de uma barcaça, a cor da blusa de um operário, a pose
da mulher do encarregado da comporta, tudo o que nele despertava um êxtase vibrante agia como um entorpecente sobre Stephen. Lambert, tirante algumas horas de melancolia,
estava na sua disposição mais atraente, lançando um dito de espírito aqui, um epigrama ali, exibindo o seu brilhantismo, recitando longos trechos de Verlaine e das
Fleurs du Mal.
- Mais sagrada que o Indo - murmurava ele, detendo-se para tomar fôlego, arrastando os seus compridos dedos na corrente fria, com o peito estreito a arfar, a mecha
de cabelos caída sobre a testa úmida. - Esses lírios d'água... cálices do mais puro alabastro... translucidamente rosados... e frios... frios como os seios das ninféias
flutuantes... - E assim por diante.
Seu olho para a beleza não se limitava à natureza, e sempre que a mulher que os servia na estalagem era razoavelmente favorecida, ele, a despeito do olhar agudo
da esposa, flertava com ela ultrajantemente.
A princípio, Stephen trazia consigo um bloco, querendo registrar tudo o que via, mas Lambert desanimou-o com um sorriso cómico.
- Deve guardar tudo aqui, caro Abbé. - Bateu na testa ligeiramente. Mais tarde... na solidão... isso nascerá outra vez.
Numa tarde de domingo, depois de uma excursão mais encantadora do que qualquer outra, Stephen despediu-se dos Lamberts e de dois outros que tinham participado do
passeio de barco, e caminhou do embarcadouro, no Quai St. Bernard, para o seu hotel. O sol, afundando agora por trás da cúpula do Trocadero, tinha incendiado o céu
o dia inteiro. Animados pelo calor do dia, todos tinham se banhado num lago abaixo do açude de L'Hermitage, comido um almoço especial de trutas, frias com patê,
enriquecido pelo nobre Chambertin, e depois adormecido sobre a relva tépida embaixo das faias de Sénart.
Como ele se sentia bem!... a pele queimada pelo sol, os pulmões cheios de ar do campo, o corpo formigando com a água picante do rio... uma espécie de satisfação
divina espalhava-se por ele.
De súbito, ao atravessar a Rue de Bièvre, um homem saiu de uma entrada estreita bem à sua frente. Usava sapatos pesados, uma calça de pele de toupeira e uma blusa
de porteiro pintalgada de azul; em torno do pescoço, um lenço vermelho enrolado negligentemente. Parecia um trabalhador voltando para casa após um duro dia de labor;
contudo, algo no aprumo dos ombros, o porte desafiante da cabeça, fez Stephen sobressaltar-se. Apressou o passo para alcançá-lo.
- Glyn!
Richard Glyn deu meia-volta, de cara séria e cenhuda; então, ao olhar, as rugas que tão profundamente lhe franziam a testa foram aos poucos desaparecendo.
- É você, Desmonde... Conseguiu deixar aquilo.
- Há cinco semanas - disse Stephen sorrindo de prazer. - E desde então estive esperando encontrá-lo. Escute, estou justamente voltando para o hotel. Venha e jante
comigo.
- bom - considerou Glyn - eu bem que gostaria de dar umas dentadas. Não comi nada o dia inteiro.
- Deus do céu, que esteve fazendo?
- Pintando... desde as seis da manhã - respondeu Glyn com uma espécie de violência sombria. - Costumo esquecer o almoço quando estou trabalhando... especialmente
quando não consigo dominar meus amaldiçoados valores das nuanças.
Falando, os seus olhos de ágata cintilavam com uma súbita e rude impaciência, o cansaço de um prolongado e apaixonado esforço para criar. Travando Stephen pelo braço,
saiu com ele rua afora.
CAPÍTULO VIII
O APARECIMENTO DE GLYN, de lenço vermelho no pescoço e botas ferradas, causou um pequeno rebuliço na sala de refeições do Clifton. O velho chefe dos garçons, criado
na tradição dos milords ingleses, não gostou do que via, e as duas damas solteironas, que até agora consideravam Stephen com simpática aprovação, agitaram-se de
chocada surpresa. Richard, contudo, não pareceu importar-se e, aboletando-se na sua cadeira, passeou os olhos em torno com visível curiosidade.
- Por que, em nome do Céu, você se hospeda num lugar como este, Desmonde?
- Oh, não sei... habituei-me a ele, suponho.
Glyn provou a sopa, feita, como sempre, de farinha e água gordurosa.
- Talvez você goste da comida, não?
Stephen riu-se.
- Sei que não é lá essas coisas. Mas o prato de carne será bom.
- É melhor que seja. - Richard partiu outro pão. - Eu lhe disse que estava faminto. Uma noite destas vou levá-lo para comer numa verdadeira casa de pasto.
- No restaurante de Madame Chobert?
- Por Deus que não! Nada de casa de picadinhos artísticos!... Detesto falsas aparências, tanto em cozinha como em pintura. Um bistro de cocheiros perto da minha
casa. Você pode confiar numa taberna onde os cocheiros comem. Servem lá um patê de lebre que não é deste mundo. - Glyn se deteve. - Agora me conte o que andou fazendo.
De boa vontade, mas sem entusiasmo, Stephen iniciou um relatório completo das suas recentes atividades. Falou da sua "labuta" matinal na Dupret, encareceu a sua
amizade com Chester e os Lamberts, tornou-se lírico ao descrever as suas excursões a Champrosay. A princípio, Glyn ouvia com um sorriso entre irónico e sarcástico,
mas lentamente a sua expressão se tornou séria, e ele ficou olhando de esguelha para o seu companheiro.
- Bem - exclamou ele quando a narrativa terminou. - Você parece que tem andado ocupado. Talvez me leve depois ao seu quarto para vermos o que tem feito.
- Oh, não tenho muito que mostrar... - respondeu Stephen apressadamente. - Apenas uns poucos esboços. Tenho me concentrado nas linhas, sabe?
- Sim - fez Glyn.
Em completo silêncio, ele mastigava o resistente pouding à l'anglaise que constituía a sobremesa do Clifton. Não disse palavra por uns bons cinco minutos. Depois,
por baixo das sobrancelhas franzidas, voltou para Stephen um olhar firme que também tinha um reflexo de extremo desagrado.
- Desmonde, você quer pintar? Ou enganar a sua vida como um desses personagens extravagantes de La Boême?
- Não compreendo.
- Ouça, então. Há talvez 10 mil impostores safados nesta cidade que se imaginam artistas porque estudam um pouco, desenham um pouco e sentam os rabos nos cafés todas
as noites, cacarejando sobre as suas obras-primas natimortas. Você é quase um deles. Sabe muitíssimo bem que está desperdiçando tempo, Desmonde. Só o trabalho duro,
infernal, é que tira o que você tem aí dentro, não vagabundeando pelo Sena, estendido de costas numa canoa com um poseur simplório que lhe esguicha Verlaine e Baudelaire.
Stephen avermelhou-se, indignado.
- Você é injusto, Glyn. Chester e Lambert são sujeitos muito decentes. E Lambert tem certamente um grande talento.
- Besteira! Que fez ele? Algumas japonaiseries, leques pintados, fragmentos... oh, bem bonito, não nego, mas coisinhas meio efeminadas... afetadas... e tudo muito
pequeno.
- Certamente é um sinal de vulgaridade produzir enormes telas.
Em seu ressentimento, Stephen citara uma observação favorita de Lambert, e Glyn logo farejou a sua origem. Riu-se rudemente.
- E Rubens, e Correggio, e del Sarto, com as suas tremendas concepções, e o velho Michelangelo, cobrindo o teto da Capela Sistina com a sua portentosa visão da Criação,
trabalhando tão duramente que em muitos dias nem tinha tempo de tirar a roupa? Eles foram vulgares? Não, Desmonde... Lambert é um amador bem-dotado, um artista menor,
que nunca seria ouvido se não fosse empurrado por trás pela sua astuta mulher. Não tenho nada contra esse sujeito, é em você que estou pensando, Desmonde. Você tem
algo que Lambert daria a alma para possuir. Não quero vê-lo jogando isso fora por causa da sua maldita tolice. E quanto a Harry Chester, prosseguiu Glyn, será você
tão ingénuo para já não ter saltado por cima dele?
- Não sei o que você quer dizer - respondeu Stephen agastado.
Glyn pensou em esclarecê-lo, mas contentou-se com um sorriso.
- Quanto dinheiro ele já levou de você?
Stephen corou profundamente. Chester tinha em várias ocasiões pedido empréstimos, e agora já lhe devia mais de 500 francos, mas não tinha ele dado a sua palavra
de honra que os pagaria fielmente?
- Ouça - continuou Glyn mais tranquilo - você teve um falso início, acabou em más companhias e, pior de tudo, tem afrouxado abominavelmente. Se não se levantar,
estará cavando o seu próprio túmulo. O poço mais fundo do inferno é ocupado pelo artista que não trabalha!
Fez-se um comprido e gélido silêncio. Embora Stephen se tivesse defendido, ao comparar o seu próprio dia inútil com as horas de esforço concentrado de Glyn, uma
vergonha começava a apoderar-se dele.
- Que devo fazer? - disse ele por fim.
- Em primeiro lugar, sair desta casa anglicana de repouso.
- Quando?
- Agora.
O olhar consternado de Stephen pareceu divertir Glyn imensamente, mas num instante ele ficou novamente sério.
- Não posso lhe pedir que venha para o meu buraco. Mas conheço um homem que terá prazer em recebê-lo.
- Quem?
- Jerome Peyrat é o nome dele. Tio Peyrat. É um camarada velhusco, em situação não muito boa, que quer alguém para dividir as despesas. Um tipo esquisito, por Deus,
mas um verdadeiro pintor, diferente dos seus falsos boémios. - O meio sorriso de Glyn era desconcertante, mas desapareceu rapidamente quando ele concluiu: - Você
já não tem mais nada com Dupret, está claro. Pode usar o meu estúdio. E vou lhe apresentar o meu homem das tintas, Napoleon Campo. Ele fia... às vezes. Vamos embora.
A natureza de Stephen não era adaptada às mudanças súbitas e decisões bruscas, contudo havia uma força avassaladora nos argumentos de Glyn, uma
irresistível compulsão na sua maneira. Dirigiu-se, portanto, ao escritório e, para surpresa e mortificação do gerente, pediu e liquidou a sua conta. Então fez a
mala e trouxe-a para baixo, desculpando-se por sua partida inesperada com uma profusa distribuição de gorjetas.
Glyn, no corredor, e claramente olhado pelo pessoal do Clifton como o demónio da peça, mostrou-se frio a respeito daquelas gratificações, e comentou sombriamente:
- Aconselho-o a guardar o seu dinheiro, Desmonde. Você pode vir a precisar dele depois.
- Espere, Glyn. Eles têm que nos arranjar um carro.
- Para o diabo com o carro. Está realmente tão fraco que não pode andar?
Apanhando a valise, que não era leve, Richard atirou-a no ombro e saiu do hotel a passos largos. Stephen acompanhou-o para a poeira luminosa da rua.
Era uma distância considerável até o alojamento de Peyrat, mas Glyn, que tinha uma satisfação selvagem em extrair o máximo de si mesmo, percorreu-a em passos rápidos,
sem vacilar ou depor a mala. Finalmente, numa escura rua lateral de Rive Gauche, no triângulo formado pelo encontro da Rue de Assas e do Boulevard Montparnasse,
Glyn enveredou por uma entrada torta ao lado de uma pastelaria, que, embora mal iluminada por uma lâmpada fraca, estava esfregada e limpa, e começou a subir de três
em três os degraus de pedra. Deteve-se no segundo andar, bateu na porta e, sem esperar resposta, torceu o trinco e fez Stephen entrar.
Era um apartamento de três cómodos, e na sala de estar, mobiliada com correção burguesa, sentava-se diante da mesa coberta por um oleado um homem franzino, de ombros
redondos, com cerca de 50 anos, um rosto chato e sulcado e uma barba inculta, vestindo, apesar do calor do fogo que flamejava na lareira, um descosido sobretudo
preto com a gola levantada e um chapéu duro, também preto; enquanto um tordo, sem a metade das penas, piava um acompanhamento numa gaiola junto à janela, ele se
exercitava na ocarina. À vista de Glyn, os seus olhos, que eram claros e jovens e o enchiam de engenhosa audácia, brilharam. Depôs o instrumento e, erguendo-se,
beijou Richard, com afeiçoada familiaridade, em ambas as faces.
- Peyrat - disse Glyn brevemente, enquanto se desvencilhava - trouxe-lhe o seu novo inquilino. É um amigo meu. Stephen Desmonde.
O olhar de Jerome Peyrat passou de Glyn para Stephen e nele repousou pensativamente - um escrutínio a um tempo inocente e amável.
- Se é seu amigo, mon vieux, então será meu também. Desculpe-me recebê-lo assim, Monsieur Desmonde. Richard sabe como padeço com correntes de ar.
- Espero que não o estejamos perturbando - disse Stephen, embaraçado.
- Longe disso. De noite tenho o hábito de contemplar a minha própria alma. Às vezes acho-a esplêndida, outras medonha. Esta noite - sorriu gravemente - agradeço
qualquer distração.
- Desmonde é pintor, Peyrat. Vai trabalhar comigo e com você.
- ótimo. - Peyrat não mostrou a menor surpresa. - Seja bem-vindo no meu apartamento... pelo menos temporariamente, uma vez que pertence a Monsieur Bisque, o pasteleiro.
Não importa. Aqui renunciamos à beleza das mulheres e ao brilho da fama contemporânea, a fim de produzir obras-primas que serão aclamadas mil anos após a nossa morte.
- Que esperança! - exclamou Glyn com irónica indulgência.
- É unicamente a esperança que nos mantém vivos.
- E a beata Teresa...
- É verdade. Somos sustentados pelo exemplo dessa nobre alma. - Voltou-se para Stephen. - Já visitou a Espanha?
- Não.
- Então um dia podemos fazer uma peregrinação juntos. Até Ávila de los Caballeros... que fica atrás de muralhas de granito, amareladas pelo sol do verão, geladas
pelo inverno de Castela, aprumando-se como uma grande coroa no seu deserto de rocha contra o duro azul das Montanhas de Greda.
- O senhor já esteve lá? - perguntou Stephen polidamente.
- Muitas vezes. Mas somente em espírito. Glyn explodiu numa gargalhada.
- Aviso-o, Desmonde. Este maluco, que nunca vai à igreja e diz coisas desagradáveis a respeito do Papa, tem uma absurda veneração por Santa Teresa.
- Peyrat sacudiu a cabeça em reprovação.
- Meu amigo, não tome em vão o nome da doce e obstinada mulher de Castela, a Velha, que restaurou a ordem descalça original, abandonou a vida ociosa e tagarela das
carmelitas. Ela troou a sua batalha com o espírito, o encanto, a humildade, as rezas, os argumentos, a paciência de uma santa e a têmpera de um capitão do mar. Também
foi uma poetisa...
- vou sair - disse Glyn, sorrindo e dirigindo-se para a porta. - vou deixá-los a sós para que se conheçam. Esteja no meu estúdio amanhã às sete, Desmonde. Boa noite.
Saiu. Peyrat, após um momento de silêncio, levantou-se e foi apertar a mão de Stephen.
Disse simplesmente:
- Espero que se sinta em casa.
CAPÍTULO IX
AGORA COMEÇAVA PARA STEPHEN, sob a influência de Glyn e Peyrat, uma nova existência, cheia de incessante trabalho, inteiramente oposta à sua recente interpretação
da vida artística. Jerome Peyrat, conhecido no distrito de Plaisance como "Tio Peyrat", era de origem humilde; seus pais, já falecidos, não foram mais que gente
simples do campo - embora ele falasse deles com orgulho - labutando nuns poucos hectares perto de Nantes. Durante 30 anos, como empregado do governo, petit fonctionaire,
passando os dias metido num paletó de alpaca com punhos de papel, tomando anotações nos registros poeirentos do Palais de Justice. Somente uma vez estivera fora
da França, quando, como terceiro secretário de uma comissão judicial, tinha ido à Índia. Lá, passara todo o seu lazer como um espectador ingénuo e fascinado dos
animais alinhados atrás das grades, debaixo das altas palmeiras e carobas do jardim zoológico de Calcutá. Alguns meses depois do seu regresso, o pessoal do ministério
foi reduzido e Peyrat aposentado com uma pensão tão diminuta que mal lhe dava para viver de pão. Então, inesperadamente, nunca antes tendo manifestado no menor grau
qualquer interesse pela arte, começou a pintar prolificamente. Não apenas a pintar, mas a considerar-se placidamente um pintor de génio. Nunca recebera uma só lição
na sua vida. Pintava os retratos dos amigos, ruas, edifícios, feios edifícios, cortejos nupciais, fábricas da banlieue, e punhados de flores agarradas por mãos descarnadas,
pintava composições de florestas - uma forma feminina nua, pródiga de seios e cadeiras, montada num tigre mostrando os dentes embaixo de um intrincado novelo de
palmas, trepadeiras, samambaias, orquídeas de tons cromáticos, uma floresta da imaginação, luxuriante e estupenda, povoada por serpentes e macacos trepadores entrelaçados
como num combate mortal, durante a execução dos quais tremia, suava e, para que não desmaiasse, era forçado, apesar do seu medo de apanhar um resfriado, a abrir
a janela para respirar ar fresco.
A vizinhança encolhia os ombros e sorria diante das suas pinturas, que eram expostas à venda, ao preço de 15 francos, na janela da sua amiga, Madame Huffnaegel,
uma viúva respeitável que tinha uma chapelaria a poucas portas rua abaixo e por quem ele nutria um respeito moderado. A não ser Napoleon Campo, o homem das tintas,
que tinha levado telas em pagamento de materiais
fornecidos a Peyrat - e cujo sótão estava, admitia-se, atulhado de refugos de artistas lutadores - ninguém comprava os quadros, que se tornaram, nas vizinhanças
da Rue Gastel, um alvo regular de hilariante, embora afetuosa, alegria. Contudo, complacentemente, Peyrat continuava pintando, às vezes passando muitas necessidades,
mas completando a sua magra pensão com vários recursos. Além da ocarina, que ele tocava para seu próprio prazer, e do corne francês, tinha um conhecimento limitado
do violino e do clarinete. Consequentemente, escreveu uns volantes que ele mesmo distribuía de porta em porta pelo bairro.
Aviso
JEROME PEYRAT
CURSOS DE MÚSICA, HARMÓNICA E SOLFEJO PARA CRIANÇAS
Aos sábados, das duas às cinco da tarde.
Rápido progresso garantido.
Pais podem assistir às aulas. Mensalidade por estudante: cinco francos.
Número limitado de alunos.
No verão, também tirava um bom efeito da sua habilidade no corne francês, tocando todas as tardes de terça-feira na orquestra que encantava as babás e seus pirralhos
no Jardim das Tulherias. E quando a necessidade o premia demasiado, lá estava o amigo da sua infância, Alphonse Bisque, agora o pasteleiro do Plaisance, gordo, de
meia-idade, completamente calvo, com quem - por recordação sentimental dos dias distantes da escola em Nantes, e não por causa das pinturas que de tempos em tempos
Jerome lhe empurrava em pagamento - se podia contar para fornecer pastel de carneiro ou patê de carne.
Nos seus hábitos e no seu modo geral de vida, Peyrat - Stephen logo o descobriu - era tão engenhoso, tão original como os seus quadros. com toda a sua simplicidade,
tinha uma mente ativa e inquisidora, abarrotada com os frutos das suas pesquisas em volumes abstrusos de segunda mão comprados nos quais, frequentemente vomitados
em discursos ingenuamente eruditos sobre história, teologia medieval ou assuntos tão inconciliáveis como Cosme de Alexandria, que no ano 548 denunciara a doutrina
da redondeza da Terra, e Santa Teresa de Ávila, a quem ele, um ateu, tinha tranquilamente tomado por padroeira.
A despeito dessas excentricidades, portava-se, na sua frase favorita, como un brave homme et un bon camarade. Por mais cedo que Stephen se levantasse, Peyrat já
estava de pé antes dele, para apanhar o leite e o pão quente que o menino Alphonse entregava todas as manhãs na sua porta. Terminado o seu simples desjejum, vestia
um avental e lavava a louça; depois, tendo dado água e sementes ao tordo que achara na rua, estropiado por um gato, e que se propunha soltar quando a asa se emendasse,
aprestava-se para o dia de trabalho, punha no ombro a sua paleta e caixa de tintas, mais um grande guarda-chuva para protegê-lo contra os elementos, e saía a pé
para algum canto remoto dos subúrbios, Ivry, Charenton ou Passy, onde, imperturbável ante comentários grosseiros dos passantes ou peças que as crianças lhe pregavam,
atormentando-o, perdia-se na maravilha e no mistério de transpor para a tela alguma visão celestial de um vagão encostado, um bonde ou o cano de uma chaminé.
Stephen saía à mesma hora, apressando-se todas as manhãs para a Rue de Biêvre a fim de utilizar a luz clara do norte, depois do amanhecer, que jorrava através das
clarabóias chumbadas do estúdio de Glyn. Richard, que nunca se poupava, era impiedoso na sua atitude de severo e às vezes estúpido feitor.
- Mostre-me o que é capaz de fazer - dizia ele sombriamente. - Em seis meses, se você não me satisfizer, pode voltar para o Senhor.
O modelo de Glyn, Anna Montel, era uma mulher de 30 anos, alta e vigorosa, de cabelos negros e olhar cigano, desolado. Era uma ramani Cinzany, cujos antepassados
deviam ter vindo originariamente da Hungria, embora Glyn a tivesse encontrado numa remota parte de Gales do Norte. Sua pele era áspera, e como sempre ela andava
descalça, numa saia escura e blusa verde, sem luvas ou capote; suas mãos e faces eram gretadas pelas cortantes brisas do outono que assobiavam na rua vindas do rio.
Mas os planos daquela face castigada pelo vento, com as suas órbitas firmes e malares altos, eram lisos e fortes. Andando pelo estúdio nas suas chinelas de ourela,
lendo de relance os desejos de Glyn, era a pessoa mais silenciosa que Stephen tinha conhecido-. Posava a todas as horas, e por longos períodos; depois, sem uma palavra,
deslizava do estúdio para Halles e, voltando com uma braçada de provisões, ia ao fogãozinho e preparava um goulash, ou coava café naquela chaleirinha azul de esmalte
com o bico quebrado, que figurou, mais tarde, num dos mais conhecidos quadros de Glyn: Le Café Matinal.
Embora nunca procurasse instruir, Glyn era incansável na sua exigência por originalidade, insistindo em que Stephen descartasse as suas noções preconcebidas, encorajando-o
a olhar para os objetos não como eles eram vistos e representados pela tradição, mas com os seus olhos novos.
- Faça como Peyrat faz! - exclamava Glyn. - Faça cada quadro absolutamente seu.
- Você tem Peyrat em grande conta?
- Acho que ele é grande. - Glyn falava com inteira convicção. - Tem a visão direta original de um artista primitivo. Podem rir dele o quanto quiserem, achando-o
um velho tolo. Mas dentro de 20 anos se arrastarão para ter um dos seus quadros.
Era um trabalho duro - e frio. No estúdio gélido, as semanas avançavam mais frígidas ainda, porque Glyn tinha uma teoria espartana de que ninguém podia dar o que
tinha de melhor num ambiente de conforto. Morta para sempre estava a primeira ideia de Stephen de que pintar era uma arte suave e sedutora. Nunca em sua existência
teve um regime tão rigoroso. E Glyn era insaciável na sua demanda por maior, e ainda maior, esforço.
Um dia, quando a cabeça de Stephen girava e ele sentiu que não podia continuar, Richard, respirando fundo, atirou a sua paleta no chão.
- Exercício - decretou ele. - O tampo da minha cabeça está saltando. Sabe andar de bicicleta?
- Sem dúvida.
- Suponho que você praticava o crawl de coadjutor lá em Oxford. Seis quilómetros por hora.
- Acredito que posso fazer um pouco melhor do que isso.
- Muito bem. - Glyn sorriu. - Veremos de que você é feito.
Saíram do estúdio e atravessaram a rua para a loja de bicicletas do quarteirão, atendida por Pierre Berthelot, um antigo ciclista de corridas que, embora incapacitado
agora por um coração danificado pelo Pernod, tinha nos seus dias obtido um terceiro lugar no Tour de France. Era um estabelecimento pequeno, arruinado, com uma fila
de bicicletas penduradas do teto, na frente, e uma escura oficina de reparos ao fundo. Entraram. O lugar parecia deserto.
- Pierre! - gritou Glyn, batendo no balcão.
Uma moça de uns 20 anos surgiu dos fundos. Era um tanto baixa, usava um suéter escuro e uma saia preta pregueada, com pés sem meias enfiados em compridas chinelas
pretas.
- É você? - fez Glyn.
- A quem esperavk? A rainha de Sabá?
- Por que não está no circo?
- Desmontado para o inverno. - Ela falava com frases curtas, desgraciosamente, com as mãos nas cadeiras e as pernas separadas.
- E o seu pai?
- Curando uma bebedeira.
- Hum! Stephen, esta é Emmy Berthelot. E enquanto ela olhava de um para outro de uma maneira aborrecida, ele continuou: - Queremos duas bicicletas para esta tarde.
Boas.
- Todas são boas. Peguem as duas do fim.
Enquanto Glyn abaixara a corda na roldana, Stephen observava-a experimentar cada bicicleta como entendida, fazendo as rodas girarem. Tinha um rosto pálido, emburrado,
testa baixa, ligeiramente saliente, sobrancelhas bem marcadas, uma boca grande de lábios finos. O nariz tinha uma boa linha, mas apresentava essa ponta arrebitada
dos bairros pobres que a denunciava. A não ser pelos seios, salientes sob o jérsei apertado, tinha a figura de um menino bem desenvolvido. Virando inesperadamente,
notou que Stephen tinha os olhos nela. Sob o seu olhar frio e avaliador, ele sentiu que corava - havia na maneira dela uma insolência que o magoava. Richard estava
levando as bicicletas para a porta.
- Gostaria de vir conosco Emmy?
- De que jeito? Tenho que cuidar da loja. Graças a esse velho beberrão.
- Outro dia então. Voltaremos antes de escurecer.
Stephen acompanhou Glyn para a rua. Montaram e, dobrados em dois sobre os guidons abaixados, Glyn adiante, afastaram-se, furando o tráfego do Faubourg St. Germaine
até a Porte de Versailles. Fora das portas da cidade, aceleraram pela estrada reta e lisa para Ville d'Avray. Richard, com ocasionais olhadelas para trás, imprimiu
uma velocidade arriscada. St. Appoline, Pontchartrain e Meul ficaram vertiginosamente para trás. E, depois, Jussieu, e Orgeval. Por fim, numa ampla curva circular,
tinham percorrido cerca de 30 quilómetros, e Glyn parou com uma freada diante de uma buvette na pequena aldeia de Louveciennes. Respirando forte, olhou criticamente
para Stephen, suado e empoeirado, completamente sem fôlego. Sorriu.
- Nada mau, meu rapaz. Você não gosta de desistir, não é? É uma qualidade que pode lhe ser útil. Venha tomar uma cerveja.
No bar escuro, de teto baixo, tomaram uma caneca de cerveja gelada, que escorregou deliciosamente nas suas gargantas secas. Glyn sugou a espuma da barba e suspirou.
- bom lugar para pintar este campo em torno de Louveciennes - meditou ele. Renoir e Pissarro costumavam andar por aqui. Sisley também. Traremos Emmy para dar o ritmo.
Ela pode realmente vir.
A lembrança do encontro na loja de bicicleta ainda doía em Stephen. Ele disse secamente:
- Aquela moça me pareceu uma pessoa um tanto desagradável.
Glyn soltou uma risada.
- Modere a sua língua, padre... - E depois de uma pausa: - Na verdade, ela é uma putinha barata... o seu amigo Chester podia lhe dizer... E dura. Praticamente criada
na equipe no circuit de France. Troteia por aí com um bando de vadias. Faz uma tournée de seis meses por ano com o grupo do Peroz.
- Peroz?
- Adolf Peroz. Primeiro, eram os Irmãos Peroz. Adolf é o sobrevivente. Conheço-o. Sujeito decente. Tem um circo muito bom. Emmy faz os números de ciclista. Acho
que deve ser extremamente arriscado. Ela ganha um bom dinheiro, e deixa você saber disso. Ela não tem préstimo para nós, realmente, e sabe que andamos tesos. Mas
é incrivelmente vaidosa, e quer que eu a pinte.
- Vai pintar?
- Não mesmo! Não lido com tipos da sarjeta. Mas me divirto pondo uma mosca na sopa dela. Ela é realmente uma perfeita cadelinha. - Terminou a sua cerveja. - Vamos
embora.
Voltaram lentamente no frescor da tarde. Glyn estava eufórico, purgado da tensão nervosa, cantando trechos de canções populares do País de Gales.
Diante da loja de bicicleta, consultou o relógio e deu um assobio.
- Estou atrasado. Tenho que me encontrar com Anna. Entregue isto por mim, como um bom sujeito. Deixou a sua bicicleta com Stephen e precipitou-se.
Com alguma dificuldade, Stephen manobrou as duas bicicletas para dentro da loja. Como antes, estava vazia. Ele bateu no balcão, e então, como ninguém aparecesse,
empurrou a porta dos fundos; no corredorzinho escuro, foi de encontro a Emmy, que vinha para a loja. A porta de fora fechou-se, deixando-os juntos, confinados na
escuridão de um espaço não maior que um armário. Muito desconcertado, Stephen não achava o que dizer, e de súbito o seu pulso começou a bater como um martelo. Ela
estava em pé a seu lado, tão perto que ele podia sentir-lhe o calor, e uma estranha e repentina emoção fez a sua garganta se apertar. Ela o observava impassível,
sem surpresa, embora o seu íntimo torvelinho lhe fosse perfeitamente aparente; deu-lhe um sorriso frio, crítico.
- Que veux-tu?
O duplo sentido da pergunta trouxe-lhe uma onda de calor. Houve uma pausa, durante a qual ele ouvia as rápidas e altas batidas do seu coração. Numa voz não natural,
respondeu:
- Queria que soubesse... que eu trouxe as bicicletas de volta.
- Fizeram um bom passeio? - Ela continuava a observá-lo conscientemente, olhos apertados, meio divertida com a sua emoção, embora não participando dela.
- Sim, obrigado.
Silêncio outra vez. Ela não fazia nenhum gesto para se mover. Afinal, com grande esforço, ele pôs a mão na porta às suas costas e empurrou-a.
- Espero - gaguejou ele como um colegial - espero vê-la novamente. Envergonhado e muito tenso, tentou sem sucesso afastá-la da mente. Mas ela crescia cada vez que
a via - ocasiões que se tornaram frequentes desde que, com a chegada da primavera, Glyn insistia em exercícios regulares
semanais. Sentia-se ao mesmo tempo atraído e repelido por Emmy. Desejava muito pedir-lhe que posasse para ele, mas não podia chegar a dizê-lo com tantas palavras.
Uma oportunidade favorável parecia não surgir nunca. Ela permanecia como um enigma não decifrado, um sentido procurado e não achado, uma estranha irritação no fundo
do seu espírito.
E o tempo ia passando com desconcertante rapidez. À medida que os dias iam ficando mais compridos, e os castanheiros rebentavam em flores outra vez, ele percebia
que este ano de graça em breve estaria acabado. Mais e mais as cartas de Stillwater, de seu pai, de Davie, e de Claire, começavam a antecipar o seu regresso, a pedi-lo
mesmo, com crescente urgência.
Julho chegou, e do céu brônzeo um ar abafado pesava sobre a cidade. Glyn, que detestava o tempo de calor, resistiu por duas semanas, depois resolveu subitamente
ir para a Bretanha com Anna, vagabundear por lá, e pintar Calveries. Os Lamberts já tinham partido para La Baule e agora Chester ia encontrar-se com eles. Até Peyrat
falava em desertar de Paris. O aluguel do apartamento terminava em agosto e ele planejava ir ver um tio em Auvergne.
Tanto Richard como Peyrat insistiram para que Stephen os acompanhasse. Mas ele não podia aceitar - uma carta final, com um ressaibo de severidade, tinha chegado
do Reitor, na qual ele esperava que Stephen não "recuasse da palavra empenhada" nem se deixasse deter pelos "divertimentos e atrações de Paris",
Depois de a ler, Stephen atirou os seus pincéis sobre a mesa e saiu para a rua. Poderia ter ido ao Bois, onde sempre havia sombra embaixo das árvores, mas o seu
humor, deprimido e irritável, proibia-o. Em vez disso, apesar da sua fadiga e de uma sensação de estar absolutamente exausto, caminhou direto para cidade, através
de quilómetros de ruas monótonas. Lojas e cafés em todo o caminho, grandes a princípio, gradativamente menores. Quase todas vazias. Numa delas, deserta, um garçom,
com a cabeça nos braços, dormia numa mesa. Stephen passou por baixo das pontes da estrada de ferro, pelos trilhos serpenteantes do grande Terminal, atravessou canais;
finalmente, passado o octroi, encontrou-se num ermo poeirento fora das barreiras de Paris. A esse tempo, pingava de suor e continuava a repetir para si mesmo:
- Meu Deus, que vida... E papai pensa que os meus dias são uma ronda de prazer.
Quando voltou, parou na agência postal do Plaisance e escreveu um telegrama.
DESMONDE, REITORIA, STILLWATER, SUSSEX. ATRAVESSANDO BARCO CEDO AMANHÃ DEZENOVE JULHO.
STEPHEN.
CAPÍTULO X
NADA, PENSAVA STEPHEN, excede a alegria de revisitar os amados lugares familiares, meio esquecidos, agora vistos mais belos do que antes. Estendido na relva da ribanceira
do Lago Chillingham, com uma vara de pescar a seu lado, aquecido pelo sol da tarde, estava observando Davie lançar um peixinho prateado, ainda desajeitado, mas com
uma seriedade que traduzia aperfeiçoamento, entre os lírios floridos, debaixo de cuja frescura estava um lúcio escuro. O ar era claro e dourado, havia flores silvestres
por toda a parte, as árvores ostentavam a sua mais ampla e tenra folhagem; nas sarças, as rosas-de-cão, de um róseo delicado, exalavam o seu perfume, que se misturava
com o denso aroma das rainhas-dos-prados. Pombos revoavam distantes lá em cima e, da granja familiar, em Broughton Park, ele ouvia o cacarejo das aves.
Era difícil perceber que estava em casa havia duas semanas. Desde aquele momento em que, em Halborough, tinha sido recebido por Davie e Caroline - uma combinação
feita com delicada discrição - tudo corria tão maciamente que o tempo parecia voar. Sim, era bom estar de volta - se pelo menos não o tratassem como o filho pródigo
agora perdoado e que devesse ser mantido a todo o custo pela bondade. Desjejum na cama, o Times do seu pai fechado na bandeja - até ele protestar dizendo que preferia
levantar-se e tomar café com Davie lá embaixo; seus pratos prediletos no almoço e jantar, Beasley trabalhando mais horas na cozinha, Mould trazendo cestas de frutos
escolhidos; seus desejos atendidos, excursões planejadas; claramente, todos os membros da família estavam unidos num esforço diplomático para desarmá-lo.
O assunto da sua pintura não era discutido - estava morto desde a primeira noite, quando, a pedido do Reitor, mostrou as suas telas. Com uma contração do cenho,
entre uma carranca e um sorriso, ele reconheceu quão honestamente, embora de modo vão, o pai tentara aprovar o seu trabalho, perplexo diante de tudo o que via, o
olho assustado indo descansar, em particular, numa cena de banlieue que mostrava uma mulher pendurando um varal de roupa no fundo do seu quintal num dia de vento.
- Meu caro rapaz... você acha isto... belo?
- Sim. É um dos meus prediletos.
- Mas não compreendo. Por que tem que pintar uma corda de roupa?
- É a interação dos tons brilhantes, papai... contra o fundo sombrio, o vestido cinza e branco da velha...
Procurou explicar a base da sua ideia e como as cores puras eram aplicadas com uma espátula. Contudo, era claro que o Reitor continuava perplexo e não convencido.
Seguiu-se uma longa pausa. Por fim, depois de um último exame, seu olhar voltou-se dúbia e ainda inquisidoramente para ele.
- Suponho que um perito possa apreciar isto.
- Acho que pode.
A seguir, a consideração suplantou a crítica. Caroline, muito mais terna à sua maneira, tinha passado as suas roupas, costurado os botões da camisa, e a sua mãe,
estimulada no seu mundo solitário e peculiar, subitamente descobrira e declarara que usaria um novelo de lã com o qual, desde que ele estava em Oxford, pensava tricotar-lhe
umas meias.
Tinha sido, na maior parte, um grupo familiar restrito - para alívio de Stephen, o General Desmonde e sua mulher estavam na Escócia com Geoffrey, caçando - mas nesta
tarde, sabendo que ele e Davie tinham que estar em Chillingham, Lady Broughton convidara-os para o chá.
Com um olhar para o sol, agora obliquando na crista dos Downs, Stephen achou que era melhor saírem logo. Levantou-se, caminhou ao longo da ribanceira e ficou atrás
do irmão, que, embora desse sinais de cansaço, ainda lançava a sua linha, perseverantemente, na água indiferente. A pesca, até agora, tinha sido fraca - três percas
amarelas tão pequenas que não satisfaziam o gato da Reitoria. Ciente do apaixonado ardor que Davie tinha por aquilo, e aliás por qualquer esporte ao ar livre - um
sentimento tão contrário à sua própria indiferença, tão comoventemente incoerente também, dadas as condições delicadas do rapaz e da sua saúde, que estava longe
de ser robusta - ele desejava que uma grande e digna truta se enganchasse no anzol. Podia muito bem ver a alegria e triunfo que essa captura causaria.
Mas embora esperasse pacientemente, com uma palavra ocasional de animação, não houve esse golpe de sorte. Davie, refletiu com momentânea tristeza, nunca tinha sorte.
E enquanto o seu jovem irmão enrolava a linha, passou-lhe um braço nos ombros e, louvando o seu progresso em lançar a vara, condenando os elementos desfavoráveis
do calor e da luz, finalmente, aumentando o valor dos três peixinhos agora curvados e secos na cesta, trouxe-o de volta para a alegria.
- Acho que estou melhor - disse Davie esperançoso. - Esforcei-me muitíssimo. E, como você diz, essas percas não são más. Acha que dão para cozinhar?
- Perfeitamente.
- De qualquer modo... são muito pequenas.
- Quanto menor, melhor - disse Stephen.
Ao saírem pelo prado, evitando o longo caminho em volta do Foxcross Corner e, uma vez que estava tão seco, atravessando os carriços mais baixos, Davie tagarelava
com a viva animação que era um traço do seu caráter. Tinha crescido muito ultimamente, parecia alto para 14 anos, e os seus membros tinham a descoordenação da idade
ingrata, fazendo parecer que caminhava aos arrancos. Contudo, a expressão do seu rosto delicado era menos febril do que antes, e os seus ataques, Stephen soubera
de Caroline, eram menos fortes, revelando uma firme mudança na frequência. Ouvindo com simpatia, observando o jogo de luzes sobre aquelas feições bem talhadas, Stephen
estava consciente de uma profunda onda de afeição por seu irmão. Tinham estado juntos quase continuamente durante as últimas duas semanas.
Saindo dos bosques, pularam a grade de ferro que cercava o parque, onde o gado pastava placidamente, e dali a pouco chegaram à avenida que, contornando o jardim
formal que margeava o relvado, acabou levando-os à própria mansão, uma grande edificação vitoriana de arenito vermelho maciço, corrompida por torres e torreões,
que Lady Broughton pretendia ser a casa mais alta de Sussex.
Foi ela quem os recebeu, reclinada numa chaise-longue junto às janelas francesas abertas ao sul da sala de estar, pedindo-lhes que desculpassem a sua aparente indolência
- seu médico andava ridiculamente severo com ela pondo-os imediatamente à vontade com o tranquilo calor da sua acolhida.
- Bem-vindo, Stephen. - Segurando-lhe a mão, olhou-o de alto a baixo.
- Cheio de conhecimento de coisas lindas. Sinto que não tenha uma barba. Acho que Paris fez-lhe bem. Pode beijar-me o pulso como um francês?
- Não estive estudando essa arte.
- Que pena! - sorriu ela. - Não é, Davie?
- Só será uma pena se meu irmão voltar para lá, Lady Broughton.
- Bem dito. Você vê como estamos contentes em tê-lo de volta em casa outra vez, Stephen. Como prova disso, eu lhes darei pães de milho de Sussex no chá. Lembra-se
como gostava deles quando tinha a idade de Davie?
- Lembro-me, e muito! Ainda gosto. E Davie também.
Lady Broughton sorriu, e continuou a caçoar amavelmente. Contudo, ouvindo-a calado, Stephen notava a mudança por que ela passara. Sempre gostara daquela mulher,
baixa, de cores vivas, sem qualquer aparência de distinção, cuja boa e enérgica natureza e sólido bom senso transpareciam em todas as suas ações. E agora causava-lhe
mágoa aquela atitude passiva, aquela respiração rápida, o leve tom purpurino em suas faces sempre vívidas.
- Claire deve chegar logo - disse ela. - Atrevo-me a dizer que ela fará a sua entrada com uma cesta de rosas, como algo pintado por Gainsborough.
Quase como dissera a mãe, Claire entrou, não do jardim, nem com flores, de cabeça descoberta, não parecendo um Gainsborough mas antes um
Burne-Jones, no seu vestido de linho de corte quadrado no pescoço, de uma cor de burel que combinava com os seus cabelos vermelho-dourados. Embora tivesse sem dúvida
esquecido, Stephen disse imediatamente que ela condizia com aquela rica sombra pré-rafaelita.
A sua postura era admirável. Ninguém teria adivinhado quão rápido batia o seu coração, ou há quanto tempo ela esperava por este momento.
- Claire - fez Stephen dirigindo-se para ela.
- É tão bom ver você - disse ela. - E você, Davie.
Esperava que a ligeira cor que sentia subir-lhe às faces passasse despercebida. Vê-lo outra vez, sentir o contato dos seus dedos punham a sua compostura à prova
mais do que ela poderia esperar.
Nesse momento, foi servido o chá, não um repasto frugal de biscoitos e pão fino e manteiga, mas uma regular fartura colegial de ovos cozidos e pão de minuto, sanduíches
e pãezinhos de milho, com morangos e nata batida à Sussex, tudo disposto sobre uma mesa de pau-cetim com rodas.
- Achamos que você estaria com fome depois da pescaria - disse Claire a Davie.
- E estamos - concordou ele com entusiasmo. - Nosso lanche não foi grande coisa.
Segurou a xícara que Claire enchera e, polidamente, embora com certa ternura, levou-a a Lady Broughton antes de sentar-se.
- Obrigada, Davie. - Rompendo o ligeiro constrangimento, comentou, na sua maneira arreliante: - Claire, não acha que Stephen está com o ar de um parisiense?
- Está mais magro, talvez. - Que estúpida resposta! Mas ele estava em casa - e a inquietante doçura desse pensamento banhava de luz os seus olhos.
- Não acho que a comida francesa seja muito nutritiva - arriscou Davie seriamente. - Eu pelo menos não quero caracóis nem pernas de rã, ou coisas assim.
Todos riram-se, e depois que eram um alegre bando, Davie, como para provar a virtude da dieta anglo-saxã, empenhou-se numa viva discussão com Claire sobre os métodos
de apanhar lúcios, no fim da qual ambos concordaram que num dia como aquele uma isca artificial seria muito melhor que um barrigudinho prateado.
- Acho que há algumas dessas iscas no salão de bilhar - disse Claire, e após um momento de reflexão ajuntou: - Não gostaria de tê-las?
- Ora, ora... - murmurou Davie. - Mas não são para você? Quero dizer... está falando sério?
- Estou sim. Ninguém as usa. Venha comigo e daremos uma olhada. Perguntando se poderia ser desculpado, Davie levantou-se com alacridade e abriu a porta para Claire.
Saíram juntos.
Logo depois, Lady Broughton olhou meditativamente para Stephen, de quem ela sinceramente sempre gostara e por quem, na verdade, tinha admiração. O fato de ele ter
deixado a Igreja absolutamente não a perturbava - com uma natureza tão sensível, apaixonada e tímida, ela não o considerava talhado para ser um pastor rural. Nem
as suas recentes aventuras artísticas lhe causaram grande inquietação. Encarava-as apenas como um capricho passageiro, uma tendência temporária herdada sem dúvida
das excentricidades do lado materno - estava bem lembrada de como, quando era criança, ficara petrificada pelas coloridas extravagâncias do digno pai da Sra. Desmonde
- e que de modo algum diminuíam a finura essencial do caráter de Stephen. Contudo, era menos esta genuína atenção do que o seu conhecimento dos sentimentos de Claire
que a fazia desejar dizer alguma coisa compatível com a boa educação que pudesse trazer o assunto à baila. Naqueles últimos meses, tinha observado com simpatia a
indiferença e desatenção da sua filha, e notado também, não sem desconfiança, os seus esforços ocasionais para romper aquela disposição pensativa e achar distração
em atividades que lhe eram inteiramente alheias. Recentemente, Geoffrey Desmonde tinha sido um visitante persistente, e, quando menos pela maneira com que arrastava
as suas frases, Lady Broughtpn o detestava. Considerava-o estereotipado e banal, afetado, presumido e mimado; e tendo sido casada com um homem cuja pesada obtusidade
tinha feito da sua vida, por mais de 20 anos, uma penitência, não desejava semelhante destino para Claire.
Foi sem dúvida essa ordem de ideias que a levou a observar:
- Não tinha visto a sua prima desde que voltou?
- Não. Todo o pessoal do Simla parece estar na Escócia.
- Geoffrey tem dado muitos tiros por aqui.
- Ele gosta disso. Tem caçado?
- Claire e ele têm corrido bastante pelos Downs. Andam Juntos muitas vezes. Acho que a levou a Brooklands outro dia... para as corridas de automóveis.
- Não sabia que Claire se interessava por tais coisas.
- Não acho que ela se interesse... mas não fica bem recusar - disse Lady Broughton sorrindo.
Na pausa que se seguiu, inclinou-se ligeiramente para ele e continuou num tom que, embora confidencial, manteve deliberadamente casual.
- Preocupo-me um pouco com ela, Stephen. É uma pessoa tão quieta e introspectiva, se quiser - amiga, mas que não sabe fazer amigos. Para estar contente, ela precisa
do tipo certo de companhia - ou vou mais adiante e digo - o tipo certo de marido? Não preciso lhe dizer que não estarei aqui para sempre. Muito em breve, Claire
pode ficar só. E embora ela ame este lugar, são muitas as responsabilidades - que pode achar difícil assumir...
Não dissera nada de definido, nada que pudesse de qualquer modo embaraçá-lo, contudo não havia como se enganar quanto à sua intenção. Na verdade, antes que ele pudesse
falar, ela prosseguiu, colocando os dedos de veias ligeiramente inchadas no seu ombro.
- Acho que foi sensato passar aquela temporada em Paris. E o seu excelentíssimo pai foi sensato em deixá-lo ir. Nos meus dias, os jovens sempre faziam a grande excursão.
Isso não apenas era considerado uma necessidade virtual, mas tirava muitas coisas do seu sistema. Eles voltavam, estabeleciam-se como bons proprietários rurais e
constituíam uma família. Isso é precisamente o que você deve fazer, Stephen.
- Mas supondo... - Ele evitava o seu olhar, com uma ligeira cor nas faces. - Supondo que sinta que devo ir ao estrangeiro outra vez?
-Para quê?
- Para continuar a estudar... e trabalhar.
- Em quê?
- Pintura.
Ela abanou a cabeça e deu-lhe uma indulgente palmadinha na mão.
- Meu caro rapaz, quando eu era jovem e romântica, pensava que poderia escrever poesia, e escrevi, para minha vergonha. Todavia, livrei-me disso. E assim será com
você.
O argumento parecia conclusivo, e ela acomodou-se na sua almofada. Antes que Stephen pudesse responder, Davie entrou na sala com Claire, trazendo uma caixa de metal
laqueado.
- Veja, Stephen, o que Claire me deu. Todas estas belas iscas. Até giradores e bóias. E esta caixa impermeável.
- Não se esqueça - sorriu Claire - que eu espero muitos peixes.
- Agora vai ser fácil. Eu gostaria que a escola não reabrisse tão cedo.
- O inverno não é a melhor época para o lúcio?
- É, sim. E eu estarei à espera dos feriados de Natal.
- Bem, lembre-se de vir tomar chá sempre que estivermos em Chillingham.
Stephen levantou-se, preparando-se para se despedir, tocado pela bondade de Claire com Davie, por sua quieta amabilidade, aparente, mesmo com o seu ar reservado,
em cada palavra ou gesto. Os últimos lampejos da tarde douravam o comprido salão com suas colunas, não belo, mas acolhedor, encantador, com o sentimento de uma velha
casa de campo. Além das janelas, os escuros relvados mas ainda visíveis, sombreados pelo grande cedro, os bosques de faias com os telhados vermelhos das choupanas,
lá no alto, e mais longe, ondeando como o mar, os verdes Downs.
A caminho de casa, Davie achou o seu irmão estranhamente silencioso. Depois de relancear os olhos para ele uma ou duas vezes, disse:
- É formidável no Court. Você não deseja ir lá mais vezes?
Mas Stephen não respondeu.
CAPÍTULO XI
NA TERÇA-FEIRA SEGUINTE, o almoço na Reitoria estava quase terminado. Tinha sido uma refeição um tanto opressiva para Davie, já formalmente vestido, que devia voltar
à escola nessa tarde. Contudo, olhando em torno, Stephen sentia uma tensão maior do que a exigida pela ocasião, um ar geral de conspiração e expectativa. Sentia
também uma intensificação daquela intangível coerção, que, disfarçada em uma nuvem de afeição, vinha envolvendo-o de quando em quando durante as últimas duas semanas.
O Reitor, que já tinha consultado o relógio três vezes nos últimos cinco minutos, tornou a fazê-lo, terminou o seu café e, sem fitar ninguém em particular, disse:
- Acontece que o Sr. Munsey Peters está nas vizinhanças. Infelizmente não pôde vir almoçar. Mas eu o convidei a vir pouco depois.
- Que interessante, papai - murmurou Caroline, com os olhos no prato.
- Está se referindo - perguntou a Sra. Desmonde no tom de quem fora instruída a perguntar - a Munsey Peters?
- Isso mesmo. Conhece o Sr. Peters, Stephen? - Inatento, cortando uma careta numa casca de laranja para Davie, Stephen levantou os olhos, certo de que seu pai se
dirigira a ele.
- Sim, é membro da Academia Real.
Houve uma pausa. Contido, com a expressão subitamente fixa, Stephen esperava que Bertram caísse na armadilha.
- Achamos que ele podia ter vontade de olhar os seus quadros.
Houve outro silêncio, que Caroline se apressou em romper, com um ar de inteligência.
- Não é ótimo, Stephen? Agora você pode se valer do conselho dele.
- Acredito - disse a Sra. Desmonde - se a memória não me falha, que há uma paisagem de Peters no Salão Pump, em Cheltenham. Está pendurada sobre a Fonte de Chalybeate.
Uma vista das colinas de Malvern com uma ovelha. Cheia de vida.
- Ele está na primeira fila - concordou Bertram.
- Não há também um livro, papai - interpôs Caroline - algo como De Rafael a Reynolds, ou coisa parecida?
- Ele escreveu muitos livros sobre arte. O mais conhecido intitula-se A Arte pela Arte.
- Devo procurá-lo na biblioteca - murmurou Caroline.
- Você não se importa se mostrarmos a ele as suas pinturas? - O Reitor voltou-se para o filho com uma nova firmeza. - Desde que se apresentou a oportunidade, seria
sensato pedir-lhe a opinião.
Stephen empalidecera. Não respondeu por um momento.
- Mostre-lhe qualquer coisa que quiser. Sua opinião não tem nenhum valor.
- O quê? Munsey Peters é um académico famoso. Exibe regularmente há 15 anos.
- Que significa isso? Não posso imaginar nada mais mortal, mais vulgar e idiota do que as suas pinturas.
Bruscamente Stephen rompeu o seu silêncio, sentindo que o julgariam invejoso e com medo. Então, ao voltar-se, ouviu um som de rodas e, pela janela, viu um cabriolé
de aluguel chegando à porta da frente. Um homem baixo, tornado mais baixo por um vasto sombrero preto e uma capa preta do Inverness, desceu rápido do cabriolé, olhou
em volta e tocou a sineta. Bertram levantou-se e, acompanhado pela mulher e Caroline, foi a saguão. Stephen permaneceu sentado à mesa, vendo muito bem que tudo aquilo
fora arranjado - ele tinha vindo especialmente de Londres. A julgar por suas roupas, Peters não estava absolutamente visitando o campo - tinha vindo expressamente
de Londres, mas fora comissionado, sem dúvida por tal ou qual preço - vinha especialmente de Londres como um cirurgião chamado à cabeceira de uma pessoa gravemente
enferma, cujo diagnóstico era uma questão de vida ou morte.
Um toque tranquilizador no ombro acordou-o. Era Davie.
- Não é melhor irmos agora? Não se aborreça, Stephen, aposto que você vai sair por cima.
Na sala de estar, construída originalmente como um parlatório retangular e posteriormente afeada por janelas de sacadas vitorianas abertas ao lado oeste, Munsey
Peters estava sentado no sofá, gorducho, de cara lisa, solicitamente oficioso, já no centro de uma plateia inteligente.
Quando Stephen entrou, girou e estendeu-lhe uma mão amável.
- Então este é o seu jovem cavalheiro? Prazer em conhecê-lo, senhor. Stephen apertou-lhe a mão, dizendo a si mesmo, apesar do conflito de emoções no seu peito, que
não devia ter ódio àquele visitante indesejável, que sem dúvida era uma pessoa honesta e estimável, agindo de boa fé. Contudo, conhecendo o trabalho de Peters, que
sempre recebia destaque na imprensa e
muitas vezes era reproduzido nos melhores semanários, aquelas suas paisagens lanudas e interiores betuminosos, tresandando a sentimentalismo e cheios daquele claro-escuro
que Glyn tinha profanamente descrito como siena queimada e merde, Stephen não podia reprimir uma aversão instintiva, aumentada e não diminuída por aquele homenzinho
de aparência presumida e maneiras seguras, que, embora um tanto menos que assertivo, estava odiosamente satisfeito consigo mesmo. Recusara o almoço, tendo "satisfeito
o homem interior"
- suas próprias palavras - no vagão-restaurante que sempre acompanhava o expresso do meio-dia, mas, diante da insistência, consentiu em tomar café. E, balançando
a xícara nos joelhos, de pernas cruzadas, sapatos com polainas, dirigiu a Stephen uma série de perguntas agradáveis, exatamente como faria um notável académico para
deixar um neófito nervoso.
- Então esteve em Parri, hein?
- Sim. Pouco menos de um ano.
- Trabalhando duramente, espero, na cidade alegre. - Isto, com um olhar de humor velado para os outros; então, como Stephen não respondesse:
- Com quem estudou?
- No começo... com Dupret.
- Ah! E que pensa ele do amigo?
- - Eu realmente não sei. Deixei-o depois de poucas semanas.
- Hum! Hum! Isso foi um engano. - E, num tom intrigado: - Quer dizer que ficou a maior parte do tempo por sua própria conta? Não pode ter aproveitado muito dessa
maneira.
- Ao menos aprendi o quanto a força de vontade, a disciplina e a intensa aplicação são necessárias para fazer um bom artista.
- Ora! Isso é muito fino. Mas, e o aprendizado?
A frieza da voz de Stephen era provocante.
- Há certos elementos essenciais. Já os acentuei muitas vezes no meu livro. Ouso dizer que ele fez parte do seu estudo.
- Receio que não. Estive estudando no Louvre.
- Oh, copiando - exclamou Peters contrariado. - Isso não é bom. Um artista procura ser original acima de tudo.
- Contudo, todos os grandes artistas influenciaram uns aos outros - argumentou Stephen diretamente. - Rafael provém de Perugino, El Greco de Tintoretto, Manet de
Franz Hals. Todos os pós-impressionistas se ajudaram uns aos outros. A lista seria interminável. Porque, se me perdoa, vemos no seu próprio trabalho Leighton e Poynter.
A menção desses dois artistas, tão famosos na época vitoriana e agora esquecidos, trouxe ao rosto de Munsey Peters uma expressão confusa, como se mal pudesse saber
se a intenção era de louvor ou insulto.
A Sra. Desmonde, sempre diplomática, rompeu o silêncio.
- Deixe-me oferecer-lhe mais café.
- Não, obrigado - e devolveu-lhe a xícara. - Na verdade, tenho pressa, deixei o meu veículo à espera. Podemos entrar no assunto sério do dia?
- Com muito gosto. - Bertram, um apreensivo observador daquele choque de temperamentos, fez um sinal a Davie, que deixou a sala num pulo. Quase imediatamente voltou,
trazendo o primeiro quadro, uma vista do Sena em Passy, que colocou sobre uma cadeira de alto espaldar posta adrede em boa luz e diante do sofá.
Impondo silêncio com um dedo nos lábios, Munsey Peters ajustou o pincenê. Estudou a pintura intensa e longamente, inclinou a cabeça em vários ângulos; então, dramaticamente
fez um gesto para Davie, que a retirou, colocou-a junto à janela e trouxe a seguinte. Para Stephen, parado lá atrás com uma expressão insensível e um latejar doloroso
no coração, era uma experiência martirizante, uma crua exposição da sua delicada sensibilidade.
Olhou em torno para o círculo doméstico - o pai, sentado, muito teso, com as pontas dos dedos fortemente unidas, as pernas cruzadas, um pé balançando em nervosa
expectativa; Caroline, na banqueta junto ao sofá, com uma ruga de ansiedade na testa, olhando para Peters, ora para o chão; sua mãe, sonhadoramente confortável numa
poltrona, de todo indiferente; e Davie, no colarinho branco engomado e roupa cinza-escura do colégio, o cabelo penteado para trás, olhos brilhantes, sem compreender
bem a questão, e contudo cheio de confiança em que seu irmão seria justificado.
Acabou-se afinal, a última pintura fora mostrada.
- Então? - exclamou Bertram.
Munsey Peters não respondeu imediatamente, mas, erguendo-se, fez uma nova inspeção nos quadros contra o peitoril oval da janela da sacada, como para afastar qualquer
impressão de que o seu julgamento era apressado ou inconsiderado. Uma tela em particular, a mulher com as suas roupas brancas, parecia perturbá-lo de modo especial;
vez por outra, quase furtivamente, os seus olhos voltavam àqueles ousados contrastes e cores vivas. Por fim, deixou cair o pincenê, seguro por uma fita de seda lavada,
e tomou posição no tapete da lareira.
- Que deseja que eu lhe diga?
- Meu filho tem... - Bertram respirou fundo - alguma chance de se tornar um pintor... posso dizer... de primeira categoria?
- Nenhuma.
Fez-se um silêncio mortal. Impulsivamente, Caroline lançou um olhar de simpatia para o irmão. O Reitor curvou a cabeça. Stephen, com a sombra de um sorriso, continuou
a olhar diretamente para Munsey Peters.
- Naturalmente - continuou ele - eu poderia ser polido. Mas entendi que o senhor queria a verdade. E nessas telas, que têm talvez um certo brio
rude, ignoram completamente as grandes tradições da pintura, tradições de propriedade e restrição, só posso encontrar... - encolheu os ombros - matéria para condolência
e pesar.
- Então - disse Bertram lentamente, como se estivesse determinado a se convencer - se forem, digamos, submetidas à Academia, acha que seriam recusadas?
- Meu caro senhor, como membro da comissão de exposição, não sei, não estou seguro. Acredite-me, dói-me extinguir as suas esperanças. Se o seu filho quiser continuar
isto como um passatempo... um hobby... isso é com ele. Mas profissionalmente... ah, meu caro senhor, a pintura é, para todos nós que vivemos dela, uma arte cruel.
Não há lugar para fracassos.
Bertram lançou um olhar cheio de compaixão para o filho, como esperando que ele protestasse, ao menos oferecesse alguma defesa do seu trabalho. Mas Stephen, com
a mesma sombra de um sorriso, e aquele ar de orgulhosa indiferença, mantinha-se calado.
- E agora, se me desculparem - disse Peters, curvando-se.
O Reitor pôs-se de pé.
- Estamos muito agradecidos ao senhor... mesmo que o seu veredicto tenha sido desfavorável.
Munsey Peters curvou-se novamente e, ao deixar a sala com modos graves e polidos, aceitou prestemente o envelope que Bertram, após murmurar umas palavras de escusas,
escorregou-lhe na mão - uma transação efetuada com tamanha destreza que ninguém pareceu notá-la, a não ser Stephen. Dali a pouco se ouviu o rangido do cabriolé.
O professor tinha partido.
Como se para poupar os outros, mais do que a si mesmo, do embaraço, Stephen foi para fora. Ali, andando de cá para lá, de cabeça descoberta, estava o Reitor. Tomou
imediatamente o braço do filho, com um aperto de simpatia, e, após atravessar as lajes, observou várias vezes:
- Tenho que ir à sacristia. Quer caminhar comigo?
Ao subirem juntos a alameda, Bertram continuou, sombriamente, sem um indício de autojustificação.
- Stephen, essa foi uma experiência dolorosa para você, e, em grau nSo menor, para todos nós. Mas era imperativo para mim saber a verdade. Espero que não me reprove.
- Claro que não. - A voz calma do filho causou a Bertram uma viva surpresa, seguida por um sentimento de oposição.
- Você aceitou a coisa muito bem, Stephen - como um verdadeiro Desmonde. Eu temia que pudesse ficar encolerizado comigo por lhe ter imposto esse teste sem aviso.
Mas se eu lhe tivesse dito de antemão, você poderia ter recusado...
- Sim, acho que recusaria.
- Você percebe que não foi questão de influência indevida, que a opinião de Munsey Peters foi inteiramente dele?
- Estou certo disso. Acho até que o nosso pequeno argumento no começo eriçou ligeiramente a sua plumagem. Mas não há sombra de dúvida - ele detestou a minha pintura
como veneno.
- Ah! - murmurou o Reitor condoído. - Pobre rapaz.
Chegaram à igreja; detendo-se na cancela, Bertram pousou a mão na efígie do cruzado, um gesto costumeiro de apoio, e encarou o filho.
- Pelo menos o caminho agora está claro... e não há nada contra o seu regresso para ser ordenado. Não quero pressioná-lo. Há a toga, os serviços militares. Contudo
- olhou em torno - o seu lugar é aqui, Stephen.
Uma pausa quase imperceptível.
- Acho que não compreende. Não vou abandonar a pintura.
- Mas que diabo quer dizer?
- Simplesmente que tomei uma resolução, irrevogável, que vou dedicar a minha vida inteiramente à arte.
- Mas você acaba de ter uma opinião... com mil diabos... de um perito.
- Essa nulidade idiota... roída por um rancor secreto! O fato de ele ter difamado o meu trabalho foi o maior cumprimento que podia me fazer.
- Você está louco? - Cólera e desalento levaram o sangue à testa de Bertram. - Ele é um dos melhores pintores da Inglaterra e pode vir a ser o próximo presidente
da Academia.
- O senhor não compreende, papai. - A despeito da tensão das suas feições, Stephen quase sorriu. - Peters não pinta coisa nenhuma. O seu trabalho é convencional,
sentimental, e sem um traço de originalidade. O sucesso dele é o de uma mediocridade intrometida. Ora, até as tapeações do velho Dupret, com a sua peinture léchée,
são mais toleráveis. O senhor não sentiu nojo dos seus chavões, sua afetação, suas mãos gordinhas? Ele marcha com o rebanho. O verdadeiro artista só pode cumprir
o seu destino sozinho.
Durante esse discurso, que lhe pareceu bombástico, o rosto de Bertram foi gradualmente endurecendo. Empedernia-se contra a dor que sentia no peito, e um imenso desejo
de tomar o filho nos braços.
- Para qualquer pessoa normal, a evidência é clara. Você deve aceitá-la.
- Não.
- Insisto.
- Tenho o direito de viver a minha própria vida.
- Não, se está disposto a arruiná-la.
Nenhum deles levantou a voz. O Reitor estava muito pálido, mas os seus olhos nunca se afastaram do rosto do filho. Por baixo de sua agitação havia uma firmeza que
Stephen nunca tinha visto.
- Por simples justiça, você não me deve alguma retribuição por tudo que tenho feito por você? Sem dúvida, você afeta desprezar uma coisa tão sórdida como o dinheiro.
Contudo, gastei na sua educação - a mais primorosa que qualquer filho podia desejar - um capital que eu mal podia despender. Estamos muito menos bem do que estávamos,
e é com dificuldade que mantenho Stillwater nos padrões a que estamos acostumados. Sempre esperei que esta medida não fosse necessária. No entanto, para seu próprio
bem, devo repô-lo no seu juízo. Sua pensão está suspensa. E você verá que é impossível continuar sem ela.
Um compasso de silêncio latejou na pequena igreja. Stephen baixou os olhos, deteve-os por um longo momento na efígie de pedra do seu ancestral que, à meia-luz, parecia
sorrir-lhe cinicamente. Olhando para a espada, os grandes guantes de malha, uma frase das leituras da sua infância lhe veio à memória: mão de ferro em luva de veludo.
E suspirou:
- Bem, papai, isso parece resolver a questão.
Bertram apanhou o seu diário na sacristia - a mão lhe tremia tanto que mal podia segurar o grosso volume, sendo obrigado a apertá-lo Contra o flanco. Deixaram a
igreja em silêncio.
Pelo resto da tarde, Stephen foi um modelo de complacência, animando os outros com a sua vivacidade e bom humor. Às seis horas, insistiu em ir com Davie à estação
e embarcou-o no trem, despachando-o com alegre afeição. Depois, voltando, com uma expressão diferente, foi à fila de veículos, onde um motorista estava com a sua
bagagem, secretamente introduzida na de Davie. No horário colado na frente do guichê, viu que um trem costeiro partia dentro de uma hora. Comprou uma passagem e
sentou-se à espera dele.
CONTINUA
A TARDE MUDARA EM NOITE, e todo ímpeto e atividade dos Downs jaziam quedos, banhados em luz pérola. A relva seca, prateada como geada, soltava um vapor esgarçado que se prendia nas sebes como teias de aranha. As poças de orvalho, pires de leite desnatado, não refletiam a imagem de uma lua amarelenta que mirava, redonda e baixa, como o olho de um grande gato, agachado na colina, pronto para saltar.
Nessa quietude brilhante, de uma igreja normanda de pedra tão pequena que parecia perdida numa dobra do descampado - apesar dos nítidos contornos das suas linhas longas e breves, da sua torre achaparrada, de suas chagosas paredes inclinadas - inverossímil como um sonho, emergiu uma sombra, comprida e escura, à qual se seguiram um baque de carvalho e o tinido de um pesado ferrolho, a figura de um homem, menos comprido talvez, mas igualmente sombrio. Muito apropriadamente, um clérigo, Bertram
Desmonde, Reitor de Stillwater.
https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/MAIS_FORTE_QUE_O_AMOR.jpg
De cabeça nua, mas com uma capa sobre os ombros, enfiou pela confusão de lápides cobertas de liquens, passou os dois grandes teixos retorcidos, dos quais o mais
novo tinha sem dúvida fornecido arcos para os arqueiros de Sussex pelo menos durante cinco séculos, e depois atravessou a cancela para a azinhaga.
Aqui, apanhado pela brancura da noite, por um ímpeto da sua secreta alegria, fez uma pausa e, por um longo instante, aspirou a beleza da sua gleba, uns bons 100
acres, indo por um lado até os altos do bosque de faias de Ditchley, e pelo outro até a coutada de tojo arenoso que beirava a estrada para Stillwater. Na distância,
o Anel de Chanctonbury era visível contra o céu oriental, e mais abaixo, por entre árvores, o absurdo mas amigo torreão de Broughton Court. Para oeste, a planura
continuava, cortada por uma caleira
- ferida incruenta - por túmulos tidos como romanos, mas provavelmente restos de antigos fornos de ladrilhos. Vinham então as choças dos trabalhadores, seis, em
fila, como cogumelos, e frouxamente, acima da orla da estrada, o bruxuleio da aldeia. Abaixo dele, brilhante de luzes, a Reitoria.
Solidamente georgiana, com janelas paládicas, um espaçoso pórtico sustentado por colunas acanaladas e - delicioso pensamento! - uma balaustrada na cimalha, era uma
verdadeira casa de campo, construída pelo seu bisavô, Canon Hilary Desmonde, em 1780, em pedra branca dali mesmo - a pedreira, bem perto, estava agora felizmente
coberta pela vegetação. Traços de um Tudor primitivo ainda persistiam no celeiro e estábulos de tijolos, nos anexos da fazenda, no delicado muro de sílex e nos seixos
redondos que cercavam a ampla horta. Envolvida por relvados macios, orlados de canteiros de tulipas e prímulas, o jardim de roseiras, ainda não desperto, formando
um hexágono em torno do relógio de sol, cordões de rosas Ribston e Beauty of the Bath, com as suas soprepelizes de flores, como chantres, ao longo do prado do sul,
uma gigantesca azinheira sombreando a trilha ensaibrada, essa casa, esse pequeno abrigo de casca dourada, enraizado e imutável, seu lar, lar dos Desmondes por tantos
anos, especialmente esta noite aquecia de orgulho o coração do Reitor.
Quase certamente eles tinham vindo com o Conquistador. Um deles, o Sieur d'Esmonde, que estivera nas Cruzadas, jazia sob a sua efígie de mármore, com seu curvo nariz
quebrado, ai!, por algum turista vandálico, na pequena igreja de Downland. Se o nome tinha sido um tanto alterado pelo uso rústico - não se poderia aplicar a palavra
corrompido - ele não os identificava de modo mais completo com a boa terra de Sussex? Eles tinham prestado bons serviços à sua pátria nas três profissões abertas
para um cavalheiro: na Igreja particularmente, mas também na Justiça e no Exército. Seu irmão Hubert, após um longo e útil trabalho nas fronteiras do Afeganistão,
estava agora parcialmente aposentado em Simla Lodge, a cerca de 25 quilómetros, com o posto de general, e ainda em contato com o Ministério da Guerra, devotando
o seu lazer à cultura científica da pêra Jargonelle. Somente uma ocasião, até onde alcançava a memória, a família descera ao comércio: quando, no início do reinado
de Victoria, um Joseph Desmonde, tio-avô do Reitor, ocupara-se com a manufatura de objetos eclesiásticos. Mas como o negócio tinha certo sabor de discrição, trazendo-lhe
ainda uma considerável fortuna, o lapso, embora lamentável, era menos difícil de perdoar.
- Uma bela noite para o senhor, Reverendo.
Nas profundezas do seu devaneio, o Reitor deixara de notar a figura troncuda do velho Mould, seu jardineiro-chefe, que era também o seu sacristão, manquejando trilha
acima para fechar a igreja.
- Boa noite, Mould. Já a fechei, você pode voltar comigo. - Fez uma www.pausa, não revelando o impulso que, contra o seu hábito, o tinha levado à igreja; contudo,
estimulado pela alegria, acrescentou: - Stephen volta para casa esta noite, como sabe.
- E como é que eu ia esquecer isso, senhor? Uma notícia muito boa mesmo. Espero que ele tenha tempo de ir caçar coelhos comigo. E acrescentou mais gravemente: -
Nós logo o teremos no púlpito, quem sabe.
- Ele ainda tem algum caminho para andar, Mould. - Ao descerem a trilha juntos, Bertram sorria. - Embora eu me atreva a dizer que vocês gostariam mais de ouvir um
jovem recém-saído de Oxford do que um velho caturra como eu.
- Não, meu Pastor, não deve dizer uma coisa dessas. Não servi os Desmondes durante 50 anos para agora ignorar a sua qualidade. E pode pregar quem quiser pregar,
que não há ninguém melhor no país.
Bastava apenas essa tocante prova de lealdade quase feudal para selar a disposição do Reitor. O denso perfume das prímulas era, de certo modo, mais doce, os agudos
balidos noturnos dos cordeiros, atrás da cerca de varas, tão enternecedores que quase causavam um aperto no coração. Ah, esta Inglaterra, pensou ele: e aqui, no
seu próprio coração, preciosa como uma jóia, navegando ao luar como um navio de almas, esta pequena paróquia que seria de Stephen também, inviolada, intemporal e
imutável como a eternidade.
- Vamos precisar de alguém para a bagagem. Mande Albert ficar por perto.
- Farei isso, senhor... se ele estiver em casa. Estou tendo dificuldades com esse meu rapaz. Ele não gosta de trabalho. Mas eu dobro ele a pau... prometo.
- com o tempo, ele será um bom rapaz, Mould. Não seja duro com ele - disse Bertram, num tom neutro.
Despediu o velho diante da sua casa, baixa, de paredes curvas na frente, e momentos depois estava na larga entrada do saguão da Reitoria, entregando a capa à sua
filha Caroline, que, inevitavelmente, ali estava para recebê-lo.
- Ainda não chegaram?
Esfregou as mãos: o saguão tinha o defeito do seu teto alto e soalho de mosaico - dava uma sensação de frio da noite, mal atenuado pelo rumor dos tubos de calefação.
- Não, papai. Mas não devem demorar. Claire foi à estação no seu automóvel novo.
- Devemos comprar uma dessas engenhocas. - O reflexo de um capricho aliviou momentaneamente a austeridade das feições delgadas de Bertram e das faces um tanto encovadas.
- Será útil para visitar a paróquia.
- O senhor não está falando sério, papai. - A sua mentalidade prática, despida de humor, tomava-o literalmente. - Sabe o quanto detesta cheiros e poeira. E eu não
o sirvo bastante bem com o tílburi?
Sem dúvida, a iminência do regresso de Stephen a deixava nervosa. Assim, falara com mais vigor do que pretendia, com o seu rosto liso e sério brilhando de sentimento.
E em verdade, antes que ela o pudesse lamentar, a expressão ausente do pai, que, com o ouvido atento, esperava o ruído das rodas na alameda, puniu-a severamente.
Ela baixou os olhos, e seu corpo pesado, sustentado por duas robustas panturrilhas, diminuiu um pouco. Quando é que ele ia apreciar a profundeza ilimitada da sua
devoção, compreender que o seu único desejo era servi-lo? desde o exato momento em que começava o seu dia, depois de vestir-se às pressas, sem o benefício de um
espelho, ombreava com a carga da sua casa, conferenciava com a cozinheira sobre como ele seria alimentado, arranjava as flores, inspecionava o jardim e a granja,
tratava da sua correspondência, atendia visitantes importunos, via paroquianos doentes, desencorajava arqueólogos, juntamente com as carruagens que vinham aos domingos
e feriados cheias de gente, pedindo em coro para ver a "tumba", e ainda achava tempo para cuidar do seu linho e tricotar as suas meias de lã. E, para piorar as coisas,
estava resfriada e a toda hora tinha que assoar o nariz num lenço ensopado.
- Sua mãe vem? - Fez a pergunta com cautela.
- Acho que não. Esta tarde molhei a sua testa com água-de-colônia. Mas ela ainda se sente indisposta.
- Então seremos quatro para o jantar.
- Três. Claire telefonou para dizer que sente muito, muito, mas não poderá ficar.
- Que pena. Mas... haverá outros dias.
Seu tom de voz exprimia tristeza; contudo, ela percebeu que, a despeito da sua alta consideração por Claire, filha de Lady Broughton, da vizinha Court, e da sua
cálida aprovação do entendimento tácito existente entre ela e o seu filho mais velho, no fundo estava feliz nesta noite de reunião por ter Stephen inteiramente para
si.
Com esforço, ela conseguiu manter o tom sereno.
- Ainda não terminei de datilografar todas as suas notas para a convocação de amanhã. Quando partirá para Charminster?
- Oh, depois do almoço, suponho. O Deão raramente é pontual.
- Duas horas então. Eu o levo. - Subitamente, com ciúmes brilhando nos olhos, ajuntou: - O senhor parece cansado, papai. E terá um dia cheio amanhã. Não deixe Stephen
retê-lo até muito tarde.
- Não se inquiete, Caroline. E, a propósito, espero que nos apresente um bom jantar.
- Temos sopa hindu com caril e salmão que o tio Hubert nos mandou de Test, com pepino e molho verde, é claro, e depois um lombo de cordeiro com ervilhas da nossa
horta e batatas novas. Para sobremesa, Beasley fez aquela charlotte de maçã que Stephen tanto adora.
- Ah, sim, minha querida. Lembro que ele sempre a pedia ao voltar de Marlborough para casa. Mas, espere, não é o ruído de um motor?
De fato, ouvia-se um som fraco mas rítmico; avançando para a porta, ele a abriu, deixando ver um pequeno cupê de Dion, ativo e trepidante, do
qual, cessada a agitação por meio de alguma engenhosidade, emergiram duas figuras.
- Stephen!
- Como está, papai... e você, Caroline? Davie não está?
- Ainda não... ele terá licença na próxima segunda-feira.
O arco de luz do pórtico mostrou uma figura franzina de estatura abaixo de mediana, vestida de preto e forcejando com uma valise de couro - o rapaz de Mould não
aparecera - um relance, também, de feições finamente cinzeladas, narinas sensíveis, e um rosto estreito, pensativo, e um tanto sério. Então veio, com discrição,
deixando que as saudações familiares cessassem, uma jovem alta de mãos enluvadas e um comprido casaco de tweed. Seu boné de dirigir, com um véu pendente, absurdamente
como um bolo de cevada, usado apenas em deferência às instâncias maternas, não podia destruir o seu ar de tranquila compostura, uma inescapável sensação de boa educação,
confirmada por sua voz ao se reunir ao pequeno grupo.
- Lamento termos deixado atrás alguma bagagem. Minha baratinha não tem espaço para malas.
- Não se preocupe, querida Claire. Amanhã mandaremos buscá-la. O Reitor tomou-lhe o braço num gesto quase paternal. - Mas você não pode ficar conosco agora?
- Gostaria muito. Mas mamãe espera gente da aldeia... uma comissão de agricultores... arrendatários... que não podem ser despachados.
- Ah, sim! As obrigações da senhora de um proprietário rural. Não está uma linda noite?
- Perfeita. Ao passarmos por Halborough, estava claro como dia... Ela voltou a cabeça, um movimento que, dissolvendo a sombra do atroz boné, revelou um perfil puro
e regular. - Não estava linda, Stephen?
Ele ficara em pé, silencioso, num constrangimento de que agora parecia livrar-se com um esforço.
- Foi um belo passeio. - Depois, como se não tivesse dito o bastante, forçando uma frivolidade que lhe era de todo alheia: - Mas em certo ponto acho que devíamos
ter descido e empurrado.
- Em Ambry Hill - riu-se Claire. - Não sou muito entendida nas mudanças. - Seu sorriso demorou-se um instante na obscuridade do pórtico. Mas não devo detê-los. Boa
noite. Venham ver-nos logo... amanhã, se possível. E tenha cuidado com o seu resfriado, Caroline.
Quando ela saiu, Bertram pôs o braço no ombro do filho e levou-o para dentro de casa.
- É bom tê-lo em casa novamente, Stephen. Você não sabe... Ora, bem... como deixou Oxford? E como se sente? Faminto, estou certo. Corra lá em cima para ver sua mãe.
Depois, desça para o jantar.
E enquanto Caroline, com os olhos e nariz vermelhos pelo ar da noite, levantava uma sacola de livros que fora deixada, esquecida, no pórtico, o pai deteve-se um
pouco vendo Stephen subir a escadaria, olhando para cima com uma expressão que, na sua ternura descuidada, era quase um transe.
CAPÍTULO II
APÓS O EXCELENTE JANTAR, bem servido por duas copeiras que, outrora de uma primitiva grosseria de aldeãs, Caroline tinha treinado tão admiravelmente, o Reitor, amolecido,
levou Stephen para o estúdio, onde as cortinas de droguete estavam descidas e ardia um belo fogo de carvão de algas. O aquecimento da Reitoria podia não ser moderno,
mas as lareiras eram amplas e o combustível abundante. E isto se harmonizava com a sala, a despeito dos ornatos moldados, com um tom íntimo e esportivo para amenizar
o ambiente vagamente paroquial, confirmado por uma escrivaninha de tampa corrediça que continha os sermões de Pusey, o Calendário Eclesiástico, e uma estola de púrpura
dobrada. Um par de espreguiçadeiras de couro marrom flanqueava a lareira, contra uma parede estava o armário envidraçado das armas, em outra uma caixa de moedas
saxãs, produto das pesquisas arqueológicas do Reitor, e, acima do consolo da lareira, dois chicotes de cabo de osso cruzavam-se por trás de uma cabeça empalhada
de raposa.
Mais cedo, nessa tarde, preparando-se, Bertram descera ao porão da casa para uma visita à adega, e agora, com um ar ligeiramente consciente, apanhou uma garrafa
empoeirada, que deitara na cestinha, com as pintas de cal para cima, sobre a escrivaninha; tendo imperitamente tirado a rolha em pedaços, serviu dois cálices de
porto. Ele era um homem temperante, que só de raro em raro bebia álcool, e não usava tabaco, mas esta ocasião exigia um registro dentro da verdadeira tradição da
família.
- Seu avô guardou este - observou ele, segurando o cálice de vinho contra a luz e assumindo um ar de crítico. - É um GrahanVs, 1876.
Stephen, que detestava vinho do Porto, fez da sua poltrona um murmúrio de aprovação e levou o cálice aos lábios. Desempenhava, como um ator, o papel que dele se
esperava.
- Parece muito saudável.
A palavra agradou ao Reitor.
- Sim, o seu avô sabia o que estava fazendo. Foi ele que mandou colocar aquelas notáveis manilhas lá embaixo. Elas drenavam o South Meadow, como sabe, em 1878, e
sobrara boa quantidade delas. O velho viu que cada uma podia conter muito bem uma garrafa, e mandou argamassá-las na adega, como perfeitos favos... Naturalmente,
ele não era um grande bebedor. Mas gostava do seu quartilho de clarete após um bom dia com os cães. Deixou-nos, como sabe, quando tinha 70 anos.
- Deve ter sido um grande caráter.
- Era um bom homem. Um verdadeiro cavalheiro inglês do campo.
O Reitor suspirou. - Não se pode desejar um epitáfio mais belo.
- Minha avó também - acudiu Stephen devidamente, porque, desde Oxford, meditando nervosamente enquanto o trem corria pelos prados, pomares e tortuosas regiões, resolvera
ser inteiramente filial. - Ela não ficava muito atrás dele... Mould me contou muitas histórias a seu respeito.
- Ah, sim, ele era muito devotado a ela... como todos os seus serviçais. Mas ela o trazia num pé só. - Um vagaroso sorriso de reminiscência assomou aos olhos de
Bertram. - Você sabe que nos seus últimos anos a velha senhora tornou-se excessivamente gorda. Na verdade, tinha dificuldade em andar, era obrigada a locomover-se
num carrinho, e Mould, e depois o filho do jardineiro, ambos serviam como meio de propulsão. Por mais seis penies semanais. Era uma grande honra. Mas um tanto extenuante,
especialmente quando sua avó desejava ir à aldeia e tinha que ser empurrada durante todo o caminho até Ambry Hill. Num dia quente de verão, quando alcançou o topo
da colina, o jovem Mould parou para enxugar o rosto na manga. Mas ao deixar escapar a cadeira de rodas, lá se foi ela sem ele, aumentando de velocidade, zunindo
colina abaixo e em torno da curva numa velocidade vertiginosa. O coitado do rapaz ficou petrificado. Via-se como o assassino da sua ama. Com um grito de horror,
precipitou-se encosta abaixo. Quando chegou...
Stephen, encolhendo-se, pôs-se a rir; conhecia a anedota de cor.
- ... lá estava a sua avó, calmamente na praça da aldeia, barganhando com o açougueiro as costelas de um cordeiro. - O sorriso de Bertram extinguiu-se. - Era uma
mulher indomável. Imensamente caridosa. E devotada ao meu pai. Morreu somente oito semanas depois dele.
Estaria o Reitor pensando no seu próprio casamento? Lá fora, piou uma coruja. Na copa, no fim do corredor, Caroline estava mexendo em jarras de cerâmica de picles
com uma brusquidão desnecessária. Bertram endireitou-se e bebericou o seu porto, consciente de que devia quebrar o silêncio antes que houvesse um constrangimento
entre ele e Stephen. Como era estranho terem um grande carinho, e, contudo, uma sensação desse embaraço perseguir as suas relações sempre que ficavam a sós. Seria
porque ele se preocupava demasiado? Nunca tinha sentido essa falta de naturalidade na companhia dos
seus dois outros filhos. Naturalmente, ele gostava de Caroline, aceitava aquela sua fortaleza, considerava-a uma "grande presença". Mas a sua domesticidade, conservando-a
uma perpétua solteirona, chocava inconscientemente o seu senso de orgulho de família. Quanto a David, seu filho mais moço, agora com quase 13 anos de idade, aqui,
ai! o seu amor mergulhava em tristeza, decepção e pena. Pensar que um filho seu, aliás, qualquer Desmonde, fosse um epiléptico que, mesmo sem sofrer ataques, tendia
a gaguejar!
O Reitor reprimiu um suspiro. Ceder a tal sentimento era perigoso. Contudo, no seu presente humor, não havia como evitá-lo.
- Que bom ter terminado seus estudos em Oxford. Você se saiu bem.
- Oh, não sei não. No fim, pareceu-me ter perdido o ânimo.
- Eu também me senti assim quando voltei de Trinity... embora gostasse de lá tanto quanto você.
Stephen ficou silencioso. Como poderia dizer a papai que detestava a universidade?... aquela secura, a superioridade, a sensação de estar fora da vida, a interminável
preocupação com esportes que não o interessavam, o estudo sem sangue de línguas mortas que o aborreciam inexprimivelmente, de pura contrariedade, acima de tudo aperfeiçoar-se
em francês e espanhol... sua aversão a uma carreira que lhe fora determinada.
Mas o Reitor dizia:
- Você ganhou umas férias. Claire o quer para jogar ténis. Seu tio Hubert convidou-o para Chillingham. O salmão dele não esteve bom esta noite? Seu primo Geoffrey
está aqui, numa breve licença.
Novamente Stephen não respondeu. E pela primeira vez Bertram começou a se questionar, se, por baixo da sua maneira passiva, o seu filho não estava combatendo sinais
de Cansaço. Sua palidez natural parecia mais intensa, e seus olhos tinham aquela negrura aumentada que, diminuindo o resto do seu rosto, - representara desde os
seus primeiros dias um sintoma de mal-estar físico ou emotivo. Ele não é forte, espero que não esteja adoecendo de alguma coisa, pensou Bertram, com súbita ansiedade,
e rápido, protetoramente, declarou:
- Você tem mesmo que descansar. Não precisa ir à Sede antes de julho. Descontando cinco meses para Londres, a sua ordenação seria no Natal, a quadra mais conveniente
do ano.
Stephen levantou-se. Por muito tempo havia antecipado este temido momento, tentado, a conselho do seu amigo Glyn, apressá-lo, e então recuava nervoso, escrevia uma
dezena de cartas, e sempre as rasgava. Agora aquilo estava diante dele, e ele se sentia mal, vazio por dentro.
- Papai... preciso falar com o senhor.
- Sim? - Animou-o com um aceno, as pontas dos dedos juntas.
Uma pausa. Seria dinheiro?, pensou serenamente o Reitor. Alguma dívida não paga na universidade? Então, ouviu as palavras entrecortadas:
- Eu não quero ser ordenado.
A expressão do Reitor não se alterou aparentemente, como se uma súbita e completa surpresa tivesse, como a morte repentina, paralisado as suas feições numa semelhança
de normalidade. Por fim, quase estupidamente, disse:
- Não quer?
- Acho que não sirvo para a Igreja... Não sou bom com pessoas Não sei organizar... Eu seria incapaz de pregar um sermão decente, ainda que para salvar a minha própria
vida.
- Essas coisas virão. - Em pé, Bertram estava quase franzindo o cenho.
- Os meus próprios sermões não são particularmente brilhantes. Mas bastam.
- Mas papai, não é apenas isso. Eu não tenho interesse por esse trabalho. Eu... eu não me sinto capaz de sucedê-lo aqui...
Confirmado em sua primeira suspeita pela voz interrompida, o Reitor recuperou-se e assumiu um tom brando.
- Você está cansado e abatido, meu filho. Nós todos ficamos cansados e desanimados ocasionalmente. Você se sentirá diferente depois de umas caminhadas pelos Downs.
- Não, papai. - Respirando irregularmente, Stephen fortificou a sua vontade. - Venho sentindo isto há muito tempo. Não posso amarrar-me neste lugarzinho... a um
futuro vazio e frustrado.
Que tinha dito ele, procurando desesperadamente as palavras? A expressão chocada nos olhos do seu pai afligiu-o. Um momento de insuportável silêncio. Então:
- Não percebi que você via Stillwater sob esse aspecto. Somos uma pequena paróquia, talvez. Mas nosso valor para o país pode ser julgado por outros padrões que não
os da mera dimensão.
- O senhor me interpretou mal. Eu gosto de Stillwater. ., é o meu lar. E sei o quanto o senhor é estimado em quilómetros e quilómetros aqui em volta. É uma coisa
diferente... certamente o senhor entende o que eu quero dizer... o que acho que devo fazer com a minha vida.
O Reitor recuou bruscamente, e então, com toda a compreensão, olhou sobressaltado para o filho.
- Stephen... não será aquela ideia doida outra vez?
- É, papai.
Novamente um compasso de silêncio vibrou entre eles. O Reitor pôs-se de pé, e começou, lentamente a princípio, depois com crescente perturbação, a andar de cá para
lá. Finalmente, com um esforço, acalmou-se e aproximou-se de Stephen.
- Meu querido filho - disse ele com grande seriedade. - Eu nunca tentei prendê-lo a mim pelo seu senso do dever. Mesmo quando você era muito moço, antes de ir para
a escola, preferi confiar nos seus sentimentos naturais
de afeição e respeito. No entanto, deve compreender o quanto contei inteiramente com você para me suceder aqui... Stillwater significa tanto para mim... para todos
nós. E as circunstâncias da minha vida... a invalidez de sua mãe... a infeliz deficiência de David... o fato de ser o meu filho mais velho e, perdoe-me - a sua voz
tremeu ligeiramente - meu filho bem-amado - levou-me a colocar as minhas esperanças em você. Contudo, neste momento, ponho tudo isso de lado. Por minha honra, é
em você que estou pensando, e não em mim, quando lhe digo, quando lhe suplico que esqueça esse sonho fantástico. Você não compreende realmente o que isso significa.
Você não deve... não pode realizá-lo.
Stephen baixou os olhos a fim de não ver o rosto contraído do pai.
- Mas eu com certeza tenho direito à minha própria vida. - Através do seu respeito ardia uma íntima confiança.
- Não a essa espécie de vida. Ela só lhe trará infelicidade. Jogar fora as suas brilhantes perspectivas, arruinar toda a sua carreira por um mero capricho... seria
um ultraje à face de Deus. E depois há Claire... como, em nome do Céu, ela caberia nesse plano? Não, não. Você é muito jovem para a sua idade, Stephen... Essa ideia
louca que se apoderou de você pode lhe parecer muito importante agora. Mas dentro de poucos anos, rirá de si mesmo pelo simples fato de ter pensado nela.
Afundado na sua cadeira, de faces vermelhas e olhos baixos, com o espírito tardo e embotado pelo vinho do Porto, Stephen não podia achar uma palavra para dizer.
Naquele momento, sem exagero, odiava o seu pai. contudo, ao mesmo tempo, mostrava-se vencido pela vergonhosa consciência da sua afeição paternal, pela gratidão e
justiça do seu ponto de vista, e, pior que tudo, por uma tépida onda de nostalgia que lhe subia à garganta, um dilúvio de recordações da infância... as corridas
de tílburi a Ambry, seu pai afrouxando as rédeas, Carrie no seu limpo avental branco, Davie usando os seus primeiros calções de flanela; os piqueniques à beira do
Avon, o sol quente na água fria, e um pato selvagem subindo do juncal amarelo à medida que a canoa avançava; as canções familiares entoadas diante da árvore de Natal,
uma poeira de neve nas vidraças... oh, como poderia arrancar essas ternas, fortes raízes?
Bertram inclinou-se para diante e, não de modo comovente, mas com um toque de desconfiança, pôs-lhe a mão no ombro.
- Acredite-me, trata-se da sua felicidade, Stephen. Você não pode... não poderia achar no seu coração alguma coisa contra mim.
Stephen não se atrevia a erguer os olhos, com medo de romper em lágrimas. Estava liquidado... pelo menos no presente. E ele tinha pensado lutar duramente, tinha
jurado a Glyn que ganharia a partida.
- Muito bem - conseguiu murmurar finalmente, provando toda a
amargura que a derrota traz a uma natureza dócil mas apaixonada. - Se é assim que o senhor pensa, com tanta veemência... tentarei a Sede... para ver o que acontece.
CAPÍTULO III
BERTRAM SUBIU AS ESCADAS VAGAROSAMENTE. Embora fosse grande a sua sensação de alívio, não diminuía o cansaço que lhe viera de repente, nem a demorada ansiedade do
seu coração. Diante do quarto da esposa, hesitava, com a cabeça inclinada numa atitude de escuta; depois, batendo ligeiramente no painel, empertigou-se e entrou.
Era um vasto compartimento, outrora a sala de estar de cima, a melhor da casa, como referira o velho Cónego Desmonde, sem dúvida por suas belas proporções e por
dar para o sul, o que, além de permitir a entrada do sol da manhã, oferecia um vasto panorama dos Downs. Na sua conversão em quarto e sala de estar da esposa, parte
da mobília original tinha sido mantida - as cadeiras de tapeçaria e os canapés Chippendale, um largo espelho em semicírculo com moldura de gesso em cima do consolo
de mármore branco da lareira, o tapete vermelho de Bruxelas. Protegida por um guarda-vento, Julia Desmonde estava deitada, lendo, embaixo de uma cobertura de cetim.
Era uma mulher formosa e bem conservada, de 45 anos, com grande ar tranquilo e muito indolente, feições cheias e lisas, e um denso cabelo castanho espalhado no travesseiro
como uma nuvem.
Marcando com uma unha branca o lugar do livro que tinha o desenho de uma figura do zodíaco, Julia dirigiu para o marido, por baixo das finas sobrancelhas, um olhar
inquiridor. Seus olhos eram de um notável azul de amor-perfeito, quase infantis, com pálpebras carnudas quase caídas.
- Então temos Stephen em casa novamente - disse ela.
- Sim, achei que meu querido filho estava com boa aparência. Podia-se contar com ela para exprimir, na sua voz aristocrática e absorta consigo mesma, uma opinião
contrária à dele.
- E a dor de cabeça?
- Melhor, muito obrigada. Sentei-me demais ao sol esta tarde. O sol desta primavera precoce é muito traiçoeiro. Mas eu acabo de fazer um tratamento.
Ele percebeu, pelo aparelho que estava na mesa ao lado, que ela acabara de aplicar uma das suas vibrações. No guarda-fogo, uma caldeirinha de metal assobiava com
um alegre penacho de vapor, indicando que em 20 minutos o extrato de farelo seria levantado e misturado, os tabletes de fermento esmagados e engolidos, o iogurte
batido, ou desta vez seriam algas secas? Então a bolsa de água quente seria reenchida, o fogo disposto para a noite, as luzes diminuídas, as almofadinhas para as
pálpebras umedecidas e colocadas para dormir. E outra vez, embora lutasse contra ela com determinação cristã, a pergunta lhe veio: Por que cargas-d'água tinha casado
com ela?
Ela fora, sem dúvida - aliás ainda o era, evidentemente na sua maneira estatuesca, uma espécie de beleza, e como filha única de Sir Henry Marsden de Haselton Park,
tinha sido considerada pela sociedade do campo daquela ocasião "o partido da estação". Quem, olhando-a, teria adivinhado, por exemplo, que aquela jovem com a graça
de um cisne, anfitriã da Haselton Fête, considerada a beldade do baile de caça, cercada por jovens oficiais dos quartéis de Charminster, sorridente mas composta,
centro de atração, mais tarde revelaria a acentuada peculiaridade de ser tão inteiramente inútil para ele como esposa?
A não ser por uns poucos garden-parties nos seus primeiros anos de casados, quando arrastava um guarda-sol com babados, movendo-se graciosamente sobre a relva, com
um chapeirão, ela se recusara com pacífica resolução a tomar interesse pelas obras da paróquia. "Deus", dizia ela amavelmente, "não há nenhum sentido em levar sopa
para rústicos indigentes ou estragar os nervos costurando roupa de criança para encorajamento da população rural." Afortunadamente, a mulher do bispo gostava dela,
mas ela não recebia as senhoras da clerezia menor.
Preferia passar os dias sentada, exageradamente vestida, à sua janela, ou no roseiral, empenhada num interminável bordado em seda colorida, do qual levantava a cabeça
repetidamente para olhar por longos períodos o espaço, ou tomar notas ocasionais, quando lhe ocorriam, do que haveria de comunicar ao seu médico, que - tendo há
muito esgotado o doutor do condado - visitava duas vezes por mês em Londres. Seus filhos, que ela suportava com uma facilidade distraída, não tinham sido para ela
mais do que episódios momentâneos. Desde que não a incomodassem, ela os considerava com remota indulgência. Contudo, ao aumentar, mais e mais, o seu alheamento,
ela se retirava para si mesma, criando uma existência que se desenvolvia em torno das suas funções físicas, um pequeno mundo de feliz hipocondria, no qual - poderia
ele, ó Deus, tê-lo previsto quando naquela tarde cheirando a rosas, 20 anos atrás, ele quase morrera de dor com o seu beijo aromático? - ela não tinha maior prazer,
nenhum interesse mais vivo, do que discutir amavelmente com ele a cor dos seus tamboretes.
Talvez o cavalo de campanha empalhado no saguão paterno - lembrança de Balaclava - devesse tê-lo advertido, mas, ai! podia ter predito que o pai dela, até a idade
de 60 anos, não era mais que um excêntrico amável, dedicado em suas horas de fazer as pesquisas mecânicas - a eletrificação da sua propriedade por uma cadeia de
moinhos de vento, a inócua construção de um canhão de tiro rápido que, recusado pelo Ministério da Guerra, tinha não mais do que levado ao céu, na sua parte de carne,
o mordomo da família, que, em nome de Deus, devia ter previsto que aquele irreprimível doido teria, na sua caduquice, lançado subitamente um grandioso projeto para
a construção de uma máquina voadora, como a que foi subsequentemente voada por Blériot através do Canal da Mancha, embora aquilo em si mesmo fosse extremamente doentio,
e não passasse de uma feia geringonça com fantásticos parafusos, supostamente capaz de subir do chão na vertical: um helicóptero. Assim, em desafio às leis da gravidade,
Sir Henry profanara o seu belo parque com alpendres e hangar, operários importados, engenheiros, um mecânico belga, gastara dinheiro como água, em resumo, arruinara-se,
e, permanecendo no chão, morrendo como alvo de mofa.
Haselton, que devia ter sido de Julia, era agora uma escola para meninas, o grande hangar um ginásio, e os alpendres - horrores - recém pintados depósitos para tacos
de hóquei enlameados e sapatos desemparceirados de lona.
Seria possível, pensava Bertram, com novo abatimento, que algo dessa instabilidade agora se manifestasse em Stephen? Não, não... impossível. O filho, tão de perto
parecido com ele em corpo e alma, era todo dele, de fato o seu outro eu. No entanto, devido à sua ansiedade, a nuvem que pairava sobre o seu espírito, era tentado,
a despeito do seu melhor juízo, a abrir a mente e procurar alguma espécie de consolo da parte de sua esposa.
- Minha querida - disse ele. - Enquanto Stephen estiver conosco, acho que devemos fazer um esforço para afastá-lo de si mesmo.
Julia mirou-o surpreendida. Ela possuía em grau notável a faculdade de torcer o sentido do que lhe diziam.
- Meu caro Bertram, você sabe muito bem que não posso fazer qualquer esforço. E por que Stephen deve ser afastado de si mesmo?
- Eu... eu estou preocupado com ele. Ele sempre foi um rapaz incomum. Está atravessando uma fase difícil.
- Difícil, Bertram? Ele já não passou pela puberdade?
- Naturalmente... mas não sei o que se passa com esses rapazes. Na primavera, metem ideias estranhas na cabeça.
- Você quer dizer que Stephen está em estado de amor?
- Não... bem, sabemos que ele gosta de Claire.
- Então o que quer dizer? Ele não pode estar doente. Você mesmo disSe um momento atrás que ele está muito bem.
- Foi você quem disse isso. - A despeito de si mesmo, Bertram falava com crescente impaciência. - Acho que ele está longe de se sentir bem. Mas vejo que você não
deseja participar da minha ansiedade.
- Desejo que me fale, meu querido, não faço nenhuma objeção a ouvi-lo. Mas não é suficiente você estar aborrecido sem me aborrecer? Acho que
fiz a minha parte em trazer os seus filhos ao mundo. Sempre houve, do primeiro ao último, pouco prazer nessa tarefa. Depois, você fez deles sua responsabilidade.
Eu jamais interferi. Por que devo fazê-lo agora?
- É verdade - disse ele, tentando reprimir a sua amargura. - Faria pouca diferença para você se Stephen arruinasse a vida dele. Julia, há alguma coisa nele, algo
debaixo da superfície, que eu não compreendo. O que é que ele realmente pensa? Quem são os seus amigos? Não se lembra de que quando Geoffrey o visitou no ano passado,
em Trinity, encontrou lá a pessoa mais inesperada no seu alojamento... um excêntrico de primeira, foi como Geoffrey o chamou, um artista desmazelado... um galês
Interrompeu-se, olhando quase súplice para ela, até que ela foi obrigada a responder. Sua voz era suave.
- Que tem você contra os galeses, Bertram? Eles possuem belas vozes. Esse galês canta?
- Não - replicou Bertram, corando. - Ele vive insistindo com Stephen para que vá a Paris.
- Muitos jovens já fizeram isso antes, Bertram.
- Até concordo. Mas, desta vez, não pela razão óbvia.
- Então por que razão, se não é para ter uma mulher francesa?
- Para pintar!
Tinha-o dito, livrara-se daquilo afinal; e tensamente, embora com uma certa sensação de alívio, esperou, em silêncio, que ela falasse.
- Devo confessar, Bertram, que não vejo mal algum nisso tudo. Lembro-me de que, quando estive em Interlaken com papá, fiz algumas deliciosas pequenas aquarelas do
lago. Azul era o tom predominante. Stephen sempre gostou de desenhar. Aliás, foi você quem lhe deu a primeira caixa de lápis de cor.
Ele mordeu forte os lábios.
- Isso não é ocupação de criança, Julia. Sabe que há mais de um ano, sem nos dizer uma palavra, ele tem viajado de Oxford para assistir às aulas noturnas de arte
em Slade?
- Slade é uma instituição respeitável. Stephen terá bastante tempo para fazer seus esboços entre os sermões. E, sem dúvida, desenhar é Um calmante para os nervos.
Ele refreou o seu impulso de gritar. Por um momento, manteve os olhos baixos, no tom de quem foi Vencido, mas, respirando um pouco depressa demais, disse:
- Espero que tenha razão, minha cara. Suponho que me preocupo desnecessariamente. Sem dúvida ele se restabelecerá logo que entre na rotina do seu trabalho em Londres.
- Sem dúvida. E, Bertram, resolvi que, em vez de Harrogate, irei a Cheltenham no mês que vem. Lá há águas minerais, e dizem que são excelentes para promover a secreção
da bile. Quando o Dr. Leonard examinou a minha urina pela última vez, encontrou uma acentuada insuficiência de sais biliares.
Ele deu boa-noite, em tom baixo, e saiu rapidamente, antes que dissesse coisa pior.
Ao sair do quarto, podia ouvir no corredor o lento tique-taque da máquina de Caroline, que, sem se poupar, batia as notas para o seu discurso do dia seguinte.
CAPÍTULO IV
NUMA TARDE CINZENTA E ENEVOADA, seis semanas mais tarde, Stephen, voltando de uma visita de casa em casa, caminhava lentamente pela Clinker Street, no East Stepney.
A nuvem sulfurosa sobre as docas de Londres tornava o estreito logradouro mais triste e opressivo para ele. Nenhuma luz, nenhuma cor - somente a inércia dos carros
de descarga vazios, os paralelepípedos graxentos, um cavalo da zorra de um cervejeiro fumegando na chuva, com os arreios dentro de um saco gotejante. Um ônibus ruidoso
passou no rumo oeste, salpicando-o de lama quando ele voltava para a Sede.
Aquela construção de tijolo vermelho, erguida no alinhamento das casas de estuque derruídas que se inclinavam ao longo da rua como velhas decaídas, agora mais do
que nunca parecia-lhe uma pequena mas eficiente penitenciária. Nesse momento, abriu-se a porta da frente e o Guardião, o Reverendo Crispin Bliss, saiu, de guarda-chuva
em pé, nariz levantado para farejar o tempo, alto, magro, envolto até os sapatos em uma comprida capa impermeável preta. Um encontro, pensou Stephen, era inevitável;
e aproximou-se.
- Ali, Desmonde... já de volta?
O tom frouxamente cordial era, achou Stephen, o de um homem que procurava gostar dele e não podia, a despeito da melhor das intenções e dos reclamos do amor fraterno.
Inquestionavelmente, o Reverendo Crispin Bliss, membro da confraria de St. Cuthbert era um clérigo devotado que trabalhava
arduamente pelo bem da sua vinha infrutífera. Clérigo menor, com fortes tendências evangélicas, era um homem de sincera embora limitada piedade. Religião à parte,
porém, a sua maneira era muito pouco atraente: seco, académico, suscetivelmente superior. Igualmente infeliz era a sua maneira de caminhar com a cabeça atirada para
trás, o ar nobre com que procurava se proteger, e, sobretudo, a sua voz rachada, ligeiramente fanhosa, parecendo sempre pronta a pronunciar contradições culturais
em notas de agudo falsete. Quase no início, Stephen tivera a má sorte de ofendê-lo.
No corredor superior da Sede estava pendurado um cruento quadro do martírio de São Sebastião, que para Stephen sangrava de novo sempre que ele saía da sua sala.
Desde que a pintura parecia ignorada por todos menos ele, uma manhã, num momento de aversão, virou-a contra a parede. O ato passou aparentemente despercebido. Mas
na ceia dessa noite, com um sorriso magoado que passou por cima dos seus dois coadjutores, Loftus e Geer, e foi repousar em Stephen, o Guardião observou, nos seus
tons mais nasais:
- Não faço objeção ao humor, mesmo na sua forma mais disfarçada, a brincadeira de mau gosto. Mas interferir em qualquer objeto desta casa que por seu assunto ou
associação possa ser considerado como sagrado é, para o meu espírito, um ato indecoroso e irreligioso.
Stephen corou até a raiz dos cabelos e manteve os olhos no seu prato. Não tinha querido fazer mal algum, e quando a refeição terminou, o desejo de explicar-se levou-o
ao Guardião.
- Lamento ter virado o quadro. A única desculpa que posso oferecer é que ele bulia com os meus nervos.
- Com os seus nervos, Desmonde?
- Bem... sim. É de um gosto muito chocante, além de ser evidentemente uma falsificação.
- Não posso compreendê-lo, Desmonde. O quadro é um legítimo Carlo Dolci.
Stephen sorriu em tom de desculpa.
- Oh, dificilmente, senhor. Nem sequer isso. Além das pinceladas grosseiras, e do pigmento moderno, é pintado em tela branca de cânhamo - um tecido que só foi manufaturado
por volta de 1890, uns bons 200 anos após a morte de Dolci.
A expressão do Guardião petrificou-se. Respirava rapidamente pelas narinas, não fogo precisamente, mas a contrapartida cristã da cólera - justa indignação.
- Acontece que esse quadro é meu, Desmonde, e uma propriedade muito estimada. Comprei-o de um jovem na Itália, de fonte impecável. A despeito da sua opinião, continuarei
a apreciá-lo como o original de uma obra de arte.
Agora, todavia, havia menos hostilidade do que vigilante moderação no
olhar com que o Guardião, parado na chuva, ofereceu a Stephen o abrigo do seu guarda-chuva e perguntou:
- Fez a série de Skinner esta tarde?
- Praticamente toda, senhor.
Não queria confessar que, esperando a visita de Richard Glyn, tinha saltado os números ímpares.
- Como encontrou a velha Sra. Blimey?
- Não muito bem, receio.
- A bronquite da pobre criatura piorou? - Depois, como Stephen hesitava, parecendo inquieto, ajuntou: - Ela precisa do médico?
- Não... não exatamente. Aliás, encontrei-a muito embriagada.
Houve uma pausa perturbadora, então veio a pergunta um tanto mundana:
- Como é que ela conseguiu dinheiro?
- Acredito ser o responsável, senhor. Dei-lhe seis xelins ontem para que pagasse o aluguel do quarto. Ela parece que o gastou em gim.
O Guardião fez um som, estalando a língua.
- Bem... vivendo e aprendendo, Desmonde. Não o censuro. Mas você não deve pôr a tentação no caminho das pobres criaturas de Deus.
- Acho que não. Por outro lado, quem pode censurá-la por tentar escapar à miséria umas poucas horas? Ela sofre do peito, não arranja trabalho de costura de qualquer
espécie, deve o aluguel ao senhorio e já empenhou quase tudo no seu quarto. Devo confessar que me senti quase contente ao vê-la rolar num estado de feliz esquecimento.
- Desmonde!
- E o que é mais... não pude deixar de pensar que se algum de nós estivesse naquela situação teria feito exatamente a mesma coisa.
- Ora, vamos. Isso é levar o caso um pouco longe demais. Nós nunca devemos, queira Deus, achar-nos em tais situações desagradáveis. - Abanou a cabeça em reprovação
e abriu o seu guarda-chuva. - Haverá reunião dos rapazes esta noite? Trocarei uma palavra com você a esse respeito depois da ceia.
com um aceno de despedida, um tanto distante, pôs-se a caminho, deixando Stephen a subir as escadas para o seu quarto, um estreito cubículo forrado de carvalho claro,
com um consolo gótico e uma estante de livros giratória - A cama ainda não tinha sido feita. Os residentes da Sede deviam arranjar-se sozinhos, era o que se esperava;
de manhã, por exemplo, Stephen iria encontrar-se regularmente com Geer, o coadjutor, um brilhante e musculoso cristão, levando o seu urinol cheio para o banheiro
com ar de sincera despreoCupação.
Contudo, para que a tradição monástica não parecesse muito severa, uma pequena moça de fora, chamada Jenny Dill, vinha do distrito,
ostensivamente para dar os retoques finais, na realidade fazer a maior parte do trabalho. Quando Stephen se atirou, ainda, de chapéu e casacão, numa cadeira Morris,
podia ouvir os seus passinhos rápidos no quarto de Loftus através da fina parede que servia de repartição. Loftus, um belo rapaz, exigente e moderado, muito elegante
de uma maneira sacerdotal, sempre lhe deixava muito que fazer, tal como sapatos para lustrar, roupas atiradas e por escovar. Contudo, ela parecia ter acabado essas
tarefas, porque, em poucos minutos, houve uma batidinha na porta do seu quarto e, trazendo espanador e balde, ela entrou lepidamente.
- Oh, senhor, perdoe-me... Não sabia que estava aqui.
- Não tem importância, entre.
Observou-a ausente quando ela começou habilmente a tirar os lençóis e a virar o colchão. Era uma mulherzinha agradável, com as faces muito coradas, como se tivessem
sido esfregadas com pó de tijolo, brilhantes olhos castanhos e uma franja de cabelo preto. Parecia, pensou ele, uma moça típica das camadas populares de Londres...
inteiramente competente e que ninguém poderia enganar. No entanto, havia nela algo mais do que ordinário: um ar de simplicidade bem-disposta, uma inocência, uma
afabilidade afetuosa, e, acima de tudo, um vigor, como se ela não pudesse conter a energia e deleite que pulsavam no seu corpo jovem e sadio. E ao mover-se de um
lado para outro com precisão, a cintura fina, o busto pequeno mas firme, inconsciente de que ele a observava, ou pelo menos de nenhuma maneira perturbada com isso,
instintivamente a sua mão pegou o lápis e um bloco de cima da escrivaninha.
Dali a pouco, quando ela foi à lareira, curvou-se e começou a tirar as cinzas. Nesse momento, o seu interesse aumentou, e quando ela fez menção
de levantar-se, ele a deteve bruscamente.
- Por favor, não se mexa, Jenny.
- Mas, senhor.
- Não, não. Volte a cabeça e não se mexa.
Enquanto ela, obediente, voltava a cabeça, mantendo a sua posição curvada, os dedos de Stephen moviam-se nervosos sobre o papel.
- Pensa que sou maluco, não é, Jenny? Todos os outros do distrito também pensam.
- Oh, não, senhor - protestou ela vigorosamente. - A gente acha é que o senhor é um bocado esquisito, desenhando no clube dos rapazes e coisas assim, diferente de
um coadjutor regular, que ensina eles a lutar boxe. Ora, quando o Sr. Geer trouxer os grandões e eles se pegarem, vai ver que quase se matam um ao outro. E mal vai
poder reconhecer eles, com os olhos pretos e as ventas sangrando. Não, não é o que parece muito natural, acho, Mas a gente pensa que o senhor é mesmo um cavalheiro
muito delicado.
- Isso é animador... e apesar da ausência de sangue. Diga-me uma coisa,
Jenny, se você fosse uma velha doente, de cama, preferiria uma Bíblia ou uma garrafa de gim?
- Eu tenho uma Bíblia, senhor... aliás, duas. O Sr. Loftus e o Sr. Geer me deram uma cada um. A do Sr. Loftus tem umas lindas fitas coloridas. Sou capaz de dizer
que se eu estivesse mal mesmo, o gim até que vinha bem.
- Não fuja, Jenny. Você é honesta como o dia. Diga-me: o que é que você pensa disto aqui?
Lentamente, ela relaxou, aproximou-se e examinou dubiamente o desenho que ele lhe entregara.
- Não sei nada dessas coisas, senhor... mas acho mesmo bonito.
- Ora, sua garota tola, não está vendo que é você?
- Bem, já que o senhor diz - respondeu ela modestamente - parece comigo de costas. Eu só queria não estar com a minha roupa velha e com um rasgão bem ali, tão encabulante,
na abertura da saia.
Stephen riu-se e atirou o bloco para a escrivaninha.
- É da saia velha que eu gosto. Gostaria que você posasse para mim. Eu lhe pagaria cinco xelins por hora.
Ela olhou rapidamente para ele, depois desviou os olhos.
- Isso não seria muito correto, seria, senhor?
- Ora, tolice - disse ele descuidado. - Onde é que está o mal? Mas acho que você não está interessada...
- Bem, senhor... - Ela falava acanhadamente, e uma cor mais viva lhe veio às faces. - Na verdade, se tudo estivesse em ordem, eu bem que poderia fazer mais uns cobres.
- Como?
- É, senhor O senhor sabe... eu espero me casar logo.
- Parabéns. Quem é o felizardo?
- O nome dele é Alfred, senhor. Alfred Baines. Ele é camaroteiro num barco da Orient Lane. Vai estar na terra no outro mês, sem ser esse que vem.
- Excelente para você, Jenny. Não admira que queira ganhar mais um dinheirinho. Quando larga?
- Quando termino de arrumar o seu quarto, senhor. Aí pelas cinco.
- Bem, então... suponha que fique mais uma hora, das cinco às seis, duas vezes por semana. Posso pagar-lhe cinco xelins de cada vez.
- Isso é mais do que generoso, senhor.
- É muito pouco realmente. Mas se você não achar o trabalho muito cansativo, posso lhe dar um bilhete para um amigo meu que ensina nas turmas noturnas no Slade.
Ele terá prazer em empregá-la por uma breve temporada...
Ele não vai esperar que eu, senhor... - Jenny tornou-se rubra.
- Por Deus do céu, não - disse Stephen bondosamente. - Você vestirá uma espécie de costume. Provavelmente ele vai querer somente a sua cabeça e ombros.
- Então ficarei muito agradecida, senhor. . . fico mesmo... especialmente ao senhor.
- Então fechamos negócio? - pergunta ele, sorrindo, aquele raro sorriso que iluminava a sua face e o tornava tão atraente, e estendeu-lhe a mão.
Ela corou, e aproximou-se. Seus pequenos dedos, de unhas mal cortadas ou quebradas, estavam quentes e secos, com cicatrizes nas pontas e frieiras curadas. Contudo,
era uma mão extraordinariamente agradável de segurar, nela estava a pulsação do seu jovem corpo; ele mal pôde soltá-la. E quando o fez, ela se voltou para a porta.
Estava agora um tanto pálida, e sem olhar para ele disse:
- O senhor sempre me tratou tão gentilmente, Sr. Desmonde, é mesmo um prazer fazer as coisas para o senhor. Eu sempre dou ao seu quarto um extra. E lustro muito
bem os seus sapatos, porque... ora, porque são seus, senhor. - Interrompeu-se, e desapareceu.
Para quem era atormentado por humores de autodepreciação, aquelas palavras trouxeram um esquisito calor. Mas logo a momentânea alegria de Stephen sumiu, ele se tornou
novamente consciente de si mesmo, do seu ambiente, e da tristeza que o esperava adiante. Desejou que Glyn aparecesse logo.
Apanhando o Evidences, de Paley, que prometera ao seu pai ler, tentou mergulhar no livro. Mas era inútil. Não tinha interesse nele, detestava a vida que estava levando,
desde que chegara à Sede: a visitação, as aulas de Bíblia, o clube - embora à sua maneira tentasse animá-lo - a terna hipocrisia das palavras alimentando a fome
e o frio das pessoas, enquanto ele e os outros da sua raça permaneciam aquecidos e bem nutridos.
Podia compreender um homem que entrasse para a Igreja por sua natureza profundamente religiosa, por sentir que a sua missão predestinada era ajudar o próximo. Mas
assumir uma existência confortável sem uma forte vocação, por motivos que eram claramente materiais, parecia-lhe a pior espécie de fraude. E, além disso, ele não
tinha a sua própria vocação, um chamado que o mantinha cingido ao seu próprio coração? Que tolo fora em se deixar levar a semelhante passo, como um carneiro estúpido
entalado entre as portas de uma feira do campo. E agora que ali estava, parecia não haver como sair.
Justamente então soaram passos de sapatos pesados nas escadas de madeira, e poucos segundos depois um homem alguns anos mais velho que Stephen foi entrando no quarto
e atirou-se sem fôlego numa cadeira. Era de porte mais do que mediano e fortemente construído, com um cabelo vermelho cortado e uma curta barba vermelha eriçada,
de feições vigorosas, os olhos, sob sobrancelhas bem marcadas, vivazes, rebeldes, contudo muito divertido naquele momento. Vestia calças de pele de toupeira e uma
blusa de operário,
um lenço pintalgado de vermelho amarrado no pescoço; tinha o ar de um bucaneiro, fanfarrão, livre, cheio de um vigoroso prazer pela vida. Dali a pouco, quando cessou
a sua transpiração, puxou um relógio de metal, ligado a ele por um pedaço de cordão esfiapado de quadro.
- Bem na hora - observou com satisfação. - Não está mau para Whitehall.
Embora advertido da paixão espasmódica de Glyn pelos exercícios violentos, Stephen estava moderadamente surpreso.
- Você andou todo o caminho?
- Corri - disse Glyn, enxugando o suor. - Foi diabolicamente divertido. Botei toda a polícia a correr, pensando que eu tinha assaltado um banco. Mas que sede me
deu! Suponho que não haja um pingo de cerveja nesta casa de Deus, não é?
- Sinto, Richard. Não nos permitem tê-la em nosso quarto. Posso lhe dar chá... e biscoitos.
Glyn explodiu em gargalhadas.
- Vocês, jovens teólogos. Como podem combater Satanás com chá e biscoitos? Mas se não for incómodo, traga-os. E acrescentou, mais sério: Sinto não poder ficar muito
tempo, mas eu queria vê-lo.
Conversaram enquanto Stephen fervia uma chaleira de folha no bico de gás junto à lareira. Pronto o chá, Richard bebeu quatro xícaras da desprezada beberagem e, de
uma maneira ausente, liquidou um prato de macarrão. Depois, um tanto embaraçosamente, a conversa cessou.
- A sua mostra correu bem? - perguntou Stephen por fim.
- Muito bem - respondeu Glyn descuidadamente. As críticas foram tão perfeitamente depreciativas que atraíram público.
- Mas você vendeu alguma coisa.
- Um vermelhinho. E tudo porque sou galês. A Galeria Nacional de Cardiff comprou-o. Encorajando o talento nativo... filho de um mineiro e assim por diante.
Houve uma pausa.
- Contudo - resumiu Glyn - o dinheiro me safou das dívidas, e Anna e eu partimos para Paris amanhã.
Stephen empertigou-se imperceptivelmente, um reflexo de todos os seus nervos, não apenas ao som de uma palavra que o perseguia, mas porque naquela maneira demasiado
despreocupada ele pressentiu o verdadeiro motivo da visita de Glyn. Procurou dominar a voz.
- E quanto tempo pretende ficar por lá?
- No mínimo um ano. Vou viver barato e trabalhar como um mouro. Acredite se quiser, Paris é um lugar maravilhoso para trabalhar. - Fez uma pausa e atirou um rápido
olhar para o outro. - Você não vai mesmo conosco?
Stephen sentiu um nó na garganta. As suas mãos, nos braços da poltrona, mostraram os nós dos dedos.
- De que jeito? Você conhece a minha situação.
- Ao mesmo tempo, tive a impressão de que você queria pintar.
Stephen, de cabeça baixa, não respondeu. De súbito ergueu os olhos.
- Glyn... se eu jogasse tudo fora... teria mesmo sucesso como artista?
- Ora, ora, Desmonde - Glyn inclinou-se para diante, de cenho cerrado, - Que pergunta mais idiota. Sucesso? Que quer dizer com sucesso? Então você não sabe que neste
jogo não pode haver garantias, que você não tem mais que você no momento em que se resolve? E você não entra nisso por nenhuma outra razão a não ser a de que não
pode evitá-lo. Se for para valer, abandona tudo, passa fome, rouba, engana a sua avó, transgride cada um dos Dez Mandamentos, só para ter nas suas mãos um tubo de
tinta e uma espátula.
Glyn interrompeu-se, relaxou a postura e continuou, mais serenamente:
- Acredito que você tem talento, possibilidades extraordinárias, do contrário não ia aborrecer o meu bestunto a seu respeito. Eu sei como é duro para você... atolado
na tradição. Você teve todos os inícios errados. Devia ser como eu, nascido numa vila de operários, numa nojenta cidade carvoeira. Mas, assim, você mesmo é quem
tem que decidir. E se não se decidir, atrevo-me a dizer que dará um pastor aceitável. - Tirou de repente o seu relógio niquelado. - Bem, tenho que ir. Preciso reunir
umas coisas. E juntar isto com aquilo. Adeus, Desmonde. Escreva-me quando tiver tempo.
Stephen permaneceu imóvel. Glyn levantou-se. Ao dar o primeiro passo, viu sobre o consolo da lareira um cartão perfurado com as cores do Clube de Críquete Marylebone.
Era um bilhete para a partida de criquete entre Oxford e Cambridge, a ser disputada no mês seguinte. Acompanhando o olhar de Glyn, Stephen corou.
- Tenho que ir - disse ele secamente. - Toda a família irá.
CAPÍTULO V
A PARTIDA TINHA TERMINADO, as balizas haviam sido retiradas, e enquanto o sol lançava sombras compridas sobre a quadra relvada do Lord's, um grupo de sete pessoas
podia ser observado entre a elegante assistência - dificilmente se poderia referir essa afluência como uma multidão - andando
vagarosamente para os portões principais na St. John's Wood Road. Caroline e Claire iam na frente com Davie e seu primo Geoffrey, enquanto poucos passos atrás, Stephen
acompanhava o General Desmonde e sua esposa. Uma emergência na paróquia tinha impedido no último instante o Reitor de estar presente, e Julia, claro, era uma ausente
anual. Por isso, Stephen tinha vindo somente para estar com o irmão, e enquanto Davie tinha grande prazer em ver o jogo - o que era mais tocante, uma vez que, devido
à sua afecção, não lhe era permitido jogar críquete - teve em certa medida a sua recompensa, pois o dia tinha sido duro para ele, e ainda lhe ressoavam na cabeça
os incessantes gritos de Geoffrey de "Boa jogada, senhor", e, como sempre, a mulher do General raramente pensava nela como tia Adelaide - tinha exercido sobre ele
uma familiar combinação de condescendência e arrogância que despertava os seus mais perversos instintos. Mulher dominante, fria, de rosto fino, criada na tradição
do Exército e endurecida nos sóis da Índia, ainda era bonita, de uma maneira dura e atrevida, e possuía uma figura admirável, embora tendendo para a magreza, seu
olhar às vezes letal como um golpe de baioneta.
Agora, ao deixarem o campo e permanecerem juntos um tanto indecisos, enquanto carruagens e cabriolés saíam da calçada, ela falava com rapidez, na sua voz apressada
"do condado".
- Hoje foi um dia tão delicioso, que é uma pena deixá-lo morrer prematuramente. - Voltou-se para o marido. - Tem alguma sugestão, Hubert?
O General Desmonde examinou o grupo. Alto, feições retas, ereto como uma vareta de espingarda, até no chapéu de forma cinza e no fraque matutino, parecia um soldado,
um soldado notável. Um bigode curto acentuava a brevidade incisiva da sua fala.
- Pensei que poderíamos cear no Frascati's.
- Magnífico, papai - disse Geoffrey, endireitando a gravata e depois o colete bordado, talvez pela ducentésima vez, como se estivesse determinado a manter a supremacia
de alfaiataria que fazia dele, tinha certeza, um alvo de admiração. Estilo, que ele chamava de boa forma, era na verdade a sua maior ocupação, fosse numa praça de
armas ou em Piccadilly, e que já o configurava, na idade de 24 anos, como modelo de um elegante, ainda que um tanto tolo, jovem de sucesso da sociedade.
- Davie tem que voltar às sete - interpôs Caroline. - E já passam das seis. Mas ninguém precisa se incomodar, vou levá-lo ao trem.
- Querida, você é tão gentil e tão atenciosa - disse Adelaide sorrindo. Ela não queria Caroline no Frascati's com o seu rosto vermelho de sol como uma peônia, e
naquele medonho vestido marrom que a fazia parecer uma copeira no seu dia de folga, aquelas pernas também, que desgraça, como as patas de um piano de cauda; Caroline,
para tia Adelaide, era sempre uma responsabilidade social, uma mortificação anual no baile de caça, quando, sentada na
entrada do salão, com seu jornal na mão, sem que ninguém a tirasse para dançar, esperava tristemente que algum velho cavalheiro se dirigisse a ela; e agora já tinha
sido bastante desagradável tê-la com eles durante o dia inteiro. - Você deve vir uma outra vez.
- Acho que também tenho que voltar - disse Stephen. Se Davie não fosse, ele não teria nenhum prazer em ir.
- Tem mesmo? - Hubert franziu o cenho, bem-humorado; ele até gostava, ou pelo menos tolerava, aquele jovem sobrinho e futuro pastor. - Tão cedo?
- Mas é claro que você pode ficar, Stephen. - Claire estava ao seu lado, contida, mas de certo modo rogando, com a sua tez macia e feições tão bem modeladas, sombreadas
por um chapéu de aba larga enfeitado de rosas. Hoje mais do que nunca, naquele ambiente, ela parecia o que era: a mais amável das moças inglesas, cujo bom senso,
maneiras e cordialidade franca e agradável faziam amigos onde quer que estivesse. - Fica, sim - ajuntou ela.
- Querida - interveio Adelaide antes que Stephen pudesse responder - não devemos interferir com as regras e regulamentos. Afinal de contas, a vida na Sede, imagino,
é mais ou menos monástica, não é, Stephen? e muito digna, estou certa. É mesmo uma lástima que você não possa vir. Geoffrey acompanhará Claire, e eu pretendo que
Hubert seja o meu galã. Adelaide tornou a sorrir, e com satisfação, pois tinha as suas razões para não desejar que Stephen fosse um do grupo.
- Não podemos deixá-la em alguma parte, Caroline? - perguntou Hubert.
- Oh, não, Davie e eu iremos de metro.
- E eu de ônibus - disse Stephen.
Trocaram-se despedidas, e então, vagamente consciente do desgosto nos olhos de Claire, Stephen afastou-se com Caroline e Davie. Como ainda tinham alguns minutos,
deteve-se no Fuller's da Park Road para oferecer um sorvete de morango ao seu jovem irmão e uma taça de chá a Caroline, que, sub-repticiamente descalçando os sapatos,
confessou que estivera mortificada todo o dia. Depois ele os deixou no metro da Baker Street e tomou o ônibus nº 23 para a zona leste.
Ao matracolejar para Stepney, a despeito do alívio de estar novamente entre gente impolida que não pedia mais do que a sua parte numa cadeira dura, uma lenta depressão
foi tomando conta de Stephen. Como se sentira física e espiritualmente diminuído, como se sentira diferente dos outros durante voltas em todas as metas de críquete,
os encontros e cumprimentos, o almoço no Guard's Club Marquee - "seu diabinho" - quase podia ouvir o pensamento por trás dos olhares indiferentes dirigidos para
ele pelos amigos do primo, ao discutir com Geoffrey a última comédia musical, a corrida de obstáculos
de Sussex, e a última fantasia para o Cambridgeshire. Com esta disposição, chegou à Sede. No saguão, ainda redolente dos odores do bife refogado com repolho do meio-dia,
passou por Luftus, que saía, e deu-lhe uma "boa-tarde". O coadjutor noviço mal respondeu e escorregou para a frente, discreto e elegante, o olho com um tal brilho
de malícia e divertimento, que Stephen recuou instintivamente.
- Que é que há, Loftus?
Já na porta, o outro como que se voltou, com lábios torcidos e apertados pelo humor eclesiástico.
- Então não sabe?
- Claro que não, o que é?
- Não muito, acho eu. A não ser que a pequena Dill parece estar em maus lençóis.
De que diabo estava ele falando? pensou Stephen. Mas deu de ombros, e vendo que não havia correspondência na estante, subiu as escadas. Sentada tesa numa cadeira
dura no centro do seu quarto, usando as suas roupas de sair à rua, um chapéu de palha chato com uma fita estreita, e luvas brancas de algodão, estava Jenny.
Levantou-se imediatamente quando ele entrou, mas com compostura, e enquanto ele a olhava com surpresa, uma vez que ela normalmente não vinha à Sede nos sábados,
ela começou:
- Peço-lhe desculpas pela liberdade, senhor. Mas eu queria estar certa de encontrá-lo. E parece que não havia outro jeito senão eu esperar.
- Muito bem - disse ele incerto. - Não quer sentar? Assim é melhor. Então, que é que há?
Enquanto ele ia até a lareira, ela tornava a sentar-se na beira da cadeira, com as luvas cuidadosamente dobradas.
- Bem, senhor. O fato é que vou embora, hoje, meio de repente. E como o senhor tem sido tão bom para mim, achei que tinha que vir lhe dar adeus.
- Oh, Jenny, sinto muito. Não imaginei que você nos deixasse tão cedo.
- Nem eu, senhor. Mas a verdade é que me despediram.
- Despediram? - repetiu ele desnorteado.
- Sim, despediram. - Acenou com a cabeça, francamente, no seu modo prático, sem acanhamento. - A culpa foi minha. Ontem fui tão boba que vim sem o meu espartilho.
Eu nem notei que já começava a aparecer. Mas não há jeito de enganar essa cozinheira. Correu para o Guardião como uma flecha.
- Mas de que diabo está falando?
- Não está vendo, senhor? Vou ter uma criança.
Ele ficou tão desconcertado que não conseguia achar o que dizer.
- Oh, Jenny, como é que você...?
- Acho que me deixei levar, senhor.
- Como?
- Nós todos temos sentimentos, senhor. Não se pode fugir disso. Oh, eu sou muito respeitável, garanto lhe. Alf é um sujeito correto. Camaroteiro de navio, como eu
lhe disse. Vamos casar quando ele voltar.
Houve uma breve pausa, enquanto Stephen a estudava com simpatia.
- Suponho que você o ama.
- Acho que deve ser isso, senhor. - Um ligeiro e sábio sorriso passou-lhe pelo rosto jovem e fresco. - Ele é muito mais velho que eu, isso é. E vou lhe dizer: se
não fosse pelas duas cervejas que tomei no Good Intent, eu não teria cedido. Mas aí eu também podia ter feito pior. Alf é decente, lá isso é. E habilidoso também.
Gosta de música e me ensinou a tocar gaitinha de boca.
Outra pausa.
- Bem... vamos sentir a sua falta, Jenny.
- E eu vou sentir falta do senhor. Acho que o senhor foi até bom demais comigo. Não é igual a outros por aqui.
- Que outros?
- Bem, principalmente o Guardião, senhor. Tenho que dizer que ele me perseguiu muito antes de me botar na rua.
- Mas você não está saindo por sua vontade?
- Oh, não, senhor. Isso não me convém nem um pouco... Vivo por minha conta, sabe, e não tenho pais vivos. Mas o Guardião não queria ter este lugar contaminado, disse
ele, com três jovens-coadjutores por aqui, e me despachou na hora.
Stephen mordeu o lábio. Olhando disfarçadamente para a moça, percebeu que, sob a sua expressão habitual de serenidade e bom humor, ela parecia pálida e desorientada.
Seria capaz de jurar que não havia nela um pingo de maldade.
- Jenny - disse ele impulsivamente - eu não quero interferir. Mas espero que você tenha feito arranjos para... ir a um hospital... essas coisas.
- Não vou para o hospital, senhor. Tenho o meu quarto. E vou falar com a Sra. Kelley. Ela é parteira, senhor, e muito recomendada.
- Você tem certeza de que estará bem?
- Oh, não se preocupe comigo, senhor. - Pela primeira vez havia uma nota de tristeza na sua voz. - Eu só espero não ter trazido encrenca para o senhor. Isso tudo
aconteceu porque o senhor me arranjou trabalho na aula de arte. E o Guardião parece que ficou furioso com isso.
Stephen ficou um tanto desconcertado com essa notícia. Contudo, o seu genuíno interesse era por Jenny. A admiração que sentia por sua coragem e bom senso, e a indignação
pelo tratamento que lhe tinham dado, tornavam-no mais descuidado consigo. Tinha começado a gostar dela nos últimos meses,
e não podia deixá-la sem alguma expressão da sua boa vontade. Voltou-se de lado, remexeu meio inconscientemente na sua carteira e deu um passo na direção dela.
- Escute, Jenny. Não quero ofendê-la. Mas você fez tanta coisa por mim aqui... você realmente vai precisar de alguma coisa para sustentar-se. Eu gostaria que aceitasse
isto.
Desajeitadamente, pôs-lhe na mão uma nota de cinco libras, que, para esconder o seu elevado valor, dobrara em várias partes.
- Não... não vou aceitar isso...
- Mas Jenny... você tem que...
As lágrimas não lhe vinham facilmente, mas ela passara por tantas agruras naquele dia, que agora elas corriam quentes pelas suas faces.
Nesse momento, enquanto ela se retirava e ele a acompanhava, estendendo-lhe o dinheiro, a porta abriu-se e o Guardião entrou. Houve um silêncio mortal por um momento,
enquanto ele ficava petrificado. Depois, com a voz controlada, disse:
- Pode ir agora, Dill.
Quando Jenny se voltou para sair, arrasada, com as lágrimas a escorrer lhe pelas faces, Stephen, a despeito da sua expressão culpada, vermelha, teve calma suficiente
para se aproveitar da sua confusão e enfiar-lhe a nota no bolso da jaqueta.
- Adeus, Jenny - murmurou ele. - E muita sorte.
Sua resposta, se resposta houve, foi inaudível.
Ainda na sua maneira distante, o Reverendo Crispin fechou a porta atrás dela; depois, com um rápido olhar para Stephen, comprimiu os lábios e fixou o olhar no teto.
- Desmonde - disse ele - presumi que a sua conduta tinha sido seriamente indiscreta. Mas jamais sonhei que pudesse ir tão longe. Como amigo de seu caro pai, isso
me aflige mais do que posso expressar.
Stephen engoliu o bolo que tinha na garganta. A cor lhe fugira do rosto, mas havia uma centelha nas suas pupilas escuras.
- Não posso compreendê-lo.
- Ora, vamos, Desmonde. Você não pode negar que está, e tem estado há algum tempo, em termos de imprópria intimidade com a jovem pessoa que acabo de despedir.
- Fui amistoso com Jenny. Ela fazia muitas pequenas coisas para mim. E procurei ajudá-la, em retribuição.
- Ah! - fez o Guardião num tom significativo. - E a sua ideia de ajudá-la é estar frequentemente com ela, sozinho, no seu quarto?
- Ela vinha arrumar o quarto. E ocasionalmente fiz alguns esboços dela. Isso é tudo.
- Ora essa! Então você acha que faz parte dos seus deveres, como candidato à ordenação, tomar um modelo, furtivamente, entre as criadas desta casa de Deus? Foi meu
dever examinar alguns desenhos que resultaram dessa colaboração ilícita, e devo confessar que me pareceram extremamente questionáveis.
O sangue subiu à testa de Stephen. Seus olhos fuzilaram furiosamente.
- Pelo que sei do seu gosto, senhor - respondeu ele, tremendo ligeiramente - não me surpreende que não os tenha compreendido.
- É mesmo? - fez Bliss com a calma ácida que achava ir-lhe tão bem. Na verdade, parece que meus padrões, particularmente os de moralidade, diferem dos seus.
- Certamente diferem. - Stephen jogou a prudência de lado. - Eu não teria atirado essa pobre moça no olho da rua por causa de um erro.
- Ouso dizer que não. Isso é precisamente o que eu temia.
Até este momento, as maneiras do Guardião tinham sido estudadamente controladas, mas agora as suas narinas se apertavam e algo não diferente de uma carranca se estabeleceu
na sua testa elevada.
- Embora Dill tenha dado o nome do seu parceiro, não estou inteiramente convencido. Minha firme convicção é de que, pela sua conduta para com essa infeliz moça,
pela maneira como a utilizou para os seus fins chamados artísticos, você é responsável, ou pelo menos indiretamente culpado, pelo estado de depravação em que ela
caiu.
Respirando rapidamente, Stephen encarou Bliss com uma expressão maldosa no rosto. Explodiu:
- Nunca ouvi tanta tolice na minha vida. Nem tamanha hipocrisia. Jenny não é depravada. Ela tem um namorado e vai se casar com ele. Sua ideia de caridade cristã
é vilipendiá-la, e a mim, sem uma justa causa?
- Cale-se, senhor. Não tolerarei que fale comigo dessa maneira. Na verdade, se eu fosse cumprir à risca o meu dever, deveria pedir-lhe que deixasse a Sede imediatamente.
- Fez uma pausa para se recuperar. - Mas em atenção à sua família, e também ao futuro que ainda pode estar à sua frente, estou disposto a ser mais tolerante. Devo
dar ao seu pai alguma ideia do que ocorreu. E você, sem dúvida, me dará a sua garantia por escrito de abandonar, de uma vez por todas, essa obsessão que chama de
"arte", e que é inteiramente incompatível com a sua vocação de clérigo. Haverá, além disso, mais algumas restrições que sou obrigado a lhe impor. Venha ao meu estúdio
depois das orações noturnas, e eu o aconselharei.
Terminando a entrevista, sem dar a Stephen uma oportunidade de responder, girou nos calcanhares e saiu do quarto.
- Ora, vá para o diabo que o carregue! - exclamou Stephen violentamente. Mas infelizmente a porta já estava fechada.
Durante uns momentos, Stephen permaneceu tenso, de punhos cerrados, olhos fitos nos painéis de carvalho envernizado. Depois, com um gesto de abandono, afundou numa
cadeira diante da escrivaninha, tirou papel da gaveta e apanhou uma caneta.
Caro papai,
Fiz aqui o melhor que pude e fui nisso um completo fracasso. Não quero magoá-lo, tomando uma decisão final contra a sua vontade, mas, nas circunstâncias, acho que
devo me afastar um pouco - um ano, no mínimo - até poder ver as coisas mais claramente e experimentar a minha capacidade nesse campo particular tão desagradável
para o senhor que sequer o nomearei. Compreendo o golpe que isto representa para o senhor, e a minha única desculpa é que simplesmente não posso evitá-lo.
Recomendações a todos em Stillwater e a Claire. Tornarei a escrever-lhe quando estiver em Paris.
Stephen
CAPÍTULO VI
PARIS ERA DESCONHECIDA PARA STEPHEN, e embora ao primeiro fôlego o estimulasse como vinho, ele entrou nela nervosamente - como se temesse aqueles olhares satíricos
que os verdadeiros parisienses devem conceder a um forasteiro. Assim, apegava-se ao nome de um hotel que ouvira o pai mencionar num tom de benigna aprovação clerical,
e dando-o ao cocheiro com a maior segurança que pôde encontrar, foi arrebatado da Gare du Nord com uma imprudente velocidade através das ruas naquela tarde de domingo,
surpreendentemente vazias, para o Clifton, na Rue de la Sourdière. Parecia um lugar tranquilo, não particularmente excitante talvez, abrindo-se através de uma entrada
estreita para um pátio quadrado envidraçado, em torno do qual os quartos estavam dispostos atrás de descascados balcões de ferro fundido. Na portaria sonolenta -
o tom era dado por um gato malhado de preto e amarelo dormitando em cima do balcão - não se surpreenderam pela súbita materialização de um jovem inglês. Na verdade,
quando Stephen foi conduzido ao seu quarto no andar de cima, que era um tanto escuro e bolorento, com o papel de parede desbotado e uma enorme cama de cortinas vermelhas,
o idoso concierge, desafivelando as malas do ombro com exagerada falta de ar, sobressaltou-o ligeiramente ao lhe perguntar se ele queria chá.
- Não, muito obrigado - sorriu Stephen, pensando no extraordinário valor que aquele indistinto interior dava ao velho de olhos lacrimejantes com as faces caídas,
marcadas por veias vermelhas, o seu colete listrado de preto e amarelo. - vou sair... e olhar um pouco por aí.
- Não há muito que ver hoje, monsieur - disse o porteiro, encolhendo amavelmente os ombros. - Tudo está fechado.
Mas Stephen mal podia esperar para desfazer a mala e atirar suas coisas no armário poeirento. Então, eufórico, deixou o hotel e foi andando pelas ruas, a esmo, ao
longo da Rue du Mont Tabor e pela Place de la Concorde. Seu imediato pensamento tinha sido em Glyn, mas no constrangido momento de partir, ele esquecera de pedir
o endereço de Richard, e naquele ínterim não recebera nenhuma notícia dele. No entanto, Stephen estava certo de que, no círculo que se propunha frequentar, logo
o encontraria.
O tempo estava bom e claro, o céu pálido riscado pelas costelas de nuvens brilhantes. Quando viu a longa fila de castanheiros, agora em plena folhagem, junto ao
rio, quase exclamou alto. Agitadas pela brisa, as folhas eram luz e sombra, macias, encontrando os seus olhos como uma carícia. Através da avenida chegou ao Sena,
cinza-aço e polido, reverberando atrás de barcaças atracadas. Numa destas, uma jovem mulher, de seios fartos e cabelo louro, estava pendurando roupas cor-de-rosa
numa corda. Um cachorrinho saltitava nos seus tornozelos. Um homem de camiseta e chapéu baixo de feltro fumava placidamente, de braços nus, sentado num balde emborcado.
Numa espécie de transe melódico, Stephen caminhou lentamente pela margem, através de Port Royal, além da linha de quiosques de livros, de volta à Pont Neuf para
a L'Île de la Cité. Lá, ficou a olhar o jogo de cores sobre a água, o escurecer das sombras sobre as moles de pedra. Somente quando a luz desapareceu, ele se voltou,
com um suspiro apatetado, e começou a voltar para o hotel.
Agora a cidade despertava do seu torpor dominical. Nas ruas laterais, ao norte do rio, os pequenos cafés de esquina começavam a se encher de maneira discreta mas
movimentada. As mercearias estavam abrindo, e famílias da classe média começavam a tomar ar, homens robustos com pantufas apareciam nos umbrais. Diante de uma padaria,
ainda fechada, donas-de-casa, tagarelando tranquilamente, reuniam-se para comprar pão. Estou em Paris, pensava Stephen estonteado, finalmente, finalmente.
À guisa de contraste, o Clifton, banhado numa ténue luz religiosa, tinha um ar solene, quase sepulcral. Na verdade, por um instante Stephen teve a tentação de dar
a volta e ir cear no Maxim's ou no Café Riche, ou qualquer daqueles restaurantes alegres sobre os quais lera tantas vezes. Mas estava cansado e tímido para ir desacompanhado.
Além disso, tinha resolvido fazer uma razoável economia. Da sua pensão anual restavam-lhe 150 libras, e essa quantia deveria durar um ano inteiro.
Assim, baixou ao frio refeitório e comeu sozinho - a não ser por um distante cavalheiro solteirão numa desmazelada jaqueta Norfolk que lia continuamente entre os
pratos, e duas cochichantes velhas de malva, todos inconfundivelmente ingleses - uma refeição de cardápio fixo, de sopa, carneiro, ameixas amargas cozidas, que,
embora fossem perfeitamente saudáveis, demonstravam a falácia do argumento de que, na França, a cozinha francesa era uma arte universal. Contudo, nada poderia abater
a sua alegre disposição. Subiu as escadas assobiando e dormiu como uma toupeira na cama de dossel.
Na manhã seguinte, sem demora, saiu para Montparnasse. Depois de considerável reflexão, tinha resolvido não se matricular na École des Beaux Arts, mas procurar uma
atenção mais pessoal, dada pelo Professor Dupret na sua famosa academia do Boulevard Seline. Encontrou o estúdio sem dificuldade, tendo comprado, no balcão do hotel,
um mapa de Paris. Era no último andar de um edifício esquisito, parecido com um quartel, protegido por grades em ponta de lança e guardado por duas guaritas vazias,
bem no fundo do boulevard. Pairava no ar um cheiro de casca de tanino, indicando que ali fora uma armaria, e uma grande algazarra lá em cima sugeriu a Stephen, por
um sobressaltado momento, que os soldados ainda o ocupavam.
Quando subiu, depois de completar as formalidades de admissão com o massier, um tipo corpulento de cara chata, suéter cinzento, calças de lona, que tinha a aparência
de um boxeador aposentado - e que na verdade lá estava para impedir uma flagrante desordem - a aula já tinha começado.
A saia ampla e clara, aquecida por uma enorme estufa holandesa, com paredes que pareciam todas janelas, estava apinhada com uns 50 alunos, formando o grupo mais
estranho que ele já tinha visto. Na maior parte, eram homens entre 20 e 30 anos de idade, vestidos numa variedade de gostos, de muitas nacionalidades - eslavos barbudos,
indianos de pele escura, um grupo de escandinavos louros, vários jovens americanos. As poucas mulheres eram uma coleção esquisita. O olho de Stephen prendeu-se numa
senhora de idade metida numa blusa cor de rato, espiando a sua tela através de um pincenê de aros de ouro, como uma professora diante do seu quadro-negro num jardim
de infância do campo.
O barulho, ali dentro, era ensurdecedor - um rumor contínuo de conversação, trechos altos de canções, em línguas competitivas, observações fanfarronas
gritadas através da sala. Parecia que o tumulto ia permitir que Stephen entrasse sem ser notado. Mas ao ficar ali na porta, hesitante e um tanto pálido, vestindo
a sua roupa escura de clérigo, colarinho branco engomado e gravata preta, a vestimenta regular para os coadjutores da Clinker Street, sobreveio um infeliz intervalo
durante o qual a atenção da classe se voltou diretamente para ele. E então, no silêncio, uma voz de falsete exclamou:
- Ah! C'est Monsieur l'Abbé.
Uivos de risadas saudaram essa observação. Entrando confuso, Stephen encontrou um banco coberto com raspaduras de paletas, mas nenhum cavalete, espremeu-se com dificuldade
para um lugar, e abriu a sua pasta de papel Ingres sobre os joelhos.
O modelo, um velho de longos cabelos prateados, com o aspecto de um ator decadente, bonito, estava sentado numa postura convencional na plataforma do centro, ligeiramente
inclinado para a frente, com o queixo apoiado nas costas da mão. Stephen não gostou da pose, e a expressão do velho era aborrecida e indiferente, mas apanhou o seu
carvão e começou a trabalhar.
Às 11 horas Monsieur Dupret apareceu - um homem de uns 60 anos, belo de uma maneira teatral, com uma cabeleira arrepiada, porte ereto e digno, e mãos móveis. Apesar
das calças ligeiramente frouxas, o seu fraque ajustado dava-lhe um ar correto, distinto, acentuado pela fita na lapela. A sua entrada, impressionante e brusca, causou
uma cessação do barulho maior, e em relativo silêncio ele começou a dar vagarosamente a volta à sala, detendo-se aqui e ali para examinar uma tela com olhos apertados,
pronunciar, com um floreado gesto das mãos, umas breves palavras, mais como um cirurgião visitando a sua enfermaria.
Quando ele se aproximou, Stephen preparou-se para algumas palavras de saudação, de cortês interrogação, mas o professor, com alheamento impessoal, não disse coisa
alguma. Olhou de esguelha para Stephen, meio curioso, meio indiferente, e depois para o seu esboço, e, no instante seguinte, sem um piscar de olhos, desapareceu.
À uma hora tocou uma sineta. Imediatamente se ergueu uma vozearia, o modelo levantou-se como se fosse soltado por uma mola e afastou-se da plataforma, enquanto em
volta os estudantes atiravam pincéis ou carvões e começavam a se acotovelar contra a porta. Perturbado e decepcionado, Stephen foi arrastado, contra a sua vontade,
pela turba que empurrava. Subitamente, no seu cotovelo, ouviu uma voz agradável.
- Você é inglês, não? Meu nome é Chester.
Stephen voltou a cabeça e deu com um jovem mais ou menos da sua idade sorrindo para ele. O cabelo, o queixo partido e os olhos azuis, sombreados por compridas pestanas
negras, davam-lhe um ar de sincero e atraente encanto. Usava uma velha gravata de Harrow.
- Espero você lá embaixo - disse ele quando a maré o carregou. Lá fora, Chester estendeu-lhe a mão.
- Espero que não se importe de eu vir falar com você. No meio dessa turba, os que são do outro lado do Canal devem ficar juntos.
Após a sua deprimente recepção, Stephen estava contente por ter achado um amigo. Quando se apresentou, Chester fez uma pausa por um momento, e exclamou:
- Que tal almoçar comigo?
Saíram juntos pela avenida.
O restaurante em que entraram ficava bem perto, na Place Seline, um salão estreito, de teto baixo, quase uma adega, abrindo para uma cozinha escura, a meia dúzia
de passos do nível da rua, com um fogo de carvão de lenha e espetos com assados, cheio do barulho de panelas de cobre e de um agradável cheiro de cozinha. O lugar
já estava repleto, principalmente de alunos de Dupret, mas Chester, com tranquila segurança, guiou-o através de um pequeno pátio adornado por cubas de alfenas, calmamente
retirou o cartão marcado "RESERVADO" de uma mesa do fundo, habilmente atirou o chapéu para um cabide e convidou Stephen a sentar-se.
Imediatamente, uma mulher gorda, de cara vermelha, vestida de preto, protestou da cozinha:
- Não, não, Harry... Esse lugar está reservado para o Monsieur Lambert.
- Não se agite, Madame Chobert - sorriu Chester. - A senhora sabe que Monsieur Lambert é meu amigo. Além disso, ele sempre chega atrasado.
Madame Chobert não se deu por satisfeita; discutiu e resmungou, mas o charme de Harry Chester - embora ela claramente tentasse precaver-se contra ele - no fim acabou
por vencê-la. Encolhendo os ombros com pena da sua própria fraqueza, levantou a ardósia escrita a giz que pendia da cintura do seu avental, e apresentou-lhes o cardápio.
Por sugestão de Chester, pediram potage maison, boeuf bordelaise e um queijo brie. Uma jarra de cerveja amarela e espumante já estava sobre a mesa.
- Não é uma pessoa má - sorriu Chester quando ela se afastou. Durante a refeição, ele manteve a conversação viva e fluente, aludindo, com inesgotável provisão de
troça e frases feitas, aos seus vizinhos. Apontou para Biondello, o italiano, que já tinha exposto no Salon do ano passado, e Pierre Aumerle, um caso irremediável,
que bebia uma garrafa de Pernod todos os dias, almoçando com uma mulher de semblante ocre com um enorme chapéu, para a qual Chester ergueu as sobrancelhas com um
sorriso. Entrementes, sondou Stephen com algumas perguntas divertidas; então, depois que trouxeram o café filtre, fez uma pausa, com um certo ar consciente, e pareceu
ter achado necessário explicar-se.
- Curioso, não? - comentou ele, riscando desenhos na toalha xadrez - como a gente sempre pode identificar um universitário. Philip Lambert também é um deles. Depois
de Harrow - lançou um olhar rápido para Stephen
- eu mesmo devia ter ido para Cambridge... se não a tivesse trocado pela arte.
Continuou, revelando, com um sorriso suplicante, que o pai tinha sido um grande plantador de chá no Ceilão, ao passo que a mãe, agora viúva, voltara para habitar
uma imensa mansão de Highgate com uma legião de criados. Naturalmente, ela o estragara com mimos, dava-lhe uma generosa pensão. Estava em Paris fazia 18 meses.
- É muito divertido - concluiu ele. - Você deve me deixar mostrar-lhe os meus trabalhos.
- Que acha de Dupret? - perguntou Stephen.
- É o professor mais decente que há por aqui. Você sabe que ele pertence à Legião de Honra?
Ligeiramente chocado, Stephen não respondeu. Chester intrigava-o, como o intrigaria um desenho estranho que, embora agradável, tivesse complexidades estranhas ao
seu gosto.
Terminaram o café. As pessoas começavam a se retirar.
- Seu amigo Lambert parece que não vem - disse Stephen por fim, para quebrar o silêncio.
Chester riu-se.
- Philip é um mendigo errante. Você nunca sabe quando ele vai aparecer... ou com que atraentes saias.
- Ele frequenta a Dupret?
- Trabalha em casa... quando trabalha. Tem recursos particulares, você sabe, e já andou por toda a Europa, estudou em Roma e Viena, mas agora ele e a mulher alugaram
um pequeno apartamento na Esplanada dos Inválidos. - Chester assentiu com um aceno. - E posso lhe dizer que a Sra. Lambert é muito elegante. E, naturalmente, uma
perfeita dama.
Ali estava novamente uma observação que arranhava o ouvido de Stephen, e ele olhou de um modo esquisito para o seu colega, imaginando como poderia usar uma expressão
infeliz. Mas antes que tivesse tempo de responder à pergunta, Harry Chester sentou-se.
- Olhe, aí está Philip.
Seguindo o olhar de Chester, Stephen viu entrar no restaurante um homem delgado, de aparência afetada, com cerca de 30 anos, vestido com uma curta sobrecasaca marrom,
colarinho baixo e gravata fofa. O rosto, pálido e profundamente marcado abaixo dos olhos, tinha um ar de langor. O seu brilhante cabelo preto era repartido nitidamente
no meio, mas a um lado uma mecha tinha escapado num pequeno cacho sobre a sua testa branca. Os seus
modos, aliás toda a sua aparência, davam a impressão de uma indolência amaneirada, de aborrecimento e pretensão.
Quando chegou, pôs a bengala debaixo do braço e começou a descalçar uma luva amarelo-limão, enquanto olhava para Chester com uma alegria levemente desdenhosa.
- Agradeço-lhe por ter guardado a minha mesa, caro rapaz. Mas agora deve ir-se. Espero um convidado às duas horas. E não preciso de acompanhante.
- Estamos saindo, Philip. - O tom de Chester assumira uma inflexão submissa. - Olhe, gostaria que conhecesse Desmonde. Ele entrou para a Dupret hoje.
Lambert lançou uma olhadela a Stephen e depois curvou-se polidamente.
- Desmonde acaba de chegar do seu último ano em Oxford - disse Chester rapidamente.
- Ah, sim - exclamou Lambert. - Que colégio, posso perguntar?
- Trinity - respondeu Stephen.
- Ah! - Lambert relaxou com um sorriso, mostrando os dentes brancos e parelhos, e, tirando a segunda luva apertada de pelica - uma operação que ele executava em
silêncio e sem arrepiar um pêlo - estendeu uma mão pequena para Stephen. - Muito prazer em conhecê-lo. Também estive na Casa. Por favor, não tenham tanta pressa
em se retirar. Posso facilmente encontrar outra mesa.
- Asseguro-lhe - disse Stephen, levantando-se - que terminamos mesmo.
- Então venha tomar chá conosco um dia destes. Estamos em casa quase todas as sextas-feiras às cinco horas. Então falaremos como dois homens de Oxford - seu sorriso
brincou na direção de Chester - e um que quase foi para Cambridge.
A conta, que Madame Chobert apresentara rapidamente, estava sobre a mesa. Uma vez que Chester parecia não vê-la, Stephen apanhou-a e, a despeito dos súbitos e enérgicos
protestos de Harry, pagou a despesa.
CAPÍTULO VII
SOB A MAGIA DA SUA NOVA LIBERDADE, Stephen, entrou rapidamente e com deliciada facilidade numa rotina agradabilíssima, tanto mais que, uma semana
após a sua chegada, recebeu uma carta de Stillwater que foi um grande alívio para o seu espírito. Embora acentuasse o sofrimento ocasionado pela súbita partida de
Stephen, o Reitor havia-o, em certo sentido, perdoado. Obviamente, escreveu ele, a inclinação (a palavra "tentação" fora riscada) tinha sido demasiado forte para
opor-lhe resistência. Por conseguinte, podia "ser tudo pelo melhor", se, como o próprio Stephen tinha proposto, esse interregno de um ano fosse considerado por ambos
os lados como um "campo de prova". Entrementes, aprovava a escolha de Stephen quanto à sua acomodação, conhecia-o demasiado bem para exortá-lo à virtude, e desejava
que nada lhe faltasse do que cabia à sua condição.
De manhã, era uma sensação que nunca diminuía acordar com a consciência de que estava em Paris, de fato seguindo a sua "carreira artística".
Levantou-se, vestiu-se rapidamente e, como o desjejum no Clifton não tinha nada que o recomendasse, saiu para uma pequena crèmerie na esquina do hotel. Ali, por
30 soldos, foram-lhe servidos um jarro de café ou lait e dois croissants flocosos ainda quentes do forno e recém-trazidos pelo padeiro.
Sua caminhada para o estúdio através das ruas frescas era sempre uma delícia, A multidão apressada e os policiais de capa azul, as donas-de-casa madrugadoras com
os braços enganchados em cestas carregadas, um soldado zuavo de calça escarlate, duas porteiras tagarelando apoiadas nas suas vassouras, um velho varredor de rua
lançando esguichos de água pela sarjeta, carrinhos barulhentos de verdura fresca do Halles - tudo isso o extasiava além das exclamações súbitas, agudas, a tagarelice
de muitas línguas, um vagaroso badalar de sinos ecoando nos edifícios de um cinza suave, as graciosas pontes brancas, o rio adorável, já começando a cintilar ao sol.
No estúdio, é verdade, ele não se sentia em casa. A falta de ordem e o perpétuo barulho tornavam difícil a concentração. Parecia que muitos estudantes tinham vindo
menos para trabalhar do que por mero divertimento e feroz exibição dos seus espíritos animais. Riam e cantavam, pregavam peças grosseiras, mantinham intermináveis
discussões em altas vozes nos cafés, afetavam uma boémia exagerada no vestuário e nas maneiras. Falavam a gíria do quarteirão, sabiam tudo a respeito dos últimos
"movimentos", reconheciam Manet, Degas e Renoir como seus mestres e imitavam-nos dolorosamente, desprezavam Millet e Ingres, eram muito críticos com Delacroix, e
contudo tinham pouco ou nada para oferecer de seu.
Naturalmente outros havia que se aplicavam. Ao lado de Stephen havia um moço polaco, vindo de uma pequena cidade do interior próxima de Varsóvia, que, inflamado
pela ambição, tinha vindo sem dinheiro para Paris. Para pagar a sua mensalidade na Dupret, havia trabalhado 12 meses como carregador na estação de Montparnasse.
A intensidade do seu esforço era assustadora, contudo ele não tinha o menor talento. Muitas vezes, quando Dupret
fazia a sua ronda diária, Stephen esperava que ele, com uma única palavra, acabasse piedosamente com aquele fútil labor. Mas o professor não dizia nada, nada além
de corrigir uma linha ou apontar uma expressão vazia, a falta de equilíbrio na composição. Sua atitude com Stephen continuava igualmente impassível, embora uma ou
duas vezes, após estudar alguma parte do seu trabalho, olhasse para ele de uma maneira curiosa, quase às escondidas, como se o visse e examinasse pela primeira vez.
Mais e mais, sob o alheamento de Dupret e suas grandes maneiras, Stephen começou a discernir um núcleo carcomido de decepção, a biliosa amargura de um homem que
no seu coração sabia que tinha falhado no cumprimento da sua expectativa juvenil. Ter obtido o reconhecimento dos círculos oficiais, exibir anualmente o seu trabalho
no Salon (uma pintura segura e cuidadosamente executada, que sempre era pendurada em um bom lugar), participar das juntas e comissões, representar a arte de luvas
brancas nas recepções do governo - tais distinções significavam alguma coisa para quem queria abalar o mundo com uma poderosa obra-prima? Dupret não tinha um verdadeiro
interesse pelo seu estúdio e ainda menos por seus alunos, a não ser quando, com uma ponta de ciúmes, via a evidência de um talento que podia ultrapassar o seu. Atrás
daquela fachada, era um homem vazio, um homem movido pelo homem que supunha ser, um homem mais digno de pena do que desprezo. Na verdade, quando o professor entrava
imponentemente na sala, Stephen fazia dele uma curiosa imagem, no fim do dia, despindo vagarosamente o fraque apertado e soltando os botões brilhantes dos sapatos,
remexendo os dedos comprimidos para aliviar os calos, voltando para a tela semiacabada um Casamento Bretão, pensando, com um arrepio: "Mon Dieu, devo continuar com
isto?"
Na hora do almoço, Stephen ia com Chester ao restaurante de Madame Chobert, mas ocasionalmente escapava à efusiva amizade de Harry e vagabundeava ao longo do cais,
mastigando um petit pain no qual havia uma fatia de presunto avivada pela mostarda amarela. Então, apressando o passo, ia aos museus, ao Louvre ou ao Luxembourg.
Era quase noite quando, com olhos ainda não ajustados às realidades da rua, deixava as compridas galerias e caminhava de volta para o Clifton.
Para Chester, e as poucas outras relações que fizera na Dupret, parecia extraordinário que Stephen passasse as suas noites só, e várias vezes instavam com ele para
que os acompanhasse numa visita a Montmartre. Certa ocasião, ele acedeu, acompanhado de meia dúzia de outros, em ir a um café-concerto na Toque Bleue, perto do Moulin
de la Galette.
Mas ficou enormemente entediado com as cenas que se presumiam vívidas e excitantes, mas, de fato, eram estupidamente fúteis. Os salões de dança eram uma massa humana
empurrando, sapateando, rodeando, semi-intoxicada,
ampliada e distorcida por dezenas de espelhos, retorcendo-se em formas grosseiras, ao estridor de uma banda reles. Certo, nada podia ser mais assustadoramente triste
do que as caras dos frequentadores mais velhos - peitos côncavos e olhos mortiços, estranhamente rebarbativos. Algumas das conhecidas cocotes que Chester lhe apontava
eram francamente medonhas, seus parceiros, com roupas pretas justíssimas, sinistros e degenerados.
Mais tarde, diversas jovens se reuniram à festa, que agora atingia uma fase turbulenta. Suas vozes roucas e grosseira camaradagem, seus braços atirados em torno
de pescoços e seus carinhos cochichados em voz alta despertavam nele um frio desagrado. Enquanto ele permanecia ali sentado, pálido e silencioso, como um peixe fora
da água, uma das jovens se curvou para Chester, que tinha bebido um bocado, e, com os olhos em Stephen, riu-se sem motivo e murmurou alguma coisa no seu ouvido.
Imediatamente, Chester rompeu num ataque de riso.
Nesse momento, Stephen não fez nenhum comentário, mas a caminho de casa, com Chester, falou no assunto.
- Não foi nada, meu velho. Ela apenas disse - Chester, com um tom de desculpa, modificou o comentário original, impublicável - que você era um tipo esquisito. -
E quando Stephen desviou a cabeça, acrescentou: - Lamento que você não tenha se divertido esta noite. Não esqueça de que vamos visitar Lambert na sexta-feira. Avise-me
antes de sair.
Nesse dia, por volta das quatro horas, Stephen saiu para a Rue Bonaparte, onde, no número 15, Harry tinha um quarto no último andar. Após uma íngreme subida de três
lances de escada, percebeu que havia uma furiosa altercação, "e empurrando a porta meio aberta encontrou Chester discutindo com um homem baixo de chapéu preto e
quadrado e um sobretudo pardacento, que, imperturbável, superintendia os movimentos de um subordinado muito ocupado em meter num grande saco de serapilheira o relógio
do consolo, um par de vasos chineses e outros objetos que decoravam o quarto.
- Agora, por favor, o seu relógio, Monsieur Chester.
- Ora, deixe disso, Maurice - suplicou Chester - o relógio não. Dê-me um prazo até o fim da semana que eu pago.
Neste momento, Chester viu Stephen. Por um instante, apatetou-se; depois, aproximando-se, forçou um sorriso confiante.
- Não é uma coisa idiota, Desmonde? Esgotei a minha pensão há pouco. E esses credores importunos, miseráveis, estão me despojando. É praticamente nada. Uns míseros
100-francos. E naturalmente receberei o cheque de mamã no fim do mês. É claro que eu não sonharia em pedir a você; contudo, se houver alguma chance...
Houve uma pequena pausa, então Stephen disse, de boa vontade:
- Terei muito prazer em atendê-lo.
- Muitíssimo obrigado, meu velho. Você o terá de volta, com juros, no dia primeiro do mês. Está vendo, Maurice, seu ladrão? E agora foutre le camp.
Dobrou as notas novinhas que Stephen extraiu da sua carteira e atirou ao oficial de diligências, o qual, após contá-las duas vezes com o polegar umedecido, acenou
silenciosamente, esvaziou o conteúdo da sacola sobre a mesa, com uma reverência enigmática, imitada pelo seu companheiro, e deslizou para fora da sala.
- bom! Acabou! - Chester riu-se alegremente, como se fosse uma excelente piada. - Eu ia sentir falta das minhas velhas panelas. E, naturalmente, disto aqui... -
Colocando os vasos de volta no consolo da lareira, abriu descuidadamente a tampa de um estojo chato e exibiu uma medalha redonda de prata presa a uma fita azul;
depois, de um modo um tanto envergonhado, que não deixava de ser encantador, ajuntou: - Essas coisas não se devem mencionar, Desmonde. Mas uma vez que você me apanhou
desprevenido, tenho que falar... é a Medalha Albert. Pois é... tive que recebê-la, há alguns anos.
- Por quê?
Stephen não podia negar que estava impressionado.
- Ora, porque salvei uma vida no mar, é como chamam isso. Uma velha tonta caiu do navio ao largo de Folkstone. Não posso culpá-la... o mar estava muito agitado...
e era inverno. Aconteceu que fui atrás dela. Não foi absolutamente nada. Não estivemos na água mais do que meia hora, enquanto o vapor fazia a curva e nos mandavam
um bote. Mas vamos esquecer isso e tratar de andar. Se não nos apressarmos, chegaremos tarde para o chá.
Com seu bom humor inteiramente recuperado, Chester desceu as escadas na frente, falando e rindo durante todo o caminho até o apartamento dos Lamberts, situado num
beco sem saída muito atrás da Avenue Duquesne. Ali, num pátio de paralelepípedos, havia um pequeno pavilhão de pedra cinzenta - avivado artisticamente por uma porta
verde-maçã e janelas da mesma cor - que fora outrora a casa do porteiro de uma mansão nos dias de Henrique IV. Cheirando a almoço e a defumador recém-queimado, o
pequeno e um tanto escuro interior estava artisticamente disposto com pequenos tapetes felpudos aqui e ali, cortinas de contas e cadeiras de bambu. Um xale espanhol
estava estendido sobre o piano de armário.
Arrastados pela impetuosidade de Chester, chegaram cedo. Lambert, dormitando numa espreguiçadeira junto às cinzas da lareira, ainda parecia afundado na letargia
de após-almoço, e mal ergueu uma pálpebra pesada quando eles entraram. Mas a Sra. Lambert lá estava para recebê-los. Era alta e esbelta, mais velha do que Stephen
tinha esperado, com grandes olhos verdes, feições tendentes à rispidez, cabelo cor de areia e uma pele branca leitosa que com ele combinava. Seu vestido de tarde,
recortado em torno do pescoço de maneira rebuscada e com saias cheias e compridas, era de brocado branco.
Enquanto ela e Chester conversavam, Stephen observava-a, sentada com compostura, com o pescoço arqueado, contra um biombo laqueado, até que ela, como se notasse
o seu olhar perscrutador, voltou os olhos para ele com um sorriso em arco.
- Espero que aprove o meu vestido...
E como ela parecia esperar um cumprimento, ele disse:
- Estou certo de que Whistler teria gostado de pintá-la com ele.
- Que coisa mais encantadora para dizer. - E ajuntou, confiadamente: - Fui eu mesma que o fiz.
Dali a pouco saiu e trouxe o chá, numa bandeja de prata, com muitas xícaras, com finos sanduíches de agrião, e petits fours. Quando começou a servir, Lambert bocejou
e espreguiçou-se.
- Chá! - exclamou ele. - Não posso viver sem chá. Abençoado, nutritivo chá. Forte, Elise. - Aceitou uma xícara, balançou-a airosamente. Este pode ter vindo das extensas
plantações da sua família no Ceilão, Harry. Não é uma ideia estimulante? Diga-nos se reconhece o sabor. - Olhou para Stephen. - Bem... o que esteve fazendo nesta
cidade malvada, Monsieur l'Abbé?
Stephen corou, Viu que Chester tinha andado a tagarelar a seu respeito.
- Certamente lhe parecerá ridículo. Um futuro pastor desertando para a pintura.
E em poucas palavras explicou algumas das circunstâncias da sua vinda para Paris.
Quando terminou, seguiu-se uma breve pausa, e então Lambert exclamou, com a sua costumeira ironia:
- Bravo, Abbé! E agora que já fez a sua confissão, tem a nossa absolvição incondicional.
Elise, inclinando-se um pouco para ele, com um sorriso, murmurou:
- Deve ter sentido uma incrível vontade de pintar. Tome mais um pouco de chá.
Quando Stephen levantou a mão com a sua xícara até os olhos, viu três leques, pintados em seda à maneira japonesa, arranjados sobre a parede. Fez uma pausa, impressionado
pela delicadeza do trabalho.
- Quem fez essas coisas tão encantadoras?
As pálpebras de Lambert ergueram-se. Acendeu um cigarro, antes de responder, de modo quase casual:
- Para dizer a verdade, caro Abbé, são minhas. Se não lhe aborrecer, mostro-lhe mais alguns trabalhos meus.
Depôs a xícara, e de uma pequena passagem lateral trouxe várias telas; então, de uma maneira fatigada colocou-as em pé, uma após a outra, de modo que recebessem
toda a luz, numa cadeira alta junto à janela.
A maioria dos quadros era bem pequena, e de temas leves - um raminho de flor de cereja numa malga azul, dois salgueiros à beira de uma poça estagnada, uma criança
com chapéu de palha sentada num caramanchão à margem de um rio - contudo, cada um deles tinha uma beleza decorativa que acentuava o simples. Era uma qualidade que
parecia infundir em formas pálidas um encanto enfastiado e indefinível.
Mostradas as poucas pinturas, Stephen voltou-se para Lambert.
- Eu não tinha ideia de que podia pintar assim... são encantadoras. Lambert encolheu os ombros, mas estava claramente satisfeito, ao passo que sua mulher, estendendo
o braço, apertou vivamente a mão de Stephen.
- Phil é realmente um génio. Ele também pinta retratos. - Seus olhos verdes demoraram-se luzindo. - Se souberem de alguém que esteja interessado em comprar... Sou
a sócia comercial.
Depois disso, a campainha da porta soou e,.em rápida sucessão, outros convidados chegaram, todos singularmente apropriados para aquela atmosfera de refinada boémia:
um jovem de meias brancas com um manuscrito debaixo do braço, outro homem, menos moço, mas de ombros quadrados e bem vestido, da Embaixada americana, uma modelo
chamada Nina, que Stephen tinha visto ocasionalmente no restaurante de Madame Chobert. Um francês de monóculo, gordo e idoso, que beijou a mão de Elise com tocante
galanteria, e sobre o qual, como um possível comprador, ela voltou todas as suas blandícies.
Um chá novo foi trazido, Lambert serviu uísque, o ruído da conversação aumentou, e dali a pouco Stephen, que em sua primeira visita não queria ficar muito tempo,
levantou-se para se retirar. Philip e a esposa instaram para que ele viesse outra vez. Aliás, Madame Lambert interrompeu a conversa para acompanhá-lo até a porta.
- Venha conosco rio acima no domingo. Fazemos um piquenique em Champrosay. - Deteve-se, de olhos grandes, com o ar de quem fazia um cumprimento. - Philip gostou
muito do senhor.
No domingo, então, e em outros dias depois, Stephen acompanhou os Lamberts, às vezes só, às vezes com Chester ou outros de seus amigos, àquela adorável altura do
Sena, entre Châtillon e Melun. Tomavam o bateau mouche na Pont Neuf para Ablon, onde alugavam um esquife e subiam com remadas descansadas a vagarosa corrente verde,
serpeando placidamente entre as ribas tornadas famosas pela Floresta de Sénart até atracarem diante de uma estalagem à margem do rio, desembarcando para almoçar
numa mesa de madeira ao ar livre.
O tempo era soberbo, a folhagem no seu melhor momento de beleza madura, as malvas-rosas e os girassóis em plena florada. O sol cintilante e o
ar caricioso, o exercício, aqueles amigos agradáveis, a esfuziante novidade de cada vista e som, o apito rouco de uma barcaça, a cor da blusa de um operário, a pose
da mulher do encarregado da comporta, tudo o que nele despertava um êxtase vibrante agia como um entorpecente sobre Stephen. Lambert, tirante algumas horas de melancolia,
estava na sua disposição mais atraente, lançando um dito de espírito aqui, um epigrama ali, exibindo o seu brilhantismo, recitando longos trechos de Verlaine e das
Fleurs du Mal.
- Mais sagrada que o Indo - murmurava ele, detendo-se para tomar fôlego, arrastando os seus compridos dedos na corrente fria, com o peito estreito a arfar, a mecha
de cabelos caída sobre a testa úmida. - Esses lírios d'água... cálices do mais puro alabastro... translucidamente rosados... e frios... frios como os seios das ninféias
flutuantes... - E assim por diante.
Seu olho para a beleza não se limitava à natureza, e sempre que a mulher que os servia na estalagem era razoavelmente favorecida, ele, a despeito do olhar agudo
da esposa, flertava com ela ultrajantemente.
A princípio, Stephen trazia consigo um bloco, querendo registrar tudo o que via, mas Lambert desanimou-o com um sorriso cómico.
- Deve guardar tudo aqui, caro Abbé. - Bateu na testa ligeiramente. Mais tarde... na solidão... isso nascerá outra vez.
Numa tarde de domingo, depois de uma excursão mais encantadora do que qualquer outra, Stephen despediu-se dos Lamberts e de dois outros que tinham participado do
passeio de barco, e caminhou do embarcadouro, no Quai St. Bernard, para o seu hotel. O sol, afundando agora por trás da cúpula do Trocadero, tinha incendiado o céu
o dia inteiro. Animados pelo calor do dia, todos tinham se banhado num lago abaixo do açude de L'Hermitage, comido um almoço especial de trutas, frias com patê,
enriquecido pelo nobre Chambertin, e depois adormecido sobre a relva tépida embaixo das faias de Sénart.
Como ele se sentia bem!... a pele queimada pelo sol, os pulmões cheios de ar do campo, o corpo formigando com a água picante do rio... uma espécie de satisfação
divina espalhava-se por ele.
De súbito, ao atravessar a Rue de Bièvre, um homem saiu de uma entrada estreita bem à sua frente. Usava sapatos pesados, uma calça de pele de toupeira e uma blusa
de porteiro pintalgada de azul; em torno do pescoço, um lenço vermelho enrolado negligentemente. Parecia um trabalhador voltando para casa após um duro dia de labor;
contudo, algo no aprumo dos ombros, o porte desafiante da cabeça, fez Stephen sobressaltar-se. Apressou o passo para alcançá-lo.
- Glyn!
Richard Glyn deu meia-volta, de cara séria e cenhuda; então, ao olhar, as rugas que tão profundamente lhe franziam a testa foram aos poucos desaparecendo.
- É você, Desmonde... Conseguiu deixar aquilo.
- Há cinco semanas - disse Stephen sorrindo de prazer. - E desde então estive esperando encontrá-lo. Escute, estou justamente voltando para o hotel. Venha e jante
comigo.
- bom - considerou Glyn - eu bem que gostaria de dar umas dentadas. Não comi nada o dia inteiro.
- Deus do céu, que esteve fazendo?
- Pintando... desde as seis da manhã - respondeu Glyn com uma espécie de violência sombria. - Costumo esquecer o almoço quando estou trabalhando... especialmente
quando não consigo dominar meus amaldiçoados valores das nuanças.
Falando, os seus olhos de ágata cintilavam com uma súbita e rude impaciência, o cansaço de um prolongado e apaixonado esforço para criar. Travando Stephen pelo braço,
saiu com ele rua afora.
CAPÍTULO VIII
O APARECIMENTO DE GLYN, de lenço vermelho no pescoço e botas ferradas, causou um pequeno rebuliço na sala de refeições do Clifton. O velho chefe dos garçons, criado
na tradição dos milords ingleses, não gostou do que via, e as duas damas solteironas, que até agora consideravam Stephen com simpática aprovação, agitaram-se de
chocada surpresa. Richard, contudo, não pareceu importar-se e, aboletando-se na sua cadeira, passeou os olhos em torno com visível curiosidade.
- Por que, em nome do Céu, você se hospeda num lugar como este, Desmonde?
- Oh, não sei... habituei-me a ele, suponho.
Glyn provou a sopa, feita, como sempre, de farinha e água gordurosa.
- Talvez você goste da comida, não?
Stephen riu-se.
- Sei que não é lá essas coisas. Mas o prato de carne será bom.
- É melhor que seja. - Richard partiu outro pão. - Eu lhe disse que estava faminto. Uma noite destas vou levá-lo para comer numa verdadeira casa de pasto.
- No restaurante de Madame Chobert?
- Por Deus que não! Nada de casa de picadinhos artísticos!... Detesto falsas aparências, tanto em cozinha como em pintura. Um bistro de cocheiros perto da minha
casa. Você pode confiar numa taberna onde os cocheiros comem. Servem lá um patê de lebre que não é deste mundo. - Glyn se deteve. - Agora me conte o que andou fazendo.
De boa vontade, mas sem entusiasmo, Stephen iniciou um relatório completo das suas recentes atividades. Falou da sua "labuta" matinal na Dupret, encareceu a sua
amizade com Chester e os Lamberts, tornou-se lírico ao descrever as suas excursões a Champrosay. A princípio, Glyn ouvia com um sorriso entre irónico e sarcástico,
mas lentamente a sua expressão se tornou séria, e ele ficou olhando de esguelha para o seu companheiro.
- Bem - exclamou ele quando a narrativa terminou. - Você parece que tem andado ocupado. Talvez me leve depois ao seu quarto para vermos o que tem feito.
- Oh, não tenho muito que mostrar... - respondeu Stephen apressadamente. - Apenas uns poucos esboços. Tenho me concentrado nas linhas, sabe?
- Sim - fez Glyn.
Em completo silêncio, ele mastigava o resistente pouding à l'anglaise que constituía a sobremesa do Clifton. Não disse palavra por uns bons cinco minutos. Depois,
por baixo das sobrancelhas franzidas, voltou para Stephen um olhar firme que também tinha um reflexo de extremo desagrado.
- Desmonde, você quer pintar? Ou enganar a sua vida como um desses personagens extravagantes de La Boême?
- Não compreendo.
- Ouça, então. Há talvez 10 mil impostores safados nesta cidade que se imaginam artistas porque estudam um pouco, desenham um pouco e sentam os rabos nos cafés todas
as noites, cacarejando sobre as suas obras-primas natimortas. Você é quase um deles. Sabe muitíssimo bem que está desperdiçando tempo, Desmonde. Só o trabalho duro,
infernal, é que tira o que você tem aí dentro, não vagabundeando pelo Sena, estendido de costas numa canoa com um poseur simplório que lhe esguicha Verlaine e Baudelaire.
Stephen avermelhou-se, indignado.
- Você é injusto, Glyn. Chester e Lambert são sujeitos muito decentes. E Lambert tem certamente um grande talento.
- Besteira! Que fez ele? Algumas japonaiseries, leques pintados, fragmentos... oh, bem bonito, não nego, mas coisinhas meio efeminadas... afetadas... e tudo muito
pequeno.
- Certamente é um sinal de vulgaridade produzir enormes telas.
Em seu ressentimento, Stephen citara uma observação favorita de Lambert, e Glyn logo farejou a sua origem. Riu-se rudemente.
- E Rubens, e Correggio, e del Sarto, com as suas tremendas concepções, e o velho Michelangelo, cobrindo o teto da Capela Sistina com a sua portentosa visão da Criação,
trabalhando tão duramente que em muitos dias nem tinha tempo de tirar a roupa? Eles foram vulgares? Não, Desmonde... Lambert é um amador bem-dotado, um artista menor,
que nunca seria ouvido se não fosse empurrado por trás pela sua astuta mulher. Não tenho nada contra esse sujeito, é em você que estou pensando, Desmonde. Você tem
algo que Lambert daria a alma para possuir. Não quero vê-lo jogando isso fora por causa da sua maldita tolice. E quanto a Harry Chester, prosseguiu Glyn, será você
tão ingénuo para já não ter saltado por cima dele?
- Não sei o que você quer dizer - respondeu Stephen agastado.
Glyn pensou em esclarecê-lo, mas contentou-se com um sorriso.
- Quanto dinheiro ele já levou de você?
Stephen corou profundamente. Chester tinha em várias ocasiões pedido empréstimos, e agora já lhe devia mais de 500 francos, mas não tinha ele dado a sua palavra
de honra que os pagaria fielmente?
- Ouça - continuou Glyn mais tranquilo - você teve um falso início, acabou em más companhias e, pior de tudo, tem afrouxado abominavelmente. Se não se levantar,
estará cavando o seu próprio túmulo. O poço mais fundo do inferno é ocupado pelo artista que não trabalha!
Fez-se um comprido e gélido silêncio. Embora Stephen se tivesse defendido, ao comparar o seu próprio dia inútil com as horas de esforço concentrado de Glyn, uma
vergonha começava a apoderar-se dele.
- Que devo fazer? - disse ele por fim.
- Em primeiro lugar, sair desta casa anglicana de repouso.
- Quando?
- Agora.
O olhar consternado de Stephen pareceu divertir Glyn imensamente, mas num instante ele ficou novamente sério.
- Não posso lhe pedir que venha para o meu buraco. Mas conheço um homem que terá prazer em recebê-lo.
- Quem?
- Jerome Peyrat é o nome dele. Tio Peyrat. É um camarada velhusco, em situação não muito boa, que quer alguém para dividir as despesas. Um tipo esquisito, por Deus,
mas um verdadeiro pintor, diferente dos seus falsos boémios. - O meio sorriso de Glyn era desconcertante, mas desapareceu rapidamente quando ele concluiu: - Você
já não tem mais nada com Dupret, está claro. Pode usar o meu estúdio. E vou lhe apresentar o meu homem das tintas, Napoleon Campo. Ele fia... às vezes. Vamos embora.
A natureza de Stephen não era adaptada às mudanças súbitas e decisões bruscas, contudo havia uma força avassaladora nos argumentos de Glyn, uma
irresistível compulsão na sua maneira. Dirigiu-se, portanto, ao escritório e, para surpresa e mortificação do gerente, pediu e liquidou a sua conta. Então fez a
mala e trouxe-a para baixo, desculpando-se por sua partida inesperada com uma profusa distribuição de gorjetas.
Glyn, no corredor, e claramente olhado pelo pessoal do Clifton como o demónio da peça, mostrou-se frio a respeito daquelas gratificações, e comentou sombriamente:
- Aconselho-o a guardar o seu dinheiro, Desmonde. Você pode vir a precisar dele depois.
- Espere, Glyn. Eles têm que nos arranjar um carro.
- Para o diabo com o carro. Está realmente tão fraco que não pode andar?
Apanhando a valise, que não era leve, Richard atirou-a no ombro e saiu do hotel a passos largos. Stephen acompanhou-o para a poeira luminosa da rua.
Era uma distância considerável até o alojamento de Peyrat, mas Glyn, que tinha uma satisfação selvagem em extrair o máximo de si mesmo, percorreu-a em passos rápidos,
sem vacilar ou depor a mala. Finalmente, numa escura rua lateral de Rive Gauche, no triângulo formado pelo encontro da Rue de Assas e do Boulevard Montparnasse,
Glyn enveredou por uma entrada torta ao lado de uma pastelaria, que, embora mal iluminada por uma lâmpada fraca, estava esfregada e limpa, e começou a subir de três
em três os degraus de pedra. Deteve-se no segundo andar, bateu na porta e, sem esperar resposta, torceu o trinco e fez Stephen entrar.
Era um apartamento de três cómodos, e na sala de estar, mobiliada com correção burguesa, sentava-se diante da mesa coberta por um oleado um homem franzino, de ombros
redondos, com cerca de 50 anos, um rosto chato e sulcado e uma barba inculta, vestindo, apesar do calor do fogo que flamejava na lareira, um descosido sobretudo
preto com a gola levantada e um chapéu duro, também preto; enquanto um tordo, sem a metade das penas, piava um acompanhamento numa gaiola junto à janela, ele se
exercitava na ocarina. À vista de Glyn, os seus olhos, que eram claros e jovens e o enchiam de engenhosa audácia, brilharam. Depôs o instrumento e, erguendo-se,
beijou Richard, com afeiçoada familiaridade, em ambas as faces.
- Peyrat - disse Glyn brevemente, enquanto se desvencilhava - trouxe-lhe o seu novo inquilino. É um amigo meu. Stephen Desmonde.
O olhar de Jerome Peyrat passou de Glyn para Stephen e nele repousou pensativamente - um escrutínio a um tempo inocente e amável.
- Se é seu amigo, mon vieux, então será meu também. Desculpe-me recebê-lo assim, Monsieur Desmonde. Richard sabe como padeço com correntes de ar.
- Espero que não o estejamos perturbando - disse Stephen, embaraçado.
- Longe disso. De noite tenho o hábito de contemplar a minha própria alma. Às vezes acho-a esplêndida, outras medonha. Esta noite - sorriu gravemente - agradeço
qualquer distração.
- Desmonde é pintor, Peyrat. Vai trabalhar comigo e com você.
- ótimo. - Peyrat não mostrou a menor surpresa. - Seja bem-vindo no meu apartamento... pelo menos temporariamente, uma vez que pertence a Monsieur Bisque, o pasteleiro.
Não importa. Aqui renunciamos à beleza das mulheres e ao brilho da fama contemporânea, a fim de produzir obras-primas que serão aclamadas mil anos após a nossa morte.
- Que esperança! - exclamou Glyn com irónica indulgência.
- É unicamente a esperança que nos mantém vivos.
- E a beata Teresa...
- É verdade. Somos sustentados pelo exemplo dessa nobre alma. - Voltou-se para Stephen. - Já visitou a Espanha?
- Não.
- Então um dia podemos fazer uma peregrinação juntos. Até Ávila de los Caballeros... que fica atrás de muralhas de granito, amareladas pelo sol do verão, geladas
pelo inverno de Castela, aprumando-se como uma grande coroa no seu deserto de rocha contra o duro azul das Montanhas de Greda.
- O senhor já esteve lá? - perguntou Stephen polidamente.
- Muitas vezes. Mas somente em espírito. Glyn explodiu numa gargalhada.
- Aviso-o, Desmonde. Este maluco, que nunca vai à igreja e diz coisas desagradáveis a respeito do Papa, tem uma absurda veneração por Santa Teresa.
- Peyrat sacudiu a cabeça em reprovação.
- Meu amigo, não tome em vão o nome da doce e obstinada mulher de Castela, a Velha, que restaurou a ordem descalça original, abandonou a vida ociosa e tagarela das
carmelitas. Ela troou a sua batalha com o espírito, o encanto, a humildade, as rezas, os argumentos, a paciência de uma santa e a têmpera de um capitão do mar. Também
foi uma poetisa...
- vou sair - disse Glyn, sorrindo e dirigindo-se para a porta. - vou deixá-los a sós para que se conheçam. Esteja no meu estúdio amanhã às sete, Desmonde. Boa noite.
Saiu. Peyrat, após um momento de silêncio, levantou-se e foi apertar a mão de Stephen.
Disse simplesmente:
- Espero que se sinta em casa.
CAPÍTULO IX
AGORA COMEÇAVA PARA STEPHEN, sob a influência de Glyn e Peyrat, uma nova existência, cheia de incessante trabalho, inteiramente oposta à sua recente interpretação
da vida artística. Jerome Peyrat, conhecido no distrito de Plaisance como "Tio Peyrat", era de origem humilde; seus pais, já falecidos, não foram mais que gente
simples do campo - embora ele falasse deles com orgulho - labutando nuns poucos hectares perto de Nantes. Durante 30 anos, como empregado do governo, petit fonctionaire,
passando os dias metido num paletó de alpaca com punhos de papel, tomando anotações nos registros poeirentos do Palais de Justice. Somente uma vez estivera fora
da França, quando, como terceiro secretário de uma comissão judicial, tinha ido à Índia. Lá, passara todo o seu lazer como um espectador ingénuo e fascinado dos
animais alinhados atrás das grades, debaixo das altas palmeiras e carobas do jardim zoológico de Calcutá. Alguns meses depois do seu regresso, o pessoal do ministério
foi reduzido e Peyrat aposentado com uma pensão tão diminuta que mal lhe dava para viver de pão. Então, inesperadamente, nunca antes tendo manifestado no menor grau
qualquer interesse pela arte, começou a pintar prolificamente. Não apenas a pintar, mas a considerar-se placidamente um pintor de génio. Nunca recebera uma só lição
na sua vida. Pintava os retratos dos amigos, ruas, edifícios, feios edifícios, cortejos nupciais, fábricas da banlieue, e punhados de flores agarradas por mãos descarnadas,
pintava composições de florestas - uma forma feminina nua, pródiga de seios e cadeiras, montada num tigre mostrando os dentes embaixo de um intrincado novelo de
palmas, trepadeiras, samambaias, orquídeas de tons cromáticos, uma floresta da imaginação, luxuriante e estupenda, povoada por serpentes e macacos trepadores entrelaçados
como num combate mortal, durante a execução dos quais tremia, suava e, para que não desmaiasse, era forçado, apesar do seu medo de apanhar um resfriado, a abrir
a janela para respirar ar fresco.
A vizinhança encolhia os ombros e sorria diante das suas pinturas, que eram expostas à venda, ao preço de 15 francos, na janela da sua amiga, Madame Huffnaegel,
uma viúva respeitável que tinha uma chapelaria a poucas portas rua abaixo e por quem ele nutria um respeito moderado. A não ser Napoleon Campo, o homem das tintas,
que tinha levado telas em pagamento de materiais
fornecidos a Peyrat - e cujo sótão estava, admitia-se, atulhado de refugos de artistas lutadores - ninguém comprava os quadros, que se tornaram, nas vizinhanças
da Rue Gastel, um alvo regular de hilariante, embora afetuosa, alegria. Contudo, complacentemente, Peyrat continuava pintando, às vezes passando muitas necessidades,
mas completando a sua magra pensão com vários recursos. Além da ocarina, que ele tocava para seu próprio prazer, e do corne francês, tinha um conhecimento limitado
do violino e do clarinete. Consequentemente, escreveu uns volantes que ele mesmo distribuía de porta em porta pelo bairro.
Aviso
JEROME PEYRAT
CURSOS DE MÚSICA, HARMÓNICA E SOLFEJO PARA CRIANÇAS
Aos sábados, das duas às cinco da tarde.
Rápido progresso garantido.
Pais podem assistir às aulas. Mensalidade por estudante: cinco francos.
Número limitado de alunos.
No verão, também tirava um bom efeito da sua habilidade no corne francês, tocando todas as tardes de terça-feira na orquestra que encantava as babás e seus pirralhos
no Jardim das Tulherias. E quando a necessidade o premia demasiado, lá estava o amigo da sua infância, Alphonse Bisque, agora o pasteleiro do Plaisance, gordo, de
meia-idade, completamente calvo, com quem - por recordação sentimental dos dias distantes da escola em Nantes, e não por causa das pinturas que de tempos em tempos
Jerome lhe empurrava em pagamento - se podia contar para fornecer pastel de carneiro ou patê de carne.
Nos seus hábitos e no seu modo geral de vida, Peyrat - Stephen logo o descobriu - era tão engenhoso, tão original como os seus quadros. com toda a sua simplicidade,
tinha uma mente ativa e inquisidora, abarrotada com os frutos das suas pesquisas em volumes abstrusos de segunda mão comprados nos quais, frequentemente vomitados
em discursos ingenuamente eruditos sobre história, teologia medieval ou assuntos tão inconciliáveis como Cosme de Alexandria, que no ano 548 denunciara a doutrina
da redondeza da Terra, e Santa Teresa de Ávila, a quem ele, um ateu, tinha tranquilamente tomado por padroeira.
A despeito dessas excentricidades, portava-se, na sua frase favorita, como un brave homme et un bon camarade. Por mais cedo que Stephen se levantasse, Peyrat já
estava de pé antes dele, para apanhar o leite e o pão quente que o menino Alphonse entregava todas as manhãs na sua porta. Terminado o seu simples desjejum, vestia
um avental e lavava a louça; depois, tendo dado água e sementes ao tordo que achara na rua, estropiado por um gato, e que se propunha soltar quando a asa se emendasse,
aprestava-se para o dia de trabalho, punha no ombro a sua paleta e caixa de tintas, mais um grande guarda-chuva para protegê-lo contra os elementos, e saía a pé
para algum canto remoto dos subúrbios, Ivry, Charenton ou Passy, onde, imperturbável ante comentários grosseiros dos passantes ou peças que as crianças lhe pregavam,
atormentando-o, perdia-se na maravilha e no mistério de transpor para a tela alguma visão celestial de um vagão encostado, um bonde ou o cano de uma chaminé.
Stephen saía à mesma hora, apressando-se todas as manhãs para a Rue de Biêvre a fim de utilizar a luz clara do norte, depois do amanhecer, que jorrava através das
clarabóias chumbadas do estúdio de Glyn. Richard, que nunca se poupava, era impiedoso na sua atitude de severo e às vezes estúpido feitor.
- Mostre-me o que é capaz de fazer - dizia ele sombriamente. - Em seis meses, se você não me satisfizer, pode voltar para o Senhor.
O modelo de Glyn, Anna Montel, era uma mulher de 30 anos, alta e vigorosa, de cabelos negros e olhar cigano, desolado. Era uma ramani Cinzany, cujos antepassados
deviam ter vindo originariamente da Hungria, embora Glyn a tivesse encontrado numa remota parte de Gales do Norte. Sua pele era áspera, e como sempre ela andava
descalça, numa saia escura e blusa verde, sem luvas ou capote; suas mãos e faces eram gretadas pelas cortantes brisas do outono que assobiavam na rua vindas do rio.
Mas os planos daquela face castigada pelo vento, com as suas órbitas firmes e malares altos, eram lisos e fortes. Andando pelo estúdio nas suas chinelas de ourela,
lendo de relance os desejos de Glyn, era a pessoa mais silenciosa que Stephen tinha conhecido-. Posava a todas as horas, e por longos períodos; depois, sem uma palavra,
deslizava do estúdio para Halles e, voltando com uma braçada de provisões, ia ao fogãozinho e preparava um goulash, ou coava café naquela chaleirinha azul de esmalte
com o bico quebrado, que figurou, mais tarde, num dos mais conhecidos quadros de Glyn: Le Café Matinal.
Embora nunca procurasse instruir, Glyn era incansável na sua exigência por originalidade, insistindo em que Stephen descartasse as suas noções preconcebidas, encorajando-o
a olhar para os objetos não como eles eram vistos e representados pela tradição, mas com os seus olhos novos.
- Faça como Peyrat faz! - exclamava Glyn. - Faça cada quadro absolutamente seu.
- Você tem Peyrat em grande conta?
- Acho que ele é grande. - Glyn falava com inteira convicção. - Tem a visão direta original de um artista primitivo. Podem rir dele o quanto quiserem, achando-o
um velho tolo. Mas dentro de 20 anos se arrastarão para ter um dos seus quadros.
Era um trabalho duro - e frio. No estúdio gélido, as semanas avançavam mais frígidas ainda, porque Glyn tinha uma teoria espartana de que ninguém podia dar o que
tinha de melhor num ambiente de conforto. Morta para sempre estava a primeira ideia de Stephen de que pintar era uma arte suave e sedutora. Nunca em sua existência
teve um regime tão rigoroso. E Glyn era insaciável na sua demanda por maior, e ainda maior, esforço.
Um dia, quando a cabeça de Stephen girava e ele sentiu que não podia continuar, Richard, respirando fundo, atirou a sua paleta no chão.
- Exercício - decretou ele. - O tampo da minha cabeça está saltando. Sabe andar de bicicleta?
- Sem dúvida.
- Suponho que você praticava o crawl de coadjutor lá em Oxford. Seis quilómetros por hora.
- Acredito que posso fazer um pouco melhor do que isso.
- Muito bem. - Glyn sorriu. - Veremos de que você é feito.
Saíram do estúdio e atravessaram a rua para a loja de bicicletas do quarteirão, atendida por Pierre Berthelot, um antigo ciclista de corridas que, embora incapacitado
agora por um coração danificado pelo Pernod, tinha nos seus dias obtido um terceiro lugar no Tour de France. Era um estabelecimento pequeno, arruinado, com uma fila
de bicicletas penduradas do teto, na frente, e uma escura oficina de reparos ao fundo. Entraram. O lugar parecia deserto.
- Pierre! - gritou Glyn, batendo no balcão.
Uma moça de uns 20 anos surgiu dos fundos. Era um tanto baixa, usava um suéter escuro e uma saia preta pregueada, com pés sem meias enfiados em compridas chinelas
pretas.
- É você? - fez Glyn.
- A quem esperavk? A rainha de Sabá?
- Por que não está no circo?
- Desmontado para o inverno. - Ela falava com frases curtas, desgraciosamente, com as mãos nas cadeiras e as pernas separadas.
- E o seu pai?
- Curando uma bebedeira.
- Hum! Stephen, esta é Emmy Berthelot. E enquanto ela olhava de um para outro de uma maneira aborrecida, ele continuou: - Queremos duas bicicletas para esta tarde.
Boas.
- Todas são boas. Peguem as duas do fim.
Enquanto Glyn abaixara a corda na roldana, Stephen observava-a experimentar cada bicicleta como entendida, fazendo as rodas girarem. Tinha um rosto pálido, emburrado,
testa baixa, ligeiramente saliente, sobrancelhas bem marcadas, uma boca grande de lábios finos. O nariz tinha uma boa linha, mas apresentava essa ponta arrebitada
dos bairros pobres que a denunciava. A não ser pelos seios, salientes sob o jérsei apertado, tinha a figura de um menino bem desenvolvido. Virando inesperadamente,
notou que Stephen tinha os olhos nela. Sob o seu olhar frio e avaliador, ele sentiu que corava - havia na maneira dela uma insolência que o magoava. Richard estava
levando as bicicletas para a porta.
- Gostaria de vir conosco Emmy?
- De que jeito? Tenho que cuidar da loja. Graças a esse velho beberrão.
- Outro dia então. Voltaremos antes de escurecer.
Stephen acompanhou Glyn para a rua. Montaram e, dobrados em dois sobre os guidons abaixados, Glyn adiante, afastaram-se, furando o tráfego do Faubourg St. Germaine
até a Porte de Versailles. Fora das portas da cidade, aceleraram pela estrada reta e lisa para Ville d'Avray. Richard, com ocasionais olhadelas para trás, imprimiu
uma velocidade arriscada. St. Appoline, Pontchartrain e Meul ficaram vertiginosamente para trás. E, depois, Jussieu, e Orgeval. Por fim, numa ampla curva circular,
tinham percorrido cerca de 30 quilómetros, e Glyn parou com uma freada diante de uma buvette na pequena aldeia de Louveciennes. Respirando forte, olhou criticamente
para Stephen, suado e empoeirado, completamente sem fôlego. Sorriu.
- Nada mau, meu rapaz. Você não gosta de desistir, não é? É uma qualidade que pode lhe ser útil. Venha tomar uma cerveja.
No bar escuro, de teto baixo, tomaram uma caneca de cerveja gelada, que escorregou deliciosamente nas suas gargantas secas. Glyn sugou a espuma da barba e suspirou.
- bom lugar para pintar este campo em torno de Louveciennes - meditou ele. Renoir e Pissarro costumavam andar por aqui. Sisley também. Traremos Emmy para dar o ritmo.
Ela pode realmente vir.
A lembrança do encontro na loja de bicicleta ainda doía em Stephen. Ele disse secamente:
- Aquela moça me pareceu uma pessoa um tanto desagradável.
Glyn soltou uma risada.
- Modere a sua língua, padre... - E depois de uma pausa: - Na verdade, ela é uma putinha barata... o seu amigo Chester podia lhe dizer... E dura. Praticamente criada
na equipe no circuit de France. Troteia por aí com um bando de vadias. Faz uma tournée de seis meses por ano com o grupo do Peroz.
- Peroz?
- Adolf Peroz. Primeiro, eram os Irmãos Peroz. Adolf é o sobrevivente. Conheço-o. Sujeito decente. Tem um circo muito bom. Emmy faz os números de ciclista. Acho
que deve ser extremamente arriscado. Ela ganha um bom dinheiro, e deixa você saber disso. Ela não tem préstimo para nós, realmente, e sabe que andamos tesos. Mas
é incrivelmente vaidosa, e quer que eu a pinte.
- Vai pintar?
- Não mesmo! Não lido com tipos da sarjeta. Mas me divirto pondo uma mosca na sopa dela. Ela é realmente uma perfeita cadelinha. - Terminou a sua cerveja. - Vamos
embora.
Voltaram lentamente no frescor da tarde. Glyn estava eufórico, purgado da tensão nervosa, cantando trechos de canções populares do País de Gales.
Diante da loja de bicicleta, consultou o relógio e deu um assobio.
- Estou atrasado. Tenho que me encontrar com Anna. Entregue isto por mim, como um bom sujeito. Deixou a sua bicicleta com Stephen e precipitou-se.
Com alguma dificuldade, Stephen manobrou as duas bicicletas para dentro da loja. Como antes, estava vazia. Ele bateu no balcão, e então, como ninguém aparecesse,
empurrou a porta dos fundos; no corredorzinho escuro, foi de encontro a Emmy, que vinha para a loja. A porta de fora fechou-se, deixando-os juntos, confinados na
escuridão de um espaço não maior que um armário. Muito desconcertado, Stephen não achava o que dizer, e de súbito o seu pulso começou a bater como um martelo. Ela
estava em pé a seu lado, tão perto que ele podia sentir-lhe o calor, e uma estranha e repentina emoção fez a sua garganta se apertar. Ela o observava impassível,
sem surpresa, embora o seu íntimo torvelinho lhe fosse perfeitamente aparente; deu-lhe um sorriso frio, crítico.
- Que veux-tu?
O duplo sentido da pergunta trouxe-lhe uma onda de calor. Houve uma pausa, durante a qual ele ouvia as rápidas e altas batidas do seu coração. Numa voz não natural,
respondeu:
- Queria que soubesse... que eu trouxe as bicicletas de volta.
- Fizeram um bom passeio? - Ela continuava a observá-lo conscientemente, olhos apertados, meio divertida com a sua emoção, embora não participando dela.
- Sim, obrigado.
Silêncio outra vez. Ela não fazia nenhum gesto para se mover. Afinal, com grande esforço, ele pôs a mão na porta às suas costas e empurrou-a.
- Espero - gaguejou ele como um colegial - espero vê-la novamente. Envergonhado e muito tenso, tentou sem sucesso afastá-la da mente. Mas ela crescia cada vez que
a via - ocasiões que se tornaram frequentes desde que, com a chegada da primavera, Glyn insistia em exercícios regulares
semanais. Sentia-se ao mesmo tempo atraído e repelido por Emmy. Desejava muito pedir-lhe que posasse para ele, mas não podia chegar a dizê-lo com tantas palavras.
Uma oportunidade favorável parecia não surgir nunca. Ela permanecia como um enigma não decifrado, um sentido procurado e não achado, uma estranha irritação no fundo
do seu espírito.
E o tempo ia passando com desconcertante rapidez. À medida que os dias iam ficando mais compridos, e os castanheiros rebentavam em flores outra vez, ele percebia
que este ano de graça em breve estaria acabado. Mais e mais as cartas de Stillwater, de seu pai, de Davie, e de Claire, começavam a antecipar o seu regresso, a pedi-lo
mesmo, com crescente urgência.
Julho chegou, e do céu brônzeo um ar abafado pesava sobre a cidade. Glyn, que detestava o tempo de calor, resistiu por duas semanas, depois resolveu subitamente
ir para a Bretanha com Anna, vagabundear por lá, e pintar Calveries. Os Lamberts já tinham partido para La Baule e agora Chester ia encontrar-se com eles. Até Peyrat
falava em desertar de Paris. O aluguel do apartamento terminava em agosto e ele planejava ir ver um tio em Auvergne.
Tanto Richard como Peyrat insistiram para que Stephen os acompanhasse. Mas ele não podia aceitar - uma carta final, com um ressaibo de severidade, tinha chegado
do Reitor, na qual ele esperava que Stephen não "recuasse da palavra empenhada" nem se deixasse deter pelos "divertimentos e atrações de Paris",
Depois de a ler, Stephen atirou os seus pincéis sobre a mesa e saiu para a rua. Poderia ter ido ao Bois, onde sempre havia sombra embaixo das árvores, mas o seu
humor, deprimido e irritável, proibia-o. Em vez disso, apesar da sua fadiga e de uma sensação de estar absolutamente exausto, caminhou direto para cidade, através
de quilómetros de ruas monótonas. Lojas e cafés em todo o caminho, grandes a princípio, gradativamente menores. Quase todas vazias. Numa delas, deserta, um garçom,
com a cabeça nos braços, dormia numa mesa. Stephen passou por baixo das pontes da estrada de ferro, pelos trilhos serpenteantes do grande Terminal, atravessou canais;
finalmente, passado o octroi, encontrou-se num ermo poeirento fora das barreiras de Paris. A esse tempo, pingava de suor e continuava a repetir para si mesmo:
- Meu Deus, que vida... E papai pensa que os meus dias são uma ronda de prazer.
Quando voltou, parou na agência postal do Plaisance e escreveu um telegrama.
DESMONDE, REITORIA, STILLWATER, SUSSEX. ATRAVESSANDO BARCO CEDO AMANHÃ DEZENOVE JULHO.
STEPHEN.
CAPÍTULO X
NADA, PENSAVA STEPHEN, excede a alegria de revisitar os amados lugares familiares, meio esquecidos, agora vistos mais belos do que antes. Estendido na relva da ribanceira
do Lago Chillingham, com uma vara de pescar a seu lado, aquecido pelo sol da tarde, estava observando Davie lançar um peixinho prateado, ainda desajeitado, mas com
uma seriedade que traduzia aperfeiçoamento, entre os lírios floridos, debaixo de cuja frescura estava um lúcio escuro. O ar era claro e dourado, havia flores silvestres
por toda a parte, as árvores ostentavam a sua mais ampla e tenra folhagem; nas sarças, as rosas-de-cão, de um róseo delicado, exalavam o seu perfume, que se misturava
com o denso aroma das rainhas-dos-prados. Pombos revoavam distantes lá em cima e, da granja familiar, em Broughton Park, ele ouvia o cacarejo das aves.
Era difícil perceber que estava em casa havia duas semanas. Desde aquele momento em que, em Halborough, tinha sido recebido por Davie e Caroline - uma combinação
feita com delicada discrição - tudo corria tão maciamente que o tempo parecia voar. Sim, era bom estar de volta - se pelo menos não o tratassem como o filho pródigo
agora perdoado e que devesse ser mantido a todo o custo pela bondade. Desjejum na cama, o Times do seu pai fechado na bandeja - até ele protestar dizendo que preferia
levantar-se e tomar café com Davie lá embaixo; seus pratos prediletos no almoço e jantar, Beasley trabalhando mais horas na cozinha, Mould trazendo cestas de frutos
escolhidos; seus desejos atendidos, excursões planejadas; claramente, todos os membros da família estavam unidos num esforço diplomático para desarmá-lo.
O assunto da sua pintura não era discutido - estava morto desde a primeira noite, quando, a pedido do Reitor, mostrou as suas telas. Com uma contração do cenho,
entre uma carranca e um sorriso, ele reconheceu quão honestamente, embora de modo vão, o pai tentara aprovar o seu trabalho, perplexo diante de tudo o que via, o
olho assustado indo descansar, em particular, numa cena de banlieue que mostrava uma mulher pendurando um varal de roupa no fundo do seu quintal num dia de vento.
- Meu caro rapaz... você acha isto... belo?
- Sim. É um dos meus prediletos.
- Mas não compreendo. Por que tem que pintar uma corda de roupa?
- É a interação dos tons brilhantes, papai... contra o fundo sombrio, o vestido cinza e branco da velha...
Procurou explicar a base da sua ideia e como as cores puras eram aplicadas com uma espátula. Contudo, era claro que o Reitor continuava perplexo e não convencido.
Seguiu-se uma longa pausa. Por fim, depois de um último exame, seu olhar voltou-se dúbia e ainda inquisidoramente para ele.
- Suponho que um perito possa apreciar isto.
- Acho que pode.
A seguir, a consideração suplantou a crítica. Caroline, muito mais terna à sua maneira, tinha passado as suas roupas, costurado os botões da camisa, e a sua mãe,
estimulada no seu mundo solitário e peculiar, subitamente descobrira e declarara que usaria um novelo de lã com o qual, desde que ele estava em Oxford, pensava tricotar-lhe
umas meias.
Tinha sido, na maior parte, um grupo familiar restrito - para alívio de Stephen, o General Desmonde e sua mulher estavam na Escócia com Geoffrey, caçando - mas nesta
tarde, sabendo que ele e Davie tinham que estar em Chillingham, Lady Broughton convidara-os para o chá.
Com um olhar para o sol, agora obliquando na crista dos Downs, Stephen achou que era melhor saírem logo. Levantou-se, caminhou ao longo da ribanceira e ficou atrás
do irmão, que, embora desse sinais de cansaço, ainda lançava a sua linha, perseverantemente, na água indiferente. A pesca, até agora, tinha sido fraca - três percas
amarelas tão pequenas que não satisfaziam o gato da Reitoria. Ciente do apaixonado ardor que Davie tinha por aquilo, e aliás por qualquer esporte ao ar livre - um
sentimento tão contrário à sua própria indiferença, tão comoventemente incoerente também, dadas as condições delicadas do rapaz e da sua saúde, que estava longe
de ser robusta - ele desejava que uma grande e digna truta se enganchasse no anzol. Podia muito bem ver a alegria e triunfo que essa captura causaria.
Mas embora esperasse pacientemente, com uma palavra ocasional de animação, não houve esse golpe de sorte. Davie, refletiu com momentânea tristeza, nunca tinha sorte.
E enquanto o seu jovem irmão enrolava a linha, passou-lhe um braço nos ombros e, louvando o seu progresso em lançar a vara, condenando os elementos desfavoráveis
do calor e da luz, finalmente, aumentando o valor dos três peixinhos agora curvados e secos na cesta, trouxe-o de volta para a alegria.
- Acho que estou melhor - disse Davie esperançoso. - Esforcei-me muitíssimo. E, como você diz, essas percas não são más. Acha que dão para cozinhar?
- Perfeitamente.
- De qualquer modo... são muito pequenas.
- Quanto menor, melhor - disse Stephen.
Ao saírem pelo prado, evitando o longo caminho em volta do Foxcross Corner e, uma vez que estava tão seco, atravessando os carriços mais baixos, Davie tagarelava
com a viva animação que era um traço do seu caráter. Tinha crescido muito ultimamente, parecia alto para 14 anos, e os seus membros tinham a descoordenação da idade
ingrata, fazendo parecer que caminhava aos arrancos. Contudo, a expressão do seu rosto delicado era menos febril do que antes, e os seus ataques, Stephen soubera
de Caroline, eram menos fortes, revelando uma firme mudança na frequência. Ouvindo com simpatia, observando o jogo de luzes sobre aquelas feições bem talhadas, Stephen
estava consciente de uma profunda onda de afeição por seu irmão. Tinham estado juntos quase continuamente durante as últimas duas semanas.
Saindo dos bosques, pularam a grade de ferro que cercava o parque, onde o gado pastava placidamente, e dali a pouco chegaram à avenida que, contornando o jardim
formal que margeava o relvado, acabou levando-os à própria mansão, uma grande edificação vitoriana de arenito vermelho maciço, corrompida por torres e torreões,
que Lady Broughton pretendia ser a casa mais alta de Sussex.
Foi ela quem os recebeu, reclinada numa chaise-longue junto às janelas francesas abertas ao sul da sala de estar, pedindo-lhes que desculpassem a sua aparente indolência
- seu médico andava ridiculamente severo com ela pondo-os imediatamente à vontade com o tranquilo calor da sua acolhida.
- Bem-vindo, Stephen. - Segurando-lhe a mão, olhou-o de alto a baixo.
- Cheio de conhecimento de coisas lindas. Sinto que não tenha uma barba. Acho que Paris fez-lhe bem. Pode beijar-me o pulso como um francês?
- Não estive estudando essa arte.
- Que pena! - sorriu ela. - Não é, Davie?
- Só será uma pena se meu irmão voltar para lá, Lady Broughton.
- Bem dito. Você vê como estamos contentes em tê-lo de volta em casa outra vez, Stephen. Como prova disso, eu lhes darei pães de milho de Sussex no chá. Lembra-se
como gostava deles quando tinha a idade de Davie?
- Lembro-me, e muito! Ainda gosto. E Davie também.
Lady Broughton sorriu, e continuou a caçoar amavelmente. Contudo, ouvindo-a calado, Stephen notava a mudança por que ela passara. Sempre gostara daquela mulher,
baixa, de cores vivas, sem qualquer aparência de distinção, cuja boa e enérgica natureza e sólido bom senso transpareciam em todas as suas ações. E agora causava-lhe
mágoa aquela atitude passiva, aquela respiração rápida, o leve tom purpurino em suas faces sempre vívidas.
- Claire deve chegar logo - disse ela. - Atrevo-me a dizer que ela fará a sua entrada com uma cesta de rosas, como algo pintado por Gainsborough.
Quase como dissera a mãe, Claire entrou, não do jardim, nem com flores, de cabeça descoberta, não parecendo um Gainsborough mas antes um
Burne-Jones, no seu vestido de linho de corte quadrado no pescoço, de uma cor de burel que combinava com os seus cabelos vermelho-dourados. Embora tivesse sem dúvida
esquecido, Stephen disse imediatamente que ela condizia com aquela rica sombra pré-rafaelita.
A sua postura era admirável. Ninguém teria adivinhado quão rápido batia o seu coração, ou há quanto tempo ela esperava por este momento.
- Claire - fez Stephen dirigindo-se para ela.
- É tão bom ver você - disse ela. - E você, Davie.
Esperava que a ligeira cor que sentia subir-lhe às faces passasse despercebida. Vê-lo outra vez, sentir o contato dos seus dedos punham a sua compostura à prova
mais do que ela poderia esperar.
Nesse momento, foi servido o chá, não um repasto frugal de biscoitos e pão fino e manteiga, mas uma regular fartura colegial de ovos cozidos e pão de minuto, sanduíches
e pãezinhos de milho, com morangos e nata batida à Sussex, tudo disposto sobre uma mesa de pau-cetim com rodas.
- Achamos que você estaria com fome depois da pescaria - disse Claire a Davie.
- E estamos - concordou ele com entusiasmo. - Nosso lanche não foi grande coisa.
Segurou a xícara que Claire enchera e, polidamente, embora com certa ternura, levou-a a Lady Broughton antes de sentar-se.
- Obrigada, Davie. - Rompendo o ligeiro constrangimento, comentou, na sua maneira arreliante: - Claire, não acha que Stephen está com o ar de um parisiense?
- Está mais magro, talvez. - Que estúpida resposta! Mas ele estava em casa - e a inquietante doçura desse pensamento banhava de luz os seus olhos.
- Não acho que a comida francesa seja muito nutritiva - arriscou Davie seriamente. - Eu pelo menos não quero caracóis nem pernas de rã, ou coisas assim.
Todos riram-se, e depois que eram um alegre bando, Davie, como para provar a virtude da dieta anglo-saxã, empenhou-se numa viva discussão com Claire sobre os métodos
de apanhar lúcios, no fim da qual ambos concordaram que num dia como aquele uma isca artificial seria muito melhor que um barrigudinho prateado.
- Acho que há algumas dessas iscas no salão de bilhar - disse Claire, e após um momento de reflexão ajuntou: - Não gostaria de tê-las?
- Ora, ora... - murmurou Davie. - Mas não são para você? Quero dizer... está falando sério?
- Estou sim. Ninguém as usa. Venha comigo e daremos uma olhada. Perguntando se poderia ser desculpado, Davie levantou-se com alacridade e abriu a porta para Claire.
Saíram juntos.
Logo depois, Lady Broughton olhou meditativamente para Stephen, de quem ela sinceramente sempre gostara e por quem, na verdade, tinha admiração. O fato de ele ter
deixado a Igreja absolutamente não a perturbava - com uma natureza tão sensível, apaixonada e tímida, ela não o considerava talhado para ser um pastor rural. Nem
as suas recentes aventuras artísticas lhe causaram grande inquietação. Encarava-as apenas como um capricho passageiro, uma tendência temporária herdada sem dúvida
das excentricidades do lado materno - estava bem lembrada de como, quando era criança, ficara petrificada pelas coloridas extravagâncias do digno pai da Sra. Desmonde
- e que de modo algum diminuíam a finura essencial do caráter de Stephen. Contudo, era menos esta genuína atenção do que o seu conhecimento dos sentimentos de Claire
que a fazia desejar dizer alguma coisa compatível com a boa educação que pudesse trazer o assunto à baila. Naqueles últimos meses, tinha observado com simpatia a
indiferença e desatenção da sua filha, e notado também, não sem desconfiança, os seus esforços ocasionais para romper aquela disposição pensativa e achar distração
em atividades que lhe eram inteiramente alheias. Recentemente, Geoffrey Desmonde tinha sido um visitante persistente, e, quando menos pela maneira com que arrastava
as suas frases, Lady Broughtpn o detestava. Considerava-o estereotipado e banal, afetado, presumido e mimado; e tendo sido casada com um homem cuja pesada obtusidade
tinha feito da sua vida, por mais de 20 anos, uma penitência, não desejava semelhante destino para Claire.
Foi sem dúvida essa ordem de ideias que a levou a observar:
- Não tinha visto a sua prima desde que voltou?
- Não. Todo o pessoal do Simla parece estar na Escócia.
- Geoffrey tem dado muitos tiros por aqui.
- Ele gosta disso. Tem caçado?
- Claire e ele têm corrido bastante pelos Downs. Andam Juntos muitas vezes. Acho que a levou a Brooklands outro dia... para as corridas de automóveis.
- Não sabia que Claire se interessava por tais coisas.
- Não acho que ela se interesse... mas não fica bem recusar - disse Lady Broughton sorrindo.
Na pausa que se seguiu, inclinou-se ligeiramente para ele e continuou num tom que, embora confidencial, manteve deliberadamente casual.
- Preocupo-me um pouco com ela, Stephen. É uma pessoa tão quieta e introspectiva, se quiser - amiga, mas que não sabe fazer amigos. Para estar contente, ela precisa
do tipo certo de companhia - ou vou mais adiante e digo - o tipo certo de marido? Não preciso lhe dizer que não estarei aqui para sempre. Muito em breve, Claire
pode ficar só. E embora ela ame este lugar, são muitas as responsabilidades - que pode achar difícil assumir...
Não dissera nada de definido, nada que pudesse de qualquer modo embaraçá-lo, contudo não havia como se enganar quanto à sua intenção. Na verdade, antes que ele pudesse
falar, ela prosseguiu, colocando os dedos de veias ligeiramente inchadas no seu ombro.
- Acho que foi sensato passar aquela temporada em Paris. E o seu excelentíssimo pai foi sensato em deixá-lo ir. Nos meus dias, os jovens sempre faziam a grande excursão.
Isso não apenas era considerado uma necessidade virtual, mas tirava muitas coisas do seu sistema. Eles voltavam, estabeleciam-se como bons proprietários rurais e
constituíam uma família. Isso é precisamente o que você deve fazer, Stephen.
- Mas supondo... - Ele evitava o seu olhar, com uma ligeira cor nas faces. - Supondo que sinta que devo ir ao estrangeiro outra vez?
-Para quê?
- Para continuar a estudar... e trabalhar.
- Em quê?
- Pintura.
Ela abanou a cabeça e deu-lhe uma indulgente palmadinha na mão.
- Meu caro rapaz, quando eu era jovem e romântica, pensava que poderia escrever poesia, e escrevi, para minha vergonha. Todavia, livrei-me disso. E assim será com
você.
O argumento parecia conclusivo, e ela acomodou-se na sua almofada. Antes que Stephen pudesse responder, Davie entrou na sala com Claire, trazendo uma caixa de metal
laqueado.
- Veja, Stephen, o que Claire me deu. Todas estas belas iscas. Até giradores e bóias. E esta caixa impermeável.
- Não se esqueça - sorriu Claire - que eu espero muitos peixes.
- Agora vai ser fácil. Eu gostaria que a escola não reabrisse tão cedo.
- O inverno não é a melhor época para o lúcio?
- É, sim. E eu estarei à espera dos feriados de Natal.
- Bem, lembre-se de vir tomar chá sempre que estivermos em Chillingham.
Stephen levantou-se, preparando-se para se despedir, tocado pela bondade de Claire com Davie, por sua quieta amabilidade, aparente, mesmo com o seu ar reservado,
em cada palavra ou gesto. Os últimos lampejos da tarde douravam o comprido salão com suas colunas, não belo, mas acolhedor, encantador, com o sentimento de uma velha
casa de campo. Além das janelas, os escuros relvados mas ainda visíveis, sombreados pelo grande cedro, os bosques de faias com os telhados vermelhos das choupanas,
lá no alto, e mais longe, ondeando como o mar, os verdes Downs.
A caminho de casa, Davie achou o seu irmão estranhamente silencioso. Depois de relancear os olhos para ele uma ou duas vezes, disse:
- É formidável no Court. Você não deseja ir lá mais vezes?
Mas Stephen não respondeu.
CAPÍTULO XI
NA TERÇA-FEIRA SEGUINTE, o almoço na Reitoria estava quase terminado. Tinha sido uma refeição um tanto opressiva para Davie, já formalmente vestido, que devia voltar
à escola nessa tarde. Contudo, olhando em torno, Stephen sentia uma tensão maior do que a exigida pela ocasião, um ar geral de conspiração e expectativa. Sentia
também uma intensificação daquela intangível coerção, que, disfarçada em uma nuvem de afeição, vinha envolvendo-o de quando em quando durante as últimas duas semanas.
O Reitor, que já tinha consultado o relógio três vezes nos últimos cinco minutos, tornou a fazê-lo, terminou o seu café e, sem fitar ninguém em particular, disse:
- Acontece que o Sr. Munsey Peters está nas vizinhanças. Infelizmente não pôde vir almoçar. Mas eu o convidei a vir pouco depois.
- Que interessante, papai - murmurou Caroline, com os olhos no prato.
- Está se referindo - perguntou a Sra. Desmonde no tom de quem fora instruída a perguntar - a Munsey Peters?
- Isso mesmo. Conhece o Sr. Peters, Stephen? - Inatento, cortando uma careta numa casca de laranja para Davie, Stephen levantou os olhos, certo de que seu pai se
dirigira a ele.
- Sim, é membro da Academia Real.
Houve uma pausa. Contido, com a expressão subitamente fixa, Stephen esperava que Bertram caísse na armadilha.
- Achamos que ele podia ter vontade de olhar os seus quadros.
Houve outro silêncio, que Caroline se apressou em romper, com um ar de inteligência.
- Não é ótimo, Stephen? Agora você pode se valer do conselho dele.
- Acredito - disse a Sra. Desmonde - se a memória não me falha, que há uma paisagem de Peters no Salão Pump, em Cheltenham. Está pendurada sobre a Fonte de Chalybeate.
Uma vista das colinas de Malvern com uma ovelha. Cheia de vida.
- Ele está na primeira fila - concordou Bertram.
- Não há também um livro, papai - interpôs Caroline - algo como De Rafael a Reynolds, ou coisa parecida?
- Ele escreveu muitos livros sobre arte. O mais conhecido intitula-se A Arte pela Arte.
- Devo procurá-lo na biblioteca - murmurou Caroline.
- Você não se importa se mostrarmos a ele as suas pinturas? - O Reitor voltou-se para o filho com uma nova firmeza. - Desde que se apresentou a oportunidade, seria
sensato pedir-lhe a opinião.
Stephen empalidecera. Não respondeu por um momento.
- Mostre-lhe qualquer coisa que quiser. Sua opinião não tem nenhum valor.
- O quê? Munsey Peters é um académico famoso. Exibe regularmente há 15 anos.
- Que significa isso? Não posso imaginar nada mais mortal, mais vulgar e idiota do que as suas pinturas.
Bruscamente Stephen rompeu o seu silêncio, sentindo que o julgariam invejoso e com medo. Então, ao voltar-se, ouviu um som de rodas e, pela janela, viu um cabriolé
de aluguel chegando à porta da frente. Um homem baixo, tornado mais baixo por um vasto sombrero preto e uma capa preta do Inverness, desceu rápido do cabriolé, olhou
em volta e tocou a sineta. Bertram levantou-se e, acompanhado pela mulher e Caroline, foi a saguão. Stephen permaneceu sentado à mesa, vendo muito bem que tudo aquilo
fora arranjado - ele tinha vindo especialmente de Londres. A julgar por suas roupas, Peters não estava absolutamente visitando o campo - tinha vindo expressamente
de Londres, mas fora comissionado, sem dúvida por tal ou qual preço - vinha especialmente de Londres como um cirurgião chamado à cabeceira de uma pessoa gravemente
enferma, cujo diagnóstico era uma questão de vida ou morte.
Um toque tranquilizador no ombro acordou-o. Era Davie.
- Não é melhor irmos agora? Não se aborreça, Stephen, aposto que você vai sair por cima.
Na sala de estar, construída originalmente como um parlatório retangular e posteriormente afeada por janelas de sacadas vitorianas abertas ao lado oeste, Munsey
Peters estava sentado no sofá, gorducho, de cara lisa, solicitamente oficioso, já no centro de uma plateia inteligente.
Quando Stephen entrou, girou e estendeu-lhe uma mão amável.
- Então este é o seu jovem cavalheiro? Prazer em conhecê-lo, senhor. Stephen apertou-lhe a mão, dizendo a si mesmo, apesar do conflito de emoções no seu peito, que
não devia ter ódio àquele visitante indesejável, que sem dúvida era uma pessoa honesta e estimável, agindo de boa fé. Contudo, conhecendo o trabalho de Peters, que
sempre recebia destaque na imprensa e
muitas vezes era reproduzido nos melhores semanários, aquelas suas paisagens lanudas e interiores betuminosos, tresandando a sentimentalismo e cheios daquele claro-escuro
que Glyn tinha profanamente descrito como siena queimada e merde, Stephen não podia reprimir uma aversão instintiva, aumentada e não diminuída por aquele homenzinho
de aparência presumida e maneiras seguras, que, embora um tanto menos que assertivo, estava odiosamente satisfeito consigo mesmo. Recusara o almoço, tendo "satisfeito
o homem interior"
- suas próprias palavras - no vagão-restaurante que sempre acompanhava o expresso do meio-dia, mas, diante da insistência, consentiu em tomar café. E, balançando
a xícara nos joelhos, de pernas cruzadas, sapatos com polainas, dirigiu a Stephen uma série de perguntas agradáveis, exatamente como faria um notável académico para
deixar um neófito nervoso.
- Então esteve em Parri, hein?
- Sim. Pouco menos de um ano.
- Trabalhando duramente, espero, na cidade alegre. - Isto, com um olhar de humor velado para os outros; então, como Stephen não respondesse:
- Com quem estudou?
- No começo... com Dupret.
- Ah! E que pensa ele do amigo?
- - Eu realmente não sei. Deixei-o depois de poucas semanas.
- Hum! Hum! Isso foi um engano. - E, num tom intrigado: - Quer dizer que ficou a maior parte do tempo por sua própria conta? Não pode ter aproveitado muito dessa
maneira.
- Ao menos aprendi o quanto a força de vontade, a disciplina e a intensa aplicação são necessárias para fazer um bom artista.
- Ora! Isso é muito fino. Mas, e o aprendizado?
A frieza da voz de Stephen era provocante.
- Há certos elementos essenciais. Já os acentuei muitas vezes no meu livro. Ouso dizer que ele fez parte do seu estudo.
- Receio que não. Estive estudando no Louvre.
- Oh, copiando - exclamou Peters contrariado. - Isso não é bom. Um artista procura ser original acima de tudo.
- Contudo, todos os grandes artistas influenciaram uns aos outros - argumentou Stephen diretamente. - Rafael provém de Perugino, El Greco de Tintoretto, Manet de
Franz Hals. Todos os pós-impressionistas se ajudaram uns aos outros. A lista seria interminável. Porque, se me perdoa, vemos no seu próprio trabalho Leighton e Poynter.
A menção desses dois artistas, tão famosos na época vitoriana e agora esquecidos, trouxe ao rosto de Munsey Peters uma expressão confusa, como se mal pudesse saber
se a intenção era de louvor ou insulto.
A Sra. Desmonde, sempre diplomática, rompeu o silêncio.
- Deixe-me oferecer-lhe mais café.
- Não, obrigado - e devolveu-lhe a xícara. - Na verdade, tenho pressa, deixei o meu veículo à espera. Podemos entrar no assunto sério do dia?
- Com muito gosto. - Bertram, um apreensivo observador daquele choque de temperamentos, fez um sinal a Davie, que deixou a sala num pulo. Quase imediatamente voltou,
trazendo o primeiro quadro, uma vista do Sena em Passy, que colocou sobre uma cadeira de alto espaldar posta adrede em boa luz e diante do sofá.
Impondo silêncio com um dedo nos lábios, Munsey Peters ajustou o pincenê. Estudou a pintura intensa e longamente, inclinou a cabeça em vários ângulos; então, dramaticamente
fez um gesto para Davie, que a retirou, colocou-a junto à janela e trouxe a seguinte. Para Stephen, parado lá atrás com uma expressão insensível e um latejar doloroso
no coração, era uma experiência martirizante, uma crua exposição da sua delicada sensibilidade.
Olhou em torno para o círculo doméstico - o pai, sentado, muito teso, com as pontas dos dedos fortemente unidas, as pernas cruzadas, um pé balançando em nervosa
expectativa; Caroline, na banqueta junto ao sofá, com uma ruga de ansiedade na testa, olhando para Peters, ora para o chão; sua mãe, sonhadoramente confortável numa
poltrona, de todo indiferente; e Davie, no colarinho branco engomado e roupa cinza-escura do colégio, o cabelo penteado para trás, olhos brilhantes, sem compreender
bem a questão, e contudo cheio de confiança em que seu irmão seria justificado.
Acabou-se afinal, a última pintura fora mostrada.
- Então? - exclamou Bertram.
Munsey Peters não respondeu imediatamente, mas, erguendo-se, fez uma nova inspeção nos quadros contra o peitoril oval da janela da sacada, como para afastar qualquer
impressão de que o seu julgamento era apressado ou inconsiderado. Uma tela em particular, a mulher com as suas roupas brancas, parecia perturbá-lo de modo especial;
vez por outra, quase furtivamente, os seus olhos voltavam àqueles ousados contrastes e cores vivas. Por fim, deixou cair o pincenê, seguro por uma fita de seda lavada,
e tomou posição no tapete da lareira.
- Que deseja que eu lhe diga?
- Meu filho tem... - Bertram respirou fundo - alguma chance de se tornar um pintor... posso dizer... de primeira categoria?
- Nenhuma.
Fez-se um silêncio mortal. Impulsivamente, Caroline lançou um olhar de simpatia para o irmão. O Reitor curvou a cabeça. Stephen, com a sombra de um sorriso, continuou
a olhar diretamente para Munsey Peters.
- Naturalmente - continuou ele - eu poderia ser polido. Mas entendi que o senhor queria a verdade. E nessas telas, que têm talvez um certo brio
rude, ignoram completamente as grandes tradições da pintura, tradições de propriedade e restrição, só posso encontrar... - encolheu os ombros - matéria para condolência
e pesar.
- Então - disse Bertram lentamente, como se estivesse determinado a se convencer - se forem, digamos, submetidas à Academia, acha que seriam recusadas?
- Meu caro senhor, como membro da comissão de exposição, não sei, não estou seguro. Acredite-me, dói-me extinguir as suas esperanças. Se o seu filho quiser continuar
isto como um passatempo... um hobby... isso é com ele. Mas profissionalmente... ah, meu caro senhor, a pintura é, para todos nós que vivemos dela, uma arte cruel.
Não há lugar para fracassos.
Bertram lançou um olhar cheio de compaixão para o filho, como esperando que ele protestasse, ao menos oferecesse alguma defesa do seu trabalho. Mas Stephen, com
a mesma sombra de um sorriso, e aquele ar de orgulhosa indiferença, mantinha-se calado.
- E agora, se me desculparem - disse Peters, curvando-se.
O Reitor pôs-se de pé.
- Estamos muito agradecidos ao senhor... mesmo que o seu veredicto tenha sido desfavorável.
Munsey Peters curvou-se novamente e, ao deixar a sala com modos graves e polidos, aceitou prestemente o envelope que Bertram, após murmurar umas palavras de escusas,
escorregou-lhe na mão - uma transação efetuada com tamanha destreza que ninguém pareceu notá-la, a não ser Stephen. Dali a pouco se ouviu o rangido do cabriolé.
O professor tinha partido.
Como se para poupar os outros, mais do que a si mesmo, do embaraço, Stephen foi para fora. Ali, andando de cá para lá, de cabeça descoberta, estava o Reitor. Tomou
imediatamente o braço do filho, com um aperto de simpatia, e, após atravessar as lajes, observou várias vezes:
- Tenho que ir à sacristia. Quer caminhar comigo?
Ao subirem juntos a alameda, Bertram continuou, sombriamente, sem um indício de autojustificação.
- Stephen, essa foi uma experiência dolorosa para você, e, em grau nSo menor, para todos nós. Mas era imperativo para mim saber a verdade. Espero que não me reprove.
- Claro que não. - A voz calma do filho causou a Bertram uma viva surpresa, seguida por um sentimento de oposição.
- Você aceitou a coisa muito bem, Stephen - como um verdadeiro Desmonde. Eu temia que pudesse ficar encolerizado comigo por lhe ter imposto esse teste sem aviso.
Mas se eu lhe tivesse dito de antemão, você poderia ter recusado...
- Sim, acho que recusaria.
- Você percebe que não foi questão de influência indevida, que a opinião de Munsey Peters foi inteiramente dele?
- Estou certo disso. Acho até que o nosso pequeno argumento no começo eriçou ligeiramente a sua plumagem. Mas não há sombra de dúvida - ele detestou a minha pintura
como veneno.
- Ah! - murmurou o Reitor condoído. - Pobre rapaz.
Chegaram à igreja; detendo-se na cancela, Bertram pousou a mão na efígie do cruzado, um gesto costumeiro de apoio, e encarou o filho.
- Pelo menos o caminho agora está claro... e não há nada contra o seu regresso para ser ordenado. Não quero pressioná-lo. Há a toga, os serviços militares. Contudo
- olhou em torno - o seu lugar é aqui, Stephen.
Uma pausa quase imperceptível.
- Acho que não compreende. Não vou abandonar a pintura.
- Mas que diabo quer dizer?
- Simplesmente que tomei uma resolução, irrevogável, que vou dedicar a minha vida inteiramente à arte.
- Mas você acaba de ter uma opinião... com mil diabos... de um perito.
- Essa nulidade idiota... roída por um rancor secreto! O fato de ele ter difamado o meu trabalho foi o maior cumprimento que podia me fazer.
- Você está louco? - Cólera e desalento levaram o sangue à testa de Bertram. - Ele é um dos melhores pintores da Inglaterra e pode vir a ser o próximo presidente
da Academia.
- O senhor não compreende, papai. - A despeito da tensão das suas feições, Stephen quase sorriu. - Peters não pinta coisa nenhuma. O seu trabalho é convencional,
sentimental, e sem um traço de originalidade. O sucesso dele é o de uma mediocridade intrometida. Ora, até as tapeações do velho Dupret, com a sua peinture léchée,
são mais toleráveis. O senhor não sentiu nojo dos seus chavões, sua afetação, suas mãos gordinhas? Ele marcha com o rebanho. O verdadeiro artista só pode cumprir
o seu destino sozinho.
Durante esse discurso, que lhe pareceu bombástico, o rosto de Bertram foi gradualmente endurecendo. Empedernia-se contra a dor que sentia no peito, e um imenso desejo
de tomar o filho nos braços.
- Para qualquer pessoa normal, a evidência é clara. Você deve aceitá-la.
- Não.
- Insisto.
- Tenho o direito de viver a minha própria vida.
- Não, se está disposto a arruiná-la.
Nenhum deles levantou a voz. O Reitor estava muito pálido, mas os seus olhos nunca se afastaram do rosto do filho. Por baixo de sua agitação havia uma firmeza que
Stephen nunca tinha visto.
- Por simples justiça, você não me deve alguma retribuição por tudo que tenho feito por você? Sem dúvida, você afeta desprezar uma coisa tão sórdida como o dinheiro.
Contudo, gastei na sua educação - a mais primorosa que qualquer filho podia desejar - um capital que eu mal podia despender. Estamos muito menos bem do que estávamos,
e é com dificuldade que mantenho Stillwater nos padrões a que estamos acostumados. Sempre esperei que esta medida não fosse necessária. No entanto, para seu próprio
bem, devo repô-lo no seu juízo. Sua pensão está suspensa. E você verá que é impossível continuar sem ela.
Um compasso de silêncio latejou na pequena igreja. Stephen baixou os olhos, deteve-os por um longo momento na efígie de pedra do seu ancestral que, à meia-luz, parecia
sorrir-lhe cinicamente. Olhando para a espada, os grandes guantes de malha, uma frase das leituras da sua infância lhe veio à memória: mão de ferro em luva de veludo.
E suspirou:
- Bem, papai, isso parece resolver a questão.
Bertram apanhou o seu diário na sacristia - a mão lhe tremia tanto que mal podia segurar o grosso volume, sendo obrigado a apertá-lo Contra o flanco. Deixaram a
igreja em silêncio.
Pelo resto da tarde, Stephen foi um modelo de complacência, animando os outros com a sua vivacidade e bom humor. Às seis horas, insistiu em ir com Davie à estação
e embarcou-o no trem, despachando-o com alegre afeição. Depois, voltando, com uma expressão diferente, foi à fila de veículos, onde um motorista estava com a sua
bagagem, secretamente introduzida na de Davie. No horário colado na frente do guichê, viu que um trem costeiro partia dentro de uma hora. Comprou uma passagem e
sentou-se à espera dele.
CONTINUA
A TARDE MUDARA EM NOITE, e todo ímpeto e atividade dos Downs jaziam quedos, banhados em luz pérola. A relva seca, prateada como geada, soltava um vapor esgarçado que se prendia nas sebes como teias de aranha. As poças de orvalho, pires de leite desnatado, não refletiam a imagem de uma lua amarelenta que mirava, redonda e baixa, como o olho de um grande gato, agachado na colina, pronto para saltar.
Nessa quietude brilhante, de uma igreja normanda de pedra tão pequena que parecia perdida numa dobra do descampado - apesar dos nítidos contornos das suas linhas longas e breves, da sua torre achaparrada, de suas chagosas paredes inclinadas - inverossímil como um sonho, emergiu uma sombra, comprida e escura, à qual se seguiram um baque de carvalho e o tinido de um pesado ferrolho, a figura de um homem, menos comprido talvez, mas igualmente sombrio. Muito apropriadamente, um clérigo, Bertram
Desmonde, Reitor de Stillwater.
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De cabeça nua, mas com uma capa sobre os ombros, enfiou pela confusão de lápides cobertas de liquens, passou os dois grandes teixos retorcidos, dos quais o mais
novo tinha sem dúvida fornecido arcos para os arqueiros de Sussex pelo menos durante cinco séculos, e depois atravessou a cancela para a azinhaga.
Aqui, apanhado pela brancura da noite, por um ímpeto da sua secreta alegria, fez uma pausa e, por um longo instante, aspirou a beleza da sua gleba, uns bons 100
acres, indo por um lado até os altos do bosque de faias de Ditchley, e pelo outro até a coutada de tojo arenoso que beirava a estrada para Stillwater. Na distância,
o Anel de Chanctonbury era visível contra o céu oriental, e mais abaixo, por entre árvores, o absurdo mas amigo torreão de Broughton Court. Para oeste, a planura
continuava, cortada por uma caleira
- ferida incruenta - por túmulos tidos como romanos, mas provavelmente restos de antigos fornos de ladrilhos. Vinham então as choças dos trabalhadores, seis, em
fila, como cogumelos, e frouxamente, acima da orla da estrada, o bruxuleio da aldeia. Abaixo dele, brilhante de luzes, a Reitoria.
Solidamente georgiana, com janelas paládicas, um espaçoso pórtico sustentado por colunas acanaladas e - delicioso pensamento! - uma balaustrada na cimalha, era uma
verdadeira casa de campo, construída pelo seu bisavô, Canon Hilary Desmonde, em 1780, em pedra branca dali mesmo - a pedreira, bem perto, estava agora felizmente
coberta pela vegetação. Traços de um Tudor primitivo ainda persistiam no celeiro e estábulos de tijolos, nos anexos da fazenda, no delicado muro de sílex e nos seixos
redondos que cercavam a ampla horta. Envolvida por relvados macios, orlados de canteiros de tulipas e prímulas, o jardim de roseiras, ainda não desperto, formando
um hexágono em torno do relógio de sol, cordões de rosas Ribston e Beauty of the Bath, com as suas soprepelizes de flores, como chantres, ao longo do prado do sul,
uma gigantesca azinheira sombreando a trilha ensaibrada, essa casa, esse pequeno abrigo de casca dourada, enraizado e imutável, seu lar, lar dos Desmondes por tantos
anos, especialmente esta noite aquecia de orgulho o coração do Reitor.
Quase certamente eles tinham vindo com o Conquistador. Um deles, o Sieur d'Esmonde, que estivera nas Cruzadas, jazia sob a sua efígie de mármore, com seu curvo nariz
quebrado, ai!, por algum turista vandálico, na pequena igreja de Downland. Se o nome tinha sido um tanto alterado pelo uso rústico - não se poderia aplicar a palavra
corrompido - ele não os identificava de modo mais completo com a boa terra de Sussex? Eles tinham prestado bons serviços à sua pátria nas três profissões abertas
para um cavalheiro: na Igreja particularmente, mas também na Justiça e no Exército. Seu irmão Hubert, após um longo e útil trabalho nas fronteiras do Afeganistão,
estava agora parcialmente aposentado em Simla Lodge, a cerca de 25 quilómetros, com o posto de general, e ainda em contato com o Ministério da Guerra, devotando
o seu lazer à cultura científica da pêra Jargonelle. Somente uma ocasião, até onde alcançava a memória, a família descera ao comércio: quando, no início do reinado
de Victoria, um Joseph Desmonde, tio-avô do Reitor, ocupara-se com a manufatura de objetos eclesiásticos. Mas como o negócio tinha certo sabor de discrição, trazendo-lhe
ainda uma considerável fortuna, o lapso, embora lamentável, era menos difícil de perdoar.
- Uma bela noite para o senhor, Reverendo.
Nas profundezas do seu devaneio, o Reitor deixara de notar a figura troncuda do velho Mould, seu jardineiro-chefe, que era também o seu sacristão, manquejando trilha
acima para fechar a igreja.
- Boa noite, Mould. Já a fechei, você pode voltar comigo. - Fez uma www.pausa, não revelando o impulso que, contra o seu hábito, o tinha levado à igreja; contudo,
estimulado pela alegria, acrescentou: - Stephen volta para casa esta noite, como sabe.
- E como é que eu ia esquecer isso, senhor? Uma notícia muito boa mesmo. Espero que ele tenha tempo de ir caçar coelhos comigo. E acrescentou mais gravemente: -
Nós logo o teremos no púlpito, quem sabe.
- Ele ainda tem algum caminho para andar, Mould. - Ao descerem a trilha juntos, Bertram sorria. - Embora eu me atreva a dizer que vocês gostariam mais de ouvir um
jovem recém-saído de Oxford do que um velho caturra como eu.
- Não, meu Pastor, não deve dizer uma coisa dessas. Não servi os Desmondes durante 50 anos para agora ignorar a sua qualidade. E pode pregar quem quiser pregar,
que não há ninguém melhor no país.
Bastava apenas essa tocante prova de lealdade quase feudal para selar a disposição do Reitor. O denso perfume das prímulas era, de certo modo, mais doce, os agudos
balidos noturnos dos cordeiros, atrás da cerca de varas, tão enternecedores que quase causavam um aperto no coração. Ah, esta Inglaterra, pensou ele: e aqui, no
seu próprio coração, preciosa como uma jóia, navegando ao luar como um navio de almas, esta pequena paróquia que seria de Stephen também, inviolada, intemporal e
imutável como a eternidade.
- Vamos precisar de alguém para a bagagem. Mande Albert ficar por perto.
- Farei isso, senhor... se ele estiver em casa. Estou tendo dificuldades com esse meu rapaz. Ele não gosta de trabalho. Mas eu dobro ele a pau... prometo.
- com o tempo, ele será um bom rapaz, Mould. Não seja duro com ele - disse Bertram, num tom neutro.
Despediu o velho diante da sua casa, baixa, de paredes curvas na frente, e momentos depois estava na larga entrada do saguão da Reitoria, entregando a capa à sua
filha Caroline, que, inevitavelmente, ali estava para recebê-lo.
- Ainda não chegaram?
Esfregou as mãos: o saguão tinha o defeito do seu teto alto e soalho de mosaico - dava uma sensação de frio da noite, mal atenuado pelo rumor dos tubos de calefação.
- Não, papai. Mas não devem demorar. Claire foi à estação no seu automóvel novo.
- Devemos comprar uma dessas engenhocas. - O reflexo de um capricho aliviou momentaneamente a austeridade das feições delgadas de Bertram e das faces um tanto encovadas.
- Será útil para visitar a paróquia.
- O senhor não está falando sério, papai. - A sua mentalidade prática, despida de humor, tomava-o literalmente. - Sabe o quanto detesta cheiros e poeira. E eu não
o sirvo bastante bem com o tílburi?
Sem dúvida, a iminência do regresso de Stephen a deixava nervosa. Assim, falara com mais vigor do que pretendia, com o seu rosto liso e sério brilhando de sentimento.
E em verdade, antes que ela o pudesse lamentar, a expressão ausente do pai, que, com o ouvido atento, esperava o ruído das rodas na alameda, puniu-a severamente.
Ela baixou os olhos, e seu corpo pesado, sustentado por duas robustas panturrilhas, diminuiu um pouco. Quando é que ele ia apreciar a profundeza ilimitada da sua
devoção, compreender que o seu único desejo era servi-lo? desde o exato momento em que começava o seu dia, depois de vestir-se às pressas, sem o benefício de um
espelho, ombreava com a carga da sua casa, conferenciava com a cozinheira sobre como ele seria alimentado, arranjava as flores, inspecionava o jardim e a granja,
tratava da sua correspondência, atendia visitantes importunos, via paroquianos doentes, desencorajava arqueólogos, juntamente com as carruagens que vinham aos domingos
e feriados cheias de gente, pedindo em coro para ver a "tumba", e ainda achava tempo para cuidar do seu linho e tricotar as suas meias de lã. E, para piorar as coisas,
estava resfriada e a toda hora tinha que assoar o nariz num lenço ensopado.
- Sua mãe vem? - Fez a pergunta com cautela.
- Acho que não. Esta tarde molhei a sua testa com água-de-colônia. Mas ela ainda se sente indisposta.
- Então seremos quatro para o jantar.
- Três. Claire telefonou para dizer que sente muito, muito, mas não poderá ficar.
- Que pena. Mas... haverá outros dias.
Seu tom de voz exprimia tristeza; contudo, ela percebeu que, a despeito da sua alta consideração por Claire, filha de Lady Broughton, da vizinha Court, e da sua
cálida aprovação do entendimento tácito existente entre ela e o seu filho mais velho, no fundo estava feliz nesta noite de reunião por ter Stephen inteiramente para
si.
Com esforço, ela conseguiu manter o tom sereno.
- Ainda não terminei de datilografar todas as suas notas para a convocação de amanhã. Quando partirá para Charminster?
- Oh, depois do almoço, suponho. O Deão raramente é pontual.
- Duas horas então. Eu o levo. - Subitamente, com ciúmes brilhando nos olhos, ajuntou: - O senhor parece cansado, papai. E terá um dia cheio amanhã. Não deixe Stephen
retê-lo até muito tarde.
- Não se inquiete, Caroline. E, a propósito, espero que nos apresente um bom jantar.
- Temos sopa hindu com caril e salmão que o tio Hubert nos mandou de Test, com pepino e molho verde, é claro, e depois um lombo de cordeiro com ervilhas da nossa
horta e batatas novas. Para sobremesa, Beasley fez aquela charlotte de maçã que Stephen tanto adora.
- Ah, sim, minha querida. Lembro que ele sempre a pedia ao voltar de Marlborough para casa. Mas, espere, não é o ruído de um motor?
De fato, ouvia-se um som fraco mas rítmico; avançando para a porta, ele a abriu, deixando ver um pequeno cupê de Dion, ativo e trepidante, do
qual, cessada a agitação por meio de alguma engenhosidade, emergiram duas figuras.
- Stephen!
- Como está, papai... e você, Caroline? Davie não está?
- Ainda não... ele terá licença na próxima segunda-feira.
O arco de luz do pórtico mostrou uma figura franzina de estatura abaixo de mediana, vestida de preto e forcejando com uma valise de couro - o rapaz de Mould não
aparecera - um relance, também, de feições finamente cinzeladas, narinas sensíveis, e um rosto estreito, pensativo, e um tanto sério. Então veio, com discrição,
deixando que as saudações familiares cessassem, uma jovem alta de mãos enluvadas e um comprido casaco de tweed. Seu boné de dirigir, com um véu pendente, absurdamente
como um bolo de cevada, usado apenas em deferência às instâncias maternas, não podia destruir o seu ar de tranquila compostura, uma inescapável sensação de boa educação,
confirmada por sua voz ao se reunir ao pequeno grupo.
- Lamento termos deixado atrás alguma bagagem. Minha baratinha não tem espaço para malas.
- Não se preocupe, querida Claire. Amanhã mandaremos buscá-la. O Reitor tomou-lhe o braço num gesto quase paternal. - Mas você não pode ficar conosco agora?
- Gostaria muito. Mas mamãe espera gente da aldeia... uma comissão de agricultores... arrendatários... que não podem ser despachados.
- Ah, sim! As obrigações da senhora de um proprietário rural. Não está uma linda noite?
- Perfeita. Ao passarmos por Halborough, estava claro como dia... Ela voltou a cabeça, um movimento que, dissolvendo a sombra do atroz boné, revelou um perfil puro
e regular. - Não estava linda, Stephen?
Ele ficara em pé, silencioso, num constrangimento de que agora parecia livrar-se com um esforço.
- Foi um belo passeio. - Depois, como se não tivesse dito o bastante, forçando uma frivolidade que lhe era de todo alheia: - Mas em certo ponto acho que devíamos
ter descido e empurrado.
- Em Ambry Hill - riu-se Claire. - Não sou muito entendida nas mudanças. - Seu sorriso demorou-se um instante na obscuridade do pórtico. Mas não devo detê-los. Boa
noite. Venham ver-nos logo... amanhã, se possível. E tenha cuidado com o seu resfriado, Caroline.
Quando ela saiu, Bertram pôs o braço no ombro do filho e levou-o para dentro de casa.
- É bom tê-lo em casa novamente, Stephen. Você não sabe... Ora, bem... como deixou Oxford? E como se sente? Faminto, estou certo. Corra lá em cima para ver sua mãe.
Depois, desça para o jantar.
E enquanto Caroline, com os olhos e nariz vermelhos pelo ar da noite, levantava uma sacola de livros que fora deixada, esquecida, no pórtico, o pai deteve-se um
pouco vendo Stephen subir a escadaria, olhando para cima com uma expressão que, na sua ternura descuidada, era quase um transe.
CAPÍTULO II
APÓS O EXCELENTE JANTAR, bem servido por duas copeiras que, outrora de uma primitiva grosseria de aldeãs, Caroline tinha treinado tão admiravelmente, o Reitor, amolecido,
levou Stephen para o estúdio, onde as cortinas de droguete estavam descidas e ardia um belo fogo de carvão de algas. O aquecimento da Reitoria podia não ser moderno,
mas as lareiras eram amplas e o combustível abundante. E isto se harmonizava com a sala, a despeito dos ornatos moldados, com um tom íntimo e esportivo para amenizar
o ambiente vagamente paroquial, confirmado por uma escrivaninha de tampa corrediça que continha os sermões de Pusey, o Calendário Eclesiástico, e uma estola de púrpura
dobrada. Um par de espreguiçadeiras de couro marrom flanqueava a lareira, contra uma parede estava o armário envidraçado das armas, em outra uma caixa de moedas
saxãs, produto das pesquisas arqueológicas do Reitor, e, acima do consolo da lareira, dois chicotes de cabo de osso cruzavam-se por trás de uma cabeça empalhada
de raposa.
Mais cedo, nessa tarde, preparando-se, Bertram descera ao porão da casa para uma visita à adega, e agora, com um ar ligeiramente consciente, apanhou uma garrafa
empoeirada, que deitara na cestinha, com as pintas de cal para cima, sobre a escrivaninha; tendo imperitamente tirado a rolha em pedaços, serviu dois cálices de
porto. Ele era um homem temperante, que só de raro em raro bebia álcool, e não usava tabaco, mas esta ocasião exigia um registro dentro da verdadeira tradição da
família.
- Seu avô guardou este - observou ele, segurando o cálice de vinho contra a luz e assumindo um ar de crítico. - É um GrahanVs, 1876.
Stephen, que detestava vinho do Porto, fez da sua poltrona um murmúrio de aprovação e levou o cálice aos lábios. Desempenhava, como um ator, o papel que dele se
esperava.
- Parece muito saudável.
A palavra agradou ao Reitor.
- Sim, o seu avô sabia o que estava fazendo. Foi ele que mandou colocar aquelas notáveis manilhas lá embaixo. Elas drenavam o South Meadow, como sabe, em 1878, e
sobrara boa quantidade delas. O velho viu que cada uma podia conter muito bem uma garrafa, e mandou argamassá-las na adega, como perfeitos favos... Naturalmente,
ele não era um grande bebedor. Mas gostava do seu quartilho de clarete após um bom dia com os cães. Deixou-nos, como sabe, quando tinha 70 anos.
- Deve ter sido um grande caráter.
- Era um bom homem. Um verdadeiro cavalheiro inglês do campo.
O Reitor suspirou. - Não se pode desejar um epitáfio mais belo.
- Minha avó também - acudiu Stephen devidamente, porque, desde Oxford, meditando nervosamente enquanto o trem corria pelos prados, pomares e tortuosas regiões, resolvera
ser inteiramente filial. - Ela não ficava muito atrás dele... Mould me contou muitas histórias a seu respeito.
- Ah, sim, ele era muito devotado a ela... como todos os seus serviçais. Mas ela o trazia num pé só. - Um vagaroso sorriso de reminiscência assomou aos olhos de
Bertram. - Você sabe que nos seus últimos anos a velha senhora tornou-se excessivamente gorda. Na verdade, tinha dificuldade em andar, era obrigada a locomover-se
num carrinho, e Mould, e depois o filho do jardineiro, ambos serviam como meio de propulsão. Por mais seis penies semanais. Era uma grande honra. Mas um tanto extenuante,
especialmente quando sua avó desejava ir à aldeia e tinha que ser empurrada durante todo o caminho até Ambry Hill. Num dia quente de verão, quando alcançou o topo
da colina, o jovem Mould parou para enxugar o rosto na manga. Mas ao deixar escapar a cadeira de rodas, lá se foi ela sem ele, aumentando de velocidade, zunindo
colina abaixo e em torno da curva numa velocidade vertiginosa. O coitado do rapaz ficou petrificado. Via-se como o assassino da sua ama. Com um grito de horror,
precipitou-se encosta abaixo. Quando chegou...
Stephen, encolhendo-se, pôs-se a rir; conhecia a anedota de cor.
- ... lá estava a sua avó, calmamente na praça da aldeia, barganhando com o açougueiro as costelas de um cordeiro. - O sorriso de Bertram extinguiu-se. - Era uma
mulher indomável. Imensamente caridosa. E devotada ao meu pai. Morreu somente oito semanas depois dele.
Estaria o Reitor pensando no seu próprio casamento? Lá fora, piou uma coruja. Na copa, no fim do corredor, Caroline estava mexendo em jarras de cerâmica de picles
com uma brusquidão desnecessária. Bertram endireitou-se e bebericou o seu porto, consciente de que devia quebrar o silêncio antes que houvesse um constrangimento
entre ele e Stephen. Como era estranho terem um grande carinho, e, contudo, uma sensação desse embaraço perseguir as suas relações sempre que ficavam a sós. Seria
porque ele se preocupava demasiado? Nunca tinha sentido essa falta de naturalidade na companhia dos
seus dois outros filhos. Naturalmente, ele gostava de Caroline, aceitava aquela sua fortaleza, considerava-a uma "grande presença". Mas a sua domesticidade, conservando-a
uma perpétua solteirona, chocava inconscientemente o seu senso de orgulho de família. Quanto a David, seu filho mais moço, agora com quase 13 anos de idade, aqui,
ai! o seu amor mergulhava em tristeza, decepção e pena. Pensar que um filho seu, aliás, qualquer Desmonde, fosse um epiléptico que, mesmo sem sofrer ataques, tendia
a gaguejar!
O Reitor reprimiu um suspiro. Ceder a tal sentimento era perigoso. Contudo, no seu presente humor, não havia como evitá-lo.
- Que bom ter terminado seus estudos em Oxford. Você se saiu bem.
- Oh, não sei não. No fim, pareceu-me ter perdido o ânimo.
- Eu também me senti assim quando voltei de Trinity... embora gostasse de lá tanto quanto você.
Stephen ficou silencioso. Como poderia dizer a papai que detestava a universidade?... aquela secura, a superioridade, a sensação de estar fora da vida, a interminável
preocupação com esportes que não o interessavam, o estudo sem sangue de línguas mortas que o aborreciam inexprimivelmente, de pura contrariedade, acima de tudo aperfeiçoar-se
em francês e espanhol... sua aversão a uma carreira que lhe fora determinada.
Mas o Reitor dizia:
- Você ganhou umas férias. Claire o quer para jogar ténis. Seu tio Hubert convidou-o para Chillingham. O salmão dele não esteve bom esta noite? Seu primo Geoffrey
está aqui, numa breve licença.
Novamente Stephen não respondeu. E pela primeira vez Bertram começou a se questionar, se, por baixo da sua maneira passiva, o seu filho não estava combatendo sinais
de Cansaço. Sua palidez natural parecia mais intensa, e seus olhos tinham aquela negrura aumentada que, diminuindo o resto do seu rosto, - representara desde os
seus primeiros dias um sintoma de mal-estar físico ou emotivo. Ele não é forte, espero que não esteja adoecendo de alguma coisa, pensou Bertram, com súbita ansiedade,
e rápido, protetoramente, declarou:
- Você tem mesmo que descansar. Não precisa ir à Sede antes de julho. Descontando cinco meses para Londres, a sua ordenação seria no Natal, a quadra mais conveniente
do ano.
Stephen levantou-se. Por muito tempo havia antecipado este temido momento, tentado, a conselho do seu amigo Glyn, apressá-lo, e então recuava nervoso, escrevia uma
dezena de cartas, e sempre as rasgava. Agora aquilo estava diante dele, e ele se sentia mal, vazio por dentro.
- Papai... preciso falar com o senhor.
- Sim? - Animou-o com um aceno, as pontas dos dedos juntas.
Uma pausa. Seria dinheiro?, pensou serenamente o Reitor. Alguma dívida não paga na universidade? Então, ouviu as palavras entrecortadas:
- Eu não quero ser ordenado.
A expressão do Reitor não se alterou aparentemente, como se uma súbita e completa surpresa tivesse, como a morte repentina, paralisado as suas feições numa semelhança
de normalidade. Por fim, quase estupidamente, disse:
- Não quer?
- Acho que não sirvo para a Igreja... Não sou bom com pessoas Não sei organizar... Eu seria incapaz de pregar um sermão decente, ainda que para salvar a minha própria
vida.
- Essas coisas virão. - Em pé, Bertram estava quase franzindo o cenho.
- Os meus próprios sermões não são particularmente brilhantes. Mas bastam.
- Mas papai, não é apenas isso. Eu não tenho interesse por esse trabalho. Eu... eu não me sinto capaz de sucedê-lo aqui...
Confirmado em sua primeira suspeita pela voz interrompida, o Reitor recuperou-se e assumiu um tom brando.
- Você está cansado e abatido, meu filho. Nós todos ficamos cansados e desanimados ocasionalmente. Você se sentirá diferente depois de umas caminhadas pelos Downs.
- Não, papai. - Respirando irregularmente, Stephen fortificou a sua vontade. - Venho sentindo isto há muito tempo. Não posso amarrar-me neste lugarzinho... a um
futuro vazio e frustrado.
Que tinha dito ele, procurando desesperadamente as palavras? A expressão chocada nos olhos do seu pai afligiu-o. Um momento de insuportável silêncio. Então:
- Não percebi que você via Stillwater sob esse aspecto. Somos uma pequena paróquia, talvez. Mas nosso valor para o país pode ser julgado por outros padrões que não
os da mera dimensão.
- O senhor me interpretou mal. Eu gosto de Stillwater. ., é o meu lar. E sei o quanto o senhor é estimado em quilómetros e quilómetros aqui em volta. É uma coisa
diferente... certamente o senhor entende o que eu quero dizer... o que acho que devo fazer com a minha vida.
O Reitor recuou bruscamente, e então, com toda a compreensão, olhou sobressaltado para o filho.
- Stephen... não será aquela ideia doida outra vez?
- É, papai.
Novamente um compasso de silêncio vibrou entre eles. O Reitor pôs-se de pé, e começou, lentamente a princípio, depois com crescente perturbação, a andar de cá para
lá. Finalmente, com um esforço, acalmou-se e aproximou-se de Stephen.
- Meu querido filho - disse ele com grande seriedade. - Eu nunca tentei prendê-lo a mim pelo seu senso do dever. Mesmo quando você era muito moço, antes de ir para
a escola, preferi confiar nos seus sentimentos naturais
de afeição e respeito. No entanto, deve compreender o quanto contei inteiramente com você para me suceder aqui... Stillwater significa tanto para mim... para todos
nós. E as circunstâncias da minha vida... a invalidez de sua mãe... a infeliz deficiência de David... o fato de ser o meu filho mais velho e, perdoe-me - a sua voz
tremeu ligeiramente - meu filho bem-amado - levou-me a colocar as minhas esperanças em você. Contudo, neste momento, ponho tudo isso de lado. Por minha honra, é
em você que estou pensando, e não em mim, quando lhe digo, quando lhe suplico que esqueça esse sonho fantástico. Você não compreende realmente o que isso significa.
Você não deve... não pode realizá-lo.
Stephen baixou os olhos a fim de não ver o rosto contraído do pai.
- Mas eu com certeza tenho direito à minha própria vida. - Através do seu respeito ardia uma íntima confiança.
- Não a essa espécie de vida. Ela só lhe trará infelicidade. Jogar fora as suas brilhantes perspectivas, arruinar toda a sua carreira por um mero capricho... seria
um ultraje à face de Deus. E depois há Claire... como, em nome do Céu, ela caberia nesse plano? Não, não. Você é muito jovem para a sua idade, Stephen... Essa ideia
louca que se apoderou de você pode lhe parecer muito importante agora. Mas dentro de poucos anos, rirá de si mesmo pelo simples fato de ter pensado nela.
Afundado na sua cadeira, de faces vermelhas e olhos baixos, com o espírito tardo e embotado pelo vinho do Porto, Stephen não podia achar uma palavra para dizer.
Naquele momento, sem exagero, odiava o seu pai. contudo, ao mesmo tempo, mostrava-se vencido pela vergonhosa consciência da sua afeição paternal, pela gratidão e
justiça do seu ponto de vista, e, pior que tudo, por uma tépida onda de nostalgia que lhe subia à garganta, um dilúvio de recordações da infância... as corridas
de tílburi a Ambry, seu pai afrouxando as rédeas, Carrie no seu limpo avental branco, Davie usando os seus primeiros calções de flanela; os piqueniques à beira do
Avon, o sol quente na água fria, e um pato selvagem subindo do juncal amarelo à medida que a canoa avançava; as canções familiares entoadas diante da árvore de Natal,
uma poeira de neve nas vidraças... oh, como poderia arrancar essas ternas, fortes raízes?
Bertram inclinou-se para diante e, não de modo comovente, mas com um toque de desconfiança, pôs-lhe a mão no ombro.
- Acredite-me, trata-se da sua felicidade, Stephen. Você não pode... não poderia achar no seu coração alguma coisa contra mim.
Stephen não se atrevia a erguer os olhos, com medo de romper em lágrimas. Estava liquidado... pelo menos no presente. E ele tinha pensado lutar duramente, tinha
jurado a Glyn que ganharia a partida.
- Muito bem - conseguiu murmurar finalmente, provando toda a
amargura que a derrota traz a uma natureza dócil mas apaixonada. - Se é assim que o senhor pensa, com tanta veemência... tentarei a Sede... para ver o que acontece.
CAPÍTULO III
BERTRAM SUBIU AS ESCADAS VAGAROSAMENTE. Embora fosse grande a sua sensação de alívio, não diminuía o cansaço que lhe viera de repente, nem a demorada ansiedade do
seu coração. Diante do quarto da esposa, hesitava, com a cabeça inclinada numa atitude de escuta; depois, batendo ligeiramente no painel, empertigou-se e entrou.
Era um vasto compartimento, outrora a sala de estar de cima, a melhor da casa, como referira o velho Cónego Desmonde, sem dúvida por suas belas proporções e por
dar para o sul, o que, além de permitir a entrada do sol da manhã, oferecia um vasto panorama dos Downs. Na sua conversão em quarto e sala de estar da esposa, parte
da mobília original tinha sido mantida - as cadeiras de tapeçaria e os canapés Chippendale, um largo espelho em semicírculo com moldura de gesso em cima do consolo
de mármore branco da lareira, o tapete vermelho de Bruxelas. Protegida por um guarda-vento, Julia Desmonde estava deitada, lendo, embaixo de uma cobertura de cetim.
Era uma mulher formosa e bem conservada, de 45 anos, com grande ar tranquilo e muito indolente, feições cheias e lisas, e um denso cabelo castanho espalhado no travesseiro
como uma nuvem.
Marcando com uma unha branca o lugar do livro que tinha o desenho de uma figura do zodíaco, Julia dirigiu para o marido, por baixo das finas sobrancelhas, um olhar
inquiridor. Seus olhos eram de um notável azul de amor-perfeito, quase infantis, com pálpebras carnudas quase caídas.
- Então temos Stephen em casa novamente - disse ela.
- Sim, achei que meu querido filho estava com boa aparência. Podia-se contar com ela para exprimir, na sua voz aristocrática e absorta consigo mesma, uma opinião
contrária à dele.
- E a dor de cabeça?
- Melhor, muito obrigada. Sentei-me demais ao sol esta tarde. O sol desta primavera precoce é muito traiçoeiro. Mas eu acabo de fazer um tratamento.
Ele percebeu, pelo aparelho que estava na mesa ao lado, que ela acabara de aplicar uma das suas vibrações. No guarda-fogo, uma caldeirinha de metal assobiava com
um alegre penacho de vapor, indicando que em 20 minutos o extrato de farelo seria levantado e misturado, os tabletes de fermento esmagados e engolidos, o iogurte
batido, ou desta vez seriam algas secas? Então a bolsa de água quente seria reenchida, o fogo disposto para a noite, as luzes diminuídas, as almofadinhas para as
pálpebras umedecidas e colocadas para dormir. E outra vez, embora lutasse contra ela com determinação cristã, a pergunta lhe veio: Por que cargas-d'água tinha casado
com ela?
Ela fora, sem dúvida - aliás ainda o era, evidentemente na sua maneira estatuesca, uma espécie de beleza, e como filha única de Sir Henry Marsden de Haselton Park,
tinha sido considerada pela sociedade do campo daquela ocasião "o partido da estação". Quem, olhando-a, teria adivinhado, por exemplo, que aquela jovem com a graça
de um cisne, anfitriã da Haselton Fête, considerada a beldade do baile de caça, cercada por jovens oficiais dos quartéis de Charminster, sorridente mas composta,
centro de atração, mais tarde revelaria a acentuada peculiaridade de ser tão inteiramente inútil para ele como esposa?
A não ser por uns poucos garden-parties nos seus primeiros anos de casados, quando arrastava um guarda-sol com babados, movendo-se graciosamente sobre a relva, com
um chapeirão, ela se recusara com pacífica resolução a tomar interesse pelas obras da paróquia. "Deus", dizia ela amavelmente, "não há nenhum sentido em levar sopa
para rústicos indigentes ou estragar os nervos costurando roupa de criança para encorajamento da população rural." Afortunadamente, a mulher do bispo gostava dela,
mas ela não recebia as senhoras da clerezia menor.
Preferia passar os dias sentada, exageradamente vestida, à sua janela, ou no roseiral, empenhada num interminável bordado em seda colorida, do qual levantava a cabeça
repetidamente para olhar por longos períodos o espaço, ou tomar notas ocasionais, quando lhe ocorriam, do que haveria de comunicar ao seu médico, que - tendo há
muito esgotado o doutor do condado - visitava duas vezes por mês em Londres. Seus filhos, que ela suportava com uma facilidade distraída, não tinham sido para ela
mais do que episódios momentâneos. Desde que não a incomodassem, ela os considerava com remota indulgência. Contudo, ao aumentar, mais e mais, o seu alheamento,
ela se retirava para si mesma, criando uma existência que se desenvolvia em torno das suas funções físicas, um pequeno mundo de feliz hipocondria, no qual - poderia
ele, ó Deus, tê-lo previsto quando naquela tarde cheirando a rosas, 20 anos atrás, ele quase morrera de dor com o seu beijo aromático? - ela não tinha maior prazer,
nenhum interesse mais vivo, do que discutir amavelmente com ele a cor dos seus tamboretes.
Talvez o cavalo de campanha empalhado no saguão paterno - lembrança de Balaclava - devesse tê-lo advertido, mas, ai! podia ter predito que o pai dela, até a idade
de 60 anos, não era mais que um excêntrico amável, dedicado em suas horas de fazer as pesquisas mecânicas - a eletrificação da sua propriedade por uma cadeia de
moinhos de vento, a inócua construção de um canhão de tiro rápido que, recusado pelo Ministério da Guerra, tinha não mais do que levado ao céu, na sua parte de carne,
o mordomo da família, que, em nome de Deus, devia ter previsto que aquele irreprimível doido teria, na sua caduquice, lançado subitamente um grandioso projeto para
a construção de uma máquina voadora, como a que foi subsequentemente voada por Blériot através do Canal da Mancha, embora aquilo em si mesmo fosse extremamente doentio,
e não passasse de uma feia geringonça com fantásticos parafusos, supostamente capaz de subir do chão na vertical: um helicóptero. Assim, em desafio às leis da gravidade,
Sir Henry profanara o seu belo parque com alpendres e hangar, operários importados, engenheiros, um mecânico belga, gastara dinheiro como água, em resumo, arruinara-se,
e, permanecendo no chão, morrendo como alvo de mofa.
Haselton, que devia ter sido de Julia, era agora uma escola para meninas, o grande hangar um ginásio, e os alpendres - horrores - recém pintados depósitos para tacos
de hóquei enlameados e sapatos desemparceirados de lona.
Seria possível, pensava Bertram, com novo abatimento, que algo dessa instabilidade agora se manifestasse em Stephen? Não, não... impossível. O filho, tão de perto
parecido com ele em corpo e alma, era todo dele, de fato o seu outro eu. No entanto, devido à sua ansiedade, a nuvem que pairava sobre o seu espírito, era tentado,
a despeito do seu melhor juízo, a abrir a mente e procurar alguma espécie de consolo da parte de sua esposa.
- Minha querida - disse ele. - Enquanto Stephen estiver conosco, acho que devemos fazer um esforço para afastá-lo de si mesmo.
Julia mirou-o surpreendida. Ela possuía em grau notável a faculdade de torcer o sentido do que lhe diziam.
- Meu caro Bertram, você sabe muito bem que não posso fazer qualquer esforço. E por que Stephen deve ser afastado de si mesmo?
- Eu... eu estou preocupado com ele. Ele sempre foi um rapaz incomum. Está atravessando uma fase difícil.
- Difícil, Bertram? Ele já não passou pela puberdade?
- Naturalmente... mas não sei o que se passa com esses rapazes. Na primavera, metem ideias estranhas na cabeça.
- Você quer dizer que Stephen está em estado de amor?
- Não... bem, sabemos que ele gosta de Claire.
- Então o que quer dizer? Ele não pode estar doente. Você mesmo disSe um momento atrás que ele está muito bem.
- Foi você quem disse isso. - A despeito de si mesmo, Bertram falava com crescente impaciência. - Acho que ele está longe de se sentir bem. Mas vejo que você não
deseja participar da minha ansiedade.
- Desejo que me fale, meu querido, não faço nenhuma objeção a ouvi-lo. Mas não é suficiente você estar aborrecido sem me aborrecer? Acho que
fiz a minha parte em trazer os seus filhos ao mundo. Sempre houve, do primeiro ao último, pouco prazer nessa tarefa. Depois, você fez deles sua responsabilidade.
Eu jamais interferi. Por que devo fazê-lo agora?
- É verdade - disse ele, tentando reprimir a sua amargura. - Faria pouca diferença para você se Stephen arruinasse a vida dele. Julia, há alguma coisa nele, algo
debaixo da superfície, que eu não compreendo. O que é que ele realmente pensa? Quem são os seus amigos? Não se lembra de que quando Geoffrey o visitou no ano passado,
em Trinity, encontrou lá a pessoa mais inesperada no seu alojamento... um excêntrico de primeira, foi como Geoffrey o chamou, um artista desmazelado... um galês
Interrompeu-se, olhando quase súplice para ela, até que ela foi obrigada a responder. Sua voz era suave.
- Que tem você contra os galeses, Bertram? Eles possuem belas vozes. Esse galês canta?
- Não - replicou Bertram, corando. - Ele vive insistindo com Stephen para que vá a Paris.
- Muitos jovens já fizeram isso antes, Bertram.
- Até concordo. Mas, desta vez, não pela razão óbvia.
- Então por que razão, se não é para ter uma mulher francesa?
- Para pintar!
Tinha-o dito, livrara-se daquilo afinal; e tensamente, embora com uma certa sensação de alívio, esperou, em silêncio, que ela falasse.
- Devo confessar, Bertram, que não vejo mal algum nisso tudo. Lembro-me de que, quando estive em Interlaken com papá, fiz algumas deliciosas pequenas aquarelas do
lago. Azul era o tom predominante. Stephen sempre gostou de desenhar. Aliás, foi você quem lhe deu a primeira caixa de lápis de cor.
Ele mordeu forte os lábios.
- Isso não é ocupação de criança, Julia. Sabe que há mais de um ano, sem nos dizer uma palavra, ele tem viajado de Oxford para assistir às aulas noturnas de arte
em Slade?
- Slade é uma instituição respeitável. Stephen terá bastante tempo para fazer seus esboços entre os sermões. E, sem dúvida, desenhar é Um calmante para os nervos.
Ele refreou o seu impulso de gritar. Por um momento, manteve os olhos baixos, no tom de quem foi Vencido, mas, respirando um pouco depressa demais, disse:
- Espero que tenha razão, minha cara. Suponho que me preocupo desnecessariamente. Sem dúvida ele se restabelecerá logo que entre na rotina do seu trabalho em Londres.
- Sem dúvida. E, Bertram, resolvi que, em vez de Harrogate, irei a Cheltenham no mês que vem. Lá há águas minerais, e dizem que são excelentes para promover a secreção
da bile. Quando o Dr. Leonard examinou a minha urina pela última vez, encontrou uma acentuada insuficiência de sais biliares.
Ele deu boa-noite, em tom baixo, e saiu rapidamente, antes que dissesse coisa pior.
Ao sair do quarto, podia ouvir no corredor o lento tique-taque da máquina de Caroline, que, sem se poupar, batia as notas para o seu discurso do dia seguinte.
CAPÍTULO IV
NUMA TARDE CINZENTA E ENEVOADA, seis semanas mais tarde, Stephen, voltando de uma visita de casa em casa, caminhava lentamente pela Clinker Street, no East Stepney.
A nuvem sulfurosa sobre as docas de Londres tornava o estreito logradouro mais triste e opressivo para ele. Nenhuma luz, nenhuma cor - somente a inércia dos carros
de descarga vazios, os paralelepípedos graxentos, um cavalo da zorra de um cervejeiro fumegando na chuva, com os arreios dentro de um saco gotejante. Um ônibus ruidoso
passou no rumo oeste, salpicando-o de lama quando ele voltava para a Sede.
Aquela construção de tijolo vermelho, erguida no alinhamento das casas de estuque derruídas que se inclinavam ao longo da rua como velhas decaídas, agora mais do
que nunca parecia-lhe uma pequena mas eficiente penitenciária. Nesse momento, abriu-se a porta da frente e o Guardião, o Reverendo Crispin Bliss, saiu, de guarda-chuva
em pé, nariz levantado para farejar o tempo, alto, magro, envolto até os sapatos em uma comprida capa impermeável preta. Um encontro, pensou Stephen, era inevitável;
e aproximou-se.
- Ali, Desmonde... já de volta?
O tom frouxamente cordial era, achou Stephen, o de um homem que procurava gostar dele e não podia, a despeito da melhor das intenções e dos reclamos do amor fraterno.
Inquestionavelmente, o Reverendo Crispin Bliss, membro da confraria de St. Cuthbert era um clérigo devotado que trabalhava
arduamente pelo bem da sua vinha infrutífera. Clérigo menor, com fortes tendências evangélicas, era um homem de sincera embora limitada piedade. Religião à parte,
porém, a sua maneira era muito pouco atraente: seco, académico, suscetivelmente superior. Igualmente infeliz era a sua maneira de caminhar com a cabeça atirada para
trás, o ar nobre com que procurava se proteger, e, sobretudo, a sua voz rachada, ligeiramente fanhosa, parecendo sempre pronta a pronunciar contradições culturais
em notas de agudo falsete. Quase no início, Stephen tivera a má sorte de ofendê-lo.
No corredor superior da Sede estava pendurado um cruento quadro do martírio de São Sebastião, que para Stephen sangrava de novo sempre que ele saía da sua sala.
Desde que a pintura parecia ignorada por todos menos ele, uma manhã, num momento de aversão, virou-a contra a parede. O ato passou aparentemente despercebido. Mas
na ceia dessa noite, com um sorriso magoado que passou por cima dos seus dois coadjutores, Loftus e Geer, e foi repousar em Stephen, o Guardião observou, nos seus
tons mais nasais:
- Não faço objeção ao humor, mesmo na sua forma mais disfarçada, a brincadeira de mau gosto. Mas interferir em qualquer objeto desta casa que por seu assunto ou
associação possa ser considerado como sagrado é, para o meu espírito, um ato indecoroso e irreligioso.
Stephen corou até a raiz dos cabelos e manteve os olhos no seu prato. Não tinha querido fazer mal algum, e quando a refeição terminou, o desejo de explicar-se levou-o
ao Guardião.
- Lamento ter virado o quadro. A única desculpa que posso oferecer é que ele bulia com os meus nervos.
- Com os seus nervos, Desmonde?
- Bem... sim. É de um gosto muito chocante, além de ser evidentemente uma falsificação.
- Não posso compreendê-lo, Desmonde. O quadro é um legítimo Carlo Dolci.
Stephen sorriu em tom de desculpa.
- Oh, dificilmente, senhor. Nem sequer isso. Além das pinceladas grosseiras, e do pigmento moderno, é pintado em tela branca de cânhamo - um tecido que só foi manufaturado
por volta de 1890, uns bons 200 anos após a morte de Dolci.
A expressão do Guardião petrificou-se. Respirava rapidamente pelas narinas, não fogo precisamente, mas a contrapartida cristã da cólera - justa indignação.
- Acontece que esse quadro é meu, Desmonde, e uma propriedade muito estimada. Comprei-o de um jovem na Itália, de fonte impecável. A despeito da sua opinião, continuarei
a apreciá-lo como o original de uma obra de arte.
Agora, todavia, havia menos hostilidade do que vigilante moderação no
olhar com que o Guardião, parado na chuva, ofereceu a Stephen o abrigo do seu guarda-chuva e perguntou:
- Fez a série de Skinner esta tarde?
- Praticamente toda, senhor.
Não queria confessar que, esperando a visita de Richard Glyn, tinha saltado os números ímpares.
- Como encontrou a velha Sra. Blimey?
- Não muito bem, receio.
- A bronquite da pobre criatura piorou? - Depois, como Stephen hesitava, parecendo inquieto, ajuntou: - Ela precisa do médico?
- Não... não exatamente. Aliás, encontrei-a muito embriagada.
Houve uma pausa perturbadora, então veio a pergunta um tanto mundana:
- Como é que ela conseguiu dinheiro?
- Acredito ser o responsável, senhor. Dei-lhe seis xelins ontem para que pagasse o aluguel do quarto. Ela parece que o gastou em gim.
O Guardião fez um som, estalando a língua.
- Bem... vivendo e aprendendo, Desmonde. Não o censuro. Mas você não deve pôr a tentação no caminho das pobres criaturas de Deus.
- Acho que não. Por outro lado, quem pode censurá-la por tentar escapar à miséria umas poucas horas? Ela sofre do peito, não arranja trabalho de costura de qualquer
espécie, deve o aluguel ao senhorio e já empenhou quase tudo no seu quarto. Devo confessar que me senti quase contente ao vê-la rolar num estado de feliz esquecimento.
- Desmonde!
- E o que é mais... não pude deixar de pensar que se algum de nós estivesse naquela situação teria feito exatamente a mesma coisa.
- Ora, vamos. Isso é levar o caso um pouco longe demais. Nós nunca devemos, queira Deus, achar-nos em tais situações desagradáveis. - Abanou a cabeça em reprovação
e abriu o seu guarda-chuva. - Haverá reunião dos rapazes esta noite? Trocarei uma palavra com você a esse respeito depois da ceia.
com um aceno de despedida, um tanto distante, pôs-se a caminho, deixando Stephen a subir as escadas para o seu quarto, um estreito cubículo forrado de carvalho claro,
com um consolo gótico e uma estante de livros giratória - A cama ainda não tinha sido feita. Os residentes da Sede deviam arranjar-se sozinhos, era o que se esperava;
de manhã, por exemplo, Stephen iria encontrar-se regularmente com Geer, o coadjutor, um brilhante e musculoso cristão, levando o seu urinol cheio para o banheiro
com ar de sincera despreoCupação.
Contudo, para que a tradição monástica não parecesse muito severa, uma pequena moça de fora, chamada Jenny Dill, vinha do distrito,
ostensivamente para dar os retoques finais, na realidade fazer a maior parte do trabalho. Quando Stephen se atirou, ainda, de chapéu e casacão, numa cadeira Morris,
podia ouvir os seus passinhos rápidos no quarto de Loftus através da fina parede que servia de repartição. Loftus, um belo rapaz, exigente e moderado, muito elegante
de uma maneira sacerdotal, sempre lhe deixava muito que fazer, tal como sapatos para lustrar, roupas atiradas e por escovar. Contudo, ela parecia ter acabado essas
tarefas, porque, em poucos minutos, houve uma batidinha na porta do seu quarto e, trazendo espanador e balde, ela entrou lepidamente.
- Oh, senhor, perdoe-me... Não sabia que estava aqui.
- Não tem importância, entre.
Observou-a ausente quando ela começou habilmente a tirar os lençóis e a virar o colchão. Era uma mulherzinha agradável, com as faces muito coradas, como se tivessem
sido esfregadas com pó de tijolo, brilhantes olhos castanhos e uma franja de cabelo preto. Parecia, pensou ele, uma moça típica das camadas populares de Londres...
inteiramente competente e que ninguém poderia enganar. No entanto, havia nela algo mais do que ordinário: um ar de simplicidade bem-disposta, uma inocência, uma
afabilidade afetuosa, e, acima de tudo, um vigor, como se ela não pudesse conter a energia e deleite que pulsavam no seu corpo jovem e sadio. E ao mover-se de um
lado para outro com precisão, a cintura fina, o busto pequeno mas firme, inconsciente de que ele a observava, ou pelo menos de nenhuma maneira perturbada com isso,
instintivamente a sua mão pegou o lápis e um bloco de cima da escrivaninha.
Dali a pouco, quando ela foi à lareira, curvou-se e começou a tirar as cinzas. Nesse momento, o seu interesse aumentou, e quando ela fez menção
de levantar-se, ele a deteve bruscamente.
- Por favor, não se mexa, Jenny.
- Mas, senhor.
- Não, não. Volte a cabeça e não se mexa.
Enquanto ela, obediente, voltava a cabeça, mantendo a sua posição curvada, os dedos de Stephen moviam-se nervosos sobre o papel.
- Pensa que sou maluco, não é, Jenny? Todos os outros do distrito também pensam.
- Oh, não, senhor - protestou ela vigorosamente. - A gente acha é que o senhor é um bocado esquisito, desenhando no clube dos rapazes e coisas assim, diferente de
um coadjutor regular, que ensina eles a lutar boxe. Ora, quando o Sr. Geer trouxer os grandões e eles se pegarem, vai ver que quase se matam um ao outro. E mal vai
poder reconhecer eles, com os olhos pretos e as ventas sangrando. Não, não é o que parece muito natural, acho, Mas a gente pensa que o senhor é mesmo um cavalheiro
muito delicado.
- Isso é animador... e apesar da ausência de sangue. Diga-me uma coisa,
Jenny, se você fosse uma velha doente, de cama, preferiria uma Bíblia ou uma garrafa de gim?
- Eu tenho uma Bíblia, senhor... aliás, duas. O Sr. Loftus e o Sr. Geer me deram uma cada um. A do Sr. Loftus tem umas lindas fitas coloridas. Sou capaz de dizer
que se eu estivesse mal mesmo, o gim até que vinha bem.
- Não fuja, Jenny. Você é honesta como o dia. Diga-me: o que é que você pensa disto aqui?
Lentamente, ela relaxou, aproximou-se e examinou dubiamente o desenho que ele lhe entregara.
- Não sei nada dessas coisas, senhor... mas acho mesmo bonito.
- Ora, sua garota tola, não está vendo que é você?
- Bem, já que o senhor diz - respondeu ela modestamente - parece comigo de costas. Eu só queria não estar com a minha roupa velha e com um rasgão bem ali, tão encabulante,
na abertura da saia.
Stephen riu-se e atirou o bloco para a escrivaninha.
- É da saia velha que eu gosto. Gostaria que você posasse para mim. Eu lhe pagaria cinco xelins por hora.
Ela olhou rapidamente para ele, depois desviou os olhos.
- Isso não seria muito correto, seria, senhor?
- Ora, tolice - disse ele descuidado. - Onde é que está o mal? Mas acho que você não está interessada...
- Bem, senhor... - Ela falava acanhadamente, e uma cor mais viva lhe veio às faces. - Na verdade, se tudo estivesse em ordem, eu bem que poderia fazer mais uns cobres.
- Como?
- É, senhor O senhor sabe... eu espero me casar logo.
- Parabéns. Quem é o felizardo?
- O nome dele é Alfred, senhor. Alfred Baines. Ele é camaroteiro num barco da Orient Lane. Vai estar na terra no outro mês, sem ser esse que vem.
- Excelente para você, Jenny. Não admira que queira ganhar mais um dinheirinho. Quando larga?
- Quando termino de arrumar o seu quarto, senhor. Aí pelas cinco.
- Bem, então... suponha que fique mais uma hora, das cinco às seis, duas vezes por semana. Posso pagar-lhe cinco xelins de cada vez.
- Isso é mais do que generoso, senhor.
- É muito pouco realmente. Mas se você não achar o trabalho muito cansativo, posso lhe dar um bilhete para um amigo meu que ensina nas turmas noturnas no Slade.
Ele terá prazer em empregá-la por uma breve temporada...
Ele não vai esperar que eu, senhor... - Jenny tornou-se rubra.
- Por Deus do céu, não - disse Stephen bondosamente. - Você vestirá uma espécie de costume. Provavelmente ele vai querer somente a sua cabeça e ombros.
- Então ficarei muito agradecida, senhor. . . fico mesmo... especialmente ao senhor.
- Então fechamos negócio? - pergunta ele, sorrindo, aquele raro sorriso que iluminava a sua face e o tornava tão atraente, e estendeu-lhe a mão.
Ela corou, e aproximou-se. Seus pequenos dedos, de unhas mal cortadas ou quebradas, estavam quentes e secos, com cicatrizes nas pontas e frieiras curadas. Contudo,
era uma mão extraordinariamente agradável de segurar, nela estava a pulsação do seu jovem corpo; ele mal pôde soltá-la. E quando o fez, ela se voltou para a porta.
Estava agora um tanto pálida, e sem olhar para ele disse:
- O senhor sempre me tratou tão gentilmente, Sr. Desmonde, é mesmo um prazer fazer as coisas para o senhor. Eu sempre dou ao seu quarto um extra. E lustro muito
bem os seus sapatos, porque... ora, porque são seus, senhor. - Interrompeu-se, e desapareceu.
Para quem era atormentado por humores de autodepreciação, aquelas palavras trouxeram um esquisito calor. Mas logo a momentânea alegria de Stephen sumiu, ele se tornou
novamente consciente de si mesmo, do seu ambiente, e da tristeza que o esperava adiante. Desejou que Glyn aparecesse logo.
Apanhando o Evidences, de Paley, que prometera ao seu pai ler, tentou mergulhar no livro. Mas era inútil. Não tinha interesse nele, detestava a vida que estava levando,
desde que chegara à Sede: a visitação, as aulas de Bíblia, o clube - embora à sua maneira tentasse animá-lo - a terna hipocrisia das palavras alimentando a fome
e o frio das pessoas, enquanto ele e os outros da sua raça permaneciam aquecidos e bem nutridos.
Podia compreender um homem que entrasse para a Igreja por sua natureza profundamente religiosa, por sentir que a sua missão predestinada era ajudar o próximo. Mas
assumir uma existência confortável sem uma forte vocação, por motivos que eram claramente materiais, parecia-lhe a pior espécie de fraude. E, além disso, ele não
tinha a sua própria vocação, um chamado que o mantinha cingido ao seu próprio coração? Que tolo fora em se deixar levar a semelhante passo, como um carneiro estúpido
entalado entre as portas de uma feira do campo. E agora que ali estava, parecia não haver como sair.
Justamente então soaram passos de sapatos pesados nas escadas de madeira, e poucos segundos depois um homem alguns anos mais velho que Stephen foi entrando no quarto
e atirou-se sem fôlego numa cadeira. Era de porte mais do que mediano e fortemente construído, com um cabelo vermelho cortado e uma curta barba vermelha eriçada,
de feições vigorosas, os olhos, sob sobrancelhas bem marcadas, vivazes, rebeldes, contudo muito divertido naquele momento. Vestia calças de pele de toupeira e uma
blusa de operário,
um lenço pintalgado de vermelho amarrado no pescoço; tinha o ar de um bucaneiro, fanfarrão, livre, cheio de um vigoroso prazer pela vida. Dali a pouco, quando cessou
a sua transpiração, puxou um relógio de metal, ligado a ele por um pedaço de cordão esfiapado de quadro.
- Bem na hora - observou com satisfação. - Não está mau para Whitehall.
Embora advertido da paixão espasmódica de Glyn pelos exercícios violentos, Stephen estava moderadamente surpreso.
- Você andou todo o caminho?
- Corri - disse Glyn, enxugando o suor. - Foi diabolicamente divertido. Botei toda a polícia a correr, pensando que eu tinha assaltado um banco. Mas que sede me
deu! Suponho que não haja um pingo de cerveja nesta casa de Deus, não é?
- Sinto, Richard. Não nos permitem tê-la em nosso quarto. Posso lhe dar chá... e biscoitos.
Glyn explodiu em gargalhadas.
- Vocês, jovens teólogos. Como podem combater Satanás com chá e biscoitos? Mas se não for incómodo, traga-os. E acrescentou, mais sério: Sinto não poder ficar muito
tempo, mas eu queria vê-lo.
Conversaram enquanto Stephen fervia uma chaleira de folha no bico de gás junto à lareira. Pronto o chá, Richard bebeu quatro xícaras da desprezada beberagem e, de
uma maneira ausente, liquidou um prato de macarrão. Depois, um tanto embaraçosamente, a conversa cessou.
- A sua mostra correu bem? - perguntou Stephen por fim.
- Muito bem - respondeu Glyn descuidadamente. As críticas foram tão perfeitamente depreciativas que atraíram público.
- Mas você vendeu alguma coisa.
- Um vermelhinho. E tudo porque sou galês. A Galeria Nacional de Cardiff comprou-o. Encorajando o talento nativo... filho de um mineiro e assim por diante.
Houve uma pausa.
- Contudo - resumiu Glyn - o dinheiro me safou das dívidas, e Anna e eu partimos para Paris amanhã.
Stephen empertigou-se imperceptivelmente, um reflexo de todos os seus nervos, não apenas ao som de uma palavra que o perseguia, mas porque naquela maneira demasiado
despreocupada ele pressentiu o verdadeiro motivo da visita de Glyn. Procurou dominar a voz.
- E quanto tempo pretende ficar por lá?
- No mínimo um ano. Vou viver barato e trabalhar como um mouro. Acredite se quiser, Paris é um lugar maravilhoso para trabalhar. - Fez uma pausa e atirou um rápido
olhar para o outro. - Você não vai mesmo conosco?
Stephen sentiu um nó na garganta. As suas mãos, nos braços da poltrona, mostraram os nós dos dedos.
- De que jeito? Você conhece a minha situação.
- Ao mesmo tempo, tive a impressão de que você queria pintar.
Stephen, de cabeça baixa, não respondeu. De súbito ergueu os olhos.
- Glyn... se eu jogasse tudo fora... teria mesmo sucesso como artista?
- Ora, ora, Desmonde - Glyn inclinou-se para diante, de cenho cerrado, - Que pergunta mais idiota. Sucesso? Que quer dizer com sucesso? Então você não sabe que neste
jogo não pode haver garantias, que você não tem mais que você no momento em que se resolve? E você não entra nisso por nenhuma outra razão a não ser a de que não
pode evitá-lo. Se for para valer, abandona tudo, passa fome, rouba, engana a sua avó, transgride cada um dos Dez Mandamentos, só para ter nas suas mãos um tubo de
tinta e uma espátula.
Glyn interrompeu-se, relaxou a postura e continuou, mais serenamente:
- Acredito que você tem talento, possibilidades extraordinárias, do contrário não ia aborrecer o meu bestunto a seu respeito. Eu sei como é duro para você... atolado
na tradição. Você teve todos os inícios errados. Devia ser como eu, nascido numa vila de operários, numa nojenta cidade carvoeira. Mas, assim, você mesmo é quem
tem que decidir. E se não se decidir, atrevo-me a dizer que dará um pastor aceitável. - Tirou de repente o seu relógio niquelado. - Bem, tenho que ir. Preciso reunir
umas coisas. E juntar isto com aquilo. Adeus, Desmonde. Escreva-me quando tiver tempo.
Stephen permaneceu imóvel. Glyn levantou-se. Ao dar o primeiro passo, viu sobre o consolo da lareira um cartão perfurado com as cores do Clube de Críquete Marylebone.
Era um bilhete para a partida de criquete entre Oxford e Cambridge, a ser disputada no mês seguinte. Acompanhando o olhar de Glyn, Stephen corou.
- Tenho que ir - disse ele secamente. - Toda a família irá.
CAPÍTULO V
A PARTIDA TINHA TERMINADO, as balizas haviam sido retiradas, e enquanto o sol lançava sombras compridas sobre a quadra relvada do Lord's, um grupo de sete pessoas
podia ser observado entre a elegante assistência - dificilmente se poderia referir essa afluência como uma multidão - andando
vagarosamente para os portões principais na St. John's Wood Road. Caroline e Claire iam na frente com Davie e seu primo Geoffrey, enquanto poucos passos atrás, Stephen
acompanhava o General Desmonde e sua esposa. Uma emergência na paróquia tinha impedido no último instante o Reitor de estar presente, e Julia, claro, era uma ausente
anual. Por isso, Stephen tinha vindo somente para estar com o irmão, e enquanto Davie tinha grande prazer em ver o jogo - o que era mais tocante, uma vez que, devido
à sua afecção, não lhe era permitido jogar críquete - teve em certa medida a sua recompensa, pois o dia tinha sido duro para ele, e ainda lhe ressoavam na cabeça
os incessantes gritos de Geoffrey de "Boa jogada, senhor", e, como sempre, a mulher do General raramente pensava nela como tia Adelaide - tinha exercido sobre ele
uma familiar combinação de condescendência e arrogância que despertava os seus mais perversos instintos. Mulher dominante, fria, de rosto fino, criada na tradição
do Exército e endurecida nos sóis da Índia, ainda era bonita, de uma maneira dura e atrevida, e possuía uma figura admirável, embora tendendo para a magreza, seu
olhar às vezes letal como um golpe de baioneta.
Agora, ao deixarem o campo e permanecerem juntos um tanto indecisos, enquanto carruagens e cabriolés saíam da calçada, ela falava com rapidez, na sua voz apressada
"do condado".
- Hoje foi um dia tão delicioso, que é uma pena deixá-lo morrer prematuramente. - Voltou-se para o marido. - Tem alguma sugestão, Hubert?
O General Desmonde examinou o grupo. Alto, feições retas, ereto como uma vareta de espingarda, até no chapéu de forma cinza e no fraque matutino, parecia um soldado,
um soldado notável. Um bigode curto acentuava a brevidade incisiva da sua fala.
- Pensei que poderíamos cear no Frascati's.
- Magnífico, papai - disse Geoffrey, endireitando a gravata e depois o colete bordado, talvez pela ducentésima vez, como se estivesse determinado a manter a supremacia
de alfaiataria que fazia dele, tinha certeza, um alvo de admiração. Estilo, que ele chamava de boa forma, era na verdade a sua maior ocupação, fosse numa praça de
armas ou em Piccadilly, e que já o configurava, na idade de 24 anos, como modelo de um elegante, ainda que um tanto tolo, jovem de sucesso da sociedade.
- Davie tem que voltar às sete - interpôs Caroline. - E já passam das seis. Mas ninguém precisa se incomodar, vou levá-lo ao trem.
- Querida, você é tão gentil e tão atenciosa - disse Adelaide sorrindo. Ela não queria Caroline no Frascati's com o seu rosto vermelho de sol como uma peônia, e
naquele medonho vestido marrom que a fazia parecer uma copeira no seu dia de folga, aquelas pernas também, que desgraça, como as patas de um piano de cauda; Caroline,
para tia Adelaide, era sempre uma responsabilidade social, uma mortificação anual no baile de caça, quando, sentada na
entrada do salão, com seu jornal na mão, sem que ninguém a tirasse para dançar, esperava tristemente que algum velho cavalheiro se dirigisse a ela; e agora já tinha
sido bastante desagradável tê-la com eles durante o dia inteiro. - Você deve vir uma outra vez.
- Acho que também tenho que voltar - disse Stephen. Se Davie não fosse, ele não teria nenhum prazer em ir.
- Tem mesmo? - Hubert franziu o cenho, bem-humorado; ele até gostava, ou pelo menos tolerava, aquele jovem sobrinho e futuro pastor. - Tão cedo?
- Mas é claro que você pode ficar, Stephen. - Claire estava ao seu lado, contida, mas de certo modo rogando, com a sua tez macia e feições tão bem modeladas, sombreadas
por um chapéu de aba larga enfeitado de rosas. Hoje mais do que nunca, naquele ambiente, ela parecia o que era: a mais amável das moças inglesas, cujo bom senso,
maneiras e cordialidade franca e agradável faziam amigos onde quer que estivesse. - Fica, sim - ajuntou ela.
- Querida - interveio Adelaide antes que Stephen pudesse responder - não devemos interferir com as regras e regulamentos. Afinal de contas, a vida na Sede, imagino,
é mais ou menos monástica, não é, Stephen? e muito digna, estou certa. É mesmo uma lástima que você não possa vir. Geoffrey acompanhará Claire, e eu pretendo que
Hubert seja o meu galã. Adelaide tornou a sorrir, e com satisfação, pois tinha as suas razões para não desejar que Stephen fosse um do grupo.
- Não podemos deixá-la em alguma parte, Caroline? - perguntou Hubert.
- Oh, não, Davie e eu iremos de metro.
- E eu de ônibus - disse Stephen.
Trocaram-se despedidas, e então, vagamente consciente do desgosto nos olhos de Claire, Stephen afastou-se com Caroline e Davie. Como ainda tinham alguns minutos,
deteve-se no Fuller's da Park Road para oferecer um sorvete de morango ao seu jovem irmão e uma taça de chá a Caroline, que, sub-repticiamente descalçando os sapatos,
confessou que estivera mortificada todo o dia. Depois ele os deixou no metro da Baker Street e tomou o ônibus nº 23 para a zona leste.
Ao matracolejar para Stepney, a despeito do alívio de estar novamente entre gente impolida que não pedia mais do que a sua parte numa cadeira dura, uma lenta depressão
foi tomando conta de Stephen. Como se sentira física e espiritualmente diminuído, como se sentira diferente dos outros durante voltas em todas as metas de críquete,
os encontros e cumprimentos, o almoço no Guard's Club Marquee - "seu diabinho" - quase podia ouvir o pensamento por trás dos olhares indiferentes dirigidos para
ele pelos amigos do primo, ao discutir com Geoffrey a última comédia musical, a corrida de obstáculos
de Sussex, e a última fantasia para o Cambridgeshire. Com esta disposição, chegou à Sede. No saguão, ainda redolente dos odores do bife refogado com repolho do meio-dia,
passou por Luftus, que saía, e deu-lhe uma "boa-tarde". O coadjutor noviço mal respondeu e escorregou para a frente, discreto e elegante, o olho com um tal brilho
de malícia e divertimento, que Stephen recuou instintivamente.
- Que é que há, Loftus?
Já na porta, o outro como que se voltou, com lábios torcidos e apertados pelo humor eclesiástico.
- Então não sabe?
- Claro que não, o que é?
- Não muito, acho eu. A não ser que a pequena Dill parece estar em maus lençóis.
De que diabo estava ele falando? pensou Stephen. Mas deu de ombros, e vendo que não havia correspondência na estante, subiu as escadas. Sentada tesa numa cadeira
dura no centro do seu quarto, usando as suas roupas de sair à rua, um chapéu de palha chato com uma fita estreita, e luvas brancas de algodão, estava Jenny.
Levantou-se imediatamente quando ele entrou, mas com compostura, e enquanto ele a olhava com surpresa, uma vez que ela normalmente não vinha à Sede nos sábados,
ela começou:
- Peço-lhe desculpas pela liberdade, senhor. Mas eu queria estar certa de encontrá-lo. E parece que não havia outro jeito senão eu esperar.
- Muito bem - disse ele incerto. - Não quer sentar? Assim é melhor. Então, que é que há?
Enquanto ele ia até a lareira, ela tornava a sentar-se na beira da cadeira, com as luvas cuidadosamente dobradas.
- Bem, senhor. O fato é que vou embora, hoje, meio de repente. E como o senhor tem sido tão bom para mim, achei que tinha que vir lhe dar adeus.
- Oh, Jenny, sinto muito. Não imaginei que você nos deixasse tão cedo.
- Nem eu, senhor. Mas a verdade é que me despediram.
- Despediram? - repetiu ele desnorteado.
- Sim, despediram. - Acenou com a cabeça, francamente, no seu modo prático, sem acanhamento. - A culpa foi minha. Ontem fui tão boba que vim sem o meu espartilho.
Eu nem notei que já começava a aparecer. Mas não há jeito de enganar essa cozinheira. Correu para o Guardião como uma flecha.
- Mas de que diabo está falando?
- Não está vendo, senhor? Vou ter uma criança.
Ele ficou tão desconcertado que não conseguia achar o que dizer.
- Oh, Jenny, como é que você...?
- Acho que me deixei levar, senhor.
- Como?
- Nós todos temos sentimentos, senhor. Não se pode fugir disso. Oh, eu sou muito respeitável, garanto lhe. Alf é um sujeito correto. Camaroteiro de navio, como eu
lhe disse. Vamos casar quando ele voltar.
Houve uma breve pausa, enquanto Stephen a estudava com simpatia.
- Suponho que você o ama.
- Acho que deve ser isso, senhor. - Um ligeiro e sábio sorriso passou-lhe pelo rosto jovem e fresco. - Ele é muito mais velho que eu, isso é. E vou lhe dizer: se
não fosse pelas duas cervejas que tomei no Good Intent, eu não teria cedido. Mas aí eu também podia ter feito pior. Alf é decente, lá isso é. E habilidoso também.
Gosta de música e me ensinou a tocar gaitinha de boca.
Outra pausa.
- Bem... vamos sentir a sua falta, Jenny.
- E eu vou sentir falta do senhor. Acho que o senhor foi até bom demais comigo. Não é igual a outros por aqui.
- Que outros?
- Bem, principalmente o Guardião, senhor. Tenho que dizer que ele me perseguiu muito antes de me botar na rua.
- Mas você não está saindo por sua vontade?
- Oh, não, senhor. Isso não me convém nem um pouco... Vivo por minha conta, sabe, e não tenho pais vivos. Mas o Guardião não queria ter este lugar contaminado, disse
ele, com três jovens-coadjutores por aqui, e me despachou na hora.
Stephen mordeu o lábio. Olhando disfarçadamente para a moça, percebeu que, sob a sua expressão habitual de serenidade e bom humor, ela parecia pálida e desorientada.
Seria capaz de jurar que não havia nela um pingo de maldade.
- Jenny - disse ele impulsivamente - eu não quero interferir. Mas espero que você tenha feito arranjos para... ir a um hospital... essas coisas.
- Não vou para o hospital, senhor. Tenho o meu quarto. E vou falar com a Sra. Kelley. Ela é parteira, senhor, e muito recomendada.
- Você tem certeza de que estará bem?
- Oh, não se preocupe comigo, senhor. - Pela primeira vez havia uma nota de tristeza na sua voz. - Eu só espero não ter trazido encrenca para o senhor. Isso tudo
aconteceu porque o senhor me arranjou trabalho na aula de arte. E o Guardião parece que ficou furioso com isso.
Stephen ficou um tanto desconcertado com essa notícia. Contudo, o seu genuíno interesse era por Jenny. A admiração que sentia por sua coragem e bom senso, e a indignação
pelo tratamento que lhe tinham dado, tornavam-no mais descuidado consigo. Tinha começado a gostar dela nos últimos meses,
e não podia deixá-la sem alguma expressão da sua boa vontade. Voltou-se de lado, remexeu meio inconscientemente na sua carteira e deu um passo na direção dela.
- Escute, Jenny. Não quero ofendê-la. Mas você fez tanta coisa por mim aqui... você realmente vai precisar de alguma coisa para sustentar-se. Eu gostaria que aceitasse
isto.
Desajeitadamente, pôs-lhe na mão uma nota de cinco libras, que, para esconder o seu elevado valor, dobrara em várias partes.
- Não... não vou aceitar isso...
- Mas Jenny... você tem que...
As lágrimas não lhe vinham facilmente, mas ela passara por tantas agruras naquele dia, que agora elas corriam quentes pelas suas faces.
Nesse momento, enquanto ela se retirava e ele a acompanhava, estendendo-lhe o dinheiro, a porta abriu-se e o Guardião entrou. Houve um silêncio mortal por um momento,
enquanto ele ficava petrificado. Depois, com a voz controlada, disse:
- Pode ir agora, Dill.
Quando Jenny se voltou para sair, arrasada, com as lágrimas a escorrer lhe pelas faces, Stephen, a despeito da sua expressão culpada, vermelha, teve calma suficiente
para se aproveitar da sua confusão e enfiar-lhe a nota no bolso da jaqueta.
- Adeus, Jenny - murmurou ele. - E muita sorte.
Sua resposta, se resposta houve, foi inaudível.
Ainda na sua maneira distante, o Reverendo Crispin fechou a porta atrás dela; depois, com um rápido olhar para Stephen, comprimiu os lábios e fixou o olhar no teto.
- Desmonde - disse ele - presumi que a sua conduta tinha sido seriamente indiscreta. Mas jamais sonhei que pudesse ir tão longe. Como amigo de seu caro pai, isso
me aflige mais do que posso expressar.
Stephen engoliu o bolo que tinha na garganta. A cor lhe fugira do rosto, mas havia uma centelha nas suas pupilas escuras.
- Não posso compreendê-lo.
- Ora, vamos, Desmonde. Você não pode negar que está, e tem estado há algum tempo, em termos de imprópria intimidade com a jovem pessoa que acabo de despedir.
- Fui amistoso com Jenny. Ela fazia muitas pequenas coisas para mim. E procurei ajudá-la, em retribuição.
- Ah! - fez o Guardião num tom significativo. - E a sua ideia de ajudá-la é estar frequentemente com ela, sozinho, no seu quarto?
- Ela vinha arrumar o quarto. E ocasionalmente fiz alguns esboços dela. Isso é tudo.
- Ora essa! Então você acha que faz parte dos seus deveres, como candidato à ordenação, tomar um modelo, furtivamente, entre as criadas desta casa de Deus? Foi meu
dever examinar alguns desenhos que resultaram dessa colaboração ilícita, e devo confessar que me pareceram extremamente questionáveis.
O sangue subiu à testa de Stephen. Seus olhos fuzilaram furiosamente.
- Pelo que sei do seu gosto, senhor - respondeu ele, tremendo ligeiramente - não me surpreende que não os tenha compreendido.
- É mesmo? - fez Bliss com a calma ácida que achava ir-lhe tão bem. Na verdade, parece que meus padrões, particularmente os de moralidade, diferem dos seus.
- Certamente diferem. - Stephen jogou a prudência de lado. - Eu não teria atirado essa pobre moça no olho da rua por causa de um erro.
- Ouso dizer que não. Isso é precisamente o que eu temia.
Até este momento, as maneiras do Guardião tinham sido estudadamente controladas, mas agora as suas narinas se apertavam e algo não diferente de uma carranca se estabeleceu
na sua testa elevada.
- Embora Dill tenha dado o nome do seu parceiro, não estou inteiramente convencido. Minha firme convicção é de que, pela sua conduta para com essa infeliz moça,
pela maneira como a utilizou para os seus fins chamados artísticos, você é responsável, ou pelo menos indiretamente culpado, pelo estado de depravação em que ela
caiu.
Respirando rapidamente, Stephen encarou Bliss com uma expressão maldosa no rosto. Explodiu:
- Nunca ouvi tanta tolice na minha vida. Nem tamanha hipocrisia. Jenny não é depravada. Ela tem um namorado e vai se casar com ele. Sua ideia de caridade cristã
é vilipendiá-la, e a mim, sem uma justa causa?
- Cale-se, senhor. Não tolerarei que fale comigo dessa maneira. Na verdade, se eu fosse cumprir à risca o meu dever, deveria pedir-lhe que deixasse a Sede imediatamente.
- Fez uma pausa para se recuperar. - Mas em atenção à sua família, e também ao futuro que ainda pode estar à sua frente, estou disposto a ser mais tolerante. Devo
dar ao seu pai alguma ideia do que ocorreu. E você, sem dúvida, me dará a sua garantia por escrito de abandonar, de uma vez por todas, essa obsessão que chama de
"arte", e que é inteiramente incompatível com a sua vocação de clérigo. Haverá, além disso, mais algumas restrições que sou obrigado a lhe impor. Venha ao meu estúdio
depois das orações noturnas, e eu o aconselharei.
Terminando a entrevista, sem dar a Stephen uma oportunidade de responder, girou nos calcanhares e saiu do quarto.
- Ora, vá para o diabo que o carregue! - exclamou Stephen violentamente. Mas infelizmente a porta já estava fechada.
Durante uns momentos, Stephen permaneceu tenso, de punhos cerrados, olhos fitos nos painéis de carvalho envernizado. Depois, com um gesto de abandono, afundou numa
cadeira diante da escrivaninha, tirou papel da gaveta e apanhou uma caneta.
Caro papai,
Fiz aqui o melhor que pude e fui nisso um completo fracasso. Não quero magoá-lo, tomando uma decisão final contra a sua vontade, mas, nas circunstâncias, acho que
devo me afastar um pouco - um ano, no mínimo - até poder ver as coisas mais claramente e experimentar a minha capacidade nesse campo particular tão desagradável
para o senhor que sequer o nomearei. Compreendo o golpe que isto representa para o senhor, e a minha única desculpa é que simplesmente não posso evitá-lo.
Recomendações a todos em Stillwater e a Claire. Tornarei a escrever-lhe quando estiver em Paris.
Stephen
CAPÍTULO VI
PARIS ERA DESCONHECIDA PARA STEPHEN, e embora ao primeiro fôlego o estimulasse como vinho, ele entrou nela nervosamente - como se temesse aqueles olhares satíricos
que os verdadeiros parisienses devem conceder a um forasteiro. Assim, apegava-se ao nome de um hotel que ouvira o pai mencionar num tom de benigna aprovação clerical,
e dando-o ao cocheiro com a maior segurança que pôde encontrar, foi arrebatado da Gare du Nord com uma imprudente velocidade através das ruas naquela tarde de domingo,
surpreendentemente vazias, para o Clifton, na Rue de la Sourdière. Parecia um lugar tranquilo, não particularmente excitante talvez, abrindo-se através de uma entrada
estreita para um pátio quadrado envidraçado, em torno do qual os quartos estavam dispostos atrás de descascados balcões de ferro fundido. Na portaria sonolenta -
o tom era dado por um gato malhado de preto e amarelo dormitando em cima do balcão - não se surpreenderam pela súbita materialização de um jovem inglês. Na verdade,
quando Stephen foi conduzido ao seu quarto no andar de cima, que era um tanto escuro e bolorento, com o papel de parede desbotado e uma enorme cama de cortinas vermelhas,
o idoso concierge, desafivelando as malas do ombro com exagerada falta de ar, sobressaltou-o ligeiramente ao lhe perguntar se ele queria chá.
- Não, muito obrigado - sorriu Stephen, pensando no extraordinário valor que aquele indistinto interior dava ao velho de olhos lacrimejantes com as faces caídas,
marcadas por veias vermelhas, o seu colete listrado de preto e amarelo. - vou sair... e olhar um pouco por aí.
- Não há muito que ver hoje, monsieur - disse o porteiro, encolhendo amavelmente os ombros. - Tudo está fechado.
Mas Stephen mal podia esperar para desfazer a mala e atirar suas coisas no armário poeirento. Então, eufórico, deixou o hotel e foi andando pelas ruas, a esmo, ao
longo da Rue du Mont Tabor e pela Place de la Concorde. Seu imediato pensamento tinha sido em Glyn, mas no constrangido momento de partir, ele esquecera de pedir
o endereço de Richard, e naquele ínterim não recebera nenhuma notícia dele. No entanto, Stephen estava certo de que, no círculo que se propunha frequentar, logo
o encontraria.
O tempo estava bom e claro, o céu pálido riscado pelas costelas de nuvens brilhantes. Quando viu a longa fila de castanheiros, agora em plena folhagem, junto ao
rio, quase exclamou alto. Agitadas pela brisa, as folhas eram luz e sombra, macias, encontrando os seus olhos como uma carícia. Através da avenida chegou ao Sena,
cinza-aço e polido, reverberando atrás de barcaças atracadas. Numa destas, uma jovem mulher, de seios fartos e cabelo louro, estava pendurando roupas cor-de-rosa
numa corda. Um cachorrinho saltitava nos seus tornozelos. Um homem de camiseta e chapéu baixo de feltro fumava placidamente, de braços nus, sentado num balde emborcado.
Numa espécie de transe melódico, Stephen caminhou lentamente pela margem, através de Port Royal, além da linha de quiosques de livros, de volta à Pont Neuf para
a L'Île de la Cité. Lá, ficou a olhar o jogo de cores sobre a água, o escurecer das sombras sobre as moles de pedra. Somente quando a luz desapareceu, ele se voltou,
com um suspiro apatetado, e começou a voltar para o hotel.
Agora a cidade despertava do seu torpor dominical. Nas ruas laterais, ao norte do rio, os pequenos cafés de esquina começavam a se encher de maneira discreta mas
movimentada. As mercearias estavam abrindo, e famílias da classe média começavam a tomar ar, homens robustos com pantufas apareciam nos umbrais. Diante de uma padaria,
ainda fechada, donas-de-casa, tagarelando tranquilamente, reuniam-se para comprar pão. Estou em Paris, pensava Stephen estonteado, finalmente, finalmente.
À guisa de contraste, o Clifton, banhado numa ténue luz religiosa, tinha um ar solene, quase sepulcral. Na verdade, por um instante Stephen teve a tentação de dar
a volta e ir cear no Maxim's ou no Café Riche, ou qualquer daqueles restaurantes alegres sobre os quais lera tantas vezes. Mas estava cansado e tímido para ir desacompanhado.
Além disso, tinha resolvido fazer uma razoável economia. Da sua pensão anual restavam-lhe 150 libras, e essa quantia deveria durar um ano inteiro.
Assim, baixou ao frio refeitório e comeu sozinho - a não ser por um distante cavalheiro solteirão numa desmazelada jaqueta Norfolk que lia continuamente entre os
pratos, e duas cochichantes velhas de malva, todos inconfundivelmente ingleses - uma refeição de cardápio fixo, de sopa, carneiro, ameixas amargas cozidas, que,
embora fossem perfeitamente saudáveis, demonstravam a falácia do argumento de que, na França, a cozinha francesa era uma arte universal. Contudo, nada poderia abater
a sua alegre disposição. Subiu as escadas assobiando e dormiu como uma toupeira na cama de dossel.
Na manhã seguinte, sem demora, saiu para Montparnasse. Depois de considerável reflexão, tinha resolvido não se matricular na École des Beaux Arts, mas procurar uma
atenção mais pessoal, dada pelo Professor Dupret na sua famosa academia do Boulevard Seline. Encontrou o estúdio sem dificuldade, tendo comprado, no balcão do hotel,
um mapa de Paris. Era no último andar de um edifício esquisito, parecido com um quartel, protegido por grades em ponta de lança e guardado por duas guaritas vazias,
bem no fundo do boulevard. Pairava no ar um cheiro de casca de tanino, indicando que ali fora uma armaria, e uma grande algazarra lá em cima sugeriu a Stephen, por
um sobressaltado momento, que os soldados ainda o ocupavam.
Quando subiu, depois de completar as formalidades de admissão com o massier, um tipo corpulento de cara chata, suéter cinzento, calças de lona, que tinha a aparência
de um boxeador aposentado - e que na verdade lá estava para impedir uma flagrante desordem - a aula já tinha começado.
A saia ampla e clara, aquecida por uma enorme estufa holandesa, com paredes que pareciam todas janelas, estava apinhada com uns 50 alunos, formando o grupo mais
estranho que ele já tinha visto. Na maior parte, eram homens entre 20 e 30 anos de idade, vestidos numa variedade de gostos, de muitas nacionalidades - eslavos barbudos,
indianos de pele escura, um grupo de escandinavos louros, vários jovens americanos. As poucas mulheres eram uma coleção esquisita. O olho de Stephen prendeu-se numa
senhora de idade metida numa blusa cor de rato, espiando a sua tela através de um pincenê de aros de ouro, como uma professora diante do seu quadro-negro num jardim
de infância do campo.
O barulho, ali dentro, era ensurdecedor - um rumor contínuo de conversação, trechos altos de canções, em línguas competitivas, observações fanfarronas
gritadas através da sala. Parecia que o tumulto ia permitir que Stephen entrasse sem ser notado. Mas ao ficar ali na porta, hesitante e um tanto pálido, vestindo
a sua roupa escura de clérigo, colarinho branco engomado e gravata preta, a vestimenta regular para os coadjutores da Clinker Street, sobreveio um infeliz intervalo
durante o qual a atenção da classe se voltou diretamente para ele. E então, no silêncio, uma voz de falsete exclamou:
- Ah! C'est Monsieur l'Abbé.
Uivos de risadas saudaram essa observação. Entrando confuso, Stephen encontrou um banco coberto com raspaduras de paletas, mas nenhum cavalete, espremeu-se com dificuldade
para um lugar, e abriu a sua pasta de papel Ingres sobre os joelhos.
O modelo, um velho de longos cabelos prateados, com o aspecto de um ator decadente, bonito, estava sentado numa postura convencional na plataforma do centro, ligeiramente
inclinado para a frente, com o queixo apoiado nas costas da mão. Stephen não gostou da pose, e a expressão do velho era aborrecida e indiferente, mas apanhou o seu
carvão e começou a trabalhar.
Às 11 horas Monsieur Dupret apareceu - um homem de uns 60 anos, belo de uma maneira teatral, com uma cabeleira arrepiada, porte ereto e digno, e mãos móveis. Apesar
das calças ligeiramente frouxas, o seu fraque ajustado dava-lhe um ar correto, distinto, acentuado pela fita na lapela. A sua entrada, impressionante e brusca, causou
uma cessação do barulho maior, e em relativo silêncio ele começou a dar vagarosamente a volta à sala, detendo-se aqui e ali para examinar uma tela com olhos apertados,
pronunciar, com um floreado gesto das mãos, umas breves palavras, mais como um cirurgião visitando a sua enfermaria.
Quando ele se aproximou, Stephen preparou-se para algumas palavras de saudação, de cortês interrogação, mas o professor, com alheamento impessoal, não disse coisa
alguma. Olhou de esguelha para Stephen, meio curioso, meio indiferente, e depois para o seu esboço, e, no instante seguinte, sem um piscar de olhos, desapareceu.
À uma hora tocou uma sineta. Imediatamente se ergueu uma vozearia, o modelo levantou-se como se fosse soltado por uma mola e afastou-se da plataforma, enquanto em
volta os estudantes atiravam pincéis ou carvões e começavam a se acotovelar contra a porta. Perturbado e decepcionado, Stephen foi arrastado, contra a sua vontade,
pela turba que empurrava. Subitamente, no seu cotovelo, ouviu uma voz agradável.
- Você é inglês, não? Meu nome é Chester.
Stephen voltou a cabeça e deu com um jovem mais ou menos da sua idade sorrindo para ele. O cabelo, o queixo partido e os olhos azuis, sombreados por compridas pestanas
negras, davam-lhe um ar de sincero e atraente encanto. Usava uma velha gravata de Harrow.
- Espero você lá embaixo - disse ele quando a maré o carregou. Lá fora, Chester estendeu-lhe a mão.
- Espero que não se importe de eu vir falar com você. No meio dessa turba, os que são do outro lado do Canal devem ficar juntos.
Após a sua deprimente recepção, Stephen estava contente por ter achado um amigo. Quando se apresentou, Chester fez uma pausa por um momento, e exclamou:
- Que tal almoçar comigo?
Saíram juntos pela avenida.
O restaurante em que entraram ficava bem perto, na Place Seline, um salão estreito, de teto baixo, quase uma adega, abrindo para uma cozinha escura, a meia dúzia
de passos do nível da rua, com um fogo de carvão de lenha e espetos com assados, cheio do barulho de panelas de cobre e de um agradável cheiro de cozinha. O lugar
já estava repleto, principalmente de alunos de Dupret, mas Chester, com tranquila segurança, guiou-o através de um pequeno pátio adornado por cubas de alfenas, calmamente
retirou o cartão marcado "RESERVADO" de uma mesa do fundo, habilmente atirou o chapéu para um cabide e convidou Stephen a sentar-se.
Imediatamente, uma mulher gorda, de cara vermelha, vestida de preto, protestou da cozinha:
- Não, não, Harry... Esse lugar está reservado para o Monsieur Lambert.
- Não se agite, Madame Chobert - sorriu Chester. - A senhora sabe que Monsieur Lambert é meu amigo. Além disso, ele sempre chega atrasado.
Madame Chobert não se deu por satisfeita; discutiu e resmungou, mas o charme de Harry Chester - embora ela claramente tentasse precaver-se contra ele - no fim acabou
por vencê-la. Encolhendo os ombros com pena da sua própria fraqueza, levantou a ardósia escrita a giz que pendia da cintura do seu avental, e apresentou-lhes o cardápio.
Por sugestão de Chester, pediram potage maison, boeuf bordelaise e um queijo brie. Uma jarra de cerveja amarela e espumante já estava sobre a mesa.
- Não é uma pessoa má - sorriu Chester quando ela se afastou. Durante a refeição, ele manteve a conversação viva e fluente, aludindo, com inesgotável provisão de
troça e frases feitas, aos seus vizinhos. Apontou para Biondello, o italiano, que já tinha exposto no Salon do ano passado, e Pierre Aumerle, um caso irremediável,
que bebia uma garrafa de Pernod todos os dias, almoçando com uma mulher de semblante ocre com um enorme chapéu, para a qual Chester ergueu as sobrancelhas com um
sorriso. Entrementes, sondou Stephen com algumas perguntas divertidas; então, depois que trouxeram o café filtre, fez uma pausa, com um certo ar consciente, e pareceu
ter achado necessário explicar-se.
- Curioso, não? - comentou ele, riscando desenhos na toalha xadrez - como a gente sempre pode identificar um universitário. Philip Lambert também é um deles. Depois
de Harrow - lançou um olhar rápido para Stephen
- eu mesmo devia ter ido para Cambridge... se não a tivesse trocado pela arte.
Continuou, revelando, com um sorriso suplicante, que o pai tinha sido um grande plantador de chá no Ceilão, ao passo que a mãe, agora viúva, voltara para habitar
uma imensa mansão de Highgate com uma legião de criados. Naturalmente, ela o estragara com mimos, dava-lhe uma generosa pensão. Estava em Paris fazia 18 meses.
- É muito divertido - concluiu ele. - Você deve me deixar mostrar-lhe os meus trabalhos.
- Que acha de Dupret? - perguntou Stephen.
- É o professor mais decente que há por aqui. Você sabe que ele pertence à Legião de Honra?
Ligeiramente chocado, Stephen não respondeu. Chester intrigava-o, como o intrigaria um desenho estranho que, embora agradável, tivesse complexidades estranhas ao
seu gosto.
Terminaram o café. As pessoas começavam a se retirar.
- Seu amigo Lambert parece que não vem - disse Stephen por fim, para quebrar o silêncio.
Chester riu-se.
- Philip é um mendigo errante. Você nunca sabe quando ele vai aparecer... ou com que atraentes saias.
- Ele frequenta a Dupret?
- Trabalha em casa... quando trabalha. Tem recursos particulares, você sabe, e já andou por toda a Europa, estudou em Roma e Viena, mas agora ele e a mulher alugaram
um pequeno apartamento na Esplanada dos Inválidos. - Chester assentiu com um aceno. - E posso lhe dizer que a Sra. Lambert é muito elegante. E, naturalmente, uma
perfeita dama.
Ali estava novamente uma observação que arranhava o ouvido de Stephen, e ele olhou de um modo esquisito para o seu colega, imaginando como poderia usar uma expressão
infeliz. Mas antes que tivesse tempo de responder à pergunta, Harry Chester sentou-se.
- Olhe, aí está Philip.
Seguindo o olhar de Chester, Stephen viu entrar no restaurante um homem delgado, de aparência afetada, com cerca de 30 anos, vestido com uma curta sobrecasaca marrom,
colarinho baixo e gravata fofa. O rosto, pálido e profundamente marcado abaixo dos olhos, tinha um ar de langor. O seu brilhante cabelo preto era repartido nitidamente
no meio, mas a um lado uma mecha tinha escapado num pequeno cacho sobre a sua testa branca. Os seus
modos, aliás toda a sua aparência, davam a impressão de uma indolência amaneirada, de aborrecimento e pretensão.
Quando chegou, pôs a bengala debaixo do braço e começou a descalçar uma luva amarelo-limão, enquanto olhava para Chester com uma alegria levemente desdenhosa.
- Agradeço-lhe por ter guardado a minha mesa, caro rapaz. Mas agora deve ir-se. Espero um convidado às duas horas. E não preciso de acompanhante.
- Estamos saindo, Philip. - O tom de Chester assumira uma inflexão submissa. - Olhe, gostaria que conhecesse Desmonde. Ele entrou para a Dupret hoje.
Lambert lançou uma olhadela a Stephen e depois curvou-se polidamente.
- Desmonde acaba de chegar do seu último ano em Oxford - disse Chester rapidamente.
- Ah, sim - exclamou Lambert. - Que colégio, posso perguntar?
- Trinity - respondeu Stephen.
- Ah! - Lambert relaxou com um sorriso, mostrando os dentes brancos e parelhos, e, tirando a segunda luva apertada de pelica - uma operação que ele executava em
silêncio e sem arrepiar um pêlo - estendeu uma mão pequena para Stephen. - Muito prazer em conhecê-lo. Também estive na Casa. Por favor, não tenham tanta pressa
em se retirar. Posso facilmente encontrar outra mesa.
- Asseguro-lhe - disse Stephen, levantando-se - que terminamos mesmo.
- Então venha tomar chá conosco um dia destes. Estamos em casa quase todas as sextas-feiras às cinco horas. Então falaremos como dois homens de Oxford - seu sorriso
brincou na direção de Chester - e um que quase foi para Cambridge.
A conta, que Madame Chobert apresentara rapidamente, estava sobre a mesa. Uma vez que Chester parecia não vê-la, Stephen apanhou-a e, a despeito dos súbitos e enérgicos
protestos de Harry, pagou a despesa.
CAPÍTULO VII
SOB A MAGIA DA SUA NOVA LIBERDADE, Stephen, entrou rapidamente e com deliciada facilidade numa rotina agradabilíssima, tanto mais que, uma semana
após a sua chegada, recebeu uma carta de Stillwater que foi um grande alívio para o seu espírito. Embora acentuasse o sofrimento ocasionado pela súbita partida de
Stephen, o Reitor havia-o, em certo sentido, perdoado. Obviamente, escreveu ele, a inclinação (a palavra "tentação" fora riscada) tinha sido demasiado forte para
opor-lhe resistência. Por conseguinte, podia "ser tudo pelo melhor", se, como o próprio Stephen tinha proposto, esse interregno de um ano fosse considerado por ambos
os lados como um "campo de prova". Entrementes, aprovava a escolha de Stephen quanto à sua acomodação, conhecia-o demasiado bem para exortá-lo à virtude, e desejava
que nada lhe faltasse do que cabia à sua condição.
De manhã, era uma sensação que nunca diminuía acordar com a consciência de que estava em Paris, de fato seguindo a sua "carreira artística".
Levantou-se, vestiu-se rapidamente e, como o desjejum no Clifton não tinha nada que o recomendasse, saiu para uma pequena crèmerie na esquina do hotel. Ali, por
30 soldos, foram-lhe servidos um jarro de café ou lait e dois croissants flocosos ainda quentes do forno e recém-trazidos pelo padeiro.
Sua caminhada para o estúdio através das ruas frescas era sempre uma delícia, A multidão apressada e os policiais de capa azul, as donas-de-casa madrugadoras com
os braços enganchados em cestas carregadas, um soldado zuavo de calça escarlate, duas porteiras tagarelando apoiadas nas suas vassouras, um velho varredor de rua
lançando esguichos de água pela sarjeta, carrinhos barulhentos de verdura fresca do Halles - tudo isso o extasiava além das exclamações súbitas, agudas, a tagarelice
de muitas línguas, um vagaroso badalar de sinos ecoando nos edifícios de um cinza suave, as graciosas pontes brancas, o rio adorável, já começando a cintilar ao sol.
No estúdio, é verdade, ele não se sentia em casa. A falta de ordem e o perpétuo barulho tornavam difícil a concentração. Parecia que muitos estudantes tinham vindo
menos para trabalhar do que por mero divertimento e feroz exibição dos seus espíritos animais. Riam e cantavam, pregavam peças grosseiras, mantinham intermináveis
discussões em altas vozes nos cafés, afetavam uma boémia exagerada no vestuário e nas maneiras. Falavam a gíria do quarteirão, sabiam tudo a respeito dos últimos
"movimentos", reconheciam Manet, Degas e Renoir como seus mestres e imitavam-nos dolorosamente, desprezavam Millet e Ingres, eram muito críticos com Delacroix, e
contudo tinham pouco ou nada para oferecer de seu.
Naturalmente outros havia que se aplicavam. Ao lado de Stephen havia um moço polaco, vindo de uma pequena cidade do interior próxima de Varsóvia, que, inflamado
pela ambição, tinha vindo sem dinheiro para Paris. Para pagar a sua mensalidade na Dupret, havia trabalhado 12 meses como carregador na estação de Montparnasse.
A intensidade do seu esforço era assustadora, contudo ele não tinha o menor talento. Muitas vezes, quando Dupret
fazia a sua ronda diária, Stephen esperava que ele, com uma única palavra, acabasse piedosamente com aquele fútil labor. Mas o professor não dizia nada, nada além
de corrigir uma linha ou apontar uma expressão vazia, a falta de equilíbrio na composição. Sua atitude com Stephen continuava igualmente impassível, embora uma ou
duas vezes, após estudar alguma parte do seu trabalho, olhasse para ele de uma maneira curiosa, quase às escondidas, como se o visse e examinasse pela primeira vez.
Mais e mais, sob o alheamento de Dupret e suas grandes maneiras, Stephen começou a discernir um núcleo carcomido de decepção, a biliosa amargura de um homem que
no seu coração sabia que tinha falhado no cumprimento da sua expectativa juvenil. Ter obtido o reconhecimento dos círculos oficiais, exibir anualmente o seu trabalho
no Salon (uma pintura segura e cuidadosamente executada, que sempre era pendurada em um bom lugar), participar das juntas e comissões, representar a arte de luvas
brancas nas recepções do governo - tais distinções significavam alguma coisa para quem queria abalar o mundo com uma poderosa obra-prima? Dupret não tinha um verdadeiro
interesse pelo seu estúdio e ainda menos por seus alunos, a não ser quando, com uma ponta de ciúmes, via a evidência de um talento que podia ultrapassar o seu. Atrás
daquela fachada, era um homem vazio, um homem movido pelo homem que supunha ser, um homem mais digno de pena do que desprezo. Na verdade, quando o professor entrava
imponentemente na sala, Stephen fazia dele uma curiosa imagem, no fim do dia, despindo vagarosamente o fraque apertado e soltando os botões brilhantes dos sapatos,
remexendo os dedos comprimidos para aliviar os calos, voltando para a tela semiacabada um Casamento Bretão, pensando, com um arrepio: "Mon Dieu, devo continuar com
isto?"
Na hora do almoço, Stephen ia com Chester ao restaurante de Madame Chobert, mas ocasionalmente escapava à efusiva amizade de Harry e vagabundeava ao longo do cais,
mastigando um petit pain no qual havia uma fatia de presunto avivada pela mostarda amarela. Então, apressando o passo, ia aos museus, ao Louvre ou ao Luxembourg.
Era quase noite quando, com olhos ainda não ajustados às realidades da rua, deixava as compridas galerias e caminhava de volta para o Clifton.
Para Chester, e as poucas outras relações que fizera na Dupret, parecia extraordinário que Stephen passasse as suas noites só, e várias vezes instavam com ele para
que os acompanhasse numa visita a Montmartre. Certa ocasião, ele acedeu, acompanhado de meia dúzia de outros, em ir a um café-concerto na Toque Bleue, perto do Moulin
de la Galette.
Mas ficou enormemente entediado com as cenas que se presumiam vívidas e excitantes, mas, de fato, eram estupidamente fúteis. Os salões de dança eram uma massa humana
empurrando, sapateando, rodeando, semi-intoxicada,
ampliada e distorcida por dezenas de espelhos, retorcendo-se em formas grosseiras, ao estridor de uma banda reles. Certo, nada podia ser mais assustadoramente triste
do que as caras dos frequentadores mais velhos - peitos côncavos e olhos mortiços, estranhamente rebarbativos. Algumas das conhecidas cocotes que Chester lhe apontava
eram francamente medonhas, seus parceiros, com roupas pretas justíssimas, sinistros e degenerados.
Mais tarde, diversas jovens se reuniram à festa, que agora atingia uma fase turbulenta. Suas vozes roucas e grosseira camaradagem, seus braços atirados em torno
de pescoços e seus carinhos cochichados em voz alta despertavam nele um frio desagrado. Enquanto ele permanecia ali sentado, pálido e silencioso, como um peixe fora
da água, uma das jovens se curvou para Chester, que tinha bebido um bocado, e, com os olhos em Stephen, riu-se sem motivo e murmurou alguma coisa no seu ouvido.
Imediatamente, Chester rompeu num ataque de riso.
Nesse momento, Stephen não fez nenhum comentário, mas a caminho de casa, com Chester, falou no assunto.
- Não foi nada, meu velho. Ela apenas disse - Chester, com um tom de desculpa, modificou o comentário original, impublicável - que você era um tipo esquisito. -
E quando Stephen desviou a cabeça, acrescentou: - Lamento que você não tenha se divertido esta noite. Não esqueça de que vamos visitar Lambert na sexta-feira. Avise-me
antes de sair.
Nesse dia, por volta das quatro horas, Stephen saiu para a Rue Bonaparte, onde, no número 15, Harry tinha um quarto no último andar. Após uma íngreme subida de três
lances de escada, percebeu que havia uma furiosa altercação, "e empurrando a porta meio aberta encontrou Chester discutindo com um homem baixo de chapéu preto e
quadrado e um sobretudo pardacento, que, imperturbável, superintendia os movimentos de um subordinado muito ocupado em meter num grande saco de serapilheira o relógio
do consolo, um par de vasos chineses e outros objetos que decoravam o quarto.
- Agora, por favor, o seu relógio, Monsieur Chester.
- Ora, deixe disso, Maurice - suplicou Chester - o relógio não. Dê-me um prazo até o fim da semana que eu pago.
Neste momento, Chester viu Stephen. Por um instante, apatetou-se; depois, aproximando-se, forçou um sorriso confiante.
- Não é uma coisa idiota, Desmonde? Esgotei a minha pensão há pouco. E esses credores importunos, miseráveis, estão me despojando. É praticamente nada. Uns míseros
100-francos. E naturalmente receberei o cheque de mamã no fim do mês. É claro que eu não sonharia em pedir a você; contudo, se houver alguma chance...
Houve uma pequena pausa, então Stephen disse, de boa vontade:
- Terei muito prazer em atendê-lo.
- Muitíssimo obrigado, meu velho. Você o terá de volta, com juros, no dia primeiro do mês. Está vendo, Maurice, seu ladrão? E agora foutre le camp.
Dobrou as notas novinhas que Stephen extraiu da sua carteira e atirou ao oficial de diligências, o qual, após contá-las duas vezes com o polegar umedecido, acenou
silenciosamente, esvaziou o conteúdo da sacola sobre a mesa, com uma reverência enigmática, imitada pelo seu companheiro, e deslizou para fora da sala.
- bom! Acabou! - Chester riu-se alegremente, como se fosse uma excelente piada. - Eu ia sentir falta das minhas velhas panelas. E, naturalmente, disto aqui... -
Colocando os vasos de volta no consolo da lareira, abriu descuidadamente a tampa de um estojo chato e exibiu uma medalha redonda de prata presa a uma fita azul;
depois, de um modo um tanto envergonhado, que não deixava de ser encantador, ajuntou: - Essas coisas não se devem mencionar, Desmonde. Mas uma vez que você me apanhou
desprevenido, tenho que falar... é a Medalha Albert. Pois é... tive que recebê-la, há alguns anos.
- Por quê?
Stephen não podia negar que estava impressionado.
- Ora, porque salvei uma vida no mar, é como chamam isso. Uma velha tonta caiu do navio ao largo de Folkstone. Não posso culpá-la... o mar estava muito agitado...
e era inverno. Aconteceu que fui atrás dela. Não foi absolutamente nada. Não estivemos na água mais do que meia hora, enquanto o vapor fazia a curva e nos mandavam
um bote. Mas vamos esquecer isso e tratar de andar. Se não nos apressarmos, chegaremos tarde para o chá.
Com seu bom humor inteiramente recuperado, Chester desceu as escadas na frente, falando e rindo durante todo o caminho até o apartamento dos Lamberts, situado num
beco sem saída muito atrás da Avenue Duquesne. Ali, num pátio de paralelepípedos, havia um pequeno pavilhão de pedra cinzenta - avivado artisticamente por uma porta
verde-maçã e janelas da mesma cor - que fora outrora a casa do porteiro de uma mansão nos dias de Henrique IV. Cheirando a almoço e a defumador recém-queimado, o
pequeno e um tanto escuro interior estava artisticamente disposto com pequenos tapetes felpudos aqui e ali, cortinas de contas e cadeiras de bambu. Um xale espanhol
estava estendido sobre o piano de armário.
Arrastados pela impetuosidade de Chester, chegaram cedo. Lambert, dormitando numa espreguiçadeira junto às cinzas da lareira, ainda parecia afundado na letargia
de após-almoço, e mal ergueu uma pálpebra pesada quando eles entraram. Mas a Sra. Lambert lá estava para recebê-los. Era alta e esbelta, mais velha do que Stephen
tinha esperado, com grandes olhos verdes, feições tendentes à rispidez, cabelo cor de areia e uma pele branca leitosa que com ele combinava. Seu vestido de tarde,
recortado em torno do pescoço de maneira rebuscada e com saias cheias e compridas, era de brocado branco.
Enquanto ela e Chester conversavam, Stephen observava-a, sentada com compostura, com o pescoço arqueado, contra um biombo laqueado, até que ela, como se notasse
o seu olhar perscrutador, voltou os olhos para ele com um sorriso em arco.
- Espero que aprove o meu vestido...
E como ela parecia esperar um cumprimento, ele disse:
- Estou certo de que Whistler teria gostado de pintá-la com ele.
- Que coisa mais encantadora para dizer. - E ajuntou, confiadamente: - Fui eu mesma que o fiz.
Dali a pouco saiu e trouxe o chá, numa bandeja de prata, com muitas xícaras, com finos sanduíches de agrião, e petits fours. Quando começou a servir, Lambert bocejou
e espreguiçou-se.
- Chá! - exclamou ele. - Não posso viver sem chá. Abençoado, nutritivo chá. Forte, Elise. - Aceitou uma xícara, balançou-a airosamente. Este pode ter vindo das extensas
plantações da sua família no Ceilão, Harry. Não é uma ideia estimulante? Diga-nos se reconhece o sabor. - Olhou para Stephen. - Bem... o que esteve fazendo nesta
cidade malvada, Monsieur l'Abbé?
Stephen corou, Viu que Chester tinha andado a tagarelar a seu respeito.
- Certamente lhe parecerá ridículo. Um futuro pastor desertando para a pintura.
E em poucas palavras explicou algumas das circunstâncias da sua vinda para Paris.
Quando terminou, seguiu-se uma breve pausa, e então Lambert exclamou, com a sua costumeira ironia:
- Bravo, Abbé! E agora que já fez a sua confissão, tem a nossa absolvição incondicional.
Elise, inclinando-se um pouco para ele, com um sorriso, murmurou:
- Deve ter sentido uma incrível vontade de pintar. Tome mais um pouco de chá.
Quando Stephen levantou a mão com a sua xícara até os olhos, viu três leques, pintados em seda à maneira japonesa, arranjados sobre a parede. Fez uma pausa, impressionado
pela delicadeza do trabalho.
- Quem fez essas coisas tão encantadoras?
As pálpebras de Lambert ergueram-se. Acendeu um cigarro, antes de responder, de modo quase casual:
- Para dizer a verdade, caro Abbé, são minhas. Se não lhe aborrecer, mostro-lhe mais alguns trabalhos meus.
Depôs a xícara, e de uma pequena passagem lateral trouxe várias telas; então, de uma maneira fatigada colocou-as em pé, uma após a outra, de modo que recebessem
toda a luz, numa cadeira alta junto à janela.
A maioria dos quadros era bem pequena, e de temas leves - um raminho de flor de cereja numa malga azul, dois salgueiros à beira de uma poça estagnada, uma criança
com chapéu de palha sentada num caramanchão à margem de um rio - contudo, cada um deles tinha uma beleza decorativa que acentuava o simples. Era uma qualidade que
parecia infundir em formas pálidas um encanto enfastiado e indefinível.
Mostradas as poucas pinturas, Stephen voltou-se para Lambert.
- Eu não tinha ideia de que podia pintar assim... são encantadoras. Lambert encolheu os ombros, mas estava claramente satisfeito, ao passo que sua mulher, estendendo
o braço, apertou vivamente a mão de Stephen.
- Phil é realmente um génio. Ele também pinta retratos. - Seus olhos verdes demoraram-se luzindo. - Se souberem de alguém que esteja interessado em comprar... Sou
a sócia comercial.
Depois disso, a campainha da porta soou e,.em rápida sucessão, outros convidados chegaram, todos singularmente apropriados para aquela atmosfera de refinada boémia:
um jovem de meias brancas com um manuscrito debaixo do braço, outro homem, menos moço, mas de ombros quadrados e bem vestido, da Embaixada americana, uma modelo
chamada Nina, que Stephen tinha visto ocasionalmente no restaurante de Madame Chobert. Um francês de monóculo, gordo e idoso, que beijou a mão de Elise com tocante
galanteria, e sobre o qual, como um possível comprador, ela voltou todas as suas blandícies.
Um chá novo foi trazido, Lambert serviu uísque, o ruído da conversação aumentou, e dali a pouco Stephen, que em sua primeira visita não queria ficar muito tempo,
levantou-se para se retirar. Philip e a esposa instaram para que ele viesse outra vez. Aliás, Madame Lambert interrompeu a conversa para acompanhá-lo até a porta.
- Venha conosco rio acima no domingo. Fazemos um piquenique em Champrosay. - Deteve-se, de olhos grandes, com o ar de quem fazia um cumprimento. - Philip gostou
muito do senhor.
No domingo, então, e em outros dias depois, Stephen acompanhou os Lamberts, às vezes só, às vezes com Chester ou outros de seus amigos, àquela adorável altura do
Sena, entre Châtillon e Melun. Tomavam o bateau mouche na Pont Neuf para Ablon, onde alugavam um esquife e subiam com remadas descansadas a vagarosa corrente verde,
serpeando placidamente entre as ribas tornadas famosas pela Floresta de Sénart até atracarem diante de uma estalagem à margem do rio, desembarcando para almoçar
numa mesa de madeira ao ar livre.
O tempo era soberbo, a folhagem no seu melhor momento de beleza madura, as malvas-rosas e os girassóis em plena florada. O sol cintilante e o
ar caricioso, o exercício, aqueles amigos agradáveis, a esfuziante novidade de cada vista e som, o apito rouco de uma barcaça, a cor da blusa de um operário, a pose
da mulher do encarregado da comporta, tudo o que nele despertava um êxtase vibrante agia como um entorpecente sobre Stephen. Lambert, tirante algumas horas de melancolia,
estava na sua disposição mais atraente, lançando um dito de espírito aqui, um epigrama ali, exibindo o seu brilhantismo, recitando longos trechos de Verlaine e das
Fleurs du Mal.
- Mais sagrada que o Indo - murmurava ele, detendo-se para tomar fôlego, arrastando os seus compridos dedos na corrente fria, com o peito estreito a arfar, a mecha
de cabelos caída sobre a testa úmida. - Esses lírios d'água... cálices do mais puro alabastro... translucidamente rosados... e frios... frios como os seios das ninféias
flutuantes... - E assim por diante.
Seu olho para a beleza não se limitava à natureza, e sempre que a mulher que os servia na estalagem era razoavelmente favorecida, ele, a despeito do olhar agudo
da esposa, flertava com ela ultrajantemente.
A princípio, Stephen trazia consigo um bloco, querendo registrar tudo o que via, mas Lambert desanimou-o com um sorriso cómico.
- Deve guardar tudo aqui, caro Abbé. - Bateu na testa ligeiramente. Mais tarde... na solidão... isso nascerá outra vez.
Numa tarde de domingo, depois de uma excursão mais encantadora do que qualquer outra, Stephen despediu-se dos Lamberts e de dois outros que tinham participado do
passeio de barco, e caminhou do embarcadouro, no Quai St. Bernard, para o seu hotel. O sol, afundando agora por trás da cúpula do Trocadero, tinha incendiado o céu
o dia inteiro. Animados pelo calor do dia, todos tinham se banhado num lago abaixo do açude de L'Hermitage, comido um almoço especial de trutas, frias com patê,
enriquecido pelo nobre Chambertin, e depois adormecido sobre a relva tépida embaixo das faias de Sénart.
Como ele se sentia bem!... a pele queimada pelo sol, os pulmões cheios de ar do campo, o corpo formigando com a água picante do rio... uma espécie de satisfação
divina espalhava-se por ele.
De súbito, ao atravessar a Rue de Bièvre, um homem saiu de uma entrada estreita bem à sua frente. Usava sapatos pesados, uma calça de pele de toupeira e uma blusa
de porteiro pintalgada de azul; em torno do pescoço, um lenço vermelho enrolado negligentemente. Parecia um trabalhador voltando para casa após um duro dia de labor;
contudo, algo no aprumo dos ombros, o porte desafiante da cabeça, fez Stephen sobressaltar-se. Apressou o passo para alcançá-lo.
- Glyn!
Richard Glyn deu meia-volta, de cara séria e cenhuda; então, ao olhar, as rugas que tão profundamente lhe franziam a testa foram aos poucos desaparecendo.
- É você, Desmonde... Conseguiu deixar aquilo.
- Há cinco semanas - disse Stephen sorrindo de prazer. - E desde então estive esperando encontrá-lo. Escute, estou justamente voltando para o hotel. Venha e jante
comigo.
- bom - considerou Glyn - eu bem que gostaria de dar umas dentadas. Não comi nada o dia inteiro.
- Deus do céu, que esteve fazendo?
- Pintando... desde as seis da manhã - respondeu Glyn com uma espécie de violência sombria. - Costumo esquecer o almoço quando estou trabalhando... especialmente
quando não consigo dominar meus amaldiçoados valores das nuanças.
Falando, os seus olhos de ágata cintilavam com uma súbita e rude impaciência, o cansaço de um prolongado e apaixonado esforço para criar. Travando Stephen pelo braço,
saiu com ele rua afora.
CAPÍTULO VIII
O APARECIMENTO DE GLYN, de lenço vermelho no pescoço e botas ferradas, causou um pequeno rebuliço na sala de refeições do Clifton. O velho chefe dos garçons, criado
na tradição dos milords ingleses, não gostou do que via, e as duas damas solteironas, que até agora consideravam Stephen com simpática aprovação, agitaram-se de
chocada surpresa. Richard, contudo, não pareceu importar-se e, aboletando-se na sua cadeira, passeou os olhos em torno com visível curiosidade.
- Por que, em nome do Céu, você se hospeda num lugar como este, Desmonde?
- Oh, não sei... habituei-me a ele, suponho.
Glyn provou a sopa, feita, como sempre, de farinha e água gordurosa.
- Talvez você goste da comida, não?
Stephen riu-se.
- Sei que não é lá essas coisas. Mas o prato de carne será bom.
- É melhor que seja. - Richard partiu outro pão. - Eu lhe disse que estava faminto. Uma noite destas vou levá-lo para comer numa verdadeira casa de pasto.
- No restaurante de Madame Chobert?
- Por Deus que não! Nada de casa de picadinhos artísticos!... Detesto falsas aparências, tanto em cozinha como em pintura. Um bistro de cocheiros perto da minha
casa. Você pode confiar numa taberna onde os cocheiros comem. Servem lá um patê de lebre que não é deste mundo. - Glyn se deteve. - Agora me conte o que andou fazendo.
De boa vontade, mas sem entusiasmo, Stephen iniciou um relatório completo das suas recentes atividades. Falou da sua "labuta" matinal na Dupret, encareceu a sua
amizade com Chester e os Lamberts, tornou-se lírico ao descrever as suas excursões a Champrosay. A princípio, Glyn ouvia com um sorriso entre irónico e sarcástico,
mas lentamente a sua expressão se tornou séria, e ele ficou olhando de esguelha para o seu companheiro.
- Bem - exclamou ele quando a narrativa terminou. - Você parece que tem andado ocupado. Talvez me leve depois ao seu quarto para vermos o que tem feito.
- Oh, não tenho muito que mostrar... - respondeu Stephen apressadamente. - Apenas uns poucos esboços. Tenho me concentrado nas linhas, sabe?
- Sim - fez Glyn.
Em completo silêncio, ele mastigava o resistente pouding à l'anglaise que constituía a sobremesa do Clifton. Não disse palavra por uns bons cinco minutos. Depois,
por baixo das sobrancelhas franzidas, voltou para Stephen um olhar firme que também tinha um reflexo de extremo desagrado.
- Desmonde, você quer pintar? Ou enganar a sua vida como um desses personagens extravagantes de La Boême?
- Não compreendo.
- Ouça, então. Há talvez 10 mil impostores safados nesta cidade que se imaginam artistas porque estudam um pouco, desenham um pouco e sentam os rabos nos cafés todas
as noites, cacarejando sobre as suas obras-primas natimortas. Você é quase um deles. Sabe muitíssimo bem que está desperdiçando tempo, Desmonde. Só o trabalho duro,
infernal, é que tira o que você tem aí dentro, não vagabundeando pelo Sena, estendido de costas numa canoa com um poseur simplório que lhe esguicha Verlaine e Baudelaire.
Stephen avermelhou-se, indignado.
- Você é injusto, Glyn. Chester e Lambert são sujeitos muito decentes. E Lambert tem certamente um grande talento.
- Besteira! Que fez ele? Algumas japonaiseries, leques pintados, fragmentos... oh, bem bonito, não nego, mas coisinhas meio efeminadas... afetadas... e tudo muito
pequeno.
- Certamente é um sinal de vulgaridade produzir enormes telas.
Em seu ressentimento, Stephen citara uma observação favorita de Lambert, e Glyn logo farejou a sua origem. Riu-se rudemente.
- E Rubens, e Correggio, e del Sarto, com as suas tremendas concepções, e o velho Michelangelo, cobrindo o teto da Capela Sistina com a sua portentosa visão da Criação,
trabalhando tão duramente que em muitos dias nem tinha tempo de tirar a roupa? Eles foram vulgares? Não, Desmonde... Lambert é um amador bem-dotado, um artista menor,
que nunca seria ouvido se não fosse empurrado por trás pela sua astuta mulher. Não tenho nada contra esse sujeito, é em você que estou pensando, Desmonde. Você tem
algo que Lambert daria a alma para possuir. Não quero vê-lo jogando isso fora por causa da sua maldita tolice. E quanto a Harry Chester, prosseguiu Glyn, será você
tão ingénuo para já não ter saltado por cima dele?
- Não sei o que você quer dizer - respondeu Stephen agastado.
Glyn pensou em esclarecê-lo, mas contentou-se com um sorriso.
- Quanto dinheiro ele já levou de você?
Stephen corou profundamente. Chester tinha em várias ocasiões pedido empréstimos, e agora já lhe devia mais de 500 francos, mas não tinha ele dado a sua palavra
de honra que os pagaria fielmente?
- Ouça - continuou Glyn mais tranquilo - você teve um falso início, acabou em más companhias e, pior de tudo, tem afrouxado abominavelmente. Se não se levantar,
estará cavando o seu próprio túmulo. O poço mais fundo do inferno é ocupado pelo artista que não trabalha!
Fez-se um comprido e gélido silêncio. Embora Stephen se tivesse defendido, ao comparar o seu próprio dia inútil com as horas de esforço concentrado de Glyn, uma
vergonha começava a apoderar-se dele.
- Que devo fazer? - disse ele por fim.
- Em primeiro lugar, sair desta casa anglicana de repouso.
- Quando?
- Agora.
O olhar consternado de Stephen pareceu divertir Glyn imensamente, mas num instante ele ficou novamente sério.
- Não posso lhe pedir que venha para o meu buraco. Mas conheço um homem que terá prazer em recebê-lo.
- Quem?
- Jerome Peyrat é o nome dele. Tio Peyrat. É um camarada velhusco, em situação não muito boa, que quer alguém para dividir as despesas. Um tipo esquisito, por Deus,
mas um verdadeiro pintor, diferente dos seus falsos boémios. - O meio sorriso de Glyn era desconcertante, mas desapareceu rapidamente quando ele concluiu: - Você
já não tem mais nada com Dupret, está claro. Pode usar o meu estúdio. E vou lhe apresentar o meu homem das tintas, Napoleon Campo. Ele fia... às vezes. Vamos embora.
A natureza de Stephen não era adaptada às mudanças súbitas e decisões bruscas, contudo havia uma força avassaladora nos argumentos de Glyn, uma
irresistível compulsão na sua maneira. Dirigiu-se, portanto, ao escritório e, para surpresa e mortificação do gerente, pediu e liquidou a sua conta. Então fez a
mala e trouxe-a para baixo, desculpando-se por sua partida inesperada com uma profusa distribuição de gorjetas.
Glyn, no corredor, e claramente olhado pelo pessoal do Clifton como o demónio da peça, mostrou-se frio a respeito daquelas gratificações, e comentou sombriamente:
- Aconselho-o a guardar o seu dinheiro, Desmonde. Você pode vir a precisar dele depois.
- Espere, Glyn. Eles têm que nos arranjar um carro.
- Para o diabo com o carro. Está realmente tão fraco que não pode andar?
Apanhando a valise, que não era leve, Richard atirou-a no ombro e saiu do hotel a passos largos. Stephen acompanhou-o para a poeira luminosa da rua.
Era uma distância considerável até o alojamento de Peyrat, mas Glyn, que tinha uma satisfação selvagem em extrair o máximo de si mesmo, percorreu-a em passos rápidos,
sem vacilar ou depor a mala. Finalmente, numa escura rua lateral de Rive Gauche, no triângulo formado pelo encontro da Rue de Assas e do Boulevard Montparnasse,
Glyn enveredou por uma entrada torta ao lado de uma pastelaria, que, embora mal iluminada por uma lâmpada fraca, estava esfregada e limpa, e começou a subir de três
em três os degraus de pedra. Deteve-se no segundo andar, bateu na porta e, sem esperar resposta, torceu o trinco e fez Stephen entrar.
Era um apartamento de três cómodos, e na sala de estar, mobiliada com correção burguesa, sentava-se diante da mesa coberta por um oleado um homem franzino, de ombros
redondos, com cerca de 50 anos, um rosto chato e sulcado e uma barba inculta, vestindo, apesar do calor do fogo que flamejava na lareira, um descosido sobretudo
preto com a gola levantada e um chapéu duro, também preto; enquanto um tordo, sem a metade das penas, piava um acompanhamento numa gaiola junto à janela, ele se
exercitava na ocarina. À vista de Glyn, os seus olhos, que eram claros e jovens e o enchiam de engenhosa audácia, brilharam. Depôs o instrumento e, erguendo-se,
beijou Richard, com afeiçoada familiaridade, em ambas as faces.
- Peyrat - disse Glyn brevemente, enquanto se desvencilhava - trouxe-lhe o seu novo inquilino. É um amigo meu. Stephen Desmonde.
O olhar de Jerome Peyrat passou de Glyn para Stephen e nele repousou pensativamente - um escrutínio a um tempo inocente e amável.
- Se é seu amigo, mon vieux, então será meu também. Desculpe-me recebê-lo assim, Monsieur Desmonde. Richard sabe como padeço com correntes de ar.
- Espero que não o estejamos perturbando - disse Stephen, embaraçado.
- Longe disso. De noite tenho o hábito de contemplar a minha própria alma. Às vezes acho-a esplêndida, outras medonha. Esta noite - sorriu gravemente - agradeço
qualquer distração.
- Desmonde é pintor, Peyrat. Vai trabalhar comigo e com você.
- ótimo. - Peyrat não mostrou a menor surpresa. - Seja bem-vindo no meu apartamento... pelo menos temporariamente, uma vez que pertence a Monsieur Bisque, o pasteleiro.
Não importa. Aqui renunciamos à beleza das mulheres e ao brilho da fama contemporânea, a fim de produzir obras-primas que serão aclamadas mil anos após a nossa morte.
- Que esperança! - exclamou Glyn com irónica indulgência.
- É unicamente a esperança que nos mantém vivos.
- E a beata Teresa...
- É verdade. Somos sustentados pelo exemplo dessa nobre alma. - Voltou-se para Stephen. - Já visitou a Espanha?
- Não.
- Então um dia podemos fazer uma peregrinação juntos. Até Ávila de los Caballeros... que fica atrás de muralhas de granito, amareladas pelo sol do verão, geladas
pelo inverno de Castela, aprumando-se como uma grande coroa no seu deserto de rocha contra o duro azul das Montanhas de Greda.
- O senhor já esteve lá? - perguntou Stephen polidamente.
- Muitas vezes. Mas somente em espírito. Glyn explodiu numa gargalhada.
- Aviso-o, Desmonde. Este maluco, que nunca vai à igreja e diz coisas desagradáveis a respeito do Papa, tem uma absurda veneração por Santa Teresa.
- Peyrat sacudiu a cabeça em reprovação.
- Meu amigo, não tome em vão o nome da doce e obstinada mulher de Castela, a Velha, que restaurou a ordem descalça original, abandonou a vida ociosa e tagarela das
carmelitas. Ela troou a sua batalha com o espírito, o encanto, a humildade, as rezas, os argumentos, a paciência de uma santa e a têmpera de um capitão do mar. Também
foi uma poetisa...
- vou sair - disse Glyn, sorrindo e dirigindo-se para a porta. - vou deixá-los a sós para que se conheçam. Esteja no meu estúdio amanhã às sete, Desmonde. Boa noite.
Saiu. Peyrat, após um momento de silêncio, levantou-se e foi apertar a mão de Stephen.
Disse simplesmente:
- Espero que se sinta em casa.
CAPÍTULO IX
AGORA COMEÇAVA PARA STEPHEN, sob a influência de Glyn e Peyrat, uma nova existência, cheia de incessante trabalho, inteiramente oposta à sua recente interpretação
da vida artística. Jerome Peyrat, conhecido no distrito de Plaisance como "Tio Peyrat", era de origem humilde; seus pais, já falecidos, não foram mais que gente
simples do campo - embora ele falasse deles com orgulho - labutando nuns poucos hectares perto de Nantes. Durante 30 anos, como empregado do governo, petit fonctionaire,
passando os dias metido num paletó de alpaca com punhos de papel, tomando anotações nos registros poeirentos do Palais de Justice. Somente uma vez estivera fora
da França, quando, como terceiro secretário de uma comissão judicial, tinha ido à Índia. Lá, passara todo o seu lazer como um espectador ingénuo e fascinado dos
animais alinhados atrás das grades, debaixo das altas palmeiras e carobas do jardim zoológico de Calcutá. Alguns meses depois do seu regresso, o pessoal do ministério
foi reduzido e Peyrat aposentado com uma pensão tão diminuta que mal lhe dava para viver de pão. Então, inesperadamente, nunca antes tendo manifestado no menor grau
qualquer interesse pela arte, começou a pintar prolificamente. Não apenas a pintar, mas a considerar-se placidamente um pintor de génio. Nunca recebera uma só lição
na sua vida. Pintava os retratos dos amigos, ruas, edifícios, feios edifícios, cortejos nupciais, fábricas da banlieue, e punhados de flores agarradas por mãos descarnadas,
pintava composições de florestas - uma forma feminina nua, pródiga de seios e cadeiras, montada num tigre mostrando os dentes embaixo de um intrincado novelo de
palmas, trepadeiras, samambaias, orquídeas de tons cromáticos, uma floresta da imaginação, luxuriante e estupenda, povoada por serpentes e macacos trepadores entrelaçados
como num combate mortal, durante a execução dos quais tremia, suava e, para que não desmaiasse, era forçado, apesar do seu medo de apanhar um resfriado, a abrir
a janela para respirar ar fresco.
A vizinhança encolhia os ombros e sorria diante das suas pinturas, que eram expostas à venda, ao preço de 15 francos, na janela da sua amiga, Madame Huffnaegel,
uma viúva respeitável que tinha uma chapelaria a poucas portas rua abaixo e por quem ele nutria um respeito moderado. A não ser Napoleon Campo, o homem das tintas,
que tinha levado telas em pagamento de materiais
fornecidos a Peyrat - e cujo sótão estava, admitia-se, atulhado de refugos de artistas lutadores - ninguém comprava os quadros, que se tornaram, nas vizinhanças
da Rue Gastel, um alvo regular de hilariante, embora afetuosa, alegria. Contudo, complacentemente, Peyrat continuava pintando, às vezes passando muitas necessidades,
mas completando a sua magra pensão com vários recursos. Além da ocarina, que ele tocava para seu próprio prazer, e do corne francês, tinha um conhecimento limitado
do violino e do clarinete. Consequentemente, escreveu uns volantes que ele mesmo distribuía de porta em porta pelo bairro.
Aviso
JEROME PEYRAT
CURSOS DE MÚSICA, HARMÓNICA E SOLFEJO PARA CRIANÇAS
Aos sábados, das duas às cinco da tarde.
Rápido progresso garantido.
Pais podem assistir às aulas. Mensalidade por estudante: cinco francos.
Número limitado de alunos.
No verão, também tirava um bom efeito da sua habilidade no corne francês, tocando todas as tardes de terça-feira na orquestra que encantava as babás e seus pirralhos
no Jardim das Tulherias. E quando a necessidade o premia demasiado, lá estava o amigo da sua infância, Alphonse Bisque, agora o pasteleiro do Plaisance, gordo, de
meia-idade, completamente calvo, com quem - por recordação sentimental dos dias distantes da escola em Nantes, e não por causa das pinturas que de tempos em tempos
Jerome lhe empurrava em pagamento - se podia contar para fornecer pastel de carneiro ou patê de carne.
Nos seus hábitos e no seu modo geral de vida, Peyrat - Stephen logo o descobriu - era tão engenhoso, tão original como os seus quadros. com toda a sua simplicidade,
tinha uma mente ativa e inquisidora, abarrotada com os frutos das suas pesquisas em volumes abstrusos de segunda mão comprados nos quais, frequentemente vomitados
em discursos ingenuamente eruditos sobre história, teologia medieval ou assuntos tão inconciliáveis como Cosme de Alexandria, que no ano 548 denunciara a doutrina
da redondeza da Terra, e Santa Teresa de Ávila, a quem ele, um ateu, tinha tranquilamente tomado por padroeira.
A despeito dessas excentricidades, portava-se, na sua frase favorita, como un brave homme et un bon camarade. Por mais cedo que Stephen se levantasse, Peyrat já
estava de pé antes dele, para apanhar o leite e o pão quente que o menino Alphonse entregava todas as manhãs na sua porta. Terminado o seu simples desjejum, vestia
um avental e lavava a louça; depois, tendo dado água e sementes ao tordo que achara na rua, estropiado por um gato, e que se propunha soltar quando a asa se emendasse,
aprestava-se para o dia de trabalho, punha no ombro a sua paleta e caixa de tintas, mais um grande guarda-chuva para protegê-lo contra os elementos, e saía a pé
para algum canto remoto dos subúrbios, Ivry, Charenton ou Passy, onde, imperturbável ante comentários grosseiros dos passantes ou peças que as crianças lhe pregavam,
atormentando-o, perdia-se na maravilha e no mistério de transpor para a tela alguma visão celestial de um vagão encostado, um bonde ou o cano de uma chaminé.
Stephen saía à mesma hora, apressando-se todas as manhãs para a Rue de Biêvre a fim de utilizar a luz clara do norte, depois do amanhecer, que jorrava através das
clarabóias chumbadas do estúdio de Glyn. Richard, que nunca se poupava, era impiedoso na sua atitude de severo e às vezes estúpido feitor.
- Mostre-me o que é capaz de fazer - dizia ele sombriamente. - Em seis meses, se você não me satisfizer, pode voltar para o Senhor.
O modelo de Glyn, Anna Montel, era uma mulher de 30 anos, alta e vigorosa, de cabelos negros e olhar cigano, desolado. Era uma ramani Cinzany, cujos antepassados
deviam ter vindo originariamente da Hungria, embora Glyn a tivesse encontrado numa remota parte de Gales do Norte. Sua pele era áspera, e como sempre ela andava
descalça, numa saia escura e blusa verde, sem luvas ou capote; suas mãos e faces eram gretadas pelas cortantes brisas do outono que assobiavam na rua vindas do rio.
Mas os planos daquela face castigada pelo vento, com as suas órbitas firmes e malares altos, eram lisos e fortes. Andando pelo estúdio nas suas chinelas de ourela,
lendo de relance os desejos de Glyn, era a pessoa mais silenciosa que Stephen tinha conhecido-. Posava a todas as horas, e por longos períodos; depois, sem uma palavra,
deslizava do estúdio para Halles e, voltando com uma braçada de provisões, ia ao fogãozinho e preparava um goulash, ou coava café naquela chaleirinha azul de esmalte
com o bico quebrado, que figurou, mais tarde, num dos mais conhecidos quadros de Glyn: Le Café Matinal.
Embora nunca procurasse instruir, Glyn era incansável na sua exigência por originalidade, insistindo em que Stephen descartasse as suas noções preconcebidas, encorajando-o
a olhar para os objetos não como eles eram vistos e representados pela tradição, mas com os seus olhos novos.
- Faça como Peyrat faz! - exclamava Glyn. - Faça cada quadro absolutamente seu.
- Você tem Peyrat em grande conta?
- Acho que ele é grande. - Glyn falava com inteira convicção. - Tem a visão direta original de um artista primitivo. Podem rir dele o quanto quiserem, achando-o
um velho tolo. Mas dentro de 20 anos se arrastarão para ter um dos seus quadros.
Era um trabalho duro - e frio. No estúdio gélido, as semanas avançavam mais frígidas ainda, porque Glyn tinha uma teoria espartana de que ninguém podia dar o que
tinha de melhor num ambiente de conforto. Morta para sempre estava a primeira ideia de Stephen de que pintar era uma arte suave e sedutora. Nunca em sua existência
teve um regime tão rigoroso. E Glyn era insaciável na sua demanda por maior, e ainda maior, esforço.
Um dia, quando a cabeça de Stephen girava e ele sentiu que não podia continuar, Richard, respirando fundo, atirou a sua paleta no chão.
- Exercício - decretou ele. - O tampo da minha cabeça está saltando. Sabe andar de bicicleta?
- Sem dúvida.
- Suponho que você praticava o crawl de coadjutor lá em Oxford. Seis quilómetros por hora.
- Acredito que posso fazer um pouco melhor do que isso.
- Muito bem. - Glyn sorriu. - Veremos de que você é feito.
Saíram do estúdio e atravessaram a rua para a loja de bicicletas do quarteirão, atendida por Pierre Berthelot, um antigo ciclista de corridas que, embora incapacitado
agora por um coração danificado pelo Pernod, tinha nos seus dias obtido um terceiro lugar no Tour de France. Era um estabelecimento pequeno, arruinado, com uma fila
de bicicletas penduradas do teto, na frente, e uma escura oficina de reparos ao fundo. Entraram. O lugar parecia deserto.
- Pierre! - gritou Glyn, batendo no balcão.
Uma moça de uns 20 anos surgiu dos fundos. Era um tanto baixa, usava um suéter escuro e uma saia preta pregueada, com pés sem meias enfiados em compridas chinelas
pretas.
- É você? - fez Glyn.
- A quem esperavk? A rainha de Sabá?
- Por que não está no circo?
- Desmontado para o inverno. - Ela falava com frases curtas, desgraciosamente, com as mãos nas cadeiras e as pernas separadas.
- E o seu pai?
- Curando uma bebedeira.
- Hum! Stephen, esta é Emmy Berthelot. E enquanto ela olhava de um para outro de uma maneira aborrecida, ele continuou: - Queremos duas bicicletas para esta tarde.
Boas.
- Todas são boas. Peguem as duas do fim.
Enquanto Glyn abaixara a corda na roldana, Stephen observava-a experimentar cada bicicleta como entendida, fazendo as rodas girarem. Tinha um rosto pálido, emburrado,
testa baixa, ligeiramente saliente, sobrancelhas bem marcadas, uma boca grande de lábios finos. O nariz tinha uma boa linha, mas apresentava essa ponta arrebitada
dos bairros pobres que a denunciava. A não ser pelos seios, salientes sob o jérsei apertado, tinha a figura de um menino bem desenvolvido. Virando inesperadamente,
notou que Stephen tinha os olhos nela. Sob o seu olhar frio e avaliador, ele sentiu que corava - havia na maneira dela uma insolência que o magoava. Richard estava
levando as bicicletas para a porta.
- Gostaria de vir conosco Emmy?
- De que jeito? Tenho que cuidar da loja. Graças a esse velho beberrão.
- Outro dia então. Voltaremos antes de escurecer.
Stephen acompanhou Glyn para a rua. Montaram e, dobrados em dois sobre os guidons abaixados, Glyn adiante, afastaram-se, furando o tráfego do Faubourg St. Germaine
até a Porte de Versailles. Fora das portas da cidade, aceleraram pela estrada reta e lisa para Ville d'Avray. Richard, com ocasionais olhadelas para trás, imprimiu
uma velocidade arriscada. St. Appoline, Pontchartrain e Meul ficaram vertiginosamente para trás. E, depois, Jussieu, e Orgeval. Por fim, numa ampla curva circular,
tinham percorrido cerca de 30 quilómetros, e Glyn parou com uma freada diante de uma buvette na pequena aldeia de Louveciennes. Respirando forte, olhou criticamente
para Stephen, suado e empoeirado, completamente sem fôlego. Sorriu.
- Nada mau, meu rapaz. Você não gosta de desistir, não é? É uma qualidade que pode lhe ser útil. Venha tomar uma cerveja.
No bar escuro, de teto baixo, tomaram uma caneca de cerveja gelada, que escorregou deliciosamente nas suas gargantas secas. Glyn sugou a espuma da barba e suspirou.
- bom lugar para pintar este campo em torno de Louveciennes - meditou ele. Renoir e Pissarro costumavam andar por aqui. Sisley também. Traremos Emmy para dar o ritmo.
Ela pode realmente vir.
A lembrança do encontro na loja de bicicleta ainda doía em Stephen. Ele disse secamente:
- Aquela moça me pareceu uma pessoa um tanto desagradável.
Glyn soltou uma risada.
- Modere a sua língua, padre... - E depois de uma pausa: - Na verdade, ela é uma putinha barata... o seu amigo Chester podia lhe dizer... E dura. Praticamente criada
na equipe no circuit de France. Troteia por aí com um bando de vadias. Faz uma tournée de seis meses por ano com o grupo do Peroz.
- Peroz?
- Adolf Peroz. Primeiro, eram os Irmãos Peroz. Adolf é o sobrevivente. Conheço-o. Sujeito decente. Tem um circo muito bom. Emmy faz os números de ciclista. Acho
que deve ser extremamente arriscado. Ela ganha um bom dinheiro, e deixa você saber disso. Ela não tem préstimo para nós, realmente, e sabe que andamos tesos. Mas
é incrivelmente vaidosa, e quer que eu a pinte.
- Vai pintar?
- Não mesmo! Não lido com tipos da sarjeta. Mas me divirto pondo uma mosca na sopa dela. Ela é realmente uma perfeita cadelinha. - Terminou a sua cerveja. - Vamos
embora.
Voltaram lentamente no frescor da tarde. Glyn estava eufórico, purgado da tensão nervosa, cantando trechos de canções populares do País de Gales.
Diante da loja de bicicleta, consultou o relógio e deu um assobio.
- Estou atrasado. Tenho que me encontrar com Anna. Entregue isto por mim, como um bom sujeito. Deixou a sua bicicleta com Stephen e precipitou-se.
Com alguma dificuldade, Stephen manobrou as duas bicicletas para dentro da loja. Como antes, estava vazia. Ele bateu no balcão, e então, como ninguém aparecesse,
empurrou a porta dos fundos; no corredorzinho escuro, foi de encontro a Emmy, que vinha para a loja. A porta de fora fechou-se, deixando-os juntos, confinados na
escuridão de um espaço não maior que um armário. Muito desconcertado, Stephen não achava o que dizer, e de súbito o seu pulso começou a bater como um martelo. Ela
estava em pé a seu lado, tão perto que ele podia sentir-lhe o calor, e uma estranha e repentina emoção fez a sua garganta se apertar. Ela o observava impassível,
sem surpresa, embora o seu íntimo torvelinho lhe fosse perfeitamente aparente; deu-lhe um sorriso frio, crítico.
- Que veux-tu?
O duplo sentido da pergunta trouxe-lhe uma onda de calor. Houve uma pausa, durante a qual ele ouvia as rápidas e altas batidas do seu coração. Numa voz não natural,
respondeu:
- Queria que soubesse... que eu trouxe as bicicletas de volta.
- Fizeram um bom passeio? - Ela continuava a observá-lo conscientemente, olhos apertados, meio divertida com a sua emoção, embora não participando dela.
- Sim, obrigado.
Silêncio outra vez. Ela não fazia nenhum gesto para se mover. Afinal, com grande esforço, ele pôs a mão na porta às suas costas e empurrou-a.
- Espero - gaguejou ele como um colegial - espero vê-la novamente. Envergonhado e muito tenso, tentou sem sucesso afastá-la da mente. Mas ela crescia cada vez que
a via - ocasiões que se tornaram frequentes desde que, com a chegada da primavera, Glyn insistia em exercícios regulares
semanais. Sentia-se ao mesmo tempo atraído e repelido por Emmy. Desejava muito pedir-lhe que posasse para ele, mas não podia chegar a dizê-lo com tantas palavras.
Uma oportunidade favorável parecia não surgir nunca. Ela permanecia como um enigma não decifrado, um sentido procurado e não achado, uma estranha irritação no fundo
do seu espírito.
E o tempo ia passando com desconcertante rapidez. À medida que os dias iam ficando mais compridos, e os castanheiros rebentavam em flores outra vez, ele percebia
que este ano de graça em breve estaria acabado. Mais e mais as cartas de Stillwater, de seu pai, de Davie, e de Claire, começavam a antecipar o seu regresso, a pedi-lo
mesmo, com crescente urgência.
Julho chegou, e do céu brônzeo um ar abafado pesava sobre a cidade. Glyn, que detestava o tempo de calor, resistiu por duas semanas, depois resolveu subitamente
ir para a Bretanha com Anna, vagabundear por lá, e pintar Calveries. Os Lamberts já tinham partido para La Baule e agora Chester ia encontrar-se com eles. Até Peyrat
falava em desertar de Paris. O aluguel do apartamento terminava em agosto e ele planejava ir ver um tio em Auvergne.
Tanto Richard como Peyrat insistiram para que Stephen os acompanhasse. Mas ele não podia aceitar - uma carta final, com um ressaibo de severidade, tinha chegado
do Reitor, na qual ele esperava que Stephen não "recuasse da palavra empenhada" nem se deixasse deter pelos "divertimentos e atrações de Paris",
Depois de a ler, Stephen atirou os seus pincéis sobre a mesa e saiu para a rua. Poderia ter ido ao Bois, onde sempre havia sombra embaixo das árvores, mas o seu
humor, deprimido e irritável, proibia-o. Em vez disso, apesar da sua fadiga e de uma sensação de estar absolutamente exausto, caminhou direto para cidade, através
de quilómetros de ruas monótonas. Lojas e cafés em todo o caminho, grandes a princípio, gradativamente menores. Quase todas vazias. Numa delas, deserta, um garçom,
com a cabeça nos braços, dormia numa mesa. Stephen passou por baixo das pontes da estrada de ferro, pelos trilhos serpenteantes do grande Terminal, atravessou canais;
finalmente, passado o octroi, encontrou-se num ermo poeirento fora das barreiras de Paris. A esse tempo, pingava de suor e continuava a repetir para si mesmo:
- Meu Deus, que vida... E papai pensa que os meus dias são uma ronda de prazer.
Quando voltou, parou na agência postal do Plaisance e escreveu um telegrama.
DESMONDE, REITORIA, STILLWATER, SUSSEX. ATRAVESSANDO BARCO CEDO AMANHÃ DEZENOVE JULHO.
STEPHEN.
CAPÍTULO X
NADA, PENSAVA STEPHEN, excede a alegria de revisitar os amados lugares familiares, meio esquecidos, agora vistos mais belos do que antes. Estendido na relva da ribanceira
do Lago Chillingham, com uma vara de pescar a seu lado, aquecido pelo sol da tarde, estava observando Davie lançar um peixinho prateado, ainda desajeitado, mas com
uma seriedade que traduzia aperfeiçoamento, entre os lírios floridos, debaixo de cuja frescura estava um lúcio escuro. O ar era claro e dourado, havia flores silvestres
por toda a parte, as árvores ostentavam a sua mais ampla e tenra folhagem; nas sarças, as rosas-de-cão, de um róseo delicado, exalavam o seu perfume, que se misturava
com o denso aroma das rainhas-dos-prados. Pombos revoavam distantes lá em cima e, da granja familiar, em Broughton Park, ele ouvia o cacarejo das aves.
Era difícil perceber que estava em casa havia duas semanas. Desde aquele momento em que, em Halborough, tinha sido recebido por Davie e Caroline - uma combinação
feita com delicada discrição - tudo corria tão maciamente que o tempo parecia voar. Sim, era bom estar de volta - se pelo menos não o tratassem como o filho pródigo
agora perdoado e que devesse ser mantido a todo o custo pela bondade. Desjejum na cama, o Times do seu pai fechado na bandeja - até ele protestar dizendo que preferia
levantar-se e tomar café com Davie lá embaixo; seus pratos prediletos no almoço e jantar, Beasley trabalhando mais horas na cozinha, Mould trazendo cestas de frutos
escolhidos; seus desejos atendidos, excursões planejadas; claramente, todos os membros da família estavam unidos num esforço diplomático para desarmá-lo.
O assunto da sua pintura não era discutido - estava morto desde a primeira noite, quando, a pedido do Reitor, mostrou as suas telas. Com uma contração do cenho,
entre uma carranca e um sorriso, ele reconheceu quão honestamente, embora de modo vão, o pai tentara aprovar o seu trabalho, perplexo diante de tudo o que via, o
olho assustado indo descansar, em particular, numa cena de banlieue que mostrava uma mulher pendurando um varal de roupa no fundo do seu quintal num dia de vento.
- Meu caro rapaz... você acha isto... belo?
- Sim. É um dos meus prediletos.
- Mas não compreendo. Por que tem que pintar uma corda de roupa?
- É a interação dos tons brilhantes, papai... contra o fundo sombrio, o vestido cinza e branco da velha...
Procurou explicar a base da sua ideia e como as cores puras eram aplicadas com uma espátula. Contudo, era claro que o Reitor continuava perplexo e não convencido.
Seguiu-se uma longa pausa. Por fim, depois de um último exame, seu olhar voltou-se dúbia e ainda inquisidoramente para ele.
- Suponho que um perito possa apreciar isto.
- Acho que pode.
A seguir, a consideração suplantou a crítica. Caroline, muito mais terna à sua maneira, tinha passado as suas roupas, costurado os botões da camisa, e a sua mãe,
estimulada no seu mundo solitário e peculiar, subitamente descobrira e declarara que usaria um novelo de lã com o qual, desde que ele estava em Oxford, pensava tricotar-lhe
umas meias.
Tinha sido, na maior parte, um grupo familiar restrito - para alívio de Stephen, o General Desmonde e sua mulher estavam na Escócia com Geoffrey, caçando - mas nesta
tarde, sabendo que ele e Davie tinham que estar em Chillingham, Lady Broughton convidara-os para o chá.
Com um olhar para o sol, agora obliquando na crista dos Downs, Stephen achou que era melhor saírem logo. Levantou-se, caminhou ao longo da ribanceira e ficou atrás
do irmão, que, embora desse sinais de cansaço, ainda lançava a sua linha, perseverantemente, na água indiferente. A pesca, até agora, tinha sido fraca - três percas
amarelas tão pequenas que não satisfaziam o gato da Reitoria. Ciente do apaixonado ardor que Davie tinha por aquilo, e aliás por qualquer esporte ao ar livre - um
sentimento tão contrário à sua própria indiferença, tão comoventemente incoerente também, dadas as condições delicadas do rapaz e da sua saúde, que estava longe
de ser robusta - ele desejava que uma grande e digna truta se enganchasse no anzol. Podia muito bem ver a alegria e triunfo que essa captura causaria.
Mas embora esperasse pacientemente, com uma palavra ocasional de animação, não houve esse golpe de sorte. Davie, refletiu com momentânea tristeza, nunca tinha sorte.
E enquanto o seu jovem irmão enrolava a linha, passou-lhe um braço nos ombros e, louvando o seu progresso em lançar a vara, condenando os elementos desfavoráveis
do calor e da luz, finalmente, aumentando o valor dos três peixinhos agora curvados e secos na cesta, trouxe-o de volta para a alegria.
- Acho que estou melhor - disse Davie esperançoso. - Esforcei-me muitíssimo. E, como você diz, essas percas não são más. Acha que dão para cozinhar?
- Perfeitamente.
- De qualquer modo... são muito pequenas.
- Quanto menor, melhor - disse Stephen.
Ao saírem pelo prado, evitando o longo caminho em volta do Foxcross Corner e, uma vez que estava tão seco, atravessando os carriços mais baixos, Davie tagarelava
com a viva animação que era um traço do seu caráter. Tinha crescido muito ultimamente, parecia alto para 14 anos, e os seus membros tinham a descoordenação da idade
ingrata, fazendo parecer que caminhava aos arrancos. Contudo, a expressão do seu rosto delicado era menos febril do que antes, e os seus ataques, Stephen soubera
de Caroline, eram menos fortes, revelando uma firme mudança na frequência. Ouvindo com simpatia, observando o jogo de luzes sobre aquelas feições bem talhadas, Stephen
estava consciente de uma profunda onda de afeição por seu irmão. Tinham estado juntos quase continuamente durante as últimas duas semanas.
Saindo dos bosques, pularam a grade de ferro que cercava o parque, onde o gado pastava placidamente, e dali a pouco chegaram à avenida que, contornando o jardim
formal que margeava o relvado, acabou levando-os à própria mansão, uma grande edificação vitoriana de arenito vermelho maciço, corrompida por torres e torreões,
que Lady Broughton pretendia ser a casa mais alta de Sussex.
Foi ela quem os recebeu, reclinada numa chaise-longue junto às janelas francesas abertas ao sul da sala de estar, pedindo-lhes que desculpassem a sua aparente indolência
- seu médico andava ridiculamente severo com ela pondo-os imediatamente à vontade com o tranquilo calor da sua acolhida.
- Bem-vindo, Stephen. - Segurando-lhe a mão, olhou-o de alto a baixo.
- Cheio de conhecimento de coisas lindas. Sinto que não tenha uma barba. Acho que Paris fez-lhe bem. Pode beijar-me o pulso como um francês?
- Não estive estudando essa arte.
- Que pena! - sorriu ela. - Não é, Davie?
- Só será uma pena se meu irmão voltar para lá, Lady Broughton.
- Bem dito. Você vê como estamos contentes em tê-lo de volta em casa outra vez, Stephen. Como prova disso, eu lhes darei pães de milho de Sussex no chá. Lembra-se
como gostava deles quando tinha a idade de Davie?
- Lembro-me, e muito! Ainda gosto. E Davie também.
Lady Broughton sorriu, e continuou a caçoar amavelmente. Contudo, ouvindo-a calado, Stephen notava a mudança por que ela passara. Sempre gostara daquela mulher,
baixa, de cores vivas, sem qualquer aparência de distinção, cuja boa e enérgica natureza e sólido bom senso transpareciam em todas as suas ações. E agora causava-lhe
mágoa aquela atitude passiva, aquela respiração rápida, o leve tom purpurino em suas faces sempre vívidas.
- Claire deve chegar logo - disse ela. - Atrevo-me a dizer que ela fará a sua entrada com uma cesta de rosas, como algo pintado por Gainsborough.
Quase como dissera a mãe, Claire entrou, não do jardim, nem com flores, de cabeça descoberta, não parecendo um Gainsborough mas antes um
Burne-Jones, no seu vestido de linho de corte quadrado no pescoço, de uma cor de burel que combinava com os seus cabelos vermelho-dourados. Embora tivesse sem dúvida
esquecido, Stephen disse imediatamente que ela condizia com aquela rica sombra pré-rafaelita.
A sua postura era admirável. Ninguém teria adivinhado quão rápido batia o seu coração, ou há quanto tempo ela esperava por este momento.
- Claire - fez Stephen dirigindo-se para ela.
- É tão bom ver você - disse ela. - E você, Davie.
Esperava que a ligeira cor que sentia subir-lhe às faces passasse despercebida. Vê-lo outra vez, sentir o contato dos seus dedos punham a sua compostura à prova
mais do que ela poderia esperar.
Nesse momento, foi servido o chá, não um repasto frugal de biscoitos e pão fino e manteiga, mas uma regular fartura colegial de ovos cozidos e pão de minuto, sanduíches
e pãezinhos de milho, com morangos e nata batida à Sussex, tudo disposto sobre uma mesa de pau-cetim com rodas.
- Achamos que você estaria com fome depois da pescaria - disse Claire a Davie.
- E estamos - concordou ele com entusiasmo. - Nosso lanche não foi grande coisa.
Segurou a xícara que Claire enchera e, polidamente, embora com certa ternura, levou-a a Lady Broughton antes de sentar-se.
- Obrigada, Davie. - Rompendo o ligeiro constrangimento, comentou, na sua maneira arreliante: - Claire, não acha que Stephen está com o ar de um parisiense?
- Está mais magro, talvez. - Que estúpida resposta! Mas ele estava em casa - e a inquietante doçura desse pensamento banhava de luz os seus olhos.
- Não acho que a comida francesa seja muito nutritiva - arriscou Davie seriamente. - Eu pelo menos não quero caracóis nem pernas de rã, ou coisas assim.
Todos riram-se, e depois que eram um alegre bando, Davie, como para provar a virtude da dieta anglo-saxã, empenhou-se numa viva discussão com Claire sobre os métodos
de apanhar lúcios, no fim da qual ambos concordaram que num dia como aquele uma isca artificial seria muito melhor que um barrigudinho prateado.
- Acho que há algumas dessas iscas no salão de bilhar - disse Claire, e após um momento de reflexão ajuntou: - Não gostaria de tê-las?
- Ora, ora... - murmurou Davie. - Mas não são para você? Quero dizer... está falando sério?
- Estou sim. Ninguém as usa. Venha comigo e daremos uma olhada. Perguntando se poderia ser desculpado, Davie levantou-se com alacridade e abriu a porta para Claire.
Saíram juntos.
Logo depois, Lady Broughton olhou meditativamente para Stephen, de quem ela sinceramente sempre gostara e por quem, na verdade, tinha admiração. O fato de ele ter
deixado a Igreja absolutamente não a perturbava - com uma natureza tão sensível, apaixonada e tímida, ela não o considerava talhado para ser um pastor rural. Nem
as suas recentes aventuras artísticas lhe causaram grande inquietação. Encarava-as apenas como um capricho passageiro, uma tendência temporária herdada sem dúvida
das excentricidades do lado materno - estava bem lembrada de como, quando era criança, ficara petrificada pelas coloridas extravagâncias do digno pai da Sra. Desmonde
- e que de modo algum diminuíam a finura essencial do caráter de Stephen. Contudo, era menos esta genuína atenção do que o seu conhecimento dos sentimentos de Claire
que a fazia desejar dizer alguma coisa compatível com a boa educação que pudesse trazer o assunto à baila. Naqueles últimos meses, tinha observado com simpatia a
indiferença e desatenção da sua filha, e notado também, não sem desconfiança, os seus esforços ocasionais para romper aquela disposição pensativa e achar distração
em atividades que lhe eram inteiramente alheias. Recentemente, Geoffrey Desmonde tinha sido um visitante persistente, e, quando menos pela maneira com que arrastava
as suas frases, Lady Broughtpn o detestava. Considerava-o estereotipado e banal, afetado, presumido e mimado; e tendo sido casada com um homem cuja pesada obtusidade
tinha feito da sua vida, por mais de 20 anos, uma penitência, não desejava semelhante destino para Claire.
Foi sem dúvida essa ordem de ideias que a levou a observar:
- Não tinha visto a sua prima desde que voltou?
- Não. Todo o pessoal do Simla parece estar na Escócia.
- Geoffrey tem dado muitos tiros por aqui.
- Ele gosta disso. Tem caçado?
- Claire e ele têm corrido bastante pelos Downs. Andam Juntos muitas vezes. Acho que a levou a Brooklands outro dia... para as corridas de automóveis.
- Não sabia que Claire se interessava por tais coisas.
- Não acho que ela se interesse... mas não fica bem recusar - disse Lady Broughton sorrindo.
Na pausa que se seguiu, inclinou-se ligeiramente para ele e continuou num tom que, embora confidencial, manteve deliberadamente casual.
- Preocupo-me um pouco com ela, Stephen. É uma pessoa tão quieta e introspectiva, se quiser - amiga, mas que não sabe fazer amigos. Para estar contente, ela precisa
do tipo certo de companhia - ou vou mais adiante e digo - o tipo certo de marido? Não preciso lhe dizer que não estarei aqui para sempre. Muito em breve, Claire
pode ficar só. E embora ela ame este lugar, são muitas as responsabilidades - que pode achar difícil assumir...
Não dissera nada de definido, nada que pudesse de qualquer modo embaraçá-lo, contudo não havia como se enganar quanto à sua intenção. Na verdade, antes que ele pudesse
falar, ela prosseguiu, colocando os dedos de veias ligeiramente inchadas no seu ombro.
- Acho que foi sensato passar aquela temporada em Paris. E o seu excelentíssimo pai foi sensato em deixá-lo ir. Nos meus dias, os jovens sempre faziam a grande excursão.
Isso não apenas era considerado uma necessidade virtual, mas tirava muitas coisas do seu sistema. Eles voltavam, estabeleciam-se como bons proprietários rurais e
constituíam uma família. Isso é precisamente o que você deve fazer, Stephen.
- Mas supondo... - Ele evitava o seu olhar, com uma ligeira cor nas faces. - Supondo que sinta que devo ir ao estrangeiro outra vez?
-Para quê?
- Para continuar a estudar... e trabalhar.
- Em quê?
- Pintura.
Ela abanou a cabeça e deu-lhe uma indulgente palmadinha na mão.
- Meu caro rapaz, quando eu era jovem e romântica, pensava que poderia escrever poesia, e escrevi, para minha vergonha. Todavia, livrei-me disso. E assim será com
você.
O argumento parecia conclusivo, e ela acomodou-se na sua almofada. Antes que Stephen pudesse responder, Davie entrou na sala com Claire, trazendo uma caixa de metal
laqueado.
- Veja, Stephen, o que Claire me deu. Todas estas belas iscas. Até giradores e bóias. E esta caixa impermeável.
- Não se esqueça - sorriu Claire - que eu espero muitos peixes.
- Agora vai ser fácil. Eu gostaria que a escola não reabrisse tão cedo.
- O inverno não é a melhor época para o lúcio?
- É, sim. E eu estarei à espera dos feriados de Natal.
- Bem, lembre-se de vir tomar chá sempre que estivermos em Chillingham.
Stephen levantou-se, preparando-se para se despedir, tocado pela bondade de Claire com Davie, por sua quieta amabilidade, aparente, mesmo com o seu ar reservado,
em cada palavra ou gesto. Os últimos lampejos da tarde douravam o comprido salão com suas colunas, não belo, mas acolhedor, encantador, com o sentimento de uma velha
casa de campo. Além das janelas, os escuros relvados mas ainda visíveis, sombreados pelo grande cedro, os bosques de faias com os telhados vermelhos das choupanas,
lá no alto, e mais longe, ondeando como o mar, os verdes Downs.
A caminho de casa, Davie achou o seu irmão estranhamente silencioso. Depois de relancear os olhos para ele uma ou duas vezes, disse:
- É formidável no Court. Você não deseja ir lá mais vezes?
Mas Stephen não respondeu.
CAPÍTULO XI
NA TERÇA-FEIRA SEGUINTE, o almoço na Reitoria estava quase terminado. Tinha sido uma refeição um tanto opressiva para Davie, já formalmente vestido, que devia voltar
à escola nessa tarde. Contudo, olhando em torno, Stephen sentia uma tensão maior do que a exigida pela ocasião, um ar geral de conspiração e expectativa. Sentia
também uma intensificação daquela intangível coerção, que, disfarçada em uma nuvem de afeição, vinha envolvendo-o de quando em quando durante as últimas duas semanas.
O Reitor, que já tinha consultado o relógio três vezes nos últimos cinco minutos, tornou a fazê-lo, terminou o seu café e, sem fitar ninguém em particular, disse:
- Acontece que o Sr. Munsey Peters está nas vizinhanças. Infelizmente não pôde vir almoçar. Mas eu o convidei a vir pouco depois.
- Que interessante, papai - murmurou Caroline, com os olhos no prato.
- Está se referindo - perguntou a Sra. Desmonde no tom de quem fora instruída a perguntar - a Munsey Peters?
- Isso mesmo. Conhece o Sr. Peters, Stephen? - Inatento, cortando uma careta numa casca de laranja para Davie, Stephen levantou os olhos, certo de que seu pai se
dirigira a ele.
- Sim, é membro da Academia Real.
Houve uma pausa. Contido, com a expressão subitamente fixa, Stephen esperava que Bertram caísse na armadilha.
- Achamos que ele podia ter vontade de olhar os seus quadros.
Houve outro silêncio, que Caroline se apressou em romper, com um ar de inteligência.
- Não é ótimo, Stephen? Agora você pode se valer do conselho dele.
- Acredito - disse a Sra. Desmonde - se a memória não me falha, que há uma paisagem de Peters no Salão Pump, em Cheltenham. Está pendurada sobre a Fonte de Chalybeate.
Uma vista das colinas de Malvern com uma ovelha. Cheia de vida.
- Ele está na primeira fila - concordou Bertram.
- Não há também um livro, papai - interpôs Caroline - algo como De Rafael a Reynolds, ou coisa parecida?
- Ele escreveu muitos livros sobre arte. O mais conhecido intitula-se A Arte pela Arte.
- Devo procurá-lo na biblioteca - murmurou Caroline.
- Você não se importa se mostrarmos a ele as suas pinturas? - O Reitor voltou-se para o filho com uma nova firmeza. - Desde que se apresentou a oportunidade, seria
sensato pedir-lhe a opinião.
Stephen empalidecera. Não respondeu por um momento.
- Mostre-lhe qualquer coisa que quiser. Sua opinião não tem nenhum valor.
- O quê? Munsey Peters é um académico famoso. Exibe regularmente há 15 anos.
- Que significa isso? Não posso imaginar nada mais mortal, mais vulgar e idiota do que as suas pinturas.
Bruscamente Stephen rompeu o seu silêncio, sentindo que o julgariam invejoso e com medo. Então, ao voltar-se, ouviu um som de rodas e, pela janela, viu um cabriolé
de aluguel chegando à porta da frente. Um homem baixo, tornado mais baixo por um vasto sombrero preto e uma capa preta do Inverness, desceu rápido do cabriolé, olhou
em volta e tocou a sineta. Bertram levantou-se e, acompanhado pela mulher e Caroline, foi a saguão. Stephen permaneceu sentado à mesa, vendo muito bem que tudo aquilo
fora arranjado - ele tinha vindo especialmente de Londres. A julgar por suas roupas, Peters não estava absolutamente visitando o campo - tinha vindo expressamente
de Londres, mas fora comissionado, sem dúvida por tal ou qual preço - vinha especialmente de Londres como um cirurgião chamado à cabeceira de uma pessoa gravemente
enferma, cujo diagnóstico era uma questão de vida ou morte.
Um toque tranquilizador no ombro acordou-o. Era Davie.
- Não é melhor irmos agora? Não se aborreça, Stephen, aposto que você vai sair por cima.
Na sala de estar, construída originalmente como um parlatório retangular e posteriormente afeada por janelas de sacadas vitorianas abertas ao lado oeste, Munsey
Peters estava sentado no sofá, gorducho, de cara lisa, solicitamente oficioso, já no centro de uma plateia inteligente.
Quando Stephen entrou, girou e estendeu-lhe uma mão amável.
- Então este é o seu jovem cavalheiro? Prazer em conhecê-lo, senhor. Stephen apertou-lhe a mão, dizendo a si mesmo, apesar do conflito de emoções no seu peito, que
não devia ter ódio àquele visitante indesejável, que sem dúvida era uma pessoa honesta e estimável, agindo de boa fé. Contudo, conhecendo o trabalho de Peters, que
sempre recebia destaque na imprensa e
muitas vezes era reproduzido nos melhores semanários, aquelas suas paisagens lanudas e interiores betuminosos, tresandando a sentimentalismo e cheios daquele claro-escuro
que Glyn tinha profanamente descrito como siena queimada e merde, Stephen não podia reprimir uma aversão instintiva, aumentada e não diminuída por aquele homenzinho
de aparência presumida e maneiras seguras, que, embora um tanto menos que assertivo, estava odiosamente satisfeito consigo mesmo. Recusara o almoço, tendo "satisfeito
o homem interior"
- suas próprias palavras - no vagão-restaurante que sempre acompanhava o expresso do meio-dia, mas, diante da insistência, consentiu em tomar café. E, balançando
a xícara nos joelhos, de pernas cruzadas, sapatos com polainas, dirigiu a Stephen uma série de perguntas agradáveis, exatamente como faria um notável académico para
deixar um neófito nervoso.
- Então esteve em Parri, hein?
- Sim. Pouco menos de um ano.
- Trabalhando duramente, espero, na cidade alegre. - Isto, com um olhar de humor velado para os outros; então, como Stephen não respondesse:
- Com quem estudou?
- No começo... com Dupret.
- Ah! E que pensa ele do amigo?
- - Eu realmente não sei. Deixei-o depois de poucas semanas.
- Hum! Hum! Isso foi um engano. - E, num tom intrigado: - Quer dizer que ficou a maior parte do tempo por sua própria conta? Não pode ter aproveitado muito dessa
maneira.
- Ao menos aprendi o quanto a força de vontade, a disciplina e a intensa aplicação são necessárias para fazer um bom artista.
- Ora! Isso é muito fino. Mas, e o aprendizado?
A frieza da voz de Stephen era provocante.
- Há certos elementos essenciais. Já os acentuei muitas vezes no meu livro. Ouso dizer que ele fez parte do seu estudo.
- Receio que não. Estive estudando no Louvre.
- Oh, copiando - exclamou Peters contrariado. - Isso não é bom. Um artista procura ser original acima de tudo.
- Contudo, todos os grandes artistas influenciaram uns aos outros - argumentou Stephen diretamente. - Rafael provém de Perugino, El Greco de Tintoretto, Manet de
Franz Hals. Todos os pós-impressionistas se ajudaram uns aos outros. A lista seria interminável. Porque, se me perdoa, vemos no seu próprio trabalho Leighton e Poynter.
A menção desses dois artistas, tão famosos na época vitoriana e agora esquecidos, trouxe ao rosto de Munsey Peters uma expressão confusa, como se mal pudesse saber
se a intenção era de louvor ou insulto.
A Sra. Desmonde, sempre diplomática, rompeu o silêncio.
- Deixe-me oferecer-lhe mais café.
- Não, obrigado - e devolveu-lhe a xícara. - Na verdade, tenho pressa, deixei o meu veículo à espera. Podemos entrar no assunto sério do dia?
- Com muito gosto. - Bertram, um apreensivo observador daquele choque de temperamentos, fez um sinal a Davie, que deixou a sala num pulo. Quase imediatamente voltou,
trazendo o primeiro quadro, uma vista do Sena em Passy, que colocou sobre uma cadeira de alto espaldar posta adrede em boa luz e diante do sofá.
Impondo silêncio com um dedo nos lábios, Munsey Peters ajustou o pincenê. Estudou a pintura intensa e longamente, inclinou a cabeça em vários ângulos; então, dramaticamente
fez um gesto para Davie, que a retirou, colocou-a junto à janela e trouxe a seguinte. Para Stephen, parado lá atrás com uma expressão insensível e um latejar doloroso
no coração, era uma experiência martirizante, uma crua exposição da sua delicada sensibilidade.
Olhou em torno para o círculo doméstico - o pai, sentado, muito teso, com as pontas dos dedos fortemente unidas, as pernas cruzadas, um pé balançando em nervosa
expectativa; Caroline, na banqueta junto ao sofá, com uma ruga de ansiedade na testa, olhando para Peters, ora para o chão; sua mãe, sonhadoramente confortável numa
poltrona, de todo indiferente; e Davie, no colarinho branco engomado e roupa cinza-escura do colégio, o cabelo penteado para trás, olhos brilhantes, sem compreender
bem a questão, e contudo cheio de confiança em que seu irmão seria justificado.
Acabou-se afinal, a última pintura fora mostrada.
- Então? - exclamou Bertram.
Munsey Peters não respondeu imediatamente, mas, erguendo-se, fez uma nova inspeção nos quadros contra o peitoril oval da janela da sacada, como para afastar qualquer
impressão de que o seu julgamento era apressado ou inconsiderado. Uma tela em particular, a mulher com as suas roupas brancas, parecia perturbá-lo de modo especial;
vez por outra, quase furtivamente, os seus olhos voltavam àqueles ousados contrastes e cores vivas. Por fim, deixou cair o pincenê, seguro por uma fita de seda lavada,
e tomou posição no tapete da lareira.
- Que deseja que eu lhe diga?
- Meu filho tem... - Bertram respirou fundo - alguma chance de se tornar um pintor... posso dizer... de primeira categoria?
- Nenhuma.
Fez-se um silêncio mortal. Impulsivamente, Caroline lançou um olhar de simpatia para o irmão. O Reitor curvou a cabeça. Stephen, com a sombra de um sorriso, continuou
a olhar diretamente para Munsey Peters.
- Naturalmente - continuou ele - eu poderia ser polido. Mas entendi que o senhor queria a verdade. E nessas telas, que têm talvez um certo brio
rude, ignoram completamente as grandes tradições da pintura, tradições de propriedade e restrição, só posso encontrar... - encolheu os ombros - matéria para condolência
e pesar.
- Então - disse Bertram lentamente, como se estivesse determinado a se convencer - se forem, digamos, submetidas à Academia, acha que seriam recusadas?
- Meu caro senhor, como membro da comissão de exposição, não sei, não estou seguro. Acredite-me, dói-me extinguir as suas esperanças. Se o seu filho quiser continuar
isto como um passatempo... um hobby... isso é com ele. Mas profissionalmente... ah, meu caro senhor, a pintura é, para todos nós que vivemos dela, uma arte cruel.
Não há lugar para fracassos.
Bertram lançou um olhar cheio de compaixão para o filho, como esperando que ele protestasse, ao menos oferecesse alguma defesa do seu trabalho. Mas Stephen, com
a mesma sombra de um sorriso, e aquele ar de orgulhosa indiferença, mantinha-se calado.
- E agora, se me desculparem - disse Peters, curvando-se.
O Reitor pôs-se de pé.
- Estamos muito agradecidos ao senhor... mesmo que o seu veredicto tenha sido desfavorável.
Munsey Peters curvou-se novamente e, ao deixar a sala com modos graves e polidos, aceitou prestemente o envelope que Bertram, após murmurar umas palavras de escusas,
escorregou-lhe na mão - uma transação efetuada com tamanha destreza que ninguém pareceu notá-la, a não ser Stephen. Dali a pouco se ouviu o rangido do cabriolé.
O professor tinha partido.
Como se para poupar os outros, mais do que a si mesmo, do embaraço, Stephen foi para fora. Ali, andando de cá para lá, de cabeça descoberta, estava o Reitor. Tomou
imediatamente o braço do filho, com um aperto de simpatia, e, após atravessar as lajes, observou várias vezes:
- Tenho que ir à sacristia. Quer caminhar comigo?
Ao subirem juntos a alameda, Bertram continuou, sombriamente, sem um indício de autojustificação.
- Stephen, essa foi uma experiência dolorosa para você, e, em grau nSo menor, para todos nós. Mas era imperativo para mim saber a verdade. Espero que não me reprove.
- Claro que não. - A voz calma do filho causou a Bertram uma viva surpresa, seguida por um sentimento de oposição.
- Você aceitou a coisa muito bem, Stephen - como um verdadeiro Desmonde. Eu temia que pudesse ficar encolerizado comigo por lhe ter imposto esse teste sem aviso.
Mas se eu lhe tivesse dito de antemão, você poderia ter recusado...
- Sim, acho que recusaria.
- Você percebe que não foi questão de influência indevida, que a opinião de Munsey Peters foi inteiramente dele?
- Estou certo disso. Acho até que o nosso pequeno argumento no começo eriçou ligeiramente a sua plumagem. Mas não há sombra de dúvida - ele detestou a minha pintura
como veneno.
- Ah! - murmurou o Reitor condoído. - Pobre rapaz.
Chegaram à igreja; detendo-se na cancela, Bertram pousou a mão na efígie do cruzado, um gesto costumeiro de apoio, e encarou o filho.
- Pelo menos o caminho agora está claro... e não há nada contra o seu regresso para ser ordenado. Não quero pressioná-lo. Há a toga, os serviços militares. Contudo
- olhou em torno - o seu lugar é aqui, Stephen.
Uma pausa quase imperceptível.
- Acho que não compreende. Não vou abandonar a pintura.
- Mas que diabo quer dizer?
- Simplesmente que tomei uma resolução, irrevogável, que vou dedicar a minha vida inteiramente à arte.
- Mas você acaba de ter uma opinião... com mil diabos... de um perito.
- Essa nulidade idiota... roída por um rancor secreto! O fato de ele ter difamado o meu trabalho foi o maior cumprimento que podia me fazer.
- Você está louco? - Cólera e desalento levaram o sangue à testa de Bertram. - Ele é um dos melhores pintores da Inglaterra e pode vir a ser o próximo presidente
da Academia.
- O senhor não compreende, papai. - A despeito da tensão das suas feições, Stephen quase sorriu. - Peters não pinta coisa nenhuma. O seu trabalho é convencional,
sentimental, e sem um traço de originalidade. O sucesso dele é o de uma mediocridade intrometida. Ora, até as tapeações do velho Dupret, com a sua peinture léchée,
são mais toleráveis. O senhor não sentiu nojo dos seus chavões, sua afetação, suas mãos gordinhas? Ele marcha com o rebanho. O verdadeiro artista só pode cumprir
o seu destino sozinho.
Durante esse discurso, que lhe pareceu bombástico, o rosto de Bertram foi gradualmente endurecendo. Empedernia-se contra a dor que sentia no peito, e um imenso desejo
de tomar o filho nos braços.
- Para qualquer pessoa normal, a evidência é clara. Você deve aceitá-la.
- Não.
- Insisto.
- Tenho o direito de viver a minha própria vida.
- Não, se está disposto a arruiná-la.
Nenhum deles levantou a voz. O Reitor estava muito pálido, mas os seus olhos nunca se afastaram do rosto do filho. Por baixo de sua agitação havia uma firmeza que
Stephen nunca tinha visto.
- Por simples justiça, você não me deve alguma retribuição por tudo que tenho feito por você? Sem dúvida, você afeta desprezar uma coisa tão sórdida como o dinheiro.
Contudo, gastei na sua educação - a mais primorosa que qualquer filho podia desejar - um capital que eu mal podia despender. Estamos muito menos bem do que estávamos,
e é com dificuldade que mantenho Stillwater nos padrões a que estamos acostumados. Sempre esperei que esta medida não fosse necessária. No entanto, para seu próprio
bem, devo repô-lo no seu juízo. Sua pensão está suspensa. E você verá que é impossível continuar sem ela.
Um compasso de silêncio latejou na pequena igreja. Stephen baixou os olhos, deteve-os por um longo momento na efígie de pedra do seu ancestral que, à meia-luz, parecia
sorrir-lhe cinicamente. Olhando para a espada, os grandes guantes de malha, uma frase das leituras da sua infância lhe veio à memória: mão de ferro em luva de veludo.
E suspirou:
- Bem, papai, isso parece resolver a questão.
Bertram apanhou o seu diário na sacristia - a mão lhe tremia tanto que mal podia segurar o grosso volume, sendo obrigado a apertá-lo Contra o flanco. Deixaram a
igreja em silêncio.
Pelo resto da tarde, Stephen foi um modelo de complacência, animando os outros com a sua vivacidade e bom humor. Às seis horas, insistiu em ir com Davie à estação
e embarcou-o no trem, despachando-o com alegre afeição. Depois, voltando, com uma expressão diferente, foi à fila de veículos, onde um motorista estava com a sua
bagagem, secretamente introduzida na de Davie. No horário colado na frente do guichê, viu que um trem costeiro partia dentro de uma hora. Comprou uma passagem e
sentou-se à espera dele.
CONTINUA
A TARDE MUDARA EM NOITE, e todo ímpeto e atividade dos Downs jaziam quedos, banhados em luz pérola. A relva seca, prateada como geada, soltava um vapor esgarçado que se prendia nas sebes como teias de aranha. As poças de orvalho, pires de leite desnatado, não refletiam a imagem de uma lua amarelenta que mirava, redonda e baixa, como o olho de um grande gato, agachado na colina, pronto para saltar.
Nessa quietude brilhante, de uma igreja normanda de pedra tão pequena que parecia perdida numa dobra do descampado - apesar dos nítidos contornos das suas linhas longas e breves, da sua torre achaparrada, de suas chagosas paredes inclinadas - inverossímil como um sonho, emergiu uma sombra, comprida e escura, à qual se seguiram um baque de carvalho e o tinido de um pesado ferrolho, a figura de um homem, menos comprido talvez, mas igualmente sombrio. Muito apropriadamente, um clérigo, Bertram
Desmonde, Reitor de Stillwater.
https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/MAIS_FORTE_QUE_O_AMOR.jpg
De cabeça nua, mas com uma capa sobre os ombros, enfiou pela confusão de lápides cobertas de liquens, passou os dois grandes teixos retorcidos, dos quais o mais
novo tinha sem dúvida fornecido arcos para os arqueiros de Sussex pelo menos durante cinco séculos, e depois atravessou a cancela para a azinhaga.
Aqui, apanhado pela brancura da noite, por um ímpeto da sua secreta alegria, fez uma pausa e, por um longo instante, aspirou a beleza da sua gleba, uns bons 100
acres, indo por um lado até os altos do bosque de faias de Ditchley, e pelo outro até a coutada de tojo arenoso que beirava a estrada para Stillwater. Na distância,
o Anel de Chanctonbury era visível contra o céu oriental, e mais abaixo, por entre árvores, o absurdo mas amigo torreão de Broughton Court. Para oeste, a planura
continuava, cortada por uma caleira
- ferida incruenta - por túmulos tidos como romanos, mas provavelmente restos de antigos fornos de ladrilhos. Vinham então as choças dos trabalhadores, seis, em
fila, como cogumelos, e frouxamente, acima da orla da estrada, o bruxuleio da aldeia. Abaixo dele, brilhante de luzes, a Reitoria.
Solidamente georgiana, com janelas paládicas, um espaçoso pórtico sustentado por colunas acanaladas e - delicioso pensamento! - uma balaustrada na cimalha, era uma
verdadeira casa de campo, construída pelo seu bisavô, Canon Hilary Desmonde, em 1780, em pedra branca dali mesmo - a pedreira, bem perto, estava agora felizmente
coberta pela vegetação. Traços de um Tudor primitivo ainda persistiam no celeiro e estábulos de tijolos, nos anexos da fazenda, no delicado muro de sílex e nos seixos
redondos que cercavam a ampla horta. Envolvida por relvados macios, orlados de canteiros de tulipas e prímulas, o jardim de roseiras, ainda não desperto, formando
um hexágono em torno do relógio de sol, cordões de rosas Ribston e Beauty of the Bath, com as suas soprepelizes de flores, como chantres, ao longo do prado do sul,
uma gigantesca azinheira sombreando a trilha ensaibrada, essa casa, esse pequeno abrigo de casca dourada, enraizado e imutável, seu lar, lar dos Desmondes por tantos
anos, especialmente esta noite aquecia de orgulho o coração do Reitor.
Quase certamente eles tinham vindo com o Conquistador. Um deles, o Sieur d'Esmonde, que estivera nas Cruzadas, jazia sob a sua efígie de mármore, com seu curvo nariz
quebrado, ai!, por algum turista vandálico, na pequena igreja de Downland. Se o nome tinha sido um tanto alterado pelo uso rústico - não se poderia aplicar a palavra
corrompido - ele não os identificava de modo mais completo com a boa terra de Sussex? Eles tinham prestado bons serviços à sua pátria nas três profissões abertas
para um cavalheiro: na Igreja particularmente, mas também na Justiça e no Exército. Seu irmão Hubert, após um longo e útil trabalho nas fronteiras do Afeganistão,
estava agora parcialmente aposentado em Simla Lodge, a cerca de 25 quilómetros, com o posto de general, e ainda em contato com o Ministério da Guerra, devotando
o seu lazer à cultura científica da pêra Jargonelle. Somente uma ocasião, até onde alcançava a memória, a família descera ao comércio: quando, no início do reinado
de Victoria, um Joseph Desmonde, tio-avô do Reitor, ocupara-se com a manufatura de objetos eclesiásticos. Mas como o negócio tinha certo sabor de discrição, trazendo-lhe
ainda uma considerável fortuna, o lapso, embora lamentável, era menos difícil de perdoar.
- Uma bela noite para o senhor, Reverendo.
Nas profundezas do seu devaneio, o Reitor deixara de notar a figura troncuda do velho Mould, seu jardineiro-chefe, que era também o seu sacristão, manquejando trilha
acima para fechar a igreja.
- Boa noite, Mould. Já a fechei, você pode voltar comigo. - Fez uma www.pausa, não revelando o impulso que, contra o seu hábito, o tinha levado à igreja; contudo,
estimulado pela alegria, acrescentou: - Stephen volta para casa esta noite, como sabe.
- E como é que eu ia esquecer isso, senhor? Uma notícia muito boa mesmo. Espero que ele tenha tempo de ir caçar coelhos comigo. E acrescentou mais gravemente: -
Nós logo o teremos no púlpito, quem sabe.
- Ele ainda tem algum caminho para andar, Mould. - Ao descerem a trilha juntos, Bertram sorria. - Embora eu me atreva a dizer que vocês gostariam mais de ouvir um
jovem recém-saído de Oxford do que um velho caturra como eu.
- Não, meu Pastor, não deve dizer uma coisa dessas. Não servi os Desmondes durante 50 anos para agora ignorar a sua qualidade. E pode pregar quem quiser pregar,
que não há ninguém melhor no país.
Bastava apenas essa tocante prova de lealdade quase feudal para selar a disposição do Reitor. O denso perfume das prímulas era, de certo modo, mais doce, os agudos
balidos noturnos dos cordeiros, atrás da cerca de varas, tão enternecedores que quase causavam um aperto no coração. Ah, esta Inglaterra, pensou ele: e aqui, no
seu próprio coração, preciosa como uma jóia, navegando ao luar como um navio de almas, esta pequena paróquia que seria de Stephen também, inviolada, intemporal e
imutável como a eternidade.
- Vamos precisar de alguém para a bagagem. Mande Albert ficar por perto.
- Farei isso, senhor... se ele estiver em casa. Estou tendo dificuldades com esse meu rapaz. Ele não gosta de trabalho. Mas eu dobro ele a pau... prometo.
- com o tempo, ele será um bom rapaz, Mould. Não seja duro com ele - disse Bertram, num tom neutro.
Despediu o velho diante da sua casa, baixa, de paredes curvas na frente, e momentos depois estava na larga entrada do saguão da Reitoria, entregando a capa à sua
filha Caroline, que, inevitavelmente, ali estava para recebê-lo.
- Ainda não chegaram?
Esfregou as mãos: o saguão tinha o defeito do seu teto alto e soalho de mosaico - dava uma sensação de frio da noite, mal atenuado pelo rumor dos tubos de calefação.
- Não, papai. Mas não devem demorar. Claire foi à estação no seu automóvel novo.
- Devemos comprar uma dessas engenhocas. - O reflexo de um capricho aliviou momentaneamente a austeridade das feições delgadas de Bertram e das faces um tanto encovadas.
- Será útil para visitar a paróquia.
- O senhor não está falando sério, papai. - A sua mentalidade prática, despida de humor, tomava-o literalmente. - Sabe o quanto detesta cheiros e poeira. E eu não
o sirvo bastante bem com o tílburi?
Sem dúvida, a iminência do regresso de Stephen a deixava nervosa. Assim, falara com mais vigor do que pretendia, com o seu rosto liso e sério brilhando de sentimento.
E em verdade, antes que ela o pudesse lamentar, a expressão ausente do pai, que, com o ouvido atento, esperava o ruído das rodas na alameda, puniu-a severamente.
Ela baixou os olhos, e seu corpo pesado, sustentado por duas robustas panturrilhas, diminuiu um pouco. Quando é que ele ia apreciar a profundeza ilimitada da sua
devoção, compreender que o seu único desejo era servi-lo? desde o exato momento em que começava o seu dia, depois de vestir-se às pressas, sem o benefício de um
espelho, ombreava com a carga da sua casa, conferenciava com a cozinheira sobre como ele seria alimentado, arranjava as flores, inspecionava o jardim e a granja,
tratava da sua correspondência, atendia visitantes importunos, via paroquianos doentes, desencorajava arqueólogos, juntamente com as carruagens que vinham aos domingos
e feriados cheias de gente, pedindo em coro para ver a "tumba", e ainda achava tempo para cuidar do seu linho e tricotar as suas meias de lã. E, para piorar as coisas,
estava resfriada e a toda hora tinha que assoar o nariz num lenço ensopado.
- Sua mãe vem? - Fez a pergunta com cautela.
- Acho que não. Esta tarde molhei a sua testa com água-de-colônia. Mas ela ainda se sente indisposta.
- Então seremos quatro para o jantar.
- Três. Claire telefonou para dizer que sente muito, muito, mas não poderá ficar.
- Que pena. Mas... haverá outros dias.
Seu tom de voz exprimia tristeza; contudo, ela percebeu que, a despeito da sua alta consideração por Claire, filha de Lady Broughton, da vizinha Court, e da sua
cálida aprovação do entendimento tácito existente entre ela e o seu filho mais velho, no fundo estava feliz nesta noite de reunião por ter Stephen inteiramente para
si.
Com esforço, ela conseguiu manter o tom sereno.
- Ainda não terminei de datilografar todas as suas notas para a convocação de amanhã. Quando partirá para Charminster?
- Oh, depois do almoço, suponho. O Deão raramente é pontual.
- Duas horas então. Eu o levo. - Subitamente, com ciúmes brilhando nos olhos, ajuntou: - O senhor parece cansado, papai. E terá um dia cheio amanhã. Não deixe Stephen
retê-lo até muito tarde.
- Não se inquiete, Caroline. E, a propósito, espero que nos apresente um bom jantar.
- Temos sopa hindu com caril e salmão que o tio Hubert nos mandou de Test, com pepino e molho verde, é claro, e depois um lombo de cordeiro com ervilhas da nossa
horta e batatas novas. Para sobremesa, Beasley fez aquela charlotte de maçã que Stephen tanto adora.
- Ah, sim, minha querida. Lembro que ele sempre a pedia ao voltar de Marlborough para casa. Mas, espere, não é o ruído de um motor?
De fato, ouvia-se um som fraco mas rítmico; avançando para a porta, ele a abriu, deixando ver um pequeno cupê de Dion, ativo e trepidante, do
qual, cessada a agitação por meio de alguma engenhosidade, emergiram duas figuras.
- Stephen!
- Como está, papai... e você, Caroline? Davie não está?
- Ainda não... ele terá licença na próxima segunda-feira.
O arco de luz do pórtico mostrou uma figura franzina de estatura abaixo de mediana, vestida de preto e forcejando com uma valise de couro - o rapaz de Mould não
aparecera - um relance, também, de feições finamente cinzeladas, narinas sensíveis, e um rosto estreito, pensativo, e um tanto sério. Então veio, com discrição,
deixando que as saudações familiares cessassem, uma jovem alta de mãos enluvadas e um comprido casaco de tweed. Seu boné de dirigir, com um véu pendente, absurdamente
como um bolo de cevada, usado apenas em deferência às instâncias maternas, não podia destruir o seu ar de tranquila compostura, uma inescapável sensação de boa educação,
confirmada por sua voz ao se reunir ao pequeno grupo.
- Lamento termos deixado atrás alguma bagagem. Minha baratinha não tem espaço para malas.
- Não se preocupe, querida Claire. Amanhã mandaremos buscá-la. O Reitor tomou-lhe o braço num gesto quase paternal. - Mas você não pode ficar conosco agora?
- Gostaria muito. Mas mamãe espera gente da aldeia... uma comissão de agricultores... arrendatários... que não podem ser despachados.
- Ah, sim! As obrigações da senhora de um proprietário rural. Não está uma linda noite?
- Perfeita. Ao passarmos por Halborough, estava claro como dia... Ela voltou a cabeça, um movimento que, dissolvendo a sombra do atroz boné, revelou um perfil puro
e regular. - Não estava linda, Stephen?
Ele ficara em pé, silencioso, num constrangimento de que agora parecia livrar-se com um esforço.
- Foi um belo passeio. - Depois, como se não tivesse dito o bastante, forçando uma frivolidade que lhe era de todo alheia: - Mas em certo ponto acho que devíamos
ter descido e empurrado.
- Em Ambry Hill - riu-se Claire. - Não sou muito entendida nas mudanças. - Seu sorriso demorou-se um instante na obscuridade do pórtico. Mas não devo detê-los. Boa
noite. Venham ver-nos logo... amanhã, se possível. E tenha cuidado com o seu resfriado, Caroline.
Quando ela saiu, Bertram pôs o braço no ombro do filho e levou-o para dentro de casa.
- É bom tê-lo em casa novamente, Stephen. Você não sabe... Ora, bem... como deixou Oxford? E como se sente? Faminto, estou certo. Corra lá em cima para ver sua mãe.
Depois, desça para o jantar.
E enquanto Caroline, com os olhos e nariz vermelhos pelo ar da noite, levantava uma sacola de livros que fora deixada, esquecida, no pórtico, o pai deteve-se um
pouco vendo Stephen subir a escadaria, olhando para cima com uma expressão que, na sua ternura descuidada, era quase um transe.
CAPÍTULO II
APÓS O EXCELENTE JANTAR, bem servido por duas copeiras que, outrora de uma primitiva grosseria de aldeãs, Caroline tinha treinado tão admiravelmente, o Reitor, amolecido,
levou Stephen para o estúdio, onde as cortinas de droguete estavam descidas e ardia um belo fogo de carvão de algas. O aquecimento da Reitoria podia não ser moderno,
mas as lareiras eram amplas e o combustível abundante. E isto se harmonizava com a sala, a despeito dos ornatos moldados, com um tom íntimo e esportivo para amenizar
o ambiente vagamente paroquial, confirmado por uma escrivaninha de tampa corrediça que continha os sermões de Pusey, o Calendário Eclesiástico, e uma estola de púrpura
dobrada. Um par de espreguiçadeiras de couro marrom flanqueava a lareira, contra uma parede estava o armário envidraçado das armas, em outra uma caixa de moedas
saxãs, produto das pesquisas arqueológicas do Reitor, e, acima do consolo da lareira, dois chicotes de cabo de osso cruzavam-se por trás de uma cabeça empalhada
de raposa.
Mais cedo, nessa tarde, preparando-se, Bertram descera ao porão da casa para uma visita à adega, e agora, com um ar ligeiramente consciente, apanhou uma garrafa
empoeirada, que deitara na cestinha, com as pintas de cal para cima, sobre a escrivaninha; tendo imperitamente tirado a rolha em pedaços, serviu dois cálices de
porto. Ele era um homem temperante, que só de raro em raro bebia álcool, e não usava tabaco, mas esta ocasião exigia um registro dentro da verdadeira tradição da
família.
- Seu avô guardou este - observou ele, segurando o cálice de vinho contra a luz e assumindo um ar de crítico. - É um GrahanVs, 1876.
Stephen, que detestava vinho do Porto, fez da sua poltrona um murmúrio de aprovação e levou o cálice aos lábios. Desempenhava, como um ator, o papel que dele se
esperava.
- Parece muito saudável.
A palavra agradou ao Reitor.
- Sim, o seu avô sabia o que estava fazendo. Foi ele que mandou colocar aquelas notáveis manilhas lá embaixo. Elas drenavam o South Meadow, como sabe, em 1878, e
sobrara boa quantidade delas. O velho viu que cada uma podia conter muito bem uma garrafa, e mandou argamassá-las na adega, como perfeitos favos... Naturalmente,
ele não era um grande bebedor. Mas gostava do seu quartilho de clarete após um bom dia com os cães. Deixou-nos, como sabe, quando tinha 70 anos.
- Deve ter sido um grande caráter.
- Era um bom homem. Um verdadeiro cavalheiro inglês do campo.
O Reitor suspirou. - Não se pode desejar um epitáfio mais belo.
- Minha avó também - acudiu Stephen devidamente, porque, desde Oxford, meditando nervosamente enquanto o trem corria pelos prados, pomares e tortuosas regiões, resolvera
ser inteiramente filial. - Ela não ficava muito atrás dele... Mould me contou muitas histórias a seu respeito.
- Ah, sim, ele era muito devotado a ela... como todos os seus serviçais. Mas ela o trazia num pé só. - Um vagaroso sorriso de reminiscência assomou aos olhos de
Bertram. - Você sabe que nos seus últimos anos a velha senhora tornou-se excessivamente gorda. Na verdade, tinha dificuldade em andar, era obrigada a locomover-se
num carrinho, e Mould, e depois o filho do jardineiro, ambos serviam como meio de propulsão. Por mais seis penies semanais. Era uma grande honra. Mas um tanto extenuante,
especialmente quando sua avó desejava ir à aldeia e tinha que ser empurrada durante todo o caminho até Ambry Hill. Num dia quente de verão, quando alcançou o topo
da colina, o jovem Mould parou para enxugar o rosto na manga. Mas ao deixar escapar a cadeira de rodas, lá se foi ela sem ele, aumentando de velocidade, zunindo
colina abaixo e em torno da curva numa velocidade vertiginosa. O coitado do rapaz ficou petrificado. Via-se como o assassino da sua ama. Com um grito de horror,
precipitou-se encosta abaixo. Quando chegou...
Stephen, encolhendo-se, pôs-se a rir; conhecia a anedota de cor.
- ... lá estava a sua avó, calmamente na praça da aldeia, barganhando com o açougueiro as costelas de um cordeiro. - O sorriso de Bertram extinguiu-se. - Era uma
mulher indomável. Imensamente caridosa. E devotada ao meu pai. Morreu somente oito semanas depois dele.
Estaria o Reitor pensando no seu próprio casamento? Lá fora, piou uma coruja. Na copa, no fim do corredor, Caroline estava mexendo em jarras de cerâmica de picles
com uma brusquidão desnecessária. Bertram endireitou-se e bebericou o seu porto, consciente de que devia quebrar o silêncio antes que houvesse um constrangimento
entre ele e Stephen. Como era estranho terem um grande carinho, e, contudo, uma sensação desse embaraço perseguir as suas relações sempre que ficavam a sós. Seria
porque ele se preocupava demasiado? Nunca tinha sentido essa falta de naturalidade na companhia dos
seus dois outros filhos. Naturalmente, ele gostava de Caroline, aceitava aquela sua fortaleza, considerava-a uma "grande presença". Mas a sua domesticidade, conservando-a
uma perpétua solteirona, chocava inconscientemente o seu senso de orgulho de família. Quanto a David, seu filho mais moço, agora com quase 13 anos de idade, aqui,
ai! o seu amor mergulhava em tristeza, decepção e pena. Pensar que um filho seu, aliás, qualquer Desmonde, fosse um epiléptico que, mesmo sem sofrer ataques, tendia
a gaguejar!
O Reitor reprimiu um suspiro. Ceder a tal sentimento era perigoso. Contudo, no seu presente humor, não havia como evitá-lo.
- Que bom ter terminado seus estudos em Oxford. Você se saiu bem.
- Oh, não sei não. No fim, pareceu-me ter perdido o ânimo.
- Eu também me senti assim quando voltei de Trinity... embora gostasse de lá tanto quanto você.
Stephen ficou silencioso. Como poderia dizer a papai que detestava a universidade?... aquela secura, a superioridade, a sensação de estar fora da vida, a interminável
preocupação com esportes que não o interessavam, o estudo sem sangue de línguas mortas que o aborreciam inexprimivelmente, de pura contrariedade, acima de tudo aperfeiçoar-se
em francês e espanhol... sua aversão a uma carreira que lhe fora determinada.
Mas o Reitor dizia:
- Você ganhou umas férias. Claire o quer para jogar ténis. Seu tio Hubert convidou-o para Chillingham. O salmão dele não esteve bom esta noite? Seu primo Geoffrey
está aqui, numa breve licença.
Novamente Stephen não respondeu. E pela primeira vez Bertram começou a se questionar, se, por baixo da sua maneira passiva, o seu filho não estava combatendo sinais
de Cansaço. Sua palidez natural parecia mais intensa, e seus olhos tinham aquela negrura aumentada que, diminuindo o resto do seu rosto, - representara desde os
seus primeiros dias um sintoma de mal-estar físico ou emotivo. Ele não é forte, espero que não esteja adoecendo de alguma coisa, pensou Bertram, com súbita ansiedade,
e rápido, protetoramente, declarou:
- Você tem mesmo que descansar. Não precisa ir à Sede antes de julho. Descontando cinco meses para Londres, a sua ordenação seria no Natal, a quadra mais conveniente
do ano.
Stephen levantou-se. Por muito tempo havia antecipado este temido momento, tentado, a conselho do seu amigo Glyn, apressá-lo, e então recuava nervoso, escrevia uma
dezena de cartas, e sempre as rasgava. Agora aquilo estava diante dele, e ele se sentia mal, vazio por dentro.
- Papai... preciso falar com o senhor.
- Sim? - Animou-o com um aceno, as pontas dos dedos juntas.
Uma pausa. Seria dinheiro?, pensou serenamente o Reitor. Alguma dívida não paga na universidade? Então, ouviu as palavras entrecortadas:
- Eu não quero ser ordenado.
A expressão do Reitor não se alterou aparentemente, como se uma súbita e completa surpresa tivesse, como a morte repentina, paralisado as suas feições numa semelhança
de normalidade. Por fim, quase estupidamente, disse:
- Não quer?
- Acho que não sirvo para a Igreja... Não sou bom com pessoas Não sei organizar... Eu seria incapaz de pregar um sermão decente, ainda que para salvar a minha própria
vida.
- Essas coisas virão. - Em pé, Bertram estava quase franzindo o cenho.
- Os meus próprios sermões não são particularmente brilhantes. Mas bastam.
- Mas papai, não é apenas isso. Eu não tenho interesse por esse trabalho. Eu... eu não me sinto capaz de sucedê-lo aqui...
Confirmado em sua primeira suspeita pela voz interrompida, o Reitor recuperou-se e assumiu um tom brando.
- Você está cansado e abatido, meu filho. Nós todos ficamos cansados e desanimados ocasionalmente. Você se sentirá diferente depois de umas caminhadas pelos Downs.
- Não, papai. - Respirando irregularmente, Stephen fortificou a sua vontade. - Venho sentindo isto há muito tempo. Não posso amarrar-me neste lugarzinho... a um
futuro vazio e frustrado.
Que tinha dito ele, procurando desesperadamente as palavras? A expressão chocada nos olhos do seu pai afligiu-o. Um momento de insuportável silêncio. Então:
- Não percebi que você via Stillwater sob esse aspecto. Somos uma pequena paróquia, talvez. Mas nosso valor para o país pode ser julgado por outros padrões que não
os da mera dimensão.
- O senhor me interpretou mal. Eu gosto de Stillwater. ., é o meu lar. E sei o quanto o senhor é estimado em quilómetros e quilómetros aqui em volta. É uma coisa
diferente... certamente o senhor entende o que eu quero dizer... o que acho que devo fazer com a minha vida.
O Reitor recuou bruscamente, e então, com toda a compreensão, olhou sobressaltado para o filho.
- Stephen... não será aquela ideia doida outra vez?
- É, papai.
Novamente um compasso de silêncio vibrou entre eles. O Reitor pôs-se de pé, e começou, lentamente a princípio, depois com crescente perturbação, a andar de cá para
lá. Finalmente, com um esforço, acalmou-se e aproximou-se de Stephen.
- Meu querido filho - disse ele com grande seriedade. - Eu nunca tentei prendê-lo a mim pelo seu senso do dever. Mesmo quando você era muito moço, antes de ir para
a escola, preferi confiar nos seus sentimentos naturais
de afeição e respeito. No entanto, deve compreender o quanto contei inteiramente com você para me suceder aqui... Stillwater significa tanto para mim... para todos
nós. E as circunstâncias da minha vida... a invalidez de sua mãe... a infeliz deficiência de David... o fato de ser o meu filho mais velho e, perdoe-me - a sua voz
tremeu ligeiramente - meu filho bem-amado - levou-me a colocar as minhas esperanças em você. Contudo, neste momento, ponho tudo isso de lado. Por minha honra, é
em você que estou pensando, e não em mim, quando lhe digo, quando lhe suplico que esqueça esse sonho fantástico. Você não compreende realmente o que isso significa.
Você não deve... não pode realizá-lo.
Stephen baixou os olhos a fim de não ver o rosto contraído do pai.
- Mas eu com certeza tenho direito à minha própria vida. - Através do seu respeito ardia uma íntima confiança.
- Não a essa espécie de vida. Ela só lhe trará infelicidade. Jogar fora as suas brilhantes perspectivas, arruinar toda a sua carreira por um mero capricho... seria
um ultraje à face de Deus. E depois há Claire... como, em nome do Céu, ela caberia nesse plano? Não, não. Você é muito jovem para a sua idade, Stephen... Essa ideia
louca que se apoderou de você pode lhe parecer muito importante agora. Mas dentro de poucos anos, rirá de si mesmo pelo simples fato de ter pensado nela.
Afundado na sua cadeira, de faces vermelhas e olhos baixos, com o espírito tardo e embotado pelo vinho do Porto, Stephen não podia achar uma palavra para dizer.
Naquele momento, sem exagero, odiava o seu pai. contudo, ao mesmo tempo, mostrava-se vencido pela vergonhosa consciência da sua afeição paternal, pela gratidão e
justiça do seu ponto de vista, e, pior que tudo, por uma tépida onda de nostalgia que lhe subia à garganta, um dilúvio de recordações da infância... as corridas
de tílburi a Ambry, seu pai afrouxando as rédeas, Carrie no seu limpo avental branco, Davie usando os seus primeiros calções de flanela; os piqueniques à beira do
Avon, o sol quente na água fria, e um pato selvagem subindo do juncal amarelo à medida que a canoa avançava; as canções familiares entoadas diante da árvore de Natal,
uma poeira de neve nas vidraças... oh, como poderia arrancar essas ternas, fortes raízes?
Bertram inclinou-se para diante e, não de modo comovente, mas com um toque de desconfiança, pôs-lhe a mão no ombro.
- Acredite-me, trata-se da sua felicidade, Stephen. Você não pode... não poderia achar no seu coração alguma coisa contra mim.
Stephen não se atrevia a erguer os olhos, com medo de romper em lágrimas. Estava liquidado... pelo menos no presente. E ele tinha pensado lutar duramente, tinha
jurado a Glyn que ganharia a partida.
- Muito bem - conseguiu murmurar finalmente, provando toda a
amargura que a derrota traz a uma natureza dócil mas apaixonada. - Se é assim que o senhor pensa, com tanta veemência... tentarei a Sede... para ver o que acontece.
CAPÍTULO III
BERTRAM SUBIU AS ESCADAS VAGAROSAMENTE. Embora fosse grande a sua sensação de alívio, não diminuía o cansaço que lhe viera de repente, nem a demorada ansiedade do
seu coração. Diante do quarto da esposa, hesitava, com a cabeça inclinada numa atitude de escuta; depois, batendo ligeiramente no painel, empertigou-se e entrou.
Era um vasto compartimento, outrora a sala de estar de cima, a melhor da casa, como referira o velho Cónego Desmonde, sem dúvida por suas belas proporções e por
dar para o sul, o que, além de permitir a entrada do sol da manhã, oferecia um vasto panorama dos Downs. Na sua conversão em quarto e sala de estar da esposa, parte
da mobília original tinha sido mantida - as cadeiras de tapeçaria e os canapés Chippendale, um largo espelho em semicírculo com moldura de gesso em cima do consolo
de mármore branco da lareira, o tapete vermelho de Bruxelas. Protegida por um guarda-vento, Julia Desmonde estava deitada, lendo, embaixo de uma cobertura de cetim.
Era uma mulher formosa e bem conservada, de 45 anos, com grande ar tranquilo e muito indolente, feições cheias e lisas, e um denso cabelo castanho espalhado no travesseiro
como uma nuvem.
Marcando com uma unha branca o lugar do livro que tinha o desenho de uma figura do zodíaco, Julia dirigiu para o marido, por baixo das finas sobrancelhas, um olhar
inquiridor. Seus olhos eram de um notável azul de amor-perfeito, quase infantis, com pálpebras carnudas quase caídas.
- Então temos Stephen em casa novamente - disse ela.
- Sim, achei que meu querido filho estava com boa aparência. Podia-se contar com ela para exprimir, na sua voz aristocrática e absorta consigo mesma, uma opinião
contrária à dele.
- E a dor de cabeça?
- Melhor, muito obrigada. Sentei-me demais ao sol esta tarde. O sol desta primavera precoce é muito traiçoeiro. Mas eu acabo de fazer um tratamento.
Ele percebeu, pelo aparelho que estava na mesa ao lado, que ela acabara de aplicar uma das suas vibrações. No guarda-fogo, uma caldeirinha de metal assobiava com
um alegre penacho de vapor, indicando que em 20 minutos o extrato de farelo seria levantado e misturado, os tabletes de fermento esmagados e engolidos, o iogurte
batido, ou desta vez seriam algas secas? Então a bolsa de água quente seria reenchida, o fogo disposto para a noite, as luzes diminuídas, as almofadinhas para as
pálpebras umedecidas e colocadas para dormir. E outra vez, embora lutasse contra ela com determinação cristã, a pergunta lhe veio: Por que cargas-d'água tinha casado
com ela?
Ela fora, sem dúvida - aliás ainda o era, evidentemente na sua maneira estatuesca, uma espécie de beleza, e como filha única de Sir Henry Marsden de Haselton Park,
tinha sido considerada pela sociedade do campo daquela ocasião "o partido da estação". Quem, olhando-a, teria adivinhado, por exemplo, que aquela jovem com a graça
de um cisne, anfitriã da Haselton Fête, considerada a beldade do baile de caça, cercada por jovens oficiais dos quartéis de Charminster, sorridente mas composta,
centro de atração, mais tarde revelaria a acentuada peculiaridade de ser tão inteiramente inútil para ele como esposa?
A não ser por uns poucos garden-parties nos seus primeiros anos de casados, quando arrastava um guarda-sol com babados, movendo-se graciosamente sobre a relva, com
um chapeirão, ela se recusara com pacífica resolução a tomar interesse pelas obras da paróquia. "Deus", dizia ela amavelmente, "não há nenhum sentido em levar sopa
para rústicos indigentes ou estragar os nervos costurando roupa de criança para encorajamento da população rural." Afortunadamente, a mulher do bispo gostava dela,
mas ela não recebia as senhoras da clerezia menor.
Preferia passar os dias sentada, exageradamente vestida, à sua janela, ou no roseiral, empenhada num interminável bordado em seda colorida, do qual levantava a cabeça
repetidamente para olhar por longos períodos o espaço, ou tomar notas ocasionais, quando lhe ocorriam, do que haveria de comunicar ao seu médico, que - tendo há
muito esgotado o doutor do condado - visitava duas vezes por mês em Londres. Seus filhos, que ela suportava com uma facilidade distraída, não tinham sido para ela
mais do que episódios momentâneos. Desde que não a incomodassem, ela os considerava com remota indulgência. Contudo, ao aumentar, mais e mais, o seu alheamento,
ela se retirava para si mesma, criando uma existência que se desenvolvia em torno das suas funções físicas, um pequeno mundo de feliz hipocondria, no qual - poderia
ele, ó Deus, tê-lo previsto quando naquela tarde cheirando a rosas, 20 anos atrás, ele quase morrera de dor com o seu beijo aromático? - ela não tinha maior prazer,
nenhum interesse mais vivo, do que discutir amavelmente com ele a cor dos seus tamboretes.
Talvez o cavalo de campanha empalhado no saguão paterno - lembrança de Balaclava - devesse tê-lo advertido, mas, ai! podia ter predito que o pai dela, até a idade
de 60 anos, não era mais que um excêntrico amável, dedicado em suas horas de fazer as pesquisas mecânicas - a eletrificação da sua propriedade por uma cadeia de
moinhos de vento, a inócua construção de um canhão de tiro rápido que, recusado pelo Ministério da Guerra, tinha não mais do que levado ao céu, na sua parte de carne,
o mordomo da família, que, em nome de Deus, devia ter previsto que aquele irreprimível doido teria, na sua caduquice, lançado subitamente um grandioso projeto para
a construção de uma máquina voadora, como a que foi subsequentemente voada por Blériot através do Canal da Mancha, embora aquilo em si mesmo fosse extremamente doentio,
e não passasse de uma feia geringonça com fantásticos parafusos, supostamente capaz de subir do chão na vertical: um helicóptero. Assim, em desafio às leis da gravidade,
Sir Henry profanara o seu belo parque com alpendres e hangar, operários importados, engenheiros, um mecânico belga, gastara dinheiro como água, em resumo, arruinara-se,
e, permanecendo no chão, morrendo como alvo de mofa.
Haselton, que devia ter sido de Julia, era agora uma escola para meninas, o grande hangar um ginásio, e os alpendres - horrores - recém pintados depósitos para tacos
de hóquei enlameados e sapatos desemparceirados de lona.
Seria possível, pensava Bertram, com novo abatimento, que algo dessa instabilidade agora se manifestasse em Stephen? Não, não... impossível. O filho, tão de perto
parecido com ele em corpo e alma, era todo dele, de fato o seu outro eu. No entanto, devido à sua ansiedade, a nuvem que pairava sobre o seu espírito, era tentado,
a despeito do seu melhor juízo, a abrir a mente e procurar alguma espécie de consolo da parte de sua esposa.
- Minha querida - disse ele. - Enquanto Stephen estiver conosco, acho que devemos fazer um esforço para afastá-lo de si mesmo.
Julia mirou-o surpreendida. Ela possuía em grau notável a faculdade de torcer o sentido do que lhe diziam.
- Meu caro Bertram, você sabe muito bem que não posso fazer qualquer esforço. E por que Stephen deve ser afastado de si mesmo?
- Eu... eu estou preocupado com ele. Ele sempre foi um rapaz incomum. Está atravessando uma fase difícil.
- Difícil, Bertram? Ele já não passou pela puberdade?
- Naturalmente... mas não sei o que se passa com esses rapazes. Na primavera, metem ideias estranhas na cabeça.
- Você quer dizer que Stephen está em estado de amor?
- Não... bem, sabemos que ele gosta de Claire.
- Então o que quer dizer? Ele não pode estar doente. Você mesmo disSe um momento atrás que ele está muito bem.
- Foi você quem disse isso. - A despeito de si mesmo, Bertram falava com crescente impaciência. - Acho que ele está longe de se sentir bem. Mas vejo que você não
deseja participar da minha ansiedade.
- Desejo que me fale, meu querido, não faço nenhuma objeção a ouvi-lo. Mas não é suficiente você estar aborrecido sem me aborrecer? Acho que
fiz a minha parte em trazer os seus filhos ao mundo. Sempre houve, do primeiro ao último, pouco prazer nessa tarefa. Depois, você fez deles sua responsabilidade.
Eu jamais interferi. Por que devo fazê-lo agora?
- É verdade - disse ele, tentando reprimir a sua amargura. - Faria pouca diferença para você se Stephen arruinasse a vida dele. Julia, há alguma coisa nele, algo
debaixo da superfície, que eu não compreendo. O que é que ele realmente pensa? Quem são os seus amigos? Não se lembra de que quando Geoffrey o visitou no ano passado,
em Trinity, encontrou lá a pessoa mais inesperada no seu alojamento... um excêntrico de primeira, foi como Geoffrey o chamou, um artista desmazelado... um galês
Interrompeu-se, olhando quase súplice para ela, até que ela foi obrigada a responder. Sua voz era suave.
- Que tem você contra os galeses, Bertram? Eles possuem belas vozes. Esse galês canta?
- Não - replicou Bertram, corando. - Ele vive insistindo com Stephen para que vá a Paris.
- Muitos jovens já fizeram isso antes, Bertram.
- Até concordo. Mas, desta vez, não pela razão óbvia.
- Então por que razão, se não é para ter uma mulher francesa?
- Para pintar!
Tinha-o dito, livrara-se daquilo afinal; e tensamente, embora com uma certa sensação de alívio, esperou, em silêncio, que ela falasse.
- Devo confessar, Bertram, que não vejo mal algum nisso tudo. Lembro-me de que, quando estive em Interlaken com papá, fiz algumas deliciosas pequenas aquarelas do
lago. Azul era o tom predominante. Stephen sempre gostou de desenhar. Aliás, foi você quem lhe deu a primeira caixa de lápis de cor.
Ele mordeu forte os lábios.
- Isso não é ocupação de criança, Julia. Sabe que há mais de um ano, sem nos dizer uma palavra, ele tem viajado de Oxford para assistir às aulas noturnas de arte
em Slade?
- Slade é uma instituição respeitável. Stephen terá bastante tempo para fazer seus esboços entre os sermões. E, sem dúvida, desenhar é Um calmante para os nervos.
Ele refreou o seu impulso de gritar. Por um momento, manteve os olhos baixos, no tom de quem foi Vencido, mas, respirando um pouco depressa demais, disse:
- Espero que tenha razão, minha cara. Suponho que me preocupo desnecessariamente. Sem dúvida ele se restabelecerá logo que entre na rotina do seu trabalho em Londres.
- Sem dúvida. E, Bertram, resolvi que, em vez de Harrogate, irei a Cheltenham no mês que vem. Lá há águas minerais, e dizem que são excelentes para promover a secreção
da bile. Quando o Dr. Leonard examinou a minha urina pela última vez, encontrou uma acentuada insuficiência de sais biliares.
Ele deu boa-noite, em tom baixo, e saiu rapidamente, antes que dissesse coisa pior.
Ao sair do quarto, podia ouvir no corredor o lento tique-taque da máquina de Caroline, que, sem se poupar, batia as notas para o seu discurso do dia seguinte.
CAPÍTULO IV
NUMA TARDE CINZENTA E ENEVOADA, seis semanas mais tarde, Stephen, voltando de uma visita de casa em casa, caminhava lentamente pela Clinker Street, no East Stepney.
A nuvem sulfurosa sobre as docas de Londres tornava o estreito logradouro mais triste e opressivo para ele. Nenhuma luz, nenhuma cor - somente a inércia dos carros
de descarga vazios, os paralelepípedos graxentos, um cavalo da zorra de um cervejeiro fumegando na chuva, com os arreios dentro de um saco gotejante. Um ônibus ruidoso
passou no rumo oeste, salpicando-o de lama quando ele voltava para a Sede.
Aquela construção de tijolo vermelho, erguida no alinhamento das casas de estuque derruídas que se inclinavam ao longo da rua como velhas decaídas, agora mais do
que nunca parecia-lhe uma pequena mas eficiente penitenciária. Nesse momento, abriu-se a porta da frente e o Guardião, o Reverendo Crispin Bliss, saiu, de guarda-chuva
em pé, nariz levantado para farejar o tempo, alto, magro, envolto até os sapatos em uma comprida capa impermeável preta. Um encontro, pensou Stephen, era inevitável;
e aproximou-se.
- Ali, Desmonde... já de volta?
O tom frouxamente cordial era, achou Stephen, o de um homem que procurava gostar dele e não podia, a despeito da melhor das intenções e dos reclamos do amor fraterno.
Inquestionavelmente, o Reverendo Crispin Bliss, membro da confraria de St. Cuthbert era um clérigo devotado que trabalhava
arduamente pelo bem da sua vinha infrutífera. Clérigo menor, com fortes tendências evangélicas, era um homem de sincera embora limitada piedade. Religião à parte,
porém, a sua maneira era muito pouco atraente: seco, académico, suscetivelmente superior. Igualmente infeliz era a sua maneira de caminhar com a cabeça atirada para
trás, o ar nobre com que procurava se proteger, e, sobretudo, a sua voz rachada, ligeiramente fanhosa, parecendo sempre pronta a pronunciar contradições culturais
em notas de agudo falsete. Quase no início, Stephen tivera a má sorte de ofendê-lo.
No corredor superior da Sede estava pendurado um cruento quadro do martírio de São Sebastião, que para Stephen sangrava de novo sempre que ele saía da sua sala.
Desde que a pintura parecia ignorada por todos menos ele, uma manhã, num momento de aversão, virou-a contra a parede. O ato passou aparentemente despercebido. Mas
na ceia dessa noite, com um sorriso magoado que passou por cima dos seus dois coadjutores, Loftus e Geer, e foi repousar em Stephen, o Guardião observou, nos seus
tons mais nasais:
- Não faço objeção ao humor, mesmo na sua forma mais disfarçada, a brincadeira de mau gosto. Mas interferir em qualquer objeto desta casa que por seu assunto ou
associação possa ser considerado como sagrado é, para o meu espírito, um ato indecoroso e irreligioso.
Stephen corou até a raiz dos cabelos e manteve os olhos no seu prato. Não tinha querido fazer mal algum, e quando a refeição terminou, o desejo de explicar-se levou-o
ao Guardião.
- Lamento ter virado o quadro. A única desculpa que posso oferecer é que ele bulia com os meus nervos.
- Com os seus nervos, Desmonde?
- Bem... sim. É de um gosto muito chocante, além de ser evidentemente uma falsificação.
- Não posso compreendê-lo, Desmonde. O quadro é um legítimo Carlo Dolci.
Stephen sorriu em tom de desculpa.
- Oh, dificilmente, senhor. Nem sequer isso. Além das pinceladas grosseiras, e do pigmento moderno, é pintado em tela branca de cânhamo - um tecido que só foi manufaturado
por volta de 1890, uns bons 200 anos após a morte de Dolci.
A expressão do Guardião petrificou-se. Respirava rapidamente pelas narinas, não fogo precisamente, mas a contrapartida cristã da cólera - justa indignação.
- Acontece que esse quadro é meu, Desmonde, e uma propriedade muito estimada. Comprei-o de um jovem na Itália, de fonte impecável. A despeito da sua opinião, continuarei
a apreciá-lo como o original de uma obra de arte.
Agora, todavia, havia menos hostilidade do que vigilante moderação no
olhar com que o Guardião, parado na chuva, ofereceu a Stephen o abrigo do seu guarda-chuva e perguntou:
- Fez a série de Skinner esta tarde?
- Praticamente toda, senhor.
Não queria confessar que, esperando a visita de Richard Glyn, tinha saltado os números ímpares.
- Como encontrou a velha Sra. Blimey?
- Não muito bem, receio.
- A bronquite da pobre criatura piorou? - Depois, como Stephen hesitava, parecendo inquieto, ajuntou: - Ela precisa do médico?
- Não... não exatamente. Aliás, encontrei-a muito embriagada.
Houve uma pausa perturbadora, então veio a pergunta um tanto mundana:
- Como é que ela conseguiu dinheiro?
- Acredito ser o responsável, senhor. Dei-lhe seis xelins ontem para que pagasse o aluguel do quarto. Ela parece que o gastou em gim.
O Guardião fez um som, estalando a língua.
- Bem... vivendo e aprendendo, Desmonde. Não o censuro. Mas você não deve pôr a tentação no caminho das pobres criaturas de Deus.
- Acho que não. Por outro lado, quem pode censurá-la por tentar escapar à miséria umas poucas horas? Ela sofre do peito, não arranja trabalho de costura de qualquer
espécie, deve o aluguel ao senhorio e já empenhou quase tudo no seu quarto. Devo confessar que me senti quase contente ao vê-la rolar num estado de feliz esquecimento.
- Desmonde!
- E o que é mais... não pude deixar de pensar que se algum de nós estivesse naquela situação teria feito exatamente a mesma coisa.
- Ora, vamos. Isso é levar o caso um pouco longe demais. Nós nunca devemos, queira Deus, achar-nos em tais situações desagradáveis. - Abanou a cabeça em reprovação
e abriu o seu guarda-chuva. - Haverá reunião dos rapazes esta noite? Trocarei uma palavra com você a esse respeito depois da ceia.
com um aceno de despedida, um tanto distante, pôs-se a caminho, deixando Stephen a subir as escadas para o seu quarto, um estreito cubículo forrado de carvalho claro,
com um consolo gótico e uma estante de livros giratória - A cama ainda não tinha sido feita. Os residentes da Sede deviam arranjar-se sozinhos, era o que se esperava;
de manhã, por exemplo, Stephen iria encontrar-se regularmente com Geer, o coadjutor, um brilhante e musculoso cristão, levando o seu urinol cheio para o banheiro
com ar de sincera despreoCupação.
Contudo, para que a tradição monástica não parecesse muito severa, uma pequena moça de fora, chamada Jenny Dill, vinha do distrito,
ostensivamente para dar os retoques finais, na realidade fazer a maior parte do trabalho. Quando Stephen se atirou, ainda, de chapéu e casacão, numa cadeira Morris,
podia ouvir os seus passinhos rápidos no quarto de Loftus através da fina parede que servia de repartição. Loftus, um belo rapaz, exigente e moderado, muito elegante
de uma maneira sacerdotal, sempre lhe deixava muito que fazer, tal como sapatos para lustrar, roupas atiradas e por escovar. Contudo, ela parecia ter acabado essas
tarefas, porque, em poucos minutos, houve uma batidinha na porta do seu quarto e, trazendo espanador e balde, ela entrou lepidamente.
- Oh, senhor, perdoe-me... Não sabia que estava aqui.
- Não tem importância, entre.
Observou-a ausente quando ela começou habilmente a tirar os lençóis e a virar o colchão. Era uma mulherzinha agradável, com as faces muito coradas, como se tivessem
sido esfregadas com pó de tijolo, brilhantes olhos castanhos e uma franja de cabelo preto. Parecia, pensou ele, uma moça típica das camadas populares de Londres...
inteiramente competente e que ninguém poderia enganar. No entanto, havia nela algo mais do que ordinário: um ar de simplicidade bem-disposta, uma inocência, uma
afabilidade afetuosa, e, acima de tudo, um vigor, como se ela não pudesse conter a energia e deleite que pulsavam no seu corpo jovem e sadio. E ao mover-se de um
lado para outro com precisão, a cintura fina, o busto pequeno mas firme, inconsciente de que ele a observava, ou pelo menos de nenhuma maneira perturbada com isso,
instintivamente a sua mão pegou o lápis e um bloco de cima da escrivaninha.
Dali a pouco, quando ela foi à lareira, curvou-se e começou a tirar as cinzas. Nesse momento, o seu interesse aumentou, e quando ela fez menção
de levantar-se, ele a deteve bruscamente.
- Por favor, não se mexa, Jenny.
- Mas, senhor.
- Não, não. Volte a cabeça e não se mexa.
Enquanto ela, obediente, voltava a cabeça, mantendo a sua posição curvada, os dedos de Stephen moviam-se nervosos sobre o papel.
- Pensa que sou maluco, não é, Jenny? Todos os outros do distrito também pensam.
- Oh, não, senhor - protestou ela vigorosamente. - A gente acha é que o senhor é um bocado esquisito, desenhando no clube dos rapazes e coisas assim, diferente de
um coadjutor regular, que ensina eles a lutar boxe. Ora, quando o Sr. Geer trouxer os grandões e eles se pegarem, vai ver que quase se matam um ao outro. E mal vai
poder reconhecer eles, com os olhos pretos e as ventas sangrando. Não, não é o que parece muito natural, acho, Mas a gente pensa que o senhor é mesmo um cavalheiro
muito delicado.
- Isso é animador... e apesar da ausência de sangue. Diga-me uma coisa,
Jenny, se você fosse uma velha doente, de cama, preferiria uma Bíblia ou uma garrafa de gim?
- Eu tenho uma Bíblia, senhor... aliás, duas. O Sr. Loftus e o Sr. Geer me deram uma cada um. A do Sr. Loftus tem umas lindas fitas coloridas. Sou capaz de dizer
que se eu estivesse mal mesmo, o gim até que vinha bem.
- Não fuja, Jenny. Você é honesta como o dia. Diga-me: o que é que você pensa disto aqui?
Lentamente, ela relaxou, aproximou-se e examinou dubiamente o desenho que ele lhe entregara.
- Não sei nada dessas coisas, senhor... mas acho mesmo bonito.
- Ora, sua garota tola, não está vendo que é você?
- Bem, já que o senhor diz - respondeu ela modestamente - parece comigo de costas. Eu só queria não estar com a minha roupa velha e com um rasgão bem ali, tão encabulante,
na abertura da saia.
Stephen riu-se e atirou o bloco para a escrivaninha.
- É da saia velha que eu gosto. Gostaria que você posasse para mim. Eu lhe pagaria cinco xelins por hora.
Ela olhou rapidamente para ele, depois desviou os olhos.
- Isso não seria muito correto, seria, senhor?
- Ora, tolice - disse ele descuidado. - Onde é que está o mal? Mas acho que você não está interessada...
- Bem, senhor... - Ela falava acanhadamente, e uma cor mais viva lhe veio às faces. - Na verdade, se tudo estivesse em ordem, eu bem que poderia fazer mais uns cobres.
- Como?
- É, senhor O senhor sabe... eu espero me casar logo.
- Parabéns. Quem é o felizardo?
- O nome dele é Alfred, senhor. Alfred Baines. Ele é camaroteiro num barco da Orient Lane. Vai estar na terra no outro mês, sem ser esse que vem.
- Excelente para você, Jenny. Não admira que queira ganhar mais um dinheirinho. Quando larga?
- Quando termino de arrumar o seu quarto, senhor. Aí pelas cinco.
- Bem, então... suponha que fique mais uma hora, das cinco às seis, duas vezes por semana. Posso pagar-lhe cinco xelins de cada vez.
- Isso é mais do que generoso, senhor.
- É muito pouco realmente. Mas se você não achar o trabalho muito cansativo, posso lhe dar um bilhete para um amigo meu que ensina nas turmas noturnas no Slade.
Ele terá prazer em empregá-la por uma breve temporada...
Ele não vai esperar que eu, senhor... - Jenny tornou-se rubra.
- Por Deus do céu, não - disse Stephen bondosamente. - Você vestirá uma espécie de costume. Provavelmente ele vai querer somente a sua cabeça e ombros.
- Então ficarei muito agradecida, senhor. . . fico mesmo... especialmente ao senhor.
- Então fechamos negócio? - pergunta ele, sorrindo, aquele raro sorriso que iluminava a sua face e o tornava tão atraente, e estendeu-lhe a mão.
Ela corou, e aproximou-se. Seus pequenos dedos, de unhas mal cortadas ou quebradas, estavam quentes e secos, com cicatrizes nas pontas e frieiras curadas. Contudo,
era uma mão extraordinariamente agradável de segurar, nela estava a pulsação do seu jovem corpo; ele mal pôde soltá-la. E quando o fez, ela se voltou para a porta.
Estava agora um tanto pálida, e sem olhar para ele disse:
- O senhor sempre me tratou tão gentilmente, Sr. Desmonde, é mesmo um prazer fazer as coisas para o senhor. Eu sempre dou ao seu quarto um extra. E lustro muito
bem os seus sapatos, porque... ora, porque são seus, senhor. - Interrompeu-se, e desapareceu.
Para quem era atormentado por humores de autodepreciação, aquelas palavras trouxeram um esquisito calor. Mas logo a momentânea alegria de Stephen sumiu, ele se tornou
novamente consciente de si mesmo, do seu ambiente, e da tristeza que o esperava adiante. Desejou que Glyn aparecesse logo.
Apanhando o Evidences, de Paley, que prometera ao seu pai ler, tentou mergulhar no livro. Mas era inútil. Não tinha interesse nele, detestava a vida que estava levando,
desde que chegara à Sede: a visitação, as aulas de Bíblia, o clube - embora à sua maneira tentasse animá-lo - a terna hipocrisia das palavras alimentando a fome
e o frio das pessoas, enquanto ele e os outros da sua raça permaneciam aquecidos e bem nutridos.
Podia compreender um homem que entrasse para a Igreja por sua natureza profundamente religiosa, por sentir que a sua missão predestinada era ajudar o próximo. Mas
assumir uma existência confortável sem uma forte vocação, por motivos que eram claramente materiais, parecia-lhe a pior espécie de fraude. E, além disso, ele não
tinha a sua própria vocação, um chamado que o mantinha cingido ao seu próprio coração? Que tolo fora em se deixar levar a semelhante passo, como um carneiro estúpido
entalado entre as portas de uma feira do campo. E agora que ali estava, parecia não haver como sair.
Justamente então soaram passos de sapatos pesados nas escadas de madeira, e poucos segundos depois um homem alguns anos mais velho que Stephen foi entrando no quarto
e atirou-se sem fôlego numa cadeira. Era de porte mais do que mediano e fortemente construído, com um cabelo vermelho cortado e uma curta barba vermelha eriçada,
de feições vigorosas, os olhos, sob sobrancelhas bem marcadas, vivazes, rebeldes, contudo muito divertido naquele momento. Vestia calças de pele de toupeira e uma
blusa de operário,
um lenço pintalgado de vermelho amarrado no pescoço; tinha o ar de um bucaneiro, fanfarrão, livre, cheio de um vigoroso prazer pela vida. Dali a pouco, quando cessou
a sua transpiração, puxou um relógio de metal, ligado a ele por um pedaço de cordão esfiapado de quadro.
- Bem na hora - observou com satisfação. - Não está mau para Whitehall.
Embora advertido da paixão espasmódica de Glyn pelos exercícios violentos, Stephen estava moderadamente surpreso.
- Você andou todo o caminho?
- Corri - disse Glyn, enxugando o suor. - Foi diabolicamente divertido. Botei toda a polícia a correr, pensando que eu tinha assaltado um banco. Mas que sede me
deu! Suponho que não haja um pingo de cerveja nesta casa de Deus, não é?
- Sinto, Richard. Não nos permitem tê-la em nosso quarto. Posso lhe dar chá... e biscoitos.
Glyn explodiu em gargalhadas.
- Vocês, jovens teólogos. Como podem combater Satanás com chá e biscoitos? Mas se não for incómodo, traga-os. E acrescentou, mais sério: Sinto não poder ficar muito
tempo, mas eu queria vê-lo.
Conversaram enquanto Stephen fervia uma chaleira de folha no bico de gás junto à lareira. Pronto o chá, Richard bebeu quatro xícaras da desprezada beberagem e, de
uma maneira ausente, liquidou um prato de macarrão. Depois, um tanto embaraçosamente, a conversa cessou.
- A sua mostra correu bem? - perguntou Stephen por fim.
- Muito bem - respondeu Glyn descuidadamente. As críticas foram tão perfeitamente depreciativas que atraíram público.
- Mas você vendeu alguma coisa.
- Um vermelhinho. E tudo porque sou galês. A Galeria Nacional de Cardiff comprou-o. Encorajando o talento nativo... filho de um mineiro e assim por diante.
Houve uma pausa.
- Contudo - resumiu Glyn - o dinheiro me safou das dívidas, e Anna e eu partimos para Paris amanhã.
Stephen empertigou-se imperceptivelmente, um reflexo de todos os seus nervos, não apenas ao som de uma palavra que o perseguia, mas porque naquela maneira demasiado
despreocupada ele pressentiu o verdadeiro motivo da visita de Glyn. Procurou dominar a voz.
- E quanto tempo pretende ficar por lá?
- No mínimo um ano. Vou viver barato e trabalhar como um mouro. Acredite se quiser, Paris é um lugar maravilhoso para trabalhar. - Fez uma pausa e atirou um rápido
olhar para o outro. - Você não vai mesmo conosco?
Stephen sentiu um nó na garganta. As suas mãos, nos braços da poltrona, mostraram os nós dos dedos.
- De que jeito? Você conhece a minha situação.
- Ao mesmo tempo, tive a impressão de que você queria pintar.
Stephen, de cabeça baixa, não respondeu. De súbito ergueu os olhos.
- Glyn... se eu jogasse tudo fora... teria mesmo sucesso como artista?
- Ora, ora, Desmonde - Glyn inclinou-se para diante, de cenho cerrado, - Que pergunta mais idiota. Sucesso? Que quer dizer com sucesso? Então você não sabe que neste
jogo não pode haver garantias, que você não tem mais que você no momento em que se resolve? E você não entra nisso por nenhuma outra razão a não ser a de que não
pode evitá-lo. Se for para valer, abandona tudo, passa fome, rouba, engana a sua avó, transgride cada um dos Dez Mandamentos, só para ter nas suas mãos um tubo de
tinta e uma espátula.
Glyn interrompeu-se, relaxou a postura e continuou, mais serenamente:
- Acredito que você tem talento, possibilidades extraordinárias, do contrário não ia aborrecer o meu bestunto a seu respeito. Eu sei como é duro para você... atolado
na tradição. Você teve todos os inícios errados. Devia ser como eu, nascido numa vila de operários, numa nojenta cidade carvoeira. Mas, assim, você mesmo é quem
tem que decidir. E se não se decidir, atrevo-me a dizer que dará um pastor aceitável. - Tirou de repente o seu relógio niquelado. - Bem, tenho que ir. Preciso reunir
umas coisas. E juntar isto com aquilo. Adeus, Desmonde. Escreva-me quando tiver tempo.
Stephen permaneceu imóvel. Glyn levantou-se. Ao dar o primeiro passo, viu sobre o consolo da lareira um cartão perfurado com as cores do Clube de Críquete Marylebone.
Era um bilhete para a partida de criquete entre Oxford e Cambridge, a ser disputada no mês seguinte. Acompanhando o olhar de Glyn, Stephen corou.
- Tenho que ir - disse ele secamente. - Toda a família irá.
CAPÍTULO V
A PARTIDA TINHA TERMINADO, as balizas haviam sido retiradas, e enquanto o sol lançava sombras compridas sobre a quadra relvada do Lord's, um grupo de sete pessoas
podia ser observado entre a elegante assistência - dificilmente se poderia referir essa afluência como uma multidão - andando
vagarosamente para os portões principais na St. John's Wood Road. Caroline e Claire iam na frente com Davie e seu primo Geoffrey, enquanto poucos passos atrás, Stephen
acompanhava o General Desmonde e sua esposa. Uma emergência na paróquia tinha impedido no último instante o Reitor de estar presente, e Julia, claro, era uma ausente
anual. Por isso, Stephen tinha vindo somente para estar com o irmão, e enquanto Davie tinha grande prazer em ver o jogo - o que era mais tocante, uma vez que, devido
à sua afecção, não lhe era permitido jogar críquete - teve em certa medida a sua recompensa, pois o dia tinha sido duro para ele, e ainda lhe ressoavam na cabeça
os incessantes gritos de Geoffrey de "Boa jogada, senhor", e, como sempre, a mulher do General raramente pensava nela como tia Adelaide - tinha exercido sobre ele
uma familiar combinação de condescendência e arrogância que despertava os seus mais perversos instintos. Mulher dominante, fria, de rosto fino, criada na tradição
do Exército e endurecida nos sóis da Índia, ainda era bonita, de uma maneira dura e atrevida, e possuía uma figura admirável, embora tendendo para a magreza, seu
olhar às vezes letal como um golpe de baioneta.
Agora, ao deixarem o campo e permanecerem juntos um tanto indecisos, enquanto carruagens e cabriolés saíam da calçada, ela falava com rapidez, na sua voz apressada
"do condado".
- Hoje foi um dia tão delicioso, que é uma pena deixá-lo morrer prematuramente. - Voltou-se para o marido. - Tem alguma sugestão, Hubert?
O General Desmonde examinou o grupo. Alto, feições retas, ereto como uma vareta de espingarda, até no chapéu de forma cinza e no fraque matutino, parecia um soldado,
um soldado notável. Um bigode curto acentuava a brevidade incisiva da sua fala.
- Pensei que poderíamos cear no Frascati's.
- Magnífico, papai - disse Geoffrey, endireitando a gravata e depois o colete bordado, talvez pela ducentésima vez, como se estivesse determinado a manter a supremacia
de alfaiataria que fazia dele, tinha certeza, um alvo de admiração. Estilo, que ele chamava de boa forma, era na verdade a sua maior ocupação, fosse numa praça de
armas ou em Piccadilly, e que já o configurava, na idade de 24 anos, como modelo de um elegante, ainda que um tanto tolo, jovem de sucesso da sociedade.
- Davie tem que voltar às sete - interpôs Caroline. - E já passam das seis. Mas ninguém precisa se incomodar, vou levá-lo ao trem.
- Querida, você é tão gentil e tão atenciosa - disse Adelaide sorrindo. Ela não queria Caroline no Frascati's com o seu rosto vermelho de sol como uma peônia, e
naquele medonho vestido marrom que a fazia parecer uma copeira no seu dia de folga, aquelas pernas também, que desgraça, como as patas de um piano de cauda; Caroline,
para tia Adelaide, era sempre uma responsabilidade social, uma mortificação anual no baile de caça, quando, sentada na
entrada do salão, com seu jornal na mão, sem que ninguém a tirasse para dançar, esperava tristemente que algum velho cavalheiro se dirigisse a ela; e agora já tinha
sido bastante desagradável tê-la com eles durante o dia inteiro. - Você deve vir uma outra vez.
- Acho que também tenho que voltar - disse Stephen. Se Davie não fosse, ele não teria nenhum prazer em ir.
- Tem mesmo? - Hubert franziu o cenho, bem-humorado; ele até gostava, ou pelo menos tolerava, aquele jovem sobrinho e futuro pastor. - Tão cedo?
- Mas é claro que você pode ficar, Stephen. - Claire estava ao seu lado, contida, mas de certo modo rogando, com a sua tez macia e feições tão bem modeladas, sombreadas
por um chapéu de aba larga enfeitado de rosas. Hoje mais do que nunca, naquele ambiente, ela parecia o que era: a mais amável das moças inglesas, cujo bom senso,
maneiras e cordialidade franca e agradável faziam amigos onde quer que estivesse. - Fica, sim - ajuntou ela.
- Querida - interveio Adelaide antes que Stephen pudesse responder - não devemos interferir com as regras e regulamentos. Afinal de contas, a vida na Sede, imagino,
é mais ou menos monástica, não é, Stephen? e muito digna, estou certa. É mesmo uma lástima que você não possa vir. Geoffrey acompanhará Claire, e eu pretendo que
Hubert seja o meu galã. Adelaide tornou a sorrir, e com satisfação, pois tinha as suas razões para não desejar que Stephen fosse um do grupo.
- Não podemos deixá-la em alguma parte, Caroline? - perguntou Hubert.
- Oh, não, Davie e eu iremos de metro.
- E eu de ônibus - disse Stephen.
Trocaram-se despedidas, e então, vagamente consciente do desgosto nos olhos de Claire, Stephen afastou-se com Caroline e Davie. Como ainda tinham alguns minutos,
deteve-se no Fuller's da Park Road para oferecer um sorvete de morango ao seu jovem irmão e uma taça de chá a Caroline, que, sub-repticiamente descalçando os sapatos,
confessou que estivera mortificada todo o dia. Depois ele os deixou no metro da Baker Street e tomou o ônibus nº 23 para a zona leste.
Ao matracolejar para Stepney, a despeito do alívio de estar novamente entre gente impolida que não pedia mais do que a sua parte numa cadeira dura, uma lenta depressão
foi tomando conta de Stephen. Como se sentira física e espiritualmente diminuído, como se sentira diferente dos outros durante voltas em todas as metas de críquete,
os encontros e cumprimentos, o almoço no Guard's Club Marquee - "seu diabinho" - quase podia ouvir o pensamento por trás dos olhares indiferentes dirigidos para
ele pelos amigos do primo, ao discutir com Geoffrey a última comédia musical, a corrida de obstáculos
de Sussex, e a última fantasia para o Cambridgeshire. Com esta disposição, chegou à Sede. No saguão, ainda redolente dos odores do bife refogado com repolho do meio-dia,
passou por Luftus, que saía, e deu-lhe uma "boa-tarde". O coadjutor noviço mal respondeu e escorregou para a frente, discreto e elegante, o olho com um tal brilho
de malícia e divertimento, que Stephen recuou instintivamente.
- Que é que há, Loftus?
Já na porta, o outro como que se voltou, com lábios torcidos e apertados pelo humor eclesiástico.
- Então não sabe?
- Claro que não, o que é?
- Não muito, acho eu. A não ser que a pequena Dill parece estar em maus lençóis.
De que diabo estava ele falando? pensou Stephen. Mas deu de ombros, e vendo que não havia correspondência na estante, subiu as escadas. Sentada tesa numa cadeira
dura no centro do seu quarto, usando as suas roupas de sair à rua, um chapéu de palha chato com uma fita estreita, e luvas brancas de algodão, estava Jenny.
Levantou-se imediatamente quando ele entrou, mas com compostura, e enquanto ele a olhava com surpresa, uma vez que ela normalmente não vinha à Sede nos sábados,
ela começou:
- Peço-lhe desculpas pela liberdade, senhor. Mas eu queria estar certa de encontrá-lo. E parece que não havia outro jeito senão eu esperar.
- Muito bem - disse ele incerto. - Não quer sentar? Assim é melhor. Então, que é que há?
Enquanto ele ia até a lareira, ela tornava a sentar-se na beira da cadeira, com as luvas cuidadosamente dobradas.
- Bem, senhor. O fato é que vou embora, hoje, meio de repente. E como o senhor tem sido tão bom para mim, achei que tinha que vir lhe dar adeus.
- Oh, Jenny, sinto muito. Não imaginei que você nos deixasse tão cedo.
- Nem eu, senhor. Mas a verdade é que me despediram.
- Despediram? - repetiu ele desnorteado.
- Sim, despediram. - Acenou com a cabeça, francamente, no seu modo prático, sem acanhamento. - A culpa foi minha. Ontem fui tão boba que vim sem o meu espartilho.
Eu nem notei que já começava a aparecer. Mas não há jeito de enganar essa cozinheira. Correu para o Guardião como uma flecha.
- Mas de que diabo está falando?
- Não está vendo, senhor? Vou ter uma criança.
Ele ficou tão desconcertado que não conseguia achar o que dizer.
- Oh, Jenny, como é que você...?
- Acho que me deixei levar, senhor.
- Como?
- Nós todos temos sentimentos, senhor. Não se pode fugir disso. Oh, eu sou muito respeitável, garanto lhe. Alf é um sujeito correto. Camaroteiro de navio, como eu
lhe disse. Vamos casar quando ele voltar.
Houve uma breve pausa, enquanto Stephen a estudava com simpatia.
- Suponho que você o ama.
- Acho que deve ser isso, senhor. - Um ligeiro e sábio sorriso passou-lhe pelo rosto jovem e fresco. - Ele é muito mais velho que eu, isso é. E vou lhe dizer: se
não fosse pelas duas cervejas que tomei no Good Intent, eu não teria cedido. Mas aí eu também podia ter feito pior. Alf é decente, lá isso é. E habilidoso também.
Gosta de música e me ensinou a tocar gaitinha de boca.
Outra pausa.
- Bem... vamos sentir a sua falta, Jenny.
- E eu vou sentir falta do senhor. Acho que o senhor foi até bom demais comigo. Não é igual a outros por aqui.
- Que outros?
- Bem, principalmente o Guardião, senhor. Tenho que dizer que ele me perseguiu muito antes de me botar na rua.
- Mas você não está saindo por sua vontade?
- Oh, não, senhor. Isso não me convém nem um pouco... Vivo por minha conta, sabe, e não tenho pais vivos. Mas o Guardião não queria ter este lugar contaminado, disse
ele, com três jovens-coadjutores por aqui, e me despachou na hora.
Stephen mordeu o lábio. Olhando disfarçadamente para a moça, percebeu que, sob a sua expressão habitual de serenidade e bom humor, ela parecia pálida e desorientada.
Seria capaz de jurar que não havia nela um pingo de maldade.
- Jenny - disse ele impulsivamente - eu não quero interferir. Mas espero que você tenha feito arranjos para... ir a um hospital... essas coisas.
- Não vou para o hospital, senhor. Tenho o meu quarto. E vou falar com a Sra. Kelley. Ela é parteira, senhor, e muito recomendada.
- Você tem certeza de que estará bem?
- Oh, não se preocupe comigo, senhor. - Pela primeira vez havia uma nota de tristeza na sua voz. - Eu só espero não ter trazido encrenca para o senhor. Isso tudo
aconteceu porque o senhor me arranjou trabalho na aula de arte. E o Guardião parece que ficou furioso com isso.
Stephen ficou um tanto desconcertado com essa notícia. Contudo, o seu genuíno interesse era por Jenny. A admiração que sentia por sua coragem e bom senso, e a indignação
pelo tratamento que lhe tinham dado, tornavam-no mais descuidado consigo. Tinha começado a gostar dela nos últimos meses,
e não podia deixá-la sem alguma expressão da sua boa vontade. Voltou-se de lado, remexeu meio inconscientemente na sua carteira e deu um passo na direção dela.
- Escute, Jenny. Não quero ofendê-la. Mas você fez tanta coisa por mim aqui... você realmente vai precisar de alguma coisa para sustentar-se. Eu gostaria que aceitasse
isto.
Desajeitadamente, pôs-lhe na mão uma nota de cinco libras, que, para esconder o seu elevado valor, dobrara em várias partes.
- Não... não vou aceitar isso...
- Mas Jenny... você tem que...
As lágrimas não lhe vinham facilmente, mas ela passara por tantas agruras naquele dia, que agora elas corriam quentes pelas suas faces.
Nesse momento, enquanto ela se retirava e ele a acompanhava, estendendo-lhe o dinheiro, a porta abriu-se e o Guardião entrou. Houve um silêncio mortal por um momento,
enquanto ele ficava petrificado. Depois, com a voz controlada, disse:
- Pode ir agora, Dill.
Quando Jenny se voltou para sair, arrasada, com as lágrimas a escorrer lhe pelas faces, Stephen, a despeito da sua expressão culpada, vermelha, teve calma suficiente
para se aproveitar da sua confusão e enfiar-lhe a nota no bolso da jaqueta.
- Adeus, Jenny - murmurou ele. - E muita sorte.
Sua resposta, se resposta houve, foi inaudível.
Ainda na sua maneira distante, o Reverendo Crispin fechou a porta atrás dela; depois, com um rápido olhar para Stephen, comprimiu os lábios e fixou o olhar no teto.
- Desmonde - disse ele - presumi que a sua conduta tinha sido seriamente indiscreta. Mas jamais sonhei que pudesse ir tão longe. Como amigo de seu caro pai, isso
me aflige mais do que posso expressar.
Stephen engoliu o bolo que tinha na garganta. A cor lhe fugira do rosto, mas havia uma centelha nas suas pupilas escuras.
- Não posso compreendê-lo.
- Ora, vamos, Desmonde. Você não pode negar que está, e tem estado há algum tempo, em termos de imprópria intimidade com a jovem pessoa que acabo de despedir.
- Fui amistoso com Jenny. Ela fazia muitas pequenas coisas para mim. E procurei ajudá-la, em retribuição.
- Ah! - fez o Guardião num tom significativo. - E a sua ideia de ajudá-la é estar frequentemente com ela, sozinho, no seu quarto?
- Ela vinha arrumar o quarto. E ocasionalmente fiz alguns esboços dela. Isso é tudo.
- Ora essa! Então você acha que faz parte dos seus deveres, como candidato à ordenação, tomar um modelo, furtivamente, entre as criadas desta casa de Deus? Foi meu
dever examinar alguns desenhos que resultaram dessa colaboração ilícita, e devo confessar que me pareceram extremamente questionáveis.
O sangue subiu à testa de Stephen. Seus olhos fuzilaram furiosamente.
- Pelo que sei do seu gosto, senhor - respondeu ele, tremendo ligeiramente - não me surpreende que não os tenha compreendido.
- É mesmo? - fez Bliss com a calma ácida que achava ir-lhe tão bem. Na verdade, parece que meus padrões, particularmente os de moralidade, diferem dos seus.
- Certamente diferem. - Stephen jogou a prudência de lado. - Eu não teria atirado essa pobre moça no olho da rua por causa de um erro.
- Ouso dizer que não. Isso é precisamente o que eu temia.
Até este momento, as maneiras do Guardião tinham sido estudadamente controladas, mas agora as suas narinas se apertavam e algo não diferente de uma carranca se estabeleceu
na sua testa elevada.
- Embora Dill tenha dado o nome do seu parceiro, não estou inteiramente convencido. Minha firme convicção é de que, pela sua conduta para com essa infeliz moça,
pela maneira como a utilizou para os seus fins chamados artísticos, você é responsável, ou pelo menos indiretamente culpado, pelo estado de depravação em que ela
caiu.
Respirando rapidamente, Stephen encarou Bliss com uma expressão maldosa no rosto. Explodiu:
- Nunca ouvi tanta tolice na minha vida. Nem tamanha hipocrisia. Jenny não é depravada. Ela tem um namorado e vai se casar com ele. Sua ideia de caridade cristã
é vilipendiá-la, e a mim, sem uma justa causa?
- Cale-se, senhor. Não tolerarei que fale comigo dessa maneira. Na verdade, se eu fosse cumprir à risca o meu dever, deveria pedir-lhe que deixasse a Sede imediatamente.
- Fez uma pausa para se recuperar. - Mas em atenção à sua família, e também ao futuro que ainda pode estar à sua frente, estou disposto a ser mais tolerante. Devo
dar ao seu pai alguma ideia do que ocorreu. E você, sem dúvida, me dará a sua garantia por escrito de abandonar, de uma vez por todas, essa obsessão que chama de
"arte", e que é inteiramente incompatível com a sua vocação de clérigo. Haverá, além disso, mais algumas restrições que sou obrigado a lhe impor. Venha ao meu estúdio
depois das orações noturnas, e eu o aconselharei.
Terminando a entrevista, sem dar a Stephen uma oportunidade de responder, girou nos calcanhares e saiu do quarto.
- Ora, vá para o diabo que o carregue! - exclamou Stephen violentamente. Mas infelizmente a porta já estava fechada.
Durante uns momentos, Stephen permaneceu tenso, de punhos cerrados, olhos fitos nos painéis de carvalho envernizado. Depois, com um gesto de abandono, afundou numa
cadeira diante da escrivaninha, tirou papel da gaveta e apanhou uma caneta.
Caro papai,
Fiz aqui o melhor que pude e fui nisso um completo fracasso. Não quero magoá-lo, tomando uma decisão final contra a sua vontade, mas, nas circunstâncias, acho que
devo me afastar um pouco - um ano, no mínimo - até poder ver as coisas mais claramente e experimentar a minha capacidade nesse campo particular tão desagradável
para o senhor que sequer o nomearei. Compreendo o golpe que isto representa para o senhor, e a minha única desculpa é que simplesmente não posso evitá-lo.
Recomendações a todos em Stillwater e a Claire. Tornarei a escrever-lhe quando estiver em Paris.
Stephen
CAPÍTULO VI
PARIS ERA DESCONHECIDA PARA STEPHEN, e embora ao primeiro fôlego o estimulasse como vinho, ele entrou nela nervosamente - como se temesse aqueles olhares satíricos
que os verdadeiros parisienses devem conceder a um forasteiro. Assim, apegava-se ao nome de um hotel que ouvira o pai mencionar num tom de benigna aprovação clerical,
e dando-o ao cocheiro com a maior segurança que pôde encontrar, foi arrebatado da Gare du Nord com uma imprudente velocidade através das ruas naquela tarde de domingo,
surpreendentemente vazias, para o Clifton, na Rue de la Sourdière. Parecia um lugar tranquilo, não particularmente excitante talvez, abrindo-se através de uma entrada
estreita para um pátio quadrado envidraçado, em torno do qual os quartos estavam dispostos atrás de descascados balcões de ferro fundido. Na portaria sonolenta -
o tom era dado por um gato malhado de preto e amarelo dormitando em cima do balcão - não se surpreenderam pela súbita materialização de um jovem inglês. Na verdade,
quando Stephen foi conduzido ao seu quarto no andar de cima, que era um tanto escuro e bolorento, com o papel de parede desbotado e uma enorme cama de cortinas vermelhas,
o idoso concierge, desafivelando as malas do ombro com exagerada falta de ar, sobressaltou-o ligeiramente ao lhe perguntar se ele queria chá.
- Não, muito obrigado - sorriu Stephen, pensando no extraordinário valor que aquele indistinto interior dava ao velho de olhos lacrimejantes com as faces caídas,
marcadas por veias vermelhas, o seu colete listrado de preto e amarelo. - vou sair... e olhar um pouco por aí.
- Não há muito que ver hoje, monsieur - disse o porteiro, encolhendo amavelmente os ombros. - Tudo está fechado.
Mas Stephen mal podia esperar para desfazer a mala e atirar suas coisas no armário poeirento. Então, eufórico, deixou o hotel e foi andando pelas ruas, a esmo, ao
longo da Rue du Mont Tabor e pela Place de la Concorde. Seu imediato pensamento tinha sido em Glyn, mas no constrangido momento de partir, ele esquecera de pedir
o endereço de Richard, e naquele ínterim não recebera nenhuma notícia dele. No entanto, Stephen estava certo de que, no círculo que se propunha frequentar, logo
o encontraria.
O tempo estava bom e claro, o céu pálido riscado pelas costelas de nuvens brilhantes. Quando viu a longa fila de castanheiros, agora em plena folhagem, junto ao
rio, quase exclamou alto. Agitadas pela brisa, as folhas eram luz e sombra, macias, encontrando os seus olhos como uma carícia. Através da avenida chegou ao Sena,
cinza-aço e polido, reverberando atrás de barcaças atracadas. Numa destas, uma jovem mulher, de seios fartos e cabelo louro, estava pendurando roupas cor-de-rosa
numa corda. Um cachorrinho saltitava nos seus tornozelos. Um homem de camiseta e chapéu baixo de feltro fumava placidamente, de braços nus, sentado num balde emborcado.
Numa espécie de transe melódico, Stephen caminhou lentamente pela margem, através de Port Royal, além da linha de quiosques de livros, de volta à Pont Neuf para
a L'Île de la Cité. Lá, ficou a olhar o jogo de cores sobre a água, o escurecer das sombras sobre as moles de pedra. Somente quando a luz desapareceu, ele se voltou,
com um suspiro apatetado, e começou a voltar para o hotel.
Agora a cidade despertava do seu torpor dominical. Nas ruas laterais, ao norte do rio, os pequenos cafés de esquina começavam a se encher de maneira discreta mas
movimentada. As mercearias estavam abrindo, e famílias da classe média começavam a tomar ar, homens robustos com pantufas apareciam nos umbrais. Diante de uma padaria,
ainda fechada, donas-de-casa, tagarelando tranquilamente, reuniam-se para comprar pão. Estou em Paris, pensava Stephen estonteado, finalmente, finalmente.
À guisa de contraste, o Clifton, banhado numa ténue luz religiosa, tinha um ar solene, quase sepulcral. Na verdade, por um instante Stephen teve a tentação de dar
a volta e ir cear no Maxim's ou no Café Riche, ou qualquer daqueles restaurantes alegres sobre os quais lera tantas vezes. Mas estava cansado e tímido para ir desacompanhado.
Além disso, tinha resolvido fazer uma razoável economia. Da sua pensão anual restavam-lhe 150 libras, e essa quantia deveria durar um ano inteiro.
Assim, baixou ao frio refeitório e comeu sozinho - a não ser por um distante cavalheiro solteirão numa desmazelada jaqueta Norfolk que lia continuamente entre os
pratos, e duas cochichantes velhas de malva, todos inconfundivelmente ingleses - uma refeição de cardápio fixo, de sopa, carneiro, ameixas amargas cozidas, que,
embora fossem perfeitamente saudáveis, demonstravam a falácia do argumento de que, na França, a cozinha francesa era uma arte universal. Contudo, nada poderia abater
a sua alegre disposição. Subiu as escadas assobiando e dormiu como uma toupeira na cama de dossel.
Na manhã seguinte, sem demora, saiu para Montparnasse. Depois de considerável reflexão, tinha resolvido não se matricular na École des Beaux Arts, mas procurar uma
atenção mais pessoal, dada pelo Professor Dupret na sua famosa academia do Boulevard Seline. Encontrou o estúdio sem dificuldade, tendo comprado, no balcão do hotel,
um mapa de Paris. Era no último andar de um edifício esquisito, parecido com um quartel, protegido por grades em ponta de lança e guardado por duas guaritas vazias,
bem no fundo do boulevard. Pairava no ar um cheiro de casca de tanino, indicando que ali fora uma armaria, e uma grande algazarra lá em cima sugeriu a Stephen, por
um sobressaltado momento, que os soldados ainda o ocupavam.
Quando subiu, depois de completar as formalidades de admissão com o massier, um tipo corpulento de cara chata, suéter cinzento, calças de lona, que tinha a aparência
de um boxeador aposentado - e que na verdade lá estava para impedir uma flagrante desordem - a aula já tinha começado.
A saia ampla e clara, aquecida por uma enorme estufa holandesa, com paredes que pareciam todas janelas, estava apinhada com uns 50 alunos, formando o grupo mais
estranho que ele já tinha visto. Na maior parte, eram homens entre 20 e 30 anos de idade, vestidos numa variedade de gostos, de muitas nacionalidades - eslavos barbudos,
indianos de pele escura, um grupo de escandinavos louros, vários jovens americanos. As poucas mulheres eram uma coleção esquisita. O olho de Stephen prendeu-se numa
senhora de idade metida numa blusa cor de rato, espiando a sua tela através de um pincenê de aros de ouro, como uma professora diante do seu quadro-negro num jardim
de infância do campo.
O barulho, ali dentro, era ensurdecedor - um rumor contínuo de conversação, trechos altos de canções, em línguas competitivas, observações fanfarronas
gritadas através da sala. Parecia que o tumulto ia permitir que Stephen entrasse sem ser notado. Mas ao ficar ali na porta, hesitante e um tanto pálido, vestindo
a sua roupa escura de clérigo, colarinho branco engomado e gravata preta, a vestimenta regular para os coadjutores da Clinker Street, sobreveio um infeliz intervalo
durante o qual a atenção da classe se voltou diretamente para ele. E então, no silêncio, uma voz de falsete exclamou:
- Ah! C'est Monsieur l'Abbé.
Uivos de risadas saudaram essa observação. Entrando confuso, Stephen encontrou um banco coberto com raspaduras de paletas, mas nenhum cavalete, espremeu-se com dificuldade
para um lugar, e abriu a sua pasta de papel Ingres sobre os joelhos.
O modelo, um velho de longos cabelos prateados, com o aspecto de um ator decadente, bonito, estava sentado numa postura convencional na plataforma do centro, ligeiramente
inclinado para a frente, com o queixo apoiado nas costas da mão. Stephen não gostou da pose, e a expressão do velho era aborrecida e indiferente, mas apanhou o seu
carvão e começou a trabalhar.
Às 11 horas Monsieur Dupret apareceu - um homem de uns 60 anos, belo de uma maneira teatral, com uma cabeleira arrepiada, porte ereto e digno, e mãos móveis. Apesar
das calças ligeiramente frouxas, o seu fraque ajustado dava-lhe um ar correto, distinto, acentuado pela fita na lapela. A sua entrada, impressionante e brusca, causou
uma cessação do barulho maior, e em relativo silêncio ele começou a dar vagarosamente a volta à sala, detendo-se aqui e ali para examinar uma tela com olhos apertados,
pronunciar, com um floreado gesto das mãos, umas breves palavras, mais como um cirurgião visitando a sua enfermaria.
Quando ele se aproximou, Stephen preparou-se para algumas palavras de saudação, de cortês interrogação, mas o professor, com alheamento impessoal, não disse coisa
alguma. Olhou de esguelha para Stephen, meio curioso, meio indiferente, e depois para o seu esboço, e, no instante seguinte, sem um piscar de olhos, desapareceu.
À uma hora tocou uma sineta. Imediatamente se ergueu uma vozearia, o modelo levantou-se como se fosse soltado por uma mola e afastou-se da plataforma, enquanto em
volta os estudantes atiravam pincéis ou carvões e começavam a se acotovelar contra a porta. Perturbado e decepcionado, Stephen foi arrastado, contra a sua vontade,
pela turba que empurrava. Subitamente, no seu cotovelo, ouviu uma voz agradável.
- Você é inglês, não? Meu nome é Chester.
Stephen voltou a cabeça e deu com um jovem mais ou menos da sua idade sorrindo para ele. O cabelo, o queixo partido e os olhos azuis, sombreados por compridas pestanas
negras, davam-lhe um ar de sincero e atraente encanto. Usava uma velha gravata de Harrow.
- Espero você lá embaixo - disse ele quando a maré o carregou. Lá fora, Chester estendeu-lhe a mão.
- Espero que não se importe de eu vir falar com você. No meio dessa turba, os que são do outro lado do Canal devem ficar juntos.
Após a sua deprimente recepção, Stephen estava contente por ter achado um amigo. Quando se apresentou, Chester fez uma pausa por um momento, e exclamou:
- Que tal almoçar comigo?
Saíram juntos pela avenida.
O restaurante em que entraram ficava bem perto, na Place Seline, um salão estreito, de teto baixo, quase uma adega, abrindo para uma cozinha escura, a meia dúzia
de passos do nível da rua, com um fogo de carvão de lenha e espetos com assados, cheio do barulho de panelas de cobre e de um agradável cheiro de cozinha. O lugar
já estava repleto, principalmente de alunos de Dupret, mas Chester, com tranquila segurança, guiou-o através de um pequeno pátio adornado por cubas de alfenas, calmamente
retirou o cartão marcado "RESERVADO" de uma mesa do fundo, habilmente atirou o chapéu para um cabide e convidou Stephen a sentar-se.
Imediatamente, uma mulher gorda, de cara vermelha, vestida de preto, protestou da cozinha:
- Não, não, Harry... Esse lugar está reservado para o Monsieur Lambert.
- Não se agite, Madame Chobert - sorriu Chester. - A senhora sabe que Monsieur Lambert é meu amigo. Além disso, ele sempre chega atrasado.
Madame Chobert não se deu por satisfeita; discutiu e resmungou, mas o charme de Harry Chester - embora ela claramente tentasse precaver-se contra ele - no fim acabou
por vencê-la. Encolhendo os ombros com pena da sua própria fraqueza, levantou a ardósia escrita a giz que pendia da cintura do seu avental, e apresentou-lhes o cardápio.
Por sugestão de Chester, pediram potage maison, boeuf bordelaise e um queijo brie. Uma jarra de cerveja amarela e espumante já estava sobre a mesa.
- Não é uma pessoa má - sorriu Chester quando ela se afastou. Durante a refeição, ele manteve a conversação viva e fluente, aludindo, com inesgotável provisão de
troça e frases feitas, aos seus vizinhos. Apontou para Biondello, o italiano, que já tinha exposto no Salon do ano passado, e Pierre Aumerle, um caso irremediável,
que bebia uma garrafa de Pernod todos os dias, almoçando com uma mulher de semblante ocre com um enorme chapéu, para a qual Chester ergueu as sobrancelhas com um
sorriso. Entrementes, sondou Stephen com algumas perguntas divertidas; então, depois que trouxeram o café filtre, fez uma pausa, com um certo ar consciente, e pareceu
ter achado necessário explicar-se.
- Curioso, não? - comentou ele, riscando desenhos na toalha xadrez - como a gente sempre pode identificar um universitário. Philip Lambert também é um deles. Depois
de Harrow - lançou um olhar rápido para Stephen
- eu mesmo devia ter ido para Cambridge... se não a tivesse trocado pela arte.
Continuou, revelando, com um sorriso suplicante, que o pai tinha sido um grande plantador de chá no Ceilão, ao passo que a mãe, agora viúva, voltara para habitar
uma imensa mansão de Highgate com uma legião de criados. Naturalmente, ela o estragara com mimos, dava-lhe uma generosa pensão. Estava em Paris fazia 18 meses.
- É muito divertido - concluiu ele. - Você deve me deixar mostrar-lhe os meus trabalhos.
- Que acha de Dupret? - perguntou Stephen.
- É o professor mais decente que há por aqui. Você sabe que ele pertence à Legião de Honra?
Ligeiramente chocado, Stephen não respondeu. Chester intrigava-o, como o intrigaria um desenho estranho que, embora agradável, tivesse complexidades estranhas ao
seu gosto.
Terminaram o café. As pessoas começavam a se retirar.
- Seu amigo Lambert parece que não vem - disse Stephen por fim, para quebrar o silêncio.
Chester riu-se.
- Philip é um mendigo errante. Você nunca sabe quando ele vai aparecer... ou com que atraentes saias.
- Ele frequenta a Dupret?
- Trabalha em casa... quando trabalha. Tem recursos particulares, você sabe, e já andou por toda a Europa, estudou em Roma e Viena, mas agora ele e a mulher alugaram
um pequeno apartamento na Esplanada dos Inválidos. - Chester assentiu com um aceno. - E posso lhe dizer que a Sra. Lambert é muito elegante. E, naturalmente, uma
perfeita dama.
Ali estava novamente uma observação que arranhava o ouvido de Stephen, e ele olhou de um modo esquisito para o seu colega, imaginando como poderia usar uma expressão
infeliz. Mas antes que tivesse tempo de responder à pergunta, Harry Chester sentou-se.
- Olhe, aí está Philip.
Seguindo o olhar de Chester, Stephen viu entrar no restaurante um homem delgado, de aparência afetada, com cerca de 30 anos, vestido com uma curta sobrecasaca marrom,
colarinho baixo e gravata fofa. O rosto, pálido e profundamente marcado abaixo dos olhos, tinha um ar de langor. O seu brilhante cabelo preto era repartido nitidamente
no meio, mas a um lado uma mecha tinha escapado num pequeno cacho sobre a sua testa branca. Os seus
modos, aliás toda a sua aparência, davam a impressão de uma indolência amaneirada, de aborrecimento e pretensão.
Quando chegou, pôs a bengala debaixo do braço e começou a descalçar uma luva amarelo-limão, enquanto olhava para Chester com uma alegria levemente desdenhosa.
- Agradeço-lhe por ter guardado a minha mesa, caro rapaz. Mas agora deve ir-se. Espero um convidado às duas horas. E não preciso de acompanhante.
- Estamos saindo, Philip. - O tom de Chester assumira uma inflexão submissa. - Olhe, gostaria que conhecesse Desmonde. Ele entrou para a Dupret hoje.
Lambert lançou uma olhadela a Stephen e depois curvou-se polidamente.
- Desmonde acaba de chegar do seu último ano em Oxford - disse Chester rapidamente.
- Ah, sim - exclamou Lambert. - Que colégio, posso perguntar?
- Trinity - respondeu Stephen.
- Ah! - Lambert relaxou com um sorriso, mostrando os dentes brancos e parelhos, e, tirando a segunda luva apertada de pelica - uma operação que ele executava em
silêncio e sem arrepiar um pêlo - estendeu uma mão pequena para Stephen. - Muito prazer em conhecê-lo. Também estive na Casa. Por favor, não tenham tanta pressa
em se retirar. Posso facilmente encontrar outra mesa.
- Asseguro-lhe - disse Stephen, levantando-se - que terminamos mesmo.
- Então venha tomar chá conosco um dia destes. Estamos em casa quase todas as sextas-feiras às cinco horas. Então falaremos como dois homens de Oxford - seu sorriso
brincou na direção de Chester - e um que quase foi para Cambridge.
A conta, que Madame Chobert apresentara rapidamente, estava sobre a mesa. Uma vez que Chester parecia não vê-la, Stephen apanhou-a e, a despeito dos súbitos e enérgicos
protestos de Harry, pagou a despesa.
CAPÍTULO VII
SOB A MAGIA DA SUA NOVA LIBERDADE, Stephen, entrou rapidamente e com deliciada facilidade numa rotina agradabilíssima, tanto mais que, uma semana
após a sua chegada, recebeu uma carta de Stillwater que foi um grande alívio para o seu espírito. Embora acentuasse o sofrimento ocasionado pela súbita partida de
Stephen, o Reitor havia-o, em certo sentido, perdoado. Obviamente, escreveu ele, a inclinação (a palavra "tentação" fora riscada) tinha sido demasiado forte para
opor-lhe resistência. Por conseguinte, podia "ser tudo pelo melhor", se, como o próprio Stephen tinha proposto, esse interregno de um ano fosse considerado por ambos
os lados como um "campo de prova". Entrementes, aprovava a escolha de Stephen quanto à sua acomodação, conhecia-o demasiado bem para exortá-lo à virtude, e desejava
que nada lhe faltasse do que cabia à sua condição.
De manhã, era uma sensação que nunca diminuía acordar com a consciência de que estava em Paris, de fato seguindo a sua "carreira artística".
Levantou-se, vestiu-se rapidamente e, como o desjejum no Clifton não tinha nada que o recomendasse, saiu para uma pequena crèmerie na esquina do hotel. Ali, por
30 soldos, foram-lhe servidos um jarro de café ou lait e dois croissants flocosos ainda quentes do forno e recém-trazidos pelo padeiro.
Sua caminhada para o estúdio através das ruas frescas era sempre uma delícia, A multidão apressada e os policiais de capa azul, as donas-de-casa madrugadoras com
os braços enganchados em cestas carregadas, um soldado zuavo de calça escarlate, duas porteiras tagarelando apoiadas nas suas vassouras, um velho varredor de rua
lançando esguichos de água pela sarjeta, carrinhos barulhentos de verdura fresca do Halles - tudo isso o extasiava além das exclamações súbitas, agudas, a tagarelice
de muitas línguas, um vagaroso badalar de sinos ecoando nos edifícios de um cinza suave, as graciosas pontes brancas, o rio adorável, já começando a cintilar ao sol.
No estúdio, é verdade, ele não se sentia em casa. A falta de ordem e o perpétuo barulho tornavam difícil a concentração. Parecia que muitos estudantes tinham vindo
menos para trabalhar do que por mero divertimento e feroz exibição dos seus espíritos animais. Riam e cantavam, pregavam peças grosseiras, mantinham intermináveis
discussões em altas vozes nos cafés, afetavam uma boémia exagerada no vestuário e nas maneiras. Falavam a gíria do quarteirão, sabiam tudo a respeito dos últimos
"movimentos", reconheciam Manet, Degas e Renoir como seus mestres e imitavam-nos dolorosamente, desprezavam Millet e Ingres, eram muito críticos com Delacroix, e
contudo tinham pouco ou nada para oferecer de seu.
Naturalmente outros havia que se aplicavam. Ao lado de Stephen havia um moço polaco, vindo de uma pequena cidade do interior próxima de Varsóvia, que, inflamado
pela ambição, tinha vindo sem dinheiro para Paris. Para pagar a sua mensalidade na Dupret, havia trabalhado 12 meses como carregador na estação de Montparnasse.
A intensidade do seu esforço era assustadora, contudo ele não tinha o menor talento. Muitas vezes, quando Dupret
fazia a sua ronda diária, Stephen esperava que ele, com uma única palavra, acabasse piedosamente com aquele fútil labor. Mas o professor não dizia nada, nada além
de corrigir uma linha ou apontar uma expressão vazia, a falta de equilíbrio na composição. Sua atitude com Stephen continuava igualmente impassível, embora uma ou
duas vezes, após estudar alguma parte do seu trabalho, olhasse para ele de uma maneira curiosa, quase às escondidas, como se o visse e examinasse pela primeira vez.
Mais e mais, sob o alheamento de Dupret e suas grandes maneiras, Stephen começou a discernir um núcleo carcomido de decepção, a biliosa amargura de um homem que
no seu coração sabia que tinha falhado no cumprimento da sua expectativa juvenil. Ter obtido o reconhecimento dos círculos oficiais, exibir anualmente o seu trabalho
no Salon (uma pintura segura e cuidadosamente executada, que sempre era pendurada em um bom lugar), participar das juntas e comissões, representar a arte de luvas
brancas nas recepções do governo - tais distinções significavam alguma coisa para quem queria abalar o mundo com uma poderosa obra-prima? Dupret não tinha um verdadeiro
interesse pelo seu estúdio e ainda menos por seus alunos, a não ser quando, com uma ponta de ciúmes, via a evidência de um talento que podia ultrapassar o seu. Atrás
daquela fachada, era um homem vazio, um homem movido pelo homem que supunha ser, um homem mais digno de pena do que desprezo. Na verdade, quando o professor entrava
imponentemente na sala, Stephen fazia dele uma curiosa imagem, no fim do dia, despindo vagarosamente o fraque apertado e soltando os botões brilhantes dos sapatos,
remexendo os dedos comprimidos para aliviar os calos, voltando para a tela semiacabada um Casamento Bretão, pensando, com um arrepio: "Mon Dieu, devo continuar com
isto?"
Na hora do almoço, Stephen ia com Chester ao restaurante de Madame Chobert, mas ocasionalmente escapava à efusiva amizade de Harry e vagabundeava ao longo do cais,
mastigando um petit pain no qual havia uma fatia de presunto avivada pela mostarda amarela. Então, apressando o passo, ia aos museus, ao Louvre ou ao Luxembourg.
Era quase noite quando, com olhos ainda não ajustados às realidades da rua, deixava as compridas galerias e caminhava de volta para o Clifton.
Para Chester, e as poucas outras relações que fizera na Dupret, parecia extraordinário que Stephen passasse as suas noites só, e várias vezes instavam com ele para
que os acompanhasse numa visita a Montmartre. Certa ocasião, ele acedeu, acompanhado de meia dúzia de outros, em ir a um café-concerto na Toque Bleue, perto do Moulin
de la Galette.
Mas ficou enormemente entediado com as cenas que se presumiam vívidas e excitantes, mas, de fato, eram estupidamente fúteis. Os salões de dança eram uma massa humana
empurrando, sapateando, rodeando, semi-intoxicada,
ampliada e distorcida por dezenas de espelhos, retorcendo-se em formas grosseiras, ao estridor de uma banda reles. Certo, nada podia ser mais assustadoramente triste
do que as caras dos frequentadores mais velhos - peitos côncavos e olhos mortiços, estranhamente rebarbativos. Algumas das conhecidas cocotes que Chester lhe apontava
eram francamente medonhas, seus parceiros, com roupas pretas justíssimas, sinistros e degenerados.
Mais tarde, diversas jovens se reuniram à festa, que agora atingia uma fase turbulenta. Suas vozes roucas e grosseira camaradagem, seus braços atirados em torno
de pescoços e seus carinhos cochichados em voz alta despertavam nele um frio desagrado. Enquanto ele permanecia ali sentado, pálido e silencioso, como um peixe fora
da água, uma das jovens se curvou para Chester, que tinha bebido um bocado, e, com os olhos em Stephen, riu-se sem motivo e murmurou alguma coisa no seu ouvido.
Imediatamente, Chester rompeu num ataque de riso.
Nesse momento, Stephen não fez nenhum comentário, mas a caminho de casa, com Chester, falou no assunto.
- Não foi nada, meu velho. Ela apenas disse - Chester, com um tom de desculpa, modificou o comentário original, impublicável - que você era um tipo esquisito. -
E quando Stephen desviou a cabeça, acrescentou: - Lamento que você não tenha se divertido esta noite. Não esqueça de que vamos visitar Lambert na sexta-feira. Avise-me
antes de sair.
Nesse dia, por volta das quatro horas, Stephen saiu para a Rue Bonaparte, onde, no número 15, Harry tinha um quarto no último andar. Após uma íngreme subida de três
lances de escada, percebeu que havia uma furiosa altercação, "e empurrando a porta meio aberta encontrou Chester discutindo com um homem baixo de chapéu preto e
quadrado e um sobretudo pardacento, que, imperturbável, superintendia os movimentos de um subordinado muito ocupado em meter num grande saco de serapilheira o relógio
do consolo, um par de vasos chineses e outros objetos que decoravam o quarto.
- Agora, por favor, o seu relógio, Monsieur Chester.
- Ora, deixe disso, Maurice - suplicou Chester - o relógio não. Dê-me um prazo até o fim da semana que eu pago.
Neste momento, Chester viu Stephen. Por um instante, apatetou-se; depois, aproximando-se, forçou um sorriso confiante.
- Não é uma coisa idiota, Desmonde? Esgotei a minha pensão há pouco. E esses credores importunos, miseráveis, estão me despojando. É praticamente nada. Uns míseros
100-francos. E naturalmente receberei o cheque de mamã no fim do mês. É claro que eu não sonharia em pedir a você; contudo, se houver alguma chance...
Houve uma pequena pausa, então Stephen disse, de boa vontade:
- Terei muito prazer em atendê-lo.
- Muitíssimo obrigado, meu velho. Você o terá de volta, com juros, no dia primeiro do mês. Está vendo, Maurice, seu ladrão? E agora foutre le camp.
Dobrou as notas novinhas que Stephen extraiu da sua carteira e atirou ao oficial de diligências, o qual, após contá-las duas vezes com o polegar umedecido, acenou
silenciosamente, esvaziou o conteúdo da sacola sobre a mesa, com uma reverência enigmática, imitada pelo seu companheiro, e deslizou para fora da sala.
- bom! Acabou! - Chester riu-se alegremente, como se fosse uma excelente piada. - Eu ia sentir falta das minhas velhas panelas. E, naturalmente, disto aqui... -
Colocando os vasos de volta no consolo da lareira, abriu descuidadamente a tampa de um estojo chato e exibiu uma medalha redonda de prata presa a uma fita azul;
depois, de um modo um tanto envergonhado, que não deixava de ser encantador, ajuntou: - Essas coisas não se devem mencionar, Desmonde. Mas uma vez que você me apanhou
desprevenido, tenho que falar... é a Medalha Albert. Pois é... tive que recebê-la, há alguns anos.
- Por quê?
Stephen não podia negar que estava impressionado.
- Ora, porque salvei uma vida no mar, é como chamam isso. Uma velha tonta caiu do navio ao largo de Folkstone. Não posso culpá-la... o mar estava muito agitado...
e era inverno. Aconteceu que fui atrás dela. Não foi absolutamente nada. Não estivemos na água mais do que meia hora, enquanto o vapor fazia a curva e nos mandavam
um bote. Mas vamos esquecer isso e tratar de andar. Se não nos apressarmos, chegaremos tarde para o chá.
Com seu bom humor inteiramente recuperado, Chester desceu as escadas na frente, falando e rindo durante todo o caminho até o apartamento dos Lamberts, situado num
beco sem saída muito atrás da Avenue Duquesne. Ali, num pátio de paralelepípedos, havia um pequeno pavilhão de pedra cinzenta - avivado artisticamente por uma porta
verde-maçã e janelas da mesma cor - que fora outrora a casa do porteiro de uma mansão nos dias de Henrique IV. Cheirando a almoço e a defumador recém-queimado, o
pequeno e um tanto escuro interior estava artisticamente disposto com pequenos tapetes felpudos aqui e ali, cortinas de contas e cadeiras de bambu. Um xale espanhol
estava estendido sobre o piano de armário.
Arrastados pela impetuosidade de Chester, chegaram cedo. Lambert, dormitando numa espreguiçadeira junto às cinzas da lareira, ainda parecia afundado na letargia
de após-almoço, e mal ergueu uma pálpebra pesada quando eles entraram. Mas a Sra. Lambert lá estava para recebê-los. Era alta e esbelta, mais velha do que Stephen
tinha esperado, com grandes olhos verdes, feições tendentes à rispidez, cabelo cor de areia e uma pele branca leitosa que com ele combinava. Seu vestido de tarde,
recortado em torno do pescoço de maneira rebuscada e com saias cheias e compridas, era de brocado branco.
Enquanto ela e Chester conversavam, Stephen observava-a, sentada com compostura, com o pescoço arqueado, contra um biombo laqueado, até que ela, como se notasse
o seu olhar perscrutador, voltou os olhos para ele com um sorriso em arco.
- Espero que aprove o meu vestido...
E como ela parecia esperar um cumprimento, ele disse:
- Estou certo de que Whistler teria gostado de pintá-la com ele.
- Que coisa mais encantadora para dizer. - E ajuntou, confiadamente: - Fui eu mesma que o fiz.
Dali a pouco saiu e trouxe o chá, numa bandeja de prata, com muitas xícaras, com finos sanduíches de agrião, e petits fours. Quando começou a servir, Lambert bocejou
e espreguiçou-se.
- Chá! - exclamou ele. - Não posso viver sem chá. Abençoado, nutritivo chá. Forte, Elise. - Aceitou uma xícara, balançou-a airosamente. Este pode ter vindo das extensas
plantações da sua família no Ceilão, Harry. Não é uma ideia estimulante? Diga-nos se reconhece o sabor. - Olhou para Stephen. - Bem... o que esteve fazendo nesta
cidade malvada, Monsieur l'Abbé?
Stephen corou, Viu que Chester tinha andado a tagarelar a seu respeito.
- Certamente lhe parecerá ridículo. Um futuro pastor desertando para a pintura.
E em poucas palavras explicou algumas das circunstâncias da sua vinda para Paris.
Quando terminou, seguiu-se uma breve pausa, e então Lambert exclamou, com a sua costumeira ironia:
- Bravo, Abbé! E agora que já fez a sua confissão, tem a nossa absolvição incondicional.
Elise, inclinando-se um pouco para ele, com um sorriso, murmurou:
- Deve ter sentido uma incrível vontade de pintar. Tome mais um pouco de chá.
Quando Stephen levantou a mão com a sua xícara até os olhos, viu três leques, pintados em seda à maneira japonesa, arranjados sobre a parede. Fez uma pausa, impressionado
pela delicadeza do trabalho.
- Quem fez essas coisas tão encantadoras?
As pálpebras de Lambert ergueram-se. Acendeu um cigarro, antes de responder, de modo quase casual:
- Para dizer a verdade, caro Abbé, são minhas. Se não lhe aborrecer, mostro-lhe mais alguns trabalhos meus.
Depôs a xícara, e de uma pequena passagem lateral trouxe várias telas; então, de uma maneira fatigada colocou-as em pé, uma após a outra, de modo que recebessem
toda a luz, numa cadeira alta junto à janela.
A maioria dos quadros era bem pequena, e de temas leves - um raminho de flor de cereja numa malga azul, dois salgueiros à beira de uma poça estagnada, uma criança
com chapéu de palha sentada num caramanchão à margem de um rio - contudo, cada um deles tinha uma beleza decorativa que acentuava o simples. Era uma qualidade que
parecia infundir em formas pálidas um encanto enfastiado e indefinível.
Mostradas as poucas pinturas, Stephen voltou-se para Lambert.
- Eu não tinha ideia de que podia pintar assim... são encantadoras. Lambert encolheu os ombros, mas estava claramente satisfeito, ao passo que sua mulher, estendendo
o braço, apertou vivamente a mão de Stephen.
- Phil é realmente um génio. Ele também pinta retratos. - Seus olhos verdes demoraram-se luzindo. - Se souberem de alguém que esteja interessado em comprar... Sou
a sócia comercial.
Depois disso, a campainha da porta soou e,.em rápida sucessão, outros convidados chegaram, todos singularmente apropriados para aquela atmosfera de refinada boémia:
um jovem de meias brancas com um manuscrito debaixo do braço, outro homem, menos moço, mas de ombros quadrados e bem vestido, da Embaixada americana, uma modelo
chamada Nina, que Stephen tinha visto ocasionalmente no restaurante de Madame Chobert. Um francês de monóculo, gordo e idoso, que beijou a mão de Elise com tocante
galanteria, e sobre o qual, como um possível comprador, ela voltou todas as suas blandícies.
Um chá novo foi trazido, Lambert serviu uísque, o ruído da conversação aumentou, e dali a pouco Stephen, que em sua primeira visita não queria ficar muito tempo,
levantou-se para se retirar. Philip e a esposa instaram para que ele viesse outra vez. Aliás, Madame Lambert interrompeu a conversa para acompanhá-lo até a porta.
- Venha conosco rio acima no domingo. Fazemos um piquenique em Champrosay. - Deteve-se, de olhos grandes, com o ar de quem fazia um cumprimento. - Philip gostou
muito do senhor.
No domingo, então, e em outros dias depois, Stephen acompanhou os Lamberts, às vezes só, às vezes com Chester ou outros de seus amigos, àquela adorável altura do
Sena, entre Châtillon e Melun. Tomavam o bateau mouche na Pont Neuf para Ablon, onde alugavam um esquife e subiam com remadas descansadas a vagarosa corrente verde,
serpeando placidamente entre as ribas tornadas famosas pela Floresta de Sénart até atracarem diante de uma estalagem à margem do rio, desembarcando para almoçar
numa mesa de madeira ao ar livre.
O tempo era soberbo, a folhagem no seu melhor momento de beleza madura, as malvas-rosas e os girassóis em plena florada. O sol cintilante e o
ar caricioso, o exercício, aqueles amigos agradáveis, a esfuziante novidade de cada vista e som, o apito rouco de uma barcaça, a cor da blusa de um operário, a pose
da mulher do encarregado da comporta, tudo o que nele despertava um êxtase vibrante agia como um entorpecente sobre Stephen. Lambert, tirante algumas horas de melancolia,
estava na sua disposição mais atraente, lançando um dito de espírito aqui, um epigrama ali, exibindo o seu brilhantismo, recitando longos trechos de Verlaine e das
Fleurs du Mal.
- Mais sagrada que o Indo - murmurava ele, detendo-se para tomar fôlego, arrastando os seus compridos dedos na corrente fria, com o peito estreito a arfar, a mecha
de cabelos caída sobre a testa úmida. - Esses lírios d'água... cálices do mais puro alabastro... translucidamente rosados... e frios... frios como os seios das ninféias
flutuantes... - E assim por diante.
Seu olho para a beleza não se limitava à natureza, e sempre que a mulher que os servia na estalagem era razoavelmente favorecida, ele, a despeito do olhar agudo
da esposa, flertava com ela ultrajantemente.
A princípio, Stephen trazia consigo um bloco, querendo registrar tudo o que via, mas Lambert desanimou-o com um sorriso cómico.
- Deve guardar tudo aqui, caro Abbé. - Bateu na testa ligeiramente. Mais tarde... na solidão... isso nascerá outra vez.
Numa tarde de domingo, depois de uma excursão mais encantadora do que qualquer outra, Stephen despediu-se dos Lamberts e de dois outros que tinham participado do
passeio de barco, e caminhou do embarcadouro, no Quai St. Bernard, para o seu hotel. O sol, afundando agora por trás da cúpula do Trocadero, tinha incendiado o céu
o dia inteiro. Animados pelo calor do dia, todos tinham se banhado num lago abaixo do açude de L'Hermitage, comido um almoço especial de trutas, frias com patê,
enriquecido pelo nobre Chambertin, e depois adormecido sobre a relva tépida embaixo das faias de Sénart.
Como ele se sentia bem!... a pele queimada pelo sol, os pulmões cheios de ar do campo, o corpo formigando com a água picante do rio... uma espécie de satisfação
divina espalhava-se por ele.
De súbito, ao atravessar a Rue de Bièvre, um homem saiu de uma entrada estreita bem à sua frente. Usava sapatos pesados, uma calça de pele de toupeira e uma blusa
de porteiro pintalgada de azul; em torno do pescoço, um lenço vermelho enrolado negligentemente. Parecia um trabalhador voltando para casa após um duro dia de labor;
contudo, algo no aprumo dos ombros, o porte desafiante da cabeça, fez Stephen sobressaltar-se. Apressou o passo para alcançá-lo.
- Glyn!
Richard Glyn deu meia-volta, de cara séria e cenhuda; então, ao olhar, as rugas que tão profundamente lhe franziam a testa foram aos poucos desaparecendo.
- É você, Desmonde... Conseguiu deixar aquilo.
- Há cinco semanas - disse Stephen sorrindo de prazer. - E desde então estive esperando encontrá-lo. Escute, estou justamente voltando para o hotel. Venha e jante
comigo.
- bom - considerou Glyn - eu bem que gostaria de dar umas dentadas. Não comi nada o dia inteiro.
- Deus do céu, que esteve fazendo?
- Pintando... desde as seis da manhã - respondeu Glyn com uma espécie de violência sombria. - Costumo esquecer o almoço quando estou trabalhando... especialmente
quando não consigo dominar meus amaldiçoados valores das nuanças.
Falando, os seus olhos de ágata cintilavam com uma súbita e rude impaciência, o cansaço de um prolongado e apaixonado esforço para criar. Travando Stephen pelo braço,
saiu com ele rua afora.
CAPÍTULO VIII
O APARECIMENTO DE GLYN, de lenço vermelho no pescoço e botas ferradas, causou um pequeno rebuliço na sala de refeições do Clifton. O velho chefe dos garçons, criado
na tradição dos milords ingleses, não gostou do que via, e as duas damas solteironas, que até agora consideravam Stephen com simpática aprovação, agitaram-se de
chocada surpresa. Richard, contudo, não pareceu importar-se e, aboletando-se na sua cadeira, passeou os olhos em torno com visível curiosidade.
- Por que, em nome do Céu, você se hospeda num lugar como este, Desmonde?
- Oh, não sei... habituei-me a ele, suponho.
Glyn provou a sopa, feita, como sempre, de farinha e água gordurosa.
- Talvez você goste da comida, não?
Stephen riu-se.
- Sei que não é lá essas coisas. Mas o prato de carne será bom.
- É melhor que seja. - Richard partiu outro pão. - Eu lhe disse que estava faminto. Uma noite destas vou levá-lo para comer numa verdadeira casa de pasto.
- No restaurante de Madame Chobert?
- Por Deus que não! Nada de casa de picadinhos artísticos!... Detesto falsas aparências, tanto em cozinha como em pintura. Um bistro de cocheiros perto da minha
casa. Você pode confiar numa taberna onde os cocheiros comem. Servem lá um patê de lebre que não é deste mundo. - Glyn se deteve. - Agora me conte o que andou fazendo.
De boa vontade, mas sem entusiasmo, Stephen iniciou um relatório completo das suas recentes atividades. Falou da sua "labuta" matinal na Dupret, encareceu a sua
amizade com Chester e os Lamberts, tornou-se lírico ao descrever as suas excursões a Champrosay. A princípio, Glyn ouvia com um sorriso entre irónico e sarcástico,
mas lentamente a sua expressão se tornou séria, e ele ficou olhando de esguelha para o seu companheiro.
- Bem - exclamou ele quando a narrativa terminou. - Você parece que tem andado ocupado. Talvez me leve depois ao seu quarto para vermos o que tem feito.
- Oh, não tenho muito que mostrar... - respondeu Stephen apressadamente. - Apenas uns poucos esboços. Tenho me concentrado nas linhas, sabe?
- Sim - fez Glyn.
Em completo silêncio, ele mastigava o resistente pouding à l'anglaise que constituía a sobremesa do Clifton. Não disse palavra por uns bons cinco minutos. Depois,
por baixo das sobrancelhas franzidas, voltou para Stephen um olhar firme que também tinha um reflexo de extremo desagrado.
- Desmonde, você quer pintar? Ou enganar a sua vida como um desses personagens extravagantes de La Boême?
- Não compreendo.
- Ouça, então. Há talvez 10 mil impostores safados nesta cidade que se imaginam artistas porque estudam um pouco, desenham um pouco e sentam os rabos nos cafés todas
as noites, cacarejando sobre as suas obras-primas natimortas. Você é quase um deles. Sabe muitíssimo bem que está desperdiçando tempo, Desmonde. Só o trabalho duro,
infernal, é que tira o que você tem aí dentro, não vagabundeando pelo Sena, estendido de costas numa canoa com um poseur simplório que lhe esguicha Verlaine e Baudelaire.
Stephen avermelhou-se, indignado.
- Você é injusto, Glyn. Chester e Lambert são sujeitos muito decentes. E Lambert tem certamente um grande talento.
- Besteira! Que fez ele? Algumas japonaiseries, leques pintados, fragmentos... oh, bem bonito, não nego, mas coisinhas meio efeminadas... afetadas... e tudo muito
pequeno.
- Certamente é um sinal de vulgaridade produzir enormes telas.
Em seu ressentimento, Stephen citara uma observação favorita de Lambert, e Glyn logo farejou a sua origem. Riu-se rudemente.
- E Rubens, e Correggio, e del Sarto, com as suas tremendas concepções, e o velho Michelangelo, cobrindo o teto da Capela Sistina com a sua portentosa visão da Criação,
trabalhando tão duramente que em muitos dias nem tinha tempo de tirar a roupa? Eles foram vulgares? Não, Desmonde... Lambert é um amador bem-dotado, um artista menor,
que nunca seria ouvido se não fosse empurrado por trás pela sua astuta mulher. Não tenho nada contra esse sujeito, é em você que estou pensando, Desmonde. Você tem
algo que Lambert daria a alma para possuir. Não quero vê-lo jogando isso fora por causa da sua maldita tolice. E quanto a Harry Chester, prosseguiu Glyn, será você
tão ingénuo para já não ter saltado por cima dele?
- Não sei o que você quer dizer - respondeu Stephen agastado.
Glyn pensou em esclarecê-lo, mas contentou-se com um sorriso.
- Quanto dinheiro ele já levou de você?
Stephen corou profundamente. Chester tinha em várias ocasiões pedido empréstimos, e agora já lhe devia mais de 500 francos, mas não tinha ele dado a sua palavra
de honra que os pagaria fielmente?
- Ouça - continuou Glyn mais tranquilo - você teve um falso início, acabou em más companhias e, pior de tudo, tem afrouxado abominavelmente. Se não se levantar,
estará cavando o seu próprio túmulo. O poço mais fundo do inferno é ocupado pelo artista que não trabalha!
Fez-se um comprido e gélido silêncio. Embora Stephen se tivesse defendido, ao comparar o seu próprio dia inútil com as horas de esforço concentrado de Glyn, uma
vergonha começava a apoderar-se dele.
- Que devo fazer? - disse ele por fim.
- Em primeiro lugar, sair desta casa anglicana de repouso.
- Quando?
- Agora.
O olhar consternado de Stephen pareceu divertir Glyn imensamente, mas num instante ele ficou novamente sério.
- Não posso lhe pedir que venha para o meu buraco. Mas conheço um homem que terá prazer em recebê-lo.
- Quem?
- Jerome Peyrat é o nome dele. Tio Peyrat. É um camarada velhusco, em situação não muito boa, que quer alguém para dividir as despesas. Um tipo esquisito, por Deus,
mas um verdadeiro pintor, diferente dos seus falsos boémios. - O meio sorriso de Glyn era desconcertante, mas desapareceu rapidamente quando ele concluiu: - Você
já não tem mais nada com Dupret, está claro. Pode usar o meu estúdio. E vou lhe apresentar o meu homem das tintas, Napoleon Campo. Ele fia... às vezes. Vamos embora.
A natureza de Stephen não era adaptada às mudanças súbitas e decisões bruscas, contudo havia uma força avassaladora nos argumentos de Glyn, uma
irresistível compulsão na sua maneira. Dirigiu-se, portanto, ao escritório e, para surpresa e mortificação do gerente, pediu e liquidou a sua conta. Então fez a
mala e trouxe-a para baixo, desculpando-se por sua partida inesperada com uma profusa distribuição de gorjetas.
Glyn, no corredor, e claramente olhado pelo pessoal do Clifton como o demónio da peça, mostrou-se frio a respeito daquelas gratificações, e comentou sombriamente:
- Aconselho-o a guardar o seu dinheiro, Desmonde. Você pode vir a precisar dele depois.
- Espere, Glyn. Eles têm que nos arranjar um carro.
- Para o diabo com o carro. Está realmente tão fraco que não pode andar?
Apanhando a valise, que não era leve, Richard atirou-a no ombro e saiu do hotel a passos largos. Stephen acompanhou-o para a poeira luminosa da rua.
Era uma distância considerável até o alojamento de Peyrat, mas Glyn, que tinha uma satisfação selvagem em extrair o máximo de si mesmo, percorreu-a em passos rápidos,
sem vacilar ou depor a mala. Finalmente, numa escura rua lateral de Rive Gauche, no triângulo formado pelo encontro da Rue de Assas e do Boulevard Montparnasse,
Glyn enveredou por uma entrada torta ao lado de uma pastelaria, que, embora mal iluminada por uma lâmpada fraca, estava esfregada e limpa, e começou a subir de três
em três os degraus de pedra. Deteve-se no segundo andar, bateu na porta e, sem esperar resposta, torceu o trinco e fez Stephen entrar.
Era um apartamento de três cómodos, e na sala de estar, mobiliada com correção burguesa, sentava-se diante da mesa coberta por um oleado um homem franzino, de ombros
redondos, com cerca de 50 anos, um rosto chato e sulcado e uma barba inculta, vestindo, apesar do calor do fogo que flamejava na lareira, um descosido sobretudo
preto com a gola levantada e um chapéu duro, também preto; enquanto um tordo, sem a metade das penas, piava um acompanhamento numa gaiola junto à janela, ele se
exercitava na ocarina. À vista de Glyn, os seus olhos, que eram claros e jovens e o enchiam de engenhosa audácia, brilharam. Depôs o instrumento e, erguendo-se,
beijou Richard, com afeiçoada familiaridade, em ambas as faces.
- Peyrat - disse Glyn brevemente, enquanto se desvencilhava - trouxe-lhe o seu novo inquilino. É um amigo meu. Stephen Desmonde.
O olhar de Jerome Peyrat passou de Glyn para Stephen e nele repousou pensativamente - um escrutínio a um tempo inocente e amável.
- Se é seu amigo, mon vieux, então será meu também. Desculpe-me recebê-lo assim, Monsieur Desmonde. Richard sabe como padeço com correntes de ar.
- Espero que não o estejamos perturbando - disse Stephen, embaraçado.
- Longe disso. De noite tenho o hábito de contemplar a minha própria alma. Às vezes acho-a esplêndida, outras medonha. Esta noite - sorriu gravemente - agradeço
qualquer distração.
- Desmonde é pintor, Peyrat. Vai trabalhar comigo e com você.
- ótimo. - Peyrat não mostrou a menor surpresa. - Seja bem-vindo no meu apartamento... pelo menos temporariamente, uma vez que pertence a Monsieur Bisque, o pasteleiro.
Não importa. Aqui renunciamos à beleza das mulheres e ao brilho da fama contemporânea, a fim de produzir obras-primas que serão aclamadas mil anos após a nossa morte.
- Que esperança! - exclamou Glyn com irónica indulgência.
- É unicamente a esperança que nos mantém vivos.
- E a beata Teresa...
- É verdade. Somos sustentados pelo exemplo dessa nobre alma. - Voltou-se para Stephen. - Já visitou a Espanha?
- Não.
- Então um dia podemos fazer uma peregrinação juntos. Até Ávila de los Caballeros... que fica atrás de muralhas de granito, amareladas pelo sol do verão, geladas
pelo inverno de Castela, aprumando-se como uma grande coroa no seu deserto de rocha contra o duro azul das Montanhas de Greda.
- O senhor já esteve lá? - perguntou Stephen polidamente.
- Muitas vezes. Mas somente em espírito. Glyn explodiu numa gargalhada.
- Aviso-o, Desmonde. Este maluco, que nunca vai à igreja e diz coisas desagradáveis a respeito do Papa, tem uma absurda veneração por Santa Teresa.
- Peyrat sacudiu a cabeça em reprovação.
- Meu amigo, não tome em vão o nome da doce e obstinada mulher de Castela, a Velha, que restaurou a ordem descalça original, abandonou a vida ociosa e tagarela das
carmelitas. Ela troou a sua batalha com o espírito, o encanto, a humildade, as rezas, os argumentos, a paciência de uma santa e a têmpera de um capitão do mar. Também
foi uma poetisa...
- vou sair - disse Glyn, sorrindo e dirigindo-se para a porta. - vou deixá-los a sós para que se conheçam. Esteja no meu estúdio amanhã às sete, Desmonde. Boa noite.
Saiu. Peyrat, após um momento de silêncio, levantou-se e foi apertar a mão de Stephen.
Disse simplesmente:
- Espero que se sinta em casa.
CAPÍTULO IX
AGORA COMEÇAVA PARA STEPHEN, sob a influência de Glyn e Peyrat, uma nova existência, cheia de incessante trabalho, inteiramente oposta à sua recente interpretação
da vida artística. Jerome Peyrat, conhecido no distrito de Plaisance como "Tio Peyrat", era de origem humilde; seus pais, já falecidos, não foram mais que gente
simples do campo - embora ele falasse deles com orgulho - labutando nuns poucos hectares perto de Nantes. Durante 30 anos, como empregado do governo, petit fonctionaire,
passando os dias metido num paletó de alpaca com punhos de papel, tomando anotações nos registros poeirentos do Palais de Justice. Somente uma vez estivera fora
da França, quando, como terceiro secretário de uma comissão judicial, tinha ido à Índia. Lá, passara todo o seu lazer como um espectador ingénuo e fascinado dos
animais alinhados atrás das grades, debaixo das altas palmeiras e carobas do jardim zoológico de Calcutá. Alguns meses depois do seu regresso, o pessoal do ministério
foi reduzido e Peyrat aposentado com uma pensão tão diminuta que mal lhe dava para viver de pão. Então, inesperadamente, nunca antes tendo manifestado no menor grau
qualquer interesse pela arte, começou a pintar prolificamente. Não apenas a pintar, mas a considerar-se placidamente um pintor de génio. Nunca recebera uma só lição
na sua vida. Pintava os retratos dos amigos, ruas, edifícios, feios edifícios, cortejos nupciais, fábricas da banlieue, e punhados de flores agarradas por mãos descarnadas,
pintava composições de florestas - uma forma feminina nua, pródiga de seios e cadeiras, montada num tigre mostrando os dentes embaixo de um intrincado novelo de
palmas, trepadeiras, samambaias, orquídeas de tons cromáticos, uma floresta da imaginação, luxuriante e estupenda, povoada por serpentes e macacos trepadores entrelaçados
como num combate mortal, durante a execução dos quais tremia, suava e, para que não desmaiasse, era forçado, apesar do seu medo de apanhar um resfriado, a abrir
a janela para respirar ar fresco.
A vizinhança encolhia os ombros e sorria diante das suas pinturas, que eram expostas à venda, ao preço de 15 francos, na janela da sua amiga, Madame Huffnaegel,
uma viúva respeitável que tinha uma chapelaria a poucas portas rua abaixo e por quem ele nutria um respeito moderado. A não ser Napoleon Campo, o homem das tintas,
que tinha levado telas em pagamento de materiais
fornecidos a Peyrat - e cujo sótão estava, admitia-se, atulhado de refugos de artistas lutadores - ninguém comprava os quadros, que se tornaram, nas vizinhanças
da Rue Gastel, um alvo regular de hilariante, embora afetuosa, alegria. Contudo, complacentemente, Peyrat continuava pintando, às vezes passando muitas necessidades,
mas completando a sua magra pensão com vários recursos. Além da ocarina, que ele tocava para seu próprio prazer, e do corne francês, tinha um conhecimento limitado
do violino e do clarinete. Consequentemente, escreveu uns volantes que ele mesmo distribuía de porta em porta pelo bairro.
Aviso
JEROME PEYRAT
CURSOS DE MÚSICA, HARMÓNICA E SOLFEJO PARA CRIANÇAS
Aos sábados, das duas às cinco da tarde.
Rápido progresso garantido.
Pais podem assistir às aulas. Mensalidade por estudante: cinco francos.
Número limitado de alunos.
No verão, também tirava um bom efeito da sua habilidade no corne francês, tocando todas as tardes de terça-feira na orquestra que encantava as babás e seus pirralhos
no Jardim das Tulherias. E quando a necessidade o premia demasiado, lá estava o amigo da sua infância, Alphonse Bisque, agora o pasteleiro do Plaisance, gordo, de
meia-idade, completamente calvo, com quem - por recordação sentimental dos dias distantes da escola em Nantes, e não por causa das pinturas que de tempos em tempos
Jerome lhe empurrava em pagamento - se podia contar para fornecer pastel de carneiro ou patê de carne.
Nos seus hábitos e no seu modo geral de vida, Peyrat - Stephen logo o descobriu - era tão engenhoso, tão original como os seus quadros. com toda a sua simplicidade,
tinha uma mente ativa e inquisidora, abarrotada com os frutos das suas pesquisas em volumes abstrusos de segunda mão comprados nos quais, frequentemente vomitados
em discursos ingenuamente eruditos sobre história, teologia medieval ou assuntos tão inconciliáveis como Cosme de Alexandria, que no ano 548 denunciara a doutrina
da redondeza da Terra, e Santa Teresa de Ávila, a quem ele, um ateu, tinha tranquilamente tomado por padroeira.
A despeito dessas excentricidades, portava-se, na sua frase favorita, como un brave homme et un bon camarade. Por mais cedo que Stephen se levantasse, Peyrat já
estava de pé antes dele, para apanhar o leite e o pão quente que o menino Alphonse entregava todas as manhãs na sua porta. Terminado o seu simples desjejum, vestia
um avental e lavava a louça; depois, tendo dado água e sementes ao tordo que achara na rua, estropiado por um gato, e que se propunha soltar quando a asa se emendasse,
aprestava-se para o dia de trabalho, punha no ombro a sua paleta e caixa de tintas, mais um grande guarda-chuva para protegê-lo contra os elementos, e saía a pé
para algum canto remoto dos subúrbios, Ivry, Charenton ou Passy, onde, imperturbável ante comentários grosseiros dos passantes ou peças que as crianças lhe pregavam,
atormentando-o, perdia-se na maravilha e no mistério de transpor para a tela alguma visão celestial de um vagão encostado, um bonde ou o cano de uma chaminé.
Stephen saía à mesma hora, apressando-se todas as manhãs para a Rue de Biêvre a fim de utilizar a luz clara do norte, depois do amanhecer, que jorrava através das
clarabóias chumbadas do estúdio de Glyn. Richard, que nunca se poupava, era impiedoso na sua atitude de severo e às vezes estúpido feitor.
- Mostre-me o que é capaz de fazer - dizia ele sombriamente. - Em seis meses, se você não me satisfizer, pode voltar para o Senhor.
O modelo de Glyn, Anna Montel, era uma mulher de 30 anos, alta e vigorosa, de cabelos negros e olhar cigano, desolado. Era uma ramani Cinzany, cujos antepassados
deviam ter vindo originariamente da Hungria, embora Glyn a tivesse encontrado numa remota parte de Gales do Norte. Sua pele era áspera, e como sempre ela andava
descalça, numa saia escura e blusa verde, sem luvas ou capote; suas mãos e faces eram gretadas pelas cortantes brisas do outono que assobiavam na rua vindas do rio.
Mas os planos daquela face castigada pelo vento, com as suas órbitas firmes e malares altos, eram lisos e fortes. Andando pelo estúdio nas suas chinelas de ourela,
lendo de relance os desejos de Glyn, era a pessoa mais silenciosa que Stephen tinha conhecido-. Posava a todas as horas, e por longos períodos; depois, sem uma palavra,
deslizava do estúdio para Halles e, voltando com uma braçada de provisões, ia ao fogãozinho e preparava um goulash, ou coava café naquela chaleirinha azul de esmalte
com o bico quebrado, que figurou, mais tarde, num dos mais conhecidos quadros de Glyn: Le Café Matinal.
Embora nunca procurasse instruir, Glyn era incansável na sua exigência por originalidade, insistindo em que Stephen descartasse as suas noções preconcebidas, encorajando-o
a olhar para os objetos não como eles eram vistos e representados pela tradição, mas com os seus olhos novos.
- Faça como Peyrat faz! - exclamava Glyn. - Faça cada quadro absolutamente seu.
- Você tem Peyrat em grande conta?
- Acho que ele é grande. - Glyn falava com inteira convicção. - Tem a visão direta original de um artista primitivo. Podem rir dele o quanto quiserem, achando-o
um velho tolo. Mas dentro de 20 anos se arrastarão para ter um dos seus quadros.
Era um trabalho duro - e frio. No estúdio gélido, as semanas avançavam mais frígidas ainda, porque Glyn tinha uma teoria espartana de que ninguém podia dar o que
tinha de melhor num ambiente de conforto. Morta para sempre estava a primeira ideia de Stephen de que pintar era uma arte suave e sedutora. Nunca em sua existência
teve um regime tão rigoroso. E Glyn era insaciável na sua demanda por maior, e ainda maior, esforço.
Um dia, quando a cabeça de Stephen girava e ele sentiu que não podia continuar, Richard, respirando fundo, atirou a sua paleta no chão.
- Exercício - decretou ele. - O tampo da minha cabeça está saltando. Sabe andar de bicicleta?
- Sem dúvida.
- Suponho que você praticava o crawl de coadjutor lá em Oxford. Seis quilómetros por hora.
- Acredito que posso fazer um pouco melhor do que isso.
- Muito bem. - Glyn sorriu. - Veremos de que você é feito.
Saíram do estúdio e atravessaram a rua para a loja de bicicletas do quarteirão, atendida por Pierre Berthelot, um antigo ciclista de corridas que, embora incapacitado
agora por um coração danificado pelo Pernod, tinha nos seus dias obtido um terceiro lugar no Tour de France. Era um estabelecimento pequeno, arruinado, com uma fila
de bicicletas penduradas do teto, na frente, e uma escura oficina de reparos ao fundo. Entraram. O lugar parecia deserto.
- Pierre! - gritou Glyn, batendo no balcão.
Uma moça de uns 20 anos surgiu dos fundos. Era um tanto baixa, usava um suéter escuro e uma saia preta pregueada, com pés sem meias enfiados em compridas chinelas
pretas.
- É você? - fez Glyn.
- A quem esperavk? A rainha de Sabá?
- Por que não está no circo?
- Desmontado para o inverno. - Ela falava com frases curtas, desgraciosamente, com as mãos nas cadeiras e as pernas separadas.
- E o seu pai?
- Curando uma bebedeira.
- Hum! Stephen, esta é Emmy Berthelot. E enquanto ela olhava de um para outro de uma maneira aborrecida, ele continuou: - Queremos duas bicicletas para esta tarde.
Boas.
- Todas são boas. Peguem as duas do fim.
Enquanto Glyn abaixara a corda na roldana, Stephen observava-a experimentar cada bicicleta como entendida, fazendo as rodas girarem. Tinha um rosto pálido, emburrado,
testa baixa, ligeiramente saliente, sobrancelhas bem marcadas, uma boca grande de lábios finos. O nariz tinha uma boa linha, mas apresentava essa ponta arrebitada
dos bairros pobres que a denunciava. A não ser pelos seios, salientes sob o jérsei apertado, tinha a figura de um menino bem desenvolvido. Virando inesperadamente,
notou que Stephen tinha os olhos nela. Sob o seu olhar frio e avaliador, ele sentiu que corava - havia na maneira dela uma insolência que o magoava. Richard estava
levando as bicicletas para a porta.
- Gostaria de vir conosco Emmy?
- De que jeito? Tenho que cuidar da loja. Graças a esse velho beberrão.
- Outro dia então. Voltaremos antes de escurecer.
Stephen acompanhou Glyn para a rua. Montaram e, dobrados em dois sobre os guidons abaixados, Glyn adiante, afastaram-se, furando o tráfego do Faubourg St. Germaine
até a Porte de Versailles. Fora das portas da cidade, aceleraram pela estrada reta e lisa para Ville d'Avray. Richard, com ocasionais olhadelas para trás, imprimiu
uma velocidade arriscada. St. Appoline, Pontchartrain e Meul ficaram vertiginosamente para trás. E, depois, Jussieu, e Orgeval. Por fim, numa ampla curva circular,
tinham percorrido cerca de 30 quilómetros, e Glyn parou com uma freada diante de uma buvette na pequena aldeia de Louveciennes. Respirando forte, olhou criticamente
para Stephen, suado e empoeirado, completamente sem fôlego. Sorriu.
- Nada mau, meu rapaz. Você não gosta de desistir, não é? É uma qualidade que pode lhe ser útil. Venha tomar uma cerveja.
No bar escuro, de teto baixo, tomaram uma caneca de cerveja gelada, que escorregou deliciosamente nas suas gargantas secas. Glyn sugou a espuma da barba e suspirou.
- bom lugar para pintar este campo em torno de Louveciennes - meditou ele. Renoir e Pissarro costumavam andar por aqui. Sisley também. Traremos Emmy para dar o ritmo.
Ela pode realmente vir.
A lembrança do encontro na loja de bicicleta ainda doía em Stephen. Ele disse secamente:
- Aquela moça me pareceu uma pessoa um tanto desagradável.
Glyn soltou uma risada.
- Modere a sua língua, padre... - E depois de uma pausa: - Na verdade, ela é uma putinha barata... o seu amigo Chester podia lhe dizer... E dura. Praticamente criada
na equipe no circuit de France. Troteia por aí com um bando de vadias. Faz uma tournée de seis meses por ano com o grupo do Peroz.
- Peroz?
- Adolf Peroz. Primeiro, eram os Irmãos Peroz. Adolf é o sobrevivente. Conheço-o. Sujeito decente. Tem um circo muito bom. Emmy faz os números de ciclista. Acho
que deve ser extremamente arriscado. Ela ganha um bom dinheiro, e deixa você saber disso. Ela não tem préstimo para nós, realmente, e sabe que andamos tesos. Mas
é incrivelmente vaidosa, e quer que eu a pinte.
- Vai pintar?
- Não mesmo! Não lido com tipos da sarjeta. Mas me divirto pondo uma mosca na sopa dela. Ela é realmente uma perfeita cadelinha. - Terminou a sua cerveja. - Vamos
embora.
Voltaram lentamente no frescor da tarde. Glyn estava eufórico, purgado da tensão nervosa, cantando trechos de canções populares do País de Gales.
Diante da loja de bicicleta, consultou o relógio e deu um assobio.
- Estou atrasado. Tenho que me encontrar com Anna. Entregue isto por mim, como um bom sujeito. Deixou a sua bicicleta com Stephen e precipitou-se.
Com alguma dificuldade, Stephen manobrou as duas bicicletas para dentro da loja. Como antes, estava vazia. Ele bateu no balcão, e então, como ninguém aparecesse,
empurrou a porta dos fundos; no corredorzinho escuro, foi de encontro a Emmy, que vinha para a loja. A porta de fora fechou-se, deixando-os juntos, confinados na
escuridão de um espaço não maior que um armário. Muito desconcertado, Stephen não achava o que dizer, e de súbito o seu pulso começou a bater como um martelo. Ela
estava em pé a seu lado, tão perto que ele podia sentir-lhe o calor, e uma estranha e repentina emoção fez a sua garganta se apertar. Ela o observava impassível,
sem surpresa, embora o seu íntimo torvelinho lhe fosse perfeitamente aparente; deu-lhe um sorriso frio, crítico.
- Que veux-tu?
O duplo sentido da pergunta trouxe-lhe uma onda de calor. Houve uma pausa, durante a qual ele ouvia as rápidas e altas batidas do seu coração. Numa voz não natural,
respondeu:
- Queria que soubesse... que eu trouxe as bicicletas de volta.
- Fizeram um bom passeio? - Ela continuava a observá-lo conscientemente, olhos apertados, meio divertida com a sua emoção, embora não participando dela.
- Sim, obrigado.
Silêncio outra vez. Ela não fazia nenhum gesto para se mover. Afinal, com grande esforço, ele pôs a mão na porta às suas costas e empurrou-a.
- Espero - gaguejou ele como um colegial - espero vê-la novamente. Envergonhado e muito tenso, tentou sem sucesso afastá-la da mente. Mas ela crescia cada vez que
a via - ocasiões que se tornaram frequentes desde que, com a chegada da primavera, Glyn insistia em exercícios regulares
semanais. Sentia-se ao mesmo tempo atraído e repelido por Emmy. Desejava muito pedir-lhe que posasse para ele, mas não podia chegar a dizê-lo com tantas palavras.
Uma oportunidade favorável parecia não surgir nunca. Ela permanecia como um enigma não decifrado, um sentido procurado e não achado, uma estranha irritação no fundo
do seu espírito.
E o tempo ia passando com desconcertante rapidez. À medida que os dias iam ficando mais compridos, e os castanheiros rebentavam em flores outra vez, ele percebia
que este ano de graça em breve estaria acabado. Mais e mais as cartas de Stillwater, de seu pai, de Davie, e de Claire, começavam a antecipar o seu regresso, a pedi-lo
mesmo, com crescente urgência.
Julho chegou, e do céu brônzeo um ar abafado pesava sobre a cidade. Glyn, que detestava o tempo de calor, resistiu por duas semanas, depois resolveu subitamente
ir para a Bretanha com Anna, vagabundear por lá, e pintar Calveries. Os Lamberts já tinham partido para La Baule e agora Chester ia encontrar-se com eles. Até Peyrat
falava em desertar de Paris. O aluguel do apartamento terminava em agosto e ele planejava ir ver um tio em Auvergne.
Tanto Richard como Peyrat insistiram para que Stephen os acompanhasse. Mas ele não podia aceitar - uma carta final, com um ressaibo de severidade, tinha chegado
do Reitor, na qual ele esperava que Stephen não "recuasse da palavra empenhada" nem se deixasse deter pelos "divertimentos e atrações de Paris",
Depois de a ler, Stephen atirou os seus pincéis sobre a mesa e saiu para a rua. Poderia ter ido ao Bois, onde sempre havia sombra embaixo das árvores, mas o seu
humor, deprimido e irritável, proibia-o. Em vez disso, apesar da sua fadiga e de uma sensação de estar absolutamente exausto, caminhou direto para cidade, através
de quilómetros de ruas monótonas. Lojas e cafés em todo o caminho, grandes a princípio, gradativamente menores. Quase todas vazias. Numa delas, deserta, um garçom,
com a cabeça nos braços, dormia numa mesa. Stephen passou por baixo das pontes da estrada de ferro, pelos trilhos serpenteantes do grande Terminal, atravessou canais;
finalmente, passado o octroi, encontrou-se num ermo poeirento fora das barreiras de Paris. A esse tempo, pingava de suor e continuava a repetir para si mesmo:
- Meu Deus, que vida... E papai pensa que os meus dias são uma ronda de prazer.
Quando voltou, parou na agência postal do Plaisance e escreveu um telegrama.
DESMONDE, REITORIA, STILLWATER, SUSSEX. ATRAVESSANDO BARCO CEDO AMANHÃ DEZENOVE JULHO.
STEPHEN.
CAPÍTULO X
NADA, PENSAVA STEPHEN, excede a alegria de revisitar os amados lugares familiares, meio esquecidos, agora vistos mais belos do que antes. Estendido na relva da ribanceira
do Lago Chillingham, com uma vara de pescar a seu lado, aquecido pelo sol da tarde, estava observando Davie lançar um peixinho prateado, ainda desajeitado, mas com
uma seriedade que traduzia aperfeiçoamento, entre os lírios floridos, debaixo de cuja frescura estava um lúcio escuro. O ar era claro e dourado, havia flores silvestres
por toda a parte, as árvores ostentavam a sua mais ampla e tenra folhagem; nas sarças, as rosas-de-cão, de um róseo delicado, exalavam o seu perfume, que se misturava
com o denso aroma das rainhas-dos-prados. Pombos revoavam distantes lá em cima e, da granja familiar, em Broughton Park, ele ouvia o cacarejo das aves.
Era difícil perceber que estava em casa havia duas semanas. Desde aquele momento em que, em Halborough, tinha sido recebido por Davie e Caroline - uma combinação
feita com delicada discrição - tudo corria tão maciamente que o tempo parecia voar. Sim, era bom estar de volta - se pelo menos não o tratassem como o filho pródigo
agora perdoado e que devesse ser mantido a todo o custo pela bondade. Desjejum na cama, o Times do seu pai fechado na bandeja - até ele protestar dizendo que preferia
levantar-se e tomar café com Davie lá embaixo; seus pratos prediletos no almoço e jantar, Beasley trabalhando mais horas na cozinha, Mould trazendo cestas de frutos
escolhidos; seus desejos atendidos, excursões planejadas; claramente, todos os membros da família estavam unidos num esforço diplomático para desarmá-lo.
O assunto da sua pintura não era discutido - estava morto desde a primeira noite, quando, a pedido do Reitor, mostrou as suas telas. Com uma contração do cenho,
entre uma carranca e um sorriso, ele reconheceu quão honestamente, embora de modo vão, o pai tentara aprovar o seu trabalho, perplexo diante de tudo o que via, o
olho assustado indo descansar, em particular, numa cena de banlieue que mostrava uma mulher pendurando um varal de roupa no fundo do seu quintal num dia de vento.
- Meu caro rapaz... você acha isto... belo?
- Sim. É um dos meus prediletos.
- Mas não compreendo. Por que tem que pintar uma corda de roupa?
- É a interação dos tons brilhantes, papai... contra o fundo sombrio, o vestido cinza e branco da velha...
Procurou explicar a base da sua ideia e como as cores puras eram aplicadas com uma espátula. Contudo, era claro que o Reitor continuava perplexo e não convencido.
Seguiu-se uma longa pausa. Por fim, depois de um último exame, seu olhar voltou-se dúbia e ainda inquisidoramente para ele.
- Suponho que um perito possa apreciar isto.
- Acho que pode.
A seguir, a consideração suplantou a crítica. Caroline, muito mais terna à sua maneira, tinha passado as suas roupas, costurado os botões da camisa, e a sua mãe,
estimulada no seu mundo solitário e peculiar, subitamente descobrira e declarara que usaria um novelo de lã com o qual, desde que ele estava em Oxford, pensava tricotar-lhe
umas meias.
Tinha sido, na maior parte, um grupo familiar restrito - para alívio de Stephen, o General Desmonde e sua mulher estavam na Escócia com Geoffrey, caçando - mas nesta
tarde, sabendo que ele e Davie tinham que estar em Chillingham, Lady Broughton convidara-os para o chá.
Com um olhar para o sol, agora obliquando na crista dos Downs, Stephen achou que era melhor saírem logo. Levantou-se, caminhou ao longo da ribanceira e ficou atrás
do irmão, que, embora desse sinais de cansaço, ainda lançava a sua linha, perseverantemente, na água indiferente. A pesca, até agora, tinha sido fraca - três percas
amarelas tão pequenas que não satisfaziam o gato da Reitoria. Ciente do apaixonado ardor que Davie tinha por aquilo, e aliás por qualquer esporte ao ar livre - um
sentimento tão contrário à sua própria indiferença, tão comoventemente incoerente também, dadas as condições delicadas do rapaz e da sua saúde, que estava longe
de ser robusta - ele desejava que uma grande e digna truta se enganchasse no anzol. Podia muito bem ver a alegria e triunfo que essa captura causaria.
Mas embora esperasse pacientemente, com uma palavra ocasional de animação, não houve esse golpe de sorte. Davie, refletiu com momentânea tristeza, nunca tinha sorte.
E enquanto o seu jovem irmão enrolava a linha, passou-lhe um braço nos ombros e, louvando o seu progresso em lançar a vara, condenando os elementos desfavoráveis
do calor e da luz, finalmente, aumentando o valor dos três peixinhos agora curvados e secos na cesta, trouxe-o de volta para a alegria.
- Acho que estou melhor - disse Davie esperançoso. - Esforcei-me muitíssimo. E, como você diz, essas percas não são más. Acha que dão para cozinhar?
- Perfeitamente.
- De qualquer modo... são muito pequenas.
- Quanto menor, melhor - disse Stephen.
Ao saírem pelo prado, evitando o longo caminho em volta do Foxcross Corner e, uma vez que estava tão seco, atravessando os carriços mais baixos, Davie tagarelava
com a viva animação que era um traço do seu caráter. Tinha crescido muito ultimamente, parecia alto para 14 anos, e os seus membros tinham a descoordenação da idade
ingrata, fazendo parecer que caminhava aos arrancos. Contudo, a expressão do seu rosto delicado era menos febril do que antes, e os seus ataques, Stephen soubera
de Caroline, eram menos fortes, revelando uma firme mudança na frequência. Ouvindo com simpatia, observando o jogo de luzes sobre aquelas feições bem talhadas, Stephen
estava consciente de uma profunda onda de afeição por seu irmão. Tinham estado juntos quase continuamente durante as últimas duas semanas.
Saindo dos bosques, pularam a grade de ferro que cercava o parque, onde o gado pastava placidamente, e dali a pouco chegaram à avenida que, contornando o jardim
formal que margeava o relvado, acabou levando-os à própria mansão, uma grande edificação vitoriana de arenito vermelho maciço, corrompida por torres e torreões,
que Lady Broughton pretendia ser a casa mais alta de Sussex.
Foi ela quem os recebeu, reclinada numa chaise-longue junto às janelas francesas abertas ao sul da sala de estar, pedindo-lhes que desculpassem a sua aparente indolência
- seu médico andava ridiculamente severo com ela pondo-os imediatamente à vontade com o tranquilo calor da sua acolhida.
- Bem-vindo, Stephen. - Segurando-lhe a mão, olhou-o de alto a baixo.
- Cheio de conhecimento de coisas lindas. Sinto que não tenha uma barba. Acho que Paris fez-lhe bem. Pode beijar-me o pulso como um francês?
- Não estive estudando essa arte.
- Que pena! - sorriu ela. - Não é, Davie?
- Só será uma pena se meu irmão voltar para lá, Lady Broughton.
- Bem dito. Você vê como estamos contentes em tê-lo de volta em casa outra vez, Stephen. Como prova disso, eu lhes darei pães de milho de Sussex no chá. Lembra-se
como gostava deles quando tinha a idade de Davie?
- Lembro-me, e muito! Ainda gosto. E Davie também.
Lady Broughton sorriu, e continuou a caçoar amavelmente. Contudo, ouvindo-a calado, Stephen notava a mudança por que ela passara. Sempre gostara daquela mulher,
baixa, de cores vivas, sem qualquer aparência de distinção, cuja boa e enérgica natureza e sólido bom senso transpareciam em todas as suas ações. E agora causava-lhe
mágoa aquela atitude passiva, aquela respiração rápida, o leve tom purpurino em suas faces sempre vívidas.
- Claire deve chegar logo - disse ela. - Atrevo-me a dizer que ela fará a sua entrada com uma cesta de rosas, como algo pintado por Gainsborough.
Quase como dissera a mãe, Claire entrou, não do jardim, nem com flores, de cabeça descoberta, não parecendo um Gainsborough mas antes um
Burne-Jones, no seu vestido de linho de corte quadrado no pescoço, de uma cor de burel que combinava com os seus cabelos vermelho-dourados. Embora tivesse sem dúvida
esquecido, Stephen disse imediatamente que ela condizia com aquela rica sombra pré-rafaelita.
A sua postura era admirável. Ninguém teria adivinhado quão rápido batia o seu coração, ou há quanto tempo ela esperava por este momento.
- Claire - fez Stephen dirigindo-se para ela.
- É tão bom ver você - disse ela. - E você, Davie.
Esperava que a ligeira cor que sentia subir-lhe às faces passasse despercebida. Vê-lo outra vez, sentir o contato dos seus dedos punham a sua compostura à prova
mais do que ela poderia esperar.
Nesse momento, foi servido o chá, não um repasto frugal de biscoitos e pão fino e manteiga, mas uma regular fartura colegial de ovos cozidos e pão de minuto, sanduíches
e pãezinhos de milho, com morangos e nata batida à Sussex, tudo disposto sobre uma mesa de pau-cetim com rodas.
- Achamos que você estaria com fome depois da pescaria - disse Claire a Davie.
- E estamos - concordou ele com entusiasmo. - Nosso lanche não foi grande coisa.
Segurou a xícara que Claire enchera e, polidamente, embora com certa ternura, levou-a a Lady Broughton antes de sentar-se.
- Obrigada, Davie. - Rompendo o ligeiro constrangimento, comentou, na sua maneira arreliante: - Claire, não acha que Stephen está com o ar de um parisiense?
- Está mais magro, talvez. - Que estúpida resposta! Mas ele estava em casa - e a inquietante doçura desse pensamento banhava de luz os seus olhos.
- Não acho que a comida francesa seja muito nutritiva - arriscou Davie seriamente. - Eu pelo menos não quero caracóis nem pernas de rã, ou coisas assim.
Todos riram-se, e depois que eram um alegre bando, Davie, como para provar a virtude da dieta anglo-saxã, empenhou-se numa viva discussão com Claire sobre os métodos
de apanhar lúcios, no fim da qual ambos concordaram que num dia como aquele uma isca artificial seria muito melhor que um barrigudinho prateado.
- Acho que há algumas dessas iscas no salão de bilhar - disse Claire, e após um momento de reflexão ajuntou: - Não gostaria de tê-las?
- Ora, ora... - murmurou Davie. - Mas não são para você? Quero dizer... está falando sério?
- Estou sim. Ninguém as usa. Venha comigo e daremos uma olhada. Perguntando se poderia ser desculpado, Davie levantou-se com alacridade e abriu a porta para Claire.
Saíram juntos.
Logo depois, Lady Broughton olhou meditativamente para Stephen, de quem ela sinceramente sempre gostara e por quem, na verdade, tinha admiração. O fato de ele ter
deixado a Igreja absolutamente não a perturbava - com uma natureza tão sensível, apaixonada e tímida, ela não o considerava talhado para ser um pastor rural. Nem
as suas recentes aventuras artísticas lhe causaram grande inquietação. Encarava-as apenas como um capricho passageiro, uma tendência temporária herdada sem dúvida
das excentricidades do lado materno - estava bem lembrada de como, quando era criança, ficara petrificada pelas coloridas extravagâncias do digno pai da Sra. Desmonde
- e que de modo algum diminuíam a finura essencial do caráter de Stephen. Contudo, era menos esta genuína atenção do que o seu conhecimento dos sentimentos de Claire
que a fazia desejar dizer alguma coisa compatível com a boa educação que pudesse trazer o assunto à baila. Naqueles últimos meses, tinha observado com simpatia a
indiferença e desatenção da sua filha, e notado também, não sem desconfiança, os seus esforços ocasionais para romper aquela disposição pensativa e achar distração
em atividades que lhe eram inteiramente alheias. Recentemente, Geoffrey Desmonde tinha sido um visitante persistente, e, quando menos pela maneira com que arrastava
as suas frases, Lady Broughtpn o detestava. Considerava-o estereotipado e banal, afetado, presumido e mimado; e tendo sido casada com um homem cuja pesada obtusidade
tinha feito da sua vida, por mais de 20 anos, uma penitência, não desejava semelhante destino para Claire.
Foi sem dúvida essa ordem de ideias que a levou a observar:
- Não tinha visto a sua prima desde que voltou?
- Não. Todo o pessoal do Simla parece estar na Escócia.
- Geoffrey tem dado muitos tiros por aqui.
- Ele gosta disso. Tem caçado?
- Claire e ele têm corrido bastante pelos Downs. Andam Juntos muitas vezes. Acho que a levou a Brooklands outro dia... para as corridas de automóveis.
- Não sabia que Claire se interessava por tais coisas.
- Não acho que ela se interesse... mas não fica bem recusar - disse Lady Broughton sorrindo.
Na pausa que se seguiu, inclinou-se ligeiramente para ele e continuou num tom que, embora confidencial, manteve deliberadamente casual.
- Preocupo-me um pouco com ela, Stephen. É uma pessoa tão quieta e introspectiva, se quiser - amiga, mas que não sabe fazer amigos. Para estar contente, ela precisa
do tipo certo de companhia - ou vou mais adiante e digo - o tipo certo de marido? Não preciso lhe dizer que não estarei aqui para sempre. Muito em breve, Claire
pode ficar só. E embora ela ame este lugar, são muitas as responsabilidades - que pode achar difícil assumir...
Não dissera nada de definido, nada que pudesse de qualquer modo embaraçá-lo, contudo não havia como se enganar quanto à sua intenção. Na verdade, antes que ele pudesse
falar, ela prosseguiu, colocando os dedos de veias ligeiramente inchadas no seu ombro.
- Acho que foi sensato passar aquela temporada em Paris. E o seu excelentíssimo pai foi sensato em deixá-lo ir. Nos meus dias, os jovens sempre faziam a grande excursão.
Isso não apenas era considerado uma necessidade virtual, mas tirava muitas coisas do seu sistema. Eles voltavam, estabeleciam-se como bons proprietários rurais e
constituíam uma família. Isso é precisamente o que você deve fazer, Stephen.
- Mas supondo... - Ele evitava o seu olhar, com uma ligeira cor nas faces. - Supondo que sinta que devo ir ao estrangeiro outra vez?
-Para quê?
- Para continuar a estudar... e trabalhar.
- Em quê?
- Pintura.
Ela abanou a cabeça e deu-lhe uma indulgente palmadinha na mão.
- Meu caro rapaz, quando eu era jovem e romântica, pensava que poderia escrever poesia, e escrevi, para minha vergonha. Todavia, livrei-me disso. E assim será com
você.
O argumento parecia conclusivo, e ela acomodou-se na sua almofada. Antes que Stephen pudesse responder, Davie entrou na sala com Claire, trazendo uma caixa de metal
laqueado.
- Veja, Stephen, o que Claire me deu. Todas estas belas iscas. Até giradores e bóias. E esta caixa impermeável.
- Não se esqueça - sorriu Claire - que eu espero muitos peixes.
- Agora vai ser fácil. Eu gostaria que a escola não reabrisse tão cedo.
- O inverno não é a melhor época para o lúcio?
- É, sim. E eu estarei à espera dos feriados de Natal.
- Bem, lembre-se de vir tomar chá sempre que estivermos em Chillingham.
Stephen levantou-se, preparando-se para se despedir, tocado pela bondade de Claire com Davie, por sua quieta amabilidade, aparente, mesmo com o seu ar reservado,
em cada palavra ou gesto. Os últimos lampejos da tarde douravam o comprido salão com suas colunas, não belo, mas acolhedor, encantador, com o sentimento de uma velha
casa de campo. Além das janelas, os escuros relvados mas ainda visíveis, sombreados pelo grande cedro, os bosques de faias com os telhados vermelhos das choupanas,
lá no alto, e mais longe, ondeando como o mar, os verdes Downs.
A caminho de casa, Davie achou o seu irmão estranhamente silencioso. Depois de relancear os olhos para ele uma ou duas vezes, disse:
- É formidável no Court. Você não deseja ir lá mais vezes?
Mas Stephen não respondeu.
CAPÍTULO XI
NA TERÇA-FEIRA SEGUINTE, o almoço na Reitoria estava quase terminado. Tinha sido uma refeição um tanto opressiva para Davie, já formalmente vestido, que devia voltar
à escola nessa tarde. Contudo, olhando em torno, Stephen sentia uma tensão maior do que a exigida pela ocasião, um ar geral de conspiração e expectativa. Sentia
também uma intensificação daquela intangível coerção, que, disfarçada em uma nuvem de afeição, vinha envolvendo-o de quando em quando durante as últimas duas semanas.
O Reitor, que já tinha consultado o relógio três vezes nos últimos cinco minutos, tornou a fazê-lo, terminou o seu café e, sem fitar ninguém em particular, disse:
- Acontece que o Sr. Munsey Peters está nas vizinhanças. Infelizmente não pôde vir almoçar. Mas eu o convidei a vir pouco depois.
- Que interessante, papai - murmurou Caroline, com os olhos no prato.
- Está se referindo - perguntou a Sra. Desmonde no tom de quem fora instruída a perguntar - a Munsey Peters?
- Isso mesmo. Conhece o Sr. Peters, Stephen? - Inatento, cortando uma careta numa casca de laranja para Davie, Stephen levantou os olhos, certo de que seu pai se
dirigira a ele.
- Sim, é membro da Academia Real.
Houve uma pausa. Contido, com a expressão subitamente fixa, Stephen esperava que Bertram caísse na armadilha.
- Achamos que ele podia ter vontade de olhar os seus quadros.
Houve outro silêncio, que Caroline se apressou em romper, com um ar de inteligência.
- Não é ótimo, Stephen? Agora você pode se valer do conselho dele.
- Acredito - disse a Sra. Desmonde - se a memória não me falha, que há uma paisagem de Peters no Salão Pump, em Cheltenham. Está pendurada sobre a Fonte de Chalybeate.
Uma vista das colinas de Malvern com uma ovelha. Cheia de vida.
- Ele está na primeira fila - concordou Bertram.
- Não há também um livro, papai - interpôs Caroline - algo como De Rafael a Reynolds, ou coisa parecida?
- Ele escreveu muitos livros sobre arte. O mais conhecido intitula-se A Arte pela Arte.
- Devo procurá-lo na biblioteca - murmurou Caroline.
- Você não se importa se mostrarmos a ele as suas pinturas? - O Reitor voltou-se para o filho com uma nova firmeza. - Desde que se apresentou a oportunidade, seria
sensato pedir-lhe a opinião.
Stephen empalidecera. Não respondeu por um momento.
- Mostre-lhe qualquer coisa que quiser. Sua opinião não tem nenhum valor.
- O quê? Munsey Peters é um académico famoso. Exibe regularmente há 15 anos.
- Que significa isso? Não posso imaginar nada mais mortal, mais vulgar e idiota do que as suas pinturas.
Bruscamente Stephen rompeu o seu silêncio, sentindo que o julgariam invejoso e com medo. Então, ao voltar-se, ouviu um som de rodas e, pela janela, viu um cabriolé
de aluguel chegando à porta da frente. Um homem baixo, tornado mais baixo por um vasto sombrero preto e uma capa preta do Inverness, desceu rápido do cabriolé, olhou
em volta e tocou a sineta. Bertram levantou-se e, acompanhado pela mulher e Caroline, foi a saguão. Stephen permaneceu sentado à mesa, vendo muito bem que tudo aquilo
fora arranjado - ele tinha vindo especialmente de Londres. A julgar por suas roupas, Peters não estava absolutamente visitando o campo - tinha vindo expressamente
de Londres, mas fora comissionado, sem dúvida por tal ou qual preço - vinha especialmente de Londres como um cirurgião chamado à cabeceira de uma pessoa gravemente
enferma, cujo diagnóstico era uma questão de vida ou morte.
Um toque tranquilizador no ombro acordou-o. Era Davie.
- Não é melhor irmos agora? Não se aborreça, Stephen, aposto que você vai sair por cima.
Na sala de estar, construída originalmente como um parlatório retangular e posteriormente afeada por janelas de sacadas vitorianas abertas ao lado oeste, Munsey
Peters estava sentado no sofá, gorducho, de cara lisa, solicitamente oficioso, já no centro de uma plateia inteligente.
Quando Stephen entrou, girou e estendeu-lhe uma mão amável.
- Então este é o seu jovem cavalheiro? Prazer em conhecê-lo, senhor. Stephen apertou-lhe a mão, dizendo a si mesmo, apesar do conflito de emoções no seu peito, que
não devia ter ódio àquele visitante indesejável, que sem dúvida era uma pessoa honesta e estimável, agindo de boa fé. Contudo, conhecendo o trabalho de Peters, que
sempre recebia destaque na imprensa e
muitas vezes era reproduzido nos melhores semanários, aquelas suas paisagens lanudas e interiores betuminosos, tresandando a sentimentalismo e cheios daquele claro-escuro
que Glyn tinha profanamente descrito como siena queimada e merde, Stephen não podia reprimir uma aversão instintiva, aumentada e não diminuída por aquele homenzinho
de aparência presumida e maneiras seguras, que, embora um tanto menos que assertivo, estava odiosamente satisfeito consigo mesmo. Recusara o almoço, tendo "satisfeito
o homem interior"
- suas próprias palavras - no vagão-restaurante que sempre acompanhava o expresso do meio-dia, mas, diante da insistência, consentiu em tomar café. E, balançando
a xícara nos joelhos, de pernas cruzadas, sapatos com polainas, dirigiu a Stephen uma série de perguntas agradáveis, exatamente como faria um notável académico para
deixar um neófito nervoso.
- Então esteve em Parri, hein?
- Sim. Pouco menos de um ano.
- Trabalhando duramente, espero, na cidade alegre. - Isto, com um olhar de humor velado para os outros; então, como Stephen não respondesse:
- Com quem estudou?
- No começo... com Dupret.
- Ah! E que pensa ele do amigo?
- - Eu realmente não sei. Deixei-o depois de poucas semanas.
- Hum! Hum! Isso foi um engano. - E, num tom intrigado: - Quer dizer que ficou a maior parte do tempo por sua própria conta? Não pode ter aproveitado muito dessa
maneira.
- Ao menos aprendi o quanto a força de vontade, a disciplina e a intensa aplicação são necessárias para fazer um bom artista.
- Ora! Isso é muito fino. Mas, e o aprendizado?
A frieza da voz de Stephen era provocante.
- Há certos elementos essenciais. Já os acentuei muitas vezes no meu livro. Ouso dizer que ele fez parte do seu estudo.
- Receio que não. Estive estudando no Louvre.
- Oh, copiando - exclamou Peters contrariado. - Isso não é bom. Um artista procura ser original acima de tudo.
- Contudo, todos os grandes artistas influenciaram uns aos outros - argumentou Stephen diretamente. - Rafael provém de Perugino, El Greco de Tintoretto, Manet de
Franz Hals. Todos os pós-impressionistas se ajudaram uns aos outros. A lista seria interminável. Porque, se me perdoa, vemos no seu próprio trabalho Leighton e Poynter.
A menção desses dois artistas, tão famosos na época vitoriana e agora esquecidos, trouxe ao rosto de Munsey Peters uma expressão confusa, como se mal pudesse saber
se a intenção era de louvor ou insulto.
A Sra. Desmonde, sempre diplomática, rompeu o silêncio.
- Deixe-me oferecer-lhe mais café.
- Não, obrigado - e devolveu-lhe a xícara. - Na verdade, tenho pressa, deixei o meu veículo à espera. Podemos entrar no assunto sério do dia?
- Com muito gosto. - Bertram, um apreensivo observador daquele choque de temperamentos, fez um sinal a Davie, que deixou a sala num pulo. Quase imediatamente voltou,
trazendo o primeiro quadro, uma vista do Sena em Passy, que colocou sobre uma cadeira de alto espaldar posta adrede em boa luz e diante do sofá.
Impondo silêncio com um dedo nos lábios, Munsey Peters ajustou o pincenê. Estudou a pintura intensa e longamente, inclinou a cabeça em vários ângulos; então, dramaticamente
fez um gesto para Davie, que a retirou, colocou-a junto à janela e trouxe a seguinte. Para Stephen, parado lá atrás com uma expressão insensível e um latejar doloroso
no coração, era uma experiência martirizante, uma crua exposição da sua delicada sensibilidade.
Olhou em torno para o círculo doméstico - o pai, sentado, muito teso, com as pontas dos dedos fortemente unidas, as pernas cruzadas, um pé balançando em nervosa
expectativa; Caroline, na banqueta junto ao sofá, com uma ruga de ansiedade na testa, olhando para Peters, ora para o chão; sua mãe, sonhadoramente confortável numa
poltrona, de todo indiferente; e Davie, no colarinho branco engomado e roupa cinza-escura do colégio, o cabelo penteado para trás, olhos brilhantes, sem compreender
bem a questão, e contudo cheio de confiança em que seu irmão seria justificado.
Acabou-se afinal, a última pintura fora mostrada.
- Então? - exclamou Bertram.
Munsey Peters não respondeu imediatamente, mas, erguendo-se, fez uma nova inspeção nos quadros contra o peitoril oval da janela da sacada, como para afastar qualquer
impressão de que o seu julgamento era apressado ou inconsiderado. Uma tela em particular, a mulher com as suas roupas brancas, parecia perturbá-lo de modo especial;
vez por outra, quase furtivamente, os seus olhos voltavam àqueles ousados contrastes e cores vivas. Por fim, deixou cair o pincenê, seguro por uma fita de seda lavada,
e tomou posição no tapete da lareira.
- Que deseja que eu lhe diga?
- Meu filho tem... - Bertram respirou fundo - alguma chance de se tornar um pintor... posso dizer... de primeira categoria?
- Nenhuma.
Fez-se um silêncio mortal. Impulsivamente, Caroline lançou um olhar de simpatia para o irmão. O Reitor curvou a cabeça. Stephen, com a sombra de um sorriso, continuou
a olhar diretamente para Munsey Peters.
- Naturalmente - continuou ele - eu poderia ser polido. Mas entendi que o senhor queria a verdade. E nessas telas, que têm talvez um certo brio
rude, ignoram completamente as grandes tradições da pintura, tradições de propriedade e restrição, só posso encontrar... - encolheu os ombros - matéria para condolência
e pesar.
- Então - disse Bertram lentamente, como se estivesse determinado a se convencer - se forem, digamos, submetidas à Academia, acha que seriam recusadas?
- Meu caro senhor, como membro da comissão de exposição, não sei, não estou seguro. Acredite-me, dói-me extinguir as suas esperanças. Se o seu filho quiser continuar
isto como um passatempo... um hobby... isso é com ele. Mas profissionalmente... ah, meu caro senhor, a pintura é, para todos nós que vivemos dela, uma arte cruel.
Não há lugar para fracassos.
Bertram lançou um olhar cheio de compaixão para o filho, como esperando que ele protestasse, ao menos oferecesse alguma defesa do seu trabalho. Mas Stephen, com
a mesma sombra de um sorriso, e aquele ar de orgulhosa indiferença, mantinha-se calado.
- E agora, se me desculparem - disse Peters, curvando-se.
O Reitor pôs-se de pé.
- Estamos muito agradecidos ao senhor... mesmo que o seu veredicto tenha sido desfavorável.
Munsey Peters curvou-se novamente e, ao deixar a sala com modos graves e polidos, aceitou prestemente o envelope que Bertram, após murmurar umas palavras de escusas,
escorregou-lhe na mão - uma transação efetuada com tamanha destreza que ninguém pareceu notá-la, a não ser Stephen. Dali a pouco se ouviu o rangido do cabriolé.
O professor tinha partido.
Como se para poupar os outros, mais do que a si mesmo, do embaraço, Stephen foi para fora. Ali, andando de cá para lá, de cabeça descoberta, estava o Reitor. Tomou
imediatamente o braço do filho, com um aperto de simpatia, e, após atravessar as lajes, observou várias vezes:
- Tenho que ir à sacristia. Quer caminhar comigo?
Ao subirem juntos a alameda, Bertram continuou, sombriamente, sem um indício de autojustificação.
- Stephen, essa foi uma experiência dolorosa para você, e, em grau nSo menor, para todos nós. Mas era imperativo para mim saber a verdade. Espero que não me reprove.
- Claro que não. - A voz calma do filho causou a Bertram uma viva surpresa, seguida por um sentimento de oposição.
- Você aceitou a coisa muito bem, Stephen - como um verdadeiro Desmonde. Eu temia que pudesse ficar encolerizado comigo por lhe ter imposto esse teste sem aviso.
Mas se eu lhe tivesse dito de antemão, você poderia ter recusado...
- Sim, acho que recusaria.
- Você percebe que não foi questão de influência indevida, que a opinião de Munsey Peters foi inteiramente dele?
- Estou certo disso. Acho até que o nosso pequeno argumento no começo eriçou ligeiramente a sua plumagem. Mas não há sombra de dúvida - ele detestou a minha pintura
como veneno.
- Ah! - murmurou o Reitor condoído. - Pobre rapaz.
Chegaram à igreja; detendo-se na cancela, Bertram pousou a mão na efígie do cruzado, um gesto costumeiro de apoio, e encarou o filho.
- Pelo menos o caminho agora está claro... e não há nada contra o seu regresso para ser ordenado. Não quero pressioná-lo. Há a toga, os serviços militares. Contudo
- olhou em torno - o seu lugar é aqui, Stephen.
Uma pausa quase imperceptível.
- Acho que não compreende. Não vou abandonar a pintura.
- Mas que diabo quer dizer?
- Simplesmente que tomei uma resolução, irrevogável, que vou dedicar a minha vida inteiramente à arte.
- Mas você acaba de ter uma opinião... com mil diabos... de um perito.
- Essa nulidade idiota... roída por um rancor secreto! O fato de ele ter difamado o meu trabalho foi o maior cumprimento que podia me fazer.
- Você está louco? - Cólera e desalento levaram o sangue à testa de Bertram. - Ele é um dos melhores pintores da Inglaterra e pode vir a ser o próximo presidente
da Academia.
- O senhor não compreende, papai. - A despeito da tensão das suas feições, Stephen quase sorriu. - Peters não pinta coisa nenhuma. O seu trabalho é convencional,
sentimental, e sem um traço de originalidade. O sucesso dele é o de uma mediocridade intrometida. Ora, até as tapeações do velho Dupret, com a sua peinture léchée,
são mais toleráveis. O senhor não sentiu nojo dos seus chavões, sua afetação, suas mãos gordinhas? Ele marcha com o rebanho. O verdadeiro artista só pode cumprir
o seu destino sozinho.
Durante esse discurso, que lhe pareceu bombástico, o rosto de Bertram foi gradualmente endurecendo. Empedernia-se contra a dor que sentia no peito, e um imenso desejo
de tomar o filho nos braços.
- Para qualquer pessoa normal, a evidência é clara. Você deve aceitá-la.
- Não.
- Insisto.
- Tenho o direito de viver a minha própria vida.
- Não, se está disposto a arruiná-la.
Nenhum deles levantou a voz. O Reitor estava muito pálido, mas os seus olhos nunca se afastaram do rosto do filho. Por baixo de sua agitação havia uma firmeza que
Stephen nunca tinha visto.
- Por simples justiça, você não me deve alguma retribuição por tudo que tenho feito por você? Sem dúvida, você afeta desprezar uma coisa tão sórdida como o dinheiro.
Contudo, gastei na sua educação - a mais primorosa que qualquer filho podia desejar - um capital que eu mal podia despender. Estamos muito menos bem do que estávamos,
e é com dificuldade que mantenho Stillwater nos padrões a que estamos acostumados. Sempre esperei que esta medida não fosse necessária. No entanto, para seu próprio
bem, devo repô-lo no seu juízo. Sua pensão está suspensa. E você verá que é impossível continuar sem ela.
Um compasso de silêncio latejou na pequena igreja. Stephen baixou os olhos, deteve-os por um longo momento na efígie de pedra do seu ancestral que, à meia-luz, parecia
sorrir-lhe cinicamente. Olhando para a espada, os grandes guantes de malha, uma frase das leituras da sua infância lhe veio à memória: mão de ferro em luva de veludo.
E suspirou:
- Bem, papai, isso parece resolver a questão.
Bertram apanhou o seu diário na sacristia - a mão lhe tremia tanto que mal podia segurar o grosso volume, sendo obrigado a apertá-lo Contra o flanco. Deixaram a
igreja em silêncio.
Pelo resto da tarde, Stephen foi um modelo de complacência, animando os outros com a sua vivacidade e bom humor. Às seis horas, insistiu em ir com Davie à estação
e embarcou-o no trem, despachando-o com alegre afeição. Depois, voltando, com uma expressão diferente, foi à fila de veículos, onde um motorista estava com a sua
bagagem, secretamente introduzida na de Davie. No horário colado na frente do guichê, viu que um trem costeiro partia dentro de uma hora. Comprou uma passagem e
sentou-se à espera dele.
CONTINUA
A TARDE MUDARA EM NOITE, e todo ímpeto e atividade dos Downs jaziam quedos, banhados em luz pérola. A relva seca, prateada como geada, soltava um vapor esgarçado que se prendia nas sebes como teias de aranha. As poças de orvalho, pires de leite desnatado, não refletiam a imagem de uma lua amarelenta que mirava, redonda e baixa, como o olho de um grande gato, agachado na colina, pronto para saltar.
Nessa quietude brilhante, de uma igreja normanda de pedra tão pequena que parecia perdida numa dobra do descampado - apesar dos nítidos contornos das suas linhas longas e breves, da sua torre achaparrada, de suas chagosas paredes inclinadas - inverossímil como um sonho, emergiu uma sombra, comprida e escura, à qual se seguiram um baque de carvalho e o tinido de um pesado ferrolho, a figura de um homem, menos comprido talvez, mas igualmente sombrio. Muito apropriadamente, um clérigo, Bertram
Desmonde, Reitor de Stillwater.
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De cabeça nua, mas com uma capa sobre os ombros, enfiou pela confusão de lápides cobertas de liquens, passou os dois grandes teixos retorcidos, dos quais o mais
novo tinha sem dúvida fornecido arcos para os arqueiros de Sussex pelo menos durante cinco séculos, e depois atravessou a cancela para a azinhaga.
Aqui, apanhado pela brancura da noite, por um ímpeto da sua secreta alegria, fez uma pausa e, por um longo instante, aspirou a beleza da sua gleba, uns bons 100
acres, indo por um lado até os altos do bosque de faias de Ditchley, e pelo outro até a coutada de tojo arenoso que beirava a estrada para Stillwater. Na distância,
o Anel de Chanctonbury era visível contra o céu oriental, e mais abaixo, por entre árvores, o absurdo mas amigo torreão de Broughton Court. Para oeste, a planura
continuava, cortada por uma caleira
- ferida incruenta - por túmulos tidos como romanos, mas provavelmente restos de antigos fornos de ladrilhos. Vinham então as choças dos trabalhadores, seis, em
fila, como cogumelos, e frouxamente, acima da orla da estrada, o bruxuleio da aldeia. Abaixo dele, brilhante de luzes, a Reitoria.
Solidamente georgiana, com janelas paládicas, um espaçoso pórtico sustentado por colunas acanaladas e - delicioso pensamento! - uma balaustrada na cimalha, era uma
verdadeira casa de campo, construída pelo seu bisavô, Canon Hilary Desmonde, em 1780, em pedra branca dali mesmo - a pedreira, bem perto, estava agora felizmente
coberta pela vegetação. Traços de um Tudor primitivo ainda persistiam no celeiro e estábulos de tijolos, nos anexos da fazenda, no delicado muro de sílex e nos seixos
redondos que cercavam a ampla horta. Envolvida por relvados macios, orlados de canteiros de tulipas e prímulas, o jardim de roseiras, ainda não desperto, formando
um hexágono em torno do relógio de sol, cordões de rosas Ribston e Beauty of the Bath, com as suas soprepelizes de flores, como chantres, ao longo do prado do sul,
uma gigantesca azinheira sombreando a trilha ensaibrada, essa casa, esse pequeno abrigo de casca dourada, enraizado e imutável, seu lar, lar dos Desmondes por tantos
anos, especialmente esta noite aquecia de orgulho o coração do Reitor.
Quase certamente eles tinham vindo com o Conquistador. Um deles, o Sieur d'Esmonde, que estivera nas Cruzadas, jazia sob a sua efígie de mármore, com seu curvo nariz
quebrado, ai!, por algum turista vandálico, na pequena igreja de Downland. Se o nome tinha sido um tanto alterado pelo uso rústico - não se poderia aplicar a palavra
corrompido - ele não os identificava de modo mais completo com a boa terra de Sussex? Eles tinham prestado bons serviços à sua pátria nas três profissões abertas
para um cavalheiro: na Igreja particularmente, mas também na Justiça e no Exército. Seu irmão Hubert, após um longo e útil trabalho nas fronteiras do Afeganistão,
estava agora parcialmente aposentado em Simla Lodge, a cerca de 25 quilómetros, com o posto de general, e ainda em contato com o Ministério da Guerra, devotando
o seu lazer à cultura científica da pêra Jargonelle. Somente uma ocasião, até onde alcançava a memória, a família descera ao comércio: quando, no início do reinado
de Victoria, um Joseph Desmonde, tio-avô do Reitor, ocupara-se com a manufatura de objetos eclesiásticos. Mas como o negócio tinha certo sabor de discrição, trazendo-lhe
ainda uma considerável fortuna, o lapso, embora lamentável, era menos difícil de perdoar.
- Uma bela noite para o senhor, Reverendo.
Nas profundezas do seu devaneio, o Reitor deixara de notar a figura troncuda do velho Mould, seu jardineiro-chefe, que era também o seu sacristão, manquejando trilha
acima para fechar a igreja.
- Boa noite, Mould. Já a fechei, você pode voltar comigo. - Fez uma www.pausa, não revelando o impulso que, contra o seu hábito, o tinha levado à igreja; contudo,
estimulado pela alegria, acrescentou: - Stephen volta para casa esta noite, como sabe.
- E como é que eu ia esquecer isso, senhor? Uma notícia muito boa mesmo. Espero que ele tenha tempo de ir caçar coelhos comigo. E acrescentou mais gravemente: -
Nós logo o teremos no púlpito, quem sabe.
- Ele ainda tem algum caminho para andar, Mould. - Ao descerem a trilha juntos, Bertram sorria. - Embora eu me atreva a dizer que vocês gostariam mais de ouvir um
jovem recém-saído de Oxford do que um velho caturra como eu.
- Não, meu Pastor, não deve dizer uma coisa dessas. Não servi os Desmondes durante 50 anos para agora ignorar a sua qualidade. E pode pregar quem quiser pregar,
que não há ninguém melhor no país.
Bastava apenas essa tocante prova de lealdade quase feudal para selar a disposição do Reitor. O denso perfume das prímulas era, de certo modo, mais doce, os agudos
balidos noturnos dos cordeiros, atrás da cerca de varas, tão enternecedores que quase causavam um aperto no coração. Ah, esta Inglaterra, pensou ele: e aqui, no
seu próprio coração, preciosa como uma jóia, navegando ao luar como um navio de almas, esta pequena paróquia que seria de Stephen também, inviolada, intemporal e
imutável como a eternidade.
- Vamos precisar de alguém para a bagagem. Mande Albert ficar por perto.
- Farei isso, senhor... se ele estiver em casa. Estou tendo dificuldades com esse meu rapaz. Ele não gosta de trabalho. Mas eu dobro ele a pau... prometo.
- com o tempo, ele será um bom rapaz, Mould. Não seja duro com ele - disse Bertram, num tom neutro.
Despediu o velho diante da sua casa, baixa, de paredes curvas na frente, e momentos depois estava na larga entrada do saguão da Reitoria, entregando a capa à sua
filha Caroline, que, inevitavelmente, ali estava para recebê-lo.
- Ainda não chegaram?
Esfregou as mãos: o saguão tinha o defeito do seu teto alto e soalho de mosaico - dava uma sensação de frio da noite, mal atenuado pelo rumor dos tubos de calefação.
- Não, papai. Mas não devem demorar. Claire foi à estação no seu automóvel novo.
- Devemos comprar uma dessas engenhocas. - O reflexo de um capricho aliviou momentaneamente a austeridade das feições delgadas de Bertram e das faces um tanto encovadas.
- Será útil para visitar a paróquia.
- O senhor não está falando sério, papai. - A sua mentalidade prática, despida de humor, tomava-o literalmente. - Sabe o quanto detesta cheiros e poeira. E eu não
o sirvo bastante bem com o tílburi?
Sem dúvida, a iminência do regresso de Stephen a deixava nervosa. Assim, falara com mais vigor do que pretendia, com o seu rosto liso e sério brilhando de sentimento.
E em verdade, antes que ela o pudesse lamentar, a expressão ausente do pai, que, com o ouvido atento, esperava o ruído das rodas na alameda, puniu-a severamente.
Ela baixou os olhos, e seu corpo pesado, sustentado por duas robustas panturrilhas, diminuiu um pouco. Quando é que ele ia apreciar a profundeza ilimitada da sua
devoção, compreender que o seu único desejo era servi-lo? desde o exato momento em que começava o seu dia, depois de vestir-se às pressas, sem o benefício de um
espelho, ombreava com a carga da sua casa, conferenciava com a cozinheira sobre como ele seria alimentado, arranjava as flores, inspecionava o jardim e a granja,
tratava da sua correspondência, atendia visitantes importunos, via paroquianos doentes, desencorajava arqueólogos, juntamente com as carruagens que vinham aos domingos
e feriados cheias de gente, pedindo em coro para ver a "tumba", e ainda achava tempo para cuidar do seu linho e tricotar as suas meias de lã. E, para piorar as coisas,
estava resfriada e a toda hora tinha que assoar o nariz num lenço ensopado.
- Sua mãe vem? - Fez a pergunta com cautela.
- Acho que não. Esta tarde molhei a sua testa com água-de-colônia. Mas ela ainda se sente indisposta.
- Então seremos quatro para o jantar.
- Três. Claire telefonou para dizer que sente muito, muito, mas não poderá ficar.
- Que pena. Mas... haverá outros dias.
Seu tom de voz exprimia tristeza; contudo, ela percebeu que, a despeito da sua alta consideração por Claire, filha de Lady Broughton, da vizinha Court, e da sua
cálida aprovação do entendimento tácito existente entre ela e o seu filho mais velho, no fundo estava feliz nesta noite de reunião por ter Stephen inteiramente para
si.
Com esforço, ela conseguiu manter o tom sereno.
- Ainda não terminei de datilografar todas as suas notas para a convocação de amanhã. Quando partirá para Charminster?
- Oh, depois do almoço, suponho. O Deão raramente é pontual.
- Duas horas então. Eu o levo. - Subitamente, com ciúmes brilhando nos olhos, ajuntou: - O senhor parece cansado, papai. E terá um dia cheio amanhã. Não deixe Stephen
retê-lo até muito tarde.
- Não se inquiete, Caroline. E, a propósito, espero que nos apresente um bom jantar.
- Temos sopa hindu com caril e salmão que o tio Hubert nos mandou de Test, com pepino e molho verde, é claro, e depois um lombo de cordeiro com ervilhas da nossa
horta e batatas novas. Para sobremesa, Beasley fez aquela charlotte de maçã que Stephen tanto adora.
- Ah, sim, minha querida. Lembro que ele sempre a pedia ao voltar de Marlborough para casa. Mas, espere, não é o ruído de um motor?
De fato, ouvia-se um som fraco mas rítmico; avançando para a porta, ele a abriu, deixando ver um pequeno cupê de Dion, ativo e trepidante, do
qual, cessada a agitação por meio de alguma engenhosidade, emergiram duas figuras.
- Stephen!
- Como está, papai... e você, Caroline? Davie não está?
- Ainda não... ele terá licença na próxima segunda-feira.
O arco de luz do pórtico mostrou uma figura franzina de estatura abaixo de mediana, vestida de preto e forcejando com uma valise de couro - o rapaz de Mould não
aparecera - um relance, também, de feições finamente cinzeladas, narinas sensíveis, e um rosto estreito, pensativo, e um tanto sério. Então veio, com discrição,
deixando que as saudações familiares cessassem, uma jovem alta de mãos enluvadas e um comprido casaco de tweed. Seu boné de dirigir, com um véu pendente, absurdamente
como um bolo de cevada, usado apenas em deferência às instâncias maternas, não podia destruir o seu ar de tranquila compostura, uma inescapável sensação de boa educação,
confirmada por sua voz ao se reunir ao pequeno grupo.
- Lamento termos deixado atrás alguma bagagem. Minha baratinha não tem espaço para malas.
- Não se preocupe, querida Claire. Amanhã mandaremos buscá-la. O Reitor tomou-lhe o braço num gesto quase paternal. - Mas você não pode ficar conosco agora?
- Gostaria muito. Mas mamãe espera gente da aldeia... uma comissão de agricultores... arrendatários... que não podem ser despachados.
- Ah, sim! As obrigações da senhora de um proprietário rural. Não está uma linda noite?
- Perfeita. Ao passarmos por Halborough, estava claro como dia... Ela voltou a cabeça, um movimento que, dissolvendo a sombra do atroz boné, revelou um perfil puro
e regular. - Não estava linda, Stephen?
Ele ficara em pé, silencioso, num constrangimento de que agora parecia livrar-se com um esforço.
- Foi um belo passeio. - Depois, como se não tivesse dito o bastante, forçando uma frivolidade que lhe era de todo alheia: - Mas em certo ponto acho que devíamos
ter descido e empurrado.
- Em Ambry Hill - riu-se Claire. - Não sou muito entendida nas mudanças. - Seu sorriso demorou-se um instante na obscuridade do pórtico. Mas não devo detê-los. Boa
noite. Venham ver-nos logo... amanhã, se possível. E tenha cuidado com o seu resfriado, Caroline.
Quando ela saiu, Bertram pôs o braço no ombro do filho e levou-o para dentro de casa.
- É bom tê-lo em casa novamente, Stephen. Você não sabe... Ora, bem... como deixou Oxford? E como se sente? Faminto, estou certo. Corra lá em cima para ver sua mãe.
Depois, desça para o jantar.
E enquanto Caroline, com os olhos e nariz vermelhos pelo ar da noite, levantava uma sacola de livros que fora deixada, esquecida, no pórtico, o pai deteve-se um
pouco vendo Stephen subir a escadaria, olhando para cima com uma expressão que, na sua ternura descuidada, era quase um transe.
CAPÍTULO II
APÓS O EXCELENTE JANTAR, bem servido por duas copeiras que, outrora de uma primitiva grosseria de aldeãs, Caroline tinha treinado tão admiravelmente, o Reitor, amolecido,
levou Stephen para o estúdio, onde as cortinas de droguete estavam descidas e ardia um belo fogo de carvão de algas. O aquecimento da Reitoria podia não ser moderno,
mas as lareiras eram amplas e o combustível abundante. E isto se harmonizava com a sala, a despeito dos ornatos moldados, com um tom íntimo e esportivo para amenizar
o ambiente vagamente paroquial, confirmado por uma escrivaninha de tampa corrediça que continha os sermões de Pusey, o Calendário Eclesiástico, e uma estola de púrpura
dobrada. Um par de espreguiçadeiras de couro marrom flanqueava a lareira, contra uma parede estava o armário envidraçado das armas, em outra uma caixa de moedas
saxãs, produto das pesquisas arqueológicas do Reitor, e, acima do consolo da lareira, dois chicotes de cabo de osso cruzavam-se por trás de uma cabeça empalhada
de raposa.
Mais cedo, nessa tarde, preparando-se, Bertram descera ao porão da casa para uma visita à adega, e agora, com um ar ligeiramente consciente, apanhou uma garrafa
empoeirada, que deitara na cestinha, com as pintas de cal para cima, sobre a escrivaninha; tendo imperitamente tirado a rolha em pedaços, serviu dois cálices de
porto. Ele era um homem temperante, que só de raro em raro bebia álcool, e não usava tabaco, mas esta ocasião exigia um registro dentro da verdadeira tradição da
família.
- Seu avô guardou este - observou ele, segurando o cálice de vinho contra a luz e assumindo um ar de crítico. - É um GrahanVs, 1876.
Stephen, que detestava vinho do Porto, fez da sua poltrona um murmúrio de aprovação e levou o cálice aos lábios. Desempenhava, como um ator, o papel que dele se
esperava.
- Parece muito saudável.
A palavra agradou ao Reitor.
- Sim, o seu avô sabia o que estava fazendo. Foi ele que mandou colocar aquelas notáveis manilhas lá embaixo. Elas drenavam o South Meadow, como sabe, em 1878, e
sobrara boa quantidade delas. O velho viu que cada uma podia conter muito bem uma garrafa, e mandou argamassá-las na adega, como perfeitos favos... Naturalmente,
ele não era um grande bebedor. Mas gostava do seu quartilho de clarete após um bom dia com os cães. Deixou-nos, como sabe, quando tinha 70 anos.
- Deve ter sido um grande caráter.
- Era um bom homem. Um verdadeiro cavalheiro inglês do campo.
O Reitor suspirou. - Não se pode desejar um epitáfio mais belo.
- Minha avó também - acudiu Stephen devidamente, porque, desde Oxford, meditando nervosamente enquanto o trem corria pelos prados, pomares e tortuosas regiões, resolvera
ser inteiramente filial. - Ela não ficava muito atrás dele... Mould me contou muitas histórias a seu respeito.
- Ah, sim, ele era muito devotado a ela... como todos os seus serviçais. Mas ela o trazia num pé só. - Um vagaroso sorriso de reminiscência assomou aos olhos de
Bertram. - Você sabe que nos seus últimos anos a velha senhora tornou-se excessivamente gorda. Na verdade, tinha dificuldade em andar, era obrigada a locomover-se
num carrinho, e Mould, e depois o filho do jardineiro, ambos serviam como meio de propulsão. Por mais seis penies semanais. Era uma grande honra. Mas um tanto extenuante,
especialmente quando sua avó desejava ir à aldeia e tinha que ser empurrada durante todo o caminho até Ambry Hill. Num dia quente de verão, quando alcançou o topo
da colina, o jovem Mould parou para enxugar o rosto na manga. Mas ao deixar escapar a cadeira de rodas, lá se foi ela sem ele, aumentando de velocidade, zunindo
colina abaixo e em torno da curva numa velocidade vertiginosa. O coitado do rapaz ficou petrificado. Via-se como o assassino da sua ama. Com um grito de horror,
precipitou-se encosta abaixo. Quando chegou...
Stephen, encolhendo-se, pôs-se a rir; conhecia a anedota de cor.
- ... lá estava a sua avó, calmamente na praça da aldeia, barganhando com o açougueiro as costelas de um cordeiro. - O sorriso de Bertram extinguiu-se. - Era uma
mulher indomável. Imensamente caridosa. E devotada ao meu pai. Morreu somente oito semanas depois dele.
Estaria o Reitor pensando no seu próprio casamento? Lá fora, piou uma coruja. Na copa, no fim do corredor, Caroline estava mexendo em jarras de cerâmica de picles
com uma brusquidão desnecessária. Bertram endireitou-se e bebericou o seu porto, consciente de que devia quebrar o silêncio antes que houvesse um constrangimento
entre ele e Stephen. Como era estranho terem um grande carinho, e, contudo, uma sensação desse embaraço perseguir as suas relações sempre que ficavam a sós. Seria
porque ele se preocupava demasiado? Nunca tinha sentido essa falta de naturalidade na companhia dos
seus dois outros filhos. Naturalmente, ele gostava de Caroline, aceitava aquela sua fortaleza, considerava-a uma "grande presença". Mas a sua domesticidade, conservando-a
uma perpétua solteirona, chocava inconscientemente o seu senso de orgulho de família. Quanto a David, seu filho mais moço, agora com quase 13 anos de idade, aqui,
ai! o seu amor mergulhava em tristeza, decepção e pena. Pensar que um filho seu, aliás, qualquer Desmonde, fosse um epiléptico que, mesmo sem sofrer ataques, tendia
a gaguejar!
O Reitor reprimiu um suspiro. Ceder a tal sentimento era perigoso. Contudo, no seu presente humor, não havia como evitá-lo.
- Que bom ter terminado seus estudos em Oxford. Você se saiu bem.
- Oh, não sei não. No fim, pareceu-me ter perdido o ânimo.
- Eu também me senti assim quando voltei de Trinity... embora gostasse de lá tanto quanto você.
Stephen ficou silencioso. Como poderia dizer a papai que detestava a universidade?... aquela secura, a superioridade, a sensação de estar fora da vida, a interminável
preocupação com esportes que não o interessavam, o estudo sem sangue de línguas mortas que o aborreciam inexprimivelmente, de pura contrariedade, acima de tudo aperfeiçoar-se
em francês e espanhol... sua aversão a uma carreira que lhe fora determinada.
Mas o Reitor dizia:
- Você ganhou umas férias. Claire o quer para jogar ténis. Seu tio Hubert convidou-o para Chillingham. O salmão dele não esteve bom esta noite? Seu primo Geoffrey
está aqui, numa breve licença.
Novamente Stephen não respondeu. E pela primeira vez Bertram começou a se questionar, se, por baixo da sua maneira passiva, o seu filho não estava combatendo sinais
de Cansaço. Sua palidez natural parecia mais intensa, e seus olhos tinham aquela negrura aumentada que, diminuindo o resto do seu rosto, - representara desde os
seus primeiros dias um sintoma de mal-estar físico ou emotivo. Ele não é forte, espero que não esteja adoecendo de alguma coisa, pensou Bertram, com súbita ansiedade,
e rápido, protetoramente, declarou:
- Você tem mesmo que descansar. Não precisa ir à Sede antes de julho. Descontando cinco meses para Londres, a sua ordenação seria no Natal, a quadra mais conveniente
do ano.
Stephen levantou-se. Por muito tempo havia antecipado este temido momento, tentado, a conselho do seu amigo Glyn, apressá-lo, e então recuava nervoso, escrevia uma
dezena de cartas, e sempre as rasgava. Agora aquilo estava diante dele, e ele se sentia mal, vazio por dentro.
- Papai... preciso falar com o senhor.
- Sim? - Animou-o com um aceno, as pontas dos dedos juntas.
Uma pausa. Seria dinheiro?, pensou serenamente o Reitor. Alguma dívida não paga na universidade? Então, ouviu as palavras entrecortadas:
- Eu não quero ser ordenado.
A expressão do Reitor não se alterou aparentemente, como se uma súbita e completa surpresa tivesse, como a morte repentina, paralisado as suas feições numa semelhança
de normalidade. Por fim, quase estupidamente, disse:
- Não quer?
- Acho que não sirvo para a Igreja... Não sou bom com pessoas Não sei organizar... Eu seria incapaz de pregar um sermão decente, ainda que para salvar a minha própria
vida.
- Essas coisas virão. - Em pé, Bertram estava quase franzindo o cenho.
- Os meus próprios sermões não são particularmente brilhantes. Mas bastam.
- Mas papai, não é apenas isso. Eu não tenho interesse por esse trabalho. Eu... eu não me sinto capaz de sucedê-lo aqui...
Confirmado em sua primeira suspeita pela voz interrompida, o Reitor recuperou-se e assumiu um tom brando.
- Você está cansado e abatido, meu filho. Nós todos ficamos cansados e desanimados ocasionalmente. Você se sentirá diferente depois de umas caminhadas pelos Downs.
- Não, papai. - Respirando irregularmente, Stephen fortificou a sua vontade. - Venho sentindo isto há muito tempo. Não posso amarrar-me neste lugarzinho... a um
futuro vazio e frustrado.
Que tinha dito ele, procurando desesperadamente as palavras? A expressão chocada nos olhos do seu pai afligiu-o. Um momento de insuportável silêncio. Então:
- Não percebi que você via Stillwater sob esse aspecto. Somos uma pequena paróquia, talvez. Mas nosso valor para o país pode ser julgado por outros padrões que não
os da mera dimensão.
- O senhor me interpretou mal. Eu gosto de Stillwater. ., é o meu lar. E sei o quanto o senhor é estimado em quilómetros e quilómetros aqui em volta. É uma coisa
diferente... certamente o senhor entende o que eu quero dizer... o que acho que devo fazer com a minha vida.
O Reitor recuou bruscamente, e então, com toda a compreensão, olhou sobressaltado para o filho.
- Stephen... não será aquela ideia doida outra vez?
- É, papai.
Novamente um compasso de silêncio vibrou entre eles. O Reitor pôs-se de pé, e começou, lentamente a princípio, depois com crescente perturbação, a andar de cá para
lá. Finalmente, com um esforço, acalmou-se e aproximou-se de Stephen.
- Meu querido filho - disse ele com grande seriedade. - Eu nunca tentei prendê-lo a mim pelo seu senso do dever. Mesmo quando você era muito moço, antes de ir para
a escola, preferi confiar nos seus sentimentos naturais
de afeição e respeito. No entanto, deve compreender o quanto contei inteiramente com você para me suceder aqui... Stillwater significa tanto para mim... para todos
nós. E as circunstâncias da minha vida... a invalidez de sua mãe... a infeliz deficiência de David... o fato de ser o meu filho mais velho e, perdoe-me - a sua voz
tremeu ligeiramente - meu filho bem-amado - levou-me a colocar as minhas esperanças em você. Contudo, neste momento, ponho tudo isso de lado. Por minha honra, é
em você que estou pensando, e não em mim, quando lhe digo, quando lhe suplico que esqueça esse sonho fantástico. Você não compreende realmente o que isso significa.
Você não deve... não pode realizá-lo.
Stephen baixou os olhos a fim de não ver o rosto contraído do pai.
- Mas eu com certeza tenho direito à minha própria vida. - Através do seu respeito ardia uma íntima confiança.
- Não a essa espécie de vida. Ela só lhe trará infelicidade. Jogar fora as suas brilhantes perspectivas, arruinar toda a sua carreira por um mero capricho... seria
um ultraje à face de Deus. E depois há Claire... como, em nome do Céu, ela caberia nesse plano? Não, não. Você é muito jovem para a sua idade, Stephen... Essa ideia
louca que se apoderou de você pode lhe parecer muito importante agora. Mas dentro de poucos anos, rirá de si mesmo pelo simples fato de ter pensado nela.
Afundado na sua cadeira, de faces vermelhas e olhos baixos, com o espírito tardo e embotado pelo vinho do Porto, Stephen não podia achar uma palavra para dizer.
Naquele momento, sem exagero, odiava o seu pai. contudo, ao mesmo tempo, mostrava-se vencido pela vergonhosa consciência da sua afeição paternal, pela gratidão e
justiça do seu ponto de vista, e, pior que tudo, por uma tépida onda de nostalgia que lhe subia à garganta, um dilúvio de recordações da infância... as corridas
de tílburi a Ambry, seu pai afrouxando as rédeas, Carrie no seu limpo avental branco, Davie usando os seus primeiros calções de flanela; os piqueniques à beira do
Avon, o sol quente na água fria, e um pato selvagem subindo do juncal amarelo à medida que a canoa avançava; as canções familiares entoadas diante da árvore de Natal,
uma poeira de neve nas vidraças... oh, como poderia arrancar essas ternas, fortes raízes?
Bertram inclinou-se para diante e, não de modo comovente, mas com um toque de desconfiança, pôs-lhe a mão no ombro.
- Acredite-me, trata-se da sua felicidade, Stephen. Você não pode... não poderia achar no seu coração alguma coisa contra mim.
Stephen não se atrevia a erguer os olhos, com medo de romper em lágrimas. Estava liquidado... pelo menos no presente. E ele tinha pensado lutar duramente, tinha
jurado a Glyn que ganharia a partida.
- Muito bem - conseguiu murmurar finalmente, provando toda a
amargura que a derrota traz a uma natureza dócil mas apaixonada. - Se é assim que o senhor pensa, com tanta veemência... tentarei a Sede... para ver o que acontece.
CAPÍTULO III
BERTRAM SUBIU AS ESCADAS VAGAROSAMENTE. Embora fosse grande a sua sensação de alívio, não diminuía o cansaço que lhe viera de repente, nem a demorada ansiedade do
seu coração. Diante do quarto da esposa, hesitava, com a cabeça inclinada numa atitude de escuta; depois, batendo ligeiramente no painel, empertigou-se e entrou.
Era um vasto compartimento, outrora a sala de estar de cima, a melhor da casa, como referira o velho Cónego Desmonde, sem dúvida por suas belas proporções e por
dar para o sul, o que, além de permitir a entrada do sol da manhã, oferecia um vasto panorama dos Downs. Na sua conversão em quarto e sala de estar da esposa, parte
da mobília original tinha sido mantida - as cadeiras de tapeçaria e os canapés Chippendale, um largo espelho em semicírculo com moldura de gesso em cima do consolo
de mármore branco da lareira, o tapete vermelho de Bruxelas. Protegida por um guarda-vento, Julia Desmonde estava deitada, lendo, embaixo de uma cobertura de cetim.
Era uma mulher formosa e bem conservada, de 45 anos, com grande ar tranquilo e muito indolente, feições cheias e lisas, e um denso cabelo castanho espalhado no travesseiro
como uma nuvem.
Marcando com uma unha branca o lugar do livro que tinha o desenho de uma figura do zodíaco, Julia dirigiu para o marido, por baixo das finas sobrancelhas, um olhar
inquiridor. Seus olhos eram de um notável azul de amor-perfeito, quase infantis, com pálpebras carnudas quase caídas.
- Então temos Stephen em casa novamente - disse ela.
- Sim, achei que meu querido filho estava com boa aparência. Podia-se contar com ela para exprimir, na sua voz aristocrática e absorta consigo mesma, uma opinião
contrária à dele.
- E a dor de cabeça?
- Melhor, muito obrigada. Sentei-me demais ao sol esta tarde. O sol desta primavera precoce é muito traiçoeiro. Mas eu acabo de fazer um tratamento.
Ele percebeu, pelo aparelho que estava na mesa ao lado, que ela acabara de aplicar uma das suas vibrações. No guarda-fogo, uma caldeirinha de metal assobiava com
um alegre penacho de vapor, indicando que em 20 minutos o extrato de farelo seria levantado e misturado, os tabletes de fermento esmagados e engolidos, o iogurte
batido, ou desta vez seriam algas secas? Então a bolsa de água quente seria reenchida, o fogo disposto para a noite, as luzes diminuídas, as almofadinhas para as
pálpebras umedecidas e colocadas para dormir. E outra vez, embora lutasse contra ela com determinação cristã, a pergunta lhe veio: Por que cargas-d'água tinha casado
com ela?
Ela fora, sem dúvida - aliás ainda o era, evidentemente na sua maneira estatuesca, uma espécie de beleza, e como filha única de Sir Henry Marsden de Haselton Park,
tinha sido considerada pela sociedade do campo daquela ocasião "o partido da estação". Quem, olhando-a, teria adivinhado, por exemplo, que aquela jovem com a graça
de um cisne, anfitriã da Haselton Fête, considerada a beldade do baile de caça, cercada por jovens oficiais dos quartéis de Charminster, sorridente mas composta,
centro de atração, mais tarde revelaria a acentuada peculiaridade de ser tão inteiramente inútil para ele como esposa?
A não ser por uns poucos garden-parties nos seus primeiros anos de casados, quando arrastava um guarda-sol com babados, movendo-se graciosamente sobre a relva, com
um chapeirão, ela se recusara com pacífica resolução a tomar interesse pelas obras da paróquia. "Deus", dizia ela amavelmente, "não há nenhum sentido em levar sopa
para rústicos indigentes ou estragar os nervos costurando roupa de criança para encorajamento da população rural." Afortunadamente, a mulher do bispo gostava dela,
mas ela não recebia as senhoras da clerezia menor.
Preferia passar os dias sentada, exageradamente vestida, à sua janela, ou no roseiral, empenhada num interminável bordado em seda colorida, do qual levantava a cabeça
repetidamente para olhar por longos períodos o espaço, ou tomar notas ocasionais, quando lhe ocorriam, do que haveria de comunicar ao seu médico, que - tendo há
muito esgotado o doutor do condado - visitava duas vezes por mês em Londres. Seus filhos, que ela suportava com uma facilidade distraída, não tinham sido para ela
mais do que episódios momentâneos. Desde que não a incomodassem, ela os considerava com remota indulgência. Contudo, ao aumentar, mais e mais, o seu alheamento,
ela se retirava para si mesma, criando uma existência que se desenvolvia em torno das suas funções físicas, um pequeno mundo de feliz hipocondria, no qual - poderia
ele, ó Deus, tê-lo previsto quando naquela tarde cheirando a rosas, 20 anos atrás, ele quase morrera de dor com o seu beijo aromático? - ela não tinha maior prazer,
nenhum interesse mais vivo, do que discutir amavelmente com ele a cor dos seus tamboretes.
Talvez o cavalo de campanha empalhado no saguão paterno - lembrança de Balaclava - devesse tê-lo advertido, mas, ai! podia ter predito que o pai dela, até a idade
de 60 anos, não era mais que um excêntrico amável, dedicado em suas horas de fazer as pesquisas mecânicas - a eletrificação da sua propriedade por uma cadeia de
moinhos de vento, a inócua construção de um canhão de tiro rápido que, recusado pelo Ministério da Guerra, tinha não mais do que levado ao céu, na sua parte de carne,
o mordomo da família, que, em nome de Deus, devia ter previsto que aquele irreprimível doido teria, na sua caduquice, lançado subitamente um grandioso projeto para
a construção de uma máquina voadora, como a que foi subsequentemente voada por Blériot através do Canal da Mancha, embora aquilo em si mesmo fosse extremamente doentio,
e não passasse de uma feia geringonça com fantásticos parafusos, supostamente capaz de subir do chão na vertical: um helicóptero. Assim, em desafio às leis da gravidade,
Sir Henry profanara o seu belo parque com alpendres e hangar, operários importados, engenheiros, um mecânico belga, gastara dinheiro como água, em resumo, arruinara-se,
e, permanecendo no chão, morrendo como alvo de mofa.
Haselton, que devia ter sido de Julia, era agora uma escola para meninas, o grande hangar um ginásio, e os alpendres - horrores - recém pintados depósitos para tacos
de hóquei enlameados e sapatos desemparceirados de lona.
Seria possível, pensava Bertram, com novo abatimento, que algo dessa instabilidade agora se manifestasse em Stephen? Não, não... impossível. O filho, tão de perto
parecido com ele em corpo e alma, era todo dele, de fato o seu outro eu. No entanto, devido à sua ansiedade, a nuvem que pairava sobre o seu espírito, era tentado,
a despeito do seu melhor juízo, a abrir a mente e procurar alguma espécie de consolo da parte de sua esposa.
- Minha querida - disse ele. - Enquanto Stephen estiver conosco, acho que devemos fazer um esforço para afastá-lo de si mesmo.
Julia mirou-o surpreendida. Ela possuía em grau notável a faculdade de torcer o sentido do que lhe diziam.
- Meu caro Bertram, você sabe muito bem que não posso fazer qualquer esforço. E por que Stephen deve ser afastado de si mesmo?
- Eu... eu estou preocupado com ele. Ele sempre foi um rapaz incomum. Está atravessando uma fase difícil.
- Difícil, Bertram? Ele já não passou pela puberdade?
- Naturalmente... mas não sei o que se passa com esses rapazes. Na primavera, metem ideias estranhas na cabeça.
- Você quer dizer que Stephen está em estado de amor?
- Não... bem, sabemos que ele gosta de Claire.
- Então o que quer dizer? Ele não pode estar doente. Você mesmo disSe um momento atrás que ele está muito bem.
- Foi você quem disse isso. - A despeito de si mesmo, Bertram falava com crescente impaciência. - Acho que ele está longe de se sentir bem. Mas vejo que você não
deseja participar da minha ansiedade.
- Desejo que me fale, meu querido, não faço nenhuma objeção a ouvi-lo. Mas não é suficiente você estar aborrecido sem me aborrecer? Acho que
fiz a minha parte em trazer os seus filhos ao mundo. Sempre houve, do primeiro ao último, pouco prazer nessa tarefa. Depois, você fez deles sua responsabilidade.
Eu jamais interferi. Por que devo fazê-lo agora?
- É verdade - disse ele, tentando reprimir a sua amargura. - Faria pouca diferença para você se Stephen arruinasse a vida dele. Julia, há alguma coisa nele, algo
debaixo da superfície, que eu não compreendo. O que é que ele realmente pensa? Quem são os seus amigos? Não se lembra de que quando Geoffrey o visitou no ano passado,
em Trinity, encontrou lá a pessoa mais inesperada no seu alojamento... um excêntrico de primeira, foi como Geoffrey o chamou, um artista desmazelado... um galês
Interrompeu-se, olhando quase súplice para ela, até que ela foi obrigada a responder. Sua voz era suave.
- Que tem você contra os galeses, Bertram? Eles possuem belas vozes. Esse galês canta?
- Não - replicou Bertram, corando. - Ele vive insistindo com Stephen para que vá a Paris.
- Muitos jovens já fizeram isso antes, Bertram.
- Até concordo. Mas, desta vez, não pela razão óbvia.
- Então por que razão, se não é para ter uma mulher francesa?
- Para pintar!
Tinha-o dito, livrara-se daquilo afinal; e tensamente, embora com uma certa sensação de alívio, esperou, em silêncio, que ela falasse.
- Devo confessar, Bertram, que não vejo mal algum nisso tudo. Lembro-me de que, quando estive em Interlaken com papá, fiz algumas deliciosas pequenas aquarelas do
lago. Azul era o tom predominante. Stephen sempre gostou de desenhar. Aliás, foi você quem lhe deu a primeira caixa de lápis de cor.
Ele mordeu forte os lábios.
- Isso não é ocupação de criança, Julia. Sabe que há mais de um ano, sem nos dizer uma palavra, ele tem viajado de Oxford para assistir às aulas noturnas de arte
em Slade?
- Slade é uma instituição respeitável. Stephen terá bastante tempo para fazer seus esboços entre os sermões. E, sem dúvida, desenhar é Um calmante para os nervos.
Ele refreou o seu impulso de gritar. Por um momento, manteve os olhos baixos, no tom de quem foi Vencido, mas, respirando um pouco depressa demais, disse:
- Espero que tenha razão, minha cara. Suponho que me preocupo desnecessariamente. Sem dúvida ele se restabelecerá logo que entre na rotina do seu trabalho em Londres.
- Sem dúvida. E, Bertram, resolvi que, em vez de Harrogate, irei a Cheltenham no mês que vem. Lá há águas minerais, e dizem que são excelentes para promover a secreção
da bile. Quando o Dr. Leonard examinou a minha urina pela última vez, encontrou uma acentuada insuficiência de sais biliares.
Ele deu boa-noite, em tom baixo, e saiu rapidamente, antes que dissesse coisa pior.
Ao sair do quarto, podia ouvir no corredor o lento tique-taque da máquina de Caroline, que, sem se poupar, batia as notas para o seu discurso do dia seguinte.
CAPÍTULO IV
NUMA TARDE CINZENTA E ENEVOADA, seis semanas mais tarde, Stephen, voltando de uma visita de casa em casa, caminhava lentamente pela Clinker Street, no East Stepney.
A nuvem sulfurosa sobre as docas de Londres tornava o estreito logradouro mais triste e opressivo para ele. Nenhuma luz, nenhuma cor - somente a inércia dos carros
de descarga vazios, os paralelepípedos graxentos, um cavalo da zorra de um cervejeiro fumegando na chuva, com os arreios dentro de um saco gotejante. Um ônibus ruidoso
passou no rumo oeste, salpicando-o de lama quando ele voltava para a Sede.
Aquela construção de tijolo vermelho, erguida no alinhamento das casas de estuque derruídas que se inclinavam ao longo da rua como velhas decaídas, agora mais do
que nunca parecia-lhe uma pequena mas eficiente penitenciária. Nesse momento, abriu-se a porta da frente e o Guardião, o Reverendo Crispin Bliss, saiu, de guarda-chuva
em pé, nariz levantado para farejar o tempo, alto, magro, envolto até os sapatos em uma comprida capa impermeável preta. Um encontro, pensou Stephen, era inevitável;
e aproximou-se.
- Ali, Desmonde... já de volta?
O tom frouxamente cordial era, achou Stephen, o de um homem que procurava gostar dele e não podia, a despeito da melhor das intenções e dos reclamos do amor fraterno.
Inquestionavelmente, o Reverendo Crispin Bliss, membro da confraria de St. Cuthbert era um clérigo devotado que trabalhava
arduamente pelo bem da sua vinha infrutífera. Clérigo menor, com fortes tendências evangélicas, era um homem de sincera embora limitada piedade. Religião à parte,
porém, a sua maneira era muito pouco atraente: seco, académico, suscetivelmente superior. Igualmente infeliz era a sua maneira de caminhar com a cabeça atirada para
trás, o ar nobre com que procurava se proteger, e, sobretudo, a sua voz rachada, ligeiramente fanhosa, parecendo sempre pronta a pronunciar contradições culturais
em notas de agudo falsete. Quase no início, Stephen tivera a má sorte de ofendê-lo.
No corredor superior da Sede estava pendurado um cruento quadro do martírio de São Sebastião, que para Stephen sangrava de novo sempre que ele saía da sua sala.
Desde que a pintura parecia ignorada por todos menos ele, uma manhã, num momento de aversão, virou-a contra a parede. O ato passou aparentemente despercebido. Mas
na ceia dessa noite, com um sorriso magoado que passou por cima dos seus dois coadjutores, Loftus e Geer, e foi repousar em Stephen, o Guardião observou, nos seus
tons mais nasais:
- Não faço objeção ao humor, mesmo na sua forma mais disfarçada, a brincadeira de mau gosto. Mas interferir em qualquer objeto desta casa que por seu assunto ou
associação possa ser considerado como sagrado é, para o meu espírito, um ato indecoroso e irreligioso.
Stephen corou até a raiz dos cabelos e manteve os olhos no seu prato. Não tinha querido fazer mal algum, e quando a refeição terminou, o desejo de explicar-se levou-o
ao Guardião.
- Lamento ter virado o quadro. A única desculpa que posso oferecer é que ele bulia com os meus nervos.
- Com os seus nervos, Desmonde?
- Bem... sim. É de um gosto muito chocante, além de ser evidentemente uma falsificação.
- Não posso compreendê-lo, Desmonde. O quadro é um legítimo Carlo Dolci.
Stephen sorriu em tom de desculpa.
- Oh, dificilmente, senhor. Nem sequer isso. Além das pinceladas grosseiras, e do pigmento moderno, é pintado em tela branca de cânhamo - um tecido que só foi manufaturado
por volta de 1890, uns bons 200 anos após a morte de Dolci.
A expressão do Guardião petrificou-se. Respirava rapidamente pelas narinas, não fogo precisamente, mas a contrapartida cristã da cólera - justa indignação.
- Acontece que esse quadro é meu, Desmonde, e uma propriedade muito estimada. Comprei-o de um jovem na Itália, de fonte impecável. A despeito da sua opinião, continuarei
a apreciá-lo como o original de uma obra de arte.
Agora, todavia, havia menos hostilidade do que vigilante moderação no
olhar com que o Guardião, parado na chuva, ofereceu a Stephen o abrigo do seu guarda-chuva e perguntou:
- Fez a série de Skinner esta tarde?
- Praticamente toda, senhor.
Não queria confessar que, esperando a visita de Richard Glyn, tinha saltado os números ímpares.
- Como encontrou a velha Sra. Blimey?
- Não muito bem, receio.
- A bronquite da pobre criatura piorou? - Depois, como Stephen hesitava, parecendo inquieto, ajuntou: - Ela precisa do médico?
- Não... não exatamente. Aliás, encontrei-a muito embriagada.
Houve uma pausa perturbadora, então veio a pergunta um tanto mundana:
- Como é que ela conseguiu dinheiro?
- Acredito ser o responsável, senhor. Dei-lhe seis xelins ontem para que pagasse o aluguel do quarto. Ela parece que o gastou em gim.
O Guardião fez um som, estalando a língua.
- Bem... vivendo e aprendendo, Desmonde. Não o censuro. Mas você não deve pôr a tentação no caminho das pobres criaturas de Deus.
- Acho que não. Por outro lado, quem pode censurá-la por tentar escapar à miséria umas poucas horas? Ela sofre do peito, não arranja trabalho de costura de qualquer
espécie, deve o aluguel ao senhorio e já empenhou quase tudo no seu quarto. Devo confessar que me senti quase contente ao vê-la rolar num estado de feliz esquecimento.
- Desmonde!
- E o que é mais... não pude deixar de pensar que se algum de nós estivesse naquela situação teria feito exatamente a mesma coisa.
- Ora, vamos. Isso é levar o caso um pouco longe demais. Nós nunca devemos, queira Deus, achar-nos em tais situações desagradáveis. - Abanou a cabeça em reprovação
e abriu o seu guarda-chuva. - Haverá reunião dos rapazes esta noite? Trocarei uma palavra com você a esse respeito depois da ceia.
com um aceno de despedida, um tanto distante, pôs-se a caminho, deixando Stephen a subir as escadas para o seu quarto, um estreito cubículo forrado de carvalho claro,
com um consolo gótico e uma estante de livros giratória - A cama ainda não tinha sido feita. Os residentes da Sede deviam arranjar-se sozinhos, era o que se esperava;
de manhã, por exemplo, Stephen iria encontrar-se regularmente com Geer, o coadjutor, um brilhante e musculoso cristão, levando o seu urinol cheio para o banheiro
com ar de sincera despreoCupação.
Contudo, para que a tradição monástica não parecesse muito severa, uma pequena moça de fora, chamada Jenny Dill, vinha do distrito,
ostensivamente para dar os retoques finais, na realidade fazer a maior parte do trabalho. Quando Stephen se atirou, ainda, de chapéu e casacão, numa cadeira Morris,
podia ouvir os seus passinhos rápidos no quarto de Loftus através da fina parede que servia de repartição. Loftus, um belo rapaz, exigente e moderado, muito elegante
de uma maneira sacerdotal, sempre lhe deixava muito que fazer, tal como sapatos para lustrar, roupas atiradas e por escovar. Contudo, ela parecia ter acabado essas
tarefas, porque, em poucos minutos, houve uma batidinha na porta do seu quarto e, trazendo espanador e balde, ela entrou lepidamente.
- Oh, senhor, perdoe-me... Não sabia que estava aqui.
- Não tem importância, entre.
Observou-a ausente quando ela começou habilmente a tirar os lençóis e a virar o colchão. Era uma mulherzinha agradável, com as faces muito coradas, como se tivessem
sido esfregadas com pó de tijolo, brilhantes olhos castanhos e uma franja de cabelo preto. Parecia, pensou ele, uma moça típica das camadas populares de Londres...
inteiramente competente e que ninguém poderia enganar. No entanto, havia nela algo mais do que ordinário: um ar de simplicidade bem-disposta, uma inocência, uma
afabilidade afetuosa, e, acima de tudo, um vigor, como se ela não pudesse conter a energia e deleite que pulsavam no seu corpo jovem e sadio. E ao mover-se de um
lado para outro com precisão, a cintura fina, o busto pequeno mas firme, inconsciente de que ele a observava, ou pelo menos de nenhuma maneira perturbada com isso,
instintivamente a sua mão pegou o lápis e um bloco de cima da escrivaninha.
Dali a pouco, quando ela foi à lareira, curvou-se e começou a tirar as cinzas. Nesse momento, o seu interesse aumentou, e quando ela fez menção
de levantar-se, ele a deteve bruscamente.
- Por favor, não se mexa, Jenny.
- Mas, senhor.
- Não, não. Volte a cabeça e não se mexa.
Enquanto ela, obediente, voltava a cabeça, mantendo a sua posição curvada, os dedos de Stephen moviam-se nervosos sobre o papel.
- Pensa que sou maluco, não é, Jenny? Todos os outros do distrito também pensam.
- Oh, não, senhor - protestou ela vigorosamente. - A gente acha é que o senhor é um bocado esquisito, desenhando no clube dos rapazes e coisas assim, diferente de
um coadjutor regular, que ensina eles a lutar boxe. Ora, quando o Sr. Geer trouxer os grandões e eles se pegarem, vai ver que quase se matam um ao outro. E mal vai
poder reconhecer eles, com os olhos pretos e as ventas sangrando. Não, não é o que parece muito natural, acho, Mas a gente pensa que o senhor é mesmo um cavalheiro
muito delicado.
- Isso é animador... e apesar da ausência de sangue. Diga-me uma coisa,
Jenny, se você fosse uma velha doente, de cama, preferiria uma Bíblia ou uma garrafa de gim?
- Eu tenho uma Bíblia, senhor... aliás, duas. O Sr. Loftus e o Sr. Geer me deram uma cada um. A do Sr. Loftus tem umas lindas fitas coloridas. Sou capaz de dizer
que se eu estivesse mal mesmo, o gim até que vinha bem.
- Não fuja, Jenny. Você é honesta como o dia. Diga-me: o que é que você pensa disto aqui?
Lentamente, ela relaxou, aproximou-se e examinou dubiamente o desenho que ele lhe entregara.
- Não sei nada dessas coisas, senhor... mas acho mesmo bonito.
- Ora, sua garota tola, não está vendo que é você?
- Bem, já que o senhor diz - respondeu ela modestamente - parece comigo de costas. Eu só queria não estar com a minha roupa velha e com um rasgão bem ali, tão encabulante,
na abertura da saia.
Stephen riu-se e atirou o bloco para a escrivaninha.
- É da saia velha que eu gosto. Gostaria que você posasse para mim. Eu lhe pagaria cinco xelins por hora.
Ela olhou rapidamente para ele, depois desviou os olhos.
- Isso não seria muito correto, seria, senhor?
- Ora, tolice - disse ele descuidado. - Onde é que está o mal? Mas acho que você não está interessada...
- Bem, senhor... - Ela falava acanhadamente, e uma cor mais viva lhe veio às faces. - Na verdade, se tudo estivesse em ordem, eu bem que poderia fazer mais uns cobres.
- Como?
- É, senhor O senhor sabe... eu espero me casar logo.
- Parabéns. Quem é o felizardo?
- O nome dele é Alfred, senhor. Alfred Baines. Ele é camaroteiro num barco da Orient Lane. Vai estar na terra no outro mês, sem ser esse que vem.
- Excelente para você, Jenny. Não admira que queira ganhar mais um dinheirinho. Quando larga?
- Quando termino de arrumar o seu quarto, senhor. Aí pelas cinco.
- Bem, então... suponha que fique mais uma hora, das cinco às seis, duas vezes por semana. Posso pagar-lhe cinco xelins de cada vez.
- Isso é mais do que generoso, senhor.
- É muito pouco realmente. Mas se você não achar o trabalho muito cansativo, posso lhe dar um bilhete para um amigo meu que ensina nas turmas noturnas no Slade.
Ele terá prazer em empregá-la por uma breve temporada...
Ele não vai esperar que eu, senhor... - Jenny tornou-se rubra.
- Por Deus do céu, não - disse Stephen bondosamente. - Você vestirá uma espécie de costume. Provavelmente ele vai querer somente a sua cabeça e ombros.
- Então ficarei muito agradecida, senhor. . . fico mesmo... especialmente ao senhor.
- Então fechamos negócio? - pergunta ele, sorrindo, aquele raro sorriso que iluminava a sua face e o tornava tão atraente, e estendeu-lhe a mão.
Ela corou, e aproximou-se. Seus pequenos dedos, de unhas mal cortadas ou quebradas, estavam quentes e secos, com cicatrizes nas pontas e frieiras curadas. Contudo,
era uma mão extraordinariamente agradável de segurar, nela estava a pulsação do seu jovem corpo; ele mal pôde soltá-la. E quando o fez, ela se voltou para a porta.
Estava agora um tanto pálida, e sem olhar para ele disse:
- O senhor sempre me tratou tão gentilmente, Sr. Desmonde, é mesmo um prazer fazer as coisas para o senhor. Eu sempre dou ao seu quarto um extra. E lustro muito
bem os seus sapatos, porque... ora, porque são seus, senhor. - Interrompeu-se, e desapareceu.
Para quem era atormentado por humores de autodepreciação, aquelas palavras trouxeram um esquisito calor. Mas logo a momentânea alegria de Stephen sumiu, ele se tornou
novamente consciente de si mesmo, do seu ambiente, e da tristeza que o esperava adiante. Desejou que Glyn aparecesse logo.
Apanhando o Evidences, de Paley, que prometera ao seu pai ler, tentou mergulhar no livro. Mas era inútil. Não tinha interesse nele, detestava a vida que estava levando,
desde que chegara à Sede: a visitação, as aulas de Bíblia, o clube - embora à sua maneira tentasse animá-lo - a terna hipocrisia das palavras alimentando a fome
e o frio das pessoas, enquanto ele e os outros da sua raça permaneciam aquecidos e bem nutridos.
Podia compreender um homem que entrasse para a Igreja por sua natureza profundamente religiosa, por sentir que a sua missão predestinada era ajudar o próximo. Mas
assumir uma existência confortável sem uma forte vocação, por motivos que eram claramente materiais, parecia-lhe a pior espécie de fraude. E, além disso, ele não
tinha a sua própria vocação, um chamado que o mantinha cingido ao seu próprio coração? Que tolo fora em se deixar levar a semelhante passo, como um carneiro estúpido
entalado entre as portas de uma feira do campo. E agora que ali estava, parecia não haver como sair.
Justamente então soaram passos de sapatos pesados nas escadas de madeira, e poucos segundos depois um homem alguns anos mais velho que Stephen foi entrando no quarto
e atirou-se sem fôlego numa cadeira. Era de porte mais do que mediano e fortemente construído, com um cabelo vermelho cortado e uma curta barba vermelha eriçada,
de feições vigorosas, os olhos, sob sobrancelhas bem marcadas, vivazes, rebeldes, contudo muito divertido naquele momento. Vestia calças de pele de toupeira e uma
blusa de operário,
um lenço pintalgado de vermelho amarrado no pescoço; tinha o ar de um bucaneiro, fanfarrão, livre, cheio de um vigoroso prazer pela vida. Dali a pouco, quando cessou
a sua transpiração, puxou um relógio de metal, ligado a ele por um pedaço de cordão esfiapado de quadro.
- Bem na hora - observou com satisfação. - Não está mau para Whitehall.
Embora advertido da paixão espasmódica de Glyn pelos exercícios violentos, Stephen estava moderadamente surpreso.
- Você andou todo o caminho?
- Corri - disse Glyn, enxugando o suor. - Foi diabolicamente divertido. Botei toda a polícia a correr, pensando que eu tinha assaltado um banco. Mas que sede me
deu! Suponho que não haja um pingo de cerveja nesta casa de Deus, não é?
- Sinto, Richard. Não nos permitem tê-la em nosso quarto. Posso lhe dar chá... e biscoitos.
Glyn explodiu em gargalhadas.
- Vocês, jovens teólogos. Como podem combater Satanás com chá e biscoitos? Mas se não for incómodo, traga-os. E acrescentou, mais sério: Sinto não poder ficar muito
tempo, mas eu queria vê-lo.
Conversaram enquanto Stephen fervia uma chaleira de folha no bico de gás junto à lareira. Pronto o chá, Richard bebeu quatro xícaras da desprezada beberagem e, de
uma maneira ausente, liquidou um prato de macarrão. Depois, um tanto embaraçosamente, a conversa cessou.
- A sua mostra correu bem? - perguntou Stephen por fim.
- Muito bem - respondeu Glyn descuidadamente. As críticas foram tão perfeitamente depreciativas que atraíram público.
- Mas você vendeu alguma coisa.
- Um vermelhinho. E tudo porque sou galês. A Galeria Nacional de Cardiff comprou-o. Encorajando o talento nativo... filho de um mineiro e assim por diante.
Houve uma pausa.
- Contudo - resumiu Glyn - o dinheiro me safou das dívidas, e Anna e eu partimos para Paris amanhã.
Stephen empertigou-se imperceptivelmente, um reflexo de todos os seus nervos, não apenas ao som de uma palavra que o perseguia, mas porque naquela maneira demasiado
despreocupada ele pressentiu o verdadeiro motivo da visita de Glyn. Procurou dominar a voz.
- E quanto tempo pretende ficar por lá?
- No mínimo um ano. Vou viver barato e trabalhar como um mouro. Acredite se quiser, Paris é um lugar maravilhoso para trabalhar. - Fez uma pausa e atirou um rápido
olhar para o outro. - Você não vai mesmo conosco?
Stephen sentiu um nó na garganta. As suas mãos, nos braços da poltrona, mostraram os nós dos dedos.
- De que jeito? Você conhece a minha situação.
- Ao mesmo tempo, tive a impressão de que você queria pintar.
Stephen, de cabeça baixa, não respondeu. De súbito ergueu os olhos.
- Glyn... se eu jogasse tudo fora... teria mesmo sucesso como artista?
- Ora, ora, Desmonde - Glyn inclinou-se para diante, de cenho cerrado, - Que pergunta mais idiota. Sucesso? Que quer dizer com sucesso? Então você não sabe que neste
jogo não pode haver garantias, que você não tem mais que você no momento em que se resolve? E você não entra nisso por nenhuma outra razão a não ser a de que não
pode evitá-lo. Se for para valer, abandona tudo, passa fome, rouba, engana a sua avó, transgride cada um dos Dez Mandamentos, só para ter nas suas mãos um tubo de
tinta e uma espátula.
Glyn interrompeu-se, relaxou a postura e continuou, mais serenamente:
- Acredito que você tem talento, possibilidades extraordinárias, do contrário não ia aborrecer o meu bestunto a seu respeito. Eu sei como é duro para você... atolado
na tradição. Você teve todos os inícios errados. Devia ser como eu, nascido numa vila de operários, numa nojenta cidade carvoeira. Mas, assim, você mesmo é quem
tem que decidir. E se não se decidir, atrevo-me a dizer que dará um pastor aceitável. - Tirou de repente o seu relógio niquelado. - Bem, tenho que ir. Preciso reunir
umas coisas. E juntar isto com aquilo. Adeus, Desmonde. Escreva-me quando tiver tempo.
Stephen permaneceu imóvel. Glyn levantou-se. Ao dar o primeiro passo, viu sobre o consolo da lareira um cartão perfurado com as cores do Clube de Críquete Marylebone.
Era um bilhete para a partida de criquete entre Oxford e Cambridge, a ser disputada no mês seguinte. Acompanhando o olhar de Glyn, Stephen corou.
- Tenho que ir - disse ele secamente. - Toda a família irá.
CAPÍTULO V
A PARTIDA TINHA TERMINADO, as balizas haviam sido retiradas, e enquanto o sol lançava sombras compridas sobre a quadra relvada do Lord's, um grupo de sete pessoas
podia ser observado entre a elegante assistência - dificilmente se poderia referir essa afluência como uma multidão - andando
vagarosamente para os portões principais na St. John's Wood Road. Caroline e Claire iam na frente com Davie e seu primo Geoffrey, enquanto poucos passos atrás, Stephen
acompanhava o General Desmonde e sua esposa. Uma emergência na paróquia tinha impedido no último instante o Reitor de estar presente, e Julia, claro, era uma ausente
anual. Por isso, Stephen tinha vindo somente para estar com o irmão, e enquanto Davie tinha grande prazer em ver o jogo - o que era mais tocante, uma vez que, devido
à sua afecção, não lhe era permitido jogar críquete - teve em certa medida a sua recompensa, pois o dia tinha sido duro para ele, e ainda lhe ressoavam na cabeça
os incessantes gritos de Geoffrey de "Boa jogada, senhor", e, como sempre, a mulher do General raramente pensava nela como tia Adelaide - tinha exercido sobre ele
uma familiar combinação de condescendência e arrogância que despertava os seus mais perversos instintos. Mulher dominante, fria, de rosto fino, criada na tradição
do Exército e endurecida nos sóis da Índia, ainda era bonita, de uma maneira dura e atrevida, e possuía uma figura admirável, embora tendendo para a magreza, seu
olhar às vezes letal como um golpe de baioneta.
Agora, ao deixarem o campo e permanecerem juntos um tanto indecisos, enquanto carruagens e cabriolés saíam da calçada, ela falava com rapidez, na sua voz apressada
"do condado".
- Hoje foi um dia tão delicioso, que é uma pena deixá-lo morrer prematuramente. - Voltou-se para o marido. - Tem alguma sugestão, Hubert?
O General Desmonde examinou o grupo. Alto, feições retas, ereto como uma vareta de espingarda, até no chapéu de forma cinza e no fraque matutino, parecia um soldado,
um soldado notável. Um bigode curto acentuava a brevidade incisiva da sua fala.
- Pensei que poderíamos cear no Frascati's.
- Magnífico, papai - disse Geoffrey, endireitando a gravata e depois o colete bordado, talvez pela ducentésima vez, como se estivesse determinado a manter a supremacia
de alfaiataria que fazia dele, tinha certeza, um alvo de admiração. Estilo, que ele chamava de boa forma, era na verdade a sua maior ocupação, fosse numa praça de
armas ou em Piccadilly, e que já o configurava, na idade de 24 anos, como modelo de um elegante, ainda que um tanto tolo, jovem de sucesso da sociedade.
- Davie tem que voltar às sete - interpôs Caroline. - E já passam das seis. Mas ninguém precisa se incomodar, vou levá-lo ao trem.
- Querida, você é tão gentil e tão atenciosa - disse Adelaide sorrindo. Ela não queria Caroline no Frascati's com o seu rosto vermelho de sol como uma peônia, e
naquele medonho vestido marrom que a fazia parecer uma copeira no seu dia de folga, aquelas pernas também, que desgraça, como as patas de um piano de cauda; Caroline,
para tia Adelaide, era sempre uma responsabilidade social, uma mortificação anual no baile de caça, quando, sentada na
entrada do salão, com seu jornal na mão, sem que ninguém a tirasse para dançar, esperava tristemente que algum velho cavalheiro se dirigisse a ela; e agora já tinha
sido bastante desagradável tê-la com eles durante o dia inteiro. - Você deve vir uma outra vez.
- Acho que também tenho que voltar - disse Stephen. Se Davie não fosse, ele não teria nenhum prazer em ir.
- Tem mesmo? - Hubert franziu o cenho, bem-humorado; ele até gostava, ou pelo menos tolerava, aquele jovem sobrinho e futuro pastor. - Tão cedo?
- Mas é claro que você pode ficar, Stephen. - Claire estava ao seu lado, contida, mas de certo modo rogando, com a sua tez macia e feições tão bem modeladas, sombreadas
por um chapéu de aba larga enfeitado de rosas. Hoje mais do que nunca, naquele ambiente, ela parecia o que era: a mais amável das moças inglesas, cujo bom senso,
maneiras e cordialidade franca e agradável faziam amigos onde quer que estivesse. - Fica, sim - ajuntou ela.
- Querida - interveio Adelaide antes que Stephen pudesse responder - não devemos interferir com as regras e regulamentos. Afinal de contas, a vida na Sede, imagino,
é mais ou menos monástica, não é, Stephen? e muito digna, estou certa. É mesmo uma lástima que você não possa vir. Geoffrey acompanhará Claire, e eu pretendo que
Hubert seja o meu galã. Adelaide tornou a sorrir, e com satisfação, pois tinha as suas razões para não desejar que Stephen fosse um do grupo.
- Não podemos deixá-la em alguma parte, Caroline? - perguntou Hubert.
- Oh, não, Davie e eu iremos de metro.
- E eu de ônibus - disse Stephen.
Trocaram-se despedidas, e então, vagamente consciente do desgosto nos olhos de Claire, Stephen afastou-se com Caroline e Davie. Como ainda tinham alguns minutos,
deteve-se no Fuller's da Park Road para oferecer um sorvete de morango ao seu jovem irmão e uma taça de chá a Caroline, que, sub-repticiamente descalçando os sapatos,
confessou que estivera mortificada todo o dia. Depois ele os deixou no metro da Baker Street e tomou o ônibus nº 23 para a zona leste.
Ao matracolejar para Stepney, a despeito do alívio de estar novamente entre gente impolida que não pedia mais do que a sua parte numa cadeira dura, uma lenta depressão
foi tomando conta de Stephen. Como se sentira física e espiritualmente diminuído, como se sentira diferente dos outros durante voltas em todas as metas de críquete,
os encontros e cumprimentos, o almoço no Guard's Club Marquee - "seu diabinho" - quase podia ouvir o pensamento por trás dos olhares indiferentes dirigidos para
ele pelos amigos do primo, ao discutir com Geoffrey a última comédia musical, a corrida de obstáculos
de Sussex, e a última fantasia para o Cambridgeshire. Com esta disposição, chegou à Sede. No saguão, ainda redolente dos odores do bife refogado com repolho do meio-dia,
passou por Luftus, que saía, e deu-lhe uma "boa-tarde". O coadjutor noviço mal respondeu e escorregou para a frente, discreto e elegante, o olho com um tal brilho
de malícia e divertimento, que Stephen recuou instintivamente.
- Que é que há, Loftus?
Já na porta, o outro como que se voltou, com lábios torcidos e apertados pelo humor eclesiástico.
- Então não sabe?
- Claro que não, o que é?
- Não muito, acho eu. A não ser que a pequena Dill parece estar em maus lençóis.
De que diabo estava ele falando? pensou Stephen. Mas deu de ombros, e vendo que não havia correspondência na estante, subiu as escadas. Sentada tesa numa cadeira
dura no centro do seu quarto, usando as suas roupas de sair à rua, um chapéu de palha chato com uma fita estreita, e luvas brancas de algodão, estava Jenny.
Levantou-se imediatamente quando ele entrou, mas com compostura, e enquanto ele a olhava com surpresa, uma vez que ela normalmente não vinha à Sede nos sábados,
ela começou:
- Peço-lhe desculpas pela liberdade, senhor. Mas eu queria estar certa de encontrá-lo. E parece que não havia outro jeito senão eu esperar.
- Muito bem - disse ele incerto. - Não quer sentar? Assim é melhor. Então, que é que há?
Enquanto ele ia até a lareira, ela tornava a sentar-se na beira da cadeira, com as luvas cuidadosamente dobradas.
- Bem, senhor. O fato é que vou embora, hoje, meio de repente. E como o senhor tem sido tão bom para mim, achei que tinha que vir lhe dar adeus.
- Oh, Jenny, sinto muito. Não imaginei que você nos deixasse tão cedo.
- Nem eu, senhor. Mas a verdade é que me despediram.
- Despediram? - repetiu ele desnorteado.
- Sim, despediram. - Acenou com a cabeça, francamente, no seu modo prático, sem acanhamento. - A culpa foi minha. Ontem fui tão boba que vim sem o meu espartilho.
Eu nem notei que já começava a aparecer. Mas não há jeito de enganar essa cozinheira. Correu para o Guardião como uma flecha.
- Mas de que diabo está falando?
- Não está vendo, senhor? Vou ter uma criança.
Ele ficou tão desconcertado que não conseguia achar o que dizer.
- Oh, Jenny, como é que você...?
- Acho que me deixei levar, senhor.
- Como?
- Nós todos temos sentimentos, senhor. Não se pode fugir disso. Oh, eu sou muito respeitável, garanto lhe. Alf é um sujeito correto. Camaroteiro de navio, como eu
lhe disse. Vamos casar quando ele voltar.
Houve uma breve pausa, enquanto Stephen a estudava com simpatia.
- Suponho que você o ama.
- Acho que deve ser isso, senhor. - Um ligeiro e sábio sorriso passou-lhe pelo rosto jovem e fresco. - Ele é muito mais velho que eu, isso é. E vou lhe dizer: se
não fosse pelas duas cervejas que tomei no Good Intent, eu não teria cedido. Mas aí eu também podia ter feito pior. Alf é decente, lá isso é. E habilidoso também.
Gosta de música e me ensinou a tocar gaitinha de boca.
Outra pausa.
- Bem... vamos sentir a sua falta, Jenny.
- E eu vou sentir falta do senhor. Acho que o senhor foi até bom demais comigo. Não é igual a outros por aqui.
- Que outros?
- Bem, principalmente o Guardião, senhor. Tenho que dizer que ele me perseguiu muito antes de me botar na rua.
- Mas você não está saindo por sua vontade?
- Oh, não, senhor. Isso não me convém nem um pouco... Vivo por minha conta, sabe, e não tenho pais vivos. Mas o Guardião não queria ter este lugar contaminado, disse
ele, com três jovens-coadjutores por aqui, e me despachou na hora.
Stephen mordeu o lábio. Olhando disfarçadamente para a moça, percebeu que, sob a sua expressão habitual de serenidade e bom humor, ela parecia pálida e desorientada.
Seria capaz de jurar que não havia nela um pingo de maldade.
- Jenny - disse ele impulsivamente - eu não quero interferir. Mas espero que você tenha feito arranjos para... ir a um hospital... essas coisas.
- Não vou para o hospital, senhor. Tenho o meu quarto. E vou falar com a Sra. Kelley. Ela é parteira, senhor, e muito recomendada.
- Você tem certeza de que estará bem?
- Oh, não se preocupe comigo, senhor. - Pela primeira vez havia uma nota de tristeza na sua voz. - Eu só espero não ter trazido encrenca para o senhor. Isso tudo
aconteceu porque o senhor me arranjou trabalho na aula de arte. E o Guardião parece que ficou furioso com isso.
Stephen ficou um tanto desconcertado com essa notícia. Contudo, o seu genuíno interesse era por Jenny. A admiração que sentia por sua coragem e bom senso, e a indignação
pelo tratamento que lhe tinham dado, tornavam-no mais descuidado consigo. Tinha começado a gostar dela nos últimos meses,
e não podia deixá-la sem alguma expressão da sua boa vontade. Voltou-se de lado, remexeu meio inconscientemente na sua carteira e deu um passo na direção dela.
- Escute, Jenny. Não quero ofendê-la. Mas você fez tanta coisa por mim aqui... você realmente vai precisar de alguma coisa para sustentar-se. Eu gostaria que aceitasse
isto.
Desajeitadamente, pôs-lhe na mão uma nota de cinco libras, que, para esconder o seu elevado valor, dobrara em várias partes.
- Não... não vou aceitar isso...
- Mas Jenny... você tem que...
As lágrimas não lhe vinham facilmente, mas ela passara por tantas agruras naquele dia, que agora elas corriam quentes pelas suas faces.
Nesse momento, enquanto ela se retirava e ele a acompanhava, estendendo-lhe o dinheiro, a porta abriu-se e o Guardião entrou. Houve um silêncio mortal por um momento,
enquanto ele ficava petrificado. Depois, com a voz controlada, disse:
- Pode ir agora, Dill.
Quando Jenny se voltou para sair, arrasada, com as lágrimas a escorrer lhe pelas faces, Stephen, a despeito da sua expressão culpada, vermelha, teve calma suficiente
para se aproveitar da sua confusão e enfiar-lhe a nota no bolso da jaqueta.
- Adeus, Jenny - murmurou ele. - E muita sorte.
Sua resposta, se resposta houve, foi inaudível.
Ainda na sua maneira distante, o Reverendo Crispin fechou a porta atrás dela; depois, com um rápido olhar para Stephen, comprimiu os lábios e fixou o olhar no teto.
- Desmonde - disse ele - presumi que a sua conduta tinha sido seriamente indiscreta. Mas jamais sonhei que pudesse ir tão longe. Como amigo de seu caro pai, isso
me aflige mais do que posso expressar.
Stephen engoliu o bolo que tinha na garganta. A cor lhe fugira do rosto, mas havia uma centelha nas suas pupilas escuras.
- Não posso compreendê-lo.
- Ora, vamos, Desmonde. Você não pode negar que está, e tem estado há algum tempo, em termos de imprópria intimidade com a jovem pessoa que acabo de despedir.
- Fui amistoso com Jenny. Ela fazia muitas pequenas coisas para mim. E procurei ajudá-la, em retribuição.
- Ah! - fez o Guardião num tom significativo. - E a sua ideia de ajudá-la é estar frequentemente com ela, sozinho, no seu quarto?
- Ela vinha arrumar o quarto. E ocasionalmente fiz alguns esboços dela. Isso é tudo.
- Ora essa! Então você acha que faz parte dos seus deveres, como candidato à ordenação, tomar um modelo, furtivamente, entre as criadas desta casa de Deus? Foi meu
dever examinar alguns desenhos que resultaram dessa colaboração ilícita, e devo confessar que me pareceram extremamente questionáveis.
O sangue subiu à testa de Stephen. Seus olhos fuzilaram furiosamente.
- Pelo que sei do seu gosto, senhor - respondeu ele, tremendo ligeiramente - não me surpreende que não os tenha compreendido.
- É mesmo? - fez Bliss com a calma ácida que achava ir-lhe tão bem. Na verdade, parece que meus padrões, particularmente os de moralidade, diferem dos seus.
- Certamente diferem. - Stephen jogou a prudência de lado. - Eu não teria atirado essa pobre moça no olho da rua por causa de um erro.
- Ouso dizer que não. Isso é precisamente o que eu temia.
Até este momento, as maneiras do Guardião tinham sido estudadamente controladas, mas agora as suas narinas se apertavam e algo não diferente de uma carranca se estabeleceu
na sua testa elevada.
- Embora Dill tenha dado o nome do seu parceiro, não estou inteiramente convencido. Minha firme convicção é de que, pela sua conduta para com essa infeliz moça,
pela maneira como a utilizou para os seus fins chamados artísticos, você é responsável, ou pelo menos indiretamente culpado, pelo estado de depravação em que ela
caiu.
Respirando rapidamente, Stephen encarou Bliss com uma expressão maldosa no rosto. Explodiu:
- Nunca ouvi tanta tolice na minha vida. Nem tamanha hipocrisia. Jenny não é depravada. Ela tem um namorado e vai se casar com ele. Sua ideia de caridade cristã
é vilipendiá-la, e a mim, sem uma justa causa?
- Cale-se, senhor. Não tolerarei que fale comigo dessa maneira. Na verdade, se eu fosse cumprir à risca o meu dever, deveria pedir-lhe que deixasse a Sede imediatamente.
- Fez uma pausa para se recuperar. - Mas em atenção à sua família, e também ao futuro que ainda pode estar à sua frente, estou disposto a ser mais tolerante. Devo
dar ao seu pai alguma ideia do que ocorreu. E você, sem dúvida, me dará a sua garantia por escrito de abandonar, de uma vez por todas, essa obsessão que chama de
"arte", e que é inteiramente incompatível com a sua vocação de clérigo. Haverá, além disso, mais algumas restrições que sou obrigado a lhe impor. Venha ao meu estúdio
depois das orações noturnas, e eu o aconselharei.
Terminando a entrevista, sem dar a Stephen uma oportunidade de responder, girou nos calcanhares e saiu do quarto.
- Ora, vá para o diabo que o carregue! - exclamou Stephen violentamente. Mas infelizmente a porta já estava fechada.
Durante uns momentos, Stephen permaneceu tenso, de punhos cerrados, olhos fitos nos painéis de carvalho envernizado. Depois, com um gesto de abandono, afundou numa
cadeira diante da escrivaninha, tirou papel da gaveta e apanhou uma caneta.
Caro papai,
Fiz aqui o melhor que pude e fui nisso um completo fracasso. Não quero magoá-lo, tomando uma decisão final contra a sua vontade, mas, nas circunstâncias, acho que
devo me afastar um pouco - um ano, no mínimo - até poder ver as coisas mais claramente e experimentar a minha capacidade nesse campo particular tão desagradável
para o senhor que sequer o nomearei. Compreendo o golpe que isto representa para o senhor, e a minha única desculpa é que simplesmente não posso evitá-lo.
Recomendações a todos em Stillwater e a Claire. Tornarei a escrever-lhe quando estiver em Paris.
Stephen
CAPÍTULO VI
PARIS ERA DESCONHECIDA PARA STEPHEN, e embora ao primeiro fôlego o estimulasse como vinho, ele entrou nela nervosamente - como se temesse aqueles olhares satíricos
que os verdadeiros parisienses devem conceder a um forasteiro. Assim, apegava-se ao nome de um hotel que ouvira o pai mencionar num tom de benigna aprovação clerical,
e dando-o ao cocheiro com a maior segurança que pôde encontrar, foi arrebatado da Gare du Nord com uma imprudente velocidade através das ruas naquela tarde de domingo,
surpreendentemente vazias, para o Clifton, na Rue de la Sourdière. Parecia um lugar tranquilo, não particularmente excitante talvez, abrindo-se através de uma entrada
estreita para um pátio quadrado envidraçado, em torno do qual os quartos estavam dispostos atrás de descascados balcões de ferro fundido. Na portaria sonolenta -
o tom era dado por um gato malhado de preto e amarelo dormitando em cima do balcão - não se surpreenderam pela súbita materialização de um jovem inglês. Na verdade,
quando Stephen foi conduzido ao seu quarto no andar de cima, que era um tanto escuro e bolorento, com o papel de parede desbotado e uma enorme cama de cortinas vermelhas,
o idoso concierge, desafivelando as malas do ombro com exagerada falta de ar, sobressaltou-o ligeiramente ao lhe perguntar se ele queria chá.
- Não, muito obrigado - sorriu Stephen, pensando no extraordinário valor que aquele indistinto interior dava ao velho de olhos lacrimejantes com as faces caídas,
marcadas por veias vermelhas, o seu colete listrado de preto e amarelo. - vou sair... e olhar um pouco por aí.
- Não há muito que ver hoje, monsieur - disse o porteiro, encolhendo amavelmente os ombros. - Tudo está fechado.
Mas Stephen mal podia esperar para desfazer a mala e atirar suas coisas no armário poeirento. Então, eufórico, deixou o hotel e foi andando pelas ruas, a esmo, ao
longo da Rue du Mont Tabor e pela Place de la Concorde. Seu imediato pensamento tinha sido em Glyn, mas no constrangido momento de partir, ele esquecera de pedir
o endereço de Richard, e naquele ínterim não recebera nenhuma notícia dele. No entanto, Stephen estava certo de que, no círculo que se propunha frequentar, logo
o encontraria.
O tempo estava bom e claro, o céu pálido riscado pelas costelas de nuvens brilhantes. Quando viu a longa fila de castanheiros, agora em plena folhagem, junto ao
rio, quase exclamou alto. Agitadas pela brisa, as folhas eram luz e sombra, macias, encontrando os seus olhos como uma carícia. Através da avenida chegou ao Sena,
cinza-aço e polido, reverberando atrás de barcaças atracadas. Numa destas, uma jovem mulher, de seios fartos e cabelo louro, estava pendurando roupas cor-de-rosa
numa corda. Um cachorrinho saltitava nos seus tornozelos. Um homem de camiseta e chapéu baixo de feltro fumava placidamente, de braços nus, sentado num balde emborcado.
Numa espécie de transe melódico, Stephen caminhou lentamente pela margem, através de Port Royal, além da linha de quiosques de livros, de volta à Pont Neuf para
a L'Île de la Cité. Lá, ficou a olhar o jogo de cores sobre a água, o escurecer das sombras sobre as moles de pedra. Somente quando a luz desapareceu, ele se voltou,
com um suspiro apatetado, e começou a voltar para o hotel.
Agora a cidade despertava do seu torpor dominical. Nas ruas laterais, ao norte do rio, os pequenos cafés de esquina começavam a se encher de maneira discreta mas
movimentada. As mercearias estavam abrindo, e famílias da classe média começavam a tomar ar, homens robustos com pantufas apareciam nos umbrais. Diante de uma padaria,
ainda fechada, donas-de-casa, tagarelando tranquilamente, reuniam-se para comprar pão. Estou em Paris, pensava Stephen estonteado, finalmente, finalmente.
À guisa de contraste, o Clifton, banhado numa ténue luz religiosa, tinha um ar solene, quase sepulcral. Na verdade, por um instante Stephen teve a tentação de dar
a volta e ir cear no Maxim's ou no Café Riche, ou qualquer daqueles restaurantes alegres sobre os quais lera tantas vezes. Mas estava cansado e tímido para ir desacompanhado.
Além disso, tinha resolvido fazer uma razoável economia. Da sua pensão anual restavam-lhe 150 libras, e essa quantia deveria durar um ano inteiro.
Assim, baixou ao frio refeitório e comeu sozinho - a não ser por um distante cavalheiro solteirão numa desmazelada jaqueta Norfolk que lia continuamente entre os
pratos, e duas cochichantes velhas de malva, todos inconfundivelmente ingleses - uma refeição de cardápio fixo, de sopa, carneiro, ameixas amargas cozidas, que,
embora fossem perfeitamente saudáveis, demonstravam a falácia do argumento de que, na França, a cozinha francesa era uma arte universal. Contudo, nada poderia abater
a sua alegre disposição. Subiu as escadas assobiando e dormiu como uma toupeira na cama de dossel.
Na manhã seguinte, sem demora, saiu para Montparnasse. Depois de considerável reflexão, tinha resolvido não se matricular na École des Beaux Arts, mas procurar uma
atenção mais pessoal, dada pelo Professor Dupret na sua famosa academia do Boulevard Seline. Encontrou o estúdio sem dificuldade, tendo comprado, no balcão do hotel,
um mapa de Paris. Era no último andar de um edifício esquisito, parecido com um quartel, protegido por grades em ponta de lança e guardado por duas guaritas vazias,
bem no fundo do boulevard. Pairava no ar um cheiro de casca de tanino, indicando que ali fora uma armaria, e uma grande algazarra lá em cima sugeriu a Stephen, por
um sobressaltado momento, que os soldados ainda o ocupavam.
Quando subiu, depois de completar as formalidades de admissão com o massier, um tipo corpulento de cara chata, suéter cinzento, calças de lona, que tinha a aparência
de um boxeador aposentado - e que na verdade lá estava para impedir uma flagrante desordem - a aula já tinha começado.
A saia ampla e clara, aquecida por uma enorme estufa holandesa, com paredes que pareciam todas janelas, estava apinhada com uns 50 alunos, formando o grupo mais
estranho que ele já tinha visto. Na maior parte, eram homens entre 20 e 30 anos de idade, vestidos numa variedade de gostos, de muitas nacionalidades - eslavos barbudos,
indianos de pele escura, um grupo de escandinavos louros, vários jovens americanos. As poucas mulheres eram uma coleção esquisita. O olho de Stephen prendeu-se numa
senhora de idade metida numa blusa cor de rato, espiando a sua tela através de um pincenê de aros de ouro, como uma professora diante do seu quadro-negro num jardim
de infância do campo.
O barulho, ali dentro, era ensurdecedor - um rumor contínuo de conversação, trechos altos de canções, em línguas competitivas, observações fanfarronas
gritadas através da sala. Parecia que o tumulto ia permitir que Stephen entrasse sem ser notado. Mas ao ficar ali na porta, hesitante e um tanto pálido, vestindo
a sua roupa escura de clérigo, colarinho branco engomado e gravata preta, a vestimenta regular para os coadjutores da Clinker Street, sobreveio um infeliz intervalo
durante o qual a atenção da classe se voltou diretamente para ele. E então, no silêncio, uma voz de falsete exclamou:
- Ah! C'est Monsieur l'Abbé.
Uivos de risadas saudaram essa observação. Entrando confuso, Stephen encontrou um banco coberto com raspaduras de paletas, mas nenhum cavalete, espremeu-se com dificuldade
para um lugar, e abriu a sua pasta de papel Ingres sobre os joelhos.
O modelo, um velho de longos cabelos prateados, com o aspecto de um ator decadente, bonito, estava sentado numa postura convencional na plataforma do centro, ligeiramente
inclinado para a frente, com o queixo apoiado nas costas da mão. Stephen não gostou da pose, e a expressão do velho era aborrecida e indiferente, mas apanhou o seu
carvão e começou a trabalhar.
Às 11 horas Monsieur Dupret apareceu - um homem de uns 60 anos, belo de uma maneira teatral, com uma cabeleira arrepiada, porte ereto e digno, e mãos móveis. Apesar
das calças ligeiramente frouxas, o seu fraque ajustado dava-lhe um ar correto, distinto, acentuado pela fita na lapela. A sua entrada, impressionante e brusca, causou
uma cessação do barulho maior, e em relativo silêncio ele começou a dar vagarosamente a volta à sala, detendo-se aqui e ali para examinar uma tela com olhos apertados,
pronunciar, com um floreado gesto das mãos, umas breves palavras, mais como um cirurgião visitando a sua enfermaria.
Quando ele se aproximou, Stephen preparou-se para algumas palavras de saudação, de cortês interrogação, mas o professor, com alheamento impessoal, não disse coisa
alguma. Olhou de esguelha para Stephen, meio curioso, meio indiferente, e depois para o seu esboço, e, no instante seguinte, sem um piscar de olhos, desapareceu.
À uma hora tocou uma sineta. Imediatamente se ergueu uma vozearia, o modelo levantou-se como se fosse soltado por uma mola e afastou-se da plataforma, enquanto em
volta os estudantes atiravam pincéis ou carvões e começavam a se acotovelar contra a porta. Perturbado e decepcionado, Stephen foi arrastado, contra a sua vontade,
pela turba que empurrava. Subitamente, no seu cotovelo, ouviu uma voz agradável.
- Você é inglês, não? Meu nome é Chester.
Stephen voltou a cabeça e deu com um jovem mais ou menos da sua idade sorrindo para ele. O cabelo, o queixo partido e os olhos azuis, sombreados por compridas pestanas
negras, davam-lhe um ar de sincero e atraente encanto. Usava uma velha gravata de Harrow.
- Espero você lá embaixo - disse ele quando a maré o carregou. Lá fora, Chester estendeu-lhe a mão.
- Espero que não se importe de eu vir falar com você. No meio dessa turba, os que são do outro lado do Canal devem ficar juntos.
Após a sua deprimente recepção, Stephen estava contente por ter achado um amigo. Quando se apresentou, Chester fez uma pausa por um momento, e exclamou:
- Que tal almoçar comigo?
Saíram juntos pela avenida.
O restaurante em que entraram ficava bem perto, na Place Seline, um salão estreito, de teto baixo, quase uma adega, abrindo para uma cozinha escura, a meia dúzia
de passos do nível da rua, com um fogo de carvão de lenha e espetos com assados, cheio do barulho de panelas de cobre e de um agradável cheiro de cozinha. O lugar
já estava repleto, principalmente de alunos de Dupret, mas Chester, com tranquila segurança, guiou-o através de um pequeno pátio adornado por cubas de alfenas, calmamente
retirou o cartão marcado "RESERVADO" de uma mesa do fundo, habilmente atirou o chapéu para um cabide e convidou Stephen a sentar-se.
Imediatamente, uma mulher gorda, de cara vermelha, vestida de preto, protestou da cozinha:
- Não, não, Harry... Esse lugar está reservado para o Monsieur Lambert.
- Não se agite, Madame Chobert - sorriu Chester. - A senhora sabe que Monsieur Lambert é meu amigo. Além disso, ele sempre chega atrasado.
Madame Chobert não se deu por satisfeita; discutiu e resmungou, mas o charme de Harry Chester - embora ela claramente tentasse precaver-se contra ele - no fim acabou
por vencê-la. Encolhendo os ombros com pena da sua própria fraqueza, levantou a ardósia escrita a giz que pendia da cintura do seu avental, e apresentou-lhes o cardápio.
Por sugestão de Chester, pediram potage maison, boeuf bordelaise e um queijo brie. Uma jarra de cerveja amarela e espumante já estava sobre a mesa.
- Não é uma pessoa má - sorriu Chester quando ela se afastou. Durante a refeição, ele manteve a conversação viva e fluente, aludindo, com inesgotável provisão de
troça e frases feitas, aos seus vizinhos. Apontou para Biondello, o italiano, que já tinha exposto no Salon do ano passado, e Pierre Aumerle, um caso irremediável,
que bebia uma garrafa de Pernod todos os dias, almoçando com uma mulher de semblante ocre com um enorme chapéu, para a qual Chester ergueu as sobrancelhas com um
sorriso. Entrementes, sondou Stephen com algumas perguntas divertidas; então, depois que trouxeram o café filtre, fez uma pausa, com um certo ar consciente, e pareceu
ter achado necessário explicar-se.
- Curioso, não? - comentou ele, riscando desenhos na toalha xadrez - como a gente sempre pode identificar um universitário. Philip Lambert também é um deles. Depois
de Harrow - lançou um olhar rápido para Stephen
- eu mesmo devia ter ido para Cambridge... se não a tivesse trocado pela arte.
Continuou, revelando, com um sorriso suplicante, que o pai tinha sido um grande plantador de chá no Ceilão, ao passo que a mãe, agora viúva, voltara para habitar
uma imensa mansão de Highgate com uma legião de criados. Naturalmente, ela o estragara com mimos, dava-lhe uma generosa pensão. Estava em Paris fazia 18 meses.
- É muito divertido - concluiu ele. - Você deve me deixar mostrar-lhe os meus trabalhos.
- Que acha de Dupret? - perguntou Stephen.
- É o professor mais decente que há por aqui. Você sabe que ele pertence à Legião de Honra?
Ligeiramente chocado, Stephen não respondeu. Chester intrigava-o, como o intrigaria um desenho estranho que, embora agradável, tivesse complexidades estranhas ao
seu gosto.
Terminaram o café. As pessoas começavam a se retirar.
- Seu amigo Lambert parece que não vem - disse Stephen por fim, para quebrar o silêncio.
Chester riu-se.
- Philip é um mendigo errante. Você nunca sabe quando ele vai aparecer... ou com que atraentes saias.
- Ele frequenta a Dupret?
- Trabalha em casa... quando trabalha. Tem recursos particulares, você sabe, e já andou por toda a Europa, estudou em Roma e Viena, mas agora ele e a mulher alugaram
um pequeno apartamento na Esplanada dos Inválidos. - Chester assentiu com um aceno. - E posso lhe dizer que a Sra. Lambert é muito elegante. E, naturalmente, uma
perfeita dama.
Ali estava novamente uma observação que arranhava o ouvido de Stephen, e ele olhou de um modo esquisito para o seu colega, imaginando como poderia usar uma expressão
infeliz. Mas antes que tivesse tempo de responder à pergunta, Harry Chester sentou-se.
- Olhe, aí está Philip.
Seguindo o olhar de Chester, Stephen viu entrar no restaurante um homem delgado, de aparência afetada, com cerca de 30 anos, vestido com uma curta sobrecasaca marrom,
colarinho baixo e gravata fofa. O rosto, pálido e profundamente marcado abaixo dos olhos, tinha um ar de langor. O seu brilhante cabelo preto era repartido nitidamente
no meio, mas a um lado uma mecha tinha escapado num pequeno cacho sobre a sua testa branca. Os seus
modos, aliás toda a sua aparência, davam a impressão de uma indolência amaneirada, de aborrecimento e pretensão.
Quando chegou, pôs a bengala debaixo do braço e começou a descalçar uma luva amarelo-limão, enquanto olhava para Chester com uma alegria levemente desdenhosa.
- Agradeço-lhe por ter guardado a minha mesa, caro rapaz. Mas agora deve ir-se. Espero um convidado às duas horas. E não preciso de acompanhante.
- Estamos saindo, Philip. - O tom de Chester assumira uma inflexão submissa. - Olhe, gostaria que conhecesse Desmonde. Ele entrou para a Dupret hoje.
Lambert lançou uma olhadela a Stephen e depois curvou-se polidamente.
- Desmonde acaba de chegar do seu último ano em Oxford - disse Chester rapidamente.
- Ah, sim - exclamou Lambert. - Que colégio, posso perguntar?
- Trinity - respondeu Stephen.
- Ah! - Lambert relaxou com um sorriso, mostrando os dentes brancos e parelhos, e, tirando a segunda luva apertada de pelica - uma operação que ele executava em
silêncio e sem arrepiar um pêlo - estendeu uma mão pequena para Stephen. - Muito prazer em conhecê-lo. Também estive na Casa. Por favor, não tenham tanta pressa
em se retirar. Posso facilmente encontrar outra mesa.
- Asseguro-lhe - disse Stephen, levantando-se - que terminamos mesmo.
- Então venha tomar chá conosco um dia destes. Estamos em casa quase todas as sextas-feiras às cinco horas. Então falaremos como dois homens de Oxford - seu sorriso
brincou na direção de Chester - e um que quase foi para Cambridge.
A conta, que Madame Chobert apresentara rapidamente, estava sobre a mesa. Uma vez que Chester parecia não vê-la, Stephen apanhou-a e, a despeito dos súbitos e enérgicos
protestos de Harry, pagou a despesa.
CAPÍTULO VII
SOB A MAGIA DA SUA NOVA LIBERDADE, Stephen, entrou rapidamente e com deliciada facilidade numa rotina agradabilíssima, tanto mais que, uma semana
após a sua chegada, recebeu uma carta de Stillwater que foi um grande alívio para o seu espírito. Embora acentuasse o sofrimento ocasionado pela súbita partida de
Stephen, o Reitor havia-o, em certo sentido, perdoado. Obviamente, escreveu ele, a inclinação (a palavra "tentação" fora riscada) tinha sido demasiado forte para
opor-lhe resistência. Por conseguinte, podia "ser tudo pelo melhor", se, como o próprio Stephen tinha proposto, esse interregno de um ano fosse considerado por ambos
os lados como um "campo de prova". Entrementes, aprovava a escolha de Stephen quanto à sua acomodação, conhecia-o demasiado bem para exortá-lo à virtude, e desejava
que nada lhe faltasse do que cabia à sua condição.
De manhã, era uma sensação que nunca diminuía acordar com a consciência de que estava em Paris, de fato seguindo a sua "carreira artística".
Levantou-se, vestiu-se rapidamente e, como o desjejum no Clifton não tinha nada que o recomendasse, saiu para uma pequena crèmerie na esquina do hotel. Ali, por
30 soldos, foram-lhe servidos um jarro de café ou lait e dois croissants flocosos ainda quentes do forno e recém-trazidos pelo padeiro.
Sua caminhada para o estúdio através das ruas frescas era sempre uma delícia, A multidão apressada e os policiais de capa azul, as donas-de-casa madrugadoras com
os braços enganchados em cestas carregadas, um soldado zuavo de calça escarlate, duas porteiras tagarelando apoiadas nas suas vassouras, um velho varredor de rua
lançando esguichos de água pela sarjeta, carrinhos barulhentos de verdura fresca do Halles - tudo isso o extasiava além das exclamações súbitas, agudas, a tagarelice
de muitas línguas, um vagaroso badalar de sinos ecoando nos edifícios de um cinza suave, as graciosas pontes brancas, o rio adorável, já começando a cintilar ao sol.
No estúdio, é verdade, ele não se sentia em casa. A falta de ordem e o perpétuo barulho tornavam difícil a concentração. Parecia que muitos estudantes tinham vindo
menos para trabalhar do que por mero divertimento e feroz exibição dos seus espíritos animais. Riam e cantavam, pregavam peças grosseiras, mantinham intermináveis
discussões em altas vozes nos cafés, afetavam uma boémia exagerada no vestuário e nas maneiras. Falavam a gíria do quarteirão, sabiam tudo a respeito dos últimos
"movimentos", reconheciam Manet, Degas e Renoir como seus mestres e imitavam-nos dolorosamente, desprezavam Millet e Ingres, eram muito críticos com Delacroix, e
contudo tinham pouco ou nada para oferecer de seu.
Naturalmente outros havia que se aplicavam. Ao lado de Stephen havia um moço polaco, vindo de uma pequena cidade do interior próxima de Varsóvia, que, inflamado
pela ambição, tinha vindo sem dinheiro para Paris. Para pagar a sua mensalidade na Dupret, havia trabalhado 12 meses como carregador na estação de Montparnasse.
A intensidade do seu esforço era assustadora, contudo ele não tinha o menor talento. Muitas vezes, quando Dupret
fazia a sua ronda diária, Stephen esperava que ele, com uma única palavra, acabasse piedosamente com aquele fútil labor. Mas o professor não dizia nada, nada além
de corrigir uma linha ou apontar uma expressão vazia, a falta de equilíbrio na composição. Sua atitude com Stephen continuava igualmente impassível, embora uma ou
duas vezes, após estudar alguma parte do seu trabalho, olhasse para ele de uma maneira curiosa, quase às escondidas, como se o visse e examinasse pela primeira vez.
Mais e mais, sob o alheamento de Dupret e suas grandes maneiras, Stephen começou a discernir um núcleo carcomido de decepção, a biliosa amargura de um homem que
no seu coração sabia que tinha falhado no cumprimento da sua expectativa juvenil. Ter obtido o reconhecimento dos círculos oficiais, exibir anualmente o seu trabalho
no Salon (uma pintura segura e cuidadosamente executada, que sempre era pendurada em um bom lugar), participar das juntas e comissões, representar a arte de luvas
brancas nas recepções do governo - tais distinções significavam alguma coisa para quem queria abalar o mundo com uma poderosa obra-prima? Dupret não tinha um verdadeiro
interesse pelo seu estúdio e ainda menos por seus alunos, a não ser quando, com uma ponta de ciúmes, via a evidência de um talento que podia ultrapassar o seu. Atrás
daquela fachada, era um homem vazio, um homem movido pelo homem que supunha ser, um homem mais digno de pena do que desprezo. Na verdade, quando o professor entrava
imponentemente na sala, Stephen fazia dele uma curiosa imagem, no fim do dia, despindo vagarosamente o fraque apertado e soltando os botões brilhantes dos sapatos,
remexendo os dedos comprimidos para aliviar os calos, voltando para a tela semiacabada um Casamento Bretão, pensando, com um arrepio: "Mon Dieu, devo continuar com
isto?"
Na hora do almoço, Stephen ia com Chester ao restaurante de Madame Chobert, mas ocasionalmente escapava à efusiva amizade de Harry e vagabundeava ao longo do cais,
mastigando um petit pain no qual havia uma fatia de presunto avivada pela mostarda amarela. Então, apressando o passo, ia aos museus, ao Louvre ou ao Luxembourg.
Era quase noite quando, com olhos ainda não ajustados às realidades da rua, deixava as compridas galerias e caminhava de volta para o Clifton.
Para Chester, e as poucas outras relações que fizera na Dupret, parecia extraordinário que Stephen passasse as suas noites só, e várias vezes instavam com ele para
que os acompanhasse numa visita a Montmartre. Certa ocasião, ele acedeu, acompanhado de meia dúzia de outros, em ir a um café-concerto na Toque Bleue, perto do Moulin
de la Galette.
Mas ficou enormemente entediado com as cenas que se presumiam vívidas e excitantes, mas, de fato, eram estupidamente fúteis. Os salões de dança eram uma massa humana
empurrando, sapateando, rodeando, semi-intoxicada,
ampliada e distorcida por dezenas de espelhos, retorcendo-se em formas grosseiras, ao estridor de uma banda reles. Certo, nada podia ser mais assustadoramente triste
do que as caras dos frequentadores mais velhos - peitos côncavos e olhos mortiços, estranhamente rebarbativos. Algumas das conhecidas cocotes que Chester lhe apontava
eram francamente medonhas, seus parceiros, com roupas pretas justíssimas, sinistros e degenerados.
Mais tarde, diversas jovens se reuniram à festa, que agora atingia uma fase turbulenta. Suas vozes roucas e grosseira camaradagem, seus braços atirados em torno
de pescoços e seus carinhos cochichados em voz alta despertavam nele um frio desagrado. Enquanto ele permanecia ali sentado, pálido e silencioso, como um peixe fora
da água, uma das jovens se curvou para Chester, que tinha bebido um bocado, e, com os olhos em Stephen, riu-se sem motivo e murmurou alguma coisa no seu ouvido.
Imediatamente, Chester rompeu num ataque de riso.
Nesse momento, Stephen não fez nenhum comentário, mas a caminho de casa, com Chester, falou no assunto.
- Não foi nada, meu velho. Ela apenas disse - Chester, com um tom de desculpa, modificou o comentário original, impublicável - que você era um tipo esquisito. -
E quando Stephen desviou a cabeça, acrescentou: - Lamento que você não tenha se divertido esta noite. Não esqueça de que vamos visitar Lambert na sexta-feira. Avise-me
antes de sair.
Nesse dia, por volta das quatro horas, Stephen saiu para a Rue Bonaparte, onde, no número 15, Harry tinha um quarto no último andar. Após uma íngreme subida de três
lances de escada, percebeu que havia uma furiosa altercação, "e empurrando a porta meio aberta encontrou Chester discutindo com um homem baixo de chapéu preto e
quadrado e um sobretudo pardacento, que, imperturbável, superintendia os movimentos de um subordinado muito ocupado em meter num grande saco de serapilheira o relógio
do consolo, um par de vasos chineses e outros objetos que decoravam o quarto.
- Agora, por favor, o seu relógio, Monsieur Chester.
- Ora, deixe disso, Maurice - suplicou Chester - o relógio não. Dê-me um prazo até o fim da semana que eu pago.
Neste momento, Chester viu Stephen. Por um instante, apatetou-se; depois, aproximando-se, forçou um sorriso confiante.
- Não é uma coisa idiota, Desmonde? Esgotei a minha pensão há pouco. E esses credores importunos, miseráveis, estão me despojando. É praticamente nada. Uns míseros
100-francos. E naturalmente receberei o cheque de mamã no fim do mês. É claro que eu não sonharia em pedir a você; contudo, se houver alguma chance...
Houve uma pequena pausa, então Stephen disse, de boa vontade:
- Terei muito prazer em atendê-lo.
- Muitíssimo obrigado, meu velho. Você o terá de volta, com juros, no dia primeiro do mês. Está vendo, Maurice, seu ladrão? E agora foutre le camp.
Dobrou as notas novinhas que Stephen extraiu da sua carteira e atirou ao oficial de diligências, o qual, após contá-las duas vezes com o polegar umedecido, acenou
silenciosamente, esvaziou o conteúdo da sacola sobre a mesa, com uma reverência enigmática, imitada pelo seu companheiro, e deslizou para fora da sala.
- bom! Acabou! - Chester riu-se alegremente, como se fosse uma excelente piada. - Eu ia sentir falta das minhas velhas panelas. E, naturalmente, disto aqui... -
Colocando os vasos de volta no consolo da lareira, abriu descuidadamente a tampa de um estojo chato e exibiu uma medalha redonda de prata presa a uma fita azul;
depois, de um modo um tanto envergonhado, que não deixava de ser encantador, ajuntou: - Essas coisas não se devem mencionar, Desmonde. Mas uma vez que você me apanhou
desprevenido, tenho que falar... é a Medalha Albert. Pois é... tive que recebê-la, há alguns anos.
- Por quê?
Stephen não podia negar que estava impressionado.
- Ora, porque salvei uma vida no mar, é como chamam isso. Uma velha tonta caiu do navio ao largo de Folkstone. Não posso culpá-la... o mar estava muito agitado...
e era inverno. Aconteceu que fui atrás dela. Não foi absolutamente nada. Não estivemos na água mais do que meia hora, enquanto o vapor fazia a curva e nos mandavam
um bote. Mas vamos esquecer isso e tratar de andar. Se não nos apressarmos, chegaremos tarde para o chá.
Com seu bom humor inteiramente recuperado, Chester desceu as escadas na frente, falando e rindo durante todo o caminho até o apartamento dos Lamberts, situado num
beco sem saída muito atrás da Avenue Duquesne. Ali, num pátio de paralelepípedos, havia um pequeno pavilhão de pedra cinzenta - avivado artisticamente por uma porta
verde-maçã e janelas da mesma cor - que fora outrora a casa do porteiro de uma mansão nos dias de Henrique IV. Cheirando a almoço e a defumador recém-queimado, o
pequeno e um tanto escuro interior estava artisticamente disposto com pequenos tapetes felpudos aqui e ali, cortinas de contas e cadeiras de bambu. Um xale espanhol
estava estendido sobre o piano de armário.
Arrastados pela impetuosidade de Chester, chegaram cedo. Lambert, dormitando numa espreguiçadeira junto às cinzas da lareira, ainda parecia afundado na letargia
de após-almoço, e mal ergueu uma pálpebra pesada quando eles entraram. Mas a Sra. Lambert lá estava para recebê-los. Era alta e esbelta, mais velha do que Stephen
tinha esperado, com grandes olhos verdes, feições tendentes à rispidez, cabelo cor de areia e uma pele branca leitosa que com ele combinava. Seu vestido de tarde,
recortado em torno do pescoço de maneira rebuscada e com saias cheias e compridas, era de brocado branco.
Enquanto ela e Chester conversavam, Stephen observava-a, sentada com compostura, com o pescoço arqueado, contra um biombo laqueado, até que ela, como se notasse
o seu olhar perscrutador, voltou os olhos para ele com um sorriso em arco.
- Espero que aprove o meu vestido...
E como ela parecia esperar um cumprimento, ele disse:
- Estou certo de que Whistler teria gostado de pintá-la com ele.
- Que coisa mais encantadora para dizer. - E ajuntou, confiadamente: - Fui eu mesma que o fiz.
Dali a pouco saiu e trouxe o chá, numa bandeja de prata, com muitas xícaras, com finos sanduíches de agrião, e petits fours. Quando começou a servir, Lambert bocejou
e espreguiçou-se.
- Chá! - exclamou ele. - Não posso viver sem chá. Abençoado, nutritivo chá. Forte, Elise. - Aceitou uma xícara, balançou-a airosamente. Este pode ter vindo das extensas
plantações da sua família no Ceilão, Harry. Não é uma ideia estimulante? Diga-nos se reconhece o sabor. - Olhou para Stephen. - Bem... o que esteve fazendo nesta
cidade malvada, Monsieur l'Abbé?
Stephen corou, Viu que Chester tinha andado a tagarelar a seu respeito.
- Certamente lhe parecerá ridículo. Um futuro pastor desertando para a pintura.
E em poucas palavras explicou algumas das circunstâncias da sua vinda para Paris.
Quando terminou, seguiu-se uma breve pausa, e então Lambert exclamou, com a sua costumeira ironia:
- Bravo, Abbé! E agora que já fez a sua confissão, tem a nossa absolvição incondicional.
Elise, inclinando-se um pouco para ele, com um sorriso, murmurou:
- Deve ter sentido uma incrível vontade de pintar. Tome mais um pouco de chá.
Quando Stephen levantou a mão com a sua xícara até os olhos, viu três leques, pintados em seda à maneira japonesa, arranjados sobre a parede. Fez uma pausa, impressionado
pela delicadeza do trabalho.
- Quem fez essas coisas tão encantadoras?
As pálpebras de Lambert ergueram-se. Acendeu um cigarro, antes de responder, de modo quase casual:
- Para dizer a verdade, caro Abbé, são minhas. Se não lhe aborrecer, mostro-lhe mais alguns trabalhos meus.
Depôs a xícara, e de uma pequena passagem lateral trouxe várias telas; então, de uma maneira fatigada colocou-as em pé, uma após a outra, de modo que recebessem
toda a luz, numa cadeira alta junto à janela.
A maioria dos quadros era bem pequena, e de temas leves - um raminho de flor de cereja numa malga azul, dois salgueiros à beira de uma poça estagnada, uma criança
com chapéu de palha sentada num caramanchão à margem de um rio - contudo, cada um deles tinha uma beleza decorativa que acentuava o simples. Era uma qualidade que
parecia infundir em formas pálidas um encanto enfastiado e indefinível.
Mostradas as poucas pinturas, Stephen voltou-se para Lambert.
- Eu não tinha ideia de que podia pintar assim... são encantadoras. Lambert encolheu os ombros, mas estava claramente satisfeito, ao passo que sua mulher, estendendo
o braço, apertou vivamente a mão de Stephen.
- Phil é realmente um génio. Ele também pinta retratos. - Seus olhos verdes demoraram-se luzindo. - Se souberem de alguém que esteja interessado em comprar... Sou
a sócia comercial.
Depois disso, a campainha da porta soou e,.em rápida sucessão, outros convidados chegaram, todos singularmente apropriados para aquela atmosfera de refinada boémia:
um jovem de meias brancas com um manuscrito debaixo do braço, outro homem, menos moço, mas de ombros quadrados e bem vestido, da Embaixada americana, uma modelo
chamada Nina, que Stephen tinha visto ocasionalmente no restaurante de Madame Chobert. Um francês de monóculo, gordo e idoso, que beijou a mão de Elise com tocante
galanteria, e sobre o qual, como um possível comprador, ela voltou todas as suas blandícies.
Um chá novo foi trazido, Lambert serviu uísque, o ruído da conversação aumentou, e dali a pouco Stephen, que em sua primeira visita não queria ficar muito tempo,
levantou-se para se retirar. Philip e a esposa instaram para que ele viesse outra vez. Aliás, Madame Lambert interrompeu a conversa para acompanhá-lo até a porta.
- Venha conosco rio acima no domingo. Fazemos um piquenique em Champrosay. - Deteve-se, de olhos grandes, com o ar de quem fazia um cumprimento. - Philip gostou
muito do senhor.
No domingo, então, e em outros dias depois, Stephen acompanhou os Lamberts, às vezes só, às vezes com Chester ou outros de seus amigos, àquela adorável altura do
Sena, entre Châtillon e Melun. Tomavam o bateau mouche na Pont Neuf para Ablon, onde alugavam um esquife e subiam com remadas descansadas a vagarosa corrente verde,
serpeando placidamente entre as ribas tornadas famosas pela Floresta de Sénart até atracarem diante de uma estalagem à margem do rio, desembarcando para almoçar
numa mesa de madeira ao ar livre.
O tempo era soberbo, a folhagem no seu melhor momento de beleza madura, as malvas-rosas e os girassóis em plena florada. O sol cintilante e o
ar caricioso, o exercício, aqueles amigos agradáveis, a esfuziante novidade de cada vista e som, o apito rouco de uma barcaça, a cor da blusa de um operário, a pose
da mulher do encarregado da comporta, tudo o que nele despertava um êxtase vibrante agia como um entorpecente sobre Stephen. Lambert, tirante algumas horas de melancolia,
estava na sua disposição mais atraente, lançando um dito de espírito aqui, um epigrama ali, exibindo o seu brilhantismo, recitando longos trechos de Verlaine e das
Fleurs du Mal.
- Mais sagrada que o Indo - murmurava ele, detendo-se para tomar fôlego, arrastando os seus compridos dedos na corrente fria, com o peito estreito a arfar, a mecha
de cabelos caída sobre a testa úmida. - Esses lírios d'água... cálices do mais puro alabastro... translucidamente rosados... e frios... frios como os seios das ninféias
flutuantes... - E assim por diante.
Seu olho para a beleza não se limitava à natureza, e sempre que a mulher que os servia na estalagem era razoavelmente favorecida, ele, a despeito do olhar agudo
da esposa, flertava com ela ultrajantemente.
A princípio, Stephen trazia consigo um bloco, querendo registrar tudo o que via, mas Lambert desanimou-o com um sorriso cómico.
- Deve guardar tudo aqui, caro Abbé. - Bateu na testa ligeiramente. Mais tarde... na solidão... isso nascerá outra vez.
Numa tarde de domingo, depois de uma excursão mais encantadora do que qualquer outra, Stephen despediu-se dos Lamberts e de dois outros que tinham participado do
passeio de barco, e caminhou do embarcadouro, no Quai St. Bernard, para o seu hotel. O sol, afundando agora por trás da cúpula do Trocadero, tinha incendiado o céu
o dia inteiro. Animados pelo calor do dia, todos tinham se banhado num lago abaixo do açude de L'Hermitage, comido um almoço especial de trutas, frias com patê,
enriquecido pelo nobre Chambertin, e depois adormecido sobre a relva tépida embaixo das faias de Sénart.
Como ele se sentia bem!... a pele queimada pelo sol, os pulmões cheios de ar do campo, o corpo formigando com a água picante do rio... uma espécie de satisfação
divina espalhava-se por ele.
De súbito, ao atravessar a Rue de Bièvre, um homem saiu de uma entrada estreita bem à sua frente. Usava sapatos pesados, uma calça de pele de toupeira e uma blusa
de porteiro pintalgada de azul; em torno do pescoço, um lenço vermelho enrolado negligentemente. Parecia um trabalhador voltando para casa após um duro dia de labor;
contudo, algo no aprumo dos ombros, o porte desafiante da cabeça, fez Stephen sobressaltar-se. Apressou o passo para alcançá-lo.
- Glyn!
Richard Glyn deu meia-volta, de cara séria e cenhuda; então, ao olhar, as rugas que tão profundamente lhe franziam a testa foram aos poucos desaparecendo.
- É você, Desmonde... Conseguiu deixar aquilo.
- Há cinco semanas - disse Stephen sorrindo de prazer. - E desde então estive esperando encontrá-lo. Escute, estou justamente voltando para o hotel. Venha e jante
comigo.
- bom - considerou Glyn - eu bem que gostaria de dar umas dentadas. Não comi nada o dia inteiro.
- Deus do céu, que esteve fazendo?
- Pintando... desde as seis da manhã - respondeu Glyn com uma espécie de violência sombria. - Costumo esquecer o almoço quando estou trabalhando... especialmente
quando não consigo dominar meus amaldiçoados valores das nuanças.
Falando, os seus olhos de ágata cintilavam com uma súbita e rude impaciência, o cansaço de um prolongado e apaixonado esforço para criar. Travando Stephen pelo braço,
saiu com ele rua afora.
CAPÍTULO VIII
O APARECIMENTO DE GLYN, de lenço vermelho no pescoço e botas ferradas, causou um pequeno rebuliço na sala de refeições do Clifton. O velho chefe dos garçons, criado
na tradição dos milords ingleses, não gostou do que via, e as duas damas solteironas, que até agora consideravam Stephen com simpática aprovação, agitaram-se de
chocada surpresa. Richard, contudo, não pareceu importar-se e, aboletando-se na sua cadeira, passeou os olhos em torno com visível curiosidade.
- Por que, em nome do Céu, você se hospeda num lugar como este, Desmonde?
- Oh, não sei... habituei-me a ele, suponho.
Glyn provou a sopa, feita, como sempre, de farinha e água gordurosa.
- Talvez você goste da comida, não?
Stephen riu-se.
- Sei que não é lá essas coisas. Mas o prato de carne será bom.
- É melhor que seja. - Richard partiu outro pão. - Eu lhe disse que estava faminto. Uma noite destas vou levá-lo para comer numa verdadeira casa de pasto.
- No restaurante de Madame Chobert?
- Por Deus que não! Nada de casa de picadinhos artísticos!... Detesto falsas aparências, tanto em cozinha como em pintura. Um bistro de cocheiros perto da minha
casa. Você pode confiar numa taberna onde os cocheiros comem. Servem lá um patê de lebre que não é deste mundo. - Glyn se deteve. - Agora me conte o que andou fazendo.
De boa vontade, mas sem entusiasmo, Stephen iniciou um relatório completo das suas recentes atividades. Falou da sua "labuta" matinal na Dupret, encareceu a sua
amizade com Chester e os Lamberts, tornou-se lírico ao descrever as suas excursões a Champrosay. A princípio, Glyn ouvia com um sorriso entre irónico e sarcástico,
mas lentamente a sua expressão se tornou séria, e ele ficou olhando de esguelha para o seu companheiro.
- Bem - exclamou ele quando a narrativa terminou. - Você parece que tem andado ocupado. Talvez me leve depois ao seu quarto para vermos o que tem feito.
- Oh, não tenho muito que mostrar... - respondeu Stephen apressadamente. - Apenas uns poucos esboços. Tenho me concentrado nas linhas, sabe?
- Sim - fez Glyn.
Em completo silêncio, ele mastigava o resistente pouding à l'anglaise que constituía a sobremesa do Clifton. Não disse palavra por uns bons cinco minutos. Depois,
por baixo das sobrancelhas franzidas, voltou para Stephen um olhar firme que também tinha um reflexo de extremo desagrado.
- Desmonde, você quer pintar? Ou enganar a sua vida como um desses personagens extravagantes de La Boême?
- Não compreendo.
- Ouça, então. Há talvez 10 mil impostores safados nesta cidade que se imaginam artistas porque estudam um pouco, desenham um pouco e sentam os rabos nos cafés todas
as noites, cacarejando sobre as suas obras-primas natimortas. Você é quase um deles. Sabe muitíssimo bem que está desperdiçando tempo, Desmonde. Só o trabalho duro,
infernal, é que tira o que você tem aí dentro, não vagabundeando pelo Sena, estendido de costas numa canoa com um poseur simplório que lhe esguicha Verlaine e Baudelaire.
Stephen avermelhou-se, indignado.
- Você é injusto, Glyn. Chester e Lambert são sujeitos muito decentes. E Lambert tem certamente um grande talento.
- Besteira! Que fez ele? Algumas japonaiseries, leques pintados, fragmentos... oh, bem bonito, não nego, mas coisinhas meio efeminadas... afetadas... e tudo muito
pequeno.
- Certamente é um sinal de vulgaridade produzir enormes telas.
Em seu ressentimento, Stephen citara uma observação favorita de Lambert, e Glyn logo farejou a sua origem. Riu-se rudemente.
- E Rubens, e Correggio, e del Sarto, com as suas tremendas concepções, e o velho Michelangelo, cobrindo o teto da Capela Sistina com a sua portentosa visão da Criação,
trabalhando tão duramente que em muitos dias nem tinha tempo de tirar a roupa? Eles foram vulgares? Não, Desmonde... Lambert é um amador bem-dotado, um artista menor,
que nunca seria ouvido se não fosse empurrado por trás pela sua astuta mulher. Não tenho nada contra esse sujeito, é em você que estou pensando, Desmonde. Você tem
algo que Lambert daria a alma para possuir. Não quero vê-lo jogando isso fora por causa da sua maldita tolice. E quanto a Harry Chester, prosseguiu Glyn, será você
tão ingénuo para já não ter saltado por cima dele?
- Não sei o que você quer dizer - respondeu Stephen agastado.
Glyn pensou em esclarecê-lo, mas contentou-se com um sorriso.
- Quanto dinheiro ele já levou de você?
Stephen corou profundamente. Chester tinha em várias ocasiões pedido empréstimos, e agora já lhe devia mais de 500 francos, mas não tinha ele dado a sua palavra
de honra que os pagaria fielmente?
- Ouça - continuou Glyn mais tranquilo - você teve um falso início, acabou em más companhias e, pior de tudo, tem afrouxado abominavelmente. Se não se levantar,
estará cavando o seu próprio túmulo. O poço mais fundo do inferno é ocupado pelo artista que não trabalha!
Fez-se um comprido e gélido silêncio. Embora Stephen se tivesse defendido, ao comparar o seu próprio dia inútil com as horas de esforço concentrado de Glyn, uma
vergonha começava a apoderar-se dele.
- Que devo fazer? - disse ele por fim.
- Em primeiro lugar, sair desta casa anglicana de repouso.
- Quando?
- Agora.
O olhar consternado de Stephen pareceu divertir Glyn imensamente, mas num instante ele ficou novamente sério.
- Não posso lhe pedir que venha para o meu buraco. Mas conheço um homem que terá prazer em recebê-lo.
- Quem?
- Jerome Peyrat é o nome dele. Tio Peyrat. É um camarada velhusco, em situação não muito boa, que quer alguém para dividir as despesas. Um tipo esquisito, por Deus,
mas um verdadeiro pintor, diferente dos seus falsos boémios. - O meio sorriso de Glyn era desconcertante, mas desapareceu rapidamente quando ele concluiu: - Você
já não tem mais nada com Dupret, está claro. Pode usar o meu estúdio. E vou lhe apresentar o meu homem das tintas, Napoleon Campo. Ele fia... às vezes. Vamos embora.
A natureza de Stephen não era adaptada às mudanças súbitas e decisões bruscas, contudo havia uma força avassaladora nos argumentos de Glyn, uma
irresistível compulsão na sua maneira. Dirigiu-se, portanto, ao escritório e, para surpresa e mortificação do gerente, pediu e liquidou a sua conta. Então fez a
mala e trouxe-a para baixo, desculpando-se por sua partida inesperada com uma profusa distribuição de gorjetas.
Glyn, no corredor, e claramente olhado pelo pessoal do Clifton como o demónio da peça, mostrou-se frio a respeito daquelas gratificações, e comentou sombriamente:
- Aconselho-o a guardar o seu dinheiro, Desmonde. Você pode vir a precisar dele depois.
- Espere, Glyn. Eles têm que nos arranjar um carro.
- Para o diabo com o carro. Está realmente tão fraco que não pode andar?
Apanhando a valise, que não era leve, Richard atirou-a no ombro e saiu do hotel a passos largos. Stephen acompanhou-o para a poeira luminosa da rua.
Era uma distância considerável até o alojamento de Peyrat, mas Glyn, que tinha uma satisfação selvagem em extrair o máximo de si mesmo, percorreu-a em passos rápidos,
sem vacilar ou depor a mala. Finalmente, numa escura rua lateral de Rive Gauche, no triângulo formado pelo encontro da Rue de Assas e do Boulevard Montparnasse,
Glyn enveredou por uma entrada torta ao lado de uma pastelaria, que, embora mal iluminada por uma lâmpada fraca, estava esfregada e limpa, e começou a subir de três
em três os degraus de pedra. Deteve-se no segundo andar, bateu na porta e, sem esperar resposta, torceu o trinco e fez Stephen entrar.
Era um apartamento de três cómodos, e na sala de estar, mobiliada com correção burguesa, sentava-se diante da mesa coberta por um oleado um homem franzino, de ombros
redondos, com cerca de 50 anos, um rosto chato e sulcado e uma barba inculta, vestindo, apesar do calor do fogo que flamejava na lareira, um descosido sobretudo
preto com a gola levantada e um chapéu duro, também preto; enquanto um tordo, sem a metade das penas, piava um acompanhamento numa gaiola junto à janela, ele se
exercitava na ocarina. À vista de Glyn, os seus olhos, que eram claros e jovens e o enchiam de engenhosa audácia, brilharam. Depôs o instrumento e, erguendo-se,
beijou Richard, com afeiçoada familiaridade, em ambas as faces.
- Peyrat - disse Glyn brevemente, enquanto se desvencilhava - trouxe-lhe o seu novo inquilino. É um amigo meu. Stephen Desmonde.
O olhar de Jerome Peyrat passou de Glyn para Stephen e nele repousou pensativamente - um escrutínio a um tempo inocente e amável.
- Se é seu amigo, mon vieux, então será meu também. Desculpe-me recebê-lo assim, Monsieur Desmonde. Richard sabe como padeço com correntes de ar.
- Espero que não o estejamos perturbando - disse Stephen, embaraçado.
- Longe disso. De noite tenho o hábito de contemplar a minha própria alma. Às vezes acho-a esplêndida, outras medonha. Esta noite - sorriu gravemente - agradeço
qualquer distração.
- Desmonde é pintor, Peyrat. Vai trabalhar comigo e com você.
- ótimo. - Peyrat não mostrou a menor surpresa. - Seja bem-vindo no meu apartamento... pelo menos temporariamente, uma vez que pertence a Monsieur Bisque, o pasteleiro.
Não importa. Aqui renunciamos à beleza das mulheres e ao brilho da fama contemporânea, a fim de produzir obras-primas que serão aclamadas mil anos após a nossa morte.
- Que esperança! - exclamou Glyn com irónica indulgência.
- É unicamente a esperança que nos mantém vivos.
- E a beata Teresa...
- É verdade. Somos sustentados pelo exemplo dessa nobre alma. - Voltou-se para Stephen. - Já visitou a Espanha?
- Não.
- Então um dia podemos fazer uma peregrinação juntos. Até Ávila de los Caballeros... que fica atrás de muralhas de granito, amareladas pelo sol do verão, geladas
pelo inverno de Castela, aprumando-se como uma grande coroa no seu deserto de rocha contra o duro azul das Montanhas de Greda.
- O senhor já esteve lá? - perguntou Stephen polidamente.
- Muitas vezes. Mas somente em espírito. Glyn explodiu numa gargalhada.
- Aviso-o, Desmonde. Este maluco, que nunca vai à igreja e diz coisas desagradáveis a respeito do Papa, tem uma absurda veneração por Santa Teresa.
- Peyrat sacudiu a cabeça em reprovação.
- Meu amigo, não tome em vão o nome da doce e obstinada mulher de Castela, a Velha, que restaurou a ordem descalça original, abandonou a vida ociosa e tagarela das
carmelitas. Ela troou a sua batalha com o espírito, o encanto, a humildade, as rezas, os argumentos, a paciência de uma santa e a têmpera de um capitão do mar. Também
foi uma poetisa...
- vou sair - disse Glyn, sorrindo e dirigindo-se para a porta. - vou deixá-los a sós para que se conheçam. Esteja no meu estúdio amanhã às sete, Desmonde. Boa noite.
Saiu. Peyrat, após um momento de silêncio, levantou-se e foi apertar a mão de Stephen.
Disse simplesmente:
- Espero que se sinta em casa.
CAPÍTULO IX
AGORA COMEÇAVA PARA STEPHEN, sob a influência de Glyn e Peyrat, uma nova existência, cheia de incessante trabalho, inteiramente oposta à sua recente interpretação
da vida artística. Jerome Peyrat, conhecido no distrito de Plaisance como "Tio Peyrat", era de origem humilde; seus pais, já falecidos, não foram mais que gente
simples do campo - embora ele falasse deles com orgulho - labutando nuns poucos hectares perto de Nantes. Durante 30 anos, como empregado do governo, petit fonctionaire,
passando os dias metido num paletó de alpaca com punhos de papel, tomando anotações nos registros poeirentos do Palais de Justice. Somente uma vez estivera fora
da França, quando, como terceiro secretário de uma comissão judicial, tinha ido à Índia. Lá, passara todo o seu lazer como um espectador ingénuo e fascinado dos
animais alinhados atrás das grades, debaixo das altas palmeiras e carobas do jardim zoológico de Calcutá. Alguns meses depois do seu regresso, o pessoal do ministério
foi reduzido e Peyrat aposentado com uma pensão tão diminuta que mal lhe dava para viver de pão. Então, inesperadamente, nunca antes tendo manifestado no menor grau
qualquer interesse pela arte, começou a pintar prolificamente. Não apenas a pintar, mas a considerar-se placidamente um pintor de génio. Nunca recebera uma só lição
na sua vida. Pintava os retratos dos amigos, ruas, edifícios, feios edifícios, cortejos nupciais, fábricas da banlieue, e punhados de flores agarradas por mãos descarnadas,
pintava composições de florestas - uma forma feminina nua, pródiga de seios e cadeiras, montada num tigre mostrando os dentes embaixo de um intrincado novelo de
palmas, trepadeiras, samambaias, orquídeas de tons cromáticos, uma floresta da imaginação, luxuriante e estupenda, povoada por serpentes e macacos trepadores entrelaçados
como num combate mortal, durante a execução dos quais tremia, suava e, para que não desmaiasse, era forçado, apesar do seu medo de apanhar um resfriado, a abrir
a janela para respirar ar fresco.
A vizinhança encolhia os ombros e sorria diante das suas pinturas, que eram expostas à venda, ao preço de 15 francos, na janela da sua amiga, Madame Huffnaegel,
uma viúva respeitável que tinha uma chapelaria a poucas portas rua abaixo e por quem ele nutria um respeito moderado. A não ser Napoleon Campo, o homem das tintas,
que tinha levado telas em pagamento de materiais
fornecidos a Peyrat - e cujo sótão estava, admitia-se, atulhado de refugos de artistas lutadores - ninguém comprava os quadros, que se tornaram, nas vizinhanças
da Rue Gastel, um alvo regular de hilariante, embora afetuosa, alegria. Contudo, complacentemente, Peyrat continuava pintando, às vezes passando muitas necessidades,
mas completando a sua magra pensão com vários recursos. Além da ocarina, que ele tocava para seu próprio prazer, e do corne francês, tinha um conhecimento limitado
do violino e do clarinete. Consequentemente, escreveu uns volantes que ele mesmo distribuía de porta em porta pelo bairro.
Aviso
JEROME PEYRAT
CURSOS DE MÚSICA, HARMÓNICA E SOLFEJO PARA CRIANÇAS
Aos sábados, das duas às cinco da tarde.
Rápido progresso garantido.
Pais podem assistir às aulas. Mensalidade por estudante: cinco francos.
Número limitado de alunos.
No verão, também tirava um bom efeito da sua habilidade no corne francês, tocando todas as tardes de terça-feira na orquestra que encantava as babás e seus pirralhos
no Jardim das Tulherias. E quando a necessidade o premia demasiado, lá estava o amigo da sua infância, Alphonse Bisque, agora o pasteleiro do Plaisance, gordo, de
meia-idade, completamente calvo, com quem - por recordação sentimental dos dias distantes da escola em Nantes, e não por causa das pinturas que de tempos em tempos
Jerome lhe empurrava em pagamento - se podia contar para fornecer pastel de carneiro ou patê de carne.
Nos seus hábitos e no seu modo geral de vida, Peyrat - Stephen logo o descobriu - era tão engenhoso, tão original como os seus quadros. com toda a sua simplicidade,
tinha uma mente ativa e inquisidora, abarrotada com os frutos das suas pesquisas em volumes abstrusos de segunda mão comprados nos quais, frequentemente vomitados
em discursos ingenuamente eruditos sobre história, teologia medieval ou assuntos tão inconciliáveis como Cosme de Alexandria, que no ano 548 denunciara a doutrina
da redondeza da Terra, e Santa Teresa de Ávila, a quem ele, um ateu, tinha tranquilamente tomado por padroeira.
A despeito dessas excentricidades, portava-se, na sua frase favorita, como un brave homme et un bon camarade. Por mais cedo que Stephen se levantasse, Peyrat já
estava de pé antes dele, para apanhar o leite e o pão quente que o menino Alphonse entregava todas as manhãs na sua porta. Terminado o seu simples desjejum, vestia
um avental e lavava a louça; depois, tendo dado água e sementes ao tordo que achara na rua, estropiado por um gato, e que se propunha soltar quando a asa se emendasse,
aprestava-se para o dia de trabalho, punha no ombro a sua paleta e caixa de tintas, mais um grande guarda-chuva para protegê-lo contra os elementos, e saía a pé
para algum canto remoto dos subúrbios, Ivry, Charenton ou Passy, onde, imperturbável ante comentários grosseiros dos passantes ou peças que as crianças lhe pregavam,
atormentando-o, perdia-se na maravilha e no mistério de transpor para a tela alguma visão celestial de um vagão encostado, um bonde ou o cano de uma chaminé.
Stephen saía à mesma hora, apressando-se todas as manhãs para a Rue de Biêvre a fim de utilizar a luz clara do norte, depois do amanhecer, que jorrava através das
clarabóias chumbadas do estúdio de Glyn. Richard, que nunca se poupava, era impiedoso na sua atitude de severo e às vezes estúpido feitor.
- Mostre-me o que é capaz de fazer - dizia ele sombriamente. - Em seis meses, se você não me satisfizer, pode voltar para o Senhor.
O modelo de Glyn, Anna Montel, era uma mulher de 30 anos, alta e vigorosa, de cabelos negros e olhar cigano, desolado. Era uma ramani Cinzany, cujos antepassados
deviam ter vindo originariamente da Hungria, embora Glyn a tivesse encontrado numa remota parte de Gales do Norte. Sua pele era áspera, e como sempre ela andava
descalça, numa saia escura e blusa verde, sem luvas ou capote; suas mãos e faces eram gretadas pelas cortantes brisas do outono que assobiavam na rua vindas do rio.
Mas os planos daquela face castigada pelo vento, com as suas órbitas firmes e malares altos, eram lisos e fortes. Andando pelo estúdio nas suas chinelas de ourela,
lendo de relance os desejos de Glyn, era a pessoa mais silenciosa que Stephen tinha conhecido-. Posava a todas as horas, e por longos períodos; depois, sem uma palavra,
deslizava do estúdio para Halles e, voltando com uma braçada de provisões, ia ao fogãozinho e preparava um goulash, ou coava café naquela chaleirinha azul de esmalte
com o bico quebrado, que figurou, mais tarde, num dos mais conhecidos quadros de Glyn: Le Café Matinal.
Embora nunca procurasse instruir, Glyn era incansável na sua exigência por originalidade, insistindo em que Stephen descartasse as suas noções preconcebidas, encorajando-o
a olhar para os objetos não como eles eram vistos e representados pela tradição, mas com os seus olhos novos.
- Faça como Peyrat faz! - exclamava Glyn. - Faça cada quadro absolutamente seu.
- Você tem Peyrat em grande conta?
- Acho que ele é grande. - Glyn falava com inteira convicção. - Tem a visão direta original de um artista primitivo. Podem rir dele o quanto quiserem, achando-o
um velho tolo. Mas dentro de 20 anos se arrastarão para ter um dos seus quadros.
Era um trabalho duro - e frio. No estúdio gélido, as semanas avançavam mais frígidas ainda, porque Glyn tinha uma teoria espartana de que ninguém podia dar o que
tinha de melhor num ambiente de conforto. Morta para sempre estava a primeira ideia de Stephen de que pintar era uma arte suave e sedutora. Nunca em sua existência
teve um regime tão rigoroso. E Glyn era insaciável na sua demanda por maior, e ainda maior, esforço.
Um dia, quando a cabeça de Stephen girava e ele sentiu que não podia continuar, Richard, respirando fundo, atirou a sua paleta no chão.
- Exercício - decretou ele. - O tampo da minha cabeça está saltando. Sabe andar de bicicleta?
- Sem dúvida.
- Suponho que você praticava o crawl de coadjutor lá em Oxford. Seis quilómetros por hora.
- Acredito que posso fazer um pouco melhor do que isso.
- Muito bem. - Glyn sorriu. - Veremos de que você é feito.
Saíram do estúdio e atravessaram a rua para a loja de bicicletas do quarteirão, atendida por Pierre Berthelot, um antigo ciclista de corridas que, embora incapacitado
agora por um coração danificado pelo Pernod, tinha nos seus dias obtido um terceiro lugar no Tour de France. Era um estabelecimento pequeno, arruinado, com uma fila
de bicicletas penduradas do teto, na frente, e uma escura oficina de reparos ao fundo. Entraram. O lugar parecia deserto.
- Pierre! - gritou Glyn, batendo no balcão.
Uma moça de uns 20 anos surgiu dos fundos. Era um tanto baixa, usava um suéter escuro e uma saia preta pregueada, com pés sem meias enfiados em compridas chinelas
pretas.
- É você? - fez Glyn.
- A quem esperavk? A rainha de Sabá?
- Por que não está no circo?
- Desmontado para o inverno. - Ela falava com frases curtas, desgraciosamente, com as mãos nas cadeiras e as pernas separadas.
- E o seu pai?
- Curando uma bebedeira.
- Hum! Stephen, esta é Emmy Berthelot. E enquanto ela olhava de um para outro de uma maneira aborrecida, ele continuou: - Queremos duas bicicletas para esta tarde.
Boas.
- Todas são boas. Peguem as duas do fim.
Enquanto Glyn abaixara a corda na roldana, Stephen observava-a experimentar cada bicicleta como entendida, fazendo as rodas girarem. Tinha um rosto pálido, emburrado,
testa baixa, ligeiramente saliente, sobrancelhas bem marcadas, uma boca grande de lábios finos. O nariz tinha uma boa linha, mas apresentava essa ponta arrebitada
dos bairros pobres que a denunciava. A não ser pelos seios, salientes sob o jérsei apertado, tinha a figura de um menino bem desenvolvido. Virando inesperadamente,
notou que Stephen tinha os olhos nela. Sob o seu olhar frio e avaliador, ele sentiu que corava - havia na maneira dela uma insolência que o magoava. Richard estava
levando as bicicletas para a porta.
- Gostaria de vir conosco Emmy?
- De que jeito? Tenho que cuidar da loja. Graças a esse velho beberrão.
- Outro dia então. Voltaremos antes de escurecer.
Stephen acompanhou Glyn para a rua. Montaram e, dobrados em dois sobre os guidons abaixados, Glyn adiante, afastaram-se, furando o tráfego do Faubourg St. Germaine
até a Porte de Versailles. Fora das portas da cidade, aceleraram pela estrada reta e lisa para Ville d'Avray. Richard, com ocasionais olhadelas para trás, imprimiu
uma velocidade arriscada. St. Appoline, Pontchartrain e Meul ficaram vertiginosamente para trás. E, depois, Jussieu, e Orgeval. Por fim, numa ampla curva circular,
tinham percorrido cerca de 30 quilómetros, e Glyn parou com uma freada diante de uma buvette na pequena aldeia de Louveciennes. Respirando forte, olhou criticamente
para Stephen, suado e empoeirado, completamente sem fôlego. Sorriu.
- Nada mau, meu rapaz. Você não gosta de desistir, não é? É uma qualidade que pode lhe ser útil. Venha tomar uma cerveja.
No bar escuro, de teto baixo, tomaram uma caneca de cerveja gelada, que escorregou deliciosamente nas suas gargantas secas. Glyn sugou a espuma da barba e suspirou.
- bom lugar para pintar este campo em torno de Louveciennes - meditou ele. Renoir e Pissarro costumavam andar por aqui. Sisley também. Traremos Emmy para dar o ritmo.
Ela pode realmente vir.
A lembrança do encontro na loja de bicicleta ainda doía em Stephen. Ele disse secamente:
- Aquela moça me pareceu uma pessoa um tanto desagradável.
Glyn soltou uma risada.
- Modere a sua língua, padre... - E depois de uma pausa: - Na verdade, ela é uma putinha barata... o seu amigo Chester podia lhe dizer... E dura. Praticamente criada
na equipe no circuit de France. Troteia por aí com um bando de vadias. Faz uma tournée de seis meses por ano com o grupo do Peroz.
- Peroz?
- Adolf Peroz. Primeiro, eram os Irmãos Peroz. Adolf é o sobrevivente. Conheço-o. Sujeito decente. Tem um circo muito bom. Emmy faz os números de ciclista. Acho
que deve ser extremamente arriscado. Ela ganha um bom dinheiro, e deixa você saber disso. Ela não tem préstimo para nós, realmente, e sabe que andamos tesos. Mas
é incrivelmente vaidosa, e quer que eu a pinte.
- Vai pintar?
- Não mesmo! Não lido com tipos da sarjeta. Mas me divirto pondo uma mosca na sopa dela. Ela é realmente uma perfeita cadelinha. - Terminou a sua cerveja. - Vamos
embora.
Voltaram lentamente no frescor da tarde. Glyn estava eufórico, purgado da tensão nervosa, cantando trechos de canções populares do País de Gales.
Diante da loja de bicicleta, consultou o relógio e deu um assobio.
- Estou atrasado. Tenho que me encontrar com Anna. Entregue isto por mim, como um bom sujeito. Deixou a sua bicicleta com Stephen e precipitou-se.
Com alguma dificuldade, Stephen manobrou as duas bicicletas para dentro da loja. Como antes, estava vazia. Ele bateu no balcão, e então, como ninguém aparecesse,
empurrou a porta dos fundos; no corredorzinho escuro, foi de encontro a Emmy, que vinha para a loja. A porta de fora fechou-se, deixando-os juntos, confinados na
escuridão de um espaço não maior que um armário. Muito desconcertado, Stephen não achava o que dizer, e de súbito o seu pulso começou a bater como um martelo. Ela
estava em pé a seu lado, tão perto que ele podia sentir-lhe o calor, e uma estranha e repentina emoção fez a sua garganta se apertar. Ela o observava impassível,
sem surpresa, embora o seu íntimo torvelinho lhe fosse perfeitamente aparente; deu-lhe um sorriso frio, crítico.
- Que veux-tu?
O duplo sentido da pergunta trouxe-lhe uma onda de calor. Houve uma pausa, durante a qual ele ouvia as rápidas e altas batidas do seu coração. Numa voz não natural,
respondeu:
- Queria que soubesse... que eu trouxe as bicicletas de volta.
- Fizeram um bom passeio? - Ela continuava a observá-lo conscientemente, olhos apertados, meio divertida com a sua emoção, embora não participando dela.
- Sim, obrigado.
Silêncio outra vez. Ela não fazia nenhum gesto para se mover. Afinal, com grande esforço, ele pôs a mão na porta às suas costas e empurrou-a.
- Espero - gaguejou ele como um colegial - espero vê-la novamente. Envergonhado e muito tenso, tentou sem sucesso afastá-la da mente. Mas ela crescia cada vez que
a via - ocasiões que se tornaram frequentes desde que, com a chegada da primavera, Glyn insistia em exercícios regulares
semanais. Sentia-se ao mesmo tempo atraído e repelido por Emmy. Desejava muito pedir-lhe que posasse para ele, mas não podia chegar a dizê-lo com tantas palavras.
Uma oportunidade favorável parecia não surgir nunca. Ela permanecia como um enigma não decifrado, um sentido procurado e não achado, uma estranha irritação no fundo
do seu espírito.
E o tempo ia passando com desconcertante rapidez. À medida que os dias iam ficando mais compridos, e os castanheiros rebentavam em flores outra vez, ele percebia
que este ano de graça em breve estaria acabado. Mais e mais as cartas de Stillwater, de seu pai, de Davie, e de Claire, começavam a antecipar o seu regresso, a pedi-lo
mesmo, com crescente urgência.
Julho chegou, e do céu brônzeo um ar abafado pesava sobre a cidade. Glyn, que detestava o tempo de calor, resistiu por duas semanas, depois resolveu subitamente
ir para a Bretanha com Anna, vagabundear por lá, e pintar Calveries. Os Lamberts já tinham partido para La Baule e agora Chester ia encontrar-se com eles. Até Peyrat
falava em desertar de Paris. O aluguel do apartamento terminava em agosto e ele planejava ir ver um tio em Auvergne.
Tanto Richard como Peyrat insistiram para que Stephen os acompanhasse. Mas ele não podia aceitar - uma carta final, com um ressaibo de severidade, tinha chegado
do Reitor, na qual ele esperava que Stephen não "recuasse da palavra empenhada" nem se deixasse deter pelos "divertimentos e atrações de Paris",
Depois de a ler, Stephen atirou os seus pincéis sobre a mesa e saiu para a rua. Poderia ter ido ao Bois, onde sempre havia sombra embaixo das árvores, mas o seu
humor, deprimido e irritável, proibia-o. Em vez disso, apesar da sua fadiga e de uma sensação de estar absolutamente exausto, caminhou direto para cidade, através
de quilómetros de ruas monótonas. Lojas e cafés em todo o caminho, grandes a princípio, gradativamente menores. Quase todas vazias. Numa delas, deserta, um garçom,
com a cabeça nos braços, dormia numa mesa. Stephen passou por baixo das pontes da estrada de ferro, pelos trilhos serpenteantes do grande Terminal, atravessou canais;
finalmente, passado o octroi, encontrou-se num ermo poeirento fora das barreiras de Paris. A esse tempo, pingava de suor e continuava a repetir para si mesmo:
- Meu Deus, que vida... E papai pensa que os meus dias são uma ronda de prazer.
Quando voltou, parou na agência postal do Plaisance e escreveu um telegrama.
DESMONDE, REITORIA, STILLWATER, SUSSEX. ATRAVESSANDO BARCO CEDO AMANHÃ DEZENOVE JULHO.
STEPHEN.
CAPÍTULO X
NADA, PENSAVA STEPHEN, excede a alegria de revisitar os amados lugares familiares, meio esquecidos, agora vistos mais belos do que antes. Estendido na relva da ribanceira
do Lago Chillingham, com uma vara de pescar a seu lado, aquecido pelo sol da tarde, estava observando Davie lançar um peixinho prateado, ainda desajeitado, mas com
uma seriedade que traduzia aperfeiçoamento, entre os lírios floridos, debaixo de cuja frescura estava um lúcio escuro. O ar era claro e dourado, havia flores silvestres
por toda a parte, as árvores ostentavam a sua mais ampla e tenra folhagem; nas sarças, as rosas-de-cão, de um róseo delicado, exalavam o seu perfume, que se misturava
com o denso aroma das rainhas-dos-prados. Pombos revoavam distantes lá em cima e, da granja familiar, em Broughton Park, ele ouvia o cacarejo das aves.
Era difícil perceber que estava em casa havia duas semanas. Desde aquele momento em que, em Halborough, tinha sido recebido por Davie e Caroline - uma combinação
feita com delicada discrição - tudo corria tão maciamente que o tempo parecia voar. Sim, era bom estar de volta - se pelo menos não o tratassem como o filho pródigo
agora perdoado e que devesse ser mantido a todo o custo pela bondade. Desjejum na cama, o Times do seu pai fechado na bandeja - até ele protestar dizendo que preferia
levantar-se e tomar café com Davie lá embaixo; seus pratos prediletos no almoço e jantar, Beasley trabalhando mais horas na cozinha, Mould trazendo cestas de frutos
escolhidos; seus desejos atendidos, excursões planejadas; claramente, todos os membros da família estavam unidos num esforço diplomático para desarmá-lo.
O assunto da sua pintura não era discutido - estava morto desde a primeira noite, quando, a pedido do Reitor, mostrou as suas telas. Com uma contração do cenho,
entre uma carranca e um sorriso, ele reconheceu quão honestamente, embora de modo vão, o pai tentara aprovar o seu trabalho, perplexo diante de tudo o que via, o
olho assustado indo descansar, em particular, numa cena de banlieue que mostrava uma mulher pendurando um varal de roupa no fundo do seu quintal num dia de vento.
- Meu caro rapaz... você acha isto... belo?
- Sim. É um dos meus prediletos.
- Mas não compreendo. Por que tem que pintar uma corda de roupa?
- É a interação dos tons brilhantes, papai... contra o fundo sombrio, o vestido cinza e branco da velha...
Procurou explicar a base da sua ideia e como as cores puras eram aplicadas com uma espátula. Contudo, era claro que o Reitor continuava perplexo e não convencido.
Seguiu-se uma longa pausa. Por fim, depois de um último exame, seu olhar voltou-se dúbia e ainda inquisidoramente para ele.
- Suponho que um perito possa apreciar isto.
- Acho que pode.
A seguir, a consideração suplantou a crítica. Caroline, muito mais terna à sua maneira, tinha passado as suas roupas, costurado os botões da camisa, e a sua mãe,
estimulada no seu mundo solitário e peculiar, subitamente descobrira e declarara que usaria um novelo de lã com o qual, desde que ele estava em Oxford, pensava tricotar-lhe
umas meias.
Tinha sido, na maior parte, um grupo familiar restrito - para alívio de Stephen, o General Desmonde e sua mulher estavam na Escócia com Geoffrey, caçando - mas nesta
tarde, sabendo que ele e Davie tinham que estar em Chillingham, Lady Broughton convidara-os para o chá.
Com um olhar para o sol, agora obliquando na crista dos Downs, Stephen achou que era melhor saírem logo. Levantou-se, caminhou ao longo da ribanceira e ficou atrás
do irmão, que, embora desse sinais de cansaço, ainda lançava a sua linha, perseverantemente, na água indiferente. A pesca, até agora, tinha sido fraca - três percas
amarelas tão pequenas que não satisfaziam o gato da Reitoria. Ciente do apaixonado ardor que Davie tinha por aquilo, e aliás por qualquer esporte ao ar livre - um
sentimento tão contrário à sua própria indiferença, tão comoventemente incoerente também, dadas as condições delicadas do rapaz e da sua saúde, que estava longe
de ser robusta - ele desejava que uma grande e digna truta se enganchasse no anzol. Podia muito bem ver a alegria e triunfo que essa captura causaria.
Mas embora esperasse pacientemente, com uma palavra ocasional de animação, não houve esse golpe de sorte. Davie, refletiu com momentânea tristeza, nunca tinha sorte.
E enquanto o seu jovem irmão enrolava a linha, passou-lhe um braço nos ombros e, louvando o seu progresso em lançar a vara, condenando os elementos desfavoráveis
do calor e da luz, finalmente, aumentando o valor dos três peixinhos agora curvados e secos na cesta, trouxe-o de volta para a alegria.
- Acho que estou melhor - disse Davie esperançoso. - Esforcei-me muitíssimo. E, como você diz, essas percas não são más. Acha que dão para cozinhar?
- Perfeitamente.
- De qualquer modo... são muito pequenas.
- Quanto menor, melhor - disse Stephen.
Ao saírem pelo prado, evitando o longo caminho em volta do Foxcross Corner e, uma vez que estava tão seco, atravessando os carriços mais baixos, Davie tagarelava
com a viva animação que era um traço do seu caráter. Tinha crescido muito ultimamente, parecia alto para 14 anos, e os seus membros tinham a descoordenação da idade
ingrata, fazendo parecer que caminhava aos arrancos. Contudo, a expressão do seu rosto delicado era menos febril do que antes, e os seus ataques, Stephen soubera
de Caroline, eram menos fortes, revelando uma firme mudança na frequência. Ouvindo com simpatia, observando o jogo de luzes sobre aquelas feições bem talhadas, Stephen
estava consciente de uma profunda onda de afeição por seu irmão. Tinham estado juntos quase continuamente durante as últimas duas semanas.
Saindo dos bosques, pularam a grade de ferro que cercava o parque, onde o gado pastava placidamente, e dali a pouco chegaram à avenida que, contornando o jardim
formal que margeava o relvado, acabou levando-os à própria mansão, uma grande edificação vitoriana de arenito vermelho maciço, corrompida por torres e torreões,
que Lady Broughton pretendia ser a casa mais alta de Sussex.
Foi ela quem os recebeu, reclinada numa chaise-longue junto às janelas francesas abertas ao sul da sala de estar, pedindo-lhes que desculpassem a sua aparente indolência
- seu médico andava ridiculamente severo com ela pondo-os imediatamente à vontade com o tranquilo calor da sua acolhida.
- Bem-vindo, Stephen. - Segurando-lhe a mão, olhou-o de alto a baixo.
- Cheio de conhecimento de coisas lindas. Sinto que não tenha uma barba. Acho que Paris fez-lhe bem. Pode beijar-me o pulso como um francês?
- Não estive estudando essa arte.
- Que pena! - sorriu ela. - Não é, Davie?
- Só será uma pena se meu irmão voltar para lá, Lady Broughton.
- Bem dito. Você vê como estamos contentes em tê-lo de volta em casa outra vez, Stephen. Como prova disso, eu lhes darei pães de milho de Sussex no chá. Lembra-se
como gostava deles quando tinha a idade de Davie?
- Lembro-me, e muito! Ainda gosto. E Davie também.
Lady Broughton sorriu, e continuou a caçoar amavelmente. Contudo, ouvindo-a calado, Stephen notava a mudança por que ela passara. Sempre gostara daquela mulher,
baixa, de cores vivas, sem qualquer aparência de distinção, cuja boa e enérgica natureza e sólido bom senso transpareciam em todas as suas ações. E agora causava-lhe
mágoa aquela atitude passiva, aquela respiração rápida, o leve tom purpurino em suas faces sempre vívidas.
- Claire deve chegar logo - disse ela. - Atrevo-me a dizer que ela fará a sua entrada com uma cesta de rosas, como algo pintado por Gainsborough.
Quase como dissera a mãe, Claire entrou, não do jardim, nem com flores, de cabeça descoberta, não parecendo um Gainsborough mas antes um
Burne-Jones, no seu vestido de linho de corte quadrado no pescoço, de uma cor de burel que combinava com os seus cabelos vermelho-dourados. Embora tivesse sem dúvida
esquecido, Stephen disse imediatamente que ela condizia com aquela rica sombra pré-rafaelita.
A sua postura era admirável. Ninguém teria adivinhado quão rápido batia o seu coração, ou há quanto tempo ela esperava por este momento.
- Claire - fez Stephen dirigindo-se para ela.
- É tão bom ver você - disse ela. - E você, Davie.
Esperava que a ligeira cor que sentia subir-lhe às faces passasse despercebida. Vê-lo outra vez, sentir o contato dos seus dedos punham a sua compostura à prova
mais do que ela poderia esperar.
Nesse momento, foi servido o chá, não um repasto frugal de biscoitos e pão fino e manteiga, mas uma regular fartura colegial de ovos cozidos e pão de minuto, sanduíches
e pãezinhos de milho, com morangos e nata batida à Sussex, tudo disposto sobre uma mesa de pau-cetim com rodas.
- Achamos que você estaria com fome depois da pescaria - disse Claire a Davie.
- E estamos - concordou ele com entusiasmo. - Nosso lanche não foi grande coisa.
Segurou a xícara que Claire enchera e, polidamente, embora com certa ternura, levou-a a Lady Broughton antes de sentar-se.
- Obrigada, Davie. - Rompendo o ligeiro constrangimento, comentou, na sua maneira arreliante: - Claire, não acha que Stephen está com o ar de um parisiense?
- Está mais magro, talvez. - Que estúpida resposta! Mas ele estava em casa - e a inquietante doçura desse pensamento banhava de luz os seus olhos.
- Não acho que a comida francesa seja muito nutritiva - arriscou Davie seriamente. - Eu pelo menos não quero caracóis nem pernas de rã, ou coisas assim.
Todos riram-se, e depois que eram um alegre bando, Davie, como para provar a virtude da dieta anglo-saxã, empenhou-se numa viva discussão com Claire sobre os métodos
de apanhar lúcios, no fim da qual ambos concordaram que num dia como aquele uma isca artificial seria muito melhor que um barrigudinho prateado.
- Acho que há algumas dessas iscas no salão de bilhar - disse Claire, e após um momento de reflexão ajuntou: - Não gostaria de tê-las?
- Ora, ora... - murmurou Davie. - Mas não são para você? Quero dizer... está falando sério?
- Estou sim. Ninguém as usa. Venha comigo e daremos uma olhada. Perguntando se poderia ser desculpado, Davie levantou-se com alacridade e abriu a porta para Claire.
Saíram juntos.
Logo depois, Lady Broughton olhou meditativamente para Stephen, de quem ela sinceramente sempre gostara e por quem, na verdade, tinha admiração. O fato de ele ter
deixado a Igreja absolutamente não a perturbava - com uma natureza tão sensível, apaixonada e tímida, ela não o considerava talhado para ser um pastor rural. Nem
as suas recentes aventuras artísticas lhe causaram grande inquietação. Encarava-as apenas como um capricho passageiro, uma tendência temporária herdada sem dúvida
das excentricidades do lado materno - estava bem lembrada de como, quando era criança, ficara petrificada pelas coloridas extravagâncias do digno pai da Sra. Desmonde
- e que de modo algum diminuíam a finura essencial do caráter de Stephen. Contudo, era menos esta genuína atenção do que o seu conhecimento dos sentimentos de Claire
que a fazia desejar dizer alguma coisa compatível com a boa educação que pudesse trazer o assunto à baila. Naqueles últimos meses, tinha observado com simpatia a
indiferença e desatenção da sua filha, e notado também, não sem desconfiança, os seus esforços ocasionais para romper aquela disposição pensativa e achar distração
em atividades que lhe eram inteiramente alheias. Recentemente, Geoffrey Desmonde tinha sido um visitante persistente, e, quando menos pela maneira com que arrastava
as suas frases, Lady Broughtpn o detestava. Considerava-o estereotipado e banal, afetado, presumido e mimado; e tendo sido casada com um homem cuja pesada obtusidade
tinha feito da sua vida, por mais de 20 anos, uma penitência, não desejava semelhante destino para Claire.
Foi sem dúvida essa ordem de ideias que a levou a observar:
- Não tinha visto a sua prima desde que voltou?
- Não. Todo o pessoal do Simla parece estar na Escócia.
- Geoffrey tem dado muitos tiros por aqui.
- Ele gosta disso. Tem caçado?
- Claire e ele têm corrido bastante pelos Downs. Andam Juntos muitas vezes. Acho que a levou a Brooklands outro dia... para as corridas de automóveis.
- Não sabia que Claire se interessava por tais coisas.
- Não acho que ela se interesse... mas não fica bem recusar - disse Lady Broughton sorrindo.
Na pausa que se seguiu, inclinou-se ligeiramente para ele e continuou num tom que, embora confidencial, manteve deliberadamente casual.
- Preocupo-me um pouco com ela, Stephen. É uma pessoa tão quieta e introspectiva, se quiser - amiga, mas que não sabe fazer amigos. Para estar contente, ela precisa
do tipo certo de companhia - ou vou mais adiante e digo - o tipo certo de marido? Não preciso lhe dizer que não estarei aqui para sempre. Muito em breve, Claire
pode ficar só. E embora ela ame este lugar, são muitas as responsabilidades - que pode achar difícil assumir...
Não dissera nada de definido, nada que pudesse de qualquer modo embaraçá-lo, contudo não havia como se enganar quanto à sua intenção. Na verdade, antes que ele pudesse
falar, ela prosseguiu, colocando os dedos de veias ligeiramente inchadas no seu ombro.
- Acho que foi sensato passar aquela temporada em Paris. E o seu excelentíssimo pai foi sensato em deixá-lo ir. Nos meus dias, os jovens sempre faziam a grande excursão.
Isso não apenas era considerado uma necessidade virtual, mas tirava muitas coisas do seu sistema. Eles voltavam, estabeleciam-se como bons proprietários rurais e
constituíam uma família. Isso é precisamente o que você deve fazer, Stephen.
- Mas supondo... - Ele evitava o seu olhar, com uma ligeira cor nas faces. - Supondo que sinta que devo ir ao estrangeiro outra vez?
-Para quê?
- Para continuar a estudar... e trabalhar.
- Em quê?
- Pintura.
Ela abanou a cabeça e deu-lhe uma indulgente palmadinha na mão.
- Meu caro rapaz, quando eu era jovem e romântica, pensava que poderia escrever poesia, e escrevi, para minha vergonha. Todavia, livrei-me disso. E assim será com
você.
O argumento parecia conclusivo, e ela acomodou-se na sua almofada. Antes que Stephen pudesse responder, Davie entrou na sala com Claire, trazendo uma caixa de metal
laqueado.
- Veja, Stephen, o que Claire me deu. Todas estas belas iscas. Até giradores e bóias. E esta caixa impermeável.
- Não se esqueça - sorriu Claire - que eu espero muitos peixes.
- Agora vai ser fácil. Eu gostaria que a escola não reabrisse tão cedo.
- O inverno não é a melhor época para o lúcio?
- É, sim. E eu estarei à espera dos feriados de Natal.
- Bem, lembre-se de vir tomar chá sempre que estivermos em Chillingham.
Stephen levantou-se, preparando-se para se despedir, tocado pela bondade de Claire com Davie, por sua quieta amabilidade, aparente, mesmo com o seu ar reservado,
em cada palavra ou gesto. Os últimos lampejos da tarde douravam o comprido salão com suas colunas, não belo, mas acolhedor, encantador, com o sentimento de uma velha
casa de campo. Além das janelas, os escuros relvados mas ainda visíveis, sombreados pelo grande cedro, os bosques de faias com os telhados vermelhos das choupanas,
lá no alto, e mais longe, ondeando como o mar, os verdes Downs.
A caminho de casa, Davie achou o seu irmão estranhamente silencioso. Depois de relancear os olhos para ele uma ou duas vezes, disse:
- É formidável no Court. Você não deseja ir lá mais vezes?
Mas Stephen não respondeu.
CAPÍTULO XI
NA TERÇA-FEIRA SEGUINTE, o almoço na Reitoria estava quase terminado. Tinha sido uma refeição um tanto opressiva para Davie, já formalmente vestido, que devia voltar
à escola nessa tarde. Contudo, olhando em torno, Stephen sentia uma tensão maior do que a exigida pela ocasião, um ar geral de conspiração e expectativa. Sentia
também uma intensificação daquela intangível coerção, que, disfarçada em uma nuvem de afeição, vinha envolvendo-o de quando em quando durante as últimas duas semanas.
O Reitor, que já tinha consultado o relógio três vezes nos últimos cinco minutos, tornou a fazê-lo, terminou o seu café e, sem fitar ninguém em particular, disse:
- Acontece que o Sr. Munsey Peters está nas vizinhanças. Infelizmente não pôde vir almoçar. Mas eu o convidei a vir pouco depois.
- Que interessante, papai - murmurou Caroline, com os olhos no prato.
- Está se referindo - perguntou a Sra. Desmonde no tom de quem fora instruída a perguntar - a Munsey Peters?
- Isso mesmo. Conhece o Sr. Peters, Stephen? - Inatento, cortando uma careta numa casca de laranja para Davie, Stephen levantou os olhos, certo de que seu pai se
dirigira a ele.
- Sim, é membro da Academia Real.
Houve uma pausa. Contido, com a expressão subitamente fixa, Stephen esperava que Bertram caísse na armadilha.
- Achamos que ele podia ter vontade de olhar os seus quadros.
Houve outro silêncio, que Caroline se apressou em romper, com um ar de inteligência.
- Não é ótimo, Stephen? Agora você pode se valer do conselho dele.
- Acredito - disse a Sra. Desmonde - se a memória não me falha, que há uma paisagem de Peters no Salão Pump, em Cheltenham. Está pendurada sobre a Fonte de Chalybeate.
Uma vista das colinas de Malvern com uma ovelha. Cheia de vida.
- Ele está na primeira fila - concordou Bertram.
- Não há também um livro, papai - interpôs Caroline - algo como De Rafael a Reynolds, ou coisa parecida?
- Ele escreveu muitos livros sobre arte. O mais conhecido intitula-se A Arte pela Arte.
- Devo procurá-lo na biblioteca - murmurou Caroline.
- Você não se importa se mostrarmos a ele as suas pinturas? - O Reitor voltou-se para o filho com uma nova firmeza. - Desde que se apresentou a oportunidade, seria
sensato pedir-lhe a opinião.
Stephen empalidecera. Não respondeu por um momento.
- Mostre-lhe qualquer coisa que quiser. Sua opinião não tem nenhum valor.
- O quê? Munsey Peters é um académico famoso. Exibe regularmente há 15 anos.
- Que significa isso? Não posso imaginar nada mais mortal, mais vulgar e idiota do que as suas pinturas.
Bruscamente Stephen rompeu o seu silêncio, sentindo que o julgariam invejoso e com medo. Então, ao voltar-se, ouviu um som de rodas e, pela janela, viu um cabriolé
de aluguel chegando à porta da frente. Um homem baixo, tornado mais baixo por um vasto sombrero preto e uma capa preta do Inverness, desceu rápido do cabriolé, olhou
em volta e tocou a sineta. Bertram levantou-se e, acompanhado pela mulher e Caroline, foi a saguão. Stephen permaneceu sentado à mesa, vendo muito bem que tudo aquilo
fora arranjado - ele tinha vindo especialmente de Londres. A julgar por suas roupas, Peters não estava absolutamente visitando o campo - tinha vindo expressamente
de Londres, mas fora comissionado, sem dúvida por tal ou qual preço - vinha especialmente de Londres como um cirurgião chamado à cabeceira de uma pessoa gravemente
enferma, cujo diagnóstico era uma questão de vida ou morte.
Um toque tranquilizador no ombro acordou-o. Era Davie.
- Não é melhor irmos agora? Não se aborreça, Stephen, aposto que você vai sair por cima.
Na sala de estar, construída originalmente como um parlatório retangular e posteriormente afeada por janelas de sacadas vitorianas abertas ao lado oeste, Munsey
Peters estava sentado no sofá, gorducho, de cara lisa, solicitamente oficioso, já no centro de uma plateia inteligente.
Quando Stephen entrou, girou e estendeu-lhe uma mão amável.
- Então este é o seu jovem cavalheiro? Prazer em conhecê-lo, senhor. Stephen apertou-lhe a mão, dizendo a si mesmo, apesar do conflito de emoções no seu peito, que
não devia ter ódio àquele visitante indesejável, que sem dúvida era uma pessoa honesta e estimável, agindo de boa fé. Contudo, conhecendo o trabalho de Peters, que
sempre recebia destaque na imprensa e
muitas vezes era reproduzido nos melhores semanários, aquelas suas paisagens lanudas e interiores betuminosos, tresandando a sentimentalismo e cheios daquele claro-escuro
que Glyn tinha profanamente descrito como siena queimada e merde, Stephen não podia reprimir uma aversão instintiva, aumentada e não diminuída por aquele homenzinho
de aparência presumida e maneiras seguras, que, embora um tanto menos que assertivo, estava odiosamente satisfeito consigo mesmo. Recusara o almoço, tendo "satisfeito
o homem interior"
- suas próprias palavras - no vagão-restaurante que sempre acompanhava o expresso do meio-dia, mas, diante da insistência, consentiu em tomar café. E, balançando
a xícara nos joelhos, de pernas cruzadas, sapatos com polainas, dirigiu a Stephen uma série de perguntas agradáveis, exatamente como faria um notável académico para
deixar um neófito nervoso.
- Então esteve em Parri, hein?
- Sim. Pouco menos de um ano.
- Trabalhando duramente, espero, na cidade alegre. - Isto, com um olhar de humor velado para os outros; então, como Stephen não respondesse:
- Com quem estudou?
- No começo... com Dupret.
- Ah! E que pensa ele do amigo?
- - Eu realmente não sei. Deixei-o depois de poucas semanas.
- Hum! Hum! Isso foi um engano. - E, num tom intrigado: - Quer dizer que ficou a maior parte do tempo por sua própria conta? Não pode ter aproveitado muito dessa
maneira.
- Ao menos aprendi o quanto a força de vontade, a disciplina e a intensa aplicação são necessárias para fazer um bom artista.
- Ora! Isso é muito fino. Mas, e o aprendizado?
A frieza da voz de Stephen era provocante.
- Há certos elementos essenciais. Já os acentuei muitas vezes no meu livro. Ouso dizer que ele fez parte do seu estudo.
- Receio que não. Estive estudando no Louvre.
- Oh, copiando - exclamou Peters contrariado. - Isso não é bom. Um artista procura ser original acima de tudo.
- Contudo, todos os grandes artistas influenciaram uns aos outros - argumentou Stephen diretamente. - Rafael provém de Perugino, El Greco de Tintoretto, Manet de
Franz Hals. Todos os pós-impressionistas se ajudaram uns aos outros. A lista seria interminável. Porque, se me perdoa, vemos no seu próprio trabalho Leighton e Poynter.
A menção desses dois artistas, tão famosos na época vitoriana e agora esquecidos, trouxe ao rosto de Munsey Peters uma expressão confusa, como se mal pudesse saber
se a intenção era de louvor ou insulto.
A Sra. Desmonde, sempre diplomática, rompeu o silêncio.
- Deixe-me oferecer-lhe mais café.
- Não, obrigado - e devolveu-lhe a xícara. - Na verdade, tenho pressa, deixei o meu veículo à espera. Podemos entrar no assunto sério do dia?
- Com muito gosto. - Bertram, um apreensivo observador daquele choque de temperamentos, fez um sinal a Davie, que deixou a sala num pulo. Quase imediatamente voltou,
trazendo o primeiro quadro, uma vista do Sena em Passy, que colocou sobre uma cadeira de alto espaldar posta adrede em boa luz e diante do sofá.
Impondo silêncio com um dedo nos lábios, Munsey Peters ajustou o pincenê. Estudou a pintura intensa e longamente, inclinou a cabeça em vários ângulos; então, dramaticamente
fez um gesto para Davie, que a retirou, colocou-a junto à janela e trouxe a seguinte. Para Stephen, parado lá atrás com uma expressão insensível e um latejar doloroso
no coração, era uma experiência martirizante, uma crua exposição da sua delicada sensibilidade.
Olhou em torno para o círculo doméstico - o pai, sentado, muito teso, com as pontas dos dedos fortemente unidas, as pernas cruzadas, um pé balançando em nervosa
expectativa; Caroline, na banqueta junto ao sofá, com uma ruga de ansiedade na testa, olhando para Peters, ora para o chão; sua mãe, sonhadoramente confortável numa
poltrona, de todo indiferente; e Davie, no colarinho branco engomado e roupa cinza-escura do colégio, o cabelo penteado para trás, olhos brilhantes, sem compreender
bem a questão, e contudo cheio de confiança em que seu irmão seria justificado.
Acabou-se afinal, a última pintura fora mostrada.
- Então? - exclamou Bertram.
Munsey Peters não respondeu imediatamente, mas, erguendo-se, fez uma nova inspeção nos quadros contra o peitoril oval da janela da sacada, como para afastar qualquer
impressão de que o seu julgamento era apressado ou inconsiderado. Uma tela em particular, a mulher com as suas roupas brancas, parecia perturbá-lo de modo especial;
vez por outra, quase furtivamente, os seus olhos voltavam àqueles ousados contrastes e cores vivas. Por fim, deixou cair o pincenê, seguro por uma fita de seda lavada,
e tomou posição no tapete da lareira.
- Que deseja que eu lhe diga?
- Meu filho tem... - Bertram respirou fundo - alguma chance de se tornar um pintor... posso dizer... de primeira categoria?
- Nenhuma.
Fez-se um silêncio mortal. Impulsivamente, Caroline lançou um olhar de simpatia para o irmão. O Reitor curvou a cabeça. Stephen, com a sombra de um sorriso, continuou
a olhar diretamente para Munsey Peters.
- Naturalmente - continuou ele - eu poderia ser polido. Mas entendi que o senhor queria a verdade. E nessas telas, que têm talvez um certo brio
rude, ignoram completamente as grandes tradições da pintura, tradições de propriedade e restrição, só posso encontrar... - encolheu os ombros - matéria para condolência
e pesar.
- Então - disse Bertram lentamente, como se estivesse determinado a se convencer - se forem, digamos, submetidas à Academia, acha que seriam recusadas?
- Meu caro senhor, como membro da comissão de exposição, não sei, não estou seguro. Acredite-me, dói-me extinguir as suas esperanças. Se o seu filho quiser continuar
isto como um passatempo... um hobby... isso é com ele. Mas profissionalmente... ah, meu caro senhor, a pintura é, para todos nós que vivemos dela, uma arte cruel.
Não há lugar para fracassos.
Bertram lançou um olhar cheio de compaixão para o filho, como esperando que ele protestasse, ao menos oferecesse alguma defesa do seu trabalho. Mas Stephen, com
a mesma sombra de um sorriso, e aquele ar de orgulhosa indiferença, mantinha-se calado.
- E agora, se me desculparem - disse Peters, curvando-se.
O Reitor pôs-se de pé.
- Estamos muito agradecidos ao senhor... mesmo que o seu veredicto tenha sido desfavorável.
Munsey Peters curvou-se novamente e, ao deixar a sala com modos graves e polidos, aceitou prestemente o envelope que Bertram, após murmurar umas palavras de escusas,
escorregou-lhe na mão - uma transação efetuada com tamanha destreza que ninguém pareceu notá-la, a não ser Stephen. Dali a pouco se ouviu o rangido do cabriolé.
O professor tinha partido.
Como se para poupar os outros, mais do que a si mesmo, do embaraço, Stephen foi para fora. Ali, andando de cá para lá, de cabeça descoberta, estava o Reitor. Tomou
imediatamente o braço do filho, com um aperto de simpatia, e, após atravessar as lajes, observou várias vezes:
- Tenho que ir à sacristia. Quer caminhar comigo?
Ao subirem juntos a alameda, Bertram continuou, sombriamente, sem um indício de autojustificação.
- Stephen, essa foi uma experiência dolorosa para você, e, em grau nSo menor, para todos nós. Mas era imperativo para mim saber a verdade. Espero que não me reprove.
- Claro que não. - A voz calma do filho causou a Bertram uma viva surpresa, seguida por um sentimento de oposição.
- Você aceitou a coisa muito bem, Stephen - como um verdadeiro Desmonde. Eu temia que pudesse ficar encolerizado comigo por lhe ter imposto esse teste sem aviso.
Mas se eu lhe tivesse dito de antemão, você poderia ter recusado...
- Sim, acho que recusaria.
- Você percebe que não foi questão de influência indevida, que a opinião de Munsey Peters foi inteiramente dele?
- Estou certo disso. Acho até que o nosso pequeno argumento no começo eriçou ligeiramente a sua plumagem. Mas não há sombra de dúvida - ele detestou a minha pintura
como veneno.
- Ah! - murmurou o Reitor condoído. - Pobre rapaz.
Chegaram à igreja; detendo-se na cancela, Bertram pousou a mão na efígie do cruzado, um gesto costumeiro de apoio, e encarou o filho.
- Pelo menos o caminho agora está claro... e não há nada contra o seu regresso para ser ordenado. Não quero pressioná-lo. Há a toga, os serviços militares. Contudo
- olhou em torno - o seu lugar é aqui, Stephen.
Uma pausa quase imperceptível.
- Acho que não compreende. Não vou abandonar a pintura.
- Mas que diabo quer dizer?
- Simplesmente que tomei uma resolução, irrevogável, que vou dedicar a minha vida inteiramente à arte.
- Mas você acaba de ter uma opinião... com mil diabos... de um perito.
- Essa nulidade idiota... roída por um rancor secreto! O fato de ele ter difamado o meu trabalho foi o maior cumprimento que podia me fazer.
- Você está louco? - Cólera e desalento levaram o sangue à testa de Bertram. - Ele é um dos melhores pintores da Inglaterra e pode vir a ser o próximo presidente
da Academia.
- O senhor não compreende, papai. - A despeito da tensão das suas feições, Stephen quase sorriu. - Peters não pinta coisa nenhuma. O seu trabalho é convencional,
sentimental, e sem um traço de originalidade. O sucesso dele é o de uma mediocridade intrometida. Ora, até as tapeações do velho Dupret, com a sua peinture léchée,
são mais toleráveis. O senhor não sentiu nojo dos seus chavões, sua afetação, suas mãos gordinhas? Ele marcha com o rebanho. O verdadeiro artista só pode cumprir
o seu destino sozinho.
Durante esse discurso, que lhe pareceu bombástico, o rosto de Bertram foi gradualmente endurecendo. Empedernia-se contra a dor que sentia no peito, e um imenso desejo
de tomar o filho nos braços.
- Para qualquer pessoa normal, a evidência é clara. Você deve aceitá-la.
- Não.
- Insisto.
- Tenho o direito de viver a minha própria vida.
- Não, se está disposto a arruiná-la.
Nenhum deles levantou a voz. O Reitor estava muito pálido, mas os seus olhos nunca se afastaram do rosto do filho. Por baixo de sua agitação havia uma firmeza que
Stephen nunca tinha visto.
- Por simples justiça, você não me deve alguma retribuição por tudo que tenho feito por você? Sem dúvida, você afeta desprezar uma coisa tão sórdida como o dinheiro.
Contudo, gastei na sua educação - a mais primorosa que qualquer filho podia desejar - um capital que eu mal podia despender. Estamos muito menos bem do que estávamos,
e é com dificuldade que mantenho Stillwater nos padrões a que estamos acostumados. Sempre esperei que esta medida não fosse necessária. No entanto, para seu próprio
bem, devo repô-lo no seu juízo. Sua pensão está suspensa. E você verá que é impossível continuar sem ela.
Um compasso de silêncio latejou na pequena igreja. Stephen baixou os olhos, deteve-os por um longo momento na efígie de pedra do seu ancestral que, à meia-luz, parecia
sorrir-lhe cinicamente. Olhando para a espada, os grandes guantes de malha, uma frase das leituras da sua infância lhe veio à memória: mão de ferro em luva de veludo.
E suspirou:
- Bem, papai, isso parece resolver a questão.
Bertram apanhou o seu diário na sacristia - a mão lhe tremia tanto que mal podia segurar o grosso volume, sendo obrigado a apertá-lo Contra o flanco. Deixaram a
igreja em silêncio.
Pelo resto da tarde, Stephen foi um modelo de complacência, animando os outros com a sua vivacidade e bom humor. Às seis horas, insistiu em ir com Davie à estação
e embarcou-o no trem, despachando-o com alegre afeição. Depois, voltando, com uma expressão diferente, foi à fila de veículos, onde um motorista estava com a sua
bagagem, secretamente introduzida na de Davie. No horário colado na frente do guichê, viu que um trem costeiro partia dentro de uma hora. Comprou uma passagem e
sentou-se à espera dele.